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SOLDADOS DE SALAMINA / Javier Cercas
SOLDADOS DE SALAMINA / Javier Cercas

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

SOLDADOS DE SALAMINA

 

                       OS AMIGOS DO BOSQUE

 

Foi no Verão de 1994, faz agora mais de seis anos, que ouvi falar pela primeira vez do fuzilamento de Rafael Sánchez Mazas. Três coisas acabavam de me acontecer por essa altura: a primeira foi o meu pai ter morrido; a segunda foi a minha mulher ter-me abandonado; a terceira foi eu ter abandonado a minha carreira de escritor. Minto. A verdade é que, dessas três coisas, as duas primeiras são exactas, exactíssimas; mas não a terceira. Na realidade, a minha carreira de escritor não havia maneira de arrancar, de modo que dificilmente poderia abandoná-la. Mais justo seria dizer que a tinha abandonado recém-iniciada. Em 1989 tinha publicado o meu primeiro romance; tal como o conjunto de contos surgido dois anos antes, o livro foi recebido com notória indiferença, mas a vaidade e uma resenha elogiosa de um amigo daquela época aliaram-se para me convencer de que poderia chegar a ser um romancista e de que, para o ser, o melhor era deixar o meu trabalho na redacção do jornal e dedicar-me totalmente a escrever. O resultado desta mudança de vida foi cinco anos de angústia económica, física e metafísica, três romances inacabados e uma depressão pavorosa que me prostrou durante dois meses numa poltrona, diante do televisor. Farta de pagar as facturas, incluindo a do enterro do meu pai, e de ver-me olhar para o televisor apagado a chorar, a minha mulher saiu de casa assim que comecei a recuperar, e eu não tive outro remédio senão esquecer para sempre as minhas ambições literárias e pedir a minha reintegração no jornal.

Acabava de fazer quarenta anos, mas felizmente - ou porque não sou um bom escritor, mas também não sou um mau jornalista; ou, mais provavelmente, porque no jornal não dispunham de ninguém que quisesse fazer o meu trabalho por um salário tão exíguo como o meu - aceitaram-me. Fui destacado para a secção de cultura, que é onde se colocam as pessoas que não se sabe onde colocar. Ao princípio, com o fim não declarado mas evidente de castigar a minha deslealdade - uma vez que, para alguns jornalistas, um colega que abandona o jornalismo para se dedicar ao romance acaba por ser pouco menos que um traidor -, fui obrigado a fazer de tudo, salvo trazer cafés do bar da esquina para o director, e só alguns colegas não incorreram em sarcasmos ou ironias à minha custa. O tempo acabou por atenuar a minha infelicidade: rapidamente comecei a redigir pequenos artigos, a fazer entrevistas. Foi assim que em Julho de 1994 entrevistei Rafael Sánchez Ferlosio, que naquele tempo estava a proferir, na universidade, um ciclo de conferências. Eu sabia que Ferlosio era extremamente relutante em falar a jornalistas, mas, graças a um amigo (ou melhor, a uma amiga desse amigo, que tinha organizado a estada de Ferlosio na cidade), consegui que acedesse a conversar um pouco comigo. Porque chamar àquilo entrevista seria excessivo; se o foi, foi também a mais estranha que fiz na minha vida. Para começar, Ferlosio apareceu na esplanada do Bistrot envolto numa nuvem de amigos, discípulos, admiradores e turiferários; este facto, unido ao descuido da sua indumentária e a um físico onde se misturavam de uma forma inextricável o ar de aristocrata castelhano envergonhado de o ser e o de um velho guerreiro oriental - a cabeça poderosa, o cabelo revolto e entremeado de cinza, o rosto duro, emaciado e difícil, de nariz judeu e faces sombreadas de barba - fazia que um observador desprevenido o tomasse por um guru religioso rodeado de acólitos. O pior é que, além disso, Ferlosio se recusou rotundamente a responder a uma única das perguntas que lhe formulei, alegando que nos seus livros tinha dado as melhores respostas de que era capaz. Isso não significa que não quisesse falar comigo; pelo contrário: como se tentasse desmentir a sua fama de homem insociável (ou talvez esta carecesse de fundamento), foi cordialíssimo e a tarde passou-se na conversa. O problema é que se eu, tentando salvar a minha entrevista, lhe perguntava (digamos) pela diferença entre personagens de carácter e personagens de destino, ele arranjava-se de maneira a responder-me com uma explanação sobre (digamos) as causas da derrota dos navios persas na batalha de Salamina, enquanto que, quando eu tentava arrancar-lhe a sua opinião sobre (digamos) os faustos do quinto centenário da conquista da América, ele respondia-me, ilustrando-me, com grande sortido de gestos e pormenores, acerca de (digamos) o uso correcto da plaina. Aquilo foi um bate-boca esgotante, e só na última cerveja daquela tarde é que Ferlosio contou a história do fuzilamento do pai, a história que me tem inquietado nos últimos dois anos. Não me lembro quem ou como trouxe à baila o nome de Rafael Sánchez Mazas (talvez tenha sido um dos amigos de Ferlosio, talvez o próprio Ferlosio). Lembro-me de que Ferlosio contou:

- Fuzilaram-no muito perto daqui, no santuário do Collell - olhou para mim. - Esteve aí alguma vez? Eu também não, mas sei que fica perto de Banyoles. Foi no fim da guerra. O 18 de Julho apanhara-o em Madrid e ele teve de se refugiar na embaixada do Chile, onde passou mais de um ano. Nos finais de trinta e sete fugiu da embaixada e saiu de Madrid escondido num camião, talvez com o objectivo de chegar a França. No entanto, detiveram-no em Barcelona e, quando as tropas de Franco chegaram à entrada da cidade, levaram-no para Collell, muito perto da fronteira. Aí o fuzilaram. Foi um fuzilamento em massa, provavelmente caótico, porque a guerra já estava perdida e os republicanos fugiam em debandada pelos Pirenéus, de modo que não creio que soubessem estar a fuzilar um dos fundadores da Falange, amigo pessoal de José António Primo de Rivera, além do mais. O meu pai conservava em casa a samarra e as calças com que o fuzilaram, mostrou-mas muitas vezes, se calhar ainda estão por aí; as calças estavam esburacadas, porque as balas só o roçaram e ele aproveitou a confusão do momento para desatar a correr, escondendo-se no bosque. Aí, refugiado num buraco, ouvia os latidos dos cães, os tiros e as vozes dos milicianos, que o procuravam sabendo que não podiam perder muito tempo a procurá-lo, porque tinham os franquistas pisando-lhes os calcanhares. A determinada altura, o meu pai ouviu um ruído de ramos atrás de si, deu a volta e viu um miliciano que o olhava. Então ouviu-se um grito: «Está por aí?» O meu pai contava que o miliciano ficou a olhar para ele alguns segundos e que depois, sem deixar de o olhar, gritou: «Por aqui não há ninguém!», deu meia volta e foi-se embora.

Ferlosio fez uma pausa e os seus olhos semicerraram-se numa expressão de inteligência e de malícia infinitas, como os de uma criança que reprime o riso.

- Passou vários dias refugiado no bosque, alimentando-se do que encontrava ou do que lhe davam nas fazendas. Não conhecia a zona e, além disso, os óculos tinham-se-lhe partido, de modo que quase não via; por isso dizia sempre que não teria sobrevivido se não fosse ter encontrado uns rapazes de uma povoação próxima, Cornellà de Terri chamava-se ou chama-se, uns rapazes que o protegeram e o alimentaram até terem chegado os nacionais (*1). Tornaram-se muito amigos e, depois de tudo acabado, ficou vários dias em casa deles. Não creio que tivesse voltado a vê-los, mas falou-me deles mais de uma vez. Lembro-me de que os tratava sempre pelo nome que tinham escolhido: «Os amigos do bosque».

Essa foi a primeira vez que ouvi contar a história, e dessa forma a ouvi contar. Quanto à entrevista com Ferlosio, acabei por conseguir salvá-la, ou talvez a tenha inventado: que eu me lembre, nela nem uma única vez se aludia à batalha de Salamina (e sim à distinção entre personagens de destino e personagens de carácter), ou ao uso exacto da plaina (e sim aos faustos do quinto centenário da descoberta da América). Também não se mencionava na entrevista o fuzilamento do Collell ou Sánchez Mazas. Do primeiro eu só sabia o que acabava de ouvir a Ferlosio; do segundo, pouco mais: naquele tempo não tinha lido uma única linha de Sánchez Mazas e o nome dele não era para mim mais do que o nome nebuloso de mais um dos muitos políticos e escritores falangistas que os últimos anos da história de Espanha tinham enterrado aceleradamente, como se os coveiros receassem que eles não estivessem totalmente mortos.

De facto, não estavam. Ou, pelo menos, não completamente. Como a história do fuzilamento de Sánchez Mazas no Collell e as circunstâncias que o rodearam me tinham impressionado bastante, após a entrevista com Ferlosio, comecei a sentir curiosidade por Sánchez Mazas; também pela guerra civil (da qual, até àquele momento,

 

(*1) Nacionais: termo com que se designa popularmente os nacionalistas, opositores dos republicanos durante a guerra civil espanhola. (N. da T.)

 

não sabia muito mais que da batalha de Salamina ou da utilização exacta da plaina), e pelas histórias incríveis que engendrou, que sempre me tinham parecido desculpas para a nostalgia dos velhos e carburante para a imaginação dos romancistas sem imaginação. Por acaso (ou talvez nem tanto), nessa altura estava na moda entre os escritores espanhóis vindicar os escritores falangistas. A coisa, de facto, vinha de trás, de quando, em meados dos anos oitenta, algumas editoras tão singulares como influentes publicaram um ou outro volume de algum singular falangista esquecido, mas, na altura em que eu comecei a interessar-me por Sánchez Mazas, em determinados círculos literários já não se vindicava apenas os bons escritores falangistas, mas também os vulgares e até os maus. Alguns ingénuos, tal como alguns guardiães da ortodoxia de esquerda, e também alguns tolos, denunciaram que vindicar um escritor falangista era vindicar (ou preparar o terreno para vindicar) o falangismo. A verdade era exactamente o contrário: vindicar um escritor falangista era apenas vindicar um escritor; ou, mais concretamente, era vindicar-se a si próprios como escritores vindicando um bom escritor. Quero dizer que essa moda surgiu, no melhor dos casos (dos piores não vale a pena falar), da necessidade natural que qualquer escritor tem de inventar uma tradição própria, de um certo afã de provocação, da certeza problemática de que uma coisa é a literatura e outra a vida e de que, consequentemente, se pode ser um bom escritor sendo uma péssima pessoa (ou uma pessoa que apoia e fomenta causas péssimas), da convicção de que se estava a ser literariamente injusto para com certos escritores falangistas, que, para dizê-lo com a fórmula recomendada por Andrés Trapiello, tinham vencido a guerra, mas tinham perdido a história da literatura. Seja como for, Sánchez Mazas não escapou a esta exumação colectiva: em 1986 publicaram-se pela primeira vez as suas poesias completas; em 1995 reeditou-se numa colecção bastante popular o romance La vida nueva de Pedrito de Andía; em 1996 reeditou-se também Rosa Kruger, outro dos seus romances que, de facto, permanecera inédito até 1984. Por essa altura, li todos esses livros. Li-os com curiosidade, mesmo com fruição, mas não com entusiasmo: não precisei de os reler muitas vezes para concluir que Sánchez Mazas era um bom escritor, mas não um grande escritor, embora aposte que não teria sabido explicar com clareza a diferença entre um grande escritor e um bom escritor. Lembro-me de que nos meses ou nos anos que se seguiram fui recolhendo também, ao sabor das minhas leituras, alguma notícia dispersa acerca de Sánchez Mazas ou mesmo alguma alusão, bastante sumária e imprecisa, ao episódio do Collell.

O tempo foi passando. Comecei a esquecer a história. Um dia, no início de Fevereiro de 1999, o ano do sexagésimo aniversário do fim da guerra civil, alguém do jornal teve a ideia de escrever um artigo comemorativo do final tristíssimo do poeta António Machado, que, em Janeiro de 1939, na companhia da mãe, do irmão José e de outras centenas de milhares de espanhóis espavoridos, empurrados pelo avanço das tropas franquistas, fugiu de Barcelona para Collioure, no outro lado da fronteira francesa, onde morreu passado pouco tempo. O episódio era bastante conhecido e, com razão, pensei que não haveria jornal catalão (ou não catalão) que, por essa data, não acabasse por invocá-lo. De modo que já me dispunha a escrever o consabido artigo rotineiro quando me lembrei de Sánchez Mazas e de que o seu fuzilamento frustrado tinha acontecido mais ou menos ao mesmo tempo que a morte de Machado, só que do lado espanhol da fronteira. Imaginei então que a simetria e o contraste entre esses dois factos terríveis - quase um quiasmo da história - talvez não fosse casual e que, se conseguisse contá-los sem prejuízo num mesmo artigo, o seu estranho paralelismo talvez conseguisse dotá-los de um significado inédito. Esta crença fortaleceu-se quando, começando a documentar-me um pouco, dei por acaso com a história da viagem de Manuel Machado até Collioure, pouco depois da morte do seu irmão António. Pus-me então a escrever. O resultado foi um artigo intitulado «Um Segredo Essencial». Como, à sua maneira, também é essencial para esta história, transcrevo-o em seguida:

«Cumprem-se sessenta anos sobre a morte de António Machado, no desfecho da guerra civil. De todas as histórias daquela história, a de Machado é, sem dúvida, uma das mais tristes, porque acaba mal. Foi contada muitas vezes. Vindo de Valência, Machado chegou a Barcelona em Abril de 1938, na companhia da mãe e do irmão José, e alojou-se, primeiro no Hotel Majestic e mais tarde na Torre de Castaner, um velho palacete situado no Paseo de Sant Gervasi.

Aí continuou a fazer o mesmo que tinha feito desde o início da guerra: defender com os seus escritos o governo legítimo da República. Estava velho, fatigado e doente e já não acreditava na derrota de Franco; escreveu: "Isto é o fim; qualquer dia Barcelona cairá. Para os estrategas, para os políticos, para os historiadores, está tudo claro: perdemos a guerra. Mas, humanamente, não estou tão certo... Talvez a tenhamos ganho". Quem sabe se terá acertado nesta última frase... Na primeira, fê-lo, sem dúvida. Na noite de 22 de Janeiro de 1939, quatro dias antes de as tropas de Franco tomarem Barcelona, Machado e a sua família partiam em caravana na direcção da fronteira francesa. Nesse êxodo alucinado acompanhavam-nos outros escritores, entre eles Corpus Barga e Carles Riba. Fizeram paragens em Cervià de Ter e em Mas Faixat, perto de Figueres. Finalmente, na noite de 27, depois de andarem seiscentos metros sob chuva, atravessaram a fronteira. Tinham-se visto obrigados a abandonar a sua bagagem; não tinham dinheiro. Graças à ajuda de Corpus Barga, conseguiram chegar a Collioure e instalar-se no hotel Bougnol Quintana. Passado menos de um mês, morria o poeta; a mãe sobreviveu-lhe três dias. No bolso do sobretudo de António, o seu irmão José encontrou algumas notas; uma delas era um verso, talvez o primeiro verso do seu último poema: "Estes dias azuis e este sol da infância".

A história não acaba aqui. Pouco depois da morte de António, o seu irmão, o poeta Manuel Machado, que vivia em Burgos, soube do facto pela imprensa estrangeira. Manuel e António não eram apenas irmãos: eram íntimos. A Manuel, a sublevação do 18 de Julho surpreendeu-o em Burgos, zona rebelde; a António, em Madrid, zona republicana. É razoável supor que, se estivesse em Madrid, Manuel teria sido fiel à República; talvez seja inútil interrogarmo-nos sobre o que teria acontecido caso António tivesse estado em Burgos. A verdade é que, assim que soube da notícia da morte do irmão, Manuel arranjou um salvo-conduto e, após viajar durante dias por uma Espanha calcinada, chegou a Collioure. No hotel, soube que a sua mãe também tinha morrido. Foi ao cemitério. Aí, diante das campas da mãe e do irmão António, encontrou-se com o seu irmão José. Conversaram. Dois dias mais tarde, Manuel regressou a Burgos.

Mas a história - pelo menos a história que hoje quero contar - também não acaba aqui. Mais ou menos ao mesmo tempo em que Machado morria em Collioure, fuzilavam Rafael Sánchez Mazas junto ao santuário do Collell. Sánchez Mazas foi um bom escritor; também foi amigo de José António e um dos fundadores e ideólogos da Falange. As suas peripécias na guerra estão rodeadas de mistério. Há alguns anos, o seu filho, Rafael Sánchez Ferlosio, contou-me a sua versão. Ignoro se se ajustará à verdade dos factos; eu conto-a tal como ele ma contou. Apanhado na Madrid republicana pela sublevação militar, Sánchez Mazas refugiou-se na embaixada do Chile. Aí passou uma grande parte da guerra; para o fim, tentou fugir escondido num camião, mas detiveram-no em Barcelona e, quando as tropas de Franco chegavam à cidade, levaram-no a caminho da fronteira. Não longe desta, deu-se o fuzilamento. As balas, no entanto, apenas o roçaram e ele aproveitou a confusão e fugiu, tentando esconder-se no bosque. Daí ouvia as vozes dos milicianos, acossando-o. Um deles acabou por descobri-lo. Olhou-o nos olhos. Depois gritou para os seus companheiros: «Aqui não há ninguém!» Deu meia volta e foi-se embora.

«De todas as histórias da História» - escreveu Jaime Gil - «sem dúvida a mais triste é a de Espanha, / porque termina mal.» Termina mal? Nunca saberemos quem foi aquele miliciano que salvou a vida de Sánchez Mazas, nem o que lhe passou pela cabeça quando o olhou nos olhos; nunca saberemos o que disseram um ao outro José e Manuel Machado diante das campas do irmão António e da mãe. Não sei porquê, mas às vezes penso para comigo que, se conseguíssemos descobrir um desses dois segredos paralelos, talvez nos aproximássemos também de um segredo muito mais essencial».

Fiquei bastante satisfeito com o artigo. Quando foi publicado, a 22 de Fevereiro de 1999, exactamente sessenta anos após a morte de Machado em Collioure, exactamente sessenta anos e vinte e dois dias após o fuzilamento de Sánchez Mazas no Collell (mas a data exacta do fuzilamento só a soube mais tarde), felicitaram-me na redacção. Nos dias que se seguiram, recebi três cartas; para minha surpresa - nunca fui um articulista polémico, desses cujos nomes se repetem com frequência na secção de cartas ao director, e nada levaria a pensar que alguns factos ocorridos há sessenta anos pudessem afectar demasiado alguém - as três referiam-se ao artigo. A primeira, que calculei ter sido redigida por um estudante de filologia da universidade, censurava-me ter insinuado no meu artigo (coisa que eu não achava ter feito, ou melhor, que, de todo, não achava ter feito) que, se António Machado tivesse estado na Burgos sublevada de Julho de 36, se teria colocado do lado franquista. A segunda era mais dura; fora escrita por um homem suficientemente idoso para ter vivido a guerra. Com uma gíria inconfundível, acusava-me de «revisionismo», porque a questão do último parágrafo, a que se seguia à citação de Jaime Gil («Termina mal?»), sugeria de uma forma quase velada que a história de Espanha termina bem, em sua opinião, coisa rigorosamente falsa. «Termina bem para os que ganharam a guerra», dizia. «Mas mal para quem a perdeu. Ninguém teve sequer um gesto de agradecimento para connosco, por termos lutado pela liberdade. Em todas as povoações há monumentos que comemoram os mortos da guerra. Em quantos deles viu figurar, ao menos, os nomes das duas facções?» O texto acabava desta forma: «É uma grande merda para a Transição! Atentamente: Mateu Recasens».

A terceira carta era a mais interessante. Era assinada por um tal Miquel Aguirre. Aguirre era historiador e, conforme dizia, andava há vários anos a estudar o que acontecera durante a guerra civil na comarca de Banyoles. Entre outras coisas, a sua carta dava conta de um facto que naquele momento me pareceu espantoso: Sánchez Mazas não tinha sido o único sobrevivente do fuzilamento do Collell; um homem chamado Jesus Pascual Aguilar também tinha escapado com vida. Mais: ao que parece, Pascual tinha referido o episódio num livro intitulado Eu fui assassinado pelos vermelhos. «Receio que o livro seja praticamente impossível de encontrar», concluía Aguirre, com uma inconfundível petulância de erudito. «Mas, se lhe interessar, eu tenho um exemplar à sua disposição.» No fim da carta, Aguirre tinha incluído os seus dados e um número de telefone.

Telefonei imediatamente a Aguirre. Depois de alguns mal-entendidos, pelos quais deduzi que trabalhava nalguma empresa ou organismo público, consegui falar com ele. Perguntei-lhe se tinha informações acerca dos fuzilamentos do Collell; disse-me que sim. Perguntei-lhe se continuava de pé a oferta de me emprestar o livro de Pascual; disse-me que sim. Perguntei-lhe se lhe apetecia almoçar comigo; disse-me que vivia em Banyoles, mas que todas as quintas-feiras vinha a Gerona para gravar um programa de rádio.

- Podemos marcar para quinta - disse.

Estávamos na sexta-feira e, com o objectivo de evitar a mim próprio uma semana de impaciência, estive prestes a propor-lhe que nos víssemos nessa mesma tarde, em Banyoles.

Apesar disso, respondi:

- De acordo.

E nesse momento lembrei-me de Ferlosio, com o seu ar inocente de guru e os seus olhos ferozmente alegres, falando do pai na esplanada do Bistrot. Perguntei: - Encontramo-nos no Bistrot?

O Bistrot é um bar da zona velha, de aspecto vagamente modernista, com as suas mesas de mármore e ferro forjado, as suas ventoinhas de pás, os seus grandes espelhos e as suas varandas saturadas de flores e abertas para a escadaria que sobe na direcção da Plaza de Sant Domènech. Na quinta-feira, muito antes da hora combinada com Aguirre, já estava sentado a uma mesa do Bistrot, com uma cerveja na mão; à minha volta fervilhavam as conversas dos professores da Faculdade de Letras, que costumam almoçar ali. Enquanto folheava uma revista, pensei que, ao combinarmos aquele almoço, nem Aguirre nem eu nos lembráramos de que um de nós devia levar um sinal de identificação, uma vez que não nos conhecíamos. E já começava a imaginar como seria Aguirre, ajudado apenas pela voz que há uma semana ouvira ao telefone, quando parou diante da minha mesa um indivíduo baixo, quadrado e moreno, de óculos e com uma pasta vermelha debaixo do braço; uma barba de três dias e uma perinha de mau pareciam comer-lhe a cara. Por alguma razão esperava que Aguirre fosse um velhote pachorrento e professoral, e não o indivíduo extremamente jovem e de ar ressacado (ou talvez excêntrico) que tinha à minha frente. Como não dizia nada, perguntei-lhe se ele era ele. Disse-me que sim. Depois perguntou-me se eu era eu. Disse-lhe que sim. Rimo-nos. Quando a empregada apareceu, Aguirre pediu arroz a la cazuela (*2) e entrecosto com molho roquefort; eu pedi uma salada e coelho.

 

(*2) Arroz a la cazuela: arroz com refogado, legumes, carne ou peixe, cozido numa caçarola ou num tacho de barro, semelhante à paella e ao arroz à valenciana. (N. da T.)

 

Enquanto esperávamos pela comida, Aguirre disse que me tinha reconhecido pela fotografia da contracapa de um dos meus livros, que lera há algum tempo. Superado o primeiro espasmo de vaidade, comentei rancorosamente:

- Ah, foste tu?

- Não percebo.

Fui obrigado a esclarecer:

- Era uma piada.

Eu estava desejoso de entrar no assunto, mas, porque não queria parecer descortês ou demasiado interessado, perguntei-lhe pelo programa de rádio. Aguirre deu uma gargalhada nervosa que lhe revelou os dentes: brancos e desiguais.

- Parte-se do princípio de que é um programa de humor, mas na realidade é uma estupidez. Eu interpreto um comissário fascista que se chama António Gargallo e que redige relatórios sobre os entrevistados. Na verdade acho que estou a apaixonar-me por ele. Naturalmente, não sabem nada disto na câmara municipal.

- Trabalhas na câmara de Banyoles?

Aguirre confirmou-o, entre envergonhado e pesaroso.

- Como secretário do presidente - disse. - Outra estupidez. O presidente é um amigalhaço, pediu-me e eu não soube recusar. Mas assim que acabar esta legislatura, desapareço.

Há pouco tempo que a câmara de Banyoles estava nas mãos de uma equipa de gente muito nova, da Esquerra Republicana de Catalunya, o partido nacionalista radical. Aguirre disse:

- Não sei qual será a sua opinião, mas acho que um país civilizado é aquele em que não temos necessidade de perder tempo com a política.

Acusei o «você», mas não me desmanchei. Em vez disso lancei-me à corda que Aguirre me atirava e agarrei-a no ar:

- Exactamente o contrário do que acontecia em 36.

- Nem mais nem menos.

Trouxeram a salada e o arroz. Aguirre apontou para a pasta vermelha.

- Fotocopiei-lhe o livro de Pascual.

- Conheces bem o que aconteceu no Collell?

- Bem, não - disse. - Foi um episódio confuso.

Enquanto devorava grandes bocados de arroz empurrados por copos de tinto, Aguirre falou-me, como se considerasse indispensável pôr-me a par dos antecedentes, dos primeiros dias de guerra na comarca de Banyoles: do fracasso previsível do golpe de Estado, da revolução subsequente, da selvajaria incontrolável dos comités, da queima maciça de igrejas e do massacre de religiosos.

- Embora já não esteja na moda, continuo a ser anticlerical; mas aquilo foi uma loucura colectiva - comentou. - Claro que é fácil encontrar as causas que a explicam, mas também é fácil encontrar as causas que explicam o nazismo... Alguns historiadores nacionalistas insinuam que quem queimava as igrejas e matava os padres era gente de fora, imigrantes e assim. Mentira: eram de cá e, três anos depois, mais de um deles recebeu os nacionais dando vivas. Claro que, se perguntarmos, ninguém lá estava quando deitaram fogo às igrejas. Mas isso é outro assunto. O que me chateia são aqueles nacionalistas que ainda andam por aí tentando vender a patranha de que isto foi uma guerra entre castelhanos e catalães, um filme de índios e cowboys.

- Julguei que eras nacionalista. Aguirre deixou de comer.

- Eu não sou nacionalista - disse. - Sou independentista.

- E qual é a diferença entre as duas coisas?

- O nacionalismo é uma ideologia - explicou, endurecendo um pouco a voz, como se o incomodasse ter de esclarecer o que era óbvio. - Nefasta em minha opinião. O desejo de independência é apenas uma possibilidade. Como é uma crença, e sobre as crenças não se discute, sobre o nacionalismo não se pode discutir; sobre o desejo de independência sim. Você pode achar razoável ou não. A mim parece-me sê-lo.

Não consegui suportar mais.

- Preferia que me tratasses por tu.

- Desculpa - disse. Sorriu e continuou a comer. - Estou habituado a tratar por você as pessoas mais velhas.

Aguirre continuou a falar da guerra; deteve-se pormenorizadamente nos últimos dias, quando, com as câmaras e a Generalitat inoperantes há meses, reinava na comarca uma desordem provocada pela fuga precipitada: estradas invadidas por intermináveis caravanas de fugitivos, soldados com uniformes de todas as patentes vagueando pelos campos e entregues ao desespero e à rapina, montes enormes de armas e de munições abandonadas nas valetas... Aguirre explicou que naquele momento estavam encerrados no Collell, que, desde o início da guerra, tinha sido convertido numa cadeia, cerca de mil presos, e que todos ou quase todos eram provenientes de Barcelona: tinham sido transferidos para aí, face ao avanço imparável das tropas rebeldes, por se tratar dos mais perigosos ou dos mais implicados com a causa franquista. Ao contrário de Ferlosio, Aguirre pensava que os republicanos sabiam quem estavam a fuzilar, porque os cinquenta que escolheram eram presos bastante significativos, gente que estava destinada a desempenhar cargos de relevância social e política depois da guerra: o chefe provincial da Falange em Barcelona, dirigentes de grupos quinta-colunistas, financeiros, advogados, sacerdotes, a maior parte dos quais tinha sofrido cativeiro nas checas (*3) de Barcelona e mais tarde nos barcos-prisão como o Argentina e o Uruguay.

Trouxeram o entrecosto e o coelho e levaram os pratos (o de Aguirre tão limpo que brilhava). Perguntei:

- Quem deu a ordem?

- Que ordem? - perguntou Aguirre por sua vez, observando com avidez o seu enorme entrecosto, com o garfo e a faca de carniceiro em riste, pronto para o atacar.

- A de fuzilá-los.

Aguirre olhou-me como se, por um momento, se tivesse esquecido de que eu estava à sua frente. Encolheu os ombros e inspirou fundo, ruidosamente.

- Não sei - respondeu, expirando enquanto cortava um bocado de carne. - Creio que Pascual insinua que foi dada por um tal Monroy, um tipo jovem e duro que talvez dirigisse a prisão, porque em Barcelona tinha dirigido também checas e campos de trabalho, e noutros testemunhos da época também se fala dele... De qualquer forma, se foi Monroy, o mais provável é que não estivesse a agir por sua conta, mas obedecendo a ordens do SIM.

- Do SIM?

 

(*3) Checa: denominação da polícia secreta russa até 1922. Por extensão, a polícia secreta de outros países passou também, popularmente, a ser designada da mesma forma. Neste caso, refere-se às prisões da polícia política. (N. da T.)

 

- O Serviço de Inteligência Militar - esclareceu Aguirre. - Um dos poucos organismos do exército que nessa altura ainda funcionava como devia. - Deixou momentaneamente de mastigar; depois continuou a comer enquanto falava: - É uma hipótese razoável: o momento era desesperado e, evidentemente, os do SIM não estavam com meias medidas. Mas há outras.

- Por exemplo?

- Líster. Andou por ali. O meu pai viu-o.

- No Collell?

- Em Sant Miquel de Campmajor, uma aldeia muito próxima. O meu pai era uma criança nessa altura e estava refugiado numa fazenda da aldeia. Contou-me muitas vezes que um dia um punhado de homens, entre os quais estava Líster, irrompeu na fazenda, exigindo que lhes dessem de comer e sítio para dormirem e passaram a noite a discutir na sala de jantar. Durante muito tempo achei que esta história era uma invenção do meu pai, sobretudo quando verifiquei que a maior parte dos velhos que estavam vivos nessa altura diziam ter visto Líster, uma personagem quase lendária desde que ficou ao comando do Quinto Regimento; mas, com os anos, fui juntando as pontas e cheguei à conclusão de que talvez fosse verdade. Vais ver - preparou-me Aguirre, embebendo gulosamente um pedaço de pão no charco de molho em que o entrecosto nadava. Calculei que já tinha recuperado da ressaca e interroguei-me se estaria a apreciar mais a comida que a exibição dos seus conhecimentos sobre a guerra. - Líster tinha acabado de ser nomeado coronel em fins de Janeiro de 39. Tinham-no posto ao comando do V Corpo do Exército do Ebro, ou, melhor, do que restava do V Corpo: um punhado de unidades desfeitas que se retiravam quase sem combater em direcção à fronteira francesa. Durante várias semanas os homens de Líster andaram pela comarca e temos a certeza de que alguns deles se instalaram no Collell. Mas onde é que eu ia? Leste as memórias de Líster?

Disse que não.

- Bom, não são exactamente umas memórias - continuou Aguirre. - Intitulam-se Nuestra guerra (*4) e não estão mal,

 

(*4) Nuestra guerra: A Nossa Guerra. (N. da T.)

 

embora digam uma quantidade tremenda de mentiras, como todas as memórias. O caso é que conta que na noite de 3 para 4 de Fevereiro de 39 (ou seja: três dias depois do fuzilamento do Collell) se efectuou numa fazenda de uma aldeia próxima uma reunião do Bureau Político do Partido Comunista, à qual, entre outros chefes e comissários, assistiu o próprio e Togliatti que, nessa altura, era delegado da Internacional Comunista. Se bem me lembro, na reunião discutiu-se a possibilidade de organizar, na Catalunha, uma resistência final contra o inimigo, mas dá no mesmo: o que interessa é que essa fazenda pode bem ter sido a fazenda onde o meu pai estava refugiado; pelo menos os protagonistas, as datas e os lugares coincidem, de modo que...

Insensivelmente, Aguirre enleou-me então numa confusa digressão filial. Lembro-me de que, naquele momento, pensei no meu pai e de que estranhei o facto, porque há muito tempo que não pensava nele; sem saber porquê, senti um aperto na garganta, como uma sombra de culpa.

- Então foi Líster quem deu a ordem de fuzilamento? - perguntei, interrompendo Aguirre.

- Pode ter sido - disse, recuperando sem dificuldade o fio da conversa, enquanto limpava o prato. - Mas também pode não ter sido. Em Nuestra guerra diz não ter sido ele, nem ele nem os seus homens. O que poderia dizer? Mas, na verdade, eu acredito: não era o seu estilo, era um tipo demasiado obcecado por continuar, como quer que fosse, uma guerra que já estava perdida. Além do mais, metade das coisas que se atribuem a Líster é pura lenda, e a outra metade... bom, suponho que a outra metade é verdade. Enfim, quem sabe... O que a mim me parece indiscutível é que, quem quer que tenha dado a ordem, sabia perfeitamente quem estava a fuzilar e, evidentemente, quem era Sánchez Mazas. Mmmmm - gemeu, limpando o molho roquefort com um pedaço de miolo de pão -, que fome tinha! Queres mais um pouco de vinho?

Levantaram os pratos (o meu com restos abundantes de coelho; o de Aguirre tão limpo que brilhava). Ele pediu outro jarro de vinho, uma fatia de tarte de chocolate e café; eu pedi café. Perguntei a Aguirre o que sabia acerca de Sánchez Mazas e da sua estada no Collell.

- Pouco - respondeu. - O nome dele aparece algumas vezes na Causa General (*5), mas sempre em relação ao julgamento que lhe fizeram em Barcelona, quando o detiveram ao fugir de Madrid. Pascual também conta alguma coisa. Que eu saiba, o único que pode saber mais alguma coisa é Trapiello, Andrés Trapiello. O escritor. Editou Sánchez Mazas e escreveu coisas muito boas sobre ele; além disso, nos seus diários, está sempre a falar da família de Sánchez Mazas, de forma que deve estar em contacto com ela. Palpita-me, inclusivamente, que li a história do fuzilamento nalgum livro dele... É uma história que se espalhou muito depois da guerra, toda a gente que conheceu Sánchez Mazas nessa altura a conta, suponho que por ele a contar a toda a gente. Sabias que muita gente pensou que era mentira? E na realidade ainda há quem assim o pense.

- Não me admira.

- Porquê?

- Porque é uma história muito romanesca.

- Todas as guerras estão cheias de histórias romanescas.

- Sim, mas não continua a parecer-te pouco credível que um homem que já não era novo, porque tinha quarenta e cinco anos e que, além do mais, era míope... ?

- Claro. E que ainda por cima devia estar numas condições lastimáveis.

- Exacto. Não te parece pouco credível que um tipo como ele conseguisse escapar de uma situação assim?

- Pouco credível, porquê? - A chegada do vinho, da tarte de chocolate e dos cafés não interrompeu o seu raciocínio. - Espantoso sim. Mas não pouco credível. Mas se tu próprio contavas isso tão bem no teu artigo! Não te esqueças de que foi um fuzilamento em massa. Lembra-te do soldado que devia tê-lo denunciado e não o fez. Lembra-te, além disso, de que estamos a falar do Collell. Estiveste lá alguma vez?

 

(*5) Causa General: Fundo de documentação judicial, criado em 1940 pelo vitorioso regime franquista, para documentar e justificar, retrospectivamente ou não, as actuações dos conselhos de guerra e dos tribunais provinciais, cujos réus foram constituídos, desde o início, por republicanos e cidadãos espanhóis relacionados, de alguma forma, com a esquerda. (N. da T.)

 

Disse que não c Aguirre evocou então uma enorme massa de pedra cercada por espessos bosques de pinheiros e terra calcária, um território montanhoso, agreste e muito extenso, pontilhado de fazendas e pequenas aldeias isoladas (El Torn, Sant Miquel de Campmajor, Fares, Sant Ferriol, Mieres) onde, durante os três anos de guerra, operaram inúmeras redes de evasão que, a troco de dinheiro (às vezes também por amizade ou até por afinidades políticas) ajudavam vítimas potenciais da repressão revolucionária, bem como jovens em idade militar que desejavam escapar ao recrutamento forçado imposto pela República, a atravessar a fronteira. Segundo Aguirre, na zona abundavam também os emboscados, gente que, por não poder custear os gastos da fuga ou não descobrir como entrar em contacto com as redes de evasão, permaneceu escondida no bosque durante meses ou anos.

- De modo que era um lugar ideal para se esconder - argumentou. - Nesse período da guerra, os camponeses já estavam mais do que habituados a lidar com fugitivos e a dar-lhes uma mão. Ferlosio falou-te de «Os amigos do bosque»?

O meu artigo terminava no momento em que o miliciano não denunciava Sánchez Mazas; mas nele não se mencionava «Os amigos do bosque». Engasguei-me com o café.

- Conheces a história? - inquiri.

- Conheço o filho de um deles.

- Não me lixes.

- É verdade. Chama-se Jaume Figueras e vive aqui ao lado. Em Cornellà de Terri.

- Ferlosio disse-me que os rapazes que ajudaram Sánchez Mazas eram de Cornellà de Terri.

Aguirre encolheu os ombros enquanto apanhava com os dedos as últimas migalhas do bolo de chocolate.

- Isso já não sei - admitiu. - Figueras contou-me a história muito por alto; também não me interessava muito. Mas, se quiseres, posso dar-te o número de telefone dele e pedes-lhe que ta conte.

Aguirre acabou de beber o café e pagámos. Despedimo-nos nas Ramblas, diante da ponte de Les Peixeteries Velles. Aguirre voltou a dizer que telefonaria no dia seguinte, para me dar o número de telefone de Figueras e, enquanto lhe apertava a mão, reparei que uma mancha de chocolate escurecia as comissuras dos seus lábios.

- O que pensas fazer com isto? - perguntou. Estive quase a dizer-lhe que limpasse a boca.

- Com quê? - disse, no entanto.

- Com a história de Sánchez Mazas.

Eu não pensava fazer nada (simplesmente sentia curiosidade por ela), de modo que lhe disse a verdade.

- Nada? - Aguirre olhou-me com os seus olhos pequenos, nervosos, inteligentes. - Achei que estavas a pensar escrever um romance.

- Eu já não escrevo romances - disse. - Além do mais, isto não é um romance, mas uma história real.

- O artigo também o era - disse Aguirre. - Cheguei a dizer-te que tinha gostado muito? Gostei porque era como que um relato concentrado, só com personagens e situações reais... Como um relato real.

No dia seguinte Aguirre telefonou-me e deu-me o número de Jaume Figueras. Era o número de um telemóvel. Figueras não me atendeu, apenas a sua voz, convidando-me a gravar uma mensagem; gravei-a: disse o meu nome, a minha profissão, que conhecia Aguirre, que estava interessado em falar com ele acerca do seu pai, de Sánchez Mazas e de «Os amigos do bosque»; também lhe deixei o meu telefone, pedindo-lhe que me ligasse.

Durante os dias que se seguiram esperei com impaciência um telefonema de Figueras, que não se verificou. Voltei a telefonar-lhe, voltei a deixar outro recado, voltei a esperar. Enquanto isso, li Yo fui asesinado por los rojos (*6), o livro de Pascual Aguilar. Era um conjunto de lembranças truculentas dos horrores vividos na retaguarda republicana, mais um, dos muitos que apareceram em Espanha no fim da guerra, só que este tinha sido publicado em Setembro de 1981. A data, receio, não é casual, pois tem cabimento ler o relato como uma espécie de justificação dos golpistas de opereta de 23 de Fevereiro desse ano (Pascual anota várias vezes uma frase reveladora que José António Primo de Rivera repetia como se fosse sua:

 

(*6) Yo fui asesinado por los rojos: Eu fui assassinado pelos vermelhos. (N. da T.)

 

«À última hora foi sempre um pelotão quem salvou a civilização») e como um aviso das catástrofes que se avizinhavam com a ascensão iminente do partido socialista ao poder e o final simbólico da Transição; o livro, surpreendentemente, é bastante bom. Pascual, a quem nem o tempo nem as mudanças operadas em Espanha tinham desgastado uma única das suas convicções de camisa velha falangista, refere com desembaraço as suas peripécias da guerra, desde o momento em que a sublevação militar o surpreende de férias numa aldeia de Teruel, que fica integrada na zona republicana, até poucos dias depois do fuzilamento do Collell - um facto a que dedica muitas páginas de encarniçada pormenorização, bem como aos dias que o precederam e o seguiram -, quando é libertado pelo exército de Franco depois de ter levado durante a guerra uma vida entre Pimpinela Escarlate e Henrique de Lagardère, primeiro como membro activo e mais tarde como dirigente de um grupo da quinta-coluna barcelonesa, e de ter sofrido depois uma temporada de reclusão na checa de Vallmajor. O livro de Pascual era uma edição de autor; nele, menciona várias vezes Sánchez Mazas, com quem Pascual passou as horas anteriores ao fuzilamento. Seguindo a sugestão de Aguirre, li igualmente Trapiello e, num dos seus livros, descobri que ele também contava a história do fuzilamento de Sánchez Mazas, e quase exactamente nos mesmos termos em que eu a tinha ouvido a Ferlosio, excepto pelo facto de, tal como eu fizera no meu artigo ou relato real, ele também não mencionar «Os amigos do bosque». A semelhança indiscutível entre o relato de Trapiello e o meu, surpreendeu-me. Pensei que Trapiello tê-lo-ia ouvido contar ao próprio Ferlosio (ou a algum dos outros filhos de Sánchez Mazas, ou à sua mulher) e calculei que, Sánchez Mazas, de tanto contar a história em sua casa, esta tinha adquirido para a família um carácter quase receituário, como aquelas anedotas perfeitas às quais não se pode omitir uma única palavra sem aniquilar a sua graça.

Consegui o número de telefone de Trapiello e telefonei-lhe para Madrid. Assim que lhe expus o motivo do meu telefonema, tornou-se amabilíssimo e, embora, conforme disse, não se dedicasse há anos a Sánchez Mazas, (a quem, desconfio, considerava não apenas um bom, mas um grande escritor), mostrou-se encantado por alguém o fazer. Conversámos durante mais de uma hora.

Trapiello garantiu-me que, sobre o que acontecera no Collell não sabia mais nada além da história que contara no seu livro e confirmou que, sobretudo imediatamente depois da guerra, muita gente a contava.

- Nos jornais da Barcelona recém-ocupada pelos franquistas apareceu com frequência, e também nos de toda a Espanha, porque foi uma das últimas rabanadas de violência na retaguarda catalã e era preciso aproveitá-la e propagandeá-la - explicou-me Trapiello. - Se não me engano, Ridruejo menciona o episódio nas suas memórias, e também Laín. E devo ter por aí um artigo de Montes onde ele também fala do assunto... Calculo que durante uma época, Sánchez Mazas o contou a todos os que lhe apareciam pela frente. Claro que era uma história brutal, mas, enfim, não sei... Suponho que era tão cobarde (e toda a gente sabia quão cobarde era) que deve ter pensado que aquele episódio terrível o redimia de algum modo da sua cobardia.

Perguntei-lhe se tinha ouvido falar de «Os amigos do bosque». Disse-me que sim. Perguntei-lhe quem lhe tinha contado a história que narrava no livro. Disse-me ter sido Liliana Ferlosio, a mulher de Sánchez Mazas, cuja casa tinha frequentado, ao que parece, muito antes da sua morte.

- É bastante curioso - comentei. - Excepto por um pormenor, a história coincide ponto por ponto com a que me contou Ferlosio, como se, em vez de a contar, os dois a tivessem recitado.

- Que pormenor é esse?

- Um pormenor sem importância. No seu relato (quer dizer, no de Liliana), ao ver Sánchez Mazas, o miliciano encolhe os ombros e depois vai embora. No meu (ou seja, no de Ferlosio), pelo contrário, antes de ir embora o miliciano fica alguns segundos olhando-o nos olhos.

Houve um silêncio. Julguei que a comunicação tinha sido cortada.

- Estou?

- Tem graça - reflectiu Trapiello. - Agora que o diz, é verdade. Não sei onde fui buscar isso do encolher de ombros, devo ter achado mais romanesco, ou mais barojiano. Porque estou convencido de que o que Liliana me contou é que o miliciano olhou para ele antes de ir embora. Sim. Lembro-me mesmo de ela me ter dito uma vez que quando voltou a encontrar-se com Sánchez Mazas, após os três anos de separação da guerra, este lhe falava frequentemente daqueles olhos que o fitavam. Dos olhos do miliciano, quero dizer.

Antes de desligar continuámos ainda a falar de Sánchez Mazas durante algum tempo, da sua poesia e dos seus romances e artigos, do seu feitio impossível, das suas amizades e da sua família (Trapiello contou-me que González-Ruano costumava dizer: «Naquela casa todos dizem mal de todos, e todos têm razão»); como se deduzisse que eu ia escrever alguma coisa sobre Sánchez Mazas, mas por pudor não quisesse perguntar-me o quê, Trapiello deu-me alguns nomes e algumas indicações bibliográficas e convidou-me a visitá-lo na sua casa de Madrid, onde guardava manuscritos e artigos fotocopiados da imprensa e outras coisas de Sánchez Mazas.

Só fui visitar Trapiello alguns meses mais tarde, mas pus-me de imediato a seguir as pistas que me tinha fornecido. Dessa forma descobri que, com efeito, sobretudo imediatamente depois da guerra, Sánchez Mazas tinha contado a história do seu fuzilamento a quem quer que aceitasse ouvi-la. Eugênio Montes, um dos amigos mais fiéis com que sempre contou, escritor como ele, como ele falangista, retratou-o a 14 de Fevereiro de 1939, precisamente duas semanas depois dos factos do Collell, «com samarra de pastor e calças esburacadas pelas balas», chegando «quase ressurrecto do outro mundo» depois de três anos de clandestinidade e cárceres na zona republicana. Sánchez Mazas e Montes tinham-se reencontrado euforicamente poucos dias antes, em Barcelona, no gabinete do então Chefe Nacional de Propaganda dos sublevados, o poeta Dionisio Ridruejo. Muitos anos mais tarde, nas suas memórias, este ainda recordava a cena, tal como a recordava nas suas, um pouco depois, Pedro Laín Entralgo, nessa altura outro jovem e ilustrado dirigente falangista. As descrições que os dois memorialistas fazem daquele Sánchez Mazas - a quem Ridruejo conhecia um pouco, mas a quem Laín, que mais tarde o odiaria de morte, nunca tinha visto - são sugestivamente coincidentes, como se os tivesse impressionado tanto que a memória tivesse congelado a sua imagem num instantâneo comum (ou como se Laín tivesse copiado Ridruejo; ou como se os dois tivessem copiado uma mesma fonte): também para eles tem um ar ressurrecto, magro, nervoso e perplexo, com o cabelo quase rapado e o nariz aquilino monopolizando o seu rosto famélico; os dois recordam também que Sánchez Mazas contou naquele mesmo gabinete a história do seu fuzilamento, mas talvez Ridruejo não lhe tenha dado demasiado crédito (e por isso menciona «os pormenores um pouco romanescos» com que enfeitou o relato) e só Laín não se esqueceu de que vestia uma «grosseira samarra parda».

Porque, conforme averiguei por acaso e, após algumas formalidades inusitadamente rápidas, pude verificar sentado num cubículo do arquivo da Filmoteca da Catalunha, com essa mesma grosseira samarra parda e esse mesmo ar ressurrecto - magro e com o cabelo rapado -, que Sánchez Mazas também contou diante de uma máquina de filmar a história do seu fuzilamento, sem dúvida por volta da mesma data de Fevereiro de 39 em que a contou, no gabinete de Ridruejo em Barcelona, aos seus companheiros falangistas. A filmagem - uma das poucas que se conservam de Sánchez Mazas - apareceu num dos primeiros noticiários do pós-guerra, entre imagens marciais do Generalíssimo Franco passando revista à Marinha em Tarragona e imagens idílicas de Carmencita Franco brincando nos jardins da sua residência de Burgos com uma cria de leão, oferta do Auxílio Social. Durante todo o relato, Sánchez Mazas permanece de pé e sem óculos, com o olhar um pouco perdido; fala, no entanto, com o aprumo de um homem habituado a fazê-lo em público, com o prazer de quem gosta de se ouvir, num tom de voz extremamente irónico no início - quando alude ao seu fuzilamento - e previsivelmente exaltado na conclusão - quando alude ao fim da sua odisseia -, sempre um pouco pomposo; mas as suas palavras são tão precisas e os silêncios que as pautam tão medidos que ele também dá por vezes a impressão de que, em vez de contar a história, a está a recitar, como um actor que interpreta o seu papel em palco; para além disso, essa história não difere no essencial da que me referiu o seu filho, de modo que, enquanto o ouvia contá-la, sentado num banco diante de um aparelho de vídeo, no cubículo da Filmoteca, não consegui evitar um estremecimento inexplicável, porque soube que estava a ouvir uma das primeiras versões, ainda tosca e sem polimento, da mesma história que quase sessenta anos mais tarde Ferlosio me havia de contar, e tive a certeza sem fissuras de que, o que Sánchez Mazas contara ao filho (e o que este me contara a mim) não era o que recordava ter acontecido, mas o que recordava ter contado outras vezes. Acrescentarei que não me surpreendeu em absoluto que nem Montes, nem Ridruejo, nem Laín (supondo que chegaram a ter conhecimento da sua existência), nem evidentemente o próprio Sánchez Mazas, naquele noticiário dirigido a uma massa numerosa e anónima de espectadores aliviados com o final recente da guerra, mencionassem o gesto daquele soldado sem nome que tinha ordens para o matar e não o fez; o facto explica-se sem necessidade de atribuir a alguém esquecimento ou ingratidão: basta recordar que nessa altura a doutrina de guerra da Espanha de Franco, tal como todas as doutrinas de todas as guerras, ditava que inimigo algum salvara nunca uma vida: estavam demasiado ocupados a tirá-las. E, quanto a «Os amigos do bosque»...

Passaram ainda alguns meses antes que eu conseguisse falar com Jaume Figueras. Depois de ter gravado várias mensagens no seu telemóvel e de não ter obtido resposta a nenhuma delas, já quase pusera de parte a possibilidade de ele entrar em contacto comigo e, alternativamente, conjecturava que Figueras era apenas uma figura da nervosa imaginação de Aguirre, ou simplesmente, por motivos que ignorava mas que não era difícil adivinhar, não lhe apetecia relembrar para ninguém a aventura de guerra do pai. É curioso (ou pelo menos parece-me curioso agora): desde que o relato de Ferlosio despertou a minha curiosidade nunca me ocorrera que algum dos protagonistas da história pudesse ainda estar vivo, como se o facto não tivesse acontecido apenas há sessenta anos, mas fosse tão remoto como a batalha de Salamina.

Um dia encontrei-me casualmente com Aguirre. Foi num restaurante mexicano onde eu tinha ido entrevistar um vomitivo romancista madrileno que estava promovendo na cidade a sua última flatulência, cujo argumento decorria no México; Aguirre estava com um grupo de pessoas, suponho que a festejar alguma coisa, porque ainda me lembro das suas gargalhadas de júbilo e do seu hálito de tequilha esbofeteando-me a cara. Aproximou-se e, acariciando com nervosismo a sua perinha de mau, perguntou-me à queima-roupa se estava a escrever (querendo dizer se eu estava a escrever um livro: como para quase toda a gente, para Aguirre escrever num jornal não é escrever); um pouco aborrecido, porque nada irrita tanto um escritor que não escreve como perguntarem-lhe pelo que está a escrever, respondi-lhe que não. Perguntou-me o que fizera a Sánchez Mazas e ao meu relato real; mais aborrecido ainda, respondi-lhe que nada. Então perguntou-me se tinha falado com Figueras. Eu também devia estar um pouco bêbado, ou talvez fosse pelo vomitivo romancista madrileno já ter conseguido moer-me a paciência, porque respondi que não e acrescentei, furioso:

- Se é que existe.

- Se é que existe, quem?

- Quem havia de ser? Figueras.

O comentário apagou-lhe o sorriso dos lábios; deixou de acariciar a perinha.

- Não sejas idiota - disse, fixando-me com os seus olhos atónitos e senti uma vontade tremenda de lhe dar um bofetão, ou melhor, a quem verdadeiramente queria bater era ao romancista de Madrid. - Claro que existe.

Contive-me.

- Então é porque não quer falar comigo.

Quase compungido, desculpando-se quase, Aguirre explicou que Figueras era construtor ou empreiteiro (ou coisa assim) e que, além disso, era vereador de urbanismo de Cornellà de Terri (ou coisa assim), que era em todo o caso uma pessoa bastante ocupada e isso explicava, sem dúvida, que não tivesse respondido às minhas mensagens; depois prometeu que falaria com ele. Quando voltei ao meu lugar sentia-me pessimamente: odiei o romancista madrileno, que continuava discursando, com toda a minha alma.

Três dias mais tarde Figueras telefonou-me. Desculpou-se por não o ter feito antes (a sua voz soava lenta e remota ao telefone, como se o seu proprietário fosse um homem bastante idoso, talvez doente), falou-me de Aguirre e perguntou-me se ainda estava interessado em conversar com ele. Disse-lhe que sim. Mas combinar um encontro não foi fácil. Finalmente, depois de passarmos todos os dias da semana, marcámos para a semana seguinte; e depois de passarmos todos os bares da cidade (começando pelo Bistrot, que Figueras não conhecia), combinámos encontrar-nos no Núria, na Plaza Poeta Marquina, muito perto da estação.

Aí estava eu, uma semana mais tarde, quase com um quarto de hora de avanço sobre a hora marcada. Lembro-me muito bem dessa tarde porque no dia seguinte ia de férias para Cancún com uma namorada que arranjara há algum tempo (a terceira desde a minha separação: a primeira foi uma colega do jornal; a segunda, uma miúda que trabalhava num Pan's and Company). Chamava-se Conchi e o seu único trabalho conhecido era o de pitonisa na televisão local: o seu nome artístico era Jasmine. Conchi intimidava-me um pouco, mas desconfio que a mim sempre me agradaram as mulheres que me intimidam um pouco, e evidentemente tentava que nenhum conhecido me surpreendesse com ela, não tanto por ler vergonha de que me vissem saindo com uma conhecida pitonisa, quanto pelo seu aspecto um tanto espampanante (cabelo oxigenado, mini-saia de cabedal, tops justos e sapatos com saltos de agulha); e também porque, para quê mentir, Conchi era um pouco especial. Lembro-me do primeiro dia em que a levei à minha casa. Enquanto me debatia com a fechadura da porta de entrada, ela disse-me:

- Grande merda de cidade. Perguntei-lhe porquê.

- Olha - disse e, com uma careta de profundo asco, apontou para uma placa que dizia: «Avinguda Lluís Pericot. Pré-historiador». - Podiam ter posto à rua o nome de alguém que pelo menos tivesse acabado o curso, ou não?

Conchi adorava sair com um jornalista (um intelectual, dizia ela) e, embora tenha a certeza de que nunca acabou a leitura de nenhum dos meus artigos (ou apenas de algum muito pequeno), fingia sempre lê-los e, no lugar de honra da sua sala, escoltando uma imagem da Virgem de Guadalupe empoleirada num pedestal, tinha um exemplar de cada um dos meus livros primorosamente forrado a plástico transparente. «É o meu namorado», imaginava-a dizendo às suas amigas semianalfabetas, sentindo-se muito superior a elas, cada vez que alguma punha os pés em sua casa. Quando a conheci, Conchi tinha acabado de se separar de um equatoriano chamado Dois-a-Dois González, cujo nome próprio, ao que parece, tinha sido posto pelo seu pai em honra de um jogo de futebol em que a sua equipa de sempre vencera pela primeira e última vez a liga do seu país. Para esquecer Dois-a-Dois - que conhecera num ginásio, fazendo culturismo, e a quem, nos bons momentos, chamava carinhosamente Empate e, nos maus, Cérebro, Cérebro González, porque não o considerava muito inteligente - Conchi tinha-se mudado para Quart, uma povoação próxima onde alugara, por muito pouco dinheiro, um casarão desconjuntado, quase a meio do bosque. De forma subtil mas constante, eu insistia em que viesse novamente para a cidade; a minha insistência baseava-se em dois argumentos: um explícito e outro implícito, um público e outro secreto. O público dizia que aquela casa isolada era um perigo para ela, mas no dia em que dois indivíduos tentaram assaltá-la e Conchi, que desgraçadamente para eles estava lá dentro, acabou perseguindo-os à pedrada pelo bosque, tive de admitir que aquela casa era um perigo para todos aqueles que tentassem assaltá-la. O argumento secreto dizia que, uma vez que eu não tinha carta de condução, cada vez que fôssemos da minha casa para casa de Conchi ou da casa de Conchi para a minha casa, teríamos de o fazer no Volkswagen de Conchi, um calhambeque tão antigo que teria podido merecer a atenção do pré-historiador Pericot e que Conchi conduzia sempre como se ainda estivesse a tempo de impedir um assalto iminente à sua casa, e como se todos os carros que circulavam à nossa volta transportassem um exército de delinquentes. Por tudo isso, qualquer deslocação de carro com a minha amiga, que, além do mais, adorava conduzir, implicava um risco que só estava disposto a correr em circunstâncias excepcionais; estas deviam dar-se amiúde, pelo menos ao princípio, porque nessa altura arrisquei muitas vezes a pele indo no seu Volkswagen da casa dela para a minha casa e da minha casa para a casa dela. Quanto ao resto, e embora receie não estar muito disposto a reconhecê-lo, acho que gostava bastante de Conchi (em todo o caso, mais do que da colega do jornal e da miúda do Pan's and Company; talvez menos do que da minha ex-mulher); tanto, em todo o caso, que, para festejar os nove meses que andávamos juntos, me deixei convencer a passarmos duas semanas em Cancún, um lugar que imaginava verdadeiramente pavoroso, mas que (esperava) o prazer de estar junto de Conchi e da sua espampanante alegria tornariam pelo menos suportável. De modo que, na tarde em que, finalmente, consegui marcar um encontro com Figueras, eu já tinha as malas feitas e o coração impaciente para empreender uma viagem que, volta e meia, (mas só volta e meia) julgava temerária.

Sentei-me numa mesa do Núria, pedi um gin-tónico e esperei. Ainda não eram oito da noite; à minha frente, no outro lado das paredes de vidro, a esplanada estava cheia de gente e, mais além, filas de viajantes atravessavam de vez em quando a passagem aérea do comboio. À minha esquerda, no parque, crianças acompanhadas pelas mães brincavam nos baloiços, sob a sombra inclinada dos plátanos. Lembro-me de ter pensado em Conchi, que não há muito tempo me tinha surpreendido dizendo-me que não pensava morrer sem ter um filho, e depois na minha ex-mulher, que há muitos anos tinha rejeitado ajuizadamente a minha proposta de ter um filho. Pensei que, se a declaração de Conchi fosse também uma insinuação (e agora julguei perceber que o era), então a viagem a Cancún era um erro duplo, porque já não tinha quaisquer intenções de ter um filho; tê-lo com Conchi parecia-me uma anedota. Por alguma razão tornei a pensar no meu pai, tornei a sentir-me culpado. «Dentro de pouco tempo», surpreendi-me pensando, «quando já nem sequer me lembrar dele, ele estará completamente morto». Nesse momento, enquanto via entrar no bar um homem de uns sessenta anos, calculando que podia ser Figueras, amaldiçoei-me por ter marcado em poucos meses dois encontros com dois desconhecidos sem ter combinado previamente um sinal de identificação, levantei-me, perguntei-lhe se era Jaume Figueras; disse-me que não. Voltei para a minha mesa: eram quase oito e meia. Com os olhos, procurei pelo bar um homem sozinho; depois fui até à esplanada, também em vão. Perguntei a mim próprio se Figueras teria estado todo esse tempo no bar, perto de mim e, farto de esperar, se teria ido embora: respondi a mim mesmo que isso era impossível. Não tinha comigo o número do seu telemóvel, de modo que, decidindo que por algum motivo Figueras se atrasara e estava a chegar, optei por esperar. Pedi outro gin-tónico e sentei-me na esplanada. Nervosamente, olhava para um lado e para o outro; enquanto o fazia, apareceram dois jovens ciganos - um homem e uma mulher - com um teclado eléctrico, um microfone e um altifalante e puseram-se a tocar diante da clientela. O homem tocava e a mulher cantava. Tocavam, sobretudo, pasodobles: lembro-me bastante bem porque Conchi gostava tanto de pasodobles que tentara, sem êxito, inscrever-me num curso para aprender a dançá-los e, sobretudo, porque foi a primeira vez na minha vida que ouvi a letra de Suspiros de Espana, um pasodóble famosíssimo que eu nem sequer sabia que tinha uma letra:

 

Quiso Dios, con su poder,

fundir cuatro rayitos de sol

y hacer con ellos una mujer,

y ai cumplir su voluntad

en un jardín de España nací

como la flor en el rosal.

Tierra gloriosa de mi querer,

tierra bendita de perfume y pasión,

España, en toda flor a tus pies

suspira un corazón.

Ay de mi pena mortal,

porque me alejo, España, de ti,

porque me arrancan de mi rosal.

 

Ouvindo os ciganos tocar e cantar, pensei que aquela era a canção mais triste do mundo; também, quase em segredo, que não me desagradaria dançá-la algum dia. Quando acabou a actuação, deitei vinte pesetas no chapéu da cigana e, enquanto as pessoas abandonavam a esplanada, acabei de beber o meu gin-tónico e fui-me embora.

Ao chegar a casa tinha uma mensagem de Figueras no atendedor automático. Pedia-me desculpa por um imprevisto de última hora o ter impedido de comparecer ao encontro; pedia-me que lhe telefonasse. Telefonei-lhe. Voltou a pedir-me desculpa, voltou a sugerir um encontro.

- Tenho uma coisa para si - acrescentou.

- Que coisa?

- Dou-lha quando nos virmos.

Disse-lhe que no dia seguinte ia de viagem (tive vergonha de dizer que ia a Cancún) e que só regressava dentro de duas semanas. Combinámos um encontro no Núria para daí a duas semanas e, depois de empreendermos o exercício idiota de nos descrevermos um ao outro, sumariamente, despedimo-nos.

Cancún foi indescritível. Conchi, que tinha sido a organizadora da viagem, escondera-me o facto de, excepto algumas excursões pela península do Iucatão e muitas tardes de compras no centro da cidade, toda a viagem consistir em passar duas semanas fechados num hotel na companhia de uma pandilha de catalães, andaluzes e norte-americanos dirigidos a toques de apito por uma guia turística e dois monitores que ignoravam a noção de repouso e que, além disso, não falavam uma única palavra de castelhano; mentiria se não reconhecesse que há muitos anos não era tão feliz. Acrescentarei que, por estranho que pareça, acho que sem essa estada em Cancún (ou num hotel de Cancún) nunca me teria decidido a escrever um livro sobre Sánchez Mazas, porque durante esses dias tive tempo para pôr em ordem as minhas ideias acerca dele e de compreender que a personagem e a sua história se tinham convertido com o tempo numa daquelas obsessões que constituem o combustível indispensável da escrita. Sentado na varanda do meu quarto com um mojito na mão, vendo como Conchi e a sua pandilha de catalães, andaluzes e norte-americanos eram perseguidos sem clemência, ao longo e ao largo das instalações do hotel, pelo frenesim desportivo dos monitores (Now swimming-pool!), eu não deixava de pensar em Sánchez Mazas. Rapidamente cheguei a uma conclusão: quanto mais coisas sabia dele, menos o entendia; quanto menos o entendia, mais me intrigava; quanto mais me intrigava, mais coisas queria saber dele. Tinha sabido - mas não o entendia e intrigava-me - que aquele homem culto, refinado, melancólico e conservador, órfão de coragem física e alérgico à violência, sem dúvida por saber-se incapaz de a praticar, durante os anos vinte e trinta tinha trabalhado como quase ninguém o fizera para que o seu país mergulhasse numa orgia selvática de sangue. Não sei quem disse que, quem quer que ganhe as guerras, os poetas as perdem sempre; sei que pouco antes das minhas férias em Cancún eu lera que, a 29 de Outubro de 1933, na primeira cerimónia pública da Falange Espanhola, no Teatro de La Comedia de Madrid, José António Primo de Rivera, que andava sempre rodeado de poetas, tinha dito que «aos povos nunca os moveram senão os poetas». A primeira afirmação é uma estupidez; a segunda não: é verdade que as guerras se fazem por dinheiro, que é poder, mas os jovens partem para a frente e matam e deixam-se matar por palavras, que são poesia, e por isso são os poetas quem ganha sempre as guerras, e por isso Sánchez Mazas, que esteve sempre ao lado de José António e desse lugar privilegiado soube urdir uma violenta poesia patriótica de sacrifício e jugo e flechas e gritos de rigor que inflamou a imaginação de centenas de milhares de jovens e acabou por enviá-los para o matadouro, é mais responsável pela vitória das armas franquistas que todas as ineptas manobras militares daquele general do século dezanove que foi Francisco Franco. Eu sabia - mas não entendera e intrigava-me - que, ao terminar a guerra que tinha contribuído como quase ninguém para acender, Franco nomeou Sánchez Mazas ministro do primeiro governo da Vitória, mas destituiu-o passado muito pouco tempo porque, segundo se dizia, ele nem sequer assistia às reuniões do conselho e, a partir daquele momento, abandonou 'quase por completo a política activa e, como se se sentisse «satisfeito com o regime de pesadelo que tinha ajudado a implantar em Espanha e considerasse que o seu trabalho estava terminado, consagrou os seus últimos vinte anos de vida a escrever, a delapidar a herança familiar e a ocupar os seus dilatados ócios com interesses um pouco extravagantes. Intrigava-me essa época final de retiro e displicência, mas sobretudo os três anos de guerra, com as suas peripécias inextricáveis, o seu espantoso fuzilamento, o seu miliciano salvador e os seus amigos do bosque. E, num entardecer de Cancún (ou do hotel de Cancún), enquanto fazia tempo no bar até à hora do jantar, decidi que, após quase dez anos sem escrever um livro, tinha chegado o momento de tentar novamente, e decidi também que o livro que ia escrever não seria um romance, mas apenas um relato real, um relato cosido à realidade, amassado com factos e personagens reais, um relato que seria centrado no fuzilamento de Sánchez Mazas e nas circunstâncias que o precederam e seguiram.

No regresso de Cancún e na tarde combinada com Figueras, compareci no Núria, como sempre antes da hora, mas ainda não tinha pedido o meu gin-tónico quando fui abordado por um homem maciço e de ombros encurvados, de uns cinquenta e tal anos, com o cabelo encaracolado, olhos profundos e azuis e um sorriso tímido e rural. Era Jaume Figueras. Sem dúvida por esperar um homem muito mais velho (tal como me acontecera com Aguirre), pensei: «O telefone envelhece». Pediu um café; pedi um gin-tónico. Figueras desculpou-se por não ter comparecido ao encontro anterior e por neste também não dispor de muito tempo. Afirmou que naquela época do ano o trabalho se acumulava e que, como tinha posto à venda, além disso, Can Pigem, a casa familiar de Cornellà de Terri, estava bastante ocupado ordenando os papéis do pai, falecido há dez anos. Neste ponto, a voz de Figueras quebrou-se-lhe; com um clarão de humidade brilhando-lhe nos olhos, engoliu em seco e sorriu, como que desculpando-se de novo. O empregado que trouxe o café e o gin-tónico aliviou a incomodidade do silêncio. Figueras bebeu um gole de café.

- É verdade que vai escrever sobre o meu pai e Sánchez Mazas? - pespegou-me.

- Quem lhe disse isso?

- Miquel Aguirre.

«Um relato real», pensei, mas não o disse. «É isso que vou escrever.» Achei também que Figueras pensava que, se alguém escrevesse sobre o seu pai, este não estaria totalmente morto. Figueras insistiu.

- É possível - menti. - Ainda não sei. O seu pai falava-lhe com frequência do encontro que teve com Sánchez Mazas?

Figueras disse que sim. Reconheceu, no entanto, que não tinha mais do que um conhecimento bastante vago dos factos.

- Compreenda - desculpou-se outra vez. - Para mim era apenas uma história familiar. Ouvi o meu pai contá-la tantas vezes... Em casa, no bar, só connosco ou rodeado de gente da aldeia porque, em Can Pigem tivemos durante anos um bar. Enfim... Creio que nunca liguei muito. E agora arrependo-me.

O que Figueras sabia era que o pai tinha feito toda a guerra com a República e que, quando voltou a casa, já no fim, se encontrara aí com o seu irmão mais novo, Joaquim, e com um amigo deste, chamado Daniel Angelats, que tinham acabado de desertar das fileiras republicanas. Também sabia que, dado que nenhum dos três soldados queria partir para o exílio com o exército derrotado, tinham decidido aguardar a chegada iminente dos franquistas, escondidos num bosque próximo, e que um dia viram aproximar-se um homem meio cego tacteando entre o matagal. Detiveram-no, ameaçando-o com uma pistola; obrigaram-no a identificar-se: o homem disse que se chamava Rafael Sánchez Mazas e que era o falangista mais antigo de Espanha.

- O meu pai soube de imediato quem era - disse Jaume Figueras. - Era uma pessoa bastante lida, tinha visto fotografias de Sánchez Mazas nos jornais e lido os seus artigos. Ou pelo menos, era o que dizia sempre. Não sei se será verdade.

- Podia ser - admiti. - E depois, o que aconteceu?

- Estiveram alguns dias refugiados no bosque - prosseguiu Figueras, depois de beber de uma vez o resto do café. - Os quatro. Até terem chegado os nacionais.

- O seu pai não lhe contou do que falavam com Sánchez Mazas durante os dias que passaram no bosque?

- Suponho que sim - respondeu Figueras. - Mas não me lembro. Já lhe disse que não prestava muita atenção a essas coisas. A única coisa de que me lembro é que Sánchez Mazas lhes falou do seu fuzilamento no Collell. Conhece a história, não é verdade?

Confirmei.

- Também lhes contou muitas outras coisas, isso é certo - prosseguiu Figueras. - O meu pai dizia sempre que durante esses dias Sánchez Mazas e ele se tinham tornado muito amigos.

Figueras sabia que, no fim da guerra, o seu pai estivera preso e que a família lhe rogou em vão, muitas vezes, que escrevesse a Sánchez Mazas, que nessa altura era ministro, para que intercedesse por ele. E sabia também que, tendo já o seu pai saído da cadeia, lhe chegara aos ouvidos que alguém da aldeia ou de uma aldeia vizinha, conhecedor da amizade que os unia, tinha escrito a Sánchez Mazas uma carta na qual, fazendo-se passar por um dos amigos do bosque, solicitava uma soma de dinheiro como pagamento da dívida de guerra que contraíra com eles, e que o seu pai tinha escrito a Sánchez Mazas denunciando a usurpação.

- Sánchez Mazas respondeu-lhe?

- Julgo que sim, mas não tenho a certeza. Até agora não encontrei nenhuma carta dele entre os papéis do meu pai, e admirar-me-ia que as tivesse deitado fora, era um homem bastante cuidadoso que guardava tudo. Não sei, se calhar perdeu-se, ou pode acabar por aparecer um dia destes. - Figueras meteu a mão no bolso da sua camisa, parcimoniosamente. - O que encontrei foi isto.

E estendeu-me um pequeno livro de apontamentos, com capas de oleado enegrecido, que já tinham sido verdes. Folheei-o. A maior parte estava em branco, mas várias folhas iniciais e finais estavam gatafunhadas a lápis, com uma letra rápida, não totalmente ilegível, que quase não contrastava com o branco sujo e quadriculado do papel; uma primeira vista de olhos revelava também que várias das suas folhas tinham sido arrancadas.

- O que é isto? - perguntei.

- O diário de Sánchez Mazas enquanto andou fugido pelo bosque - respondeu Figueras. - Ou é o que parece. Fique com ele, mas não mo perca, é como uma lembrança de família. O meu pai tinha-lhe muito apreço. - Consultou o relógio de pulso, deu um estalo com a língua e disse: - Bom, agora tenho de ir. Mas telefone-me qualquer dia.

Enquanto se levantava apoiando na mesa os seus dedos grossos e calosos, acrescentou:

- Se quiser posso mostrar-lhe o lugar do bosque onde estiveram escondidos, o Mas de La Casa Nova; já não passa de uma fazenda meio em ruínas, mas se vai contar esta história com certeza quererá vê-la. Claro que, se não pensa contá-la...

- Ainda não sei o que farei - voltei a mentir, acariciando as capas de oleado do caderninho, que me ardia nas mãos como um tesouro. Com o objectivo de avivar as lembranças de Figueras, acrescentei com sinceridade: - Mas, com franqueza, pensei que você me contaria mais coisas.

- Contei-lhe tudo o que sei - desculpou-se ele pela enésima vez, mas agora pareceu-me que um matiz de astúcia ou de receio se reflectia na superfície lacustre dos seus olhos azuis. - De qualquer forma, se é verdade que se propõe escrever sobre o meu pai e Sánchez Mazas, tem é de falar com o meu tio. Ele é que conhece todos os pormenores.

- Que tio?

- O meu tio Joaquim. - Esclareceu: - O irmão do meu pai. Outro dos amigos do bosque.

Incrédulo, como se acabassem de me anunciar a ressurreição de um soldado de Salamina, perguntei:

- Está vivo?

- Espero bem! - riu-se Figueras sem vontade e, um gesto artificial das suas mãos fez-me pensar que só fingia surpreender-se com a minha surpresa. - Não lhe tinha dito? Vive em Medinyà, mas passa muito tempo na praia de Montgó, e também em Oslo, porque o filho trabalha lá, na OMS. Agora penso que não o encontrará, mas em Setembro ficará certamente encantado em falar consigo. Quer que lho proponha?

Um pouco aturdido com a notícia, disse que evidentemente que sim.

- De passagem tentarei averiguar o paradeiro de Angelats - disse Figueras sem esconder a sua satisfação. - Antigamente vivia em Banyoles, e se calhar ainda está vivo. Quem está viva de certeza é Maria Ferre.

- Quem é Maria Ferre?

Figueras reprimiu visivelmente o impulso de se alongar em explicações.

- Conto-lhe noutra ocasião - disse, depois de consultar novamente o relógio; apertou-me a mão. - Agora tenho de me ir embora. Telefono-lhe assim que conseguir um encontro com o meu tio; ele conta-lhe tudo com luxo de pormenores, vai ver, tem muito boa memória. Enquanto isso, dê uma vista de olhos ao caderninho, julgo que lhe interessará.

Vi-o pagar, sair do Núria, meter-se num todo-o-terreno poeirento e mal estacionado diante da entrada do bar, e partir. Acariciei o caderninho, mas não o abri. Acabei de beber o gin-tónico e, enquanto me levantava para sair, vi um Talgo (*7) atravessar a passagem aérea, para lá da esplanada cheia de gente, e lembrei-me dos ciganos que há duas semanas tocavam pasodobles à luz fatigada de um entardecer como este e, ao chegar a casa e pôr-me a estudar com calma o caderninho que Figueras me emprestara, ainda não me tinha saído da lembrança a melodia tristíssima de Suspiros de Espana.

Passei a noite às voltas com o caderninho. Este continha, na sua parte da frente, depois de algumas folhas arrancadas, um pequeno diário escrito a lápis. Esforçando-me por decifrar a letra, li:

 

«...instalado casa bosque - Comida - Dormir palheiro - Passagem soldados.

 

(*7) Talgo: sigla de «tren articulado ligero Goicoechea Oriol». É um tipo de comboio articulado, bastante leve. (N. da T.)

 

3 - Casa bosque - Conversa velho - Não se atreve a ter-me em casa - Bosque - Fabrico refúgio.

4 - Queda de Gerona - Conversa junto ao fogo com os fugitivos - O velho trata-me melhor do que a senhora.

5 - Dia de espera - Contínuo refúgio - Canhões.

6 - Encontro no bosque com os três rapazes - Noite - Vigilância [palavra ilegível] ao refúgio - Explosão de pontes - Os vermelhos vão-se embora.

7 - Encontro de manhã com os três rapazes - Almoço medianamente da comida dos amigos.

 

O diário pára aí. No fim do caderno, depois de mais algumas folhas arrancadas, escritos numa letra diferente, mas também a lápis, figuram os nomes dos três rapazes, dos amigos do bosque:

 

Pedro Figueras Bahí

Joaquín Figueras Bahí

Daniel Angelats Dilmé

E mais abaixo:

 

Casa Pigem de Cornellà (diante da estação)

Mais abaixo ainda vem a assinatura, a tinta - não a lápis, como o que estava escrito no resto do caderninho -, dos dois irmãos Figueras e, na página seguinte, lê-se:

 

Paiol de Rebardit

Casa Borrell

Família Ferré

 

Noutra página, também a lápis e com a mesma letra do diário, só que muito mais clara, figura o texto mais extenso do bloco. Diz assim:

 

«O subscritor, Rafael Sánchez Mazas, fundador da Falange Espanhola, conselheiro nacional, ex-presidente da Junta Política e na época o falangista mais antigo de Espanha e o de hierarquia mais elevada da zona vermelha, declaro:

Io - que no dia 30 de Janeiro de 1939 fui fuzilado na prisão do Collell com outros 48 infelizes prisioneiros e escapei milagrosamente após as duas primeiras descargas, internando-me no bosque;

2o - que depois de uma marcha de três dias pelo bosque, caminhando de noite e pedindo esmolas nas fazendas, cheguei às proximidades de Paiol de Rebardit, onde caí num canal perdendo os meus óculos, o que me fez ficar quase cego...»

Aqui falta uma página, que foi arrancada. Mas o texto continua:

 

«...proximidade da linha de fogo me tiveram escondido em sua casa até chegarem as tropas nacionais.

4o - que apesar da generosa oposição dos habitantes da fazenda Borrell quero por meio deste documento ratificar-lhes a minha promessa de retribuir-lhes com uma grande recompensa monetária, propor o proprietário [aqui há um espaço em branco] para uma distinção honorífica se assim o aceitar o comando militar e testemunhar-lhe a minha enorme gratidão a ele e aos seus durante toda a minha vida, que tudo isso será muito pouco em comparação com o que por mim fez.

Assino o presente documento na fazenda Casanova de um Pia perto de Cornellà de Terri a 1...»

 

Até aqui chega o texto do caderninho. Reli-o várias vezes, tentando dotar aquelas anotações dispersas de um sentido coerente e de encaixá-las nos factos que eu conhecia. Para começar, pus de lado a suspeita, que insidiosamente me assaltou enquanto lia, do caderninho ser uma fraude, uma falsificação urdida pelos Figueras para me enganar, ou para enganar alguém: naquele momento pareceu-me não fazer sentido imaginar uma modesta família camponesa tramando uma burla tão sofisticada. Tão sofisticada e, sobretudo, tão absurda. Porque, em vida de Sánchez Mazas, quando podia ser um escudo dos derrotados contra as represálias dos vencedores, o documento era fácil de autenticar mas, uma vez aquele morto, carecia de valor. No entanto, pensei que, de qualquer forma, era conveniente certificar-me de que a letra do caderninho (ou uma das letras do caderninho, porque havia várias) e a de Sánchez Mazas eram a mesma. Se assim fosse (e nada me levava a pensar o contrário), Sánchez Mazas era o autor do pequeno diário, escrito sem dúvida nos dias em que andou errante pelo bosque ou, quando muito, logo a seguir. A julgar pelo último texto do bloco, Sánchez Mazas sabia que a data do seu fuzilamento tinha sido 30 de Janeiro de 39; por outro lado, a numeração que precedia cada entrada do diário correspondia à data do mês de Fevereiro do mesmo ano (os nacionais, com efeito, tinham entrado em Gerona a 4 de Fevereiro). Do texto do diário, deduzi que, antes de se colocar sob a protecção do grupo dos irmãos Figueras, Sánchez Mazas tinha encontrado um refúgio mais ou menos seguro numa casa da zona e que essa casa não podia ser outra senão a casa ou a fazenda Borrell, a cujos habitantes agradecia e prometia «uma grande recompensa económica» e «uma distinção honorífica» na extensa declaração final, e deduzi também que essa casa ou fazenda só podia situar-se em Paiol de Rebardit - um município limítrofe ao de Cornellà de Terri - e que os seus habitantes só podiam ser membros da família Ferre, à qual, além disso, pertenceria com certeza a Maria Ferre que, conforme me dissera Jaume Figueras no final precipitado da nossa entrevista no Núria, ainda estava viva. Tudo o resto parecia evidente, tal como nos parece evidente a colocação correcta das peças de um puzzle, quando damos com elas. Quanto à declaração final, redigida no Mas de la Casa Nova, o lugar do bosque onde os quatro fugitivos tinham permanecido escondidos - e sem dúvida quando já se sabiam a salvo -, também parecia evidente que se tratava de uma maneira de formalizar a dívida que Sánchez Mazas tinha para com aqueles que lhe salvaram a vida, e de um salvo-conduto que podia permitir-lhes atravessar as incertezas do pós-guerra imediato sem necessidade de passar pelos ultrajes reservados à maior parte daqueles que, tal como os irmãos Figueras e Angelats, tinham engrossado as fileiras do exército republicano. Admirei-me, no entanto, por um dos fragmentos arrancados ao caderninho ser precisamente o fragmento da declaração na qual, segundo tudo leva a crer, Sánchez Mazas agradecia a ajuda dos irmãos Figueras e de Angelats. Perguntei a mim próprio quem teria arrancado aquela folha. E para quê. Perguntei a mim próprio quem arrancara as primeiras folhas do diário e para quê. Como uma pergunta leva a outra, perguntei-me também - mas isto na verdade já andava há muito tempo a perguntar-me - o que teria acontecido na realidade durante aqueles dias em que Sánchez Mazas andou vagueando sem rumo por terra de ninguém. O que pensou, o que sentiu, o que contou aos Ferre, aos Figueras, a Angelats. O que se lembrariam eles do que lhes contara. E o que tinham eles pensado e sentido. Morria de vontade de falar com o tio de Jaume Figueras, com Maria Ferre e com Angelats, se é que ainda estava vivo. Dizia para comigo que, embora o relato de Jaume Figueras pudesse não ser fiável (ou não podia sê-lo mais que o de Ferlosio) pois a sua veracidade nem sequer dependia de uma lembrança (sua) mas da lembrança de uma lembrança (a do seu pai), os relatos do tio, de Maria Ferre e de Angelats, se é que ainda estava vivo, eram, pelo contrário, relatos em primeira mão e portanto, pelo menos em princípio, muito menos aleatórios do que aquele. Perguntei-me se esses relatos se ajustariam à realidade dos factos ou se, de uma forma talvez inevitável, estariam cobertos por aquela patine de meias verdades e de mentiras que prestigia sempre um episódio remoto e, para os seus protagonistas, talvez lendário, de forma que o que talvez me dissessem ter acontecido não seria o que de facto acontecera e nem sequer o que recordavam ter acontecido, mas apenas o que recordavam ter contado outras vezes.

Acabrunhado por tantas interrogações, certo de que, com sorte, ainda teria de esperar um mês antes de falar com o tio de Figueras, como se andasse por uma zona de dunas e precisasse de pisar terra firme, telefonei a Miquel Aguirre. Era segunda-feira e era muito tarde, mas Aguirre ainda estava acordado e, depois de lhe falar da minha entrevista com Jaume Figueras, do seu tio e do caderno de Sánchez Mazas, perguntei-lhe se era possível certificar-me documentalmente de que Pere Figueras, o pai de Jaume, tinha estado preso, de facto, no fim da guerra.

- É facílimo - respondeu. - No Arquivo Histórico há um catálogo com o registo dos nomes de todos os presos que estiveram na prisão da cidade, mesmo antes da guerra. Se prenderam Pere Figueras, o seu nome estará aí. Com certeza.

- Não podem tê-lo enviado para outra prisão?

- Impossível. Os presos da zona de Banyoles eram sempre destinados à cadeia de Gerona.

No dia seguinte, antes de ir trabalhar para o jornal, postei-me no Arquivo Histórico, que fica num velho convento recuperado, na zona antiga. Guiando-me pelos letreiros, subi por umas escadas de pedra e entrei na biblioteca, uma sala espaçosa e soalheira, com grandes janelas e mesas de madeira reluzentes rodeadas de candeeiros, cujo silêncio só era quebrado pelo teclar de um funcionário, quase escondido atrás de um computador. Disse ao funcionário - um homem de cabelo despenteado e bigode cinzento - o que procurava; levantou-se, foi até uma prateleira e agarrou numa pasta de argolas.

- Veja aqui - disse, entregando-ma. - Ao lado de cada nome está o número do processo; se quiser consultá-lo, peça-mo.

Sentei-me a uma mesa e procurei no catálogo, que abarcava o período compreendido entre 1924 e 1949, algum Figueras que tivesse dado entrada na prisão em 1939 ou 1940. Como o apelido era bastante comum na zona, havia vários, mas nenhum deles era o Pere (ou Pedro) Figueras Bahí que eu procurava: ninguém com esse nome tinha estado na cadeia de Gerona em 1939, nem em 1940, nem sequer em 1941 ou 1942, que fora quando, de acordo com o relato de Jaume Figueras, o pai tinha estado preso. Ergui o olhar da pasta: o funcionário continuava a teclar no computador; a sala, deserta. Para além das grandes janelas inundadas de luz havia uma confusão de casas decrépitas que, pensei, não ofereceriam um aspecto muito diferente há sessenta anos e poucos meses quando, no final da guerra, a poucos quilómetros dali, três rapazes anónimos e um quarentão ilustre esperavam emboscados pelo fim do pesadelo. Como que assaltado por uma súbita inspiração, pensei: «É tudo mentira». Pensei que, se o primeiro facto que tentava contrapor, por minha conta, com a realidade - a estada de Pere Figueras na cadeia - era falso, nada me impedia de supor que o resto da história também o era. Disse para comigo que houve sem dúvida três rapazes que ajudaram Sánchez Mazas a sobreviver no bosque após o seu fuzilamento - uma certeza avalizada por diversas circunstâncias, entre elas a coincidência entre as notas do caderno de Sánchez Mazas e o relato que este fez ao seu filho -, mas determinados indícios permitiam-me pensar que não eram os irmãos Figueras e Angelats.

Para começar, no caderno de Sánchez Mazas os seus nomes tinham sido escritos a tinta e com uma caligrafia diferente do restante texto, que estava escrito a lápis; era inegável, por isso, que uma mão alheia à de Sánchez Mazas os acrescentara. Além disso, o fragmento mutilado da declaração final, no qual, conforme deduzira ao estudar o caderno, devia mencionar os Figueras e Angelats, porque seria destinado a agradecer-lhes a sua ajuda, podia muito bem ter sido arrancado precisamente por não serem mencionados; ou seja, para que alguém chegasse à mesma dedução que eu chegara. E quanto à falsa temporada de Pere Figueras na cadeia, era sem dúvida uma invenção do próprio Pere, ou do filho, ou sabe-se lá de quem; de qualquer forma, se a somarmos à orgulhosa negativa de Pere para escapar ao cativeiro apelando ao favor de um alto dignitário franquista como Sánchez Mazas e à carta em que denunciava o aproveitador que pretendia arrancar dinheiro a Sánchez Mazas fazendo-se passar por ele, a história constituía um alicerce ideal para edificar sobre ela uma dessas nebulosas lendas de heroísmo paterno que, sem que ninguém consiga identificar nunca a sua origem, prosperam tanto com a morte do pai em certas famílias propensas à mitificação de si próprias. Mais decepcionado do que perplexo, perguntei a mim próprio quem seriam então os verdadeiros amigos do bosque e quem e para quê tinha construído aquela fraude; mais perplexo do que decepcionado, disse para comigo que talvez, tal como alguns tinham suspeitado desde o início, Sánchez Mazas nem sequer tivesse estado no Collell e que, possivelmente, toda a história do fuzilamento e das circunstâncias que o rodearam não fosse mais do que um enorme embuste minuciosamente urdido pela imaginação de Sánchez Mazas - com a colaboração voluntária e involuntária de parentes, amigos, conhecidos e desconhecidos - para limpar a sua fama de cobarde, para esconder algum episódio desonroso das suas estranhas andanças de guerra e, sobretudo, para que algum investigador crédulo e sedento de fábulas a reconstruísse sessenta anos mais tarde, redimindo-o para sempre perante a história.

Devolvi a pasta de argolas ao seu lugar na prateleira e já me dispunha a sair da biblioteca, acabrunhado por uma sensação de vergonha e engano quando, ao passar diante do computador, o funcionário me perguntou se tinha encontrado o que procurava. Disse-lhe a verdade.

- Ah, mas não se renda tão depressa. - Levantou-se e, sem me dar tempo para explicações, foi novamente até à prateleira e tornou a tirar a pasta. - Como se chama a pessoa que procura?

- Pere ou Pedro Figueras Bahí. Mas não se incomode. O mais provável é nunca ter estado em nenhuma prisão.

- Nesse caso não estará aqui - disse. Mas insistiu: - Faz ideia de quando deverá ter entrado na prisão?

- Em 1939 - cedi. - Quando muito, em 1940 ou 1941. Rapidamente o funcionário localizou a página.

- Não consta ninguém com esse nome - constatou. - Mas o funcionário da cadeia pode ter-se enganado e transcrito mal o nome. - Alisou o bigode, murmurando: - Vamos lá ver...

Passou várias vezes as folhas do catálogo para trás e para a frente, percorrendo as listas de nomes com um dedo inquisitivo, que por fim se deteve.

- «Piqueras Bahí, Pedro» - leu. - De certeza que é ele. Faça o favor de esperar um momento.

Desapareceu por uma porta lateral e regressou passado pouco tempo, sorridente e trazendo uma pasta de capas maltratadas.

- Aqui tem o seu homem - disse.

A pasta continha, efectivamente, o processo de Pere Figueras. Excitadíssimo, com o amor-próprio recuperado de chofre, examinei o processo, dizendo para comigo que, se a permanência de Pere Figueras na cadeia não era uma invenção, o resto da história também não o era. No processo constava que Figueras era natural de Sant Andreu del Terri, um município assimilado com o tempo ao de Cornellà de Terri. Que era agricultor e solteiro. Que tinha vinte e cinco anos. Que se ignoravam os seus antecedentes. Que tinha dado entrada na cadeia, procedente do Governo Militar sem que pesasse sobre ele qualquer acusação, a 27 de Abril de 1939, e que tinha saído apenas dois meses depois, a 19 de Junho. Também constava que tinha sido posto em liberdade pelo General Auditor de acordo com uma ordem incluída no processo de um tal Vicente Vila Rubirola. Procurei Rubirola no catálogo, encontrei-o, pedi o processo dele ao funcionário que mo trouxe. Militante da Esquerda Republicana, Rubirola tinha estado na prisão devido à revolução de Outubro de 34 e regressara aí no fim da guerra, precisamente no mesmo dia em que Pere Figueras e outros oito habitantes de Cornellà de Terri tinham sido presos. Todos tinham sido também postos em liberdade a 19 de Junho, no mesmo dia que Figueras, de acordo com uma ordem do General Auditor na qual não se especificava nenhum dos motivos que justificavam a tomada dessa decisão, embora Vila Rubirola tivesse regressado à cadeia em Julho do mesmo ano e, após ter sido julgado e condenado, só tivesse saído definitivamente passados vinte anos.

Agradeci ao funcionário do Arquivo e, ao chegar ao jornal, não tive tempo de telefonar a Aguirre. Eram-lhe familiares muitos dos nomes das pessoas que tinham entrado na prisão com Pere Figueras - a maior parte conhecidos activistas de partidos de esquerda - e, sobretudo, o de Vila Rubirola, que nos primeiros dias da guerra tinha participado, ao que parece, no assassinato, em Barcelona, do secretário da Câmara Municipal de Cornellà de Terri. Segundo Aguirre, o facto de Pere Figueras e dos seus oito companheiros terem dado entrada na cadeia sem explicações era normal naquele momento, quando todos aqueles que tinham mantido algum tipo de vínculo político ou militar com a República eram submetidos a um rigoroso embora arbitrário escrutínio do passado, durante o qual permaneciam na prisão. Também não achava estranho Pere Figueras estar em liberdade passado pouco tempo, pois isso acontecia frequentemente com aqueles que a justiça do novo regime considerava que não constituíam um perigo para ele.

- O que, isso sim, me parece muito estranho, é que alguém tão conhecido como Vila Rubirola, e como um ou outro dos que deram entrada na prisão com Figueras, saíssem com ele - observou Aguirre. - E o que não consigo entender de maneira nenhuma é terem saído todos no mesmo dia e sem a mais pequena explicação, e tudo isso para Rubirola, e não me admiraria que também algum dos outros, voltar para a cadeia passado pouquíssimo tempo. Não consigo entender. - Aguirre ficou em silêncio. - A menos que...

- A menos que... ?

- A menos que alguém tenha intervindo - concluiu Aguirre, esquivando o nome que tínhamos os dois em mente. - Alguém com verdadeiro poder. Um dirigente.

Nessa mesma noite, enquanto jantava com Conchi num restaurante grego, anunciei-lhe solenemente, porque tinha necessidade de o anunciar solenemente, que, após dez anos sem escrever um livro, tinha chegado o momento de tentar novamente.

- Porreiro! - gritou Conchi, que estava louca para acrescentar mais um livro aos que, na sua sala, escoltavam a Virgem de Guadalupe; com um pedaço de pão de pita barrado de tzatziqui viajando até à sua boca, acrescentou: - Espero que não seja um romance.

- Não - disse, com bastante segurança. - É um relato real.

- E isso o que é?

Expliquei-lhe; julgo que terá entendido.

- Vai ser como um romance - resumi. - Só que, em vez de ser tudo mentira, é tudo verdade.

- É melhor que não seja um romance.

- Porquê?

- Por nada - respondeu. - É só porque, enfim... querido... Parece-me que a imaginação não é o teu forte.

- És um amor, Conchi.

- Não tomes a peito, fofo. O que quero dizer é que... - Como não podia dizer o que queria dizer, agarrou noutro bocado de pão de pita e disse: - A propósito, de que trata o livro?

- Da batalha de Salamina.

- De quê? - gritou.

Vários pares de olhos voltaram-se para nos ver, pela segunda vez. Eu sabia que o argumento do meu livro não ia agradar a Conchi, mas, como também não queria que a escandaleira chamasse a atenção sobre nós, tratei de lhe explicar resumidamente.

- Tem miolo - comentou, efectivamente, Conchi, com uma careta de asco. - Olha que pôr-se a escrever sobre um facho, com a quantidade de belíssimos escritores comunas que deve haver por aí! Garcia Lorca, por exemplo. Era comuna, não? Uiiii - disse, sem esperar resposta, metendo a mão por baixo da mesa: alarmado, levantei a toalha e olhei. - Fofo, que maneira de me pores o grelo aos saltos.

- Conchi - censurei-a num sussurro, endireitando-me rapidamente e esforçando-me por sorrir enquanto olhava de soslaio para as mesas do lado -, agradecia-te que, pelo menos quando saísses comigo, vestisses cuecas.

- Estás feito um cota de marca! - disse com o seu sorriso mais carinhoso, mas sem levar por diante a mão submersa: nesse momento senti os dedos dos seus pés subindo-me pela barriga da perna. - Não vês que assim é mais sexy! Bom, quando começamos?

- Já te disse milhares de vezes que não gosto de o fazer em casas de banho públicas.

- Não me referia a isso, parvo. Refiro-me a quando começamos o livro.

- Ah, isso - disse enquanto uma labareda me subia pela perna e outra me descia pela cara. - Rapidamente - balbuciei. - Muito rapidamente. Assim que acabar de documentar-me.

Mas a verdade é que demorei ainda algum tempo a acabar de reconstituir a história que queria contar e a conhecer, se não todos e cada um dos seus mistérios, pelo menos os que julgava essenciais. De facto, durante muitos meses investi o tempo que o meu trabalho no jornal me deixava livre a estudar a vida e a obra de Sánchez Mazas. Reli os seus livros, li muitos dos artigos que publicou na imprensa, muitos dos livros e artigos dos seus amigos e inimigos, dos seus contemporâneos, e também tudo o que me caiu nas mãos sobre a Falange, o fascismo, a guerra civil, a natureza equívoca e mutante do regime de Franco. Percorri bibliotecas, hemerotecas, arquivos. Fui várias vezes a Madrid e constantemente a Barcelona, para falar com eruditos, com professores, com amigos e conhecidos (ou com amigos de amigos e conhecidos de conhecidos) de Sánchez Mazas. Passei uma manhã inteira no santuário do Collell, que, segundo me contou mossén (*8) Joan Prats - o padre de calva brilhante e sorriso devoto que me mostrou o jardim de ciprestes e palmeiras, as enormes salas vazias, os corredores imensos, as escadarias com corrimões de madeira e as salas de estudo desertas por onde tinham vagueado como sombras premonitórias Sánchez Mazas e os seus colegas de cativeiro -, acabada a guerra fora novamente autorizado a ser internato de crianças, até que, um ano e meio

 

(*8) Mossén: título atribuído aos clérigos no antigo reino de Aragão. (N. da T.)

 

antes da minha visita ficara reduzido à sua actual condição subalterna de centro de reunião de associações piedosas e albergue ocasional de excursionistas. Foi o próprio mossén Prats, que nascera pouco antes daqueles acontecimentos do Collell, mas que não os ignorava, quem me contou a história real ou apócrifa segundo a qual, ao apoderar-se do santuário, os soldados de Franco não deixaram com vida um único dos guardas da prisão, e quem me deu as indicações precisas para descobrir o local onde se dera o fuzilamento. Seguindo-as, saí do santuário pela estrada que lhe dava acesso, cheguei até uma cruz de pedra que assinalava o massacre, virei à esquerda por uma vereda que serpenteava entre pinheiros e desemboquei na clareira. Permaneci aí algum tempo, passeando sob o sol frio e o céu imaculado e ventoso de Outubro, sem fazer nada além de auscultar o silêncio frondoso do bosque e tentar imaginar em vão a luz de outra manhã menos cristalina, a manhã inconcebível de Janeiro em que, há sessenta anos e naquela mesma paisagem, cinquenta homens viram a morte de chofre e dois deles conseguiram iludir o seu olhar de medusa. Como se esperasse uma revelação por osmose, fiquei ali um bocado; não senti nada. Depois fui-me embora. Fui a Cornellà de Terri porque, nesse mesmo dia, tinha um almoço combinado com Jaume Figueras que, à tarde, me mostrou Can Borrell, a antiga casa dos Ferre, Can Pigem, a antiga casa dos Figueras, e o Mas de La Casa Nova, o refúgio temporário de Sánchez Mazas, dos irmãos Figueras e de Angelats. Can Borrell era uma fazenda situada no limite municipal de Paiol de Rebardit; Can Pigem ficava em Cornellà de Terri; o Mas de La Casa Nova ficava entre as duas aldeias, a meio do bosque. Can Borrell estava desabitada, mas não em ruínas, tal como Can Pigem; o Mas de La Casa Nova estava desabitado e em ruínas. Há sessenta anos tinham sido, sem dúvida, casas muito diferentes, mas o tempo igualara-as e o seu ar comum de desamparo, de esqueletos de pedra entre cujo arcaboiço descarnado o vento geme nas tardes de Outono, não continha uma única sugestão de que alguém, alguma vez, tivesse aí vivido.

Foi também graças a Jaume Figueras, que finalmente cumpriu a sua palavra e fez de intermediário diligente, que consegui conversar com o seu tio Jaume, com Maria Ferre e com Daniel Angelats. Os três já tinham passado dos oitenta anos: Maria Ferre tinha 88; Figueras e Angelats, 82. Os três conservavam boa memória do seu encontro com Sánchez Mazas e das circunstâncias que o rodearam, como se aquele tivesse sido um facto determinante nas suas vidas e o tivessem recordado com frequência. As versões dos três diferiam, mas não eram contraditórias e, em mais de um ponto, complementavam-se, de modo que não era difícil reconstruir, a partir dos seus testemunhos e preenchendo à base de lógica e de um pouco de imaginação as lacunas que deixavam, o quebra-cabeças da aventura de Sánchez Mazas. Talvez porque já ninguém tem tempo de ouvir as pessoas de uma certa idade, muito menos quando recordam episódios da sua juventude, os três estavam desejosos de falar, e mais de uma vez tive de canalizar o jorro desordenado das suas evocações. Imagino que possam ter abrilhantado alguma particularidade secundária, algum pormenor lateral; não que tenham mentido, entre outras razões porque, a tê-lo feito, a mentira não teria encaixado no quebra-cabeças, denunciando-os. Por outro lado, os três eram tão diferentes que a única coisa que os unia aos meus olhos era a sua condição de sobreviventes, esse suplemento ilusório de prestígio que outorgam com frequência os protagonistas do presente (que é sempre consuetudinário, anódino e sem glória), aos protagonistas do passado (que, por só o conhecermos através do filtro da memória, é sempre excepcional, tumultuoso e heróico). Figueras era alto e entroncado, com um ar quase juvenil - camisa aos quadrados, gorro de marinheiro, calças de ganga desbotadas -, um homem viajado e dono de uma vitalidade desmedida e de uma conversa pejada de gestos, exclamações e gargalhadas; Maria Ferre, que, segundo me disse mais tarde Jaume Figueras, tivera a vaidade de ir ao cabeleireiro antes de me receber na sua casa de Cornellà de Terri - uma casa que fora em tempos o bar e a mercearia da aldeia e que ainda conservava à entrada, quase como uma relíquia, um balcão de mármore e uma balança -, era pequenina e doce, digressiva, com olhos alternadamente maliciosos e humedecidos pela sua incapacidade de evitar as ciladas que, no decurso da conversa, a nostalgia lhe armava, uns olhos jovens, coloridos e fluidos de regato no Verão. Quanto a Angelats, a entrevista que mantive com ele foi decisiva. Decisiva para mim, quero dizer; ou, mais precisamente, para este livro.

Há muitos anos que Angelats dirigia no centro de Banyoles uma estalagem que ocupava parte de uma decrépita e bonita casa de campo, com um grande pátio com colunas e salas amplas e sombrias. Quando o conheci, acabava de sobreviver a um enfarte e era um homem vagaroso e diminuído, cujos gestos, de uma solenidade quase abacial, contrastavam com a inocência quase pueril de muitas das suas observações e com a lenta humildade do seu aspecto de pequeno empresário catalão. Não sei se exagero ao julgar que, tal como Figueras e Maria Ferre, Angelats se sentia de certa forma lisonjeado com o meu interesse por ele; sei que lhe agradou bastante recordar Jaume Figueras - que durante anos fora o seu melhor amigo e a quem não via há muito tempo - e a sua aventura comum na guerra, e enquanto o ouvia esforçar-se por apresentá-la como uma aventura de juventude sem a mais pequena importância, intuí que tinha toda a importância do mundo para ele, talvez por sentir que tinha sido a única aventura real da sua vida, ou, pelo menos, a única da qual, sem receio de errar, podia orgulhar-se. Falou-me longamente dela. Depois falou-me do seu enfarte, do curso do seu negócio, da sua mulher, dos seus filhos, da sua única neta. Compreendi que sentia necessidade, há muito tempo, de falar com alguém sobre estas coisas. Compreendi que só estava a ouvi-lo em paga de me ter contado a sua história. Envergonhado, senti piedade e, quando considerei já ter pago a minha dívida, quis despedir-me mas, como tinha começado a chover, Angelats insistiu em acompanhar-me até à paragem do autocarro.

- Agora que me lembro... - disse enquanto atravessávamos sob o guarda-chuva uma praça encharcada. Parou e não consegui deixar de pensar que essa lembrança não passava de um engodo para me reter - ...Antes de se ir embora, Sánchez Mazas disse-nos que ia escrever um livro sobre tudo aquilo, um livro em que nós apareceríamos. Ia chamar-se Soldados de Salamina; um título estranho, não é verdade? Também nos disse que o enviaria, mas não o fez. - Agora Angelats olhava-me: a luz de um candeeiro punha reflexos alaranjados nas lentes dos seus óculos e, por um momento, vi nas órbitas ossudas dos seus olhos e na proeminência da sua testa, dos seus pómulos e do seu maxilar partido o desenho da sua caveira. - Você sabe se ele escreveu o livro?             ,

Um arrepio de frio percorreu-me as costas. Estive quase a responder que sim, mas reflecti a tempo: «Se lhe digo que o escreveu realmente, ele quererá lê-lo e descobrirá a mentira». Sentindo que, de alguma forma, estava a trair Angelats, disse secamente:

- Não.

- Não o escreveu ou não sabe se o escreveu?

- Não sei se o escreveu - menti. - Mas prometo-lhe averiguar.

- Faça-o. - Angelats continuou a andar. - E, se acaso o escreveu, gostava que mo enviasse. Com certeza que fala de nós, já lhe contei que ele nos dizia sempre que lhe salváramos a vida. Compreende, não é verdade?

- Claro - disse e, sem me sentir totalmente repugnante, acrescentei: - Mas não se preocupe. Assim que o encontrar, enviá-lo-ei.

No dia seguinte, mal cheguei ao jornal, fui ao gabinete do director e negociei uma licença.

- O quê? - perguntou com ironia. - Outro romance?

- Não - respondi com satisfação. - Um relato real. Expliquei-lhe o que era um relato real. Expliquei-lhe do que

tratava o meu relato real.

- Gosto - disse ele. - Já tens um título?

- Creio que sim - respondi. - Soldados de Salamina.

 

                         SOLDADOS DE SALAMINA

 

A 27 de Abril de 1939, justamente no dia em que Pere Figueras e os seus oito companheiros de Cornellà de Terri deram entrada na prisão de Gerona, Rafael Sánchez Mazas era nomeado conselheiro nacional da Falange Espanhola Tradicionalista e das JONS (*1) e vice-presidente da sua Junta Política; ainda não decorrera um mês desde a derrocada definitiva da República, e ainda faltavam quatro para que Sánchez Mazas se convertesse em ministro sem pasta do primeiro governo do pós-guerra. Sempre fora um homem difícil, soberbo e despótico, mas não mesquinho nem vingativo e, por isso, naquela época, a sala de espera do seu gabinete oficial fervilhava de familiares de presos ávidos de conseguir a sua intercessão a favor de antigos conhecidos ou amigos a quem o fim da guerra confinara nas celas da derrota. Nada nos permite pensar que não fez por eles o melhor que pôde. Graças à sua insistência, o Caudilho comutou a pena de morte que pesava sobre o poeta Miguel Hernández pela de prisão perpétua, mas não a que num amanhecer de Novembro de 1940, diante de um pelotão de fuzilamento, acabou com a vida de Julián Zugazagoitia, bom amigo de Sánchez Mazas e ministro da Administração Interna no gabinete de Negrín. Meses antes de este assassinato inútil, no regresso de uma viagem a Roma na qualidade de delegado nacional da Falange Exterior, o seu secretário, o jornalista Carlos Sentis, pô-lo a par dos assuntos pendentes

 

(*1) JONS: Juntas de Ofensiva Nacional Sindicalista. (N. da T.)

 

e leu-lhe a lista das pessoas às quais concedera audiência para essa manhã. Repentinamente atento, Sánchez Mazas fê-lo repetir um nome; depois, levantou-se, atravessou o gabinete com grandes passadas, abriu a porta, postou-se a meio da sala de espera e, perscrutando as caras de susto que a abarrotavam, perguntou:

- Quem dos presentes é Joaquín Figueras? Paralisado de terror, um homem com olhos de órfão e indumentária de viajante tentou responder, mas só conseguiu quebrar o silêncio sólido que se seguiu à pergunta com um borborinho indecifrável, enquanto introduzia uma mão desesperada como uma garra no bolso do seu casaco. De pé diante dele, Sánchez Mazas quis saber se era parente dos irmãos Pedro e Joaquín Figueras. «Sou pai deles», conseguiu articular o homem, com um forte sotaque catalão e um cabecear frenético que nem sequer amainou quando Sánchez Mazas o esmagou num abraço de alívio. Findas as efusões, os dois homens conversaram no gabinete durante alguns minutos. Joaquín Figueras referiu que o seu filho Pere estava preso há um mês e meio na cadeia de Gerona, acusado sem provas, tal como outros jovens da aldeia, de ter participado no incêndio da igreja de Cornellà de Terri durante os primeiros dias da guerra e de ter intervindo no assassinato do secretário da Câmara Municipal. Sánchez Mazas não o deixou terminar. Saiu do gabinete por uma porta lateral, regressando pouco depois.

- Já está - exclamou. - Quando chegar a Cornellà, encontrará o seu filho em casa.

Figueras saiu eufórico do gabinete e, enquanto descia as escadas do edifício oficial apercebeu-se de uma dor lancinante na mão e reparou que ainda a levava metida no bolso do casaco, apertando com toda a força uma folha de papel arrancada de um caderno de capas verdes onde Sánchez Mazas tinha deixado escrito a dívida de gratidão que o unia aos seus filhos. E quando, dias depois, chegou a Cornellà e abraçou sem lágrimas o seu filho recém-libertado, Joaquín Figueras soube que não tinha sido um erro empreender aquela viagem alucinante por um país devastado para ver um homem que não conhecia e que, até ao fim dos seus dias, teve por um dos mais poderosos de Espanha.

Só se enganava em parte. Porque, embora sempre a tenha considerado um ofício indigno de cavalheiros, Sánchez Mazas andava nessa altura há mais de uma década metido na política e ainda demoraria vários anos a abandoná-la, mas nunca, em toda a sua vida, iria acumular tanto poder real nas suas mãos como naquele momento.

Tinha nascido em Madrid num dia 18 de Fevereiro de há quarenta e cinco anos. O pai, um médico militar oriundo de Coria, cujo tio tinha sido médico de Alfonso XII, morreu passados poucos meses, e a mãe, Maria Rosario-Mazas y Orbegozo, procurou imediatamente a protecção da sua família em Bilbau. Aí, numa casa de cinco andares situada junto à ponte do Arenal, na rua Henao, adulado pelos mimos de um exército de tios sem filhos, decorreu a sua infância e adolescência. Os Mazas eram um clã familiar de fidalgos com antecedentes liberais e inclinações literárias, aparentados com Miguel de Unamuno e solidamente ancorados no centro da fina sociedade de Bilbau, nos quais Sánchez Mazas se inspiraria para construir algumas das personagens dos seus romances, dos quais herdou uma propensão irreprimível para o ócio senhorial e uma obstinada vocação literária. Esta última roçou também a sua mãe, uma mulher ilustrada e perspicaz, que colocou toda a sua energia de viúva prematura a facilitar ao filho a carreira de escritor que ela não tinha podido ou querido desenvolver.

Sánchez Mazas não a decepcionou. É verdade que foi um estudante medíocre, que vagueou com mais pena que glória por diversos internatos religiosos de boas famílias até aportar à Universidad Central de Madrid e, por fim, ao Real Colégio de Estúdios Superiores de Maria Cristina no El Escorial, dirigido por agostinianos, onde, em 1916, se licenciou em Direito. Não é menos verdade, no entanto, que rapidamente começou a dar mostras de um talento literário evidente. Aos treze anos escrevia poemas à maneira de Zorrilla e de Marquina; aos vinte imitava Rubén e Unamuno; aos vinte e dois era um poeta maduro; aos vinte e oito a sua obra em verso estava, no essencial, realizada. Num gesto tipicamente aristocrático, quase não se deu ao trabalho de a publicar e, se a conhecemos integralmente (ou quase integralmente) isso deve-se em grande parte aos desvelos da mãe, que transcreveu à mão os seus poemas para uns pequenos cadernos de capas plásticas pretas, anotando sob cada um deles o lugar e data em que foram compostos. Por outro lado, Sánchez Mazas é um bom poeta; um bom poeta menor, quero dizer, que é quase tudo a que um bom poeta pode aspirar. Os seus versos têm uma única corda, humilde e velhíssima, monótona e um pouco sentimental, mas Sánchez Mazas toca-a com mestria, arrancando-lhe uma música límpida, natural e prosaica que só canta a melancolia agridoce do tempo que foge e que arrasta na sua fuga a ordem e as hierarquias seguras de um mundo extinto que, precisamente por ter sido extinto, é também um mundo inventado e impossível, que quase sempre equivale ao mundo impossível e inventado do Paraíso.

Embora tenha publicado apenas um livro de poemas em vida, é possível que Sánchez Mazas se tenha sentido sempre um poeta, e talvez essencialmente o tenha sido; os seus contemporâneos, no entanto, conheceram-no principalmente como autor de crónicas, de artigos, de romances e, sobretudo, como político, que é justamente o que nunca sentiu ser e o que eventualmente nunca foi. Em Junho de 1916, um ano depois de publicar o seu primeiro romance, Pequenas memórias de Tarín, e recém-licenciado em Direito, Sánchez Mazas regressou a Bilbau, naquela altura uma cidade impetuosa e satisfeita consigo própria, dominada por uma burguesia afortunada que gozava de um período de esplendor económico resultante da neutralidade espanhola na Primeira Guerra Mundial. Essa bonança encontrou a sua mais conspícua expressão cultural na revista Hermes, que aglutinou um punhado de escritores católicos, d'orsianos e espanholistas, devotos da cultura romana e dos valores da civilização ocidental, a quem Ramón de Basterra baptizou com o pomposo título de Escola Romana do Pirinéu. Basterra foi um dos mais notórios integrantes desse grupo de escritores, a maior parte dos quais passaria com os anos a engrossar as fileiras do falangismo; outro foi Sánchez Mazas. Reuniam-se na tertúlia do Lyon d'Or, um café situado em plena Gran Via de López de Haro, onde Sánchez Mazas brilhou como conversador culto, circunspecto e um tanto pomposo. José Maria de Areilza, nessa altura uma criança que o pai levava a tomar chocolate no Lyon d'Or, recorda-o como «um jovem espigado, magríssimo, com os seus óculos sérios de tartaruga, os seus olhos ardentes e ao mesmo tempo fatigados e uma voz que tornava estentórea, de vez em quando, para acentuar algum ponto da discussão». Por essa época, Sánchez Mazas já escrevia assiduamente no Abe, no El Sol, no El Pueblo Vasco e, em 1921, Juan de La Cruz, o director deste último, enviou-o como correspondente de guerra para Marrocos, onde estabeleceu uma amizade duradoura de copos e longas conversas nocturnas, que superaria o rancor de uma guerra vivida em lados contrários, com outro correspondente de Bilbau chamado Indalecio Prieto.

Um ano apenas durou a estadia de Sánchez Mazas em Marrocos porque, em 1922, Juan Ignacio Luca de Tena o enviou para Roma como correspondente do Abe. Itália fascinou-o. A sua paixão juvenil pela cultura clássica, pelo Renascimento e pela Roma imperial cristalizou para sempre no contacto com a Roma real. Aí viveu sete anos. Aí se casou com Liliana Ferlosio, uma italiana recém-saída da adolescência a quem quase arrebatou de casa e com quem manteve toda a vida uma relação caótica da qual nasceram cinco filhos. Aí amadureceu como homem, como leitor e como escritor. Aí forjou uma justa fama de cronista com alguns artigos bastante literários, de traçado refinado e execução segura - por vezes carregados de erudição e lirismo, outras vezes veementes de paixão política - que são, talvez, o melhor da sua obra. Aí, também, se converteu ao fascismo. De facto, não é exagerado afirmar que Sánchez Mazas foi o primeiro fascista de Espanha e é bastante exacto dizer que foi o seu mais influente teórico. Leitor fervoroso de Maurras e amigo íntimo de Luigi Federzoni - que encarnou em Itália uma espécie de fascismo ilustrado e burguês, e que, com o correr do tempo ocuparia diversas pastas ministeriais nos governos de Mussolini -, monárquico e conservador por vocação, Sánchez Mazas julgou descobrir no fascismo o instrumento idóneo para curar a sua nostalgia de um catolicismo imperial e, sobretudo, para reconstruir pela força as firmes hierarquias do antigo regime que o velho igualitarismo democrático e o novo e pujante igualitarismo bolchevique ameaçavam aniquilar em toda a Europa. Ou dito de outra forma: talvez para Sánchez Mazas o fascismo não tivesse sido mais do que uma tentativa política de realizar a sua poesia, de tornar realidade o mundo que melancolicamente ela evoca, o mundo extinto, inventado e impossível do Paraíso. Seja como for, a verdade é que saudou com entusiasmo a Marcha sobre Roma numa série de crónicas intituladas Itália em passo gentil, e que viu em Benito Mussolini a reencarnação dos condottiere renascentistas e, na sua ascensão ao poder, o anúncio de que o tempo dos heróis e dos poetas tinha voltado a Itália.

De modo que, em 1929, de regresso a Madrid, Sánchez Mazas já tinha tomado a decisão de se consagrar por inteiro a fazer com que esse tempo também voltasse a Espanha. De certo modo conseguiu-o. Porque a guerra é, por excelência, o tempo dos heróis e dos poetas e, nos anos trinta, pouca gente empenhou tanta inteligência, tanto esforço e tanto talento como ele para conseguir que em Espanha deflagrasse uma guerra. No seu regresso ao país, Sánchez Mazas entendeu imediatamente que, para atingir o seu objectivo não só seria preciso fundar um partido talhado pelo mesmo padrão daquele que vira triunfar em Itália, mas também encontrar um condottiere renascentista cuja figura, chegado o momento, catalisasse simbolicamente todas as energias libertadas pelo pânico que a desintegração da Monarquia e o triunfo inevitável da República iam gerar entre os sectores mais tradicionais da sociedade espanhola. A primeira empresa demorou ainda algum tempo a florescer, mas não a segunda, pois José António Primo de Rivera veio encarnar de imediato a figura do caudilho providencial que Sánchez Mazas procurava. A amizade que os uniu foi sólida e perdurável (tanto que, uma das últimas cartas que José António escreveu da cadeia de Alicante, nas vésperas do seu fuzilamento a 20 de Novembro de 1936, era dirigida a Sánchez Mazas); talvez o tenha sido porque se baseava numa partilha equitativa de papéis. José António possuía com efeito tudo aquilo de que Sánchez Mazas carecia: juventude, beleza, coragem física, dinheiro e prosápia. O contrário também é verdade: fortalecido pela sua experiência italiana, pelas suas muitas leituras e pelo seu talento literário, Sánchez Mazas converteu-se no mais considerado conselheiro de José António e, uma vez fundada a Falange, no seu principal ideólogo e propagandista e num dos criadores fundamentais da sua retórica e dos seus símbolos: Sánchez Mazas propôs, como símbolo do partido, o jugo e as flechas, que tinham sido o símbolo dos Reis Católicos, divulgou o grito ritual de «Arriba Espana!», compôs a celebérrima Oração pelos mortos da Falange e, ao longo de várias noites de Dezembro de 1935 participou, juntamente com José António e com outros escritores do seu círculo - Jacinto Miquelarena, Agustín de Foxá, Pedro Mourlane Michelena, José Maria Alfaro e Dionisio Ridruejo -, na composição da letra de Cara al sol, na cave do Or Kompon, um bar basco situado na rua Miguel Moya de Madrid.

Mas Sánchez Mazas ainda ia demorar algum tempo a converter-se no principal fornecedor de retórica da Falange, como o chamou Ramiro Ledesma Ramos. Quando chegou a Madrid, em 1929, aureolado pelo seu prestígio de escritor cosmopolita e pelas suas novíssimas ideias, ninguém em Espanha pensava seriamente em fundar um partido de tipo fascista, nem sequer Ledesma, que alguns anos mais tarde fundaria as JONS, o primeiro grupúsculo fascista espanhol. Tal como a outra, a vida literária, no entanto, radicalizava-se por momentos no calor das convulsões que agitavam a Europa e nas mudanças que se vislumbravam no horizonte político espanhol: em 1927, um jovem escritor chamado César Arconada, que tinha professado o elitismo orteguiano e que não tardaria a engrossar as fileiras do partido comunista, resumia o sentir de muita gente da sua idade quando declarava que «um jovem pode ser comunista, fascista, qualquer coisa, menos ter velhas ideias liberais». Isso explica em parte que tantos escritores da época, em Espanha e em toda a Europa, mudassem em poucos anos a estética desportiva e lúdica dos felizes anos vinte pelo combate político puro e duro dos ferozes anos trinta.

Sánchez Mazas não foi nenhuma excepção. De facto, toda a sua actividade literária na época anterior à guerra limita-se à escrita de inúmeros artigos de prosa aguerrida onde a definição da estética e da moral falangistas - criadas com deliberada falta de clareza ideológica, exaltação mística da violência e do militarismo, e ridicularias essencialistas que proclamavam o carácter eterno da pátria e da religião católica - convive com um objectivo central que, como afirma Andrés Trapiello, consistia basicamente em fazer um sortido de citações de historiadores latinos, pensadores alemães e poetas franceses que servissem para justificar a razia fratricida que se avizinhava. A actividade política de Sánchez Mazas, pelo contrário, foi frenética nestes anos. Depois de participar em várias tentativas para criar um partido fascista, em Fevereiro de 1933, juntamente com o jornalista Manuel Delgado Barreto, José António Primo de Rivera, Ramiro Ledesma Ramos, Juan Aparicio e Ernesto Giménez Caballero - com quem durante anos manteria uma luta nem sempre soterrada para dominar a liderança ideológica do fascismo espanhol, que acabou ganhando -, Sánchez Mazas fundou o semana rio El Faseio, que implicou o primeiro encontro das diversas tendências nacional-sindicalistas que acabariam confluindo na Falange. O primeiro e único número de El Faseio apareceu um mês mais tarde e foi imediatamente proibido pelas autoridades mas, a 29 de Outubro do mesmo ano, realizou-se no Teatro de La Comedia de Madrid o acto fundador da Falange Espanhola e Sánchez Mazas, a quem meses mais tarde foi atribuído o cartão número quatro do partido (Ledesma tinha o número um; José António o dois; Ruiz de Alda o três; Giménez Caballero o cinco), foi nomeado membro da sua Junta Directiva. Desde aquele momento e até 18 de Julho de 1936, o seu peso no partido - um partido que antes da guerra nunca conseguiu atrair ao longo da geografia espanhola mais do que algumas centenas de militantes, e que, em todas as eleições a que se apresentou, nunca conseguiu mais do que alguns milhares de votos, mas que ia ser decisivo para a transformação da história do país - foi determinante. Durante esses anos de ferro, Sánchez Mazas pronunciou discursos, interveio em assembleias, esboçou estratégias e programas, redigiu propostas, criou directivas, aconselhou o seu chefe e, sobretudo através do FE., o semanário oficial da Falange - onde se encarregava de uma secção intitulada «Directivas e normas de estilo» -, difundiu em artigos anónimos ou assinados por ele ou pelo próprio José António algumas ideias e um estilo de vida que, com o tempo, e sem que ninguém pudesse prever - menos ainda o próprio Sánchez Mazas -, acabariam convertidos no estilo de vida e nas ideias que, adoptadas primeiro como revolucionária ideologia de choque face às necessidades da guerra e mais tarde rebaixadas à categoria de vestimenta ideológica pelo militarzinho gorducho, efeminado, incompetente, astuto e conservador que as usurpou, acabariam convertidas na parafernália cada vez mais podre e órfã de significado com a que um punhado de parolos lutou durante quarenta anos de pesadelo para justificar o seu regime de merda.

No entanto, na época em que se incubava a guerra, as directivas que Sánchez Mazas difundia possuíam ainda uma flamante sugestão de modernidade que os jovens patriotas de boas famílias e violentos ideais que as acatavam contribuíam para validar.

Nessa altura, José António gostava muito de citar uma frase de Oswald Spengler, segundo a qual terá sido sempre um pelotão de soldados que, à última hora, salvou a civilização. Nessa altura os jovens falangistas sentiam que eram esse pelotão de soldados. Sabiam (ou julgavam saber) que as suas famílias dormiam um sonho inocente de beatitude burguesa, ignorando que uma vaga de impiedade e de barbárie igualitária iria acordá-las de chofre com um terrível fragor de catástrofe. Sentiam que o seu dever consistia em preservar a civilização pela força e evitar a catástrofe. Sabiam (ou julgavam saber) que eram poucos, mas esta mera circunstância numérica não os demovia. Sentiam-se os heróis. Embora já não fosse jovem e carecesse da força, da coragem física e mesmo da convicção precisa para o ser - mas não de uma família cujo sonho inocente de beatitude preservar -, Sánchez Mazas também o sentiu e por isso abandonou a literatura para se entregar com empenho sacerdotal à causa. Isto não o impediu de frequentar com José António os salões mais selectos da capital, nem de o secundar em algumas das suas famosas excentricidades de menino bem, como os Jantares de Carlos Magno, uns banquetes enfaticamente sumptuosos que uma vez por mês se celebravam no Hotel Paris para comemorar o imperador e, sobretudo, para protestar com a sua rigorosa bizantinice aristocrática contra a vulgaridade democrática e republicana que espreitava para lá das paredes do hotel. Mas as reuniões mais assíduas de José António e do seu séquito perpétuo de futuros poetas soldados celebravam-se na cave do Café Lyon, na calle Alcalá, num lugar conhecido como A Baleia Alegre, onde discutiam acaloradamente, até altas horas da noite, política e literatura, e onde conviviam numa atmosfera de cordialidade inverosímil com jovens escritores de esquerda com quem partilhavam inquietações, cervejas, conversas, piadas e insultos cordiais.

O eclodir da guerra ia substituir esta hostilidade afectuosa e ilusória por uma hostilidade real, embora a deterioração imparável da vida política durante os anos trinta já tivesse anunciado, a quem quisesse ver, a iminência da mudança. Aqueles que meses, semanas ou dias atrás tinham conversado diante de um café, à saída de um teatro ou da exposição de um amigo comum, viam-se agora lutando em bandos opostos em lutas de rua que não desdenhavam o estampido dos tiros nem a efusão de sangue. A violência, na realidade, vinha de trás e, apesar dos protestos sofredores de alguns dirigentes do partido, contrários a ela por temperamento e por educação, a verdade é que a Falange a alimentara sistematicamente com o objectivo de tornar insustentável a situação da República, e que o uso da força estava no próprio coração da ideologia falangista que, tal como todos os outros movimentos fascistas, adoptou os métodos revolucionários de Lenine, para quem uma minoria de homens corajosos e decididos - o equivalente ao pelotão de soldados de Spengler - era suficiente para tomar o poder pela força das armas. Tal como José António, Sánchez Mazas foi também um desses falangistas renitentes, de uma forma descontínua e na teoria, ao uso da violência (na prática fomentou-a: leitor de Georges Sorel, que a considerava um dever moral, os seus escritos são quase sempre uma incitação a ela); por isso, em Fevereiro de 1934, na Oração pelos mortos da Falange, composta a pedido de José António para travar os ímpetos de vingança dos seus, após o assassinato do estudante Matías Montero numa briga de rua, escreveu que «à vitória que não seja clara, cavalheiresca e generosa preferimos a derrota, porque é necessário que, mesmo que cada golpe do inimigo seja horrendo e cobarde, cada acção nossa seja a afirmação de um valor e de uma moral superiores». O tempo demonstrou que estas belas palavras não passavam de retórica. A 16 de Junho de 1935, numa reunião efectuada no Parador de Gredos, a Junta Política da Falange, convencida de que nunca alcançaria o poder pelas urnas e de que a sua própria existência enquanto partido político perigava, uma vez que a República o considerava, com razão, uma ameaça permanente à sua sobrevivência, tomou a decisão de lançar-se à conquista do poder através da insurreição armada. Durante o ano que se seguiu a essa reunião, as manobras conspirativas da Falange - pejadas como estiveram de inumeráveis receios, escrúpulos, ressalvas e hesitações que traduziam quer a sua escassa confiança nas suas próprias possibilidades de triunfo, quer os justificados e por último premonitórios temores do seu chefe de que o partido e o seu programa fossem devorados pela previsível aliança entre o exército e os sectores sociais mais conservadores que apoiariam o golpe - não cessaram por um instante, até que, a 14 de Março de 1936, depois de ser arrasada nas eleições de Fevereiro desse mesmo ano, a Falange foi decapitada quando a polícia encerrou a sua sede na rua Nicasio Gallego, deteve a totalidade da sua Junta Política e proibiu, sine die, o partido.

A partir desse momento, o rasto de Sánchez Mazas esfuma-se. As suas atribulações durante os meses anteriores à contenda e durante os três anos que esta durou, só podem tentar reconstruir-se através de testemunhos parciais - alusões fugitivas em memórias e documentos da época, relatos orais de quem partilhou com ele pedaços das suas aventuras, lembranças de familiares e amigos a quem falou das suas lembranças - e também através do véu de uma lenda constelada de equívocos, contradições e ambiguidades que a loquacidade selectiva de Sánchez Mazas acerca desse período turbulento da sua vida contribuiu de forma determinante para alimentar. Assim, o que em seguida exponho não é o que realmente aconteceu, mas o que parece verosímil ter acontecido; não ofereço factos provados, mas conjecturas razoáveis.

São estas:

Em Março de 1936, estando Sánchez Mazas preso na cadeia Modelo de Madrid juntamente com os seus companheiros da Junta Política, nasce o seu quarto filho, Máximo, e Victoria Kent, por essa altura directora-geral das prisões, concede ao recluso a autorização de três dias, que lhe é devida por lei, para visitar a mulher, desde que dê a sua palavra de honra de que não se ausentará de Madrid e de que regressará à cadeia passado esse tempo. Sánchez Mazas aceita o acordo, mas, segundo outro dos seus filhos, Rafael, antes de sair da prisão o alcaide chama-o ao seu gabinete e diz-lhe entre dentes ver as coisas bastante sombrias, sugerindo-lhe por meias-palavras «que seria melhor não regressar, e que ele, por outro lado, não poria, digamos assim, grande empenho na sua busca e captura». Por justificar o duvidoso comportamento posterior de Sánchez Mazas, devemos pôr em dúvida a veracidade desta versão; também tem cabimento calcular que não será falsa. A verdade é que Sánchez Mazas, esquecendo as afirmações solenes de cavalheirismo e heroísmo com que ilustrou tantas páginas de prosa incendiária, quebra o seu compromisso e foge para Portugal, mas José António, que levara a sério as palavras do seu lugar-tenente e que julga estar em jogo não apenas a sua honra mas a de toda a Falange, ordena lhe, a partir da prisão de Alicante, para onde foi transferido juntamente com o seu irmão Miguel na noite de 5 para 6 de Junho, que regresse a Madrid. Sánchez Mazas obedece, mas antes de ingressar novamente na Modelo, eclode a sublevação.

Os dias seguintes são confusos. Quase três anos mais tarde, Eugênio Montes - a quem Sánchez Mazas chamou «o meu maior e melhor camarada no afã de colocar as letras humanas ao serviço da nossa Falange» - descreve, a partir de Burgos, as peripécias do seu amigo nos dias imediatamente posteriores a 18 de Julho como «a aventura das esquinas e dos esconderijos, com os esbirros vermelhos seguindo-lhe as pisadas». A frase é tão romanesca como esquiva, mas talvez não atraiçoe totalmente a realidade. A revolução triunfa em Madrid. As pessoas matam e morrem nas valetas e nos quartéis. O Governo legal perdeu o controlo da situação e respira-se um misto de medo e de euforia. Nas casas proliferam as buscas; nas ruas, os controlos dos milicianos. Numa noite de princípios de Setembro, incapaz de tolerar por mais tempo o desassossego da clandestinidade e a iminência permanente do perigo, ou talvez obrigado pelos amigos ou conhecidos que durante demasiado tempo correram o risco de acolher um fugitivo do seu calibre, Sánchez Mazas decide sair da sua toca, fugir de Madrid e passar para a zona nacional.

Previsivelmente, não consegue fazê-lo. No dia seguinte, assim que sai à rua, é detido; a patrulha exige-lhe a identificação. Com um misto estranho de pânico e resignação, Sánchez Mazas compreende que está perdido e, como se quisesse despedir-se em silêncio da realidade, durante um segundo interminável de indecisão olha à sua volta e verifica que, embora sejam apenas nove horas, na rua Montera as lojas já estão abertas e o bulício apressado e plebeu da multidão inunda os passeios, enquanto o sol duro anuncia uma manhã sufocante daquele Verão que nunca mais acaba. Naquele momento atrai a atenção dos três milicianos armados um camião a abarrotar de militantes da UGT, cheios de espingardas e de gritos de guerra, que se dirige para a frente do Guadarrama com a carroçaria coberta de siglas e de nomes, entre os quais figura o de Indalecio Prieto, que acaba de ser nomeado ministro da Marinha e do Ar no flamante governo de Largo Caballero. Então Sánchez Mazas concebe e executa uma ideia desesperada: diz aos milicianos que não pode identificar-se, porque se encontra incógnito em Madrid cumprindo uma missão que lhe foi directamente confiada pelo ministro da Marinha e do Ar, e exige que o ponham em contacto com este. Divididos entre a perplexidade e o receio, os milicianos decidem levá-lo para a sede da Direcção-Geral de Segurança para se certificarem da autenticidade daquela desculpa inverosímil; aí, após algumas diligências angustiantes, Sánchez Mazas consegue falar por telefone com Prieto. Este interessa-se pela sua situação, aconselha-o a procurar refúgio na embaixada do Chile, desejando-lhe afectuosamente boa-sorte. Depois, em nome da sua velha amizade africana, ordena que o ponham imediatamente em liberdade.

Sánchez Mazas consegue nesse mesmo dia entrar na embaixada do Chile, onde passará quase um ano e meio. Dessa temporada de clausura conserva-se uma fotografia: Sánchez Mazas aparece no centro de um grupo de refugiados entre os que se encontra o escritor falangista Samuel Ros; são oito, todos um pouco andrajosos e mal barbeados, todos expectantes. Vestido com uma camisola que talvez tenha sido branca, com o seu perfil semita, os seus óculos de míope e a sua testa alta, Sánchez Mazas está com o cotovelo apoiado, num gesto elegante, numa mesa onde só se vê um copo vazio, um pedaço de pão, um maço de papéis ou cadernos e uma tigela famélica. Está a ler; os outros ouvem-no. O que lê é um fragmento de Rosa Kruger, um romance que escreveu ou começou a escrever nesses dias para aliviar a clausura e distrair os seus companheiros, e que só se publicaria, inacabado, cinquenta anos mais tarde, quando o seu autor já estava morto há muito tempo. É sem dúvida o seu melhor romance e também um bom romance, além disso estranho e intemporal, escrito à maneira bizantina por alguém que tivera o gosto e a sensibilidade de um pintor pré-rafaelista, de vocação europeísta e fundo patriótico e conservador, saturada de fantasias deliciosas, de aventuras exóticas, de uma espécie de melancólica sensualidade e de uma prosa precisa e cristalina, através das quais se narra a batalha que se desencadeia no íntimo do protagonista, entre os dois princípios essenciais que, segundo o autor, regem o universo-o diabólico e o angélico - e a vitória final deste último, encarnado numa donna angelicata chamada Rosa Kruger. Surpreende que Sánchez Mazas conseguisse isolar-se da obrigatória e ruidosa promiscuidade que reinava na embaixada para escrever o seu livro, mas não que o fruto desse isolamento evitasse minuciosamente as dramáticas circunstâncias que rodearam a sua concepção, pois teria sido redundante acrescentar à tragédia da guerra o relato da tragédia da guerra. Por outro lado, a aparente contradição, que tanto preocupou alguns dos seus leitores, entre as belicosas ideias falangistas de Sánchez Mazas e o seu apolítico e estetizante trabalho literário, resolve-se se admitirmos que ambos são expressões contrárias mas coerentes de uma mesma nostalgia: a do mundo extinto, impossível e inventado do Paraíso, a das hierarquias fortes de um ancien regime que o vendaval inevitável da história estava a varrer para sempre.

À medida que o tempo passa e aumentam a sangria e o desalento da guerra, a situação nas embaixadas que acolhem fugitivos do Madrid republicano torna-se cada vez mais precária, e o receio dos assaltos aumenta, de forma que todo aquele que tem ao seu alcance uma possibilidade sensata de fuga, prefere correr o risco da aventura em busca de um refúgio seguro a prolongar a incerteza angustiante da clausura e da espera. É o que faz Samuel Ros, que chega ao Chile em meados de 1937 e que só voltará à Espanha nacional no ano seguinte. Animado pelo êxito de Ros, durante o Outono de 37, Sánchez Mazas tenta a fuga. Conta com a ajuda de uma prostituta e de um jovem simpatizante da Falange cuja família, conhecida de Sánchez Mazas, possui ou possuía uma empresa de transportes. O seu plano consiste em chegar a Barcelona e, uma vez aí, obter a ajuda da quinta-coluna para entrar em contacto com as redes de evasão que atravessam clandestinamente a fronteira francesa. Põem em prática o plano e, durante vários dias, Sánchez Mazas percorre, por estradas secundárias e caminhos de carroça, camuflado entre um carregamento de hortaliças podres, os seiscentos quilómetros que o separam de Barcelona na companhia da prostituta e do jovem falangista. Milagrosamente, passam todos os controlos e chegam sãos e salvos ao seu destino, sem mais contratempos além de um pneu furado e do susto de morte infligido por um cachorro de olfacto demasiado apurado. Em Barcelona os três viajantes separam-se e a Sánchez Mazas acolhe-o, tal como tinham previsto, um advogado pertencente ao JMB, um dos inúmeros grupúsculos falangistas desconexos que a quinta-coluna tem espalhados pela cidade. Depois de lhe concederem alguns dias de descanso, os membros do JMB forçam-no a tomar o comando e, fazendo valer a sua condição de número quatro da Falange, a reunir todos os grupos da quinta-coluna, submetendo-os à disciplina do partido e obrigando-os a coordenar as suas actividades. Talvez por a sua única preocupação até ao momento ter sido sair da zona vermelha e passar para a nacional, ou simplesmente por saber-se incapacitado para a acção, a oferta surpreende-o e rejeita-a de imediato alegando o seu desconhecimento absoluto da situação da cidade e dos grupos que aí operam, mas os membros do JMB, tão jovens e arrojados como inexperientes, e que esperavam a sua chegada como um presente providencial, insistem, e Sánchez Mazas não tem outro remédio senão aceitar.

Nos dias que se seguem, Sánchez Mazas reúne-se com representantes de outros grupúsculos da quinta-coluna e, numa manhã, ao dirigir-se ao Ibéria, um bar do centro cujo dono apoia a causa nacional, é detido por agentes do SIM. Estamos a 29 de Novembro de 1937; as versões do que em seguida acontece diferem. Há quem defenda que o padre Isidoro Martin, que tinha sido professor de Sánchez Mazas no Real Colégio de Maria Cristina no Escorial, intercedeu em vão por ele junto de Manuel Azaria, que também tinha sido seu aluno naquela instituição. Julián de Zugazagoitia, aquele a quem, acabada a guerra, Sánchez Mazas tentou sem êxito livrar do pelotão de fuzilamento, afirma ter proposto ao presidente Negrín trocá-lo pelo jornalista Federico Angulo e que Azana lhe terá insinuado a conveniência de trocar o escritor por uns manuscritos seus, comprometedores, que se encontravam em poder dos facciosos. Outra versão defende que Sánchez Mazas nem sequer chegou a estar em Barcelona porque, depois da sua passagem pela embaixada do Chile, se refugiou na da Polónia, que foi assaltada, altura em que Azorín intercedeu para o livrar de uma sentença de morte. Há, inclusivamente, quem afirme que, na realidade, Sánchez Mazas foi efectivamente trocado no decurso da guerra. Estas duas últimas hipóteses são erróneas; quase com toda a certeza, as duas primeiras, não. Seja como for, a verdade é que, depois de ser detido pelo SIM, Sánchez Mazas foi levado para o barco Uruguay, atracado no porto de Barcelona e convertido, há já algum tempo, em prisão flutuante, e posteriormente conduzido para o Palácio da Justiça, onde foi julgado juntamente com outros elementos da quinta-coluna.

Durante o julgamento foi acusado de ser o chefe supremo da quinta-coluna em Barcelona, o que era falso, e de incitamento à rebelião, o que era verdade. No entanto, e ao contrário da maior parte dos restantes acusados, Sánchez Mazas não foi condenado à morte. O facto é estranho; talvez só uma nova intervenção in extremis de Indalecio Prieto consiga explicá-lo.

Terminado o julgamento, Sánchez Mazas é devolvido novamente ao Uruguay, numa de cujas celas passará os meses seguintes. As condições de vida não são boas: a comida é escassa; o tratamento, brutal. Também são escassas as notícias que chegam sobre o decurso da guerra, mas à medida que esta avança, até os cativos do Uruguay compreendem que a vitória de Franco está próxima. A 24 de Janeiro de 1939, dois dias antes de as tropas de Yague entrarem em Barcelona, acorda-o um rumor pouco habitual e não tarda a aperceber-se do nervosismo dos carcereiros. Por instantes pensa que o vão pôr em liberdade; no momento seguinte pensa que vão fuzilá-lo. A manhã decorre entre essas alternativas angustiantes. Por volta das três da tarde, um agente do SIM manda-o sair da cela e do barco e entrar num autocarro estacionado diante do molhe, onde o esperam outros catorze presos procedentes do Uruguay e da sede da polícia política de Vallmajor, e os dezasseis agentes do SIM encarregados da sua custódia. Entre os presos há duas mulheres: Sabina González de Carranceja e Juana Aparicio Pérez de Pulgar; também estão José Maria Poblador, dirigente jonsista (*2) de sempre e peça importante na intentona golpista de Julho de 36, e Jesus Pascual Aguilar, um dos chefes da quinta-coluna barcelonesa. Naquele momento ninguém poderia adivinhar, mas, de todos os presos varões que integram a escolta, passada uma semana só Sánchez Mazas, Pascual e Poblador estarão com vida.

O autocarro percorre silenciosamente Barcelona, convertida pelo terror da debandada e pelo céu cinzento de Inverno numa desolação fantasmagórica de janelas e varandas fechadas a sete chaves e de grandes avenidas cinzentas onde reina uma desordem de acampamento apenas quebrada por transeuntes furtivos que pulam como lobos pelos passeios esventrados com cara de fome,

 

(*2) Jonsista: pertencente à JONS (Juntas de Ofensiva Nacional Sindicalista). (N. da T.)

 

e de quem prepara a fuga, protegendo-se contra a adversidade e contra o vento glacial com casacos miseráveis. Ao sair de Barcelona e tomar a estrada do exílio, o espectáculo torna-se apocalíptico: uma avalancha espavorida de homens e mulheres, velhos e crianças, militares e civis misturados, carregados de roupas, colchões e utensílios domésticos, avançando penosamente com o andar inconfundível dos derrotados, ou em carroças e mulas do desespero, abarrota a estrada e as valetas, semeadas por vezes de cadáveres de animais com as tripas de fora ou de veículos abandonados. A caravana avança com uma lentidão interminável. De vez em quando, pára. De vez em quando, com um misto de espanto, de ódio e de insondável fadiga, alguém olha fixamente para os ocupantes do autocarro, com inveja das suas comodidades e protecção, ignorante do seu destino de fuzilados. De vez em quando, alguém os insulta. De vez em quando também, um avião nacional sobrevoa a estrada e cospe umas rajadas de metralhadora ou deixa cair uma bomba, provocando uma fuga de pânico entre os fugitivos e um sopro de esperança entre os presos do autocarro que, a determinada altura chegam a ter a ilusão - rapidamente desmentida pela estrita vigilância a que os submetem os agentes do SIM - de aproveitar o caos de um ataque para fugir através do campo.

Já é noite cerrada quando atravessam Gerona e mais tarde Banyoles. Depois metem-se por uma estrada íngreme de terra que serpenteia entre bosques na sombra e, pouco tempo depois, param diante de um maciço de pedra pontilhado de luzes, como um galeão descomunal naufragado a meio da escuridão envenenada pelas ordens urgentes dos carcereiros. É o santuário de Santa Maria del Collell. Aí, Sánchez Mazas vai passar cinco dias juntamente com os outros dois mil presos vindos do que resta da Espanha republicana, incluindo vários desertores vermelhos e vários membros das Brigadas Internacionais. Antes da guerra, o mosteiro era um internato de frades onde se ministravam aulas do secundário, com salas de tectos altíssimos e vidraças descomunais que davam para pátios de terra e jardins com ciprestes, com corredores compridos e escadarias vertiginosas com corrimões de madeira. Agora o internato tinha sido transformado numa prisão, as salas em celas e, nos pátios, corredores e escadarias, já não se ouvia a gritaria adolescente dos internos, mas os passos sem esperança dos cativos.

O responsável pela cadeia era um tal Monroy, o mesmo que dirigia com mão de ferro o barco-prisão Uruguay; no entanto, no Collell, o regime prisional é menos rigoroso: não é proibido falar com quem serve o rancho nem com quem encontram ao ir e vir dos lavabos; a comida continua a ser infecta e escassa, mas de vez em quando aparece nalguma cela um cigarro furtivo, que é avidamente consumido em grupo. A cela que Sánchez Mazas ocupa fica no último andar do antigo internato e é luminosa e grande; além dele e de vários brigadistas internacionais que não falam nenhuma língua compreensível, ocupam-na o médico Fernando de Marimón, o capitão de navio Gabriel Martin Morito, o padre Guiu, Jesus Pascual e José Maria Poblador, que mal consegue andar por ter as pernas cheias de furúnculos. No segundo dia, os brigadistas são postos em liberdade e o seu lugar é ocupado por presos nacionais capturados em Teruel e Belchite; a cela enche-se. De vez em quando permitem-lhes sair e dar uma volta pelo pátio ou pelos jardins; não os vigiam agentes do SIM nem carabineiros (embora uns e outros pululem pelo santuário): vigiam-nos soldados tão desnutridos e esfarrapados como eles, que contam anedotas e cantarolam entre dentes canções da moda enquanto palmilham aborrecidos as pedras do jardim ou olham para eles indiferentes. As horas de clausura e de inactividade fomentam as cabalas: devido à proximidade da fronteira e, sobretudo, a partir do momento em que um dirigente como Sánchez Mazas se somou à sua leva de presos, muitos acalentam a esperança de serem trocados em breve, uma hipótese que perde força à medida que o tempo passa; essas horas propiciam também o consolo da intimidade. Como se milagrosamente previsse que ia ser um dos sobreviventes do encarceramento e o único que anos mais tarde contará o horror dessas últimas horas num livro minucioso e maniqueísta, Sánchez Mazas relaciona-se sobretudo com Pascual, que só o conhece de nome e de ler os seus artigos em F.E. e a quem Sánchez Mazas refere a sua odisseia da guerra: fala-lhe da prisão Modelo, do nascimento do seu filho Máximo, dos dias incertos que se seguiram à sublevação, de Indalecio Prieto e da embaixada do Chile, de Samuel Ros e de Rosa Kruger, da sua viagem clandestina num camião de hortaliça por uma Espanha inimiga na companhia de um menino-bem e de uma prostituta, de Barcelona, do JMB, da quinta-coluna, da sua detenção e do seu julgamento, do barco-prisão Uruguay.

Ao entardecer do dia 29, Sánchez Mazas, Pascual e os seus companheiros de cela são levados ao terraço do mosteiro, um lugar aonde nunca tinham ido e onde se reúnem com outros presos, quinhentos no total, talvez mais. Pascual conhece alguns deles, mas consegue trocar apenas algumas palavras com Pedro Bosch Labrús, visconde de Bosch Labrús, e com o capitão de aviação Emilio Leucona, pois imediatamente um carabineiro o manda calar e começa a ler uma lista de nomes. Porque no seu espírito a esperança de uma troca volta a abrir caminho, quando ouve o nome de algum conhecido Pascual deseja com toda a sua alma estar incluído na lista, mas, sem que nenhuma razão concreta avalize esta mudança de opinião, quando o carabineiro o pronuncia - pouco depois do de Sánchez Mazas e imediatamente a seguir do de Bosch Labrús - já se arrependeu de formular esse desejo. Os vinte e cinco homens citados, entre os quais se encontram todos os que partilhavam a cela com Sánchez Mazas e Pascual, excepto Fernando de Marimón, são levados para uma cela do primeiro andar onde se vêem apenas algumas carteiras encostadas às paredes descascadas e um quadro com datas de efemérides patrióticas garatujadas a giz. A porta fecha-se atrás deles; faz-se um silêncio agourento, imediatamente quebrado por alguém que anuncia a iminência da troca e que consegue afastar a angústia de alguns com a discussão de uma conjectura que se desvanece rapidamente para dar lugar a um pessimismo unânime. Sentado numa carteira num dos cantos da cela, antes do jantar, o padre Guiu confessa alguns presos e organiza depois uma comunhão. Ninguém dorme durante a noite: iluminados pela luz dura e cinzenta que entra pela vidraça e que dá às suas caras uma sugestão antecipada de cadáver (embora conforme o tempo passa o cinzento fique mais espesso e a escuridão se torne real), os presos mantêm-se de guarda auscultando os ruídos do corredor ou procurando o alívio ilusório das suas lembranças ou de uma última conversa. Sánchez Mazas e Pascual estão sentados no chão, com as costas apoiadas no frio da parede, com as pernas cobertas por uma manta insuficiente; nenhum dos dois recordará nunca com precisão do que falaram durante essa noite curtíssima, mas lembrar-se-ão dos longos silêncios que marcaram o seu conciliábulo, dos sussurros dos companheiros, do rumor de tosses insones e da chuva caindo indiferente, assídua, negra e gelada sobre as lajes do pátio e os ciprestes do jardim tal como continua a cair enquanto o amanhecer de 30 de Janeiro substitui lentamente a escuridão das vidraças pela cor esbranquiçada de doente ou de fantasma que tinge como uma premonição a atmosfera da cela no momento em que um carcereiro os manda sair.

Ninguém dormiu, todos parecem ter estado à espera daquele momento e, como que arrastados pela urgência de desvanecer a incerteza, obedecem com prontidão de sonâmbulos e juntam-se no pátio a outro grupo de presos semelhante ao seu, até perfazerem cinquenta. Esperam alguns minutos, dóceis, silenciosos e empapados, sob uma chuva fina e um céu denso de nuvens e, no fim, aparece um homem jovem em cujos traços imprecisos Sánchez Mazas reconhece os traços imprecisos do director do Uruguay. Este anuncia-lhes que vão trabalhar na construção de um campo de aviação de Banyoles e ordena-lhes que formem em dez filas de cinco homens; enquanto obedece, ocupando sem pensar o primeiro lugar da direita na segunda fila, Sánchez Mazas sente o coração à desfilada: em pânico, compreende que o campo de aviação só pode ser uma desculpa, pois não faz sentido construí-lo com os nacionais a poucos quilómetros lançados numa ofensiva definitiva. Começa a andar à cabeça do grupo, transtornado e trémulo, incapaz de pensar com clareza., tentando desvairadamente adivinhar na expressão neutra dos soldados armados que ladeavam a estrada um sinal ou uma esperança, tentando em vão convencer-se de que no fim daquele trajecto não o espera a morte. Ao seu lado ou atrás dele, alguém tenta justificar ou explicar alguma coisa que não ouve ou não entende, porque cada passo que dá absorve toda a sua atenção, como se pudesse ser o último; ao seu lado ou atrás dele, as pernas doentes de José Maria Poblador dizem basta e o preso cai sobre um charco e é socorrido e arrastado por dois soldados de volta ao mosteiro. A uns cento e cinquenta metros deste, o grupo vira à esquerda, abandona a estrada e interna-se no bosque por uma vereda ascendente de terra caliça que conduz a uma clareira: um descampado alto rodeado de pinheiros. Da mata brota então uma voz militar que os manda parar e dar meia volta à esquerda. O terror apodera-se do grupo, que fica paralisado com uma unanimidade de autómato; quase todos os seus membros rodam para a esquerda, mas o pavor confunde o instinto de outros que, como o capitão Gabriel Martin Morito, rodam para a direita. Decorre então um instante eterno, durante o qual Sánchez Mazas pensa que vai morrer. Pensa que as balas que vão matá-lo virão das suas costas, que é de onde veio a voz de comando e que, antes de morrer atingido pelas balas, estas terão de atingir outros quatro homens formados atrás dele. Pensa que não vai morrer, que vai escapar. Pensa que não pode fugir para trás, porque os tiros virão daí; nem para a sua esquerda, porque correria de volta à estrada e na direcção dos soldados; nem para a frente, porque teria de ultrapassar uma muralha de oito homens espavoridos. Mas, pensa, pode fugir para a direita onde, a cerca de seis ou sete metros, um espesso bosque de pinheiros e moitas promete uma possibilidade de esconder-se. «Para a direita», pensa. E pensa: «Agora ou nunca». Nesse momento, várias metralhadoras colocadas atrás do grupo começam, precisamente na direcção de onde veio a voz de comando, a varrer tudo; tentando proteger-se, os presos atiram-se para o chão. Nessa altura, Sánchez Mazas já chegou ao matagal, corre entre os pinheiros arranhando a cara e ouvindo ainda o matraquear sem compaixão das metralhadoras, acaba por tropeçar providencialmente e cai, rolando sobre a lama e as folhas molhadas, pelo barranco onde o descampado termina, aterrando numa cova encharcada onde acaba um regato. Porque calcula, com razão, que os seus perseguidores o imaginam afastando-se deles o mais possível, decide esconder-se ali, relativamente perto da clareira, encolhido, ofegante, empapado e com o coração na garganta, tapando-se conforme pode com folhas e lama e ramos de pinheiro, ouvindo os tiros de misericórdia sobre os seus infelizes companheiros de grupo e depois os latidos excitados dos cães e os gritos dos carabineiros apressando os soldados a encontrar o fugitivo ou os fugitivos (porque Sánchez Mazas ainda ignora que, contagiado pelo seu impulso irracional de fuga, Pascual também conseguiu fugir à matança). Durante um tempo que não sabe se calcular em minutos ou em horas, enquanto, para se tapar com lama, escava a terra até ter as unhas a sangrar e pensa que a chuva que não pára de cair impedirá os cães de seguir o seu rasto, Sánchez Mazas continua a ouvir gritos e latidos e tiros até que, a determinada altura, sente que alguma coisa se mexe atrás de si e volta-se com uma pressa de besta acossada.

Nessa altura vê-o. Está de pé junto da cova, alto e corpulento, recortado contra o verde-escuro dos pinheiros e o azul-escuro das nuvens, ofegando um pouco, com as mãos grandes aferradas à espingarda inclinada e o uniforme de campanha cheio de fivelas e coçado pela intempérie. Possuído pela anómala resignação de quem sabe que chegou a sua hora, através dos seus óculos de míope cobertos de água, Sánchez Mazas olha para o soldado que o vai matar ou entregá-lo - um homem jovem, com o cabelo colado à cabeça pela chuva, os olhos talvez cinzentos, as faces chupadas e as maçãs do rosto salientes - e lembra-se dele, ou julga lembrar-se, entre os soldados andrajosos que o vigiavam no mosteiro. Reconhece-o ou julga reconhecê-lo, mas não o alivia a ideia de ser ele e não um agente do SIM quem o redimirá da agonia interminável do medo, e humilha-o como uma injúria, somada às injúrias desses anos de fugitivo, não ter morrido juntamente com os seus companheiros de prisão ou não ter sabido fazê-lo em campo aberto e em pleno sol, lutando com uma coragem que não possui, em vez de o fazer agora e ali, enlameado, só e tremendo de pavor e de vergonha num buraco sem dignidade. Assim, louca e confusa a sua mente excitada, Rafael Sánchez Mazas - poeta elegante, ideólogo fascista, futuro ministro de Franco - espera a descarga que há-de acabar com ele. Mas a descarga não chega e Sánchez Mazas, como se já tivesse morrido e, da morte, recordasse uma cena irreal, observa sem incredulidade que o soldado avança lentamente até à beira do buraco por entre a chuva que não cessa e o rumor de busca dos soldados e dos carabineiros, apenas alguns passos, a espingarda apontando para ele sem ostentação, a expressão mais interrogativa que tensa, como um caçador novato prestes a identificar a sua primeira presa e, justamente no momento em que o soldado chega à beira da cova, trespassa o rumor vegetal da chuva um grito próximo:

- Há alguém por aí?

O soldado está a olhar para ele. Sánchez Mazas também, mas os seus olhos deteriorados não entendem o que vêem: sob o cabelo empapado, a testa alta e as sobrancelhas cobertas de gotas, o olhar do soldado não expressa compaixão nem ódio, nem sequer desdém, mas uma espécie de secreta ou insondável alegria, algo que roça a crueldade e resiste à razão mas que também não é instinto, algo que vive nela com a mesma obstinação cega com que o sangue persiste nas suas veias e a terra na sua órbita inamovível e todos os seres na sua condição pertinaz de seres, algo que evita as palavras tal como a água do regato evita a pedra, porque as palavras só foram feitas para se dizerem a si próprias, para dizer o dizível, ou seja, tudo excepto o que nos governa ou faz viver ou concerne ou somos ou é este soldado anónimo e derrotado que olha agora para aquele homem cujo corpo quase se confunde com a terra e com a água castanha da cova, e que grita com força para o ar sem deixar

de olhá-lo:

- Aqui não há ninguém!

Depois dá meia volta e vai embora.

Durante nove dias com as suas noites, no Inverno brutal de 1939, Rafael Sánchez Mazas vagueou pela comarca de Banyoles tentando atravessar as linhas do exército republicano em retirada e passar para a zona nacional. Muitas vezes pensou que não ia consegui-lo; sozinho, sem outros recursos além da sua vontade de sobrevivência, incapaz de se orientar numa zona desconhecida e cheia de bosques agrestes e muito espessos, debilitado até à exaustão pelas caminhadas, pelo frio, a fome e os três anos ininterruptos de cativeiro, muitas vezes teve de fazer das tripas coração para não se deixar derrotar pelo desalento. Os três primeiros dias foram terríveis. Dormia de dia e andava de noite, evitando a visibilidade das estradas e das povoações, mendigando alimento e refúgio nas fazendas. E, embora em nenhuma delas se tivesse atrevido, por prudência, a revelar a sua verdadeira identidade, apresentando-se como um soldado republicano extraviado e quase toda a gente a quem pedia alguma comida lhe permitisse descansar um pouco e lhe indicasse sem perguntas o caminho que devia seguir, o medo impediu que alguém o acolhesse sob o seu tecto. Ao amanhecer do quarto dia, depois de vaguear pelos bosques às escuras por mais de três horas, Sánchez Mazas avistou uma fazenda ao longe. Menos por uma decisão racional que por puro esgotamento, deixou-se cair sobre um leito de agulhas de pinheiro e ficou ali, imóvel, com os olhos fechados, sentindo apenas o ruído da sua respiração e o aroma da terra molhada de orvalho. Desde a manhã do dia anterior que não comia nada, estava exausto e sentia-se doente, porque não havia um único músculo do corpo que não lhe doesse. Até essa altura, o milagre de ter sobrevivido ao fuzilamento e a esperança do encontro com os nacionais tinham-no dotado de uma perseverança e de uma força que julgava perdidas. Compreendeu agora que as suas energias estavam a chegar ao fim e que, a menos que acontecesse um milagre ou que alguém o ajudasse, rapidamente a sua aventura terminaria. Passado algum tempo, quando se sentiu um pouco recomposto e o brilho do sol entre a ramagem lhe infundiu um nico de optimismo, reunindo forças levantou-se e pôs-se a andar na direcção da fazenda.

 

Maria Ferre nunca mais esqueceria o radioso amanhecer de Fevereiro em que, pela primeira vez, viu Rafael Sánchez Mazas. Os seus pais estavam no campo e ela preparava-se para dar de comer às vacas quando o homem apareceu no pátio - alto, famélico e espectral, com os óculos torcidos e barba de muitos dias, com a samarra e as calças esburacadas e sujas de terra e de ervas - e lhe pediu um bocado de pão. Maria não teve medo. Tinha acabado de fazer vinte e seis anos e era uma rapariga trigueira, analfabeta e trabalhadora para quem a guerra não passava de um confuso rumor de fundo nas cartas que o irmão enviava da frente, e um torvelinho sem sentido que há dois anos tinha levado a vida de um rapaz de Palol de Revardit com quem sonhara casar-se um dia. Durante esse tempo, a sua família não passara fome nem medo, porque as terras de lavoura que rodeavam a fazenda, e as vacas, porcos e galinhas que tinham nos estábulos davam e sobravam para alimentá-la, e porque, embora o Mas Borrell, sua casa, estivesse a meio caminho entre Paiol de Reverdit e Cornellà de Terri, os excessos dos dias da revolução não os tinham atingido e a desordem da retirada só lhes trouxe algum soldado perdido e sem armas que, mais receoso que ameaçador, lhes pedia alguma coisa para comer ou lhes roubava uma galinha. É possível que, ao princípio, Sánchez Mazas fosse, para Maria Ferre mais um dos muitos desertores que durante aqueles dias vagueavam pelas proximidades, e que, por isso, não se assustasse. Mas ela defendeu sempre que, mal viu recortar-se a sua figura miserável contra a terra do caminho que passava à frente do pátio, reconheceu por trás dos estragos inclementes de três dias de intempérie o seu porte inconfundível de cavalheiro. Seja ou não verdade o anteriormente referido, Maria concedeu ao homem o mesmo tratamento piedoso que aos restantes fugitivos.

- Não tenho pão - disse-lhe. - Mas posso preparar-lhe alguma coisa quente.

Prostrado de gratidão, Sánchez Mazas seguiu-a até à cozinha e, enquanto Maria aquecia a panela da noite anterior - onde num molho acastanhado e substancial se viam a flutuar lentilhas e bons bocados de toucinho, linguiça e chouriço acompanhados de batatas e verduras -, ele sentou-se num banco, gozando a proximidade do fogo e a dita antecipada de uma refeição quente, tirou a samarra, os sapatos e as meias ensopadas e, de chofre, sentiu uma dor ultrajante nos pés e uma fadiga infinita nos seus ombros descarnados. Maria deu-lhe um trapo limpo e uns socos e, de soslaio, viu-o limpar o pescoço, a cara, o cabelo, também os pés e os tornozelos, enquanto olhava para a dança das chamas entre os troncos com olhos fixos e um pouco atónitos, e quando lhe deu a comida viu-o devorá-la com uma fome de dias, em silêncio e quase sem perder as suas maneiras de homem criado entre toalhas de linho e talheres de prata, que, mais por instinto de cortesia que pelo hábito recém-adquirido do medo, o obrigaram a deixar junto do fogão a colher e o prato de metal e a levantar-se quando os pais de Maria irromperam na penumbra da cozinha e ficaram a olhar para ele com um misto de passividade bovina e receio. Talvez achando, erradamente, que o seu convidado não entendia catalão, Maria contou ao pai, em catalão, o que acontecera. Este pediu a Sánchez Mazas que acabasse de comer, sem deixar de olhar para ele pousou junto de um banco de pedra os seus utensílios da lavoura, lavou as mãos numa bacia e aproximou-se do fogão. Enquanto o sentia fazer tudo isto, Sánchez Mazas limpou o prato; acalmada a fome, acabou por se decidir: compreendia que, se não revelasse a sua verdadeira identidade, também ali não encontraria a mais pequena possibilidade de lhe oferecerem abrigo, e compreendia também que era preferível o risco hipotético de uma denúncia do que o risco real de uma morte à fome e ao frio.

- Chamo-me Rafael Sánchez Mazas e sou o dirigente da Falange mais antigo de Espanha - acabou por dizer ao homem que o ouvia sem olhá-lo.

Sessenta anos depois, quando já nem os seus pais nem Sánchez Mazas viviam para o fazer, Maria ainda recordava com exactidão aquelas palavras, talvez por aquela ter sido a primeira vez em que ouviu falar da Falange, tal como recordava que, em seguida, Sánchez Mazas relatara a sua aventura inverosímil do Collell, falara da sua vagabundagem durante os dias que se seguiram e, sem deixar de dirigir-se ao homem, acrescentou:

- Você sabe tão bem como eu que os nacionais estão aí a chegar. É uma questão de dias, de horas, talvez. Mas se os vermelhos me agarram, sou um homem morto. Acredite que lhes agradeço muito a vossa hospitalidade, e que não quero abusar da sua confiança, mas dê-me de comer uma vez por dia o que a sua filha acaba de me dar, e um lugar abrigado onde possa passar a noite, e ficar-lhes-ei eternamente grato. Pense nisso. Se me fizer esse favor, eu saberei recompensá-lo.

O pai de Maria Ferre não teve necessidade de pensar. Afirmou que não podia hospedá-lo na sua casa, porque era demasiado arriscado, mas propôs-lhe uma alternativa melhor: passaria o dia no bosque, num prado próximo e seguro junto ao Mas de La Casa Nova - uma fazenda abandonada pelos seus proprietários desde o início da guerra - e de noite dormiria aquecido num palheiro, a uns duzentos metros da casa, onde eles se encarregariam de que não lhe faltasse comida. O plano entusiasmou Sánchez Mazas, que agarrou no cobertor e no embrulho de comida que Maria lhe preparou, despediu-se dela e da mãe e seguiu o pai pelo caminho de terra que passava em frente da porta da casa e percorria depois campos semeados de onde podia ver-se, através do ar cristalino da manhã soalheira, a estrada de Banyoles, o vale cheio de fazendas e, ao longe, o perfil cortante e remoto dos Pirenéus. Passado pouco tempo, depois do pai de Maria lhe indicar ao longe o palheiro onde devia passar a noite, atravessaram um campo aberto e por cultivar e pararam à entrada do bosque, justamente onde o caminho se transformava numa vereda estreita. O homem disse-lhe então que, no fim dessa vereda, ficava o Mas de La Casa Nova e repetiu-lhe que não voltasse até a noite ter caído. Sánchez Mazas nem sequer teve tempo de lhe expressar novamente a sua gratidão, porque o homem deu meia volta e pôs-se a andar de regresso a Mas Borrell. Obedecendo-lhe, Sánchez Mazas meteu-se por um bosque de faias, azinheiras e carvalhos altíssimos que mal deixavam penetrar o sol e que se tornava mais espesso e intrincado à medida que a vereda descia pela encosta da colina, e já estava andando há tempo suficiente para que uma vozinha começasse a injectar-lhe no ouvido o veneno da desconfiança quando chegou a uma clareira onde se erguia o Mas de La Casa Nova. Era uma fazenda de dois andares, de pedra, com um poço artesiano e um grande portão de madeira. Assim que se certificou de que estava desabitada há muito tempo, Sánchez Mazas pensou forçar alguma entrada e instalar-se aí, mas após um momento de reflexão, optou por seguir as instruções do pai de Maria Ferre e procurar o prado de que este lhe falara. Encontrou-o muito perto, assim que atravessou o leito profundo, pedregoso e sem água de um regato ladeado de álamos, e deixou-se cair ali, entre a erva alta, sob o céu limpo e exemplarmente azul, e o sol deslumbrante que aquecia o ar frio e imóvel da manhã. E, embora tivesse todos os ossos moídos e uma fadiga infinita lhe fechasse as pálpebras, pela primeira vez em muito tempo sentiu-se seguro e quase feliz, reconciliado com a realidade. E, enquanto sentia o peso agradável da luz nos olhos e na pele, e o deslizar irremediável da sua consciência para o mar dos sonhos, afloraram-lhe aos lábios, como um rebento incongruente daquela imprevista plenitude, uns versos que nem sequer recordava ter lido:

 

Do not move

Let the wind speak

That is paradise

 

Horas mais tarde despertou-o a ansiedade. O sol brilhava a meio do céu e, embora ainda sentisse uma pontada de dor nos músculos, o sono devolvera-lhe uma parte do ânimo e das forças perdidas durante os últimos dias no desespero de aferrar-se à vida. Mas, assim que se desembaraçou do cobertor de Maria Ferre e ouviu no silêncio do prado um rumor massivo e remoto de motores em marcha, compreendeu o motivo da sua mágoa. Foi até uma das extremidades do prado e daí, emboscado sem necessidade, contemplou ao longe o desfile de uma longa coluna de camiões e soldados republicanos que invadiam a estrada de Banyoles. Embora, no futuro próximo, voltasse a sentir muitas vezes a proximidade ameaçadora do exército inimigo, só naquela manhã a pressentiu como um perigo que o obrigou a regressar à sua cama improvisada, a agarrar no cobertor e no pacote de comida e a esconder-se na entrada do bosque. Aí, num refúgio construído com pedras e ramos que projectou naquela mesma tarde mas que só começou a erigir na manhã seguinte, passou quase sem se mover a maior parte dos três dias seguintes. Ao princípio, a construção do refúgio manteve-o ocupado, mas depois o tempo decorria com ele deitado no chão, dormindo aos bocados, recuperando forças que, conforme previa, podia necessitar a qualquer momento, rebuscando na sua memória cada instante esquecido da sua aventura de guerra e, sobretudo, imaginando como a contaria assim que fosse libertado pelos seus, uma libertação que, embora a lógica dos factos mostrasse estar cada vez mais próxima, a sua impaciência sentia cada vez mais longínqua. Não falava com ninguém excepto com Maria Ferre ou com o pai desta, com quem conversava um pouco no palheiro quando vinham às escuras trazer-lhe a comida e, só na noite em que o homem lhe permitiu entrar em casa para jantar com eles, falou também com os desertores republicanos conhecidos da família, que, enquanto comiam um pouco e se aqueciam junto ao fogão antes de prosseguir o seu caminho para Barcelona, lhes informaram que nessa manhã as tropas nacionais tinham entrado em Gerona.

O dia seguinte decorreu com normalidade; no outro, tudo mudou. Como todas as manhãs, Sánchez Mazas levantou-se ao nascer do sol, agarrou no pacote de comida que lhe tinham trazido de Mas Borrell e encaminhou-se para o Mas de La Casa Nova. Ao atravessar o leito do regato tropeçou e caiu. Não se magoou, mas partiu os óculos. O facto, que em circunstâncias normais o teria aborrecido, desesperou-o nesse momento: sofria de uma miopia aguda e, sem a ajuda das lentes, a realidade era apenas um punhado ininteligível de manchas. Sentado no chão, com os óculos partidos nas mãos, amaldiçoou a sua falta de jeito; esteve prestes a chorar de raiva. Ultrapassando a adversidade, subiu de gatas o leito do regato e, às apalpadelas e guiando-se pelo hábito dos últimos dias, procurou o refúgio do prado.

Foi nessa altura que ouviu mandarem-no parar. Travando em seco e levantando instintivamente as mãos, distinguiu a uma distância de uns quinze metros, quase indistintas contra o verde confuso do bosque, três figuras desfocadas que começaram a avançar na sua direcção numa atitude de expectativa e indagação. Quando ficaram mais perto, Sánchez Mazas reparou que eram soldados republicanos, que eram bastante jovens, que lhe apontavam duas pistolas de calibre nove, que estavam tão nervosos e assustados como ele e que o seu ar esfarrapado de fugitivos e a disparidade indisciplinada dos seus uniformes fê-lo julgá-los desertores. Mas não teve tempo para pensar na forma de o averiguar porque aquele que tinha uma voz cantante o submeteu a um interrogatório que se prolongou durante quase meia hora de tensão, avaliações e meias palavras, até Sánchez Mazas decidir que aquele encontro fortuito, precisamente depois de ter partido os óculos, só podia ser uma jogada favorável do destino e decidir apostar tudo por tudo, reconhecendo que vagueava pelo bosque há seis dias esperando a chegada dos nacionais.

Esta confissão desfez o equívoco. Porque, embora o incidente dos três soldados estivesse apenas a começar, o propósito que os animava era idêntico ao de Sánchez Mazas. Dois deles eram os irmãos Figueras, Pere e Joaquim; o outro chamava-se Daniel Angelats. Pere era o mais velho dos três; também o mais capaz e o mais inteligente. Embora na adolescência não tivesse conseguido convencer o pai - um negociante trapaceiro mas muito respeitado em Cornellà de Terri - a custear-lhe os seus estudos de Direito em Barcelona, tendo por isso de ficar na aldeia ajudando a família nos seus pequenos negócios de alhos, desde criança que a sua avidez indiscriminada de leitor, alimentada na biblioteca da escola e no Ateneu Popular, lhe refinou o espírito e o dotou de uma cultura bastante superior ao habitual. O entusiasmo colectivo despertado pela proclamação da República atraiu a sua atenção para a política, mas só depois dos acontecimentos de Outubro de 34 começou a militar na Esquerra Republicana de Catalunya, e a sublevação de 36 surpreendeu-o no fim do serviço militar num quartel de infantaria de Pedralbes onde, a 19 de Julho, mais cedo do que habitualmente, o acordaram com uma intempestiva ração de cognac ao pequeno-almoço e com a informação de que nessa manhã ia desfilar por Barcelona em honra da Olimpíada do Povo. No entanto, antes do meio-dia já se tinha passado de armas e bagagens, juntamente com outros soldados do seu destacamento, para uma coluna de operários anarquistas que, numa avenida do centro, os coagiu a juntar-se-lhes. Durante toda a tarde e toda a noite dessa segunda-feira terrível, lutou pelas ruas para sufocar a rebelião e, no delírio revolucionário dos dias que se seguiram, exasperado com a timidez e com as indecisões do governo da Generalitat, juntou-se ao ímpeto libertário da coluna Durruti e partiu à conquista de Saragoça. No entanto, como nem a embriaguez da vitória sobre os facciosos nem a veemência idealista das suas muitas leituras tinham anulado completamente o seu espírito prático de camponês catalão, rapidamente pressentiu o seu erro e, assim que os factos o convenceram de que era impossível ganhar uma guerra com um exército de amadores entusiastas, ingressou, na primeira oportunidade, no exército regular da República. Sob as suas ordens combateu na Cidade Universitária de Madrid e no Maestrazgo, mas no início de Maio de 38, uma bala perdida que lhe perfurou profundamente uma coxa, proporcionou-lhe uma convalescença de meses, primeiro em improvisados hospitais de campanha e, por fim, no hospital militar de Gerona. Aí, a meio da desordem de fim de mundo que reinava na cidade nos dias da retirada, a sua mãe foi buscá-lo. Embora tivesse acabado de fazer vinte e cinco anos, Pere Figueras era nessa altura um homem velho, fatigado e sem ilusões, um pouco sonâmbulo, mas já nem sequer coxeava, de modo que pôde seguir a mãe de regresso a casa. Para sua surpresa, em Can Pigem esperavam-nos, além das irmãs, o seu irmão Joaquim e Daniel Angelats, que nessa mesma manhã tinha aproveitado o terror e a confusão semeados por uma bomba caída na fábrica Grober de Gerona, perto da qual tinham parado para meter gasolina, para se esquivar à vigilância do comissário político da sua companhia e fugir na direcção de Cornellà de Terri através da zona velha da cidade. Joaquim e Angelats tinham-se conhecido há dois anos quando foram recrutados, apenas com dezanove e, após três meses de instrução militar no santuário do Collell, enviados como membros da Brigada Garibaldi para a frente de Aragão. A sua inexperiência poupou-lhes muitos dissabores: a ela e ao seu ar de adolescentes imaturos para o combate ficaram a dever a sorte de serem devolvidos imediatamente à retaguarda - primeiro para Binéfar, mais tarde para Barcelona e, finalmente, para Vilanova i Ia Geltrú, onde foram integrados num batalhão de artilharia de costas composto, na sua maior parte, por feridos e mutilados e onde, durante meses, brincaram à guerra -, mas quando a República pressentiu que o seu destino se jogava nas praias do Ebro, até eles foram enviados para conter, com os seus canhões velhos e ineficazes, a desesperada ofensiva nacionalista. Desmoronada a frente, veio a debandada: ao longo do litoral mediterrânico, as sobras andrajosas do exército republicano retiravam-se desordenadamente em direcção à fronteira, fustigadas sem descanso pelo fogo dos aviões alemães e pelas contínuas manobras envolventes de Yague, Solchaga e Gambara, que encerravam em becos sem saída (ou sem outra saída além do mar) centenas de prisioneiros aterrorizados pela gritaria dos regulares. Órfãos de convicções políticas, famintos, derrotados e fartos de guerra, renitentes à agonia do exílio, persuadidos pela propaganda franquista de que, a menos que tivessem as mãos manchadas de sangue, nada teriam a recear dos vencedores excepto a restauração da ordem violada pela República, Figueras e Angelats não tinham nessa altura outra ambição além de salvar a pele, escapar da demência ilimitada dos mouros e aproveitar a primeira distracção dos seus chefes para empreender o caminho de casa e, aí, esperar pelos nacionais.

E assim o fizeram. Mas na mesma tarde em que chegaram a casa dos Figueras, um facto os convenceu de que aquele casarão situado justamente na berma da estrada de Banyoles e diante da estação de comboios não era um refúgio seguro para desertores. Enquanto a família os acossava com perguntas e saciavam a sua fome atrasada na companhia de Pere Figueras sem terem sequer despido os seus uniformes de soldados, ouviram um ruído de motores parando diante de Can Pigem. Segundo Joaquim Figueras, foi a mãe quem, pressentindo o perigo que corriam, os forçou a subirem ao andar superior escondendo-se debaixo da enorme cama do quarto do casal. Daí ouviram as pancadas na porta, as vozes desconhecidas conversando na sala de jantar, limpa de urgência, e depois o som das botas militares subindo as escadas e percorrendo o andar superior até entrarem no quarto; eram dois pares: umas, que esperavam à entrada, estavam fendidas e poeirentas; as outras, velhas mas recém-engraxadas, ainda marciais, soaram um pouco sobre o chão de ladrilhos até os irmãos Figueras e Angelats, debaixo da cama, com a respiração suspensa, ouvirem uma voz suave e habituada ao comando pedir que lhe fosse preparada a cama para passar a noite. Assim que voltaram a ficar sozinhos, os três desertores tomaram quase sem palavras a única decisão possível e, instintivamente persuadidos de que só a rapidez podia neutralizar a forçosa temeridade da manobra, saíram do seu esconderijo e, sem olharem para ninguém e tentando fazer que a rigidez dos seus movimentos não traísse a sua pressa, desceram as escadas, atravessaram a cozinha, o pátio e a estrada, protegidos pelo anonimato dos seus uniformes, que os confundiam e os igualavam com os soldados que, em casa ou em volta dela, esperavam a sua vez para comer, ou descansavam e ordenavam as suas munições com uma parcimónia resignada de futuros apátridas.

A partir dessa tarde, os irmãos Figueras e Angelats fizeram vida de fugitivos. Para eles, evidentemente, não foi tão dura como para Sánchez Mazas: eram jovens, estavam armados, conheciam a zona; além disso, assim que o destacamento republicano, na manhã seguinte, abandonou Can Pigem, a mãe dos Figueras começou a fornecer-lhes regularmente comida abundante e abundantes agasalhos. Passavam as horas de luz no bosque, não longe de Cornellà de Terri nem da estrada de Banyoles, sempre atentos aos movimentos de tropas que aí se efectuavam, e de noite dormiam num celeiro abandonado perto do Mas de La Casa Nova. Parece incrível só terem esbarrado com Sánchez Mazas três dias depois de se terem instalado (o verbo, evidentemente, é excessivo) nos arredores do Mas de La Casa Nova, tendo chegado ali no mesmo dia que ele, mas assim foi. Sessenta anos depois, tanto Joaquim Figueras como Daniel Angelats recordavam ainda com bastante nitidez a manhã em que o viram pela primeira vez, o ruído de ramos quebrados que os alarmou no silêncio do bosque e depois a figura espigada e cega, com a samarra de gola de pele de ovelha e os óculos esmigalhados na mão, procurando às apalpadelas uma saída do leito pedregoso e confuso do riacho. Também se lembravam do momento em que o detiveram de pistola em punho e os minutos de avaliações e desconfianças durante os quais tanto eles como Sánchez Mazas - cuja atitude durante essa primeira conversa ou interrogatório evoluiu imperceptivelmente da súplica acobardada e sem honra até à altivez quase paternalista de quem não só supera o seu interlocutor em idade mas, sobretudo, em inteligência e astúcia - tentaram averiguar as intenções do outro, e que, assim que o fizeram, Sánchez Mazas se identificou, oferecendo-lhes uma recompensa exorbitante se o ajudassem a atravessar as linhas. Joaquim Figueras e Daniel Angelats coincidem também noutro ponto: assim que Sánchez Mazas disse o seu nome, Pere Figueras soube quem ele era; o facto, que pode parecer estranho, não é de todo inverosímil. Há muitos anos que Sánchez Mazas era conhecido em toda a Espanha como escritor e como político e, embora Pere Figueras quase não tivesse saído da sua aldeia a não ser para defender aos tiros a República, podia muito bem ter visto o seu nome e a sua fotografia nos jornais e ter lido artigos dele. Seja como for, Pere, que tinha tomado a liderança do trio de soldados sem que ninguém lha tivesse atribuído, disse-lhe que não podiam passá-lo para o outro lado, mas permitiu-lhe ficar com eles até à chegada dos nacionais; implícita ou explicitamente, o pacto era este: nesse momento, seriam eles a protegê-lo com as suas armas, com a sua juventude, com o seu conhecimento da região e das pessoas da região; mais tarde, seria ele a protegê-los com a sua autoridade inquestionável de dirigente. A oferta era irrecusável e, embora Joaquim tivesse manifestado inicialmente alguma resistência em carregar, nesses dias incertos, com um homem meio cego que, caso fossem capturados pelos republicanos, os podia levar directamente ao paredão, acabou por não ter outro remédio senão acatar a vontade do irmão.

A vida dos três desertores não mudou de forma apreciável a partir daquele momento, excepto pelo facto de agora serem quatro a comer o que a mãe dos Figueras lhes levava ao bosque, e quatro a dormir no celeiro abandonado próximo do Mas de La Casa Nova, pois decidiram que era mais seguro Sánchez Mazas não regressar de noite ao palheiro do Mas Borrell. Curiosamente (ou talvez não; talvez sejam os momentos decisivos da vida, aqueles que o esquecimento devora com maior voracidade), nem Joaquim Figueras nem Daniel Angelats conservam uma lembrança muito nítida daqueles dias. Figueras, cuja memória é aguçada mas expedita, perdendo-se com frequência em meandros sem direcção, recorda que o encontro com Sánchez Mazas os livrou momentaneamente do tédio, porque este lhes contou, com luxo de pormenores e com um tom de voz que naquele momento o impressionou pela sua solenidade, e que, com o tempo, julgava um pouco afectado, a sua aventura da guerra, mas também se lembra de que, depois de eles próprios terem feito o mesmo - de uma forma muito mais sucinta, desordenada e directa - o tédio tenso e impaciente de que tinham sofrido nos dias anteriores voltou a apoderar-se deles. Ou, pelo menos, dele e de Daniel Angelats. Porque o que Joaquim Figueras também recorda muito bem é que, enquanto ele e Angelats voltavam a praticar, tal como tinham feito até então, as formas mais variadas de matar o tempo, o seu irmão Pere e Sánchez Mazas conversavam infatigavelmente, apoiados contra o tronco de um carvalho na raia do bosque. Ainda conseguia vê-los assim: indolentes, por barbear e bastante agasalhados, com os joelhos cada vez mais altos e a cabeça cada vez mais baixa à medida que decorria o tempo, quase de costas voltadas, fumando tabaco picado ou afiando um ramo, voltando-se de vez em quando um para o outro embora sem se olharem e, evidentemente, sem nunca sorrirem, como se nenhum dos dois procurasse a concordância ou a persuasão, mas unicamente a certeza de que nenhuma das suas palavras se ia perder no ar. Nunca soube do que falavam, ou talvez não tenha querido sabê-lo; sabia que o tema não era a política nem a guerra; desconfiou, eventualmente, sem grande fundamento, tratar-se de literatura. A verdade é que Joaquim Figueras, que nunca se dera bem com Pere (de quem mais de uma vez troçara em público e a quem sempre admirara em segredo), se apercebeu com uma secreta ponta de ciúmes de que Sánchez Mazas ganhava em poucas horas uma intimidade, a do seu irmão, à qual, na sua vida, ele nunca tivera acesso. Quanto a Angelats, cuja memória é mais vacilante que a de Figueras, o seu testemunho não contradiz, no entanto, o do seu amigo de então e de hoje; quanto muito, complementa-o com vários pormenores engraçados (Angelats, por exemplo, lembra-se de Sánchez Mazas escrevendo com um lápis minúsculo no seu caderninho de capas verdes-escuras, o que talvez prove que o diário do escritor é contemporâneo aos factos que narra) e com um que talvez não o seja. Como é costume acontecer com a memória de alguns velhotes que, por estarem prestes a ficar sem ela, recordam com muito mais nitidez uma tarde da sua infância do que o que aconteceu algumas horas atrás, neste ponto concreto a de Angelats abunda em pormenores. Ignoro se o tempo cobriu a cena com um verniz romanesco; embora não possa ter a certeza disso, tendo a crer que não, porque sei que Angelats é um homem sem imaginação; também não me ocorre que proveito poderia ele obter - um homem cansado e doente, a quem não restam muitos anos de vida - inventando uma cena destas.

A cena é esta:

Durante a segunda noite que os quatro passaram juntos no celeiro, Angelats foi acordado por um ruído. Sentou-se sobressaltado e viu Joaquim Figueras dormindo placidamente ao pé dele, entre a palha e os cobertores; Pere e Sánchez Mazas não estavam. Já ia levantar-se (ou talvez chamar Joaquim, que era menos cobarde ou mais decidido do que ele) quando ouviu as suas vozes e compreendeu que fora isso que o acordara; eram apenas um sussurro, mas chegavam nítidas até ele no silêncio perfeito do celeiro, no outro lado do qual, quase junto ao chão e perto da porta semicerrada, Angelats distinguiu a brasa de dois cigarros ardendo na escuridão. Disse para consigo que Pere e Sánchez Mazas se tinham afastado das camas de palha onde dormiam os quatro para poderem fumar sem perigo, e perguntou-se que horas seriam, calculando que Pere e Sánchez Mazas estariam acordados e a conversar há já bastante tempo. Tornou a deitar-se e tentou adormecer novamente. Não conseguiu. Sem sono, seguiu o fio da conversa dos dois insones: inicialmente fê-lo sem interesse, só para entreter a espera, pois entendia as palavras que ouvia mas não o seu sentido ou intenção. Depois a coisa alterou-se. Angelats ouviu a voz de Sánchez Mazas, pausada e profunda, um pouco rouca, relatando os dias do Collell, as horas, os minutos, os segundos assombrosos que precederam e se seguiram ao seu fuzilamento; Angelats conhecia o episódio porque Sánchez Mazas lhes falara dele na primeira manhã em que estiveram juntos, mas agora, talvez porque a escuridão impenetrável do celeiro e a escolha tão cuidadosa das palavras atribuíssem aos factos um suplemento de realismo, ouviu-o como se fosse pela primeira vez ou como se, mais do que ouvi-lo, estivesse a revivê-lo, expectante e com o coração encolhido, talvez um pouco incrédulo, porque também pela primeira vez - Sánchez Mazas tinha evitado mencioná-lo no primeiro relato - viu o miliciano de pé junto da cova, por entre a chuva, alto, corpulento e molhado, olhando para Sánchez Mazas com os seus olhos cinzentos ou talvez esverdeados sob o duplo arco das sobrancelhas, as faces chupadas e as maçãs do rosto salientes, recortado contra o verde-escuro dos pinheiros e o azul-escuro das nuvens, um pouco ofegante, as mãos grandes aferradas à espingarda atravessada e o uniforme de campanha coberto de fiapos e coçado pela intempérie. Era muito jovem, Angelats ouviu Sánchez Mazas dizê-lo. Da tua idade ou talvez mais novo, embora tivesse uma expressão e uns traços de adulto. Por instantes, enquanto olhava para mim, julguei que sabia quem era; agora tenho a certeza de que o sei. Houve um silêncio, como se Sánchez Mazas esperasse pela pergunta de Pere, que não chegou; Angelats avistava no fundo do celeiro as duas brasas, uma das quais se tornou momentaneamente mais intensa e iluminou o rosto de Pere com uma ténue claridade avermelhada. Não era um carabineiro nem, evidentemente, um agente do SIM, prosseguiu Sánchez Mazas. Se o fosse, eu não estaria aqui. Não, era um simples soldado. Como tu. Ou como o teu irmão. Um dos que nos vigiavam quando saíamos para passear no jardim. Reparei imediatamente nele, e julgo que ele também reparou em mim, ou pelo menos é isso que agora me ocorre porque, na realidade, nunca trocámos uma palavra. Mas reparei nele, como todos os meus companheiros porque, enquanto passeávamos pelo jardim ele estava sempre sentado num banco cantarolando alguma coisa, canções da moda e coisas assim, e, uma tarde, levantou-se do banco e pôs-se a cantar Suspiros de Espana. Ouviste alguma vez? Claro, disse Pere. É o pasodoble favorito de Liliana, disse Sánchez Mazas. A mim parece-me muito triste, mas ela põe-se logo a dançar assim que ouve as primeiras notas. Dançámo-lo tantas vezes... Angelats viu que a brasa do cigarro de Sánchez Mazas ficava mais vermelha e se apagava bruscamente e depois ouviu a sua voz rouca e quase irónica erguendo-se num sussurro, reconhecendo no silêncio da noite a melodia e a letra do pasodoble, dando-lhe imensa vontade de chorar porque de súbito lhe pareceu a letra e a música mais tristes do mundo e também um espelho desolador da sua juventude frustrada e do futuro desgraçado que o esperava: «Quiso Dios, con su poder, / fundir cuatro rayitos de sol / y hacer con ellos una mujer, / y ai cumplir su voluntad / en un jardín de Espana nací / como la flor en el rosal. / Tierra gloriosa de mi querer, / tierra bendita de perfume y pasión, / Espana, en toda flor a tus pies / suspira un corazón. / Ay de mi pena mortal, / porque me alejo, Espana, de ti, / porque me arrancan de mi rosal».

Sánchez Mazas deixou de cantarolar. Sabe-la de cor? - perguntou Pere.

- O quê? - perguntou Sánchez Mazas.

- A canção - respondeu Pere.

- Mais ou menos - respondeu Sánchez Mazas. Houve outro silêncio. Bom - disse Pere. E o que aconteceu com o soldado? Nada - disse Sánchez Mazas. É que em vez de ficar sentado no banco, cantarolando em voz baixa como sempre, naquela tarde pôs-se a cantar Suspiros de Espana em voz alta, sorrindo e, deixando-se arrastar por uma força invisível, levantou-se e começou a dançar pelo jardim com os olhos fechados, abraçando a espingarda como se fosse uma mulher, da mesma forma e com a mesma delicadeza, e eu, os meus companheiros e os restantes soldados que nos vigiavam, até os carabineiros, ficámos a olhá-lo, tristes, atónitos ou trocistas, mas todos em silêncio, enquanto ele arrastava as suas botifarras militares pelo cascalho cheio de beatas e de restos de comida como se fossem sapatos de dançarino numa pista imaculada e, nessa altura, antes que acabasse de dançara canção, alguém disse o seu nome e insultou-o afectuosamente e então foi como se o feitiço se quebrasse, muitos começaram a rir ou sorriram, pusemo-nos a rir, prisioneiros e vigilantes, todos, creio que era a primeira vez que me ria em muito tempo. Sánchez Mazas calou-se. Angelats sentiu que Joaquim se mexia ao seu lado e perguntou a si próprio se ele também estaria a ouvir, mas a sua respiração áspera e regular fê-lo descartar imediatamente essa ideia. Isso foi tudo ? - perguntou Pere.

- Isso foi tudo - respondeu Sánchez Mazas.

- Tens a certeza de que era ele? - perguntou Pere.

- Sim - respondeu Sánchez Mazas. Creio que sim.

- Como se chamava? - perguntou Pere. Disseste que alguém pronunciou o nome dele.

- Não sei - respondeu Sánchez Mazas. Talvez não tenha ouvido. Ou ouvi-o e esqueci-o imediatamente. Mas era ele. Pergunto a mim próprio por que não me denunciou, por que me deixou fugir. Perguntei-o a mim mesmo muitas vezes. Voltaram a calar-se e Angelats sentiu que, desta vez, o silêncio era mais sólido e mais longo, e pensou que a conversa tinha acabado. Esteve a olhar para mim um momento, na beira da cova - continuou Sánchez Mazas. Olhava-me de uma forma estranha, nunca ninguém me olhou assim, como se me conhecesse há muito tempo mas naquele momento fosse incapaz de me identificar e se esforçasse por fazê-lo, ou como o entomólogo que não sabe se tem pela frente um exemplar único e desconhecido de insecto, ou como quem tenta em vão decifrar na forma de uma nuvem um segredo invulnerável mas fugaz. Mas não... na verdade olhava-me de uma forma... alegre. Alegre? - perguntou Pere. Sim - disse Sánchez Mazas. Alegre. Não entendo - disse Pere. Eu também não - disse Sánchez Mazas. Enfim - acrescentou depois de outra pausa -, não sei. Acho que estou a dizer asneiras. Deve ser muito tarde - disse Pere. E melhor tentarmos dormir. Sim - disse Sánchez Mazas. Angelats sentiu-os levantar-se, deitar-se na palha um ao lado do outro, ao pé de Joaquim, e sentiu-os também (ou imaginou) tentando em vão, tal como ele, adormecer, mexendo-se entre os cobertores, incapazes de se libertarem da canção que se lhes enredara na memória e da imagem daquele soldado a dançá-la abraçado à sua espingarda entre ciprestes e prisioneiros, no jardim do Collell.

Isso aconteceu na noite de quinta-feira; no dia seguinte chegaram os nacionais. Desde terça-feira que não paravam de passar os últimos grupos de militares nem de se ouvir as explosões com que os republicanos - destruindo pontes, cortando comunicações - tentavam proteger a sua retirada e, por isso, Sánchez Mazas e os seus três companheiros passaram toda a manhã de sexta-feira no seu observatório do prado, vigiando a estrada com impaciência, até terem avistado, pouco depois do meio-dia, os pelotões nacionais. O grupo explodiu de alegria. No entanto, antes de ir ao encontro dos seus libertadores, Sánchez Mazas convenceu-os a acompanhá-lo até ao Mas Borrell para agradecer a Maria Ferre e à sua família. E, quando chegaram ao Mas Borrell encontraram-se com o pai e com a mãe de Maria Ferre, mas não com ela. Esta lembra-se muito bem daquela manhã, num lugar não muito afastado de onde estavam Sánchez Mazas e os seus companheiros e de onde vira passar as primeiras tropas nacionais e onde, pouco depois, uma vizinha veio dizer-lhe da parte dos pais que voltasse para casa porque estavam lá soldados. Um pouco preocupada, Maria pôs-se a andar juntamente com a vizinha, mas tranquilizou-se quando esta lhe disse que os rapazes de Can Pigem estavam entre os soldados. Embora nunca tivesse trocado mais de meia dúzia de palavras com Pere e Joaquim, conhecia-os de sempre e, assim que viu o mais novo dos Figueras no pátio da fazenda, conversando com Angelats, reconheceu-o imediatamente. Na cozinha estavam Pere e Sánchez Mazas com os seus pais. Eufórico, Sánchez Mazas abraçou-a, levantou-a no ar, beijou-a. Depois contou aos Ferre o que acontecera durante os dias em que não tinham tido notícias dele, desfez-se em elogios e agradecimentos para com Angelats e os irmãos Figueras e disse:

- Agora são meus amigos.

Nem Maria nem Joaquim Figueras se lembram, mas Angelats, sim. Foi nesse momento que, segundo ele, Sánchez Mazas pronunciou pela primeira vez algumas palavras que iria repetir muitas vezes nos anos seguintes e que, até ao final das suas vidas, ecoariam na memória dos rapazes que o ajudaram a sobreviver com um repicar aventureiro de contra-senha secreta: «Os amigos do bosque». E, sempre segundo Angelats, acrescentou com alguma solenidade: - - Algum dia contarei tudo isto num livro: chamar-se-á Soldados de Salamina.

Antes de partir reiterou aos Ferre a sua eterna gratidão por o terem acolhido, pediu-lhes que não hesitassem em entrar em contacto com ele sempre que julgassem que os poderia ajudar e, em jeito de salvo-conduto, não fosse terem algum problema com as novas autoridades, descreveu sucintamente num pedaço de papel o que tinham feito por ele. Depois partiram e, na porta que dava para o pátio, Maria e os pais viram-nos afastar-se pelo caminho de terra em direcção a Cornellà. Sánchez Mazas à frente, erecto como um capitão ao comando das sobras ínfimas, exultantes e miseráveis das suas tropas vitoriosas, Joaquim e Angelats escoltando-o, e Pere um pouco atrás, quase cabisbaixo, como se não participasse de todo da alegria dos outros mas batalhasse com todas as forças que lhe restavam para não ser excluído dela. Durante os anos que se seguiram, Maria escreveu muitas vezes a Sánchez Mazas e este sempre lhe respondeu pessoalmente. As cartas de Sánchez Mazas já não existem, porque Maria, aconselhada pela mãe que, por algum motivo, temia que pudessem comprometê-la, acabou por destrui-las. Quanto às suas próprias cartas, escrevia-as o secretário da Câmara de Banyoles, e nelas pedia a libertação de familiares, amigos ou conhecidos que estavam presos, coisa que quase infalivelmente lhe era concedida e que, durante vários anos, a envolveu num halo de santa ou de fada-madrinha dos desesperados da comarca, cujas famílias recorriam a ela em busca de protecção para as vítimas indiscriminadas de um pós-guerra que, nessa altura, ninguém poderia imaginar que duraria tanto tempo. Excepto a sua família, ninguém sabia que a fonte daqueles favores não era um amante secreto de Maria, nem um poder sobrenatural que ela possuíra sempre mas que não tinha achado oportuno usar até esse momento, mas um mendigo fugitivo a quem, numa madrugada, tinha oferecido um pouco de comida quente e que, depois daquela manhã de Fevereiro em que desapareceu pelo caminho de terra na companhia dos Figueras e de Angelats, nunca mais na sua vida voltou a ver.

Sánchez Mazas passou algum tempo em Can Pigem à espera de um transporte que o levasse a Barcelona. Foram dias muito felizes. Apesar de a guerra seguir o seu curso nalgumas partes de Espanha, para ele e para os seus companheiros tinha terminado e a lembrança terrível dos meses de incerteza e cativeiro e da proximidade da morte reforçavam a sua euforia, tal como o faziam a antecipação do reencontro próximo com a família, com os amigos e com o novo país que ele contribuíra, decisivamente, a forjar. No afã de reconciliar-se com as novas autoridades - no afã das novas autoridades em reconciliar-se com as pessoas - aquela comarca de militância republicana festejou em grande a entrada dos nacionais com patuscadas e arraiais populares onde nunca faltou a presença de Sánchez Mazas e dos seus três companheiros, vestidos ainda com os seus uniformes de soldados vermelhos e armados com as suas pistolas de calibre nove, mas sobretudo protegidos pela presença intimidadora do dirigente que, de uma forma um tanto irónica mas eficaz, os apresentava como a sua guarda pessoal. Esse período de alegre impunidade terminou para eles na manhã em que um tenente dos regulares irrompeu em Can Pigem com a notícia de que o jipe que o levaria de imediato para Barcelona tinha um lugar livre para Sánchez Mazas. Quase sem tempo para se despedir da família Figueras e de Angelats, Sánchez Mazas conseguiu entregar a Pere o caderno de capas verdes onde, além do diário dos seus dias no bosque, tinha posto por escrito o vínculo de gratidão que o uniria a eles para sempre, e Joaquim Figueras e Daniel Angelats lembram-se muito bem de que as últimas palavras que o ouviram dizer, acenando com a mão pela janela do jipe que já se afastava pela estrada de Gerona, foram:

- Voltaremos a ver-nos!

Mas Sánchez Mazas enganava-se: nunca mais voltou a ver Pere e Joaquim Figueras, nem Daniel Angelats. No entanto, e embora ele nunca tenha chegado a sabê-lo, Daniel Angelats e Joaquim Figueras voltaram, eles sim, a vê-lo.

Aconteceu vários meses mais tarde, em Saragoça. Nessa altura, Sánchez Mazas era um homem completamente diferente daquele que eles tinham conhecido. Impulsionado pelo ímpeto da libertação, desenvolvera nesse tempo uma actividade incansável: tinha visitado Barcelona, Burgos, Salamanca, Bilbau, Roma, San Sebastián; por toda a parte foi objecto de homenagens que celebravam a sua liberdade e a sua incorporação na Espanha nacional como um trunfo de valor incalculável para o futuro desta; por toda a parte escreveu artigos, concedeu entrevistas, proferiu conferências, discursos e alocuções radiofónicas onde aludia veladamente a episódios do seu longo cativeiro e onde, com uma fé sem fissuras, se punha ao serviço do novo regime. No entanto, desde que um dia depois de ter saído de Can Pigem começou a frequentar em Barcelona o gabinete de Dionisio Ridruejo, chefe de Imprensa e Propaganda dos sublevados, onde, de uma forma assídua, se reuniam velhos e novos companheiros da Falange intelectual, Sánchez Mazas pôde pressentir, por cima ou por baixo da atmosfera triunfalista de fraternidade superficial, os receios e desconfianças que, entre os vencedores, a astúcia de Franco e três anos de conciliábulos conspirativos na retaguarda tinham causado. Pôde captá-lo mas não o fez ou não quis fazê-lo. O facto é explicável: com a liberdade recém-recuperada, Sánchez Mazas tinha tudo à medida das suas conveniências e não conseguia imaginar que a realidade da Espanha de Franco diferisse tão rapidamente dos seus desejos; não era o caso de alguns dos seus velhos companheiros falangistas. Desde que, a 19 de Abril de 1937, fora promulgado o Decreto de Unificação, um verdadeiro golpe de Estado ao contrário (como anos mais tarde o chamou Ridruejo) segundo o qual todas as forças políticas que tinham aderido à Revolta passavam a integrar um único partido sob o comando do Generalíssimo, a velha guarda da Falange começou a pressentir que a revolução fascista com que tinha sonhado nunca iria chegar, porque o cocktail activo da sua doutrina - que numa amálgama brilhante, demagógica e impossível misturava a preservação de certos valores tradicionais e a necessidade urgente de mudanças profundas na estrutura social e económica do país, o terror das classes médias face à revolução proletária e o irracionalismo vitalista de raiz nietzscheana, que, face ao vivere canto burguês, defendia o vivere pericoloso romântico - ia acabar diluído numa água chirla hipócrita, previsível e conservadora. Por alturas de 1937, decapitada pela morte de José António, dominada como ideologia e anulada como aparelho autónomo de poder, Franco já podia usar a Falange, com a sua retórica, os seus ritos e restantes manifestações externas fascistas, à maneira de um instrumento para homologar o seu regime com a Alemanha de Hitler e a Itália de Mussolini (de quem tanta ajuda tinha recebido, recebia e esperava ainda receber), mas também podia usá-la, conforme José António tinha previsto e temido anos antes, «como um mero elemento auxiliar de choque, como uma tropa de assalto da reacção, como uma milícia juvenil destinada a desfilar diante dos presunçosos elevados ao poder». Tudo conspirou nesses anos para diluir a Falange original, desde o uso ortopédico que Franco fez dela até ao facto crucial de, no decurso da guerra, não só terem aderido a ela de forma massiva aqueles que partilhavam de bom grado o seu ideário, mas também aqueles que tentavam dessa forma blindar-se do seu passado republicano. Com as coisas desta forma, a disjuntiva que mais cedo ou mais tarde haveriam de enfrentar muitos camisas-velhas era diáfana: denunciar a discrepância flagrante entre o seu projecto político e o que governava o novo estado, ou conviver com a menor incomodidade possível com essa contradição e dedicar-se a aproveitar qualquer migalha, por pequena que fosse, do banquete do poder. Evidentemente, entre esses dois extremos, as posições intermédias foram quase infinitas; mas a verdade é que, apesar de tantas declarações de honestidade inventadas a desoras, se exceptuarmos Ridruejo - um homem que se enganou muitas vezes, mas que sempre foi impoluto e corajoso e puro na pureza - quase ninguém optou de forma declarada pela primeira.

Evidentemente, Sánchez Mazas não o fez. Nem recém-acabada a guerra nem nunca. Mas a 9 de Abril de 1939, dezoito dias antes de Pere Figueras e de os seus oito companheiros de Cornellà de Terri darem entrada na prisão de Gerona e no próprio dia em que Ramón Serrano Súner - nessa época ministro dos Negócios Estrangeiros, cunhado de Franco e principal protector dos falangistas no governo - organizou e presidiu a um acto de homenagem a Sánchez Mazas em Saragoça, este ainda não tinha nenhum motivo sério para imaginar que o país que ele tinha aspirado construir não era o mesmo que o novo regime aspirava fazer; e menos ainda poderia suspeitar que Joaquim Figueras e Daniel Angelats estavam também em Saragoça. De facto, estavam na cidade apenas há um mês, para onde tinham sido enviados no cumprimento do serviço militar, quando ouviram no rádio que Sánchez Mazas estava hospedado desde o dia anterior no Gran Hotel e que, nessa noite, ia pronunciar um discurso perante o estado-maior da Falange aragonesa. Em parte por curiosidade, mas sobretudo levados pela ilusão de que a influência de Sánchez Mazas seria suficiente para aliviar os rigores do seu regime militar de soldados rasos, Figueras e Angelats postaram-se no Gran Hotel e disseram a um porteiro que eram amigos de Sánchez Mazas e que desejavam vê-lo. Figueras ainda se lembra muito bem daquele porteiro plácido e adiposo, com o seu casaco de tecido azul com borlas e alamares dourados que brilhavam sob os lustres de cristal do vestíbulo, entre as contínuas idas e vindas de dirigentes uniformizados e lembra-se, sobretudo, da sua expressão entre trocista e incrédula enquanto passava revista à miséria dos seus uniformes e ao seu ar irremediável de pacóvios. Por fim, o porteiro disse-lhes que Sánchez Mazas estava no quarto, descansando, e que não estava autorizado a incomodá-lo nem a deixá-los entrar.

- Mas podem esperá-lo aqui - disse-lhes com um assomo de crueldade, apontando para umas cadeiras. - Quando ele aparecer, passam o cordão formado pelos falangistas e cumprimentam-no: se ele os reconhecer, perfeito - mostrando um sorrisinho passou o dedo indicador pelo pescoço - mas, se não os reconhecer...

- Esperaremos - atalhou o orgulhoso Figueras, arrastando Angelats até uma cadeira.

Esperaram durante quase duas horas, mas à medida que o tempo passava sentiam-se cada vez mais intimidados pela advertência do porteiro, pela sumptuosidade inaudita do hotel e pela parafernália fascista asfixiante com que estava enfeitado e, quando o vestíbulo acabou de encher-se de cumprimentos castrenses e de camisas azuis e boinas vermelhas, Figueras e Angelats já tinham desistido da sua primeira intenção e tomado a decisão de regressar de imediato ao quartel sem abordar Sánchez Mazas. Ainda não tinham saído do vestíbulo quando um corredor de falangistas formados entre a escadaria e a porta giratória lhes impediu a passagem e, pouco depois, lhes permitiu avistar fugazmente e pela última vez nas suas vidas, deslocando-se com uma postura artificial e marcial de condottieri, entre um mar de boinas vermelhas e um bosque de braços erguidos, o perfil inconfundível de judeu daquele homem agora prestigiado pela prosopopeia do poder que há meses, diminuído pelos andrajos e pelos olhos sem óculos, pela fadiga, pelas privações e pelo medo, lhes tinha suplicado a sua ajuda num descampado remoto, e que nunca mais poderia retribuir aquele favor de guerra a dois dos seus amigos do bosque.

A cerimónia de Saragoça, durante a qual pronunciou o Discurso do Sábado de Aleluia - no qual, sem dúvida porque já suspeitava do perigo das deserções, exortava exasperadamente os seus companheiros falangistas ao cumprimento da disciplina e à obediência cega ao Caudilho -, foi apenas mais uma das numerosas intervenções públicas de Sánchez Mazas durante esses meses. Fuzilados no início da guerra Ledesma Ramos, José António e Ruiz de Alda, Sánchez Mazas era o mais antigo falangista vivo. Este facto, juntamente com a sua amizade fraternal por José António e com o papel decisivo que desempenhara na Falange primitiva, dava-lhe um enorme ascendente sobre os seus companheiros de partido e obrigou Franco a tratá-lo com extrema consideração, para ganhar a sua lealdade e para conseguir que limasse as asperezas que tinham surgido na sua relação com os falangistas menos acomodatícios. O momento crítico dessa simples mas bastante eficaz estratégia de captação, em tudo semelhante a um suborno à base de prebendas e lisonjas - um procedimento, é necessário dizê-lo, em cuja manipulação o Caudilho desenvolveu uma perícia de virtuoso e a que podemos atribuir em parte o seu interminável monopólio de poder - teve lugar em Agosto de 1939 quando, na formação do primeiro governo do pós-guerra, Sánchez Mazas, que ocupava desde Maio o cargo de delegado nacional da Falange Exterior, foi nomeado ministro sem pasta. Esta não foi, evidentemente, uma ocupação exclusivista, ou ele não a levou muito a sério. De qualquer forma, soube exercê-la sem qualquer prejuízo da sua recuperada vocação de escritor: naquela época publicava com frequência em jornais e revistas, frequentava tertúlias e fazia leituras públicas dos seus textos e, em Fevereiro de 1940, foi eleito membro da Academia Real da Língua, juntamente com o sou amigo Eugênio Montes, como «porta-voz da poesia e da linguagem revolucionária da Falange», conforme declarava o diário Abe. Sánchez Mazas era um homem vaidoso mas não tonto, de modo que a sua vaidade não superava o seu orgulho: consciente de que a sua eleição como académico obedecia a motivos políticos e não literários, nunca chegou a ler o seu discurso de admissão na instituição. Outros factores devem ter influído nesse gesto, que toda a gente preferiu interpretar, não sem algum motivo, como um sinal elegante de desdém, revelado pelo escritor, pelas glórias mundanas. Embora também se tenha feito sempre, é, no entanto, mais arriscado atribuir idêntico significado a um dos episódios que mais contribuiu para dotar a figura de Sánchez Mazas da auréola aristocrática de desinteresse e indolência que o rodeou até à morte.

A lenda, apregoada aos quatro ventos por fontes dos expoentes mais diversos, conta que num dia de finais de Julho de 1940, em pleno Conselho de Ministros, Franco, farto das ausências de Sánchez Mazas àquelas reuniões, disse, apontando para a cadeira sempre vazia do escritor: «Tirem daqui, por favor, essa cadeira». Duas semanas mais tarde Sánchez Mazas foi destituído, coisa que, sempre de acordo com a lenda, não pareceu incomodá-lo demasiado. As causas da demissão não são claras. Alguns alegam que Sánchez Mazas, cujo cargo de ministro sem pasta carecia de conteúdo real, se aborrecia soberanamente nas reuniões do conselho, por ser incapaz de se interessar por assuntos burocráticos e administrativos, que são os que absorvem a maior parte do tempo de um político. Outros garantem que era Franco quem se aborrecia soberanamente com as dissertações eruditas sobre os assuntos mais excêntricos (as causas da derrota dos navios persas na batalha de Salamina, digamos; ou a correcta utilização da plaina) que Sánchez Mazas lhe infligia e que, por isso, terá decidido prescindir daquele literato ineficaz, extravagante e intempestivo, que desempenhava no governo um papel quase ornamental. Nem sequer falta quem, de forma ingénua ou interessada, atribua a indolência de Sánchez Mazas ao seu desencanto de falangista fiel aos ideais autênticos do partido. Todos coincidem em que apresentou por diversas vezes a sua demissão, que nunca foi aceite até as suas reiteradas ausências das reuniões ministeriais, justificadas sempre com desculpas insólitas, a converterem num facto. Qualquer que seja a perspectiva de onde se olhe, para Sánchez Mazas a lenda é lisonjeadora, porque contribui para traçar uma imagem de homem íntegro e avesso às vaidade do poder. O mais provável é ser falsa.

O jornalista Carlos Sentis, que foi seu secretário pessoal nessa época, defende que o escritor deixou de assistir aos conselhos de ministros simplesmente por ter deixado de ser convocado para eles. Segundo Sentis, algumas declarações inconvenientes ou extemporâneas em relação ao problema de Gibraltar, juntamente com a aversão que lhe professava o então todo-poderoso Serrano Súner, provocaram a sua queda em desgraça. Esta versão dos factos é, em minha opinião, fiável, não apenas porque Sentis foi a pessoa mais próxima de Sánchez Mazas durante o ano exacto em que este permaneceu no ministério, mas também porque parece razoável que Serrano Súner visse na ineficácia de Sánchez Mazas - que intrigara mais de uma vez contra ele para ganhar os favores de Franco, tal como o fizera anos antes contra Giménez Caballero para ganhar os de José António - uma desculpa perfeita para se livrar de quem, na sua condição de camisa-velha mais antigo, podia representar uma ameaça para a sua autoridade e corroer o seu ascendente sobre os falangistas ortodoxos e sobre o próprio Caudilho. Sentis afirma que, devido à sua destituição, Sánchez Mazas foi confinado durante meses na sua casa de Viso - um hotelzinho na calle Serrano que comprara anos antes com o seu amigo, o comunista José Bergamín e que ainda pertence à família - e privado do seu salário de ministro. A sua situação económica tornou-se momentaneamente desesperada e, em Dezembro, quando levantaram sem explicações o desterro, decidiu viajar até Itália para pedir ajuda à família da sua mulher. Ao passar por Barcelona, hospedou-se na casa de Sentis. Este não reteve com exactidão aqueles dias, nem o estado de espírito de Sánchez Mazas, mas lembra-se de que, no próprio dia de Natal, precisamente depois da celebração familiar, o escritor recebeu um telefonema providencial no qual um parente lhe comunicava que a sua tia Julia Sánchez acabava de falecer legando-lhe uma fortuna avultada que incluía um palácio e várias quintas em Coria, na província de Cáceres.

«Antes eras um escritor e um político, Rafael», dizia-lhe por essa altura Agustín de Foxá. «Agora és apenas um milionário.»

Foxá foi escritor, político e milionário, e um dos poucos amigos que, com o tempo, Sánchez Mazas não acabou por perder. Foi também um homem clarividente que, tal como acontece geralmente com os clarividentes, muitas vezes tinha razão. É verdade que, depois de receber a herança da sua tia, Sánchez Mazas ocupou diversos cargos políticos - desde membro da Junta Política da Falange até procurador nas Cortes, passando pelo de presidente do Patronato do Museu do Prado - mas também é verdade que foram sempre subalternos ou decorativos, que quase não lhe ocupavam o tempo e que, desde meados dos anos quarenta, foi abandonando como quem se desfaz de um lastro incómodo e, pouco a pouco, à medida que o tempo passava, desaparecendo da vida pública. Isto não significa, no entanto, que Sánchez Mazas fosse, nos anos quarenta e cinquenta, uma espécie de opositor silencioso do franquismo. Desprezava, sem dúvida, a chateza e a mediocridade que o regime impusera à vida espanhola, mas não se sentia incomodado com ele, nem hesitava em proferir em público os mais vergonhosos louvores ao tirano e até, se viesse à mão, à mulher deste - a quem descascava em privado, pela sua estupidez e mau gosto - e, evidentemente, também não lamentava ter contribuído com todas as suas forças para o desencadear da guerra que arrasou uma república legítima sem, com isso, conseguir implantar o temível regime de poetas e condottieri renascentistas com que sonhara, mas um simples governo de patifes, pacóvios e beatos. «Não me arrependo nem me esqueço», escreveu de forma memorável, à mão e a toda a largura da página, na capa de Fundação, Irmandade e Destino, um livro onde compilou alguns dos belicosos artigos doutrinários falangistas que, nos anos trinta, publicou em Arriba e RE. A frase é da Primavera de 1957; a data impõe uma reflexão. Nessa altura, Madrid vivia ainda na ressaca da primeira grande crise interna do franquismo, fruto de uma aliança imprevisível, mas no fundo inevitável, entre dois grupos que Sánchez Mazas conhecia muito bem, porque convivia diariamente com eles. Por um lado, a jovem intelectualidade esquerdista, parte importante da qual tinha surgido das fileiras desiludidas da própria Falange e era composta por filhos rebeldes de notáveis famílias do regime, entre eles dois dos filhos de Sánchez Mazas: Miguel, o primogénito, um dos cabecilhas da revolta estudantil de 56 - que em Fevereiro desse ano foi preso e pouco depois partia, para um longo exílio - e Rafael, o preferido de Sánchez Mazas, que acabava de publicar El Jarama, o romance que congregou a estética e as inquietações daqueles jovens inconformistas; por outro lado, alguns camisas-velhas - entre os quais figurava em primeiro lugar Dionisio Ridruejo, velho amigo de Sánchez Mazas, que fora detido juntamente com o filho deste, Miguel, e com outros dirigentes estudantis pela algazarra antifranquista do ano anterior, e que, nesse mesmo ano de 1957, fundava o Partido Social de Acção Democrática, de tendência social-democrata -, antigos falangistas da primeira hora que talvez não tivessem esquecido o seu passado político, mas que, sem dúvida, se tinham arrependido dele e que se estavam lançando, com maior ou menor decisão ou coragem, no combate contra um regime que tinham ajudado a construir. Não me arrependo nem me esqueço. Como, com frequência, a ênfase na lealdade denuncia o traidor, não falta quem maldosamente sugira que, se Sánchez Mazas escrevia semelhante coisa naquele momento, era precisamente porque, tal como alguns dos seus companheiros joseantonianos, já se tinha arrependido - ou, pelo menos, tinha-se arrependido parcialmente - e estava tentando esquecer - ou, pelo menos, estava tentando esquecer parcialmente. A conjectura é atraente mas falsa. De qualquer forma, além da secreta atitude desdenhosa com que contemplava o regime, nem um só dado da sua biografia a avaliza. «Se por algo odeio os comunistas, Excelência», disse uma vez Foxá a Franco, «é por me terem obrigado a tornar-me falangista». Sánchez Mazas nunca teria pronunciado esta frase - demasiado irreverente, demasiado irónica -, muito menos na presença do general, mas é válida, sem dúvida, também para ele. Talvez Sánchez Mazas nunca tenha passado de um falso falangista, ou, se se quiser, de um falangista que só o foi porque se sentiu obrigado a sê-lo, se é que todos os falangistas não foram falsos e obrigados a sê-lo, porque no fundo nunca acreditaram totalmente que o seu ideário fosse mais do que um expediente de urgência em tempos de confusão, um instrumento destinado a conseguir que alguma coisa mudasse para que tudo ficasse na mesma; o que pretendo dizer é que, se não fosse, tal como muitos dos seus camaradas, por ter sentido que uma ameaça real se abatia sobre o sonho de beatitude burguesa dos seus, Sánchez Mazas nunca se teria rebaixado envolvendo-se em política, nem se teria dedicado a forjar a ardente retórica de choque que devia exacerbar até à vitória o pelotão de soldados encarregados de salvar a civilização. É um facto que Sánchez Mazas identificava com a civilização a segurança, privilégios e hierarquias dos seus, e, os falangistas, com o pelotão de soldados de Spengler; é também um facto que sentia orgulho por ter feito parte desse pelotão e, talvez, o direito a descansar depois de ter restaurados hierarquias, segurança e privilégios. Por isso é duvidoso que quisesse esquecer alguma coisa, e com certeza de nada se arrependia.

De modo que, com rigor, não pode dizer-se que durante o pós-guerra Sánchez Mazas fosse um político. Mais arriscado parece ser o que defende o clarividente Foxá, segundo o qual Sánchez Mazas também não teria sido um escritor. Porque é verdade que nesses anos, à medida que diminuía a sua actividade política, aumentava a literária: nas duas décadas que se seguiram à guerra, vieram à luz, com a sua assinatura, romances, relatos, ensaios, adaptações teatrais e inúmeros artigos aparecidos em Arriba, La Tarde e Abe. Alguns destes últimos são excepcionais, jóias de uma ourivesaria verbal extremamente refinada, e outros, que publicou nessa altura, como La vida nueva de Pedrito de Andía (1951) e Las aguas de Arbeloa y otras cuestiones (1956), figuram entre o melhor da sua obra. Tudo isso é verdade, mas também o é o facto de, embora tenha ocupado entre meados dos anos quarenta e meados dos anos cinquenta um lugar proeminente na literatura espanhola, nunca se ter incomodado em fazer carreira literária (um exercício que, tal como o de fazer carreira política, sempre lhe pareceu indigno de cavalheiros) e, à medida que o tempo passava, ter praticado cada vez com maior destreza a arte subtil do desaparecimento, ao ponto de, a partir de 1955 e durante cinco anos, ter assinado os seus artigos no Abe com três enigmáticos asteriscos. Por outro lado, a sua vida social limitava-se à frequência assídua dos poucos amigos que, tal como Ignacio Agustí ou Marino Gómez Santos, tinham conseguido sobreviver às intemperanças do seu carácter e, desde o início dos anos cinquenta, à tertúlia bastante esporádica que, no Café Comercial da praceta de Bilbau, César González-Ruano conseguia juntar. Este, que o conhecia bem, via por essa época Sánchez Mazas «como um grande amante, como um cavalheiro superior das letras, como um grande senhor impar que nunca precisou de fazer profissão das suas vocações, apenas exercícios de verso e prosa nas suas férias».

Ou seja, no fim de contas, é provável que Foxá tivesse razão: desde que acabou a guerra e até à sua morte, talvez Sánchez Mazas não tenha sido, essencialmente, outra coisa senão um milionário. Um milionário sem muitos milhões, lânguido e um pouco decadente, entregue a paixões um tanto extravagantes - os relógios, a botânica, a magia, a astrologia - e à não menos extravagante paixão da literatura. Vivia entre o casarão de Coria, onde passava longas temporadas fazendo vie de château, o hotel Velázquez de Madrid e o chalet de Viso, rodeado de gatos, pedras de Itália, livros de viagens, quadros espanhóis e gravuras francesas, com um grande salão presidido por uma lareira francesa e um jardim saturado de roseiras. Levantava-se por volta do meio-dia e, depois de almoçar, escrevia até à hora do jantar; as noites, que se prolongavam com frequência até ao amanhecer, eram dedicadas à leitura. Saía pouco de casa, fumava muito. É provável que, nessa altura, já não acreditasse em nada. É provável também que, no seu íntimo, nunca tenha acreditado em nada na vida; e, ainda menos, naquilo que defendia ou pregava. Fez política, mas no fundo sempre a desprezou. Exaltou velhos valores - a lealdade, a coragem - mas exerceu a traição e a cobardia e contribuiu como poucos para o embrutecimento que a retórica da Falange fez deles; também exaltou velhas instituições - a monarquia, a família, a religião, a pátria - mas não mexeu um dedo para trazer um rei para Espanha, ignorou a sua família, da qual viveu frequentemente separado, e teria trocado todo o catolicismo por um único canto da Divina Comédia. Quanto à pátria, bom, a pátria não se sabe o que é, ou é simplesmente uma desculpa da vadiagem ou da preguiça. Quem com ele se relacionou nos últimos anos, recorda-o lembrando-se com frequência das vicissitudes da guerra e do fuzilamento do Collell. «É incrível o que se aprende nesses poucos segundos da execução», disse, em 1959, a um jornalista a quem, no entanto, não revelou os ensinamentos que a iminência da morte lhe deparara. Talvez não passasse de um sobrevivente e, por isso, no fim da sua vida, gostasse de se ver como um grande senhor outonal e fracassado, como alguém que, podendo ter feito grandes coisas, não chegou a fazer quase nada. «Não correspondi senão de uma forma medíocre à esperança e à ajuda que recebi», confessou por essa época a González-Ruano, e, alguns anos antes, uma personagem de La vida nueva de Pedrito de Andía parece falar pela boca de Sánchez Mazas quando afirma no seu leito de morte: «Nunca consegui acabar nada neste mundo». De facto, foi dessa forma, melancólica, derrotada e sem futuro, que ele gostou de se ver desde muito novo. Em Julho de 1913, em Bilbau, com dezanove anos apenas, Sánchez Mazas escreveu, com o título de Sob o sol antigo, três sonetos, o último dos quais diz assim:

 

En mi ocaso de viejo libertino

y de viejo poeta cortesano

pasaría las tardes, mano a mano,

con un beato padre teatino.

 

Cada vez más gotoso y más católico,

como es guisa de rancio caballero,

mi génio impertinente y altanero

tornárase vidrioso y melancólico.

 

Y como hallasen para fin de cuento

misas y deudas en mi testamento,

de limosna me harían funerales.

 

Y la fortuna en su postrer agravio

cinérame sus lauros inmortales

por una Epístola moral a Fabio (*3)

 

Eu não sei se no fim dos seus dias, cinquenta anos depois de escrever estas palavras, Sánchez Mazas era um velho libertino, mas era, sem dúvida, um velho poeta cortesão. Continuava a ser católico,

 

(*3) No meu ocaso de velho libertino / e de velho poeta cortesão / passaria as tardes, ombro a ombro, / com um beato padre teatino.

Cada vez mais gotoso e mais católico, / como é guisa de rançoso cavalheiro, / o meu génio impertinente e altaneiro / tornara-se melindroso e melancólico.

E como achassem para fim de fábula / missas e dívidas no meu testamento, / por caridade far-me-iam funeral.

E a sorte no seu derradeiro agravo / cingira-me os seus louros imortais / por uma Epístola moral a Fábio! (N. da T.)

 

embora fosse apenas de fachada, e também um rançoso cavalheiro. Sempre teve um génio impertinente, altaneiro, melindroso e melancólico. Morreu numa noite de Outubro de 1966, de um enfisema pulmonar; ao seu funeral assistiu pouca gente. Deixou poucos bens e pouco dinheiro. Foi um escritor frustrado e por isso não escreveu - por isso e porque talvez não fosse digno disso - uma Epístola moral a Fábio. Mas foi também o melhor dos escritores da Falange: deixou um punhado de bons poemas e um punhado de boas prosas, que é muito mais do que aquilo a que quase todos os escritores podem aspirar, mas também muito menos do que o seu talento, que esteve sempre acima da sua obra, o exigia. Diz Andrés Trapiello que, tal como tantos escritores falangistas, Sánchez Mazas ganhou a guerra e perdeu a história da literatura. A frase é brilhante e, em parte, verdadeira, ou, pelo menos, foi-o, porque durante algum tempo Sánchez Mazas pagou com o esquecimento a sua responsabilidade brutal numa matança brutal; mas também é verdade que, ao ganhar a guerra, talvez Sánchez Mazas se tenha perdido a si próprio como escritor: romântico por fim, talvez achasse intimamente que qualquer vitória está contaminada pela indignidade e, a primeira coisa que pressentiu em segredo ao chegar ao paraíso - mesmo que fosse aquele ilusório paraíso burguês de ócio, cretone e pantufas que, como uma imitação grosseira e indigente dos velhos privilégios, hierarquias e segurança, construiu para si próprio nos últimos anos - foi que aí se podia viver, mas não escrever, porque a escrita e a plenitude são incompatíveis. Hoje, pouca gente se lembra dele e isso talvez seja merecido. Há em Bilbau uma rua com o seu nome.

 

                   ENCONTRO EM STOCKTON

 

Acabei de escrever Soldados de Salamina muito antes de terminar a licença que me tinham concedido no jornal. A excepção de Conchi, com quem ia jantar duas ou três vezes por semana, durante todo esse tempo praticamente não vi ninguém, porque passava o dia e a noite fechado no meu quarto, diante do computador. Escrevia de uma forma obsessiva, com um impulso e uma constância que ignorava possuir; também sem muita clareza no objectivo. Este consistia em escrever uma espécie de biografia de Sánchez Mazas que, centrando-se num episódio aparentemente acidental mas se calhar essencial da sua vida - o seu fuzilamento frustrado do Collell -, propusesse uma interpretação da personagem e, por extensão, da natureza do falangismo ou, mais exactamente, dos motivos que levaram aquele punhado de homens cultos e refinados que fundaram a Falange a lançar o país numa furiosa orgia de sangue. Imaginava que, inevitavelmente, à medida que o livro avançasse, este desígnio se alteraria, porque os livros acabam sempre por adquirir vida própria, e porque uma pessoa não escreve acerca do que quer, mas do que pode. Imaginava também que embora tudo o que com o tempo tinha averiguado sobre Sánchez Mazas se destinasse a constituir o núcleo do meu livro, chegaria um momento em que teria de prescindir dessas andadeiras, porque - se é que aquilo que escreve chegará a ter verdadeiro interesse - um escritor nunca escreve acerca do que conhece, mas precisamente do que ignora.

Nenhuma das duas conjecturas se revelou errada, mas em meados de Fevereiro, um mês antes de acabar a minha licença, o livro estava terminado. Eufórico, li-o e reli-o. À segunda leitura a euforia foi substituída pela decepção: o livro não era mau, mas insuficiente, como um mecanismo completo incapaz de desempenhar a função para a qual fora concebido por lhe faltar uma peça. Corrigi o livro a fundo, reescrevi o início e o fim, reescrevi vários episódios, mudei outros de lugar. A peça, no entanto, não aparecia; o livro continuava coxo.

Abandonei-o. No dia em que tomei essa decisão fui jantar com Conchi, que me deve ter achado estranho porque me perguntou o que tinha. Eu não estava com vontade de falar disso (na realidade, também não estava com vontade de falar; nem sequer de sair para jantar), mas acabei por explicar-lhe.

- Merda! - disse Conchi. - Disse-te que não escrevesses sobre um facho. Essa gente lixa tudo aquilo em que toca. O que tens de fazer é esquecer-te desse livro e começar outro. Que tal um sobre Garcia Lorca?

Passei as duas semanas seguintes sentado numa poltrona, diante do televisor desligado. Que eu me lembre, não pensava em nada, nem sequer no meu pai; nem sequer na minha primeira mulher. Conchi visitava-me diariamente: arrumava-me um pouco a casa, preparava-me comida e, depois de eu já estar metido na cama, ia-se embora. Chorava pouco, mas não conseguia evitá-lo quando, todas as noites, por volta das dez, Conchi ligava a televisão para se ver vestida de pitonisa e comentar o seu programa da televisão local.

Também foi Conchi quem me convenceu de que, embora a minha licença não tivesse terminado e eu não estivesse totalmente recuperado, devia voltar ao meu trabalho no jornal. Talvez por ter ficado ausente menos tempo do que da vez anterior, ou por a minha cara e o meu aspecto inspirarem nesta altura mais misericórdia do que sarcasmo, o regresso de mãos vazias foi menos humilhante e, na redacção, não houve comentários irónicos nem ninguém perguntou nada, nem sequer o director; este, por outro lado, não só não me obrigou a trazer-lhe cafés do bar da esquina (uma actividade para a qual eu já vinha preparado) como nem sequer me castigou com tarefas subalternas. Pelo contrário: como se adivinhasse que eu precisava de arejar um pouco, propôs-me deixar a secção de cultura

e dedicar-me a fazer uma série quase diária de entrevistas a personagens com algum relevo que, sem terem nascido na província, residissem aí habitualmente. Foi assim que, durante vários meses, entrevistei empresários, actores, desportistas, poetas, políticos, diplomatas, advogadozecos, vadios.

Um dos meus primeiros entrevistados foi Roberto Bolano. Bolano, que era escritor e chileno, vivia há muito tempo em Blanes, uma povoação costeira situada na fronteira entre Barcelona e Gerona, tinha quarenta e sete anos, um bom número de livros às costas e aquele ar inconfundível de bufarinheiro hippie que caracteriza tantos latino-americanos da sua geração exilados na Europa. Quando fui visitá-lo, ele acabara de ganhar um prémio literário importante e vivia com a mulher e o filho no Carrer Ample, uma rua do centro de Blanes, onde comprara um andar modernista com o dinheiro que lhe tinham dado. Foi aí que me recebeu nessa manhã e, ainda não tínhamos trocado os cumprimentos da praxe quando me pespegou:

- Ouve, tu não serás por acaso o Javier Cercas de El móvil e El inquilino.

El móvil e El inquilino eram os títulos dos dois únicos livros que tinha publicado, há mais de dez anos, sem que ninguém, excepto algum amigo dessa altura, tivesse ficado a par do acontecimento. Aturdido ou incrédulo, concordei.

- Eu conheço-os - disse. - Acho que até os comprei.

- Ah, foste tu?

Não fez caso da piada.

- Espera um instante.

Desapareceu no corredor e regressou passado pouco tempo.

- Aqui estão - disse, brandindo triunfalmente os meus livros. Folheei os dois exemplares, reparei que estavam usados. Quase

com tristeza comentei:

- Leste-os.

- Claro - disse Bolano quase sem sorrir, pois não sorria quase nunca mas parecia nunca falar totalmente a sério. - Eu até leio os papéis que encontro na rua.

Agora fui eu quem sorriu.

- Escrevi-os há muitos anos.

- Escusas de desculpar-te - disse. - Eu gostei deles ou, pelo menos, lembro-me de ter gostado.

Pensei que estava a troçar; levantei os olhos dos livros e olhei-o: não troçava. Ouvi-me perguntar-lhe:

- A sério?

Bolano acendeu um cigarro, parecendo reflectir um pouco.

- Do primeiro não me lembro muito bem - acabou por reconhecer. - Mas acho que havia um conto bastante bom sobre um filho da puta que leva um pobre homem a cometer um crime para poder acabar o seu romance, não é verdade? - Sem me dar tempo a concordar de novo, acrescentou: - Quanto a El inquilino, pareceu-me um romancezinho delicioso.

Bolano pronunciou este parecer com uma mistura tal de naturalidade e convicção que, de súbito, soube que os escassos elogios que os meus livros tinham merecido eram fruto da cortesia ou da piedade. Fiquei sem fala, e senti uma vontade enorme de abraçar aquele chileno de poucas falas, cabelo ondulado, esquálido e mal barbeado, que acabava de conhecer.

- Bem - disse. - Começamos a entrevista?

Fomos para um bar do porto, entre a lota e o quebra-mar, e sentámo-nos junto de uma vidraça de onde se avistava, através do ar dourado e frio da manhã, majestosamente atravessado por gaivotas, toda a baía de Blanes, com a doca em primeiro plano, cheia de barcos de pesca ociosos, e, ao fundo, o promontório de La Palomera, que assinala a fronteira geográfica da Costa Brava. Bolano pediu chá com torradas; eu pedi café e água. Conversámos. Bolano contou-me que agora as coisas lhe corriam bem, porque os seus livros começavam a render-lhe algum dinheiro, mas que, durante os últimos vinte anos, tinha sido mais pobre do que uma ratazana. Deixara de estudar quase criança, tinha desempenhado todo o tipo de trabalhos ocasionais (embora, além de escrever, nunca tenha tido um trabalho sério); tinha feito a revolução no Chile de Allende e, no de Pinochet, tinha estado na prisão; tinha vivido no México e em França; tinha viajado por todo o mundo. Há anos fora submetido a uma operação bastante complicada e, desde essa altura, vivia em Blanes como um asceta, sem outro vício além da escrita e sem ver ninguém além da família. Por acaso, no dia em que entrevistei Bolano, o general Pinochet acabava de regressar ao Chile, aclamado como um herói pelos seus partidários, depois de ter passado dois anos em Londres à espera de ser extraditado para Espanha e julgado pelos seus crimes. Falámos do regresso de Pinochet, da ditadura de Pinochet, do Chile. Como é natural, perguntei-lhe como tinha vivido a queda de Allende e o golpe de Pinochet. Como é natural, olhou para mim com uma cara de tédio infinito; depois disse:

- Como um filme dos irmãos Marx, só que com mortos. Aquilo foi uma confusão tremenda. - Soprou um pouco o chá, bebeu um gole e voltou a colocar a chávena no pires. - Olha, vou dizer-te a verdade. Durante anos, caguei-me em Allende sempre que pude, pensava que a culpa era toda dele, por não nos ter entregue as armas. Agora cago em mim próprio por ter dito isso de Allende. Chiça, o cabrão pensava em nós como se fôssemos seus filhos, entendes? Não queria que nos matassem. E se tivesse chegado a distribuir as armas, teríamos morrido como tordos. Enfim - concluiu, pegando novamente na chávena -, suponho que Allende foi um herói.

- E o que é um herói?

A pergunta pareceu surpreendê-lo, como se nunca a tivesse colocado, ou como se a fizesse desde sempre; com a chávena no ar, olhou-me fugazmente nos olhos, voltou o olhar para a baía, reflectindo por um momento. Depois encolheu os ombros.

- Não sei - disse. - Alguém que se julga um herói e acerta. Ou alguém que tem a coragem e o instinto da virtude e por isso nunca se engana, ou, pelo menos, não se engana no único momento que importa não se enganar, e que, portanto, não pode deixar de ser um herói. Ou quem entende, tal como Allende, que o herói não é aquele que mata mas aquele que não mata ou se deixa matar. Não sei. O que é um herói para ti?

Nessa época, há mais de um mês que eu não pensava em Soldados de Salamina, mas naquele momento não consegui evitar a lembrança de Sánchez Mazas, que nunca matou e que nalgum momento, antes de a realidade lhe demonstrar que carecia de coragem e do instinto da virtude, talvez se tenha achado um herói. Disse:

- Não sei. John Le Carré diz que é preciso ter têmpera de herói para se ser uma pessoa decente.

- Sim, mas uma pessoa decente não é o mesmo que um herói - replicou Bolano imediatamente. - Pessoas decentes há muitas: são as que sabem dizer não a tempo; heróis, pelo contrário, há muito poucos. Na realidade, eu julgo que no comportamento de um herói há quase sempre alguma cegueira, irracional, instintiva, que faz parte da sua natureza e da qual não consegue fugir. Além disso, pode ser-se uma pessoa decente durante toda uma vida, mas não se consegue ser sublime sem interrupção, e, por isso, o herói só o é excepcionalmente, num momento ou, quanto muito, numa temporada de loucura ou de inspiração. Eis Allende, falando através da Rádio Magallanes, caído no chão num canto de La Moneda, com a metralhadora numa mão e o microfone na outra, falando como se estivesse bêbado ou como se já estivesse morto, sem saber muito bem o que diz e dizendo as palavras mais profundas e mais nobres que eu jamais ouvi... Agora lembro-me de outra história. Aconteceu em Madrid há muito tempo, eu li-a na imprensa. Um rapaz passava por uma rua do centro e de repente viu uma casa envolta em chamas. Sem esperar por ninguém, entrou naquela casa e saiu com uma mulher nos braços. Voltou a entrar e desta vez tirou um homem. Depois entrou outra vez e tirou outra mulher. Nessa altura do incêndio, já nem sequer os bombeiros se atreviam a entrar em casa, era um suicídio; mas o rapaz devia saber que ainda havia alguém lá dentro, porque entrou novamente. E, claro, já não voltou a sair. - Bolano parou, com o dedo indicador empurrou os óculos até a armação roçar as sobrancelhas. - Brutal, não é verdade? Bom, pois eu não tenho a certeza de que esse rapaz agisse movido pela compaixão, ou por sabe-se lá que bons sentimentos. Eu acho que agia por uma espécie de instinto, um instinto cego que o ultrapassava, que tinha mais força do que ele, que actuava por ele. O mais provável é que esse rapaz fosse uma pessoa decente, não digo que não; mas pode não ter sido. Porra, Javier, nem lhe fazia falta, o cabrão era um herói.

Bolano e eu passámos o resto da manhã conversando acerca dos seus livros, dos autores de que gostava - que eram muitos - e dos que detestava - que ainda eram mais. Bolano falava de todos eles com uma estranha paixão gelada, que ao princípio me fascinou e depois me fez sentir pouco à vontade. Abreviei a entrevista. Quando nos íamos despedir, no Paseo del Mar, propôs-me almoçar em sua casa, com a mulher e o filho. Menti. Disse-lhe que não podia, porque estavam à minha espera no jornal. Então convidou-me a visitá-lo um dia desses. Voltei a mentir. Disse-lhe que o faria muito depressa.

Uma semana mais tarde, quando a entrevista foi publicada, Bolano telefonou-me para o jornal. Disse-me que tinha gostado muito. Perguntou:

- Tens a certeza de que eu disse tudo isso sobre os heróis?

- Palavra por palavra - respondi, subitamente desconfiado, imaginando que o elogio inicial era apenas um prólogo das censuras, conjecturando que Bolano era um desses linguarudos que atribuem todos os seus deslizes verbais à má-fé, à falta de cuidado ou à frivolidade dos jornalistas. - Tenho tudo gravado.

- Porra, a verdade é que está óptima! - tranquilizou-me. - Mas telefonava-te por outra coisa. Amanhã vou a Gerona para renovar a minha autorização de residência, uma chatice de merda mas que não demorará muito tempo. Apetece-te almoçar comigo?

Eu não estava à espera nem do telefonema nem da proposta e, talvez por me ter parecido mais fácil aceitá-la do que fingir um compromisso, aceitei e, no dia seguinte, quando cheguei ao Bistrot, Bolano já estava sentado a uma mesa, com uma Coca-Cola light na mão.

- Há pelo menos vinte anos que não vinha aqui - comentou Bolano que, no dia anterior, ao telefone, me tinha dito que, durante o tempo em que vivera na cidade, a sua casa ficava perto do Bistrot. - Isto mudou a valer.

Depois de fazer o pedido (salada e bife grelhado para ele; mexilhões no vapor e coelho para mim), Bolano voltou a elogiar a entrevista, falou das de Capote e de Mailer e, bruscamente, perguntou-me se eu estava a escrever alguma coisa. Como nada irrita tanto um escritor que não escreve como perguntarem-lhe o que está a escrever, um pouco aborrecido respondi:

- Não. - E, porque pensei que, tal como para toda a gente, para Bolano escrever nos jornais não é escrever, acrescentei: - Já não escrevo romances. - Pensei em Conchi e disse: - Descobri que não tenho imaginação.

- Para escrever romances não é preciso imaginação - disse Bolano.

- Apenas memória. Os romances escrevem-se combinando lembranças.

- Nesse caso eu fiquei sem lembranças. - Tentando ser espirituoso expliquei: - Agora sou um jornalista, ou seja, um homem de acção.

- Pois é uma pena - disse Bolano. - Um homem de acção é um escritor frustrado. Se Dom Quixote tivesse escrito um único livro de cavalaria nunca teria sido Dom Quixote e, se eu não tivesse aprendido a escrever, estaria agora aos tiros com as FARC. Além do mais, um verdadeiro escritor nunca deixa de o ser. Mesmo que não escreva.

- O que te leva a pensar que eu sou um verdadeiro escritor?

- Escreveste dois verdadeiros livros.

- Pecados da juventude.

- O jornal não conta?

- Conta. Mas aí não escrevo por prazer, só para ganhar a vida. Além disso, um jornalista e um escritor não são a mesma coisa.

- Nisso tens razão - admitiu. - Um bom jornalista é sempre um bom escritor, mas um bom escritor quase nunca é um bom jornalista.

Ri-me.

- Brilhante, mas falso - disse.

Enquanto almoçávamos, Bolano falou-me do tempo em que tinha vivido em Gerona. Minuciosamente, falou-me de uma interminável noite de Fevereiro num hospital da cidade, o Josep Trueta. Naquela manhã tinham-lhe diagnosticado uma pancreatite, e, quando o médico acabou por aparecer no seu quarto e ele pôde perguntar-lhe, sabendo já a resposta, se ia morrer, o médico acariciou-lhe um braço e disse-lhe que não com a voz com que sempre se dizem as mentiras. Nessa noite, antes de adormecer, Bolano sentiu uma tristeza infinita, não por saber que ia morrer, mas por todos os livros que tinha projectado escrever e nunca escreveria, por todos os seus amigos mortos, por todos os jovens latino-americanos da sua geração - soldados mortos em guerras antecipadamente perdidas - a quem sempre sonhara ressuscitar nos seus romances e que agora permaneceriam mortos para sempre, tal como ele, como se nunca tivessem existido. Depois adormeceu e sonhou durante toda a noite que estava num ringue, lutando com um lutador de sumo, um oriental gigantesco e sorridente contra o qual não podia e contra quem, no entanto, continuou a lutar durante toda a noite até ter acordado, sabendo, sem que ninguém lhe dissesse, com uma alegria sobre-humana que nunca mais tornara a sentir, que não ia morrer.

- Mas às vezes penso que ainda não acordei - disse Bolano, passando o guardanapo pelos lábios. - Às vezes penso que ainda estou na cama do Trueta, lutando com o lutador de sumo e que tudo o que aconteceu nestes anos (o meu filho, a minha mulher, os romances que escrevi e os amigos mortos de que falei) é um sonho, que a determinada altura vou acordar e ver-me na lona do ringue, assassinado por um oriental muito gordo que sorri tal como a morte.

Depois de almoçar, Bolano pediu-me que o acompanhasse a dar uma volta pela cidade. Acompanhei-o. Percorremos a zona velha, caminhámos pela Rambla, pela Plaza de Catalunya, pela do mercado. Ao entardecer tomámos café no bar do hotel Carlemany, bastante perto da estação, enquanto Bolano esperava o comboio. Foi aí, entre chávenas de chá e gin-tónicos, que me contou a história de Miralles. Não me lembro porquê nem como foi lá parar. Lembro-me de que falou com um entusiasmo indomável, com uma espécie de seriedade exultante, pondo à disposição da narração toda a sua erudição militar e histórica, que era esgotante mas nem sempre exacta, porque mais tarde, quando consultei vários livros sobre as operações militares da Guerra Civil e da Segunda Guerra Mundial, descobri que algumas datas, nomes e circunstâncias tinham sido modificadas pela sua imaginação ou pela sua memória. O relato, no entanto, não só parecia verosímil, como também, na maior parte dos seus pormenores, fiel aos factos.

Uma vez recolhidos os poucos dados e datas que Bolano tinha alterado, a história é esta:

Bolano conheceu Miralles no Verão de 1978, no parque de campismo Estrella de Mar, em Castelldefells. O Estrella de Mar era um parque de campismo para roulottes aonde acorria, todos os anos no Verão, uma população flutuante composta basicamente por membros do proletariado europeu: franceses, ingleses, alemães, holandeses, um ou outro espanhol. Bolano lembrava-se de que, pelo menos durante o tempo que passava ali, aquela gente era bastante feliz.

Ele também se lembrava de si próprio feliz. Trabalhou no parque de campismo durante quatro Verões, de 78 a 81, e, às vezes, também durante os fins-de-semana de Inverno. Fez de varredor, de guarda-nocturno, de tudo.

- Foi o meu doutoramento - garantiu-me Bolano. - Conheci uma fauna humana o mais variada possível. Na realidade, nunca na minha vida aprendi tantas coisas ao mesmo tempo como ali.

Miralles chegava todos os anos no princípio de Agosto. Bolano recordava-o ao volante da sua roulotte, com os seus cumprimentos exagerados, o seu sorriso descomunal, o seu barrete enterrado na cabeça e a sua imensa barriga de Buda, inscrevendo-se no registo do parque de campismo e instalando-se imediatamente no lugar atribuído. A partir daquele momento e durante todo o mês, Miralles nunca mais voltava a vestir outra coisa além de um fato de banho e de umas chinelas de borracha e, como andava todo o dia de corpinho bem feito, chamava imediatamente a atenção, porque o seu corpo era um autêntico compêndio de cicatrizes. De facto, todo o lado esquerdo, do tornozelo ao próprio olho, que ainda conseguia ver, era uma única cicatriz. Miralles era catalão, de Barcelona ou dos arredores de Barcelona - Sabadell talvez, ou Terrassa; de qualquer forma, Bolano lembrava-se de o ouvir falar em catalão - mas vivia em França há muitos anos e, segundo Bolano, transformara-se num autêntico francês: empregava uma ironia bastante afiada, sabia comer e beber e o bom vinho enlouquecia-o. De noite reunia-se no bar com os amigos de todos os Verões e com Bolano que, na sua qualidade de guarda-nocturno, se juntava com frequência a esses serões que se prolongavam até muito tarde. Viu-o embebedar-se amiúde, mas nunca ficar agressivo, brigão ou sentimental. Quando essas noites acabavam, precisava simplesmente de alguém que o acompanhasse até à sua roulotte, porque já não era capaz de lá chegar por si próprio. Bolano acompanhou-o muitas vezes e também ficou muitas vezes sozinho com ele, no bar, bebendo até muito tarde porque Miralles já tinha derrotado os seus companheiros de borga. Foi no decurso dessas noites intermináveis e solitárias (nunca o viu falar disso diante de outras pessoas) que o ouviu desfiar vezes sem conta a sua história de guerra, desfiá-la sem alarde nem orgulho, com a sua aprendida ironia de francês adoptivo, como se não lhe pertencesse a ele mas a outra pessoa, alguém que mal conhecia e que, no entanto, estimava vagamente. Por isso Bolano se lembrava dele com tanta precisão.

No Outono de 1936, pouco tempo depois de começada a guerra em Espanha, Miralles foi recrutado com apenas dezoito anos, e, no início de 37, depois de um treino militar de urgência, integrado no batalhão da Primeira Brigada Mista do Exército da República, cujo comando estava a cargo de Enrique Líster. Este, que tinha sido comandante das Milícias Antifascistas Operárias e do Quinto Regimento, era já nessa altura uma lenda viva. O Quinto Regimento tinha acabado de dissolver-se e a maior parte dos companheiros do batalhão de Miralles, que poucos meses antes, em Novembro, tinham sido decisivos para deter as tropas de Franco às portas de Madrid, tinham lutado nas suas fileiras. Antes da guerra, Miralles trabalhava como aprendiz de torneiro. Não sabia nada de política. Os pais, gente de condição muito humilde, nunca falavam dela, e os seus amigos também não. No entanto, assim que chegou à frente, tornou-se comunista. O facto de os seus companheiros, de os seus chefes e de Líster também o serem influenciou, sem dúvida, a sua decisão. Talvez o tenha influenciado mais ainda a certeza imediata de que os comunistas eram os únicos que estavam realmente dispostos a dar a cara e a ganhar a guerra.

- Suponho que era um pouco cabeça no ar - dissera-lhe Miralles numa noite, conforme recordava Bolano, referindo-se a Líster, sob cujas ordens fez toda a guerra. - Mas também apreciava muito os seus homens e era bastante corajoso, bastante espanhol. Um tipo com tomates.

- Espanhol, de tão bruto - citou Bolano, sem dizer a Miralles que citava César Vallejo, sobre quem estava, nessa altura, a escrever um romance marado.

Miralles riu-se.

- Exactamente - admitiu. - Mais tarde li muitas coisas sobre ele, contra ele na realidade. A maior parte falsas, pelo que sei. Suponho que se enganou em muitas coisas, mas também acertou em muitas outras, não é verdade?

Nos primeiros dias da guerra, Miralles sentiu simpatia pelos anarquistas, não tanto pelas suas ideias confusas ou pelo seu ímpeto revolucionário, mas por terem sido os primeiros a ir para a rua lutar contra o fascismo. No entanto, à medida que a contenda avançava e os anarquistas semeavam o caos na retaguarda, essa simpatia desvaneceu-se: tal como todos os comunistas - e isso, sem dúvida, também contribuiu para a sua aproximação -, Miralles achava que o mais importante era ganhar a guerra. Mais tarde haveria tempo para fazer a revolução. De modo que, quando no Verão de 37, a 11a Divisão, à qual pertencia, liquidou, por ordem de Líster, as colectividades anarquistas de Aragão, Miralles achou .1 operação brutal mas não injustificada. Mais tarde lutou em Belchite, em Teruel, no Ebro e, quando a frente caiu, Miralles retirou-se com o exército para a Catalunha e, no início de Fevereiro de 39, atravessou a fronteira francesa com os restantes 450 000 espanhóis que o fizeram nos últimos dias da guerra. Do outro lado esperava-o o campo de concentração de Argelès, na realidade uma praia deserta e imensa, rodeada por uma dupla cerca de arame farpado, sem barracões, sem o mais pequeno abrigo no frio selvagem de Fevereiro, com uma salubridade de atoleiro onde, em condições de vida infra-humanas, com mulheres, velhos e crianças dormindo na areia coberta de neve e geada, e homens vagueando carregados com o peso alucinado do desespero e do rancor da derrota, oitenta mil fugitivos espanhóis esperavam o fim do inferno.

- Chamavam-lhes campos de concentração - costumava dizer Miralles. - Mas não passavam de morredouros.

De modo que, algumas semanas depois de chegar a Argelès, quando apareceram pelo campo as bandeiras de alistamento da Legião Estrangeira francesa, sem hesitar um instante, Miralles alistou-se. Foi assim que chegou ao Magreb, Tunísia ou talvez Argélia, Bolano não se lembrava bem. Aí apanhou-o o início da guerra mundial. A França caiu nas mãos dos alemães em Junho de quarenta e a maior parte das autoridades francesas do Magreb puseram-se ao lado do governo-fantoche de Vichy. Mas no Magreb estava também Leclerc, o general Jacques-Philippe Leclerc. Leclerc recusou-se a aceitar as ordens de Vichy e começou a recrutar toda a gente que podia com a ideia desatinada de atravessarem, sob o seu comando, meia África e chegarem a alguma possessão ultramarina francesa que aceitasse a autoridade de De Gaulle que, de Londres, tal como ele, se revoltara contra Pétain em nome da França livre.

- Porra, Javier! - Reclinado numa cadeira do bar do Carlemany, Bolano olhava para mim trocista ou incrédulo através das lentes grossas dos seus óculos e do fumo do seu Ducados. - Miralles passou toda a vida cagando-se para Leclerc, e para si próprio, por ter dado ouvidos a Leclerc. Porque nem ele, nem nenhum dos esfarrapados a quem Leclerc enganou como se fossem um bando de parvos, fazia ideia de onde se ia meter. Era uma viagem de vários milhares de quilómetros através do deserto, tomates puros, em condições muito piores do que aquelas que Miralles tinha deixado em Argelès e quase sem munições. Ri-te do Paris-Dakar, que é uma merda de um passeio de domingo comparado com isto! É preciso ter colhões para fazer uma coisa assim!

Mas aí estavam Miralles e o seu monte de voluntários enganados, recrutados de urgência pelo proselitismo insensato de Leclerc, que, após vários meses de contramarchas suicidas pelo deserto, chegaram à província do Chade, na África Equatorial francesa, onde entraram finalmente em contacto com o pessoal de De Gaulle. Pouco depois da sua chegada ao Chade, juntamente com um destacamento inglês procedente do Cairo e na companhia de outros cinco homens da Legião Estrangeira às ordens do coronel D'Ornano, comandante em chefe das forças francesas no Chade, Miralles participou no ataque ao oásis italiano de Murzuch, no sudoeste da Líbia. Os seis membros da patrulha francesa eram, teoricamente, voluntários; a verdade é que Miralles nunca teria participado nesta incursão se não tivesse sido porque, como na sua companhia ninguém se apresentava como voluntário para ela, a tinham jogado aos ganizes (*1) e Miralles acabou perdendo. A patrulha de Miralles era sobretudo simbólica porque, depois da queda de França, era a primeira vez que um contingente francês participava numa acção bélica contra uma das potências do Eixo.

- Vê lá bem, Javier - sublinhou Bolano, um pouco perplexo, como se reprimisse o riso, como se ele próprio estivesse a descobrir a história (ou o significado da história) à medida que a contava. - Toda a Europa dominada pelos nazis e, no eu do mundo, sem que ninguém se apercebesse, os filhos da puta dos quatro mouros, o preto e o cabrão do espanhol que formavam a patrulha de D’Ornano estavam a erguer pela primeira vez em meses a bandeira da liberdade.

 

(*1) Jogar aos ganizes ou ao osso: jogo que consiste em atirar a tava ou ganiz num terreno, de forma a ficar com determinada superfície para cima. (N. da T.)

 

Tem tomates, isto! E aí estava Miralles, enganado e por uma falta de sorte do caraças, se calhar sem saber para que raio estava ali. Mas estava.

O coronel D'Ornano caiu em Murzuch. O seu lugar ao comando das forças do Chade foi ocupado por Leclerc que, incitado pelo êxito de Murzuch, se lançou de imediato contra o oásis de Cufra - o mais importante do deserto da Líbia, que estava também nas mãos dos italianos - com um punhado de voluntários da Legião Estrangeira e com um punhado de indígenas, com muito poucas armas e muito poucos meios de transporte e, a 1 de Março de 1942, após outra marcha de mais de mil quilómetros pelo deserto, Leclerc e os seus homens tomaram Cufra. E aí, naturalmente, estava Miralles. De regresso ao Chade, Miralles gozou das suas primeiras semanas de descanso em anos e, a determinada altura, diversos indícios ilusórios levaram-no a imaginar que, depois das gestas de Murzuch e Cufra, durante algum tempo a guerra ficaria bastante longe dele e dos seus companheiros. Foi nessa altura que Leclerc teve a sua segunda ideia genial em pouco tempo. Convencido, com razão, de que o destino da guerra estava a ser jogado no norte de África, onde o 8o Exército de Montgomery combatia contra o Afrika-Korps alemão, decidiu tentar juntar-se às tropas inglesas, realizando, no sentido inverso, a marcha que, do Magreb ao Chade, tinha efectuado meses antes. Outras unidades aliadas fizeram nessa altura a mesma operação, ou semelhante, mas Leclerc carecia por completo das suas infra-estruturas, de modo que Miralles e os três mil e duzentos homens que nessa altura tinha conseguido reunir tiveram de percorrer novamente, a pé e em condições ainda mais precárias do que da primeira vez, os milhares de quilómetros de deserto sem clemência que os separavam de Tripoli, onde finalmente chegaram em Janeiro de 43, precisamente quando as tropas de Rommel acabavam de ser expulsas da cidade pelo 8o de Montgomery. A coluna de Leclerc fez o resto da campanha de África com esse corpo do exército, de modo que Miralles combateu os alemães na ofensiva contra a Linha Mareth e, mais tarde, os italianos em Gabes e Sfax.

Terminada a campanha de África, a coluna Leclerc, integrada no organigrama do exército aliado, motorizou-se, convertendo-se na Divisão Blindada n° 2, tendo sido enviada para Inglaterra para o seu treino na utilização dos tanques americanos e, a 1 de Agosto de 1944, quase dois meses depois do dia D, Miralles desembarcou na praia de Utah, na Normandia, manobrando com o Corpo do Exército XV de Hislip. De imediato, a coluna Leclerc partiu para a frente e, durante os vinte e três dias que durou para Miralles a campanha de França, não deixou de lutar um só instante, sobretudo na região de Sarthe e nos combates que precederam o isolamento definitivo da bolsa de Falaise. Porque a unidade de Leclerc era, nesse momento, muito especial: não era apenas a única divisão francesa lutando em solo francês (embora estivesse cheia de africanos e de veteranos espanhóis da guerra civil; afirmam-no os nomes dos seus tanques: Guadalajara, Saragoça, Belchite), mas era também uma divisão que se nutria exclusivamente de voluntários, de tal maneira que não podia jogar com as trocas por tropas frescas com que jogava uma divisão normal e, quando um soldado caía, o seu posto ficava vago até outro voluntário vir substitui-lo. Isto explica por que razão (embora nenhum comando sensato mantenha um soldado mais de quatro ou cinco meses na primeira linha de combate, porque a tensão da frente é insuportável) Miralles e os seus companheiros da guerra civil estavam há mais de sete anos lutando sem parar, quando pisaram as praias da Normandia.

Mas a guerra ainda não tinha terminado para eles. A coluna Leclerc foi o primeiro contingente aliado a entrar em Paris; Miralles fê-lo pela Porte-de-Gentilly na noite de 24 de Agosto, apenas uma hora depois de o fazer o primeiro destacamento francês, comandado pelo capitão Dronne. Ainda não tinham decorrido quinze dias quando os homens de Leclerc, integrados agora no terceiro exército francês de De Lattre de Tassigny, entraram novamente em combate. As semanas seguintes não lhes deram um instante de tréguas: atacaram a linha Sigfried, penetraram na Alemanha, chegaram até à Áustria. Aí se acabou a aventura militar de Miralles. Aí, numa manhã ventosa de Inverno que nunca mais esqueceria, Miralles (ou alguém que estava ao pé de Miralles) pisou uma mina.

- Ficou numa papa - disse Bolano depois de fazer uma pausa para acabar de beber o chá, que já tinha arrefecido na chávena. - A guerra na Europa estava prestes a terminar e, após oito anos a combater, Miralles tinha visto morrer à sua volta montes de gente, amigos e companheiros espanhóis, africanos, franceses, de toda a parte.

Tinha chegado a sua vez... - Bolano bateu no braço da cadeira. - Tinha chegado a sua vez, mas o cabrão não morreu. Levaram-no para a retaguarda, feito num oito, e consertaram-no o melhor que puderam. Por incrível que pareça, sobreviveu. E, passado pouco mais de um ano, aí temos Miralles convertido num cidadão francês e com uma pensão vitalícia.

Terminada a guerra e recuperado das suas feridas, Miralles foi viver para Dijon, ou para um sítio nos arredores de Dijon, Bolano não se lembrava bem. Mais de uma vez perguntara a Miralles porque fora viver para Dijon (ou para os arredores de Dijon), e ele às vezes respondia-lhe que fora para lá viver como podia ter ido viver para qualquer outro lado, e outras vezes dizia-lhe que tinha ido viver para aí porque, durante a guerra, prometera a si próprio que, se conseguisse sobreviver, ia passar o resto da vida bebendo bom vinho, «e até hoje cumpri», acrescentava, batendo na sua barriga de Buda, nua e feliz. Durante o período em que se relacionou com Miralles, Bolano pensava que nenhuma de essas duas razões era a verdadeira; agora, pensava que talvez ambas o fossem. A verdade é que Miralles se casou em Dijon (ou nos arredores de Dijon) e que em Dijon (ou nos arredores de Dijon) teve uma filha. Chamava-se Maria. Bolano conheceu-a no parque de campismo, porque ao princípio ia todos os Verões, com o pai. Parecia uma rapariga fina, séria e forte, «totalmente francesa», embora com o pai falasse sempre um castelhano pejado de «r» guturais. Lembrava-se também que Miralles, que enviuvara pouco depois de ela nascer, se babava por ela. Era Maria quem governava a casa, quem dava as ordens que Miralles obedecia com uma espécie de humildade envergonhada de veterano habituado a obedecer às ordens, e quem, quando a conversa com os amigos se prolongava demasiado no bar do parque de campismo e o vinho começava a tornar pastosa a boca de Miralles e a entaramelar-lhe as frases, o agarrava pelo braço e o levava até à roulotte, submisso e trôpego, com o seu olhar turvo de bebedor e o seu sorriso culpado de pai orgulhoso. Maria, no entanto, durou pouco tempo, dois anos quanto muito (dois dos quatro em que Bolano trabalhou no parque de campismo) e Miralles começou a chegar sozinho ao Estrella de Mar. Foi a partir dessa altura que Bolano e ele se tornaram, de facto, mais íntimos. Foi também quando Miralles começou a ir para a cama com Luz.

Luz era uma prostituta que, nalguns Verões, desenvolvia a sua actividade pelo parque de campismo. Bolano lembrava-se dela bastante bem: morena, corpulenta, bastante jovem e bonita, com uma generosidade natural e bom senso imperturbável; talvez só trabalhasse como puta de vez em quando, conjecturava Bolano.

- Miralles ficou preso a ela da pior maneira - acrescentou. - O cabrão ficava tristíssimo e embebedava-se quando Luz não estava. Bolano lembrou-se então de que, numa noite do último Verão em que esteve com Miralles, enquanto fazia a primeira ronda, já de madrugada, ouviu uma música muito ténue que vinha de uma extremidade do parque de campismo, justamente ao lado de uma vala que o isolava de um bosque de pinheiros. Mais por curiosidade do que para exigir que desligassem a música - estava tão baixa que não podia estorvar o sono de ninguém - aproximou-se silenciosamente e viu um casal dançando abraçado sob o toldo de uma roulotte. Na roulotte, reconheceu a de Miralles; no casal, Miralles e Luz; na música, um pasodoble muito triste e muito antigo (ou foi isso que lhe pareceu nessa altura) que muitas vezes ouvira Miralles cantarolar entre dentes. Antes que eles pudessem pressentir a sua presença, Bolano escondeu-se atrás de outra roulotte e ficou a observá-los durante alguns minutos. Dançavam muito direitos, muito sérios, em silêncio, descalços na erva, envoltos na luz irreal da lua e de um velho candeeiro a gás, e a Bolano chamou-lhe a atenção sobretudo o contraste entre a solenidade dos seus movimentos e as suas roupas, Miralles em fato de banho, como sempre, envelhecido e barrigudo mas marcando o ritmo com uma excelência segura de dançarino de bairro, conduzindo Luz que, talvez por vestir uma blusa branca que lhe chegava aos joelhos e deixava entrever o seu corpo nu, parecia flutuar como um fantasma na frescura da noite. Bolano disse que naquele momento, espreitando atrás de uma roulotte aquele velho veterano de todas as guerras, com o corpo cosido de cicatrizes e a alma suspensa por uma puta ocasional que não sabia dançar um pasodoble, sentiu uma emoção estranha e, talvez como um reflexo falaz dessa emoção, numa volta do casal pareceu-lhe ver um brilho nos olhos de Miralles, como se nesse instante ele se tivesse posto a chorar ou tentasse em vão conter as lágrimas ou estivesse a chorar há muito tempo, e então soube ou calculou que a sua presença ali tinha alguma coisa de obsceno, que estava roubando aquela cena a alguém e que tinha de se ir embora, e soube, também confusamente, que o seu tempo no parque de campismo se tinha esgotado, porque já tinha aprendido ali tudo o que podia aprender. De modo que acendeu um cigarro, olhou pela última vez para Luz e para Miralles dançando sob o toldo, deu meia volta e continuou a sua ronda.

- No fim daquele Verão, despedi-me de Miralles até ao ano seguinte, como sempre - disse Bolano após outro longo silêncio, como se falasse consigo próprio, ou antes, com alguém que estava a ouvi-lo mas que não era eu. No outro lado das vidraças do Carlemany já era noite; à minha frente tinha a expressão fechada ou ausente de Bolano e uma mesinha com vários copos vazios e um cinzeiro repleto de beatas. Tínhamos pedido a conta. - Mas eu já sabia que no ano seguinte não voltaria ao parque de campismo. E não voltei. Também não voltei a ver Miralles.

Insisti em acompanhar Bolano à estação e, enquanto ele comprava um maço de Ducados para a viagem, perguntei-lhe se, em todos estes anos, não tinha sabido nada de Miralles.

- Nada - respondeu. - Perdi-lhe o rasto, como a tanta gente. Sabe-se lá onde andará agora. Se calhar ainda vai ao parque de campismo, mas não acredito. Deve ter mais de oitenta anos e duvido muito que esteja para isso. Talvez continue a viver em Dijon. Ou talvez tenha morrido, na realidade suponho que é o mais provável, não é verdade? Porque perguntas?

- Por nada - respondi.

Mas não era verdade. Nessa tarde, enquanto ouvia com um interesse crescente a história fabulosa de Miralles pensava que depressa a leria num dos livros fabulosos de Bolano, mas quando cheguei a casa, depois de me despedir do meu amigo e de passear pela cidade iluminada por candeeiros e montras, talvez levado pela exaltação dos gin-tónicos, eu já tinha concebido a esperança de que Bolano nunca escrevesse aquela história: ia escrevê-la eu. Durante toda a noite estive dando voltas ao assunto. Enquanto preparava o jantar, enquanto jantava, enquanto lavava os pratos do jantar, enquanto bebia um copo de leite olhando sem ver para a televisão, imaginei um princípio e um fim, organizei episódios, inventei personagens, mentalmente escrevi e reescrevi muitas frases. Deitado na cama, acordado e às escuras (só os números do despertador digital davam um brilho avermelhado às trevas cerradas do quarto de dormir), a cabeça fervia-me e, a determinada altura, de uma forma inevitável, porque a idade e os fracassos imprimem prudência, tratei de refrear o entusiasmo recordando-me do último descalabro. Foi nessa altura que o pensei. Pensei no fuzilamento de Sánchez Mazas e no facto de Miralles ter sido, durante toda a guerra civil, um soldado de Líster, de ter estado com ele em Madrid, em Aragão, no Ebro, na retirada da Catalunha. «Porque não no Collell?», pensei. E, naquele momento, com a enganosa mas esmagadora lucidez da insónia, como quem encontra por um acaso inverosímil, e quando já tinha abandonado a busca (porque uma pessoa nunca encontra o que procura, mas o que a realidade lhe dá), a peça que faltava para que um mecanismo completo mas incapaz desempenhe a função para a qual foi idealizado, ouvi-me murmurar no silêncio sem luz do quarto de dormir: «É ele».

Saltei da cama, descalço, e, com três passadas fui até à sala de jantar, peguei no telefone, marquei o número de Bolano. Estava à espera que atendessem quando vi que o relógio de parede marcava três e meia. Hesitei um instante, depois desliguei.

Julgo que consegui adormecer pela madrugada. Antes das nove telefonei novamente para Bolano. Atendeu-me a mulher: Bolano ainda estava na cama. Só consegui falar com ele depois do meio-dia, do jornal. Quase à queima-roupa perguntei-lhe se tinha intenções de escrever sobre Miralles. Respondeu-me que não. Depois perguntei-lhe se alguma vez ouvira Miralles mencionar o santuário do Collell; Bolano fez-me repetir o nome.

- Não - acabou por dizer. - Não, que eu me lembre.

- E o nome de Rafael Sánchez Mazas?

- O escritor?

- Sim - disse. - O pai de Ferlosio. Conhece-lo?

- Li alguma coisa dele, bastante boa, por sinal. Mas, por que razão iria Miralles mencioná-lo? Nunca falei com ele de literatura. E, além disso, vem a que propósito, este interrogatório?

Já me preparava para lhe responder com uma evasiva quando reflecti a tempo que, só através de Bolano conseguiria chegar a Miralles. Expliquei-lhe rapidamente.

- Porra, Javier! - exclamou Bolano. - Aí tens um romance do caraças. Eu já calculava que estavas a escrever.

- Não estou a escrever. - Contraditoriamente, acrescentei: - E não é um romance. É uma história com factos e personagens reais. Um relato real.

- É igual - replicou Bolano. - Todos os bons relatos são relatos reais, pelo menos para quem os lê, que é a única coisa que importa. De qualquer forma, o que não entendo é como podes ter tanta certeza de que Miralles é o miliciano que salvou Sánchez Mazas.

- Quem te disse que a tenho? Nem sequer tenho a certeza de que ele tenha estado no Collell. A única coisa que digo é que Miralles pode ter lá estado e que, portanto, pode ter sido o miliciano.

- Pode ter sido - murmurou Bolano, céptico. - Mas o mais provável é não ser. Em todo o caso...

- Em todo o caso trata-se de encontrá-lo e de tirar dúvidas - atalhei-o, adivinhando o final da sua frase: «...se não é ele, inventas que é ele». - Telefonava-te para isso. A pergunta é: tens alguma ideia de como localizar Miralles?

Resfolegando, Bolano lembrou-me de que não via Miralles há vinte anos, e que não conservava nenhuma amizade dessa altura, alguém que pudesse... Parou em seco e, sem qualquer explicação, pediu-me que esperasse um momento. Esperei. O momento prolongou-se tanto que pensei que Bolano se tinha esquecido de mim ao telefone.

- Estás com sorte, sacana - ouvi-o passado um bocado. Depois ditou-me um número de telefone. - É do Estrella de Mar. Já nem me lembrava de que o tinha, mas guardo todas as minhas agendas daqueles anos. Telefona e pergunta por Miralles.

- Qual é o seu nome próprio?

- Antoni, acho. O António. Não sei. Toda a gente o tratava por Miralles. Telefona e pergunta por ele. Na minha época tínhamos um registo com o nome e a direcção das pessoas que passavam pelo parque de campismo. Agora, com certeza fazem o mesmo... Se é que o Estrella de Mar ainda existe, claro.

Pousei o auscultador. Levantei o auscultador. Marquei o número de telefone que Bolano me dera. O Estrella de Mar ainda existia, e já tinha aberto as suas portas para a temporada de Verão. Perguntei à voz feminina que me atendeu se uma pessoa chamada Antoni ou António Miralles estava instalada no parque; após alguns segundos, durante os quais ouvi um teclar remoto de dedos velozes, disse-me que não. Expliquei o caso: necessitava urgentemente da direcção dessa pessoa, que tinha sido cliente assíduo do Estrella de Mar há vinte anos. A voz endureceu dizendo não ser norma da casa dar as moradas dos clientes e, enquanto eu ouvia novamente o teclar nervoso dos dedos, informou-me de que, há dois anos, o arquivo do parque de campismo tinha sido informatizado, conservando unicamente os dados relativos aos oito últimos anos. Insisti. Disse que talvez Miralles tivesse continuado a ir ao parque até essa data. «Garanto-lhe que não», disse a rapariga. «Porquê?», disse eu. «Porque não consta do nosso arquivo. Acabei de verificar. Há dois Miralles, mas nenhum deles se chama António. Ou Antoni.» «Algum deles se chama Maria?» «Também não.»

Nessa manhã, excitadíssimo e morto de sono, contei a Conchi, enquanto almoçávamos num self-service, a história de Miralles, expliquei-lhe o erro de perspectiva que tinha cometido ao escrever Soldados de Salamina e garanti-lhe que Miralles (ou alguém como Miralles) era precisamente a peça que faltava para que o mecanismo do livro funcionasse. Conchi parou de comer, semicerrou as pálpebras e disse com resignação:

- Em boa hora cagou Lucas!

- Lucas? Quem é Lucas?

- Ninguém - disse. - Um amigo. Cagou depois de morto e morreu por não cagar.

- Conchi, por favor... estamos a almoçar. Além disso, o que tem a ver esse Lucas com Miralles?

- De vez em quando fazes-me lembrar Cérebro, querido - suspirou Conchi. - Se não fosses um intelectual, diria que eras tonto. Não te disse desde o princípio que o que tinhas a fazer era escrever sobre um comunista?

- Conchi, parece-me que não entendeste bem o que...

- Claro que entendi bem! - interrompeu-me. - Os desgostos que teríamos evitado se fizesses caso do que ando a dizer desde o princípio! E sabes o que te digo?

- O quê? - perguntei, com algum receio.

A cara de Conchi iluminou-se de súbito. Olhei para o seu sorriso sem medo, para o seu cabelo oxigenado, para os seus olhos muito abertos, alegres, pretos. Conchi ergueu o seu copo de vinho carrascão.

- Que nos vai sair um livro do caraças!

Chocámos os copos num brinde e, por um momento, senti a tentação de esticar o pé para verificar se ela tinha as cuecas vestidas; por um momento pensei estar apaixonado por Conchi. Prudente e feliz, disse:

- Ainda não encontrei Miralles.

- Encontrá-lo-emos - disse Conchi, absolutamente convicta. - Onde te disse Bolano que ele vivia?

- Em Dijon - disse. - Ou nos arredores de Dijon.

- Então é por aí que temos de começar a procurar.

À noite telefonei para o serviço informativo internacional da Telefónica. A telefonista que me atendeu disse que nem na cidade de Dijon nem em todo o distrito 21, a que Dijon pertencia, havia alguém chamado Antoni ou António Miralles. Perguntei então se havia alguma Maria Miralles; a telefonista disse-me que não. Perguntei se havia algum Miralles. Surpreendido, ouvi-a dizer que havia cinco: um na cidade de Dijon e quatro em povoações do distrito: um em Longuic, outro em Marsannay, outro em Nolay e outro em Genlis. Pedi-lhe que me desse os seus nomes e números de telefone. «Impossível», respondeu-me. «Só posso informá-lo de um nome e de um número por chamada. Terá de telefonar mais quatro vezes para lhe podermos dar os quatro que faltam.»

Durante os dias seguintes telefonei ao Miralles que vivia em Dijon (Laurent, chamava-se) e aos quatro restantes, que se chamavam Laura, Danielle, Jean-Marie e Bienvenido. Dois deles (Laurent e Danielle) eram irmãos e todos, excepto Jean-Marie, falavam correctamente o castelhano (ou arranhavam-no) porque procediam de famílias de origem espanhola, mas nenhum deles tinha qualquer parentesco com Miralles ou tinha ouvido falar dele.

Não me rendi. Talvez levado pela segurança cega que Conchi me inculcara, telefonei para Bolano. Pu-lo ao corrente das minhas pesquisas, perguntei-lhe se não se lembraria de outra pista por onde pudéssemos continuar a busca. Não se lembrava de nenhuma.

- Terás de inventá-la - disse.

- O quê?

- A entrevista com Miralles. É a única maneira de conseguires terminar o romance.

Foi naquele momento que recordei o relato do meu primeiro livro, a que Bolano fizera referência na nossa primeira entrevista, no qual um homem leva outro a cometer um crime para poder acabar o seu romance, e julguei entender duas coisas. A primeira espantou-me; a segunda, não. A primeira é que me importava muito menos acabar o livro do que conseguir falar com Miralles; a segunda é que, ao contrário do que Bolano tinha julgado até esse momento (contrariamente ao que eu julgava quando escrevi o meu primeiro livro), eu não era realmente um escritor porque, se o fosse, ter-me-ia importado muito menos falar com Miralles do que acabar o livro. Desistindo de lembrar novamente a Bolano que o meu livro não pretendia ser um romance mas um relato real e que inventar a entrevista com Miralles equivalia a trair a sua natureza, suspirei:

-'Tá.

A resposta era lacónica, não afirmativa, mas Bolano não a entendeu assim.

- É a única maneira - repetiu, certo de me ter convencido. - Além do mais, é a melhor. A realidade atraiçoa-nos sempre; o melhor é não lhe dar tempo e atraiçoá-la primeiro. O Miralles real vai decepcionar-te, inventa-o que é melhor. Com certeza o inventado é mais real do que o real. A este já não vais encontrá-lo. Sabe-se lá onde andará: pode estar morto, ou num lar, ou na casa da filha. Esquece-te dele.

- O melhor será esquecermo-nos de Miralles - disse nessa noite a Conchi, depois de ter sobrevivido a uma viagem arrepiante até à sua casa de Quart e a uma cambalhota de urgência na sala, sob o olhar devoto da Virgem de Guadalupe e o olhar melancólico dos dois exemplares dos meus livros que a escoltavam. - Sabe-se lá onde andará: pode estar morto, num lar, ou em casa da filha.

- Procuraste a filha dele? - perguntou Conchi.

- Sim. Mas não a encontrei.

Entreolhámo-nos por um segundo, dois, três. Depois, sem palavras, levantei-me, dirigi-me ao telefone, marquei o número do serviço de informações internacionais de Telefónica. Disse à telefonista (creio que reconheci a sua voz; creio que ela reconheceu a minha) que estava à procura de uma pessoa que vivia num lar de idosos de Dijon e perguntei-lhe quantos lares de idosos havia em Dijon. «Ufa», disse, após uma pausa. «Um monte deles».

«Quantos são um monte?» «Trinta é picos. Talvez quarenta.» «Quarenta lares de idosos!» Olhei para Conchi que, sentada no chão e coberta apenas por uma camisola, tentava sufocar o riso. «Mas será que nessa cidade só há velhos?» «O computador não esclarece se são lares de idosos», referiu a telefonista. «Diz apenas que são lares». «E, nesse caso, quantos existem no distrito?» Após outra pausa disse: «Mais do dobro». Com um leve mas perceptível sarcasmo, acrescentou: «Só posso informá-lo de um número por chamada. Começo a ditá-los por ordem alfabética?». Pensei que esse era o fim da minha busca: verificar se Miralles vivia em algum desses oitenta e tantos lares podia levar meses e arruinar-me; isto sem contar com o facto de eu não dispor do mais pequeno indício de que ele vivesse em qualquer deles. Menos ainda de que fosse ele o soldado de Líster de que eu andava à procura. Olhei para Conchi, que olhava para mim com uma expressão interrogativa, com os dedos tamborilando de impaciência nos joelhos nus. Olhei para os meus livros junto da imagem da Virgem de Guadalupe e, não sei porquê, pensei em Daniel Angelats. Então, como se estivesse a vingar-me de alguém, disse: «Sim. Por ordem alfabética».

Foi assim que começou uma peregrinação telefónica que ia durar mais de um mês de consultas quotidianas, primeiro pelos lares da cidade de Dijon e depois pelos de todo o distrito. O procedimento era sempre o mesmo. Telefonava para o serviço informativo internacional, pedia o nome e o número de telefone seguintes da lista (Abrioux, Bagatelle, Cellerier, Chambertin, Chanzy, Éperon, Fontainemont, Kellerman, Lyautey foram os primeiros), telefonava para o lar, perguntava à telefonista da central por Monsieur Miralles, respondiam-me que ali não havia nenhum Monsieur Miralles, voltava a telefonar para o serviço informativo internacional, pedia outro número de telefone e assim até me cansar. E, no dia seguinte (ou no outro, porque às vezes não tinha tempo nem vontade de me meter nessa roleta obsessiva) voltava à carga. Conchi ajudava-me. Felizmente. Agora penso que, se não fosse ela, teria abandonado rapidamente esta busca. Telefonávamos quando podíamos, quase sempre às escondidas, eu da redacção do jornal e ela do estúdio da televisão. Depois, todas as noites, discutíamos os acontecimentos do dia e trocávamos os nomes dos lares que puséramos de parte e, nessas discussões, compreendi que aquela monotonia de telefonemas diários à procura de um homem que não conhecíamos e que nem sabíamos se estava vivo, era para Conchi uma aventura inesperada e excitante; quanto a mim, contagiado pelo ímpeto detectivesco e pela convicção sem matizes de Conchi, ao princípio pus mãos à obra com entusiasmo. Mas depois de ter verificado os trinta primeiros lares, comecei a desconfiar que o fazia mais por inércia ou por teimosia (ou para não decepcionar Conchi) que por albergar ainda alguma esperança de encontrar Miralles.

Mas numa noite aconteceu o milagre. Eu tinha acabado de redigir um artigo e estávamos a fechar a edição do jornal quando iniciei a minha ronda de telefonemas marcando o número da Résidence de Nimphéas, de Fontaine-Lès-Dijon, e, mal perguntei por Miralles, em vez da habitual negativa da telefonista da central, respondeu-me um silêncio. Julguei que tinha desligado e já me preparava para fazer o mesmo, rotineiramente, quando uma voz masculina me travou:

- Estou?

Repeti a pergunta que acabara de fazer à telefonista e que, há mais de dez dias de périplo insensato, fazíamos por todos os lares do distrito 21.

- Miralles ao telefone - disse o homem em castelhano. A surpresa não me fez perceber que o meu francês rudimentar me traíra.

- Com quem falo?

- É Antoni Miralles? - perguntei com um fio de voz.

- Antoni ou António, é indiferente - disse. - Mas trate-me por Miralles, toda a gente me chama Miralles. Com quem estou a falar?

Agora parece-me incrível, mas, sem dúvida porque no fundo nunca acreditei que acabaria falando com ele, não tinha preparado uma maneira de me apresentar a Miralles.

- O senhor não me conhece, mas há muito tempo que o procuro - improvisei, sentindo um aperto na garganta e um tremor na voz. Para dissimulá-los, disse apressadamente o meu nome e de onde lhe telefonava. Consegui ainda acrescentar: - Sou amigo de Roberto Bolano.

- Roberto Bolano?

- Sim, do parque de campismo Estrella de Mar - expliquei.

- Em Castelldefells. Há anos o senhor e ele...

- Claro! - A interrupção provocou-me mais gratidão do que alívio. - O vigilante! Já quase me esquecera dele!

Enquanto Miralles falava dos seus Verões no Estrella de Mar e da sua amizade com Bolano, pus-me a pensar numa maneira de lhe pedir uma entrevista. Decidi evitar os rodeios e abordar directamente a questão. Miralles não parava de falar de Bolano.

- E o que é feito dele? - perguntou.

- É escritor - respondi. - Escreve romances.

- Já nessa altura os escrevia. Mas ninguém queria publicá-los.

- Agora é diferente - disse. - É um escritor de sucesso.

- A sério? Fico contente com isso. Sempre achei que era um tipo de talento, além de um mentiroso consumado. Mas suponho que é preciso ser-se um mentiroso consumado para se ser um bom romancista, não é verdade? - Ouvi um ruído curto, seco e remoto, como uma gargalhada. - Bom, em que posso servi-lo?

- Estou a investigar um episódio da Guerra Civil. O fuzilamento de alguns presos nacionalistas no santuário de Santa Maria del Collell, perto de Banyoles. Aconteceu no fim da guerra. - Em vão esperei pela reacção de Miralles. Acrescentei, já lançado: - Você esteve lá, não é verdade?

Durante os segundos intermináveis que se seguiram pude ouvir a respiração arenosa de Miralles. Exultante e em silêncio, compreendi que tinha acertado no alvo. Quando voltou a falar, a voz de Miralles soou mais obscura e mais lenta: era outra.

- Foi o que Bolano lhe disse?

- Deduzi-o eu. Bolano contou-me a sua história. Contou-me que fez toda a guerra com Líster, até se ter retirado com ele pela Catalunha. Alguns soldados de Líster estiveram no Collell nessa altura, justamente quando se deu o fuzilamento. Logo, você pode ter sido um deles. Foi, não foi?

Miralles fez outro silêncio; tornei a ouvir a sua respiração arenosa e, depois, um estalo: pensei que tinha acendido um cigarro. Uma longínqua conversa em francês cruzou fugazmente a linha. Como o silêncio se prolongava, disse para comigo que tinha cometido o erro de ser demasiado brusco, mas antes de poder tentar rectificá-lo acabei por ouvir:

- Você disse-me que era escritor, não é verdade?

- Não - respondi. - Sou jornalista.

- Jornalista. - Outro silêncio. - E pensa escrever sobre isso? Acha, deveras, que a algum dos leitores do seu jornal vai interessar uma história que aconteceu há sessenta anos?

- Não a escreveria para o jornal. Estou a escrever um livro. Olhe, talvez eu me tenha explicado mal. Só quero conversar um pouco consigo, para que me dê a sua versão, para poder contar o que realmente aconteceu, ou a sua versão do que aconteceu. Não se trata de pedir contas a ninguém, apenas tentar entender...

- Entender? - interrompeu-me. - Não me faça rir! Você é que não entende nada. Uma guerra é uma guerra. E não há mais nada para entender. Eu sei disso muito bem, passei três anos dando tiros por Espanha, sabe? E acha que alguém me agradeceu?

- Precisamente por isso...

- Cale-se e oiça, jovem - cortou. - Responda-me: acha que alguém me agradeceu? Respondo-lhe eu: ninguém. Nunca ninguém me agradeceu ter perdido a juventude a lutar pela merda do país. Ninguém. Nem uma única palavra. Nem um gesto. Nem uma carta. Nada. E agora aparece-me você, sessenta anos depois, com a sua merda de jornalzinho, ou com o seu livro, ou com o que quer que seja, perguntando-me se participei do fuzilamento. Porque não me acusa directamente de assassinato?

«De todas as histórias da Histórias», pensei enquanto Miralles falava, «a mais triste é a de Espanha, porque acaba mal». Depois pensei: «Acaba mal?» Pensei: «É uma grande merda para a Transição!» Disse:

- Lamento que me tenha interpretado mal, senhor Miralles...

- Miralles, porra, Miralles! - bramou Miralles. - Nunca ninguém na merda da minha vida me chamou senhor Miralles. Chamo-me Miralles, só Miralles. Entendeu?

- Sim, senhor Miralles. Quer dizer, Miralles. Mas repito-lhe que há aqui um mal-entendido. Se me deixar falar, explicá-lo-ei. - Miralles não disse nada. Prossegui: - Há algumas semanas Bolano contou-me a sua história. Nessa altura eu tinha deixado de escrever um livro sobre Rafael Sánchez Mazas. Já ouviu falar dele?

Miralles demorou a responder, mas não por ter dúvidas.

- Claro. Refere-se ao falangista, não é verdade? Ao amigo de José António.

- Exactamente. Foi uma das duas pessoas que escapou ao fuzilamento do Collell.

O meu livro era sobre ele, sobre o seu fuzilamento, sobre as pessoas que o ajudaram depois a sobreviver. E também sobre um soldado de Líster que lhe salvou a vida.

- E qual é o meu papel em tudo isso?

- O outro fugitivo do fuzilamento deixou um testemunho do facto, num livro intitulado Eu fui Assassinado pelos Vermelhos.

- Belo título.

- Sim, mas o livro não está mau, porque conta em pormenor o que aconteceu no Collell. O que não tenho é nenhuma versão republicana do que aconteceu ali e, sem ela, o meu livro fica incompleto. Quando Bolano me contou a sua história pensei que talvez o senhor também tivesse estado no Collell aquando do fuzilamento e pudesse dar-me a sua versão dos factos. Isso é tudo o que pretendo: conversar um pouco consigo e recolher a sua versão. Nada mais. Prometo-lhe que não publicarei uma linha sem primeiro o consultar.

Ouvi novamente a respiração de Miralles, entrecortada pela confusa conversa em francês que cruzava outra vez a linha. Porque a sua voz voltou a ser novamente a do princípio, quando Miralles voltou a falar compreendi que a minha explicação tinha conseguido apaziguá-lo.

- Como conseguiu o meu número de telefone? Expliquei-lhe. Miralles riu-se com gosto.

- Olhe, Cercas - disse depois. - Ou tenho de tratá-lo por senhor Cercas?

- Trate-me por Javier.

- Bom, Javier então. Sabe quantos anos acabo de fazer? Oitenta e dois. Sou um homem velho e estou cansado. Tive uma mulher e já não a tenho. Tive uma filha e já não a tenho. Ainda estou a recuperar de uma embolia. Não me resta muito tempo e a única coisa que quero é que me deixem vivê-lo em paz. Acredite, essas histórias já não interessam a ninguém, nem sequer àqueles que as viveram. Houve um tempo que sim, mas já não. Alguém decidiu que era preciso esquecê-las e, sabe o que lhe digo? O mais provável é que tivesse razão. Além disso, metade delas são mentiras involuntárias e a outra metade, mentiras voluntárias. Você é jovem. Creia que lhe agradeço o seu telefonema, mas é melhor dar-me ouvidos: deixe-se de tontices e dedique o seu tempo a outra coisa.

Tentei insistir, mas foi inútil. Antes de desligar, Miralles pediu-me que desse lembranças a Bolano. «Diga-lhe que nos vemos em Stockton», disse. «Onde?», perguntei. «Em Stockton», repetiu. «Diga-o. Ele entenderá».

Conchi explodiu de alegria quando lhe contei por telefone que tínhamos encontrado Miralles. Depois explodiu de indignação quando lhe disse que não ia encontrar-me com ele.

- Depois do que fizemos? - gritou.

- Ele não quer, Conchi. Tenta compreender.

- E a ti que te importa que ele não queira!

- Conchi, por favor...

Discutimos. Ela tentou convencer-me. Eu tentei convencê-la.

- Ouve, faz uma coisa - acabou por dizer. - Telefona a Bolano. A mim nunca me fazes caso, mas ele convencer-te-á. Se não lhe telefonas tu, telefono-lhe eu.

Em parte porque já tinha decidido e em parte para evitar o telefonema de Conchi, telefonei a Bolano. Contei-lhe a conversa que tinha tido com Miralles e a recusa taxativa do velho à minha proposta de o visitar. Bolano não disse nada. Então lembrei-me da mensagem que Miralles enviara para ele e dei-lha.

- Velho do diabo - resmungou Bolano, com a voz ensimesmada e trocista. - Ainda se lembra.

- O que significa?

- Stockton?

- Que mais?

Após uma pausa demasiado longa, Bolano respondeu à pergunta com outra pergunta:

- Viste Fat City - respondi-lhe que sim. - Miralles gostava muito de cinema - prosseguiu Bolano. - Via-o na televisão que instalava debaixo do toldo da roulotte; algumas vezes ia a Castelldefells e, numa tarde, papava três filmes, o cartaz todo, era-lhe indiferente o que passassem. Eu aproveitava os meus poucos dias livres para ir a Barcelona, mas uma vez encontrei-o em Castelldefells, tomámos juntos uma horchata (*2) e depois ele convidou-me a acompanhá-lo ao cinema. Como não tinha nada melhor para fazer,

 

(*2) Horchata: bebida não alcoólica feita com água, açúcar e tubérculo de junca, bastante consumida em Espanha. (N. da T.)

 

acompanhei-o. Agora pode parecer mentira que numa zona de veraneio passassem um filme de Huston, mas nessa altura aconteciam coisas destas. Sabes o que significa Fat City} Uma coisa do estilo Uma Cidade de Oportunidades, ou Uma Cidade Fantástica ou, melhor ainda, Grande Cidade! Que grande sarcasmo! Porque Stockton, que é a cidade do filme, é uma cidade atroz, onde não há oportunidades para ninguém, excepto para o fracasso. Para o mais absoluto e total fracasso, na realidade. É curioso: em quase todos os filmes de pugilistas o que se conta é a história da ascensão e queda do protagonista, de como atinge o êxito e depois cai no fracasso e no esquecimento. Aqui não. Em Fat City nenhum dos dois protagonistas - um velho pugilista e um pugilista jovem - vislumbra sequer a possibilidade de êxito, nem nenhum daqueles que os rodeiam, como aquele pugilista mexicano velho e acabado, não sei se te lembras dele, que urina sangue antes de subir ao ringue, e que entra e sai sozinho do estádio, quase às escuras. Bom, nessa noite, quando o filme acabou, fomos até um bar, sentámo-nos ao balcão, pedimos cerveja e ficámos ali a conversar e a beber até muito tarde, diante de um grande espelho que nos reflectia e reflectia o bar, tal como os dois pugilistas de Stockton no fim de Fat City. E creio que foi essa coincidência e as cervejas o que fez Miralles dizer a determinada altura que nós íamos acabar da mesma forma, fracassados, sós e meio apatetados numa cidade atroz, urinando sangue antes de entrarmos no ringue para lutar até à morte com a nossa própria sombra num estádio vazio. Miralles não disse isso, claro, as palavras ponho-as eu agora, mas disse uma coisa parecida. Nessa noite rimo-nos muito e quando chegámos ao parque de campismo, já de madrugada, e vimos que estava toda a gente a dormir e que o bar estava fechado, continuámos a conversar e a rir com aquele riso amarelo que as pessoas têm nos enterros ou em sítios assim, tu sabes, e quando já nos tínhamos despedido e eu me dirigia para a minha tenda, aos tombos na escuridão, Miralles assobiou-me, eu voltei-me e vi-o, gordo e iluminado pela luz fraca de um candeeiro, direito e com o punho levantado e, antes de explodir novamente o seu riso reprimido, ouvi-o sussurrar no silêncio adormecido do parque: «Bolano, vemo-nos em Stockton!» E, a partir daquele dia, cada vez que nos despedíamos até ao dia seguinte ou até ao Verão seguinte, Miralles acrescentava sempre: «Vemo-nos em Stockton!».

Ficámos em silêncio. Suponho que Bolano esperava algum comentário da minha parte. Eu não podia fazer nenhum comentário, porque estava a chorar.

- Bom - disse Bolano. - E agora, o que pensas fazer?

- Porreiro! - gritou Conchi quando lhe dei a notícia. - Já sabia que Bolano ia convencer-te! Quando partimos?

- Não vamos os dois - disse, pensando que a presença de Conchi talvez tornasse mais fácil a entrevista com Miralles. - Eu vou sozinho.

- Não digas asneiras! Amanhã de manhã agarramos no carro e numa palhetada pomo-nos em Dijon.

- Já decidi - insisti, cortante, pensando que uma viagem no Volkswagen de Conchi era mais arriscada do que a marcha da coluna Leclerc do Magreb até ao Chade. - Vou de comboio.

De modo que no sábado à tarde despedi-me de Conchi na estação. («Dá lembranças da minha parte ao senhor Miralles», disse-me. «Chama-se Miralles, Conchi», corrigi-a. «Apenas Miralles.») e apanhei um comboio para Dijon como quem apanha um comboio para Stockton. Era um comboio-hotel, um comboio nocturno em cujo restaurante, de cadeiras fofas de couro e janelas lambidas pela velocidade da noite, me lembro de ter estado até muito tarde bebendo, fumando e pensando em Miralles e, às cinco da manhã, arrasado, sedento e com sono, desci na estação subterrânea de Dijon e, depois de andar por plataformas desertas e iluminadas por globos de luz esquelética, apanhei um táxi que me deixou no Victor Hugo, um hotelzinho familiar que fica na Rue des Fleurs, não longe do centro. Subi para o meu quarto, bebi da torneira um grande gole de água, tomei duche e deitei-me. Tratei, em vão, de dormir. Pensava em Miralles, a quem veria dentro em pouco, e em Sánchez Mazas, a quem nunca veria. Pensava no seu único encontro conjuntural, há sessenta anos, a quase mil quilómetros de distância, sob a chuva de uma manhã violenta no bosque. Pensava que depressa saberia se Miralles era o soldado de Líster que salvou Sánchez Mazas, e que saberia também o que pensou quando o olhou nos olhos e porque o salvou. E pensava que, nesse momento, eu talvez compreendesse finalmente um segredo essencial. Pensava tudo isso e, pensando-o, comecei a ouvir os primeiros ruídos da manhã (passos no corredor, o trinar de um pássaro, o motor apressado de um carro) e a pressentir o amanhecer empurrando os postigos da janela.

Levantei-me, abri a janela e os postigos. O sol indeciso da manhã iluminava um jardim de laranjeiras e, mais além, uma rua aprazível delimitada por casas com telhados de duas águas. Só o canto dos pássaros quebrava aquele silêncio de aldeia. Vesti-me e tomei o pequeno-almoço na sala de jantar do hotel. Depois, como pensei que era muito cedo para ir à Résidence de Nimphéas, decidi dar um passeio. Nunca tinha estado em Dijon e apenas quatro horas antes, enquanto percorria de táxi as suas ruas ladeadas de edifícios como cadáveres de animais pré-históricos e olhava ensonado as suas fachadas senhoriais e tremeluzentes de anúncios luminosos, tinha-me parecido uma dessas imponentes cidades medievais que de noite parecem fantasmagóricas e só nessa altura mostram o seu verdadeiro rosto, o esqueleto apodrecido do seu antigo poderio. Agora, pelo contrário, assim que saí da Rue des Fleurs e, caminhando pela Rue des Roses e pela Rue Desvoges, cheguei à Place D'Arcy - que a essa hora já fervilhava de carros circulando em volta do Arco do Triunfo -, pareceu-me uma dessas cidades tristes da província francesa onde os maridos tristes de Simenon cometem os seus crimes tristes, uma cidade sem alegria e sem futuro, tal como Stockton. Embora fizesse algum fresco e o sol quase não brilhasse, sentei-me na esplanada de um café, na Place Grangier, e bebi uma Coca-Cola. À direita da esplanada, numa rua empedrada, estava instalado um mercado ambulante, para além do qual se erguia a igreja de Notre Dame. Paguei a Coca-Cola, bisbilhotando aqui e ali percorri o mercado, atravessei uma rua e entrei na igreja. Inicialmente pareceu-me estar vazia, mas, enquanto ouvia ressoar os meus passos na abóbada gótica, avistei diante de um altar lateral uma mulher que acabava de acender uma vela e que agora escrevia qualquer coisa num caderno aberto sobre um facistol. Enquanto me aproximava do altar, a mulher parou de escrever e voltou-se para se ir embora. Cruzámo-nos a meio da nave. Era alta, jovem, pálida, distinta. Ao chegar diante do altar, não pude evitar ler a última frase anotada no caderno: «Meu Deus, ajuda-me a mim e à minha família neste tempo de escuridão».

Saí da igreja, mandei parar um táxi e dei a direcção da Résidence de Nimphéas, em Fontaine-lès-Dijon. Vinte minutos mais tarde, o táxi parou na esquina da Route des Daix com a Rue des Combottes, diante de um edifício rectangular, cuja fachada verde-clara, coberta de varandinhas minúsculas, dava para um jardim com uma fonte e veredas de gravilha. No balcão da recepção perguntei por Miralles e uma rapariga com um ar e uma indumentária inconfundíveis de freira olhou-me com alguma curiosidade ou surpresa e perguntou-me se eu era algum parente. Disse-lhe a verdade.

- Amigo, nesse caso?

- Mais ou menos - disse.

- Quarto vinte e dois. - E, apontando para um corredor, acrescentou: - Mas há pouco vi-o passar naquela direcção, deve estar na sala da televisão ou no jardim.

O corredor ia dar a uma grande sala, com janelas enormes abertas sobre um jardim com um repuxo e espreguiçadeiras onde vários velhotes apanhavam o sol vertical do meio-dia com as pernas cobertas com mantas aos quadrados. Na sala estavam outros dois velhotes - uma mulher e um homem - sentados em poltronas de napa e olhando para a televisão; nenhum dos dois se voltou quando entrei na sala. Não pude deixar de reparar no homem: uma cicatriz partia-lhe das fontes, continuava pelo pómulo, pela face e pelo maxilar, descia pelo pescoço e perdia-se na penugem que aflorava da sua camisa cinzenta, de flanela. Soube imediatamente que era Miralles. Paralisado, procurei descobrir as palavras com que deveria abordá-lo. Não as encontrei. Um pouco sonâmbulo, com o coração pulsando-me na garganta, sentei-me na cadeira que estava junto dele. Miralles não se voltou mas um movimento imperceptível dos seus ombros revelou-me que dera conta da minha presença. Decidido a esperar, instalei-me na cadeira e olhei para a televisão: no ecrã ofuscado pelo sol, um apresentador de cabelo impoluto e expressão acolhedora, desmentida pelo ricto depreciativo dos lábios, dava instruções a alguns concorrentes.

- Esperava-o mais cedo - murmurou Miralles passado algum tempo, quase suspirando, sem afastar os olhos do ecrã. - Chega um pouco tarde.

Olhei para o seu perfil rochoso, para o seu cabelo ralo e cinzento, a barba crescendo como um minúsculo bosque de tojos esbranquiçados em redor do violento guarda-fogo da cicatriz, o nariz achatado, o queixo e o maxilar obstinados, a proeminência outonal da barriga forçando os botões da camisa, as mãos poderosas e consteladas de manchas, apoiadas numa bengala branca.

- Tarde? - perguntei.

- São quase horas do almoço.

Não disse nada. Olhei para o ecrã, ocupado agora por um lote de electrodomésticos; excepto pela voz enlatada e infatigável do apresentador e pelos ruídos de higiene caseira que se ouviam vindos do corredor, o silêncio era absoluto na sala. A três ou quatro cadeiras de distância de Miralles, a mulher continuava sentada, imóvel, com a cara apoiada numa mão quebradiça, sulcada de veias azuis. Por um momento julguei que estava a dormir.

- Diga-me, Javier - disse Miralles, como se estivéssemos a conversar há muito tempo e tivéssemos feito uma pausa para descansar -, você gosta de televisão?

- Sim - respondi, e reparei no punhado de pelos esbranquiçados que assomavam pelas suas narinas. - Mas vejo pouco.

- Eu, pelo contrário, não gosto nada. Mas vejo muito: concursos, reportagens, filmes, galas, notícias, tudo. Sabe, há cinco anos que vivo aqui e é como se estivesse fora do mundo. Os jornais aborrecem-me e há muito tempo que deixei de ouvir rádio, de modo que, graças à televisão, fico a par do que acontece por aí. Este programa, por exemplo... - quase sem erguer a ponta da bengala, apontou para o televisor. - Nunca na minha vida vi uma imbecilidade tão grande. As pessoas têm de adivinhar quanto custa cada uma destas coisas. Se acertarem, ficam com elas. Mas repare como estão felizes, repare como se riem. - Miralles calou-se, sem dúvida para eu poder apreciar por mim próprio a veracidade da sua observação. - Agora as pessoas são muito mais felizes do que na minha época, isso sabe-o qualquer pessoa que tenha vivido o suficiente. Por isso, cada vez que oiço um velho dizer cobras e lagartos do futuro, sei que o faz para se consolar por não poder vivê-lo e, cada vez que oiço um daqueles intelectuais dizer cobras e lagartos da televisão, sei que estou diante de um cretino.

Endireitando-se um pouco, virou para mim o seu corpanzil de gladiador encolhido pela velhice e observou-me com uns olhos verdes, curiosamente desiguais: o direito, inexpressivo e semicerrado pela cicatriz; o esquerdo, muito aberto e inquisitivo, quase irónico. Apercebi-me então de que o aspecto pétreo que atribuíra no início ao rosto de Miralles só era válido para a metade devastada pela cicatriz. A outra era viva, veemente. Por um momento pensei que era como se duas pessoas convivessem no mesmo corpo. Um pouco intimidado pela proximidade de Miralles, perguntei a mim próprio se os veteranos de Salamina teriam também aquele ar desamparado de velho camionista atropelado. Miralles perguntou:

- Você fuma?

Fiz o gesto de tirar os cigarros do bolso do casaco, mas Miralles não me deixou acabá-lo.

- Aqui não. - Apoiando-se nos braços da poltrona e na bengala e recusando sem cerimónias a minha ajuda («Deixe, deixe, se eu precisar de ajuda, peço-lhe») levantou-se com dificuldade e ordenou-me:

- Venha, vamos dar um passeio.

íamos sair para o jardim quando apareceu no corredor uma freira de uns quarenta anos, alta, morena e sorridente, vestida com uma camisa branca e uma saia cinzenta.

- A irmã Dominique disse-me que tinha uma visita, Miralles - disse, estendendo-me uma mão pálida e ossuda. - Sou a irmã

Françoise.

Apertei-lhe a mão. Visivelmente pouco à vontade, como se tivesse sido apanhado em falta, segurando na porta entreaberta, Miralles fez as apresentações: disse que a irmã Françoise era a directora do lar; disse o meu nome.

- Trabalha para um jornal - acrescentou. - Vem fazer-me uma entrevista.

- Deveras? - A freira alargou o sorriso. - Acerca de quê?

- Nada de importante - disse Miralles, obrigando-me com o olhar a sair de uma vez para o jardim. Obedeci. - Um assassinato. Aconteceu há sessenta anos.

- Alegro-me - riu-se a irmã Françoise. - Já vão sendo horas de começar a confessar os seus crimes.

- Vá para a merda, irmã - despediu-se Miralles. - Já vê - resmungou depois, enquanto caminhávamos junto de uma fonte de águas atapetadas de nenúfares, para lá do grupo de velhotes deitados nas espreguiçadeiras -, toda a vida disparatando contra os padres e as freiras, e aqui me tem, rodeado de freiras que nem sequer me deixam fumar. Você é crente?

Agora descíamos por um caminho de gravilha ladeado de sebes de buxo. Pensei na mulher pálida e distinta que tinha visto nessa manhã, na igreja de Notre Dame, acendendo uma vela e escrevendo uma prece, mas antes que eu pudesse responder à sua pergunta, respondeu-a ele:

- Que tontice! Já ninguém é crente, excepto as freirinhas. Eu também não sou, sabe? Falta-me imaginação. Quando morrer gostava é que alguém dançasse sobre a minha campa, seria mais alegre, não é verdade? Claro que a irmã Françoise não acharia muita graça, de modo que calculo que dirão uma missa e já está. Também não me incomoda. Gostou da irmã Françoise?

Como não sabia se Miralles gostava dela ou não, respondi que ainda não formara uma opinião sobre ela.

- Não lhe perguntei a sua opinião - respondeu Miralles. - Perguntei-lhe se lhe agrada ou não. Na condição de guardar segredo, dir-lhe-ei a verdade: a mim agrada-me muito. É bonita, simpática e esperta. E jovem. Que mais se pode querer de uma mulher? Se não fosse freira há muitos anos que lhe teria apalpado o rabo. Mas, claro, sendo freira... Que remédio...

Atravessámos diante da entrada de um estacionamento subterrâneo, abandonámos o caminho e subimos - Miralles com uma inesperada agilidade, agarrado à sua bengala; eu atrás dele, receando que caísse a todo o instante - um pequeno aterro, atrás do qual se estendia um pequeno relvado com um banco de madeira virado para o tráfego escasso da Rue des Combottes e para a fila de casas geminadas que se alinhavam ao longe. Sentámo-nos no banco.

- Bom - disse Miralles, apoiando a bengala na beira do banco -, venha de lá esse cigarro.

- É proibido fumar no lar? - perguntei.

- Qual o quê! O que acontece é que quase ninguém fuma. A mim, o médico proibiu-me quando tive a embolia. O que terá a ver uma coisa com a outra? Mas de vez em quando meto-me na cozinha, roubo ao cozinheiro um cigarrinho e vou fumá-lo para o meu quarto ou venho fumá-lo para aqui. O que acha da vista?

Eu não queria submetê-lo de entrada a um interrogatório, e, além disso, apetecia-me ouvi-lo falar das suas coisas, de modo que durante um bocado falámos da sua vida no lar, do Estrella de Mar, de Bolano. Verifiquei que estava bastante lúcido e que tinha a memória intacta e, enquanto o ouvia vagamente, lembrei-me que Miralles tinha a mesma idade que o meu pai teria, se fosse vivo. O facto pareceu-me curioso, mais curioso ainda me pareceu ter pensado no meu pai, precisamente naquele momento e naquele lugar. Pensei que, embora tivesse falecido há mais de seis anos, o meu pai ainda não estava morto, porque ainda havia alguém que se lembrava dele.

- Mas você não veio até aqui para falar destas coisas - interrompeu-se Miralles a determinada altura. Há já algum tempo que tínhamos deitado fora os cigarros. - Veio falar do Collell.

Eu não sabia por onde começar, de modo que disse:

- Então é verdade que esteve no Collell?

- Claro que estive no Collell. Não se arme em parvo. Se eu não tivesse lá estado, você não estaria aqui. Claro que estive. Uma semana, duas, talvez, no máximo. Foi em finais de Janeiro de 39, lembro-me muito bem porque a 31 desse mês atravessei a fronteira, essa data nunca mais a esqueço. O que não sei é porque estivemos ali tanto tempo. Éramos o que restava do V Corpo do Exército do Ebro, a maior parte veteranos de toda a guerra e estávamos desde o Verão aos tiros sem parar até se ter desmoronado a frente e termos tido de sair deitando os bofes pela boca em direcção à fronteira, com os mouros e os fascistas pisando-nos os calcanhares. E, de repente, a um passo de França, fizeram-nos parar. Claro que o agradecemos, porque tínhamos levado uma sova tremenda. Mas também não entendíamos a razão daqueles dias de tréguas. Corriam rumores. Havia quem dissesse que Líster estava a preparar a defesa de Gerona, ou um contra-ataque sabe-se lá por onde. Tontices. Não tínhamos nem armas, nem munições, nem material de guerra, nada de nada. Na realidade, nem sequer éramos um exército, apenas um monte de farroupilhas espalhados pelos bosques. Mas isso sim, digo-lhe, pelo menos descansámos. Você deve conhecer Collell.

- Um pouco.

- Não fica longe de Gerona, na zona de Banyoles. Aí ficaram alguns durante esses dias; outros nas povoações dos arredores; outros foram enviados para Collell.

- Para quê?

- Não sei. Na realidade, acho que ninguém sabia. Não se apercebe? Aquilo era uma confusão medonha, um salve-se quem puder. Toda a gente dava ordens, mas ninguém obedecia. As pessoas desertavam assim que tinham oportunidade.

- E porque não o fez?

- Desertar? - Miralles olhou para mim como se o seu cérebro não estivesse preparado para processar a pergunta. - Pois olhe, não sei. Não me passou pela cabeça, suponho. Em momentos como aqueles não é muito fácil pensar, sabe? Além disso, iria para onde? Os meus pais tinham morrido e o meu irmão também estava na frente... Olhe - levantou a bengala, como se um imprevisto viesse livrá-lo do aperto -, aí estão.

À nossa frente, no outro lado do gradeamento que separava o jardim do lar da Rue des Combottes, chegava um grupo de crianças muito pequenas, conduzido por duas professoras. Arrependi-me de ter interrompido Miralles, porque a pergunta (ou a sua incapacidade em responder; ou talvez fosse apenas a passagem das crianças) pareceu desligá-lo das suas recordações.

- Pontuais como um relógio - disse. - Você tem filhos? - Não.

- Não gosta de crianças?

- Gosto - disse, e pensei em Conchi. - Mas não os tenho.

- Eu também gosto - disse, agitando a bengala na direcção deles. - Repare naquele cabeça no ar, o do barrete.

Permanecemos em silêncio durante algum tempo, olhando para as crianças. Não era obrigado a dizer nada, mas filosofei estupidamente:

- Parecem sempre felizes.

- Não reparou bem - corrigiu-me Miralles. - Nunca parecem. Mas são-no. Tal como nós. O que acontece é que nem nós nem eles nos damos conta.

- O que quer dizer? Miralles sorriu pela primeira vez.

- Estamos vivos, ou não? - Levantou-se, socorrendo-se da bengala. - Bom, é hora de almoçar.

Enquanto nos dirigíamos de volta ao lar disse:

- Estava a falar do Collell.

- Importa-se de me dar outro cigarro?

Como se tentasse suborná-lo, dei-lhe o maço inteiro. Guardando-o no bolso, perguntou:

- O que estava a dizer?

- Que enquanto lá esteve aquilo era uma confusão.

- Claro - retomou o fio da conversa com facilidade. - Imagine o panorama. Estávamos nós, os que restávamos do batalhão. Comandava-nos um capitão basco, um tipo bastante decente, agora não me lembro como se chamava, o comandante tinha morrido num bombardeamento à saída de Barcelona. Mas também havia civis, carabineiros, gente do SIM. Havia de tudo. Eu julgo que ninguém sabia o que fazíamos ali, suponho que esperávamos a ordem de atravessar a fronteira, a única coisa que podíamos fazer.

- Não vigiavam os prisioneiros? Fez uma careta de cepticismo.

- Mais ou menos.

- Mais ou menos?

- Sim, claro que os vigiávamos - admitiu de má vontade. - O que quero dizer é que os encarregados de o fazer eram os carabineiros. Mas às vezes, quando os prisioneiros saíam para passear ou para fazer alguma coisa, mandavam-nos ficar com eles. Se você chama a isso vigiar, então sim, vigiávamo-los.

- E sabiam quem eram?

- Sabíamos que eram peixe gordo. Bispos, militares, falangistas da quinta-coluna. Gente desse tipo.

Tínhamos percorrido o caminho de gravilha em sentido inverso. Os velhotes que há minutos apanhavam sol tinham desertado das suas espreguiçadeiras e conversavam em grupos à entrada do edifício e na sala da televisão, que continuava ligada.

- Ainda é cedo, deixe-os entrar - disse Miralles, dando-me o braço e obrigando-me a sentar junto dele, na beira da fonte. - Você queria falar sobre Sánchez Mazas, não é verdade? - Concordei. - Diziam que era um bom escritor. O que acha?

- Que era um bom escritor menor.

- É isso o que quer dizer?

- Que era um bom escritor, mas não um grande escritor.

- Ou seja, pode ser-se um bom escritor sendo um grandessíssimo filho da puta. Que coisa, não é verdade?

- Sabia que Sánchez Mazas estava no Collell?

- Claro! Como podia deixar de saber se ele era o peixe mais gordo?! Todos nós sabíamos. E todos nós tínhamos ouvido falar de Sánchez Mazas e sabíamos acerca dele o suficiente, ou seja, que por culpa dele e de mais quatro ou cinco tipos como ele acontecera o que acontecera. Não tenho a certeza, mas parece-me que, quando ele chegou ao Collell, nós já lá estávamos há alguns dias.

- Pode ser. Sánchez Mazas só chegou cinco dias antes de o fuzilarem. Há pouco disse-me que tinha atravessado a fronteira a trinta e um de Janeiro. O fuzilamento foi a trinta.

Estive prestes a perguntar-lhe se nesse dia ainda estava no Collell e se se lembrava do que acontecera, quando Miralles, que se tinha posto a tirar a terra das juntas dos ladrilhos com a ponta da bengala, começou a falar.

- Na noite anterior disseram-nos que nos preparássemos porque, no dia seguinte, íamos embora - explicou. - De manhã vimos um cordão de presos a sair do santuário escoltados por alguns carabineiros.

- Sabiam que os iam fuzilar?

- Não. Julgávamos que iam fazer algum trabalho, ou talvez trocá-los, falara-se muito disso. Embora a cara deles, de facto, não fosse de quem ia trocá-los.

- Conhecia Sánchez Mazas? Reconheceu-o entre os presos?

- Não, não sei... Acho que não.

- Não o conhecia ou não o reconheceu?

- Não o reconheci. Conhecê-lo, conhecia-o. Como podia deixar de o conhecer? Conhecíamo-lo todos.

Miralles garantiu que alguém como Sánchez Mazas não podia passar despercebido num sítio como aquele e, por isso, tal como os restantes companheiros, reparara nele muitas vezes, quando ia passear para o jardim com os outros presos. Recordava-se ainda vagamente dos seus óculos de míope, do seu escarpado nariz de judeu, da samarra de pele com a qual, dias mais tarde, relataria triunfalmente perante uma máquina de filmar de Franco a sua aventura inverosímil... Miralles calou-se, como se o esforço de recordar o tivesse deixado exausto por um momento. Um débil rumor de talheres chegava-nos do interior do edifício; de uma vista de olhos fugaz vi o ecrã do televisor apagado. Agora Miralles e eu estávamos sozinhos no jardim.

- E depois?

Miralles deixou de esgaravatar com a bengala entre os ladrilhos e aspirou o ar imaculado do meio-dia.

- Depois nada. - Expirou longamente. - A verdade é que não me lembro muito bem, foi tudo bastante confuso. Lembro-me de que ouvimos disparos e nos pusemos a correr. Alguém, nessa altura, gritou que os presos tentavam fugir, de modo que nos pusemos a revistar o bosque, para os encontrarmos. Não sei quanto tempo durou a batida, mas de vez em quando ouviam-se disparos, quando caçavam algum. De qualquer forma, não me espanta que mais de um tivesse fugido.

- Fugiram dois.

- Já lhe disse que não me espanta. Começara a chover e o bosque ali é bastante espesso. Ou pelo menos recordo-o assim. Enfim, quando nos cansámos de procurar (ou quando alguém nos ordenou) regressámos ao santuário, acabámos de recolher as coisas e partimos nessa mesma manhã.

- Ou seja, de acordo consigo não foi um fuzilamento.

- Não me faça dizer coisas que eu não disse, jovem. Eu conto-lhe apenas como foram as coisas, ou como as vivi. A interpretação é por sua conta, que para isso é jornalista, ou não? Além disso, reconhece com certeza que, se alguém mereceu ser fuzilado nessa altura, esse alguém foi Sánchez Mazas. Se o tivessem liquidado a tempo, a ele e a uns quantos como ele, talvez tivéssemos evitado a guerra, não acha?

- Eu acho que ninguém merece ser fuzilado.

Miralles voltou-se sem pressa e olhou-me com os seus olhos díspares, fixamente, como se procurasse nos meus uma resposta para a sua irónica perplexidade. Um sorriso afectuoso, que por instantes receei que acabasse numa gargalhada, suavizou a repentina dureza das suas feições.

- Não me diga que você é um pacifista! - disse, e pôs-me uma mão na clavícula. - Devia ter começado por aí, jovem! E, a propósito - apoiando-se em mim, levantou-se e apontou com a bengala a entrada do lar -, vamos ver como se vai entender com a irmã Françoise.

Ignorei a troça de Miralles e, porque pensei que o tempo estava a esgotar-se, disse precipitadamente:

- Gostaria de fazer-lhe uma última pergunta.

- Só uma? - Em voz alta dirigiu-se à freira. - Irmã, o jornalista quer fazer-me uma última pergunta.

- Acho muito bem - disse a irmã Françoise. - Mas, se a resposta for muito longa você vai ficar sem almoço, Miralles. - Sorrindo-me, acrescentou: - Porque não volta à tarde?

- Claro, jovem - concordou Miralles, jovialmente. - Volte à tarde e continuaremos a conversa.

Combinámos que eu voltaria pelas cinco, depois da sesta e da ginástica de recuperação. Com a irmã Françoise, acompanhei Miralles até à sala de jantar. «Não se esqueça do tabaco», sussurrou-me Miralles ao ouvido, em jeito de despedida. Depois entrou na sala de jantar e, enquanto se sentava a uma mesa, entre duas velhotas de cabelo branquíssimo que já tinham começado a almoçar, piscou-me ostensivamente um olho cúmplice.

- O que lhe deu? - perguntou a irmã Françoise enquanto nos dirigíamos para a saída.

Como julguei que se referia ao maço de cigarros proibido, cujo volume era visível no bolso da camisa de Miralles, corei.

- Dar-lhe?

- Estava muito contente.

- Ah - sorri, aliviado. - Estivemos a falar da guerra.

- De que guerra?

- Da guerra de Espanha.

- Não sabia que Miralles tinha participado na guerra.

Ia dizer-lhe que Miralles não participara numa guerra, mas em muitas, mas não pude, porque nesse momento vi Miralles caminhando pelo deserto da Líbia, em direcção ao oásis de Murzuch, jovem, esfarrapado, coberto de poeira e anónimo, levando a bandeira tricolor de um país que não era o seu, de um país que é todos os países e também o país da liberdade e que só existe hoje porque ele e quatro mouros e um preto a levam levantada enquanto continuavam caminhando para a frente, para a frente, sempre para a frente.

- Vem alguém vê-lo? - perguntei à irmã Françoise.

- Não. Ao princípio vinha o genro, o viúvo da filha. Mas depois deixou de vir. Julgo que acabaram mal. Enfim, Miralles tem um carácter um pouco difícil, mas garanto-lhe uma coisa: tem um

coração de ouro.

Ouvindo-a falar da embolia que há meses paralisara o lado esquerdo de Miralles, disse para comigo que a irmã Françoise falava como a directora de um orfanato tentando interessar um potencial cliente por um pupilo rebelde. Disse também para comigo que Miralles talvez não fosse um pupilo rebelde, mas era com certeza um órfão, e então perguntei-me à memória de quem se iria aferrar Miralles quando estivesse morto, para não morrer completamente.

- Julgámos que com esta nos ficava - prosseguiu a irmã Françoise. - Mas recuperou bastante bem, tem a constituição de um touro. Não aceita muito bem a proibição do tabaco e de ter de comer sem sal, mas acabará por habituar-se. - Ao chegar ao balcão da recepção, sorriu e estendeu-me a mão. - Bom, vemo-lo à tarde, não é verdade?

Antes de sair do lar olhei para o relógio: pouco passava do meio-dia. Tinha cinco horas vazias pela frente. Andei um pouco pela Route des Daix à procura de uma esplanada onde pudesse beber alguma coisa mas, como não encontrei - o bairro era um emaranhado de largas avenidas de subúrbio com casinhas geminadas -, assim que vi um táxi mandei-o parar e pedi-lhe que me levasse de volta ao centro. Deixou-me numa praça semicircular que se abria para abrigar no seu seio o palácio dos duques de Borgonha. Diante da sua fachada, sentado numa esplanada, bebi duas cervejas. Do sítio onde estava, via-se um letreiro com o nome da praça: Place de Ia Liberation. Inevitavelmente, pensei em Miralles entrando em Paris pela Porte-de-Gentilly na noite de 24 de Agosto de 44, com as primeiras tropas aliadas, a bordo do seu tanque que devia chamar-se Guadalajara, Saragoça ou Belchite. Ao meu lado, na esplanada, um casal muito jovem espantava-se com os risos e as caretas de um bebé rosado. Gente atarefada e indiferente passava à nossa frente. Pensei: «Não há um único que conheça aquele velho meio zarolho e acabado que fuma cigarros às escondidas e que agora mesmo está a comer comida sem sal a alguns quilómetros daqui, mas não há nem um de entre eles que não esteja em dívida para com ele». Pensei: «Ninguém se lembrará dele quando morrer». Voltei a ver Miralles caminhando com a bandeira da França livre pela areia infinita e ardente da Líbia, em direcção ao oásis de Murzuch enquanto as pessoas caminhavam por esta praça de França e por todas as praças da Europa ocupando-se dos seus negócios, sem saber que o seu destino e o destino da civilização da qual eles tinham abdicado dependia de Miralles ter continuado a andar em frente, sempre em frente. Lembrei-me então de Sánchez Mazas e de José António e ocorreu-me que talvez não estivessem enganados e que, no fim de contas, tinha sido realmente um pelotão de soldados a salvar a civilização. Pensei: «O que nem José António nem Sánchez Mazas podiam imaginar é que nem eles nem ninguém como eles poderia jamais integrar esse pelotão extremo, e que isso seria feito por quatro mouros, um preto e um torneiro catalão que estava ali por acaso ou por pouca sorte, e que teria morrido de riso se alguém lhe tivesse dito que estava a salvar-nos a todos naquele tempo de obscurantismo e que, talvez, precisamente por isso, por não imaginar que naquele momento a civilização dependia dele, estava a salvá-la e a salvar-nos sem saber que a sua recompensa final seria um quarto ignorado num lar para pobres numa cidade tristíssima de um país que nem sequer era o seu país e onde ninguém, excepto talvez uma freira sorridente e espigada, que não sabia que ele tinha estado na guerra, lhe sentiria a falta».

Almocei no Café Central, na Place Grangier, muito perto do sítio onde tomara o pequeno-almoço nessa manhã e, depois de um café e de um whisky numa esplanada da Rue de La Poste e de comprar um pacote de cigarros, voltei à Résidence des Nimphéas. Ainda não eram cinco quando Miralles me levou para o seu quarto e me apercebi, não sem surpresa, de que não era o quarto sórdido de um lar como eu esperava, mas um pequeno apartamento limpo, arrumado e luminoso. De uma vista de olhos abarquei uma cozinha, um lavabo, um quarto de dormir e uma salinha de paredes quase despidas, com duas poltronas, uma mesa e uma grande janela que dava para uma varanda aberta ao sol da tarde. Em jeito de cumprimento, entreguei a Miralles o tabaco.

- Não seja bruto - disse, rasgando o invólucro de celofane e tirando dois maços de cigarros. - Onde quer que esconda este trambolho? - Devolveu-me o resto do pacote. - Apetece-lhe um nescafé? Descafeinado, evidentemente. O verdadeiro foi-me proibido.

Não me apetecia, mas aceitei. Enquanto o preparava, Miralles perguntou-me o que achava do apartamento. Respondi-lhe que achava muito bom. Falou-me dos serviços (sanitários, lúdicos, culturais, de higiene) que o lar oferecia, e da ginástica de reabilitação que tinha de fazer diariamente. Quando acabou de preparar o nescafé, agarrei nas chávenas para as levar para a sala, mas impediu-me com um gesto: abriu um armário baixo e, com uma flexibilidade de contorcionista, meteu meio corpo lá dentro e tirou triunfalmente um cantil.

- Se não se junta um pouco disto - comentou, deitando um jorrinho em cada chávena -, este caldo sabe mal que se farta.

Miralles devolveu o cantil ao seu sítio e, depois, cada um com a sua chávena, sentámo-nos nas poltronas da salinha. Bebi um sorvo de nescafé: o que Miralles lhe tinha deitado era cognac.

- Bem, diga-me você - disse Miralles, divertido, quase lisonjeado, refastelando-se na poltrona e mexendo o nescafé. - Continuamos com o interrogatório? Aviso-o de que já lhe contei tudo o que sabia.

De repente senti vergonha de continuar a fazer perguntas, senti vontade de dizer a Miralles que, embora já não tivesse nenhuma pergunta para lhe fazer, ficaria ali na mesma, conversando e bebendo nescafé com ele. Por um momento pensei que já sabia tudo o que tinha de saber sobre Miralles, e, não sei porquê, lembrei-me de Bolano e da noite em que descobriu Miralles dançando um pasodoble com Luz sob o toldo da sua roulotte e compreendeu que o seu tempo no parque de campismo tinha terminado. Foi tudo uma e a mesma coisa: pensar em Bolano e pensar no meu livro, em Soldados de Salamina e em Conchi e nos muitos meses em que andava a perseguir o homem que salvou Sánchez Mazas, procurando o significado de um olhar e de um grito no bosque, procurando o homem que dançou um pasodoble no jardim de uma prisão improvisada, há sessenta anos, tal como Miralles e Luz tinham dançado outro pasodoble ou talvez o mesmo num parque de campismo proletário de Castelldefells, sob o toldo do seu improvisado lar. Não perguntei. Como se revelasse um facto desconhecido, disse:

- Sánchez Mazas sobreviveu ao fuzilamento - Miralles concordou, paciente, saboreando o seu nescafé com cognac. Acrescentei: - Sobreviveu graças a um homem. Um soldado de Líster.

Contei-lhe a história. Depois de ter acabado, Miralles deixou a sua chávena vazia em cima da mesa, e, inclinando-se um pouco, sem se levantar da poltrona, abriu a janela da varanda e olhou para fora.

- Uma história bastante romanesca - disse depois, num tom neutro, enquanto tirava um cigarro do maço já encetado dessa manhã.

Lembrei-me de Miquel Aguirre e disse:

- É possível. Mas todas as guerras estão cheias de histórias romanescas, não é?

- Só para quem não as vive. - Expeliu um penacho de fumo e cuspiu alguma coisa que talvez fosse um pedacinho de tabaco. - Só para quem as conta. Para quem vai à guerra para as contar, não para as fazer. Como se chamava aquele romancista americano que entrou em Paris...?

- Hemingway.

- Hemingway, sim. Grande palhaço!

Miralles calou-se, absorto. Olhava para as volutas de fumo que ondulavam lentamente na luz tardia da varanda, através da qual nos chegava o rumor intermitente do tráfego.

- E essa história do soldado de Líster - começou, voltando-se novamente para mim. A metade direita da sua cara tinha recuperado o aspecto rochoso. Na esquerda havia uma expressão ambígua, que revelava indiferença e decepção, quase fastio -, quem lha contou?

Expliquei-lhe. Miralles abanava a cabeça, a boca circunflexa, um pouco trocista. Era evidente que o estado de espírito jovial com que me acolhera nessa tarde se tinha dissipado. Eu não sabia o que dizer, mas sabia que tinha de dizer alguma coisa. Miralles adiantou-se-me:

- Diga-me uma coisa. Para si, Sánchez Mazas e o seu famoso fuzilamento interessam-lhe pouco, não é verdade?

- Não entendo - disse, sinceramente. Procurou-me os olhos com curiosidade.

- Estes escritores são do raio que os parta! - riu-se abertamente. - De modo que andava era à procura de um herói. E esse herói sou eu, não é? Do raio que os parta! Mas já não tínhamos chegado à conclusão de que você era pacifista? Pois sabe uma coisa?

Na paz não há heróis, excepto talvez aquele indiano baixinho que andava por aí meio nu... E nem sequer ele era um herói, ou só passou a sê-lo quando o mataram. Os heróis só são heróis quando morrem ou os matam. E os heróis a sério nascem na guerra e morrem na guerra. Não há heróis vivos, jovem. Estão todos mortos. Mortos, mortos, mortos. - A voz quebrou-se-lhe. Após uma pausa, enquanto engolia saliva, apagou o cigarro. - Quer outra mistela destas?

Foi até à cozinha com as chávenas vazias. Da salinha ouvi-o assoar o nariz. Quando voltou, tinha os olhos brilhantes, mas parecia calmo. Suponho que tentei desculpar-me por alguma coisa, porque me lembro de que, depois de me entregar o nescafé e de se refastelar novamente na sua poltrona, Miralles me interrompeu com impaciência, quase irritado.

- Não peça desculpa, jovem. Não fez nada de mal. Além disso, na sua idade já deveria ter aprendido que os homens não pedem perdão: fazem o que têm de fazer e dizem o que têm de dizer, e depois aguentam. Mas vou contar-lhe uma coisa que você não sabe, uma coisa da guerra. - Bebeu um gole de nescafé; eu bebi outro: Miralles tinha exagerado no cognac. - Quando fui para a frente em 36, iam comigo outros rapazes. Eram de Terrassa, tal como eu. Muito novos, quase umas crianças, tal como eu. Conhecia um ou outro de vista ou de alguma conversa, mas a maior parte não. Eram os irmãos Garcia Segues (Joan e Leia), Miquel Cardos, Gabi Baldrich, Pipo Canal, o Gordo Odena, Santi Brugada, Jordi Gudayol. Fizemos a guerra juntos. As duas: a nossa e a outra, embora as duas fossem a mesma. Nenhum deles sobreviveu. Todos mortos. O último foi Leia Garcia Segues. Ao princípio eu dava-me melhor com o irmão, Joan, que era precisamente da minha idade, mas com o tempo Leia converteu-se no meu melhor amigo, o melhor que alguma vez tive: éramos tão amigos que nem sequer precisávamos de falar quando estávamos juntos. Morreu no Verão de quarenta e três, numa aldeia perto de Tripoli, esmagado por um tanque inglês. Sabe? Desde que a guerra acabou, não passou um único dia sem que pensasse neles. Eram tão jovens... Morreram todos. Todos mortos. Mortos. Mortos. Todos. Nenhum provou as coisas boas da vida: nenhum teve uma mulher só para si, nenhum conheceu a maravilha de ter um filho e do seu filho, de três ou quatro anos, se meter na sua cama, entre a sua mulher e ele, num domingo de manhã, num quarto com muito sol... - A determinada altura Miralles tinha começado a chorar. A sua cara e a sua voz não tinham mudado, mas umas lágrimas inconsoláveis rolavam velozes pela lisura da sua cicatriz, mais lentas pelas faces sujas de barba. - Às vezes sonho com eles e então sinto-me culpado: vejo-os a todos, intactos e cumprimentando-me entre troças, tão jovens como nessa altura, porque o tempo não passou por eles, jovens como nessa altura e perguntando-me porque não estou com eles, como se os tivesse traído, porque o meu verdadeiro lugar era ali; ou como se estivesse a usurpar o lugar de algum deles; ou como se na realidade eu tivesse morrido há sessenta anos em qualquer valeta de Espanha, de África ou de França e estivesse a sonhar uma vida futura com mulher e filhos, uma vida que ia acabar aqui, neste quarto de um lar, falando consigo. - Miralles continuou a falar, mais depressa, sem enxugar as lágrimas, que lhe caíam pelo pescoço e lhe molhavam a camisa de flanela. - Ninguém se lembra deles, sabe? Ninguém. Ninguém se lembra sequer porque morreram, porque não tiveram mulher e filhos e um quarto com sol; ninguém e, menos que ninguém, as pessoas pelas quais lutaram. Não há nem vai haver nunca uma rua desgraçada de nenhuma povoação desgraçada de nenhuma merda de país que venha a ter nunca o nome de nenhum deles. Percebe? Percebe, não é verdade? Ah, mas eu lembro-me, oh, se me lembro... Lembro-me de todos, de Leia e de Joan e de Gabi e de Odena e de Pipo e de Brugada e de Gudayol, não sei porque o faço, mas faço-o, não se passa um único dia sem que pense neles.

Miralles deixou de falar, tirou um lenço, enxugou as lágrimas, assoou-se. Fê-lo sem pudor, como se não o envergonhasse chorar em público, tal como faziam os velhos guerreiros homéricos, tal como o teria feito um soldado de Salamina. Depois, de um só gole, bebeu o nescafé frio. Permanecemos em silêncio, fumando. A luz da varanda era cada vez mais fraca e quase não se ouvia carros a passar. Eu sentia-me bem, um pouco ébrio, quase feliz. Pensei: «Lembra-se pela mesma razão de que eu me lembro do meu pai e Ferlosio do seu e Miquel Aguirre do seu e Jaume Figueras do seu e Bolano dos seus amigos latino-americanos, todos soldados mortos em guerras antecipadamente perdidas. Lembra-se porque, embora tenham falecido há sessenta anos, ainda não estão mortos, precisamente por ele se lembrar deles. Ou talvez não seja ele quem se lembra deles, mas eles que se aferram a ele, para não ficarem completamente mortos». «Mas quando Miralles morrer», pensei, «os seus amigos também acabarão por morrer completamente, porque não haverá ninguém que se lembre deles para evitar que morram».

Durante muito tempo estivemos a conversar sobre outras coisas, entre nescafés, cigarros e longos silêncios, como se não tivéssemos acabado de nos conhecer nessa manhã. A determinada altura Miralles apanhou-me olhando disfarçadamente para o relógio.

- Aborreço-o - disse, interrompendo-se.

- Não me aborrece - respondi. - Mas o meu comboio sai às oito e meia.

- Tem de se ir embora?

- Parece-me que sim.

Miralles levantou-se da poltrona, agarrou na bengala e disse:

- Não o ajudei muito, não é verdade? Acha que conseguirá escrever o seu livro?

- Não sei - respondi com sinceridade. Mas depois disse: - Espero que sim. - E acrescentei: - Se o fizer, prometo-lhe que falarei dos seus amigos.

Como se não me tivesse ouvido, Miralles disse:

- Acompanho-o. - Apontou para o pacote de cigarros que estava em cima da mesa: - E não se esqueça disto.

íamos a sair do seu apartamento quando Miralles parou.

- Diga-me uma coisa... - Falou com a mão na maçaneta: a porta estava entreaberta. - Para que queria encontrar o soldado que salvou Sánchez Mazas?

Sem hesitar, respondi:

- Para lhe perguntar o que sentiu naquela manhã, no bosque, depois do fuzilamento, quando o reconheceu e o olhou nos olhos. Para lhe perguntar o que viu nos olhos dele. Porque o salvou, porque não o denunciou, porque não o matou.

- Porque iria matá-lo?

- Porque na guerra as pessoas matam-se - disse. - Porque, por culpa de Sánchez Mazas e pela de quatro ou cinco tipos como ele, aconteceu o que aconteceu e agora esse soldado empreendia um exílio sem regresso. Porque, se alguém mereceu ser fuzilado, esse alguém foi Sánchez Mazas.

Miralles reconheceu as suas palavras, concordou com uma ameaça de sorriso e, acabando de abrir a porta, deu-me uma pancadinha com a bengala na parte de trás das pernas, dizendo:

- Toca a marchar, não vá perder o comboio.

Descemos no elevador para o rés-do-chão e, da recepção, pedimos um táxi.

- Despeça-se por mim da irmã Françoise - disse, enquanto caminhávamos para a saída.

- Então não pensa voltar?

- Não se você não quiser.

- E quem lhe disse que não quero?

- Então prometo-lhe que voltarei.

Lá fora a luz estava oxidada: era o entardecer. Esperámos pelo táxi na porta do jardim, diante de um semáforo que mudava de cor para ninguém porque, no cruzamento da Route des Daix com a Rue Combotte o tráfego era escasso e os passeios estavam desertos. À minha direita havia um prédio de apartamentos, não muito alto, com grandes janelas e varandas de onde podia ver-se o jardim da Résidence des Nimphéas. Pensei que era um bom lugar para viver. Pensei no soldado de Líster. Ouvi-me dizer:

- O que acha que ele terá pensado?

- O soldado? - Voltei-me para ele. Com todo o seu corpo apoiado na bengala, Miralles observava a luz do semáforo, que estava vermelho. Quando mudou do vermelho para o verde, Miralles olhou-me com um olhar neutro. Disse: - Nada.

- Nada?

- Nada.

O taxista demorava-se. Era um quarto para as oito e ainda tinha de passar pelo hotel para pagar a conta e recolher as minhas coisas.

- Se voltar traga-me alguma coisa.

- Além de tabaco?

- Além disso.

- Gosta de música?

- Gostava. Agora já não oiço. Cada vez que o faço, cai-me mal. De repente ponho-me a pensar no que me aconteceu e, sobretudo, no que não me aconteceu.

- Bolano disse-me que dança muito bem o pasodoble.

- Disse-lhe isso? - riu-se. - O cabrão do chileno!

- Uma noite viu-o a dançar Suspiros de Espana com uma amiga sua, ao pé da sua roulotte.

- Se convencer a irmã Françoise, se calhar ainda sou capaz de dançá-lo - disse Miralles, piscando-me o olho da cicatriz. - É um pasodoble muito bonito, não lhe parece? Olhe, tem aí o seu táxi.

O táxi parou na esquina, ao pé de nós.

- Bom - disse Miralles -, espero que volte depressa.

- Voltarei.

- Posso pedir-lhe um favor?

- Peça o que quiser.

Olhando para a luz do semáforo, disse:

- Há muitos anos que não abraço ninguém.

Ouvi o ruído da bengala de Miralles caindo no passeio, senti que os seus braços enormes me apertavam e que os meus mal conseguiam cingi-lo, senti-me muito pequeno e muito frágil, senti o cheiro a medicamentos e a anos de reclusão e de verduras cozidas e, sobretudo, a velho, e soube que esse era o cheiro infeliz dos heróis.

Desfizemos o abraço e Miralles apanhou a sua bengala e empurrou-me para o táxi. Entrei, dei ao motorista a direcção do Victor Hugo, pedi-lhe que esperasse um momento, abri a janela.

- Não lhe contei uma coisa - disse a Miralles. - Sánchez Mazas conhecia o soldado que o salvou. Uma vez viu-o a dançar um pasodoble no jardim do Collell. Sozinho. O pasodoble era Suspiros de Espana - Miralles desceu o passeio e encostou-se ao táxi, apoiou uma manápula no vidro descido. Eu tinha a certeza da resposta, porque achava que Miralles não conseguia negar-me a verdade. Quase rogando, perguntei: - Era você, não era?

Após um instante de vacilação, Miralles mostrou um grande sorriso, afectuoso, quase sem revelar a sua dupla fileira de dentes desunidos. A sua resposta foi:

- Não.

Afastou a mão da janela e mandou o taxista arrancar. Depois, bruscamente, disse alguma coisa, que não compreendi (talvez tenha sido um nome, mas não tenho a certeza), porque o táxi tinha começado a andar e, apesar de eu ter posto a cabeça de fora e de lhe ter perguntado o que tinha dito, era já demasiado tarde para me ouvir ou poder responder-me. Vi-o levantar a bengala em jeito de última despedida e depois, através do vidro traseiro do táxi, dirigir-se de volta para o lar, lento, espoliado, meio zarolho e satisfeito, com a sua camisa cinzenta e as suas calças coçadas e as suas pantufas de feltro, diminuindo pouco a pouco contra o verde-pálido da fachada, a cabeça orgulhosa, o perfil duro, o corpo oscilante, volumoso e desconjuntado, apoiando na bengala o seu andar instável e, quando ele abriu a porta do jardim, senti uma espécie de nostalgia antecipada, como se, em vez de ver Miralles, já estivesse a recordá-lo, talvez porque naquele momento pensei que não ia voltar a vê-lo, que ia recordá-lo assim para sempre.

Recolhi a toda a pressa as minhas coisas no hotel, paguei a conta e cheguei à estação mesmo a tempo de apanhar o comboio. Era também um comboio-hotel, bastante parecido ao que apanhara à ida, talvez o mesmo. Instalei-me no meu compartimento enquanto o sentia empreender a marcha. Depois, através dos corredores vazios alcatifados a verde, fui até ao restaurante, um vagão com uma fila dupla de mesas impecavelmente dispostas e fofas cadeiras de cabedal cor de abóbora. Só havia uma livre. Sentei-me e, como não tinha fome, pedi um whisky. Saboreei-o, fumando, enquanto do outro lado da janela Dijon se desintegrava no anoitecer, rapidamente convertida numa sucessão veloz de campos cultivados apenas pressentidos na escuridão crescente. Agora a janela duplicava o vagão-restaurante. Duplicava-me: achei-me gordo e envelhecido, um pouco triste. Mas sentia-me eufórico, imensamente feliz. Pensei que, assim que chegasse a Gerona, telefonaria a Conchi e a Bolano para lhes contar como estava Miralles e como era essa cidade que se chamava Dijon mas cujo nome verdadeiro era Stockton. Planeei uma, duas, três viagens a Stockton. Iria a Stockton e instalar-me-ia nos apartamentos da Rue des Daix, diante do lar, e passaria as manhãs e as tardes conversando com Miralles, fumando cigarros no banco escondido do jardim ou no apartamento dele, e mais tarde talvez, sem conversar, sem dizer nada, sentindo apenas o tempo a passar, porque nessa altura já seríamos tão amigos que não precisaríamos de falar para nos sentirmos bem juntos; e à noite sentar-me-ia na varanda do meu apartamento, com um maço de cigarros e uma garrafa de vinho até ver que, no lado de lá da Rue des Daix, a luz do apartamento de Miralles se apagava e nessa altura ficaria ali ainda um bocado, às escuras, fumando ou bebendo,

enquanto ele dormia ou não em frente, muito perto, deitado na sua cama e recordando, talvez, os seus amigos mortos. E arrependi-me por não ter permitido que Conchi me acompanhasse a Dijon e por um instante imaginei o prazer de estar ali com ela e com Miralles e também com Bolano, imaginei que entre os três convenceríamos Bolano a ir a Dijon como quem vai a Stockton, com a mulher e o filho, e nós os seis alugaríamos um carro e faríamos excursões pelos arredores e formaríamos uma família estrambólica ou impossível e então Miralles deixaria de ser definitivamente um órfão (e eu, talvez, também) e Conchi sentiria uma nostalgia terrível de um filho (e eu, talvez, também). E também imaginei que algum dia, não muito distante, a irmã Françoise telefonaria uma noite para a minha casa de Gerona e eu telefonaria a Conchi para a sua casa de Quart e a Bolano para a sua casa de Blanes e os três partiríamos no dia seguinte para Dijon embora o lugar onde chegássemos fosse Stockton, definitivamente Stockton, e teríamos de esvaziar o apartamento de Miralles, deitar fora a sua roupa e vender ou oferecer os móveis e guardar alguma coisa, muito poucas porque Miralles sem dúvida guardaria muito poucas coisas, talvez alguma fotografia sua sorrindo feliz entre a mulher e a filha, ou vestido de soldado entre outros jovens vestidos de soldados, pouco mais, quem sabe se algum velho disco de vinil com velhos pasodobles riscados que há séculos ninguém ouvia. E haveria um funeral e depois um enterro e no enterro, música, a música alegre de um pasodoble tristíssimo soando num disco de vinil riscado, e então eu agarraria na irmã Françoise e pedir-lhe-ia que dançasse comigo junto da campa de Miralles, obrigá-la-ia a dançar uma música que não sabia dançar sobre a campa recente de Miralles, em segredo, sem que ninguém nos visse, sem que ninguém em Dijon, ou em França, ou em Espanha, ou em toda a Europa soubesse que uma freira bonita e esperta, com quem Miralles sempre desejou dançar um pasodoble e a quem nunca se atreveu a apalpar o rabo, e um jornalista da província estavam a dançar num cemitério anónimo de uma cidade melancólica junto de uma campa de um velho comunista catalão, ninguém o saberia excepto uma pitonisa descrente e maternal e um chileno perdido na Europa que estaria a fumar com os olhos nublados de fumo, um pouco afastado e muito sério, vendo-nos dançar um pasodoble junto à campa de Miralles tal como numa noite de há muitos anos tinha visto Miralles e Luz dançarem outro pasodoble sob o toldo de uma roulotte no parque de campismo Estrella de Mar, vendo isto e perguntando a si próprio talvez se aquele pasodoble e este seriam na realidade o mesmo, perguntando-o sem esperar resposta, porque sabia de antemão que a única resposta era não haver resposta, a única resposta era uma espécie de secreta ou insondável alegria, algo que roça a crueldade e resiste à razão mas que também não é instinto, algo que vive nela com a mesma obstinação cega com que o sangue persiste nas suas veias e a terra na sua órbita inamovível e todos os seres na sua condição pertinaz de seres, algo que evita as palavras como a água do regato evita a pedra, porque as palavras só foram feitas para se dizerem a si próprias, para dizer o dizível, ou seja, tudo excepto o que nos governa e faz viver ou concerne ou somos ou são aquela freira e aquele jornalista que era eu dançando junto da campa de Miralles como se nessa dança absurda a vida se lhes escapasse ou como quem pede ajuda para ele e para a sua família num tempo de escuridão. E ali, sentado numa cadeira fofa cor de abóbora do vagão-restaurante, embalado pelo balanço do comboio e pelo torvelinho de palavras que giravam sem pausas na minha cabeça, com o bulício dos comensais jantando à minha volta e com o whisky quase vazio em frente, e na janela, ao meu lado, a imagem alheia de um homem entristecido que não podia ser eu mas que era eu, vi ali, de chofre, o meu livro, o livro que perseguia há anos, vi-o inteiro, acabado, do princípio ao fim, da primeira à última linha, ali soube que, embora em lugar nenhum de nenhuma cidade de nenhuma merda de país fosse nunca existir uma rua com o nome de Miralles, enquanto eu contasse a sua história Miralles continuaria de alguma forma a viver e continuariam vivendo também, desde que eu falasse deles, os irmãos Garcia Segues - Joan e Lela - e Miquel Cardos e Gabi Baldrich e Pipo Canal e o Gordo Odena e Santi Brugada e Jordi Gudayol, continuariam a viver embora tivessem morrido há muitos anos, mortos, mortos, mortos, falaria de Miralles e de todos eles, sem deixar nenhum de fora, e, evidentemente, dos irmãos Figueras e de Angelats e de Maria Ferre, e também do meu pai e até dos jovens latino-americanos de Bolano, mas sobretudo de Sánchez Mazas e desse pelotão de soldados que à última hora salvou sempre a civilização e onde Sánchez Mazas não mereceu militar mas sim Miralles, desses momentos inconcebíveis em que qualquer civilização depende de um só homem e desse homem e da retribuição que a civilização reserva a esse homem. Vi o meu livro inteiro e verdadeiro, o meu relato real completo, e soube que só me faltava escrevê-lo, passá-lo a limpo, porque estava na minha cabeça do princípio («Foi no Verão de 1944, faz agora mais de seis anos, que ouvi falar pela primeira vez do fuzilamento de Rafael Sánchez Mazas») ao fim, um fim em que um velho jornalista fracassado e feliz fuma e bebe whisky num vagão-restaurante de um comboio nocturno que viaja pela campina francesa entre gente que janta e é feliz e empregados de mesa de lacinho preto, enquanto pensa num homem acabado que teve a coragem e o instinto da virtude e por isso nunca se enganou ou não se enganou no único momento da vida em que importava deveras não se enganar, pensa num homem que foi honrado e valente e puro na pureza e no livro hipotético que o ressuscitará quando estiver morto, e então o jornalista olha para o seu reflexo tristonho e envelhecido na janela que lambe a noite até o reflexo se dissolver lentamente e na janela surgir um deserto interminável e ardente, e um soldado sozinho, levando a bandeira de um país que é todos os países e que só existe porque esse soldado levanta a sua bandeira proscrita, jovem, esfarrapado, coberto de pó e anónimo, infinitamente pequeno naquele mar escaldante de areia infinita, caminhando para a frente sob o sol negro da janela, sem saber muito bem para onde vai nem com quem vai nem porque vai, sem se importar muito desde que seja para a frente, para a frente, para a frente, sempre para a frente.

 

                                                                                Javier Cercas  

 

                      

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