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SOLITÁRIA / Alexander Gordon Smith
SOLITÁRIA / Alexander Gordon Smith

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Tenho uma confissão a fazer.
Não sou uma boa pessoa.
Sempre disse que só roubava estranhos, que só pegava coisas das quais na verdade eles não sentiriam falta: dinheiro, aparelhos eletrônicos e todo tipo de coisa que não pode ser reclamada.
Mas isso é mentira. Não parei por aí; não consegui. Roubei de pessoas que amava e peguei coisas que significavam muito para elas. Não apenas revirei armários e gavetas, mas também invadi corações e arranquei deles tudo aquilo que me convinha; qualquer coisa pela qual conseguisse algumas libras no mercado.
Então, não continue se enganando e achando que sou uma boa pessoa, que sou uma vítima inocente, alguém que não merece ser tran-cafiado dentro do pedaço do inferno na Terra conhecido como Penitenciária de Furnace. Não sou assim. Não me entenda mal: não matei meu melhor amigo, Toby, quando invadimos aquela casa. Não, foram os ternos-pretos que o mataram. Mas fiz coisas tão ruins quanto isso. Matei pequenas partes de pessoas; retalhei-as por dentro; eu as magoei tanto que elas desejaram estar mortas.
Não tenho tempo para confessar tudo, mas preciso arrancar essa angústia de dentro do meu peito. Se não o fizer agora, posso jamais ter essa chance novamente. A morte se aproxima depressa. Posso sentir seus dedos frios ao redor da minha garganta.
Dois anos atrás, quando eu tinha doze, minha avó morreu. Teve uma convulsão no meio da noite e engoliu a língua. Mamãe ficou devastada, como qualquer filha ficaria. Chorou durante semanas, não comia, mal falava comigo ou com papai. Apenas ficava sentada, segurando o pequeno medalhão de prata que vovó havia lhe deixado, tocando com delicadeza as fotos desgastadas e vincadas dentro dele.
Imagino que não seja necessário contar o que fiz. Mas, seja como for, vou contar. Preciso contar.
Certa noite, mais ou menos dez dias após o enterro de minha avó, esperei até que minha mãe adormecesse e então entrei sorrateiramente no quarto e arranquei o medalhão de sua mão. Dez pratas. Dez nojentas pratas foi o que consegui por ele. Algumas moedas imundas pelo único objeto de minha avó que havia restado para minha mãe. Vi o homem para quem o vendi arrancar as fotos de dentro dele e jogá-las no lixo, e não senti nem um pingo de remorso.
Mamãe sabia que tinha sido eu. Nunca disse nada, mas eu podia ver em seus olhos. Não havia mais aquele calor de antes. Não havia mais amor. Era como se ela olhasse através de mim, para um fantasma sobre meu ombro, para o filho que desejava jamais ter tido, o filho que tinha perdido para sempre.
Entende o que quero dizer agora? Não sou uma boa pessoa. Não se esqueça disso. Você vai achar mais fácil engolir minha história se souber que mereci ser punido pela morte de Toby, embora não tenha sido eu quem puxou o gatilho; que mereci ser enviado para sempre a Furnace, nas entranhas rançosas do planeta.
E que mereci tudo o que me aconteceu ali. Porque Furnace não é uma prisão comum; é um pesadelo eterno destinado a pessoas como eu. Um lugar onde criaturas esquisitas com máscaras de gás — os Ofegantes — se esgueiram em silêncio pelos corredores à noite e carregam garotos aos berros para fora das celas. Um local onde esses garotos que somem no meio da noite reaparecem como monstros, os músculos aparentes e em carne viva. E onde os mesmos pobres desgraçados são por vezes transformados em ternos-pretos, os guardas desalmados da prisão.
Vi isso acontecer com meus próprios olhos. Vi isso acontecer com Monty. Vi no que ele se transformou pouco antes de morrer.
Portanto, nunca se esqueça de que sou uma pessoa má; que todos nós, presos aqui, somos maus, mesmo os “bons sujeitos” que conheci aqui dentro, como Donovan, Zê e Toby (não, não o meu velho amigo que, segundo consta, eu matei — é um novo amigo com o mesmo no- me). Nós quatro achávamos que havíamos encontrado uma maneira de escapar, provocando uma explosão na sala de escavação com gás roubado da cozinha. Mas ninguém pode fugir dos próprios demônios. Donovan foi levado pelos Ofegantes uma noite antes de nossa fuga, e, para o resto de nós — para mim, Zê e meu novo amigo Toby —, bem... talvez até que Furnace fosse boa demais. Com certeza era boa demais para Gary Owens, o lunático que descobriu nosso plano e nos seguiu como um fedor ruim de mau agouro.
Não, talvez nosso destino fosse descobrir os horrores que se escondem nos túneis que ficam sob a prisão.
Porque aquela era a única saída: o rio que corria nas profundezas subterrâneas de Furnace. Não sabíamos aonde ele daria. Tampouco nos importava. Qualquer lugar que não fosse Furnace estaria ótimo para nós.
Pelo menos, pensávamos assim.
Oh, sim, sob o céu está o inferno, e, sob o inferno, a Penitenciária de Furnace. Mas os horrores que rastejavam e se banqueteavam abaixo daquilo, estes sim eram um castigo realmente adequado para alguém como eu.
Então você a tem. A minha confissão, quero dizer. Pode não parecer o melhor momento para compartilhá-la, mas é engraçado o que passa pela cabeça da gente quando se mergulha na escuridão com apenas rochas afiadas como navalhas e corredeiras de um rio abaixo prontas para fazê-lo em pedaços durante sua queda.

 


 


O RIO

Cair naquele rio foi como despencar para a morte.

A primeira coisa que ele tomou de mim foi a respiração, que me foi arrancada quando mergulhei em puro gelo líquido. Senti os pulmões se encolher, o último fragmento de oxigênio sendo expulso de dentro de mim. Tentei respirar mais uma vez, mas tudo o que consegui aspirar foi água fria, os dedos da morte descendo pela minha traqueia e me enchendo de escuridão.

A corrente era tão forte que envolvia meu corpo e o atirava contra as rochas como se eu fosse um boneco de pano. Senti a dor rasgar minha perna esquerda, e logo depois minha cabeça explodiu com a luz e o barulho ao fundo, e fui arremessado contra uma pedra irregular. Tentei nadar, tentei me agarrar às paredes do túnel, tentei fazer qualquer coisa além de ser triturado e transformado em uma massa de carne sangrenta pela força devastadora da água.

De início achei que estava conseguindo, a dor me deixando e me fazendo sentir como se descesse um rio de seda. Só que eu sabia que estava sendo rasgado em tiras, a agonia substituída por torpor e por aquele tipo de calor doentio que é apenas um truque da mente para mantê-lo calmo enquanto os últimos vestígios de vida se desvanecem.

Parei de lutar, entregando-me ao túmulo aquático. Não era justo. Donovan, Zê, Toby e eu tínhamos feito tudo certo — havíamos encontrado a fenda no chão da Sala Dois, roubado as luvas cheias de gás da cozinha e explodido o lugar inteiro. Deveríamos estar li-vres. O rio deveria ter sido nossa via expressa particular para fora de Furnace, carregando-nos aos risos à superfície, onde poderíamos nos banhar na luz das estrelas, uivar para a Lua e sentir o suave ar da noite na pele.

Mas, em vez disso, era como outra das bestas cruéis do diretor, um cão que nos segurava nas mandíbulas espumantes e nos sacudia até estarmos destruídos.

Morreria ali, eu sabia disso. E de repente aquela situação não parecia mais preferível à vida em Furnace. De repente, desejei estar de volta à cela, à luz e ao calor. Porque até mesmo o guarda mais sádico e o membro mais cruel da gangue dos Caveiras poderia hesitar, mas o rio, não. O rio tinha uma força furiosa, inesgotável, que fazia até mesmo o diretor parecer mais humano.

Senti meu corpo sacudir, senti algo bater na escuridão profunda dentro de mim. De novo tentei respirar, os pulmões explodindo. O barulho da água começou a diminuir, como se o rio tivesse me ouvido. Não me sentia apavorado, nem triste. Não sentia nada.

Porque esse era o último pedacinho de mim que o rio roubava, esvaindo em sangue minhas emoções e me deixando como uma casca vazia enterrada em um caixão de gelo no fundo do mundo.

Queria abrir os olhos, mas não conseguia. Você está morto, disse uma voz, talvez de outra pessoa, talvez a minha própria. Pessoas mortas não abrem os olhos.

Fazia sentido, mas ainda assim eu queria abri-los. Só não conseguia me lembrar como fazer isso. Foquei a escuridão, desejando que algo acontecesse, rezando para minha visão funcionar. Muito lentamente, a tela negra diante de mim se dividiu, uma fraca réstia dourada deslizando para dentro do meu cérebro. Não me aqueceu, mas começou a levar embora os calafrios que percorriam meu corpo.

Consegui sentir o torpor diminuir, e em seu lugar surgiu uma agonia esmagadora e profunda, tão profunda que vomitei. Era principalmente água do rio, mas podia sentir outra coisa sendo expelida, algo que arranhava e era pesado; uma coisa que havia envolvido minhas entranhas desde que tinha pulado.

Inclinei a cabeça para trás, meu corpo tomado por um fogo congelante, e tentei me concentrar na luz. Sabia o que era, é claro. Era o fim, a vida após a morte me chamando, as coisas que as pessoas veem quando estão agonizando. Não me importava mais. Ela podia me levar para onde eu merecesse, contanto que pusesse fim àquele sofrimento.

Tentei estender as mãos, dar-lhe as boas-vindas. E por um momento a luz ficou mais brilhante, tão intensa que me senti como banhado em ouro. Depois ela desapareceu, atirando-me de novo na escuridão e no sofrimento.

Você é mau, disse a voz em minha mente delirante. E pessoas más não vão para o céu.

Tentei gritar, mas era esforço demais. O mundo deslizou, estremeceu e desapareceu.

A vibração do chão me trouxe de volta, salvando-me do abismo. Nem tentei abrir os olhos dessa vez; apenas me agarrei à sensação de movimento que sentia abaixo de mim, o leve tremor que me fez saber que ainda estava vivo. Embora meu corpo pulsasse de dor, sabia que não estava deitado na pedra fria do túnel. O que quer que fosse, era macio e proporcionava um leve calor, ao qual me agarrei com o que restava de minhas forças.

Senti um peso sobre os ombros, algo que me atraía em sua direção. Por um momento, minha mente se desprendeu, e foi como se eu estivesse deitado na minha cama em casa, apenas um garoto ardendo em febre, minha mãe me abraçando e se recusando a me deixar me desvencilhar, mesmo quando eu tentava me esquivar.

Então ouvi o barulho do rio, e tudo voltou correndo à minha mente como ácido — a explosão, a luta com os ternos-pretos, o som dos cães mutantes quando tentavam abrir caminho entre as pedras caídas atrás de nós e, depois, o salto para o desconhecido. Lutei para trazer de volta a lembrança de minha mãe, mas ela havia sumido, sugada pelas sombras como qualquer outra parte de mim. Pressionei a cabeça contra o chão macio, tentando me esconder do medo e da dor.

Mas eles me encontraram, e mais uma vez fui atraído para o esquecimento.


Dessa vez havia vozes, marteladas tão fortemente no subconsciente que podia tanto senti-las quanto ouvi-las.

— ...conseguiu se mover...

— ...não o estão deixando...

— ...quebraram o homenzinho, vamos todos morrer por causa dele...

— ...não pode ir, você tem a única luz, não pode...

— ...acabaram com ele de verdade; é melhor sair daqui, ou você também...

À deriva, uma nuvem negra se apoderou de novo de minha mente. Entrei em pânico. Algo estava acontecendo. Precisava ficar desperto. Lutei contra a agonia, contra a parte de mim que queria apenas desaparecer no nada. O chão se movia, alguém me segurava com força. Braços finos em torno dos meus ombros.

— Gary, afaste-se, ele ainda pode nos tirar daqui. Dê-lhe mais um minuto.

A cada palavra, a forma debaixo de mim vibrava. Mais lembranças chegaram flutuando: dois amigos pulando a meu lado, e um terceiro. Gary Owens — o psicopata que havia assumido a liderança dos Caveiras, que já havia roubado de Deus sabe-se lá quantas vidas a sangue-frio.

Pensar nele fez correr mais adrenalina em minhas veias que o efeito do rio em meu corpo; dessa vez, consegui abrir os olhos. A luz ainda es-tava ali, tímida e mais prateada que dourada. Irradiava de uma som-bra abaixo dela, mais precisamente de uma forma negra desenhada contra as paredes cinzentas que agora se movia em minha direção. Pisquei, quase podendo ver as veias vermelhas dos meus olhos se destacar na escuridão. A sombra entrou em foco, assumiu um contorno: um cor-po musculoso com um rosto impassível que me encarava com desprezo.

— Bem na hora, homenzinho — disse Gary, cuspindo um monte de muco sangrento na pedra. Percebi que seu rosto tinha um corte feio e que um fio constante de gotas vermelhas caía de sua manga esquer-da. — Você estragou tudo; vai fazer todos nós sermos mortos.

— Alex? — ouvi uma voz atrás de mim, fazendo o chão tremer de novo. Olhei para cima, e parecia que alguém puxava os tendões do meu pescoço com uma pinça em brasa. Zê estava sentado a meu lado, me abraçando, o corpo ainda tremendo. Tentei me levantar, mas por um segundo ele não deixou, seus braços me apertando. Coloquei uma das mãos sobre a dele, apertando-a tão forte quanto meus dedos deslocados permitiam, e ele enfim desabou.

— Jesus, você voltou da morte — falou, enquanto eu tentava me levantar. — Vi quando bateu a cabeça em uma pedra.

— Algum de vocês...? — gaguejei, tentando me manter o mais firme possível, para que a dor não voltasse a se intensificar. Não estava funcionando. Coloquei as mãos nas têmporas, e ambas ficaram vermelhas.

— Eu peguei você — explicou Zê. — Consegui alcançá-lo e tirá-lo de lá.

— E quanto a Toby? — perguntei. Houve um momento de silêncio até que um suspiro trêmulo de Zê o rompeu.

— Não teve como — respondeu ele. — Toby foi destruído pela explosão. Sinto muito, Alex.

— Devíamos tê-lo deixado lá em cima — disse eu, a tristeza atacando meu estômago e me causando tanta agonia quanto os ferimentos na pele. Meu mundo girou de novo, a imagem de Toby, o garoto mais jovem que havia conhecido em Furnace, ferido e dilacerado contra a rocha, mesclada à do meu amigo de mesmo nome, assassinado com uma bala na cabeça pelos ternos-pretos e repousando em seu leito vermelho. Era demais. A escuridão do túnel invadiu novamente minha visão, e o som do rio emudeceu.

— Alex, Alex! Fique conosco! Lute!

As palavras me trouxeram de volta, cada uma como um bote salva-vidas que me tirava das sombras.

— Conseguimos? — indaguei, olhando o rio lá embaixo. Podia ser fruto da minha imaginação, mas achei ter visto um facho de luz descendo do teto do túnel atrás de nós. Era o buraco através do qual tínhamos saltado, e dele vinha o som inconfundível de uma sirene.

— Sim, conseguimos — murmurou Gary entredentes. — Conseguimos mijar mais longe. Grande plano, homenzinho.

Gary se virou, e pela lâmpada em seu capacete consegui ver que estávamos em um trecho estreito do túnel, a faixa espumante de água correndo, como se quisesse nos sugar de volta. Dobrava à esquerda, além da faixa de rocha vermelha onde estávamos: não era largo o suficiente para uma passagem, mas baixo o bastante para ser escalado.

— Ainda estamos muito perto — falou Zê.

— O que faremos agora? — perguntou Gary, apoiando-se na sa- liência da pedra até ficar em pé na minha frente. — É melhor me dizer, ou juro que vou partir seu crânio.

— Por que sou eu que tenho que... — tentei dizer, mas Gary soltou a resposta antes que pudesse terminar.

— Você nos arrastou para cá, agora tire-nos daqui.

— Não há como eles virem atrás de nós — respondi, tentando não gritar enquanto movia a perna, sentindo agulhadas em todos os ner- vos. — É suicídio. Nem mesmo os ternos-pretos conseguiriam saltar ali em segurança.

Assim que disse isso, soube que devia ter ficado de boca fechada. Quero dizer, se aprendi alguma coisa em Furnace, foi a não contar com a sorte. Porque o destino não quer mais nada com pessoas como eu, exceto nos ver sofrer.

Algo caiu do buraco no teto, uma forma retorcida que rodopiou através da luz que piscava e bateu com força na torrente furiosa, com um ruído que era grande demais para ser um homem.

— Oh, meu Deus! Não estão mandando os guardas — exclamou Zê, a voz falhando. — Outra forma caiu como um peso morto; esta uivou ao atingir a água. — Estão mandando os cães.


CAÇADOS


Tentei me levantar, mas meu corpo não obedeceu. Felizmente, Gary ficou mais do que satisfeito em me dar uma mão. Duas, na verdade. Avançou alguns passos e agarrou o colarinho de meu esfarrapado macacão da prisão, colocando-me de pé e me sacudindo com força suficiente para fazer meus dentes ranger. Puxou-me para perto dele, olhando-me com os olhos perversos de cobra venenosa.

— E agora? — gritou ele, gotículas de sangue e saliva atingindo em cheio meu rosto. — É melhor ter um plano, ou vai virar comida para os cães.

Um plano... Eu só conseguia pensar em uma coisa. Deitar e morrer. Era tudo o que minhas pernas desejavam fazer: ceder sob o peso do corpo e me deixar ali, pronto para ser devorado pelos cães. Seria rápido, pensei. Aquelas imensas mandíbulas caninas, os músculos aparentes e aqueles dentes... uma mordida, talvez duas, e tudo estaria acabado. Eu devia estar delirando, porque o pensamento de ficar livre de minha carne machucada quase me fez rir.

— Por que você não pensa em algo? — Quase cuspi em resposta. — Eu não o trouxe até aqui? Agora é a sua vez.

Gary me olhou como se fosse arrancar minha cabeça. Então, soltando um resmungo contrariado, me empurrou para trás. Tropecei, mas Zê me segurou antes que eu caísse. Um uivo veio de dentro da água, perigosamente próximo.

— Vamos, Alex — sussurrou Zê em meu ouvido. — Temos que achar uma saída. Não quero morrer aqui embaixo; não desse jeito.

Suas palavras me acordaram do desvario, fazendo-me prestar atenção. A lâmpada do capacete de Gary movia-se da esquerda para a direita, como se buscasse uma saída, mas não havia nenhuma — não existiam passagens ali. A única coisa que víamos em todas as direções eram pedras.

Em todas as direções, exceto em uma.

— Temos que voltar para o rio — gritei, tentando me fazer ouvir em meio ao barulho da água.

— Nem pensar, cara — replicou Gary, a voz trêmula. — Quase morri da última vez. Não vou voltar para lá de jeito nenhum.

— Não temos escolha — prossegui, cambaleando sobre o chão irregular e aproximando-me da correnteza furiosa. A água golpeava a rocha sob meus pés, desesperada para se apoderar novamente de nós, para terminar o trabalho que havia começado. Mas realmente não havia alternativa; em segundos, as criaturas monstruosas do diretor estariam sobre nós. — Você prefere esperar aqui e virar bolo de carne? Vamos voltar para o rio; será mais fácil dessa vez.

Gary se aproximou de mim pisando duro, os punhos erguidos em posição de ataque, mas, o que quer que tivesse planejado fazer, jamais teve chance. Um assombroso ranger de dentes se fez ouvir, e ele se voltou abruptamente. A lâmpada do capacete focalizou dois olhos prateados e incontáveis dentes pontiagudos emergindo de uma baba espumosa. O cão lutava para se libertar da corrente, as garras lançando centelhas ao rasparem na rocha. Uivou, tentando movimentar-se no chão sólido, as patas de trás se esforçando para avançar.

— Fui! — gritei, inspirando profundamente e me lançando de novo ao rio. Dessa vez eu sabia o que esperar, abracei a mim mesmo devido ao frio e tentei segurar o máximo de ar nos pulmões. O rio parecia me tragar, jogando-me para a frente, mas estendi os braços e flexionei as pernas, mantendo uma das mãos contra a parede à minha esquerda para tentar me estabilizar.

Atrás de mim, ouvi o barulho de mais dois caindo na água. Alguém gritou, mas não compreendi, as palavras sufocadas pela torrente de água em meus ouvidos. Virei-me, arranhando o ombro em uma pedra, que mais parecia um ralador de queijo. Gary ainda estava sob a água, tentando voltar à tona; a escassa luz da lâmpada do capacete de Gary estava meio submersa, seu brilho se assemelhando a uma água-viva no mar profundo.

Zê havia desaparecido. Também não via mais os cães, mas isso não significava que não estivessem ali, na escuridão do túnel.

Lutei contra o pânico, tentando nadar contra a corrente em direção a Gary. Não que me importasse se ele estava se afogando ou não, mas precisávamos daquela luz. Alcancei-o sob a superfície, agarrando um punhado de tecido e pele e puxando o mais forte que podia. Ele emergiu, engasgado, tentando respirar e me segurando com punhos de ferro.

— Mantenha a cabeça fora da água — gritei, tossindo quando uma ondulação encheu meus pulmões de água. — Procure uma saliência, uma escarpa, qualquer coisa!

Não sei se ele me ouvia ou não, a respiração entrecortada pelo pânico e pelos palavrões murmurados, que não cessaram nem mesmo quando ele colidiu com uma pedra.

Gary girou, a lâmpada iluminando por um breve segundo o caminho por onde havíamos vindo, mas deixando em minha mente uma imagem que perduraria muito tempo: o rosto aterrorizado de Zê e, atrás dele, quatro olhos cintilantes e demoníacos aproximando-se rapidamente. Muito rapidamente.

Desviei para evitar colidir com outra rocha afiada e irregular que surgia em meio à água, e depois agarrei com força o macacão de Gary, enquanto o rio rumava para um declive. A água cobriu minha cabeça quando mergulhamos em um fosso quase vertical, mas não foi uma queda longa, e pude respirar de novo quando a água voltou a se nivelar. Ainda bem, pois a morte me aguardava à frente outra vez, o rio desaparecendo em outro grande fosso.

Maravilha. Morte por dilaceramento atrás de nós, morte por afogamento à frente.

E isso foi tudo o que tive tempo de pensar antes de ser sugado em um turbilhão para o abismo. Sentia-me dentro de uma máquina de lavar, meu corpo girando tão rápido que achei que meus braços fossem sair voando e meus globos oculares pular para fora das órbitas. O rio continuava a nos levar cada vez mais fundo dentro da terra.

Irrompemos em outra extensão do túnel, a água ainda fluindo rápido, mas o rio agora mais amplo e menos furioso. Vi Gary e o agarrei, sentindo seus braços em torno de mim como se fôssemos os melhores amigos desde sempre. Houve um grito de pânico quando Zê emergiu, e depois um dueto de latidos queixosos enquanto os cães se esforçavam para respirar.

— Ali — falei, segurando a cabeça de Gary e virando-a para que a lâmpada do capacete iluminasse um trecho da parede à esquerda. Uma série de fendas sombrias levava até uma estreita saliência acima da água; era íngreme, mas conseguiríamos escalá-la. — Vamos subir ali — disse, quase sem fôlego. — Pelo menos até os cães irem embora.

Nós nos separamos e nadamos até a saliência, meus membros parecendo ter sido empalhados com chumbo, a cabeça atordoada como se houvesse um sino de igreja soando a meu lado. O rio quase nos arrastou, mas consegui me agarrar a uma ponta saliente de rocha e me livrei de seu contato úmido e gelado. Gary estava à frente, escalando a parede com uma velocidade que só podia ser fruto de genuíno terror.

Ouvi um grito atrás de mim e avistei Zê lutando contra a corrente. Segurei com força a rocha saliente e estendi-lhe a mão, alcançando-o quando passou por mim em alta velocidade. A correnteza era poderosa demais, ameaçando tragar nós dois, mas consegui puxá-lo para perto de mim.

Ainda bem. Assim que ele saiu da água, um focinho apareceu, os dentes pontiagudos se fechando a poucos centímetros de sua cabeça. O cão lançou-se em nossa direção, as articulações em carne viva reluzindo à luz mortiça da lâmpada no capacete de Gary. Mas não havia margem onde o animal pudesse se apoiar. Ele ainda se agarrou à rocha por um tempo, que mais pareceu uma eternidade, as mandíbulas se movendo freneticamente. Então outro cão veio deslizando em velocidade, tragado pela corrente e ganindo. Bateu direto contra o primeiro, arrancando-o da rocha, e os dois foram arremessados à escuridão.

— Gary, espere aí — disse Zê, ofegante, enquanto ouvíamos os ganidos lastimosos desaparecer. — Não conseguimos enxergar nada aqui embaixo.

Só Deus sabe de onde tirei forças para subir. Mas, de algum modo, consegui, trazendo à tona algo desconhecido em mim, uma energia animalesca e instintiva. A cada centímetro avançado, sentia-me de volta ao ginásio da prisão, lutando contra os Caveiras, pontapés e golpes chovendo sobre mim. Eis, porém, um fato engraçado sobre a dor: quanto mais familiar ela se torna, mais fácil ignorá-la.

Percebi que a luz lá em cima não se movia mais. Gary havia atingido a saliência e, embora não tenha oferecido ajuda a nenhum de nós para escalarmos a rocha, esticou a perna para que pudéssemos nos segurar nela. Vindo de Gary, era o equivalente a dizer que nos amava. Zê desmoronou no chão, e sentei-me junto dele, olhando o rio lá embaixo. Ele se perdia nas sombras, seu rugido incessante sendo a única coisa que nos lembrava que ainda estava lá.

— Para onde vamos agora? — indagou Gary por fim. — Conseguimos nos livrar dos cães, mas onde está a saída, homenzinho? Você zoou tudo.

Eu o ignorei, tentando ter uma ideia do que nos cercava. A saliência onde estávamos era estreita, mas estendia-se ao longo da caverna. Banhadas pela luz fraca, as paredes rochosas eram cheias de reentrâncias escuras, semelhantes às das salas de escavação. A maioria provavelmente não era nada além de ranhuras na rocha, mas devia haver uma passagem ou algo parecido por ali.

Devia haver?, as palavras ecoaram em minha mente. Não devia haver coisa nenhuma. Aquilo não era parte da prisão, não havia sido projetado por um arquiteto nem escavado na rocha por mentes racionais. Era um rio com mais de um quilômetro e meio de extensão sob a superfície esculpida por cruéis e caóticas forças da natureza. Ninguém antes de nós jamais colocara os pés ali. Éramos os primeiros, e o rio não nos deixaria prosseguir.

— Não tem saída — murmurou Gary, mais para si mesmo do que para nós, balançando-se para a frente e para trás, fazendo sombras se projetar em movimentos soturnos pela caverna. — Vamos morrer. Vamos morrer mesmo.

— Não. Encontraremos uma saída — retrucou Zê, sentando-se e pousando uma das mãos em meu ombro. — Você nos tirou de Furnace, certo? E ninguém jamais conseguiu isso. Vamos encontrar um jeito, tenho certeza.

Queria concordar. Queria me levantar, sair dali e encontrar uma rota de fuga. Mas, no fundo, sabia que Gary estava certo.

— Estamos enterrados vivos aqui embaixo — disse ele. — Enter- rados vivos.

Era verdade. O diretor da prisão podia ter nos trancafiado em Furnace, mas fui eu que providenciei nossa execução. Porque aquilo não era de modo algum uma saída. Era uma tumba.


ENTERRADOS VIVOS


Quando você está apavorado — e com isso quero dizer realmente apavorado, não apenas com medo por ter escutado um ruído à noite ou de encarar alguém com o dobro do seu tamanho que quer jogá-lo no chão —, parece que a própria escuridão corre em suas veias. É como se uma água escura tão fria quanto o gelo se infiltrasse em seu corpo, onde antes costumavam estar seu sangue e sua essência, extraindo todos os outros sentimentos de você, enquanto o consome dos pés à cabeça. Você fica oco por dentro.

Foi assim que me senti sentado ali. Não eram os cães que me aterrorizavam, nem Gary. Tampouco o pensamento de ser preso de novo. Não era sequer a ideia de que poderia morrer tremendo e desamparado sobre aquela rocha, vítima de algum fungo venenoso e desconhecido. Não. O que me aterrorizava era a ideia do que poderia acontecer após a morte.

Podia aceitar bem o fim de minha existência, pois não haveria mais medo nem sofrimento. Mas e se a morte não fosse o fim? E se alguma parte de mim, talvez minha alma, sobrevivesse? E se ela fosse man-tida ali nas entranhas de Furnace pelo resto dos tempos, jamais vendo de novo o sol ou ouvindo o som de risos? Era isso que fazia meu corpo parecer um poço desprovido de vida e luz. Era isso que estava me levando à loucura.

— Vamos por ali — sugeri, mais para afastar as vozes que sussurravam na minha cabeça do que por ter um plano. A claridade fez minhas retinas arder, quando Gary se voltou para mim. Estendi a mão, apontando a escarpa lá embaixo, na mesma direção em que o rio se estendia. — Gary, você é quem tem a luz, então assuma a liderança. Certifique-se de não perder nenhuma passagem oculta, pois uma delas pode ser a nossa saída.

— Pode mesmo? — cortou Gary, tão ameaçador quanto um tiro de pistola. Mas era óbvio que não tinha nenhuma ideia melhor, por isso levantou-se com dificuldade e virou a cabeça na direção para a qual eu havia apontado. A lâmpada do capacete iluminou apenas o caminho logo à frente, porém o restante desaparecia dois ou três passos adiante.

— Vá de-devagar — gaguejei, enquanto um calafrio percorria todo o meu corpo, fazendo arder dolorosamente cada nervo. — Preste atenção onde pisa; se despencar daqui, será o fim para todos nós.

Gary não respondeu, mantendo a cabeça voltada para a frente ao deslizar com cautela, pé ante pé, ao longo da superfície rochosa. Seus pés chutaram lascas de pedra no vazio, e tentei ignorar o som delas atingindo a água espumosa lá embaixo. O rio já havia permitido que sobrevivêssemos duas vezes, mas eu podia apostar que não mostraria a mesma misericórdia se caíssemos nele novamente.

— Vamos — sussurrei, estendendo a mão para Zê e puxando-o para cima. — Antes que esse idiota nos deixe para trás.

Seguimos atrás de Gary com cuidado, fazendo de tudo para olhar por sobre os enormes ombros dele. A cada passo, as sombras na parede projetavam-se em movimentos descontrolados, e era impossível não lembrar dos Ofegantes — aqueles estranhos seres com máscaras de gás — retorcendo-se diante de nós como pássaros agonizantes. Toda vez que avistava uma sombra, meu coração batia acelerado, o que não era de todo ruim, pois o medo parecia ser a única coisa que nos mantinha em contato com a realidade.

— Esse caminho não vai nos levar a lugar nenhum — ouvi a voz trêmula de Gary dizendo. — É tudo igual aqui em cima; não tem nada que se pareça, nem de longe, com uma porta.

— Está esperando ver uma porta? — perguntei, incapaz de conter o riso histérico que me escapava da garganta. Gary não respondeu nem se virou, mas podia jurar que senti o ar ficar mais denso devido à tensão, como se ele estivesse prestes a explodir. É claro que Gary tinha razão. Não importava quantos passos déssemos, a parede à esquerda e o abismo negro como piche à direita permaneciam exatamente os mesmos. E cada passo hesitante à frente iluminava um pouco mais o caminho adiante, mas também deixava escuro o espaço atrás de nós. Era como se andássemos em uma esteira mecânica.

A imagem trouxe de volta o temor de me tornar um fantasma aprisionado ali por toda a eternidade. Enfraquecida à beira da loucura por tudo que havia acontecido, minha mente tentava agora me convencer de que eu já estava morto; que aquele era meu inferno pessoal.

E podia ser mesmo. Quero dizer, mais que qualquer outra coisa, o avanço pela escuridão fazia-me recordar da época em que tinha invadido casas e rastejado pela penumbra enquanto os proprietários dormiam, tentando desesperadamente não fazer nenhum ruído, sempre em pânico por talvez não conseguir escapar em caso de emergência e ser flagrado. Poderia haver melhor punição para um criminoso como eu do que ser condenado a passar a eternidade andando por uma superfície rochosa com apenas um fio de luz e um pouco de ar, que pareciam, a cada passo, diminuir?

— Cuidado! — avisou Gary, quando bati em cheio em suas costas. — Está tentando me empurrar? Arranco suas tripas se tentar fazer isso de novo. Está me escutando?

Eu me envolvera tanto em meus pensamentos de ruína eterna que não percebi que Gary tinha parado. Murmurei um pedido de desculpas, apoiando uma das mãos na parede para poder ficar na ponta dos pés e ver o que o havia detido. A visão era idêntica a tudo que tínhamos visto nos últimos minutos, exceto por uma escarpa denteada que descia pela parede em sentido vertical. Ela se dividia em duas, assumindo o formato de uma cruz rudimentar, como se aquele espaço fosse uma imensa catedral e estivéssemos violando seu altar.

— Siga por aí — sugeri, sem me preocupar em deixá-lo mais irritado. — Pode ser que esse seja o caminho.

— Vá você — replicou ele com voz trêmula. — Não parece certo seguirmos por aqui.

Ponderei o que o havia assustado. A saliência à frente não parecia nem um pouco mais traiçoeira do que havia sido o tempo todo, exceto pelo trecho onde era cortada pela metade. A fenda na parede era bem marcada e escura, mas não representava nenhum tipo de ameaça.

Então ouvi um ruído acima do rugido estrondoso do rio lá embaixo. Era um som muito alto, e fiquei pensando como nenhum de nós o havia percebido antes — um silvo que se elevava, como uma velha chaleira antes de sucumbir ao fogo e desaparecer, incinerada, no próprio eco.

— É o vento — falei, mas sentia-me tão inseguro que a frase mais pareceu uma pergunta.

— Significa que estamos próximos da superfície, certo? — ouvi a voz de Zê atrás de mim. Assenti com a cabeça.

— Há vento nessas cavernas, assim como há água. Não significa que estamos salvos.

O silvo surgiu de novo, agora mais próximo, mais alto e mais prolongado. Outro se sobrepôs a ele, um som agudo que mais parecia um grito, antes de ser sufocado pelo ruído da água. É o vento, pensei, tentando fincar as palavras como estacas em minha cabeça, de modo a não ousar questioná-las. O vento nos túneis, causado pela oscilação de pressão na água.

Mas eu sabia que, o que quer que tivéssemos ouvido, não era produzido por nada tão inocente como o ar. Mais silvos, três ou quatro dessa vez, um lutando contra o outro em busca de supremacia. Gary praguejou e voltou-se para mim, as pupilas dilatadas e o branco dos olhos reluzindo tão ferozmente ao redor delas que mais parecia um animal. Sussurrou algo que não consegui ouvir, mas não havia dúvida do que seus lábios haviam proferido.

Os Ofegantes.

— São eles? — perguntou Zê, a voz à beira do choro. — Por favor, Deus, não permita que sejam eles.

Sacudi a cabeça até que todos os pensamentos envolvendo aqueles seres estranhos com máscaras de gás desaparecessem, então dei um passo à frente. Gary abrira caminho para mim, e me dirigi à fenda na rocha, o coração tão próximo da garganta que conseguia sentir as batidas nas amígdalas.

— Não devem ser eles — falei por sobre o ombro assim que atingi a beira da escarpa. — Pode não ser nada. Apenas estamos com medo, um pouco paranoicos. Esqueçam o barulho, certo? Tudo que precisamos é encontrar uma saída. Vamos deixar para nos preocupar com os Ofegantes quando chegar a hora.

Uma mistura de observações sussurradas foi proferida ao fim da minha frase, mas ninguém discutiu a questão. Encarei isso como um bom sinal. Apoiei-me na beirada da rocha fendida e examinei seu entorno. A fenda devia ter uns dois metros de largura; a rocha continuava do outro lado, mas estava distante demais para saltarmos até ela. Sem iluminação suficiente, não era possível determinar aonde a fenda dava, se é que ela dava em algum lugar.

— Gary, preciso da lâmpada.

Em vez de entregá-la a mim, ele parou do meu lado, as mãos ásperas segurando meu braço — uma promessa velada de que, se tropeçasse e caísse, me levaria com ele. Inclinou-se, hesitante, e dirigiu a luz trêmula na direção da penumbra. As sombras se dissiparam, relutantes, como se aquela fosse a primeira vez que viam a luz. A fenda se afinava até se tornar apenas um ponto — não havia passagem.

— Olhe para cima! — ordenei. Se tivesse falado assim com Gary antes, ele teria me furado sem pensar duas vezes. Mas ali onde estávamos as coisas eram diferentes. Ele jogou a cabeça para trás, cambaleando sem firmeza à beira do precipício e enterrando seus dedos em minha pele ferida. No entanto, a dor valeu a pena, pois a luz fraca encontrou outra porção de rocha oculta nas sombras. Fiz menção de abrir a boca para comunicar meu achado, quando o ruído surgiu de novo, e o modo como progrediu, guinchando pela escuridão para a qual eu olhava, deixou clara sua procedência.

— Encontre outra saída — pediu Gary num fio de voz.

— Não há... — comecei, mas, antes que pudesse terminar, suas mãos haviam soltado meu macacão e estavam em volta do meu pescoço. Ele girou, torcendo nossos corpos até ficarmos perigosamente próximos da beirada da fenda. Podia sentir o ar frio vindo do rio abaixo, como uma língua gelada tentando me alcançar, e por um instante tive a impressão de já estar caindo.

— Mandei encontrar outra saída! — gritou Gary. — Ou vai ter que nadar.

— Gary! — gritou Zê.

Eu não ofereci resistência. Parte de mim queria que ele me soltasse, que me lançasse à morte. Parte de mim queria se tornar um fantasma só para vê-lo lutando para encontrar uma saída sem mim; só para que eu pudesse rir enquanto ele lentamente morresse de fome nas en-tranhas da Terra. Quase disse tudo isso a ele, mas felizmente me contive e fiquei de boca fechada. Não se faz esse tipo de gracinha com pessoas como Gary.

— Não há outra saída — repeti, desviando meus olhos dos dele. — Também não podemos voltar. Não conseguiremos saltar para o outro lado da rocha. Não temos escolha.

— O que é aquilo lá embaixo? — perguntou Zê. Baixei o olhar, e Gary encarou esse gesto como um sinal de submissão. Puxando-me para trás, empurrou Zê para o lado e olhou para o espaço lá embaixo. Juntei-me a eles, espreitando como podia, e vi uma área circular mais escura alguns metros abaixo de nós. — Aquilo é um túnel, não é? — continuou Zê.

— Pode não ser — respondi. A fenda na rocha não parecia muito maior do que um de nós, e a ideia de entrar ali sem saber aonde daria ou quanto poderia se afunilar ao longo do caminho provocou um nó em meu estômago. — De qualquer maneira, por pior que seja, estamos melhor aqui em cima. Mesmo que aquilo seja um túnel, parece que segue mais para o fundo.

— Não me importo — retrucou Gary. — Desde que não me leve para próximo dos Ofegantes.

Não havia como discordar dele. Com outra dança assustadora de luzes e sombras, Gary se pôs a descer, resmungando ao se dirigir àquilo que parecia ser um túnel.

— Tem algo errado — falei para Zê. — Tenho um péssimo pressentimento. Acho mesmo que deveríamos subir, e não descer.

Mas, enquanto dizia isso, outro ruído arrepiante ecoou, como o som de unhas arranhando uma lousa, e, antes que terminasse, Zê já seguia Gary. Eu teria deixado os dois entrar naquela fenda escura com prazer, tão grande era meu terror de rastejar ainda mais para baixo naquele sarcófago rochoso. Mas, se os deixasse ir, ficaria sozinho na escuridão, e isso sem dúvida me levaria à loucura.

— Tem algo errado — falei de novo, mas minhas palavras se desmancharam no vazio. Então agarrei com firmeza na rocha e me pus em movimento, seguindo abismo abaixo.


O TÚNEL


A descida por aquele caminho irregular pareceu demorar uma eternidade. Estava tão escuro que tive que avançar deslizando os dedos sobre a rocha escorregadia e fria para encontrar onde me segurar, e, praticamente, a cada passo um dos meus pés escorregava, ameaçando me lançar no vazio. Sentia-me como uma isca — uma larva espetada no anzol, contorcendo-se de dor, enquanto descia rumo à garganta de algum predador aterrorizante.

Quando estávamos bem próximos do túnel, outros três silvos assustadores vieram de cima, cada um mais alto e mais frenético que o anterior. Minha maldita imaginação projetou a imagem dos Ofegantes na pedra diante de mim — centenas deles se materializando, uns sobre os outros, como moscas sobre um cadáver. Era loucura, é claro, não poderia haver tantos deles assim. Mas o volume crescente de guinchos deixava claro que o número lá em cima só aumentava.

— Mexa-se! — disse uma voz vinda de baixo. Supus que fosse Ga-ry, mas, quando olhei na direção da voz, vi Zê bem abaixo de mim, como se apoiado no vácuo da escuridão, fazendo-me um sinal com a cabeça. Gary estava perto dele, próximo da fenda pela qual prosseguiríamos. Não sabia por que não haviam entrado ainda, mas devia ter imaginado.

— As damas primeiro — murmurou Gary em tom zombeteiro, assim que concluí a descida.

— É você quem está com a luz — protestei, embora devesse ter economizado minha energia.

— Não vou falar de novo — rosnou o grandalhão. — Entre aí.

Olhei para Zê, mas seus olhos se desviaram dos meus. Eu não podia culpá-lo. O túnel mal dava para um de nós, tinha a mesma altura e a mesma largura de um caixão.

Proferindo todos os palavrões que conhecia, passei por Zê e enfiei a cabeça na penumbra. O ar lá dentro não tinha nada do frescor do rio. Era quente e denso, como o bafo de alguma criatura ancestral. Exatamente como na prisão.

— Tem algo errado — falei pela terceira vez, a escuridão me engolindo tão depressa que nem Gary nem Zê pareceram ter ouvido minhas palavras. Mordi os lábios para conter um grito de terror e avancei túnel adentro, arrastando-me até que meu corpo estivesse todo lá dentro.

O pânico se instalou de imediato. A sensação era de que não havia oxigênio e de que as paredes rochosas à minha frente e às minhas costas se fechavam, prestes a esmagar meus pulmões. Tentei voltar — era melhor encontrar a morte no rio ou ser capturado pelos Ofegantes do que morrer preso em um buraco, arranhando a rocha em busca da última porção de ar —, porém Gary já estava com metade do corpo no espaço atrás de mim. A luz do capacete quase não tinha espaço para ir além de mim, mas, com os finos raios amarelados que passavam, consegui avistar as paredes avermelhadas e ásperas se afunilando dali em diante.

Pensei em tudo que havia acontecido lá em cima, na prisão principal. Lembrei-me de quando Zê e eu fomos perseguidos pelos cães e resgatados por Donovan; do dia em que quase fui pego pelo verruguen- to quando rastejava para fora da Sala Dois; da luta entre os Caveiras e eu; Toby e eu erguidos por mãos gigantescas, enquanto o detonador seguia seu caminho até as luvas explosivas.

Em cada uma daquelas ocasiões aterrorizantes eu estava convencido de que a morte havia me encontrado. Agora, no entanto, olhando para trás, tudo o que tinha acontecido parecia um jogo divertido, uma excursão com a turma da escola. Desejei estar de volta à minha cela, com Donovan a meu lado, morrendo de rir porque Zê teria de limpar as privadas ou algo assim. Porque, comparada às entranhas de Furnace, com seu rio impiedoso e este túnel esculpido em pedra milenar, a prisão era um clube de campo.

— Vai logo — falou Gary com uma voz abafada.

Respirei o mais fundo que pude e segui adiante, os cotovelos esfolando-se na rocha enquanto rastejava. A cada movimento, a claustrofobia ameaçava me consumir, e várias vezes tive que parar, pois o medo ecoava em meu cérebro, fazendo todo o meu corpo tremer.

Não sei quanto tempo ficamos naquele túnel. Poderia ter sido uma vida inteira. Cada centímetro parecia levar horas para ser transposto, e, toda vez que eu conseguia mover o corpo um pouco mais para a frente, achava que aquele seria meu local de repouso eterno. Em algum lugar da minha mente, refleti sobre o que aconteceria se morresse ali. Gary e Zê não teriam alternativa senão retornar por aquele funil. Depois imaginei o destino de Gary se Zê e eu morrêssemos no túnel — aprisionado entre dois cadáveres enquanto a escuridão abria os braços para envolvê-lo.

Apesar daqueles pensamentos horrorosos, ou talvez por causa deles, comecei a rir — uma gargalhada descontrolada que mais parecia um soluço.

— Está vendo alguma coisa? — Era a voz de Gary, após o que poderia ter sido uma hora, um dia ou um minuto. — Está ficando sem ar aqui. É melhor ter uma saída aí na frente.

— Nada — repliquei, após o que pareceu ser uma eternidade. — O túnel está descendo. — Seu ângulo ficava cada vez mais agudo, num percurso descendente. E também mais estreito. Conseguia sentir o toque frio de Gary em meus ombros, dedos rochosos e gélidos sobre minha cabeça. — Temos que voltar. Não há mais espaço para passar aqui.

— Não podemos voltar — ouvi a voz de Zê, fraca e ecoando como se houvesse viajado um quilômetro de distância. — Não há como voltar.

— Então vamos em frente. Adiante — reagiu Gary, embora sua voz estivesse entrecortada, precisando de um pouco de ar após cada palavra. Aquilo com certeza era um inferno para mim, mas para ele, com aquele peito do tamanho de um tronco de árvore, devia ser infinitamente pior.

Limpei o suor da testa e obedeci, sentindo o sangue subir à cabeça enquanto avançava pelo túnel em declive. A superfície agora se tornara menos uniforme, e rochas angulosas sobressaíam pelo caminho, ameaçando deixar meus braços em carne viva. E o trajeto conseguiu piorar um pouco mais adiante, quando as paredes formaram um amontoado de rochas tão estreito que não conseguia enxergar nada além dele.

— Beco sem saída — falei, o corpo tremendo ao parar. — Não há como prosseguir além deste ponto.

— Não pare! — gritou Gary, como se berrar aquelas palavras pudesse, de algum modo, enfraquecer o obstáculo que havia diante de nós. Senti as mãos dele nas minhas pernas, me beliscando e me empurrando, e podia imaginar seus lábios grossos sugando o ar com força. Tudo o que podia fazer era revidar, chutá-lo até que não conseguisse mais respirar, mas, em vez disso, abri a boca e enchi os pulmões de oxigênio até o pânico desaparecer. Depois me arrastei para a frente, rezando para encontrar uma saída.

Não sei se alguém ou algo me ouviu, embora eu não consiga imaginar como. Quero dizer, nos arrastávamos por um caixão de pedra com mais de um quilômetro de rocha maciça e um amontoado de diversos outros praticantes de orações sobre nossa cabeça. O fato é que, quando atingimos as pedras, percebi que não era uma faixa tão estreita quanto eu havia imaginado. O túnel estava bloqueado por fragmentos de rocha que pendiam da parte de cima como lâminas de guilhotina, e a uma curta distância depois daquilo havia um monte sólido que se erguia do chão. Se estivessem um pouco mais juntos, seria o fim, mas parecia haver espaço suficiente para passarmos por ali.

Com cuidado, passei minha cabeça sob os fragmentos pontiagu-dos do teto, a extremidade impidosa ferindo minha cabeça e deixandouma marca no pescoço. Dei um impulso forte com os pés, gritando de dor ao deslizar sobre o monte, que elevava meu corpo. Por um momento, achei que o ângulo era distorcido demais e que minha espinha se quebraria, mas espremi minhas costas ossudas no espaço e deslizei mais um pouco, conseguindo me libertar.

Para meu alívio, o túnel parecia alargar depois daquele trecho, e, quando a cabeça de Gary emergiu da rocha retorcida, vi por quê. O túnel dava em uma caverna, tão grande que a lâmpada do capacete não deu conta de iluminá-la por completo. Era como se tivéssemos emergido em uma área ainda mais profunda e mais escura, com apenas uma saliência rochosa entre nós e o infinito.

— Ajude-me aqui — disse Gary, ofegante, as palavras saindo como sussurros de agonia. — Estou preso.

Teria sido fácil deixá-lo ali, preso em um abraço de urso de pedra maciça, roubar seu capacete e simplesmente fugir. Só que, de onde eu estava, podia ouvir os gritos frenéticos de Zê ecoando abafados pelo túnel, implorando que nos apressássemos. Ajoelhei-me e agarrei os braços trêmulos de Gary, sentindo o sangue quente e pegajoso em sua pele. Ele se soltou a uma velocidade tão cômica que eu podia jurar ter ouvido um estampido. O impacto de Gary contra meu corpo me distraiu, e ambos perdemos o equilíbrio, rolando pelas rochas e indo parar na superfície da caverna.

Tive sorte. Aterrissei com tanta força sobre o peito de Gary que um jorro de sangue lhe brotou dos lábios, reluzindo à luz mortiça. Ele tossiu, engasgado, e em seguida me empurrou, resmungando enquanto sentava.

— Fez isso... de propósito — disse, mas as palavras não tinham nenhum traço da fúria habitual. Gary era um tanque de guerra, porém algo ruim havia acontecido dentro dele. Era impossível sangrar daquele jeito e ainda ter as entranhas intactas.

— Você está bem? — perguntei.

Ele me encarou, o rosto parcialmente visível à luz da lâmpada do capacete; sua expressão era de genuína surpresa.

— Vou ficar — disse por fim. — Vou ficar ótimo, assim que dermos o fora daqui.

— Ei, caras — disse uma voz acima de nós, bem mais acima do que eu imaginava. — Como foram parar aí? Não consigo enxergar nada.

— Rolamos — respondi.

— Rolaram? — repetiu Zê. Podia ouvi-lo praguejar enquanto tentava lutar para descer pelas rochas. Ouviu-se um ruído de pedras rolando, seguido de um grito enquanto ele caía. Zê cambaleou um pouco, mas, ao conseguir ficar de pé, soltou uma risada de alívio. — Graças a Deus conseguimos sair dali. Achei que fosse morrer com o traseiro de Gary na minha cara. E vocês, estão bem?

Gary bufou, e imaginei se aquilo não seria um riso abafado. Ele passou a mão na boca, delineando em si mesmo uma bandana de sangue, e em seguida se levantou; seu corpo oscilava, e ele respirava com dificuldade.

— Eu me feri um pouco; isso é tudo. Não foi a primeira vez que tive que enfrentar dificuldades. Esse rio é um mar de rosas comparado ao meu pai.

Zê e eu trocamos um olhar que nenhum de nós conseguiu realmente interpretar, depois nos viramos para onde a lâmpada no capacete de Gary apontava. A escuridão na caverna era tão profunda que parecia devorar a luz fraca antes que conseguisse atravessar mais de alguns metros. Mas, ocasionalmente, quando a claridade varria o chão, entrevia-se a extremidade dourada de uma estalagmite em meio à penumbra.

— Vocês acham que há uma saída por aqui? — perguntou Zê, ajudando-me a ficar de pé.

Nem me dei ao trabalho de responder àquela pergunta idiota. Contentei-me em acompanhar Gary enquanto ele perambulava pela caverna. Cada passo que dávamos ecoava no teto da caverna — só Deus saberia dizer a que altura acima —, e o som abafado parecia o tamborilar de gotas de chuva gigantescas. Foi o suficiente para me fazer sorrir, até entender, infelizmente, que havia algo de errado com aquele ruído.

— Parem um pouco — sussurrei, detendo-me e agarrando o macacão de Gary para me certificar de que ele faria o que pedi. Senti a mão de Zê em meu ombro, mas, apesar de estarmos totalmente em silêncio e imóveis, como as rochas maciças que nos cercavam, o som de passos não cessou. Havia um ruído distinto de pés descalços em pedras úmidas, seguido por seu eco. Dois passos, três, quatro, e depois o silêncio.

— O que foi isso? — perguntei, percebendo que minha pergunta era tão inútil quanto a de Zê.

— Deve ser apenas água caindo — sugeriu Zê. — É assim que estas coisas se formam: estalagmites e estalactites. Vi isso uma vez em um documentário que meus pais assistiram. Sabem como distinguir uma da outra?

Não houve resposta, exceto o ruído de passos leves, mais rápidos dessa vez, como alguém correndo.

— Não é água — disse Gary, virando-se e apontando o capacete para além de onde estávamos. Toda a caverna pareceu se mover quando a luz percorreu o espaço que nos cercava, as sombras adquirindo vida como se fossem besouros. Mais passos vindos da esquerda; ruído de patas.

— Ali — disse Zê, apontando na direção do som. — Não, um pouco mais para a frente.

A lâmpada se moveu, captando outra parte de rocha que se elevava da superfície. Só que esta rocha tinha dois olhos prateados que refletiam a luz do capacete como se fossem planetas distantes.

A sombra ganiu, uma imensa boca úmida se abrindo em um formato distorcido, onde deveria estar a cabeça. Em seguida, lançou-se para a frente. Em uma fração de segundo, antes de Gary apagar a lâmpada do capacete, percebi um corpo brilhante, os músculos inchados demais sob a pele costurada, dando a aparência de um boneco de pano à criatura. Imaginei que fosse um cão, só que ele nos encurralava sobre dois pés, lançando os dedos esqueléticos em direção à nossa garganta.

Então a escuridão da caverna predominou, restando apenas o golpe implacável de seus pés e o ruído de sua garganta úmida para nos mostrar que a morte se aproximava.

 

 

UM NOVO AMANHECER


Podia ter tido uma chance. Podia ter sido mais rápido do que a besta se Gary não tivesse decidido me usar como isca. Por um instante, a luz res-plandeceu, mais brilhante do que nunca, e senti mãos ásperas em meu peito, empurrando-me para trás. Depois fez-se noite profunda, e caí na superfície irregular, colidindo com um vulto que se agigantou à minha frente e fez com que ambos tropeçássemos.

Achei que fosse a criatura e fiquei esperando pelos dentes no pescoço, pelas garras imundas em minha pele. Partindo para o ataque, atingi sua mandíbula com a palma da mão e ouvi um grito sufocado.

— Alex, sou eu!

Era Zê, as mãos cobrindo o rosto para se proteger de meus golpes. Resolvi dar uma utilidade melhor para meus punhos — apoiei-os no chão frio e me levantei, ajudando Zê a também ficar de pé. O cão estava tão próximo que eu conseguia sentir seus passos, um tremor incontrolável subia-me pelas pernas, e quase agradeci por Gary estar agora tão distante que tudo que emanava dele era um feixe fraco de luz amarelada — assim pelo menos eu não veria o pesadelo que estava em nosso encalço.

— Corra! — gritei, embora fosse totalmente desnecessário. Zê já estava na minha frente, desaparecendo como névoa em meio à penumbra, a respiração pesada sendo a única coisa a revelar sua presença.

Consegui correr também a toda a velocidade pela caverna, em-bora minhas pernas parecessem fraturadas em um milhão de lugares. É engraçado como o corpo humano pode encontrar força quando está realmente sob pressão, e não há nada como a visão de um mons-tro grotesco fungando em seu pescoço para ajudá-lo a atingir todo o seu potencial.

Eu só havia dado alguns passos quando tropecei em algo. Gritei — mais de susto que de dor —, sentindo a caverna girar enquanto caía com uma pirueta sobre os fragmentos de rocha.

Aquilo estava sobre mim antes que conseguisse me levantar — patas derrapando, depois garras como ferro em meu peito. A coisa gritou, um guincho de triunfo que perfurou meus tímpanos e coração, seu hálito, uma névoa densa, envolvendo-me como uma rede. Tentei pensar; tentei soltar meus braços; tentei lutar; tentei fazer qualquer coisa que não apenas aguardar minha vida ser tirada de mim. Mas a verdade é que estava apavorado demais para me mexer, apavorado demais para respirar, apavorado demais para pensar. Fiquei ali imóvel e silencioso, como se a criatura já tivesse me aniquilado.

Não tenho muita certeza do que aconteceu depois. Escutei o som de mais pés vindo em minha direção, rápidos demais para serem humanos. Ouvi um estalido bem acima da minha cabeça, e o peso morto foi tirado de cima de mim. Houve um grito, outro berro, o ruído de tecido raspando na rocha e uma pancada surda de um punho atingindo um corpo; resmungos, cuspidelas, e depois uma voz parecendo emergir da confusão:

— Vão! — ordenou a voz, soando como uma lixa raspando na madeira. — Não há muito tempo; levantem-se e corram.

Não esperei que ela repetisse a ordem. Levantei meu corpo dolorido e me afastei cambaleante, sem me importar para onde ia, só queria me distanciar daquele caos. Houve outro ruído, dessa vez seguido de um gemido patético, e então senti novamente mãos sobre meus braços, puxando meu corpo tão forte que pude sentir ferrões atravessar meu macacão. As mãos me obrigaram a me inclinar para a esquerda e depois me empurraram para a frente.

— Por aqui — disse a voz, um sussurro que, apesar de baixo, fazia o ar tremer. — E olhe por onde anda.

Ergui a perna o mais alto que consegui ao sentir o contato de uma pedra afiada na sola do pé. Ouvi um grito aterrorizante atrás de mim, seguido de outro, e os braços me empurraram com mais urgência, desviando-me de uma estalagmite que jamais teria visto.

— Quem é você? — perguntei em meio à respiração entrecortada.

— Não importa. Vocês precisam sair daqui.

— Mas por que... — Detive-me quando, ao fazer uma curva, avistei um ponto mais iluminado. Uma iluminação tão fraca, no entanto, que parecia os últimos resquícios de uma neblina matinal. A pressão so-bre meus braços desapareceu, deixando apenas a lembrança do toque, e virei-me para observar meu guia. Mas ele já recuava, o corpo desa-parecendo no que lembrava um céu estrelado.

Só que as centelhas brilhantes que via diante de mim não eram estrelas: eram olhos demoníacos de dezenas de criaturas que se aproximavam.

Virei-me e fugi, a luz agora brilhante o suficiente para que conseguis-se distinguir qualquer obstáculo que surgisse no caminho. Contornei cor-rendo um pilar de pedra esperando ver Gary, mas o brilho da luz não emanava dali. Fluía do interior de uma passagem à frente, forte de-mais para vir da lâmpada de um capacete. Sem dúvida, brilhante demais, pura demais para estar vindo de qualquer fonte artificial.

Meu estômago deu um nó tão forte que senti como se uma mão invisível fizesse cócegas em minhas entranhas. Demorei um momento para identificar o que aquela sensação significava: esperança. Fazia tanto tempo que não sentia aquilo! Foi como se meu ser ga-nhasse vida própria; como se houvesse algo maravilhoso dentro de mim ansiando pela liberdade, assim como eu.

Os gritos e o ruído de pedras sendo atiradas chamaram minha atenção. Lancei um olhar, um tanto perdido, à caverna, que parecia ter se transformado em um completo tumulto. Em seguida me concentrei na luz, deixando seu toque caloroso me impulsionar para a frente; ela pareceu ganhar força quando fiz uma curva, o corredor se ampliando e ficando mais alto, como se a própria rocha fosse sendo, aos poucos, levada em direção à luz. O caminho terminava em uma parede de rochas, mas havia uma fenda suficientemente grande para que eu conseguisse atravessá-la. Quando passei para o outro lado, avis-tei Zê, que atravessava uma abertura idêntica mais à frente e roía o pouco que restava de suas unhas. Ele também me viu, o rosto indo de uma expressão de medo a uma de total alívio em uma fração de segundo.

— Você está bem? — perguntou ele, correndo em minha direção. — Achei que tivesse morrido.

Apontei com a cabeça para o lugar de onde vinha a luz, agora com mais intensidade, refletindo nas paredes rochosas repletas de lascas afiadas.

— Parece... — comecei a falar, mas não me atrevi a terminar a sentença, com medo de chamar o azar. Zê me lançou um sorriso cansado enquanto colocava meu braço sobre seu ombro e me ajudava a prosseguir.

— O que aconteceu lá atrás? — perguntou, após dar alguns passos.

Balancei a cabeça em um gesto negativo.

— Não importa — repliquei por fim, pensando naquele estranho que havia me salvado. — Falamos sobre isso quando estivermos a céu aberto, assim que estivermos livres, certo?

— Combinado! — respondeu ele. — A saída não deve estar muito longe. A luz está mais forte. Aposto que Gary já está lá.

Seguimos adiante cambaleando e quase ficamos cegos: o corredor terminava uns trinta metros à frente, a passagem brilhando tanto que o próprio sol parecia estar nos aguardando do lado de fo-ra, e não no céu. Fomos atraídos para aquele brilho, o calor da luz parecendo um anestésico em nossa pele ferida. E a luminosidade também nos inundou por dentro, fazendo reluzir os vestígios de escuridão e aquecendo os resquícios de gelidez. Estava convencido de que poderíamos ter flutuado ao longo de todo aquele caminho restante se assim o desejássemos, capturados e conduzidos para casa por um rio de luz dourada.

Ficamos tão ocupados sonhando que nenhum de nós pensou em como a luz do dia podia ter penetrado com tanta profundidade na terra; ficamos tão ocupados rindo que não percebemos que as paredes que nos cercavam não eram naturais, que haviam sido esca-vadas com picaretas e martelos. Contudo, por um instante de intenso prazer, havíamos conseguido, estávamos livres.

Então chegamos juntos ao portal de luz, o riso anunciando nossa aproximação, e vimos o que ambos no fundo sabíamos que veríamos. Não havia céu, só rocha. Não havia Sol, apenas refletores impiedosos iluminando tudo, até a sombra mais persistente das paredes de pedra. Não havia árvores, não havia vida; apenas um agrupamento de formas sorridentes de pé diante de nós, tão próximas que conseguíamos enxergar até o último detalhe dos olhos prateados e dos ternos pretos, as máscaras enferrujadas e os casacões imundos, os lábios sem carne, mostrando somente dentes afiados como navalhas.

Não havia liberdade à frente; apenas o diretor da prisão e seu rosto curtido nos recebendo com um sorriso que parecia ser o do demônio em pessoa.


FESTA DE BOAS-VINDAS


Pelo que pareceu uma eternidade, ninguém se moveu. Era como se toda a caverna estivesse congelada, a cena de um pesadelo desprovido de movimento. Ou talvez o tempo tivesse reduzido sua velocidade, meu horror sendo tão profundo que um único segundo de percepção agonizante poderia me assombrar por toda a vida.

Enfim o mundo pareceu entrar nos eixos, o tempo voltando à velocidade normal e devolvendo vida à cena. A primeira coisa que vi foi Gary esparramado no chão aos pés de um dos ternos-pretos. Seu rosto era uma massa de sangue, mas as bolhas de ar que às vezes se formavam em seus lábios feridos me mostraram que ele ainda estava vivo. Apesar de tudo o que ele havia feito comigo, senti a raiva fluir com mais força nas veias diante da visão de seus ferimentos. Em algum lugar entre saltar no rio e irromper caverna adentro, Gary tinha se tornado um de nós.

Zê murmurava algo ao meu lado, e, quando ouvi o arrastar de pés na rocha, achei que ele tentava encontrar uma saída para voltar ao lugar de onde tínhamos vindo. Mas, quando ousei virar a cabeça para ver o que fazia, notei que ele tinha desmoronado, o rosto tão pálido que parecia um pergaminho, quase translúcido.

Talvez, se o tivesse visto correr, pudesse ter arrumado forças para segui-lo, mas sozinho eu não conseguiria. Não havia mais esperança. Tive uma visão repentina de como deveria estar naquele momento: tão fantasmagórico quanto Zê, as manchas vermelhas disseminadas pelo corpo, por onde minha força vital se esvaía, sendo o único sinal de cor. Meu corpo estava frágil como uma folha de papel, pronto para sucumbir e entrar em colapso. Só tinha sentido essa fraqueza uma vez, naquela noite, tanto tempo atrás, quando Toby fora morto, ao ser preso — correndo para minha mãe, rumo à segurança, mas incapaz de chegar à minha casa. Não havia sido bem-sucedido naquela ocasião, e tampouco o seria agora. Tinha falhado duas vezes, e nas duas fora capturado. Só que, dessa vez, meu castigo com certeza seria a morte.

Tentei recuar um passo, mas minhas pernas se recusaram a obedecer, tão entorpecidas e fracas que nem senti dor quando caí de joelhos.

O som de um tiro de pistola invadiu a caverna. Logo depois um se-gundo, e um terceiro. No quinto, percebi que não era uma pistola, e sim as mãos do diretor. Ele aplaudia devagar, cada batida reverberando nas paredes e me fazendo encolher. Caminhou até nós, sempre batendo palmas, parando tão próximo a nós que quase podia nos tocar.

. Virei minha cabeça, examinando os imaculados sapatos pretos. Clap. Um terno cinza sem o menor sinal de ruga ou mancha. Clap. O corpo magro, o pescoço curtido e com veias tão esticadas que pareciam um emaranhado de arames sob a pele. Clap. O rosto, tão comum e, no entanto, tão estranho, como se vestisse a pele de outra pessoa.

Clap. Tentei encontrar seus olhos, sabendo que não conseguiria. Estava certo: quando achei que o encarava, meu olhar logo se desviou para suas roupas ou as paredes da caverna. Capturado pela minha visão periférica, não poderia afirmar sequer se ele tinha mesmo olhos ou se eram apenas dois buracos negros que pareciam sugar a luz ao redor deles; que pareciam extrair qualquer calor remanescente de meus ossos.

Clap. Tentei de novo, e dessa vez quase os captei. Foi como ter mergulhado em água muito fria, o corpo à beira de uma convulsão, os pulmões tão pesados que era quase impossível respirar. Naquele momento, testemunhei mentalmente coisas que não conseguiria descrever depois — sangue, decomposição, gritos —, pensamentos transferidos da mente dele para a minha, ameaçando me levar à loucura.

Clap. De repente, os pensamentos se foram, deixando apenas uma dor de cabeça latente. Estremeci, comecei a vomitar e afastei rapidamente meus olhos dos dele, a caverna voltando a entrar em foco. Os ternos-pretos e os cães não tinham se movido; e os Ofegantes, próximos, também permaneciam imóveis, salvo por algum espasmo ocasional. Imagino que presumissem que não nos meteríamos com o diretor.

Ele bateu palmas mais uma vez, mantendo por um momento as mãos em posição de oração diante do peito, antes de baixá-las e enfiá--las nos bolsos da calça. Apenas mirei o chão, como se as rochas irregulares da superfície pudessem me oferecer uma saída.

— Bravo — disse ele, a voz parecendo uma lima raspando o interior do meu crânio. — Devo confessar que estou muito impressionado.

— Por favor, não nos mate — pediu Zê com um grito rouco. — Não pretendíamos causar nenhum mal. Nós só... — A voz sumiu, as palavras perdidas em meio aos soluços.

— Estou muito impressionado — prosseguiu o diretor, como se não tivesse sido interrompido. — Encontrar uma saída da minha prisão, tentar fugir de Furnace... Um feito realmente notável.

— Vamos receber uma recompensa por isso? — perguntei, mas a frase soou tão baixinho que duvidei que alguém a tivesse escutado. Entretanto, para minha surpresa, o diretor começou a rir, um som gro-tesco, tão seco e tão sem vida quanto seu próprio rosto.

— Oh, sim, terá sua recompensa, Sawyer. E será uma recompensa adequada. — Ele tirou as mãos dos bolsos e colocou-as atrás das costas. — Onde está o quarto fugitivo?

Encolhi-me, imaginando onde estaria Toby nesse momento. Não havia como ter sobrevivido, preso nas mandíbulas do rio sem mais um osso intacto para ser quebrado. Mas talvez seu corpo inconsciente tivesse sido cuspido da rocha e levado ao repouso sob um infinito céu azul. Não estou mentindo nem exagerando quando digo que naquele momento teria trocado meu destino pelo dele sem pensar duas vezes. É melhor ser um espírito com a terra sob você do que um cadáver soterrado pelo peso do mundo.

— Não resistiu — respondi depois de um tempo. — Ele se feriu na explosão, mas saltou no rio mesmo assim. Está morto.

O diretor estalou a língua, imerso em pensamentos profundos. Provavelmente tentava descobrir se eu falava a verdade ou se deveria continuar procurando por Toby nas entranhas rochosas sob a prisão. Franzi o cenho, afastando por um momento essas ideias confusas da mente.

— Como nos encontrou? — perguntei. — Como sabia que estávamos aqui?

Embora não o estivesse encarando, consegui perceber seus lábios sem vida se abrindo em um sorriso morto, todo dentes brancos e gengivas à mostra. Mas, quando a voz voltou a soar, ribombando como um trovão distante, havia nela mais raiva do que humor. O ódio parecia irradiar dele como uma corrente fria no oceano.

— Não fomos nós. Foram eles. Aqueles pequenos bastardos infectados parecem ter servido para alguma coisa, afinal — quase murmurava, falando mais para si mesmo que para mim. — Farejaram o medo de vocês. Apenas os seguimos. Sempre famintos, esses ratos. Viram quem são eles?

Ratos? Pensei na criatura que havia me atacado na caverna, a boca retorcida grande demais para ser humana e repleta de dentes agudos proeminentes que pareciam vir da própria garganta de um vermelho vivo. Depois pensei na outra figura, aquela que me salvara e me guiara na escuridão rumo à segurança. Aquilo era estranho demais para fazer algum sentido, então apenas fiz que não com a cabeça.

— Melhor assim, melhor assim. Tiveram sorte. — Ele soltou de novo aquele seu sopro de ar sem alma. — Ou talvez não.

— Por quê? O que vai fazer conosco? — perguntou Zê, agora um amontoado de muco e saliva por causa do choro.

O diretor ergueu os braços, e o bando de formas escuras atrás dele adquiriu vida. Os cães começaram a rosnar, os ternos-pretos lutando para mantê-los presos pelas correias de aço. Espreitando atrás deles, os Ofegantes pareceram aspirar uma única vez com sua respiração asmática, braços e pernas se agitando em espasmos como se fossem marionetes.

— Como vocês sabem muito bem, a obediência é a diferença entre a vida, a morte e outras variedades de existência ofertadas aqui em Furnace — professou o diretor, a voz sussurrante parecendo ecoar na caverna com mais força ainda. — As ações de vocês me custaram muito tempo, dinheiro e respeito por parte dos outros prisioneiros, aos quais foi dito que vocês morreram na explosão, devo acrescentar. Eu os enforcaria ou os abateria como os vermes que são neste momento, mas serão muito mais úteis para mim como espécimes. — Disse a última palavra com um prazer que fez minha pele latejar e inclinou-se em minha direção até seu rosto ficar a poucos centímetros do meu. — A punição por tentarem escapar será a morte; pelo menos, de certa maneira. Mas, muito antes que ela chegue, estarão implorando para escapar de sua infeliz existência.

Até aquele momento, nada daquilo parecia real. Talvez estivesse tão cansado que me encontrasse incapaz de processar os últimos acontecimentos; eram todos absurdos demais. Mas, diante daquelas palavras e com o odor fétido da respiração do diretor em meu rosto, percebi que, quando parece impossível as coisas ficarem piores, é apenas impressão. Porque sempre podem piorar, e muito.

— Um mês na solitária — ele professou. — Se os ratos não encontrarem uma maneira de liquidá-los, a loucura o fará. E, se conseguirem sobreviver a ela, se por algum milagre não estiverem devastados quando os tirarmos de lá, os Ofegantes tomarão conta de vocês. E é aí que a diversão de fato vai começar.

Agora, tanto Zê quanto eu chorávamos. Lembramos as histórias que Donovan contara sobre a solitária, do que aquele lugar podia fazer a uma pessoa. Morreríamos ali, da maneira mais lenta e angustiante possível. Isso não podia acontecer; o mundo lá fora precisava saber as coisas pavorosas que ocorriam em Furnace. Só que eu nem sequer fazia ideia se o mundo lá fora continuava a existir. Para ser honesto, já não tinha certeza se algum dia existira. Havia apenas Furnace. Ela era nosso mundo, nosso túmulo, nosso inferno.

— Levem esses vermes daqui! — ordenou o diretor, a frase sendo seguida pelo riso abafado dos ternos-pretos enquanto avançavam em nossa direção. — Levem-nos para o buraco.


O BURACO


Os momentos que se sucederam às ordens do diretor se perderam em meio ao medo, apagados do meu cérebro em torpor. Gostaria de lhe contar como foi, mas realmente não me lembro. A mente humana é algo poderoso em algumas ocasiões, porém, em outras, é de uma fragilidade infinita — basta um único momento de genuíno terror para abrir nela um vácuo, como um dedo que transpassa uma teia de aranha, tornando-a para sempre apenas uma sombra, um espectro da pessoa que foi antes. Só Deus sabe como a minha ainda funcionava. Devia ser porque, como as coisas tinham ficado muito ruins, a parte emocional simplesmente se fechara, transformando-me em uma máquina que conseguia ver, ouvir, pensar, mas não sentir. Esse controle automático dos danos me salvou muitas vezes da loucura, mas tinha certeza de que não duraria muito mais, não no buraco.

Assim que o diretor se afastou, seu grupo de horror tomou a posição antes ocupada por ele. Como água flutuando em um vácuo, avança-ram até onde estávamos e perambularam ao redor, os cães abrindo e fechando as mandíbulas vorazes tão perto de nosso rosto que sentia a baba quente quase atingir minha pele. Enquanto os Ofegantes, com seus movimentos descontrolados, convulsionavam de excitação, os ternos-pretos nos ergueram sem esforço, puxando-nos pelo macacão.

Meus pés se arrastavam pateticamente pelo chão, enquanto meu corpo era conduzido a uma porta de aço maciça incrustada na rocha. Ela me lembrou a porta da abóbada da prisão, só que esta tinha a metade do tamanho daquela e parecia ter sido bombardeada por algumas centenas de balas de um morteiro. Não havia um só lugar de sua superfície livre de depressões, e ela pendia das dobradiças como pele descascando após as férias de verão. Pensei por um instante que alguém havia conseguido escapar dali, mas não: a porta se inclinava para dentro, as marcas cobrindo o lado de fora.

Alguém havia entrado ali.

Tinham que ser as criaturas que eu vira na caverna, os ratos, como o diretor os havia chamado. E se tinham feito aquilo com uma porta de metal com um metro de espessura, o que fariam comigo?

Passamos por um longo caminho sinuoso, os passos dos guardas ecoando por corredores demais para que eu conseguisse contar. Um trajeto parecia ser interligado a outro, um labirinto de rochas avermelhadas trazidas à vida pelas lâmpadas tremeluzentes embutidas no teto. Havia também fendas nas paredes, sombras que não conduziam a nada além de escuridão — olhos que pareciam observar nossa passagem com desaprovação. Ignorei a maioria delas, assim como todo o resto, mas houve um momento em que saí do torpor e me concentrei por um instante no mundo que me cercava.

Estava sendo arrastado para uma passagem na rocha maior do que as outras; em certo ponto estava escrita a palavra enfermaria, com tinta branca desbotada. Desse lugar emanava uma forte luz vermelha, que transformava os ternos-pretos e seus cães em fantasmas banhados em sangue. Espreitei, tentando ver algo além do corpo bruto que me segurava; queria ter uma visão mais clara do local aonde essa entrada conduzia, mas ela estava fechada com uma cortina de grossas tiras de plástico — do mesmo tipo que se vê em um açougue.

Nesse ponto, os Ofegantes se separaram do resto do grupo, se-guindo sobre ripas de plástico inclinadas, a imagem lembrando uma fantasmagórica linha de montagem de seres humanos. O último a passar pelo corredor foi o terno-preto que carregava Gary, o corpo do garoto deslizando pela passagem e desaparecendo na penumbra.

Então seguimos nosso caminho, atingindo um entroncamento em t no corredor e virando à direita. Foi nele que o guarda me deixou cair no chão, sem nenhuma cerimônia, virando-me de costas com o pé gigantesco e me imobilizando.

— O buraco fica bem aqui embaixo — falou, arreganhando os dentes de maneira descomunal, os olhos cintilando como os de um gato capturado pela luz da lua. — Você matou dois de nós naquela explosão, sabia disso?

Pensei no momento em que as luvas explosivas haviam detonado, nos dois ternos-pretos que tinham, mesmo sem querer, nos protegido da explosão. Ambos haviam sobrevivido por alguns momentos, um deles tentando tirar minha vida, e o outro salvando-a. Monty, transformado em um monstro, despojado de tudo o que fosse humano.

Se o pegarem, não esqueça seu nome.

— Sabia disso? — repetiu o guarda, me pressionando com mais força contra o chão. Acenei com a cabeça, observando meu cabelo curto se espalhar no couro negro e polido de sua bota. — Se coubesse a mim decidir, você viraria comida dos cães, mas o chefe disse para mantê-lo vivo. Ainda assim, acidentes acontecem, especialmente quando um prisioneiro tenta escapar uma segunda vez.

Tornei a acenar com a cabeça, depois franzi a testa, imaginando o que ele queria dizer com aquilo. O guarda tirou o pé e me levantou. Atrás dele, Zê foi empurrado para a frente. Seu corpo bateu contra o meu e o segurei, dois montes de carne trêmula diante de uma muralha de ternos-pretos e cães sem pele.

— A solitária fica lá embaixo — repetiu o guarda, sem esconder o sorriso. — Digamos que a uns... cinquenta metros?

— Mais ou menos isso — retrucou uma voz áspera.

— Uma vantagem de cinco segundos parece adequada?

Novamente a voz atrás dele respondeu:

— Sim, acho que sim.

— Bem, se eu fosse vocês, começaria a correr — sugeriu o guarda. — Tudo que o diretor precisa saber é que tentaram fugir e os cães os pegaram.

Não me movi, imaginando que aquilo era um truque, mas então dois ternos-pretos apareceram ao lado daquele que me segurava, cada um deles tentando conter um cão monstruoso. As feras espumavam e se agitavam, tentando se livrar das correntes, os sólidos elos de metal dando a impressão de estar prestes a arrebentar como um fio de algodão.

— Cinco — começou o terno-preto.

Eu não precisava de nenhum incentivo além daquele. Afastamo--nos um do outro, Zê e eu, e nos viramos, descendo o corredor o mais rápido que nossas pernas permitiam. Ao nos verem correndo, os cães começaram a latir — projéteis sonoros que eram lançados às nossas costas.

— Quatro... três... — A contagem seguia, quase oculta sob o ruído de nossos pés batendo contra o chão.

— Ele disse cinquenta metros? — perguntou Zê, ofegante. — Jamais vamos conseguir.

Não havia sinal de absolutamente nada à frente, apenas paredes rochosas que não ofereciam sequer uma sombra para nos escondermos.

— Dois...

Quanto havíamos corrido? Vinte metros, talvez trinta? Os cães cobririam aquela distância em um segundo.

— Um.

Nem precisava ter ouvido para saber o momento exato em que a palavra havia sido proferida. Com um agudo rosnado de prazer, os cães ganharam a liberdade, o barulho das oito garras na pedra muito mais rápido que nossos passos vagarosos. Desejava me virar, mas me obriguei a não fazê-lo.

— Ali! — gritou Zê, apontando para o corredor. Examinei as pa-redes, sem ver nada além de rochas avermelhadas.

— Ali o quê? — perguntei de um modo que pareceu mais um soluço que uma frase. Pelos meus cálculos, os cães já deviam ter percorrido a metade da distância que nos separava, estimulados pela loucura e pela fome.

— O... chão.

Certamente a superfície do túnel tinha vários alçapões de aço, não maiores que a tampa de um bueiro. Não sei o que esperava ser o tal do buraco; mas não o imaginava como um buraco de verdade. Achei que seria uma cela sob a prisão, mas não realmente uma cavidade na superfície.

Não havia tempo para ser exigente. Os cães estavam tão perto que eu podia ouvir o ruído aterrorizante das gargantas úmidas. Atingimos o primeiro alçapão, esfolando os joelhos ao parar. Giramos a alavanca e o levantamos. O espaço lá dentro — se é que podíamos chamar aquilo de espaço — era o de um caixão. Não havia sequer lugar suficiente para nós dois.

— Você entra neste — falei, correndo até o próximo buraco e levantando a tampa. Ouvi o som de aço contra aço quando o alçapão de Zê se fechou, e cometi o grande erro de olhar ao redor. Um dos cães já saltava, as mandíbulas tão abertas que eu quase conseguia enxergar dentro de seu corpo através delas. Com um gemido de medo, lancei--me no buraco.

Foi no momento exato. O cão atingiu a tampa do alçapão, e o peso de seu corpo fechou-a com um ruído que machucou meus tímpanos. Por um instante consegui ouvi-los farejar o aço e arranhar a superfície. Então ouvi a voz de um terno-preto, e o ruído cessou.

— Droga — disse a voz, abafada pela rocha e pelo metal. — Achei que o pegariam antes. — Em seguida, um risinho abafado. — Vou lhes dar um dia ou dois, e estarão desejando que os cães os tivessem capturado. Divirtam-se, meninos. Não enlouqueçam depressa demais.

Ouviu-se o som da alavanca no alto do alçapão sendo girada e o buraco, trancado, e depois nada além de escuridão e das batidas frenéticas de meu próprio coração.

— Zê? — chamei baixinho, estendendo os braços para conferir onde estavam as paredes. Para meu alívio, o espaço era maior do que eu imaginara, embora fosse no máximo metade da cela em que tinha ficado lá em cima.

Lá em cima? Sacudi a cabeça, sem conseguir acreditar nas palavras que havia usado para descrever Furnace. A prisão, com sua luz, seus colchões e o som dos detentos, parecia um lar diante daquilo.

— Zê? — chamei, mais alto dessa vez. Não obtive resposta. Encontrei a parede que nos separava e bati nela com o punho, mas o ruído foi rapidamente absorvido pelo silêncio. Praguejei e praguejei de novo, usando cada palavrão que conhecia enquanto continuava a bater contra a rocha. A cada batida, o medo crescia dentro de mim — o medo de ficar sozinho, de ficar no escuro —, e pude antever a complexa rede de neurônios que compunha minha mente se dissolver em loucura.

— Zê? — O nome do meu amigo dessa vez saiu como um grito, mas minha cela não emitiu sequer um eco.

Desmoronei no chão, descobrindo que não havia espaço suficiente para estender as pernas completamente. Então as encolhi, os joelhos tocando o queixo, e me balancei para a frente e para trás com suavidade. O terno-preto tinha razão: logo estaria desejando que os cães tivessem me alcançado. Pelo menos teriam tido a decência de acabar comigo bem depressa.

Aquele espaço era um tipo totalmente diferente de tortura, infinitamente mais lenta e mais aterrorizante. O buraco não precisava de monstros para realizar seu trabalho sujo; ali não havia utilidade para a brutalidade dos ternos-pretos e de seus cães de olhos prateados, ou Ofegantes com seringas imundas.

Não, tudo o que era necessário ali era eu — e meu incomparável pânico. Porque sozinho, no silêncio da escuridão impenetrável, sabia que meus pensamentos me enlouqueceriam. Minha própria mente me mataria.


PENSAMENTOS DO ABISMO


Quando todo o vínculo com o mundo exterior é cortado, o tempo perde o significado. Deixa de existir qualquer outra coisa além de uma memória surda, uma vaga lembrança de como um minuto costumava ser, uma hora, um dia. Hermeticamente trancado tão abaixo da superfície, cada segundo parecia infinito — cada um deles um vasto e vazio abismo onde o tempo antes costumava reinar, uma eternidade sem limi-tes, desprovida de importância ou consequência.

Quando cada pedacinho de luz e som é retirado, a realidade perde o significado. Ela também deixa de existir, pois o que é a realidade além de um acúmulo de percepções — imagens testemunhadas por nossos olhos e ruídos que penetram pelos ouvidos? Mas, quando todas essas percepções são extintas, o mundo real desaparece como o último ruído frenético de um programa de televisão quando o aparelho é desligado.

E, quando a realidade desaparece, a sanidade não tem razão de ser. Como a sua capacidade de se comportar de maneira normal e racional ainda pode existir se mais nada é normal ou racional? Assim que a realidade se dissolve, assim que somos separados do mundo físico, começam a aparecer rachaduras na mente. E, através delas, penetra a loucura que na verdade sempre esteve ali, fluindo para o cérebro como um pesadelo em estado líquido.

Não conseguiria lhe dizer quanto tempo fiquei no buraco antes de começarem as alucinações. Sem estímulos sensoriais, meu cérebro come-çou a conceber a própria realidade, criando fantasmas na escuridão da minha cela. De início, não tinham rosto nem corpo, eram apenas um re-demoinho branco, suave como seda. Mas depois começaram a se solidi-ficar, concretizando-se, até tomar a forma de pessoas que eu já conhecia.

O primeiro a aparecer foi alguém em quem não pensava havia anos — o senhor Machin, um professor que tive nos primeiros anos de escola. Ele foi o primeiro a despertar em mim a vontade de ser um mágico, bem antes de eu pensar em dedicar minha vida ao crime. Ele realizou um show improvisado em um chuvoso horário de almoço, e nunca vou me esquecer da maneira como sempre sabia qual era a carta que cada um de nós tinha, apesar de serem inseridas de volta no baralho; até mes-mo meu oito de espadas, que selecionou com um floreio.

O professor-fantasma caminhou em minha direção como se viesse de muito longe, seus traços se tornando mais nítidos a cada passo que dava. De início, a expressão era gentil, e sorria para mim com ternura, como fazia na classe. Mas tinha consciência de que ele era um produto da minha imaginação, agora que não sobrara mais nada de bom dentro de mim, só o ódio da pessoa em que havia me tornado, do que tinha feito comigo mesmo. Então suponho que não me surpreendi quando os olhos dele se estreitaram e a boca se abriu, soltando palavras descontroladas e sem sentido. Não havia som nesse truque traiçoeiro da minha mente, mas sabia exatamente o que ele dizia.

Você desperdiçou sua vida, Alex. Todos os conselhos que lhe dei, toda aquela inspiração, todas aquelas horas que passamos em aula. Você desperdiçou o meu tempo também, e tudo isso pra quê? Você me deixa nauseado.

Eu comprimia os olhos fechados, mas a imagem permanecia, projetada em minhas pálpebras, em vez de na parede. Sufocado pelo pânico, passei as mãos pelo rosto, e a alucinação reagiu, explodindo em pequenos fragmentos de luz e espalhando-se pela cela. Não demorou muito, e começou a se aglutinar de novo, dessa vez formando uma fi-gura pequena, como um pássaro — e me dei conta imediatamente de que era minha avó. O fantasma pareceu lutar para assumir sua forma, o rosto se contorcendo para formar uma caricatura demoníaca do original, sorrindo de modo grotesco, de um jeito que minha avó materna jamais teria sorrido.

E pensar em tudo o que seus pais fizeram por você, o que todos nós fizemos por você... Como você nos retribui? Partindo nosso coração. Como pôde fazer isso com sua mãe?

Desejava argumentar; queria alegar inocência. Mas me sentia culpado quando as aparições surgiram! Crimes que nunca teria sonhado em cometer lá fora — assalto, incêndio premeditado, até assassinato, quando enviei aquele garoto, Ashley, para a morte —, Furnace havia colocado sobre meus ombros com facilidade. Não havia dúvidas sobre isso: eu era mau, completamente podre.

A forma espectral de minha avó pareceu concordar com essa confissão, depois se desfez. Não demorou muito, voltou a entrar em foco, mas dei-lhe as costas, incapaz de suportar outra acusação de pessoas que um dia tinham me amado. Mas não havia como deter isso. Como poderia me esconder, quando as únicas coisas que existiam para mim eram meus pensamentos e o buraco?

Contei dez pessoas na procissão que adentrou minha cela, todas com versões da mesma mensagem. As últimas três foram minha mãe, meu pai e Toby, meu amigo da escola — meu falecido amigo da esco-la —, que se materializaram juntos e falaram como se fossem uma só voz. O que disseram pareceu arrancar um pedaço da minha alma, e, embora eu tenha me obrigado a esquecer as palavras deles assim que desapareceram, jamais conseguiria me livrar da maneira como me fize-ram sentir.

Cerrei os dentes e fechei os punhos com tanta força que podia sentir as unhas se cravando na palma da mão. Parecia estar no buraco há semanas, torturado por fantasmas do passado por horas a fio. Mas, segundo o que me lembrava, tudo isso poderia ter ocorrido em um da-queles intervalos de segundos, em um único tique-taque de um relógio desdobrado em eternidade devido aos horrores que continha.

Assim como o tempo perdera o significado, a realidade e a sanidade, também. E, quando tudo o mais é arrancado de você, é você que passa a não ter mais significado. Você simplesmente deixa de existir.


Não achei que fosse sobreviver àquele primeiro segundo, à primeira hora, ao primeiro dia. Mas alguma parte de minha mente parecia não estar convencida de que eu fosse mau. Em algum lugar dentro de mim, apesar de todo o caos, de toda a raiva, o garoto que fui um dia ainda permanecia ali e não me deixaria ser consumido pelos próprios pesadelos.

Outra figura começou a se delinear a partir dos pontos de luz branca na minha cela, bem a meu lado. Eu me esquivei, incapaz de suportar outro ataque. Mas, em vez de me perseguir com gritos e acusações, esta parecia rir: uma risadinha amigável, tão estranha para mim que a princípio não consegui sequer imaginar de quem era.

Você já viu o estado em que está?, perguntou a voz, e a reconheci de imediato. Girando a cabeça ao redor daquele minúsculo espaço, vi Donovan agachado a meu lado, sua pele agora brilhando como um anjo de Natal gasto pelo tempo. A luz parecia transbordar de seus olhos, aliviando as paredes da cela e a pesada cortina que caíra sobre meus pensamentos. É uma boa ideia não ter janelas aqui! Você está cheirando como o traseiro de um cachorro.

Ri — outro som quase irreconhecível. Mas ele logo desapareceu.

— Sou uma pessoa má, D — falei, minha voz soando ininteligível, porém suficientemente clara na minha cabeça. — Mereço estar aqui.

Donovan estendeu uma das mãos e me deu um tapa na cabeça. Não pude sentir o toque, mas ele pareceu afastar ainda mais a escuridão fria de mim, deixando em seu lugar um calor bem-vindo.

Se ouvir mais uma dessas merdas, vou lhe dar um motivo para chorar, disse ele, o sorriso jamais abandonando seu rosto. É exatamente assim que eles querem que você se sinta; esses são os mesmos pensamentos que passaram pela minha cabeça quando fiquei aqui embaixo. Este cubículo, este poço, é destinado a sugar de você até o último pedacinho de força, o último resquício de luta. Por que você acha que eles vêm usando o confinamento em solitária nas prisões há milhares de anos?

— Para punir os culpados — respondeu a parte obscura de minha mente.

Para nos enfraquecer, Alex. Para extrair nosso espírito, esmagar nossa confiança; para nos fazer sentir que não temos o direito de escapar. Porque, se conseguirem isso, garantirão que jamais sairemos daqui. Se nos fragilizarem, se fragilizarem você, conseguirão mantê-lo prisioneiro em um lugar até sem paredes. Você é um bom garoto, Alex.

— E você é produto da minha imaginação — murmurei. Mas me peguei sorrindo.

Eu sei, eu sei, replicou ele. Mas diga uma dessas coisas de novo, e lhe dou um pontapé no traseiro. Posso não ser real, mas, se fosse, estaria lhe dizendo exatamente as mesmas coisas. Não desista, Alex, não os deixe vencer. Você os venceu uma vez e pode conseguir de novo. Não deixe que este lugar o destrua. Mantenha a mente ocupada, encontre coisas para fazer. Se estiver fazendo algo, é porque ainda existe, certo?

Fiz que sim com a cabeça para a forma que desaparecia; vi seu corpo se dissolver na escuridão como açúcar no chá. Donovan foi embora, mas levou com ele meu medo e a sensação de fracasso. Havia sido apenas mais uma alucinação, mas tinha me tirado do precipício. A voz na minha cabeça simulando o que Donovan queria dizer significava que uma parte de mim sabia que eu não merecia estar aqui; que ainda existia fé em algum lugar dentro de mim; que havia escapado uma vez e que o faria de novo.

A voz estava certa. Se me mantivesse ocupado, perceberia que ainda estava vivo, que ainda era de carne, sangue e ossos. Isso afastaria a loucura de mim.

Comecei me mexendo e usando os braços para mapear as dimensões exatas da cela. Pude calculá-las, aproximadamente, é claro, de pa-rede a parede, o que me trouxe certo alívio — ao que tudo indicava, eu poderia me deitar na diagonal, e ainda sobraria um pequeno espaço excedente.

A pedra que eu tocava era maciça e muito lisa. Mesmo ao toque, dava uma sensação de força. Seria necessário dinamite apenas para arranhá-la; provavelmente era tudo o que aconteceria com ela.

Mas havia condensação ali, um brilho viscoso que se assemelhava a pele suada. Lembrei-me vagamente de Donovan dizendo que havia sobrevivido ali lambendo a umidade das paredes, porém eu ainda não estava sedento a esse ponto — sentia-me como se houvesse engolido metade do rio quando pulamos nele.

Em seguida, estiquei-me até o alto da cela, que tinha menos de um braço acima de minha cabeça. Sentir o teto tão baixo ameaçou trazer de volta a claustrofobia. Mas consegui me controlar, tentando descobrir o tamanho exato do alçapão e o modo como fora incrustado na rocha. Tinha que ser amplo o suficiente para abrigar um corpo e ser trancado sem deixar o menor vestígio de luz entrar pela junção entre o metal e a pedra.

Lembrei-me do peso do alçapão quando o levantei — talvez minutos, talvez horas antes — e fui inundado pela adrenalina. Acreditava não ter força para empurrá-lo ali de baixo, mesmo que não estivesse trancado.

Fiz uma pausa, aspirando grandes porções de ar fedorento e quente, depois me ajoelhei e comecei a investigar o chão. Assim como as paredes, era feito de rocha plana e polida. Era uma superfície indestrutível, salvo por um canto onde pude sentir algo metálico. Passando as mãos com suavidade sobre ela, descobri que era uma pequena grade. Enfiei um dedo lá dentro, sem sentir nada onde o chão deveria estar, e percebi que aquele era, ao mesmo tempo, minha privada e o suprimento de ar. Sentia-me agradecido — um mês fazendo minhas necessidades em um chão de pedra à prova d’água me conduziria à morte por afogamento da maneira mais horrenda possível.

Produzi uma bola de cuspe e lancei-a pela abertura, ouvindo um plop distante. Depois tentei puxar a grade, mas o máximo que consegui foi sacudi-la. Era uma abertura pequena demais para que eu pudesse escapar por ali — não que realmente eu quisesse fazê-lo, sabendo o que havia lá embaixo —, mas aquela grade podia ter outro uso. Poderia ser uma arma, talvez. Imaginei-me ameaçando dar uma pancada em um terno-preto com uma grade de ferro com trinta centímetros de largura, e ri. Era ridículo, porém ao mesmo tempo maravilhoso — minha mente agora trabalhava, ocupada demais para ceder qualquer espaço à escuridão, à solidão e à loucura.

Coloquei a mão na parede que separava minha cela da de Zê, esperando que ele estivesse fazendo a mesma coisa, tentando manter-se ocupado, tentando permanecer em contato com a realidade. Então me inclinei para trás, passei a mão pelo cabelo e tentei bolar um plano.


GRITOS


Ofegando como um cão obeso e transpirando mais que um lutador de sumô em uma sauna, tirei os dedos doloridos da grade e desmoronei. Ela ainda estava no lugar, embora eu a tivesse puxado, empurrado, sapateado sobre ela e a torcido pelo que pareceu uma eternidade, e sua resistência começava a desaparecer. Mais algumas tentativas, talvez, e estaria solta.

Ainda não havia pensado em um modo de usá-la, mas minha mente estava ocupada com outras coisas. Fiquei sentado pelo que devem ter sido horas, repassando tudo na minha cabeça e tentando extrair sentido do que acontecia ali. Voltando à população geral de Furnace, levando em conta todos os outros detentos, havíamos nos con-centrado tanto em sair daquele inferno que suponho não termos nos permitido pensar em outras coisas — os Ofegantes, os cães, com todos aqueles músculos à mostra e a pele em carne viva, depois, de algum modo, transformados em ternos-pretos. Sim, esses pensamentos passavam por nossa mente o tempo todo, porém haviam sido afastados para que pudéssemos dar toda a energia que tínhamos ao plano de fuga.

Lá embaixo, no entanto, não havia nada mais a fazer, exceto pensar. Comecei pelos Ofegantes e suas máscaras de gás, costuradas em faces que pareciam tão velhas, tão enrugadas, que poderiam ter perten-cido a cadáveres — olhos negros como carvão inseridos em vácuos escuros redefinidos e polidos. Tudo neles estava errado: a aparên-cia, a maneira como gritavam um com o outro, o modo como se mo-viam — sempre com espasmos vacilantes, como se fossem marionetes controladas por uma criança.

E o jeito como injetavam aquela coisa em suas presas?

Tinham de ser humanos — o que mais poderiam ser? —, mas defeituosos e arruinados, sem possibilidade de conserto. Por causa da idade, talvez? Ou eram demônios gerados aqui nos poços do inferno? Certamente buscavam alguma coisa, pois por que outro motivo levavam pessoas aos berros lá para o fim do mundo, para os fossos sob a prisão? Isso explicaria por que aquelas vítimas retornavam transformadas em criaturas estranhas, com corpo grotesco e muito apetite para saciar. Que tipo de coisa poderia fazer aquilo a outro humano, senão uma criatura da escuridão, um demônio? Isso explicaria também a aparência do diretor, porque, se alguém me lembrava o diabo, era ele.

Embora pensasse isso, tudo me parecia bem louco. Além disso, pensar no diabo e em seus discípulos não me deixava nem perto do medo que sentia quando pensava na alternativa mais provável.

A ciência.

Estremecendo involuntariamente, agachei-me e de novo enfiei os dedos através da grade, que balançou um pouco, como se temerosa de que dessa vez eu pudesse soltá-la. Mas, após alguns trancos que quase arrancaram meus braços dos ombros, permaneceu de modo obstinado presa em seu lugar. No entanto, ouvi o rangido da argamassa na pedra; sabia que estava cedendo.

Sequei o suor da testa, tentando não pensar em como estariam mi-nhas mãos depois de tatear aquela pseudoprivada por horas sem fim. Apoiando a parte de trás da cabeça suavemente contra a parede, tentei analisar os pensamentos que passavam pela minha mente.

Ciência. Ciência maléfica. Isso fazia sentido. Quero dizer, do que o diretor havia nos chamado? Espécimes. Ratos de laboratório para algum projeto doentio e maléfico. Certamente alguma experiência genética podia ser a responsável por transformar Monty em uma criatura tão musculosa que havia ameaçado explodir de dentro da pele costurada, tão furiosa que quebrara Kevin em mil pedaços com pouquíssimas possibilidades de serem reunidos de novo.

Mas, depois, transformar Monty de um monstro em um terno--preto?

Podia quase ver os pensamentos querendo se juntar, mas balancei a cabeça para separá-los. Voltando aos Ofegantes, ponderei se também eram o resultado de algum tipo de experiência genética. Tínhamos estudado o básico de biologia na escola, e eu aprendera que os genes eram os blocos constituintes de cada coisa viva, porém algo além disso estava completamente fora do meu entendimento — embora não tivesse sido tão devotado à vida criminosa, a ponto de perder as informações sobre mapas genéticos e todos aqueles truques perfeitos que haviam feito com camundongos, provocando-lhes doenças, fazendo-os nascer com uma orelha humana nas costas ou com um rim extra, ou até mudando de sexo.

E, se era possível fazer aquilo com um camundongo, por que não com um garoto?

Gemi, percebendo que essa teoria soava tão insana quanto demônios espreitando nos corredores do Hades. Não havia como transformar um homem, ou uma criança, em um monstro. Isso não podia acontecer. E que tipo de lunático desejaria esse tipo de coisa? Quem se daria ao trabalho de reunir garotos inocentes para arrastá-los a Furnace apenas para bagunçar seus genes?

Mas minha mente continuou trabalhando e voltou à enfermaria pela qual passamos, todos os Ofegantes marchando através de ripas de plástico como cirurgiões rumo ao trabalho.

Inspirando profundamente outra vez, levantei a extremidade solta da grade e forcei o calcanhar contra ela. Apoiando as costas contra a parede, empurrei o mais forte que o espaço me permitia, ouvindo o metal soltar um rangido de sofrimento. Meu pé se moveu quando a grade arqueou, mas minha perna sofreu uma câimbra antes que pudesse terminar o ser-viço. Deitei, esfregando os músculos tensos sob o macacão e esperando que a agonia cedesse.

Será que a ciência podia explicar a criatura que havia me atacado lá na caverna? E a constelação de olhos prateados correndo pela escuridão, atraída pelo cheiro de sangue fresco? E quanto à coisa que me salvara? Lembrava-me do toque dela, tão quente que me queimara, mesmo através do macacão. Certamente, a ciência podia mudar a aparência de alguém, mas podia fazer com que parecesse ter brasas sob a carne? Com certeza, era impossível.

Então, o que eram os ratos? Por que não se aglomeravam em torno do diretor como todas as suas outras criaturas nauseantes? Por que corriam como cães selvagens nos túneis escuros sob a prisão? Cada vez que achava estar perto de uma resposta, um milhão de perguntas diferentes me assolava.

A dor em minha perna havia se transformado em um pequeno espasmo, pulsando no ritmo do meu coração. Tentei flexionar a perna, esticar e girar o pé, como estava acostumado a fazer no futebol depois de uma coisa dessas. Aquele pensamento inevitavelmente despertou uma série de recordações — a luz do sol nas costas enquanto chutávamos a bola para um lado e para o outro do campo, risadas soando em comemo-ração. Ponderei se meus antigos colegas continuavam a jogar. Imaginei quem havia me substituído na zaga esquerda e quem agora dava os chutes no lugar de Toby. Dessa vez, minha mente é que parecia estar com câimbras, faíscas de dor incandescente piscando no fundo dos meus olhos.

Rosnei de raiva, um som que poderia ter vindo de um animal. Então, de repente, incentivado pela adrenalina, comecei a golpear a grade com os pés. Depois dos primeiros golpes, meus calcanhares já estavam feridos e sangrando, porém só eram necessários mais alguns chutes para o metal rígido se soltar da moldura. O ruído do ferro se rompendo era ensurdecedor, e o barulho da grade ao cair sobre a rocha reverberou em torno de minha cela como se uma vespa voasse por ali. Mas essa era a vantagem de estar em um espaço tão hermeticamente fechado — não houve gritos de alarme vindos de fora, nem som de passos acima de minha cabeça.

Agachado, inclinei-me para a frente, tentando não colocar nenhuma pressão sobre os pés machucados. Peguei a grade e levei-a ao peito. Ela ainda era inútil, mas o fato de ter sido capaz de soltá-la fora uma realização que me provocara um sorriso no rosto — tão amplo que minhas bochechas doíam. Teria beijado aquela porcaria se não estivesse cober-ta de bosta. Em vez disso, para comemorar, eu me levantei e urinei, o som da urina ao bater lá embaixo proporcionando uma agradável ilusão de espaço.

Demorei para me sentar, feliz em deixar algum sangue fluir para as pernas. Enquanto estava de pé, bati a grade na parede que dividia minha cela e a de Zê. Depois de estar no escuro há tanto tempo, a fagulha que ela produziu foi como um fogo de artifício explodindo diretamente em meu olho, e o som estridente, ensurdecedor. Pisquei, desfrutando dos pontos de luz que tinham quase queimado minha retina. Depois bati-a de novo na parede, dessa vez mais forte. Outra fagulha, iluminando a cela por uma fração de segundo — paredes úmidas e vermelhas como as tripas de um estômago.

Parei, colocando a cabeça contra a pedra fria e esperando uma res-posta. Zê por certo ouvira aquele som — vozes humanas podiam ser fracas demais para ultrapassar a rocha, mas sabia que o som passava através de objetos sólidos muitíssimo melhor do que pelo ar. Com certeza, um barulho como aquele devia ter chegado até ele.

No entanto, não ouvi nada em resposta, nem mesmo um som longínquo de algo sendo arranhado. Bati de novo a grade na pedra, mais por frustração do que com alguma esperança de uma resposta. Depois deixei a grade cair no chão.

— Zê! — berrei, o volume da minha voz de algum modo fazendo com que o pânico atingisse minhas entranhas. Segurei-as, abraçando a barriga, antes que o mal-estar piorasse, e bati a palma da mão contra a parede antes de deslizá-la novamente para o estômago. Inspirei profundamente algumas vezes, o que me acalmou, mas também provocou cansaço — minhas pálpebras caíram, como se tivessem sido fechadas após a última expiração profunda.

Deitei-me da melhor maneira que pude naquele espaço minúsculo, encolhendo a cabeça no canto oposto à privada e esticando os pés. Não tinha certeza de que o sono conseguiria me encontrar ali, tão bem oculto na rocha, tão profundamente escondido sob a terra. Mas ele me alcançou em segundos. Tudo por que havia passado desde que tentara fugir havia extraído quase toda a energia de mim, exceto uma última arfada já em estado de vigília. E, com um suspiro calmo que me escapou, o sono me libertou — ainda que apenas por um tempo — da minha tumba.

O sonho, quando começou, foi mais real que a realidade que tinha acabado de deixar. Acredito que, pelo menos no buraco, estava completamente isolado. Não havia luz, som ou nenhuma relação que fosse com o mundo cotidiano, mas nele meus sentidos foram bombardeados com novas informações. Foi uma sensação maravilhosa, até que percebi aonde a ilusão me levava.

Quando isso aconteceu, o lamento vazio pareceu se instalar em mim como uma nuvem escura. Eu descia o corredor da casa onde Toby e eu fomos capturados, embora, dessa vez, fosse Zê quem estivesse lá, alguns metros à frente, correndo o mais que podia. Ele se virou em minha direção, e o modo como seu rosto se transformou em uma máscara de puro terror foi como uma adaga em meu coração.

Havia algo bem atrás de mim.

Comecei também a correr, em câmera lenta, como sempre acon-tece em pesadelos. Zê olhou para trás de novo e, embora estivesse ofegante, lutando para respirar, lançou um grito feroz e desesperado.

Atingiu a porta da sala, agora protegida, como a enfermaria de Furnace, por uma cortina de tiras de plástico. Com um grito de pânico, cambaleou e desapareceu através delas, e o segui sem pensar, sentindo as tiras imundas escorregar, como plantas aquáticas, pelo meu rosto.

Do outro lado da cortina estava a sala onde o Ofegante havia escolhido Toby para morrer e eu para ser preso por assassinato, o lugar onde os ternos-pretos tinham rido enquanto um deles, o verruguento, apertava o gatilho.

Só que dessa vez os corpos de uma dúzia de garotos pendiam, fracos e sangrentos, do teto, pendurados de cabeça para baixo, cordas bem amarradas ao redor dos tornozelos sem cor. Estavam todos mortos. No entanto, todos berravam.

Senti o terror se apossar de mim, ou melhor, literalmente me agarrar, tão forte que achei que minhas entranhas fossem ser esmagadas — meu coração contraído demais para bombear apropriadamente o sangue, meus pulmões incapazes de se expandir, minha visão indo e voltando como um projetor defeituoso.

Zê bateu em um dos cadáveres, o impacto desequilibrando-o. Caiu ao chão, girando o corpo pelo local para olhar o que havia atrás de nós. Corri em sua direção, aterrorizado, mas sabendo que tínhamos uma chance a mais se lutássemos juntos. Achei que ele ficaria agradecido, mas, em vez disso, me golpeou com os pés, gritando palavras que não eram sonoras, porém, absolutamente claras: Você é um deles, você é um deles, você é um deles.

Tentei argumentar. No entanto, antes que pudesse fazê-lo, as fi-guras acima de mim começaram a ter espasmos, as mãos pendidas tentando agarrar minha cabeça e os olhos sem vida queimando até a minha alma. Resisti como pude, mas eram muitos, o toque gélido agarrando, dilacerando, ferindo.

Você é um deles, você é um deles, você é um deles.

Senti um dos garotos mortos pressionar algo contra minha boca: a ponta de uma agulha penetrando minha carne. Gritei, mas tudo o que saiu foi um soluço áspero, e, quando tentei recuperar o fôlego para gritar de novo, senti o veneno inundar meus pulmões. A sala começou a girar, os cadáveres rodando como em uma inconcebível roda de tortura, pronta para esmagar meus ossos. Em um segundo, tudo o que restava eram os uivos dos cadáveres, um interminável canto fúnebre, ao mesmo tempo que tentava arrancar a máscara de gás do meu rosto.

Dei um salto na cela, o sonho se desvanecendo enquanto a escuridão que me cercava mais uma vez penetrava em minha mente, apagando tudo o que havia estado ali.

Exceto os gritos.

Eram tão fracos que podiam ter sido um eco do meu pesadelo, mas percebi logo que não eram. O ruído era alto o bastante para penetrar em minha cela, caindo sobre mim como água gelada. Senti meu corpo arrepiar e prendi a respiração para ouvir o grito quando surgisse de novo.

Chegou mais alto dessa vez, e mais próximo. Mas esse não era o mesmo grito que havia escutado no sonho, embora fosse óbvio que o ha-via inspirado. Esse som, sem dúvida, não era humano, e sim um grito frenético desprovido de qualquer emoção, exceto ódio e crueldade. E, o que quer que fosse, aproximava-se.

Pensei no que o diretor dissera: os ratos — aquelas criaturas da ca-verna — chegando para me pegar. Mas isso era ótimo, pois estava trancafiado ali, seguro contra qualquer ataque, certo?

Exceto pelo fato de a tranca estar do lado de fora.

Quando ouvi o grito mais uma vez, pareceu-me ter vindo de cima de mim. Ainda soava como se estivesse a quilômetros de distância, mas sabia que era apenas uma fina barreira de rocha proporcionando a ilu-são de estar longe. Alguma coisa atingiu com força o alçapão, e todo o meu corpo encolheu. Outro baque, e depois o som de garras contra o metal. Encolhi-me o máximo que pude, rezando para o ruído cessar. Rezando com tanto fervor que meus dedos cruzados poderiam ter quebrado.

Houve um disparo em surdina, pouco mais alto que o barulho de um plástico-bolha sendo estourado, e logo depois um baque surdo, como se algo tivesse caído sobre o alçapão. Um segundo disparo se seguiu, depois o que pareciam ser pés; e um terceiro disparo, que produziu um som agudo no metal. Agucei os ouvidos para escutar melhor, mas, o que quer que estivesse acontecendo, parecia ter acabado.

Não me movi, mantive braços e pernas bem unidos e a cabeça pressionada contra o peito. Pesadelos aguardavam por mim quando eu dormisse, e a morte me esperava ali quando eu acordasse. No entanto, era tudo o que eu podia fazer.

 

 

COMUNICAÇÃO


Não me lembro de ter adormecido, mas devo tê-lo feito, porque fui despertado por outro ruído. Sentei-me, pensando por uma fração de segundo que havia ficado cego, antes de me lembrar onde estava.

Tive uma sensação desagradável nas entranhas, como se alguém houvesse revirado meu estômago e depois o colocado no lugar com a ajuda de grampos. Provavelmente era fome — não tinha ideia de há quanto tempo estava ali, mas devia ser mais de um dia.

O barulho não se repetiu, mas eu podia jurar que tinha vindo da direção do buraco no chão. Mudei a posição do corpo, acostumado demais com a dor para realmente me importar com ela, e baixei a cabeça perto da abertura.

Nada.

Talvez tivesse sonhado. Devido ao que havia se passado por minha mente na noite anterior (ou no período da manhã ou da tarde, fosse quando fosse), outro ruído incomum não era de estranhar. Percebi que necessitava daquela abertura para outra coisa, e fiz o máximo para me agachar sobre ela na escuridão. Nunca pensei que sentiria falta daquela peça de metal que usávamos como privada na cela lá em cima, mas, no momento em que tentava e não conseguia acertar o alvo, teria trocado até mesmo meus caninos por ela.

Enquanto tentava me adequar à situação, imaginando o que fazer a respeito do papel higiênico, um ruído metálico abafado se elevou lá de baixo. Saí da posição e coloquei a cabeça o mais próximo possível do chão, segurando a respiração para ouvir melhor caso o ruído se repetisse — e também por outra razão óbvia. E ele se repetiu, um som de metal contra metal.

De repente, meu coração acelerou. Tateei o chão e encontrei a grade, batendo-a o mais forte que pude contra a parede. O ruído que ela fez foi alto, mas não se parecia com aquele que acabara de ouvir. Enfiei um dedo no buraco, para averiguar melhor, e senti um cano com aro de ferro ou aço na borda. Houve outro ruído metálico, e dessa vez respondi, erguendo a grade acima da cabeça e batendo-a contra o aro de metal.

Ela o atingiu, emitindo o som de um sino de igreja abafado, e deixei-a cair, colocando as mãos no ouvido até que parasse de soar. Em meio ao chiado dos meus tímpanos, o ruído surgiu de novo, seguido por uma pausa longa o suficiente para que eu soubesse o que fazer. Ergui a grade e bati, com um pouco menos de força dessa vez, e apenas uma tentativa. Alguns segundos depois, o barulho vindo do buraco soou duas vezes, e eu respondi com duas batidas. Depois três vezes, seguidas por três golpes que dei entre gemidos sufocados de alívio.

— Zê — falei, mais para mim mesmo que tendo qualquer esperança de que ele me escutasse. — Você é um gênio.

Ele provavelmente havia conseguido arrancar sua grade e pensara em batê-la contra o metal do cano da privada. O som viajava para baixo e depois para cima de novo, criando a sensação de que vinha direto de debaixo de mim. Gritei para comemorar e, dessa vez, tentei, com as batidas, entoar as primeiras notas de um rap popular. Antes mesmo de o eco ter morrido no cano, duas “notas” de Zê brotaram através dele com gloriosa clareza.

Tornei a desmoronar contra a parede, rindo de maneira incontrolável. Parecia uma coisa estúpida estar tão contente com aquilo, mas aqueles breves sons romperam todo o poder que a solitária poderia ter sobre nós. Destruíam sua única força — a capacidade de nos manter isolados, trancafiados longe do mundo. Não era muito, e com certeza não poderíamos usar os ruídos para discutir a próxima Copa do Mundo ou quem era nossa gata preferida em Hollywood, mas era suficiente. Não estava mais sozinho.

Dessa vez, totalmente inebriado pelo entusiasmo, ergui a grade até a boca e a beijei.

Mantenha a mente ocupada, encontre coisas para fazer. Se estiver fazendo algo, é porque ainda existe, certo?

— Certo — respondi em voz alta, lembrando-me das palavras de Donovan. Bem, lembrando-me, na verdade, das palavras proferidas pelo meu subconsciente, disfarçado na lembrança de Donovan, para me impedir de sucumbir à depressão. É estranho como coisas complicadas podem acontecer quando você está à beira da loucura.

Mantive a mente ocupada pelo que me pareceu uma eternidade; Zê, também, enquanto tentávamos criar um sistema de comunicação. Ele havia começado com sons breves, depois mais longos, e imaginei que usasse o código Morse. Nunca fiz parte dos escoteiros ou de qualquer outro grupo do tipo; por isso, tudo o que conseguia fazer era bater repetidamente a grade contra o cano, frustrado, até que ele captou o sinal. Teria sido mais fácil se houvéssemos combinado um sistema de uma batida para sim, duas para não, mas, como não havia jeito de fazer perguntas, isso era impossível.

Passamos algum tempo emitindo sons esporádicos e sem significado, na verdade, sem nos importarmos muito em formar palavras, apenas felizes por ouvir um ao outro. Pelo menos no meu caso, o que emitia eram apenas sons sem sentido — e, pelo que presumia, Zê usava algum tipo de código que eu ainda não havia captado.

Houve um momento, um pouco depois de descobrirmos a presença um do outro, em que ele pareceu criar um sistema de batidas. Prestei atenção, tentando adivinhar o código. Ouvi cinco batidas claras seguidas por mais cinco e uma pausa. Logo depois, uma batida e mais cinco, outra pausa, depois uma e cinco novamente. Tentei descobrir o que aquilo poderia significar, mas o provável era que fosse algo que Zê havia visto em algum de seus malditos documentários, embora eu não tivesse nenhuma pista do que era.

Após pôr o cérebro para trabalhar durante algum tempo, a única coisa em que pude pensar foi que ele usava números para substituir letras. Mas, se fosse assim, ele acabara de soletrar EEAEAE, e, a menos que estivesse sendo torturado e quisesse me contar que estava gritando, não parecia significar nada.

A própria confusão mental me deu uma ideia. Esperando até Zê ficar em silêncio, bati minha grade quinze vezes contra o cano, uma para cada letra até chegar ao O. Fiz uma pausa, os dedos doendo, e depois dei nove batidas claras. I.

Silêncio. Roí minhas unhas na expectativa, cuspindo violentamente quando percebi o que fazia. Entretanto, não havia tempo para pensar nisso, pois a resposta de Zê inundou o cano com toda a sutileza de um robô homicida colocado em liberdade.

Quinze. O. Doze. L. Um. A. Um. A. Doze. L. Cinco. E. Não precisava esperar que as vinte e quatro batidas do X fossem emitidas como um mecanismo de relógio pelo cano para saber que havia entendido. Deixei a grade cair por um momento e dobrei os dedos cansados. Então, comecei a chorar. Mas imagino que não eram lágrimas de tristeza, e sim de felicidade. Na verdade, eu não poderia afirmar o que eram. É como quando você ouve o rádio e de repente começa uma canção que realmente toca seu coração. Não importa onde você esteja ou o que esteja fazendo, pode sentir a emoção crescendo dentro de si como uma maré alta se formando. Não há como detê-la.

Em Furnace, não havia música; portanto, essa era nossa versão de uma canção. E era mais bela do que qualquer outra coisa que já tinha ouvido. Quando Zê recomeçou as batidas, mais uma parte dessa nossa canção particular, movimentei o corpo, gotas quentes de água salgada passando pelos lábios e gotejando na rocha. Quando os soluços cederam, sequei os olhos, embora não houvesse nada para ver, e decodifiquei a mensagem de Zê.

Duas. B. Quinze. O. Treze. M. Uma pausa mais longa. Quinze. O. Sequências grandes agora: vinte e um. U. Vinte e dois. V. Mais um nove e um dezoito. I. R. Bom ouvir... Bom ouvir você, era o que Zê queria dizer.

Pensei em lhe enviar Tá de brincadeira, é?, mas isso levaria uma eternidade, então dei vinte batidas curtas. T. Mais duas. B. TB (também). Esperava que ele captasse o sentido.

Você está OK?, ele perguntou. Fiz que sim com a cabeça, ainda que ele não pudesse me ver, depois respondi com uma série de batidas.

BLZ.

Eu TB.

Prosseguimos assim, sem nos atrevermos a parar. De certa maneira, era como conversar usando um meio de comunicação bem antigo, como um telégrafo, ou algo assim, e com rapidez nos adaptamos aos atalhos e abreviações um do outro. Não era a forma de comunicação mais fácil do mundo — a frase mais simples demorando muito para ser batida. Mas era perfeita — mantinha nossa mente ocupada por muito mais tempo do que o faria uma conversa normal. Cada batida era como os segundos badalados por um relógio, e isso nos alçava para fora daquele lugar, levando-nos de volta à realidade. Podíamos ouvir os minutos passando, as conversas literalmente devorando as horas.

Reproduzia as mensagens de Zê na voz dele, embora me surpreendesse não conseguir me lembrar exatamente como ela era. No entanto, recordava seu tom, e, depois de “conversarmos” por algum tempo, era como se ele estivesse ali perto de mim, falando em meu ouvido.

— Já usou a privada? — perguntou ele, as batidas transformando-se em palavras abreviadas.

— Já, mas tirei a grade primeiro.

— Sorte a sua. No meu caso, tive que limpar minha própria bosta com os dedos.

Ri, lembrando do rosto de Zê na primeira manhã em Furnace, quando ele havia sido designado para o serviço de limpeza das privadas. Podia imaginar aquela mesma expressão de nojo agora.

— Beleza — fiz tinir no cano.

Houve uma pausa, enquanto ambos demos um descanso às mãos, então Zê recomeçou:

— Ouviu aquela coisa a noite passada?

Não respondi de imediato. Não conseguia suportar pensar naquilo, sobretudo depois de encontrar tanto consolo nas batidas de nossa comunicação. A memória daquela criatura, o que quer que fosse, arranhando com as garras o alçapão da minha cela, foi o suficiente para fazer as paredes desabar de novo, o bastante para me deixar com aquela imensa sensação de solidão. Para afastar o medo, bati uma resposta que, segundo esperava, poria um fim àquele assunto.

— Foi apenas ruído.

— Parecia aquela coisa lá da caverna — insistiu ele, e tinha razão. Não restava dúvida de que havia sido uma daquelas criaturas, os ratos. Como continuei sem responder, ele prosseguiu: — Você acha que vão voltar?

— Ouvi tiros. Devem estar mortas — falei esperançosamente.

— Talvez. Pensei tê-las ouvido fugir.

Imaginei a criatura estranha correndo nas sombras, retornando mais tarde, à noite, e decidi mudar de assunto.

— Há quanto tempo você acha que estamos aqui?

Após uma breve pausa, as batidas da resposta:

— Não sei. Um dia?

— Só faltam vinte e nove — respondi, bufando para mim mesmo.

— É como estar de férias.

Ri de novo, mas a pergunta de Zê sobre o rato havia me evocado lembranças que me deixaram abatido. Peguei minha grade e bati outra sentença:

— Há algum modo de trancar seu alçapão por dentro?

Não houve resposta. Imaginei que Zê estivesse investigando a porta da cela antes de responder; talvez ainda não tivesse feito isso. Contei os segundos, depois os minutos.

— Você está bem? — perguntei. Nada ainda. Algo havia acontecido. Estava prestes a bater outra mensagem frenética quando ouvi a barra no alto do meu alçapão girar. O choque foi tão grande que meu estômago deu um nó, como se eu estivesse numa montanha-russa, e deixei cair a grade, o som se perdendo sob o rangido das dobradiças enquanto a porta do alçapão se abria.

A claridade inundou a cela como fogo líquido, queimando meus olhos com tanta ferocidade que me dobrei para a frente e pressionei o rosto contra as mãos. Mas não antes de ver o enorme vulto delineado contra o vermelho infernal, dois olhos prateados me encarando como se fossem faróis. Era um terno-preto. Tinham ouvido nossa comunicação e estavam ali para nos separar, para tirar as grades de nós. Ou talvez apenas para nos castigar, arrastando-nos até a enfermaria.

— Podem bater quanto quiserem; não vão sair deste lugar.

Afastei a cabeça das mãos e tentei olhar para a luz. Meu coração batia tão forte que parecia poder ser ouvido através da parede. Me obriguei a olhar para cima, a sombra indistinta do terno-preto se esgueirando sobre mim como uma nuvem de tempestade.

— O quê? — perguntei.

— Não vou detê-los — falou ele com voz áspera, metade palavras, metade risos. — Quanto mais se cansarem, pior vai ficar.

Então ele se moveu, a mão brilhando em minha cela como se fosse um feixe de luz. Baixei a cabeça, sentindo algo cheio de pontas afiadas cair sobre mim. Um líquido quente corria pelo meu rosto, e achei que fosse sangue, mas depois gotejou um pouco em minha boca e reconheci a inconfundível textura da gororoba — o quase intragável purê de pele, ossos, entranhas e outros restos que em Furnace era chamado de comida.

— Vou poder comer? — perguntei, realmente surpreso. Não sabia bem como achava que sobreviveríamos durante um mês sem nenhum tipo de alimento, mas a última coisa que esperava era ser alimentado.

— Deleite-se — respondeu o terno-preto enquanto fechava o alçapão, rindo de novo diante da expressão cômica que eu devia exibir no momento. — Não vai ter mais nada por dois dias.


VISITANTES


Eu não sabia o que era melhor – o fato de ter algo para comer ou o de já estar ali há dois dias.

Felizmente, a tigela de gororoba havia aterrissado sem virar, e a maior parte do conteúdo ainda estava no lugar — um milagre em um local em que a lei de Murphy parecia ser regra oficial. Comi devagar, sabendo que, se comesse tudo de uma vez após ter ficado sem comer por tanto tempo, provavelmente vomitaria. Não era muito; a lavagem temperada com serragem estava ainda mais grudenta do que me lembrava, mas aliviou a dor prolongada de minhas entranhas e fez com que me sentisse saciado.

Terminei o último resquício da gororoba salgada e depois lambi a tigela, meu estômago emitindo ruídos de satisfação. Com a grade, bati uma mensagem para Zê. Não tinha realmente certeza do que dizer, então iniciei com algo breve.

— Hum.

— A melhor refeição da minha vida — foi a resposta dele cerca de um minuto depois.

— Não achei que fossem nos alimentar.

— Acho que querem nos manter vivos, para nos fazer sofrer mais — respondeu ele, uma sentença que pareceu demorar uma eternidade para ser concluída. — Achei que quisessem acabar logo com a gente.

— Eu também. Tivemos sorte.

Houve um momento de silêncio. Conseguia imaginar Zê lambendo a tigela com o mesmo prazer que eu.

— O terno-preto disse que se passaram dois dias — prossegui. — Acredita nisso?

— É impossível saber. Parece ter passado uma eternidade.

O guarda podia querer nos confundir, mas, se estivesse fazendo isso, teria nos dito que estávamos ali há algumas horas em vez de dois dias. Não, com certeza havia deixado aquela informação escapar sem querer, tentando nos torturar ao dizer que não iríamos ser alimentados por mais dois dias, sem saber que, ao contrário, nos dera uma nova esperança. Bem, se dois dias podiam passar assim, repletos de uma conversa lenta, mas maravilhosa, então um mês não seria problema.

— Consegue pensar em algum jogo? — perguntei, depois de outro período em silêncio.

— I Spy? — sugeriu ele, referindo-se a um jogo on-line e me fazendo engasgar de tanto rir. — Palavras que comecem com D.

— Dragão? — bati de volta.

— Não.

— Depósito?

— Ainda não.

— Detritos?

— Não. Esses, já soltei no cano.

Mais risos. Os músculos do braço já estavam doloridos devido ao esforço, mas eu estava me divertindo muito para parar. Me peguei pensando em todas as viagens de carro que tinha feito com a família quando era menino, todas as vezes que meu pai havia sugerido jogarmos I Spy e como fora legal jogar com ele. Esse é o melhor jogo que existe, meu pai dizia com muita determinação. Naquele momento, concordava plenamente com ele.

— Donovan? — sugeri por fim, esforçando-me para lembrar mais palavras que começassem com D. Minhas memórias do mundo lá fora vinham desaparecendo desde que chegara a Furnace, pois havia perdido a referência do que antes dava como certo. Claro, ainda sabia o que eram dedos, discos e damascos, mas demorei algum tempo para captar as imagens, os sons e os cheiros que acompanhavam essas palavras. E, às vezes, não conseguia nem mesmo fazer isso. Havia perdido por completo a memória, e nunca mais a recuperaria.

Zê não respondeu, e imaginei que ele estivesse pensando em Donovan. A simples menção de seu nome havia estimulado de novo as alucinações. Pedaços de vapor branco, não mais substanciais que neblina marinha, serpenteavam diante de meus olhos famintos por algum sentido, unindo-se em uma forma vaga antes de desaparecer, girando e se dispersando de novo. Em vez de combatê-los, expulsando-os como havia feito naquela primeira hora no buraco, deixei-os se aproximar.

Encontre coisas para fazer, disse a imagem de Donovan, a pele branca reluzindo, mas também vermelha e até mesmo verde em alguns pontos.

— Tenho que me manter lúcido, eu sei — repliquei. — Bem, tirando o fato de que estou falando de novo com um produto da minha imaginação...

Não chame Zê disso, brincou ele.

— Eu me refiro a você, seu idiota.

O som das batidas de Zê interromperam minha ilusão, fazendo com que o corpo de Donovan explodisse em partículas como um bando de pássaros assustados por um tiro de revólver. A alucinação se movimentou ao redor da cela antes de se formar do outro lado, meu antigo companheiro de cela agora minúsculo, como se estivesse sentado a uma longa distância de mim.

— Onde você acha que D está? — perguntou Zê.

Bem aqui, pensei em responder, as palavras saindo da boca do próprio Donovan. Mas só a memória dele existia na cela naquele momento, e eu tinha certeza absoluta de que sabia onde estava a versão real.

— Na enfermaria — bati, meus ouvidos zumbindo devido ao eco.

Puxa, obrigado, gritou a alucinação, franzindo o cenho, mas rindo ao mesmo tempo. Você podia ter dito que eu estava em uma praia em algum outro lugar, comendo um hambúrguer. Por que tinha que me imaginar naquele lugar? Seu mer...

Mais uma vez a resposta de Zê fez a imagem desaparecer. Balancei a cabeça, tentando clarear os pensamentos. Era bem difícil tentar manter duas conversas ao mesmo tempo em qualquer situação, mesmo que uma delas envolvesse uma alucinação, e a outra, um cara do outro lado de uma parede de pedra maciça usando uma grade de privada em um novo código alfabético.

— Espero que não — foi a resposta batida por Zê.

Dessa vez, quando Donovan se reconstituiu, estava bem perto de mim.

Donuts, disse ele. Eu o encarei. Olhei através dele, na verdade, pois sua pele era translúcida, depois encolhi os ombros. Teoricamente, não poderia ter visto o movimento, mas era fruto da minha mente, então sabia o que eu queria dizer. Diga donuts, para o jogo.

— Bobagem — grunhi, mas bati a palavra mesmo assim.

— Tomara... — foi a resposta batida de Zê.

Diana Wilkes, sugeriu Donovan. Sempre quis convidá-la para sair, mas nunca tive coragem.

— Não, acho que não... — respondi, recordando cenas da escola e a garota que se sentava três carteiras à frente da minha na aula de matemática. Diana Wilkes. Era apaixonado por ela; tinha até escrito a ela alguns bilhetes em cartões-postais. Mas jamais os havia entregado, nunca lhe falei nada. Jamais faria isso. Fiquei imaginando quem estaria sentado em minha carteira agora, sem prestar atenção à aula e olhando fixamente a nuca de Diana Wilkes, imaginando qual seria seu cheiro. Virei-me para Donovan e fingi lhe dar um soco no braço, minha mão passando direto por ele, como se fosse um reflexo na água. — É minha vida que você está usando; pense na sua.

Isso é bem difícil quando você foi criado pela imaginação de outra pessoa, respondeu ele. Falando nisso, tenho certeza de que meus braços reais são maiores que estes.

Donovan os flexionou, e a alucinação pareceu crescer a proporções ridículas. Ele fez um sinal de aprovação para os próprios bíceps, que agora pareciam bolas de rúgbi sob a camiseta reluzente.

— Está feliz?

Assim está bem melhor.

Houve uma batida impaciente vinda do cano, os ruídos prosseguindo para dizer:

— Desistiu?

— Nunca — respondi. — Dinossauros.

— Não.

É delivery, de qualquer tipo de comida, disse Donovan na minha cabeça. A resposta é delivery. Ele está de saco cheio de comer a lavagem.

— Droga, D — falei, encarando-o com raiva. — Sei disso. Só estava gastando mais tempo com o jogo, me divertindo. Que grande estraga-prazeres é você!

Desculpe, murmurou a aparição. Então olhou para mim, os olhos brilhando como pérolas no oceano. Cães.

— Cães começa com D, por acaso? — respondi, quase cuspindo ao falar. Você está estragando o jogo.

Não, escute, pediu ele. Cães.

Ouvi um rosnado que parecia um motor a jato acima de minha cabeça, depois o latido inconfundível de um dos vira-latas do diretor. Donovan desapareceu, e eu me levantei. Fiquei na ponta dos pés e aproximei o ouvido o máximo possível do alçapão. Era óbvio que Zê também tinha ouvido, pois não emitiu mais nenhum som pelo cano.

Não ouvi o cão de novo, mas consegui reconhecer o som de pés na rocha lá em cima. Era apenas um ruído leve; no entanto, deviam se mover bem depressa para que o som chegasse até onde eu estava. Prendi a respiração, ficando em completo silêncio, com exceção das marteladas de minha pulsação acelerada. Ouvi uma voz, muito longínqua para que fizesse algum sentido, mas dava para perceber urgência no que era dito. Parecia uma ordem sendo proferida.

Os passos foram desaparecendo até cessar por completo, quando então soou um tiro abafado. A mesma coisa que eu ouvira na outra noite, mas o estampido era mais suave dessa vez, o que significava que estava mais distante. Dois outros seguiram o primeiro, tão próximos um do outro que pareciam um só. Houve um grito, que me chegou fraco, como uma unha arranhando um vidro. Depois o som sumiu.

Pensei em me dirigir ao cano com a grade, para me certificar de que Zê estava bem, quando um guincho soou de novo. Dessa vez, bem em cima do meu alçapão.

A alavanca rangeu como se estivesse sendo empurrada, o som de unhas ou garras no metal fazendo meus cabelos se arrepiar. Deixei a grade cair, esticando o corpo e tentando encontrar alguma coisa — qualquer coisa — para agarrar. Havia uma ligeira borda em torno da circunferência do alçapão, onde mal cabiam meus dedos. Agarrei-a o melhor que pude, praticamente me pendurando nela para impedir que alguém a abrisse.

A pressão do ambiente na cela mudou quando a alavanca foi girada, e meus ouvidos entupiram de tal modo que fiquei surdo. Bocejei para tentar destampá-los, mas logo desejei não ter ouvido aquela criatura gritando de novo fora do buraco. Era um guincho de genuína raiva, tão demoníaco que cada músculo do meu corpo perdeu a força. Tudo que pude fazer foi me pendurar, porém o alçapão começou a se deslocar, algo puxando-o para fora.

A tampa se ergueu, o suficiente para a entrada de um feixe de luz vermelho-sangue. Fechei os olhos e forcei o alçapão para baixo. Uma de minhas mãos escorregou, mas a outra se manteve firme, o aço batendo ao se fechar com um golpe que podia ter quebrado minha espinha. Outro guincho, e o arranhar de garras frenéticas no metal. Mais uma vez o alçapão foi puxado, o suficiente para que eu tivesse uma ideia do que estava lá fora: a carne da mesma cor que as paredes, os membros inchados demais para serem humanos. O que quer que fosse, tinha pés, retorcidos e deformados, mas, exceto por esse detalhe, não eram diferentes dos meus.

— Deixe-me em paz! — gritei, as palavras sufocadas por soluços.

Isso só pareceu deixar a criatura ainda mais furiosa, e o alçapão se levantou um pouco mais. Dessa vez, uma mão retorcida deslizou para dentro, as unhas em forma de garras segurando a extremidade. Mais um pouco, e o alçapão estaria aberto. Mais alguns centímetros, e aquela coisa me deixaria totalmente exposto.

Enterrei os dedos com tanta força no alçapão que senti uma das unhas se quebrar. Ignorando a dor, forcei o corpo repetidas vezes para baixo, e, por algum milagre, cada vez que o fazia, a fresta de luz diminuía. A criatura lançou um urro de desafio, mas sua força parecia estar diminuindo. Com um estrondo, o alçapão se fechou, prendendo os dedos dela. A criatura soltou outro ganido, dessa vez, cheio de dor, e não de raiva, e humano demais para o meu gosto.

A criatura foi silenciada em pleno grito. Num segundo, esforçava-se para libertar a mão; no outro, houve um golpe abafado, e ela emudeceu. Empurrei os dedos daquela coisa pela abertura, desesperado para fechar o alçapão antes que houvesse algum outro tipo de perigo por perto. Eles deslizaram para fora com o som repugnante de ossos quebrados, e mergulhei na tão bem-vinda escuridão. Não podia trancar o alçapão por dentro, mas estava agradecido só pelo fato de vê-lo fechado.

No entanto, minha gratidão durou pouco. Antes que pudesse recuperar o fôlego, a tampa se abriu por completo, e não tive fôlego suficiente nem para gritar, quando um par de mãos sangrentas me arrancaram da cela.


CAPTURADO


As patas da criatura eram como máquinas, prendendo meus braços nas laterais do corpo e me içando do buraco como se eu não pesasse nada. Tentei me defender com as pernas, mas a coisa estava atrás de mim, e meus chutes patéticos não pareciam sequer ser percebidos.

O que quer que tivesse me capturado, fez uma pausa para fechar o alçapão, usando uma das pernas enormes para girar a alavanca para o lugar certo. A outra criatura, aquela que havia tentado me capturar primeiro, estava arqueada e sem vida no chão, o corpo brilhante e sem pele virado para baixo. A cabeça se encontrava em um ângulo impossível — os olhos mortos jaziam abertos e sem brilho, a boca enorme escancarada como uma sacola de compras vazia, como se uivasse em silêncio para o teto.

Gritei por ajuda, atirando-me contra meu captor e tentando me livrar de suas mãos. Próximo dali foi disparado um tiro, muito mais alto no espaço aberto do que havia sido no buraco. Era uma espingarda; reconheci o som pelos que já tinha ouvido sendo disparados na prisão. Mais três tiros se seguiram em rápida sucessão, e um berro de um dos ter-nos-pretos. Queria muito ver um deles aparecer à frente ou sair dos túneis escuros que estavam atrás, qualquer coisa ajudaria. Os guardas podiam ser assustadores, mas não eram nada comparados ao retorcido monstro de pele com calombos que exalava seu hálito de sangue em meu pescoço.

A criatura passou a correr, cada passada gigantesca e pesada me levando para longe do lugar por onde tinha chegado. Os alçapões no chão passavam brilhando, em número excessivo demais para ser contados. Chamei por Zê, sabendo que ele não poderia me ouvir, e então a criatura fez uma curva, e a solitária ficou para trás.

Estávamos em outro trecho do corredor, mais estreito dessa vez, e consegui erguer a perna, tentando me apoiar na rocha. Fiz contato com ela, chutando com força e desequilibrando nós dois. A criatura bateu na parede oposta, o impacto obrigando-a a afrouxar os braços. Ali estava minha chance. Lancei a cabeça para trás com toda a força.

Estrelas explodiram diante de meus olhos, primeiro por causa da luz, depois, da dor. Mas tinha valido a pena. Algo atrás de mim emitiu um som de trituração, seguindo-se a isso um uivo de agonia. O outro braço que me segurava afrouxou, e me desvencilhei, cambaleando sobre a superfície rochosa antes de me equilibrar.

O corredor era mais curto do que aquele que havíamos acabado de deixar, sem nenhuma entrada de luz aparente. Mais adiante, parecia se inclinar para baixo, e consegui perceber enormes sombras flutuantes à frente. Tinham que ser dos guardas. Eles provavelmente atirariam em mim assim que me vissem, porém seria melhor do que ficar nas mãos da criatura que havia me capturado.

Fiz menção de gritar, mas, antes que pudesse fazê-lo, uma mão envolveu meu rosto. Senti dedos em minha boca, incrustados de sujeira, e os mordi. Outra mão me segurou pela cintura, e fui erguido de novo, como uma criança pequena levantada pelo pai. Vi as sombras aumentar de tamanho, os ternos-pretos quase em cima de mim e de meu captor. Mas então o túnel se inclinou, e fui arrastado para uma das fendas na parede. A escuridão me engoliu por completo.

Sabia o que viria em seguida. A criatura me levaria a um canto quieto, onde poderia me devorar lentamente, dedo por dedo, membro por membro. Eu a golpeei de novo, esperando desferir um chute para fora da entrada, uma última chance para atrair a atenção dos guardas. Ela era forte demais, no entanto, e em um salto estávamos a meio caminho de uma sala negra como piche, a porta se transformando em nada além de um bloco de luz vermelha e mortiça a distância. Outro salto, e havíamos desaparecido por completo na escuridão.

A criatura me colocou no chão, a mão ainda fechada sobre meus lábios. Podia ouvir a marcha das botas lá fora, e fiz uma última tentativa de gritar.

— Quieto — disse uma voz, a voz daquilo, como um chocalho da morte.

Meu lamento abafado se desmanchou, mais pelo choque do que por qualquer outra coisa. A criatura havia realmente falado? Ser devorado por um monstro, por uma criatura com uma diminuta semelhança com o gênero humano, era uma coisa. Mas algo bem pior era ser destrinchado por uma besta que podia falar.

— Quieto — avisou ela de novo, dessa vez em tom mais suave. A voz me era familiar. Não havia mais som de passos, e o braço que me prendia pareceu afrouxar. A mão sobre minha boca, no entanto, estava mais firme do que nunca. — Preciso ter certeza de que não vai gritar — continuou o sussurro áspero. — Preciso que confie em mim.

Fiquei deitado ali por um momento, tremendo demais para responder. Mas, de verdade, que escolha eu tinha? Fiz que sim com a cabeça, forte o bastante para que a criatura percebesse o movimento.

— Não vou machucá-lo — prosseguiu ela, retirando a mão com sua-vidade. Minha boca ficou com gosto de sangue, embora não pudesse afirmar se vinha dos meus lábios ou dos dedos que eu havia mordido. Tossindo em busca de ar, pensei em gritar. Mas, mesmo que quisesse, duvido que tivesse força suficiente.

— Desculpe-me — falou a voz, as articulações estalando ao mudar de posição. — Não havia outra maneira. Só tinha alguns segundos para tirá-lo dali.

— Poderia ter pedido — repliquei com voz rouca, sentando-me. Senti uma superfície rígida atrás de mim, prateleiras de metal, e me arrastei até me apoiar contra elas. A criatura era invisível na penumbra, e ainda me sentia aterrorizado por ela. Mas considerei que podia ter agora as garras sob minha pele, os dentes em meu pescoço, por isso não podia me queixar.

— Você não teria vindo — falou a criatura. — Até que conseguisse convencê-lo, seria tarde demais.

Então tive um estalo; percebi onde tinha ouvido aquela voz antes. Em um rompante, recordei como suas mãos estavam quentes ao cobrirem minha boca.

— Você é a coisa que me salvou lá na caverna, certo?

Ouvi um grunhido, que devia significar sim. Mas consegui ouvir outra coisa também: um som de jato espesso, que me lembrou a carne crua deslizando pelos trituradores de alimento na cozinha da prisão.

— Você está bem? — perguntei.

— Acho que quebrou meu nariz —, replicou a voz, agora alterada pela dor. — Mas isso é fácil de curar; me dê só um minuto.

Jamais ouvira falar de um nariz quebrado que podia ser curado em um minuto, porém permaneci quieto, até o ruído parar e a criatura falar de novo.

— Você é Alex Sawyer — me disse ela, e eu estava prestes a responder, mas percebi que não era uma pergunta. — E conseguiu escapar.

Acenei com a cabeça, me esquecendo de que ela não podia me ver. Para minha surpresa, no entanto, os olhos prateados pareceram captar o movimento.

— Imaginei isso. Ouvimos a explosão aqui de baixo. De início, não sabíamos o que havia acontecido, mas, quando vimos você no rio, não conseguimos acreditar.

— Nós? — perguntei.

Antes que a criatura pudesse responder, ouvi um berro no corredor lá fora e mais disparos. Algo passou voando pela porta distante, uma sombra rápida demais para percebermos o que era. Dei uma olhada, imaginando por que estaria correndo tão perto da parede, esfolando-se toda ao passar.

— Não há tempo — sussurrou a criatura. — Você tem que voltar.

— Voltar?

— Para o buraco.

Fiz menção de balançar a cabeça negativamente, mas a criatura apoiou os dedos quentes em meu braço, tirando-os um segundo depois, como se temesse que pudessem me queimar.

— Apenas me escute. Precisava que soubesse de nossa existência aqui embaixo, que não está sozinho.

Mais passos soaram forte, em ritmo de pânico, quando dois ternos-pretos passaram correndo a toda a velocidade, pouco mais que um borrão.

— O que está acontecendo lá fora? — perguntei quando o barulho desapareceu. — Você é uma dessas coisas? Uma dessas criaturas?

— Sim e não — foi a resposta que recebi. — Eu lhe explico mais tarde. Tudo o que precisa saber é que há uma guerra acontecendo aqui embaixo e que estamos do lado dos mais fracos. Precisamos de você, Alex. Se conseguiu sair da prisão lá em cima, pode conseguir nos ti- rar daqui.

Minha cabeça girava, a sensação de tontura amplificada pela escuridão. Meus pensamentos eram como planetas flutuando fora de órbita, batendo um no outro e explodindo em poeira cósmica. Vi um deles claramente, e tentei agarrá-lo antes que desaparecesse com os outros.

— Donovan. Carl Donovan. Ele está aqui embaixo?

— Não sei — respondeu a criatura, mas pude perceber a hesitação na resposta. — Há alguns garotos na enfermaria, entre eles o garoto com quem você escapou.

— Não estou falando dele — interrompi. — É outro garoto, mais ou menos da mesma idade, com pele escura, grandalhão.

— Pode ser. — Os olhos prateados da criatura piscaram, inquietos. — Não sei; não posso afirmar. Eles são todos...

— O quê? São todos o quê?

— Esqueça-se deles, está bem? Esqueça-se dele. É tarde demais. Mas não para nós.

Estava quieto lá fora desde que os ternos-pretos haviam passado naquela correria toda, e a criatura se levantou. Senti de novo os dedos abrasadores através do macacão enquanto ela me levantava, conduzindo-me de volta em direção à porta. Queria lhe perguntar mais sobre Donovan, pedir que me levasse até ele. Queria que meu antigo companheiro de cela soubesse que eu estava ali, que não o havia abandonado. Mas a criatura foi a primeira a falar:

— Os guardas devem estar ocupados na porta norte — murmurou para si mesma enquanto caminhávamos devagar pelo corredor. Com mais tempo para olhar ao redor, pude ver que estávamos em uma espécie de depósito, a luz da passagem lá fora fraca demais para identificar o que havia nas inúmeras caixas e vidros alinhados nas prateleiras. — Foi aqui que aconteceu a violação, por onde os ratos entraram. Devemos ser precisos ao voltar para o buraco.

Atingimos a porta e me virei, pronto para lhe implorar que não me levasse de volta à solitária. Mas a criatura agarrou meus ombros e me segurou com força, mantendo-me virado para a frente.

— Não olhe pra mim — pediu, e pude perceber uma tristeza imensa em sua voz, um lamento sufocado de vergonha. — Por favor, não olhe pra mim.

Ela me manteve parado por um momento, enquanto um tiro distante chegou ao corredor. Depois me empurrou, dizendo-me para correr. Não discuti e corri de volta pelo caminho que havíamos feito. O corredor onde ficava a solitária não tinha ninguém, e o percorremos mais rápido do que imaginei ser possível, as mãos da criatura pressionando minhas costas e denunciando o poder enorme de seu corpo. Com uma das mãos sobre mim para garantir que não me virasse, ela girou a alavanca e abriu o alçapão.

— Vou voltar — sussurrou. — Da próxima vez que houver uma brecha; da próxima vez que os ternos-pretos estiverem distraídos, voltarei. Rápido, entre.

Sentei-me, apoiando-me na beirada do buraco e lançando os pés para dentro.

— Pelo menos me fale o seu nome — pedi.

— Meu nome? — replicou a criatura, como se não soubesse o que significava aquela pergunta. Atingi o chão e imediatamente virei a cabeça. O alçapão já se fechava, mas, através da abertura que diminuía, consegui ver o vulto de um corpo monstruoso, um braço tão grosso e inchado quanto um tronco de árvore, o outro, só pele e ossos. A cria- tura levantou o braço esquelético enquanto eu a olhava, escondendo--se atrás de sua mão enrugada. Mas não antes que eu pudesse passar o olhar pela face agora oculta — o rosto de um adolescente um pouco mais velho que eu, olhos prateados incrustados na pele cinzenta.

— É Simon — respondeu ele, e então o alçapão se fechou, e a alavanca foi trancada, deixando-me apenas com o eco fugaz das palavras do garoto.


RECUPERAÇÃO


Pelo que pareceu uma eternidade, fiquei em minha cela olhando para a noite infinita, dando a meu corpo tempo para lembrar como respirar. Meu coração também lutava, seu ritmo frenético e descontrolado batendo forte e rápido demais, e depois perdendo o compasso antes de tentar recuperar o ritmo. O espaço minúsculo parecia girar, embora eu não soubesse lhe dizer se algo o movia de fato ou não.

Achei ter ouvido um trovão zunir em meus ouvidos, até que minha mente enevoada se concentrou na realidade e percebi que era Zê na cela ao lado. Ele batia sua grade com toda a fúria, esperando por uma resposta. Tocando a parede para afastar a tontura, agachei-me e usei a outra mão para tatear a superfície, encontrando minha grade encostada em um canto. Não tinha certeza do que dizer, então apenas bati três vezes no cano.

Houve um silêncio na cela de Zê, e quase pude imaginá-lo com a cabeça encostada na rocha, aliviado. Alguns segundos depois, ele bateu de novo, a longa frase me dando tempo suficiente para me recuperar.

— Achei que o tivessem levado — ele bateu.

— E me levaram mesmo — respondi, dando batidas um pouco mais lentas que o normal. Zê já respondia antes mesmo de eu ter terminado.

— Para onde? Quem?

Tentei pensar em uma resposta, em uma explicação, mas minha mente estava vazia. Então, para Zê não achar que havia sido levado de novo, fiz-lhe um breve resumo dos últimos minutos — que mais pareceram horas: contei-lhe sobre a criatura que havia aberto minha cela, depois o garoto que a tinha matado e me arrastado. Contei a Zê aonde havíamos ido e o que ele dissera.

— Há mais deles? — perguntou Zê. — Quem são eles?

— Não sei — respondi. E realmente não sabia. Pelo que vislumbrei do garoto, Simon, ele parecia um monstro. A maneira como a pele de um dos braços era inchada, com cicatrizes incrustadas de sangue e sujeira, a pele ameaçando se romper a qualquer instante, me fez lembrar da figura de Monty, aberto e comprimido com tanta firmeza na carne de alguma outra coisa que parecia uma fruta excessivamente madura, já podre, prestes a explodir. Ele tinha os mesmos olhos prateados, como os de um lobo uivando para a luz da Lua.

Mas por que Simon não agia como um monstro? Por que ele havia me arrancado da cela e me dado esperança, em vez de me levar para a escuridão e se alimentar do meu torso retorcido? Podia ter me matado no momento em que abrira a boca para gritar, porém não o fizera.

— Ele disse que precisava de mim — prossegui, fragmentos da conversa juntando-se em minha mente como um quebra-cabeça. — Para escapar.

— Escapar? — perguntou Zê, e pude perceber sua excitação pela ansiedade das batidas com a grade. — Então você acha mesmo que há um jeito?

Não há nenhuma possibilidade de fuga, pensei. Quero dizer, estávamos encasulados em uma cela do tamanho de um caixão, com quilômetros de rocha nos separando do mundo em todas as direções, exceto uma, e um grande pedaço de aço reforçado estava ali para compensar. E não era só isso; havíamos sido levados mais para dentro das entranhas fedorentas de Furnace.

Lá embaixo não havia chance de salvação. Mesmo que conseguíssemos sair da solitária, que encontrássemos uma passagem de volta ao labirinto de túneis e caminhos que compunham a prisão, ainda teríamos de lutar contra eles. Os ratos, com suas bocas de enguia e fileiras infinitas de dentes pontiagudos; as garras infectadas, prestes a cortar a pele como se fosse papel; os guinchos desalmados se elevando de gargantas úmidas quando começavam a festejar. Bati outra frase, ainda que apenas para manter a mente ocupada.

— Como seria possível? — perguntei, me arrependendo assim que terminei a última palavra. No buraco, manter o espírito alerta era a coisa mais importante que podíamos fazer. Embora pudesse literalmente sentir o peso do mundo pressionando meus ombros para baixo, sabia que deveria pelo menos aparentar otimismo. — Não tenho certeza — voltei atrás. — Talvez haja um modo. Vamos esperar o garoto voltar da próxima vez que houver uma brecha.

Zê não replicou, e eu sabia que a mão dele devia estar tão cheia de bolhas quanto a minha.

— Vamos dormir um pouco — menti, apenas para que ele não se preocupasse se eu ficasse algum tempo em silêncio. Fiquei em dúvida sobre como me despedir, então finalizei com: — Logo nos falamos.

Na verdade, não estava cansado. Havia adrenalina suficiente pulsando em meu corpo para me manter acordado por semanas, mas eu precisava de tempo para pensar. Que diabos estava acontecendo ali embaixo? Se pudesse pelo menos ter uma ideia, talvez tivesse uma chance de evitar o mesmo destino amaldiçoado de Simon, Monty e só Deus sabe quantos outros. Fitando a escuridão absoluta, pensei em meu antigo companheiro de cela, e certamente após algumas piscadas ele veio até mim, tomando forma ao se aproximar.

Você está ficando bom nisso, disse a alucinação, sentando-se em uma cadeira invisível no que devia ser o outro lado da parede. Desejava de verdade ser tão insubstancial quanto essa minha invocação, capaz de passar pelo alçapão, atravessar um quilômetro de rocha e continuar seguindo, pairando no céu azul e calmo até ter o mundo todo a meus pés. Você deseja isso, prosseguiu ele. Mas não conseguiria tirar esse traseiro gordo do chão, que dirá flutuar até a superfície.

— Ha, ha — repliquei secamente. — Você é fruto da minha mente; deveria ser bonzinho comigo.

Você não deve me conhecer direito, disse Donovan, inclinando-se para a frente e apoiando os cotovelos nos joelhos. Então o que quer, afinal? Não sei bem se eu gosto quando você me arrasta aqui pra baixo.

— É só para ter alguém com quem falar, suponho — repliquei, o som de minha voz solitária na cela fazendo-me sentir um tolo, embora soubesse que ninguém poderia ouvi-la. — Alguém para me ajudar a encontrar sentido no que está acontecendo, ao que aconteceu com aquele garoto, Simon.

Sinto muito, garoto, mas compartilhamos o mesmo cérebro no momento. O que você sabe é o que eu sei.

— Podia ao menos fingir que vai me ajudar — implorei.

Ótimo, ótimo, disse ele, enfiando a cabeça entre as mãos como alguém imerso em profundos pensamentos. Acho que isso tudo faz parte de algum grande reality show, sendo transmitido neste momento para toda a nação.

— Puxa, obrigado — falei, sorrindo, apesar de tudo. — É sério, D, o que está acontecendo aqui? Essas coisas, essas criaturas, elas um dia já foram humanas, certo?

Sim, replicou Donovan, o olhar perdido no chão. Seu rosto era uma massa de um branco cintilante, mas os olhos pareciam brilhar mais que o usual. É melhor você não me imaginar chorando, Alex, ou vou espancá-lo até a metade da próxima semana.

Eu ri, e ele me acompanhou por uma fração de segundo, antes de o rosto se abater de novo.

É, eles parecem humanos. Seja como for, são apenas uma sombra do que foram um dia. Não são mais as mesmas pessoas, especialmente os ratos. Eles tiveram até o último resquício de humanidade arrancado deles. Agora são animais... Monstros, demônios, como preferir chamá-los.

— São espécimes — falei em voz alta. Donovan assentiu.

Acho que você está certo; deve ser algum tipo de experimento. Algum tipo de merda genética. Realmente asquerosa. Talvez estejam tentando criar supersoldados ou algo do gênero. Esses ternos-pretos poderiam causar sérios problemas. Você deve tentar encontrar o meu eu real. Saberei a resposta.

— Como saberia mais do que eu? — repliquei. — Nós dois sabemos que eu sou muito mais inteligente.

Donovan apenas bufou, encarando-me com seus olhos penetrantes feitos de luz da lua.

Porque, o que quer que tenha acontecido com Simon, com esses seres estranhos, está acontecendo comigo neste exato momento.

— Não — disse eu, num lamento que logo se transformou em soluço. Não suportava pensar nele na enfermaria, enquanto todo traço de humanidade era extraído de seu corpo, tudo de bom sendo sugado de sua alma. Baixei a cabeça, fitando o abismo sob meus pés, e, quando a levantei, Donovan havia partido.

— Não! — gritei. — Não vou deixar isso acontecer. Vou encontrá-lo, D; prometi que viria buscá-lo. É só esperar.

Fiz das tripas coração, fechando-me para as emoções e deixando que pensamentos lógicos viessem à tona. Se Simon e outros que estavam ali precisavam de mim para ajudá-los a escapar, então lhes daria o que queriam. De algum modo, eu iria nos tirar dali. Mas só se me levassem até Donovan, e só se ele ainda estivesse vivo. O que quer que acontecesse, ele sairia dali conosco.

— Pode esperar — repeti. — Não vai demorar muito.

E estava certo; não iria demorar mesmo.

 

 

A GUERRA


Eles voltaram enquanto eu dormia. Eu os ouvi em meus sonhos de novo, o som que faziam me tirando do pesadelo de membros dependurados e me arrastando de volta ao buraco. Era apenas o eco fraco de um rio, mas me deixou totalmente desperto, os sentidos aguçados, meu coração batendo mais sob o efeito de adrenalina que do sangue.

Dessa vez foi mais excitação do que medo que me pôs de pé. Ainda estava aterrorizado — não me entenda mal —, mas pelo menos tinha uma ideia do que estava do outro lado do alçapão, e isso me proporcionou certo controle. Não muito, confesso, mas o bastante para me manter de pé, os punhos cerrados ao lado do corpo, em vez de encolhido num canto rezando por paz.

Fiquei na ponta dos pés e coloquei o ouvido o mais próximo que pude do alçapão. Pelo que pareceram horas, não ouvi nenhum som, exceto o fluxo de sangue em minha cabeça, a pulsação como o oceano batendo contra uma costa rochosa. Então ouvi o som de novo, um grito distante, mesmo através do metal maciço.

Estava tão concentrado no ruído que uma batida repentina vinda da cela de Zê me deixou mortalmente apavorado.

— Leve-me com você — bateu ele pacientemente.

Levantei minha grade para lhe responder “OK”, quando a trava do alçapão guinchou, metal atritando contra metal enquanto era destrancada. Ergui a grade sobre o ombro, pronto para atirá-la na cara de qualquer um que não fosse Simon. Mas, assim que a porta se abriu e olhei para a luz ardente do corredor, foi justamente ele que vi, os olhos prateados e constrangidos fixos em mim atrás dos dedos deformados.

— Depressa — disse ele, a voz parecendo a de um velho que havia fumado cem cigarros por dia durante toda a vida. Estendeu-me a outra mão, a pele, tensa e lisa como couro curtido, perpassada por pontos em cruz. — Rápido! — repetiu com mais urgência. Estendi as mãos para ele, e Simon me içou da cela sem nenhum esforço, fechando depois o alçapão.

Começou a correr, dirigindo-se ao depósito ao qual me levara antes. Não o segui de imediato, saltando do meu alçapão para o outro, onde ficava a cela de Zê. Estava com as mãos na alavanca, tentando abri-la, quando ouvi Simon sussurrar em meu ouvido:

— O que está fazendo? — Seu hálito em minha nuca estava tão quente quanto poeira do deserto. — Não há tempo.

— Ele vem conosco — falei, os braços, fracos de tanto bater com a grade, incapazes de mover a alavanca. — Ajude-me a abrir a tampa.

Ouvi o início de um protesto surgir da garganta do garoto, mas ele engoliu em seco e me afastou do caminho, fazendo a barra girar com um único movimento do braço desproporcionalmente grande. Abriu o alçapão, revelando um par de olhos tão arregalados e brancos que pareciam brilhar na escuridão do buraco.

— Alex? — veio a voz de Zê, um murmúrio não mais alto que o bater de asas de um pássaro. Ele não teve tempo de dizer mais nada antes de Simon mergulhar a mão nas sombras e puxá-lo para fora, depositando-o no chão. Simon fechou o alçapão com um pontapé e o trancou, e começou a correr a toda a velocidade.

— Estúpido, estúpido, estúpido — pude ouvi-lo murmurando a cada passada, enquanto fazia uma curva na direção do pequeno corredor. Agarrei a mão de Zê e o segui, ignorando seus gritos de confusão até que ultrapassamos, abaixados, a fenda na parede e tateamos às cegas depósito adentro. Houve um momento de pânico em que não consegui ver Simon, mas em seguida localizei as luas gêmeas de seus olhos piscando para nós de um canto distante.

— O que está acontecendo? — sussurrou Zê. — É ele? Aquele garoto?

Não respondi, concentrando-me em evitar as prateleiras e caixas que não eram mais do que sombras contra a escuridão diante de mim. Ouvi um fósforo sendo riscado à frente, e fomos banhados por uma cálida luz âmbar.

— Rápido — disse Simon, segurando o fósforo o mais distante de si que conseguia. Deu uma olhada para a luz através dos dedos da outra mão, como se tivesse medo dela, e após alguns segundos dirigiu a chama para o chão. Aproximamo-nos com cuidado de uma prateleira de metal, e sentei-me ao lado de Simon, o fósforo fazendo um arco de luz alaranjada, como um último suspiro, antes de ser engolida pela escuridão.

— Foi burrice — disse Simon, a voz parecendo vir de um local indefinido. — Toda vez que me aproximo de você, estou arriscando minha vida. Os ternos-pretos estão em toda parte; se me virem, vão atirar.

— Desculpe — respondi. — Mas Zê e eu trabalhamos juntos, somos uma equipe. Se quer que eu o ajude, tem que aceitá-lo também.

— Ajudar? — perguntou Zê. — Quer dizer fugir?

Os olhos prateados de Simon oscilaram para cima e para baixo enquanto fazia que sim com a cabeça. Olhei para trás por sobre o ombro, para a porta do depósito, o corredor deserto, e nada além do silêncio perambulando por ele.

— Onde estão todos? — perguntei. — Os ternos-pretos?

— Ocorreu de novo uma violação do outro lado, na porta norte. Os guardas foram todos para lá. E ficarão ali até conseguirem restabelecer a segurança.

— Segurança contra o quê? — perguntou Zê.

Ouvi Simon soltar um resmungo de frustração.

— Vocês não precisam saber. Não é importante, pelo menos não agora. Você precisa estar com a mente despreocupada, Alex. Precisa nos ajudar a encontrar uma saída. Se soubesse o que está acontecendo, se soubesse o que estão fazendo...

— Preciso saber de tudo — cortei. — Nós precisamos saber de tudo. Para conseguirmos sair daqui, temos que saber a verdade.

No entanto, talvez Simon tivesse razão: era melhor não saber de nada, melhor usar cada pedacinho do meu poder mental para buscar uma saída. A verdade — os horrores impensáveis de Furnace — só faria penetrar em minha consciência como um veneno, enevoando minha mente. Mas naquele momento isso não importava; tudo o que eu desejava era saber o que acontecia lá.

O garoto suspirou, o som de uma brisa varrendo folhas ao longo do chão. — Os ratos... Eles são pessoas — começou ele com voz trêmula. — São garotos, como vocês, como eu. Apenas... — parecia prestes a sufocar com as próprias palavras — ...deram errado.

— O que quer dizer com garotos? — perguntou Zê, a voz se elevando um pouco. — O que aconteceu com eles? Por que estão aqui embaixo?

— O diretor e os Ofegantes pegaram mais do que podiam carregar — prosseguiu Simon. — Meteram-se com forças que não conseguiam entender, que não podiam controlar. Desde que este lugar abriu, eles vêm nos usando. Não sei lhes dizer por quê, não sei lhes dizer como. Tudo o que sei é que nos tiram das celas e nos levam para aquela enfermaria. E... nos modificam.

— Isso é loucura — murmurou Zê, embora, pelo modo como sua voz havia tremido, eu soubesse que ele acreditava naquilo. Como poderia não acreditar? Nós dois tínhamos visto os Ofegantes espetando vítimas, e assistimos horrorizados enquanto aquela coisa nojenta era injetada em suas veias. Vimos os garotos retornar, semelhantes o suficiente para que os identificássemos, embora guinchassem e abrissem caminho desferindo golpes pela prisão. Era mesmo uma loucura. Mesmo com as evidências bem diante do nariz, era insano pensar que algo assim estivesse acontecendo ali, com o mundo seguindo seu cotidiano normalmente sobre as ruas acima de nós. Mas era a verdade.

— Também achava uma loucura — disse Simon, a voz destituída de qualquer emoção. — Até que aconteceu comigo.

Houve outro clarão quando o garoto acendeu mais um fósforo. Fechei os olhos diante da claridade, mas depois fui me acostumando a ela e os abri devagar para observar Simon, sentado diante de nós, as mãos agora abaixadas para nos dar uma visão total do que haviam feito com ele.

A primeira coisa que observei foi que o macacão que pendia de seu corpo era igual ao que Zê e eu vestíamos. Estava em farrapos, costurado e amarrado onde possível, mas não conseguia esconder o corpo sob ele. Todo pedaço de pele visível havia sido cortado e depois costurado. Os calombos que eu havia notado antes eram protuberâncias inflamadas, fazendo-me pensar em tecido infeccionado. Algo estranho havia acontecido com o tronco. Parecia esculpido por uma criança com massinha de modelar muito esticada. Podia entrever as linhas ao redor do estômago, onde a pele havia sido muito esticada, os remendos translúcidos como um balão cheio de ar.

Ergui o olhar para seu rosto, piscando para afastar as lágrimas. Simon ainda era um garoto, talvez uns dezesseis anos, só que agora percebia que as bochechas estavam inchadas, que veias escuras como carvão apareciam sob a superfície pálida. Os olhos brilhavam à luz fraca como se feitos de aço, e achei ter visto cicatrizes abaixo de cada um, como se fossem lágrimas. Engasguei com a emoção, mas o fósforo se apagou, e a sensação desapareceu com a imagem.

— Jesus — murmurou Zê. — Por que fazem isso?

— E por acaso você acha que nos contam? — retrucou Simon. — Droga, a maioria de nós nem sabe o que acontece, porque ficamos totalmente dopados. Só quando algo dá errado... Quando o jogam fora...

— Jogam fora? — indaguei, ignorando a ardência em meu peito.

— As experiências não funcionam com todos. Às vezes, eles só o estragam, como aconteceu comigo. Quando isso acontece, eles o jogam fora, livram-se de você. Na maioria das vezes, atiram os corpos no incinerador. Mas não sempre.

— O que fazem com os garotos, afinal? — perguntei. — Quero dizer, o que fazem para conseguir modificá-los assim? Parece uma coisa impossível.

Ele não respondeu, e um segundo depois entendi a razão. Algo se movia pelo corredor, ouvia-se o ruído de pés descalços e o arfar de uma respiração. Quando Simon falou de novo, a voz estava tão baixa que eu mal consegui escutá-la.

— Não sei, só os Ofegantes fazem isso. São eles que dirigem a enfermaria, os laboratórios. Tudo o que sei é que tentam nos transformar em ternos-pretos. Eles nos deixam mais fortes, mais rápidos, mas tiram nossa personalidade, arrancam tudo de bom que há dentro de nós. — Senti um dedo bater de leve em meu peito, deixando um rastro de calor atrás de si. — Não podemos impedir. É como se nossa mente se inun-dasse de escuridão e raiva, e a única coisa que a fizesse seguir adiante fosse esquecer a própria identidade. Não consigo explicar.

— E por que nós, por que garotos? — perguntei.

— O diretor falou sobre isso. — A voz sussurrante denotando impaciência, mas mesmo assim ele continuou: — Os procedimentos só funcionam em crianças. O corpo e as células ainda estão rígidos o bastante para ser retalhados e reunidos de novo sem danos mais graves. Caso o procedimento fosse realizado em um adulto, ele morreria.

O ruído de pés do lado de fora ficou mais alto, e me voltei para a porta. A luz fraca do corredor se insinuava para dentro, mas, fora isso, não havia sinal de mais nada. Não ainda.

— Como você sobreviveu? — perguntou Zê.

— Eles me jogaram fora. Teria sido queimado como os outros, porém os ratos invadiram o local, o que me deu tempo para fugir. Os ratos também passaram pelos mesmos experimentos, só que estes foram longe demais. Não são mais humanos como nós, e também não são ternos-pretos. Tornaram-se algo muito pior.

Agora ele falava mais depressa, como se não tivéssemos muito tempo. Ouvi um rosnado do lado de fora, que parecia o de um leão ferido.

— Os ratos vivem nos túneis fora de Furnace, mas estão sempre tentando voltar. Nada consegue afastá-los: nem as portas que continuam colocando, nem armas, nem mesmo os ternos-pretos. Eles forçam a entrada e acabam com tudo o que encontrarem pela frente.

— Por quê? — perguntei, sem acreditar muito no que ouvia.

— Principalmente para procurar alimento. E também por vingança, eu acho, embora o cérebro deles esteja bem prejudicado para pensar muita coisa. Mas é possível ver em seus olhos: ódio puro. Em algum lugar, nas profundezas da mente, eles compreendem no que se transformaram, e não conseguem suportar.

— Essa é a guerra que você mencionou? — pressionei. O grunhido lá fora ficou mais alto.

— Falem baixo! — replicou Simon. — Sim, essa é a guerra que mencionei. Se achavam que as coisas estavam ruins lá em cima, na prisão principal, nos confrontos entre gangues, então se preparem para uma surpresa desagradável. Os Ofegantes criaram algo ruim, mortal, e encheram os túneis com essas criaturas. A guerra está sendo travada lá fora, a força bruta da guarda de elite de Furnace contra essa monstruosidade que eles criaram. E estamos no meio dos dois.

Alguma coisa terrivelmente feia enfiou a cabeça porta adentro, farejando o ar com dois buracos na face que um dia poderiam ter sido um nariz. Não tinha olhos prateados; na verdade, parecia não ter olho e, quando se arrastou de quatro para a frente, chocou-se ruidosamente com a parede.

— Ele é cego — falei, e a criatura balançou a cabeça, como se se concentrasse nas palavras. Um ruído forte surgiu de sua garganta enquanto abria caminho pelo depósito. Não podia ser um cão, não com um corpo como aquele, nem andando sobre articulações quase humanas. Parecia mais um macaco.

— As invasões acontecem agora com mais regularidade — sussurrou Simon. — Os ratos estão ficando mais famintos; já experimentaram muitas vezes carne humana e sabem que estão vencendo. Voltarei logo para buscá-los. Então veremos se vamos conseguir encontrar uma saída.

Vi uma oportunidade se abrir com essas palavras e a aproveitei, ignorando os passos abafados da besta, que se aproximava de nós.

— Vou ajudá-lo a encontrar uma saída. Vou nos tirar daqui, mas não saio sem Donovan.

— O garoto que está na enfermaria? — replicou Simon. — Nem pensar. Não podemos entrar lá, é impossível.

— Ou vamos todos, ou nenhum de nós — falei. — A escolha é sua.

Ouvi o garoto praguejar baixinho, depois assentiu com a cabeça.

— Precisam voltar rápido para a cela. Vou trancá-los lá para que os ternos-pretos não desconfiem de nada. Apenas corram, e não olhem para trás, certo? Não olhem para trás.

Agora a criatura já estava bem próxima, e nada além de uma silhueta aparecia delineada pela luz que vinha da porta. Tínhamos que nos espremer para passar por ela se quiséssemos sair, e rezei para que realmente fosse cega. Disparei para a frente, retesando todos os músculos.

— Alex? — veio o lamento inseguro de Zê. Mas era tarde demais para dizer qualquer coisa.

— Corram! — gritou Simon.

Dei um salto, vendo a criatura se erguer diante de mim e uivar como se percebesse o movimento de sua presa, os membros longos e frouxos em gestos desordenados. Ouvi um ruído a meu lado quando Simon saltou para uma prateleira, e depois senti o vento zunir em minha orelha quando o garoto voou sobre mim. Ele atingiu a criatura com um golpe, lançando ambos para o outro lado do depósito e abrindo nosso caminho até a porta.

— Corram! — Simon gritou de novo, e obedecemos, correndo para o retângulo de luz e a relativa segurança do corredor.

Sei que não devia ter olhado para trás, mas o fiz. Estava escuro demais para conseguir ver algo em detalhes, mas não havia como deixar de perceber o que acontecia na penumbra. Pude ver a besta parecida com um macaco inerte no chão, apesar do seu tamanho. Não grunhia mais; apenas choramingava, as mãos lançadas pateticamente no ar enquanto Simon se inclinava sobre seu peito. O garoto agora avançava sobre o pescoço da criatura, o som de carne sendo rasgada invadindo o ar. O lamento tornou-se um gemido baixo, depois desapareceu por completo, substituído por um ruído de algo úmido, que soava como goles frenéticos.

Duas moedas de prata se ergueram da massa esfacelada, encarando-me, e eu os vi balançar suavemente de um lado para o outro. Não olhem para trás. Então Zê agarrou meu macacão e puxou-me para a luz.


PREPARAÇÃO


Voltamos para as celas, agarrando o macacão um do outro, apavorados demais para nos largarmos, parando só uma vez na curva do corredor para nos certificar de que estava vazio. Não havia nada vivo à vista, as pa-redes rochosas tão imóveis que o próprio tempo parecia ter parado, o ar totalmente silencioso, exceto por nossa respiração pesada.

— Não está pensando em voltar para o buraco, está? — sussurrou Zê freneticamente. — Temos que ir agora, tentar escapar enquanto não há ninguém aqui. Podemos não ter outra chance.

— Não podemos — repliquei com o máximo de calma possível. — Não sabemos para onde ir e estaremos mortos se encontrarmos um terno-preto ou... ou uma daquelas coisas.

— Estaremos mortos se continuarmos aqui — Zê respondeu aos berros, alto demais, até. Ele me encarou. — Não vou voltar para lá.

Eu o ignorei, sabendo que alguém poderia aparecer a qualquer minuto. Comparado ao que já tinha ouvido e visto, ser dilacerado por balas de espingarda era uma boa saída, porém ainda não estava pronto para desistir. Aproximando-me do alçapão, golpeei a alavanca com o calcanhar, conseguindo girá-la o suficiente para destrancar a cela. Zê ainda falava atrás de mim, mas eu o calei com o olhar mais feroz que pude exibir.

— Zê, tem que confiar em mim. Essa é a única maneira. O diretor nos deu um mês aqui embaixo, e nada mais vai acontecer até expirar esse tempo. No momento, o buraco é o lugar mais seguro em que podemos estar. — Pensei no rato que havia tentado entrar em minha cela, porém afastei a imagem antes que conseguisse penetrar mi-nha mente. — Se fugir agora, com certeza você vai morrer. Temos que traçar um plano, encontrar uma saída, e aí sim sairemos daqui, juntos. Confie em mim.

— Confio em você, Alex — falou ele, andando na direção das celas. — É naquela coisa que eu não confio, naquele garoto. Não sabemos nada sobre ele.

— Sabemos que ele é um de nós — repliquei. E então, como para tentar convencer a mim mesmo, repeti: — Ele é um de nós.

Inclinei-me e agarrei a alavanca, esforçando-me para levantar o alçapão de Zê. Depois de alguns segundos, ele apareceu do meu lado e agarrou a beirada, e juntos conseguimos abrir totalmente a porta do buraco. Fizemos o mesmo com a minha, depois ficamos em silêncio, fitando a escuridão infinita do confinamento da solitária.

— Não posso passar muito tempo aqui — Zê confessou por fim. — Estou vendo coisas, sabe, coisas que não estão lá. Coisas que surgem das paredes. Acho... acho que pode haver bichos na minha cela.

Voltei-me para ele e, pela primeira vez, percebi como era magro e frágil: os olhos úmidos, a pele acinzentada de tão pálida, flácida e manchada de sujeira como roupa precisando ser lavada. Ele captou meu olhar e me fitou do mesmo modo. Minha aparência também não devia ser das melhores. Por um instante, ele fez menção de esboçar um sorriso; foi apenas um segundo, mas o suficiente para provocar minha risada.

— Não compomos um quadro muito bonito — disse ele.

— É, mas é bom conversar sem ter que ficar batendo a tampa da minha privada — repliquei, soltando uma risadinha. Ele concordou, depois se inclinou para a frente e me deu um abraço. Foi inesperado, mas a sensação de contato depois de todo esse tempo foi de euforia. Retribuí o abraço, batendo-lhe várias vezes nas costas, como via meu pai fazer com os amigos, e depois nos separamos.

— Diga a qualquer um que fizemos isso, e negarei até a morte — ele falou, sentando-se na beirada de sua cela. Saltou para dentro, desaparecendo como uma pedra em um poço de piche, a voz abafada: — Descubra uma saída, está bem? Tire-nos deste inferno. Logo.

Fiz que sim com a cabeça, fechando a porta do alçapão até que ela tombou com o próprio peso e se fechou. A alavanca não fez o giro completo, mas, com alguns chutes, consegui colocá-la de volta no lugar. Sentei na beirada da minha cela, o chão invisível abaixo de mim, e ponderei se Zê não tinha razão. Talvez devêssemos sair dali enquanto podíamos. Talvez fosse o auge da estupidez não termos tentado escapar quando as celas estavam abertas, e os corredores, abandonados.

Mas meu instinto me dizia que estaríamos mortos em minutos se tentássemos fugir. Por mais ridículo que fosse, tínhamos de nos trancar naquele buraco antes de chegar a hora certa de nos libertarmos.

Agarrando a beirada do alçapão, inclinei-o até que ficasse na vertical e depois escorreguei para dentro, fechando-o atrás de mim. Parecia pesar uma tonelada, a mudança na pressão do ambiente fazendo os ouvidos doer, como se houvesse mergulhado muito fundo em uma piscina. Bocejei para destamparem, e me recostei na parede.

— Querida, cheguei! — disse a mim mesmo, e às palavras se seguiu um ruído que poderia ter sido minha risada, porém com um traço de loucura que me gelou até os ossos.

Durante algum tempo não fiz nada, exceto ficar de pé encostado na parede olhando a escuridão, deixando a noite penetrar minha mente e expulsar os pensamentos que disputavam minha atenção. Funcionou, e, talvez durante mais ou menos um minuto, encontrei a coisa mais parecida com paz que havia conseguido no buraco.

Então ouvi passos apressados no chão acima de mim, o som da alavanca do alçapão sendo girada com força, e Furnace ficou para trás.

Imaginei Simon fugindo pelos corredores, dirigindo-se a algum túnel escuro, a salvo dos ratos e dos ternos-pretos. Há quanto tempo ele estaria ali embaixo? Não pude conter os pensamentos; as primeiras perguntas me assaltavam e surgiam na cabeça como um bando de gaivotas. Os pontos em sua pele pareciam recentes, como se tivesse acabado de escapar dos Ofegantes. Mas a maneira como falava, como agia, demonstrava muito mais experiência que a idade que tinha, levando-me a pensar que estava há muito tempo nas entranhas de rochas avermelhadas da prisão.

Estremeci ao imaginar como ele teria sido um dia, um ano ou dois mais velho que eu e também magro. Será que fora o primeiro a ser trancado no buraco? Atormentado pelos próprios demônios, reduzido a um espectro trêmulo de um ser humano antes de os Ofegantes terem se apossado dele? Fazia sentido. Quero dizer, era uma maneira de evitar a loucura da solitária: esquecer quem você é, esquecer tudo o que foi um dia.

Seria isso que acontecia naquele momento com Donovan? Tudo o que um dia o definira como pessoa sendo arrancado dele como papel de parede e embalado em uma nova personalidade — a ameaça psicótica de um terno-preto? Sentia a raiva crescer dentro de mim, tornando meus músculos pesados e fazendo minha cabeça latejar, mas, como não havia mais nenhum lugar para ela ir, só lhe restava desaparecer nas sombras da minha cela.

A raiva foi rapidamente substituída pelo medo enquanto eu imaginava qual seria o nosso destino, meu e de Zê. Seríamos condenados a ter corpo e mente sugados e esvaziados para nos tornar ternos-pretos? Ou falhariam ao realizar o procedimento e seríamos descartados, ou melhor, incinerados? Ou, ainda pior, de algum jeito sobreviveríamos e nos tornaríamos um deles, os ratos, espreitando pelos corredores e nos alimentando da carne dos guardas, dos garotos que um dia tinham sido nossos companheiros de cela?

Não era exatamente uma boa lista de opções.

Tentei modificar o padrão de meus pensamentos. Pensei em como havia sido na cela lá em cima, observando os ternos-pretos e os Ofegantes e, às vezes, o diretor emergirem pela porta da abóbada, dos corredores além dela. Não fazia ideia — nenhum de nós lá em cima fazia — de que abaixo de nossos pés travava-se uma batalha; que as faces tranquilas e ao mesmo tempo malévolas que nos encaravam na cela vinham lutando com unhas e dentes contra os verdadeiros seres estranhos da natureza que eles próprios haviam criado. Para ser honesto, não teria acreditado se alguém tivesse me contado. Droga, quase não conseguia acreditar agora, depois de ter visto a evidência com meus próprios olhos.

Sentindo dor nas pernas, deslizei pela parede e as estendi diante de mim, esfregando as magras panturrilhas. Devia ter perdido uma tonelada de peso desde que chegara a Furnace, e não tinha exatamente quilos em excesso para desperdiçar quando adentrara aquelas paredes. Minha mãe teria adorado; ela estava sempre querendo emagrecer. Se saísse dali, se chegasse mesmo a atingir a superfície, talvez lhe enviasse a receita da dieta de Furnace. Uma tigela daquilo a cada dois dias, e ela, em tempo recorde, estaria usando roupas pp.

Quase ri de novo, mas não encontrei energia suficiente para isso. A simples ideia de comer um prato da lavagem parecia um sonho capaz de revirar minhas entranhas, que, àquela altura, estavam comprimidas e assentadas em um bloco sólido no fundo do estômago. Não estava faminto; sentia-me faminto demais para estar faminto, e sabia que isso era morrer de fome. Outra tática para nos esgotar, para nos enfraquecer, para nos obrigar a esquecer quem éramos. Da próxima vez que fosse àquele depósito, iria verificar se havia algum suprimento lá dentro.

Engoli em seco, o interior da boca parecendo algodão. Arrastando-me pelo espaço diminuto, passei a língua pela parede, sentindo-a absorver a pequena umidade que havia ali. Senti-me como uma vaca lambendo seu bloco de sal, e “mugi” baixinho, rindo de novo para mim mesmo. Credo! Não havia dúvida: estava mesmo louco.

Devo ter demorado meia hora para saciar a sede, e depois desse tempo minha língua ficou entorpecida e inchada pelo contato com a rocha. Deitei-me na diagonal, olhando para a escuridão acima onde devia estar o teto, e tentei ordenar os pensamentos.

Fugir. Era quase doloroso demais pensar nessa palavra depois de tudo o que havia acontecido. Tínhamos estado tão perto; havíamos nos permitido acreditar que estávamos livres, apenas para ser capturados de novo. Isso havia dilacerado meu coração, arrebatado meu espírito, e a ideia de uma nova fuga caiu sobre mim com um peso maior do que o das rochas acima de minha cabeça. Mesmo que encontrássemos uma saída, quem poderia afirmar que não nos levaria aonde estávamos agora?

E qual era a garantia de que, se conseguíssemos escapar da cela, não seríamos perseguidos pelos ratos? A ideia provocou um calafrio que percorreu minha espinha, e, mais para expulsá-la do que por verdadeiramente achar que poderia escapar, tentei bolar um plano.

Comecei compondo um quadro mental das entranhas rochosas da prisão. Pelo que vira quando fomos escoltados até o buraco, elas eram um labirinto de corredores, todos com entradas escavadas e salas sombrias. A enfermaria era uma delas, e outras deveriam ser depósitos onde ficavam as armas, os alimentos e provavelmente uma quantidade invejável de ternos-pretos. Raramente tinha visto os guardas subir no elevador que conduzia à superfície quando estava com os outros prisioneiros, o que significava que também dormiam aqui embaixo. Quantos deles haveria ali? Talvez trinta? Era impossível dizer, porque todos eram muito parecidos. Deviam ter quartos individuais em outro local do subsolo, assim como os Ofegantes.

O que mais eu sabia? Agora era evidente que obtinham água fresca do rio. Ou seja, como tínhamos sido estúpidos, achando que o diretor não sabia da existência do rio. Provavelmente, ele havia sido uma das razões de terem construído a prisão naquele local — um vínculo a menos com a superfície. Entretanto, saber desse fato agora não nos ajudaria em nada, pois nos lançarmos ao rio significaria morte certa.

Senti a claustrofobia querendo se instalar, a opressão do mundo acima de mim tão grande que estava convencido de que era isso que eu respirava, a escuridão penetrando meus pulmões e me impossibilitando de encontrar oxigênio. Por um segundo, fui atacado pelo pânico, tão forte que todo o meu corpo ficou tenso, e pude sentir o sangue todo na cabeça. Então, apertei bem os olhos e o obriguei a sair dali.

Pressionado pelos batimentos frenéticos do coração, tentei me concentrar nas outras coisas que já sabia. Aquela parte da prisão fora basicamente construída aproveitando-se dos túneis e cavernas da terra, as saídas seladas por pesadas portas de aço como aquela que havíamos atravessado ao entrar ali. Ela parecia grossa o bastante para enfrentar uma arma nuclear, mas os ratos a tinham arrombado como se fosse papel-alumínio. Sem dúvida, poderíamos encontrar a saída para o mundo subterrâneo além dali, mas e depois? Obviamente não havia nenhuma outra saída, do contrário, Simon, e qualquer outro que estivesse ali, há muito já teria escapado. E para mim era praticamente inconcebível me imaginar lá fora, no escuro, com tantas criaturas demoníacas soltas.

Pense, gritava mentalmente para mim mesmo, levantando as pernas para tentar levar algum sangue para as costas doloridas. O que mais? Deveria haver algum gerador de eletricidade em algum lugar, conectado de algum modo ao rio. Não sabia muito a respeito desse assunto, mas era necessária uma fonte de energia para iluminar a prisão. No entanto, mesmo que a encontrássemos, em que aquilo poderia nos ajudar, em particular se os ternos-pretos e as bestas de olhos prateados pareciam ser capazes de enxergar no escuro? Havia também um incinerador, como dissera Simon, que não era de grande proveito para nada, a menos que encontrássemos alguma carninha para um churrasco. O que restava?

Estava perto de soltar um suspiro de desespero quando ouvi a alavanca do alçapão começar a girar. Saltei, preparando-me para deixar a cela. Talvez dessa vez eu conseguisse ter uma ideia melhor da planta da prisão; talvez conseguisse perceber um sopro de ar puro ou enxergar um fio de luz cintilante que indicasse uma saída.

Mas, quando o círculo de metal se abriu, não foi o rosto de Simon que vi ali: foi o de um terno-preto. Ele olhou para mim e se surpreendeu com a expressão determinada e a postura decidida. Foi tudo o que consegui fazer para me impedir de dizer: “Ah, é você?”. Em vez disso, deixei o olhar se perder no chão e fiz o máximo para parecer desanimado, alquebrado e vazio. O guarda bufou, depois atirou uma tigela de gororoba dentro da cela. Ela atingiu meu ombro e girou, tingindo as paredes com a lavagem.

— Bom apetite — grunhiu o terno-preto, dando um chute no alça- pão antes que pudesse perceber meus lábios se abrindo num sorriso.


A ENFERMARIA


Acordei com um grito, o pesadelo de agulhas na minha cara ainda tão nítido e fresco que podia sentir a picada. Vi os corpos dos garotos pendurados de cabeça para baixo, os braços estendidos em minha direção, a máscara de gás pressionada contra meu rosto. Em pânico, parti para o ataque, os nós dos dedos encontrando algo sólido, e a dor expulsando aos poucos os resquícios do sonho.

— Cristo! — gaguejei, recebendo com alegria a escuridão que me cercava como uma velha amiga. Deslizei as mãos ao longo da rocha, e só quando explorei toda a superfície com um toque trêmulo consegui relaxar. Caí para trás, esfregando as têmporas e amaldiçoando minha mente por me trair enquanto eu dormia.

Sempre tive pesadelos ocasionais, como qualquer um, mas na maioria das vezes me esquecia deles assim que acordava, o pavor não sendo mais que um gosto amargo na boca.

Aqueles que tive em Furnace, no entanto, haviam sido diferentes de quaisquer outros que experimentara; era um terror em uma escala completamente diferente. A imagem de uma prisão de vidro, que tive tantas vezes na cela lá em cima, com meu reflexo sendo o de um Ofegante. E agora esse mesmo sonho, noite após noite no buraco. Podia compreender o medo. Quero dizer, se os sonhos são um reflexo do que atormenta o subconsciente, então era óbvio que passava as noites na companhia daqueles seres estranhos da prisão. Mas por que sempre me via como um dos inimigos? Tentava ignorar a resposta óbvia, que latejava em meu cérebro.

Talvez fosse um vislumbre do futuro.

— Chega! — falei em voz alta, o som após tanto silêncio fazendo desaparecer os últimos resquícios do sonho. Para manter-me ocupado, tateei o chão da cela, procurando qualquer vestígio de gororoba que pudesse ter deixado escapar. Havia conseguido comer a maior parte dela antes de adormecer, lambendo o limo sem gosto da rocha. A lavagem havia feito tal estrago ao aterrissar que havia porções dela por todo lado. Meu estômago fez um ruído que se assemelhou a um terremoto, as entranhas se contorcendo de dor enquanto clamavam por comida.

— Estou fazendo o máximo que posso — avisei a elas, sentindo um respingo suspeito próximo demais da privada, que era melhor ignorar. Transferi a busca para o outro canto da cela e descobri uma porção de gororoba se cristalizando no ângulo entre a parede e o chão. Dediquei tempo a ela, saboreando cada minúscula quantidade e fingindo estar enchendo a boca com ovos e bacon, ou qualquer outra coisa que costumava comer quando meu pai fazia fritada aos domingos.

Estava de tal modo desfrutando a lembrança que não ouvi o ruído da alavanca do alçapão até que a luz penetrou no buraco. Levantei depressa a cabeça, sentindo-me um rato pego em flagrante ao vasculhar o lixo. Durante um segundo, não vi nada além de uma silhueta escura contra a luz do corredor, mas depois ela começou a ganhar forma, e percebi que era Simon.

— Parece que você viu um fantasma — comentou ele, estendendo-me a mão.

— Estava apenas tentando desfrutar de um café da manhã tranquilo — repliquei, assim que ele me tirou da cela. — Aqui estou eu, achando que tiraria umas boas férias no buraco, sem ser perturbado por algumas semanas, mas este lugar é praticamente o centro de uma metrópole, com você, os ternos-pretos e Zê com seu batuque na privada.

Simon lançou-me um olhar confuso, depois baixou em silêncio o alçapão, saltando até a cela de Zê. Segundos depois, ele também estava fora, as celas trancadas, e nós três de novo correndo pelo corredor. Fizemos a curva, parando por um momento para checar se o caminho estava deserto, porém, para minha surpresa, passamos direto pelo depósito e terminamos atravessando outra porta.

— Os ternos-pretos estão verificando os depósitos com mais frequência depois que acharam os restos daquele rato — explicou Simon com sua voz áspera, enquanto entrávamos na sala. Estava tudo negro como piche, mas, pelo eco, presumi que se encontrasse vazia. Curvamo-nos ao atingir o canto mais afastado, a uma boa distância da porta. — Hoje estamos com sorte, os ternos-pretos estão muito ocupados.

— Outra violação? — perguntou Zê.

— Não, um levante. Um grupo de detentos lá em cima tentou atravessar a Sala Dois para chegar ao rio. Cinquenta ou sessenta deles passaram por ela, a maioria da gangue dos Caveiras. Ela foi interditada, porém todos conseguiram entrar.

— Como sabe disso? — perguntei, a excitação fazendo meus sus- surros soar mais alto do que deveriam.

— Por causa dos ternos-pretos — respondeu Simon. — Eu os ouvi conversando. Praticamente todos foram pra lá, com exceção de dois, que estão guardando a porta norte. Não estão muito satisfeitos com você agora.

— Comigo? — indaguei.

— É. Eles o culpam por dar esperança aos outros garotos. O número de tentativas de fuga aumentou, embora ninguém tenha conseguido escapar ainda.

— Pensei que o diretor tivesse dito aos outros que havíamos morrido — comentou Zê.

— Falar isso não adiantou nada. Ninguém se importa se vocês sobreviveram ou não. O importante é que conseguiram achar uma saída, de um jeito ou de outro. Vocês conseguiram transformar a ideia de fuga em algo real. Para eles e para nós aqui embaixo.

Queria perguntar quem era esse “nós”, mas Simon voltou a falar:

— Aliás, precisamos estar preparados. Temos que pensar em um plano, fazer o máximo que pudermos antes que os ternos-pretos voltem aqui para baixo.

— Certo — respondi, tentando parecer mais confiante do que realmente me sentia. — Então, por onde começamos? Pelos túneis? Pelas portas?

Os olhos de Simon se estreitaram, pedaços de aço capturados pela luz que vinha da porta. Oscilaram da esquerda para a direita enquanto balançava a cabeça.

— Vamos começar pelo seu amigo. Pela enfermaria.

— Não.

A palavra saiu sem querer, tão alto que reverberou pela sala como um tiro de pistola. Fechei imediatamente a boca, ignorando o choque nos olhos prateados de Simon e nos de Zê — invisíveis na escuridão, é verdade, mas com certeza me fulminando com a mesma intensidade.

— O quê? — perguntou Zê. — É Donovan, Alex. Ele precisa muito de nossa ajuda.

— Eu sei — retruquei. — Só que...

Só que... o quê? Queria me concentrar na tarefa que tinha pela frente, tentar encontrar uma saída, antes de nos arriscarmos a entrar na enfermaria para buscar D? Não. Precisava ter uma ideia melhor da planta da prisão, para o caso de sermos surpreendidos ao tentar tirá-lo de lá e termos de escapar depressa? Sim, era isso.

A verdade era que eu estava aterrorizado com aquele lugar, e só de pensar em me aproximar de lá tinha vontade de me encolher e ficar quietinho até morrer; de fingir que odiava Donovan ou que nunca o havia conhecido; de me esquecer de tudo a respeito dele pelo resto da minha vida miserável, contanto que não tivesse que descobrir o que havia por trás daquela cortina de plástico. Era isso, o meu eu mais real, o covarde.

Balancei a cabeça, constrangido demais para tentar dar qualquer explicação. Sentia-me grato pela escuridão, que ocultava meu rosto ardendo de vergonha. Só que Simon podia me enxergar como se eu estivesse sob um milhão de refletores. Ele sabia exatamente o que havia de errado comigo. Sabia que eu estava com medo. Eu podia perceber, pela maneira como balançou a cabeça, que dúvidas começavam a incomodá-lo.

E, se ele decidisse que não precisava de nós, ficaríamos presos no buraco até a chegada do diretor.

— E quanto aos Ofegantes? — perguntei, tentando enterrar meu terror sob a força da lógica. — Não estão sempre na enfermaria?

— Nem sempre. Eles também têm que dormir. Temos que ser sutis.

Temos? Consegui me conter e não dizer isso em voz alta; em vez disso, perguntei:

— E quanto aos ratos? Não estão se aproveitando do fato de os ternos-pretos estarem lá em cima?

— Há sempre esse perigo, mas não me preocuparia muito. Não os vi o dia todo. Além disso, nunca entram na enfermaria. Jamais. Têm pavor daquele lugar. Foi onde foram transformados no que são. Uma vez lá dentro, estaremos seguros.

Desde que os Ofegantes não acordem. Desde que os ternos-pretos não apareçam. Desde que o diretor não nos encontre.

— Quando entrarmos lá, Alex, você verifica o lado esquerdo, e Zê, o direito. Encontrem o amigo de vocês. Eu fico vigiando. Há diversos lugares para se esconderem se as coisas derem errado, mas realmente não é uma boa ideia estar lá quando os Ofegantes acordarem, certo?

— Certo — respondeu Zê, o tremor maior que o som da voz.

— Certo — concordei por fim, percebendo que todos os olhos re- caíam sobre mim. — Tiraremos Donovan daquele lugar e depois encon-traremos uma saída para fugir daqui.

Simon já se movia antes mesmo de eu terminar minha frase, a silhueta se encaminhando em silêncio à penumbra, de volta à entrada da sala. Por um momento, achei que minhas pernas não fossem se mover, como se houvessem se fixado à rocha. Zê, no entanto, agarrou meu macacão, arrastando-me atrás dele.

Passamos rapidamente pelas solitárias, encaminhando-nos ao corredor onde Zê e eu havíamos sido perseguidos pelos cães, virando à esquerda no entroncamento à frente. Trinta metros de terror crescente, e vi a passagem na parede, as letras pintadas de branco. Foi como levar um soco no estômago, e precisei lutar para conseguir respirar de novo. Pensei em Donovan, na promessa de voltar para buscá-lo. Tentei me lembrar das vezes em que ele me ajudara, porém minha mente havia se esvaziado. Ele tinha sido um amigo de verdade? Ou apenas me usara para escapar? Com certeza era a segunda hipótese. Afinal, por que um cara como Donovan escolheria ficar ao lado de um garoto como eu?

Naquele momento, cheguei a me odiar — e odiar meu pensamento. Mas era melhor odiar a si mesmo e sobreviver, certo? Como já afirmei tantas vezes, não sou uma boa pessoa, tampouco um herói. Sou um criminoso, um mentiroso, um trapaceiro, um assassino. Eram eles ou eu, e eu desejava viver.

Então paramos de correr, e Zê virou-se para mim, colocando a mão em meu ombro, e essa simples ação tirou dos trilhos o trem covarde de meus pensamentos. Ele me lançou um sorriso amarelo.

— Lembre-se: todos por um, Alex — disse-me com suavidade.

— E para fora deste inferno — repliquei. Ele apertou meu ombro, mas logo retirou a mão. Simon nos aguardava ao lado da cortina, olhando através do plástico translúcido as formas enevoadas do outro lado. Nada parecia se mover, porém eu conseguia ouvir os sinais sonoros e incessantes de vários monitores cardíacos, parecendo um coro artificial da madrugada. Meu medo se instalara como um tijolo dentro de mim, oprimindo-me, mas por fim os pensamentos cessaram, o ódio, a covardia. Estava ali para ajudar Donovan, assim como ele sempre havia me ajudado. Ele estaria ali me ajudando.

— Temos que ser silenciosos — sussurrou Simon. — E rápidos. Lembrem-se: cada um vai para um lado. Se me ouvirem dar algum sinal de alerta, sairemos sem hesitação. Prontos?

Não, quase falei, porém mantive a boca fechada e fiz que sim com a cabeça. Zê se virou, depois Simon, e, com um suspiro coletivo de medo saindo de cada um dos lábios, transpusemos a cortina de plástico.

Só para dar de cara com um Ofegante.

Teria dado um grito, mas as pernas de Zê fraquejaram, e ele tombou para trás, chocando-se contra meu corpo e tirando o ar dos meus pulmões. Endireitei as costas e agarrei Zê, mantendo-o de pé, e tentei com desespero juntar peças espalhadas no cérebro para gerar um plano.

A qualquer momento aquela criatura imunda se projetaria para a frente e enfiaria suas agulhas nojentas em nosso pescoço. A primeira coisa que passou pela minha cabeça foi que aquilo era uma armadilha; que Simon havia nos enganado para nos levar à enfermaria. Olhei para ele, esperando que o garoto nos atacasse e nos segurasse enquanto o Ofegante nos enchia de veneno, mas, para minha surpresa, ele apenas colocou um dos dedos ossudos sobre os lábios e acenou com a cabeça para que continuássemos.

Voltei a olhar para o Ofegante, e percebi que os olhos estavam fechados — as pálpebras, marcadas por cicatrizes, assim como o resto da cabeça calva e do rosto pavoroso, porém, felizmente, ocultando dentro de si os olhos que pareciam passas. Ele respirava devagar e ritmadamente, e segui o cano da máscara de gás, percebendo que se conectava a um aparelho na parede. De vez em quando, produzia um espasmo, sacudindo-se freneticamente; exceto por esse detalhe, estava imóvel.

— Está dormindo? — sussurrei o mais baixo que pude. Simon fez que sim com a cabeça ao passarmos por ele, o corpo deformado tenso, pronto para atacar se ele mostrasse qualquer sinal de despertar. Zê ainda estava agarrado a mim, e empurrei-o com delicadeza para a frente, observando o espectro silencioso.

— Por que não o mata agora? — perguntou Zê.

— É muito arriscado. Os ternos-pretos saberiam que não foi um rato; saberiam que estamos aqui.

O Ofegante não se moveu enquanto entramos na sala à frente. Ela era vasta, mais comprida que larga, as paredes avermelhadas elevando-se até um teto tão alto que se perdia na penumbra. Luzes sem conta pendiam de longos cordões, como aranhas, balançando suavemente, embora não houvesse nenhuma brisa. O brilho que emanava delas era tão espesso e tão vermelho que parecia chover sangue ali. Na extremidade oposta da sala, outra porta conduzia à escuridão. Mas nossa atenção foi captada pelo que estava bem à frente.

Alinhadas dos dois lados da sala, duas séries aparentemente infinitas de cubículos compostos de molduras de aço e cortinas de tecido branco — do tipo que se vê em hospitais, para proporcionar privacidade aos doentes. Uma ala de hospital em geral continha talvez uma dúzia de leitos bem espaçados; ali devia haver uma centena deles, tão próximos um do outro que quase se tocavam. Todas as cortinas estavam fechadas, mas eu sabia que atrás de cada uma havia um leito ocupado por algum pobre garoto que fora arrastado da prisão lá em cima.

Não desejava provas, que, no entanto, estavam bem ali. Gemidos patéticos se elevavam de faces ocultas, soluços doloridos que dilaceravam meu coração — uma sinfonia de sofrimento quase perdida no chiado dos monitores, no bombear de alguma máquina escondida e nos ruídos ofegantes do monstro adormecido a meu lado.

Simon fez um aceno com a mão, chamando minha atenção. Donovan estava em algum lugar ali, e não tínhamos muito tempo para encontrá-lo. Dirigi-me para o lado esquerdo da sala, respirei fundo e puxei a cortina do primeiro cubículo.

Vazio.

Havia uma cama com laterais de metal e um colchão fino com um travesseiro, mas sem lençol. Do lado dela havia uma máquina que não reconheci, toda feita de aço polido e com tubos de borracha. Duas luzes vermelhas em um monitor piscavam para mim como se ponderassem quem eu era. Deixei o tecido cair, no caso de haver algum modo de me verem e soarem algum alarme.

Um cubículo revistado, e mais uns cinquenta à frente. Olhei por sobre o ombro e vi Zê no terceiro, movendo-se depressa, a expressão determinada deixando-me bastante seguro de que aqueles também estavam vazios. Simon estava de pé atrás do Ofegante, um tão imóvel quanto o outro.

Ande logo!, gritei para mim mesmo, movendo-me para o próximo biombo e puxando a cortina. Também estava deserto, com exceção de uma cama vazia e outra máquina estranha, dessa vez, desligada. No próximo, a mesma coisa, e também nos dois seguintes. Quando atingi a sexta saleta, minha sensação de horror já quase desaparecera.

Mas devia saber que jamais poderia baixar a guarda.

Puxei a cortina do cubículo, e tive que me apoiar na cama para não cair de joelhos. Deitado no colchão, preso por várias tiras de couro, estava Gary Owens. Nu da cintura para cima, com vários fios colados ao peito ligando-o à máquina ao lado, que emitia um som suave, semelhante a um batimento cardíaco lento e irregular, como um relógio desesperado para voltar ao ritmo normal.

Pairando sobre ele encontrava-se um gancho com três pontas, de cada uma delas pendendo uma bolsa transparente. Uma estava cheia de uma substância vermelho-escura, que só podia ser sangue; outra, com a cor e a consistência de fezes. Mas havia mais uma, com algo que não parecia nem líquido nem sólido, de um prateado escuro. Partículas de cor serpenteavam dentro dela como se presas a uma espiral mais escura, parecendo impacientes para fluir pelo tubo até uma das agulhas alojadas no braço de Gary.

Além das gotas endovenosas, ele estava intocado. Ferido e cortado pelo rio, sim, mas sem nenhum dos pontos ou membros inchados que vira em Simon, em Monty ou nas outras criaturas estranhas.

Exceto pelos olhos.

Sua cabeça estava bem enfaixada, a gaze indo desde a ponta do na-riz até o alto da testa. E, na bandagem, no lugar onde ficavam os olhos, havia dois círculos vermelhos, como se aquela parte da face tivesse sido desenhada com lápis de cor por uma criança pequena. Quando a observei melhor, pude notar que vertia uma substância dali: era sangue demais para ser um simples ferimento.

A cena ficou enevoada, e só então percebi que eu estava chorando. Voltei o olhar para Simon, esperando que ele fosse capaz de fazer algo para tornar tudo aquilo menos sofrido, mas ele estava de costas para mim, seu olhar fixo no Ofegante. Zê também se encontrava muito concentrado em sua tarefa, um quarto do caminho já percorrido e muito mais pálido do que alguns minutos atrás.

Sequei meus olhos e deixei a cortina cair. Gary não me ouviu, e com certeza não me viu. Duvido que estivesse consciente, especialmente se havia acabado de passar por alguma cirurgia no... na... não conseguia nem pensar a respeito. Se houver tempo, se pudermos encontrar um modo de fugir daqui, vou levá-lo conosco, Gary, pensei em silêncio. E, embora eu soubesse que não era verdade, fez com que me sentisse um pouco melhor.

Ouvi um grito atrás de mim e alguém emitindo um som abafado de vômito. Quando me virei, vi Zê se afastar de um dos cubículos, cambaleante, a mão sobre a boca. Ele tropeçou nos próprios pés e perdeu o equilíbrio, e tarde demais percebi o carrinho do equipamento à frente.

— Não! — sussurrou Simon, impulsionando-se com tanta rapidez pela sala que mal pude vê-lo se mover. Lançou-se para alcançar Zê, mas não conseguiu. Com um barulho que poderia ter acordado até os mortos, os dois garotos se chocaram com o carrinho. Ele tilintou escandalosamente pela sala, deixando cair bacias, bisturis e outras coisas que não reconheci, antes de tombar de lado.

A reação do Ofegante foi instantânea. Ele voltou à vida como um relógio de brinquedo, os movimentos oscilantes e exagerados, um murmúrio rouco e fraco a princípio, antes de libertar um grito da garganta.

— Escondam-se! — berrou Simon, arrastando Zê do chão pelo macacão e desaparecendo atrás de uma cortina. Virei-me e saí tropeçando pela sala, sabendo que devia ter me enfiado em uma das saletas ao lado, porém eu era incapaz de suportar a ideia de estar sozinho. Arrisquei um olhar enquanto corria, e vi a criatura começando a se virar, o cano da máscara se soltando da parede com um silvo. Mas então eu já havia atravessado a cortina de plástico, com Zê e Simon a meu lado. E certamente fora de vista.

Pelo menos foi o que pensei, até ouvir o Ofegante gritar de novo, o ruído das botas contra a superfície rochosa ficando mais alto à medida que caminhava em nossa direção.

 

 

ESPÉCIMES


Não, não, não, não, não, não!!!

A voz na minha cabeça jamais teve a chance de sair. Estava apavorado demais para falar, o cérebro em choque, esquecendo-se de como articular as palavras. Aquilo estava acontecendo de novo. Mais uma vez, encontrava-me impotente diante de um Ofegante, tal como na noite anterior à fuga. Eu o vi parar ao lado de um dos cubículos, os olhos gulosos brilhando quando sentiu a proximidade de nossa presença. Visitantes. Intrusos.

Espécimes.

Senti uma mão sobre o ombro, os dedos quentes queimando-me a pele. Simon estava ali, um dedo sobre os lábios e o resto da face uma máscara de medo. Virei-me para observar Zê, tão pálido que estava quase transparente contra as cortinas de plástico que nos separavam do resto da enfermaria.

Os passos do Ofegante ficaram mais próximos, arrastando-se na pedra lisa do chão. Ouvi o guincho dele invadir o ar, as agulhas do cinturão tinindo e o casaco de couro farfalhando contra o corpo. Queria examinar o interior da enfermaria em busca de algo que pudéssemos usar como arma, mas sabia que, se olhasse para dentro por apenas um segundo que fosse, quando me afastasse, já o veria transpondo as cortinas, os pontos da máscara de gás se esgarçando enquanto a face se contorcia em uma tentativa de sorriso.

Uma sombra delineou-se ao fundo de um dos cubículos. Consegui discernir a parte superior da cabeça do Ofegante, o cano curvado mais uma vez atado a um tanque nas costas. O vulto se avolumou quando o Ofegante parou ao lado da cortina.

Um metro, talvez dois, nos separava dele. Ele respirou longa e asperamente, com seu silvo asmático de ancião, parecendo a gravação arranhada de um quarteto de cordas. Depois lançou seu guincho infernal, tão alto que o som foi como uma adaga em meus ouvidos.

Algo lhe respondeu. De início achei que fosse um eco, mas o grito distante se repetiu, e o Ofegante na enfermaria respondeu ao chamado. Aquilo me lembrou falcões anunciando a localização de um novo cadáver para se banquetear. Ou três, nesse caso.

Olhei de novo para Simon, esperando que ele atacasse o Ofegante com a mesma coragem com que havia investido contra o rato. Mas ele continuava petrificado, os olhos tão arregalados que as veias pareciam saltadas — veias que pulsavam mais em negro que em vermelho. Naquele momento, Simon não parecia capaz de amarrar os próprios sapatos, que dirá enfrentar o Ofegante.

Correção: os Ofegantes.

Ouvi o segundo ser estranho entrar na sala. Devia ter vindo da outra porta, os passos apressados. A silhueta diante de nós soltou um guincho, como se estivesse em choque, o que se transformou em um gorgolejo pigarrento, quase um rugido, que segundos depois ouvimos em escala amplificada.

Quanto mais esperávamos, mais ficávamos em perigo. Se nos movêssemos agora, podíamos dar de cara com o primeiro Ofegante, mas o segundo ainda se aproximava do lado mais distante da sala. Nunca os tinha visto em marcha mais rápida que um passo cambaleante, e com certeza não conseguiam andar com velocidade. Será que se começássemos a correr naquele momento conseguiríamos escapar deles?

Mas meus músculos estavam rígidos como pedra. Poderia tranquilamente ter sido amarrado a um leito para que fizessem comigo o que quisessem. Não conseguia dar um único passo.

A sombra no cubículo se moveu, aproximando-se mais, uma das mãos alcançando a cortina, pronta para puxá-la.

Só que jamais o fez. Em vez disso, o Ofegante soltou outro guincho, algo entre um pigarrear e um murmúrio, o braço, com movimentos descontrolados, apontando para baixo. Então se virou, tornando-se menor, o vulto mais indistinto conforme se afastava de nós. Pude vê-lo se inclinar, os longos braços alcançando o equipamento que havia caído no chão. Depois moveu-se de novo e desapareceu.

Nós três esperamos pelo que deve ter sido um minuto inteiro antes de nos atrevermos a respirar. Só quando o som das botas dos Ofegantes foi ouvido do outro lado da sala, permiti que meus pulmões funcionassem, inspirando tanto oxigênio que o mundo passou a girar.

Simon acenou com a cabeça na direção do cubículo. Havia um pequeno espaço entre as cortinas e a parede, grande o suficiente para nos espremermos ali. Se fosse assim em toda a extensão, conseguiríamos nos esgueirar até a porta da enfermaria sem sermos vistos. Olhei para Zê a fim de me certificar de que sabia qual era nosso plano, mas o olhar dele estava fixo em outra coisa, os olhos parecendo enormes lagos brilhantes à luz avermelhada, os cantos da boca virados para baixo como se estivessem sendo puxados por ganchos invisíveis.

Não queria acompanhar o olhar de Zê. Nem ver o que o tinha feito cambalear pela sala minutos antes. Mas me virei mesmo assim.

De início, não o reconheci. Ele não estava em uma cama como os outros garotos que eu vira. Estava amarrado dentro de uma espécie de caixão, um sarcófago de metal preto inclinado para trás contra a parede em um ângulo de quarenta e cinco graus. As tiras que o mantinham ali não eram feitas de couro, mas de aço, largas e grossas, e algemas prendiam as mãos e os pés daquele ser, como um equipamento de tortura da Idade Média.

Era fácil entender por quê. Donovan sempre havia sido grande, mas agora estava enorme. Bem, pelo menos partes dele estavam. O tronco parecia o de um boneco de pano que havia sido excessivamente forrado, o estômago e o peito tão inchados que os pontos que iam do umbigo ao peito, e de uma axila à outra, pareciam prestes a se romper a qualquer minuto. Os músculos sob aquilo moviam-se com vida própria, as formas se delineando através da pele esticada.

Uma perna estava muito maior que a outra, do tamanho e da cor de um tronco de árvore. As suturas ali eram mais recentes, e gotículas de sangue ainda pingavam preguiçosamente no chão.

O rosto era exatamente como me lembrava, porém estava acinzentado. Embora os olhos castanhos fossem agora prateados, olhando sem vida para o teto, não havia dúvida de que era ele.

— Donovan — sussurrei. Aproximei-me dele, apoiei uma das mãos em seu braço, apenas para retirá-la com rapidez, devido ao calor que irradiava dele. Simon agarrara-se ao meu macacão, desesperado para nos tirar dali, mas, por um momento, até o medo dos Ofegantes diminuiu quando o chamei de novo, um sussurro mais alto dessa vez: — Donovan.

— Vamos — ouvi um sussurro em meu ouvido, em ambos, na verdade, pois Simon e Zê falaram a mesma coisa ao mesmo tempo. Ignorei as palavras, estendendo a mão e tocando de novo o braço de Donovan. Dessa vez, ele pareceu se mover, a cabeça balançando e depois pendendo contra o peito, seu olhar prateado encontrando o meu por um momento e depois se desviando. A boca se abriu, mas pareceu se abrir demais, e um lamento longo e baixo soou. Modificou-se no final, tornando-se uma palavra:

— Alex? — Sussurrante demais para ser ouvido pelos Ofegantes, porém alto o suficiente para partir meu coração. — É você?

— Sim — respondi, o sorriso se estendendo de orelha a orelha, embora lágrimas caíssem também. — Sim, somos eu e Zê.

— Oi, D — Zê se adiantou.

— Vocês voltaram — disse ele num fio de voz, o tom suave. — Voltaram para me buscar.

— Eu lhe disse que voltaríamos — falei. — Vamos dar um jeito de fugir, Donovan, todos nós. Prometo a você. E vamos tirar você dessa coisa.

Já havia começado a puxar as fivelas de aço, quando senti a mão de Simon em meu braço, mais insistente dessa vez.

— Não pode levá-lo — falou ele.

— Podemos soltar as fivelas de aço — argumentei o mais baixo que pude. — Ou tentar abrir as algemas. Temos que tirá-lo daqui.

— Não seria conveniente — prosseguiu Simon. — É tarde demais.

— Como assim, tarde demais? — cortei, falando mais alto do que deveria. O som de passos vindos do outro lado da sala recomeçou, os guinchos assustadores, como os de um gato engasgado com o próprio sangue. Congelei, mas minha voz pareceu ter passado despercebida em meio a uma série de gemidos e soluços que emanavam das camas ocultas por cortinas na enfermaria. — Não é tarde demais coisa nenhuma — falei em seu ouvido. — Ele vai conosco. Portanto, ajude-me a soltar as algemas.

— Não são algemas — explicou Simon, apontando para a lateral do sarcófago. Eu não tinha percebido os gotejamentos endovenosos ali, as mesmas bolsas que tinha visto sobre a cama de Gary. Segui o tubo e vi onde ele entrava no pescoço e no braço de Donovan, as artérias dali pulsando sob o brilho de sua pele escura. — Se parar a alimentação agora, ele vai morrer. Depois de tudo por que passou, depois da cirurgia, é isso que o mantém vivo no momento.

— Vamos sair logo daqui ou não? — perguntou Donovan, a voz tão fraca que parecia um rádio com recepção ruim, o som indo e vindo. — Sinto como se tivesse levado uma surra.

— Podemos levar isso conosco — sugeri a Simon. — Levaremos essas bolsas de alimento, sejam lá o que for.

— Não será o suficiente — respondeu o garoto, olhando por cima dos ombros, inquieto, para ver se o Ofegante não estava se aproximando do cubículo. — Ele precisa ficar aqui. Confie em mim, sei o que estou falando.

— Então por que nos trouxe aqui? — perguntei, pronto para outra explosão de raiva. Era tudo o que podia fazer para lhe mostrar minha frustração, sem me preocupar com os Ofegantes. Simon suspirou, depois seu olhar se perdeu no chão.

— Porque queria que soubesse que era tarde demais para seu amigo. Queria que se concentrasse em nos tirar daqui. Eu... sinto muito.

Algo em meu peito pareceu subir e ser pressionado garganta acima, onde se instalou de maneira tão desconfortável quanto um caco de vidro. Desvencilhei meu braço das mãos de Simon e tentei mais uma vez soltar as tiras de metal que prendiam as pernas de Donovan. Elas nem se mexeram. Em algum lugar da enfermaria, uma cortina foi aberta, a respiração ruidosa transformando-se no que pareceu uma risada baixinha. Perto demais.

— Alex? — disse Donovan de novo. — Vai ficar aí parado?

— Ouça-me, Donovan — falei. — Vamos libertá-lo, está bem? Mas não podemos fazer isso ainda. — Lembrei-me do que Monty me dissera. — Não esqueça o seu nome, certo? Carl Donovan. Aguente aí, que logo voltaremos para buscá-lo.

— Aguentar aqui — Donovan repetiu com um sorriso. Os olhos metálicos moveram-se de um lado para o outro antes de me encontrarem de novo, e percebi que ele devia estar encharcado de analgésicos ou algo parecido. — Boa, Alex. Vou ficar parado, bem aqui.

— Pense apenas naquele hambúrguer, está bem, Grandão? — E saí. Simon já se espremia no vão estreito entre a parede e o cubículo, Zê em seu encalço, ambos me chamando. Eu os segui, o sorriso de Donovan sumindo ao me ver partir.

— Alex? Não me abandone.

— Vou voltar, prometo. Estamos no fim do corredor, não vamos lon-ge. — Cheguei ao vão estreito também, Donovan tentando girar a cabeça para me ver. Dessa vez, senti como se meu coração houvesse sido esmagado, mas não tinha escolha. — Pela minha vida, eu lhe juro: não saio daqui sem você.

Então segui Simon e Zê, os soluços longos e pesados de Donovan me acompanhando por todo o caminho.


ABANDONADO


Não sei o que me aliviou mais – o fato de haver espaço para passarmos sem dificuldade pelos cerca de doze cubículos ou o fato de apenas um dos leitos estar ocupado. Era o imediatamente posterior ao de Donovan, com um garoto que aparentava ser mais novo que eu. Ele estava acordado e não parecia ferido — o corpo estava coberto com um lençol, mas não tinha nenhum retalho à mostra —, embora sua mente, era óbvio, estivesse em um lugar muito melhor do que aquele, os olhos azul-claros sem sequer nos notar quando passamos por ele.

Desejei mais que qualquer outra coisa libertá-lo, levá-lo conosco, levá-los todos conosco. Por um momento fugaz, me vi correndo e lutando contra os Ofegantes, arrancando-lhes a máscara, derrubando os ternos-pretos com um único golpe, depois abrindo caminho rumo à superfície, com todos os garotos perdidos nas entranhas de Furnace atrás de mim. Mas, mesmo enquanto imaginava a cena, percebi como soava patético e, em vez disso, limitei-me a seguir Simon e Zê, enquanto ambos contornavam o leito, meu corpo arqueado, cansado, inútil.

Entretanto, antes de sair dali, notei outro carrinho de equipamento, um kit de tortura de aço imaculado perto da cama do garoto — todo repleto de lâminas afiadas, ganchos e braçadeiras. Instintivamente, roubei um bisturi da bandeja, escondendo-o no cinto do macacão, e depois nos esprememos pelo vão deixado pelos últimos cubículos.

Emergimos no lugar por onde havíamos entrado, a porta principal visível a talvez cinco metros de distância. Simon se esgueirou até o último cubículo, contornando-o para checar se a enfermaria estava deserta, antes de voltar para onde estávamos.

— Os Ofegantes se foram — sussurrou ele. — Devem estar dentro de um cubículo ou em algum outro lugar. Sigam-me e fiquem em silêncio.

Fizemos o que nos foi dito, atravessando o chão de rocha polida. A cortina de plástico da enfermaria fechou-se atrás de nós, imitando o ruído suave de nossos pés ao fazer o caminho de volta à solitária. Foi quando atingíamos o entroncamento que nos levaria de volta à cela que ouvimos vozes — retumbantes demais, altas demais para serem de qualquer outra coisa, senão dos ternos-pretos. Simon praguejou, apertando o passo.

— Achei que teríamos mais tempo — falou ele, inclinando-se para abrir a porta do alçapão de Zê como se não pesasse nada. — Entre.

Zê hesitou por um instante, mas não discutiu, desaparecendo trevas adentro. As vozes foram ficando mais altas, e reconheci também o rosnado dos cães. Particularmente, eu não estava a fim de ficar trancafiado no buraco por mais um tanto, mas não havia alternativa. Acenei com a cabeça para Simon quando ele abriu meu alçapão como se fosse um mordomo, depois saltei para dentro. Ele fez uma pausa antes de fechá-lo.

— Sinto muito por seu amigo — falou. — Espero que entenda por que fiz isso. Ele se foi, Alex. Já está transformado. Da próxima vez que eu vier, vamos nos concentrar em sair daqui, está bem?

Não esperou minha resposta, baixou a porta do alçapão e deslizou lentamente a alavanca. Foi só segundos depois de o som dos passos de Simon desaparecer que ouvi o familiar ruído pesado das botas dos ternos-pretos. Ouvi o barulho de uma alavanca se abrindo, e achei ter escutado um grito de agonia, depois um barulho seco. Alguém mais fora trazido à solitária, alguma outra pobre alma banida para o buraco a fim de ser torturada pelos próprios demônios. Fiquei imaginando quem seria, se o conhecia. Era provável que fosse um membro de uma das gangues lá de cima, um dos Caveiras ou dos Cinquenta e Nove, punido por tentar escapar. Agucei os ouvidos, mas as paredes maciças cumpriam bem seu papel, mantendo-me em sombras silenciosas.

Tirei o bisturi do macacão e testei a lâmina no dedo, bem devagar. Era terrivelmente afiada, o mais leve contato tendo deixado um corte fino como um fio de cabelo no meu dedo, não profundo o bastante para sangrar, mas, apesar disso, dolorido. Ainda não sabia que uso poderia lhe dar — era muito pequeno para deixar mais que um arranhão em um terno-preto e, certamente, não me permitiria cavar um túnel rumo à liberdade —, porém me sentia bem em mantê-lo comigo; era como se estivesse, agora, menos frágil diante de Furnace.

Escondendo-o num canto da cela, onde nem por acidente corria o risco de cortar a mão, encolhi-me no chão, exausto demais para fazer qualquer outra coisa. Só havíamos ficado poucos minutos na enfermaria, mas, para mim, pareceram horas, cada detalhe doentio gravado na mente.

Tinha encontrado Gary. E sabia que, quando aquelas bandagens fossem removidas, ele também exibiria olhos frios e prateados. E quanto a Donovan? Seu corpo transformado, quase irreconhecível, a alma enclausurada dentro de uma casca de carne modificada, sua identidade se enfraquecendo a cada segundo. Se não fizéssemos alguma coisa, ele estaria perdido para sempre, prisioneiro dentro de si mesmo quando se tornasse um monstro, um terno-preto.

Demorei algum tempo para perceber que não estava sozinho na ce-la. Levantando a cabeça, notei uma névoa branca familiar pairando acima de mim. Pisquei para ver se se dissipava, mas ela se afastou, encolhendo-se nas sombras — postou-se contra a parede, os joelhos levantados junto ao queixo —, sem querer ser localizada. Eu sabia por quê; a simples ideia me fez desejar que aquela forma fosse embora, e rezei para que me deixasse só. Porém, minha imaginação foi inflexível. Tinha mesmo companhia.

Encantador, soou a voz de Donovan na cela. Ou pelo menos dentro da minha cabeça. Uma pequena cirurgia plástica, e você não consegue sequer olhar para seu velho companheiro. Enfiei a cabeça entre os braços, fechei os olhos, mas ele continuava ali. E, pelo que posso ver, também não ri mais das minhas piadas.

— Mataram você, D — falei em voz bem alta, embora não houvesse necessidade.

Uau!, gritou ele. Ainda não. Ainda estou ali em algum lugar, só pareço um pouco diferente, mas é tudo. A voz dele tornou-se urgente. Não desista de mim ainda, Alex.

— Não vou desistir — disse, sentando-me e fitando o vulto enevoado, uma figura atrás de um vidro embaçado. — Não vou. Eu lhe fiz uma promessa. Vou tirá-lo dali.

Bom garoto. Porque realmente não queria chamar muita atenção quando saísse daqui.

— Não sei, pode ser mais eficaz do que ir à academia — repliquei, esboçando um sorriso. A imagem pareceu solidificar-se por um momento, o peito inchado, o estômago se enrijecendo até se tornar um amontoado grotesco de músculos comprimidos, uma das pernas inchadas como a de uma vítima de elefantíase. Os olhos de Donovan cintilaram, uma mescla de metal e luar, e ele flexionou os braços.

Você teve uma ideia de como são as coisas por lá, disse-me. Espero que façam o mesmo com meus braços também, ou vou ficar tão disforme quanto seu novo amigo, Simon.

— É, ele tem uma aparência bem diferente. — Rimos, mas foi um riso forçado. O corpo de Donovan desinflou como um balão, voltando ao tamanho original. E não parou ali, continuou encolhendo enquanto falava: Encontre uma maneira, Alex. Tire-nos deste inferno.

— E se eu não conseguir? — perguntei à figura, agora nada além de um fio de luz que pendia do teto escuro, como uma teia de aranha.

Você consegue, foi tudo o que disse, e depois desapareceu.

Não me sentia muito otimista quanto a tentar fugir de novo, no entanto, pelo visto, uma parte de minha mente parecia manter a esperança. Em algum lugar, nas profundezas do subconsciente, eu deveria ter fé em mim mesmo. E por que não deveria? Quero dizer, eu havia encontrado uma saída em Furnace. Tudo bem que ela não tinha nos levado muito longe, mas havíamos conseguido sair da parte principal da penitenciária. Nós a tínhamos vencido. Tentei recordar como fora me sentir de pé à beira do abismo da Sala Dois, a rocha ainda se elevando em uma nuvem de fumaça, o rio correndo furioso sob meus pés como se fosse minha via expressa particular para casa. Segundo as informações que tínhamos, estávamos prestes a morrer, porém fomos em frente: arrebentamos a prisão como se fosse a casca de um ovo e, pelo menos durante aqueles instantes, fomos livres.

A lembrança daquela sensação ainda estava ali, um fantasma fraco e abstrato de uma emoção, em vez da coisa em si, mas ainda conseguia saboreá-la. E a desejava de novo. Desejava estar de pé à beira da liberdade, sabendo que tudo o que era necessário para sair dali era um simples passo. E encontraria um jeito. Naquele momento, jurei para mim mesmo que explodiria a prisão de novo e que dessa vez não haveria dúvida nem incerteza sobre nosso destino. Seria apenas o mundo lá fora, e nós, mergulhados na luz do sol e no calor e devorando hambúrgueres na praia.

— Você me animou — falei para o espaço vazio onde Donovan estivera até então, imaginando montanhas de carne salgada, camadas grossas de maionese, pão macio e queijo deslizando garganta abaixo, o vento no cabelo e o som das gaivotas que mergulhavam em busca dos farelos do meu lanche.

Sim, eu tinha que conseguir. Da próxima vez que Simon viesse, descobriria uma saída.

Só que Simon não aparecia.

Esperei com paciência — muita paciência —, contando os segundos, os minutos, depois as horas. A certa altura, ouvi passos e me preparei, esperando que o alçapão se abrisse e a face de Simon aparecesse. Mas eles passaram por cima de mim e desapareceram.

Continuei contando, balançando a cabeça para a frente e para trás, tentando manter o controle do tempo. Era a coisa mais monótona que já havia feito na vida, mas mantinha a mente ocupada, afastava os maus pensamentos. E eu tinha um objetivo. Não demoraria muito, e o garoto reapareceria. Pelo menos, era o que eu achava.

Perdi a conta em algum ponto além de 15 mil, parando a contagem para decodificar as batidas de Zê vindas da cela ao lado. Somei o batuque da grade contra o cano à contagem anterior. Aproximadamente quatro horas. Haviam parecido quarenta.

— Você acha que D está bem? — perguntou ele. Fiquei pensando por que tinha demorado tanto para entrar em contato. Talvez estivesse dormindo.

— Ele vai ficar bem — bati em resposta, as feridas na mão tornando a abrir com o impacto da grade contra a privada. — Quando sairmos daqui.

— Assim espero — foi a resposta de Zê. — Você está bem?

— Magnífico — bati, rindo enquanto o fazia. — Esperando por Simon.

Houve uma pausa, depois as batidas metálicas e abafadas recomeçaram.

— E se ele foi capturado?

Eu estava fazendo bastante esforço para não considerar essa possibilidade. De todos nós, Simon era o que mais corria perigo, perambulando pelos corredores das entranhas de Furnace, onde ternos-pretos, Ofegantes ou o diretor poderiam encontrá-lo a qualquer momento, e depois se refugiando em algum buraco que houvesse encontrado, rezando para que os ratos não o farejassem. Como ele mesmo tinha mencionado, corria perigo todas as vezes que vinha nos soltar. Eu estava assustado porque, dessa vez, ele estava demorando demais para voltar.

— Ele vai voltar — respondi por fim, ignorando minhas dúvidas. — Não vai demorar.

Mas não foi assim. Reiniciei a contagem do zero: 3.600 segundos a cada hora, 3.600, 7.200, 10.800, e depois disso adormeci, sonhando com Donovan na enfermaria berrando números para mim como se fossem uma combinação para destrancar as algemas que o prendiam.

O som do alçapão me despertou e me sentei, o coração disparado, esperando que Simon aparecesse. Mas a porta não se abriu. Algo arranhava a alavanca, uma coisa com garras em vez de dedos, algo que ofegava e rosnava enquanto tentava abrir caminho à força até mim.

Era um rato, todo garras sangrentas e boca arreganhada.

Tateei em busca do bisturi, a sorte me fazendo agarrá-lo pelo cabo quando fiquei de pé. Ouvi um ruído, o grosso alçapão de metal entortando um pouquinho para dentro. Outro impacto, outra depressão. Não era muito, mas eu sabia que a porta não resistiria por muito mais tempo sob um ataque como aquele. Rezei para os ternos-pretos aparecerem, para atirarem naquela coisa que tentava invadir minha cela, mas logo me arrependi de tê-lo feito.

O som de arranhões se transformou na barulheira de uma briga — um ronco seguido de um grito, e depois o ruído de algo sendo lançado contra o alçapão. Fiquei ali de pé, o bisturi na mão, o temor por minha vida sendo a única força que me mantinha firme.

Ouvi a alavanca se abrindo, depois a porta do alçapão foi puxada. Por uma fração de segundo, achei ter visto a silhueta de Simon, as órbitas dos olhos tão brilhantes que pareciam buracos na cabeça por onde a luz passava. Mas então a silhueta partiu para o ataque, agarrando-me pela cabeça com suas garras. Fogos de artifício explodiram diante de meus olhos, e minhas pernas cederam. Foi o que provavelmente me salvou a vida.

O rato arremessou-se dentro da cela, os braços mortais parecendo um combinado vivo de ceifadeira e debulhadora girando no ar. Encolhi-me o quanto pude, as mãos sobre a cabeça, o bisturi perdido no chão. Um rosnado e uma baba quente foram vomitados sobre mim, e só aguardei o golpe, o movimento fatal que acabaria comigo. Mas ele nunca chegou. Em vez disso, ouvi um som retumbante como um trovão, o riso alto de um terno-preto.

— No que está pensando? — ouvi a voz do guarda dizer, tão grossa e tão poderosa que interrompeu de imediato as investidas do rato. Arrisquei um olhar para cima, vi a criatura a meio caminho da cela, a boca tão aberta que a mandíbula parecia deslocada, a fileiras de dentes parecendo cacos de vidro implantados na gengiva. Ela me encarou e arremeteu de novo, mas algo a segurava lá fora: um punho cerrado com firmeza ao redor da garganta.

Meus olhos se dirigiram para além da besta vencida, percebendo o terno imaculado além dela e de seu sorriso de tubarão. O terno-preto afrouxou a pressão do punho, e o rato desceu um pouco mais, as garras tão próximas do meu rosto que era possível sentir o cheiro delas, um aroma de lixo deixado muito tempo no sol.

— Ninguém jamais saberia — continuou o terno-preto, puxando o rato para trás e depois deixando-o despencar de novo. — Todos sabem que os animais gostam de entrar nas celas para se servirem de uma porção de carne fresca. Este já teria devorado a sua se eu não tivesse chegado.

O rato se contorceu, mordendo a mão enluvada que o segurava. O terno-preto apenas ergueu um dos punhos e o atacou, o golpe fazendo a cabeça da criatura pender para trás, respingando sangue. Ele se sacudiu, obviamente atordoado, mas em seguida reassumiu os esforços para me alcançar.

— E então, devo deixá-lo cair aí dentro? Deixá-los se conhecer melhor? Quem sabe já não foram amigos lá em cima?

Mais risos, como se uma tempestade despencasse sobre a cela. O terno-preto baixou ainda mais o rato, e senti um calor abrasador em meu braço, onde gotejou o sangue da criatura. Ouvi um estalo a alguns centímetros da orelha quando suas mandíbulas se fecharam no vazio.

Então ele se foi, retirado do alçapão e colocado de volta no corredor. Olhei através dos dedos trêmulos e vi o terno-preto enfiar a espingarda no torso do rato e puxar o gatilho. O corredor se iluminou por um segundo, a luz mais uma vez seguida de um ruído abafado.

— O diretor quer que você fique sozinho durante um mês — comentou o guarda, inclinando-se na entrada do alçapão. — Mas ele não é chamado a cada tiro que se ouve aqui. Da próxima vez, pode ser que você não tenha tanta sorte.

O terno-preto deu um chute, e o alçapão se fechou. Pelo menos daquela vez, fui grato à escuridão, que escondia as gotas vermelhas que respingavam como uma chuva fina no chão da cela.


GAROTOS PERDIDOS


Não me envergonho de dizer que quase sucumbi depois disso. Deitado ali — o eco do tiro ainda reverberando em meu cérebro, as garras do rato tentando me alcançar, o riso do terno-preto enquanto balançava aquela ferramenta de extermínio acima de mim, fazendo arder minhas retinas famintas de luz —, sentia-me prestes a me desfazer. Podia quase ver meu corpo sendo retalhado, depois escorrendo pelo cano da privada com todos os outros dejetos.

Sei que parece estranho ter pensado na morte com a mesma expectativa e ansiedade com que, apenas algumas horas antes, agarrava-me à vida. Mas as duas eram a mesma coisa naquele momento. Minha existência era um inferno em vida, assaltada pela consciência de que o alçapão podia ser aberto a qualquer momento e de que o mais terrível pesadelo poderia ser lançado sobre mim. Mas a morte, ao contrário, prometia uma nova vida. Fosse na existência após a morte sobre a qual minha mãe sempre me falava, ou como um fantasma perambulando por Furnace por toda a eternidade, ou apenas no maravilhoso esquecimento de tudo, a morte significava a liberdade.

E agora eu tinha os meios para chegar a ela.

Um arrepio percorreu meu corpo quando percebi o que havia pensado. Mas era difícil ignorar o óbvio. Quero dizer, algo me fizera pegar aquele bisturi, mesmo sabendo que, talvez, nunca o utilizasse como arma contra a legião de grandalhões em ternos pretos e máscaras de gás que viviam aqui embaixo. Talvez uma parte de mim, uma parte tão profunda que mal podia ouvi-la, soubesse a razão real pela qual eu desejava uma lâmina em minha cela.

Seria bem fácil. Dois cortes precisos, e estaria fora dali; teria minha rota de fuga. Sem guardas, sem Ofegantes, sem diretor. Sem a responsabilidade de salvar Zê, Donovan e Simon. Sorri, imaginando o próximo terno-preto que viesse me atormentar ao perceber que eu estava livre, que havia escapado dali por entre seus dedos.

É, você vai dar uma lição neles, não é mesmo? Cortar os pulsos, só para contrariar o destino que querem lhe impor.

De onde viera aquilo? Não parecia ter saído da minha mente, como as alucinações com Donovan. Imaginei quantas vozes não povoariam minha cabeça no momento e como poderiam ter opiniões diferentes. Não que eu não lhes fosse grato. Se não fosse aquela explosão de sarcasmo em algum lugar do subconsciente, talvez já tivesse pegado o bisturi e terminado o serviço.

Em vez disso, localizei a lâmina com a ponta dos dedos e a empurrei para o outro lado da cela. Ela bateu na beirada do cano da privada e parou, como se me implorasse para pensar sobre o que estava fazendo. Mas eu tinha certeza e, com outro empurrão, derrubei-a no esgoto lá embaixo. Sei, eu sei que devia tê-lo guardado. Era uma arma, e, por menor que fosse, poderia pelo menos me proporcionar o elemento-surpresa em uma luta. Mas você tem que acreditar em mim quando digo que aqui embaixo aquela lâmina era a coisa mais próxima que eu tinha da liberdade e, mais cedo ou mais tarde, eu a teria usado.

Livrar-me do bisturi pareceu tirar parte do peso dos meus ombros, embora o medo ainda penetrasse meu peito como um demônio indomável. O que havia acontecido com o terno-preto e o rato só mostrou, mais uma vez, como eu me encontrava vulnerável naquele lugar.

E, até agora, nem sinal de Simon.

Pela primeira vez desde que fora atirado no buraco, tiveram início alucinações terríveis. Vi uma figura pronta para se formar dos fios pendurados como teia de aranha por toda a cela, e de algum modo sabia que dessa vez não seria Donovan. Estava certo. Também não eram meus velhos amigos e familiares, que teriam sido bem-vindos, mesmo que gritassem comigo, tomados por ódio, raiva e tristeza. Tampouco eram as estranhas criaturas de Furnace.

Não, era outra coisa, algo que eu não conseguia identificar. Uma figura envolta em negro e sentada no vazio, que se postou no canto dos meus olhos e se deslocava sempre que eu tentava me concentrar nela. Não fazia nada, não dizia nada; só ficava ali, sentada, olhando para mim. Como se esperasse. Como se aguardasse minha morte.

Senti o pânico envolver minhas entranhas e me virei, a figura sempre mais rápida que eu. Desferi golpes contra ela, frustrado, imaginando que aquela figura impossível de focalizar estivesse rindo de mim, me encorajando a reagir contra ela. Eu gritava, praguejava o mais alto que podia, desafiando-a a se mostrar. Mas o anjo da morte — porque, se eu tinha uma certeza ali, era que a figura era a face da morte — recuava, satisfeito em me ver sofrer.

Devo ter desmaiado, a vertigem me sugando para cima como um tornado, a cela girando. Bati a cabeça ao cair, sabendo que mesmo no breu minha visão falhava. Esperava cair desse pesadelo desperto direto em um sonho cruel, mas minha mente parecia ter se cansado de me atormentar, desligando tudo e me deixando descansar em paz — se me permite o uso da expressão.

Não sei quanto tempo fiquei fora do ar, mas foi preciso o som do alçapão sendo destrancado para me despertar. Não me dei sequer ao trabalho de sentar, exausto demais para tentar escapar do meu destino. Mas, quando a porta se abriu, foi Simon que avistei à luz mortiça. Ele me lançou um sorriso meio torto, depois me estendeu a mão.

— Sentiu minha falta?


Corremos em silêncio pelo corredor, Simon assumindo a liderança, e Zê e eu em seu encalço. Perguntei-lhe onde estivera, e ele me calou com um olhar frio, espreitando, nervoso, os corredores desertos.

— Fique quieto — sussurrou quando atingimos o entroncamento em T que conduzia à enfermaria. — Há ternos-pretos por toda parte.

Fechei a boca, deixando as perguntas para mais tarde. Viramos à esquerda, e, por um minuto, achei que voltávamos para onde Donovan estava. Mas, embora tenhamos diminuído a velocidade ao passar pela cortina de plástico, não paramos. As passagens na rocha brilhavam, abrindo bocas negras nas paredes vermelhas, e pude perceber mais de uma voz lá dentro — risadas graves, gritos guturais e, a certa altura, até uma canção em tom agudo e desafinado que me provocou calafrios na espinha.

Chegamos a outro entroncamento, do qual não me lembrava, embora devêssemos ter passado por ele no dia em que havíamos sido arrastados até o buraco. Olhei ao redor e senti algo frio me percorrer por dentro, como se tivesse acabado de entrar em um freezer. Não havia nada ali, pelo menos nada que conseguisse ver. O trecho de pedra árida estava deserto. Ainda assim, algo parecia pairar no ar, uma presença obscura que tentava se impregnar em minha alma enquanto passávamos correndo por ela.

— São os aposentos do diretor — sussurrou Simon. Depois virou à esquerda, e a sensação desapareceu. Olhei para trás uma vez mais enquanto corríamos para o outro lado, os olhos invisíveis nas sombras sempre crescentes atrás de nós perfurando minhas costas.

Mais duas passagens abertas na rocha, uma de cada lado do corredor, sem sinal de vida vindo de dentro delas, então alcançamos a maciça porta da abóbada que separava as entranhas da prisão da caverna que ficava à frente. As dobradiças ainda estavam danificadas, e a superfície grossa, repleta de depressões e arranhões. Simon fez um gesto para pararmos, avançando devagar e fixando os olhos prateados na caverna à frente. Pela maneira como a face acinzentada foi de repente iluminada, podia quase afirmar que havia refletores acesos por perto, mas não havia nada ali, pois, após um segundo ou dois, o garoto voltou a se movimentar depressa.

Eu o segui, mantendo a cabeça baixa ao entrarmos na enorme caverna onde havíamos sido capturados. Estava vazia, salvo pelas luzes, e nós a atravessamos, passando pelo túnel onde Zê e eu achávamos ter visto a luz do sol. Ali o teto ficava mais baixo, como se fosse incapaz de sustentar o peso enorme acima dele, deixando uma fenda entre a parede irregular e o chão, estreito demais até mesmo para os raios de halogênio penetrarem.

— Depressa — sussurrou Simon, agarrando meu braço e me guiando pela aterrorizante faixa de escuridão. Ele olhou para trás, e eu achei ter visto movimento em outro dos corredores rochosos que saíam da caverna. — Ternos-pretos — explicou Simon. — Eles fazem patrulha aqui. Rápido!

Enfiei-me sob uma fenda irregular que partia do teto, encontrando-me em um pequeno bolsão de ar cercado por todos os lados de rocha e pilhas irregulares de cascalho. Não sabia bem para onde ir, mas logo Zê e Simon estavam lá dentro também, e Simon se pôs a subir na parede oposta, desaparecendo nas trevas.

— Aonde está indo? — perguntou Zê. — Não consigo enxergar nada.

— Apenas me sigam. É mais fácil do que parece.

Ele estava certo. A parede era repleta de fendas nas quais podíamos inserir os pés e saliências em forma de gancho serviam de apoio para as mãos. Quanto mais alto subíamos, mais escuro ficava, mas foi fácil o bastante para perceber o caminho à frente. Depois de uns dez minutos de lento progresso, a acústica do espaço mudou, e logo a seguir a parede se nivelou. Simon me agarrou, puxando-me para cima no trecho final, e, enquanto esperava por Zê, tentei ter uma ideia melhor de onde estávamos.

Foi quando ouvi um ruído à frente. Um clique que poderia ter sido a vibração de dentes ou o som seco produzido por algum inseto gigantesco.

— Ouviu isso? — perguntei, já calculando com que rapidez poderia descer a parede se tivesse de realizar uma saída rápida. Estava tão escuro que não conseguia sequer vislumbrar o caminho pelo qual havíamos subido.

— Tudo bem — era a voz de Simon vinda das sombras. — Eles estão conosco.

Eles? Simon agarrou meu macacão e me guiou para a frente, conduzindo-me com delicadeza ao longo de uma coluna de pedra, antes de fazermos uma curva acentuada à direita. Ao percorrer um pouco mais o caminho sinuoso, ouvimos o ruído de um fósforo se acendendo. O mundo se iluminou, e fiquei chocado ao ver duas faces amedrontadas poucos passos à frente. Elas recuaram como camundongos assustados.

— Sou eu — disse Simon, o tom de voz um pouco mais alto, mas ainda cauteloso. — Trouxe... eles.

Ouvi um leve ruído, e uma lanterna se acendeu, a luz mais fraca e mais instável do que o fósforo na mão de Simon. Estávamos de pé em uma pequena caverna, pouco maior que uma das celas lá de cima, o teto arqueado sobre nós. Havia dois outros garotos ali, os corpos tão encolhidos e distorcidos que, por um momento, pareciam pinturas rudimentares da parede. Um deles olhou para nós com enormes olhos prateados, enquanto o outro, mais jovem, piscou para mim, mirando-me com dois lagos de um azul leitoso. Achei tê-lo reconhecido de Furnace: um dos garotos que haviam sido levados durante a vigília sangrenta, arrastados pelos Ofegantes.

O menino de olhos prateados baixou a cabeça, e notei que comia algo, degustando o que quer que fosse com uma ferocidade animal. Meu estômago quase virou do avesso, tal a excitação diante da ideia de comida, até que o osso desnudo foi captado pela luz, e meu estômago se revirou por uma razão bem diferente.

— Isso é...? — perguntei, apontando. Simon seguiu meu dedo estendido, a postura de repente se tornando defensiva.

— Temos que comer — cortou ele, mas o rosto se contorceu em uma máscara de vergonha antes de se voltar para o chão.

— Você é o Alex? — perguntou o garoto de olhos azuis. Pelo que pude perceber, ele havia escapado das lâminas dos Ofegantes. O macacão estava cor de ferrugem em alguns lugares, mas, fora isso, poderia passar por um recém-saído da prisão lá em cima. — Eu me lembro de você. Você costumava andar com Carl Donovan, não é?

Assenti, sem saber bem o que dizer.

— E você pode nos tirar daqui? — perguntou a figura que estava no meio da caverna. Como Simon, ele havia sido cortado e costurado, embora apenas o tronco tivesse sido afetado. Um saco inflado do qual saíam duas pernas esqueléticas como pernas de aranha. Dessa vez, não respondi. O garoto arrastou os pés para a frente, para ter uma visão mais nítida de mim. — Ouvimos os comentários dos ternos-pretos depois que você escapou. Cara, eles ficaram furiosos! — Seu riso gutural foi contagioso, sendo acompanhado pelo do garoto de olhos azuis e pelo de Simon.

— Alex, Zê, este é Pete. — O adolescente mutilado fez um sinal de boas-vindas. — Ele fazia parte dos Caveiras, mas agora virou um cara legal.

— Nunca me senti melhor — disse Pete, rindo de novo.

— O garoto ali é o Ozzie.

Sorri constrangido para ambos, enquanto Pete continuava a mergulhar os dentes no que quer que estivesse comendo. Era bom ver faces amigáveis, contudo, parte de mim esperava que Simon comandasse um exército ali, um bando de cinquenta garotos ou algo assim, que estivesse pronto para sair de Furnace. Esse pequeno grupo desorganizado de crianças não parecia capaz de escapar da caverna onde estávamos, que dirá lutar para abrir caminho rumo à superfície. Pelo menos, não conseguia imaginá-los fazendo isso. Não sei o que esperavam de mim, mas, naquele momento, sentia-me um esqueleto ambulante, mantido em pé apenas pelos restos esfarrapados do meu macacão.

— Como sobreviveram aqui embaixo? — perguntou Zê. — Como os ternos-pretos não encontraram vocês?

— Quase encontraram — respondeu Simon, pegando do chão uma bolsa de material endovenoso e estendendo-a para mim. Estava cheia de água límpida, provavelmente do rio, e bebi com avidez, o líquido frio desencadeando um incêndio em minhas entranhas, que, até aquele momento, eu nem sabia como eram profundas. Passei a bolsa para Zê, enquanto Simon prosseguia: — Os cães nos farejaram algumas vezes, mas não havia como escalarem aquela parede, tampouco os ternos-pretos. Provavelmente acharam que estavam seguindo a trilha de um rato.

— E ficaram bem aborrecidos — acrescentou Pete. — Isso foi... quando? Há alguns meses, pelo menos.

— Apenas semanas para mim — disse Ozzie. — Mas parece mais tempo. Estou contente por estarem aqui. Conhecem algum jeito de fugirmos de Furnace?

Balancei a cabeça, e, percebendo meu desconforto, Simon bateu em meu ombro.

— Ele ainda não sabe, mas eu sei exatamente por onde começar.

 

 

A TORRE


Ozzie veio conosco enquanto atravessávamos a caverna, saindo por uma estreita fenda atrás dela. Pete fez o que pôde, mas mal conseguiu dar alguns passos antes de as pernas estropiadas se dobrarem.

— Droga — disse ele, forçando um sorriso enquanto passava a lanterna para Simon. — Poderiam ao menos ter me dado pernas compatíveis com este corpo.

— Espere aqui e fique atento — disse Simon por sobre o ombro, pegando a lanterna e se apressando. — Não vamos demorar.

— Há alguma saída aqui em cima? — perguntou Zê, enquanto nos espremíamos por uma passagem onde mal cabia um de nós. Ela seguia em declive, às vezes tão íngreme que achei que fosse desmoronar na escuridão lá embaixo.

— Não temos certeza — respondeu Simon. — Fiz uma busca por todos esses túneis, confie em mim. Entrei neles muitas vezes, experimentei cada fenda, cada orifício, cada sombra. E nada. São todos becos sem saída, bloqueados por pedras tombadas, ou apenas dão direto lá embaixo. Mas depois encontramos a torre.

— Torre? — perguntei, escorregando em um carpete de pedras soltas e me segurando na parede para me manter de pé.

— Foi o nome que lhe dei — ouvi a voz de Ozzie, abafada nas sombras. — Lembrou-me uma igreja.

A luz tremulante da lanterna de Simon mal conseguia iluminar o caminho à frente, que parecia se fechar à medida que andávamos, como se tentasse nos obrigar a recuar. Para ajudar a afastar o medo, mantínhamos a conversa fluindo.

— Há quanto tempo estão em Furnace? — perguntei, dirigindo a pergunta a Simon. Mas foi o garoto mais jovem que estava atrás de mim quem respondeu de novo.

— Apenas um ano — foi a resposta. Depois ele riu. — Eu disse apenas, mas parece uma vida inteira. Fui condenado a vir para cá por assassinato, após meus pais terem sido mortos. Não pelas minhas mãos, devo acrescentar.

— Os ternos-pretos? — perguntei.

— É, os ternos-pretos. Armaram pra mim.

— Aconteceu o mesmo comigo — falei. — Fui acusado de ter assassinado meu melhor amigo. E os outros?

— Pete foi preso durante o Verão do Massacre, com os Caveiras. Ele não fala muito sobre isso. Quanto a Simon... bem, ele vai lhes contar.

— Obrigado. — O sarcasmo de Simon ecoou pelas paredes enquanto tentava se espremer por uma fenda na rocha. Desapareceu com um ruído seco, a voz ecoando à luz fraca. — É, fui um idiota. As brigas de gangue haviam terminado, mas eu e meus companheiros fomos presos por assaltar uma joalheria. As coisas saíram do controle; os proprietários tinham uma arma. — Sua voz desapareceu ao se afastar, e prendi a respiração para passar através da fenda. — O sujeito ameaçou usá-la, nós lutamos, o revólver dispa- rou, e o resto você já deve ter adivinhado. Preste atenção onde está pisando.

Emergimos em outra grande caverna, a voz de Simon de repente tragada pela densa imensidão negra. A lanterna revelou que estávamos em uma saliência estreita, que pouco a pouco desaparecia em um oceano de piche que parecia não ter fim. A parede ao longo da qual havíamos caminhado se estendia para cima, o teto escuro sobre nós parecendo o céu da noite, pelo menos tão frio quanto ela. A rocha saliente estreitava-se à medida que a escalávamos, semelhante a uma agulha. Como uma espiral.

— Bem, aqui está ela — falou Simon, olhando para o teto invisível e negro bem acima de nós.

— É isso aqui? — perguntou Zê, aproximando-se de nós e tirando o pó do macacão. — Essa é a nossa saída?

Simon lançou um olhar desafiador em nossa direção, que não durou muito. Após um segundo, a expressão se desfez. Não tinha certeza do que ele queria de mim — de nós —, mas não via nada por ali que se assemelhasse a uma saída. Não havia sequer um vislumbre de esperança em minha mente. Era apenas mais uma caverna e uma formação rochosa em espiral que se estendia para lugar nenhum.

— Foi tudo o que conseguimos encontrar — respondeu Ozzie, assim que se juntou a nós. — Não parece muita coisa, eu sei, mas é a única parte de todo esse lugar que chega tão alto. Como disse Simon, todos os outros túneis são sem saída ou vão para baixo. Mas este parece continuar para o alto.

Não havia como ter certeza. A luz da lanterna iluminava talvez uns dez metros acima em meio à pesada penumbra, mas parava por ali.

— Acho que isso aqui faz parte da garganta principal onde cons- truíram a prisão — explicou Simon, segurando a lanterna acima da cabeça, porém sem conseguir iluminar mais nada da torre. — Quem sabe esse trecho não termine na superfície?

— Já viram algum raio de sol vindo lá de cima? — perguntei, já sabendo a resposta.

— Não. Mas não significa que não haja sol lá em cima. — Simon desviou o olhar para o precipício ao nosso lado, tão profundo quanto era alto o espaço acima de nós. — Tem que haver uma saída aqui, Alex. Não há outro caminho.

— Mesmo que houvesse, como subiríamos até ela? — perguntou Zê. — Precisaríamos de cordas, de cravos nos sapatos. Ninguém conseguiria escalar isso aqui de mãos vazias.

O ânimo dos garotos desmoronava depressa, e a escuridão parecia pressentir esse momento, oprimindo-nos como se nos empurrasse para baixo.

— Nós poderíamos escalar a rocha — respondeu Simon, disposto a não desistir. Parecia uma criança pequena, quase batendo o pé para enfatizar o que dizia. — Seja como for, vocês estão aqui agora. Podem nos ajudar a encontrar um jeito, pensar em alguma coisa. Já fizeram isso antes.

A rocha da torre era áspera e repleta de fendas, assim como a escarpa que havíamos escalado instantes atrás, e havia saliências espaçosas o suficiente para trechos de descanso. Mas Zê tinha razão: escalar aquilo requeria alguém no auge da capacidade física, o que naquele momento não incluía nenhum de nós. E, mesmo que conseguíssemos atingir o topo, quem poderia afirmar que a torre não acabaria no teto da caverna, deixando-nos presos em um pilar rochoso, sem termos como voltar? Percebi que todos os olhares se concentravam em mim e que eu sacudia a cabeça, sem saber se concordava ou discordava.

— Vou pensar nisso — foi tudo o que consegui dizer. — Pode haver um modo. Se um de nós pudesse explorá-la, talvez, usando uma corda... Quem sabe?

Eu podia ouvir a dúvida transparecendo em minha voz, entretanto, para Simon, a mera menção de uma ideia parecia suficiente. Ele sorriu, e, por um momento, achei que fosse lançar o imenso corpo para a frente e me abraçar.

— Sabia que estaria disposto a tentar — respondeu ele. — Não importa se não conseguirmos sair todos juntos. Aliás, não posso imaginar Pete subindo aí com aquelas pernas, sabe? Mas, se pelo menos um de nós sair, podemos pedir ajuda.

Olhei de novo para cima e, por um momento, consegui ver — a torre subindo incessantemente rumo à superfície, a rocha milenar rompendo a crosta terrestre, abrindo caminho para nós. Imaginei minha mão empurrando o solo fofo, aquecido pela luz solar, e eu saindo daquele túmulo e repousando na grama quente.

— Está vendo? Você também sentiu — falou Simon, e percebi que minhas bochechas doíam com o sorriso que se abria, mesmo sem eu querer. — Há algo neste lugar. Venho aqui às vezes, deito perto da saliência e fico olhando para cima, fingindo que há um céu noturno sobre mim. Às vezes é tão real que consigo ver estrelas e sentir a brisa. Tem que ser a nossa saída... — Sua última palavra sumiu no ar, e ele virou a cabeça, escutando algo que eu não conseguia ouvir. Então passou por mim, aproximando-se de novo da parede rochosa. — Vamos, é bastante seguro aqui, mas os ratos virão atrás de qualquer som, e não estou nem um pouco a fim de ficar preso nesta saliência se eles aparecerem.

— Vamos ficar aqui com vocês, certo? — perguntei às costas dele, sua silhueta mal delineada, desaparecendo na penumbra. — Na caverna, quero dizer.

— Não. Precisamos que fiquem na cela de vocês. — Zê e eu protestamos em uníssono, porém ele prosseguiu: — Se vocês desaparecerem, os ternos-pretos vão começar a suspeitar de algo. Especialmente se não houver sangue por perto. Nesse momento, eles não sabem nada a nosso respeito, mas, se vierem procurar por vocês, podem nos encontrar também. Não podemos correr esse risco.

— Não sei quanto tempo mais resistiremos ali — repliquei, a rocha apertada contra meu peito e minhas costas enfraquecendo as palavras. — Os ternos-pretos vão nos matar, quer o diretor queira ou não.

— Só mais um dia — pediu Simon. — Até conseguirmos pensar na melhor maneira de escalar a torre.

Estava prestes a contra-argumentar, quando percebi o que estava acontecendo. Simon não confiava em nós — pelo menos, não totalmente. Estava apavorado com o fato de fugirmos dali, encontrarmos uma saída e os deixarmos para trás. E, se nos mantivesse trancados, sabia que não poderíamos ir a lugar nenhum sem ele. Parecia muito cruel, mas Furnace não era exatamente um lugar onde a confiança se disseminava.

— Por que não tentaram escalá-la ainda? — ouvi a voz de Zê atrás de mim.

— Eu tentei — respondeu Simon. — Algumas vezes. Mas não pude ir adiante porque entrei em pânico. Não consegui encontrar um modo de subir lá em segurança. Então, quando ouvimos os ternos-pretos falando sobre a explosão lá em cima, percebemos que deveríamos esperar; ver se alguém realmente havia conseguido sair; ver se poderíamos segui-lo. — Eu o ouvira soltar um suspiro de alívio ao entrar na caverna. — Agora encontramos você, e sei que vai pensar em alguma coisa. Nunca fui um cara brilhante; nunca me dei bem em nada lá fora. Mas você criou um plano e deu um jeito de explodir as paredes.

— É. Tem que nos contar como fez isso — pediu Ozzie, quando todos tinham terminado de passar pelo espaço minúsculo.

— Outro dia — Simon falou, após relancear o olhar para o semblante cheio de expectativa de Pete. — Agora, ele já tem no que pensar.


O retorno para a solitária não foi nem de longe tão fácil quanto sair de lá, e várias vezes me vi implorando a Simon que nos deixasse ficar com ele. Devia ter insistido, sido mais autoritário, em vez de apenas pedir.

Mas a verdade é que eu tinha medo dele. Os olhos prateados estavam sempre sobre mim, brilhando como se ele soubesse de algo que eu ignorava. Não conseguia evitar; ele me lembrava um dos guardas, o que me fazia congelar até os ossos. Em cima do alçapão, tinha visto o que ele era capaz de fazer. E jamais me esqueceria da maneira como atacara aquele rato, rasgando-lhe o pescoço. Se ele quisesse, poderia me arrancar as pernas tão facilmente quanto o fariam um terno-preto ou algum dos cães. E algo nele, algo na intensidade de seu olhar, me fazia pensar que ele se encontrava no limite da sanidade; que podia enlouquecer a qualquer momento e levar todos nós com ele para o abismo da loucura.

Quem poderia culpá-lo?, pensei, enquanto nos escondíamos na escuridão da caverna, esperando que dois ternos-pretos, um tanto distantes, desaparecessem túnel adentro. O que quer que eu tivesse passado, ele passara por coisas um milhão de vezes pior.

Estávamos prestes a nos mover, quando outro guarda surgiu de um túnel à direita e passou pela porta estropiada da abóbada, arrastando um corpo ensanguentado atrás dele. Ele deixou um rastro vermelho enquanto desaparecia, um rio carmim que parecia brilhar à luz dos refletores.

— Aquilo é um rato? — perguntei, tão logo a figura desapareceu. — Para onde o guarda o está levando?

— Provavelmente ao incinerador — replicou Simon, o corpo tenso, pronto para correr. — Vão queimá-lo. Preferem não correr o risco de que se alimentem um do outro; por isso se certificam de que estejam mortos e não resolvam, você sabe... perambular de novo por aqui.

Tanto Zê quanto eu nos voltamos para Simon, mas ele já havia disparado à frente. Corremos atrás dele, desajeitados e desequilibrados. Desejei que o calor em meu rosto fosse efeito da luz do dia, em vez do halogênio.

Patinamos pela porta da abóbada, seguindo a superfície de rocha lisa até o primeiro entroncamento — um trajeto que se dividia e conduzia aos aposentos do diretor. A sensação de terror que me invadiu na última vez que passara por ali havia desaparecido, porém tivemos que nos enfiar em uma sala escura quando mais dois ternos-pretos passaram por ali. Meu coração batia muito alto, a pulsação quase na garganta, a ponto de quase sentir seu gosto. Mas os guardas felizmente não o ouviam, a marcha militar compassada das botas desaparecendo após alguns segundos.

Alguns passos apressados mais tarde, e estávamos de volta à cela. Meu coração despencou direto das amígdalas para o estômago assim que a vi, contudo, era tarde demais para argumentar. Simon já segurava a porta do alçapão aberta, convidando-me a entrar, e, tomando meu pulso com seu punho opressor, lançou-me uma piscadela.

— Se eu puder, volto de novo depois de sua próxima refeição. Isso deve lhe dar tempo suficiente para pensar.

Devolvi o aceno, mas não consegui imitar seu sorriso amplo — amplo demais, até — quando o alçapão se fechou mais uma vez.


VIOLAR E AVANÇAR


Minha refeição foi algumas horas depois de Simon ter nos trancado ali, e, quando o terno-preto abriu a porta e atirou lá dentro uma tigela com a lavagem, fiquei surpreso em ver o diretor ao lado dele. Obviamente viera para verificar como eu enfrentava o buraco, e sua mera presença fora do alçapão me fez cambalear para a frente. Mesmo assim, conseguia sentir seu olhar penetrando minha nuca, transmitindo imagens que eu pouco entendia, mas que eram sempre compostas de uma paleta de cores em tons de vermelho.

Ele soltou um riso áspero, cada inspiração parecendo estacas a fincar as imagens em minha cabeça, obrigando-as a tomar forma. Não que eu pudesse distinguir o que via. As cenas eram distorcidas, tão aterrorizantes que desapareciam uma em meio à outra, cada uma roubando um pouco mais de minha sanidade e deixando um rastro de imundície em seu lugar.

— Está há quase uma semana no buraco e ainda respira — falou o diretor, embora eu não conseguisse ouvir sua voz, apenas senti-la, como agulhas penetrando meus tímpanos. Ele riu de novo, e me esforcei ao máximo para não gritar. — Poupe sua respiração, Sawyer — disse ele, como se pudesse ler minha mente. Você ainda tem um longo caminho pela frente e muitos pesadelos a enfrentar. Bom apetite.

O diretor continuou a falar, mesmo com o alçapão sendo fechado, e cada palavra feria mais que a anterior, embora eu fizesse o possível para não as ouvir. No entanto, algumas se filtraram, envolvidas em arame farpado e penetrando no fundo de minha consciência — a cobaia perfeita... a Câmara... controlar sua fúria —, e então o alçapão foi trancado, e a voz desapareceu. Devagar, bem devagar, a força letal da mente do diretor foi sumindo de minha cabeça, deixando-me com uma dor latejante e um sangramento no nariz. Deitei no chão, tentando estancar o fluxo e não pensar no sangue que descia caprichosamente pela garganta. Ele começou a diminuir, e logo ouvi Zê batendo uma mensagem de sua cela:

— Acha que conseguiremos? A torre, quero dizer.

— Não faço ideia— repliquei, sentando-me para bater melhor minha resposta. — Pode não dar em lugar nenhum.

— É, também pensei nisso. — Houve silêncio por alguns instantes. — Mas vale a pena tentar.

— Vale a pena tentar — repeti, deslizando uma das mãos sobre as feridas da outra e desejando que não houvesse tantas letras no alfabeto.

— Alguma ideia? — bateu ele.

Não respondi de imediato. Em vez disso, passei a mão pelo chão da cela, pegando a tigela de gororoba e levando a lavagem à boca. Sentia-me faminto demais para me importar com onde ela estivera ou com quanto estava suja. Para clarear a mente, tentei fazer uma imagem mental da torre, imaginando como poderia arquitetar um plano de fuga. Não havia nada a fazer senão escalá-la, e não era preciso ser um gê-nio para compreender isso. E, para fazê-lo, precisaríamos de algum equipamento; do contrário, mais cedo ou mais tarde todos nós cairíamos, mergulhando direto no fosso da garganta.

Com certeza não havia nenhum equipamento para escalar paredes rochosas em Furnace, a menos que os Ofegantes gostassem de fazer rapel quando não estavam trabalhando na enfermaria. Aquele pensamento me provocou um sorriso. Imaginei-os se sacudindo e se contorcendo, avançando pela rocha, os olhos gulosos arregalados de excitação ao subir, os grampos que usavam nas suturas se prendendo nas paredes, e os bisturis amarrados aos pés para lhes servir de apoio.

Obrigado, cérebro. Sentei-me, sentindo uma onda familiar de inspiração. Era tão óbvio: a enfermaria estava repleta de ganchos, correias, martelos e pinos que poderiam funcionar como um kit para a escalada.

Minha euforia foi tão intensa que bloqueou qualquer pensamento racional, por menor que fosse, levando a lógica para alguma parte obscura de meu cérebro, onde seus protestos não poderiam mais ser ouvidos. Não questionei o fato de que aqueles equipamentos não haviam sido projetados para o esforço e a tensão de uma escalada e que provavelmente quebrariam. Não me preocupei com o fato de nunca ter feito nenhuma escalada na vida. Tampouco lembrei que, para pôr as mãos nos materiais, teríamos que voltar à enfermaria, onde Ofegantes nos aguardavam. Não. Tudo o que pude ver éramos nós escalando a torre com cordas de tubos de borracha e couro, impulsionando-nos com fórceps e serrotes de ossos, até abrirmos caminho para o mundo lá fora.

Sei que tudo isso soa bastante ridículo. Mas, quando você passa dias dentro de um buraco negro no centro da Terra, até mesmos os planos de fuga mais loucos tornam-se gloriosamente reais. E, para ser honesto, nada daquilo era mais louco que encher luvas de borracha com gás e usá-las para explodir um buraco no chão, certo?

Simon apareceu algum tempo depois, e, mal abriu minha cela, des-pejei meu plano sobre ele. O garoto fez um gesto para que eu manti- vesse a voz baixa, sussurrando em pânico que não havia ocorrido nenhuma violação ou levante e que os ternos-pretos poderiam estar em qualquer lugar.

— Ótima ideia, Alex — disse-me quando abrimos o alçapão de Zê, seu entusiasmo despontando no rosto em que antes só havia cautela. — Estamos tão perto... Sei que podemos fazer isso.

Sua confiança era contagiante, dando-nos força enquanto corríamos furtivamente pelos corredores, escondendo-nos ao lado de fendas escuras para buscar cobertura antes de avançar a passos rápidos até o próximo corredor. Ponderei se deveríamos vasculhar as salas em busca de qualquer coisa que pudéssemos usar, porém Simon fez que não com a cabeça.

— A maior parte delas está vazia — falou, espreitando o entroncamento que conduzia à enfermaria. — Não há nada dentro das caixas ou nas prateleiras, nada que possa nos ajudar na escalada. Tudo o que precisamos está na enfermaria. — Fez uma pausa, e, embora a fisionomia estivesse tão pálida quanto um pergaminho, achei ter visto o rosto empalidecer um pouco mais. — Ou mais adiante, onde fazem as cirurgias.

Paramos um pouco, a respiração presa nos pulmões, quando o som de passos vindos de algum local próximo aumentou. Eram as botas de um terno-preto, e nos preparamos para voltar correndo à solitária se fos-se necessário. Mas os passos começaram a retroceder, deixando livre o corredor à frente. Simon disparou, arremessando-se rumo à entrada da enfermaria, e nos apressamos para acompanhá-lo. Sentia-me tão apavorado que a adrenalina parecia ácido em minhas veias. No entanto, já estava acostumado com isso. Havia esquecido o que era viver uma existência em que cada momento desperto não fosse repleto de terror.

Avançamos até parar do lado de fora da entrada da enfermaria, as costas pressionadas contra as letras pintadas de branco, enquanto Simon olhava através da cortina de plástico.

— Não vejo nenhum movimento daqui — pensei tê-lo ouvido dizer, e tudo estava mesmo bem silencioso. Ele se voltou para nós: — Sigam para a direita, atrás dos cubículos onde estivemos antes. Se virem um carrinho, peguem tudo o que acharem útil. Grampos, bandagens, coisas desse tipo.

— E quanto aos Ofegantes? — a voz de Zê passou flutuando pela minha orelha.

— Devemos tomar cuidado com eles — foi a resposta, longe de ser tranquilizadora. — Sumam daqui se houver qualquer sinal de problema.

Simon enfiou um dedo entre duas das tiras de plástico e olhou dentro da sala. Devia estar tudo tranquilo, porque, com um movimento rápido do corpo disforme, desapareceu enfermaria adentro, como se imergisse em um lago de areia movediça. Percebi que vinha prendendo a respiração já há algum tempo, então expirei bem devagar. Se esperasse mais, minha coragem desapareceria por completo, por isso, após inspirar outro bocado de ar, transpus a cortina e disparei para a direita, correndo para trás do primeiro cubículo, sem sequer checar se a enfermaria estava de fato vazia.

Não houve guinchos de alarme dos Ofegantes, nem som de espingardas sendo armadas e disparadas; nenhum grito de raiva quando Zê entrou correndo, quase tropeçando numa cama vazia, na pressa de se esconder. Só se ouviam os lamentos dolorosos dos pacientes e nossa respiração pesada.

— Vamos — disse Simon, tomando a dianteira no vão entre o cubículo e a parede, até a próxima saleta. Esta também estava vazia, assim como a meia dúzia seguinte, mas, quando avancei mais um pouco, reconheci o lugar de onde havia roubado o bisturi. O garoto que ocupava a cama fora embora, o lençol rasgado e um travesseiro manchado sendo as únicas evidências de que tinha estado ali. Entretanto, o carrinho ainda permanecia no mesmo lugar, a prateleira do equipamento de aço inoxidável apresentando um brilho avermelhado à luz ofuscante do lugar.

— Zê, ajude-me com isso aqui — pediu Simon. — Alex, continue procurando.

Fiz que sim com a cabeça, agradecido por ele me deixar prosseguir. Pegar o equipamento não era a única razão de desejar ter retornado à enfermaria. Donovan estava ali, a apenas dois cubículos de distância. Pelo menos, rezei para que estivesse. Entrei no compartimento seguinte um tanto rápido demais, percebendo que o estranho sarcófago de metal ainda estava no lugar.

Donovan encontrava-se na mesma posição de antes, só que agora as duas pernas estavam do tamanho do torso grotescamente desenvolvido. Era como se alguém o houvesse inflado lentamente, o corpo e as pernas tão inchados que pareciam prestes a explodir. Os braços, que já pareciam enormes quando estávamos lá em cima, agora eram troncos de árvore enfiados em um gigantesco saco de cimento.

Dei a volta para olhá-lo e quase gritei. O rosto não era mais o dele. Isto é, ainda podia reconhecê-lo, mas estava esticado e repleto de cicatrizes, como uma peça de carne de churrasco assada demais. A mandíbula agora era enorme, e algo se retorcia sob a pele, fazendo parecer que mascava um chiclete. Os olhos prateados eram os mesmos de uma estátua, cegos e tomados pela opacidade da morte.

— Donovan? — sussurrei. — Ainda está aí?

Parecia algo estúpido de perguntar, mas foi tudo o que me veio à mente. Era como se alguém tivesse pegado meu amigo e o colocado dentro do corpo de outra criatura, colando tanta pele por cima que não era mais possível se lembrar de sua forma original. Por favor, faça com que ele esteja aí ainda, em algum lugar.

— Não relaxe demais; ainda vamos dar o fora daqui — sussurrei.

Sua cabeça se agitou de um lado para outro por um momento, co-mo um daqueles brinquedos com molas que a gente coloca no painel dos carros. Teria sido engraçado, se não houvesse me congelado até os ossos. Falei seu nome de novo, e o olhar dele baixou, quase me en-contrando, depois desviando-se para o lado. Vi os olhos focar algum ponto a distância, depois os lábios se separando, os pontos se esticando enquanto sorria.

Recuei. Não era uma expressão de boas-vindas; era o mesmo sorriso de tubarão de dar calafrios que todos os ternos-pretos ostentavam. Ele o manteve pelo tempo que conseguiu, depois as bochechas se contraíram, e a expressão do rosto se desmanchou. Segundos depois, a boca se abriu, e ele soltou uma série de palavras em tom suave que não faziam nenhum sentido.

— Donovan? — chamei, inclinado sobre ele, alto o bastante para ser ouvido de fora do compartimento. — Você se lembra do seu nome, certo? Ainda vamos sair daqui. Encontramos um jeito. Pelo menos, acho que encontramos. Não vai demorar muito, prometo.

Ele ainda soltava palavras desconexas, gotículas de sangue voando dos lábios enquanto sussurrava a mesma sequência de palavras. Inclinei-me sobre ele, próximo o bastante para sentir o calor de seu corpo contra meu rosto, e os lamentos sufocados de repente fizeram sentido:

— Donovan está morto — sussurrou ele, o olhar metálico deslizando pela cortina da saleta, tentando encontrar algum ponto onde se fixar. — Donovan está morto. Donovan está morto. Donovan está morto — repetia sem parar, cada vez mais alto. Vi a lateral da cortina se abrir, mostrando dois rostos.

— O que está fazendo aqui? — perguntou Simon. — Viemos para pegar o equipamento, não para fazer uma visita. Você está colocando nós todos em risco.

— Donovan está morto, Donovan está morto, Donovan está morto.

Queria colocar a mão em seu braço, para tentar acalmá-lo, mas ele estava quente demais para ser tocado. Simon agarrou-me pelo braço e passou a me arrastar para o cubículo seguinte.

— Os Ofegantes vão ouvir — disse, mais para si próprio do que para mim. Ele tinha razão, e o medo me fez segui-lo sem mais resistência. Só quando deixei o cubículo foi que o mantra de Donovan cessou. Virei-me, vendo seu rosto fixado no meu, o sorriso sem alma gravado ainda em minha mente muito tempo depois de ter desaparecido atrás das cortinas.

Um Ofegante se agitou ali perto, guinchando em alto e bom som. Meu coração batia forte demais, e não foi possível saber de qual direção vinha o ruído. Percebi que me agarrava a Simon com o mesmo terror com que ele me agarrava, Zê já recuando para o lugar de onde havíamos vindo.

O Ofegante emitiu outro daqueles rugidos pigarrentos, um ruído que só podia ser uma risada de fria crueldade. Ouvi o som de cortinas sendo puxadas e um lamento, como o de um pássaro ferido.

— De onde vem isso? — perguntei, a boca praticamente colada ao ouvido de Simon. Ele balançou a cabeça, sem se atrever a mover-se, temendo deixar cair a braçada de equipamentos que carregava. O Ofegante parecia estar entre nós e a porta principal, no corredor que separava as duas fileiras de camas. Com certeza tudo daria certo se conseguíssemos ficar fora de seu campo de visão.

Outro conjunto de cortinas foi puxado, e ouvi um sussurro desafinado, como um acordeão quebrado:

— Podem ir — murmurou Simon, olhando de novo para o cubículo de Donovan. Zê foi primeiro, esgueirando-se sorrateiramente entre a cortina e a parede. Eu o segui, e foi justamente quando Simon emergiu atrás de mim que uma sombra cresceu na cortina da saleta. Nós três congelamos, como se aquilo fosse uma brincadeira e alguém tivesse falado: “Estátua!”.

Mas, para meu horror, Donovan começou a rir, uma risada fria e retumbante que poderia ter saído da garganta de qualquer terno-preto.

— Vocês agora são nossos — falou ele, em meio à sua risada.

Então a cortina se abriu e deu passagem à morte em pessoa.


O OSSÁRIO


O Ofegante não demonstrou nenhum sinal de surpresa nem a mais leve hesitação. Deu um passo gigantesco dentro do cubículo, e, antes que eu pudesse piscar, sua mão enluvada estava em torno da minha garganta.

Eu supunha que os Ofegantes fossem fracos e lentos. Achava que por isso precisassem que os ternos-pretos carregassem os prisioneiros que espetavam durante a vigília sangrenta.

Não poderia ter feito suposição mais equivocada. A mão que me segurava era como um torno, esmagando tanto minha traqueia que eu não conseguia sequer respirar. Ele me puxou em sua direção, e não pude fazer nada senão olhar para sua face horrenda, a máscara de gás enferrujada costurada à pele que parecia couro esticado, dois olhos sem vida, mas, de algum modo, brilhando com um prazer doentio.

Minha visão periférica estava enevoada, manchas de luz negra amea-çando me mergulhar na inconsciência. O Ofegante jogou a cabeça para trás e guinchou, um grito agudo que rasgou minha alma ao meio.

Houve movimento a meu lado, Zê correndo para a frente e gritando em um gesto desafiador. A cabeça do Ofegante girou de modo anormal, e ele estendeu o outro braço. Era tarde demais para Zê se afastar, e o Ofegante partiu diretamente para ele, a mão enluvada fechando-se em torno de seu pescoço e mantendo-o ali, embora as pernas estivessem acima do chão e se agitassem como as de um marionete. Aquela monstruosidade ergueu a cabeça e nos encarou como se não conseguisse acreditar na própria sorte. Não pude ver sua boca devido ao dispositivo que a cobria, porém tinha certeza de que sorria. Ele guinchou de novo, e um grito distante ecoou em resposta. Depois disso, vários outros guinchos melancólicos inundaram a enfermaria.

Estávamos mortos. Eu sabia disso. Chutei o Ofegante que me segurava, mas sua carne flácida parecia mingau sob o casaco, sem dar nenhum sinal de ter sentido meus golpes. Um dos chutes fez com que um par de seringas do cinturão explodisse, e aí, sim, sua expressão mudou, os olhos se estreitando e a respiração ofegante soando baixinho, como se me advertisse para ficar quieto.

Não precisava. Qualquer resquício de força que ainda me sobrara há muito já havia se exaurido, minha energia totalmente esvaída. Tentei inspirar uma porção de ar, contudo os dedos fechados em torno de minha traqueia não me permitiram.

Ele guinchou de novo, o ruído diminuindo para aquele rosnado cheio de pigarro. Minha mente tentava arrebatar os últimos fios de consciência, como alguém afundando em areia movediça se agarraria a um punhado de ervas daninhas. Olhei para Zê e notei que ele me encarava, o rosto banhado de lágrimas sendo um reflexo perfeito do meu.

Então o nó de carne em torno de minha garganta afrouxou, e caí de joelhos. Por um momento, meus pulmões não conseguiram se lembrar do que fazer, mas depois se expandiram, o ar me inundando e levando a escuridão para longe de meus olhos. Achei que talvez o Ofegante tivesse sofrido um de seus espasmos ou me atirado ao chão para me furar com uma seringa imunda e envenenada.

No entanto ele recuava, o cabo prateado de um bisturi projetando-se do ombro como uma ombreira militar. Zê jazia no chão, próximo de mim, arquejando e tentando respirar. Olhei em volta e vi Simon de pé perto de nós, sua face uma mescla de choque e repulsa.

O Ofegante estava surpreso, mas não muito machucado. Soltou outro guincho, de um jeito que eu nunca ouvira, o grito ecoando pela sala como a chegada de uma frota de demônios. Ele ergueu a mão e puxou o bisturi, liberando um jorro de sangue pútrido, cor de petróleo. Em seguida, lançou-se contra nós.

Ainda de joelhos, fiz a única coisa em que consegui pensar. Também me lancei para a frente, dobrando-me como uma bola e rezando para que ele não me notasse. Senti suas botas bater na lateral do meu corpo e achei que estivesse me chutando, até que senti seu corpo perder o equilíbrio diante da colisão com o meu, indo de encontro ao chão. Por um momento, fiquei preso em meio ao tecido de seu casaco, o fedor de morte me envolvendo. O Ofegante permaneceu no chão, contorcendo-se como uma barata caída de costas.

— Rápido! — gritou Simon, lançando-se sobre o Ofegante, ape-sar do óbvio terror. Ele ainda segurava o equipamento que havia surrupiado do carrinho e, com um grito, enfiou outro bisturi no corpo da criatura. Ela ainda resistiu, tentando ficar de pé, chutando a lateral do sarcófago de metal de Donovan alto o bastante para ser ouvido lá em cima. Olhei para as portas da enfermaria, sabendo que os ternos--pretos estariam ali em segundos.

— Ajude-me! — gritou Simon, enfiando outra coisa no corpo do Ofegante. Tateei ao redor, procurando uma arma. A criatura então partiu para o ataque, atingindo Simon na mandíbula e jogando-o, cambaleante, para o outro lado do cubículo.

Tentando não pensar no que fazia, lancei meu corpo contra o peito do Ofegante, pressionando-o. Zê estava ao meu lado, desferindo socos ineficientes. Um deles atingiu a máscara de gás da criatura, e ela guinchou de dor quando dois dos pontos se romperam.

— A máscara! — gritei, desferindo-lhe um soco. A dor tomou todo o meu braço quando atingi o aparato de metal, e mais quatro dos pontos se soltaram. O Ofegante sabia o que estávamos fazendo, o corpo se contorcendo com tal força que quase fui arremessado para longe dele. Simon reapareceu, ajoelhando-se sobre o braço do Ofegante e depois colocando a mão com firmeza sobre a máscara de gás. Zê agarrou o outro braço da criatura, segurando-o para baixo com toda a sua força, e juntos socamos, puxamos e rasgamos a carne da face do Ofegante.

A máscara soltou-se com um som que virou meu estômago do avesso. Houve o estalo da ruptura do arame, alto o suficiente para se assemelhar a um tiro de pistola, e depois o dilaceramento nojento da carne rasgada, bem como o ruído de sucção de um fecho pressurizado se soltando, ou como o som de um mergulhador afundando. A máscara caiu, e imediatamente senti a força do Ofegante desaparecer. Saímos de cima dele, mal conseguindo nos manter em pé, enquanto nos reuníamos no outro lado do cubículo.

Ele ainda se movia, mas não fez nenhuma tentativa de se levantar. As mãos se ergueram até a face, tateando em desespero à procura da máscara, que não estava muito longe dali, a boca aberta, enorme e desdentada. Ele gritou, porém tudo o que saiu foi um murmúrio rouco. Tentou respirar, os olhos agora arregalados de pânico enquanto procurava os oponentes pela saleta. Contudo, antes que nos encontrasse, caiu morto.

Não havia tempo para pensar no que havíamos feito. Escapulimos, passando a toda a velocidade pelo cubículo, rumo à entrada da enfermaria, depois da qual atingiríamos a porta que conduzia de volta às celas. No entanto, um latido selvagem nos deteve no caminho; um uivo que eu conhecia muito bem. Era um cão, em algum lugar à frente no corredor, e, pelo som retumbante de vozes, não estava sozinho.

— São ternos-pretos — disse Simon, praguejando em seguida. Virou-se e dirigiu-se à porta do outro lado da sala, que conduzia ainda mais ao interior das instalações médicas da prisão. — Venham, sigam-me.

Nós o seguimos, tentando não olhar muito para o Ofegante morto ao passarmos por ele. Os guinchos ainda ecoavam pela sala, e eu esperava ver mais máscaras de gás aparecendo a qualquer momento. Cristo! Ofegantes à frente, ternos-pretos e seus cães atrás de nós. Estávamos tão fritos quanto os garotos presos aos leitos da enfermaria.

Parte de mim queria parar; queria apenas esperar ali pelos ternos-pretos. Eles eram apavorantes, mas pelo menos podia-se conversar com eles. Fossem quem fossem os Ofegantes, eram criaturas velhas e podres — o tipo de horror malévolo com o qual não se pode jamais barganhar.

E corríamos, agora, direto ao encontro deles.

Simon atingiu a entrada, esta também coberta por uma cortina de tiras de plástico. Ele não hesitou; apenas lançou-se para dentro e desapareceu com um ruído de plástico. Praguejando, pelo menos tanto quanto minha respiração entrecortada permitia, baixei a cabeça e fui em frente, sentindo a respiração de Zê no pescoço enquanto me seguia.

Eu devia ter mantido os olhos à frente, porém você sabe como é quando se está correndo; quando se está aterrorizado e convencido de que há algo bem atrás de você. Parei, olhei para trás através da cortina de plástico sujo e vi um monte de ternos-pretos transpondo a entrada oposta — um, três, sete, todos examinando a sala em busca do Ofegante que havia guinchado e do que quer que o tivesse atacado.

Mas os cães já sabiam. Dois pares de olhos prateados brilharam em nossa direção através da cortina, e, quando as criaturas uivaram, eu sabia que era porque tinham farejado a gente.

Notei que Zê e Simon ainda corriam e os segui em disparada. Agora estávamos em outro longo corredor, que, felizmente, se encontrava vazio, embora soubesse, pelos gritos que reverberavam pelas paredes vermelho-sangue, que os Ofegantes estavam por perto. Não percebi a que distância até passarmos pela primeira das várias salas escavadas na rocha.

Lá dentro, selada por uma grossa porta de acrílico e protegida por uma tranca elétrica que parecia moderna demais para Furnace, encontrava-se uma pequena sala de cirurgia. E nela, em meio a um procedimento, estava um Ofeante. Ele tinha as mãos imersas em uma figura deitada em uma mesa de aço, um garoto cujos olhos encontravam-se fechados, mas cujo peito sem carne subia e descia lentamente.

Cambaleei diante da porta, sabendo que, se não começasse a correr loucamente, logo seria eu a estar naquela mesa, sendo dissecado e depois remendado como um boneco feito de blocos.

Mal percebi as outras salas à esquerda e à direita, cada uma exibindo a mesma porta de acrílico com a tranca elétrica. A maioria delas estava vazia, porém algumas tinham Ofegantes dentro, os olhos de passas muito concentrados nos espécimes para perceber nossa presença ali.

— Aonde estamos indo? — ouvi Zê sussurrar, ele e Simon avan- çando, correndo sem parar.

— Não sei — respondeu Simon. — Nunca estive aqui. Ninguém esteve. Pelo menos, ninguém que sobreviveu.

Pararam em um entroncamento, dando-me a chance de alcançá-los.

— Para que lado vamos? — perguntou Zê.

— Não ouviu o que acabei de dizer? — cortou o garoto. — Não tenho a mínima ideia. — Ele olhou para a direita, depois para a frente, e então partiu para a esquerda.

— Os gritos estão vindo desse lado! — murmurou Zê, estendendo uma das mãos para ele. Mas Simon já havia partido, os músculos sob a pele deformada visíveis enquanto seguia pelo corredor. Zê voltou-se para mim. — O que devemos fazer?

— Vamos! — gritei, correndo atrás de Simon. O corredor fazia uma curva, e ouvi Simon praguejar ao chegar ali, atirando-se de costas contra a parede.

— Ofegantes — falou.

Eu me abaixei, sabendo que os ternos-pretos e os cães irromperiam atrás de nós a qualquer momento, e estiquei a cabeça para espreitar além da curva.

Devia haver uns trinta deles, reunidos no longo corredor e vindo em nossa direção, atraídos pelos guinchos do companheiro morto.

Caí, levantei de novo, cambaleante, e corri de volta ao entroncamento. Algo em minha mente exausta me dizia que, se virássemos à esquerda, seguiríamos para os aposentos dos Ofegantes e que, portanto, se virássemos à direita, provavelmente também estaríamos em um beco sem saída. Cheguei ao entroncamento e virei à esquerda, disparando por um corredor curto que dava em uma porta de metal.

Ouvi um uivo e vozes retumbantes de ternos-pretos atrás de nós. Agarrei a maçaneta e rezei para que não estivesse fechada. Então o trinco se levantou, a porta rangeu e se abriu, e desejei ter feito a escolha certa.

Diante de nós estava um ossário. A princípio, ao nos esfolarmos nelas, achei que não passassem de paredes rochosas, embora mais ásperas do que as outras pelas quais tínhamos passado e ornamentadas com fiapos de roupa. Só que não eram pedras que se alinhavam ao longo da grande sala, arrumadas em pilhas da minha altura.

Eram cadáveres.

 

 

NO ESCONDERIJO


Os sons atrás de nós ficavam mais altos, os ternos-pretos, os cães e os Ofegantes se aproximando. Não creio que eu pudesse ter entrado naquela sala se Simon não tivesse nos empurrado, enfiando Zê e a mim naquele depósito de carne humana, antes de ele próprio entrar e fechar a porta em silêncio atrás de si.

Só então percebi quanto eu tremia, todo o meu corpo se agitando descontroladamente. Não conseguia imaginar que emoção havia provocado tal efeito. Com certeza o medo tinha sua parcela, claro. E a falta de esperança. Mas havia também a raiva, subindo das entranhas como lava vulcânica, fazendo meu sangue se incendiar.

Como podiam fazer aquilo? Como podiam escapar impunes daquela monstruosidade?

Eu não queria olhar, mas não pude evitar. A maioria dos corpos era de ratos, membros e faces tão deformados que pareciam selvagens e odiosos mesmo na morte. Os olhos prateados estavam abertos, sem nenhuma expressão, e, olhando-os assim, eu quase podia esquecer que um dia tinham sido humanos, garotos como Zê e eu.

Quase.

Foi menos fácil aplicar esse faz de conta aos outros corpos espalhados por ali. Vi pernas pálidas, intocadas pelos bisturis dos Ofegantes, vislumbres de rostos ou de um tufo de cabelo castanho-acinzentado. Espécimes era a única palavra que me vinha à mente. Eram aqueles que haviam dado errado, que tinham sido descartados.

A emoção me arrebatou por um momento, depois me entorpeceu, deixando-me paralisado. Sei a razão — não fosse isso, minha mente teria se rompido bem ali, explodido em pedaços tão pequenos que jamais poderiam ser reunidos novamente.

Vislumbrei um terno e franzi o cenho. Em um canto, meio enterrado sob os corpos de alguns cadáveres menores, estava um dos guardas. O paletó fora rasgado, e a camisa estava manchada de negro. Imaginei que houvesse sucumbido ao lutar com um dos ratos. Não sabia bem por quê, mas havia algo ainda pior na maneira como tinham sido descartados. Ali, pelo próprio pessoal, um procedimento ainda mais cruel do que faziam com os outros mortos. Que tipo de gente faria algo assim?

Então, os ternos-pretos também não passavam de espécimes e, se morressem, não tinham mais utilidade para o diretor, como quando eram simples garotos na prisão.

— É o incinerador — falou Simon, o som de sua voz me sobressaltando após o silêncio estarrecedor. Eu estivera tão ocupado olhando os cadáveres empilhados que não percebi as portas de metal pesado do outro lado da sala. Estavam abertas, um enorme forno crematório visível atrás delas, com paredes negras de fumaça e um grosso tapete de cinzas. — É aqui que os queimam.

— Não — disse Zê, transformando em palavras meus pensamentos. — Não podem fazer isso. É... errado.

— E há alguma coisa neste lugar que não seja? — sussurrou Simon.

Um latido abafado do lado de fora da porta de entrada nos lembrou dos monstros que estavam em nosso encalço, e olhamos para a esquerda e para a direita, em busca de uma saída. Contudo, na sala havia apenas uma porta e um incinerador.

— Temos que nos esconder — falei, ouvindo o ruído de botas na superfície de pedra ficar mais próximo, junto com o som de fundo entoa-do pelos guinchos furiosos dos Ofegantes. Ninguém sabia onde estávamos, entretanto não demoraria muito e abririam a porta, localizando-nos ali, de pé, como estátuas no meio da sala.

— Onde? — perguntou Simon, olhando para o incinerador. — Não vou entrar lá. E se eles o puserem para funcionar?

Examinei a sala. Não havia outro lugar. Não a menos que...

— Os corpos — murmurei, minha voz tão fraca que mal teve força para sair da boca.

Simon e Zê balançavam a cabeça em negativa, mas os ruídos lá fora aumentavam de volume a cada segundo. Caminhei para um dos cantos da sala, o corpo ainda trêmulo, embora a mente estivesse vazia, com todos os receptores emocionais desligados. Havia cinco ou seis cadáveres ali, todos de ratos, caídos em cima um do outro como uma cena grotesca de luta que tivesse sido congelada na tela da TV. Estendi a mão, tocando um dos braços do cadáver, e a encolhi de novo.

O corpo ainda estava morno. Não apenas morno, estava quente.

Chequei a pulsação, porém não havia nada. Examinei a pilha. Nenhuma das criaturas respirava; o peito de todas elas tão imóvel quanto o de uma estátua. Ouvi um grito vindo de trás da porta, o ruído de pés se aproximando. Respirando fundo e tentando ignorar o mau cheiro, agarrei de novo o braço e arrastei o corpo, afastando-o da parede. Em seguida, coloquei um pé no espaço que criei, aninhando-me depois em meio aos outros corpos.

Deixei o cadáver de cima cair sobre mim, o peso morto me empurrando desconfortavelmente para o lado. Felizmente não havia moscas naquela profundidade, mas o fedor de decomposição era tão pungente que quase conseguia vê-lo se elevando como uma miragem ardente da carne em estado de putrefação.

Ouvi o grito de alguém em estado de choque do outro lado da salae espiei através do espaço entre um braço e um pé de um cadáver, vendo Simon e Zê em busca do próprio local de esconderijo. Não tinha certeza de quem havia produzido o ruído, contudo ambos gemiam bai-xinho ao puxar pedaços de roupas ou membros rígidos sobre si próprios.

O trinco fez um ruído, um som sepulcral invadindo a sala quando a porta se abriu por completo. Ouvi o ganido baixo de um cão, seguido de imediato por um uivo de protesto.

— Entre aí — falou um terno-preto. Mais um uivo, como se o cão relutasse em prosseguir. Não poderia culpá-lo; seu instinto animal devia ter farejado a morte naquele lugar desde o momento em que passara pela enfermaria, advertindo-o para manter-se distante dali. Era provável que tivesse farejado nosso rastro até ali, porém os cadáveres agora nos protegeriam do olfato dos cães, bem como nos esconderiam do olhar dos ternos-pretos.

— Pode deixar, que eu faço isso — ouvi outra voz, tão alta e retumbante quanto a primeira. Um vulto escuro entrou na sala, embora do ângulo em que me escondera só conseguisse distinguir um par de pernas e botas polidas. Fechei os olhos, tentando ficar tão imóvel quanto era humanamente possível. Minha impressão era de que, a qualquer minuto, sentiria uma mão poderosa em meu ombro, arrancando-me dali e atirando-me aos cães ou para dentro do incinerador.

Mas, após alguns instantes, o guarda se virou e desapareceu porta afora.

— Os ratos devem ter escapado do complexo antes da nossa chegada — ouvi-o dizer, enquanto a porta se fechava. — Não podem ter ido tão longe. Veja se os cães conseguem farejá-los lá fora. E escoltem os Ofegantes de volta à enfermaria.

 

Foi Zê quem saiu primeiro do esconderijo, inspirando profundamente. Esperei mais um pouco, apavorado demais para me mover no caso de os ternos-pretos retornarem, mas, como não vinha mais nenhum som lá de fora, nem mesmo o lamento de um Ofegante, empurrei as pernas para cima, os cadáveres resistindo por um momento antes de tombarem para o lado. Saí do amontoado de carne podre, caminhando até o centro da sala, onde nós três ficamos por um minuto em silêncio, tentando não pensar sobre o que havíamos acabado de fazer.

— Temos que devolvê-los à solitária antes que os guardas percebam que não estão lá — Simon falou por fim. — É óbvio que suspeitam dos ratos. E, se acham que os ratos começaram a invadir a enfermaria, vão duplicar a segurança. — Praguejou, batendo um dos pés no chão. — Não temos sequer os equipamentos que fomos buscar lá.

— Como faremos para voltar? — perguntou Zê. — Haverá Ofegantes e ternos-pretos por toda parte.

— Parece que os ternos-pretos saíram numa caçada aos ratos — respondeu Simon, esfregando as mãos no corpo como se tentasse livrar-se de alguma sujeira invisível. Eu também sentia coceira em toda parte, como se a morte fosse contagiosa. — Pode haver um ou dois, mas teremos que aproveitar essa chance. Não podemos ficar aqui.

O pensamento de sair por aquela porta, tendo a possibilidade de dar de cara com um Ofegante, deixou minhas pernas bambas. Mas Simon estava certo. Que outra opção teríamos? Ficar sentados ali, esperando que ligassem o incinerador?

Percebi que nenhum deles se movia, então tomei a dianteira, caminhando para a porta. Ao colocar o ouvido contra ela, não percebi nenhum som vindo de fora e, com o pulso latejando tão forte que sentia o retumbar nos tímpanos, girei o trinco e abri a porta.

Um Ofegante percorria o corredor lá na frente, mas estava de costas para nós. Ele deu alguns passos, depois parou, o corpo se agitando freneticamente, a cabeça balançando para a frente e para trás, como se sofresse de um súbito ataque. Então alcançou uma das portas de tranca elétrica e desapareceu.

Obriguei minhas pernas a funcionar, e elas precisaram de um esforço gigantesco para dar esse primeiro passo. Ao começar a me mover, no entanto, o impulso tomou vida própria. Corremos pelo corredor, as portas de acrílico reluzindo de ambos os lados. Não olhei para além delas, sabendo que, se o fizesse, veria um Ofegante olhando para fora, pronto para soltar um grito de alarme. Mas nada aconteceu. Quase alcançávamos a porta que levava de volta à enfermaria, quando ouvi Simon chamar baixinho. Quando me virei, ele havia desaparecido em uma das salas de cirurgia, e eu teria imaginado que fora puxado para lá, não fosse Zê, que estava logo atrás dele, relativamente calmo, um pé fora e outro dentro da porta de entrada.

Praguejando, voltei para trás e olhei lá dentro, percebendo que o lugar estava vazio. Simon estava ao lado de um carrinho, abastecendo-se com grampos de sutura e pinos para ossos, e já havia enrolado um tubo cirúrgico sobre o ombro.

— Peguem o que puderem — disse ele, e Zê e eu tivemos uma reação automática. Peguei um martelo com uma ponta em gancho e puxei outro tubo grosso de borracha de uma prateleira na parede. Não havia mais nada no carrinho que parecesse remotamente útil para uma escalada, por isso retornei para a porta e ganhei o corredor.

Na sala oposta, um Ofegante estava debruçado sobre uma mesa de metal, um bisturi na mão instável. Eu me movi antes que ele percebesse minha presença.

Segundos mais tarde, passávamos pela cortina de plástico do fundo da enfermaria, imaginando se era pura sorte a sala à frente estar deserta, ou algum tipo de armadilha. Por tudo que já tínhamos visto, poderia haver ternos-pretos atrás de cada uma das cortinas, a espingarda carregada, só esperando para disparar contra nós.

Mas havíamos nos saído tão bem até aquele momento...

Corremos, as pernas parecendo de chumbo, os pulmões encolhidos como ameixas secas. Fomos direto para o meio da sala, atravessamos a cortina de plástico e chegamos ao corredor atrás dela. Corremos mais, e, ao atingir o entroncamento que conduzia às celas sem termos sido ainda rastreados, rimos loucamente, o alívio correndo por nossas veias como água cristalina.

As trancas do alçapão ainda estavam no lugar; ninguém havia checado nossa presença ali. Zê entrou primeiro, depois entreguei para Simon o kit que havia roubado e saltei para o buraco negro da cela, exausto demais com tudo o que acabara de acontecer para me importar com o fato de estar sendo enterrado vivo mais uma vez. Só quando Simon se moveu para fechar o alçapão é que meu riso se desvaneceu.

— Você vai voltar, não vai? — perguntei.

No entanto, Simon não respondeu. Em vez disso, fechou a porta e girou a alavanca, deixando-me sozinho no escuro com um medo lancinante de nunca mais o ver.


DÚVIDAS


Foi como se dessa vez a escuridão tivesse peso, substância. Ela me pressionava, fazendo braços, pernas e pescoço parecer forrados com concreto. Deixei-me cair, depois sentei no canto da minúscula cela, esperando voltar a sentir os membros.

Parte de mim não conseguia acreditar no que havia acabado de acontecer. Era mais fácil pensar que aquela coisa toda era fruto de minha imaginação; que estivera preso na cela o tempo todo, lutando contra inimigos imaginários. Exceto pelo fato de que ainda sentia a pressão das mãos do Ofegante ao redor da garganta, a ponta dos dedos dele se fechando contra minha traqueia. Sabia que, se houvesse luz e um espelho ali, conseguiria ver as marcas no pescoço, como as de alguém que houvesse sido enforcado.

Todo o meu corpo ainda latejava, mas a dor era uma distração bem-vinda a meus pensamentos. Mudei de posição no desconfortável chão de pedra e lambi um pouco da umidade da parede para saciar a sede. Ponderei de novo se Simon retornaria ou se já teria iniciado a escalada da torre.

Na verdade, ele não precisava de nós. Fora ele quem encontrara a rocha, quem levantara a hipótese de que a liberdade estava acima daquela rocha. E provavelmente já havia pensado em usar o equipamento médico para ajudá-lo na escalada. Tudo o que queria de mim era a garantia de que seu plano funcionaria, ainda que eu não acreditasse de verdade que fosse funcionar. Ele já obtivera tudo que queria; não havia nenhuma razão para nos levar junto.

O ar pareceu ficar mais denso, preenchendo toda a cela e fechando-se sobre minha boca. Senti-me sufocado, tentando respirar, mas sem conseguir. Meus pulmões ardiam, e um zumbido agudo começou a soar nos ouvidos. Mas era apenas o pânico. Eu o conhecia o suficiente para reconhecê-lo, e inspirei duas vezes bem devagar, sentindo o oxigênio atingir minhas veias como um antídoto.

Saber que Simon estava lá em cima, que voltaria mais tarde para abrir o alçapão, dera a ilusão de que estávamos livres. Isso reduzia o poder da solitária, simplesmente porque não nos sentíamos capturados, nem isolados, nem sozinhos. No entanto, com a possibilidade de ele nunca mais voltar, a cela se transformara em uma tumba.

E essa não era a única razão de eu sentir o pânico devorando meu estômago novamente. No fundo, sabia que o plano de Simon não funcionaria. Não podia funcionar.

Sim, eu tivera um lampejo de inspiração sobre os equipamentos para a escalada, mas não o levara tão a sério. Tateava às escuras e só havia considerado aquele plano como uma possibilidade real porque... bem... estava desesperado, delirante. Simon também havia insistido na ideia porque não tinha outra saída. E, quando a realidade lhe nega as ferramentas de que você precisa para sobreviver, você as retira de onde puder.

E se não conseguíssemos sair, o que aconteceria? Era provável que sobrevivêssemos, é verdade, entretanto não estaríamos vivos — não da maneira como estávamos agora. Seríamos transformados em ratos que devoravam gente viva, ou em ternos-pretos aterrorizantes. Ou ainda em demônios mortos-vivos, e pensar nisso era insuportável.

Desejei ter guardado aquele bisturi.

Olhei para a escuridão, esperando que minha mente gerasse alguma companhia — alguém, qualquer um, para me ajudar a me livrar daquela nuvem espessa de depressão. Vi os fios de seda suspensos a distância, como se não houvesse paredes entre eles e eu, e com certeza começariam a tomar a forma de um corpo. A imagem, no entanto, não se solidificava, pairando acima do campo invisível como vapor.

— Donovan? — chamei o fantasma, esperando ver um rosto familiar. Mas algo na minha cabeça o impedia de tomar forma. Ou eu havia me esquecido como ele realmente era sob a nova carne monstruosa, ou de algum modo já o considerava morto. Chamei seu nome mais uma vez, e a figura respondeu com um ruído mudo, a voz perdida na estática.

— Sinto muito — falei, estendendo-lhe a mão. — Sinto muito não ter conseguido salvá-lo.

A imagem não se alterou, tão enevoada quanto o reflexo de alguém nas águas agitadas de um lago. De repente, porém, a voz se tornou clara, como uma emissora bem sintonizada. Não é tarde demais, respondeu ele. Você não precisa me libertar para me salvar.

Franzi o cenho, mas o fantasma já se dissolvia. Tentei trazê-lo de volta, tentei recapturar seu rosto, sem conseguir. Tudo o que restou foi o que ele havia se tornado — uma fisionomia monstruosa, os olhos frios, aquele sorriso de tubarão dividindo-lhe o rosto. E, naquele instante, soube que jamais me lembraria de como ele era.

Não sei durante quanto tempo chorei. Provavelmente apenas al-guns minutos, que poderiam ter sido horas. De início, soluços pesados sacudiram meu corpo exausto, porém depois de algum tempo eles se acalmaram, transformando-se em gemidos patéticos, lamentos mais adequados a um gatinho. Abracei meu próprio corpo, fingindo que eram os braços de minha mãe, de meu pai, de Donovan, de Zê ou de qualquer outra pessoa. No entanto, eles não me transmitiam calor, tampouco conforto. Não ali, sozinho, no mais fundo poço do mundo.

Endireitei o corpo, sentindo a espinha estalar, então peguei a grade. Bati-a contra o cano da privada, o ruído do metal tirando a tristeza de mim, ajudando a mente a se recompor.

— E agora? — perguntei.

Houve uma pausa, e em seguida a resposta muda de Zê:

— Esperamos por Simon.

— E se ele não voltar?

Outra pausa.

— Ele tem que voltar. — Mesmo através da rocha sólida, com palavras batidas em um cano, consegui sentir a dúvida não expressa ao fim da declaração de Zê. Comecei a bater “por que”, mas mudei de ideia, percebendo que seria inútil. Em vez disso, formulei outra pergunta:

— Alguma outra ideia?

— Não — veio a resposta reconfortante. — E você?

O eco emitido pelas últimas batidas quase abafou os passos acima de mim. Segurei a respiração, imaginando se estaria errado a respeito de Simon. Afinal, talvez ele estivesse de volta, prestes a abrir os alçapões e nos levar até a torre. Pelo menos daquela maneira poderíamos morrer tentando fazer alguma coisa, lutando para nos salvar. Ouvi o ruído de um alçapão se abrindo, mas não era o meu. Houve mais passos arrastados lá em cima, porém nada dos arranhões nem dos sons emitidos por um rato. Esperei, tentando escutar o alçapão ser fechado, entretanto, nada aconteceu.

— Zê — bati. Não houve resposta. Tentei de novo, amaldiçoando-o por ter um nome que começava com Z. Nada ainda. Senti meu coração afundar no estômago, cozido em ácido. — Vamos — falei, batendo a grade contra o cano, na esperança de obter uma resposta. Achei ter ouvido algo lá fora, um grito de dor, mas o ruído que me chegava aos ouvidos era alto demais para ter certeza. — Zê! — gritei, sabendo que ele não conseguiria me ouvir. Será que o tinham levado? Jesus, será que o haviam levado para a enfermaria?

Algo foi golpeado contra o cano na cela de Zê, forte o bastante para soar como uma bomba explodindo em minha cabeça. Bateu de novo, ainda mais alto do que antes. Que diabos ele estaria fazendo? Tentando abrir um túnel para o esgoto? Fiz essa pergunta com uma série de batidas frenéticas. Não houve resposta. Depois as batidas ensurdecedoras surgiram de novo. Quinze, dezessete, vinte e um, cinco.

— O quê?

Meu coração saltou, ainda estimulado pela adrenalina, mas não prestes a desistir, como momentos antes. Mesmo sem entender a mensagem, foi tal o alívio que senti ao ouvi-lo que por um instante só fiquei sentado, sorrindo para a parede. Depois bati:

— Pensei ter ouvido algo. — A resposta demorou uma eternidade.

— Nada — foi a resposta, o som das batidas tão alto que fazia meu cérebro vibrar. Imaginei que ele talvez tivesse soltado o cano da privada ou algo assim, se é que isso poderia explicar o aumento do volume. Depois de esperar um século para que Zê me dissesse outra coisa, peguei a grade de novo e bati:

— Tem certeza de que não há nada errado?

— Nada.

— Zê — bati —, você está estranho.

Não houve resposta.

— Zê? — Esfreguei a palma da mão, preparando-me para mais bolhas. — Zê? — Se conseguíssemos sair dali, a primeira providência seria trocar seu nome.

Os golpes na outra cela recomeçaram, e ouvi atentamente.

— Alex — foi o início da mensagem, as batidas ainda altas demais, poderosas demais —, o que o faz pensar que eu sou Zê?


ESCOLHAS


Antes de o último eco desaparecer, soube o que havia acontecido. Apesar do calor na minha cela e do suor que me escorria pelo rosto devido ao esforço de bater no cano, senti meu sangue congelar, um arrepio percorrendo minha pele.

Zê fora embora. Os ternos-pretos o haviam levado.

Tinham sido eles sobre minha cela, abrindo o alçapão de Zê. E ali, na cela dele agora, provavelmente era um dos guardas. Podia quase vê-lo sorrindo ao me enganar, o riso abafado afastando-se pelo corredor, tal como Zê rumo a seu destino.

Tentei pensar rápido. Será que tinham ouvido algo que pudesse nos denunciar? Qualquer coisa que indicasse que planejávamos escapar? Não. Havíamos conversado sobre Simon, mas fora antes de os passos soarem sobre meu alçapão. Duvido que soubessem dos nossos planos, e, mesmo que soubessem, era pouco provável que tivessem conseguido acompanhar e decodificar nossas batidas. No entanto, não demoraria muito até Zê ser obrigado a falar. Era difícil manter segredos quando as criaturas de Furnace faziam perguntas.

Talvez fosse melhor se soubessem. Talvez eu mesmo devesse lhes contar, tentar fazer um trato com os ternos-pretos. Será que nos deixariam viver se eu lhes contasse sobre Simon e os outros garotos? Eles não nos soltariam, mas poderiam nos mandar de volta lá para cima, para o relativo luxo da prisão com sua gororoba diária, ca-mas confortáveis e chuveiros de água fria. Podiam nos deixar voltar para casa.

Casa. Levei um susto por não ter pensado nisso antes, porém não havia nenhum lar lá fora para mim. Furnace era minha casa agora, e eu queria voltar lá para cima.

— Ei! — gritei, batendo no alçapão. — Não o machuquem. Tenho as informações que vocês querem.

Parecia a primeira vez em anos que levantava minha voz, e a garganta ficou imediatamente ferida. Mas isso não me deteve. Bati com mais força os punhos contra o metal, sabendo que o som dificilmente transporia a solitária.

Não apareceu ninguém. Dei um último soco no alçapão e gritei, frustrado. Por que haviam levado Zê, e não eu? Aquilo não fazia o menor sentido. Não que algo naquele lugar fizesse. Sabia muito bem que não havia um sistema para as atrocidades em Furnace, nenhuma lógica. O diretor e seus monstros faziam o que queriam, quando queriam, a anarquia disfarçada de controle organizado.

Eu me vi chorando de novo, entretanto me obriguei a afastar a emoção. Zê estava com problemas, e eu me acabando em lágrimas na cela não melhoraria em nada a situação dele. Precisava de Simon. Precisava que ele voltasse logo, para que eu pudesse sair.

— Venha — falei, tentando projetar o pensamento através da parede rochosa, dos túneis, até a escarpa onde os garotos perdidos de Furnace se escondiam. — Vamos, não me deixe aqui.

Continuei dizendo isso, continuei com esses pensamentos, continuei imaginando essa mensagem sendo transmitida direto para a mente de Simon. Mas não há essa coisa de poder psíquico. Se me perguntasse, responderia que isso é uma grande besteira. Por esse motivo, quando ouvi a alavanca do alçapão se abrir, não pude acreditar. A luz avermelhada penetrou como um jorro de sangue, e olhei através do brilho ofuscante, vendo um rosto familiar acima de mim, os dentes como teclas de piano quebradas formando um sorriso um tanto idiota.

— Você parece surpreso — sussurrou-me o garoto, estendendo-me a mão gigantesca. — Achou que eu fosse embora sem você?

— Nunca — respondi, sentindo os músculos de seu braço tensos ao me puxar para fora. O alçapão de Zê ainda estava aberto, e um olhar rápido lá dentro me contou o que eu já sabia. Simon seguiu meu olhar e balançou a cabeça.

— Não consegui voltar a tempo — murmurou. — Estava a caminho, e quase dei de cara com os ternos-pretos. Estavam vindo para cá para buscá-lo.

— Mas o diretor queria que ficássemos aqui durante um mês — falei, olhando para o corredor com cautela. — Não deviam tê-lo levado ainda.

Simon deu de ombros, tomando o corredor rumo ao entroncamento que conduzia à enfermaria. Não se deu ao trabalho de fechar meu alçapão dessa vez, e eu também não. Não iria voltar, não importava o que acontecesse.

— Nunca há espécimes suficientes — falou ele com tristeza. — Os Ofegantes estão sempre buscando sangue novo. Não consigo acreditar que o tenham deixado viver tanto.

— Mas o diretor...

— Nem sempre as coisas acontecem como ele quer — replicou Simon. — Agora precisamos ir.

— Estamos indo procurar Zê, certo? — perguntei, correndo para alcançá-lo e já sabendo qual seria a resposta. Ele se virou, os olhos prateados cintilando ao encontrarem os meus.

— Você tem uma escolha a fazer, Alex — falou ele, a voz cansada demais para seu rosto de garoto. — E tem que fazê-la agora. Ou vai procurar seu amigo e morre. Morre por dentro, pelo menos. Ou se liberta e vem comigo. Nós temos uma chance, uma chance realmente boa, acredito. Quando estiver lá fora, poderá voltar com a polícia, o exército, o mundo inteiro. Mas, se tentar ajudar Zê agora, ou Donovan, ou qualquer um deles, estará tão morto quanto seus amigos. — Olhou por sobre o ombro, os ouvidos aguçados. — Precisamos ir agora, portanto, faça sua escolha.

Eu me senti como se voltasse no tempo, prometendo febrilmente a Donovan que voltaria, que traria as autoridades antes que o diretor pudesse fazer qualquer coisa com ele. Tinha falhado, e, se fosse com Simon, quem poderia me dar certeza de que não falharia de novo, deixando Zê apodrecer ali?

Mas o que aconteceria se fosse atrás dele? Imaginei-me entrando na enfermaria, tentando encontrá-lo, tentando lutar contra os Ofegantes enquanto vários ternos-pretos, rindo sem parar, me agarravam, a escuridão inundando minhas veias, e braços de aço me prendendo ao colchão.

Tomei minha decisão. Não porque soubesse que poderia escapar e voltar com a cavalaria. Não porque achasse que era a melhor maneira — a única — de ajudar Zê. Mas apenas porque ainda sentia o fedor do Ofegante em cima de mim, e não podia voltar lá.

Que herói!

— Vamos — disse eu, as palavras mal conseguindo sair de minha boca, tão envergonhado me sentia delas. — Vamos sair daqui. Depois voltaremos com alguma ajuda.

Simon assentiu com a cabeça, e avançamos pelo corredor. Chegamos ao entroncamento, o caminho que conduzia à prisão principal terminando à frente, a enfermaria à esquerda. Tínhamos que passar por ela para sair, e por um momento meu cérebro me mandou a imagem de Zê lá dentro, olhando para a cortina de plástico enquanto passávamos correndo, chamando-nos baixinho às nossas costas. Foi quase demais para suportar.

— Está livre — disse Simon, tornando a correr. Não olhei quando passamos pela porta, lacrando os ouvidos para os gritos que podia ouvir lá dentro, tão agudos que não conseguia dizer se vinham dos Ofegantes ou das vítimas. Não pensei em nada, a não ser em colocar um pé diante do outro, e de algum modo consegui ficar de pé, mantendo Simon dentro de minha linha de visão. O som dos ternos-pretos parecia estar em toda parte, risadas retumbantes que vinham de dentro das salas pelas quais passávamos. Mas, por algum milagre, não nos viram nem nos ouviram.

Continuei correndo, porque, com certeza, se não olhasse para trás, não teria que pensar sobre o que havia feito.

Foi o som de um telefone que me deteve. O ruído estridente provou-se tão fora de contexto ali que quase tropecei nos meus próprios pés, tendo que me apoiar na parede para não cair.

Atingimos o entroncamento que conduzia à porta da abóbada. À esquerda encontrava-se o trecho final do túnel, antes da caverna principal. À direita ficava o acesso aos aposentos do diretor. Um telefone tocava naquela direção, o mesmo lugar onde sentira algo errado antes, onde pensara ter visto... O quê, exatamente? Uma nu-vem pairando no ar — uma nuvem de algo ruim. Simon saltou para a frente, derrapando e só se detendo quando percebeu que eu não o acompanhava.

— Vamos! — sussurrou ele. Mas eu não conseguia me mover. O telefone era como uma âncora invisível que me mantinha no lugar, que atraía minha mente, ameaçando me prender. Toda vez que ele soava, o corredor parecia ficar mais escuro, as paredes pulsando e se esticando como se tivessem vida própria, como movimentos peristálticos em um vasto trato intestinal. Uma dor crescia bem no centro de minha testa, dentro do crânio, e não fora dele. A cada ruído estridente, a sensação se espalhava, como se eu me desfizesse sob a pele.

Havia uma porta incrustada na rocha na metade do corredor, o toque do telefone emanando dali. O som parecia querer ecoar eternamente, uma sirene que se tornara uma entidade dentro de minha cabeça. Simon estava atrás de mim. Podia sentir sua mão em meu braço, porém não conseguia ouvi-lo. A única coisa que existia naquele instante era o toque do telefone.

Então ele cessou, e a dor explodiu. Ouvi uma voz e a reconheci de imediato. O diretor. A voz era fraca, mas ao mesmo tempo era como se gritasse em meu ouvido.

— Sim, senhor — falou ele. Duas palavras que eram como dina- mite. — Entendo, senhor. Assim será feito.

Eu não sabia quem estava do outro lado, é claro. Mas podia sentir. Depois de tudo o que havia testemunhado em Furnace, os horrores que tinha suportado, aquilo era muito pior. Porque, o que quer que fosse, não me apavorava; ao contrário, me chamava. E, embora soubesse que aquilo era abominável, diabólico, me vi seguindo em sua direção, os pés dando passos como se pertencessem a pernas de um boneco, algo envolvendo-me o cérebro, suave e rançoso.

Então senti o corredor virar de cabeça para baixo, o corpo deformado de Simon sob o meu; senti o vento zunir pelos meus ouvidos enquanto ele fugia. Cada passo desajeitado me afastando mais da voz do diretor, de seu fascínio repleto de escuridão, até que tudo o que restou foi um sussurro gentil ecoando como o último suspiro de um homem agonizante.

Passamos correndo pela porta da abóbada, a caverna deserta à frente. Simon só me colocou no chão quando chegamos à fenda que conduzia à torre, e só porque não podíamos nos espremer por ali juntos. Ele me deixou ir primeiro, a mão em minha cabeça para certificar-se de que eu não batesse na pedra, cuidando de mim.

Simon deteve-se um instante, arquejando, a luz pungente dos raios de halogênio nos seguindo e proporcionando à sua pele remendada um estranho brilho translúcido. Encarei-o, querendo agradecer, mas era incapaz de me lembrar como articular as palavras.

— Espere um pouco — falou ele. — A primeira vez que você ouve isso, parece que vai morrer. Demora um pouco para a náusea passar.

Ele tinha razão. Algo se assentava em minhas tripas como uma bola de espinhos, como se toda a dor que se instalara em minha cabeça momentos atrás houvesse afundado ali, esperando para ser digerida. Alisei meu estômago, tentando acalmá-lo, e só quando a náusea desapareceu me atrevi a falar:

— O que era aquilo? O diretor?

Simon soltou uma risada, porém não havia nem um traço de humor nela.

— Ele? Não. Ele parece exercer esse papel, mas não é nada além de um simples empregado. — Simon parou quando o som de pedras rolando pelo chão penetrou na fenda. Podia não ter sido nada, mas ainda estávamos perto demais do complexo para nos sentirmos em segurança. Agora Simon estava bem acima de mim, escalando a escarpa áspera à frente como uma aranha. — Não se preocupe com isso, certo? Vamos para a torre.

Eu o segui, com bem menos agilidade, é verdade, mas também capaz de encontrar as reentrâncias facilmente, apesar da escuridão. Saímos no alto do túnel, dando voltas sinuosas para retornar à caverna. Ela estava vazia.

— Estão esperando por nós ali — explicou Simon, pegando o caminho. Eu o questionei de novo sobre a voz, porém ele não respondeu, e só quando nos esprememos pela última fenda e nos vimos de volta à imensa garganta foi que comentou: — Talvez seja melhor não saber, certo? Pelo menos até estarmos a céu aberto. Precisamos nos concentrar na fuga, ou vamos acabar mortos. E nos sacrificamos demais para estragar tudo agora. Esqueça isso, Alex. Esqueça tudo o que viu aqui embaixo. Pense apenas em sair daqui.

Ele se virou, murmurando algo para a escuridão. Quase de imediato, uma lanterna adquiriu vida. Não tinha potência para iluminar a caverna, mas foi suficiente para mostrar dois rostos sujos junto à parede.

— Conseguiram? — perguntou Ozzie. — E o outro?

— Os ternos-pretos o pegaram — respondeu Simon sem rodeios. — Mas nós temos o Alex.

Tanto Ozzie quanto Pete acenaram para mim, mas não os reconheci. Não conseguia parar de pensar sobre o que havia sentido próximo dos aposentos do diretor. O telefone, a voz, a âncora que se fixara em minha mente. Nem mesmo quando vi o equipamento empilhado ao lado do corpo deformado de Pete — os grampos que haviam sido retorcidos em forma de gancho, o tubo grosso perfurado por pinos — consegui clarear os pensamentos. Tudo em que era capaz de pensar era no diretor e na pessoa com quem ele falava.

E no fato de ter deixado Zê sozinho.

— Ele está bem? — ouvi Ozzie perguntar, uma voz baixinha, no limiar de minha consciência. Senti seus olhos sobre mim, mas não olhei para cima. Nem mesmo quando ouvi a resposta sussurrada de Simon:

— Não sei. Ele ouviu o diretor ao telefone. Ele o ouviu falando com Alfred Furnace.


A ÚNICA SAÍDA É SUBIR


Simon estava certo. Eu não podia me permitir nenhum tipo de distração. Eu havia feito minha escolha, estava ali, e, portanto, a única coisa a fazer era me concentrar ao máximo na situação. Se, de algum modo, a vasta torre de pedra que se elevava sobre nós nos conduzisse à superfície, ou pelo menos a um conjunto mais elevado de túneis que se conectasse com o mundo lá fora, então poderia procurar ajuda. Seria possível voltar para buscar Zê e Donovan. Não seria tarde demais.

No entanto, por mais estranha que soasse a ideia, por mais que eu duvidasse que ela poderia funcionar, era reconfortante saber que jamais teria que voltar ao buraco ou à enfermaria. Não sem um maldito exército atrás de mim. Agora era subir ao céu ou mergulhar rumo à própria morte. Não havia outra saída.

Logo descobri que não seria o único a deixar um amigo para trás. As pernas e os braços finos e estreitos de Pete jamais conseguiriam arrastar seu tronco superinchado escarpa acima. Ele mal conseguia andar. O garoto nos animava, falando com empolgação enquanto preparávamos o kit, mas sua voz estava entrecortada e repleta de desespero.

— Eu voltarei — Simon lhe garantira uma dúzia de vezes no espaço de alguns poucos minutos. — Prometo a você. Tem a minha palavra. Não vou deixá-lo aqui.

Era como uma imagem espelhada de minha vida, e pela primeira vez imaginei quantas outras pessoas não teriam tentado sair de Furnace dizendo as mesmas palavras para os companheiros de cela, amigos e irmãos. Aposto que o número era bem maior do que eu supunha, bem maior do que o diretor ou os ternos-pretos jamais revelariam. Era uma ideia estranha, e, embora soubesse que nunca ninguém havia conseguido fugir dali, que jamais alguém cumprira a promessa de retornar, ainda assim me senti tomado pela esperança.

Talvez nós conseguíssemos fazer isso.

O plano era Simon e eu subirmos a torre e Ozzie vigiar a parte de baixo com Pete. O garoto menor queria ir, mas tinha mais pavor de altura do que dos pesadelos na prisão, e sabia que jamais conseguiria. Além disso, não tinha coragem de deixar Pete sozinho.

Nós tínhamos vinte metros de tubo cirúrgico enrolado. Era um material compacto, e Simon o havia dobrado e torcido em uma espiral. A maior parte dele ficaria pendurada entre nós, e ambos teríamos que fincá-lo na pedra a intervalos regulares. Quem fosse na frente fixaria uma ponta da corda improvisada a mais ou menos quinze metros, garantindo que, se um de nós caísse, não iria muito longe. A menos que o tubo arrebentasse, os pinos se soltassem da parede, a rocha desmoronasse ou os nós falhassem.

— Está pronto? — perguntou Simon, afastando as dúvidas de minha mente. Olhei para ele, fitando seu amplo sorriso, e ponderei por que algum dia duvidara dele. Simon tinha voltado para me buscar, arriscando a própria vida, embora pudesse ter escalado a rocha sozinho.

— Não — respondi com voz trêmula. Tomei um grande gole de água da bolsa de material endovenoso que me trouxeram, saboreando a força que ela emprestava aos meus músculos.

— Nem eu — disse Simon, os olhos prateados faiscando. — Bem, vamos lá.

Ele me estendeu um par de ganchos, e os manuseei um pouco. Eram como tesouras, só que com uma extremidade ampla e cega, em vez de lâminas. Eram flexíveis, de modo que, quando os cabos eram apertados, as duas pontas se expandiam — planejadas para manter incisões e caixas torácicas abertas durante uma cirurgia, mas igualmente úteis para ser inseridas em pequenas fendas na rocha. Em seguida vinha um punhado de longos e rígidos pinos de ossos e um dos martelos com uma extremidade em gancho que enfiei no macacão.

Simon deteve-se um minuto para se despedir, abraçando os outros dois garotos, os três soluçando. Fiquei de lado, meio sem jeito, depois fiz um aceno de despedida quando se separaram.

— A gente se vê em breve — disse Ozzie. — Muito em breve.

— Não tão breve assim — brincou Simon.

Eles riram, desejando-nos um “boa sorte” final. Simon amarrou a lanterna no macacão com um pequeno pedaço de tubo, e, por um momento, ficamos lado a lado, a cabeça para trás enquanto olhávamos para a torre — a pedra áspera e vermelha desaparecendo em uma noite sem fim acima de nós.

— Vamos lá — falei.

— Vamos lá — respondeu Simon.

Começamos a subir.


Foi mais difícil do que eu imaginara. Muito mais difícil. As fissuras na rocha eram irregulares, e, antes que eu subisse alguns metros, minha circulação já ameaçava meu ritmo. Os músculos, enfraquecidos pela falta de comida e sem adrenalina, esforçavam-se para me arrastar, e cada vez que estendia uma perna ou retesava um braço achava que não resistiriam e se dobrariam. A única coisa que me dava algum conforto era o fato de que a rocha se angulava para dentro, em vez de pender para fora sobre o fosso escuro lá embaixo. Isso significava que, quando me sentisse sem forças, poderia descansar o corpo contra a escarpa sem medo de despencar.

Simon já havia assumido a liderança, o braço maciço arrastando o corpo para cima, enquanto a perna menor o apoiava com firmeza sobre a rocha. Cada vez que se movia, a lanterna balançava, fazendo sombras rápidas e desproporcionais na parede, de modo que era impossível descobrir quais reentrâncias eram grandes o bastante para me apoiar.

Um de meus pés escorregou de uma beirada estreita, e por um momento achei que tudo estivesse perdido. Ainda não estávamos nem a dez metros do chão, porém a distância já era suficiente para quebrar uma perna ou as duas. Agarrei a pedra como se fosse meu melhor amigo, o rosto pressionado contra a superfície quente. Meu coração tentava sair pela boca, e não o culpei. Ainda havia um longo caminho a percorrer.

Mas não me queixava. Estávamos em pleno processo de fuga. Imaginei os ternos-pretos chegando para me tirar da solitária e o choque no rosto deles ao perceber que eu havia desaparecido. Era provável que imaginassem que eu fora devorado por um rato, contudo jamais teriam certeza — não até que eu voltasse com uma granada lançada por um foguete e explodisse aqueles demônios em pedaços.

Subi mais alguns metros. Simon parava e esperava que o alcançasse. Olhei para baixo e vi que a luz de sua lanterna não alcançava mais o chão da caverna. Mas ainda havia duas moedas prateadas brilhando para nós, que eu sabia pertencerem ao rosto de Pete. Teria acenado se pudesse fazê-lo sem me matar.

— Devíamos começar a amarrar a corda — falou Simon quando o alcancei, e fiquei aliviado ao constatar que ele também arquejava. — A altura é suficiente para causar algum dano sério se cairmos. Vou prendê-la aqui enquanto você sobe, e, quando atingir a extremidade da corda, você a prende também. Faz sentido, não faz?

— Sim — menti, apenas desejando que não caíssemos na saliência lá embaixo.

No entanto, acho que entendi o que ele queria dizer. Quando Simon enfiou um pino de osso na ponta do tubo e passou a martelá-lo na rocha, continuei subindo. Era perigoso escalar sem nenhuma luz, mas eu avançava devagar, tateando o caminho torre acima e testando duas, três vezes cada canto e fenda antes de confiar a ela todo o meu peso. Depois de alguns minutos, senti que a extensão de corda que me ligava a Simon estava tensa e me abracei à rocha, soltando a parte que pendia de minha cintura e enfiando um pino através dela. Alguns golpes de martelo mais tarde, e eu estava seguro à parede. Talvez mais seguro do que já estivera ali em Furnace.

— Está presa — gritei, olhando para Simon lá embaixo em sua bolha de luz dourada. Ele soltou o tubo, sabendo que, se caísse agora, minha extensão de corda o seguraria, e subiu. A respiração estava ofegante ao me alcançar, mas ele continuava sorrindo.

— Grande ideia, a das cordas — falou ele, arquejando.

— Grande ideia a da escalada — repliquei. Então ele partiu de novo, me ultrapassando e subindo com destreza. Aproveitei ao máximo meu descanso, relaxando os músculos e alongando o pescoço, ouvindo-os estralar em protesto. Senti um puxão na cintura quando a corda tornou a atingir o limite e, depois, o rangido de metal contra metal.

— Sua vez — avisou ele lá de cima.

Golpeei a extremidade em gancho do martelo na fenda em que havia inserido o pino de osso. Ficou bem firme, e, depois de algumas torções, o tubo se soltou e caiu frouxamente a meu lado. Estava funcionando de verdade! Passei a subir de novo, animado com nosso sucesso. E foi só quando ergui a cabeça para lançar um sorriso a Simon que percebi que algo estava errado.

— Apague a lanterna! — gritei. Ele olhou para mim lá embaixo, a expressão carrancuda delineando-se à penumbra.

— O quê?

— Faça o que estou dizendo: apague. Olhe. — Não conseguia apontar, mas fiz um movimento de cabeça indicando um ponto mais alto da torre. Ele resmungou, porém desligou a lanterna, mergulhando todo o abismo na escuridão.

Bem, quase todo o abismo. A aproximadamente dez metros acima da cabeça de Simon vislumbrei um brilho suave emanando da pedra. Teria sido fácil confundi-lo com a luz do dia, com o brilho quente do pôr do sol, contudo eu não me deixaria enganar outra vez. Estávamos ainda nas entranhas da Terra. Continuei subindo, tomando cuidado para não fazer nenhum ruído. Simon obviamente percebeu meu medo e aguardou que eu o alcançasse para perguntar:

— O que você acha que é?

Dei de ombros, o movimento fazendo rolar uma pedrinha da parede, que pareceu demorar uma eternidade para atingir a saliência lá embaixo. A luz poderia vir da prisão, pois agora devíamos ter atingido o nível do pátio da penitenciária. Imaginei-a do outro lado da laje de rocha sólida, os detentos correndo lá dentro como formigas, sem ideia de que escalávamos a parede, de que partíamos rumo à liberdade.

— Talvez eles tenham aberto um buraco em uma das salas de escavação — prosseguiu Simon. — Talvez sua explosão tenha derrubado a parede.

Talvez... Mas não era provável. De onde quer que viesse aquela luz, não parecia forte o bastante para vir de qualquer uma das salas de Furnace, e, quando a observei de novo, parecia piscar, como um projetor de cinema.

— Vamos subir devagar — sussurrei. — Mantenha-se em silêncio.

Assim fizemos, subindo a parede juntos, nervosos demais para martelar os pinos, temerosos em atrair atenção indevida. Tínhamos avançado talvez cinco ou seis metros, quando percebemos a fenda na rocha à frente. A torre estava quebrada: faltava um enorme pedaço dela. O pilar de rocha elevava-se acima da fenda, porém não havia como alcançarmos a parte de cima, a menos que escalássemos as paredes internas da caverna.

Era dali que vinha a luz. E percebi que não era apenas luz, mas também um ruído — o som de algo úmido, semelhante a um aspirador de pó funcionando sob a água. Senti o estômago revirar ao reconhecer o som, no entanto me recusei a acreditar.

Subimos um pouco mais na fenda, o ruído ficando mais alto a cada segundo. A luz agora se agitava, tremulando para cima e para baixo, para a frente e para trás. Ouvi o ruído de algo sendo dilacerado, e a luz desapareceu por completo durante um segundo antes de retornar, ouro tingido de vermelho.

Três metros, dois, um. Estávamos lá.

Parecia uma festa bem acima de nossa cabeça — o bater de pés, rosnados, estalos como de alguém quebrando asas de galinha. Olhei para Simon, agradecido por não poder ver sua expressão de medo e desejando que ele também não pudesse ver a minha. Não falávamos. Nos comunicávamos apenas com acenos de cabeça, apoiando-nos na parede e espreitando cada saliência da rocha.

A primeira coisa que percebi foi que a luz vinha de uma lanterna, mantida por um braço revestido de negro. O braço, no entanto, não estava ligado a nada. Era devorado por uma criatura despida e grotescamente musculosa, que parecia um dia ter sido um macaco ou um chimpanzé. Ela estava agachada no meio de uma pequena caverna, envolvida demais com sua refeição para perceber nossa presença.

Atrás dela, no chão, vi um terno-preto. Ou, pelo menos, o que restava dele. Mas mesmo esse restante desaparecia com rapidez. Seis ou sete vultos tão deformados quanto o primeiro debruçavam-se sobre a carcaça, partindo-a em pedaços como se formassem um processador vivo de alimentos. De vez em quando, um dos vultos se virava para a parede e rosnava diante da constelação de estrelas reunida ali — olhos prateados piscando ao assistir à carnificina. Vinte deles, trinta, talvez.

Ratos. Um ninho deles. Bem ali, entre nós e a saída.


A RETIRADA


Foi tudo o que consegui fazer para não me soltar da parede. Abaixei o corpo depressa, com Simon ainda a meu lado. Não falávamos, não ousávamos fazer isso. Uma só palavra poderia ser suficiente para atrair a horda de ratos.

Dei outra olhada na torre, que se elevava até o teto da caverna. Estava distante demais para ser alcançada. Ela descrevia uma curva, a extremidade quebrada de rocha tão lisa e escorregadia quanto gelo. Tínhamos uma escolha: atacar o ninho, subindo ao teto — e então de algum modo contornar a rocha por trás para continuar a escalada —, ou recuar. O que era o mesmo que não ter escolha.

Algo guinchou na caverna, alguma coisa entre o grito de um macaco e o gemido de uma criança com dor. Escorregamos e tateamos no escuro; os dedos mal sendo capazes de nos manter no lugar, enquanto buscávamos em desespero encontrar apoio para os pés em algum, lugar, abaixo de nós. Só quando nos colocamos a certa distância dos ratos, Simon arriscou acender a lanterna. Com essa luz suave nos envolvendo, a descida foi muito mais fácil, mas ainda assim guardamos as palavras para nós mesmos até o chão da caverna aparecer na escuridão. Assim que chegamos suficientemente perto, despenquei, pernas e braços com câimbras no momento em que atingi a solidez da superfície. Gritei, apoiando-me contra a parede.

Simon caiu ao meu lado, a face contorcida em uma expressão de agonia — embora não tivesse certeza se era devido à dor ou ao nosso fracasso. Momentos depois, ouvi um arrastar de pés, e Ozzie e Pete estavam ali, as mãos pequenas sobre meus ombros e as perguntas estridentes, altas demais para o meu gosto.

— Era um beco sem saída? — perguntou Pete. — Eu sabia. Sabia que era bom demais para ser verdade.

— Fale baixo — disse Simon, inspirando grande quantidade de ar entre uma palavra e outra. — Não era um beco sem saída. Foram os ratos.

Os dois outros meninos praguejaram em uníssono, olhando para a escuridão lá em cima. De onde estávamos, o facho da lanterna do terno-preto não era visível. Ou era isso, ou o rato havia terminado sua refeição nojenta e jogado os restos fora. Ficamos sentados durante algum tempo em silêncio, a cabeça virada para trás e os olhos voltados para o céu, buscando algum sinal das criaturas. Meu corpo inteiro estava devastado, as mãos fechadas em garras cruéis que não se endireitavam, não importava quanto pressionasse os dedos.

— Então o lugar está interditado? — perguntou Ozzie por fim. Simon balançou a cabeça, o rosto sem expressão.

— Deve haver dúzias deles lá — murmurou ele. — Não me espanta que os ternos-pretos não consigam mais encontrá-los.

— Podemos esperar que saiam dali, aguardar uma brecha — sugeriu o garoto menor. — Podíamos contar aos ternos-pretos onde eles estão, deixar os guardas lidar com eles.

— Fique à vontade — disse Simon.

— Não acho que ajudaria em nada — acrescentei. — Falta uma parte considerável da torre. Mesmo que a caverna estivesse vazia, não tenho certeza se poderíamos transpô-la.

— E nem sabemos se ela vai até a superfície — comentou Pete, dando um suspiro cansado. — Bem, acho que, por enquanto, o negócio é voltarmos para nosso apartamento.

— Era um bom plano — falou Simon. — E ainda pode ser. Tenha dó... Um pequeno obstáculo, e tudo vai embora como se fosse fumaça?

Parecia prestes a acrescentar alguma coisa, mas baixou a voz, e tudo o que veio dela foi uma série de palavrões abafados. Não ouvi nada. Algo martelava minha mente, algo importante.

— O que você acha, Alex? — perguntou Ozzie, porém ergui a mão em um gesto impaciente, pedindo que se calasse.

— Me dê um minuto — pedi, vasculhando os fragmentos de pensamento para tentar encontrar o que havia chamado minha atenção. Tinha a ver com o que Simon acabara de dizer. Quase consegui, uma ideia passando tão rápido diante de meus olhos que se foi antes que eu pudesse identificá-la.

— Teve alguma ideia? — perguntou Pete, e dessa vez foi Simon quem lhe pediu que ficasse quieto, os olhos prateados demonstrando impaciência.

— Não tenho certeza — falei. — Pensei... — Lá estava ela de novo, como uma daquelas imagens com ilusão de óptica em que você precisa abrir a mente para compreender a cena ao fundo. Parecia entrar em foco, depois sumia de novo. Bati na testa em um gesto de frustração, me lembrando do que Simon dissera.

E ainda pode ser. Tenha dó... Um pequeno obstáculo, e tudo vai embora como se fosse fumaça?

Então ela me atingiu, a imagem, como um martelo pesado, impossível de passar despercebida. Explodiu em minha cabeça com tal força que mordi a língua, a dor parecendo clarear ainda mais os pensamentos. Os garotos esquecidos de Furnace devem ter percebido algo diferente em meu rosto, pois os três pares de olhos se voltaram para mim ao mesmo tempo:

— O que foi? — Simon perguntou. — Sabe o que fazer? Sabe como se livrar dos ratos?

— Não — respondi, dando um sorriso. — Mas sei como nos tirar daqui.

— O quê? — perguntou Simon, o próprio rosto abrindo-se em um largo sorriso. — Há outra maneira? Conte pra gente, pelo amor de Deus, ou vou atirar você desta maldita rocha.

— Como se fosse fumaça — falei, imaginando um rastro de vapor ardente subindo pela rocha fraturada, saindo livre por uma abertura na superfície. — Podemos sair daqui pelo incinerador.


Pelo que pareceu uma eternidade, ninguém disse uma única palavra. Dois pares de olhos prateados e outro de um azul leitoso piscavam para mim como se tivesse crescido uma barba de meio metro em meu rosto no último segundo.

— Você acha que a chaminé vai até a superfície? — perguntou Simon depois de alguns instantes.

— Sei que ela vai para lá — respondi, lembrando-me do dia em que fora levado para Furnace, a visão do Forte Negro da janela do ônibus, envolto na fumaça da chaminé oculta atrás do prédio. — Tem que dar lá. Onde mais poderia dar, sem que matasse todo mundo?

— É, faz sentido — acrescentou Ozzie, as palavras saindo rápidas devido à excitação. — Aposto qualquer coisa com você que colocaram o incinerador sob outra parte da garganta, para evitar perfurações na rocha sólida. E ele tem que dar na superfície. Este lugar deve ter sido inspecionado antes de ser inaugurado, e qualquer tipo de incinerador necessitaria de uma instalação apropriada.

— Acha mesmo que este lugar foi inspecionado? — perguntou Pete, uma das sobrancelhas arqueadas.

— Claro que sim — respondeu o garoto menor. — Toda prisão nova tem que ser inspecionada para se ter certeza de que é eficiente. É óbvio que ninguém jamais voltou aqui para checar, mas não teriam aprovado se a chaminé do incinerador estivesse bloqueada. Qual seria o interesse nisso?

— Não é algo que algum dos detentos encontraria — disse Pete.

— Não vivo, pelo menos — acrescentou Ozzie. — E, mesmo que encontrasse, quem pensaria em entrar nele?

— Só um louco mesmo — falei.

— O único problema é chegar lá. — Simon suspirou, levantando-se e afrouxando o tubo amarrado em volta da cintura. Ele foi ao chão com um movimento rápido. — Temos que passar pela enfermaria.

Já tinha pensado nisso momentos antes, porém só admiti conscientemente quando Simon falou. Não, algo na minha cabeça gritou. Você não pode voltar para a prisão. Você já está fora. Permaneça fora de lá. Você não está livre, mas também não é prisioneiro deles. E pode sobreviver aqui fora. Se voltar lá agora, vai ter que enfrentar os Ofegantes, os ternos-pretos, o diretor.

E quem quer que estivesse do outro lado da linha telefônica.

No entanto, eu tinha que voltar. Estava sendo obrigado a voltar por causa do que fizera a Zê. Por isso não tinha conseguido escalar a torre. Por isso os ratos estavam lá em cima. Porque não tinha permissão para sair de lá sem ele. Sabia que estava delirando, a mente tão exausta que não conseguia pensar direito, mas de repente tudo fazia sentido. E foi aquela lógica maluca que me deu força para me levantar; agora tinha certeza de que devia voltar.

— E então, o que estamos esperando? — perguntei, apoiando uma das mãos na parede até a cabeça parar de girar, depois voltando a me espremer pela fenda no caminho de volta. — Vamos cair fora.

— É, vamos chispar daqui — disse Ozzie atrás de mim.

— Vamos fazer que nem o cocô e dar o fora — ouvi a voz abafada de Pete, fazendo-nos soltar um riso abafado. Simon era o último lá dentro, e já avançávamos pelo caminho da volta quando ele exclamou:

— É... vamos picar a mula deste inferno de prisão, e é pra já.

Ainda ríamos ao descer a escarpa que nos conduziria de volta à caverna principal. Não sei por quê. Afinal, estávamos absolutamente exaustos, e a perspectiva real era de que estaríamos mortos dentro de uma hora, assassinados por ternos-pretos, ratos ou coisa pior. Talvez fosse esse o motivo. Talvez tentássemos rir o máximo que podíamos antes de encontrar o triste final. Porque nunca se sabe qual riso será o último.

Os sons de alegria desapareceram quando atingimos certo ponto à frente, substituídos pelo som de uma sirene distante. Nos ajoelhamos para examinar a caverna à frente. De início, achei que estivesse vazia, e estava prestes a rastejar sob uma rocha quando Simon agarrou meu braço.

— Enlouqueceu? — sussurrou ele, usando a outra mão para apontar o que me pareceu uma camada de rocha mais escura diante da mais aparente, avermelhada. Olhando por entre os fortes raios de halogênio, vi uma fileira de ternos-pretos, imóveis ao lado da porta da abóbada, cada um carregando uma espingarda em uma das mãos e mantendo um cão preso na outra.

Enquanto observávamos, mais três saíram de dentro do complexo, e, atrás deles, parecendo bastante nervoso, o diretor. Ele proferiu algo inaudível aos guardas e fez um gesto raivoso na direção dos vários corredores que saíam daquela sala gigantesca. Depois virou-se, os olhos vasculhando as sombras. Por um momento, achei que nos tivesse visto, porque senti dedos gelados na cabeça, o chão e as paredes desaparecendo em meio a um desagradável torpor. Então a sensação passou. O diretor empurrou um dos ternos-pretos e, dessa vez, quando gritou, pude ouvi-lo muito bem.

— Encontrem-no!

Minha cela vazia havia sido descoberta. E agora um exército estava em nosso encalço.

— Não vai demorar muito para nos acharem — disse Simon. — Os cães farejaram seu cheiro na cela.

— O que faremos? — perguntei. — Não podemos nos esconder até a busca acabar?

— Você sabe tão bem quanto eu que a busca nunca vai acabar. Foi a segunda vez que você desapareceu, e agora bem debaixo do nariz do diretor. Eles vão demolir este lugar até conseguirem encontrá-lo.

— Então, o que faremos? — repeti. Ele olhou para mim, fazendo cintilar uma série de dentes quebrados sob olhos prateados e brilhantes.

— Vamos lhes dar algo com que se ocupar.

Acho que sabia onde isso ia dar.

— Se houver uma violação, ficarão distraídos. Isso nos dará tempo para entrar lá.

— Mas os ratos não estão aqui — falei. — E não temos tempo para esperar que fiquem famintos. Precisamos ir agora.

O sorriso de Simon se ampliou.

— Por isso mesmo é que precisamos de uma isca.

 

 

A ISCA


Para decidir isso, resolvemos jogar pedra, papel, tesoura. Todos entramos no jogo, mesmo Pete, embora não houvesse como ele correr dos ratos com aquelas pernas de inseto. Seja como for, Simon perdeu para ele, a minúscula mão de Pete cobriu cerca de um terço de seu punho gigantesco quando o papel ganhou da pedra. Ozzie também me venceu, e, exatamente da mesma maneira e embora ele fingisse estar desapontado, dizendo que nunca conseguia o papel de herói, o alívio se apoderou dele com tanta força que eu quase podia enxergá-lo pairando sobre sua cabeça.

— Vou acabar com você, garoto — falou Simon, flexionando os músculos como se se aquecesse para uma luta de boxe.

— Vou esperar sentado — repliquei, abrindo e fechando os dedos doloridos. — No três: um, dois, três.

Balançamos as mãos e colocamos os dedos à mostra. Voltamos os olhos para baixo, e vi os dedos de Simon abertos como uma tesoura. Ela estava cortando meu papel como uma piranha devorando um cavalo. Podia muito bem tê-la usado para cortar meu pescoço, porque o que eu estava prestes a fazer era o mesmo que cometer suicídio.

— Merda — murmurei.

— Pois é — replicou o garoto. — É mesmo uma droga. Quer que eu vá no seu lugar?

— Bem...

— Então está certo: regras são regras.

— Gratíssimo pela sua ajuda. — Quase começamos a rir, mas o riso foi abafado pela proximidade do diretor e dos ternos-pretos. Em vez disso, nos arremessamos um contra o outro, os planos sussurrados preenchendo a rocha fendida como o ruído de um rio distante.

— Tudo que precisa fazer é atrair os ratos até aqui — disse Simon. — Tem que fazê-los descer a escarpa, e logo vão farejar os ternos-pretos na caverna. Quando chegarem aqui, vai ser um caos. Isso deve nos dar tempo suficiente.

Deve. Aquela era uma palavra realmente odiosa.

— Vamos nos esconder ali — prosseguiu ele, apontando a lanterna para um amontoado de pedras no fundo do declive. — Estaremos prontos para puxá-lo assim que aparecer. Com sorte, os ratos não nos verão e passarão direto por nós.

— E se nos virem? — perguntei.

— Estaremos fritos — respondeu ele sem rodeios. — Todos prontos e a postos?

— O que quer dizer com todos? — perguntei, a voz trêmula distorcendo o tom de humor. — Vocês três só têm que ficar abaixados e em silêncio.

— Tem razão — ele se corrigiu, entregando-me a lanterna. — Você está pronto e a postos?

Não respondi. Só amarrei a lanterna na cintura, olhei para o alto e fiz força para engolir o bolo que se formou na garganta.

— Boa sorte — disse Simon. — Lembre-se: traga-os até aqui. Estaremos esperando.

Então eles se foram, mergulhados na escuridão enquanto se arrastavam para trás do monte de pedras. Comecei a subir, o coração batendo com violência, como uma velha máquina prestes a enguiçar. Sentia-me aterrorizado, o medo instalado como uma lente de luz ofuscante em meus olhos. Pensei na criatura que vira na torre — um macaco? Um garoto? — e na maneira como ela arrancara o braço do terno-preto, como se comesse um cachorro-quente.

Minha imaginação foi longe, e vi os ratos me imobilizando; senti dentes penetrando minha pele, o hálito rançoso, e percebi que era o meu sangue que pingava dos focinhos deformados.

Que diabos estava fazendo?

Obriguei-me a me concentrar no caminho que tinha pela frente, seguindo pela série de passagens estreitas até o alto da escarpa. Ponderei se devia deixar um rastro com alguma coisa que me ajudasse a encontrar o caminho de volta, mas me dei conta de que desceria por aquele caminho a uma velocidade tal que não teria tempo para seguir rastro nenhum. Isso se conseguisse ir tão longe.

Passei pela minúscula caverna onde os garotos perdidos dormiam, tomando o túnel de trás e a passagem estreita que se dividia a partir dali. Não tinha nem mesmo certeza se era aquele o caminho certo — nas duas vezes que passara ali, Simon ia à frente, e eu não havia prestado muita atenção. De repente, o túnel pareceu menor. Percebi curvas e sinuosidades que não estavam ali antes. Estava perdido.

Depois o caminho seguia para baixo, as paredes se fechando, e reconheci aquela sensação familiar de claustrofobia. A garganta estava ali na frente. Deveria ter me esforçado mais, talvez, para perder de verdade a direção.

Pressionei o corpo através da saliência da rocha estreita e me vi em um pântano de noite sem fim — o abismo estreitando-se e ecoando até o infinito acima de mim. Olhei para cima, imaginando os ratos roendo os ossos do terno-preto. O que será que devia fazer? Gritar? Assobiar? Berrar?

— Olá? — murmurei. Não houve resposta. Tentei de novo, dessa vez mais alto. — Olá, ratos. Estão aí em cima?

Não era alto o bastante. Se as criaturas não tinham ouvido Simon e eu pregando os pinos de osso na parede, com certeza não ouviriam meu grito patético. Dessa vez, quando as palavras saíram, foram altas o suficiente para chegar a eles.

— Estou aqui embaixo! — berrei o mais alto que pude. — Venham me pegar!

Flexionei as pernas, já me preparando para correr. Ouvi um ruído baixo vindo da fenda na rocha. Coloquei o pé nela. Havia contado com a fenda para descer rapidamente. Se me surpreendessem por trás, estaria morto.

— Prato especial do dia: um garoto esquelético que está prestes a cagar na calça! — gritei, quase em lágrimas. — Sirvam-se enquanto está quente!

Algo guinchou em resposta, o som despencando de cima como uma lâmina de guilhotina. Outro ruído, mais penetrante que o primeiro, e igualmente aterrador. E, agora, um rosnado grave que pareceu fazer até a rocha sair do lugar. Em alguns segundos, o abismo ganhara vida própria com uma sinfonia nauseante de rosnados e uivos que soavam dolorosamente humanos. Lembraram-me a hora da refeição no zoológico, e tenho a impressão de que não estava totalmente equivocado na comparação.

Algo faiscou acima de mim, partículas gêmeas de luz distante, mas visíveis contra o negro da garganta. Elas se apagaram, e, quando tornaram a acender, havia mais duas atrás delas. Depois quatro. E logo eram numerosas demais para poder contar. E, quando todas passaram a avançar em minha direção escarpa abaixo, pensei por um momento que o céu desabava, as estrelas se chocando contra a Terra. Teria sido poético, se não achasse que seria a última coisa que eu veria na vida.

Corri, a rocha arranhando meu peito enquanto me espremia através da fenda, a lanterna balançando em descontrole, dando vida ao túnel. Era como estar em uma daquelas casas loucas dos parques de diversão, onde o chão e as paredes se movem, e você mal consegue se manter em pé. Só que, nesse percurso, se eu tropeçasse, seria esfolado vivo.

Os gritos atrás de mim eram cada vez mais altos, o atrito de pés contra a superfície rochosa muito mais forte que o impacto de meus passos apressados. Não podia acreditar como conseguiam descer com tanta rapidez e facilidade a mesma escarpa quase vertical que Simon e eu havíamos escalado com tanta dificuldade.

Irrompi caverna adentro, os ruídos selvagens parecendo tentáculos querendo me agarrar. Dois passos gigantescos, os pulmões ardendo, e eu já atravessava o corredor à frente. Houve um instante de pânico total quando alcancei um entroncamento, o cérebro preocupado demais em tentar fazer minhas pernas funcionar para me lembrar de que saída tomar. Sei que não deveria, mas algo me fez olhar por sobre o ombro.

Vi uma gigantesca onda de círculos prateados movimentando-se em minha direção, aproximando-se a uma velocidade inacreditável. Minha lanterna balançou, e os corpos ligados àqueles olhos ganharam luz — a pele avermelhada, em meio a paredes e chão com vida própria, movendo-se depressa... Depressa demais.

Escolhi um caminho; porém, antes que pudesse seguir em frente, algo caiu sobre mim. Foi como ser atingido por um trem, e fui ao chão antes mesmo de saber o que havia acontecido, preso por uma figura de músculos retorcidos.

Vi uma mandíbula com dentes afiados aberta no caos feito de carne que era sua face, arremessando-se em direção ao meu pescoço. Tentei me desvencilhar, desferi alguns golpes com as mãos, girei o corpo e, mais por sorte que por qualquer outra coisa, consegui levantar o ombro e me proteger do ataque. Dentes se cravaram na parte superior do meu braço, e a pele ardeu como fogo. A dor percorreu meu corpo como uma descarga elétrica, e dei um pinote involuntário.

A criatura perdeu o equilíbrio, o corpo deformado tombando ao chão. Agarrou-me com suas mãos retorcidas, mas desferi um chute, meu calcanhar atingindo-lhe o nariz.

Não parei para ver o estrago que fizera. Os outros ratos estavam quase em cima de mim, os uivos elevando-se num crescendo ao me verem fugir. Quando a escuridão total caiu sobre o túnel, percebi que perdera a lanterna, e não havia como voltar para buscá-la. Estava quase chegando, talvez mais dez ou quinze passos até o declive que me conduziria à caverna lá embaixo.

Na verdade, estavam mais para cinco passos. Senti o pé escorregar na beirada, o estômago dando um nó enquanto caía. Não foi uma queda longa, a descida sendo amortecida pela própria irregularidade das rochas. Antes que conseguisse me pôr de pé, senti mãos sobre mim, arrastando-me pelo chão, sussurros em pânico:

— Rápido! Traga-o para cá!

Estava escuro demais para enxergar aonde ia, mas nem me importei. O sangue escorria pelo meu braço, o ferimento parecendo um carvão quente sobre a pele. Parei de me mexer, três corpos pressionados contra o meu, enquanto gritos ecoavam pelas paredes.

Ouvi um baque, como se algo aterrissasse perto de nós, o rosnado ameaçador de um animal ferido vindo do outro lado do amontoado de rochas. Então os corpos começaram a sapatear no chão como uma chuva de pedras, uma enorme quantidade de garras movendo-se a menos de um metro de onde nos escondíamos. Alguém segurava minha cabeça, atraindo-me para si, e tirei algum conforto do fato de que, pelo menos, não morreria sozinho.

Houve um chamado distante, depois um tiro. Mais dois, seguidos de uivos sufocados. Ouvi o ruído de pernas enquanto os ratos se afastavam de nós, e os imaginei alinhando-se sob o céu da caverna, dentes e garras vermelhos e olhos faiscantes, lançando-se todos contra os ternos-pretos.

O som de tiros de espingarda era como uma exibição de fogos de artifício em Ano-Novo. A figura que me segurava se moveu, ficando de pé e me puxando para cima com ela.

— Bom trabalho — Simon murmurou na escuridão. — Ainda não consigo acreditar que deu certo. Tudo bem com você?

— Tudo — menti, rasgando uma tira do macacão e tentando amarrá-la em torno do ferimento. A dor se espalhava, fazendo o braço todo latejar. Podia sentir a pulsação também no pescoço, e me perguntei se o rato não havia me passado alguma doença; se a carne em meu rosto não estava começando a se decompor; se de repente não passaria a desenvolver um gosto insano pelo sangue alheio. Simon se assustou quando viu o que eu fazia, e agarrou a bandagem improvisada, amarrando-a com firmeza.

— Vocês devem partir — Ozzie falou, despontando de trás do monte de pedras, a voz soando decidida. — A distração não vai durar muito tempo.

— Não vem conosco? — perguntei.

— Não. Vou ficar com Pete. Só não se esqueçam de voltar para nos buscar.

— Pode apostar sua vida nisso — prometi.

— É exatamente o que estou fazendo — replicou ele.

Simon já se movia, os olhos brilhando ao se afastar. Todos os ratos haviam se distanciado e, pelos sons que ouvíamos, banqueteavam-se com ternos-pretos. Os tiros de espingarda eram agora menos frequentes, substituídos por ruídos de dilaceração úmida e ossos quebrados. Não tinha muita certeza de querer ver o que acontecia ali, mas não havia escolha.

Abaixamo-nos e passamos sob a rocha. Os raios de halogênio proporcionavam à cena a sensação de uma performance de teatro, e fiquei contente em acreditar naquela ilusão. Em toda parte que eu olhava havia movimento. Bem à frente havia um terno-preto no chão, a espingarda caída inutilmente fora de alcance, enquanto diversos ratos se empilhavam sobre ele. Depois daquilo, outro dos guardas disparou contra uma das criaturas, o clarão da arma transformando o rato em sushi. A fileira de ternos-pretos perto da porta se mantinha, os gigantes usando a coronha da arma e os punhos de ferro para manter acuada a horda que se aproximava. Os cães também se exibiam em todo o seu esplendor, os dentes cerrados em meio a mandíbulas e patas.

Não havia como passar por ali.

Virei-me para Simon, mas ele me fez um gesto para que ficasse quieto, apontando com a cabeça para a carnificina. Com certeza os ternos-pretos estavam ganhando, o poder de fogo sendo demais para os ratos resistirem. As criaturas — as que ainda viviam, e com número suficiente de membros — fugiam rumo ao exterior da caverna, dirigindo-se para as sombras e os corredores que saíam dali.

E os guardas as seguiam, recarregando a arma ao correr e disparando sem cessar contra as figuras que fugiam. Eu conseguia ouvi-los gritar um com o outro, a voz retumbante repleta do que registrei como medo, mas que podia muito bem ser excitação, ou mesmo contentamento.

Segundos mais tarde, por algum milagre, a caverna estava vazia — exceto por formas irreconhecíveis agonizantes que gritavam em um leito de sangue. O som dos tiros de espingarda ecoava pelos túneis escuros, e não demoraria muito até que os ternos-pretos voltassem, ou os ratos, se de algum modo conseguissem superar os gigantes.

Não houve despedidas dessa vez, nem abraços ou promessas. Simon e eu nos viramos para trás, para dar uma última olhada em Ozzie e Pete, mas ambos já haviam partido. E, sem nenhum outro vínculo que nos mantivesse ali, transpusemos aquele trecho e começamos a correr.


DESPEDIDAS


Parecia a mais longa distância que eu já havia percorrido na vida. Só demoramos quinze segundos para percorrer a extensão da caverna — caso se possa chamar de corrida meus passos trôpegos e desesperados —, mas para mim foi uma eternidade. O tempo parou, como se me convidasse a estudar as formas dilaceradas pelas quais passávamos, ternos-pretos em frangalhos, criaturas viradas do avesso, os gritos patéticos de monstros que um dia tinham sido iguais a nós.

Uma figura enorme assomou de um túnel à direita, um terno-preto com um rato pendurado nos ombros como se fosse uma mochila. Unidos em um balé assustador de socos e mordidas, nenhum dos dois percebeu nossa presença. Senti no tornozelo os dedos de um vulto irreconhecível abaixo de mim, mas estavam fracos demais para me segurar.

Houve apenas um momento em que achei que não conseguiríamos: quando estávamos perto da porta estropiada da abóbada que conduzia ao complexo. Havia um terno-preto sentado e apoiado contra a parede, as pernas dilaceradas, a espingarda apoiada no colo. Ele a ergueu quando nos viu, uma expressão de genuína surpresa no rosto. Num instante Simon estava sobre ele, um golpe da arma gigantesca fazendo o guarda desmoronar para o lado.

Então entramos, envoltos em uma luz vermelha e ensurdecidos pela sirene que soava de alto-falantes ocultos. Havia dois ternos-pretos na passagem à frente, mas corriam na direção oposta à nossa. Percebi o diretor entre eles, lutando para voltar aos próprios aposentos, e o trio desapareceu sem olhar para trás.

Corremos atrás deles, atingindo o entroncamento onde tinha ouvido o som do telefone, porém o ambiente agora estava normal, sem sinal do que quer que eu tivesse sentido ali antes. Ou talvez estivesse enlouquecido demais para notar, o corpo concentrado em ser apenas uma máquina ao passarmos pelo corredor que conduzia à enfermaria. Considerei que pudesse haver um guarda do lado de fora da porta, um obstáculo final entre nós e o incinerador; contudo, o caminho à frente estava livre.

A cortina de plástico bateu em meu rosto quando a puxamos, e afastei as tiras dos olhos para ver a sala deserta, sem sinal de Ofegantes. Talvez houvessem fugido dali, apavorados pelo som da sirene, que varria o lugar como uma vespa aprisionada.

Percebi que ainda corria, e obriguei as pernas a deter-se e descansar um pouco. Simon continuou, alcançando a cortina do outro lado da sala e olhando através dela antes de voltar-se para mim.

— Área livre — disse-me, como se ele mesmo não pudesse acreditar.

— Tenho que encontrá-lo — gaguejei. — Não vou sair daqui sem ele, não agora.

Esperava uma recusa, mas Simon fez que sim com a cabeça, mo-vendo-se na direção da fileira de leitos à direita, ambos ainda ocultos atrás dos cubículos.

— Você olha daquele lado; eu verifico este.

Abri a primeira cortina sem me importar em fazer barulho. Ainda estava vazia. Assim como a seguinte. Fiz uma pausa fora do cubículo de Gary, incapaz de espiar lá dentro. Sabia que teríamos que deixá-lo. Sabia que ele merecia ser deixado. Mas, se o visse ali, não acho que tivesse conseguido sair sem ele.

— Alex! — Virei-me e avistei Simon com metade do corpo dentro de um cubículo, acenando para mim. Saí correndo, evitando os carrinhos espalhados pelo local, e me aproximei da saleta. Dentro dela estava Zê. Ele fora amarrado ao leito, porém não havia marcas em sua pele nem suporte de soro a seu lado. Apenas um rosto esquelético encarando-nos com olhos tão arregalados que pareciam um par de ovos cozidos.

— Não é possível — falou ele. — Deve ser um sonho.

— Tudo certo com você? — perguntei, enquanto Simon saía em disparada, retornando segundos depois com um bisturi. — Tocaram em você?

— Não — respondeu Zê, o sorriso tão largo que poderia cair do rosto. — Eles me injetaram um pouco daquele negócio preto, mas só fiquei um pouco tonto. Não senti nada diferente. — Ele tentou virar o corpo para um dos lados, enquanto Simon cortava as tiras de couro, a lâmina abrindo-as como se fossem manteiga. — Sabia que voltaria para me buscar — falou Zê. — Sabia que não ia me abandonar.

Senti meu coração apertar no peito, a culpa subindo das entranhas, prestes a jorrar como vômito. Tentei sorrir, no entanto logo desviei o olhar.

— Viu Donovan? — perguntei. — Ele ainda está aqui?

— Não sei — respondeu Zê, desvencilhando os braços livres das tiras apertadas e esfregando as marcas profundas que haviam deixado. — Não conseguimos ver nada com essas cortinas. Mas acho que sim. Quer dizer, por que motivo teria saído daqui?

— Volto já — falei, seguindo para a parte central da sala.

— Não pode soltá-lo — avisou Simon, enquanto continuava a cortar as tiras que prendiam Zê. — Ele não existe mais.

Balancei a cabeça, pensando na última vez que vira Donovan no confinamento da solitária e no que a alucinação me dissera: Você não precisa me libertar para me salvar.

— Eu sei — repliquei, mas fui o único a ouvir a resposta. Caminhei pela fileira de leitos, passei por três cubículos, e então afastei a cortina. O sarcófago de metal ainda estava ali, em ângulo contra a parede, o suporte de soro agora com quatro bolsas daquele pesadelo penduradas. Os tubos carregavam a morte líquida para os braços e o pescoço de uma criatura que não podia ser Donovan, mas que um dia fora.

Ele estava monstruoso, tanto no tamanho quanto na aparência. Todos os membros agora se encontravam grotescamente deformados, os músculos parecendo nacos de carne sob uma massa gordurosa. O pescoço era uma profusão de tendões tão tensa quanto cabos de aço, e, acima dele, uma face disforme, o maxilar e as bochechas cortados grosseiramente, ornamentados com cicatrizes mal curadas. Os olhos pratea- dos pousaram em mim sem emitir nem um sinal de reconhecimento; nem um sinal de traço humano.

— Donovan — foi a única palavra que saiu dos meus lábios. A boca se abriu, os dentes de tubarão brilhando à luz mortiça.

Pensei na primeira vez que o vira sorrir, em nossa cela, no dia em que chegara a Furnace. E durante todo o tempo desde então ele fora um raio de luz solar que mais de uma vez estivera entre mim e a ideia de me atirar do oitavo nível da prisão. Agora não havia ali mais nada daquele calor, nenhuma compaixão. Não havia nada, senão a ironia odiosa de um terno-preto. E aquilo partiu meu coração.

Donovan se inclinou para a frente, as correntes em torno de braços, pernas e peito rangendo, enquanto o metal lutava para contê-lo. Ele rosnou, o ruído parecendo o de uma máquina alojada na garganta deformada.

— Tudo bem — falei, incapaz de conter as lágrimas. — Tudo bem, D, vou tirá-lo daqui.

Ele tentou de novo se desvencilhar das correntes, balançando o caixão de aço maciço. O sorriso estava congelado em sua face, os olhos frios em uma promessa de morte caso conseguisse sair dali.

Eu sabia o que tinha que fazer.

Passei pela cortina que dava para o cubículo seguinte, o leito vazio e sem nenhum equipamento aparente, exceto pelo travesseiro sujo. Eu o peguei, segurei-o junto ao peito, enquanto as lágrimas continuavam a me escorrer pelo rosto. As imagens continuavam a desfilar diante de mim, os momentos que passara com Donovan lá em cima na prisão. A refeição que tínhamos feito com Monty na cozinha, a maneira como ele havia chorado ao comer a refeição. O olhar em seu rosto quando percebera que a fuga não era apenas um sonho. Sua excitação quando colocamos a última luva na Sala Dois, quando me perguntara se não devíamos adiantar a fuga, a véspera com a vigília sangrenta que chegara e o levara.

— Sinto muito, D — falei, as palavras não passando de soluços. — Sinto muito mesmo.

Caminhei até o sarcófago de Donovan, mal conseguindo enxergar por onde ia em meio à visão nublada. Ele começou a se debater de novo ao me ver, o grunhido cada vez mais feroz, terminando no que parecia ser um riso áspero. Foi a última gota. Aquela coisa na minha frente não era Donovan — não mais. Tudo o que havia de bom nele fora extirpado.

Fixei na mente a imagem que queria recordar dele, sentado a meu lado no beliche e rindo, batendo em minhas costas enquanto seu riso agradável invadia a cela, sempre fazendo meu humor melhorar.

Você não precisa me libertar para me salvar.

— Eu sei — repeti, levantando e comprimindo o travesseiro contra seu rosto. Soluçava tanto que mal conseguia segurá-lo, o corpo daquele monstro agitando-se tão desenfreadamente que alguns dos elos das correntes entortaram. Mas eles aguentaram, e eu pressionei, gemendo agora ao ouvir os suspiros abafados. Pressionei até sentir o corpo ceder e os tendões do pescoço relaxar. Pressionei até sentir a boca sob o travesseiro pender, um último lamento abafado desaparecendo no silêncio. E continuei pressionando, porque não conseguia suportar tirar o travesseiro e ver o que fizera.

— Agora você está livre — falei. Fechei os olhos e vi na mente o Donovan que tinha conhecido. Um último sorriso, e depois a imagem sumiu. — Você está livre. Livre. — E continuei dizendo isso, mesmo quando senti as mãos em meus ombros me afastando dali. Mergulhei a cabeça no pescoço de Zê, sentindo os soluços dele misturar-se aos meus. — Você está livre. Livre.

— Temos que ir — disse Simon, e permiti que ambos me arrastassem para fora do cubículo, as mãos ainda agarrando o travesseiro.

Não olhei para trás.


O INCINERADOR


Dessa vez, não corremos. Ainda que os sons de ternos-pretos pudessem ser ouvidos acima do zumbido incessante da sirene. Atravessamos a enfermaria, de algum modo sabendo que tínhamos bastante tempo, que iríamos conseguir.

Zê tirou o travesseiro de minhas mãos quando atingimos a cortina de plástico, depositando-o com ternura no chão. Pode parecer uma coisa idiota, mas não queria deixá-lo. Não consigo lhe dizer por quê.

— Você fez o que era certo — sussurrou Zê, enxugando as lágrimas dos olhos. — Ele não ia gostar que ficássemos ali em volta dele chorando. Vamos dar o fora daqui. Por Donovan.

Passamos pela porta, as tiras de plástico como dedos frios acariciando meu rosto. O corredor à frente estava deserto, as salas de cirurgia vazias atrás das trancas elétricas. Mais alguns passos, e estaríamos no incinerador. O ar ali era quente, e uma onda de pânico me percorreu ao me imaginar chegando lá e encontrando a fornalha ardendo, o caminho bloqueado por uma parede de fogo.

Mas, quando Simon abriu a porta, a sala à frente estava iluminada apenas pelas luzes frias do teto, as grades do incinerador totalmente abertas, como uma saudação de boas-vindas. Os corpos tinham desaparecido, mas agora havia outros ali, cinco deles, observando-nos com o que eu podia jurar ser inveja. Simon fechou a porta atrás de nós, abafando o rosnado de um cão. Os ternos-pretos estavam por perto, porém não conseguiriam nos deter. Não agora.

— Espero que tenha uma boa razão para eu estar aqui — disse Zê, fitando o incinerador. — Não me agrada nada a ideia de deitar de novo com esses caras mortos.

— É a nossa saída — expliquei. — O incinerador, a chaminé. Ela vai dar na superfície.

Zê franziu o cenho, depois o rosto se abriu em um sorriso.

— Você se superou, Alex — respondeu ele. — É brilhante. Temos as ferramentas, as coisas certas para escalar a chaminé?

— Não — respondeu Simon, dando um passo em direção à fornalha. — Vamos ter que fazer isso sem ajuda nenhuma.

— Bem, o que estamos esperando? — Zê foi atrás dele, o som de tiros elevando-se atrás de nós. Simon subiu no forno, depois Zê, e eu os segui, tentando não pensar nas cinzas que se amontoavam em volta de meus pés, que dançavam no ar e juntavam-se sobre minha boca.

Demorou algum tempo para reunirmos coragem suficiente e olhar para cima. Achávamos que poderia haver uma rede de metal presa ali. A chaminé poderia ter uns trinta centímetros de diâmetro. As paredes poderiam ser lisas como seda.

Mas, quando viramos a cabeça para cima, um suspiro de alívio coletivo reverberou pelas laterais de metal do incinerador. Acima de nós, estendendo-se pela escuridão, havia um túnel vertical de rocha áspera com talvez um metro e meio de largura.

E, lá de cima, chegava a nós o cheiro inconfundível de ar fresco.

Deixamos que ele nos banhasse um pouco, fechando os olhos e imaginando uma chuva de primavera ou a brisa do mar. Certo, tínhamos mais ou menos um quilômetro acima de nós, e nenhuma certeza se conseguiríamos percorrê-lo, mas, naquele momento, o vento fresco era tudo de que precisávamos. Era parte de um mundo que acreditávamos jamais ver de novo, jamais sentir, jamais respirar. Era um vínculo com a superfície, a grande fenda na armadura de Furnace. Banhados por esse ar, nos sentíamos tão bem quanto se já estivéssemos em liberdade.

— Vamos ficar aqui o dia todo, ou vamos subir? — perguntou Simon, estendendo a mão de mamute. Coloquei o pé nela, agarrando seu braço para me equilibrar, enquanto ele me erguia incinerador acima. Ajeitei-me dentro da chaminé, correndo as mãos pela rocha, até encontrar algo em que pudesse me pendurar.

— Achei! — disse, a voz subindo pela parede como se tentasse me impulsionar para cima. Podia sentir a fuligem e a fumaça de carne morta em meus dedos. — Cristo, essa coisa devia ser limpa de vez em quando.

Meu ombro doía muito onde tinha levado a mordida, mas ignorei a dor o máximo que pude, erguendo uma das pernas e apoiando-a na parede. A chaminé era estreita o suficiente para reter meu corpo, costas e pés em lados opostos, permitindo-me subir sem a necessidade de encontrar reentrâncias a cada poucos metros. Fui escalando em um ritmo dolorosamente lento, porém a cada distância vencida sentia a tensão desaparecer, o estresse e o pânico se dissolvendo em fumaça e subindo comigo.

Avançávamos para cima. Estávamos dando o fora dali.

Ouvi um resmungo abaixo de mim quando Zê começou a escalar, queixando-se sobre como se sentia desconfortável. Subimos mais um pouquinho, e então a voz metálica de Simon ressoou pela parede rochosa:

— Importam-se se me juntar a vocês?

— Só se não espiar debaixo da minha saia — brincou Zê.

Era uma subida difícil, mas todas as vezes que sentia a câimbra tomar conta de minhas pernas simplesmente as esticava, apoiando cada um dos braços em um lado da chaminé. Sem luz, não conseguia definir quanto havíamos subido, mas calculava mais ou menos uns quinze metros. Só faltam algumas centenas, pensei.

— Espero que nenhum de vocês precise mijar enquanto estivermos aqui — falou Simon. — A menos que me deixem antes passar na frente de vocês.

Tentei não rir, sabendo que isso afrouxaria a resistência de meu corpo, fazendo-me cair direto na superfície lá embaixo. Em vez disso, mudei a posição do corpo, tentando durante algum tempo usar músculos diferentes. Foi quando examinava a parede em busca de alguma reentrância, o que era impossível na escuridão sufocante, que notei algo acima de mim. Parecia um flash prateado, tão pequeno que mal o registrei. Pisquei para expulsar o suor que caíra sobre os olhos, tentando me concentrar naquele relance.

Uma moeda de prata, sem piscar. Era um rato. Tinha que ser. Como tinham conseguido chegar ali? Não importava. Naquele exato momento, estávamos presos em um cano estreito com ele, e não havia outra saída, senão descer.

Estava prestes a advertir os outros, quando algo em minha mente clareou. Por um segundo não entendi, ou talvez apenas não quisesse acreditar. Mas, quanto mais olhava para aquele ponto prateado, mais difícil era negar sua existência.

— Estão vendo aquilo? — perguntei.

— O quê? — indagou Zê. — Não consigo ver nada, com seu traseiro no caminho.

— Aquilo — falei, agarrando-me com firmeza à parede para que os dois conseguissem olhar além de mim. — Aquele ponto.

— Ponto? — murmurou Simon lá de baixo. — Está ficando louco?

— Não é possível — interrompeu Zê. — Será...?

— Não pode ser — acrescentou Simon.

— Mas é — falei, imaginando o calor daquilo na minha pele, embora soubesse ser impossível àquela distância. — É a luz do dia.

Estávamos tão ocupados em nossa euforia que nenhum de nós percebeu a mudança do ar na chaminé, agora mais denso. Tossi, achando que fosse apenas o esforço da subida. Então Simon também pigarreou, as manifestações de alegria de Zê transformando-se em um engasgo. Abri a boca, porém nenhum oxigênio fluiu para dentro dela, apenas uma nuvem acre que entupiu minha traqueia. Tossi de novo, dessa vez convencido de que havia estourado um dos pulmões.

— Oh, não — disse Simon. Não precisei olhar para baixo para saber a que ele se referia; de qualquer maneira, olhei. Tudo que vi foi o vulto de dois garotos abaixo de mim, espremendo-se contra a parede enquanto tentavam escapar das chamas que subiam.

Haviam acendido o incinerador.

Tentei aumentar a velocidade, tentei escalar a pedra com mais rapidez, na tentativa de chegar lá em cima mais rápido que a fumaça. Em vão. Não sabia se os ternos-pretos tinham descoberto nossa rota de fuga ou se era apenas outra das cruéis viradas do destino que Furnace era tão boa em prover, mas chegáramos a um beco sem saída.

Ouvi Simon tossir de novo, vezes demais, para conseguir respi- rar. Zê tinha a respiração tão entrecortada que lembrava um dos Ofegantes, os dedos agarrando minhas pernas em busca de apoio. No entanto, eu não tinha nenhum para lhe dar. Reagindo com uma cuspida, senti meu corpo perder a força. Tentei pressionar as costas contra a rocha, mas estava com espasmos, a fumaça dentro dos pulmões, dentro dos olhos.

Não havia sequer ar bastante para amaldiçoar os ternos-pretos, amaldiçoar o diretor, amaldiçoar nossa sorte, amaldiçoar Deus. A fumaça agora penetrava minha mente, uma nuvem densa ainda mais escura e mais suja que a parede da chaminé. Eu estava morrendo. Já não podia suportar.

Olhei novamente para o ponto de luz do dia pela última vez, mantendo os olhos abertos, embora ardessem demais. Então despenquei, chocando-me com Zê, nossas pernas atingindo Simon, todos nos precipitando para o fogo lá embaixo.

Pelo menos vai ser rápido, foi a última coisa que pensei. Pelo menos estaremos livres. E ponderei se Donovan estaria me esperando, seja lá para onde estivéssemos indo.

Mas não tivemos essa sorte. Não foi rápido. Não estávamos livres. Não me lembro de ter de fato atingido o inferno, pois a dor era muito grande para o corpo registrar. No entanto, pude ouvir os gritos, exclamações dos ternos-pretos, o solavanco do incinerador quando foi fechado. Pude sentir mãos sobre mim, arrastando-me, arrancando minha pele onde as chamas haviam penetrado.

E pude ver o diretor, os olhos sem vida fazendo-me desejar ter queimado até a morte. A visão se turvou antes de a audição desaparecer, mas ainda pude ouvi-lo rir — um riso selvagem e lunático de um feiticeiro. Quando esse som desapareceu, a voz era tão aterrorizante que penetrou minha mente, mesmo em meio à escuridão inconsciente em que se encontrava:

— Vejam! Vejam só o que os ratos trouxeram pra cá. Levem-nos para a cirurgia, preparem os Ofegantes. Ainda podemos usá-los.

E foi então que meus ouvidos silenciaram, os sentidos desertando de mim diante do que estava por vir. Rezei pela morte, rezei para ser levado dali, rezei para alguém me libertar da mesma maneira que eu fizera com Donovan. Mas, mesmo enquanto me sentia sendo carregado pela porta, soube que a morte não viria para mim ali, não naquele momento. Ela não se atreveria.

Porque o verdadeiro horror de Furnace só estava começando.

 

 

                                                   Alexander Gordon Smith         

 

 

 

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