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SOLSTICIO DE INVERNO - P.2 / Rosamunde Pilcher
SOLSTICIO DE INVERNO - P.2 / Rosamunde Pilcher

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

SOLSTICIO DE INVERNO

Segunda Parte

 

Lucy

Lucy ainda só andara de avião duas vezes na vida: uma delas quando fora a França, convidada a passar umas férias grandes com a família de uma colega da escola, e a segunda quando fora às ilhas do Canal com a mãe e a avó. Esta última viagem tivera lugar durante a Páscoa e tinham ficado hospedadas num hotel onde era preciso mudarem de roupa para o jantar. Achara as duas ocasiões tremendamente excitantes, mas daquela vez fizera um esforço para ter um ar perfeitamente descontraído, de modo a dar a impressão, a quem porventura olhasse para ela, de que era uma viajante madura e experimentada.

As suas roupas ajudavam: a mãe, talvez para atenuar sentimentos de culpa não assumidos, levara Lucy ao Gap, onde lhe comprara uma série de roupas encantadoras. Naquele momento vestia os jeans novos, quentes e debruados a algodão vermelho. As botas eram de camurça creme e com solas grossas de borracha, o casaco, encarnado, era forrado e acolchoado, como que parecendo que estava embrulhada num edredão. Também tinham comprado dois camisolões de gola alta, um azul-marinho e o outro branco, uma minissaia e dois pares de collants pretos grossos. Por fim, uma mochila, em lona azul-marinho debruada a encarnado, onde Lucy metera o seu diário, porta-moedas, pente e escova do cabelo e uma tablete de chocolate. Lavara o cabelo na noite anterior; naquela manhã escovara-o e penteara-o para trás, fazendo um rabo-de-cavalo que prendeu com uma fita de algodão encarnada.

Carrie parecia, como sempre, imensamente elegante nas suas botas altas, casaco canelado e chapéu de pele de raposa preta. Lucy dava-se conta das cabeças que se voltavam para Carrie quando esta passava, a empurrar o seu carrinho de bagagens. O único senão era a pobre Carrie estar com um bocado de frio. Não era um tipo de frio que a fizesse parecer feia, apenas um tudo nada frágil. Dissera que começara a sentir-se adoentada um dia ou dois atrás. havia muita gripe por ali , mas era apenas uma constipação para a qual já tomara medicamentos, e ficaria óptima quando começasse a respirar o ar frio e puro da Escócia.

Fizeram o check in, passaram a segurança e Lucy, quando ficaram a aguardar que chamassem para o seu voo, começou a sentir-se em segurança. Desde que tinham feito planos para o Natal, ela não só contava os dias como também rezava para que nenhum dos seus pressentimentos nervosos se concretizasse. Tinha a certeza de que acabaria por acontecer alguma coisa que impediria a sua ida com Carrie. Alguém adoeceria, ou a avó decidiria, irrevogavelmente, que Lucy não deveria ficar na companhia de Elfrida Phipps, que não tinha em muito boa conta, e a quem Lucy estava ansiosa por conhecer. Quem sabe se, na América, Randall Fisher não teria um ataque e morreria, ou o telefone tocasse em Londres a avisar Lucy de que não deveria ir.

Porém, não houve nenhuma desgraça, e viram-se, finalmente, dentro do avião que voava rumo ao norte e, se este não caísse, já nada poderia sustê-las. Sentada, com a testa encostada à escotilha, olhava a imensidão do território inglês que se espraiava em baixo, fazendo lembrar uma colcha aos quadrados esverdeados e acinzentados onde se reflectiam os contornos das sombras das nuvens que passavam lentamente.

O extraordinário é que estava uma manhã linda, fria mas sem chuva nem um vento de enregelar os ossos. Acima das nuvens, o céu era de um azul-safira claro e o horizonte apresentava-se enevoado. Lucy imaginou as pessoas, no chão, a olharem para cima e verem aquele avião, interrogando-se para onde iria. Ao olhar para baixo, para o que pareciam ser faixas de terra desabitada, o único vestígio de qualquer tipo de indústria reduzia-se a uma minúscula coluna de fumo que se erguia de um aglomerado de colunas de refrigeração. Perguntou a si mesma qual era a vida real, quais eram as pessoas de verdade.

A hospedeira de bordo trouxe pequenos tabuleiros com alimentos: pãezinhos, manteiga, marmelada, uma fatia de bacon, um pequeno cacho de uvas frescas. Havia café ou chá, e tanto Lucy como Carrie preferiram café. Tudo era pequenino, em tamanho de boneca, impecavelmente encaixado num pequeno tabuleiro de plástico. Lucy tinha fome, por isso comeu tudo, e ao ver que Carrie não queria o seu pãozinho, também o devorou. Depois de levarem os tabuleiros, Carrie pôs-se a ler o jornal e Lucy virou-se de novo para a janela, pois não queria perder um centímetro que fosse da Escócia.

Estava convencida de que encontrariam chuva ou até mesmo neve, no entanto, o céu continuava maravilhosamente límpido. Quando o avião começou a perder altura, o terreno em baixo foi ganhando contornos lentamente. Então viu neve no cimo das montanhas e muitas zonas escuras, que depois veio a saber serem plantações de coníferas, depois o brilho azulado do mar, barcos, e uma ponte que se estendia sobre um estuário amplo. O avião inclinou-se para um dos lados, deu uma volta antes de se fazer ao solo, e a ocidente erguiam-se bastiões montanhosos cobertos de neve, tudo a brilhar sob o sol pálido. Lucy pensou que não poderiam parecer mais belos, afirmando a si mesma que isso só poderia ser um bom augúrio.

Carrie dobrou o jornal e guardou-o. Sorriram uma para a outra.

Tudo bem? perguntou Carrie. Lucy assentiu.

Aterraram, sentindo os pneus enormes baterem na pista alcatroada. Avistou o edifício do terminal, que se parecia vagamente com um clube de golfe avantajado, onde havia bandeiras a adejar na brisa forte.

Devem estar à nossa espera observou Carrie.

Quem?

Um táxi de Creagan. O motorista chama-se Alec Dobbs.

Como é que o conheceremos?

Deve trazer um papel com o nome Sutton escrito.

Então, depois de irem buscar as suas malas à faixa da saída de bagagens, viram-no em frente das chegadas: um homem de constituição robusta, com um blusão acolchoado e um boné de tweed desbotado enterrado até às orelhas. Por perto viam-se outros indivíduos, igualmente fascinantes: um idoso magro de chapéu de feltro, uma mulher de calças, com o cabelo branco despenteado e as faces bronzeadas pelo sol e, o melhor de todos, um homem de kilt desbotado e muito usado. Lucy não conseguia desviar o olhar, porque os joelhos azulados do homem pareciam-lhe enregelados.

Folgo muito em vê-las! exclamou Alec Dobbs. Fizeram boa viagem?

Não tinha nada a ver com os motoristas de táxi do costume, parecia mais um velho amigo. Apertou-lhes as mãos, pegou nas malas como se nada pesassem e foi à frente. O Sol, baixo no céu, brilhava fracamente e fazia muito mais frio que em Londres, além de que ainda se viam uns restos de neve à volta do parque de estacionamento. No ar pairava um cheiro a pinheiros, e quando Lucy respirou fundo sentiu o interior do nariz tão frio que espirrou. Nunca fora à Suíça, mas achava que seria parecido, sol, neve e pinheiros, tudo reunido sob uma abóbada de céu prístino e desanuviado.

O carro de Alec era um Subaru de tracção às quatro rodas. Alec, enquanto guardava as malas no porta-bagagens do carro, foi explicando:

Tenho outro carro, um Rover dos grandes, que seria mais confortável para as senhoras, mas podemos ter que atravessar terreno difícil na Black Isle e ainda há neve.

Carrie sentou-se no banco de trás e Lucy instalou-se ao lado do motorista.

Ainda há muita neve? quis saber a jovem, pois nunca tivera um Natal branco e estava ansiosa por isso. Um Natal com neve viria mesmo a calhar.

Já não é muita, mas ainda cai, o que quer dizer que vem aí mais. Falava com voz suave precisa e delicada. Era a primeira vez que Lucy ouvia o sotaque de Sutherland.

Quanto tempo leva a viagem daqui a Creagan?

Cerca de uma hora e um quarto. Não mais.

Lucy consultou o relógio. Eram onze e um quarto. Chegariam por volta do meio-dia e meia hora. A tempo do almoço. Apesar dos dois pãezinhos que comera, começava a ter fome de novo. Esperava que fosse algo quente e substancial.

É a primeira vez que vem a Creagan? perguntou o taxista.

Nunca tinha vindo à Escócia.

Pois bem, vai gostar muito. E ficará instalada numa bela casa. Esteve vazia durante demasiado tempo. É bom ter gente a viver nela outra vez.

Carrie inclinou-se para a frente.

Como está Elfrida? perguntou. Mistress Phipps.

Está óptima. Costumo vê-la por lá, a fazer as suas compras, a passear o cão. Ela é que veio reservar o táxi para as vir buscar. Esta manhã telefonou para ter a certeza de que não me esquecera.

O senhor vive em Creagan? perguntou Lucy.

Desde sempre. Nasci lá, e o meu pai já lá vivia. Quando ele se reformou, fiquei-lhe com o negócio.

Do táxi?

Não só do táxi. Lucy ficou intrigada.

Que mais?

Carros funerários - contou-lhe ele, com uma ponta de humor na voz. Sou o cangalheiro lá do sítio.

Lucy calou-se num instante.

Foi uma viagem espectacular. A estrada passava por campos cultivados e pontes, e no terreno difícil os pneus do Subaru faziam a neve ranger debaixo de si. Seguia ao longo das margens de um extenso lago criado por comportas, que se enchia ou esvaziava ao sabor das marés, e através de aldeolas com pequenas casas erguidas em pedra cinzenta, assim como pubs, lojas e igrejas de aspecto robusto, rodeadas por velhos cemitérios repletos de lápides inclinadas e cobertas de líquenes. Por fim, surgiu a última ponte, sobre mais um estuário que se estendia como um longo braço de água azul a desaparecer por entre as dobras das colinas a ocidente.

Alec informou:

Daqui a uns dez minutos já lá estamos.

Parte do entusiasmo morreu imediatamente e Lucy começou a sentir-se um pouco nervosa. Não se tratava apenas de chegar a um sítio desconhecido, a uma casa estranha, mas era, sim, a perspectiva de conhecer, finalmente, os seus anfitriões, Elfrida e Oscar. Elfrida não a preocupava tanto, porque Carrie falara muito nela, ao ponto de achar

que ia encontrar uma pessoa de idade indefinida e tremendamente divertida. Oscar Blundell, porém, o amigo de Elfrida, era um caso completamente diferente. Para começar, era um homem, sexo com o qual Lucy não estava nada habituada a lidar.

Mas isso não era tudo. Carrie falara-lhe de Oscar e dos motivos pelos quais Elfrida viera fazer-lhe companhia até àquela pequena cidade do Norte da Escócia. A mulher e a filha, então com doze anos e chamada Francesca, tinham morrido num acidente de automóvel terrível. Carrie não se alongara sobre a catástrofe e fugira às perguntas horrorizadas de Lucy. Dissera simplesmente que fora um acidente, sem culpa de ninguém, mas que Oscar ainda não se refizera do choque.

Francesca tinha doze anos. Lucy, catorze.

«Será que ele me quer lá?», perguntara. «Não será horrível para ele ter uma pessoa da minha idade lá em casa? Achas que me odiará?»

Carrie sorrira e abraçara-a.

«Falei nesse aspecto a Elfrida, pelo telefone. Ela conversou com Oscar que fez absoluta questão que lá fôssemos passar o Natal. E como a casa onde vamos ficar é dele, seremos, a seu convite, suas hóspedes. Além disso, nunca ninguém conseguiria odiar-te.»

Ainda assim, era um pouco complicado e assustador. Era uma altura em que Lucy ansiava por tranquilidade. Os problemas que passara em casa tinham-lhe bastado.

Foi então que, deveras repentinamente, se viram rodeadas de um ambiente marítimo: dunas altas em cada lado da estrada, onde cresciam pinheiros atrofiados e aglomerados de urze e se notava também uma certa luz, reflectida pelo oceano. Lucy baixou o vidro, sentindo o cheiro a maresia. A estrada descia colina abaixo e, mais à frente, espraiava-se a pequena cidade. Mal se deram conta, entravam já na rua principal. Não era cinzenta nem sombria como as outras por onde já tinham passado, mas sim construída em arenito dourado que parecia reflectir o débil sol de Inverno. A rua era ladeada por casas que se erguiam do lado de lá de jardins murados, e havia edifícios e árvores bonitas, assim como uma inesperada sensação de prosperidade e espaço.

Carrie, que pouco falara durante a viagem, observou então:

Que extraordinário. Faz lembrar Cotswolds. É como uma cidade de Cotswolds.

Alec sorriu.

Muitos visitantes fazem essa observação, mas eu nunca estive em Cotswolds.

Pedra dourada. Ruas largas. E os jardins...

O que muitas pessoas ignoram é que, por causa da corrente do Golfo, gozamos de um clima parecido com o de Eastbourne. Pode haver tempestades a tumultuar a outra vertente das colinas, que nós aqui jogamos golfe ou passeamos na praia ao sol.

É uma espécie de microclima observou Lucy.

Exactamente.

A rua alargou-se, dando lugar a uma praça no meio da qual se erguia uma igreja bonita e grande, assim como um velho cemitério, tudo rodeado por um muro de pedra. No alto da igreja via-se um cata-vento dourado, por cima do qual rodopiavam gaivotas e gralhas. A chiadeira das gaivotas fazia lembrar as férias de Verão. Os ponteiros do relógio marcavam meio-dia e vinte e cinco minutos.

Fizemos uma boa média observou Alec. Continuou a guiar, a velocidade moderada, virou à direita a seguir

ao pátio da igreja e parou à beira do passeio.

É aqui? perguntou Lucy. O taxista desligou o motor.

É aqui. Apearam-se do Subaru, mas, antes de Alec ter sequer tempo para abrir o fecho do portão, ouviram ladrar furiosamente e, logo a seguir, a porta da entrada escancarou-se. Elfrida Phipps lançou-se pelo carreiro adiante, seguida pelo seu cão vociferante.

Carrie! Oh, minha querida. Rodeou Carrie com os braços e as duas abraçaram-se com força. Já chegaste, já chegaste. Estava tão ansiosa, e entusiasmada, que mal podia esperar!

Lucy observava, ligeiramente afastada. Elfrida era muito alta e magra, e tinha uma cabeleira cor de marmelada, que usava descontraidamente solta. Vestia calças de uma bombazina particularmente espalhafatosa e um enorme camisolão cinzento. Tinha sombra azul nas pálpebras e muito baton nos lábios. Lucy percebeu então porque é que a sua avó não a aprovava. Ao beijar Carrie, deixou-lhe a cara suja de baton.

Elfrida! Estás com um ar magnífico. Não há dúvida de que te dás bem na Escócia! exclamou Carrie.

Querida, isto aqui é o paraíso. De gelar até aos ossos, mas o paraíso.

Apresento-te Lucy.

Mas, claro. Riu-se. Não achas o cúmulo, Lucy? Somos parentes e nunca pusemos os olhos em cima uma da outra. Mas o teu avô era o meu primo preferido e passámos óptimos bocados juntos. Pousou as mãos nos ombros da jovem. Deixa-me olhar para ti. Sim, és como eu imaginava. Bonita como um quadro. Este é Horace, o meu cão, que, fico contente em dizer, parou de ladrar. Tem estado ansioso por te conhecer porque espera que o leves a dar grandes passeios pela praia. Oh, Alec, tem aí as malas. É tudo? Não se importa de as levar lá para cima? Vamos, entrem, saiam do frio e venham conhecer Oscar.

Percorreram o carreiro e entraram em casa em fila indiana, Elfrida à frente, a seguir o cão e depois Carrie, Lucy e, por fim, Alec, carregado com a bagagem. Este fechou a porta com o pé depois de entrar e todos atravessaram um vestíbulo comprido, ao fundo do qual ficava uma escadaria ampla, por onde subiram. Lucy gostou da sensação que a casa lhe transmitia: solidez, segurança, com corrimões robustos e uma alcatifa espessa a tapar os degraus. Assim como o odor a madeira antiga encerada e a móveis muito usados, além do ligeiro cheiro a comida em preparação que vinha da cozinha. Elfrida ainda não se calara.

Como foi o voo? Não apanharam muitos poços de ar? Felizmente o tempo manteve-se sereno.

Tinham chegado ao patamar do primeiro piso. A bonita escadaria subia até ao andar de cima. Ao fundo do patamar, uma faixa de luz saía de uma fresta da porta.

Elfrida levantou a voz para chamar:

Oscar! Já chegaram! Depois, em voz normal: Ele está na sala de estar. Vocês duas entrem e cumprimentem-no, enquanto vou dizer a Alec para onde vão as malas. A de Carrie fica aqui, Alec, e a de Lucy vai lá para cima. Consegue subir mais um andar?

Carrie olhou para Lucy e sorriu-lhe tranquilizadoramente. Pegou-lhe na mão, o que era reconfortante, e ambas empurraram a porta entreaberta, onde o sol batia, e entraram numa bela sala de estar de paredes brancas, esparsamente mobilada e cheia de luz. Na lareira ardia um pequeno fogo e de uma janela alta, arqueada, que deitava para a rua via-se a igreja: tão próxima que dava a impressão de se poder tocar nela com a mão.

Oscar aguardava-as, de pé, com as costas voltadas para a lareira. Era alto como Elfrida mas não tão magro. Era senhor de uma bela cabeça, onde o rosto, tranquilo e bondoso, não enrugado mas estranhamente liso, era encimado por uma cabeleira grisalha. Tinha os olhos encapuçados e descaídos nos cantos. Envergava uma camisa aos quadrados e uma gravata de lã e, por cima, um sweater azul.

Carrie foi a primeira a falar:

Como está, Oscar? Sou Carrie Sutton.

Minha querida... Aproximou-se para as cumprimentar e Lucy pensou que ele devia sentir-se um pouco atónito por estar a dar as boas-vindas a uma pessoa tão sensacionalmente glamorosa como Carrie. Mas encantado, também. Muito prazer em conhecê-la. Fizeram boa viagem? Apertaram as mãos.

Perfeita - respondeu-lhe Carrie. Sem problemas.

E Alec deu logo convosco? Elfrida tem estado nervosíssima a manhã toda, sempre a correr para a janela para ver se chegavam.

Foi muita gentileza sua receber-nos. Carrie olhou em volta. E que casa maravilhosa a sua.

Só sou dono de metade.

Isso não a torna menos especial. Largou a mão a Lucy e rodeou-lhe os ombros com o braço. Esta é Lucy Wesley, minha sobrinha.

Lucy tentou controlar o nervosismo. Cumprimentou:

Como está?

Baixou os olhos, mas depois fez um esforço para o olhar directamente. Durante o que pareceu ser muito tempo, ele nada disse. Lucy sabia que devia estar a pensar na própria filha, morta aos doze anos. Sabia que estava provavelmente a compará-la a Francesca e a sentir um misto de emoções, entre elas dor. Esperava não sair desfavorecida dessa comparação. Pouco mais podia fazer. Subitamente, ele sorriu-lhe. agarrou-lhe na mão com carinho e afabilidade e, a partir daí, ela deixou de se sentir nervosa.

Com que então és Lucy.

É verdade.

E vais ter de dormir no sótão. Carrie riu-se.

O Oscar fala como se isso não fosse muito tentador.

Os sótãos nunca parecem muito tentadores. Nem isso, nem os baús velhos, nem as cabeças de alces embalsamadas. Mas não te preocupes, Lucy, Elfrida tornou-o irresistível para ti.

Largou então a mão de Lucy e olhou para o relógio da igreja através da janela.

Já é meio-dia e meia hora. Que tal irem conhecer os vossos quartos e instalarem-se? Depois, tomaremos uma bebida e almoçaremos. Elfrida passou grande parte da manhã a preparar uma empada à moda do campo. Achou que precisariam de algo substancial para comer depois de uma viagem tão longa.

Lucy sentiu-se animada. O pior dos encontros iniciais passara. Elfrida era divertida e Oscar gentil. E Elfrida dissera que ela era bonita como uma pintura. E iam comer empada à moda do campo, ao almoço.

Almoçaram na cozinha.

Temos sala de jantar explicou Elfrida , mas é tão escura e sombria que nunca comemos lá. E como não tem ligação directa com a cozinha, teria de passar a vida de um lado para o outro com os pratos.

Aqui está-se muito melhor observou Carrie, opinião com a qual Lucy concordou.

Dispunham de uma mesa comprida, uma toalha aos quadrados, cadeiras de madeira desirmanadas, tudo confortavelmente informal. Lucy sabia que Dodie morreria se lhe pedissem que fizesse alguma coisa em condições tão antiquadas: por um lado, a cozinha era um bocado escura, visto ficar voltada para o muro do quintal vizinho. As janelas tinham barras de ferro para impedir a entrada de pessoas indesejáveis ou, então, para impedir a fuga de cozinheiras e auxiliares estafadas. Mas tal não impedia que, tal como o resto da casa, transmitisse uma agradável sensação de conforto. Também havia um enorme guarda-louça, pintado de vermelho, onde Se via grande variedade de louça e ganchos para pendurar canecas e chávenas.

Comeram a empada à moda do campo, que estava uma delícia, e Depois um pudim de maçã e merengue, com natas à parte. No fím, Carrie e Elfrida tomaram um café. Oscar, porém, não quis. Em vez disso, consultou o relógio e disse:

Se Horace e eu não sairmos já para o nosso passeio, não estaremos em casa antes de anoitecer. Olhou para Lucy, no outro lado da mesa. Gostarias de vir connosco?

Dar um passeio?

Podíamos ir pela praia. Assim já ficavas a conhecer o caminho. A jovem ficou muito contente com o convite.

Sim, gostaria muito.

Talvez não fosse má ideia, Oscar sugeriu Elfrida , dares primeiro uma volta pela cidade com ela e mostrares-lhe onde ficam as lojas, não levam mais de cinco minutos, e depois iam então até às dunas.

Sem dúvida, se ela quiser. Tens algum casaco bem quente, Lucy?

Tenho um novo.

E um chapéu que aqueça. O vento que sopra do mar é capaz de te congelar as orelhas.

Sim, também tenho um.

Então vai preparar-te, para sairmos juntos.

Posso ajudar a levantar a mesa? ofereceu-se Lucy. Elfrida riu-se.

Que menina bem-educada és. Claro que não. Carrie e eu tomamos conta disso quando acabarmos de tomar café. Vai com o Oscar, antes que fique demasiado frio.

Cinco minutos mais tarde, saíram juntos, o homem idoso, a rapariga e o cão. Horace ia pela trela, levado por Lucy, que tinha as mãos enluvadas. Enterrara o seu chapéu de lã grossa sobre as orelhas e correra o fecho do casaco novo até acima. Oscar levava o seu casacão impermeável, com o forro aos quadrados, e um chapéu de tweed que, na sua opinião, lhe ficava bem, dando-lhe um ar distinto e agradável.

Quando iam a passar o portão, Oscar disse à jovem:

Vamos primeiro à cidade.

Assim fizeram. Desceram a rua, contornaram o muro da igreja, passaram pela loja de bricabraque, a farmácia, a livraria, o talho e o jornaleiro.

É aqui que venho buscar o jornal todas as manhãs. Se um dia me der a preguiça e quiser ficar na cama até mais tarde, podes fazê-lo por mim sugeriu Oscar.

Seguiram-se as bombas da gasolina, uma loja cheia de camisolas tricotadas à mão, um hotel pequeno, uma montra cheia de brinquedos para a praia e o supermercado. Lucy deteve-se sob uma árvore despida de folhas, e olhou através do portão de ferro para uma porta lateral da igreja que, ao cimo de um carreiro, estava aberta.

Algo a fez sentir vontade de entrar. Dali conseguia ver uma entrada austeramente alcatifada, logo seguida de uma porta interior, essa fechada.

A igreja está aberta? perguntou.

Sempre. Só aquela porta. Para visitantes, suponho.

Como é por dentro?

Não sei, Lucy. Nunca lá entrei.

Podemos lá dar um pulinho agora? Só por um instante? Oscar hesitou:

Eu...

Oh, entremos. As igrejas são tão bonitas quando estão vazias! São como as ruas sem ninguém. Pode ver-se o seu formato. Antes de se encherem de novo.

Oscar respirou fundo e Lucy ainda pensou que iria recusar, dizer, «Não temos tempo», ou «Fica para outro dia». No entanto, ouviu-o deixar escapar, como se fosse um suspiro profundo, «Está bem».

Lucy abriu o portão, que rangeu nos seus gonzos, e percorreram o carreiro. Dentro do pequeno vestíbulo encontraram um aviso:

PERMITIDA A ENTRADA DE VISITANTES, MAS NÃO DE CÃES.

Prenderam a ponta da trela de Horace ao manipulo da porta de entrada e deixaram-no sentado em cima do capacho. Não pareceu ficar nada satisfeito.

No interior, a igreja estava vazia. As suas passadas soaram no chão coberto de lajes, fazendo eco no tecto. A luz do Sol entrava pelas janelas de vidros coloridos. Três dos braços do formato cruciforme estavam ocupados por filas de bancos e genuflexórios, todos voltados para a coxia central, de modo que era um pouco como se fossem três igrejas. As paredes eram em pedra, o tecto arqueado ficava bem no alto, e os espaços entre as vigas estavam pintados de azul-celeste.

Lucy deu uma volta a examinar tudo. Leu as palavras inscritas em velhas placas, sobre pessoas de outras eras que tinham sido fiéis servidores de Deus e visitas frequentes da igreja. Havia muitos nomes de nobres e de pessoas com títulos, assim como outros, vulgares. Era tudo muito maior do que ela calculara e quando acabou de inspeccionar os pormenores, desde a pia ornamentada aos genuflexórios com o estofo elegantemente cosido à mão, já Oscar se fartara de estar de pé e sentara-se à sua espera no banco da frente.

Sentindo remorsos, Lucy foi sentar-se ao seu lado.

Desculpe.

Porquê?

Por ter demorado tanto.

Fico contente em ver que te interessas por estas coisas.

Carrie contou-me que foi organista. Que ensinava música.

É verdade. Também fui regente de coro Baixou os olhos para Lucy. Sabes tocar piano?

- Não. Nunca aprendi. A minha mãe disse que isso roubaria demasiado tempo às lições, passatempos, trabalhos de casa e outras coisas. Alem disso, no apartamento da minha avó não há nenhum piano.

Gostarias de tocar?

Sim, acho que sim.

Nunca é demasiado tarde para começar. Ouves música?

Lucy encolheu os ombros.

Só música pop e do género. Ficou pensativa. Às vezes lá na escola levam-nos a concertos. Este Verão fomos a um concerto ao ar livre no Regent Park. Havia um palco enorme e uma orquestra a sério.

Oscar sorriu.

Choveu?

Não, estava uma noite linda. E no final tocaram a Music for the Royal Firework e houve fogo-de-artifício ao mesmo tempo. Adorei. A música, os estrondos, as luzes e os foguetes, era tudo ao mesmo tempo, o que tornava o espectáculo duplamente excitante. Agora, sempre que oiço a mesma música, vejo o céu da noite encher-se de luzes brilhantes com vários desenhos.

Uma experiência e tanto.

É verdade. Foi lindo.

Ergueu os olhos, de boca aberta, para a janela de vidros coloridos mesmo em frente. Maria e o Menino Jesus.

Não gostaria nada de fazer anos a meio do Inverno. Muito menos no Natal disse.

Porque não?

Bem, por um lado, se calhar só recebia um presente. Por outro, normalmente está mau tempo.

Quando é que fazes anos?

Em Julho. Muito melhor. O único senão é ainda ter aulas.

Ainda assim, é Verão.

Pois é. Oscar reflectiu por um momento e depois observou:

Na verdade, não acho que Jesus tenha nascido no Inverno. Acho que o mais provável é ter sido na Primavera.

A sério? E porque acha isso?

Bem, os pastores andavam a guardar os seus rebanhos, o que devia significar que era tempo dos cordeiros nascerem, de modo que tinham de estar alerta em relação aos lobos, para que não lhos fossem comer. Além disso, existem dados científicos que nos mostram que, na altura, há dois mil anos, se via uma estrela estranhamente brilhante no céu, precisamente naquele lugar.

Então porque não celebramos o Natal na Primavera?

Creio que os primeiros cristãos foram uns espertalhões. Limitaram-se a adaptar o que lhes fora legado pelos habitantes pagãos dos países que convertiam. O solsticio de Inverno fora sempre celebrado no dia mais curto do ano. Penso que esses pré-cristãos, para se animar, faziam uma espécie de festa, acendiam fogueiras, bebiam álcool, acendiam velas, apanhavam azevinho e faziam bolos. Oscar sorriu. Embriagavam-se e entregavam-se a práticas lascivas.

Quer dizer que os primeiros cristãos utilizaram a mesma festa para isso tudo?

Algo do género.

Mas também lhe juntaram outros pormenores.

A sua crença no Filho de Deus.

Compreendo. Vendo bem, parecia uma adaptação muito prática. E quanto às árvores de Natal?

Vieram da Alemanha. Trazidas por Alberto, o príncipe consorte da rainha Vitória.

E os perus?

Os perus vieram da América. Antes disso, a ave tradicional era o ganso.

E os cânticos?

Uns antigos, outros novos.

E os brindes? Que significam? Nunca soube.

Apenas uma desculpa para os copos. Com uma cerveja condimentada.

E as peúgas?

Acho que nunca soube de onde veio o costume das peúgas. Lucy ficou calada durante algum tempo. Em seguida perguntou:

Gosta do Natal?

De algumas partes respondeu-lhe Oscar, mostrando-se cauteloso.

Na verdade, não aprecio muito. Há muito entusiasmo e depois... fica-se como que... desiludido.

O que prova que nunca devemos alimentar demasiadas expectativas.

Lá no alto, por cima deles, o relógio da igreja deu as duas e meia da tarde. Os toques eram distantes, melodiosos, abafados.

Acho que já estamos aqui há demasiado tempo acrescentou Oscar.

Lucy ficou em silêncio. A igreja estava muito sossegada. Outros sons chegavam até eles, vindos de longe: um carro que passava, a voz de um homem a falar alto, o piar prolongado de alguma gaivota a rodopiar por cima da torre do relógio. Olhou para cima e reparou, pela primeira vez, numas lâmpadas colocadas bem no alto, mesmo junto da dobra da cornija escavada na pedra. Naquele momento encontravam-se apagadas, razão pela qual não dera por elas, mas...

Observou:

Este espaço deve ficar lindo com todas aquelas luzes acesas. Devem parecer holofotes, assim como a luz do Sol, a brilhar no tecto azul.

Penso que as acendam na missa ao domingo.

Gostaria de ver. Oscar disse calmamente:

Se quiseres, podes vir. A seguir pôs-se de pé. Vem daí. Era suposto darmos um longo passeio. Ainda temos de ir até à praia e já não deve faltar muito para escurecer.

 

Carrie

Oscar, Lucy e Horace tinham saído para o seu passeio. A porta pesada da casa fechou-se após a sua passagem e Carrie e Elfrida ficaram sozinhas, ainda sentadas à mesa com os restos do almoço e o café à sua frente. Sorriram uma à outra. Duas mulheres de gerações diferentes, mas velhas amigas que já não estavam juntas há demasiado tempo, a desfrutarem naquele momento, finalmente, de uma privacidade tranquila.

Que homem excelente! observou Carrie.

Achava que Elfrida, apesar dos seus sessenta e dois anos, possuía a vitalidade e a energia de uma jovem. A esbeltez ficava-lhe bem, assim como o cabelo alaranjado negligentemente penteado, as roupas excêntricas e o baton berrante, pormenores que contrariavam saudavelmente os anos avançados. A sua simples presença inculcava energia.

É, não é? concordou, com satisfação.

Estou muito contente por terem feito amizade. Lucy estava apreensiva. Falei-lhe, como não podia deixar de ser, do que aconteceu à mulher e à filha e ela ficou com receio que Oscar não a quisesse aqui por lhe fazer lembrar Francesca. Achou que talvez ficasse perturbado com a sua presença. Que chegasse mesmo a detestá-la.

Elfrida mostrou-se compreensiva.

Pobre menina, mas perspicaz, sem dúvida. Contudo, estou convencida de que Oscar não é capaz de detestar quem quer que seja. E mesmo que assim fosse, jamais o diria ou demonstraria. Tivemos uma pequena divergência quando cá chegámos, por causa de um pobre velhote muito maçador a quem precisámos de ir pedir a chave aqui da casa. Reconheço que era de fazer perder a paciência a um santo; não parava de dizer a Oscar que o iria meter no clube de golfe e que tinham de se encontrar para tomar um copo. Oscar ficou aterrorizado. Passou as duas semanas seguintes escondido dentro de casa ou a atravessar a rua apressadamente com o chapéu enfiado até às orelhas, como um criminoso, com um medo mortal de encontrar o major Bilhcliffe e ter de o convidar a tomar um gim. Depois descobriu que o velhote estava muito doente. Encontrou-o metido na cama em muito mau estado. Ofereceu-se logo para o levar ao hospital de Inverness no seu carro, pois ficou cheio de pena dele. O major Billicliffe é viúvo e vive completamente sozinho. Como vês, Oscar não é nada bom a detestar pessoas. Jamais poderia ser comparado com uma dessas pessoas que passam a vida zangadas com o mundo.

Parece-me um amor de pessoa. Só espero que não seja demasiado complicado para vocês terem-nos aqui às duas.

É uma maravilha, precisamente aquilo de que estávamos a precisar.

Não terá de ser um Natal cheio de animação. Lucy e eu temos expectativas relativamente modestas em relação à que é conhecida pela estação festiva.

Nós também. Embora Oscar tenha encomendado uma árvore de Natal, às escondidas, assim que soube da vossa vinda.

Lucy vai adorar. Pode decorá-la. Pobre menina, a minha mãe nunca teve grande jeito para criar um ambiente mágico e Nicola é demasiado preguiçosa. No entanto, acho que a minha mãe te está verdadeiramente agradecida, porque assim já pode ir passar as suas animadas férias em Bournemouth de consciência tranquila.

Como é que ela está?

Na mesma. Não era preciso dizer mais.

E Nicola?

Também na mesma. Ao contrário do vinho, não melhoram com o tempo.

E o teu pai?

Não o tenho visto, mas falámos ao telefone.

Em Outubro passei um mês maravilhoso com eles em Emblo. Quando cheguei a casa é que recebi esta notícia horrível sobre o que acontecera a Oscar. Foi como sair de um mundo e entrar noutro. A vida pode mudar do dia para a noite.

Eu sei. Carrie pensou em Andreas, mas depois afastou o pensamento. Eu sei repetiu.

Fez-se silêncio. Carrie terminou o café e pousou a pequena chávena. Sabia o que viria a seguir, e assim foi.

E tu, Carrie?

Eu? Estou óptima.

Não me parece. Por um lado, pareces cansada e estás pálida. E terrivelmente magra.

Olha quem fala. Tens de admitir, Elfrida, que nenhuma de nós ganharia jamais o prémio da mulher mais voluptuosa.

Porque é que voltaste da Áustria tão de repente? Carrie encolheu os ombros.

Oh, foram Impulsos.

Não acredito nisso.

Prometo que um dia te conto. Agora não.

Não estás doente, pois não?

Não. Estou um pouco constipada e também fatigada. Mas doente, não.

Largaste o emprego?

Larguei.

Tencionas arranjar outro?

Acho que sim. Na verdade, a agência de viagens para a qual trabalhei no estrangeiro telefonou-me um dia destes e fui falar com eles. Ofereceram-me um lugar, bastante bom, na sucursal em Londres. Ainda não dei uma resposta, mas é provável que aceite, quando voltar, depois do Natal.

E a tua casa?

Aluguei-a até Fevereiro. Até lá, moro com uns amigos ou alugo uma.

Sinto-me muito triste por não poder ajudar.

Ao receber-nos aqui já estás a ajudar.

Não é nada de excitante.

Não ando com vontade de nada de excitante.

Elfrida ficou calada. Terminou o seu café, depois suspirou e passou a mão pelo indomável cabelo cor de fogo.

Nesse caso, não digo mais nada. E agora conta-me , mostrou-se novamente alegre , que gostarias de fazer hoje à tarde? Talvez uma sesta? Vou preparar-te um saco de água quente.

Cama e saco de água quente. Carrie não tinha memória da última vez em que alguém a apaparicara. Elfrida dissera: «Pareces cansada.» Depois: «Que tal uma sesta?» Ela passara demasiados anos a ser forte, a cuidar dos outros e dos seus problemas: cancelar reservas, arranjar reboques para esquis defeituosos, substituir quartos inadequados, comboios e camionetas que falhavam; a falta de neve, ou o facto de haver demasiada; um conjunto a tocar demasiado alto até de madrugada; passaportes, dinheiro, secadores perdidos... E depois voltar a Londres e ser confrontada com mais uma série de problemas familiares que precisavam de ser resolvidos.

Apercebeu-se de que estava farta de ser forte. Farta de ser o pilar de energia ao qual todos se encostavam. No andar de cima estava o seu quarto, a sua mala. Fora até lá acima, afim de pendurar o casaco e escovar o cabelo antes de almoço, e vira, com enorme satisfação, a enorme cama de casal, fofa e macia, com a sua coberta branca e os tubos de metal brilhante da sua armação, que faziam lembrar os corrimões de um navio bem conservado. Sentira imediatamente uma vontade imensa de se meter dentro dela e dormir.

Talvez uma sesta. Sentia grande carinho e gratidão por Elfrida. Respondera-lhe:

«Acho que não há nada que me apeteça mais. Mas não te importas de, primeiro, me mostrares a casa para eu poder movimentar-me com mais facilidade, pois não? Parece tão grande que posso perder-me. Imaginava-os, aos dois, a viver numa casita qualquer e venho encontrar-vos numa autêntica mansão!

- Claro que sim - aquiesceu Elfrida, levantando-se.

- E quanto à lavagem da loiça?

- Fica para mais tarde. Não temos máquina de lavar-loiça, mas como também nunca tive nenhuma, não me faz diferença. Além disso gosto de tratar dela à maneira antiga, com muito detergente. Vem daí!

Saiu da cozinha à frente de Carrie e começou por levá-la às duas divisões do rés-do-chão.

- Em tempos, a casa pertenceu à propriedade de Corrydale - explicou Elfrida como se fosse uma guia de turismo. - O feitor e a família viviam aqui, por isso é tão grande. Herdámos apenas as peças de mobília mais essenciais e não vale a pena estarmos a encher-nos de tarecos.- Abriu a porta. - Aqui era o escritório da quinta que, como podes ver, está perfeitamente inabitável. Parece uma loja de tralhas. E esta é a nossa sala de jantar. O mais sombrio que se possa imaginar.

Era, na verdade, atemorizadora, e cheirava a prolongadas refeições antigas.

- Mas adoro a mesa - observou Carrie. - E repara neste armário, construído de modo a aguentar o peso de enormes pernas de veado. E um piano! Daremos concertos?

- Creio que não. Só Deus sabe quando terá sido afinado pela última vez.

- Mas o Oscar toca.

- De momento, não. Por enquanto só escuta música, não a faz. Subiram ao andar de cima.

- Lucy fica no sótão. Preparei tudo lá em cima para ela, mas estou convencida de que depois quererá ser ela própria a mostrar-te tudo. Já viste também a sala de estar e as casas de banho. E este -, abriu outra porta -, é o segundo quarto livre. Podia ter posto Lucy aqui, mas é muito pequeno e um bocado lúgubre. O sótão pareceu-me um espaço muito mais atractivo para ela, e diverti-me imenso a decorá-lo.

Carrie espreitou para dentro do quarto pequeno e vulgar, onde o espaço era quase todo ocupado por mais uma cama enorme. Estava, nitidamente, desocupado, e foi então que Carrie começou a sentir-se algo incomodada, sem saber, mas imaginando o que iria acontecer a seguir. O interesse em ver a casa não era mais que isso. Interesse, não curiosidade. No entanto, o seu pedido inocente parecia agora ter sido um pouco como levantar a tampa da caixa de Pandora.

- Elfrida...

Elfrida ou não ouviu ou não ligou. Em vez disso, abriu a última porta com um floreado que tinha um toque de desafio.

- E este - declarou -, é o nosso quarto.

Era uma divisão espaçosa e notável, o quarto principal da casa original, com janelas altas que deitavam para a luz de fim da tarde, para a vila e a igreja. Nele viam-se um majestoso guarda-fato vitoriano, um lindo toucador e uma cómoda no mesmo estilo. E uma cama imensamente alta e larga. Em cima dela estava estendido o xaile de seda escarlate de Elfrida, com o bordado a começar a empalidecer e a franja a desfiar-se, mas ainda maravilhosamente opulento, a fazer lembrar os velhos tempos e a casa da sua dona em Putney.

E outros objectos pessoais: umas escovas masculinas em marfim sobre a cómoda, um par de sapatões muito bem arrumados debaixo de uma cadeira, um pijama escuro dobrado sobre uma almofada. E um agradável cheiro masculino, um misto de cabedal polido e rum.

Fez-se um pequeno silêncio. Depois, Carrie olhou para Elfrida e notou-lhe uma expressão vagamente embaraçada. Achou graça, pois Elfrida nunca mostrara a mínima vergonha em relação aos seus muitos e variados casos amorosos.

Foi então que lhe perguntou:

- Não estás chocada?

- Elfrida, estás a falar comigo. Não sou Dodie.

- Eu sei que não és.

- Dormem juntos? Elfrida assentiu.

- São amantes?

- Somos.

Carrie pensou no homem encantador e distinto, com a sua densa cabeleira branca e o rosto gentil.

- Fico contente - declarou.

- Ainda bem que aceitas. Precisava de te dizer. De te explicar.

- Não tens de dar explicações.

- Não tenho, mas quero.

- Viajámos juntos de Dibton até à Escócia. Eu conduzi a maior parte do caminho, as condições atmosféricas estavam um horror e a Al estava cheia de trânsito. Os dias que antecederam a nossa partida foram traumatizantes por causa das despedidas e das disposições que tivemos de tomar antes de virmos, que nos deixaram aos dois de rastos. Oscar mal falou. Quando escureceu já estávamos fartos de estrada, de modo que virámos já não sei em que cruzamento e seguimos para Northumberland. Oscar disse que se lembrava de uma pequena cidade que tinha Um pequeno hotel na rua principal, e por milagre lá encontrámos a dita Cidade, com o hotel no mesmo sítio. Deixei-me ficar dentro do carro com Horace, enquanto Oscar entrava a saber se tinham quartos Para nós.

«Passado um bocado voltou e disse que não se importavam de que levássemos o cão connosco, mas só dispunham de um quarto com cama dupla. Nessa altura, eu já estava tão estafada que até num armário dormiria, de modo que disse a Oscar que o reservasse. Inscreveu-nos como Mister e Mistress Blundell no registo. Senti-me como uma rapariga leviana a dar uma escapadinha de fím-de-semana com o namorado.

«Tomámos banho, uma bebida e jantámos. Depois, como tínhamos de nos levantar cedo na manhã seguinte, fomos para cima. Chegados ao quarto, eu e Oscar tivemos uma conversa ridícula em que ele disse que dormiria no sofá e eu a contrapor que ficava no chão com Horace. De repente, sentimo-nos demasiado cansados para discutir e deitámo-nos na cama juntos, adormecendo logo a seguir.

«Mas o que eu não sabia era que Oscar andava a ter uns pesadelos terríveis. Mais tarde, contou-me que os tinha desde o acidente, que se deitava o mais tarde possível, tão apavorado se sentia com eles. Nessa noite, acordou-me com os seus gritos, e por um momento fiquei aterrorizada. Depois, percebi que tinha de o acordar. Assim fiz e ele começou a chorar, era horrível para ele, dei-lhe um gole de água e acalmei-o. Abracei-o e cheguei-o a mim, de modo que passado um bocado voltou a adormecer. Depois disso, nunca mais o deixei dormir sozinho. Quando cá chegámos, vinha um pouco preocupado com o que as pessoas pudessem pensar. Dizer. Temos uma senhora muito boa que nos vem cá a casa fazer limpezas, Mistress Snead. O Oscar receava que ela se pusesse com mexericos e se gerasse uma situação de censura e mal-estar. Disse-lhe que não me ralava com isso, pois não tencionava deixá-lo.

«Creio, minha querida Carrie, que tudo isto poderá parecer um pouco suspeito da minha parte. Oportunista. Como se estivesse à espera da morte de Gloria para me atirar a Oscar, meter-me na sua cama. Mas podes crer que não foi isso. Sempre gostei imensamente dele, no entanto, era o marido de Gloria, de quem eu também gostava, embora talvez não tanto como dele. É difícil explicar. Mas tudo o que fiz, todas as opções que tomei tiveram a melhor das intenções. Convidou-me para vir para a Escócia com ele e como era um homem à beira do desespero, eu aceitei.

«Podia ter sido um desastre, mas, em vez disso, temos uma relação que creio consolar-nos aos dois. Fizemos amor pela primeira vez uma semana depois de cá chegarmos. Era inevitável, evidentemente. Ele é um homem muito atraente e, sabe-se lá porquê, também acha que aqui a velhota não é nada de se deitar fora. A partir daí, os pesadelos horrendos começaram a desvanecer-se e já dorme noites inteiras. Ainda aparecem pesadelos, mas são muito menos frequentes. E se ouvires gritos a meio da noite, não te preocupes, porque eu estou junto dele.

«Não fiz segredo de nada, não menti. Assim que foi possível, falei em privado com Mistress Snead e expliquei-lhe as circunstâncias que nos tinham levado a viver juntos. Ela é de Londres e poucas coisas a chocam, além de ser uma boa amiga e uma utilíssima mina de informações.

Depois de me ouvir, disse, "Cá por mim, Mistress Phipps, seria uma crueldade deixar aquele homem sofrer quando lhe pode dar um pouco de conforto nesta sua hora de precisão." E pronto. Agora tu também sabes.

Por um momento, nenhuma das duas falou. A certa altura, Carrie suspirou.

Pobre Oscar. Mas quão mais desgraçado não seria sem ti.

- E Lucy? Que faremos em relação a ela? Não parece nada estúpida. Achas que devemos contar-lhe?

- Não demos demasiada importância a isso. Se ela fizer perguntas, digo-lhe a verdade.

- Somos tão velhos que vai ficar espantada.

- Não me parece. O próprio avô tem uma mulher muito jovem e um par de crianças lindas. Não é nenhuma novidade para Lucy. Simpatizou nitidamente com Oscar e sentir-se-á tão contente como eu. Carrie rodeou os ombros magros de Elfrida com um braço e chegou-a carinhosamente a si. - Como é bonito precisarem um do outro e encontrarem-se.

- Oscar ainda não saiu da depressão, de modo algum. Ainda lhe falta percorrer um caminho longo. Há dias em que se sente tão deprimido que mal fala. Quando é assim, aprendi a deixá-lo sozinho. Tem de lidar com a dor ao seu jeito.

- Não deve estar a ser nada fácil.

- Oh, querida Carrie, nada é. E agora, não percamos mais tempo, caso contrário o dia chegará ao fim. Vou arranjar-te uma botija de água quente e vais dormir um pouco.

 

Lucy

Sexta-feira, 15 de Dezembro

Cá estamos, são agora dez da noite de um longo dia. Carrie chegou ao apartamento da avó eram oito e meia da manhã e deixou o táxi à espera. Depois seguimos para Heathrow. A mãe e a avó ainda não tinham partido. A mãe só vai para a Florida na terça-feira. Ainda estavam as duas de robe e mostraram-se muito simpáticas. Acho que se sentem as duas um bocado culpadas por tantas discussões e zangas. Ofereceram-me presentes de Natal, todos embrulhados, que guardei na minha mala. A minha mãe deu-me cento e cinquenta libras e a avó cinquenta, como dinheiro de bolso. Nunca me senti tão rica e estou com medo de perder a bolsa, mas tenho-a em segurança, dentro da minha mochila nova. O voo correu bem, sem poços de ar, e deram-nos uma espécie de pequeno-almoço no avião. Em Inverness estava um senhor simpático, chamado Alec, à nossa espera, para nos trazer para aqui. Havia neve numa colina e levámos mais ou menos uma hora e um quarto a chegar.

Creagan é muito antiga e bonita, cheia de casas grandes e com uma igreja enorme. Esta casa é espantosa, é muito maior do que parece e tem três andares. Foi alugada, e muita da mobília, segundo Oscar me contou, veio de Corrydale, a enorme casa onde ele ficava quando era rapaz e tinha uma avó lá. Estou a falar em muita mobília, mas, na verdade, pouca vejo, e também não há quadros nem coisas do género. A sala de estar e os quartos ficam no primeiro piso; eu estou cá em cima, no sótão que Elfrida decorou de propósito para mim. Não precisou de o pintar porque está todo em branco e impecável, mas teve de comprar móveis, o que foi uma grande gentileza.

Portanto, este é o meu quarto. Tem o tecto inclinado e uma clarabóia (não há janela) com uma cortina, mas acho que nunca a correrei porque assim poderei ficar deitada a olhar para o céu. É como estar lá fora.

A cama é em madeira escura e há um edredão e um cobertor grosso de lã, para o caso de eu ter frio. Há um toucador branco, com espelho de balanço e pequenas gavetas, assim como uma cómoda com gavetas. Depois, tenho uma mesinha-de-cabeceira, um candeeiro e uma mesa, que dá muito jeito, encostada a uma das paredes não inclinada. Penso que deve ter sido uma mesa de cozinha, está um bocado usada, mas será óptima para nela escrever o meu diário e as minhas cartas. Depois, há duas cadeiras de braços e vários ganchos na parede para pendurar a minha roupa. Não trouxe muita. O chão é soalho encerado e no meio está um lindo tapete maravilhosamente grosso com muitas cores vivas, e mesmo à beira da minha cama há uma pele de ovelha para lá pôr os pés quando me levantar nas manhãs frias. Acho tudo muito diferente e romântico. Elfrida e Oscar são muito simpáticos. Pensei que fossem terrivelmente velhos. São velhos, mas nem parecem, nem agem como tal. Elfrida é muito alta, magra e tem o cabelo alaranjado, e Oscar também é alto, mas não tão magro. E tem muita fartura de cabelo branco, uma voz muito macia e olhos meigos. Antes de sairmos de Londres, Carrie contou-me que a mulher e a filha, Francesca, morreram num terrível acidente de automóvel. E os cães delas também. Não foi nada fácil vir conhecê-lo, porque uma pessoa nunca sabe o que há-de dizer a alguém que sofreu algo tão horrível. Mas ele é verdadeiramente simpático e não pareceu ficar nada perturbado quando me viu mais a Carrie. Almoçámos e depois convidou-me para ir dar uma volta com ele e Horace. Horace é o cão de Elfrida. Portanto, fomos; não estava demasiado frio, demos uma vista de olhos pelas lojas, sentámo-nos um bocado dentro da igreja e, depois, atravessámos o campo de golfe e chegámos à praia. Esta é linda, comprida e limpa, sem garrafas de plástico nem lixo. Montes de conchas. Apanhei duas vieiras. Hei-de lá voltar e levar Horace comigo.

Sinto-me muito feliz. Nunca vivi numa casa tão grande, mas está-se bem, como se tivesse sido sempre habitada por gente abastada e alegre. Também tem um grande quintal, que nesta altura do ano pouca coisa mostra. Amanhã irei lá explorar.

 

Oscar

Para sua grande surpresa, Oscar estava a fazer uma fogueira. Em Dibton, na Granja, tornara-se um jardineiro entusiasta, sobretudo porque estava reformado e as poucas lições de piano que dava, além da participação ocasional no serviço dominical da igreja, deixavam-lhe algum tempo livre. No início, a sua inexperiência era total, pois nunca regara, sequer, um canteiro de janela. Porém, conhecimentos há muito interiorizados vieram à tona do seu subconsciente, conhecimentos que lhe tinham ficado das férias passadas em Corrydale com a avó, uma jardineira nata com tanta experiência e sucesso que havia pessoas que vinham ver as glórias de Corrydale e procurar o seu conselho.

Os aspectos práticos, esses adquirira-os ele mesmo, por tentativas e o estudo intensivo de enormes compêndios de jardinagem. Também tivera a ajuda de dois homens locais que vinham cortar a relva, fazer um pouco de reflorestamento e encarregar-se das escavações mais pesadas. Não tardou que o seu novo hobby o absorvesse e começasse a apreciar o exercício físico, assim como o prazer de planear, plantar e desfrutar da simples satisfação de andar ao ar livre.

Chegar a Creagan em pleno Inverno não lhe permitira fazer grande coisa no quintal íngreme que se estendia por trás da Casa da Quinta, colina acima. Varrera umas folhas mortas e limpara sarjetas entupidas, porém, nada mais. Naquela manhã, no entanto, Elfrida queixara-se ao pequeno-almoço de um maciço de lilases que crescera para cima do carreiro, atrapalhando o percurso que precisava de fazer para levar o cesto com a roupa lavada até à corda.

Oscar prometera resolver o assunto.

Depois do pequeno-almoço, foi buscar a chave do barracão do quintal ao gancho onde estava pendurada no armário da cozinha, e saiu para ir investigar. Estava um dia estranho, toldado, e apenas corria uma brisa ligeira. De vez em quando, as nuvens apartavam-se, revelando uma nesga de céu azul, mas ainda havia neve no topo das colinas, o que significava que ainda viria mais.

Conseguiu fazer girar a chave enferrujada e abrir a empenada porta de madeira com um empurrão, deparando com um interior escuro e húmido, que uma pequena janela coberta de teias de aranha mal conseguia iluminar. Havia uma mesa para envasar plantas, sobre a qual se via muita terra, alguns vasos de flores partidos, uma pilha de jornais amarelecidos e algumas ferramentas arcaicas, tais como sacholas e podadeiras. Não havia sinal de qualquer segadora Strimmer ou outra peça de equipamento moderno, mas nas paredes à volta, pendurados em enormes pregos de pedreiro, estavam umas forquilhas e umas pás de ar pesado. Também havia um ancinho, uma enxada, uma serra enferrujada e uma foice enorme. Estava tudo com um ar muito abandonado e, a seu ver, a precisar de ser limpo e oleado, mas como não encontrou nenhum recipiente com o produto necessário, decidiu deixar essa tarefa específica para mais tarde.

Encontrou um par de tesouras de podar velhas, mas mais ou menos funcionais, dentro de uma caixa cheia de porcas, parafusos e chaves de parafuso enferrujadas. Foi daquelas que se serviu para resolver os problemas dos lilases, o que o deixou com uma braçada de caules que tinha de pôr no lixo. Não se via nenhum carrinho de mão por ali, mas mesmo que existisse, dificilmente poderia dar vazão a uma quantidade tão grande. Enfiou, portanto, tudo dentro de um saco de batatas que por ali estava e foi pô-lo ao cimo do quintal, atrás de uma velha ameixoeira, onde se viam uns restos de fogueira.

Resolveu então limpar o barracão, e como o dia ainda estava seco e calmo e ele estava para aí virado, queimou a lixarada toda.

Havia muita, e foram precisas várias idas e vindas pelo carreiro para a trazer toda. Cortou jornais às tiras, partiu algumas caixas de sementes de madeira apodrecida e acendeu a sua fogueira. Não tardou que ardesse lindamente, de modo que Oscar foi reunindo as folhas com o ancinho para a alimentar, começando a ficar cada vez mais encalorado. Despiu o casaco, pendurou-o na ameixoeira e ficou a trabalhar de camisola. O fumo ergueu-se, espesso e revolteante, deixando tudo a cheirar a Outono. A seguir, ocupou-se de uma hera sufocante, que cortou e arrancou da velha parede de pedra. Tão atento estava ao seu trabalho que nem deu por abrirem e fecharem o portão ao fundo do quintal, assim como não viu o homem que se aproximou dele, percorrendo o carreiro.

- Oscar.

Assustado, Oscar voltou-se e deu de caras com Peter Kennedy, que estava vestido para o golfe com o seu casaco vermelho e o boné de basebol, de pala comprida, puxado bem para a testa.

- Caramba, nem o ouvi.

- Não foi minha intenção apanhá-lo de surpresa. Vou a caminho do clube de golfe, jogo às dez e meia. Vi o fumo da fogueira e calculei que o encontraria aqui.

- Em que posso servi-lo?

Nada de especial. No entanto, vim dizer-lhe que ontem estive

em inverness e dei um pulo ao hospital para ver Godfrey Billicliffe.

Fez muito bem. Como está ele?

Peter sacudiu a cabeça com pessimismo.

Receio que as notícias não sejam nada boas. Está muito doente.

Tem um cancro.

Cancro.

Meu Deus! - exclamou Oscar.

Penso que ele já tinha as suas suspeitas, os seus receios, mas

nunca falou de nada a ninguém. Disse-me que se andava a sentir mal há muito tempo, mas nunca foi ver o médico, limitava-se a tratar-se com analgésicos e uísque. Não queria que lhe dissessem... tinha medo da verdade.

- Naquele dia em que o encontrei de cama, estava assustado.

- Eu sei.

Oscar pensou no velho doente, lembrando-se das lágrimas que lhe tinham marejado os olhos remelosos.

- Ele já sabe? - perguntou.

- Sabe. Convenceu o jovem médico a dizer-lhe.

- Quanto tempo lhe resta?

- Pouco. Está a morrer, mas não tem dores, está bastante tranquilo, e acho que adora ser alvo de toda a atenção das enfermeiras que cuidam dele. Será um alívio.

- Tenho de o ir ver.

- Não. Ele pediu-me que lhe dissesse para não ir. Está medicamentado e muito debilitado, e já tem o aspecto de um homem prestes a abandonar este mundo. Mas pediu-me que lhe transmitisse os seus cumprimentos e agradecesse toda a gentileza que teve para com ele.

- Eu nada fiz.

- Fez, sim. E valeu-lhe na altura em que mais precisou de um amigo.

Oscar atirou um ramo para o meio da sua fogueira com um pontapé. Por um momento, ao lembrar-se da relutância que sentira em falar sequer com o velho Billicliffe, escondendo-se pelas esquinas com um medo terrível de o encontrar, odiou-se a si mesmo. Perguntou:

- Falou com o médico no hospital?

- Falei. Depois de me despedir, fui falar com ele, que me confirmou o que eu já sabia.

- Que poderei fazer?

- Na realidade, pouco. Talvez escrever-lhe um bilhete. Enviar-lhe um postal. Ele iria gostar.

- Parece muito pouco.

- Ele está realmente conformado. Não se revolta, não está amargurado. Dorme durante a maior parte do tempo, mas quando abriu os olhos reconheceu-me, falámos e ele estava completamente lúcido. Penso que aceitou.

Oscar suspirou profundamente.

- bom, então ficamos assim. - Pensou nos aspectos práticos Consto como o seu parente mais próximo. "

- Eles comunicar-lhe-ão o que se passa, ou a mim. Ficaremos em contacto.

- Obrigado por me contar.

- Sabia que gostaria de saber. Agora tenho de ir e deixá-lo trabalhar na sua fogueira.

Oscar pousou o ancinho.

- Acompanho-o ao portão.

Seguiram pelo carreiro em fila indiana. Peter deteve-se ao chegar ao portão.

- Há mais uma coisa. Lembrei-me de que talvez sentisse saudades da sua música. - Apalpou um dos bolsos do casaco vermelho e tirou de dentro dele uma pequena chave de metal. - A igreja está sempre aberta, mas o órgão fica fechado à chave. Falei no assunto com Alistair Heggie, o nosso organista, que acha muito bem que o Oscar o utilize sempre que lhe apetecer. Aqui tem...

Antes de Oscar poder protestar, Peter agarrou-lhe no pulso e colocou-lhe a chave na palma da mão aberta, fechando-a a seguir.

Oscar ainda principiou: - Oh, não...

- Não é obrigado. Talvez até nem queira. Mas gostaria de pensar que, se lhe apetecer e se sentir que consegue, pode fazê-lo.

- É muita bondade sua.

- Só lhe peço que a guarde em local seguro - pediu Peter, sorrindo. - É o nosso único exemplar. - Fez menção de se afastar, mas voltou de novo para trás. - Que esquecimento o meu. Vim vê-lo por mais uma razão. Tabitha pediu-me que vos convidasse a todos para lá irem até Manse para um lanche e umas empadas de carne na terça-feira, ao fim da tarde. Todos são bem-vindos. Nada de formalidades. Não precisam de mudar de roupa. Os nossos filhos devem participar. - Terça-feira - repetiu Oscar, ainda com a chave na mão e tomando nota mentalmente. Não se podia esquecer de avisar Elfrida. Terça-feira às seis da tarde. Será um grande prazer. - Esplêndido. - Peter passou o portão e fechou-o atrás de si. - Ver-nos-emos lá.

- Bom jogo. E obrigado por ter vindo.

 

Lucy

Segunda-feira de manhã, quando Lucy desceu do seu espaço etéreo, que era o sótão, reparou, ao chegar ao primeiro piso, que a porta do quarto de Carrie estava fechada. O seu primeiro pensamento foi a possibilidade de Carrie se ter deixado adormecer, ficando na dúvida se devia, ou não, acordá-la. Depois, felizmente, optou por não o fazer. Ao chegar ao piso seguinte, encontrou Elfrida e Oscar a tomar o pequeno-almoço. Naquela manhã, Oscar estava a comer salsichas e Lucy teve esperança de que também lhe coubessem algumas, pois uma das coisas que mais adorava era saboreá-las ao pequeno-almoço.

- Lucy! - exclamou Oscar, quando ela apareceu à entrada da cozinha, pousando os talheres e estendendo-lhe um braço de modo a cumprimentá-la com um abraço carinhoso. - Que tal te sentes esta manhã?

- Eu estou óptima, mas que aconteceu a Carrie?

- Carrie não está muito bem - respondeu Elfrida, levantando-se da mesa para ir buscar as salsichas de Lucy ao fogão, onde eram mantidas quentes. - Não creio que seja gripe, mas o certo é que a constipação não lhe passa. Duas salsichas ou três?

- Três, se chegarem. Ela ainda está deitada?

- Está, fui vê-la e ela disse-me que tinha passado a noite a tossir, não conseguira dormir e não se sentia nada bem-disposta. Levei-lhe uma chávena de chá, mas diz que não quer comer nada. Quando o centro de saúde abrir, às nove, telefonarei ao doutor Sinclair e pedir-lhe-ei que venha examiná-la.

- Ele dá consultas ao domicílio?

- O centro de saúde fica mesmo no outro lado da rua. Lucy sentou-se a deliciar-se com as suas salsichas.

- Em Londres, os médicos nunca vão a casa dos doentes. A pessoa tem de ir aos centros e sentar-se na sala de espera junto dos outros Pacientes. A avó diz sempre que se vem de lá com mais problemas do que os que se levaram à entrada. Acha que ela vai ficar bem? Refíro-me a Carrie. Quando o Natal chegar já tem de estar boa.

- Veremos o que o doutor Sinclair diz.

- Posso ir vê-la?

- É melhor não, enquanto não soubermos qual é o problema. Pode ser terrivelmente contagioso e depois ficavas cheia de borbulhas. Ou de escaras com corrimento. Como o pobre Jó.

Lucy atirou-se às suas salsichas, que estavam uma delícia, e Elfrida serviu-lhe uma chávena de café.

- Tenho muita pena porque esta manhã tencionávamos dar um longo passeio na praia com Horace - disse.

- Não há motivo para não ires.

- O Oscar vem?

- Esta manhã não posso. Tenho de escrever umas cartas, depois preciso de ir à livraria encomendar dois livros, e ainda passar pelo talho para trazer a carne.

- Oh, compreendo - aquiesceu Lucy. Era difícil esconder a desilusão.

Oscar sorriu.

- Podes ir sozinha. Levas Horace. Ele tomará conta de ti. Podes lançar-te à descoberta sozinha.

Lucy animou-se.

- Posso mesmo?

- Claro.

Matutou sobre aquela nova perspectiva de liberdade enquanto comia as suas salsichas, e chegou à conclusão de que pôr-se ao caminho sozinha com o cão lhe agradava. Como era evidente, em Londres nunca a deixavam dar longos passeios solitários e se combinava alguma coisa com Emma, sua mãe fazia sempre questão em saber aonde ia e quando voltaria. Mas ali, em Creagan, saltava à vista que esse tipo de precauções não era necessário. Elfrida e Oscar nem sequer fechavam a porta da entrada à chave. Na cidade, os carros ligeiros e os pesados passavam devagar, as pessoas que iam às compras paravam de vez em quando no meio do caminho a conversar umas com as outras, e nos passeios parece que havia sempre crianças sozinhas a andar de skate ou em grupos. No dia em que Oscar a levara até à praia, vira jovens a subir às rochas e a andar de bicicleta sem que houvesse um único adulto à vista. Quanto a homens sinistros de gabardina, bêbados ou drogados, parecia não existirem naquele clima sadio. Quem sabe, à semelhança dos gérmenes e do míldio, não vicejassem no frio.

A porta das traseiras abriu-se e fechou-se com um estrondo.

- É Mistress Snead - avisou Oscar.

Instantes depois, a dita estava junto deles, irrompendo pela cozinha dentro de fato de treino cor-de-rosa e um par de sapatilhas vistosas.

- Oh, o tempo voltou a ficar horrível. Nuvens negras. Cá por mim, vai nevar.- Reparou em Lucy. - Ora viva, que está cá a fazer? Veio para ficar? Onde está a sua tia?

Usava o volumoso cabelo grisalho aos caracóis e trazia uns óculos cor-de-rosa, a condizer com o fato de treino.

- Está de cama. Adoeceu.

- Oh, mas isso é uma maçada. Já foi ao doutor, foi? Elfrida vai-lhe telefonar a pedir que venha cá.

- Ora esta! - Mrs. Snead olhou para Elfrida. - Mas que azar. Quero dizer, acabar de chegar e ficar logo doente. Chama-se Lucy, não é verdade? Mistress Phipps falou-me de si. Que tal achou o seu quarto? Gostámos imenso de o decorar para si. Antes disso, não passava de um velho sótão vazio.

- Tome um pouco de chá, Mistress Snead - ofereceu Elfrida. Mrs. Snead disse que lhe saberia muito bem e, assim, preparou uma caneca para si, sentando-se a seguir à mesa a beber.

Lucy sabia que a sua avó desaprovaria fortemente tanta familiaridade e, perversamente, ficou a gostar ainda mais de Mrs. Snead.

A manhã avançou. Mrs. Snead lançou-se ao trabalho, Lucy e Oscar lavaram a loiça do pequeno-almoço e Elfrida foi telefonar ao médico. A campainha da porta da frente tocou às dez da manhã e Lucy correu ao piso de baixo a atender, no entanto o médico já entrara, de modo que o encontrou a limpar os sapatos ao capacho.

- Viva! - cumprimentou-a ele, com acentuada pronúncia das Highland. Era ainda bastante novo, com um rosto queimado pelo vento e umas sobrancelhas ruivas que faziam lembrar umas lagartas.

- Quem é a menina?

- Sou Lucy Wesley. Estou hospedada aqui.

- Muito bem. Agora diz-me, onde está a doente?

- Lá em cima.

Elfrida aguardava, apoiada ao corrimão.

- Doutor Sinclair, foi um santo em vir.

O médico subiu as escadas, mas Lucy não foi no seu encalço. Em vez disso, voltou à cozinha, onde Mrs. Snead separava a roupa para lavar na máquina.

- Foi o doutor que chegou? Espero que não seja grave.

- Eu pensava que era uma constipação. É certo que não se sentiu nada bem durante o voo. Custou-lhe muito.

- Ora, anime-se, não tarda ficará boa. E agora, gostaria de me dar uma ajuda? Dê um pulinho lá acima e traga-me as toalhas da casa de banho de Mistress Phipps. Depois dou-lhe umas lavadas para as substituir.

O Dr. Sinclair não demorou muito tempo. Ele e Elfrida entraram no quarto de Carrie e Lucy, que fora buscar as toalhas, ouviu vozes do outro lado da porta fechada. Era reconfortante sabê-lo ali, no entanto esPerava que não diagnosticasse algum micróbio sinistro, uma doença que exigisse antibióticos e duas semanas de cama. Depois de examinar Carrie, não desceu imediatamente, foi antes à sala de estar falar com Oscar.

Lucy, que terminara a sua tarefa relacionada com a lavandaria, deixou-se ficar um bocado no corredor, mas depois não se aguentou e foi para junto deles. Encontravam-se os três sentados ao pé da janela, a falarem de alguém a quem chamavam major Billicliffe. Ao que parecia dito estava no hospital em Inverness e gravemente doente. Todos ti nham uma expressão compungida. Então Elfrida virou-se e, ao vê-la à entrada, sorriu-lhe.

- Não estejas com esse ar tão preocupado, Lucy. O médico levantou-se.

- Carrie está bem? - perguntou-lhe Lucy.

- Sim, não tardará a ficar óptima. Só precisa de um pouco de descanso e de muitos líquidos... receitei um xarope para aquela tosse. Deixem-na descansar, que daqui a um dia ou dois estará a pé.

Lucy ficou muito aliviada.

- Posso ir vê-la?

- Preferia que por enquanto a deixassem sozinha. Elfrida sugeriu:

- Que tal levares Horace a dar o seu passeio exploratório?

- Aonde vais, Lucy? - perguntou o médico.

- Pensei em dar um passeio à beira-mar.

- Gostas de aves?

- Não sei como se chamam.

- Na praia há aves lindas. Amanhã venho cá ver a tua tia e trago o meu livro sobre aves, para lhe poderes dar uma vista de olhos.

- Obrigada.

- De nada. De nada. Bem, tenho de ir. Ficaremos em contacto, Mister Blundell. Adeus, Mistress Phipps.

Retirou-se então, descendo apressadamente as escadas, saindo e fechando firmemente a porta atrás de si. Lucy olhou pela janela e viu-o meter-se dentro do seu carro e seguir para a visita seguinte. Levava um cão no banco ao seu lado, a olhar pela janela, um grande springer spaniel de orelhas descaídas. Concluiu que devia ser agradável ser médico de província e levar um cão no carro.

Mrs. Snead tinha razão. Estava um dia pavoroso, apesar de não chover, o que era bastante estranho, porque o fim-de-semana fora tão ameno que permitira que Oscar pudesse fazer a sua fogueira. Lucy saiu de casa com Horace pela trela, passou o portão, a praça e depois virou para a estrada que ia ter ao clube de golfe. Viam-se poucos aficcionados e apenas alguns carros estacionados. O caminho público passava ao lado do campo, acompanhando as ondulações naturais do terreno. Quando chegou ao ponto mais alto de uma elevação, deparou com o horizonte em toda a sua extensão visível, frio e imóvel como aço, e um vasto arco de céu que as nuvens baixas tornavam acinzentado. Estava maré baixa e pequenas ondas vinham morrer na areia molhada e reluzente. Ao longe via-se o farol, e quando chegou ao pequeno parque de estacionamento, bandos de gaivotas depenicavam junto dos caixotes do liXo como se esperassem ali encontrar migalhas ou restos de sanduíches. Assim que Horace as avistou, começou a ladrar e todas elas levantaram voo, esvoaçaram um pouco por ali e depois voltaram a pousar recomeçando de novo a catar o lixo à procura de algo comestível. Lucy desprendeu a trela da coleira do cão, que correu em frente e desceu a rampa até à areia. No meio das dunas era fundo, macio, custando a andar, o que levou Lucy a ir para cima da areia molhada e dura. Ao olhar para trás, viu a marca das suas próprias pegadas, assim como as das patas de Horace, em círculo, fazendo lembrar pontos de uma costura.

Havia rochas e pequenas poças de água no meio destas, e a seguir a vasta praia curvava-se para norte. Bem ao longe, as colinas encadeavam-se umas nas outras, cinzentas e ameaçadoras, empoalhadas de neve. O céu, por trás delas, apresentava-se escuro como uma contusão arroxeada. Lucy sentiu o vento leve e enregelante no rosto.

Estava sozinha. Não se via uma pessoa, um cão, na praia. Apenas aves a rasarem as ondas baixas que vinham morrer no areal.

Sentiu-se minúscula como uma formiga naquele mundo enorme, vazio e arejado, reduzida à escala mais ínfima pela expansão e amplidão da natureza. Uma insignificância. Sabia-lhe bem aquela sensação de não ter identidade, de ninguém saber ao certo quem ela era, e, se encontrasse alguém, essas pessoas não a reconhecerem de lado nenhum. Assim, não pertencia a ninguém senão a si mesma. Caminhou energicamente para se manter quente, detendo-se apenas para apanhar umas conchas, uma ou outra pedrinha arredondada mais bonita ou algum pedaço de vidro que o mar esculpira com a sua erosão. Guardou os tesouros no bolso. A certa altura, Horace encontrou um bocado de alga comprido e levou-o na boca como um trofeu. Lucy tentou tirar-lho e tudo redundou numa brincadeira, com Lucy a correr atrás do cão. A jovem encontrou um pau, que atirou às ondas, e Horace esqueceu a alga, largou-a e foi a galopar para dentro de água, descobrindo então que esta estava demasiado gelada, o que o fez bater em retirada.

A praia terminava em mais um afloramento de rochas, com poças e fendas cheias de pedrinhas; cheirava fortemente a maresia. Lucy fez uma pausa para recuperar o fôlego. A praia ficava separada do campo de golfe por dunas altas. Hesitou, tentando decidir-se pelo caminho a tomar, quando ouviu o som de um motor e viu, no cimo das rochas, um tractor a rodar sobre uma elevação de terreno, na sua direcção. Como Puxava um carrinho de golfe, não vinha muito depressa. Claro que devia haver por ali alguma espécie de estrada. Lucy resolveu voltar para casa por aquele caminho. Içou-se, com algum esforço, para cima de um rochedo íngreme coberto de areia e enveredou pelo meio das dunas. Horace adiantou-se-lhe e desapareceu de vista. As dunas formavam Uma pequena colina, coberta de vegetação rasteira densa, do cimo da qual avistou o caminho.

Horace já havia chegado, detendo-se à sua espera, mas a olhar nou tra direcção. Não havia dúvida de que sentira a presença de estranhos. Parado, de orelhas espetadas, tinha a cauda peluda erguida como uma bandeira. Estava muito quieto e atento. Lucy olhou e viu uma outra pessoa com um cão, a subir determinadamente a encosta, vinda do lado da vila. De botas, calças grossas e casaco de pele de borrego, trazia na cabeça uma boina larga, escocesa, de través sobre os cabelos grisalhos cortados curtos. O cão que a acompanhava, solto, imobilizou-se mal avistou Horace. Os dois animais ficaram a olhar um para o outro durante um longo instante. Lucy estava apavorada, pois o outro cão era um rottweiler.

- Horace - chamou num sussurro agonizante, pois tinha a boca seca.

Horace ou não ouviu ou fez de conta que não. De repente, o palerma começou a ladrar. O rottweiler avançou lentamente, com o corpo reluzente tenso, músculos retesados. Soltou uma rosnadela que lhe veio do fundo da garganta e as beiças negras arreganharam-se, mostrando os dentes. Horace, sem recuar, soltou mais um latido tímido e foi então que o rottweiler se precipitou para ele.

Lucy gritou. Horace também gritou, um grito canino que fez lembrar um uivo a pedir socorro. Ficou debaixo do outro cão, que começou a abocanhá-lo e a mordê-lo, e por mais que se debatesse, não conseguia libertar-se.

A dona do cão não tinha o menor préstimo. Trazia uma trela metálica na mão, mas saltava à vista que era incapaz de controlar o seu animal de estimação naquelas circunstâncias. Em vez disso, puxou de um apito no qual soprou fortemente, pondo-se a gritar ordens como se fosse um sargento:

- Brutus! Brutus! Pára, rapaz! Deita! De joelhos! O rottweiler não lhe ligou nenhuma.

- Brutus!

- Agarre-o - gritou Lucy, histérica de horror. Horace, o cão adorado de Elfrida estava prestes a ser assassinado. - Faça alguma coisa! Mande-o parar!

Nunca mais se lembrara do tractor que se aproximava. De repente este apareceu, qual cavalaria num velho filme de cobóis. A sua porta escancarou-se, o seu condutor saltou para o chão, percorreu a curta distância a correr e, sem mostrar o menor medo ou hesitação, entrou em acção, dando um pontapé com a bota pesada nos traseiros musculados do rottweiller. Este, espantado, largou Horace e virou-se para atacar o seu novo inimigo, porém o jovem agarrou-o pela coleira guarnecida de tachas e, com um certo esforço, atirou-o para longe da presa.

Lucy jamais pudera imaginar que existisse alguém tão dotado de bom-senso, força e bravura.

- Que raio pensa que está a fazer? - gritou o rapaz à dona do cão, arrancando-lhe a trela da mão e prendendo-a à coleira do cão que rosnava e se debatia. Arrastou o animal na sua direcção e a mulher pegou na ponta da trela com as duas mãos.

Seguiu-se a mais notável das discussões.

Não diga palavrões na minha frente!

Porque não manteve o cão preso pela trela?

Ele foi atacado!

Agora que o perigo passara, a mulher tornara-se beligerante. Não tinha sotaque de Sutherland, parecia mais de Liverpool ou de Manchester.

- Nada disso. Eu vi tudo!

- Brutus só reage se o atacarem.

A mulher, que estava a ter imensa dificuldade em controlar o cão, tinha o rosto vermelho de tanto esforço.

- Esse cão é um monstro!

- Disparate!

- Onde é que vive?

- E que tem você com isso, seu fedelho?

- É que se vivesse aqui saberia muito bem que não pode passear um cão selvagem em locais públicos.

- Eu não vivo aqui - retorquiu a mulher como se tivesse orgulho do facto. - Estou de visita à minha irmã, que está numa caravana.

- Então volte para a caravana dela com o seu cão e tranque-o.

- Não fale comigo nesse tom de voz.

- Falo consigo como muito bem me apetecer. Trabalho para o clube de golfe, faço parte do pessoal.

- Ora, todo petulante, não é?

- Leve-me esse cão daqui para fora. Vá. Se o volto a encontrar solto por aí, apresento queixa na Polícia.

- E eu queixar-me-ei de desrespeito!

Nessa altura, porém, Brutus entrou em acção. Avistara dois inocentes golfistas ao fundo do caminho: todo eriçado e com uma necessidade desesperada de enterrar os dentes no pescoço de alguém, iniciou a caÇada. A dona, vacilante, também foi, arrastada por ele, com as pernas protegidas por calças a agitarem-se como pistões.

- Nunca me senti tão insultada na vida - ainda declarou ao afastar-se. Fazia, nitidamente, questão em ter a última palavra. - Não me esquecerei disto...

Deixaram de a ouvir, pois a distância já era grande e o vento levava-lhe as palavras. Às tantas, desapareceu.

Lucy sentara-se na erva áspera e húmida com Horace nos braços, e o cãozito encostara a cabeça na frente do seu casaco vermelho novo. O jovem aproximou-se e ajoelhou-se ao seu lado. Lucy reparou que era muito novo, tinha o rosto queimado pelo sol e os olhos azuis. O cabelo, cortado curto, era tão louro que parecia pintado; usava uma argola de ouro na orelha esquerda.

Perguntou a Lucy:

- Estás bem?

Lucy, para sua grande vergonha, desmanchou-se em lágrimas.

- Eu estou, mas Horace...

- Deixa-me ver.

Afastou-lhe suavemente Horace da roupa, apalpou-o e examinou-o afastando-lhe o pêlo comprido do focinho e emitindo, ao mesmo tempo, sons reconfortantes.

- Penso que ficará bem. São só ferimentos e arranhões superficiais.

- Ele só ladrou - disse Lucy, soluçando. - Ele ladra sempre! É mesmo estúpido. Pensei que iria ser morto.

- Felizmente safou-se.

Lucy fungou. Não levara nenhum lenço consigo. Limpou o nariz às costas da mão.

- Nem sequer é meu. Pertence a Elfrida. Só viemos dar uma volta.

- De onde é que vieram?

- Creagan.

- Eu levo-os até lá no meu tractor. Posso deixar-te no clube. Achas que consegues ir o resto do caminho a pé?

- Sim. Acho que sim.

- Muito bem. Vem daí.

Ajudou-a a pôr-se de pé, depois inclinou-se para pegar em Horace e levou-o até ao tractor. Deixara o veículo com as portas abertas e o motor ligado. Lucy subiu para a cabina. Só havia um assento, no entanto ela empoleirou-se na ponta e Horace foi colocado a seus pés, onde se sentou e apoiou pesadamente contra os seus joelhos. Em seguida, o jovem saltou para o seu lugar e meteu uma mudança. Avançaram então, passando, aos solavancos, por cima dos buracos, com o carrinho de golfe a matraquear atrás.

Lucy parara de chorar. Perguntou, hesitante:

- Achas que Horace ficará bom?

- Quando chegares a casa, dás-lhe um banho com um desinfectante. Nessa altura poderás verificar melhor os estragos. Se houver mordeduras profundas, talvez tenha de levar uns pontos... pelo que precisarás de o levar ao veterinário. O certo é que ficará magoado e mal se poderá mexer durante uns dias.

- Sinto-me tão culpada! Devia ter tomado conta dele melhor.

- Não poderias ter feito absolutamente nada. Acho que aquela mulher deve ser internada. Se voltar a ver aquele animal demoníaco, mato-o.

- Chama-se Brutus.

- Brutus, o Bruto.

Lucy ainda conseguiu sorrir, apesar de tudo. Depois disse:

- Muito obrigada pela ajuda.

- Estás hospedada na Casa da Quinta, junto de Oscar Blundell, não é?

- Conheces?

- Eu não, mas o meu pai sim. É Peter Kennedy, o pastor. Eu sou Rory Kennedy.

- E eu, Lucy Wesley.

- É um nome bonito.

- Eu acho-o horrível. - Sabia mesmo bem ir ali sentada naquela cabina alta, partilhando do mesmo banco com aquele jovem corajoso e simpático. Gostava de sentir o corpo robusto dele encostado ao seu, do cheiro a óleo do casacão dele, do calor provocado por um contacto físico a que não estava habituada. - Parece nome de missionária.

- Bem, há coisas piores. A minha irmã mais nova chama-se Clodagh. Também não gosta do nome. Quer que a tratem por Tracey Charlene.

Dessa vez Lucy riu com vontade.

- Será que não estiveste na igreja ontem? - perguntou Rory.

- Estive, mas não te vi, se calhar foi por estar tanta gente. Queria ver as luzes acesas, a brilhar no tecto. É lindo. Elfrida foi comigo. Carrie também teria ido, é minha tia, mas está constipada e precisa de ficar dentro de casa. Esta manhã, o médico foi vê-la e disse-lhe que não saísse da cama. Não tem nada de especial, só precisa de descansar. Caso contrário, teria ido comigo e, se calhar, aquela luta entre os cães não teria acontecido.

- Não há nada pior do que uma luta entre cães. Não se consegue fazer nada para os separar.

Ouvir aquilo era reconfortante.

- Trabalhas no campo de golfe?

- Sim, por enquanto. Estou no início do meu ano intercalar. Terminei o liceu em Julho e no ano que vem vou para a Universidade de Durham. Passei o Verão todo a trabalhar como assistente de golfe para americanos. Foi francamente lucrativo, mas já se foram todos embora, portanto agora ajudo o responsável pela conservação do relvado do campo.

- Que tencionas fazer depois?

- Quero ir ao Nepal. Posso arranjar trabalho por lá, a dar aulas. Lucy ficou impressionada.

- A ensinar o quê?

- A ler e escrever, acho. Só a crianças. E aritmética. E futebol. Lucy ficou pensativa.

- Estou com muito medo do meu ano intercalar.

- Que idade tens? - Catorze.

- Ainda tens tempo para fazer planos.

- O problema é que não quero ir para um sítio estranho e assustador. Sozinha.

- Assustador?

- Sabes como é. Crocodilos e revoluções. Rory sorriu e observou:

- Tens andado a ver demasiada televisão.

- Se calhar fico em casa.

- Onde é que vives?

- Londres.

- Frequentas algum liceu na cidade?

- Sim, um externato.

- Vieste passar o Natal aqui?

- Vim com Carrie. Vivo com a minha mãe e a minha avó. A minha mãe vai passar o Natal à América. Na verdade, parte amanhã, de avião. E a minha avó vai para Bournemouth. Foi por isso que Carrie me trouxe consigo.

- E o teu pai?

- Estão divorciados. Vejo-o pouco.

- Não deve ser fácil. Lucy encolheu os ombros.

- Já me habituei.

- A minha mãe disse-me para te emprestar a minha televisão velha. Queres?

- Tens outra?

- Claro.

- Bem, seria simpático da tua parte, mas até agora ainda não me fez falta.

- Depois trato disso.

Durante algum tempo seguiram aos solavancos e calados pela trilha esburacada. Às tantas, Rory disse:

- Parece que amanhã ao fim da tarde vocês vão todos até Manse para um lanche. Às sete da tarde há um hooley na escola. Clodagh e eu vamos. Também queres vir?

- Que é um hooley?

- Um baile.

Lucy sentiu-se imediatamente ansiosa. Detestava dançar, nunca conseguia lembrar-se quando era para a direita ou para a esquerda. Já estivera em festas, mas bailes, nunca. E, nas festas, normalmente ficava a um canto, consumida de tanta timidez.

- Não sei - respondeu.

- Que é que não sabes?

- Se quero ir a um baile.

- Porque não? São apenas os miúdos da escola a ensaiar reels para as festas de Hogmanay2. É muito divertido.

 

  1. Reel. dança (neste caso, escocesa). (N. da T.)

2 Hogmanay: último dia do ano, quando os jovens cantam e buscam presentes. (N. da T.)

 

- Eu não sei dançar reels. Não conheço os passos.

- Então é altura de aprenderes.

Ainda assim, Lucy hesitou. Mas quando ele virou a cabeça para si e lhe sorriu de maneira amiga e incentivante, Lucy, para sua própria surpresa, deu consigo a responder:

- Está bem. Aceito. Obrigada. Preciso... de ir vestida de alguma naneira especial?

- Nem pensar. Jeans e sapatilhas.

Enquanto conversavam, o tempo escurecera ameaçadoramente. De repente, os primeiros flocos de neve começaram a cair. Tombavam, esvoaçantes, do céu cor de chumbo, pousando na parte da frente do tractor e acumulando-se no vidro da frente. Rory ligou o pára-brisas, dizendo:

- Já estava mesmo à espera disto. Viam-se as nuvens carregadas de neve a virem do Norte. Ouvi o boletim meteorológico hoje de manhã, e eles avisaram que vêm aí umas quedas de neve bem fortes.

- Vai ser um Natal branco?

- Gostarias?

- Nunca vivi nenhum.

- É óptimo para andar de trenó. Trabalho duro para quem está na estrada e para quem trabalha para a desimpedir.

Entretanto chegaram ao fim da viagem, subindo a encosta que levava até ao clube. Rory meteu o tractor no parque de estacionamento, desligou, abriu a porta e desceu.

- Achas que já não tens problemas?

A neve assentava-lhe sobre o cabelo e os ombros do casacão grosso. Lucy desceu atrás dele, pegou em Horace e pousou-o no chão. O cão sacudiu-se e conseguiu até agitar a cauda emplumada. A neve caía e rodopiava em torno deles e os seus pés trituravam ruidosamente a camada de neve que acabara de cobrir o solo. Lucy sentiu um floco pousar no seu nariz e sacudiu-o. Tirou a trela do bolso e Rory prendeu-a à coleira de Horace.

- Pronto, já está - disse Rory, sorrindo-lhe. - Agora vai para casa.

- Obrigada por tudo.

- Até amanhã.

- Até amanhã.

Afastou-se de Rory e desceu a colina, debaixo de neve. Horace coxeava corajosamente a seu lado. Um banho com desinfectante, dissera Rory, e depois, talvez uma ida ao veterinário. Esperava que Elfrida não ficasse demasiado perturbada, mas tinha a certeza de que era o mais certo. Compreenderia que nada daquilo fora por culpa de Lucy. Ouviu o motor do tractor começar a trabalhar atrás dela, e virou-se para dizer adeus, no entanto a neve era demasiada para que Rory a visse.

Seguiu em frente com esforço, deveras abalada pela emoção e nervosismo. Fora um passeio cheio de peripécias: uma longa caminhada, uma briga entre cães, um passeio de tractor, uma queda de neve e um convite para um baile. Estava ansiosa por chegar a casa e contar tu do a Oscar e a Elfrida.

 

Elfrida

Elfrida ficou imensamente aliviada assim que ouviu a

porta da frente abrir e a voz de Lucy chamar. Era quase meio-dia, mas estava escuro como se fosse noite, e o mundo, por trás da janela da cozinha, mostrava-se atapetado com a neve que tombava. Ficara preocupada com Lucy, logo que a neve começara a cair de um céu cor de granito, culpando-se por ter sido irresponsável e ter deixado a criança sair sozinha, imaginando todo o tipo de horrores. Oscar, no piso de cima, não se sentia tão preocupado. Lera o jornal e assegurara a Elfrida, sempre que esta vinha a correr para espreitar pela janela, de que a jovem era sensata, levava o cão consigo, não podia passar o resto da vida excessivamente protegida. Tudo o que Elfrida sabia ser verdade.

Voltou para a cozinha, afim de preparar o almoço, e pôs-se a descascar batatas, sempre de ouvido à escuta, como um cão. Quando ouviu Lucy no vestíbulo, largou as batatas e correu ao seu encontro, limpando as mãos ao avental. Deparou com Lucy e Horace em cima do capacho, cobertos de neve e com uma história terrível para contar.

O relato foi feito na cozinha aquecida, enquanto Lucy despia o casaco e tirava as botas.

- Aquele cão horrível, era um rottweiler, andava sem trela e atirou-se a Horace e mordeu-o, mas depois apareceu um tractor. Era Rory Kennedy, que foi tremendamente valente e discutiu imenso com a dona do rottweiler, puseram-se aos gritos um com o outro. Ela foi-se embora furiosa e Rory trouxe-nos no tractor até ao clube, quando começou a nevar. E, oh, Elfrida, desculpe, mas não consegui impedir o que se passou. E o pobre Horace está cheio de mordidelas e arranhões. Rory disse que devíamos dar-lhe um banho com desinfectante e, se calhar, levá-lo ao veterinário. Há desinfectante cá em casa? Se não houver, posso ir à farmácia buscá-lo... apanhei um susto de morte. Pensei que aquele cão matava Horace.

Lucy estava nitidamente alterada com todo o incidente, mas, curiosamente, também entusiasmada, pois saíra de toda aquela aventura trazendo Horace vivo para casa. Tinha as bochechas muito vermelhas, os olhos brilhantes e parecia mais viva e cheia de vitalidade que nunca. Era uma menina adorável, evidentemente, mas pouco dada a efusões e a docilidade não era apanágio dos seus catorze anos. Aquela metamorfose era auspiciosa, de modo que Elfrida esqueceu todas as suas ansiedades e percebeu que fizera muito bem em deixar Lucy sair sozinha. Horace sentou-se no chão com um ar muito infeliz.

- Que aconteceu, Horace! - perguntou-lhe Elfrida. - Foste atacado por algum cão selvagem?

- Ele realmente ladrou -, teve de admitir Lucy -, mas não foi muito.

- Só os cães estúpidos é que ladram aos rottweilers.

Elfrida foi ao andar de cima buscar um frasco de Dettol e Lucy encheu o enorme tanque da roupa com água morna. Meteram Horace dentro dela e toda a neve que trazia presa às patas e ao peito derreteu. Não havia chuveiro, mas Elfrida arranjou um jarro velho, com o qual lhe deitou a água a cheirar a hospital sobre o lombo, as pernas e o pescoço. Horace deixou-se ficar, todo encharcado, a sofrer em silêncio, no entanto, quando o banho chegou ao fim, Elfrida não lhe descobrira nenhum ferimento grave, apenas uma série de mordidelas e arranhões que sarariam com o tempo. Tinha a pele do estômago seriamente magoada e as orelhas ligeiramente rasgadas, mas, de um modo geral, parecia ter saído da tareia com males pouco duradouros.

Lucy respirou de alívio.

- Portanto, não é necessário levá-lo ao veterinário?

- Parece-me que não. Ainda bem, pois não faço ideia onde fica o mais próximo, e com esta neve não nos convinha nada andar por aí.

Deixou a água escoar, tirou Horace do tanque e levou-o para a cozinha todo embrulhado numa toalha felpuda branca. Secou-o com todo o cuidado.

- Agora temos dois inválidos. Talvez devêssemos pôr um letreiro a anunciar, «Enfermaria da Casa da Quinta».

Lucy sentia-se muito culpada.

- Que horror. Esqueci-me completamente de Carrie. Estará a dormir?

- Assim espero. Não ouvi um som.

- Onde está Oscar?

- Na sala de estar.

- Tenho de lhe ir contar tudo o que aconteceu.

- Ele deve estar ansioso por saber, mas, querida, tens as calças ensopadas. É melhor ires vestir umas roupas secas. Traz as molhadas para baixo, para as pendurarmos no varal.

- Certo. - Lucy ia a afastar-se, mas, ao chegar à porta aberta, deteve-se e voltou-se para trás. - Elfrida?

- Sim?

- Rory Kennedy é uma simpatia. E tem o cabelo pintado.

- O cabelo pintado? - Elfrida compôs uma expressão de horror. E que diria a tua avó! Lucy disse-lhe, imitando a voz de Dodie:

Inadmissível!

Depois sorriu e desapareceu. Elfrida ouviu-a subir os degraus dois a dois, até ao seu quarto no sótão.

Eram três da tarde quando Elfrida foi ver como Carrie estava. A neve parara de cair, mas o dia continuava escuro, pelo que teve de acender as luzes e cerrar as cortinas. Bateu suavemente à porta de Carrie e abriu-a.

- Carrie?

- Estou acordada.

Apesar da penumbra, Elfrida viu-a virar a cabeça na almofada branca. Aproximou-se da mesinha-de-cabeceira e acendeu a luz. Carrie espreguiçou-se e depois sorriu-lhe.

- Que horas são?

- Três da tarde.

- Parece noite.

- É verdade. Tem estado a nevar e já temos um metro de altura, mas para já, parou. - Foi até à janela e puxou as cortinas grossas, o que fez com que o pequeno quarto ficasse imediatamente com um aspecto acolhedor, com a única luz acesa a tornar os recantos escuros. Elfrida sentou-se na beira da cama enorme. - Como te sentes?

- Entorpecida. Como pude dormir tanto tempo?

- Estavas estoirada. Queres comer alguma coisa? Ou tomar uma chávena de chá, o que quiseres.

Carrie pensou um pouco.

- Adoraria uma chávena de chá. Mas primeiro tenho de ir à casa de banho.

Levantou-se da cama na sua camisa de dormir em cambraia, mostrando os braços e as pernas longas e finas. Pegou no robe e vestiu-o, atando fortemente o cordão em volta da cintura estreita. Elfrida deixou-a e desceu à cozinha para pôr água a ferver. Preparou um tabuleiro para as duas e foi à procura de uns biscoitos deliciosos e caros que Oscar tivera a veleidade de trazer numa das suas idas às compras. Levou o tabuleiro para cima e encontrou Carrie já de novo na cama, depois de ter lavado a cara, escovado os dentes e penteado o cabelo escuro. Também pusera um pouco do seu perfume especial, sentindo-se, claramente, muito mais apresentável.

- Elfrida, és um anjo. Desculpa todo este trabalho.

- Não é trabalho nenhum. Fico muito contente por poderes ter descansado.

- Que silêncio! Onde estão todos?

- Assim que a neve parou, Oscar e Lucy resolveram ir às comPras. Foram à procura de enfeites para a árvore de Natal.

- Achas que encontrarão?

- Não faço ideia. Provavelmente no ferreiro. Lucy levou Horace a dar o seu passeio e teve uma aventura tremenda... - Contou a Carri a saga de Horace e do rottweiler e Carrie, além de ficar horrorizada também se sentiu impressionada pela compostura de Lucy e pelo modo como se conduzira.

- Que aventura! Muitíssimo assustadora, mas provavelmente aquilo que lhe estava a fazer falta. Nem imaginas a vida monótona que ela leva em Londres com Dodie e Nicola. São ambas muito egoístas e não têm imaginação para nada. Nem sei o que teria sido da minha vida na idade de Lucy, se não fosse Jeffrey. E a pobre rapariga não só não tem nenhum Jeffrey, como também nenhum pai como deve ser. Dodie e Nicola têm os horizontes tão limitados que não são capazes do menor estímulo.

- O que é que a pobre criança faz o dia todo?

- Passa a maior parte do tempo na escola. Tem um quartinho agradável só para ela no apartamento e uma amiga chamada Emma...

- Aposto em como nunca vê nenhum homem. Ou rapaz.

- A escola é feminina e se visita o pai, a chata da Marilyn impõe sempre a sua presença. Se calhar tem ciúmes, a estúpida da mulher.

- Acho que ela ficou encantada com Rory Kennedy. Além de ter sido tremendamente corajoso e ter salvo Horace, usa o cabelo pintado. E um brinco!

- Que excitante!

- Fomos todos convidados para ir a Manse amanhã à tarde, lanchar com os Kennedy. Quero que conheças Tabitha, mas, se calhar, ainda não te apetece muito conviver.

- Verei.

- A seguir parece que há um bailarico qualquer no átrio da escola... a criançada toda vai dançar reels. Rory convidou Lucy para ir com ele e a irmã, de modo que está entusiasmadíssima e diz que hoje à noite vai lavar o cabelo.

Carrie bebeu o seu chá, que estava escaldantemente quente e a saber ligeiramente a fumo, pois Elfrida utilizara uma saqueta de chá lapsang souchong. Observou, com uma certa tristeza:

- Tenho o terrível pressentimento de que, quando chegar a altura de voltarmos para Londres, vamos ter um vale de lágrimas.

- Não digas isso. Nem quero pensar.

- Tenho estado a reflectir neste meu emprego na agência de viagens em Londres. Resolvi aceitar. Talvez lá fique só um ano. Depois poderei dar um pouco de assistência a Lucy, tentar animar um pouco a sua vida. Obrigarei Dodie a concordar, a deixar-me levar Lucy para a Cornualha, afim de lá passar uns tempos com Jeffrey e Serena. Sabes, ela nunca viu Jeffrey. Ainda era bebé quando eles se divorciaram, e o ressentimento e o rancor de Dodie não mostram sinal de abrandar.

- Pobre mulher.

Porque dizes isso?

- Porque ela não tem mais nada em que pensar. Queres mais um pouco?

Carrie ergueu a chávena vazia e Elfrida voltou a enchê-la.

- Nicola já telefonou?

- Nicola? Estavas à espera de alguma chamada sua?

- Não, mas amanhã parte para a Florida. Pensei que pudesse querer despedir-se de Lucy, o que, obviamente, não é o caso.

- Lucy nunca falou nisso. Para ser sincera, acho que anda demasiado preocupada com aventuras caninas, Rory Kennedy e na compra de decorações natalícias com Oscar.

- Melhor para ela.

Ficaram em silêncio, beberricando o seu chá e desfrutando da companhia uma da outra. A casa estava muito tranquila. Elfrida observou, com o máximo de indiferença de que foi capaz:

- Será uma boa altura para conversarmos?

Carrie levantou a cabeça, pousando os lindos olhos escuros no rosto de Elfrida.

- Conversar?

- Disseste que me contarias. Quando desse jeito, mais tarde. Por que motivo voltaste da Áustria. O que te levou a sair de lá tão precipitadamente. Porque aceitas o emprego em Londres. Talvez agora, que não temos ninguém a interromper, seja uma boa altura. Não estou a querer ser bisbilhoteira, mas gostaria de saber. Não tanto sobre a Áustria, mas sobretudo porque estás tão desgastada e com um ar tão triste.

- É esse o aspecto que tenho?

- O que não te torna menos bonita.

- Oh, Elfrida, és um anjo. Eu não me sinto bonita, mas sim velha e acabada. Estou quase com trinta anos. Não sei o que vai ser da minha vida. Os anos passaram a correr desde a última vez em que te vi. Antigamente, os trinta pareciam a léguas de distância. Agora, sem que desse por isso, já aí estão, a seguir virão os quarenta, os cinquenta, e eu tenho de fazer algo da minha vida. Mas a simples perspectiva de tomar decisões, conhecer gente nova e encontrar velhos amigos deixa-me completamente esvaída.

- Provavelmente, foi por isso que apanhaste esta gripe terrível e ela te deitou assim abaixo.

- Queres tu dizer que é psicossomático, não é?

- Não, não me refiro a isso, refiro-me a estares fisicamente vulnerável.

- Vulnerável. Nunca imaginei que alguém viesse a utilizar semelhante palavra referindo-se a mim.

- Somos todos vulneráveis.

- Eu pensei que era forte. - Carrie terminou o seu chá e Elfrida pegou na chávena vazia e colocou-a no tabuleiro, levantando-se da cama, afim de o pousar no chão. Em seguida, voltou para o mesmo sítio e ajeitou-se o melhor possível, encostando-se ao fundo da cama em metal.

- Que aconteceu, Carrie?

- Estava em Oberbeuren quase há um ano, tinha feito uma temporada de Inverno e outra de Verão. Ganhava bastante bem, encontrara um apartamento só para mim e fazia aquilo que mais gostava de fazer acima de tudo. Tudo corria às mil maravilhas. Foi então que conheci Andreas. Chegou com as primeiras neves, inserido num grupo de amigos do mesmo sexo. Tinham o hábito de se reunir todos os anos, de fazerem uma espécie de festa só para homens que já vinha dos tempos da faculdade. Ficaram instalados no hotel grande e foi nessa altura que o conheci. Ele era banqueiro em Frankfurt, o negócio pertencia à sua prestigiada família, do qual o pai era presidente. Era casado e tinha dois filhos. Soube desse facto desde o princípio, mas já não era nenhuma menina inocente, de modo que me convenci de que era capaz de ultrapassar esse pormenor. Não tencionava apaixonar-me por ele nem ele por mim, mas foi o que aconteceu. Simplesmente aconteceu.

«Era o homem mais atraente que eu já conhecera, o mais generoso e divertido dos companheiros, um esquiador exímio, uma maravilha na cama. Não tinha ar germânico, não era louro de olhos azuis. Na verdade, era até bastante moreno, alto e magro, com um ar todo intelectual. Nesse primeiro Inverno deslocou-se a Oberbeuren com muita frequência. Voava até Munique no avião da empresa, e daí seguia de carro para as montanhas. Depois não se instalava no hotel, ficava comigo. Era como se fosse um mundo só nosso, onde mais ninguém podia entrar. Quando a neve derreteu, pensei que deixaria de ir, mas ele adorava as montanhas tanto no Inverno como no Verão, de modo que caminhávamos dias a fio, nadávamos em lagos gelados e dormíamos em estalagens distantes. Ao acordarmos, nalguma cama com colchão de penas de ganso, ouvíamos os chocalhos dos rebanhos que vinham ser mungidos pela manhã.

«Viajava muito pela Europa em negócios, e eu ia muitas vezes ter com ele a Viena, Luxemburgo ou Munique. Em Viena, era Inverno, visitámos o mercado do Natal e comprámos biscoitos de gengibre, estrelas refulgentes e pequenos enfeites de madeira pintada. Nessa noite ainda fomos à Ópera ouvir Der Rosenkavalier e depois jantámos no Three Hussars.

«Então, há cerca de seis meses, ele voltou a Oberbeuren. Parecia fatigado e ligeiramente preocupado. Quando lhe perguntei se havia algum problema, respondeu-me que pedira o divórcio à mulher, para depois se casar comigo. Senti-me dilacerada por sentimentos antagónicos. Lembrei-me de Jeffrey e Serena e pensei no quão felizes eram juntos. Mas também me veio à memória a discórdia e a amargura que rodeou todo aquele divórcio. Eu não conhecia a mulher dele, só sabia que se chamava Ingá. Não conseguia compreender como era possível uma mulher não estar completamente apaixonada por Andreas. Portanto, sentia-me simultaneamente culpada e extasiada. Mas não tinha esperança num futuro a dois porque não valia a pena. Vivera com Andreas um dia de cada vez. já fazia tanto tempo que mal conseguia lembrar-me de como era quando ele, a coisa mais importante da minha vida, não estava ali.

«Ele não voltou a falar no divórcio. Vinha estar comigo nas montanhas e de vez em quando dizia coisas como: "Quando casarmos, construiremos uma casa aqui e viremos cá todos os fíns-de-semana. Trarei Os meus filhos. Hás-de conhecê-los."

«Eu, no entanto, nem sequer tentava responder, pois tinha medo. Era como desafiar o destino.

«Certo dia, disse-me que consultara um advogado. Mais tarde, que comunicara aos pais o fim do casamento e o divórcio iminente.

«Penso que deve ter havido uma discussão monumental. A família de Andreas era importante em Frankfurt, rica, com excelentes conhecimentos e influências. E também era católica. Imagino o que ele não terá passado. E se calhar, até não. Só sei que não tinha coragem de ser eu a romper a ligação. Portanto, o que me iria acontecer dependia dele. De Andreas. A decisão era sua.

«Ele ainda se aguentou durante três meses, mostrando-se tão forte e tão resoluto que acreditei verdadeiramente que resolveria o assunto, cerraria os dentes e libertar-se-ia. Mas penso que, no final do dia, a pressão era demasiado grande. Gostava obviamente da mulher e adorava os filhos. Respeitava os pais e apreciava o estilo de vida de que desfrutava. Creio que lhe terão dito que, se desfizesse a família, estava acabado. Ficaria entregue a si mesmo.

«É tudo tão banal, não é? É o tipo de história de que já se ouviu falar. Uma história saída de um melodrama antigo ou de uma ópera vitoriana. Quando Andreas me disse que tínhamos de terminar, pôr um ponto final no nosso amor, porque ia voltar para junto de Ingá e dos filhos em Frankfurt, eu fortaleci-me e aceitei a sua decisão. Mas quando chegou a altura de dizer adeus e soube que nunca mais o veria, foi como se a vida me saísse do corpo, como se me sentisse sangrar até à morte ou algo de horrível como isso.

«Pensei que seria capaz de continuar em Oberbeuren e tentar prosseguir o meu trabalho, o que não aconteceu. Não conseguia concentrar-me em nada e o trabalho era demasiado exigente e importante para ser feito a meio gás. Portanto, fui ter com o meu patrão e informei-o de que me ia embora, que regressava a Londres. Fiquei o tempo suficiente Para me substituírem... deixei lá uma rapariga muito eficiente que trabalhara sob a minha orientação... e voltei para casa.

«Ainda sonho com Andreas. Às vezes é assustador, outras aparece-me a dizer que foi tudo um erro, que Ingá não o quis de volta e poderemos voltar a estar juntos. Nessas ocasiões acordo com uma tal sensação de felicidade...

Fez-se um silêncio prolongado e depois Carrie agitou-se e sorriu dizendo:

- E foi assim.

- Minha querida, obrigada por me teres contado.

- Uma chatice, na verdade. Como disse, banal.

- De modo algum.

- Hei-de recompor-me. Esquecerei Andreas e ficarei boa da cabeça. A vida continua. Estou aqui, contigo. Ficarei bem e farei os possíveis por animar o ambiente.

- Não tens de te esforçar para o que quer que seja.

- Vais contar a Oscar?

- Se me deres licença.

- Faz-lhe só uma resenha rápida. Gostaria de que ele soubesse. Simplificará as coisas para nós dois.

- Muito bem. - Elfrida suspirou fundo. - Carrie, não deves considerar o que aconteceu como o fim da alegria e do amor. A vida é extraordinária. Há surpresas maravilhosas mesmo ao virar da esquina. Agora, a situação pode parecer-te um pouco desanimadora e vazia, mas olha para mim! Imaginei que ficaria sozinha o resto da vida, no meu cantinho geriátrico no Hampshire, e de repente vejo-me no Norte da Escócia a viver com Oscar Blundell.

- Oscar não é casado.

- Pois não - concordou Elfrida, pensando em Jimbo e suspirando de novo, perplexa com as voltas e reviravoltas do destino. - O mundo está cheio de homens casados - observou.

- Não para mim, Elfrida. Nunca mais.

Do piso de baixo chegou até elas o barulho da porta da rua a abrir e a fechar e o som alegre das vozes de Lucy e Oscar, que regressavam das compras.

Elfrida recompôs-se e levantou-se da cama.

- Tenho de ir preparar um chá para Oscar. Queres que diga a Lucy para vir ter contigo?

- Sim, faz isso. Quero ouvir a aventura da luta dos cães directamente dela... e sobre o novo amigo que arranjou.

- Não troçarás dela, pois não?

- Oh, Elfrida! Como se eu fosse capaz disso. Ainda me lembro exactamente do que é ter catorze anos.

 

Sam

Encontravam-se no bar Duke's Arms, em Buckly, um pequeno pub austero que não fizera concessões nem ao turismo nem às tendências decorativas da época. As paredes eram de tábuas de pinho empalhetadas, a iluminação débil e o chão coberto de linóleo castanho, gasto. O proprietário estava ao balcão e não parecia satisfeito com o seu trabalho. Em volta viam-se várias mesas redondas pequenas e cadeiras de aspecto pouco convidativo, e numa lareira minúscula ardia um fogo de turfa. Dominando tudo do alto da sua caixa de vidro, via-se um enorme peixe embalsamado, de olhos vítreos. No ar pairava um fedor a cerveja antiga e a uísque. Fergus Skinnner perguntou:

- O que há-de ser? Um copo de cerveja, se faz favor.

- Não prefere uma caneca?

- Vou conduzir. Fergus levara Sam ao local, vindo do salão da igreja e atravessando a estrada coberta de neve depois de terminada a reunião. Aquele era o antro onde se refugiava normalmente, contou a Sam, porque as mulheres não punham lá os pés; era um lugar onde um homem podia sentar-se a regalar-se com uma bela caneca sem que ninguém o viesse aborrecer com conversas.

- Sim, sim - concordou, compreendendo a situação de Sam. E realmente uma pena, mas não há nada a fazer. - Mandou então vir uma caneca grande de Bell para si. - Eu cá, ando a pé. - Mas se a sua intenção era ser engraçado, não se lhe notou o menor lampejo de humor nos olhos.

Era um indivíduo alto, no início dos quarenta anos, mas com ar de mais velho, com o cabelo escuro e a pele clara de um verdadeiro montanhês da Escócia. Tinha feições pronunciadas - olhos profundamente inseridos, nariz adunco, faces muito magras e alongadas - e uma expressão sombria.

A sua aparência, porém, nada tinha a ver com o seu carácter. Fergus Skinner fora o antigo capataz na fábrica de tecelagem e quando a família McTaggart falira, ele é que reunira os trabalhadores, fora falar com a Associação Comercial local e organizara o resgate da empresa. Fora eleito capataz quase por unanimidade, mas a mudança fora mais dura para ele do que para qualquer outro.

No entanto, não se deixou derrotar porque, provavelmente, a única alternativa seria ir abaixo, e ele era um homem demasiado forte para isso. Quando Sam lhe telefonou de Londres, dos escritórios da Sturrock & Swinfield, a pedir-lhe que organizasse uma espécie de reunião com os trabalhadores, Fergus Skinner cumprira o combinado: pusera cartazes a alertar o público e publicara vários anúncios nos jornais da localidade. Daí que a reunião tivesse tido muita afluência e quem chegara mais tarde tivera de ficar de pé.

Levaram então as bebidas para uma mesa ao lado da lareira. O único outro cliente era um homem muito velho que, sentado a um canto meditava em frente do seu copo, com um cigarro ao canto da boca. Não parecia interessado em nenhum dos outros presentes. Na parede, um relógio redondo, cujos ponteiros mostravam ser cinco e meia da tarde, fazia ouvir o seu tiquetaque regular. O barman, que puxava brilho a um copo, olhava absortamente para um pequeno televisor a preto e branco, cujo som estava tão baixo que mal se ouvia.

Um pedaço de turfa incandescente resvalou para o meio das cinzas quentes da fogueira. Fergus ergueu o copo e exclamou:

- À nossa saúde!

- E ao futuro. A cerveja estava morna.

- Ao futuro.

A reunião, realizada no salão da igreja de Buckly por a fábrica ainda se encontrar num estado de desolação e ruína, cheia de humidade e enregelante, fora proveitosa. Sam e Fergus tinham subido para cima da plataforma alteada, de onde o recém-chegado vira não só homens como também mulheres, assim como uma criança ou outra, demasiado pequena para ficar em casa sozinha.

No início, o ambiente fora de cautela e não exactamente amistoso. Aquela gente, sem trabalho fazia tanto tempo, não aceitaria de mão beijada nenhumas promessas coloridas. Sam começara por se apresentar como o novo director-geral da McTaggart, aquele que tomaria a seu cargo a reconstrução, em termos gerais, da fábrica em ruínas e o relançamento do negócio. Teve como resposta o silêncio, apercebendo-se que o mais provável era considerarem-no apenas como um investidor de capital, enviado de Londres pela Sturrock & Swinfield. Falou-lhes então de alguns dos seus antecedentes: oriundo do Yorkshire, nado e criado na indústria dos lanifícios e numa fábrica de família muito semelhante à McTaggart, de Buckly. De como, também eles, tinham deparado com dificuldades financeiras e sido salvos pela Sturrock & Swinfield, razão pela Qual se encontrava ali naquele dia. O ambiente descontraiu um pouco. As pessoas agitaram-se, acomodando-se melhor nas cadeiras.

prosseguiu.

Levou muito tempo. Passou todo o processo a pente fino. O estudo de viabilização e a reestruturação. Um negócio erguido sobre tradição e boa vontade, mas a ter de acompanhar o progresso. Portanto, novos produtos, novos mercados, nova maquinaria.

No início da reunião tivera de perguntar se alguém queria fazer perguntas. Depois já via mãos no ar.

- Isso significará reciclagem?

Respondeu-lhes que sim. Apareceram logo outras perguntas, bem precisas:

- Haverá dispensa de trabalhadores?

Respondeu que, no princípio, sim, haveria, mas assim que a nova fábrica entrasse em plena laboração, verificar-se-ia uma expansão gradual, assim como a criação de novos postos de trabalho.

Uma mulher levantou-se e perguntou se haveria trabalho para si, que era dos acabamentos manuais, ou se tudo seria feito com as tais máquinas novas e sofisticadas. Sam respondeu-lhe que, tendo em conta os produtos luxuosos que pretendiam fabricar, aquela especialidade nunca deixaria de ter trabalho.

A pergunta mais importante foi: «Quando?» Quando é que voltariam ao trabalho?

O mais tardar dali a nove meses. Um ano, no máximo.

Porquê tanto tempo?

Havia muito a fazer. Se alguma pessoa quisesse provas do facto, podiam consultar fotocópias dos planos já feitos, que se encontravam afixadas em quadros ao fundo da sala.

O exterior da velha fábrica ficaria na mesma. O interior seria esventrado e reconstruído de raiz. Criariam uma loja para atrair turistas e o arquitecto tomara providências para um pequeno café e pastelaria, para os quais também seriam precisos trabalhadores.

E quem trataria dos contratos de construção?

Sam explicou que Sir David Swinfield fazia questão em que todos os intervenientes no processo fossem da zona e que se recorresse aos pedreiros, canalizadores, electricistas e marceneiros locais. Depois da passagem do ano seriam apresentadas propostas e feitos os cálculos subsequentes.

No fim, gerou-se uma discussão generalizada, precisamente o que Sam pretendia que acontecesse. Antes da reunião terminar, desceu da plataforma e misturou-se com os presentes para esclarecer dúvidas relacionadas com o que estava nas fotocópias, escutar os problemas e tentar criar confiança da parte dos operários. Quando tudo chegou ao fim, achou que não fizera exactamente amigos, mas que ganhara uma certa confiança da parte deles e, se tudo corresse bem, colaboração.

Era um começo mais auspicioso do que aquele com que contara e não pior do que receara.

Fergus inclinou-se para deitar mais um pedaço de turfa na fogueira agonizante.

- E quando é que -, perguntou -, tenciona vir viver para Buckly?

- Já cá estou, Fergus.

- Mas não volta para Londres?

- Claro que volto. Provavelmente, andarei acima e abaixo como um ioiô, mas de momento estou aqui.

- E onde é que se instalou?

- Para já, num hotel em Inverness.

- Mas tenciona ir a casa passar o Natal, não?

Sam hesitou. Iria trabalhar muito de perto com Fergus, de modo que calculou que fosse melhor ser completamente franco com o homem e colocar todas as cartas, no que se referia à sua vida pessoal, sobre a mesa. Assim, não haveria confusões nem más interpretações.

- Sabe, de momento não tenho casa. Vivia em Nova Iorque. Nem sequer tenho família. Minha mulher e eu estamos separados. Ela ficou nos Estados Unidos.

- Isso é terrível. Não ter um lar - observou Fergus. Sam sorriu.

- Há coisas piores. Seja como for, o meu tempo e a minha cabeça andarão tão ocupados com a fábrica que nem tempo terei para pensar no Natal. Podia voltar a Londres e passá-lo com uns amigos, mas para já prefiro concentrar-me apenas no trabalho.

- Não pode ir e vir todos os dias de Inverness. É uma viagem muito longa, mesmo com as pontes novas.

- Encontrarei por aqui algum sítio onde morar. Alugarei ou arranjarei uma residência temporária. Ficarei bem.

- Seria muito bem-vindo em minha casa. A minha mulher teria muito gosto e há espaço que chegue.

- É muita gentileza sua, mas prefiro ficar sozinho. - Terminara a sua modesta bebida. Olhou de relance para o relógio. - É melhor ir andando. Como disse, é uma viagem longa.

- Mas dispõe de um excelente carro. Um Land Rover Discovery novo, ao que me parece.

- Sim, é novo. Comprei-o em Londres, quando soube que viria aqui para cima. Há três dias fui até ao Norte nele. É um veículo excelente.

- Sim, sim, sem dúvida. O meu filho tem um Land Rover.

- Que faz o seu filho?

É guarda-florestal. Não estava interessado nos lanifícios, preferia trabalhar ao ar livre. Sempre adorou a natureza. Quando era rapaz, passava vida a trazer pássaros feridos e esquilos doentes para casa, mantinha-os em gaiolas e cuidava deles até ficarem bons. Havia sempre algum animal selvagem desgraçado a um canto da nossa cozinha.

A minha mulher observou certa vez que era uma sorte não vivermos no Quénia.

Disse aquilo com ar tão sério que Sam levou algum tempo a aperceber-se do sentido da piada.

Ao saírem, repararam que voltara a nevar. No outro lado da rua, em frente da igreja, o Discovery verde-escuro de Sam tinha uma camada de neve com dois centímetros e meio de espessura.

- Eu no seu lugar telefonava a saber as condições meteorológicas. Numa noite como esta, a Black Isle pode ser um perigo - disse Fergus.

- Talvez o faça. Depois verei.

- Ainda nos vemos antes do Ano Novo?

- É provável. Ligarei para si. Manter-me-ei em contacto.

- Foi um prazer conhecê-lo.

- O prazer foi todo meu, Fergus.

Despediram-se com um aperto de mão. Fergus seguiu por uma rua estreita e comprida, atapetada por pesados flocos de neve, deixando um rasto de pegadas atrás de si. Sam viu-o ir, depois subiu para o seu jipe enorme, enfiando a mão no bolso para tirar duas chaves: uma, do seu carro, e a outra, um modelo antiquado preso com um cordel à etiqueta que dizia: «Casa da Quinta de Hughie McLellan.»

Sam ficou a reflectir durante uns instantes. A reunião fora uma provação que lhe provocara um grande desgaste de energia, mas como terminara bem, sentia-se estimulado e não fatigado. Seria agradável voltar à base, tomar um banho, e uma bebida no bar, seguida de jantar. Por outro lado, já que estava tão perto de Creagan, valeria a pena fazer o pequeno desvio até lá e dar uma vista de olhos à zona, orientar-se e localizar a casa de Hughie. Não precisava de entrar, bastava ver que aspecto tinha, calcular as suas possibilidades. Decidir se valeria a pena lá voltar, tendo em vista uma hipotética compra.

Ficou sentado e hesitou durante algum tempo, resolvendo depois deitar uma moeda ao ar. Se fosse caras, seguiria directamente para Inverness; coroas, iria até Creagan. Encontrou uma moeda e atirou-a. Coroas. Colocou a moeda e a chave da casa em cima do painel de instrumentos e ligou o motor e as luzes.

Os feixes luminosos fortes e longos dançaram com os flocos de neve.

Sentiu-se aventuroso.

Creagan, aqui vou eu. Estranhamente, havia muito trânsito na estrada. Transportes pesados rumo ao norte, abrindo caminho pela neve com os pára-brisas no máximo. Camiões enormes, carregados de madeira, camiões-cisterna com combustíveis e camionetas com gado. Carros com gente que voltava a casa depois do trabalho no final do dia; um tractor, com a luz de aviso a brilhar intermitentemente como uma estrela. Sam ficou preso no meio de tudo isso durante cerca de dois quilómetros, até virar junto de uma quinta e ganhar novamente velocidade. A neve parou de cair d repente. Uma nesga de céu claro mostrou a curva de um quarto crescente. Atravessou uma longa ponte sobre um estuário e, alguns quilómetros mais à frente, os faróis do seu jipe iluminaram um letreiro luminoso de estrada: ROTA TURÍSTICA. CREAGAN. 3 QUILÓMETROS.

Virou e a estrada de sentido único serpenteou ao longo das margens de um braço de mar. Era meia-maré, e reparou no tremeluzir escuro da água. Os baixios lamacentos estavam brancos de neve, transmitindo uma impressão surrealista, de sonho. Ao longe, na outra margem, via-se uma nesga de luz a sair pela janela de uma pequena casa. Passado um bocado, a estrada virou à direita e ele passou por uma elevação de terreno coberta de coníferas, depois entrou em campo aberto e avistou, à distância, as luzes de uma pequena vila.

O céu escureceu e voltou a nevar. Entrou na urbe por uma rua ladeada de árvores, mas a luz dos candeeiros permitiu-lhe ver a igreja, a praça e um cemitério murado. Fez-lhe lembrar cartões de Natal. Só lhe faltava uma senhora de saia em balão com embrulhos festivos nos braços. Deu a volta, lentamente, à igreja, tentando ver onde estava e qual era a casa vazia e ao abandono que pertencia a Hughie McLellan. Depois de ter dado uma volta completa sem resultado, resolveu pedir indicações e parou à beira do passeio. Aproximava-se um casal, de braço dado, com uma série de sacos de compras. Baixou o vidro da janela.

- Desculpem. Pararam.

- Sim? - perguntou o homem, solícito.

- Ando à procura da Casa da Quinta.

- Já está diante dela - respondeu o homem sorrindo, divertido. É esta. - Indicou a casa atrás de si.

- Oh, compreendo. Muito obrigado.

- Mande sempre.

E seguiram o seu caminho.

- Boas noites - disse Sam.

- Adeusinho.

Tinham-se afastado e Sam deixou-se ficar dentro do carro, a olhar para a casa, na qual reparara, mas não ligara por entender que não podia pertencer a Hughie. A deste estava vazia, desocupada. E aquela tinha janelas, com as cortinas cuidadosamente corridas, que deixavam passar luz.

Estava ocupada, vivia lá gente. Sam disse a si mesmo que só lhe restava seguir o seu caminho. Sair dali. Fizera a viagem para nada. Mas como gostava de mistérios e sabia que aquele não lhe sairia da cabeça até descobrir o que se passava. Pegou na chave, desligou as luzes e saiu do Discovery para o meio da neve. Atravessou o passeio, abriu o pesado portão de ferro e entrou. Aproximou-se da porta. Havia uma campainha. Carregou no botão e ouviu-a tocar algures dentro de casa.

Aguardou um pouco, com a neve a assentar-lhe nas costas, depois insistiu. Acendeu-se imediatamente uma luz exterior e ele ali ficou, como se tivesse sido apanhado por um holofote. Depois ouviu passos e abriram a porta.

Não sabia muito bem com o que contar. Talvez uma idosa de avental ou um velhote de pulôver e pantufas, aborrecido por terem interrompido o seu programa de televisão preferido. O que não contava era deparar com uma jovem morena e alta, de jeans e camisolão. Uma rapariga sensacionalmente bonita, que teria feito virar cabeças na Quinta Avenida.

Ficaram a olhar um para o outro. A certa altura ela perguntou, sem grande entusiasmo:

- Sim?

- Desculpe, mas esta é a Casa da Quinta?

- É, sim.

- A Casa da Quinta de Hughie McLellan?

- Não. A Casa da Quinta de Oscar Blundell.

Debaixo da luz, coberto de flocos de neve, molhado e transido de frio, Sam mostrou a chave com a etiqueta e alvitrou:

- Talvez me tenha enganado.

A jovem olhou para a chave. Depois retrocedeu e abriu mais a porta.

- É melhor entrar - disse.

 

Carrie

Nessa manhã, o médico passou pela Casa da Quinta, tal como prometera, com o rosto muito vermelho do frio, o grosso sobretudo de tweed humedecido pela neve recém-caída e a cheirar a turfa. Trouxe um livro sobre aves para Lucy, entregou-lho e depois subiu ao piso de cima, galgando dois degraus de cada vez -, afim de ir ver a doente.

Carrie, encostada às suas almofadas, disse-lhe que estava muito melhor, dormira optimamente e já se sentia recuperada. Ele, porém, aconselhou-a a ficar mais um dia de cama e Carrie, como sabia que se não aceitasse o conselho teria uma discussão com Elfrida, cedeu de imediato.

Depois do médico partir, tão abruptamente como chegara, Elfrida subiu ao quarto e enfiou a cabeça pela porta entreaberta.

- Que foi que ele disse?

- Que já estou boa, mas devo ficar de cama mais um dia. Lamento.

- Lamentas o quê?

- Tanto incómodo.

- Não sejas tola. Não é incómodo nenhum. Queres uma botija de água quente?

- Não, obrigada. Estou bem quentinha.

- É mesmo pena que não possas ir connosco visitar os Kennedy hoje à tarde, mas fica para outra vez. Estou muito entusiasmada. Sei que é um disparate, mas é a primeira vez que Oscar e eu vamos a algum lado. Um dia almoçámos no pub, mas essa foi a nossa única saída.

- Ficarei aqui a tomar conta do teu jantar.

- Não precisa de grandes cuidados. Fiz um kedgeree1, que depois meterei no forno, e se por acaso não o comermos hoje à noite, ficará Para o almoço de amanhã. É um prato muito acomodatício.

- Elfrida, tens andado a ler demasiados livros de culinária.

- Deus me livre!

O dia foi passando e Carrie viu o tempo que fazia pela janela, o que a deixou satisfeita por não ter de sair, pois, de vez em quando, nevava

 

  1. Kedgeree: prato da índia, preparado com arroz, carne e ovos. (N. da T.)

 

e o céu ficava cinzento. Ouviu, várias vezes, o vento a sibilar em torno da velha casa. Estava-se muito confortável dentro desta. Lembrou-se de uma vez ficar doente, quando era criança, e dos outros prosseguirem a sua vida do dia-a-dia sem a sua participação. O telefone tocou e alguém correu a atender. Ouviam-se passos de um lado para? o outro, vozes a chamar e a responder. Portas a abrir e a fechar. Ouviu Oscar a subir pesadamente as escadas, depois a descê-las e percebeu que andava a abastecer a lareira de lenha. Perto do meio-dia surgiram cheiros de cozinhados - cebola a refogar ou, então, uma panela de sopa ao lume. O luxo de nada ter para fazer, da ociosidade e total irresponsabilidade, eram situações das quais Carrie já se esquecera fazia muito.

Lucy era uma visita frequente.

- Carrie, olha. O doutor Sinclair é uma simpatia, não é? Emprestou-me este livro sobre aves, para eu saber como se chamam da próxima vez que voltar à praia.

- Foi realmente uma gentileza.

- Não me importava nada de que o meu médico de Londres fosse como ele. O nosso não é nada simpático e faz-nos esperar imenso tempo. - Pousou o livro ao lado. - Carrie, não sei o que hei-de levar vestido hoje à noite ao tal baile.

Via-se bem que, naquela altura, estava bem mais preocupada com o que se iria passar naquela noite do que com os nomes das aves marinhas.

- Quais são as opções?

- Bem, tenho os meus jeans novos, mas devem ser um pouco quentes de mais para dançar. Tenho os velhos, que foram lavados e Elfrida passou a ferro. Ou achas que devo antes levar a minha minissaia nova e os collants pretos?

- Rory disse alguma coisa sobre o que se devia levar?

- Falou em jeans e sapatilhas.

- Nesse caso, segue o seu conselho. Os velhos e aquela tua camisola de algodão vermelha às riscas brancas. Fica-te muito bem. Tem um ar muito francês. E vale sempre mais ir para o discreto do que para o espampanante. Eu guardava a minissaia para o Natal.

- Natal. Que estranho, ainda não pensei muito nele e já só faltam seis dias. Ninguém parece minimamente preocupado ou em preparativos. Nesta altura já a avó está com uma enxaqueca... dizendo que há imenso que fazer.

- Bem, Oscar mandou vir a árvore e as decorações já estão compradas.

- Eu sei, mas preciso de comprar alguns presentes. Para ele e para Elfrida. Não faço ideia do que há-de ser. E também há outros aspectos. Comida, por exemplo. Achas que irão fazer alguma ceia de Natal?

- Sabes tanto como eu, mas estou convencida de que sim. É bem provável. O caso é que Elfrida foi sempre muito despreocupada. Tudo ficará para a última da hora.

-E quanto às peúgas?

Acho que será melhor não contarmos com elas desta vez. Importas-te? Certamente já não acreditas que o Pai Natal desce pela chaminé Com os presentes, não é?

- Não, claro que não. Além disso, o costume das meias penduradas para os presentes é um bocado tolo. Excepto a tangerina e o saco de moedas de ouro em chocolate.

Pendurá-las-ei na árvore para ti.

A sério, Carrie? Sabes, é muito agradável passar um Natal diferente, não é? Sem sabermos como vai ser.

- Espero que te divirtas... na companhia de três adultos.

- Eu também serei uma adulta. Aí está o que este Natal tem de tão especial.

Eram seis menos um quarto quando Oscar, Elfrida e Lucy saíram, finalmente, para a pequena festa em Manse. As nevascas não tinham parado de cair o dia todo, e naquela altura as estradas estavam com uma boa camada de neve que as tornava bastante perigosas.

Como nem Elfrida nem Oscar gostavam da perspectiva de ir de carro até Manse, correndo o risco de derraparem ou levarem com algum tipo de avalanche em cima, resolveram subir a colina pela vertente. Todos agasalhados, de chapéu e botas, vieram despedir-se de Carrie um a um. E esta desejou a todos que se divertissem e lhe fossem contar tudo quando voltassem.

- Não me parece que haja muito que contar - admitiu Elfrida -, a não ser que eles tenham convidado outras pessoas e alguma se embriague.

- Nunca se sabe.

Lucy foi a última. Carrie achou-a extremamente bonita, com os olhos brilhantes e o sorriso entusiasmado. Levava o seu novo casacão vermelho acolchoado, assim como as botas e o enorme barrete de lã, além da pequena mochila, ao ombro.

- Que levas aí dentro?

- As minhas sapatilhas e uma escova de cabelo. E uma tablete de chocolate.

- Vais divertir-te imenso.

- Não sei quando estarei de volta.

- Não importa. Nada importa. Rory provavelmente virá trazer-te. Se quiseres, convida-o para entrar e tomar uma cerveja ou algo do género. Como preferires. Alguém estará a pé.

- Posso, de verdade? Bem... - Reflectiu sobre a perspectiva. Verei.

- Isso. Agora, toca a andar.

- Até logo, Carrie.

- Até logo, querida. - Abraçaram-se e Lucy deu-lhe um beijinho. Diverte-te.

Por fim partiram, e Carrie ouviu a porta da frente fechar. Esperou cerca de cinco minutos, não se desse o caso de alguém se ter esquecido de alguma coisa e voltarem todos para trás, o que não aconteceu. Por fim? L levantou-se da cama e preparou um banho de imersão, onde decidiu ficar imenso tempo. A seguir vestiu unsjeans e a sua camisol de lã grossa, penteou-se, pôs um pouco da sua água-de-colónia e sentiu-se imediatamente muitíssimo melhor. Já estou boa, disse ao seu reflexo no espelho.

saiu do quarto e desceu ao andar de baixo para ver como estava Horace. Parecia de boa saúde, embora o cãozito parecesse quieto e magoado com os safanões que levara. Para o corsolar, estavam a dar-lhe um tratamento principesco, corações de borrego e caldo de carne, não precisando de se aventurar para lá do espaço rente da porta das traseiras. Carrie baixou-se para lhe afagar a cabeça. - Queres ir lá para cima para junto da lareira? - perguntou-lhe. Horace não fez menção de aceitar. Fechou os olhos e voltou a adormecer, muito quentinho no seu cesto com o cobertor de lã em cima. Karrie descobriu uma garrafa de vinho meio cheia, serviu-se de um copo e foi para a sala de estar. Aí, as cortinas estavam corridas, o fogo ardia e havia só um candeeiro aceso junto de uma das poltronas que rodeavam a lareira. Colocou mais um tronco na pira e sentou-se a ler o jornal da manhã, comprado por Oscar.

Lá fora, na rua, alguns carros passavam de um lado para o outro, e a neve abafava qualquer som, enquanto a maioria das pessoa já se dirigiam para as suas casas. Estava a ler um artigo sobre uma velha actriz conhecida, que entrara numa série televisiva em Londres; tornada imensamente popular e ganhara grande fama. Carrie acabara de chegar à parte de Hollywood quando o som agudo da campainha da campainha soou pela casa toda, quase a fazendo dar um salto.

em circunstâncias normais, ter-se-ia seguido o ladrar maníaco de Horace, no entanto este ainda não esquecera a experiência vivida na praia com o rottweiler e abstivera-se.

- Raios! - exclamou Carrie.

Baixou o jornal e esperou. Talvez fosse alguém cujo carro avariara e precisasse de se servir do telefone. Ou um negociante local, a entregar uma conta ou um postal de Natal. Ou criancinhas a cantar hinos da festa.

Quem sabe, se não atendesse, se fossem embora.

A campainha soou de novo. Não valia a pena, teria mesmo de ir. exasperada, atirou o jornal para o lado, levantou-se e foi ao piso inferior, acendendo as luzes à medida que ia descendo, o que iluminou o vestíbulo. Destrancou a porta enorme, abriu-a e deparou com a neve, o frio e o homem que ali estava, sozinho, sob o feixe da luz exterior. Usava o cabelo escuro muito curto e vestia um sobretudo rosso azul-marinho, com a gola levantada sobre as orelhas. Tinha o cabelo e o sobretudo fartamente cobertos de flocos de neve, como se alguém o tivesse polvilhado com açúcar em pó.

Carrie olhou para além do indivíduo e avistou o imponente e prestigiado veículo estacionado em frente. Portanto, não se tratava de nenhum homem a pedir ajuda, comerciante ou cantor de músicas natalícias.

- Sim? - perguntou.

Desculpe, mas esta é a Casa da Quinta?

A sua voz era agradável, o seu sotaque - mais uma entoação do que um sotaque - familiar. Americano?

- É, sim.

- A Casa da Quinta de Hughie McLellan?

Carrie franziu a testa. Nunca ouvira falar de alguém com aquele nome.

- Não. A Casa da Quinta de Oscar Blundell.

Foi a vez dele hesitar. Depois, ergueu a mão enluvada com que segurava na chave grande, à qual se via uma etiqueta presa com um cordel. Nesta estava escrito, em maiúsculas grandes a preto, com tinta à prova de água, CASA DA QUINTA. Uma pista pouco subtil como num filme policial antigo. Mas como é que ele...?

Devia haver explicações, evidentemente, mas estava demasiado frio para ficar na soleira da porta a ouvi-las. Carrie retrocedeu e abriu mais a porta.

- É melhor entrar - convidou. Ele, porém, hesitou:

- Tem a certeza?

- Claro. Entre.

Passou por ela, que fechou depois a porta contra o frio e se virou Para o olhar de frente.

O sujeito parecia um pouco embaraçado.

- Peço imensa desculpa. Espero não tê-la incomodado.

- De modo nenhum. Não será melhor despir o sobretudo? Penduramo-lo ali... como o radiador está aceso, secará num instante.

Ele voltara a guardar a chave dentro do bolso e tirou então as luvas, desabotoou o sobretudo e despiu-o. Carrie reparou que se vestia de maneira convencional, mesmo formal, com um fato de flanela cinzentoescura e uma gravata. Pegou-lhe na pesada peça de vestuário e pendurou-a no velho bengaleiro de madeira trabalhada.

- Talvez seja melhor apresentar-me. Sam Howird.

- Carrie Sutton. - Não apertaram as mãos. - Suba até à sala de estar. A lareira está acesa e é muito mais confortável do que ficar aqui de pé no vestíbulo.

Foi à frente, seguida por ele: subiram as escadas, atravessaram o hall familiar e entraram na enorme sala de estar. Ao entrar, o sujeito tev?

uma reacção que, de um modo geral, era comum aos recémchegados:

Que sala extraordinária.

- Não se está à espera, não é? - Foi buscar o jornal que acabara de chegar. - E durante o dia é adorável porque está sempre cheia de gente.

Pousou o jornal na mesinha ao lado da sua poltrona. - Deseja tomar alguma coisa?

- É muita gentileza sua. Gostaria muito, mas vou conduzir.

-Para onde?

- Inverness.

- Inverness! Agora? com este tempo?

Chegarei bem.

Carrie tinha as suas dúvidas, mas encolheu mentalmente os ombros.

Não era da sua conta. Sugeriu:

- Que tal sentarmo-nos para poder contar-me porque tem a chave

da casa de Oscar em sua posse?

A expressão dele era pesarosa.

- Para ser sincero, não estou bem certo.

Isso não o impediu de se ir sentar na poltrona de Oscar e dar a impressão de se descontrair imediatamente, como se estivesse em casa e tivesse acabado de sair debaixo da neve, sem ser esperado nem convidado.

CarriE achou que tinha um rosto interessante, nem bonito nem rústico.

Mas interessante. Os olhos, profundamente inseridos, eram vulgares. Recostou-se na poltrona, cruzando as longas pernas nos tornozelos.

- Mas estou certo de que podemos esclarecer a confusão. Diga, Mister Blundell alguma vez viveu no Hampshire?

- Sim, viveu.

- E tem um tio idoso que mora em Londres?

- Não faço ideia.

E um primo chamado Hughie McLellan?

Receio que esteja a fazer perguntas à pessoa errada. Estou aqui de passagem. Como hóspede. Não sei verdadeiramente nada da família de Oscar. É a primeira vez que estou com ele e como estou com gripe, tenho estado de cama, portanto poucas oportunidades ainda tivemos para sabermos coisas uns dos outros.

Compreendo.

Além disso, Oscar e Elfrida, que é uma espécie de prima minha, e mulher de Oscar, saíram. Só estarão de volta cerca das oito da noite. Olhou de relance para o pequeno relógio em cima da cornija da lareira. São quase sete... se quiser esperar.

Não, não posso esperar. Tenho de me pôr a caminho.

Mas ainda não percebi por que razão está na posse de uma chave desta casa.

Foi-me entregue por Hughie. Ele quer pôr a casa à venda.

Carrie fítou-o, surpreendida.

À venda? Mas a casa é de Oscar!

- Creio que pertence a ambos, a meias, se é que entendi bem. Sei que a casa lhes pertence em partes iguais. Oscar contou-me.

Ainda assim, esse tal Hughie McLellan não tem o direito de pôr à venda algo qlue não lne Pertence Por inteiro.

Sem dúvida. - Concordou com ela. - Realmente parece um pouco suspeito.

Mas então porque é que quis vir cá vê-la? Tenciona comprá-la?

Ele respondeu cautelosamente:

- Pensei nessa possibilidade.

- Para quê?

- Para minha habitação. Agora estou a trabalhar em Buckly. Na reactivação da fábrica de têxteis McTaggart. Terei de ficar por lá e preciso de um sítio para viver.

- Onde fica Buckly?

- A cerca de trinta quilómetros daqui, para norte. Acabo de chegar de lá. Passei a tarde numa reunião com os trabalhadores.

- Não seria melhor morar mesmo em Buckly?

- As acomodações da fábrica foram todas vendidas. Provavelmente daria mais jeito, mas falaram-me nesta casa e deram-me a chave, de modo que resolvi dar uma passagem rápida por aqui e conhecer a vila. Para ser sincero, pensei que a casa estivesse vazia. Mas quando vi luz, resolvi tocar à campainha e esclarecer o mistério.

- Mas não esclarecemos.

- Não, realmente não, e isso só acontecerá depois de falarmos com Mister Blundell. E receio que não haja tempo para isso. Fica para outro dia. Para já, é melhor ir andando.

- Pois eu acho que deve falar com Oscar. É justo que ele saiba o que aconteceu... o que está a acontecer.

- Tenho mesmo de...

Pôs-se de pé. Carrie imitou-o e foi até à ampla janela panorâmica, afastando as cortinas. No exterior, a cena era de extrema invernia. A neve caía pesada e ininterruptamente e o Discovery, estacionado à beira do passeio, estava todo coberto de neve. Não se via um carro e ninguém passava na rua. Carrie pensou na estrada para Inverness, nos Muitos quilómetros, na colina que era preciso subir para passar a Black Isle, e na ponte sobre Cromarty Firth que tinha de ser atravessada.

Ela, ao contrário de Elfrida e Oscar, não tinha medo de guiar na neVe- Depois dos três invernos passados nas montanhas da Áustria, nada mtais a atemorizava nesse campo. Mas aquilo, sem que soubesse muito bem porquê, era diferente. Havia algo de duro e implacável naquele clima. Aquela neve não iria parar ou dispersar-se. Ficaria assim toda a noite.

Voltou-se para o visitante, que ficara junto da lareira e disse-lhe:

- Acho que não devia ir.

- Acha?

- Venha ver.

Sam foi para junto dela e ficaram os dois a observar o tempo, cada vez pior, que se fazia sentir no outro lado da janela. A princípio, ele nada disse e Carrie sentiu um pouco de pena dele.

- Está realmente mau - insistiu ela.

- Sem dúvida. Fergus Skinner, o gerente da fábrica, aconselhou-me a telefonar para o Instituto Meteorológico para obter informações. Não achei que fosse necessário na altura, mas agora vejo que me enganei.

- Eu diria que seria uma boa ideia.

- Tenho telemóvel, mas não sei o número.

- Vou saber qual é.

Saiu para o patamar, de onde voltou com a lista telefónica, onde procurou o número de emergência.

- Aqui está. Quer tomar nota?

Sam puxou de uma caneta, Carrie leu o número em voz alta e ele assentou-o na margem da lista telefónica, tirando, em seguida, o telemóvel do bolso.

Carrie deixou-o entregue à sua tarefa, sentado à janela com as cortinas corridas. Colocou mais um toro no fogo e levantou-se, ficando a ver as chamas novas pegar.

Sam conseguiu imediatamente ligação e inquiriu sobre as condições da estrada, a A9, até Inverness. Houve um silêncio prolongado, durante o qual escutou o que lhe diziam do outro lado da linha. Depois:

- E amanhã? - Nova pausa. - Muito bem, já entendi. Obrigado, Adeus.

Entreolharam-se, cada um no seu lado da sala. Carrie nada disse, mas percebeu que as notícias não poderiam ser piores. Sam confirmou-o.

- Tinha toda a razão. A estrada está intransitável. Não fazia ideia de que fosse tão grave.

- Lamento.

- Eu... - Guardou o telemóvel. - Acho melhor ir andando. Deixar de a incomodar.

- Para onde?

- Como?

- Para onde é que irá?

     - Deve haver alguma pensão ou hotel... Alojar-me-ei num deles.

- Nesta altura do ano não encontra nenhuma pensão ou hotel abertos em Creagan. Durante o Inverno está tudo fechado. Não descobrirá nada.

- Mas certamente...

- Terá de ficar aqui. Connosco - propôs Carrie.

- Aqui? Mas eu não posso fazer semelhante coisa!

- Porque não?

- Não me conhecem. Sou um desconhecido. Não posso simplesmente aparecer e...

- Claro que pode. Seja como for, não parece haver alternativa. Sei que temos um quarto vazio. Uma cama disponível. Seria ridículo não utilizá-la.

- Mas...

Carrie sorriu. Agora que a situação estava esclarecida e ela levara avante o seu ponto de vista, estava a achar graça à falta de à-vontade dele.

- Como é que costumam dizer? Numa tempestade, qualquer porto é um porto seguro.

- Mas Mister Blundell...

- Ficará encantado em ter mais um hóspede. E extremamente interessado no que tem para lhe contar. Elfrida, essa então delirará. Não há nada que mais aprecie do que hóspedes inesperados. Nem sequer tem de se preocupar com o jantar. Há um kedgeree no forno, e água quente com fartura para o banho. Que mais poderá um homem querer?

Sam abanou a cabeça, derrotado pela insistência dela.

- Nada, imagino.

- Tem escova de dentes?

- Tenho uma no carro, e também a minha máquina de barbear.

- Seja como for, se calhar também não dorme de pijama. Portanto não há problema.

- Pois não. - Ficou pensativo. - Mas se não se importa, farei mais um telefonema.

- Esteja à vontade. - (Obviamente precisava de ligar para casa, onde quer que fosse, para explicar à mulher o acontecido.) - Não deve deixar ninguém preocupado.

Sam puxou de novo pelo seu telemóvel e marcou o número. Carrie ficou sem saber se devia dar uma desculpa e retirar-se da sala, pois não queria escutar uma conversa privada e pessoal; palavras de amor; recados para as crianças. Mas antes de o poder fazer, ele completava a ligação e punha-se a falar com uma recepcionista de um hotel em Inverness.

- É só para avisar que não vou ficar aí esta noite. Estou preso aqui em Creagan, por causa da tempestade. Fico em casa de amigos. Talvez volte amanhã. Guarde-me o quarto. Obrigado. Adeus.

Telefonema terminado.

- É tudo? - perguntou Carrie.

- Sim, é.

- Não precisa de fazer mais nenhum telefonema?

Sam enfiou o telemóvel novamente no bolso e sacudiu a cabeça.

- Não.

- Certo. Bem, nesse caso, que tal tomar a tal bebida?

- Seria óptimo.

- Terei de descer à cozinha para lha ir buscar. Não estão aqui em cIma porque não há sítio onde as guardar. A garrafeira de Oscar consiste numa prateleira da dispensa.

-Deixe-me ir ajudá-la.

- Não, fique aqui e ponha-se à vontade. O que prefere? Temos de tudo.

- Uísque?

- Soda, água ou gelo?

- Só com gelo.

-Muito bem. Volto num instante.

Carrie desceu apressadamente à cozinha e encontrou um tabuleiro na dispensa, onde colocou uma garrafa de uísque, o balde de gelo, que encheu, um copo e a garrafa de vinho. Levou o tabuleiro para cima, onde encontrou o seu visitante não ao pé da lareira, mas no outro lado da sala, a olhar atentamente para o pequeno quadro de Elfrida. Para melhor o fazer colocara uns óculos de aros de chifre, que lhe davam um ar deveras intelectual.

Quando Carrie apareceu, tirou-os.

- Que quadro tão adorável.

- É verdade. Pertence a Elfrida. Trouxe-o com ela do Hampshire.

Tem-no há anos. É um David Wilkie. Diz que é a sua apólice de seguro para quando um dia lhe faltar o dinheiro e não se quiser transformar em pedinte. Como vê, não existem mais quadros na sala, daí que parece um pouco perdido.

-Não há dúvida de que é um tesouro... Vá, deixe-me pegar nisso.

Tirou o tabuleiro a Carrie e esperou que esta arranjasse espaço para sI mesma na mesinha de Oscar, tendo, para isso, de afastar alguns papéis. Carrie disse-lhe então:

- Prefiro que prepare a bebida para si.

-Não bebe nada?

- Mantenho-me no vinho.

- Posso voltar a encher-lhe o copo?

- com certeza, se fizer favor.

Carrie voltou para a sua poltrona junto da lareira e ficou a observá-lo, apreciando-lhe os movimentos precisos das mãos. Intrigada, com os seus objectivos, com o seu aparecimento na Casa da Quinta, o motivo que o levara ali e o que o fizera ficar (mau tempo). Tudo parecia uma espécie de plano. A trama de uma peça de teatro, talvez. O tecer de uma fita que poderia revelar-se perturbadora.

Sam atravessou a sala trazendo nas mãos os copos de uísque e de vinho, e entregou a Carrie o dela, sentando-se em seguida no mesmo lugar onde já estivera.

À sua saúde - brindou.

À sua, também.

- Disse-me que acabou de ter uma gripe?

-Não foi das piores. Bastou-me ficar de cama.

Não vive cá?

Como já lhe disse, sou visita. Vivo em Londres. Tenho uma sobrinha jovem, que trouxe comigo. Passamos o Natal e a passagem de ano aqui.

Ela também foi ao tal lanche?

É verdade, e depois vai a uma espécie de baile de reel com os outros jovens da cidade. Só Deus sabe quando voltará para casa. Conhece bem esta parte do mundo?

- Não, não a conheço minimamente. Sou do Yorkshire. Depois estive sediado em Londres durante algum tempo, antes de ir para Nova Iorque durante seis anos.

Carrie sorriu de si para si, pois tivera razão em relação ao sotaque.

- Daí o uísque com gelo.

- Exactamente.

- Que faz?

- Sou, basicamente, um corretor de lanifícios; trabalho para a Sturrock & Swinfield.

Carrie ficou impressionada.

- Santo Deus!

- Eles compraram, há uns anos, a fábrica de tecidos que o meu pai tinha no Yorkshire e trabalho para eles desde essa altura.

- Nova Iorque e tudo?

- Nova Iorque e tudo.

- Trabalhar aqui vai ser uma pequena mudança de cultura, não vai?

- Pois vai - concordou Sam -, de certo modo.

- Como disse que a fábrica se chamava?

- McTaggart, de Buckly.

- Está a ter problemas? Sam respondeu sem hesitar:

- Não.

Depois explicou sucintamente a cadeia de acontecimentos que desencadeara a ruína da empresa. Não obstante os esforços heróicos dos trabalhadores, parecia que uma intervenção divina, na forma de uma cheia, acabara com o negócio de uma vez por todas.

- E é de uma situação dessas que vai tomar conta?

- Não estarei completamente sozinho.

- Quer dizer que contará com o apoio da Sturrock & Swinfield?

- Claro. Além do capital e da técnica. Arquitectos e desenhadores de nomeada.

- E quando tudo estiver de vento em popa, que produzirá?

- Tudo. Uma gama muito variada. Tweeds e xadrezes tradicionais, mas também visaremos novos mercados. O comércio da moda. Lãs de luxo.

- Quando é que a produção terá início?

- A fábrica tem de ser reconstruída de raiz. Portanto, talvez uns nove meses. Um ano.

- Porque não deitam tudo abaixo e começam do princípio?

- Porque é um edifício antigo particularmente bonito. Em pedra com paredes triangulares altas e longas janelas arqueadas. Tem mais de cento e cinquenta anos, faz parte da pequena vila. Destruí-la seria um acto de vandalismo.

- E o senhor tem algum sítio onde morar?

- Tenho. - Sorriu. - Mas isso só ficará resolvido depois de eu falar com o seu anfitrião.

- Por acaso, Hughie McLellan, quem quer que seja, mencionou algum preço?

- Sim, mencionou.

- Posso saber qual é?

- Cento e cinquenta mil dólares, dividido entre os primos; os dois proprietários.

- Portanto, se Oscar Blundell desse setenta e cinco mil a Hughie, poderia comprar a parte dele.

- De facto.

- Não é assim tanto dinheiro como isso, pois não?

- Pelos padrões de hoje, não.

- O pior é que Oscar não deve dispor dessa quantia. Na verdade, tenho a certeza de que não tem. E é tão pouco mundano que nem deve saber onde ir procurá-lo. Seja como for -, encolheu os ombros -, não tenho absolutamente nada a ver com isso. Penso apenas que seria bom ele poder ficar aqui.

- Prometo não pô-lo fora de casa.

- Nem podia. É a casa dele.

- Meia casa.

- Tem direitos adquiridos de ocupação.

De repente ele riu, afastando a ligeira tensão que acabara de surgir.

- Tem toda a razão. Comprei o meu primeiro apartamento, que não tinha ninguém a viver lá, quando fui trabalhar para Londres. Foi uma sensação estupenda. Já se passaram alguns anos.

- Onde ficava o seu apartamento?

- Em Eel Park Common.

- Que engraçado!

- Onde é que está a graça?

- Tenho uma casinha na Ranfurly Road. Fica só a uns oitocentos metros de distância.

- É onde mora?

- Onde morarei, em Fevereiro, quando os inquilinos saírem. Sam pareceu um pouco confuso e Carrie teve pena dele porque, na

verdade, ela não estava a mostrar-se muito expansiva. O problema era não querer falar de si.

Estive três anos na Áustria, em Oberbeuren, a trabalhar para uma agência de viagens chamada Overseas. Foi por isso que aluguei a casa. Mas agora estou de volta, de novo em Londres. Ainda estou com a firma, mas ofereceram-me um lugar na sede, que fica na Bruton Street.

- Vai aceitar?

Vou. Porque não?

Irá ter saudades da Áustria e das montanhas.

Carrie respondeu:

- Sem dúvida.

Por um momento, nenhum dos dois falou, e o silêncio ficou impregnado de palavras por dizer. Depois, Carrie ajeitou-se na sua poltrona e olhou para ele.

- O seu copo está vazio. Deseja outra bebida?

 

Elfrida

Oscar e Elfrida voltaram para casa de braço dado, caminhando com grande precaução. Eram quase oito da noite, estava muito escuro e a neve caía com abundância. no entanto havia candeeiros de rua durante todo o percurso, daí que não precisassem da lanterna que Oscar, por precaução, levava no bolso. À medida que foram percorrendo o carreiro que se estendia pela vertente da colina abaixo, a cidade foi-se espraiando e puderam ver, do outro lado dos ramos nus das árvores de outras pessoas, a redonda face iluminada do relógio da torre da igreja. Tudo parecia de tal maneira transformado, mágico, que Elfrida sentiu-se compelida a parar e ficar a olhar.

- Oscar, quem me dera saber pintar - observou.

Como ele levava a mão dela enfiada no seu braço, foi obrigado a parar. No entanto, perguntou-lhe:

- Achas que é a altura indicada para devaneios nostálgicos?

- Porque não?

- Tenho neve a derreter-se pela minha nuca abaixo.

- Mas não seria maravilhoso captar esta cena? Imprimi-la numa tela para sempre? A neve a cair no meio da luz dos candeeiros de rua e das janelas iluminadas. E o relógio, na sua pose permanente de lua cheia. A única coisa que não seria possível pintar é o cheiro a fogo de turfa.

- Concordo que seria, realmente, muito agradável. Mas, por favor, vamos para casa.

A rua inclinava-se ingrememente ao longo do muro do quintal de Oscar. Havia aí um corrimão, ao qual ambos se agarraram para descer, quais passageiros a abandonarem um avião. Ao fundo podiam ver o Portão das traseiras, iluminado pelo candeeiro suspenso sobre a porta de entrada.

Tinham chegado a casa sãos e salvos.

Na copa, imitaram Mrs. Snead e despiram os casacos molhados, as botas incrustadas de neve e os chapéus ensopados, que penduraram a secar. Elfrida disse algo acerca da jantar, porém Oscar preferia esperar um pouco. Estava empanturrado de sanduíches de salmão fumado e empadas de carne. Além disso, não bebera nada por causa do caminho para casa, pelo que lhe apetecia imenso um uísque generoso antes de pensar em mais comida.

Elfrida entrou na cozinha primeiro que ele e cumprimentou carinhosamente o seu cão. Ia a abrir a porta do forno para espreitar para dentro quando ouviu Oscar exclamar:

- O meu uísque desapareceu.

- Tens a certeza?

Oscar acercou-se de Elfrida, que fechava a porta do forno, parecendo um pouco desconcertado.

- Parece que lhe nasceram pernas.

- Talvez Carrie tenha tido vontade de tomar um gole.

- Pensei que ela ainda precisava de ficar de cama.

- Uma pessoa pode estar de cama e ter vontade de beber um gole de uísque. Não tens mais nenhuma garrafa?

- Tenho, mas aquela estava aberta.

- Investiguemos.

Saíram da cozinha e subiram ao piso de cima. Elfrida, ao chegar ao patamar, parou. Por detrás da porta fechada da sala de estar chegava um murmúrio suave de vozes. Oscar também ouviu. Olharam um para o outro com ar cúmplice.

- Acho que já sei onde está a minha garrafa de uísque - observou Oscar.

- Chiu.

Elfrida aproximou-se da porta entreaberta do quarto de Carrie em bicos de pés e depois voltou para junto de Oscar.

- Não está lá - sussurrou-lhe com ar conspirativo. - Cama vazia.

Oscar, participando na brincadeira, também baixou a voz:

- E tem uma visita.

- Quem será?

- Mistério. Que tal descobrirmos? Assim fizeram.

Ao abrirem a porta da sala de estar, depararam com uma tranquila cena de camaradagem: a adorável sala estava suavemente iluminada, tinha as cortinas corridas, a lareira acesa, as duas poltronas mais confortáveis aconchegantemente próximas do seu calor, e nelas, com ar de quem se conhecia há muito tempo, Carrie e um desconhecido. Elfrida pensou imediatamente nas possibilidades: talvez um velho conhecido de Carrie que tivesse vindo à sua procura; um admirador antigo, fielmente constante...

Carrie virou a cabeça e, ao ver que eram eles, levantou-se de imediato.

Elfrida, já voltaram. Não vos ouvimos. A festa foi boa? Eu aborreci-me.

O homem desconhecido já se pusera igualmente de pé, ficando em frente da lareira, à espera de que o apresentassem. A primeira impressão que o desconhecido deu a Elfrida foi a de uma formalidade de tipo profissional, com o seu fato cinzento-escuro de corte impecável, a gravata elegante e o cabelo cortado curto. Era alto, pernas compridas, e a pele bronzeada acentuava-lhe os olhos castanho-avelã. Apesar dos seus sessenta e dois anos, foi atravessada por um arrepio de atracção física que em nada diminuía o seu afecto por Oscar. Era apenas uma espécie de identificação, uma recordação ardente de como, em tempos, as coisas tinham sido para si.

- Elfrida, este é Sam Howard. Elfrida Phipps. E o meu anfitrião, Oscar Blundell.

- Como está?

Trocaram apertos de mão.

Sam Howard disse:

- Peço imensa desculpa por esta intrusão.

- Porque haveria de ser uma intrusão?

- Porque estou em vossa casa sem ser convidado.

Nessa altura, já Oscar localizara a sua garrafa de uísque.

- Ali está ela! Não estava a perceber para onde fora.

- Pensou que eu andava a beber às escondidas? Desculpe. Trouxe-a para Sam tomar um pouco. Quer um? - perguntou Carrie rindo.

- Desesperadamente. Mantive-me abstémio de propósito durante a festa, para poder trazer Elfrida para casa em segurança pela neve.

- Nesse caso - disse Carrie -, preparo-lhe um. Mas preciso de ir lá abaixo buscar mais copos. Eu preferi um pouco de vinho...

- Faço-te companhia - disse Elfrida, sentindo-se subitamente fatigada. Sentou-se, algo aliviada, no meio do sofá, estendeu as pernas em frente. - Há duas horas que estou de pé, a comer sanduíches e empadas de carne.

- Estava lá maisalguém?

- Oh, sem dúvida, foi uma festa a sério. Mais três casais, todos muito conversadores e simpáticos.

- E Lucy?

- Essa foi com os filhos dos Kennedy para outra sala qualquer e nunca mais lhe pusemos a vista em cima. Quando saímos já tinham ido Para o tal reeling. Como ficara combinado.

- Óptimo. Vou buscar os copos e mais uma garrafa de vinho. E soda para Oscar.

Carrie saiu. Elfrida ouviu-a descer as escadas a correr. Entretanto, Óscar já se sentara na sua poltrona e ficaram os dois sozinhos com o desconhecido. Elfrida sabia que Oscar não sabia o que havia de lhe dizer, portanto foi em seu auxílio. Fê-lo com o seu sorriso mais amigável, perguntando:

- Agora diga-nos exactamente quem é e porque está aqui. Deve ser um velho amigo de Carrie.

- Na verdade, não é o caso.

Puxou uma cadeira e sentou-se perto de Elfrida, inclinando-se para a frente para falar com ela, de mãos presas entre os joelhos.

- Vi-a pela primeira vez esta noite.

- Santo Deus! - balbuciou Elfrida.

Sam começou a explicar e eles escutaram. Chamava-se Sam Howard. Trabalhava para a Sturrock & Swinfíeld, o conglomerado têxtil que tomara conta da finada fábrica de Buckly, a McTaggart. Iria trabalhar para lá como director.

Elfrida não entendeu grande coisa, mas Oscar percebeu logo tudo.

- Peter Kennedy contou-me que a McTaggart ia ser reestruturada, mas não sabia que as coisas já estavam em movimento.

- Ainda não estão propriamente em movimento, mas já não falta muito.

- É uma notícia esplêndida.

- Espero que sim.

- Quando é que a laboração arranca?

- Antes disso, precisamos de reconstruir a fábrica.

- Que aconteceu? - interrompeu Elfrida.

- Houve uma série de azares - elucidou-a Oscar -, e depois uma cheia deu cabo do resto. - Voltou-se para Sam. - Está nesse negócio há muito tempo?

- Desde sempre, na verdade. O meu pai tinha uma pequena fábrica no Yorkshire.

- Ora bem! Onde é que está instalado? Em Londres?

- Tenho estado, mas trabalhei estes últimos seis anos em Nova Iorque. Depois, em Novembro, chamaram-me a Londres para tomar conta deste projecto.

- Isso significa que vai viver aqui?

Nesse momento Carrie reapareceu, trazendo um segundo tabuleiro com copos e garrafas. Sam pôs-se imediatamente de pé e foi ajudá-la. Levaram algum tempo, entre os dois, a arranjar espaço na mesinha de Oscar. A garrafa de vinho ainda trazia a frescura do frigorífico e Sam, depois de lhe retirar a rolha com perícia, encheu um copo para Elfrida e foi-lho levar.

- E o senhor o que toma?

Oscar soltou uma exclamação de deleite. Sabia-lhe bem estar sentado em frente da lareira e ter outro homem a encarregar-se dos deveres de anfitrião.

- Um uísque com soda seria esplêndido. Sem gelo.

Sam serviu-lhe a bebida. Está bem assim?

- Perfeito.

E o senhor, não toma mais nada? - perguntou-lhe Elfrida.

Sam, porém, respondeu que estava bem assim, ainda não acabara de beber a sua segunda dose. Foi buscar o seu copo à mesinha junto da lareira e voltou para a sua cadeira, ao lado de Elfrida.

Carrie perguntou então:

- Até onde é que já foi?

- Como?

Relativamente às explicações.

- Já soubemos tudo o que se relaciona com a fábrica de lanifícios disse-lhe Elfrida. - Certamente não há mais novidades, pois não?

- Aí é que tu te enganas, Elfrida - retorquiu Carrie, que voltara para a sua poltrona, onde se enrolara como um gato.

Elfrida aguardou.

- Nesse caso, surpreenda-me.

Sam retomou a liderança da conversa.

- É uma questão muito pessoal e complicada. Pouco antes de vir cá para cima, acabado de chegar de Nova Iorque, fiquei em casa de uns velhos amigos: Janey e Neil Philip. Têm uma casa em Wandsworth. Certa noite, um velho amigo dos pais de Janey foi lá jantar a casa. Chama-se Hughie McLellan.

Fez uma pausa, talvez deliberada, dando tempo para que a novidade bombástica fosse interiorizada. O que pareceu levar algum tempo no caso de Elfrida. A certa altura, Oscar exclamou:

- Hughie! Não me diga que está a falar do meu primo Hughie?

- É verdade, penso que estou.

- Mas Hughie está em Barbados.

- Não, voltou a Londres para ver uns amigos e tratar de vários negócios, calculo. Depois irá passar o Natal e a passagem de ano ao Sul de França, com alguém chamado Maudie Peabody.

- Que coincidência extraordinária!

- Conversámos um pouco e depois ele ficou a saber (penso que Janey lhe terá dito) que eu vinha aqui para Buckly, afim de tomar conta da McTaggart. Perguntou-me então onde tencionava morar. Respondi-lhe que ainda não tinha onde, mas em breve encontraria. Tirou então a chave desta casa do bolso. Disse que era dono de metade, mas que queria vender.

- Diabos me levem! - exclamou Oscar.

Elfrida achou que, dadas as circunstâncias, aquela linguagem até era muito moderada.

- Mas que grande malandro. Sempre foi. Por que raio não entrou em contacto comigo?

- Segundo me disse, ainda tentou telefonar. O senhor vivia em Hampshire, segundo creio. Ligou para lá, mas ninguém atendeu. ?

- O pai dele, Hector, sabia onde eu estava, que viria aqui para Creagan. Porque não lho disse?

- Creio que ele não foi ver o pai, só tencionava fazê-lo quando voltasse de França, antes de seguir para Barbados.

- Ora esta, mas que reviravolta inesperada - comentou Oscar que, abalado pela perfídia do primo, tomou um gole enorme de uísque e ficou a matutar sobre o insólito da situação. - Porque terá resolvido vender a casa tão repentinamente? Passámos tantos anos a receber a escassa renda, dividida ao meio, que nunca me passou pela cabeça que ele quisesse pô-la à venda. Muito menos que o fizesse sem me falar no assunto.

- Cá por mim, ele está é a precisar de arranjar dinheiro rapidamente.

- Não me surpreenderia. Dar uma pensão a cada uma das três ex-mulheres deve custar uma boa maquia. Mas enfim, ele sempre foi um perdulário. - Lembrou-se de outro aspecto. - Fez essa combinação através de algum agente?

- Não. Ele tencionava ir ter com a Hurst & Fieldmore no dia a seguir àquele em que nos conhecemos, mas achou que uma venda particular seria mais satisfatória para ambas as partes.

- Qual foi a sua resposta?

- Disse que, se calhar, nada podia ser combinado sem o senhor, seu primo, ser consultado.

- Então que faz aqui?

- Ele tinha a chave da casa consigo. Sugeriu-me que a viesse ver, já que vinha para o Norte. Contou-me que se encontrava vazia, que um velho casal vivera aqui, como inquilinos, mas que o marido morrera e a mulher fora morar para outro sítio qualquer. Dito isto, simplesmente tirou a chave do bolso e entregou-ma.

- Não foi confiar de mais numa pessoa desconhecida?

- Sem dúvida. Mas dadas as circunstâncias, deve ter concluído que podia arriscar.

- E uma venda directa pouparia no fisco, não?

- Precisamente.

- Mencionou alguma soma?

Durante o decorrer da conversa, Sam não saíra da sua cadeira algo incómoda. A sua imobilidade era notável e não desviara nunca o olhar atento de Oscar. Ao chegarem ao âmago da questão, não pestanejou nem mostrou o menor sinal de inquietação. Respondeu:

- Cento e cinquenta mil.

- Estaria preparado para pagar essa soma?

- Ainda não vi a casa.

- Mas se resolvesse comprá-la...?

- Sem dúvida.

- Metade são setenta e cinco, não é verdade?

- Exacto.

Suponha que eu queria mais?

- É negociável. Estou apenas a citar o seu primo. Compreendo.

Oscar terminou a sua bebida e Sam levantou-se para lhe ir buscar o copo vazio e enchê-lo com nova dose. Depois trouxe-o e voltou a entregá-lo a Oscar, dizendo então:

Agora que já sabem como tudo aconteceu, só me resta pedir desculpa aos dois. Entregar-vos-ei a chave de Hughie e esqueceremos todo este assunto. Precisava realmente de vos contar toda a história, para que compreendessem.

- com certeza - aquiesceu Oscar, olhando para a nova dose de uísque que tinha no copo. - Obrigado - agradeceu, pousando-o em cima da mesinha ao lado.

Elfrida, que se mantivera calada com alguma dificuldade, achou que chegara a altura de meter a sua colherada.

- Tornou tudo muitíssimo claro, Mister Howard.

- Sam.

- Está bem. O Sam tornou tudo muitíssimo claro, mas ainda não consegui perceber muito bem como apareceu aqui.

- Vim para o Norte há alguns dias.

- É a primeira vez que vem ver a fábrica? - quis saber Oscar.

- É, sim.

- Disse que o chamaram de volta a Londres em Novembro. Agora estamos quase no Natal. Dá a impressão de que a Sturrock & Swinfield tem andado a empatar um pouco.

Sam sorriu, concordando com a observação.

- Também sou dessa opinião, mas também é preciso ver que tive de ir com o presidente à Suíça, para escolher a nova maquinaria que vamos utilizar. Estivemos lá uma semana inteira.

- Está hospedado em Buckly? - perguntou Elfrida.

- Não, num hotel em Inverness. Hoje à tarde, tive a minha primeira reunião com os trabalhadores. Havia muita coisa a debater. Depois de tudo esclarecido, tomei uma cerveja com Fergus Skinner, o capataz da fábrica, que organizou tudo, e quando me preparava para ir para Inverness, lembrei-me de fazer o desvio por Creagan e dar uma vista de olhos por aqui, como aconteceu. Um transeunte disse-me que esta era a Casa da Quinta, mas como saltava à vista que estava habitada, fiquei cheio de curiosidade. Saí do carro e toquei à campainha. Nunca gostei muito de mistérios por resolver.

- Compreendo - observou Elfrida, achando tudo aquilo altamente excitante. Não tinha dificuldade em imaginar a cena. O desconhecido bem-parecido, o toque na campainha, e... Carrie a descer as escadas, a abrir a porta e a deixá-lo entrar. a

Olhou para Carrie, enrodilhada na outra poltrona. Não proferiu uma única palavra. Havia ocasiões em que era impossível adivinhar o que pensava, e aquela era uma delas.

- Carrie, espero que tenhas convidado Sam para jantar - disse. Carrie desatou a rir. Virou a cabeça e Elfrida achou quase conspirativo o olhar que trocou com Sam. Como se, de facto, já tivessem algum segredo para partilhar. Depois ele sorriu, ficando de imediato com um ar mais jovem, menos sério e responsável.

- Mais confissões - concluiu Sam. Que teriam eles tramado?

- Mais confusão - observou Elfrida com alguma impaciência, o que fez com que Carrie ficasse com pena dela.

- Elfrida, Sam passa a noite connosco. Convidei-o e não lhe resta outro remédio. Todas as estradas para Inverness estão bloqueadas pela neve. Ligámos para o Instituto de Meteorologia e foi o que nos disseram. Importas-te?

Elfrida respondeu, sem conseguir esconder o prazer que sentia:

- Nada me poderia dar maior gosto.

Era quase meia-noite. Elfrida encontrava-se na cama e, ao seu lado, Oscar lia um livro, O Amor nos Tempos de Cólera. O candeeiro da sua mesinha-de-cabeceira era a única iluminação do quarto, cujos cantos estavam mergulhados na sombra. Os cortinados grossos tinham sido ligeiramente abertos, de modo a deixarem entrar apenas uma pequena nesga da luz que vinha da rua, mais abaixo, e uma frincha aberta na janela permitia a circulação de um pouco de ar gélido. Felizmente, Oscar e Elfrida concordavam naquelas pequenas coisas, pois nenhum dos dois gostava de dormir às escuras e abafado.

A nesga de luz recaía nos varões de metal dos pés da cama, fazendo-os brilhar como ouro. O amplo guarda-fato de mogno, que Mrs. Snead polia semanalmente, sobressaía contra a parede, e viam-se as molduras em prata com as fotografias de Elfrida em cima do toucador antiquado, assim como o seu espelho de mão, de costas em marfim» e o seu frasco de perfume. Era o seu quarto. O quarto deles. Na casa de Oscar.

Recordou os acontecimentos daquela noite, muitos deles memoráveis. Ela, Oscar, Sam e Carrie tinham-se, finalmente, sentado à mesa da cozinha a jantar, eram nove da noite, altura em que o kedgeree já secara um pouco, embora ninguém parecesse importar-se demasiado e, muito menos, queixado. Acompanharam-no com ervilhas, geladas por terem ficado na parte de cima do velho frigorífico e, como sobremesa, pêssegos com chantilly. Oscar abrira nova garrafa de vinho e, terminadA esta, mais outra. Tomavam café quando Lucy e Rory Kennedy voltaram do seu baile, ambos corados de tanto terem pulado, ou talvez do frio apanhado no caminho de volta do salão da escola.

Lucy ficou um pouco surpreendida por ver uma pessoa desconhecida à mesa, mas apresentaram-lhe Sam e explicaram-lhe as circunstâncias da sua presença. Ficou muito imp ressionada.

Quer dizer que a neve é que o fez entrar cá em casa? - perguntou, incrédula.

- Assim parece - respondeu Sam.

- Que excitante. Faz lembrar um livro de Agatha Christie. Amanhã um de nós poderá ter sido assassinado.

- Não por mim.

- Então por Oscar. O Oscar será o mau da fita. Anda por aí de noite de faca na mão ou uma corda para estrangular pessoas. E, pela manhã, ninguém imaginará que foi ele, a Polícia será chamada, e também um detective terrivelmente esperto.

- Porque terei eu de ser o vilão? - protestou Oscar.

- Porque é o mais bonzinho de todos nós e o culpado é sempre o mais improvável. Tem de ser o Oscar.

Oscar perguntou então que tal fora o baile de reel na escola e, ao que parecia, Lucy divertira-se imenso e participara em todas as danças excepto numa que se chamava «Duque e Duquesa de Edimburgo», que era preciso aprender. Houvera um conjunto musical a sério e quem tivesse calor e sede, tinha limonada para beber.

- Rory, quem organizou tudo isso? - perguntou Carrie, divertida.

- O reitor e um dos alunos mais antigos. Correu muito bem. Todos foram. Até os putos.

Oscar ofereceu uma cerveja a Rory, mas este disse que preferia chocolate quente. Lucy disse que também lhe apetecia um e que iria prepará-lo para os dois. Arranjou-se espaço à mesa, puxaram-se mais duas cadeiras e puseram-se todos a beber chocolate quente e a comer biscoitos da lata de Elfrida.

A certa altura, Rory disse que eram horas de voltar para casa. Pôs-se de pé e Sam perguntou-lhe:

- Como está o tempo?

- Bem, parou de nevar, mas é tudo quanto se pode dizer. Contarei ao meu pai que o conheci e falar-lhe-ei da questão da McTaggart e de as coisas já estarem a andar por lá. Vai adorar.

- Ele que não fique demasiado entusiasmado. Ainda vai levar algum tempo.

- Bem - observou Rory filosoficamente -, o que é preciso é começar. Lucy, amanhã à tarde tentarei trazer-te a tal televisão. Tudo depende de como as coisas correrem no campo de golfe. Não deverá haver muito movimento, presumo. Talvez haja alguma movimentação de trenós, mas se assim for depois te digo. Ligo para ti.

Saiu pelas traseiras porque lhe dava mais jeito para ir para casa e Lucy foi-se despedir dele. Voltou para a cozinha com um sorriso nos lábios, sorriso que se perdeu quase imediatamente num enorme bocejo. Carrie atraiu-a a si com um braço.

- Estás cansada. Vai-te deitar.

- Posso tomar um banho primeiro?

- Claro. Divertiste-te? Lucy deu-lhe um beijo.

- Imensamente.

Oscar e Sam ficaram sentados a acabar o seu café e o brande que Oscar fizera aparecer, milagrosamente, na sua prateleira de vinhos da dispensa; Carrie e Elfrida lavavam a loiça e foram ao andar de cima dar uma vista de olhos ao armário dos lençóis e atoalhados de Mrs. Snead, afim de prepararem a última cama disponível que havia, para Sam. Arranjaram almofadas, fronhas, uma toalha de banho e um cobertor extra, para o caso de o novo hóspede sentir frio. Carrie inspeccionou o guarda-fato, que estava vazio, com excepção de dois cabides, de onde emanava um forte cheiro a naftalina. Elfrida foi até ao armário da louça e voltou com um espanador e um naperão de linho debruado a renda. Depois de fazer uma limpeza rápida ao quarto, colocou o naperão sobre a cómoda. Carrie deu corda e acertou o relógio que se encontrava em cima da mesinha-de-cabeceira.

- Que mais - perguntou Elfrida -, poderá um homem desejar?

- Flores frescas? Lenços de papel? Um minibar?

- Quando Oscar acabar de lhe tratar da saúde, a última coisa de que precisará é de um minibar. Só não tenho nenhuma escova de dentes nova.

- Ele disse-me que tem uma. E uma máquina de barbear. Ficará lindamente.

- E pijama?

- O mais provável é dormir em pêlo.

- Como é que sabes?

- Instinto, Elfrida. Instinto feminino. Deitaram subitamente a rir. Carrie observou:

- És uma santa. Tive de o convidar a ficar, mas foi tudo mais fácil assim que soube que não te importavas.

- Sempre adorei uma casa cheia, e esta dá mesmo para festas e pessoas. Oscar e eu temos andado por aqui só os dois há demasiado tempo. Agora está repleta. - Disse-o com enorme satisfação. - Repleta até ao limite. Uma casa de família. Assim é que deve ser.

Uma casa de família. Elfrida, deitada na cama, sentia que a casa que a rodeava era como um escudo, uma carapaça, um refúgio. Era uma casa da qual gostara desde o princípio e que naquele momento amava. Cheia de amigos, tornara-se um lar. O lar de Oscar. No entanto, Hughie queria vendê-la, e só a simples ideia de Oscar ter de se submeter aos planos do primo e abandonar o único lugar que alguma vez lhe pertencera, era mais do que Elfrida podia suportar.

Oscar chegara ao fim do seu capítulo. Marcou o sítio onde ia no livro, fechou-o e pousou-o sobre a mesinha-de-cabeceira.

- Ainda estás acordada?

- Estou.

- Desculpa.

- Não foi por tua causa.

Oscar desligou a luz, mas o quarto não ficou demasiado escuro devido à abertura no meio dos cortinados.

- Oscar - disse Elfrida.

- Que é?

- Se Hughie quer vender a sua metade desta casa, que tal comprares a outra metade para ficar a pertencer só a ti? Para sempre.

- São setenta e cinco mil.

- Tu... não tens essa quantia?

- Se vender tudo o que tenho, talvez consiga umas vinte mil.

- Podíamos fazer uma hipoteca.

- Não por esse montante. Não na minha idade. E sempre tive horror de hipotecas. As pessoas dizem, «Faz uma hipoteca», mas o que elas querem dizer é, «Pede dinheiro emprestado». Assusta-me. Nunca tive muito, mas também nunca contraí dívidas. Não poderia começar agora.

- Se eu tivesse setenta e cinco mil, ajudaria?

- Se tu tivesses setenta e cinco mil, seriam teus. Não se destinariam a financiar-me.

- Adoro esta casa.

Adoras, minha querida?

- É tão sólida, tão despretensiosa, tão... adaptável. Não a sentes, é como se pulsasse, mantendo-nos a todos vivos, abrigando-nos, cuidando de nós todos?

- Acho que não sou tão imaginativo como tu.

- Não podes ficar sem ela, Oscar.

- Hughie não pode vendê-la sem o meu consentimento.

- Mas ele precisa do dinheiro. - Calou-se e ficou a reflectir cuidadosamente no que diria a seguir. - Oscar, escuta. Se eu vender o meu quadro, o meu David Wilkie, quanto pensas que darão por ele?

- É o teu tesouro.

- Não, é a minha segurança. E talvez seja tempo de a fazer valer.

- É a tua segurança, não a minha.

- Oscar, nós estamos juntos. Somos demasiado velhos para implicar sobre pequenos pormenores como este.

- Setenta e cinco mil não é um pequeno pormenor. É muito dinheiro. Se o quadro vale aquilo que eu penso, nesse caso só há que vendê-lo. Se não conseguirmos setenta e cinco mil por ele, pedimos o resto sob a forma de empréstimo. Faz sentido. Para quê manter um quadro quando se pode comprar segurança? Quando se pode comprar esta casa? Viver aqui o resto da vida? Tu gostarias, não gostarias? Eu cá não suporto a ideia de esta casa preciosa ir para outras pessoas. Quero que te pertença. Quero que fiques aqui.

Oscar permaneceu calado durante muito tempo. Depois pegou-lhe na mão. Elfrida sentiu-lhe o calor e aninhou-se mais contra ele.

- És uma querida - disse-lhe.

- Vá, dorme.

- És muito generosa.

- Depois falamos nisso - disse-lhe ela. - De manhã.

 

Lucy

Quarta feira, 20 de Dezembro

São oito e meia da manhã e estou a escrever o meu diário. Devia tê-lo feito ontem à noite, mas sentia-me tão cansada que me limitei a tomar um

banho e a meter-me na cama, por isso levantei-me hoje mais cedo para apontar o que aconteceu, antes que me esqueça. Foi fabuloso!

Fomos a pé até casa dos Kennedy, pois Oscar não queria conduzir o carro com a neve tão alta. Só em fotografias eu vira tanta neve. Não demorámos muito porque fomos por um atalho. A casa dos Kennedy chama-se Manse porque Peter Kennedy é o pastor. É uma casa enorme e antiga, não como esta onde estou, mas muito mobilada e com coisas por todo o lado.

Carrie não foi connosco por causa da constipação. Quando lá chegámos, também estavam outras pessoas. Mistress Kennedy chama-se Tabitha e é muito bonita, de aspecto jovem e fora do comum. Rory contou-me que ensina desenho e pintura na escola. Depois, deixámos os adultos na sala de estar e fomos para a cozinha, onde estavam três outros rapazes, amigos e colegas de Rory, e também Clodagh, sua irmã, que tem doze anos e é muito magrinha, com olhos azuis e tranças louras. Ficámos lá sentados a beber Coca-Cola, e reparei que Clodagh é muito namoradeira.

A mesa já estava posta e tivemos uma espécie de lanche-ajantarado, com uma suculenta massa com queijo, salada e, no fim, um delicioso bolo de chocolate e gelado. Depois de terminarmos, Preparámo-nos e saímos todos pela colina abaixo, seguindo depois Pela estrada que vai dar à escola, que fica a menos de um quilómetro. A escola é velha, mas tem uma data de edifícios novos à volta, e o ginásio é um deles. Chamam-lhe salão, mas também faz de ginásio. Havia gente de todas as idades, dos sete a adultos. O reitor é

Mister Mclntosh, chamam-lhe «À Prova de Água» pelas costas, mas aposto em como ele sabe. É bastante novo e muito simpático. A um dos cantos do salão havia uma plataforma onde uma banda tocava, uma banda de verdade: acordeonista, baterista e violinista. ?

A barulheira era enorme, todos falavam ao mesmo tempo, de modo que Mister Mclntosh teve de mandar calar toda a gente, com voz suave, mas todos obedeceram. Disse que eram horas de começar. nós íamos entrar no Strip the Willow porque é o mais fácil para os mais pequenos e para os novatos (eu).

Rory e os outros que tinham estado connosco, ajudaram a pôr todos em fila, com parceiros e outros pormenores. Os rapazes dançavam com rapazes e as raparigas com raparigas, se quisessem o que me pareceu muito adequado. Dois rapazes quiseram dançar com Clodagh, mas Rory disse que comigo dançaria ele. Estávamos mais ou menos a meio da fila, por isso eu mal conseguia ver o que se passava mais à frente. A música era muito animada e mexida, com uma tremenda batida da bateria. A dança não era muito difícil, só tínhamos de dar voltas e voltas com o par, ou alguma outra pessoa da fila, e depois voltar para trás da fila. Às vezes, calhava-nos algum rapaz enorme que nos fazia rodopiar pelo ar, mas depois vinha um pequeno, que tínhamos de nos esforçar por não levantar do chão.

No fim ficámos todos cheios de calor e sem fôlego, mas havia limonada, de modo que começámos de novo.

Fizemos um reel de oito, mas com dezoito, o que torna tudo mais complicado. Seguiu-se algo chamado Hamilton House, que era divertido porque se começava com um rapaz e depois girava-se com outro. Depois foi o Dashing White Sergeant, em que se corre o salão todo aos três, com as linhas em direcção opostas, de modo que, no fim, já nos conhecemos todos. Seguiu-se o Gay Gordons, mas Rory disse que era uma dança parva, portanto ficámos antes a beber limonada. Não dancei só com ele, mas com muitos outros rapazes, suficientemente simpáticos e que, apesar de não saber como se chamavam, me vinham convidar. A maioria das pessoas estava de jeans e roupas usadas, mas alguns rapazes usavam os seus kilts com camisas de râguebi ou velhos coletes de tweed. O tempo simplesmente voou, o que foi muito esquisito, pois por muito que fizesse calor e a sede apertasse, mal a música recomeçava a tocar, uma pessoa saltava logo para o meio da pista de dança. Tudo terminou por volta das dez da noite e ninguém tinha vontade de ir para casa, mas quando o conjunto se foi embora, não fazia sentido continuar ali, de modo que fomos ao bengaleiro buscar os nossos agasalhos, que vestimos. Clodagh e os outros voltaram para Manse. Um dos rapazes tinha um trenó, de modo que cada um deles, à vez, foi puxando pelo outro pela rua fora e colina acima. Mas Rory veio acompanhar-me a casa de Oscar. Foi uma noite linda, com a neve a cair suavemente e tudo coberto por ela.

Carrie disse-me que o convidasse a entrar e tomar uma cerveja, o que fiz e Rory aceitou. Depois, mais surpresas. Estavam todos na cozinha, a acabar de jantar. Carrie estava a pé e também havia um desconhecido presente. Chama-se Sam Howard, vem viver para cá e dirige uma velha fábrica de lanifícios qualquer. Tem óptimo aspecto, diria mesmo que é da idade certa para Carrie. Pensei que fosse um velho amigo, mas parece que a neve o obrigou a passar a noite cá em casa, não pôde voltar para Inverness. Tínhamos visto um belo Range Rover estacionado em frente, mas não fazíamos ideia do que se tratava.

Seja como for, tomámos chocolate quente e uns biscoitos na companhia deles e depois Rory foi para casa. Disse, no entanto, que hoje vinha cá trazer a televisão para o meu quarto. Não que me faça falta, pois estão sempre a acontecer tantas coisas por cá que não creio que me sobre tempo para a desfrutar. O melhor é achar que vão continuar a acontecer coisas. Nunca me senti assim. Em Londres, uma coisa boa termina e depois não há mais nenhuma, mas aqui há coisas boas todos os dias. Agora é melhor vestir-me e descer para o pequeno-almoço. Está a chegar-me um cheirinho a bacon frito que me faz crescer água na boca.

 

Elfrida

Elfrida, como de costume, foi a primeira a descer. Ao chegar ao patamar, afastou as cortinas (um magnífico Par delas, muito usadas, que comprara no mercado em Buckly) e espreitou para ver como estava o dia. Na verdade, era noite, visto ainda estar escuro, porém parara de nevar e a luz dos candeeiros de rua permitiam-lhe ver o quintal, com todas as suas formas alteradas. Arbustos e árvores vergavam sob o peso da neve, e a erva formava montes indistintos. Reinava a maior tranquilidade e silêncio.

Elfrida desceu até à cozinha. Horace, ao que parecia, começara a recompor-se. Quando abriu a porta, levantou-se do seu cesto e veio cumprimentá-la com a cauda peluda a abanar amistosamente. Elfrida afagou-o, deu-lhe palmadinhas e tiveram uma pequena conversa. A seguir, abriu-lhe a porta e ele saiu. Quando voltou, tinha uma expressão indignada no focinho. Não contara com tamanha inconveniência, sobretudo naquele estado de saúde delicado em que se encontrava.

Voltou para o seu cesto e amuou.

Elfrida começou a tratar do pequeno-almoço: pôs a mesa, fez café, tirou o bacon do frigorífico. Era o resto e teria de comprar mais. Na verdade, tinha de começar a pensar no jantar de Natal. Andara a adiar a questão de dia para dia, mas já faltava tão pouco tempo que, se calhar, todas as lojas já estavam vazias e ela nem uma tarte de carne conseguiria comprar. Descobriu um envelope velho e um lápis e, enquanto o bacon fritava, começou a fazer uma lista, hesitante. Escreveu: «bacon», depois «tangerinas», depois resolveu ficar-se por ali até tomar a sua Primeira chávena de café.

Estava precisamente a bebê-lo quando a porta da cozinha se abriu e Sam apareceu. Elfrida vestia as suas calças aos quadrados, assim como uma camisola azul-escura, com ovelhas a pastar por toda ela, mas Sam continuava com o mesmo fato da véspera porque, evidentemente, não tinha mais nada para vestir. Parecia um tudo nada deslocado e Elfrida tentou logo pô-lo à vontade.

- Vou emprestar-lhe um sweater - propôs.

- Realmente sinto-me tão esquisito como pareço. Exageradamente trajado.

- De modo algum. Está muito elegante, embora com ar de presidente prestes a fazer um discurso. Que tal dormiu?

- No maior conforto. Só me lembro de camas assim em casa da minha mãe.

- Fritei bacon para o pequeno-almoço.

- O cheiro chegou lá acima.

- Vou estrelar-lhe um ovo.

- Posso fazê-lo eu. Tenho muito jeito.

- Não com o seu melhor casaco vestido. Ficará a cheirar a cozinha. Tentarei encontrar-lhe algo um pouco menos formal.

Elfrida foi então ao andar de cima. Oscar estava na casa de banho a fazer a barba, portanto passou-lhe uma vista de olhos às gavetas e descobriu uma bonita camisola de jersey azul, de gola alta. Quando voltou à cozinha, encontrou Sam, de mangas de camisa arregaçadas, a estrelar cuidadosamente o seu ovo. Atirou-lhe a camisola.

- Está demasiado frio para andar em mangas de camisa.

Ele apanhou-a e vestiu-a, fazendo emergir a cabeça pela gola canelada qual mergulhador a erguer-se das profundezas.

- Está muito melhor - comentou Elfrida. - Agora pode descontrair.

Sam deitou o ovo num prato e juntou-lhe duas fatias de bacon frito. Elfrida meteu mais pão na sua torradeira nova e, em seguida, encheu-lhe a chávena de café. Sentaram-se à mesa, fazendo companhia um ao outro.

- A neve parou...

- Sinto-me muito mal em relação à noite de ontem... Começaram a falar e calaram-se ao mesmo tempo, ficando depois

cada um à espera de que o outro continuasse.

- Porque se sentiu mal? Não foi incómodo nenhum. Limitámo-nos a alimentá-lo com um kedgeree meio ressequido e a esticar-lhe dois lençóis numa cama - afirmou Elfrida.

- Não me referia bem a isso. Embora tenha sido imensamente simpático da vossa parte. Falava, sim, do facto de ter aparecido de repente, com a chave da casa na mão e a dizer que queria comprá-la. Ontem à noite fiquei acordado imenso tempo a pensar nisso e senti-me muito embaraçado. Só espero não ter ofendido nem aborrecido Oscar.

- Oscar não é pessoa para isso. Por um momento, ficou ligeiramente zangado, com Hughie, não consigo. E tenho de concordar que o primo dele não agiu com muita correcção. Mas, segundo Oscar, ele foi sempre assim. No entanto, não me posso pronunciar, pois nunca o conheci. Gostou dele? Refiro-me a Hughie.

- Nem por isso. Muito bajulador. Bastante antiquado. Não parava de ajeitar a gravata.

Elfrida identificou imediatamente o hábito irritante.

- Oh, detesto os homens que fazem isso. Não suporto vê-los.

- A chave continua no bolso do meu casaco. Entregá-la-ei a Oscar.

- Ele não está nada preocupado.

- Será que... - Sam pousou os talheres e pegou na chávena de café. - Será que Oscar está a pensar em comprar a outra parte da casa a Hughie?

- Falámos sobre isso ontem à noite, quando nos deitámos. Sabe, Oscar e eu não estamos juntos há muito tempo. No início de Novembro, a mulher e a filha morreram num acidente de automóvel e ele teve de sair do Hampshire. Eu vim com ele. Partilhamos do mesmo quarto e da mesma cama, mas não sabemos se teremos um futuro juntos. Eu ainda não faço, por enquanto, parte integrante da sua vida. Sou uma espécie de roda sobressalente que mantém o carro a andar até ele se desenvencilhar sozinho. Portanto, tenho uma certa dificuldade não só em pressioná-lo a determinada acção como também em fazer, sequer, sugestões.

- Ele tenciona voltar ao Hampshire?

- Não. A casa em que vivia com Gloria já está à venda.

- Esta é a única propriedade que possui?

- É. Ainda por cima é só meia propriedade.

- Mas não seria melhor para ele comprar a outra parte a Hughie?

- Sem dúvida. Seria o melhor, mas é financeiramente impossível. Fiquei a saber ontem à noite.

- Quer dizer que ele não dispõe da quantia suficiente?

- Exactamente.

- E quanto a uma hipoteca?

- Nem quer pensar nisso.

- Compreendo.

Sam voltou ao seu ovo com bacon, porém a sua presença era tão forte e compreensiva que Elfrida continuou, sentindo que podia confiar completamente nele:

- Como já disse, ontem à noite conversámos sobre o assunto. Ele contou-me que, mesmo que vendesse tudo o que tem, não conseguiria juntar mais de vinte mil. Então eu disse-lhe: «Oscar, eu tenho o meu pequeno quadro.»

- Refere-se ao seu David Wilkie, não é?

- Precisamente. Foi-me oferecido há muitos anos, como sendo um original. Nunca o mandei avaliar porque nunca o pus no seguro. Mas, como qualquer mulher da minha idade, sempre me permiti acreditar que vale alguma coisa. A minha salvaguarda para possíveis tempos de penúria e dificuldade.

- Estaria disposta a vendê-lo?

- Por Oscar faria tudo... menos deitar-me de um penhasco abaixo ou dar um tiro em mim mesma. E, afinal de contas, o que é um pequeno quadro? Deu-me prazer durante muitos anos, mas é preciso manter

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um certo sentido das proporções. Certamente é mais importante ter uma casa tão adorável como esta.

- Concordo consigo - disse Sam. - Faz alguma ideia de quamto vale? ?

- Nem por isso. Mas não é altura nem lugar para começar a fazer cálculos. Sou uma desconhecida nesta parte do mundo. Não tenho contactos de tipo nenhum. Não saberia por onde começar. Há uma loja de antiguidades no outro lado da rua, mas nada mais sei além disso.

Sam ficou silencioso durante algum tempo. De repente disse:

- Janey Philip... está casada com o meu melhor amigo. Como sabe, era em casa deles que estava quando conheci Hughie. Janey trabalhou em tempos para a Boothby, os comerciantes de belas-artes. Podia telefonar-lhe. Tenho a certeza de que terá sugestões excelentes.

- Estamos um bocado perto de mais do Natal para começar a tentar vender quadros.

- Não precisamos de o fazer imediatamente.

- E a neve obstrui tudo. A propósito, ela continua a fazer com que continue na nossa companhia, Sam? Espero que sim.

Sam pousou a chávena e desatou a rir. Elfrida ficou com uma expressão intrigada.

- O que é que tem tanta graça?

- A Elfrida. A maioria das pessoas estaria ansiosa por se ver livre de estranhos.

- Eu não o sinto como um estranho. Mas, enfim, imagino que seja um disparate dizer semelhante coisa. Claro que deve estar ansioso por voltar a Inverness. A casa.

- Elfrida, eu não vou além de Inverness.

- Então, e a sua casa?

- Neste preciso momento, não tenho casa. Excepto um apartamento em Nova Iorque. Foi onde vivi durante seis anos, mas a minha mulher e eu separámo-nos e depois tive de voltar para Inglaterra, afim de assumir este posto em Buckly.

- Oh, Sam, lamento muito.

- Porquê?

- A sua mulher... Não sabia.

- Acontece a muito boa gente. Separados.

- Ainda não se divorciaram?

- Não.

- Filhos?

- Não.

- Pais? - insistiu Elfrida, começando a parecer um pouco desesperada até perante si mesma.

- Já morreram os dois. E a nossa velha casa no Yorkshire foi vendida.

- Então o que vai fazer no Natal?

- Ainda não pensei nisso. O Natal, neste momento, não é data à qual dê muita importância. Provavelmente, ficarei em Inverness até ao fim das festas e depois voltarei a Buckly e porei as coisas a andar. Neste momento, para ser sincero, é o que mais me preocupa. Este ano não penso nem em família nem em celebrações.

Podia passar o Natal connosco.

-Elfrida...

--Não, estou a falar a sério. Não consigo imaginá-lo sentado na s«ala de estar de um hotel em Inverness, com um chapeuzinho de papel na cabeça e completamente sozinho. É ridículo. Oscar e eu também não pensávamos celebrar o Natal. Preparávamo-nos para ser pagãos e festejarmos o solstício de Inverno com costeletas de borrego. Foi então que Carrie e Lucy se fizeram convidadas e Oscar foi comprar um pinheiro, encarregando-se depois, com a ajuda de Lucy, de arranjar as decorações. E eu estou para aqui sentada a pensar na comida que hei-de comprar. Não tenho jeito nenhum para este tipo de coisas e, até agora, ainda só tomei nota do bacon e das tangerinas. Mas podíamos arranjar um bocado de azevinho e ir à caça de um peru, ou lá como eles fazem por estas bandas. Além disso, o que conta são as pessoas, não é? Os amigos com quem se passa o Natal. Não vá embora. Será divertidíssimo ficarmos todos juntos.

Elfrida terminou, Sam mantinha-se calado e, mais uma vez, ela pensou se não teria exagerado e feito figura de parva.

- Oh, Sam, faça o que tiver na vontade. Isso é que é importante. Ele disse-lhe então:

- A Elfrida é a pessoa mais hospitaleira e generosa que alguma vez conheci. Mas dir-lhe-ei o que vou fazer. Vou telefonar para a Meteorologia e perguntar como estão as estradas. Se estiverem desimpedidas, voltarei a Inverness e deixarei de a importunar. Nem imagina o trabalho que tenho para fazer. Se continuarem intransitáveis, nesse caso aceitarei, com muita gratidão, o seu convite.

- Oh, que bom! Rezarei para que caia uma bela nevasca.

- Que dirá Oscar?

- Dirá, «Esplêndido» e continuará a ler o seu jornal.

Sam afastou o punho da camisola de Oscar e consultou o seu belo Rolex.

- São quase nove horas. Se não se importa, irei fechar-me no quarto com o meu telemóvel a fazer algumas chamadas - propôs.

- Esteja à vontade. Mas primeiro tome mais uma chávena de café. A seguir apareceu Carrie.

- Onde estão todos? Pareceu-me ouvir vozes.

- E ouviste bem. Era Sam, mas voltou para o quarto, afim de fazer uns telefonemas.

- Ainda há muita neve. - Carrie serviu-se de café e meteu uma fatia de pão na torradeira. Pegou numa fatia de bacon e comeu-a com

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os dedos. Ao sentar-se, viu o envelope usado com a lista de compras que Elfrida começara a fazer. - Que é isto? Bacon e tangerinas, vai ser uma orgia!

- Estava a tentar fazer uma lista de compras para o Natal. Preciso de me concentrar e tentar esboçar um plano ou dois. Tenho andado a adiar e agora já só temos quatro dias.

- Porque não me deixas tomar conta desse assunto? Sou uma organizadora profissional e não há nada que goste mais de fazer do que listas. Onde é que poderemos ir fazer compras garrafais? - Em Kingsferry, no outro lado da ponte, há um supermercado enorme. Vocês passaram por ele quando vieram do aeroporto. Chama-se PriceRite. Só receio que não consigam lá chegar por causa da neve. Depende da estrada ter sido limpa ou não. Mas quando Sam falar com a Meteorologia, ficaremos a saber. - PriceRite. Soa bem.

- Vende tudo, desde biscoitos para cão a estrume para roseirais. Só lá fui uma vez, porque, como somos só dois, não precisamos de grandes quantidades de comida. O que não é o caso neste momento. - Sam vai voltar para Inverness?

- Depende. Se a neve não deixar circular, convidei-o a passar a quadra festiva connosco.

Carrie manteve-se inexpressiva. Limitou-se a dizer:

- Nesse caso, seremos cinco cá em casa... - puxou o envelope para si e pegou no lápis. - Vejamos. Fazemos refeição festiva de Natal?

- Sim, acho que sim. Almoço ou jantar no dia de Natal?

- Oh, jantar, é muito mais festivo.

- Nunca conseguiremos enfiar um peru naquele forno pequeno.

- Então faremos galinha. Duas.

Carrie escrevia furiosamente. Galinhas. Couves-de-bruxelas. Batatas. Alhos para o recheio. Ervilhas congeladas. Cenouras. Montes de

leite. Manteiga. Pão. Molho de arando. Pauzinhos de canela.

- E estalinhos?

- Sim, isso é indispensável.

- E vinho?

-Oscar há-de querer encarregar-se dessa parte.

- Salmão fumado?

- O meu preferido.

- E nozes e outros frutos secos. Empadas de carne?

- Não te importas de as comprar? Eu sou um desastre em pastelaria. Podemos fazer uma imitação e depois empurrar tudo para baixo

com brande. Bolo de Natal. Isso faço eu. Pudim de Natal.

- Não seria aconselhável arranjarmos pernil assado frio? Dá imenso jeito para o Boxing Day assim como sanduíches.

 

  1. Boxing Day: dia dos presentes (26 e 27 de Dezembro, em Inglaterra).

 

- Esplêndido. E um panelão de sopa.

Da sopa encarrego-me eu - ofereceu-se Elfrida, sentindo-se, ao

menos daquela vez, competente e eficiente. A sopa era a sua especialidade caldo de galinha e quaisquer legumes disponíveis. Chamava-lhe sopa de Sobras». - E talvez uns aperitivos, para o caso de resolvermos fazer uma festa.

Uma festa?

- Achas que não devíamos? Quem convidaríamos?

- Bem... - Elfrida reflectiu nas possibilidades, que não eram muitas. a família Kennedy. O médico e a mulher... e o simpático livreiro, mais a mulher. Ontem estavam no Manse e ele e Oscar entenderam-se muito bem.

Oscar, como que respondendo a uma chamada, apareceu à porta.

- com quem é que eu me entendi muito bem?

- O livreiro.

- Chama-se Stephen Rutley e a mulher é Anne.

- Que bom lembrares-te, Oscar. Vamos fazer uma pequena festa, portanto eles serão convidados.

- Quando é que teremos uma pequena festa?

Carrie e Elfrida entreolharam-se, pois ainda não haviam decidido nada. Carrie disse então:

- Nada como uma noite de sábado para dar uma festa.

- No dia anterior à véspera de Natal.

- Terei de comprar umas bebidas - observou Oscar.

- Se a ponte estiver aberta, Carrie vai fazer as compras todas ao PriceRite, em Kingsferry. Talvez pudesses ir com ela.

- Sim, talvez. Elfrida, parece que o bacon acabou.

- Oh, Oscar, desculpe. Fui eu - admitiu Carrie. - Comi a última fatia. Vou fritar-lhe mais algum.

- Não há mais - anunciou Elfrida.

Mas não teve importância porque havia salsichas no frigorífico e Carrie preparou-as. Depois apareceu Lucy. Elfrida deixou-os entretidos e subiu ao piso de cima, agora muito mais feliz por terem sido feitos alguns planos e pouparem-na à provação de passar uma hora, ou mais, no PriceRite, a empurrar um carrinho pelos corredores cheios de gente nas suas compras natalícias, a procurar desesperançadamente o café moído.

No quarto, procedeu a uma pequena arrumação a esmo, fez a cama e colocou-lhe o seu xaile de seda vermelha por cima. Dobrou roupas e guardou-as, a seguir procedeu a uma escolha no cesto da roupa suja, esperançada em fazer uma lavagem e depois pendurá-la na corda a secar. O que talvez acontecesse, pois o Sol começara a esgueirar-se por um céu límpido; toda a neve refulgia onde a luz a tocava, e as sombras eram de um maravilhoso azul-esfumado. Em baixo, na rua, a manhã seguia o seu curso: a primeira das senhoras às compras aparecera, automóveis deslocavam-se lentamente, um homem, ao volante de uma caravana estacionada, comia um reconfortante pão com presunto. Uma rapariga saiu da padaria com uma vassoura e começou a varrer o passeio em frente. Envergava um fato-macaco e um bom par de botas. No cimo, as gaivotas rodopiavam e empoleiravam-se no cata-vento da igreja debicando as suas penas na manhã magnífica.

Afastou-se da vista agradável com esforço, agarrou na roupa suja e atirou-a para o chão da casa de banho. Mais tarde levá-la-ia para baixo. Entrou na sala de estar, ainda mergulhada na penumbra, e abriu os cortinados. O sol baixo entrou e encheu-a de luz. Os detritos da noite anterior ainda estavam por todo o lado: copos vazios, a garrafa de uísque de Oscar; almofadões amachucados, cadeiras desarrumadas. Juntou os copos e deu uma pequena arrumação, ajoelhando-se depois para recolher as cinzas que haviam ficado da fogueira da noite anterior - a tarefa que menos gostava de fazer, mas à qual não podia fugir todas as manhãs. Oscar dizia-lhe sempre que tratava ele do assunto, porém o trabalho dele era carregar a lenha, pelo que lhe parecia um pouco injusto deixá-lo tratar também de um balde cheio de cinzas.

Varria a lareira quando ouviu Sam dizer, atrás de si:

- Elfrida, eu trato disso.

- Oh! - Virou-se e viu-o à entrada da sala. Entrou, fechou a porta e ela largou a escova e levantou-se, sacudindo as mãos na parte de trás das calças axadrezadas. - Não se preocupe. Todas as manhãs faço este trabalho. Termino mais tarde. Quais são as novidades?

Sam mostrou-se aborrecido.

- Receio que tenham de me aturar no Natal.

- Que maravilha! - exclamou Elfrida. Depois achou que era melhor mostrar um tom minimamente compassivo em relação a ele. Pobre Sam. Está preso aqui. Não lhe resta alternativa. Conte-me o que se passa.

Elfrida foi sentar-se à janela e ele instalou-se ao seu lado. O sol débil que passava pelo vidro era morno.

- As estradas estão transitáveis até à Cromarty Bridge, mas a zona da Black Isle está completamente interdita. Não passam carros em nenhuma direcção.

- Devem ter tido mais neve que nós.

- Pois é. Assim parece.

- Carrie e Oscar estão a planear uma ida em grande ao PriceRite. Fica no outro lado da ponte. Acha que não terão problemas em lá chegar?

- Até aí não há problema. Os varredores de neve devem andar a trabalhar. Mais para sul é que começam os problemas.

- Telefonou para o seu hotel?

- Sim, telefonei, e também ao presidente da minha empresa, David Swinfield, em Londres, e a Janey.

-Janey? - repetiu Elfrida com ar intrigado. Já se esquecera de quem se tratava.

Janey Philip. Contei-lhe. A mulher de Neil.

sim, claro. Desculpe. A que trabalhava para a Boothby.

Exactamente. Deu uma grande ajuda. Foi à procura de um dos

catálogos actuais da Boothby e fez um pouco de pesquisa. Eles têm um representante nesta zona do mundo. Vive em Kingsferry e é Sir James Erkine-Earle.

Céus! - Elfrida estava muito impressionada. - Que grandioso.

- Ela deu-me o número de telefone dele, mas ainda não lhe liguei, pensei em falar primeiro consigo. Para ter a certeza de que quer vender o quadro... ou, pelo menos, mandá-lo avaliar.

- Mal falei no assunto a Oscar.

- Prefere conversar com ele primeiro? Elfrida reflectiu por instantes e depois respondeu:

- Não, porque pode tentar dissuadir-me.

- Uma avaliação não pressupõe automaticamente uma venda. E, seja qual for o seu valor, deve pô-lo no seguro.

- Não me parece que possa aguentar o valor das apólices.

- Então, que me diz? Telefono-lhe?

Faça isso. Verei o que diz.

- Deixei o telemóvel no meu quarto. Vou buscá-lo.

Dito isto saiu, deixando Elfrida sozinha na sala, a olhar para o seu pequeno tesouro, pendurado, sozinho, no meio de uma parede enorme. Fazia parte da sua vida há tanto tempo - o casal de idosos sentado à mesa com a sua Bíblia de família, ele sobriamente vestido, ela vistosa no seu vestido vermelho e o xaile de seda amarelo-narciso, os rostos atentos, ponderados e bondosos, com uma certa dignidade e calma a emanar da sua imobilidade. Tinham sido uma companhia reconfortante ao longo de uma série de anos, acompanhando-a através de tempos de tristeza e desolação. Gostava muito deles.

Mas não eram tão importantes como Oscar.

Cinco minutos depois, Sam estava de volta, aparentemente satisfeito consigo mesmo.

- Tudo combinado - disse, sentando-se de novo ao lado de Elfrida.

- Falou com ele? com Sir James Erskine-Earle?

- Falei. Sem dificuldade. Atendeu pessoalmente o telefone e vem a Creagan hoje à tarde. Tem a ver com o monumento celebrativo aos mortos na guerra... ele faz parte de uma comissão qualquer. Passa por aqui cerca das quatro da tarde, afim de dar uma vista de olhos ao seu quadro. Pareceu muito interessado.

- Oh, Sam. - Elfrida começou de imediato a ficar nervosa. Não sei se consigo esperar até lá.

Terá de ser.

Oferecemos-lhe uma chávena de chá. Comprarei uns scones

Pareceu-lhe pessoa simpática?

Perfeitamente acessível.

é muito excitante, não acha?

Poderá ser.

Acha que conte a Oscar?

no seu lugar fá-lo-ia. Não há-de querer ter segredos para ele,

pois não. Tem toda a razão. Obrigada, Sam, pelos seus cuidados!

Não tem que agradecer. É o mínimo que posso fazer. Ora bem, é que Oscar vai levar Carrie a fazer compras a Kingsferry. porque não hei-de ser eu a acompanhá-la? Assim, poderia pôr as compras no carrinho e depois carregar tudo para casa.

Elfrida achou a ideia estupenda, e não apenas por aquelas razões.

Óptimo. Que gentileza a sua. Oscar vai adorar. Detesta ir às compras.

Tambem tenho outro motivo. - Estava cada vez melhor. - Preciso comprar roupa. Não posso passar os próximos cinco dias assim!

Acha que Kingsferry tem alguma loja de pronto-a-vestir para homens?

E farmácia, já que não tenho pasta de dentes.

ElfrIda respondeu com voz animada, apesar de um pouco esmorecida. esperara que o tal outro motivo fosse ficar sozinho com Carrie:

Claro que tem tudo isso.

Também gostaria de comprar algum vinho para Oscar... Talvez deva falar com ele antes de ir.

Seria boa ideia. Oscar tem ideias muito definidas sobre vinho. faz muito bem.

as gaivotas faziam grande alarido na manhã que aclarava, na berma do telhado alto, planando e circulando em volta da torre, deleitadas com o ar límpido. Elfrida virou a cabeça para vê-las.

Estranhamente, gostaria de que você ficasse com esta casa. Tem a dignidade e solidez que é mesmo própria para um importante executivo de uma empresa - disse olhando para Sam, ali sentado com a camisolazul de Oscar, tendo a sensação de que estivera sempre ali. - As voltas que a vida dá, não é? O Sam com a sua chave e a queda de neve. E cá estamos todos reunidos. É muito agradável ter gente nova competente à nossa volta. Carrie a organizar tudo e o Sam a tomar decisões de que eu nunca seria capaz. Nunca tive jeito para tomar decisões. Agi sempre sob impulso, o que por vezes foi desagradável. Oscar e eu temos sido dois velhos aqui sozinhos há demasiado tempo. Mistress Snead disse que as visitas nos animariam, mas é mais que isSO. E também sei que, sem ter realmente falado no assunto, temos andado a temer o Natal. Achei que só poderia ser triste, dadas as circunstâncias. Mas agora que o temos a si e a Carrie connosco, não poderá tornar-se melancólico como receavamos. Reflectiu um pouco e depois sorriu. - Seja como for, nada podemos fazer para o evitar, portanto mais vale que o tornemos alegre. Talvez acabe por ser uma daquelas festas às quais desejamos escapar a Todo o custo mas que acabam por se revelar das mais memoráveis e divertidas. Compreende o que quero dizer? Sam compreendia perfeitamente o que ela queria dizer.

 

Lucy

Eram dez e meia da manhã e todos estavam ocupados. Sam e Carrie tinham saído no impressionante Discovery, rumo a Kingsferry e ao PriceRite. Antes de se porem a caminho, no entanto, fora preciso empreenderem um certo esforço físico. Sam encontrara uma páno barracão de Oscar e retirara a neve do percurso entre a entrada da casa e o portão, e depois limpara a neve que se empilhara sobre o seu carro com a ajuda de uma escova. A seguir, aspergira o pára-brisas com um produto antigelo. Por fim, Carrie fora ter com ele. Deram então início à sua expedição de compras, armados com uma lista que nunca mais acabava, a qual fora feita depois de muito tempo e reflexão do colectivo. Carrie levava o seu casaco canelado e o chapéu de pele preto, e Sam envergara o elegante sobretudo azul-marinho que tão bem lhe ficava. Ao afastarem-se no carro, deixaram atrás de si uma impressão de opulência.

Elfrida, depois de pendurar a sua roupa ao ar frio e parado, levara Horace a dar uma pequena volta, só até ao cimo da colina, onde ficava o hotel, então encerrado, voltando depois para casa pela estação. Caso contrário, como ela dizia, ele ficaria com os músculos atrofiados e nunca mais sairia do seu cesto. Oscar ficou sentado à lareira, na sala de estar, a ler o seu jornal. Ficara nitidamente aliviado ao saber que já não precisava de ir às compras.

Lucy sentara-se à mesinha do seu quarto a traçar os seus próprios planos. Naquela manhã, sairia para comprar os seus presentes de Natal. Entregara os da mãe e da avó antes de sair de Londres, mas ainda faltava muita coisa. Dispor de dinheiro para as férias facilitara tudo, pois assim escusava de se preocupar com os tostões.

Elfrida, Oscar, Carrie. Juntava-lhes agora Sam. E Mrs. Snead. E Roty. E, se calhar, Clodagh, pois caso contrário poderia parecer um pouco esquisito.

Não se lembrava de mais ninguém.

Foi buscar a sua mochila, meteu a lista lá dentro e verificou a carteira, que exibia um volume satisfatório. Vestiu o casacão acolchoado, calçou as botas e desceu ao piso de baixo. A meio do caminho, espreitou pela porta aberta da sala de estar.

- Oscar.

- Sim, querida?

- Vou fazer umas compras.

 

- Certo.

- Se não se importa, avise a Elfrida quando ela voltar.

- Fica descansada.

Deixou-o e continuou a descida. O Natal começava a ganhar corpo. Tinham-se traçado planos durante o pequeno-almoço e informaram Lucy de que iriam fazer um jantar na véspera de Natal, uma autêntica festa para adultos. Em Londres, onde o Natal era, normalmente, uma celebração razoavelmente pacata, a grande festa tinha lugar sempre à hora do almoço, mas uma festa à noite significava ter algo por que ansiar o dia todo, além de que Lucy poderia pôr a sua minissaia preta nova e a camisola branca. A meio da descida, entretida com os seus pensamentos, fez uma pausa e depois, obedecendo a um impulso, abriu a porta da desolada sala de jantar sem uso. Estava escura e triste, a precisar desesperadamente de uma boa limpeza e de cera, no entanto, a sua imaginação fê-la vê-la iluminada pela luz da lareira, de velas e cheia de comida deliciosa - acepipes como frutas cristalizadas, um pudim au brandy flambé, cálices de vinho, travessas de prata a transbordar de nozes e chocolates, e o brilho de estalinhos.

Uma ideia começou a ganhar forma, mas não era altura de estar a pensar nela, portanto, fechou a porta e saiu para o meio da manhã fria e agradável e o brilho ofuscante da neve. No outro lado da rua estava um enorme camião camarário onde dois homens robustos, com a ajuda de uma escada, penduravam fiadas de luzinhas coloridas em volta e por cima da copa das árvores despidas que se encontravam no interior do recinto murado do pátio da igreja.

Lucy começou a percorrer o passeio na sua ronda pelas lojas modestas. Também estas exibiam enfeites festivos, com os vidros das montras cheios de desenhos feitos com neve artificial e arranjos de azevinho de plástico e laços de cetim vermelho. Na montra do ferreiro via-se uma serra eléctrica de cadeia enfeitada com uma fita de lantejoulas e um cartão que dizia: «IDEAL PARA PRESENTE DE NATAL». Lucy teve dúvidas de que as pessoas aceitassem a sugestão, Entrou na loja de roupas e deparou com todo o tipo de camisolas, casacos de malha de lã, boinas largas, meias e luvas. Algumas das camisolas tinham desenhos tricotados na parte da frente, padrões étnicos que pareciam ter sido concebidos por um peruano louco. Acabou por descobrir um cachecol de caxemira vermelho, muito fino e comprido, que, tinha a certeza, ficaria muito bem à volta do pescoço elegante de Carrie. E também a aqueceria. Seguiu-se a livraria. Aí, Mister Rutley, que dirigia a loja e a quem conhecera no Manse, pôs-se à sua disposição. Saudou Lucy como uma velha amiga e foi extremamente útil. Esta, depois de muito reflectir, trocar impressões e mudar de ideias, escolheu um livro para Oscar ter na mesinha da sala, cheio de fotografias coloridas, de página inteira, de velhas casas rurais, castelos e jardins escoceses. Tinha a certeza de que ele iria adorar. Mr. Rutley ofereceu-se para o trocar se por acaso fosse necessário, mas Lucy tinha a certeza de que Oscar nem sonharia em fazê-lo por ser o tipo de pessoa que preferia cair morto a ferir os sentimentos de alguém.

Para Sam, e seguindo uma sugestão de Mr. Rutley, escolheu um mapa de Creagan e arredores, onde se incluía a cidade de Buckly. Parecia um pouco insípido, mas, por outro lado, era provavelmente a prenda mais útil que ele podia receber, já que iria viver e trabalhar nas cercanias. Também era caro, portanto Lucy nem hesitou e, além dele, levou também alguns cartões, papel de embrulho com azevinho e um pouco de fita cintilante. Mr. Rutley guardou tudo dentro de um saco e recebeu o dinheiro.

- Espero ver-vos a todos ainda este Natal, Lucy.

- Eu também. Obrigada.

- Divirta-se.

Seguiu-se a farmácia. Aí, foi muito mais rápido. Escolheu um sabonete de lavanda para Mistress Snead e, para Clodagh, uns enfeites de cabelo que ela poderia prender na ponta das tranças. Já para Rory foi um pouco mais difícil, pois Lucy não fazia a mínima ideia do que ele gostaria realmente de receber. Se ela própria tivesse um irmão, ou até mesmo um rapaz amigo, seria mais fácil escolher. Foi então que viu uma garrafa enorme de Badedas. Seu pai usara sempre Badedas, nos velhos tempos em que ela ainda era menina, antes do divórcio. Metia-se na banheira cheia de água, onde ficava de molho enquanto o vapor de água perfumado, a cheirar a castanha-da-índia, enchia a metade da casa que ficava no andar de cima. Talvez Rory gostasse de tomar um banho de imersão com Badedas, depois de um longo dia no campo de golfe. Hesitou um pouco, mas, incapaz de se lembrar de algo mais apropriado, acabou por comprar.

Para Elfrida, foi mais complicado. Que poderia uma pessoa oferecer a Elfrida que pagasse todas as risadas e o afecto espontâneo que dera a Lucy? Como não teve nenhuma inspiração na farmácia, saiu e foi andando pelo passeio, passando em frente das Frutas e Legumes de Arthur Snead. De repente teve uma ideia brilhante, voltou atrás e entrou por uma porta que fez «pingue», quando a fechou.

- Mister Snead?

- Ora viva!

- Chamo-me Lucy Wesley. Estou hospedada na Casa da Quinta. Mistress Snead é minha amiga.

- Oh, sim. Ela falou-me em si.

- Se eu encomendar umas flores especiais para Elfrida, poderá levá-las lá a casa na véspera de Natal?

O lojista pareceu hesitar ligeiramente, franzindo os lábios.

- A véspera de Natal calha a um domingo, querida.

- Bem, então que seja no sábado. Vendo bem, até é melhor qUe seja nesse dia, visto irem dar uma pequena festa.

- A verdade é que, minha querida, está tudo suspenso por causa da neve. Não passa nada de Inverness e é de lá que todos os meus fornecimentos normais vêm. Em que estava a pensar? Crisântemos? Cravos?

Lucy ficou com uma expressão indecisa. - Não exactamente.

- Tenho lírios stargazer lá atrás, entregues ontem, quando ainda se passava nas estradas. Mas são caros. - Stargazers?

- Ainda fechados, lindos e muito frescos. Devem começar a abrir daqui a um dia ou dois. - Posso ver um? - com certeza.

O homem desapareceu por uma porta ao fundo da loja e pouco depois voltou com uma haste, no cimo da qual se via uma florescência única, cremosa, elíptica e muito fechada. Era muito parecida com as que a avó costumava comprar na florista da esquina em Fulham, e chegavam a durar duas semanas, - Quantas tem?

- Uma dúzia, mas como disse, são caras. Três libras cada. Três vezes seis eram dezoito. Dezoito libras. Mas ficariam lindas na sala de estar de Elfrida. Desabrochariam lentamente, fazendo aparecer pétalas rosa-pálido, e impregnariam a casa com a sua fragrância inebriante. Então não hesitou:

- Ficarei com seis e pagar-lhe-ei agora, mas se não se importa guarda-as até sábado e vai-mas lá levar nesse dia, está bem? - com certeza. E digo-lhe mais, farei um lindo arranjo com papel especial e um enorme laço cor-de-rosa.

- Tenho aqui um cartão que comprei na livraria. Se eu escrever umas palavras nele, poderia seguir juntamente com as flores? - Esteja descansada.

Emprestou-lhe uma caneta e ela escreveu, «Elfrida - Feliz Natal e muita amizade da Lucy.»

Meteu-o no envelope, escreveu, «Elfrida Phipps», fechou-o e entregou-o a Mr. Snead, juntamente com as dezoito libras. Era muito dinheiro. mas valia a pena.

Mr. Snead fez tinir a sua caixa registadora. - Se quiser visco, avise-me. Ainda tenho um ramo ou dois, mas aquilo vende-se como pão quente.

O Visco era sinónimo de beijos.

- Verei - disse Lucy, cautelosamente.

Despediu-se e seguiu para casa, carregada com as suas compras e a transbordar de espírito natalício.

Assim que chegasse, iria directamente para o seu quarto, fecharia a porta e pôr-se-ia a embrulhar os seus presentes com o papel festivo, pondo-os depois com a fita brilhante. Depois, escondê-los-ia na gaveta do fundo da cómoda. Ao atravessar a praça, viu um carro estacionado em frente da casa de Oscar, uma velha carrinha de caixa aberta, porém não ligou importância, pois em Creagan as pessoas estacionavam onde calhava. No entanto, ao empurrar a porta da frente, ouviu vozes vindas da cozinha. Foi ver quem era e encontrou Elfrida a mexer uma panela que estava ao lume, e Rory Kennedy. Em cima da mesa da cozinha estava um aparelho de televisão, e ao pé, um carrinho de plástico com rodas. Quando apareceu à porta, carregada de sacos de compras, pararam de falar e viraram-se para ela, sorrindo. Rory cumprimentou:

- Viva!

Vestia um casaco de lã de carneiro cinzento e calçava botas de borracha, e estava com um ar muito másculo. Como a sua presença era completamente inesperada, Lucy ficou sem palavras, ainda que encantada.

- Olá. Pensei... pensei que vinhas mais tarde. A hora do chá, por exemplo. Imaginei-te a trabalhar.

-com o tempo assim, há pouco que fazer no campo de golfe. O responsável mandou-nos a todos para casa, por isso pedi o carro emprestado ao meu pai e vim trazer-te a televisão.

Lucy olhou para o aparelho. Parecia muito mais sofisticado do que o que tinha em Londres.

- Pensei que era velha. Não parece nada.

- Arranjei uma maior para mim. Também trouxe o suporte, para o caso de não teres onde pô-la.

Elfrida tirou a panela do lume, pousando-a num tripé de ferro, e observou:

- Eu acho o máximo. Iremos todos lá para cima para o sótão sentar-nos a ver. Lucy, talvez seja melhor mostrares a Rory onde deve colocá-la lá no teu quarto.

- São quatro lances de escada - advertiu Lucy. Rory sorriu.

- Acho que sou capaz.

Lucy foi à frente, com os sacos de compras a bater-lhe nas pernas.

- Foste às compras? - perguntou Rory, atrás dela.

Lucy pensou que só ele conseguia ser capaz de carregar com todo aquele peso escadas acima e falar ao mesmo tempo.

- Fui. Presentes de Natal. Em Londres, não tive tempo. Chegaram ao patamar de cima, parando diante da porta do quarto de Lucy. Esta entrou primeiro e atirou os sacos para cima da cama. Rory seguiu-a e pousou cuidadosamente o aparelho de televisão no chão. Endireitou-se e olhou apreciativamente em volta.

- Ei, que quarto porreiro. E com montes de espaço. Está sempre assim tão arrumado?

- Mais ou menos - respondeu Lucy com ar despreocupado, não querendo que ele a achasse pedante.

- Pois Clodagh tem o quarto sempre numa desgraça. A nossa mãe está sempre a mandá-la arrumar as coisas. Vou até lá abaixo buscar o suporte.

Depois de ele sair, descendo ruidosamente as escadas, Lucy guardou rapidamente os sacos de compras na gaveta do fundo da cómoda e fechou-a firmemente. Se ele adivinhasse que ela tinha ali Badedas para lhe oferecer, ficaria envergonhada. Instantes depois, Rory voltava com o pequeno suporte com rodas. Descobriram uma tomada adequada e Rory colocou a televisão em cima do suporte, enfiando a ficha no sítio. O aparelho dispunha de antena própria, de modo que Rory ligou-a e mexeu nos botões para regular a imagem.

- É realmente boa - elogiou Lucy, encantada.

- Posso conseguir que fique ainda melhor.

Sentado no chão, de pernas cruzadas, mostrava-se muito atento ao que fazia. Carregava em botões, mudava de canal. Num passava o Super-homem, para crianças, noutro, um filme antigo a preto e branco. Depois apareceu uma senhora a ensinar como se faziam cartões de Natal, decorados com recortes tirados de um catálogo de sementes. Rory verificou o som e deu mais um toque na antena. Lucy instalou-se no chão, ao seu lado.

... «E depois finaliza-se com um lacinho de fita bonita. Assim. Penso que todos concordarão que qualquer pessoa ficaria encantada em receber um cartão tão personalizado.»

Rory comentou:

- Eu, não. - E carregou noutro botão. Estavam a dar o boletim meteorológico para toda a Escócia, segundo o qual as caminhadas ou o alpinismo não eram aconselhados nos próximos dias.

- Queres que a deixe ligada? - perguntou Rory.

- Não. Já sei como trabalhar com ela. Rory desligou-a.

- Faz por não tocar na antena. Acho que já a coloquei na melhor posição possível.

- Foste realmente uma simpatia em ma emprestar... e em trazer-ma.

- Não custou nada. Assim já ficou resolvido.- Olhou mais uma vez em redor com ar admirativo. - Foi esta a mobília que a minha mãe ajudou a comprar? É muito gira. Ela adora ir ao mercado de Buckly... volta sempre com uma pechincha. Ou é uma fronha de almofada de linho esfarrapada, um boneco de louça qualquer, eu sei lá que mais. Temos a casa cheia de tralha, mas parece que há sempre espaço para mais alguma coisa. O teu quarto em Londres é como este?

- Não. Não é tão grande e nem tem esta vista da janela. Mas é bonito. E ao menos não tenho de o partilhar com ninguém. Tenho lá os meus livros, o meu computador. As minhas coisas.

- Que tal é viver numa cidade?

- Não é mau.

- Deve ser estupendo, todos aqueles museus, exposições, concertos e peças de teatro. Só lá fui uma vez. O meu pai levou-me, numa altura em que precisou de ir a uma conferência. Ficámos num hotel e fomos ao teatro todas as noites. Foi no tempo quente e comíamos em pubs, em esplanadas, entretidos a olhar para toda aquela gente esquisita que passava. Foi bom. Muito mais divertido que Creagan.

- Para quem lá vive permanentemente, é diferente.

- Penso que sim.

- Para quem tem casa própria com jardim, pode ser muito agradável. Quando eu era pequena, tínhamos uma casa com jardim em Kensington, e não se ficava com a impressão de viver na cidade porque havia sempre um bocado de erva, flores, coisas do género. Mas depois os meus pais divorciaram-se e agora eu, a minha mãe e a minha avó moramos num apartamento. Fica perto do rio e tem uma varanda com uma vista bonita, mas não há onde se possa estar. Como, por exemplo, um sítio onde uma pessoa se possa estender um bocado em cima da relva a ler um livro. A minha amiga Emma, que anda no liceu comigo, vive numa casa a sério e às vezes fazemos um churrasco no jardim.

Não conseguia lembrar-se de mais nada para lhe contar e tinha a noção dolorosa de que tudo parecia extremamente sem graça. Passado um bocado, Rory perguntou-lhe:

- Tens saudades de casa? Lucy fítou-o com espanto.

- Saudades de casa?

- Bem, sabes como é, saudades da tua mãe. Das tuas coisas. Tudo. Clodagh é um horror. Não pode ficar nem uma noite afastada de casa, chora que nem um bebé.

- Não - respondeu Lucy, ouvindo a sua própria voz soar surpreendentemente forte e precisa. - Não, não tenho saudades de casa. Nem sequer penso no regresso a Londres. Pus isso simplesmente de lado na minha cabeça.

- Mas...

- Tu não compreendes. Não é como aqui. Não é como esta casa, a tua casa, cheia de gente e amigos da tua própria idade a entrar e a sair. O apartamento é da minha avó e ela não quer as minhas amigas por lá. Diz que fica com enxaquecas. De vez em quando, Emma vai até lá, mas a minha avó não gosta muito dela, e o ambiente fica sempre um pouco tenso. Passamos quase o tempo todo no meu quarto. Certa vez, tanto a minha mãe como a minha avó saíram, de modo que passámos a tarde toda na casa de banho a lavar o cabelo, a perfumarmo-nos e a pintarmos as unhas com verniz prateado. Quando estou em casa de Emma podemos fazer o que nos apetece. A mãe dela está quase sempre fora, a trabalhar. Edita uma revista. E a empregada é quase sempre divertida e deixa-nos cozinhar e fazer bolos horrorosos.

Calou-se, dando oportunidade a que Rory fizesse algum comentário a semelhante caudal de confidências, porém o jovem nada disse. Passado um bocado, Lucy continuou:

- Aqui é completamente diferente. Uma pessoa pode fazer tudo e, se não há nada com que se ocupar, tem possibilidade de sair, ir às compras, passear por aí, ou ir até à praia, ou fazer umas explorações pelas redondezas, ou sair à noite sem que ninguém a impeça. E aqui todos me chamam amorzinho ou querida, apesar de, ao mesmo tempo, me tratarem como uma adulta. Como se eu fosse uma pessoa crescida, não uma criança. A avó e a mãe chamam-me só Lucy. Nada mais. Mas nunca me sinto uma pessoa a sério. Já tenho catorze anos, e às vezes sinto que nada fiz na vida além de ir às aulas. Se tivesse um irmão ou uma irmã, não seria tão mau. Sobretudo um irmão, pois estar sempre na companhia de mulheres pode ser terrivelmente enfadonho. Falam de vulgaridades como roupas, restaurantes ou das outras pessoas...

- Que liceu frequentas?

- Chama-se Stanbrook. Fica muito perto do sítio onde moro. Vou de metro. São só duas paragens. Por acaso, gosto muito de lá andar, dos professores, do reitor, e Emma também lá está. Fazemos coisas como ir a concertos, exposições de pintura, à natação e a jogos no parque. Mas são só meninas, por isso às vezes acho que seria francamente divertido ir para uma escola mista. Conhecem-se muitas pessoas diferentes.

- E o teu pai? - perguntou Rory.

- Vejo-o pouco, porque a minha mãe não gosta que eu esteja com ele e, além disso, tem uma mulher nova que também não faz gosto em me ter por perto. Tenho um avô. Chama-se Jeffrey Sutton. É o pai de Carrie. Mas vive na Cornualha com uma mulher nova e dois filhos pequenos.

- Não poderás ir passar uns tempos lá?

- Sim, podia, mas a minha avó ficou com muita mágoa dele, e o seu nome mal é pronunciado lá em casa. Um dia encho-me de coragem e digo que quero ir lá passar uns tempos. Mas, se calhar, terei de esperar até ser um pouco mais velha.

- Não precisas de esperar. Tens de o fazer quanto antes.

- Acho que não tenho forças para isso - admitiu Lucy tristemente. - Detesto discussões e ter de fazer valer a minha vontade. Uma vez tive uma briga com a minha mãe e a avó por querer furar as orelhas.

Na escola todas o fizeram, excepto eu. Não tem importância nenhuma, mas a discussão manteve-se durante dias e, como eu já não aguentava mais, desisti. Sou terrivelmente fraca nestas coisas. Rory observou:

- Acho que ficarias muito bem com as orelhas furadas. Podias usar argolas de ouro. - Sorriu. - Como eu.

- Eu não poria uma, mas sim duas.

- Aproveita para o fazer enquanto cá estás. Em Kingsferry há um joalheiro.

- A minha mãe morria.

- A tua mãe está na América.

- Como é que sabes?

- Elfrida contou à minha mãe e esta a mim.

- Arranjou um namorado. Chama-se Randall Fischer. Está na Florida com ele. Foi lá passar o Natal. Eu também fui convidada, mas não quis ir. Só estorvaria. Além disso - acrescentou -, não simpatizo muito com ele.

Rory nada disse sobre o facto, e Lucy reparou que era muito bom ouvinte. Ficou com curiosidade em saber se seria um dom natural ou se o pai lhe teria ensinado a importância do silêncio na altura apropriada. Recordou-se então do dia em que Carrie aparecera em Londres, precisamente numa altura em que Lucy ansiava por uma confidente. Pensara que poderia desabafar com Carrie, abrir-lhe o coração. Mas esta, acabada de chegar da Áustria, estava estranhamente indiferente e sem paciência para escutar fosse quem fosse. Alheada, talvez fosse a palavra, como se parte dela tivesse ficado noutro lugar. Mas Rory Kennedy era diferente. Rory tinha tempo para ouvir e era compreensivo. Lucy sentiu grande afecto e gratidão pelo amigo.

- Desculpa - disse. - Não tinha intenção de dizer tudo isto. Mas tem sido muito divertido estar com Elfrida e Oscar, ter ido aos reels e conviver com toda aquela gente da minha idade. E pensar que este ano o Natal vai ser mesmo a sério, e não apenas comer faisão assado com a mãe e a avó, ou mesmo ir a um restaurante aborrecido, por elas não se quererem dar ao trabalho de cozinhar. E a neve e tudo o resto. E a igreja. E os foguetes a subir aos céus...

A voz morreu-lhe. Terminara. Não havia mais nada a dizer. Pensou no apartamento, em Londres, depois empurrou a imagem para o fundo da mente e fechou-lhe uma tampa imaginária em cima. Não servia de nada recordar. Não valia a pena estragar aquele momento, aquela hora, aquele dia. Agora.

Rory observava-a. Lucy fitou-o nos olhos e sorriu. Ele disse-lhe:

- Hoje à tarde queres ir andar de trenó?

- Tu vais?

- Porque não? Telefonarei a convidar mais malta. Iremos para o campo de golfe, tem umas ladeiras mesmo boas. - Olhou de relance para o seu relógio. - É quase meio-dia. Teremos de voltar cedo, antes de escurecer. Que tal ires agora comigo até minha casa? Peço à minha mãe para nos arranjar um farnel e depois vamos ter com os outros.

- Não tenho trenó - lembrou Lucy.

- Nós temos três ou quatro na nossa garagem. Levas um desses.

- Pôs-se de pé. - Anda daí.

- Mas a tua mãe...

- Não, ela não se importará, e haverá comida suficiente para alimentar um exército. É sempre assim. - Estendeu a mão a Lucy para a ajudar a levantar. - Pára de te preocupar - disse-lhe. - Pára de levantar obstáculos no teu próprio caminho.

- É o que estou a fazer?

- Agora já não.

 

Elfrida

A ida às compras a Kingsferry fora coroada de sucesso: Sam e Carrie não só tinham trazido uma série de caixas de cartão repletas de comida - legumes, cereais, fruta e petiscos de Natal - como também caixas de garrafas de vinho, grades de cerveja, Coca-Cola e seis garrafas de uísque Famous Grouse. E mais, tinham conseguido dar uma volta pelas lojas de roupa masculina, onde Sam se munira de um guarda-roupa de senhor rural: calças de bombazina, camisas de flanela, um sweater canelado grosso, um par de botas Timberland e um casaco Barbour. Assim como, sem dúvida - Elfrida era demasiado discreta para perguntar - roupa interior, meias e os materiais básicos necessários para fazer a barba, tomar banho, lavar os dentes e aparecer sempre agradavelmente cheiroso e apresentável.

Sam vestiu as suas roupas novas para o almoço, e todos admiraram a sua aparência discreta e despretensiosa. Terminada a refeição, vestiu o seu Barbour e acompanhou Oscar ao clube de golfe, onde Sam marcara encontro com o secretário para falarem da possibilidade de se tornar membro. Elfrida, que ficou a vê-los caminhar lado a lado ao longo do passeio coberto de neve, pensou que era bom Oscar gozar de um pouco de companhia masculina.

Ela e Carrie ficaram a preparar a chegada, marcada para as quatro da tarde, de Sir James Erskine-Earle. A primeira coisa a resolver era onde lhe iriam servir o chá. Elfrida pensou na cozinha - não valia a pena estarem com cerimónias -, porém Carrie disse que isso estaria muito certo para alguém que se conhecia, mas que, se calhar, Sir James ficaria um pouco desconcertado se lhe pedissem que enfiasse os joelhos debaixo da mesa da cozinha e tomasse o seu chá numa caneca.

Elfrida compreendeu o ponto de vista da prima.

- Então é melhor irmos para a sala de estar.

- O quê? Todos sentados à volta da lareira?

- Porque não?

- Os homens detestam estar sentados, a não ser que estejam treinados para isso, como os pastores. Não se entendem com chávenas, pires e bolinhos, tudo ao mesmo tempo. Podemos pôr as coisas em cima da mesa em frente da janela, tudo como deve ser, como a mãe costumava fazer.

- Tentarei descobrir uma toalha bonita.

- Há uma guardada no louceiro de Mistress Snead. Queres que faça uns scones?

- Sabes fazê-los? - exclamou Elfrida, impressionada.

- Claro que sei. E tu podes ir ao padeiro buscar uns bolinhos finos.

Elfrida vestiu o casaco e saiu. O padeiro não tinha bolinhos finos, mas, em vez disso, sugeriu pão de gengibre a Elfrida, que comprou um, assim como um frasco de doce de amora-preta de fabrico caseiro.

- Vai dar alguma festa, Mistress Phipps? - perguntou a rapariga ao dar-lhe o troco.

Elfrida respondeu-lhe que não, não era propriamente uma festa, mas sim a visita de alguém para o chá da tarde.

Quando voltou à Casa da Quinta, os scones de Carrie já estavam no forno e cheiravam deliciosamente. Elfrida desembrulhou o pão de gengibre e o doce, arranjou um tabuleiro onde colocou os melhores pratos, chávenas e pires da casa, ainda que desirmanados. Descobriu um açucareiro, uma tacinha para a manteiga e, até, uma faca para a mesma.

- Vamo-nos armar em nobres - observou.

Desencantou umas colheres de chá e deu uma boa esfregadela ao interior do bule do chá.

Foi ao piso de cima e encontrou uma toalha de linho no louceiro. Tinha um pouco de goma, de modo que, depois de um pouco de ferro, ficou com um ar muito festivo estendida em cima da velha mesa. Colocou cinco pratos e facas de sobremesa, as chávenas com os pires, assim como a tacinha da manteiga e o frasco do doce. Não havia flores, mas quem sabe, Sir James Erskine-Earle não se importasse com isso. Afastou-se da mesa com o tabuleiro nas mãos e olhou para o pequeno quadro pendurado na parede em frente que, possivelmente, a partir daquele dia deixaria de ali estar. Estava ligeiramente torto, pelo que foi endireitá-lo, dando-lhe uma pequena pancadinha de afecto, como se fosse uma criança encorajada a portar-se bem.

- Se não tiver tempo para me despedir - disse-lhe Elfrida -, faço-o agora. Foi muito agradável ter-te comigo.

Oscar e Sam voltaram do clube de golfe a horas e com boa disposição. A entrevista com o secretário do clube fora satisfatória. Sam ficara a saber que havia uma lista de espera para novos sócios, mas como ele iria morar em Buckly, era bem possível que pudesse passar à frente. Tinham sido apresentados ao comandante e a outros membros, e depois de admirarem retratos e trofeus, regressaram a casa a pé.

Oscar apreciara nitidamente a saída. Elfrida, recordando a outra ida ao clube que tão desastrosamente terminara com um ataque de pânico e uma fuga, agradeceu silenciosamente aos céus, enquanto subia ao piso de cima para pentear o cabelo cor de fogo e passar nova camada de bâton nos lábios.

Quando Sir James Erskine-Earle chegou, ao bater das quatro da tarde, revelou-se uma surpresa. A campainha da porta soou estridentemente e Elfrida foi abrir. Ficou um pouco perplexa por deparar com um homem tão jovem e que, apesar de vir de uma reunião sobre o monumento de homenagem às vítimas da guerra, se apresentava como se tivesse ido fazer jardinagem, com umas calças de golfe em tweed muito gastas e um casaco que parecia ter perdido a maioria dos botões. A camisa tinha o colarinho coçado e o pulôver exibia um pequeno orifício. Quando lhe abriu a porta, ele tirou o boné de tweed e Elfrida reparou que usava o cabelo fino cortado à estudante.

- Mistress Phipps?

- Sim. Sir James, como está? - Trocaram um aperto de mão. Faça o favor de entrar. - Ao conduzi-lo escadas acima, disse-lhe: Fico-lhe grata por ter vindo tão rapidamente.

- Não tem que agradecer. - Possuía uma voz encantadora e um sorriso ingénuo. - Sempre apreciei ocasiões em que me pedem que veja algo de especial.

Elfrida levou-o até à sala de estar e apresentou-o aos outros, que estavam todos com ar muito pouco à vontade, como se Sir James Erskine-Earle os fosse avaliar a eles.

- Oscar Blundell. Carrie Sutton, minha prima, e Sam Howard, que vem dirigir a velha fábrica de lanifícios em Buckly.

- Falámos ao telefone. Que esplêndido conhecê-lo. Está na Sturrock & Swinfíeld? Andei com um dos Swinfíeld em Eton, mas não creio que fosse o seu presidente. - Olhou em volta. - Que casa mais surpreendente! De fora ninguém diria do seu esplendor. Fez parte de Corrydale, suponho.

- É verdade, mas já lá vão alguns anos - respondeu Oscar. Talvez tenha conhecido o meu tio, Hector McLellan?

- Vagamente. Trabalhei em Londres durante alguns anos. Só vim para o Norte após a morte do meu pai, e instalámo-nos todos em Kingsferry. Foi um certo choque cultural para a minha família, mas agora já se habituaram completamente.

Aproximou-se, como era de esperar, da janela, como acontecia a quem ali entrava. Estava escuro, mas Elfrida não correra os cortinados, de modo que se viam as árvores, no outro lado da rua, enfeitadas com as suas luzinhas de Natal que brilhavam como jóias, tendo ao fundo a velha parede de pedra da igreja.

- Que panorama. E tão perto da igreja. Devem conseguir ouvir a música do órgão. Instrumento maravilhoso. Cheios de sorte. - Voltou-se para os presentes. - Mas não devo fazer-vos perder mais tempo com as minhas observações. Onde está o quadro que desejam que eu veja?

- Está... - Elfrida aclarou a garganta. - Está aqui.

- Compreendo. Em estado de isolamento.

- Não temos mais nenhum.

- Posso tirá-lo da parede?

- Faça favor.

Sir James Erskine-Earle atravessou a sala e pegou delicadamente nele pela moldura, tirando-o para baixo, segurando nele como se fosse uma peça da mais fina porcelana.

- Que cena mais encantadora.- Inclinou-o sob a luz do candeeiro que se encontrava na mesinha de Oscar. - Sir David Wilkie.

- É verdade. Pelo menos sempre assim acreditei.

- Um retrato de seus pais. Sabiam? Pintado, suponho, cerca de mil oitocentos e trinta e cinco.

- Não sabia que eram os pais. Pensei que se tratava apenas de um simpático casal de idosos.

Fez-se silêncio. Todos aguardavam o seu veredicto, ligeiramente nervosos. Sir James Erskine-Earle levou o seu tempo, tirando primeiro um par de óculos sem aros de dentro de um dos bolsos do seu irrepreensível casaco. Quando os colocou, ficou a parecer um jovem estudante pobre. Talvez de medicina, já que as suas mãos eram sensíveis e delicadas como as de um cirurgião. Olhou de perto, examinou, apalpou com a ponta dos dedos, virou o quadro e inspeccionou a parte de trás.

Por fim, pousou-o cuidadosamente em cima da mesinha de Oscar.

- Como é que tomou posse dele, Mistress Phipps?

- Foi um presente. Faz muito tempo... uns trinta anos... de um amigo.

- E sabe onde ele o comprou?

- Penso que numa loja de quinquilharia em Chichester.

- Pois.- Acenou com a cabeça. - É de calcular.

- Eu sempre... sempre acreditei, fui levada a acreditar... que se trata de um original. Mas nunca o mandei avaliar nem segurar.

O nobre fitou-a, com a luz do candeeiro a fazer faiscar os seus óculos, e esboçou o mesmo sorriso cativante de pouco antes. Virou-se de modo a apoiar-se à mesa e tirou os óculos. Disse então:

- Tenho muita pena, mas não é um original. Trata-se de uma cópia. O silêncio petrificado que se seguiu deveu-se ao facto de ninguém conseguir lembrar-se de alguma coisa para dizer.

- É um trabalho encantador e lindamente executado, mas não é o original.

Oscar reencontrou a sua voz:

- Como é que sabe?

- Por um lado, não está assinado. Concordo que o tema é, inconfundivelmente, o de Wilkie, mas não tem assinatura. A outra razão que me leva a chegar a essa conclusão é, estranhamente, o original ter passado pela sala de leilões da Boothby, na Bond Street, há não mais de um ano. Foi para um comerciante dos Estados Unidos que licitava em nome de um museu qualquer. Era maior que o seu pequeno quadro, Mistress Phipps, o que me leva a crer que quem fez esta cópia nunca pensou em fazê-la passar pelo original; terá sido mais um trabalho motivado pelo respeito e pela admiração. Talvez tenha sido um estudante, desejando emular o estilo do mestre. Não há dúvida de que se trata de uma imitação extraordinária... o traço do pincel, a cor, a luz. Uma bela obra de arte. Se considerarmos a imitação como a forma mais sincera de lisonja, quem lançou mãos a uma tarefa tão esmerada é digno de admiração.

O silêncio encheu, mais uma vez, a sala. A certa altura, Elfrida fez a tão temida pergunta:

- Quanto vale, Sir James?

- Por favor trate-me por Jamie.

- Bem... quanto pensa que vale, Jamie?

- Se fosse o original, diria que andaria pelas oitenta e cinco mil libras. Não me recordo da soma exacta por que foi vendido, mas terá sido um montante desse género.

- E sendo apenas uma cópia?

- Umas mil? Talvez mais, talvez menos. Dependerá do mercado. As coisas só têm valor se alguém as deseja.

Mil libras. Uma cópia, que não valia mais de mil libras. O pequeno tesouro de Elfrida, a sua segurança para dias de pobreza e solidão. Mil libras. Curiosamente, perante si própria, não se importava muito. Não valia a pena vendê-lo, portanto poderia continuar a desfrutar dele para o resto da vida. Mas sabia que, para Oscar, era uma desilusão enorme. Todos os planos que ela fizera para comprar a parte de Hughie e assegurar o futuro de Oscar tinham ido por água abaixo. Todos os seus sonhos ficaram reduzidos a pó, a lixo. Visionou-os como que arrastados para longe, para fora de alcance, qual espuma num rio de corrente rápida. Desaparecidos.

Por um momento pavoroso imaginou-se prestes a rebentar em lágrimas. Algo desesperada, voltou-se para Carrie e viu que esta tinha os lindos olhos escuros pousados em si, transbordantes de carinho e compreensão. Elfrida abriu a boca para dizer algo, mas não lhe saíram palavras, de modo que Carrie veio em seu socorro.

- Penso - disse ela -, que é melhor eu ir lá abaixo aquecer água para tomarmos todos uma reconfortante chávena de chá.

Sam falou então, pela primeira vez desde que fora apresentado a Jamie Erskine-Earle:

- Eu vou consigo, para lhe dar uma ajuda.

Elfrida sabia perfeitamente que não eram precisas duas pessoas para pôr uma chaleira com água ao lume, mas ficou-lhe grata por ter o tacto de se afastar de uma situação tão melindrosa. Deu consigo a desejar que Sir James Erskine-Earle também se retirasse. Fora convidado a ir ali avaliar o pequeno quadro e não era por culpa sua que se tratava de uma fraude, porém a sua sabedoria e perícia estragara muitas expectativas e, agora, Oscar não tinha alternativa senão vender a sua metade da casa. Não se importava propriamente de que Sam ficasse com a casa, o que a apavorava era Oscar não ficar com ela.

Depois dos outros saírem, gerou-se um silêncio profundo. Talvez Jamie sentisse a desilusão de Elfrida, pois voltou a repetir:

- Lamento muito.

Elfrida não controlou a impaciência, nem com ele nem consigo:

- Oh, por amor de Deus! A culpa não é sua.

O avaliador voltou a pendurar o pequeno quadro com cuidado e precisão. A velha senhora do xaile amarelo fitou-o do alto, benevolente, ao contrário de Elfrida, que não foi capaz de fazer o mesmo.

- Ao menos... continuará a proporcionar-lhe alegria - observou ele.

- Nunca mais será como antes.

Oscar, sentindo a tensão, meteu-se na conversa.

- Apesar de tudo, continua a ser muito precioso para Elfrida. Estou aliviado por não haver motivo para sair de junto dela.

- Oh, Oscar, eu tenho todos os motivos. E apenas um quadro. Mas não por mil libras. Essa quantia dá vontade de rir.

- Elfrida. Tem calma.

Elfrida virou as costas a ambos e foi até junto da lareira, ansiosa por algo que a aliviasse da desilusão recebida. Tirou um toro do cesto da lenha e atirou-o para o meio da fogueira. Ficou a vê-lo pegar fogo e chama.

Então, atrás de si, Jamie voltou a falar:

- Lamento, espero que não me tome por curioso, mas de quem é aquele interessante relogiozinho?

Elfrida pensou, por instantes, que ouvira mal. Voltou-se e olhou para Jamie com expressão intrigada.

- Aquele relógio?

- Chamou-me a atenção. É tão fora do comum... Oscar esclareceu-o:

- É de Elfrida.

- Será que lhe posso dar uma olhada?

Elfrida assentiu. Desviou-se para o lado. Jamie pôs novamente os óculos, aproximou-se e tirou o relógio do lugar que ocupava no meio da cornija da lareira. Ela e Oscar ficaram, pela segunda vez, a vê-lo examinar silenciosa e minuciosamente o objecto. Elfrida decidiu que, se ele lhe dissesse que não passava de um bibelô sem valor, ela lhe atiraria a pá do carvão à cabeça.

Sir James Erskine-Earle disse:

- Trata-se de um cronómetro de viagem. Maravilhoso. Como é que tomou posse deste pequeno tesouro?

_ Refere-se a um tesouro sentimental ou a um tesouro de facto?

Jamie respondeu delicadamente:

Não estou bem certo.

Elfrida elucidou-o com brusquidão:

Foi-me deixado por um padrinho idoso. Um velho lobo-do-mar.

Então, dando-se conta de que estava a mostrar-se irascível, abrandou:

Como pode ver, um dos ponteiros é para as horas, outro para os minutos e o terceiro para os segundos. Tenho de lhe dar corda todos os dias. Se calhar, podia adaptar-lhe uma bateria, mas parece que...

Deus nos livre. É demasiado raro para isso.

- Raro? Tem a certeza de que não é apenas um relógio velho e antiquado?

- Prático. Mas também muito bonito.

Elfrida olhou para o relógio que o avaliador tinha nas mãos e viu que ganhava imediatamente um novo brilho, como acontecia quando um objecto familiar era admirado por outras pessoas. O cabedal do exterior estava muito usado, mas o interior conservara-se brilhante e escuro; e a tampa, que se fechava sobre ele como a capa de um livro, estava forrada com um veludo, desgastado, cor de coral. Em volta do mostrador, onde se encontravam os ponteiros, o cabedal fora decorado com uma grinalda de folhas douradas em miniatura, desenho que se repetia no rebordo da armação. A chave da corda, as dobradiças e as fechaduras minúsculas eram todas em metal.

- Nem sequer sei quantos anos tem. Talvez mo possa determinar - observou Elfrida.

- Infelizmente não sou perito em relógios. No entanto - acrescentou ele -, tenho um colega que é. Se quiser, se mo permitir, poderei mostrar-lhe este relógio.

- Porquê?

- Porque penso que é especial.

- Em que aspecto?

- Utilizamos a palavra tesouro.

- Quer dizer que vale alguma coisa?

- Preferia não me pronunciar. Não sou suficientemente especializado.

- Por acaso não valeria setenta e cinco mil libras, não? - perguntou Elfrida abruptamente, à espera de um meneio negativo de cabeça ou, até, de uma risada irónica.

Porém, Jamie Erskine-Earle não se riu. Retorquiu:

- Na verdade, não lhe sei dizer. Mistress Phipps, não se importa... Permite-me que o leve comigo? Se não conseguir apanhar o meu colega, pelo menos poderei falar-lhe pelo telefone, ou enviar-lhe uma fotografia do relógio. Claro que lhe passarei um recibo por ele, e guardá-lo-ei a sete chaves.

A situação tornou-se repentinamente cómica.

- Na casinha que eu tinha no Hampshire - contou-lhe Elfrida ele ficava em cima da cornija da lareira da minha sala de estar e nem sequer fechava a porta à chave.

- Então devo felicitá-la pela sua boa sorte. Não está no seguro - acrescentou, constatando uma situação, não fazendo uma pergumta.

- Não, claro que não está. É apenas um pequeno objecto que já tenho há anos e levo para todo o lado comigo.

- Se me é permitido reiterar as suas palavras, um pequeno objecto muito especial. Dá-me licença de que o leve comigo?

- com certeza.

- Se pudessem arranjar-me uma caixa... ou algo em que o embrulhar. O meu lenço não é exactamente o mais adequado.

Oscar aproximou-se da sua mesinha, abriu uma gaveta e tirou de dentro desta uma folha de bolhinhas de ar, que guardara de um embrulho de livros novos.

- Isto serve?

- Perfeito. E uma folha de papel para eu lhes passar o recibo?

Normalmente, trago um livro oficial comigo, mas hoje, claro, deixei-o em casa.

Entregou o relógio a Oscar, que o embrulhou muito bem. A seguir, e Erskine-Earle sentou-se na secretária e passou o seu recibo.

- É melhor eu ficar com ele - disse-lhe Oscar. - Elfrida tem tendência a perder coisas.

Guardou-o então no bolso de cima do seu casaco.

- Só há um pormenor - disse Elfrida.

- Do que se trata, Mistress Phipps?

-Não falemos muito do relógio quando Sam e Carrie voltarem.

Estamos todos demasiado abalados por causa do David Wilkie e não me agradaria alimentar falsas esperanças mais uma vez. Poderemos simplesmente dizer que o senhor acha que devemos segurar o relógio e que me vai fazer uma avaliação, está bem?

- com certeza. É uma explicação excelente. Além disso, não deixa de ser verdadeira.

Nessa noite, ao tentar decidir-se sobre o que fazer para o jantar, sentiu que passara a tarde inteira numa montanha-russa. E toda aquela excitação, desilusão e expectativas reavivadas tinham feito com que nunca mais se lembrasse de Lucy. Estava a mexer, distraidamente, o molho à bolonhesa quando a jovem apareceu, entrando na cozinha pela porta dos fundos.

Elfrida olhou de relance para o velho relógio da cozinha. Eram quase sete da tarde. Olhou fixamente para Lucy, tentando lembrar-se do que a jovem andara a fazer todo o dia.

Sim, sou eu - disse-lhe Lucy.

- Oh, querida, desculpa.

Elfrida olhou para mim como se eu fosse a última pessoa que esperava ver.

Estava completamente alheada. Aconteceu tanta coisa aqui que tu simplesmente me saíste do pensamento. Mas agora voltaste a entrar, o que é uma delícia.

- Que aconteceu? - perguntou Lucy tirando o barrete de lã e começando a desabotoar o casaco. - Perdi alguma coisa?

- Nem por isso. Recebemos apenas a visita de um homem simpático, que veio tomar chá connosco. Carrie fez scones. Acho que sobraram muito poucos.

- Quem era o homem simpático?

- Chama-se Sir James Erskine-Earle. Vive na Casa de Kingsferry.

- Acabei de estar em Kingsferry. com Rory - contou Lucy.

- Pensei que ias andar de trenó.

- E fui, mas depois escureceu e fomos até Manse lanchar. A seguir eu e Rory demos um pulo a Kingsferry.

- Fizeste mais compras?

- Não. Não exactamente.

Elfrida, cuja curiosidade ficara desperta, sentiu-se intrigada. Lucy tinha uma expressão secreta, provocadora. Como se não conseguisse parar de sorrir.

- Pareces o Gato de Cheshire. O que é que andaste a tramar? Lucy levou a mão ao cabelo comprido e atirou-o para trás das costas. Elfrida reparou no brilho dourado.

- Mandei furar as orelhas. Foi o joalheiro de Kingsferry. Rory é que me levou lá. E ofereceu-me estas argolas como prenda de Natal. São mesmo de ouro.

- Oh, querida...

- Era um desejo muito antigo.

- Deixa-me ver.

- A minha mãe nunca me autorizou.

- São lindas. Ficas com um ar muito crescido. Que presente tão generoso!

- Acho que nunca me ofereceram nada que eu quisesse tanto.

 

Lucy

Ainda quarta-feira, 20 de Dezembro Penso que este foi um dos melhores dias da minha vida. Montes de neve por todo o lado e tudo muito lindo. Esta manhã fui fazer compras de Natal e quando voltei para casa, Rory estava cá a falar com Elfrida, com o televisor que prometeu emprestar-me. Trouxe-o aqui para o meu quarto, pô-lo a funcionar e sentámo-nos a conversar. Não sei porquê, mas não custou nada falar-lhe de tudo: de achar Londres um tédio, assim como ter de viver num apartamento, e também da minha mãe, da avó e de Randall Fisher. E do pai e de Marilyn e da família que tenho na Cornualha. Foi tão bom ter alguém que me escutasse sem interromper e estar sempre a tentar animar-me ou a agradar-me, ou até mesmo a dizer que eram só disparates meus. Ou que não percebesse do que eu estava a falar. Ele apenas escutou.

Quando acabei de lhe contar tudo, fomos até Manse e Mistress Kennedy preparou-nos beefburguers, Rory telefonou a alguns amigos e fomos todos para o campo de golfe escorregar de trenó na neve, o que foi extremamente divertido e deixou-nos a cair para o lado. Andámos de trenó até ficar completamente escuro e depois voltámos para Manse, onde Rory pediu o carro emprestado ao pai. Mister Kennedy disse que sim e Rory levou-me a Kingsferry. É uma cidade muito antiga e fora do comum, com muitas lojas. Estacionámos o carro, fomos a um joalheiro e o homem furou-me as orelhas, foi um instante e não doeu nada, colocando-me então umas argolinhas de ouro próprias para o efeito. Contei a Rory que não estava autorizada a usá-las em casa, mas ele disse que eu agora não estava em casa, mas sim com ele, depois pagou o trabalho e os brincos, dizendo que era o seu presente de Natal para mim.

No caminho de volta conversámos mais um pouco no carro, e eu tenho a sensação de que cheguei a um ponto de viragem na minha vida. Rory diz que tenho de me lembrar de uma série de coisas. Tenho boas notas na escola, portanto não sou estúpida.

Se não me tornar um pouco mais assertiva em relação às coisas ninguém o fará por mim.

Tenho de me afirmar através de um diálogo lógico, não amuando.

Se quero ir à Cornualha ver o meu avô, Serena, Amy e Ben, devo mesmo ir. Não há absolutamente nada que possa impedir-me de o fazer. Basta tratar das minhas coisas, pedir ao meu avô que me convide e pronto.

Tenho de ser mais empreendedora. Sei muito bem tomar conta de mim mesma. Conheço os perigos, como é o caso dos comprimidos ecstasy nas festas; das bebedeiras, drogas, exibicionistas, maníacos sexuais e de velhos solitários que nos abordam nas estações de auttocarros. Talvez devesse prosseguir os meus estudos até um grau superior. Faltam dois anos para ter de tomar uma decisão. Nunca tinha pensado nisso. Enfiarei a ideia na cabeça da minha mãe e acabarei por convencê-la. E farei com que Miss Maxwell-Brown fique do meu lado. E será já daqui a dois anos.

O facto de ter algo de novo para planear e pelo qual ansiar, faz com que me sinta muito mais determinada.

Quem me dera ter um irmão como Rory.

O, não queria. Porque se ele fosse meu irmão, não seria a mesma coisa.

As orelhas não me doem. Quando a minha mãe e a avó as virem, perceberão que mudei. Que farei valer a minha vontade. Que posso tomar as minhas próprias decisões. Já não sou uma criancinha.

Receberam aqui um senhor para tomar chá, chamado Sir James Earle. Levou o relógio de Elfrida para ser avaliado. Carrie disse que ele comeu seis scones.

Amanhã é o primeiro dia do resto da minha vida.

 

Sam

Sam abriu os olhos no meio da escuridão e sentiu um ; frio terrível. Fora este que o acordara, apercebendo-se então de que o edredão lhe escorregara da cama e, por isso, ele tremia debaixo do conforto insuficiente de dois cobertores e um lençol de linho de monograma bordado. As cortinas da sua janela estavam, como de costume, puxadas para o lado, mas aquela estava aberta - embora fosse apenas uma pequena fresta - o que fazia com que sentisse uma lufada de ar gelado investir furiosamente contra si, provocando-lhe a mesma sensação que se tem quando se abre uma arca frigorífica. Durante a noite, a temperatura descera para um nível desconfortavelmente baixo.

Debruçou-se para o lado, apanhou o edredão e arrastou-o de novo para o seu lugar. Continuava frio, porém o seu peso suave e macio era um conforto. Enquanto esperava que o corpo aquecesse, estendeu a mão e carregou no botão do candeeiro da mesinha-de-cabeceira para ver as horas: eram sete e meia da manhã.

O quarto, ao qual já se habituara completamente, estendia-se à sua volta, com os recantos mergulhados na sombra. A mobília era escassa: um guarda-fato enorme, dentro do qual se encontrava tudo o que naquela altura possuía, e um lavatório que fazia de toucador - composto por uma tina às flores e um jarro para água. O único espelho existente encontrava-se dentro do guarda-fato e havia, ainda, uma pequena cadeira trabalhada. Não era um quarto para trabalhar nem para se estar nele, no entanto servia perfeitamente para dormir.

E para fazer telefonemas de negócio do seu telemóvel.

Deixou-se ficar a aquecer lentamente, perguntando a si mesmo porque tudo aquilo lhe daria tanta satisfação. Concluiu que as proporções do quarto eram as ideais, as paredes desnudas prazenteiras, os cortinados de cretone ralo e desbotado, suficientemente compridos para cair em festões sobre a carpete gasta, faziam-lhe lembrar os de sua mãe na velha casa em Radley Hill. Estavam presos a aros de metal dourado enfiados numa vara do mesmo metal que terminava com uns ananases na Ponta, e que, quando corridos, faziam um barulho agradável.

O som trouxe-lhe à memória a voz da mãe: «Querido, acorda. Está quase na hora do pequeno-almoço.»

Nostalgia, talvez, mas no seu melhor.

com o resto da casa passava-se o mesmo. A amplidão, as bonitas divisões meio vazias, com as suas cornijas trabalhadas e as portas altaS apaineladas. A escada de degraus baixos, erguendo-se em lances até ao sótão, com o seu corrimão de pinho do Báltico polido, a cozinha, antiquada mas perfeitamente utilitária, as casas de banho, apaineladas com tábuas «macho-fêmea» pintadas de branco, com acessórios vitorianos originais e lavatórios dotados de reservatórios de água cujas correntes e manípulos tinham escrito «Puxe».

Tudo lhe dera a impressão, desde aquela primeira noite embaraçosa de ter regressado a casa.

Gostara da casa desde o primeiro instante. Dissera-lhe algo, dera-lhe as boas-vindas. Recordou a extraordinária cadeia de acontecimentos que o levara até ali naquela altura particular, sendo depois obrigado a ficar devido às condições atmosféricas. Dava a impressão de que tudo fora cuidadosamente planeado pelo destino, por algum ser, felizmente benigno, por influência da estrela que o guiava ou, quem sabe, pelo magnetismo incompreensível de velhas demarcações de terreno.

Conhecer Hughie McLellan em Londres fora o primeiro elo da cadeia. Entregara-lhe a chave da sua casa em Creagan. Ele próprio atirara uma moeda ao ar dentro do carro, em frente do pátio da igreja, em Buckly. Se tivesse calhado cara, teria ido directamente para Inverness e, muito provavelmente, conseguiria atravessar a Black Isle antes da neve a tornar intransitável. Porém, em vez disso, saíra-lhe coroa, de modo que fizera o desvio para passar por Creagan.

Se, por acaso, Sam tivesse encontrado a casa fechada e desocupada, como esperava, não se teria demorado por ali. Tencionara apenas localizá-la e observar o seu tamanho; a aparência de sólida dignidade vitoriana ter-lhe-ia bastado para assegurar o seu regresso para uma vista de olhos mais pormenorizada. No entanto, não a encontrara vazia. Das janelas de cima saíam jorros de luz e, com a curiosidade desperta, apeara-se no passeio em frente, atravessara o carreiro até à porta e tocara à campainha.

A partir daí ficara cativo e não houvera como voltar atrás.

Naquele momento, já ali morava há dois dias, na companhia de outras quatro pessoas vagamente relacionadas entre si, e ficaria até o Natal pertencer ao passado. Tencionara passar aquele período de tempo breve a analisar as suas próprias prioridades para a fábrica, a trabalhar com o seu computador portátil e a calculadora, no entanto, era obrigado a aceitar o ócio imposto, porque tanto computador como calculadora, ficheiros, telefones e documentos essenciais, tinham ficado no seu quarto de hotel em Inverness. A única coisa que levara para a sua reunião em Buckly fora o telemóvel, uma pasta fina e a chave da Casa da Quinta.

Como era impossível trabalhar, não tivera dificuldade em desligar e abrandar até alcançar um estado de espírito que já não experimentava há anos. Os horizontes estreitaram-se. As prioridades alteraram-se. Era um pouco como estar a bordo de um barco, isolado do resto do mundo, embora intensamente envolvido com os outros passageiros. Desconhecidos que, a pouco e pouco, iam-se tornando na família que já não tinha. A casa, tal como aquele navio, tinha-os a todos dentro de si, e fazia-o com uma certa graça, como que contente por ter, mais uma vez, as divisões espaçosas cheias, as portas abertas, as lareiras acesas, vozes a falar, passos nas escadas.

Uma casa esplêndida, que Sam desejava possuir. Aí é que estava o problema. Queria comprá-la a Hughie e a Oscar e ficar com ela para si. A sua localização era perfeita - levaria apenas vinte minutos, todas as manhãs, a percorrer as estradas sem movimento até à fábrica e depois, no fim do dia de trabalho, o mesmo tempo para voltar para ela. Podia ir a pé até ao clube de golfe. Se precisasse de uma cerveja, um pão ou um pacote de leite, bastava-lhe atravessar a praça e ir ao supermercado.

Além disso, seria uma casa com futuro. O seu futuro. Ao possuí-la, Sam jamais teria de partir. Ao contrário de uma minúscula casa de cobertura plana ou de uma pequena vivenda pitoresca, pintada de rosa, esta tinha capacidade para albergar tudo o que quisesse meter lá dentro. Era esta sensação de longevidade que mais o atraía. Em breve teria quarenta anos. Não queria continuar a andar de um lado para o outro, a comprar e a vender, a começar de novo. Queria ficar. Ali.

No entanto, metade dela pertencia a Oscar Blundell, e era ali que ele e Elfrida viviam. Além da casa, parecia que só se tinham um ao outro. Hughie descrevera Oscar como um tipo insípido. «O meu primo é um tipo insípido.» Sam, porém, não achava Oscar minimamente insípido. Gostava imenso dele, o que não facilitava nada a situação.

Se Sam fosse Hughie, não se teria metido na questão do pequeno quadro de Elfrida. Jamais se teria dado ao trabalho de telefonar para Janey, em Londres, afim de descobrir o paradeiro do representante local da Boothby, Sir James Erskine-Earle. Elfrida é que se lembrara de vendê-lo, mas tinha tão pouco sentido prático que nunca conseguiria, só por si, empreender nenhuma iniciativa tão dinâmica. A visita de James Erskine-Earle, ao fim do dia, nada resolvera porque, fosse como fosse, o quadro era uma imitação. Portanto, todos tinham voltado à estaca zero. De certo modo, Sam teria gostado que o David Wilkie fosse uma raridade autêntica e valesse um milhão, para ele assim poder pôr de lado as suas ideias impraticáveis e ir à procura de outro sítio para viver.

E no entanto... não era capaz de afastar da ideia de que era ali, naquela sólida casa vitoriana, quadrada e sem adornos, que ele iria passar o resto dos seus dias.

Reflexões inúteis. Afastou-as da cabeça com um certo esforço, levantou-se da cama e foi fechar a janela. O seu quarto ficava na parte de trás da Casa da Quinta, e a luz do candeeiro de rua junto ao portão de madeira permitiu-lhe ver o quintal que subia aos socalcos até ao aglomerado de pinheiros, tudo petrificado pelo frio, resplandecente de geada. Não corria a menor brisa. O silêncio era total.

Nos seus tempos de rapaz, no Yorkshire, de vez em quando levantava-se muito cedo e ia dar um longo passeio pelas charnecas, até algum penhasco elevado de onde pudesse ver o Sol nascer. Nenhuma madrugada era exactamente igual, e o céu a encher-se de luz parecera-lhe sempre um milagre. Lembrava-se de voltar a casa, depois dessas expedições madrugadoras, a correr por campos verdejantes, saltando córregos, a rebentar de energia e boa disposição, ciente de que muita da sua felicidade vinha da certeza de que, quando finalmente chegasse a casa teria um lauto pequeno-almoço à sua espera.

Há muito tempo que não assistia ao nascer do Sol. Naquele dia, o mais curto do ano, talvez fosse uma boa altura para repetir a experiência. Vestiu-se, apertou os atacadores das botas, vestiu o seu Barbour, apalpou os bolsos à procura das suas luvas grossas de cabedal para conduzir. Saiu silenciosamente do seu quarto, fechou a porta atrás de si com toda a cautela e depois desceu até ao andar de baixo. Ao chegar à cozinha vazia, encontrou Horace a dormitar no seu cesto.

- Queres ir dar uma volta?

Recuperado do seu encontro com o rottweiler, Horace quis. Sam encontrou a lista de compras de Elfrida, escrevinhou-lhe uma mensagem. A seguir, foi ao bengaleiro do corredor buscar o seu boné de tweed e um cachecol que, embora não lhe pertencesse, lhe aconchegou reconfortantemente a zona do pescoço. Fez girar a chave da porta da frente, abriu-a e saiu para o meio do frio escuro e paralisante da madrugada. A neve enregelada rangeu ruidosamente sob as suas botas. Ao abrir o portão, ouviu o barulho de um motor e viu o enorme camião de arenito, de faróis acesos e o limpador de neve recolhido, arrancar da praça e enveredar por uma rua abaixo, em direcção à estrada principal.

Sam e o cão seguiram na direcção oposta.

Foram para o lado do campo de golfe e da praia, deixando os candeeiros de rua da vila para trás. O céu estava límpido e via-se uma única estrela no céu escuro, mas nas margens afastadas do mar, a névoa pairava. A maré estava vazia, a areia gelada e as poças baixas, no meio das rochas, duras como aço. O vento, que soprava do norte, mostrava-se cortante como uma faca, levando-o a ajeitar melhor o cachecol em volta do pescoço e por cima do queixo. Lembrou-se de outras terras àquela latitude, apenas um pouco mais para sul. Para ocidente, além do Atlântico, Labrador, baía de Hudson, Alasca. Para leste, a Escandinávia e a imensidão da Sibéria. Aí, um homem que saísse fora de portas por cinco minutos, certamente congelaria até à morte. E, no entanto, ele ali estava, a passear pela praia como qualquer veraneante, com um cão pela trela e sem se perturbar minimamente com o frio.

A corrente do Golfo era, de facto, uma invenção maravilhosa.

Percorreu toda a extensão da praia em passo acelerado, depois voltou-se para o interior. Subiu por dunas, atravessou o carreiro, as duas partes lisas do campo de golfe, em seguida trepou por uma colina, abrindo caminho pelo meio de moitas de tojo. Quando chegou ao topo, estava cheio de calor por causa do esforço, enquanto Horace arquejava furiosamente. Chegou junto de uma cerca e de uma série de degraus. Naquela altura, já o negrume do céu dera lugar a um cinzento-empalidecido, e a estrela desaparecera. Encostou-se à cerca, protegido do vento que soprava do norte pelo tojo denso e virou-se de frente para o mar. Avistou a longa linha do horizonte, a baía a desaparecer de vista até ao ponto onde o farol ainda piscava. Para lá deste, a sudoeste, o céu estava manchado de rosa, a luz que nascia tornada difusa pela névoa. Era um excelente ponto de observação. Olhou para o relógio e viu que eram oito e quarenta. Sentou-se num dos degraus de madeira da escada e aguardou.

O cão acomodou-se junto dos seus joelhos. Sam tirou uma das luvas e pousou a mão na cabeça do animal, afagando-lhe o pelo macio e sedoso e as orelhas aveludadas. O mundo, o universo, pertenciam, naquele momento, só aos dois. Do alto daquela pequena elevação de terreno, parecia infinito, acabado de inventar, imaculado, como se a Criação tivesse sido apenas no dia anterior.

Lembrou-se, sem nenhuma razão especial, da tarde em que, estava ele em Londres, percorrera a King's Road no lusco-fusco húmido, as ruas atravancadas de pessoas às compras e de trânsito, e dissera a si mesmo que não havia uma única pessoa no mundo à espera de um presente seu naquele Natal. Assim, chegara a Creagan completamente desprevenido. Mas a partir dali precisava de se atarefar e fazer com que, na manhã de Natal, tivesse embrulhos para entregar. Quatro. Eles eram quatro. Ou talvez cinco, se incluísse a misteriosa Mrs. Snead, que ainda não conhecera. Oscar, Elfrida, Lucy. Carrie.

 

Carrie.

Depois de perder Deborah, fechar o seu apartamento, sair de Nova Iorque e voltar a Londres e a um trabalho novo, a última coisa que lhe poderia ocorrer era a possibilidade de outra mulher entrar na sua vida. Naquele momento, um envolvimento emocional fazia-lhe tanta falta como um buraco na cabeça. Mas Carrie estivera à sua espera, o último elo naquela extraordinária cadeia de coincidências, contribuindo para a sensação de que ele não passava de um simples peão no jogo de outra Pessoa qualquer. Percorrera o carreiro coberto de neve, entre o portão e a Porta da Casa da Quinta, e tocara à campainha. E fora Carrie quem acabara por lhe abrir a porta.

Carrie, com os seus cabelos castanhos, os seus olhos escuros e expressivos, a sua esbeltez, o seu pescoço longo. A inclinação das sobrancelhas, o sinal fascinante num dos cantos da boca. A sua voz, profunda e com um toque quase imperceptível de riso, para que ele nunca percebesse bem se estava a brincar ou falava a sério. Tinha os pulsos finos, as mãos com dedos longos e habilidosos, sem as unhas pintadas e na direita usava um anel de diamantes com uma safira que parecia ter-lhe sido dado um dia por algum homem fascinado por ela, louco para casar com ela. Ou, talvez, por algum parente idoso muito querido.

Era completamente desprovida de artifício. Se não tinha nada para dizer, ficava calada. Se opinava, fazia-o de modo ponderado, reflectido e inteligente. Parecia não perceber o sentido da tagarelice sem sentido e enquanto os outros conversavam durante as refeições ou a tomar uma bebida, ao fim do dia, mostrava-se sempre atenta, mas, frequentemente em silêncio. A sua relação com Elfrida e Lucy era, no entanto, profundamente carinhosa. Lucy entrava e saía, mas recebia sempre demonstrações de afecto dela, abraços casuais, um ouvido atento. Risos.

Quanto a Sam, este não conseguia perceber o que Carrie pensava de si. Ela mostrava-se completamente à vontade, senhora da situação, mas, ao mesmo tempo, reservada ao ponto do retraimento. A única vez em que a tivera só para si por mais de cinco minutos - na ida ao hipermercado de Kingsferry - ele julgara-se capaz de abrir caminho através dessa barreira, mas sempre que a conversa derivava para Carrie e a sua vida privada, esta calava-se e depois desviava a conversa. Quando Sam tivera de procurar uma loja de roupa masculina para se munir de algumas peças, tarefa que se revelara algo difícil, contara que ela entrasse na loja com ele, fizesse sugestões, até brincasse com a sua escolha de calções e pijamas (que tinham a designação de Vestuário íntimo) ou insistisse em lhe escolher alguma gravata horrenda e inadequada. Carrie, porém, lograra todas as suas expectativas. Em vez disso, atravessara a rua para ir a um latoeiro comprar uma forma nova para bolos e outra para pudins, destinadas a Elfrida. De modo que Sam fez as suas compras íntimas sozinho, e, quando voltou para o carro, encontrou-a à sua espera, a ler o The Times, sem mostrar o mínimo interesse no que ele levava.

Sam deu consigo a imaginar se ela teria alguma vez sido casada, mas sabia que jamais teria coragem para lhe fazer semelhante pergunta. Não tinha, afinal de contas, nada com isso. Naquela primeira noite, enquanto tinham estado à espera de que Oscar e Elfrida regressassem do seu convívio, ela ainda deixara escapar alguma informação superficial sobre si mesma. Não se alargara acerca de nada, não se prontificara a fornecer nenhuns dados sobre a sua pessoa, ficando ele com a sensação de que havia uma poderosa porta, firmemente fechada, entre ambos e que nada convenceria Carrie a abri-la.

Quando se falara de Lucy, Carrie mostrara-se mais aberta.

Também falara do pai; fora então que a sua voz se enternecera, os lindos olhos brilharam e se mostrou mais animada e informativa. O pai chamava-se Jeffrey, vivia com a segunda mulher, muito mais nova, na Cornualha. «É um homem espantoso», dissera Carrie. «Extremamente generoso. Ficou com a minha mãe, apesar de infeliz, até Nicola e eu chegarmos ambas à idade adulta e nos tornarmos independentes. Só nessa altura é que se afastou e nos deixou para ir viver com Serena. Ele não foi apenas meu pai, mas sim o meu melhor amigo. Abriu todas as portas, nunca cessou de elogiar, de incentivar. Sempre acreditei que, com um homem assim por trás de mim, seria capaz de fazer qualquer coisa.»

Qualquer coisa. De repente, porém, algures no meio do caminho algo correra mal. Mas Carrie não estava disposta a esclarecer Sam sobre isso.

Quanto menos ela falava, quanto menos deixava escapar, mais ele ansiava por saber. Não seria aquela obsessão o começo de uma paixão por ela? Caso contrário, porque se importava tanto? E que sentido fazia apaixonar-se por uma mulher já tão profundamente comprometida com a sua carreira e a sua família heterogénea? Uma mulher que nunca na vida se afastaria deles para ir viver para o Norte da Escócia com Sam Howard. Independentemente do facto de ele ainda ser casado com Deborah.

Horace mudou de posição e ganiu, pois começava a ficar gelado. Sam também estava com frio, mas não se mexeu. É que, ao olhar de novo para o céu, vira que a fina camada rósea explodira numa auréola de vermelho e amarelo, espraiando-se em faixas vaporosas que faziam lembrar labaredas. Por cima das colinas baixas do promontório distante assomava a primeira faixa de um Sol cor de laranja. O rebordo recurvo de luz faiscante tocou no mar agitado, esbateu sombras nas ondulações de areia e aclarou a escuridão do céu, ao ponto de este passar gradualmente do azul-marinho para a cor de água-marinha.

Ficou a ver a esfera cor de laranja erguer-se no lado de lá do ponto mais afastado do mundo, e perdeu mesmo todo o sentido do tempo. Era o mesmo milagre que se renovava todos os dias desde o limiar dos tempos, e esqueceu-se do frio. O piscar irritante do farol cessou imediatamente. O novo dia nascia; a partir dali, os dias começariam a tornar-se cada vez mais longos, depois viria mais um ano, e Sam, ao pensar nele, não foi capaz de imaginar o que lhe reservaria.

Voltou para Creagan em passo acelerado, seguindo pelo carreiro estreito que se estendia no cimo do campo de golfe coberto de neve. A névoa começara a dissolver-se e o céu mostrava-se de um azul-claro límpido, com raras nuvens. Quando chegou junto das primeiras casas, viu que a manhã já seguia o seu curso: carros iam e vinham, lojas abriam, os primeiros compradores saíam à rua com os seus cestos e sacos de plástico. O talhante varria a neve dos degraus do seu estabelecimento e uma jovem mãe empurrava um carrinho de madeira onde levava o seu bebé bem agasalhado.

Sentia uma fome devoradora.

Quando entrou em casa, também se apercebeu de que reinava grande actividade dentro desta. Do piso de cima chegava o barulho de um aspirador Hoover, e uma voz feminina cantava uma versão muito pessoal da velha canção dos Beatles:

«I love you, yeah, yeah, yeah...»

Devia ser a inconfundível Mrs. Snead, sem dúvida, a tratar da limpeza da casa.

Da porta aberta da cozinha saía luz e o cheiro de fazer crescer água na boca de bacon e café. Sam desprendeu a trela de Horace, tirou as luvas e entrou. Deparou com Carrie, sentada à mesa e rodeada dos detritos do pequeno-almoço das outras pessoas. Bebia café e lia o The Times, mas ao levantar os olhos e vendo que era ele, cumprimentou- bom dia.

Naquela primeira noite, apenas há dois dias atrás, quando ele saíra intempestivamente do meio da escuridão e da neve, levando na mão a chave de Hughie McLellan, ficara varado com o encanto inesperado da rapariga que lhe abrira a porta. Ela acabara de se levantar da cama, onde estivera doente, o que lhe dera uma aparência empalidecida, frágil e profundamente vulnerável. Ainda assim, achara-a sensacional. Naquele momento, no entanto, a gripe era algo que pertencia ao passado, derrotada pela resistência da juventude. Esta manhã, vestia uma camisola de caxemira vermelha, cuja cor intensa a tornava mais viva, radiante e atraente que nunca. O bem-estar que sentia naquele momento deu-lhe uma vontade quase incontrolável de lhe tocar, de a envolver nos seus braços, de beijá-la, derrubando barreiras imaginárias e começando a falar.

- O passeio correu bem?

Impulsos loucos, prudentemente reprimidos.

- Creio que me afastei demasiado. Horace está exausto.

O cãozito regalava-se a beber água ruidosamente, entornando parte no chão.

- Deve estar gelado.

- De modo nenhum. Até tenho calor, do esforço. Mas estou esfomeado.

- Há bacon - disse-lhe ela, depondo o jornal e levantando-se.

- Já tinha adivinhado.

- Farei café fresco.

- Carrie, eu posso fazer isso.

- Deixe estar. - Havia um prato no aquecedor, coberto por um outro. Carrie pegou nele, depois de enfiar umas luvas para forno, pousou-o em cima da mesa e, com um pequeno floreado, destapou-o. Ele viu não só bacon como também ovos, uma salsicha e um tomate frito. Tudo tinha um ar muito apetitoso. - Eu é que faço. Quanto a si, sente-se e coma.

Sam olhou para o banquete com um certo espanto. .- Quem cozinhou tudo isto? -Eu. Calculei que tivesse fome. Sam sentiu-se enternecido.

É um amor.

Não foi nada de especial.

Sam sentou-se e passou manteiga numa torrada.

Onde estão todos?

Carrie encheu a chaleira de água e ligou a ficha.

- Oh, por aí. Já todos tomaram o pequeno-almoço. Acho que Mistress Snead veio e Elfrida anda a fazer camas. Oscar está ao telefone. Esta manhã temos de ir buscar a árvore de Natal. Ele sugeriu que o Sam o fizesse com o seu carro... dispõe de mais espaço para carregar uma árvore, além disso, Oscar tem um pouco de medo de conduzir com neve.

- Onde é que tenho de a ir buscar?

- À quinta de Corrydale. É para lá que ele está a telefonar neste momento. Um homem qualquer chamado Charlie Miller. Está tudo encomendado, mas ele quis ter a certeza de que lá estará quando fôssemos.

- Fôssemos? Vai comigo?

- Oscar desenhou um mapa. Terei de ser a sua navegadora. Além disso, quero ir a Corrydale. Oscar falou-me muito daquele sítio. A avó dele viveu lá, depois o tio e, por fim, Hughie. E Oscar também costumava lá ir passar férias quando era rapaz. Diz que os relvados e o jardim eram um espanto, mas claro que agora está tudo diferente porque foi tudo convertido num hotel. Seja como for, gostaria de conhecer. O hotel está vazio, portanto, se Charlie Miller concordar, podemos dar uma vista de olhos pelo sítio.

Sam, que comia o seu bacon sem proferir palavra, não cabia em si de satisfação. Não podia imaginar melhor maneira de passar aquela manhã esplendorosa do que ir a Corrydale com Carrie, tomar posse da árvore de Natal e dar uma vista de olhos. Seria interessante ver o que Hughie McLellan um dia possuíra e desbaratara. No entanto, limitou-se a responder, «Certo», e continuou a comer, pois não queria que Carrie reparasse no seu prazer e retrocedesse.

Carrie deitou o café moído no pote e depois encheu-o com água a ferver.

- Quer que lhe faça mais torradas?

- Gostaria muito.

Carrie fez mais torradas, coou-lhe o café, voltou a encher a sua próPria chávena e voltou para a sua cadeira. Sam ficou esperançado de que iriam passar uns agradáveis momentos na companhia um do outro, mas, como não podia deixar de ser, acabaram por ser interrompidos por Lucy, que desceu as escadas a correr e entrou intempestivamente na cozinha.

- Carrie, Mistress Snead diz que vai lavar roupa branca e pergunta Se queres aproveitar. Olá, Sam. O seu passeio com Horace foi bom?

- Podes crer.

- A que horas foram?

- Por volta das oito. Ainda estava escuro. Assistimos ao nascer do Sol.

- Oh, que lindo! Quem me dera ter ido. Nunca vi um nascer do Sol a sério. Deve ter sido maravilhoso, com toda aquela neve a cobrir o campo de golfe. Como na Suíça ou coisa do género.?

- Sam e eu vamos a Corrydale buscar a árvore de Natal. Queres vir connosco? - perguntou Carrie.

- Oh... - Lucy fez uma cara de pena. - Oh, eu adoraria, mas prometi a Mistress Snead ajudá-la numa tarefa qualquer. Por isso não posso. E eu que queria tanto conhecer Corrydale!

Sam, adorando Lucy por não ir, declarou:

- Eu levo-te lá noutra altura.

- A sério? Promete? Oscar diz que é o sítio mais bonito do mundo e que a avó costumava lá ter azáleas lindas, de todas as cores. E o terreno desce até à água, onde ele costumava ter um barco.

Mrs. Snead guinchou do andar de cima:

- Lucy! Então essa roupa? Quero-a toda junta... Carrie fez uma expressão cómica.

- É melhor fazeres o que ela disse, senão ainda arranjas sarilhos. Vai, Lucy...

Então Sam, vendo que tudo corria a seu gosto, bebeu o café acabado de fazer e sentiu-se animado como um estudante bem alimentado prestes a ter uma sobremesa especial.

O pequeno mapa de Oscar com indicações sobre Corrydale demonstrou ser um plano meticuloso de tudo o que se encontrava dentro da protecção da zona limítrofe. A área parecia ser constituída por um pequeno labirinto de estradas e caminhos, maciços de arvoredo e uma imensa linha costeira. Cada casa de trabalhador da quinta tinha linhas próprias e nome: casa de Billicliffe; casa de Rose Miller; casa do guarda-florestal; casarão da quinta. A última era a do jardineiro (Charhe Miller), que se erguia ao lado do jardim murado e do barracão do tractor. Um pouco mais afastada, à beira de mais um carreiro serpenteante que corria paralelamente à água, erguendo-se isolada e com uma certa grandeza, desenhara a Casa de Corrydale, rodeada por jardins formais e com o terreno circundante a descer, em socalcos, até aos campos na orla do estuário.

O mapa fazia lembrar as badanas de um livro de Whinnie-the-Pooh1, no entanto Carrie afirmou que era uma obra de arte e devia ser emoldurado.

 

  1. Whinnie-the-Pooh: personagem de célebre banda desenhada americana. (N. da T.)

 

A estrada por onde Sam e Carrie seguiram levou-os para território onde nenhum dos dois nunca se aventurara. Em vez de atravessarem a norte até Kingsferry, viraram à direita antes de chegarem a esta e foram Pela estrada antiga, que rumava para oeste, serpenteando pelo meio de terra agrícola, descendo e subindo, correndo por avenidas altas de faias como num túnel. A neve tudo cobria com uma grossa ca£mada, no entanto, a manhã mantivera a sua promessa: o céu continuava sem nuvens, o ar gélido e cintilante. Havia pouco trânsito e viam-se poucas pessoas: um tractor a atravessar ruidosamente um campo com um carregamento de feno destinado a um rebanho de carneiros; uma mulher a pendurar roupa lavada ao ar gélido e parado; uma carrinha dos Correios a subir por uma ladeira cultivada, cheia de sulcos.

À sua esquerda estendia-se o vasto braço de mar que penetrava cerca de vinte e cinco quilómetros pelo continente adentro. A maré estava a encher e a água exibia um azul de Verão. Na margem afastada, as colinas compactas erguiam-se para o céu, todas ofuscantemente brancas, excepto onde a rocha escura se projectara, abrupta, ou onde cavidades circulares, para onde rolavam detritos rochosos, se tinham criado nalguns flancos, quais cascatas de pedra.

- É tudo gigantesco, não é? Até o céu parece o dobro do que se vê em qualquer lado - disse Carrie.

Levava a sua parca preta acolchoada e o chapéu de pele, e pusera óculos escuros para se proteger do brilho intenso.

- Penso que é de não haver nevoeiro nem poluição. O ar é completamente límpido. Sabia que cinco dos melhores rios de salmão da Escócia correm para este braço de mar?

- Quem lhe contou?

- Oscar.

- Se calhar pescava lá nos seus tempos de rapaz.

- Rapaz cheio de sorte.

Carrie analisou atentamente o mapa de Oscar.

- Penso que estamos quase a chegar. Primeiro aparece o muro, depois o portão principal fica a cerca de quarenta metros...

O muro delimitador surgiu quase imediatamente, à esquerda da estrada. Atrás deste viam-se lindas árvores, criteriosamente plantadas, sugerindo um parque. Quando chegaram junto do portão principal, viram que tinha uma enorme Wellingtonia de cada lado. Da chaminé de um casinhoto subia uma fina coluna de fumo, havia uma corda de secar roupa ao ar livre e um tractor de plástico de criança abandonado no degrau da porta da frente.

Repararam na tabuleta.

HOTEL DE CORRYDALE

Cá vamos nós - declarou Carrie.

Sam entrou pelo portão e enveredou pelo caminho arranjado Que descia pela vertente da colina, ladeado de carvalhos majestosos. Viam-se-lhe trilhos abertos por veículos anteriormente passados por ali, e sombras azuladas das árvores desenhavam-se na neve. Cerca de quarenta metros mais adiante, a estrada bifurcava e aí havia um poste com uma tabuleta de madeira. Para a direita, VISITANTES DO HOTEL. Esse caminho, não fora utilizado, tinha a cobertura de neve imaculada. Mais à frente, CASA DA QUINTA E SERRAÇÃO, portanto continuaram em frente. Carrie consultou o mapa de Oscar:

- A seguir chegamos a outra bifurcação e vamos para a esquerda até vermos a casa de Billicliffe.

- E quem é Billicliffe?

- Era o antigo feitor deste sítio. Elfrida e Oscar tiveram de ir buscar a chave a casa dele. Elfrida contou-me que era um velho maçador. a casa estava uma desgraça e que ambos não foram muito simpáticos com ele. A certa altura, tornou-se uma dor de cabeça para todos, porque adoeceu gravemente e Oscar teve de o levar para o hospital no carro. Onde ainda se encontra. Ali está a bifurcação onde viramos para a esquerda.

O trilho aberto por pneus continuava. Era, nitidamente, um acesso muito usado. A certa altura apareceu, afastado da estrada, a primeira casa dos trabalhadores da quinta.

- Ali está - indicou Carrie - o sítio onde o major Billicliffe vive.

Sam, curioso, abrandou, afim de lhe deitar uma olhadela. Era uma pequena casa de pedra, de construção sólida, com um alpendre rural e duas janelas de água-furtada abertas no telhado de ardósia. No pequeno acesso que ia do portão à porta, com uma cobertura de neve no mínimo de vinte e cinco centímetros, estava um velho Vauxhall, enferrujado, triste e abandonado. As janelas da casa estavam completamente fechadas, não havia nenhuma luz nem fumo a sair da chaminé.

- Que sitiozinho sombrio - observou Carrie.

- Nada brilha quando não é habitado.

Continuaram lentamente em frente, os pneus a chiar sobre as raízes cobertas de gelo. A estrada curvava e virava graciosamente ao acaso. Num outro canto, lá estava a casa de Rose Miller, uma visão completamente diferente: arranjada e alindada, com cortinas de renda nas janelas e umas galinhas a cacarejar alegremente no pequeno quintal. A dona da casa acendera a lareira e no ar pairava um delicioso cheiro a fogo de turfa.

Prosseguiram pela estrada sinuosa, passaram a casa da quinta e um pátio a tresandar a estrume, um pasto com carneiros, depois mais outra casa, a do guarda-florestal, com canis e um carreiro que ia dar às traseiras da casa, de onde dois spaniels apareceram a ladrar desalmadamente.

Ainda bem que não trouxemos Horace connosco – observou Carrie. Teria um ataque de coração e morreria.

NaqUela altura já o braço de rio voltara a estar visível, com campos a estenderem-se até à água. Mais árvores, outra casa, e depois o muro, a norte, do jardim fechado, um belo edifício em pedra com um par de portões em ferro forjado no meio. Por trás erguia-se o barracão enorme, com as portas grandes escancaradas, e ao lado deste, o venerável Land Rover salpicado de lama. Sam parou o carro e os dois apearam-se. Assim que o fizeram, um jovem saiu do interior do barracão, com uma velha cadela labrador amarela atrás de si. Estava , de fato-macaco, botas de borracha e chapéu de caçador de copa baixa, com a pala bem inclinada sobre o rosto.

- Charlie Miller?

sim, sou eu. Tem calma, Brandy, e não saltes para cima da senhora. És uma cadela parva e sem maneiras.

Eu não me importo - disse Carrie, sorrindo.

Se ela a sujasse com as patas, importava-se.- Virou-se para Sam - o senhor deve ser Sam Howard.

- Exactamente. E esta é Carrie Sutton.

Prazer em conhecê-la - disse Charlie Miller, apertando a mão a Carrie. - Oscar telefonou-me. Vieram então buscar a árvore; está no barracão. Façam o favor de entrar.

Seguiram-no até ao interior sombrio do barracão que servia, nitidamente, para várias funções. Sam viu uma pilha de caixotes com batatas, um amontoado de troncos serrados, uma série de velhas caixas de fruta, nabos metidos em sacos de rede. Cheirava intensamente a terra, serradura e óleo de motor. Apoiada a um velho tractor Ferguson estava a árvore que vinham buscar.

- Oscar disse que um metro e oitenta chegava, por isso escolhi esta. Tem um bom formato e os ramos todos inteiros.

- Parece-me óptima.

- São duas libras cada meio metro. Doze libras. Têm onde fixá-la?

- Por acaso não sei. Oscar não falou nisso.

- Eu tenho isto.- Charlie tirou uma armação de madeira rudimentar presa com pregos de um canto. - Foram feitas pelo filho do homem da quinta, vende-as a duas libras cada.

Sam olhou para o objecto com ar indeciso.

- Funcionará?

- Oh, sobre isso não tenha dúvidas.

- Certo.

Charlie colocou-o ao pé da árvore.

- Portanto são catorze libras. - Saltava à vista que não era homem de rodeios.

Sam tirou quinze libras da carteira e entregou-lhas.

- O filho do homem da quinta que fique con o troco. Merece-o, quanto mais não seja pelo espírito de iniciativa.

377

- Eu digo-lhe - prometeu Charlie, guardando as notas dentro do bolso do fato macaco. - Querem que vos carregue a árvore para o carro?

- Se não se importa, agradecíamos muito. Baixámos o banco de trás, por isso deve haver espaço suficiente.

- Sem problema. Carrie então perguntou:

- Charlie, acha que podemos dar um passeio por aqui? É a primeira vez que venho a Corrydale e gostávamos de conhecer melhor a zona e ver a casa. Mas se for privada ou não pudermos...

- Claro que podem. Vão aonde vos apetecer. Mas olhem que o hotel está fechado e não há muito que ver nos jardins.

- Não nos importamos. Qual é o melhor caminho?

- Voltam para trás, até à casa do Billicliffe, e depois viram na bifurcação à esquerda. Assim irão ter aos jardins e à casa. Encontram aí um carreiro que desce até à água e um outro que vem até aqui pela beira-mar. Enquanto dão o passeio, aproveito para atar a árvore e metê-la no vosso carro, e se não me encontrarem aqui quando voltarem, é porque fui jantar.

- Obrigado.

- Não tem de quê. bom passeio.

Fizeram-se ao caminho, esmagando raízes geladas sob os pés, o ar agradável como o vinho fresco, o sol fraco a aquecer-lhes as costas e a fazer com que flocos de neve derretida caíssem dos ramos superiores das árvores. Estas, despidas de folhagem, formavam desenhos que faziam lembrar renda negra contra o azul brilhante do céu. Passaram pela quinta e pela casa do guarda-florestal; seguiu-se o portão do quintal da habitação encantadora de Rose Miller.

- É o tipo de lugar - observou Carrie -, onde uma pessoa sente que se pode aninhar e passar o resto da vida.

Depois de ultrapassarem a casa abandonada do major Billicliffe, saíram da estrada e enveredaram pelo carreiro que levava à casa principal. A deslocação não era fácil, pois a neve estava intacta e bastante alta.

- Em tempos deve ter havido por aqui muito dinheiro. É um empreendimento grande, com todas aquelas casas para trabalhadores, a quinta, o jardim murado e o resto. Gostaria de conhecer as origens. Refiro-me à riqueza - disse Carrie.

- De alguma indústria, provavelmente. Estaleiro de navios, aço, esse tipo de coisa. Ou ligações com o Extremo Oriente. Barcos, chá, teca. Não sei. Teremos de perguntar a Oscar.

- Oscar não parece ser dono de nada.

- Pois não. Não creio que tenha grande coisa.

- Que terá acontecido a todo este dinheiro?

O que aconteceu em todo o lado. Os velhos morreram e o Estado levou uma grossa fatia dos bens pelo direito sucessório. O custo de vida subiu em flecha. A guerra mudou tudo. Seguiu-se-lhe um declínio gradual- Depois, tipos como Hughie tomaram posse, desbarataram o resto do capital e, por fim, venderam o que restava. No Sul de Inglaterra, o mais provável era toda esta terra estar atravancada de vivendas de luxo e propriedades privadas. Mas como isto aqui é muito remoto e a cadeia hoteleira tomou conta da casa principal, esta foi conservada de modo a ficar, pelo menos, com o mesmo aspecto original.

Porque será que Oscar não herdou? Teria dado um proprietário de terras magnífico.

- Penso que não tinha direitos. Hughie era o primogénito do filho mais velho. Um azar para todos aqueles a quem provou ser um desqualificado.

- Parece injusto, não é?

- Carrie, a vida é injusta.

- Lamento pelo Oscar. Ele merece melhor, ele e Elfrida. Deviam ter um lugar onde pudessem viver juntos e a que chamassem seu, com a certeza de que não teriam de partir. Gostaria de ser rica para poder tomar conta deles, comprar-lhes uma habitação agradável e fazer com que nada lhes faltasse para o resto da vida. Preferia não ter estado lá quando lhes disseram que o David Wilkie era uma imitação e valia tão pouco. Elfrida estava tão esperançada! E tinha a certeza absoluta de que era um pequeno tesouro que os ajudaria a prosseguir e lhes daria segurança. Foi muito doloroso vê-la tão desconsolada e abatida. Senti-me constrangida.

- Eu também - lembrou-lhe Sam.

- Mas consigo é diferente.

- Diferente porquê?

- Porque se eles não tiverem dinheiro, o Oscar ver-se-á forçado a vender-lhe a sua metade da casa, e o Sam obterá aquilo que o trouxe até aqui.

- Acha que sou esse tipo de monstro?

- Não sei. Não o conheço suficientemente bem. Ignoro o seu modo de pensar.

Sam deixou o assunto esfriar. Não valia a pena precipitar uma discussão tão no início do seu passeio. Em vez disso, perguntou:

- Acha que eles ficarão juntos?

- Sabe tanto como eu. Acho bem provável. Nenhum dos dois tem mais alguém no mundo. Mas aonde é que viverão?

- Onde estão agora. Se Oscar não quiser vender, Hughie não poderá fazê-lo.

- Nesse caso, que fará o Sam?

- Procurarei outro sítio.

- Em Buckly?

- Não faço ideia. Até agora, mal vi as redondezas à luz do dia. muito menos tentei inteirar-me de alguma casa à venda.

Durante algum tempo, Carrie nada disse. Caminhavam em andamento rápido, as pernas longas dela a par das suas, abrindo caminho através da neve. À sua esquerda, os campos cobertos de neve estendiam-se à beira da água do estuário e, à direita, um pequeno bosque de faias antigas revelava pequenos vales estreitos e aberturas no meio dos enormes troncos das árvores, onde a neve se mostrava salpicada de rastos de coelhos e de pássaros. No alto, gralhas crocitavam e das árvores despidas vinha o piar prolongado e gorgolejante de um maçarico.

Carrie declarou subitamente: - Gostaria de conhecer a sua fábrica.

Sam, que nunca a imaginara minimamente interessada, ficou estupefacto perante a sugestão.

- A sério?

- Não parece muito crédulo.

- Acontece apenas que não há muito que ver. Espaços amplos, vazios e húmidos, algumas cubas de tingir e umas quantas peças de maquinaria que se salvaram.

- Mas disse-me que era um edifício protegido. Que, só por si, era interessante. Pode obter acesso? Tem chave?

Falava a sério.

- Claro que tenho.

- Podemos ir lá um dia destes?

- Se quiser.

- Gosto de ver edifícios e casas vazias. Lugares despidos, paredes nuas. Gosto de imaginar como eram e de tentar visualizar como poderiam ficar. Deve andar excitadíssimo com tudo isso, ansioso por vencer o desafio e deitar mãos ao trabalho.

- É verdade - respondeu Sam, pensando no assunto e nos problemas aparentemente inultrapassáveis que ainda tinha de resolver. Mas, ao mesmo tempo, é uma perspectiva deveras assustadora. De vez em quando ficarei, sem dúvida, frustrado, impaciente e até violentamente zangado, mas as dificuldades podem ser estimulantes, sobretudo se alguma outra pessoa acreditar que podem ser ultrapassadas. Em Buckly tenho um excelente homem, Fergus Skinner, ao meu lado. Deposito muita confiança nele.

- Mesmo assim é um grande passo para quem trabalhou em Nova Iorque.

- Se eu fosse muito mais novo, provavelmente não teria aceite o trabalho. Mas já estou com trinta e oito. Andei por aí e por ali e fiz várias coisas. Para mim é precisamente a altura certa para mudar de curso. Apesar de toda a alta finança do mundo, nada é mais satisfatório do que voltar às raízes do negócio.

- Foi uma descida na escala.

De certo modo, sim. Mas, compreende, nasci e cresci no comércio dos lanifícios e no íntimo acredito que nada é mais bonito, confortável e tão exactamente correcto como um casaco de tweed impecavelente confeccionado. Enfrentará ventos e tempestades e ao fim do dia estará perfeitamente apresentável à mesa de jantar de quem quer que seja. Adoro o cheiro e o toque do tweed. Adoro o som das engrenagens bem afinadas, o entrechocar dos teares, os pistões monstruosos das máquinas. E gosto das pessoas que trabalham com tudo isso, os homens e mulheres que têm o fiar, o tecer e o tingir na massa do seu sangue, já com duas ou três gerações por trás. Estou, portanto, no meu próprio mundo.

Considero-o afortunado.

- Por causa do meu trabalho?

- Não apenas por isso.- Carrie calou-se, levantando o rosto para o céu, onde um bútio voava, bem no alto. - Por ter vindo viver para aqui. Para este lugar imenso, limpo e saudável. - Continuou a falar:

- Pense só no que pode fazer: jogar golfe, caçar gansos e faisões, pescar num desses rios de salmões de que me falou. - Reflectiu. - Pesca?

- Sim. Costumava fazê-lo com o meu pai em Yorkshire. Mas era truta, não salmão. Já a caça não aprecio tanto.

- Eu também não. Aqueles pássaros tão queridos a tombarem do céu. No Savoy comemo-los e parecem do tamanho de canários.

Naquele momento já conseguiam avistar, mais à frente, o muro do jardim formal, encimado por uma cerca de ferro forjado trabalhado. O carreiro conduzia até um portão de ferro forjado, ladeado por postes que exibiam brasões em pedra com leões entrelaçados por rosas espinhosas, que o Inverno enegrecera.

Ao chegarem ao portão detiveram-se, olhando através do entrelaçado de arabescos intrincados para o jardim que se estendia do outro lado: relvados, subindo em socalcos, pousando o olhar, pela primeira vez, na Casa de Corrydale. Era uma mansão vitoriana, com cornijas e torreões, construída com pedra avermelhada, parte da qual oculta por uma trepadeira. Era grande e, talvez, um tudo nada pretensiosa, porém atractiva sob um ponto de vista de prosperidade e longevidade. As janelas estavam todas fechadas, mas voltadas a sul; os vidros faiscavam e brilhavam, reflectindo o sol. Num dos lados do terraço do topo havia um Porta-bandeira alto e pintado de branco, porém sem nenhuma bandeira.

- Lindo - observou Carrie passado um bocado. - Que bons tempos Oscar deve ter passado aqui.

- Gostaria de viver aqui? - perguntou Sam.

- Refere-se a esta casa? A este lugar?

- Não. Refiro-me simplesmente ao sítio. Creagan. Sutherland.

- Tenho um emprego. Em Londres. Preciso dele. Tenho de ganhar a vida.

- Imaginemos que não precisava. Ficaria bem aqui? Era capaz de se enfiar em semelhante meio ambiente?

- Não sei. Acho que teria de me preparar. De sopesar todos os prós e contras. E para deixar Londres preciso de ficar livre. Sem com promissos. Sem responsabilidades.

- Não é livre?

- Há Lucy. -Lucy?

- Sim, Lucy.

Destrancou o portão e entrou. A seguir a este havia um carreiro largo, direito como uma régua, que atravessava o jardim em direcção a um maciço de faias distante. A meio do caminho, ao lado das escadinhas que subiam pelos terraços até à casa, havia um relógio de sol e um banco de madeira circular. Umas outras escadinhas desciam até um jardim com canteiros de flores, abrigado por aglomerados de rododendros e azáleas. A sua estrutura formal, irradiando a partir de uma estátua de pedra representando uma divindade mítica qualquer, era composta por curvas, círculos e elipses, todas debruadas a buxo. Como estava semi-soterrada pela neve, não parecia mais do que um esboço de artista desenhado a carvão sobre uma folha de denso papel branco.

- Lucy é a principal razão que me leva a aceitar este emprego em Londres. Alguém tem de a apoiar. Alguém tem de a fazer sair daquela vida enfadonha, limitada e completamente feminina que é obrigada a levar sem que tenha a menor culpa. Ela não tem hipóteses nenhumas. Terei de ser eu a tentar proporcionar-lhas.

Sam reflectiu no que acabara de ouvir. Hesitando, observou:

- Parece-me muito bem ajustada. Feliz, até.

- Isso é porque ela é uma pessoa feliz. Aqui. Na companhia de Elfrida e Oscar, conhecendo outras pessoas. E, evidentemente, Rory Kennedy. Voltar para Londres irá ser um verdadeiro desconsolo.

Sam deu consigo aborrecido com aquela atitude superprotectora em relação a Lucy. Carrie era demasiado nova e bonita para começar a estruturar a sua vida apenas em função da sobrinha.

- Ela se calhar ficará bem - alvitrou. - É suficientemente nova para resistir. com o tempo, acabará por ser ela mesma a libertar-se.

- Nem pensar - afiançou Carrie, inflexível. - Não conhece a mãe egoísta que ela tem. Não faz a menor ideia.

- Então o que pensa fazer com Lucy?

- Oh, ainda não sei. Estarei por perto, sempre contactável por telefone. Lá. Talvez na Páscoa volte a levá-la para qualquer lado comigo até à Cornualha, para visitar Jeffrey. Afinal de contas, é seu avô. Ou talvez possamos ir esquiar. Os filhos dele já têm idade suficiente. O meu pai levou-me a fazê-lo pela primeira vez tinha eu nove anos e adorei de tal maneira que foi o início de toda uma nova paixão.

Tenciona regressar a Oberbeuren?

Não. - Disse a palavra quase ainda antes de ele completar a pergunta. - Oberbeuren não. Outro lado qualquer. Arosa, Grindelwald Ju Vai d'Isère.

Podia ir até aos Estados Unidos. Colorado ou Vermont. Parece uma viagem muito longa, mas não há dúvida de que sairia mais barato.

Vermont. - Carrie, com as mãos enfiadas nos bolsos da sua parca, caminhava ao lado dele. - Esquiou em Vermont?

Sim. Várias vezes. Nós costumávamos sair da cidade de carro e ir lá passar fins-de-semana.

- Nós? - repetiu Carrie. - Você e a sua mulher, não? Pronto, lá estava. A questão que tinham andado a contornar, o momento da verdade, o ponto de não retorno. Respondeu:

- Sim. com a minha mulher. Sabia que sou casado?

- Sim, sabia - respondeu, com aparente indiferença. Continuaram a caminhar, ainda a par, como se nada estivesse a acontecer, nada tivesse sido dito.

- Elfrida contou-lhe.

- Claro. Achava que não o faria?

- Não. Pensei que seria natural fazê-lo. A minha mulher e eu estamos separados.

- Também mo contou.

- Quer saber os pormenores macabros?

- Nem por isso.

- Acho que são importantes.

- Para si, talvez.

- Penso que são importantes porque quero que compreenda.

- Compreenda? Portou-se assim tão mal?

- Não. Sim. Não fui infiel, mas trabalhava de mais, ficava muito tempo afastado de casa e nunca lhe dediquei tempo suficiente.

- Como é que ela se chama?

- Deborah. Debbie. Sempre a tratei por Deborah. Trabalhava em Nova Iorque. Fui passar um fím-de-semana a Easthampton com um amigo e convidaram-nos para uma festa, onde a conheci. O avô dela tinha uma mansão imponente naquela zona. Terrenos, praia, cavalos, cercados para eles, piscina, tudo o que se possa imaginar. Casámos em Easthampton, num relvado defronte da casa do avô dela. Eram setecentos convidados, dez damas de honor e dez acompanhantes todos aperaltados como pinguins. Deborah estava encantadora e eu feliz por ser arrastado por uma corrente à qual não conseguia resistir nem podia controlar. Foi então que comprámos um apartamento no cimo das Seventies, onde não faltava nada. Isso manteve-a feliz durante uns temPos, mas depois de ficar terminado, e o decorador de interiores se ir embora, é que eu acho que ela começou a sentir-se aborrecida e agitada, eu tinha de viajar pelos Estados Unidos de lês a lês, e de vez em quando ela ia para Easthampton durante a minha ausência. Outras vezes entretinha-se a divertir-se.

- Filhos?

- Não. Deborah não queria bebés. Não tão cedo. Um dia, talvez, prometera-me, mas naquela altura, não. Seja como for, no Verão passado voltou a encontrar determinado tipo. Conhecia-o da faculdade. casara já duas vezes desde então, mas estava livre na altura. Em Nova Iorque. Rico, bajulador, bastante estúpido. Um autêntico gato vadio Começou por ser aquilo que hoje em dia se designa delicadamente de relação. Nunca me passou pela cabeça. Só soube quando ela me informou de que me ia deixar para se juntar a ele. Fiquei devastado. Não apenas porque ia perdê-la, mas também porque sabia que se apaixonara por um indivíduo sem o mínimo valor. E também sabia que ele é o tipo de pessoa para quem casar com a amante era apenas criar uma nova vaga.

- Mas vocês não se divorciaram?

- Não. Não chegou a haver tempo. Seis semanas depois da partida dela, recebi um telefonema do meu presidente, David Swinfield, a pedir-me que voltasse para Londres. E desde aí... bem, tenho andado a adiar. A deixar passar. Tinha mais com que me preocupar. Claro que, mais cedo ou mais tarde, receberei a carta de um advogado e, depois disso, tudo seguirá o seu rumo.

- Acha que ela vai ser gananciosa e exigir uma pensão de alimentos muito elevada?

- Não sei. Depende do advogado. Não creio. Ela nunca foi esse tipo de pessoa. Seja como for, o estupor é rico e Deborah tem dinheiro seu. Demasiado, até. Talvez seja esse um dos seus problemas. Dos meus também.

- Ainda está apaixonado por ela?

- Oh, Carrie...

- Eu sei. Mas sente-se responsável. Anda ansioso em relação ao futuro dela. Receia que a magoem, a abandonem. Ainda sente vontade de a proteger.

Passado um bocado, Sam respondeu:

- Sim, acho que sim.

- Se ela quisesse... se lhe desse um sinal, pedisse... voltaria para ela? Sam reflectiu e depois respondeu:

- Não.

- Porque não?

- Porque a minha vida mudou de direcção. Porque Deborah fez parte do passado que deixei para trás. Agora estou aqui. E é aqui que vou ficar porque tenho um trabalho a fazer.

- Ela continua a ser sua mulher.

- Que pretende dizer com isso?

Que quando se é casado com uma pessoa, esta continua a fazer parte de nós. Nunca se consegue ficar livre. Fica-se a pertencer-lhe. falava com tal amargura que Sam percebeu imediatamente que só

tinha de fazer um pouco mais de força para, finalmente, ela se abrir com ele.

Virou-se para ela.

-Carrie...

Carrie, porém, continuou em frente e ele teve de correr para a alcançar e agarrar-lhe no braço, obrigando-a a voltar-se para si. As lentes escuras dos óculos de sol ergueram-se para ele que as tirou, vendo então Para seu horror, que ela tinha os olhos cheios de lágrimas.

Carrie. Abra-se comigo.

Porquê? - Enraivecida, piscava os olhos para afastar as lágrimas. - Porque hei-de abrir-me consigo?

- Porque eu tenho sido sincero consigo.

- Eu não combinei nada. Não é da sua conta e não quero falar no assunto. Não serve de nada. E o Sam não compreenderia.

- Podia tentar. Estou convencido de que entenderia. Eu próprio já passei por maus momentos. O pior foi saber que todos estavam a par, excepto aqui o parvo. Vivendo um dia de cada vez e todos eles a serem em vão e a não conduzirem a lado nenhum. A tentar lidar com a rejeição total.

- Eu não fui rejeitada - gritou-lhe Carrie, enquanto o seu rosto se engelhava subitamente como o de uma criança e ela desatava a chorar.

Furiosa consigo mesma, empurrou Sam para longe de si, tentando escapar ao seu abraço, porém ele segurou-a pelos ombros com as mãos e não a deixou ir, pois sentia que, se o fizesse, ela talvez se fosse abaixo e a força dele era a única coisa que a mantinha de pé.

- Eu não fui rejeitada. Era amada. Nós amávamo-nos e só queríamos ficar juntos. Mas as dificuldades eram demasiado grandes. Foram mais fortes que nós. Demasiadas exigências, responsabilidades, tradições. O trabalho dele, a sua família, a mulher, os filhos, a religião, o dinheiro. Eu não tive hipótese. Nunca tive. E o que mais me custa é que sempre soube disso. Odeio-me por ter fechado os olhos e enfiado a cabeça debaixo da areia como a avestruz estúpida. A fazer de conta de que tudo se resolveria. Caramba, tenho trinta anos. Pensei que podia aguentar-me. Mas quando Andreas se foi embora, fiquei devastada. Portanto agora já sabe, Sam, e pode parar de tentar descobrir. E talvez Possa aceitar o facto de eu não estar realmente muito interessada em homens casados. E se começar a ser simpático e a ter pena de mim, ponho-me a gritar.

Sam abriu a boca para protestar, mas nesse momento Carrie, com Uma torção do corpo, libertou-se e correu para longe dele, tropeçando na neve, e endireitando-se, sem desistir. Sam foi atrás dela e voltou a agarrá-la.

- Oh, Carrie.

Dessa vez ela não se debateu. Talvez estivesse demasiado cansada, demasiado ofegante com os soluços.

Sam rodeou-a com os braços e ela encostou-se-lhe, com os ombros a estremecer e a molhar-lhe a frente da Barbour com as suas lágrimas.

Abraçá-la, tê-la nos seus braços era algo que lhe apetecera fazer o dia todo. Sentia-a esguia, sem peso, e disse a si mesmo que conseguia sentir-lhe o bater do coração através de toda aquela combinação de tecidos invernosos. O pêlo do chapéu dela fez-lhe cócegas no nariz. sentiu-lhe a macieza e a friagem da pele.

- Oh, Carrie - murmurou, envergonhado por se sentir tão enlevado, quando ela sofria de tão grande desgosto e desdita. Tentou confortá-la: - Tudo irá correr bem.

- Não irá correr bem, não.

Notava-se tal frieza e inflexibilidade na sua voz que Sam teve repentinamente a noção de que não valia a pena continuar a proferir trivialidades sem sentido. Ali de pé, com ela nos seus braços, deu consigo estranhamente confuso e desorientado. De uma maneira geral, os seus instintos não costumavam deixá-lo mal; em vez disso, diziam-lhe como lidar com qualquer situação, quer fosse de tipo emocional ou não. Naquele momento, porém, compreendeu que não sabia o que fazer. Carrie era linda, inteligente e desejável, mas também complicada. E, talvez por isso mesmo, permanecia um enigma. Compreendê-la levaria muito tempo e exigiria muita paciência.

Resignou-se com o facto, voltando a repetir: - Tudo se há-de resolver. - Não pode ter essa certeza.

Dessa vez, teve a confiança e o bom-senso de não argumentar. Passado um bocado, o choro desesperado dela abrandou. Fez menção de se recompor. Sam Howard afastou-a suavemente de si e viu-a limpar as faces molhadas de lágrimas com a luva acolchoada.

- Lamento muito - disse-lhe.

- O quê?

- Lamento o que se passou, pois não foi nada do que planeei nem desejei. Não queria perturbá-la. Isto era uma simples saída para vir buscar uma árvore de Natal e dar um passeio. Não havia segundas intenções. Simplesmente correu mal.

- A culpa não foi sua. Sou uma estúpida...

- Falei de Deborah porque às vezes tenho necessidade de o fazer. Não queria pô-la assim.

- Eu sei. Esqueçamos o que se passou. Façamos de conta que nunca aconteceu. Passeemos, tal como planeámos.

- Mas falemos. Falar é sempre bom. Pensei que nunca mais acontecia.

- Falar é bom? Não sei bem.

Facilita a compreensão das coisas.

- Não sei se quero que me compreendam. Basta que me deixem em paz. Talvez agora eu fique melhor assim. Independente. Sem preocupações.

Não parece muito certa disso - respondeu-lhe Sam, Só não o fez em voz alta.

 

Lucy

Quinta-feira, 21 de Dezembro

Esta manhã, Sam e Carrie foram buscar a árvore de Natal. Mrs. Snead e eu fizemos uma limpeza profunda à casa de jantar. Tinha carradas de pó e cheirava a mofo por não ser usada há muito tempo. Pusemos um papel na porta a dizer «PROIBIDO ENTRAR», para que ninguém vá lá dentro. Mrs. Snead queimou uns papéis na lareira, para ter a certeza de que a chaminé não estava cheia de ninhos de gralhas, mas o fumo subiu todo e ela disse que tudo funcionava bem, o que nos permitirá fazer uma bela fogueira que tornará tudo muito melhor.

Estavam lá duas caixas de cartão grande, que imaginávamos cheias de jornais amarfanhados, mas quando fomos ver melhor, descobrimos uns candelabros de prata, quatro, todos enfarruscados, mas muito bonitos. Levámos a lixarada toda pelo corredor e pusemo-la dentro do antigo escritório. Estavam lá uns reposteiros muito grossos, cheios de pó, portanto fomos buscar um escadote, tirámo-los, levámo-los para o quintal, onde os sacudimos muito bem. Depois voltámos a pendurá-los. Eu limpei a janela, Mrs. Snead esfregou todos os azulejos da lareira, depois afastámos a mesa e ela aspirou o chão. A seguir, passámos cera em todos os móveis, colocámos os candelabros em cima de uns jornais e limpámo-los, o que levou imenso tempo porque têm muitos enfeites e contornos. Então, enquanto eu ia à rua comprar umas velas (altas e em tom creme, parecidas com as das igrejas), Mrs. Snead foi lá acima ao armário da roupa buscar uma toalha e guardanapos. Não havia nenhuma, no entanto, descobriu um velho lençol de linho que, com um cobertor por baixo a proteger a mesa, ficou óptimo. Não fizemos mais porque ela tinha de voltar para casa, afim de dar o jantar ao marido, mas com as velas e tudo, mais a lareira acesa, ficou com um ar lindamente festivo. Eu não queria que ninguém soubesse, para que fosse uma surpresa, mas Carrie e Sam voltaram pouco antes do almoço com a árvore de Natal e houve uma grande discussão para decidir em que sítio ficaria. Achámos que o mais indicado seria a sala de estar, mas Elfrida vai dar uma festa lá no sábado, virá muita gente e ela acha que a árvore poderá ocupar demasiado espaço. Oscar sugero patamar, mas vão lá pôr uma mesinha para as bebidas e a árvore atrapalharia a ida e vinda das pessoas escadas acima e escadas abaixo. Tive então de sugerir a casa de jantar e desceram todos imediatamente a ver o que tínhamos andado a fazer e foi engraçado porque ficaram todos entusiasmadíssimos, cheirava agradavelmente a cera e Elfrida disse que não fazia ideia de que a sala de jantar pudesse ter um ar tão festivo. E, como é evidente, era o sítio ideal para a árvore. Portanto, Sam foi buscá-la e trouxe também uma espécie de suporte para a encaixar, por isso foi tudo mais fácil. E Elfrida foi buscar o xaile vermelho que usa em cima da cama e atou-o em volta do suporte, escondendo assim a madeira nua e os pregos. A árvore tem o tamanho ideal e um formato bonito. Adoro o cheiro das árvores dentro de casa, parece-se com a essência de pinho para o banho. À tarde, Oscar trouxe os enfeites que comprámos e atámo-los na árvore. Sam colocou a gambiarra e pôs a estrela bem lá na ponta. E Elfrida apareceu com um rolo inteiro de uma linda fita axadrezada que comprara para atar os seus presentes, mas disse que a fita-cola fazia o mesmo efeito. Portanto, cortámo-la aos bocados e fizemos lindos laços que espalhámos por toda a árvore, e com os enfeites e as luzes acesas, ficou a coisa mais bonita que já vi na vida.

Carrie contou-me que Corrydale é lindo e que um dia tenho de ir conhecer o sítio. Disse que havia neve por todo o lado, assim como sombras azuladas e sol; jardins que descem desde a casa até à água, e montes de árvores grandes e antigas. De certo modo, gostaria de ter ido com eles buscar a árvore, mas tinha de preparar a sala de jantar enquanto Mrs. Snead cá estava, pois ela prometera ajudar.

Amanhã temos de começar a preparar a festa. Elfrida telefonou a Mrs. Kennedy para lhe pedir uns copos emprestados, pois temos poucos. E Carrie ficou encarregue da comida. Esta tarde, depois de terminarmos o arranjo da árvore de Natal, fomos juntas ao padeiro encomendar folhados de salsichas e pequenas quiches e pizas. E depois mandámos vir salmão fumado para pôr em pão de mistura. A festa deverá começar às seis da tarde e tanto Mrs. Snead como Arthur vêm ajudar. Nunca pensei que uma festa desse tanto trabalho. Se calhar é por isso que a mamã e a avó nunca o fazem em Londres.

Rory também foi convidado, claro, assim como Clodagh. Vestirei a minha minissaia preta nova, os collants pretos e a camisola branca. Gostaria de prender o cabelo ao alto, para assim se notarem mais os meus brincos.

 

Elfrida

Ao acordar, em pleno Inverno, no meio da escuridão daquele gélido país setentrional, Elfrida abria os olhos e ficava sem saber que horas eram. Passado um bocado, aPalPava a mesinha-de-cabeceira até encontrar o seu relógio, para cujo mostrador luminoso olhava com esforço, e, se fossem duas da manhã, provavelmente sairia da cama, vestiria o robe e iria à casa de banho. Às vezes, eram cinco da manhã. Ou oito, nesse caso horas de se levantar, mas não se via o menor vislumbre de luz no céu e estava tudo escuro como se fosse meia-noite. Nessa manhã, agarrou no relógio e eram sete e meia. Oscar, ao seu lado, continuava a dormir. Levantou-se silenciosamente, para não o incomodar, pegou no robe grosso, enfiou os pés nas pantufas e foi até à janela. Viu que voltara a nevar, não pesadamente, mas sim em flocos finos que um vento vindo do lado do mar soprava. Estes rodopiavam e pairavam em redor da igreja e a luz dos candeeiros de rua, que brilhava por entre os ramos negros das árvores do cemitério, davam-lhe uma tonalidade dourada. O efeito era de tal maneira espectacular que Elfrida soube que tinha de o partilhar com outra pessoa. Oscar não gostaria de ser acordado, portanto deixou-o sossegado, saiu do quarto, acendeu as luzes e desceu à cozinha, onde aqueceu água e preparou duas chávenas de chá. Subiu de novo, até à sala de estar, onde afastou as cortinas para o lado e pousou as chávenas no parapeito da janela. Depois foi ao sótão acordar Lucy.

Lucy dormia, inocente como uma criancinha, com a mão enfiada debaixo da curva suave da bochecha e o cabelo comprido caído sobre o pescoço. A cama ficava debaixo da janela oblíqua do telhado. A cortina não estava corrida e via-se o vidro atapetado de neve húmida. Elfrida acendeu a luz do candeeiro da mesinha-de-cabeceira.

- Lucy.

Lucy mexeu-se, virou-se e abriu os olhos.

- Lucy.

- Humm?

- Estás acordada?

- Agora estou.

- Quero que te levantes. vou mostrar-te uma coisa. Fiz-te uma chávena de chá.

- Que horas são?

- Quase um quarto para as oito.

Lucy sentou-se, ensonada, e esfregou os olhos.

- Pensei que estávamos a meio da noite.

- Não. Já é de manhã. E que linda. Os outros estão todos a dormir mas eu quis mostrar-te.

Lucy, ainda aturdida de sono, saiu da cama, vestiu o seu robe de pèlo de camelo e comentou:

- Está frio.

- É do vento. Voltou a nevar.

Desceram as escadas e atravessaram a casa tranquila. A sala de estar estava iluminada pela luz que vinha do lado de fora.

- Olha - disse Elfrida atravessando a sala e instalando-se no assento da janela. - Achei tão espantoso que tive de te acordar para vires ver. Tinha medo que tivesse parado de nevar e perdesses a oportunidade. Mas está precisamente como quando acordei.

Lucy, de olhos arregalados, sentou-se ao lado de Elfrida. Passado um bocado, comentou:

- Faz lembrar uma daquelas bolas de vidro que eu tive em pequena. Estava cheia de água e tinha uma pequena igreja dentro, e quando se sacudia provocava uma tempestade de neve.

- Foi o que eu pensei. Mas aqueles flocos estão dourados por causa das luzes, fazem lembrar flocos de ouro.

- É o tipo de imagem que as pessoas desenham nos cartões de Natal e pensam que a realidade nunca se assemelha à fantasia - observou Lucy.

- E as ruas tão limpas! Não se vê uma pegada, uma marca de roda de carro. Como se não houvesse mais ninguém no mundo a não ser nós. - Calou-se e depois lembrou-se de algo. - Imagino que as vias principais estejam sob o efeito de nevascas. Ainda bem que não precisamos de ir a lado nenhum. - Reparou que Lucy estremecia. - Toma, bebe um pouco de chá.

Lucy aceitou e bebeu com prazer, rodeando a chávena com os dedos e saboreando o seu calor. Ficaram a olhar, em silêncio, para a cena que se desenrolava no lado de fora da janela. De repente apareceu um automóvel, que deu a volta à igreja e seguiu na direcção da estrada principal. Seguia cautelosamente, em segunda, deixando um par de trilhos no seu rasto.

Quando desapareceu de vista, Lucy perguntou:

- Que horas serão na Florida?

Elfrida foi apanhada de surpresa. Lucy nunca falava da Florida, da mãe ou do seu novo amigo. Respondeu com indiferença:

Não sei. Menos cinco horas do que aqui, suponho. Cerca das três da manhã. E por lá o tempo deve estar quente e húmido. Custa a imaginar. Nunca estive na Florida. Nem sequer na América. - Esperou que Lucy prosseguisse a conversa, porém esta manteve-se calada. Gostarias de lá estar? - perguntou-lhe em voz branda. - Céus azuis e uma piscina?

Não. Iria detestar. Por isso é que não fui.

Mas para a tua mãe deve ser uma maravilha. Umas férias fantásticas.

Não gosto de Randall Fischer.

-Porque não?

É todo mesuras. Repugna.

- O mais provável é ser muito delicado e completamente inofensivo.

- Seja como for, isso é o que a minha mãe acha.

- Bem. Então ela está satisfeita.

- Prefiro mil vezes estar aqui do que na Florida. Isto é que é um Natal de verdade, não é? Vai ser mesmo a sério.

- Espero que sim, Lucy. Não sei bem. Veremos.

- Oscar.

Oscar, que estava sentado ao pé da lareira a ler o jornal, ergueu os olhos.

- Diz, minha querida.

- Estou prestes a deixar-te sozinho.

- Para sempre?

- Não. Só por hora e meia. Mais ou menos. Telefonei a Tabitha Kennedy e vou a Manse buscar uns copos emprestados para a nossa festa. Ela tem umas caixas deles guardadas para as actividades da paróquia e disse que posso utilizá-los.

- Muito gentil.

- Terei de levar o carro. Guiarei devagar e com todo o cuidado.

- Queres que vá contigo?

- Se quiseres.

- Preferia ficar aqui, mas estou à disposição para o que for preciso.

- Talvez possas ajudar-me a trazer tudo para dentro de casa quando eu voltar.

- Claro, avisa-me assim que chegares. - Ficou pensativo. - Está tudo muito calado. Onde estão todos?

- Sam e Carrie foram a Buckly. E Lucy está fechada no quarto a embrulhar os seus presentes de Natal. Se quisesses podias levar Horace a dar um pequeno passeio. Parou de nevar.

Oscar não pareceu particularmente encantado com a sugestão. Limitou-se a responder de maneira imprecisa:

- Está bem.

Elfrida sorriu e depois inclinou-se para lhe dar um beijo.

- Até logo.

Ele, porém, já retomara a sua leitura.

No exterior, o vento soprava com força e a neve estava traiçoeira. Elfrida, protegida com botas, o casaco tipo cobertor e o barrete de K emergiu do calor da casa e deteve-se a olhar para o céu. por um instante Viu nuvens rolar num céu tempestuoso e gaivotas a esvoaçar de um lado para o outro no ar enregelante. O carro de Oscar estava coberto de neve. Elfrida sacudiu a recém-caída com a mão enluvada, mas por baixo havia uma camada de gelo, portanto sentou-se ao volante e ligou o aquecimento. O gelo começou então a derreter e, ao ligar o pára-brisas obteve dois semicírculos de vidro limpo. Pôs-se a caminho com toda a cautela pela estrada fora, depois enveredou pela colina que ia dar a Manse. O camião limpa-neve já tinha passado, de modo que Elfrida aliviada, chegou ao seu destino sem derrapar ou ter algum outro azar.

Estacionou em frente do portão da casa, percorreu o carreiro do jardim da frente, sacudiu a neve das botas, tocou à campainha, em seguida entrou no alpendre e abriu a porta interior.

- Tabitha.

- Estou aqui. Na cozinha.

Elfrida reparou que a casa do pastor já estava preparada para o Natal. Ao fundo das escadas via-se uma árvore de Natal (não muito grande), cheia de bugigangas e estrelas, e no alto estavam pendurados enfeites de papel, com um ar muito usado. Tabitha apareceu à porta aberta ao fundo do vestíbulo, de avental e com o cabelo escuro preso num rabo-de-cavalo.

- Que dia! Que bom vê-la. Tenho café a coar. Entre depressa e feche a porta. Veio a pé?

Elfrida desabotoou o casaco e pendurou-o no pilar do corrimão.

- Não, enchi-me de coragem e trouxe o carro. Não tive outro remédio. Não podia carregar com duas caixas cheias de copos de vidro até casa. Teria escorregado no caminho, se calhar partia uma perna e de certeza ficava sem os copos. - Seguiu Tabitha até à cozinha. - Cheira bem.

- Estou a cozinhar. Empadas de carne, folhados de salsicha, dois bolos e uns biscoitos. Como sabe, gosto de cozinhar, mas o Natal começa a tornar-se impossível. Tenho estado a manhã inteira aqui metida e ainda preciso de fazer um recheio e um creme para cobertura. E o bolo de Natal para enfeitar e um pernil para assar. O problema é que são tantos os paroquianos que vêm cá nesta altura do ano com cartões ou presentes para Peter, que tenho de os convidar a entrar e retribuir-lhes a gentileza com algo para beber e comer.

- Lamento. Tão atarefada e eu a interromper.

Tabitha deitou café numa caneca.

- De maneira alguma. Serve-me de desculpa para me sentar duOte cinco minutos. Puxe uma cadeira, ponha-se à vontade. Aquilo que me saberia mesmo bem era ir lá para fora. Devíamos passear pela praia e andar de trenó, completamente livres de responsabilidades, em vez de nos escravizarmos às exigências da época festiva. Tenho a certeza , que a data nunca foi destinada para tanto trabalho. Todos os anos juro a mim mesma simplificar, mas acabo sempre por complicar.

Elfrida, seduzida pelo odor perfumado do café, aceitou o convite. A cozinha de Manse era quase tão antiquada como a da Casa da Quinta mas muito mais alegre, com os trabalhos manuais de Clodagh pendurados nos painéis da porta e uma velha secretária apinhada de papéis e fotografias de família. Tratava-se, claramente, do domínio de Tabitha, onde ela não só cozinhava e alimentava a sua família como também organizava a sua vida atarefada, fazia os seus telefonemas e escrevia as suas cartas. Naquele momento, depois de se servir de café, sentou-se no outro lado da mesa.

- Conte-me as novidades. Que lhe aconteceu?

- Nada de especial. Deixei Oscar a ler o jornal, e Sam e Carrie foram a Buckly conhecer a fábrica de lanifícios.

- Sam é o tal desconhecido misterioso que saiu do meio da neve? Ainda está convosco?

- Passa o Natal lá em casa. O tempo está horrível e parece que não tem mais lado nenhum para onde ir.

- Santo Deus, que desconsolo. Ele e Carrie tornaram-se amigos?

- Parece que sim - respondeu Elfrida, prudentemente.

- Muito romântico.

- Tabitha, ele é casado.

- Então porque não está junto da mulher?

- Ela está em Nova Iorque.

- Não se falam?

- Estão separados, segundo creio. Desconheço os pormenores.

- Oh, bem - disse Tabitha, em tom filosófico. - Há de tudo.

- É estranhíssimo que ainda não o tenha conhecido. Dá a impressão de que estamos juntos já há meses quando, na verdade, ainda só se passaram alguns dias. Seja como for, irá conhecer tanto Sam como Carrie amanhã à noite. Bebidas na Casa da Quinta entre as seis e as oito.

- vou pôr as caixas no vestíbulo. Seis copos de vinho, seis cálices e um par de jarros. Precisa de pratos?

- Acho que não. Não vamos propriamente dar um jantar, são apenas comes e bebes. Dos primeiros encarrega-se Carrie.

- Quantos convidados espera?

- Creio que devem ser uns dezassete. Vocês os quatro...

- Clodagh provavelmente não irá. Uma colega convidou-a a ir cear lá em casa, e depois dormirá por lá. Importa-se?

- Nem um pouco. Será muito mais divertido para ela.

- Mas Rory irá de certeza. Quem mais?

- Jamie Eskine-Earle e a mulher.

- Jamie e Emma? Não sabia que já os conhecia.

- Foi ele quem veio avaliar o meu quadro de David Wilkie. Mas é uma imitação, portanto, lá se foi mais um sonho por água abaixo.

- Estava a pensar em vendê-lo?

- Era provável que o fizesse. Agora, já não.

- É uma pessoa simplicíssima. Refiro-me a Jamie. Tem ar de quem ainda não passou dos quinze anos, mas não só é um perito na sua especialidade como também é pai de três rapagões. Conhece Emma?

- Só falei com ela pelo telefone, quando lhes fiz o convite.

- É muito boa pessoa, extremamente prática e sincera. É criadora de póneis Shetland, cães de trabalho e superintende tudo em Kingsferry. Jamie interessa-se muito mais por andar à cata de antiguidades identificando candelabros cheios de amolgadelas e descobrindo retratos esquecidos. Quem dirige a quinta, ajuda a tratar do gado e manda consertar o telhado é Emma. Quem mais convidou?

- Os Rutley, da livraria.

- Óptimo.

- E o doutor Sinclair e a esposa.

- Mais uma vez óptimo.

- Não sei como se chamam.

- Geordie e Janet. - E os Snead.

-Mistress Snead e Artur?

- Bem, quando Mistress Snead descobriu que eu andava a convidar algumas pessoas, ofereceu-se para vir dar uma ajuda e lavar copos. Como eu não conseguia suportar a ideia de a ter encarcerada na cozinha o tempo todo, disse-lhe que também se juntasse a nós e trouxesse Artur. Propôs logo que o marido andasse a distribuir as bebidas num tabuleiro.

- Como se fosse um mordomo.

- Ela tem sido tão minha amiga e de Oscar, que não a podia deixar de fora.

- Serão a alma da festa.

Tabitha bebeu o seu café. Depois pousou a caneca e os olhos de ambas encontraram-se. Tabitha perguntou-lhe então:

- Como vai o Oscar?

- Vai bem. Continua a apreciar um pouco de isolamento, que o deixem sossegado com os seus jornais e as palavras-cruzadas.

- Peter deu-lhe a chave sobressalente do órgão da igreja. Tinha conhecimento disso?

- Não. O Oscar não me contou.

- Peter achou que talvez ajudasse, que a música seria para Oscar uma espécie de terapia.

Ainda não se serviu dela. Só esteve na igreja uma vez, e foi porque Lucy queria conhecê-la por dentro. Tanto quanto sei, não voltou lá.

Não creio que lhe proporcionasse grande conforto.

Não é de conforto que Oscar precisa. Só quer que o deixem no seu canto a viver cada dia à sua própria velocidade. Quanto aos nossos convidados, os esperados e os inesperados, penso que, de certo modo, ele diverte-se com toda aquela movimentação. Mas, Tabitha, ele ainda não está bem. Oscar e eu somos muito chegados, no entanto, sei que parte dele ainda está retraída, até mesmo em relação a mim. Como se essa parte estivesse ainda noutro sítio qualquer. Noutro país. Talvez ausente numa viagem. Ou no exílio. No outro lado do mar. E eu não posso estar com ele porque não tenho o tipo de passaporte certo.

- Peter diria que é uma questão de paciência.

- Paciência nunca foi uma das minhas virtudes. Não que alguma vez tenha tido muitas.

Tabitha riu-se.

- Disparate. São só diferentes das outras pessoas. Beba mais café.

- Não, obrigada. Estava uma delícia. - Elfrida levantou-se. Agora vou deixá-la trabalhar. Obrigada pelos copos e por me ouvir com tanta paciência.

- vou ajudá-la a meter as caixas no porta-bagagens. Não são pesadas, só não dão muito jeito. E amanhã às seis da tarde lá estaremos convosco, todos elegantes com as nossas fatiotas natalícias. Vai ser óptimo. Mal posso esperar.

 

Oscar

Elfrida saíra ainda não fizera dez minutos quando Oscar, intensamente embrenhado na resolução das palavras-cruzadas do The Times, foi interrompido pelo aparecimento de Lucy que, de casaco vermelho acolchoado e botas, estava, aparentemente, de saída.

- Olá, Oscar.

- Viva, bichinha. - Pousou o jornal. - Pensei que estavas a embrulhar presentes de Natal.

- Sim, estava, mas acabou-se-me a fita. Sabe de Elfrida?

- Foi a Manse pedir umas coisas emprestadas. Não deve demorar.

- Só queria saber se precisava de que eu lhe trouxesse alguma coisa do supermercado.

- Pareceu-me que a única coisa que desejava era que levassem Horace a dar uma volta.

- Bem, então passo primeiro pelo super e depois levo Horace até à praia.

- Há muita neve.

- Não me importo. Calcei as botas.

- Bem, vê se não és atacada por nenhum rottweiler. Lucy fez uma careta.

- Nem sequer me lembre.

- Eu digo a Elfrida que estás de volta por volta da hora do almoço.

Lucy saiu. Passado um bocado, Oscar ouviu Horace ladrar de contentamento e, em seguida, a porta da frente a abrir e a fechar, ficando então sozinho mais uma vez. Voltou às suas palavras-cruzadas. Matutou sobre o enigma seguinte. Foi então que o telefone tocou.

O seu primeiro instinto foi deixá-lo tocar, esperar que alguém atendesse o fastidioso aparelho. Depois lembrou-se de que estava sozinho em casa, pelo que pousou o jornal com uma certa irritação, guardou a caneta no bolso e levantou-se da poltrona para ir ao patamar.

- Casa da Quinta.

- Mister Blundell está? - perguntou uma voz feminina, bem esCoCeSa.

- É o próprio.

- Oh, Mister Blundell, daqui fala a irmã Thompson, do Western, em Inverness. Receio ter más notícias. O major Billicliffe faleceu ao princípio desta manhã. O senhor vem aqui referido como sendo o parente mais próximo.

O velho Billicliffe morrera... Oscar deu consigo a esforçar-se por pensar no que havia de dizer. Pouco conseguiu:

- Compreendo.

- Foi tudo muito tranquilo. Teve um fim sem sofrimento.

- Ainda bem. Muito obrigado por me ter informado.

- Tenho aqui os bens pessoais do falecido para lhe entregar. Se puder...

- com certeza - respondeu Oscar.

- Quanto a algumas outras disposições...

A freira, cheia de tacto, não terminou a frase, mas Oscar percebeu perfeitamente ao que se referia. Disse então:

- com certeza. Obrigado por ter cuidado dele. Entrarei em contacto.

- Obrigado, Mister Blundell. As minhas condolências. Adeus.

- Adeus, irmã.

Desligou e como precisou de se sentar imediatamente, fê-lo no primeiro degrau das escadas que conduziam ao sótão de Lucy. Billicliffe estava morto e Oscar não só representava o parente mais próximo como também o seu executor. Vieram-lhe à cabeça pensamentos mesquinhos e rabugentos, e ficou satisfeito por Elfrida não estar em casa, caso contrário, ainda os teria exprimido em voz alta.

Era mesmo típico daquele idiota morrer, nem mais nem menos, naquela altura.

Uma casa cheia de gente, o Natal à porta e as estradas para Inverness intransitáveis. Nem que o tivesse planeado, Billicliffe teria escolhido uma ocasião mais inconveniente para bater as botas.

Foi então que Oscar se lembrou de quando fora deixar o velhote. Deixou-se de ressentimentos, sentindo-se antes triste porque ele morrera sozinho e nem Oscar nem Elfrida, apesar das suas melhores intenções, tinham sido capazes de ir visitá-lo ao hospital, pedirem desculpa pela indelicadeza e despedirem-se.

Ponderou durante um bocado sobre o que deveria fazer a seguir. A bola estava, obviamente, do seu lado e cabia-lhe tomar a iniciativa, no entanto, deu-se conta de que não sabia por onde começar. Lembrou-se então, sentado no topo das escadas como uma baleia acabada de dar à costa, que ainda só se tinham passado dois meses desde a noite fatídica em que lhe tinham comunicado o falecimento de Francesca e Gloria. Não se esquecera dos dias de desvario que se tinham seguido. Houvera o funeral, evidentemente, a igreja de Dibton a rebentar pelas costuras, o pastor, que nunca fora grande pregador, a esforçar-se por dizer as palavras certas, e Oscar, envergando o seu excelente sobretudo preto, no banco da frente. Mas não saberia dizer como chegara ali, não tinha memória de todas as disposições complicadas que antecederam a ocasião, só sabia que Giles, o filho mais velho de Gloria, aparecera e tomara conta de tudo, enquanto Oscar, incapacitado pelo choque, se limitara a fazer o que lhe diziam. Giles, que Oscar nunca tivera em grande conta, acabara por se mostrar imensamente eficaz. Tudo correra sobre rodas e todo o pesadelo se desenrolara e passara a pertencer ao passado.

Depois de tudo terminado, Oscar achou que nada mais de minimamente importante lhe voltaria a acontecer, de modo que foi vivendo os dias como um zumbi. Depois, Giles voltou a aparecer na Granja, afim de o informar de que tinha de sair, pois a casa de Gloria iria ser posta à venda. E Oscar não ficou ressentido. Giles estava, mais uma vez, ao leme das operações e Oscar optou por uma atitude passiva e, simplesmente, deixou-se ir na corrente, concordando com tudo. Só quando mencionaram os velhos serviçais da casa é que começou a sentir os primeiros sinais de alarme.

Nesta altura, porém, as coisas eram diferentes: era a sua vez de tomar conta do assunto. Como é que chegara àquela situação? Recordou a manhã fria em que atravessara a Black Isle para levar o major Billicliffe ao hospital de Inverness. E a conversa do velhote, cheia de reminiscências incompreensíveis. A certa altura, dissera-lhe: «Prepare-se para o pior e espere o melhor», pedindo então a Oscar que fosse seu executor.

O advogado. Oscar tomara nota do nome deste na sua agenda. Levantou-se do degrau e foi à sala de estar buscá-la à sua secretária improvisada. Folheou as páginas. Murdo McKenzie. Achou que só Billicliffe podia ter um advogado com um nome tão bizarro. Murdo McKenzie, da McKenzie & Stout, South Street, Inverness.

Como não anotara o número de telefone, procurou-o na lista telefónica, copiou-o para a sua agenda e voltou ao patamar. Sentou-se de novo nas escadas, tirou o telefone da mesinha, colocou-o a jeito ao seu lado e discou o número.

Pensou que teria de haver um funeral, uma igreja, um velório. Pessoas a quem comunicar o acontecido. Tinha de informar Peter Kennedy. E pôr um anúncio no jornal. Só algumas linhas. Mas em qual deles? Na imprensa nacional ou na local...

- McKenzie & Stout.

- Oh, bons dias. Poderia falar com o doutor Murdo McKenzie?

- Quem devo anunciar?

- Oscar Blundell. De Creagan.

- Um momento, por favor.

Oscar sentiu-se angustiado. Já não era a primeira vez que lhe diziam o mesmo e ele era obrigado a esperar muito mais do que um momento, escutando uma versão tilintante de «Greensleeves» ou alguma outra melodia entediante. Os seus receios, porém, revelaram-se infUn dados. Murdo McKenzie apareceu em linha quase no mesmo instante.

- Bons dias, Mister Blundell. Em que posso servi-lo?

Era uma excelente voz de sotaque escocês, forte e determinada. Oscar sentiu-se encorajado.

- Bons dias. Peço desculpa por incomodá-lo, mas telefonaram-me agora do hospital a dizer que o major Billicliffe faleceu esta manhã - O major Godfrey Billicliffe - acrescentou, como se houvesse a menor possibilidade de haver dois.

- Oh, que triste notícia. Os meus pêsames. - (Parecia realmente entristecido.) - Possivelmente já era de esperar.

- Ligaram primeiro para mim porque têm o meu nome como o do parente mais próximo. Além disso, claro, o major Billicliffe pediu-me que fosse o seu executor. Parece que não tinha mais ninguém no mundo.

- Não, efectivamente não lhe restava nenhuma família. Falou-me dessa sua disposição e de que o senhor concordara em assumir o encargo.

- É por isso que telefono. Terá de haver um funeral, mas quando, onde e como? Ele tem amigos em Creagan que, certamente, quererão estar presentes, mas, tanto quanto sei, as estradas continuam intransitáveis e não há a menor possibilidade de alguém chegar a Inverness. Para já não falar do Natal, que está aí. E claro que será preciso contactar uma agência funerária. Notificar o banco, o registo...

Murdo McKenzie interveio delicadamente:

- Mister Blundell, porque não deixa tudo isso por minha conta? Em primeiro lugar, o major Billicliffe deixou instruções no meu escritório em como desejava ser cremado, o que evita muita dor de cabeça. Quanto à agência funerária, posso ser eu a tratar do assunto. Há uma excelente firma em Inverness, com muito boa reputação, e eu conheço-os bem. Não prefere que seja eu a entrar em contacto com Mister Lugg e tratar das providências necessárias?

- Seria extremamente gentil da sua parte... mas quando?

- Sugeria o próximo fim-de-semana. Nas vésperas do Ano Novo. Nessa altura, já o tempo deve ter amenizado um pouco e o senhor e quaisquer outros amigos de Creagan podem vir até Black Isle assistir à cerimónia.

- Mas não devíamos organizar uma espécie de reunião, tomar uma chávena de chá num sítio qualquer? Eu teria muito gosto em me encarregar dessa despesa.

- Mister Lugg também se pode encarregar desse aspecto. Talvez a sala de estar de algum hotel, ou o salão de eventos. Depende do número de pessoas esperadas.

- E também há que tratar de todos os outros pormenores, a legitimação do testamento, o congelamento da conta bancária e esse tipo de medidas.

Trataremos de tudo isso.

- E dos seus bens pessoais. - Oscar lembrou-se do pijama de flanela muito usado de Billicliffe, da sua prótese auditiva, da sua pasta de cabedal surrada. Era tudo demasiado patético, mas, para seu horror, sentiu um nó de emoção crispar-lhe a garganta. - Será preciso ir buscá-los ao hospital.

Telefonarei para a irmã da enfermaria. Lembra-se do número?

Oscar lembrava-se, para sua própria surpresa.

- Quinze.

- Quinze. - Houve uma pausa, enquanto Murdo tomava nota. Mandarei a minha secretária tratar disso.

- Fico-lhe realmente muito grato. Tirou-me um grande peso dos ombros.

- Sei que o major Billicliffe não lhe queria causar o menor incómodo, portanto telefonarei a Mister Lugg e voltarei a contactar consigo quando souber das medidas tomadas. Poderá dar-me o seu número de telefone?

Oscar deu-lho.

- E encontra-se instalado na Casa da Quinta de Creagan, não é verdade?

- Exactamente.

- Então não há problema. E se aparecer algum, ligo para si.

- Fico-lhe profundamente grato. Agradeço que me mantenha a par. Mais uma vez, obrigado. E agora não o incomodo mais...

- Mister Blundell!

- Sim?

- Não desligue. Tenho mais uma coisa para lhe dizer. Claro que lhe escreverei, mas nesta altura do ano os correios não são muito de fiar e já que estamos a falar, aproveito para o pôr ao corrente.

Oscar franziu a testa de surpresa.

- Não estou a compreender.

- Uma vez instalado no hospital, o major Billicliffe telefonou-me a dizer que me queria ver. Eu vivo na estrada de Nairn e como passo pelo hospital a caminho do escritório, dei lá um pulo na segunda-feira seguinte, de manhã bem cedo. Ele estava na cama, claro, e muito fraco, mas perfeitamente lúcido. Sentia-se preocupado com o seu testamento. Desde a morte da mulher que nunca mais se lembrara de fazer um novo e queria então tratar do assunto como devia ser. Deu-me as instruções, o testamento foi lavrado nesse dia, no meu escritório, e ele pôde assiná-lo. O senhor, Mister Blundell, é o seu único beneficiário. Não era homem de grandes posses, no entanto quis deixar-lhe a sua casa de Corrydale, o carro e a cadela. Receio que nem o carro nem a cadela sejam legados muito do seu gosto, mas foi essa a vontade do falecido. Quanto ao dinheiro, ele vivia muito frugalmente da sua pensão que, como é evidente, será suspensa por sua morte. No entanto, tinha uma Poupança que, uma vez deduzidas as despesas do funeral e alguma conta por saldar, ascenderão a cerca de duas mil e quinhentas libras.

Oscar sentou-se no degrau com o telefone no ouvido, sem saber que dizer.

- Mister Blundell?

- Sim, ainda estou aqui.

- Pensei que a comunicação tinha sido interrompida.

- Não, estou aqui.

- Não se trata de um legado substancial, mas o major Billicliffe fazia questão em lhe demonstrar o quanto estava grato pela sua bondade para com ele.

- Não fui bondoso - retorquiu Oscar.

O advogado, porém, se ouviu o comentário, não o demonstrou.

- Não sei se conhece a casa.

- Estive lá uma vez, para ir buscar a chave desta. Mas claro que a conhecia dos velhos tempos, quando era do guarda-florestal e a minha avó vivia em Corrydale.

- Fui eu que tratei da papelada quando o major Billicliffe a comprou. É bastante modesta, mas diria que com grandes possibilidades de melhoramentos.

- Sim. Sim. Sem dúvida. Desculpe mostrar-me tão pouco comunicativo, mas de facto fui apanhado de surpresa.

- Compreendo.

- Nunca pensei... esperei...

- Apresentar-lhe-ei tudo por escrito na carta que lhe vou enviar, depois poderá decidir o que fará a seguir. E não se preocupe com as disposições a tomar por este lado. Falarei com Mister Lugg e deixarei tudo nas suas mãos competentes.

- Obrigado. - Oscar sentiu que esperavam algo mais dele. Muito obrigado.

- Foi um prazer, Mister Blundell. Adeus. E feliz Natal. Desligou. Oscar pousou lentamente o auscultador. No fim, o velho Billicliffe conseguira surpreender todos. Oscar passou a mão pela cabeça desorientada. Exclamou então, para a casa vazia:

- Caramba, com esta é que eu não contava!

Ficou a pensar durante muito tempo na pequena casa, na antiga herdade de Corrydale, não durante o tempo de Billicliffe, mas anos antes, quando era habitada pelo guarda-florestal e a sua mulher. Nessa altura, fora um autêntico cortiço fervilhante, com os quatro filhos, três cães, uma gaiola de furões junto da porta das traseiras e cordas cheias de roupa a secar. Houvera sempre uma boa fogueira de turfa a arder na lareira, umas boas-vindas vociferantes aos ouvidos de um rapaz tão pequeno, e um prato de scones quentes a escorrer manteiga. Oscar tentou lembrar a disposição do lugar, mas naquele tempo não fora além da sala de estar, com o seu cheiro a parafina e a pão a cozer.

Agora pertencia-lhe.

Oscar viu as horas. Era meio-dia e cinco e de repente apeteceu-lhe imenso uma bebida. Normalmente, nunca bebia a meio do dia, e quando o fazia, não passava de um copo de cerveja. Naquele momento, porém, precisava - se precisava - de um sofisticado e reconfortante gim tónico para se acalmar e reunir a bonomia holandesa necessária para lidar com aquela nova e inesperada reviravolta nos acontecimentos.

Levantou-se, desceu à cozinha e foi à sua prateleira de bebidas. Tirou a garrafa de Gordon que aí tinha, outra de água tónica e levou-as para a cozinha. Arranjou um copo e serviu-se de uma porção fortificante.

A porta da frente abriu-se.

- Oscar!

Era Elfrida, de volta.

- Estou aqui.

- És capaz de me vir dar uma ajuda? Oscar foi cumprimentá-la, de copo na mão. Confidenciou-lhe:

- Estou a beber às escondidas. Agora dei nisto. Elfrida não se mostrou muito preocupada.

- Oh! Fazes bem. Tenho duas caixas grandes no porta-bagagens do carro.

Deixara a porta da frente aberta. Oscar foi com a mão por cima do seu ombro e fechou-a.

- Depois.

- Mas...

- Iremos buscá-los depois. Anda. Quero falar contigo. Tenho uma coisa para te dizer.

Elfrida abriu muito os olhos.

- É alguma desgraça?

- De maneira nenhuma. Despe o casaco e vem para a cozinha, onde nos podemos sentar e estar à vontade.

- Onde está Lucy?

- Foi com Horace às compras, fita de embrulho, e depois iam dar uma volta. E Sam e Carrie ainda não voltaram. Portanto, desta vez estamos sozinhos. Não percamos este bocadinho de tranquilidade. Queres um gim tónico?

- Se a ideia é chegarmos ao almoço já alegres, prefiro um xerez. - Elfrida tirou o casaco, pendurou-o na maçaneta do corrimão e seguiu Oscar até à cozinha. - Oscar, estás muito corado e agitado. Que é que se passa?

- Já te conto.

Elfrida instalou-se à mesa e Oscar trouxe-lhe o seu xerez, sentando-se em seguida.

- À tua, minha querida.

- E à tua, Oscar.

O gim tónico estava um bocado forte, mas delicioso e precisamente aquilo de que o seu estômago necessitava. Pousou o copo e disse:

- Se eu te contar, com toda a calma, porque é deveras complicado, prometes ouvir até ao fim sem fazer perguntas? Caso contrário atrapalho-me.

- Tentarei.

- Certo. Em primeiro lugar, o major Billicliffe morreu esta manhã. Recebi um telefonema do hospital.

Elfrida levou a mão à boca.

- Oh, Oscar.

- Eu sei. Não chegámos a ir vê-lo. Nunca nos sentámos à sua cabeceira a dar-lhe uvas. Mas também é verdade que as estradas não teriam permitido que fizéssemos a viagem.

- Não é tanto isso. É muito triste. Morrer tão sozinho...

- Ele não estava sozinho. Encontrava-se numa enfermaria, rodeado de enfermeiras bondosas e outras pessoas. De modo nenhum tão só como desde que a mulher morreu.

- És capaz de ter razão. - Elfrida reflectiu e depois suspirou.

Que complicação. E tu és o parente mais próximo... Isso significa...?

- Agora escuta - insistiu Oscar.

Contou-lhe então tudo: o telefonema do advogado, Murdo McKenzie, as responsabilidades tiradas dos seus ombros por um homem nitidamente experiente naquelas questões. Falou-lhe do agente funerário de Inverness, Mr. Lugg, em quem o advogado confiava tanto e de como seria a pessoa indicada para tratar de tudo, desde o crematório à sala de convívio.

- Mas quando é que será o funeral? - perguntou Elfrida.

- Pensamos que no final da próxima semana. Nessa altura, já todas as pessoas de Creagan poderão, com um pouco de sorte, chegar lá. A neve não pode durar sempre. Mais cedo ou mais tarde derreterá.

- Temos de colocar um anúncio num jornal qualquer.

- Mister McKenzie também se encarrega disso. -E informar os locais.

- Telefonarei a Peter Kennedy.

- Santo Deus! Que altura tão inconveniente para morrer.

- Exactamente o que eu pensei, mas depois obriguei-me a cair em mim e a deixar de ser tão pouco cristão.

- Pois é. Bem, acho que não será preciso mais nada.

- Não, Elfrida. Não é tudo.

- Há mais?

- O testamento de Billicliffe estava desactualizado. A mulher morrera e ele tinha de fazer outro. Tornou-me seu único beneficiário. Não, não digas uma palavra antes de eu terminar. Significa que me deixou a casa, o carro, a cadela e a fortuna. Quanto a esta, depois de pagas todas as contas e despesas, andará nas duas mil e quinhentas libras. Todas as suas economias. Vivia só da pensão.

A casa dele? Ele deixou-te a casa dele? Que gesto mais comovente. Uma ternura. Que bondade! Ele não tem mesmo mais nenhuma família? Nenhum parente?

- Ninguém.

Pobre homem solitário. Oh, Oscar, e nós que o evitávamos tanto.

Nem me digas nada.

Chegávamos a esconder-nos atrás do sofá da sala para o caso de ele aparecer.

- Nem me lembres.

Que tencionas fazer com a casa?

- Não sei. Ainda não tive tempo para pensar. Vendê-la, suponho. Mas, primeiro, terá de ser esvaziada de toda a tralha de Billicliffe e, provavelmente, fumigada.

- Que tal é?

- Tu viste. Um cochicho.

- Não, refiro-me ao número de quartos. Tem cozinha? Casa de banho?

- Acho que, na gíria dos agentes imobiliários, duas em cima, duas em baixo, cozinha e casa de banho, provavelmente acrescentadas depois da guerra, nas traseiras.

- Para que lado está voltada? Oscar reflectiu naquele aspecto.

- A frente fica para norte e as traseiras para sul.

- E tem jardim?

- Sim, acho que dispõe de um bocado de terreno. Não me recordo bem. Mistress Ferguson, a mulher do guarda-florestal, costumava cultivar batatas e alho-porro. E havia uma macieira...

Elfrida ficou calada durante momentos, digerindo toda aquela informação. Por fim, surpreendentemente, perguntou:

- Porque não vais viver para lá?

Oscar olhou para ela com total incredulidade.

- Viver lá? Sozinho?

- Não, tolo, eu vou contigo.

- Mas tu achaste a casa horrível.

- Nenhuma casa é impossível. Não há sítio que não possa ser melhorado, alargado, redecorado. Tenho a certeza de que, quando o guarda-florestal vivia lá, era um lugar bem querido. As próteses auditivas, os pêlos de cão, os cinzeiros cheios de beatas e os copos lambuzados é que tornavam tudo tão repugnante. Não tem nada a ver com os tijolos e a argamassa.

- Mas eu tenho uma casa. Esta.

- Só tens metade. O que não é muito seguro. Se vendesses a tua Parte ficavas com setenta e cinco mil libras que podias aplicar na casa do major Billicliffe e viver lá feliz da vida o resto dos teus dias.

- Referes-te a eu vender isto aqui? Sair de Creagan?

perguntou este.

- Oh, Oscar, não fiques tão horrorizado. Olha que até é uma excelente ideia. Sam quer a casa e Hughie McLellan está nitidamente ansioso por se ver livre da sua metade. Sei que adoras isto aqui, e eu tambem, mas tens de reconhecer que é enorme, tem pouca mobília depois de Sam, Carrie e Lucy partirem, voltaremos a ficar sozinhos aqui às voltas como duas ervilhas dentro de um tambor. E mais uma coisa, eu penso sempre nisto como uma casa de família, não para um par de velhotes como nós. Deve ter gente nova a morar aqui, crianças a crescer...

- Sam não tem filhos.

- Pois não, mas poderá voltar a casar novamente...

Elfrida não terminou a frase. No silêncio que se seguiu, olhou significativamente Oscar nos olhos.

- Não estás a pensar em Carrie, pois não? - perguntou este.

- E porque não?

- Não deves armar em casamenteira.

- É impossível não o fazer. Parecem feitos um para o outro.

- Não parecem nada. Ele está sempre a ser gentil, mas Carrie mostra-se alheada e brusca.

- Acontece que está a passar uma fase de vulnerabilidade. E ontem estiveram imenso tempo fora, quando foram buscar a árvore de Natal. Carrie disse que andaram a explorar Corrydale, mas eu não acredito que tenham passeado duas horas sem falar.

- Nada mais aconteceu além de as circunstâncias os juntarem.

- Talvez. - Elfrida suspirou. - Provavelmente tens razão. Mas tirando Carrie, esta é precisamente a casa certa para um homem como Sam Howard. O homem de negócios, o gerente de uma fábrica de lanifícios reactivada, um membro importante da comunidade. Estou mesmo a vê-lo a receber colegas de trabalho do Japão e da Alemanha, a proporcionar ao seu presidente uma semana de golfe. Além disso, e isto é o mais importante, Sam deseja mesmo esta casa. Penso que se sente bem aqui, como se estivesse no seu lar. Não achas que seria melhor vendê-la a ele do que a um desconhecido qualquer? E tu meteres setenta e cinco mil libras no bolso?

- Elfrida, eu não sou homem de meios. Se vendesse a minha parte da Casa da Quinta, teria de amealhar esse dinheiro para os tempos de velhice e de senilidade. Não poderia ser suficientemente louco para enterrar essa quantia no casebre do major Billicliffe e ficar sem nada de parte.

- Não sei quanto precisaríamos de gastar para dar um jeito lá. Muito - respondeu Oscar. Elfrida, porém, não desistiu.

- Então imagina que vendo a minha de Hampshire, e servimo-nos desse dinheiro para...

Nem penses - disse Oscar firmemente.

- Porque não?

Porque é a tua casa. É tudo o que tens no mundo e em nenhuma

circunstância te deves desfazer dela. Aluga-a, se encontrares alguém que queira lá viver, mas nunca a vendas.

_ Oh, está bem. - Elfrida parecia resignada e Oscar sentiu que tinha sido um pouco bruto. - Foi uma boa ideia enquanto durou, mas creio que tens razão. - Depois voltou à carga. - Seja como for, é tudo muito excitante e não admira que estejas corado. Uma coisa é certa, temos de ir dar uma vista de olhos à pobre casa, inspeccioná-la de alto a baixo. E resgatar o carro antes que morra de frio no meio da neve. E a cadela. Que faremos com ela? - De repente desatou a rir. - Que faremos com a nossa cadela de Baskerville, a uivar pela noite fora e a atirar-se com todo o seu peso contra portas trancadas?

- Para ser sincero, prefiro Horace. Talvez consiga subornar Charlie Miller para que fique com a cadela. Falarei com Rose...

O telefone começou a tocar no patamar de cima. Elfrida exclamou:

- Raios. Porque serão os telefones tão incomodativos?

- Deixa tocar. Fazemos de conta que não estamos.

- Gostaria de ter essa força interior, mas não é o caso.

Pôs-se de pé e saiu da cozinha. Oscar ouviu-a correr escadas acima e o toque cessou quase logo a seguir.

- Está? - perguntou Elfrida com voz alterada.

Enquanto esperava que Elfrida voltasse para junto de si, Oscar deixou-se ficar sentado a matutar naquelas suas ideias loucas e a desejar poder concretizá-las. Mas se, de facto, vendesse a casa a Sam, a soma recebida seria o seu único capital, o seu seguro contra uma velhice empobrecida. Claro que iriam dar uma vista de olhos à casa de Billicliffe, nada mais natural. Talvez até nem fosse má ideia darem-lhe uma limpeza e uma pintura. Ainda assim, seria um lugar acanhado e escuro para viver, depois da grandiosidade espaçosa da Casa da Quinta. Sentiria umas saudades insuportáveis das salas arejadas e ensolaradas, da noção de espaço, da deliciosa e sólida sensação de segurança. Seria realmente duro vendê-la - mesmo a um amigo como Sam - e deixá-la para sempre.

Elfrida, no piso de cima, continuava ao telefone. Ele conseguia ouvir o murmúrio da sua voz, embora não distinguisse as palavras. De vez em quando calava-se por instantes, para depois continuar. Não fazia ideia de quem estava no outro lado da linha. Esperava que não fossem notícias sinistras ou perturbadoras.

Terminara o seu gim tónico. Levantou-se para ir passar o copo por água e foi então que se lembrou das duas caixas com copos que tinham ficado no porta-bagagens do carro. Saiu da cozinha, foi até ao vestíbulo, abriu a porta e enfrentou o frio gélido que reinava no exterior. Percorreu o carreiro coberto de neve, abriu o portão, dirigiu-se para o sítio onde o seu velho carro estava estacionado e abriu o porta-bagagens. As caixas eram de difícil manejo e pesadas, o que o obrigou a levar uma de cada vez. Depois de pousar a segunda em cima da mesa da cozinha, foi fechar a porta. Quando ia a fazê-lo, ouviu o tinido que o telefone fazia quando o auscultador era pousado. Deteve-se ao fundo das escadas a olhar para cima, esperando ver Elfrida aparecer. Ao ver que não o fazia, chamou:

- Elfrida.

A companheira não lhe respondeu. Desceu simplesmente as escadas, com uma expressão facial que ele não foi capaz de decifrar. Só sabia que nunca lhe vira os olhos tão brilhantes nem um aspecto tão juvenil. Emitia um brilho que nada tinha a ver com a luz do meio-dia que lhe brilhava através da flamejante cabeleira ruiva.

- Minha querida...

- Oscar - exclamou, chegando ao último degrau e lançando-lhe os braços ao pescoço, apertando-o contra si. - Aconteceu-me algo de absolutamente maravilhoso.

- Queres contar-me?

- Sim, mas acho melhor sentarmo-nos.

Oscar levou-a pela mão até à cozinha, onde se sentaram, cada um no seu lado da mesa.

- Era Jamie Erskine-Earle. Para me falar do meu pequeno relógio. Como sabes, ele disse que ia mostrá-lo a um colega de Boothby, não é? Pois bem, o colega está em Londres, mas, com este tempo, nem pensar em Jamie poder ir para sul. No entanto, mandou-lhe um fax, com uma descrição pormenorizada do relógio e umas quantas fotografias. E o colega, seja lá quem for, ligou de Londres esta manhã. Disse que o relógio é uma peça muito especial. Uma peça mesmo muito rara. É francês e foi feito por um tal J. F. Houriet, por volta de mil oitocentos e trinta. A sua descrição oficial refere-o como um cronómetro tourbillon em prata. Imagina só, Oscar, fui dona de um tourbillon de prata durante todos estes anos e nunca tive a menor ideia disso. Depois, quis saber como é que tinha chegado às minhas mãos e Jamie disse-lhe que eu o herdara de um velho padrinho marinheiro, mas que não fazia ideia de onde é que ele o fora buscar. Seja como for, Jamie disse que é um pequeno tesouro e que sem dúvida devia ter um seguro. Então enchi-me de coragem e perguntei-lhe, «É valioso?» Ele respondeu, «Sem dúvida», Aí eu quis saber quanto valeria e ele disse que, num leilão... possivelmente... Adivinha, Oscar!

- Impossível. Não me faças sofrer mais. Conta.

- Entre setenta e oitenta mil libras - gritou-lhe Elfrida alegremente.

- Não ouvi bem. Não pode ser verdade.

- Ouviste muito bem o que eu disse e é verdade. Jamie disse que o colega afirmou que se tratava de uma peça preciosa para qualquer coleccionador.

Adoras a palavra preciosa? Se for para um leilão de relógios importantes e cronómetros marítimos da Boothby, até é possível qUe o número chegue mais alto.

-Não sei o que dizer.

E eu a afiançar, durante todo este tempo, que quem me livraria da miséria na minha velhice seria o meu pequeno quadro... Em vez disso o meu verdadeiro tesouro era o relógio. Não é uma sorte ninguém o ter fanado de cima da minha lareira na Poulton's Row?

- Eu diria algo mais importante do que isso. Sobretudo, por nunca trancares a porta da frente. Foi sempre um lindo objecto que tiveste ali. Não estás a pensar em vendê-lo, pois não? Não deves desfazer-te dele.

- Oh, Oscar, claro que vou vendê-lo! Então não vês? com esse dinheiro podemos transformar Billicliffe Villa na mais desejável das residências. Construir um jardim de inverno, um salão de baile...

- Elfrida.

- ... e comprar um microndas.

- Elfrida, escuta. Se venderes o relógio, esse dinheiro é teu.

- Oscar, escuta. Pertence a nós. E terminaremos os nossos dias numa encantadora vivenda ensolarada, tal como esta casa está sempre. E se quiseres cultivaremos batatas, alhos-porros, teremos Rose Miller mesmo ao lado, e um hotel rural de quatro estrelas mesmo ao pé. Quem poderia desejar mais? Não é tremendamente, maravilhosamente fantástico?

- Claro que é. Mas, minha querida, temos de ser práticos. Racionais.

- Detesto ser racional. Quero ir dançar para o meio da rua. Gritar a boa-nova de cima dos telhados.

Oscar reflectiu na ideia, como se fosse perfeitamente viável. Depois disse:

- Não.

- Não?

- Pelo menos por enquanto. Eu preferia que não se contasse nada a ninguém, até eu ter oportunidade de apanhar Sam sozinho e explicar-lhe a situação. Ele deve saber que estamos a pensar em vender a nossa metade. Não ter de procurar outra casa será um grande alívio para ele. Neste momento tem bastante com que se preocupar, sem precisar de ainda ter de procurar onde viver. Não ficará connosco eternamente, Portanto, pô-lo-ei ao corrente antes que se vá embora e nunca mais voltemos a vê-lo. Poderá precisar de tempo para reflectir sobre o assunto, talvez arranjar dinheiro. Não sabemos. Mas acho que deve ser a primeira pessoa a saber.

- Sem dúvida. Tens toda a razão. Quando é que falas com ele?

- Tentarei que vá comigo até ao pub hoje à tarde.

- E os outros? Carrie e Lucy? - Depois de falar com Sam.

- E se a casa de Billicliffe vier a revelar-se um perfeito desastre?

- Nesse caso, teremos de repensar o assunto.

- Estou ansiosa por ir vê-la. Nós dois. Mas hoje à tarde não podemos ir por causa da neve. As estradas estão horrivelmente escorregadias. E amanhã estamos impossibilitados por causa dos preparativos da festa.

- E domingo?

- Véspera de Natal!

- É um dia tão bom como os outros. Vamos no domingo.

- Está bem. Talvez devêssemos pedir a Sam que nos levasse no carro dele. Evitaríamos assim a possibilidade de ir parar a uma vala. - Reflectiu na questão e teve uma ideia ainda melhor. - Já sei. Iremos todos, inclusive Carrie e Lucy.

Oscar ficou pensativo.

- Isso representa estarem lá cinco pessoas, cada uma com a sua opinião e ideias.

- Tanto melhor. Tenho a certeza de que Sam será maravilhosamente prático. Falará de pormenores ligados à construção civil e saberá como acabar com a humidade. E acabo de ter outra ideia brilhante. Já que vamos a Corrydale de manhã, e se não estiver a nevar ou a chover, que tal fazermos um piquenique ao almoço? Um piquenique de Inverno? Farei a minha «Sopa com Todos». Oscar, temos chave para entrar na casa do Billicliffe?

Oscar ainda não pensara nesse pormenor.

- Não.

- Então como é que podemos lá ir?

- Rose Miller deve ter uma chave, ou saber de alguém -que a tenha. vou telefonar-lhe. Tenho de lhe contar da morte do velhote, provavelmente até já sabe. E preciso de ligar a Peter Kennedy.

 

Carrie

Foram até Buckly pela estreita estrada secundária que serpenteava ao longo da costa. A paisagem em redor não poderia ser mais invernosa: colinas brancas, céu cinzento percorrido por nuvens impulsionadas por um

vento que soprava dos mares do Árctico, e, por todo o lado, vastas planuras cobertas de neve. Quando o carro chegou ao cume de uma colina baixa, Carrie avistou, mais abaixo, o braço de mar, com a maré a encher, a escura floresta de coníferas na margem mais afastada e o aglomerado de casinhas brancas acima de uma ponte de atracação sem uso e em ruínas.

Era a primeira vez que passava por ali.

- Que nome tem o estuário? - perguntou.

- É o Loch Fhada. Um santuário de aves - respondeu Sam.

Enveredaram pela estrada costeira. A praia era rochosa e nada hospitaleira. O mar, que corria para a areia impulsionado pela enchente, estava cinzento como o céu por cima e lançava jactos de gotículas para o ar. Mais ao fundo, um grupo de focas descansava num banco de areia. No preciso instante em que Carrie olhou, um bando de patos veio de leste e pousou numa poça de água isolada, que a maré a encher ainda não cobrira.

Na ponta mais afastada do braço de mar, uma ponte estendia-se sobre a água e, para além desta, era terreno selvagem, um vale estreito e profundo coberto de arbustos, fetos e água estagnada, que se estendiam colinas acima. Ao chegarem à estrada principal, viraram para norte; os limpadores de neve tinham andado por ali, por isso a neve estava escura devido à lama levantada por camiões e tractores. Entre a estrada e o mar havia terra agrícola. Rebanhos amontoavam-se na várzea rodeada de molhes de pedregulhos, pequenas quintas com chaminés a deitar corajosamente fumo tresandando a turfa. Um tractor atravessava um campo arrastando consigo um atrelado carregado de feno, e de uma porta saiu uma mulher que veio deitar pedacinhos de pão ao seu bando de gansos barulhentos. Ao fundo, via-se um homem a andar pela berma da estrada, uma figura solitária, com a cabeça baixa para melhor arrostar a força dos elementos. Trazia um cajado comprido e a seu lado seguia o seu cão-pastor. Ao passarem por ele, parou para lhes dar mais espaço e acenou-lhes com a mão calejada.

- Faz lembrar - observou Carrie -, uma personagem de um quadro de Breughel.

Carrie recordou as quintas no Sul de Inglaterra, muito arborizadas e verdejantes, e a pequena propriedade que seu pai tinha na Cornualha onde as vacas leiteiras pastavam em condições climatéricas como aquelas.

- Não consigo imaginar o que é trabalhar numa quinta com um tempo destes. Parece mais uma questão de sobrevivência do que qualquer outra coisa - comentou.

- Estão sempre preparados para o mau tempo. Os invernos foram sempre duros. Além disso, são de uma cepa resistente.

- Nem podiam deixar de ser.

Iam a caminho para conhecer a fábrica de lanifícios, onde residia o futuro de Sam. Carrie, naquele momento, desejava nunca ter feito a sugestão com tanto à-vontade. «Gostaria de conhecer a sua fábrica», dissera, sem fazer ideia de que ele se mostraria tão entusiasmado com a perspectiva. Isso fora antes de tudo o que acontecera depois, e naquela manhã, claro, era demasiado tarde para recuar, para dar alguma desculpa, para fazer de conta que, afinal, não estava particularmente interessada.

Demasiado tarde. Demasiado tarde para apagar o acesso de sinceridade e espontaneidade que tivera, a verdade que procurara sempre guardar só para si mesma, escondida e esperançosamente insuspeita. Disse de si para si que não conseguia perceber como tudo aquilo viera à baila, sabendo perfeitamente o que precipitara o derrube das defesas, o abrir do seu próprio coração malogrado.

Fora Corrydale. O lugar. A neve iluminada pelo sol, o cheiro perfumado dos pinheiros, os céus azul-escuros, as montanhas ao fundo do estuário reluzente. O calor do sol baixo a atravessar-lhe o tecido acolchoado do casacão, o estalar da neve fresca sob os pés, o deslumbramento, o prazer de encher os pulmões de ar puro e frio. Áustria. Oberbeuren. E Andreas: o lugar e o homem, indivisíveis. Andreas ali, naquele momento, a caminhar ao seu lado, a falar incessantemente, naquele seu tom de voz baixo e brincalhão. Andreas. A fazerem planos, a fazerem amor. A ilusão era tão forte que teve a sensação de sentir o cheiro refrescante a limão da loção de barbear que ele usava. E mesmo sentindo a presença dele tão fortemente, sabia que não passava da sua imaginação delirante. Porque Andreas desaparecera. Voltara para Ingá e os filhos, deixando Carrie com uma tal sensação de dor e perda que a privara imediatamente de toda a possibilidade de permanecer fria e racional.

Sam, ao falar da mulher, do casamento desfeito e do fim do seu trabalho em Nova Iorque, apenas acentuara ainda mais a sua tristeza, e quando o ouvira proferir aquela palavra horrível, «rejeitada», dirigira para ele aquela espécie de raiva de que nunca se julgara capaz, as palavras de fúria tinham-se soltado e as lágrimas haviam rompido o dique. Um choro que a deixara envergonhada e humilhada, e quando tentara fugir da sua própria humilhação, Sam puxara-a contra si e abraçara-a, mantendo-a apertada, como teria feito com uma criança inconsolável.

Naquele momento pensava que, num livro, num filme, aquele momento teria sido o fim. O abraço final, depois de bobinas de antagonismo e incompreensão, a câmara a recuar de modo a fazer um plano geral, subindo até ao céu para mostrar um bando de gansos em voo ou qualquer outro símbolo significativo, enquanto o emocionante tema musical se ouvia, a ficha técnica rolava e ficava a pairar a sensação agradável de um final feliz.

A vida, porém, não parara no final da história. Continuara. O abraço de Sam, os braços dele à sua volta, o contacto físico, a proximidade confortara-a, mas não derretera aquele seu gelo. Ela não mudara. Continuava a ser Carrie, trinta anos, o amor da sua vida desaparecido para sempre. Talvez quisesse ficar mesmo assim, com o coração congelado como a paisagem invernosa que a rodeava. Talvez quisesse ficar mesmo assim.

Elfrida dissera, com tristeza, «O mundo está cheio de homens casados». O melhor era não ficar perto de outra pessoa. Quanto mais perto se ficava, maiores eram as probabilidades de se vir a sofrer.

McTaggart, de Buckly.

A fábrica ficava nos arredores de uma pequena cidade, separada da estrada principal por um muro de pedra e um imponente portão-duplo em ferro forjado, com largueza suficiente para permitir a passagem de um cavalo e uma carroça. No alto via-se um aro decorativo, coroado por um emblema ornado, de aparência vagamente heráldica.

Naquela manhã, o portão encontrava-se aberto, e no lado de lá espraiava-se uma área espaçosa, com canteiros circulares altos para flores, de paredes feitas de pedras arredondadas. A neve cobria tudo naquele momento, mas Carrie calculou que, no Verão, florissem ali uns belos gerânios, lobélias e outras plantas aprovadas pelo município.

A neve apresentava-se virgem de pegadas e trilhas de pneus. Eles eram, sem sombra de dúvida, os primeiros visitantes do dia. Carrie viu a fábrica pela primeira vez através do pára-brisas e percebeu imediatamente o que levara as autoridades ambientalistas a considerarem-na digna de figurar entre os edifícios protegidos. Havia uma chaminé industrial, evidentemente, que se erguia em toda a sua imponência por detrás do telhado cor de piche, assim como outras construções mais utilitárias e armazéns, porém o edifício principal era simultaneamemte impressionante e agradável de ver.

Construído com a pedra local, a sua fachada era longa e agradávelmente simétrica. O frontão central tinha um relógio de torre no alto. Por baixo deste via-se uma única janela no primeiro piso, e depois mais abaixo, uma imponente porta dupla, no cimo da qual havia uma elegante bandeira semicircular em vidro. As alas, uma de cada lado do frontão, tinham uma fiada dupla de janelas, todas formalmente envidraçadas. O telhado inclinado era em ardósia, entremeado de clarabóias e aqui e ali, as paredes de pedra eram suavizadas pelo verde-escuro e brilhante de trepadeiras.

Sam parou em frente da porta grande e desceram para o chão coberto de neve. Carrie deteve-se por um momento, olhando em seu redor, e Sam foi-se pôr ao seu lado, com as mãos enfiadas nos bolsos da sua Barbour. Passado um bocado, perguntou:

- Que tal?

- Acho o edifício muito bonito.

- É como lhe disse, nem pensar em deitar tudo abaixo e começar de raiz.

- Estava à espera de uma fábrica escura, satânica. Isto parece mais uma escola pública com excelente manutenção. Só faltam recintos de jogos com as respectivas infra-estruturas.

- Os edifícios originais da fábrica ficam nas traseiras, mais perto do rio. Este bloco foi erguido em mil oitocentos e sessenta e cinco, portanto é relativamente novo. Foi concebido para ser uma espécie de fachada. Escritórios, salas de venda, salas de reuniões, esse tipo de coisa. Havia até uma sala de leitura para os empregados, um bom exemplo do paternalismo vitoriano. No primeiro andar, o espaço era destinado aos produtos acabados, e no seguinte, nos sótãos, armazenava-se a lã. É preciso ter em conta que o negócio já vinha desde meados do século dezoito. O rio, evidentemente, foi a razão que levou a que a fábrica original fosse implantada neste local específico.

- Tudo parece em ordem. Custa a acreditar que tenha havido uma cheia fatídica - observou Carrie.

- Pois, então, prepare-se. Vai ficar em estado de choque.

Tirou uma chave avantajada do bolso, introduziu-a no buraco da fechadura, virou-a e empurrou a porta aberta. Desviou-se para que Carrie passasse, entrando num vestíbulo quadrado e de tecto alto.

Reinava a maior devastação.

Estava vazio. A marca da altura atingida pela água da cheia ultrapassava mesmo o metro e meio. Acima desta, o lindo papel de parede aveludado sobrevivera, mas, em baixo, toda a cor se desvanecera e o papel pelara, despegando da parede aos bocados. Também no soalho, de tábuas nuas, houvera muitos danos: as velhas tábuas tinham apodrecido e partido; viam-se buracões que mostravam as fundações profundas. No ar, sobrepondo-se a tudo, prevalecia o cheiro deprimente a bolor e humidade.

Esta era a área de recepção destinada aos visitantes, ou novos clientes, onde era importante dar uma boa impressão. Acho que estava tudo muito bem mobilado e alcatifado, com retratos de vários fundadores McTaggart pendurados nas paredes. Como pode ver, a cornija de gesso sobreviveu, no entanto, a cheia destruiu irremediavelmente tudo o resto, que teve de ir para o lixo.

-Quanto tempo demorou a água a descer?

- Cerca de uma semana. Assim que foi possível, instalaram-se secadores industriais, na tentativa de secar as coisas, mas já não se veio a tempo de salvar o que quer que fosse aqui.

- O rio já tinha tido alguma cheia antes?

- Uma vez. Há cerca de cinco anos. Depois disso, construíram uma barragem e uma comporta para controlar o nível da água. Mas, desta vez, a chuva foi implacável e, para piorar ainda mais a situação, coincidiu com uma enorme maré cheia e o rio simplesmente galgou as margens.

- É quase impossível imaginar.

- Eu sei. Venha ver... cuidado, veja onde põe os pés, não quero que caia por um destes buracos nas tábuas.

Ao fundo do vestíbulo havia outra porta, que Sam abriu. Carrie seguiu-o. Era um pouco como passar pela divisória de baeta verde de um casarão com alojamento para empregados, pois ia dar a um espaço de piso lajeado, grande como um armazém e com um tecto de vidro que deixava passar a luz. Estava vazio, fazia eco e reinava nele um frio trespassante. Aqui e ali notavam-se vestígios da indústria que ali imperara, como era o caso dos suportes firmados no chão, onde antes tinham ficado os teares e, ao fundo, uma escada sem corrimão conduzia a uma galeria superior.

Reinava uma sensação de morte e triste desolação.

- O que havia aqui? - perguntou Carrie.

A sua voz ecoou no tecto alto e nas paredes despidas e manchadas.

- Isto é uma sala de tecelagem. Fergus Skinner, o encarregado da fábrica na altura da cheia, contou-me parte do que aconteceu. Nessa noite, estiveram a trabalhar aqui até às onze porque, apesar da água já ter começado a entrar, estavam esperançados de que não subisse muito mais. Não foi o que aconteceu, e eles passaram o resto da noite a levantar tudo o que puderam do chão. Uma tarefa desesperada que de pouco ou nada valeu. Salvaram tudo o que foi possível: os aparelhos de fiação, embora já estivessem muito danificados; as velhas máquinas de madeira de lavar lã e as cardadoras sobreviveram. Financeiramente, o desastre pior reflectiu-se nos produtos acabados, encomendas no valor de milhares de libras, embalados e prontos para enviar. Foi essa a Perda que, verdadeiramente, acabou com a McTaggart.

- O escritório ficava no rés-do-chão?

- Infelizmente, sim. Fergus contou-me que ainda foi até lá no meio da água, que na altura já lhe chegava à cintura, para ver se conseguia salvar alguma coisa, mas os computadores já estavam submersos e os documentos flutuavam pelo corredor fora, na sua direcção...

- Que aconteceu no dia seguinte? Os trabalhadores?

- Foram todos dispensados. Sem alternativa. Mas quando as águas baixaram, uma centena de homens apareceu por aqui para tentar salvar o que fosse possível. Metade da maquinaria teve de ser arrancada aos bocados, incluindo as lançadeiras de tear electrónicas alemãs, recentemente instaladas. De nada valeu toda essa tecnologia moderna e extremamente cara. O que sobreviveu foi parte das máquinas mais antigas e menos sofisticadas, teares que tinham sido comprados em segunda-mão e já tinham quarenta ou cinquenta anos. Os engenheiros desmontaram a cardadora e limparam-na antes que ganhasse ferrugem, portanto essa pode ser aproveitada. E havia algumas máquinas especializadas, vindas de Itália. Neste momento estão armazenadas e tencionamos mandá-las para Milão, a fim de serem renovadas e postas de novo a funcionar.

Carrie, apesar de fascinada e atenta, começara a sentir frio. A humidade gélida insinuou-se através das solas das suas botas e fê-la tremer. Sam reparou e ficou cheio de remorsos.

- Carrie, desculpe. Quando começo a falar nisto, esqueço-me de tudo o resto. Quer ir embora? Já lhe chega, não?

- Não. Quero ver tudo. Quero que me mostre tudo e me diga o que vai fazer, quais são os novos planos e onde tudo vai ficar. Neste momento estou completamente avassalada pela perspectiva de fazer o quer que seja. É assustador. Como ter entre mãos uma missão impossível.

- Nada é impossível.

- Ainda assim... ser o responsável por isso...

- É verdade, mas disponho dos recursos de uma enorme multinacional na retaguarda. Isso faz uma diferença dos diabos.

- Mesmo assim. Eles escolheram-no para este trabalho. Porque terá sido?

Sam sorriu e ficou imediatamente não só com um ar juvenil como também transbordante de confiança. Sabia do que estava a falar. Pisava terreno conhecido.

Respondeu:

- Imagino que, basicamente, tenha sido por ser nado e criado no Yorkshire. E filho de peixe sabe nadar. Agora venha ver o resto, antes que congele...

Quando a visita terminou e saíram, finalmente, para o exterior, Carrie estava gelada até aos ossos. Ficou sobre a neve, esperando que Sam fechasse e trancasse a porta da fábrica. Depois ele virou-se e viu-a, encolhida dentro do seu casacão grosso cinzento, com as mãos enfiadas até ao fundo dos bolsos.

Parece enregelada, Carrie.

- E estou.

Desculpe. Não a devia ter deixado ficar ali dentro tanto tempo.

Eu gostei. Os meus pés é que congelaram.

- Espero não tê-la aborrecido.

- De modo nenhum. Estou fascinada. Sam consultou o relógio.

- São onze e meia. Voltamos já para Creagan ou prefere tomar antes uma bebida reconfortante? Está com ar de quem apreciaria um Whiskey Mac.

- Um café bastará.

- Como quiser. Venha daí, entre no carro que não tardamos a aquecer.

Afastaram-se então da fábrica deserta, rolando sobre as pedras arredondadas e passando o magnífico portão; depois viraram à direita e desceram a estrada até Buckly, percorrendo ruas estreitas e serpenteantes até chegarem a uma pequena praça com uma estátua que era um memorial de guerra. Viam-se poucas pessoas na rua, no entanto, as lojas pequenas tinham as luzes acesas e decorações natalícias nas montras. A seguir atravessaram uma ponte de pedra que unia as duas ravinas de um rio caudaloso, e, pouco depois, Sam parou em frente de um estabelecimento de ar sombrio que tinha as palavras DUKE's ARMS escritas em letras arredondadas a dourado. Carrie não se mostrou muito entusiasmada.

- Tenho a certeza - disse-lhe Sam -, de que em Buckly há lugares mais animados, mas por acaso só conheço este. E é, no seu estilo bem próprio, uma raridade.

- Não me parece nada divertido.

- Faremos com que fique.

Apearam-se, atravessaram o passeio e Sam empurrou a porta, que deixou passar um cheiro quente a cerveja. Carrie seguiu-o, devagar. O interior revelou-se escuro e gasto, mas gloriosamente superaquecido. Na lareira antiquada crepitava um fogo de carvão e sobre a cornija estava pendurado um peixe enorme, dentro de uma estrutura de vidro. Pequenas mesas vacilantes tinham bandejas para copos de cerveja e cinzeiros. Dava a impressão de que só ali estavam outros dois clientes, ambos em silêncio, homens e idosos. O proprietário, ao balcão do bar, olhava atentamente para um pequeno televisor a preto e branco, cujo volume de som se resumia a um murmúrio. Ouvia-se o tiquetaque de um relógio e, na fogueira, um pedaço de carvão tombou com um baque quase inaudível. O ambiente era tão sombrio que Carrie perguntou a si mesma se não seria melhor darem simplesmente meia volta e saírem de mansinho.

Sam, porém, tinha outras ideias.

- Venha - disse, fazendo com que a sua voz soasse audivelmente na sala. - Sente-se aqui, perto da fogueira. - Afastou uma cadeira da mesa. - Tenho a certeza de que haverá café se quiser um, mas não preferia experimentar um Whiskey Mac? É a bebida mais quente do mundo.

Parecia mais tentador do que o café.

- Está bem.

Carrie sentou-se, tirou as luvas, desabotoou o casaco e estendeu as mãos para o fogo. Sam foi até ao balcão, onde o homem se afastou da televisão com esforço para receber o seu pedido. A partir daí, como acontece muito nos pubs rurais, puseram-se a conversar, falando em voz baixa como se trocassem segredos.

Carrie tirou o chapéu de pele e pousou-o em cima da cadeira ao seu lado. Passou os dedos pelo cabelo e reparou no velho sentado por baixo da janela. Os olhos remansosos exprimiam a mais total desaprovação, o que fez com que Carrie deduzisse que o Duke's Arms não era frequentado por mulheres. Tentou sorrir-lhe, mas ele limitou-se a mastigar a dentadura, desviando a atenção para a sua cerveja.

A conversa ao balcão continuou. Sam estava de costas para ela, na clássica posição de homem à vontade no seu bar do costume, com um pé apoiado no varão de metal e um cotovelo sobre o balcão lustroso. O barman foi tomando nota do pedido de Sam com toda a calma, parando de vez em quando para tomar conhecimento do que iam dizendo na televisão.

Carrie encostou-se às costas duras da cadeira e esticou as pernas, ficando a observá-los. Pensou que naquela manhã é que ela vira, pela primeira vez, o outro lado de Sam, o homem que viera do meio da neve, apenas três ou quatro dias antes, que fora obrigado pelo mau tempo a ficar e tornara-se, sem esforço aparente ou bonomia forçada, parte integrante de uma casa de gente diversificada. Absorvido com a mesma facilidade com que o seria um velho convidado compenetrado.

Lembrou-se de o ver encarregar-se, sem que lhe pedissem, de uma série de tarefas muito pouco excitantes, como carregar enormes cestos de lenha, encher o cesto de carvão, passear o cão, trinchar um faisão assado e até estripar um salmão que Élfrida, num momento de loucura, não resistira a comprar ao homem que vendia peixe fresco na parte de trás da sua carrinha. Sam tirara neve à pazada sem se queixar, empurrara carrinhos de supermercado, repusera o estoque de vinho na adega de Oscar e comprara a árvore de Natal. Melhor ainda, montara-a no seu suporte de madeira e, por fim, conseguira desenredar e pôr a funcionar a gambiarra de Natal que todos os anos era uma dor de cabeça.

Oscar mostrara-se particularmente grato por este nobre esforço.

A um outro nível completamente diferente, provara ser uma ajuda preciosa quando Élfrida resolvera vender o seu quadro, fazendo aparecer Sir James Erskine-Earle não se sabia de onde, qual coelho tirado de uma cartola. O facto desse projecto ter dado em nada aborreceu Sam consideravelmente, como se a falta de valor da pintura fosse, de certo modo, da sua responsabilidade.

Era um homem a quem era difícil resistir. Ele e Oscar (que não se deixava enganar) tinham ficado logo amigos e companheiros, ao ponto da diferença de idades não prejudicar minimamente. Quando ficavam sozinhos, não lhes faltavam assuntos dos quais falar, pois Oscar gostava de partilhar recordações dos seus tempos de rapaz, quando ia passar o Verão com a avó a Corrydale. Como conhecia bem a zona, não só as pessoas como também a terra, pôde transmitir muitas informações a Sam, contando-lhe também uma série de anedotas sobre o distrito onde Sam iria viver e trabalhar.

Saltava à vista que Oscar apreciava a companhia de outro homem, talvez um desconhecido, mas a quem se apegara instantaneamente. Estava fascinado pelo progresso da carreira de Sam, pela meninice passada no Yorkshire, os anos vividos em Londres e em Nova Iorque, tendo agora pela frente o desafio de pôr um negócio defunto de novo em pé. Ao relembrar o velho McTaggart e os robustos tweeds que tinham saído dos seus teares, sentia-se espantado com os excitantes planos já traçados pela Sturrock & Swinfíeld, a maquinaria caríssima encomendada na Suíça, as maravilhas da tecnologia moderna, as perspectivas de mercado para os artigos de luxo, além do programa de reciclagem para os trabalhadores - o bem mais precioso de McTaggart.

De vez em quando, num momento de lazer, deambulavam juntos até ao clube de golfe, ou passavam pelo pub de Creagan para uma conversa pacata entre homens.

Também Elfrida estava embevecida pelo seu hóspede. Mas enfim, nunca fora capaz de resistir aos encantos de um homem atraente, sobretudo um que ria das suas observações espirituosas e era capaz de preparar um martini seco impecável. Quanto a Lucy confidenciara certa noite a Carrie, quando esta subira ao sótão para lhe dar as boas-noites, que achava Sam quase tão bonito como Mel Gibson. Divertida, Carrie perguntara-lhe:

- Nesse caso simpatizas com ele, não é?

- Sim, simpatizo. É bonito e está-se à vontade ao pé dele. Normalmente sinto-me tímida na companhia de homens, como, por exemplo, os pais das minhas amigas, mas Sam é uma espécie de tio que já se conhece há muito tempo ou um velho amigo.

E fora assim que tudo se passara. E era assim que tudo teria ficado Para Carrie, se não tivessem sido os acontecimentos traumatizantes do dia anterior.

E aquela manhã.

Nada, realmente, nada acontecera. Mas o facto de ter acompanhado Sam pelas salas imponentes e frias da fábrica, os corredores que faziam eco, os armazéns vazios e as salas de tinturaria, levara-a a tomar con ciência, pela primeira vez, do alter ego de Sam. Este pareceu mudar perante os seus olhos. Cresceu em estatura ao descrever-lhe a devastação provocada pela cheia, falou com confiança e autoridade, explicou os planos para o futuro e citou números que lhe puseram a cabeça à roda. Uma vez ou duas tentou explicar-lhe pormenores técnicos ligados à fiação e à tecelagem, que ela mal entendeu, pois era um pouco como se ele falasse numa língua estrangeira. Irritada pela sua própria ignorân cia, sentiu-se inferiorizada e também confusa, porque Sam, de volta ao seu próprio mundo, mostrava-se estranhamente transformado. Deixara de ser o amável hóspede dos últimos dias para assumir o comando, um homem que não se podia deixar de respeitar e que ninguém desejaria ter como inimigo.

Sam regressou, finalmente, para junto dela, trazendo duas bebidas e dois pacotes de amendoins.

- Desculpe.- Pousou tudo em cima da mesa e puxou de uma cadeira. - Estive na conversa.

- De que falavam?

- Futebol. Pesca. Do tempo. De que mais poderia ser? - Trouxera uma caneca de cerveja para si. Ergueu-a e os olhos de ambos encontraram-se. - Slàinte.

- Não conheço o dialecto.

- É «bota abaixo» em gaélico.

Carrie tomou um gole da sua bebida e pousou apressadamente o copo.

- Caramba, que forte!

- Nada melhor que isso para aquecer quando se está na montanha em pleno Inverno. Isso ou ginja.

- Como é que vai estar o tempo?

- Vem aí um degelo. Por isso é que o nosso amigo está colado ao televisor. O vento está a mudar para sudoeste e há correntes de ar mais quentes en route1.

- Não iremos ter um Natal branco?

- Será mais branco molhado do que branco gelado.

- Isso significa que o Sam vai desaparecer instantaneamente?

- Não. - Sam sacudiu a cabeça. - Convidaram-me para o Natal, portanto fico. Seja como for, não tenho mais lado nenhum para onde irMas a vinte e seis ou vinte e sete terei de descer à terra e fazer as malas para me ir embora. - Sorriu melancolicamente. - Será um pouco como chegar ao fim das férias e voltar para a escola.

- Não importa. Vem por aí muita alegria e animação. Como a festa de Elfrida, por exemplo.

- Terei de estar presente. Prometi que seria eu a preparar o martini seco.

-Não o faça demasiado forte. Não queremos nenhum comportamento indecoroso, como Lady Erskine-Earle e Artur Snead a dançarem o Highland Flings juntos.

Isso seria desastroso.

-Quando... quando for para Inverness, ficará por lá?

Não. Tenho de estar em Londres na semana seguinte. A sede abre durante dois dias antes do Ano Novo e David Swinfield marcou uma reunião para essa altura. Depois, creio que irei novamente à Suíça. regressarei por volta de doze de Janeiro.

- Lucy e eu vamos dia três. Temos reservas no voo da manhã. Mordiscou o lábio, reflectindo no assunto. - Não estou nada ansiosa para que esse dia chegue. Acho que Lucy vai ficar desconsolada, e não sei o que lhe dizer para a animar. Só sei que não queria estar no lugar dela, deixar toda esta alegria e liberdade para voltar a encafuar-se dentro daquele apartamento, junto de uma mãe que não ficará especialmente satisfeita por vê-la.

- Não pode ser assim tão mau.

- Mas pode crer que é, Sam.

- Lamento. vou comprar-lhe um esplêndido presente de Natal. Que acha que ela gostaria de receber?

Carrie achou graça.

- Ainda não fez as suas compras?

- Tem de reconhecer que mal tive tempo. Amanhã de manhã irei a Kingsferry tratar do assunto.

- Amanhã? Será um pesadelo. Multidões nos passeios, bichas nas lojas.

- Em Kingsferry? Duvido. Além disso, estou acostumado a comprar os presentes na Regent Street ou na Quinta Avenida na véspera de Natal. A confusão e a barulheira dão-me um certo gozo. E ouvir a miudagem a berrar pelo Tannoy fora: «Eu vi a mamã a dar um beijinho ao Pai Natal.» E haverá tempo para estar no meio dessa mesma confusão.

Carrie riu.

- Isso para mim seria um pesadelo, mas compreendo o seu ponto de vista. E, vendo bem, com todos esses anos de experiência, a rua principal de Kingsferry não parecerá minimamente alarmante. Não terá dificuldade em abrir caminho por entre a multidão.

- Ainda não me disse o que hei-de comprar para Lucy.

- Que tal um pequeno par de brincos em ouro? Algo bonito, mas não demasiado vistoso, para quando tirar os que agora traz - sugeriu Carrie.

- Que Rory lhe ofereceu. Duvido que alguma vez os queira tirar.

- Mesmo assim. Será agradável saber que tem outro par.

- Verei.

Sam ficou calado. Gerou-se um momento de silêncio entre os dois que lhes soube bem. Lá fora, na rua, um carro passou, e algures, uma gaivota piava desalmadamente do cimo de uma chaminé açoitada pelo vento. Sam pegou num dos pacotes de amendoins, abriu-o com rapidez e destreza, deitou alguns na palma da mão e ofereceu-os a Carrie.

- Não sou grande apreciadora de amendoins - confessou ela. Sam comeu alguns e atirou de novo o pacote para cima da mesa.

- Simpatizo com Lucy. Uma destas manhãs concluí que a vida na Casa da Quinta é um pouco como estar num cruzeiro com mais alguns passageiros, maravilhosamente afastado de todo o stress e das tensões do dia-a-dia. Tenho a sinistra sensação de que seria perfeitamente capaz de me deixar andar a meio gás durante semanas, sem fazer o que quer que fosse.

- Se pensar nisso, suponho que chegará à conclusão de que, para si, tudo o que aconteceu representou uma certa perda de tempo.

Sam franziu a testa.

- Uma perda de tempo?

- Bem, o que o trouxe a Creagan foi inspeccionar a casa de Hughie McLellan, talvez comprá-la. Tudo isso foi por água abaixo. Portanto, agora vai ter de procurar algum outro lugar para morar.

- Isso é o que menos me preocupa, neste momento.

- Eu não estou a favor de ninguém. Por um lado, agrada-me a ideia de Mister Howard, director da fábrica, viver na Casa da Quinta, um lugar adequadamente digno para um homem importante. Por outro, parece-me ser o lar indicado para Elfrida e Oscar viverem felizes o crepúsculo da sua vida.

- Não considero Elfrida no crepúsculo da vida. Diria antes que está a passar pelo meio-dia. Mas tudo tem a ver, como acontece com a maioria das coisas, com uma detestável questão de dinheiro. Talvez tenha sido uma desilusão, mas nunca uma perda de tempo. Que isso nunca lhe passe pela cabeça.

Carrie pegou no copo e tomou mais um gole da bebida ardente e revigorante. Pousou-o sobre o tampo de madeira da mesa cheio de marcas e olhou para Sam. Nunca uma perda de tempo. Aconteceu então algo de extraordinário, pois, de repente, foi como se ela o visse de verdade pela primeira vez. Percebeu que aquela sua nova visão dele chegava demasiado tarde, pois ele iria embora e tudo terminaria, e o mais provável era nunca mais voltar a vê-lo.

Talvez fosse o calor da fogueira ou o efeito do Whisky Mac, mas o certo é que, de repente, sentiu-se perigosamente emocionada e bastante insegura de si mesma. Reflectiu no modo como os feridos, resultantes de algum acidente pavoroso, ficam ligados a todo o tipo de tubos e máquinas, enquanto os entes queridos ficam à sua cabeceira, pegando-lhes na mão, falando, esperando por algum indício de entendimento ou outro sinal. Depois, o milagre. A pálpebra que estremece, o meneio da cabeça. O começo da recuperação.

No dia anterior, em Corrydale, depois da torrente de palavras que jorrara e das lágrimas de raiva que vertera, Sam abraçara-a e mantivera-a apertada contra si até parar de chorar. Mas ela não sentira nenhuma emoção, nenhuma atracção física à sua proximidade, apenas uma gratidão relutante pelo seu consolo, e vergonha por se comportar como uma tola.

Naquele momento, porém... talvez fosse o começo da recuperação, o derretimento da frieza de que se armara. Amar. Ser amada novamente...

- Carrie.

- Podemos falar?

- Sobre o quê?

- Nós dois. - Carrie não respondeu. Passado um bocado, Sam, talvez encorajado pelo seu silêncio, prosseguiu: - Tenho a impressão de que nos encontrámos e começámos a conhecer-nos em má altura. Estávamos os dois, por assim dizer, numa espécie de limbo. Talvez precisemos de um pouco de espaço para pôr em ordem os nossos vários problemas. Além disso, nenhum dos dois está livre. A Carrie responsabilizou-se moralmente por Lucy e eu continuo casado com Deborah. Sam observou a reacção de Carrie com expressão simultaneamente ansiosa e grave. Como era óbvio, a maneira como Carrie reagisse tinha a maior importância para si.

- Que é que está a querer dizer-me, Sam?

- Que talvez devêssemos dar algum tempo a nós próprios. A Carrie regressa a Londres, volta a tomar posse da sua casa e assume o novo emprego. Eu entro em contacto com o advogado de Deborah, em Nova Iorque. Tenho quase a certeza de que nesta altura ela já iniciou o processo. Não sei quanto tempo levará, mas como não há filhos, tudo será mais rápido e sem grandes complicações. Questões simplesmente materiais. O apartamento, o carro, o dinheiro.

- É mesmo isso que deseja? O divórcio?

- Não. - Era completamente sincero. - Não o quero. Do mesmo modo que não quereria uma amputação cirúrgica. Mas tenho de me livrar do passado para poder embarcar num novo futuro. Livrar-me de uma série de empecilhos emocionais.

- Deborah ficará bem?

- Espero que sim. E também desejo que seja feliz. Dispõe do apoio de uma família muito amiga e dedicada.

- Terá de ir a Nova Iorque?

- Provavelmente.

- Irá ser penoso?

- Terminar algo que já foi bom, tende a ser doloroso. Mas depois de tudo terminado, a mágoa desaparece.

- Sei do que fala - observou Carrie.

Sam prosseguiu:

- Eu ficarei a viver e a trabalhar aqui em Buckly. A Carrie estará em Londres. A centenas de quilómetros de distância. Mas também sei que terei de andar de um lado para outro entre Londres e aqui, para reuniões, conferências e coisas do género. Por isso pensei que... nos poderíamos ver de novo. Ir a um concerto, jantar fora. Começar de novo. Como se este tempo nunca tivesse acontecido.

Começar de novo. De fresco. Os dois. Carrie declarou:

- Eu jamais quereria que este tempo não tivesse acontecido.

- Ainda bem. Tem sido extraordinário, não tem? Mágico. Como dias roubados a uma outra vida, um outro mundo. Quando chegarem ao fim e eu me for embora, ficarei cheio de saudades.

Carrie tinha a mão pousada sobre a mesa, entre os dois, e a luz da fogueira reflectia-se nas faces facetadas do seu anel de diamantes e safira, arrancando-lhe reflexos.

Sam perguntou, sem curiosidade:

- Quem lhe deu esse anel?

- Andreas.

- Estava esperançado de que tivesse sido alguma tia idosa mas dedicada.

- Não. Foi Andreas. Estávamos juntos em Munique. Ele viu-o num estojo de veludo na montra de uma loja de antiguidades e entrou para mo comprar.

- Deve andar sempre com ele - observou Sam. - Fica muito bem na sua mão. Como é que eu a encontro em Londres, Carrie?

- Na Overseas. Bruton Street. Vem na lista telefónica. E a partir de Fevereiro volto a morar na Ranfurly Road.

- Já não vou a Fulham desde que vendi a minha casa na Eel Park Common e parti para Nova Iorque. Talvez apareça por lá. Para matar saudades. Mostrar-me-á então onde mora.

- com certeza. Farei o jantar.

- Nada de promessas. Nem de compromissos.

- De acordo.

- Portanto ficamos assim?

- Ficamos assim.

- Óptimo - disse Sam.

Então, como que para firmarem o combinado, ele cobriu a mão de Carrie com a sua e esta virou a sua para cima, envolvendo-lhe o pulso com os dedos. As bebidas chegaram ao fim, os amendoins ficaram esquecidos e talvez fosse altura de se retirarem, mas ambos estavam relutantes em fazê-lo. Deixaram-se, pois, ficar, enquanto o barman assistia a um concurso televisivo ao mesmo tempo que ia polindo lentamente copos com um pano. E os dois idosos, com as cabeças afundadas na gola dos seus sobretudos coçados, continuaram sentados, velhos e silenciosos como um par de tartarugas a hibernar. Pareciam ignorar que, enquanto passavam ali o resto da manhã, todo o mundo mudara.

 

Sam

Nesse final de tarde, eram seis e meia, Sam encontrava-se, mais uma vez, num pub, mas dessa vez em Creagan e na companhia de Oscar.

«Vamos tomar um copo», sugerira Oscar.

Estavam sozinhos na sala de estar da Casa da Quinta. Os outros andavam ocupados noutros sítios: Carrie e Elfrida às voltas na cozinha, a prepararem o jantar, comida para a festa que teria lugar no dia seguinte, assim como os preparativos demorados para a ceia de Natal. Rory aparecera a meio da tarde com uma braçada enorme de ramos de azevinho cheio de bagas vermelhas, e ele e Lucy tinham-se lançado nas decorações, tarefa que ainda decorria. Tinham ido ao fundo do quintal arrancar algumas pernadas compridas de hera verde-escura, e envolver todo o corrimão, do sótão ao vestíbulo, com ela estava a custar-lhes um grande esforço e a exigir-lhes muita concentração. Rory fora convidado para o jantar e aceitara, o que dava mesmo jeito, pois tudo parecia estar a levar bastante tempo.

O pub de Corrydale era bastante mais alegre do que o Duke'Arms de Buckly, embora Sam achasse que recordaria sempre aquele lugar simplório com grande afecto e algum sentimento. Ali, as festividades da temporada já pareciam ter começado e havia caras desconhecidas no bar. A um canto, já se via um grupo muito animado: jovens, elegantemente trajados de tweed, e as respectivas namoradas, com sotaque londrino. Saltava à vista que vinham de alguma casa de campo de família nas redondezas, aonde iriam passar o Natal e o fim de ano. Estavam, pensou Sam - esquecendo que em tempos também ele se comportara com igual tempestuosidade - a fazer um barulho excessivo e embaraçante.

Mas o ambiente era de grande animação. As lareiras crepitavam e o espaço estava todo enfeitado com Bambis de cartão e Pais Natal cobertos de partículas brilhantes, habilmente intercalados de azevinho.

Abrir caminho até ao bar levou algum tempo, assim como obter a atenção do barman frenético, mas Oscar pedira finalmente dois Famous Grouse, um para Sam com gelo e outro para si, com um pouco de água da torneira. A seguir, tiveram de passar em revista o lugar em busca de um sítio onde se pudessem sentar. Por fim, instalaram-se numa mesa desocupada que ficava a um canto escuro, longe da lareira. Não importava. Havia calor suficiente.

Oscar saudou, «À nossa!,» tomou um gole e foi directo ao assunto:

- Achei que seria mais fácil conversarmos aqui do que em casa. Normalmente ou é o telefone que toca ou aparece alguém a perguntar alguma coisa. Não quis que fossemos incomodados.

- Oscar, olhe que tudo isto me está a parecer altamente sinistro.

- De sinistro nada tem, meu caro, apenas ligeiramente complicado E eu queria falar consigo a sós.

- Que aconteceu?

- O que aconteceu é que o major Billicliffe morreu. Certamente já lhe constou... sabe quem era o major Billicliffe, não sabe?

- O velho feitor que se encontrava hospitalizado.

- Exactamente.

- Lamento.

- Lamentamos todos, mas por razões diferentes. Seja como for, faleceu. Penso que estava doente há muito tempo, há mais tempo do que qualquer um de nós suspeitava. Para atalhar, Sam, ele deixou-me a casa que tinha em Corrydale.

- Mas isso são notícias maravilhosas!

- Não estou tão certo. Aquilo está em muito mau estado.

- Carrie e eu passámos por lá quando fomos buscar a árvore de Natal. Pareceu-me um pouco abandonada e completamente coberta de neve, mas diria que é uma bela propriedade. E, claro, com uma vista fantástica dos campos e das árvores até à água.

- Além da casa - continuou Oscar -, também me deixou o seu automóvel e a sua labrador, assim como uma pequena quantia de dinheiro.

Sam fez uma careta.

- No que se refere ao carro, não vejo grandes perspectivas. Deu-me a impressão de que nunca mais volta a pegar. Quanto à cadela, penso que tem estado com Charlie Miller. Talvez o convença a ficar com ela.

- Pois é.

- Oscar, são óptimas notícias. Que pensa fazer com a casa? Vendê-la? Ou então podia transformá-la num sítio para alugar nas férias que lhe proporcionasse um dinheirito, como eles dizem.

- Sim - retorquiu Oscar -, podia. Mas Elfrida e eu estamos a pensar na possibilidade de ir viver para lá. Sei que parece um pouco estranho e tudo depende da reacção de Elfrida quando vir realmente como aquilo é. Sabe, ela nunca foi a Corrydale. Antes de vocês chegarem, reconheço que pouco fazíamos. Mantínhamos uma certa discrição. Além disso, ela sabia que, estranhamente, eu tinha um certo receio em voltar a um lugar onde, há muito tempo, fora tão feliz.

Compreendo.

Claro que, quando cá chegámos, passámos logo por lá para ir buscar a chave da Casa da Quinta, mas estava escuro e frio, sentíamo-nos fatigados e como o velho Billicliffe não era o mais agradável dos anfitriões, não descansámos enquanto não nos viemos embora. Quando adoeceu e fui vê-lo, estava ele de cama, tudo parecia ainda pior. De modo que a impressão que temos do local é tão má que temos de pensar muito bem antes de nos decidirmos, e dar uma boa vista de olhos a tudo.

- Gostariam de ir viver para lá? - perguntou Sam. - Não é muito isolado?

- Nem por isso. Um pouco afastado da estrada, mas com vizinhos à volta. A casa de quinta, os Miller, e Rose, que foi empregada da minha avó. Uma pequena comunidade. A casa deve precisar de umas boas obras e teremos de reflectir nisso, mas a ideia é viável.

- Pareceu-me um pouco negligenciada, mas o telhado não estava a cair nem havia janelas partidas. Que espaço teriam? - perguntou Sam.

- Antigamente todas as casas de quinta tinham a mesma concepção, duas divisões em cima, duas em baixo. Depois da guerra acrescentaram-lhes pequenas cozinhas e casas de banho.

- Haverá espaço suficiente para vocês dois?

- Penso que sim. Aqui entre nós, não temos muitos tarecos.

- E a Casa da Quinta?

- Por isso é que quis falar consigo. Se mudarmos para Corrydale, Elfrida e eu queremos que fique com a nossa parte. Isso significa que pode entrar em contacto com Hughie e dizer-lhe que deseja comprar ambas as partes.

- Se mudarem para Corrydale?

- Sim.

- E se Elfrida não quiser viver lá? E se vocês mudarem de ideia depois de verem bem aquilo por lá?

- Nesse caso, teremos de repensar o assunto. Mas olhe que não tenho vontade nenhuma de que isso aconteça. Claro que será preciso gastar algum dinheiro para tornar a casa segura, seca e quente. Pintá-la e, provavelmente, substituir as janelas. Esse tipo de melhorias. Mas, aqui entre nós, não teríamos problemas em fazê-lo. E se eu receber setenta e cinco mil pela minha parte da Casa da Quinta, então é que não haverá mesmo nenhuma dificuldade financeira.

- Setenta e cinco mil, Oscar?

- Foi a soma que mencionou.

- Não. Foi a soma que Hughie mencionou. O que acaba de me dizer muda tudo.

- Não compreendo.

- Estou convencido de que o seu primo Hughie está a precisar muito de dinheiro. E depressa. Foi por isso que não descansou enquanto não me meteu a chave na mão e se mostrou tão ansioso por evitar a despesa acrescida de uma fatia para um agente imobiliário. Pessoalmente, acho que a Casa da Quinta vale muito mais do que cento e cinquenta mil libras. Portanto, tem de se pôr em campo, Oscar. Antes de continuarmos a falar neste assunto, precisa de mandar fazer uma avaliação independente. Depois disso, é consultar um advogado para tratar da escritura. É possível que lhe digam, estou convencido disso, que a casa vale bastante mais do que cento e cinquenta mil libras. Pessoalmente oferecer-lhe-ia mais cinquenta mil. Se calhar, mais. Oscar ficou de boca aberta.

- Duzentas mil libras?

- No mínimo. E outra coisa, Oscar. Pode resolver-se a pô-la no mercado aberto.

- Não. Quero vendê-la a si.

- Um negócio privado?

- Sim.

- Nesse caso, a lei obriga-me a fazer-lhe uma oferta bem acima do preço avaliado. - Sam sorriu. - Tudo indica, portanto, que o Oscar vai sair-se muito bem.

- Estou estupefacto. De que lado está o Sam?

- Do seu e do de Elfrida. Vocês têm aqui uma propriedade maravilhosa, e eu não podia ter mais vontade de a comprar. Mas não ficaria bem com a minha consciência se o negócio não fosse feito da forma mais isenta.

- Dispõe dessa quantidade de dinheiro?

- Disponho. E mesmo que assim não fosse, tenho a Sturrock & Swinfíeld por trás de mim, sólida como uma rocha. Trabalhar para uma grande multinacional tem as suas vantagens.

Oscar sacudiu a cabeça, completamente siderado pela evolução dos acontecimentos.

- Bem, diabos me levem! - exclamou. Sam riu-se.

- Não se entusiasme de mais. Pelo menos até inspeccionar bem essa sua outra propriedade.

- Refere-se à casa do Billicliffe. Elfrida achou que podíamos ir todos até lá no domingo de manhã e dar uma olhada. E emprestar uma certa pomposidade à ocasião. Fazer um piquenique. Se chover ou nevar, será dentro de casa. Tenho de descobrir quem tem a chave. Telefonarei a Rose. Ela deve saber.

- Tem a certeza de que nos quer a todos lá? Não se deve deixar influenciar. A decisão deve ser sua e de Elfrida. Devem-no a vocês mesmos.

- Claro que devem vir. Elfrida precisa de si para bater nas paredes e ver se há caruncho na madeira.

- Isso é pôr demasiada tentação na minha frente. Poderei fazer de conta que não há.

-Não creio que fosse capaz disso - redarguiu Oscar. - O Sam é um bom homem.

- Um santo. E para o provar e fechar o negócio, deixe-me oferecer-lhe mais uma dose. Assim, parecerá que somos os dois homens gastadores e merecemos brindar um ao outro.

 

Lucy

Sexta-feira, 22 de Dezembro

Eu adoro estar aqui porque as coisas que desejamos acontecem, e acontecem na altura absolutamente certa. O dia de hoje foi, todo ele, cheio de acontecimentos inesperados. Ainda está terrivelmente frio, e ventoso também, o que ainda torna o frio mais intenso, mas ainda assim isso faz parte do que vai acontecendo. Deixou de nevar, mas ainda se vê neve por todo o lado, e as ruas são metade neve meio derretida, metade lixo congelado. Para se ir às compras, tem de se andar pelo meio da rua. Seja como for, esta manhã estava eu a embrulhar os meus presentes de Natal quando a fita se me acabou. Fui comprar mais um bocado e aproveitei para levar Horace a dar um passeio. Fomos até à praia e quando voltámos para casa e para o calor, soube mesmo bem. À tarde, Rory apareceu com montes de azevinho que surripiou do jardim do hotel (o hotel está fechado) e passou a tarde toda a ajudar-me nas decorações. Pusemos azevinho à volta dos quadros (dos poucos que existem) e num jarrão grande no patamar. Depois fomos apanhar hera e arranjámos um bocado de cordão verde para prendê-la pelo corrimão, de cima a baixo. A hera tinha uns insectozitos, mas passado um bocado já lá não estavam, se calhar foram fazer pequenos habitáculos acolhedores pela casa toda. A hera deita um cheiro forte, mas é um agradável odor natalício. Levámos muito tempo, tanto tempo que Elfrida convidou Rory para ficar para o jantar, para assim podermos terminar tudo. Enquanto o fazíamos, Elfrida e Carrie estiveram na cozinha a fazer os preparativos para os próximos dois dias. Havia scones quentinhos para o chá, feitos por Carrie. Por volta das seis da tarde, ainda elas estavam metidas na cozinha, Oscar e Sam foram até ao pub tomar uma bebida, e quando voltaram, Rory e eu já tínhamos terminado e Oscar disse que estava tudo muito bonito. Sam sugeriu que puséssemos uma gambiarra de luzes ao longo da hera, mas como não tínhamos nenhuma, ofereceu-se para a trazer de Kingsferry quando lá fosse às compras no dia seguinte.

Acho que ele é a pessoa mais generosa que eu conheço. O jantar foi espaguete à bolonhesa com queijo, e depois empadas de carne e leite-creme. Então, durante o jantar, quando estávamos todos a falar, Oscar mandou-nos calar e escutar. Portanto assim fizemos.

Contou-nos que tem uma outra casa. O major Billicliffe, que era feitor em Corrydale, morreu no hospital em Inverness e deixou tudo o que possuía no seu testamento a Oscar, o que inclui a tal casinha na quinta Corrydale.

Nunca lá fui, mas claro que Sam e Carrie já lá estiveram, no dia em que foram buscar a árvore de Natal. E Elfrida também já lá foi, só uma vez, embora fosse escuro.

Seja como for, o que Oscar pretende fazer é vender a sua parte a Sam, que a quer comprar, e ele e Elfrida irão morar nessa tal outra casinha. Custa-me pensar que vão sair daqui, mas Elfrida diz que isto é um bocado grande de mais para eles, e eu até compreendo porque, quando nos formos embora, ficará muito vazio. Diz que, entre os dois, têm dinheiro suficiente para tornar a pequena casa do major Billicliffe muito bonita, e como têm vizinhos, não estarão sozinhos nalguma emergência. Mas nada será decidido até irmos a Corrydale dar uma vista de olhos. De modo que iremos no domingo de manhã, Sam irá a guiar no seu Range Rover e faremos um piquenique. Eu perguntei se Rory também podia ir e Elfrida respondeu, É claro.» Vamos de manhã cedo, para podermos voltar antes do escurecer, e com um pouco de sorte haverá sol e teremos um piquenique a sério. Neste momento, já são dez da noite e estou muito cansada. Espero que todos nós gostemos da nova casinha. De certa maneira, penso que será maravilhoso Elfrida e Oscar viverem no campo. E isso significa que ele regressará a Corrydale, que era a casa da avó quando era pequeno. Como uma roda que completa um círculo. Ele é muito querido e desejo mesmo que a casinha seja perfeita para eles, para quando eu voltar para Londres poder pensar nos dois lá, juntinhos.

Os meus presentes estão mesmo bonitos, todos embrulhados. Assim que os terminei, fui pô-los ao pé da árvore de Natal, na sala de jantar. Já lá encontrei alguns e depois de lhes dar uma boa olhada, vi que eram de Carrie para todos nós. com um pouco de sorte, haverá muitos mais.

 

A Festa de Elfrida

Nessa manhã, Sam foi o primeiro a descer. Eram oito horas e todas as outras pessoas ainda dormiam. Na cozinha, pôs a chaleira ao lume e depois abriu a porta das traseiras para deixar Horace ir ao quintal. O tempo mudara por completo. O barman do Duke's Arms tivera razão - pelo menos o seu televisor -, o ar matinal perdera o seu frio mordente. Durante a noite, o vento de norte amainara, virara para oeste e, ao cimo do quintal, os pinheiros sussurravam ao sabor da brisa mais amena. A luz dos candeeiros de rua permitiu a Sam ver que a neve começara a derreter nalguns sítios, revelando faixas de erva rija E aos tufos, enquanto o ar cheirava deliciosamente a musgo e a terra molhada.

Quando Horace, finalmente, voltou para dentro na sua companhia, deparou com Lucy, completamente vestida, a preparar umas torradas.

-Ora viva! Que fazes?

- Estou acordada desde as sete. Estive a ler e depois ouvi barulho cá em baixo e levantei-me. Vai a Kingsferry?

- vou. Queres vir? vou fazer as compras de Natal antes que haja demasiada gente. Sempre poderás ajudar-me a carregar os embrulhos.

As ruas estavam molhadas, porém a camada de gelo desaparecera. Além disso, o céu nublado começara a aclarar gradualmente. Ao atravessarem a ponte, sobre a maré cheia, viram as águas profundas do estuário, cor de ardósia escura, a penetrar terra adentro a ocidente, em direcção às colinas que ainda não se tinham libertado da sua camada de neve e, provavelmente, ficariam assim até ao fim do Inverno. A leste, as pequenas ondas agitadas eram sopradas para terra pelo vento marítimo, e um par de gaivotas rasava a orla costeira onde o gado das Terras Altas pastava.

- Faz lembrar um pouco um quadro antigo, não faz? - observou Lucy. - Sabe, daqueles que as pessoas com casas enormes costumam pendurar na sala de jantar.

- Sei precisamente ao que te referes. Não são propriamente alegres, mas enfeitam.

- Irá gostar de viver aqui em cima, na Escócia?

- Penso que sim. Acho que irei gostar mesmo muito de viver aqui.

- Gostaria de vir cá no Verão. Ver como é. Rory diz que isto por aqui é muito divertido. Fazem windsurf. E Tabitha contou-me que há flores silvestres incríveis nas dunas e que todos os jardins de Corrydal se enchem de rosas.

- Nesta altura do ano, custa a acreditar.

- Vai mesmo viver na Casa da Quinta?

- Se Oscar quiser vender-ma.

- É muito grande para uma pessoa só.

- Talvez utilize todas as salas em rotação.

- Tenciona mudar tudo, transformá-la numa casa assustadoramente nova e moderna?

- Não sei, Lucy. - Recordou o apartamento em Nova Iorque, que ficara irreconhecível depois de Deborah e o seu decorador de interiores terminarem o seu trabalho. - Preferia que ficasse tal como está.

- A minha avó adora o que ela chama de renovar salas. A sala de estar do apartamento dela é toda em rosas e azuis e tem montes de bibelôs em louça.

- O apartamento é grande?

- Sim, é. Bastante grande. E tem uma bela vista para o rio. Mas o meu quarto fica nas traseiras, e como dá para o pátio interior, não há nada para ver. - Logo a seguir, receando dar a entender que se queixava, acrescentou: - Mas eu gosto dele, é todo para mim.

- É bom ter um espaço só para nós.

- Pois é. - Ficou calada por instantes, depois confessou: - Para dizer a verdade, neste momento não estou a pensar em Londres. Normalmente, fico muito contente por voltar para o liceu e rever as minhas amigas, mas desta vez não tenho saudades absolutamente nenhumas.

- Eu sinto o mesmo. No dia a seguir ao dia dos presentes tenho de voltar para Inverness e deitar de novo as mãos ao trabalho.

- Mas o Sam voltará para vir morar permanentemente aqui.

- Tu também podes voltar. Ficarias com Elfrida e Oscar.

- Mas não seria na Casa da Quinta. E a casinha, se eles forem mesmo viver para lá, talvez não disponha de nenhum quarto suplementar.

- Não creio que um pormenor insignificante como esse atrapalhasse. Ela punha-te na banheira, no sofá ou numa tenda no jardim.

- No Verão isso até deve ser bastante divertido.

Naquele momento tinham acabado de avistar as luzes de Kingsferry, assim como o pináculo da igreja e a torre da câmara municipal.

- Já sabe o que vai oferecer a cada uma das pessoas? - perguntou Lucy.

- Não faço ideia - retorquiu Sam. - Espero ter inspiração. Entraram na rua principal na altura em que o relógio da torre batia as nove horas e verificaram que a manhã já estava movimentada.

AS lojas tinham aberto, os carros passavam, as pessoas compravam pão fresco e jornais, e uma carrinha estacionada descarregava caixas de frutas e legumes, ramos de azevinho e árvores de Natal minúsculas. O parque de estacionamento nas traseiras da igreja já estava meio lotadO. no entanto Sam ocupou um espaço, pagou o respectivo bilhete e saíram os dois a pé.

Uma das ocupações preferidas de Lucy era fazer compras. Às vezes, em Londres, ia com a mãe e começava com muito entusiasmo, mas depois de duas horas a cirandar pelas lojas superaquecidas, à espera de que Nicola se resolvesse sobre que par de sapatos levar ou que cor de bâton escolher, fartava-se, queixava-se do calor e pedia licença para voltar para casa.

Fazer compras com Sam, no entanto, era completamente diferente. Entravam e saíam das lojas, sem dúvida, mas tomavam decisões rápidas e nunca perguntavam o preço. Sam pagava tudo com o seu cartão de crédito e Lucy começara a desconfiar de que ele era tremendamente rico.

As compras iam-se empilhando dentro de sacos de plástico: um casaco de caxemira verde-mar para Elfrida, umas luvas forradas a pele para Mistress Snead. Na livraria, escolheu uma caneta de tinta permanente Mont Blanc e uma agenda de secretária no melhor cabedal italiano para Oscar.

Lucy reparou nuns rolos de papel dourado. Perguntou:

- Já tem papel com que embrulhar todos os seus presentes?

- Não.

- Não será melhor arranjar algum? E também fita e cartões?

- Escolhe tu. Em Nova Iorque, quando se compra algo, a vendedora pergunta, «Quer que embrulhe?» e se nós respondemos que sim, leva o objecto e já o entrega pronto. Há anos que não embrulho um presente e, além disso, não tenho jeito nenhum.

- Eu encarrego-me disso - ofereceu-se Lucy -, mas terá de ser o Sam a escrever os cartões.

Afastou-se e, passado um bocado, voltou com seis rolos de papel, alguns saquinhos com cartões vermelhos decorados com azevinho e um novelo de fita vermelha e dourada.

Naquele momento já havia muito que carregar, porém, Sam ainda estava longe do fim. Numa mercearia à moda antiga que cheirava um pouco à cave da Fortnum & Mason, e tinha ARMAZÉM ITALIANO escrito em letras douradas no alto da porta, passou muito tempo a escolher todo o tipo de iguarias: salmão fumado, ovos de codorniz, um frasco de caviar, caixas enormes de chocolates Bendick e um queijo stilton em pote de barro. Naquela altura, o homem que estava ao balcão, capaz de reconhecer um bom cliente quando o via, tornara-se grande amigo de Sam. Decidiram entre os dois, depois de alguma discussão, por uma dúzia de garrafas de clarete especial, quatro de champanhe e uma de conhaque.

Tudo isto, reunido em cima do balcão, constituía um conjunto impressionante.

- Como é que levaremos tudo isto para casa? - perguntou Lucy. No entanto, o merceeiro informou que procederia à entrega na sua carrinha. Sam deu-lhe então a morada da Casa da Quinta e, mais uma vez, apresentou-lhe o seu cartão de crédito. Depois de tudo terminado o homem foi-lhes abrir pessoalmente a porta, o que fez com uns certos floreados, desejando-lhes Feliz Natal.

- Aquilo - comentou Lucy -, foi muito mais agradável do que andar às voltas num supermercado. Quem é que ainda falta? Certamente já deve ter comprado presente para todos.

- Carrie?

- Pensei que os chocolates eram para ela.

- Não me parece que chocolates sejam um presente muito excitante, pois não?

- E que tal uma jóia preciosa? Ao fundo da rua há um joalheiro. Sei, porque Rory levou-me lá para furar as orelhas e comprar-me uns brincos especiais.

- Mostra-me.

No entanto, antes de chegarem ao joalheiro, Sam reparou na pequena galeria de arte, que ficava no outro lado da rua.

- Deixa-me ir dar uma olhada - disse.

Atravessaram então para o outro lado e puseram-se a ver a montra. Lucy achou que não havia nada de especial para admirar: um jarro azul e branco com uns ramos secos e um pequeno quadro a óleo, emoldurado em dourado, sobre um pequeno cavalete. A pintura mostrava rosas num jarro de prata. Três cor-de-rosa e uma branca. E havia uma espécie de lenço em cima da mesa, assim como se via um bocado de cortina.

Sam nada disse durante um grande bocado. Lucy olhou para ele e apercebeu-se de que, por alguma razão, a atenção dele fora atraída pela pequena natureza-morta.

- Gosta? - perguntou Lucy.

- Hum? Do quê? Ah, sim, gosto. É um Peploe.

- Um quê?

- Samuel Peploe. Um pintor escocês. Entremos.

Abriu a porta e Lucy foi atrás dele. No interior, depararam com uma sala surpreendentemente espaçosa, com as paredes cobertas de quadros. Viam-se vários objectos espalhados: esculturas e potes feitos à mão deveras esquisitos, com ar de que deixariam passar água se fossem cheios. A um canto, havia uma secretária à qual se encontrava um homem novo espantosamente franzino, que envergava um blusão larguíssimo tricotado à mão. Tinha o cabelo abundante todo despenteado, a barba a despontar-lhe no queixo, e quando eles apareceram levantou-se com ar de quem estava muito fatigado.

- Viva.

Sam cumprimentou:

- Bons dias. O quadro que tem na montra...

- Oh, sim, o Peploe.

- É um original?

- com certeza. Não negoceio com imitações. Sam manteve a calma.

- Posso vê-lo?

- Se quiser.

Aproximou-se da montra, tirou-o do cavalete e trouxe-o para junto de Sam, colocando-o de baixo das luzes do tecto. Sam pousou os sacos de plástico que carregava.

- Posso? - perguntou, segurando na moldura pesada com cuidado. Enquanto o examinava reinou o maior silêncio, e o jovem, aparentemente demasiado exausto para ficar de pé por mais tempo, recostou-se à secretária e cruzou os braços.

Depois disso, nada mais de especial aconteceu. Lucy, farta de esperar, foi ver os outros quadros pendurados nas paredes (na maioria abstractos) e as peças de cerâmica e de escultura. Havia uma, chamada Racionalidade Dois, que consistia em dois bocados de madeira atados por um ferro enferrujado. Reparou que custava quinhentas libras e concluiu que, se um dia precisasse de arranjar rapidamente dinheiro, aquela seria uma maneira tão eficaz como qualquer outra.

Os dois homens puseram-se a conversar.

- Qual a proveniência deste quadro? - quis saber Sam.

- Uma casa antiga. Local. Num leilão. A idosa morreu. Fora amiga de Peploe quando este ainda era vivo. Não sei mesmo se o quadro não foi um presente de casamento.

- Foi muito astuto em adquiri-lo.

- Não fui eu. Comprei-o a um negociante. É admirador do trabalho de Peploe?

- A minha mãe tinha um. Agora está comigo. Armazenado em Londres.

- Nesse caso...

Lucy meteu-se na conversa e perguntou:

- Para quem é, Sam?

Sam, que aparentemente se esquecera dela, pareceu reparar na sua presença e pousou o quadro em cima da secretária.

- Lucy, isto vai demorar algum tempo. Não hás-de querer ficar por aí à espera. - Apalpou o bolso de trás à procura da carteira, puxou dela e tirou-lhe de dentro três notas de dez libras. - Ainda não comprámos as gambiarras de luzes para o corrimão. Ao lado do merceeiro há uma casa de artigos eléctricos. Vais até lá e compras as que achares necessárias e depois voltas aqui. Deixa as compras aí... não tem graça nenhuma andares carregada. E se vires mais alguma coisa que aches que faz falta, compra também. Okay?

- Okay. - respondeu Lucy.

Meteu o dinheiro no bolso (trinta libras!), enfiou os sacos das com pras debaixo da cadeira e saiu. Percebia perfeitamente que Sam não a queria ali por dois motivos: primeiro, para que não ficasse a saber o preço do quadro, e segundo, ainda não comprara o presente para ela e, claro que não o podia fazer à sua frente.

Saiu de novo para a rua e seguiu pelo mesmo caminho por onde viera. Esperava que Sam não lhe comprasse nenhum pote bamboleante mas tinha a certeza absoluta de que ele não o faria. Imaginou se o Samuel Peploe não seria para oferecer a Carrie. E trinta libras dariam para quilómetros de luzinhas.

Depois de alguma discussão e de um certo regateio, Sam e o jovem cabeludo chegaram a um acordo, que terminou com a compra do Peploe por Sam. Enquanto o quadro ficou a ser embrulhado e os papéis a ser tratados, Sam saiu, atravessou a rua e encontrou, sem grande dificuldade, a joalharia com a montra cheia de molduras em prata e pequenos relógios ornamentados. Entrou e mostraram-lhe uma série de brincos, escolhendo um par de pequenos botões de margarida em ouro. A rapariga que o atendera colocou-os dentro de uma caixinha e esta dentro de um envelope dourado; ele pagou, enfiando o embrulho dentro do bolso do casaco. Voltou à galeria de arte, onde já estava tudo pronto. O único problema residia no facto de o jovem não trabalhar com cartões de crédito, pelo que Sam teve de lhe passar um cheque.

- Em que nome ponho?

- No meu.

- E como é que se chama?

- com certeza. - Apresentou-lhe um cartão. - Tristam Nightingale.

Sam passou o cheque, cheio de comiseração pelo jovem. Um homem que carregasse com um nome como aquele pouco encanto podia ter. Quando assinava o seu próprio nome, Lucy reapareceu com mais uma caixa para carregar para o carro.

- Arranjaste as luzes? - perguntou-lhe.

- Sim. Quatro fiadas. Acho que chegam, não?

- com fartura. Pediremos a Rory que nos ajude a instalá-las. Entregou o cheque e pegou no embrulho pesado. - Muito obrigado.

Tristam Nightingale pousou o cheque em cima da sua secretária. E enquanto eles pegavam nos restantes embrulhos, trotou até à porta e abriu-a.

- Um Feliz Natal para todos - desejou, à saída.

- Para si também - retribuiu Sam que, assim que se afastaram o suficiente para não serem ouvidos, acrescentou: - Mister Nightingale.

- Quem?

- Chama-se Tristam Nightingale. Os pais deviam ser uns sádicos. Não admira que deteste o mundo.

- Que nome pavoroso. Embora nesta altura já se deva ter habituado a ele. Sam, para quem é o quadro?

- Carrie. Não lhe digas.

- Claro que não. Foi terrivelmente caro, não?

- Sim, foi, mas quando as coisas são assim caras, uma pessoa não diz que custaram muito, mas sim que foram um bom Investimento.

- Acho que é um presente lindo. E quando ela for viver de novo para a Ranfurly Road, pode pendurá-lo na sala de estar.

- Foi essa a minha ideia.

- Assim lembrar-se-á da Escócia, Corrydale, tudo.

- Também pensei nisso.

- Voltará a vê-la?

- Não sei. - Sam sorriu para Lucy. - Espero que sim.

- Eu também espero que sim - disse Lucy. Passado um bocado: - Foi uma manhã esplêndida. Obrigada por me ter trazido consigo.

- E eu agradeço-te por teres vindo. Foste uma tremenda ajuda.

Às cinco e meia dessa tarde, a Casa da Quinta estava pronta para a festa de Elfrida.

A porta da entrada apresentava-se engalanada com uma coroa de azevinho e a luz de cima iluminava claramente um cartão pregado com um pionés que dizia É FAVOR ENTRAR. Elfrida esperava, assim, evitar o toque da campainha, o ladrar de Horace e a correria constante escada abaixo e escada acima para ir receber os convidados. Mal se abria a porta, a árvore de Natal aparecia em toda a sua grandiosidade, iluminada e cheia de embrulhos aos pés. Ao fundo do vestíbulo a escada subia, entrançada de azevinho e hera, cheia de luzinhas coloridas.

Mais acima, o patamar fora transformado em bar, nele se encontrando a mesinha da janela - transferida para a sua nova localização por Oscar e Sam - que exibia uma toalha branca que mais não era senão um dos melhores lençóis de linho de Mistress Snead, e nela viam-se, impecavelmente alinhadas, garrafas, um balde com gelo e fileiras de copos reluzentes.

Tudo aquilo custara algum tempo e esforço; assim, logo que os Snead chegaram para se encarregar dos últimos preparativos, como aquecerem as minipizas e enfiar os palitos nas salsichas quentes, todos desapareceram para fazer a barba, tomar banho, mudar de roupa e, de uma maneira geral, enfeitarem-se para a noite que se avizinhava. De detrás de portas fechadas vinha o barulho de torneiras a correr, o zunido de máquinas de barbear eléctricas e o perfume agradável de essências de banho.

Horace, que se esgueirara até ao andar de cima à procura de outra companhia que não a dos Snead, não encontrou ninguém, portanto dirigiu-se para a sala de estar e instalou-se confortavelmente em frente à lareira acesa.

Oscar foi o primeiro a emergir. Fechou a porta do quarto e deteve -se, por momentos, a saborear a transformação que o Natal emprestara à sua casa, preparado e pronto para a chegada dos convidados. Reparou na disposição impecável dos copos que, de tão lustrosos faziam lembrar bolhas de sabão, no verde e dourado das garrafas de champanhe metidas num balde de gelo, no linho branco engomado dos guardanapos e da toalha. A cortina da janela do patamar estava corrida, ocultando a noite, e os três pisos da escada apresentavam-se entretecidos de verdura, azevinho com bagas vermelhas e luzes brilhantes. Lá se fora pensou, o desolado solstício de Inverno, tudo o que prometera a Elfrida. Pareceu-lhe que a Casa da Quinta, normalmente tão minimalista e austera, porém naquele momento vestida e adornada com tanto requinte, era um pouco como uma tia altiva, velha mas imensamente amada que pusera os seus melhores atavios e jóias para uma ocasião especial, acabando por não ficar nada mal.

Também Oscar fizera um esforço e pusera o seu velho smoking preferido e a sua melhor camisa de seda. Elfrida escolhera-lhe a gravata e insistira para que calçasse os seus sapatos de quarto em veludo preto debruado a dourado. Mal conseguia recordar-se da última vez em que se vestira a rigor, mas o toque da seda contra a pele sabia-lhe bem, pusera um pouco de água-de-colónia e alisara a farta cabeleira branca.

Elfrida, que ele deixara ao espelho, ainda em robe e a enfiar as suas argolas, dissera-lhe que tinha um ar gostoso.

As vozes do casal Snead chegavam da cozinha, assim como outros sons de actividade culinária. Mistress Snead apresentara-se, não com o seu fato de treino do costume mas com o seu melhor vestido de noite, preto com lantejoulas no corpete. Também fora arranjar o cabelo para a ocasião, e decorara o seu novo penteado com um laço de cetim preto.

Oscar, enquanto tomava banho, fazia a barba, vestia e tagarelava com Elfrida, não se permitira rememorar o seu último Natal na Granja, a prodigalidade daqueles tempos e a hospitalidade numa escala que custava a acreditar - refeições copiosas, demasiados convidados, demasiados presentes, árvore demasiado grande. Gloria conseguia sempre lidar com tudo aquilo, temperando as dimensões enormes de tudo com a sua alegria e generosidade de espírito.

Oscar não se permitira recordar, mas agora que se encontrava num momento raro de solidão, fê-lo. Tudo parecia ter sido já há muito tempo - mal conseguia acreditar que ainda só se passara um ano - e era um pouco como recordar um período passado noutra existência. Pensou em Francesca, recordou-a a correr pela majestosa escadaria da casa da Granja abaixo com o cabelo solto, envergando um vestido de veludo preto oferecido pela mãe. Dava a impressão de andar sempre acelerada, como se o tempo fosse tão precioso que não houvesse um momento a perder.

Ainda não há muito, a lembrança da filha teria despedaçado Oscar de dor, mas naquele momento sentia-se apenas grato, pois Francesca faria sempre parte da sua vida, da sua existência. E porque, não obstante tudo o que acontecera, ele arranjara maneira de sobreviver. E mais, via-se rodeado e apoiado por amigos.

Ouviu a porta da cozinha abrir-se, no piso de baixo, e Mistress Snead a dar ordens a Arthur. A seguir, este subiu as escadas, trazendo um tabuleiro cheio daquilo que Mistress Snead designava de canapés: pequenas tostas cobertas de patê e outras delícias, assim como frutos secos. Arthur vestia as suas melhores calças de flanela cinzenta e o seu blusão de jogar bowling no clube, com o bolso do peito enfeitado com um emblema dourado.

Ao chegar ao último degrau, reparou em Oscar.

- Ora bem, aí está o senhor, Mister Blundell, todo elegante! A minha mulher disse-me para trazer isto para a sala de estar. A comida quente vem mais tarde. A única coisa é que Horace esgueirou-se de lá para fora. Deve estar ao pé da lareira. Não o quero a comer isto.

- É uma questão de colocar tudo fora do seu alcance, Arthur. Acompanhou Arthur até à sala grande, que estava aquecida e tinha um ar acolhedor, apresentando-se estranhamente arrumada e limpa. Todas as luzes estavam acesas e o fogo ardia vigorosamente. Elfrida enchera jarras de azevinho e crisântemos brancos, mas o melhor de tudo era o enorme vaso cheio de lírios stargazer que Lucy lhe oferecera como presente de Natal. Arthur fora entregá-los a meio da manhã, todos embrulhados em papel celofane e atados com um laço cor-de-rosa enorme, e Elfrida por pouco não desatara a chorar, tão emocionada e deliciada ficara. Encontravam-se naquele momento sobre uma mesinha ao lado do sofá, com as pétalas exóticas a abrirem lentamente com o calor da sala, libertando o seu perfume intenso, quase tropical.

Colocaram os frutos secos e as tostas bem fora do alcance de Horace que, junto da lareira, fingia dormir profundamente. Oscar não sabia se devia mandar o cão novamente para baixo, mas resolveu deixá-lo, pois parecia todo regalado. Depois de disporem os pratos a uma altura segura, Oscar e Arthur voltaram para junto do bar, onde encontraram Sam, muito elegante no seu fato escuro e invejável camisa às riscas azuis e brancas.

- Conhece Sam Howard, não é verdade, Arthur?

- Creio que ainda não tive o prazer. Muito gosto.

- Arthur vai ser o nosso barman, Sam.

- Tenho a certeza de que sabe abrir uma garrafa de champanhe, Arthur - observou Sam.

- Bem, não é que tenha grande prática, já que prefiro cerveja. Mas na televisão, como acontece no Grand Prix, põem-se para lá a sacudir a garrafa e a molharem-se uns aos outros como se aquilo fosse uma mangueira. Acho sempre um terrível desperdício.

Sam riu.

- É divertido, mas também concordo consigo. Um terrível desperdício. Mas na verdade não tem problema. Não se quer rolhas a saltar ruidosamente e a bater no tecto ou litros de espuma. - Tirou uma das garrafas do balde de gelo. - Basta retirar o arame, dão-se uns toques na rolha... assim. E não se anda à volta com ela. Segura-se na garrafa assim... - Demonstrou a arte subtil e a rolha deslizou suavemente com o mais suave dos sons, e o líquido dourado foi despejado para ò copo que o aguardava sem que uma única gota se perdesse.

- Bem, realmente foi impecável - declarou Arthur. - Nunca imaginei que podia ser feito com tanta calma.

Elfrida, depois de ajeitada a última pestana, ficou a olhar para o seu reflexo no espelho comprido do guarda-fato. Vestira umas calças pretas de seda e uma blusa preta em tecido transparente, sobre a qual colocara um casaco comprido de seda verde. Os brincos pendentes e as longas fiadas de contas eram no mesmo tom esverdeado do casaco, a sombra dos olhos era azul, o bâton escarlate e o cabelo tinha um tom cor de fogo acabado de aplicar. Esperava que todos os amigos acabados de fazer em Corrydale não a achassem demasiado extravagante.

Ao sair do quarto, deparou com Arthur Snead pronto para assumir as suas funções no bar improvisado.

- Arthur! Que elegante! Onde está Mistress Snead?

- A acabar uns aperitivos na cozinha, Mistress Phipps. Não tarda aí. Espero que não se ofenda, mas acho que está com um ar de arrasar. Se a encontrasse na rua não a reconhecia.

- Oh, obrigada, Arthur. Já estão todos presentes e prontos?

- Lá dentro, ao pé da lareira. Os convidados devem estar mesmo a chegar.

- É suposto entrarem sozinhos, mas se não o fizerem, não se importa de ir lá abaixo abrir-lhes a porta?

- com certeza, Mistress Phipps. E agora que tal uma bela taça de bolhinhas? Os outros já se serviram. Coragem de holandês, disse Mister Blundell. Não que eu ache que seja precisa muita coragem neste tipo de celebração.

Serviu-lhe uma taça de champanhe e Elfrida foi juntar-se aos outros, levando-a na mão. A sala, tal como eles, parecia maravilhosamente sofisticada e glamorosa, qual ilustração de uma revista lustrosa. Lucy arranjara maneira de pentear o cabelo ao alto e, com as longas pernas cobertas por meias pretas, o pescoço elegante e os brincos, parecia ter dezassete anos. Quanto a Carrie, estava deslumbrantemente bonita, com um brilho na pele e nos olhos escuros que Elfrida já não lhe via há anos. Pusera um vestido preto sem mangas, simples como uma T-shirt, mas com uma saia que caía suavemente das ancas esguias até aos tornozelos. Nos pés viam-se-lhe umas sandálias que não eram mais do que duas tiras de material reluzente, com saltos muito altos, e as únicas jóias que trazia era o seu anel de safira e um par de brincos de diamantes.

Elfrida, ao vê-la, não pôde deixar de pensar como é que algum homem conseguia deixar de se apaixonar por ela, porém Sam estava a comportar-se com discrição e parecia encarar a aparência sensacional de Carrie com toda a naturalidade. O que, talvez, fosse bom sinal. Elfrida queria, acima de tudo, que Carrie voltasse a ser feliz, no entanto Oscar tinha razão. Era demasiado cedo para conjecturas e para armar em casamenteira. Só havia que sentir satisfação com o que até ali acontecera. Que era, antes de mais nada, o facto de Sam ter surgido do nada. E ele e Carrie parecerem, finalmente, ter feito amizade.

Todos conversavam e foi Oscar, de pé ao pé da lareira, que viu Elfrida aparecer à porta. Os olhos de ambos encontraram-se e, por um instante, foi como se só ali estivessem os dois, sozinhos na sala fortemente iluminada. Depois, ele pousou a sua taça e aproximou-se, estendendo-lhe a mão.

- Estás absolutamente maravilhosa - disse-lhe.

- Pensei que parecia um pouco como uma velha actriz batida. O que não deixa de ser verdade, claro. Mas feliz. - Beijou-o cuidadosamente na face, de maneira a não deixar nenhuma marca de bâton. E tu, Oscar? - Compreendiam-se perfeitamente. - Estás bem?

Oscar acenou afirmativamente com a cabeça. No piso de baixo, alguém tocou à campainha por engano. Horace pôs-se de pé num salto, desatou numa cacofonia de latidos, correu para fora da sala e precipitou-se pelas escadas abaixo.

Elfrida desatou a rir.

- Lá se foram os meus cuidadosos planos - declarou.

- Eu vou - disse Lucy imediatamente. (Era provável que esperasse deparar com os Kennedy, ansiosa para que Rory ficasse atónito perante a sua nova imagem de rapariga mais crescida.) Desapareceu atrás de Horace e logo a seguir ouviram-se vozes.

«Somos os primeiros?» «Chegámos demasiado cedo?» E Lucy a responder, «Claro que não. Estão à vossa espera. Dêem-me os vossos casacos. Façam o favor de subir.»

Finalmente, a festa de Elfrida começara.

Às oito menos um quarto da noite já tudo terminara. As famílias Rutley e Erskine-Earle haviam-se retirado ao som de despedidas e agradecimentos que soaram pela rua deserta. Somente os Kennedy ficaram mais um pouco, visto também terem chegado mais tarde, directamente vindos da festa que se realizava anualmente no lar de idosos. Peter, que vinha com o seu colarinho alto, anunciou que estava cheio de chá e pãezinhos, mas isso não o impediu de se deliciar com um bom copo e de entrar numa outra sala cheia de amigos um pouco menos geriátricos.

Naquele momento, instalara-se um certo langor. Sam avivara o fogo e todos se tinham deixado cair nos sofás, gratos por aliviarem o peso dos pés. Rory e Lucy estavam na cozinha, a ajudar Mistress Snead e Arthur nas últimas arrumações. Barulhos animados e muita risada chegava ali acima, e era óbvio que, no andar de baixo, a festa continuava.

Elfrida, enfiada no meio dos almofadões com uma grande sensação de alívio, observou:

- Custa-me a acreditar que já tenha acabado. Andámos o dia todo atarefados e, quando mal se dá por isso, são oito da noite e os convidados começam a olhar para o relógio e a dizer que são horas de ir embora.

- É sinal de que a festa foi boa - disse Peter. E acrescentou: Quando uma pessoa está a divertir-se, o tempo voa.

Sentara-se na ampla poltrona ao pé da lareira e a mulher instalara-se em cima do tapete, confortavelmente encostada aos seus joelhos.

- Gostei de Lady Erskine-Earle - comentou Carrie. - Fazia lembrar um adorável pónei das Terras Altas, toda vestida de caxemira e pérolas.

Tabitha riu-se.

- Não é mesmo uma estrela?

- Ela e Mistress Snead conversaram imenso.

- Isso porque pertencem ambas à comissão de fundos da igreja. E ao Instituto Feminino. Elfrida, convidar os Snead foi uma benesse sem tamanho. Quando o casal Snead está presente, não há que recear pausas incomodativas.

- Não é em vão que Arthur é comerciante - salientou Oscar. Nunca perde uma oportunidade. Quando não estava a fazer de mordomo ou de convidado, encontrava tempo para também cuidar um pouco de negócios. Encomendas para o Ano Novo: crisântemos para Emma Erskine-Earle e seis pêras-abacate para Janet Sinclair. A propósito, acho Janet um encanto. Ainda não a conhecíamos. Apenas o doutor, por ter vindo ver Carrie.

- E mais - disse Carrie a Oscar -, é arquitecta. Trabalha três dias por semana num escritório em Kingsferry.

- Além disso -, acrescentou Peter -, é extremamente eficiente. Desenhou uma ala nova para o lar da terceira idade e fez um óptimo trabalho. O pior é que agora o resto da casa parece um pouco sombria.

- Pousou o copo, ajeitou-se na poltrona como se o peso da mulher lhe pudesse ter provocado alguma cãibra e olhou para o relógio. - Querida, meu amor, temos de ir andando.

- Oh, não vão - implorou Elfrida -, a não ser que tenha mesmo de ser. Esta é a melhor parte da festa. Conversar com os amigos que ficam. Fiquem para o jantar na cozinha. Acabaremos com o que ficou, há sopa e mais salmão fumado. Oferta de Sam. E um stilton delicioso.

- Têm a certeza? - perguntou Tabitha, nitidamente tentada. - Se voltarmos para Manse, só haverá ovos mexidos.

- Claro que devem ficar.

Foi então que Carrie assumiu o comando.

- Nesse caso, agora quem manda sou eu. - Levantou-se do sofá.

vou ver o que está a acontecer na cozinha e arranjar algo para comermos. Não, Sam, você fica a conversar, já fez a sua parte por esta noite.

Elfrida ficou agradecida.

-Querida, és um amor. Se precisares de ajuda, é só chamares. - Está descansada.

Saiu da sala e fechou a porta atrás de si. No patamar, a única coisa que restara da festa de Elfrida era a mesinha com a cobertura branca. Todas as garrafas e copos tinham sido levados. Via-se que os Snead, Rory e Lucy tinham trabalhado no duro.

O telefone começou a tocar. Carrie olhou para o aparelho com alguma estupefacção, pois, por alguma razão, era a última coisa que esperara que acontecesse. Atendeu.

-Está?

- Quem fala? - Era uma voz feminina, perfeitamente nítida, apesar de se ter notado uma pequena hesitação na linha.

- É Carrie.

- Carrie. Fala Nicola. Da Florida.

- Não estava nada à espera. Como estás?

- Óptima. Excelente. Que estão a fazer aí em casa?

- Acabámos de dar uma festa. Estamos todos aqui sentados a recuperar.

- Lucy está aí?

- Sim, lá em baixo, a ajudar nas arrumações. Tem-se divertido imenso. Que tal está a Florida? Muito sol?

- Sempre. E tudo maravilhoso.

-Aguenta aí. vou chamar Lucy. - Carrie pousou o auscultador em cima da mesinha e desceu à cozinha, onde viu que as lavagens e as arrumações já tinham chegado ao fim, e que Mistress Snead estava naquele momento a vestir o seu casaco, imitação de carneiro da Pérsia, e Ia apertar os botões prateados. Arthur deliciava-se com uma última cerveja, enquanto Rory estava encostado ao lava-loiça e Lucy sentada à mesa.

Mistress Snead ainda estava com a energia toda.

- Bem, devo reconhecer que correu tudo muito bem - dizia. Soltou um pequeno soluço e Carrie reparou que o laçarote do cabelo tombara ligeiramente, o que lhe dava um ar extravagante. - Aqui está Carrie. Dizia ainda agora que foi uma festa muito agradável. Boa companhia, também.

- Eu também gostei muito - concordou Carrie. - Lucy, tens de correr rapidamente lá acima para falares com a tua mãe, que está ao telefone.

Lucy ergueu a cabeça de supetão. Os seus olhos encontraram os de Carrie e esta viu neles uma expressão de alarme.

- A mamã?

- Sim. Da Florida. Vai depressa porque custa uma fortuna. Lucy levantou-se da mesa, olhou primeiro para Rory, depois para Carrie, a seguir saiu da cozinha e subiu as escadas. Carrie fechou discretamente a porta depois dela sair.

- Engraçado isso - comentou Arthur. - Da Florida, que fica tão longe.

- Lá ainda não é noite. São cinco horas de diferença, sabes - informou Mistress Snead com ar importante. Abotoado o casaco, descalçou os sapatos de cerimónia em camurça e substituiu-os por botas fortes, pronta para o breve percurso entre as duas casas. - Devo dizer que Lucy ajudou imenso. Tratámos de tudo num instante, não foi Rory? Artur guardou as garrafas vazias na copa, e deixei uns restos de salsichas no prato de Horace. Poderá comê-los amanhã ao jantar.

Carrie estava grata.

- Foram maravilhosos. Vocês é que fizeram a festa. Arthur terminou a cerveja e pousou o copo vazio.

- Não posso deixar de concordar com a minha mulher. Um grupo muito jeitoso de clientes. E diga ao seu amigo que lhe fico muito agradecido por me ter ensinado a abrir uma garrafa de champanhe. Uma autêntica arte, essa. Quando voltarmos a ter outra festa no clube de bowling, já poderei mostrar a minha habilidade.

- Oh, Artur, és impossível.

- É como eu sempre digo, o dia é bom quando se aprende alguma coisa.

Mistress Snead agarrou nos seus pertences, a sacola e o saco de plástico onde guardara os sapatos finos.

- Então boas noites, Carrie.

- Boas noites, Mistress Snead. E um bom Natal.

- Igualmente. E diga a Mistress Phipps que na terça-feira cá estarei como de costume.

Depois de partirem, de braço dado, para o meio da noite, e da porta das traseiras se fechar nas suas costas, Rory perguntou:

- Porque telefonou a mãe de Lucy?

- Não faço ideia, Rory. - Tirou o avental de Elfrida do gancho e atou-o à frente do vestido preto. - Se calhar foi só para lhe desejar Feliz Natal.

- Ainda não é Natal.

- Talvez tenha querido falar-lhe antes disso. Elfrida convidou os teus pais para ficarem para o jantar, por isso vim cá abaixo tratar das coisas.

- Precisa de ajuda?

- Acho que já fizeste a tua parte.

-Não me importo. Prefiro isso a conversas de treta. - Pareceu-me que te sais muito bem nisso.

- Quando se conhece as pessoas não custa tanto. O que quer que eu faça?

- Bem, se estás a falar mesmo a sério, talvez possas pôr a mesa. Somos oito. Os talheres estão naquela gaveta e os pratos no louceiro. há salmão fumado no frigorífico. Penso que está todo às fatias. Talvez seja boa ideia colocá-lo num prato e depois será preciso passar manteiga nalgum pão.

Carrie foi à copa gelada e regressou de lá com uma panela enorme cheia com a última sopa que Elfrida fizera. Acendeu o lume, pôs a chama no mínimo e colocou-lhe a panela em cima, para aquecer lentamente.

Atrás dela, Rory adiantou:

- Lucy falou comigo. Carrie voltou-se para ele.

- Que dizes?

- Lucy. - Foi colocando os talheres na mesa. - Falou comigo. Sobre Londres, tudo. O divórcio dos pais. A avó. Sobre o facto de não estar com vontade nenhuma de voltar.

- Oh, Rory. - Este não olhou para ela, limitou-se a continuar a colocar os talheres. - Lamento.

- Lamenta o quê?

- É que, de certo modo, sinto-me responsável. Culpada, talvez, porque não devia ter ficado tanto tempo na Áustria, perdendo, de certo modo, contacto com a minha família. Todos estavam bem, excepto Lucy. Só quando voltei é que me dei conta de quão difícil a vida deve ser para ela. Não é que alguém a trate mal... Pode até dizer-se que até não lhe falta nada. Mas tem saudades do pai. E nunca a encorajaram a contactar com o avô, o meu pai. Há muita amargura. Não é nada bom viver assim.

- Ela não poderia ir para um colégio interno? Ao menos, estaria num ambiente diferente.

Carrie ficou surpreendida com tanta percepção num jovem apenas com dezoito anos.

- Talvez devesse, Rory. Mas, sabes, eu sou apenas uma tia solteirona. Não me atrevo a fazer demasiadas sugestões, para não me ostracizarem também. - Reflectiu no que acabara de dizer. - E o colégio onde anda é bom. Tem uma directora esplêndida, de quem ela gosta muito.

- Mas são só raparigas - contrapôs Rory, que já acabara de pôr a mesa. - Onde está o salmão fumado?

- No frigorífico, que está na copa.

O rapaz foi buscá-lo. Carrie tirou um pão escuro da caixa do pão depois foi de novo até ao fogão para mexer a sopa. Quando Rory voltou, arranjou-lhe espaço na mesa e foi buscar um prato oval grande para nele se colocarem as delicadas fatias róseas. Rory abriu o celofane com uma faca e começou a separar cuidadosamente as fatias de salmão fumado e a colocá-las em camadas sobrepostas. Carrie tirou dois frutos da fruteira e começou a cortá-los em gomos.

Rory foi trabalhando, atento e atarefado, enquanto Carrie o observava, reparando no cabelo louro claro inverosímil, no brinco na orelha, nas feições imberbes, juvenis mas acentuadas, bem a caminho da virilidade. Quando estivera a ajudar os Snead, provavelmente na lavagem da louça, arregaçara as mangas da camisa de algodão escura, o que deixara à mostra os antebraços bronzeados e as mãos fortes e hábeis. Carrie compreendia perfeitamente por que razão Lucy gostava tanto dele. Só espeRrava que a sobrinha, então com catorze anos, não se apaixonasse, pois eram ambos demasiado novos para o amor: Rory queria ir para a universidade. e um namorico adolescente naquela altura da vida resultaria, de certeza, numa desilusão amorosa.

- Tens sido muito simpático com ela, Rory. A maioria dos rapazes da tua idade simplesmente não se ralariam - disse-lhe.

- Sinto pena dela.

- Gostaria de saber porquê.

Parece muito só.

Mas é um amor. Um amor de menina.- Não conseguiu resistir a uma pequena provocação. - E compraste-lhe uns brincos para as orelHas furadas. RHory olhou para Carrie e sorriu.

Ora, Carrie, isso foi apenas um pequeno empurrão. Fosse como fosse, ela queria furá-las. Que tem isso? Faz parte do crescimento. viroU-se um pouco para observar o prato com o salmão impecavelmente disposto. - Pronto, já está. Será suficiente?

Tem de ser. O resto fica para o dia de Natal. Como é que Lucy estará?...

Talvez seja melhor ir ver. Vem também. Já trabalhaste muito. Não, eu ficarei aqui a tomar conta de tudo. Gosto muito de cozinHa e Costumava fazer bonecos de gengibre com a minha mãe. Vá ter com os outros, que eu ponho manteiga no pão. Como sobraram algumas pizas, vou metê-las no forno. Quer que abra uma garrafa de vinho ou algo do género?

Por fim, Carrie livrou-se do avental de Elfrida, que pendurou, e deixou Rory entregue ao resto das tarefas. Saiu da cozinha e subiu as escadas. O patamar estava vazio. O auscultador repousava no descanso. Não havia sinal de Lucy. Hesitou por instantes, sentIHo um baque de apreensão inexplicável. De repente, o telefone HH a tocar.

Carrie atendeu.

- Está?

- Quem fala? É da Casa da Quinta? Quero falar com Carrie. Inconfundível. Carrie sentiu um sobressalto.

- Sim, mãe - disse -, sou eu. Como está?

- És tu? Oh, graças a Deus! Minha querida, Nicola já falou para aí?

- Já. Telefonou da Florida há cerca de vinte minutos. Mas queria falar com Lucy.

- Ela contou-te?

- Contou-me o quê?

- Oh, minha querida, ela casou com Randall Fischer. Esta manhã. Tiveram uma espécie de cerimónia relâmpago numa igreja chamada Capelinha dos Anjos ou algo do género, e casaram! Nem sequer chegou a dizer-me que ficara noiva, que tencionavam dar esse passo. Eu não fazia a menor ideia. Até receber o telefonema dela da Florida.

Carrie disse a si mesma que precisava de manter a calma, caso contrário a situação descambaria.

- Ela ligou para si antes de falar com Lucy?

- Sim. Queria tomar providências.

- Que tipo de providências?

- Relacionadas com Lucy, evidentemente.

«Oh, Deus», pensou Carrie. «Lá vamos nós outra vez.»

- Diz que vai de lua-de-mel e só volta a Londres no fim do mês. Tenciona cancelar o voo de regresso. Adiá-lo. E conta que eu esteja em Londres para poder pôr Lucy novamente no colégio. Mas eu planeei ficar em Bournemouth até ao fim de Janeiro e não vejo porque hei-de ser eu a alterar todos os meus planos. Isto é de mais, Carrie. Não estou simplesmente disposta a isto. Já lho disse, «Não estou disposta a aturar isto, Nicola.» Mas tu sabes como ela pode ser egoísta e má quando não leva a sua avante. E agora, claro, está enfeitiçada por aquele homem e não vê outra coisa à frente!

- Ela tenciona ficar a viver na América?

- Acho que sim. Quando se casa com um americano, imagino que isso acabe por acontecer.

- Então, e Lucy?

- Oh, Lucy terá de fazer o que lhe disserem. O problema imediato é saber quem é que fica com ela até a mãe voltar.

Carrie não respondeu à pergunta. Apenas se deixou ficar com o auscultador na mão, ciente da onda de impaciência e ira que começara a submergi-la em relação à mãe e à irmã. Já se sentira assim muitas vezes e não seria a última, mas não se lembrava de alguma vez ter ficado tão furiosa. Pensou em Randall Fischer e amaldiçoou-o mentalmente por tamanha falta de tacto, imaginação e sentimentos. Certamente que poderia ter convencido Nicola a informar minimamente a família, antes de marchar com ela até à Capelinha dos Anjos e enfiar-lhe uma aliança no dedo, não era? Uma raposa que se esgueirasse para dentro de uma capoeira, lançando o pânico e fazendo voar penas, não teria desencadeado mais problemas. Sabia que, se fizesse algum comentário, este poderia não ser benevolente, precipitando finalmente uma disputa inútil que nada resolveria.

- Carrie?

- Mãe, penso que será melhor eu depois ligar para ti.

- Falaste com Lucy?

- Não, ainda não. É a primeira vez que ouço a feliz notícia.

- Estás a ser sarcástica?

- Não.

- Tens o meu número de telefone aqui de Bournemouth?

- Tenho. Depois telefono para ti.

- Quando?

- Um dia destes, talvez amanhã.

- Não demores muito. Estou preocupadíssima.

- Tenho a certeza.

- Oh, e, querida, vais ter um bom Natal, não vais?

- Encantador - respondeu-lhe Carrie.

Pousou o auscultador e ficou parada por um momento, dando tempo a si mesma para acalmar, recompor-se e encarar os factos. Nicola era agora Mistress Randall Fischer. Casara com ele na Florida, na Capelinha dos Anjos. Carrie tentou visualizar a cerimónia: céus azuis e palmeiras, Randall Fischer de fato branco e Nicola numa fatiota qualquer adequada a semelhante evento. O casamento teria sido testemunhado por amigos? Algum velho amigalhaço de Randall teria vindo de longe para levar Nicola pelo braço? A mulher do velho amigalhaço teria feito de dama de honor, indo de vestido até aos pés e bouquet de orquídeas preso ao corpete? E depois da cerimónia, teriam ido os quatro até ao clube local festejar com quem porventura estivesse presente? Tudo era possível. O certo era que os pormenores não interessavam, estava feito e não era possível voltar atrás, e eram tantas as complicações inerentes à situação que Carrie mal sabia por onde começar. Lucy. Lucy era a primeira. Lucy que recebera a alegre notícia que a mãe lhe dera pelo telefone, pousara o auscultador e desaparecera. Para onde? Lucy não gostava muito de Randall Fischer e rebelara-se, naturalmente, contra a sugestão de ir passar as duas semanas do Natal para a Florida, na sua companhia.

Mas aquilo? Se Nicola levasse a sua avante, seria para sempre. Lucy tinha catorze anos, seria afastada das suas raízes, levada para outro país, outra cultura, toda uma vida nova e provavelmente detestada. De repente Carrie ficou apreensiva. Onde estava Lucy? Teria desaparecido abruptamente, corrido silenciosamente pelas escadas abaixo, aberto a porta da frente e desaparecido, dirigindo-se para o mar, a praia, as dunas, o frio mordente? Se houvesse algum penhasco por perto, Carrie não tinha a menor dificuldade em imaginar a jovem a atirar-se do alto deste e a esmagar-se nas rochas mais abaixo.

Tremendo de ansiedade, tentou recuperar a serenidade, afastar as imagens horrendas da mente e raciocinar com sensatez. Respirou fundo e subiu ao sótão onde Lucy dormia. A luz do patamar encontrava-se acesa, mas a porta estava firmemente fechada. Carrie bateu na madeira. Não houve resposta. Entreabriu a porta com suavidade. Reinava a maior escuridão.

- Lucy? - A sua voz deixava transparecer a ansiedade que sentia.

O vulto por baixo da coberta azul e branca não se moveu nem respondeu, mas Carrie sentiu-se aliviada porque, ao menos, ela estava ali e não fugira de casa, para o meio da escuridão...

- Lucy. - Entrou no quarto, fechou a porta atrás de si, aproximou-se da cama e sentou-se na beira desta. - Lucy.

- Vai-te embora.

- Querida, é Carrie.

- Não quero falar.

- Querida, eu sei. A avó telefonou de Bournemouth e contou-me.

- Não quero saber que te tenha contado. Não faz a menor diferença. Agora está tudo estragado. Tudo. É sempre a mesma coisa. Elas são sempre assim.

- Oh, Lucy... - Carrie pousou a mão na colcha para reconfortá-la, mas Lucy deu um safanão aos ombros e esquivou-se ao gesto hesitante.

- Preferia que te fosses embora e me deixasses sozinha. Falava com voz entrecortada, chorosa. Estivera a chorar e naquele momento sentia-se irada e ressentida. Carrie compreendeu, mas não tinha vontade de a deixar assim.

- Para ser sincera, acho que a tua mãe não devia ter feito o que fez, e muito menos dar-te a notícia pelo telefone, esperando que ficasses encantada. Mas, se calhar, temos de tentar ver o ponto de vista dela...

Lucy atirou imediatamente a colcha para trás e virou-se para Carrie. Tinha o rosto inchado e manchado por ter estado a chorar, o cabelo, que penteara ao alto com tanto esmero, desmanchara-se e caia-lhe às madeixas para a cara. A raiva e a tristeza desfeavam-na - e Carrie apercebeu-se, desesperada, de que aquela raiva não só era dirigida contra a mãe mas também contra si, já que eram todos adultos e não havia um único que merecesse confiança.

- Claro que tinhas de concordar com ela - gritou Lucy a Carrie. - Afinal é tua irmã. Pois bem, eu odeio-a. Odeio-a por causa de tudo isto e porque eu nunca fui importante para ela. Agora, ainda menos. E não vou viver para a América, Florida, Cleveland ou seja lá onde for. E odeio Randall Fischer, não quero falar no assunto, basta que me deixem em paz! Portanto, vai-te embora!

Virou as costas a Carrie e tapou de novo a cabeça com a colcha enterrando o rosto na almofada já encharcada. Recomeçou a chorar, soluçando, inconsolável.

Carrie tentou de novo, com brandura:

- Os Kennedy vão ficar todos para o jantar.

- Não quero saber - disse, mal se ouvindo debaixo da colcha.

- Se quiseres trago-te o jantar aqui acima.

- Não quero jantar, só quero que te vás embora! Impossível. Carrie ficou mais um instante, mas depois, certa de que

não valia de nada insistir, levantou-se, saiu do quarto e voltou a fechar a porta.

Sentia-se completamente despedaçada, sem saber o que fazer a seguir. Deteve-se no patamar, ouvindo as vozes dos outros, que continuavam na sala de estar, reunidos em volta da fogueira. Soaram gargalhadas generalizadas. Desceu as escadas e, quando ia a chegar ao patamar, o telefone tocou pela terceira vez naquela noite.

Nada poderia piorar ainda mais. Atendeu.

- Está?

- Carrie. És tu, Carrie?

- Sim, sou eu, Nicola.

- Sou eu outra vez. - Falava com voz esganiçada, cheia de fúria e indignação. - Há dez minutos que estou a tentar ligar. Lucy desligou-me o telefone na cara. Estava a dizer-lhe...

- Eu sei o que estavas a dizer-lhe.

- Desligou-me o telefone. Não pude terminar o que dizia. Quero falar outra vez com ela. Vai chamá-la. Não tem o direito de me cortar a palavra desta maneira!

- Acho que tem todo o direito. Pensou que estavas a ligar-lhe para lhe desejares Feliz Natal e afinal era só para lhe dizeres, sem mais nem menos, que tinhas casado com Randall Fischer e esperavas que ela ficasse encantada.

- Devia ficar. Um pai novo adorável, uma casa nova linda, um sítio paradisíaco para viver. Se tivesse vindo comigo teria visto com os seus próprios olhos. Porque tem de estar sempre contra tudo o que eu faço? Tenho feito tudo por ela! Não será altura de ela começar a pensar também nos outros? Ela quer que eu seja feliz ou não? Ao menos...

- Nicola...

- com a mãe é o mesmo. Essa até está ressentida por eu ficar um pouco mais, a fim de podermos ter uma lua-de-mel.

- Nicola, eu não fico ressentida com nada. Estou contente por ti. Sinceramente. Mas tu tens uma filha, que já não é nenhuma criança. Não podes esperar que aceite de mão beijada o facto de a vida dela ir ficar de pernas para o ar.

- Não quero ouvir nada disso. Não percebo o motivo de tanta confusão. Vai-ma chamar.

- Não, não vou. Não posso. Ela está lá em cima no quarto, embrulhada na colcha e lavada em lágrimas. Tentei falar-lhe, mas está demasiado perturbada para conversar sequer comigo. Além disso, existem outros aspectos práticos. Depois do Ano Novo voltamos para Londres e Lucy precisa de ir para o colégio. Quem é que estará lá para tomar conta dela? A mãe diz que quer continuar em Bournemouth.

-Não podes fazer ao menos isso por mim?

- Não tenho casa onde ficar.

- Bem, podes ir para o apartamento da mãe e ficar lá com Lucy, para que ela volte às aulas.

- Nicola, tenho um emprego novo à minha espera.

- Oh, pois, é a tua carreira. A tua grande carreira. Isso foi sempre mais importante para ti do que nós. Sempre pensei que, ao menos por uma vez...

- Eu sempre pensei que, por uma vez, tu pensasses nos outros e não apenas em ti, como é costume.

- O que estás a dizer não é justo. É a primeira vez em anos, desde que Miles se foi embora e me deixou, que penso em mim mesma. Randall, esse ao menos sabe dar-me o valor. Tenho finalmente alguém na vida que me aprecia!

Carrie desistiu de ser simpática.

- Ora, deixa-te de tretas.

- Não estou disposta a escutar-te! - exclamou Nicola profundamente ultrajada, o que levou Carrie a abrandar.

- Nicola. Pronto, desculpa. Assim não chegamos a parte nenhuma. Tenho o teu número de telefone da Florida. Tentarei arranjar uma solução e depois ligo para ti.

- Diz a Lucy que me telefone.

- Não me parece que haja a menor possibilidade disso nos próximos tempos. Mas tenta não fazer disso um bicho de sete cabeças. Descansa que tentarei mesmo resolver o assunto.

Nicola acabou por dizer, de má vontade:

- Está bem.

- E tem um Feliz Natal.

Nicola, como sempre, não percebeu a ironia. Respondeu:

- Tu também. E desligou.

O que Carrie desejava, acima de tudo, era voltar ao dia anterior, onde ainda nada daquilo acontecera. Estar na fábrica vazia e deserta, sozinha com Sam Howard; percorrer os armazéns vazios, seguir a sua figura alta escadas acima, atravessar os passadiços. Queria regressar ao Duke's Arms, com a lareira acesa, a bebida reconstituinte, os dois velhos e o murmúrio da televisão do barman. E não ter ninguém com quem se preocupar senão consigo mesma e com o homem sentado à sua frente, a falar do seu futuro ténue e incerto.

Mas agora vivia aquele momento e tudo mudara. Passou uma mão pelo cabelo, endireitou os ombros, virou-se e abriu a porta da sala de estar. No lado de lá encontrou-os ainda a todos sentados nos mesmos sítios, nas mesmas posições, como se nada de especial se pudesse ter passado. Reparou que Rory fora para junto deles, pois, depois de terminadas as suas tarefas culinárias na cozinha, subira ao piso de cima para ver o que acontecera e saber porque ninguém aparecia para a refeição informal e improvisada. Naquele momento, encontrava-se sentado no tapete, de pernas cruzadas em frente da mãe, com um copo de cerveja na mão.

Conversavam tranquilamente, mas quando Carrie abriu a porta e entrou, calaram-se e as cabeças voltaram-se como se o seu aparecimento estivesse a tardar ou fosse inesperado.

- Aqui estou. - O que era banal, fechando a porta atrás de si. Desculpem tê-los feito esperar - disse Carrie.

- Que se passa, querida? Tantos telefonemas. Rory disse que a mãe de Lucy ligou da Florida. Espero que não tenha havido nenhum problema - perguntou Elfrida.

- Não, está tudo bem. - O que por um lado era verdade, mas, por outro, não. - É apenas mais uma crise de família, mas como é a minha, por favor não se preocupem demasiado.

- Carrie, a situação não parece nada bem. Conta-nos.

- Não sei por onde começar - desabafou esta.

Sam, que se encontrava sentado ao fundo da sala, levantou-se da cadeira e aproximou-se dela, perguntando-lhe:

- Que tal uma bebida?

Carrie sacudiu a cabeça em sinal negativo, sem saber muito bem se estava muito empalidecida ou ruborizada pelo esforço a que a situação insuportável a obrigara. Sam colocou uma cadeira ao lado da de Elfrida. Carrie sentou-se nela com alívio e sentiu Elfrida pegar-lhe na mão.

- Querida Carrie, conta-nos o que se passa. Ela assim fez.

- Acabei de falar com Nicola ao telefone. A mãe de Lucy. Alargou-se sobre a questão, para esclarecimento dos Kennedy. - Minha irmã. Foi para a Florida com um indivíduo chamado Randall Fischer. Casaram-se esta manhã. Não sabíamos de nada. Ela telefonou para falar com Lucy e foi então que lhe deu a notícia. Lucy nem a deixou acabar, desligou-lhe o telefone e neste momento está metida na cama a chorar desalmadamente e a jurar que nunca gostou de Randall Fischer e que jamais irá para a América. A seguir, ligou a minha mãe a dar a novidade. Ao que parece, Nicola adiou a vinda e está decidida a ter uma lua-de-mel com Randall antes de voltar para Londres. A minha mãe está histérica com isso, porque quer ficar em Bournemouth até ao fim de Janeiro e recusa-se a voltar só por causa de Lucy. Depois, Nicola voltou a telefonar para me dizer que Lucy lhe desligara o telefone na cara. Ainda por cima, tivemos mais uma daquelas diferenças de opinião fraternas e por pouco não nos envolvemos numa discussão arrasadora. Elfrida não se conteve:

- Parece impossível! Carrie prosseguiu:

- Portanto a crise está instalada e também é a longo prazo. Imediata, pois não há ninguém em Londres para cuidar de Lucy e pô-la de novo no colégio. Excepto, claro, aqui a parva. Claro que se for necessário o farei, e instalar-me-ei no apartamento da minha mãe até ela ou Nicola voltarem para Londres. Mas o problema a longo prazo é completamente diferente, ou seja, tem a ver com o futuro de Lucy. Nicola casou com um americano e é natural que queiram viver nos Estados Unidos. Penso que ela adora a perspectiva. Lucy, por outro lado, nunca quis ir para lá, nem mesmo de férias. Não aprecia muito Randall e, para ser sincera, não me parece que também tenha um amor especial pela mãe.

Todos escutavam atentamente e com preocupação crescente. Mas quando Carrie se calou, ninguém falou. A certa altura Tabitha fê-lo:

- Deus nos valha! - disse, o que foi inadequado mas simpático.

- Ela não é obrigada a viver na América - arriscou Elfrida esperançosamente. - E que tal ficar como aluna interna no colégio onde anda?

- É um externato, Elfrida. E as férias ainda estão a decorrer.

- E a tua mãe?

- Sabes tão bem como eu que a minha mãe jamais cederá, só se for obrigada. Nem sequer tentará.

- Talvez o pai de Lucy...

- Nem pensar. A esposa número dois nem sequer concordaria em pensar na possibilidade.

- Mas...

- Isto é ridículo.

Uma nova voz meteu-se na conversa, discussão ou o que porventura fosse. Era Rory Kennedy. Carrie virou a cabeça para olhar para ele e viu que deixara de estar sentado confortavelmente no tapete; erguia-se em frente de todos eles, de costas para a lareira e com os olhos azuis a faiscar de indignação. Ninguém o interrompeu, tal foi a surpresa.

- É ridículo. Vocês estão a andar aos círculos, a partirem do princípio de que Lucy voltará para Londres, como se nada tivesse acontecido. Mas ela não pode ir. Ela contou-me que se sente muito infeliz por lá. E o que acabou de acontecer só lhe torna as coisas ainda mais impossíveis.

Não tem amigos, não dispõe de um lar como deve ser e nunca se sentiu amada. O que a faria verdadeiramente feliz era ficar aqui, com Elfrida e Oscar. Em Corrydale. Disse-me que nunca tinha sido tão feliz como aqui. Nem sequer quer pensar em voltar para Londres. Portanto, não a mandem para lá. Mantenham-na aqui. Pode ficar com Elfrida e Oscar, e os meus pais estarão aí para o que for preciso, assim como Clodagh e eu. Ela fará amizade com os nossos amigos e pode ir para o externato em Creagan. O pai pode tratar disso com Mister Mclntosh. Hão-de arranjar-lhe lugar. Isso é o que eu acho que deverão fazer. Penso que, se a deixarem voltar para Londres sem qualquer tipo de plano para o futuro, será um crime. As adolescentes infelizes fazem coisas terríveis e estúpidas. Todos nós sabemos. Lucy pertence muito mais a todos vós do que à mãe. Portanto, é aqui que deve estar. Penso que têm a obrigação moral de fazer o que é certo para ela. Que é ficar em Creagan.

Calou-se, de faces muito vermelhas devido ao calor da fogueira e à paixão com que exprimira os seus sentimentos. Por um momento, a sala ficou sob o efeito de um silêncio atónito e todos os adultos o fitavam sem fala, mas respeitosamente espantados. Rory, sentindo que talvez tivesse ido longe de mais, mostrou-se um pouco atrapalhado, deu um pequeno piparote no tapete com o pé e desculpou-se.

- Desculpem - disse. - Não queria falar despropositadamente.

Silêncio, de novo. A certa altura, Peter Kennedy afastou suavemente o peso de Tabitha de cima dos joelhos, levantou-se e aproximou-se do filho.

- Não falaste despropositadamente - disse-lhe, pousando uma mão no ombro do rapaz. - Penso que tens razão. Muito bem dito, Rory.

Lucy, deitada a olhar para o tecto inclinado do seu quarto, sentia-se exausta por ter estado a chorar e começava a ter remorsos pelo modo como falara com Carrie. Não tinha o hábito de ter birras e não sabia o que fazer a seguir. As coisas só voltariam à normalidade depois de pedir desculpa a Carrie, de esta a abraçar e lhe dizer que perdoava, mas não tinha coragem de sair da cama, pentear o cabelo, lavar a cara e descer ao encontro de todos. Os Kennedy ainda ali estavam, jantariam todos, o que ainda piorava mais a situação.

Sentia dores de cabeça, estava esvaída e, no entanto, tremendamente esfomeada. Lembrou-se na satisfação que tivera em desligar o telefone na cara da mãe que lhe falava dos Estados Unidos a dizer que acabara de casar com Randall Fischer, que ela tinha um novo pai, que iriam ser todos muito felizes para sempre, em bom estilo e com o calor bem-aventurado da corrente do golfo da Florida, sempre presente. Ao ouvir a mãe a divagar, lírica de satisfação e tão insensível aos sentimentos dos outros como sempre, limitara-se a pousar o auscultador no descanso, incapaz de escutar uma palavra mais.

Naquele momento, sozinha e desolada, disse a si mesma que fora uma cobarde. Devia ter aproveitado a conversa para dar a conhecer à mãe toda a força da sua indignação e choque. Devia ter-lhe dito imediatamente que estava aterrorizada só com a perspectiva de sair da sua terra, obrigada a viver num país estrangeiro e aceitar que a sua existência fosse virada de pernas para o ar.

Mas agora era demasiado tarde.

Ansiava por ser mais velha, chegar aos dezoito e tornar-se adulta, com o peso da lei britânica a apoiá-la. Aos dezoito anos não seria obrigada a sair de onde estava, poderia ficar onde se sentia segura e à vontade, construir uma vida e um futuro para si mesma. Mas os catorze anos eram uma idade desgraçada: demasiado crescida para que a empurrassem de um lado para o outro sem se queixar, como se fosse um objecto, e demasiado nova para ser independente. Antes, as coisas já não eram nada boas. A partir dali tinham-se tornado - ou estavam prestes a tornar-se - impossíveis.

Por cima da sua cabeça ficava a clarabóia. Do lado de lá do vidro, a escuridão tornara-se opaca devido ao reflexo da luz dos candeeiros da rua, mais abaixo. Mas conseguia ver uma estrela e imaginou a clarabóia a abrir lentamente, deixando entrar uma lufada de ar enregelante a cheirar a maresia e ela a ser levantada da sua cama, como que por uma força irresistível, voando através da abertura e vendo o planeta a ficar para trás, as estrelas a aumentar de tamanho a cada segundo... Seguiria em direcção à Lua como um foguete e nunca mais voltaria.

Ouviu um som. Passos na escada. Carrie. Devia ser Carrie. Se fosse, Lucy tinha muito medo de, sem querer, recomeçar a vociferar, e detestava a sensação de parecer que perdia o controlo das suas emoções.

Bateram à porta. Deixou-se ficar deitada com a cabeça em cima da almofada encharcada. Ficou calada.

- Lucy?

Não se tratava de Carrie. Era Oscar. Lucy ficou embaraçada por ele ir vê-la assim toda amarrotada, desalinhada e com a cara manchada de lágrimas. Porque subira ele ali acima? Porque teriam eles deixado que fosse ele a vir buscá-la? Certamente Carrie poderia tê-lo feito, ou Elfrida.

Não respondeu.

- Não te importas de que entre? - perguntou Oscar.

Então, ao ver que ela não respondia, atravessou a distância entre a porta, que deixou escancarada, e a cama, na beira da qual se sentou. O seu peso era estranhamente reconfortante, apertando-lhe a colcha em volta do corpo, e ela ajeitou-se de modo a dar-lhe mais espaço, soltando um longo e entrecortado suspiro.

- Não, não me importo.

- Como te sentes? - perguntou-lhe Oscar, como se fosse um médico bondoso e ela uma enferma de longa data.

- Horrível - respondeu-lhe.

- Carrie foi lá abaixo contar-nos o que aconteceu.

- Fui horrorosa com ela.

- Não nos disse nada disso, apenas que estavas perturbada. O que não admira, depois de receberes semelhante notícia pelo telefone. Como não podemos ver a cara da outra pessoa, parece que nos sentimos impotentes e distantes, não é?

- Se eu gostasse dele não seria tão mau - retorquiu Lucy. - Refiro-me a Randall, claro.

- Talvez venhas a apreciá-lo.

- Não. Não creio. - Fitou Oscar, viu os olhos de pálpebras descaídas, que lhe davam aquela expressão meiga e vagamente entristecida ao rosto, e pensou que era possível gostar das pessoas instantaneamente tal como lhe acontecera em relação a ele. E que jamais se sentiria tão próxima de Randall como sucedera em relação a Oscar.

- Fui horrível com Carrie - confessou com os olhos a voltarem a encher-se-lhe de lágrimas. - Gritei com ela e disse-lhe que se fosse embora, quando ela estava a ser tão querida comigo. Estou cheia de remorsos.

Fungou sentidamente e sentiu a boca tremer como a de um bebé, mas Oscar limitou-se a tirar um lenço de linho, impecavelmente engomado e a cheirar a água-de-colónia, do bolso da sua linda jaqueta de veludo e entregou-lho. Lucy aceitou-o, agradecida, e assoou-se.

Depois disso sentiu-se um pouco mais aliviada. Confessou:

- Normalmente não grito com as pessoas.

- Eu sei que não. E o pior ainda é que, quando estamos muito alterados, desabafamos logo com aqueles que nos são mais queridos.

- É mesmo?

Estava espantada por nunca se ter dado conta disso.

- Sempre.

- Não consigo imaginar o Oscar a gritar com quem quer que seja.

Oscar esboçou aquele seu sorriso raro e meigo que parecia sempre alterar-lhe o comportamento por completo. Observou:

- Havias de ver.

-É que... sinto-me péssima porque sei que devia estar contente. mAs foi um...

- Eu sei. Um choque.

- Se fosse alguém que eu já conhecesse, vivesse em Inglaterra, esse caso não seria tão mau. Mas não quero que me obriguem a ir viver para a América, frequentar a escola de lá e tudo o resto. Londres não é grande coisa, mas ao menos sei onde estou. E não posso ficar com a avó porque a ela tudo faz confusão e quer fazer as suas coisas, sair com as amigas, jogar brídege. Quando ela faz essas jogatinas lá em casa, nem sequer quer que eu entre para cumprimentar as pessoas. Detesta quando Emma lá vai porque diz que faz demasiado barulho. Eu não poderia ficar com ela, Oscar.

- Pois não.

Ele tinha a mão pousada na colcha, Lucy devolveu-lhe o lenço, que ele recebeu, pegando-lhe depois na mão. Sentiu-a quente e segura sobre os seus dedos, um contacto físico, uma espécie de segurança que fazia com que sentisse menos dificuldade em falar. Disse:

- Não sei o que irá acontecer. Isso é o pior. Não faço ideia do que irei fazer. Ainda não tenho idade suficiente para tomar uma atitude.

- Não me parece que precises de tomar seja que atitude for. Penso que outros o devem fazer por ti - observou Oscar.

- Quem?

- Eu, por exemplo.

- O Oscar?

- Tem calma, escuta. Faço-te uma sugestão. Estivemos todos a conversar lá em baixo e tivemos uma ideia. Imaginemos que, depois do Ano Novo, não voltas para Londres com Carrie? Ficas aqui com Elfrida. vou eu a Londres com Carrie e faço uma visita à tua avó, que está em Bournemouth.

Lucy ficou alarmada.

- Que é que lhe vai dizer?

- vou sugerir-lhe que fiques em Corrydale com Elfrida e eu até a vida da tua mãe se resolver definitivamente. Só por enquanto.

- Mas, e a escola? Tenho de voltar às aulas!

- Claro que tens, mas que tal pedirmos a tua transferência do liceu para o daqui de Creagan? Peter Kennedy é amigo do director e falará com ele para que te arranjem um lugar numa aula adequada. É um liceu excelente e tenho a certeza de que a tua actual directora não levantará objecções.

- Miss Maxwell-Brown?

- É esse o seu nome?

- Eu não posso sair do liceu assim sem mais nem menos.

- Não estou a sugerir que o faças. Pedes apenas dispensa até ao fim do liceu. Muitas crianças o fazem, se os pais vão para o estrangeiro ou outras circunstâncias o exigem. Tenho a certeza de que Miss Maxwell-Brown não verá nenhum inconveniente em te deixar ausentar por um período, mantendo o teu lugar reservado para quando esta pequena crise passar e todos sabermos qual será o melhor passo a dar.

- Quer dizer... - Lucy achou que tinha de compreender tudo muito bem, porque aquilo que Oscar lhe sugeria parecia quase demasiado bom para ser verdade. - Quer dizer que depois do Ano Novo não voltaria para Londres? Ficaria aqui consigo e com Elfrida?

- Se for da tua vontade. A decisão tem de ser tua.

Lucy ficou calada por um instante, reflectindo em tudo aquilo.

Parecia-lhe que toda a situação estava recheada de escolhos. Um deles tinha a ver com Elfrida.

- A minha avó não aprova Elfrida - disse ela a Oscar sem mais delongas.

Oscar riu-se.

- Posso imaginar. Mas tenho a certeza de que me aprovará a mim. Apresentar-me-ei como professor, organista de igreja, com antecedentes

Impecáveis e uma reputação imaculada. Será ela capaz de resistir a tal?

Lucy respondeu com um rasgo de humor:

- Não, se isso representar ver-se livre de mim.

- E a tua mãe?

- Essa também não se ralará. Foi sempre assim. Agora que arranjou Randall, ainda menos se preocupará.

- Portanto não levantará objecções?

-Creio que não.

- Carrie vai telefonar a ambas amanhã. Pode delinear os nossos planos. Afinal de contas, para começar, será só até à Páscoa. Depois disso, teremos de voltar a pensar no assunto.

- Eu não mudarei de ideias, Oscar. Nunca quererei ir viver para a América.

- Não vejo porque tenhas de o fazer. Uma visita ocasional, talvez, seria interessante e educativo; é sempre bom conhecer outro país e saber como outros vivem. Mas estou convencido de que, basicamente, poderás ficar onde te sentires melhor.

- Nunca me senti tão feliz em casa como aqui.

- Nesse caso, porque não fazermos por isso? Ficas comigo e com Elfrida em Creagan, durante o tempo que quiseres. Frequentas o liceu loccal. Finalizas o liceu. Depois disso, deves abrir um pouco as asas.

Talvez um internato co-educativo onde possas tirar um curso. Conheço vários estabelecimentos formidáveis onde tenho a certeza de que adorarás andar. Como tenho ligação com outros professores, poderei informar-me, mandar vir prospectos para depois ser mais fácil escolher. Podemos Ir

Visitá-los. Para que tu mesma faças a tua opção.

- Foi nisso mesmo que Rory falou quando estivemos a conversar.

- É um rapaz sensato. Preocupa-se muito contigo. Foi ele que nos espevitou quando Carrie nos deu a notícia do casamento da tua mãe.

Vocês têm de fazer alguma coisa», declarou. Claro que tinha razão.

-Mas, Oscar...

-Que foi?

- O Oscar e a Elfrida não quererão que eu fique a viver convosco durante dois anos!

- Porque não?

- Porque são idosos. Como a avó. Ela diz sempre que não aguenta Por ser avó.

Oscar riu.

- Oh, Lucy, os avós são uma invenção maravilhosa. Em todo o mundo, pelas razões mais variadas, são os avós que criam os netos, divertindo-se muito com isso e fazendo um bom trabalho. Cá por mim, acho que gostaria muito.

- Mas vocês querem mesmo que eu fique? De verdade!

- Mais do que tudo.

- Eu não estorvarei?

- Jamais.

- Imaginem que se mudam para a casinha em Corrydale e deixam esta casa para Sam?

- E então?

- Não terão espaço para mim.

- Ainda não vimos a casa. E se for necessário, redesenhamo-la. Passará a haver uma divisão especial chamado o QUARTO DE LUCY.

- Oscar, não sei porque são tão bons.

- Porque te adoramos. Talvez precisemos de ti. Talvez seja egoísmo meu, mas o certo é que não quero que vás. Preciso de uma pessoa jovem por perto. Acostumei-me ao som da tua voz, aos teus passos na escada, à abertura intempestiva das portas. E ao riso. Detestaria que te fosses embora. Provavelmente ir-me-ia abaixo.

- Quando cheguei a Creagan, depois de eu e Carrie virmos de avião de Londres, vinha terrivelmente nervosa porque já sabia o que acontecera à sua filha... - desabafou Lucy.

- Francesca.

- Carrie contou-me sobre Francesca e eu tinha receio de o perturbar... de lhe fazer lembrar a sua filha e entristecê-lo novamente.

- Fazes-me lembrar ela, mas não fico triste por isso.

- Como é que ela era?

- Como tu, acho. Cabelo louro comprido e sardas no nariz. Usava aparelho nos dentes. Era dois anos mais nova que tu. Andava sempre ocupada, nunca sossegava, excepto quando eu me sentava na minha poltrona com ela ao colo e líamos em voz alta um ao outro.

- O meu pai e eu costumávamos fazer isso. Quando era pequena e ainda estávamos todos juntos. Líamos The Borrowers. E quando ele me queria arreliar, chamava-me Arietty. E punha Badedas no banho e a casa toda ficava a cheirar a pinho. Que mais gostava Francesca de fazer?

- Tudo. Tinha um pónei, uma velha bicicleta, um porquinho-da-índia numa gaiola e um quarto cheio de livros. Quando chovia costumava ir para a cozinha fazer biscoitos, que ficavam sempre queimados ou mal passados, mas eu nunca me queixava e jurava que eram deliciosos. E ouvíamos música juntos, tocávamos piano em dueto...

- Ela tocava bem piano? .

- Nem por isso.

- Era boa na escola?

- Nem por isso.

- Em que é que ela era verdadeiramente boa?

- A viver.

Os olhos de ambos encontraram-se, ambos calados pela enormidade do que Oscar acabara de dizer. Era como se este tivesse falado sem pensar e a palavra pairasse entre eles como uma mentira. Francesca fora boa a viver, mas agora estava morta, a sua jovem vida terminada com o carácter definitivo de um acidente de carro fatal.

Lucy não sabia o que dizer. Para seu horror, viu que os olhos de Oscar se enchiam de lágrimas e a sua boca tremia. De repente, tapou os olhos com um gesto abrupto. Tentou falar, mas as palavras não lhe saíram; em vez disso, um som rasgou-lhe o peito, vindo das suas profundezas, um soluço do mais absoluto desespero.

Lucy raras vezes vira um adulto chorar, descontrolado pela dor mais avassaladora. Ficou a olhar para Oscar sem saber o que fazer para o consolar, mas de repente viu-o sacudir a cabeça, negar a sua própria fraqueza, lutando, de certo modo, para controlar a emoção insuportável. Passado um bocado, para seu imenso alívio, viu-o tirar o lenço do bolso. Depois assoou-se e fez um esforço para lhe sorrir, tranquilizador.

- Desculpa - pediu.

- Não tem importância, Oscar. Eu não me importo. Compreendo.

- Sim, penso que compreendes. A morte faz parte da vida. Tenho de me lembrar disso, mas de vez em quando a realidade escapa-se-me.

- Viver é importante, não é? E recordar?

- Mais importante do que tudo o mais. - Voltou a guardar o lenço. - No primeiro dia, aquele em que chegaste, sentámo-nos na igreja a falar do Natal e do solstício de Inverno, lembras-te? Foi a primeira vez que recordei Francesca sem me deixar ir abaixo de desolação. Lembro-me de ter tido exactamente a mesma conversa com ela cerca de um ano antes. De lhe tentar explicar o significado da estrela de Natal e a teoria científica do tempo. Ela ouviu, mas não ficou convencida. Não queria ficar convencida. Gostava da história tal como era:

No solstício de Inverno gélido com o vento frígido a gemer, A Terra mantém-se firme como ferro. A água parece pedra.

«Era assim que ela queria que o Natal fosse, e para Francesca não seria mágico de nenhuma outra forma. Porque os cânticos, a escuridão e os presentes, tudo fazia parte de um tempo em que a vida ganhava asas e o mundo inteiro subia até às estrelas.

- É assim que este Natal irá ser - declarou Lucy.

- Fica connosco.

-Gosto muito de si, Oscar.

- Há muito amor à tua volta. Nunca te esqueças disso.

- Não esquecerei.

- Agora queres ir até lá abaixo, para junto dos outros, e jantar? Se é que nos deixaram alguma coisa.

-Preciso de me pentear e lavar a cara.

- Nesse caso... - Oscar largou-lhe a mão com uma palmadinha, levantou-se da cama e dirigiu-se para a porta. Ela ficou a vê-lo ir. Antes de sair do quarto, voltou-se para ela com um último sorriso reconfortante. - não te demores muito, queridinha.

 

Véspera de Natal

Naquele clima setentrional instável, uma pessoa não sabia muito bem com que contar quando acordava de manhã, porém aquele dia amanheceu espantosamente límpido e ameno, qual dia roubado à Primavera. O degelo derretera a neve das ruas e dos campos, e apenas as colinas exibiam ainda a sua cobertura branca, com os cumes a brilhar à luz do sol baixo, que se espojava na terra sem encontrar nuvens de permeio. Um sol que, por não soprar a menor brisa, conseguia mesmo transmitir um pouco de calor. Os pássaros cantavam nas árvores desfolhadas e, no quintal da Casa da Quinta, as primeiras gotas de neve derretida trespassavam a erva rude e mal cuidada que crescera por baixo do arbusto de lilases.

Em Corrydale, no quintal de Rose Miller, havia uma mesa carregada de sobras, migalhas para as aves, com um saco cheio de nozes pendurado ao alto. Pombos e estorninhos esvoaçavam em volta, esfomeados, enquanto chapins e tordos debicavam as sementes e os bocados de gordura que Rose espalhara ao longo de um bocado de cordel. Pairavam e pousavam, para logo a seguir se escapulirem para a segurança de algum espinheiro próximo, cujos ramos cheios de galhos tremiam e balançavam sob o peso de asas esvoaçantes e penas agitadas.

Como o dia estava excelente e as estradas limpas, Oscar e Elfrida tinham-se metido no carro e ido a Corrydale sozinhos. Os outros, Carrie, Sam, Lucy e Rory Kennedy, chegariam mais tarde, pois Carrie apercebera-se de que teria de esperar até ao meio-dia para telefonar à irmã na Florida. Falara já com Dodie, toda repimpada no seu quarto de hotel em Bournemouth, e a conversa correra melhor do que alguma das duas se atrevera a desejar. Dodie ficara nitidamente aliviada por se livrar da responsabilidade exclusiva de Lucy e falara até muito afavelmente da hospitalidade e generosidade de Elfrida, esquecendo convenientemente que, em tempos, não tivera uma única palavra amável a dizer sobre a prima extravagante e teatral do ex-marido.

«Oscar vai visitar-te a Bournemouth», prometera-lhe Carrie. «Diz que gostava de te conhecer e, se quiseres, falar sobre o assunto.» Dodie tampouco levantara objecções à sugestão e dissera que teria muito gosto em convidá-lo a tomar chá na sala de estar dos residentes do Palace Hotel.

Agora faltava tratar de Nicola, comunicar-lhe os planos sugeridos para a filha e encorajá-la a concordar com eles. Elfrida, depois de ouvir Carrie falar com Dodie, toda doçura e compreensão, tinha a certeza de que esta também faria um bom trabalho com Nicola. Objecções, se as houvesse, seriam simbólicas. Nicola pouco se importava com o que pudesse acontecer fosse a quem fosse, desde que o caminho por si escolhido permanecesse regular e livre de qualquer tipo de escolho.

Carrie também se oferecera para tratar das coisas necessárias para o piquenique e depois levá-las. Elfrida ainda começara a fazer sugestões sobre sopa quente e pãezinhos de fiambre, porém Carrie e Sam puseram-na carinhosamente fora da cozinha e mandaram-na, mais a Oscar, seguir o seu caminho, o que a fez sentir-se liberta de toda e qualquer responsabilidade e preocupação. Naquele momento, sentada na sala de estar de Rose, Elfrida observava as aves. O quintal de Rose não tinha flores nem legumes, excepto umas quantas couvezinhas-de-bruxelas a apodrecer; no entanto, os canteiros estavam impecavelmente revolvidos, prontos para a época de plantio. O quintal estendia-se colina abaixo, abrangendo uma faixa de terra rectangular e estreita. Ao fundo do mesmo ficava uma cerca de madeira e algumas faias retorcidas, e a seguir os terrenos marinhos que se estendiam até ao braço de mar azul e às colinas na margem mais afastada. Elfrida estava muito interessada naquela prospecção, pois sabia que a vista de que se desfrutava da casa do major Billicliffe seria quase idêntica. Naquele dia, com o ar límpido de Inverno, as cores tão definidas e brilhantes e os ramos rendilhados das árvores tão negros, não podia imaginar nenhuma paisagem mais bonita.

Atrás dela, Oscar e Rose estavam sentados um de cada lado da lareira da casa, onde um monte de turfa incandescente ardia, e bebiam o café que a dona da casa lhes preparara. Rose falava. Pouco mais fizera desde a chegada de Elfrida e Oscar, combinada para as onze e meia da manhã.

-... e, claro, o pobre senhor deixou a casa em mísero estado. Betty Cowper, a mulher do tractorista, fez o que pôde por ele quando a mulher lhe morreu, mas tem três filhos e um homem de quem cuidar, de modo que via-se bem aflita para ter tudo em ordem. Mal soubemos da morte dele, eu e ela fomos até lá e fizemos o melhor que pudemos para limpar a casa. A maior parte da roupa só estava boa para a fogueira, mas como havia algumas peças que ainda se podiam aproveitar para dar, guardámo-las em malas. Parece que ele não possuía nada de valor, mas deixámos tudo o que eram enfeites, objectos pessoais, livros e outras coisas do género onde estavam, para que façam deles o que quiserem.

- Fez muito bem, Rose.

- Betty deu a melhor limpeza possível à casa, esfregou o chão da cozinha e da casa de banho, que estava num estado horrível. Um desastre. Pobre homem solitário! É triste pensar que morreu sozinho, sem família.

Disse que o funeral será no fim da semana? Depois confirme, está bem? Gostaria de estar presente.

- com certeza... e será uma cremação. Mas podemos levá-la connosco no carro até Inverness.

- Não foi por culpa dele que aquela casita ficou tão miserável. Mas certamente os senhores alterarão as coisas ao vosso gosto, e se mandarem vir homens das obras, eles deitarão aquilo abaixo e farão muito pó.

- Ainda não resolvemos se vamos morar lá ou não - lembrou Oscar.

- E porque não? - exclamou Rose com grande indignação. O major Billicliffe jamais vos teria deixado a casa se não soubesse que podiam lá morar. Imaginem! A oportunidade de voltar a Corrydale e morar cá depois de todos estes anos!

- Pode não ter espaço suficiente, Rose. É que, sabe, talvez uma pessoa jovem venha viver connosco.

Rose deixou escapar um assobio de troça, inesperadamente rude.

- Não me diga que vão ter um bebé!

- Não, Rose, não é isso. Lembra-se de lhe ter dito que estávamos à espera de visitas pelo Natal? Uma delas, Lucy, de catorze anos, é uma delas. A mãe acaba de se casar na América, e Lucy em vez de voltar para Londres, vai ficar a viver com Elfrida e comigo uns tempos, e frequentar o liceu de Creagan.

- Mas isso será esplêndido - retorquiu Rose. - Para nós será muito bom termos outra jovem por aqui. Poderá fazer amizade com os filhos de Betty Cowper. São um tanto novos, mas muito animados. E isto aqui em Corrydale é um paraíso para as crianças. Têm a quinta toda para andar de bicicleta sem que precisem de ter medo de serem atropelados por algum camião.

Elfrida terminou a sua observação das aves e voltou para junto de Rose e Oscar, sentando-se numa cadeira de costas arredondadas e pegando na sua chávena de café.

- Talvez possamos alargar um pouco mais a casa do major Billicliffe. Construir um quarto extra, por exemplo. Teremos de ver - disse.

- Precisarão de uma autorização dos serviços de planeamento advertiu Rose prudentemente. Os anos que já tinha haviam-lhe ensinado todos os truques das autoridades locais. - tom Cowper construiu uma estufa sem permissão e não tardou que tivesse de a deitar abaixo. E onde está a tal menina?

Elfrida explicou:

- Chegam mais tarde. Lucy, Carrie, a tia, que é minha prima. Rory Kennedy e Sam Howard. Este foi um hóspede repentino. Apareceu lá na Casa da Quinta e depois não se pôde ir embora por causa da neve. A estrada para Inverness ficou obstruída.

- E de quem se trata?

- Vai dirigir a fábrica McTaggart, em Buckly.

- Quem diria! Vão ter um óptimo grupo para o Natal. Quando Oscar me telefonou a dizer que vinham cá hoje fazer um piquenique, pedi a chave a Betty e fui até lá acender a lareira, para o caso da casa estar demasiado fria para vocês. Mas com um dia assim podem perfeitamente fazer o piquenique no quintal. Dá a impressão de que o bom Deus queria que vissem o sítio no seu melhor.

- É verdade - concordou Elfrida. - Parece mesmo que foi isso.

Rosie era velha e franzina, porém esperta e vivaz que nem um pássaro. Vestia uma saia de tweed, uma blusa com um alfinete de peito no colarinho e uma camisola vermelha Shetland, e os seus olhos escuros e brilhantes pareciam ver tudo sem a ajuda de óculos. Usava o cabelo, fino e branco, preso atrás da cabeça num pequeno coque, e o único indício de velhice estava nas mãos, gastas e deformadas pela artrite. A sua casa apresentava-se tão arrumada, colorida e confiante como ela própria: nos tampos lustrosos dos móveis abundavam bibelôs, recordações e fotografias, e sobre a lareira via-se uma fotografia aumentada do irmão, em uniforme da marinha, que se afogara no mar quando o Ark Royal se afundara durante a Segunda Guerra Mundial. Nunca casara. Dedicara toda a sua vida a Mrs. McLellan, da Casa de Corrydale. Mas não era minimamente sentimental, e o facto de a grande casa ter sido transformada num hotel e já não pertencer à família era algo que aceitara perfeitamente.

- E que irão vocês todos fazer amanhã? - perguntou. Elfrida riu-se.

- Não sei bem. Abrir presentes, imagino. Temos a árvore de Natal na sala de jantar e cearemos lá.

- Ceia de Natal! Lembro-me das festas de Natal em Corrydale nos velhos tempos, com a mesa enorme posta com a toalha e os guardanapos de renda, mais os candelabros. Nessa noite havia sempre festa na casa, com amigos, primos e parentes, e todos se vestiam a rigor, de fraque e fato comprido. Na véspera de Natal era o mesmo. Muito formal. Depois da ceia de Natal, o grupo metia-se em automóveis e ia à igreja de Creagan para a missa da meia-noite... e também havia transporte para o pessoal e mais alguém que quisesse ir. Nem imaginam a sensação que causavam ao entrarem pela coxia adentro, assim todos aperaltados, e Mistress McLellan, com a barra do seu vestido de tafetá a varrer o chão e o seu casaco de marta posto. Na frente. O povo adorava ver aquilo. Muito elegantes e festivos. E os homens com os seus melhores sobretudos. Deve lembrar-se disso, Oscar.

- Não, não me recordo. Nunca passei nenhum Natal em Corrydale.

- Quando Hughie veio para cá, as tradições foram todas por água abaixo. Não creio que ele tenha alguma vez ido à igreja, nem mesmo na véspera de Natal. Não deixa de ser triste que fosse ele, uma pessoa tão indiferente, a tomar conta do lugar e deixar que tudo se esboroasse por entre os seus dedos. - Suspirou fundo e abanou a cabeça ao lembrar-se das iniquidades do irremediável Hughie. - Mas tudo isso pertence ao passado. E o Oscar? Irá à missa da meia-noite, não irá? Nem precisa de carro, basta atravessar a rua.

Elfrida não olhou para Oscar. Terminara o seu café, de modo que pousou a chávena e o pires em cima da mesinha ao lado da sua cadeira.

- Não, Rose, não irei. Mas talvez os outros... «Oh, Oscar», pensou Elfrida tristemente.

Porém, nada disse. O seu afastamento, o seu retraimento eram um problema pessoal que só ele poderia resolver. Era um pouco, reflectiu Elfrida, como se tivesse tido uma zanga com um velho amigo. Como se tivessem sido ditas palavras que jamais deviam ter sido pronunciadas e enquanto um deles não estendesse a mão reconciliadora, o impasse permaneceria. Talvez no ano seguinte. Mais doze meses e ele sentir-se-ia suficientemente fortalecido para ultrapassar aquele último obstáculo.

- Eu irei de certeza. A igreja à noite é muito bonita e, além disso, é como a Rose diz, basta atravessar a rua. Os outros farão o que entenderem, mas creio que Lucy quererá ir e Carrie também, de certeza. E a Rose? Também irá lá estar! - disse Elfrida à laia de declaração.

- Não perderia a oportunidade por nada deste mundo. O meu sobrinho, Charlie, disse que me levava até Creagan.

- Então vemo-nos por lá.

Oscar lembrou-se de algo. Ou talvez quisesse mudar de assunto.

- Rose, o major Billicliffe deixou-me um outro bem sobre o qual não me sinto muito entusiasmado. A cadela.

- Ele deixou-lhe Brandy?

- Receio que sim.

- Não a quer?

- Não, acho que não.

- Nesse caso, Charlie ficará com ela. Afeiçoou-se muito à cadela, que lhe faz companhia quando está a trabalhar no barracão. E os filhos teriam um desgosto enorme se ela se fosse embora.

- Tem a certeza? Não será melhor falar com ele primeiro?

- Eu falarei com Charlie - disse-lhe Rose num tom que não preconizava nada de bom para o sobrinho caso este contrariasse os seus planos. - Ele ficará com a cadela, pode crer. E agora, que tal mais uma chávena de café?

Eram, no entanto, horas de partir. Puseram-se todos de pé e Rose tirou a chave de dentro de um velho bule de chá às flores que estava em cima da cornija da lareira. Entregou-a a Oscar. Depois acompanhou-os até à porta.

- Porque não deixam o vosso carro aqui e vão a pé até à casa do major Billicliffe? É só um pulo e lá não têm muito sítio para estacionar. - Não estorva?

- E porque haveria de estorvar?

Aceitaram, pois, a sugestão, detendo-se apenas junto do carro para abrir a porta do carro a Horace, que ficara fechado lá dentro durante o tempo em que tinham estado a conversar com Rose, não fosse dar-se o caso de se pôr a perseguir algum coelho ou faisão, ou fazer algum outro disparate. Saltou, ligeiro, para o chão e ficou imediatamente encantado com os cheiros do local.

- Para um cão - observou Elfrida -, isto deve ser um pouco como entrar na secção de perfumes da Harrods. Eau d'autre chien. Ele vai comprar um frasco e passar um pouco atrás das orelhas.

No alto, gralhas crocitavam nos ramos despidos e Elfrida, ao espraiar o olhar para o céu, avistou o rasto rectilíneo branco deixado por um avião de passageiros que sulcava o céu azul. Ia tão alto que mal se via, apenas o jacto, no entanto dirigia-se para noroeste, vindo, segundo calculava, de Amesterdão.

- Já te passou pela cabeça, Oscar, que dentro daquele ponto minúsculo, há gente a comer nozes, a ler revistas e a mandar vir gim tónico?

- Para te dizer a verdade, nunca me ocorreu.

- Para onde irão?

- Califórnia, Pólo Norte?

- Passar o Natal ao Pólo Norte. Ainda bem que não tenho de o ir passar à Califórnia.

- A sério?

- Prefiro ir fazer um piquenique para a casa do major Billicliffe. Temos de lhe arranjar um nome novo. Não podemos continuar a chamar-lhe a casa do major Billicliffe, agora que ele já não existe.

- Costumava ser a casa do guarda-florestal. Mas penso que, com o correr do tempo, passará a ser conhecida pela casa de Oscar Blundell. Faz sentido?

- Oscar, tudo o que dizes faz sentido.

Momentos depois, tinham percorrido os cerca de duzentos metros que separavam as duas casas e detinham-se em frente do portão aberto que dava para a nova propriedade de Oscar. Era uma casa gémea da de Rose mas não tão atractiva, além do carro enferrujado parado em frente da porta não contribuir para favorecer as primeiras impressões. Elfrida, com Oscar a seu lado, recordou a primeira noite escura em que, exaustos da longa viagem, tinham finalmente encontrado a casa do major Billicliffe para lhe pedirem a chave da Casa da Quinta. Tanta coisa acontecera depois disso que ela tinha a impressão de terem passado anos.

Subiram o carreiro, com as solas pisando os seixos, até Oscar meter a chave na fechadura, dar-lhe a volta e rodar a maçaneta de metal. A porta abriu-se e ela seguiu atrás de Oscar, fazendo figas, entrando na pequena sala de estar.

Lá dentro estava frio e húmido, mas- nada tão mau como se recordava Elfrida, e como temia. A janela, ao fundo, estava inundada de sol, e Betty Cowper e Rose tinham, entre as duas, esfregado, limpado, esvaziado cinzeiros, sacudido tapetes, polido mobília, despachado grande quantidade de lixo e esfregado soalhos. O cheiro dominante era o de sabão azul-e-branco e desinfectante. A escrivaninha de tampo rolante fora fechada e o carrinho que o major Billicliffe designava de bar fora limpo de garrafas vazias e copos usados. Até os cortinados imundos tinham sido lavados e passados a ferro, e na lareira havia um monte de jornais e pauzinhos prontos a arder. Também havia um balde de metal cheio de carvão e uma pilha de troncos cortados a um canto da lareira.

- Comecemos pelo princípio - sugeriu Oscar.

Despiu o casaco e ajoelhou-se para chegar um fósforo aceso ao monte de jornal e de galhos. Ao fundo da sala estava a porta contra a qual a pobre Brandy se atirara, a uivar de frustração, pregando um susto tremendo a Elfrida. Esta foi abri-la cautelosamente e deparou com uma pequena cozinha feia e gelada, feita de pedra leve e com janelas de caixilhos de alumínio utilitárias. Havia uma tina de barro, uma tábua para secar a loiça, um frigorífico minúsculo e um fogão a gás. A mesa pequena estava coberta com uma toalha de plástico e o chão era forrado a linóleo, já muito gasto. Pouco mais havia. Uma porta meio envidraçada à sua esquerda deitava para um pequeno espaço acimentado onde se via um carrinho de mão estragado, uma forquilha e um vaso com terra seca com restos de gerânios. Não havia sinal de canalização para água quente ou qualquer tipo de aquecimento e o ambiente era enregelante.

Elfrida voltou para junto de Oscar, que empilhava carvão em cima das chamas. Ficou a vê-lo juntar um ou dois troncos. Depois perguntou:

- Como se aqueceria o major Billicliffe?

- Provavelmente não o fazia. Não sei. Acabaremos por descobrir.

- Pôs-se de pé e sacudiu o pó das mãos contra a parte de trás das calças de veludo canelado. - Anda. Vamos dar uma vista de olhos por aí.

Não levou muito tempo. Atravessaram a pequena passagem que conduzia à divisão seguinte: a sala de jantar do major Billicliffe, onde Oscar se lembrava de ver as camisas do velhote penduradas nas costas das cadeiras. Mas também ali Betty e Rose tinham andado atarefadas: tudo estava limpo e nos seus lugares. As velhas caixas de cartão e as pilhas de jornais tinham desaparecido, a mesa apresentava-se decentemente polida, assim como as suas quatro cadeiras.

Daquela divisão subia uma escada que conduzia aos dois quartos do piso de cima. Subiram-na e inspeccionaram-nos. No do major Billicliffe, somente um par de malas de cabedal, firmemente fechadas, evidenciavam a presença do seu anterior ocupante. Elfrida deduziu que contivessem as suas roupas mais respeitáveis. A cama encontrava-se coberta por uma colcha de algodão lavada e os tapetes haviam sido lavados.

- Podíamos mudar-nos já amanhã - observou Elfrida, acrescentando apressadamente, não se fosse dar o caso de Oscar a levar a sério

- ... se quiséssemos.

- Não, minha querida, não me parece que o queiramos fazer.

O segundo quarto era mais pequeno, e a casa de banho, ainda que não exactamente a desgraça que Rose profetizara, muito espartana e pouco propícia a demorados banhos de imersão em água perfumada. A banheira, sobre pés, estava cheia de manchas e de ferrugem, o lavatório rachado e o linóleo levantado nas pontas. Num varão estava uma toalha, no fio, pendurada, e havia um sabão Lifebuoy no lavatório. O melhor que a casa de banho tinha, à semelhança da cozinha, era a vista. Elfrida abriu a janela a muito custo e ficou a olhar para fora. Estava tudo muito quieto e calmo, no entanto, conseguia ouvir o movimento das árvores ao sabor de alguma brisa misteriosa que não se sentia soprar. De repente, dois maçaricos passaram em direcção à água, entoando o seu canto melancólico e solitário. Mais abaixo, estendia-se o quintal, ao abandono: erva crescida a esmo, ervas daninhas por tudo o que era sítio, dois tubos de metal enferrujados, com um pedaço de corda estendida entre eles. Saltava à vista que tudo aquilo se encontrava ao abandono há anos, no entanto, Elfrida não se sentia deprimida nem desencantada. A vista, a mesma vista que ela admirara da janela de Rose, estava ali. Os campos inclinados, o azul deslumbrante da água e as colinas distantes. Achou que, para uma casa que não transbordava propriamente de boas recordações, transmitia uma boa sensação. Fora negligenciada, mas não irremediavelmente. Precisava apenas, como qualquer ser humano, de um pouco de risos e algum carinho, para que voltasse a encher-se de vida. O que havia a fazer antes de mais nada era, sem dúvida, tomarem medidas para se manterem aquecidos.

- Vou até lá fora. Inspeccionar o meu reino - disse Oscar por detrás de Elfrida.

- Fazes bem. Quando vires aquele mato todo não caberás em ti de orgulho.

Ouviu-o descer as escadas e assobiar a Horace. Aguardou. Logo a seguir viu-o aparecer por baixo da janela onde ela estava, mais o cão, depois de saírem pela porta da cozinha. Elfrida viu-o deter-se, sob a luz do sol, e abarcar com o olhar o que se estendia à sua roda. Depois, com Horace nos seus calcanhares, foi até ao fundo da sua extensão de terreno. Quando chegou ao fim, junto da cerca balouçante que constituía o marco de delimitação, apoiou um cotovelo sobre um dos postes e ali ficou, a observar as aves-marinhas na costa do estuário.

Elfrida pensou: «Tenho de lhe comprar uns binóculos.» Depois reparou que tinha um ar confortável, de quem estava bem consigo mesmo. Um provinciano que regressara, finalmente, à sua terra. Sorriu, fechou a janela, saiu da casa de banho e atravessou a passagem estreita que conduzia ao quarto mais pequeno para uma segunda vista de olhos: Lucy teria de ficar ali. Mirou-o profissionalmente, verificando se haveria espaço para ali colocar uma secretária para os trabalhos escolares. Haveria, caso substituíssem a enorme cama de casal em carvalho fumado por uma cama de solteiro. O único senão era estar voltado para norte, pelo que não teria muita luz. Talvez se pudesse fazer alguma coisa para minorar esse aspecto...

Ouviu o som de um carro que se aproximava e, ao espreitar pela janela, viu o Discovery de Sam a sair da estrada principal aos solavancos, para depois dar a curva e parar diante do portão aberto. A porta de trás abriu-se e Lucy saltou para fora.

- Elfrida!

Parecia muito feliz, como se tudo, pelo menos uma vez na vida, estivesse a correr-lhe optimamente. Sentindo-se ridiculamente contente, Elfrida virou-se e saiu do quarto, descendo as escadas estreitas a correr para abrir a porta da entrada e abrir os braços.

Antes que Elfrida pudesse proferir palavra, Lucy atirou-se para o meio deles já a transmitir informações no meio da maior excitação.

- Oh, Elfrida, está tudo bem. Carrie conseguiu falar com a minha mãe. Ela ficou terrivelmente admirada e pediu para lhe explicarem tudo pela segunda vez, antes de finalmente perceber o que todos nós queremos fazer. E Carrie foi maravilhosamente persuasiva, dizendo-lhe que ela tinha de pensar nela mesma e em Randall e ter uma lua-de-mel fantástica, sem precisar de voltar para Inglaterra a correr. E a mãe disse que eles querem ir passar a lua-de-mel ao Taiti, depois dar um pulo a Cleveland para verem a outra casa de Randall, portanto irão precisar de montes de tempo. E que a achava muito simpática por me receber e eu poder ficar consigo.

Elfrida, apesar de aliviada e deliciada, conseguiu manter o espírito prático.

- E o liceu? Refiro-me ao de Londres.

- Oh, a minha mãe tratará de tudo isso. Telefonará a Miss Maxwell-Brown a explicar e pedir-lhe-á que reserve o meu lugar para o próximo Verão, no caso de eu querer voltar nessa altura. Também queria falar consigo, mas a Carrie respondeu-lhe que já tinha saído, portanto ela ficou de telefonar noutra altura para conversarem. Elfrida, não é um amor de casa? Que está o carro velho a fazer ali?

- A enferrujar.

- E o vosso?

- Ao pé da casa de Rose.

- Pensámos que o tinham metido numa garagem e comprado antes aquele.

- Pensaste agora uma coisa dessas! - Anda?

- Não faço ideia.

- Rory pô-lo-á a funcionar. Oh, Elfrida, ele recebeu uma carta. Vai para o Nepal em meados de Janeiro. Não é formidável? O único senão é não estar cá durante a minha permanência, mas volta em Agosto para se preparar para a Universidade. Elfrida, esta é que é a sala de estar? E olhem, vocês já acenderam o fogo da lareira! Que acolhedor. Onde está Oscar?

- Lá fora no quintal.

- Como é que vou ter com ele?

- Vais até à cozinha, sais pela porta...

Lucy saiu imediatamente para o quintal, chamando por Oscar. Nesse momento apareceu Carrie, carregada com um enorme cesto de compras de onde irrompiam termos e garrafas. Então, endireitando-se, levantou um punho fechado em sinal de vitória.

- Está feito! - disse para Elfrida. - Convenci Nicola, falei-lhe com bons modos e está tudo okay. A aprovação parental foi conseguida. Lucy pode ficar, ir para a escola em Creagan, e Nicola diz que estará disponível para contribuir para as despesas domésticas, comida e alojamento.

- Nunca pensei nisso - admitiu Elfrida.

- Pois não, já calculava. E agradecer-te-á com a sua presença, assim que voltar a este país. Penso que isso significa vir até ao Norte nalgum carro fantástico, com Randall Fischer ao volante, para exibir o seu novo-riquismo e dar uma mirada em ti e em Oscar.

- Carrie, não sejas mazinha.

-O mais certo é mostrar-se condescendente. -Não importa. Conseguimos o que queríamos. Oh, foste óptima. Abraçaram-se, triunfantes. Depois, Carrie afastou-se e adoptou uma eXpressão séria.

- Elfrida, tens a certeza de que não será demasiado esforço para ti? Elfrida sacudiu a cabeça.

- Estou convencida de que não.

- Estás a arcar com um grande peso. -Não digas isso. Nunca.

- Como é a casa?

- Fria. Foi por isso que acendemos o fogo.

- Posso bisbilhotar? -Claro.  

- Esta é que é a cozinha?

- Horrível, não achas?

- Mas ensolarada! Oh, olha, Oscar está além... - Saiu para o quintal pela porta da cozinha. - Oscar!

Elfrida pegou no cesto, levou-o para a cozinha e colocou-o em cima da mesa. Nesse momento, Sam apareceu, carregando uma caixa de cartão. Parecia muito pesada.

- Isso é tudo para o piquenique? - perguntou Elfrida, algo espantada.

- Vai ser um banquete. Onde é que ponho?

- Aqui, ao lado do cesto. Onde está Rory?

- A ver o que se passa com o velho carro do major Billicliffe. Ali parado dá um aspecto horrível. A chave da ignição estará por aí?

- Não faço ideia.

- Podemos destravá-lo e empurrá-lo para fora do caminho. A vossa propriedade recém-adquirida ficará com melhor aspecto. - Chegou-se à janela e ficou a olhar para o quintal, onde Oscar, Carrie e Lucy tinham começado a voltar para casa. Observou: - Que vista maravilhosa! É uma boa casa, Elfrida. Transmite uma sensação de solidez.

Elfrida sentiu-se enternecida, como uma mãe a quem elogiam um filho.

- Também é o que eu acho.

O piquenique da véspera de Natal em Corrydale, o primeiro que ali faziam, foi uma festa memorável. Começou com um copo de vinho ao pé da lareira, ao calor dos troncos incandescentes, mas a pouco e pouco foi avançando para fora de portas, já que o dia estava tão bonito que era quase um sacrilégio não o aproveitar. Rory e Lucy foram os primeiros a sair para o quintal, seguidos pelos restantes, um a um, que se sentaram nas cadeiras da cozinha ou almofadões do sofá, ou no tapete grosso que Rory trouxe do carro de Sam. O ar estava frio, mas o sol incidia sobre todos eles, além do abrigo proporcionado pela casa os proteger de qualquer aragem.

Carrie e Sam tinham feito um trabalho esplêndido. Haviam trazido sopa quente com umas gotas de xerez, que serviram em tigelas, pãezinhos frescos com fatias grossas de presunto barrado de mostarda inglesa, uma quiche de bacon e ovo, pernas de galinha, salada de tomate, maçãs verdes rijas e pedacinhos de queijo cheddar. Para finalizar, café bem quente, servido de um termo.

Elfrida, sentada num almofadão e com as costas apoiadas à parede, virou o rosto para o sol e fechou os olhos.

- Nunca na vida tive um piquenique tão bom. Obrigada, Carrie. O vinho deixa-me completamente toldada. De cabeça virada. Não tenho dificuldade nenhuma em me imaginar em Maiorca.

Oscar riu.

- Desconta o facto de ainda não teres despido o casacão.

Rory e Lucy, depois de acabarem de comer e partilharem entre si um saco de batatas fritas e uma barra de chocolate, tinham desaparecido dentro de casa, afim de irem inspeccionar cada canto. A certa altura, voltaram para junto dos outros.

- É uma gracinha, Oscar - comentou Lucy.

- O único problema - disse Rory com ar prático -, é terem de fazer alguma coisa para solucionar o problema do aquecimento. E um autêntico Árctico.

- Rory, tem estado vazia e a neve só parou de cair agora. Vamos, é Dezembro. Calor é algo que não existe em Dezembro - protestou Carrie.

- Não - disse Oscar firmemente. - Rory tem razão. O aquecimento será a nossa prioridade. Aonde é que vocês dois vão agora?

- Pensámos em levar Horace a dar um passeio até à água e à praia.

Oscar acabou de beber o seu café.

- Vou convosco.- Comera o seu piquenique sentado no degrau da porta da cozinha. Pousou então a caneca do café e estendeu uma mão a Rory, que o puxou, ajudando-o a pôr-se de pé. - Nada como um pouco de exercício depois de um banquete. Quem vem mais?

- Eu - disse Carrie.

- Eu cá não - respondeu Elfrida firmemente. - Porque não ficas aqui sentado mais um bocado? Está-se tão bem.

- Se o fizermos, não tarda a escurecer e depois já não podemos dar o passeio. E o Sam?

- Eu fico com Elfrida. Gostaria de dar uma vista de olhos à construção da casa.

Mostrar a casa do major Billicliffe a Sam Howard foi completamente diferente de o fazer a Oscar. com este, Elfrida limitara-se a ir de divisão em divisão, acabando por concluir prazenteiramente que não era tão acanhada nem tão decrépita como tinham receado. Mas Sam era infinitamente mais prático e meticuloso, tal como ela suspeitara. Deu pancadinhas nas paredes, abriu torneiras, inspeccionou caixilhos de janelas e fichas de electricidade, e não fez comentários quando ela lhe revelou os horrores da casa de banho feita de pedra leve. Às tantas terminaram e voltaram para a sala de estar. O fogo começara a esmorecer, de modo que ele deitou-lhe mais troncos sobre as brasas e espevitou-as com um atiçador. Sam dissera tão pouco, fizera tão poucas observações que Elfrida começou a recear que, mentalmente, tivesse condenado a herança de Oscar e estivesse prestes a comunicar-lhe que a considerava imprópria para habitação humana.

- Que acha, Sam? - perguntou-lhe Elfrida nervosamente.

- Penso que tem grandes possibilidades. E a localização é perfeitamente excepcional... Só um momento, preciso de ir buscar algo ao carro. Há electricidade? Talvez se pudesse acender uma luz ou duas. Começa a ficar um pouco escuro cá dentro.

Depois de ele sair, Elfrida acendeu as luzes. Do candeeiro do tecto jorrou uma luzinha fraca. A lâmpada estaria a dar as últimas ou seria mais um exemplo do estilo de vida parcimonioso do major Billicliffe? Havia um candeeiro ao pé da lareira e outro sobre a escrivaninha. Depois de ligados, as coisas melhoraram um pouco. Quando Sam voltou, Elfrida reparou que trouxera um bloco de notas amarelo e uma esferográfica.

Sentaram-se no sofá ao lado um do outro.

- Agora vejamos - principiou Sam, colocando os óculos que tirou do bolso. - Vamos ao cerne da questão. Vocês dois tencionam viver nesta casa tal como está ou pretendem fazer algumas alterações?

- Isso depende - respondeu Elfrida cautelosamente.

- De quê?

- De quanto custarão.

- Suponhamos... - começou a desenhar um plano no bloco. Suponhamos, para começar, que deitam abaixo a cozinha e a casa de banho existentes. São feias, pouco práticas e não recebem luz do sul. Depois, penso eu, deviam acabar com a parede que divide os quartos lá de cima... é só tábua e estuque e não me parece que suporte o que quer que seja. Ficariam assim com um quarto amplo. Sugiro ainda que transformem a sala de jantar numa cozinha, criando talvez uma pequena área para refeições voltada a sul. As paredes que dão para sul e para oeste podiam ser envidraçadas... aproveitariam a vista toda e o sol. Ficariam também com um canto abrigado onde se sentarem lá fora. Um pequeno terraço. bom para as tardes quentes de Verão.

- Que havemos de fazer com a escada?

- Mudá-la para a parede do fundo.

- E coisas como frigoríficos e máquinas de lavar? Acho que lhes dão o nome de electrodomésticos.

- Incorporá-los numa cozinha adaptada. Já há chaminé, portanto é só instalar um Rayburn. Terão assim calor permanentemente, Inverno e Verão, e se forem atingidos por alguma onda térmica elevada, o que é muito pouco provável nesta parte do mundo, bastará abrirem as portas e as janelas.

- Isso substituiria o aquecimento central?

- Estou convencido de que sim. Esta casa está muito bem construída, e como é de pedra, assim que a isolarem como deve ser, permanecerá aquecida. E têm a lareira na sala de estar. Quanto aos quartos, podem pôr aquecedores eléctricos e aquecerem igualmente a água através da electricidade. E muitíssimo eficaz, mas se houver algum corte de energia, sempre terão o Aga.

- E a casa de banho?

- Nova. - Fez o esboço. - Sobre a casa de jantar.

- Lucy também teria de se servir dela.

- Sem problema.

- O quarto pequeno onde ela vai ficar é terrivelmente escuro.

- Assim que vocês se livrarem da velha casa de banho e da passagem, ela ficará com mais uma janela na parede que deita para sul.

Elfrida ficou a olhar, pensativa, para as sugestões simples que Sam acabara de lhe desenhar no bloco, atónita perante a rapidez com que resolvera todos os dilemas. No que se referia à área aberta de lazer, agradava-lhe bastante. Imaginou-se sentada nela com Oscar, tal como estava naquele momento, ao pé do fogo da lareira, com o conforto de uma cozinha moderna mesmo ao fundo.

- E o vestíbulo? - aventurou-se a perguntar.

- Livre-se dele. Não passa de uma zona cheia de correntes de ar. Mas se lhe puser vidros duplos e uma porta de entrada nova, ficará completamente isolado.

Elfrida mordiscou a unha do polegar.

- Em quanto ficará isso tudo?

- Para lhe ser sincero, não sei.

- Custaria... custaria mais de oitenta mil libras?

Sam riu-se, ficando com o rosto enrugado de divertimento.

- Não, Elfrida, não creio que seja preciso esse dinheiro todo, afinal de contas não vai reconstruir, apenas adaptar. O telhado parece sólido, o que é o mais importante. Não há sinais de humidade. No entanto, acho que devia chamar um especialista para lhe dar uma vista de olhos. E também é melhor rever toda a instalação eléctrica. Apesar de tudo isto, penso que dezoito mil libras deverão ser mais do que o suficiente. - Tirou os óculos e olhou para ela. - Dispõe dessa quantia?

- Não, mas espero vir a dispor. Jamie Erskine-Earle vai vender aquele meu relógiozinho. Não chegámos a contar-lhe, mas tudo indica que seja uma raridade. Uma peça de coleccionador. Vale muito dinheiro. Portanto disse-lhe que vendesse.

- Oitenta mil?

- Foi o que ele disse. No máximo oitenta e cinco.

- Nesse caso não tem problemas. Estou muito satisfeito por si! Não há que hesitar, Elfrida.

- Teremos de arranjar um arquitecto, e pedir autorização e coisas do género.

- Que tal a mulher do médico, Janet Sinclair, ela é arquitecta. Entregue-lhe o trabalho. Vale mais, porque é da localidade e conhece os bons profissionais ligados ao ramo da construção.

- Quanto tempo levará?

- Imagino que seis meses. Não sei.

- Teremos de ficar na Casa da Quinta até podermos mudar para cá.

- Evidentemente.

- Mas, e o Sam? Quer a Casa da Quinta para si.

- Posso esperar. E certamente não estão a contar que vos ponha na rua, pois não?

- Mas como vai trabalhar em Buckly, onde é que morará?

- Não se preocupem comigo.

Elfrida teve então uma ideia brilhante que, ao seu jeito impulsivo, partilhou imediatamente com Sam.

- Pode viver connosco. Na Casa da Quinta. O Sam, Lucy, Oscar e eu. Já está instalado num quarto de lá. Pode perfeitamente lá continuar.

Sam voltou a rir-se.

- Elfrida, esse é o tipo de sugestão na qual deve reflectir muito bem.

- Porquê?

- Porque pode mudar de ideias. E tem de falar nisso a Oscar. Ele poderá não gostar da ideia.

- Oh, Oscar adorará tê-lo lá em casa. E eu também. Será um novo trabalho para mim, ter hóspedes. Sabe, fui muita coisa nos meus tempos... actriz, embora nada de especial, empregada de mesa quando não tinha trabalho, senhora de reputação não muito respeitável, fiz almofadas decorativas. E agora serei hospedeira. Por favor, diga que sim.

Estranhamente, sinto que a Casa da Quinta já lhe pertence, apesar de ainda não ser sua. Como se fosse suposto, desde sempre, o Sam vir ocupá-la. Portanto, é lá que deve ficar.

- Obrigado - agradeceu Sam. - Nesse caso, aceito, sujeito, como é evidente, à aprovação de Oscar.

Quando os passeantes voltaram, o sol começara a baixar no horizonte. Oscar e Carrie foram os primeiros, juntamente com Horace, que vinha ansioso por uma bebida refrescante.

- Que tal foi? - quis saber Elfrida, procurando uma taça adequada a um cão no armário.

- Perfeito - respondeu Carrie, desapertando o lenço. - É um lugar paradisíaco. E as aves que estavam na praia! Patos, cormorões, gaivotas. E vocês ficaram bem?

- Sam é brilhante. Praticamente traçou a planta da casa. Tens de vir ver, Oscar. Quase não precisamos de fazer nada. Basta deitar algumas partes abaixo, erguer outras, livrarmo-nos de uma parede e arranjar um Aga. Não fiques de boca aberta, Oscar, é tudo muito simples. Além disso, pediremos a Janet Sinclair que seja a nossa arquitecta. E Sam diz que devemos mandar rever e substituir a instalação eléctrica, mas acha que não há nada de verdadeiramente estragado em lado algum. Vem ver...

Só hora e meia depois é que Rory e Lucy, finalmente, apareceram, altura em que Oscar já tomara conhecimento de todas as ideias de Sam, ficara convencido e dera a sua aprovação. Carrie também concordou com tudo.

- Sabem, sempre adorei a ideia de um piso térreo com um espaço aberto, sobretudo em se tratando de uma casa pequena. E o novo prolongamento significa a entrada de grande quantidade de luz. Sam, você é esperto. É realmente muito esperto. Onde é que ficou a saber tanto sobre derrubar paredes e desenhar plantas?

- Nos últimos dois meses não tenho feito outra coisa senão lidar com planos, projectos, elevações e plantas de arquitectos. Seria muito burro se não tivesse ficado com algumas noções...

Naquele momento já pouca luz havia. Carrie consultou o relógio de pulso e disse que eram horas de regressar a Creagan. Lucy ainda tinha de acabar de pôr a mesa para o jantar de Natal e Carrie iria preparar um prato abundante e satisfatório para comerem naquela noite.

- Vais à missa da meia-noite, Elfrida?

- Estou a pensar nisso. Oscar não quer ir, mas eu vou.

- Eu também. Lucy e Sam, igualmente. Faremos uma refeição tardia, caso contrário será uma noite muito longa.

- Jogaremos às cartas. Encontrei uns baralhos na gaveta do fundo da estante. Quem sabe jogar à canasta com três baralhos? - perguntou Oscar.

- Está a falar do «samba», não é? - perguntou Sam. - Eu sei. Era a grande loucura em Nova Iorque quando lá estive.

- Eu não sei jogar - informou Lucy.

- Não te importes - disse-lhe ele. - Podes fazer par comigo.

Por fim, depois de arrumarem o que restara do piquenique, encontrarem os respectivos chapéus e luvas, aprontaram-se para partir. O primeiro grupo foi no carro de Sam. Elfrida, Oscar e Horace ficaram para trás, afim de fecharem tudo e seguirem mais tarde, no entanto, saíram para se despedir dos outros.

Eram só quatro da tarde, mas o crepúsculo já se instalara insidiosamente e uma lua nova, delicada como uma pestana, pairava por cima deles no céu de safira. O topo coberto de neve das colinas tornara-se quase luminoso na peculiar penumbra, e a maré vazante esvaziava o estuário, revelando faixas de praia e bancos de areia. Maçaricos ainda voavam, rasando a costa, porém as outras aves já se tinham calado, terminados os cantos daquele dia.

O volumoso Discovery desapareceu caminho acima, com as luzes da retaguarda a brilhar. Oscar e Elfrida ficaram à porta até deixar de ouvir o ruído do motor, depois viraram-se e voltaram para dentro.

Elfrida desabafou:

- Não tenho vontade de ir embora. Não quero que o dia de hoje termine.

- Nesse caso, ficaremos mais um pouco.

- Se tivesse algum chá por aí, preparava-te uma chávena.

- Quando voltarmos, tomamos uma.

Oscar deixou-se cair pesadamente no sofá onde, ainda há pouco, Sam estivera sentado. Ao acompanhar os jovens, caminhara mais do que tencionara, de modo que sentia-se exausto. Elfrida deitou o último bocado de lenha na lareira e depois sentou-se em frente dele, estendendo os dedos enregelados para a fogueira.

- Viremos morar aqui, não é, Oscar? - perguntou.

- Se quiseres.

- Quero. E tu também?

- Sim. Admito que tinha as minhas reservas, mas agora que voltei a ver a casa e Sam apresentou todas aquelas ideias e possibilidades, penso que é exactamente aquilo que devemos fazer.

- Que excitante. Um recomeço. Arquitectos, construtores e tudo a ficar como novo. Um dos meus cheiros preferidos é o da cal líquida. E logo a seguir, o da tinta fresca.

- E quanto a mobília?

- No princípio, podemos servir-nos do que aqui está. Talvez demos uma vista de olhos por aí, escolhamos algumas peças em segunda-mão. A primeira prioridade é pôr esta casa como a queremos. Quente, arejada e luminosa. com um Aga e uma cozinha bonita. O aquecimento é extremamente importante. Não consigo imaginar como o major Billicliffe conseguiu aqui viver tanto tempo sem morrer de hipotermia.

- Ele era da velha guarda. Um casaco grosso de tweed, umas ceroulas compridas em lã e fora com esses disparates de sentir frio.

- Tu nunca serás assim, pois não, Oscar? Se começasses a usar ceroulas compridas de lã, eu não suportaria.

- Não. com um pouco de sorte jamais farei semelhante coisa. As sombras alongaram-se. Atrás da janela, as árvores despidas desvaneceram-se no meio da escuridão. Elfrida suspirou.

- Acho que são horas de irmos. Não devo deixar tudo nas costas de Carrie...

Oscar, porém, disse:

- Espera. Quero falar.

- Sobre o quê?

- Nós.

- Mas... - Elfrida ia a dizer, «não temos feito outra coisa durante o dia todo senão falar de nós», mas Oscar interrompeu-a.

- Escuta apenas. Escuta apenas o que tenho para te dizer.

A sua voz transmitia uma tal seriedade e compenetração que Elfrida levantou-se da sua poltrona e foi sentar-se no velho sofá, a seu lado, e Oscar agarrou-lhe na mão. O gesto trouxe-lhe à lembrança um outro, igual, na altura sentados à mesa da cozinha da Granja, após a morte de Gloria e Francesca, sem que nenhum dos dois encontrasse palavras para se reconfortarem um ao outro.

- Estou a escutar - disse-lhe Elfrida.

- Estamos prestes a dar um novo passo. Juntos. Um verdadeiro compromisso. Remodelar esta casa. Gastar uma quantia considerável e vir viver para cá. Também se prevê que, a curto prazo, Lucy também venha para aqui. Não achas que talvez tenha chegado a altura de casarmos? De sermos marido e mulher? Sei que é apenas uma formalidade, pois nem que tentássemos poderíamos ser mais casados do que já somos. Mas selaria a nossa união... não em termos morais, mas como uma afirmação da nossa confiança no futuro.

Elfrida deu-se conta de que os seus olhos se tinham, estupidamente, marejado de lágrimas.

- Oh, Oscar... - Retirou a mão e pôs-se à procura do seu lenço. «Os velhos», dissera uma vez a si própria, «ficam horrorosos quando choram.» - ... não precisas de fazer isso. Elas morreram ainda há poucos meses. Muito pouco tempo para chorar e recuperar. Além disso, não tens de te preocupar comigo, pois não sou esse tipo de mulher. Terei imenso prazer em ficar contigo o resto da vida, só não quero que te sintas na obrigação de casar comigo.

- Não tem nada a ver com nenhuma obrigação. Amo-te e respeito-te tal como as coisas estão, e não creio que nenhum de nós se preocupe com o que os outros possam pensar ou dizer. Por mim, manteria a situação tal qual está. Mas agora temos de pensar em Lucy.

- Que diferença tem para ela a maneira como nós vivamos?

- Oh, minha querida Elfrida, pensa um pouco. Até aqui, as pessoas de Creagan aceitaram-nos com grande bondade; até mesmo condescendência. Nenhuma alma nos atirou alguma pedra, nem mesmo um grãozinho de areia. Mas no que diz respeito a Lucy, é diferente. Ela vai para a escola local. As crianças nem sempre são caridosas. Podem começar a correr boatos e os pais dela ficarem com má impressão, apesar dos tempos que correm. Não gostaria que nada disso incomodasse Lucy. E também temos de pensar no novo marido de Nicola. Nada sabemos sobre ele, mas pode acontecer que seja um desses indivíduos inabaláveis, de padrão moral determinado e inflexível. Nicola há-de cá vir com ele de visita. Não queremos dar a nenhum deles uma razão válida para levarem Lucy para Cleveland, Ohio, contra a sua vontade.

- Queres dizer que poderia não querer que ela morasse connosco, apenas porque vivemos em pecado?

- Exactamente.

- Então, para bem dela, devemos casar-nos.

- Em termos simples, é isso. -Mas Gloria...  

- Gloria, de entre todas as mulheres, compreenderia. - Ainda se passou tão pouco tempo, Oscar.

- Eu sei.

- Tens a certeza?

- Tenho, absoluta. É que uma coisa é certa, tu ajudaste-me a começar de novo, tu é que não só tornaste uma fase dolorosa suportável e possível, como também alegre. Acho que espalhas alegria à tua volta. Não podemos voltar atrás. A vida, para nós dois, nunca mais será como era, mas tu provaste-me que vale a pena vivê-la. Disse-te, faz muito tempo, que tinhas o condão de me fazer rir. E levaste-me a amar-te. Agora não posso imaginar a minha existência sem ti. Por favor, casa comigo. Se não estivesse tão mal das minhas articulações, ajoelhava-me.

- Detestaria que o fizesses - confessou Elfrida encontrando, finalmente, o seu lenço de mão e assoando-se. - Mas gostaria muito, muito, de casar contigo. Obrigada por mo pedires.

Pôs o lenço de lado e Oscar pegou-lhe na mão mais uma vez.

- Muito bem. Estamos noivos. Damos a notícia ou guardamo-la para nós?

- Guardemo-la para nós. Desfrutemos secretamente dela. Só por enquanto.

- Tens razão. Há tanta coisa em curso! Deixemos o Natal passar e depois damos um pulo a Kingsferry, eu compro-te um anel de noivado com diamantes e depois disso anunciamos ao mundo a nossa felicidade.

- Tenho de ser sincera - confessou Elfrida -, não sou grande apreciadora de diamantes.

- Então que gostarias que te oferecesse?

- Águas-marinhas?

Oscar riu-se e deu-lhe um beijo. Poderiam ter ficado ali sentados no meio da penumbra o resto do dia, mas o último dos troncos já ardera e a casa, desaparecido o sol, voltara a esfriar. Eram horas de partir. No exterior, o ar gelara rapidamente e era de novo Inverno. Do norte soprava um vento que fazia estremecer os ramos sem folhas da enorme faia que se erguia em frente do portão.

Elfrida, com as mãos bem no fundo dos bolsos do seu casaco, olhou em volta. A Lua nascia, a primeira estrela espreitava, tremeluzente.

- Voltaremos - disse ela, sem se dirigir a ninguém em particular.

- Claro - confirmou Oscar, fechando a porta da frente. Pegou-lhe então no braço e, com Horace no seu encalço, percorreram o carreiro coberto de pedrinhas no meio da penumbra intensamente azulada do cair da noite.

Véspera de Natal. O pior foi a minha mãe ter ligado ontem, no meio da festa de Elfrida, a dizer que casou com Randall Fischer. Acho que foi a notícia mais horrível que já me deram, pois só pensei que, ou teria de ir viver para a América e perder todos os meus amigos, ou ficar a morar com a minha avó em Londres. Além disso, sem me ajustar nem ser desejada em nenhum dos lugares. Foi um verdadeiro horror. Fiquei completamente histérica, ao ponto de me sentir doente e tratar Carrie muito mal, mas agora já passou.

Seja como for, já está tudo resolvido e, por enquanto, ficarei aqui em Creagan com Oscar e Elfrida e irei ao liceu local. Rory é que lhes disse que eu devia ficar cá e estou muito contente por nós dois termos conversado enquanto ele preparava a televisão, pois assim ficou a saber exactamente o que eu sentia, ao contrário das outras pessoas. Acho que ele é o melhor amigo que eu tenho. Vai para o Nepal no mês que vem e está entusiasmadíssimo com isso. Terei muitas saudades dele, mas tenho a certeza de que, quando voltar, em Agosto, voltarei a vê-lo. Seja o que for que tenha acontecido nessa altura, farei questão em vê-lo e então já terei quinze anos. Os quinze soam muito mais a adulto do que os catorze.

Portanto, hoje de manhã, acordei com a certeza de que tudo vai correr bem, e foi como se me tirassem um peso enorme de cima. Carrie telefonou à minha avó a falar-lhe dos planos e ela concordou com tudo. Mais tarde, ligou para a Florida, afim de falar com a minha mãe e também a convenceu. Na verdade, não levou muito tempo. E depois falei eu com a minha mãe e fiz o possível por não parecer demasiado contente, não se fosse dar o caso de ela mudar de ideias.

Depois Rory apareceu, Sam levou-nos a Corrydale e fizemos um piquenique todos juntos. Sempre quis lá ir para conhecer o lugar.

Era lindo, e o dia estava perfeito, sem nuvens ou vento, e com uma temperatura muito agradável. A casinha de Oscar é um amor, construída a um canto da antiga propriedade, com mais algumas por perto, magníficas árvores enormes e uma longa vista da água até às outras colinas. Estava tremendamente silencioso; só se ouvia o cantar das aves e nada de ruído de trânsito ou qualquer outro. A casa não é muito grande, está em mau estado e faz um frio pavoroso lá dentro, mas Oscar já tinha acendido a lareira, o que a tornou muito acolhedora. Só tem dois quartos e o que será para mim é um pouco sombrio, mas Elfrida diz que ficará melhor depois de lhe fazerem algumas alterações. Sam teve uma série de ideias óptimas e quando forem postas em prática, ficará esplêndida. Tem um quintal, cheio de ervas daninhas, e também uma espécie de terraço, que foi onde comemos o nosso piquenique. Elfrida diz que vivem outras crianças por perto, de uma família de apelido Cowper, e como andam na escola local, pode ser que vá de boleia com elas.

Voltámos no carro de Sam, deixámos Rory em Manse e depois seguimos para casa. Carrie preparou-nos um prato enorme chamado tortilha para o jantar. Tinha batatas, alhos-porros, ovos, bacon e outras delícias. Enquanto isso, acabei de pôr a mesa para o jantar de Natal, coloquei as velas, os estalinhos e os pratinhos com chocolates e dobrei os guardanapos. No meio da mesa está uma taça com azevinho que lhe dá um ar mesmo festivo, e quando acendermos a lareira parecerá exactamente como um cartão de Natal.

Depois, jogaremos às cartas para preencher o longo serão, antes de irmos todos à missa da meia-noite, excepto Oscar, que diz que não quer ir.

Não sei daqui a quanto tempo é que poderão mudar-se para Corrydale, por causa de todo o trabalho que é preciso fazer na casa. Adoraria passar o Verão lá, mas Elfrida diz que depois se verá. Entretanto, está-se maravilhosamente aqui. Além disso, Sam vem morar para cá até tudo ficar resolvido. Custa-me a acreditar que num dia me possa sentir tão miserável e desesperada e no outro tão completamente feliz. Quando voltar a escrever no meu diário, o Natal já terá passado.

Elfrida concentrou-se a abrir a sua mão cheia de cartas e, ao mesmo tempo, a escolher a que iria lançar. Tinham-se-lhe acabado os dois e os três e encontrava-se naquele momento na posição incómoda de tentar descobrir se Carrie tinha, ou não, um par delas na mão e, se assim fosse, um par de quê? O monte de cartas descartadas era demasiado grande para se estar descansado, aproximavam-se do fim do jogo e se Carrie desse uma boa cartada naquele momento, Elfrida e Sam seriam derrotados.

- Decide-te, Elfrida - incentivou Oscar, cansado da longa espera.

- Sê corajosa. Deita uma que não queiras.

Portanto, ela cerrou os dentes e atirou o oito de copas, à espera de que Carrie lançasse um brado de alegria e atacasse. A jovem, porém, limitou-se a abanar a cabeça, o que fez com que Elfrida soltasse um suspiro de alívio e relaxasse.

- Estou que não me aguento dos nervos. Se não tivesse de ir à igreja, tomava mais uma bebida avantajada.

Eram já dez e meia e estavam na última mão. Até ali, Sam e Elfrida encontravam-se em vantagem em termos de pontos, mas a tensão manter-se-ia até a última carta ser virada. Elfrida jogara «samba» há muito tempo, quando Jimbo ainda era vivo e às vezes ficavam a jogar pela noite fora com alguns amigos. No entanto, esquecera-se já de algumas regras e só depois de começar a jogar é que se recordara dos velhos truques e contra-senhas. Oscar e Sam eram jogadores experimentados e a par de todas as nuances do jogo, porém Carrie e Lucy eram principiantes. Carrie apanhou rapidamente o fio à meada; quanto a Lucy fazia par com Sam, que lhe ia explicando tudo com gentileza e paciência,

e no fim da primeira mão já a deixava tomar opções sem se aborrecer quando não eram as mais indicadas.

Carrie tirou duas cartas do baralho, inseriu-as entre as que tinha na mão e depois conseguiu completar um «samba». Oscar deixou escapar um som de aprovação. Ela atirou então o quatro de espadas.

- Se pegar naquela, Sam, estrangulo-o com as minhas próprias mãos.

- Não posso.

Lucy observou:

- Já só faltam quatro cartas.

- Quando essas desaparecerem, o jogo terminou - esclareceu-a Sam. - Pega em duas, Lucy, e vê o que nos calhou.

No patamar, o telefone tocou.

- Malfadado telefone. Quem estará a ligar a uma hora destas! exclamou Oscar.

- Eu vou - disse Elfrida.

Mas Oscar já pousara as suas cartas e pusera-se de pé. Saiu da sala e fechou a porta. Elfrida ouviu-o dizer, «Casa da Quinta».

Seguiu-se o silêncio, enquanto falavam no outro lado da linha, e, por fim, um murmúrio em resposta. A seguir, voltou para junto dos outros, sentou-se no seu lugar na bancada da janela e pegou nas suas cartas.

- Que era? - perguntou Elfrida, curiosa.

- Nada de especial. Engano.

- Queres dizer que se enganaram no número? Oscar olhou fixamente para as cartas.

- Se era número errado, porque é que respondeu? - perguntou Sam.

Lucy, sentada com a cabeça de lado, tentando decidir-se sobre que carta jogar, desatou a rir com a velha piada.

No final acabaram-se as cartas e ninguém ganhou. Mas Sam puxou o bloco de notas para si e depois de juntar os números todos, anunciou que ele e Elfrida eram os vencedores em termos gerais e que esperava que Oscar tivesse um bom prémio para lhes oferecer.

-Nem pensem em semelhante coisa - informou-os Oscar com dignidade. - Tiveram imensa sorte e calharam-vos as melhores cartas. Nada teve a ver com perícia. - Dito isto, pousou as suas cartas na mesa e levantou-se, declarando: - vou levar Horace a dar um passeio. Elfrida ficou a olhar para ele, algo atónita. Oscar levava frequentemente Horace ao quintal antes de todos se irem deitar, mas nunca para um passeio.

- Passeio? Mas aonde é que vais? Lá abaixo à praia? - Não sei. Apenas sinto que preciso de um pouco de ar fresco e de esticar as pernas. Horace pode perfeitamente ir comigo. Não devo estar de volta antes de vocês irem para a igreja, mas deixem a porta aberta e ainda estarei a pé quando voltarem. Divirtam-se. Canta bem, Lucy. - Cantarei - prometeu-lhe ela. l Elfrida tinha uma expressão intrigada.

-Engraçado! Seria de crer que hoje tivesses feito exercício que bastasse para a semana toda.

- Oh, deixa-o estar, Elfrida - disse Carrie, juntando as cartas e começando a distribuí-las em três baralhos separados, um azul, outro vermelho e o terceiro às flores.

- Dá-me uma ajuda, Lucy. Podes ficar com o das flores. Acho este jogo uma maravilha. Há um momento subtil em que se deixa de jogar samba» para se passar à canasta. O apuramento final, no entanto, é um bocado complicado. Terá de mo passar ao papel, Sam, para eu não me esquecer. - com certeza.

As cartas foram separadas, empilhadas e guardadas. Elfrida deu uma volta pela sala a afofar almofadas e a apanhar jornais do chão. O fogo da lareira estava baixo, no entanto deixou-o aceso e colocou a guarda em frente das cinzas incandescentes.

- Acho que devíamos ir andando. Deve ir muita gente e haveremos de querer arranjar lugar sentado.

- É como ir ao cinema - observou Lucy. - Fará frio dentro da igreja? Deverei levar o meu casaco vermelho? - Sim, sem dúvida, e as tuas botas quentes.

Elfrida, sozinha no seu quarto, escovou o cabelo, retocou o bâton e pôs um pouco de perfume. A seguir, tirou o seu casaco de tecido muito grosso do guarda-fato, vestiu-o, abotoou-o até acima e depois enfiou o seu gorro tipo abafador de bule na cabeça. Por fim, sentou-se na beira

da cama e calçou as botas forradas a pele. Umas moedas para a colecta, um lenço para o caso de se emocionar com os cânticos e um par de luvas.

Tudo pronto. Viu-se ao espelho. Elfrida Phipps, prestes a tornar-se Mrs. Oscar Blundell. Achou que estava com um ar estupendo. Aqui vou eu, Deus. E obrigada.

Saiu do quarto e desceu à cozinha, afim de verificar se estava tudo pronto para a manhã do dia de Natal e se não deixara a chaleira ao lume, como lhe acontecia muitas vezes. Foi então que deu de caras com Horace, no seu cesto.

Ficou com uma expressão confundida.

- Horace, pensei que Oscar te tinha levado a dar um passeio. Horace olhou para ela e abanou a cauda.

- Deixou-te ficar? Horace fechou os olhos.

- Onde é que ele foi? Horace não lhe soube dizer.

Elfrida voltou a subir ao andar de cima e entrou na sala de estar.

- Oscar? - A divisão, porém, estava vazia e todas as suas luzes apagadas. De Oscar, nem sinal.

Encontrou Sam no patamar, a vestir o seu sobretudo azul-marinho.

- Oscar desapareceu.

- Foi dar um passeio com Horace.

- Não, Horace está na cozinha, no seu cesto. Que mistério!

- Se calhar escapuliu-se até ao pub.

- Que ideia!

- Não se preocupe. Ele já é crescidinho.

- Não estou preocupada. - E não estava, evidentemente. Apenas intrigada e sem saber aonde ele fora.

Lucy desceu as escadas a correr, vinda do seu sótão.

- Estamos todos prontos, Elfrida. É preciso levar dinheiro para a colecta?

- É. Tens algum?

- Umas cinquenta. Chega?

- Aos montes. Onde está Carrie?

- A acabar de se arranjar.

- Bem, nós as duas vamos andando, Lucy, para ver se arranjamos um banco para nós. O Sam fica à espera de Carrie e depois vai com ela, não é?

- com certeza.

Elfrida e Lucy desceram as escadas apressadamente e, ao chegarem ao vestíbulo, Sam ouviu-as abrir e fechar a enorme porta da frente.

Ficou no patamar da casa vazia, à espera de Carrie. Do lado de lá da porta fechada do quarto chegavam sons: gavetas a ser abertas, a porta de um armário a ser fechada. Não sentia impaciência. Ao longo da vida aguardara a chegada de inúmeras mulheres sentado em bares, de pé em vestíbulos de teatros e cinemas, a fazer tempo nalgum pequeno restaurante italiano. Esperara, mais vezes do que conseguia recordar-se, por Deborah, que não era capaz de ser pontual em nada. Portanto, naquele momento, na casa que um dia seria sua, esperava por Carrie.

- Oh, Sam. - Carrie saíra do quarto, fechara a porta e ficara um pouco constrangida por vê-lo ali. - Tem estado à minha espera? Desculpe. Não conseguia encontrar o meu lenço de seda. - Vestia o seu casaco acolchoado e trazia o chapéu de pele e as botas altas reluzentes. O lenço diáfano, todo em rosas e azuis, vinha suavemente enrolado em volta do pescoço esguio, e, embora tudo aquilo já lhe fosse ternamente familiar, sabia que nunca a vira tão bonita. - Onde estão os outros? Já foram?

- Sim, já foram - retorquiu Sam.

Então, pousou as mãos nos seus ombros, atraiu-a a si e beijou-a. Era algo que ansiava fazer desde a primeira noite em que ela lhe abrira a porta e o vira na soleira, sob a neve que tombava. Quando, por fim, se separaram, Sam viu que ela sorria e que os seus olhos escuros nunca lhe tinham parecido tão brilhantes.

- Feliz Natal - disse-lhe.

- Feliz Natal, Sam. São horas de ir.

Elfrida e Lucy atravessaram a rua. A praça, iluminada pelos candeeiros, já estava cheia de carros, que chegavam com pessoas para a igreja. Era evidente que iria estar presente uma congregação muito numerosa. Vozes chamavam, vizinhos cumprimentavam-se, pondo-se a caminhar a par.

- Elfrida!

Pararam e viram Tabitha, Rory e Clodagh mais atrás, acabados de descer de Manse.

- Viva! Pensei que era cedo, mas vejo que não. Nunca vi tanta gente.

- Eu sei, é divertido, não é? - Tabitha vestia um casaco de lã em xadrez e enrolara um cachecol vermelho ao pescoço. - É sempre assim. As pessoas vêm de quilómetros em redor... Só é pena que tenhamos tido um revés. Alistair Heggie, o organista, ficou com gripe, portanto não iremos ter música de órgão como deve ser.

Elfrida ficou horrorizada.

- Quer dizer que teremos de cantar sem acompanhamento? Não é possível!

- Não é bem assim. Peter telefonou a Bill Croft, o homem das televisões, e ele veio dar uma ajuda. Instalou uns megafones e haverá música gravada. Não é tão bonito, mas remedeia.

- Oh, que desilusão..- Pobre Peter.

- Não há outra solução. com um pouco de sorte ainda arranjamos um banco para nós.

Atravessaram a rua até aos portões verdes e ao carreiro que ficava a seguir, o qual conduzia à ampla escadaria de pedra e às portas duplas da igreja, naquela noite completamente escancaradas. A luz jorrava do interior, incidindo sobre as pedras arredondadas do chão e Elfrida conseguia ouvir a música gravada que vinha de dentro. Um coro. A cantar músicas de Natal.

Deus vos conserve felizes, homens de bem

Que nada vos desalente.

Parecia um pouco mecânico e metálico. «Só um pouco», pensou Elfrida, assim como um pickup portátil num piquenique. Impróprio e, de certo modo, inadequado.

Pois Jesus Cristo é o nosso...

Silêncio. Ou o gravador avariara ou alguém desligara inadvertidamente a electricidade.

- Oh, não! - exclamou Rory. - Não me digam que o megafone apanhou gripe.

De repente, chegou até eles a onda avassaladora de um órgão a tocar. Acordes e ondas de música monumentais encheram a igreja, derramaram-se para o exterior através das portas abertas e ressoaram no ar, desaparecendo na noite.

Elfrida deteve-se abruptamente. Olhou para Tabitha, que a fitou com os olhos muito abertos e inocentes. Durante um instante prolongado, nenhuma delas falou. De repente Elfrida perguntou:

- Peter telefonou a Oscar? Há cerca de um quarto de hora atrás? Tabitha encolheu os ombros.

- Não faço ideia. Venham, meninos, tentemos encontrar sítio para nos sentarmos.

Depois de uma pequena hesitação, Elfrida foi atrás deles. Encontrou um homem simpático, de barbas, à entrada, que a cumprimentou, «Boa noite, Mistress Phipps» e entregou-lhe um livro de hinos. Elfrida aceitou-o automaticamente, sem sequer olhar para ele ou agradecer-lhe. Entrou na igreja e viu que já se encontrava quase cheia com as pessoas a instalarem-se nos seus lugares, inclinando-se para conversar com vizinhos ou quem estava sentado ao lado. A música retumbava à sua volta, enchendo o vazio das arcadas altas, ecoando ao longo da extensa nave. Começou a caminhar ao longo da coxia central, alcatifada em tons de vermelho e azul. Caminhar pela música dentro era como entrar num mar alteroso de som.

Uma mão tocou-lhe no braço. Deteve-se. Era Lucy.

- Elfrida, estamos aqui. Guardámos lugar para si, Sam e Carrie. Não prestou atenção. Manteve-se imóvel.

A árvore de Natal, ricamente decorada e cheia de luzes coloridas e tremeluzentes, erguia-se no meio do transepto, entre o púlpito e a bancada de leitura. Por trás, contra a parede norte da igreja, erguiam-se os tubos do órgão. O assento do organista encontrava-se rodeado por divisórias de madeira de carvalho, de modo a que o organista não fosse visto da assembleia sentada. Elfrida, porém, estava de pé. E era alta. Uma luz, vinda do alto, incidia sobre ele, e assim podia ver claramente a sua cabeça, o seu perfil, a farta cabeleira branca que a exuberância inconsciente da sua própria actuação desalinhara.

Beethoven. Hino da Alegria.

E Oscar Blundell a tocar com toda a sua alma. Reconciliado. De volta. De volta aonde pertencia.

 

                                                                                            Rosamunde Pilcher  

 

                      

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