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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Sombra Noturna / Nora Roberts
Sombra Noturna / Nora Roberts

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Sombra Noturna

 

Percorria a noite. Sozinho. Inquieto. Vestido de negro, mascarado, era uma sombra entre as sombras, um sussurro entre os murmúrios da escuridão.

Sempre estava atento àqueles que atacavam aos débeis e vulneráveis. Desconhecido, invisível, não desejado, caçava os caçadores na selva que era a cidade. Movia-se como peixe na água pelos espaços escuros, becos sem saída e ruas violentas. Como a fumaça, deslizava-se pelos telhados altos e os porões úmidos.

Quando o precisavam, era como o trovão, puro som e fúria. Depois restava apenas o esplendor, o eco óptico que deixava o relâmpago depois de golpear a cidade.

O chamavam Némesis e estava em todas as partes.

Percorria a noite, ouvindo o som do riso, o jubiloso estrépito das celebrações. E era convocado pelos gemidos e pelas lágrimas dos solitários e as súplicas desvalidas das vítimas. Noite após de noite se vestia de negro, ocultava a face e se adentrava nas ruas selvagens e escuras. Não pela lei. Esta era facilmente manipulada por aqueles que a desdenhavam. E com freqüência manipulada por aqueles que afirmavam defendê-la. Ele o sabia. E não podia esquecer.

Quando caminhava pelas ruas, fazia-o pela justiça... a dos olhos vendados, que não discriminava.

Com a justiça, só podia ter castigo justo e o equilíbrio na balança.

Como uma sombra, observou a cidade.

 

Deborah O’Roarke se movia com rapidez. Sempre tivera pressa em atingir seus objetivos. Os sapatos repicavam com agilidade nas calçadas rachadas de East End, Urbana. Não era o medo que a impulsionava a regressar a toda velocidade para seu carro, ainda que o East End fosse um lugar perigoso para uma mulher sozinha e atraente e em particular a noite. Era pelo júbilo do sucesso. Como ajudante do promotor público, acabava de terminar uma entrevista com uma testemunha de um dos tiroteios que começavam a ser uma praga em Urbana.

 Tinha a mente absolutamente centrada na necessidade de voltar a sua sala para relatar a informação, para que as engrenagens da justiça pudessem se por em marcha. Acreditava na justiça, em todas as suas facetas tenazes, pacientes e sistemáticas. Os assassinos do jovem Rico Méndez pagariam por seu crime. E com alguma sorte, seria ela que levaria a acusação.

No exterior do edifício em ruínas, onde acabava de passar uma hora pressionando dois jovens assustados para que soltassem a informação, a rua estava escura. Apenas duas lâmpadas que se localizavam na proximidade funcionavam. A lua, solitária, contribuía com um brilho singelo. Ela sabia que as sombras que via nas portas estreitas eram bêbados, mendigos e prostitutas. Em mais de uma ocasião havia se recordado que ela mesma poderia haver terminado em um desses tristes edifícios, se não fosse a firme determinação de sua irmã de lhe dar um bom lugar, uma boa educação e um boa vida.

Cada vez que Deborah levava um caso diante dos tribunais, sentia que pagava parte desta dívida.

Um das sombras de um beco gritou algo obsceno de forma impessoal. Seguiu-se uma risada feminina áspera. Deborah só estava na Cidade há dezoito meses, mas sabia que não devia deter-se nem dar a entender que tinha escutado algo.

Com passos largos e decididos, se dirigiu até seu carro. Alguém lhe prendeu pelas costas.

- Oi boneca, você é um doce.

O homem era quinze centímetros mais alto que ela e magro como um poste.

Na fração de segundo que mirou seus olhos vítreos percebeu que ele não estava apenas cheio de uísque e sim de drogas que lhe davam uma grande agilidade em vez de atordoá-lo. Com ambas as mãos ela fincou a valise contra seu estômago. Ele grunhiu e afrouxou as mãos. Deborah se soltou e correu, mexendo-se frenética buscando as chaves.

No momento que suas mãos cerraram-se sobre elas na bolsa, o homem a segurou e cravou os dedos na gola de sua jaqueta. Ouviu quando o algodão se rompeu e voltou-se para bater-lhe no rosto. Foi quando viu a navalha, cujo aço brilhou um momento antes de lhe tocar a pele suave de seu pescoço.

- Te peguei.- soltou uma risada.

Permaneceu quieta, quase sem se atrever a respirar. Em seus olhos captava uma centelha de gozo perverso que jamais escutaria sua súplica ou lógica. Não obstante, manteve a voz baixa e serena.

- Só tenho comigo vinte e cinco dólares.

Com a navalha encostada em sua pele, se aproximou com um gesto íntimo.

- Ei Boneca, você tem muito mais que vinte e cinco dólares - cerrou a mão em torno de seu cabelo e puxou de uma vez com força. Quando Deborah gritou, começou a arrastá-la até a parte mais profunda de um beco. – Vai, grita. - riu entre os dentes junto ao seu ouvido - Eu gosto quando gritas. Vamos. - lhe provocou um corte minúsculo com a navalha - Grita.

Ela o fez, e o som ressoou pelas ruas escuras, reverberando entre os desfiladeiros dos edifícios. Os habitantes dos umbrais gritavam dando ânimo... a seu atacante. Por trás das janelas em penumbra, as pessoas mantinham as luzes apagadas e fingiam nada ouvir.

Quando a empurrou contra a parede úmida do beco, Deborah estava dominada por um pavor gélido. Sua mente, sempre disposta e aberta, se bloqueou.

-Por favor - disse, sabendo que não serviria para nada-, não faça isso.

-Você vai gostar - sorriu. Com a ponta da navalha, lhe cortou o botão da parte superior da blusa – Vai adorar.

Como qualquer emoção poderosa, o medo lhe aguçou os sentidos. Pôde sentir suas próprias lágrimas, quentes sobre sua face, cheirar o hálito fétido de seu atacante e o lixo de dias que se acumulava o beco. Ante seus próprios olhos, pôde-se ver pálida e desvalida.

«Serei outra estatística», pensou com a mente embotada. Apenas mais um número entre a crescente quantidade de vítimas.

Devagar, depois com mais força, a ira começou a queimar o escudo de gelo do medo. Não se encolheria nem gemeria. Não se renderia sem lutar. Foi nesse momento que sentiu a pressão afiada das chaves. Seguiam em sua mão, encarceradas não punho rígido. Concentrada, empregou o polegar para sacar os extremos por entre os dedos rígidos. Respirou fundo, tratando de canalizar toda sua força não braço.

Justo neste momento, seu atacante pareceu elevar-se no ar, voar agitando os braços e aterrissar sobre uns dos balde de metal cheios de lixo.

Deborah ordenou a suas pernas que corressem. Tal como lhe palpitava o coração, estava segura de que poderia chegar a seu carro, fechar as portas e arrancar o motor num abrir e fechar de olhos.

Foi quando o viu.

Vestia todo de negro, uma sombra longa e delgada entre sombras. Erguia-se sobre a dependente armado com as pernas separadas e o corpo Temo.

-Fica-te onde estás - ordenou quando ela deu um passo automático à frente. A voz foi uma mistura de murmúrio e rosnado.

-Penso...

-Não penses – interrompeu-a sem se preocupar em olhá-la.

Não momento em que ela se crispava ante seu tom, o marginal se levantou de um salto, gritando, e brandiu a navalha em um arco mortal. Ante seus olhos aturdidos e fascinados, Deborah percebeu o reflexo de um movimento, um grito de dor e o ruído da navalha ao deslizar-se pelo cimento.

Antes que ela tomasse fôlego, o homem de negro recuperou a mesma postura de antes. A dependente estava de joelhos, gemendo e com as mãos coladas ao estômago.

-Isso foi... -procurou uma palavra não redemoinho de seu cérebro-... impressionante. Ia... ia sugerir que chamássemos a polícia.

Ele seguia sem prestar-lhe atenção enquanto sacava umas tiras de plástico do bolso e atava as mãos e os tornozelos do homem que não deixava de gemer. Recolheu a navalha e apertou um botão. A lâmina desapareceu com um baixo. Só nesse momento se voltou para ela.

Notou que as lágrimas já se secavam nas bochechas da mulher. E apesar de sua respiração entrecortada, não dava a impressão de que iria desmaiar ou ser dominada pela histeria. De fato, viu-se obrigado a acolher sua serenidade.

Com impessoalidade observou que era de uma beleza extraordinária. Sua pele era pálida como o marfim sob uma manta revolta de cabelo negro. Suas feições eram suaves, delicadas, quase frágeis. Até que encarassem seus olhos. Esses irradiavam uma dureza e uma determinação que contradiziam o fato de corpo esbelto reagir trêmulo.

Tinha a jaqueta rasgada e a blusa aberta revelando o sutiã de seda azul de uma combinação. Um contraste interessante com o traje severo e quase gritante.

Avaliou-a não como homem, sim como havia feito com outras inumeráveis vítimas. O estremecimento inesperado e muito básico que experimentou o inquietou. Essas coisas eram mais perigosas do que qualquer navalha.

-Está ferida? -perguntou baixinho e com ausência de emoção, sem se afastar da escuridão.

-Não. Não - teria algumas marcas, tanto na pele como nas emoções, mas se preocuparia com elas depois-. Só estremecida. Quero dar-te as graças por... -ao falar tinha avançado para ele. Sob a tênue luz de uma luz próxima, viu que levava o rosto mascarado. Abriu muitos seus olhos azuis, brilhantes e elétricos. - Némesis –murmurou -. Acreditava que era o produto da imaginação criativa de alguém.

-Sou tão real quanto ele - com a cabeça indicou à figura que se retorcia entre o lixo. Viu que da garganta dela caía um filete de sangue. Por motivos que não compreendia, isso o inflamou-. Que classe de idiota você é?

-Que...?

-Estas ruas são os esgotos da cidade. Não é lugar para você. Ninguém com cérebro vêm aqui, a não ser que não tenha juízo.

Deborah sentiu que seu temperamento fervilhava, mas se controlou. Depois de todo, ele a tinha salvado.

-Tinha um assunto para discutir.

-Não - a corrigiu-. Aqui não se discute nada, a não ser que queira que te estuprem ou a matem em um beco.

-Não desejava nada semelhante - à medida que seu estado de ânimo se alterava, o leve acento de Geórgia se manifestou em sua voz-. Sei cuidar de mim mesma.

Ele baixou a vista e seus olhos se demoraram um momento na blusa aberta, depois voltou a encará-la.

-É óbvio.

Deborah não pôde discernir a cor de seus olhos. Eram escuros, muito escuros. Sob a luz discreta, pareciam negros. Mas captou a arrogância que emitiam.

-Já lhe agradeci por ajudar, ainda que não precisava nenhuma ajuda. Eu mesma estava a ponto de me defender desse canalha.

- Verdade?

- Isso mesmo. Iria arrancar-lhe os olhos – mostrou a chave, as pontas letais que sobressaiam de seus dedos – Com isto.

-Certo - a estudou e assentiu devagar-, Acredito que podia tê-lo feito.

-Não duvide.

-Então Acredito que perdi meu tempo - sacou uma pequena sacola negra do bolso. Depois de guardar a faca nela, a ofereceu-. Quererá isso como prova.

Quanto sentiu o peso da arma, Deborah recordou o momento de terror e impotência. Tentou manter seu temperamento sob controle. Quem quer que fosse, tinha arriscado a vida para ajudá-la.

-Estou muito grata a você.

-Não procuro gratidão.

- Então, por que o faz? – perguntou

Ele a olhou. Algo surgiu e se desvaneceu em seus olhos. O que fez que Deborah estremecesse ao ouvir sua resposta.

-Por justiça.

-Esta não é a maneira - começou ela.

-É a minha. Não ia chamar a policia?

-Sim - levou a palma da mão à têmpora. Compreendeu que se sentia um pouco mareada e que tinha o estômago revolto. Não era o lugar nem o momento de falar sobre moralidade nem lei com um homem mascarado e beligerante.

-Tenho um telefone em meu carro.

-Pois sugiro que o use.

-Certo - estava demasiado cansada para discutir. Com um ligeiro tremor, caminhou pelo beco. Ao chegar à entrada, viu sua valise. Recolheu-o com sensação de alívio e guardou a navalha em seu interior.

Cinco minutos mais tarde, depois de chamar o 911 para dar sua localização e informar da situação, regressou ao beco.

- Irão mandar uma patrulha - cansada, afastou os cabelos do rosto. Viu o marginal esparramado sobre o cimento. Tinha os olhos muito abertos e desorientados.

Némesis o havia deixado com a promessa do que aconteceria a ele se voltasse a surpreendê-lo tentando estuprar outra pessoa. Mesmo através das brumas das drogas, as palavras lhe haviam parecidos bem verdadeiras.

-Olá?- com o cenho franzido pela surpresa, mirou ambos os lados do beco. Ele havia partido. - Maldito seja. Para onde teria ido?- se apoiou na parede fria. Frustrada, pensou que ainda não havia terminado com ele.

Estava bastante próximo para tocá-la. Mas ela não podia vê-lo. Essa era sua benção e sua maldição, o pagamento pelos dias perdidos. Não estendeu a mão e sentiu curiosidade por saber que tinha desejado fazê-lo. Somente observou, gravando na memória a forma de seu rosto, a textura de sua pele, a cor e o brilho de seus cabelos enquanto curvava com gentileza por debaixo de seu queixo.

Devia ser um romântico para pensar em termos tão poéticos e musicais. Porém, disse a si mesmo, unicamente esperava e vigiava para se acercar que ela estaria a salva.

Quando as sirenes romperam a noite. Pode ver que ela recobria seu rosto com uma máscara de segurança. Respirou fundo várias vezes enquanto ajeitava a jaqueta sobre a blusa rasgada. Por fim, segurou a maleta bolsa com força e avançou com passos seguros até a entrada do beco.

E apenas mais um vez em seu mundo entre a realidade e a ilusão, pode sentir a sutil sensualidade do perfume que emanava dela.

Pela primeira vez, em quatro anos, experimentou o doce e a serena dor da saudade.

 

Deborah não se sentia como em uma festa. Em sua fantasia, não levava um resplandecente vestido lilás sem alças, com sutiã que lhe apertava as costas. Não usava um salto de dez centímetros e nem sorria até que sua face parecer que se repartiria em duas.

Em sua fantasia, devorava uma novela de mistério e biscoitos de chocolates enquanto tomava um banho de espuma para aliviar as contusões que ainda doíam, depois de três dias de sua desagradável aventura nos becos de East End.

Por desgraça, sua imaginação não era tão boa a ponto de não lhe doer os pés.

De acordo com seu padrão social, era uma magnífica festa. Apesar de a música soar um pouco alta, não lhe perturbava. Depois de passar uma vida inteira com sua irmã, uma fanática por rock in roll, estava acostumada ao mundo da música estridente. Os canapés de salmão defumados não eram biscoitos de chocolate, mas eram saborosos. O champanhe que bebia com moderação era de primeira qualidade.

O brilho e o glamour eram abundantes. Depois de tudo, a festa era dada por Arlo Stuart, magnata de hotelaria, como parte da campanha em favor de Tucker Fields, prefeito de Urbana. Era a esperança de Stuart, e da administração vigente, que a campanha concluísse em novembro com a reeleição do prefeito.

Deborah ainda estava indecisa sobre seu voto; não sabia se o daria ao prefeito vigente ou a seu jovem oponente, Bill Tarrington. O champanhe e os canapés não a influenciavam. Sua escolha se basearia no modo de encarar os temas importantes da cidade, não nas afiliações dos partidos, fossem sociais ou políticas. Aquela noite assistia a festa por dois motivos. O primeiro por que era amiga do secretario do prefeito, Jerry Bower. O segundo porque sua chefa havia empregado uma medida correta de pressão e diplomacia para convence-a a atravessar as portas douradas do Palácio Stuart.

-Deus,você está estupenda – a face bronzeada e amigável do louro Jerry Bower, impecável e atrativo com seu smoking, se deteve junto dela para dar-le um beijo rápido nas bochechas. Lamento não haver ter tempo para falar. Eu tenho que saldar muitas pessoas.

-O braço direito do chefe sempre está ocupado - sorriu-. Vá exibir-se.

- Stuart exagerou um pouco - com olho de político, estudou a multidão. A mistura de ricos, famosos e influentes o satisfazia. Mesmo por que, a campanha também tinha outros aspectos. Ser visto, fazer contatos, com os comerciantes, os trabalhadores, as conferências de imprensa e os discursos os ajudavam. Mas Jerry supunha que dedicar uma parte pequena do dia, de dezoito horas de trabalho, para estar entre a nata da sociedade e comer alguns canapés, o rentabilizaria ao máximo.

-Estou adequadamente deslumbrada - assegurou Deborah.

- Ah, mas queremos o seu voto.

- Pode ser que o consiga.

- Como vai você?- aproveitou a oportunidade e começou a encher um prato de canapés.

-Bem - baixou a vista para o hematoma que já desaparecia em seu ante braço. Havia outras marcas mais acentuadas que o vestido ocultava.

- Realmente?

- Realmente - voltou a sorrir- Foi uma experiência que não quero repetir, mas me vez ver com claridade que vamos ter muito trabalho até conseguir que as ruas de Urbana sejam seguras.

- Não tinha que está por ali.

Os olhos de Deborah imediatamente se incendiaram e sua face ficou vermelha. Mas não de embaraço e sim de revolta.

- Por quê? Por que há de haver um lugar na cidade onde uma pessoa não pode caminhar segura? Se supuser que devemos aceitar o fato que há secções em Urbana que estão vedadas a gente de bem? Neste caso...

- Calma, calma- levantou as mãos em uma gesto de rendição - A única pessoa que alguém, metido na política, não pode ganhar uma discussão, é um advogado. Estou de acordo contigo, certo?- recolheu uma taça de champanhe da bandeja de um mordomo que passava próximo e se recordou que talvez fosse a única coisa que beberia ao longo da noite - É um fato. Pode não parecer justo , mas é a verdade.

- Não deveria ser assim - seus olhos se escureceram pela irritação e pela frustração.

-O prefeito promove uma dura campanha contra o crime - ele recordou Jerry, sorrindo para os eleitores mais próximos-. Ninguém nesta cidade conhece as estatísticas melhor do que eu. São feias, sem nenhuma dúvida, e vamos reduzi-las. Só nos de tempo.

-Sim - suspirou e se retirou da discussão que havia mantido com Jerry mais vezes do que podia contar-. Mas está levando tempo em demasia.

-Não me diga que vai ficar do lado do tal de Némesis? –deu uma mordida em um canapé. «Se a lei não se ocupa de fazer com suficiente rapidez, farei eu?».

-Não – nisso ela era firme. A lei devia fazer justiça de forma apropriada. Inclusive neste momento, quando estava quase enterrada de pelos relatórios de delitos - Não acredito em vinganças e cruzadas pela justiça. Aproxima-se demais dos “Vigilantes”. Mas eu me sinto agradecida por ele estar aquela noite no beco.

-E eu também – a tocou levemente no ombro-. Quando eu penso no que poderia ter passado.

-Não passei – o medo pela impotência que sentiu estava muito próximo a superfície para se permitir pensar muito nele – E apesar do que a imprensa romântica fala, ele é uma pessoa brusca e rude- bebeu outro gole de champanhe- Estou em dívida com ele, mas nem por isso ele me simpatiza.

- Ninguém entende melhor este sentimento do que um político.

-Muito bem - ela relaxou e sorriu – Chega de falar de negócios. Conte-me quem veio a festa. Quem eu devo conhecer e que eu devo ignorar.

Jerry a distraiu. Sempre o fazia. Durante os seguintes minutos devorou canapés e lhe deu nomes das pessoas que estavam no salão de baile do Royal Stuart. Seus comentários inteligentes e certeiros provocavam seus risos. Quando começaram a mover-se entre os convidados, passou o braço com familiaridade por sua cintura. Foi uma questão de casualidade o fato de virar o rosto naquele multidão de pessoas e se concentrar em um único rosto.

Falava em um grupo de cinco ou seis pessoas, com duas mulheres bonitas praticamente coladas em seus braços. Pensou que era atrativo. Mas o salão estava cheio de homens atrativos. Seus cabelos brilhantes e escuros demarcavam um rosto comprido e delgado, quase de um estudioso. Tinha ossos proeminentes, olhos profundos, castanhos escuros e intensos como chocolate amargo. E neste momento parecia que algo lhe aborrecia. Exibia uma boca de lábios cheios, de aspecto poético, que esboçava um sorriso apenas perceptível.

Usava um smoking como se tivesse nascido com ele. Com relaxamento e indiferença. Com um dedo afastou uma mecha anelada de cabelo do rosto e ampliou o sorriso pelo que ouvia. Então, sem mover-se modificou a direção de seu olhar e a encarou.

-...e comprou para os pequenos monstrinhos uma televisão de tela plana.

- Que?- balbuciou e, mesmo compreendo que era um absurdo, sentiu como se rompesse um feitiço - Desculpe-me, sobre que estava falando?

- Sobre os cães aquáticos da senhora Forth - Wright.

-Jerry, quem é aquele homem? O que está com uma loira de um lado e uma ruiva do outro.

Olhando nessa direção, Jerry fez uma careta e encolheu os ombros.

-Me surpreende que não tenha uma morena nos ombros. As mulheres tendem a persegui-lo como se, em vez de smoking, usasse um papel pega moscas.

- Quem é ele? -repetiu. Não necessitava que lhe contasse o que podia ver com seus próprios olhos.

-Guthrie. Gage Guthrie.

-Por que me soa familiar? –franziu os lábios.

-Tem aparecido na seção social do World quase diariamente.

-Não leio a seção social -consciente de que era uma grosseria, não deixou de olhar fixamente o homem do outro lado do salão- Eu o conheço - murmurou-. Mas não consigo situar-me.

-Provavelmente tenha ouvido sua história. Foi policial.

-Policial – levantou as sobrancelhas surpreendida. Parecia demasiado acomodado entre os ricos para que pudesse imaginar que fora um policial.

-E ao que parece um bom, aqui em Urbana. Faz alguns anos o companheiro e ele se meteram em problemas sérios. Seu companheiro foi assassinado e Guthrie dado por morto.

-Agora eu me recordo. Segui sua história. Deus, esteve em coma...

-Nove ou dez meses - confirmou Jerry-. Estava com respiração artificial e quando eles estavam para desligar os aparelhos, abriu os olhos e voltou. Já não podia estar nas ruas e negou-se a um posto de escritório na policial. Durante o tempo que estava no purgatório recebeu uma gorda herança, assim ele pegou o dinheiro e fugiu.

«Não deve ter sido suficiente», refletiu ela. Nenhuma quantidade de dinheiro poderia ter sido suficiente.

-Deve ter sido horrível. Perdeu quase um ano de sua vida.

Jerry escolheu um canapé dos poucos que restavam no prato.

-Ele compensou o tempo perdido. Ao que parece as mulheres o acham irresistível. Claro que isso pode ser porque ele converteu uma herança de três milhões de dólares em trinta e tem aumentado a cada dia - mordiscou uma pedaço e reparou que Gage se separava do grupo e caminhava diretamente para eles – Hum...-murmurou- Parece que o interesse é mútuo.

Gage havia notado sua presença desde o momento em que ela entrou no salão. Paciente, a havia visto se misturar aos convidados. Enquanto ele não deixava de manter conversações triviais, foi incomodamente se tornando consciente de todos os movimentos dela. A havia visto sorrir a Jerry, contemplado como o outro homem lhe dava um beijo no rosto e roçava em um gesto íntimo as mãos em seu ombro.

Tinha que averiguar que classe de relação eles tinham.

Porém não importava. «Não poderia importar», corrigiu-se. Não tinha tempo para morenas sensuais com olhos inteligentes. Mas não deixou de avançar até onde ela se encontrava.

-Jerry - Gage sorriu-. Me alegro de voltar a vê-lo.

 -Sempre é um prazer Sr. Guthrie. Está gostando da noite?

-A partir de agora- olhou para Deborah - Olá.

Por algum motivo ridículo sua garganta se fechou.

-Deborah, gostaria de lhe apresentar a Gage Guthrie. Sr Guthrie, apresento-lhe a ajudante do promotor público, Deborah O'Roarke.

-Uma promotora pública - Gage sorriu de forma cativante-. Me conforta saber que a justiça está me mãos tão cativantes.

-Competentes- retorquiu ela- Prefiro competentes.

-Certamente – apesar dela não ter a oferecido, ele pegou suas mãos e a segurou por alguns segundos.

«¡Cuidado!». A advertência passou rapidamente pela mente de Deborah no instante que as palmas se tocaram.

- Me perdoem um momento? -Jerry voltou a colocar uma mão no ombro de Deborah - O prefeito me chama.

-Claro – lhe deu um sorriso envergonhada por ter esquecido que ele estava ao seu lado.

-Não mora muito tempo em Urbana.

Apesar de sua intranqüilidade Deborah lhe mirou os olhos.

-Aproximadamente um ano e meio. Por quê?

-Porque do contrário eu já teria sabido.

- Verdade? Tem interesse em todos os fiscais do distritos?

-Não – passou o dedo pela pérola que adornava o lóbulo de sua orelha-. Só as bonitas – lhe encantou perceber a suspeita imediata que cintilou em seus olhos-. Quer dançar?

-Não - suspirou-. Não, obrigada. Na realidade não posso ficar por mais tempo. Tenho que trabalhar.

-Já são mais de dez horas - disse, olhando o relógio.

-A lei não tem um horário fixo, senhor Guthrie.

-Gage. A levarei.

-Não -um pânico irracional subiu por seu peito -. Não, não é necessário.

- Se não é necessário, então será um prazer.

«É sedutor», pensou, «demasiado sedutor para um homem que acaba de se separar de uma loira e uma ruiva». Não gostava de pensar que ela era a morena que completaria o trio.

-Não queria ausentá-lo de sua festa.

-Nunca permaneço muito tempo nesses acontecimentos.

-Gage – a ruiva, molhando os lábios vermelhos, aproximou-se segurando seu braço -. Querido, não dançou comigo. Nenhuma vez.

Deborah aproveitou a oportunidade para se dirigir até a saída. Reconheceu que era uma estupidez, mas seu interior se havia agitado ante a idéia de estar a sós em um carro com ele. «Puro instinto», supôs, Já que Gage Guthrie na superfície era um homem encantador e atrativo. Mas percebia algo. Umas correntes subterrâneas, escuras e perigosas. Já tinha muitas coisas de que ocupasse e não necessitava acrescentar mais uma a sua lista.

Saiu na chuvosa noite de verão.

-Lhe chamo táxi, senhorita? -perguntou o porteiro.

-Não -Gage pousou a mão firme em embaixo de seu cotovelo- Obrigado.

-Senhor Guthrie... -começou Deborah.

-Gage. Tenho o carro aqui mesmo, senhorita O'Roarke – sinalizou para uma estilizada e reluzente limusine negra.

-É bonito - comentou com os dentes apertados-, mas um táxi irá atender as minhas necessidades.

-Mas não as minhas – ele fez um sinal para o homem lato e uniformizado que abriu a porta traseira do carro-. As ruas são perigosas a noite. Sinceramente eu gostaria de saber que chegará a salvo onde queira ir.

Ela retrocedeu e o estudou com cuidado, como costumava fazer com um suspeito. Ele tinha um meio sorriso em seus lábios. Já não parecia tão perigoso. De fato, parecia um pouco triste. Um pouco solitário.

Voltou-se para limusine. Sem querer se abrandar em demasiado, olhou-o por cima do ombro.

- Já lhe disseram alguma vez que é insistente, senhor Guthrie?

-Sempre, senhorita O'Roarke – se sentou ao lado dela e ofereceu-lhe uma rosa vermelha com um talo comprido.

-Vem preparado - murmurou Deborah. Perguntou-se se a flor havia estado esperando a ruiva ou a loira.

-Eu tento. Onde gostaria de ir?

-Ao Palácio da Justiça. Fica na sexta...

-Sei onde fica - Gage apertou um botão e o vidro que os separada do chofer abriu-se em silencio-. Ao Palácio da Justiça, Frank.

-Sim, senhor - o vidro voltou a se fechar isolando-os.

-Fiquei sabendo que já trabalhou desse mesmo lado - comentou ela.

-E que lado é esse?

-O de a lei.

Se voltou para Deborah com olhos obscuros, quase hipnóticos. Fez que ela se perguntasse o que eles haviam visto durante aqueles meses perdidos no estranho mundo de uma quase vida. Ou quase morte.

-É você uma defensora de a lei?

-Gosto de crer que sim.

-Sem dúvida, não me parece gostar de fazer tratos e distribuir cargos.

-O sistema esta mudando - disse na defensiva.

-Oh, sim, o sistema - com um leve movimento de ombros, pareceu descartou o tema-. De onde é?

-Denver.

-Não, Denver não lhe daria sua voz esse tom de silvestres e magnólias.

-Nasci na Georgia, mas minha irmã e eu nos mudamos muito. Morei em Denver até vim para Urbana.

«Sua irmã», pensou. Não seu pai, ou sua família. Apenas sua irmã.

- Por que se decidiu por esta cidade?

-Porque era um desafio. Queria dar um bom uso a todos os dias que passei na faculdade. Gosto de crer que posso fazer diferença. -pensou no caso Méndez e nos quatro membros da quadrilha que haviam sido presos e que esperavam em juízo.

- Você é uma idealista.

-Talvez. O que é que tem de mal?

-Os idealistas a vezes sofrem uma trágica desilusão - guardou silencio um instante, estudando-a. A luz dos faróis e dos semáforos penetravam no carro, para voltar a escurecer. Era bela tanto na luz como na sombra. Mais que beleza, em seus olhos havia uma espécie de poder. Esse que surge com a fusão de inteligência e a determinação-. Eu gostaria ver-la em um tribunal - comentou.

Ela sorriu e acrescentou um elemento a mais ao poder e a beleza. Ambição. Era uma combinação formidável.

-Sou implacável.

-Aposto que é.

Queria tocar-la, apenas o contacto das pontas dos dedos sobre aqueles adoráveis ombros brancos. Perguntou-se se seria suficiente. Como temia que não fosse, resistiu. Com alívio e frustração notou que a limusine curvava e se detinha.

Deborah voltou-se para observar pela janela o antigo e suntuoso palácio de justiça.

-Foi rápido - murmurou, desconcertada por sua própria decepção-. Obrigada pela o viajem - quando o chofer abriu a porta, colocou as pernas para fora do carro.

-Voltaremos anos ver.

-Talvez - por segunda vez, o olhou por cima do ombro-. Boa noite..

Gage permaneceu quieto alguns momentos, invadido pela fragrância que ela havia deixado para trás.

-Para casa? -perguntou o chofer.

-Não – respirou fundo-. Fique aqui e a leve para casa quando ela tiver terminado. Preciso caminhar.

 

Como um boxeador aturdido por muitos golpes, Gage abriu caminho entre o pesadelo. Saiu na superfície, sem alento e empapado de suor. Ao desvanecer-se a náusea, permaneceu imóvel e contemplou o alto teto de seu dormitório.

Havia quinhentas e vinte e três medalhas talhadas no gesso. As havia contado um dia atrás do outro durante sua lenta e tediosa recuperação. Quase como um encantamento, começou a contá-las outra vez, esperando que as batidas de seu coração se acalmassem.

Os lençóis de algodão irlandês estavam amassadas e úmidas ao seu redor, mas permaneceu absolutamente quieto, sem deixar de contar. Vinte e cinco, vinte e seis, vinte e sete. No quarto flutuava uma leve e aromática fragrância de cravos. Um das criadas os havia deixado no escritório anexo próximo das janelas. Enquanto seguia contando, tentou adivinhar que varão as havia utilizado. Waterford, Dresde, Wedgwood. Concentrou-se nisso e na monótona conta até que sentiu que começava a relaxar.

Jamais sabia quando podia reaparecer seu sonho. Supunha que tinha que estar agradecido de que já não surgisse todas as noites, mas em suas visitas caprichosas, havia algo ainda mas horrível.

Mas calmo, apertou o botão que havia junto à cama. As cortinas da ampla janela a sua frente se abriram e deixaram passar a luz. Com cuidado, moveu seus músculos, assegurando-se de que ainda possuía o controle.

Igual a um homem em guerra com seus próprios demônios, repassou o sonho. Como sempre, recordou-o com absoluta nitidez

Trabalhavam de incógnito. Gage e seu parceiro, Jack McDowell. Depois de cinco anos, eram, mas que colegas. Eram irmãos. Cada um havia arriscado a vida para salvar ao outro. E cada um voltaria a fazê-lo sem titubear. Trabalhavam juntos, bebiam juntos, iam às partidas de futebol, discutiam política.

Durante mais de um ano tinham respondido aos nomes de Demerez e Gates, fazendo-se passar por dois traficantes importantes de cocaína e seu derivado ainda mas letal, o crack. Com paciência e astúcia, tinham-se infiltrado em um dos cartéis mas importantes da Costa Este. Urbana era seu centro.

Poderiam ter realizado dúzias de detenções, mas tanto eles como o departamento tinham lembrado que o objetivo era o chefe supremo.

Seu nome e rosto seguiam sendo um mistério.

Mas aquela noite iriam conhecê-lo. Depois de muitos esforços tinham conseguido pactuar um trato. Demerez e Gates levavam cinco milhões em dinheiro em uma valise reforçada com aço. Iriam trocar por coca pura. E somente fariam o trato com o chefão.

Foram ao porto em Maserati do qual Jack estava muito orgulhoso. Com um respaldo de duas dúzias de homens, suas personalidades falsas intactas, estavam de muito bom humor.

Jack era um policial veterano, duro e de mente rápida, ligado a sua família. Tinha uma mulher bonita e carinhosa e um bebê brincalhão. Com o cabelo castanho penteado para atrás, as mãos cheias de anéis e um traje que lhe ficava impecável, dava a imagem perfeita do traficante rico e carente de consciência.

Havia muitos contrastes entre os dois colegas. Jack descendia de um linhagem de policiais e sua mãe divorciada o havia criado em um apartamento de terceiro andar de East End. Seu pai, um homem que havia recorrido à garrafa tanto quanto a sua arma, lhe fazia visitas esporádicas. Jack havia ingressado no corpo da policial ao terminar a escola.

Gage procedia de uma família de empresários com sucesso que iam de férias a Palm Beach e jogavam ao golfe em um clube de campo.

Seus pais tinham estado mais próximos da classe trabalhadora, segundo os padrões da família, preferindo investir seu dinheiro, seu tempo e seus sonhos em um pequeno e elegante restaurante francês em a parte alta de East. Em última instância, esse sonhos os havia matado.

Depois de fechar o local em uma noite de outono, tinham-lhes roubado e assassinado brutalmente a menos de três metros da porta do restaurante.

Órfão antes de cumprir os dois anos, Gage havia sido criado com estilo e comodidade por uns tios carinhosos. Havia jogado tênis em vez de futebol de rua e o tinham tentando estimulá-lo a seguir os passos do irmão de seu falecido pai, como presidente do império Guthrie.

Mas jamais havia esquecido a crueldade nem a injustiça do assassinato de seus pais. Por isso decidiu ingressar no departamento de policial ao terminar a universidade.

Apesar de todos os contrastes existentes entre eles, tinham uma coisa vital em comum: ambos acreditavam na lei.

-Esta noite o penduraremos pela bunda - disse Jack, dando uma profunda tragada ao cigarro.

-Já está chegando hora - murmurou Gage.

-Seis meses de preparativos e dezoito meses a paisana. Dois anos não são muitos para apanhar esse canalha! - olhou a Gage e lhe piscou o olho-. E imagino que sempre temos a opção de apanhar os cinco milhões e fugir como se o diabo nos perseguisse . Que dizes, rapaz?

Apesar de Jack ter somente cinco anos a mais que ele, sempre o havia chamado «rapaz».

- Sempre quis conhecer o Rio de Janeiro.

-Boa idéia. Eu também. -atirou o cigarro pela janela-. Poderíamos comprar uma fazenda e levar uma vida em grande estilo. Muitas mulheres, muito rum e muito sol. Você gostaria?

-A Jenny talvez não agradaria.

Jack riu entre dentes ao ouvir o nome de sua mulher.

-Sim, isso provavelmente a deixaria um pouco irritada. Me colocaria para dormir no sofá por uns dez meses. Acredito que será melhor aquietar a bunda aqui mesmo. - pegou um pequeno transmissor-. Aqui Branca de Neve, câmbio?

-Afirmativo, Branca de Neve. Aqui é Zangado.

-Vamos entrar no Cais Dezessete. Não nos perca de vista. Isso vale para o resto do anões.

Gage parou nas sombras do cais e apagou o motor. Podia sentir a maresia e o odor intensa dos peixes e lixo. Seguindo as instruções que tinham recebido, piscou os faróis duas vezes, fez uma pausa e repetiu o mesmo.

-Como James Bond - comentou Jack com um sorriso- Pronto, rapaz?

-Pronto.

- Então vamos lá - acendeu outro cigarro e expeliu a fumaça.

Avançaram com cautela. Jack portava a valise com as notas marcados e o micro-transmissor. Os dois levavam pistolas com armas regulamentadas de calibre 38. Gage tinha uma segunda pistola presa à panturrilha.

Chegava-lhes o ruído da água sobre a madeira, as patas escorregadias dos roedores sobre o cimento. A luz tênue de uma lua meio coberta pelas nuvens. O aroma do fumo do cigarro de Jack. O suor lento escorria pelas costas de Gage.

-Algo não encaixa - sussurrou.

-Que não me venha com premonições, rapaz. Esta é nossa noite de glória.

Com um gesto de consentimento, Gage conteve a inquietude. Mas levou a mão a arma quando um homem pequeno saiu das sombras. Com um sorriso, o homem mostrou as mãos com as palmas para cima.

Estou sozinho - anunciou-. Tal como combinamos. Sou Montega, sua escolta.

Tinha o cabelo negro e um bigode pequeno. Quando sorriu, Gage captou o reflexo de alguns dentes de ouro. Como eles, luzia em um caro traje, desses preparados para ocultar o vulto de uma arma automática.

Montega baixou uma mão com cautela e sacou um charuto longo e fino.

-Uma bela noite para um passeio de barco, não é verdade?

-Sim é - Jack assentiu-. Se importaria que nos o revistemos? Nos sentiríamos melhor em saber que somos as únicas pessoas armadas até chegar ao local indicado.

-É compreensível - acendeu o charuto com um isqueiro de ouro. Sem deixar de sorrir apertou o charuto entre os dentes de ouro

Gage viu que voltava a guardar o isqueiro no bolso com gesto casual. Depois se ouviu uma explosão, o som demasiadamente familiar de um disparo. Havia um buraco fumegante no bolso do traje de mil quinhentos dólares. Jack caiu para trás.

Inclusive nesse momento, quatro anos depois, reviveu o episódio em um horrível movimento a câmara lenta. A expressão aturdida, já sem vida, nos olhos de seu amigo, ao voar para trás pela força do impacto do disparo. O intervalo que durou o momento que a maleta girou no ar. Os gritos dos homens de apoio ao correr em direção a eles. Seus próprios movimentos, de uma lentidão impossível, ao levar a mão a arma.

O sorriso cada vez mais amplo, com seus reflexos de ouro, à medida que Montega se voltava em sua direção.

- Adeus policiais - disse antes de disparar.

Inclusive nesse momento, Gage podia sentir o calor aterrador que estourou em seu peito, insuportável. Viu-se voando para trás, sem parar, até perder-se na escuridão.

E havia morrido.

Sabia que estava morto. Podia vê-lo. Havia baixado os olhos para ver seu corpo estendido no cais ensangüentado. Os polícias trabalhavam sobre ele, vendando-lhe a ferida, soltando maldições e movendo-se como formigas. Havia observado tudo sem paixão e sem dor.

Então a ambulância chegou e de algum modo conseguiu devolvê-lo à dor. Lhe havia faltado força para opor-se e partir para o lugar que queria ir.

A sala de operações.

Umas paredes azuis, luzes fortes, o reflexo de instrumentos de aço. O bip, bip, bip dos monitores. O rangido do respirador artificial. Por duas vezes havia saído com facilidade de seu corpo, como o ar, sereno e invisível, para observar à equipe médica lutar por sua vida. Havia querido dizer-lhes que parassem, que não queria regressar onde podia voltar a sentir a dor. Sentir outra vez.

Mas seus os componentes da equipe tinham se mostrado hábeis e decididos e o tinham arrastado de volta a seu corpo ferido. E durante algum tempo Gage havia regressado à escuridão.

Mas isso havia mudado. Recordou flutuar num mundo de um líquido acinzentado que lhe havia provocado recordações primitivos do útero. Ali estava a salvo. Reinava a tranqüilidade. De vez em quando ouvia alguém que pronunciava seu nome em voz alta, com insistência. Mas ele escolhera não prestar-lhe atenção. Uma mulher chorava... sua tia.O som emocionado e suplicante da voz de seu tio.

Havia luz, na realidade uma intrusão, e ainda que não pudesse sentir, percebia que alguém lhe levantava as pálpebras e fazia brilhar uma luz em suas pupilas.

Era um mundo fascinante. Podia ouvir suas próprias palpitações. Podia cheirar flores, ainda que somente esporadicamente, á que a fragrância ficava relegada pelo cheiro anticéptico do hospital. E ouvia música, suave, calma. Beethoven, Mozart, Chopin.

Depois se inteirou de que uma das enfermeiras havia ficado o suficientemente comovida com ele e levara um pequeno som para seu quarto. Com freqüência ia até seu quarto com flores esquecidas e falava com ele em tom maternal.

Às vezes a tomava por sua própria mãe e sentia uma tristeza insuportável.

Quando as brumas no mundo cinza começaram a abrir-se, opôs-se a isso. Queria ficar. Mas não importava a profundidade que submergisse, não deixava de boiar cada vez mais próximo da superfície.

Até que ao final abriu os olhos à luz.

Nesse momento teve que reconhecer que essa havia sido a pior parte da pesadelo. Abrir os olhos e dar-se conta de que estava com vida.

Cansado, levantou-se da cama. Havia deixado para trás o desejo de morte que o havia apossado aquelas primeiras semanas. Mas nas manhãs que ocorria os pesadelos, sentia tentado a amaldiçoar a habilidade e dedicação da equipe médica que o havia salvado.

Mas não tinham salvado a Jack. Não tinham salvado a seus pais, que tinham morrido antes de que chegasse a conhecê-los. Não tinham tido suficiente habilidade para salvar a seus tios, que o tinham criado com um amor ilimitado e que tinham sido mortos algumas semanas antes de que saísse do coma.

No entanto, tinham-no salvado a ele. E Gage entendeu a razão.

Se devia ao dom, à maldição de um dom que havia recebido durante aqueles nove meses em que sua alma se havia ficado no mundo cinza e fluído. E devido a quem o tinham salvado, não lhe ficava mas opção que levar a cabo o que estava predestinado a fazer.

Com uma sensação embotada de aceitação, apoiou a mão direita sobre a parede verde clara de seu quarto. Concentrou-se. Ouviu o zumbido dentro do cérebro, o zumbido que ninguém mas podia ouvir. Então, rápida e completamente, sua mão se desapareceu.

Seguia existindo. Podia senti-la. Não obstante, nem sequer ele era capaz de vê-la. Não havia perfil, nem as silhuetas do dedos. Da manga para acima, a mão havia desaparecido. Somente tinha que se concentrar para que lhe sucedesse o mesmo a todo seu corpo.

Ainda podia recordar a primeira vez que aquilo ocorreu. Como havia se espantado. E como o fascinara. Fez que a mão reaparecesse e a estudou. Era a mesma. Com uma palma larga, dedos longos, um pouco áspera devido aos calos. A mão normal de um homem que já não era normal.

«Um truque útil», pensou, para um homem que percorre as ruas pela noite a procura de respostas.

A fechou em punho e depois entrou no quarto de banho contíguo para banhar-se.

 

As onze e quarenta e cinco da manhã, Deborah esperava na delegacia do distritos vinte e cinco. Não lhe causava estranheza que a tivessem chamado. Os quatro membros do bando que havia atirado em Rico Méndez estavam encerrados em celas separadas. Desse modo poderiam acusá-los assassinato em primeiro grau, cumplicidade no assassinato, posse ilegal de armas, posse de substâncias tóxicas e as acusações restantes que apareciam na ficha de detenção. Sem a oportunidade de combinar as histórias com as de seus colegas.

Às nove em ponto havia chamado o defensor público de Sly Parino. Seria a terceira reunião que mantinham. Em cada uma das anteriores, havia se mantido firme em sua negativa a realizar um trato. O advogado de defesa pedia o mundo, e o próprio Parino se mostrava agressivo, desagradável e arrogante. Mas em cada ocasião que tinham compartilhado a sala de interrogatórios havia notado que Parino suava com mais profusão.

O instinto lhe dizia que tinha algo a confessar, mas que estava dominado pelo medo.

Seguindo sua própria estratégia, Deborah havia aceitado a reunião, ainda que houvesse demorado duas horas. Dava a impressão de que Parino estava pronto para ceder, e como o tinha preso com a posse da arma do crime e duas testemunhas presentes no ato do crime, seria melhor que lhe oferecesse algo valioso.

Empregou o tempo de espera enquanto o tiravam da cela para repassar as notas sobre o caso. Como as podia recitar de cor, a mente vagou ao sucedido na noite anterior.

Se perguntou que classe de homem era Gage Guthrie. O tipo que levava uma mulher relutante a sua limusine cinco minutos depois de conhecê-la e em seguida deixava o veículo a disposição dela durante duas horas e meia. Recordou a divertida surpresa ao sair do Palácio de Justiça à uma da manhã e descobrir a limusine longa e negra com sua motorista taciturno e uniformizado, que a esperava com paciência para levá-la a casa.

Por ordem do senhor Guthrie.

Ainda que não o tivesse visto em nenhuma parte, havia sentido sua presença durante todo o trajeto desde do centro da cidade até sua apartamento do West End.

«É um homem poderoso», pensou nesse momento. «Em seu aspecto, em sua personalidade e em sua atrativa masculinidade». Olhou ao redor da delegacia e tratou de imaginar o homem elegante com sua leve áurea de homem durão, enfiado em um smoking , trabalhando nesse lugar.

 A delegacia vinte e cinco estava situada em uma das zonas mas violentas da cidade. O lugar que descobriu, quando quis saciar sua curiosidade, haver trabalhado o detetive Gage Guthrie durante quase os seis anos inteiros que pertenceu ao corpo de policial.

Refletiu que era difícil unir o homem sedutor e obstinadamente encantador com o linóleo sujo, as duras luzes fluorescentes e o cheiro a suor e café frio que se misturava com o ambientador com fragrância a pinheiro.

Ele gostava a música clássica, já que dos alto-falantes da limusine havia soado Mozart. No entanto, havia permanecido anos entre os gritos, as maldições e os incessantes chamadas telefônicas da vinte e cinco.

Pela informação que havia lido ao pesquisar sua historia, sabia que havia sido um bom policial, as vezes temerário, mas que jamais havia cruzado a linha. Ao menos não que figurasse em sua ficha, em que abundavam as menções honoríficas.

Seu parceiro e ele tinham desarticulado uma rede de prostituição que se mantinha com jovens que fugiam de suas famílias, tinham sido reconhecidos por prender os três mais importantes homens de negócios que tinham dirigido uma operação clandestina de jogo que castigava a seus clientes pouco afortunados com terríveis torturas, tinham capturado traficantes de drogas, insignificantes e destacados, e tinham desmascarado um policial corrupto que empregava seu distintivo para extorquir os comerciantes asiáticos em troca de proteção.

Em seguida tinham trabalhado disfarçados para desmontar um dos cartéis de droga mas importantes da costa oeste. E tinha sido a última missão deles.

«É isso o que o faz tão fascinante?», se perguntou. «Que pareça que o homem sofisticado e rico seja somente uma ilusão embaixo da qual está o policial duro que havia sido? E encarando os anos de serviço à lei como uma simples aberração, havia voltado a seu meio privilegiado? Quem é o verdadeiro Guthrie?».

Moveu a cabeça e suspirou. Ultimamente estava meditando muito. Desde da noite no beco em que havia visto a aterrorizadora realidade de sua própria fragilidade e havia sido salva, apesar de acreditar firmemente que podia ter salvo a si mesma, por alguém a quem muita gente considerava um fantasma.

Pensou no fato de Némesis ser real. O havia visto, escutado, inclusive a havia irritado. Não obstante, quando o recordava, parecia-lhe como uma fumaça. Se tivesse alongado a mão para tocá-lo, o havia atravessado?

«Que tolices. Vou ter que dormir mais se o excesso de trabalho me provoca estes vôos de fantasia em pleno dia».

Mas, de algum modo, ia voltar a encontrar esse fantasma.

-Senhorita O'Roarke.

-Sim -se levantou e lhe ofereceu a mão ao jovem defensor público de aspecto inquieto-. Oi outra vez, senhor Simmons.

-Sim, bom... –ajeitou os óculos de aros grossos que se alojava na ponta do nariz -. Agradeço-lhe em aceitar essa reunião.

-Corte esse papo -por trás de Simmons, Parino estava seguro por dois agentes uniformizados. Tinha uma careta desdenhosa na face e as mãos algemadas-. Viemos estabelecer um trato, assim deixemos as delicadezas de lado.

Com um gesto, Deborah abriu o caminho para uma pequena sala de interrogatórios. Deixou o valise na mesa e se sentou. Cruzou as mãos. Com seu severo traje azul marinho e blusa branca, parecia uma educada beleza sulina. Mas seus olhos, tão escuros como o algodão de seu traje, ardiam enquanto observavam a Parino. Havia estudado as fotos da polícia sobre Méndez e havia visto o que o ódio e um arma automática podiam fazer-lhe com um jovem corpo de dezesseis anos.

- Senhor Simmons, você é consciente de que, dos quatro suspeitos que estamos acusando pelo assassinato de Rico Méndez, seu cliente é o que tem a condição de receber a pena máxima?

-Podem me tirar isto? -Parino levantou as mãos algemadas.

Deborah o olhou.

-Não.

-Vamos, menina -lhe lançou o que imaginava que era um olhar sexy-. Não tem medo de mim, verdade?

-De você, senhor Parino? –sorriu, mas falou com um tom serenamente sarcástico-. Em absoluto. Todos os dias achato baratas desagradáveis. No entanto, você deveria me temer. Sou eu quem vai tirá-lo de circulação -voltou o olhar a Simmons-. Não percamos tempo outra vez. Nos três sabemos o que há em jogo. O senhor Parino tem dezenove anos e será julgado como um adulto. Ainda vamos analisar se os outros serão julgados como adultos ou como menores. -sacou suas notas, mesmo sem necessitá-las -. A arma do assassinato foi encontrada no apartamento do senhor Parino, com suas impressões.

-A puseram ali -insistiu Parino-. Nunca em minha vida a havia visto.

-Guarde-se isso para o juiz -sugeriu Deborah-. Duas testemunhas o colocam na terça-feira as doze e quarenta da noite dia dois de junho no local exato do crime. Essas mesmas testemunhas identificassem ao senhor Parino em uma roda de amigos como o homem que saiu do carro e fez dez disparos em direção de Rico Méndez.

Parino começou a amaldiçoar e gritar a respeito dos fofoqueiros e dedos duros, sobre o que lhes faria quando saísse. Sobre o que faria a ela. Sem molestar-se com o aumentar da voz, Deborah continuou com a vista fixada em Simmons.

-Temos o seu cliente acusado de assassinato em primeiro grau. E o estado solicitará a pena de morte -cruzou as mãos sobre suas notas e assentiu-. E agora, de que quer que falemos?

Simmons afrouxou a gravata. O fumaça do cigarro que fumava Parino flutuava em sua direção e lhe irritava os olhos.

-Meu cliente tem informações que estaria disposto a revelar-lhe ao escritório do promotor público - disse meio que irritado-. Em troca de imunidade e das mudanças acusações que pesam sobre ele. De assassinato em primeiro grau e posse ilegal de um arma de fogo.

Deborah ergueu uma sobrancelha e deixou que o silêncio se prolongasse.

-Estou esperando que conclua a piada.

-Não é uma brincadeira - Parino se inclinou sobre a mesa-. Tenho algo que oferecer e será melhor do que escute.

Com movimento deliberado, Deborah guardou as notas na valise e a fechou.

-Você é lixo, Parino. Nada, nada que possa me oferecer irá fazê-lo voltar as ruas. Se crê que pode passar por cima do escritório da promotoria, pense melhor.

Simmons se levantou quando ela se dirigiu para a porta.

-Senhorita O'Roarke, por favor, não podemos discutir o assunto?

-Claro -girou e o olhou-.Quando me fazer um oferta realista.

Parino soltou uma obscenidade que fez que Simmons empalidecer e Deborah o observasse com olhos frios.

-O estado o acusará de assassinato em primeiro grau e solicitará a pena de morte -expôs com acalma-. Creia quando lhe digo que me responsabilizarei de que seu cliente seja arrancado da sociedade como se fosse um sanguessuga.

-Me livrarei -lhe gritou Parino. Tinha vos olhos arregalados ao levantar-se-. E quando eu o fizer, irei atrás de você, cadela!

-Não se livrará - o olhou do outro lado da mesa o. Seus olhos estavam frios como o gelo e em nenhum momento titubearam-. Sou muito boa em meu trabalho, Parino, o qual consiste em pôr animais raivosos como você em jaulas. Em seu caso, não terei misericórdia. Não se livrará -repetiu-. E quando estiver suando no corredor da morte, quero que pense em mim.

-Assassinato em segundo grau -pediu Simmons com calma, e recebeu o uivo selvagem de seu cliente.

-Está me vendendo, filho da puta.

Deborah olhou de lado a Parino e estudou os olhos nervosos de Simmons. Percebia que ali havia algo.

-Assassinato em primeiro grau -insistiu-, com a petição de prisão perpétua em vez da pena de morte... isso se tiver algo que prenda meu interesse.

-Deixe-me falar com meu cliente, por favor. Conceda-nos um minuto.

-Estarei esperando -deixou o ardoroso defensor público com seu desequilibrado cliente.

Vinte minutos mais tarde, voltava a plantar-se ante Patino do outro lado da mesa cheia de marcas. O percebia mais pálido e calmo ao acender um cigarro.

-Mostre suas cartas, Parino -aconselhou.

-Quero imunidade.

-De acordo com o que você irá me apresentar poderá tê-la. -Já o tinha justo onde queria.

-E proteção -começou a suar.

-Se está for justificada.

Ele vacilou e brincou com o cigarro e o cinzeiro de plástico. Mas estava contra a parede e sabia. Vinte anos. Seu advogado lhe havia dito que provavelmente obteria a liberdade condicional em vinte anos.

Vinte anos em o buraco eram melhor do que a cadeira elétrica. Qualquer coisa o era. Um tipo preparado podia dar-se bem em o buraco. E ele se considerava bastante preparado.

-Tenho estado fazendo algumas entregas para uns sujeitos. Sujeitos importantes. Transportes em caminhões desde dos cais até uma elegante loja de antiguidades na cidade. Pagam bem, muito bem, de maneira que sabia que havia algo nas caixas aparte de vasos enfeitados - acendeu outro cigarro com a ponta do que acabava de tragar - Isso me impulsionou a dar uma olhada. Abri uma das caixas e vi que estava cheia de cocaína. Jamais havia visto tanto pó. Uns cinqüenta quilos. E era pura.

- Como o sabe?

Umedeceu os lábios e sorriu.

Peguei uma das bolsas e a meti embaixo da camisa. Vou repeti, havia coca suficiente para encher a nariz de todo o estado nos próximos vinte anos.

- Como se chama a loja?

- Quero saber se temos um trato -voltou a umedecer os lábios.

- Se a informação for verdadeira , sim. Se isto for uma embromação, não.

- Timeless. Assim se chama. Se encontra na Sétima Avenida. Entregávamos uma carreta, umas duas vezes por semana. Não sei quando levamos coca ou antiguidades.

- Quero alguns nomes.

- O sujeito com quem eu trabalhava no ancoradouro se chamava Rato, apenas Rato. É a única coisa que eu sei.

- Quem o contratava?

- Um sujeito. Entrou em Loredo, o bar do West End onde os Demons se encontram. Disse que tinha um trabalho se eu tivesse coragem e mantivesse a boca fechada. De maneira que Ray e eu o aceitamos.

- Ray?

Ray Santiago. É um dos nossos. Os Demons.

- Que aspecto tinha o homem que os contratou?

- Baixo, atarracado e nervoso.. Bigode grande, um par de dentes de ouro. Entrou em Loredo com uma traje caro, mas ninguém se meteu com ele.

Ela tomou notas, assentiu e lhe arrancou informação até onde conseguiu.

-De acordo, o comprovarei. Se foi honesto comigo, descobrirá que eu o serei com você -se pôs de pé e olhou a Simmons-. Entrarei em contato.

Ao sair da sala de interrogatórios, a cabeça lhe palpitava. Tinha uma sensação de confinamento, que lhe sucedia sempre que tratava com gente como Parino.

«Pelo o amor do céu, tinha dezenove anos», pensou enquanto lhe devolvia a placa de visitante ao sargento da recepção. Mal tinha idade para votar, no entanto, havia matado a outro ser humano sem nenhum arrependimento. Sabia que não experimentava arrependimento. Os Demons consideravam esses incidentes como um ritual tribal. E ela, como representante da lei, havia feito um trato com ele.

Ao sair à tarde calorosa se recordou que o sistema funcionava dessa maneira. Descartaria a Parino como se tratasse de uma ficha de pôquer e esperaria conseguir uma presa maior. Ao final, Parino passaria o resto de sua juventude e parte de sua vida adulta no cárcere.

Esperava que a família de Rico Méndez considerasse que se havia feito justiça.

-Mau dia?

Sem deixar de franzir o cenho, girou, protegendo os olhos do sol e viu a Gage Guthrie.

-Oi. Que faz aqui?

-A esperava.

Ela ergueu uma sobrancelha e analisou a resposta apropriada. Esse dia Guthrie usava um traje cinza, de excelente corte e caro sem ostentação. Ainda que a umidade fosse intensa, sua camisa branca parecia impecável. O nó da gravata cinza de seda era perfeito.

Dava a impressão de ser precisamente quem era. «Até o momento que lhe fitassem os olhos», concluiu. «Então, veras que as mulheres se sentem atraídas por ele por um motivo mais básico que o dinheiro e a posição social».

-Por que? -respondeu com a única pergunta que parecia adequada.

-Para convidá-la a comer -sorriu.

-É muito amável, mas...

-Não come, verdade?

-Sim, quase diariamente -era evidente que ele se divertia com ela-. Mas neste momento estou trabalhando.

-É você uma dedicada servidora pública, não é, Deborah?

-Gosto de pensar que sim -captou suficiente sarcasmo em sua voz para retrair-se um pouco. Começou a caminhar em direção a rua e levantou o braço para chamar um táxi-. Foi muito amável ao deixar-me sua limusine ontem à noite -se voltou e o olhou-. Mas não era necessário.

-Com freqüência faço o que outros consideram desnecessário -lhe tomou a mão e, com somente uma leve pressão, baixou-lhe o braço-. Se não quer almoçar, iremos jantar.

-Soa mas com uma ordem do que como um convite -havia apartado a mão, mas parecia infantil entabular uma discussão ali na rua -. Sim, a qualquer hora, mas agora tenho que declinar. Esta noite trabalho até tarde.

-Amanhã, então -sorriu com expressão cativante -. Uma convite, advogada.

Custava não sorrir quando a olhava com humor e... solidão?... nos olhos.

-Senhor Guthrie. Gage -se corrigiu antes que o fizesse ele-. Os homens persistentes em geral me irritam. E você não é uma exceção. Mas, por algum motivo, Acredito que gostaria de jantar com você.

- Eu a pegarei as sete.

-Perfeito. Lhe darei meu endereço.

-O tenho.

-Então até mais - na noite anterior o motorista dele a havia deixado diante de sua casa-. Se me devolver a mão eu gostaria de pegar um táxi.

Não cedeu de imediato, então baixou os olhos. Era delicada e pequena, como o resto de ela. No entanto, em seus dedos havia força. Levava as unhas curtas, bem arredondadas e com uma capa de esmalte transparente. Não cintilava anéis nem pulseiras, somente um relógio fino e prático que notou que era exato até nos minutos.

Levantou vista até seus olhos. E lá viu curiosidade, um pouco de impaciência e, outra vez, cautela. Obrigou-se a sorrir enquanto se perguntava como um simples contato de mãos podia tê-lo incendiá-lo de forma tão rápida.

-A verei amanhã -a soltou e se afastou.

Ela assentiu, sem confiar em sua voz. Ao subir ao táxi, voltou-se. Mas ele já não estava lá.

 

Passava das dez horas quando Deborah se aproximou da loja de antiguidades. Estava fechada, mas ela não havia esperado encontrar nada que a delatasse. Havia redigido seu relatório e comunicado os detalhes da entrevista com Parino a seu superior. Mas não havia sido capaz de resistir a dar uma olhada pessoalmente.

Nesta parte elegante da cidade, as pessoas não tinham pressa para jantar ou desfrutar de um espetáculo. Alguns pares passaram diante dela a caminho de um clube ou restaurante. As luzes projetavam halos luminosos de segurança.

Supunha-se que era uma tolice vir ali. Sabia que as portas não estariam abertas para que pudesse entrar e descobrir um esconderijo de drogas em uma armadura do século dezoito.

As janelas não somente estavam a escuras, como também tinham grades e cortinas cerradas. Era como se a loja estivesse envolvida em uma manto de mistério. Aquele dia havia dedicado horas procurando o nome do proprietário. Haviam se protegido bem, por trás de uma rede de corporações. O rastro que seguia dava voltas e voltas . Até o momento, Deborah havia se deparado com um beco sem saída.

Mas a loja era real. No dia seguinte, o mais tardar no outro, disporia de uma ordem judicial. A policial revistaria cada greta de Timeless. E confiscaria seus livros contábeis.

Aproximou-se da janela escura. Algo a fez girar com rapidez para estudar a luz e a sombra da rua que havia atrás de si.

O tráfico passava com seu habituai ruído. Um casal que ia de braços dados, ria na calçada adiante. «Tudo normal», falou com si mesma. Não havia nada que justificasse o formigamento em sua costas. No entanto, enquanto observava a rua e os edifícios adjacentes para assegurar-se de que ninguém lhe prestava atenção, persistiu a sensação de que era vigiada.

Decidiu que aquela reação não era justificável. Esses estremecimentos de medo eram vestígio do incidente no beco. Não poderia viver o resto da vida assustada com o que acontecera aquela noite, paranóica ao extremo de olhar primeiro cada esquina antes de curvá-la. Isso não era aceitável para ela.

Sua irmã mais velha havia cuidado dela durante quase toda a sua vida, inclusive a mimado. Ainda que, sempre tivesse gratidão pelo que Cilla tinha feito para ela, quando partiu de Denver para ir a Urbana havia estabelecido um compromisso consigo mesma. Deixaria sua marca. E não poderia fazê-lo se fugia das sombras.

Decidida a lutar contra sua própria inquietude, rodeou o edifício e com passos rápidos adentrou-se em o beco longo e estreito que havia entre a loja de antiguidades e a boutique ao lado.

Os fundos do edifício era tão normal quanto sua frente. Havia uma janela reforçada com barras de aço e uma porta dupla que ostentava três trancas. Ali não havia nenhuma luz que anulasse a escuridão.

-Não parece estúpida.

Ao ouvir a voz se sobressaltou e teria caído sobre um dos cestos de lixo se uma mão não a tivesse segurado pela cintura. Abriu a boca para gritar e levantou o punho para lutar quando reconheceu seu acompanhante.

- Você!- ele estava de negro. Mal o via na escuridão, mas ela sabia que era ele.

-Havia imaginado que já tinha satisfeito sua dose de becos -não a soltou, ainda que pensasse que seria o melhor. Sob seus dedos sentiu o ritmo louco de sua pulsações.

- Tem estado me vigiando!

-Há algumas mulheres que eu custo a abandonar –se aproximou. Sua voz soou baixa e áspera. Ela pôde ver um reflexo de ira em suas olhos. A mistura lhe resultou estranhamente atraente-. Que fazes aqui?

Deborah tinha a boca tão seca que lhe doía. Ele estava tão próximo que suas coxas se roçavam. Podia sentir o hálito dele em seu lábios. Para assegurar-se um pouco de distância e um pouco de controle, apoiou uma mão mo peito dele. A mão não o atravessou, ao contrário, encontrou uma parede sólida e cálida, sentiu a batida rápida e firme de seu coração.

-É assunto meu.

-Teu assunto é preparar casos e expô-lo nos tribunais, não brincar detetive.

-Não estou brincando... -calou e estreitou os olhos-. Como sabe que sou advogada?

- Sei muito sobre você, senhorita O'Roarke -sorriu sem nenhum vislumbre de humor-. É assunto meu sabê-lo. Não acredito que sua irmã tenha trabalhado para pagar sua faculdade de direito e a visto se graduando entre os melhores de sua classe para que você rasteje sorrateiramente em locais estreitos e escuros. E, muito menos, quando o local em questão é a fachada de um negócio obscuro.

-Conhece este lugar?

-Como já falei, conheço muitas coisas.

Mas para frente se ocuparia da intromissão que ele havia feito em sua vida particular. Neste momento tinha que realizar um trabalho.

-Se tem alguma informação, alguma prova sobre esta suposta operação de drogas, é teu dever entregar a informação ao escritório do promotor público.

-Sou bem consciente de meus deveres. Entre eles não se inclui fazer tratos com a escória.

Ela se ruborizou. Nem sequer questionou como ele estava a par de sua entrevista com Parino. Bastava-lhe com saber que questionava sua integridade.

-Atuei dentro dos parâmetros da lei – assegurou empertigada -. É mas do que você pode dizer. Veste uma máscara e julgas ser o Capitão América, estabelecendo suas próprias regras. Isso te converte em parte do problema, não da solução.

Sob as aberturas da máscara, ele estreitou os olhos.

-Há algumas noites atrás parecia agradecida pela minha solução.

-Já lhe agradeci por sua ajuda -levantou as sobrancelhas e desejou poder enfrentar ele em seu próprio terreno, a luz-, Apesar de ter sido desnecessária.

-É sempre tão arrogante, senhorita O'Roarke?

-Confiante -corrigiu.

-E sempre vence nos tribunais?

-Possuo um histórico excelente.

-Sempre ganha? -repetiu.

-Não, mas essa não é a questão.

- Esta é exatamente a questão. Nesta cidade está em guerra.

-E você se nomeou general dos mocinhos.

-Não, luto sozinho -não sorriu.

-Por que não tem...?

Mas ele a interrompeu com calma, colocando uma mão enluvada em sua boca. O escutou, mas não com os ouvidos. Não se tratava de algo que pudesse ser ouvido, era mais algo que tivesse sentido, como alguns homens sentiam a fome ou a sede, o amor ou ódio, há séculos atrás quando seus sentidos não se achavam embotados pela civilização, ou perigo.

Antes de que Deborah tivesse começado a debater-se, a puxou de lado e a protegeu com seu corpo contra a parede de outro local.

-Que diabos pensa que está fazendo?

A explosão que soou ao terminar de falar lhe provocou um retumbar poderoso nos ouvidos. O reflexo de luz lhe contraiu as pupilas. Antes que pudesse fechar os olhos ao esplendor, viu os fragmentos irregulares dos cristais que voaram pelo ar, e os pedaços de tijolos quebrados. Sob seu corpo, o solo tremeu quando a loja de antiguidades explodiu.

Com horror e fascinação, viu um pedaço letal de cimento caído a somente um metro de sua face.

-Você está bem? -quando não obteve resposta, tomou-lhe o rosto trêmulo entre as mãos e a virou para que o olhasse-. Deborah, você está bem? -teve que repetir sua nome duas vezes até conseguir que de sua rosto se desvanecesse a expressão vítrea.

-Sim -conseguiu balbuciar-. E você?

-Você não lê os jornais? -esboçou uma sorriso quase imperceptível-. Sou invulnerável.

-É verdade -suspirou e tentou se sentar.

Durante um momento ele não se moveu, ao contrário, deixou seu corpo onde estava, onde queria estar. Colado ao dela. Tinha o rosto a poucos centímetros do de Deborah. Perguntou-se o que aconteceria se diminuísse a distância e permitisse que suas bocas se encontrassem.

Deborah compreendeu que ia beijá-la, e ficou absolutamente quieta. A emoção a embargou. Não a ira, tal como havia esperado. Ao contrário, era excitação, descarnada e selvagem. A invadiu com tanta velocidade que bloqueou tudo mais. Com um ligeiro murmúrio de consentimento, levou a mão a sua face.

Quando vos dedos lhe roçaram a máscara, ele se apartou do contato como se tivesse recebido uma bofetada. Levantou-se e a ajudou a pôr-se de pé. Lutando contra uma poderosa mistura de humilhação e fúria, Deborah rodeou a parede em direção à loja de antiguidades.

Pouco restara dela. Havia espalhado tijolos, cristais e cimento. No interior do local, ardia o fogo. O teto veio abaixo com um gemido prolongado e sonoro.

-Eles se adiantaram -sussurrou ele-. Não ficará nada que possa encontrar... nem papéis, nem drogas nem registros.

-Destruíram o local – deixou escapar o ar entre os dentes apertados. Disse a si mesma que não havia querido que ele a beijasse .Havia estado sacudida, aturdida, vítima de uma loucura temporária-. Mas deve de ter um proprietário, e averiguarei quem é.

-Isto foi uma advertência. Uma que você deveria escutar.

-Não me assustarão. Nem pela destruição de edifícios nem por você -se voltou para olhá-lo, mas não a surpreendeu quando não mais o avistou.

 

Já passada da uma da manhã quando Deborah chegou ao seu apartamento. Tinha dedicado quase duas horas respondendo perguntas, e fazendo objeções em sua declaração à polícia e evitando os jornalistas. Mas durante todo o processo experimentou uma persistente irritação para com o homem chamado Némesis.

Tecnicamente tinha voltado a salvar lhe a vida. Devia estar a três metros da loja de antiguidades quando a bomba estourou, sem dúvida teria tido uma morte desagradável. Mas a tinha obrigado a contar uma história complicada antes da polícia, sem importar que fosse ajudante do promotor.

E adicionado a isso, tinha deixado claro, na breve conversa mantida não ter o mínimo respeito algum por sua profissão ou juízo. Tinha estudado e trabalhado para atingir o objetivo de ser promotora desde que tinha dezoito anos. Mas ele, com um simples encolhimento de ombros, descartava esses anos de sua vida como um tempo desperdiçado.

«Não», pensou enquanto remexia na bolsa procurando as chaves, «ele prefere percorrer as ruas oferecendo seu pessoal sentido da justiça». Isso era inaceitável. Antes que tudo terminasse, pensava em demonstrar-lhe que o sistema funcionava.

E ao mesmo tempo demonstraria a si mesma que não tinha se sentido atraída por ele.

-Parece que teve uma noite dura.

Com as chaves na mão, Deborah se voltou. Sua vizinha da frente, a senhora Greenbaum, achava-se de pé no umbral de sua casa, olhando-a através dos óculos cor de cereja.

-Senhora Greenbaum, que faz levantada?

-Acabo de terminar de ver o programa de David Letterman. Esse garoto me encanta -com setenta anos e uma cômoda pensão para protegê-la das tormentas da vida, Lil Greenbaum tinha seu horário pessoal e fazia o que lhe apetecia. Nesse momento vestia uma camisola de flanela, sapatilhas e um laço de um rosa pink em seu cabelo tingido-. Não quer beber algo? O que acha de um chocolate quente?

Deborah ia declinar quando se deu conta de que era exatamente isso que ansiava. Sorriu, guardou as chaves no bolso da jaqueta e cruzou a rua.

- Espero que seja uma dose dupla.

-Já coloquei o leite ao fogo. Sente-se e tire o sapato – lhe indicou com a mão e se dirigiu à cozinha.

Agradecida, Deborah se estendeu sobre as almofadas de um sofá. A televisão seguia ligada; nesse momento passavam uma velha película em branco e preto. Reconheceu um jovem Cary Grant, mas não o filme que passava. A senhora Greenbaum o saberia. Sabia de tudo.

O apartamento de dois dormitórios, um dos quais sempre estava preparado para qualquer um de seus numerosos netos, achava-se abarrotado de coisas e arrumado. As mesas exibiam fotografias e enfeites, entre os quais predominava um símbolo da paz lavrado em latim. Lil era orgulhosa por ter marchado contra o governo nos anos sessenta. Igualmente orgulhosa por ter protestado contra os reatores nucleares, a Guerra das Galáxias, queima-a dos bosques tropicais e o aumento da manutenção dos serviços médicos públicos.

Com freqüência dizia a Deborah que gostava de protestar. Em suas palavras, «Quando podemos protestar contra o sistema, significa que estamos vivos».

-Aqui está -trazia duas xícaras de cerâmica. Jogou uma olhada ao televisor-. Penny Serenade, 1941. Que atraente era Cary Grant, verdade? -depois de deixar as xícaras na mesinha, pegou o controle e desligou o televisor. E agora diga-me, em quais problemas você anda se metendo?

-Está tão na cara?

A senhora Greenbaum bebeu um gole de chá enriquecido com umas gotas de whisky.

-Sua roupa é um desastre -se aproximou e observou-. Cheira a fumaça. Tem o rosto sujo, a meia desfiada e fogo nos olhos. Por sua expressão, tem que ter se envolvido com um homem.

-O departamento de polícia gostaria de contar com seus serviços, senhora Greenbaum -bebeu o chocolate e absorveu seu calor-. Estava realizando um pouco de trabalho de campo. O lugar que examinava explodiu.

-Ficou ferida? -o interesse que tinha mostrado se transformou em preocupação.

-Não. Só alguns arranhões –fariam companhia aquelas que “ganhara” na semana anterior -. Imagino que meu ego sofreu um pouco. Encontrei-me com Némesis -não tinha mencionado seu primeiro encontro porque era consciente da profunda adoração que sua vizinha tinha pelo homem de negro.

-O viu pessoalmente? -os olhos estiveram a ponto de saltar-se das órbitas.

-O vi, falei com ele e terminou por atirar-me ao solo um momento antes de que explodisse o lugar.

-Deus -Lil se levou a mão ao coração-. É muito mais romântico que quando conheci ao senhor Greenbaum na manifestação diante do pentágono.

-Não teve nada de romântico. O homem é impossível, mais parece um maníaco e decididamente perigoso.

-É um herói -lhe apontou com um dedo-. Ainda não aprendeu a reconhecer os heróis. Isso por que hoje em dia há muito pouco deles. Bem, como ele é? Os relatos são confusos. Um dia é um homem negro de dois metros e ao seguinte um vampiro pálido com caninos. No outro dia li que era uma mulher pequena com olhos vermelhos.

-Não é uma mulher -murmurou. Recordava com muita clareza o contato de seu corpo-. Não posso lhe dizer como ele é. Estava escuro e seu rosto é quase todo coberto com uma máscara negra.

-Como o Zorro? -perguntou a anciã esperançosa.

-Não. Bem, não sei. Talvez –suspirou e decidiu satisfazer a sua vizinha-. Mede um metro oitenta ou oitenta e cinco, Acredito, delgado e de compleição forte.

- Qual é a cor de seu cabelo?

-Estava escondido. Só vi a mandíbula -«forte, tensa»-. E a boca -tinha boiado durante um momento longo e excitante sobre a sua-. Nada especial -se apressou a comentar, e bebeu mais chocolate.

-Mmm -a senhora Greenbaum tinha suas próprias idéias. Tinha-se casado e enviuvado duas vezes, e entre seus casamentos tinha desfrutado do que ela considerava uma quantidade apropriada de romances. Reconhecia os sinais-. Seus olhos? Sempre podes reconhecer a qualidade de um homem por seus olhos.

-Escuros -Deborah rio entre dentes.

-Escuros como?

-Só escuros. Ele se mantém nas sombras.

-Se move entre as sombras para erradicar o mau e proteger os inocentes. Que há mais romântico que isso?

-Ele enfrenta o sistema.

-Exato. Deveria ter mais homens como ele.

-Não digo que não tenha ajudado a algumas pessoas, mas para isso temos a agentes da lei especialmente treinados -franziu o cenho. Em cada ocasião em que tinha precisado ajuda não tinha encontrado nenhum policial. Também não podiam estar em todas partes. Decidiu empregar seu último e definitivo argumento-. Não mostra nenhum respeito pela lei.

-Penso que esteja enganada. Me parece que ele a respeita muito. Simplesmente a interpreta de maneira diferente da sua. – voltou a balançar a mão-. É uma boa garota, Deborah, e inteligente, mas foi treinada para caminhar por um caminho muito estreito. Deve recordar que este país se fundou pela rebeldia. Com freqüência nos esquecemos disso, depois ficamos condescendentes e preguiçosos até que surge alguém que questiona o status vigente. Precisamos dos rebeldes do mesmo modo que precisamos dos heróis. Sem eles, o mundo seria um lugar aborrecedor e triste

-É possível -ainda que não estivesse convicta-. Mas também precisamos regras.

-Oh, sim -a senhora Greenbaum sorriu-. PRECISAMOS DELAS. De que outro modo poderíamos rompê-las?

 

Gage manteve os olhos fechados enquanto o motorista levava a limusine pela cidade. No dia decorrido desde a noite da explosão, tinha pensado em dúzias de razões para cancelar seu encontro com Deborah O’Roarke.

Todas eram pragmáticas, lógicas, cordatas. Uma pouco prática, ilógica e potencialmente louca as contradizia.

PRECISAVA DELA.

Interferia com seu trabalho, de dia e de noite. Desde o momento em que a viu, não tinha sido capaz de pensar em ninguém mais. Tinha empregado sua vasta rede de computadores para obter toda a informação disponível sobre ela. Sabia que tinha nascido em Atlanta fazia vinte e cinco anos e que tinha perdido seus pais de forma trágica e brutal quando tinha doze. Sua irmã a tinha criado e juntas tinham vivido em vários estados do país.

A irmã trabalhava na rádio e nesse momento era diretora da KHIP/ em Denver; onde Deborah tinha feito universidade.

Ao acabar a graduação tinha solicitado um posto no escritório do promotor do distrito em Urbana, onde tinha ganhado fama de ser meticulosa e ambiciosa.

Sabia que tinha tido uma relação amorosa importante em seu período universitário, ainda que desconhecesse por que tinha terminado. Logo tinha saído com diversos homens, ainda que não tivesse tido nenhuma relacionamento sério.

Odiava o fato de que essa informação lhe tivesse proporcionado um tremendo alívio.

Estava seguro de que representava um perigo para ele, entendia isso mas era incapaz de evitar. Inclusive depois de seu encontro a noite anterior, quando tinha estado a ponto de fazer-lo perder o controle, não era capaz de tirar da mente.

Continuar vendo-a significava continuar enganando-a. E a si mesmo também.

Mas quando o carro se deteve diante de sua casa, saiu, entrou no prédio pegando o elevador até seu andar.

No momento em que Deborah ouviu o telefonema, deixou de caminhar pela sala. Tinha se perguntado nos últimos vinte minutos por que tinha aceitado sair com um homem ao qual mal conhecia e que ainda por cima tinha fama de ser um grande sedutor, mas casado só com seus negócios.

Teve que reconhecer que tinha caído sob seu encanto e a corrente subterrânea de perigo que emanava dele. Era possível que inclusive tivesse ficado fascinada por sua tendência a dominar, o qual representava um desafio. Disse a si mesma que não importava, que só era um encontro para jantar. Não era ingênua e não esperava nada mais que uma boa comida e uma conversa inteligente.

Deborah ia vestida de azul. De algum modo Gage tinha sabido que assim seria. A saia azul de seda fazia jogo com seus olhos. Era singela e curta, celebrando suas pernas longas e formosas. A jaqueta quase masculina fez que se perguntasse se embaixo usaria algo. O lustre que tinha junto à porta captava o reflexo azul e alvo das pedras que levava nas orelhas.

Os elogios padrões que estava acostumado a dispensar neste momento lhe faltaram.

-Está pronta -conseguiu comentar.

-Sempre - sorriu-. É como um vício -fechou a porta a suas costas sem convidá-lo a entrar. Parecia mais seguro dessa maneira. Momentos mais tarde se acomodou na limusine e prometeu aproveitar a noite-.             Sempre viaja assim?

-Não. Só quando é mais conveniente.

- Se fosse meu eu o faria -incapaz de resistir-se, tirou-se os sapatos e deixou que seus pés se afundassem no macio tapete-. Seria maravilhoso não me preocupar em conseguir um táxi ou correr para pegar um metro.

-Mas deixará de conhecer muitas histórias. Conhecer pessoas.

-Não me diga que viaja de metrô - se voltou para ele. Com aquele traje escuro e gravata de riscas sutis parecia um homem de sucesso. Levava uns abotoaduras de ouro nos punhos de sua camisa branca.

-Quando resulta mais conveniente -sorriu-. Talvez crês que o dinheiro deveria ser usado para se isolar da realidade?

-Não, em absoluto. Na realidade, jamais tive o suficiente para verme tentada.

-Não a tentaria – se contentou, ou pelo menos tentou, brincando coma ponta de seu cabelo-. Poderia ter se dedicado ao trabalho particular, de pessoas importantes, com um salário que teria feito que o cheque que te dão no escritório do promotor parecer trocado. E não o fez.

-Não pense que não há momentos que eu questiono minha própria insensatez. - encolheu os ombros. Olhou pela janela-. Aonde vamos?

- Jantar.

-Me alivia sabê-lo, já que não pude comer. Referia-me ao lugar.

-Aqui -lhe tomou a mão quando a limusine se deteve.

Tinham chegado até o limite da cidade, até o mundo do dinheiro e do prestígio. Ali o som do tráfico só era um eco distante, e se percebia o leve e delicado aroma das rosas em flor.

Deborah conteve uma exclamação ao sair para a calçada. Tinha visto fotos daquela casa, mas era muito diferente de estar diante dela. Erguia-se imensa sobre a rua, e ocupava meio quarteirão.

Tinha um estilo gótico, construída por um filantropo no começo do século. Em alguma parte tinha lido que Gage a tinha comprado antes de que lhe dessem alta no hospital.

Pelo céu se erguiam torres e chaminés. As imensas janelas resplandeciam com o sol que começava a se esconder no oeste. As sacadas sobressaíam e rodeavam as paredes abraçando toda a construção. O último andar era dominado por uma abóbada de vidro e de lá podia se completar toda a cidade.

-Vejo que leva a sério a idéia de que o lar de um homem é seu castelo.

-Eu gosto do espaço e da privacidade. Mas decidi descartar o fosso -ela riu e se dirigiu para as portas talhadas da entrada-. Quer que eu lhe mostre tudo antes do jantar?

-Está de brincadeira? -enlaçou o braço com o de Gage-. Por onde começamos?

A conduziu por corredores sinuosos, sob tetos altos, e quartos enormes e pomposos. Ele não recordava de ter desfrutado tanto de seu lar como vendo pelos olhos dela.

Tinha uma biblioteca de dois níveis que continha desde primeiras edições até livros de bolso velhos. Salões com sofás antigos e delicadas porcelanas. Vasos Ming, cavalos Tang, cristais de Lalique e cerâmica maia. As paredes estavam pintadas com cores ricas e profundos, enfeitadas com frisos lustrosos e quadros impressionistas.

A ala leste continha um jardim de inverno tropical, uma piscina coberta e um ginásio plenamente equipado com um jacuzzi e uma sauna separados. Por outro corredor e subindo por uma escada curva, tinha dormitórios mobiliados com camas com dossel e com cabeceiras talhados em madeira nobre.

Deborah deixou de contar as habitações.

Mais escadas, depois um gabinete enorme com uma escrivaninha de mármore negro e uma ampla janela que com o crepúsculo tinha adquirido uma tonalidade rosada. Alguns computadores esperavam em silêncio.

Uma sala de música, completada com um piano de cauda e uma velha radiola Wurlitzer. Quase mareada, entrou num salão de baile coberto de espelhos e observou seu reflexo multiplicado. No teto, três candelabros cintilavam com uma luz suntuosa

-É como uma mansão tirada de filme -murmurou. Seguindo um impulso, deu três rápidas voltas-. É incrível, sem dúvida. Não sente nunca o desejo de vim aqui e dançar?

-Não até agora -surpreendendo-os aos dois, tomou-a pela cintura e a fez dançar uma valsa.

Deborah deveria de ter rido, deveria de ter-lhe lançado uma olhada divertida e coquete e ter aceitado o impulso pelo que era. Mas não pôde. Só foi capaz de olhá-lo fixamente nos olhos enquanto ele a fazia dar mais e mais giros no salão com espelhos.

Tinha uma mão apoiada no ombro de Gage e a outra entre seus dedos. Seus passos estavam sincronizados, ainda que não raciocinasse. Tolamente, perguntou-se se ele ouviria na cabeça a mesma música que ela.

Gage não ouvia outra coisa se não a firme respiração de Deborah. Não recordava ter sido tão completamente e exclusivamente consciente de uma pessoa. O modo em que suas pestanas longas e escuras lhe emolduravam os olhos. A linha sutil de tonalidade acobreada que se tinha passado pelas pálpebras. O brilho pálido, úmido e rosado nos lábios.

Ali onde a mão se posava em sua cintura, a seda irradiava o calor dela. E esse corpo parecia fluir com o seu, antecipando cada passo, cada giro. Seu cabelo se abria, provocando-lhe o profundo desejo de lhe acariciar. Sua fragrância flutuava em torno dele, não de tudo doce e de uma tentação absoluta. Gage se perguntou que sabor teriam em seus lábios se os colasse à longa coluna branca do pescoço de Deborah.

Esta notou a mudança em seus olhos à medida que aumentava o desejo e não só o seguiu com os pés, como também com a necessidade. Sentiu que crescia e se estendia por seu interior como algo vivo, até que seu corpo latejou. Curiosa, inclinou-se para ele.

Gage se deteve. Por um momento permaneceram quietos, refletidos dúzias e dúzias de vezes. Um homem e uma mulher atracados num abraço tentador, à beira de algo que nenhum dos dois entendia.

Ela se moveu primeiro, dando um cauteloso passo para atrás. Era sua natureza analisar todo com precaução antes de tomar uma decisão. A mão dele se fechou com mais firmeza em torno da sua. Por algum motivo, Deborah considerou o gesto como uma advertência.

-Eu... minha cabeça está girando.

Muito devagar, Gage separou a mão de sua cintura e o abraço se rompeu.

-Então é melhor eu alimentá-la.

-Sim -quase conseguiu esboçar um sorriso.

Jantaram camarões ao molho de laranja e alecrim. Ainda que ele tivesse mostrado o enorme refeitório com seus pesados aparadores de madeira, jantaram num salão pequeno com a mesa disposta junto a um observatório. Entre taças de champanhe, podiam observar o crepúsculo sobre a cidade. Na mesa, entre ambos, tinha duas finas e longas velas brancas e uma única rosa vermelha.

- Daqui a cidade é formosa -comentou ela-. Podemos ver todas as suas possibilidades e nenhum de seus problemas.

-As vezes ajuda dar um passo atrás -contemplou um momento a cidade, depois girou a cabeça, como se a descartasse-. Caso contrário, esses problemas podem lhe consumir.

-Mas você segue sendo consciente deles. Sei que doa muito dinheiro aos sem tetos, aos centros de reabilitação e a outras organizações.

-É fácil entregar dinheiro quando Tem mais do que precisa.

-Isso soa cínico.

-Realista -seu sorriso era relaxado-. Sou um homem de negócios, Deborah. Os donativos se podem ser deduzir dos impostos.

-Acredito que seria uma verdadeira pena que as pessoas fossem generosa só quando isso a beneficia -franziu o cenho e o estudou.

-Fala como uma idealista.

-É a segunda vez em questão de dias que me acusa disso -irritada, deu alguns pequenos golpes com o dedo na mesa-. Acredito que não gosta de mim.

-Não pretendia ser um insulto, só uma observação -levantou a vista quando Frank entrou com os suflês de chocolate-. Não precisaremos de nada mais esta noite.

-Muito bem –o homem robusto encolheu os ombros.

Deborah notou que Frank se movia com a graça de um bailarino, um talento estranho para um homem tão grande e magro. Pensativa, introduziu a colher na sobremesa.

-É seu motorista ou seu mordomo? -perguntou.

-Ambas as coisas . E nenhuma -lhe recheou a copa de champanhe-. Poderia dizer que é um colega de outra vida.

-E o que isso significa? -intrigada, arqueou uma sobrancelha.

-Era um batedor de carteiras que encerrei duas vezes sendo polícia. Depois foi meu enfermeiro. Agora... conduz meu carro e abre minha porta, entre outras coisas.

-Não consigo imaginar você trabalhando nas ruas.

-Sim, suponho que sim -lhe sorriu e observou o modo em que a luz das velas dançava em seus olhos.

-Quanto tempo foi policial?

-Me excedi em uma noite -repôs e lhe tomou a mão - Quer ver a vista do telhado?

-Sim -se afastou da mesa, compreendendo que o tema de seu passado era um livro fechado. Em vez de usar as escadas, levou-a num elevador de vidros escuros-. Todas as comodidades -disse enquanto subiam-. Me surpreende que esta casa não tenha vindo equipada com masmorras e passagens secretas.

-Oh,claro que as tem. Talvez eu as mostre... em outra ocasião.

«Em outra ocasião», pensou ela. Queria que tivesse outra ocasião? Sem nenhum sombra de dúvidas tinha sido uma noite fascinante, e com a exceção do momento de tensão no salão de baile, uma noite cordial. No entanto, apesar dos modos extraordinários de Gage, percebia algo perigoso sob sua fachada.

Teve que reconhecer que era isso que a atraía nele. Do mesmo modo que era o que a punha nervosa.

- No que está pensando?

Deborah decidiu que era melhor ser sincera.

-Me perguntava quem é você e se queria permanecer ao seu lado tempo suficiente para averiguar.

As portas do elevador se abriram, mas ele não se moveu.

-E chegou a que conclusão?

-Não estou segura -saiu para a torre mais alta da mansão. Com um som de surpresa e prazer, dirigiu-se para a ampla abóbada de cristal. Além, o sol se tinha posto e a cidade estava banhada em sombras e luz-. É espetacular -se voltou com um sorriso no rosto-. Espetacular.

-Melhor -apertou um botão da parede. Em silêncio, como por arte de magia, o cristal se deslizou para as laterais. Tomou-a pela mão e a guiou para a sacada de pedra.

Deborah apoiou as mãos no balaústre e se sentiu o vento quente que agitava o ar.

- Consegue-se ver as árvores do Parque da Cidade, e o rio -com gesto impaciente, apartou-se o cabelo dos olhos-. Os edifícios estão tão bonitos com as luzes acesas... -na distância, contemplou as luzes brilhantes da ponte suspendida de Dover Heights. Eram como um colar de diamantes contra a escuridão.

-Quando amanhece, os edifícios adquirem uma tonalidade cinza pérola e rosa. E o sol converte todo o cristal em fogo.

-Por isso comprou a casa, pela vista? -o olhou.

-Cresci a poucos quarteirões daqui. Sempre que íamos ao parque, minha tia a mostrava. Encantava-lhe. De menina tinha vindo aqui nas festas... em companhia de minha mãe. Eram amigas desde a infância. Eu fui filho único, primeiro para meus pais e depois para meus tios. Quando regressei e me inteirei de que tinham morrido... bom, a princípio não fui capaz de pensar muito. Depois me pus a refletir sobre esta casa. Pareceu-me apropriado comprá-la e viver nela.

- Não há nada mais difícil do que perder as pessoas do que amamos e precisamos, verdade? -apoiou uma mão na dele sobre o balaústre.

-Não -quando a olhou, viu que seus olhos brilhavam com suas próprias recordações e com simpatia pelos seus.

Ergueu uma mão até a face feminina e com os dedos lhe apartou o cabelo, moldando sua queixo com a palma. A mão de Deborah tremeu e pousou sobre a dele. Sua voz soou insegura.

-Deveria ir-me.

-Sim, deveria -mas não afastou a mão do rosto ao mover-se para imobilizá-la com o corpo contra o parapeito de pedra. Subiu a mão livre por seu pescoço até emoldurar-lhe a rosto-. Alguma vez sentiu impulsionada a dar um passo que sabia que era um erro? Sabia mas não podia deter-se?

Uma névoa começava a apoderar-se da mente de Deborah; moveu a cabeça para dispersa-la.

-Eu... não. Não, acredito que não gosto de cometer erros -mas já sabia que estava a ponto de cometer um. As mãos de Gage eram cálidas e ásperas sobre sua pele. Seus olhos eram escuros e intensos. Por um momento piscou, tomada por uma poderosa sensação de déjà vu.

No entanto, enquanto ele lhe acariciava a mandíbula com os polegares, assegurou-se que nunca antes tinha estado ali.

-A mim também não -Deborah gemeu e fechou os olhos, mas ele só lhe roçou a testa com os lábios. O ligeiro sussurro do contato lhe provocou uma reação poderosa. Na noite quente ela tremeu enquanto a boca de Gage deslizava com suavidade sobre sua têmpora-. Desejo você -afirmou com voz rouca e tremula enquanto os dedos se fechavam em seu cabelo. Ela abriu muito os olhos-. Mal posso respirar pelo muito que a desejo. Você é meu erro, Deborah. O único que jamais acreditei que cometeria.

Baixou a boca com força e fome, sem nada da sedução lenta que Deborah tinha esperado. Disse a si mesma que devia ter oferecido resistência. Nesse gesto não tinha nada do homem amável e sofisticado com quem tinha jantado. Era o homem temerário e perigoso do que mal tinha vislumbrado algo.

ASSUSTAVA. FASCINAVA. SEDUZIA.

Sem vacilação, sem cautela nem reflexão, respondeu ao toque, oferecendo o poder e a necessidade que Gage entregava.

Não sentiu a pedra áspera contra as costas, só o comprimento duro e longo de seu corpo à medida que a pressionava contra o seu. Pode saborear o gosto de champanhe em sua língua e algo mais escuro, o potente sabor da paixão mal refreada. Com um gemido de prazer, aproximou-se mais até que foi capaz de sentir as batidas de seu coração.

Ela era mais do que Gage tinha sonhado. Toda seda, fragrância e beleza. Tinha a boca ardente e cedia à sua, para depois exigir. Deborah introduziu as mãos sob sua jaqueta e jogou a cabeça atrás numa rendição tentadora que o deixou louco.

Com os dentes a mordiscou e com a língua a aplacou, aproximando-se mais e mais até o limite da razão. Absorveu a exclamação emitida por ela e deslizou as mãos por seu corpo, procurando, moldando, tomando.

A sentiu tremer e depois experimentou seu próprio tremor antes de se agarrar a um último vestígio de controle. Com certa cautela, como um homem que retrocede de um precipício, afastou-se dela.

Aturdida, Deborah levou uma mão à cabeça. Lutando para recuperar a respiração, olhou-o fixamente. Perguntou-se que classe de poder tinha, que era capaz de transformá-la de uma mulher sensata num pudim trêmulo de necessidades.

Deu a volta para apoiar-se no balaústre e engoliu o ar como se fosse água e se estivesse morrendo de sede.

-Acredito que não estou preparada para você -conseguiu murmurar.

-Não. Eu também não acredito que esteja para você. Mas não temos como voltar atrás.

Ela moveu a cabeça. Apertava com tanta força o balaústre que a pedra lhe fincava a pele.

-Terei que o que pensar.

-Quando se vira a esquina, não há mais remédio do que seguir adiante.

Mais calma, tentou recuperar a razão. Era hora de estabelecer algumas regras. Para ambos.

-Gage, não sei o que pode estar pensando depois do que aconteceu, mas não tenho relações com homens que mal conheço.

-Bem –ele também estava mais calmo. Sua decisão estava tomada-. Quando tivermos a nossa, quero que seja exclusiva.

-É evidente que não me expliquei com clareza -manifestou com frieza-. Não decidi se quero me ligar a você, e não estou segura se desejo que isto termine na cama.

-Já está ligada comigo –estendeu a mão e a apoiou em sua nuca antes de que ela pudesse escapar-. E ambos desejam que isto termine na cama.

Com gesto lento, Deborah levantou a mão para tirar a dele.

-Entendo que esteja acostumado com as mulheres que se rendem a teus pés. Não é minha intenção me juntar a horda. Tomo minhas próprias decisões.

-Terei que beijá-la de novo?

-Não -apoiou com firmeza a palma contra o peito de Gage. No mesmo instante recordou que ficara naquela mesma postura com o homem chamado Némesis. A comparação a emocionou-. Não. Foi uma noite magnífica, Gage -respirou fundo-. Falo sério. Desfrutei de sua companhia, do jantar e... e da vista. Odiaria que a estragasses mostrando-te arrogante.

- Não é arrogância aceitar o inevitável. Não tem por que gostar para aceitá-lo -algo se moveu em seus olhos-. Existe uma coisa chamada destino, Deborah. Tive muito tempo para meditar sobre isso e faço uma idéia -franziu o cenho-. Que Deus ajude a nós dois, mas você faz parte do meu -lhe ofereceu uma mão-. Te levarei a casa.

 

Gemendo, com os olhos bem fechados, Deborah tateou com a mão procurando o telefone que soava na mesinha de cabeceira. Atirou um livro, um candelabro de lata e um bloco de notas antes de conseguir levantar o fone e arrastá-lo sob o travesseiro.

-Oi?

-O'Roarke?

-Sim –respondeu depois de pigarrear.

-Aqui Mitchell. Temos um problema.

-Problema? - tirou o travesseiro da cabeça e vasculhou o despertador. O único problema que via era que seu chefe a chamava às quinze para seis da manhã-. É que se atrasou o juiz de Slagerman? Devo apresentar-me às nove no tribunal?

-Não. É Parino.

-Parino? -se passou uma mão pelo rosto e se esforçou por sentar-se-. Que houve com ele?

-Está morto.

-Morto -moveu a cabeça para dispersar o nevoeiro de sua mente-. Como assim está morto?

-Numa vala -disse Mitchell-. O guarda o encontrou faz uma meia hora.

Já estava desperta, sentada e com o cérebro feito um redemoinho.

-Mas... mas, como?

-Apunhalado. Ao que parece se aproximou para falar com alguém e lhe fincaram um estilete no coração.

-Oh, Deus

-Ninguém ouviu nada. Ninguém viu nada -comentou deixando claro o desagrado-. Tinha uma nota colada a suas calças. «Os pássaros mortos não cantam».

-Alguém descobriu que ele estava nos passando informações.

-E pode apostar que vou averiguar quem foi. Escuta, O'Roarke, aqui não estamos conseguindo aplacar à imprensa. Imaginei que iria querer saber por mim em vez de saber a notícia durante o café da manhã.

-Sim -se levou uma mão ao estômago revolto-. Sim, obrigada. E o que disse Santiago?

-Ainda não apareceu. Tentamos localizá-los mas ele se escondeu. Imagino que vai passar um bom tempo sem que consigamos notícias dele.

-Também iria depois disso -murmurou-. Quem quer que arrumou o assassinato de Parino vai querer morto Ray Santiago.

-Então deveremos encontrá-lo primeiro. Terá que adiar este assunto -lhe disse-. Sei que é duro, mas agora sua prioridade é o caso Slagerman. O rapaz conseguiu um advogado muito astuto.

- Poderei manejá-lo.

-Jamais duvidei disso. Esmague-os.

- Sim, o farei –desligou a ficou olhando o vazio até que o despertador soou as seis e meia.

-Ei! Ei, preciosa -Jerry Bower subiu os degraus do tribunal atrás de Deborah-. Céus, isso sim que é concentração -ofegou quando e por fim a deteve pelo braço-. Estou chamando você a algum tempo.

-Sinto muito. Tenho de estar no tribunal em quinze minutos.

Ofereceu um sorriso e a observou. Deborah tinha prendido o cabelo e usava pérolas nas orelhas. O traje vermelho de algodão era de corte severo, ainda que não pudesse ocultar todas as suas curvas sutis. O resultado era competente, profissional e absolutamente feminino.

-Se eu fizesse parte do júri, lhe daria um veredicto de culpa antes que terminasses sua exposição inicial. Está incrível.

-Sou uma advogada -rebateu-. Não a Miss Novembro.

-Ei -teve que correr mais três degraus para atingi-la-. Sinto, foi um elogio vulgar.

-Não, me desculpe -conseguiu conter-se-. Esta manhã estou um tanto susceptível.

-Já sei o que aconteceu com Parino.

-As notícias voam depressa -com gesto sombrio, continuou subindo.

-É apenas mais uma estatística. Não deixe que ele te afete.

-Merecia ter um julgamento -disse ao atravessar o chão de mármore do vestíbulo em direção aos elevadores-. Até ele merecia. Sabia que tinha medo, mas não o levei bastante a sério.

- Não acredito que isso tivesse mudado algo.

-Não o sei -era a única pergunta com que teria que viver o resto de sua vida-. Simplesmente não sei.

-Olhe, a agenda do prefeito está apertada hoje. Pela noite tem um jantar, mas acredito que poderei escapar antes do brandy e do charuto. O que acha de pegarmos a última seção do cinema?

-Hoje sou má companhia, Jerry.

-Sabe que isso não importa.

-A mim sim -o fantasma de um sorriso apareceu em seus lábios-. Eu poderia te morder e você me odiaria - entrou no elevador

-Advogados -lhe sorriu e levantou o dedo polegar antes que as portas se fechassem.

A imprensa a aguardava no quarta andar. Não tinha esperado outra coisa. Passou entre os jornalistas com andar rápido, oferecendo respostas secas e breves.

- Espera mesmo que um júri condene um cafetão por golpear algumas de suas garotas?

-Sempre espero ganhar quando entro num tribunal.

-Vai chamar às prostitutas para depor?

-Ex prostitutas -corrigiu sem responder.

-É verdade que Mitchell lhe atribuiu este caso por você ser mulher?

-O promotor do distrito não elege a seus advogados pelo sexo.

-Se sente responsável da morte de Carl Parino?

Isso a deteve no umbral do tribunal. Mirou ao redor e viu o jornalista de cabelo castanho encaracolado, olhos marrons e famintos e a careta sarcástica. Chuck Wisner. Já tinham se enfrentado uma vez e voltaria a fazê-lo. Em sua coluna diária no World preferia o sensacionalismo a verdade.

-O escritório do promotor do distrito lamenta que Carl Parino tenha sido assassinado e não lhe fosse negada a oportunidade de ter um julgamento.

Com movimento rápido, ele lhe bloqueou o caminho.

-Mas, se sente responsável? Depois de todo, foi você quem estabeleceu um trato com ele.

Ignorou o impulso de querer se defender e o encarou.

-Todos somos responsáveis, senhor Wisner. Desculpe-me.

Ele simplesmente se moveu, afastando-a da porta.

-Teve mais um encontro com Némesis? Que pode contar-nos de suas experiências pessoais com o mais novo herói da cidade?

Deborah sentiu que estava a ponto de estourar. E o pior era isso que ele queria.

-Nada que possa competir com sua criatividade. Agora, seja amável e me de licença.

-Não tão importante já que você está se relacionando socialmente a Gage Guthrie. Têm um romance? É um triângulo selvagem, verdade? Némesis, Guthrie e você.

-Consiga uma vida própria, Chuck -sugeriu, depois o apartou com o cotovelo.

Mal dispôs de tempo para ocupar a mesa do promotor e abrir a valise antes de que entrasse o júri. A defesa e ela tinham demorado dois dias elegendo seus membros; estava satisfeita com a mistura de gêneros, raças e profissões de seus componentes. Não obstante, ia ter que convencer a esses doze homens e mulheres de que um par de prostitutas mereciam justiça.

Voltou-se um pouco e estudou às duas mulheres da primeira fila. Tinham seguido suas instruções e vestido com singeleza, com um mínimo de maquiagem e laquê no cabelo. Sabia que as duas iam ser julgadas esse dia, tanto como o homem sentado no banco do réu. Estavam muito juntas, mulheres jovens e bonitas que poderiam ter sido tomadas por estudantes universitárias. Sorriu-lhes para tranqüilizá-las e lhes deu as costas.

James P. Slagerman se encontrava sentado atrás da mesa do advogado de defesa. Tinha trinta e dois anos era loiro e estava atraente com traje escuro e gravata. Dava o aspecto preciso do que afirmava ser, um jovem executivo. Seu serviço de escolta era perfeitamente legal. Pagava seus impostos e contribuía a obras de caridade.

A principal tarefa de Deborah seria convencer o júri que ele não diferia em nada de um cafetão de rua, que ganhava dinheiro com a venda do corpo de uma mulher. Até então, não acalentava esperanças de que o condenassem por agressão

Quando anunciou o juiz, a sala se pôs de pé.

Deborah realizou uma exposição breve, centrando-se no júri enquanto expunha os fatos. Não tentou deslumbrar-los. Já era consciente de que esse era o estilo da defesa. Com sua contenção esperava captar a atenção do júri com o contraste da singeleza.

-Terei que subir hoje para depor, senhorita O'Roarke? -Marjorie não parou de mover-se em seu assento. Ainda que os hematomas tivessem desaparecido nas semanas decorridas desde a surra, a mandíbula ainda lhe doía-. Talvez tenha bastado com o que disseram os médicos e Suzanne e eu não tenhamos que testemunhar.

-Marjorie -apoiou uma mão sobre a da jovem e a encontrou fria e trêmula-. Escutarão os médicos e olharão as fotos. Irão acreditar que Suzanne e você foram golpeadas. Mas será você, ambas, que convencerão ao júri que Siagerman foi quem o fez, que não é o agradável um homem de negócios que finge ser. Se vocês deixarem ele sair livre dessa, ele voltara a fazer.

Suzanne mordeu o lábio.

-Jimmy disse que de qualquer modo o absolverão. Que eles sabem que somos putas, ainda que você nos ajude a consegui trabalhos normais. Disse que quanto tudo acabar vai nos encontrar e nos machucar de verdade.

-Quando ele disse isso?

-Nos ligou ontem a noite – os olhos de Marjorie se encheram de lágrimas – Descobriu onde vivíamos e nos ligou. Disse que íamos nos dar mal – se secou uma lágrima com o dorso da mão – Disse que ia fazer que lamentássemos ter iniciado este processo. Não quero que ele volte a nos machucar.

-Não o fará. Não posso ajudar vocês se vocês não me ajudarem, a não ser que não confie em mim.

Durante sessenta minutos falou, tranqüilizou-as e as convenceu com promessas. Ás duas da tarde, assustadas voltaram ao tribunal.

-O estado chama a Marjorie Lovitz -anunciou Deborah, lançando-lhe uma olhada fria a Slagerman.

 

Gage entrou no tribunal no instante em que ela chamava a sua primeira testemunha da tarde. Tinha tido que cancelar duas reuniões a fim de poder estar ali. A necessidade de vê-la tinha sido muito mais forte do que a de ouvir os relatórios trimestrais da empresa. De fato, teve que reconhecer que tinha sido mais poderosa que nada do que tivesse experimentado até então.

Tinha mantido distância durante três dias. Três dias muito longos.

Pensava que a vida com freqüência era como uma partida de xadrez, na que te tomava o tempo necessário para preparar a seguinte jogada. Elegeu um assento no fundo da sala e a observou.

-Qual é a sua idade, Marjorie? -começou Deborah.

-Vinte e um.

-Sempre viveu em Urbana?

-Não, cresci na Pennsylvania.

Com umas perguntas casuais, ajudou que Marjorie traçasse um quadro de seu passado, a pobreza, a infelicidade, os abusos paternos.

-Quando veio à cidade?

-Faz uns quatro anos.

-Quando tinha dezessete anos. Por que veio?

-Queria ser atriz. Sei que soa idiota, mas costumava atuar nas obras de teatro da escola. Pensei que seria fácil consegui-lo.

-E foi?

-Não. Foi duro. Duro para valer. A maioria das vezes nem sequer conseguia um teste. E fiquei sem dinheiro. Encontrei um trabalho de meio período como garçonete, mas o que ganhava não era o bastante. Cortaram a minha luz e a calefação.

-Pensou alguma vez em regressar para sua casa?

-Não podia. Minha mãe me disse que se eu fosse embora, que nunca mais contasse com ela. E pensava, e ainda penso, que conseguiria se me dessem uma oportunidade.

-E lhe deram?

-Foi o que eu achei. Esse homem entrou na cafeteira que eu trabalhava. Pos-se a falar, já sabe. Contei-lhe que queria ser atriz. Ele disse que percebeu isso logo que me viu e me perguntou o que eu fazia num espelunca como aquela quando era tão bonita e tinha tanto talento. Me assegurou que conhecia um montão de gente e que eu ia trabalhar com ele, me apresentaria pessoas. Me entregou um cartão comercial e tudo mais.

-O homem que conheceu se encontra na sala, Marjorie?

-Claro, era Jimmy -baixou a vista para os dedos trêmulos-. Jimmy Slagerman.

-E então começou a trabalhar para ele.

-Sim. No dia seguinte fui a seu escritório. Tinha uma suíte inteira, cheia de escrivaninhas e telefones. Um lugar muito bonito, na parte alta da cidade. Chamava-o Elegante Escorts. Disse que poderia ganhar cem dólares por noite indo jantar e acompanhar homens de negócios a festas. Inclusive me comprou roupas bonitas e me levou ao cabeleireiro.

-E por esses cem dólares por noite, a única coisa que teria que fazer era ir a festas e a jantares?

-Isso é o que ele me disse, no princípio.

-E depois as condições mudaram?

-Passado um tempo... levou-me a restaurantes e a lugares bonitos. Comprou-me flores e...

-Manteve uma relação sexual com ele?

-Protesto. É irrelevante.

-Senhora, é muito relevante a relação física que tinha a testemunha com o acusado.

-Negado. Responda a pergunta, senhorita Lovitz.

-Sim. Fui para cama com ele. Me tratou tão bem. Depois, deu-me dinheiro.., para as faturas, comentou.

-E você aceitou?

-Aceitei. Achei que sabia o que se passava. Sabia, mas fingi que não. Alguns dias depois, me disse que tinha um cliente para mim. Me mandou arrumasse bem e sai com este homem de Washington, D.C.

-Que instruções te deu o senhor Slagerman?

-Me disse: «Marjorie, vai ter que ganhar esses cem dólares>>Constatei o que já sabia quando ele me disse que eu devia ser bem agradável com este cliente. Eu disse que o seria.

-O senhor Slagerman definiu para você o significado da palavra «agradável», Marjorie?

Ela titubeou, depois voltou a olhar as mãos.

-Disse que tinha que fazer o que me pedisse. Que se esse homem quisesse que eu o acompanhasse ao hotel, tinha que obedecer ou não pagaria. Afirmou que tudo era como uma atuação. Eu tinha que aparentar que desfrutava da companhia desse homem, como se me atraísse, e eu atuei como se me sentisse muito bem com ele na cama.

-O senhor Siagerman te especificou que seus serviços requereriam que praticasses sexo com esse cliente?

-Disse que era parte do trabalho, igual quando sorrimos ao ouvir uma piada ruim. E que se eu fosse boa me apresentaria a um diretor de cinema que conhecia.

-E você aceitou?

-Ele fez parecer que tudo era normal. Sim. Aceitei.

-Houve outras ocasiões em que aceitou trocar sexo por dinheiro na qualidade de acompanhante para a empresa do senhor Siagerman?

-Protesto.

-Voltarei a fazer a pergunta -dirigiu a olhada ao júri-. Seguiste trabalhando para o senhor Slagerman?

-Sim, senhora.

-Quanto tempo?

-Três anos.

-Estava satisfeita com o trabalho?

-Não sei.

-Não sabe se estava satisfeita?

-Me acostumei ao dinheiro -respondeu com dolorosa sinceridade-. E passado algum tempo a gente consegue esquecer o que fazemos e pensar em outra coisa no momento que estamos trabalhando.

-E o senhor Siagerman estava contente contigo?

 -As vezes -temerosa, olhou ao juiz-. As vezes se enfurecia, comigo ou com alguma das outras garotas.

-Tinha outras garotas?

-Aproximadamente uma dúzia, as vezes mais.

-E o que ele fazia quando se enfurecia?

-Nos batia.

-Queres dizer que as golpeava?

-Se portava como um louco e...

-Protesto.

-Concedido.

-Te bateu alguma vez, Marjorie?

-Sim.

Deborah deixou que a singeleza da resposta flutuasse alguns momentos sobre o júri.

-Quer nos contar os acontecimentos que tiveram lugar a noite do 25 de fevereiro deste ano?

Tal como a tinha instruído, Marjorie não apartou a vista de Deborah e não se permitiu desviar os olhos para Slagerman.

-Tinha um encontro, mas fiquei doente. Uma gripe ou algo assim. Nunca tinha acontecido comigo e sentia meu estômago dar voltas. Não conseguia manter nada no estômago. Suzanne veio me ajudar.

-Suzanne

-Suzanne McRoy. Também trabalhava para Jimmy e nos ficamos amigas. Não podia levantar-me para ir trabalhar, assim que Suzanne chamou a Jimmy para contar...-começou a retorcer as mãos no colo. - A ouvi discutindo com ele pelo telefone, insistindo em lhe dizer que eu estava mal. Suzanne lhe falou que ele podia aparecer e comprovar com seus próprios olhos.

- E ele o fez?

-Sim -nesse momento lágrimas grandes e silenciosas caíram por sua face-. Estava furioso de verdade. Pôs-se a gritar com Suzanne e ela lhe respondeu a gritos também, repetindo que eu estava enferma, que tinha muita febre. Ele disse... -umedeceu os lábios-.Ele disse que as duas éramos umas cadelas preguiçosas e mentirosas. Ouvi o ruído de algo se quebrando e o choro dela Levantei-me, mas estava enjoada –esfregou a mão nos olhos manchados de rímel-. Ele entrou no dormitório e me atirou no chão.

-Quer dizer que ele se chocou contra você?

-Não, me jogou no chão. Com o dorso da mão.

-Entendo. Continue.

-Depois ordenou que levantasse a bunda e que me vestisse. Disse que o cliente tinha pedido a mim, que o único que tinha que fazer era me deitar de costas e fechar os olhos -procurou um lenço de papel e se limpou o nariz-. Eu lhe disse que estava doente, que não era capaz de fazê-lo. Ai ele começou a gritar e atirar coisas. Depois ele me disse que mostraria o que era estar doente para valer e começou a me bater.

- Onde ele a bateu?

- Em todos os lugares. Na face, no estômago. Principalmente no meu rosto. Não parava.

- Gritou pedindo ajuda?

- Não pude. Quase não conseguia respirar.

- Tentou se defender?

-Tentei me afastar engatinhando, mas ele não parou de me ataca. Perdi a consciência. Quando acordei, Suzanne estava ao meu lado com o rosto cheio de sangue. Foi ela que chamou a ambulância.

Com gentileza, Deborah prosseguiu com o interrogatório. Quando ao final se sentou em sua cadeira de promotor, rezou para que Marjorie resistisse ao interrogatório da defesa.

Depois de quase três horas testemunhando, Marjorie estava pálida e trêmula. Apesar da tentativa do advogado de defesa de fazer que se desabasse, saiu da cadeira de depoimento com o aspecto de uma mulher jovem e vulnerável.

Com satisfação, Deborah pensou que era essa imagem a que ficaria nas mentes dos membros do júri.

-Excelente trabalho, advogada.

Deborah girou a cabeça e, com uma mistura de irritação e prazer, encontrou o olhar de Gage.

-Que faz aqui?

-Vim ver você trabalhar. Talvez eu precise de advogado um dia.

-Sou promotora, esqueceu?

-Então me certificarei de jamais me surpreendam infringindo a lei -sorriu.

Quando ela se levantou, tomou-lhe a mão. Um gesto casual e amistoso. Mas Deborah não soube dizer por que lhe pareceu tão possessivo-. Posso acompanhá-la? Jantar, sobremesa? Uma noite calma?

E pensar que se tinha dito que ele nunca mais a tentaria. Impossível.

-Sinto muito, mas tenho que fazer uma coisa.

-Imagino que esteja falando sério –estudou-a com a cabeça inclinada.

-Tenho trabalho.

-Não, referia-me ao fato de sentir muito.

Os olhos de Gage eram tão profundos e cálidos, que ela suspirou.

-Indo de encontro a minha inteligência devo dizer que sim -saiu do tribunal para o corredor.

-Então te acompanharei até seu trabalho.

-Não te disse o que sinto pelos homens persistentes? -o olhou acima do ombro com expressão exasperada.

-Sim, mas de todo jeito jantou comigo.

Teve que rir. Depois de todas as horas Temas no tribunal, era um alívio.

-Bem, como meu carro ainda está na loja- sorriu- Eu aceito.

Entrou no elevador com ela.

-Pegou um caso duro. Desse que podem acabar com a reputação..

-Acha? -seus olhos se esfriaram.

-Recebeu atenção nacional da imprensa.

-Não aceito os casos para conseguir reportagens -falou com voz tão fria como seus olhos.

-Se quer ter uma longa carreira vai ter que endurecer a pele.

-Minha pele está bem, obrigada.

-Notei -relaxado, apoiou-se na parede do elevador-. Acho que qualquer um que te conheça, compreenderá que a imprensa é um efeito secundário, não o objetivo principal. Neste momento está estabelecendo uma declaração de direitos, no qual afirma que ninguém, não importa quem seja, tem de ser submetido a violência e humilhado. Espero que ganhe.

-Ganharei – perguntou a si mesma por que a irritava tanto o fato dele compreender, com exatidão, qual era sua meta. Saiu do elevador para vestíbulo de mármore.

- Eu gosto quando prende os cabelos -comentou, satisfeito em vê-la desconcertada-. Muito competente. Quantos grampos eu teria que arrancar para que ele se soltasse?

-Não acredito que isso seja...

-Relevante? -contribuiu ele-. Para mim é. Tudo sobre você o é, já que me parece não vou conseguir tirá-la da minha cabeça.

Ela não diminuiu o passo. Imaginou que era típico que lhe dissesse algo assim a uma mulher num lugar cheio de gente e conseguir fazê-la sentir que estavam a sós.

-Estou segura que irá consegui se manter ocupado. Esta manhã vi uma foto sua no jornal... com a uma loira colada ao seu braço. Era no jantar do candidato Tarrington -apertou os dentes quando ele não deixou de sorrir-. Você muda com muita facilidade e rapidez suas alianças, politicamente falando.

-Não tenho alianças, politicamente falando. Estava interessado em ouvir o que tinha que dizer a oposição de Fields. Fiquei impressionado.

-Aposto que sim -comentou, recordando à loira exuberante com o esplendido vestido negro.

-Lamento que não estivesses presente -sorriu.

-Já te disse que não tenho intenção de fazer parte da horda -diante das portas duplas de vidro, deteve-se-. Falando de hordas -com a cabeça erguida, misturou-se com a multidão de jornalistas que esperava na escadas do tribunal.

A crivaram de perguntas. Ela respondeu como podia cada uma delas. E apesar de sua irritação ficou agradecida em ver a limusine negra de Gage com seu enorme motorista esperando-os na rua.

-Senhor Guthrie, qual é seu interesse neste caso?

-Fico satisfeito em ver a justiça funcionando.

-Lhe agrada ver como funciona a nossa famosa promotora? - Wisner abriu espaço entre seus colegas para meter um gravador em seu rosto-. Vamos, Guthrie, que há entre a formosa Deb e você?

Ao ouvir seu rosnado, Gage apoiou uma mão no braço de Deborah em sinal de advertência e se voltou para o jornalista.

-O conheço, não?

- Desde de sempre -rebateu Wisner com voz desagradável-. Encontrávamo-nos com bastante freqüência nos velhos tempos onde você trabalhava para a cidade em vez de ser seu dono.

- Sim. Wisner -avaliou ao homem com um olhar indiferente-. Pode ser que minha memória esteja ruim, mas não me recordo de você ser tão imbecil assim – ajudou a subir a uma Deborah sorridente à limusine.

-Bem feito -disse ela.

-Tenho de pensar na possibilidade de comprar o World, só por ter o prazer de despedi-lo.

-Tenho de acolher o modo em que pensa -suspirou, tirou os sapatos e fechou os olhos, cansados. Pensou que podia acostumar-se a viajar dessa maneira. Assentos grandes e cômodos e Mozart pelos alto-falantes. Uma pena que não fosse realidade-. Meus pés estão me matando. Vou ter que comprar um pedômetro para ver quantos quilômetros faço durante um dia normal no tribunal.

-Se eu lhe prometer uma massagem nos pés viria para casa comigo?

- Não. Devo voltar para meu escritório. Além disso, estou segura de que há muitos mais pés para você massagear.

Gage baixou o vidro o suficiente para dar-lhe a Frank a direção.

-É o que te preocupa? Os outros... pés de minha vida?

- A vida é sua. –mesmo que odiasse esse fato.

-Me agrada os seus. Teus pés, tuas pernas, teu rosto. E tudo o que há entre eles.

Deborah tentou disfarçar a reação que isso lhe provocou

-Sempre tentas seduzir às mulheres na banco de trás da limusine?

-Preferiria outro lugar.

-Gage, tenho pensado nesta situação.

-Situação? -sorriu com todo seu encanto.

-Sim -não optou chamá-la de relação-. Não vou fingir que não me sinto atraída por você, ou que não me agrada que esteja atraído por mim. Mas...

-Mas? -lhe tomou a mão e beijou-lhe os dedos. Sua pele era tão fresca e clara quanto água de chuva.

-Pare -conteve o gemido quando ele girou à mão para beijar-lhe a palma-. Não faça isso.

-Adoro quando se mostra fria e lógica, Deborah. Me deixa louco ver a rapidez com que posso acender seu corpo- roçou os lábios em seu punho e sentiu sua pulsação rápida-. Sobre que falava?

«Sobre o que ela falava?». Que mulher podia mostrar-se frieza e lógica quando Gage olhava daquele modo? Tocava-a? Afastou a mão e recordou que este era exatamente o problema.

- Por vários e bons motivos não quero que esta... situação vá mais longe.

-Mmm.

Afastou a mão esta começou a brincar com seu brinco de pérola.

-Falo sério. Compreendo que está acostumado a escolher e descartar mulheres como se fossem fichas de pôquer, mas não estou interessada. Assim acho melhor procurar outra.

-Usou uma metáfora interessante. Posso dizer que há alguns ganhos que prefiro reter antes que arriscar.

-Vamos esclarecer uma coisa -irritada, voltou-se para ele-. Não sou o prêmio desta semana. Não tenho intenção de ser a morena da quarta-feira, depois da loira da terça-feira.

-Voltamos ao assunto dos pés.

- Pode parecer uma brincadeira para você mas levo minha vida pessoal e profissional muito a sério.

-Talvez sério demais.

-É assunto meu - cortou-. A questão é que não me interessa me transformar em uma de suas conquistas. Não vou me enrolar nessa teia que armou -girou a cabeça quando a limusine se deteve-. Eu salto aqui.

Deixando ambos surpreendidos ambos ele se moveu velozmente e a arrastou pelo assento até deixá-la estendida sobre seu colo.

- Vou me encarregar que você se esteja tão enrolada em minha teia , querida, que não será capaz de se libertar -firme e dura, sua boca encontrou a de Deborah.

Ela não se resistiu nem titubeou. Cada emoção que tinha experimentado durante todo o trajeto tinha sido reduzida a apenas uma: Desejo. Irrevogável. Instantâneo. Irresistível. Afundou seus dedos no cabelo escuro e enquanto sua boca se movia inquieta e faminta.

Desejava-o como nunca tinha desejado alguém mais. Ou sonhado em desejar. A ânsia que ele produzia era tão grande que não ficava espaço para a razão. Parecia-lhe tão certo restar espaço para a dúvida. Só restava o momento... e tomar. Não se lembrava por que não podiam. Sentia a boca febril enquanto lhe percorria a face e deslizava pelo pescoço. Com um murmúrio urgente, ela voltou a atrair-lhe os lábios aos seus.

Nunca tinha conhecido alguém que tivesse satisfeito suas necessidades com tanta precisão. Em seu interior ardia um fogo que Gage podia avivar só com seu toque. Ela já conhecera o desejo, mas desconhecia esse desespero aterrador.

Gage tinha ganas de deitá-la sobre o assento, arrancar suas roupas até deixá-la nua e ardente sob seu corpo.

Mas também queria dar-lhe compaixão e amor. Teria que esperar até que estivesse preparada para aceitá-lo. Com sincero pesar, afastou-se.

-Você é tudo o que desejo -lhe disse-. E aprendi a consegui aquilo que desejo.

Com os olhos muito abertos, a paixão desapareceu para ser substituída por um medo aturdido que perturbou a Gage.

-Você não pode. -sussurrou Deborah-. Não pode fazer isso comigo. Isso não é certo...

-Não, não é certo para nenhum dos dois. Mas é real.

-Não deixarei que minhas emoções me controlem.

- Elas nos controlam a ambos.

-A mim, não -agitada, pegou os sapatos-. Tenho que ir.

-Você será minha – estendeu o braço para abrir a porta.

-Primeiro tenho de ser minha -moveu a cabeça e se marchou.

Gage a observou afastar-se antes de abrir a mão fechada. Contou seis grampos e sorriu.

 

Deborah passou a noite com Suzanne e Marjorie no pequeno apartamento das duas. Enquanto jantavam pratos chineses que ela trouxera, falaram do caso. Centrar-se no trabalho a ajudou. Deixou por certo tempo sem pensar em Gage e nas reações que lhe provocava. Reações que a deixavam muito preocupava tanto pela atração sexual poderosa como pela semelhança do que já tinha experimentado com outro homem.

Queria entregar-se a ambos, mas não podia fazê-lo a nenhum. Era uma questão de ética. Para Deborah, quando uma mulher começava a duvidar de sua ética, tinha que duvidar de tudo.

Também a ajudou recordar que tinha algumas coisas que podia controlar. Seu trabalho, seu estilo de vida, suas ambições. Essa noite esperava fazer algo para controlar o resultado do caso que tinha nas mãos.

Cada vez que soava o telefone, ela respondia, enquanto Marjorie e Suzanne permaneciam sentadas no sofá com as mãos agarradas. No quinto telefonema, obteve a recompensa que procurava.

-Marjorie?

-Não –respondeu.

-Suzanne, sua vadia.

Ainda que esboçasse um sorriso sombrio, fez que sua voz soasse trêmula.

-Quem é?

-Sabe muito bem quem é. Sou Jimmy.

-Acho que não posso falar com você.

-Não seja idiota. Só escute. Se você acha que eu te machuquei, vai percebe que não foi nada perto do que vou fazer com você se testemunhar amanhã. Sua rameira, tirei você das ruas onde ganhava vinte dólares por cliente e a fiz trabalhar para gente endinheirada. Você me pertence e não deve esquecer-se disso. Faça um favor a você mesma, Suze, diga a esta arrogante promotora que mudou de idéia, que você e Majorie mentiram todo o tempo. Caso contrário eu vou acabar com você, entendeu?

- Sim- desligou e ficou olhando o telefone- Claro que eu entendi- voltou-se para as duas – Tranquem a porta esta noite e não saiam. Ele ainda não sabe, mas acabou de pendurar uma corda em seu próprio pescoço.

Chateado consigo mesma, deixou-as. Tinha requerido com urgência um grampo para a linha de Suzanne e Marjorie. Precisaria de mais que persuasão para conseguir o mesmo para o telefone de Siagerman. Mas conseguiria. Quando Slagerman subisse para depor em alguns dias, tanto seu advogado como ele teriam uma surpresa.

Decidiu caminhar alguns quarteirões antes de parar um táxi. A noite era sufocante. Até os edifícios transpiravam. Do outro lado da cidade, seu quarto a esperava com ar acondicionado, um chuveiro refrescante e uma bebida fria. Mas ainda não queria ir para casa e ficar sozinha. Seria fácil voltar a pensar em sua vida. Em Gage.

 Aquela tarde tinha perdido o controle de seu movimentos. Era um hábito que não lhe agradava. Não era possível negar que a atraía. Mais ainda, que a arrastava em sua direção de um modo básico, quase primitivo, era praticamente impossível resistir.

No entanto, sentia algo muito forte por um homem mascarado.

Como isso era possível, se sempre tinha valorizado a fidelidade e a lealdade acima de todo, ter sentimentos tão profundos por dois homens diferentes?

Esperava que isso se limitasse a algo físico. Desejar um homem não era o mesmo que o precisar dele. Não estava preparada para precisar de um homem, quanto mais de dois!

O que precisava era de controle, sobre suas emoções, sua vida, sua carreira. Durante grande parte de sua vida tinha sido vítima das circunstâncias. A trágica morte de seus pais e o insondável poço de medo e dor que viera depois. As exigências do trabalho de sua irmã as tinham obrigado a viajar de cidade em cidade.

Nesse momento estava deixando sua própria marca, a sua maneira e no seu próprio ritmo. Os últimos dezoito meses tinha trabalhado duramente, com uma determinação obsessiva por ganhar e merecer a reputação como uma representante forte e honesta do sistema judicial. A única coisa que tinha que fazer era seguir avançando pelo mesmo caminho estreito.

Ao entrar nas sombras do World Building, ouviu que alguém sussurrava seu nome. Conhecia essa voz, a tinha escutados durantes seus sonhos...sonhos que ela se negava a reconhecer.

Pareceu sair da escuridão, uma sombra, uma silhueta, depois um homem. Pôde ver-lhe os olhos, seu brilho por trás da máscara. O anseio a invadiu com tal poder que quase a fez gemer em voz alta.

E quando ele tomou sua mão para arrastá-la em direção as sombras, não opôs resistência.

- Me parece que é um costume seu caminhar sozinha pelas ruas sombrias da cidade.

-Tinha um trabalho a fazer -automaticamente baixou a voz ao nível da dele-. Está me seguindo? – ele não lhe respondeu, mas seus dedos se fecharam em torno dos dela de uma maneira que falava de posse-. O que quer?

-Você está em perigo aqui sozinha -viu que ela tinha soltado os cabelos, que caiam soltos por sobre seus ombros-. Os assassinos de Parino estão vigiando você -sentiu que o pulso dela se acelerava, mas não de temor. Reconhecia a diferença entre medo e excitação.

-O que você sabe de Parino?

-Eles não vão se importar por você ser uma mulher. Não se coloque no caminho deles. Não quero que nada de mal aconteça a você.

-Por que? -incapaz de evitá-lo, inclinou-se em sua direção.

Tão impotente quanto ela, levou suas mãos aos lábios. As apertou com força.

OLHOU-A.

-Você sabe por que.

-Não é possível -mas não pôde nem quis afastar quando lhe acariciou o cabelo-. Não sei quem você é. Nem entendo o que você faz.

-As vezes eu também não.

Deborah desejou enrodilhar-se em seus braços, aprender o que era ser abraçada por ele, ter seus lábios na boca. Mas ao conter-se disse a si mesma que tinha razões para ser resistir.

-Diga-me o que sabe a respeito de Parino e de sua morte. Deixa que faça meu trabalho.

-Esqueça-o. É a única coisa que tenho para lhe dizer.

-Sabe de algo. Eu sei. -aborrecida, retrocedeu-. Você tem o dever de me contar.

-Sei qual é meu dever.

Deborah jogou o cabelo para atrás. Atraída por ele? Estava furiosa.

-Claro, espreitar nas sombras e utilizando-se de seu próprio e pessoal senso de justiça aonde lhe der na telha. Isso não é dever, Capitão Cabeça-dura, é ego - Quando não lhe respondeu, suspirou e voltou a aproximar-se - Poderia acusar você de ocultar informação. Trata-se de um assunto da polícia e da promotoria, não de um jogo.

-Não, não é um jogo -a voz permaneceu baixa, mas a ela lhe pareceu captar um tom entre divertido e frustrado-. Mas há peões. E eu não gostaria que a utilizassem como tal.

-Posso cuidar de mim mesma.

-Nunca para de repetir isso. Advogada, neste momento você se encontra fora de seu ambiente, mantenha-se afastada. -deu um passo atrás.

-Um momento -mas ele já tinha ido-. Maldito sejas, não tinha terminado de discutir com você -frustrada, deu um pontapé contra a lateral do edifício, e por poucos centímetros não lhe golpeou a espinha-. Manter-me distante?- murmurou- Nem em sonhos.

 

Gotejando e praguejando, Deborah correu até a porta. Bater a campainha as quinze para sete da manhã representava o mesmo que chamá-la por telefone as três horas da madrugada. Sempre significava um problema. Ao abrir a porta e ver Gage supôs que havia se equivocado.

- Tirei você do banho?

- Sim- passou a mão pelo cabelo molhado impaciente – O que quer?

- Café da manhã – sem esperar um convite, entrou- Muito bonito- decidiu. Viu que ela havia empregado um tom suave de marfim com toques de cor esmeralda, carmim e pérola na manta sobre o sofá e nas almofadas espalhadas sobre o carpete. Havia também deixado um rastro de água sobre o mesmo chão. – Parece que cheguei cinco minutos adiantado.

- Não.- ao dar-se conta que estava aberto o cinto do roupão o amarrou- Por que nem deveria está aqui. E agora- porém ele a cortou com um beijo prolongado e firme.

-Mmm, está molhada.

Deborah se surpreendeu pelo fato da água não ter se evaporado e que tivesse vontade de apoiar a cabeça no ombro dele.

-Olha, não tenho tempo para isso agora. Eu tenho que esta no tribunal em...

- Duas horas – completou Gage- Tempo o suficiente para tomar café da manhã.

- Se pensa que vou preparar um café da manhã para você, se decepcionará.

- Isso nem me passou pela cabeça- observou o roupão curto e sedoso. Quando a tocara ficara dolorosamente consciente de que ela não usava mais nada sob ele- Eu gosto de azul, devia usar sempre esta cor.

- Agradeço o conselho de moda, mas- calou-se quando a campainha voltou a tocar.

- Eu abrirei- ofereceu ele.

- Eu posso abrir a porta em minha própria casa- se dirigiu para a porta mal humorada. As manhãs não eram seu melhor momento- Eu gostaria de conhecer a pessoa que pendurou o cartaz onde está escrito que eu recebendo visitas de todos.- ao abrir a porta, viu um garçom com uma blusa branca e um carrinho.

- Ah sim. Sem dúvida é o Café da manhã. Acredito que o melhor lugar será junto a janela. Fazendo um sinal para que o garçom entrasse.

- Sim senhor Guthrie.

Deborah colocou as mãos na cintura.

- Gage, não sei o que pretende, mas não vai funcionar. E tentei deixar bem claro qual era minha posição, e neste momento eu não tenho tempo nem inclinação...isso é café?

- Sim.- sorrindo ele levantou a cafeteira e serviu uma xícara. Viu que o aroma a seduzia- Quer um pouco?

- Talvez- fez um muxoxo.

- Gosto dessa safra. É um de meus favoritos.

- Você não joga limpo- disse Deborah depois de beber um pouco.

- Não.

Ela abriu os olhos para estudar o camareiro , que se dedicava a cumprir seu trabalho.

- O que tem mais ai?

- Omelete com Champion, presunto assado, croissant e suco de laranja natural, feito agora.

- Feito agora.- esperava não estar salivando sobre a mesa.

- Morangos com creme.

- Ah...- cerrou a boca para evitar que a língua caísse.

- Quer se acomodar?

Assegurou-se que não era uma mulher de personalidade fraca, mas sua sala havia sido invadida pelos odores deliciosos.

- Imagino que sim- rendida, afastou uma cadeira que o camareiro havia colocado próximo a mesa. Gage entregou uma nota ao garçom e lhe deu instruções para que viesse recolher os pratos em um hora. Ela não teve força para reclamar – Imagino que eu tenha que lhe perguntar o que provocou tudo isso.

- Queria ver como você estava nesta manhã- serviu o suco de uma jarra de cristal – Está me pareceu a melhor maneira. No momento- a fitou- Você está linda.

- Você é encantador- tocou as pétalas da rosa vermelha que estava junto a seu prato – Mas isso não muda nada. Contudo, não vejo razão para desperdiçar tanta comida- acrescentou pensativa.

- É uma mulher prática – havia contado com isso – Isso é uma das coisas que mais admiro em você.

- Não sei o que tem de atraente em ser prática- cortou um pequeno pedaço de presunto e o levou a boca. Os músculo do estômago se contraíram.

- Pode ser muito...atrativo.

- Diga – mudou o tema para um mais seguro – Sempre toma café de manhã desse modo extravagante?

- Quando me é conveniente – apoiou a mão sobre a dela- Tem olheiras. Não dormiu bem?

- Não- disse pensando na noite longa e inquietante.

- Por causa de seu caso?

Encolheu os ombros. A insônia não tinha nada a ver com o caso e muito com o homem que havia encontrado entre as sombras da noite. Pois agora estava ali, igualmente fascinada pelo homem sentado a frente dela a luz do dia, e frustrada com aquilo tudo.

- Quer me contar?

Levantou a vista e nos olhos de Gage viu paciência e compreensão e algo oculto, algo que ela sabia que se poria em fogo ao toque.

- Não- disse brusca e rompeu o contato de seu mão.

- Trabalha demais.

- É algo que tenho que fazer. O que me diz de você? Na verdade, nem sei o que você faz.

- Comprar e vender, assistir reuniões e ler informações.

- Estou certa que é mais complicado que isso.

- E bem mais aborrecido.

- Não acredito.

- Construo coisas, compro coisas- abriu um croissant que parecia ter acabado de sair do forno.

- Que tipo de coisas? – não o deixaria escapar com tanta facilidade.

- Por exemplo, sou o proprietário deste edifício- sorriu para ela.

- Ele é propriedade da empresa Tojan.

- Certo. Ela é minha.

-Oh.

- A maior parte do dinheiro dos Guthrie procedia de bens imobiliares- sua reação o tinha encantado- E ainda segue sendo a base de nossos negócios. Nós temos diversificado bastante nos últimos dez anos. De modo que um ramo se dedica a fretes, outros a mineração e outros a manufatura.

- Entendo- Gage não era um homem qualquer Se bem que, ultimamente , não se sentia atraída por qualquer homem- Percorreu um longo caminho desde da vigésima quinta delegacia.

- Sim – uma sombra passou por seus olhos – É o que parece- espetou um morango com um garfo e passou pelo creme lhe oferecendo.

- Sente saudades? – ficou pro alguns momentos degustando o sabor da fruta em seu língua antes de engolir.

Gage supôs que se a beijasse neste momento teria um sabor intenso e vivo.

- Não me permito sentir saudades. Há uma diferença.

- Sim- o entendia. O mesmo acontecia com ela a não se permitir sentir saudades de sua família, aos ausentes e aos que moravam a quilômetros de distância.

- Você fica linda quando está triste, Deborah- passou um dedo pelo dorso de sua mão- Irresistível, com efeito.

- Não estou triste.

- É irresistível de qualquer jeito.

- Não comece- se distraiu servindo mais café- Posso formular uma pergunta de negócios?

- Claro.

- Se o dono, ou os donos de uma propriedade específica não quisessem que o fato fosse público. Teriam como ocultá-la?

- Com suma facilidade. Enterrando-a por debaixo de corporações e debaixo de diferente notas fiscais. Uma corporação é dona da outra, que é dona da outra e assim sucessivamente. Por que?

- Seria difícil rastrear os proprietários reais? – acrescentou ignorando a pergunta dele.

- Depende da maneiras que eles fizeram isso e dos cuidados que eles tomaram para se manterem em anonimato.

- Se alguém se mostrar decidido e paciente, poderia localizar suas identidades?

- Com o tempo. Se puderem localizar um vínculo de união.

- Um vínculo de união?

- Um nome, um vínculo, um lugar. Algo que aparece constantemente- se não estivesse um passo na frente dela iria lhe preocupar a linha de interrogatório, mas de qualquer maneira era melhor demonstrar cautela- O que você pretende, Deborah?

- Fazer meu trabalho.

- Tem algo haver com Parino?

- O que você sabe sobre Parino?

- Eu sigo tendo contatos na vigésima quinta. Não basta a você o julgamento de Alagerman?

- Não tenho o luxo de trabalhar com um caso de cada vez.

- Não deveria trabalhar com este.

- Desculpe? – seu tom era gélido.

- É perigoso. Os homens que ordenaram a morte de Parino são perigosos. Não sabe com que está jogando.

- Não estou jogando.

- Não. Nem eles. Estão bem protegidos e informados. Sabem qual será seu próximo movimento antes de você – a expressão tornou-se sombria- Se eles a considerarem um obstáculo, a eliminarão sem hesitar.

- Como sabe tanto sobre os homens que mataram Parino?

- Fui policial, lembra-se? Não é algo que você devia mexer. Quero que entregue o caso a outro.

- Isso é ridículo.

- Não quero que te machuquem. – pegou sua mãe antes que ela pudesse evitar.

- Queria que as pessoas parassem de dizer isso para mim. – se soltou dele e levantou-se - É meu caso e vai continuar sendo meu caso.

- Sua ambição é outro qualidade atraente sua, Deborah – ele não se levantou- Até que ela te cegue.

Ela girou em sua direção dominada pela fúria.

- Sim certo, em parte é ambição. Mas não de tudo, em absoluto. Eu acredito no que faço, Gage, e na minha capacidade de fazer-lo bem. Começou com um rapaz chamando Rico Mendez não era o pilar da comunidade. De fato, era um ladrão que já havia estado na prisão e sem dúvida iria voltar para lá. No entanto foi crivado de balas enquanto estava em uma esquina. Por que pertencia a um gangue de cores diferentes- se pôs a caminhar pela sala, gesticulando para realçar suas palavras – Logo matam seu assassino, apenas por falar comigo. Por haver feito um trato comigo. Então, quando é que vamos parar e perceber que isso não é aceitável, quando iremos assumir a responsabilidade e mudar?

- Não questiono sua integridade, Deborah.

- Somente o meu juízo?

- Sim...e o meu- introduziu as mãos no interior das mangas de sua bata- Me preocupo...

- Não acho que...

- Não, não pense – cobriu sua boca com a dele e a apertou entre seus braços.

Deborah experimentou um calor e uma necessidade instantânea. Como ia lutar contra isso? E o corpo de Gage era tão sólido e seu lábios tão hábeis. E ela podia experimentar as ondas não só de desejo, mas de algo mais profundo e verdadeiro, que emanavam dele para ela. Como se estivesse em seu interior.

Seu mundo se resumia nela. Quando a tinha nos braços não questionava o poder que ela tinha de esvaziar sua mente e enche-la, para saciar sua fome, mesmo senso ela sua causadora. Dava-lhe forças, e o deixava fraco. Quase começava a crer outra vez em milagres.

Se afastou sem deixar seus braços. Ela lutou para buscar equilíbrio. Ainda não sabia como ele podia fazer isso com ela com um simples toque.

- Não estou preparado- murmurou.

- Nem eu tão pouco,e não Acredito que isso importe- voltou a se aproximar- Quero ver você está noite - achatou sua boca com os lábios – Quero estar com você está noite.

- Não, não posso- era capaz apenas de respirar- O julgamento.

- Certo – conteve um maldição- Quando acabar o julgamento. Nenhum dos dois pode seguir fugindo.

-Não.- ele tinha razão. Era hora de resolver aquele assunto- Não podemos. Pois eu necessito de tempo. Por favor, não me pressione.

- Pode ser que eu tenha que fazê-lo – se dirigiu a porta e se deteve com a mão na maçaneta – Deborah, há alguém mais?

 Ia negar, mas com Gage só cabia a honestidade.

- Eu não sei.

 

Aquela noite trabalhou até tarde, repassando documentos e livros de leis em seu quarto. Depois do julgamento tinha se dedicado algumas horas limpando seu apartamento. Era uma das melhores maneiras que conhecia de aliviar a tensão. Ou esquecer. A outra maneira era trabalhando e ela havia mergulhado neste, sabendo que não conseguiria dormir.

Ao estender a mão até a xícara de café o telefono soou.

- Alô.

-O'Roarke? Deborah O'Roarke?

- Sim. Quem é?

- Santiago.

De pronto ela pegou um lápis.

- Sr. Santiago. Temos procurado você.

- Sei.

- Eu gostaria de falar com você. O escritório do gabinete está pronto para lhe oferecer cooperação e proteção.

-Como as que recebeu Parino?

Controlou uma pontada de culpa.

- Conosco estará mais seguro do que sozinho.

- Talvez- o medo soava em sua voz.

-Estou disposta a aceitar uma entrevista quando você quiser.

-Nem em sonhos. Não irei a nenhuma parte. Me matariam antes de dois quarteirões -. Venha me encontrar. Escute, posso lhe oferecer mais do que Parino lhe forneceu. Muito mais. Nomes, papéis...se quer averiguar, venha até aqui.

-De acordo. Farei que a polícia...

-Nada de tiras! -a voz soou aterrorizada-. Nem um policial senão não haverá trato. Venha sozinha.

-Faremos de seu jeito. Quando?

-Agora mesmo. Estou no Hotel Darcy, no cento sessenta e sete da Rua 38. Quarto 27

-Chegarei em vinte minutos.

- Está certa que quer descer aqui, senhorita? – Ainda que sua cliente estivesse vestido com calças jeans e uma camiseta, o taxista pôde ver que tinha demasiada classe para um antro como o Darcy.

Deborah olhou através da intensa chuva que caía. A rua se achava deserta e a calçada suja.

-Sim. Suponho que não poderei convencê-lo a esperar, verdade?

-Não, senhorita.

-Já imaginava -introduziu um nota através da abertura do plástico de segurança- Fique com o troco – respirou fundo e se lançou através da chuva até a escada de degraus rachados.

Gotejando, entrou no vestíbulo. A recepção ficava atrás de alguma mesa de aço enferrujado e estava vazia. A luz projetava sob sua superfície pegajosa e brilhante. A atmosfera cheirava a suor, a lixo e a algo pior. Girou e se dirigiu para as escadas.

Um bebê chorava. O som de tristeza baixava pelas escadas cheias manchas. Observou algo pequeno e veloz correr entre seus pés para uma greta na parede. Com um arrepio, continuou subindo.

Ouviu as vozes de um homem e uma mulher entretidos em uma feroz discussão. Ao entrar no corredor do segundo andar, uma porta se entreabriu. Viu um par de olhos pequenos e assustados antes de que se fechasse outra vez e fechasse a corrente de segurança.

Pisou em alguns cacos de vidro quebrados que outrora haviam sido a luz do teto. Pelo corredor fracamente aluminado, ouviu alguns sons de carros que vinham de um filme de televisão. Um relâmpago cortou o céu.

Deteve-se diante do quarto 27. Do outro lado da porta, o ruído da televisão era estrondoso. Chamou em quase gritando.

-Senhor Santiago.

Não obtendo resposta, gritou outra vez. Com cautela, provou o maçaneta. A porta se abriu com facilidade.

A luz cinza e instável da televisão viu o quarto desarrumado e a janela suja. Tinha roupa e lixo. Na única cômodo faltava uma gaveta. Reinava o fedor da cerveja que tinha esquentado e da comida que tinha estragado.

Viu à figura estendida sobre a cama e soltou um praga. Não só teria o prazer de conduzir uma entrevista naquela pocilga, como também fazer que a testemunha se pusesse sóbrio.

Irritada, desligou o televisor. Só se ouvia o som da chuva e a discussão no outro extremo do corredor. Viu um pia suja em um canto do quarto. Imaginou se serviria para afundar a cabeça de Santiago.

-Senhor Santiago – elevou a voz ao atravessar o quarto, tratando de esquivar-se da comida e das latas de cerveja-. Ray - começou a sacudi-lo pelo ombro, depois notou que tinha os olhos abertos. -Sou Deborah O’Roarke - mas se deu conta de que não a encarava.

Afastou a mão tremula e comprovou que estava úmida de sangue-. Oh, Deus - deu um passo para atrás enquanto continha a náusea. Um passo mais, e outro. Deu meia volta e praticamente bateu com tudo com um homem pequeno e de boa compleição física que usava um bigode

-Senhorita -disse baixinho.

-A polícia -conseguiu balbuciou-. Temos que chamar à polícia. Está morto.

-Eu sei -sorriu. Ela viu um reflexo de ouro em sua boca. E o resplendor de prata quando levantou o estilete-. Senhorita O'Roarke, Estava esperando por você.

Quando Deborah se lançou na direção da porta, agarrou-a pelos cabelos. Gritou de dor, depois quedou em um silêncio, imóvel ao sentir a ponta da faca na base de sua garganta.

-Ninguém presta atenção a gritos em um lugar como este - disse, e a gentileza de sua voz fez com que ela experimentasse um arrepio quando a fez girar até fitá-lo-. Você é muito bonita. Pena eu ter que desfigurar seu rosto - apoiou a faca contra sua pele-. Vai me dizer, por favor...o que falou Parino com você antes de sofrer o acidente? Os nomes, os detalhes. Com quem compartilhava essa informação.

Lutando por dominar seu terror, olhou-o nos olhos. E neles viu o que a aguardava.

-Vai me matar de qualquer jeito.

-Inteligente e bonita -sorriu outra vez-. Mas há formas e formas. Algumas são muito lentas e dolorosas -deslizou a lâmina levemente por sua face-. Me contará o que eu preciso saber.

Deborah não dispunha de nomes, nada que pudesse trocar. Só sua inteligência.

- Eu os escrevi, escrevi e os guardei em um lugar seguro.

-E para quem contou?

-A ninguém -engoliu a saliva-. Não contei a ninguém.

Ele a estudou um momento, girando o estilete na mão.

-Acredito que está mentido. Talvez, depois que eu mostrar o que posso fazer com isto, esteja mais disposta a cooperar. Ah, essa face, como é macia. Pena eu ter que rasgá-la.

Nesse instante o céu se iluminou com outro relâmpago e o cristal da janela espatifou-se.

Ele estava ali, todo de negro. Outro relâmpago o iluminou e o trovão sacudiu o quarto. Antes de que Deborah pudesse respirar, a faca se colou a seu pescoço e um braço firme lhe rodeou a cintura.

- Aproxima-se mais e eu cortarei seu pescoço de orelha a orelha.

Némesis permaneceu onde estava. Não a olhou. Não se atreveu. Mas em sua mente podia vê-la, o rosto pálido pelo medo. Não soube se era o temor dela ou o seu próprio que lhe impedia concentrar-se, entrar na habitação como uma sombra em vez de como um homem. Se nesse instante fosse capaz de esquecer do medo que lhe inspirava a situação de Deborah e desaparecer, seria um arma ou resultaria na morte dela degolada pelo estilete afiado? Não tinha sido rápido o bastante para salvá-la. Era a hora de ser inteligente.

-Se matá-la perderá sua proteção.

-Um risco que ambos correríamos. Não se aproxime mais -apertou a lâmina com mais força sobre o pescoço, até que ela gemeu.

- Se você machucá-la -falou com temor e fúria-, farei coisas a você que nem em seu piores pesadelos imaginou.

Então viu-lhe a face, o bigode, o brilho do ouro. E regressou aos ancoradouros , com o cheiro do pescado e do lixo, o som do água. Sentiu a ardente explosão no peito e quase cambaleou.

-Eu o conheço, Montega -disse com voz baixa e áspera-. Procuro você há algum tempo.

-Pois me encontrou -ainda que a voz soasse arrogante, Deborah pôde perceber seu suor. Isso lhe deu esperanças-. Jogue sua arma no chão.

-Não carrego armas. -afirmou Némesis, afastando as mãos do corpo-. Não preciso delas.

-Então é um idiota –afastou a mão da cintura dela e introduziu no bolso. No momento que soou o disparo Némesis se afastou para o lado.

Aconteceu num abrir e fechar de olhos. Mais tarde Deborah não estava segura de quem se moveu primeiro. Viu que a bala encravava no papel sujo da parede e no gesso, viu Némesis cair para o lado. Com uma força potenciada pela fúria e pelo medo, afundou o cotovelo no estômago de Montega.

Mais preocupado com sua nova presa que por ela, a jogou para o lado. A cabeça dela golpeou a borda da pia. Viu outro clarão. Depois a escuridão.

-Deborah. Deborah. Preciso que abra os olhos. Por favor.

Ela não queria. Explosões intensas aconteciam sob suas pálpebras. Mas a voz soava tão desesperada, tão suplicante. Obrigou-se a levantar suas pálpebras . Némesis ganhou nitidez.

Segurava sua cabeça, com cuidado. Durante um momento, só pôde ver seus olhos. «Lindos», pensou mareada. Tinha se apaixonado por eles a primeira vez que os viu. Tinha olhado através da multidão, através do esplendor de luzes, e o tinha visto.

Com um leve gemido, levou-se a mão ao calo que já começava a se formar em sua têmpora. «Devo ter sofrido uma contusão», refletiu. A primeira vez que tinha visto a Némesis se achava num beco a escuras. E havia uma faca. Igual aquela desta noite.

-Uma faca -murmurou-. Tinha uma faca.

-Está tudo bem -aliviado, segurou sua face-. Ele não teve oportunidade de usá-la.

-Pensei que tinha matado você- tomou seu rosto nas mãos e sentiu a calidez.

-Não.

-Você o matou?

Os olhos dele mudaram E preocupação para fúria.

-Não -tinha visto Deborah cair desacordada e tinha sido dominado por um terror cego, que tinha acreditado não ser mais capaz de sentir. Para Montega tinha sido fácil escapar. Mas prometeu si mesmo que eles teriam outra oportunidade. E que ele receberia sua justiça. E sua vingança.

-Escapou?

-Por enquanto.

-O conhecia -acima da dor que sentia em sua cabeça começou a pensar-. Lhe chamou pelo nome.

-Sim, o conheço.

- havia uma pistola -fechou os olhos com força, mas a dor não desapareceu-. Onde estava?

-No bolso. Ele costuma estragar seu trajes.

Era algo que Deborah analisaria mais tarde.

- Tenho que chamar à polícia -apoiou a mão no braço dele para se equilibrar e sentiu algo pegajoso e cálido nos dedos-. Está sangrando.

-Um pouco -baixou a vista onde a bala o tinha roçado.

-É uma ferida grave? – tentando ignorar as pontadas de dor em sua cabeça ela aprumou. Antes que ele pudesse responder, abriu-lhe a manga para deixar a ferida descoberta. O corte que viu lhe provocou um nó em seu estômago-. Temos de deter a hemorragia.

-Poderia fazer um torniquete com a sua camiseta.

-Não terá tanta sorte -olhou ao redor da habitação, sem deter-se na figura estendida na cama-. Não há nada que, se for usado, não causa uma infecção.

-Tente com isto -lhe ofereceu um quadrado de tela negra.

-É a primeira ferida de bala que atendo, mas imagino que teria que limpar – passou a tela pelo braço dele fazendo um torniquete.

-Depois me encarrego disso – era prazeroso ser cuidado por ela. Os dedos de Deborah eram muito suaves sobre sua pele. Tinha encontrado a um homem morto, ela mesma tinha estado a ponto de ser assassinada, mas tinha se recuperado e realizava com eficácia o que tinha que fazer. Pragmatismo. Esboçou um leve sorriso. Sim, podia ser uma qualidade muito atraente.

Ao terminar, Deborah se apoiou nos calcanhares.

-Bem, aqui se acaba o mito da invulnerabilidade -o sorriso dele quase parou seu coração.

-Lá se vai minha reputação.

Ela só podia olhá-lo, encantada enquanto os dois permaneciam de joelhos no quarto suja e pequeno. Esqueceu onde estava e quem era. Incapaz de evitá-lo, baixou a vista até a boca masculina. Perguntou-se que sabores encontraria ali. Que maravilhas seria capaz de mostrar-lhe Némesis?

Ele quase não pode respirar quando Deborah o olhar de Deborah voltou para seu olhos. Viu uma paixão abrasadora e uma aceitação que resultava pavorosa. Os dedos dela seguiam em sua pele, acariciando-a devagar.

-Sonho com você -aproximou sem encontrar resistência-. Inclusive quando estou acordado sonho com você - Com cuidado estendeu a mão para envolveu e acariciar seus seios-. Em provar seu sabor -enterrou a boca em seu pescoço, onde seu sabor e fragrância eram mais ardentes.

Apoiou-se nele, aturdida e comocionada pelos impulsos primitivos e selvagens que ferviam em seu sangue. Os lábios de Némesis eram como uma marca sobre os seus. E as mãos... Santo céu, as mãos. Com um gemido profundo e rouco, se arqueio para atrás, ansiosa e disposta.

E a face de Gage flutuou ante seus olhos.

-Não -se apartou, assombrada e envergonhada-. Não, isso não é certo.

-Não, não é -se amaldiçoou. Como tinha podido tocá-la ali? Levantou afastando-se dela-. Você não pertence a este lugar.

-E você pertence? -perguntou com voz aguda, quase à beira das lágrimas.

-Mais do que você -murmurou-. Muito mais do que você.

-Cumpria com meu trabalho. Santiago me chamou.

-Santiago está morto.

-Não estava - levou os dedos aos olhos e rezou para manter a serenidade.-Telefonou e me pediu que viesse.

-Montega se adiantou.

-Sim -baixou as mãos e o olhou-. Como? Como soube onde encontrar Santiago? Como soube que eu iria está aqui noite? Esperava por mim. Chamou-me por meu nome.

-Contou para alguém que vinha ao hotel? -perguntou, interessado.

-Não.

-Começo a pensar que é uma tola -lhe deu as costas-. Vem a um lugar como este, sozinha, para ver um homem que iria preferir colocar uma bala na sua cabeça que falar com você.

-Não teria me machucado. Estava aterrorizado. Pronto para falar. Esse é meu trabalho.

-Não tem nem idéia -voltou a olhá-la.

-Mas você sim, imagino –afastou o cabelo revolto do rosto e uma nova onda de dor a invadiu-. Oh, por que demônios não vai embora? Não preciso de ficar ouvindo isso de você. Tenho um trabalho que cumprir.

-Precisa ir para casa e deixar isso com os outros.

-Santiago não chamou a outros -retorquiu-. Chamou-me a mim, falou comigo. E se eu tivesse chegado primeiro saberia de tudo o que estou procurando. Não... -calou quando se lhe ocorreu um pensamento-. Meu telefone. Maldito seja. Me grampearam. Sabiam que esta noite viria aqui. E também o do meu gabinete. Por isso souberam que eu ia conseguir uma ordem judicial para pesquisar a loja de antiguidades -os olhos emitiram fogo-. Bem, podemos arrumá-lo de imediato –se levantou rápido e o quarto começou a dar voltas. Ele a apoiou com um braço.

-Não fará nada durante um ou dois dias -com suavidade passou um braço por trás de seus joelhos e pegou no colo.

-Entrei andando aqui, Zorro, e sairei por meus próprios pés -ainda que tivesse que reconhecer que era encantador estar em seus braços.

-É sempre tão renitente? -perguntou ao sair para o corredor.

-Sempre. Não preciso da sua ajuda.

-Vejo que se vira muito bem sozinha.

-Pode ser que eu tivesse uns problemas antes - disse quando ele começou a baixar as escadas-. Mas agora disponho de um nome. Montega. Um metro setenta, setenta quilos, cabelo, olhos e bigodes castanhos, dois dentes de ouro. Não pode ser tão difícil conseguir sua ficha.

-Montega é meu –de deteve deixando que ela visse seus olhos gelados.

-A lei não permite as vinganças pessoais.

-Tem razão. A lei não permite -a acomodou melhor ao chegar ao pé das escadas.

Algo em seu tom a impulsionou e estendeu a mão para lhe acariciar a face.

-Foi tão ruim?

-Sim foi -Deus, quanto desejava enterrar o rosto em seu cabelo e deixar que ela o apaziguasse-. Foi muito ruim.

-Me deixe ajudá-lo. Conte para mim o que você sabe e juro a você que farei tudo que posso para que Montega e quem quer que esteja por trás dele paguem pelo que lhe fizeram.

Sabia que ela tentaria. Compreendê-lo o comoveu, tanto como o assustou.

-Pago as minhas dívidas, a minha maneira.

-Maldito sejas, olha quem diz que sou renitente -se encolheu quando saíram na chuva-. Estou disposta a ser flexível com meus princípios e a trabalhar com você, formar uma equipe, e você...

-Não quero um parceiro.

-Certo, certo. Ponha-me no chão. Não vai poder me carregar por dez quarteirões.

-Não era minha intenção -mas poderia tê-lo feito. Imaginou-se levando-a a seu apartamento, a sua cama. Mas se dirigiu até a esquina, em direção ao tráfico e as luzes. Deteve-se ao chegar a borda da calçada-. Chamarei um táxi.

Levantou o braço e esperaram. Passados cinco minutos, um veículo se deteve junto a eles. Irritada como estava, teve que conter um sorriso quando a boca do motorista se abriu com incredulidade ao ver quem a acompanhava.

-Céus, é ele, de verdade? É Némesis. Ei, amigo, quer que eu te leve?

-Não, mas a senhorita sim -sem esforço, introduziu a Deborah no assento de atrás. A mão úmida lhe acariciou uma vez a bochecha, como uma recordação - Eu receitaria uma bolsa de gelo e algumas aspirinas.

-Obrigadas. Olhe, eu ainda não terminei... -mas ele retrocedeu e desapareceu na escuridão e na chuva.

 -Era ele, não? -o taxista girou o pescoço, sem prestar atenção as buzinas que recebia de outros motoristas enfadados-. O que ele fez, salvar-lhe a vida ou algo assim?

-Algo assim -murmurou ela.

-Céus. Espera só até eu contar para minha esposa -com um sorriso, subiu a bandeira do taxímetro-. Esta viagem vai corre por minha conta.

 

Grunhindo e com o corpo suado, Gage voltou a levantar os pesos. Fazia muito calor e só tinha posto um calção de ginástica. Seus músculos doíam, mas estava decidido a cumprir com sua cota de cem repetições. Concentrado em um ponto no teto, concluiu que tinha satisfação inclusive na dor.

Recordava muito bem quando tinha estado tão debilitado que mal tinha sido capaz de levantar uma revista. Houvera um tempo em que suas pernas tinham sido como borracha e ficavam sem apoio quando resolvia percorrer o corredor do hospital. Recordava a sensação de frustração e a impotência.

 

E um dia, fraco, enfermo, deprimido, tinha-se apoiado na parede de seu quarto e desejado com todas suas forças, com toda sua vontade, desaparecer.

E tinha acontecido.

Por um momento pensou que estivesse tento alucinações. Que estava ficando louco. Depois, entre aterrorizado e fascinado, tinha tentando fazer outra vez, até chegar um ponto de colocar-se na frente de um espelho para ver a si mesmo desaparecer.

Jamais esqueceria aquela manhã quando entrou uma enfermeira no quarto e passara por ele com o café da manhã reclamando sobre pacientes que não ficavam em seu leito.

E então soube o que tinha trazido consigo ao sair do coma.

Depois disso a terapia tinha se convertido em uma religião, algo a que tinha se dedicado cada grama de suas forças, cada partícula de sua vontade. Tinha se esforçado mais e mais, até que seus músculos se tonificarem e endureceram. Tinha recebido lições de artes marciais, dedicado horas levantando pesos, e castigando-se com longas maratonas na piscina.

Também tinha exercitado a mente, lendo tudo, obrigando-se a entender os múltiplos negócios que tinha herdado, dedicando um dia depois do outro a adquirir destreza nos complexo mundo da informática.

Nesse momento estava mais forte, veloz e agudo que durante os anos passados na polícia. Mas nunca mais usaria um distintivo. Jamais teria outro parceiro.

Jamais se sentiria impotente.

Soltou o ar e continuou levantando pesos quando Frank entrou com um copo grande de suco gelado.

Frank o deixou na mesa junto ao banco e o observou um momento.

-Está se esforçando de novo hoje -comentou-. O fez ontem e no dia anterior também -sorriu-. O que tem as mulheres que impulsionam aos homens a levantar objetos pesados?

-Vá para o inferno, Frank.

-Certo, é bonita -indicou, sem se ofender com o insulto-. E também inteligente, suponho, já que é advogada. No entanto, deve ser difícil pensar com sua mente quando ela o olha com aquele par de olhos azuis.

Com um último rosnado, Gage apoiou a barra nos suportes.

-Vá roubar uma carteira.

-Já sabe que não faço mais isso -na face larga apareceu um sorriso-. Némesis poderia me pegar -recolheu uma toalha limpa e a ofereceu. Em silêncio, Gage a aceitou e secou o suor da face e do peito-. Como vai o braço?

- Bem -não se importou em olhar para o atadura branca que Frank substituíra em lugar do torniquete de Deborah.

-Está se tornando lento. Nunca antes o tinham surpreendido assim.

-Quer que eu o despeça?

-Outra vez? Não -esperou com paciência enquanto Gage se centrava em realizar mais exercícios com outro aparelho-. Procuro segurança no trabalho. Se durante uma de suas saídas o matam, terei que roubar de turistas incautos novamente.

-Então tenho que permanecer vivo, os turistas já tem problemas suficientes em Urbana.

-Não teria acontecido isso se eu tivesse acompanhado você.

-Trabalho sozinho -afirmou sem interromper o exercícios-. Já conhece o trato.

-Ela estava lá.

-É ai que está o problema. Seu lugar não é nas ruas, e sim nos tribunais.

-Não a quer no tribunal, e sim na sua cama.

-Deixe-me em paz -soltou a peso com um ruído seco.

Conhecia a Gage a tempo demais para deixar que ele o intimidasse.

-Olhe, está louco por ela e por isso não se concentra, ela faz com que perca a concentração. Isso não é bom para você.

-Não sou bom para ela -tomou o copo com suco-. Sente algo por mim e também por Némesis. Isso a deixa confusa.

-Pois diga-lhe que seus sentimentos estão dirigidos para uma única pessoa e faça-a feliz.

-E como, diabos, você acha que eu devo fazer isso? – Gage apertou o corpo entre os dedos mal se contendo em despedaçá-lo contra a parede-. Convidá-la para jantar e durante a sobremesa dizer-lhe, ah, Deborah, tirando o fato de eu ser um homem de negócios e um pilar da maldita comunidade, tenho um alter ego. À imprensa gosta de chamá-lo de Némesis. E ambos estamos loucos por você. Assim sendo, quando fomos para a cama, quer que eu ponha a máscara?

-Algo parecido – Frank respondeu divertido.

Com um riso sem humor, Gage deixou o copo.

-É um caminho sem volta, Frank. Eu sei do que estou falando por que costumava ser como ela. Via as coisas em preto e branco... lei e crime- cansado de repente, olhou para as águas cintilantes da piscina-. Jamais compreenderia o que faço e por que o faço. E ela vai me odiar por mentir, porque cada vez que estou com ela, eu a engano.

-Acredito que não está sendo justo com ela. Você tem razões para levar a cabo o que faz.

-Sim -distraído, levou-se a mão à cicatriz no peito-. Tenho razões.

-Poderia conseguir que o entendesse. Se ela realmente sente algo por você, teria que compreender.

-Talvez, talvez ela entendesse, inclusive o aceitasse mesmo sem estar de acordo. Poderia até me perdoar pelas mentiras. Mas, e o resto? -apoiou a mão no banco, esperou e a observou desaparecer sobre o couro molhado-. Como lhe peço que compartilhe sua vida com uma aberração?

-Não é uma aberração -Frank soltou uma maldição violenta-. Você tem um dom.

-Sim -levantou a mão e flexionou os dedos-. Mas sou eu quem tem que viver com ela.

 

Era meio dia e quinze em ponto quando Deborah entrou na Prefeitura. Dirigiu-se para o gabinete do prefeito. Passou na frente dos bustos que mostravam os fundadores do país. O prefeito de Urbana gostava de está rodeado de tradição e tapetes vermelhos.

Deteve-se ao chegar à zona de recepção. A secretária de Tucker Fields ergueu a vista e, ao reconhecê-la, sorriu.

-Senhorita O'Roarke. O prefeito a está esperando. Deixe que eu o comunique.

Em vinte segundos foi escoltada até o gabinete. Fields se achava sentado atrás de sua escrivaninha, um homem severo e organizado, com o cabelo branco e a tez morena de uma pessoa que vivia ao ar livre. A seu lado, Jerry parecia um executivo.

Durante os seis anos que levava no cargo, Fields tinha ganhado a reputação de não temer sujar suas mãos para manter limpa a cidade.

-Nesse momento, estava sem jaqueta e com a camisa branca arregaçada, mostrando seus antebraços poderosos. Tinha a gravata frouxa e quando Deborah entrou, ele a ajustou.

-Deborah, sempre é um prazer vê-la.

-Me alegro em vê-lo, prefeito. Oi, Jerry

-Sente-se, sente-se -Fields lhe indicou uma cadeira enquanto se reclinava na sua-. Como vai o julgamento de Slagerman?

-Muito bem. Acredito que subirá ao estrado depois do recesso do meio dia.

-E está pronta para ele.

-Mais do que pronta.

-Bem, bem -lhe fez um gesto a sua secretária para que entrasse quando ela apareceu com uma bandeja nas mãos-. Pensei que, como lhe fiz perder o almoço, ao menos podia oferecer-lhe um café e alguns petiscos.

- Obrigado -tomou a xícara e manteve uma conversa formal e educada, ainda que soubesse que ele não a tinha chamado para bater um papo enquanto tomava café.

- Tomei conhecimento que ontem à noite você se divertiu um pouco.

-Sim -não tinha esperado outra coisa-. Perdemos a Ray Santiago.

-Ouvi sobre isso. É uma pena. E esse tal de Némesis, também esteve presente?

-Esteve.

-E na loja de antiguidades que explodiu na Sétima Avenida -juntou os dedos e voltou a reclinar-se na cadeira-. Poderia começar a acreditar que estão envolvidos.

-Não, não do modo que você quer dar a entender, prefeito. Se ele não tivesse aparecido ontem a noite eu não estaria aqui sentada conversando - mesmo irritada, sentia-se impulsionada a defende-lo - Não é um criminoso.., ao menos não no sentido clássico.

-No meu sentido clássico -o prefeito ergueu uma sobrancelha-, prefiro que seja a polícia que imponha a lei em minha cidade.

-Sim, certamente..

Satisfeito, Fields assentiu.

-E esse homem... -olhou alguns papéis sobre sua mesa-. Montega?

-Enrico Montega -contribuiu Deborah-. Também conhecido como Ricardo Sánchez e Enrico Toya. Um cidadão colombiano que chegou aos Estados Unidos faz uns seis anos. Suspeita-se que é o assassino de dois traficantes colombianos. Teve seu quartel central em Miami durante algum tempo, o departamento de antidrogas daquela cidade possui uma ficha bem suja sobre ele. Igualmente a Interpol. Ao que parece, é o principal traficante da Costa Oeste. Quatro anos atrás, matou um oficial de polícia e feriu com gravidade a outro -calou, pensando em Gage.

-Fez seu trabalho de casa -comentou Fields.

-Sempre gosto de ter alicerces sólidos quando vou atrás de alguém.

-Mmm. Sabe, Deborah? Mitchell a considera seu melhor promotor -o prefeito sorriu - Não é que ele tenha reconhecido isso. Mitchell não é de fazer elogios.

-Sou consciente disso.

-Todos estamos muito contentes com seu histórico, em particular com o modo em que leva o caso Siagerman. Tanto Mitch como eu concordamos que queremos que se concentre mais plenamente em seu litígio. Assim que decidimos tirá-la deste caso em particular.

-Perdão? -piscou.

-Decidimos que queremos que entrega suas anotações e a sua pasta a outro promotor.

-Tiraram-me dele?

-Só queremos ajudar uma investigação policial -ergueu uma mão-. Sobrecarregada como você está é preferível que entregue este caso a outro promotor.

-Parino era meu -deixou a xícara sobre a mesa com um golpe seco.

-Parino está morto.

Encarou Jerry, este apenas levantou a mão. Se pôs de pé lutando para controlar a vontade explodir.

-Tudo surgiu disso. Tudo. Este é meu caso. Sempre foi meu, em cada momento.

-E ele já pôs você em perigo duas vezes.

-Fiz meu trabalho.

- Outra pessoa o continuará agora, a partir de hoje -estendeu as mãos - Deborah, não se trata de um castigo, só de uma mudança de responsabilidades.

Ela moveu a cabeça e recolheu sua valise.

-Não me convenceu. Vou falar com Mitchell em pessoa -se voltou e saiu. Viu-se obrigada a manter a dignidade e fechou a porta delicadamente.

-Deb, espera -Jerry a atingiu antes que chegasse aos elevadores.

-Nem sequer tente.

-O que?

-Apaziguar e aplacar -depois de apertar o botão de chamada, voltou-se para ele-. Que demônios foi isso, Jerry?

-Como disse o prefeito...

-Não repita essa tolice. Você sabia o que iria acontecer e sabia por que ele tinha me chamado, e não me disse. Nem sequer me deu uma advertência para que pudesse me preparar.

-Deb... -apoiou uma mão em seu ombro, mas com um movimento ela a tirou- Escuta, não é que eu não esteja de acordo com tudo o que disse o prefeito...

- Sempre está.

-Não sabia. Não sabia, maldita seja -repetiu quando ela só o olhou sem expressão-. Não até as dez desta manhã. E sem importar no que você acredita, eu teria lhe dito.

Deborah parou de golpear com o punho o botão do elevador.

-Certo, desculpe-me ter descontado em você. Mas não é justo. Há algo que não me soa bem.

- Eles estiveram a ponto de matar você – a recordou-. Quando Guthrie veio esta manhã...

-Gage? -interrompeu-. Gage esteve aqui?

-Tinha um encontro às dez.

-Compreendo -com as mãos fechadas, virou outra vez para o elevador-. Isso quer dizer que ele está por trás de tudo.

-Estava preocupado, nada mais. Sugeriu...

- Faço idéia o que ele “sugeriu”-o cortou e entrou no elevador-. Isto não terminou. E pode contar para seu chefe que eu disse isso.

Teve que controlar seu mal humor ao entrar no tribunal. Os sentimentos e os problemas pessoais não tinham vez ali. Tinha duas jovens assustadas e o sistema justicial dependia dela.

 

Sentada, tomou cuidadosas notas enquanto a defesa interrogava a Slagerman. Eliminou Gage e suas atividades da cabeça.

Quando chegou sua vez de interrogar, estava pronta. Permaneceu sentada um momento, estudando a Slagerman.

-Considera-se um homem de negócios, senhor Slagerman?

-Certamente.

-E seu negócio consiste em oferecer escolta, tanto feminina como masculina, a seus clientes?

-Correto. Elegant Escorts proporciona um serviço, que tem como objetivo encontrar acompanhantes adequadas para homens e mulheres de negócios, com freqüência de fora da cidade.

Deixou-o descrever sua profissão.

-Compreendo - levantou e passou de frente ao júri-. E faz parte de... digamos que da descrição do trabalho, que alguns de seus empregados troquem sexo por dinheiro com esses clientes?

- Com certeza que não -atraente e apaixonado, estufou o peito-. Meu pessoal passa por uma seleção rigorosa e está bem treinado. É uma firme política da empresa que se, algum empregado estabelece essa classe de relação com um cliente, o resultado é a demissão imediata.

-Sabe se algum de seus empregados trocou sexo por dinheiro?

-Descobri isso agora -olhou com expressão séria para Suzanne e a Marjorie.

-Solicitou que Marjorie Lovitz ou Suzanne McRoy atendessem a algum cliente num plano sexual?

-Não.

-Mas tem noção que elas o fizeram?

Se lhe surpreendia a linha do interrogatório, Slagerman não moveu nem um músculo.

-Sim, claro. Elas reconheceram sob juramento que o fizeram.

-Sim, estavam sob juramento, senhor Slagerman. Igual a você. Golpeou um empregado seu alguma vez sr. Slagerman?

-De nenhuma maneira.

-No entanto, tanto a senhorita Lovitz como a senhorita McRoy afirmam, sob juramento, que você lhes bateu.

-Mentem -lhe sorriu.

-Senhor Slagerman, você foi ao apartamento da senhorita Lovitz na noite do dia vinte e cinco de fevereiro, aborrecido porque não podia ir trabalhar e, em sua revolta, a golpeou?

-Isso é ridículo.

-Você afirma, estando sob juramento?

-Protesto. A pergunta foi respondida.

-A retiro. Senhor Siagerman, você teve algum contato com a senhorita Lovitz ou a senhorita McRoy desde que começou o julgamento?

-Não.

-Não telefonou para nenhum das duas?

-Não.

Com um gesto de consentimento, dirigiu-se a sua mesa e recolheu alguns papéis.

-O número 555 2520 lhe soa familiar?

-Não -titubeou.

-Que estranho. É sua linha privada, senhor Siagerman. Não deveria reconhecer sua própria linha privada?

Ainda que sorrisse, Deborah pôde perceber o ódio gelado em seus olhos.

-Eu telefono dela, não para ela, de maneira que não preciso sabê-la.

-Compreendo. E você a usou na noite de dezoito de junho essa mesma linha privada para ligar para o apartamento onde vivem agora as senhoritas Lovitz e McRoy?

-Não.

-Protesto, senhorita. Este interrogatória não vai dar em lugar nenhum.

Deborah olhou para o juiz e deixou a imagem de Slagerman visível para o júri.

-Senhora, em alguns momentos eu lhe mostrarei para onde isso nos conduz.

-Protesto negado.

-Senhor Siagerman, talvez possa nos explicar por que, segundo seu extrato telefônico, por que consta um telefonema se sua linha privada para o apartamento das senhoritas Lovitz e McRoy faltando trezes minutos para as onze horas da noite do dia dezoito de junho.

-Qualquer um poderia ter usado meu telefone.

-Sua linha privada? -arqueou uma sobrancelha-. De que serve uma linha privada se qualquer um pode usá-la? Quem telefonou se identificou a si mesmo como Jimmy. Você se chama Jimmy, não é verdade?

-Eu e muitas outras pessoas.

-Lembra de ter falado comigo na noite do dia dezoito de junho?

-Jamais falei com você por telefone.

Ela sorriu com frieza e se aproximou mais da cadeira onde estava o interrogado.

- Já percebeu alguma vez, senhor Slagerman, que o para alguns homens as vozes de todas as mulheres soam igual? Do mesmo modo que para alguns homens todas as mulheres são iguais? E que do mesmo jeito, para alguns, o corpo da mulher só serve para um propósito?

-Senhorita -o advogado de defesa se colocou de pé.

- Retiro - Deborah não desviou o olhar do acusado-. Pode nos explicar, senhor Siagerman, como alguém que usa sua linha privada e seu nome telefonou para a senhorita McRoy a noite do dezoito de junho? E como, quando eu respondi, essa pessoa, que usou sua linha privada e seu nome, confundiu minha voz com a dela e ameaçou à senhorita McRoy? -aguardou um segundo-. Gostaria de saber o que disse essa pessoa?

-Pode inventar o que você quiser -o suor molhava seu lábio superior.

-Isso é verdade. Por sorte tínhamos grampeado a linha da senhorita McRoy. Aqui está a transcrição -girou uma folha-. Vou refrescar sua memória.

 

Tinha vencido. Ainda que faltasse as exposições finais, sabia que tinha vencido. Enquanto avançava pelo Palácio de justiça, pensou que agora iria se ocupar de outros assuntos.

Encontrou a Mitchell em seu gabinete, colado ao telefone. Era um homem grande que tinha sido jogador de defesa na universidade. Entre seus diplomas, tinha fotos suas com o uniforme da equipe de futebol. Era ruivo e cheio de sardas que não suavizavam em nada sua expressão dura.

Ao ver a Deborah, indicou-lhe que se sentasse. Mas ela permaneceu de pé até que terminasse de falar.

-Slagerman?

- Tenho-o crucificado -avançou um passo para a escrivaninha-.Você me vendeu.

-Bobagem.

-Como, diabos, chama o que fez? Me chamaram ao gabinete do prefeito para me tirar do caso. Maldito sejas, Mitchell. O caso é meu!

-É do estado -corrigiu ele, mordendo a extremidade do charuto sem no entanto acende-lo-. Não é a única que pode fazê-lo.

-Eu falei com Parino, eu estabeleci o trato -apoiou as palmas das mãos sobre a escrivaninha para que ficassem frente a frente-. Sou eu que tenho me dedicado a este caso.

-E tem extrapolado os limites.

-Foi você quem me ensinou que levar um caso requer algo mais que se colocar em um traje bonito e me apresentar diante do júri. Conheço meu trabalho, maldito seja.

-Ir se encontrar com Santiago a sós não foi uma conduta acertada.

- Isso é uma tolice. Ele me chamou. Pediu falar comigo. Diga para mim, o que teria feito se em vez de mim ele tivesse ligado para você?

-Isso é diferente -franziu o cenho.

-É exatamente a mesma coisa -revidou, convicta pela expressão que viu em seus olhos de que também sabia-. Se eu tivesse fazendo algo de errado ou contra a regras, esperaria que me afastassem. Mas eu não o fiz. Sou eu que estou me dedicando a este caso. E quando enfim consigo uma pista, descubro que aparece Guthrie e tanto o prefeito quanto você cedem. Segue sendo uma comunidade machista, não é verdade, Mitch?

-Não me venha com esta merda feminista - lhe apontou com o charuto-. Me preocupa o fato que tem arriscado sua vida.

- Pois vou logo dizer, Mitch, se me afastar do caso sem uma boa causa, largo tudo. Não posso trabalhar para você se não posso contar com seu apoio, se for assim, seria melhor que eu trabalhasse por minha conta e aceitasse casos de divorcio por trezentos dólares a hora.

-Não gosto de receber ultimatos.

-Eu também não gosto.

Reclinou-se no cadeira e a estudou.

-Sente-se

-E? -perguntou furiosa depois de sentar.

-Se Santiago tivesse me chamado –girou algumas vezes o charuto entre os dedos-, eu teria ido, igual você fez. Mas... -continuou antes de que ela pudesse falar-, Mas não é apenas o modo que levou o caso que me fez querer afastá-la.

-O que, então?

- Tem recebido muita atenção da imprensa por causa deste caso.

-Não entendo a relação.

-Leu o jornal desta manhã? -o agitou diante de seu rosto-. Leu as manchetes? «A Charmosa Deb percorre a Cidade nos Braços de Némesis».

- O que tem haver com o caso se um taxista gosta de ver seu nome no jornal?

- Quando um de meus promotores começa a ser associados com um vigilante mascarado, tem tudo a ver- levou o charuto à boca e o mordeu-. Não gosto da fato que, não para de topar com ele.

Ela também não gostava.

-Olhe, se a polícia é incapaz de detê-lo, não pode me considerar responsável pelo fato dele aparecer em todas as partes. Eu odiaria saber que você me tirou do caso por que um imbecil queria encher sua coluna.

Pessoalmente Mitch odiava esse tipo de repórter. E também não tinha gostado da tática de força do prefeito.

-Você tem duas semanas.

-Isso não é tempo suficiente para...

-Duas semanas, aceita-as ou esqueça. Ou me traz algo que a gente possa apresentar ao júri ou eu passarei a bola para outro, entendeu?

-Sim –levantou-se-. Entendi.

Ao sair teve que suportar as brincadeiras de seus colegas. Na porta de seu gabinete tinham colado um papel. Alguém tinha empregado um caneta colorida para traçar uma caricatura dela nos braços de um homem mascarado e musculoso. Embaixo estava escrito: As Aventuras da Charmosa Deb.

Com um rugido o arrancou, amassou e guardou no bolso. Tinha que fazer outra parada.

Manteve o dedo apertado na campainha da mansão de Gage até que Frank abriu.

-Ele está em casa?

-Sim, senhorita -se afastou quando ela entrou feito uma fera. Já tinha visto a mulheres furiosas, e teria preferido enfrentar uma manada de lobos famintos.

-Onde?

- Em seu gabinete. Será um prazer comunicar sua presença.

-Pode deixar que eu mesmo me anunciou -disse dirigindo-se para a escada.

Frank a observou com os lábios apertados. Pensou em chamar a Gage pelo telefone interno para avisá-lo, mas sorriu. A surpresa faria bem para ele.

Deborah não se incomodou em chamar. Ao entrar viu que Gage se achava atrás da escrivaninha, com o telefone na mão e um lápis na outra. Tinha ligado alguns monitores. Na frente dele se sentava uma mulher de meia idade com um bloco de notas. Ante a entrada não anunciada de Deborah, levantou-se e olhou com curiosidade a Gage.

-Voltarei a chamar -disse Gage no fone antes de colocá-lo no gancho-. Oi Deborah.

Ela jogou a bolsa sobre uma cadeira.

-Acredito que queria manter esta nossa conversa em particular -disse e ele assentiu.

-Pode transcrever essas notas amanhã, senhora Brickman. Por que não vai para casa?

-Sim, senhor -recolheu suas coisas e saiu com discrição.

Deborah enganchou os polegares nos bolsos da saia. Tinha visto essa postura no tribunal.

-Deve de ser agradável -começou- estar sentado em sua torre e dar ordens. Deve de ser fantástico. Mas nem todos nós somos afortunados. Não temos suficiente dinheiro para comprar castelos, ou aviões privados ou trajes de mil dólares. Trabalhamos nas ruas. Mas a maioria de nós somos bons em nossos respectivos trabalhos, e bastante felizes -ao falar, avançou devagar para ele-. Mas, sabe o que nos enfurece, Gage? Sabe o que nos deixa muito irritado? Que alguém numa dessas arrogantes torres meta seu rico e influente nariz em nossos assuntos. Enfurece tanto que nos faz pensar seriamente em dar um murro neste nariz abelhudo

- Devemos vestir as luvas de boxer?

-Prefiro as mãos nuas -igual fizera no escritório de Mitchell, plantou as palmas sobre a escrivaninha-. Quem, diabos, acha que é, para se apresentar diante do prefeito e pedir para que eu saia do caso?

-Fui ver ao prefeito e lhe dei minha opinião -respondeu devagar.

-Sua opinião -levantou um dos pesos de papel de ônix da mesa. Ainda que pensasse seriamente em atirá-lo contra a janela que tinha atrás dele, contentou-se com passar-lo de uma mão para outra-. E aposto que ele o escutou com muito prazer. A você e a seus trinta milhões.

Gage a observou caminhar de um lado para o outro e esperou até estar seguro de poder falar com clareza.

- É muita mais conveniente que esteja em um tribunal e não em uma palco de assassinato.

-Quem é você para dizer que é o que mais me convém? -girou furiosa-. Isso determino eu, não você. Toda minha vida me preparei para este trabalho e não penso em permitir que apareça alguém que me diga que não estou pronta para um caso que me foi atribuído -deixou o peso de papel com força sobre a mesa - Mantenha-se afastado de meus assuntos e de minha vida.

«Não», compreendeu Gage. «Não vou poder ser racional».

-Terminou?

-Não. Antes de ir-me quero que fique sabendo que não funcionou. Sigo no caso e assim penso continuar. Desperdiçou seu tempo, e o meu. E, por último, acredito que é arrogante e insuportável.

-Terminou? -repetiu, com as mãos fechadas sob a mesa.

-Pode apostar - recolheu a valise, girou caminhando em direção da porta.

Gage apertou um botão sob a mesa e os ferrolhos se bloquearam.

-Eu não - disse com serenidade.

Deborah não tinha imaginado que pudesse ficar mais furiosa. Ao voltar em sua direção uma bruma vermelha flutuava sob seus olhos.

-Abre essa porta agora ou vou denunciá-lo.

-Já disse o que tinha que dizer, advogada – levantou-. Agora é a minha fez.

-Não me interessa o que tem para dizer.

Rodeou a escrivaninha só para apoiar-se na parte frontal. Ainda não confiava em si mesmo para se aproximar dela.

-Tem todas as provas, não é verdade, advogada? Todos os seus pequenos fatos. Assim eu pouparei tempo e me declararei culpado de tudo o que me acusa.

-Então não temos mais nada a dizer.

-A promotoria não se interessa em averiguar o motivo?

Deborah jogou a cabeça atrás quando ele se aproximou. Algo na maneira dele se mover, lenta, silenciosamente, pareceu fazê-la recordar algo. Mas esta se desvaneceu rápida sendo dominada pela fúria.

-Neste caso o motivo não é relevante, os resultados sim.

-Está equivocada. Fui ver ao prefeito e lhe pedi que utilizasse sua influência para que a afastasse do caso. Mas sou culpado de algo mais... sou culpado de estar apaixonado de você - as mãos trêmulas dela caíram frouxas do lado do corpo e a valise no chão. Ainda tentou abriu a boca para falar algo, não foi capaz de articular uma palavra - É assombroso - continuou com olhos irados ao dar o passo final para ela - Que uma mulher perspicaz como você se sinta surpreendida por isso. Deveria ter percebido pelo modo que a olho, pelo modo que a toco - apoiou as mãos em seus ombros - Deveria ter desconfiado disso quando eu a beijava.

A apoiou contra a porta e roçou a boca contra os lábios dela, uma, duas vezes, antes de devorá-la.

Os joelhos de Deborah se transformaram em gelatina. Não tinha considerado que fosse possível, mas tremiam tanto que se não tivesse agarrada a ele cairia no solo. Ainda assim, tinha medo. Porque ver, sentir e perceber não se comparava a ouvir as palavras dos próprios lábios.

Gage estava perdido nela. E quanto mais se abria Deborah , mais profundo mergulhava. Acariciou e a face, o cabelo, o corpo, almejando tocá-la inteira.

Quando ergueu a face, ela viu amor e desejo. E com eles uma guerra que ela sabia não ter terminado.

-Houve noites -murmurou ele-, centenas de noite que permaneci acordado apenas esperando chegar o outro dia. Perguntava a mim mesmo se chegaria um dia que encontraria alguém que eu poderia amar, necessitar. Não importa até onde foi a fantasia, não chegou nem perto do que eu sinto por você.

-Gage - tomou o rosto entre as mãos e soube que seu coração estava perdido para ele, mas recordou que na noite anterior também tinha sentido isso por outro homem-. Não sei o que sinto.

-Sim você sabe.

-Certo, sei, mas tenho medo de sentir. Não é justo. Não estou sendo justa, mas tenho que pedir para me deixar pensar.

-Não sei se serei capaz.

-Um pouco mais de tempo, por favor. Abre a porta e me deixa sair.

-Está aberta -retrocedeu para abrir-la. Mas bloqueou sua saída no último instante-. Deborah... da próxima vez não deixarei você ir.

Ela ergueu a vista e em seus olhos viu a verdade de suas palavras.

- Eu sei.

 

O júri delongava no veredicto. Deborah dedicou esse tempo a rastrear do seu gabinete em frente ao telefone e ao computador o que Gage tinha mencionado como vínculo comum. A loja de antiguidades, Timeless, tinha pertencido a Imports Incorporated, cuja direção era um Spar vazio na parte comercial da cidade. A empresa não tinha apresentado nenhuma reclamação ao seguro pela perda e o diretor da loja tinha desaparecido. A polícia ainda tinha que localizar o homem que Parino tinha chamado de Rato.

Ao escavar tinha vindo a luz a Triad Corporation, com sede em Filadélfia. Um telefonema a Triad tinha posto a Deborah em contato com uma gravação que a informou que a linha telefônica tinha sido desconectada. Enquanto chamava o escritório do promotor de Filadélfia, introduziu todos os dados no computador.

Duas horas mais tarde, tinha uma lista de nomes, números da segurança social e o começo de uma enxaqueca.

Antes de realizar o telefonema seguinte, o telefone soou.

-Deborah O'Roarke.

-É a mesma Deborah O'Roarke que é incapaz de manter seu nome longe dos jornais?

-Cilla -ao ouvir a voz da irmã, a dor de cabeça diminuiu um pouco-. Como você está?

-Preocupada com você.

-Alguma novidade? -moveu os ombros para aliviar os músculos rígidos, depois se reclinou na cadeira-. Como está Boyd?

-Para você capitão Fletcher.

-Capitão? –empertigou-se outra vez-. Quando o promoveram?

-Ontem -o orgulho se manifestava em sua voz-. Imagino que agora que durmo com um capitão da polícia tenho que tomar cuidado.

-Diga a ele que estou orgulhosa.

-Vou dizer. Todos estamos. E agora...

- Como está os meninos? -tinha prática em alongar o momento do interrogatório.

-É perigoso perguntar-lhe a uma mãe como estão seus filhos durante as férias.., ganham do capitão e de mim por três a dois -Cilla emitiu um riso cálido- Os três membros da brigada infernal estão bem. Mas agora vamos falar de você.

-Eu estou bem. Como vai todo pela KHIP?

-Igualmente caótico. Resumindo, preferiria estar em Maui -Cilla reconheceu a tática de distração e insistiu-. Deborah, quero saber no que anda metida.

-Trabalho. De fato, estou a ponto de ganhar um caso -olhou o relógio e calculou o tempo que levava a reunião do júri-. Assim espero.

-Desde de quando você tem saído com sujeitos mascarados? -Cilla sabia que as vezes tinha que ser direta.

-Vamos, Cilla, não acredite em tudo o que lê nos jornais.

- Certo. E nem em tudo que sai pela rádio, mesmo que ontem tenhamos transmitido sua última aventura a cada uma hora. Ainda que eu não lesse os jornais de Urbana, teria chegado até a mim toda essa confusão. Apareces nas notícias de âmbito nacional, pequena. Não me enrole, quero saber que está passando. Por isso estou perguntando.

No geral era mais fácil de escapar se ela utilizasse fatos verídicos.

-Esse personagem chamado Némesis é um problema. A imprensa o glorifica... e o que é pior, nesta manhã, a apenas dois quarteirões daqui vi algumas camisas com a figura dele.

-Deborah –não ia permitir que a irmã a distraísse-, Trabalho a muito tempo em uma rádio para não ser capaz de reconhecer, pela voz, quando alguém me esconde alguma coisa, em especial a de minha irmã caçula. O que há entre vocês dois?

-Nada -insistiu, desejando que fosse verdade-. Só me encontrei com ele duas vezes durante a investigação que estou realizando. A imprensa o está endeusando.

-Percebi, Charmosa Deb.

-Oh, por favor.

-Não sei o que está acontecendo, mas o que importa é que anda metida com alguma coisa perigosa. Por que tenho que ler no jornal para saber que um maníaco tinha uma faca na garganta de minha irmã?

-É um exagero.

-Ah, isso quer dizer que ninguém ameaçou você com uma faca?

«Não importa quão bem mentisse», pensou. «Cilla o saberia».

-Não foi tão dramático como eles escreveram. E não saí ferida.

-Facas em tua garganta -murmurou Cilla-. Edifícios que explodem na sua frente. Maldita seja, Deb, não há policiais neste lugar?

-Só estava realizando um trabalho de campo. Não comece -se apressou a dizer-. Faz idéia como é frustrante ter que repetir que sabe o que está fazendo, que pode cuidar de você mesma e cumprir com o trabalho?

Cilla suspirou.

- Eu sei. Mas não posso deixar de me preocupar com você, Deborah, pelo simples fato de que está a três mil quilômetros. Eu levei anos para aceitar o que ocorreu a mamãe e papai. Se perdesse você, não poderia suportar.

-Não vai me perder. Agora mesmo, o ser mais perigoso que enfrento é o meu computador.

- Sei, sei... -sabia que discutir com a irmã não mudaria nada. E qualquer que fosse as respostas que Deborah desse, ela seguiria preocupando-se -Escuta, vi também uma foto de minha irmãzinha com um milionário. Vou ter que comprar um álbum de fotografia. Há algo que queira me dizer?

-Não sei. As coisas estão bastantes complicadas atualmente e eu não tive tempo de analisá-las.

-Há algo para analisar?

-Sim -a dor de cabeça voltava. Abriu uma gaveta para pegar um frasco de aspirinas-. Várias de coisas -murmurou, pensando em Gage e em Némesis. Isso era algo que nem sequer Cilla poderia ajudá-la. Mas poderia ajudá-la em outras coisas-. Como está casada com um capitão da polícia, o que lhe parece utilizar sua influência para me fazer um favor?

-Eu o ameaçarei de cozinhar. Ele fará qualquer coisa que eu pedir.

Rindo, Deborah recolheu uma das folhas impressas.

-Gostaria que ele comprovasse alguns nomes para mim. George P. Drummond e R. Meyers, os dois com moradia em Denver -soletrou os nomes e adicionou seus números da segurança social-. Anotou?

-Mmm -murmurou Cilla enquanto escrevia.

-E Solar Corporação, também com sede em Denver. Drummond e Meyers pertencem a junta diretiva. Se Boyd pudesse procurar no computador da polícia, me pouparia vários passos na burocracia.

-O conseguirei mediante mais ameaças. Deb, vai ter cuidado, certo?

-Claro que sim. Abrace todos por mim. Sinto saudades de todos -Mitchell apareceu na porta e lhe fez um sinal-. Tenho que ir, Cilla, o júri saiu.

Em um dos cômodos ocultos de seu lar, em um quarto enorme e cheia de máquinas, Gage estudava uma fileira de computadores. Havia certos trabalhos que não podia realizar em seu gabinete, e que preferia manter em segredo. Com as mãos metidas nos bolsos das calças, observou os monitores. Neles apareciam nomes e números.

Em um deles podia ver a informação que Deborah tinha procurado no outro lado da cidade. «Está fazendo progressos», pensou. Lentos, sem dúvida, mas se preocupava do mesmo jeito. Se ele era capaz de seguir seus passos, outra pessoa podia fazer o mesmo.

Pôs-se a digitar. Tinha que encontrar um vínculo. Quando o conseguisse, localizaria o nome do homem que tinha assassinado Jack. E se ele o encontrasse antes que Deborah, ela estaria a salvo.

Os computadores lhe ofereciam um caminho. Ou podia tomar outro. Deixou que as máquinas desempenhassem sua função, voltou-se e apertou um botão. Na parede do lado oposto da sala de teto alto apareceu um mapa enorme. Aproximou-se dele e estudou detalhes em grande escala da cidade de Urbana.

Empregando outro teclado, fez que dezenas de luzes coloridas piscassem em diversas partes da cidade. Cada uma representava um ponto importante de intercâmbio de drogas, muitos dos quais era desconhecido para a polícia.

Luzes piscavam em East End, em West, na zona exclusiva da cidade, nos bairros pobres, no distrito financeiro. Não parecia existir um padrão, ainda que sempre o tivesse. Só tinha que descobrir.

Enquanto estudava o mapa, deixou que seu olhar mirasse um ponto especifico. O apartamento de Deborah. Teria chegado já a casa? Já estaria a salvo no interior? Teria colocado o roupão azul enquanto lia os relatórios?

Pensaria nele?

Passou-se as mãos pela face. Frank tinha razão, ela interferia em sua concentração. Mas, que podia fazer a respeito? Cada tentativa que realizava para que se retirasse do caso, fracassava. Era obstinada demais.

Sorriu. Não tinha acreditado que alguma vez iria chegar a se apaixonar. E o irônico do caso era que tinha que suceder com uma servidora pública. Sabia que nenhum dos dois cederia. Mas, sem importar a disciplina que tivesse sobre corpo e mente, parecia não ter nenhuma sobre o coração.

 

Não se tratava só da beleza dela. Ainda que sempre tivesse gostado das coisas belas e tinha chegado a apreciá-las só por sua existência. Depois de sair do coma, tinha encontrado um verdadeiro consolo em rodear-se de beleza. Toda essa cor e textura depois de tanta cinza.

Não era só a mente de Deborah. Ainda que respeitasse sua inteligência. Como policial e homem de negócios, tinha aprendido que uma mente aguda era o arma mais poderosa e perigosa.

Tinha algo, um algo indefinível além de seu aspecto e sua mente que o tinha atraído. Porque era tão prisioneiro dela quanto de seu próprio destino. E não tinha idéia de como achar um solução única.

Sabia que o primeiro passo era encontrar um vínculo, um nome e fazer justiça. Quando tivesse deixado isso atrás, e o mesmo acontecesse com Deborah, podia existir a possibilidade de um futuro.

A afastou da mente, estudou as luzes e se inclinou sobre um computador e pôs-se a trabalhar.

Sustentando uma caixa de pizza, uma garrafa de vinho e uma valise cheia de papéis, Deborah saiu do elevador. Enquanto se perguntava como poderia pegar as chaves, olhou em direção à porta do apartamento. Um cartaz com letras de cores estava escrito: Felicidades, Deborah.

Com um sorriso pensou que era obra da senhora Greenbaum. Ao voltar-se para a porta de sua vizinha, Lil a abriu.

-Ouvi as notícias no jornal das seis horas. Acabou esse tormenta miserável - se ajustou o baixo da camiseta-. Como se sente?

-Bem. Sinto-me bem. O que acha de celebramos com uma pizza?

-Me convenceu -fechou a porta de sua casa e cruzou o corredor descalça – Imagino que tenha percebido que o ar condicionado voltou a estragar.

-O percebi na sauna do elevador.

-Acredito que nesta ocasião deveríamos mobilizar todos os arrendatários –olhou-a com expressão astuta-. Em particular se nossa porta-voz é uma promotora imbatível.

-Sempre é você nossa porta-voz -comentou Deborah ao preparar o vinho-. Mas se não arrumar nas próximas vinte e quatro horas, chamarei o proprietário e pressionarei -remexeu no bolso-. Se puder encontrar as chaves.

-Tenho a cópia que me deu -meteu a mão no bolso de suas amplas calças e sacou um molho de chave- Deixe-me abrir.

-Obrigada –já dentro, Deborah deixou a pizza numa mesa-. Vou trazer copos e pratos.

Lil levantou a tampa e com satisfação viu que tinha todos os ingredientes.

-Sabe, uma jovem bonita como você deveria celebrar com um jovem atraente em vez de com uma anciã.

-Que anciã? -disse Deborah da cozinha, o que provocou o riso de Lil.

-Muito bem, então com uma mulher um pouco acima da meia idade. O que me diz desse Gage Guthrie?

-Não o imagino comendo pizza e bebendo vinho barato -regressou com a garrafa e duas copas, com pratos e guardanapos de papel sob um braço-. Ele combina mais com, caviar.

-E o que isso tem de ruim?

-Nada -franziu o cenho-. Nada, mas estava com vontade de comer pizza. E depois de tudo, tenho de trabalhar.

-Querida, você não descansa nunca?

-Tenho uma data limite -comentou, e descobriu que ainda estava irritada. Encheu as duas copos e lhe ofereceu um a sua amiga-. Pela justiça -brindou-. A dama mais formosa que conheço.

Ao sentar-se cada uma com uma porção de pizza na mão, ouviram a campainha da porta. Deborah lambeu molho dos dedos e foi abrir. Viu uma enorme cesta de rosas vermelhas que pareciam ter pernas.

-Entrega para Deborah O'Roarke. Tem algum lugar onde eu possa deixar isso, senhorita?

-Oh... sim. Ali – ficou nas pontas dos pés e viu a cabeça do repartidor acima das flores-. Na mesinha.

Enquanto assinava o recibo de entrega, viu que as flores ocupavam toda a mesa

-Obrigado -procurou uma nota na carteira.

-Bem? -quis saber Lil quando voltaram a ficar a sós-. Quem as enviou?

Ainda que já soubesse, Deborah recolheu o cartão.

 

Bom trabalho, promotora.

Gage

 

Não pôde evitar o sorriso que apareceu em seus lábios.

-São de Gage.

-Esse homem sabe como fazer as coisas -os olhos de Lil brilharam por trás dos óculos. Não tinha nada que gostasse mais do que um bom romance a não ser se fosse uma boa manifestação de protesto-. Deve ter pelo menos umas cinco dúzias.

-São lindas - guardou o cartão no bolso-. Suponho que terei que ligar e agradecer.

-No mínimo -Lil deu uma mordida à pizza-. Por que não o faz agora, enquanto ainda está fresco na mente? -e enquanto ela pudesse ouvir.

Deborah titubeou, envolvida na fragrância das flores. «Não», concluiu com um movimento de cabeça. Se o chamava nesse momento, cm as defesas baixas ainda pelo gesto, poderia fazer ou dizer algo precipitado.

-Depois -decidiu-. O chamarei depois.

-Ganha tempo -comentou Lil enquanto mastigava.

-Sim -sem sentir envergonha de reconhecer, voltou a se sentar. Durante um momento comeu em silêncio, depois recolheu o copo de vinho-. Senhora Greenbaum -começou com o cenho franzido-, você esteve casada duas vezes.

-Até o momento -respondeu com um sorriso.

-Amou os dois?

-Completamente. Eram bons homens -seus olhos pequenos e agudos adquiriram uma expressão juvenil e sonhadora-. Em ambas ocasiões pensei que ia a ser para sempre. Tinha mais ou menos a sua idade quando perdi meu primeiro marido na guerra. Só passamos uns poucos anos juntos. O senhor Greenbaum e eu tivemos mais sorte.

-Sinto pelos dois. Já se perguntou alguma vez.., imagino que é uma pergunta incomum, mas já se perguntou o que teria acontecido se os tivesse conhecido ao mesmo tempo.

-Teria sido um problema -respondeu as sobrancelhas, intrigada pela idéia.

-Compreende o que quero dizer. Amou os dois, mas se eles tivessem aparecido em sua vida ao mesmo tempo, não poderia amar os dois.

-Não há como saber que truques pode realizar o coração.

-Mas não pode amar dois homens do mesmo jeito ao mesmo tempo –adiantou-se e em seu rosto ficou refletido o conflito que a dominava. –E se tivesse amado? Ou acreditasse que estivesse amando ambos. Como estabelecer um compromisso com um sem ser infiel ao outro?

-Ama Gage Guthrie? -perguntou Lil passado um momento, servindo mais um pouco do vinho.

-É possível -Deborah olhou a cesta que transbordava de flores-. Sim, acredito que amo.

-E ama outro também?

Com o copo entre as mãos, Deborah levantou e caminhou pela sala.

-Sim, mas é uma loucura não é verdade?

«Não», pensou Lil. Nada que tinha a ver com amor podia ser uma loucura. E ela sabia que a situação podia ser deliciosa e excitante para algumas pessoas, mas não para Deborah. Para ela seria uma situação dolorosa.

 -Está segura que em ambos o caso não é sexo e sim amor?

-Pensei que era apenas algo físico -suspirou e voltou a sentar-. Queria que fosse assim. Mas pensei muito a respeito e tratando de ser sincera comigo mesma, e sei que não o é. Inclusive os misturo em minha cabeça.

Não apenas comparando-os, mas também tratando de convertê-los em um só homem, para que tudo fosse mais simples -bebeu outro gole-. Gage disse que me ama e eu acredito, não sei o que fazer.

-Faça o que seu coração mandar -disse Lil-. Sei que isso soa utópico, mas as coisas verdadeiras sempre o são. Deixe que sua mente ocupe um segundo plano e segue seu coração, geralmente ele indica a direção certa.

 

Às onze horas, Deborah assistiu a última edição de notícias. Não foi desagradável ver que sua atuação no caso Slagerman fosse a reportagem principal. Observou sua própria imagem dando uma declaração breve nos degraus dos tribunal, franzindo um pouco o cenho quando Wisner se adiantou para formular suas tolices habituais sobre Némesis.

O jornal aproveitou esse momento para narrar as últimas façanhas de Némesis: o roubo que frustrou numa joalheria, o ladrão que capturou, o assassinato que tinha impedido.

-É um homem ocupado -murmurou, bebendo-se o resto do vinho. Se a senhora Greenbaum não tivesse passado quase toda a noite com ela, teria se contentado em beber um copo de vinho em vez de quase meia garrafa.

«Bem, amanhã é sábado», encolheu-se de ombros. Poderia dormir um pouco mais antes de ir ao gabinete. Ou, se tivesse sorte, descobriria algo essa mesma noite. Mas não faria nada se continuasse sentada em frente ao televisor.

Esperou até ouvir parte do tempo, que prometia mais calor, muita umidade e possibilidades de tempestades de verão. Desligou o televisor e foi até o dormitório para sentar-se ante sua escrivaninha.

Tinha deixado a janela aberta com a vã esperança de capturar uma brisa fresca. Noites quentes. Necessidades ardentes.

Aproximou-se da janela para respirar e mitigar o anseio que nem sequer o vinho tinha aplacado. Mas ele seguia sendo uma palpitação profunda e lenta. «Estaria lá fora?», perguntou-se levando-se uma mão à têmpora. Nem sequer sabia em que homem pensava. E sabia que seria melhor se não pensasse em nenhum.

Acendeu o lustre da escrivaninha, abriu uma pasta e olhou o telefone.

Tinha ligado para Gage há uma hora, para que um taciturno Frank respondesse que o senhor Guthrie não se encontrava. Não podia voltar a ligar. Daria a impressão de que controlava seus movimentos. Algo que não tinha direito, em especial por que fora ela quem solicitara tempo e espaço.

Reafirmou que era isso que desejava. Que precisava. E pensar nele não a ajudaria a encontrar as respostas enterradas em alguma parte dos papéis que tinha sobre sua mesa.

Começou a lê-los outra vez, fazendo anotações num bloco de papel branco. Enquanto trabalhava, o tempo passou e o som de um trovão soou na distância.

 

Não deveria está ali. Sabia que não era certo. Mas enquanto percorria as ruas, os passos tinham o aproximado mais e mais ao apartamento de Deborah. Banhado em sombras, ergueu os olhos e viu a luz em sua janela. Esperou na noite calorosa, dizendo a si mesmo que, quando a apagasse, partiria.

Mas ela permaneceu acessa, uma luz fraca, mas constante.

Tentava convencer a si mesmo que só queria vê-la, falar com ela. Era verdade que precisava averiguar quanto Deborah sabia, estava a par dos fatos. Mas os fatos não revelavam a intuição nem as suspeitas dela. Quanto mais ela se aproximasse das respostas , mais perigo ela correria.

Mais do que desejava amá-la, precisava protegê-la.

Mas não foi isso o que o impulsionou a cruzar a rua e a subir pela escada de incêndios. O fez porque não conseguiu se conter.

Viu-a através da janela aberta. Se encontrava sentada em sua escrivaninha, com a luz dirigida sobre os papéis que repassava. Um lápis se movia com velocidade em sua mão.

Podia sentir seu odor. Sua fragrância tentadoramente sexy chegava até ele como um convite. Ou um desafio.

Só podia ver seu perfil, a curva de sua face e mandíbula, a forma de sua boca. Levava o curto robe azul frouxo e isso lhe permitia vislumbrar a longa coluna branca de seu pescoço

Enquanto a contemplava, ela ergueu uma mão para esfregar-se a nuca. A bata se moveu, subindo por suas coxas, afastando-se um pouco quando cruzou as pernas e voltou a concentrar-se no trabalho.

Deborah leu a mesma frase três vezes antes de dar conta de que sua concentração tinha evaporado. Esfregou os olhos com a intenção de começar de novo. E todo o corpo ficou rígido. Sentiu o calor percorrer sua pele. Devagar, girou o corpo e o viu.

Achava-se no interior do quarto, longe da luz. O coração começou a bater de forma transloucada... tanto pela comoção como pela expectativa.

-Um descanso em sua luta contra o crime? -perguntou, com a esperança que o tom agudo da voz ocultasse o tremor-. Segundo as notícias das onze, Esteve bastante ocupado.

-E você também.

-E ainda estou ocupada –afastou o cabelo e descobriu que sua mão não estava firme-. Como entrou? – fez um gesto de assentimento enquanto olhava para a janela-. Tenho que lembrar de fechá-la

-Não teria importância. Não depois de ver você.

Ela sentiu todo seu corpo tremer. Levantou, dizendo que isso adicionaria mais autoridade.

-Não vou permitir que isto continue.

-Não pode deter -avançou para ela-. Eu também não –mirou os olhos nos papéis da escrivaninha-. Não ouviu meus conselhos.

-Não. Nem penso em ouvir. Esclarecerei todas as mentiras e percorrerei todos os becos sem saída até que encontre a verdade. Depois concluirei meu trabalho -o desafiou com um olhar-. Se quer me ajudar, conte-me o que sabe.

-Sei que a desejo – segurou o cinto do roupão para imobilizá-la Nesse momento Deborah era sua única necessidade, sua única busca, seu único alimento-. Agora. Esta noite.

- Deve ir em embora -não pôde fazer nada para impedir o arrepio de seu próprio desejo. A integridade lutou contra a paixão-. Deve ir embora.

-Sabe quanto a desejo? -perguntou com voz áspera colando seu corpo ao dele- Não há nenhuma lei que não quebrasse, nenhum valor que não sacrificasse por você. Compreende este tipo de necessidade?

-Sim – pois era assim mesmo que se sentia neste momento-. Sim. Mas é errado.

-Certo ou errado, será esta noite -com um movimento da mão, empurrou a luminária para o chão, onde ela se espatifou. Quando o quarto foi tomado pela escuridão a pegou no colo.

-Não podemos -mas seus dedos se fincaram nos ombros dele, cancelando a negativa.

-Mas faremos.

Quando Deborah moveu a cabeça, a boca de Némesis se apoderou da sua, febril, poderosa e sedutora. O poder que irradiou dela a deixou aturdida e impotente para resistir a necessidade que queimava em seu interior. Suavizou os lábios sem ceder, separou-os sem se entregar. E enquanto se lançava às cegas ao beijo, sua mente ouviu o que tinha tentado dizer-lhe seu coração.

A pressionou contra o colchão enquanto a boca impaciente percorria sua face e as mãos arrancavam a bata que a cobria. Embaixo estava tal como ele tinha sonhado. Ardente, suave e nua. Tirou suas luvas para permitir sentir o que havia ansiado.

Como um rio Deborah fluiu sob suas mãos. Poderia ter se afogado nela. Ainda que estivesse ardendo por saber o que fazia sua, contentou com desfrutar da textura de pele, do sabor, do aroma. Na noite abrasadora, mostrou-se implacável.

Seguia sendo uma sombra, mas ela o conhecia. E o desejava. Descartada toda racionalidade, agarrou-se a ele e seu lábios o procuraram enquanto rolavam na cama. Desesperada por senti-lo contra si, de sentir as batidas selvagens de seu coração, levantou a camisa. Ouviu palavras sussurradas sobre seus lábios, sobre seu pescoço, seus seios, enquanto com frenesi o despia.

Então ele ficou tão vulnerável quanto Deborah. O trovão soou e o relâmpago clareou a noite sem lua. Na atmosfera boiava a fragrância das rosas e da paixão. Ela tremeu, com a cabeça girando devido aos prazeres que ele a mostrava.

Tudo foi calor, desejo, glória. Inclusive em seu pranto, colou-se a ele e exigiu mais. Mas antes de que ela pudesse exigir, Némesis lhe deu, enviando-a outra vez às alturas, onde a esperavam deleites escuros e secretos. Gemidos e sussurros. Carícias apaixonadas. Anseios insaciáveis

Quando pensou que sem dúvida enlouqueceria, penetrou-a. E então imperou a loucura. Entregou-se com toda sua força e ansiedade.

-Te amo -o abraçou enquanto pronunciava as palavras.

Essas palavras o encheram tal como ele a enchia a ela. Comoveram-no enquanto seus corpos se moviam. Enterrou a face no cabelo de Deborah e sentiu as unhas em suas costas. Experimentou sua própria e aterradora libertação, depois a dela ao gritar seu nome.

 

Jaziam na escuridão. O rugido em sua cabeça tinha diminuído gradualmente até que o único som que ouvisse fosse o do tráfico na rua e a respiração profunda de Deborah. Seus braços já não o apertavam. Nesse momento estava quieta.

Devagar, aborrecido por sua própria debilidade, afastou-se dela. Deborah não se moveu, não falou. Na escuridão, aproximou uma mão da sua face e a encontrou úmida. Odiou essa parte de si mesmo que a tinha provocado dor.

-A quanto tempo sabe?

-Não sabia até esta noite -antes que ele pudesse voltar a tocá-la, girou o corpo e tateou a escuridão a procura do robe-. Pensou que eu não ia dar conta que era você quando o beijasse? Não percebe que, não importando quanto escuro estivesse e a confusão que provoca em mim, eu ira saber quando acontecesse?

- Não, não pensei.

-Não? -acendeu o lâmpada da mesinha e o olhou-. É inteligente demais Gage. Inteligente demais para não ter pensado nisso.

Observou-a. Tinha o cabelo revolto e a pele ainda acalorada pelo contato íntimo. Em seus olhos tinha lágrimas.

-Talvez eu soubesse. Talvez não quisesse que tivesse importância – aprumou-se no leito e estendeu a mão para ela-. Deborah...

O esbofeteou duas vezes.

-Maldito, mentiu para mim. Me fez duvidar de mim mesma, de meus valores. Sabia, tinha que saber, que eu estava me apaixonando por você -com um riso apagado deu-lhe as costas-. Por vocês dois.

-Por favor, me escute –quando a tocou no ombro ela o afastou com brusquidão.

-Não aconselho que me tocar neste instante.

- Está bem -fechou a mão-. Apaixonei-me tão rapidamente por você que não pude pensar. A única coisa que sabia era que precisava de você e queria que estivesses segura.

-De modo que vestiu uma máscara e saiu pela noite para me proteger. Não vou lhe agradecer por isso. Por nada.

O tom de voz triste, quase apagado o fez sentir um início de pânico.

-Deborah, o que aconteceu aqui esta noite...

-Sim, o que aconteceu aqui. Para isso eu lhe servi – mostrou a cama-. Mas não para o resto. Não para me dizer a verdade

-Não. Não podia, porque sei o que você pensa sobre aquilo que faço.

- Essa é uma outra história, não? – secou suas lagrimas. A fúria dava lugar ao infortúnio-. Se sabia que precisaria mentir, por que não ficou longe de mim?

 Tinha mentido para ela e por causa disso a magoado. Nesse momento ele só podia oferecer a verdade e esperar que isso pudesse ajudar a curar suas feridas.

- Em quatro anos, você é única coisa que eu não consegui superar. Em quatro anos, você foi a única coisa que precisei mais do que a mim mesmo. Não espero que você entenda ou que o aceite, mas sim que acredite em mim.

-Não sei em que acreditar. Gage, desde que te conheço me senti rasgada em duas direções diferentes, acreditando que estava apaixonada por dois homens diferentes. Mas era somente você. Não sei o que fazer -suspirou e fechou os olhos-. Não sei o que é certo.

-Te amo, Deborah. Não há nada mais correto que isso. Me de oportunidade para demonstrar e tempo para explicar o resto.

-Não parece que eu tenha muita opção. Gage, não posso me impedir... -abriu os olhos e pela primeira vez pareceu perceber as cicatrizes que tinha em peito. A dor a atravessou e quase a pôs de joelhos.

 -Não quero compaixão, Deborah -comentou com o corpo rígido.

-Cale a boca- aproximou dele e envolvendo-o com seus braços-. Me abraça -moveu a cabeça quando ele o fez com carinho-. Não, mais forte. Poderia tê-lo perdido há anos sem ter desfrutado da oportunidade de estar com você –quando levantou a cabeça nos seus olhos novas lágrimas caiam -. Não sei que fazer. Mas nesta noite quero apenas que esteja aqui. Ficará?

-O tempo que quiser -lhe deu um beijo nos lábios.

 

Deborah sempre despertava alerta para os sons da manhã. Mas não foi o ruído do carro que a fez que abrisse os olhos, e sim o leve o glorioso odor do café. O relógio marcava dez e meia.<<Dez e meia!>> Lutou para sentar-se e descobriu que estava sozinha na cama.

Esfregou os olhos e pensou em Gage. Havia se encarregado do café da manhã novamente? Haveria panquecas? Bolos frescos? Frutas e champanhe? Daria qualquer coisa por um taça de café e um biscoito duro qualquer.

Se levantou e se agachou para pegar a roupão que estava jogado no chão. Sob ele viu um tecido negro. O reconheceu e voltou a se sentar na cama.

Uma máscara. A apertou na mão. Não havia sido um sonho. Tudo era real. Ele havia aparecido aquela noite e durante toda a madrugada tinham feito amor. Suas duas fantasias. O encantador homens de negócios e o arrogante desconhecido de negro. Eram um homem só. Um amante.

Gemeu e afundou o rosto entre as mãos. O que iria fazer? Como, demônios, iria manejar aquela situação? Como mulher e como promotora?

O amava. E ao amá-lo traía seus princípios. Se revelasse seu segredo, trairia seu coração. E como poderia amá-lo sem compreende-lo?

Mas o fazia, e era impossível que seu coração fizesse o caminho inverso, agora.

Decidiu que teriam que conversar. Como calma e sensatez. Rezava para que encontrasse forças e palavras adequadas. Não bastaria dizer que desaprovava seu comportamento. Ele já sabia disso. Não bastaria dizer que sentia medo. Isso só o impulsionaria a tranqüilizá-la. De algum modo, teria que falar algo para convencê-lo de aquele caminho que tinha escolhido era além de perigoso, errado.

Quando o telefone soou, soltou uma praga. Vestiu o roupão rapidamente e atravessou a cama para responder.

- ...irmã de Deborah- a voz de Cíntia mostrava diversão e curiosidade- Como está?

- Bem, obrigado- respondeu Gage- Deborah está dormindo. Quer que eu...?

- Estou aqui- suspirou e afastou o cabelo revolto – Oi Cilla.

- Oi.

- Adeus Cilla- Deborah voltou a ouvir a voz de Gage. Reinou um momento de silêncio vibrante.

- Hum..suponho que telefonei em um momento ruim.

- Não. Estava me levantando. Não é um pouco cedo demais em Denver?

- Com três crianças, é como se fosse meio dia. Bryant, tire esta bola de dentro de casa. Fora! Ninguém chegue perto da cozinha! Deb?

- Sim.

- Sinto muito. Boyd fez a pesquisa sobre os nomes e pensei que você gostaria de ser informado de imediato.

- Ótimo- pegou um lápis.

- Me deixe colocá-lo na linha.- ouve um ruído- Não, deixe-me pegá-lo. Deus do céu, Boyd. O que Keenan tem espalhado pela cara? – ouviu algumas risadas, logo o estrondo o telefone caindo no chão e o som de pés correndo- Deb?

- Congratulações Capitão Fletcher.

- Obrigado. Imagino que Cilla já lhe contou. Como vai tudo?

Baixou o olhar para a máscara que segurava entre as mãos.

- Não estou bem segura- sorriu- As coisas parecem bem normais por ai.

- Aqui nunca está nada normal. Ei Allison!, não deixe esse cachorro...- outro estampido e mais latidos- Tarde demais.

- Boyd, agradeço sua rapidez.

- Não é nada. Parecia importante.

- E é.

- Bom, não consegui muita coisa.. George P. Drummond era um forasteiro com um negócio próprio...

-Era?

-Sim. Morreu há três anos. Por causas naturais. Tinha oitenta e dois anos e nenhuma relação com a Solar Corporação.

-E o outro? –fechou os olhos.

-Charles R. Meyers. Professor de ciências e treinador de futebol. Faleceu há cinco anos. Ambos estavam limpos.

-E Solar Corporação?

-Até agora não tenho descoberto muita coisa. O lugar que você disse a Cilla não existe.

-Eu imaginei. Cada vez que viro um esquina nesse assunto eu topo com um beco sem saída.

- Conheço a sensação. Investigarei mais. Lamento não ter sido de muita ajuda.

- Mas é claro que ajudou.

- Dois sujeitos mortos e uma localização falsa? Não é muita coisa. Deborah, Pode me dizer se esse assunto tem algo haver com seu fantasma mascarado?

- Extra oficialmente, sim- fechou a mão sobre o tecido negro.

- Imagino que Cilla já lhe disse, mas tenha cuidado, certo?

- Eu terei.

- Ela quer falar com você de novo- murmúrios e risinhos- Algo a respeito do sujeito que atendeu seu telefone- Boyld voltou a rir e Deborah pode ver-los lutando pelo telefone.

- Só quero saber...- Cilla disse ofegante- Boyld, para com isso. Vai dar comida ao cachorro ou algo assim. Só quero saber- repetiu- quem é o proprietário da voz sexy e maravilhosa.

- Um homem.

- Eu imaginei que sim. Esse homem tem nome?

- Sim.

- Bem,quer que eu adivinhe?Phil? Thomas? Maximilian?

- Gage- murmurou rindo.

- O milionário? Boa escolha.

-Cilla...

- Eu sei, eu sei. É uma mulher adulta e sensata com uma vida própria. Não direi mais nenhuma palavra. Mas, está...?

- Antes que eu diga alguma coisa, quero adverti-la que eu não tomei café ainda.

- Certo. Pois quero saber e pronto. Preciso dos detalhes.

- Vou te dar detalhes quando eu os tiver. Entrarei em contato.

- Espero que sim.

Desligou e sentou por um momento. Parecia que voltava a linha de saída. Tinha que raciocinar. Tinha prioridades, e por isso levantou-se e seguiu o aroma do café.

Gage usava uma calça e estava descalço e com a camisa desabotoada. Não o surpreendeu encontrá-lo na cozinha e sim o que ele fazia ali.

- Está cozinhando?- perguntou da porta.

- Oi- voltou-se- Sinto pelo telefone, pensei que poderia responder antes que você acordasse.

- Sem problemas. Estava...acordada - sentido-se incomodada, tirou um copo de do armário e serviu-se do café - Era minha irmã.

- Sim- apoiou as mãos nos ombros dela e as deslizou até as suas costas ao longa da espinha. Quando Deborah ficou rígida, sentiu como se uma navalha o atravessasse.- Preferia que eu não estivesse aqui?

- Não sei- bebeu um pouco do café sem se voltar- Suponho que tenhamos que conversar – mas talvez não fosse capaz de fazê-lo- O que preparou?

- Torradas francesas. Não tinha muito na geladeira, assim eu fui até o supermercado da esquina comprar algumas coisas.

- Você levantou a quanto tempo?

- Há três horas.

- Não dormiu muito- comentou quando ele voltou a mexer na cozinha.

Ele a observou.<< Está se contendo>>, pensou<< Mas a mágoa e a fúria ainda estão ali>>

- Não preciso de muito sono...agora não- adicionou os ovos ao leite em uma tigela - Passei a maior parte de uma ano dormindo. Depois de meu regresso, me satisfaço com quatro horas de sono.

- Imagino que isso seja uma vantagem me relação a seus negócios...ambos.

- Sim- continuou misturando os ingredientes e depois introduziu as torradas na tigela - Podemos dizer que meu metabolismo mudou...entre outras coisas- as torras encharcadas crepitaram ao serem mergulhadas no óleo quente- Quer que eu me desculpe por ontem a noite?

- Vou pegar alguns pratos- comentou ela depois de algum momento.

- Perfeito- sussurrou uma maldição- Estará pronto em um minuto.

Esperou até que se sentassem juntos de frente a uma janela. Ela não disse nada enquanto brincava com o café da manhã. Seu silêncio e sua expressão abatida o perturbavam mas que cem acusações

- É sua vez- murmurou.

- Eu sei- murmurou.

- Não vou me desculpar por ter me apaixonado por você ou por haver feito amor com você a noite passada. Estar com você ontem foi a coisa mais importante que aconteceu em minha vida- esperou observando-a- Não acredita em mim, não é?

- Não sei bem em que acreditar, nem se posso acreditar- fechou as mãos em torno do copo- Você mentiu para mim, Gage, desde do início.

- Sim- conteve a necessidade de tocá-la- As desculpas na realidade não são importantes. Menti deliberadamente e, se fosse possível, teria continuado a mentir.

- Sabe como sinto ao saber disso?- levantou-se da cadeira e cruzou os braços.

- Imagino que sim.

- Não pode- magoada moveu a cabeça de um lado para o outro- Me fez duvidar de mim mesma em níveis muito básicos. Eu estava me apaixonando por você...vocês dois...e me sentia envergonhada. Sim, agora posso ver como sou uma tonta de não ter percebido antes. Meus sentimentos eram exatamente os mesmos em consideração a dois homens. Olhava para você e pensava nele. Olhava para ele e pensava em você - levou os dedos até os lábios. As palavras saiam com muita rapidez - Aquela noite no quarto de Santiago, ao recuperar a consciência e me encontrar abraçada com você, olhei em seus olhos e recordei a primeira vez que o vi no salão de Baile do Palácio Stuart. Pensei que estava ficando louca.

- Não fiz isso para magoá-la, e sim para proteger você.

- De que?- exigiu- De mim? De você? Cada vez que me tocava, eu...- lutou para acalmar-se. Depois de tudo, esse era o problema. Suas emoções - Não sei se posso perdoa-lo, Gage, ou voltar a confiar em você. Inclusive amando você, não sei.

Ele permaneceu onde estava, sabendo que , se tentasse se aproximar ela resistiria.

- Não posso desfazer o que está feito. Não queria você em minha vida, Deborah. Não queria ninguém que pudesse me deixar vulnerável a cometer um erro- pensou em seu dom, em sua maldição- Nem sequer tenho direito de pedir que me aceite como sou.

-Com isto? -sacou a máscara do bolso Do roupão-. Não, não tem direito de me pedir que aceite isto. Mas é exatamente o que faz. Você me pede que eu lhe ame. Que eu fecha os olhos para aquilo que você faz. Entreguei minha vida à lei. E você supõe que eu não deva dizer nada enquanto você a subestima?

-Estive a ponto de perder minha vida pela lei –seus olhos escureceram-. Meu colega morreu por ela. Jamais a subestimei.

-Gage, isso não pode uma questão pessoal.

- Besteira que não pode. Tudo é pessoal. Não importa que leis o seus livros de direito tem escrito. Sem importar que precedentes ou descoberta faça. No fim, tudo se reduz a pessoas. Sabe disso. Sente isso. Eu a vi trabalhar.

-Dentro da lei -insistiu-. Tem que saber que, o que você faz não é certo, sem mencionar que é perigoso. Deve parar.

-Nem sequer por você – ele replicou rápido.

-E se for até a Mitchell, ao comissário de polícia, ou a Fields?

-Então farei o que for necessário. Mas não vou parar.

-Por que? -se aproximou dele com sua máscara apertada entre as mãos -. Maldição, por que?

-Porque não tenho escolha -se se levantou a segurou seus ombros com força antes de soltá-la e lhe das as costas- Não há nada que possa fazer para mudar o que sou. Nada.

-Sei o que aconteceu entre você e Montega -quando ele virou para olhá-la, viu a dor em sua face-. Sinto muito Gage, sinto muito o que aconteceu. Sinto por você e sinto por seu parceiro. Prenderemos Montega, juro. Mas vingança não é a resposta que você procura. Não pode ser.

-O que me aconteceu há quatro anos, mudou a minha vida. Não é um fantasia. É uma realidade -apoiou a mão na parede e a observou, depois voltou a colocá-la no bolso-. Leu os relatórios sobre o que aconteceu na noite que assassinaram Jack?

-Sim, os li.

-Todos os fatos -murmurou-. Mas não toda verdade. Figurava no relatório que eu admirava? Que tinha uma linda esposa e um filho que gostava de montar em um triciclo vermelho?

-Oh, Gage -não pôde evitar que seus olhos se enchessem de lágrimas nem de estender os braços, mas ele os apartou.

-Figurava no relatório que tínhamos entregado quase dois anos de nossas vida para fechar esse caso? Dois anos trabalhando com a classe de lixo que tem grandes iates e mansões comprados com o dinheiro que ganham vendendo drogas aos traficantes pequenos, que pagam seus alugueis vendendo-as nas ruas? Dois anos para infiltrar em sua rede. Porque éramos polícias e acreditávamos que poderíamos fazer uma diferença -apoiou as mãos tensas no respaldo da cadeira. Deborah só conseguia olhá-lo-. Quando terminasse o caso, Jack ia tirar umas férias. Não para ir a algum lugar exótico, e sim para ficar na sua casa, cortar a grama, arrumar uma piscina, passar um tempo com Jenny e seu filho. Isso é o que ele me dizia. Eu pensava em ir para Aruba e ficar lá umas duas de semanas, mas Jack não tinha sonhos grandes. Só normais.

Levantou o olhar e observou pela janela, mas não viu a luz do sol nem o tráfico que congestionava as ruas. Sem esforço, remontou ao passado.

-Deixamos o carro. Tínhamos uma valise cheia de notas marcadas, respaldo policial e uma fachada sólida. O que poderia sair de errado? Estávamos preparados. Nós íamos nos reunir com o chefe. Podíamos sentir o cheiro da maresia, ouvir como rompia contra os ancoradouros. Eu suava, mas não pelo calor, mas sim porque sentia que alguma coisa não estava certa.Mas não dei atenção aos meus instintos. Então Montega...

 

Gage pôde vê-lo, de pé me meio as sombras do cais, o ouro cintilando em seu sorriso

« Adeus policiais».

-Matou a Jack antes que eu pudesse sacar minha arma. Eu fiquei paralisado. Só um instante. O tempo entre uma batida e outro do coração. Apenas um pequeno instante, mas foi o suficiente. Ele me alvejou.

 

Deborah lembrou da cicatriz em seu peito e mal pode respirar. Tinha visto seu parceiro ser assassinado. Tinha sofrido naquele momento, aquele instante de tempo em que também pode ver sua morte iminente. A dor aguda que a percorreu foi por Gage.

-Não. Quem bem faz a você recordar tudo isso? Não poderia ter salvado Jack. Não importa o quanto rápido você tivesse sido naquele momento, não poderia ter salvo a vida de Jack.

-Não naquele momento- ele disse devagar- Naquele momento, naquele noite...eu morri.

-Está vivo -afirmou com um arrepio.

-A morte hoje em dia é praticamente um termo técnico. Tecnicamente, morri. E parte de mim saiu de meu corpo -tinha que contar a ela-. Observei os médicos trabalhar sobre mim, ali no chão do cais. E de novo na sala de operações. Quase... quase flutuei livre. E então... fiquei atado.

-Não entendo.

-Eu voltei para meu corpo, mas não completamente –levantou as mãos e as estendeu. Não sabia se seria capaz de explicar o que tinha acontecido-. As vezes podia ouvir... vozes, a música clássica que a enfermeira colocava perto de meu leito, o choro. Ou percebia o cheiro das flores. Não podia falar nem ver. Mas, o mais importante, não podia sentir nada –deixou as mãos caírem ao lado do corpo-. Não queria. Mas então eu voltei.... e novamente eu estava sentindo. Sentido demais.

Era impossível de imaginar, mas ela experimentou a dor e a angústia em seu coração

-Não vou dizer que compreendo o que você passou. Ninguém poderia. Mas dói em mim pensar no que você passou e no que ainda passa.

-Quando vi você aquela noite no beco, minha vida mudou outra vez. E foi igualmente impossível eu lutar contra isso. Deter. -baixou o olhar até a máscara que ela carregava-. Agora minha vida está em tuas mãos.

- Queria saber o que é certo.

-Dê-me um pouco de tempo -se aproximou dela e levantou as mãos até tocar seu rosto- Alguns dias...

-Não sabe o que me estás pedindo.

-Eu sei -não permitiu que se afastasse-. Mas não tenho escolha. Deborah, se eu não terminar o que comecei, preferia ter morrido a quatro anos.

Ela abriu a boca para protestar, mas nos olhos dele viu a verdade de suas palavras.

-Não há outra maneira?

-Para mim, não. Alguns dias mais -repetiu-. Depois, se considerar que deve contar o que você sabe aos seus superiores eu aceitarei. E irei assumir as conseqüências.

Ela fechou os olhos. Ele não podia saber, mas ela sabia. Sabia que faria qualquer coisa que ele pedisse para ela.

-Mitchell me deu duas semanas -murmurou-. Não posso prometer mais.

-Amo você -sabia o quanto custava isso para Deborah, e só podia rezar para dispor de tempo e espaço para equilibrar aquela balança.

-Eu sei -abriu os olhos e o fitou, depois apoiou a cabeça em seu peito. A máscara ficou pendurada em seus dedos-. Sei que me ama -Sentiu que os braços a rodeava, e a sólida realidade que eles transmitiam. Voltou a erguer a cabeça para ir ao encontro de seus lábios e deixar que o beijo se prolongasse, cálido e promissor, inclusive enquanto sua consciência travava uma batalha silenciosa. Perguntou-se que ia ser deles. Temerosa, abraçou-o com força-. Por que não pode ser simples? -sussurrou-. Por que não pode ser normal?

Ele já tinha feito esta pergunta a si mesmo diversas vezes.

-Sinto muito.

-Não -moveu a cabeça e a jogou para atrás-. Eu que sinto. Ficar me queixando não vai ajudar em nada- secou as lágrimas-. Pode ser que eu não saiba o que vai acontecer, mas sei o que tenho que fazer. Tenho de voltar ao trabalho. Talvez consiga encontrar uma saída -arqueou uma sobrancelha-. Por que está sorrindo.

-Porque você é perfeita. Absolutamente perfeita -igual ao que ocorrera na noite anterior, enganchou o cinto do roupão com os dedos-. Venha até a cama comigo e eu lhe mostrarei o que quero dizer.

-Já é quase meio dia -comentou enquanto ele lhe mordiscava o lóbulo da orelha-. Tenho trabalho.

-Estás certa disso?

Deborah fechou os olhos e inclinou o corpo para Gage.

-Ah... sim -se afastou com as duas mãos estendidas-. Sim, com certeza. Não disponho de muito tempo. Nenhum dos dois.

-Está certo -sorriu quando ele fez um muxoxo de aceitação. Talvez com um pouco de sorte pudesse dar-lhe algo normal para ela-. Com uma condição.

-Qual?

-Esta noite tenho que assistir a uma festa beneficência. Um jantar, um par de atuações, baile. No Parkside.

- Está falando do baile de verão? -pensou no hotel antigo, exclusivo e elegante que se situava em frente do Parque da Cidade.

-Sim, o mesmo. Tinha pensado em não ir, mas mudei de idéia. Me acompanharia?

- Está perguntando para mim ao meio dia se quero ir ao acontecimento mais importante da cidade, que começa dentro de oito horas? -arqueou uma sobrancelha-. E me pede isso sabendo que tenho que trabalhar o dia inteiro e não terei tempo de ir ao cabeleireiro e nem de comprar um vestido adequado?

- Resumiu bem- comentou ele .

-Que horas vem me buscar?

 

Às sete horas, Deborah se meteu sob o chuveiro quente. Não acreditava que pudesse acabar com todas as suas dores e naquele dia já tinha tomado sua cota de aspirinas. Seis horas diante de um computador, com o fone do telefone no ouvido, tinham sido retribuídos com mínimos resultados.

Cada nome que tinha pesquisado tinha pertencido a alguma pessoa que estava morta há muito tempo. Cada direção que pegava era um beco sem saída e cada corporação pesquisada só a tinha conduzido a um labirinto de empresas fantasmas.

O vínculo comum, como o tinha chamado Gage, parecia ser a frustração.

Mais do que nunca precisava descobrir a verdade. Já não se tratava unicamente de uma questão de justiça. Era algo pessoal. Ainda que soubesse que aquilo distorcia sua objetividade, não podia evitar. Até que o resolvesse, não podia saber onde estava seu futuro, e o de Gage.

«Talvez em nenhuma parte», pensou enquanto se envolvia com uma toalha. Tinham-se unido como o trovão e o relâmpago. Mas as tormentas passavam. Sabia que uma relação duradoura precisava de algo mais que a paixão. Seus pais tinham tido paixão... e nada de entendimento. Inclusive faltara para eles algo mais que amor. Seus pais tinham se amado, mas não tinham sido felizes.

Confiança. Sem confiança, o amor e a paixão se desvaneciam. Queria confiar nele. E acreditar. Mas ele não confiava nela. Havia coisas que Gage sabia, e que podiam aproximá-la da verdade sobre aquele caso. Mas ele as guardava para si, convicto que só havia um jeito de agir.

Suspirou e começou a secar-se o cabelo. Talvez ela estivesse agindo do mesmo jeito.

Se estavam tão ligados, cada um, em uma crença pessoal. Como poderia o amor ser suficiente?

Mas tinha querido vê-lo aquela noite. Não porque quisesse ir a um baile elegante, já que, sele ele a convidasse para comer cachorro quente e jogar pipocas aos pombos teria ido. Porque se quisesse ser sincera, tinha que reconhecer que não queria estar longe dele.

Iria se entregar a aquela noite, mas como Cinderela, quando soasse as doze badaladas , teria que enfrentar a realidade.

Foi ao dormitório. Sobre a cama se achava o vestido que tinha comprado há menos de uma hora. Gage havia dito a ela que gostava quando ela estava vestida de azul. Segundo quis o destino, ao entrar na boutique, ali estava ele , esperando-a. Uma coluna líquida de um intenso azul elétrico, enfeitado com lantejoulas prateadas. E lhe caia como uma luva desde o pescoço até os tornozelos.

Tinha feito uma careta ao ver o preço, mas tinha apertado os dentes. A cautela e o salário de um mês tinham voado com o vento.

Ao olhar-se no espelho, não lamentou. Os brincos de diamantes falsos eram o enfeite ideal. Com o cabelo recolhido e os ombros nus. De uma volta em terno de si. Suas costas ficavam quase completamente a mostra.

Estava calçando os sapatos quando Gage a chamou.

 

O sorriso se apagou dos lábios de Gage quando a olhou. Deborah curvou os lábios ao perceber o desejo súbito e intenso em seus olhos. Muito devagar, deu uma volta completa em torno de si.

- O que acha?

-Estou feliz por não ter lhe dado mais tempo para se preparar –descobriu que, se o fizesse devagar, conseguiria respirar.

-Por que?

-Não poderia ter resistido se estivesse mais linda.

-Quero uma demonstração- ergueu uma sobrancelha.

Ele quase tinha medo de tocá-la. Com muita delicadeza apoiou as mãos em seus ombros e baixou os lábios para beijá-la. Mas o sabor de Deborah se introduziu em seu corpo e a boca se tornou cobiçosa. Com um murmúrio ele se moveu para dentro do apartamento e fechou a porta com o pé.

-Oh, não! -ofegou ela, tendo que se apoiar contra a porta. Mas estava decidida-. Esse vestido me custou muito caro, quero demonstrá-lo em público.

-Sempre prática -lhe deu um último beijo-. Poderíamos chegar tarde.

-Nós voltaremos cedo - sorriu.

 

Quando chegaram, o salão estava lotado com gente encantadora, influente e rica. Com uma taça de champanhe e alguns canapés, Deborah estudou as mesas.

Viu o governador com uma atriz muito conhecida, e um magnata editorial com uma estrela de ópera, e prefeito trocando sorrisos com uma escritora famosa.

-Conhecidos habituais seus? -murmurou Deborah, sorrindo-lhe.

-Só alguns -com delicadeza sua taça na dela fazendo um brinde.

-Mmm. Esse é Tarrington, verdade? -com a cabeça indicou a um homem jovem de aspecto interessante. Quais são sua possibilidades no debate?

-Tem muito o que dizer -comentou Gage-. As vezes com pouco tato, mas não lhe falta razão. Não obstante, vai ser difícil conquistar os eleitores de mais de quarenta anos.

-Gage -Arlo Stuart deteve-se na mesa deles e deu algumas palmadas em seu ombro- Fico contente em ver você.

-Fico feliz por ter vindo.

-Não perderia isso por nada nesse mundo -Arlo, um homem alto e bronzeado com uma rala mata de cabelo brancos e olhos verdes, moveu a taça de uísque-. Fez coisas esplêndidas aqui, não tinha voltado depois da restauração.

- Gostamos de saber.

Deborah demorou um minuto para dar-se conta que falavam do hotel e de que este pertencia a Gage. Contemplou os opulentos candelabros de cristal. Deveria ter imaginado.

-Gosto de saber que a concorrência tem classe -olhou para Deborah-. Falando de classe, seu rosto me é familiar. E sou muito velho para que considere isso uma insinuação.

-Arlo Stuart, Deborah O'Roarke.

-O'Roarke... O'Roarke -lhe estreitou a mão com entusiasmo; seus olhos refletiam calidez e astúcia-. É a promotora que todo mundo fala? Os jornais não lhe fazem justiça.

-Senhor Stuart.

-O prefeito só fala coisas boas de você. Muito boas. Mais tarde você tem que me conceder a honra de uma dança para que possa me contar tudo sobre seu amigo Némesis.

-Seria uma conversa breve.

-Não segundo nosso jornalista favorito. Além disso, Wisner é um imbecil -adicionou sem soltar-lhe a mão - Onde conheceu a nossa grande promotora, Gage? Sem dúvida freqüento os lugares errados.

-Em seu hotel -respondeu com um sorriso-. No evento para arrecadar fundos a favor do prefeito.

-Isso me ensinará a não fazer campanha para Fields -emitiu um riso contagioso-. Não se esqueça da dança.

-Não o farei -indicou, agradecida de ter outra vez a mão no colo. Quando o outro se afastou, moveu os dedos-. Ele sempre é tão... exuberante?

-Sim - Gage lhe tomou a mão e se a beijou-. Algo danificado?

- Acho que não - comprazida de ter seu contato, olhou em torno da sala. Palmeiras frondosas, uma fonte musical, tetos com espelhos-. Este hotel é seu?

-Sim, gosta?

-Está bom - encolheu de ombros quando ele sorriu-. Não tinha que se mover entre os convidados?

- Tinha -roçou os lábios em sua mão.

-Se não parar de me olhar desse jeito.

-Continue, por favor.

-Acho que vou ao banheiro -comentou com voz tremula.

Quando estava na metade do caminho o prefeito interrompeu seu caminho.

-Gostaria de falar um momento com você, Deborah.

-Sim claro.

Com um braço ao redor de sua cintura e com um amplo sorriso político, conduziu-a com destreza entre as pessoas em direção das latas portas do salão.

-Pensei que não seria ruim um pouco de privacidade.

Ao olhar para atrás, ela notou que Jerry avançava em sua direção. Ao receber um sinal do prefeito, deteve-se, olhou a Deborah com expressão de desculpa e voltou a misturar-se com os convidados.

-É uma festa deslumbrante -começou ela, com o suficiente conhecimento para saber que o prefeito gostava de iniciar a conversa.

-Fiquei surpreso vê-la aqui -a conduziu para uma extremidade com plantas e telefones públicos - Ainda que, talvez, não seria de estranhar, já que ultimamente o nome de Guthrie se relacionou muito com o seu.

- Estou com Gage -manifestou com frialdade-. Se é isso que quer dizer. Num plano pessoal -já começava a se cansar da política-. Era disso que queria falar comigo, prefeito? Sa minha pessoal?

-Somente se essa afeta seu profissionalismo. Fiquei inquieto e decepcionado por ter ido de encontro aos meus desejos.

-Seus desejos? -replicou-. Ou os do senhor Guthrie?

-Respeitei seu ponto de vista e concordei com ele -seus olhos refletiram um reflexo de fúria que raras vezes mostrava fora da intimidade de seu gabinete-. Para falar com franqueza, estou decepcionado com sua atuação neste sentido. Seu excelente histórico nos tribunais não anula seu erros de estratégias.

-Estratégias? Acredite, prefeito Fields, ainda nem comecei a batalha. Sigo a ordens de meu superior na continuação da investigação. Eu a iniciei e pretendo terminá-la. Como se supõe que estamos do mesmo lado, teria imaginado que se sentiria satisfeito com a dedicação que mostra o escritório da promotoria neste caso, não só com a nossa persistência em capturar e julgar os traficantes, mas também com nossa tentativa de localizar a Montega, um conhecido assassino de policiais, e levá-lo ante a justiça.

-Não me diga de que lado eu estou -a ponto de perder o controle, agitou um dedo ante sua cara-. Já trabalhava nesta cidade enquanto você aprendia a amarrar os cadarços de seu tênis. Jovem, não iria gostar de me ter como inimigo. Eu dirijo Urbana, e pretendo que continue assim. Promotores jovens e ansiosos não estão em falta.

-Esta me ameaçando de demissão?

-Eu a estou advertindo -com um evidente esforço de vontade, recuperou o controle-. Ou trabalha com o sistema ou trabalha contra.

-Isso já o sei -fechou os dedos com força sobre a bolsa de noite.

-A admiro, Deborah -disse mais com tom mais sereno-.Mas seu entusiasmo, carece de experiência, e um caso como este requer mãos e mentes mais experientes.

-Mitchell me deu duas semanas.

-Estou a par disso. Certifique-se de jogar de acordo com as regras o tempo que lhe sobra - seus olhos irradiavam paixão, apoiou uma das mão em seu braço-. Desfrute da festa. O menu é excelente.

Quando a deixou, ela permaneceu ali por um momento, dominada pela ira. Lutando para recuperar o domínio de si mesma, dirigiu-se ao toucador. Uma vez lá dentro, soltou a bolsa sobre o balcão e deixou o corpo cair sobre uma cadeira na frente de uma dos espelhos ovalados.

«Pelo jeito o prefeito não tinha ficado muito contente», pensou. Tirou um lápis de lábios da bolsa e se concentrou em aplicá-lo. Ou na verdade ele estava mais furioso por que ela tinha passado por cima de sua autoridade.

Será que acreditava que existia apenas um jeito de fazer as coisas? O que tinha de mal em pegar alguns atalhos se o objetivo era o mesmo?

Guardou o lápis de lábios na bolsa e sacou a escova. Diante do espelho, observou seus próprios olhos.

No que pensava? Há vinte e quatro horas atrás estivera convencida que só existia um caminho. E ainda que não tivesse de acordo com as táticas do prefeito, teria aplaudido seus sentimentos.

Apoiou o queixo na mão. No entanto, nesse momento já não estava segura. Será que estava começando a se desviar do sistema que sempre acreditara? Não estaria permitindo que seus sentimentos pessoais por Gage interferissem com sua ética profissional?

Ou tudo se reduzia a uma questão do que era certo e errado, sem saber qual era qual? Como podia continuar, como podia funcionar como promotora, se não era capaz de perceber com clareza o que era o certo?

Talvez fosse hora de examinar os fatos, junto com sua própria consciência, e perguntar a si mesma se não seria melhor para todos que ela se afastasse do caso.

Enquanto estudava sua face e seus valores, as luzes se apagaram.

 

Deborah agarrou a bolsa e apoiou uma mão no balcão para orientar-se. Pensou que o luxo e a elegância não evitavam que falhasse um fusível. Ainda que tentasse ver o lado engraçado ao levantar-se, o coração batia com força. Ainda sabendo que era uma tolice, sentia medo, sentia-se agarrada e dominada pela escuridão.

A porta rangeu ao abrir-se. Um facho de luz e depois outra vez a escuridão.

-Oi, preciosa.

Ela se paralisou e conteve o gemido.

-Tenho uma mensagem para você -era uma voz aguda e risonha-. Não se preocupe. Não vou machucá-la. Montega quer você para ele, e ficaria .furioso se eu me divertisse com você primeiro.

Com a pele gelada, Deborah se recordou que o outro também não podia vê-la. Isso nivelava a situação.

- Quem é você?

-Eu?-uma risada baixa-. Está me procurando, ainda que seja um pouco trabalhoso me encontrar. Por isso me chamam de Rato. Posso entrar e sair de qualquer lugar.

Pela direção de sua voz, Deborah imaginou que avançava em sua direção.

-Deve de ser muito inteligente -depois de falar, também ela se moveu silenciosamente para a esquerda.

-Sou bom. O melhor. Não há ninguém melhor do que o Rato. Montega queria que dissesse a você que lamenta muito que não pudessem ter conversado mais quando esteve com você. Mas quer que saiba que te vigia. A todo momento. E a tua família também.

Durante um instante, seu sangue gelou. A idéia de se esgueirar até a porta desapareceu.

-Minha família?

-Ele também conhece pessoas em Denver. Pessoas especiais -estava mais perto, tanto que ela podia sentir seu cheiro. Mas ela não se afastou-. Se você cooperar vai permitir que eles fiquem a salvo em casa esta noite. Entendeu?

Meteu a mão na bolsa e sentiu o metal frio em contato com a mão.

-Sim, entendi – tirou-o de lá e apontou em direção a voz apertando-o.

Com um grito, ele caiu sobre as cadeiras. Deborah correu desviando-se e chocou seu ombro contra a parede e depois de novo até alcançar a porta. Rato chorava e amaldiçoava enquanto ela atirava. Descobriu que a porta estava trancada.

-Oh, Deus. Oh, Deus -dominada pelo pânico, seguiu atirando.

- Deborah, afaste-se da porta. Afaste-se.

Deu um passo cambaleante para trás e ouviu o impacto surdo. Outro e a porta se abriu. Correu para a luz e para os braços de Gage.

- Você está bem? -a percorreu com as mãos em procura de alguma ferida.

-Sim, estou -afundou o rosto em seu ombro e não prestou atenção nos curiosos que se juntavam em torno deles-. Ele está dentro -quando ele quis separar dela o reteve com força-. Não, por favor.

- Sente-se aqui- Gage fez um sinal de assentimento para dois guardas de segurança.

-não, estou bem. – ainda que respirasse de forma entrecortada. Afastou-se para observar seu rosto e viu seu olhar mortal. Afirmou com mais força- Estou bem, de verdade. Ele não me machucou.

- Acha que por isso não vou querer matar-lo?- murmurou olhando o rosto pálido.

Com um guarda de cada lado, o Rato saiu cobrindo o rosto com as mãos e chorando. Deborah notou que ele usava um uniforme de garçom. Alarmada com a expressão mo olhar de Gage ela recuperou a sanidade.

- Ele está pior do que eu. Usei isto- mostrou a boba de gás lacrimogêneo- Levo comigo desde daquela noite no beco.

Gage não sabia se ria ou chorava. Decidiu abraçá-la e lhe deu um beijo.

-Parece que não posso perder você de vista.

-Deborah -Jerry se abriu passo entre os curiosos-. Estás bem?

-Agora sim. E a polícia?

-Eu mesmo a chamei -olhou a Gage-. Deveria tirá-la daqui.

-Estou bem -insistiu ela, contente de que o vestido ocultasse o tremor de seus joelhos-. Terei que me apresentar na delegacia para declaração. Mas primeiro tenho de dar um telefonema

-Eu chamarei quem quiser -Jerry apertou sua mão.

-Obrigada, mas este telefonema tenho que fazer eu -atrás dele, viu o prefeito-. Poderia me fazer o favor de tentar distrai Field durante alguns momentos?

-Pode apostar- olhou para Gage- Cuide dela.

- É o que estou tentando –pegou-a pelo braço e a afastou da multidão. Atravessaram o vestíbulo em direção aos elevadores.

-Aonde vamos?

-Mantenho um escritório no hotel, pode fazer a ligação de lá -dentro do elevador, a puxou para os braços e a envolveu-. O que aconteceu?

-Bem, nem cheguei a passar um pouco de pó -respirou fundo sobre seu pescoço-. Primeiro, Fields se põe no meu caminho para me ensinar a fazer meu trabalho. Ele não gosta do jeito que estou levando as coisas -quando as portas do elevador se abriram, soltou-a para que pudessem sair para o corredor-. Quando nos separamos eu estava furiosa. Me sentei no toucador para retocar minha maquiagem e relaxar um pouco, mal comecei a fazê-lo... A propósito, é muito elegante.

-Alegro-me que goste -a olhou enquanto introduzia uma chave na porta.

-Gostei muito -entrou na sala de uma suíte e atravessou o tapete claro e felpudo-. Até que a luz se apagou Começava a me recuperar quando a porta abriu e ele entrou. O escorregadio Rato -disse ao sentir que o estômago voltava a contrair-se-. Trazia-me uma mensagem de Montega.

-Sente-se - só a menção desse nome o punha tenso-. Trarei um conhaque para você.

-Onde está o telefone?

-Ao seu lado. Pode chamar.

Gage lutava contra seus próprios demônios ao se aproximar do bar e abrir uma garrafa enchendo dois copos. Deborah tinha estado sozinha, e sem importar os recursos que tivesse, tinha estado vulnerável. Quando ouviu os gritos... Os dedos se lhe puseram brancos. Se tivesse sido Montega e não seu homens de recados, ela poderia estar morta. E ele teria chegado tarde demais.

 

Nada do que tinha acontecido antes ou pudesse acontecer-lhe no futuro seria mais devastador para ele do que a perder .

Nesse momento, ela estava sentada muito reta, com o rosto terrivelmente pálido, os olhos demasiado escuros. Numa mão sustentava o telefone enquanto com a outra retorcia o cordão. Falava a toda velocidade. Momentos depois Gage compreendeu que falava com seu cunhado.

Tinham ameaçado sua família. Percebeu que para ela, a ameaça a sua família era algo muito mais aterrorizante do que a ameaça a sua própria vida.

- Preciso que ligue para mim todos os dias -insistiu-. Se certifique que Cilla tenha proteção na emissora. Os meninos... – ocultou o rosto co as mãos -. Deus, Boyd... -escutou um momento, assentindo e tratando de sorrir-. Sim, eu sei, eu sei. Não promoveram você capitão por nada . Estarei bem. Sim, e terei cuidado. Amo vocês. A todos -calou um momento e respirou fundo-. Sim, eu sei. Adeus.

Deixou o telefone no gancho lentamente. Sem nada dizer, Gage pôs o copo em suas mãos. Ela contemplou o liquido acastanhado e bebeu um bom gole. Tremeu e voltou a beber.

-Obrigada.

-Seu cunhado é um bom policial. Não vai deixar que aconteça nada a eles.

-Há alguns anos ele salvou a vida de Cilla. Foi quando se apaixonaram -de repente levantou os olhos com a expressão eloqüente-. Odeio isso, Gage. Eles são minha família, a única família que tenho. A idéia de que algo que fiz, que estou fazendo, possa... -calou, recusando pensar no impensável-. . Quando perdi os meus pais, jamais pensei do que algo pudesse chegar a ser tão ruim. Mas isto... -voltou a fincar a vista no conhaque-. Minha mãe era policial.

Ele sabia. Sabia de tudo. Mas segurou sua mão e deixou que ela lhe falasse.

-Era boa, ou isso me disseram. Eu só tinha doze anos quando aconteceu. Na realidade, não cheguei a conhecê-la muito bem. Não tinha jeito para mãe - encolheu os ombros, mas o gesto revelou a Gage as cicatrizes-. E meu pai...- continuou-. Era advogado. Um defensor público. Esforçou-se para manter todos unidos, a família...a ilusão de família. Mas minha mãe e ele não o conseguiram -bebeu um gole de conhaque e agradeceu que já estivesse mais leve-. Aquele dia apareceram dois agentes uniformizados na escola para me levar para casa. Imagino que já sabia que minha mãe estava morta. Com o máxima de gentileza, contaram-me que tinham morrido os dois; Os dois. Um delinqüente que meu pai defendia, conseguiu entrar com uma arma e quando estavam na sala de interrogatório ele disparou contra eles.

-Sinto muito, Deborah. Sei como é duro perder a alguém da família.

Ela assentiu e deixou o copo de lado.

-Suponho que isso me impulsionou a ser advogada, promotora. Meus pais dedicaram sua vida a defender a lei e a perderam. Não queria que tivesse sido em vão. Você entende?

-Sim - levou suas mãos aos lábios-. Fosse qual fosse a razão que te impulsionou a ser advogada, foi a adequada. É uma boa advogada.

-Obrigada.

-Deborah -titubeou, querendo expor seu pensamento com cuidado-. Respeito tua integridade e tua capacidade.

-Sinto que vem um mas.

-Quero pedir outra vez que abandone o caso. Deixa ele comigo. Terá oportunidade de fazer o que faz melhor, levar Montega e os demais diante do tribunal.

Ela ficou um momento em silêncio clareando suas idéias.

- Gage, esta noite, depois que o prefeito me parou, me sentei no toucador e, ao me acalmar, comecei a pensar, a examinar meus motivos. Comecei a refletir que o prefeito talvez tivesse razão, que talvez fosse melhor que eu entregasse o caso a alguém com mais experiência e menos envolvimento pessoal - moveu a cabeça - Mas não posso, e menos agora. Ameaçaram minha família. Se eu me afastar, jamais poderia voltar a confiar em mim mesma, a acreditar em mim. Tenho de acabar com isto - antes de que ele pudesse falar, apoiou as mãos em seus ombros-. Não estou de acordo contigo, não sei se alguma vez poderei está, mas em meu coração entendo o que faz e por que o faz. E só peço que faça o mesmo por mim.

Como podia negar?

- Imagino que agora estamos empatados.

-Tenho de fazer a declaração - levantou estendendo uma mão-. Vem comigo?

Não lhe permitiram falar com o Rato. Pelo menos, na segunda-feira disporia dos relatórios policiais.

Com o Rato sob uma férrea vigilância, seria improvável que ocorresse um acidente similar ao de Parino.

Faria um trato com ele em troca das respostas que precisava, igual fizera com Parino.

Declarou e, cansada, esperou até que o digitassem para que o assinasse. Era noite de sábado e delegacia estava lotada. Prostitutas e vadios, traficantes e ladrões, advogados e defensores públicos. Era na realidade, um aspecto do sistema que ela representava e no qual acreditava. Mas quando foi embora , se sentia aliviada.

-Foi uma noite longa -murmurou.

- E você a tem encarado muito bem- acariciou-a de leve no rosto- Você deve estar esgotada.

-Na verdade estou faminta- sorriu- Nem chegamos a jantar.

-Vou convidá-la para um hambúrguer

Rindo, o envolveu com os braços. Pensou que talvez algumas coisas, algumas coisas muito valiosas, podiam ser simples.

-Meu herói.

Ele a beijou na lateral pescoço.

- Convidarei você para um dúzia de hambúrgueres -murmurou-. Depois, pelo amor de Deus, Deborah, venha para casa comigo.

-Sim -lhe ofereceu os lábios-. Irei.

Ele sabia como preparar o palco. Quando entrou com ele no dormitório, a janela era atravessada pelos raios da lua e a luz das velas amortecia as sombras. O aroma a rosas adoçava a atmosfera. Ao romance contribuía o som de violinos que saiam das caixas.

Não sabia como o tinha conseguido com um só telefonema desde a ruidosa cafeteira na qual tinham jantado. Também não lhe importava. Bastava para ela saber que tinha pensado nisso.

-É lindo - deu conta de que estava nervosa, algo ridículo depois da paixão da noite anterior-. Pensou em tudo.

-Apenas em você - roçou seus ombros com os lábios e encheu uma taça de champanhe-.Imaginei você aqui mais de cem vezes. Mil vezes.- ofereceu a taça para ela.

-E eu – sua mão tremeu ao pegar o cristal. Era o desejo que lutava para se libertar - A primeira vez que me beijou, na torre,um mundo inteiro se abriu. Nunca tinha sentido algo parecido.

-Apesar de seu aborrecimento, aquela noite eu estava a ponto de lhe suplicar que ficasse –tirou seus brincos e deixou que os dedos acariciassem o lóbulo sensível-. Me pergunto o que você teria feito.

-Não sei. Mas teria gostado.

-Essa resposta já é o bastante -deixou os brincos numa mesa. Devagar, foi tirando os grampos de seu cabelo, sem deixar de olhá-la-. Estás tremendo.

-Eu sei.

Afastou a taça de seus dedos frouxos e continuou libertando seus cabelos, sentiu o sussurro dos dedos na nuca.

-Tem medo de mim?

-Tenho medo do que você pode fazer comigo.

Algo escuro e perigoso ardeu nos olhos de Gage. Mas baixou a cabeça para lhe dar um beijo suave na têmpora.

-Beija-me -pediu Deborah com pálpebras pesadas

-O farei -a boca abriu caminho pelo seu rosto, tentando-a, sem satisfazê-la.

-Não tem que me seduzir -ofegou.

-O prazer é meu -e queria que fosse dela. Percorreu as costas com um dedo, e sorriu quando a sentiu tremer. Essa noite queria lhe ensinar o lado mais suave do amor. Quando se apoiou nele, resistiu as velozes flechas do desejo.

- Fizemos amor na escuridão -murmurou enquanto desabotoava os três botões que tinha por trás do pescoço-. Esta noite quero ver você -o vestido escorregou pelo seu corpo e ficou como um brilhante lago azul sob seus pés. Só usava um corpete transparente que lhe abraçava os seios e descia até os quadris. Sua beleza o deixou sem forças-. Cada vez que olho para você, me apaixono de novo.

-Então não pare de olhar -levantou as mãos para desfazer-lhe a gravata. Depois baixou os dedos para se ocupar dos botões-. Não pare nunca – abriu a camisa e depois apoiou a boca na pele ardente. A ponta da língua deixou um rastro úmido antes de afastar a cabeça e jogá-la para atrás em convite-. Agora me beija.

Seduzido como ela, fundiu seus lábios nos dela. No interior do quarto soavam os gemidos baixos e roucos de ambos. As mãos de Deborah subiram devagar até seus ombros para tirar-lhe a jaqueta do smoking. Os dedos ficaram moles quando Gage suavizou o beijo e depois o aprofundou.

Tomou-a em braços como se fosse um cristal frágil. Sem desviar a vista dela, deixou que durante alguns momentos sua boca a enlouquecesse e atormentasse. Continuou com os beijos delicados até levá-la à cama.

Sentou-se e a depositou a sentada sobre seu colo. Com a boca prosseguiu a serena devastação de sua razão. Quase podia vê-la flutuar. Ela fechou os olhos. A queria dessa maneira. Totalmente extasiada. Totalmente sua. Á medida que extraia mais e mais do exótico sabor de sua boca, pensou que poderia ficar horas assim. Dias.

Deborah sentiu cada contato terno, cada carícia das pontas de seus dedos, o atrito da palma de sua mão, a busca paciente de sua boca. Sentia o corpo leve como o ar com fragrância de rosas, mas os braços estavam pesados. A música e os murmúrios de Gage se misturaram na mente dela até formar uma única melodia de sedução. De fundo estava o ruído selvagem de suas próprias palpitações.

Sabia que jamais tinha estado tão vulnerável nem tão disposta a ir onde ele escolhesse levá-la.

E isso era amor... uma necessidade mais básica do que a fome e a sede.

De seus lábios escapou um ofego desvalido quando os lábios dele sussurraram sobre os seios. Devagar, eroticamente, a língua deslizou sob o encaixe do corpete para provocar seus mamilos já endurecidos. Os dedos de Gage brincavam sobre a pele que as meias não cobriam, até deslizá-las sob o triângulo reduzido que cobria a união de suas coxas.

Com um único contato a fez chegar atingir seu primeiro pico de prazer. Deborah se arqueou como um arco e o prazer saiu disparado de seu interior para fincar-se nele. Depois teve a impressão de que se fundia em seus braços.

Atordoada, à beira do delírio, se agarrou a Gage

-Me deixe......

-O farei - cobriu o grito aturdido com a boca. E enquanto tremia, depositou-a sobre a cama.

«Agora», pensou ele. Podia tomá-la nesse momento enquanto jazia acesa e úmida em sua entrega. Sua pele um raio de lua. O encaixe branco que usava era como uma ilusão. Quando o olhou sob suas finas pestanas, viu vibrar em um desejo escuro.

Tinha que lhe ensinar mais.

Roçou a pele com as pontas do dedos e a fez tremer ao soltaras meias. Quase com preguiça, baixo-lhe uma e seguiu o caminho que ela fazia com beijos suaves com a boca aberta sobre a pele morna. Deslizou a língua pela parte de trás do joelho, pela panturrilha, até que a teve retorcendo-se em entregue ao prazer.

Presa em leves camadas de sensações, ela voltou a estender os braços, para que Gage a ignorasse e repetisse essa devastadora delícia sobre sua outra perna. A boca dele vez o caminho inverso, lentamente, detendo-se, até que a encontrou. Os lábios dela emitiram seu nome e à beira das lágrimas se colou ao seu corpo.

E ao primeiro contato, a força pareceu entrar nela.

Ardentes como um chama, suas peles se encontraram. Mas não bastava. Com urgência os dedos de Deborah lhe tiraram a camisa, rasgando-a em seu desespero por procurar mais partes dele. Com os dentes lhe mordiscou o ombro. Sentiu que os músculos do estômago de Gage se tencionaram, ouviu seu rápido ofego quando alcançou a cintura de suas calças. Os botões voaram.

-Te desejo -frenética, beijou-o-. Deus, desejo você.

O controle que ele tinha mantido com tanta firmeza lhe escorreu entre os dedos. O desejo o tomou. Ela o tomou com suas mãos desesperadas, sua boca cobiçosa. O ar queimava seus pulmões enquanto terminava de se despir.

Em seguida estavam de joelhos sobre a cama desfeita, com os corpos trêmulos, sem desviarem o olhar. Rompeu-lhe o corpete pelo centro, a agarrou pelos quadris e colou-se nela.

Durante o ato, Deborah arqueio as costas e murmurou o nome de Gage ao cair pelo precipício da insensatez. Agarrando-a pelos cabelos, voltou a elevá-la, apoderou-se de sua boca e a seguiu.

Débil, jazia na cama, com um braço sobre os olhos e o outro flácido no colchão. Sabia que não podia mover-se, não estava segura de que pudesse falar e duvidava de que respirasse.

No entanto, quando Gage a beijou no ombro, voltou a tremer.

-Queria que fosse suave.

Deborah conseguiu abrir os olhos. Seu rosto estava próximo. Sentiu que os dedos lhe acariciavam o cabelo.

-Então imagino que terá que voltar a tentar até que consiga.

-Algo me diz que precisaremos de muito tempo -sorriu.

-Bem -lhe delineou seus lábios com o dedo-. Amo você, Gage. E essa é a única coisa que deve importar nessa noite.

-É a única que importa - tomou sua mão. Havia uma ligação entre eles, tão profunda e íntima como o ato de amor-. Lhe trarei uma taça de champanhe.

-Jamais pensei do que pudesse ser assim -com um suspiro satisfeito, se ajeitou na cama enquanto ele se levantava-. Jamais pensei do que eu pudesse ser assim.

-Como?

Captou uma imagem sua no espelho do outro lado do quarto, nua sobre alguns travesseiros e com os lençóis emaranhados.

-Tão lasciva, suponho -rio pela escolha das palavras-. Na universidade tinha fama de ser séria, estudiosa e inabordável.

-A universidade terminou - sentou na cama e lhe entregou uma taça, para brindar com a sua.

-Terminou. Mas mesmo depois, quando comecei a trabalhar no escritório do promotor, essa reputação me seguiu -enrugou o nariz-. A séria O'Roarke

-Eu gosto quando é séria -bebeu um gole-. Imagino você em uma biblioteca repassando livros imensos e empoeirados tomando notas.

-Não é a imagem que prefiro neste momento.

-A mim agrada -baixou a cabeça para mordiscar seu ombro-. Veste estes trajes conservadores, com essas cores que não tem nada de conservadoras e que você parece gostar-rio entre dentes ao ver sua expressão-.Sapatos confortáveis e jóias discretas.

-Está me fazendo parecer uma puritana.

-E embaixo algo minúsculo e sexy -com o dedo levantou uma tira do corpete rasgado-. Uma escolha muito pessoal para uma promotora muito correta. E depois se põe a citar precedentes e me deixar louco.

-Como Warner contra Kowaski?

-Mmm -se concentrou em sua orelha-. Algo assim. E eu seria o único que saberia que é necessário seis grampos para recolher seu cabelo nesse coque tão certinho.

-Sei que posso ser muito séria -murmurou-. É só porque o que faço é importante para mim -contemplou o champanhe-. Tenho de saber que o que faço está bem. Que o sistema que represento funciona -quando ele se afastou para estudá-la, suspirou-. Sei que uma parte é orgulho e ambição, mas outra parte é básica, Gage, algo que levo dentro. Por isso me preocupo pelo modo que iremos resolver esses problemas entre nós.

-Não o resolveremos esta noite.

-Eu sei, mas...

-Esta noite não -apoiou um dedo sobre os lábios dela-. Esta noite estamos você e eu. Preciso disso, Deborah. E você também.

-Tem razão -assentiu-. Voltei a me deixar levar pelo trabalho.

-Podemos solucioná-lo -sorriu e ergueu a taça até a luz. O champanhe tinha borbulhas.

-Nos embebedando? -perguntou com uma sobrancelha arqueada.

-Mais ou menos – a mirou com olhos risonhos – Por que não te mostro... uma maneira menos séria de beber champanhe? Inclinou a taça para verter um pequeno jorro de bebida fria sobre um seio.

 

Gage não notava o passar do tempo enquanto a observava dormir. As velas tinham se apagado e a sua fragrância pairava no ar, sereno como uma recordação. Inclusive dormindo, ela agarrava com força uma de suas mãos.

As sombras se ergueram e se perderam na luz acinzentada do amanhecer. Não queria acordá-la. Tinha muito que fazer, demasiadas coisas das quais ainda se negava a deixar que ela fizesse parte. Sabia que em questão de semanas os objetivos que tinha imposto a si mesmo fazia mais de quatro anos tinham se misturado. Não bastava se vingar da morte de seu colega. Já não bastava procurar compensação pelo tempo e a vida que lhe fora roubada. Nem sequer bastava a justiça.

Ia ter que se mover depressa, porque cada dia que passava sem resposta era outro dia que Deborah corria perigo. Não tinha nada mais importante do que mantê-la a salva.

Afastou-se dela em silêncio para se vestir. Tinha que recuperar todas as horas que tinha passado ao lado de Deborah e que não tinha se dedicado a sair pelas ruas ou a trabalhar. Olhou-a quando ela se moveu e abraçou o travesseiro ao lado. Dormiria durante a manhã. E, enquanto isso, ele pesquisaria.

Apertou um botão oculto sob a madeira talhada que tinha na parede mais afastada da cama. Um painel se abriu. Penetrou na escuridão e deixou que a porta se fechasse a suas costas.

Com a boca seca da noite passada, Deborah piscou sonolenta. Perguntou a si mesma, se estivera estado sonhando. Juraria que Gage tinha entrado numa espécie de passagem secreta. Desconcertada, apoiou-se nos cotovelos. Durante o sonho tinha estendido a mão em sua direção e, ao descobrir que ele não estava ao seu lado, tinha acordado justo no instante em que a parede se abria.

Disse a si mesma que aquilo não era um sonho, já que ele não estava ao seu lado.

«Mais segredos», pensou, sentindo o pesar que a envolvia provocado pela desconfiança dele. Depois das noites que tinham passado juntos, o amor que tinha revelado sentir por ele, seguia sem lhe dar sua confiança.

Enquanto se levantava pensou que já era hora de conseguir esta confiança, por bem ou por mal. Não ia ficar-se sentada, do jeito que ele exigia que fizesse. Remexeu no armário ,e encontrou uma roupão de cor cinza que chegava ais seu tornozelos. Impaciente, dobrou as mangas e começou a procurar o mecanismo que abria o painel.

Apesar de conhecer sua localização aproximada, demorou dez longos minutos paro encontrá-lo, e outros dois até averiguar como funcionava. Suspirou satisfeita quando uma lateral da parede deslizou silenciosa. Sem hesitar, entrou no corredor escuro e estreito.

Manteve uma mão na parede para guiá-la e avançou. Não tinha nenhum cheiro rancoçoso que indicasse desuso, tal como tinha esperado. O ar era limpo, a parede lisa e seca. Inclusive quando o painel se fechou e ficou na escuridão, não se sentiu inquieta. Não ouvia nenhum som estranho. Era evidente que Gage utilizava a passagem com freqüência.

 

Aguçou os olhos e os ouvidos. Da passagem principal se abriam alguns corredores serpenteantes, mas o instinto lhe indicou que se mantivesse no caminho reto. Passado um momento, viu uma leve luminosidade adiante e avançou com maior pressa. Uma escada de pedra apareceu em seu caminho. Com uma mão no corrimão de ferro desceu até chegar ao último degrau, onde encontrou três túneis que conduziam em direções diferentes.

-Maldito seja, Gage. Aonde você foi parar? -o murmúrio ecoou por alguns instantes, depois morreu.

Ergueu os ombros e empreendeu o caminho por uma inclinação , mudou de idéia e retrocedeu até chegar ao início do caminho novamente. Voltou a vacilar. Depois a ouviu, tênue e como num sonho pelo último túnel. Música.

Outra vez se lançou para a escuridão, seguindo o som com cautela pelo chão de pedra que descia. Não tinha nem idéia dos metros que descia, mas o ar se esfriava com rapidez. A música aumentou pouco a pouco à medida que se a luz no túnel se intensificava. Ouviu uma vibração mecânica e um ruído parecido a de um teclado.

Ao chegar ao fim da passagem, só pôde olhar assombrada.

Era uma sala imensa com inclinadas paredes de pedra. Parecida uma gruta com seu teto arredondado e seus ecos, estendia-se mais de quinze metros em cada direção. Mas não era primitiva. Em vez de parecer sombria, exibia uma iluminação brilhante e estava equipada com um vasto sistema informático, impressoras e monitores. Numa parede tinha telas de televisão. Um enorme mapa topográfico de Urbana se estendia por outra. Uma música romântica e melosa soava nos auto falantes ocultos. Balcões de granito acinzentado continham computadores, telefones, pilhas de fotografias e papéis.

Tinha um painel de controle cheio de botões, interruptores e alavancas. Gage se achava frente a ele e seus dedos não paravam de mover-se. No mapa piscavam algumas luzes. Na tela de um monitor aparecia a reprodução do mapa.

Parecia um desconhecido, com o rosto pétreo e intenso. Deborah se perguntou se sua escolha de calças e camisas negras tinha sido deliberada.

Desceu três degraus.

- Nossa -disse quando ele se voltou com rapidez-, não inclui isto em meu percurso.

-Deborah – levantou-se e automaticamente apagou o monitor-. Tinha esperado que dormisse um pouco mais.

-Não me cabe nenhuma dúvida -meteu as mãos tensas nos bolsos do roupão-. Ao que parece interrompi seu trabalho. Um hoby interessante. Diria que ao estilo de Némesis. Dramático, misterioso -se dirigiu para o mapa-. E minucioso -murmurou, voltando-se para ele-. Uma pergunta. Uma que neste momento parece ter muita importância. Com quem eu passei noite?

-Sou o mesmo homem com quem esteve ontem à noite.

-É sério? É o mesmo homem que disse que me amava, que me demonstrou de uma dúzia de maneiras maravilhosas? O mesmo homem que me deixou para descer até aqui? Quanto tempo mais você vai seguir mentindo para mim?

-Não é uma questão de mentir. É algo que devo fazer. Pensava que compreendia isso.

-Pois está enganado. Não entendo as coisas que me oculta , não entendo que trabalhe escondido de mim, que me negue informações.

- Você me deu duas semanas -pareceu mudar diante dela, voltando a ficar distante e frio.

-Maldito, lhe dei muito mais do que isso. Me entreguei inteira para você -em seus olhos turbulentos de emoção, a raiva e a dor lutaram por atingir a supremacia. Ergueu uma mão antes que ele pudesse se aproximar-. Não. Não utilize meus sentimentos neste momento.

-De acordo. Não se trata de sentimentos, e sim de lógica. É algo que deveria saber apreciar, Deborah. East é meu trabalho. Sua presença aqui é tão desnecessária quanto a minha seria em um tribunal.

-Lógica? -espetou-. E a esta lógica se encaixa perfeitamente em seus propósitos, não?. Me tomas por uma imbecil? Acredita que não sou capaz de ver o que se passa aqui? -indicou os monitores-. E nos manteremos o assunto em nível estritamente profissional. Você tem todas as informações que eu com muita dificuldade tenho tentado reunir. Todos os nomes, os números, e mais, muito mais do que eu pude localizar. Mas não me conta. E não o fará.

-Trabalho só -disse, adotando outra vez sua atitude impenetrável.

-Sim, sou consciente disso -disse com amargura ao aproximar-se dele-. Nada de parceiros. A não ser na cama. Ali eu sirvo para ser sua parceira.

-Uma coisa não tem nada que ver com a outra.

-Tem tudo a ver -praticamente gritou-. Se não é capaz de confiar em mim em todos os sentidos, me respeitar em todos os sentidos e ser sincero comigo em tudo, então entre nós não existe nada.

-Maldita seja, Deborah, não sabe tudo -a agarrou pelos braços-. Não o sabe de tudo.

- Isso é verdade. Porque você não me permite saber.

-Não posso -a corrigiu, sem deixar de segurá-la-. Há uma diferença entre mentir e omitir informação. Isto não é branco e preto.

- Claro que é.

-Estamos falando de homens perigosos, sem consciência, sem moral. Já tentaram matá-la, quando ainda não tinha descoberto quase nada. Não arriscarei sua vida. Se quer tudo em branco e preto, está ai sua resposta -a sacudiu, realçando cada palavra-. Não arriscarei sua vida.

-Não pode me impedir que cumpra com meu trabalho nem com o que considero que é certo.

-Por Deus, se tenho que prende-la lá em cima até que tudo isso acabe e você esteja a salvo eu o farei!

-E depois o que fará? Vai fazer o mesmo na próxima vez que eu me arriscar em meu trabalho? E na seguinte?

-Farei o que for necessário para proteger você. Isso não vai mudar.

-Talvez tenha uma bonita bolha de plástico para que possa me guardar dentro dela - apoiou as mãos em seus antebraços, desejando que ele compreendesse-. Se você me ama, tem que me amar do jeito que eu sou. Exijo isto de você, do mesmo modo que exijo conhecer e amar a pessoa que você é- viu que algo brilhava em seu olhar e insistiu – Não pode ser diferente de você, não posso ser alguém que espere sentada que outra pessoa cuidem dela.

- Não estou pedindo isso de você.

-Não? Se não é capaz de me aceitar agora, não o fará nunca. Gage, quero uma vida com você, não só algumas noites na cama, e sim uma vida. Filhos, um lar, uma história em comum. Mas se você não pode compartilhar comigo o que sabe, e quem é, não existirá um futuro para nós -se afastou dele-. E se for este o caso, seria melhor para nós dois que eu saísse daqui agora.

-Não -estendeu a mão antes de que pudesse dar-lhe as costas. Sem se importar quanto arraigado tinha seu próprio sentido de sobrevivência, não se comparava com a possibilidade da vida sem ela-. Preciso que me dê sua palavra -apertou os dedos sobre os seus-. Que não correrá nenhum risco e que iso ficará entre nós ao menos até que tudo tenha acabado. Não importa o que vai saber e o que vamos encontrar, tem que me prometer que não vai falar nada fora desta sala. Ainda não pode correr o risco de levar o que saberá até o promotor.

-Gage, sou obrigada...

-Não -cortou-. Haja o que houver, tudo ficará aqui até que possamos jogar nossos dados. Não posso dar mais do que isso, Deborah. Peço apenas isso a você.

E ela podia ver o quanto custava isso a ele.

-De acordo. Não lhe apresentarei nada a Mitchell até que ambos estejamos seguros. Mas quero tudo, Gage. Tudo -sua voz se acalmou-. Não vê que sei que me oculta algo básico que não tem nada a ver com salas secretas e dados? Sei disso e isso me magoa.

Ele deu as costas. Se iria lhe contar tudo, nada melhor do que escolher começar com ele mesmo. O silêncio se estendeu entre os dois até de que Gage o rompesse.

-Há coisas que não sabe de mim, Deborah. Coisas que talvez não te goste ou não possas aceitar.

-Tem tão pouca fé em mim? -perguntou baixinho.

-Não tinha direito de deixar que as coisas chegassem tão longe entre nós sem revelar quem sou -lhe tocou a face com a esperança de que não fosse a última vez-. Não queria assustá-la.

- Está me assustando agora. Seja o que for o que tenha que me dizer, faça-o. Nós solucionaremos entre nós.

Sem falar, dirigiu-se para uma parede. Voltou-se e, sem deixar de olhá-la, desapareceu.

Deborah abriu a boca, mas o único som que pôde emitir foi um ruído estrangulado. Com os olhos fincados onde deveria estar Gage, deu um passo para trás. A mão insegura se agarrou ao respaldo de uma cadeira e deixou que seu corpo aturdido tombasse ali.

Ainda que sua mente recusava em acreditar no que acabava de presenciar seus olhos, Gage se materializou a três metros de onde tinha desaparecido. Durante um instante Deborah pode ver através dele, como se ele fosse apenas um fantasma do homem que era antes.

Pensou em se por de pé, mudou de idéia e pigarreou.

-É um momento estranho para realizar truques.

-Não é um truque -caminhou para ela, e pode ver que ainda estava dominada pela comoção-. Ao menos não no sentido que você disse.

-Todos estes artifícios que você tem aqui -disse, agarrando-se com desespero a um salva-vidas de lógica num mar de confusão-. Seja o que for o que está utilizando, produz uma surpreendente ilusão óptica –engoliu saliva-. Imagino que o Pentágono estaria interessado.

-Não é uma ilusão - tocou seu braço e, ainda que ela não tivesse se afastado tal como tinha temido, sentiu sua pele fria-. Agora tem medo de mim.

-Isso é absurdo - mas a voz tremia. Obrigou a si mesma a se levantar-. Só foi um truque, muito eficaz, mas... -calou quando ele apoiou a mão sobre um balcão e desapareceu até o pulso Aturdida, o encarou-. Oh, Deus. Não é possível -aterrorizada, pegou seu braço e quase desmaiou de alívio ao ver que a mão estava intacta.

-É possível -lhe acariciou ao rosto com suavidade com essa mão-. É real.

-Me de um minuto -ergueu os dedos inseguros para tirar os de Gage. Com movimentos pausados, lhe deu as costas e se afastou.

Ele se sentiu atravessado pela lâmina afiada da rejeição.

-Sinto muito-com grande esforço, controlou sua voz-. Não me ocorreu nenhuma maneira melhor nem mais fácil de mostrar o que sou a você. Se tivesse tentado explicar, você não teria acreditado.

-Não, não teria. -tinha visto. Mas sua mente ainda queria perguntas, encarar tudo aquilo como um truque hábil. No entanto, recordou como Némesis sempre tinha dado a impressão de desvanecer-se no espaço. Voltou-se e notou que ele a observava com o corpo tenso. Não se tratava de um jogo. Quando aceitou a verdade, se pôs a tremer com mais intensidade. Esfregou os braços com a esperança de aquecer a pele-. Como faz?

-Não estou bem certo -abriu as mãos para contemplar-se, depois as colocou com impotência no bolso-. Algo aconteceu comigo enquanto eu estava em coma. Algo mudou. Algumas semanas depois de recobrar a consciência, descobri quase por acidente. Tive que aprender a aceitar, a usá-lo, porque sei que me foi entregue por algum motivo.

-E por isso... Némesis.

-Sim -pareceu acalmar-se-. Não tenho escolha quanto a isto, Deborah. Mas você sim.

-Creio que não entendo - levou uma mão à cabeça e emitiu um riso nervoso-. Sei que não entendo.

-Não fui honesto com você a respeito do que sou. O homem pelo qual você se apaixonou era normal.

-Não estou compreendendo o que quer dizer -desconcertada, baixou a mão ao lado do corpo-. Apaixonei-me por você.

-Maldição Deborah, não sou normal -de repente seus olhos mostraram fúria-. Jamais serei. Levarei isto comigo até o dia de minha morte. Eu sei.

-Gage... -mas quando estendeu a mão, ele se afastou-se.

-Não quero sua compaixão.

-Não a tem –respondeu rápida-. Por que teria que ter compaixão por você? Não está enfermo. Está são. Em todo caso, me sinto aborrecida porque escondeu isso de mim também. E eu sei por que –passou as mãos pelos cabelos-. Pensou que eu iria embora, não é verdade? Pensou que e seria fraca demais, estúpida ou frágil para aceitá-lo como é. Não confiou no meu amor -a dominou uma fúria cega-. Não confiou no meu amor -repetiu-. Bem, ao diabo com isso, eu amo você e sempre vou amar.

Correu para a escada. Ele a agarrou aos pé dos degraus, e fez ficar de frente para ele e a abraçou enquanto ela o amaldiçoava e se debatia.

- Pode me chamar do que quiser -a sacudiu pelos ombros-. Pode me esbofetear outra vez se quiser. Mas não vá embora.

-Era o que esperava, não? -exigiu. Jogou a cabeça para trás-. Esperava que eu desse meia volta e fosse embora.

-Sim.

- Pois está enganado -murmurou. Sem se desviar do seu olhar tocou sua face, se colocou nas pontas do pés e o beijou.

Os dois estremeceram, ambos pegos pela onda de alívio. A abraçou com força. Apesar do grande temor que tinha se abatido sobre ele momentos atrás, agora tudo era substituído por uma imensa necessidade. Não foi compaixão o que saboreou nos lábios dela, e sim paixão.

Deborah emitiu alguns sons sedutores enquanto seu roupão era tirado. Oferecia muito mais do que seu corpo. Era a exigência que a tomasse tal como era, que se permitisse ser tomado. Com um juramento que terminou num gemido, percorreu-lhe o corpo com as mãos. Viu-se envolvido numa loucura de purificação.

Impaciente, Deborah arrancou sua camisa.

-Faça amor comigo -jogou a cabeça trás e o repetiu o pedido olhando em seus olhos-. Faça amor comigo, agora.

Arrancou sua roupa enquanto se deixavam escorregar até o chão.

Frenéticos, ardentes e famintos, atingiram juntos o orgasmo. O poder se elevou como línguas de fogo. «Sempre é assim entre nós», pensou ela enquanto experimentava um arrepio. Mas nesse momento havia mais. Existia uma unidade. Compaixão, confiança, vulnerabilidade para misturar com seus anseios. Nunca o tinha desejado tanto.

-Te amo - disse, levantando-se sobre um cotovelo-. Deixe que eu te mostre quanto te amo.

Ágil, veloz, cobiçosa, moveu-se sobre ele para beijar-lhe o pescoço, o peito, os músculos tensos do estômago, que tremeram sob seus lábios úmidos.

Deborah era um milagre, o segundo que tinha recebido na vida. Quando a tomou em braços, foi procurando o amor e a salvação.

Rodaram com as extremidades e os desejos misturados, alheios a dureza do solo, ao zumbido das máquinas que seguiam trabalhando. Respiravam de maneira entrecortada. Cada sabor e cada toque pareciam mais poderosos que nunca.

Gage lhe fincou os dedos nos quadris enquanto a erguia. Deborah o envolveu. O prazer os inundou, aos dois. Suas mãos se procuraram.

Agüentaram, com os olhos abertos e os corpos unidos, até que deram o último salto juntos.

Como gelatina, derreteu-se cima dele. Roçou seus lábios com a boca, uma vez, e outra, antes de apoiar a cabeça em seu ombro. Nunca tinha se sentido mais sedutora, mais desejável, mais completa do que ao notar do que seus corações batiam juntos.

Sorriu e colou a boca a seu pescoço.

-Foi minha maneira de dizer que você não se verá livre de mim assim tão fácil.

-Gosto como expõe seus argumentos - acariciou as costas. Ela era sua. Tinha sido um tolo ao duvidar-. Isso significa que me perdoa?

-Não necessariamente – se apoiou nos ombros dele e levantou-. Não entendo que é. Pode ser que jamais o compreenda. Mas, repito, quero tudo ou nada. Recordo o que as evasivas, as negativas e as rejeições fizeram ao casamento de meus pais. Não quero isso para mim.

-É uma declaração? -apoiou a mão com suavidade na dela.

-Sim -afirmou sem vacilar,.

-Quer uma resposta agora?

-Sim -semicerrou os olhos-. E não pense que pode escapar desaparecendo. Vou esperar até que volte.

Ele riu, assombrado que ela pudesse brincar com algo que ele pensara que a fizesse correr assustada.

-Então suponho que terá que fazer de mim um homem honesto.

-É o que pretendo -lhe deu um beijo fugaz e depois levantou para vestir o roupão-. Não quero um noivado longo.

-De acordo.

-Quanto terminarmos este caso e Cilla e Boyd possam organizar uma viagem com os meninos nos casaremos.

-Certo -a olhou com humor-. Algo mais?

-Quero ter filhos rápido.

-Alguma quantidade em particular? –ele vestia as calças.

-Um de cada vez.

-Soa razoável.

-E...

-Cale a boca - tomou suas mãos-. Deborah, quero me casar com você e lhe dedicar o resto de minha vida e saber que, quando estender minhas mãos estará aqui. E quero uma família, nossa família -lhe beijou os dedos-. Quero a eternidade contigo -a viu conter as lágrimas-. Mas neste exato momento quero outra coisa.

- O que?

-Café da manhã.

-Eu também – rodeou-lhe o pescoço com os braços.

O fizeram na cozinha, rindo, como se sempre tivessem compartilhado a primeira refeição do dia. O sol brilhava e o café era forte. Deborah tinha dúzias de perguntas, mas se conteve. Durante aquele momento queria que fossem apenas duas pessoas normais apaixonadas.

«Normais», pensou. Era estranho, mas sentiu que podiam sê-lo, apesar dos aspectos extraordinários de suas vidas. A única coisa que precisavam era de momentos como aqueles, que pudessem estar sentados ao sol e falar de coisas sem importância.

Quando Frank apareceu, deteve-se no umbral da cozinha e fez um gesto educado para Deborah com a cabeça.

-Precisa de algo esta manhã, senhor Guthrie?

-Ela sabe, Frank -apoiou a mão sobre a dela-. Sabe de tudo.

Um sorriso apareceu na cara séria do homem.

-Bem, já era hora -abandonou toda a fingida formalidade ao pegar uma torrada. Sentou-se à mesa semicircular, deu uma mordida no pão e acenou com a metade restante-. Eu disse para você que ela não sairia correndo quando se inteirasse de seu pequeno número de desaparecimento. É durona demais para isso.

-Obrigada -riu divertida quando a outra metade da torrada desapareceu na boca de Frank

-Conheço às pessoas -manifestou, aceitando a bandeja com bacon que Gage ofereceu -. Em minha profissão, minha antiga profissão, tinha que avaliar as pessoas com rapidez. E eu era bom, muito bom, não é verdade, Gage?

-Era sim, Frank.

- Podia ver a um amador a dois quarteirões de distância -empurrou um bocado de bacon diante de Deborah-. E você não é nenhuma amadora.

E pensar que ela o tinha catalogado como uma pessoa silenciosa. Fascinou-a o modo em que compensava o tempo perdido.

-Acompanha Gage há muito tempo -disse.

-Oito anos... sem contar o par de vezes que me encerrou.

-Sei. Vocês são como Zorro e seu amigo índio.

Ele voltou a sorrir.

-Eh, gosto dela, Gage. É perfeita. Eu disse que ela era perfeita.

-Sim, você disse. Deborah vai ficar, Frank. Gostaria de ser meu padrinho?

- Está brincando? -o sorriso de Frank não pôde ser mais amplo.

Quanto ela viu o brilho das lágrimas em seus olhos, soube que o homem já a tinha conquistado.

-Não é brincadeira - tomou a cara grande entre as mãos e lhe plantou um beijo nos lábios-. Agora, aqui está seu primeiro “beijo da noiva”.

-Eu gostaria que Deborah trouxesse algumas coisas para cá hoje mesmo -indicou Gage.

Ela baixou a vista para o roupão. Tirando aquela peça emprestada, dispunha de um vestido de noite, um par de meias e uma bolsa elegante.

-Não seria ruim -mas sua mente pensava na sala subterrânea, nos computadores, na informação que Gage tinha ao alcance dos dedos.

Não foi difícil para ele seguir a direção de seus pensamentos.

- Há alguém que possa pegar algumas das suas coisas? Frank poderia passar pelo seu apartamento para recolhê-las.

-Sim, a senhora Greenbaum. Darei um telefonema.

Em meia hora se achava de volta na sala secreta de Gage, com uma calça presa a cintura com um cinto do roupão e uma camisa branca que lhe cobria as coxas. Com as mãos nos quadris, estudou o mapa enquanto Gage explicava.

-Esses são pontos de distribuição , de importantes transações de droga. Pude rastrear os movimentos de alguns mensageiros.

-Por que não lhe deu essas informação à polícia?

Olhou-a brevemente. Nesse ponto existia a possibilidade de que jamais entrassem em acordo.

Não ajudaria em nada a aproximação até os chefes. Neste momento, trabalho sobre um padrão – aproximou de um dos computadores e lhe fez um sinal.

- Nenhum das pontos de distribuição se acha a mais de vinte quarteirões de distância. O período de tempo que demora entre as distribuições é constante -apertou algumas teclas. Uma lista de flechas apareceu na tela-. Duas semanas, as vezes três.

-Podes imprimir? -franziu o cenho, concentrada.

-Por que?

-Eu gostaria de introduzir as informações no computador de meu escritório, para ver se encontro alguma correlação.

-Não é seguro -antes de que ela pudesse discutir, tomou sua mão e a levou até outro computador. Introduziu um código e selecionou uma pasta. Deborah abriu a boca surpresa ao ver seu próprio trabalho reproduzido no monitor.

-Entrou em meu sistema -murmurou.

-A questão é que se eu posso, eles também podem. Qualquer coisa que precise, encontrará aqui.

-Estou seguindo o caminho correto? -sentou diante do computador.

Sem responder, ele introduziu outro código.

-Tem estado procurando as corporações, os diretores. Um local lógico para um começo. Quem quer que planejasse a organização, é um profissional. Há quatro anos, não dispúnhamos da informação nem da tecnologia para nos aproximar tanto, por isso tivemos que nos infiltrar pessoalmente –surgiu uma lista de nomes, alguns que Deborah reconheceu, outros que não. Todos constam como falecidos-. Não funcionou porque tinha um vazamento. Alguém que conhecia a operação passou a informação ao outro lado. Montega nos esperava e sabia que éramos policiais -Deborah sentiu um arrepio-. E também sabia todos os nossos movimentos naquela noite, de outro modo não teria como ter escapado da vigilância de nossos homens.

-Outro policial?

-É uma possibilidade. A equipe daquela noite era formada por dez homens escolhidos a dedo. Estudei cada um deles, suas contas bancárias, seus registros, o estilo de vida. Até agora, não encontrei nada.

-Quem mais sabia?

-Meu capitão, o comissário, o prefeito -moveu os ombros-. Talvez mais alguém. Nós só éramos polícias. Não nos contaram tudo.

-Quando encontrar o fio condutor, o que?

-Espero, vigio e sigo. O homem com o dinheiro me conduz ao homem no comando. E é ele quem procuro.

Ela conteve um tremor, prometendo-se que conseguiria convencê-lo de deixar que a polícia se ocupasse de tudo quando dispusessem de suficiente informação.

- Enquanto procura isso, eu gostaria de me concentrar nos nomes e nos vínculos comuns.

-De acordo - acariciou o cabelo e apoiou a mão em seu ombro-. Este computador é similar ao que usa em seu escritório. Tem mais algumas coisas...

-Como sabe? -interrompeu.

-Saber que?

-Qual o computador que eu tenho em meu escritório.

-Deborah... – viu-se obrigado a sorrir-. Não há nada sobre você que não saiba.

-Encontrarei meu nome em de seus computadores? -incomodada, afastou-se um pouco.

- Encontrará. Fiquei dizendo para mim mesmo que era uma busca corriqueira, mas na verdade é que estava apaixonado de você e almejava cada detalhe. Sei quando nasceu, até o minuto, e onde. Sei que quebrou o pulso quando caiu de uma bicicleta quando tinha cinco anos de idade, que foi viver com sua irmã e seu marido quando seus pais morreram. E que quando sua irmã se divorciou, foi com ela para Richmond, Chicago, Dallas. E por fim Denver, onde graduou-se na universidade em três anos, com louvor. Recusou as ofertas de quatro dos melhores escritórios de advocacia do país para aceitar pelo escritório da promotoria em Urbana.

- É algo raro escutar uma versão resumida de minha vida.

- Há algumas coisas não pude averiguar com o computador -«as importantes», pensou. «As vitais»-. O cheiro de seu cabelo, a cor azul profunda que adquire seus olhos quando fica irritada com alguma coisa ou excitada. O que me faz sentir quando me toca. Não negarei que invadi sua intimidade, mas não me desculparei.

-Não, não o fará -suspirou-. E suponho que não posso me senti muito ofendida, já que eu também pesquisei sua vida.

-Eu sei -sorriu.

-De acordo -riu-. Vamos trabalhar.

Mal tinham posto mãos a obra quando soou um dos três telefones que se encontravam ali. Deborah nem olhou a Gage quando ele respondeu.

-Guthrie.

-Gage, é Frank. Estou no apartamento de Deborah. Será melhor vocês virem aqui.

 

Com o coração batendo-lhe de forma errática, Deborah saiu correndo do elevador e avançou pelo corredor um passo adiante de Gage. O telefonema de Frank os tinha feito cruzar a cidade no Aston Martin dele num tempo recorde.

A porta se encontrava aberta. Ficou sem chão ao se deter no umbral e ver a destruição que tinham provocado. As cortinas rasgadas, as recordações pisadas e amassadas, as mesas e as cadeiras quebradas sobre o chão. Soltou um gemido antes de ver a Lil Greenbaum apoiada nos restos do sofá destroçado, com o rosto de uma palidez mortal.

-Oh, Deus –afastando os objetos enquanto se aproximava, correu para cair de joelhos a seu lado-. Senhora Greenbaum...- lhe tomou as mãos frias e frágeis.

Lil abriu as pálpebras finas e seus olhos míopes se esforçaram para centrar a imagem sem a ajuda dos óculos.

-Deborah -ainda que tivesse a voz débil, conseguiu esboçar um leve sorriso-. Nunca teriam conseguido se não tivessem me surpreendido.

-Lhe feriram -olhou para Frank quando este saiu do dormitório com um travesseiro-. Chamou uma ambulância?

- Ela não me deixou -com gentileza deslizou o travesseiro sob a cabeça de Lil.

-Não era preciso. Odeio os hospitais. Só é um galo na cabeça -apertou a mão de Deborah.

-Quer me ver louca de preocupação? -apoiou dois dedos em seu pulso para comprovar-lhe as pulsações.

-Seu apartamento está em piores condições do que meu.

-É fácil substituir coisas. Mas, como ia substituí-la a você? - beijou os dedos rugosos-. Por favor. Faça-o por mim.

-Está bem -suspirou, derrotada-. Deixarei que me examinem. Mas não ficarei no hospital.

-Perfeito -se voltou, mas Gage já estava com o fone no ouvido.

-Não tem linha.

-O apartamento da senhora Greenbaum é na frente do meu.

Gage lhe fez um gesto com a cabeça a Frank.

-As chaves... -começou Deborah.

-Frank não precisa chaves -chegou para se colocar em joelhos ao seu lado-.Senhora Greenbaum, pode nos contar o que aconteceu?

-Eu o conheço, não é verdade? -o estudou, entrecerrando e abrindo os olhos até que poder focá-lo-. Ontem à noite veio pegar Deborah vestido com um smoking. Sabe beijar.

-Obrigado.

-Você é o que está forrado de dinheiro, não?

-Isso é -apesar do galo na cabeça, a mente parecia funcionar bem.

-Ela gostou das rosas. Se derreteu toda...

-Senhora Greenbaum, não tem que se esforçar para nos unir.., já nos ocupamos disso. Conte-nos o que passou com você

- Fico contente em saber disso, os jovens de hoje perdem bastante tempo.

-Senhora Greenbaum.

- Certo. Certo. Tinha a lista de coisas que me pediu. Estava em seu dormitório, procurando no guarda roupa. A propósito, muito organizado - disse a Gage-. A garota é muito bem educada.

-Fico aliviado em saber.

-Estava sacando o traje azul de riscas quando ouvi um ruído atrás de mim-fez uma careta, mais envergonhada do que comocionada-. Eu teria escutado algo se não tivesse ligado o rádio. Eu estava me virando quando alguém me acertou na cabeça.

Deborah baixou a cabeça até apoiá-la na mão de Lil. As emoções ferviam em seu interior. Fúria, terror, culpa. «É uma mulher idosa», pensou enquanto lutava por manter o controle. «Que classe de gente golpeia a uma mulher de setenta anos?».

- Eu sinto muito- murmurou-Sinto tanto.

-Não foi culpa sua.

-Sim -levantou a cabeça-. Tudo foi por minha culpa. Tudo. Sabia que estavam atrás de mim, e pedi para que viesse aqui. Não pensei. Não pensei.

-Esta dizendo tolices. Foi a mim que golpearam, posso assegurar que estou furiosa. Se não me tivessem surpreendido, teria posto em prática algumas de minhas aulas de karate. Não se passaram tantos anos assim da época que eu podia derrubar o senhor Greenbaum, e ainda estou em forma -levantou a vista quando entraram os enfermeiros-. Santa mãe do Céu! -adicionou com desagrado-. Agora sim estou em apuros.

Com o braço de Gage em torno dos ombros, Deborah se afastou enquanto Lil dava ordens aos enfermeiros, queixando-se de cada coisa que faziam. Continuava resmungando quando a deitaram sobre a maca e a levaram.

-Lá vai uma mulher de fibra -comentou ele.

-É a melhor -quando sentiu as lágrimas ameaçarem cair, mordeu os lábios-. Não sei o que faria se...

-Vai ficar bem. Tem o pulso forte e a mente despojada - apertou um ombro e se voltou para Frank-. O que aconteceu?

- Não estava fechada quando cheguei -com o dedo apontou para a porta-. Usaram um pé de cabra para forçá-la. Ao entrar encontrei isso -indicou o caos da sala-. Dei uma olhada na casa toda antes de chamá-lo. Encontrei senhora no quarto. Começava a recuperar os sentidos. Tentou me golpear - sorriu para Deborah-. É uma anciã dura na queda. A acalmei e depois os chamei -apertou os lábios. Teve uma época que não teria descartado arrancar a bolsa de uma anciã, mas jamais tinha atingido a uma. Creio que não os encontrei por dez ou quinze minutos - fechou seus grandes punhos - Caso contrário, não teriam saído daqui.

-Quero que faça algumas coisas -Gage assentiu, voltou-se para Deborah e lhe tomou o rosto entre as mãos-. Frank vai chamar a polícia -explicou, sabendo como funcionava a mente dela-. Por enquanto, porque não procura alguma coisa que possa precisar para amanhã?

-Vou ver o que consigo -aceitou porque precisava um momento a sós. No dormitório, levou-se as mãos à boca. Na destruição de seu andar tinha ódio e uma organização fria que conseguia que o ato fosse mais aterrorizador.

Havia roupas rasgadas, garrafas e frascos antigos que tinha colecionado ao longo dos anos estavam quebrados e achatados sobre montes de seda e algodão. Tinham destruído sua cama e talhado palavras obscenas na escrivaninha com uma faca. Tinham despedaçado todas as suas posses.

Ajoelhou-se e recolheu alguns pedaços de papel. Outrora tinha sido uma fotografia, uma de sua família que tinha guardado.

Gage entrou em silêncio. Passado um momento, ajoelhou junto a ela e apoiou uma mão em seu ombro.

-Deborah, deixa que eu te tire daqui.

-Não restou nada -apertou os lábios, decidida a não fazer que a voz soasse trêmula-. Sei que são apenas objetos, mas não sobrou nada -devagar fechou os dedos em torno da fotografia-. Meus pais... -moveu a cabeça, depois afundou o rosto no ombro dele.

A fúria que dominava Gage era uma chama intensa em seu peito. Abraçou-a enquanto prometia a si mesmo que encontraria os homens que a tinham machucado daquele modo.

-Eles pagarão por isso- afirmou- Eu juro.

-Sim, eles pagarão por isso -quando levantou a cabeça, ele viu que a dor tinha se transformado em fúria-. Não importa o que eu tenha que fazer, vou encontrá-los - jogou o cabelo para trás e levantou-. Se eles estavam pensado que conseguiriam me assustar com isto, vão ficar desiludidos –jogou para o lado, com os pés, os restos de seu vestido vermelho preferido-. Vamos arrumar isso.

 

Passaram horas na gruta da casa, comprovando dados, introduzindo mais. Quase não falaram. Não era necessário. Talvez, pela primeira vez, seus objetivos se fundiam e suas diferenças de pontos de vista já não pareceriam importar.

Deborah tinha deixado de se amaldiçoar quando se deparava com um beco sem saída; então retrocedia de forma meticulosa, com uma paciência que não sabia que possuía. Quando soou o telefone, nem sequer o escutou. Gage teve que pronunciar seu nome duas vezes antes de que saísse de seu transe concentrado.

-Sim, o que?

-É para você -estendeu o fone-. Jerry Bower.

Com o cenho franzido pela interrupção, aproximou-se.

-Jerry.

-Meus Deus, Deborah, você está bem?

- Estou. Como sabia onde me encontrar?

-Levo horas tentando localizar você para saber como se sentia depois do que aconteceu ontem à noite. Por fim final decidi passar pela sua casa. Me deparei com a polícia e esse miserável de Wisner. Seu apartamento...

-Eu sei. Eu não estava presente.

-Graças a Deus. Que diabos está acontecendo, Deb? Supõe-se que na Prefeitura devemos estar a par dessas coisas, mas me sinto como se boxeasse em meio a escuridão. O prefeito vai estourar quando saber do ocorrido. O que vai falar com ele?

-Direi para que ele se concentre nos debates da próxima semana - esfregou a têmpora-. Eu já conheço qual é sua postura e ele conhece a minha. Só vai conseguir se enlouquecer se tentar dar uma de juíz.

-Olhe, trabalho para ele, mas você é minha amiga. Talvez tenha. algo que eu possa fazer.

-Não sei -observou as luzes que piscavam no mapa-. Alguém me enviou uma mensagem, alta e clara, mas ainda não descobri como devolve-la. Pode dizer isto ao prefeito. Se eu consegui desentranhar quem anda por trás de tudo, vai ganhar as eleições por maioria.

-Suponho que tenha razão -aceitou Jerry pensativo-. Talvez essa seja a melhor maneira dele sair de cima de você. Mas tenha cuidado, certo?

-Sim – desligou o telefone, depois moveu o pescoço tentando diminuir a rigidez.

-Não me importaria em por um anúncio de uma página no World para se tornar público nosso compromisso -disse Gage, olhando-a.

Confusa, ela piscou. Depois soltou uma gargalhada.

-Jerry? Não seja bobo. Somos apenas amigos.

-Mmm.

Deborah sorriu, depois se aproximou para rodear sua cintura com os braços.

-Neste momento me viria a calhar um de nossos beijos.

-Suponho que ainda lhe resta algum -baixou a cabeça.

Quando seus lábios se encontraram, ela sentiu que a tensão desaparecia de seu corpo. Com um murmúrio, acariciou-lhe as costas, relaxando os músculos tal como a boca dele a relaxava.

-Lamento interromper -Frank apareceu pelo túnel com uma bandeja na mão-. Mas como trabalham tanto... sorriu-. Imaginei que seria bom se alimentarem um pouco para renovar suas forças.

-Obrigado -Deborah se afastou de Gage e cheirou o aroma-. Deus meu, que é isso?

-Meu chile especial com costelas - piscou um olho-. Acredite, a manterá desperta.

-O cheiro é espetacular!

-Aproxime-se. Trouxe um duas cervejas, um garrafa com café e uns pedaços de queijo.

Deborah aproximou-se da cadeira.

-Frank, você é um homem entre homens -ele se ruborizou. Ela provou a comida, queimou sua língua, sua garganta e por fim seu estômago-. E isto -acrescentou com verdadeiro prazer- é um chile autêntico.

-Fico contente que goste -Frank moveu os pés-. Coloquei à senhora Greenbaum no quarto dourado -informou a Gage-. Pensei que ela iria gostar da cama com dossel e tudo aquilo. Levei um pouco de sopa de frango e a deixei vendo King Kong no vídeo.

-Obrigada, Frank -Gage afundou a colher em seu prato de chile.

-Chamem se precisarem de algo.

- Fez que a trouxessem para cá? -perguntou ela esperando que Frank se afastasse pelo túnel.

-Não estava gostando do hospital - encolheu de ombros-. Frank falou com o médico. Só tinha uma contusão leve, que é um milagre para alguém de sua idade. Tem o coração forte como o de um elefante. O único que precisa é tranqüilidade e alguns mimos durante um tempo.

- Desse modo a trouxe para cá.

-Não podia deixá-la sozinha.

-Te amo tanto -inclinou e deu um beijo em seu rosto.

 

Quando terminaram e regressaram para o trabalho, Deborah não pôde deixar de pensar nele. Era um homem tão complicado. Arrogante como o diabo quando lhe convinha, rude quando queria e tão suave e sedutor quanto um poeta irlandês quando tinha vontade. Dirigia um negócio multimilionário. E durante a noite percorria as ruas para encarregar-se de ladrões, delinqüentes e estupradores. Era o amante com que sonhavam todas as mulheres. Romântico, erótico, mas sólido e confiável como o granito. No entanto, em seu interior levava algo intangível que lhe permitia desvanecer-se como fumaça e deslizar como uma sombra pela noite.

Moveu a cabeça. Ainda não estava preparada para pensar naquele aspecto dele.

Endireitou os ombros e multiplicou a concentração. Quando os números se embaralhavam na sua frente, bebia mais um gole de café. Já tinha localizado mais meia dúzia de nomes que tinha certeza que figurariam em certificados de óbitos.

Parecia inútil. Mas até que se esgotasse aquele caminho, ela não dispunha de outro. Por isso continuou tentando. De repente se deteve com a vista fixa na tela. Com cautela, retrocedeu duas páginas. Conteve um sorriso, temerosa de acreditar que por fim tinha conseguido alguma coisa. Depois de mais cinco minutos de trabalho meticuloso, chamou a Gage.

-Acredito que tenha encontrado algo.

Ele também, mas decidiu guardar a informação.

- O que?

- Este número -quando ele se inclinou sobre seu ombro, Deborah o assinalou na tela com um dedo-. Está se misturando com os número da corporação, com os números da receita e os demais números identificativos da empresa - quando Gage lhe massageou os ombros, ela se reclinou agradecida-. A propósito, ao que parece, se trata de uma empresa em bancarrota. Está fechada dezoito meses. Agora olhe isto -adiantou uma folha na tela-. Uma empresa diferente, com localização diferente, com nomes e números diferente. Com exceção.., deste – circulou o número no monitor-. Aqui todos os dados são diferentes, mas o número é o mesmo. E aqui -voltou a mostrar uma página depois de outra-. É o número da empresa em um, o do ramo da empresa em outro, aqui o número da fazenda diferente, e aqui um outro número.

-O número da segurança social -murmurou Gage.

- O que?

-Nove dígitos. Diria que se trata do número da segurança social. -se dirigiu com rapidez ao painel de controle

- Que vais fazer?

-Averiguar a quem pertence.

-Como? -a irritou que não parecesse tão entusiasmado a respeito de seu achado. Seus olhos estavam a ponto de saltarem da órbitas e ele não lhe dava nem uma palmadinhas nas costas!- Como vai fazer?

-Parece que vale a pena recorrer à fonte principal -a tela começou a piscar.

-E qual é?

-Receita.

-Recei... -se levantou num salto-. Quer dizer que tem acesso aos computadores da Receita Federal?

-Acho que podemos dizer que é isso – achava-se concentrado no painel-. Quase o tenho.

-É ilegal. Um delito federal.

-Mmm. Me recomenda um bom advogado?

-Não é uma brincadeira -juntou as mãos.

-Não -mas sorriu ao seguir a informação na tela-. Muito bem, já estamos dentro -a olhou. Em sua cara viu com clareza a guerra interna que mantinha-. Se quiser pode ir lá para cima até que eu termine.

-Isso merece muita importância. Sei o que está fazendo. Isso faz de mim cúmplice. -fechou os olhos e viu a Lil Brown estendida sobre seu sofá rompido-. Siga em frente -apoiou uma mão no braço dele-. Estamos juntos nisto -Gage introduziu os números que Deborah tinha encontrado, apertou alguns teclas e esperou. Um nome piscou na tela-. Oh, Deus -fincou os dedos em seu ombro.

Nesse momento ele parecia de pedra, sem mover-se, quase sem respirar

-Tucker Fields -murmurou-. Filho de puta

Então se moveu com tanta agilidade que Deborah perdeu o equilíbrio. Com força nascida do desespero, o agarrou.

-Não. Não pode -viu que seus olhos ardiam, tal como os tinha visto por trás da máscara. Estavam cheios de fúria e de determinação assassina-. Sei o que quer -afirmou-. Quer ir procurá-lo agora mesmo. Quer despedaçá-lo com suas próprias mãos. Mas não pode. Não é o modo.

-Vou matá-lo -expôs com voz gelada-. Entenda. Nada vai me deter.

Deborah soube que, se o deixasse sair naquele momento o perderia.

-E dai se conseguir? Isso não vai trazer Jack de volta. Não vai modificar o que aconteceu com você. Nem vai acabar com aquilo que ambos iniciaram aquela noite nos ancoradouros. Se matar Fields, alguém o substituirá, e o negócio continuará. Precisamos romper a espinha dorsal da organização, Gage, expor tudo à luz pública para que todo mundo fique sabendo. Se Fields é o responsável...

-Se?

Ela respirou fundo, sem soltá-lo.

-Ainda não dispomos de provas suficientes. Posso construir um caso se me der tempo para capturá-los a todos.

-Deus meu, Deborah, vai me fazer acreditar que vai levá-lo diante dos tribunais? Um homem com tanto poder? Ele vai escorrer por entre seus dedos como se fosse areia. Quando começar a investigação ele saberá se proteger.

 

-Então será você que deve realizar a investigação e eu o distrairei. Vou fazê-lo crer que sigo uma pista equivocada-falou com rapidez, desesperada por convencê-lo e salvar ambos-. Farei que acredite que sigo uma pista errada. Gage, devemos ter certeza. Temos que está seguros.Tem que compreender. Se você for atrás dele agora, tudo aquilo pelo qual trabalhou, tudo que iniciamos juntos, ficará destruído.

-Tentou matar você -lhe tomou o rosto entre as mãos-. Não entende que nada, até mesmo a morte de Jack, não selaria com mais certeza sua pena de morte?

-Estou aqui, com você –agarrou suas mãos-. É isso que importa. Temos mais trabalho que fazer para demonstrar no que Fields está envolvido, para averiguar até onde chega a linha de corrupção. Receberá justiça, Gage, lhe prometo.

Devagar, ele relaxou. Deborah tinha razão... ao menos em alguns aspectos. Matar a Fields com suas próprias mãos teria sido satisfatório, mas não fecharia o trabalho que ele tinha começado. Podia esperar. Tinha que desenterrar outra pedra, e só dispunha de uma semana para conseguí-lo.

-Certo -viu como ela recuperava a cor-. Não queria assustar você.

-Espero que nunca o queiras, por que me deu uma belo susto -conseguiu esboçar um sorriso trêmula-. Como já quebramos uma lei federal, por que não damos um passo a mais e estudamos as declarações da renda do prefeito desses últimos anos? -em poucos minutos se encontrava sentada junto a Gage ante a consola-. Quinhentos sessenta e dois mil dólares -murmurou ao ler os rendimentos declarados de Fields do último ano-. Supera um pouco o salário habitual de um prefeito de Urbana.

-Não acredito que ele seria tão estúpido de declará-lo -Gage retrocedeu um ano-. Imagino que terá o dobro em alguma conta na Suíça.

-Pessoalmente, jamais fui com a cara dele-comentou Deborah-. Mas sempre o respeitei -se pôs de pé para caminhar-. Quando penso no cargo que ostentou, em linha direta com a polícia, com o escritório do promotor, com empresários. Nada passa em Urbana sem que ele saiba. Quantos servidores públicos estarão em seu contra-cheque, quantos policias, ou juízes?

-Acredita que tem tudo controlado –se afastou dos equipamentos-. O que me diz de Bower?

-Jerry? -suspirou e esfregou o pescoço tenso-. Leal até a medula, e com aspirações políticas próprias. Podia deixar passar algumas maquinações, mas nada tão grande como isto. Fields foi o bastante inteligente para eleger alguém jovem e ambicioso, com um bom histórico e uma reputação sem falhas -moveu a cabeça-. Sinto me mal por não deixa-lo a par de tudo o que está acontecendo.

-Mitchell?

-Não, apostaria minha vida por Mitch. Está a muito tempo na promotoria. Jamais foi um admirador de Fields, mas respeita o cargo. Segue as regras porque acredita nelas. Inclusive paga as multas de estacionamento. O que está fazendo?

-Não fará mal confirmar.

Para consternação de Deborah, sacou as declarações de Jerry e depois as de Mitchell. Ao não encontrar nada anormal, dirigiu-se a outro equipamento.

-Podemos revisar as contas bancárias. Precisamos uma lista de pessoas que trabalha na prefeitura, na polícia, na promotoria -a olhou-. Sua cabeça dói.

-Um pouco -esfregou as têmporas.

-Trabalhou muito -apagou os computadores.

-Estou bem. Temos muito que fazer

-Já fizemos muito – amaldiçoou-se por pressioná-la tanto-. Um par de horas de descanso não alterará nada -lhe rodeou a cintura com o braço-. O que acha de uma banho quente e um cochilo?

-Mmm -apoiou a cabeça em seu ombro e se puseram a andar pelo túnel-. Me soa estupendo.

-E uma massagem de costas.

-Sim. Oh, sim.

-E aquela massagem nos pés que lhe devo faz algum tempo.

-Por que não? -sorriu.

Deborah estava meio adormecida quando atravessaram o painel do dormitório de Gage. Conteve um bocejo e observou as caixas que atestavam a cama.

-Que é tudo isso?

-Neste momento, só tem minha camisa para vestir. E ainda que eu goste...-baixou um dedo pelos botões-... e muito, pensei que você gostaria de dispor de algo mais. Dei uma lista a Frank. É muito eficiente.

-Frank? Mas é domingo. A metade das lojas estão fechadas -se levou a mão ao estômago-. Meu Deus, ele não as roubou não é?

-Não o creio nisso -riu e a tomou em braços-. Como vou viver com uma mulher de uma honestidade tão escrupulosa? Não, estão pagas, juro. Nada tão difícil, só teve que fazer alguns telefonemas. Verá que as caixas são de Athena.

Ela assentiu. Era umas das grandes lojas exclusivas da cidade. Então compreendeu.

-É o proprietário

- Culpado -a beijou-. O que não gostar eu posso devolver.. Mas acho que conheço seu estilo e seu número

-Não tinha que fazer isso.

-Não foi uma tentativa de usurpar tua independência, advogada.

-Não -respondeu um pouco incomodada-. Mas...

-Seja prática. Qual seria a impressão que daria a seus companheiros se aparecesse em seu escritório com minhas calças? - afrouxou o cinto e a calça deslizou até o chão.

-Seria um escândalo -admitiu com um sorriso quando ele a ergueu em braços e a depositou junto as roupas.

-E com minha camisa -começou a desabotoá-la.

-Ridículo. Tem razão, foi muito prático - imobilizou suas mãos antes que pudesse distraí-la-. Eu lhe agradeço. Mas não me parece certo que compre roupas para mim.

- Podes pagar. Ao longo dos próximos setenta anos - ergueu o queixo antes que pudesse protestar-. Deborah, tenho mais dinheiro do que pode precisar um homem. Você está disposta a compartilhar meus problemas, então, é lógico que quero que compartilhe minha fortuna.

-Não quero que pense que o dinheiro seja importante para mim, que faça alguma diferença sobre os sentimentos que tenho por você.

-Sabe? -a estudou pensativo-, não pensei que lhe pudesse ocorrer algo tão estúpido -quando sorriu, ela suspirou.

-É estúpido. Amo você, apesar de ser dono de hotéis, de edifícios e de grandes lojas. E se não abrir uma dessas caixas, vou-me ficar louca.

-Pois então mantenha sua sensatez enquanto eu preparo seu banho.

Ela escolheu uma a esmo e tirou a tampa. Sob o envoltório, encontrou uma camisola longa e fina de tom azul.

-Ora -a levantou e notou que as costas chegava até embaixo da cintura-. Frank tem olho para a lingerie. Fico me perguntando que dirão no escritório se eu aparecer lá vestida assim.

Incapaz de resistir, tirou a camisa e deixou que a seda fresca deslizasse por sua cabeça e seus ombros. Passou as mãos pelos quadris e comprovou que tinha ficado perfeito. Super feliz, voltou-se para o espelho no momento em que Gage regressava.

Ele não foi capaz de falar, muito menos de desviar o olhar de cima dela. Os olhos de Deborah eram escuros como a meia-noite e brilhavam com um secreto prazer feminino

Sorriu devagar. Existiria alguma mulher viva nesse mundo que não sonhasse com o homem que amava a olhando com uma ânsia tão manifesta? Sedutora, inclinou a cabeça e passou os dedos pelo centro do camisola observando como Gage seguia seus movimentos.

-O que acha?

-Creio que Frank merece um aumento.

Enquanto Deborah ria, Gage se aproximou.

 

Durante três dias e três noites seguidas, trabalharam juntos. Peça a peça foram reunindo um caso contra Tucker Fields. No escritório, Deborah seguia caminhos que sabia que não a conduziriam a nenhuma parte, centrada em deixar uma pista falsa.

Enquanto trabalhava, seguia convivendo com sua batalha particular de ética contra instinto.

Cada noite, Gage saía da cama, vestia-se de negro e percorria as ruas. Não falavam disso. Percebia que as vezes Deborah ficava desperta, nervosa e ansiosa até que regressasse antes do amanhecer, nunca lhe ofereceu desculpas. Não poderia lhe dar nenhuma.

A imprensa seguia falando das façanhas de Némesis. Essas atividades secretas e noturnas se interpunham entre eles como um muro sólido e silencioso que nenhum dos dois podia colocar a baixo.

Ela o entendia mas não podia concordar com o que ele fazia.

Ele a entendia mas não podia ceder.

Ainda que trabalhassem na conclusão de um objetivo em comum, suas crenças individuais os obrigavam a se colocarem um contra o outro.

«Quando vai terminar?», perguntou ela no escritório. «Quando vai parar? Quanto tempo poderiam continuar fingindo que sua relação, seu futuro, podiam ser normais?».

Com um suspirou teve que reconhecer que ele não fingia. Mas ela sim.

-O'Roarke -Mitchell plantou uma pasta sobre sua mesa-. A cidade não lhe paga um salário espetacular para que sonhe acordada.

Deborah olhou a pasta que acabava de aterrissar sobre as demais.

-Não creio que sirva de muita coisa recordar você que os casos que tenho já bateram todos os recordes da cidade.

-Igual que o nível de delinqüência -como parecia cansada, dirigiu-se à cafeteira para servir-lhe uma xícara-. Talvez se Némesis descansasse um pouco não estaríamos tão pressionados.

-Isso pareceu um elogio -franziu o cenho enquanto bebia um gole de café.

-Só exponho os fatos. Não tenho que aprovar seus métodos para que goste dos resultados.

-Fala sério? -o olhou surpresa.

-Esse tal que queria copiar o Jakc- estripador já tinha quatro mortes e ia fazer sua quinta vítima quando Némesis o encontrou. É difícil queixar-se quando alguém, inclusive um mascarado, nos entrega um demente assim e salva a vida de uma jovem de dezoito anos. Isso não significa que vá comprar-me uma camiseta e me unir ao clube de admiradores -sacou um charuto e pôs a brincar com ele entre os dedos-. E então, tem algum progresso no seu caso favorito?

-Ainda tenho uma semana- encolheu os ombros em um gesto evasivo.

-É obstinada, O'Roarke. Eu gosto disso.

-Isso sim que foi um elogio -ergueu as sobrancelhas.

-Que não suba à cabeça. O prefeito segue não muito contente com você... e as enquetes mostram que o povo o quer. Se amanhã nos debates derrotar a Tarrington, poderá encontrar dificuldades no caminho até as próximas eleições.

-O prefeito não me preocupa.

-Como queira. Wisner segue escrevendo sobre ti -ergueu uma mão antes de que ela pudesse rugir-. Estou tentando conter Fields, mas se conseguisses manter seu nome fora das manchetes...

-Sim, fui uma estúpida fazendo que destroçassem meu apartamento.

-Certo, certo. -teve a graça de ruborizar-. Todos lamentamos isso, mas se pudesse tratar de se manter afastada dos problemas por um tempo, faria que fosse mais fácil para todos.

-Vou me acorrentar a mesa -soltou com os dentes apertados-. E quanto tiver a oportunidade, vou a dar um pontapé em Wisner.

-Entre na fila -Mitchell sorriu - Comunica-me se precisar de alguns dólares adicionais antes que te paguem o seguro.

-Graças, mas eu me arrumo -olhou as pastas-. Além do que, com tudo isto, quem precisa de um apartamento?

Quando a deixou sozinha, Deborah abriu a pasta do novo caso. E apoiou a cabeça entre as mãos. Não era uma ironia do destino que lhe tivessem atribuído o julgamento do Estripador do East End? Sua principal testemunha, seu amante, era o homem com quem nem sequer podia falar do assunto.

 

As sete, Gage a esperava num canto calmo de um restaurante francês colado ao Parque da Cidade. Sabia que o caso se aproximava-se de seu fim e que, quando este chegasse, teria que lhe explicar a Deborah por que não tinha confiado nela em todos os seus detalhes.

Se sentiria maluca e furiosa, e com razão. Mas a preferia dessa maneira, e viva. Era bem consciente do dificuldades que tinham sido para ela o últimos dias. Se tivesse escolha, teria dado todo, incluída sua consciência, para mantê-la feliz.

Mas não a tinha nem a tinha tido desde que saira do coma.

Não poderia fazer nada salvo dizer e demonstrar quanto a amava. E esperar que entre as poderosas e opostas forças que os moviam pudesse existir um compromisso.

A viu chegar, esbelta e adorável com um traje da cor safira. Perguntou-se se embaixo levaria lingerie de seda. Experimentou o impulso de averiguar.

- Lamento o atraso -começou, mas antes de que o garçom afastasse a cadeira, Gage se levantou para aproximar e lhe dar um beijo pouco discreto e nem um pouco rápido. Antes de que a soltasse, os clientes mais próximos os olhavam com curiosidade e inveja. A deixou com as pálpebras pesadas e o corpo vibrando-. Me... alegro muito de não ter chegado a tempo.

-Trabalhou até tarde -tinha olheiras, algo que odiava, porque sabia que ele era o causador.

-Sim -ainda sem ar, sentou-se-. Justo antes das cinco me entregaram outro caso.

-Algo interessante?

-O Estripador do East End -o olhou sem pestanejar.

-Compreendo

- Compreende mesmo, Gage? Eu não estou tão segura -apartou a mão da dele e a apoiou no colo-. Pensei em recusa-lo, mas, que razão teria podido alegar?

-Não há nenhuma, Deborah. Eu o detive, mas é seu trabalho encarregar-se de que ele pague por seus delitos. Uma coisa não tem que interferir com a outra.

-Queria estar segura disso. Uma parte de mim considera você como um vingador público, a outra como um herói.

-E a verdade está em alguma parte intermediaria -voltou a lhe tomar a mão-. Sem importar onde me encontre, amo você.

-O sei -lhe apertou os dedos-. Sei-o, mas, Gage... -calou quando o garçom levou o champanhe que ele tinha pedido enquanto a esperava.

-A bebida dos deuses -afirmou o garçom com um forte acento francês-. Para uma celebração, n'est-ce pas? Uma bela mulher. Uma bebida deliciosa -ante a aprovação de Gage, desarrolhou a garrafa-. Monsieur o provará? -lhe serviu uma pequena quantidade.

-Excelente -murmurou com os olhos fincados em Deborah.

-Mais, oui -lhes encheu as taças-. Monsieur tem um gosto extraordinário.

Quando o garçom foi embora com uma leve inclinação de cabeça, ela riu contra a vontade e encostou sua taça na de Gage.

-Também é dono deste lugar?

-Não. Gostaria de tê-lo?

Ainda que o negasse com a cabeça, teve que rir.

-Estamos celebrando algo?

-Sim. Esta noite. E pelo amanhã -sacou um pequeno estojo de veludo do bolso e lhe ofereceu. Quando ela só o olhou, Gage tenciono os dedos, dominado pelo pânico, ainda que manteve a voz rápida-. Você me pediu para que eu casasse com você, mas imaginei que o privilégio teria que ser meu.

Deborah abriu o estojo. À luz de vela, a safira central brilhava em um azul profundo e denso. Rodeando a pedra quadrada tinha uma carreira de diamantes de um branco neve. Cintilaram em glória no engaste de ouro claro.

-É extraordinário.

Tinha eleito as pedras em pessoa, mas tinha esperado ver prazer nos olhos dela, não medo. Ele também não tinha esperado sentir temor.

- Tem dúvidas?

Ela o olhou e falou com clareza.

-Não sobre o que sinto por você. Isso nunca. Mas tenho medo, Gage. Tentei fingir que não, mas não posso. Não só pelo que faz, mas sim porque isso pode tirar você da minha vida.

Não queria fazer promessas que fossem impossíveis de cumprir.

-Por algum motivo saí do coma assim. Não posso oferecer a você lógica e dados a respeito, Deborah. Só sensações e instintos. Se eu der as costas ao que devo fazer, voltaria a morrer.

-Acredita nisso? -o protesto automático morreu em sua garganta.

-Eu sei.

 

Como podia olhá-lo nos olhos e não o ver? Quantas vezes o tinha olhado nos olhos e visto.., algo? Diferente, especial, aterrorizador. Sabia que Gage era de carne e osso, mas também era mais. Não seria possível modificar isso. E pela primeira vez se deu conta de que também não o desejava.

-Me apaixonei por você duas vezes. Me apaixonei por ambas facetas -contemplou o anel, tirou-o do estojo e em sua mão resplandeceu como o relâmpago-. Até então, estava segura de meu caminho, do que queria e precisava, daquilo pelo que me esforçava. Estava convencida de que quando me apaixonasse seria por um homem calmo e caseiro –lhe estendeu o anel-. Me equivoquei. Não voltou apenas para lutar pela justiça, Gage. Voltou para mim -sorriu e estendeu a mão-. Graças a Deus.

Ele deslizou o anel em seu dedo.

-Quero levá-la para casa -no momento que lhe beijava os dedos, o garçom voltou junto à mesa.

-Eu sabia. Henri nunca se equivoca - encheu as taças com grande cerimônia-. Escolheram minha mesa, e escolheram bem. Devem deixar o cardápio por minha conta. Farei que desfrutem de uma noite que jamais esquecerão. Será uma honra. Ah, monsieur, é você um homem afortunado -tomou a mão de Deborah e lhe plantou um beijo ruidoso.

Ela ainda ria enquanto se afastava, mas ao olhar a Gage soube que tinha a atenção em outro lugar.

-Que houve?

-Fields -ergueu a taça, mas seus olhos seguiram o avanço do prefeito pela sala-. Acaba de entrar com Arlo Stuart e outras duas personalidades, com seu amigo Bower na retaguarda.

Tensa, Deborah girou a cabeça. Dirigiam-se para uma mesa para oito. Reconheceu a uma atriz importante e o presidente de uma fábrica de automóveis.

-Reunião de poder -murmurou.

-Tem representantes no mundo do teatro, na indústria e nas finanças. Antes de que acabe a noitada, aparecerá alguém para tirar algumas fotos ...”inesperadamente”.

-Não importa -cobriu a mão de Gage-. Dentro de uma semana, não importará.

«Em menos tempo», pensou, mas assentiu.

- Stuart se aproxima.

-Ora -Stuart plantou uma mão no ombro de Gage-. Que agradável coincidência. Está radiante como sempre, senhorita O'Roarke.

-Obrigada.

-Estupendo restaurante. Oferecem os melhores scargots da cidade - sorriu para os dois-. Odeio jantar enquanto se fala de negócios e política. Mas elegeram a combinação perfeita, champanhe e luz de velas -sua aguda mirada posou na mão direita de Deborah-. Bonita aliança - sorriu para Gage-. Uma declaração?

-Nos surpreendeu em pleno ato, Arlo.

-Fico contente de saber. Passe a lua de mel em um de meu hotéis - piscou um olho para ela-. A convite da casa -sem deixar de sorrir, fez um sinal a Fields. - Penso que não faria dano a imagem do prefeito ser um dos primeiros em felicitar o principal homem de negócios da cidade e a promotora mais valorizada.

-Gage, Deborah -ainda que o sorriso de Fields fosse ampla, seu gesto foi rígido-. Alegra-me vê-los. Se ainda não pediram, talvez gostariam de se unir a nós.

-Esta noite não -indicou Stuart antes de que Gage pudesse contestar-. Temos a um casal novo, Tuck. Não querem desperdiçar a noite falando de estratégias de campanha.

-Felicidades -Fields observou o anel na mão de Deborah, sem deixar de sorrir. - Eu não tinha idéia.

-Gostaria de pensar que fomos nós quem os unimos -sempre exuberante, Stuart passou um braço pelo ombro de Fields-. Depois de tudo, conheceram-se em meu hotel durante a festa para arrecadar fundos para sua campanha.

-Creio que isso nos converte numa família grande e feliz -Fields olhou a Gage. Precisava o apoio de Guthrie-. Vai se casar com uma mulher estupenda, uma advogada muito dura. Deu-me algumas dores de cabeça, mas admiro sua integridade.

-Eu também -respondeu Gage com voz distante mas educada.

 

-Eu admirei mais do que sua integridade -riu Stuart, piscando um olho para ela-. Não se ofenda. Agora voltaremos a falar de política e os deixaremos a sós.

-Bastardo -murmurou Deborah quando se afastaram. Ergueu a taça de champanhe-. Estava tentando conquistá-lo.

-Não -Gage fez tocar sua taça com a dela-. Aos dois -acima do ombro, viu o instante em que Jerry Bower se inteirou da notícia. O outro se sobressaltou e os olhou. Gage quase pode ouvi-lo suspirar enquanto contemplava as costas de Deborah.

-Estou impaciente por crucificar-lo.

Tinha tal veneno em sua voz, que ele lhe apertou a mão.

-Agüente. Falta pouco.

Era tão linda. Gage demorou na cama só para olhá-la. Sabia que dormia profundamente, saciada pelo amor, exausta pela paixão. Queria se certificar de que dormiria calma até a manhã.

Odiava saber que tinha ocasiões nas quais Deborah acordava no meio da noite para descobrir que não estava ao seu lado. Mas essa noite, quando quase sentia o perigo gotejar por seu sangue, precisava ter a certeza de que dormiria segura.

Levantou em silêncio para vestir-se. Tranqüilizou-o ouvir sua respiração profunda e serena. Ao luar, viu seu próprio reflexo no espelho. «Não, não é um reflexo», pensou. «É uma sombra».

Depois de calçou as luvas negras, abriu uma gaveta. Dentro tinha um arma regulamentar da polícia, do calibre 38, cujo peso lhe era tão familiar como o apertão de mãos de um irmão. No entanto, não a tinha usado desde a noite dos ancoradouros, quatro anos atrás

Nunca tinha precisado.

Mas naquela noite sentia essa necessidade. Já não questionava seu instinto. Introduziu o arma em seu coldre e o acoplou às costas, à altura da cintura..

Abriu o painel e fez uma pausa. Queria rever como dormia. Podia sentir o perigo, amargo em sua língua, na sua garganta. Seu único consolo era saber que ela não seria afetada por nada. «Voltarei», prometeu a si mesmo e a Deborah. O destino não podia acertar um golpe mortal duas vezes em uma só vida.

Adentrou-se na escuridão.

Passada uma hora, soou o telefone, tirando Deborah de seu sonho. Por costume, tateou para responder, murmurando o nome de Gage enquanto levantava o fone.

-Alô.

-Senhorita.

O som da voz de Montega a acordou no ato.

- O que quer?

-O temos. A armadilha foi muito fácil.

-O que? -assustada, estendeu a mão para Gage. Mas mesmo antes que tocasse os lençóis vazios, soube. O terror fez que sua voz saísse trêmula-. A que se refere?

-Está vivo. No momento, queremos mantê-lo vivo. Se deseja o mesmo, virá, depressa e sozinha.Faremos um troca por todos os papéis e pastas. Por tudo o que tem.

Levou a mão à boca, tratando de ganhar tempo até que pudesse pensar.

-Matará os dois.

-É possível. Mas é certo que matarei se não aparecer. Há um armazém no trezentos vinte e cinco de East River Drive. Vou lhe dar trinta minutos para chegar. Um minuto a mais e eu cortarei sua mão direita.

-Irei -sentiu que seu estômago revolvia -. Não o machuque. Por favor, deixe que fale com ele primeiro...

Mas a comunicação foi cortada.

Levantou-se de um salto da cama. Vestiu um roupão e correu ao dormitório de Frank. Quando com uma olhada viu que não tinha ninguém, avançou pelo corredor para encontrar à senhora Greenbaum sentada na cama, vendo um filme antigo com uma lata de amendoins na mão.

-Frank. Onde está?

-Foi à loja de vídeo que está aberta toda a noite e comprar uma pizza. Decidimos celebrar um festival de filmes dos Irmãos Marx. O que aconteceu? -mas Deborah tampou o rosto com as mãos. Tinha que pensar-. Voltará em vinte minutos.

-Será tarde demais -baixou as mãos. Não podia perder mais tempo -. Diga-lhe que recebi um telefonema e que tive que ir. Diga-lhe que tem a ver com Gage.

-Estás metida em problemas. Conte-me.

-Só lhe diga isso quando chegar, por favor. Estou indo ao trezentos vinte e cinco de East River Drive.

-Não pode -Lil começou a levantar-se da cama-. Não pode ir sozinha a esta hora.

-Tenho de fazê-lo. Diga-lhe a Frank que tive que ir -tomou as mãos de Lil-. É um caso de vida ou morte.

-Chamaremos à polícia...

-Não. Não, só Frank. Diga-lhe tudo o que lhe contei e à hora que eu sai. Prometa-me.

-Está certo, mas...

Mas Deborah saiu correndo.

Demorou vários minutos preciosos para se vestir e para guardar os papéis na valise. Ao chegar no carro tinha as mãos suadas. Em sua mente, como um cântico, repetia o nome de Gage enquanto avançava pelas ruas. A náusea não a abandonou enquanto acompanhava o passar dos minutos no relógio.

Como um fantasma, Némesis observava a troca de droga por dinheiro. Milhares de notas por milhares de quilos de dor. O comprador abriu uma bolsa com uma navalha, extraiu um pouco de pó branco e o introduziu num frasco para comprovar sua pureza. O vendedor repassou feixes de notas.

Quando ambos ficaram satisfeitos, o trato se fechou. Falaram pouco. Não foi uma transação amistosa.

Viu o comprador levar seu miserável produto. Ainda que Némesis soubesse que voltaria a encontrar a esse homem, lamentou. Se não tivesse atrás de uma presa maior, teria lhe dado um grande prazer jogar tanto o comerciante quanto todo o produto dentro do rio.

Ouviu alguns passos. A acústica era boa no edifício de madeira de teto alto. Tinha caixas empilhadas junto às paredes e em prateleiras de metal. Uma elevadora mecânica estava estacionada muita próxima da garagem de alumínio. Ainda que o cheiro a serragem impregnava a atmosfera, as serras estavam em silêncio.

Com uma fúria que lhe fez ferver o sangue, viu entrar a Montega.

-Este foi nosso primeiro prêmio da noite -se dirigiu para a valise com o dinheiro e afastou seus homens. Mas esperamos algo melhor -baixou a tampa e a fechou-. Quando chegar, deixe-a passar.

Ao incorporar-se, tão insubstancial como o ar que respirava, Némesis fechou as mãos. «É agora», pensou. «Esta noite». A parte dele que almejava vingança ansiava sacar a arma e disparar. A sangue frio.

Mas tinha o sangue muito quente para uma solução tão rápida e anônima. Sorriu num gesto carente de humor. Tinha maneiras melhores. Mais sensatas.

Ao abrir a boca para falar, ouviu vozes, o som de pés correndo sobre o solo de cimento. O coração se paralisou.

A tinha deixado dormindo.

Enquanto se lhe gelava o sangue, o suor do terror lhe escorreu pela testa. O perigo que tinha sentia não era por ele. Santo Deus, não era por ele, senão por ela. Viu Deborah entrar no lugar, escoltada por dois guardas armados. Durante um instante oscilou entre o mundo de sombras de Némesis e o dela.

-Onde ele está? - enfrentou a Montega como uma tigresa, com os olhos cintilantes-. Se o machucou , é um homem morto. Juro.

-Magnífico -com uma inclinação da cabeça, Montega aplaudiu-. Uma mulher apaixonada.

Não havia espaço para temer por sua vida naquele momento. Todo seu temor era por Gage.

-Quero vê-lo.

-Chegou a tempo, mas, trouxe o que lhe pedi?

-Leve para o inferno com você -agitou a valise diante de sua cara.

Montega passou a valise a um capanga e, com um gesto de cabeça, fez que o outro a levasse a um quarto contíguo.

-Paciência -ergueu a mão-. Quer se sentar?

-Não. Já tem o que queria, agora me de o que vim procurar.

A porta voltou a abrir-se. Ela arregalou os olhos assombrada.

-Jerry? -o alívio se misturou com a surpresa. «Não é Gage», pensou. Nunca tinham sido. Tinha sido Jerry. Dirigiu-se a ele para tomar-lhe as mãos-. Sinto, sinto muito que passou por isto. Não tinha idéia.

-Eu sei - apertou suas mãos-. Sabia que viria. Contava com isso.

- Talvez eu pudesse ter ajudado aos dois.

-Já o fez -lhe passou um braço pelos ombros e olhou a Montega-. Percebo que o trato ocorreu sem maiores problemas.

-Como esperávamos, senhor Bower.

-Excelente –de algumas palmadinhas com gesto amistoso no ombro de Deborah - Temos que conversar.

Ela sentiu quando o sangue fugiu de seu rosto.

-Você... não foi em nenhum momento um refém, certo?

Ele permitiu que retrocedesse, inclusive indicou aos guardas que não interviessem. Deborah não tinha nenhum lugar para ir, e ele se sentia generoso.

-Não, e por desgraça você também não. Lamento.

-Não acredito em você – em estado de choque, levou as mãos a cabeça-. Sabia sobre o apoio cego que tinha por Fields, mas isto... em nome de Deus, Jerry, não pode fazer parte disto. Sabe o que fazem? As drogas, os assassinatos? Não se trata de política, é uma loucura.

-Todo é política, Deb -sorriu-. A minha. E você acreditou mesmo que um fantoche como Fields estava por trás da organização? -riu e pediu que trouxessem duas cadeiras-. Acreditou. E tudo porque eu deixei um rastro impecável de migalhas para você e qualquer um que decidisse pesquisar -a obrigou a sentar.

-Você? -o olhou mareada-. Está dizendo que vocÊ está no comando? E que Fields...?

-Nada mais é do que um peão. Há mais de seis anos tenho estado a sua sombra... apertando todas as teclas. Fields não seria capaz de dirigir uma loja de guloseimas, muito menos uma cidade. Ou um estado – sentou se na frente dela-. Como fará dentro de cinco anos.

Não tinha medo. O medo não era capaz de atravessar sua estupefação. Era um homem a quem conhecia fazia dois anos, um que tinha considerado um amigo, honesto e até um pouco fraco.

-Como?

-Dinheiro, poder, cérebro -enumerou com os dedos-. Eu tinha o cérebro. Fields contribuiu com o poder. Acredite, ele tem estado mais do que disposto a deixar os detalhes a meu encargo. Prepara discursos estupendos, sabe que quais bundas deve beijar e quais deve chutar. Do resto me ocupo eu, e foi assim desde que me destinaram a seu gabinete faz seis anos.

-Quem?

-É aguda -sem deixar de sorrir, assentiu admirado-. Arlo Stuart... ele é o dinheiro. O problema surgiu porque seus negócios, os legais, não lhe reportavam tantos benefícios como desejava. Sendo um homem de negócios, descobriu outra maneira de aumentar as margens.

-As drogas.

-Correto outra vez -cruzou as pernas e olhou quase com desinteresse a hora. Tinha tempo-. É o chefe na Costa Oeste faz doze anos. E é rentável. Eu fui ascendendo na organização. Ele gostava de pessoas com iniciativa. Eu possuía o conhecimento, legal e político, e ele tinha a Fields.

«Perguntas», ordenou-se Deborah. Devia pensar em perguntas e fazer que as contestasse. Até que... apareceria Gage? Poderia Frank entrar em contato com ele?

-De maneira que os três trabalharam juntos.

-Fields, não... odiaria dar-lhe méritos diante, porque respeito sua mente. Nada mais é do que um peão útil que desconhece o que se passa. E se faz alguma idéia, é bastante inteligente para fingir que não sabe - encolheu os ombros-. Quando chegar o momento, levaremos à luz a informação da Fazenda e tudo o que você descobriu. Ninguém ficará mais surpreso que Fields. Como serei eu quem vai desmascará-lo, com todo meu pesar, não será difícil ocupar seu cargo logo em seguida. Como um trampolim.

-Não vai funcionar. Não sou a única que sabe.

-Guthrie -Jerry cruzou os dedos sobre os joelhos-. Penso em me ocupar dele também. Faz quatro anos ordenei a Montega que o eliminasse, e o trabalho ficou incompleto.

-Você- sussurrou- Você ordenou?

-Arlo deixou para mim os detalhes – adiantou-se para que só ela pudesse escutá-lo-. Eu gosto dos detalhes... como aqueles os quais dedica seu noivo nos momentos livres -sorriu ao vê-la empalidecer-. Foi você que me conduziu até ele, Deborah.

-Não sei o que quer dizer.

-Sou um bom juiz de pessoas. Tenho de ser. E você é muito previsível. Você, uma mulher inteligente, íntegra e de lealdades apaixonadas, relacionada com dois homens? Não parecia provável. Esta noite soube o que estava suspeitando há semanas. Só há um homem, um homem que teria reconhecido a Montega, um homem que teria conquistado seu coração, um homem com suficientes motivos para me perseguir com fanatismo – deu tapinhas em sua mão diante de seu silêncio-. Será nosso pequeno segredo. Eu gosto de segredos -ao levantar-se, seus olhos recuperaram a frieza-. E ainda que eu lamente de verdade, só um de nós dois poderá sair esta noite daqui com esse segredo. Pedi a Montega que seja rápido. Pelos velhos tempos

Ainda que o corpo tremesse ela se ordenou levantar.

-Aprendi a acreditar no destino, Jerry. Não ganhará. Ele se encarregará disso. Pode me matar, mas ele cairá sobre você como a Fúria. Acredita que sabe tudo sobre ele, mas não é assim. Não o tem e jamais o terá em seu poder.

-Se lhe servi de consolo -se afastou de Deborah-, não o temo... no momento.

-Está enganado.

Todos os presentes se voltaram ao ouvir a voz. Não viram nada mais que paredes nuas e madeiras empilhadas. Ao ouvi-la Deborah sentiu os joelhos amolecerem e estava a ponto de cair ao chão.

Então tudo deu a impressão de acontecer ao mesmo tempo.

Um guarda próximo de uma parede se dobrou para trás com expressão surpresa. Enquanto seu corpo se debatia, a submetralhadora que sustentava começou a cuspir balas. Os homens gritaram e procuraram refúgio. O guarda gritou e caiu ao chão. Seus próprios homens o abateram.

Lançando-se por trás de algumas prateleiras, Deborah procurou com frenesi algum arma. Suas mãos encontraram uma barra de metal; retrocedeu, disposta a defender-se. Ante seus olhos atônitos, viu como um guarda aterrorizado tinha sua automática arrebatada. Louco pelo medo, fugiu aos gritos. -Fique aqui -flutuou a voz em sua direção..

-Graças a Deus, pensei que...

- Apenas fique aqui. Depois eu me ocuparei de você.

Permaneceu quieta com a barra entres as mãos. «Némesis voltou», pensou com os dentes apertados. «E tão arrogante como de costume». Afastou uma caixa e espiou o caos que reinava do outro lado. Ficavam cinco homens... os guardas, Montega e Jerry. Disparavam de forma indiscriminada, tão assustados quanto confusos. Quando uma das balas alojou-se na parede a menos de um metro dela, baixou a cabeça.

Alguém gritou. O som fez que fechasse os olhos. Uma mão lhe agarrou o cabelo, obrigando-a a levantar-se.

-Quem é? -sibilou Jerry em seu ouvido. Ainda que lhe tremesse a mão, a segurava com firmeza-. O que, diabos, é aquilo?

-É um herói -o olhou em um gesto desafiante-. Algo que você jamais vai compreender.

-Será um herói morto antes de que isto termine. Vem comigo - se plantou diante dela-. Se tentar algo, eu a matarei e correrei o risco.

Deborah respirou fundo e fincou a barra no estômago. Quando ele se dobrou, saiu correndo, esquivando de bancos e prateleiras. Jerry se recobrou com rapidez e esticou a mão para agarrá-la pelo tornozelo. Amaldiçoando, ela lhe deu um pontapé, sabendo que a qualquer instante poderia sentir uma bala nas costas. Escalou algumas madeiras empilhadas, convicta de que conseguiria se por a salvo para que ele não pudesse utilizá-la como escudo.

Ouviu-o segui-la, ganhar terreno à medida que recuperava o fôlego. Desesperada, imaginou-se que era um lagarto, veloz e seguro, aderindo-se à madeira. Não podia cair. A única coisa que sabia era que não podia cair. Sem senti-las, as lascas se fincavam em seus dedos.

Com todas suas forças, arrojou-lhe a barra. Deu-lhe num ombro, detendo-o enquanto amaldiçoava. Sem olhar para atrás, apertou os dentes e saltou desde a madeira até uma escada de metal. As mãos suadas escorregaram, mas conseguiu se agarrar e subir até o seguinte nível. Respirava ofegante enquanto corria pela passarela de metal cheia de rolos de material isolante e de construção.

 Mas não tinha aonde ir. Ao chegar ao outro extremo, viu que se achava cercada. Jerry já estava quase na passarela. Não podia descer, nem sonhava em saltar a altura de quase dois metros até o um estrado de aço que estava sobre ela.

Ele respirava de forma entrecortada e o sangue gotejava de seu boca. Brandia uma pistola na mão. Deborah deu um passo inseguro para trás, estudando os quinze metros que a separavam do solo, onde Némesis enfrentava três homens. Compreendeu que não podia chamá-lo. Distraí-lo nesse instante podia representar sua morte.

Voltou-se e enfrentou o homem que tinha acreditado ser seu amigo.

-Não me usará para chegar até ele.

-De um modo ou outro -com o dorso da mão limpou o sangue da boca.

-Não -voltou a retroceder e esbarrou em um gancho pesado preso a uma corrente. Era grossa e pesada, e no ato compreendeu que a usavam para elevar os materiais pesados ao nível seguinte de armazenamento-. Não -repetiu e, com todas as suas forças, empurrou a corrente contra o rosto de Jerry

Ouviu o som de ossos se quebrando. Depois seu grito, um grito horrível antes de que ela mesma cobrisse o rosto com as mãos.

Só lhe restava Montega quando Némesis levantou a vista e a viu, branca como um espectro, oscilando na borda de uma passarela estreita de metal. Não dedicou nem uma olhada ao homem que tinha caído dando gritos sobre o cimento. Ao correr para Deborah ouviu que uma bala assobiava junto a sua cabeça.

-Não! - Deborah gritou lá de cima-. Atrás de você –para alívio dela e para incredulidade para Montega, viu que ele desviava-se para a esquerda e desaparecia.

Com cautela, desejando distrair a atenção de Montega sobre Deborah, Némesis avançou ao longo da parede. Dizia algo e depois se afastava à esquerda ou à direita, antes de que o outro pudesse apontar a arma que sustentava com as mãos trêmulas.

-Vou matar você! -dominado pelo terror, Montega disparou uma e mais outra vez contra as paredes-. Vou fazê-lo sangrar. O matarei!

Não apareceu até ter certeza que Deborah se achava em segurança abaixo, escondida entre as sombras, quando reapareceu, estava a dois metros de Montega.

-Já me matou em uma ocasião -apontou com firmeza para o coração do outro. Só tinha que apertar o gatilho e tudo terminaria. Acabariam quatro anos de seu inferno. Mas viu a rosto dela, pálido e brilhante pelo suor. Devagar, relaxou o dedo do gatilho-. Voltarei para procurá-lo, Montega. Vai dispor de muito tempo para se perguntar por que. Jogue a pistola no chão.

Mudo, obedeceu. Com andar mais seguro, ainda que pálida, Deborah avançou para recolher a arma no cimento.

-Quem é você? -quis saber Montega-. O que é?

Deborah lançou um grito de advertência quando Montega meteu uma mão no bolso.

Mais dois disparos rasgaram o ar. Enquanto os ecos ainda soavam, Montega caiu sem vida no solo. Sem tirar os olhos de em cima dele, Némesis se aproximou.

-Sou seu destino -sussurrou, depois se voltou para abraçar Deborah.

-Disseram que tinham você. Que iriam matá-lo.

-Deverias ter confiado em mim -a fez girar, decidido a protegê-la da morte que os rodeava.

-Mas estava aqui -disse, detendo-se-. Por que? Como sabia?

-O fio condutor. Sente-se, Deborah, está tremendo.

-Tenho a impressão de que dentro de um minuto será de fúria. Sabia que eles estariam aqui esta noite.

-Sim, sabia. Sente-se. Deixe-me trazer um copo de água para você.

-Para, para com isso –agarrou a manga de sua camisa com ambas mãos-. Sabia e não me disse nada. Sabia que Stuart e Jerry estavam envolvidos.

-Então, o que fazia aqui?

-Consegui entender o padrão faz alguns dias. Cada entrega tinha se realizado em um edifício de propriedade de Stuart. E cada entrega se realizava com menos de duas semanas de diferença numa zona diferente da cidade. Dediquei algumas noites para me focar em outros pontos, mas terminei por reduzi-lo a este. E não contei para você -acrescentou quando seus olhos o queimaram-, porque queria evitar exatamente o que aconteceu nesta noite. Maldita seja, quando estou preocupado por você, não posso me concentrar. Não posso realizar meu trabalho.

-Vê esse anel? -estendeu a mão-. Você me deu a poucas horas atrás. Uso ele por que eu te amo e estou me ensinando a aceitá-lo, junto com seus sentimentos e suas necessidades. Se não é capaz de fazer o mesmo por mim, terá que ser.

-Não se trata de fazer o mesmo...

-Pois é certo que sim. Esta noite matei um homem –sua voz tremeu, e o afastou quando ele quis voltar a abraçá-la-. Matei a um homem que eu conhecia. Esta noite vim aqui pronta e disposta não só para mudar minha ética por você, mas também trocar minha vida pela sua. Não volte a me proteger, mimar e pensar por mim, jamais.

-Terminou?

-Não – apoiou-se em uma cadeira-. Sei que não vai deixar de fazer o que faz. Que não pode. Me preocuparei por você, mas não vou me colocar em seu caminho. E você também não vai se colocar no meu.

-Isso é tudo? -assentiu.

-Por hora sim.

-Você está certa.

Deborah abriu a boca, fechou-a outra vez e por fim suspirou.

-Quer repetir?

-Tem razão. Ocultei coisas de você, e em vez de lhe proteger, a fiz correr mais riscos. Por isso, sinto muito. E eu acredito que deveria saber que eu não ia matá-lo -olhou a Montega, mas impediu Deborah pelo ombro antes de que ela pudesse fazer o mesmo-. Eu desejava matá-lo. Durante um instante, vi sua morte. Mas se ele tivesse se entregado, o teria deixado nas mãos da polícia.

-Por que? -perguntou ao ver a verdade em seus olhos.

-Porque a olhei e soube que podia confiar que faria que tivesse que ser feito para lhe dar a justiça -estendeu uma mão-. Deborah, preciso uma parceira.

-E eu de um parceiro. -sorriu e em vez de aceitar-lhe a mão, jogou-se em seus braços-. Nada vai nos deter- murmurou. Na distância, ouviu as sirenes-. Acho que é Frank com a cavalaria -com um suspiro, afastou-se. O beijou. - Conversaremos depois. Em casa. É melhor você ir agora - Fazendo um gesto de assentimento ele deu um passo para trás.

- Vai ser necessário um bom advogado para explicar isto.

Ao ouvir o som de passos, ele desapareceu na parede que tinha atrás dela

-Estarei aqui.

Deborah sorriu e passou uma mão pela parede, sabendo que ele fazia o mesmo do outro lado, nas sombras.

-Estou contando com isso.

 

                                                                                            Nora Roberts

 

 

                      

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