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SOMBRAS DA ROMÃZEIRA / Tariq Ali
SOMBRAS DA ROMÃZEIRA / Tariq Ali

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Os olhos de Omar bin Abdala ardiam com a mesma intensidade que a fogueira que destruía séculos da cultura de seu povo. Em 1499, em um auto-de-fé ordenado pelo cardeal Ximenes de Cisneros, e sob o auspício dos reis católicos Fernando e Isabel, foram queimados todos os livros em árabe recolhidos nas bibliotecas da cidade de Granada. Só foram poupados pouco mais de 300 manuscritos de medicina e astronomia, que mais tarde se propagariam pela Europa, abrindo o caminho para a Renascença. De nada adiantou que sete anos antes, em 1492, os reis espanhóis tivessem prometido respeitar a religião e as tradições muçulmanas como parte do acordo para a rendição da cidade. Com a tarefa de cristianizar os "bárbaros", o cardeal Ximenes põe as últimas comunidades mouras em uma encruzilhada de fé: perder a identidade convertendo-se, ou morrer.
Este é o dilema de Omar. Guerreiro respeitado, líder de um clã tradicional e proprietário da vila al-Hudayl, ele não sabe que decisão tomar. O filho mais velho, Zuair, tem sangue de cavaleiro nas veias e está disposto a defender sua fé com a lâmina da espada. O tio e alguns primos já se converteram, traindo — pelo menos aparentemente — suas convicções. Entre os aromas da requintada cozinha, as discussões filosóficas na mesquita e os amores descobertos sob a romãzeira, a família de Omar vai buscando as respostas para seu futuro, ao mesmo tempo em que esquadrinha lembranças há muito esquecidas.
Neste romance, Tariq Ali capta os últimos momentos do esplendor da Granada muçulmana — em 1502, os reis católicos assinariam um decreto de conversão, o que impedia a prática dos hábitos e da religião muçulmana -, mostrando uma cidade multicultural, na qual cristãos, mouros e judeus tentavam conviver em paz. Uma história de radicalismo secular que nos leva a avaliar crises contemporâneas como as de Israel e do Iraque. Tariq Ali, um reconhecido intelectual revolucionário, explica por que escolheu um cenário histórico para seu livro: "Muito já foi escrito sobre o tratamento doentio contra os judeus em diversos períodos da civilização, mas a fé dos muçulmanos permanece escondida na história."

 

 

 


 

 

 


Prólogo

Os cinco cavaleiros cristãos não gostaram nem um pouco de, no meio da noite, serem chamados aos aposentos de Ximenes de Cisneros. A irritação que sentiam não era por ser aquele o inverno mais frio de que se lembravam. Eles eram veteranos da Reconquista e comandaram as tropas que marcharam vitoriosas sobre Garnata, sete anos antes, ocupando a cidade em nome de Fernando e Isabel.

Nenhum dos cinco cavaleiros era daquela região. O mais velho era filho natural de um monge de Toledo, os outros eram castelhanos e queriam voltar logo para suas aldeias. Todos eram bons católicos, mas não aceitavam que ninguém duvidasse de sua lealdade, mesmo que fosse o confessor da rainha. Sabiam muito bem por que ele tinha sido transferido de Toledo — onde era arcebispo — para a cidade conquistada. Não era segredo que Cisneros servia aos interesses da rainha Isabel e desfrutava um poder que não era apenas espiritual. Os cavaleiros sabiam muito bem o que a corte acharia de qualquer desafio à autoridade dele.

Os cinco homens, envoltos em mantos e, mesmo assim, tiritando de frio, foram conduzidos aos aposentos de Cisneros. Surpresos com a simplicidade de tudo, se entreolharam: era pouco comum que um príncipe da Igreja vivesse num lugar mais adequado a um monge fanático. Eles ainda não tinham se acostumado com um padre que vivia de acordo com o que pregava. Ximenes os encarou e sorriu. A voz que deu as ordens era sem firmeza e os cavaleiros acharam estranho. O cavaleiro de Toledo confidenciou alto para seus companheiros:

— Isabel deu a chave do pombal para o gato.

Cisneros preferiu ignorar essa demonstração de insolência. Em vez disso, falou um pouco mais alto.

— Quero deixar claro que não nos interessa qualquer vingança pessoal. Falo como autoridade da Igreja e da Coroa.

Isso não era rigorosamente a verdade, mas soldados não costumam questionar seus chefes. Quando viu que suas instruções tinham sido bem entendidas, o arcebispo os mandou embora. Ele queria garantir que a batina estava dominando a espada. Uma semana depois, em 1° de dezembro do ano de 1499, soldados cristãos comandados por cinco cavaleiros invadiram as cento e noventa e cinco bibliotecas da cidade e uma dúzia de mansões onde estavam guardados alguns dos melhores acervos particulares.

Tudo o que estava escrito em árabe foi confiscado.

Na véspera, alguns eruditos a serviço da Igreja convenceram Cisneros a excluir do mandado trezentos manuscritos. Ele concordou, desde que fossem colocados na nova biblioteca que estava construindo em Alcala. A maior parte das obras eram manuais árabes de medicina e astronomia. Continham as maiores descobertas nessas áreas e nas ciências afins, escritas desde a Antiguidade. Nesses livros estava grande parte do material que se propagou da península de al-Andaluz e da Sicília para o resto da Europa, abrindo caminho para a Renascença.

Milhares de exemplares do Alcorão, além de doutos comentários, reflexões teológicas e filosóficas sobre seus méritos e deméritos — tudo escrito na mais primorosa caligrafia -, foram levados indiscriminadamente pelos homens uniformizados. Manuscritos raros, que eram de grande importância para a reconstituição da vida intelectual em al-Andaluz, foram amarrados em pacotes nas costas dos soldados.

O dia inteiro, os soldados montaram uma imensa pilha com centenas de milhares de manuscritos. Toda a sabedoria da península estava amontoada no velho Mercado da Seda, que ficava depois do Bab al-Ramla.

Antigamente, era nesse lugar que os cavaleiros mouros costumavam cavalgar e fazer justas para atrair a atenção das damas; era lá também que o populacho se juntava em grandes grupos, com as crianças montadas no ombro dos pais, tios e irmãos mais velhos para torcer por seus cavaleiros preferidos; lá, os assovios saudavam a chegada dos que desfilavam com armadura de cavaleiros só porque eram servos do sultão. Quando era óbvio que um valente tinha perdido de um cortesão só para agradar ao rei — ou porque este havia prometido uma bolsa cheia de dinares de ouro -, os cidadãos de Garnata gritavam, zombando. Era uma comunidade de cidadãos conhecida por sua independência, espírito crítico e relutância em acatar ordens superiores. Era essa a cidade e o lugar que Cisneros escolheu para sua manifestação pirotécnica naquela noite.

Os livros luxuosamente encadernados e decorados eram um testemunho da arte dos árabes da península, superando em qualidade os livros feitos nos conventos cristãos.

Seu conteúdo literário era invejado por eruditos de toda a Europa. Que esplêndida pilha de livros foi colocada diante da população da cidade!

Os soldados que, desde as primeiras horas da manhã, estavam fazendo o paredão de livros evitavam o olhar dos garnatinos. Alguns desses habitantes olhavam aquilo com tristeza; outros, com raiva, rostos faiscando de ódio. Outros ainda andavam de um lado para outro, com um olhar vazio e distante. Um deles, um velho, repetia a única frase que conseguia dizer frente a tal calamidade:

— Estamos nos afogando num mar de desamparo. Alguns soldados, talvez por jamais terem aprendido a ler ou escrever, entenderam a enormidade do crime que ajudavam a cometer. Não estavam se sentindo bem em fazer aquilo. Eram filhos de camponeses e se lembravam das histórias que costumavam ouvir dos avós sobre a crueldade moura que contrastava com os relatos sobre sua cultura e sapiência.

Esses soldados não eram muitos, mas o suficiente para fazer a diferença. Enquanto seguiam pelas ruelas, jogavam de propósito alguns manuscritos na frente de portas bem trancadas. Como não tinham qualquer critério para avaliar os manuscritos, achavam que os mais pesados deviam ser os mais importantes. Era uma conclusão errada, mas a intenção era louvável e o gesto, valoroso. Assim que os soldados sumiam, a porta se abria e uma figura encoberta saía, agarrava os livros e desaparecia outra vez por trás da relativa segurança dos cadeados e trancas. Assim, graças aos bons instintos de um punhado de soldados, muitas centenas de manuscritos importantes sobreviveram. Depois, foram transportados por mar para a segurança das bibliotecas particulares em Fez e assim salvos.

Na praça, começava a escurecer e uma multidão de cidadãos indecisos, principalmente homens, se juntou por causa dos soldados. Muçulmanos importantes e pregadores usando turbantes se misturavam a comerciantes, negociantes, camponeses, artesãos e ambulantes, além de rufiões, prostitutas e débeis mentais. Toda a espécie humana estava representada ali.

Atrás da janela de uma hospedaria, o mais destacado vigilante da Igreja de Roma observava com satisfação a pilha de livros aumentar. Ximenes de Cisneros sempre acreditou que o poder dos pagãos só podia ser destruído se a cultura deles fosse completamente erradicada. Isso queria dizer que todos os seus livros deviam ser sistematicamente destruídos. Durante algum tempo, a tradição oral ainda sobreviveria, até que a Inquisição arrancasse fora as línguas infamantes e pecaminosas.

Se não fosse ele, alguma outra pessoa teria de organizar essa inevitável fogueira — alguém que entendesse que o futuro tinha de ser garantido por meio da firmeza e da disciplina e não do amor e da educação, como aqueles dominicanos imbecis viviam dizendo. Até então, o que eles tinham conseguido com isso?

Ximenes estava muito contente. Tinha sido escolhido como instrumento do Todo-Poderoso. Qualquer outro podia executar esta tarefa, mas ninguém com tanto esmero quanto ele. Curvou os lábios num riso de mofa. O que se poderia esperar de um clero cujos priores, até poucas centenas de anos atrás, se chamavam Maomé, Omar, Omã e assim por diante? Ximenes estava orgulhoso da pureza de seu sangue. Os xingamentos que teve de agüentar quando criança não tinham fundamento. Ele não descendia de judeus. Nenhum sangue mestiço sujava suas veias.

Um soldado foi escalado para ficar exatamente em frente à janela do prelado. Ximenes olhou para ele e fez um sinal com a cabeça, transmitido para os homens que seguravam as tochas, e a fogueira então foi acesa. Por uma fração de segundo, houve completo silêncio. Depois, um imenso brado de lamentação atravessou a noite de dezembro, seguido de gritos:

— Só existe um Deus, ele é Alá, e Maomé é seu Profeta. A certa distância de Cisneros, um grupo cantava, mas ele não conseguia entender as palavras. Não podia mesmo entender, já que os versos eram em árabe. A fogueira estava cada vez mais alta. O próprio céu parecia ter se transformado num abismo flamejante, um espectro de faíscas flutuava no ar enquanto as letras delicadamente coloridas queimavam. Era como se as estrelas estivessem chorando sua tristeza.

Aos poucos, meio aturdida, a multidão foi se dispersando até que um mendigo tirou toda a roupa e começou a subir na fogueira.

— Para que serve a vida sem nossos livros de conhecimento? — gritou com os pulmões secos.

— Eles têm de pagar por isso. Vão pagar pelo que fizeram hoje conosco.

O homem desmaiou e as chamas o envolveram. Lágrimas rolaram em meio a silêncio e ódio, mas não podiam apagar a fogueira que queimou naquele dia. As pessoas foram embora.

A praça está em silêncio. Aqui e ali, alguns fogos ainda estão em brasa. Com um sorriso falso, Ximenes passa em meio às cinzas, enquanto planeja o que fará a seguir.

Está pensando alto.

— Seja qual for a vingança que planejam na sua terrível aflição, vai ser inútil. Nós vencemos. Esta noite foi nossa verdadeira vitória.

Mais do que qualquer outra pessoa na península, mais até do que a temida Isabel, Ximenes sabe qual o poder das idéias. Ele pisa até transformar em pó uma pilha de pergaminhos chamuscados. Sobre o borralho de uma tragédia, espreita a sombra de outra.


Capítulo I

Se as coisas continuarem assim — dizia Ama com a voz falseada por causa dos poucos dentes que tinha na boca -, só vai restar uma vaga lembrança de nós.

A frase chamou a atenção de Yazid, que franziu a testa e tirou os olhos do tabuleiro de xadrez. Estava do outro lado do pátio, envolvido em uma tentativa desesperada de dominar as sutilezas do xadrez. Suas irmãs, Hind e Cultum, eram grandes estrategistas, mas elas estavam longe, em Garnata, com o resto da família. Quando voltassem, Yazid queria surpreendê-las com um lance inesperado.

Ele tentou fazer com que Ama se interessasse pelo jogo, mas a velha deu uma boa risada e recusou. Yazid não conseguia entender a reação dela. Será que o xadrez não era muito superior às contas que ela estava sempre desfiando? Por que ela não conseguia entender uma coisa tão elementar?

Com certa má vontade, começou a guardar as peças do xadrez. Como elas eram interessantes, pensou, enquanto as recolocava na caixa. Foram especialmente encomendadas pelo pai dele. Juan, o carpinteiro, recebeu a incumbência de esculpi-las para seu décimo aniversário, que ocorreu um mês antes, no ano 905 a.H.,* ano de 1500 para os cristãos.

* Ano da Hégira: no ano 622 da Era Cristã, Maomé escapou da perseguição e fugiu de Meca para Medina. O fato marca o início do calendário muçulmano, que tem 354 dias.

A família de Juan servia aos Banu Hudayl há séculos. No ano 932 da era cristã, o chefe da clã Hudail, Hanza bin Hudail, saiu de Dimasq com a família e seus seguidores para os postos avançados do islamismo no Ocidente. Ele se instalou na encosta das montanhas, a cerca de três quilômetros de Garnata. Lá construiu a aldeia que ficou conhecida como al-Hudayl. Ficava num ponto alto e podia ser vista de muito longe. Era rodeada de riachos de montanha que, na época da primavera, se transformavam numa torrente de neve derretida. Nos arredores da aldeia, os filhos de Hanza cultivaram o solo e plantaram pomares.

Quase cinqüenta anos depois da morte de Hanza, seus descendentes construíram um palácio. Em volta dele ficava a terra arada, vinhedos e pomares de amendoeiras, laranjeiras, romãzeiras e amoreiras, e essas árvores pareciam crianças agarradas à mãe.

Quase todos os móveis — a não ser, é claro, aqueles que foram saqueados por Ibn Farid nas guerras — tinham sido cuidadosamente fabricados pelos antepassados de Juan.

O carpinteiro, como todo mundo na aldeia, sabia da importância que Yazid tinha na família. Não havia quem não gostasse do menino, por isso Juan resolveu esculpir as estatuetas de xadrez que durariam mais do que a vida de todos eles juntos. Juan trabalhou com esmero.

As figuras que representavam os mouros foram feitas na cor branca. A rainha era de uma beleza aristocrática e usava uma mantilha, e o marido dela era um monarca de barba ruiva e olhos azuis, envolto numa esvoaçante túnica árabe ornada com pedras raras. Os castelos eram cópias da torre que dominava a entrada da suntuosa mansão dos Banu Hudail. Os cavaleiros reproduziam a figura do bisavô de Yazid, o guerreiro Ibn Farid, cujas aventuras lendárias na guerra e no mar faziam parte da cultura da família. Os bispos brancos eram cópias do imã de turbante que vivia na mesquita da aldeia. Os peões tinham uma estranha semelhança com Yazid.

Os cristãos não só eram negros como foram esculpidos com cara de monstros. Os olhos da rainha dos negros brilhavam de ódio, fazendo um enorme contraste com a miniatura da madona que estava em seu colar. Seus lábios foram pintados na cor de sangue, e um anel no dedo dela mostrava uma caveira. O rei foi esculpido com uma coroa móvel que podia ser facilmente tirada e, como se esse simbolismo não bastasse, o carpinteiro iconoclasta ornou o monarca com um par de reluzentes chifres. Essa visão peculiar de Isabel e Fernando era cercada de figuras também grotescas. Os cavaleiros tinham as mãos ensangüentadas. Os dois bispos tinham a forma de Satanás, seguravam punhais e tinham nas costas chicotes que pareciam rabos. Juan nunca tinha visto Ximenes de Cisneros, senão concluiria que os olhos irados e o nariz adunco do arcebispo davam uma boa caricatura. Todos os peões foram representados como monges, com capuz, olhar ávido e barrigas em forma de pote — servos da Inquisição à procura de suas vítimas. Todos os que viram o resultado do trabalho de Juan acharam que ele criou uma obra-prima. Omar, o pai de Yazid, ficou preocupado: sabia que, se algum espião da Inquisição visse o xadrez, o carpinteiro seria torturado até morrer. Mas Juan estava decidido: o menino tinha de receber o presente. Uns seis anos antes, em visita a uns parentes em Tulaitula, o pai do carpinteiro fora acusado de apostasia pela Inquisição. Depois, morreu na prisão, em conseqüência dos graves ferimentos que recebeu por seu orgulho, ao ser torturado pelos monges. Para completar, teve todos os dedos quebrados.

O velho carpinteiro tinha perdido a vontade de viver. O jovem Juan resolveu se vingar e aquelas figuras do xadrez eram apenas o começo.

O nome de Yazid foi gravado na base de cada figura e o menino ficou tão apegado a elas que pareciam ser gente de verdade. A figura que ele mais gostava era Isabel, a rainha negra. Ficava ao mesmo tempo fascinado e assustado com ela. Aos poucos, ela se tornou uma confidente, alguém para quem contava todas as suas preocupações, mas só quando tinha certeza de que ninguém estava por perto. Quando terminou de guardar o jogo, olhou mais uma vez para a velha e suspirou.

Por que Ama estava falando sozinha sem parar naqueles dias? Será que estava mesmo ficando louca? Hind dizia que estava, mas ele não tinha certeza. A irmã de Yazid dizia muita coisa quando estava irritada, mas, se Ama estivesse mesmo louca, o pai a teria Yazid atravessou o pátio e foi sentar no colo de Ama. O rosto da velha, que já estava bem enrugado, ficou ainda mais vincado quando ela sorriu para a sua carga.

Deixou de lado imediatamente as contas que desfiava numa oração, afagou o rosto do menino e beijou com carinho a cabeça dele.

— Que Alá te abençoe. Está com fome?

— Não. Ama, com quem você estava falando agora mesmo?

— Quem vai ouvir o que uma velha diz hoje, Ibn Omar? É como se eu estivesse morta.

Ama nunca tinha chamado Yazid por seu verdadeiro nome. Nunca. Pois não era verdade que Yazid tinha o nome de um califa que venceu e matou os netos do Profeta perto de Kerbala? Esse outro Yazid mandou que seus soldados recolhessem os cavalos na estrebaria da mesquita em que o Profeta tinha feito suas orações, em Medina. Esse Yazid tratou os Companheiros do Profeta com desprezo. Pronunciar o nome dele era conspurcar a memória da família do Profeta. Ela não podia contar tudo isso ao menino, por isso preferia chamá-lo de Ibn Omar, isto é, filho do pai. Uma vez, na frente de toda a família, Yazid perguntou por que ela o chamava assim e Ama olhou irritada para a mãe dele, Zubaida, como se quisesse dizer: por culpa dela, por que não pergunta para ela? Mas todos começaram a rir e Ama saiu, zangada.

— Eu estava ouvindo. Escutei você falar. Posso repetir o que você dizia. Quer?

— Ah, meu filho — suspirou Ama. — Eu estava falando com a sombra das romãzeiras. Pelo menos elas continuarão aqui depois que todos nós tivermos ido.

— Para onde, Ama?

— Ora, meu filho, para o céu.

— Vamos todos para o céu? — Que Alá te abençoe. Você vai para o sétimo céu, meu puro pedacinho de lua. Quanto às outras pessoas, não tenho muita certeza. E sua irmã Hind bind Umar, a menos que eles a casem logo, não chega nem ao primeiro céu. Não mesmo. Eu temo que alguma coisa muito ruim aconteça com essa moça. Temo que ela seja dominada por paixões incontroláveis e a vergonha recaia sobre a cabeça de seu pai, que Deus o proteja.

Yazid riu muito ao pensar que Hind não chegaria nem ao primeiro céu, e o riso foi tão contagioso que Ama começou a rir também, mostrando os oito dentes que ainda tinha.

De todos os irmãos, Hind era a preferida de Yazid. Os outros ainda o tratavam como se ele fosse um bebê e pareciam sempre surpresos porque pensava e falava, colocavam-no no colo e o beijavam como se fosse um bichinho de estimação. Ele sabia que era o preferido de todos, mas detestava quando não respondiam às suas perguntas. Por isso tinha uma certa raiva deles.

Raiva de todos, menos de Hind, que era seis anos mais velha do que ele, mas que o tratava como se fossem da mesma idade. Os dois discutiam e brigavam muito, mas se adoravam. O amor que sentia pela irmã era tão profundo que nenhuma das previsões místicas de Ama o incomodava, nem mudava nada do que sentia por Hind.

Foi Hind que contou para ele a verdadeira razão da visita do tio-avô Miguel, que tinha perturbado tanto os pais dele na semana anterior. Ele também ficou preocupado ao saber que Miguel queria que fossem para Curtuba, onde era bispo, para que ele mesmo os convertesse ao catolicismo. Três dias antes, Miguel tinha levado todos, inclusive Hind, para Garnata. Yazid fez mais uma pergunta para a velha.

— Por que o tio-avô Miguel não fala conosco em árabe? Ama ficou assustada com essa pergunta. Difícil acabar com velhos hábitos e assim, quase sem querer, deu uma cusparada ao ouvir o nome de Miguel e começou a desfiar suas contas de maneira débil e desesperada, murmurando sem parar:

— Só existe um Deus, ele é Alá, e Maomé é seu Profeta...

— Responda, Ama. Responda. Ama olhou para o rosto inocente do menino. Seus olhos cor de amêndoa estavam faiscando de raiva. Isso a fazia lembrar o tio-avô dele e foi por causa dessa lembrança que ela respondeu.

— Seu tio-avô Miguel fala, lê e escreve árabe, mas... mas... — a voz de Ama ficou sufocada de raiva. — Ele virou as costas para nós. Para tudo. Você reparou que dessa vez ele estava fedendo, exatamente como eles?

Yazid começou a rir de novo. Sabia que o tio-avô Miguel não era uma pessoa muito querida na família, mas ninguém jamais falou nele com tanta falta de respeito.

Ama tinha toda razão. Até o pai dele riu quando Ummi Zubaida comparou o cheiro desagradável do bispo com o de um camelo que comeu tâmaras demais.

— Ele sempre foi fedorento?

— Claro que não! — zangou-se Ama com a pergunta.

— Antigamente, antes de vender sua alma e começar a adorar imagens de homens sangrando presos em cruzes de madeira, ele era a pessoa mais limpa do mundo. Tomava cinco banhos por dia no verão. Trocava de roupa cinco vezes, lembro bem disso. Agora, tem cheiro de estrebaria. Sabe por quê?

Yazid confessou sua ignorância.

— Para que ninguém possa acusá-lo de ser muçulmano por baixo da batina. Católicos fedorentos! Os cristãos nas Terras Santas eram limpos, mas os padres católicos têm medo de água. Acham que tomar banho é trair o santo que chamam de filho de Deus. Vamos, levante e venha comigo. É hora de comer.

O sol está se pondo e não podemos esperar mais até eles voltarem de Garnata. Lembrei-me de uma coisa: você tomou seu mel hoje?

Yazid negou, impaciente. Desde que ele, o irmão e as irmãs nasceram, todas as manhãs Ama enfiava uma colher de mel puro pela goela deles.

— Como vamos comer sem que você tenha feito as preces da tarde?

Olhou-o de cara feia, para mostrar como estava aborrecida. Imagina se ela ia esquecer aquele ritual sagrado. Blasfêmia! Yazid sorriu e ela não pôde deixar de sorrir também enquanto se levantava com esforço e ia ao banheiro fazer suas abluções.

Yazid continuou sentado embaixo da romãzeira. Ele adorava essa hora do dia, quando os pássaros se preparavam ruidosamente para passar a noite. Os cucos estavam ocupados em dar seus últimos recados. Num nicho que havia do lado de fora da torre, que se abria para o pátio externo e o mundo lá fora, as pombas arrulhavam.

De repente, a luz se modificou e o silêncio foi completo. O céu azul-escuro se transformou em laranja-avermelhado, dando um toque mágico ao cume das montanhas ainda cobertas de neve. No pátio da casa grande, Yazid aguçou o olhar, tentando enxergar a primeira estrela vespertina, mas nenhuma estava à vista. Será que era melhor correr até a torre e olhar pelas lentes de aumento? E se a primeira estrela surgisse quando ele ainda estivesse subindo a escada? Yazid preferiu fechar os olhos. Parecia que o irresistível perfume do jasmim tinha penetrado por todos os seus sentidos como haxixe e deixado ele tonto, mas, na verdade, estava contando até quinhentos. Era seu jeito de matar o tempo até que surgisse a Estrela Polar.

O chamado do muezim para a oração interrompeu o menino.,Ama ajeitou seu tapete de orações, esticou-o na direção do levante e começou a entoar suas preces. Exatamente quando estava inclinada na direção da Caaba, em Meca, Yazid viu al-Hutaia, o cozinheiro, fazendo sinais frenéticos para ele da alameda ladrilhada que ficava do outro lado do pátio, perto da cozinha. O menino correu até lá.

— O que aconteceu, Anão? O cozinheiro colocou o dedo sobre os lábios e pediu silêncio. O menino obedeceu. Por um instante, o cozinheiro-anão e o menino ficaram quietos. Depois o cozinheiro falou:

— Escute. Escute bem. Lá, está ouvindo? Os olhos de Yazid brilharam. Ao longe, vinha o inconfundível som de patas de cavalos seguido do rangido da carruagem. O menino correu para fora de casa quando os sons aumentaram. O céu agora estava coberto de estrelas e Yazid viu os ajudantes e os criados da casa acendendo as tochas para dar as boasvindas à família. Ouviu-se uma voz distante.

— Omar bin Abdala voltou. Omar bin Abdala voltou... Mais tochas foram acesas e Yazid ficou ainda mais contente. Depois, viu os três cavaleiros e começou a gritar:

— Abu, Abu! Zuair! Hind, Hind! Andem logo, estou com fome!

Chegaram todos. Yazid percebeu que tinha se enganado: um dos três cavaleiros era sua irmã Hind. Zuair, envolto numa manta, estava na carruagem com a mãe e Cultum.

Omar bin Abdala levantou o menino do chão e abraçou-o.

— Como vai o meu príncipe? Yazid acenou com a cabeça enquanto a mãe cobria seu rosto de beijos. Antes que os outros fizessem o mesmo, Hind o pegou pelo braço e os dois correram para dentro de casa.

— Por que você estava no cavalo de Zuair? O rosto de Hind ficou sério e ela parou um instante, pensando se devia contar a verdade. Resolveu não contar para não o alarmar. Ela, mais do que ninguém na família, sabia do mundo de fantasia onde o irmão mais jovem costumava se esconder.

— Hind! O que aconteceu com Zuair?

— Está com febre.

— Espero que não seja a peste. Hind deu uma gargalhada.

— Você andou outra vez ouvindo muita história de Ama, não? Bobo! Quando ela fala em peste, quer dizer o cristianismo. E não é por isso que Zuair está com febre. Não é grave. Nossa mãe diz que ele estará ótimo em poucos dias. Ele é alérgico à mudança de estação, é uma febre de outono. Venha para o banho conosco. Hoje é nossa vez de tomar primeiro.

Yazid fez uma cara zangada.

— Já tomei banho. E Ama diz que já estou grande para tomar banho com as mulheres. Ela diz...

— Acho que Ama é que está ficando muito velha. Só diz bobagem.

— Ela também fala muita coisa certa e sabe muito mais do que você, Hind.

— Yazid parou para ver se essa crítica fez algum efeito sobre a irmã, mas ela pareceu não se importar. Depois, viu o olhar alegre dela ao oferecer a mão esquerda para ele e entrou rápido na casa. Yazid fingiu não ver a mão que ela oferecia, mas atravessou o pátio ao lado dela. Entrou na sala de banho com ela. — Não tomo banho, mas fico lá e converso com todo mundo. A sala estava cheia de criadas, que despiam a mãe de Yazid e Cultum. Yazid ficou pensando por que a mãe parecia um pouco preocupada. Talvez estivesse cansada da viagem. Talvez fosse por causa da febre de Zuair. Ele não parou de pensar quando Hind tirou a roupa. A criada particular dela correu para pegar as roupas espalhadas no chão. As três mulheres foram ensaboadas e esfregadas com as esponjas mais suaves do mundo, depois receberam baldes de água limpa. A seguir, entraram na banheira grande, do tamanho de um pequeno lago. O riacho que passava pela casa tinha sido canalizado para fornecer água corrente para os banhos.

— Contou para Yazid? — perguntou a mãe. Hind negou, fazendo sinal com a cabeça.

— Contou o que para mim? Cultum riu.

— O tio-avô Miguel quer que Hind case com Juan! Yazid riu.

— Mas ele é tão gordo e feio! Hind deu um gritinho de alegria.

— Está vendo, mãe? Até Yazid acha que Juan tem uma abóbora no lugar do cérebro.

Mãe, como você pode ser tão boba? O tio-avô Miguel pode ser repugnante, mas não é bobo. Como é que ele pôde produzir essa mistura de porco com carneiro?

— Não existe explicação para isso, filha.

— Não estou muito certa — ponderou Cultum.

— Pode ser castigo de Deus porque ele virou cristão!

Hind mergulhou e empurrou a cabeça da irmã mais velha dentro da água. Cultum voltou à tona alegre, estava noiva há poucos meses e tinham acertado que a cerimônia do casamento e a partida da casa dos pais seria no primeiro mês do próximo ano. Ela podia esperar, pois conhecia o pretendente, Ibn Harite, desde que eram crianças. Era filho da prima de sua mãe e gostava dela desde os dezesseis anos. Ela queria que morassem em Garnata em vez de Ixibilia, mas não tinha jeito. Depois que casassem, ia tentar trazê-lo para mais perto de casa.

— Juan fede como o tio-avô Miguel? A pergunta de Yazid ficou sem resposta. Amãe bateu palmas e as criadas que aguardavam do lado de fora entraram com toalhas e óleos perfumados. Enquanto Yazid olhava pensativo, as três mulheres foram enxugadas e seus corpos foram esfregados com óleos. Do lado de fora da sala, a voz de Omar podia ser ouvida, impaciente, e as mulheres se apressaram, saíram da sala e entraram no aposento ao lado, onde suas roupas estavam arrumadas. Yazid as acompanhou, mas a mãe pediu para ele ir à cozinha mandar o Anão preparar a comida para servir dentro de exatamente meia hora. Quando ele se levantou, Hind disse, baixo:

— Juan fede mais ainda que o velho e idiota Miguel!

— Então você vê que Ama às vezes está certa! — gritou o menino com ar de vitória, enquanto saía da sala.

Na cozinha, o Anão tinha preparado um banquete. Havia cheiros tão diferentes que até Yazid, que era muito amigo do cozinheiro, não conseguia identificar o que aquele gênio atrofiado tinha feito para a refeição da noite para festejar o bom retorno da família de Garnata. A cozinha parecia atulhada de criados e ajudantes, alguns tinham vindo com Omar da cidade grande. Falavam com tanta animação que ninguém viu Yazid entrar, só o Anão, que era quase da mesma altura dele. Ele correu para o menino.

— Sabe o que eu cozinhei?

— Não, mas por que você está tão agitado?

— Então não sabe?

— O quê? Diga logo, Anão, ande. Yazid, sem querer, havia falado mais alto e por isso foi notado. A cozinha então ficou silenciosa e só se ouvia o crepitar das almôndegas na grande panela. O Anão olhou para o menino com um sorriso triste.

— Seu irmão, Zuair bin Omar...

— Está com um pouco de febre. Tem alguma coisa mais? Por que Hind não me disse? O que é, Anão? Você tem de dizer.

— Jovem senhor. Não sei bem os detalhes, mas sei que o problema de seu irmão não é febre. Ele foi ferido quando estava na cidade e discutiu com um cristão. Está fora de perigo, foi apenas um ferimento, mas vai levar algumas semanas para se recuperar.

Yazid esqueceu por que o mandaram à cozinha e saiu correndo, atravessou o pátio e ia entrar no quarto do irmão quando seu pai o pegou no colo.

— Zuair está dormindo. Amanhã cedo você pode conversar com ele o quanto quiser.

— Quem o feriu, Abu? Quem? Quem foi? Yazid estava aborrecido. Gostava muito de Zuair e culpou-se por ter deixado o irmão mais velho para ficar com Hind e as mulheres.

O pai tentou acalmá-lo.

— Foi uma coisa sem importância. Quase por acaso. Uns idiotas me xingaram quando estávamos entrando na casa de seu tio...

— O que disseram?

— Nada muito importante. Alguns insultos, dizendo que logo seríamos obrigados a comer carne de porco. Eu não dei atenção, mas Zuair, impulsivo como sempre, estapeou o rosto do homem, que sacou o punhal que escondia sob o manto e feriu seu irmão abaixo do ombro...

— E aí? Você bateu nesse vagabundo?

— Não, filho. Carregamos seu irmão para dentro de casa e cuidamos dele.

— Onde estavam nossos criados? — Estavam junto conosco, mas obedeceram a minha ordem para não reagir.

— Por que, pai? Por quê? Talvez Ama esteja certa mesmo. Só o que vai restar de nós serão umas poucas lembranças.

— Por Má! Ela disse isso? Yazid concordou, choroso. Omar viu o rosto úmido de lágrimas do filho e o abraçou.

— Yazid bin Omar. Hoje já não é tão fácil para nós tomarmos uma atitude. Vivemos a fase mais difícil da nossa história.

Não enfrentamos problemas tão graves desde que Tarik e Musa ocuparam essas terras. E você sabe há quanto tempo foi isso, não?

Yazid concordou. — No primeiro século de nossa história, oitavo século da história deles.

— Isso mesmo, meu filho. Isso mesmo. Mas está ficando tarde, vamos lavar as mãos e comer. Sua mãe está esperando.

Ama, que tinha ouvido toda a conversa em silêncio no pátio, do lado de fora da cozinha, abençoou baixinho pai e filho quando eles entraram na casa. Então, balançando o corpo como um pêndulo, deixou escapar um estranho desabafo que estava preso bem ao fundo da garganta e fez uma maldição.

— Ó Má! Livrai-nos desses cachorros loucos e comedores de porco. Protegei-nos desses inimigos da verdade, tão cegos por crenças sectárias que representam seu Deus num pedaço de madeira e o chamam de pai, mãe e filho, levando seus seguidores a um mar de falsidade. Eles nos dominaram e aniquilaram com a força e sua tirania.

Dez mil preces a vós, ó Alá, mas tenho certeza de que ficaremos livres do domínio desses cães que em muitas cidades todo dia nos expulsam de nossas casas..

— É difícil saber quanto tempo ela continuaria nessa cantilena, mas uma jovem criada a interrompeu:

— Sua comida está esfriando, Ama. A velha se levantou devagar e, meio curvada, seguiu a criada até a cozinha. A posição que Ama ocupava em relação à criadagem era clara. Como ama-de-leite do patrão que estava com a família desde que nasceu, tinha uma incontestável autoridade sobre os criados, o que não era suficiente para resolver todas as questões hierárquicas. Afora o respeitável Anão, que se vangloriava de ser o melhor cozinheiro de toda al-Andaluz, e que sabia muito bem até onde podia fazer comentários sobre a família na frente de Ama, os outros evitavam falar de certos assuntos com ela. Não que Ama fosse espiã da família. Às vezes, soltava a língua e os criados ficavam surpresos com a ousadia dela, mas, apesar desses deslizes, sua intimidade com o patrão e seus filhos fazia com que os outros criados ficassem um pouco inseguros.

Mas, na verdade, Ama era muito crítica em relação à mãe de Yazid e à forma como educava os filhos. Se fosse dizer mesmo tudo o que achava, Ama rezava para que o patrão arrumasse outra esposa. Ela achava que a patroa era muito indulgente com as filhas, muito generosa com os camponeses que trabalhavam na propriedade e muito complacente com as falhas dos criados, não se importando se praticavam sua fé.

Uma vez, Ama chegou a ponto de dar sua opinião numa versão mais amena para Omar bin Abdala, salientando que, exatamente por causa de fraquezas assim, o islamismo estava naquela triste situação em al-Andaluz. Omar apenas riu e depois repetiu tudo para a esposa. Zubaida também achou engraçada a idéia de que ela encarnava todas as falhas do islamismo em al-Andaluz.

Os sons de risos que vinham da sala de jantar aquela noite não tinham nada a ver com Ama e suas excentricidades. A boa disposição era sinal de que o cardápio preparado pelo Anão tinha sido aprovado por seus patrões. A família costumava se alimentar frugalmente em dias normais. Apenas quatro pratos diferentes, uma travessa de doces e outra de frutas frescas. Naquela noite, foram brindados com um cordeiro assado bem temperado e muito cheiroso; coelhos cozidos em suco de uva fermentada com pimenta-vermelha e cabeças de alho inteiras; almôndegas recheadas com trufas que literalmente desmanchavam na boca; vários tipos de almôndegas fritas em óleo de coentro e servidas com pasta de pimenta cortada em forma de triângulo e frita no mesmo óleo; uma vasilha grande com carne com osso imersa num molho cor de açafrão; outra vasilha grande de arroz frito; pequenos folheados e três tipos de saladas — de aspargos; salada mista de cebola, tomates e pepinos em fatias finas, temperados com ervas e suco de limões frescos; salada de grão-de-bico com iogurte temperada com pimenta.

O motivo dos risos foi Yazid, que tentou separar do osso um naco de carne e, sem querer, fez com que espirrasse na barba do pai. Nind bateu palmas e duas criadas entraram na sala. A mãe mandou que limpassem a mesa e distribuíssem tudo o que sobrou entre os criados.

— Escutem. Digam ao Anão que hoje não vamos provar os doces e bolos de queijo. Peçam para ele servir apenas os roletes de cana-de-açúcar. Foram mergulhados em água de rosas? Andem, já é tarde.

Já era bem tarde para o jovem Yazid, que dormiu nas almofadas do chão. Ama, já desconfiando que isso fosse acontecer, entrou na sala, colocou o dedo sobre os lábios para pedir que fizessem silêncio e mostrou Yazid dormindo profundamente. Ah, mas ela estava velha demais para conseguir carregá-lo. Quando percebeu isso, ficou triste. Omar entendeu o que passava pela cabeça de sua velha ama-de-leite. Lembrou-se de quando era criança e ela quase não deixava que os pés dele tocassem o chão, a mãe chegou a ficar preocupada que o menino nunca aprendesse a andar. Omar levantou-se e carinhosamente pegou o filho e o levou para o quarto, seguido por Ama, sorridente e feliz. Era ela que trocava a roupa do menino e o colocava na cama, cuidando que as cobertas estivessem bem esticadas.

Omar estava preocupado quando voltou ao encontro da mulher e das filhas para saborear os roletes de cana. Era estranho como a lembrança de Ama levantando-o do chão e o colocando na cama há tantos anos o fizesse pensar mais uma vez na marca de fim que tinha aquele ano que apenas começava. Fim — isto é, para os Banu Hudayl e a vida que levavam. Fim, na verdade, para o islamismo em al-Andaluz.

Zubaida, percebendo como o marido estava diferente, tentou adivinhar o que pensava.

— Meu amor, diga-me uma coisa. Distraído por aquela voz, ele olhou-a e sorriu de leve. — Numa época como essa, que conclusão se deve tirar? Devemos tentar sobreviver da melhor forma, ou repensar os últimos quinhentos anos de nossa vida e assim planejar o futuro?

— Não sei o que responder. — Eu sei — afirmou Hind.

— Tenho certeza de que sabe — disse o pai — mas está tarde e podemos continuar essa discussão outro dia.

— O tempo está contra nós, pai.

— Disso também tenho certeza, minha filha.

— Que a paz esteja contigo, pai.

— Eu as abençôo, filhas. Durmam bem. — Você vai demorar? — perguntou Zubaida. — Um pouquinho, preciso de ar fresco. Omar continuou sentado alguns minutos depois que elas saíram da sala, imerso em pensamentos, olhando a mesa vazia. Depois, levantou e, envolvendo os ombros com uma manta, andou pelo pátio. O ar fresco o fez sentir um arrepio, embora não estivesse frio, e ele se enrolou mais na manta para caminhar de um lado a outro.

As tochas estavam se apagando e ele teve de orientar seus passos pela luz das estrelas. O único som vinha do riacho que passava por um lado do pátio, seguia até a fonte no centro, depois ia para o outro lado da casa. Em tempos mais felizes, ele teria colhido os perfumados jasmins, colocando-os num lenço de musselina e aspergindo água para que não perdessem o frescor. Depois, punha-os ao lado do travesseiro de Zubaida; na manhã seguinte, ainda estariam frescos e perfumados. Mas naquela noite ele nem cogitava disso.

Omar bin Abdala estava pensando, e as imagens que surgiam e sumiam eram tão fortes que fizeram com que todo o seu corpo estremecesse. Pensou no paredão de fogo.

Voltaram as lembranças daquela noite fria. Ele não conseguiu conter as lágrimas, que escorreram e sumiram em sua barba. A queda de Garnata oito anos antes tinha completado a Reconquista. As cartas sempre mostraram que isso aconteceria, portanto Omar e seus amigos não ficaram muito surpresos. As condições da rendição garantiam aos crentes — que eram a maioria dos cidadãos — liberdade cultural e religiosa, desde que reconhecessem o domínio dos castelhanos. Foi colocado no papel, na presença de testemunhas, que os muçulmanos de Garnata não seriam perseguidos ou proibidos de praticar sua crença, podiam falar e ensinar árabe ou comemorar suas festas.

Sim, pensou Omar, foi o que os emissários de Isabel garantiram, para evitar uma guerra civil. E nós acreditamos neles. Como fomos cegos, devíamos estar com a cabeça envenenada pelo álcool. Como fomos acreditar em suas belas palavras e promessas? Como nobre mais importante do reino, Omar estivera presente durante a assinatura do tratado. Ele jamais esqueceria o derradeiro adeus do último sultão, Abu Abdala, que os castelhanos chamavam Bobadil, partindo para al-Pujarras, onde havia um palácio à sua espera. O sultão se virou e olhou a cidade pela última vez, sorriu ao ver alHamra e suspirou.

Foi só. Ninguém disse nada, o que se podia dizer? A história deles tinha chegado ao fim em al-Andaluz. Eles trocaram olhares. Omar e os outros nobres estavam prontos a aceitar a derrota. Afinal, como Zubaida sempre dizia, a história do islamismo não estava cheia de episódios de ascensão e queda de reinos? A própria Bagdá não tinha sido dominada por um exército de tártaros analfabetos? A maldição do deserto, as vidas nômades. A crueldade do destino. As palavras do Profeta: o islamismo será universal, ou não será nada.

De repente, lembrou-se dos traços finos do rosto do tio. O tio! Mical al-Maleq. O bispo de Curtuba. Miguel el Malek. Aquele rosto fino, que jamais mostrava sofrimento e que não podia ser disfarçado pela barba nem pelos sorrisos falsos. As histórias que Ama contava sobre Mical quando menino vinham sempre acompanhadas da frase "ele tinha o diabo no corpo" ou "parecia que era ligado e desligado pelo demônio". Tudo isso era dito sempre com amor e carinho, para mostrar bem como Mical tinha sido uma criança malcriada. Era o filho caçula e o preferido, mas não era como Yazid. Então o que estava errado com ele? O que tinha acontecido com Mical para ir embora para Curtuba e se transformar em Miguel?

Omar ainda parecia ouvir a voz irônica do velho tio.

— Sabe qual o problema da sua religião, Omar? Foi fácil demais para nós. Os cristãos tiveram de penetrar por dentro do Império Romano. Isso os obrigou a agir sub-repticiamente. As catacumbas de Roma foram seu campo de treinamento e, quando eles finalmente conseguiram vencer, já tinham grande apoio popular. E nós? O Profeta, que a paz esteja com ele, mandou Calid bin Valid com uma espada e ele conquistou... é, está certo, conquistou muita coisa. Destruímos dois impérios. Tudo caiu no nosso colo. Ficamos com as terras árabes, a Pérsia e parte de Bizâncio. Nos outros lugares foi difícil, não? Olhe para nós, ficamos em al-Andaluz durante setecentos anos e, mesmo assim, não conseguimos construir algo duradouro. Não foi só por causa dos cristãos foi, Omar? Foi culpa nossa mesmo. Está no nosso sangue.

Sim, sim, tio Mical, isto é, Miguel. O erro também foi nosso, mas como posso pensar nisso agora? Tudo o que consigo-ver é aquele paredão de fogo e por trás dele o rosto satisfeito do abutre comemorando sua vitória. A maldição de Ximenes! Aquele maldito padre foi enviado para nossa Garnata por ordem expressa de Isabel. O confessor da diaba foi enviado para cá para exorcizar os demônios dela. Ela devia conhecê-lo bem. E ele, sem dúvida, sabia o que ela queria. Não está ouvindo a voz dela? "Pai", sussurra ela naquele tom de falsa piedade, "pai, estou preocupada com os incréus em Garnata. As vezes sinto ganas de crucificá-los paraue-entrenino bom caminho." Por que ela mandou Ximenes para Garrrãta? Se tinham tanta certeza da superioridade de sua crença, por que não confiaram no julgamento dos crentes?

Você esqueceu por que eles mandaram Ximenes de Cisneros para Garnata? Porque achavam que o arcebispo Talavera não faria as coisas direito. Talavera queria nos vencer pelo diálogo. Ele aprendeu árabe para ler nossos livros e mandou seus padres fazerem o mesmo. Ele traduziu a Bíblia e o catecismo para o árabe. Alguns de nossos irmãos foram atraídos dessa forma, não muitos. Foi por essa razão que mandaram Ximenes. Contei isso para você no ano passado, meu bispo-tio, mas você já esqueceu.

O que você faria se eles fossem bem espertos e o nomeassem arcebispo de Garnata? Até onde você iria, Mical? Até onde, Miguel?

Eu estava presente no encontro em que Ximenes tentou vencer nossos qadis e nossos eruditos numa discussão teológica. Você tinha de estar lá. Ficaria bem orgulhoso de nossos eruditos. Ximenes é esperto, é inteligente, mas naquele dia não conseguiu vencer.

Quando Zegri bin Musa respondeu a cada ponto e foi aplaudido até por alguns padres de Ximenes, o prelado perdeu a paciência. Disse que Zegri tinha ofendido a Virgem Maria, quando tudo o que nosso amigo fez foi perguntar como ela podia continuar virgem depois do nascimento de Isa. Claro que você concorda que a pergunta tem uma certa lógica, ou será que sua teologia o impede de ver as coisas como são?

Nosso Zegri foi levado para a câmara de tortura e tratado com tal brutalidade que aceitou se converter. Neste ponto nós fomos embora, mas ainda vimos aquele brilho nos olhos de Ximenes, como se naquele momento tivesse percebido que essa era a única forma de converter o povo.

No dia seguinte, todos os habitantes tiveram ordem de ir para as ruas. Ximenes de Cisneros, que Alá o castigue, declarou guerra contra a nossa cultura e o nosso estilo de vida. Naquele único dia eles esvaziaram todas as nossas bibliotecas e fizeram uma enorme pilha de livros no Bab al-Ramla. Puseram fogo na nossa cultura, queimaram dois milhões de manuscritos. Os registros de oito séculos foram destruídos em um só dia. Mas não queimaram tudo. Afinal de contas, eles não eram bárbaros, mas mensageiros de uma cultura diferente que queriam impor em al-Andaluz. Os médicos deles pediram que salvassem trezentos manuscritos, que eram principalmente sobre medicina. Ximenes concordou porque até ele sabia que o conhecimento que tínhamos sobre medicina era muito mais adiantado do que tudo o que eles sabiam na cristandade.

É esse paredão de fogo que eu vejo sem parar agora, tio. E meu coração fica com muito medo do nosso futuro. O fogo que queimou nossos livros um dia vai destruir tudo o que criamos em al-Andaluz, inclusive essa pequena aldeia construída por nossos antepassados, onde você e eu brincamos quando criança. O que tem tudo isso a ver com as vitórias fáceis de nosso Profeta e o avanço rápido de nossa religião? Isso foi há oitocentos anos, bispo. E o paredão de fogo só foi aceso no ano passado.

Satisfeito por ter conseguido vencer a discussão, Omar bin Abdala voltou para casa e entrou no quarto de sua esposa. Zubaida ainda não tinha adormecido.

— O paredão de fogo, Omar? Ele sentou na beira da cama e concordou. Ela tocou nos ombros dele e tirou as mãos, rápido.

— A tensão de seu corpo me assusta. Venha, deite aqui e faço uma massagem em você.

Omar aceitou, e as mãos dela, hábeis na arte da massagem, encontraram os pontos de tensão do corpo dele. Eram duros cómo pequenos seixos e os dedos massagearam em volta até que começaram a amolecer e ela viu que a tensão estava desaparecendo.

— Quando você vai dar uma resposta a Miguel sobre Hind?

— O que a menina acha?

— Ela preferia casar com um cavalo. O humor de Omar parecia ter melhorado um pouco.

Ele riu alto.

— Ela sempre teve bom gosto. Essa é a resposta que você quer.

— Mas o que você vai dizer à Sua Eminência o bispo?

— Direi ao tio Miguel que o único jeito de Juan achar uma companhia para a Fama é virar padre e usar o confessionário!

Zubaida riu, aliviada. Omar estava bem outra vez, logo voltaria a ser como sempre foi. Mas estava enganada, o paredão de fogo ainda estava queimando na cabeça dele.

— Não acredito que eles permitam que vivamos em al-Andaluz sem nos convertermos ao cristianismo. Casar Hind com Juan é uma brincadeira, o que me preocupa é o futuro dos Banu Hudail, dos que vivem conosco e trabalham para nós há séculos. E o que mais me preocupa.

— Você sabe melhor do que ninguém que não sou uma pessoa religiosa.

Sua supersticiosa ama-de-leite também sabe muito bem disso. Ela diz ao nosso Yazid que a mãe dele é uma blasfema, embora eu mantenha as aparências. Eu jejuo durante o Ramadã, eu...

— Mas todos sabem que você jejua e reza para manter a silhueta. Não é segredo para ninguém.

— Pode rir de mim, mas o que importa é a felicidade de nossos filhos. Mesmo assim...

Omar ficou sério de novo. — Sim?

— Mesmo assim, algo dentro de mim se revolta contra a conversão. Começo a me sentir estranha, até violenta, quando penso nisso. Preferia morrer do que me converter e fingir que estou comendo carne humana e bebendo sangue humano. O canibalismo da liturgia deles me repulsa, me atinge profundamente. Você lembra o choque que os sarracenos tiveram quando os cruzados começaram a assar os prisioneiros vivos e comê-los? Fico doente só de pensar, mas faz parte da fé deles.

— Que mulher contraditória você é, Zubaida bint Cudus. Uma hora diz que o que importa é o bem-estar de seus filhos, depois recusa a única coisa que poderia garantir o futuro deles na mesma casa que pertenceu aos ancestrais.

— O que isso tem a ver com felicidade? Todos os seus filhos, inclusive o pequeno Yazid, estão dispostos a pegar em armas contra os cavaleiros de Isabel. Mesmo que você permita que seu ceticismo seja destruído por Miguel, como vai convencer seus filhos? Para eles, sua conversão seria um choque tão grande quanto o paredão de fogo.

— É uma questão política e não espiritual. Vou continuar me comunicando com o Criador como sempre fiz. Seria uma conversão só na aparência.

— E quando os fidalgos cristãos derem suas festas, você vai comer porco com eles?

— Talvez, mas nunca com a mão direita. Zubaida riu, mas também estava chocada. Percebeu que ele estava quase decidido. O paredão de fogo tinha atingido a cabeça dele e logo poderia seguir os passos de Miguel. Mais uma vez, ele a surpreendia.

— Já contei o que centenas de nós acabamos cantando naquela noite, enquanto eles destruíam nossa herança cultural?

— Não. Você esqueceu que, quando voltou de Garnata, ficou calado uma semana inteira? Não falou uma só palavra com ninguém, nem mesmo com Yazid. Pedi, mas você não conseguia falar naquilo.

— É verdade. Naquela noite, nós choramos como crianças, Zubaida. Se nossas lágrimas tivessem sido canalizadas até o paredão, teriam apagado as chamas. Mas de repente me vi cantando algo que aprendi quando jovem. Aí, ouvi um som e percebi que não era só eu que conhecia as palavras do poeta. O sentimento de solidariedade me deu uma força que ficou comigo. Estou contando isso para você entender de uma vez por todas que nunca vou me converter por vontade própria. Zubaida abraçou o marido e beijou carinhosamente seus olhos. — Quais eram as palavras do poeta?

Omar engoliu um suspiro e sussurrou para ela:

"Você pode queimar o papel, Mas o que está escrito nele você não pode; Está bem guardado no meu peito. Aonde quer que eu vá, ele me acompanha; Queimará quando eu queimar, e irá comigo para o túmulo quando eu morrer."

Zubaida lembrava. Seu professor particular, um cético por natureza, contou muitas vezes a história para ela. A letra era de Ibn Hazm, que viveu há quinhentos anos, exatamente quando a luz da cultura islâmica estava começando a iluminar alguns dos cantos mais escuros do continente europeu.

Ibn Hazm, o poeta mais famoso e corajoso de toda a história de al-Andaluz. Historiador e biógrafo que escreveu quatrocentos volumes. Um homem que respeitava o verdadeiro conhecimento, mas não respeitava as pessoas. Seus agressivos ataques aos sacerdotes do islamismo ortodoxo fizeram com que eles o excomungassem após as orações da sexta-feira na grande mesquita. O poeta disse aquilo quando os sacerdotes muçulmanos jogaram no fogo algumas de suas obras, em Ixibilia.

— Eu também o conhecia, mas ele estava errado, não? A Inquisição foi um passo além. Não satisfeitos em queimar as idéias, queimavam quem tinha as idéias. Tem lógica, a cada século fazem novos avanços.

Ela deu um suspiro, segura de que seu marido não ia tomar uma decisão precipitada para depois se arrepender pelo resto da vida-Afagou a cabeça dele como se quisesse tranqüilizá-lo, mas já estava adormecido.

Apesar de todos os seus esforços, os pensamentos de Zubaida não deixavam que relaxasse e dormisse. Pensava agora no destino de seu filho mais velho, Zuair. Felizmente, o ferimento não tinha sido grave, pelo menos não dessa vez, mas, como ele era teimoso e impetuoso, tudo podia acontecer. Garnata era perigosa demais. O melhor, pensou Zubaida, seria que ele se casasse com sua sobrinha preferida, Cadija, que morava com a família em Ixibília. Seria um casal perfeito. A aldeia precisava de uma festa e um grande casamento era a única forma agora de divertir sem provocar as autoridades. E com esse projeto ingênuo de alegrias futuras, a senhora da casa se tranqüilizou e dormiu.


Capítulo 2

Que beleza, que encanto é uma manhã de setembro em al-Hudayl! Antes mesmo de o sol surgir, seus raios iluminam o céu e o horizonte fica colorido de diferentes tons de laranja-violáceo. Todo mundo se envolve nessa luz e no silêncio que a acompanha. Logo os pássaros começarão a cantar e o muezim na aldeia chamará os fiéis para a oração.

A aldeia tem cerca de dois mil habitantes e todos estão acostumados com esse ritual. Até os que não são muçulmanos gostam da pontualidade de relógio do muezim, mas nem todos atendem a seu chamado para as orações. Na casa do patrão, só Ama estende seu tapete no pátio e começa as obrigações do dia.

Mais da metade dos aldeões trabalha na terra, produzem para eles mesmos ou para os Banu Hudail. Outros são tecelões, trabalham em casa ou na casa-grande — os homens criam o bicho-da-seda e as mulheres produzem as famosas sedas Hudail, conhecidas até no mercado de Samarkand. A aldeia tem também alguns lojistas, um ferreiro, um sapateiro, um alfaiate, um carpinteiro e é só. Todos os empregados da casa-grande, com exceção do Anão, de Ama e da equipe de jardineiros, voltam à noite para suas casas.

Zuair bin Omar acordou cedo, sentindo-se completamente refeito, nem se lembrou do ferimento, mas o problema que o causou ainda fervia em sua cabeça. Olhou pela janela e se encantou com as cores do céu. A meio quilômetro da aldeia havia um outeiro com um grande buraco perto de seu cume. Todos chamavam o lugar de "caverna do velho", e lá havia apenas um cômodo, pequeno e muito limpo, onde vivia um homem, um místico, que recitava poemas em prosa rimada, de quem Zuair começou a apreciar a companhia depois da queda de Garnata. Ninguém sabia de onde viera o velho, nem quantos anos tinha ou quando chegou ali. Era o que Zuair achava. Omar se lembrava da caverna, mas insistia que ninguém morava lá quando ele era criança e que era usada como ponto de encontro pelos camponeses.

O velho gostava de aumentar o mistério dele na caverna e, sempre que Zuair fazia perguntas pessoais, escapava respondendo por intermédio de um poema. Apesar de tudo, Zuair achava que o velho mentiroso era honesto.

Naquela manhã ele teve muita vontade de conversar com o morador da caverna. Saiu do quarto e entrou no hammam. Quando se estirou na água, pensou que seria bom se Yazid acordasse e ficasse ali com ele. Os irmãos gostavam das conversas durante o banho. Yazid gostava porque no banho Zuair ficava preso durante vinte minutos sem poder fugir. E Zuair, porque era a única oportunidade de observar o jovem falcão de perto.

— Quem está no banho? A voz era de Ama e o tom era enérgico.

— Sou eu, Ama — respondeu Zuair.

— Que Má o abençoe. Já levantou? E o ferimento...? O riso de Zuair fez com que ela interrompesse a pergunta. Saiu do banho, vestiu um manto e entrou no pátio.

— Ferimento! Não brinque, Ama. Um idiota cristão me atacou com uma faquinha e você acha que quase virei mártir.

— O Anão ainda não está na cozinha. Posso preparar alguma coisa para seu desjejum?

— Pode, mas quando eu voltar. Vou até a caverna do velho.

— Mas quem vai selar seu cavalo?

— Você me conhece desde que nasci. Acha que não posso montar um cavalo em pêlo?

— Diga para aquele Iblis que mandei dizer que sei muito bem que foi ele quem roubou três galinhas daqui. E, se fizer isso outra vez, vou pegar uns jovens da casa para chicoteá-lo em público na aldeia.

Zuair riu, paciente, e fez um carinho na cabeça dela. Então ela achava que o velho era um simples ladrão? Como Ama era ridícula com seus estúpidos preconceitos.

— Sabe o que eu gostaria de comer hoje no desjejum?

— O quê? — Manjar dos deuses.

— Só se você prometer que vai ameaçar aquelelblis por mim.

— Está bem. Quinze minutos depois, Zuair estava galopando rumo à caverna do velho em seu cavalo preferido, Calid. Acenou para os aldeões no campo, que levavam a refeição do meio-dia embrulhada num grande lenço, amarrado na ponta de uma vara. Alguns respondiam educadamente e continuavam andando. Outros paravam e o saudavam efusivamente. A notícia de sua briga em Garnata tinha chegado à aldeia e até os céticos tiveram de dar graças a Deus. Não havia dúvida de que Zuair al-Fal — Zuair, o garanhão, como era conhecido — parecia um belo tipo quando cavalgava pela aldeia. Em poucos minutos ele se transformou apenas numa fina silhueta que sumia de vista e reaparecia, conforme os altos e baixos do campo.

O velho viu o cavalo e seu cavaleiro subindo a colina e sorriu. O filho de Omar bin Abdala vinha pedir conselho mais uma vez. Seus pais não deviam gostar da freqüência das visitas dele. Ó que será que queria agora?

— A paz esteja contigo, velho.

— E contigo também, Ibn Omar. Por que veio?

— Estive em Garnata na noite passada.

— Eu soube.

— E...? O velho deu de ombros.

— Eu estava certo ou errado? Para grande deleite de Zuair, o velho respondeu com uma poesia:

"A falsidade corrompeu tanto o mundo Que facções opostas discutem suas doutrinas no campo de batalha; Mas se o ódio não fizesse parte do homem, Igrejas e mesquitas seriam construídas lado a lado."

Zuair não conhecia essa e aplaudiu.

— Foi você quem escreveu?

— Ó menino bobo, ó criatura ignorante. Não reconhece o estilo de um grande mestre? Abu Ala al-Maari.

— Mas dizem que ele era um infiel.

— Dizem, dizem. Quem ousa dizer isso? Desafio que digam na minha frente.

— Nossos eruditos religiosos, homens sábios... Neste ponto o velho levantou, saiu do quarto, seguido por um encantado Zuair, e fez uma pose de guerra no alto da colina para recitar o mais alto possível:

"O que é a religião? Uma moça tão próxima que nenhum olho a vê; O valor de seus presentes e do dote de casamento deslumbram seu pretendente. De todas os bons princípios que ouvi dizerem no púlpito Meu coração nunca aceitou uma só palavra!"

Zuair sorriu.

— É de Al-Maari também? O velho concordou e sorriu.

— Aprendi mais com um único poema dele do que com todos os livros de religião. Repito, todos os livros!

— Blasfêmia!

— É a pura verdade. Zuair não estava muito surpreso com essa demonstração de ceticismo. Ele sempre fingiu ficar meio chocado. Não queria que o velho achasse que tinha conquistado mais um discípulo com tanta facilidade. Havia um grupo de jovens em Garnata, conhecidos de Zuair — um deles, seu amigo de infância -, que cavalgava mais de quarenta quilômetros até a caverna, no mínimo uma vez por mês, para fazer grandes discussões sobre filosofia, história, a crise atual e o futuro. É, sempre o futuro!

A doce sabedoria que os jovens assimilavam fazia com que ganhassem as discussões com seus companheiros quando voltavam para Garnata. Às vezes, surpreendiam os mais velhos com alguma observação tão pertinente que depois era repetida em todas as mesquitas na sexta-feira. Foi por intermédio do amigo Ibn Basit-que todos consideravam líder dos filósofos-cavaleiros — que Zuair tomou conhecimento dos dotes intelectuais do místico, autor de poesias que assinava com o pseudônimo de al-Zindiq, o Cético.

Antes disso, ele acreditava incondicionalmente na história de que o velho era um marginal excêntrico, a quem os pastores davam comida, com pena dele. Ama foi mais além e garantiu que ele não era muito certo da cabeça, por isso devia ficar lá, bem longe, com seus truques diabólicos. Zuair achava que, se ela tivesse razão, o velho seria um idiota primitivo e não um sábio com uma inteligência perspicaz. Mas por que e como tinha surgido essa hostilidade contra ele? Zuair sorriu.

Quando Zuair chegou, o velho estava descascando amêndoas que colocou numa tigela com água. Depois, socou-as formando uma pasta macia e, quando a mistura ficou bem consistente, juntou algumas gotas de leite. Ele olhou e percebeu que Zuair sorria.

— Está contente, não é? O que você fez na cidade foi um ato irresponsável. Uma provocação. Felizmente, seu pai é menos bobo. Se os criados dele tivessem matado aquele cristão, sofreriam uma emboscada e todos vocês seriam mortos na viagem de volta.

— Em nome dos céus, como sabe disso? O velho não respondeu e passou a pasta de amêndoas da tigela de pedra para uma panela com leite. Acrescentou à mistura mel silvestre, cardamomo e uma rama de canela. Soprou a brasa e em poucos minutos a mistura estava fervendo. Depois, diminuiu o fogo jogando cinza na brasa e deixou cozinhar. Zuair olhava em silêncio enquanto seu olfato se impregnava do cheiro. A panela foi retirada do fogo e o velho mexeu com uma colher de madeira muito gasta e espalhou fatias finas de amêndoas sobre a mistura. Só então despejou tudo em duas taças de barro e ofereceu uma delas a Zuair.

O jovem bebeu e deu sinal de aprovação.

— Puro néctar. Deve ser isso que bebem no céu o tempo todo!

— Acho que quando estão lá em cima — resmungou al-Zindiq, satisfeito com o sucesso que teve sua comida — eles podem tomar algo mais forte. — Nunca provei nada parecido... Ele parou no meio da frase e colocou a taça no chão, na sua frente. Já tinha provado aquela bebida em algum lugar, mas onde? Zuair olhou para o velho, que reagiu ao exame que o rapaz fazia.

— O que foi, tem pouca amêndoa? Mel demais? Isso pode estragar a bebida, eu sei, mas aperfeiçoei a mistura. Beba, meu jovem amigo. Não é o néctar que os deuses remi bebiam. É bom para a cabeça, suco da melhor qualidade. Alimenta as células. Acho que foi Ibn Sina o primeiro a afirmar que as amêndoas estimulam nosso processo mental.

Era mentira, Zuair percebeu logo. O velho estava fingindo. Zuair lembrou onde tinha provado uma bebida parecida. Foi na casa do tio-avô Miguel, perto da Grande Mesquita, em Curtuba. O velho devia ter alguma ligação com ele. Devia. Zuair achou que estava quase descobrindo o mistério. Como, não sabia. O velho olhou para a expressão que tinha o rosto à sua frente e percebeu instintivamente que um dos seus segredos estava prestes a ser descoberto. Antes que pudesse mudar de assunto, seu hóspede resolveu continuar atacando.

— Tenho um recado de Ama para você.

— Ama? Que Ama? Não conheço nenhuma Ama. — A ama-de-leite de meu pai. Ela sempre trabalhou na minha família, a aldeia inteira a conhece. E você, que diz saber tudo o que acontece lá, não sabe quem é ela? É inacreditável!

— Agora que você disse, lembrei. Claro que sei quem é e como gosta de falar do que não é da sua conta. O que ela disse?

— Pediu para eu dizer que sabe quem roubou três de nossas galinhas poedeiras...

O velho começou a rir alto com aquele absurdo. Ele, um ladrão?

— Ela disse que, se você fizer isso de novo, vai castigá-lo na frente da aldeia inteira.

— Você está vendo alguma galinha aqui na caverna? Algum ovo?

— Não me interessa. Se você precisa de alguma coisa lá de casa, é só dizer que eu trago aqui na mesma hora. Estou só dando um recado.

— Acabe de tomar sua bebida. Posso esquentar mais um pouco? Zuair pegou a taça e bebeu-a de um gole. Olhou bem o velho. Ele podia ter qualquer idade acima de sessenta anos, talvez sessenta e cinco. Raspava a cabeça toda semana. O chumaço de cabelo branco que tinha mostrava que estava atrasado para a visita ao barbeiro da aldeia naquela semana. Tinha um nariz bem fino e pequeno como um bico de pássaro, o rosto enrugado cor de azeitona escura, que mudava de tom conforme a estação do ano.

Os olhos eram o que mais se notava. Não eram grandes ou bonitos como qualquer outro, muito pelo contrário. Por serem tão apertados, tinham algo hipnótico, principalmente quando se estava no meio de uma discussão acalorada e eles brilhavam como lâmpadas no escuro ou, como costumavam dizer seus inimigos, como os de um gato no cio.

Sua barba grisalha era aparada, muito bem aparada para um asceta — o que talvez indicasse a origem dele. Geralmente, usava calça branca e larga com uma camisa combinando. Quando esfriava, cobria-se com uma manta marrom-escura. Naquele dia, quando o sol entrava pelo único cômodo de sua casa, ele estava sentado sem camisa.

As rugas em seu peito magro mostravam sua idade. Era, sem dúvida, um homem velho. Mas, de que idade? E por que aquele silêncio irritante, enigmático, tão diferente do seu jeito aberto e da sua conversa fluente, sempre que Zuair perguntava sobre as origens dele? Sem esperar uma resposta, o filho de Omar bin Abdala resolveu repetir a mesma pergunta mais uma vez.

— Quem é você, velho?

— Não sabe mesmo? Zuair levou um susto.

— Como assim?

— A sua Ama nunca contou? Claro que não, vejo isso em seu rosto. Que incrível! Quer dizer que eles resolveram manter silêncio. Por que você não pergunta a seus pais, um dia desses? Sabem de tudo a meu respeito. Assim acaba sua busca pela verdade.

Zuair achou que deu resultado. Então ele estava certo ao desconfiar.

— E o tio-avô Miguel sabe quem você é? O rosto do velho ficou sério, estava contrariado.

Olhou para o resto do suco de amêndoa e ficou absorto em pensamentos. De repente, olhou para ele.

— Quantos anos você tem, Zuair al-Fal? Zuair enrubesceu. Dito por al-Zindiq, seu apelido soava mais como uma acusação.

— Vou fazer vinte e três daqui a um mês.

— Muito bem. E por que os aldeões chamam você de al-Fal?

— Acho que é porque eu gosto muito de andar a cavalo. Até meu pai diz que, quando me vê montado em Calid, tem a impressão de que o cavalo e eu somos um só corpo.

— Pura bobagem, asneira mística! Você concorda?

— Bom, não, talvez. Mas é verdade que, mais do que qualquer homem da aldeia, eu consigo fazer um cavalo — qualquer um, não apenas Calid — correr.

— Ibn Omar, preste atenção. Não é por isso que chamam você de al-Fal.

Zuair ficou sem jeito. Será que o velho diabo estava atacando mais uma vez para se defender?

— Jovem senhor, você sabe do que estou falando. Não é só de montar a cavalo, é? Você monta nas mulheres sempre que pode. Soube que você gosta muito de deflorar as virgens da aldeia. Diga a verdade.

Zuair levantou, irritado.

— É mentira, uma grande calúnia. Nunca fiquei com uma moça sem que ela quisesse. Quem disser outra coisa eu desafio para um duelo. Esse assunto não é brincadeira.

— Ninguém disse que você as forçava. Como elas podem ser forçadas, se você tem o direito de deflorá-las? Mas para que servem pernas abertas, se a cabeça continua fechada? Por que ficou tão aborrecido com minha pergunta? Seu pai é um homem direito, não é dado a excessos de espécie alguma, mas fatos como esse acontecem na sua família há séculos. Idiota de sangue quente, sente aí. Não me ouviu? Sente.

Zuair obedeceu.

— Você conhece Ibn Hasd, o sapateiro? Zuair estava surpreso com a pergunta — o que aquele respeitável homem tinha a ver com o assunto? -, mas respondeu que sim.

— Na próxima vez que o encontrar, olhe bem o rosto dele. Pode achar parecido.

— Com quem?

— Um jeito familiar, só isso.

— Com que família? — Com a sua, claro. Procure a marca dos Banu Hudail.

— Velho maluco, Ibn Hasd é judeu. Como os antepassados dele...

— O que isso tem a ver? A mãe dele era a moça mais bonita da aldeia. Seu bisavô, Ibn Farid, um dia espiou-a quando se banhava no rio. Esperou que terminasse e então a violentou. O resultado disso foi Ibn Hasd, que na verdade é Ibn Maomé!

Zuair riu.

— Pelo menos o velho guerreiro tinha bom gosto. Mas não consigo imaginá-lo como um...

— Al-Fal? — sugeriu o velho. Zuair levantou para ir embora. O sol estava alto e ele começou a pensar no manjar dos deuses que Ama preparava. O velho o tinha enganado de novo.

— Vou embora e farei o que você disse. Vou perguntar a meu pai a sua história.

— Por que tanta pressa?

— Ama prometeu me fazer um manjar dos deuses e...

— Amira e seus manjares dos deuses! Será que as coisas nunca mudam naquela maldita casa? Você tem um ponto fraco, Zuair al-Fal. Uma fraqueza que vai ser sua ruína. Você é facilmente convencido. Seus amigos fazem o que querem com você, levam você no bico. Você não questiona.

Precisa pensar por si mesmo. Sempre! Isso é muito importante nesses tempos em que uma simples escolha não é mais algo abstrato, mas uma questão de vida ou morte.

— Você é a única pessoa que não pode dizer isso. Não fiquei perguntando tudo por mais de dois anos? Não fui persistente, velho?

— Sim. Não posso negar, mas por que está indo embora exatamente quando vou contar o que quer?

— Mas não disse para eu perguntar...

— Exatamente. Foi um artifício para distraí-lo e, como sempre, funcionou. Bobo, seu pai jamais contará nada para você. E sua mãe? Para ser sincero, não sei. Ela é uma senhora corajosa e muito respeitada, mas quanto a esse assunto, acho que vai fazer o mesmo que seu pai. Fique comigo, Ibn Omar. Vou contar logo tudo.

Zuair ficou trêmulo de ansiedade. O velho aqueceu um pouco de água e colocou num recipiente com café, depois afastou os utensílios de cozinha para um lado e arrastou um grande e puído tapete feito a mão para o meio da caverna. Sentou com as pernas cruzadas e fez sinal para Zuair. Quando os dois estavam sentados, o velho encheu duas canecas. Bebeu fazendo barulho e começou a falar.

— Nós achávamos que os velhos tempos podiam acabar em toda parte, mas nunca em Garnata. Tínhamos certeza de que o reino do islã sobreviveria em al-Andaluz, mas subestimamos nossa capacidade de autodestruição. Aqueles dias nunca mais voltarão, sabe por quê? Porque os defensores da fé brigavam entre si, se matavam e mostraram que não conseguiam se unir contra os cristãos. Até ser tarde demais.

"Quando o sultão Abu Abdala olhou pela última vez para seu reino perdido, começou a chorar e então a mãe dele, a Sra. Aiesha, disse: Você pode chorar como mulher pelo que não soube defender como homem.' Sempre achei isso injusto. Naquela época, os cristãos tinham uma enorme superioridade militar. Costumávamos achar que o sultão da Turquia iria nos enviar ajuda e colocamos sentinelas em Malaca, mas a ajuda não veio. Tudo isso foi há apenas quinze anos. A época da qual vou falar agora remonta a quase um século.

"Seu bisavô, Ibn Farid, foi um soldado excepcional. Consta que era até mais temido pelos cavaleiros cristãos do que Ibn Cassim — e isso, você pode acreditar, é muita coisa. Uma vez, durante o cerco de Medina Sid, ele saiu e montou sozinho seu cavalo e galopou até a tenda do rei castelhano. Ó rei dos cristãos', gritou.

Desafio todos e cada um de seus cavaleiros para uma luta. O emir me mandou dizer que, se eu for derrubado por um dos seus homens, vamos abrir os portões para você, mas, se na hora em que o sol se esconder eu ainda estiver montado, então vocês têm de recuar.'

"O rei, conhecendo a fama de seu bisavô, relutava, mas os cavaleiros cristãos se rebelaram. Acharam que recusar um desafio desses era uma ofensa à virilidade deles.

Então o desafio foi aceito, e o que tinha de acontecer aconteceu. Quando o sol se pôs, o senhor dos Banu Hudayl estava com sangue escorrendo do corpo, mas continuava montado. Quase sessenta cavaleiros cristãos estavam mortos. O cerco foi suspenso — por uma semana. Então eles voltaram, tomaram as tropas de surpresa e acabaram vencendo, mas Ibn Farid já tinha voltado para al-Hudayl.

"Seu avô Abdala tinha só dois anos quando a bem-amada mãe dele, a Sra. Najma, morreu ao dar à luz sua tia-avó Zara. A filha mais jovem, a Sra. Mariam, a substituiu e passou a ser mãe das duas crianças. E que mãe. Dizem que as crianças cresceram achando que ela era a mãe verdadeira.

Zuair estava começando a se impacientar.

— Tem certeza de que essa é a história da sua vida? Parece mais da minha. Cresci ouvindo histórias fantásticas sobre meu bisavô.

Os olhos de al-Zindig se estreitaram quando ele olhou para Zuair.

— Se me interromper mais uma vez, nunca mais tocarei no assunto com você. Certo?

Sob essa dura ameaça, Zuair concordou e o velho encurtou a história.

— Mas havia alguns problemas. Ibn Farid tinha muito respeito e afeto por sua nova mulher, mas nunca teve paixão. Mariam podia substituir a irmã em tudo, mas não na cama do bisavô. Ele simplesmente deixou de usar aquele acessório com o qual todos os homens foram dotados. Muitos médicos e curandeiros vieram vê-lo, traziam poções restauradoras das mais exóticas, que eram enfiadas pela goela dele para reavivar seu ardor perdido. Nada adiantou. Belas virgens foram colocadas na frente de sua cama, mas nada acontecia.

"O que eles não entendiam é que a doença da cabeça não pode ser curada como a do corpo. Você sabe, meu jovem amigo, quando o ânimo está baixo, o pau não levanta!

Está certo?

Zuair balançou a cabeça, concordando.

— Estou muito surpreso com isso, pois Ama e o Anão sabem de todos os detalhes. Um deles devia ter contado para você.

— E o velho mostrou o que achava das duas pessoas cujo nome citou — deu uma forte fungada e cuspiu o catarro fora da caverna com perícia e precisão.

— Por favor, não pare agora. Preciso saber de tudo — disse Zuair, numa voz suplicante e ao mesmo tempo impaciente. O velho sorriu enquanto colocava um pouco mais de café.

— Um dia, quando Ibn Farid foi visitar o tio em Curtuba, os dois cavalgaram até os arredores da cidade, para a aldeia de um nobre cristão cuja família era amiga da dele desde a queda de Ixibilia. O nobre, Dom Alvaro, não estava em casa, nem a esposa. Enquanto esperavam, uma jovem criada trouxe algumas frutas e bebidas.

Ela devia ter quinze ou dezesseis anos no máximo.

"Chamava-se Beatriz e era linda. Sua pele tinha a cor do damasco maduro, os olhos eram em forma de amêndoa e todo o seu rosto sorria. Eu a vi logo depois e até um menino tinha dificuldade em resistir àquela beleza. Ibn Farid não conseguia tirar os olhos dela e seu tio percebeu na hora o que tinha acontecido. Ele tentou ir embora, mas seu bisavô se recusou a sair da casa. Seu tio mais tarde disse à família que naquela hora teve um pressentimento de que Ibn Farid estava caminhando para o precipício, mas todos os seus avisos, temores e piores presságios foram em vão. Ibn Farid era famoso por sua obstinação.

"Quando Dom Alvaro voltou com os filhos, todos se alegraram por encontrar os visitantes. Um banquete foi preparado, camas foram arrumadas e nem se cogitou que os dois homens voltassem para Curtuba naquela noite. Um mensageiro foi enviado para avisar à família que Ibn Farid só voltaria no dia seguinte. Você pode imaginar como ele estava encantado. Finalmente, tarde da noite, o grande guerreiro humildemente perguntou a seu anfitrião sobre a moça.

'Você também, amigo, você também?', disse Dom Alvaro. Beatriz é filha de Dorotéia, a cozinheira. O que você quer? Se quer levar a moça para a cama, claro que podemos arrumar isso.'

"Imagine a surpresa de Dom Alvaro quando sua generosa resposta fez com que Ibn Farid levantasse de suas almofadas com o rosto rubro de raiva e desafiasse o anfitrião para um duelo. Dom Alvaro percebeu que o assunto era sério. Levantou-se e abraçou Ibn Farid. O que deseja, meu amigo? Todos ficaram em silêncio. A voz de Ibn Farid estava conturbada pela emoção. Quero que ela seja minha esposa, é só. Nessa altura, o tio dele desmaiou, embora ele deva mesmo é ter caído de bêbado. O que Dom Alvaro podia dizer? Disse que o pai da menina tinha morrido e ele teria de perguntar a Dorotéia, mas foi sincero e deixou claro que, como a mulher era empregada dele, era pouco provável que recusasse.

"Seu bisavô não conseguia esperar. Mandem que venha já!' Dom Alvaro obedeceu. Surgiu uma Dorotéia surpresa e confusa, que cumprimentou a todos com uma reverência.

Dorotéia, começou Dom Alvaro, meus hóspedes gostaram muito de sua comida e este grande cavaleiro, Ibn Farid, a cumprimenta. Cumprimenta-a também pela beleza da jovem Beatriz. Nós, que a vimos crescer nos últimos anos, não prestamos atenção à sua aparência, mas qualquer forasteiro fica impressionado.Tem planos para casá-la?' Pobre mulher, o que podia dizer? Ela também era muito bonita, com sua bela moldura de cabelos ruivos que chegavam até os joelhos. Ficou estupefata com a pergunta. Balançou a cabeça, sem acreditar. Bem, então', continuou Dom Alvaro, tenho boas notícias para você. Meu amigo, Ibn Farid, quer desposar sua filha.

Entendeu? Esposa para sempre, não uma concubina por uma noite. Ele vai pagar um ótimo dote. O que você acha?'

"Pode imaginar, Ibn Omar, como a pobre mulher ficou. Começou a soluçar, o que emocionou Ibn Farid, e ele explicou mais uma vez que suas intenções eram muito honradas.

Ela então olhou para Dom Alvaro e disse: Como queira, meu senhor. Ela não tem pai, o senhor decide.' E Dom Alvaro resolveu naquela mesma hora que na manhã seguinte Beatriz seria sua bisavó número três. Beberam mais vinho. Depois nos contaram que o rosto de seu antepassado mostrava uma felicidade como não se via desde o dia em que seu avô nasceu. Ele estava no sétimo céu. Começou a cantar com tanta alegria e paixão que os outros também se alegraram e todos fizeram o mesmo. Nunca esqueceu uma poesia que desde esse dia passou a ser cantada na casa dele.

Zuair quis saber que poema era esse. — Era o Camíria? O Hino ao Vinho? O velho sorriu e concordou. Zuair, emocionado com a história da paixão de Ibn Farid, de repente começou a cantar.

"Deixa que a exaltada onda da paixão afogue meus sentidos! Compadece-te do alento do amor, deste velho ardor do coração. E não responde com desprezo Quando só desejo admirá-la como és Pois o amor é vida e morrer de amor, o paraíso Onde todos os pecados são logo perdoados..."

— Por Má! — gritou o velho.

— Você canta bem. — Aprendi a letra com meu pai.

— E ele com o pai dele, mas a primeira vez foi a mais importante. Devo continuar, ou basta por hoje? O sol já está brilhando no alto das montanhas. Seu manjar dos deuses o espera em casa. Se você está cansado...

— Por favor, continue. Por favor! E o velho continuou.

— Na manhã seguinte, depois do desjejum, Beatriz se converteu ao islamismo. Quando lhe sugeriram vários nomes muçulmanos para escolher, ela ficou confusa, e assim acabou que até o nome dela foi decidido por seu futuro marido. Asma. Asma bint Dorotéia.

"Pobre criança. Ela soube que ia se casar quando acordou bem cedo para limpar a cozinha e acender o fogo. Chorou. Horas depois, a cerimônia se realizou. Foi seu tio-bisavô que, como único muçulmano presente, realizou o ritual. Nossa religião é simples — nascimento, morte, casamento, divórcio não exigem rituais complicados, ao contrário da liturgia criada pelos padres.

"Ibn Farid estava com pressa porque queria comunicar à família um fato consumado. Ele achava que qualquer demora podia ser fatal. Os irmãos de Najma e de Mariam pertenciam àquela parte da família que gostava de criar problemas com os outros clãs. E eram exímios assassinos. Claro que considerariam uma afronta que a irmã deles fosse trocada por uma escrava cristã. Era permitido ter concubinas, como você sabe, mas aquilo era outra coisa. Uma nova dona da casa estava sendo escolhida sem o conhecimento ou a autorização delas. Claro que ela daria filhos para ele. Se tivessem tempo para pensar, eles podiam tentar matar Beatriz. Ibn Farid era conhecido em toda al-Andaluz como `o leão' por sua coragem, mas podia ser também uma raposa com a mesma facilidade. Se já estivesse casado, sabia que levava vantagem em relação aos cunhados. E claro que o tio dele não estava satisfeito, mas não brigou com o sobrinho na casa de Dom Alvaro. Deixou para depois.

"Assim, Ibn Farid e Asma bint Dorotéia voltaram para Curtuba. Descansaram um dia e uma noite antes de iniciar a viagem de dois dias ao reino de Garnata e à segurança de al-Hudayl. Sem que Ibn Farid soubesse, as notícias tinha chegado à casa, por meio de um mensageiro especial, enviado por seu tio.

"O clima na casa era fúnebre. Seu avô Abdala, que na época tinha dezoito anos, já era um rapaz. Sua tia-avó Zara tinha quatro anos menos, a mesma idade que eu.

Eles andavam para cima e para baixo no pátio por onde corre o riacho, muito agitados. Percebi que estavam cada vez mais preocupados e não sabia por quê. Perguntei a seu avô o que estava acontecendo e ele gritou: Filho de um cão, saia daqui. Não é da sua conta. Ele nunca tinha falado assim comigo. Quando a Sra. Mariam saiu do quarto, os dois correram até ela e a abraçaram, sem parar de chorar. Felizmente, esqueceram meu atrevimento. Eu gostava muito de seu avô e o que ele me disse naquele dia me magoou muito. Depois, claro, compreendi por que estava tão zangado, mas até aquele dia eu sempre brinquei com ele e com Zara como iguais.

Alguma coisa tinha mudado. Quando a calma voltou, nós dois tentamos fazer como nos velhos tempos, mas nunca mais foi a mesma coisa. Ficou claro que ele era o jovem patrão e sempre lembravam a ele que eu era filho de uma criada, que agora era responsável por tudo o que a Sra. Asma precisasse.

"Finalmente", pensou Zuair, "ele está começando a falar a meu respeito"; e, antes que pudesse perguntar algo, o velho continuou:

— A Sra. Mariam era uma mulher muito delicada, embora sua língua pudesse ser muito dura quando alguma criada — a não ser claro, a sua Ama — tentava ter alguma intimidade. Lembro-me bem dela. Às vezes, tomava banho na grande piscina de água natural formada pelo rio. Ela era precedida por seis serventes e acompanhada de mais quatro criadas que seguravam panos dos dois lados dela para garantir sua completa privacidade. O grupo costumava ir em silêncio, menos quando Zara estava junto. Então a tia e a sobrinha conversavam muito e as criadas podiam rir das coisas que Zara dizia. As serventes respeitavam Mariam, mas não gostavam dela. Os filhos de sua falecida irmã a adoravam. Para seu avô e sua tiaavó, ela não fazia nada errado. Mas sabiam que o pai deles não era feliz com ela. Sentiam, como as crianças costumam sentir, que o problema devia ser muito grave, mas nunca deixaram de gostar dela. O velho parou de repente e olhou seu ansioso ouvinte.

— Está preocupado com alguma coisa, jovem senhor? Quer ir embora agora e voltar outro dia? A história não vai fugir.

Os olhos de Zuair tinham percebido uma pequena figura no horizonte e a poeira indicava que era um cavaleiro trazendo uma mensagem. Desconfiava que vinha de al-Hudayl.

— Acho que vamos ser interrompidos. Se o homem a cavalo for um mensageiro de casa, voltarei amanhã ao amanhecer. Será que você pode satisfazer a minha curiosidade sobre uma coisa, antes que eu vá embora?

— Pergunte.

— Quem é você, velho? Sua mãe trabalhava em nossa casa, mas quem é seu pai? Você faz parte de nossa família?

— Não tenho certeza. Minha mãe fazia parte do dote, uma criada que veio com a Sra. Najma de Curtuba quando ela se casou com Ibn Farid. Devia ter dezesseis ou dezessete anos na época. Meu pai? Quem sabe? Minha mãe dizia que era jardineiro na sua casa e morreu numa das batalhas perto de Malaca no ano em que nasci. É verdade que eram casados, mas só o céu sabe se ele foi meu pai. Mais tarde, depois da morte súbita e misteriosa de Asma bint Dorotéia e das estranhas circunstâncias da morte de minha mãe, ouvi histórias sobre meu verdadeiro pai. Diziam que a semente que me produziu foi plantada por Ibn Farid. Isso certamente explica o comportamento dele nos últimos anos, mas, se fosse verdade, minha mãe teria me contado. Esse assunto já não me interessa muito.

Zuair estava intrigado com a mudança dos fatos. Agora lembrava vagamente as histórias que Ama costumava contar sobre a tragédia da Sra. Asma, mas não conseguia lembrar direito. Queria ficar e ouvir tudo, mas a poeira do cavaleiro parecia mais próxima.

— Você ainda está escondendo uma coisa importante.

— O que é?

— Seu nome, velho, seu nome. A cabeça do velho, que tinha ficado ereta todo o tempo, tombou de repente e ele ficou olhando a trama do tapete. Depois, virou-se para Zuair e sorriu.

— Há anos esqueci o nome que minha mãe me deu. Talvez sua Ama ou o Anão lembrem. Por muitas décadas meus amigos e inimigos me conheceram como Vajid al-Zindiq.

Era o nome que usava quando escrevi meu primeiro livro. É um nome do qual ainda tenho muito orgulho.

— Você disse que sabia por que me chamavam de al-Fal. Vou ter de pensar muito para encontrar uma boa explicação para você ter recebido esse nome.

— A resposta é simples: esse nome me descreve bem. Eu sou, afinal, um cético, um livre-pensador completo!

Os dois riram. Quando o cavaleiro chegou na caverna, os dois levantaram e Zuair, impulsivo como sempre, abraçou o velho e beijou seu rosto. al-Zindiq ficou emocionado com o gesto. Antes que ele pudesse dizer qualquer coisa, o mensageiro tossiu discretamente para mostrar que estava ali.

— Vamos, homem. Entre, traz um recado de meu pai? — disse Zuair. O rapaz concordou. Não parecia ter mais de treze anos. — Desculpe, meu senhor, mas o patrão manda que volte imediatamente. Eles o estavam esperando para o desjejum.

— Está bem. Monte aquela mula que você chama de cavalo e volte. Diga a eles que estou a caminho. Espere, mudei de idéia. Volte agora e alcanço você em alguns minutos.

Eu mesmo falo com meu pai, não precisa recado.

O rapaz concordou e estava quase saindo quando al-Zindiq disse:

— Escute, menino, está com sede?

Olhou para Zuair, que fez um sinal discreto para concordar. O rapaz pegou logo a xícara de água oferecida por al-Zindiq e bebeu de um gole.

— Pegue algumas tâmaras para a volta. Vai dar tempo de comer, antes que seu jovem amo o alcance.

O menino aceitou as frutas, fez uma reverência para os homens e logo estava em seu cavalo tomando a direção da estrada da montanha. — Que a paz esteja contigo, Vajid al-Zindiq.

— E contigo, meu filho. Posso pedir um favor?

— O que quiser.

— Quando seu pai deixou que eu morasse aqui, há um quarto de século, fez apenas uma exigência. Que meus lábios ficassem selados a respeito de tudo que dissesse respeito à família dele. Se um dia ele soubesse que isso foi desrespeitado, acabaria a permissão. E também a comida que sua mãe faz a gentileza de mandar para mim. Meu futuro depende do seu silêncio, não tenho outro lugar para viver.

Zuair ficou irritado.

— Mas não posso aceitar isso. É injusto, meu pai não faria uma coisa dessas. Eu vou...

— Não vai nada. Seu pai pode estar errado, mas tem suas razões. Quero que você jure que não vai contar.

— Dou minha palavra. Juro sobre o Alcorão...

— Sua palavra basta.

— Claro, al-Zindiq, mas em troca quero que prometa que vai terminar a história.

— Quero terminar.

— A paz esteja contigo então, velho. al-Zindiq foi até onde Calid estava amarrado e sorriu quando Zuair montou em pêlo. al-Zindiq afagou o cavalo.

— Montar um cavalo sem colocar uma manta...

— Eu sei — gritou Zuair -, é como montar um demônio. Se isso é verdade, o diabo deve ter costas macias.

— Que a paz esteja contigo, al-Fal. Que seu cavalo corra — gritou o velho sorrindo enquanto Zuair descia a colina a galope.

Durante algum tempo al-Zindiq ficou ali em silêncio, admirando a destreza do cavaleiro que se distanciava.

— Eu também montava assim, lembra, Zara? Ninguém respondeu.

Yazid despertou da sesta sentindo um leve tremor e com suor escorrendo pelo rosto. A mãe, deitada ao lado dele e preocupada com seu caçula, passou um pano de linho embebido em água de rosas no rosto dele e colocou a mão em sua testa. Estava fresca como a brisa da tarde no pátio. Ela não precisava se preocupar.

— Está se sentindo mal, meu filho?

— Não, tive um sonho estranho. Parecia tão real, Ummi. Por que os sonhos da tarde parecem mais reais? É por que o sono é mais leve?

— Talvez. Quer me contar?

— Sonhei com a mesquita em Curtuba. Era tão bela, mãe. Então o tio-avô Miguel entrou e começou a despejar garrafas de sangue por todo canto. Tentei impedi-lo, mas ele me bateu...

— O que vemos em sonhos supera a realidade — disse Zubaida, interrompendo-o. Ama estava sempre falando mal de Miguel para as crianças e Zubaida não gostava disso.

Então, tentou distrair o filho:

— Tudo o que se possa imaginar sobre a Grande Mesquita de Curtuba ainda é pouco. Um dia vamos levar você para conhecer seus magníficos arcos. Quanto a Miguel... — ela deu um suspiro. Zuair estava a caminho do banho, escutou a conversa e entrou no quarto da mãe silenciosamente, a tempo de ouvir Yazid condenar o bispo de Curtuba.

— Não gosto dele, jamais gostei. Vive apertando minha bochecha com força. Ama diz que é só o que se pode esperar dele. Disse também que a mãe dele, a Sra. Asma, não gostava dele. Sabe, mãe, uma vez ouvi Ama e o Anão conversando sobre a Sra. Asma. Ama disse que Miguel a matou. É verdade?

Zubaida empalideceu e deu um risinho nervoso. — Que bobagem é essa? Claro que Miguel não matou a mãe! Seu pai ficaria chocado de ouvir você dizer isso. Sua Ama fala muita bobagem, você não deve acreditar em tudo o que ela diz.

— Tem certeza, mãe? — perguntou Zuair com ironia. A voz dele surpreendeu os dois. Yazid levantou e pulou nos braços dele. Os dois irmãos se abraçaram e beijaram, enquanto a mãe sorria.

— O filhote está a salvo com seu protetor. Sentimos sua falta esta manhã. Yazid ficou por aí aborrecendo a todos, inclusive a si mesmo. O que aquele velho tinha de tão interessante para contar?

A resposta de Zuair para a pergunta que já esperava tinha sido cuidadosamente preparada no caminho de volta para casa.

— Falou sobre a tragédia de al-Andaluz. Do fracasso para manter nosso estilo de vida. Ele acha que somos o final de nossa história. É um homem muito sábio, mãe, um verdadeiro erudito. O que você sabe sobre ele? Ele não fala nada sobre si mesmo.

— Pergunte a Ama — disse Yazid.

— Ela sabe tudo sobre ele.

— Vou dizer para Ama controlar um pouco a imaginação e ter cuidado quando Yazid estiver perto.

Zuair sorriu e ia entrar na discussão a respeito de Ama e dizer como ela só dizia coisas importantes, mas de repente percebeu um aviso nos olhos da mãe. Ela sentou na cama e deu uma ordem.

— Vá tomar seu banho, Zuair. Seu cabelo está cheio de areia.

— E você está com cheiro de cavalo! — acrescentou Yazid, fazendo uma careta.

O irmão saiu e Zubaida bateu palmas chamando as criadas. Duas moças entraram no quarto. Uma delas trazia um espelho e dois pentes. Sem dizer nada, começaram uma suave massagem na cabeça da senhora usando dois pares de mãos em perfeita simetria. Os vinte dedos, delicados e firmes ao mesmo tempo, percorriam toda a área da testa até a nuca. Só o que Zubaida ouvia era o som da fonte no pátio. Quando sentiu que seu equilíbrio interior estava refeito, fez sinal para que parassem.

As duas mulheres sentaram no chão, Zubaida escorregou o corpo e ficou na beira da cama, então elas começaram a massagear seus pés. A mais jovem das duas, Umaima, não tinha muita prática e seu nervosismo transparecia na falta de habilidade para esfregar com energia o calcanhar de sua senhora.

— O que comentam na aldeia? — perguntou Zubaida. Umaima tinha sido promovida a cuidar dela recentemente e a senhora queria que a moça ficasse à vontade. A jovem criada enrubesceu quando a senhora falou com ela e gaguejou palavras sem sentido sobre o grande respeito que todos tinham na aldeia pelos Banu Hudail. Cadija, a colega mais velha e experiente, a socorreu.

— Só falam em Zuair bin Omar ter esbofeteado o infiel, minha senhora.

— Zuair bin Omar é um grande bobo! O que eles comentam?

Umaima conseguiu abafar um riso, mas a informalidade de Zubaida a deixou segura e ela respondeu com clareza.

— Os mais jovens apóiam Ibn Omar, senhora, mas muitos aldeões mais velhos não gostaram. Acharam que o cristão estava naquele lugar de propósito, para fazer uma provocação, e Ibn Hasd, o sapateiro, ficou preocupado. Acha que eles podem mandar soldados para atacar al-Hudayl e prender todos. Disse que...

— Ibn Hasd tem maus presságios até nos bons tempos, minha senhora.

Cadija, querendo evitar que Umaima falasse demais, tentou mudar para um assunto mais leve, mas Zubaida insistia.

— Fique quieta. Diga, moça, o que Ibn Hasd falou?

— Não lembro tudo, senhora, mas disse que nossos doces devaneios acabaram e logo vamos acordar apavorados. Zubaida sorriu. — Ele é um homem bom, embora seus comentários às vezes sejam pessimistas. Uma pedra jogada pela mão de um amigo é como uma maçã. Você levou minhas roupas para o hammam?

Umaima concordou. Fazendo um gesto com a cabeça, Zubaida mandou que as duas saíssem. Ela sabia muito bem que o sapateiro estava apenas dizendo o que a aldeia inteira pensava. Havia muita insegurança. Pela primeira vez em seiscentos anos, os aldeões de al-Hudayl encaravam a possibilidade de não saber como seria o futuro de seus filhos. Mil e uma histórias circulavam por Garnata sobre o que aconteceu depois da Reconquista de Curtuba e Ixibilia. Cada refugiado chegou com histórias de terror e violência horríveis. O que mais impressionou a todos foi a descrição detalhada do confisco feito pela Igreja e a Coroa de terras, casas e propriedades em diversas cidades. Era isso que os aldeões mais temiam, pois não queriam ser expulsos das terras que eles e seus ancestrais cultivavam há séculos. Se o único jeito de salvar suas casas era a conversão, então, para sobreviver, muitos concordariam. Os primeiros a aceitar seriam os membros da família do administrador, Ubaidala, cujos únicos deuses eram a segurança e a riqueza.

Zubaida resolveu discutir esses problemas com o marido e decidir alguma coisa. Os aldeões estavam esperando que Banu Hudayl tomasse uma atitude. Ela sabia que eles deviam estar assustados com a ousadia de Zuair. Omar tinha de ir à mesquita na sexta-feira porque era preciso tranqüilizar as pessoas.

Quando Zubaida passou pelo pátio, viu os filhos jogando xadrez. Deu uma olhada no jogo e gostou de ver o cenho marcado de Zuair, sinal de que Yazid estava quase vencendo. Sua voz juvenil estava animada quando ele anunciou a vitória:

— Sempre ganho quando a rainha negra está do meu lado!

— O que está dizendo, maldito? Controle a língua. O xadrez tem de ser jogado em completo silêncio, é a primeira regra. Você fala como um corvo no cio.

— Minha rainha encurralou o seu sultão — disse Yazid.

— Só falei quando sabia que o jogo tinha acabado, você não precisa ficar zangado. Por que um afogado vai se preocupar com a chuva?

Zuair, irritado por ter perdido para um menino de nove anos, colocou seu rei na mesa, deu um riso sem graça e saiu de mansinho.

— Vejo você no jantar, maldito! Yazid sorriu para a rainha. Estava juntando as peças e guardando-as na caixa especial quando um velho criado, com o rosto branco como se tivesse visto um fantasma, correu pelo pátio. Ama saiu da cozinha e o criado disse alguma coisa no ouvido dela. Yazid nunca tinha visto a velha ficar tão preocupada. Será que um exército cristão estava invadindo al-Hudayl? Antes que ele pudesse correr para a torre e descobrir, o pai apareceu, seguido por Ama.

Yazid, não querendo ficar sem saber, foi até o pai tranqüilamente e segurou na mão dele. Omar sorriu para ele, mas olhou sério para o criado.

— Tem certeza? Não está enganado?

— Não, meu senhor. Eu mesmo vi o grupo passando pela aldeia. Eram dois soldados cristãos acompanhando a senhora, as pessoas ficaram intrigadas. Foi Ibn Hasd que a reconheceu e me disse para vir o mais rápido possível avisar o senhor.

— Por Alá! Depois de tanto tempo. Volte, homem. Coma alguma coisa antes, Ama o leva até a cozinha. Yazid, diga à sua mãe que quero falar com ela. Depois avise seu irmão e irmãs que temos uma convidada para esta noite. Quero que me encontrem aqui para recebermos nossa visita juntos, como família. Corra, menino!

Zara bint Najma tinha cumprimentado o sapateiro, mas não respondeu aos acenos dos mais velhos da aldeia. Ela apenas saudou para mostrar que os tinha visto, nada mais. Depois que sua carruagem passou pelas ruelas da aldeia e chegou ao bosque de onde se podia ver bem a casa, mandou o condutor da carruagem seguir pela margem do riacho.

— Acompanhe o rio até ver a casa dos Banu Hudayl — disse ela, com sua voz delicada começando a tremer de emoção. Nunca imaginou que viveria o bastante para ver sua casa outra vez. As lágrimas, reprimidas durante décadas, surgiram com a força silenciosa de um rio invadindo as margens. São apenas lembranças, pensou.

Achava que tinha sofrido tanto em meio século, que nenhum sentimento tinha restado dentro dela. Mas como a vida podia enganar! Bastou um olhar para a casa para ver que estava tudo igual. E, ao identificar a paisagem tão conhecida, lembrou-se de tudo com tanta força que a antiga dor voltou. O pomar de romãzeiras. Ela sorriu quando o cavalo que conduzia a carruagem abrandou o passo, exausto pela longa viagem, e bebeu um pouco de água do riacho. Era outono, mas ela podia fechar os olhos e sentir o perfume do pomar.

"Tem certeza de que ninguém nos viu ?"A voz dele estava nervosa e animada.

"Só a lua! Posso ouvir seu coração batendo!" Nenhuma palavra mais foi dita naquela noite até que os dois se separaram, pouco antes do amanhecer.

"Você será minha esposa." "É só o que desejo." Ela abriu os olhos e absorveu os últimos raios do sol. Nada tinha mudado. Lá estavam os imensos muros e a torre.

Os portões estavam abertos, como sempre. Já dava para sentir o inverno e o cheiro da terra impregnava seus sentidos. O barulho suave e a água acetinada do riacho que corria pelo pátio para encher os tanques do hammam — estava tudo exatamente como ela lembrou durante todos aqueles anos. O filho de Abdala, Omar, agora era o dono da propriedade.

Ela percebeu que os soldados cristãos que a acompanhavam ficaram subitamente tensos e logo descobriu por quê. Três cavaleiros, usando túnica e turbante de um branco ofuscante, vinham na direção dela. A carruagem parou.

Omar bin Abdala e os dois filhos, Zuair e Yazid, puxaram as rédeas de seus cavalos e cumprimentaram a velha senhora.

— A paz esteja contigo, irmã de meu pai. Bem-vinda à casa.

— Quando fui embora você tinha quatro anos. Sua mãe estava sempre me dizendo para ser mais severa com você. Venha cá.

Omar desmontou e andou até a carruagem. Ela beijou a cabeça dele.

— Vamos para casa — disse baixinho.

Quando chegaram à entrada da casa, viram os criados mais antigos à espera. Zara desembarcou, Ama correu e a abraçou.

— Bismallah, bismallah, seja bem-vinda a sua velha casa, minha senhora — disse Ama, com lágrimas escorrendo pelo rosto.

— Estou contente que você ainda viva, Amira. Sinceramente. O passado passou e não quero que volte — respondeu Zara quando as duas se olharam.

Depois, andaram juntas em direção à entrada da casa, onde Zubaida, Hind e Cultum fizeram uma reverência e deram as boas vindas. Zara olhou cada uma delas e depois se virou para ver se Yazid a estava acompanhando. Estava, e ela pegou o turbante dele e o jogou para o alto. O gesto rompeu a tensão e todos riram. Zara ajoelhou-se na almofada e abraçou Yazid; sentindo que era um gesto sincero, o menino retribuiu o carinho.

— Tia-avó Zara, Ama me disse que você ficou trancada no maristan em Garnata durante quarenta anos, mas não parece nada maluca!

Omar ficou sério, fez um sinal para o filho e uma onda de nervosismo invadiu a família, mas Hind deu uma risada.

— Concordo com Yazid. Por que você não veio antes? Zara sorriu.

— Primeiro, porque não achei que seria bem recebida. Depois, porque não pensei nisso.

Ama, acompanhada de duas jovens criadas, entrou trazendo toalhas e roupas limpas.

— Que Má a abençoe, minha senhora. Seu banho está pronto. Essas moças a ajudarão.

— Obrigada, Amira. Depois quero só comer alguma coisa.

— O jantar está pronto, tia — acrescentou Zubaida.

— Estávamos esperando por você.

Ama segurou o braço de Zara e as duas seguiram pelo pátio, acompanhadas pelas duas criadas. Hind esperou até que elas não pudessem ouvir e disse:

— Pai, a tia-avó Zara não é maluca, é? Ela era? Omar deu de ombros e trocou um rápido olhar com Zubaida.

— Não sei, filha. Ouvimos dizer que ela enlouqueceu em Curtuba. Depois, a mandaram para cá, mas ela não quis se casar e começou a perambular sozinha pelas colinas, recitando versos blasfemos. Devo dizer que nunca tive certeza de sua loucura. Parecia uma desculpa muito oportuna. Meu pai a adorava e ficou muito triste em tomar essa decisão, mas Ibn Farid era um homem duro. Agora, temos de fazer com que os últimos anos de vida dela sejam felizes.

Hind não estava querendo mudar de assunto. — Mas pai, por que você nunca foi ao maristan visitá-la?

— Achei que podia ser muito doloroso para ela. Pensei nisso muitas vezes, mas algo sempre me impedia. Meu pai costumava ir e sempre voltava para casa tão deprimido que não conseguia rir durante semanas. Acho que eu não queria reaviver essas lembranças. Agora ela está aqui, minha filha, e tenho certeza de que vai responder a todas as suas perguntas. Tia Zara nunca foi muito discreta.

— Não quero que você pense que nós a abandonamos — disse Zubaida.

— Até a semana passada o primo de seu pai, Hixam, mandou toda semana roupas limpas e frutas frescas para ela em nosso nome.

— Fico contente em saber disso — disse Yazid como se fosse um adulto e, para desapontamento dele, o comentário fez com que todos rissem e ele teve de sair para esconder seu próprio riso.

Se alguma dúvida sobre a sanidade mental de Zara ainda persistia, sumiu durante o jantar. Ela conversou e riu tão à vontade que parecia ter sempre vivido com a família. A certa altura, quando o assunto mudou, como era de esperar, para o drama de al-Andaluz, a velha senhora mostrou uma percepção política que surpreendeu Zubaida.

— Por que nós estamos em decadência? Porque nos aferramos a uma estúpida idéia de honra! Sabem o que é isso, Hind, Yazid, Zuair? Não? Os bobos acham que perdoar é errado.

Hind finalmente fez a pergunta que todos queriam.

— Tia-avó, como teve permissão para sair do maristan? O que houve?

A velha senhora parecia sinceramente surpresa.

— Quer dizer que vocês não sabem? Todos negaram, balançando a cabeça.

— Sempre estivemos isolados do resto do mundo neste lugar. Garnata inteira comentava o que ocorreu no maristan, pensei que vocês soubessem. — Ela deu uma risadinha de satisfação.

— Acho melhor contar. Tem alguma coisa para adoçar a boca, sobrinha?

Antes que Zubaida respondesse, Ama, que estava esperando pacientemente que terminassem a parte principal da refeição, falou:

— Minha senhora gostaria de um manjar dos deuses?

— Manjar dos deuses! Você lembrou, Amira?

— Claro, lembrei — disse Ama -, eu ia mesmo fazer para o desjejum de Zuair, mas ele só voltou de sua longa cavalgada depois do meio-dia. Todos os ingredientes estão prontos desde cedo. O fubá está amassado e esperando para ser colocado na fôrma e assado. Não demora.

Vendo que todos estavam ansiosos, Zara achou que era hora de contar e então começou a descrever os graves acontecimentos que causaram uma súbita mudança em sua vida.

— Dez dias atrás, alguns frades chegaram e começaram a perguntar qual era a religião dos internos do maristan. A maioria era seguidora do Profeta. Outros eram judeus e alguns, cristãos. Os padres disseram às autoridades que o arcebispo de Tulaitula...

— Ximenes! — adiantou Zuair. A tia-avó sorriu.

— Esse mesmo. Ele mandou que os padres forçassem as conversões. E que lugar seria melhor para isso do que o maristan?


Capítulo 3

Não era preciso, mas eles nos ameaçaram. A partir daí, só os que acreditavam na virgindade de Maria e na condição divina de Jesus puderam ficar. Como você sabe, o álcool é proibido e, quando os habitantes viram aqueles padres com suas garrafas de vinho, gostaram muito de beber o sangue de Cristo. Assim as conversões começaram aos poucos.

"Quando vieram falar comigo, eu disse: Tenho muita facilidade de me abster das coisas ilegais, mas preciso dizer uma coisa. Não vou beber a urina do diabo porque já me converti espontaneamente. Na verdade, meus caros padres, foi por causa disso que minha família me mandou para cá. Acharam que eu tinha perdido minhas faculdades mentais quando disse que virei seguidora de sua Igreja.' Os pobres padres ficaram confusos. Devem ter pensado que eu estava mesmo louca e preferiram não saber minha história. Por isso, mostrei o crucifixo que estava no meu pescoço. E sabem de uma coisa, meninos? Deu resultado.

"Na manhã seguinte, fui levada à presença do capitão geral no alHamra. Imaginem, a interna de um maristan encontrando o representante do rei castelhano! Ele foi muito gentil. Contei o que me aconteceu e, quando viu que eu era filha de Ibn Farid, quase desmaiou. Disse que o pai dele contou muitas histórias sobre a coragem de meu bisavô e começou a me dizer algumas. Eu já as conhecia, mas não deixei que percebesse — ouvi tudo com atenção, sorrindo e concordando ou discordando, conforme fosse mais adequado. E preferimos esquecer que foi por causa do temperamento de meu pai que fui parar no maristan. Ele perguntou o que eu achava da situação em Garnata. Eu disse que quarenta anos atrás eu pedi ao Poderoso um grande favor e ainda estava rezando para que meu desejo fosse atendido antes de minha morte. E que favor era esse, senhora?', perguntou o capitãogeral. Darme forças para não me meter no que não me diz respeito.'

Yazid riu por causa do jeito como ela imitou a conversa com o capitão geral e todos riram, até Cultum, que estava assustada com a presença daquela figura lendária.

Zara, encantada com o efeito que suas histórias causaram, continuou a contar.

— Vocês podem achar que foi covardia minha, e teriam razão. Vejam, meninos, eu queria sair dali. Se eu fosse dizer a verdade... se eu dissesse o que senti quando o diabólico Ximenes queimou nossos livros, estaria até agora no maristan ou seria mandada para um convento. Vocês sabem que eles levaram todos os que estavam no maristan para ver a fogueira feita com a nossa cultura. Lembrei-me então desta casa e de todos os manuscritos que estão em nossa biblioteca — de Ibn Hazm, Ibn Caldum, Ibn Rushd, Ibn Sina. Pelo menos esses vão sobreviver. Eu podia ter dito isso ao capitãogeral, mas aí eles não acreditariam que eu era equilibrada. E o meu jeito indiferente teve o efeito desejado.

"O capitão geral levantou, inclinou-se e beijou minha mão. Fique certa, minha cara senhora, de que será levada até a propriedade de sua família quando quiser, escoltada por guardas armados. Depois, ele se despediu e fui levada de volta para o maristan. Podem imaginar como me sentia. Eu tinha ficado ali, sem sair, durante quatro décadas inteiras. Estava me preparando tranqüilamente para a morte e de repente ocorre tudo isso. Aliás, vocês têm de tirar esses livros daqui. Mandem de navio para a Universidade de al-Caíra ou para Fez. Aqui, eles não vão durar. Agora não tenho mais nada a dizer, só espero não ser um peso para vocês.

— Esta é a sua casa — respondeu Omar, com certa formalidade.

— Você nunca devia ter saído daqui.

Hind abraçou e beijou Zara. A velha senhora se emocionou com a espontaneidade do gesto.

— Nunca soube que você tinha virado cristã, tia-avó.

— Nem eu — disse Zara, fazendo com que Yazid risse alto.

— Você fez tudo isso para sair de lá? Foi? Zara concordou, todos riram, mas Yazid estava intrigado com uma coisa.

— Onde você arrumou o crucifixo? — perguntou ele.

— Eu o fiz porque o tempo não passava naquele lugar. Esculpi muitas imagens em madeira para evitar que ficasse louca de verdade.

Yazid levantou e foi sentar perto de Zara, apertando suas mãos com força, como se quisesse acreditar que ela era de verdade.

— Já vi que meu sobrinho é, como o pai dele, um bom homem. Seus filhos ficam à vontade em sua presença. Conosco nunca foi assim. Hum, sinto um cheiro gostoso, Amira não perdeu o tempero. — Ama entrou com os bolos de milho cobertos com um pano para não esfriarem. O Anão a acompanhava, carregando uma vasilha de metal com leite fervendo. Uma ama vinha a seguir, com uma tigela de açúcar mascavo. O Anão cumprimentou Zara, que respondeu.

— Sua mãe ainda está viva, Anão?

— Morreu há uns quinze anos, minha senhora. Ela também rezava pela senhora.

— Devia ter rezado por ela mesma. Podia ainda estar viva. Ama começou a preparar o manjar dos deuses. Enfiou as mãos numa grande tigela e partiu os bolos ao meio.

Eles abriam, macios. Juntou manteiga e continuou amaciando a mistura com as mãos. Depois fez um sinal para Umaima, que começou a polvilhar açúcar, enquanto as enrugadas mãos de Ama continuavam a misturar os ingredientes. Finalmente, estava pronto. Zara bateu palmas e esticou sua tigela para Ama, que, com a mão direita, serviu uma grande porção. Todos fizeram o mesmo. Depois, o leite quente foi derramado e o doce foi degustado. Durante um tempo, ficaram ocupados em saborear as delícias dessa mistura simples e em agradecer sua autora.

— Celestial. E simplesmente celestial, Amira. Que maravilhoso manjar dos deuses. Agora posso morrer em paz.

— Nunca tinha provado um manjar assim, Ama — disse Yazid.

— Esse manjar dos deuses não podia ser só para mim, não é, Ama? — perguntou Zuair.

— O sabor me recorda a minha juventude — resmungou Omar. Ama estava contente. A convidada e os três homens da casa a elogiaram. Ela não tinha do que reclamar aquela noite, pensou Hind, enquanto ria para si mesma com o absurdo desse costume, que vinha do tempo do primeiro casamento de Ibn Farid. O quarto de Hind tinha sido de Zara e voltou a ser arrumado para a velha senhora. Hind mudou para uma cama que estava vazia, na ala da casa reservada às mulheres, perto de sua mãe. Zara foi levada para seu quarto por todas as mulheres da família e Ama. Ela ficou na porta do pátio e olhou para o céu. Uma lágrima escapou, depois outra.

— Eu costumava sonhar com este pátio todo mês. Lembra-se da sombra da romãzeira na lua cheia, Amira? Lembra-se do que costumávamos dizer? Se temos a lua, para que as estrelas?

Ama segurou o braço dela e gentilmente atravessou a porta enquanto Zubaida, Hind e Cultum desejavam uma boa noite de sono.

Em outra parte do pátio, Umaima estava a caminho de casa depois de preparar o quarto da Sra. Zubaida, quando um braço a segurou e a empurrou para um quarto.

— Não, senhor — sussurrou ela. Zuair sentiu os seios dela, mas, quando suas mãos começaram a apalpar outra parte, a moça o impediu.

— Não posso esta noite, al-Fal. Estou impura. Se não acredita, coloque a mão e veja.

Ele a largou, sem dizer nada. Umaima atravessou rapidamente a porta e desapareceu.

Hind e Cultum tinham ido para o quarto da mãe e estavam sentadas na cama olhando Zubaida desmanchar o cabelo e tirar a roupa.

Omar entrou pela porta que ligava os dois quartos. — Que noite estranha foi esta. Ela era só dois anos mais jovem do que meu pai. E me lembra muito ele, eram muito unidos. Sei como ele sentiu falta dela. Que tragédia, que vida desperdiçada, Zara podia ter sido alguém muito importante. Sabe que ela era poeta? E das boas.

Mesmo quando ainda estava zangado com ela, nosso avô reconhecia isso...

Alguém bateu na porta e Zuair entrou no quarto.

— Ouvi vozes e sabia que devia ser uma reunião da família.

— É impossível uma reunião da família sem a presença de Yazid — retrucou Hind.

— É o único que as leva a sério. Abu falava de nossa tia-avó quando você entrou na conversa.

— Era o que eu queria saber. Não é todo dia que um fantasma se materializa. Ela deve ter sido uma grande mulher. Expulsa de casa por quase cinqüenta anos. Como ela estava bem hoje, não mostrava qualquer ressentimento nem raiva. Só alívio.

— Ela não tem por que sentir raiva de nós — disse o pai dele.

— Não fizemos nada para ela.

— Quem a magoou, pai? Por quê? Qual foi o erro da tia-avó Zara? Sem que ela percebesse, a voz de Hind estava indignada. Ela não sabia nada sobre Zara, a não ser as coisas enigmáticas que Ama dizia e as intrigas que ouvira dos primos em Ixibilia, mas ficou tocada pela dignidade da velha senhora. Nenhuma das histórias combinava com o que tinham visto naquele dia, quando a verdadeira Zara quis sair da agitação de Garnata para a casa de seus ancestrais.

Omar olhou para Zubaida, que fez um sinal discreto concordando, e ele admitiu que tinha um assunto importante para conversar com os filhos. Contaria tudo o que sabia sobre o mistério em torno de Zara, embora ignorasse muitas coisas. Entre os que ainda estavam vivos, só Ama e mais uma pessoa sabiam todos os detalhes — além do tio-avô Miguel, que parecia ter conhecimento de tudo.

— Foi há tanto tempo — começou Omar bin Abdala -, que não sei se me lembro de tudo. O que vou contar foi dito por minha mãe, que gostava de Zara e ficou muito amiga dela.

— Não sei exatamente quando o drama de Zara começou. Minha mãe costumava dizer que foi no dia em que o bisavô Ibn Farid, que descanse em paz, voltou para al-Hudayl com sua nova esposa, a Sra. Asma. Ela era poucos anos mais velha do que Zara e não quis mudar em nada o estilo de vida da casa. Deixou que avó Mariam controlasse tudo. Dizem que, nos primeiros meses, ela estava tão surpresa com tudo que não conseguia nem dar ordem para uma criada.

"Zara e papai gostavam muito da tia Mariam. Foi ela quem os criou, quando a mãe deles morreu. Assim, ela ocupou o lugar da mãe no coração deles. Irmão e irmã acharam que a chegada de Asma foi uma intromissão. Nunca ocorreu nada de errado, mas abriu-se um abismo entre eles e o pai. Claro que, quanto a isso, os criados tinham uma má influência, pois sabiam as origens de Asma. Era uma moça cristã que trabalhava na cozinha, cuja mãe continuava sendo cozinheira, embora Ibn Farid a tivesse convidado para sair da casa de Dom Alvaro e vir para a dele. Tudo isso provocava intrigas sem fim na aldeia e, principalmente, na cozinha desta casa. Alguém pode pensar que deve haver um sentimento de união entre os cozinheiros quando um deles sobe na vida de repente, mas não foi o que ocorreu. O pai do Anão espalhou muito rancor, até o dia em que Ibn Farid mandou chamá-lo e ameaçou matá-lo com suas próprias mãos no pátio externo. A ameaça deu resultado. Aos poucos, as coisas arrefeceram, as intrigas foram acabando.

"O problema era que os criados sequer se incomodavam de falar mais baixo quando as crianças estavam presentes e com isso aumentavam o problema. Zara estava muito desgostosa, pois Ibn Farid era tudo para ela. Quando ele casou com Asma, Zara se sentiu traída. Só para irritar o pai, ela recusava cada pretendente que aparecia.

Ficou cada vez mais fechada e às vezes passava dias sem falar com ninguém.

"Claro que Ibn Farid sabia qual seria o efeito de seu casamento na aldeia. Ele sabia dos problemas, por isso contratou um séquito de criadas em Curtuba para servir Asma, pois elas seriam fiéis primeiro à sua nova senhora. Como chefe da equipe, colocou uma mulher mais velha que tinha trabalhado em nossa família durante vários anos, mas que se desentendera com avó Najma e saíra da casa. Foi ser lavadeira na aldeia. "Esta mulher tinha um filho cujo pai era um vendedor de figos em Curtuba, ou um dos criados que morreu no cerco perto de Malaca, ou... só os céus sabem. Ele era um menino muito inteligente e muito educado, graças à generosidade de Banu Hudail. Estudou com os mesmos professores particulares de meu pai e tia Zara. Ao contrário dos dois, ele lia muito e conhecia a obra dos mestres de filosofia, história, matemática, teologia e até medicina. Conhecia os livros de nossa biblioteca melhor do que qualquer pessoa da família. Seu nome era Maomé ibn Zaidun. E ele era também muito bonito.

"A tia-avó de vocês se apaixonou por ele. Foi Ibn Zaidun que a tirou da depressão. Foi ele que a incentivou a escrever poesia, a pensar no mundo fora desta casa e até além das fronteiras de al-Andaluz. Ele explicou por que Ibn Farid se casou de novo e convenceu Zara de que não era culpa da Sra. Asma. Assim, ele aproximou as duas.

"Acho que, quando soube que o filho da criada tinha conseguido o que ele não conseguira, Ibn Farid passou a ter uma grande antipatia por Ibn Zaidun. Uma vez, chegou a dizer: Se esse menino não tomar cuidado com a língua, pode perder o pescoço.' Ele começou a perseguir o menino. Insistia que Maomé fosse trabalhar no campo e aprendesse um ofício como todos os outros aldeões. Sugeriu que o pai de Juan ensinasse carpintaria para ele, ou que Ibn Hasd o ensinasse a fazer sapatos. O menino era muito esperto para a idade que tinha. Ele percebeu a raiva de seu amo, mas entendeu o motivo e começou a se afastar do pátio interno. Zara e Asma pediram a Ibn Farid para não ser tão duro com o jovem. Acho que foi a avó Asma que finalmente conseguiu convencer meu avô a deixar Ibn Zaidun ensinar os princípios da matemática a Zara e meu pai.

"Meu pai quase nunca estava em casa. Costumava caçar ou ir com nossa família para Garnata. Assim, Maomé ibn Zaidun e Zara bint Najma ficavam juntos todo dia. E o que tinha de acontecer aconteceu...

Os olhos de Hind brilhavam de contentamento.

— E por que eles não fugiram? Eu teria feito isso.

— Tenha calma, Hind. Calma. Havia um problema por causa de outra jovem. Ela era tão bonita quanto Zara, mas, ao contrário dela, era filha de um velho servidor e trabalhava como criada. Algo meio parecido com a nossa Umaima.

Ela era muito inteligente, mas sem qualquer instrução, e também queria casar com Ibn Zaidun. Naturalmente, Ibn Farid achava isso uma ótima idéia e mandou que os pais de ambos preparassem as núpcias.

"Zara ficou louca. Talvez eu devesse evitar essa palavra, digamos que ela ficou muito transtornada quando Ibn Zaidun contou o que estava para acontecer. Obrigou que ele a encontrasse naquela noite no bosque de romãzeiras perto da casa...

Hind dava gritinhos de alegria, o que fez com que todo mundo também risse, menos Zuair. O pai perguntou por que ela ria.

— Tem coisas que não mudam, não é, meu irmão? Engraçado que eles se encontrassem exatamente no bosque de romãzeiras!

O rosto de Zuair mudou de cor. O pai entendeu o que ela estava querendo dizer, sorriu e deixou seu filho mais velho em paz, continuando a história de Zara.

— Naquela noite, eles ficaram como se fossem marido e mulher. Na manhã seguinte, Zara procurou a avó Asma e contou o que tinha acontecido. Asma ficou chocada e disse a Zara que de forma alguma deixaria que ela casasse com o filho de sua criada...

— Mas...

— Hind ia interromper, mas parou quando viu o cenho franzido do pai.

— Sim, Hind, eu sei, mas esses assuntos nunca tiveram muita lógica. Asma não queria que Zara repetisse o que ela passou. É uma contradição, claro, mas não é raro de acontecer. Sua mãe lembra que, quando o tio-avô Raim-Alá casou com uma cortesã, ela passou a ser a mais puritana de todas as tias-avós. Completamente fiel ao marido e inflexível em relação a adultério e outras faltas do gênero. Acho que isso é uma das conseqüências do que o mestre Ibn Caldun chamava de dilema da mudança de posição social. Quando você chega ao degrau mais alto da escada, tendo começado do mais baixo, fica olhando para baixo para os que tiveram menos sorte que você.

"Voltando à história. Uma noite, quando Zara e Ibn Zaidun estavam em seu esconderijo preferido, não perceberam que a rival de Zara os seguia. Ela viu tudo. Tudo.

Na manhã seguinte, foi direto a Ibn Farid e contou. Ele não duvidou de nada, deve ter achado que estava certo em sentir antipatia pelo filho da lavadeira. Todos ouviram quando ele berrou: `Cinqüenta dinares de ouro para quem me trouxer o rapaz.'

"Acho que, se pegassem Ibn Zaidun naquele dia, meu avô o teria castrado na hora. Felizmente para nosso amante, tinham mandado ele bem cedo fazer alguma coisa em Garnata. Avó Asma contou para a mãe dele o que aconteceria se ele voltasse; a mãe-então mandou um amigo da aldeia avisar o rapaz. Ibn Zaidun simplesmente sumiu e, até Ibn Farid morrer, nunca mais foi visto na aldeia...

— Pai — perguntou Cultum com sua voz suave e dócil -, quem era a rival da tia-avó?

— Ora, filha, pensei que vocês tivessem adivinhado, depois de tudo o que ocorreu esta tarde. Era Ama!

— Ama! — gritaram os três juntos.

— Psiu! — disse Zubaida.

— Ela vai aparecer correndo se ouvir vocês falando assim.

Eles se entreolharam em silêncio. Hind foi a primeira a falar.

— E o que aconteceu com a tia-avó Zara?

— O bisavô de vocês mandou chamá-la na presença das duas avós. Elas pediram para que ele a perdoasse, mas Zara era rebelde. Talvez possamos perguntar a ela agora, mas minha mãe me contou que Zara perguntou: "Por que só você pode casar com quem quer? Eu gosto de Asma como a esposa que você escolheu e como amiga. Por que você não pode aceitar Ibn Zaidun?" Foi aí que ele bateu nela e ela o amaldiçoou muito até que Ibn Farid, envergonhado, mas não a ponto de pedir que ela o perdoasse, virou as costas e saiu da sala. No dia seguinte, ela foi embora. Só voltou na noite passada. O que ela fez em Curtuba, não sei, vocês vão ter de perguntar a outro.

Enquanto os filhos de Omar bin Abdala pensavam na dramática história da tia-avó, ela estava se preparando para dispensar Ama e se retirar para dormir. Zara tinha evitado qualquer menção a Ibn Zaidun. Ela não queria desculpas — mesmo porque as desculpas chegariam com meio século de atraso. Estava tudo acabado e ela, sinceramente, não guardava qualquer rancor. As duas velhas senhoras passaram a tarde falando sobre a situação dos Banu Hudail. Zara queria saber tudo e Ama era a única pessoa que podia contar.

Ama lembrou, sem esquecer nenhum detalhe, como seu irmão Abdala morreu depois de cair de um cavalo que ele mesmo tinha treinado e criado, e como a esposa dele viveu só mais um ano.

— Até no leito de morte ele pensou em você e fez com que o jovem Omar jurasse sobre o Alcorão que mandaria sempre alimento e roupas para você. Ele nunca se esqueceu de você.

Zara suspirou e um sorriso triste marcou seu rosto.

— Compartilhamos tantas coisas na infância, você sabe... Depois calou-se, como se a lembrança do irmão trouxesse outras.

A expressão de seu rosto fez Ama lembrar os velhos tempos. E achar que Zara devia estar vendo aquele homem com os olhos do pensamento. Seria bom se ela falasse nele, pois não havia mais nada para esconder, havia?

Foi como se Zara tivesse lido os pensamentos de sua antiga rival.

— Que fim levou Maomé ibn Zaidun?

— Zara tentou ser bem natural, mas seu coração estava batendo mais forte.

— Morreu?

— Não, minha senhora, está vivo. Ele mudou de nome, chama-se Vajid al-Zindiq e mora numa colina a alguns quilômetros daqui. Zuair ibn Omar o vê sempre, mas não sabe do passado dele. Ele também recebe comida da casa. Omar bin Abdala insistiu para mandarmos, desde que descobrimos quem era o homem que vivia na caverna na colina. Esta manhã mesmo Zuair esteve com ele várias horas.

Zara ficou tão animada com essa notícia que as batidas de seu coração pareciam tiros no ouvido de Ama.

— Agora preciso dormir. Que a paz esteja contigo, Amira.

— E contigo, minha senhora. Que Deus a abençoe.

— Há muito tempo Ele não faz isso, Amira. Ama saiu do quarto levando a lamparina. Ao sair, ouviu Zara dizer algo. Ia voltar, mas era óbvio que a filha de Ibn Farid estava pensando alto. Ama ficou paralisada sobre o chão de azulejo do pátio.

— A primeira vez. Lembra, Maomé?

— Zara estava falando sozinha.

— Foi como o desabrochar de uma flor. Nossos olhos brilhavam cheios de esperanças e nossos corações batiam forte. Por que você nunca voltou para mim?


Capítulo 4

Não há outro jeito. Se necessário, precisaremos deixar que a Providência se aproveite da escuridão da masmorra para derramar a luz da verdadeira fé sobre as cabeças imersas em trevas desses infiéis. O monge Talavera, meu ilustre antecessor, tentou outros métodos e fracassou. Pessoalmente, acredito que a decisão de publicar o dicionário latino-arábico foi um erro, mas já se falou muito sobre esse assunto. Esta fase felizmente acabou; acredito que, junto com ela, se foi a ilusão de que esses infiéis vão se aproximar de nós por intermédio do conhecimento e do discurso racional.

— Excelência, o senhor parece contrariado. Tenho certeza de que uma política mais branda podia atender às necessidades de nossa diplomacia profana, mas desculpe minha franqueza. O futuro de milhares de almas está em jogo e a nossa Santa Igreja me mandou salvá-las e protegê-las. Estou convicto de que os pagãos, se não puderem vir até nós espontaneamente, deviam ser trazidos para que possamos levá-los ao caminho da verdadeira salvação. As ruínas do maometismo estão desmoronando. Não é hora de refrear nossa ação. Ximenes de Cisneros falou com ardor. Estava contrariado porque o homem sentado à sua frente era Dom Inigo Lopez de Mendoza, conde de Tendilla, prefeito e capitão geral de Granada, que os mouros chamavam de Garnata. Dom Inigo vestiu de Propósito trajes mouros, que desagradavam muito o arcebispo.

— Para um líder espiritual, Sua Graça mostra uma grande capacidade de interceder em problemas profanos. Já pensou nisso seriamente? Os reis deles concordaram com os termos de rendição, rascunhados por mim, não é, padre? Eu estava presente quando a rainha assumiu um solene compromisso com o sultão. Concordamos em deixá-los em paz. O monge Talavera ainda é muito respeitado no Albaicin porque cumpriu o que foi combinado.

— Vou ser franco com o senhor, arcebispo. Até sua chegada nós não tínhamos qualquer problema nesse reino. O senhor não os venceu pelo argumento e agora quer vencer pelos métodos da Inquisição.

— Métodos práticos, Excelência. Experimentados e testados.

— Sim, experimentados e testados nos católicos, cujos bens o senhor queria tomar, e nos judeus, que nunca governaram um reino e compraram a liberdade com ducados de ouro e se convertendo à nossa religião. Esses métodos não vão funcionar aqui. A maior parte das pessoas que chamamos de mouros são nosso próprio povo. Gente como eu e o senhor. Eles dominaram grande parte de nossa península. Fizeram isso sem queimar Bíblias, nem derrubar todas as nossas igrejas, nem incendiar sinagogas para construir suas mesquitas. Eles não são um fenômeno sem fundamento. Não podem ser eliminados a chicotadas. Vão resistir e mais sangue será derramado. Deles e nosso.

Cisneros virou-se para o conde com um olhar de puro desdém. Se fosse qualquer outro poderoso do reino, o arcebispo teria dito na cara dele que falava assim porque seu próprio sangue era impuro, manchado com uma gota de África. Mas aquele maldito homem não era um nobre qualquer. A família dele era uma das mais importantes do país. Ostentava muitos poetas, administradores e guerreiros a serviço da verdadeira fé. Os Mendoza chamaram genealogistas para traçar sua ascendência, que remontava até os reis visigodos. Cisneros ainda não tinha confirmado esse último detalhe, mas a linhagem era boa demais, mesmo se não tivesse nada a ver com os visigodos.

Cisneros conhecia bem a família. Ele mesmo tinha sido um protegido do fazedor-de-rei, cardeal Mendoza. Afinal de contas, o país inteiro sabia que o tio paterno do capitão geral tinha, como cardeal e arcebispo de Sevilha, ajudado Isabel a derrubar sua sobrinha e tomar o trono castelhano em 1478. Desde então, o rei e a rainha tratavam com muito respeito a família Mendoza.

Cisneros sabia que tinha de ser cuidadoso, mas foi o conde que violou as normas das relações entre Igreja e Estado. Mas resolveu manter a calma, não faltaria oportunidade para punir a arrogância do homem. Cisneros perguntou com a voz mais suave que conseguiu:

— Sua Excelência está acusando a Inquisição de corrupção em alta escala?

— Usei a palavra corrupção? — Não, mas deu a entender... — Dei a entender como? Apenas mostrei, meu caro monge Cisneros, que a Inquisição está amealhando uma imensa fortuna para a Igreja. Só as propriedades confiscadas são capazes de financiar três guerras contra os turcos. Não são?

— O que Sua Excelência faria com essa fortuna?

— Diga, padre, será que é correto considerar também como culpados os filhos dos seus chamados hereges?

— Acreditamos que existe uma lealdade entre os membros de uma família.

— Então nunca se poderá confiar num cristão filho de um maometano ou judeu.

— Nunca talvez seja uma palavra muito forte.

— Mas como é que Torquemada, que todos sabem que tem ascendência judia, presidiu a Inquisição?

— Para mostrar sua lealdade à Igreja, ele tinha de ser mais vigilante do que o herdeiro de uma família nobre cuja linhagem pode ser traçada até os reis visigodos.

— Começo a entender sua lógica. Bom, sendo assim, eu não vou sujeitar os mouros a qualquer outra humilhação, o senhor já fez o bastante. Queimar os livros deles foi uma desgraça, uma mancha em nossa honra. Os manuais de ciência e medicina deles não têm similar no mundo civilizado.

— Esses livros foram salvos.

— Foi um ato de selvageria, homem. Será que o senhor é tão cego que não vê isso.

— Mas Sua Excelência não revogou minhas ordens. Foi a vez de Dom Inigo olhar para o padre com raiva. A crítica era justa. Foi covardia dele, pura covardia. Um cortesão vindo de Ixibilia lhe havia dito que a rainha enviara uma mensagem secreta para o arcebispo mandando destruir as bibliotecas. Depois ele soube que isso era mentira.

Cisneros tinha enganado o cortesão de propósito e mandado dar a informação errada ao capitãogeral. Dom Inigo sabia que tinha sido enganado, mas isso não era desculpa. Devia ter revogado a ordem 'obrigado Cisneros a mostrar a suposta mensagem de Isabel. O padre sorria para ele. "O homem é um demônio", pensou o conde.

"Sorri com os lábios, não com os olhos."

— Um só rebanho e um só pastor, Excelência. É o que este país precisa para sobreviver às tormentas que a nossa Igreja enfrenta no Novo Mundo.

— Vocês, felizmente, ignoram a própria boa sorte, arcebispo. Se não fossem os hebreus e os mouros, os inimigos naturais que ajudaram vocês a manter a Igreja unida, os cristãos hereges teriam devastado esta península. Não quero assustá-lo. Não é uma conclusão muito profunda, achei que o senhor poderia ter chegado a ela sozinho.

— Está enganado, Excelência. É preciso destruir os hebreus e os mouros para manter a nossa Igreja.

— Nós dois temos razão, de diferentes formas. Tem muita gente me esperando, vamos continuar esta conversa outro dia.

E foi desta forma brusca que o conde de Tendilla participou a Ximenes de Cisneros que a audiência estava terminada. O padre levantou-se, cumprimentou e, quando Dom Irrigo ficou de pé, Cisneros viu com que garbo usava a túnica moura. O padre esquivou-se.

— Vejo que minhas roupas o desagradam tanto quanto minhas idéias.

— As duas parecem estar relacionadas, Excelência. O capitão geral riu.

— Eu não tenho inveja de seu hábito de monge. Por que minhas roupas o incomodam? Elas são muito mais confortáveis do que as que se usam na corte. Eu me sinto queimado vivo dentro daqueles coletes e gibões apertados cuja única função parece ser comprimir os órgãos mais preciosos que Deus nos deu. A roupa que estou usando foi feita para dar conforto ao corpo e, ao contrário do que pensa, não é muito diferente do seu hábito. Essas roupas são desenhadas para serem vestidas na Alhambra deles. Qualquer outra iria se chocar com as cores de suas intricadas formas geométricas. Claro que até o senhor pode gostar, monge. Acho que se pode dizer muita coisa para entrar em contato direto com o Criador sem o uso de ídolos, mas estou sendo quase blasfemo e não quero irritá-lo, nem tomar mais seu tempo...

Os lábios do padre formaram um sorriso sinistro. Ele disse alguma coisa baixo, cumprimentou e saiu. Dom Inigo olhou pela janela. Abaixo do palácio ficava o Albaicin, o antigo bairro onde muçulmanos, judeus e cristãos da cidade viviam e negociavam há séculos. O capitão geral estava distraído, pensando nos tempos idos e de agora, quando ouviu alguém tossir discretamente e se virou para ver seu mordomo-chefe judeu, Ben Yousef, com uma bandeja com taças de prata e um bule de café também de prata.

— Desculpe a intromissão, Excelência, mas seu convidado está aguardando há mais de uma hora.

— Céus, mande-o entrar, Ben Yousef. Imediatamente! O criado saiu. Quando voltou, anunciou a presença de Omar na sala de audiências.

— Sua Graça Omar bin Abdala, Excelência. Omar cumprimentou Dom Inigo usando a forma tradicional.

— Que a paz esteja contigo, Dom Inigo. O conde de Tendillla abriu os braços para o convidado.

— Bem-vindo, bem-vindo, Dom Homero. Como está, meu velho amigo? Não existe cerimônia entre nós — disse, abraçando-o. — Por favor, sente-se.

Desta vez, Dom Inigo sentou-se nas almofadas perto da janela e pediu a Omar que sentasse lá também. O mordomo serviu café e ofereceu aos dois homens. O patrão fez um sinal e ele saiu da sala. Omar sorriu.

— Fico satisfeito por você ter ficado com ele.

— Você não veio tão longe para me cumprimentar pela escolha de meus criados, Dom Homero.

Omar e Dom Inigo se conheciam desde crianças. Os avós deles tinham se combatido em batalhas lendárias, que há muito faziam parte do folclore de ambos os lados, depois os dois heróis ficaram amigos e começaram a se visitar sempre. Os dois avós sabiam o verdadeiro preço da guerra e apreciavam muito a lenda que envolvia seus nomes.

Desde antes do ano de 1492 Inigo chamava seu amigo de Homero simplesmente porque tinha dificuldade em pronunciar a letra "o" árabe. O tratamento por "dom" era mais recente, exatamente desde a conquista de Garnata. Não havia por que se ofender, pois, no fundo, Omar sabia que Dom Inigo não era mais seu amigo. E, no fundo, achava que o sentimento era recíproco. Os dois homens não se viam há meses. Toda aquela triste história era uma charada, mas precisavam manter as aparências. Não se podia dizer que o cavalheirismo tivesse acabado depois da Reconquista.

As boas relações foram mantidas com troca de frutas e doces durante as respectivas datas festivas. O último Natal tinha sido a única exceção. A família Hudayl não enviou nada para a casa do capitão geral em alHamra. Dom Inigo ficou magoado, mas não se surpreendeu. O paredão de fogo tinha sido poucas semanas antes do aniversário de Cristo e Omar bin Abdala não foi o único muçulmano nobre a boicotar a festa.

Foi com a intenção de diminuir o abismo que agora os separava que Dom Inigo mandou chamar seu velho amigo. E lá estava ele, como nos velhos tempos, tomando seu café enquanto olhava através dos arabescos esculpidos na janela. Se fosse há alguns anos, Omar estaria sentado ao lado do sultão Abu Abdala como membro de seu conselho, discutindo com o governante as relações que Garnata mantinha com seus vizinhos cristãos.

— Dom Homero, sei por que está irritado. Devia ter ficado em casa naquela noite. O que foi mesmo que seu avô uma vez disse ao meu? Ah, sim, lembrei: o que os olhos não vêem o coração não sente. Quero que saiba que não fui eu que dei a ordem. Foi Cisneros, o arcebispo da rainha, que resolveu queimar seus livros eruditos.

— Você é o capitão geral de Garnata, Dom Inigo.

— Eu sei, mas como podia contestar uma ordem da rainha Isabel?

— Lembrando-a do compromisso que ela e o marido assinaram nesta mesma sala, na sua presença e na minha, cerca de oito anos atrás. Em vez disso, você ficou quieto e fechou os olhos para uma das maiores infâmias do mundo civilizado, ocorrida nesta cidade. Os tártaros que queimaram a biblioteca de Bagdá há dois séculos eram bárbaros analfabetos, assustados com a palavra escrita. Para eles, aquilo foi um ato instintivo. Mas o que Cisneros fez foi muito pior. Foi a sangue-frio e cuidadosamente planejado...

— Eu...

— Sim, você! Sua Igreja pôs o machado na árvore que dava sombra para todos. Você acha que isso vai beneficiar o seu lado. Talvez, mas por quanto tempo?

Um século? Dois? Pode ser, mas a longo prazo esta civilização decadente está condenada. Será dominada pelo resto da Europa. Certamente você acha que é esse o futuro da península que foi destruída. Os homens que queimaram os livros, que torturam seus opositores e queimam hereges em estacas não conseguirão construir uma casa com base sólida. A maldição da Igreja vai acabar com esta península.

Omar sentiu que estava se excedendo e parou de repente. Um leve sorriso apareceu em seu rosto.

— Perdoe-me. Não vim aqui para fazer sermão. É sempre uma arrogância dos vencidos fazer uma preleção para os vencedores. Vim, se quer saber a verdade, para ver quais são seus planos em relação a nós.

Dominigo ficou de pé e começou a andar de um lado para o outro na grande sala de audiências. Ele tinha duas escolhas. Podia derramar muitas palavras melosas e acalmar seu amigo, garantindo que, seja o que for que acontecesse, os Banu Hudayl teriam liberdade para viver como sempre viveram. Gostaria de dizer isso e até mais, mas sabia que não era verdade, nem que quisesse. Só faria com que Homero ficasse mais irritado, pois veria nisso mais um exemplo da impostura cristã. O conde resolveu deixar de lado a diplomacia.

— Vou ser sincero com você, meu amigo. Você sabe o que eu gostaria de dizer. Você vê a roupa que visto e sabe que minha equipe é formada por judeus e mouros. Para mim, Granada sem eles é como um deserto sem um oásis, mas só eu acho isso. A Igreja e a corte resolveram que sua religião deve ser banida daqui para sempre. Eles têm os soldados e as armas para garantir que isso seja feito. Sei que vai haver resistência, mas será inútil e um fracasso para sua causa, pois acabaremos vencendo.

Cisneros sabe disso mais do que qualquer dos nossos. Você ia dizer algo?

— Se tivéssemos tratado os cristãos com pulso de ferro, como você está nos tratando agora, isso jamais teria acontecido.

— Fala como se fosse a coruja de Minerva. Mas você tentou trazer a civilização para toda a península, sem considerar a fé ou o credo. Foi uma atitude nobre de sua parte, agora tem de pagar o preço por isso. A guerra tinha de acabar, mais cedo ou mais tarde, com a vitória de um lado e a derrota definitiva do outro. O que posso sugerir à sua família é que se converta imediatamente. Se fizerem isso, garanto que estarei presente e até levarei Cisneros às suas propriedades para abençoar a todos. Essa é a melhor proteção que posso dar à sua família e à sua aldeia. Não fique ofendido, meu amigo. Posso parecer cínico, mas, no final das contas, o importante é que você e os seus fiquem vivos e de posse das propriedades que pertencem à família há tanto tempo. Sei que o bispo de Curtuba também tentou convencê-lo, mas...

Omar levantou-se e cumprimentou Dom migo.

— Admiro a sua franqueza. Você é um verdadeiro amigo, mas não posso aceitar o que diz. Minha família não está preparada para jurar fidelidade à Igreja romana ou a qualquer outra. Pensei muito nisso, Dom migo. Cheguei a pensar até em assassinato. Não se assuste, o que tentei foi "matar" nosso passado e exorcizar a lembrança de uma vez por todas, mas eles são como pessoas teimosas, recusam-se a morrer. Tenho certeza, Dom Inigo, de que, se trocássemos de posição, o senhor daria a mesma resposta que eu.

— Não posso garantir. Olhe para mim: acho que eu teria sido um bom e sensato maometano. Como vai seu pequeno Yazid? Esperava que você o trouxesse.

— Não era uma ocasião adequada. Agora, se me permite, preciso ir. Que a paz esteja contigo, Dom Inigo.

— Adiós, Dom Homero. Espero que nossa amizade continue. Embora Omar sorrisse, não disse nada quando saiu da sala. Seu cavalo e seu guarda-costas esperavam do lado de fora do Janatal-Arif, jardins de verão onde viu Zubaida pela primeira vez, mas Omar não estava propenso a nostalgias. A mensagem dura de Mendoza ainda ecoava em seu ouvido. Nem mesmo o som mágico da água, quando ele se aproximou dos jardins, conseguiu distraí-lo naquele dia. Até poucas semanas antes, havia pensado em Garnata como uma terra ocupada que podia ser mais uma vez libertada no momento certo. Os castelhanos tinham muitos inimigos dentro e fora de casa. Quando se metessem em mais uma guerra, poderia ser a hora de atacar. Tudo o mais dependeria deste tento. Foi o que Omar disse aos poderosos companheiros muçulmanos nos muitos encontros que tiveram desde a rendição da cidade.

O paredão de fogo tinha alterado tudo isso e agora o capitão geral confirmou suas piores previsões. Os adoradores de imagens não se satisfaziam apenas com uma presença militar em Garnata. Em primeiro lugar, era ingênuo pensar que se mantivessem fiéis aos acordos. Eles queriam ocupar as cabeças, penetrar nos corações, refazer as almas, e não sossegariam enquanto não vencessem.

Garnata, que um dia foi o lugar mais seguro para os seguidores do Profeta em al-Andaluz, tinha se transformado numa perigosa fornalha.

"Se ficarmos aqui", pensou Omar, "estamos acabados." Ele não se referia apenas aos Banu Hudail, mas ao futuro do islamismo em al-Andaluz. Seu guarda-costas, vendo-o de longe e surpreso com a rapidez do encontro, correu até a entrada do jardim levando a espada e a pistola de seu amo. Ainda imerso em seus pensamentos, Omar cavalgou para as estrebarias, onde desmontou e andou alguns metros até a mansão familiar e confortável de seu primo Hixam, no bairro antigo da cidade.

Enquanto o pai estava em alHamra, Zuair passou a manhã no balneário com amigos. Depois de desintoxicar o corpo na sauna, foram banhados pelos criados, que, usando esponjas duras, esfregaram sabão neles antes que entrassem no banho, onde ficaram a sós. Lá eles relaxaram e começaram a trocar confidências. A pequena cicatriz no ombro de Zuair foi admirada pelos amigos.

Havia cerca de sessenta balneários como esse só em Gamata. As tardes eram reservadas para as mulheres e os homens não tinham outra escolha senão banhar-se pela manhã. O balneário onde Zuair estava naquele dia era tradicionalmente reservado ao uso dos jovens nobres e seus amigos. Às vezes, principalmente no verão, grupos de banhistas misturados chegavam e se banhavam à luz da lua, sem a presença de criados — mas essas ocasiões eram raras e pareciam ter acabado depois da conquista.

Nos velhos tempos, antes da queda de Garnata, o balneário era um centro de intrigas sociais e políticas. Geralmente, conversava-se sobre aventuras e proezas sexuais.

Às vezes, declamava-se e discutia-se poesia erótica, principalmente nos banhos vespertinos. Agora, quase nada parecia interessar, a não ser política — falava-se nas últimas atrocidades, numa família que tinha se convertido, em quem tinha oferecido dinheiro para subornar a Igreja e, claro, a respeito da fatídica noite que estava viva na memória de todos, fazendo com que até os que antes eram completamente indiferentes à política agora parassem e refletissem.

A temperatura política no balneário de Zuair estava acalorada. Dois dias antes, mais três faqhis foram torturados até morrer.

O medo estava começando a surtir efeito. O clima era de desespero e fatalismo. Zuair, que ouviu pacientemente seus amigos — todos da aristocracia muçulmana de Garnata -, de repente levantou a voz.

— As escolhas são simples. Convertermo-nos, sermos mortos ou morrer empunhando nossas espadas.

Musa bin Ali tinha perdido dois irmãos no caos que antecedeu a entrada de Fernando e Isabel na cidade. Seu pai tinha morrido defendendo a fortaleza de al-Hama, que ficava a oeste de Garnata. A mãe agarrou-se a Musa, num desespero que se transformou em peso para ele, mas sabia que não podia eximir-se da responsabilidade que tinha em relação a ela e às duas irmãs. Musa não costumava falar, mas, sempre que o fazia, era ouvido com um silêncio respeitoso.

— As escolhas citadas por nosso irmão Zuair bin Omar são certas, mas, no ímpeto, ele esqueceu que temos mais uma opção. É a que o sultão Abu Abdula escolheu. Como ele, podemos cruzar o oceano e encontrar abrigo no litoral do Magreb. Até me adianto e informo que minha mãe quer que façamos isso.

Os olhos de Zuair brilharam de ódio. — Por que iríamos embora para qualquer canto? Aqui é nossa casa. Minha família construiu al-Hudayl. Isso aqui era uma terra árida antes de virmos para cá. Construímos a aldeia. Irrigamos as terras. Plantamos os pomares. Laranjeiras, romãzeiras, limeiras, palmeiras e arrozais. Não sou um berbere, não tenho nada a ver com Magreb. Vou morar na minha casa e morra o infiel que tentar tirá-la de mim à força.

A temperatura no balneário subiu muito. A seguir, um jovem de rosto muito fino, pele azeitonada e olhos cor de mármore verde tossiu para chamar atenção. Não devia ter mais do que dezoito ou dezenove anos. Todos olharam para ele. Era novo na cidade, tinha chegado de Balancia há poucas semanas, depois de freqüentar a grande universidade de al-Azar, em al-Caira. Veio para fazer pesquisa histórica sobre a vida e o trabalho de seu bisavô Ibn Caldum e estudar alguns manuscritos nas bibliotecas de Garnata. Infelizmente para o projeto, ele chegou exatamente no dia escolhido por Cisneros para queimar os livros. O homem de olhos verdes estava triste. Tinha chorado a noite inteira no pequeno quarto do Funduq al-Iadida. Quando amanheceu, tinha decidido qual seria o rumo que sua vida tomaria daí em diante. Falava com uma voz suave; o tom musical de seu sotaque cairota e também sua mensagem encantaram os banhistas que o acompanhavam. — Quando vi as chamas no Bab al-Ramla consumindo a obra de séculos, pensei que estivesse tudo acabado. Era como se Satanás tivesse colocado seu venenoso braço pelo coração da montanha e invertido o curso do riacho. Tudo o que tínhamos plantado estava encharcado e morto. O próprio tempo tinha parado e aqui, em al-Andaluz, estávamos do outro lado do inferno. Talvez eu devesse fazer minhas malas e voltar para o Oriente...

— Nenhum de nós culparia você por fazer isso — disse Zuair.

— Você veio estudar, mas não há nada para estudar senão um vazio. Portanto, seria mais sensato que voltasse para a universidade de al-Azar. — Meu amigo está dando um bom conselho — acrescentou Musa. — Todos nós agora nos sentimos impotentes. A única coisa que podemos louvar é a força de nossos pais.

— Neste ponto, discordo — retrucou Zuair.

— Só quem diz "cuidado comigo" e não "meu pai ou meu avô foram fortes" pode ser considerado um homem corajoso e nobre.

O rapaz de olhos verdes sorriu.

— Concordo com Zuair bin Omar. Por que vocês, de famílias de cavaleiros e reis, deveriam entregar os castelos para o inimigo e passarem a ser meros marionetes? Tomem uma decisão e enfrentem os cristãos. Cisneros acha que vocês não têm mais força interior. Ele vai atacar sem parar até levá-los à beira do abismo e aí, com um último empurrão, jogará vocês lá.

"Soube por meus amigos em Balansia que os inquisidores do país inteiro estão se preparando para dar o golpe fatal. Daqui a pouco vão proibir que falemos nossa língua. O árabe vai ser banido e quem o falar poderá ser morto. Não vão deixar que usemos nossos trajes. Comenta-se que vão destruir todos os balneários que existem no país. Vão proibir nossa música, nossas festas de casamento, nossa religião. Tudo isso e muito mais vai desabar sobre nós dentro de poucos anos.

Abu Abdula deixou que tomassem essa cidade sem qualquer resistência. Foi um erro porque com isso eles ficaram confiantes demais.

— O que você sugere, estranho? — perguntou Zuair.

— Não deixar que pensem que aceitamos o que nos fizeram. Devemos preparar um levante.

Durante um minuto, ninguém se mexeu. Ficaram todos apavorados com o que ele disse. Só o som da água correndo pelo hammam pontuava seus pensamentos e seus temores.

Então Musa desafiou diretamente o jovem erudito do Egito.

— Se eu tivesse certeza de que um levante contra Cisneros e seus demônios teria sucesso e faria com que recuperássemos nem que fosse uma só página de nossa história, eu seria o primeiro a sacrificar minha vida, mas suas doces palavras não me convenceram. O que você está propondo é um grande feito que será lembrado nos tempos futuros. Mas por que e para quê? Que vantagem vai trazer no final? Grandes atos e grandes palavras sempre foram a maldição de nossa religião.

Ninguém reagiu ao que ele disse e Musa, sentindo que agora estava em vantagem sobre o cairota, explicou melhor o que achava.

— Os cristãos caçaram diversas bestas usando métodos diferentes em diferentes épocas e começaram a nos caçar há um ano. Concordo que não devemos deixar que o medo altere nossas vidas, mas também não devemos nos sacrificar inutilmente. Temos de aprender com os judeus a viver em condições de grande adversidade. Os seguidores do islamismo não continuam vivendo em Balancia? E em Aragão? Ouçam, amigos, não sou a favor de nenhuma insensatez.

Irritado, Zuair se dirigiu ao amigo. — Musa, você se converteria ao cristianismo só para salvar sua vida?

— Os judeus não fizeram isso em toda parte para manter suas Posições? Por que nós não podemos imitá-los? Deixe que eles apertem o cerco o quanto quiserem. Vamos aprender novos métodos de resistência — aqui, dentro de nossas cabeças.

— Sem poder falar nossa língua, nem consultar nossos livros eruditos? — perguntou o bisneto de Ibn Caldun.

Musa olhou-o e suspirou.

— É verdade que você descende do mestre Ibn Caldun? Ibn Daud sorriu e concordou com a cabeça.

— Certamente — continuou Musa -, você deve saber melhor do que nós sobre o aviso que seu nobre antepassado deu para homens como você. Os eruditos são os homens menos adequados para lidar com a política e suas artimanhas.

Ibn Daud deu um sorriso malicioso. — Talvez Ibn Caldun estivesse se referindo às próprias experiências, que não foram muito felizes. Mas, por melhor filósofo que tenha sido, não podemos considerá-lo um profeta cuja palavra é sagrada. Nosso problema é simples: como defender nosso passado e nosso futuro desses bárbaros? Se você tem uma solução mais eficiente, exponha sua idéia e deixe que ela me convença.

— Não tenho todas as respostas, meu amigo, mas sei que você está propondo uma coisa errada.

Com essas palavras, Musa saiu do banho e bateu palmas. Serviçais correram com toalhas e começaram a secar seu corpo. Os outros o seguiram, saindo da água. Depois, foram para a sala ao lado, onde os criados os aguardavam com roupas limpas. Antes de ir embora, Musa abraçou Zuair e disse em seu ouvido:

— Até as mais doces taças de vinho podem conter veneno. Zuair não levou seu amigo muito a sério. Sabia das pressões cotidianas que Musa sofria e por isso o entendia, mas não era razão para covardia na hora em que tudo estava em jogo. Zuair não queria brigar com seu amigo, mas também não podia ficar calado e esconder o que pensava.

Virou-se para o estrangeiro e perguntou:

— Por qual nome devemos chamá-lo?

— Ibn Daud al-Misri.

— Gostaria de falar com você depois. Por que não vamos até sua hospedaria? Ajudo você a fazer as malas, encontrar um cavalo e ir comigo para al-Hudayl. Confie em Alá. Você pode até encontrar algum manuscrito de Ibn Caldun na nossa biblioteca! Sabe montar?

— Você é muito gentil. Aceito sua hospitalidade com prazer e sim, sei montar.

Zuair fez um convite para todos os outros. — Vamos nos encontrar na minha aldeia daqui a três dias. Então faremos nossos planos e discutiremos os métodos para executá-los, combinado?

— Por que não passamos a noite aqui e falamos agora? — perguntou Harun bin Maomé.

— Porque meu pai está na cidade e me recomendou que passasse a noite na casa do meu tio. Eu disse que gostaria de voltar para casa, mas seria ruim contrariá-lo.

Daqui a três dias, então?

Chegaram a um acordo. Zuair pegou Ibn Daud pelo braço e caminhou com ele até a rua. Andaram rápido para a hospedaria, juntaram as coisas de Ibn Daud e depois foram para as estrebarias. Zuair emprestou um dos cavalos de seu tio para o novo amigo e, antes que Ibn Daud tivesse tempo de entender a sucessão dos acontecimentos, estavam a caminho de al-Hudayl.

O tio de Zuair, Ibn Hixam, morava numa bela casa na cidade, a cinco minutos do Bab al-Ramla. A entrada da casa não era diferente das outras residências particulares da rua, mas, se alguém parasse e olhasse bem, perceberia que as duas entradas contíguas eram aparentes. Portas falsas, revestidas com azulejos turquesa, eram feitas para despistar. Um estrangeiro não imaginaria que atrás das portas de treliças havia um palácio de tamanho médio. Uma passagem por baixo da rua ligava as diversas alas da mansão e servia também como saída de emergência para o Bab al-Ramla. Os negociantes não corriam riscos.

Foi para esse pequeno palácio que Omar bin Abdala se retirou depois de sua frustrante conversa daquele dia com o capitão geral de Garnata.

Ibn Hixam e Omar eram primos. O pai de Ibn Hixam, Hixam al-Zaid, era filho da irmã de Ibn Farid. Ele se instalara em Garnata depois da morte do tio Ibn Farid, que foi seu tutor desde a morte prematura de seus pais, assassinados por bandidos durante uma viagem para Ixibilia. Depois de chegar a conselheiro-chefe do sultão sobre assuntos econômicos em alHamra, ele usou sua posição e talento para fazer fortuna. Como não havia qualquer disputa a respeito da propriedade em al-Hudayl, a relação entre os dois primos era cálida e amistosa. Depois da morte prematura do pai de Omar, o tio Hixam al-Zaid tomou a iniciativa de ajudar o sobrinho a superar a perda. Mais do que isso, ensinou a Omar a arte de administrar uma propriedade, explicando assim a diferença entre comércio nas cidades e o cultivo da terra:

— Para nós de Garnata o que interessa são os bens que vendemos e trocamos. Mas em al-Hudayl o mais importante é ter habilidade para se comunicar com os camponeses e entender suas necessidades. Antigamente, quando havia uma guerra, os camponeses ficavam unidos a Ibn Farid e ao avô dele. Lutavam do mesmo lado. Isso foi importante, mas os tempos mudaram. Ao contrário das mercadorias que compramos e vendemos, seus camponeses sabem pensar e agir. Se você se lembrar desse simples detalhe, não vai enfrentar problemas muito sérios.

Hixam al-Zaid morreu um ano depois da queda da cidade. Nunca havia tido doença alguma; no mercado, atribuía-se sua morte a um ataque do coração. Podia ser, mas foi também porque poucas semanas antes de partir ele tinha comemorado seu octogésimo aniversário.

Desde que saiu do alHamra, Omar ficou muito deprimido. Tomou banho e descansou, mas seu silêncio durante a refeição da noite tinha pesado sobre todos os presentes.

A sugestão feita por Ibn Hixam de mandar vir algumas dançarinas e uma garrafa de vinho foi recusada asperamente. Omar não conseguia entender como a família de seu primo podia estar tão disposta. É verdade que as pessoas acabam se acostumando com a desgraça, mas ele desconfiava que havia outra razão. Quando comentou que esteve com Dom Inigo, eles não fizeram qualquer comentário.

Ibn Hixam e sua esposa Muniza trocaram olhares esquisitos quando ele criticou a sugestão do capitão geral de todos os muçulmanos se converterem imediatamente ao cristianismo. Omar achava que era como se eles estivessem se distanciando por razões que não conseguia identificar. Então, quando os dois homens sentaram no chão frente a frente, ficaram a sós pela primeira vez. Omar estava muito tenso, quase explodindo.

Nem bem ele começou a falar, bateram com força na porta. Omar viu o rosto de Ibn Hixam ficar sério. Esperou que o criado viesse anunciar o recém-chegado. Talvez Dom Inigo tivesse mudado de idéia e resolvido mandar um mensageiro pedindo para ele ir com urgência ao alHamra. Mas, em vez do criado, quem entrou foi uma pessoa conhecida, de batina. De repente, Omar entendeu tudo.

— Meu senhor bispo. Não sabia que estava em Garnata. O velho fez sinal pedindo uma cadeira e sentou-se. Omar começou a andar de um lado para o outro. Depois seu tio falou com uma voz que contrastava com sua aparência frágil.

— Sente-se, sobrinho. Eu sabia muito bem que você estava em Garnata hoje. Por isso estou aqui. Felizmente, o filho de meu falecido primo Hixam al-Zaid, que descanse em paz, tem mais juízo do que você. O que há com você, Omar? Será que administrar Banu Hudayl é uma responsabilidade tão pesada que você perdeu o juízo? Eu não disse para você, quando eles queimaram os livros, que não iam parar mais? Não tentei avisar sobre as conseqüências de aferrar-se cegamente a uma fé/cujos dias na península acabaram?

Omar estava furioso. — Acabaram, tio? Por que você não levanta seu belo hábito roxo um instante? Vamos ver seu pênis. Acho que veremos que falta um pedacinho da pele. Por que você não se aferrou cegamente a esse pedaço de pele, tio? E como não teve vergonha de usar sua ferramenta? Seu filho Juan tem quantos anos? Vinte?

Nasceu cinco anos depois que você se tornou padre! O que aconteceu com a mãe dele, nossa tia desconhecida? Será que eles a obrigaram a sair do convento, ou a madre superiora era parteira nas horas vagas? Quando você percebeu tudo isso, tio?

— Pare com isso, Omar! — gritou seu primo. — De que vale essa conversa? O bispo só está tentando nos ajudar.

— Não estou zangado com você, Omar bin Abdala. Gosto da sua energia, me lembra muito meu pai. Mas existe uma lei para os que se metem em política. Eles têm de prestar um pouco de atenção ao mundo real e ao que acontece nele. Tudo o que ocorre em conseqüência de um fato deve ser bem estudado. Foi o que aprendi com meu tutor, quando eu tinha a idade de Yazid. Nossas aulas costumavam ser naquele pátio no qual passa o riacho e do qual sua família gosta tanto. Era sempre à tarde, quando ele estava inundado de sol.

"Aprendi que nunca se deve dar uma opinião com base em suposição, mas pensar de acordo com a realidade do mundo exterior. Era impossível para Garnata continuar existindo. Um oásis islâmico num deserto cristão — foi o que você me disse três meses antes da rendição. Lembra-se do que eu respondi?

— Lembro muito bem — murmurou Omar, imitando o velho. "Se é verdade o que você diz, Omar bin Abdala, então não pode continuar assim. O oásis tem de ser conquistado pelos guerreiros do deserto." Sim, tio, eu lembro. Diga uma coisa...

— Não! Você é que me diz uma coisa. Quer que as propriedades de nossa família sejam confiscadas? Quer que Zuair e você morram, que Zubaida e as meninas passem a fazer parte dos bens do seu assassino, que Yazid seja escravizado por algum padre e usado como coroinha? Responda!

Omar estava tremendo. Tomou um gole de água e olhou firme para Miguel.

— Então? — continuou o bispo de Curtuba. — Por que não fala? Ainda há tempo. Por isso fiz o que pude para conseguir seu encontro no alHamra esta manhã. Por isso convenci Cisneros a vir e fazer os batizados na aldeia. Este é o único caminho para a sobrevivência, meu caro. Você acha que eu me converti e me tornei bispo porque tive uma visão? A única visão que tive foi da destruição de nossa família. Minha decisão foi política, não foi por causa de religião.

— Mesmo assim — disse Omar -, o hábito de bispo lhe cai bem. É como se o usasse desde que nasceu.

— Zombe o quanto quiser, meu sobrinho, mas tome a decisão certa. Lembre que o Profeta disse "confie em Deus, mas antes amarre o seu camelo". Vou lhe dar mais uma informação — e, se alguém da Inquisição souber, vai pedir minha cabeça. Eu ainda faço minhas abluções e me ajoelho em direção a Meca todas as sextas-feiras.

Os dois sobrinhos de Miguel se surpreenderam, o que o fez dar uma risinho de satisfação.

— Em tempos primevos, é preciso aprender a arte de se comportar como um primevo. Foi por isso que entrei para a Igreja de Roma, embora ainda tenha certeza de que nossa forma de ver o mundo é mais próxima da verdade. Peço que você faça o mesmo. Seu primo e a família dele já concordaram, eu mesmo vou batizálos amanhã. Por que você não fica e assiste à cerimônia? Termina antes que você possa dizer...

— ...Só existe um Deus que é Má e Maomé é seu Profeta?

— Exatamente. Você pode continuar pensando nisso todo dia.

— É melhor morrer livre do que viver como escravo.

— Foi por besteiras assim que sua fé foi derrotada na península.

Omar olhou para o primo, mas Ibn Hixam virou o rosto.

— Por quê? — gritou Onar para ele.

— Por que você não me contou sobre a conversão? Para mim, é como receber uma punhalada no coração.

Ibn Hixam o encarou. Lágrimas escorriam em sua face. Que estranho, pensou Omar, ao ver a tristeza estampada no rosto do primo, quando éramos jovens ele era mais corajoso do que eu. Acho que ficou assim por causa de suas novas responsabilidades, mas eu também tenho as minhas, que são até maiores. Ele se preocupa com os negócios, o comércio, a família. Eu, com a vida de duas mil pessoas. Apesar disso, Omar ficou triste em ver o primo daquele jeito e seus olhos também marejaram.

Por um instante, quando se olharam cheios de angústia, Miguel lembrou-se de quando eram jovens. Os dois meninos eram inseparáveis e a amizade continuou até depois de se casarem. Mas, com o tempo, ficaram ocupados em cuidar de suas famílias e passaram a se encontrar menos. A distância entre a casa da família da aldeia e a residência de Ibn Hixam em Garnata parecia aumentar.

Mas, quando se encontravam, os dois primos faziam confidências, falavam sobre suas famílias, sobre finanças, sobre o futuro e, naturalmente, sobre as mudanças que ocorriam em seu mundo. Ibn Hixam sofreu muito por esconder de Omar a decisão de converter-se. Foi o momento mais importante de sua vida. Ele achava que o que estava prestes a fazer garantiria a segurança e a estabilidade para os filhos e os filhos de seus filhos.

Ibn Hixam era um negociante rico. Ele se orgulhava da habilidade que tinha em avaliar uma pessoa. Era capaz de sentir no ar a situação na cidade. Sua decisão de tornar-se cristão era tão importante quanto aquela que tomara trinta anos antes, de investir todo o seu ouro na importação de brocados de Samarkand. Em um ano, havia triplicado sua fortuna.

Ele não teve a intenção de enganar Omar, apenas temia que seu primo — cuja obstinação intelectual e rigidez moral sempre provocaram um misto de respeito e medo na imensa família — quisesse convencê-lo de que estava errado. Ibn Hixam não queria que o convencessem. Confessou isso, esperando que Omar entendesse e perdoasse, mas ele continuou a olhá-lo com raiva e Ibn Hixam de repente sentiu que a força daquele olhar estava penetrando em sua cabeça. Em poucos minutos, os dois homens se distanciaram tanto que não conseguiam se falar.

Miguel finalmente quebrou o silêncio.

— Vou a al-Hudayl amanhã.

— Por quê?

— Você está me negando o direito de entrar na casa onde nasci? Só quero ver minha irmã. Não vou me meter na sua vida.

Omar percebeu que corria o risco de desrespeitar o preceito familiar do perdão. Isso não podia ocorrer e ele se conteve. Sabia que Miguel estava decidido a falar com Zubaida e convencê-la da necessidade das conversões. O velho patife achava que devia ser mais simples convencê-la de seus planos nefandos. Velho demônio, transparente como o vidro.

— Perdoe-me, tio. Estava pensando em outros assuntos. O senhor continua bem-vindo em sua casa. Voltamos a cavalo, ao amanhecer. Desculpe, esqueci que vai fazer um batizado, então terá de viajar sozinho, acho. Mas quero lhe pedir um favor.

— Diga — disse o bispo de Curtuba. — Queria ficar a sós com o filho de meu tio. Miguel sorriu e levantou-se. Ibn Hixam bateu palmas. Um criado entrou com uma lamparina e acompanhou o padre até o quarto. Os dois ficaram mais à vontade sem a presença dele. Omar olhou para o amigo, mas seus pensamentos estavam distantes.

A raiva tinha sido substituída pela tristeza e a resignação. Prevendo a separação de ambos, que poderia ser para sempre, Ibn Hixam apertou a mão dele. Omar segurou-a por um instante, depois a largou. A tristeza que os dois sentiam era tão profunda que não conseguiam dizer nada.

— Se você tiver alguma dúvida — começou Ibn Hixam -, quero que saiba que as razões para minha conversão não tinham nada a ver com religião.

— É isso que mais me entristece. Se você tivesse se convertido mesmo, eu teria discutido e me aborrecido, mas não teria raiva nem qualquer amargura. Mas não se preocupe, não vou nem tentar mudar sua atitude. O resto da família aceitou sua decisão?

Ibn Hixam concordou com a cabeça. — Gostaria que o tempo parasse para sempre. Omar riu alto ao ouvir isso e Ibn Hixam se assustou. Era um riso estranho, como um eco longínquo.

— Acabamos de passar por um desastre — disse Omar — e estamos à beira de outro.

— Será que haveria alguma coisa pior do que aquilo por que passamos, Omar? Queimaram nossa cultura. Nada mais que eles façam vai me atingir. Ser amarrado numa estaca e apedrejado até a morte seria um consolo, em comparação com isso.

— Foi por isso que resolveu se converter?

— Não, mil vezes não. Foi por causa de minha família. Por causa do futuro deles.

— Quando penso no futuro-confessou Omar-, não vejo mais o imenso céu azul. Não há mais luz. Tudo o que vejo está nublado, uma escuridão do início dos tempos envolvendo todos nós e, no horizonte distante de meus sonhos, vejo as praias da África acenando. Agora tenho de descansar e me despedir. Amanhã vou embora antes que qualquer de vocês tenha saído da cama.

— Como você pode ser tão insensível? Todos nós estaremos de pé para as orações matinais.

— Até no dia do seu batizado?

— Principalmente nesse dia.

— Até amanhã, então. Que a paz esteja contigo. — A paz esteja contigo. Ibn Hixam calou-se por um instante.

— Omar? — Sim. De repente, ele abraçou Omar, que não correspondeu ao gesto e ficou com os braços caídos. Então, quando o primo começou a chorar de novo, Omar o abraçou com força. Eles se beijaram no rosto e Ibn Hixam acompanhou Omar até o quarto. Era um aposento reservado exclusivamente para o uso de Omar bin Abdala.

Omar não conseguia dormir. Sua cabeça estava alerta, cheia de vozes agitadas. O veneno fatal estava se espalhando a cada dia. Apesar de sua aparência exterior de firmeza, ele estava cheio de dúvidas. Será que era certo expor os filhos a décadas de tortura, exílio e até morte? Que direito tinha de impor sua escolha a eles? Será que ele tinha criado os filhos apenas para entregá-los aos algozes?

Dentro de sua cabeça começou um ruído surdo, como o de um rio subterrâneo. Os terríveis tormentos da memória. Ele estava lastimando os anos que se foram, a primavera de sua vida. Ibn Hixam estava com ele quando viu Zubaida pela primeira vez, com uma capa sobre os ombros, perambulando como uma alma perdida no jardim perto de alHamra. Enquanto vivesse, jamais esqueceria aquela cena. Um raio de sol tinha se filtrado através da folhagem, fazendo com que seu cabelo ruivo parecesse ouro. O que mais o impressionou foi o frescor dela — não havia nada da indolência voluptuosa que enfeava tantas mulheres na família dele. Fascinado com aquela beleza, ele ficou completamente possuído.

Queria aproximar-se e tocar seus cabelos, ouvi-la falar, ver se a forma de seus olhos mudava quando ela sorria, mas controlou-se. Era proibido colher damascos maduros.

Se fosse por ele, teria deixado que ela sumisse sem nunca mais encontrá-la. Mas Ibn Hixam o encorajou a se aproximar e, nos meses seguintes, foi quem cuidou de seus encontros furtivos.

Os dois lados do travesseiro estavam quentes quando Omar finalmente adormeceu. A última coisa que pensou foi em acordar bem antes do amanhecer e cavalgar até al-Hudayl.

Não estava emocionalmente preparado para enfrentar o sofrimento de uma segunda despedida. Não queria ver o olhar desamparado de seu amigo implorando perdão em cilêncio.

E havia outra razão. Ele queria lembrar as viagens de sua juventude perdida: cavalgar para casa no ar puro, bem longe da realidade dos sórdidos batizados de Miguel; sentir os primeiros raios do sol da manhã, desviados pelo cume das montanhas, e encher os olhos com as inesgotáveis reservas de céu azul. Pouco antes que o sono finalmente o vencesse, Omar teve uma forte suspeita de que nunca mais veria Ibn Hixam.


Capítulo 5

A verdade não pode contradizer a verdade. Certo ou errado, Zuair al-Fal?

— Certo, como não? Não está escrito no Alcorão? — Só por isso está certo?

— Bem, quero dizer, está escrito no Alcorão. Ouça, velho, não vim aqui hoje para discutir blasfêmias!

— Só mais uma pergunta. É legítimo juntar o que sabemos por meio da razão com o que sabemos por meio da tradição?

— Acho que sim. — Acha que sim! Não ensinam nada para vocês hoje? Bobos barbudos! Coloco uma dúvida que intrigou nossos teólogos durante séculos e só o que você consegue dizer é "acho que sim". Não serve. No meu tempo, os jovens aprendiam a ser mais rigorosos. Você nunca leu os escritos de Ibn Rushd, um dos nossos maiores pensadores? Um grande homem de verdade, que os cristãos da Europa conhecem como Averróis? Você precisa ler os livros dele, a biblioteca de seu pai tem quatro.

Zuair ficou constrangido e humilhado.

— Estudei esses livros, mas de um jeito que não entendi o sentido deles. Meu professor disse que Ibn Rushd podia ser um grande filósofo, mas era um herege!

— Como um ignorante espalha ignorância. A acusação é falsa. Ibn Rushd foi um grande filósofo, de muito talento. Na minha opinião, ele estava enganado, mas não pela razão dada por este bobo pago para ensinar teologia a você. Para resolver o que achava que era uma contradição entre razão e tradição, ele acatou os ensinamentos dos místicos. Havia sentidos evidentes e sentidos ocultos. Nem sempre a aparência e a realidade são as mesmas, mas Ibn Rushd insistia que as interpretações alegóricas eram uma conseqüência da verdade. Lamento, mas não acredito que ele tenha se baseado em alguma coisa concreta para afirmar isso.

— Como você sabe? — perguntou Zuair, irritado.

— Ele podia achar que era o único jeito de expandir o conhecimento e sobreviver.

— Ele era muito sincero — garantiu al-Zindiq com a segurança que vem da idade.

— Uma vez ele disse que o que mais o magoara na vida foi quando levou o filho para as orações da sexta-feira na mesquita e um grupo de analfabetos turbulentos os expulsou. Ele não ficou ofendido apenas com a humilhação, mas em ver como as paixões dos incultos estavam quase destruindo a mais moderna religião do mundo. Na minha opinião, Ibn Rushd não era tão herege. Ele aceitava a idéia de que o universo dependia completamente de Deus.

Zuair teve um arrepio.

— Está com frio, rapaz?

— Não, são suas palavras que me assustam. Não vim aqui para discutir filosofia ou trocar insultos teológicos com você. Se você quer testar suas idéias, podemos organizar um grande debate no pátio externo de nossa casa, entre você e o imã da mesquita, e todos nós julgaremos.

Tenho certeza de que minha irmã Hind vai concordar com você, mas cuidado. O apoio dela é meio parecido com o que a corda dá para o enforcado!

Al-Zindiq riu.

— Desculpe. Quando você chegou de repente, sem avisar, eu estava trabalhando em um manuscrito. É a obra da minha vida inteira, tentando juntar todos os pontos das guerras teológicas que atingiram nossa religião. Minha cabeça estava tão cheia dessas idéias, que comecei a impô-las a você. Então conte-me tudo sobre sua visita a Garnata.

Zuair deu um suspiro de alívio. Contou os acontecimentos dos últimos dias, sem esquecer um só detalhe. Quando falou sobre a decisão de não aceitarem mais qualquer humilhação sem resistir, al-Zindiq percebeu o toque de uma paixão que conhecia. Ele costumava ouvir rapazes no auge da vida querendo morrer para defender a honra, mas não queria que mais uma vida fosse desperdiçada. Olhou para Zuair e viu o jovem coberto por uma mortalha branca. al-Zindiq estremeceu e Zuair interpretou mal aquele tremor súbito. Pensou que, pela primeira vez, tinha contagiado o sábio com um pouco de seu entusiasmo.

— O que deve ser feito, al-Zindiq? O que acha? Zuair estava aguardando que seus amigos de Garnata chegassem mais tarde naquele dia. Eles ficariam muito confiantes se soubessem que o velho apoiava o projeto deles. Falou durante mais de uma hora, expondo as objeções de Musa ao plano e a reação de Ibn Daud, que achava aquilo uma insanidade. Era hora de deixar que al-Zindiq falasse.

Zuair nunca tinha precisado tanto do velho como agora, pois, por baixo de sua fanfarronice, o bisneto de Ibn Farid tinha muitas dúvidas. E se todos eles morressem no atentado? Se a conseqüência dessas mortes fosse o renascimento da Garnata muçulmana, então valeria a pena o sacrifício de cada uma das vidas, mas será que isso aconteceria? E se a imprudência deles causasse a morte de todos os crentes no velho reino, assassinados pelos soldados de Ximenes de Cisneros? Zuair não estava muito certo de que fosse hora de sair deste mundo.

Al-Zindiq começou a contra-atacar com o que parecia uma pergunta inocente.

— Então Ibn Daud al-Misri diz que é bisneto de Ibn Caldun? Zuair concordou, rápido.

— Por que esse tom de dúvida? Como você pode duvidar da palavra dele, se nem o conhece?

— Ele parece teimoso e imprudente. O bisavô dele não faria assim. Ele diria que, sem uma forte consciência de solidariedade social em relação aos crentes, não pode haver vitória. Foi a falta dessa solidariedade entre os seguidores do Profeta que causou o declínio de al-Andaluz. Como você pode recriar o que acabou?

Os exércitos deles vão destruir você como um elefante pisando numa formiga.

— Sabemos disso, mas é nossa única esperança. Ibn Daud disse que um povo vencido e subjugado por outros acaba desaparecendo.

— Falou como seu bisavô! Mas ele não compreende que nós já perdemos e agora estamos sendo dominados? Traga-o aqui. Traga-os todos esta noite e vamos discutir o assunto outra vez, com a seriedade que merece. Não são apenas as vidas de vocês que podem ser perdidas. Há muito mais coisas em jogo. Seu pai sabe?

Zuair balançou a cabeça.

— Gostaria de contar para ele, mas o tio-avô Miguel chegou para ver a tia-avó Zara...

Zuair parou de falar, mas já era tarde. Disse o nome proibido. Ele olhou para al-Zindiq, que sorriu.

— Estava pensando quando é que você ia falar nela. Na aldeia, só se comenta isso. Hoje não tem mais importância, rapaz. Foi há muito tempo. Eu ia contar na última vez em que você esteve aqui, mas calei porque seu criado chegou. Agora você sabe por que al-Zindiq foi expulso e, ao mesmo tempo, recebe alimentos da sua casa.

— Se você a amava, por que não foi a Curtuba encontrá-la? Ela teria casado com você.

— O calor e o frio de nosso corpo não são constantes, Ibn Omar. Em primeiro lugar, eu tinha medo do pai dela — ele ameaçou me matar se me vissem perto de Curtuba.

Mas havia outra razão.

— Qual?

— Talvez Zara tenha me amado, anos atrás. Talvez. Tinha um jeito esquisito de mostrar afeto.

Zuair estava surpreso.

— Como assim? — Depois de três meses em Curtuba, ela dormiu com todo nobre cristão que sorriu para ela. Fez isso durante vários anos, muitos anos. Quando eu soube de suas aventuras, adoeci por muito tempo, mas me recuperei. Isso me curou, a doença sumiu. Voltei a me sentir livre, embora meu coração tenha esquecido como era o calor do sol.

— E você esqueceu a tia-avó Zara?

— Não foi o que eu disse, foi? Como podia esquecer? Mas os portões estão bem fechados. Então ouvi mais histórias sobre o que aconteceu com mais homens. Aí então eu tapei meus ouvidos com algodão. Muitos, muitos anos depois Amira me disse que a senhora estava no maristan de Garnata.

— Acho que ela quis dizer que a tia-avó Zara era tão sã quanto você ou eu. Ela foi mandada para lá por ordem expressa do pai, um ano antes que ele morresse. Ele achava que o comportamento dela teve apenas a intenção de culpá-lo por impedir que ela se casasse com você. Minha mãe me contou.

— Homens importantes como Ibn Farid sempre se acham o centro de tudo. Será que ele não sabia que a Sra. Zara estava se punindo?

— Ela ficou muito emocionada de encontrar o irmão, você sabe. Embora Ama nos dissesse que tinha ódio de Miguel. Quando perguntamos por que, o rosto de Ama ficou duro como uma pedra. Miguel teve alguma influência na sua expulsão, al-Zindiq? Tenho certeza de que ele espionou você.

Al-Zindiq apoiou o rosto nas mãos e baixou os olhos. Quando levantou a cabeça, Zuair viu o sofrimento refletido neles. Seu rosto enrugado de repente ficou liso.

Que estranho, pensou Zuair, ele reage exatamente como Ama.

— Desculpe, velho, eu não queria reavivar lembranças dolorosas. Perdoe-me.

Al-Zindiq falou de um jeito esquisito. — Para você, Miguel é um apóstata que trocou a cor verde dos mouros pelos hinos e pelas imagens de madeira. Quando você o vê circulando como bispo de Curtuba, xingando sua religião, tem vergonha de ser seu parente, não é?

Zuair concordou.

— Mas e se eu disser que, quando menino, Mical al-Malek era muito vivo e alegre? Em vez de me espionar e de contar coisas para o pai, ele queria que Zara e eu fôssemos felizes. E gostava tanto de jogar xadrez que, se não tivesse feito mais nada, seria lembrado como o inventor de pelo menos três lances de abertura, que não podiam ser comparados nem aos dos mestres do jogo nesta península, quanto mais a gente como eu ou até o pai do Anão, que era um jogador de certa categoria. Ele costumava se meter em disputas filosóficas com seus preceptores e tinha tal argúcia que todos nós ficávamos impressionados, principalmente a mãe dele. Era tão talentoso que Ibn Farid costumava dizer para a Sra. Asma: "Não deixe as criadas ficarem admirando o menino. Vão prejudicá-lo com o olho gordo." Depois do que aconteceu, muita gente lembrou o que o pai dele dissera anos antes. Minha mãe, que era criada e confidente da Sra. Asma, costumava tomar conta de Miguel. Ele estava sempre nas dependências dos criados e eu gostava muito dele.

— Por que então deu tudo errado? — perguntou Zuair.

— Como isso aconteceu, como ele ficou doente? O que houve, al-Zindiq?

— Você quer mesmo saber? Há coisas que é melhor ignorar.

— Tenho de saber e você é a única pessoa que pode me dizer. O velho suspirou, pois sabia que isso não era verdade. Amira devia saber muito mais do que ele e, provavelmente, nenhum dos dois sabia de tudo.

Apenas duas mulheres, ninguém mais, sabiam toda a verdade. A Sra. Asma e sua fiel criada que era minha muito amada mãe, pensou o velho solitário que vivia no alto da colina. As duas estavam mortas e Vajid al-Zindiq tinha certeza de que sua mãe tinha sido envenenada. A família Hudayl não confiava no destino, achavam que só o cemitério garantia silêncio completo. Quem tinha tomado a decisão? al-Zindiq nem pensava que pudesse ser o pai de Omar, Abdala bin Farid. Não era do feitio dele. Talvez fosse Hixam de Garnata, que gostava de se envolver em causas difíceis. Agora não tinha mais importância, pois todos os detalhes do acontecido foram enterrados junto com a mãe dele.

Alguns anos depois, al-Zindiq e Amira se encontraram numa tarde e falaram tudo o que sabiam sobre a tragédia. Mesmo assim, não conseguiram saber se a versão que tinham era certa ou não, por isso al-Zindiq evitava um pouco tocar no assunto.

— Al-Zindiq, você prometeu que contaria tudo. — Está certo, mas lembre-se de uma coisa, al-Fal. O que vou contar agora pode não ser totalmente verdade. Não posso garantir.

— Por favor! Deixe que eu julgue! — Quando seu bisavô morreu, suas duas avós ficaram desesperadas. A Sra. Mariam não dividia a cama com ele há anos, mas ainda o amava. Ibn Farid morreu dormindo. A Sra. Asma tinha ido para a cama dele, tocado seus ombros e a nuca como era a norma, mas não houve resposta. Quando percebeu que a vida tinha saído dele, gritou: "Mariam! Mariam! Aconteceu uma tragédia conosco!" Minha mãe disse que foi o grito mais doloroso que ela jamais ouviu. As duas esposas se consolaram como puderam.

"Um ano depois, a Sra. Mariam morreu. Foi uma morte lenta e horrível. A língua dela tinha uma crosta negra e ela sentia muita dor. Dizia que aquilo era por causa de veneno, mas seu avô não deu ouvidos. Os melhores médicos de Garnata e Ixibilia foram chamados, mas nada puderam fazer contra o tormento que surgiu em sua boca e estava se alastrando pelo corpo. Ibn Sina uma vez disse que essa doença tinha causa e tratamento desconhecidos. Ele achava que, em certos casos, a causa era o acúmulo de maus humores na cabeça do paciente. Não estudei esses casos, por isso nada posso dizer. De toda forma, qualquer que fosse a causa, a Sra. Mariam morreu quase um ano depois de Ibn Farid.

"Então, a Sra. Asma ficou sozinha. Zara estava no maristan. Mikal era um menino crescido e não tinha muita vontade de ficar dentro de casa. Seu avô era um homem simpático, mas que não se distinguia pela agilidade de raciocínio. A mulher dele, sua avó, tinha uma personalidade parecida. A Sra. Asma passava muito tempo com seu pai, que tinha na época uns oito anos. Ele foi um substituto para o amor que ela costumava dedicar ao falecido marido. Fora da família, tinha minha mãe, que virou a maior amiga dela. Apesar de muitos convites, a mãe dela, a velha cozinheira Dorotéia, não queria vir morar na casa. Mas, quando ela vinha, a qualidade da comida na casa melhorava muito. Suas visitas eram rápidas, mas marcantes. Inesquecíveis, porque ela costumava fazer bolinhos de amêndoa que derretiam na boca da gente. Era mesmo uma excelente cozinheira e o pai do Anão aprendeu muito com ela. Ele também se apaixonou por ela, e dizia-se — mas não vamos fugir do assunto. O fato é que, se Dorotéia tivesse vindo morar com Asma depois da morte de Ibn Farid, a tragédia jamais teria ocorrido.

Zuair estava tão absorto na história que conseguiu controlar sua curiosidade. Quando era menino e ouvia as intermináveis histórias da família, ele costumava irritar o pai, fazendo seguidas perguntas para saber detalhes. Zuair achava um pouco estranha a recusa de Dorotéia em abandonar seu amo e ir com a filha para al-Hudayl — e por isso interrompeu o contador de histórias.

— Acho estranho, al-Zindiq. Por que ela não quis vir? Afinal, na casa de Dom Alvaro ela era apenas uma cozinheira e aqui viveria com todo conforto pelo resto da vida.

— Não sei, Ibn Omar. Ela era uma mulher muito correta. Acho que simplesmente se sentia constrangida de ser sogra de um homem tão importante como Ibn Farid. Talvez, de longe, fosse mais fácil aceitar essa súbita ascensão. Ibn Farid ficava muito contrariado por ela não querer ficar na casa-grande. Minha mãe saía do quarto que tinha na ala dos criados e era lá que Dorotéia dormia.

— Como foi a tragédia, al-Zindiq? O que aconteceu? Tenho a impressão de que, mais uma vez, o tempo vai nos atropelar e não quero que isso aconteça.

— Você quer saber por que a Sra. Asma morreu e quem matou minha mãe?

— Exatamente. A Sra. Asma não era velha, era?

— Não, era essa a questão. Ela ainda era jovem, cheia de vida e vaidosa. Tinha tido só dois filhos.

— Os tios-avós Miguel e Valid. — Exatamente. A morte de Valid foi um choque terrível para todos nós. Imagine se o seu Yazid de repente pega uma febre e morre.

Só de pensar, você já sofre. A Sra. Asma podia ter muito mais filhos quando seu bisavô resolveu sair desta vida. Minha mãe me contou que havia muitos pretendentes para a viúva de Ibn Farid, mas todos eles foram rejeitados. Seu avô Abdala não queria saber que a mulher do pai dele fosse tratada como uma mulher qualquer. Assim, a Sra. Asma vivia confinada, cercada pela família.

"Seu tio-avô Hixam casou pouco antes de Ibn Farid morrer e retomou seus negócios no comércio em Garnata — que, devo dizer, eram malvistos por todos, exceto pela mãe dele. Pois era quase um sacrilégio um herdeiro dos Banu Hudayl virar negociante no mercado. Uma ofensa para a honra da família que tinha poetas, filósofos, estadistas, guerreiros e até um pintor maluco cuja arte erótica, dizem, era muito admirada pelo califa em Curtuba. Todos eles eram ligados à terra e, de repente, vem o sobrinho de Ibn Farid negociar com mercadores, pechinchar com donos de navios e aproveitar todos os minutos da vida. Se Hixam ao menos fingisse que era infeliz, teria sido perdoado. Ibn Farid estava furioso, mas, depois de expulsar uma filha de casa, não queria se indispor com outro filho-e, de todo jeito, a Sra. Asma não admitiria que o marido fizesse nenhuma bobagem.

— Mas isso parece uma insensatez. Os Banu Hudayl não descendiam de guerreiros beduínos, que certamente negociavam e pechinchavam com as caravanas diariamente, a vida inteira, antes de virem para o Magreb? Não é?

— Concordo inteiramente com você. Imagine só, meu al-Fal. Descendentes de guerreiros nômades que marchavam da Arábia para o Magreb não precisavam mais viajar e ficaram tão apegados à terra que qualquer membro da família que pensasse diferente era considerado herege.

Zuair, que era muito amigo dos filhos de Ibn Hixam, ficou intrigado com a desaprovação do avô.

— Não sei se concordo com você. Quer dizer, mesmo quando viviam no deserto, nossos antepassados desprezavam os habitantes das cidades. Quando eu era criança, lembro que Ama me contou que só os parasitas moravam nas cidades.

Al-Zindiq riu.

— É, ela deve ter dito. Amira sempre foi atrás dos preconceitos dos outros. Mas veja só, meu al-Fal, as cidades têm uma importância política que aldeias como a sua não têm. O que você produz? Sedas. O que eles produzem? Poder. Ibn Caldum uma vez escreveu...

Zuair de repente percebeu que a velha raposa estava fazendo uma armadilha para ele — começando uma enorme discussão sobre filosofia da história e um debate sem fim sobre vida urbana versus vida rural. Então, o interrompeu.

— al-Zindiq, como foi que a Sra. Asma morreu? Não quero perguntar isso de novo.

O velho sorriu com os olhos e o rosto ficou vincado de rugas. No espaço de um segundo, aqueles mesmos olhos mostraram um pressentimento de tragédia. Queria mudar de assunto, mas Zuair estava olhando. Seu rosto de barba rala tinha uma expressão dura e subitamente mostrava uma firmeza que surpreendeu al-Zindiq. Ele respirou fundo.

— Seis anos depois da morte de Ibn Farid, a Sra. Asma engravidou.

— Como? De quem? — perguntou Zuair num grito rouco, angustiante.

— Três pessoas sabiam. Minha mãe e mais duas. Minha mãe e a Sra. Asma estão mortas. Sobra só uma pessoa.

— Sei, sobra você, velho bobo — Zuair estava zangado.

— Sim, sim, jovem Zuair al-Fal. Você parece nervoso, não conheceu nenhuma dessas pessoas e, mesmo assim, seu orgulho está ofendido.

Estranho, pensou al-Zindiq, como isso afetou o menino. O que tem a ver com ele? A força infernal dos fantasmas do passado ainda alimenta nossas paixões? Agora é tarde demais para parar. Ele fez um afago no rosto de Zuair quando lhe ofereceu um copo de água.

— Você pode imaginar como estava o ambiente na casa quando surgiu essa notícia. As velhas senhoras da família, muitas das quais se pensava que tivessem há muito tempo morrido de tanto comer, de repente reapareceram, vindas de Curtuba, Balancia, Ixibilia e Garnata. As más notícias voam. A Sra. Asma não saía do quarto e minha mãe ficou de intermediária entre ela e as velhas bruxas. Uma velha parteira de Garnata, considerada uma especialista na arte de tirar crianças não-desejadas, começou a trabalhar, tendo minha mãe do lado. A operação deu resultado e o problema foi retirado. Uma semana depois, a Sra. Asma morreu. Algum veneno tinha penetrado na corrente de seu sangue. Mas não foi só. Quando seu avô e sua avó vieram vê-la, a Sra. Asma segredou no ouvido de sua avó que queria morrer. Tinha perdido a vontade de viver, aquela vergonha era insuportável. Hixam e sua esposa estavam na casa com o filho, que também era muito querido pela Sra. Asma e costumava passar semanas na casa. Foi assim que Ibn Hixam ficou muito amigo de seu pai. Quanto a Mical, ele se sentiu mal, nem foi ver a mãe no leito de morte. E ela também não o chamou.

— Mas quem foi, al-Zindiq? Como pode a água pura de um cântaro virar leite azedo durante a noite?

— Minha mãe não viu, mas a Sra. Asma contou tudo para ela. Três semanas depois, minha mãe morreu. Ela nunca esteve doente, a vida inteira. Eu tinha ido à aldeia e pedi permissão para acompanhar o enterro da Sra. Asma. Não era permitido, mas eu consegui falar com minha mãe. Ela insistia em falar por enigmas. Não dizia o nome da pesso mas, juntando o que ela me disse naquela noite e o que Aluíra com seus próprios olhos, para nós ficou evidente quem era — ou, pelo menos, achávamos evidente.

A respiração de Zuair ficou mais pesada e, com a ansiedade, o sangue afluiu para seu rosto enquanto al-Zindiq fazia uma pausa para beber um pouco de água.

— Conte, velho! Conte!

— Você conhece bem aquela casa, Zuair bin Omar. A Sra.

Asma ficava nos aposentos onde hoje fica sua mãe. Diga uma coisa: alguma vez algum homem estranho à casa, ou até algum criado, pôde entrar nessa ala?

Zuair abanou a cabeça, negando. — Quais são os homens que podem ir e vir quando querem, além de seu pai?

— Acho que só Yazid e eu.

— Exatamente. Por um instante, Zuair não entendia o que estava ouvindo. Levou um susto, como se algo tivesse se chocado contra seu rosto.

Ele olhou apavorado para o velho contador de histórias.

— Você não quer dizer, não quer dizer... — mas sua língua se recusava a pronunciar o nome. al-Zindiq disse, finalmente.

— Mical ou Miguel, como queira.

— Tem certeza?

— Como posso? Mas é a única hipótese. Semanas antes que a gravidez fosse descoberta, todo mundo percebeu que Mical estava se comportando de um jeito muito estranho. Não ia mais ao balneário da aldeia para olhar as mulheres nuas. Parou de rir e seu rosto imberbe ficou duro e soturno. Seus olhos estavam pesados por falta de sono. Os médicos vieram de Garnata, mas o que podiam fazer? Não sabiam que doença era aquela, por isso receitaram ar marinho, frutas frescas e infusões herbais. Seu tioavô passou um mês em Malaca. Só ficar longe daquela casa deve ter feito muito bem a ele.

"Quando voltou, parecia muito melhor. Mas, para surpresa de todos os que não imaginavam o tormento interno que o consumia, ele nunca se aproximou do quarto da mãe.

Acho que só se falaram uma vez. No enterro dela, ele estava inconsolável. Chorou durante quarenta dias. Depois, ficou doente durante muito tempo. Nunca mais se recuperou e o Mical que eu conhecia também morreu. Assim, a tragédia levou três vidas. O bispo de Curtuba é hoje um fantasma.

— Mas como isso aconteceu, al-Zindiq?

— Não é difícil saber. Desde bebê, Mical era o preferido. Ele costumava tomar banho com a mãe e as outras senhoras. Amira me disse que até os dezesseis anos ele entrava quando a Sra. Asma estava no banho, tirava a roupa e ficava na água com ela.

"Ela ainda estava com todo o ardor. Não sei quem foi que começou, mas posso entender o dilema dela. Ainda era uma mulher, ainda ansiava por aquela determinada alegria que sua vida não tinha mais desde a morte de Ibn Farid. Quando aquilo aconteceu, foi tão bom, tão arrebatador, tão agradável, que ela esqueceu quem era ela e quem era ele e onde estavam. Mas depois aquela lembrança se tornou dolorosa e, para ela, só podia acabar com a morte. Quem somos nós para julgar, Zuair?

Como podemos entender o que ela sentiu?

— Não sei, não quero saber, mas foi uma loucura.

— Foi, e as pessoas em volta dela foram duras e implacáveis. Eu desconfiei de que convenceram a velha parteira a facilitar a morte tanto da mãe quanto do filho.

— A Sra. Asma deve ter se arrependido por se converter à nossa religião.

— Por que diz isso?

— Bom, se tivesse continuado a ser adoradora de imagens, podia fazer de conta que a criança que surgiu dentro dela foi um mistério divino.

— Você está começando a ficar mordaz. Está na hora de voltar para casa.

— Venha comigo, al-Zindiq. Vai ser bem-vindo. O velho ficou surpreso pelo inesperado do convite.

— Agradeço. Gostaria de ver Zara, mas fica para outro dia.

— Como você agüenta esta solidão?

— Vejo de uma outra forma. Daqui eu aprecio o sol nascer como ninguém e daqui eu aprecio o pôr-do-sol como pouca gente pode. Olhe agora, essa não é a cor do paraíso? E tenho meus manuscritos, que vão aumentando com o correr do ano. Solidão tem seus prazeres, meu amigo.

— Mas e os sofrimentos?

— Para cada vinte e quatro horas, existe sempre uma que é de muita angústia, tristeza, confusão e vontade de ver outros rostos, mas uma hora passa rápido. Agora voe, meu jovem amigo.

Você tem coisa importante a fazer esta noite e não se esqueça de trazer o jovem que diz ser descendente de Ibn Caldun.

— Por que você não acredita?

— Porque toda a família de Ibn Caldun morreu num naufrágio quando ia de Túnis para al-Caira! Agora vai, e que a paz esteja contigo.


Capítulo 6

Anão, quando eu crescer quero ser cozinheiro como você.

— O cozinheiro-chefe, que estava atrás de uma imensa panela batendo uma mistura de carne, grãos e farinha de trigo com um grande pilão de madeira, olhou para o menino sentado num tamborete e sorriu.

— Yazid bin Omar — disse ele, continuando a bater a mistura -, este é um trabalho duro. Para ser contratado, você tem de saber centenas de pratos.

— Eu aprendo, Anão. Prometo.

— Quantas vezes você comeu harrissa?

— Centenas de milhares de vezes.

— Muito bem, jovem amo, mas sabe como fazer e quais os ingredientes para temperar? Não, não sabe! Existem cerca de sessenta receitas só deste prato. Eu faço seguindo a receita do grande professor al-Bagdadi, mas com ervas e temperos a meu critério.

— Isso não é verdade. Ama me disse que seu pai ensinou tudo o que você sabe. Ela contou que ele era o sultão dos cozinheiros.

— E quem ensinou a ele? Essa sua Ama está ficando muito velha. Só porque me conhece desde que eu era da sua idade, acha que não tenho um talento particular. Meu pai foi certamente mais criativo na área dos doces. Sua tâmara com aletria assada no leite em forno brando, especial para comemorar grandes casamentos e festas, era famosa em toda al-Andaluz. O sultão de Garnata estava aqui no casamento do seu avô. Depois que provou a sobremesa, quis levar meu pai para o alHamra, mas Ibn Farid, que sua alma descanse em paz, disse "nunca".

"Mas nas comidas salgadas ele não era um cozinheiro tão bom quanto meu avô e sabia disso. Olhe, jovem amo, um verdadeiro talento nunca usa receita de outros. Quantas pitadas de sal? Quantas de pimenta? Que ervas? Não é apenas uma questão de saber, embora isso seja importante, mas de instinto. E o único segredo do nosso ofício.

A coisa se passa assim: você começa a preparar um prato especial e percebe que não tem cebola na cozinha. Então, pega um pouco de alho, gengibre, sementes de romã, pimentões e amassa tudo formando uma pasta e usa esses ingredientes para substituir a cebola. Acrescenta um cálice de suco de uva fermentada e eis um prato completamente novo. Quando a refeição da noite é servida, a Sra. Zubaida, cuja generosidade todos conhecem, prova. Ela sempre gosta, sempre. E na mesma hora percebe que há algum ingrediente novo. Quando a refeição termina, sou chamado à sua presença. Ela me cumprimenta e depois pergunta detalhes sobre o prato. Claro que eu conto meu segredo, mas enquanto falo já esqueci a medida certa dos ingredientes que usei. Talvez eu nunca faça aquele prato outra vez, mas quem o provou jamais esquecerá a mistura perfeita de sabores. Como um grande poema, um bom prato nunca se repete exatamente igual. Se você quer ser cozinheiro, tente, mas lembre do que eu disse.

Yazid estava muito impressionado.

— Anão, você se acha um gênio?

— Claro, jovem amo. Senão por que estaria eu dizendo tudo isso para você? Olhe para o harrissa que estou preparando. Venha aqui e preste bem atenção.

Yazid puxou seu tamborete para perto do cozinheiro e espiou na panela.

— Ficou cozinhando a noite toda. Antigamente, eles só usavam carneiro, mas eu já fiz com carne de vitela, de frango e de vaca, apenas para variar o sabor. Senão sua família vai começar a enjoar da minha comida e eu ficaria muito aborrecido.

— O que você colocou nesse harrissa?

— Uma vitela inteira, três xícaras de arroz, quatro de sementes de trigo, uma de lentilha escura, uma de ervilhas. Depois enchi a panela com água e deixei cozinhar durante a noite. Antes de sair da cozinha, coloquei um pouco de sementes secas de coentro e cardamomo preto amarrados num saquinho de musselina e mergulhei na panela. De manhã, a carne estava desmanchando e agora eu a estou transformando numa pasta. Mas o que mais vou fazer, antes de servir o almoço de sexta-feira?

— Fritar cebolas e pimentões na manteiga clara e colocar no harrissa.

— Muito bem, jovem amo! Mas as cebolas devem estar douradas e passadas na manteiga. Pode ser que na semana que vem eu acrescente alguma coisa diferente ao prato.Talvez ovos fritos na manteiga salpicados com ervas e pimenta-preta combine com o harrissa. Pode ser que fique muito pesado no estômago, pouco antes das orações da sexta-feira.

E se ficasse tão pesado que, quando eles inclinassem a cabeça em direção a Meca, a outra ponta do corpo começasse a soltar um cheiro horrível? Quem ficasse na linha de fogo não ia gostar nada.

O riso de Yazid era tão contagioso que fez o Anão abrir um largo sorriso. Depois, o menino ficou muito sério. Um pequeno traço marcou sua larga testa e os olhos assumiram uma expressão forte. Ele estava com uma dúvida.

— Anão? — Sim? — Você às vezes não preferia, ao invés de ser anão, ser alto, como Zuair? Então você poderia ser um cavaleiro e não precisaria passar o dia inteiro nessa cozinha.

— Que seu coração seja abençoado, Yazid bin Omar. Vou contar uma história. Era uma vez, no tempo em que ainda era vivo o nosso Profeta, que a paz esteja com ele, um macaco, que foi pego fazendo xixi numa mesquita.

Yazid começou a rir. — Por favor, não ria. Era uma ofensa muito grave. O vigia ficou furioso com o macaco e berrou: "Seu maldito blasfemo! Não teme que Deus o castigue e o transforme em outra criatura?" O macaco não se incomodou. "Só seria castigo", disse a criatura insolente, "se ele me transformasse numa gazela!" Assim, meu caro jovem amo, eu prefiro ser um anão que faz maravilhosos pratos na sua cozinha do que cavaleiro sempre com medo de ser apanhado por outros cavaleiros.

— Yazid! Yazid! Onde está aquele maldito, Amira? Ache-o para mim e diga que quero falar com ele.

A voz de Miguel ecoou pelo pátio e chegou até a cozinha. Yazid olhou para o Anão e colocou o dedo sobre os lábios. Houve um silêncio completo, quebrado apenas pelo borbulhar das duas grandes panelas que cozinhavam carne com osso. Depois ele se escondeu atrás da plataforma colocada na cozinha especialmente para o Anão alcançar as tigelas e panelas. Não adiantou. Ama entrou e foi direto para o esconderijo.

— Por Alá! Saia daí e venha cumprimentar seu tio-avô. Sua mãe vai ficar muito zangada se você não mostrar que tem educação.

Yazid apareceu e o Anão teve pena dele.

— Anão? — perguntou o menino.

— Por que o tio-avô Miguel fede tanto? Ama diz...

— Eu sei o que Ama acha, mas devemos ter uma resposta mais filosófica. Imagine, jovem amo, uma pessoa que vive no meio das cebolas, claro que sua pele vai ficar impregnada com um cheiro forte.

Ama olhou firme para o cozinheiro e pegou Yazid pela mão. Ele escapou e saiu correndo da cozinha em direção à casa. Seu plano era passar pelo pátio e tentar se esconder na sala de banho, usando a entrada lateral e secreta da casa. Mas Miguel estava à espera dele e o menino viu que tinha perdido a batalha.

— Que a paz esteja contigo, tio-avô.

— Eu te abençôo, meu filho. Acho que podíamos jogar um pouco de xadrez antes do almoço.

Yazid alegrou-se. Em outros tempos, quando ele sugeria um jogo, os adultos não só recusavam como evitavam que fizesse qualquer intrusão no tempo e espaço deles.

Nas raras ocasiões em que visitava a casa, Miguel quase não falava com ele e, menos ainda, convidava para alguma coisa. O menino entrou correndo na casa e voltou com a caixa do xadrez. Esticou o pano do tabuleiro sobre a mesa e tirou cuidadosamente as peças da caixa. Depois, de costas para o bispo, pegou uma rainha em cada mão e mostrou as mãos fechadas para o tio-avô. Miguel escolheu a mão onde estava a rainha negra e Yazid xingou baixinho. Foi nessa hora que Miguel percebeu que o jogo tinha um desenho especial. Examinou as peças com atenção e, quando falou, sua voz era um ronco ameaçador.

— Onde você arrumou esse jogo? — Meu pai me deu de presente de aniversário.

— Quem o esculpiu? O nome do carpinteiro Juan ia ser dito, quando Yazid lembrou que o homem sentado à sua frente era um servo da Igreja. Ama tinha feito uma vaga observação que soou para ele como um aviso, e a intuição do menino funcionou.

— Acho que foi um amigo dele de Ixibilia!

— Não minta para mim, menino. Ouvi tantas confissões na minha vida que posso dizer pela inflexão da voz se uma pessoa está ou não dizendo a verdade, e você não está. Quero uma resposta.

— Pensei que você quisesse jogar xadrez. Miguel olhou para o rosto confuso do menino, que o encarava com olhos brilhantes, e não pôde evitar a lembrança de sua própria infância. Ele tinha jogado xadrez naquele mesmo pátio e sobre aquele mesmo tabuleiro de pano. Jogou três vezes contra um mestre de Curtuba e se lembrava da família inteira rodeando a mesa, nervosa, a cada jogada que o mestre perdia. Depois, os aplausos e risos quando seu irmão o levantou no ar para comemorar. A mais feliz de todas era sua mãe, Asma. Miguel estremeceu ao lembrar e, ao levantar os olhos, viu Hind, Cultum e o jovem visitante egípcio, Ibn Daud, sorrindo para ele. Hind os tinha visto a distância e percebeu que Yazid estava com algum problema. Não foi muito difícil concluir que tinha ligação com as peças do xadrez. Mesmo quando se distraiu, Miguel continuou segurando a rainha negra.

— Já começou o jogo, Yazid? — perguntou Hind com ar inocente.

— Ele não quer jogar, fica me chamando de mentiroso.

— Que vergonha, tio-avô Miguel — disse Hind abraçando o irmão. — Como o senhor pode ser tão mau?

Miguel virou-se para ela com a ponta de seu nariz aquilino mexendo levemente e um sorriso sem graça vincou suas bochechas.

— Quem esculpiu estas peças? Onde vive?

— Em Ixibilia, claro! Yazid olhou feliz para a irmã, depois tirou a rainha negra da mão de Miguel. Hind achou graça.

— Jogue com ele, tio-avô Miguel. Talvez o senhor perca. Miguel olhou para o menino. Yazid não estava mais assustado, um brilho estranho tinha voltado ao seu rosto.

Sem conseguir evitar, o bispo continuava lembrando a sua juventude. Aquele lugar, aquele pátio e um atrevido menino de nove anos o encarando com um toque de ousadia.

Miguel se lembrou dos desafios que ele mesmo fazia para todo nobre cristão que visitava seu pai. Eles costumavam perder e então a casa inteira comemorava sua vitória.

Era estranho como aquele mundo, que há muito tempo tinha acabado para ele, continuava a existir naquela velha casa. Miguel queria jogar com Yazid e já ia sentar na mesa quando Ama avisou que o almoço estava servido.

— Lavou as mãos, Miguel? — a voz fina de Zara assustou a família de Omar bin Abdala, mas o irmão olhou para ela sorrindo. Conhecia bem aquela voz.

— Não tenho mais dez anos, Zara.

— Não quero saber se tem dez ou noventa. Vá lavar as mãos. Yazid viu que Hind tentava se conter, mas acabou tendo um acesso de riso. A irmã chorava de tanto rir, ao mesmo tempo que tentava parar. Quando Zubaida também começou a rir, Miguel achou que tinha de fazer alguma coisa rápido, antes que o almoço virasse um circo. Deu um risinho.

— Amira! Você ouviu o que Zara disse. Ande.

Ama trouxe um cântaro com água, um jovem servente veio com uma bacia, seguido de um menino da cozinha com uma toalha. Miguel lavou as mãos no meio de um silêncio constrangido. Quando acabou, a irmã aplaudiu.

— Era assim mesmo quando você era criança. Se eu fechar os olhos, posso ouvir seus gritos, com Um Zaidun e sua mãe, que seu coração seja abençoado, ensaboando sua cabeça e seu corpo, esfregando e depois enfiando você no banho.

Zuair ficou tenso com essa referência à Sra. Asma. Olhou para Zara e Miguel, mas ninguém mostrava qualquer emoção. Miguel olhou para a irmã e fez um sinal de aprovação com a cabeça.

— Estou muito contente por você ter voltado para esta casa, irmã.

A refeição do meio-dia foi saboreada com muito gosto. Como sempre, o Anão bisbilhotava tudo da sala ao lado e estava satisfeito com os elogios. Eles voavam pela sala como pássaros domesticados. O melhor de tudo para o Anão foi quando Miguel e Zara espontaneamente disseram que seu harrissa era muito melhor que o do falecido e muito saudoso pai dele. Só então o mestre-cuca foi para a cozinha, feliz com seu ofício e em paz com o mundo.

— Soube que você vive com muito luxo no palácio do bispo em Curtuba, servido por padres e por seu gordo filho. Por que, Miguel?

— Zara perguntou ao irmão.

— Como foi que as coisas ficaram desse jeito?

Miguel não respondeu. Zuair os observou bem enquanto comiam. Certamente Zara devia saber a verdadeira razão para Miguel romper completamente com o passado. Então Omar avisou que estava na hora de os homens saírem. Ibn Daud, Yazid e Zuair levantaram imediatamente e pediram licença. Foram se aprontar para a cavalgada até a mesquita, onde fariam as preces da sexta-feira. Zara e Miguel lavaram as mãos e foram para o pátio, onde foi colocada uma bancada de madeira coberta com tapetes para desfrutarem o sol de inverno. Ama trouxe uma bandeja com diversas divisões contendo amêndoas, nozes, tâmaras e passas.

— Que Alá seja louvado. Faz bem a meu coração ver vocês duas em casa.

— Amira — pediu Miguel ao pegar uma tâmara, tirar o caroço e trocá-la por uma amêndoa — por favor, diga à minha sobrinha para vir aqui um instante.

Ama, meio claudicante, andou em direção à casa enquanto Zara repetia a pergunta.

— Por que, Miguel? Por quê? O coração de Miguel começou a martelar. O rosto, que estava tão acostumado a esconder qualquer emoção, de repente mostrava muita angústia.

— Você não sabe mesmo, não é? Zara negou com a cabeça. Viram Zubaida se aproximando e o que Miguel ia dizer ficou enterrado em seu coração.

— Sente-se, minha filha — disse Miguel.

— Tenho algo importante para dizer e é melhor falar enquanto os homens não estão.

Zubaida sentou ao lado dele. — Estou curiosa, tio Miguel. Meus ouvidos aguardam o que vai dizer.

— É para sua cabeça que quero falar. O jogo de xadrez de Yazid é a arma mais perigosa que você tem nesta casa. Se alguém contasse para o arcebispo de Garnata, ele informaria a Inquisição, principalmente se as peças foram feitas em Ixibilia.

— Quem disse que foram feitas em Ixibilia? — Yazid e Hind. Zubaida comoveu-se com a sensibilidade de seus filhos, querendo proteger Juan, o carpinteiro. Por viver na aldeia, ela passou a descuidar-se desses problemas e sua primeira reação foi dizer a verdade para Miguel, mas, depois de pensar um instante, resolveu fazer como Yazid.

— Eles devem saber.

— Você é uma boba, Zubaida. Não estou aqui para espionar sua família, mas quero que queime as peças desse xadrez. Elas podem custar a vida do menino. Nesta bela aldeia, a música das águas nos embala num mundo de sonhos. É fácil, muito fácil, descuidar-se. Eu achava que aqui estaríamos seguros para todo o sempre. Estava enganado. O mundo no qual você nasceu está morto, minha filha. Mais cedo ou mais tarde os ventos que carregam as sementes da nossa destruição vão entrar pelas montanhas e chegar até esta casa. As crianças precisam ser prevenidas. Elas são impacientes, teimosas. Vejo nos olhos daquele menino a minha própria rebeldia de muitos anos atrás. Hind é uma menina muito inteligente e compreendo por que você não quer que ela case com Juan. Não diga nada, Zubaida. Posso estar velho, mas ainda não estou senil. Se estivesse no seu lugar, faria o mesmo, mas saiba que meus motivos não eram fazer com que meu filho ascendesse de classe, mas que os seus ficassem em segurança. Eu também tinha, acho, motivos afetivos porque assim Juan se casaria com alguém da família.

Embora achasse o bispo uma pessoa repulsiva, Zubaida ficou emocionada. Sabia que ele estava sendo sincero.

— Por que você não fala com todos hoje à noite, tio Miguel? Suas palavras teriam um impacto muito maior do que tudo que eu disser. E aí podemos discutir o que fazer com o jogo de Yazid. Ele vai ficar desconsolado.

— Terei prazer em me dirigir a todos esta noite. Essa foi, afinal, a principal razão da minha visita.

— Pensei que tinha vindo para me ver, Sua Santidade. Velho esperto e torto! — interrompeu Zara, com uma risada.

Vendo os dois, Zubaida riu ao lembrar algo que sua mãe ensinara para ela quando criança. Os dois a olharam, sérios.

— Conte qual é a graça — pediu Zara.

— Não posso, tia. Não me obrigue. É boba demais para dizer.

— Deixe que nós julguemos. Insisto que conte — disse Miguel.

Zubaida olhou para os dois e começou a rir novamente por causa do ridículo de tudo aquilo, mas percebeu que tinha mesmo de falar. — Acho que ri por causa do jeito que a tia de Yazid falou a palavra santidade. Lembrei-me de uma história infantil: "Numa discussão entre a Agulha e o Crivo, disse a Agulha: Você parece um monte de buracos, como consegue viver? Respondeu o Crivo com um sorriso matreiro: Essa linha colorida não é um enfeite, mas passa por dentro da sua cabeça!"'

Zubaida viu que o olhar sério deles se transformou numa risada.

— Ele era a Agulha? — perguntou Zara. Zubaida concordou.

— E ela o Crivo? — perguntou Miguel. Zubaida concordou outra vez. Durante um segundo eles se recompuseram e se olharam em silêncio. Depois, irromperam numa onda de riso.

Quando o som das risadas chegou até Ama, que estava sentada debaixo da romãzeira, ela sentiu lágrimas escorrendo em seu rosto. Era a primeira vez que Miguel ria naquela casa, desde que a mãe dele morrera.

O ambiente alegre no pátio da velha casa da família Banu Hudayl era bem diverso da tensão que havia na mesquita da aldeia naquela sexta-feira. As orações foram feitas tranqüilamente, embora, ao chegar, Omar tivesse se irritado ao ver que, apesar das recomendações, meia dúzia de lugares na primeira fila tinham sido reservados para sua família, por deferência. Antigamente, as pessoas entravam e rezavam onde encontrassem lugar. A verdadeira fé não estabelecia hierarquias. Todos eram considerados iguais como filhos de Deus na casa da devoção.

Foi Ibn Farid que insistiu para que a primeira fila fosse para sua família. Ele se impressionou com o costume que os nobres cristãos tinham de manter um lugar cativo na igreja. Sabia que o islamismo não aprovava isso, mesmo assim insistiu para que houvesse alguma deferência na mesquita em relação à aristocracia muçulmana.

Omar ficou nos fundos, discretamente, junto com o Anão e outros criados da casa, mas Zuair e Yazid foram chamados para a frente e levaram Ibn Daud.

As orações tinham terminado. Um jovem islamita de olhos azuis, novo na aldeia, começou a se preparar para fazer o sermão da sexta-feira. Seu velho antecessor tinha sido um teólogo muito culto e homem muito respeitado. Filho de um pobre camponês, estudou na madresseh de Garnata, adquiriu muitos conhecimentos, mas nunca esqueceu suas origens. Seu sucessor tinha trinta e poucos anos. Sua barba castanha e farta contrastava com a brancura de seu turbante e de sua pele. Ele estava um tanto nervoso enquanto esperava que a congregação se acomodasse e os não-muçulmanos retardatários tomassem lugar. Os membros da pequena comunidade judia e cristã da aldeia tinham permissão para assistir à reunião depois que terminassem as orações da sexta-feira. Yazid ficou feliz de ver Juan, o carpinteiro, e Ibn Hasd entrarem na mesquita. Estavam com um velho de túnica vermelho-escura. Yazid se perguntou quem seria aquele homem e fez sinal para o irmão. Zuair reconheceu Vajid al-Zindq e teve um leve susto, mas não disse nada.

De repente, Yazid ficou sério. Ubaidala, o temido administrador das propriedades al-Hudayl, mudou de lugar e sentou-se exatamente atrás de Zuair. Ama tinha contado para Yazid tanta coisa ruim sobre a corrupção e a devassidão desse homem que o menino ficara com raiva dele. O administrador sorriu para Zuair e os dois se cumprimentaram.

Yazid lançou um olhar furioso. Estava louco para falar com Juan e contar que o tio-avô Miguel perguntou sobre o jogo de xadrez, mas Zuair ficou sério e colocou seu pesado braço nos ombros do menino para que ele sossegasse.

— Comporte-se com dignidade, não esqueça que as pessoas estão nos olhando — disse baixo e irritado no ouvido de Yazid.

— A honra dos Banu Hudayl está em jogo.

Amanhã talvez tenhamos de liderar essas pessoas numa guerra. Eles não podem perder o respeito por nós.

— Droga — resmungou Yazid, mas, antes que o irmão pudesse retrucar, o pregador tossiu limpando a garganta e começou a falar.

— Em nome de Má, o caridoso, o misericordioso. Que a paz esteja com vocês, meus irmãos.

E começou a divagar sobre as glórias de al-Andaluz e seus governantes muçulmanos. Ele não queria deixar dúvida de que o islamismo que existira no Magreb tinha sido o único verdadeiro. Umaiad, o califa de Curtuba, e seus sucessores defenderam a verdadeira fé como recomendou o Profeta e seus Companheiros. Os abasidas de Bagdá tinham sido depravados morais.

Yazid ouvia essa conversa nas mesquitas desde que começara a freqüentar as orações das sextas-feiras. Todos os pregadores o faziam lembrar de Ama, a não ser pelo fato de que ele podia interrompê-la para perguntar qualquer coisa e parar com aquela conversa fiada. Mas na mesquita não podia fazer isso.

Yazid não era o único membro da congregação que não estava prestando atenção ao que o pregador dizia. No fundo da mesquita, os freqüentadores mais antigos da reunião das sextas-feiras começavam a cochichar. Era difícil não ter pena do jovem que tentava se impor numa reunião pouco interessante para os novatos ou iniciantes, por isso Omar bin Abdala colocou o dedo sobre os lábios e olhou sério para os que faltavam com o respeito. Fez-se silêncio, o que foi o bastante para liberar o jovem de barba castanha. Ele se inflamou e abandonou o texto que tinha preparado com tanto esforço, deixando de lado as citações do Alcorão que passou a metade da noite aprendendo e ensaiando. Trocou tudo pelo que estava em sua cabeça.

— A distância, podemos ouvir o som solene dos sinos das igrejas deles começando a tocar de forma tão onipresente que corrói minhas entranhas. Eles já prepararam nossas mortalhas, por isso sinto meu coração pesado, meu espírito oprimido e minha cabeça muito agitada. Faz apenas oito anos que Garnata foi conquistada, mas muitos muçulmanos já se sentem mortos ou mudos. Será que chegou o fim do nosso mundo? Tivemos muitas glórias no passado, mas de que nos servem agora? Como é que nós, que tínhamos essa península na palma da mão, deixamos que ela escapasse?

"Costumo ouvir nossos anciãos falando nas calamidades ainda piores sofridas por nosso Profeta, que a paz esteja com ele, e como venceu todas. Isso é verdade, claro, mas naquela época os inimigos dele não tinham entendido direito o pacto da palavra verdadeira. Estamos pagando o preço por te? Tinham nos transformado numa religião universal. Os reis cristãos não estão com medo apenas de nós e, quando ouvem que o sultão da Turquia pensa em enviar sua esquadra para nos ajudar eles começam a tremer de medo.

É aí que está o perigo e por isso, meus irmãos, que temo o pior. Ximenes diz a seus próximos que a única forma de nos defender é destruir tudo...

Suas palavras foram ouvidas em silêncio. Yazid, que não gostava de cerimônias religiosas, ficou impressionado com a integridade do pregador. Era evidente que falava sinceramente. O irmão não ficou tão impressionado: Zuair se irritou com o tom pessimista. Será que o homem iria sugerir alguma solução para o problema, ou apenas baixar a moral da congregação?

— Penso em nosso passado. Nossos estandartes flutuando ao vento. Nossos cavaleiros aguardando a oilerr, que os mandaria para a batalha. Lembro-me das histórias que todos nós ouvimos sobre o mais corajoso de nossos cavaleiros, lbn Farid, que sua alma descanse em paz, desafiando os gucieiros inimigos e vencendo-os todos num só dia. Penso em todos e rezo para que o Poderoso nos socorra e ajude. Se tivesse certeza de que o sultão de Istambul iria mesmo mandar seus navios e soldados, eu, de boa vontade, sacrificaria cada centímetro kdeste corpo para salvar nosso futuro. Mas, irmãos meus, temo que todas essas esperanças sejam inúteis. É tarde demais. Só temos uma saída: confiar em Deus!


Capítulo 7

Zuair estava preocupado. Nos bons tempos, se o teólogo terminasse a pregação sem dizer uma palavra de estímulo, seria completamente não-ortodoxo. Na atual situação, não cumprir um dever que lhe competia. Talvez o pregador tivesse apenas parado para pensar, mas não, tinha terminado. Foi para seu lugar na primeira fila e sentou três assentos depois de Yak

Geralmente a congregação se dispersava depois do khutba, mas naquela sexta-feira foi como se todos tivessem paralisados, ninguém se mexeu. Era difícil saber por quanto tempo eles ficariam parados e silenciosos. Mas Omar bin Abdala, vendo que alguma coisa tinha de ser feita, levantou-se e, como uma solitária sentinela no alto de uma montanha, observou ao redor. Ninguém se levantou junto com ele. Pelo contrário, todos se afastaram como se tivessem combinado, para lhe dar passagem. Lentamente, ele andou por esse corredor e, quando chegou na frente, voltou-se e os olhou. Yazid encarou o pai, com os olhos brilhando de ansiedade e orgulho. A expressão de Zuair era uma máscara, mas por dentro seu coração batia forte.

Por um instante, Omar bin Abdala ficou calado, pensando. Sabia que em ocasiões como aquela, quando pairava um desastre iminente sobre as pessoas, cada palavra e cada frase assumiam uma importância maior. Por isso, tudo tinha de ser bem pensado, o tom certo para acompanhar as palavras. A retórica tem suas leis e sua mágica. Aquele homem tinha sido criado na tranqüilidade das propriedades da família, banhado em água perfumada com óleo de flor de laranjeira, sempre cercado pelo delicado perfume das ervas da montanha e desde a infância aprendera a arte de dirigir a vida de homens e mulheres — sabia, portanto, o que esperavam dele.

Os porões de sua memória estavam transbordando, mas sem nada que pudesse ser usado para dar o menor conforto que fosse para aquelas pessoas sentadas à sua frente.

Omar começou a falar. Relembrou tudo o que tinha acontecido em Garnata durante a ocupação cristã. Descreveu o paredão de fogo com todos os detalhes e, nessa hora, seus olhos se encheram de lágrimas, compartilhando sua tristeza com a congregação. Falou sobre o medo que dominava cada casa muçulmana; citou as incertezas que pairavam sobre a cidade como uma nuvem negra. Disse que as nuvens não se dispersariam com o uivo dos cães, que os muçulmanos de al-Andaluz eram como um rio cujo curso estava sendo mudado sob o olhar duro da Inquisição.

Omar falou durante uma hora e todos ouviram com atenção, embora ninguém pudesse chamá-lo de orador. Sua voz suave e o estilo discreto faziam um contraste positivo com a encenação que muitos pregadores usavam, parecendo tambores ocos, recitando os textos sagrados acompanhados de gestos exagerados. Em poucos minutos, isso não só distraía os ouvintes como tinha como efeito negativo uma algazarra que só agradava a Yazid e seus amigos.

Omar sabia que não podia continuar com sua litania de tragédias. Tinha de sugerir uma seqüência de ações. Era seu dever como líder mais importante da aldeia, mas, mesmo assim, hesitou. Na verdade, Omar bin Abdala ainda não tinha certeza sobre a direção para onde devia levar seu povo. Parou de falar e procurou com os olhos os anciãos da aldeia. Não recebeu qualquer apoio deles e assim resolveu que a sinceridade era a única forma de aproximação. Iria confiar a eles suas dúvidas.

— Meus irmãos, tenho uma confissão a fazer. Não tenho como me comunicar diretamente com nosso Criador. Como vocês, eu também estou perdido, por isso tenho de dizer que não é fácil resolver todos os nossos problemas. Um de nossos maiores pensadores, o mestre Ibn Caldum, nos preveniu há muitos anos que o povo vencido e dominado por outro em pouco tempo acaba desaparecendo. A queda de Curtuba e Ixibilia não bastou para que aprendêssemos. E não há desculpa por cair no mesmo buraco três vezes.

Aqueles que, no passado, procuraram se proteger à sombra do sultão foram bobos, porque essa sombra logo sumiu.

"Há três formas de sair da confusão. A primeira é fazer o que muitos de nossos irmãos fizeram em outros lugares: acreditar que um inimigo sensato é melhor do que um amigo ignorante e então converter-se para a religião dele, enquanto continuamos acreditando em nossos corações no que queremos acreditar. O que acham dessa solução?

Por alguns instantes eles ficaram muito surpresos. Era uma idéia perigosamente herética — e a aldeia ficava tão distante de Garnata e do resto da península que eles não conseguiam acompanhar o raciocínio. Em seguida, os fiéis tomaram consciência e ouviu-se um cantochão que surgiu espontaneamente, em uníssono, de onde eles estavam e subiu aos céus.

— Só existe um Deus, ele é Alá, e Maomé é seu Profeta. Os olhos de Omar marejaram. Ele concordou com a cabeça e, com um sorriso triste, voltou a falar-lhes.

— Eu achava que vocês iriam dizer isso, mas sinto que tenho a obrigação de preveni-los de que os reis cristãos que ora nos governam podem não permitir por muito mais tempo que veneremos Alá. Mas vocês devem escolher como agir.

"A segunda possibilidade é resistir a qualquer investida em nossas terras e lutar até a morte. Sua morte, minha morte, a morte de todos nós e a vergonha de nossas mães, esposas, irmãs e filhas. É uma escolha honrosa e, se vocês a escolherem, vou lutar ao seu lado, embora eu deva ser sincero. Vou mandar as mulheres e crianças da minha família para um refúgio seguro antes da batalha e sugiro que façam o mesmo. O que acham disso? Quantos de vocês querem morrer empunhando a espada?

Mais uma vez eles ficaram em silêncio, mas desta vez sem raiva. Os velhos se entreolharam. Depois, de algum ponto no meio da platéia, cinco jovens se levantaram.

Na primeira fila Zuair al-Fal levantou logo. Ver o jovem amo oferecendo sua vida pela causa provocou certa estranheza. Meia dúzia de jovens se levantaram, mas não Ibn Daud. Ele pensava em Hind, cujo riso contagioso ainda soava em seu ouvido. Yazid estava dividido entre o pai e o irmão. Por alguns minutos, ele ficou sem saber para que lado ir, depois levantou e segurou a mão de Zuair. Este gesto em particular emocionou a todos, mas poucos estavam de pé.

Omar sentiu um grande alívio.

O suicídio não era um método que ele aprovasse. Fez sinal para os filhos e os outros se sentarem. Omar limpou a garganta.

— A última opção é sair de nossas terras e casas nesta aldeia que nossos antepassados construíram quando não existia nada senão enormes pedras sobre essa terra.

Foram eles que limparam tudo. Foram eles que encontraram água e plantaram as sementes. Foram eles que viram a terra dar uma colheita farta. Meu coração me diz que essa é a pior de todas as escolhas, mas minha cabeça me diz que pode ser a única que vai nos deixar vivos. Pode não acontecer, mas precisamos estar mentalmente preparados para sair de al-Hudayl.

Uma voz, parecendo um grito contido, interrompeu Omar. — E ir para onde? Onde, onde? Omar suspirou. — É mais sensato subir os degraus um por um. Ainda não sei a resposta para essa pergunta. Tudo o que quero fazer é mostrar para vocês que o fato de acreditar no que acreditamos vai exigir sacrifícios. A pergunta que teremos de fazer para nós mesmos é se preferimos viver aqui como céticos ou procurar um lugar onde possamos venerar Alá em paz. Não tenho mais nada a dizer, mas, se algum de vocês quiser falar e sugerir algo mais prudente, está na hora. Falem enquanto seus lábios forem livres.

Com essas palavras, Omar sentou ao lado de Yazid. Ele abraçou o filho e beijou sua cabeça. Yazid segurou as mãos do pai e as apertou como um afogado que se agarra a alguma coisa que flutua.

As pessoas ficaram impressionadas com o que Omar disse. Durante algum tempo ninguém falou. Depois, Ibn Zaidun, que se apresentou como Vajid al-Zindiq, levantou e perguntou se podia dar sua opinião. Omar se virou e concordou com ênfase. Os velhos que estavam presentes fizeram cara feia e cofiaram suas barbas. Conheciam Ibn Zaidun como um cético que tinha envenenado a cabeça de muitos jovens. Mas afinal, pensaram, estavam numa crise e até os hereges tinham direito de dizer o que achavam. A voz de al-Zindiq, que Zuair al-Fal conhecia tão bem, estava muito indignada.

— Durante vinte anos tentei mostrar a vocês que era preciso cuidado. Apenas aquela fé cega não nos levaria a lugar algum. Vocês pensaram que os sultões durariam até o Dia do Juízo. Quando eu avisei que quem toma sopa de sultão acaba queimando os lábios, vocês zombaram de mim, me chamaram de herege, apóstata e incréu que tinha ficado maluco.

"Agora é tarde demais. Todas as fontes estão envenenadas, não há mais água pura em toda a península. Foi o que Omar bin Abdala tentou dizer durante uma hora. Em vez de olhar para o futuro, nós, muçulmanos, sempre nos viramos para o passado. Ainda cantamos músicas do tempo em que nossas tendas foram levantadas pela primeira vez nesses vales, quando nos uníamos na firme defesa de nossa crença, quando o branco puro de nossos estandartes voltava dos campos de batalha com outra cor, encharcado do sangue inimigo. E quantas taças de vinho foram bebidas só nesta aldeia para comemorar nossas vitórias.

"Depois de setenta anos, estou cansado de viver. Quando a morte vier tropeçando pelo meu caminho, como um camelo que não enxerga à noite, não vou me desviar dela.

É melhor morrer com todos os sentidos alertas do que ser pisoteado por ela quando minha cabeça já não estiver mais funcionando. E o que vale para uma pessoa vale também para uma comunidade...

— Velho! — gritou Zuair preocupado.

— Por que você acha que estamos prontos para morrer?

— Zuair bin Omar — respondeu al-Zindiq com voz forte.

— Estava usando símbolos para falar. A única forma de você e seus filhos e os filhos deles sobreviverem nestas terras hoje ocupadas pelos castelhanos é admitir que a religião dos seus pais e dos pais dos seus pais está à beira do desaparecimento. Nossas mortalhas já estão prontas.

Essa observação incomodou os fiéis. Alguns rostos mostravam desaprovação quando um canto conhecido foi entoado para o cético.

— Só existe um Deus, ele é Alá, e Maomé é seu Profeta.

— Sim — respondeu o velho.

— Dizemos isso há séculos, mas a rainha Isabel e seu confessor não concordam com vocês. Se continuarem repetindo isso, os cristãos vão cortar seus corações ao meio com lâminas duras e afiadas.

— Al-Zindiq — gritou Ibn Hasd do fundo da mesquita.

— Você pode ter dito a verdade, mas nesta aldeia vivemos em paz durante quinhentos anos. Os judeus sofreram em outros lugares, mas jamais aqui. Os cristãos tomaram banho nos mesmos lugares que os judeus e muçulmanos. Será que os castelhanos não vão nos deixar em paz, se nós não os incomodarmos?

— É pouco provável, meu amigo — respondeu o sábio.

— O que é bom para o fígado é ruim para o humor. O arcebispo deles vai dizer que, se tolerarem um só caso, vai incentivar os outros. Afinal de contas, se pudéssemos continuar como antes nestas propriedades, mais cedo ou mais tarde, quando outros reis e rainhas menos propensos à violência ocuparem o trono, pode ser que o fato de existirmos faça com que eles relaxem as proibições contra os seguidores de Hazrat Musa e Maomé, que a paz esteja com ele. Agradeço a você, Omar bin Abdala, por permitir que minha voz seja ouvida.

Quando al-Zindiq estava indo embora, Omar mandou que Yazid o chamasse e fez sinal para o velho ficar ao lado dele. Quando ele esticou no chão seu tapete de oração, Omar segredou em seu ouvido:

— Venha comer conosco esta noite, Ibn Zaidun. Minha tia quer.

Pela primeira vez, al-Zindiq foi pego de surpresa, mas controlou sua emoção e aceitou sem dizer nada. Então Omar levantou-se outra vez.

— Se ninguém mais deseja falar, vamos sair, mas lembrem que a decisão é de vocês. São livres para resolver e eu farei todo o possível para ajudá-los. Que a paz esteja com todos.

— E contigo também — responderam em coro. Depois, o jovem pregador se levantou e recitou um surá do Alcorão que todos, inclusive os cristãos e judeus, repetiram.

Menos al-Zindiq.

"Digam: Ó descrentes, não venero o mesmo que vós, E vós não venerais o mesmo que eu, Não vou venerar o que vós venerais Nem vós o que venero. Tende a vossa religião e eu tenho a minha."

Quando a reunião acabou, al-Zindiq resmungou: — O Criador devia estar com indigestão quando ditou estas linhas. Não têm ritmo.

Ibn Daud ouviu o que ele disse e não conseguiu evitar o riso.

— O castigo para a apostasia é a morte.

— Sim — disse al-Zindiq, olhando bem nos olhos verdes do jovem -, mas nenhum qadi jamais daria esta sentença hoje. Você é que se diz neto de Ibn Caldun?

— Sou — respondeu Ibn Daud, enquanto saíam da mesquita. "Estranho", pensou al-Zindiq, "toda a família morreu no mar."

— Nos últimos anos de vida meu avô viveu com outra mulher, que foi minha avó.

— Interessante. Será que podemos conversar sobre a obra dele esta noite? Depois da ceia?

— Zuair me contou que você estudou os livros dele e muitas outras coisas. Não tenho intenção de discutir com você ou competir com sua sabedoria. Ainda estou no estágio de aprendizado.

Ibn Daud cumprimentou seu interlocutor e correu para o lugar onde os cavalos estavam amarrados. Não queria deixar seu anfitrião esperando, mas quando chegou só viu Yazid e Zuair. O menino estava sorrindo e Zuair tinha um olhar distante, não parecia satisfeito com a chegada de Ibn Daud. Estava zangado com seu novo amigo.

No hammam em Garnata, Ibn Daud tinha atiçado a imaginação deles com sua conversa de levante armado contra os ocupantes. Depois, pareceu mudar de direção com o vento. Zuair olhava com frieza para o cairota pensando se ele, afinal, acreditava em alguma coisa.

— Onde está seu respeitável pai? — perguntou o visitante, sentindo-se pouco à vontade.

— Cuidando de seus negócios — respondeu Zuair, ríspido. — Está pronto?

Omar estava cercado pelos velhos da aldeia, que estavam ansiosos por discutir o futuro com mais detalhes e na intimidade de uma casa. Por isso, todos se encaminharam para a casa de Ibn Hasd, o sapateiro, onde foram recebidos com bolos de amêndoa e café temperado com sementes de cardamomo e adoçado com mel.

Zuair tinha ficado muito preocupado com o que aconteceu na mesquita. Sentia raiva dele mesmo. Só agora percebera não só a gravidade da situação, mas que parecia não haver saída. Agora sabia que a insurreição em Garnata estava condenada ao fracasso. Ele aprendeu mais com os olhares de derrota e desespero nos rostos que estavam na mesquita do que com toda a conversa do tio-avô Miguel ou do tio Hixam, mas... mas estava tudo planejado. Era tarde demais. Zuair parecia ter esquecido que cavalgava ao lado de outro cavaleiro, seu convidado. Ele afagou a barriga de seu cavalo e o animal reagiu com uma súbita arrancada, assustando Yazid, que pensou que o irmão estava querendo apostar uma corrida com ele até a casa.

— Al-Fal, Al-Fal! Me espera — gritou, e estava quase alcançando o irmão, mas Ibn Daud pediu para ele parar.

— Não sei galopar como seu irmão e preciso de um guia. Yazid suspirou e puxou a rédea de seu cavalo. Viu que o irmão queria ficar sozinho. Talvez ele tivesse combinado de encontrar algum dos jovens que queriam lutar. Yazid percebeu que tinha de substituir o irmão, senão Ibn Daud podia achar que os dois estavam querendo ser grosseiros com ele.

— Acho que é melhor acompanhar você até nossa casa. Minha irmã Hind jamais me perdoaria se você se perdesse!

— Sua irmã Hind?

— É! Ela está gostando de você.

Os balneários aumentaram o fervor da firme intenção que eles já tinham. Foi dessa forma que nossos cruzados erradicaram cada resquício de pecado.

Os problemas em Granada são bem mais graves, e não apenas em nível espiritual. Esses malditos balneários são também pontos de encontro habituais para eles trocarem idéias e filiarem-se a golpes de rebelião e traição. Há muita inquietação na cidade. Todo dia meus fiéis convertidos vêm me relatar as conversas no Albaicin e nas aldeias mouras que pululam como praga nos Alpujarras.

Por mim, acabaria com a insatisfação prendendo os cabeças da oposição e queimando-os na estaca. Que tragédia para nossa Igreja foi a morte de Tomás de Torquemada.

O nobre conde, entretanto, tem opinião completamente diferente. Para ele, Torquemada era nada mais do que um judeu converso tentando desesperadamente provar sua fidelidade à nova fé. O conde é contra qualquer medida dura contra os idólatras. Ele acha que, por falar a língua deles e vestir-se como eles, vai conquistá-los para o nosso lado. Sua Majestade compreenderá talvez que eu não posso entender nem aprovar a lógica que está por trás desse comportamento. Muitos de nossos cavaleiros, que lutaram como leões quando tomamos Alhama, estão sempre envolvidos em festanças alegres e despreocupadas em Granada. Acham que a guerra acabou. Não entendem que o estágio mais decisivo de nossa guerra está apenas começando. É por essa razão que peço a Sua Majestade licença para autorizar as medidas abaixo citadas e fazer a gentileza de informar ao capitão geral de Granada, Dom Inigo Lopes de Mendoza, que não deve impedir qualquer ação tomada pela Igreja.

— Devemos avisar os mouriscos para não falar mais em árabe, seja entre eles, em particular ou para comprar ou vender no mercado. A destruição de seus livros eruditos e de ciência faria com que esse edito fosse facilmente exeqüível. — Devem ser impedidos de manter escravos em cativeiro. — Devem ser proibidos de usar trajes mouros. Devem se adaptar, na roupa e no comportamento, ao estilo castelhano.

— O rosto de suas mulheres não deve em hipótese alguma ser coberto. — Devem ser orientados para não manter fechadas as portas de entrada de suas casas. — Seus balneários devem ser destruídos.

— Suas festas públicas e casamentos, suas canções libertinas e suas músicas devem ser proibidos. — Qualquer família que tenha três filhos deve ser prevenida de que, se tiver mais filhos, eles serão colocados a serviço da Igreja em Castela e Aragão para serem educados como bons cristãos.

— A sodomia está tão disseminada nessas regiões que, para extirpá-la, devemos ser extremamente severos. Quando se tratar de um caso comum, os praticantes deveriam ser castigados com a morte. Quando o ato for cometido com animais, o castigo adequado seria passar cinco anos como escravo de galés.

Essas medidas talvez pareçam contradizer os termos da rendição que assinamos, mas são a única e derradeira solução para o mal que devora nossas almas há tanto tempo.

Se Suas Mui Graciosas Majestades concordarem com minha proposta, sugeriria que a Santa Inquisição abra imediatamente uma representação em Granada e que seus integrantes sejam logo enviados para esta pecadora cidade para colher as provas. Dois ou, no máximo, três autos-de-fé farão com que essa gente veja que não pode mais brincar com o poder que Deus colocou para governá-la.

Aguardo resposta em breve e sou o mais leal servidor de Suas Majestades, Francisco Ximenes de Cisneros.

Ximenes dobrou o papel e colocou seu selo no pergaminho. Depois, chamou seu frade mais fiel, Ricardo de Córdova, um muçulmano que se converteu na mesma época que seu amo Miguel, que então o doou à Santa Igreja. Entregou-lhe a carta.

— Só para os olhos da rainha ou do rei. De ninguém mais, entendeu?

Ricardo sorriu, concordou e saiu da sala.

Ximenes ficou pensando. Em quê? Sua cabeça refletia sobre suas próprias fraquezas. Ele sabia que não tinha muita habilidade para falar ou escrever, que para ele parecia tão difícil quanto juntar fogo com água. A gramática que estudara quando criança em Alcala tinha sido a mais elementar. Mais tarde, na Universidade de Salamanca, tinha se dedicado a estudar a lei civil e canônica. Mas nem lá, nem em Roma, encontrara qualquer prazer na literatura ou na pintura.

Os afrescos de Michelangelo não lhe provocavam qualquer emoção. Apesar disso, ele se impressionou muito com os desenhos geométricos abstratos dos azulejos que viu em Salamanca e depois em Toledo. Quando pensava nessas coisas, o que não era muito comum, admitia para si mesmo que seria muito mais natural venerar o Senhor como uma idéia. Ele não gostava de todas aquelas imagens herdadas do paganismo e vestidas com as cores do cristianismo. Se ao menos tivesse as qualidades epistolares de seu ilustre antecesssor, cardeal Mendoza. Então sua carta para Isabel e Fernando teria sido escrita numa linguagem mais floreada e rebuscada. Os monarcas ficariam tão impressionados com a qualidade literária do texto que aceitariam o punhal escondido no meio da verborragia como se fosse um complemento necessário. Mas ele, Ximenes, não podia nem iria desapontar sua rainha.

Ele passou a ser confessor de Isabel quando Talavera foi nomeado arcebispo de Granada. Para surpresa e prazer dela, Ximenes não demonstrou qualquer nervosismo ou ansiedade ao ser conduzido à sua presença. Ela também não notou em seu rosto ou nos gestos com os quais se dirigiu a ela o menor traço de servilismo. A dignidade e a fidelidade que exalava cada um dos poros de seu corpo eram, sem dúvida alguma, autênticas.

Isabel sabia que tinha a seu serviço um padre fervoroso, cuja personalidade implacável combinava com a dela. Talavera a tratou com respeito, mas foi incapaz de ocultar seu desespero com o que considerou uma combinação de ambição e preconceito. Ele sempre tentou mostrar para ela as virtudes da tolerância e a necessidade da coexistência com tudo o que dissesse respeito aos muçulmanos. Ximenes era feito de um material mais duro. Um padre com uma alma de ferro e, acima de tudo, uma cabeça como a dela. Isabel o convidou para tomar conta de sua consciência. Ela abria o coração para ele. Contava das infidelidades de Fernando, de suas próprias tentações, da insegurança em relação ao futuro da filha, cuja mente, súbita e inesperadamente, parecia divagar. Tudo isso o padre ouviu com uma expressão compreensiva. Só uma vez ficou tão perplexo com o que ela disse que as emoções dominaram sua mente e uma máscara de horror cobriu seu rosto. Isabel tinha confessado uma necessidade carnal não satisfeita sentida três anos antes da reconquista de Granada. O objeto desse desejo fora um nobre muçulmano de Córdova.

Ximenes lembrou-se daquele momento com um arrepio, sentindo uma gratidão tácita ao seu Senhor Jesus Cristo por poupar a Espanha daquela calamidade. Se um mouro entrasse na cama da rainha, quem poderia imaginar o rumo que a história tomaria? Ele balançou a cabeça com força, como se só de pensar já cometesse uma heresia. A história não podia seguir por nenhuma outra direção. Se a capacidade de Isabel ficasse embotada, então um instrumento mais afiado teria de ser encontrado para despertá-la.

Ximenes era o primeiro arcebispo de Espanha a ser realmente celibatário. Uma noite em Salamanca, quando ainda estava na universidade, ele tinha ouvido os ruídos que costumavam vir de um dormitório masculino naquela época da vida em que os jovens ficam muito excitáveis e viu que seus colegas estavam imitando o ato que os animais executavam no cio. O prazer que algumas duplas desfrutavam podia ser ouvido por todos. Ximenes sentiu uma pontada de excitação por baixo da virilha. O susto foi suficiente para ele ir dormir e, quando acordou na manhã seguinte, apavorou-se ao ver que sua camisola estava úmida do que só podia ser seu próprio sêmen.

Para piorar ainda mais, havia uma coincidência pecaminosa. A mancha do líquido tinha uma estranha semelhança com o mapa de Castela e Aragão.

Durante dois dias inteiros, Ximenes ficou fora de si, tamanhos eram o medo e a ansiedade que sentia. No final daquela semana, quando foi à igreja, contou a cena para seu confessor, que, para grande desgosto do futuro arcebispo, caiu na gargalhada e falou tão alto que Ximenes tremeu de constrangimento.

— Se eu... — o padre tinha começado a falar dando risada, mas, ao ver o rapaz pálido e trêmulo que estava à sua frente, tentou dar um final mais sério para a frase.

— Se a Igreja fosse considerar a sodomia como um pecado imperdoável, todo padre na Espanha iria para o inferno.

O choque que Ximenes teve no confessionário, mais até do que no dormitório, fez com fizesse voto de celibato. Mesmo quando estava trabalhando em Siguenza, nos domínios do cardeal Mendoza, quando era de se esperar que os padres pegassem qualquer camponesa ou rapaz que desejassem, Ximenes resistiu à tentação. Ao contrário de um eunuco, ele não podia nem se orgulhar do pênis de seu amo. Por isso, entrou para o convento, abraçando a ordem franciscana para destacar sua intenção autêntica de levar uma vida austera e piedosa.

O cardeal Mendoza, quando soube do excepcional comedimento de seu padre favorito, mostrou sua desaprovação:

— Atributos tão extraordinários — devia-se entender isso como uma referência às qualidades intelectuais de Ximenes — não devem ser enterrados na penumbra de um convento.

Ximenes andava de um lado para o outro da sala. De sua janela em forma de arco ele podia ver a catedral que os carpinteiros estavam construindo sobre as ruínas de uma antiga mesquita, próxima do palácio. Seus pensamentos eram excelsos, mas imagens imprevistas e indesejadas às vezes surgem na cabeça, atrapalhando até a mais profunda meditação. Ximenes soubera de um ato muito grave de sacrilégio, cometido em Toledo no mês anterior, quando um seguidor do islamismo, pensando não ser visto, foi pego no ato de mergulhar seu pênis na sagrada fonte de água benta. Ao ser repreendido por dois padres atentos, ele não fez qualquer esforço para negar o que fez, pedir perdão ou mostrar que lamentava profundamente seu comportamento temerário. Em vez disso, disse que era um recém-convertido e tinha aprendido com um amigo cristão a fazer este tipo especial de ablução antes de suas orações na catedral.

O infrator recusara-se a dar o nome do amigo. Foi torturado, mas seus lábios continuaram fechados. A Inquisição achou a história pouco convincente e o levou até as autoridades civis para um castigo final. Poucos dias antes, ele fora queimado na estaca. A imagem do ato desrespeitoso continuava a assustar Ximenes. Ele lembrou que deveria solicitar os documentos da Inquisição a respeito daquele caso.

Ximenes não era um homem sem consciência. Aquele que estava se oferecendo para ser o cruel algoz da Garnata islâmica já tinha sido uma vítima. Estivera numa prisão eclesiástica por ordem do falecido cardeal Carillo. O cardeal, que logo depois foi substituído pelo arcebispo Mendoza, pediu a Ximenes que abdicasse de um cargo inferior na Igreja espanhola, para o qual tinha sido indicado por Roma, em favor de um dos sicofantas que rodeavam Carillo. Ximenes se recusou. Por causa disso, passou seis meses numa solitária. A experiência deixou o padre sensível a questões como a diferença entre culpa e inocência, por isso refletiu sobre a morte do homem em Toledo que lavava suas partes na água benta. Talvez ele fosse inocente, mas nenhum católico teria mandado uma pessoa fazer aquilo na catedral. Devia ter sido um daqueles hereges franceses que tinham escapado do castigo. Os olhos do padre começaram a brilhar quando achou que tinha descoberto a verdade. Estudaria os documentos com atenção.

Bateram na porta.

— Entre. Um soldado entrou e cochichou em seu ouvido.

— Mande-o entrar. Ibn Hixam entrou na sala e foi direto para o arcebispo, que lhe estendeu a mão. Ibn Hixam dobrou um dos joelhos e beijou o anel do bispo. Ximenes mandou que ele se levantasse e indicoulhe uma cadeira.

— Meu tio Miguel deixou instruções expressas para eu procurar Sua Graça e apresentar meus respeitos.

Ximenes olhou para o mais novo convertido da ala nobre de Granada e esforçou-se para sorrir.

— Qual foi o nome cristão que o bispo de Córdova lhe deu?

— Pedro de Garnata.

— Claro que você quer dizer Pedro de Granada. Pedro concordou, com os olhos traindo a tristeza e a humilhação que sentia. Ele viu o jeito meio triunfante, meio desafiador no rosto do homem cuja mão tinha beijado. Ibn Hixam queria estar morto, mas deu um sorriso sem graça, amaldiçoando-se por seu servilismo.

Ximenes olhou-o e concordou, fazendo um sinal com a cabeça.

— Sua visita é desnecessária. Já notifiquei seu tio que você tem licença para continuar com seu negócio.

Sou um homem que cumpre o que promete. Diga uma coisa, Pedro, sua filha também se converteu para a nossa fé?

Pedro de Granada começou a transpirar. O diabo sabia de tudo.

— Ela vai se converter quando voltar de Ixibi... quero dizer, Sevilha, Sua Graça. Estamos aguardando que volte.

— Deus o abençoe, meu filho. Agora, se me permite, está na hora da oração das vésperas e depois tenho outros assuntos para tratar. Só mais uma coisa: como você deve saber, sete dos nossos padres iam na semana passada levar a Santa Comunhão, quando sofreram uma emboscada. Baldes de madeira, cheios de excremento humano, foram despejados na cabeça deles. Você por acaso sabe o nome dos jovens que fizeram isso?

Pedro balançou a cabeça, negando.

— É, imaginei que não. Se soubesse, já teria relatado. Investigue e veja o que consegue descobrir. Estes absurdos não podem continuar sem castigo.

O recém-batizado Pedro de Granada mostrou com muita ênfase que concordava.

— Quando Deus quer matar uma formiga, Sua Graça, deixa que ela crie asas.

Depois que Pedro fez uma reverência e saiu, Ximenes foi tomado por uma sensação de náusea.

"Odioso, invertebrado, confuso, estúpido, desgraçado", pensou. "Todo dia eles vêm me ver. Alguns, por medo; outros, para garantir o futuro. Prontos a trair as próprias mães se, se, se, sempre um se — se a Igreja vai garantir a propriedade deles; se a Igreja não vai se meter no negócio deles, se a Igreja vai manter a Inquisição longe de Granada. Só então eles se convertem felizes à nossa fé e trazem junto seu implacável desejo por ganância. Que Deus amaldiçoe todos eles. Nossa Igreja não precisa desses sujeitos desprezíveis e insignificantes. Pedro de Granada continuará sendo maometano até morrer. Que Deus amaldiçoe a ele e a todos os seus iguais."


Capítulo 8

Aquela distância, não dava para enxergar as casas brancas da aldeia que ficavam na encosta da montanha, mas, vistas de onde Yazid estava sentado, o bruxuleio das lamparinas a óleo dependuradas do lado de fora parecia encantado. Ele sabia que as luzes não seriam apagadas até que os homens e mulheres que estavam à volta dele voltassem para casa.

O pátio externo da casa estava cheio de visitantes. Formavam um largo círculo, sentados nos grossos tapetes que foram colocados sobre a grama. De vez em quando, uma pequena chama iluminava o rosto de al-Zindiq ou de Miguel, sentados no centro da roda. O carvão queimando nos fornos aquecia a todos. Naquela noite, quando o "debate" começou, havia mais de duzentas pessoas.

Essa família — que durante séculos não se preocupou com nada além dos prazeres da caça; da qualidade do escabeche usado pelos cozinheiros para assar o cordeiro, ou das novas sedas que chegaram a Garnata, vindas da China — estava naquela noite enfrentando a História.

Miguel tinha dominado a noite e, no começo, pareceu amargo e cínico. O sucesso da Igreja católica, sua superioridade prática, argumentara ele, se deviam ao fato de que ela não tentava adoçar o sabor amargo de seu remédio. Não adiantava enganar, ela não estava querendo popularidade; não disfarçava seu estilo só para agradar os fiéis. Era desagradavelmente sincera, sacudia o homem pelos ombros e berrava em seus ouvidos:

"Você nasceu em meio a excrementos e continuará vivendo neles, mas podemos perdoá-lo por ser tão porco, tão desprezível, tão repugnante: basta que se ajoelhe e reze todo dia pedindo perdão. Você deve passar sua lamentável e patética existência numa humildade exemplar. A vida continuará sendo um sofrimento. A única coisa que lhe resta é tentar salvar sua alma; se fizer isso e esconder bem a sua insatisfação, poderá ser redimido. Assim e só assim conseguirá que sua vida terrena se torne um pouco menos asquerosa do que no dia em que você nasceu. Só os malditos anseiam ser felizes neste mundo."

Miguel fez então uma pausa e observou sua platéia. As pessoas pareciam estar num transe hipnótico, olhavam para ele encantadas. Com voz calma e suave, levou-os num passeio pelo passado, lembrando não só as glórias do islamismo, mas também as derrotas, o caos, o despotismo dos palácios, as guerras cruentas e a inevitável destruição.

— Se nossos califas e sultões quisessem continuar, teriam mudado a forma como governavam essas terras. Vocês acham que tive prazer em mudar de religião? Até hoje, algumas pessoas da minha família estão zangadas comigo por causa disso, como vocês sabem, mas cheguei a um ponto da minha vida em que não posso mais ocultar a verdade. Amo esta casa e esta aldeia. E porque quero que permaneçam e que todos vocês prosperem, peço, mais uma vez, que pensem seriamente. É tarde, mas, se fizerem o que eu digo, ainda podemos salvá-los. Vocês vão acabar se convertendo, mas então a Inquisição já estará aqui e eles vão investigar todos vocês para saber quem se converteu de verdade e quem é um falso convertido. Uma das metas que eles têm é confiscar as terras de vocês para a Igreja e a Coroa, por isso vão preferir a dúvida.

Não posso obrigá-los a nada, mas aviso: os que virão depois de mim não serão tão gentis como eu.

O que ele tinha a dizer não era muito agradável, mas a maioria das pessoas que estava ali sentiu que estava sendo mais sincera do que os exaltados que queriam entrar em guerra, pois, sob a calma e a imparcialidade da casa senhorial, havia muita tensão.

Alguns aldeões que tinham filhos pequenos foram embora depois dos discursos iniciais, mas Yazid continuava bem desperto e apreciando tudo. Estava sentado ao lado da mãe, aninhado em seu largo manto de lã. Com ele estava a irmã Hind, que tinha, graças às características berberes que herdara do lado materno, mostrado uma veemência que todos apreciavam, menos Yazid. Ela interrompeu o tio-avô várias vezes, riu com ironia quando ele tentou fazer graça e xingou baixo; a brisa notuma transportou sua voz e as mulheres da aldeia a aplaudiram. Miguel reagiu com indignação, embora no íntimo admirasse a coragem de Hind, e declarou alto que gostava muito dela. A reação dela quando o tio disse isso foi característica, só que dessa vez ela foi longe demais e a frase ficou meio inadequada:

— Quando uma serpente diz que me ama, eu a uso como colar.

Ama riu alto, o que surpreendeu Yazid — o menino sabia que ela era totalmente contra a participação de Hind. Mas era só Ama. Embora Miguel não fosse muito popular, esse tipo de grosseria não agradava os aldeões, que achavam uma falta de hospitalidade para com o filho de Ibn Farid. A comparação com uma serpente transtornou o tio-avô: o comentário maldoso fez com que ele não conseguisse evitar que seus olhos se enchessem de lágrimas. Ver o tio em lágrimas, por sua vez, transtornou Omar, que fez um sinal para sua mulher do outro lado do aquecedor a carvão. Zubaida entendeu imediatamente o sinal e segredou para Hind uma ordem: se não controlasse sua língua, corria o risco de ser casada com o humilde Juan, filho de Miguel. A chantagem deu resultado. Hind se aproximou de Miguel e desculpou-se, falando baixo em seu ouvido. Ele sorriu e balançou a cabeça, aceitando. A paz voltou, o café foi servido.

Hind não estava nem um pouco nervosa, já que tinha dado sua opinião com toda clareza para o grupo e, em particular, para o estrangeiro que também participava.

Ibn Daud, o precioso rapaz de olhos verdes vindo de al-Qahira e objeto de seu afeto, estava distraído, pensando. Ibn Daud estava interessado por Hind antes até de Yazid deixar escapar o segredo da irmã. Ele se encantou com sua fala calorosa e forte, seu jeito turbulento, mas naquela noite ele estava atento ao debate. Sorriu com o ataque insolente que ela fez ao tio-avô, mas foram as reflexões sensatas de al-Zindiq que o deixaram preocupado.

Al-Zindiq tinha, ao contrário de Miguel, zombado das crenças e superstições cristãs. Zombou também da velha Igreja por sua inabilidade em resistir às pressões pagãs.

Por que então transformar Isa num deus e a mãe dele num objeto de devoção? O profeta Maomé, por outro lado, tinha conseguido vencer essas mesmas pressões, resistido à tentação e desautorizado a devoção de três deusas. Era só isso que al-Zindiq estava disposto a discutir naquela noite com seus correligionários. Ele não defendeu o islamismo com o vigor que o fez conhecido e que se esperava dele naquela noite. Era um homem honesto demais para contradizer as afirmações de Miguel, que considerava incontestáveis. Ele tentou entusiasmar sua platéia lembrando que a estrela que sumia de um firmamento podia surgir em outro. Descreveu as vitórias muçulmanas em Istambul com detalhes tão minuciosos que um arrepio de orgulho percorreu toda a platéia. Quanto à decadência de al-Andaluz, não deu muita importância às coisas que muitos acreditavam.

— Lembram — perguntou — a história do sultão de Tlencen com o santo? O sultão vestiu seus trajes mais extravagantes para receber Abu Abdala al-Tunisi. "Posso rezar vestido com esses finos trajes?", perguntou a seu emérito visitante. Abu Abdala riu e explicou com essas palavras por que achou graça:

"Estou rindo, ó orgulhoso sultão, por causa da fragilidade do seu intelecto, sua ignorância e seu deplorável nível intelectual. Para mim, o senhor é como um cão cheirando o sangue de uma carcaça e comendo porcaria, mas que levanta a perna quando urina para que o líquido não molhe seu corpo. Pergunta sobre seus trajes quando tantos homens sofrem por sua causa."

O sultão começou a soluçar. Ele abdicou do cargo e passou a ser um seguidor do Santo.

Al-Zindiq terminou sua história em meio a gritos de "por Alá" e com algumas pessoas dizendo que, se todos os reis muçulmanos de al-Andaluz tivessem agido assim, os seguidores do Profeta não estariam agora no estado deplorável em que se encontravam. Era essa a reação que al-Zindiq queria, e ele então falou com toda sinceridade: — Parece uma boa idéia, mas será que a religião teria nos salvado? Não creio. Nenhuma religião consegue mudar os métodos usados pelos reis, a menos que ela se baseie em algo mais, em algo que nosso grande mestre Ibn Caldun chamou de solidariedade. Nossas derrotas são conseqüência de nosso fracasso em preservar a unidade de al-Andaluz. Deixamos o califato acabar e em seu lugar permitimos que crescessem sementes venenosas que acabaram cobrindo cada centímetro de nosso jardim. Os grandes senhores avançaram sobre al-Andaluz e a dividiram entre si. Cada um deles virou um peixe graúdo num pequeno lago, enquanto os reinos cristãos eram reformados da forma exatamente inversa. Fundamos muitas dinastias, mas não conseguimos encontrar uma forma para governar nosso povo de acordo com os ditames da razão. Não conseguimos estabelecer leis políticas, que podiam ter protegido todos os nossos cidadãos dos caprichos de governantes arbitrários. Nós, que ditamos ao resto do mundo tudo o que diz respeito à ciência, à arquitetura, à medicina e música, à literatura e à astronomia, nós que éramos um povo privilegiado, não conseguimos encontrar o caminho para a estabilidade e um governo fundamentado na razão. Foi essa a nossa fraqueza e os cristãos da Europa aprenderam com nossos erros. Foi essa — e não o estilo de vestir de nossos reis — a maldição do islamismo aqui. Sei que alguns de vocês acham que o sultão de Istambul vai mandar ajuda. Não acredito, meus amigos. Acho que os turcos vão tomar o Oriente e nos deixar em paz para sermos devorados pelos cristãos.

Omar ficou muito impressionado com o que Miguel e al-Zindiq disseram, mas estava exausto. Preocupado com problemas mais prementes que diziam respeito à sua família, não conseguiu prestar muita atenção nos acontecimentos daquela noite. Ele queria terminar o encontro, mas alguns costumes tinham assumido uma força quase de lei religiosa e passado a integrar as regras do debate. Com uma voz que parecia querer dizer ao contrário, Omar perguntou se alguém mais gostaria de falar. Para seu grande desapontamento, um velho tecelão se levantou.

— Que a paz esteja contigo e que Deus o conserve e à sua família, Omar bin Abdala — começou o tecelão. — Ouvi tanto Sua Excelência o bispo de Curtuba quanto Ibn Zaidun, que prefere se chamar al-Zindiq, com muita atenção. Não tenho o mesmo conhecimento que eles, mas quero observar só uma coisa. Acho que nossa derrota aconteceu nos primeiros cem anos depois que Tarik ibn Ziad apeou na pedra que hoje tem o seu nome. Quando dois de nossos generais chegaram às montanhas que os francos chamam de Pireneus, eles foram até o topo e olharam para baixo, para a terra dos gauleses. Depois se entreolharam. Não disseram uma só palavra, mas os dois generais pensaram a mesma coisa. Se queriam defender al-Andaluz, tinham de proteger o país dos francos. Tentamos. Sim, nós tentamos. Conquistamos muitas cidades, mas o conflito mais importante de nossa História foi o que juntou nossos exércitos e os de Charles Martel, fora dos muros da cidade que chamam de Poitiers. Nesse dia, perdemos a oportunidade de ganhar o reino franco e perdemos também al-Andaluz, embora poucos admitam isso até hoje. A única forma de salvar esta terra para nosso Profeta seria construir uma mesquita em Notre Dame. Era tudo o que tinha a dizer.

Omar então agradeceu efusivamente o tecelão por chamar a atenção de todos para entender melhor o impasse que ora enfrentavam e desejou que os presentes tivessem uma noite feliz.

Quando as pessoas começaram a se dispersar, Ama pegou Yazid pela mão e o levou para dentro de casa, mas antes notou o grande número de homens que cumprimentava Miguel com um entusiasmo invulgar. Entre eles, seu irmão natural Ibn Hasd e, quando os dois homens ficaram lado a lado, Hind mais uma vez se surpreendeu ao reparar como, de perfil, eles eram parecidos. Zubaida ficou à saída ao lado do marido, cumprimentando os homens e mulheres da aldeia.

Ao contrário do pai e do avô, a relação que Omar mantinha com os camponeses e tecelões cujas famílias viviam em Hudayl era cordial, até amistosa. Ele comparecia aos casamentos e enterros, sabia o nome deles e quantos filhos tinha cada família, o que os surpreendia e agradava. "Este amo é um amo", disse uma vez um tecelão para a mulher. "Não há dúvida. Ele vive do nosso trabalho como seus antepassados, mas é um amo decente."

Nessa noite não houve oportunidade para essas gentilezas. Omar estava impaciente. Falou pouco durante o debate e agora estava ansioso para que todos fossem embora para suas casas. Zubaida tinha dito durante a refeição da noite — servida mais cedo para não atrapalhar o encontro — que o filho mais velho deles estava metido num negócio tão temerário quanto insensato e ela estava com medo de que ele morresse. Soube por intermédio das criadas que viviam na aldeia que Zuair estava convocando jovens para "a batalha". Zuair não foi à reunião e, quando procuraram saber onde estava, o cavalariço informou que ele tinha selado seu corcel preferido, mas que não tinha a menor idéia de aonde tinha ido. Só sabia que Zuair al-Fal tinha levado dois lençóis. Quando o cavalariço saiu da sala, Hind não conseguiu evitar um sorriso. Bastou isso para Omar entender tudo.

— Cão grosseiro! Seu tio-avô discute com seu grande amigo Ibn Zaidun sobre assuntos da maior importância para a família dele, sua fé, nosso futuro, e onde está nosso cavaleiro? Ocupado nalguma colina, emprenhando uma maldita criada.

De dentro de casa, Zuair observou as pessoas se despedindo e lastimou não estar presente nessa ocasião tão importante. Estava se sentindo satisfeito e, ao mesmo tempo, com um pouco de raiva por sua falta de disciplina e sua afinidade com o reino animal, mas..., mas, pensou quando se lembrou do que fez. Umaima era tão diferente daquelas prostitutas pintadas de Garnata que tinham a carne tocada a cada hora do dia e da noite. Umaima fazia com que ele se sentisse irresponsável. Ela excitava sua sensualidade, não esperava nem exigia nada mais. Se não a tivesse procurado aquela noite, podia nunca mais vê-la. Dentro de três meses ela se casaria com Suleiman, o tecelão careca e vesgo que produzia a melhor seda da aldeia, mas que não podia competir com ele, Zuair al-Fal, nos artesanatos que realmente interessavam.

— E então? — disse Omar, surpreendendo seu filho.

— Onde estava? Faltar à refeição não teve importância, mas não ir ao debate numa hora dessas? Sua ausência foi notada. Ibn Hasd e Suleiman, o tecelão, perguntaram sobre sua saúde!

— A paz esteja contigo, meu pai — murmurou Zuair, tentando não demonstrar seu mal-estar.

— Saí com amigos. Não fizemos nada de mais, garanto.

Omar olhou para o filho e não conseguiu conter um sorriso. O rapaz não era um bom mentiroso. Tinha os olhos castanhos e brilhantes da mãe e, quando ficou de frente para ele, Omar sentiu uma grande emoção. Houve tempo em que foram bem próximos. Foi Omar quem ensinou Zuair a montar e caçar, Omar quem o levou para nadar no rio. O rapaz costumava acompanhar o pai na corte, no alHamra. Naquele momento, ele sentiu que tinha largado o rapaz sozinho por muito tempo, principalmente depois que Yazid nasceu. Como os dois filhos eram diferentes e como amava a ambos!

Omar procurou uma das almofadas da sala e afundou-se nela.

— Sente-se, Zuair. Sua mãe me disse que você está fazendo planos. Quais são?

O rosto de Zuair ficou muito sério. De repente, parecia muito mais velho do que a idade que tinha.

— Vou embora, pai. Amanhã cedo. Queria me despedir de todos esta noite, mas Yazid está dormindo e não quero sair sem abraçá-lo. Vou para Garnata. Não podemos deixar que os padres nos enterrem vivos, temos de agir agora, antes que seja tarde. Os planos para um levante estão a caminho. Será um duelo com o cristianismo, pai.

Melhor morrer lutando do que viver como um escravo.

O coração de Omar começou a bater mais forte. Ele teve uma visão: uma luta com os soldados do capitãogeral. Confusão, espadas empunhadas, tiros no ar e seu Zuair jaz no chão com um furo na cabeça.

— É um plano insano, meu filho. Muitos desses jovens que fazem discurso nos balneários de Garnata vão sair correndo assim que virem os castelhanos. Deixe eu terminar de falar. Tenho certeza de que você vai encontrar algumas centenas de rapazes para lutar a seu lado. A história está cheia de jovens insensatos se embriagando com a religião e correndo para lutar com os infiéis. É muito mais simples beber veneno debaixo de uma árvore à beira do rio e morrer em paz. E melhor ainda é viver, meu filho.

A cabeça de Zuair estava cheia de dúvidas, mas sabia que não devia dizer para o pai. Ele realmente não queria discutir o plano que ele e seus amigos estavam tramando desde que houve a fogueira no Bab al-Ramla. Seu rosto continuou muito sério.

— Ao contrário do que imagina, pai, não tenho muita esperança de que nosso levante tenha sucesso, mas é preciso.

— Por quê?

— Para que as coisas continuem as mesmas em nosso reino de Garnata. Está ruim, mas é melhor que continuem assim do que sermos dominados pelos animais de Torquemada, que eles chamam de padres e representantes. Se nosso último sultão, que Deus o amaldiçoe, não tivesse se rendido sem lutar, as coisas podiam ser diferentes. Isabel nos trata como cães danados. Nossa reação vai mostrar a eles e aos outros da nossa fé nesta península que vamos morrer de pé, não de joelhos, e que ainda existe alguma vida sob as ruínas de nossa civilização.

— Idiota, menino idiota!

— Pergunte a Ibn Daud o que ele viu em Saracusta e em Balancia quando estava a caminho de Garnata. Todo muçulmano que escapou dos cristãos conta a mesma coisa.

Omar não pôde evitar de sentir um grande e indisfarçável orgulho do filho. Ele tinha subestimado Zuair.

— Do que está falando, rapaz? Não dá para entender, você está falando por enigmas.

— Estou falando da cara dos padres quando saem para supervisionar a tortura de inocentes e a produção de órfãos nas masmorras da Inquisição! Se não lutarmos agora, tudo vai desabar, pai. Tudo!

— Talvez tudo vá desabar de todo jeito, quer você lute ou não.

— Talvez. Omar sabia que, no fundo, Zuair estava atormentado por dúvidas. Ele estava solidário com a incerteza do filho. Depois de falar na mesquita e bazofiar vitórias futuras junto aos amigos, o rapaz se sentiu preso numa armadilha e Omar estava decidido a impedir que seu filho fosse embora.

— Você ainda é jovem, Zuair. Na sua idade a morte parece uma ilusão. Não vou permitir que desperdice sua vida. Pode me acontecer alguma coisa, agora que me convenci de que é impossível me converter. Se acontecer alguma coisa comigo, quem vai cuidar de sua mãe e de suas irmãs? Yazid? Eles tiraram nosso poder e nossa autoridade, mas as propriedades ainda estão intocadas. Podemos desfrutar nossa riqueza em paz e com dignidade. Por que al-Hudayl haveria de perturbar os castelhanos? Eles estão interessados num novo mundo, com montanhas de prata e ouro. Eles nos venceram e é bobagem resistir. Proíbo que você vá!

Zuair nunca tinha participado de uma batalha de verdade. Sua única experiência fora no treinamento intensivo nas artes marciais, quando rapaz. Era um ótimo esgrimista e todos sabiam das incríveis proezas que era capaz de fazer montado num cavalo, bastava lembrar sua participação nos torneios em Garnata no dia do aniversário do Profeta. Mas ele tinha de admitir que ainda não digladiara com um inimigo.

Vendo o rosto severo do pai, Zuair entendeu que aquela era sua última oportunidade para mudar de idéia. Bastava que avisasse seus companheiros de conspiração que o pai tinha proibido que ele saísse de casa. Omar era muito respeitado e todos entenderiam. Ou não? Zuair não suportaria que um de seus amigos ousasse acusá-lo de covarde. Mas não era só isso que o preocupava. Zuair não acreditava que al-Hudayl estaria segura enquanto Ximenes dominasse Garnata. Quanto a isso, ele tinha a impressão de que Omar estava perigosamente desinformado sobre os acontecimentos.

— Abu — disse Zuair com calma-, o que mais me interessa é a segurança de nossa casa e de nossas propriedades. É por isso que tenho de ir e estou preparado. Se você mandar eu ficar, contra minha vontade e minha opinião, claro que vou obedecer, mas ficarei infeliz e quando fico infeliz, Abu, penso na morte como um consolo.

"Será que você não vê que os padres vão acabar com tudo? Mais cedo ou mais tarde eles vão chegar a al-Hudayl. Eles querem transformar al-Andaluz em um deserto.

Querem queimar nossa memória. Então como vão permitir que um só oásis continue existindo? Não me obrigue a ficar. Você tem de entender que desejo a única solução para salvar nossa casa e nossa fé.

Omar não estava convicto e a discussão continuou durante horas, com Zuair cada vez mais irredutível. Finalmente, Omar sentiu que seu filho não podia ficar em casa contra a vontade. Seu rosto se suavizou e Zuair entendeu imediatamente que tinha vencido a primeira batalha. Conhecia o temperamento do pai: quando concordava com uma coisa, sossegava e não dizia mais nada.

Os dois homens levantaram. Omar abraçou o filho e o beijou nos dois lados do rosto. Depois, foi até uma grande arca e tirou um estojo de prata delicadamente entalhado, onde estava a espada de Ibn Farid. Pegou a arma com as duas mãos, colocou-a sobre a cabeça de Zuair e entregou-a. — Se tem de lutar, melhor que seja com uma arma usada e testada em muitas batalhas.

Os olhos de Zuair se umedeceram.

— Venha -— disse Omar bin Abdala.

— Vamos dar a notícia para sua mãe. Carregando com orgulho a espada que pertenceu ao avô, Zuair acompanhou o pai pelo pátio interno, onde encontraram Miguel e Zara. Quatro vozes diferentes disseram em coro: — A paz esteja contigo. Miguel e Zara viram a espada do pai e entenderam tudo. — Que Deus te proteja, filho — disse Zara, beijando-o no rosto.

Zuair não respondeu e olhou espantado para aquela estranha dupla. O encontro o perturbara, mas o pai deu uma palmadinha no ombro dele e eles seguiram. Não durou mais que poucos segundos; Zuair achou que era um mau presságio.

— Será que Miguel...? — começou a perguntar ao pai, que negou com um gesto da cabeça.

— Nem pense nisso — murmurou. — Seu tio-avô Miguel jamais colocaria a Igreja à frente de sua própria família.

Zara e Miguel ficaram por alguns instantes parados, como sentinelas em guarda. Eram remanescentes de uma geração que tinha deixado de existir. Acima deles, o céu estava cheio de estrelas, mas nem elas nem a solitária lamparina na parede, à entrada da sala de banho, forneciam muita luz. Nas sombras da noite, com seus corpos encurvados cobertos por espessos xales de lã, eles pareciam um par de mirrados pinheiros castigados pelo tempo. O bispo quebrou o silêncio.

— Temo pelo pior. Zara ia dizer algo quando Hind e Ibn Daud, acompanhados de três criados, entraram no pátio. Não perceberam a presença da velha senhora, nem de Miguel. O jovem cumprimentou curvando-se e ia para seu quarto quando ouviu um chamado.

— Ibn Daud! Hind respondeu no lugar dele. — Por Alá! Você me deu um susto, tio-avô. Que a paz esteja contigo, tia-avó.

— Venha — disse Miguel para Ibn Daud -, me acompanhe até meu quarto, que fica ao lado de onde você dorme. Nunca pensei que um dia ficaria nesta casa nos cômodos reservados aos hóspedes. — Bobagem — disse Zara. — Onde é que iam colocar você? Na estrebaria? Hind, preciso que me faça uma massagem esta noite. O frio está devorando meus ossos e sinto uma dor no peito e nos ombros.

— Claro, tia-avó — disse Hind, dispensando as criadas com um gesto e olhando com ternura o jovem de olhos verdes que acompanhava o bispo pelo corredor que ligava o pátio a uma série de quartos anexados à casa por Ibn Farid. Lá os cavaleiros cristãos que estavam em visita eram recebidos e assistiam a espetáculos noturnos realizados em homenagem a eles.

Que estranho, pensou Zara, esta menina que conheço tão pouco e acaba de completar dezoito anos me lembra tanto a minha juventude. O pai ainda a considera uma flor em botão. Como ele está enganado, como todos os pais se enganam e continuarão se enganando. Ela é uma flor aberta, como as flores da laranjeira que florescem na primavera e cujo perfume estimula os sentidos. Como se quisesse confirmar o que pensava, Zara colocou uma almofada sob a cabeça e olhou a sobrinha-neta, que estava massageando firme e suavemente os dedos de seu pé esquerdo. Apesar da luz fraca da lamparina, a pele de Hind, que costumava ter a cor de mel selvagem, estava ruborizada e viçosa. Os olhos brilhavam e seus pensamentos estavam longe. Eram os sintomas de sempre.

— Ele também gosta de você? O inesperado da pergunta assustou a moça.

— De quem está falando, tia-avó?

— Ora, filha, você não costuma ser tão ingênua. Está escrito no seu rosto. Eu estava pensando que você estava agitada pelo que aconteceu durante a noite. Miguel me disse o que você falou. Ele não está aborrecido — admira-aa pelo que disse -, mas você já esqueceu tudo, não foi? Onde é que esteve depois?

Hind, ao contrário de sua irmã mais velha Cultum, que era calma e contida, tinha um temperamento que não conseguia disfarçar o que sentia. Com nove anos ela chocou um erudito religioso de Ixibilia, primo da mãe dela, quando duvidou da interpretação que ele fazia do Alcorão. O teólogo estava condenando como "proibidas" todas as diversões que os nobres muçulmanos se permitiam e argumentava que foi essa irresponsabilidade que causara a decadência de al-Andaluz. Hind o interrompeu de uma forma inesquecível, ainda lembrada com prazer pelo Anão e seus amigos da aldeia.

— Tio — a menina perguntou com um sorriso terno, completamente inadequado para o que vinha a seguir.

— Nosso Profeta, que a paz esteja com ele, não disse uma vez num hadith jamais questionado que os anjos só gostavam de três passatempos?

O teólogo, enganado pelo sorriso e encantado pelo fato de alguém tão jovem entender das escrituras, cofiou a barba e perguntou, interessado:

— E quais eram esses passatempos, minha jovem princesa? — Ora, a corrida de cavalo, o tiro ao alvo e o ato sexual, claro! O tio de Ixibilia engasgou com a comida que, até então, apreciava com gosto. Zuair pediu licença e foi rir na cozinha; Zubaida não conseguiu disfarçar uma risada e Omar teve de mudar o assunto, o que conseguiu com certa elegância. Só Cultum ficou quieta e ofereceu ao tio um copo d'água. Por alguma razão, este gesto causou grande impressão no erudito. Era com o filho dele que Cultum iria se casar no mês seguinte.

Zubaida contou o acontecido para Zara. A velha senhora riu e, lembrando-se disso agora, sorriu para a sobrinha-neta.

— Minhas orelhas estão ansiosas, menina! Até então Hind não tinha ousado confiar seu segredo para ninguém a não ser sua criada preferida, por isso estava louca para desabafar com alguém da família. Resolveu contar tudo para Zara. Seus olhos voltaram a sorrir.

— Foi desde o primeiro dia, tia-avó. Desde o primeiro dia que o vi, sabia que eu não queria nenhum outro homem.

Zara sorriu e concordou, pensativa.

— O primeiro amor pode não ser o melhor, mas costuma ser o mais forte.

— O mais forte e o melhor! Tem que ser o melhor! Os olhos de Hind brilhavam como lamparinas ao descrever a chegada de Ibn Daud a al-Hudayl e a boa impressão que causara em toda a família. O pai imediatamente se sentira apegado ao jovem erudito e ofereceu-lhe o cargo de preceptor particular da família. Todos assistiram à primeira palestra dele. Ibn Daud explicou a filosofia de Ibn Caldun conforme a interpretação dada na universidade de al-Qahira. Zubaida perguntou como as teorias de Ibn Caldun podiam ajudar a entender o drama de al-Andaluz.

"Pedras soltas", respondeu ele, "jamais podem fazer um muro firme de uma cidade."

— Hind — pediu Zara.

— Estou velha demais para acompanhar todos os detalhes. Aceito sem discutir que o rapaz é inteligente e atraente, mas, se você continua assim, posso não estar viva quando acabar de contar! O que aconteceu esta noite, depois do debate? — Papai estava preocupado com Zuair e eu já tinha percebido que a família inteira tinha sumido para dentro de casa. Fui até Ibn Daud, disse que precisava de ar fresco e pedi para ele dar uma volta comigo.

— Você pediu?

— Sim, pedi. Zara jogou a cabeça para trás e riu. Depois, pegou o rosto de Hind com as duas mãos enrugadas e fez um carinho.

— O amor pode ser uma serpente disfarçada de colar, ou um rouxinol que se recusa a parar de cantar. Por favor, continue.

E Hind contou como uma criada iluminou o caminho com uma lamparina e mais duas os acompanharam a uma distância discreta até chegarem ao pomar de romãzeiras.

— O pomar de romãzeiras? — perguntou Zara baixinho, tentando controlar as batidas de seu coração. — As árvores que são vistas pouco antes da casa, quando uma pessoa vem da aldeia? E quando você deita no chão elas ainda parecem uma tenda de romãs, com uma janela redonda no alto? E quando você abre os olhos por essa janela, as estrelas ainda bailam no céu?

— Não sei, tia-avó. Não tive a oportunidade de deitar no chão.

As duas se olharam e riram.

— Nós conversamos — continuou Hind — sobre a nossa casa, a aldeia, a neve nas montanhas, a próxima primavera e, depois que esgotamos todos os assuntos de praxe, ficamos calados e nos olhamos. Parecia ter passado um ano até ele falar. Pegou minha mão e murmurou que me amava e então as criadas começaram a tossir alto. Avisei-as que, se tossissem de novo, ia mandá-las para a Inquisição para que fossem assadas vivas. Assim poderiam tossir até o inferno. Olhei bem nos olhos dele e confessei que o amava, peguei seu rosto nas mãos e beijei-o nos lábios. Ele disse que ia falar com meu pai e pedir minha mão em casamento no dia seguinte. Falei que tomasse cuidado. Era melhor que eu preparasse o caminho primeiro. Quando voltamos, senti meu corpo doendo e vi que era de desejo por ele. Propus ir ao quarto dele esta noite, mas ele quase desmaiou quando eu disse isso. "Sou convidado de seu pai. Por favor, nem pense que eu possa abusar da hospitalidade dele e trair sua confiança. Seria uma vergonha." Graças a Deus que você está aqui, tia-avó Zara. Eu não agüentava mais esse segredo.

Zara sentou na cama e abraçou Hind. Sua vida passou como num clarão e fez com que sentisse um arrepio. Ela não queria que aquela menina, no começo da vida, cometesse os mesmos erros, ficasse marcada pelas mesmas feridas. Ela ia falar com Omar e Zubaida em nome do jovem casal. O rapaz era pobre, mas os tempos tinham mudado.

Depois, ela só fez animar a sobrinha-neta: — Se você gosta dele, então não o perca. Não quero que daqui a cem anos venham falar de um jovem de olhos verdes que vagou por essas montanhas, desolado e triste, confiando às aguas do rio seu desejo por uma mulher chamada Hind.

"Veja, minha filha. Até hoje carrego um peso no coração por causa de uma grande paixão que tive. Ela me consumiu até que nada mais restou e comecei a abrir as pernas para qualquer caballero que quisesse entrar pelo meio delas, sem me importar se eu gostava dele ou não. Foi a forma que encontrei para destruir todo o sentimento que havia dentro de mim. Quando me encontraram nua na estrada para Curtuba, resolveram me mandar para o maristan em Garnata. Não cometa os mesmos erros que eu.

É melhor você fugir com esse rapaz e descobrir daqui a seis meses que ele só queria desfrutar esses dois pêssegos do seu corpo do que aceitar a proibição de seus pais. No primeiro caso, você vai ficar mal durante alguns meses, talvez um ano. No segundo, você vai ficar desesperada, e o desespero envenena a alma. É a pior coisa do mundo. Vou conversar com sua mãe e seu pai. Os tempos mudaram, mas, de todo jeito, seu Ibn Daud não é filho de uma criada da casa. Agora vá para seu quarto e sonhe com seu futuro.

— Vou, tia-avó, mas gostaria de perguntar uma coisa, se a senhora me permite.

— Pergunte!

— Contam na aldeia que o tio-avô Miguel...

— Ah, sim, aquela velha história sobre a filha do tecelão! Não é segredo. Qual o problema?

— Nenhum, isso nunca foi segredo mesmo. O que eu queria perguntar era se é verdade o boato de Miguel com a mãe, a Sra. Asma.

Zara fechou os olhos com força, esperando que a escuridão diminuísse a lembrança dessa dor que Hind queria reviver. Aos poucos, seu rosto ficou menos tenso e as pálpebras se abriram.

— Não sei. Eu já tinha sido expulsa desta casa e estava morando em Curtuba na época. Nós costumávamos chamar Asma de "mãezinha", o que fazia todos rirem, até Ibn Farid. Fiquei muito preocupada quando soube que Asma tinha morrido. Meecal? Miguel? — Zara deu de ombros.

— Mas, tia-avó... — começou Hind. A velha senhora fez um gesto para que ela se calasse.

— Ouça bem o que vou dizer, Hind bint Zubaida. Eu nunca quis saber, os detalhes não me interessam. Asma, de quem eu gostava como se fosse uma irmã, não ia viver de novo. Nem a mãe de Ibn Zaidun. Talvez tenha havido o que eles dizem, mas só três pessoas sabiam o que realmente aconteceu. Duas estão mortas e não acredito que alguém tenha perguntado alguma coisa para Meecal. Pode ser que, quando ele se converteu, tenha contado toda a verdade no confessionário, e nesse caso uma terceira pessoa compartilha o segredo. Que diferença faz hoje? Claro que, quando você for adulta, vai ouvir de outras tragédias que atingiram outras famílias, ou outros ramos de nossa família. Lembra-se daquele primo de sua mãe, de Ixibilia?

O rosto de Hind estava assustado.

— Tem de lembrar! Aquele primo muito religioso de Ixibilia, que ficou surpreso ao ver como você conhecia o hadith?

— Aquele? — perguntou Hind fazendo um sorriso em forma de careta.

— Ibn Hanif, o futuro sogro de Cultum! Que fim levou?

— Se algum dia eles vierem comentar sobre a pobre Asma, querendo humilhar nossa Cultum, você pode perguntar quem é o verdadeiro pai de Ibn Hanif. Certamente não é Hanif.

Cada poro do corpo de Hind agora estava alerta. Essa revelação inesperada fez com que ela até esquecesse Ibn Daud por alguns segundos.

— Conte, tia! Por favor!

— Contarei, mas você só vai dizer para Cultum se achar que ela precisa saber. Promete?

Hind concordou, ansiosa.

— O pai de Ibn Hanif é pai de sua mãe também. Ninguém na família achou que era preciso matá-lo. Acho até que Ibn Hanif nem sabe disso.

Como ia saber? O pai e a mãe dele levaram o segredo com eles quando morreram. Mas os criados antigos da casa sabiam. Criados sabem de tudo, foi assim que a história chegou a esta casa.

Hind estava perplexa com a notícia. No caso de Asma, a morte serviu pelo menos para explicar as coisas, mas em Ixibilia...

— Estou cansada, filha, preciso dormir — disse Zara, pedindo para ela sair. Hind, vendo que era inútil insistir no assunto, levantou-se da cama, inclinou-se e beijou o rosto enrugado de Zara.

— Que a paz esteja contigo, tia-avó. Durma bem. Depois que a moça saiu, Zara foi invadida pelas lembranças de sua juventude. Era difícil haver um só dia sem que um fato do passado surgisse em sua memória. Na calma sinistra do maristan em Garnata, ela havia se concentrado nos três ou quatro anos felizes de sua vida — aqueles que queria recordar e até deixar escritos para lembrá-los bem. Mas três dias antes de voltar para a aldeia dos Banu Hudail, ela queimara tudo fazendo uma reprodução em menor escala da fogueira de Ximenes no mercado. Fizera isso por achar que sua vida não tinha grande interesse para ninguém, a não ser para ela mesma, que estava perto de morrer. Não percebeu que, ao destruir o que achava que eram lembranças cristalizadas de sua vida, também estava condenando à escuridão das chamas o raro relato de uma vida.

Ela ficou realmente feliz em voltar para sua antiga casa e encontrar Omar e sua família morando lá. Durante décadas ela reprimira suas emoções, evitando qualquer contato com a família, por isso agora estava coberta de carinho. Mas, quando ficava sozinha, se assustava com os sofrimentos que passou na vida.

Como, por exemplo, o encontro com Ibn Zaidun no jantar aquela noite. Ela não tinha conseguido evitar que seu coração se agitasse como um pássaro na gaiola, exatamente como na primeira vez que o viu, muitos anos antes. Quando a família discretamente os deixou a sós tomando seu chá de hortelã, ela não conseguiu ficar à vontade.

Nem quando ele falou com aquela mesma voz — que ela jamais deixou de ouvir e que não tinha mudado -, dizendo que toda semana escreveu uma longa carta para ela, desde que se separaram. Ela ouviu, mas continuou estranhamente distante. Era aquele o homem por quem ela destruíra toda a sua vida?

Ele percebeu o desinteresse dela e então se ajoelhou para dizer que nunca tinha deixado de amá-la, nunca mais olhara para outra mulher, todo dia ficava triste durante uma hora. Zara não se comoveu. Ela percebeu que ainda sentia a amargura e a raiva por causa da covardia de al-Zindiq anos atrás, por preferir continuar sendo filho de uma doméstica a ascender a outra classe social. Enquanto esteve no maristan, ela trocou esse ressentimento por lembranças mais agradáveis, dos dias do romance turbulento e proibido que tiveram. Mas o ressentimento continuou aumentando — a ponto de agora não sentir mais nada por aquele homem. Essa conclusão a agradou.

Durante muitos anos ela se intoxicou com o veneno do amor, mas tinha se libertado. "Fico imaginando", pensou, "o que teria acontecido se tivéssemos nos reencontrado vinte anos atrás. Será que eu me livraria dele com tanta facilidade?"

Ibn Zaidun sabia que sua relação-fantasma tinha acabado e, quando se despediu e saiu, viu a frieza nos olhos dela, que o fez sentir-se vazio e triste. "Nesta maldita casa", pensou, "sou mais uma vez apenas o filho de uma mulher que trabalhava para eles e foi morta por tentar ajudar." Foi a primeira vez que sentiu isso ao lado dela.

Zara abriu as fivelas que prendiam seu cabelo branco como a neve, que se desenroscou feito uma cobra e caiu até o meio de suas costas. Ela fez questão de estar muito bem arrumada naquela noite e o resultado agradou a todos. Riu ao lembrar e tirou o broche de diamante que prendia seu xale e que tinha sido presente de Asma.

Algum bobo tinha dito que seu uso perto da pele curava todas as loucuras.

Adorável, infeliz Asma. Zara se lembrava do dia em que a nova mulher do pai chegara de Curtuba. Ela e Abdala estavam curiosos quando foram para a entrada da casa no pátio externo, segurando com força a mão da irmã da mãe, a esposa substituta que eles achavam que Ibn Farid tinha ofendido quando arrumou uma concubina cristã.

A primeira impressão que tiveram de Asma foi surpreendente. Ela parecia muito jovem e inocente. Tinha altura média, mas um corpo bonito e bem-proporcionado. rosto casto contrastava com um corpo sensual. Sua pele era suave como o leite, mas tinha a cor dos pêssegos, e a boca parecia ter sido pintada com o suco da romã.

Sob os fartos cabelos negros como as penas de um corvo, havia um par de olhos castanhos e tímidos, quase assustados. Todos entenderam por que Ibn Farid tinha se enrabichado por ela.

— Como você foi gostar do meu pai? — Zara perguntou a ela alguns anos depois, pouco antes de Meecal nascer, quando já eram muito amigas. A velha senhora sorriu ao lembrar como, com essa pergunta, ela riu como um sino tocando. O rosto de Asma, marcado por covinhas, finalmente voltou à expressão calma, normal.

— Quer saber? — perguntou ela. — Quero, quero! — gritou Zara, imaginando uma descrição muito sensual.

— Eu gostei do jeito como ele peidava. A primeira vez que ele fez isso, fiquei à vontade, como se estivesse na cozinha onde minha mãe trabalhava. Gostei dele por isso. — O susto de Zara foi substituído por uma risada incrédula. Sem perceber, Asma tinha humanizado a enorme e ameaçadora figura de Ibn Farid.

Zara tirou a colcha forrada com lã de carneiro e cobriu-se com sua seda preferida. O sono não vinha. Era como se aquele derradeiro ato de expulsar Ibn Zaidun de sua lembrança tivesse deixado espaço para todas as outras pessoas entrarem. O pai apareceu na frente dela. Não como o altivo senhor de personalidade dominadora, ordenando que ela o obedecesse e abandonasse seu amante se não quisesse ser castigada, mas como um gigante amistoso e engraçado, ensinando-a a montar a cavalo para que pudesse apostar corrida com Abdala. Como ele foi paciente e como ela o adorava. Na mesma semana, ele ensinou tiro ao alvo. Ela ficou com os ombros doídos durante uma semana inteira e ele achou graça. Depois Miguel nasceu e Ibn Farid, encantado com o filho do seu amor, largou Abdala e Zara. Quem sabe, pensou ela, se não os tivesse deixado assim, eu podia não me ter apaixonado por Ibn Zaidun e Abdala podia não ficar tão obcecado com corridas de cavalo.

De repente, surgiu em sua lembrança uma jovem. Zara não lembrava quem era, mas era bem conhecida. Tem a testa de Abdala e os olhos dela, Zara. Deve ser a mãe deles e Zara grita para a Morte: "Esperei tanto você chegar. Você já vem, por que não agora? Não agüento mais esperar!"

— Tia Zara, tia Zara! Ela abriu os olhos e viu o rosto nervoso de Zubaida.

— Quer alguma coisa? Zara sorriu e balançou a cabeça, negando. Depois lembrou algo, pegou o broche de diamante e o entregou para Zubaida.

— Estou morrendo. Isto é para sua filha Hind. Veja se o rapaz de al-Qahira gosta mesmo dela e deixe que se casem. Diga a Omar que foi o último desejo da tia dele.

— Quer que eu chame tio Miguel? — perguntou Zubaida, enxugando as lágrimas.

— Deixe-o dormir em paz. Ele ia querer me dar os últimos sacramentos, mas quero morrer muçulmana. Diga a Amira para me lavar bem, como fazia antigamente.

Zubaida segurou as pernas e os pés de Zara.

— Você não está morrendo, tia Zara. Seus pés estão quentes como brasas. Já se viu alguém morrer com os pés quentes?

— Como você é ingênua, Zubaida — disse a tia com uma voz débil. — Nunca ouviu falar dos pobres inocentes que estão sendo queimados na estaca?

O susto que Zubaida levou fez com que Zara risse. Era contagioso, e riram juntas. De repente, o riso sumiu e a vida também. Zubaida puxou a velha senhora para seu colo e abraçou-a.

— Ainda não, tia Zara. Não nos deixe tão cedo. Não houve resposta.


Capítulo 9

Zara foi enterrada no dia seguinte. Bem antes de o sol aparecer, seu corpo foi lavado com cuidado e carinho por Ama. Quando a brisa da manhã soprou, saudando os primeiros raios do sol, a tarefa estava cumprida.

— Por que você quis que eu fizesse isso, Zara? Meu último castigo? Ou foi um último gesto de amizade? Foi por sua causa, minha senhora, que eu não casei com aquele homem da montanha que agora se acha importante e se chama de al-Zindiq. Teria tido três filhos com ele, talvez quatro! Teria feito ele feliz. Estou falando como uma velha idiota, perdoe. Acho que Deus quis que vivêssemos separados. Pronto, agora você está arrumada para a última viagem! Estou tão contente por você ter voltado para cá. Em Garnata eles colocariam você numa caixa de madeira e fincariam uma cruz em cima de sua sepultura. O que Ibn Farid ia dizer quando você o encontrasse no primeiro céu, hein?

Com uma mortalha branca de seda pura, o corpo de Zara estava sobre a cama, esperando pelo enterro. A notícia de seu falecimento tinha chegado à aldeia, onde era muito estimada pelos tecelões e aldeões — que a consideravam uma nobre senhora capaz de casar por amor com qualquer um deles — e, antes de começarem o trabalho, eles acorreram à casa para prestar as últimas homenagens e ajudar a levar o corpo para o descanso.

Devagar, quatro pares de mãos levantaram a cama e a colocaram com cuidado sobre quatro ombros fortes. Omar e Zuair levantaram a cabeceira, enquanto Ibn Daud e o robusto filho do Anão, de vinte anos, levantaram a parte de trás. al-Zindiq e Miguel ficaram no meio, velhos demais para oferecerem seus ombros, mas próximos demais da morta para deixar que ficasse aos cuidados apenas da geração mais jovem.

Yazid seguiu logo atrás do pai. Ele gostava da velha senhora, mas, como quase não a conhecia, não podia chorar como Hind.

As mulheres tinham feito o velório mais cedo. Bem de manhã, Ama chorou ao fazer os louvores sobre Zara e acordou todas as alas da casa. Rios de tristeza escorriam dos olhos de Hind quando ela procurou consolo no colo de Zubaida. Todos comentavam as qualidades de Zara como pessoa, como ela foi quando criança e quando jovem, depois ficaram em silêncio. Ninguém queria falar no que aconteceu com ela em Curtuba, nem lembrar que passou a maior parte de sua vida no maristan em Garnata.

A procissão fúnebre ia bem devagar, de propósito. O cemitério da família ficava do outro lado dos altos muros de pedra que davam a casa. Zara seria enterrada com a família. Reservaram :spaço para ela perto da mãe, Sra. Najma, que tinha morrido sessenta e nove anos antes, poucos dias depois de Zara nascer. Estava enterrada sob uma palmeira e ao lado de Ibn Farid, o pai que Zara tinha amado e odiado tanto.

Os hadiths insistiam que os seguidores do Profeta deviam ser enterrados com simplicidade e, de acordo com a tradição, nenhuma sepultura era marcada. Os Banu Hudayl se consideravam descendentes de um dos Companheiros do Profeta e, quer fosse verdade ou pura invenção, até os membros menos religiosos do clã seguiam a tradição e tinham apenas um montinho de terra sobre seus túmulos. Nada mais. Os pequenos montes de terra eram cobertos com grama bem cuidada e um belo canteiro de flores silvestres.

Zara foi retirada da cama e colocada na sepultura recém-aberta. Então Miguel, como se ainda fosse Meecal, pegou um pouco de terra e jogou sobre o corpo da irmã e juntou as mãos para fazer suas preces a Alá. Todos fizeram o mesmo. Depois, cada uma das pessoas que estava ali para demonstrar seu luto abraçou Omar bin Abdala e foi embora. Só quando Miguel viu Juan, o carpinteiro, se benzendo foi que lembrou que era padre. Então, ajoelhou-se como devia e rezou.

O bispo de Curtuba deve ter ficado nessa posição dúrante vários minutos, pois, quando abriu os olhos, viu que estava sozinho ao lado do monte de terra fresca. Foi então que ele pareceu perder o controle. Não agüentou e chorou. Uma dor, há muito reprimida, jorrou de dentro dele. Duas pequenas fontes molhavam seu rosto e sumiam em sua barba. Miguel sabia muito bem que tudo o que nasce vai morrer e Zara tinha chegado aos sessenta e nove anos. Não se podia reclamar nada ao Todo-Poderoso.

Foi a rapidez da partida da irmã que o perturbou, como há tantos anos, quando ela saiu da casa sem se despedir dele. Queria tanto ter dito a ela tudo o que acontecera com ele depois daquele dia fatídico e vergonhoso; contar a explosão de sentimentos que o tinha jogado num lugar desconhecido para desafiar o tabu que existia desde tempos imemoriais e o horror que veio depois; falar pela primeira vez sobre a morte de Asma, uma morte que o impedira de ter uma pessoa para culpar por seu desespero e sua infelicidade; falar nas muitas culpas que ainda povoavam sua cabeça; falar na desintegração da velha família e do nascimento de seu filho. Nos últimos três dias, ele só pensou nisso. Miguel via agora que morreria sem uma última conversa com o único membro da família que pertencia ao mesmo mundo em extinção.

Era um pensamento insuportável.

— Tudo isso aconteceu depois que você nos deixou em desonra, Zara — lamentou Miguel com uma voz suave. — Se tivesse ficado, tudo teria sido diferente. Você levou a sinceridade e a generosidade com você. Só o que nos restou foi o medo, a tristeza e o rancor. Com a sua ausência, todos nós mudamos. Acho até que nosso pai morreu foi de arrependimento. Ele sentia mais falta de você do que dizia. Quase meio século já se passou e eu não consegui conversar sobre nada disso com uma só pessoa.

Esse coração cansado estava pronto para se abrir com você. No dia em que eu ia falar, você, minha irmã, morreu. Que a paz esteja contigo.

Quando levantou e olhou mais uma vez para o pedaço de terra que cobria sua irmã morta, uma voz conhecida invadiu sua solidão e o assustou.

— Eu conversei com ela, Sua Excelência!

— Ibn Zaidun!

— Eu estava chorando do outro lado do túmulo. Você não me viu.

Os dois se abraçaram. al-Zindiq disse a Miguel como ele acabou sendo rejeitado por Zara; como o orgulho do clã Hudayl tinha finalmente recuperado sua filha pródiga; como a verdadeira semente tinha sido muito bem disfarçada; como, nas semanas anteriores à morte, ela realmente sofrera ao lembrar do amor que viveram; como tinha percebido que o pior sofrimento fora causado por ela mesma e como estava começando a se arrepender do rompimento com Ibn Farid e a família, considerando-se única responsável por tudo.

— Sempre achei — comentou Miguel — que nosso pai era a pessoa mais importante da vida dela.

A felicidade que Miguel sentiu ao ouvir tudo isso foi tão grande quanto a tristeza de al-Zindiq. O bispo e o cético ficaram por um instante parados, encarando-se.

Eles um dia pertenceram à mesma civilização que desapareceu, mas o universo de cada um tinha sido separado por um mar invisível. A mulher que tentou unir o espaço que separava esses dois mundos tinha sido castigada por seus esforços e estava enterrada a poucos metros deles.

O irmão se consolava pelo fato de, nos últimos dias que passou na terra, ela ter voltado feliz para a família. Para al-Zindiq, o triste e amargurado al-Zindiq, aquele era apenas mais um exemplo das divisões profundas que existiam em al-Andaluz, que tinham separado os filhos do Profeta. Eles não tinham conseguido construir um monumento duradouro de suas primeiras conquistas.

— De tudo o que sobrou — al-Zindiq falou baixinho -, a Inquisição vai cuidar. Isso mesmo, até chegar ao tutano de nossos tristes ossos! Miguel ouviu, mas não disse nada.

Quando os dois voltaram para a casa — um, para fazer companhia à família e o outro, para tomar café na cozinha -, Zuair já estava a caminho de Garnata. Ia em marcha suave, mas seu pensamento tinha ficado com aqueles que tinha deixado. A despedida do irmão menor foi a que mais o tocou. Yazid, como se seguisse um misterioso instinto, sentiu que não veria mais seu irmão mais velho. Abraçou Zuair com tanta força e chorou muito, implorando que não fosse para Garnata, para a morte certa. A cena, presenciada pela família inteira, trouxe lágrimas aos olhos de todos, inclusive do Anão, e isso causou tanta surpresa aYazid que ajudou a distraí-lo de seu próprio sofrimento.

"Lembrarei esta terra vermelha para sempre", pensou Zuair, segurando a crina de Calid, quando saiu da aldeia. Ao chegar no alto de uma colina, puxou as rédeas do cavalo e voltou-se para olhar al-Hudayl. As casas caiadas brilhavam ao sol e por trás delas estavam as grossas paredes de pedra da casa onde ele tinha nascido.

"Vou me lembrar para sempre daqui: no sol de inverno como o de hoje; na primavera, quando o perfume das flores faz com que nossa energia jorre, e no calor do verão, quando o som suave de uma só gota de água acalma os pensamentos e refresca os sentidos. Depois, algumas gotas de chuva acabam com a poeira e espalham o cheiro do jasmim.

"Vou me lembrar do sabor da água das fontes da montanha que passam por nossa casa, do amarelo forte das flores silvestres que coroam o tojo, do cheiro forte da montanha filtrado pelos pinheiros e da majestade das palmeiras quando bailam com a brisa que vem do céu, do cheiro forte do tomilho, do perfume da madeira queimando no inverno. E lembrar como, em dia claro de verão, o céu azul de repente escurece e o pequeno Yazid pega um pedaço de vidro que pertenceu ao nosso bisavô e aguarda pacientemente no terraço da velha torre que as estrelas surjam mais uma vez. Fica lá observando o universo até que nossa mãe ou Ama o carregue para a cama."

"Tudo isso", pensou Zuair, "será sempre o centro afetivo da minha vida."

Ele segurou as rédeas do cavalo e, dando as costas para al-Hudayl, bateu de leve com as esporas, fazendo com que o animal galopasse pela estrada que levava aos portões de Garnata.

Zuair cresceu ouvindo mil e uma histórias de cavalaria e bravura.

O exemplo de Ibn Farid, cuja espada ele estava carregando, pesava sobre seus ombros jovens. Ele sabia que aquele tempo tinha acabado, mas o romantismo de uma última batalha, de cavalgar rumo ao desconhecido, de pegar o inimigo de surpresa e, quem sabe até, de conseguir uma vitória, estava bem entranhado nele. Por isso ele tomou aquela decisão impulsiva.

Mas, como sempre dizia aos amigos, seus atos não eram motivados apenas por fantasias do passado ou sonhos de glórias futuras. Zuair podia não ser o mais esperto dos filhos de Omar e Zubaida, mas era, sem dúvida, o mais sentimental.

Quando tinha a metade da idade de Yazid, chegou à aldeia a notícia da destruição e tomada de al-Hama pelos cristãos. AlHama, a cidade dos balneários, onde a cada seis meses ele ia visitar os primos. Os balneários e as fontes de água quente faziam parte do cotidiano deles. Uma visita às famosas fontes, onde o próprio sultão de Garnata costumava se banhar, era para Zuair algo muito especial. Agora, estavam todos mortos. Homens, mulheres e crianças foram massacrados e seus corpos jogados aos cães, fora dos muros da cidade.

Os castelhanos tinham chapinhado em sangue e, se fosse verdade o que seus próprios cronistas contavam, gostaram da experiência. Todo o reino de Garnata, inclusive muitos padres cristãos, ficaram pasmos com a proporção do massacre. Um enorme grito de dor ecoou da aldeia quando os habitantes correram para a mesquita para orar pelos mortos e jurar vingança. Zuair só pensava nos primos com quem costumava brincar. Ficou muito triste e sentiu ódio ao lembrar os dois primos de sua idade e as duas primas mais velhas, mortas sem piedade. Lembrava também a tristeza do pai ao contar a notícia: "Eles destruíram nossa bela al-Hama. Fernando e Isabel agora têm a chave de Garnata; não demora, vão tomar nossa cidade." Zuair estava mergulhado nas lembranças mais recônditas e começou a ouvir as velhas vozes. A voz de Ibn Hasd contando como foi a reação em Garnata quando chegou ao palácio a notícia da carnificina em al-Hama. Zuair só tinha encontrado o velho sultão Abul Hassan uma vez, quando tinha dois ou três anos de idade, mas jamais esqueceria seu rosto marcado de cicatrizes, castigado pelo tempo, e a bonita barba branca. Ele o via agora. Foi esse velho, que teve a coragem e insensatez de atacar e tomar a cidade de Zaara, na fronteira, que causou a reação dos cristãos contra alHama. Ele correu com seus soldados para salvar a cidade, mas era tarde, os cavaleiros cristãos o obrigaram a recuar. O sultão mandou arautos percorrerem toda Garnata, precedidos por batedores de bumbo e tocadores de tamborim fazendo um som alto mas soturno para alertar os habitantes sobre um pronunciamento do palácio. As pessoas enchiam as ruas, mas o arauto só disse uma frase:

— Ay de mim, al-Hama. Ai de mim, Al-Hama. A lembrança dessas atrocidades fez Zuair ficar mais impaciente e ele começou a cantar uma balada popular, criada para marcar a carnificina.

"O sultão mouro estava cavalgando pela cidade de Garnata vindo de Bab al-Ilbira indo para Bab al-Ramla. Então, recebeu alguns despachos: Al-Hama tinha sido tomada. Ay de mi, al-Hama!

Ele jogou os papéis no fogo, e matou o mensageiro; desesperado, puxou os cabelos da cabeça e arrancou os pêlos da barba. Desmontou de sua mula e montou num cavalo; acompanhado de Zacatin, subiu até alHamra e ordenou que as trombetas e seus clarins de prata tocassem alto para que os mouros pudessem ouvir enquanto aravam os campos. Ay de mi, al-Hama!

Em grupos de quatro ou cinco, uma grande multidão se formou. Um velho sábio tomou a palavra por trás de sua densa barba branca: Por que nos chama, sultão?

O que suas trombetas anunciam? Para que possam saber, meus amigos, da grande perda de al-Hama. Ay de mim, al-Hama!

Bem feito, bom sultão, bom rei, você bem mereceu; você matou os príncipes que eram a flor de Garnata; você ficou com os vira-casacas de Curtuba, os famosos.

E assim, rei, você merece um bom castigo, a ruína de seu reino e a sua também e, daqui a pouco, o fim de nossa Garnata. Ay de mi, al-Hama!"

A balada fazia Zuair lembrar os primos mortos. O riso deles ficou em seus ouvidos, mas essas boas lembranças não duraram muito. Ele os via agora com os corpos esquartejados e teve muito medo. Seus sentimentos foram do desespero ao orgulho e amargura, enquanto atiçava o cavalo para galopar cada vez mais rápido. De repente, desembainhou a espada de Ibn Farid, segurou-a acima de sua cabeça e imaginou-se o líder da cavalaria moura, cavalgando em direção a al-Hama para libertá-la.

— Só existe um Deus e Maomé é seu Profeta! — berrou. Para sua surpresa, ouviu um eco, mas em dezenas de vozes. Ele freou o cavalo. O animal e seu cavaleiro ficaram quietos e a espada foi cuidadosamente embainhada. Zuair ouviu o som de cascos, depois viu a poeira levantada pelo tropel. Quem seriam eles? Por um instante, pensou que fossem cavaleiros cristãos que responderam a seu grito para fazer uma emboscada. Ele sabia que nenhum outro cavalo no reino podia ultrapassar o seu, mas se corresse agora seria covarde, contra as regras da cavalaria. Esperou que os cavaleiros se aproximassem da estrada e cavalgou até eles. Para seu grande alívio, todos os catorze homens usavam turbantes enfeitados com o conhecido desenho da Crescente. Havia alguma coisa estranha no jeito deles mas, antes que pudesse identificar o que era, dirigiu-se a ele um homem que, pela idade, parecia ser o líder do grupo.

— Que a paz esteja contigo, irmão! Quem é você e para onde vai?

— Sou Zuair bin Omar. Venho de aldeia de al-Hudayl e estou a caminho de Garnata. Por Alá! Vocês são seguidores do Profeta. Fiquei assustado quando vi a poeira levantada por seus cavalos. Digam quem são e para onde viajam.

— Pois não! — respondeu o estrangeiro.

— Você é o bisneto de Ibn Farid. al-Zindiq nos falou muito em você, Zuair al-Fal!

Ao dizer isso, o estrangeiro começou a rir e seus companheiros também. Zuair sorriu sem jeito e examinou bem todos eles. Agora percebia o que tinha estranhado.

Na orelha esquerda, todos tinham um brinco de prata na forma de crescente. O coração de Zuair gelou, embora tentasse disfarçar seu medo. Os homens eram bandidos e, se soubessem que carregava moedas de ouro na bolsa, levariam tudo e ainda podiam roubar a vida dele também. Ele preferia morrer lutando contra os cristãos.

Repetiu a pergunta.

— Você diz que conhece meu mestre, al-Zindiq. Isso me deixa satisfeito, mas ainda não sei: quem são vocês e o que fazem?

— Nós cavalgamos por toda parte dessas terras — foi a tranqüila resposta.

— Deixamos de lado o orgulho e não nos preocupamos com nada. Podemos deter a corrente rápida de um rio ou domar um corcel arisco. Podemos beber uma garrafa de vinho de um só gole, devorar um cordeiro enquanto ainda assa no espeto, puxar a barba de um padre e cantar só para alegrar nossos corações. Vivemos sem lei, sem precisar resguardar ou preservar nossa reputação, já que não a temos. Usamos o mesmo sobrenome, Al-Maari, do poeta cego que viveu entre Alepo e Dimasq há uns quatrocentos anos. Venha, coma de nosso pão e beba de nosso vinho e você vai saber mais. Ande, Zuair al-Fal. Não vamos tomar muito seu tempo.

Zuair estava surpreso com a resposta, mas ficou mais calmo. Eles eram excêntricos demais para serem assassinos cruéis. Aceito o convite, mudaram a direção de seus cavalos e Zuair emparelhou com eles. Depois de alguns quilômetros, chegaram a umas pedras que marcavam uma entrada secreta. As pedras foram cuidadosamente removidas e eles saíram da estrada através dessa passagem oculta. Depois de dez minutos de cavalgada, Zuair se viu no meio de um acampamento armado. Era uma aldeia formada por tendas, estrategicamente instalada perto de um riacho. Umas doze mulheres e uma meia dúzia de crianças estavam do lado de fora das tendas. As mulheres moíam milho e as crianças faziam um complicado jogo com pedras.

O capitão do bando, que se apresentou cerimoniosamente como Abu Zaid al-Maari, convidou Zuair para sua tenda. O interior era simples, a não ser por um tapete sobre o qual estavam espalhadas algumas almofadas. Quando sentaram, uma jovem entrou com uma taça de vinho, dois pães pretos pequenos e mais pepinos, tomates, rabanetes e cebolas. Colocou tudo na frente dos dois e saiu, voltando com uma tigela de azeite. Foi aí que Abu Zaid apresentou-a a Zuair.

— Minha filha, Fátima.

— Que a paz esteja contigo — murmurou Zuair, atraído pelo jeito tranqüilo da jovem.

— Não vai dividir o pão conosco?

— Venho com os outros, depois que tivermos comido — disse Fátima, olhando rápido para Abu Zaid.

— Acho que meu pai quer falar com você a sós.

— Olhe, meu jovem amigo — começou Abu Zaid al-Maari, quando a filha os deixou -, não foi o destino que nos uniu, mas al-Zindiq. Como pode ver, nós vivemos do que conseguimos roubar dos ricos. De acordo com os ensinamentos do grande al-Maari, não fazemos diferença entre muçulmano, cristão ou judeu. Dinheiro não é privilégio de uma religião. Mas, por favor, não tema: percebi o susto em seu olhar quando viu o crescente de prata em nossa orelha esquerda. Deve ter pensado que seu ouro corria perigo, não foi?

— Para ser sincero — confessou Zuair, mergulhando o pão no azeite -, fiquei mais preocupado com a minha vida.

— Tinha razão em se preocupar, mas, quando comecei a falar com você, foi porque aquele velho da caverna na montanha me disse que você ia para Garnata porque tinha se metido num grande risco. Ele me implorou que tentasse impedi-lo, que o convencesse a voltar para a casa de seus ancestrais ou a entrar para nosso pequeno bando.

Nós estamos pensando em sair desta região e ir para al-Pujarras, onde estão muitas pessoas como nós. Lá, vamos aguardar o momento certo até a hora de entrar na batalha.

— Nos dias que correm — confessou Zuair, enquanto bebia o suco fermentado de tâmaras -, é muito mais difícil fazer novos amigos do que manter os velhos inimigos.

Vou pensar bem antes de resolver se aceito sua proposta. O líder dos bandidos ficou satisfeito, e ia responder quando sua filha, carregando um bule de barro com café e acompanhada de três de seus cinco irmãos, interrompeu o que ele pensava. O cheiro da bebida, recém-preparada e fervida com cardamomo, invadiu a tenda e lembrou Zuair da casa que ele tinha deixado apenas uma hora antes. Os rapazes entraram e sentaram no tapete com as pernas dobradas, enquanto Fátima servia o café.

— Não acredito — informou Abu Zaid a todos — que nosso jovem amigo vá se bandear para o nosso lado. Ele é um caballero, que acredita nas leis da cavalaria. Estou certo?

Zuair ficou constrangido por ser descoberto com tanta facilidade.

— Como pode dizer isso, Abu Zaid al-Maari? Eu não acabei de dizer que vou pensar antes de decidir?

— Meu pai sabe avaliar as pessoas — interrompeu Fátima. — Seu instinto diz logo se uma pessoa é do tipo que joga xadrez com uma peça a mais. Mas você é tão óbvio que até eu percebo que não é uma pessoa dessas.

— Devia ser? — Zuair perguntou inocentemente.

— O que é bom para o fígado costuma ser ruim para o baço — respondeu ela.

O irmão, que não devia ter mais de dezoito anos, achou que Fátima tinha sido muito sutil.

— Meu pai sempre nos disse que as pessoas são como o metal: ouro, prata ou cobre.

— É verdade — disse Abu Zaid -, mas um cavaleiro acha — e tem razão, sob seu ponto de vista -, que ele é ouro, enquanto um bandido é cobre. Já que estamos discutindo o valor relativo dos metais, vamos colocar uma outra questão para nosso jovem hóspede vindo de al-Hudayl. Será que ele concorda que só o ferro pode cortar o ferro?

— Claro! — respondeu Zuair, satisfeito porque a discussão tinha tomado outro rumo. — Como não?

— Se concordamos sobre isso, Zuair al-Fal, então por que você discordou de mim em relação à guerra contra os ocupantes de Garnata? Nosso sultão era de palha, enquanto Ximenes de Cisneros é um homem de ferro! O velho estilo de guerra acabou na noite em que os cristãos destruíram al-Hama. Se queremos vencer, temos de aprender com eles. Sei que al-Zindiq acha que é tarde demais, mas pode estar errado. Al-Andaluz podia ter sido salva há muito tempo, bastava que nossos míseros governantes entendessem os ensinamentos de Abu Ala al-Maari. Ficariam mais confiantes — mas não, eles preferiram mandar recados para os norte-africanos implorando ajuda.

— Os norte-africanos nos livraram dos cristãos mais de uma vez, não foi?

— É verdade. A única forma que eles tinham de nos salvar era destruindo as bases do que construímos. Eles nos salvaram como o leão salva o veado dos dentes do tigre. O islamismo do qual eles falavam não era melhor nem pior do que o cristianismo.

"Nossos pregadores estão confusos, os cristãos foram embora, Os judeus estão aborrecidos. Os astrólogos só cometem erros. A humanidade só tem dois tipos de gente: Cavaleiros iluminados e idiotas crentes."

perguntou Zuair.

— É de Al-Maari?

— Todos concordaram.

— Você parece com al-Zindiq — comentou Zuair.

— Desculpe minha ignorância, mas não conheço a obra de al-Maari.

Abu Zaid ficou muito irritado. — Você não foi educado por al-Zindiq? — Fui, mas ele nunca me emprestou um só livro de al-Maari. Apenas recitava seus poemas, que são um estimulante mais forte do que o seu vinho de tâmara! Você, por acaso, descende dele?

— Antes de morrer — explicou Fátima -, ele recomendou que fosse escrito um verso em seu túmulo dizendo assim:

O mal que meu pai cometeu em relação a mim, Não cometi em relação a ninguém.

— Ele estava tão desiludido com a situação do mundo que achava que ter filhos era insensato. Para ele, a espécie humana não é capaz de se aprimorar. Por isso resolvemos ser como filhos dele e seguir seus ensinamentos. Zuair ficou confuso. Até então tivera certeza de que o caminho que escolhera era o único honroso para um guerreiro muçulmano, mas esses estranhos bandidos e o filósofo que os comandava tinham conseguido plantar uma semente de dúvida em sua cabeça. Ele não estava prestando muita atenção em Abu Zaid al-Maari e seus seguidores quando contaram a grandeza do poeta livre-pensador e filósofo a quem tinham adotado como pai coletivo.

Zuair estava perdido, com a cabeça num turbilhão. Sentia-se à beira de um abismo e quase perdendo o equilíbrio. Gostaria muito de voltar para al-Hudayl. Talvez o vinho de tâmara tivesse lhe subido à cabeça. Talvez, se bebesse mais algumas xícaras de café e passasse umas duas horas no hammam de Garnata, tudo voltasse a clarear. Era difícil saber, mas, no meio da confusão em que estava, teve a impressão de ouvir as pessoas zombarem do Alcorão — o que ele jamais aceitaria. O sangue lhe subiu à cabeça, talvez tivesse entendido mal. Pediu a Abu Zaid que repetisse o que disse pouco antes.

"O que é religião? Uma donzela escondida para que nenhum olho a veja; O preço de seus presentes de casamento e dotes assustam o pretendente. De todos os bons princípios de que ouvi falar do púlpito, Meu coração jamais aceitou uma só palavra."

— Não, não! — gritou Zuair desapontado.

— Não estou pedindo uma poesia dele. Essa eu já conheço. Quero saber outra coisa: você citou o Alcorão, não foi?

Fátima olhou bem nos olhos dele.

— Sim — respondeu -, citei. Embora fosse raro, às vezes Abu Ala al-Maari duvidava se o Alcorão era mesmo a palavra de Deus. Mas ele gostava muito do estilo em que foi escrito. Um dia, sentou e escreveu sua versão, que chamou de al-Fusul wa-lGhayat. — Mas que blasfêmia! — protestou Zuair.

— Os faqihs acharam uma heresia — explicou Abu Zaid calmamente, com o brilho de um pequeno sorriso no rosto — e uma paródia do livro sagrado. Até os amigos de nosso grande mestre disseram que a versão que ele fez era muito inferior ao Alcorão.

— A essa acusação — continuou Fátima — nosso mestre respondia dizendo que, ao contrário do Alcorão, sua obra ainda não tinha sido polida pela língua dos recitadores através dos séculos.

Essa pérola do talento do mestre foi saudada com aplausos e risos. Abu Zaid ficou perturbado pela expressão sombria de Zuair e resolveu desanuviar o ambiente.

— Quando foi acusado de heresia, ele apenas olhou seu acusador nos olhos e disse:

"Levanto a voz para dizer mentiras absurdas, Mas, quando digo a verdade, minha voz quase não é ouvida."

— Diga, Abu-Zaid — perguntou Zuair -, você acredita em nossa fé?

— Todas as religiões são um labirinto escuro. Os homens são religiosos por força do hábito, nunca param para pensar se aquilo em que acreditam é verdade. A revelação divina está profundamente entranhada em nossa cabeça. Afinal de contas, foram os antigos que inventaram as fábulas e chamaram de religião. Musa, Isa e até o nosso Profeta Maomé foram grandes líderes de seu povo, em tempos difíceis. Afora isso, eu não acredito em nada.

Esse diálogo fez Zuair tomar uma decisão. Aquelas pessoas eram patifes, hereges. Como podiam achar que expulsariam os cristãos de Garnata se eles mesmos eram incrédulos? Mais uma vez ele se irritou quando ouviu a voz de Abu Zaid, mostrando que tinha lido seus pensamentos.

— Você está pensando como gente como nós pode vencer os cristãos, mas pergunte a si mesmo como foi que os mais ardentes defensores da fé fracassaram quando tentaram fazer isso.

— Não vou discutir mais — respondeu Zuair.

— Já resolvi, vou embora agora, encontrar os amigos que me esperam em Garnata. Levantou-se, pegou sua espada e saiu para o ar frio que fazia fora da tenda. Fátima e os outros o acompanharam. Estava ficando tarde e Zuair queria chegar a seu destino antes do pôr-do-sol.

— Que a paz esteja contigo, Zuair bin Omar — disse Abu Zaid quando abraçou o jovem para despedir-se.

— E lembre-se, se mudar de idéia e quiser se juntar a nós, vá para al-Pujarras até chegar a uma pequena aldeia chamada al-Basit. Diga meu nome à primeira pessoa que encontrar e, no dia seguinte, estarei com você. Que Deus te proteja!

Zuair montou seu cavalo, cumprimentou tocando a testa com a mão direita e, em poucos minutos, estava de volta à estrada para Garnata. Alegrou-se por estar sozinho outra vez, longe da má companhia de hereges e ladrões. Tinha gostado da experiência, mas se sentiu tão sujo como quando ficava com Umaima. Respirou fundo o ar fresco da montanha, como se quisesse limpar o interior de seu corpo.

Avistou a cidade quando chegou ao topo de uma colina. Antigamente, quando ele cavalgava em direção à corte com a comitiva do pai, paravam nesse lugar para apreciar a paisagem. Nessa hora, o pai costumava contar uma história do tempo do velho sultão Abu Hassan. Depois eles apostavam uma corrida alegre e despreocupada pela descida da encosta. Quando chegavam aos portões da cidade, voltavam a se comportar como gente séria. Por um instante, Zuair sentiu vontade de sair galopando, desembestado, pela encosta, mas achou mais sensato se conter. Os soldados cristãos estavam de sentinela em todas as entradas da cidade. Ele tinha de se manter o mais calmo possível.

Quando chegou aos portões, pensou o que Ibn Daud acharia de seu estranho encontro com os bandidos. Ibn Daud era um sabe-tudo, mas será que já tinha ouvido falar em al-Maari?

Os sentinelas cristãos olharam bem para o jovem que se aproximava. Pela qualidade de seus trajes e o turbante de seda que adornava sua cabeça, viram que era um nobre, um cavaleiro mouro que estava ali provavelmente para visitar uma amante. Pelo fato de exibir uma espada, concluíram que não tinha intenção de matar ninguém.

Zuair percebeu que eles o examinavam e fez o cavalo andar ainda mais devagar, mas os soldados não se incomodaram em pará-lo. Para mostrar que os notara, Zuair fez um pequeno sinal com o queixo, um gesto que herdou inconscientemente do pai. Os soldados sorriram e acenaram para ele.

Quando entrou na cidade, Zuair ficou mais calmo. A confusão causada por aquele encontro inesperado com os hereges, horas antes, já parecia apenas um sonho esquisito.

Antigamente, ou apenas um mês atrás, Zuair teria ido direto para a casa de seu tio Ibn Hixam, mas naquele dia não podia nem pensar nisso. Não porque Ibn Hixam tivesse se transformado em Pedro al-Garnata, um convertido, mas porque Zuair não queria colocar em risco a família do tio.

Seus companheiros, que eram cerca de uma dúzia, haviam chegado a Garnata no dia anterior e os que não tinham amigos ou parentes na cidade se instalaram nos quartos do funduq. Parecia estranho ficar numa hospedaria numa cidade em que tinha muitos amigos e parentes — e que conhecia tão bem. Mas isso faria com que ele se concentrasse no que queria alcançar. Não queria ficar à vontade em Garnata, especialmente desta vez. Queria, a cada minuto do dia e da noite que ficasse ali, lembrar as obrigações que tinha pela frente. Em sua fantasia, Zuair viu seu futuro como grande líder da reação que os verdadeiros crentes iriam fazer contra a nova situação. Contra a diaba Isabel e o lascivo Fernando, contra o demônio Ximenes. Contra todos eles.

Mais tarde, os companheiros de Zuair vieram dar-lhe as boasvindas na cidade. Ele tinha ficado com um dos quartos mais confortáveis da hospedaria. O teto tinha uma lamparina de seis braços, decorada com desenhos intricados. Uma luz suave vinha do óleo queimando. No centro do quarto queimava um braseiro de barro cheio de carvão e num canto ficava uma bonita cama coberta com uma colcha de seda verde e roxo. Os oito jovens estavam sentados num enorme tapete de oração que cobria o piso em frente à cama.

Zuair os conhecia bem, cresceram juntos. Havia os dois irmãos filhos do negociante de ouro, Ibn Mansur; o filho do herbanário Maomé bin Basit; Ibn Amin, o caçula do médico judeu nomeado pelo capitãogeral, e três jovens valentões de al-Hudayl que tinham chegado a Garnata no dia anterior. A Reconquista não tinha mudado a vida desses jovens. Até a chegada do homem com solidéu de bispo e coração negro, eles continuaram levando uma vida despreocupada. Ximenes de Cisneros fez com que eles, pela primeira vez, encarassem a vida com seriedade. Pelo menos por isso tinham de agradecer a ele. Mas o bispo tinha colocado em risco a vida deles e por isso o odiavam.

A natureza não teve a intenção de fazer com que nenhum daqueles rapazes virasse conspirador. Quando chegaram ao quarto de Zuair, estavam tensos e alertas, com os rostos sombrios. Zuair percebeu e fez com que relaxassem com uma rodada de mexericos. Depois de dissecarem a vida particular dos outros, ficaram mais alegres, quase como eram antes.

Ibn Amin foi o único que não participou da animada conversa. Não estava nem ouvindo, só pensava nos horrores que estavam por vir e falou com angústia na voz:

— Quando tiverem acabado conosco, não deixarão olhos para chorar nem línguas para gritar. O capitão geral era até capaz de nos deixar em paz. O problema é o padre.

A seguir, deu uma série de notícias para mostrar como a situação era grave. Os inquisidores de Caxitala foram vistos na cidade. As conversões realizadas foram investigadas para ver se eram autênticas ou não. Para isso, puseram espiões perto da casa dos convertidos, observando se eles iam trabalhar às sextas-feiras, quantas vezes tomavam banho, se circuncidavam os recém-nascidos, assim por diante. Houve diversos incidentes com soldados que xingavam ou até molestavam mulheres muçulmanas.

— Depois que esse maldito padre chegou à nossa cidade — disse Ibn Basit, o filho do herbanário -, estão fazendo um inventário de todas as propriedades e bens dos mouros e judeus. Não há dúvida de que vão tomar tudo, a menos que nos convertamos.

— Meu pai diz que, mesmo que nos convertamos, eles vão achar um jeito de tirar nossos bens.

— Quem falou foi Salman bin Maomé, filho mais velho do comerciante de ouro.

— Basta ver o que fizeram com os judeus.

— Esses sanguessugas de Roma, que se promoveram a papas, venderiam a Virgem Maria para encher os bolsos — resmungou Ibn Amin.

— A Igreja espanhola está apenas seguindo o exemplo de seu Santo Pai.

— Mas à nossa custa! — disse Ibn Basit. Desde a conquista de Garnata, Zuair tinha sido testemunha silenciosa de muitas discussões parecidas com essa, realizadas em Garnata e al-Hudayl. Seu pai, seu tio ou algum aldeão mais velho costumavam ser mediadores, fazendo uma intervenção com duração cuidadosamente respeitada. Zuair estava cansado. O vento começava a entrar pelas persianas do quarto e o carvão estava apagando no braseiro. Os criados do funduq tinham ido dormir. Ele também queria dormir, mas sabia que a conversa ia continuar sob a luz bruxuleante da lamparina até as primeiras horas da manhã, a menos que ele desse um xeque-mate e insistisse para tomarem uma decisão naquela noite mesmo.

— Vejam, amigos, não somos gente difícil de entender. É verdade que aqueles dentre nós que vivem no campo ficaram durante séculos protegidos num mundo bem diferente do que existe nas cidades. Aqui, a vida gira em torno do mercado, enquanto todas as nossas lembranças e esperanças estão ligadas à terra e àqueles que trabalham nela. Muitas vezes, nós que moramos no campo gostamos de coisas que não teriam qualquer interesse para vocês da cidade. Nós cultivamos essa terra durante séculos.

Produzimos alimento que abasteceu Curtuba, Ixiblia e Garnata. Isso valorizou a terra nas cidades e fez florescer uma cultura que os cristãos agora querem queimar, mas não conseguirão. Nós abrimos as portas e a luz que veio de nossas cidades iluminou todo este continente. Agora eles querem tomá-la de nós. Acham que não merecemos sequer uns poucos enclaves onde possamos viver em paz. Foi por isso que nos unimos. A cidade e o campo estão condenados a morrer da mesma morte. Seus negociantes e todos os seus artesãos, nossos tecelões e camponeses — estão todos condenados à extinção.

Os rapazes o olharam, perplexos. Perceberam que al-Fal estava tão maduro que parecia outra pessoa. Ele sentiu um novo respeito nos olhos deles. Se tivesse falado assim dois anos atrás, qualquer um deles teria caído na gargalhada e sugerido que desse uma rápida passada num bordel, onde essas bobagens poderiam ser esquecidas por intermédio de uma ação mais ativa. Naquele dia, não. Viam que Zuair não estava fingindo e sabiam muito bem quais foram as mudanças que causaram aquela transformação em todos eles. Mas não podiam imaginar que foi seu estranho encontro com o clã de al-Maari — mais até que o drama de al-Andaluz — que aguçou sua mente e alertou seus sentidos. E achou que estava na hora de revelar o plano.

— Tivemos muitas discussões na nossa aldeia e temos agora vinte voluntários de al-Hudayl nesta cidade. O número pode ser pequeno, mas vamos nos esforçar para fazer o melhor possível. A primeira coisa é montar uma força de trezentos ou quatrocentos cavaleiros para desafiar os cristãos numa luta armada, diariamente, no Bab al-Ramla.

A visão dessa luta vai animar a população e teremos um levante antes que eles possam enviar reforços para a cidade. Vamos fazer a guerra da qual o sultão fugiu.

Ibn Basit foi totalmente contra e disse isso com sinceridade.

— Zuair bin Omar, você me surpreendeu duas vezes nesta noite. Primeiro, por sua inteligência e segundo, por sua estupidez. Concordo que os cristãos querem acabar conosco, mas você quer facilitar isso para eles. Quer que todos nós nos aprontemos para entrar no jogo deles. A cavalaria é coisa do passado — isto é, se algum dia realmente existiu, se não passa de invenção de cronistas. Mesmo se os vencêssemos — e não tenho muita certeza de que nosso ardor possa competir com o talento que eles têm para carniceiros -, mesmo assim não faria a menor diferença. Nenhuma. Nossa única esperança é preparar nossos homens e levá-los da cidade para al-Pujarras. De lá podemos enviar embaixadores para contatarem os crentes em Balancia e outras cidades e preparar uma rebelião para eclodir simultaneamente em toda a península. Isso vai ser o sinal que o sultão de Istambul está aguardando. Nossos irmãos turcos então virão nos ajudar.

Zuair olhou em volta em busca de apoio, mas ninguém se manifestou. Então Ibn Amin falou.

— Tanto Ibn Basit quanto meu velho amigo Zuair estão num mundo de sonhos. A visão de Basit talvez seja mais realista, mas também está longe da nossa realidade.

Tenho uma proposta bem simples. Vamos cortar a cabeça da serpente. Outras virão substituí-la, mas terão mais cuidado. O que sugiro é simples e fácil de executar.

Proponho fazer uma emboscada para Ximenes de Cisneros, matá-lo e colocar a cabeça dele sobre o muro da cidade. Sei que os muros são vigiados pelos soldados, mas não são muitos e teríamos como vantagem o elemento surpresa.

— É uma idéia indigna — disse Zuair com uma voz sombria.

— Mas gosto dela — disse Ibn Basit.

— Tem uma grande vantagem: nós mesmos podemos executá-la. Sugiro que preparemos nosso plano cuidadosamente nos próximos dias e nos encontremos para combinar a hora e o modo de agir.

A idéia de Ibn Amin animou a noite, todos começaram a discutir, entusiasmados. Zuair pensou no futuro e avisou para não repetirem o al-Hama na velha Garnata. Podiam desistir de pensar em vitória, desistir da idéia de serem apoiados pelos dominicanos. Se Cisneros fosse assassinado, se transformaria num mártir. Roma iria beatificá-lo. Isabel vingaria a morte de seu confessor numa orgia de sangue que faria o al-Hama parecer nada. Apesar da força dos argumentos, Zuair se sentiu completamente isolado. Até seus seguidores de al-Hudayl estavam encantados com a grande simplicidade do plano de matar Cisneros.

Foi por causa desse entusiasmo insólito que Zuair reconheceu sua derrota., Ele não ia participar de uma morte que era contra todos os princípios da cavalaria, mas também não ia atrapalhar o plano deles.

— Você é muito sensível e orgulhoso — disse Ibn Basit para ele. — O que passou nunca mais vai voltar. Você está acostumado com camisas lavadas em água de rosas e passadas a ferro com borrifos de lavanda. Garanto que tudo agora vai ser lavado em sangue, a menos que cortemos a cabeça destas bestas que Alá nos mandou para testar nossa força.

Depois que eles saíram, Zuair se lavou e foi para a cama, mas o sono não veio. Mais uma vez, estava atormentado por dúvidas. Talvez devesse sair da cidade e ligar seu destino ao dos al-Maaris. Talvez devesse apenas voltar para casa e prevenir o pai da catástrofe que ameaçava todos eles. Ou, e essa idéia o apavorava, quem sabe devia ir rápido para Curtuba e pedir ao tio-avô Miguel que o batizasse?


Capítulo 10

A única nobreza que consigo aceitar é a que vem do talento. A pior coisa do mundo é a ignorância. Os pregadores que você parece respeitar tanto dizem que a ignorância é o passaporte da mulher para o paraíso. Eu preferia que o Criador me mandasse para o inferno.

Hind estava no meio de uma discussão inflamada com seu futuro marido, cujo tom de carinhosa ironia tinha, de repente, começado a irritá-la. Ibn Daud estava sentindo um prazer especial em atormentá-la. Ele começou por se colocar como erudito ortodoxo da universidade de al-Azhar e defender a teologia tradicional, principalmente no que dizia respeito aos deveres e obrigações das mulheres crentes.

A recusa irada que Hind manifestou em relação ao paraíso era exatamente o que ele queria ouvir. O sangue apaixonado dos Hudayl tinha subido para o rosto dela quando o olhou, furiosa. Ela ficava linda quando se irritava. Ibn Daud percebeu, pela primeira vez, como ela era enérgica. Pegou sua mão e cobriu-a de beijos. Esse gesto espontâneo de emoção fez com que Hind se encantasse e excitasse, mas eles não estavam a sós ali, embaixo da romãzeira. A ousadia de Ibn Daud provocou um ataque de tosse vindo da moita atrás deles, onde três jovens criadas tomavam conta de Hind. Ela as conhecia bem.

— Vocês aí, vão dar uma volta. Acham que me assusto com essa bobagem? Sei muito bem o que acontece quando vocês vêem pela primeira vez aquela palmeira que cresce no meio das pernas de seus namorados. Vocês ficam como um bando de pica-paus famintos. Agora dêem uma volta e só voltem quando eu chamar! Ouviram?

— Sim, Sra. Hind — respondeu Umaima -, mas a Sra. Zubaida...

— Você contou à Sra. Zubaida que meu irmão monta em você como um cachorro?

A resposta insolente de Hind resolveu a questão. As companheiras de Umaima não conseguiram parar de rir — e foi só o que responderam. Temendo que ela cometesse mais indiscrições na frente do estrangeiro, as criadas sumiram. A função delas era vigiar a castidade de Hind e proteger sua honra. Agora elas estavam fazendo algo mais de acordo com o que achavam e ficaram, mais uma vez, cúmplices de sua jovem ama, cuidando e garantindo que o casal não fosse pego em flagrante.

Mas, sem que ninguém visse, Yazid estava por ali. Logo depois que Ibn Daud veio para a casa, Yazid se sentiu abandonado pela irmã. Ele também percebeu qual a razão e por isso começou a tratar o recém-chegado com rudeza, como só uma criança seria capaz. Passou a sentir uma raiva irracional mas profunda do estrangeiro de al-Qahira.

No início, Yazid ficara fascinado com as histórias que Ibn Daud contava sobre o velho mundo. Ele queria muito aprender, estava louco para saber mais sobre as cidades de al-Qahira e Dimasq; ficava intrigado e curioso com a diferença de sotaque e do sentido de certas palavras árabes como eram faladas em al-Andaluz e na terra de origem do Profeta.

E a sede de saber que o menino tinha estimulava também Ibn Daud. Obrigava-o a pensar bem para explicar os fatos aos quais até então não tinha dado muita importância.

Mas Yazid começou a perceber que Hind ficava ruborizada e desviava o olhar sempre que Ibn Daud estava presente, parecendo muito acanhada. Quando Yazid viu que tudo isso era por causa do cairota, passou a evitar as aulas dele e, se era obrigado a assisti-las, não fazia qualquer esforço para disfarçar seu desprazer e fingia estar muito entediado.

Ele parou de fazer perguntas a Ibn Daud. Quando o preceptor perguntava alguma coisa, Yazid não respondia, ou dava respostas monossilábicas. Chegou a parar de jogar xadrez com ele, o que era um enorme sacrifício, já que Ibn Daud tinha aprendido a jogar há pouco tempo e não conseguiu vencer seu aluno nem uma vez. Até que Yazid chegou ao ponto de romper relações com Ibn Daud.

Quando Hind pediu para ele dizer por que estava assim, Yazid suspirou, nervoso, e falou com a voz mais indiferente possível que não via nada de anormal em seu comportamento em relação ao professor. Isso preocupou a irmã e aumentou a tensão que já existia entre eles. Hind, que costumava ser ultra-sensível a tudo o que tivesse relação com Yazid, estava cega de paixão por Ibn Daud. E quem mais sofreu por causa disso foi o irmão dela. Zubaida, percebendo a infelicidade de seu caçula, entendeu muito bem a razão e resolveu marcar a data do casamento o mais breve possível e só então conversar sobre o assunto com Yazid.

Sem saber que eram vistos, Hind e Ibn Daud estavam agora num estágio em que certas decisões importantes tinham de ser tomadas. As mãos dele tinham percorrido o corpo dela por baixo da túnica e sentido seus seios, depois recuaram.

— Duas luas cheias na ponta de um galho delgado — sussurrou numa voz que pareceu a ela plena de paixão.

Hind não fez por menos. Suas mãos encontraram um caminho sob a cintura dele por regiões inexploradas, cobertas pelo calção de seda. Ela sentiu o que havia por baixo da seda e começou a acariciar as pernas dele.

— Suaves como dunas de areia, mas onde esta a palmeira? — murmurou, enquanto seus dedos roçavam as tâmaras e sentiam seu viço.

Se os dois continuassem, teriam sem dúvida se iniciado nos ritos da primeira noite. "Mas", pensou Hind, "se paramos agora, a frustração e a longa espera até consumar nossa paixão tornarão as coisas insuportáveis." Hind não queria parar. Esqueceu todas as regras do pudor e, com todo o seu ser, desejava aquele homem. tinha sentido tanto prazer indiretamente — com as inúmeras descrições feitas pelas criadas e as risadinhas dos primos em Garnata e Ixibilia -, mas agora queria saber como era mesmo.

Mas Ibn Daud, percebendo isso, recuou de repente. Tirou suas mãos e gentilmente afastou as dela de dentro de seu calção.

— Por quê? — perguntou ela num sussurro rouco.

— Sou hóspede de seu pai, Hind! — a voz dele parecia resignada e sem emoção.

— Amanhã vou conversar com ele a sós e pedir permissão para torná-la minha esposa. Qualquer outra atitude minha seria desonrosa.

Hind sentiu o desejo escoando. — Achei que estava à beira de algo mais que apenas um prazer. Algo totalmente puro. Estou desapontada, não entendi você.

Seguiu-se uma torrente de juras. Ele repetiu várias vezes que seu amor era eterno. Disse como admirava sua inteligência e que nunca tinha encontrado uma mulher como ela. Enquanto falava, beijava os dedos dos pés dela e murmurava palavras muito carinhosas para cada um.

Ela ficou calada. Foi um silêncio mais expressivo do que qualquer coisa que dissesse, pois a verdade era que, ao perdê-la temporariamente, ele a ganhara de novo.

Mesmo assim, ela continuava desconfiando que o havia julgado errado. Prova disso era a atitude dele, evitando-a.

Ibn Daud nunca tinha estado com uma mulher e o fato de ser hóspede da casa podia servir de justificativa, mas não muito. Ele ficou surpreso ao ver como Hind tinha conseguido excitálo, mas a verdadeira razão para recuar era o medo do desconhecido.

Até então, só tinha havido uma paixão na vida de Ibn Daud: um colega da universidade em al-Qahira. Mansur era filho de uma família de prósperos e conhecidos joalheiros na cidade costeira de Iscanderia. Viajou muito, conheceu muitas cidades — fez até uma viagem de barco para Cochim, no sul da Índia — e as histórias que contava deixavam Ibn Daud encantado. Além disso, os dois amavam a boa poesia e a flauta, eram muito bonitos e inteligentes — daí ter crescido a amizade entre eles, como era de se esperar. Durante três anos os dois rapazes moraram perto um do outro e tinham um quarto comum no riwaq, de onde se avistava a mesquita de al-Azhar.

Logo a relação passou a ter três faces, que supriam ao mesmo tempo o intelecto, o sentimento religioso — eram discípulos do mesmo mestre sufista — e, finalmente, o desejo sexual. Eles escreviam poesias em prosa rimada, numa linguagem que não escondia nenhum prazer do leitor. Durante o verão, quando se separavam para ficar um pouco com suas famílias, os dois escreviam diários nos quais contavam todos os detalhes do cotidiano, assim como os efeitos da abstinência.

Mansur morrera num naufrágio quando acompanhava o pai numa missão comercial a Istambul. O inconsolável sobrevivente não podia mais suportar a idéia de viver em al-Qahira. Foi por isso, mais do que por querer estudar as obras de Ibn Khaldum, que ele foi parar em Garnata. Sentiu-se intelectualmente atraído por al-Zindiq mas, depois de várias conversas, viu que, embora a velha raposa esperta fosse muito talentosa e tivesse muito conhecimento, não tinha escrúpulo nos argumentos que usava para vencer um inimigo. No final de uma discussão sobre a poesia de Ibn Hazm, Ibn Daud se lembrara de uma conversa parecida que teve com Mansur. A lembrança o tinha perturbado, causando uma grande emoção. Claro que não contou para al-Zindiq, mas o velho não era bobo. Ele adivinhou. Era isso que estava preocupando Ibn Daud. al-Zindiq era amigo da família — e se contasse suas suspeitas para os pais de Hind?

Como se adivinhasse seus pensamentos, Hind segurou na mão dele e perguntou inocentemente:

— Como se chamava a mulher que você amou em al-Qahira? Quero saber tudo sobre você. Ibn Daud se assustou. Antes que pudesse responder, ouviram gritos e risos das criadas, que surpreenderam um assustado Yazid e o trouxeram para baixo da romãzeira.

— Veja quem achamos, Sra. Hind! — disse Umaima, rindo muito.

— Me solta! — gritou Yazid, com lágrimas escorrendo pelo rosto.

Hind não podia entender que o irmão tivesse chegado a esse ponto, por isso correu até Yazid e o abraçou. Ele não se moveu e Hind secou as lágrimas dele com as mãos e beijou-o no rosto.

— Por que você estava me espionando?

Yazid queria abraçá-la e beijá-la, dizer tudo o que temia e que o preocupava. Ele tinha ouvido contar como a tia-avó Zara tinha fugido para nunca mais voltar. Não queria que sua Hind fizesse o mesmo. Se estivessem sozinhos, teria dito tudo isso, mas o sorriso no rosto de Ibn Daud o inibiu. Ele virou as costas e correu para a casa, deixando a irmã surpresa e confusa.

Hind estava começando a desconfiar que o estranho comportamento de Yazid só podia ser por sua causa. Ela tinha ficado tão enfeitiçada por aqueles olhos mais verdes que o mar que todo o resto ficara em segundo plano — não conseguiria ouvir nem o som de um alaúde. Foi essa desatenção que preocupou o irmão. Ela se sentiu culpada e não esqueceu o mal-estar causado pelo abraço.

Ao ver o desapontado Yazid, Hind lembrou que também estava irritada com Ibn Daud.

"A verdade", pensou ela, "é que seu honrado comportamento não passa de recusa em admitir a beleza de nossa paixão."

Essa idéia a aborreceu tanto que ela, que quase o incendiou com sua chama, resolveu ensinar a Ibn Daud algumas lições elementares. Ia mostrar que podia ser mais fria que o gelo. Ainda o desejava, mas sob algumas condições; por enquanto, sua maior preocupação era consertar o estrago em relação a Yazid.

Nesse momento, o irmão em quem Hind pensava estava com a cabeça descansando no colo da mãe. Ele surgiu na frente de Zubaida anunciando:

— O homem estava mexendo nos seios de Hind. Eu vi — Yazid pensou que a mãe fosse ficar apavorada. Correria até o local do crime e mandaria que os criados da casa chicoteassem Ibn Daud. O arrogante sujeito vindo de al-Qahira voltaria para casa envergonhado e, no caminho para a aldeia onde tomaria uma condução para Garnata, podia até ser atacado por cães selvagens. Mas em vez de isso tudo acontecer, Zubaida sorriu.

— Sua irmã é uma mulher agora, Ibn Omar. Logo ela vai se casar e terá filhos e você vai ser tio deles.

— Casar com ele?

— Yazid não conseguia acreditar. Zubaida fez um sinal concordando e afagou o cabelo castanho e brilhante do filho.

— Mas, mas ele não tem nada. Ele é...

— Um erudito, meu Yazid. Tem apenas a inteligência como fortuna. Meu pai sempre dizia que o peso do cérebro de um homem é mais importante do que o peso de sua bolsa.

— Mãe — disse Yazid franzindo o cenho. Seus olhos pareciam espadas prontas para ferir e Zubaida achou a voz dele tão parecida com a do pai quando ficava zangado que precisou fazer um esforço para não rir. — Você esqueceu que não podemos colher uvas em pereiras espinhentas?

— É verdade, irmão — disse Hind, que entrou na sala sem ser vista, na hora em que Yazid falava -, mas você sabe tanto quanto eu que toda rosa tem espinho.

Yazid escondeu a cabeça nas costas da mãe, mas Hind, rindo e refeita, puxou-o e deu muitos beijos na cabeça, pescoço, ombros e no rosto dele.

— Vou gostar sempre de você, Yazid, mais do que de qualquer homem com quem venha a me casar. Meu futuro marido que se cuide. Você não tem com que se preocupar.

— Mas no último mês... — começou Yazid.

— Eu sei, eu sei e lastimo muito. Não percebi que nos afastamos, mas agora já passou. Vamos ser amigos outra vez.

Os braços de Yazid rodeavam o pescoço dela e ela o segurou no colo. Os olhos dele brilhavam quando foi colocado de volta no chão.

— Vá perguntar ao Anão o que ele está fazendo para o jantar — mandou Hind.

— Preciso conversar com nossa mãe a sós.

Quando Yazid saiu do quarto, mãe e filha sorriram. "Como ela se parece comigo", pensou Zubaida. "Eu também sofri até ter permissão para casar com o pai dela. No meu caso, a demora foi por causa da mãe de Omar, que estava insegura a respeito do sangue que corria em minhas veias. Hind não vai ter de passar por tudo isso, já que o rapaz é órfão."

Hind pareceu adivinhar o que a mãe pensava.

— Eu jamais conseguiria esperar tanto quanto você para eles conferirem se havia impurezas em seu sangue. Mas estou preocupada com outra coisa. Seja sincera, mãe: o que você acha de Ibn Daud?

— Um rapaz muito bonito e inteligente. Um ótimo partido para você, minha filha, o que mais você podia querer? Por que essa dúvida?

Hind sempre tivera uma ótima relação com a mãe. A amizade das duas se devia, em grande parte, ao clima descontraído que existia na casa. Hind não podia imaginar como seria a vida se o pai tivesse casado de novo, ou mantivesse uma concubina numa casa da aldeia. Ela visitou muitas vezes os primos em Curtuba e Ixibilia, o bastante para saber como são as famílias que estão sempre sob tensão. As histórias que os primos contavam de casos passageiros, com qualquer mulher, faziam com que ela pensasse em bordéis; os relatos de brigas entre as mulheres faziam com que ela imaginasse um ninho de cobras. A vida em al-Hudayl era muito diferente.

Quando ficou mais velha, Hind se aproximou mais ainda da mãe. Graças a um pai liberal, Zubaida recebeu uma educação pouco ortodoxa e por isso, quando teve filhos, resolveu que a caçula de suas duas filhas não seria submetida à camisa-de-força dos preconceitos, nem seria obrigada a seguir um papel predeterminado dentro da família. Desde criança, Cultum era uma pessoa afeita à tradição. Quanto a Hind — até o pai notou, quando ela tinha apenas dois anos -, era uma iconoclasta. Apesar dos temores e repetidos avisos que Ama fazia, Zubaida incentivava esse lado da filha.

Por tudo isso, Hind sabia muito bem como responder à pergunta feita pela mãe. Sem qualquer hesitação, começou a contar o que tinha acontecido naquela tarde, certificando-se de não esquecer qualquer detalhe. A mãe ouviu com muita atenção e, quando o relato terminou, ela apenas riu. Mas aquela alegria escondia uma preocupação. Se Omar estivesse ali, teria percebido na hora que era um riso nervoso.

Zubaida não queria alarmar a filha. Não era comum nela, mas tentou conciliar a situação.

— Você está preocupada porque ele não deixou que a seiva de sua palmeira regasse o seu jardim. Estou certa?

Hind concordou, séria. — Menina boba! O que Ibn Daud fez está certo. Afinal de contas, ele é nosso hóspede e seduzir a filha da casa, enquanto as criadas tomavam conta dela, não seria uma forma muito digna de retribuir a gentileza e hospitalidade de seu pai.

— Sei disso! Sei disso! — reclamou Hind. — Mas havia algo mais que não sei dizer. Mesmo quando as mãos dele me apertavam, faltava paixão nelas. Ele não tinha desejo, até que eu o toquei. Mesmo então, teve medo. Não de meu pai, mas de mim. Ele nunca esteve com uma mulher antes, isso era bem óbvio. Só não entendo por que, pois, quando você eAbu desafiaram os pais dele e foram para... — Seu pai não era Ibn Daud! Era um cavaleiro do clã dos Banu Hudail. E, quando fomos para Curtuba, já estávamos casados há muitas horas. Vá para o banho e deixe que eu resolvo esse problema.

O sol estava se pondo quando Hind passou pelo pátio. Ela parou, hipnotizada pelas cores à sua volta. Os picos cobertos de neve que dominavam al-Hudayl estavam iluminados por diversos tons de roxo e laranja e parecia que as casinhas da aldeia tinham sido recém-caiadas. Hind estava tão absorta por aquela beleza que seus sentidos se esqueceram do resto. Poucos minutos antes, tinha sentido frio e tristeza; de repente, estava contente por estar sozinha.

"Ontem", pensou ela, "se eu visse um anoitecer como este, ia querer que ele estivesse ao meu lado para desfrutar os encantos da natureza. Hoje, estou contente por estar só." Distraída em seus pensamentos enquanto caminhava em direção ao hammam, Hind não ouviu os sons alegres que vinham da cozinha. Yazid estava sentado num banquinho, enquanto o Anão tocava tamborim e cantava um zajal. Os criados bebiam uma forte infusão, destilada das sobras dos tonéis dos vinhedos próximos a al-Hudayl. O Anão estava meio bêbado. Mas era bem óbvio que seus três assistentes e os dois homens — cuja única função era passar a comida das panelas para os pratos e colocá-los na mesa — tinham tomado muito xixi do diabo.

Dançavam em volta do Anão, que, sentado numa mesa, cantava. Ama estava nos degraus do lado de fora da cozinha, fazendo um olhar de desaprovação. Ela tentou distrair Yazid e levá-lo para dentro de casa, mas, como estava se divertindo muito, ele não quis obedecer.

O Anão parou de tocar. Estava cansado, mas seus fãs queriam que o espetáculo continuasse.

— Só mais uma vez — gritavam -, cante a música de Ibn Cuzman. Cante para nosso amo!

— É, por favor, Anão — Yazid repetiu também.

— Só mais uma.

O Anão ficou sério.

— Vou cantar a balada composta por Ibn Cuzman há cerca de trezentos anos, mas quero que seja ouvida com o respeito devido a um grande mestre.

Jamais existirá um trovador como ele. Quem me interromper, jogo esse vinho na barba dele. Está certo, seus falastrões orgulhosos?

Com isso, a cozinha, que pouco antes parecia palco de uma orgia de bêbados, ficou em silêncio. Só se ouvia o borbulhar de uma enorme panela com a refeição da noite.

O Anão fez um sinal para seu ajudante de cozinha, um menino de doze anos que tinha fabricado um alaúde, e começou a afinar as cordas. Depois, o menino fez um sinal para seu pequeno chefe, que começou a cantar o zajal de Ibn Cuzman numa voz profunda e bela.

"Encha a preciosa taça com o mar dourado, E traga-a para mim! Deixe que o velho vinho passe de um convidado a outro, Com suas bolhas brilhando como pérolas no seu peito, Como se tivesse despojado a noite de sua escuridão. Por Alá! Veja-o espumar e sorrir em centenas de taças! Como se tivesse vindo de uma constelação de estrelas.

Passe-o ao som de música suave, aqui, nesta roda que é como um tapete de flores, em que doces gotas de orvalho refrescam o chão e umedecem meus pés e braços, que delícia, com seu perfume fresco e suave.

Sozinho no verde do jardim, uma jovem canta e encanta: seu sorriso irradia um brilho radiante e, já que ninguém nos vê, eu venço a timidez e grito: `Por Alá, vamos ser felizes!"'

Todos aplaudiram, Yazid era o mais entusiasmado. — Anão — disse ele animado -, você devia largar a cozinha e virar trovador! Tem uma voz tão bonita!

O Anão abraçou o menino e beijou sua cabeça. — Agora não dá mais, Yazid bin Omar. Não dá mais para cantar, não dá mais para nada. Acho melhor você dizer à Sra.

Zubaida o que ela mandou perguntar aqui na cozinha.

Yazid tinha esquecido.

— O que foi que ela pediu, Anão?

— Já esqueceu os ingredientes do meu assado vespertino? Yazid franziu o cenho e coçou a cabeça, mas não conseguia lembrar nenhum ingrediente. Encantado com a música do vinho, esqueceu por que tinha vindo à cozinha. O Anão o lembrou e, para garantir que a memória do menino guardaria tudo, declamou a receita com um ritmo e uma entonação que eram bem conhecidas de Yazid. A voz sonora do Anão imitava uma ladainha do Alcorão.

— Ouçam bem todos vocês, meus comensais. Esta noite preparei meu assado favorito, que só pode ser consumido depois que o sol se põe. Nele vocês vão encontrar vinte e cinco batatas graúdas, cortadas em cubos. Vinte nabos, limpos e fatiados, dez taros descascados até ficarem brilhando e dez peitos de cordeiro. Quatro frangos dos quais se tirou todo o sangue, uma tigela com iogurte, ervas e temperos para dar um tom ferrugem. Acrescente à mistura uma xícara de melado e, por Alá, está pronto. Mas, jovem amo Yazid, é preciso lembrar uma coisa! A carne e os legumes devem ser fritos à parte, depois misturados na água onde os legumes foram cozidos. Deixe ferver devagar enquanto nós cantamos e festejamos. Quando terminarmos a nossa farra, por Alá, o assado está pronto. O arroz também está pronto. Os rabanetes, cenouras, pimentões, tomates, cebolas e pepinos estão lavados e aguardando impacientemente para juntar-se ao assado na baixela de prata. Você vai conseguir se lembrar disso tudo, Yazid bin Omar?

— Vou! — gritou Yazid, correndo da cozinha, lutando para não esquecer as palavras e seu ritmo.

O Anão viu o menino sair pelo jardim até a casa, seguido por Ama, e um sorriso triste apareceu em seu rosto.

— Qual será o futuro deste bisneto de Ibn Farid? — perguntou alto.

Yazid foi direto para o quarto da mãe e repetiu as palavras do Anão. O pai sorriu.

— Se conseguisse decorar o Alcorão com a mesma facilidade, meu filho, nossos aldeões ficariam muito felizes com você. Vá se lavar antes de comermos esse assado vespertino.

Quando o menino escapuliu do quarto, os olhos de Zubaida brilharam.

— Ele está contente outra vez. Omar bin Abdala e sua esposa estavam conversando sobre o destino da filha caçula. Zubaida contou para o marido uma versão diferente dos acontecimentos que se passaram sob a romãzeira. Para não preocupá-lo, excluiu tudo o que dissesse respeito a palmeiras, tâmaras e outras frutas do gênero. Omar ficou impressionado ao tomar conhecimento da maturidade e dignidade de Ibn Daud.

Só por causa disso, resolveu dar permissão ao jovem para casar-se com Hind. Foi nesse ponto da conversa que Zubaida falou de sua preocupação.

— Você não acha que Ibn Daud pode se interessar só por homens?

— Por quê? Só porque não aceitou o gentil convite de nossa filha para livrá-la da virgindade?

Para não revelar mais nada, Zubaida resolveu ficar quieta.

— Não — disse ela -, foi um palpite meu. Quando falar com ele depois da refeição desta noite, eu ficaria mais tranqüila se você perguntasse isso.

— O quê? — berrou Omar.

— Em vez de falar sobre os sentimentos que ele tem por Hind, eu viraria um inquisidor, como se fosse um padre sórdido que exagerou seu papel no confessionário. Será que devo torturá-lo também? Não, não e não! Você não é digna de pensar isso.

— Omar — retrucou Zubaida, com os olhos brilhando de raiva -, não vou deixar que minha filha case com um homem que vai fazê-la infeliz.

— O que você acharia se o seu pai tivesse feito essa pergunta para mim antes de autorizar o nosso casamento?

— Mas não era preciso. Era, meu marido? Eu não tinha a menor dúvida sobre isso.

— Zubaida estava se fazendo de sedutora, algo tão fora de hora que ele teve de rir.

— Se insistir, mulher, posso dar um jeito de perguntar ao jovem sem ofendê-lo.

— Ele não precisa se ofender. Estamos falando de uma coisa que é comum.

O jovem de quem falavam estava em seu quarto se arrumando para a refeição da noite. Fora invadido por uma sensação estranha, difícil de explicar. Estava triste porque sabia que tinha desapontado Hind. Lembrava os acontecimentos da tarde e o temor foi sendo substituído por uma agitação inédita para ele.

"Será que não consigo tirá-la da cabeça?", pensou, vestindo sua túnica. "Não quero pensar nela e não consigo pensar em outra coisa. Como é que imagens dela entram na minha cabeça sem que eu queira? Sou um idiota! Devia ter contado a ela que o único amante que tive foi um homem. Por que não disse? Porque gosto muito dela, não quero que me rejeite, quero que seja minha esposa. É a primeira pessoa que amo desde que Mansur morreu. Outros homens me abordaram, mas recusei suas investidas.

Hind quem me despertou de novo, é Hind que me emociona, mas o que ela leu no meu rosto?"

A caminho da sala de jantar, Ibn Daud foi surpreendido por Yazid.

— Que a paz esteja contigo, Ibn Daud.

— E contigo também, Yazid bin Omar.

— Quer saber o que o Anão fez para nossa refeição? Quando Ibn Daud concordou, Yazid recitou a lista de ingredientes exatamente como o Anão disse. Seu novo preceptor, que não tinha visto o Anão falando, ficou muito impressionado. Chegaram juntos à sala de jantar.

Ibn Daud estava feliz por ter feito as pazes com o aluno, achava que era um bom sinal. Todos foram muito atenciosos com ele durante a refeição. O assado vespertino do Anão tinha sido um grande sucesso e Hind insistiu para ele repetir o prato.

Miguel tinha voltado para Curtuba. Zara tinha morrido. Zuair estava em Garnata. Cultum estava visitando os primos e futuros cunhados em Ixibilia. A reunião da família na sala de jantar estava bem desfalcada. Com isso, o grupo do qual Ibn Daud fazia parte ficou mais íntimo do que nunca. Zubaida o viu olhando para Hind com um sorriso e isso a tranqüilizou. Talvez tivesse sido um falso alarme, talvez a opinião de Omar fosse mais acertada do que a dela. Ela começou a se sentir culpada e queria pedir ao marido para não fazer perguntas embaraçosas ao rapaz, mas era tarde. Omar já tinha começado a falar.

— Ibn Daud — disse o dono da casa -, você poderia dar uma voltinha comigo depois do café?

— Seria uma honra, senhor.

— Posso ir também? — perguntou Yazid com uma voz casual. Como Zuair não estava, achou que devia participar dessa conversa no lugar do irmão.

— Não — sorriu Hind. — Quero jogar xadrez com você. Acho que com uns dez lances pego seu rei.

Yazid ficou contrariado, mas acabou concordando com a irmã. — Pensando melhor — disse ele para o pai -, vou ficar em casa, está esfriando lá fora.

— Boa idéia — disse Omar, enquanto se levantava e caminhava em direção à porta que dava para o terraço.

Ibn Daud cumprimentou Zubaida e olhou para Hind como se implorasse para não ser muito dura com ele. Saiu da sala atrás de Omar. — Vá para o meu quarto e coloque as peças do xadrez no tabuleiro — ordenou Hind para o irmão.

— Encontro você já.

— Acho que estávamos enganadas a respeito de Ibn Daud — disse Zubaida assim que o filho saiu da sala.

— Você reparou nele durante a refeição? Não parava de olhar para você. Ele pode estar confuso, mas gosta de você.

— Talvez você tenha razão, mas a paixão incontrolável que tive por ele acabou. Ainda gosto dele, posso até vir a amá-lo com o tempo, mas sem a mesma intensidade de antes. O que aconteceu ontem à tarde me deu uma terrível dor de cabeça.

— Nem nossos maiores médicos conseguiram curar os problemas do coração, Hind. Fique tranqüila. Você é muito parecida comigo, muito impaciente, quer tudo na hora.

Fui assim com seu pai, e os pais dele acharam que meu simples desejo era cobiça.

— Claro, mãe — disse Hind com uma voz muito suave -, mas não sabemos quanto tempo cada um de nós ainda vai viver. Quando você era jovem, o sultão estava no palácio de alHamra e o mundo parecia um lugar seguro. Hoje, nossas vidas são cheias de incertezas. Todos na aldeia se sentem inseguros. Nem a falsa magia dos sonhos consola mais. Nossos sonhos ficaram amargos. Lembra quando Yazid chorou, agarrado em Zuair, implorando que ele não fosse para Garnata?

— Alguma mãe consegue esquecer uma cena dessas?

— Ver Yazid tão desesperado me incomodou e falei coisas muito duras no ouvido de Zuair. Fiz uma estupidez, disse que ele era egoísta desde que nasceu. Ele empalideceu. Colocou Yazid no chão, me puxou para um lado e disse no meu ouvido: "Não se ganha nada ficando amarrado à rotina de todo dia. A única liberdade que nos resta é escolher como queremos morrer, e até isso você quer tirar de mim."

Zubaida abraçou Hind e a apertou. Não disseram mais nada.

No silêncio, podiam ouvir o vento soprando lá fora, os dois corpos se comunicavam entre si.

— Hind! Hind! — a voz de Yazid fez com que elas voltassem ao mundo em que continuavam a viver.

— Estou esperando. Anda, já planejei os lances que vou dar!

As duas mulheres sorriram. Algumas coisas jamais mudariam. Lá fora, na noite escura, Omar e Ibn Daud caminhavam em volta dos muros da casa. Eles também discutiram a situação de seu mundo, embora com um enfoque mais filosófico. Agora que estavam a uma distância em que os vigias noturnos da casa não os podiam ouvir, Omar resolveu não perder mais tempo.

— Soube que você hoje deu um passeio com Hind depois do almoço. Ela é um tesouro muito precioso. A mãe e eu gostamos muito dela, não queremos que se magoe ou aborreça.

— Gostei muito quando o senhor me chamou para andar. Amo Hind e quero pedir sua permissão para casar com ela.

— Veja bem, Ibn Daud — disse Omar de um jeito mais sério.

— Só um cego ousa defecar no telhado achando que ninguém vai ver!

Ibn Daud ficou apreensivo. Não tinha idéia do que Omar sabia. Talvez Yazid tivesse contado para a mãe, talvez as criadas tivessem falado, talvez...

— O que quero dizer, meu caro amigo, é que não há desculpa para uma pessoa cair duas vezes no mesmo buraco.

Então ele entendeu.

— Não tenho nada para esconder de Hind, nem do senhor, nem da Sra. Zubaida — falou Ibn Daud, meio agitado. — Tive um problema alguns anos atrás. Um estudante colega meu. Nós nos amávamos. Ele morreu há mais de um ano. Desde então, não estive com nenhum homem ou mulher. Meu amor por Hind é mais forte do que o que tinha pelo meu amigo. Eu preferia morrer a magoá-la de alguma forma. Se, com a sabedoria e experiência que têm, o senhor e a Sra. Zubaida acham que não sou a pessoa certa para ela, por favor, digam que arrumo minha mala e saio de sua nobre casa amanhã. Sua palavra será decisiva.

O vento tinha parado e surgiu um céu claro. A honestidade de Ibn Daud tinha afastado a escuridão da noite e o coração de Omar estava aliviado. Ele tinha ficado aflito com a desconfiança de Zubaida, embora não fosse admitir para ela. Conhecia muitas histórias familiares sobre mulheres infelizes que viviam com homens egoístas, que tinham amantes homens. Esses maridos achavam que a única função das mulheres era a procriação. O próprio tio-avô de Omar, o irmão mais jovem de Ibn Farid, exibiu seu amante naquela mesma casa — mas, pelo menos, nunca pensou em casar com uma mulher.

— Fiquei muito impressionado com a sua honestidade. Pelo que você diz, sua futura esposa é perfeita para você.

— Isso quer dizer que tenho sua permissão...? — Ibn Daud começou a falar, mas foi interrompido.

— Tem mais do que minha permissão, tem a minha bênção. E Hind terá um ótimo dote.

— Garanto ao senhor que o dote não me interessa.

— Você tem algum dinheiro?

— Nenhum. O dinheiro nunca teve muita importância na minha vida.

Omar riu quando começaram a voltar para casa. Ele achava que a única vantagem da pobreza era enobrecer algumas pessoas com uma dignidade que a opulência jamais conseguia dar.

— Não tem problema, Ibn Daud, você receberá o dote de qualquer jeito. Meus netos vão agradecer minha previdência. E você resolveu onde vão morar? Vai voltar para al-Qahira?

— Não. É o único lugar onde não quero viver. Claro que vou discutir tudo isso com a Sra. Hind, mas a cidade do Magreb que mais me agrada é Fez. Não é muito diferente de Garnata, só que não tem o arcebispo Cisneros. E, segundo dizia minha avó, Ibn Khaldun gostava muito dela e queria morar lá para sempre.

Embora poucas semanas antes Omar tivesse ficado com raiva do cairota só de ver Hind encantada por ele, agora começava a sentir uma espécie de admiração pelo jovem.

Não o considerava mais maçante nem arrogante e começava a achar que ele podia se sustentar apenas com o que ganharia com sua inteligência. Quando chegaram ao pátio interno, Omar achou que ele era um dos poucos homens com os quais Hind podia ser feliz. E abraçou Ibn Daud.

— Que a paz esteja contigo e durma bem.

— Que a paz esteja contigo — respondeu o erudito de al-Qahira, com a voz turvada por emoções que mal conseguia esconder.

Quando Omar entrou no quarto da esposa, encontrou Hind massageando as pernas e os pés da mãe. Zubaida sentou-se assim que o marido entrou no quarto.

— E então?

— Quem ganhou o jogo, Hind? — foi a resposta de Omar, só para irritar sua esposa.

— Omar! — pediu Zubaida.

— Como foi? Omar, parecendo muito tranqüilo e calmo, olhou para ela sorrindo.

— Era o que eu pensava — respondeu.

— O rapaz gosta mesmo de nossa filha. Disso não tenho a menor dúvida. Dei minha autorização, agora depende de Hind.

— E aquilo que me preocupava? — insistiu Zubaida.

— Eu estava completamente enganada?

Omar deu de ombros.

— Não tinha importância. Zubaida sorriu satisfeita.

— Depende de você e só de você, minha filha. Estamos felizes. O rosto de Hind enrubesceu quando ouviu a conversa. Seu coração começou a bater mais forte.

— Vou pensar bem esta noite — disse ela de um jeito desinteressado — e amanhã dou uma resposta.

Depois, beijou os pais e, com muita pose, saiu devagar do quarto.

Quando já estava na tranqüilidade de seu quarto, ela começou a rir baixinho; depois, bem alto. O riso mostrava sua vitória, sua alegria, e tinha também um pouco de histeria.

— Queria que você não estivesse morta, tia-avó Zara.

— Hind estava olhando para um espelho e examinando seu rosto, cuja suavidade natural era destacada pela luz da lamparina.

— Preciso falar com você. Acho que vou me casar com ele, mas primeiro preciso me convencer de que seu amor é verdadeiro, e só existe um jeito de saber isso. Você mesma me disse.

Convicta de que estava certa no que ia fazer, Hind apagou a lamparina em seu quarto e foi até o pátio na ponta dos pés. Estava escuro como breu, as nuvens surgiram outra vez e esconderam as estrelas. Ela esperou até seus olhos se acostumarem com a escuridão e andou rápido em direção aos quartos de hóspedes.

Quando chegou do lado de fora do quarto de Ibn Daud, ela parou para se acalmar um pouco. Olhou em volta com atenção: estava tudo sossegado e a lamparina do quarto dele ainda estava queimando. Bateu de leve na porta do quarto. Lá dentro, Ibn Daud ficou intrigado. Enrolou-se num lençol, saiu da cama e destrancou a porta.

— Hind! — a surpresa dele foi tanta que quase não conseguiu ouvir a própria voz.

— Entre, por favor.

Hind entrou, esforçando-se para não rir ao ver aquele rapaz que era tão composto tentando segurar um lençol direito. Ela sentou na cama.

— Meu pai contou que deixou você casar comigo.

— Mas se você aceitar. Foi só o que seu pai disse?

— Foi. O que mais você contou para ele?

— Uma coisa que devia ter contado para você há vários dias. Fui bobo, Hind. Acho que fiquei com medo de perder você

— Do que você está falando? Ibn Daud repetiu toda a história de seu amor pelo falecido Mansur, inclusive os detalhes que podiam deixá-la mais aborrecida. Disse que eles tinham o mesmo quarto na universidade de al-Azhar, que gostavam muito de ficar juntos e que, uma noite, a afinidade intelectual que tinham fez com que se aproximassem fisicamente. Contou como se encontraram e depois a respeito da morte de Mansur.

— Você foi a pessoa que me trouxe de volta à vida.

— Fico feliz por isso. Você certamente já percebeu que eu sou uma dessas pessoas que preferem um coração cheio de angústia a uma felicidade plácida, que costuma ser baseada na decepção e no desapontamento. A maioria dos casamentos vive numa frieza vazia. Quase todas as minhas primas se casaram com homens grosseiros, com a sensibilidade de um tronco de árvore. Casar só por casar é coisa que jamais me interessou. Posso perguntar uma coisa?

— O que quiser — a voz de Ibn Daud soava ansiosa e aliviada.

— Podemos ser muito amigos, escrever poesia juntos, caçar, discutir astronomia, mas você tem certeza de que quando o sol se esconder você vai querer o corpo de uma mulher em seus braços?

— Eu a desejei desde esta tarde. Estava confuso e inseguro, mas o toque de suas mãos no meu corpo foi algo que eu gostaria muito de repetir quando o sol aparece e ainda mais à noite.

Ele acariciou o rosto dela, que voltou a sentir desejo e o abraçou, percebendo seu corpo nu sob o lençol de algodão. Quando imaginou a palmeira ereta, ela arrancou o lençol e o abraçou com força. Depois, soltou-o e despiu-se.

— As batidas do seu coração vão acordar a casa inteira — brincou ela, quando apagou a lamparina e deitou ao lado dele na cama.

— Você tem certeza, Hind? Tem certeza? — perguntou ele, sem conseguir mais se controlar.

Ela concordou. Delicadamente, ele plantou sua árvore no jardim dela. Ela sentiu uma dor, que em segundos passou a ser uma dor-prazer, depois relaxou e desfrutou enquanto seus corpos começavam a fazer um movimento sincronizado, chegando juntos ao orgasmo. Hind sabia por todos os primos e criadas que a primeira vez era a menos prazerosa. Ela se estirou na cama e lembrou o prazer que sentiu.

— Agora você tem certeza? — perguntou ele, sentando na cama e olhando-a com curiosidade.

— Sim, meu amor, tenho certeza. E você? — O que quer dizer com isso, sua diaba?

— Quero dizer: foi tão bom quanto costumava ser com Mansur? — É muito diferente com você, minha princesa, e vai continuar sendo. Uma romã pode dar tanto prazer como uma ostra, embora o gosto das duas seja completamente diferente. Compará-las é deturpar o sabor de ambas.

— Estou avisando, Ibn Daud, antes de nos casarmos. Se você me deixar por um lindo rapaz vendedor de figos, minha vingança vai ser pública e brutal.

— O que você vai fazer? Como resposta, ela agarrou a palmeira dele.

— Vou tirar tâmaras e colocá-las em salmoura. Os dois riram. A chama elevou-se outra vez e eles fizeram amor muitas vezes naquela noite. Ele adormeceu antes dela.

Ela ficou durante muito tempo olhando o corpo adormecido a seu lado, relembrando o que tinha acabado de experimentar. Acariciou o cabelo dele, esperando que assim o acordasse, mas ele não se mexeu. desejava saboreá-lo outra vez mas o sono, cansado de esperar, foi mais forte que o desejo.

Pouco antes do amanhecer, Zubaida entrou no quarto, sabendo o que ia ver. Colocou a mão sobre a boca da filha para evitar que, com um grito de susto, pudesse constranger seu amado, depois sacudiu-a suavemente até que acordasse. Ao ver a mãe, ela sentou na cama e Zubaida fez sinal para saírem do quarto em silêncio.

— Eu o amo, vou casar com ele — murmurou Hind sonolenta, quando atravessaram o pátio interno.

— Estou muito satisfeita de ouvir essa notícia — disse a mãe -, mas acho que você devia casar com ele esta tarde!


Capítulo 11

Ximenes está em sua mesa pensando. Minha pele pode ser muito escura, meus olhos não são azuis mas castanho-escuros e meu nariz é adunco e grande, mas, mesmo assim tenho certeza, sim, certeza, de que meu sangue não é sujo. Meus antepassados estavam aqui quando os romanos chegaram e minha família é muito mais antiga do que os ancestrais visigodos do nobre conde, nosso corajoso capitãogeral. Por que eles cochicham que tenho sangue judeu? Será uma piada de mau gosto? Ou será que alguns dominicanos desleais estão espalhando esse veneno para me desacreditarem dentro da Igreja e assim mais uma vez haver desconfiança e confundirem a diferença entre nós, seguidores de Moisés, e os seguidores do falso profeta Maomé? Qualquer que seja o motivo, é mentira, está me ouvindo? Não é verdade. Meu sangue é puro!

Puro como faremos que um dia seja esse reino. Não vou chorar nem reclamar por causa desses grandes insultos, mas continuarei o trabalho de Deus. Esses lobos me chamam de animal, mas não ousam me atacar porque sabem o preço que teriam de pagar por meu sangue. A devoção de Maria e o sofrimento de Nosso Senhor, que morreu crucificado, despertam estranhas emoções em mim. Em meus sonhos, costumo me ver como um cruzado sob as muralhas de Jerusalém ou chegando a Constantinopla. Minha memória está muito presa à época do cristianismo, mas por que estou sempre sozinho, até em sonhos? Sem família, sem amigos, sem piedade pelas raças inferiores.

Não há sangue judeu em mim, nem uma gota sequer. Não tenho dúvidas sobre isso.

Poucas horas antes, um espião tinha contado a Ximenes sobre um incidente ocorrido no final de um banquete realizado na noite anterior. Depois de beber muito vinho durante a reunião de nobres muçulmanos e cristãos e comerciantes judeus, os convivas se distraíam assistindo a uma exibição de dançarinas, quando um cortesão observou que era uma pena que o arcebispo de Toledo não pudesse estar presente para desfrutar companhia tão agradável. Ouviu-se então o capitão geral Dom Inigo dizer que a razão para a ausência do prelado bem podia ser porque, à luz de velas, era impossível distingui-lo de um judeu. Não falou só isso, mas falou bem alto, em meio a risadas gerais, que devia ser por isso que Sua Graça evitava a companhia dos judeus mais do que a dos mouros. Pois era difícil saber a diferença entre um mouro e um cristão, mas os judeus tinham conservado seus traços característicos, bastava observar Ximenes com atenção para comprovar isso.

Nesse ponto um nobre mouro, cofiando sua densa barba ruiva e com um brilho nos olhos azuis e argutos, perguntou a Dom Inigo se era verdade que a obsessão que o arcebispo tinha de destruir os seguidores do único Deus era muito mais para provar sua pureza racial do que defender a Trindade. Dom Inigo fez uma expressão irônica-séria e falou bem alto que a idéia era absurda, depois deu uma piscadela para seus convidados.

Ximenes dispensou o espião com um gesto irritado, mostrando que não estava interessado em intrigas maldosas. Na verdade, estava lívido de ódio. Tinha conhecimento das acusações e injúrias feitas por línguas mouras e hipócritas. Não havia um só dia que não soubesse dos insultos que faziam a ele, quem os fazia e em que ruas da cidade. A lista de nomes era longa, mas, na hora certa, ele cuidaria de cada um dos ofensores. Com idéias desse tipo tumultuando sua cabeça e aumentando a produção de bílis em seu corpo, não é de estranhar que a disposição do arcebispo naquela manhã não fosse das melhores.

Foi nesse exato momento que bateram na porta. — Entre! — disse ele naquela voz falsamente fraca. Barrionuevo, um intendente real, entrou na sala e beijou o anel do bispo.

— Com sua permissão. Vossa Graça, os dois traidores fugiram para o bairro antigo e se esconderam na casa da mãe.

— Não estou conseguindo me lembrar desse caso. Diga o que é.

Barrionuevo limpou a garganta. Não estava acostumado a falar ou explicar nada. Recebia ordens e as cumpria. Era um fracasso com as palavras e não sabia muitos detalhes sobre os dois homens: — Só sei o nome deles, Sua Graça. Abengarcia e Abenfernando. Soube que eles se converteram para nossa fé...

— Lembrei agora — foi a fria resposta. — Fingiram se converter, mas continuaram fiéis à seita de Maomé. Foram vistos cometendo um ato de sacrilégio em nossa igreja.

Urinaram num crucifixo, homem! Traga-os aqui, quero que sejam interrogados ainda hoje. Pode sair.

— Devo levar uma escolta, Sua Graça? Sem ela, pode haver resistência.

— Leve, mas no máximo seis homens armados. Senão pode causar problema.

Ximenes levantou da mesa e andou até a janela em forma de arco, de onde podia ver a rua lá embaixo. Sorriu pela primeira vez naquele dia, certo de que alguns mouros mais fanáticos achariam razão para pegar em armas por causa do intendente e dos soldados. Isso seria o fim deles. Em vez de fazer sua habitual caminhada para inspecionar a construção da nova catedral, ele resolveu ficar no al-Hamia e esperar a volta de Barrionuevo. Estava menos aborrecido em relação às notícias do banquete da noite anterior. Não pensou Mais naquilo, sentia um certo nervosismo, por isso se ajoelhou diante do enorme crucifixo que enfeava os intricados desenhos geométricos dos azulejos tricolores da parede.

— Santa Maria, mãe de Deus, suplico que nossos inimigos não me vençam hoje.

Quando ficou de pé, descobriu que o fogo que queimava sua cabeça tinha se espalhado até pouco abaixo de sua cintura. Aquela parte da anatomia, proibida a todos os que assumiam as Santas Ordens, estava em estado de rebelião. Ximenes despejou um pouco de água numa taça e bebeu-a de um gole. Sua sede aplacou.

Do centro da cidade antiga, Zuair e seus companheiros seguiam em direção à nova catedral, dando a impressão mais displicente possível. Iam em duplas, tensos e nervosos, fingindo que não se conheciam, mas certos de que estavam perto de uma dupla vitória. O odiado inimigo, o torturador de seus companheiros crentes, logo estaria morto e eles, os assassinos, estavam certos do martírio e de uma rápida ascensão ao paraíso.

Eles tinham se encontrado para tomar o café da manhã bem cedo, quando detalharam o plano. Cada um dos oito rapazes se levantara e fizera uma despedida formal dos demais:

— Até nos encontrarmos de novo, no céu. Naquela manhã, Zuair começou a escrever uma carta para Omar, contando todas as suas aventuras na estrada para Garnata, descrevendo o doloroso dilema que enfrentara e explicando sua decisão de participar da ação que todos aprovaram, menos ele:

Vamos armar uma emboscada para Cisneros, mas, mesmo se conseguirmos pegá-lo, sei muito bem que todos e cada um de nós se prejudicará com isso. As coisas são bem diferentes do que eu pensava. A situação para os garnatianos piorou muito desde que você esteve aqui. Há muito ódio e desmoralização. Eles estão decididos a nos converter e Cisneros autorizou o uso da tortura para ajudar o processo. Claro que muita gente suporta a dor física, mas acaba enlouquecendo. Depois da conversão, ficam desesperados, andam pelas igrejas e defecam no altar, urinam na pia batismal, emporcalham os crucifixos e saem rindo como se tivessem ficado insanos. Cisneros reage com ódio e o ciclo inteiro se repete. Aqui, temse a impressão de que, enquanto Cisneros estiver vivo, as coisas só vão piorar. Não acredito que a morte dele melhore as coisas, mas vai, sem dúvida, diminuir a agonia que aflige grande parte de nosso povo.

Pode ser que eu não sobreviva hoje e por isso beijo todos, principalmente Yazid, que jamais deve ter permissão para repetir os erros do irmão...

Zuair e Ibn Basit estavam quase cruzando a rua quando viram o intendente Barrionuevo e seis soldados vindo na direção deles. Por sorte, não se assustaram, mas, quando Barrionuevo parou em frente a Zuair, os outros três grupos desviaram e dobraram à esquerda, desaparecendo no meio das muitas ruelas secundárias, como tinham combinado.

— Por que você está com uma espada? — perguntou Barrionuevo.

— Desculpe, senhor — respondeu Zuair.

— Não sou de Garnata. Venho de al-Hudayl e estou passando uns dias com este amigo. Agora é proibido andar com espadas na rua? — respondeu o intendente. — Seu amigo aí devia saber muito bem disso. Pode ir, mas antes volte para a casa dele e deixe a espada lá.

Ibn Basit e Zuair sentiram um grande alívio. Não tinham outra saída senão voltar e ir até o funduq. Os outros estavam lá esperando por eles e deram gritos de alegria quando os dois entraram no quarto.

— Pensei que nunca mais os veríamos — disse Ibn Amin, abraçando-os.

Zuair viu o alívio no rosto deles e percebeu logo que não foi só pelo reencontro que a tensão diminuiu. Havia algo mais, era óbvio pela expressão satisfeita no rosto de Ibn Amin. Zuair olhou para o amigo e levantou a sobrancelha, aguardando que ele dissesse alguma coisa. Ibn Amin então falou:

— Temos de cancelar nosso plano. Um amigo do palácio mandou um recado para nnós dizendo que Ximenes triplicou sua segurança e cancelou a visita que faria-à-cidãde hoje. Achei que havia alguma coisa estranha no ar. Vocês perceberam que as ruas estavam completamente desertas?

Zuair não conseguia disfarçar sua alegria.

— Que Alá seja louvado! — gritou ele.

— O destino interveio para evitar nosso sacrifício. Mas você tem razão, Ibn Amin. O clima está tenso. Por que será? Terá alguma coisa a ver com o passeio do intendente real?

Enquanto eles continuavam a considerar e começaram a discutir se deviam voltar às ruas e descobrir o que havia, um velho criado do funduq entrou no quarto.

— Mestres, por favor, corram para a Rua dos Aguadeiros. Dizem que é melhor ir armado.

Zuair pegou sua espada outra vez. Os outros seguraram seus punhais ao sair do funduq al-Yadida. Não precisaram procurar muito para ver onde era. Havia um som surdo no ar, aumentando cada vez mais, parecia que todos os moradores do bairro estavam nas ruas.

Das portas em forma de ferradura das casas e oficinas saíam pessoas para as ruas, sem parar. O som de objetos de cobre, os berros e uma orquestra de tamborins juntava todos. Aguadeiros e vendedores de tapetes se misturavam com vendedores de frutas e faqihs. Era uma multidão heterogênea e furiosa, o que era bastante óbvio para os conspiradores do funduq, mas por quê? O que tinha acontecido para incitar aquela massa de gente que, até um dia antes, parecia tão calma?

Um conhecido de Ibn Amin, um companheiro judeu que esteve no local do incidente, contou, nervoso, tudo o que tinha acontecido até o momento em que precisou ir embora para cuidar do pai doente.

— O intendente real e seus soldados foram para a casa de uma viúva, na Rua dos Aguadeiros. Os dois filhos dela se esconderam lá ontem à noite. O intendente disse que o arcebispo queria vê-los hoje e a viúva, irritada com os soldados, impediu que entrassem na casa. Quando ameaçaram derrubar a porta, ela despejou uma panela de água quente da varanda.

— Um dos soldados ficou bem queimado, deu gritos horríveis. Quando lembrou, o narrador se assustou e começou a tremer. — Fique calmo, amigo — disse Zuair, passando a mão em sua cabeça.

— Não há por que se preocupar. Conte o que aconteceu depois.

— Foi pior, muito pior — começou o amigo de Ibn Amin.

— O intendente estava tão assustado quanto irritado com essa provocação. Ele ordenou a seus homens que entrassem na casa e prendessem os filhos da viúva. O tumulto começou a atrair outras pessoas e logo havia mais de duzentos rapazes, que fizeram uma barricada dos dois lados da rua. Aos poucos, começaram a avançar em direção ao intendente e seus homens. Um dos soldados ficou tão assustado que molhou as calças e pediu misericórdia. Deixaram que ele fosse embora. Os outros soldados empunharam suas espadas, o que foi fatal. As pessoas foram acuando os soldados até que eles ficaram contra o muro. Depois o filho de al-Vaab, o negociante de azeite, pegou uma espada no chão que um dos soldados tinha deixado cair. Ele foi até o intendente e o empurrou para o meio da rua. "Mãe", berrou ele para a viúva que assistia a tudo da janela. "Sim, meu filho", respondeu ela, atenta. "Diga", disse Ibn Vaab, "como é que este maldito deve ser castigado?" A velha senhora colocou um dedo na garganta. A multidão ficou quieta. O intendente, chamado Barrionuevo, ajoelhou-se pedindo misericórdia. Parecia um animal acuado, a cabeça dele estava aos pés de Ibn Vaab. Neste exato momento, a espada baixou. Bastou um golpe e a cabeça de Barrionuevo caiu na rua. Ainda há um rio de sangue na Rua dos Aguadeiros.

— E os soldados? — perguntou Zuair.

— O que fizeram com eles?

— Ainda estão discutindo o destino deles na praça. Os soldados estão vigiados por centenas de homens armados no Bab al-Ramla.

Vamos — disse Zuair com certa segurança para seus companheiros.

— Temos de participar da discussão. A vida de cada crente em Gàrnata depende do que vai ser resolvido agora.

A multidão era tão densa que todas as ruas estavam intransitáveis. Quem quisesse entrar ali tinha de se movimentar junto com a multidão, ou não conseguia se mexer.

E as pessoas continuavam chegando. De um lado, estavam os curtidores do rabbad alDabbagan, com as pernas descobertas, manchadas com tintas de diversas cores. Os fabricantes de tamborins tinham saído de suas oficinas no rabbad al-Difaf e se juntado à multidão, aumentando o barulho com o som de seus instrumentos tocando o mais alto possível. Os oleiros do rabbad al-Fajjarin vieram armados com sacos cheios de potes com defeito; ao lado deles e também bem armados, vinham os de rabbad al-Tawwabin.

De repente, Zuair viu algo que o emocionou e incentivou. Grupos de mulheres, jovens e velhas, com e sem o xador, empunhavam os estandartes de seda nas cores verde e prateada dos cavaleiros mouros, que elas e suas ancestrais costuravam e bordavam há mais de quinhentos anos no rabbad al-Bunud. Elas distribuíam centenas de pequenos crescentes de prata para as crianças, disputadas por meninas e meninos. Zuair se lembrou de Yazid: como ele ia gostar daquilo tudo e como ficaria orgulhoso de usar seu crescente. Zuair tinha pensado que nunca mais veria Yazid, mas agora podia ser diferente, já que seu plano de desafiar cavaleiros cristãos para um combate armado tinha falhado e a trama de matar Cisneros tinha sido adiada. Zuair começou a pensar no futuro outra vez e não conseguia esquecer o irmão, sempre atento a tudo com seu olhar esperto.

Cada rua, cada travessa, parecia um rio de gente correndo na direção do mar flutuante que ficava perto do portão de Bab al-Ramla. O vozerio subia e descia como em ondas. Todos previam uma tempestade.

Zuair estava decidido a pedir que poupassem a vida dos soldados. De repente, ele percebeu que estavam no rabbad al-Kuhl, a rua dos fabricantes de antimônio. Era lá que os recipientes de prata ficavam armazenados com o líquido que tinha destacado a beleza de inúmeros olhos desde que a cidade foi construída. Isso queria dizer que estavam perto do palácio de seu tio Hixam, que tinha uma passagem subterrânea levando direto ao Bab al-Ramla. A passagem fora construída junto com a casa para permitir que o nobre ou comerciante que morasse lá pudesse fugir rapidamente, se fosse cercado por rivais vitoriosos, nos infinitos conflitos entre palácios que faziam com que a cidade vivesse sob uma sombra permanente.

Zuair fez sinal para seus amigos o acompanharem em silêncio.

Bateu na entrada falsamente modesta da casa de Hixam. Um velho empregado da família olhou pela janelinha de treliças no primeiro andar e reconheceu Zuair. Desceu as escadas correndo, abriu a porta e deixou que todos entrassem. Parecia muito agitado

— O amo me fez jurar que eu não deixaria ninguém entrar hoje, só gente da família. Há espiões por todo canto, houve um crime terrível e os padres de Satanás vão querer se vingar com sangue.

— Meu velho amigo — disse Zuair com um jeito amistoso. — Não viemos para ficar, mas para sumir. Você não precisa nem contar a seu amo que nos deixou entrar. Conheço o caminho para a passagem subterrânea. Confie em Alá.

O velho entendeu. Levou-os para a entrada oculta no pátio e levantou um azulejo onde havia um pequeno gancho. Zuair sorriu. Quantas vezes ele e os filhos de Ibn Hixam saíram da casa ao anoitecer para encontros clandestinos com amantes, usando essa mesma saída. Ele deu um pequeno puxão no gancho e uma tampa quadrada se levantou, escondida atrás de dezesseis azulejos. Ajudou os amigos a descer pelo buraco e depois entrou também, mas primeiro abraçou o criado, que trabalhava para seu tio desde que Zuair era criança.

— Que Alá nos proteja a todos hoje — disse o velho, recolocando a tampa no lugar e fazendo com que o pátio voltasse ao normal.

Em poucos minutos, os rapazes estavam no mercado velho. Zuair temia que a saída do túnel fosse difícil de abrir por causa da multidão, mas a sorte estava do lado deles. A tampa levantou sem qualquer dificuldade.Quando homens-surgiram do chão na entrada coberta do mercado, um grupo de assustados moradores ficou olhando, surpreso. Os homens estavam com uma arma desembainhada: Zuair tinha entregado sua espada para Ibn Basit, que passara antes dele. Depois, ele colocou a pedra no lugar para que, na confusão, seu lugar não fosse notado.

Foi então que viram uma cena que nenhum deles jamais esqueceria. De costas para eles, estavam dezenas de milhares de homens, mulheres e crianças que tinham se reunido perto do Bab al-Ramla prontos a se vingar. Foi ali que ficaram em 1492 sem conseguir acreditar quando o crescente fora arrancado das ameias do alHamra ao mesmo tempo que ouviam o som ensurdecedor dos sinos e dos hinos cristãos. Foi ali também que, no ano anterior, eles assistiram em silêncio a Cisneros, que chamavam de "padre de Satanás", queimar seus livros. Naquela mesma praça, apenas um mês depois, uns soldados cristãos, bêbados, arrancaram os turbantes da cabeça de dois respeitáveis islamitas.

Os mouros de Garnata não eram pessoas difíceis ou obstinadas, mas o fato de passarem para o domínio cristão sem terem nenhuma chance de resistir fez com que ficassem amargurados. A raiva, reprimida durante oito anos, tinha vindo à tona e agora eles eram capazes de cometer até os atos mais insensatos. Podiam invadir o alHamra, arrancar cada pedaço de Ximenes, queimar igrejas e castrar qualquer padre que conseguissem pegar. Tinham ficado perigosos — não só para o inimigo, mas para eles mesmos. Depois que o último governante os impediu de resistir aos exércitos cristãos, acharam que era hora de reagir.

Muita gente — geralmente, pessoas que têm medo de multidão — diz que qualquer ajuntamento com mais de uma dúzia de pessoas é presa fácil para demagogos capazes de atear fogo na platéia e insuflar qualquer ação insensata. Essa afirmação ignora as causas subliminares que fizeram tantas pessoas se reunirem, por razões tão diferentes. Todas as rivalidades, políticas e comerciais, foram esquecidas; todas as vinganças tinham sido anuladas; houve uma trégua entre as facções religiosas em luta dentro do islamismo em al-Andaluz; a congregação estava unida contra os invasores cristãos. O que tinha começado como um gesto de solidariedade ao direito de uma viúva proteger os filhos tinha se transformado em uma pequena insurreição.

Ibn Vaab, o rapaz orgulhoso e imprudente que matou o intendente real, tinha subido num estrado de madeira construído às pressas e estava com a cabeça nas nuvens.

Pensava no alHamra e na pose que faria ao ser recebido pelos dignitários de Isabel, pedindo paz. Mas, infelizmente, sua primeira tentativa como orador fora um grande fracasso. Fora interrompido sem parar.

— Por que você está resmungando?

— O que está dizendo?

— Fale mais alto!

— Pensa que está falando com quem? Com o seu queixo imberbe?

Irritado com essa falta de respeito, Ibn Vaab aumentou a voz e usou o estilo de oratória dos padres. Falou quase meia hora, numa linguagem tão floreada e cheia de metáforas e citações de vitórias famosas, de Dimasq ao Magreb, que até o ouvinte mais paciente acabou achando que o orador era como um cântaro vazio — barulhento, mas sem conteúdo.

A única medida concreta que ele propusera foi a execução imediata dos soldados, com suas cabeças exibidas em estacas. A reação fora muda, o que fez com que um qadi perguntasse se mais alguém queria falar.

— Sim! — gritou Zuair. Levantou sua espada acima da cabeça e, com os ombros erguidos e uma expressão confiante, subiu no estrado. Seus companheiros o seguiram e a multidão, intrigada com aquela estranha procissão, abriu passagem. Muitos o reconheceram como o herdeiro de Banu Hudail. O qadi pediu a Ibn Vaab para descer e Zuair subiu no estrado, ajudado por muitos braços. Nunca tinha falado em público, quanto mais para uma multidão daquele tamanho, por isso tremia como folha no outono.

— Em nome de Alá, o misericordioso, o caridoso.

— Zuair começou da forma mais convencional possível. Não perdeu muito tempo desfiando as glórias de ssua religião, nem falou no passado, enfocou apenas a tragédia que recaiu sobre eles e a tragédia ainda maior que estava por vir. Percebeu que usava frases bem conhecidas. Eram mesmo, ele as tinha ouvido de al-Zindiq e Abu Zaid. Terminou fazendo um apelo impopular.

— Enquanto me dirijo a vocês, o soldado que assistiu à execução do intendente está no alHamra, contando todos os detalhes. Mas ponham-se no lugar dele: está morrendo de medo e, para parecer corajoso, exagera tudo. Daqui a pouco o capitão geral vai mandar seus soldados descerem a colina para pedir a soltura desses homens que fizemos nossos prisioneiros. Ao contrário de meu irmão Ibn Vaab, não acredito que devamos matálos. Sugiro que o libertemos. Se não fizermos isso, os cristãos vão matar dez dos nossos para cada soldado.

Pergunto a vocês: será que a morte deles vale a de um só crente? Soltálos agora seria um sinal de nossa força, não de nossa fraqueza. Depois de soltálos, deveríamos eleger uma delegação para falar em nosso nome. Tenho muitas outras coisas a dizer, mas vou conter minha língua até que vocês resolvam o que fazer com o destino destes soldados. Não quero falar mais nada na frente deles.

Para sua surpresa, Zuair viu que as propostas foram aplaudidas e receberam muitos sinais de aprovação. Quando o qadi perguntou à platéia se os soldados deviam ser soltos ou mortos, a resposta foi totalmente a favor da soltura. Zuair e seus amigos não esperaram mais nada. Correram até onde os homens estavam presos, então Zuair desembainhou sua espada e cortou a corda que os amarrava. Depois ficou em frente da multidão e apontou com sua espada em direção ao alHamra, mandando que os soldados fossem para lá. Incrédulos, os soldados concordaram, silenciosos e gratos, e correram o mais rápido que suas pernas conseguiram.

No palácio, exatamente como Zuair dissera, o soldado que conseguiu escapar achava que seus companheiros já deviam estar decapitados, por isso enfeitou sua atuação no episódio. O arcebispo ouviu em silêncio tudo o que disse, levantou-se, ainda sem dizer uma só palavra, fez sinal ao soldado para acompanhá-lo e foi até as salas do conde de Tendilla. Foi recebido imediatamente e o soldado teve de repetir sua história.

— Sua Excelência vai concordar, sem dúvida — começou Ximenes -, que, se não reagirmos com firmeza a essa rebelião, todas as vitórias conquistadas por nosso rei e rainha nesta cidade estarão ameaçadas.

— Meu caro arcebispo — respondeu o conde num tom falsamente amistoso.

— Gostaria que houvesse mais homens como o senhor nas Santas Ordens de nossa Igreja, tão leais ao trono e tão dedicados a aumentar os bens e, portanto, a força e a importância da Igreja.

"Mas quero deixar bem claro que discordo de sua opinião. Esse maldito homem está mentindo para justificar o fato de ter se ajoelhado para os matadores de Barrionuevo.

Nem por um instante eu acredito que nossa posição militar esteja ameaçada por essa turba. Acho mais fácil, por exemplo, que esteja ameaçada a ofensiva de Sua Graça em nome do Santo Espírito.

Ximenes ficou irritado com a observação, principalmente por ser feita na frente de um soldado que iria repeti-la para os colegas e em poucas horas a notícia circularia pela cidade inteira. Ele engoliu a raiva e, com um gesto ríspido da mão direita, dispensou o soldado de sua presença.

— Sua Excelência parece não entender que, enquanto essas pessoas não forem dominadas e obrigadas a respeitar a Igreja, jamais serão fiéis à Coroa!

— Como súdito leal à rainha, Sua Graça parece ignorar os acordos que assinamos com o sultão quando ele se rendeu. Não é a primeira vez que tenho de lembrá-lo das solenes promessas que fizemos aos mouros. Eles podiam venerar seu Deus e acreditar em seu Profeta sem qualquer impedimento. Podiam falar sua língua, casar e enterrar seus mortos do jeito que fazem há séculos. Foi o senhor, meu caro arcebispo, que provocou este levante. O senhor os reduziu a uma situação miserável e agora finge estar surpreso porque resistem. Eles não são animais, homem! São carne da nossa carne e sangue do nosso sangue.

— Às vezes me pergunto como a mesma Mãe Igreja pode ter gerado dois filhos tão diferentes como os dominicanos e os franciscanos. Seriam como Caim e Abel? Diga uma coisa, padre Cisneros. Quando foi preparado naquele convento perto de Toledo, o que foi que deram para o senhor beber?

Cisneros entendeu que a raiva do capitão geral era porque sabia ser indispensável uma reação militar para restaurar a ordem. Ele tinha vencido e resolveu brincar com o conde.

— Fico impressionado que um grande líder militar como Sua Excelência tenha tempo para estudar as diversas ordens religiosas e nossa Mãe Igreja. A Igreja não tem nem Caim nem Abel, ecelência. Nunca. No máximo, essas duas ordens podem ser consideradas como dois maravilhosos filhos de mãe viúva. O primeiro é duro e disciplinado, defende sua mãe das más intenções de todos os pretendentes indesejados.

O outro, também encantador, é entretanto relaxado e folgazão; deixa a porta de casa escancarada e não se importa em saber quem entra ou sai. A mãe precisa dos dois e ama os dois do mesmo jeito, mas responda, Excelência, quem a protege melhor?

Dom Inigo estava irritado com a falsa intimidade, o tom complacente. Tinha ofendido seu delicado orgulho. Um religioso arrivista querendo se fazer de íntimo de um Mendoza? Como Cisneros ousava se comportar assim? Olhou o padre com desprezo.

— Sua Graça tem grande experiência em relação a mães viúvas com dois filhos. Não foi para perseguir uma viúva e seus dois infelizes rapazes que provocou a morte do intendente real hoje?

O arcebispo, percebendo que tudo o que dissesse seria inútil, levantou e saiu. Os punhos do conde se descontraíram. Bateu palmas, dois criados apareceram e ele berrou diversas ordens.

— Preparem minha armadura e meu cavalo. Digam a Dom Alonso que vou precisar de trezentos soldados para ir comigo a Bibarrambla. Quero sair dentro de uma hora.

Na cidade, o clima tinha mudado muito. A libertação dos soldados deixara o povo com um sentimento de muita confiança. Eles se sentiram moralmente superiores ao inimigo. Nada mais parecia assustá-los. Apareceram vendedores de comida e bebida nas ruas. Os padeiros tinham fechado suas lojas e vieram montar barracas no Bab al-Ramla. Comida e doces foram distribuídos de graça. As crianças faziam cantorias e brincadeiras, a tensão tinha sumido. Zuair sabia que não ia durar muito. O medo tinha desaparecido temporariamente, substituído por um clima de festa, mas fazia apenas uma hora que ele ouvira os corações apreensivos da multidão.

Zuair era o herói do dia. Os moradores mais velhos o distraíam contando histórias das conquistas de seu bisavô — ele já conhecia a maioria delas; outras, sabia que não podiam ser verdadeiras.

Concordava gentilmente com os velhos de barba branca, mas não estava mais ouvindo o que diziam. Seus pensamentos estavam em alHamra e teriam continuado lá se uma voz conhecida não tivesse atrapalhado seu devaneio.

— Você está achando que alguma grande desgraça está a ponto de acontecer aqui, não é?

— al-Zindiq! — gritou Zuair, enquanto abraçava seu velho amigo.

— Está tão diferente. Como pôde mudar assim em apenas duas semanas? Foi por causa da morte de Zara?

— O tempo faz o que quer num homem velho, Zuair al-Fal. Um dia, quando você já tiver passado dos setenta, vai perceber isso.

— Se eu viver até lá — murmurou Zuair, mais sério. Estava contente por encontrá-lo, não só para discutir mais algumas idéias mas porque al-Zindiq o tinha visto no auge, recebendo grandes elogios dos garnatinos. Mas o jeito do velho cético continuava o mesmo.

— Meu jovem amigo — disse a Zuair com muito afeto -, nossas vidas se passam sob um arco que se estende do nosso nascimento até a morte. Só a velhice e a morte explicam o encanto da juventude e seu desprezo pelo futuro.

— Sim — disse Zuair quando começou a perceber onde tudo aquilo ia acabar -, mas o espaço entre a velhice e a juventude não é tão decisivo como você está dizendo.

— Por quê?

— Lembro-me de um homem que estava com quase sessenta anos, o que é muito raro na nossa península. Ele estava andando nos arredores de al-Hudayl e viu três meninos, todos pelo menos cinqüenta anos mais jovens do que ele, dependurados num galho no alto de uma árvore. Um dos meninos disse um xingamento qualquer, comparando a cabeça lisa dele com o traseiro de algum animal. A experiência mandava que o velho ignorasse a ofensa e fosse embora, mas, em vez disso, para grande surpresa dos meninos, ele subiu na árvore e os pegou de surpresa. O menino que o tinha insultado virou seu amigo para o resto da vida.

al-Zindiq riu.

— Subi na árvore exatamente para ensinar a você que nada deve ser menosprezado. — Isso mesmo. Aprendi bem a lição. — Nesse caso, meu amigo, veja bem se não vai levar essas pessoas para uma armadilha. A moça que sobreviveu ao massacre do al-Hama até hoje não consegue ver chuva. Acha que é vermelha como sangue.

— Zuair bin Omar, Ibn Basit, Ibn Vaab. Há um encontro dos Quarenta no mercado das sedas marcado para agora! Zuair agradeceu al-Zindiq pelo conselho e saiu correndo.

Foi para a espaçosa sala que um negociante de seda tinha oferecido para eles se reunirem. Claro que o velho notou a mudança de comportamento de seu jovem amigo.

Em outros tempos, ele teria corrido para o local do encontro, mas agora andou com passos controlados, mantendo um ar seguro. al-Zindiq sorriu e balançou a cabeça.

Era como se tivesse visto o fantasma de Ibn Farid.

A assembléia dos habitantes elegeu um comitê de quarenta homens com poder para negociar em nome de toda a cidade. Zuair e os sete amigos tinham sido eleitos, mas Ibn Vaab também. A maioria dos demais membros dos Quarenta eram ex-cavaleiros mouros. Na hora em que Zuair entrou, um mensageiro vindo das cozinhas de alHamra estava falando, nervoso, sobre a contraofensiva que o palácio estava preparando.

— Até a armadura do capitão geral está pronta. Ele será acompanhado de trezentos soldados. Quando saí, as espadas deles estavam sendo afiadas.

— Devíamos fazer uma emboscada — propôs Ibn Vaab.

— Derramar azeite neles e atear fogo.

— É melhor ter um inimigo são do que um amigo louco — murmurou o qadi, dispensando a sugestão com um olhar de reprovação.

— Vamos fazer como tínhamos planejado — disse Zuair quando o encontro terminou e os Quarenta voltaram para a praça.

O qadi subiu no estrado e anunciou que os soldados estavam a caminho. Os sorrisos sumiram dos rostos. Os vendedores começaram a guardar suas coisas, preparando-se para ir embora. A multidão ficou agitada e havia grupos confabulando em cada canto. O qadi pediu ao povo que mantivesse a calma. As mulheres, crianças e velhos foram mandados para casa.

Todos os demais tomaram posição, caso o exército cristão tentasse invadir o centro da cidade. Os homens saíram para assumir seus postos previamente combinados.

Todos estavam prevenidos e o plano de defesa foi colocado em prática. Em trinta minutos, uma barricada estava pronta. Os oleiros, pedreiros e carpinteiros organizaram a multidão num mutirão. A barricada foi muito bem construída, fechando todas as entradas para o bairro antigo — que o qadi chamava de "cidade dos crentes".

É incrível, pensou Zuair, que tenham feito tudo isso sozinhos. O qadi não precisou invocar nosso passado, nem usar o nome do Poderoso para eles fazerem isso. Ele olhou em volta à procura de al-Zindiq, mas o velho tinha sumido na noite. E onde estarão, pensou Zuair, Abu Zaid e sua louca família rebatizada como al-Maari? Por que não estão aqui? Deviam ver a força de nosso povo. Se é para ter um novo exército para defender nosso estilo de vida, então seus soldados são essa boa gente.

Sem eles, nós não venceremos.

— Os soldados! — gritou alguém, e o Bab al-Ramla ficou em silêncio. Ao longe, ouvia-se a marcha cada vez mais próxima dos soldados sobre as ruas de pedras.

— O capitão geral está na frente, todo paramentado! — gritou outro olheiro.

Zuair deu um sinal, que foi repetido por cinco voluntários colocados em diversos pontos da praça. O grupo de trezentos jovens, com suas mochilas cheias de cacos de tijolo, ficou a postos e em posição de ataque. A linha de frente de atiradores de pedra estava pronta, o tropel se aproximava.

O conde de Tendilla, capitão geral dos exércitos cristãos em Garnata, puxou a rédea de seu cavalo quando chegou num obstáculo que parecia intransponível. Portas de madeira empilhadas, presas pelas dobradiças, vigas formadas por tijolos, barras de ferro e todo tipo de entulho faziam uma fortaleza como o conde não tinha visto em nenhuma batalha. Ele sabia que precisaria de centenas de soldados para derrubar a construção e sabia também que os mouros não iam ficar olhando placidamente enquanto ela fosse derrubada. Claro que no final ele venceria, quanto a isso não havia dúvida, mas ia ser uma luta difícil e sangrenta. Ele berrou para ser ouvido do outro lado da barricada:

— Em nome de nosso rei e rainha, ordeno que tirem isso e me deixem entrar na cidade com a minha escolta.

Os atiradores de pedra entraram em ação. Uma música sotuma começou a ser ouvida, quando uma chuva de pedaços de tijolos bateu no escudo dos soldados cristãos.

O conde entendeu o recado: os velhos mouros tinham resolvido cortar todas as relações com o palácio.

— Não aceito o rompimento de nossas relações — gritou o capitão geral.

— Voltarei com reforços, a menos que me recebam agora.

Ele recuou seu cavalo, irritado, sem esperar por seus homens. A visão dos soldados correndo atrás de seu líder fez os garnatinos ficarem muito satisfeitos.

Os Quarenta estavam menos alegres. Sabiam que, mais cedo ou mais tarde, teriam de negociar com Mendoza. Ibn Vaab queria lutar de qualquer jeito e recebeu algum apoio, mas a maioria resolveu mandar um mensageiro para o alHamra dizendo que concordavam em conversar.

Já era noite quando o conde voltou. A barricada tinha sido retirada pelos defensores da cidade. Homens empunhando tochas levaram o capitão geral até o mercado das sedas. Ele foi recebido pelos Quarenta na sala onde faziam suas reuniões. Olhou bem para o rosto deles, tentando guardar suas feições. Enquanto era apresentado, um dos homens de sua escolta escrevia cuidadosamente cada nome num livro.

— Você é filho de Omar bin Abdala? Zuair concordou.

— Conheço bem seu pai. Ele sabe que você está aqui?

— Não — mentiu Zuair, por não querer que sua família sofresse qualquer represália.

Dom Inigo prosseguiu até ver Ibn Amin.

— Você? — perguntou, bem alto.

— Um judeu, filho do meu médico, metido nessa porcaria? O que isso tem a ver com você?

— Moro na cidade, Excelência. O arcebispo trata a todos do mesmo jeito. Judeus, muçulmanos, hereges cristãos. Para ele não faz diferença.

— Não sabia que havia hereges aqui em Garnata.

— Havia alguns, mas foram embora quando o arcebispo chegou. Parece que eles já sabiam da fama dele.

— Não vim aqui para negociar com vocês — começou o capitão geral depois de conferir se todos os nomes dos Quarenta tinham sido anotados. — Vocês sabem que eu podia esmagar esta cidade com a palma da mão. Vocês mataram um intendente real, e quem matou um criado do rei não pode continuar impune. Não há nada de errado nisso — é a lei. Os próprios sultões e emires de vocês não respeitavam a justiça, como sabemos. Amanhã cedo quero que esse homem seja entregue aos meus soldados. Daqui por diante, vocês têm de respeitar a lei de nosso rei e rainha. Todas elas. Aqueles que aceitarem minha fé podem manter suas casas e terras, usar seus trajes, falar sua língua, mas aqueles que continuarem na seita de Maomé serão punidos.

"Além disso, prometo que não permitiremos que a Inquisição chegue a esta cidade por mais cinco anos, mas, em troca, os impostos que vocês pagam para a Coroa serão dobrados a partir de amanhã. E vocês têm de pagar pelo sustento de meus soldados acantonados aqui. Mais uma coisa: fiz uma lista com as duzentas famílias mais importantes da cidade. Cada uma delas tem de me mandar um filho como garantia. Vocês parecem surpresos, mas aprendemos isso com seus governantes. Espero ver todos vocês no palácio amanhã com uma resposta para minhas propostas.

Depois de dizer isso, mais cortante do que a lâmina da espada de um soldado, Dom Inigo, o conde de Tendilla, despediu-se e foi embora. Durante alguns instantes, ninguém conseguiu falar. A opressão prometida pelo capitão geral começava a mostrar sua força.

— Talvez — disse Ibn Vaab, numa voz triste e assustada.

— Eu deva me entregar, assim a paz voltará para nosso povo.

— Ele não podia ser mais claro. Se nós mantivermos nossa fé, a única paz que eles vão nos conceder será a do cemitério — disse Zuair.

— Agora é tarde para grandes demonstrações e sacrifícios inúteis.

— A opção que nos dão é simples — completou Ibn Basit.

— Ou nos convertemos, ou morremos.

De todos os presentes, só oqadi e Ibn Vaab tinham percebido bem a força do golpe que levaram. E foi o qadi quem falou, com uma voz sufocada:

— Primeiro eles montam, depois que estão bem montados, chicoteiam o cavalo. Alá nos castigou com muita dureza. Ele observou o que nossos antepassados fizeram nesta península durante muito tempo. Sabe o que fizemos em nome dele. Como um crente matou outro, como destruímos reinos. Como nossos governantes viviam tão distantes daqueles a quem governavam que o próprio povo não podia ser mobilizado para defendê-los. Tiveram de apelar para soldados da Ifriquia, o que teve péssimas conseqüências.

Vocês viram como o povo daqui reagiu ao nosso pedido de ajuda. Vocês não ficaram orgulhosos com a disciplina e lealdade deles? Devia ser a mesma coisa em Curtuba e Ixibilia, em al-Maria e em Balancia, em Saracusta e em al-Garb, mas não foi. Vocês todos são jovens, têm a vida pela frente, podem fazer o que quiserem. Mas eu sinto nos ossos que não demoro a partir. Vou me libertar deste mundo e morrer como nasci — crente. Amanhã cedo aviso Mendoza de minha decisão. Aviso também que não vou mais ficar de intermediário entre nosso povo e o alHamra. Eles que façam seu serviço sujo. Vocês resolvam, agora vou embora. O que o ouvido não ouve a língua não pode repetir. Que a paz esteja com vocês, meus filhos. Zuair abaixou a cabeça, confuso. Por que a terra não se abria e o tragava? Melhor ainda seria se pudesse montar seu cavalo e voltar para al-Hudayl. Mas, ao ver os rostos desalentados à sua volta, percebeu que, quisesse ou não, seu futuro agora estava ligado ao deles. Todos tinham se tornado vítimas de um mesmo destino. Ele não podia abandoná-los agora, pois seus corações estavam interligados. Era preciso não perder mais tempo.

Ibn Basit estava pensando a mesma coisa e tomou a palavra, dando a reunião por encerrada.

— Meus amigos, está na hora de ir embora e nos despedirmos. Quem conhece nossas famílias mais importantes tem o dever de avisá-las de que o capitão geral está pedindo reféns. Se os filhos mais velhos dessas famílias quiserem ficar conosco, nós os protegeremos da melhor forma possível. A que horas vamos nos encontrar?

— Amanhã ao nascer do dia — Zuair falou com autoridade.

— Vamos sair daqui a cavalo e ficar com nossos amigos em al-Pujarras. Eles já estão formando um exército para lutar contra os cristãos. Encontro vocês no pátio do funduq, na hora em que o muezim fizer o primeiro chamado para a oração. A paz esteja com vocês.

Zuair saiu com ar firme, mas jamais se sentira tão só e inseguro em toda a sua vida.

— Que destino triste e cruel eu tenho — murmurou baixinho quando estava perto do funduq. Daria qualquer coisa para achar al-Zindiq, tomar uma taça de vinho com ele e confidenciar seus temores e dúvidas em relação ao futuro, mas o velho já tinha ido embora da cidade. al-Zindiq estava a caminho de al-Hudayl, onde, na manhã seguinte, faria um relato detalhado sobre o que tinha acontecido em Garnata para a preocupada família de Zuair.

— Zuair bin Omar, que Alá te proteja. Zuair levou um susto, não via ninguém. Então um vulto saiu do escuro e ficou bem na frente dele. Era o velho empregado da casa de seu tio.

— Que a paz esteja contigo, velho amigo. O que o traz aqui?

— O amo gostaria que fizesse a refeição com ele esta noite. Mandou que o levasse comigo.

— Acompanho você com alegria — respondeu Zuair.

— Será um prazer encontrar meu tio outra vez.

— Ibn Hixam andava de um lado para o outro no pátio externo, esperando nervoso a chegada do sobrinho. Os acontecimentos do dia fizeram com que ficasse triste e temeroso, mas no fundo sentia orgulho da atuação do filho de Omar. Quando Zuair entrou, o tio o abraçou e beijou no rosto.

— Estou zangado com você, Zuair. Passou por esta casa, a caminho de outro lugar. Desde quando o filho de meu irmão fica numa hospedaria nesta cidade? Aqui é sua casa! Responda, rapaz, antes que eu mande açoitá-lo.

Zuair não conseguiu evitar uma emoção. Sorriu. Era um sentimento estranho, sentia-se culpado, como se tivesse outra vez dez anos de idade e um adulto o surpreendesse fazendo uma travessura.

— Não quis causar problema, tio. Por que você sofreria as conseqüências de meus atos? Era melhor que eu ficasse no funduq.

— Que bobagem você está falando. Só porque me converti não tenho mais relações sangüíneas? Precisa de um banho, vou mandar que tragam roupas limpas para você.

— E como está minha tia? E meus primos? — perguntou Zuair quando eles se encaminharam para o hammam.

— Estão em Ixibilia, na mesma casa que Cultum. Voltam dentro de algumas semanas. Sua tia está ficando velha e, como o vento da montanha lhe causa reumatismo, foi para Ixibilia. Lá é muito mais quente.

Depois de ser escovado com sabão e lavado por dois jovens criados, Zuair descansou na água morna. Parecia que estava em casa. Apesar do que Hixam disse, não havia dúvida de que ele representava um perigo para o futuro do tio. Ninguém os viu entrando na casa, mas os criados contariam. Eles se gabariam para os amigos que Zuair tinha jantado com seu tio convertido. Amanhã a notícia chegaria ao mercado como uma intriga bem atraente e qualquer um dos espiões do arcebispo estaria pronto a ouvi-la.

Depois da refeição, simples e austera como sempre, a conversa passou, como era de esperar, para a situação difícil em que se encontrava a fé de ambos.

— Foi por nossa própria culpa, meu filho. Nossa própria culpa — disse Ibn Hixam sem uma ponta de dúvida. — Sempre procuramos explicação para os atos de nossos inimigos, mas o erro está dentro de nós. O sucesso chegou cedo demais. E nosso Profeta morreu cedo demais, antes que pudesse consolidar a nova ordem. Seus sucessores mataram-se uns aos outros como membros de tribos guerreiras que eram. Em vez de assimilar as características estáveis das civilizações que conquistamos, resolvemos impor a eles nosso estilo agressivo. Assim foi em al-Andaluz. Fizemos ações ótimas mas imprudentes, um sacrifício inútil de vidas muçulmanas e um cavalheirismo também inútil...

— Desculpe interromper, tio, mas tudo o que você disse também pode ser aplicado aos cristãos. Sua explicação é falha.

E assim foi a conversa naquela noite. Hixam não podia agradar o sobrinho e Zuair não conseguia convencer o tio de que era hora de pegar em armas outra vez. Tinha ficado claro para Zuair que a conversão do tio era-apenas de fachada. Ele falava e agia como um nobre muçulmano. Pratos com carne de porco não profanavam sua mesa; a cozinha e a casa eram servidas por crentes e, se o velho empregado estava certo, Hixam se postava de frente para o Oriente todo dia para fazer suas preces escondido.

— Não perca sua juventude em esforços estúpidos, Zuair. A história nos deixou para trás, por que não aceitamos isso?

— Não vou ficar calmo e passivo, aceitando as atrocidades que querem nos impor. Eles são bárbaros e bárbaros têm de ser combatidos. Melhor morrer do que virar escravo da Igreja deles.

— Aprendi algo de novo nos últimos meses — confidenciou Ibn Hixam.

— Neste novo mundo em que vivemos, há também uma nova forma de morrer. Antigamente, nós matávamos uns aos outros. Ou o inimigo nos matava e pronto, acabou. Agora aprendi que a total indiferença pode ser uma morte tão cruel como render-se a um cavaleiro de armadura.

— Mas você, que sempre teve tantos amigos...

— Cada um foi para um lado. Se julgássemos apenas pelas aparências, pareceria que as pessoas podem sobreviver sem muito esforço a todos os cataclismos por que estamos passando, mas a vida é bem mais complexa. Tudo se transforma dentro de nós. Eu me converti por razões egoístas, o que me fez ainda mais alienado. Trabalho com eles, mas, por mais que me esforce, jamais serei um deles.

— E eu que achava que só eu sabia o que é solidão na nossa família.

— Não posso reclamar. Tenho as amigas mais pacientes do mundo e converso muito com elas ultimamente: minhas amigas são as pedras no pátio.

Os dois se levantaram e Zuair abraçou o tio, despedindo-se.

— Gostei de encontrá-lo, tio. Não vou esquecer este encontro.

— Talvez seja nossa última ceia.

Zuair deitou em sua cama e relembrou os acontecimentos do dia. Como o conde acabara brutalmente com as esperanças deles. E o arcebispo tinha vencido. Aquele esperto e obstinado Cisneros. A cidade agora era dele, que podia destruí-la por dentro. Matar o espírito dos garnatinos, fazer com que se sentissem inferiores e medíocres.

Seria o fim de Garnata. Melhor ainda seria arrasá-la, deixando apenas o que havia no começo: uma linda planície cortada por riachos e coberta de árvores. Foi a beleza que atraíra seus antepassados, por isso construíram a cidade.

Seus pensamentos se voltaram para a noite anterior, na casa do tio. Zuair tinha ficado surpreso com a amargura e abatimento de Hixam, ao mesmo tempo que gostara de comprovar sua opinião. Se o tio Hixam, que era um homem muito rico e inteligente, não encontrava alegria em ser cristão, então ele, Zuair, estava certo quanto ao caminho que escolhera. De que adiantavam a opulência e o esplendor se por dentro se sentia pobre e miserável?

Naquela noite Zuair teve um sonho perturbador. Acordou suando, agitado. Tinha visto a casa em al-Hudayl coberta com uma tenda de musselina branca. Yazid, a única pessoa que reconheceu no sonho, estava rindo, mas não como Zuair lembrava. Era o riso de um velho. Ele estava cercado por enormes peças de xadrez, que tinham ganhado vida e falavam uma língua estranha. Lentamente, elas se moveram em direção a Yazid e começaram a estrangulá-lo. O estranho riso virou um estertor.

Zuair continuou deitado, tremendo. O sono não voltava e ele ficou deitado, desperto e encolhido na colcha, louco para que chegassem logo os primeiros sons da madrugada.

— Só existe um Deus, que é Alá, e Maomé é seu Profeta! As mesmas palavras ecoaram, no mesmo ritmo. Oito vozes diferentes, competindo entre si, vindas de oito mesquitas, chamando os fiéis naquele dia. E no dia seguinte, como seria? Zuair já estava vestido. Ouviu o som de patas de cavalo batendo no piso do enorme pátio. Seu cavalo estava selado e um cavalariço, pouco mais velho que Yazid, dava um torrão de açúcar mascavo para ele comer. Mais patas cavalgaram no pátio e ele identificou as vozes de Ibn Basit e Ibn Amin.

Saíram do funduq a cavalo, percorrendo as ruelas iluminadas pela luz pálida da madrugada, exatamente quando Garnata estava começando a despertar. As portas se abriam e grupos de homens se apressavam em direção às mesquitas. Quando passavam por algumas portas abertas, Zuair podia ver as pessoas fazendo rapidamente suas abluções, tentando tirar a marca do sono.

A cidade não estava mais deserta, como quando Zuair fora para o funduq saindo da casa do tio na noite anterior, mas estava muito tensa. Ibn Basit não lembrava de ter visto tanta gente indo para as orações matinais na mesquita.

Antes da Reconquista, eram as orações da sexta-feira à tarde que atraíam mais gente — um evento religioso e, ao mesmo tempo, social e político. Mais do que nunca, os islamitas iam conversar sobre assuntos militares e políticos, deixando a religião para aquelas semanas em que nada mais acontecia. O clima costumava ser calmo, muito diferente do silêncio reprimido que as pessoas mostravam naquele dia.

— Zuair al-Fal — disse Ibn Amin, agitado -, Ibn Basit e eu temos dois presentes para entregar no alHamra. Você gostaria de ir conosco a cavalo até lá? Os outros estão aguardando fora da cidade, nossos Quarenta se transformaram em Trezentos!

— Que presentes? — perguntou Zuair, que tinha notado as estranhas caixas de madeira amarradas com laços de seda.

— Elas têm um cheiro forte.

— Uma caixa é para Ximenes — explicou Ibn Basit, esforçando-se para ficar sério -, a outra é para o conde. É um presente de despedida que esses próceres jamais esquecerão.

Zuair achava que era um gesto desnecessário, estavam exagerando no cavalheirismo, mas concordou em acompanhá-los. Em poucos minutos, estavam nos portões do palácio.

— Parem onde estão! — dois jovens soldados empunharam suas espadas e se adiantaram.

— O que querem?

— Meu nome é Ibn Amin. Ontem, o capitão geral nos visitou na cidade e nos convidou para tomar o café da manhã com ele hoje. Fez algumas propostas e queria nossa resposta hoje de manhã. Trouxemos presentes para ele e para Sua Graça, o arcebispo de Toledo. Infelizmente, não podemos ficar. Será que você pode transmitir nossas desculpas e fazer com que esses presentes, pequenas provas de nossa estima, sejam entregues aos dois cavalheiros assim que acordarem?

Os soldados ficaram à vontade e aceitaram os presentes de bom grado. Os jovens mudaram o rumo de seus cavalos e galoparam ao encontro de seus companheiros, que encontraram do lado de fora da cidade. Os soldados no portão olharam, sérios, quando eles passaram.

Eram trezentos cavaleiros armados, a maioria com menos de vinte anos, e não se podia esperar que ficassem quietos numa situação dessas. Ouviam-se gritos, berros e risadas. O ar da montanha estava frio e tanto os homens quanto os cavalos estavam envoltos na neblina. Mães preocupadas, cobertas com seus xales, vieram até os muros da cidade para se despedir. Zuair não gostou muito do tumulto, mas teve uma sensação diferente quando se aproximou das tropas. Era um belo espetáculo, uma prova de que os mouros de Garnata não tinham perdido as esperanças. Quando os três amigos cavalgaram até as tropas reunidas, foram saudados por gritos alegres e uma recepção calorosa. Todos sabiam dos perigos que iam enfrentar, mas, apesar disso, estavam animados.

— Vocês entregaram os presentes? — perguntou Ibn Vaab quando estavam saindo da cidade.

Ibn Amin concordou e riu.

— Em nome de Alá, qual é a graça? — perguntou Zuair.

— Quer saber mesmo? — brincou Ibn Basit.

— Ibn Amin, conte para ele.

O filho do médico particular do conde riu tanto que Zuair achou que ele ia sufocar.

— O cheiro forte! Seu nariz percebeu nosso crime — começou Ibn Amin, depois de se acalmar.

— Nas duas caixas, com o cheiro disfarçado por essência de rosas, estão duas raras iguarias para proveito do arcebispo e do conde. Foram embrulhadas em papel prateado. O que pusemos dentro, Zuair al-Fal, foi um pouco de nosso excremento.

Um, recém-preparado na manhã de hoje, vindo das entranhas desse judeu à sua frente; o outro, um pouco menos fresco, veio dos intestinos de um devoto mouro que você conhece pelo nome de Ibn Basit. Isso, sem citar nossos nomes verdadeiros, está explicado num bilhete para os dois, no qual também expressamos o desejo de que apreciem seu café da manhã.

Era infantil demais para merecer qualquer comentário. Zuair se esforçou para não rir, mas não conseguiu se conter. Começou a gargalhar sem parar. Não demorou muito para que a brincadeira se espalhasse por todos. Imediatamente, os trezentos galantes cavaleiros estavam rindo à socapa.

— E eu que achava — disse Zuair, ainda tentando se conter — que vocês estavam exagerando na gentileza e no cavalheirismo! — ao dizer isso, fez com que seus amigos rissem outra vez.

Cavalgaram por algumas horas. O sol tinha surgido e não havia vento. Tiraram as capas e mantos e entregaram para os cerca de cem criados que também seguiam para servir seus amos. Depois de umas duas horas de cavalgada, o grupo percebeu um pequeno bando de cavaleiros vindo na direção deles.

— Alá Akbar, Deus é grande! — gritou Zuair e a saudação foi repetida pelos jovens de Garnata.

Os cavaleiros não responderam à saudação. Zuair mandou que a tropa parasse, temendo uma emboscada. Quando os cavaleiros se aproximaram, Zuair reconheceu um deles e ficou bem mais animado.

— Abu Zaid al-Maari! — gritou, alegre.

— Que a paz esteja contigo! Veja, acabei seguindo o teu conselho e trouxe também alguns amigos.

— Que bom encontrá-lo, Zuair bin Omar. Sabia que você viria. É melhor que nos acompanhe e saia desta trilha. Ela é muito conhecida e a esta altura os soldados já devem estar atrás de você, tentando saber onde vai acampar esta noite.

Zuair contou sobre os presentes que deixaram para o conde e o arcebispo; mas, para seu espanto, Abu Zaid não achou graça.

— Vocês fizeram uma grande besteira, meus amigos. Os empregados da cozinha do alHamra podem estar se divertindo com isso, mas eles são as pessoas menos importantes do palácio. Você agora uniu o conde com o confessor. Um presente para o padre já era suficiente, pois o conde acharia até engraçado e adiaria o ataque. Vocês acham que foram os primeiros a pensar numa ofensa dessas? Outros como vocês, em toda al-Andaluz, fizeram loucuras parecidas. Está ficando tarde, vamos sair daqui, rápido.

Zuair riu sozinho. Era um jovem corajoso e suficientemente esperto, mas sabia que não tinha capacidade para liderar tropas subversivas nas montanhas. A presença de Abu Zaid o deixou mais tranqüilo.

Enquanto cavalgavam, o dia seguia seu curso e o sol, sem o anteparo de uma só nuvem, aquecia a terra, fazendo com que os cavaleiros sentissem o cheiro da areia enquanto subiam a montanha. À frente deles, havia uma paisagem indescritível.

Naquela noite, AI-Zindiq entregou a carta de Zuair para Omar e contou os acontecimentos dos últimos dois dias. Foi ouvido em silêncio, nem Yazid perguntou nada.

Quando o velho acabou de falar, Ama chorava alto.

— É o fim — disse ela. — Está tudo acabado.

— Mas Ama — retrucou Yazid -, Zuair está vivo e bem. Eles começaram um jihad. Você devia ficar contente com isso e não triste, por que chora desse jeito?

— Por favor, não me pergunte, Ibn Omar. Não atormente uma velha.

Zubaida fez sinal para Yazid sair da sala com ela e Omar. Quando Ama viu que estava sozinha com al-Zindiq, enxugou as lágrimas e começou a perguntar como Zuair estava vestido naquela manhã.

— Usava um rico turbante azul com um crescente de ouro? al-Zindiq concordou.

— Foi assim que o vi no sonho que tive esta noite. al-Zindiq falou com muita calma.

— Os sonhos falam mais sobre nós do que sobre os outros, Amira.

— Você não está me entendendo, seu velho bobo — disse Ama com raiva.

— Meu sonho mostrava a cabeça de Zuair de turbante, mas no chão, cheia de sangue em volta. Não tinha corpo.

al-Zindiq achou que ela ia começar a chorar outra vez, mas seu rosto escureceu e ela começou a respirar pesado, com dificuldade. Ofereceu um pouco de água para ela e ajudou a levá-la para o quarto, um cantinho onde a velha tinha passado grande parte de suas noites por mais de meio século. Ela se deitou e al-Zindiq a cobriu com um lençol. Pensou no passado de ambos, em todas as palavras meio ditas, nas decepções, no sofrimento que causou por ter se apaixonado por Zara. Sentiu que era o culpado pela ruína de Ama.

A mulher leu seus pensamentos.

— Não me arrependo de um só momento da vida que passei aqui.

Ele deu um sorriso triste.

— Em outro lugar, você teria sido sua própria senhora, obedecido só a você mesma.

Ela o olhou como se fosse fazer um pedido.

— Desperdicei minha vida, Amira — disse ele.

— Esta casa me amaldiçoou para sempre. Gostaria de jamais ter pisado em seu pátio, essa é a verdade.

De repente, ela o viu aos dezoito anos, com o cabelo negro e farto, o olhar alegre. Esta lembrança foi a gota d'água.

— Saia daqui — disse ela — e me deixe morrer em paz. Para al-Zindiq, era impossível morrer tranqüilamente sem uma só palavra de protesto, e disse isso para ela.

— É só desse jeito que sei morrer — respondeu, desfiando suas contas.

— Confie em Má.

Ama não morreu naquele dia, nem no seguinte. Ainda durou uma semana, tempo suficiente para despedir-se à sua maneira. Beijou as mãos de Omar e enxugou as lágrimas de Yazid, conversou com Zubaida sobre os temores que tinha em relação à família e implorou para que levasse os filhos embora dali. Ficou tranqüila, a não ser quando pediu a Omar para dar lembranças a Zuair.

— Quem vai fazer o manjar dos deuses depois que eu morrer? — soluçou ela.

Ama morreu dormindo três dias depois que Zuair saiu de Garnata. Foi enterrada ao lado de Zara, no cemitério da família. Yazid sofreu em silêncio, pois achava que, como estava se tornando homem, tinha de ser forte e não demonstrar suas emoções.


Capítulo 12

Todo dia, depois do café da manhã, Yazid pegava seus livros e ia para a torre.

— Fique aqui e leia ao meu lado — pedia Zubaida, mas ele dava um sorriso triste.

— Gosto de ler sozinho na torre, é mais sossegado — dizia. Ela não insistiu e, assim, o que a princípio era uma afirmação de independência ligada à vida adulta passou a ser uma rotina. Já fazia dois meses que souberam dos acontecimentos em Garnata e da fuga dos trezentos homens liderados por Zuair.

Yazid ficara muito orgulhoso do irmão. Os amigos na aldeia o invejavam e ele não entendeu muito bem a tristeza que invadiu a casa. Até Ama, que tinha falecido tão tranqüila, dormindo, tinha ficado apreensiva.

— Essa aventura não vai acabar bem, Ibn Omar — disse ela para Yazid, que não imaginava que aquelas seriam suas últimas palavras. A preocupação dela fizera Yazid recapitular tudo o que aconteceu. Ama sempre defendeu todas as audácias dos homens da família — por mais imprudentes que fossem. Ela povoou a cabeça de Yazid com inúmeras e inacreditáveis histórias de cavalaria e bravura nas quais o bisavô dele, Ibn Farid, sempre tinha o papel de herói. Se Ama estava preocupada com Zuair, era porque as perspectivas não eram muito boas.

Da torre, Yazid viu um cavaleiro chegando. Todo dia, quando subia para lá, ele aguardava essa cena, rezava para que ocorresse — com a chegada do irmão. O cavaleiro estava nos portões da casa e o coração de Yazid se desapontou: não era Zuair. Nunca era.

Yazid nunca tinha visto a casa tão vazia. Não era só a ausência de Zuair e a morte de Ama. Essas foram grandes perdas, mas um dia Zuair voltaria e, quanto a Ama, ele a encontraria no paraíso, como ela prometeu. Seria no sétimo céu, à margem do rio de leite que tinha o mais delicioso sabor. Ele sentia mais falta de Ama do que admitia, mas pelo menos al-Zindiq tomou o lugar dela - e ele sabia muito mais coisas a respeito do movimento das estrelas e da lua. Quando o menino comentou seu futuro encontro com Ama, o velho riu e disse algo estranho.

— Quer dizer que Amira achava que ia direto para o sétimo céu? Não estou muito certo disso, Yazid bin Omar. Ela tinha seus pecados, você sabe. Acho que seria difícil ela entrar no primeiro céu e, sabe lá, pode ser que eles até resolvam mandá-la para o lado contrário!

Mas foram o casamento de Hind e a partida dela os dois acontecimentos que, embora esperados, deram o golpe mais duro. Ele gostava mais de Hind do que de qualquer outra pessoa na família. E ela se fora. É verdade que ela havia implorado aos pais que o deixassem passar um tempo do outro lado do mar com ela, prometendo trazê-lo de volta depois de alguns meses, mas Zubaida não queria ficar longe dele.

— Só temos ele agora na casa. Não vou deixar que roubem minha jóia mais preciosa. Mesmo que seja você, Hind, que o roube!

Assim, Hind fora embora sem o irmão. Por isso ela chorara como criança no dia da partida — e não por estar saindo da casa dos pais. Depois, chorou de novo quando ela e Ibn Daud pegaram o navio em Malaca, rumo a Tanja.

Alguém estava subindo os degraus da torre. Yazid saiu de seus devaneios e começou a descer e, no meio da escada, encontrou a criada da mãe, Umaima, com o rosto vibrando de emoção.

— Yazid bin Umar! Chegou um mensageiro de seu irmão. Está com a Sra. Zubaida e seu pai, mas só vai falar quando você for para lá.

Yazid passou por ela como um foguete e correu escada abaixo. Quando chegou ao térreo, disparou pelo pátio externo como um furacão enquanto Umaima, ofegante, se irritou por não conseguir mais acompanhá-lo. Ela não era mais a esbelta gazela que conseguia correr até mais que al-Fal. Sua cintura tinha se arredondado nos últimos meses.

Yazid parecia sem fôlego quando chegou à sala de entrada. — Este é Yazid — apresentou Omar, muito sorridente. — Seu irmão mandou mil beijos para você — disse Ibn Basit. — Onde ele está? Está bem? Quando vou vê-lo? — Em breve você vai vê-lo. Chegará ao anoitecer, quando já estiver escuro, e irá embora no dia seguinte, antes do amanhecer. Estão à procura dele e sua cabeça está a prêmio.

O rosto de Omar se alterou, nervoso.

— Por quê? Como?

— Não souberam?

— Souberam de quê, rapaz?

— Os acontecimentos da semana passada. Não sabem mesmo? Só se fala nisso em Garnata. Zuair pensou que o tio Hixam tivesse mandado um mensageiro para contar.

Omar estava cada vez mais impaciente. Torcia a ponta da barba, e Zubaida, sabendo que era sinal de que estava a ponto de explodir, tentou contê-lo.

— Ninguém nos disse nada, Ibn Basit. Por isso, conte logo, estamos loucos por notícias de Zuair!

— Tudo começou há uns nove dias. Abu Zaid al-Maari estava nos levando para um esconderijo nas montanhas quando avistamos os cristãos. Eles também nos viram e era inevitável que ocorresse um choque. Éramos mais de trezentos homens, mas, pela nuvem de poeira que os cavalos deles levantavam, sabíamos que eles eram pelo menos o dobro de nós.

"Um mensageiro desarmado cavalgou até nós. Nosso chefe', começou ele, o nobre Dom Alonso, envia seus cumprimentos. E manda dizer que, se vocês se renderem, serão bem tratados, mas, se resistirem, então ele vai voltar para Garnata levando só seus cavalos. Estávamos perdidos. Pela primeira vez, nem Abu Zaid sabia como sair daquela situação. Foi então que Zuair Ibn Omar se adiantou e falou tão alto e forte que podia ser ouvido a quilômetros. Diga a seu chefe que não somos um povo sem história', ameaçou. Somos cavaleiros mouros defendendo o que já foi nosso. Diga a ele que eu, Zuair Ibn Omar, bisneto de Ibn Farid, desafio Dom Alonso para um duelo de morte. O vencedor vai decidir o destino dos demais.'

— Quem é Dom Alonso? — interrompeu Yazid, assustado.

— É o mais experiente e melhor cavaleiro a serviço de Dom Inigo — respondeu Ibn Basit.

— Temido pelos inimigos e pelos amigos. Homem de uma dureza terrível que tem uma cicatriz na testa feita por um mouro defensor de al-Hama. Dizem que ele sozinho matou cem homens naquela desditosa cidade. Que Alá o almaldiçoe!

— Por favor, continue — pediu Zubaida, tentando fazer uma voz tranqüila.

— Para nossa grande surpresa, Dom Alonso aceitou o desafio. Os soldados cristãos começaram a se espalhar de um lado do campo e duzentos dos nossos ficaram do outro lado.

— E os outros, aonde foram? — perguntou Yazid, sem conseguir disfarçar a emoção.

— Bem, Abu Zaid decidiu que nós, quer fôssemos vencidos ou vencedores, tínhamos de preparar um elemento surpresa. Separou então cem homens e os colocou em diversos pontos das montanhas, observando o campo. O plano era, assim que o duelo terminasse, atacarmos os cristãos antes que eles tivessem tempo de se preparar para a batalha.

— Mas isso é contra as regras de combate — protestou Omar. — Sim, mas não estávamos jogando xadrez. Se me permitem, vou continuar contando: Zuair usava um antigo estandarte todo bordado, que ganhara de uma velha senhora de Garnata. Ela garantiu que tinha sido usado por Ibn Farid em muitas batalhas. No turbante verde, brilhava um crescente de prata e ele fincou o estandarte na frente de seus soldados. De longe, vimos que Dom Alonso fincou uma cruz dourada no chão. Quando foi dado o sinal, Dom Alonso atacou com sua lança brilhando ao sol, mirando na direção certeira do coração de Zuair. Os dois tinham dispensado o uso de escudos.

"Zuair desembainhou sua espada e investiu como um louco. Seu rosto estava desfigurado pelo ódio, como eu nunca tinha visto. Quando se aproximou de Dom Alonso, todos o ouviram gritar: Alá é Deus e Maomé o seu Profeta.' Estavam próximos e Zuair se esquivou de um golpe da lança, quase a ponto de cair do cavalo, mas provou ser um excelente cavaleiro. Depois, vimos a espada de Ibn Farid brilhando como um raio e durante um segundo parecia que os dois continuavam firmes. Só quando o cavalo de Dom Alonso se aproximou foi que vimos que seu cavaleiro estava sem cabeça. Não se fazem mais espadas assim em Tulaitula!

"Um grito vibrante ecoou do nosso lado. Os cristãos estavam desmoralizados e prontos para recuar quando Abu Zaid os atacou. Eles sofreram grandes baixas antes de conseguirem escapar. Tomamos cinqüenta prisioneiros, mas, a pedido de Zuair, entregamos a eles o corpo e a cabeça de Dom Alonso para levarem para Garnata. Digam ao seu conde, disse Zuair, que nós não quisemos essa guerra. Ele perdeu um corajoso cavaleiro porque o capitão geral não é mais que um mercenário a serviço de um padre cruel e covarde!'

Yazid ficou encantado com a história. Estava tão orgulhoso do irmão que nem percebeu a preocupação dos pais. al-Zindiq, também preocupado com a vitória de Zuair, fez mais perguntas a Ibn Basit.

— Abu Zaid disse alguma coisa sobre a reação no al-Hama?

— Claro — disse Ibn Basit surpreso com a pergunta.

— Dois dias depois ele contou muita coisa.

— Contou o quê? — perguntou Zubaida.

— Que o conde estava tão furioso que ofereceu cem moedas de ouro pela cabeça de Zuair bin Omar. E está preparando um exército para nos aniquilar, mas Abu Zaid não está preocupado com isso. Ele tem um plano e diz que nem o Poderoso conseguirá encontrar Zuair no lugar aonde vai nos levar.

— Essa é a voz de Satanás — disse Omar. — Vá para o banho, Ibn Basit — disse Zubaida, vendo a poeira no rosto do jovem e o estado de suas roupas. -Acho que as roupas de Zuair cabem em você. Depois, venha fazer conosco a refeição do meio-dia. Seu quarto está pronto e você pode ficar aqui pelo tempo que quiser.

— Obrigado, senhora, terei prazer em banhar-me e partilhar a mesa. Mas não posso me dar o luxo de descansar. Preciso levar alguns recados para Guejar e ao anoitecer tenho de estar em Lanjaron, onde meu pai me aguarda. Por que vocês ficaram tão inquietos? Zuair está vivo e bem. Eu tenho certeza de que em seis meses conseguiremos retomar Garnata.

— O quê? — gritou Omar. al-Zindiq não deixou que a conversa prosseguisse.

— A língua dos sábios, meu caro Ibn Basit, está no coração. O coração dos insensatos está na boca. Os serviçais o aguardam no hammam, jovem.

Yazid acompanhou o hóspede até o hammam.

— Aproveite seu banho, Ibn Basit — disse indicando a sala de banho para o amigo de Zuair e correu para a cozinha, onde o Anão, Umaima e todos os outros criados estavam reunidos. Lá, repetiu, palavra por palavra, toda a história do duelo de Zuair e da decapitação de Dom Alonso.

— Agradeçamos a Má! Nosso jovem amo está vivo. Trocaram-se olhares, mas ninguém disse nada na presença de Yazid. O nervosismo do narrador tinha cativado até o mais indiferente empregado da cozinha. Só o Anão pareceu não se emocionar, por isso o cozinheiro demonstrou seus sentimentos depois que Yazid saiu.

— Os Banu Hudayl estão cortejando a morte e o fim não vai demorar. Ximenes não vai deixá-los em paz.

— Mas nossa aldeia vai continuar segura, não? — interrompeu Umaima.

— Não fizemos nada de mau a ninguém aqui.

O Anão deu de ombros. — Isso não sei — disse -, mas se eu fosse você, Umaima, ia trabalhar com a Sra. Cultum em Ixibilia. É melhor que seu filho não nasça em al-Hudayl.

O rosto da moça mudou de cor.

— A aldeia inteira sabe que você está com uma cria de Zuair. Quando ele disse a palavra cria, soaram risadas em cascata. Aquilo foi demais para Umaima. Ela saiu correndo da cozinha, aos prantos. Mas sabia que o Anão estava certo e naquela mesma noite ia pedir licença à Sra. Zubaida para ficar com Cultum em Ixibilia.

Yazid estava perdido em seu mundo particular. Estava no bosque das romãzeiras, fingindo ser um cavaleiro mouro. Sua espada era um galho em cuja ponta ele colocara uma faca — a mesma que havia ganhado de Zuair quando fez dez anos e que gostava de usar na cintura sempre que tinha visita na casa. Galopava para cima e para baixo com fúria, agitando sua falsa espada e decepando todas as romãs que estavam ao seu alcance. De repente, cansou da brincadeira e sentou na grama, mordeu uma das frutas vencidas na "batalha" e bebeu o suco, cuspindo as sementes depois de mastigá-las.

— Sabe de uma coisa, Hind? Acho que Zuair vai morrer. Abu e Ummi também acham. Posso garantir pelo jeito que eles ficaram quando ouviram Ibn Basit contar do duelo.

Gostaria que Ummi tivesse deixado eu ir com você. Nunca andei de navio, nunca viajei pelo mar, nunca vi Fez. Dizem que é igual a Garnata.

Yazid parou de falar de súbito. Pensou ter ouvido passos e o farfalhar dos tojos em volta do bosque. Desde o dia em que foi pego por Umaima e as outras criadas, ele ficou mais cuidadoso, prestando muita atenção para a chegada de intrusos. Ele preferia nunca ter visto Ibn Daud e Hind se beijando. Se não tivesse contado para a mãe, ela não teria comentado com Hind e, quem sabe, talvez o casamento tivesse sido adiado. Hind ainda estaria ali. Que casamento estranho tinha sido aquele.

Sem festa, sem comemoração, sem exibição de fogos de artifício. Na presença só do qadi da aldeia e da família. Ele riu quando lembrou que quase deixou cair o Alcorão na cabeça de Ibn Daud, o que fez com que até o qadi risse. O Anão conseguiu ir além da conta naquele dia. Os doces, especialmente, pareciam ter sido feitos no paraíso. Três dias depois, Hind foi embora. Foram dias de muita tristeza, mas Hind passou mais tempo com ele do que com Ibn Daud.

Fizeram longas caminhadas. Hind mostrou seus lugares preferidos na montanha e à margem do rio e, como sempre, conversou com ele a sério.

— Gostaria que você pudesse passar algum tempo comigo, gostaria mesmo — disse ela um dia antes de partir.

— Não estou deixando você, só esta casa. Não ia agüentar morar aqui com Ibn Daud. Temos de morar onde ele se sente bem e conhece o lugar. Esta é a casa de Abu, depois vai ser de Zuair, de você e de seus filhos. Você me entende, não é, Yazid? Gosto de você mais do que nunca e jamais o esquecerei. Talvez no ano que vem, quando viermos visitar, vamos poder levá-lo para passar um ou dois meses.

Yazid não conseguiu responder muita coisa. Apenas segurou a mão dela com força quando voltaram para casa. Yazid não queria mais pensar naquilo, por isso gostou quando foi interrompido por uma voz.

— Ah! É o jovem amo. E o que está fazendo aqui sozinho? A voz familiar e detestada era do administrador-chefe do pai, Ubaidala, que, como o pai, tinha a relação completa de todos os negócios feitos na propriedade. Sabia muito bem o valor exato da terra que Omar tinha, de quanto era o aluguel em cada aldeia, por quanto foram vendidas as frutas secas no ano anterior, que quantidade de trigo e arroz estava armazenada nos silos subterrâneos e onde.

Yazid não gostava de Ubaidala. O menino nunca se enganara com a óbvia falsidade do homem e sua forma exagerada de demonstrar um afeto que não sentia.

— Estou dando uma volta — respondeu Yazid com voz desinteressada, ao mesmo tempo que se levantou e fez a pose mais adulta que conseguiu.

— Agora vou para casa, está na hora da refeição do meio-dia. E você, Ubaidala, por que veio a casa a esta hora?

— Acho que a resposta a esta pergunta terá de ser dada diretamente ao amo. Posso voltar com você?

— Pode — respondeu Yazid, colocando as mãos nas costas e caminhando para casa. Ele tinha ouvido Ama dizer centenas de milhares de vezes que Ubaidala era mentiroso e ladrão e que tinha roubado terra, comida e dinheiro da propriedade durante décadas. Com esses ganhos, o filho dele abriu três lojas — duas em Curtuba e uma em Garnata. Yazid tinha resolvido não falar com o homem pelo caminho, mas mudou de idéia.

— Diga uma coisa, Ubaidala — Yazid falou com o tom de superioridade de um proprietário de terras.

— Como vão as lojas de seu filho? Soube que elas vendem todo e qualquer artigo de luxo. A pergunta pegou o velho administrador de surpresa. Cãozinho insolente, pensou ele, deve ter ouvido alguma coisa nos mexericos da cozinha, pois Omar bin Abdala jamais faria esses comentários à mesa. Quando respondeu, a voz do administrador era completamente melosa.

— Que simpático lembrar-se de meu filho, jovem amo. Ele está bem, graças sejam dadas a Alá e, claro, à sua família. Seu pai pagou a escola dele e insistiu para que trabalhasse na cidade. É uma dívida que jamais poderei retribuir. Soube que você é um grande leitor de livros, jovem amo. Todos na aldeia comentam isso e eu disse a eles: esperem só, Yazid bin Omar logo vai começar a escrever livros eruditos.

Sem olhar para ele, Yazid sorriu agradecendo. O elogio não fez qualquer efeito. Não só porque Yazid não confiava em Ubaidala, mas porque, nesse ponto, o menino era muito parecido com o pai e a mãe. Elogios escorregavam por ele como água sobre as folhas na fonte. Era um orgulho herdado. Tinham consciência de que os Banu Hudayl eram tão naturalmente melhores que não precisavam do favor de ninguém. Para Yazid, como para o pai e o avô, os bolos de trigo com calda de tâmaras presenteados por qualquer pobre camponês eram muito melhores do que os xales de seda para as senhoras da casa dados por Ubaidala e seu filho. Era a intenção do presente que valia.

Ubaidala continuava tagarelando, mas o menino não estava mais ouvindo. Ele não acreditava em nenhuma daquelas bobagens, mas o simples fato de ter conseguido que Ubaidala falasse com ele como faria com Zuair era uma espécie de vitória. Quando passaram pelo portão principal, conhecido na aldeia pelo nome de Bab al-Farid em homenagem ao construtor, Ubaidala curvou a cabeça, fazendo uma meia reverência. Yazid agradeceu o gesto com um toque imperceptível da cabeça e seguiram por caminhos diferentes. O mais velho correu para a cozinha, o menino manteve sua cabeça erguida e foi assim até entrar na casa.

— Onde você estava? — murmurou Umaima na porta da sala de jantar.

— Todos já terminaram a refeição.

Yazid fez de conta que não ouviu e entrou na sala. A primeira coisa que notou foi que Ibn Basit não estava. Ficou aborrecido e seu rosto mostrou o desapontamento.

Um olhar distante apareceu em seu rosto, enquanto segurava o medalhão que Hind lhe tinha dado como prova de amor. Dentro do medalhão, negro como a noite, tinha um cacho do cabelo dela.

— Ele já foi embora, Abu? O pai concordou, escolhendo uma uva preta na bandeja de prata cheia de frutas. Zubaida serviu um prato para Yazid com alguns pepinos cozidos no próprio suco e um pouco de manteiga clarificada, pimenta preta e sementes de pimentão vermelho. Ele comeu rápido, depois serviu-se de uma salada de rabanetes, cebolas e tomates com iogurte e suco de limas frescas.

— Ibn Basit disse mais alguma coisa? Tem alguma idéia de quando Zuair vem nos visitar?

Zubaida negou com a cabeça.

— Ele não sabe o dia, mas acha que vai ser logo. Agora coma algumas frutas, Yazid, para que seu rosto volte a ter um colorido.

Quando quatro empregados entraram para tirar a mesa, o mais velho se ajoelhou no chão para falar no ouvido do amo. Uma expressão de desprezo apareceu no rosto de Omar.

— O que ele quer desta vez? Leve-o à minha sala de leitura e fique junto com ele até eu chegar.

— É Ubaidala? — perguntou Zubaida. Omar concordou, com o rosto preocupado, mas Yazid riu e contou do encontro que teve com o administrador.

— É verdade, Abu, que ele tem quase tantas terras quanto você?

A pergunta fez Omar rir.

— Não acredito, mas não sou a pessoa certa para você perguntar isso. É melhor eu ver o que aquele tratante quer. Estranho que venha me perturbar na hora de descanso.

Depois que Omar saiu, Zubaida e Yazid ficaram andando no pátio interno, de mãos dadas, aproveitando o sol de inverno. Ela viu o olhar de Yazid quando passaram pela romãzeira, lugar onde Ama costumava ficar nos dias frios.

— Você sente muita falta dela, filho? Em resposta, ele apertou a mão dela. Ela se abaixou e beijou seu rosto, depois seus olhos.

— Todos têm de morrer um dia, Yazid. Você vai encontrá-la outra vez.

— Por favor, Ummi, por favor, não fale nisso. Hind nunca acreditou nessas coisas de céu, nem al-Zindiq e nem eu.

Zubaida conteve um riso. Ela também não acreditava, mas Omar tinha proibido que transmitisse suas idéias blasfemas para os filhos. Bem, pensou ela, Omar tem Zuair e Cultum que pensam como ele, eu tenho Hind e o meu Yazid.

— Ummi — pediu ele -, por que não vamos todos morar em Fez? Não na mesma casa de Hind e Ibn Daud, mas na nossa casa.

— Eu não trocaria esta casa, os riachos e rios que banham nossas terras, a aldeia e as pessoas que vivem lá por nenhuma cidade do mundo. Nem Curtuba, nem Garnata, nem mesmo Fez, embora sinta tanta falta de Hind quanto você. Ela era minha amiga também, Yazid. Não, por nada do mundo eu trocaria tudo isso... Que a paz esteja contigo, al-Zindiq!

— E com a senhora. E contigo, Yazid bin Omar. Yazid foi se afastando.

— Aonde você vai...?

— Zubaida ia perguntar.

— Para a torre. Vou descansar e ler meus livros. al-Zindiq olhou-o com carinho.

— Este menino tem uma inteligência de dar vergonha a muito velho, mas alguma coisa mudou, não? O que foi? Yazid bin Omar parece estar sempre triste, é por causa de Amira?

Zubaida concordou.

— Acho que essa criança sabe de tudo. Como você bem disse, sabe mais do que alguém mais velho ou mais consciente. Quanto à tristeza dele, acho que sei a razão. Não, não é por causa da morte de Ama, embora tenha sofrido mais do que diz. É por causa de Hind. Desde que ela foi embora, ele perdeu o brilho dos olhos. Meu coração se entristece quando o vejo assim e...

— As crianças são muito mais resistentes do que nós, minha senhora.

— Esta não é — continuou Zubaida.

— Ele está com muita dificuldade em controlar seu sofrimento. Acha que é pouco másculo demonstrar as emoções. Hind era sua única confidente, contava para ela seus medos, tristezas, segredos, tudo.

A volta de Omar impediu que Zubaida ouvisse o conselho do velho.

— Que a paz esteja contigo, al-Zindiq — o velho sorriu e Omar falou animado com a esposa.

— Você não vai adivinhar por que Ubaidala veio falar comigo.

— Queria dinheiro?

— Será que eu teria razão de dizer — perguntou al-Zindiq — que o respeitável administrador-chefe está com problemas de consciência em relação às questões do espírito?

— Muito bem dito, velho. Bem dito. E esse exatamente o problema. Ele resolveu se converter e queria a minha permissão e a minha bênção. Avisei então: "Ubaidala, sabia que vai ter de confessar todos os seus erros para um padre antes de deixar você entrar para a Igreja deles? Todos os seus pecados, Ubaidala! E, se descobrirem que você mentiu, queimarão você na estaca por ser um falso cristão." Vi que ele ficou preocupado. Fez as contas rapidamente, querendo avaliar quantos pecadilhos a Igreja podia descobrir, e chegou à conclusão de que não corria perigo. Na próxima semana, quando for a Garnata, ele e o idiota do filho vão fazer aquele ritual pagão e se tornarão cristãos. Sangue do sangue deles, carne da carne deles. Procurando salvação por meio de rezas para a imagem de um homen ensangüentado, pregado em duas tábuas de madeira. Diga uma coisa, al-Zindiq, por que a fé deles é tão ligada ao sacrifício humano?

Ia começar uma grande discussão sobre a filosofia da religião cristã, mas, antes que o velho pudesse dizer alguma coisa, um grito atravessou o ar. Yazid, sem fôlego e com o rosto vermelho por causa do esforço, veio correndo pelo pátio.

— Soldados, centenas de soldados! Estão em volta da aldeia e da nossa casa como um anel. Venham ver.

Omar e Zubaida seguiram o menino até a torre. al-Zindiq, velho demais para subir os degraus, deu um suspiro e sentou num banco sob a romãzeira.

— Nosso futuro foi nosso passado — murmurou o velho como se falasse com a própria barba.

Yazid não se enganara, eles estavam cercados. Presos como um cervo na armadilha. Quando Omar aguçou a vista, pôde ver os estandartes cristãos e os soldados que os carregavam. Um homem a cavalo ia de um grupo de soldados a outro, certamente dando ordens. Parecia muito jovem, mas devia ser o capitão.

— Tenho de ir até a aldeia já — disse Omar.

— Vamos a cavalo encontrar esses homens e perguntar o que querem de nós.

— Vou com você — disse Yazid.

— Você precisa ficar em casa, meu filho, não tem quem cuide de sua mãe.

Quando Omar desceu da torre, encontrou todos os criados da casa reunidos no pátio externo, armados com espadas ,e lanças. Eram apenas sessenta homens, com idades entre quinze a sessenta e cinco anos, mas, enquanto aguardavam, ele sentiu uma emoção percorrendo seu corpo. Eram seus criados e ele era o amo, mas na hora da crise a lealdade estava acima de tudo.

Seu cavalo estava selado e quatro dos criados mais jovens cavalgaram até a aldeia com ele. Quando passaram pelo portão principal, uma águia voou sobre a casa procurando presa e os criados trocaram olhares. Era um mau presságio.

A distância, podiam ouvir muitos cães latindo. Os animais também sentiam que alguma coisa estava errada, pois ninguém estava trabalhando. Homens e mulheres que labutavam nos campos todo dia, do amanhecer ao anoitecer, tinham corrido ao ver os soldados e as ruelas da aldeia estavam cheias de gente, mas as lojas estavam fechadas. A última vez que Omar tinha visto algo assim foi quando seu pai morrera depois de cair do cavalo. Naquele dia tudo parou também e os aldeões acompanharam em silêncio o corpo sendo carregado para casa.

Ouviam-se saudações, mas os rostos estavam tristes e tensos. Era o medo que vinha da incerteza. Juan, o carpinteiro, correu na direção deles.

— É um dia amaldiçoado, senhor — disse ele com a voz irritada.

— Maldito dia, o príncipe das trevas mandou seus demônios para nos incomodar e destruir.

Omar saltou do cavalo e abraçou Juan.

— Por que diz isso, meu amigo?

— Acabo de chegar do campo deles. Eles sabiam que sou cristão e mandaram me chamar. Fizeram todo tipo de pergunta: se eu conhecia Zuair al-Fal. Se sabia quantos homens da aldeia estavam lutando ao lado dele em al-Pujarras. Se sabia que eles mataram o nobre Dom Inigo pelas costas. Quando fizeram esta pergunta, eu disse que tinha ouvido uma versão diferente. Falei isso e o jovem capitão deles, cujos olhos brilhavam com uma chama diabólica, me esbofeteou no rosto. "Você é cristão?" Eu disse que minha família nunca tinha se convertido e que eu vivia em al-Hudayl desde que a aldeia fora construída, mas ninguém nunca disse que devíamos abraçar a fé do Profeta Maomé. Vivíamos em paz. Então ele me disse: "Você prefere ficar com eles ou conosco? Nós temos até uma capela armada naquela tenda e um padre para ouvir as confissões." Eu disse que gostaria muito de confessar com o padre, mas que queria ficar na casa em que nasci e onde meu pai e meu avô viveram antes de mim. Com isso, ele riu. Era um riso estranho e na mesma hora os dois jovens que estavam do lado dele riram também. "Não se preocupe em confessar. Volte para seus infiéis."

— Se eles querem interrogar alguém para saber de Zuair, têm de falar comigo — disse Omar.

— Vou lá conversar com eles.

— Não! — gritou uma outra voz.

— Não faça isso, de jeito algum. Eu estava indo à sua casa para falar com você.

Era Ibn Hasd, o sapateiro, que, como irmão natural de Miguel, era tio de Omar, mas essa era a primeira vez que ele se manifestava como alguém da família. Omar levantou as sobrancelhas, como se avaliasse o que havia por trás dessa ordem peremptória.

— Que a paz esteja contigo, Omar bin Abdala. O ferreiro Ibn Haritha acaba de chegar, eles o pegaram esta manhã para arrumar as ferraduras que precisavam de conserto.

Não ouviu nada de especial, mas ficou impressionado com os olhos do jovem capitão e disse que até os soldados cristãos têm medo dele como se fosse o próprio Satanás.

Juan continuou:

— E aquele maldito Ubaidala levou quinze aldeões para o campo dos cristãos. Pode-se imaginar as histórias que vai contar para salvar o pescoço.

O senhor deve voltar para casa, amo, e trancar o portão até que tudo termine.

— Vou ficar na aldeia — respondeu Omar de uma maneira que não deixava dúvida.

— Vamos aguardar que Ubaidala volte e diga o que eles querem. Depois, se for preciso, vou falar pessoalmente com esse capitão.


Capítulo 13

O capitão ruivo e imberbe não desmontou de seu cavalo. Por que seria? A pergunta estava intrigando Ubaidala. O ofício de administrador de propriedades e pessoas, que exercera nos últimos cinqüenta anos, lhe dera uma intuição rara e um conhecimento que nenhum livro podia dar. Tinha se tornado um arguto observador da psicologia humana e percebera que o capitão tinha sido amaldiçoado por seu Criador. Seu tamanho, detalhe que não era de pouca importância para um soldado, não estava à altura de seu ímpeto ameaçador: ele era baixo e atarracado. Não devia ter mais do que dezesseis anos e Ubaidala tinha certeza de que as altas proezas militares do oficial não davam para compensar aquele pequeno detalhe.

Depois dessas conjeturas, Ubaidala caiu de joelhos frente ao comandante cristão. Esse ato de humilhação enojou os aldeões que o acompanhavam.

— Vergalho de porco — disse um deles, entre dentes. Ubaidala não se incomodava com a opinião deles. Tinha conseguido que o capitão se sentisse mais alto, tinha ganhado seu dia. Anos de serviço prestados aos senhores de Banu Hudayl deixaram o administrador bem preparado para a tarefa que ia cumprir agora.

— O que querem? — perguntou o capitão com uma voz fanhosa.

— Meu senhor, viemos informar que toda a aldeia está pronta a se converter esta tarde mesmo. Só pedimos que Sua Excelência mande um padre e dê a honra de comparecer à aldeia.

Primeiro, o pedido teve como resposta o silêncio. O capitão não deu sinal de vida. Baixou os olhos — que eram azuis e tinham pesadas pálpebras — para a criatura que se ajoelhava aos seus pés. O capitão tinha acabado de fazer dezesseis anos, mas já era um veterano da Reconquista. Fora condecorado por bravura em três batalhas em al-Pujarras e sua dureza selvagem tinha impressionado seus superiores.

— Por quê? — perguntou, ríspido, para Ubaidala.

— Não entendo sua pergunta, Excelência.

— Por que vocês resolveram entrar para a Santa Igreja Romana?

— Por ser o único caminho para a salvação — respondeu Ubaidala, que jamais se notabilizou por diferençar muito bem a verdade da mentira.

— Você quer dizer que é o único caminho para a salvação da sua pele.

— Não, não, Excelência — o velho administrador começou, choroso.

— Nós, andaluzes, levamos muito tempo para tomar uma decisão. Isso é porque sempre fomos governados, durante centenas de anos, por homens que mandavam em tudo. Tudo o que interessava, eles decidiam por nós. Agora, estamos aos poucos começando a ter opinião, mas não é fácil acabar com um velho hábito. Estamos resolvendo as coisas sozinhos, mas demoramos e nos perdemos em detalhes...

— Quantos vocês são na aldeia? — Pela última contagem, éramos uns dois mil.

— Muito bem. Vou pensar na melhor resposta para sua proposta. Você pode voltar para sua aldeia e aguardar nossa decisão.

Quando Ubaidala ia levantar do chão, o capitão fez mais uma pergunta e ele ajoelhou outra vez.

— É verdade que no palácio de Abenfarid ainda tremula um velho estandarte com o desenho de uma chave azul sobre fundo prateado e uma bobagem inscrita na sua língua?

— É verdade, Excelência. Foi presente do rei de Ixibilia para um dos grandes ancestrais de Ibn Farid. A inscrição em árabe diz: "Não há outro conquistador senão Deus."

— A chave simboliza a abertura do Ocidente, não é?

— Quanto a isso não tenho certeza, Sua Excelência.

— Não tem? Bem, eu tenho — disse o capitão da forma mais displicente e arrogante, mostrando que não queria que a conversa prosseguisse.

— O arcebispo quer ver com seus próprios olhos. Avise a família de Abenfarid que vou mandar retirar o estandarte. Pode ir agora.

Depois que Ubaidala e seus companheiros se foram, o capitão, ainda montado, ordenou aos dois oficiais que ouviam tudo a distância que reunissem os soldados. Queria se dirigir a eles antes de entrarem na aldeia. Quando os homens se juntaram, o capitão começou a falar em tom amistoso, mas autoritário.

— Nossa meta é simples. Vocês vão arrasar esta aldeia e tudo o que existe nela, são essas as minhas ordens. Não há mais de seiscentos ou talvez setecentos homens fortes e sadios na aldeia. Não acredito que façam mais que uma resistência simbólica. Esta não é uma missão agradável, mas soldados não são treinados para serem simpáticos e gentis. As ordens de Sua Graça foram bem claras. Amanhã de manhã ele quer instruir os cartógrafos para retirarem Al-Hudayl dos novos mapas que estão fazendo. Está claro?

— Não! — gritou uma voz do meio da tropa.

— Adiante-se, homem. Um soldado alto, de barba branca, com pouco mais de cinqüenta anos e cujo pai tinha lutado sob as ordens de Ibn Farid, se aproximou e ficou na frente do capitão.

— O que quer?

— Sou neto de um padre e filho de um soldado. Desde quando é uma prática cristã nestas terras matar crianças e suas mães? Digo aqui e agora que este braço e esta arma não vão matar qualquer criança ou mulher. Faça o que quiser comigo!

— É óbvio, soldado, que você não esteve conosco em al-Pujarras.

— Estive em Alhama, capitão, e vi coisas demais. Não vou passar por aquilo outra vez.

— Então deve ter visto as mulheres deles despejando jarros com azeite quente em cima de nossos homens. Obedeça às ordens, ou vai sofrer as conseqüências.

O soldado foi irredutível.

— O senhor mesmo disse, capitão, que não espera qualquer resistência. Por que nos manda matar gente inocente? Por quê?

— Velho idiota! — respondeu o capitão, com os olhos reluzindo de ódio.

— Você não vai durar muito. Por que ser generoso com nossas vidas?

— Não estou entendendo o que o senhor quer dizer, capitão.

— Se você matar os homens, as mulheres e os filhos deles vão ficar com um ódio cego de tudo o que seja cristão. Para salvar suas vidas, vão se converter, mas isso vai ser um veneno. Está me ouvindo? Um veneno, inoculado para sempre em nossa pele. Um veneno que será muito difícil de extrair. Agora entendeu?

O velho soldado balançou a cabeça, incrédulo, mas era evidente que não ia obedecer. O capitão controlou seus instintos, pois não queria baixar o moral de seus soldados pouco antes de irem para a batalha. Resolveu não punir o amotinado.

— Você está dispensado. Vai voltar para Garnata e aguardar lá a nossa volta.

O velho soldado não podia crer na própria sorte. Foi até onde os cavalos estavam pastando e soltou o seu.

"Voltarei", disse a si mesmo, quando se afastou do acampamento, "mas não para Garnata. Vou para onde nem vocês, nem seus malditos padres poderão me achar."

Os portões do muro que cercava a casa eram a única entrada para a antiga casa dos Banu Hudail. Estavam bem trancados. Construídos de madeira sólida, com um metro de espessura e reforçados com barras de ferro, até então tiveram uma função apenas simbólica. Não foram construídos para resistir a um cerco. Nunca foram fechados antes, já que nem a aldeia, nem a casa tinham qualquer importância militar. Ibn Farid e seus antepassados tinham comandado cavaleiros e soldados dessa aldeia e das que ficavam nos arredores. Eles se encontravam do lado de fora dos portões e marchavam para guerras em outros cantos do reino.

Quando Ubaidala transmitiu o recado do jovem capitão, Omar deu um sorriso amargo e entendeu. Não era hora de gestos heróicos como os que tinham provocado a morte de tantas pessoas da família dele. Por isso, ordenou que o estandarte da chave de prata sobre fundo azul fosse retirado da parede na armaria e içado sobre os portões.

— Se é só isso que querem — disse ao administrador -, vamos facilitar as coisas para eles.

Centenas de aldeões tinham se abrigado atrás dos muros da casa. Recebiam as refeições nos jardins e o pátio externo estava cheio de crianças brincando, felizmente sem saber do perigo que as ameaçava. Yazid nunca tinha visto a casa tão cheia, nem tão barulhenta. Teve vontade de participar das brincadeiras, mas acabou se retirando para a torre.

Como todos os aldeões, Ubaidala foi convidado a se proteger na casa, mas preferiu voltar para a aldeia. Alguma coisa lhe dizia que estaria mais seguro em sua própria casa, longe da família a quem tinha servido durante tanto tempo. Quanto a isso, estava tragicamente enganado. Quando voltava para a aldeia, um cavaleiro, instado por seus companheiros, desembainhou a espada e levantou-a no ar, em direção ao distraído Ubaidala. O administrador não teve tempo de reagir. Em segundos sua cabeça, separada do corpo num só golpe, rolou pela areia.

Yazid deu um puxão na túnica do pai. Omar tinha acabado de ordenar que a armaria fosse aberta e as armas fossem entregues a todos os homens e mulheres capazes.

Zubaida insistiu para que as mulheres também participassem, ela lembrava muito bem como tinha sido em al-Hama.

— Por que vamos esperar sem reagir que eles desonrem nossos corpos para depois atravessarem nossos corações com suas espadas?

— Abu! Abu! — insistia Yazid. Omar levantou-o e o beijou. O menino ficou satisfeito com essa manifestação espontânea de afeto que, ao mesmo tempo, o incomodou, já que ele estava se esforçando tanto para parecer adulto.

— O que é, filho?

— Vamos lá na torre, rápido.

Zubaida pressentiu a tragédia e impediu que Yazid voltasse para a torre com o pai.

— Preciso de sua ajuda, Yazid. Como funciona esta arma? A distração deu resultado. Omar subiu as escadas sozinho e, quanto mais subia, mais silêncio havia. Foi então que ele viu a carnificina. As casas tinham sido incendiadas e ele podia ver os corpos espalhados perto de onde antes ficava a mesquita. Os soldados não tinham terminado sua tarefa, subiam a colina próxima, procurando os que tinham tentado fugir. Quando aguçou os ouvidos, ouviu gritos de mulheres alternados com latidos de cães, seguidos de um completo silêncio. O fogo ardia por toda parte e havia mortos em todo canto. Ele olhou com uma lente de aumento um mapa da aldeia que estava sobre a mesa. Era demais, e ele deixou a lente cair no chão e se espatifar. Omar bin Abdala enxugou os olhos.

— O vidro quebrado não tem conserto — disse para os dois criados que o acompanharam. Eles ficaram parados como estátuas, vendo a tristeza que dominava o amo. As palavras de consolo que queriam dizer ficaram presas em suas línguas.

Omar desceu a escada devagar. Na torre, ele tinha entendido tudo, não havia mais dúvida. E culpou-se por não ter deixado Yazid ir com a irmã. Quando chegou à enorme ante-sala, foi saudado por um silêncio lúgubre. As crianças tinham parado de brincar, ninguém mais comia, estava tudo parado, a não ser pelo som intermitente do ferreiro afiando as armas. Todos eles tinham visto a aldeia queimada e agora estavam sentados no chão, observando as chamas se misturarem com o vermelho do sol que sumia no horizonte. As casas, o passado, os amigos, o futuro, tudo o que tinham fora destruído. A vigília foi interrompida por um grito de pavor vindo da torre.

— Os cristãos chegaram aos portões! Todos começaram a agir, rápidos. As mulheres mais velhas e as crianças foram mandadas para as dependências anexas à casa.

Omar chamou o Anão para um lado.

— Quero que você fique com Yazid e se esconda com ele no bosque das romãzeiras. Aconteça o que acontecer, não o deixe sair, a menos que tenha certeza de que eles foram embora. Que Alá o proteja.

Yazid não quis se separar dos pais. Discutiu com o pai, implorou para a mãe.

— Olhe — disse, mostrando uma lâmina que o ferreiro tinha feito para ele.

— Eu também sei usar esta lâmina, como vocês.

Zubaida conseguiu convencê-lo a ir com o Anão. Ele insistiu em levar suas peças de xadrez. Quando elas foram trazidas, o cozinheiro pegou Yazid pela mão e o levou pelo jardim. Do outro lado do jardim, logo ao lado do muro, havia algumas árvores e plantas de várias espécies. Perto, cuidadosamente escondido por um círculo feito com um canteiro de jasmim, havia um pequeno banco de madeira. O Anão o puxou para cima e, junto com ele, a pedra onde estava o banco também se levantou.

— Desça, jovem amo. Yazid hesitou um segundo e olhou para trás, para a casa, mas o Anão o cutucou e ele começou a descer os estreitos degraus. O cozinheiro o seguiu, recolocando com cuidado a tampa. Naquele armazém escuro havia trigo e arroz suficientes para alimentar a aldeia inteira durante um ano. Eram os estoques de emergência de al-Hudayl, para serem usados em caso de má colheita ou de alguma calamidade súbita. O Anão acendeu uma vela. Lágrimas escorriam do rosto de Yazid.

No andar de cima, tudo estava pronto para receber os soldados cristãos que estavam usando aríetes para derrubar os portões. Quando o portão finalmente caiu, os primeiros soldados entraram no átrio, mas, como essa era apenas uma ação de avanço, o capitão não estava no comando. A destruição rápida da aldeia e os cadáveres que seus cavalos tinham pisoteado antes de chegar à casa deram a eles uma enganosa sensação de confiança.

De repente, eles viram que havia mouros, inclusive a cavalo, prontos para atacar tanto pelo flanco direito quanto pelo esquerdo. Os invasores tentaram escapar pelo átrio passando pelo pátio externo, mas não foram suficientemente rápidos. Omar e sua improvisada cavalaria investiram sobre eles com gritos horríveis. Os cristãos, que não esperavam uma resistência, custaram a reagir.

Todos foram derrubados de seus cavalos e mortos. Uma ovação e gritos de "Alá é grande" saudaram esta inesperada vitória.

Os corpos dos soldados mortos foram colocados sobre seus cavalos e os animais foram chicoteados para fora do átrio. Demorou muito até haver outro embate e os mouros perceberam logo por quê. O exército de Garnata estava aumentando o vão feito nos muros para que os soldados pudessem entrar em grupos de três.

Omar sabia que a vitória não seria tão simples da próxima vez. "É o nosso fim", pensou. "Agora só consigo ver a morte."

Assim que pensou isso, ouviu uma voz cujo tom ainda não tinha se firmado:

— Não tenham dó desses infiéis. — Era o próprio capitão no comando de seus soldados. Desta vez eles não esperaram pelo ataque mouro e investiram sobre os defensores.

Houve então uma árdua luta corpo a corpo e o som do aço se chocando ecoou pelo pátio, alternado com gritos de "Má é grande" e "Em nome da Santa Virgem, em nome da Santa Virgem!" Os arqueiros mouros que estavam no teto da casa não podiam usar suas bestas, com medo de atingir seus companheiros. Havia menos mouros do que cristãos e a resistência logo terminou num banho de sangue.

O cavalo de Omar foi derrubado e a queda o abalou. Os soldados arrastaram Omar até o capitão. Quando os dois homens se viram, os olhos do capitão brilharam de ódio, enquanto Omar observava seu jovem conquistador com tranqüilidade.

— Na sua frente está a ira de nosso Senhor — disse o capitão.

— Sim — retrucou Omar.

— Acabaram com as gentes de nossa aldeia, mataram as mulheres e as crianças. Nossas mesquitas foram incendiadas e nossos campos, arrasados.

Homens como você me lembram os peixes do mar, que se comem uns aos outros. Estas terras nunca mais serão férteis. O sangue que vejo em seus olhos um dia vai destruir a vocês mesmos. Só existe um Deus, que é Alá, e Maomé é seu Profeta.

O capitão não respondeu. Olhou para seus soldados que ladeavam o prisioneiro e fez um sinal com a cabeça. Eles não precisaram de mais nada. Omar bin Abdala foi colocado de joelhos. Nesse momento, os arqueiros atacaram. Duas flechas atingiram seus alvos e os quase-executores de Omar caíram no chão. O capitão gritou:

— Arrasem tudo. — A seguir, mandou que mais dois soldados avançassem, mas, a essa altura, Omar tinha pegado no chão a espada de um dos soldados caídos e voltou a lutar.

Foi preciso que seis homens viessem conter o chefe dos Banu Hudail. Mas desta vez ele foi decapitado imediatamente e sua cabeça foi espetada na ponta de uma lança.

Depois de ser exibida no átrio, foi levada para o pátio externo. Ouviram-se gritos e choro, depois mais gritos de ódio e o chocar de espadas.

Um arqueiro que assistiu à morte de Omar correu e foi avisar Zubaida. Lágrimas escorreram pelo rosto dela. Ela pegou uma espada e ficou ao lado dos defensores no pátio externo.

— Venham — gritou ela para as outras mulheres -, não vamos deixar que nos peguem vivas!

As mulheres, para grande surpresa dos cristãos, mostraram uma enorme coragem. Não eram criaturas fracas e mimadas que viviam num harém, como diziam as histórias fantasiosas que os cristãos tinham ouvido. Mais uma vez, o elemento surpresa ajudou as mulheres de al-Hudayl, que reduziram o exército do capitão em pelo menos cem homens. Acabaram mortas, mas segurando espadas e punhais.

Após duas horas de batalha dura, a chacina terminou. Todos os defensores estavam mortos. Tecelões e oradores, fiéis e falsos profetas, homens e mulheres lutaram juntos e morreram juntos. Juan, o carpinteiro, Ibn Hasd e o velho cético al-Zindiq não aceitaram o convite de Omar para se esconderem no armazém. Eles também tinham, pela primeira vez na vida, empunhado uma arma e morrido no massacre.

O capitão estava irritado com o número de homens que tinha perdido. Deu ordem para que a casa fosse saqueada e queimada. Durante mais uma hora os homens, bêbados de sangue, comemoraram a vitória numa orgia de saque. As crianças, que tinham sido escondidas nas salas de banho, foram decapitadas ou afogadas, ao bel-prazer dos soldados. Depois, colocaram fogo na casa e voltaram para o acampamento.

Acompanhado de seus dois ajudantes, o capitão desmontou e sentou no jardim para apreciar a casa queimando. Tirou as botas e mergulhou os pés no riacho que corria pelo jardim.

— Como eles gostavam de água! No subsolo, Yazid não queria mais esperar. Fazia muito tempo que estava tudo em silêncio. O Anão insistia para que o menino ficasse, mas ele se recusou.

— Fique aqui, Anão — disse para o velho.

— Vou ver o que aconteceu e volto. Por favor, não me acompanhe, só um de nós deve ir. Vou gritar se você me desobedecer.

Mas o Anão não concordou e Yazid, fingindo estar exausto, sentou-se fazendo de conta que ia ficar. Quando a mão do cozinheiro soltou um pouco, Yazid escapou. Antes que o Anão pudesse pegá-lo, ele subiu a escada e forçou a tampa o suficiente para passar pelo vão. Quando saiu, viu o chão coberto de cadáveres e sua casa pegando fogo. A visão o transtornou. Ele perdeu o medo e começou a correr pelo pátio, gritando o nome de seus pais. O capitão se assustou com o barulho. Quando o menino correu pelo jardim, os dois ajudantes o pegaram. Yazid chutava e socava.

— Me soltem! Quero ver meu pai e minha mãe!

— Vocês o acompanhem — disse o capitão para seus soldados.

— Deixem que ele veja o poder de nossa Igreja.

Quando viu a cabeça do pai fincada numa lança, o menino caiu de joelhos e soluçou. Não podia ir adiante porque as chamas estavam fortes, assim como o cheiro dos corpos queimados. Se não o tivessem puxado, Yazid teria corrido para as chamas para procurar sua mãe morta no incêndio. Eles o arrastaram até o capitão, que estava pronto para montar seu cavalo.

— E então, menino? — perguntou com ar jovial.

-Viu agora o que fazemos com os infiéis?

Yazid o olhou, paralisado por uma dor inexprimível.

— Perdeu a língua, menino?

— Gostaria de ter um punhal — disse Yazid numa voz estranhamente distante.

— Para enfiá-lo no seu coração. Agora acho que devíamos, séculos atrás, ter tratado vocês como nos tratam agora.

O capitão não conseguiu deixar de se impressionar. Sorriu para Yazid e olhou pensativo para seus colegas. Os soldados sentiram um alívio com essa reação. Eles não tiveram coragem de matar o menino.

— Viram? — perguntou o capitão.

— Eu não disse hoje cedo que o ódio dos sobreviventes é o veneno que pode nos destruir?

Yazid não estava ouvindo. A cabeça do pai estava falando com ele.

"Lembre, filho, que sempre nos orgulhamos da forma como tratamos os vencidos. Seu bisavô costumava convidar cavaleiros derrotados para ficar em nossa casa e comemorar com ele. Nunca se esqueça de que, se ficarmos como eles, nada poderá nos salvar."

— Vou lembrar, Abu — disse Yazid.

— O que disse, menino? — perguntou o capitão.

— Você gostaria de ficar na nossa casa e ser meu hóspede esta noite?

O capitão fez um sinal que seus assistentes conheciam bem. Em geral, eles cumpriam suas ordens imediatamente, mas estava claro que o menino tinha enlouquecido.

Seria um assassinato a sangue-frio e eles hesitaram. O capitão, enfurecido, desembainhou sua espada e a enfiou no coração do menino. Yazid caiu com os braços cruzados sobre o peito e morreu na hora. Um meio sorriso se desenhou em seu rosto quando o sangue, cheio de bolhas, escorreu pelos cantos da boca.

O capitão montou seu cavalo e, sem olhar para seus dois tenentes, atravessou o portão.

A noite chegou. O céu, que poucas horas antes parecia um abismo flamejante, agora estava azul-escuro. Primeiro duas estrelas, depois uma plêiade começou a brilhar.

O fogo tinha apagado e estava tudo escuro, como mil anos antes, quando tudo era selvagem e não havia casas nem pessoas morando lá.

O Anão, com os olhos inertes de horror, estava sentado no chão com Yazid nos braços, ninando-o carinhosamente. Suas lágrimas escorriam pelo rosto da criança morta e se misturavam com seu sangue.

— Como foi que só eu sobrevivi? Ele repetiu a frase muitas vezes. Não percebeu como e quando adormeceu, nem quando aquela amaldiçoada manhã anunciou um novo dia.

Desde que Ibn Basit contou que tinha visto uma tropa com centenas de soldados cristãos cercando al-Hudayl, Zuair quase matou sua égua, cavalgando sem parar até chegar aos arredores da aldeia. Seu rosto estava marcado por sulcos profundos que iam dos olhos até o canto dos lábios. Os olhos, antes negros e brilhantes, pareciam sem vida, tristes e com olheiras fundas. Ele tinha envelhecido muito em dois meses de luta. Era uma noite clara quando Zuair galopou pelo meio do tojo, pensando não em seus soldados, mas em sua família e na sua casa.

— Que a paz esteja contigo, Zuair bin Omar! — ouviu ele. Zuair freou seu cavalo. Era um mensageiro-espião de Abu Zaid.

— Estou com pressa, irmão. — Queria avisá-lo antes que chegue a al-Hudayl. Não restou nada, Zuair bin Omar. Os cristãos estão bêbados e contam isso em Garnata a todos que queiram ouvir. Estão fora de si.

— Que a paz esteja contigo, meu amigo — disse Zuair, olhando para o vazio. Vou ver com meus olhos. Em quinze minutos ele chegou na caverna de al-Zindiq, desejando e, ao mesmo tempo, rezando para que o velho estivesse lá para tranqüilizá-lo. O lugar estava deserto. Os manuscritos de al-Zindiq estavam cuidadosamente amarrados em pacotes, como se o velho estivesse se preparando para ir embora para sempre Zuair descansou por alguns minutos e deu um pouco de água para a égua. Depois, continuou cavalgando. Sofréou a égua quando se aproximou de um contraforte da colina e olhou para o alto na direção que era tão conhecida. A luz clara da manhã iluminava restos carbonizados. Como se estivesse hipnotizado, ele se dirigiu para a casa. O pior era verdade e, quando viu as ruínas de longe, seu primeiro pensamento foi de vingança. "Vou pegá-los e matar um a um. Juro por Alá, pela cabeça de meu irmão, que vou vingar este crime."

Quando entrou no pátio, viu a cabeça do pai espetada numa lança. Zuair saltou do cavalo e tirou a lança. Com carinho, olhou o pai, levou a cabeça até o riacho e lavou o sangue que estava no cabelo e no rosto. Depois, levou-a para o cemitério e começou a cavar a terra com as mãos. Em seu desespero, não percebeu que havia uma espada no chão, perto dele. Depois de enterrar o pai, voltou para o pátio e só então viu o Anão embalando Yazid nos braços. Durante um segundo, seu coração pulou para a boca. Então Yazid estava vivo? Só aí viu o rosto parado do irmão, cheio de sangue.

— Anão, Anão? Você está vivo? Acorde, homem! Assustado, o Anão abriu os olhos. Seus braços estavam tão duros quanto o corpo de Yazid aninhado neles. Ao ver Zuair, o Anão começou a gritar de dor. Zuair abraçou o cozinheiro, pegou o corpo de Yazid dos braços dele e beijou o rosto morto do irmão.

— Enterrei a cabeça de meu pai. Vamos banhar Yazid e enterrá-lo.

Com cuidado, tiraram a roupa do corpo e o banharam no riacho. Depois, carregaram Yazid para o cemitério da família. Só quando ele estava sob a terra foi que Zuair, que até então mostrava uma calma acima do normal, não agüentou mais e chorou. A angústia reprimida se transformou em pranto e foi como uma chuva caindo sobre o túmulo de Yazid.

Os dois se abraçaram e sentaram sobre o montículo gramado que ficava ao lado das novas sepulturas.

— Quero saber tudo, Anão, todos os detalhes. Tudo o que você puder lembrar eu quero saber.

— Se ao menos eu tivesse morrido e Yazid estivesse vivo. Por que eu tenho de estar vivo?

— Fico feliz que alguém tenha sobrevivido. Conte o que aconteceu.

O Anão começou seu relato e só parou no ponto em que Yazid escapou. Depois ele começou a chorar e puxar os cabelos. Zuair fez um afago em seu rosto.

— Eu sei, eu sei, mas acabou.

— Isso não é o pior. Ele deixou meio aberta a tampa do depósito onde estávamos e ouvi quando eles o agarraram e começaram a fazer perguntas. Você ficaria orgulhoso se ouvisse o que ele disse para o capitão, aquele príncipe do mal, que desde o começo queria nos matar.

Depois que o Anão acabou de contar sua história, Zuair sentou e escondeu a cabeça nas mãos durante muito tempo.

— Tudo acabou. Eles eclipsaram a lua de nosso mundo para sempre. Vamos embora, é perigoso ficar aqui.

O Anão balançou a cabeça, negando. — Nasci nesta aldeia, meu filho morreu aqui, defendendo seu palácio. Eu também quero morrer aqui e sinto que não vai demorar.

Você ainda é jovem, mas eu não tenho mais muita vontade de viver. Deixe-me sozinho e permita que eu morra em paz.

— Anão, eu também nasci aqui. Tanta gente já morreu aqui, por que morrer ainda mais um? Além disso, tenho uma tarefa que só você pode fazer. Preciso de você.

— Enquanto estiver neste mundo, estou a seu serviço.

— Vou levar você para o litoral e colocá-lo num navio para Tanja. De lá, você vai até Fez procurar Ibn Daud e minha irmã. Vou escrever uma carta para ela e depois você conta tudo o que ela quiser saber.

Ao ouvir isso, o Anão voltou a soluçar.

— Tenha piedade de mim, Zuair bin Omar. Como posso ver a Sra. Hind? Como é que vou dizer que deixei seu Yazid morrer?

É cruel me mandar para ela. Deixe que eu encontre a Sra. Cultum em Ixibilia. Você devia ir para Fez e morar lá, eles não vão deixar que fique nesta península.

— Conheço minha irmã Hind muito bem, mais até do que ela pensa. Ela só vai querer ouvir você, Anão. Vai sentir falta de alguém da casa para ficar do lado dela, senão ficará louca. Será que você não faz este último favor para os Banu Hudail?

O Anão sabia que tinha perdido a discussão.

— Meu pai disse que havia algumas sacolas de ouro escondidas no depósito. Vamos procurá-las para levar. Vou usá-las para financiar nossas guerras e você fica com uma para viajar e se instalar em Fez.

Depois que descobriram as cinco sacolas de couro com moedas de ouro, Zuair selou seu cavalo e aprontou outro para o Anão, ajustando os estribos até a altura de suas pernas curtas. Quando saíram da casa e deixaram a aldeia para trás, Zuair quebrou o silêncio.

— Não vamos parar e olhar outra vez, Anão. Vamos pensar nela como era, lembra?

O cozinheiro não respondeu. Ficou calado até chegarem à cidade litorânea de al-Gezira. Lá encontraram um barco que saía na manhã seguinte e compraram uma passagem para o Anão. Depois de procurar um pouco, acharam um confortável funduq onde ficaram num quarto com duas camas. Quando foram dormir, o Anão falou pela primeira vez desde que tinha saído do pátio da casa em al-Hudayl. — Nunca vou me esquecer do incêndio, dos gemidos e dos gritos. Nem do rosto de Yazid depois que os selvagens o mataram. Por isso, não posso lembrar o que existiu antes disso.

— Eu sei, mas é só o que fica antes disso que eu quero lembrar.

Zuair começou a escrever uma carta para Hind, contando seu duelo com Dom Alonso e suas trágicas conseqüências. Descreveu a destruição da aldeia e da casa e pediu para ela nunca mais voltar lá:

Que sorte a sua de encontrar um homem tão digno de você e tão previdente como Ibn Daud. Acho que ele sabia há muito tempo que nós perderíamos a batalha contra o tempo. O velho que leva esta carta para você está cheio de remorsos pelo crime de estar vivo. Cuide bem dele.

Estive pensando muito nos últimos dias e gostaria que tivéssemos conversado mais, na época em que vivíamos sob o mesmo teto. Confesso a você que uma parte de mim queria ir para Fez com o velho para ver você e Ibn Daud. Ver vocês criarem seus filhos e ser tio deles. Começar uma nova vida longe das torturas e mortes que tomaram conta da península. Mas uma outra parte de mim diz que não posso deixar meus companheiros no meio desses horrores. Eles confiam em mim. A mãe e você sempre acharam que eu era fraco, que era fácil me convencer de qualquer coisa e que eu não tinha firmeza. Talvez vocês estivessem certas, mas acho que mudei muito. Hoje, outras pessoas dependem de mim, por isso tenho de usar uma máscara e essa máscara ficou tão colada que é difícil dizer onde ficou meu verdadeiro rosto.

Vou voltar para al-Pujarras, onde controlamos dezenas de aldeias e vivemos como era antes da Reconquista. Abu Zair al-Maari, um velho de quem você ia gostar muito, tem certeza de que não nos deixarão viver aqui por muito tempo. Ele diz que não é a conversão de nossas almas que eles querem, mas nosso dinheiro, e que a única forma que têm para tomar nossas terras é nos destruindo para sempre. Se ele estiver certo, então estamos condenados à extinção, em qualquer lugar para onde formos.

Até lá, vamos continuar lutando. Estou mandando para você todos os papéis de nosso velho al-Zindiq. Cuide bem deles e diga o que Ibn Daud achou deles.

Se quiser falar comigo, e insisto para que me avise quando nascer seu primeiro filho, o melhor é mandar um recado para nosso tio em Garnata. Só mais uma coisa, Hind. Sei que todos os dias, até morrer, vou chorar a morte de meu irmão e de nossos pais. Nenhuma máscara que eu coloque vai esconder isso.

Seu irmão, Zuair.

O Anão não conseguiu dormir mais do que duas horas. Quando a manhã finalmente chegou, ele levantou e saiu do quarto para fazer suas abluções. Ao voltar, encontrou Zuair sentado na cama, olhando a luz da manhã entrar pela janela.

— Que a paz esteja contigo, velho amigo. O Anão o olhou e ficou assustado. Durante a noite, o cabelo de Zuair tinha ficado branco, mas não disse nada. Zuair viu que o jogo de xadrez de Yazid estava entre os pertences do Anão.

— Ele deixou comigo quando foi ver se achava a Sra. Zubaida — disse o Anão, começando a soluçar. — Acho que a Sra. Hind vai querer para os filhos dela.

Zuair sorriu, engolindo as lágrimas. Uma hora depois, o Anão embarcou num navio mercante e Zuair ficou no cais, acenando.

— Que Alá te proteja, Zuair al-Fal! — gritou o Anão com sua voz gasta.

"Ele nunca protege", pensou Zuair.


Epílogo

 

Vinte anos depois, o vencedor de al-Hudayl estava no auge do seu poder, considerado por todos um dos mais experientes lideres militares do reino católico da Espanha.

Desembarcou então de seu navio de guerra numa praia a milhares de quilômetros de sua terra natal e prendeu a correia do velho capacete que nunca trocara, embora tivesse ganhado dois de prata genuína. Agora usava uma barba, cuja cor ruiva provocava muitas brincadeiras irreverentes. Seus dois assistentes, já promovidos a capitães, o acompanhavam na missão.

A expedição viajou por várias semanas através de pântanos e florestas densas. Quando chegou a seu destino, o capitão foi saudado por representantes do governante local, vestidos com trajes nas mais belas e ousadas cores. Houve troca de presentes e a seguir o capitão foi levado até o palácio do rei.

A cidade era construída sobre a água. Nem em sonhos o capitão podia imaginar um lugar como aquele. Os barcos levavam as pessoas de um lado a outro da cidade.

— Sabe o nome deste lugar incrível? — perguntou ao ajudante do barco quando chegaram ao palácio.

— Tenochtitlán é o nome da cidade e Montezuma é o rei.

— Esta construção custou muito dinheiro — avaliou o capitão.

— É uma nação muito rica, capitão Cortés - foi a resposta. O capitão sorriu.

 

                                          Tariq Ali

 

 


Como no mundo árabe de hoje, as crianças da Espanha moura recebiam um nome próprio, seguido do nome do pai ou da mãe. Nesta história, o nome Zuair bin Omar significa Zuair filho de Omar; Asma bint Dorotéia é Asma filha de Dorotéia. Um homem podia ser identificado simplesmente como "filho de seu pai" — como Ibn Farid e Ibn Caldun, respectivamente, filho de Farid e filho de Caldun. Neste romance, os mouros citam cidades que hoje têm nomes espanhóis e que, na maioria, foram fundadas por eles. O nome dessas cidades e algumas palavras mouras estão explicadas no glossário.

 

 


Glossário

 

Abu — pai Ama — babá
ai-Andaluz — Espanha moura
al-Hama — Alhama
al-Hamra — Alhambra
al-Jazira — Ageciras
al-Maria — Almeria
al-Qahira — Cairo Bab — portão
Balansia — Valencia
Curtuba — Córdoba
Dimasq — Damasco
Faqih — estudiosos da religião
Funduq — hospedaria para mercadores em viagem
Garnata — Granada
Hadith — ensinamentos do profeta Maomé
Hammam — balneários
Iblis — diabo, líder dos anjos caídos
Ixibilia — Sevilha
Iskanderiia — Alexandria
Jihad — guerra santa
Kaxtalla — Castela
Khutba — sermão da sexta-feira
Madresseh — escola religiosa
Malaca — Málaga
Maristan — hospital-asilo para doentes e loucos
Qadi — juiz
Riwaq — bairro dos estudantes
Rumi — romano
Sarakusta — Saragoça
Tanja — Tânger
Tulaitula — Toledo
Ummi — mãe
Zajal — poemas populares feitos de improviso em árabe coloquial de al-Andaluz e transmitidos oralmente desde o século X.

 

 

                                                 

  

 

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