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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


SOMBRAS DE INVERNO / Linda Fallon
SOMBRAS DE INVERNO / Linda Fallon

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

SOMBRAS DE INVERNO

 

Eve Abernathy sabia que seu noivo, Lucien Thorpe, era distraído, mas não a ponto de deixá-la esperando no altar... pela segunda vez! Eve estava prestes a desistir de uma vez por todas, quando um bilhete entregue na igreja a deixou paralisada de medo. "Eu não esqueci", dizia o recado, em diferentes caligrafias... nenhuma delas de Lucien!

Eve foi a procura de Lucien no hotel abandonado onde seu noivo estava reunido com um grupo de estudos de fatos sobrenaturais. Haveria uma chance de driblar os estranhos acontecimentos e as sombras de inverno que povoavam a noite? Eve esperava que sim, pois tudo o que desejava era ser feliz ao lado de seu amor!

 

                     Plummerville, Geórgia

                   Janeiro de 1886

Eve sentou-se na beirada da poltrona ao lado da janela e pôs as mãos no colo. Usava o vestido novo, azul com florzinhas de um amarelo claro. A costureira, Laverne, dizia que a cor ia bem nela. Lucien tinha gostado. Horas atrás, a escolha parecera acertada para a ocasião. Deveria ter vestido um marrom! Algo simples e discreto que não chamasse atenção sobre sua pessoa.

Ela já vira muitas coisas apavorantes desde que investigava fantasmas, mas nada a tinha afetado desta maneira.

O tio Harold e a tia Constance sentaram-se, lado a lado, no sofá da sala. Eve não se lembrava bem da mãe falecida, por isso não sabia se ela também era tão mal-humorada quanto a irmã mais nova. Porém, pela maneira amorosa como o pai se referia à esposa, que se fora tão jovem, ela achava que não.

As filhas do casal estavam em pé atrás do sofá, com os olhos fixos em Lucien. Ambas tinham cabelos escuros e olhos verdes, eram muito bonitas e estavam bem vestidas em tons combinados de verde. Penélope tinha dezoito anos e Millicent, vinte. As duas gostavam de cochichar e de dar risadinhas, o que deixava Eve com vontade de esganá-las.

Lucien, o alvo da atenção delas, estava em pé diante da lareira onde o fogo crepitava. Se algo sobre a situação acalmava Eve era olhar para ele. O noivo estava bem vestido para a chegada de seus parentes. Usava uma camisa branca nova e o segundo melhor terno preto dele. Não tinha cortado os cabelos compridos, mas os penteado bem. Com quase um metro e noventa de altura, esbelto e atraente, ele apresentava um aspecto digno.

— Não entendo, sr. Thorpe. Como o senhor ganha a vida? — Harold indagou numa voz firme.

— Lucien é cientista — Eve informou num tom animado. Contar aos tios que ia se casar com um homem capaz de falar com os mortos os deixaria em estado de choque. Explicar-lhes que ele ganhava a vida livrando casas de fantasmas indesejáveis também seria desastroso. E ela queria que o casamento fosse perfeito.

— Como cientista, eu me especializo... — Lucien começou, mas foi interrompido por Eve.

— Ah, isso tudo é tão enfadonho — ela disse ao levantar-se e ir para perto de Lucien. — Física, matemática, mecânica e esse tipo de coisas. Eu mesma não consigo entender quase nada — acrescentou ao passar o braço pelo dele.

Mas ao ver olhar de desaprovação da tia, baixou-o depressa. Lucien reprimiu um sorriso, mas Eve notou-lhe o brilho nos olhos azuis e o arquear dos lábios.

— Ah, muito enfadonho — ele garantiu.

Na vez anterior em que ela e Lucien tinham planejado se casar, seus únicos parentes e o homem a quem amava não tinham se conhecido. Os tios e as primas haviam chegado na véspera do casamento e não vários dias antes como desta vez. Mas Lucien... Lucien não tinha aparecido.

O fato desastroso já pertencia ao passado. Ele havia explicado o que acontecera e, embora Eve não tivesse gostado da idéia de ser preterida em favor de um fantasma interessante, o havia perdoado. Ainda bem, pois o amava muito mais agora do que antes. O casamento ia ser muitíssimo especial, graças ao crescimento do amor que os unia.

Constance balançou a cabeça.

— Eve, em que você estava pensando ao planejar um casamento em janeiro, em pleno inverno? A primavera é uma época muito melhor para esse evento. Há muito mais flores para se escolher e a viagem para os convidados de fora é bem mais fácil. Pessoalmente, prefiro as roupas para tempos mais amenos. O início do verão teria sido ideal.

Como explicar para a criatura empertigada que seria impossível esperar? Ela e Lucien já eram amantes. Agir às escondidas para que ninguém suspeitasse do relacionamento tinha sido horrível. Eve queria que o mundo soubesse que ela e Lucien se pertenciam. Queria acordar todas as manhãs e ver o rosto dele a seu lado e não levá-lo até a porta, de madrugada, para que ele voltasse para o quarto na pensão de Plummerville.

Enquanto Eve procurava uma explicação para a tia, Lucien pegou sua mão e a levou aos lábios. Depois de baixá-la disse:

— Devo admitir que a escolha meio apressada da data foi minha.

Constance apertou os lábios enquanto ele prosseguia:

— Eu não queria correr o risco de perder uma mulher tão maravilhosa. Isso aconteceria se ela se desse conta de que poderia escolher um marido entre homens excelentes deste mundo e, então, se decidisse a não se casar comigo.

Constance pareceu satisfeita, Penélope e Millicent suspiraram juntas e Harold revirou os olhos.

Harold Phillips era um homem difícil, reservado e de poucas palavras.

— Desta vez o senhor vai aparecer na hora, não vai?

— Naturalmente estarei lá. Nada me impedirá disso — Lucien respondeu.

— Porque, se o senhor constranger minha sobrinha outra vez, eu o matarei — Harold ameaçou.

— Papai! — Millicent exclamou.

Constance pôs a mão no joelho do marido e, calma, disse:

— Ora, Harold. Eve é filha de minha querida e falecida irmã. Se alguém tiver de matar o sr. Thorpe serei eu.

— Por favor! — Eve murmurou, começando a se preocupar com a segurança do noivo.

— Tudo bem, Eve — Lucien disse com um sorriso. — Seus tios estão apenas protegendo-a e eu entendo isso. Não temo por minha vida pois estarei lá. Na hora.

— Acho bom estar mesmo — Harold resmungou.

— Bem, devo ir embora. Já está ficando tarde — Lucien disse, para em seguida despedir-se do casal e das moças.

— Vou acompanhá-lo e pegar seu sobretudo — Eve ofereceu.

— Não se demore — Constance recomendou numa voz severa.

Enquanto apanhava o agasalho no cabide perto da porta, Eve formou, com os lábios, as palavras: sinto muito. Não se atrevia nem a murmurá-las, pois os ouvidos da tia eram excelentes.

Enquanto o vestia, Lucien sorriu-lhe. Ai, como desejava que ele passasse a noite a seu lado. Em vez de dormirem abraçados, ela teria de repartir a cama com as primas.

Lucien abriu a porta e a puxou para o terraço fechado.

— Devo amá-la muito— murmurou ao estreitá-la entre os braços e fechar a porta.

— Deve, sim. Suponho que a maioria dos homens teria fugido horas atrás — ela sussurrou.

— Logo após a chegada de seus parentes.

Ergueu sua cabeça e lhe deu um beijo rápido.

— Vou sentir falta sua esta noite. Também na de amanhã e na seguinte. Mas, na quarta noite, você já será minha esposa e eu não precisarei mais ir embora às escondidas. Não terei mais de fingir que a desejo com paixão e que sua cama também não é minha.

— Logo, logo — Eve murmurou.

— Não tanto quanto anseio. — Curvou a cabeça e beijou-a no lado do pescoço. A carícia rápida provocou-lhe um arrepio ao longo da espinha. — Você poderia escapar quando todos já estivessem dormindo e ir até meu quarto. Prometo que a trarei de volta antes de o sol nascer — ele sugeriu.

— Não posso. Se minha tia não me apanhasse saindo daqui, a srta. Gertrude me apanharia entrando na pensão.

— Tem razão, eu sei, Eve. Sou um homem paciente, quase sempre, mas não quando se trata de você.

— O dia de nosso casamento está próximo, Lucien.

— Você acha? — ele indagou com ar ressentido, fazendo-a sorrir.

— Pense bem. Dentro de três dias, serei a sra. Lucien Thorpe e ninguém poderá expulsá-lo desta casa. Eu te amo, Lucien.

— E eu...

A porta atrás deles escancarou-se e tia Constance apareceu. Eve e Lucien separaram-se depressa.

— Eve Abernathy, entre já! Você vai apanhar um resfriado mortal aí nesse frio — a mulher mal-humorada esbravejou.

— Boa noite, Lucien — Eve murmurou ao dirigir-se à porta.

— Boa noite, Eve. Eu a verei amanhã — ele disse com um sorriso.

— Não será possível, sr. Thorpe. Temos muitas coisas para fazer amanhã e Eve não terá tempo para receber visitas — Constance informou.

— Mas... — Eve começou.

— Boa noite, sr. Thorpe — a tia resmungou e bateu a porta na cara de Lucien.

— A senhora não precisava fechar a porta com tanta violência — Eve reclamou numa voz sentida.

— Está frio lá fora.

— E amanhã...

— Você permitiu que esse homem a beijasse, Eve? — Constance a interrompeu.

— Bem...

— Não diga nada. Vi como vocês dois se olhavam. Você permitiu sim que ele a beijasse. Amanhã à tarde, quando Harold e as meninas estiverem ocupados com os preparativos para o casamento, nós duas vamos ter uma conversa. De mulher para mulher. Como sua mãe é falecida, cabe a mim ocupar seu lugar.

Aos vinte e sete anos, Eve não precisava mais de instruções sobre relacionamento conjugal.

— Bondade sua, mas...

— É meu dever — Constance afirmou. — Você não deve ter medo, minha sobrinha.

— Não tenho e...

A tia virou-se e foi para a sala.

— Harold, a viagem me deixou exausta e já vou me deitar. Amanhã temos muito que fazer.

Eve viu a tia e as primas subirem a escada a fim de se dirigirem aos quartos. Sentia um grande peso no coração, pois já estava morta de saudade de Lucien.

Ele estava certo. Deviam ter fugido para se casar dois meses atrás.

 

Na caminhada para a pensão, Lucien parou em frente da casa de Katherine Cassidy. Dado o avançado da hora, não bateu, mas ficou uns minutos, observando-a. Era uma casa pequena, térrea e muito boa. Não tanto quanto a de Eve, mas confortável e bem conservada. Katherine cuidava bem da casa, deixada pelo marido ao morrer.

Lucien havia pensado que livrá-la do fantasma de Jerome Cassidy seria um trabalho simples. Não fora. O espírito mau do homem persistia em ficar com toda a maldade de sua alma perversa.

Katherine Cassidy, a viúva, era membro da Sociedade de Almas Penadas de Plummerville, um clube secreto de seis pessoas interessadas no estudo dos fenômenos psíquicos. Ele e Eve estavam entre os seis. Os outros não possuíam dons sobrenaturais que ele pudesse discernir, porém, aceitavam os dele. Isso o surpreendia depois de ser tratado como uma pessoa esquisita, ou coisa pior, durante anos. Lucien suspeitava que o aceitavam por causa da amizade deles com Eve. Ela o amava, portanto, os outros o acolhiam em seu meio.

Lucien desejava que Hugh e Lionel, amigos e companheiros de pesquisa, chegassem mais cedo. Mas, segundo o último telegrama de Hugh, eles só estariam ali na véspera do casamento. Quem sabe eles se deixariam convencer a ficar mais uns dias na cidade a fim de ajudá-lo nas tentativas de mandar embora o espírito de Jerome Cassidy.

Estava muito frio para ficar parado, por isso Lucien retomou a caminhada. Preferia muito mais estar na cama com Eve do que seguindo para um quarto triste, onde fingiria que eles ainda não eram marido e mulher sob todos os aspectos, exceto o legal. Mas Eve dava importância à própria reputação e ele lhe respeitava a vontade. Ela se preocupava com o que os tios viam e ouviam. E queria que esse detalhe da vida deles, o casamento, fosse o mais normal possível.

Lucien desejava lhe proporcionar tal prazer, já que o resto da vida deles seria qualquer coisa, exceto normal.

— Veja! É nosso noivo feliz! — gritou uma voz vinda das sombras.

Lucien olhou e viu Garrick Hunt, presidente da Sociedade de Almas Penadas de Plummerville, e Buster Towry, um rapaz de um sítio das vizinhanças e também membro da sociedade secreta, surgirem das sombras. Como sempre, Garrick estava meio alto e Buster tentava ampará-lo. Lucien não achava que os dois fossem amigos antes da formação da sociedade, mas, nestes dias, o filho do homem mais rico da cidade e o sitiante simpático eram vistos sempre juntos.

— Um brinde ao casamento que se aproxima! — Garrick propôs ao oferecer o frasco de uísque quando os dois pararam ao lado.

— Não, obrigado — Lucien disse.

Garrick apertou o frasco no peito.

— Você é meio atrasado, Lucien. Alguém já lhe disse isso? — Muitas pessoas— ele respondeu ao recomeçar a andar, acompanhado pelos dois.

— Tenho uma idéia — Garrick anunciou. Ele ainda não estava muito embriagado, mas faltava pouco. — Não temos feito muita coisa em nossa organização. E eu, como presidente, me acho no dever de estimular as ações de nosso pequeno grupo.

— Que tipo de ações? — Lucien indagou, desconfiado.

— Ora, deveríamos fazer algo além de nos reunirmos de vez em quando para saborear tortas. Senhoras idosas é que fazem isso.

— Bem, nós tentamos livrar Katherine do fantasma do marido — Buster argumentou.

— Um triste fracasso. Além do mais, a casa de Katherine é aqui na cidade, aliás nesta rua. Que situação medíocre. Em minha opinião, deveríamos nos envolver numa grande aventura.

— Aventura?! — Buster indagou, receoso.

— Discutiremos isso na próxima reunião — Lucien sugeriu na esperança de que, até então, Garrick tivesse esquecido a idéia inspirada pelo uísque.

— Está bem. Então, explicaremos tudo às moças. Mas vocês não querem saber que lugar escolhi para nossa aventura? — Garrick perguntou.

— Você já escolheu um?

— Claro. O Honeycutt Hotel — ele respondeu, orgulhoso.

— Nunca ouvi falar nele — Lucien admitiu.

— E eu me esqueci daquele lugar — Buster confessou.

Foi o tom estranho do rapaz que chamou a atenção de Lucien.

— O que existe de especial no Honeycutt Hotel? — indagou.

— Ele costumava ser uma estância de veraneio. Pessoas ricas de Atlanta e de Savannah costumavam passar dias lá para tomar banho nas águas de uma fonte subterrânea, das cercanias, cujo efeito, diziam, era medicinal. Durante algum tempo, foi um ótimo negócio e então, seis anos atrás, o hotel famoso fechou — Garrick contou numa voz lúgubre, mas Lucien não se impressionou.

— Hotéis e até balneários famosos quebram de vez em quando.

— Não como aquele. Parece que houve um assassinato em massa no Honeycutt Hotel. Nas investigações posteriores, descobriu-se que, durante anos, hóspedes se registravam e nunca mais saíam de lá. Simplesmente desapareciam — Garrick terminou num murmúrio para causar efeito.

— E ninguém sabia desses sumiços? — Lucien indagou, cético.

— O dono do hotel, um tal Marshall Honeycutt, sabia muito bem. Ele e seus funcionários tiveram muito trabalho para encobrir o fato. Mas, um dia, ele sumiu também — Garrick concluiu com um gesto dramático do frasco de uísque.

Ótimo ter algo em que pensar além do casamento e para se entreter nas três noites em que dormiria sozinho, Lucien refletiu.

— Isso pode ser interessante. Onde fica exatamente?

— A noroeste e não muito afastado da estrada para Atlanta. Menos de um dia de viagem — Buster informou.

— Apenas umas poucas horas daqui — Garrick corrigiu.

Com ar pensativo, Lucien disse:

— Eu gostaria de verificar o lugar primeiro. Não acho bom levar as moças a uma casa que eu não tenha explorado antes.

— Talvez na primavera. Você poderá verificar se o hotel é um lugar seguro para levar as moças. Então, iremos passar um fim de semana lá — Garrick sugeriu,

— Passar uma noite num hotel mal-assombrado?! — Buster exclamou, aflito. — Eu não posso. A primavera é uma época de muito trabalho para mim. Os outros cinco terão de ir sem...

Garrick interrompeu o amigo com um tapa nas costas.

— Tolice. Se for necessário, arranjaremos alguém para fazer o serviço do sítio até voltarmos. Você é um de nós, Buster. Tem de nos acompanhar. — Tornou a oferecer o frasco de uísque para Lucien. — Tem certeza de que não quer um gole?

— Absoluta.

— Então, depois do casamento, você irá verificar o hotel para saber se o lugar é aceitável. Caso sim, nós seis teremos nossa aventura — Garrick concluiu antes de tomar um gole.

— Qual é mesmo a distância do tal hotel?

— Umas poucas horas — Garrick repetiu.

Ora, ele tinha pela frente, antes do casamento, dois dias e meio, longos e enfadonhos. E tinha certeza de que a tia Constance faria o possível para mantê-lo longe de Eve.

Sua colhedeira de ectoplasma e o Registrador Thorpe de Espectro estavam guardados num armário de um dos quartos vazios da casa de Eve. Ela não queria que os parentes vissem os aparelhos e fizessem perguntas embaraçosas. Bem, ele não precisava levá-los para a visita inicial. Se notasse alguma atividade lá, os levaria na próxima ida. Além do mais, viajaria mais depressa sem os aparelhos pesados.

Exatamente do que ele precisava. Uma boa maneira para passar os dois dias seguintes e uma excelente desculpa para se manter longe de tia Constance e tio Harold.

 

Eve estava deitada no centro da cama larga, com as primas uma de cada lado. Deveriam estar dormindo, mas só Penélope ressonava baixinho.

Fechou os olhos na esperança de o sono vir. Queria sonhar com Lucien, mas acima de tudo, que a situação fosse outra e ele estivesse ali.

— Lucien é muito bonito — Millicent murmurou.

— É, sim.

— Não acho que papai o mataria.

— Sem dúvida, não mesmo — Eve concordou.

Não haveria necessidade, claro, pois Lucien chegaria na hora certa e não três dias depois.

— Mas mamãe é capaz de fazer qualquer coisa — a prima afirmou.

Além de bonita, Millicent tinha uma feminilidade marcante que os homens apreciavam muito. Ela sabia como se vestir bem, fazer penteados elegantes e o que conversar em qualquer evento social. Esses eram atributos que Eve sabia não possuir.

Imaginou se a prima já havia tido uma conversa de mulher para mulher com a mãe. Difícil.

— Você tem namorado, Millicent?

— Alguns admiradores, mas ninguém em especial. Sem dúvida não existe um capaz de enfrentar minha família e dizer que sou tão maravilhosa a ponto de poder escolher qualquer homem da terra que eu queira. Você tem sorte, Eve.

— Eu sei.

— Lucien é tão bonito, inteligente e a adora!

— Nós pertencemos um ao outro. Sei disso com mais convicção do que jamais soube qualquer outra coisa. Às vezes, tenho a sensação de que ele está dentro de mim o tempo todo. Como se morasse em meu coração, em meu corpo. Sem ele, eu não seria nada — Eve explicou embora nunca houvesse falado a ninguém sobre seus sentimentos por Lucien.

Apesar disso, sua amiga Daisy sabia que ela amava Lucien com loucura e outros amigos também.

Millicent suspirou.

— Espero amar alguém dessa forma algum dia. A gente sofre ao amar assim tão profundamente?

— Às vezes, sim — Eve sussurrou.

Mas não haveria sofrimento enquanto planejava o casamento. Seus parentes e amigos já estavam em Plummerville ou a caminho. O vestido de noiva, o mais lindo já criado, esperava apenas pela aplicação de pequenas pérolas em volta do decote. A srta. Gertrude, dona da pensão de Lucien e a melhor cozinheira da cidade, ia fazer o bolo imenso e lindo que seria servido na festa após a cerimônia religiosa.

Mais importante, Lucien estava ali. Se ela quisesse vê-lo, bastaria ir até a cidade.

E como estivesse ali, Lucien não se envolveria com um fantasma interessante e que o fizesse esquecer a data importante. Nesses dois dias, ele sempre estaria por perto caso houvesse necessidade de se entrar em contato com ele. Não havia motivo para se preocupar com a possibilidade de ele dormir demais ou esquecer a que horas seria o casamento.

Millicent suspirou e logo também ressonava baixinho. Eve relaxou. Tudo estava bem em seu mundo. Daí a três dias, o casamento já teria se realizado e, finalmente, Lucien e ela seriam marido e mulher. No instante seguinte, adormecia.

 

No terraço de Eve, Lucien encarava o antipático tio Harold.

— Só preciso de um minuto.

— O senhor terá de voltar mais tarde — Harold avisou ao começar a fechar a porta.

— Impossível. Tenho de trocar uma palavrinha com Eve já — Lucien afirmou enquanto, com o pé, impedia que a porta fechasse.

Mais tarde ele estaria na estrada. Queria apenas avisá-la aonde ia e garantir-lhe que estaria de volta tarde da noite. Ou no dia seguinte o mais tardar.

— Estão todas lá em cima com a costureira que veio experimentar o vestido de noiva. Daria azar o senhor ver Eve com ele.

Maldita superstição!

— Eu poderia falar com ela pela porta fechada. Não levaria mais do que um minuto.

Harold abriu mais a porta e saiu para o terraço.

— Não gosto de você, Thorpe. Existe uma coisa estranha em sua pessoa. Não sei exatamente o que seja, mas você é um tanto esquisito. O pai de Eve também era, por isso, talvez ela não estranhe. Quanto a mim, o fato perturba, e muito.

— Sr. Phillips, lamento se o ofendi de alguma forma, porém, pouco me importa se o senhor gosta ou não de mim. Quero falar com Eve.

— Ontem à noite, você disse que não era bom o suficiente para ela. Suas palavras não passavam de prosa para agradar as mulheres, embora você estivesse certo em minha opinião. Em Savannah existem vários homens de negócios, bem de vida, a quem conheço pessoalmente, que dariam ótimos maridos para minha sobrinha. Em vez disso, ela vai se casar com um cientista. Que diabo isso quer dizer? Afinal, quem paga seu salário?

Lucien detestava mentir. Eve sabia disso e, mesmo assim, tinha se esforçado bastante para que os parentes não soubessem como ele ganhava a vida. Para evitar mentiras, ele não respondeu.

— Sr. Phillips, não vim aqui para discutir com o senhor. Preciso apenas de um momento do tempo de Eve.

— Pois me dê o recado que eu transmitirei a ela.

Lucien tinha certeza de que a mensagem seria distorcida, caso fosse mesmo transmitida.

— Não, obrigado — ele disse e foi embora.

 

Fazia frio naquela manhã, mas o sol ajudava a suportá-lo. Lucien iniciou a caminhada para a cidade a passos largos. Sentia-se impaciente. A perspectiva de mais dois dias iguais a este lhe parecia insuportável. Os preparativos para o casamento tinham sido feitos e a ele só cabia estar na igreja na hora.

Ele poderia dizer a Garrick ou a Buster aonde ia, contudo, havia alguns problemas. Garrick devia estar no moinho do pai, Douglas Hunt, com quem Lucien preferia não se encontrar. Os segredos entre ambos eram embaraçosos. Além do mais, se Garrick soubesse aonde ele ia, haveria de querer acompanhá-lo.

Buster estava no sítio, a várias milhas ao sul da cidade e na direção oposta da que Lucien deveria seguir.

O melhor era não se preocupar. Como o tal hotel ficava a apenas algumas horas da cidade, ele chegaria lá no início da tarde. Gastaria uma hora para inspecioná-lo e pegaria o caminho de volta. À noite já estaria em Plummerville.

Na pior das hipóteses, se o hotel ficasse mais distante do que fora informado, ele voltaria no dia seguinte. Estaria ria estação a tempo de receber Hugh e Lionel.

Antes de ir alugar um cavalo do ferreiro, Lucien parou na pensão e pediu papel, caneta e tinta emprestados à srta. Gertrude. Não podia escrever muita coisa, pois ela leria o bilhete antes de entregá-lo a Eve. Naturalmente os tios também o fariam.

 

     Minha querida Eve,

Vou passar o dia fora da cidade e estarei de volta tarde da noite. Surgiu um pequeno e inesperado negócio.

      Todo meu amor, Lucien

 

Eve entenderia o que ele queria dizer e não se preocuparia com o risco de os parentes descobrirem a verdadeira natureza do trabalho científico dele.

Queria que Eve tivesse tudo que desejava, inclusive um casamento magnífico. Mas, no fundo do coração, sabia que deveriam ter fugido meses atrás.

 

Eve andava de um lado para o outro da sala. Tinha esperado que Lucien a procurasse naquele dia pelo menos uma vez. Logo estaria escuro e nem sinal dele. Os tios o tinham afugentado, o que não a surpreendia.

— Sente-se — a tia ordenou.

— Estou um pouco preocupada com Lucien. Ele devia ter passado por aqui — Eve explicou, pois eles não ficavam um dia sem se ver.

— Ah, ele passou por aqui de manhã e eu o mandei embora — Harold contou, meio distraído.

— Titio! — Eve exclamou, aflita.

— Você estava experimentando o vestido de noiva.

Então, havia sido bem cedo. Por que Lucien não tinha voltado? O que o tio havia lhe dito?

— Ora, esqueci. Ele mandou um bilhete. Um menino veio entregá-lo no início da tarde — Constance disse ao levantar-se e ir pegá-lo no consolo da lareira.

Um bilhete? O coração de Eve disparou. Por que Lucien o tinha mandado em vez de vir pessoalmente?

Ela leu a mensagem duas vezes e sentiu-se atordoada. Se fosse dada a desmaios, já estaria caída no chão.

Lucien não lhe faria isso. Não sairia da cidade dois dias antes do casamento a negócios! O negócio dele era erradicar fantasmas e, quando se envolvia com isso, nada mais lhe importava. Nem ela.

Num gesto de raiva, jogou o bilhete no fogo da lareira.

— Alguma coisa errada, Eve? — a tia perguntou calmamente.

— Não — ela respondeu em voz baixa.

Por que se preocupava? O bilhete ficara ali a tarde inteira. Lucien já devia estar de volta.

— Falta de consideração dele sair da cidade de repente e com uma desculpa tão esfarrapada — Constance comentou.

— A senhora leu o bilhete — Eve a acusou.

— Eu queria ter certeza de que não se tratava de uma emergência — a tia explicou.

Lucien ir a uma casa mal-assombrada, dois dias antes do casamento, era uma emergência!

— Sabe, Eve, eu estava tão ocupada em passar os vestidos das meninas, e depois com o jantar, que esqueci.

Eve detestava pensar mal da tia, mas não acreditou na desculpa.

— Vou até a cidade para ver se ele já chegou — Eve disse ao dirigir-se à porta e pegar a capa pesada de lã no cabide ao lado.

— Não vai, não — Constance determinou. — Já é quase noite, está muito frio e não fica bem uma jovem correr atrás de um homem. Amanhã cedo você poderá ir procurar seu noivo inconstante.

Eve pôs a capa nos ombros e declarou:

— Não, vou agora.

Saiu e bateu a porta sob os protestos da tia.

Eve praticamente correu até o centro. Fazia frio, escurecia depressa e ela sentia medo. Temia que Lucien não voltasse a tempo para o casamento ou que não aparecesse nunca mais. Ele se envolveria com algo empolgante e a esqueceria. Isso já tinha acontecido antes e poderia se repetir.

Por que ela não havia se apaixonado por um sitiante? Ou pelo dono de uma loja? Alguém que se firmasse num lugar sem se sentir inquieto e aflito? Porém, ela se apaixonara por Lucien.

Eve sentiu-se reconfortada no ambiente aquecido da sala da pensão. Respirou fundo e tentou se acalmar, A sita. Gertrude surgiu na porta do refeitório e, sorridente, exclamou:

— Srta. Abernathy! Em que posso ajudá-la?

— Lucien. Ele está aqui? — Eve murmurou ainda meio sem fôlego.

— Não, meu bem. Ele ainda não voltou da excursão. Algum problema? Por Deus, a senhorita está tão vermelha!

— Por causa do vento frio— Eve mentiu, não querendo admitir que tinha vindo correndo.

— Ele disse que talvez só voltasse amanhã, no início da tarde. Tenho certeza dê que estará aqui, exausto, sem dúvida — a dona da pensão afirmou.

— A senhora está certa — Eve disse, tentando se acalmar. Lucien a amava. Não arruinaria o casamento, planejado com tanto cuidado, por causa de um fantasma. Tentou não se afligir e manter a serenidade. Mas, na verdade, ele a tinha esquecido uma vez por causa de um fantasma. E não tinha mudado muito desde então.

Enquanto saía da pensão para o vento frio, murmurou:

— Lucien, como você pôde fazer isso comigo?

 

Após um trecho tortuoso de estrada, Lucien chegou ao hotel. Uma placa marcada pela intempérie identificava a construção como o Honeycutt Hotel,

Indicações erradas num armazém na estrada tinham lhe custado algumas horas a mais de viagem. Chegava ao escurecer. O frio parecia mais intenso ali.

O hotel tinha três andares e era branco, embora a tinta já houvesse descascado um tanto. Na frente, havia um terraço largo cujo telhado era sustentado por quatro colunas grossas. O mato alto espalhava-se por ele. O resto da construção era comum.

Contudo, mesmo dali, Lucien podia sentir que o lugar estava bem ativo. Não só sentia como via faíscas de luz através dos vidros das inúmeras janelas. Isso não podia ser percebido por aqueles que não possuíam seu dom. Lamentava não ter trazido a ceifeira de ectoplasma e o registrador de espectro. Depois do casamento, talvez convencesse Hugh e Lionel a vir até ali. Ficariam tão interessados quanto ele.

O hotel parecia um pouco ativo demais para a primeira excursão da sociedade secreta. Achava que as moças não gostariam dali. Buster, de jeito algum. Embora não pudessem ver e ouvir como ele, todos tinham instintos que os avisavam quando algo não era normal. E, de forma alguma, o Honeycutt Hotel era anormal.

Lucien desmontou e prendeu o cavalo numa estaca. Após subir três degraus barulhentos, chegou ao terraço onde observou a porta dupla de entrada. Como já ficava tarde e ele não encontraria o caminho de volta na escuridão, teria de passar a noite ali. Tinha a impressão de que não dormiria muito. Mesmo de fora, percebia que o hotel estava cheio de residentes infelizes.

Lucien mal tocou o trinco da porta e ela abriu como se o convidasse a entrar. Os móveis do vestíbulo estavam cobertos de poeira e teias de aranha ocupavam cada canto. Muitos espíritos perambulavam pelo aposento. Ele não havia trazido uma lanterna, mas não seria a primeira noite que ele passaria no escuro, numa casa mal-assombrada.

Riscou um fósforo e viu um candelabro no balcão de recepção, cujas velas acendeu. Em seguida, inspecionou o aposento. Apesar de frio e sujo, o lugar era agradável. Estranho que alguém o tivesse abandonado como estava.

A maioria dos espíritos se escondia, porém, Lucien os via naqueles lampejos de luz no teto ou nos cantos. Como sempre, o temor deles parecia mais forte do que o seu. Logo, perceberiam que ele não significava uma ameaça, o que lhe daria a chance de se comunicar com os mais corajosos. Ele gostaria muito de saber o que havia acontecido no Honeycutt Hotel.

Algo sombrio, além dos espíritos, vagava por ali. Lucien sentia-o em lugar de vê-lo. Ele já tinha visto muita coisa em suas lides, o suficiente para saber que o hotel não o agradava. Um arrepio de aviso percorreu-lhe a espinha. Este não era o lugar adequado para a excursão da sociedade secreta. Mas era interessante e nada que ele não pudesse enfrentar.

Lucien planejava examinar o hotel inteiro essa noite e, na manhã seguinte, voltar a Plummerville. Sabia que nunca deveria ter saído de lá. Mas os planos para o casamento e os parentes de Eve o tinham exacerbado demais. Por que a cerimônia não podia ser feita apenas pelo juiz de paz local? Eve queria mais e teria.

Lucien levantou o candelabro para iluminar o aposento inteiro. Gostaria de trazer Eve na próxima vinda ali. Ele falaria com os fantasmas e ela faria anotações. Juntos, descobririam por que os espíritos estavam presos ali e, então, ele os mandaria embora.

Apenas pensar em Eve o acalmou. Ela era mais do que a mulher que desejava como esposa. Era sua amante e amiga. Verdadeiro milagre tê-la encontrado. A vida inteira, havia se sentido solitário e sido considerado um tipo esquisito como o antipático sr. Phillips afirmara. Com Eve, ele era diferente. Muito melhor. Ela havia transformado sua existência triste apenas ao amá-lo e permitir-lhe que retribuísse seu amor.

Ao ouvir o som de passos no andar de cima, Lucien levantou a cabeça. As paredes estalaram e a luz das velas bruxuleou. Resolveu ir investigar. Uma lástima não ter trazido o registrador de espectro.

 

A manhã já ia adiantada e Lucien continuava ausente. Veio a tarde e Eve deixou os parentes para trás e foi à cidade a fim de conversar com as pessoas.

Encontrou-se com Daisy e Garrick no armazém. Os dois eram amigos chegados e ele já a tinha pedido em casamento mais de uma vez. Daisy não havia aceitado. Na aparência, eles formavam o casal perfeito. Ambos tinham cabelos claros, eram bonitos, moravam em Plummerville havia muito tempo e pertenciam à sociedade secreta. Mas Daisy jurava que não amava Garrick e ele também não a amava, na opinião de Eve. Ele a tinha pedido em casamento porque, como esposa, ele manteria a amiga pela vida afora. Porém, Daisy almejava algo mais.

Garrick não ficou surpreso e repetiu a conversa tida com Lucien.

Eve o encarou com as mãos na cintura e esbravejou:

— Você o mandou aonde?

Os três saíram do armazém a fim de se livrarem de olhares e ouvidos curiosos. Lá, Garrick disse na defensiva:

— Eu não o mandei a lugar algum. Apenas mencionei que ele poderia se interessar pelo velho Honeycutt Hotel.

— Onde fica esse hotel? — Eve demandou.

— A poucas horas daqui. Perto da esteada para Atlanta.

Daisy enrolou-se bem na capa enquanto, meio sem fôlego, indagava:

— Poucas horas? Ele já devia estar de volta, não acham?

— Perto da estrada para Atlanta — Eve repetiu devagar. — Como você esperava que Lucien encontrasse o lugar só com essas indicações vagas?

— Calculo que ele tenha parado no caminho para pedir informações — Garrick disse, constrangido.

Pelo menos Eve sabia onde ele estava. Mas não gostou, embora um hotel mal-assombrado certamente explicasse a ausência de Lucien.

— Podemos ir procurá-lo, Buster e eu — Garrick sugeriu.

Eve ainda estava brava com ele, apesar de a culpa ser de Lucien.

Ele não podia resistir, mesmo por uns poucos dias, à chance de verificar o lugar.

— Não, vocês poderiam se desencontrar na estrada e, quando Lucien chegasse aqui, iria procurá-los. E então... — Então, eles nunca se casariam. Num tom confiante, disse:— Ele voltará. Caso o hotel seja muito interessante, Lucien ficará lá até o último minuto possível, mas voltará.

Havia esperado que ele chegasse agora à tarde a fim de receber Hugh e Lionel na estação ferroviária. Mas desde que ele estivesse ali no dia seguinte... Era tudo que ela pedia.

Um casamento perfeito exigia a presença de um noivo.

 

Lucien desceu a escada de volta ao vestíbulo, o candelabro bem erguido para iluminar os degraus. O Honeycutt Hotel era um lugar fascinante, mas nem um pouco seguro para as moças da sociedade secreta. Depois do casamento, ele voltaria para uma breve visita, durante o dia. Então, traria os aparelhos para documentar o que encontrasse.

O casamento. Ele amava Eve do fundo do coração, mas detestava a idéia da cerimônia religiosa. Não havia lhe dito isso, claro. Ela ansiava por algo específico e especial, portanto, o teria.

Lucien não gostava de pregadores, mas o reverendo Watts era um sujeito simpático. Viúvo e novo em Plummerville, tinha chegado duas semanas antes do Natal a fim de conduzir o rebanho da igreja Metodista. Eve gostava dele e era tudo que importava. Lucien detestava a idéia de vestir seu melhor terno e fazer as promessas diante.de pessoas, nem todas amigas. Mas, por Eve, estava disposto a se sacrificar.

A cada novo dia, Eve o surpreendia. Ela era linda não apenas fisicamente, mas no íntimo também. Boa de coração e de alma pura. E lhe pertencia. Para proteger, amar e cuidar dela para sempre.

Ele quase havia arruinado tudo uma vez, porém, a vida voltara a ficar bem. Eles se pertenciam para sempre. Dar um dia para o casamento desejado por Eve era muito pouco.

Estaria ficando muito quente ali? Lucien pôs o candelabro de volta no balcão. Já tinha largado o sobretudo no sofá e, agora, livrava-se do paletó. Mesmo assim, sentia muito calor. Fazia frio lá fora e ele não tinha acendido a lareira. Por que estaria tão quente ali?

Os fantasmas, que eram lampejos de luz, começaram a tomar forma como, às vezes, acontecia. Sem se alarmar, Lucien os viu adquirir aparência. Homens, mulheres e até uma criança. Todos tinham as expressões trágicas daqueles cujas vidas terrenas continuavam inacabadas. Numa voz calma, ele disse:

— Vocês estão todos mortos e já é tempo de irem embora. Serão mais felizes no além, eu lhes garanto.

O que os prendia ali? A maioria dos espíritos, após a morte, passava para o outro lado de boa vontade e facilmente. Traumas ou sofrimento emocional seguravam alguns aqui. Esses eram os espíritos que ele ajudava a terminar a passagem.

Como se fossem um só, os fantasmas se aproximaram dele.

Rostos tão tristes. Uma das mulheres estendeu a mão e a criança abriu a boca como se fosse falar. Então, todos desapareceram.

Lucien suspirou. Geralmente não era fácil. Mandar embora espíritos presos, às vezes, dava certo, mas havia algo mais agindo ali. Quando voltasse outra vez, verificaria o que era necessário para enviar as almas ao além. Não achava que Eve deveria vir também. Algo neste lugar estava errado. Tentaria convencer Hugh e Lionel a ficar mais uns dias na cidade. Sem dúvida, eles seriam de grande ajuda ali.

Eve. Deus do céu, como sentia falta sua. Não queria se encontrar sozinho naquele maldito hotel! Queria estar com ela, em sua cama. Na cama deles. Apesar de breve, a separação o fazia sofrer de uma maneira inesperada.

Como tudo tivesse ficado calmo por uns momentos, Lucien não estava preparado para o espírito inquieto entrar em seu corpo sem permissão. Foi como um golpe no peito, uma facada no coração. Caiu de joelhos quando um segundo espírito invadiu-lhe o corpo, depois outro e mais outros. Tentou expulsá-los, mas eles estavam prontos para resistir. Não podia lutar contra todos. Tinham vindo quase juntos, furiosos, presos ali por tempo demais. Queriam falar através dele.

Sua boca emitia vozes que não eram a sua, a cabeça estava cheia de ódio, horror e lembranças terríveis. Era demais para a mente de uma única pessoa suportar, porém, ele tentou.

— Saiam — conseguiu ordenar com a própria voz.

Tarde demais. Lucien não conseguia controlar tantos espíritos. Lidar com um único já o deixava exausto, enfrentar um sem fim deles, no próprio corpo, depressa o esgotou.

Havia morte ali, além de sofrimento e medo. E algo maligno espreitava atrás de tudo.

Com as forças exauridas, Lucien caiu no chão, a testa quente apoiada no soalho frio.

— Eve — murmurou uma única vez.

 

Chá a acalmaria, Eve pensou ao entrar na cozinha. A idéia era boa, porém, ela não acreditava no efeito. Nada a acalmaria, exceto ver Lucien entrar pela porta.

Garrick tinha prometido ir esperar Hugh e Lionel na estação e levá-los à pensão.

Enquanto Eve punha açúcar no chá, a tia apareceu na cozinha.

— Aí está você, Eve — disse baixinho.

Ai, não! Eve sabia o que ia acontecer.

— Vou me deitar dentro de poucos minutos — avisou.

Constance cruzou os braços na cintura e ergueu o queixo.

— Só preciso de uns poucos minutos. Como sua mãe se foi, é meu dever prepará-la para o casamento.

— É muita bondade sua, mas...

— Não me agradeça. Pelo bem de minha irmã querida, devo cumprir meu dever — Constance afirmou com expressão constrangida.

— Entendo, mas...

— Uma esposa tem muitos deveres. É preciso manter o marido bem alimentado, conservar as roupas dele limpas e em boas condições, cuidar da casa para que ele tenha um lar agradável ao qual voltar no fim de um dia de trabalho. Você deve sorrir quando ele lhe contar casos cansativos, mas que ele considera interessantes.

Eve tomou um gole do chá e suspirou. Afinal a conversa não era a que esperava.

— Os homens são muito egoístas e as mulheres devem suportar isso em prol da felicidade do lar. Eles são uns animais e cabe a nós amestrá-los sem deixar que percebam.

— Obrigada por esses conselhos — Eve disse, aliviada.

A tia respirou fundo, baixou a cabeça e prosseguiu:

— Os deveres da esposa no quarto são mais penosos. Um homem não pode ser totalmente amestrado e, em certos casos, a esposa tem de ceder. — Suspirou.— Um homem não é... Um marido espera... É muito íntimo e...

— Talvez caiba ao marido explicar esses deveres íntimos — Eve sugeriu, indo em socorro da tia.

Nunca a tinha visto incapaz de completar uma sentença. Constance ergueu a cabeça e sorriu.

— Ora, Eve, você está certa. É claro que cabe ao marido o dever de explicar questões tão pessoais. Apenas não fique desapontada.

Eve tomou o resto do chá e disfarçou um sorriso. Lucien nunca a desapontara na intimidade. Ele a tinha possuído de surpresa e a deixado chocada. Porém, havia lhe ensinado mais sobre o amor e o prazer do que ela imaginara ser possível.

Se Lucien não estivesse ali no dia seguinte e na hora, ela se sentiria mais do que desapontada. Ficaria arrasada. Deixá-la no altar pela segunda vez, esquecendo-a por causa de um fantasma... seria imperdoável.

 

De um canto da entrada da igreja, Eve observou as costas das pessoas sentadas nos bancos. Viu chapéus elegantes das senhoras e cabelos bem penteados dos homens presentes. O murmúrio de vozes ressoava pelo ar, os convidados, inclinados uns para os outros, falavam em voz baixa. Alguns deviam conjeturar por que a cerimônia ainda não tinha começado. Outros sabiam que Lucien não tinha voltado da malfadada excursão.

Apesar do dia frio de inverno, a pequena igreja estava repleta. Além dos residentes da cidade, havia as pessoas de fora.

Tia Constance, com um exagerado chapéu enfeitado com flores de seda, e tio Harold sentavam-se no primeiro banco, no lado da noiva. Penélope e Millicent, vestidas em tons diferentes de rosa, acomodavam-se entre os pais.

Os membros da Sociedade de Almas Penadas de Plummerville, que não tomariam parte na cerimônia, Katherine, Garrick e Buster, sentavam-se juntos. Como o homem mais bem vestido da cidade, Garrick tinha caprichado na indumentária. Buster usava, sem dúvida, seu melhor terno. Como sempre, Katherine mantinha o luto da viuvez, mas com um vestido mais bonito do que os de costume. Daisy, que esperava na antecâmara, onde ela e Eve haviam se aprontado, era o sexto membro da sociedade secreta e dama de honra da noiva.

Entre as pessoas vindas de fora, havia Hugh Felder, Lionel Brandon e O’Hara. Este não tinha sido convidado para o casamento. Eve achava que Lionel e Hugh tinham lhe pedido para acompanhá-los, pois pensavam que o convite dele havia se extraviado. Ou então, O’Hara se convidara, ela calculou. Sabia-se que ele não cultivava boas maneiras. Os três haviam chegado na véspera e nenhum se surpreendera ao saber do paradeiro de Lucien.

Os três tinham habilidades como Lucien, embora o dom de cada um se manifestasse de maneira diferente. Os quatro formavam um grupo notável. Hugh Felder já ia completar quarenta e cinco anos e apresentava-se com dignidade serena. Seus cabelos escuros já embranqueciam nas têmporas, as feições eram bem feitas e os óculos combinavam com elas. Aos vinte e seis anos, Lionel Brandon era quase tão alto quanto Lucien, também tinha olhos azuis, embora mais claros, e usava cabelos compridos. Apenas estes, lisos e loiros, diferenciavam-se dos ondulados e castanhos de Lucien. A presença de Lionel na cidade havia provocado um grande alvoroço nas moças.

Eve também já havia considerado O’Hara bonito. Ele usava os cabelos castanhos bem curtos e tinha traços atraentes, apesar de um tanto irregulares. Ele podia ser encantador quando queria, mas não tinha o mínimo gosto para se vestir. O’Hara apreciava tecidos com listras ou xadrez; mesmo assim, ela o achava adorável. Mas isso fora antes de ele tentar enfiar a mão sob sua saia para tocar o que não tinha direito.

Eve havia trabalhado com eles todos no passado. Documentava fenômenos psíquicos e escrevia artigos para revistas e livros especializados no assunto. De certa forma, eles eram amigos, ou tinham sido.

Lucien ia ficar furioso quando visse O’Hara. Ela nunca devia ter-lhe contado o incidente desagradável e atrevido. Ele dizia que ainda tinha contas para acertar com O’Hara.

Hugh ia ser o padrinho de Lucien e esperava, em pé, num canto na frente da igreja e ao lado do reverendo Watts. Lionel e O’Hara sentavam-se num banco, no lado do noivo. Com as cabeças juntas, conversavam baixinho como as outras pessoas.

Quase todos os moradores da cidade estavam ali. A metade acreditava nas habilidades de Lucien e a outra o considerava um ilusionista. Mas todos queriam vê-lo se casar.

Mas onde estaria ele?

Em se tratando de Lucien, meia hora de atraso não era motivo de alarme. Mesmo assim, Eve ficava mais nervosa a cada minuto que passava. Ele já a tinha deixado diante do altar uma vez e as contrações do estômago daquela ocasião já se faziam sentir. Lucien se desculpara muitas vezes e, sem dúvida, não lhe faria a mesma coisa novamente.

Daisy saiu da antecâmara, aproximou-se de Eve e murmurou:

— Onde estará Lucien? Ele deveria estar aqui séculos atrás!

— Lucien virá — Eve afirmou, confiante.

Como sempre, Daisy estava linda com o vestido azul, enfeitado com flores de seda. A cor era perfeita para ela, pois ressaltava o azul dos olhos e o corado das faces.

O modelo do vestido de noiva de Eve era mais simples do que o de Daisy, mas muito elegante. De cetim, enfeitado com pérolas pequeninas e a renda mais delicada que Laverne, a costureira, tinha encontrado. A saia era ampla e a cauda não muito longa. Uma grinalda de flores delicadas prendia o véu. Lucien adoraria ambos e a acharia linda com eles.

Caso desse o ar da graça!

Culpa dos tios. Eles o tinham afugentado. Eram intoleráveis, Eve sabia. Mas, no dia seguinte, voltariam para Savannah.

Lucien e ela já se consideravam marido e mulher. Os parentes não podiam saber, claro. O casamento era apenas uma formalidade, uma convenção. Porém, não o seria sem o noivo.

O estômago de Eve contraiu-se mais. Lucien achava que investigar um hotel velho seria mais interessante do que aturar seus parentes por dois dias. Ele não tinha levado em consideração seus sentimentos nem por um segundo. Lucien deveria saber o quanto ela precisava de sua companhia, embora tivessem a interferência dos parentes irritantes e precisassem dormir separados por três noites. Ele deveria saber...

— O que você vai fazer se Lucien não aparecer? — Daisy murmurou.

— Ele estará aqui — Eve respondeu.

— Mas se...

— Ele estará aqui! — repetiu, enfática.

Daisy pôs a mão em seu ombro e ofereceu um sorriso lindo.

— É claro que ele estará aqui. Não sei em que estava pensando ao supor que talvez não viesse. Ele adora você, Eve. Chegará a qualquer momento.

Era uma tentativa carinhosa, mas tola, de acalmar os nervos ralados de Eve. Para distraí-la mais um pouco, Daisy perguntou:

— Aquele simpático Lionel Brandon falou em mim quando você o encontrou hoje de manhã?

— O quê? Ai, não.

— Eu o vi rapidamente quando ele e os amigos chegaram ontem à noite na pensão. Ele é muito vistoso. Lembra um viking bem vestido.

Eve desviou a atenção para os convidados na igreja. Não tinha tempo para analisar o interesse de Daisy por Lionel. Um viking? Deus do céu! Numa voz sem inflexão, disse:

— Ele é atraente, penso, mas vocês dois não têm nada em comum.

— Temos você e Lucien — Daisy afirmou, animada.

Eve a ignorou. Os convidados, inquietos, começavam a se mexer e as vozes elevavam-se.

Quando a porta abriu a suas costas, Eve respirou aliviada e virou-se depressa. Uma lufada de vento agitou-lhe a saia e o véu antes de a porta fechar.

Não era Lucien que entrava, mas um menino de uns doze anos, com um papel amassado na mão. Ofegante, ele indagou:

— A senhorita é Eve?

— Sim — ela balbuciou com o coração disparado.

Só íntimos a chamavam de Eve. Alguma coisa estava errada. Caso contrário, ele teria vindo. Não a deixaria esperando na igreja, com o vestido de noiva, se estivesse ao alcance dele.

— Vim o mais depressa que pude. Foi o que ele pediu. Corri até em casa para avisar minha mãe do que estava acontecendo e, então, vim a galope — o menino explicou.

— Tenho certeza — Eve murmurou enquanto desdobrava o papel que ele tinha lhe entregado.

Ao ler a nota, seu sangue gelou nas veias. As mesmas palavras eram repetidas um sem fim de vezes. Eu não esqueci. Eu não esqueci. A página inteira, de alto abaixo, só continha isso. Mas a escrita não era uniforme. Com frequência, mudava de uma caligrafia infantil para a de alguém instruído ou para a de um adulto pouco letrado. Havia, pelo menos, seis tipos de caligrafia que ela podia distinguir de relance.

— Onde está ele? — Eve indagou.

— Eu o encontrei no velho Honeycutt Hotel. Exatamente onde Garrick tinha dito que Lucien estaria.

— Eu caço por lá sempre e o cavalo dele estava na frente do hotel fazia mais de um dia — o menino continuou. — Fiquei pensando se não tinha acontecido alguma coisa. Depois que encontrei o moço e ele me pediu para trazer o bilhete, levei o cavalo dele para casa e peguei o de minha mãe para vir, pois não gosto de cavalgar um animal estranho. Não se preocupe com o cavalo do moço. Minha mãe está cuidando dele.

— Muito bem — Eve disse em voz firme.

Ela queria chorar e gritar, mas o grito estava preso na garganta, o peito, apertado e o estômago, mais contraído ainda. Porém, não havia tempo para uma crise de histeria.

— O que aconteceu com Lucien? Ele está machucado? Doente?

— Não sei, moça. Ele estava sentado no chão, balançava o corpo para frente e para trás e falava sem parar.

— Sobre o que ele falava?

— Não sei. Era um monte de palavras que não dava para entender. Eu acho, moça, que ele não está bom da cabeça. Mas insistiu para eu vir entregar isso para Eve, na Igreja Metodista de Plummerville e aqui estou eu.

— Obrigada. Como você se chama?

— Elijah. Minha mãe teria ido ver seu amigo, mas machucou a perna uns dias atrás e quase não pode andar.

— Não tem importância — Eve respondeu, distraída.

Elijah olhou para o interior da igreja.

— A senhorita vai se casar hoje?

Eve suspirou.

— Pelo jeito, não. Elijah, quero que você espere aqui um instante e, depois, me leve até o tal hotel.

— Tudo bem, moça. Mas acho melhor se apressar se quiser chegar lá antes do escurecer.

Ela assentiu com um gesto de cabeça e, finalmente, começou a percorrer a nave central, em direção ao altar, mas em passos rápidos. Daisy a seguia.

— Eve, o que você está fazendo? — indagou baixinho.

— Você ouviu o que o menino contou. Lucien está com problemas. Vou procurá-lo e o trazer para casa.

Enquanto Eve se aproximava do altar, o reverendo Watts aproximou-se, acompanhado por Hugh. Mas, com um gesto, ela os afastou antes de virar-se para os convidados.

— Lamento, mas não haverá casamento hoje — avisou sem trair a emoção, o coração disparado e grito ameaçando escapar.

Tia Constance levantou-se depressa.

— Outra vez?! Eve, esse comportamento é simplesmente inaceitável!

Eve a encarou.

— Acabo de receber a notícia de que Lucien está doente e vou buscá-lo.

— Doente? Onde? O que aconteceu? — Hugh indagou ao desviar-se do pastor.

— Não tenho tempo para explicar. Preciso me apressar se quiser chegar lá antes do escurecer.

Tia Constance se aproximou e, em voz baixa, declarou:

— Eve, você não vai correr atrás do homem que a largou diante do altar duas vezes. Jamais se comete tal absurdo.

Houve uma época em que Eve teria concordado com a tia. A primeira vez em que Lucien havia lhe feito isso, ela se sentira devastada e, por nada deste mundo, teria ido buscá-lo.

Agora, porém, sabia sem sombra de dúvida que ele a amava. Por isso, não o deixaria sozinho num hotel abandonado onde ele tinha sido, obviamente, apanhado e enfraquecido por espíritos infelizes. As várias caligrafias do bilhete indicavam isso.

— Tenho de ir — Eve disse baixinho.

— O que vou dizer a meus amigos em Savannah? — a tia indagou com arrogância.

— Não me importo a mínima com o que a senhora irá lhes dizer. No momento, só me importo com Lucien.

Constance apertou os lábios com ar de desaprovação.

— Irei com você — Hugh disse ao se aproximar mais.

Lionel e O’Hara levantaram-se e fizeram sinais com a cabeça.

— Nós os acompanharemos. Talvez possamos ser úteis — Lionel sugeriu com voz profunda.

— Também vou — Daisy declarou.

— E nós — Garrick disse ao levantar-se, seguido por Katherine e Buster.

— Não é necessário que todos vocês me acompanhem. Tenho certeza de que poderei enfrentar a situação — Eve afirmou.

— Você prefere ir sozinha? Sabe-se lá o que poderá encontrar? Além do mais, em parte a culpa disso é minha — Garrick disse.

— O problema é que preciso me apressar — Eve argumentou.

— Também vou — Constance disse com um menear altivo da cabeça.

— Não! — Eve protestou. Se encontrassem o que imaginava, não queria a presença dos tios. — Se a senhora puder cuidar da casa para mim, ou fechá-la caso queiram ir embora, eu lhe ficarei muito grata. Não sei quando estarei de volta.

Constance apertou os lábios.

— Torno a afirmar que não é apropriado você ir correndo atrás do homem que a largou diante do altar duas vezes

Eve não podia arranjar uma explicação numa fração de segundo. Teriam de partir logo se quisessem chegar ao Honeycutt Hotel antes de escurecer como Elijah havia sugerido.

— Tenho de ir — declarou e, praticamente, correu pela nave central, acompanhada por seus amigos e os de Lucien.

 

Logo seria noite. Escuridão novamente. O céu, do lado de fora das janelas, já se tornava cinzento. Os espíritos adoravam a noite. O início da primeira ali não tinha sido muito ruim, Lucien refletiu. Com o candelabro, havia inspecionado quartos vazios e depois voltado ao andar térreo a fim de descansar umas horas antes de voltar para Plummerville. Não tinha se concentrado muito na situação e, ao distrair-se, a mente se tornara vulnerável. Os espíritos aproveitaram e o invadiram. Ele tinha sido subjugado tão depressa que não fora possível defender-se.

A véspera tinha passado num entorpecimento nebuloso. Mas o dia não havia sido tão ruim quanto a noite que o seguira. Nela, o aposento ficara imerso na maior escuridão e as horas tornaram-se longas demais, o que o fez perder a noção de tempo. Seria meia-noite ou quase o amanhecer? Ele estaria deitado ali havia horas ou poucos minutos? Os espíritos o tinham dominado no escuro, dançado ao seu redor e dentro dele. Lucien não tinha certeza se sobreviveria a outra noite igual àquela.

Deitado de costas no chão do vestíbulo e com a sensação de estar sem ossos, olhava para o teto. Durante os seis anos de abandono, o hotel tinha se enchido de fantasmas turbulentos e que gostavam de ser notados.

Todos queriam falar através dele. Quase sempre, com seu alto grau de controle, era possível encaminhar espíritos, mas estes o tinham possuído de surpresa. O dia inteiro da véspera, bem como a noite, eles haviam usado seu corpo até que não lhe restasse nada. Ele não tinha mais resistência física e a mente estava em frangalhos.

Algo mais também estava ali. Vigiando. Esperando. Apreciam do seu sofrimento. Ele não podia apreender bem o que era essa força maligna, mas a sentia, o que o enregelava até o âmago.

Nos momentos ocasionais de lucidez, Lucien pensava em Eve e isso o ajudava a manter a sanidade mental.

Deitado no chão, sentia ou muito frio, ou calor intenso. E também acabrunhado com a solidão. Ela o acompanhara por muitos anos sem se fazer notar. Então, ele tinha conhecido Eve e passado a não querer mais ficar sozinho. Ele ansiava para tê-la a seu lado.

Pelas janelas, Lucien viu que o céu tinha escurecido. Algo batia nos vidros como uma chuva de pedrinhas.

Granizo e um vento tão forte que soprava pedacinhos de gelo sob a porta. Ele tentou rir e, mentalmente, o fez. O granizo seria acompanhado de neve. A estrada, cheia de curvas, de buracos e até de uma vala num trecho, ficaria intransponível. Ninguém o encontraria e ele não sobreviveria à noite.

Uma voz, que não era ã sua, saiu-lhe da boca:

— Você gostará daqui.

Centenas de vezes, tinha pedido aos espíritos que o dominavam para deixá-lo ir embora. Na véspera, num momento de lucidez e antes de enfraquecer demais, havia tentado sair pela porta da frente. Ela se recusara a abrir. As janelas estavam emperradas e a porta da cozinha também não abria.

Mas, naquela manhã, o menino que o tinha encontrado abrira a porta da frente com facilidade.

A casa e os espíritos nela não queriam que Lucien se fosse.

— Com seu espírito aqui, seremos mais poderosos do que jamais fomos — a voz estranha, vinda de sua boca, afirmou.

— Não ficarei — ele insistiu.

— Ficará, sim.

Lucien fechou os olhos e pensou em Eve. Ela era a única coisa boa em sua vida. No entanto, a tinha deixado esperando-o mais de uma vez. Havia lhe infligido uma grande humilhação e estraçalhado seu coração, Eve não viria porque não tinha conseguido perdoá-lo pela segunda vez. E se não fosse ela, quem mais viria? Ninguém.

Se o espírito que o ocupava estivesse certo, ele jamais escaparia deste lugar.

 

Granizo! Como se não bastasse terem sido forçados a abandonar a carroça, em que ela, Daisy e Katherine iam, por causa de uma vala no meio da estrada, agora granizo fustigava-lhes os rostos.

Eve e as outras duas iam na garupa dos homens, a que não estavam acostumadas. Ela na de Hugh, Katherine na de Buster e Daisy nade Garrick. O’Hara, Lionel e Elijah cavalgavam sozinhos, o menino conduzindo o cavalo que puxara a carroça.

— Lá está ele! — Elijah gritou.

Eve espiou por sobre o ombro de Hugh e teve sua primeira visão do Honeycutt Hotel. Era um prédio quadrado, de três andares e mal visível sob a última luz do dia. Sem querer, ela estremeceu. Não havia outras casas nas cercanias, exceto a de Elijah que não podia ser vista a essa distância. O menino havia dito que ela ficava além do hotel.

Por que alguém construiria um hotel ali tão afastado? Lucien estava lá. Ferido? Sozinho?

— Depressa, Hugh — Eve murmurou sem se conter.

— Dentro de poucos minutos estaremos lá.

Foram longos poucos minutos. O vento gelado atravessava a capa de lã grossa que ela usava sobre o vestido de noiva, o granizo picava-lhe as faces. Como já pudesse vislumbrar o hotel, Eve não escondia mais o rosto atrás de Hugh.

Quando chegaram mais perto, ele esporeou a montaria que ultrapassou a de Elijah. Pararam em frente do terraço antes dos outros e ele a ajudou a desmontar.

— Espere! Pode não ser seguro lá dentro — ele gritou enquanto Eve corria para a porta de entrada.

Ela o ouviu, mas nada a deteria, nem o cuidado com a própria segurança. Abriu a porta e, apesar das sombras no vestíbulo, ela distinguiu uma silhueta imóvel no chão.

— Lucien — murmurou ao correr para ele e ajoelhar-se ao lado. — Deus do céu, o que aconteceu?

Seu coração quase parou. O homem a quem amava e com quem passaria o resto da vida não se mexia. Estaria morto? Aconchegou-lhe o rosto entre as mãos e sentiu que estava quente. Aliás, muito. Baixou a cabeça para mais perto e prendeu a respiração para ouvir melhor. Lucien respirava, percebeu.

— Acorde, olhe para mim, Lucien — disse baixinho.

Devagar, ele abriu os olhos.

— Estou morto? — balbuciou.

— Não — Eve respondeu e beijou-o no rosto. Estaria ele com febre? Talvez.

— Você está aqui e linda. Pensei que nunca mais a veria. Estou morto e você não quer me contar.

— Você não está morto — ela insistiu.

Lucien revirou os olhos, retorceu o corpo e, voltando a fitá-la, sorriu. Numa voz um pouco mais alta e diferente da dele, disse:

— Ainda não.

 

Com muita dificuldade, Eve fez Lucien se sentar e amparou-lhe o corpo inerte com o seu. Logo, os outros entravam pela porta. Elijah vinha na frente.

— Na cozinha vão encontrar velas, eu acho — disse, apontando a direção. Katherine e Buster correram para lá. — Também deve haver cobertores lá em cima. Os senhores precisam de algum conforto para passar a noite no hotel.

— Não! Impossível ficar aqui. Temos de tirar Lucien já deste lugar — Eve argumentou.

Hugh ajoelhou-se a seu lado e tomou o pulso de Lucien.

— Não podemos ir embora agora à noite, Eve, sinto muito. Está quase escuro, o granizo cai com força e Lucien não está em condições de viajar.

Eve pensava que Lucien só estava morto de frio. Viu o sobretudo no sofá e o paletó jogado no chão. Apenas a camisa branca, a calça, as meias e os sapatos o protegiam.

— Eles querem que Lucien morra. Ele não pode ficar aqui — murmurou como se os espíritos não pudessem ouvi-la se falasse em voz baixa.

— Lucien não está mais sozinho. Nós vamos protegê-lo — Hugh prometeu numa voz reconfortante.

— Como?

— Não se aflija. Ele ficará bem agora que estamos aqui — Hugh garantiu com um sorriso meigo.

Desde o falecimento de Bernard Abernathy, quatro anos atrás, Hugh Felder tinha sido como um pai para Eve. Bondoso, protetor, discreto e reservado, ele era mais querido como um parente do que Constance jamais seria. E, da mesma forma, era de Lucien a quem tinha orientado. Também o fizera a Lionel e O’Hara. Quando eles se sentiam perdidos, Hugh lhes mostrava o caminho.

O’Hara andava pelo aposento, examinava cantos escuros, falava sozinho, punha as mãos em vários lugares das paredes e parava por uns instantes a fim de absorver as informações obtidas daquelas formas. Ao passar muito perto de Daisy, ela abafou um grito e afastou-se depressa. O’Hara reagiu com um sorriso. Cada família, por laços sanguíneos ou por opção, tinha sua ovelha negra. O’Hara era a deles.

Katherine e Buster voltaram da cozinha com velas e fósforos e as acenderam até o vestíbulo ficar imerso numa luz aconchegante.

Lucien abriu os olhos e murmurou:

— Eles não me deixarão ir embora. Tentei muito. Por nada deste mundo eu a deixaria esperando na igreja.

— Eu sei — Eve sussurrou.

— As portas e as janelas não abriam. Quando quis quebrar o vidro de uma, eles me puxaram para trás. Nunca perdi o controle desta forma antes, Eve. Jamais.

Ela não queria ficar ali, mas Hugh tinha razão. Era muito perigoso levar Lucien naquelas condições. Teria de se contentar em levá-lo no dia seguinte.

— Não fale, Lucien. Esta noite você vai descansar e, amanhã cedo, nós todos sairemos daqui. Mesmo que eu tenha de derrubar as paredes — Eve prometeu.

Lionel, com os cabelos compridos emaranhados pelo vento e molhados pelo granizo derretido, aproximou-se.

— Este hotel está numa atividade extrema.

— Está mesmo — Hugh concordou.

— Tenho um mau pressentimento sobre o lugar. Creio que o instinto de Eve está certo. Talvez devamos ir embora agora à noite — Lionel sugeriu.

Hugh olhou em volta.

— Não sei. Transportar Lucien nesse estado físico não vai ser fácil. Onde está o menino?

Naquele instante, Garrick entrou correndo pela porta da frente e a bateu com força.

— O granizo virou neve — informou ao livrar-se dos flocos brancos.

— Como? Quase nunca neva por aqui — Daisy comentou ao correr para uma janela.

— Tivemos uma grande nevasca alguns anos atrás — Katherine disse.

— É verdade. Mas não se preocupem porque passa logo. Cairá um pouco esta noite e, amanhã, o sol aparecerá e derreterá tudo — Buster garantiu.

Hugh tomou a perguntar:

— Onde está o menino?

Foi Garrick quem respondeu:

— Elijah foi embora e levou os cavalos para o sítio dele onde há um estábulo para abrigá-los. Ele disse que amanhã cedo vai nos trazer alimentos.

Lionel suspirou.

— Vejo que somos obrigados a passar a noite aqui.

Eve afastou os cabelos do rosto de Lucien. Ele estava tão pálido, com uma cor estranha acentuada pela barba por fazer. Quando teria ele se alimentado pela última vez? Ao se envolver com casas mal-assombradas, ele esquecia de cuidar de si mesmo. Era um dos motivos pelos quais precisava dela. Aliás, a necessidade era mútua. No momento, ela não sabia como ajudá-lo.

Estavam todos presos ali pela escuridão, a neve e o simples fato de os cavalos terem sido levados para um abrigo.

— Não estou gostando disto nem um pouco — Eve afirmou.

Lucien a fitou e murmurou:

— Nem eu.

Encostada numa parede, Daisy admitiu que deveria ter se oferecido para ficar em Plummerville a fim de fazer companhia aos parentes de Eve em sua ausência. Não havia nada que ela pudesse fazer ali. Não sabia lutar contra fantasmas. Afinal, não via nada nos cantos como Lucien e os amigos percebiam obviamente.

Mas quando Eve tinha dito que viria buscar Lucien, ela se sentira obrigada a acompanhá-la. Amigos verdadeiros deviam oferecer apoio em momentos de crise. O fato de o atraente Lionel Brandon ter se voluntariado antes não a tinha influenciado. Bem, quase nada.

Agora, que se encontrava no Honeycutt Hotel, ocorria-lhe que cuidar dos parentes de Eve teria sido um emprego melhor de seu tempo. Havia chegado a essa conclusão porque não gostava dali nem um pouco. Podia não ter a capacidade de Lucien e dos amigos para ver certas coisas, mas possuía instintos. O hotel era um lugar muito ruim.

O’Hara tornou a passar perto de Daisy e a mão roçou em seu corpo. Ele tinha bastante espaço para andar sem chegar perto e tocá-la. Daisy desviou-se depressa e dirigiu-lhe um olhar de aviso.

Como sentisse a necessidade de ser útil, ela foi para o centro do aposento. Também ali O’Hara não se atreveria a tocá-la diante dos outros.

— Calculo que devamos nos preparar para passar a noite. Será que existe algum alimento aqui? Elijah prometeu nos trazer alguma coisa amanhã cedo. Podemos esperar até então, claro, mas se há alguma coisa na cozinha...

— Não vi nada lá — Katherine informou.

Uma lástima não poder passar o tempo cozinhando, Daisy refletiu. Não que gostasse desse serviço, mas seria bem melhor do que ficar ali no vestíbulo onde um malandro atrevido tentava tocá-la quando passava por ela.

Hugh levantou-se do chão onde Eve sentava-se e amparava Lucien.

— Não temos o que comer, mas a srta. Willard está certa. Temos de nos preparar para a noite. Precisamos acender a lareira e verificar se há camas em condições razoáveis.

Daisy desviou o olhar de Hugh para observar as feições bonitas de Lionel. Ela já vira homens atraentes, porém, este era lindo!

— Será que se importaria de verificar se precisamos de algo mais, srta. Willard? — Hugh Felder indagou.

Daisy voltou a fitá-lo e fez um gesto afirmativo com a cabeça. Eve sempre falava sobre o sr. Felder como se ele fosse idoso, um tipo de avô. Por isso, havia se surpreendido muito ao conhecê-lo. Ele não era idoso, embora mais velho do que os amigos. Os óculos e os cabelos brancos nas têmporas lhe davam um ar de distinção, mas jamais o de um avô.

— Claro. Precisamos pendurar as capas e sobretudos tão logo o fogo esteja aceso, Eles deverão estar secos para a viagem de volta amanhã.

— Idéia muito oportuna — Hugh elogiou com um sorriso. Em seguida, pediu a Garrick e Buster para providenciar lenha e acender o fogo.

Daisy tirou a capa e sacudiu-a. Não tinha a mínima intenção de ficar sozinha num quarto desse hotel, onde teriam de passar a noite. Estremeceu.

Eve murmurava algo para Lucien, alisava-lhe os cabelos e o acariciava no rosto. Que Deus a ajudasse. Ela temia tanto por Lucien. Daisy não a culpava. Ele não estava nada bem. Além da palidez extrema, as mãos tremiam e ele só ficava sentado graças ao esforço de Eve.

Os dois se amavam tanto que, às vezes, Daisy os invejava. Ela já tinha recebido propostas de casamento, porém, o tipo de amor encontrado pelos amigos não surgia em sua vida. Ela não queria menos do que Eve e Lucien possuíam. Ao mesmo tempo, temia o amor. Ele exigia algo que ela não tinha certeza se seria forçada a oferecer. Sentia-se dividida. Uma parte sua ansiava pelo amor e outra o temia.

Daisy aproximou-se de Eve e, numa voz suave, disse:

— Eve, deixe eu tirar sua capa. Está molhada.

— Não posso largar Lucien. Não quero que ele volte a deitar no chão frio como o encontrei. Ele estava meio fora de si. Deste jeito, melhorou. É possível que eles o deixem enquanto eu o estiver segurando — Eve explicou baixinho.

Hugh ajoelhou-se do outro lado de Lucien.

— Eu o amparo enquanto você tira a capa. Não podemos permitir que você se resfrie.

Eve livrou-se da capa e a entregou a Daisy enquanto dizia:

— Todos estão preocupados que eu apanhe um resfriado. Tolice.

Ela estava linda com o vestido de noiva, Daisy pensou ao pegar a capa. Eve sempre insistia que era sem graça. Um grande engano. Ainda mais naquele dia. Os cabelos, de um castanho dourado, tinham sido arrumados num penteado elaborado e elegante. Infelizmente, o sacolejar da viagem havia soltado um tanto deles e o vestido estava muito amarrotado. Mesmo assim, ela continuava linda.

Quando Hugh largou Lucien nos braços de Eve, pediu:

— Lionel, veja se pode encontrar um quarto sossegado lá em cima para Lucien. Leve O’Hara com você.

— Um quarto sossegado? — Daisy indagou enquanto os dois homens subiam a escada.

— Numa casa como esta, onde há muita atividade fora do comum, existem poucos lugares calmos. São apenas os aposentos pequenos onde a movimentação é menor. Precisamos encontrar um quarto tranquilo para Lucien recuperar a energia perdida — Hugh explicou com ar sério.

— Entendo — ela murmurou.

Hugh retornou a atenção para Lucien e Daisy afastou-se um pouco. Desde a chegada dos três na véspera à tardinha, a cidade estava em polvorosa. Lionel era admirável, claro, tinha um sorriso lindo e mancava um pouco, o que lhe dava um ar misterioso. Segundo ela ouvira, isso era temporário e consequência de uma fratura recente na perna.

As moças estavam fascinadas por O’Hara e a maneira com que ele flertava. O homem não se parecia nem um pouco com os sitiantes ou empregados do comércio da região, o que as excitava.

Ele tinha um certo encanto, Daisy admitiu. Mas todos os malandros não tinham?

Mesmo Hugh Felder, um quarentão, conseguia virar umas tantas cabeças. Ele possuía dignidade e um fascínio discreto.

Daisy voltou a pensar em Lionel. Ainda não o conhecia bem para saber se havia uma possibilidade de romance entre eles. No momento, sentia-se atraída pelo sorriso e pelo corpo alto e esbelto dele.

Porém, seria impossível saber se ela e Lionel combinavam, a não ser se conversassem algumas vezes a sós. Havia uma expressão específica que surgia no rosto de um homem que se interessava por ela de maneira romântica. Ela conhecia esse sinal. Até então, não havia dado atenção aos que o exibiam.

Talvez Lionel Brandon fosse o homem perfeito para ela. Porém, desde sua chegada na véspera, ele não se dignara a lhe dirigir um único olhar, muito menos aquele de interesse romântico.

Daisy continuou a observá-lo. Tão logo Lucien melhorasse, ela se esforçaria para que Lionel a notasse.

O’Hara e Lionel carregaram Lucien escada acima. Eve foi logo atrás, com uma vela, e Hugh, na frente, com outra para iluminar o caminho.

O quarto sossegado, escolhido por Lionel e O’Hara, ficava no fim do corredor do segundo andar. O fato de não ser no terceiro deixou Eve aliviada. Carregar Lucien não tinha sido fácil.

No quarto, Hugh pôs a vela na cômoda empoeirada e foi ajudar os outros dois a deitar Lucien na cama já arrumada. O hotel estava abandonado havia muito tempo, mas Daisy e Katherine tinham sacudido a roupa de cama e afofado os travesseiros. Podia-se notar que o aposento havia sido de um certo luxo, mas os anos de abandono tinham lhe apagado o brilho. Apesar de tudo, Lucien estaria melhor ali do que no chão do vestíbulo.

Uma única vela não iluminava muito, mas estavam economizando as que tinham achado. Eve deu a sua para Hugh e sentou-se na cama, ao lado de Lucien.

— Vou ficar com você — Hugh disse ao passar a vela para Lionel.

— Não. Vá ajudar a acomodar os outros — Eve murmurou.

— Você tem certeza?

— Claro. Meus amigos de Plummerville estão abalados, eu sei. Nunca tiveram uma experiência deste tipo. Diga-lhes que ficarei bem e ajude-os a se acomodar.

— Se alguma coisa acontecer... — Hugh começou.

— Gritarei tão alto que me ouvirão lá em Plummerville — Eve afirmou.

Hugh assentiu com um gesto de cabeça. Os três homens saíram e fecharam a porta.

Lucien estava com os olhos fechados, mas começava a recuperar a cor e respirava regular e profundamente. Eve afastou-lhe os cabelos da testa. O que faria se algo acontecesse a ele? Perder o pai já havia sido muito difícil, contudo, ela conseguira tocar a vida em frente. Se perdesse Lucien nunca se recuperaria. Jamais.

Ele entreabriu os olhos e a fitou. Seu coração bateu mais depressa. Ela o amava tanto. Conhecia-lhe o rosto mais do que qualquer outro. E também o riso, a argúcia, os defeitos e os atributos mais preciosos dele. Para muitos, Lucien era estranho, perdia-se no trabalho e via coisas invisíveis a outras pessoas. Era capaz do amor mais profundo e esse amor era seu.

No momento, a luz daqueles olhos, que ela conhecia tão bem, tinha diminuído.

— Está tudo bem? Quer que eu chame Hugh? — Eve indagou.

Com esforço, Lucien balançou a cabeça.

— Não. Está tudo quieto agora. Eles se foram.

— Se voltarem, você me avise logo. Chamarei Hugh e os outros que tomarão providências.

Lucien tornou a fechar os olhos.

Os acontecimentos do dia a engolfaram e ela começou a tremer. Inclinou-se e apoiou a cabeça no travesseiro de Lucien.

— Você me assustou muito — murmurou.

— Lamento. Não sei ao certo como isso aconteceu, Eve. Eu andava lá embaixo, observando sinais de espíritos e, então, comecei a pensar no casamento. Vindos não sei de onde, eles me rodearam, avançando, empurrando. Tentei fechar as portas do corpo como Hugh me ensinou. Tarde demais. Já estavam dentro de mim e se recusavam a sair.

— Amanhã, quando chegarmos em casa, você me contará tudo — ela disse ao aconchegar-se mais.— Agora, você precisa dormir. Lionel afirmou que este quarto é sossegado.

— É mesmo — Lucien murmurou.

— Nada o importunará aqui.

— Ai, que bom.

No instante seguinte, ele entregava-se ao sono tão necessário.

— Não permitirei — Eve insistiu, lutando contra as lágrimas.

 

Daisy tornou a olhar para a escada. Hugh e os outros dois afirmavam que Lucien e Eve estavam seguros naquele quarto, porém, ela não tinha certeza.

Ninguém parecia ansioso para ir dormir. Buster e Garrick tinham arranjado lenha e acendido a lareira. O vestíbulo estava bem menos frio do que quando tinham chegado. Havia muitos quartos e camas lá em cima e Daisy não se importava que estivessem empoeirados e sem cuidados havia muito tempo. Não ignorava que havia espíritos ali no vestíbulo, embora não pudesse vê-los. Não gostava nada disso.

Katherine bocejou, algo contagioso. Sentada a seu lado no sofá, Daisy também o fez. Garrick e Buster conversavam baixinho. Será que se arrependiam por ter vindo? Tarde demais. Com todo o direito, Buster morria de medo de fantasmas e não escondia isso de ninguém. Era um sitiante simples e não gostava de nada que não pudesse tocar ou ver. Garrick estava fora de seu elemento. Só se sentia bem com o frasco de uísque numa das mãos e um maço de dinheiro na outra. Todos os seus problemas ou eram afogados na bebida ou solucionados com o dinheiro do pai. Ambos faziam parte da sociedade secreta porque achavam interessante e não porque quisessem passar uma noite num hotel mal-assombrado.

O mesmo podia ser dito a respeito de Daisy. Para ela, a parte mais agradável da sociedade secreta era a convivência com os amigos de quem gostava muito.

Os motivos de Katherine iam além da sociabilidade, Daisy tinha certeza. Até fazer parte do grupo, ela vivia muito isolada. Também queria se ver livre do fantasma do marido falecido. Na verdade, nenhum dos quatro estava preparado para essa excursão.

Um hotel abandonado! Fantasmas! Daisy estremeceu. Não gostava como os três amigos de Lucien inspecionavam o vestíbulo como se vissem coisas invisíveis para ela. Eram homens extraordinários cujos dons ela jamais entenderia.

Lucien também possuía um e falava com os mortos. E o que fariam os outros? Seus poderes seriam diferentes? Gostaria de saber, mas, no fundo, não era corajosa. Não queria ver a manifestação de tais poderes na situação em que se encontravam.

Katherine levantou-se devagar.

— Senhores, eu gostaria de me retirar para a noite. Que quarto é mais conveniente, caso isso importe?

O coração de Daisy disparou.

— Katherine, sem dúvida você não quer dormir lá em cima!

— Ora, não aqui embaixo.

— Mas existem fantasmas — Daisy balbuciou.

— Segundo Lucien, eles existem em todos os lugares. Como não tenho o dom para vê-los, não corro perigo físico.

— Isso é verdade? — Daisy indagou, olhando para Hugh.

Foi o irritante O’Hara quem respondeu ao sair de um canto escuro para a luz. Daisy tentou se concentrar nos defeitos dele. Nem de longe era tão atraente quanto Lionel, pois tinha traços mais angulosos e marcantes. Algumas mulheres talvez o achassem bonito, ela, porém, de forma alguma. O’Hara era mais baixo do que Lionel e Lucien e não devia ter mais do que um metro e setenta e cinco de altura. Não era baixo, refletiu, já que ela mal passava de um metro e meio.

O’Hara também se vestia de maneira diferente da dos outros. Lionel dava preferência a ternos pretos e Hugh aos de cores discretas. O’Hara tinha escolhido o terno mais extravagante possível para o casamento. A calça era de um xadrez largo e o paletó de um marrom horrível. E o insolente a encarava.

— Provavelmente, é verdade, sim. Em Lucien, existem portas escancaradas, convidando os espíritos a entrar. Ele nasceu com tais portas e as vem abrindo cada vez mais. Se a senhorita também as possui, elas estão fechadas e trancadas.

— Mas... — Daisy começou.

O’Hara chegou mais perto com a mão estendida. Ele lembrava uma serpente enrodilhada, pronta para dar o bote.

— Pegue minha mão, srta. Willard, e eu lhe garantirei que suas portas são inacessíveis. Portanto, sua segurança é total.

Daisy apertou as mãos no colo. De jeito algum deixaria o patife tocá-las.

— Penso que não.

— Está com medo? — O’Hara indagou, sorrindo.

Apavorada.

— Claro que não.

Katherine ofereceu a própria mão ao malandro.

— Olhe, pegue a minha e me garanta que posso subir e arranjar um lugar onde consiga dormir tranquila.

O’Hara a tomou entre as dele com firmeza. Estavam frente a frente e, por longos momentos, nenhum dos dois se mexeu.

— A senhora tem seu próprio fantasma — ele disse em voz baixa.

— Meu marido morto. Já tentamos mandá-lo embora, mas ele se recusa a ir — ela disse sem emoção, embora algo mudasse em seu semblante como todas as vezes em que se referia ao marido.

— Ele não vai porque a senhora não o solta — O’Hara murmurou.

— Isso é ridículo — Katherine protestou ao tentar puxar a mão que O’Hara não soltou.

Numa voz veemente, ele prosseguiu:

— Os esforços de Lucien para libertar o espírito de Jerome falharam porque a senhora não o deixa ir.

— Não é verdade! Eu o desprezo! Quero que ele saia de minha casa! — Katherine insistiu, continuando a puxar a mão.

O’Hara inclinou-se para mais perto, apertou os dedos na mão dela e falou tão baixo que apenas ela e Daisy o ouviram:

— Deixe Jerome ir. Ele não pode mais lhe fazer mal algum.

Katherine tornou a puxar a mão e ele a soltou. Ela quase caiu para trás, mas equilibrou-se. Depois de respirar fundo, afastou-se do homem que havia lhe dito mais do que ela queria ouvir.

— Vou me retirar para dormir. Existe um quarto que deva escolher ou algum que precise evitar?

Hugh olhou para O’Hara e arqueou as sobrancelhas.

— Ela está bem — O’Hara garantiu.

— No segundo andar, a segunda ou a terceira porta à esquerda — Lionel explicou. — Aconselho que não entrem pela primeira e a segunda portas à direita e evitem o terceiro andar inteiro.

— Na verdade, precisamos descansar — Hugh afirmou.

Daisy levantou-se depressa.

— Vou com você, Katherine, caso não se importe.

Ela não tinha a mínima intenção de ficar sozinha num quarto. Ao passar por O’Hara, ele perguntou:

— Srta. Willard, não quer mesmo pegar minha mão?

— Não creio — ela respondeu, afastando-se depressa e seguindo Katherine.

Ele apenas riu baixinho.

 

Eve deitou sob os cobertores e aconchegou o corpo ao de Lucien. O vestido de noiva estava na cadeira ao lado e o espartilho, largado num canto. Dormiria ali apenas com a roupa de baixo. Este era seu lugar e as convenções que fossem para o inferno. Cuidaria de Lucien na doença ou na saúde.

Havia deixado a vela acesa o máximo de tempo possível e, ao apagá-la, o quarto ficara imerso na escuridão. Como continuasse a nevar, não havia luar para iluminá-lo um pouco.

— Não imaginei que você viesse me procurar — Lucien murmurou.

— Não foi minha intenção acordar você.

Ele passou a mão ao longo de suas costas. Depois, embrenhou os dedos nos cabelos que tinham se soltado.

— Você não me acordou. Estou exausto, mas não consigo dormir ou ficar acordado por muito tempo. Quando durmo é um sono pesado e sem sonhos.

— Você precisa repousar. — Tocou-o no peito. Deus do céu, era um alívio ouvir o coração dele bater! Teria pensado, por um momento sequer, que não poderia perdoá-lo? Levantou a cabeça e perguntou: — Por que você pensou que eu não viria?

Tinha sentido falta de se deitar com Lucien, de tocá-lo como desejasse e ser tocada por ele. Adorava esse corpo longo e forte, musculoso e firme. Formava o contraste perfeito com suas curvas e a maciez de seu corpo que ficava mais pronunciada quando estavam juntos assim.

— Eu a deixei esperando outra vez. Não foi minha intenção e eu não queria agir dessa forma, mas isso não muda o fato...

Ela o silenciou com um beijo suave.

— Você iria me procurar se fosse preciso.

— Eu sei.

— Então por que duvidou que eu viesse?

— Seu tio está certo, Eve. Você merece alguém melhor.

— Melhor do que você? Impossível! Esse alguém não existe. — Não posso lhe dar tudo que você merece. Este desastre prova isso além de qualquer dúvida.

— Você me dá tudo de que preciso e quero, Lucien Thorpe. Não mereço viver ao lado de quem amo? — Eve perguntou ao aconchegar-se mais ainda.

— Merece, sim.

— Então durma, melhore e, quando sairmos daqui, veremos como solucionar essa questão.

Eve abafou a dúvida incômoda de que sua vida seria sempre assim incerta, cheia de perigos que ela jamais entenderia bem. Lucien nunca seria comerciante, advogado ou homem de negócios. Sentiria sempre atração por coisas que ela não via ou ouvia, algo que tentava entender, mas que não apreendia. Mesmo assim, viver na incerteza era muito melhor do que viver sem Lucien.

— Você sabe o quanto desejo fazer amor com você agora? — ele perguntou numa voz fraca.

Esta deveria ser a noite de núpcias deles. Lucien, um amante magnífico, deveria estar amando-a agora. Deitada ao lado dele, era impossível não se lembrar das noites que haviam passado explorando-se, rindo e gritando até estarem completamente exaustos e saciados. Então, dormiam abraçados. Eles se desejavam. Mas como ele mal podia se mexer, isso teria de esperar.

— Logo. Quando você estiver melhor — Eve murmurou.

— Odeio isto. Odeio estar fraco e preso neste lugar. Mas, acima de tudo, odeio tê-la desapontado outra vez.

— Logo você ficará bom. Então, nós teremos nosso casamento e a noite de núpcias.

Naquele momento, o casamento parecia um sonho distante, um castelo nas nuvens.

— Eve, me beije outra vez — ele pediu naquela voz fraca que a assustava mais do que qualquer outra coisa.

Ela soergueu-se e beijou-o na boca com imensa ternura. Quando afastou os lábios, Lucien já dormia.

— Eu te amo — murmurou ao voltar a aconchegar-se a ele. — Mas, pelo amor de Deus, Lucien, você me deixou no altar duas vezes!

Novamente, ela havia sido muito humilhada. Os moradores de Plummerville comentariam bastante. A tia Constance jamais se recuperaria.

Mesmo assim, Lucien era o único homem para ela. Seria sua maldição nunca possuí-lo integralmente? Jamais amaria outro homem, sabia. E não duvidava que ele a amasse. Apenas conjeturava se o amor seria suficiente para construírem a vida que ela almejava.

 

Com os olhos fechados, Katherine tentava, em vão, dormir. Se Daisy percebesse, começaria a conversar, o que ela menos queria.

Num sono agitado, Daisy não parava de se mexer a seu lado, na mesma cama. De repente, acordou e sentou-se.

— Odeio este hotel pavoroso! Eu queria, do fundo de minha alma, estar em qualquer outro lugar. Jamais aqui!

Katherine, porém, tinha motivo para ficar acordada. Não se tratava de um fantasma, mas de um sentimento estranho provocado quando O’Hara tinha apertado sua mão. E se ele estivesse certo que ela mantivesse, de fato, Jerome preso na terra? Estremeceu só de pensar nisso.

Meio sem jeito, Daisy inclinou-se sobre Katherine para ver se ela estava acordada e ouvira sua queixa.

— Você não pode parar quieta? — Katherine indagou, irritada.

— Tive um pesadelo — Daisy explicou depressa.

— Isso não me surpreende.

— Você também teve um? É por isso que está acordada?

— Não.

— Acho que não posso voltar a dormir. O pesadelo... Nem me lembro o que era, mas ainda estou gelada. Preciso de alguma coisa para me distrair antes de pensar em dormir de novo.

Katherine suspirou.

— Podemos conversar um pouco — Daisy sugeriu.

— Conversar sobre o quê? — a outra indagou, ríspida.

— Bem, podemos falar sobre seu... fantasma.

— De jeito algum!

— Mas você vai ter de se livrar dele antes de seguir a vida em frente e se casar outra vez, não acha?

Katherine respirou fundo e tornou a estremecer. A idéia de compartilhar a casa, a cama e a vida com outro homem a aterrorizava.

— Nunca mais vou me casar! Jamais!

— Mas você pode encontrar, desta vez, um homem bom de verdade. Como Eve encontrou Lucien — Daisy argumentou.

— Se quer minha opinião, Lucien Thorpe não é um grande achado — Katherine disse com sarcasmo.

— Eve o ama.

— Por enquanto.

Ela também não tinha amado Jerome muito tempo atrás? Isso fora antes de o marido mostrar o lado feio. No fim, ela havia descoberto que tudo no marido, exceto o rosto, era horrível.

— Mas...

— Não quero conversar e sim, dormir. Tente fazer o mesmo, Daisy.

Com os olhos arregalados, Daisy puxou as cobertas até o queixo. Arrependida, Katherine suspirou. Afinal, iam dormir juntas só por uma noite e não lhe custaria nada distrair a moça.

— E você, por que ainda não se casou?

— Não sei. Acho que o homem certo não apareceu — Daisy respondeu.

Grande mentira! Disso Katherine entendia, pois tinha aprendido a representar farsas.

— Você ouviu aquilo? — Daisy sussurrou.

— Ouvi o quê? — Katherine indagou em voz áspera.

— Aquilo.

As duas ficaram bem quietas por uns momentos e então, o ruído se repetiu. Lembrava passos leves e rápidos sobre suas cabeças.

— Alguém decidiu dormir no terceiro andar — Katherine disse.

— Mas o sr. Brandon avisou para ninguém ir lá.

— Talvez alguém de nosso grupo tenha mais coragem do que bom senso.

— Vai ver é isso mesmo— Daisy concordou, mas em tom de dúvida.

Naquele momento, a gargalhada de uma mulher chegou-lhes aos ouvidos. Assustada, Daisy virou-se para Katherine.

— Não foi o riso de Eve. E nós duas somos as outras duas únicas mulheres aqui.

— Um truque do vento — Katherine garantiu.

Como se quisesse provar seu engano, a gargalhada se repetiu. Daisy cobriu a cabeça e começou a rezar.

 

O’Hara andava de um lado para o outro do vestíbulo. Não conseguiria dormir muito essa noite. Para sorte sua, ele não precisava de muitas horas de sono. O corpo, às vezes, funcionava com uma energia que ele jamais compreendera.

Lionel sentava-se no sofá e Hugh cochilava numa poltrona peno da lareira, cujo fogo estava reduzido a brasas. Como continuassem a queimar, o aposento não estava imerso na escuridão. Os outros já tinham ido dormir.

Restavam poucos móveis ali, apenas o sofá, três poltronas e o balcão da recepção. Cortinas pesadas cobriam as janelas altas, mas as menores estavam nuas.

Ao tocar as paredes, O’Hara havia descoberto que esse hotel tinha algo errado. Precisavam sair dali o mais depressa possível. Muitos dos hóspedes, que haviam se registrado nele, nunca tinham saído. A maioria dos espíritos presos no lugar não era má e sofria muito. Havia algo maligno nele. Sem dúvida o hotel tinha alguma coisa errada.

Ele havia sentido o erro ao tocar as paredes, as maçanetas e até o encosto do sofá. Havia trevas naquele hotel.

Tinha havido uma época em que ele achava que sua habilidade para ver dentro e além de coisas e pessoas o deixaria lunático. Nada em sua vida era simples. Apenas o ato de cumprimentar um homem com um aperto de mão lhe revelava coisas que ele não tinha o direito de saber. Tocar uma mulher sempre deixava a descoberto temores e esperanças das quais ele não queria se inteirar. Anos atrás, ele chegara ao ponto de não tocar qualquer coisa ou pessoa a não ser que não tivesse escolha. Não contava a ninguém esse seu dom. No fim, era ele quem tinha temores e segredos.

Então, havia conhecido Hugh que o tinha apresentado aos outros. Saber que não estava sozinho fora um alívio tão grande que O’Hara havia chorado. Uma vez e sozinho, claro. Lucien conseguia encaminhar espíritos, Lionel era incrivelmente sensível a forças psíquicas e Hugh tinha uma combinação mais fraca, mas marcante, de habilidades psíquicas.

O’Hara possuía o poder do toque e ele já o aceitava. Podia pegar a mão de uma pessoa ou um objeto seu e descobrir coisas sobre ela. Jamais sabia o tipo de informação que receberia. Hugh o tinha ensinado a minimizar o poder quando desejasse. Ele ainda estava aperfeiçoando a maneira de emudecê-lo por um período. Aprender a fazer isso tinha lhe salvado a sanidade mental e, talvez, a vida.

A viúva Cassidy havia oferecido um estudo interessante. Ela era valente por fora, mas cheia de incertezas e temores no íntimo. O marido tinha sido muito mau e, num instante, O’Hara havia descoberto as maldades que ele cometera contra a mulher. As sovas e a maneira grosseira com que se impunha a ela na cama. Mesmo assim, a sra. Cassidy sentia-se culpada por causa do alívio que a morte do marido tinha lhe causado.

O dia havia sido extenuante. Primeiro, o fracasso do casamento, depois, esse hotel e, finalmente, Katherine Cassidy. Isso não era, de forma alguma, o que ele esperava ao viajar a Plummerville a fim de assistir ao enlace de Eve e Lucien. Hugh havia sugerido que seu convite fora extraviado pelo correio. O’Hara tinha outra explicação. Eve não queria mais manter os laços de amizade com ele. Mas ele tinha vindo porque achava que seria divertido.

Até então, nada naquela viagem havia sido agradável. Mas poderia mudar. Tudo que ele realmente queria era tocar Daisy Willard. Seria possível que ela fosse tão meiga e inocente quanto aparentava? Apenas roçar nela não tinha lhe dado informações precisas, mas ele desconfiava que houvesse mais do que se percebia. Gostaria de descobrir tudo sobre a srta. Willard, mas não no Honeycutt Hotel.

A casa toda estalou. Hugh abriu os olhos e Lionel levantou-se.

— Foi o vento — Hugh disse sem muita certeza.

— Não apenas ele — Lionel acrescentou.

Fechou os olhos e ficou imóvel como sempre o fazia quando se concentrava. E O’Hara espalmou a mão na parede.

— O lugar está furioso — afirmou.

— Porque chegamos antes de Lucien morrer — Lionel disse sem abrir os olhos. — Alguma coisa o quer muitíssimo.

— Alguém — O’Hara corrigiu.

— Não, alguma coisa. Já foi homem, porém, não mais. Ficou presa aqui muito tempo atrás.

— Antes de o hotel ser construído — O’Hara opinou.

— Muito antes.

Hugh tirou um lápis e um bloquinho do bolso e escreveu o que os dois tinham dito. Muitas vezes, eles se esqueciam depois.

— Frustrante. Aprisionar todas essas almas aqui para se alimentar e isso não ser suficiente — O’Hara comentou.

— É mesmo. Mas não ser suficiente para quê? — Lionel indagou.

— Não sei.

A resposta estava além de seu conhecimento. Se ele pudesse alcançar o interior das paredes, da própria casa, do coração do espírito que quase tinha matado Lucien, talvez conseguisse saber.

As brasas na lareira emitiram chamas altas. O’Hara sentiu o calor na mão como se o fogo penetrasse na parede e, depois, nele. Tomado pela dor, puxou a mão depressa e Lionel abriu os olhos.

— Parem — Hugh ordenou.

Quando ele determinava, era obedecido imediatamente. A chama na lareira baixou e o calor na mão de O’Hara desapareceu.

A força sombria, que tinha sido um homem e se fortalecido através dos anos, passara a fazer parte da própria casa. O’Hara suspeitava que eles nunca haviam enfrentado algo tão maligno e perigoso.

— Vocês podem ouvir? — Lionel indagou, tornando a fechar os olhos.

— Ouvir o quê? — O’Hara perguntou.

— Gargalhadas.

Scrydan abriu os olhos e observou o quarto. Podia ver bem no escuro e sentir a mulher ao lado dele. Era quente, delicada, macia e gostava de ficar junto a ele. O toque de uma das mãos, o roçar do corpo no dele eram um esquecido conforto humano.

Respirou fundo e sentiu o perfume de sua pele. Lavanda e odor de mulher. Era inesperadamente torturante e humano, delicioso e quase intoxicante. Virou-se de lado, pôs a boca em seu ombro e provou-a. Seu sabor era muito bom.

Ao tatear a mão, Scrydan sentiu a elevação fascinante de seios sob cambraia. Adormecida, ela suspirou e ondulou um pouco o corpo na palma da mão dele.

Sentia-se mais forte do que anos atrás. Mas não tanto como quando saísse desse quarto.

A bruxa que havia amaldiçoado o aposento, fazia muitos anos, tinha pensado que umas poucas pragas murmuradas e ervas espalhadas por ali a protegeriam. Tinham por uns tempos e o quarto nunca mais voltara a ser como antes. Mas, no fim, ele vencera ao matá-la como aos outros. Por que um laivo de sua maldita praga ainda permanecia? Isso o enfraquecia, reduzia seu poder. Não importava, pois não ficaria ali para sempre.

A mulher adormecida ao lado era tentadora, mas ele tinha outras coisas em mente. Liberdade acima de tudo. Com cuidado para não acordá-la, ele saiu de sob os cobertores. Embora fosse forte, as pernas estavam debilitadas e as mãos tremiam.

Scrydan observou o novo corpo, alto, esbelto e coberto apenas por uma calça amarrotada. Sim, estava fraco no momento, mas era saudável. Todos os sentidos funcionavam bem, como a reação à mulher tinha provado. Pôs a mão sobre o peito nu e sentiu o ritmo do coração e o calor da pele. Sim, estava fraco, mas logo o corpo estaria tão forte quanto o espírito.

Durante anos, tinha se visto preso neste lugar, sem um corpo e sem uma maneira de se comunicar claramente com as pessoas que passavam por ali. Umas poucas respondiam seu chamado, mas muitas, não. Indiferentes, seguiam em frente e fora do alcance dele. Então, o hotel fora construído e ele, finalmente, tinha uma casa. Depois de tantos anos de solidão, ele aprisionava os espíritos dos que morriam ali. Quando sentia fome por outro, entrava no corpo de uma pessoa confiante e a dominava, apenas o tempo suficiente para se apossar de outra vida. Essa, acrescentava à coleção de almas que o mantinham forte.

Este lugar o tinha alimentado bem até que as pessoas haviam parado de vir. Nenhuma havia sido tão bem-vinda como este homem. Ele nem sabia da possibilidade de existir um corpo que não só lhe permitisse a entrada como também o sustentasse. Geralmente, a permanência dele num corpo humano o esgotava. Ficar dentro e controlá-lo, mesmo por pouco tempo, exigia um esforço imenso. Mas este aqui era diferente. Estava aberto para ser possuído de uma maneira que Scrydan não imaginava ser possível.

A mulher virou-se na cama. Ele sentou-se a seu lado e a observou. Era bonita e gostava desse corpo em que ele estava morando. Não havia tido uma mulher fazia tanto, tanto tempo.

Pôs uma das mãos em seu pescoço e, com a outra, tocou-a no ombro que tinha provado. Havia esquecido a maciez de uma pele sedosa. Seu pescoço era tão delicado e a mão dele, imensa. Apertou-o levemente.

Algo nele a desejava. Era a função do corpo, de homem para mulher. Compreensível. Instinto animal. Uma carência humana por prazer. Porém, mais do que queria essa mulher, ele a odiava. Fora ela que o tinha afastado e resgatado o outro da beira da morte. A alma de Lucien, esse outro, continuava viva dentro deste corpo, mas estava muito fraca. Recordações do que o homem tinha sido persistiam ali. Scrydan sabia coisas sobre a vida e o coração dele. Lembrava-se de quase tudo que o habitante deste corpo conhecia.

A alma de Lucien Thorpe, prendia-se à vida com firmeza. Ainda vivia, em parte, por causa dessa mulher que habitava no fundo do coração dele.

Não deveria odiá-la e sim ser-lhe grato. Se não fosse por ela, o corpo já estaria morto e Scrydan jamais teria descoberto o poder milagroso que lhe permitia ficar dentro dele.

Quando Lucien Thorpe havia aparecido naquela casa, Scrydan tinha planejado acrescentá-lo a sua coleção de almas. E que alma poderosa ela era. Desde o primeiro instante, soubera que Lucien era especial, mas ignorava que este era um corpo em que ele poderia ficar por um período tão longo. Também ignorava que encontraria um homem cujo poder estaria a seu dispor, um corpo que poderia habitar e, eventualmente, possuir.

Naquele momento, Scrydan estava dentro dele. Quando estivesse forte o suficiente e, Lucien, não mais, ele sairia desta casa para iniciar uma nova vida.

Sairia sozinho.

 

Eve acordou e viu Lucien sentado na beirada da cama, com uma das mãos em seu pescoço. Sem camisa, devia estar com frio. Havia parado de nevar e o luar iluminava o quarto.

— O que você está fazendo? Devia estar deitado e dormindo — ela o censurou em tom brando.

Ele piscou duas vezes e, depois, relanceou o olhar em volta.

— Não sei — murmurou como se tivesse acabado de acordar de um sono profundo.

Ela afastou os cobertores e disse:

— Deite nesta cama já.

Lucien obedeceu, aconchegou-se a ela e abraçou-a com força. Estaria ele mais forte do que quando fora encontrado? Sem dúvida.

— Você não vai começar a ser sonâmbulo, não é?

— Espero que não.

— Seria perigoso. Você não pode perambular por este lugar horrível enquanto dorme.

— Então, acho melhor você me abraçar bem apertado.

Eve sorriu e o atendeu. O corpo familiar de Lucien lhe propiciava conforto e prazer.

— Lucien, não gosto deste lugar — murmurou.

— Nem eu.

— Aquela coisa que o atacou não pode lhe fazer mal enquanto eu o abraço, certo?

Lucien hesitou antes de responder.

— Não, não pode.

Eve suspirou de alívio.

— Juntos, podemos enfrentar qualquer coisa.

Lucien acariciou-a nos cabelos.

— Durma, meu amor, durma.

No instante seguinte, Eve adormecia.

 

Lucien abriu os olhos devagar. A luz do sol entrava pela janela sem cortinas, iluminando o quarto abandonado havia tanto tempo. Partículas de poeira dançavam no ar. Na cômoda, a vela tinha sido apagada quando restava só um toco. Por um momento, ele ficou surpreso por estar vivo. A certa altura não pensara que morreria?

Sentia um calor agradável. Isso porque Eve deitava-se bem junto a ele, com a cabeça apoiada em seu ombro. Ela havia dito que, se fosse preciso, o arrancaria do mundo dos mortos para o dos vivos.

Na véspera à noite, ela havia feito exatamente isso.

Ele se encontrava vivo, mas ainda tão fraco que não conseguia erguer a cabeça. Os espíritos o tinham invadido e se esforçado para sugar-lhe a vida. Pensar em Eve o ajudara a lutar.

Imagens vagas da noite anterior vagavam-lhe na mente. A chegada de Eve quando eleja se considerava morto. Ela sentada a seu lado e lhe garantindo que tudo ficaria bem. Mais tarde, ela havia tirado o vestido de noiva, apagado a vela e deitado a seu lado.

Não se lembrava muito mais da noite passada, porém, a única coisa importante era a companhia de Eve.

Achava incrível que ela tivesse vindo procurá-lo depois de ele ter lhe arruinado outra cerimônia de casamento. A mulher que ele amava queria algo elaborado e não seria um sacrifício satisfazer-lhe a vontade. Queria ver Eve feliz. Isso não significava que ele apreciaria a cerimônia.

Num canto afastado do quarto, umas poucas luzes piscavam. Dançavam lá sem chegar perto para atacá-lo como tinham feito quando estava sozinho. E não fariam ali.

— Vão embora — murmurou numa voz rouca e foi obedecido.

Eve continuava a dormir. Por seu sono profundo, percebia que ela estava exausta. Ainda esgotado por causa do encontro com os residentes do Honeycutt Hotel, ele também se sentia sonolento.

Algo sombrio, que ele não entendia, prendia os espíritos no lugar como tinha tentado capturá-lo. Este hotel abandonado era mais do que mal-assombrado. Era uma armadilha na qual ele quase fora apanhado para sempre.

Quase já adormecido, pensou se Eve havia se lembrado de trazer a colhedeira de ectoplasma e o registrador Thorpe de espectro.

 

Daisy estava no terraço, com a capa de lã verde sobre o vestido de dama de honra, porém, morta de frio. O sol ofuscava ao refletir sobre uma camada alta de neve.

— Não! Isto não é justo! — exclamou. O’Hara surgiu a suas costas.

— Geralmente a vida não é justa, srta. Willard.

Daisy virou a cabeça para trás. Como ele tinha surgido ali sem fazer barulho? Sem dúvida devia haver muitas tábuas soltas que estalariam sob os passos de alguém.

— Nunca neva tanto por aqui — ela reclamou, irritada.

— Não podemos mais dizer nunca, não acha? — O’Hara indagou, nem um pouco aborrecido com a situação difícil.

Com aparência relaxada, ele admirava o cenário lindo que rodeava o hotel. Um meio sorriso, como se ele soubesse um segredo, o deixava quase atraente. Mas O’Hara, graças ao dom que possuía, sabia muitos segredos, ela imaginava.

Daisy tinha dormido até mais tarde do que esperava. Quando acordara, Katherine já tinha se levantado e saído do quarto. Daisy havia se vestido depressa, pois queria ficar sozinha o mínimo possível. Enquanto o fazia e também prendia os cabelos com as mãos e uns poucos grampos, pensava que logo estaria a caminho de casa. Quando chegasse lá, não arredaria pé tão cedo. Essas fugidas arriscadas podiam agradar algumas pessoas; ela, porém, preferia sua vida sossegada e monótona.

Então, havia descido, saído para o terraço e descoberto que tinha dormido durante uma nevasca.

— Podemos viajar com essa neve toda? — indagou.

Ainda com o meio sorriso, O’Hara a fitou.

— Não será fácil, pois os cavalos não estão acostumados à neve e terão dificuldade. Numa emergência, poderíamos tentar ir, mas seria arriscado.

— Mas esta é uma emergência, não é? — ela perguntou. Não gostava da maneira com que O’Hara a fitava. Os olhos, de um azul esverdeado, tinham uma expressão inteligente, bem humorada, mas perscrutadora. Talvez ele não precisasse tocar uma pessoa para saber seu pensamento. A idéia lhe provocou um arrepio.

Ele alargou o sorriso.

— Qual é o problema, srta. Willard? Não está se divertindo?

— Claro que não.

— Não aprecia aventuras?

— De jeito algum — ela respondeu em tom gélido.

O’Hara pareceu se divertir com sua resposta.

— Isso é lastimável.

Ela lhe dirigiu seu olhar mais insolente, expressão que ele achou mais divertida ainda.

Felizmente, Lionel Brandon saiu para o terraço antes de O’Hara dizer mais qualquer coisa. Daisy sorriu para o homem atraente.

— Bom dia, sr. Brandon. Gomo está Lucien agora de manhã? O senhor já falou com ele?

— Lucien ainda está dormindo. Ficará bem — Lionel afirmou com um sorriso tranquilo.

— Será possível irmos embora hoje? — ela indagou na esperança de que a resposta fosse diferente da de O’Hara.

— Temo que não.

— Oh, se essa é sua opinião, tenho certeza de que o senhor e o sr. Felder sabem o que é melhor — Daisy disse.

Num gesto amigável, Lionel pôs a mão em seu ombro. Será que ele percebia seus sentimentos?

— Não existe motivo algum para sentir medo, srta. Willard. Tudo acabará bem.

— Obrigada, sr. Brandon. E, por favor, me trate por Daisy.

O’Hara limpou a garganta e ela o olhou de esguelha. O meio sorriso estava de volta. Mas Lionel continuou a falar:

— Daisy, Elijah esteve aqui e trouxe mantimentos. A sra. Cassidy preparou um excelente café da manhã. Você deve ir se alimentar.

Ela estava faminta e como Lionel lhe oferecesse o braço, aceitou.

Segundo ela ouvira, os poderes dele lhe permitiam ver além do que a visão física captava, pois tinha o dom de ler a mente de uma pessoa. No entanto, ela não se preocupava com ele como com O’Hara. Lionel era um perfeito cavalheiro para ser indiscreto.

Enquanto os seguia ao interior do hotel, O’Hara perguntou:

— Srta. Willard, também posso tratá-la por Daisy?

Ela olhou por sobre o ombro e quase negou o pedido, mas mordeu a língua. Seria rude e ela não queria que Lionel a considerasse indelicada. Porém, não desejava que O’Hara pensasse que poderiam ser amigos. Isso, jamais.

— Creio que sim — respondeu de má vontade.

Enquanto Lionel a levava à sala de jantar, Daisy olhou para o homem que os acompanhava.

— E você, O’Hara, qual é seu primeiro nome?

— Todos me tratam apenas por O’Hara.

Ela sentiu uma curiosidade inesperada.

— Para você ficar vermelho desse jeito, seu primeiro nome deve ser horroroso.

— Não estou vermelho — ele protestou.

Daisy sorriu para Lionel e esqueceu o outro. Para que saber o primeiro nome de O’Hara? Falaria com ele o mínimo possível enquanto estivessem neste lugar horrível. Com um pouco de sorte, não teria de tratá-lo por nome algum.

Eve murmurou uma palavra imprópria para uma pessoa educada. Depois, repetiu-a em alto e bom som.

Virou-se para a cama onde Lucien se reclinava, ainda muito fraco.

— Neve! — ela exclamou.

— O que tem isso?

Um pouco mais calma, Eve explicou:

— Não neva aqui com frequência. E agora, como vamos embora?

— Ela vai derreter — Lucien respondeu.

— Não hoje — ela afirmou ao pegar o vestido de noiva na cadeira.

Tinha de vesti-lo, pois queria ir lá para baixo. Não ia se dar ao trabalho de pôr o espartilho e apertar-se dentro dele.

Talvez ela fosse amaldiçoada, refletiu enquanto se vestia. Duas cerimônias de casamento fracassadas eram, sem dúvida, algum tipo de sinal. E nada bom. Se acreditasse em destino, em avisos lá de cima, em azar, talvez achasse que ela e Lucien jamais se pertenceriam, não importava o amor que os unia.

Lutava para ajeitar o vestido no corpo. Sem o espartilho, ele ficava justo o que dificultava fechar os botõezinhos na frente. Devia ter gasto uns minutos para trocar de roupa antes de vir procurar Lucien. Porém, estava aflita demais para perder tempo.

Já vestida, avisou:

— Estou sentindo cheiro de comida. Vou descer e pegar alguma coisa para você comer. Posso pedir a Hugh para subir, caso você não se sinta bem sozinho.

— Não preciso de uma babá — ele disse.

Em pé ao lado da cama, Eve o advertiu:

— Precisamos ser muito cuidadosos até você recuperar as forças.

— Ficarei bem. Não se preocupe comigo.

Eve dirigiu-se à porta, mas parou ao ouvir Lucien chamá-la numa voz suave. Virou-se e notou como ele estava pálido e com profundas olheiras. Porém, o leve sorriso dele tinha algo do Lucien amoroso. Isso não havia na véspera à noite.

— Eve, você está tão linda com seu vestido de noiva.

Ela baixou o olhar. O vestido estava amassado, quase sem forma e os cabelos, embaraçados.

— Eu estava muito elegante antes de passar várias horas numa carroça e, depois, na garupa de um cavalo. Queria que você ficasse deslumbrado quando me visse com este vestido. Desejava ser a noiva perfeita para você. E veja como estou. Pareço uma indigente bem vestida.

— Não é verdade. E não importa o estado de seu vestido de noiva. É a mulher nele que o deixa lindo.

Eve sorriu.

— Vejo que você não perdeu a habilidade de dizer palavras bonitas mesmo nas piores situações.

— Entre nós, Eve, só existe a verdade — Lucien murmurou, tornando a fechar os olhos.

Para não deixá-lo sozinho por mais do que uns poucos minutos, ela correu ao andar térreo. Lucien precisava se alimentar e ela estava faminta. Arrumaria um prato grande, do que havia sentindo o cheiro, e ambos o dividiriam.

Em volta da mesa na sala de jantar, estavam todos. Nela, havia ovos mexidos, presunto e pãezinhos de minuto, tudo com fartura.

Quando ela chegou, todos pararam de conversar. Garrick e Lionel levantaram-se e, um instante depois, Daisy também.

— Ele está muito melhor. Ainda continua um tanto fraco, porém, mais consciente do que ontem à noite — Eve informou ao responder as perguntas de todos sobre Lucien.

Hugh suspirou de alívio.

— Prometi que só ficaria aqui uns poucos minutos — ela disse ao pegar um prato e começar a arrumá-lo. — Se alguém puder servir duas xícaras de café e levar lá em cima, será um grande favor.

— Providencio isso — Daisy ofereceu ao correr para a cozinha. A amiga sempre se sentia satisfeita quando tinha algo para fazer.

Além do mais, Daisy sabia como Lucien e ela gostavam de café. Será que havia açúcar e creme? Não importava, Eve pensou.

— Lucien já pode nos contar o que aconteceu? — Hugh indagou.

— Vamos deixar que ele se alimente primeiro. Depois, veremos — ela respondeu.

Saiu depressa da sala com o prato. O’Hara a seguiu.

— Deixe que eu leve isso — ele ofereceu.

— Não é necessário, obrigada.

Lucien ainda não podia encarar O’Hara.

— Está pesado — ele argumentou.

— Ora, é só um prato — Eve disse ao parar junto à escada.

Ele chegou mais perto e, em voz baixa, começou a falar:

— Na verdade, quero conversar a sós com você sobre a srta. Willard.

Eve suspirou.

— Daisy? Tenha paciência, O’Hara, ela está longe de ser seu tipo.

— Eu sei. Só consigo irritá-la e ela é muito cerimoniosa para meu gosto. Além do mais, obviamente ela tem medo das coisas que enfrento todos os dias. Eu só queria que você me explicasse como conquistar sua simpatia — ele pediu com uma expressão que, com certeza, achava atraente.

Não naquele momento. Ela não tinha tempo para atender o capricho de O’Hara. E, se tivesse, não adiantaria nada.

— Daisy não está acostumada com homens tão audaciosos. Ela prefere os mais gentis, reservados e...

— Cansativos — ele terminou.

Eve olhou para o alto da escada. Fraco e precisando dela, Lucien a esperava no quarto.

— Não podemos terminar esta conversa depois? — ela sugeriu.

— Não tenho muito tempo. Tão logo saíamos daqui, não terei outra oportunidade de apanhar Daisy desprevenida.

— Como assim? — Eve indagou, brava.

— Você sabe o que quero dizer.

— Se sei! E lamento muito.

Ela virou-se para subir a escada, mas O’Hara segurou seu braço.

— Espere. Eu me expressei mal. Você sabe como não tenho o mínimo jeito com mulheres. — Ele inclinou-se e murmurou: — Gosto de O’Hara e Daisy? A idéia era tão absurda quanto a de Lionel e Daisy. Por outras razões, claro. Talvez devesse contar a ele que Daisy estava interessada em Lionel. Depois, se fosse preciso ela explicaria que tal namoro seria pouco provável.

— Mais tarde. Só depois de Lucien se alimentar e voltar a dormir.

— Mais tarde — uma voz profunda e familiar murmurou no alto da escada.

Eve virou a cabeça depressa. Lucien estava lá, apenas com a calça amarrotada. Fraco e trêmulo, segurava-se no corrimão. Mesmo assim, fitou-a com olhar furioso.

O’Hara sorriu e exclamou:

— Lucien, você está com um aspecto tão melhor do que o de ontem!

— Saia de perto de minha mulher — Lucien disse.

— Sua mulher?

Eve entregou o prato de comida a O’Hara e tentou subir a escada correndo, apesar de a saia do vestido de noiva a atrapalhar. Puxou-a para cima com as duas mãos, pois Lucien parecia prestes a despencar escada abaixo.

Numa voz rouca, ele disse:

— Isso mesmo. Ela não é minha esposa, não acha? Apenas é...

Eve o alcançou e segurou-o com firmeza pelo braço. Quando o encontrara na véspera, ele estava quente demais, mas a pele havia refrescado depois. O hotel tinha muito vento encanado e lugares frios. Seminu, Lucien não podia perambular por ali.

— Já de volta para a cama.

Lucien a fitou bem dentro dos olhos.

— Por que O’Hara está aqui? — indagou.

— Acalme-se e...

— Por quê?!

Eve começou a conduzi-lo pelo corredor.

— Ele veio para o casamento — respondeu baixinho.

— Você o convidou para nosso casamento? — Lucien perguntou, incrédulo.

— Não, claro que não — Eve murmurou. — Ele apareceu com Lionel e Hugh. O que eu deveria fazer? Mandá-lo embora?

— Exatamente — Lucien balbuciou numa voz fraca.

— O que está acontecendo? — O’Hara perguntou, vindo atrás deles com o prato.

Lucien parou e tentou virar-se, mas Eve o impediu. Ele não estava em condições de enfrentar o homem.

— Você o está protegendo outra vez — Lucien a acusou.

— Não estou, não,

— Protegendo quem? A mim? — O’Hara indagou.

— Espere aqui — Eve mandou enquanto levava Lucien até o quarto.

Para surpresa sua, O’Hara obedeceu.

No quarto, Lucien foi direto para a cama. Estava exausto.

— Pelo amor de Deus, por que você se levantou e saiu daqui?

— Não me lembro — Lucien respondeu ao deitar-se e fechar os olhos. — Acho que cochilava. De repente, me vi lá, olhando para a escada. Você murmurava palavras amorosas para O’Hara e...

— De forma alguma!

— Fazia planos para se encontrar com ele mais tarde.

— Não foi isso!

— Essa noite, enquanto eu dormia, você foi procurá-lo? — Lucien indagou ao abrir os olhos e fitá-la com ar de acusação.

Eve adorava os olhos dele. Sempre tão cheios de vida e amor. Jamais escondiam as emoções. Estavam ali para ela vê-las.

— Você sabe que não fiz isso, Lucien.

— Como posso saber?

Em qualquer outra situação, ela ficaria furiosa com ele. Porém, percebia que Lucien não estava refletindo com clareza.

— Você sabe que eu te amo.

— Ama realmente?

— Sim.

A raiva desapareceu do olhar dele, mas o ar de acusação apenas diminuiu. Numa voz fraca, ele perguntou:

— Será o suficiente, Eve?

Ela não respondeu. Não importava, pois Lucien fechou os olhos e, quase no mesmo instante, caía num sono profundo.

Sentada no degrau de cima da escadinha do terraço, Katherine olhava para a neve que cobria tudo. Ela se acumulava até nos galhos nus das árvores que só teriam folhas na primavera. A neve propiciava uma prisão bonita. Mas, com isso, estava habituada. Sua própria casa era uma desde o dia em que se casara.

Katherine sentiu um arrepio e enrolou-se melhor na capa. O agasalho era quente, mas o ar frio penetrava sob sua saia preta e lhe enregelava as pernas.

Ao ouvir passos a suas costas, percebeu que eram de Garrick, mas não se virou para trás. Depois de um momento em que ambos não se mexiam, ele sentou-se a seu lado e comentou:

— Que dilema!

Katherine não olhou para ele. Conhecia Garrick Hunt desde criança, mas nunca tinham sido amigos. Ele era rico e mimado, uma posição superior à sua. E bebia como Jerome. A única diferença era que, quando Garrick se embriagava, criadas o punham na cama ou lhe davam café para se recuperar.

Mas ultimamente conviviam bastante. Isso porque a sociedade secreta os tinha juntado. Caso contrário, ele jamais a teria olhado duas vezes.

— Não deveríamos estar aqui — ela murmurou.

— Provavelmente, não — Garrick disse e deu de ombros.

Dessa vez, Katherine o observou. Ele parecia bem relaxado.

— Provavelmente, Garrick? Há fantasmas aqui. Lucien está...

— Não muito bem — ele a interrompeu.

— Ora, isso é dizer muito pouco!

Katherine suspirou e retornou o olhar para a paisagem branca. Garrick não percebia o perigo da situação? Ela o sentia até a medula dos ossos. Não deveriam estar ali.

— Eu tinha de vir. Lucien está aqui por culpa minha — ele disse.

— Como poderia ser culpa sua?

— Eu lhe falei sobre o hotel e sugeri que nossa sociedade secreta viesse fazer uma excursão aqui.

— Que grande tolice!

— Eu sei.

— Bem, você conseguiu sua excursão. Está satisfeito?

Garrick deu de ombros outra vez como se não fizesse diferença estar ou não num hotel mal-assombrado.

— Que beleza, não acha?

— A neve? — ela indagou.

— Sim. Eu nunca tinha visto mais do que umas leves salpicadas. Não imaginava que pudesse ser tão branca, pura e cintilante.

— De fato é linda, mas nos aprisiona aqui — ela argumentou.

Uma rajada de vento a fez estremecer. No mesmo instante, Garrick tirou o casaco e o pôs sobre os ombros dela. Deixou as mãos neles uns segundos a mais.

— O que está fazendo? — ela indagou, ríspida.

— Você está com frio.

— E você vai congelar sem seu casaco — Katherine afirmou ao mexer-se a fim de tirar o agasalho.

Garrick o segurou em seus ombros e, sorrindo, murmurou:

— Deixe que eu, pelo menos uma vez, seja um cavalheiro. Tenho tão poucas chances de ser gentil com as moças finas de Plummerville.

— Tolice! Você nunca se importou em impressionar ninguém desde que completou quinze anos. Sempre achou que um sorriso e dinheiro o dispensavam de qualquer gentileza.

O sorriso dele desapareceu.

— Quando eu tinha quinze anos, você...

— Tinha dez — ela completou.

— E se lembra de mim desde aquela época?

Katherine não podia deixá-lo pensar que, mesmo de maneira rápida, se sentira atraída por ele.

— Claro. Desde então, você já era o menino mais irritante de Plummerville.

Garrick riu alto.

— Desde então? Você está insinuando que ainda sou um menino irritante?

Ela não conteve um sorriso.

— Bem, às vezes.

— Você deveria fazer isso mais vezes — Garrick sugeriu.

— Fazer o quê? — Sorrir.

Seu sorriso desapareceu. Fazia muito tempo que Katherine não tinha motivos para sorrir. Não importava a beleza da paisagem e o quanto Garrick Hunt podia ser encantador quando queria, nada tinha mudado.

 

Eve tentou ajeitar-se na cadeira de encosto duro que estalou, mas o ruído não perturbou o sono de Lucien. Ela, entretanto, sentia-se incomodada. Nunca havia dado atenção a roupas bonitas e elegantes e tinha sido preciso um grande esforço de Laverne para convencê-la a usar um vestido de noiva lindo. A bem da verdade, sua vontade era deslumbrar Lucien ao entrar na igreja e que tudo relacionado ao casamento fosse especial e inesquecível.

Com toda a certeza, fora inesquecível e o vestido era incômodo naquela situação.

Eve estendeu a mão e tocou a testa de Lucien. Estava quente, mas não tanto quanto na noite anterior. Ele não reagiu. Naquele sono profundo, nem dava por sua presença ali. Geralmente, quando ela o tocava durante a noite, Lucien acordava com um sorriso, a tomava entre os braços e eles faziam amor. Lucien Thorpe era o seu homem, amigo e amante. Seria seu destino passar a vida numa sucessão de dias iguais a este?

O fogo crepitava na lareira e aquecia o quarto naquela tarde fria. Pensativa, Eve afastou os cabelos da testa de Lucien. Entre os preparativos para o casamento, ela havia trabalhado sem parar. Em segredo, transformara um dos quarto vagos de sua casa em escritório para Lucien. Seria uma surpresa de casamento. Além disso, tinha enviado os convites, providenciado uma ótima recepção para após a cerimônia e acolhido os tios e as primas. Lucien nem se dera ao trabalho de cortar os cabelos.

Estaria ela iludida ao pensar que seriam felizes? Não duvidava que se amavam profundamente. Seria isso suficiente?

— Como está ele?

Eve virou-se e viu Hugh à porta entreaberta.

— Melhor, acho. E os outros como estão sobrevivendo?

Sem desviar os olhos de Lucien, Hugh entrou no quarto.

— Bem, o quanto era de se esperar. Lionel e O’Hara estão examinando a casa de alto a baixo em busca de respostas. Aqui existe o bastante para manter nós três ocupados até irmos embora.

— E os outros?

— Estão se adaptando como podem à situação difícil. Os dois rapazes de Plummerville foram caçar a fim de suplementar os mantimentos trazidos por Elijah. As duas moças tentam se manter ocupadas na cozinha.

— Ainda bem — Eve murmurou.

Sabia que os quatro, quando tinham ajudado a fundar a sociedade secreta, não imaginavam o que teriam de enfrentar. Num tom de súplica, acrescentou:

— Cuide bem deles por mim. São amigos muito queridos e, ao virem para cá, não faziam idéia do que encontrariam.

Ela devia tê-los convencido a ficar em Plummerville, pois não tinham o que fazer ali. Não se tratava de um passeio e sim de uma missão perigosa de salvamento. E mais arriscada ficara por causa da neve que os prendia ali. Sem fazer barulho, Hugh aproximou-se da cama e ficou observando Lucien. Uma expressão preocupada e quase paternal marcava-lhe as feições.

— Sabe, esta situação não é inteiramente por culpa dele — afirmou.

Eve poderia discutir esse ponto, mas o amigo enxergava longe. Disse apenas:

— Ele jamais deveria ter vindo até aqui.

— Não creio que tenha sido por escolha própria. Lucien se sente corroído por dentro por esse dom que jamais quis ter. Ele aprendeu a controlá-lo, conseguiu uma vida construtiva para si mesmo, porém, continua determinado a descobrir uma razão científica para as habilidades. Lucien quer respostas que nunca encontrará. Foi por isso que criou aqueles aparelhos e está sempre lidando com eles. Também não resiste à tentação de investigar lugares como este. Ele é instigado por uma força que não compreende.

— Ele poderia ter esperado apenas dois dias, Hugh. Mas não, veio sozinho sem saber o que encontraria. Está disposto a arriscar tudo, até a mim, para encontrar as tais respostas.

— Lucien te ama — Hugh disse.

— Sei disso. Eu também o amo, mas isso significa que terei de cuidar dele desta forma pela vida afora? Que vou ser sempre forçada a ocupar o segundo lugar, atrás dos fantasmas dele?

— Não posso esclarecer suas dúvidas.

Eve também não. Todos os temores sufocados nos últimos dois dias subiram à superfície.

— Sabe, Hugh, amo Lucien de todo o coração, porém, não sei se meu amor vai resistir a tais provações para sempre.

 

As sombras já se aproximavam e Daisy detestava a idéia de dormir outra noite naquele hotel. Eve tinha passado o dia com Lucien e, pelo que Hugh contara, ambos haviam dormido grande parte do tempo. Como não quisesse perturbar a amiga, Daisy sentia-se grata pela companhia de Katherine.

As duas estavam na cozinha onde tinham passado a tarde inteira. A temperatura estava agradável apesar do vento frio de inverno que penetrava pelas frestas do hotel abandonado. Haviam cozinhado, limpado e procurado utensílios e toalhas..Estranho como tanta coisa havia sido deixada para trás quando o hotel se fechara.

O tempo se arrastava e o melhor era se manter ocupada. Se tivesse seu bordado à mão, não prestaria atenção no rolar das horas.

Graças à pequena garrucha de Garrick, ele e Buster haviam passado várias horas caçando. Na opinião de Daisy, eles também precisavam de uma distração. Tinham trazido uns coelhos, e com os legumes de inverno dados por Elijah Katherine havia preparado um ensopado. O aroma estava apetitoso.

Para sorte sua, O’Hara tinha passado o dia inspecionando a casa, portanto, sem chances de importuná-la. Infelizmente Lionel havia feito o mesmo, o que a impedira de conversar com ele. Os dois tinham examinado cada aposento, inclusive os do terceiro andar.

De vez em quando. Daisy os espiava. Lionel ficava no centro de um cômodo, imóvel e com os olhos fechados. Ela não fazia idéia por onde ele vagava, mas, sem dúvida, em outro lugar. O’Hara trabalhava de maneira diferente. Tocava tudo, paredes, móveis, soalho. Não parava um só instante e falava consigo mesmo enquanto espalmava as mãos aqui e acolá. Bem, confabulava consigo mesmo ou com as coisas que ela não via.

Lionel mantinha-se alheio à presença de outras pessoas enquanto agia. O’Hara não. Umas duas vezes tinha avistado Daisy observando-os e, como o malandro que era, lhe dirigira um largo sorriso. Ela não retribuíra o gesto.

Katherine ficava o mais longe possível de O’Hara. Estaria abalada com o que ele lhe dissera na noite anterior ao segurar sua mão? Seria mesmo possível que ela conservasse preso o espírito do marido na casa em que haviam coabitado?

Daisy estava determinada a não permitir a proximidade de O’Hara. Não apenas porque ele poderia descobrir um grande segredo seu como também porque era um patife intolerável. Embora Lionel não precisasse fazer isso para descobrir segredos, Daisy continuava convencida de que ele era um cavalheiro discreto, incapaz de usar as habilidades para devassar a mente das pessoas reunidas ali.

Hugh Felder havia tomado notas no bloquinho, falado consigo mesmo, como O’Hara, e até ficado algum tempo sozinho num quarto. Verdadeira insensatez, na opinião de Daisy.

— Você acha que jamais vamos sair daqui? — Katherine perguntou.

Assustada com a indagação, Daisy estremeceu.

— Acho, sim, claro!

— Não tenho tanta certeza — a viúva confessou, pessimista.

Daisy tentou animá-la.

— A neve não vai demorar muito para derreter. Sem dúvida...

— Não estou preocupada com a neve — Katherine a interrompeu.

Tanto quanto a Daisy, era o hotel que a amedrontava. Nenhuma das duas queria falar sobre isso.

— Os colegas de Lucien são muito talentosos e serão capazes de solucionar o problema do lugar — Daisy declarou.

— Eles são grande parte do problema. Se o que dizem é correto e algo neste hotel quer manter Lucien aqui para se alimentar dele, será que esse mesmo ente não queira também mais três homens capazes de ver e ouvir coisas que pessoas normais não conseguem?

— Pode ser — Daisy balbuciou.

— Eu jamais deveria ter entrado para essa ridícula sociedade secreta. Quando você me convidou para aquele jantar, eu não devia ter aceitado e ficado em casa.

— Só porque Lucien ainda não conseguiu livrá-la de seu fantasma?

Katherine virou-se depressa. Estava lívida e os olhos, muito abertos, revelavam medo. E ela não era uma pessoa de sentir medo com facilidade.

— O’Hara, aquele charlatão, diz que estou prendendo Jerome aqui. Isso será possível?

— Não sei — Daisy murmurou.

A viúva respirou fundo e soltou o ar devagar.

— E se a culpa for minha? Se eu jamais me livrar dele?

Daisy nunca a tinha visto tão amedrontada. Katherine não temia o hotel ou fosse lá o que existisse ali, mas sim o marido que a tinha maltratado quando vivia.

— Você vai se livrar dele — garantiu com firmeza.

— Você é muito otimista. Pensa que o mundo é um lugar ordenado onde o bem sempre vence o mal e tudo se resolve.

— Não existe mal algum em se contar com o melhor.

— Ora se existe! Só nos causa sofrimento — Katherine afirmou.

Antes de Daisy poder protestar, Lionel entrou na cozinha. O leve mancar, os longos cabelos loiros e o sorriso davam-lhe a aparência de um pirata atraente e bem vestido.

— O cheiro está delicioso — ele elogiou.

— O jantar logo estará pronto — Daisy informou, sorrindo também.

Sentia-se aliviada com o fim abrupto da conversa perigosa.

— Katherine é uma cozinheira excelente — acrescentou.

— Já descobri isso — Lionel disse. — Tenho certeza de que você também é.

Katherine resmungou algo em tom mordaz e Daisy, querendo mudar de assunto, perguntou:

— Você descobriu alguma coisa importante em sua inspeção do hotel?

A expressão de Lionel tornou-se sombria.

— Talvez — respondeu, lacônico.

Naquele instante, O’Hara apareceu na cozinha.

— Eve vai trazer Lucien para jantar aqui embaixo — contou.

— Isso é ótimo! — Daisy exclamou, contente.

— Não, de forma alguma. Lucien deveria ficar onde está até recuperar as forças totalmente. Este hotel está lhe minando a energia e, por isso, ele não tem o direito de se expor nas áreas mais ativas daqui até se encontrar em boas condições — O’Hara argumentou.

— Tenho certeza de que Lucien não se arriscaria a descer se achasse perigoso — Daisy protestou.

Os dois homens se entreolharam.

— Pensei ter ouvido você dizer que conhecia Lucien bem — O’Hara ironizou.

— Pois conheço, sim.

— Não creio. O homem é impossível! — ele replicou em tom áspero.

Daisy apressou-se em defender o noivo da amiga:

— Lucien sempre me pareceu uma pessoa muito sensata.

Dessa vez até Lionel resmungou qualquer coisa.

Mais uma vez, ela quis mudar de assunto. Sem dar atenção a O’Hara, dirigiu-se a Lionel:

— Você acabou não me contando o que descobriram hoje.

Mas foi O’Hara quem respondeu:

— Ninguém pode ficar sozinho neste hotel. Não importa como esteja o tempo amanhã, devemos ir embora bem cedo, mesmo que seja a pé.

Daisy sentiu a boca seca.

— A situação é assim tão ruim?

Os dois homens fizeram apenas um gesto afirmativo de cabeça.

 

— Essa idéia não é muito boa — Eve protestou ao amparar Lucien pelo braço.

— Estou bem. Ficarei tão seguro lá embaixo com os outros quanto preso neste quarto.

— Hugh não pensa assim — Eve disse em tom suave.

— Ele é cauteloso demais. Sempre foi.

Lucien estava com aspecto muito melhor, o que a deixava menos apreensiva. Mas o quarto era o mais sossegado do hotel e mais seguro para ele. Se dependesse de sua vontade, ela o manteria ali até a hora de irem embora. Porém, Lucien parecia não dar importância a sua opinião.

Saíram do quarto de braços dados. O vestido de noiva de Eve ainda tinha sinais de elegância apesar do péssimo estado. Lucien estava com a camisa e o terno de que dispunha. Embora precisasse se barbear e dormir mais, estava corado, pisava com firmeza e mantinha o corpo ereto. Mesmo assim, parecia outra pessoa.

Todos já os esperavam sentados à mesa do jantar e dirigiram olhares preocupados a Lucien.

Estranho ter a companhia dos convidados para o casamento com suas melhores roupas, já em condições um tanto precárias, mas de humor razoável, dadas as circunstâncias, Eve refletiu. Eram as pessoas mais importantes para ela. Se ninguém estivesse presente na igreja, exceto estes sete amigos, teria ficado feliz. Caso Lucien houvesse aparecido, claro.

Eve e Lucien sentaram-se nas duas cadeiras deixadas para eles próximas da porta. Felizmente O’Hara estava na ponta extrema da mesa. Talvez Lucien se encontrasse cansado demais para começar uma briga, ela esperava. Relaxou ao ver que ele nem olhava para o lado de O’Hara.

O ensopado e pãezinhos de minuto constituíam uma refeição saborosa e nutritiva, uma surpresa em tal situação. Todos se alimentavam com apetite, mas observavam Lucien.

Ele devia estar morto de fome. Eve nunca o tinha visto comer tão bem. Quando voltassem a Plummerville, ela pediria as receitas do ensopado e dos pãezinhos a Katherine. Precisava aprender a alimentar este homem que, com frequência, se envolvia tanto com o trabalho que se esquecia de comer.

Eve ouvia em silêncio as conversas em sua volta. Daisy e Buster falavam sobre o tempo e Garrick mostrava interesse pela arquitetura do Honeycutt Hotel. Não faltavam elogios à refeição, os quais Katherine ignorava.

Lucien não abria a boca, limitava-se a comer. Sem dúvida estava apreciando o ensopado, algo estranho para alguém que não se importava com comidas. Quando terminou, recostou-se na cadeira, observou as pessoas em volta da mesa, uma a uma. As conversas continuavam em vozes suaves. Era uma reunião de amigos educados.

Após um momento de silêncio geral, Lucien sorriu e numa voz zombeteira, disse:

— Todos estes heróis aqui para me salvar. Muito curioso.

— Lucien! — Eve exclamou baixinho.

Talvez o comentário fosse de agradecimento, mas sem dúvida não parecia.

Ele a fitou com olhar aborrecido.

— São nossos amigos, Eve. Com certeza podemos falar honestamente com eles.

— Claro — ela concordou ao mesmo tempo em que sentia um arrepio de desconfiança ao longo da espinha.

Sabia o quanto honestidade era importante para Lucien, mas não o tinha convencido de que certas coisas não se diziam? Lucien levantou a xícara de café num arremedo de brinde.

— Saúde a este grupo heterogêneo de amigos!

— Acho que você deve voltar para a cama — Eve disse ao começar a se levantar.

Lucien a segurou pelo pulso e, com força, a puxou para a cadeira.

— Ainda não — ele disse sem soltá-la.

Onde tinha encontrado tal energia? Poucas horas atrás estava tão fraco, ela conjeturou.

Lucien encarou Daisy que se sentava ao lado de Eve.

— Daisy, minha cara, você está com ar amedrontado.

— Bem, eu... — ela começou, mas foi interrompida.

— Você está sempre com medo de alguma coisa, coitadinha. Do que precisa mesmo é de um homem em sua cama — Lucien sugeriu. — Um que abra essas suas coxas alvas, a faça gritar e...

— Lucien! — Eve exclamou e soltou o pulso.

— Ora, é verdade. De tão tensa, a moça está cheia de nós da cabeça aos pés. Um pouco de excitação em seu quarto...

— Não se atreva a continuar — Eve ameaçou em voz gélida.

O que havia de errado com ele? Outra vez tentou se levantar, mas Lucien a impediu antes de continuar.

— Buster? Um homem medíocre. Um matuto rústico que poderia se beneficiar do mesmo tratamento de que Daisy tanto precisa. Talvez vocês dois...

— Chega. O que deu em você, Lucien? — Eve balbuciou.

Ele a ignorou e prosseguiu com um largo sorriso:

— Meu bom amigo Hugh Felder. Em meus dias longos e cansativos, nunca conheci um mártir como você. Sua mulher está morta, Felder, faz quinze anos. Sim, você se acha responsável, mas isso não quer dizer que deva levar uma vida de monge.

Eve levantou-se depressa.

— Sinto muitíssimo. Obviamente Lucien não está bem — ela disse.

— Lucien está bem, sim — o próprio afirmou e, dessa vez, não a fez se sentar. — Mas, ao chegar tão perto da morte, percebi o quanto nossas vidas são preciosas. Não deveríamos perder um instante sequer fingindo ou sofrendo quando umas poucas verdades podem ser reveladas. Se ficarem escondidos, segredos e mentiras apodrecem. Você sabe disso, querida. Eu já não lhe disse que a honestidade é o melhor sempre?

Ela voltou a sentar-se, mas por vontade própria.

— Penso que você já disse o suficiente.

Ele tomou a ignorá-la e a percorrer o olhar por todos.

— O’Hara, seu cretino libidinoso! Você ainda vai se arrepender por ter se atrevido a enfiar a mão sob a saia de Eve. Talvez, não. Eu o matarei antes.

Eve fechou os olhos e cobriu-os com as mãos. A essa altura, ninguém mais disfarçava a surpresa.

— Eu não quis exatamente... — O’Hara começou.

— Quis, sim — Lucien o interrompeu.

— Foi um engano — O’Hara tartamudeou. — Eu tinha bebido muito, vi aquele fiapo de linha atrás de sua sala e...

— Cale a boca — Lucien ordenou e dirigiu o olhar a Lionel.

Os dois se encararam e o sorriso de Lucien sumiu. Lionel não disse nada enquanto o fitava com expressão inflexível. Uma força poderosa passou-se entre eles. Era uma energia de algum tipo, como o de um raio. O ar ficou carregado. Os cabelos na nuca de Eve arrepiaram-se. O que se passava entre Lionel e Lucien era um fenômeno poderoso que ela não compreendia. Foi a única que se sentiu perdida. Todos ficaram em silêncio. Finalmente, Lucien desviou o olhar para Katherine.

— Minha cara Katherine. Tenho tentado não alarmá-la, mas suponho que você deva conhecer a verdade. Seu falecido marido não está preso a Plummerville ou à casa em que você mora. Ele está agarrado a sua pessoa como o aproveitador que foi em vida. Ele está aqui agora.

Ela ficou lívida e Lucien murmurou:

— Está atrás de você com as mãos em volta de seu pescoço lindo. Ele a odeia muito.

Katherine pulou em pé e correu. Garrick levantou-se enquanto dirigia um olhar furioso para Lucien.

— Não me importo com o quanto você esteja doente, mas sei que não tem o direito de ser tão desumano. Como se atreve a falar com Katherine dessa forma? — indagou ao segui-la.

— Não vá ainda. Guardei o melhor para o fim — Lucien disse com um largo sorriso.

Garrick proferiu um palavrão e parou à porta.

— Não quer saber quem é sua mãe verdadeira? — Lucien indagou.

— Por favor, Lucien, não — Eve suplicou.

Garrick o encarou.

— Por Deus, Lucien, você está mesmo doente. Não sabe o quê fala.

— Se não acredita em mim, pergunte a seu pai. Ou melhor, à mulher a quem você sempre chamou de mãe. Sabe, ela te odeia. Fica doente apenas por olhar para você. Quando faz isso, vê seu pai infiel penetrando no corpo de outra mulher. Nem posso lhe dizer quantas vezes ela desejou que você morresse. Tanto ódio na pequena Plummerville.

Garrick ficou quase tão pálido quanto Katherine.

— Eve, do que ele está falando?

Ela sabia que, algum dia, Garrick descobriria a verdade sobre a mãe, mas essa era uma maneira dura e de péssimo gosto.

— Garrick... — começou, mas ele a interrompeu:

— Vejo a verdade em seu rosto, Eve. Como você soube? Por que não me contou?

Daisy levantou e passou correndo pelas cadeiras de Eve e Lucien.

— Vou ver Katherine.

— Não. Deixe que eu fale com ela. Este outro assunto pode esperar — Garrick disse e desapareceu depressa.

— Sim, Plummerville está cheia de segredos sórdidos — Lucien murmurou.

Eve o segurou pelo braço e tentou forçá-lo a se levantar.

— Vamos. Você não está bem. Precisa voltar para o quarto.

Lionel e O’Hara levantaram-se.

— Nós o ajudaremos a se deitar, Lucien.

— Não é necessário, senhores. Não preciso de ajuda para levar minha esposa para a cama — Lucien afirmou ao erguer-se depressa.

Pegou-a pelo braço e, juntos, saíram da sala.

 

— Como você pôde fazer aquilo? — Eve indagou quando já estavam no vestíbulo.

— Dizer a verdade?

— Sei que você põe a honestidade acima de tudo, mas as coisas que você disse foram rudes, impiedosas e desnecessárias.

— Todas verdadeiras.

— E eu não sou sua esposa, pois você não apareceu na igreja — ela acrescentou enquanto subiam a escada.

Lá em cima, ouviram os soluços de Katherine e a voz suave de Garrick, vindos através de uma porta fechada. O coração de Eve confrangeu-se por ambos.

— Mas você é minha esposa. Observe a si mesma com o vestido de noiva. Só estão faltando o véu e o buquê. Além disse, no íntimo você é minha esposa, minha mulher e me ama.

— Sim, mas...

Lucien parou à porta do quarto deles.

— Ainda não estou pronto para me deitar. Vamos fazer uma pequena exploração — sugeriu, olhando para a escada, no fim do corredor, que ia ao terceiro andar.

— Não acho que seja uma boa idéia — Eve disse enquanto ele a puxava em direção à escada.

— Dormi o dia inteiro e estou me sentindo forte — Lucien afirmou.

Ele subiu a escada depressa, levando-a junto. Lá em cima, soltou-a e, sorrindo, foi até o meio do corredor, onde respirou fundo e abriu os braços.

— Existe tanta energia aqui. Poder. Você pode sentir?

— Não. E trate de não mudar de assunto. Você deve um pedido de desculpa a cada um de nossos amigos.

— Por ser honesto?

— Não, por ser impiedoso.

Com passos vagarosos, sorrindo e sem desviar o olhar, Lucien voltou para o lado dela.

— Eu não sabia que você podia ser tão cruel de propósito — Eve murmurou.

Ele a segurou pelos ombros e a encostou na parede.

— Não quero falar sobre eles agora e sim sobre nós.

— Você tem algo rude e ofensivo para me dizer? — ela perguntou, tentando não se afetar com a mão possessiva em seu quadril.

— Você é uma esposa linda! — ele murmurou.

— Não sou sua esposa — Eve repetiu enquanto ele lhe tocava os seios com a outra mão.

— É, sim e eu a desejo muitíssimo — Lucien confessou ao beijá-la no pescoço, movendo os lábios com suavidade.

Ao mesmo tempo a acariciava nos seios. A mão era delicada, mas exigente, a boca, quente e excitante.

— Lucien, você não está bem — ela protestou, embora o corpo começasse a reagir ao dele.

Eram amantes havia meses. Ele a tinha iniciado na arte do prazer e na alegria de se entregar ao homem que amava. Estava brava, confusa, porém, sentia-se incapaz de não se deixar afetar pelas carícias.

— Ai, Eve, me ajude a ficar bem — Lucien murmurou enquanto roçava os dedos nos mamilos sensíveis.

Ela fechou os olhos e sentiu o próprio desejo crescer.

Havia pensado que o tinha perdido, no entanto, ali estava ele. Lucien tornou a beijá-la no pescoço, mexendo os lábios até fazê-la gemer. Então, baixou a cabeça e repetiu os beijos na pele acima dos seios, exposta pelo decote.

— Você está certa. Sem necessidade, fui insensível e rude esta noite. Não sei o que deu em mim. Estava possuído, suspeito. Um resto de fraqueza que ainda não venci, mas que o farei com sua ajuda. Preciso tanto de você. Eve.

Era o que ela sempre quisera de Lucien. Tinha-lhe o amor, mas desejava que ele precisasse de seu amparo. Aconchegou o rosto dele entre as mãos e murmurou:

— Eu te amo, mas você não está bem, Lucien. Alguma coisa aconteceu a você neste hotel e o deixou diferente.

— Se estou doente, você pode me curar — ele disse ao levantar-lhe a saia e a anágua com as duas mãos. — Você pode me tornar mais forte ou me matar. O que será, Eve?

— Quero torná-lo mais forte — ela sussurrou.

— Tenho certeza. — Lucien enfiou a mão entre suas pernas e a acariciou sob a cambraia do calção. — Você já está úmida!

— Basta me tocar para isso acontecer, você sabe.

Com delicadeza, ele a massageou com a ponta dos dedos e voltou a beijá-la no pescoço. Excitada, Eve começou a relaxar. As dúvidas dissiparam-se. Mais tarde pensaria nelas.

— Vamos descer e nos deitar — ela sugeriu.

— Não. Eu a quero aqui. Agora. Faz tanto tempo.

Seu corpo também o queria, bem como o coração. Ela o amava muito. Mas o bom senso a advertia do perigo.

— Lucien, meu amor, acho que você voltou a ter febre. Está tão quente.

— Estou bem, juro.

— Não está forte o suficiente.

— Estou, sim — Lucien insistiu e apertou-a contra o corpo para mostrar-lhe a ereção.

Em seguida, enfiou a mão por seu decote e acariciou os mamilos, provocando a explosão de sua paixão por ele.

— Vamos nos amar, Eve — murmurou.

Com as mãos entre ambos, ela desabotoou a calça que lhe prendia o membro. Acariciou-o ao mesmo tempo em que era beijada com uma paixão igual à sua.

Lucien gemeu e rasgou a abertura de seu calção. Com firmeza, levantou-a do chão. Eve passou as pernas em volta do corpo dele e os braços pelo pescoço. Recebeu novo beijo mais profundo e ávido. Num ímpeto incontrolável, Lucien penetrou em seu corpo. Por um momento, não se mexeu.

— Eve, isto é um sonho? — indagou.

— Não, é a pura realidade.

Enquanto iniciava os impulsos, Lucien a cobria de beijos ardentes. Foi uma união vagarosa, longa e plena de amor. Ao atingirem o êxtase, Eve não pensava mais nos dissabores sofridos naqueles dias. Quando se tornavam um, o mundo ficava muito melhor.

Continuaram abraçados por um bom tempo. Naquele instante, ela teve certeza de que tudo acabaria bem. Suas dúvidas e temores não faziam sentido. Voltariam para Plummerville, se casariam, teriam filhos e viveriam felizes pelo resto da vida.

— Desta vez foi diferente — disse enquanto Lucien a punha no chão.

— Foi mesmo. Muito.

Ele apoiou o braço em seus ombros e correu o olhar pelo corredor.

— Eve?

— O que é, meu amor?

— Onde estamos?

 

Com a cabeça entre as mãos, Lucien sentava-se no primeiro degrau do alto da escada que descia ao vestíbulo.

— Por favor, me digam que não falei isso!

Ele tinha adormecido com Eve sentada ao lado e acordado dentro dela. Mas não na cama em que haviam dormido na última noite e quase o dia inteiro e sim em pé no corredor do terceiro andar. Eve estava encostada na parede e com o corpo abraçado ao dele.

Lucien ergueu a cabeça e olhou para os amigos lá embaixo. Não mais pareciam amigos. Katherine estava pálida e com os olhos vermelhos. Garrick, ao lado dela, tinha expressão furiosa. Hugh, atrás de todos, exibia uma atitude que ele jamais vira e Buster não disfarçava o constrangimento.

Eve, ao lado de Daisy, ao pé da escada, o olhava como se ele fosse um estranho. Seu rosto ainda estava vermelho, o vestido muito mais amassado do que ele vira a última vez e os cabelos caíam embaraçados pelos ombros. E estava com medo. Dele, com certeza. Quem poderia culpá-la?

Porém, de todo o grupo, ela era a única que deveria mostrar compreensão.

— Você não sabia? Não podia lhes dizer que não era eu? — ele murmurou.

— Não.

Lionel deu um passo à frente. Parecia não ter sido ofendido à mesa do jantar, Lucien refletiu. Talvez porque o espírito que o possuía tinha percebido que Lionel via demais e com facilidade.

— Era você, pois falava com a própria voz. E não havia aquela fraqueza que geralmente o acomete quando você canaliza seu dom. Tentei ver mais, pois sabia que algo estava errado, mas não consegui. Primeiro, pensei que você tivesse aprendido a me bloquear e, depois, percebi que você, enquanto dormia, fora possuído por um ente sombrio. Ele foi capaz de barrar minha habilidade de ler sua mente — Lionel explicou.

— Ele já se foi?

— Não. No momento, está escondido, à espera de ganhar forças para matar o que resta de você.

O que resta de você. Lucien estremeceu. Estaria desaparecendo? Já seria menos do que quando entrara no Honeycutt Hotel?

— Lamento muito. Eu não sabia. Jamais deveria ter dito aquelas coisas — Lucien murmurou.

Brava, Katherine passou para frente.

— Talvez você não as tivesse dito se tivesse escolha. Mas teve a intenção de pronunciar cada palavra. Durante todo o tempo em que me dizia ser capaz de mandar Jerome embora, você nunca se deu ao trabalho de me explicar que eu o prendia aqui. Que ele, de certa forma, está ligado a mim.

— Eu achava que não adiantaria nada aborrecê-la — Lucien desculpou-se, embora se sentisse em frangalhos.

Eve tinha insistido em ensiná-lo a ser discreto e ele falhara. Devia ter contado a verdade a Katherine semanas atrás.

O’Hara foi o seguinte a se destacar e chegou até a subir uns degraus. Sentado no último, Lucien sentia-se cansado e confuso. Porém, em relação a O’Hara, os sentimentos continuavam claros. Numa voz rouca, disse:

— De você, eu não gosto.

— Não importa. Quando conseguirmos sair inteiros daqui, você poderá descontar seu ciúme infundado, irracional e raivoso em mim. Até então, teremos de nos unir para lutar contra essa coisa.

— Como fazer isso? — Lucien indagou.

— Ele não é daquele tipo comum de espírito irritante, Lucien. É antigo, colérico, perigoso e está no hotel.

— Ora, nós todos estamos — Lucien argumentou.

— Não, é diferente. Esse espírito faz parte da estrutura inteira. Está em tudo, nas paredes, nos soalhos, em cada lasca de madeira e de pedra deste hotel — O’Hara explicou.

— Ai! — Daisy gemeu,

O’Hara parou no meio da escada e continuou:

— Ele morreu aqui muito tempo atrás, antes de o hotel ser construído. Esvaiu-se em sangue na terra abaixo. Ele era... — O’Hara franziu a testa e semicerrou os olhos. — Não sei o que ou quem ele era, mas havia lidado com magia negra, que não deve ser explorada. Quando morreu, a alma dele ficou na terra.

Então, foi a vez de Lionel falar:

— Inúmeras pessoas morreram no terreno muito antes do hotel ser construído. Viajantes que passavam por aqui eram acometidos por acessos de raiva, ódio, inveja. Brigas sangrentas ocorreram no lugar em que ele morreu. Ele, então, colecionava as almas. Scrydan — Lionel disse depressa como se o nome acabasse de lhe ocorrer. — Seu nome era Scrydan e ele não queria ficar sozinho.

— Imagino que esse Scrydan deve ter influenciado, de certa forma, o homem que construiu o hotel. Os hóspedes vinham e alguns não saíam. Os comentários começaram a fervilhar, os negócios pioraram e o lugar foi fechado antes de a Guerra de Secessão começar — O’Hara aparteou.

— Soldados! — Lionel exclamou como se mais uma vez algo lhe ocorresse. — Soldados se esconderam e morreram aqui. Lutaram não só contra o inimigo como também entre si. Mataram companheiros com as próprias mãos. Depois da guerra, o neto do dono original das terras decidiu transformar o prédio numa estação de águas minerais. Existem fontes delas por aqui. Aqueles que podiam pagar o preço exorbitante que ele cobrava começaram a aparecer.

O’Hara voltou a tomar a palavra.

— Mais uma vez, muitos hóspedes morreram de maneira violenta. Creio que esse espírito, fantasma, seja lá o que Scrydan seja, consegue energia do medo e da morte de outros. Mas você, Lucien, é diferente. Depois que chegamos e o plano dele para sua morte frustrou-se, ele descobriu que podia ficar em você por um período de tempo. Isso era impossível em outras pessoas vivas. Às vezes, entrava numa para forçá-la a matar; Mas não ficava muito tempo nela sem se consumir. Até você chegar, Lucien. Ele é capaz de penetrar em sua mente e pode viver dentro de você. Temo que ele goste disso.

— Por que só estão vendo tudo isso agora? Por que não descobriram tudo sobre esse Scrydan ontem à noite ou hoje de manhã? — Eve indagou, ríspida.

— Ele foi capaz de nos bloquear por algum tempo — Lionel respondeu, calmo. — O que aconteceu esta noite o fez fraquejar o tempo suficiente para vermos o que ele já fez e do que é capaz.

— Temos de sair daqui esta noite — Garrick disse.

— Não iríamos longe. Além da escuridão, a neve não derreteu toda e não temos cavalos — Lionel explicou.

— Então, amanhã bem cedo — Buster sugeriu.

— Certo. Ninguém pode ficar sozinho esta noite — Hugh determinou. — Agora, uma recomendação de cautela. Este espírito alimenta-se de sofrimento e medo. Foi por isso que ele extraiu informações da memória de Lucien para falar aquelas coisas desagradáveis durante o jantar. A intenção era perturbar todos nós. Scrydan quer que sintamos medo. O melhor que podemos fazer para nos ajudar a sair daqui é manter a calma.

— Calma? Acho impossível! — Daisy exclamou.

— Por favor, tente — O’Hara aconselhou.

Ela assentiu com um gesto de cabeça, mas continuou com ar cético.

— Onde está ele agora? — Lucien indagou.

Lionel fechou os olhos e O’Hara tocou o corrimão.

— Scrydan está descansando. Como não tem controle completo de seu corpo, Lucien, o tempo passado nele minou-lhe a energia, bem como a sua — Lionel respondeu.

— Mas continua aqui nas paredes, no teto, no soalho e ainda poderoso — O’Hara afirmou.

— E dentro de você, Lucien — Lionel avisou.

Eve estava sentada no sofá do vestíbulo, entre Daisy e Katherine. Não era uma pessoa nervosa e nunca se descontrolava. Sensata, sabia que não lucraria nada em ceder à histeria.

No momento, entretanto, algo a instigava a gritar e chorar.

Por que não tinha percebido que Lucien não era Lucien? Por que não discernira que ele, embora valorizasse a honestidade, jamais teria insultado os amigos? Por que não havia sentido ter sido seduzida por um estranho e não pelo homem a quem amava? Um ser perverso que desejava a morte de todos eles?

 

No quarto lá em cima, Lucien repousava ou dormia, sob os cuidados de Hugh e Buster. Ela deveria estar lá, porém, ainda não se sentia em condições de vê-lo. Suas mãos tremiam e Daisy as tomou entre as dela. Com esforço, tentou animá-la:

— Tudo vai ficar bem. Lucien há de recuperar as forças, nós todos sairemos daqui e vocês se casarão.

— E se isso não acontecer e nada voltar a ser como antes? — Eve indagou à beira do histerismo. — Se jamais sairmos daqui, Scrydan vencer, Lucien morrer e nós ficarmos para sempre nesta armadilha?

— Não fale assim. Se você se desesperar, Scrydan vencerá — Katherine aconselhou com suavidade.

— Ela está certa — O’Hara disse ao surgir de repente e se ajoelhar diante de Eve.

Tocou-a no joelho, mas retirou a mão depressa ao ver seu olhar bravo. Numa voz calma e com um sorriso, prosseguiu:

— Você é a chave, Eve. O motivo para Lucien ainda estar entre nós e ser capaz de vencer Scrydan, é você em grande parte. Lucien agarra-se a fiapos de esperança porque te ama.

Os olhos de Eve encheram-se de lágrimas e ela não queria chorar.

— Tenho de lhe pedir um favor — O’Hara disse numa voz branda. — Não inteiramente, Lucien está bloqueando Lionel e Hugh. Ele não me deixa chegar perto, por isso não sei se também poderá, ou não, me bloquear. Scrydan não quer que eu toque em Lucien e veja demais e Lucien continua bravo por causa daquele incidente.

— Incidente? — Eve esbravejou.

— Conversaremos sobre isso mais tarde se você quiser. O mais importante é a necessidade de sabermos o que se passa na mente de Lucien, mas não posso decifrar isso sem me aproximar. Ele a tocou pouco tempo atrás, Eve. Scrydan e Lucien a tocaram.

Maneira delicada de lembrá-la que ela tinha feito amor com um demônio.

— Se eu puder pegar sua mão, talvez consiga ver um pouco. É um tiro no escuro, mas tudo de que dispomos — O’Hara disse ao estender a mão e ainda ajoelhado diante de Eve.

— Deixe a pobre em paz. Ela não quer que você lhe passe a mão — Daisy protestou.

— Não quero passar a mão em ninguém — O’Hara afirmou numa voz impaciente e com um olhar faiscante.

De manhã, ele tinha demonstrado interesse pela moça. Agora, parecia irritado com ela. As coisas não iam como ele esperava. Tudo bem. Não havia tempo para namoros numa situação como esta.

Com o coração pesado, Eve notou que O’Hara tinha aparado os cabelos para o casamento. Mesmo este patife havia gasto mais tempo e esforço do que Lucien.

Depois de alguma hesitação, ela pôs a mão na de O’Hara e disse:

— Está bem.

Ele fechou os dedos sobre ela e a fitou bem dentro dos olhos. Eve sabia que, agora, ele via tudo, suas lembranças, boas e ruins, suas dúvidas, seu amor. Ele continuou a segurar-lhe a mão, chegou a fechar os olhos por um instante e a balançar o corpo.

— Lucien já deveria ter perdido, mas persiste porque não quer que Scrydan lhe faça mal. Está enfrentando uma batalha constante e se esforçando ao máximo para protegê-la.

A mão de Eve começou a tremer e O’Hara teve de segurá-la com firmeza. Havia algo mais que ele não disse em voz alta. Após uns instantes, sussurrou:

— Esta noite, Scrydan pensou que tinha vencido. Achava que Lucien estava tão fraco que não ousaria reaparecer. Mas ele o fez. Lucien lutou para voltar porque... porque...

Eve sabia o motivo, porém, O’Hara se sentia embaraçado de falar em voz alta. Lucien tinha emergido porque Scrydan estava dentro dela, havia lutado a fim de ampará-la.

— O que posso fazer? — ela murmurou.

— O medo alimentará Scrydan como faz há séculos — O’Hara disse. — Você não pode lhe mostrar medo, Eve. Não pode sentir medo.

— Como isso é possível?

— Não sei — ele disse baixinho. Antes de soltar sua mão, a beijou de leve.— Só sei que, para vencer Lucien, Scrydan terá de derrotá-la primeiro.

 

Todos falavam em ir dormir. Como podiam? Daisy andava de um lado para o outro do vestíbulo.

Eve havia subido a fim de se sentar ao lado de Lucien. Hugh e Buster lhe faziam companhia. Katherine, ainda muito abalada, tinha ido para a cozinha uma hora atrás. Quando Daisy se oferecera para ir ajudá-la, ela lhe dissera para não se dar ao trabalho. Mas Garrick tinha ido para não a deixar sozinha.

Daisy, Lionel e O’Hara continuavam no vestíbulo. Ela ainda considerava Lionel um exemplo magnífico de virilidade. Um viking, um pirata, uma imagem de homem de beleza sem par.

O’Hara nunca seria bonito. Não era feio, mas, ao lado de Lionel, adquiria uma aparência comum demais. Exceto pelos olhos, ela refletiu. De um azul-esverdeado, eram lindos, expressivos e inteligentes. Talvez ela houvesse sido um tanto apressada em qualificar O’Hara como malandro. Mais cedo essa noite, ele havia sido muito delicado com Eve. Estava quase certa de que ele tinha uma explicação plausível para o tal incidente com Eve.

Daisy desviou a atenção para Lionel. Dos dois e com aquele porte régio, ele era de longe o mais atraente. Ela poderia acrescentar "principesco" à lista de palavras que o descreviam.

O’Hara era um homem simples, de boa aparência e altura média. Ninguém jamais o confundiria com um príncipe. Com um charlatão, talvez. Não, um patife.

No momento, os dois tinham ar solene e pensativo. Lionel olhava para o fogo na lareira e O’Hara andava de um lado para o outro. Ela não precisava ser adivinha para saber que ambos estavam preocupados com todos no hotel, mas especialmente com Lucien, amigo deles. Difícil ficar indiferente ao sofrimento de um amigo.

— Você não me contou seu primeiro nome, O’Hara — ela disse ao parar de andar e sentar-se no sofá.

— O quê? — ele indagou, surpreso com o fato de Daisy lhe dirigir a palavra.

— Seu primeiro nome. Você não me contou — ela repetiu.

— O nome que minha mãe me deu não é importante.

— Com certeza ela não o chamava por O’Hara.

— Claro que não.

— Como o chamava então?

— Ela me chamava de seu benzinho — ele provocou. — Por que essa súbita obsessão com meu nome?

— Simples curiosidade. Como talvez eu venha a morrer neste horrível hotel mal-assombrado, acho que merecia satisfazê-la.

O’Hara começou a falar, mas parou e sacudiu a cabeça.

— Não posso. Isso é fácil demais.

— O que é tão fácil? — ela indagou.

— Nada.

— Ora essa, O’Hara!

Ele deu um passo em sua direção.

— Digamos que quando uma mulher linda menciona sua curiosidade aguçada a um homem, a imaginação dele pode seguir um rumo proibido.

— Oh! — ela exclamou baixinho. Então ele a achava linda!

— O que você está querendo, Daisy? — O’Hara indagou.

— Apenas manter minha mente ocupada a fim de não pensar em tudo que aconteceu esta noite e me apavorar outra vez. Você disse que não deveríamos sentir medo.

— É verdade — ele concordou.

— Por isso, em vez de ficar sentada aqui, morta de pavor de que possa morrer esta noite e alimentar o tal espírito com meu medo, decidi pensar em seu primeiro nome.

— Posso lhe assegurar que ele é tão assustador quanto qualquer coisa que habite neste hotel.

— Nesse caso, estou mais determinada a descobrir qual é.

Naquele instante, Lionel virou-se para eles.

— É mesmo, qual é seu primeiro nome? Desde que fomos apresentados, só o conheço por O’Hara.

— Jamais contarei — ele respondeu com expressão séria.

Daisy franziu a testa e olhou para Lionel.

— Você também não sabe o nome dele?

— Não.

— Mas vocês podem saber tudo. Basta olhar para a mente um do outro, certo?

Foi O’Hara quem explicou:

— Temos um acordo entre nós. Não espreitamos a vida ou a mente uns dos outros sem permissão.

Essa era uma novidade interessante.

— Você quer dizer que podem desligar seus dons quando querem?

— Até certo ponto. É mais fácil para Lionel, mas estou aprendendo. Na maioria das vezes, não toco numa pessoa sem sua permissão.

Então, ela não podia convencer Lionel a lhe contar o primeiro nome de O’Hara. Irritada, disse:

— Seu nome não pode ser assim tão feio. E eu quero saber.

— Por quê? — ele indagou com um largo sorriso.

— Curiosidade, já disse. Além do mais, é uma tolice que seus amigos o tratem pelo sobrenome.

O’Hara estava se divertindo com a conversa. Podia ver que Daisy queria, de fato, saber o nome dele. No entanto, ele não dava a informação insignificante.

— Vou lhe propor um acordo, Daisy.

— Qual?

— Você me dá sua mão e eu lhe conto meu nome.

Depressa, ela cruzou as mãos no colo. Vira como O’Hara olhava para uma pessoa enquanto lhe segurava a mão. Primeiro com Katherine e, depois, com Eve. Não queria que ninguém espiasse seu íntimo. Que segredos descobririam? As pessoas imaginavam que ela não tinha nenhum, mas esse não era o caso. Ela apenas os escondia muito bem. Eles surgiriam se O’Hara segurasse sua mão.

— Bem, vou me contentar apenas com O’Hara — ela disse.

— Como eu suspeitava.

Daisy olhou para Lionel que tinha retornado a atenção para o fogo da lareira. Segundo Eve, a força psíquica dele era incrível. Poderia ele descobrir seus segredos? Desconfiava que ele não se interessava pelo que ela escondia.

A maneira com que O’Hara a olhava mostrava que ele, sim, se interessava muito. Sabia que não a forçaria a lhe entregar a mão, pois queria que ela o fizesse por vontade própria. Jamais, ela pensou.

O ambiente mudou um pouco quando Katherine e Garrick voltaram da cozinha. Ele, que várias vezes tinha pedido Daisy em casamento por brincadeira, ultimamente era muito atencioso com Katherine. Daisy não podia vê-los como um casal. Despreocupado, Garrick nunca levava nada a sério e Katherine quase sempre se mostrava indiferente ou amargurada.

Garrick, provavelmente, mostrava um interesse especial por Katherine porque, afinal, era o presidente da Sociedade de Almas Penadas de Plummerville.

Katherine sentou-se ao lado de Daisy e Garrick foi para perto de Lionel. Fez-lhe uma pergunta que ele respondeu com um veemente gesto negativo da cabeça.

— Por que não? Pelo amor de Deus, é o que você faz! — Garrick protestou.

Num tom severo, Katherine disse:

— Garrick, eu o avisei para não pedir.

— Se o desgraçado está aqui, não vejo motivo para não nos livrarmos dele agora. Por que temos de esperar até voltar a Plummerville? Você não ganha a vida fazendo isso, Lionel? Sem dúvida pode nos ajudar.

Lionel manteve-se calmo.

— Não, por duas razões. A primeira é a maldição de Scrydan nesta casa. Espíritos estão presos aqui. Imagine que a casa está dentro de uma bolha, mas não uma que possa estourar com facilidade. É uma prisão firme e eficiente.

— Então, quando formos embora do hotel, Jerome ficará preso aqui? — Katherine perguntou, esperançosa.

— Não posso ter certeza. Para derrotar Scrydan, teremos de estourar a bolha, o que libertará os espíritos presos aqui — Lionel explicou.

Katherine não disfarçou a decepção.

— Mas você poderia tentar — Garrick insistiu.

— Não. A outra razão é a necessidade de conservarmos nossa energia para não alimentarmos Scrydan. O processo para livrar Katherine do fantasma do marido exigirá muita energia. Não podemos exibi-la, pois Scrydan a assimilará e ficará mais forte.

— Katherine, sinto muito. Eu só quis ajudar — Garrick disse.

— Foi muito atencioso de sua parte — ela murmurou.

Garrick não reagia aos próprios problemas. Desde as acusações e revelações insultantes de Lucien, ninguém tinha mencionado o fato de a mãe dele não ser a verdadeira. Notícia como essa magoava muito, ainda mais dada de maneira tão rude.

Daisy nunca tinha simpatizado com a Sra. Hunt, mulher pretensiosa que se considerava superior a todos. Garrick, porém, tinha passado a vida inteira pensando que fora ela quem o dera à luz. Estaria ele um tanto aliviado com a descoberta de que a mulher severa não era sua mãe? Ou a amava apesar dos defeitos dela? De qualquer jeito, a notícia tinha sido um choque para ele e para todos, Daisy refletiu.

Também ninguém tinha mencionado a sugestão de Lucien de que um homem em sua cama fosse a solução de seus problemas. Lucien não, Scrydan, Daisy corrigiu-se e estremeceu.

— Você está com frio? Posso ir buscar um cobertor se quiser — O’Hara ofereceu.

Esse frio não tinha nada a ver com o inverno e sim com o gelo que vinha da medula dos ossos.

— Não, obrigada. Talvez mais tarde. Alguém se importa se eu passar a noite aqui? Aliás, acho que nós todos deveríamos ficar juntos aqui.

— Boa idéia — O’Hara concordou, sorrindo.

Olhos e sorriso bonitos, Daisy admitiu. Um sorriso simpático, encantador e maroto, mas sincero. Com ele, O’Hara ficava bonito à própria maneira dele, tosca e viril.

De fato O’Hara era bonito e encantador, Daisy descobriu, perplexa. E quando ele lhe falava, sempre a fazia sentir alguma coisa, fosse raiva, inquietação ou uma vontade gostosa de rir. Porém, nada poderia resultar desses sentimento por ele. Seria impossível para ela manter um relacionamento de qualquer tipo com um homem que pudesse ver dentro de sua alma.

— Penso que ninguém quer ficar sozinho esta noite — O’Hara disse e Daisy tornou a estremecer.

Sozinha neste hotel mal-assombrado? Nem por um minuto!

 

Lucien dormia como se nada estivesse errado. Eve não afastava o olhar dele. Pensaria ser um sono tranquilo se não soubesse a verdade. Ele não se debatia e nem rangia os dentes.

Duas velas estavam acesas, uma na cômoda e outra na mesinha-de-cabeceira. Na lareira, o fogo reduzia-se a chamas baixas. Hugh tinha mandado Buster fazer alguma coisa, mas havia ficado. Não queria deixá-la sozinha com Lucien. Ela também não queria. Não até ele voltar a ser o que era.

Lucien usava apenas a calça amassada e continuava imóvel. Apenas o arfar da respiração indicava que continuava vivo. Os efeitos dos últimos dias refletiam no rosto pálido. Estava mais magro e parecia ter envelhecido.

Seria Lucien quem ela observava? Bem no íntimo, onde importava, seria esse o homem a quem amava?

— Como vamos resolver isto? — ela murmurou.

Num gesto carinhoso, Hugh pôs a mão em seu ombro.

— Descobriremos um jeito.

E se não conseguissem? Seu coração batia com força e a raiva começou a crescer. Em vez de ficar na cidade, por que Lucien tinha vindo explorar este hotel mal-assombrado? Ainda mais sozinho? Se ele houvesse ficado, já estariam casados, dormindo na própria casa e fazendo planos para o futuro. Porém, estavam ali e ela não sabia se contavam ou não com um futuro.

— Não é culpa de Lucien — Hugh disse baixinho, tornando a defender o amigo.

Eve fechou os olhos. Com a mão em seu ombro, Hugh sabia exatamente o que ela sentia, pois possuía o próprio dom.

— Por que eu não podia ter me apaixonado por um homem comum?

— Ele a aborreceria.

— Você faz eu parecer insensível.

— Não, desculpe. Apenas você não é uma mulher comum.

— Sou, sim. E muito.

— Não penso assim. Nem Lucien.

— Este homem ainda é Lucien?

Fisicamente era igual a Lucien, falava com a voz dele, mas no íntimo, onde era mais importante, alguém ou alguma coisa o dominava.

— Vamos ver — Hugh disse ao se aproximar de Lucien com a máxima cautela para não acordá-lo.

Não tinha conseguido chegar perto antes sem alarmá-lo. Scrydan não queria que O’Hara e Hugh tocassem nele e vissem demais. Antes de Hugh alcançar o ombro nu de Lucien, ele abriu os olhos.

— Não encoste em mim, seu velho — ordenou e indagou a Eve: — O que ele está fazendo aqui? E por que você ainda não se deitou?

Recuou para o lado da cama para lhe ceder lugar. Eve balançou a cabeça devagar. Seus piores temores se realizavam e não havia nada que ela pudesse fazer.

— Você não é Lucien.

— Claro que sou, amor — ele afirmou com um largo sorriso. — Você me conhece muito bem. Cada pedacinho do corpo, cada desejo do coração — acrescentou com olhar sugestivo.

Ela não tinha mais dúvidas de que não era Lucien e sim um monstro dentro da concha do homem que ela amava. Lucien jamais diria qualquer coisa que a embaraçasse na presença de Hugh ou de qualquer pessoa. E ele tinha dito do corpo, do coração e não de meu corpo e de meu coração.

Não só essa criatura tinha se apossado do corpo de Lucien como representava um perigo real para todos no hotel. Tão logo ficasse forte o bastante, mataria todos eles?

Buster entrou no quarto com um rolo de corda na mão. O sorriso de Lucien desapareceu ao ver a corda.

— Vocês não se atreveriam — balbuciou.

— Sinto muito, Lucien. É o melhor a fazer e você sabe disso — Hugh disse com calma.

Lucien pulou da cama, agarrou Eve e a puxou de encontro ao corpo, prendendo-a com um braço pela cintura e outro pelo pescoço. O corpo dele continuava muito mais quente do que deveria. O contato dele quase a queimava.

— Se derem um passo para frente, eu a matarei — ele avisou enquanto apertava a mão em sua garganta.

Por um momento, Hugh hesitou. Então, deu o passo.

— Não creio que faça isso. Ainda não está fisicamente forte para tanto e parte de Lucien continua viva aí dentro para proteger Eve. Ele a ama e a defenderá com a própria vida.

Buster aproximou-se pelo outro lado.

— Por que você não se deita quieto e nos deixa fazer o que é preciso? Sei dar nós que não machucam e você poderá voltar a dormir até o sr. Felder decidir que solução tomar.

— Você espera que eu me deite e o deixe me amarrar? Não! Jamais!

Lucien tentou apertar a garganta de Eve. Os dedos flexionaram-se e, depois, afrouxaram. O braço em sua cintura a prendia com firmeza contra o corpo.

Num acesso de fúria, atirou-a longe e foi atrás de Hugh. Caída no chão, ela se viu atrapalhada com a saia.

— Pare! — gritou ao se levantar com dificuldade.

Lucien não a tinha machucado, mas parecia não ter escrúpulos quanto a apertar a garganta de Hugh.

Buster largou a corda e tentou se posicionar entre os dois na esperança de soltar Hugh das mãos de Lucien. Os três lutavam e Buster já obtinha algum êxito. Lucien parou de atacar o amigo o tempo suficiente para empurrar Buster no chão.

No vestíbulo lá embaixo, deviam ouvir a comoção. Eve escutou passos e exclamações na escada. Estavam subindo para ver o que acontecia. Algo ruim ocorreria, ela sabia. Garrick não tinha uma garrucha com a qual fora caçar com Buster? E se ele a empunhasse e atirasse em Lucien?Então, não haveria mais como salvá-lo.

Eve pegou o castiçal da cômoda. Agiu tão de depressa que a chama apagou enquanto ela o girava e golpeava a cabeça de Lucien atrás com o pesado castiçal de estanho.

Ele ficou imóvel no exato momento em que O’Hara e Lionel entravam. Baixou as mãos, virou-se, olhou para Eve e o castiçal e murmurou enquanto caía no chão:

— Por quê?

Naquele instante tinha sido Lucien no controle e não entendia por que Eve o tinha atacado. Ela vira a verdade em seus olhos. Ele não se lembrava de ameaçá-la, de tentar matar Hugh, de empurrar Buster.

— Eu o matei, será?

— Não — Hugh respondeu com suavidade. Virou-se para O’Hara e Lionel que entravam depressa. — Vamos deitar Lucien na cama e amarrá-lo antes que ele recobre os sentidos.

— Você tem certeza de que ele vai ficar bem? — Eve perguntou enquanto os quatro erguiam o corpo inerte.

— Tenho. Ele ficará apenas com um galo e uma forte dor de cabeça — Hugh afirmou em tom de dúvida.

Buster trabalhou depressa com a corda para prender Lucien. Primeiro as mãos que foram amarradas uma a uma à cabeceira da cama. Os nós eram firmes, mas Buster deixou a corda meio bamba para que Lucien pudesse se mexer um pouco. Com os braços abertos, ele parecia muito exposto e vulnerável. Em seguida, foi a vez dos tornozelos serem amarrados aos pés da cama. Mais uma vez, Buster deixou a corda meio bamba. Embora com pouca mobilidade, Lucien poderia ficar deitado ou se sentar.

Quando Buster terminava de dar o último nó, Lucien abriu os olhos. Ao fitar Eve com expressão sofrida, ela não conteve as lágrimas. Esperava uma explosão de raiva e acusações. Porém, ele apenas lhe perguntou:

— O que eu fiz, Eve?

Ela teve certeza de que não era Scrydan quem falava e sim Lucien.

— Você tentou matar Hugh — respondeu baixinho.

Lucien fechou os olhos.

— Não era eu. Você tem de acreditar.

— Eu sei — ela murmurou.

Depois de uns instantes, Hugh pôs a mão no ombro nu de Lucien. Suspirou aliviado.

— Neste momento, existe mais Lucien do que Scrydan nele. Eu gostaria de soltá-lo, mas...

— Não! — Lucien exclamou. — Não faça isso até descobrir uma maneira de tirá-lo de dentro de mim para sempre.

Ninguém gostava de ver Lucien amarrado desse jeito, ainda mais Eve. Porém, eles não tinham escolha até encontrarem uma maneira segura de livrá-lo de Scrydan. Mesmo assim, Eve soluçou baixinho. Impotente, queria chorar alto, poder desamarrá-lo e levá-lo para longe do hotel. Num gesto meigo, segurou a mão dele.

Em vão, Lucien tentou sorrir.

— Eve, você iria lá embaixo buscar alguma coisa para eu beber? Chá, água e até café frio, tanto faz, pois estou com a boca seca.

— Claro — ela respondeu ao largar-lhe a mão e sair depressa. Estava não só ansiosa para atender o pedido de Lucien como também para ficar uns minutos fora do quarto.

Parou ainda longe da escada. Como era bronca! Lucien tinha se livrado de sua presença por algum motivo. Qual seria? Sem fazer barulho, retrocedeu a uns passos da porta. Ouviu a voz dele, mas não entendeu as palavras. Chegou mais perto.

— Não! Você não pode me pedir para fazer isso! — Hugh disse numa voz veemente.

Calmo, Lucien argumentou:

— Talvez você não tenha escolha. Não importa como, não podemos permitir que Scrydan escape para fora do hotel. Se a situação continuar numa espiral decrescente, você poderá ter de me matar a fim de eliminá-lo. Só peço que faça isso depressa e sem Eve ver.

Ela sentiu os joelhos fraquejar e teve de se apoiar na parede para não cair.

Daisy pulou em pé ao ouvir passos na escada. Quando a comoção lá em cima tinha começado, O’Hara havia mandado Garrick ficar com ela e Katherine. Então, ele e Lionel tinham corrido escada acima para ver o que ocorria.

Mas não era nenhum dos dois na escada e sim Eve. Pálida e trêmula, ela apoiava-se no corrimão.

— O que aconteceu? — Daisy indagou ao ir-lhe ao encontro.

— Eles tiveram de amarrar Lucien na cama e eu o golpeei na cabeça com um castiçal. Ele perdeu os sentidos. Não tive escolha, acredite, mas e se ele nunca me perdoar?

Daisy amparou Eve pelo braço e a levou até o sofá. Numa voz calma, disse:

— O que você está falando não faz sentido. Respire fundo, relaxe e me conte tudo direitinho.

Sentada entre Daisy e Katherine, Eve começou a falar numa voz fraca:

— Não era Lucien quando o agredi. Mas ele ia matar Hugh! O que mais eu poderia ter feito?

— Tenho certeza de que fez o que era preciso — Daisy afirmou ao segurar sua mão.

— Tenho de pegar alguma coisa para Lucien beber. Ele está com sede — Eve disse ao levantar-se, mas cambaleou e voltou a sentar.

— Ele pode esperar uns minutos enquanto você descansa.

Garrick aproximou-se do sofá e indagou:

— Lucien quis mesmo matar Hugh?

— Não foi Lucien e sim aquele maldito Scrydan! — Eve insistiu. — Seu medo passou e o rosto avermelhou-se de raiva. — E se jamais conseguirmos tirá-lo para fora e Lucien nunca mais for Lucien?

— Isso não acontecerá — Daisy garantiu com serenidade. — E Eve, lembre-se do que O’Hara disse. Esse espírito se alimenta de medo. Não deixe que ele ganhe energia com o seu. Quando isto terminar, Lucien será o que sempre foi. Voltaremos a Plummerville e vocês se casarão.

— Você tem razão. Não posso ficar com medo e nem brava. Tentarei, mas não será fácil. O medo de perder Lucien é horrível!

— Calculo — Daisy disse, acariciando-lhe a mão.

— Eu o amo tanto que ele faz parte de mim. Se algo acontecer...

Em silêncio, Katherine e Garrick as ouviam.

— Não pense o pior e sim como o casamento vai ser maravilhoso. Se esse Scrydan se alimenta de medo, talvez pensamentos alegres sobre a felicidade o enfraqueçam — Daisy sugeriu.

— Pode ser — Eve murmurou com um suspiro.

— Você é a mulher mais forte que já conheci. Não fraqueje agora.

Daisy estava tentando fazer o mesmo, mas não era corajosa. Fugia de confrontos. Não se arriscava, pois para ela, valentia só levava ao desastre.

— Quando voltarmos para a cidade, acho que devemos mudar a Sociedade de Almas Penadas de Plummerville para outra mais sugestiva. Um clube de jardinagem, talvez, ou uma sociedade de eventos históricos.

— Os dois já existem — Eve disse.

— Um clube de tortas então. Depois desta aventura, nunca mais vou querer falar em fantasmas — Daisy declarou.

— Um clube de tortas?! — Katherine exclamou, incrédula.

— Nós todos gostamos de saboreá-las. Eu não me importaria de também ser presidente desse clube — Garrick disse.

Eles precisavam aliviar o ambiente, mas a tensão ainda pairava no ar. Daisy sentiu-se melhor ao ouvir os passos de O’Hara na escada.

— Venha comigo, Garrick. Vamos fazer um bom café forte. Tenho a impressão de que a noite vai ser longa — Katherine disse ao levantar-se e ir para a cozinha, seguida por Garrick.

Eve ergueu o rosto e olhou para O’Hara.

— Ele está bem?

— Está. Lucien não gostou muito que eu o tocasse. Fisicamente, ficará bom.

— O que você viu? — ela quis saber.

— Não muito mais do que quando toquei em você. Scrydan está escondido, mas continua lá.

— E Lucien? Também está? Voltará a ser o mesmo? — Eve indagou.

— Está. E precisa de você. Sei que é difícil, mas se puder, você deverá ficar no quarto com ele — O’Hara sugeriu em tom suave.

Eve levantou-se e passou as mãos pelos cabelos. Um grampo caiu no sofá, soltando uma madeixa. Ela tirou o resto dos grampos e balançou a cabeça para que os cabelos caíssem nos ombros.

— Vou procurar mais velas. Primeiro aqui e, depois, lá em cima. As que temos não dão para esta noite. Deve haver mais em alguns dos quartos — O’Hara disse enquanto Eve subia a escada.

Daisy pulou em pé.

— Espere! Não quero ficar aqui sem companhia.

Tentava não sentir medo, mas seu grande temor era se ver sozinha.

— Então, me acompanhe — O’Hara convidou com um meio sorriso.

Na véspera, a essa hora, ela teria se recusado a ir a qualquer lugar com O’Hara. Porém, tudo tinha mudado. Sentia-se mais segura com ele perto do que longe. E que Deus a ajudasse, estava começando a gostar um pouquinho dele.

 

Lucien tentou se acomodar de maneira confortável ao sentar-se encostado na cabeceira da cama. As pernas e os braços amarrados estavam bem abertos. Em silêncio, Lionel, Hugh e Buster mantinham-se atentos, mas não se aproximavam da cama. Sentiam-se inquietos, claro, ainda mais por ele ter lhes ordenado para matá-lo a fim de impedir que Scrydan escapasse do hotel.

Eve entrou no quarto. Estava pálida e as mãos tremiam.

Havia soltado os cabelos. Lucien adorava vê-los caídos nos ombros e nas costas. Tão fartos e sedosos. Ela só os soltava à noite quando já iam se deitar. Era então que ela lhe pertencia totalmente. Talvez ele nunca mais tivesse a chance de tocá-la outra vez.

— Katherine e Garrick estão fazendo café — ela contou.

— Ótimo. Vou apreciar uma xícara— ele comentou, esforçando-se para falar como se a situação fosse normal.

Eve não se conformava. Além das mãos, os lábios tremiam.

— Não gosto disto. Não podemos soltá-lo? — murmurou com olhar de súplica para Hugh. — Ficaremos atentos a ele. Scrydan só vem quando Lucien está dormindo. Nós o deixaremos desamarrado enquanto estiver acordado e o prenderemos quando dormir.

— Não — Lucien disse e os outros dois repetiram a recusa.

— É muito arriscado — Hugh acrescentou.

Eve assentiu com um gesto de cabeça e sentou-se na única cadeira do quarto. Parecia exausta.

— Lamento muito. Você sabe que eu não a magoaria por nada deste mundo. Mas isto é necessário até encontrarmos uma maneira de erradicar Scrydan — Lucien explicou.

Porém, ele não acrescentou que, para tanto, talvez fosse preciso matá-lo depois de permitir que Scrydan o dominasse completamente e antes que se fortalecesse demais. Lucien suspeitava que Eve não ignorava isso.

— A noite vai ser longa e sugiro que nos preparemos — Hugh disse ao virar-se para Lionel e Buster:— Verifiquem se há bastante lenha no vestíbulo para a lareira. Penso que todos nós devemos passar a noite lá.

— Vamos levar Lucien para baixo? — Buster indagou.

— Não sei. Este é o quarto mais sossegado em relação à energia sobrenatural. Será melhor que ele fique aqui até decidirmos como agir. Poremos mais lenha ali na lareira. Lucien, Eve e eu ficaremos aqui.

— O senhor carrega algum tipo de arma? — Buster indagou.

— Não, claro — Hugh respondeu.

Buster tirou uma faca longa e fina de uma bainha presa ao cinto.

— Isto não é grande coisa, mas se for preciso cortar as cordas ou algo mais...

Calou-se e ficou vermelho até a raiz dos cabelos. Todos sabiam o que algo mais poderia ser. Como Hugh se recusasse a pegar a faca, Buster a deixou na cômoda.

O momento embaraçoso passou. Lionel e Buster aproveitaram para sair do quarto. Hugh virou-se para Eve e tentou sorrir. Todos queriam confortá-la, mas não conseguiam.

 

Lucien ouviu a porta de entrada lá embaixo fechar quando Lionel e Buster saíram. Durante a tarde, eles tinham catado e cortado lenha, mas precisavam recolhê-la como Hugh pedira.

Portas ao longo do corredor do segundo andar abriram e fecharam suavemente. O ruído de passos se aproximava, acompanhado de vozes, uma feminina e outra masculina. Um instante depois, Daisy e O’Hara passaram pela porta aberta e mal olharam para o quarto. Lucien percebeu que conversavam baixinho e, pouco depois, ouviu passos na escada para o terceiro andar. O coração dele quase parou e um arrepio percorreu-lhe o corpo.

— Eles deveriam subir lá? Não penso que seja seguro — avisou.

— Com certeza O’Hara será cauteloso — Hugh disse.

Lucien, entretanto, sabia que o terceiro andar era perigoso. Com um resquício de Scrydan na mente, não ignorava que ninguém deveria ir ao terceiro andar. O que haveria lá? Ele sabia, mas, como o nome de um velho conhecido que ficava na ponta da língua, não se lembrava.

— Mande-os voltar — ordenou em voz baixa.

Hugh olhou para ele e viu que estava sério. Saiu do quarto e gritou:

— O’Hara!

Em seguida correu para a escada. Lucien olhou para Eve.

— Eu te amo. Não importa o que venha acontecer, lembre-se disso — murmurou, provocando-lhe lágrimas.

— Ele ainda está dentro de você? É possível saber?

— Está, sim, mas inibido e muito enfraquecido. É quase como se não estivesse aqui — ele respondeu.

— Existe uma parte dele na casa, certo? Será que como você está amarrado ele tenta dirigir as energias para outro lugar?

Era um pensamento aterrador. Eles ainda não faziam idéia do poder de Scrydan e do que ele poderia fazer.

— Talvez — .Lucien respondeu.

A porta do quarto bateu com força, fechando-se. Uma a uma todas as outras da casa fecharam-se da mesma forma. A vibração ainda repercutia quando o barulho alarmante de alguma coisa ou alguém caindo e rolando se fez ouvir. Um gemido abafado ecoou, seguido de um baque final.

No terceiro andar, alguém gritou.

Eve correu até a porta e, agarrada à maçaneta, tentou abri-la.

— Poupe sua energia. Scrydan está mantendo a porta fechada — Lucien avisou.

Ao vê-la continuar a sacudi-la e finalmente dar um pontapé na porta, sabia como Eve se sentia. Ele havia tentado em vão abrir a porta de entrada do maldito hotel quando se vira aprisionado ali.

Pelo barulho, Scrydan devia ter fechado todas as portas do hotel. E alguém, provavelmente Hugh por causa da direção de onde viera o barulho, tinha sofrido uma queda feia e rolado a escada.

— Não importa o que você faça, Eve, fique calma.

— Ficar calma? — Eve foi para perto da cama e o encarou. Seus olhos lindos faiscavam. — Você está possuído, me deixou no altar pela segunda vez e eu estou presa aqui. Presa! Pela neve, por um espírito maligno e pelo fato de que te amo tanto que não posso abandoná-lo.

Lucien sabia, sem sombra de dúvida, que esse amor os salvaria ou mataria.

 

Ao bater, a porta apagou a vela que O’Hara segurava, deixando às escuras o quarto em que acabavam de entrar. Tudo que Daisy podia ver era o contorno da janela sem cortina. À beira da histeria, começou a gritar.

— Pare com isso — O’Hara disse em voz baixa enquanto forçava a porta fechada.

— Acho que não posso — ela admitiu.

Seus olhos ajustaram-se logo à escuridão. Ainda não enxergava bem, mas o luar pálido que entrava pela janela permitia-lhe ver a silhueta de O’Hara que continuava a forçar a porta.

— É ele, não é? Scrydan está segurando a porta fechada — Daisy sussurrou.

— É, sim. Acho que ouvi alguém cair na escada. Difícil ter certeza com essa gritaria — O’Hara reclamou.

— Não precisa se irritar.

Ele parou de lidar com a porta e virou-se para Daisy. Ela via-lhe a forma, mas não o rosto.

— Sobram motivos para me irritar. Deveríamos ter nos contentado com as poucas velas que restam e o fogo da lareira — ele disse.

— Eu sei, mas o vestíbulo fica tão escuro com poucas velas. Porém, ela preferia estar no vestíbulo sombrio do que ali no terceiro andar, aonde Lionel tinha recomendado para ninguém ir.

Num canto, alguém riu. Daisy prendeu a respiração. O som se repetiu e ela imobilizou-se.

— Fique aqui — O’Hara disse baixinho ao se dirigir ao canto.

Instrução desnecessária. Aonde ela poderia ir?

O luar não batia nos cantos do quarto, mas O’Hara seguiu em frente. Quando chegou perto, pôs a mão na parede. A risada transformou-se em palavras rosnadas que Daisy não entendeu.

Numa voz baixa, O’Hara indagou:

— Você é Moreen, certo?

A resposta foi sibilante. Talvez um sim? Ele continuou:

— Moreen, você morreu. Não pertence mais a este mundo.

Novo som agudo se seguiu e embora Daisy não entendesse, calculou ser algo desagradável.

— Você não vai matar ninguém. Não pode. Não tem corpo para nos agredir. Tudo que consegue fazer é assustar uma mulher meiga que não lhe fez mal algum. — Virou-se para Daisy e aconselhou ainda em voz baixa: — Não deixe que ela a assuste. Não tenha medo de nada do que acontecer aqui. É isso que Scrydan quer.

Ele estava usando as almas aprisionadas ali para provocar um medo tangível em todos e com p qual ele se alimentaria. Quando se fortalecesse, dominaria Lucien totalmente, Daisy refletiu.

— Entendo. Mas como não sentir medo se estou presa aqui com um fantasma? — murmurou.

Devagar, O’Hara aproximou-se.

— Não se preocupa em ficar presa aqui comigo?

— Não, claro. Você é um perfeito cavalheiro — ela respondeu, fazendo-o rir um pouco.

— Não sou um cavalheiro. E, muito menos, perfeito. Mas você está certa. Não tem de se preocupar em ficar presa aqui comigo.

— Foi o que pensei — ela confessou.

Era verdade, apesar de estranho.

Daisy estremeceu quando o fantasma de Moreen emitiu outro som sibilante. Calmo, O’Hara afirmou:

— Se não tivermos medo e não deixarmos que ela nos assuste, mais cedo ou mais tarde, irá embora.

Nem para salvar a vida, Daisy poderia pensar num jeito para vencer o medo. Sabia que O’Hara estava certo, mas o coração disparava e a respiração falhava.

— Se ela for embora, outro fantasma tomará seu lugar? — indagou.

— Talvez. Não sei.

Ouviram uma voz abafada. Depressa, O’Hara virou a cabeça para a porta, mas quando o som se repetiu, ele correu para a janela e a escancarou. Um vento gelado invadiu o quarto. Daisy se juntou a ele e olhou para baixo. Lionel e Buster estavam lá, olhando para todas as janelas. O’Hara debruçou-se no parapeito e gritou:

— Aqui em cima!

— O que está fazendo aí no terceiro andar? — Lionel indagou.

— Viemos procurar mais velas — O’Hara respondeu.

— Quem está com você?

Daisy inclinou-se para frente a fim de ser vista pelos dois.

— Olá — disse numa voz tímida.

— Daisy?! Você está bem?— Buster gritou.

Não estava, claro. Mas para acalmá-lo e não vendo necessidade de contar que havia um fantasma no quarto, respondeu:

— Estou, sim.

— Não conseguimos abrir nenhuma porta ou janela do andar térreo — Lionel avisou em voz bem alta.

— Nós também não podemos abrir a porta deste quarto. Suspeito que todas as do hotel estejam muito bem trancadas— O’Hara explicou aos gritos.

— Por que não quebramos uma janela? — Buster sugeriu. — Poderíamos entrar por ela e...

Lionel o interrompeu com firmeza:

— Não! Acredito que quebrar uma janela seria uma forma de agir muito perigosa.

— Concordo. Vocês acham que podem descobrir o caminho para a casa de Elijah? Os dois não podem ficar muito tempo nesse frio — O’Hara afirmou.

— Vi o rumo que ele seguiu hoje de manhã. Quando chegar perto, saberei como encontrá-lo. Mesmo assim, não me agrada deixar vocês todos aí — Lionel disse.

— Vão embora. Impossível saber quanto tempo se passará antes de as portas abrirem — O’Hara aconselhou. A afirmativa aumentou o nervosismo de Daisy.

— Nós poderemos pegar os cavalos lá com Elijah, ir à cidade e voltar com socorro — Buster sugeriu.

Nem um pouco satisfeito em k embora, mas aceitando o que talvez fosse a melhor solução, Lionel concordou.

Tão logo eles viraram o canto do hotel, O’Hara fechou a janela.

Com a mão na maçaneta, Eve forçou a porta embora soubesse que ela não abriria. Finalmente, virou-se para a cama e olhou para o noivo amarrado.

Lucien estava recostado na cabeceira da cama, com a cabeça pendida no peito. Os cabelos escuros caíam sobre as faces, escondendo parte do rosto pálido. O assédio de tantos espíritos e o domínio poderoso de Scrydan o tinham esgotado. O peito nu arfava com a respiração, mas a seus olhos, ele vivia por um triz.

Seu coração confrangeu-se. Horrível vê-lo amarrado desse jeito. Devagar, Lucien ergueu a cabeça.

— Vamos, me solte — pediu baixinho.

Era o que Eve gostaria de fazer, mas não podia. Sacudiu a cabeça.

— Se você me ama, Eve, me soltará — ele disse numa voz suave.

Esse não era Lucien, ela percebeu.

— Não posso. Você sabe disso.

— Depois de tudo que compartilhamos, como você deixou que fizessem isso comigo? Estou com frio, com fome. Quero estreitá-la entre os braços, beijar essa sua boca deliciosa até você me implorar que a possua. Venha cá, me solte, me alimente com seu amor e me aqueça outra vez.

— Abra as portas — ela disse.

Ele sorriu. O ser na cama tinha o rosto, a voz e o corpo de Lucien, mas não o sorriso dele.

— Vamos fazer um acordo, amor. Você me solta e eu abrirei as portas.

— Acordo perigoso. Você matará todos nós se tiver uma chance.

— A você, não — ele disse numa voz baixa e áspera. — Lucien não me deixará matá-la.

Franziu a testa como se não compreendesse essa idéia.

— E quanto aos outros?

Ele deu de ombros, o gesto limitado pelas cordas.

— Que importância eles têm? Não valem nada. São uns insetos irritantes e significam muito pouco. Nós dois poderemos sair daqui e começar a vida em qualquer outro lugar. — Ele tornou a sorrir. — Quando eu sair daqui, você ficará surpresa com o que poderei fazer. Tenho magia dentro de mim. Poder. Nada conseguirá me impedir. Darei tudo que você quiser.

— Quero Lucien — Eve murmurou.

— Quase tudo — ele emendou com um sorriso torto. — Você deseja ser famosa? Rica? Linda?

Eve deu-lhe as costas. Não suportava ver aquele espírito maligno falando pela boca de Lucien.

— Não o soltarei — declarou.

— Soltará, sim — Scrydan disse a suas costas. — Eventualmente. Posso esperar. Os outros vão me deixar mais forte. De manhã, já serei capaz de me libertar. Acho que o homem no corredor não vai esperar até então. Morrerá muito antes.

— Hugh — Eve murmurou.

— Vamos, me solte. Você e eu sairemos daqui juntos e eu permitirei que aqueles simplórios, que você chama de amigos, continuem vivos. Estou ficando mais forte. Logo não precisarei mais de você. A moça lá em cima vai ser muito saborosa. Ela começou a me alimentar no instante em que entrou naquele quarto.

— Daisy? — Eve virou-se para o monstro na cama. — Deixe Daisy em paz, ouviu bem?

— Se você insiste, amor, ela não será molestada. Depende de você, claro. Tudo que tem a fazer é me soltar.

Eve balançou a cabeça e Scrydan a fitou com firmeza.

— Você já foi possuída, estou vendo.

— Duas vezes, rapidamente — ela confirmou.

— Posso entrar em seu corpo em mais de uma maneira. Não com a facilidade como neste aqui e nem ficar em você muito tempo, mas o suficiente para forçá-la a desamarrar estas cordas.

Ele as retesou com violência, fazendo a cama balançar e ranger.

— Se isso é possível, por que você ainda não conseguiu? — Eve indagou ao dar um passo para a cama. — Está se desdobrando demais? Este quarto é tranquilo. Aqui, você não fica tão forte como em outras partes da casa. Deve ser uma luta tremenda manter todas as portas fechadas, controlar os espíritos e agarrar-se a Lucien ao mesmo tempo. Você está com medo de largá-lo, pois sabe que se fizer isso, ele recuperará o controle e você não poderá retornar. Ele o bloqueará.

Pela expressão dele, Eve percebeu que sua observação o tinha perturbado. Devia estar, pelo menos, parcialmente certa.

— Você pensa que fico fraco neste quarto? — ele indagou.

As chamas na lareira crepitaram e uma lufada de vento a rodeou, agitando sua saia.

— Mágica de salão — ela comentou.

Lionel contara que Scrydan, durante os anos passados no hotel, entrava em corpos adormecidos, através de sonhos. Assumia o controle e, sob sua orientação, pessoas pacíficas tinham se tomado assassinas. Algumas haviam se suicidado. Mas a posse dessas pessoas o enfraquecia e durava pouco tempo.

— Amor, eu sempre venço — ele declarou.

 

Katherine tentava abrir a porta da cozinha para a sala de jantar enquanto Garrick fazia o mesmo com a do alpendre. Com a parca luminosidade de uma única vela, esforçavam-se em vão.

Havia uma pequena janela na cozinha. Não era grande bastante para Garrick passar, mas Katherine poderia se espremer por ela.

Não era uma boa opção. Não só ela não queria ficar sozinha lá fora, no frio, como a janela não abria.

Frustrada, Katherine virou-se para dizer a Garrick que estavam perdendo tempo e se viu diante de Jerome.

Ela não conseguiu emitir som algum e sentiu o corpo entorpecer. O fantasma a sua frente era nebuloso, uma visão etérea do marido morto. E Jerome lhe sorria como costumava fazer antes de espancá-la.

— Vá embora. Você morreu — conseguiu balbuciar.

Garrick arregalou os olhos, pois também o via.

— Você ainda está de luto por mim — Jerome disse ao apontar para seu vestido preto.

— Ainda o desprezo — ela afirmou numa voz trêmula.

A mão enevoada de Jerome atravessou seu corpo e ela sentiu a carícia espectral. Gélida.

— Nem sempre você me desprezou.

Garrick rodeou a sombra detestável para ficar ao lado de Katherine. No mesmo instante, ela apoiou-se no braço quente e sólido do homem vivo.

— Ele está aqui. Mal posso acreditar — sussurrou.

— Você já o viu antes, certo? — Garrick indagou bem baixo.

— Não assim. Senti a presença dele várias vezes. Eu me virava depressa e chegava a ver alguma coisa de relance. Mas nunca vi o fantasma dele.

Jerome sorriu. Ela odiava aquele sorriso!

— Agora, está me vendo, não está, doçura? E nunca mais vou deixá-la. Será minha para sempre.

— Você não é real — ela murmurou. — Vá embora!

— Jamais. Ficarei sempre a seu lado. Você nunca se livrará de mim. Eu a assombrarei até o dia em que você morrer e, então, ficaremos juntos pela eternidade.

Garrick soltou o braço do de Katherine, correu para o fogão e pegou uma frigideira de ferro. Voltou depressa para trás de Jerome e o golpeou na cabeça. A arma improvisada atravessou a imagem do fantasma.

— Vá embora, seu desgraçado. Deixe-a em paz — Garrick gritou..

Jerome virou-se para ele e brandiu um braço imaterial. A força inesperada da pancada derrubou Garrick no chão.

— O que você quer de mim? Por que não me deixa em paz? — Katherine indagou aos gritos.

Jerome virou-se para ela sem dar atenção para Garrick que se levantava devagar.

— Você não quer ser deixada em paz. Eu ainda moro aqui em seu coração — afirmou enquanto a mão entrava em seu peito.

— Não, eu não te amo. Você conseguiu aniquilar todo meu afeto. Poderia ter me matado, pois transformou minha vida num inferno — ela protestou.

Jerome chegou tão perto que ela quase perdeu o fôlego.

— Sabe, ainda posso matá-la se quiser.

Garrick pegou a frigideira que tinha caído no chão e foi para frente da janela. Levantou o braço como se fosse golpeá-la. Naquele instante, o rosto de Lionel apareceu do outro lado do vidro.

— Pare! Não quebre a janela! — gritou.

— Katherine precisa sair daqui. Estamos presos— Garrick respondeu ainda com o braço levantado.

— Você não pode quebrar a janela— Lionel repetiu.— Fiquem aí. Buster e eu vamos tentar achar a casa de Elijah.

— Levem Katherine com vocês — Garrick pediu.

Lionel tentou abrir a janela pelo lado de fora, mas não conseguiu e acabou desistindo.

— Sinto muito. Não pudemos abrir nenhuma das janelas do andar térreo. Esperem aí.

— Mas o maldito marido dela está aqui.

— Façam um esforço e o ignorem — Leonel aconselhou. — E lembrem-se de que ele quer lhes provocar medo.

Katherine cobriu o rosto com as mãos.

— Ignorá-lo? Como isso é possível? — ela choramingou.

Garrick largou a frigideira e viu Lionel desaparecer. Apesar da escuridão e do frio, ele e Buster iam procurar a casa de Elijah. Este devia ter deixado um rastro na neve, mas eles conseguiriam enxergá-lo no escuro? E se jamais voltassem?

— Olhe para mim, Kat — Jerome ordenou.

Garrick voltou para seu lado, pegou-lhe o braço e disse:

— Não, você vai olhar para mim e não para ele. E vamos conversar sobre qualquer coisa.

— O que, pelo amor de Deus, vamos poder conversar enquanto o fantasma de meu marido morto nos observa?

Num canto havia uma pequena mesa e apenas uma cadeira. Garrick a fez sentar-se nela, virada para a parede. Então, sentou-se na beirada da mesa, a sua frente, e a fitou.

Jerome postou-se ao lado.

Katherine manteve o olhar em Garrick que sorriu um pouco.

— Antes de Lucien contar, você sabia que minha mãe não era a verdadeira?

— Ai, Garrick, é claro que eu não sabia. — Pôs a mão no joelho dele, mas a puxou depressa. O gesto parecia íntimo demais. — Você não parece muito surpreso.

— Kat, olhe para mim. Ainda não terminamos. Aliás, jamais terminaremos — Jerome garantiu.

Garrick inclinou a cabeça para o lado.

— Na verdade, isso explica muita coisa. Sempre suspeitei que mamãe me odiava, como Lucien contou. Ela nunca disse nada que me levasse a pensar isso, mas havia momentos em que eu tinha certeza. Ela sempre me culpava por sua saúde frágil, dizia que a gravidez havia sido muito difícil.

— Sua mãe é uma prostituta — Jerome aparteou.

Os dois o ignoraram.

— O que você vai fazer? Pretende contar a ela e a seu pai que descobriu a verdade? — Katherine perguntou.

Garrick tornou a sorrir. Tinha um sorriso bonito, embora estivesse meio tenso no momento.

— Não sei. Talvez eu faça as malas e vá embora de Plummerville.

— Para onde você iria?

Antes, ela não simpatizava muito com Garrick. Era rico, embora não tivesse culpa disso. Porém, ela havia trabalhado duro para obter cada pequena coisa de sua vida enquanto ele tinha tudo de mão beijada. Também não levava nada a sério e encarava a vida como se fosse uma diversão. Nada lhe era difícil e isso não parecia justo.

Ultimamente, tinham se tornado amigos, graças à sociedade secreta. Ter amizade com um homem a surpreendia muito. Jerome a tinha levado a odiá-los em geral, pois eram todos iguais. Malvados, fingidos, os homens sempre tinham de provar a uma mulher o quanto ela era fraca e que cabia a eles mandar.

— Para o oeste— ele respondeu, — Gostaria de encontrar uma cidade onde eu fosse mais do que o filho de um homem rico e pudesse fazer algo por conta própria. Em Plummerville, o moinho, a casa, o dinheiro, tudo enfim é de meu pai. Acho que seria muito bom ter alguma coisa minha. Talvez seja egoísmo.

— Não, de jeito nenhum.

— Em Plummerville, não importa o que eu faça, serei sempre o filho de Douglas Hunt. As pessoas que conheço pensam que as coisas boas em minha vida me foram entregues de bandeja.

Katherine sentiu o rubor nas faces. Havia pensado aquilo.

— Por seu jeito de falar, parece que você vem pensando nisso faz algum tempo.

— A idéia de ir embora vem e vai. Quase nunca fica. Partir e recomeçar a vida é difícil.

Furioso, Jerome os interrompeu:

— Kat, você é minha e sempre será. Não é para mostrar isso às pessoas que você continua de luto?

Ela usava preto para não se esquecer do inferno que sua vida tinha sido com o marido. E para se lembrar, todos os dias, de que ele estava realmente morto.

— Para onde no oeste? — ela perguntou, ignorando Jerome.

Garrick deu de ombros e, depois, piscou-lhe.

— Não sei. Por que você não escolhe um lugar e vai comigo?

Katherine balançou a cabeça.

— Nunca vou sair de Plummerville.

— Por que não?

— Eu a prendo aqui — Jerome murmurou. — Eu lhe dei uma casa que se tornou sua prisão. Ela está marcada como sendo minha e sabe que não pode viver em outro lugar.

Sua vida era uma prisão e Jerome, o carcereiro. Ela não podia mais ignorá-lo.

— Eu te odeio tanto que...

Garrick pegou sua mão, a fez se levantar e passou o braço por sua cintura antes de beijá-la.

Ele o fez com suavidade e meiguice, embora a segurasse com firmeza para que não se afastasse. Ela se sentiu aquecida. Em seu íntimo, algo duro e gelado derreteu. O corpo todo tinia. Fazia tanto tempo que não era beijada e nunca fora dessa forma deliciosa. A própria boca começou a mexer contra a dele e o beijo se aprofundou. Ele a estimulava e a fazia querer mais.

Mas Katherine afastou a cabeça de maneira brusca e estapeou o rosto de Garrick.

— Como você se atreve a tanto?

A resposta dele foi novo beijo. Ela o retribuiu por um instante e, depois, virou o rosto. Garrick a segurou pelos pulsos para impedi-la de agredi-lo outra vez.

— Faz anos que eu queria fazer isso — ele confessou.

Perplexa, Katherine indagou:

— É verdade? Por quê?

Ele sorriu.

— Para começar, você é a mulher mais atraente da região. Também é insolente e impetuosa, o que me alarmou no início. Depois, comecei a apreciar seus modos peculiares. E já mencionei que você é linda?

— Não sou, não. Nem um pouco — ela balbuciou.

— Como pode dizer isso? Tudo em você é lindo.

— Poucos meses atrás, você afirmou que eu o assustava.

— E ainda assusta. Você me faz querer coisas que não deveria, sonhar com algo proibido.

Arrepios percorreram seus braços. Já fazia algum tempo que, a cada novo dia, ela gostava mais de Garrick. Mas impossível ter outro homem em sua vida.

— Quando você for para o oeste, encontrará muitas mulheres lindas. E alguma também o fará sonhar.

— Talvez eu não vá. Pelo menos por enquanto.

Garrick insinuava que ia ficar em Plummerville? Por sua causa? Katherine inclinou-se para frente a fim de beijá-lo, mas parou antes de as bocas se encontrarem. A quem estava enganando?

— Penso que você deveria ir.

— Por algum tempo, não vou. Se não me engano, estamos presos aqui — ele gracejou.

— Estou me referindo ao oeste. Sair de Plummerville de uma vez por todas.

Ele arqueou as sobrancelhas.

— Você acha? Como posso cortejá-la se estiver a centenas de milhas de distância e você em Plummerville? Cortejá-la?

A idéia lhe provocou novos arrepios.

— Você não pode me cortejar. Nós não combinamos muito bem.

— Como pode dizer isso se apenas começamos?

Seu coração ameaçou parar.

— Não começamos coisa alguma!

— Começamos, sim — Garrick afirmou ao tornar a beijá-la com os lábios entreabertos sobre os seus.

Uma parte sua queria lutar contra as sensações que a invadiam, mas outra, a que tinha sonhado com uma vida melhor, aceitou e deliciou-se com o beijo.

Mas isso não era real e não duraria.

— Não quero outro homem em minha vida.

— Como talvez nunca mais ponhamos os pés para fora deste maldito hotel, acho tolice falarmos sobre o futuro. — Segurou-a com firmeza e sentou-se na mesa com ela na frente. — Vamos seguir devagar. Que tal outro beijo.

— Garrick...

Ele a interrompeu com a boca sobre a sua. Ela não lutou. Queria o beijo. Ninguém jamais a tinha beijado desse jeito e ninguém o faria outra vez. Por isso, apreciaria esta intimidade e guardaria a lembrança dela para revivê-la em momentos de solidão.

Garrick estava certo. Eles poderiam não sobreviver esta noite. Ela não queria desperdiçá-la com o medo como o de sua vida adulta inteira. Ansiava se sentir bem, abraçar-se a um ser humano que também desejava a mesma coisa. Queria beijar, acariciar e falar em fazer as malas e ir para o oeste. Então, abraçada a Garrick, entregou-se inteiramente ao beijo.

Bem no fundo, uma fagulha de esperança brilhou. Estranho ter esperança numa situação tão perigosa. Esqueceu-se dos riscos e concentrou-se no beijo delicioso de Garrick.

Poucos minutos depois, ela deu-se conta de que Jerome se fora.

 

Com as mãos cruzadas às costas, Daisy estava em pé no meio do quarto. Lionel e O’Hara tinham dito que Scrydan ocupava o hotel inteiro, ou seja, as paredes, os móveis e até o soalho. Nervosa, contraiu os artelhos. Embora se esforçasse para não tocar em nada, não tinha o que fazer com os pés.

O’Hara parecia não se importar com isso. No momento, estava sentado na cama. Até uns instantes atrás, ele tinha andado de um lado para o outro. Havia parado uma vez para espalmar as mãos na parede, mas as puxara depressa como se as houvesse queimado.

Ao vê-lo se pôr em pé, pois o homem não ficava parado muito tempo, ela perguntou em tom amistoso:

— Então, qual é seu primeiro nome?

— O quê?

— Preciso de alguma coisa para passar o tempo — ela explicou.

No canto, os fantasmas riram. Moreen não estava sozinha. Daisy não podia vê-los muito bem, mas havia pelo menos três. Eles riam, mexiam-se, provocavam correnteza de ar frio pelo quarto. Com o passar dos minutos, o número deles aumentou.

O’Hara também via as aparições, talvez com mais nitidez do que ela graças à experiência. Ao se aproximar de Daisy, os olhos dele foram de um em um.

Embora os fantasmas tivessem formas etéreas, ela os notava bem melhor do que gostaria. Eles atravessavam as paredes, apareciam e desapareciam. Os primeiros eram de mulheres, depois surgiram de soldados e de homens bem vestidos. Felizmente, não se aventuravam para o centro do quarto, onde ela e O’Hara estavam. Ficavam nos cantos escuros e encostados nas paredes. Escondiam-se quando ela firmava o olhar a fim de vê-los melhor, levando-a a pensar se não seriam fragmentos de sua imaginação.

Numa atitude protetora, O’Hara chegou bem perto.

Daisy apertou os lábios. Não podia pensar no que via a seu redor. Nem imaginar de quem seriam esses fantasmas, o que queriam e fariam antes de a noite terminar. Chocante e irreal demais.

Então, ela concentrou-se no homem a sua frente. O’Hara era malvado. O que lhe custava atender seu pequeno pedido sobre o nome dele? Como achasse que talvez não vivesse até de manhã, não pensava que estivesse exigindo demais. Ai, por que essa curiosidade tão grande sobre o primeiro nome de O’Hara? Começou a perguntar, mas ele a interrompeu:

— Agora não, Daisy.

— Tenho de me manter calma, olhar para essas coisas em nossa volta e não sentir medo. Como posso fazer isso? Será que não seria possível ignorarmos o que está acontecendo aqui e tentarmos ter uma conversa normal?

— Você está certa. Vamos fazer isso — ele disse com suavidade.

— Se você se recusa a me contar seu nome, talvez possa me explicar como foi o incidente de enfiar a mão sob a saia de Eve.

Ah, sem dúvida ele haveria de preferir falar sobre o nome em vez de justificar a atitude tão rude e imperdoável. Engano seu. O’Hara suspirou e chegou muito perto.

— Fazia mais de um ano que Lucien não tinha aparecido para o casamento e Eve continuava muito triste.

— Então, você resolveu consolá-la.

— Posso terminar antes que você me recrimine?

— Pode — Daisy respondeu e apertou os lábios.

— Obrigado. Eve estava muito infeliz. Continuava a executar bem seu trabalho, mas sem alegria. Escondia-se dentro de si mesma na tentativa de fingir que não se importava com o fato de o homem a quem amava a ter esquecido na frente do altar.

— Ainda não entendo como ser rude e inconveniente..,

— Você entenderá. Apenas seja paciente — ele a interrompeu.

Daisy concordou com um gesto de cabeça. Fixou o olhar no rosto de O’Hara e tentou ignorar os lampejos de luz dos espíritos nos cantos. Ele prosseguiu:

— Lá estava ela, relendo suas anotações e escrevendo notas nas margens. Em minha defesa, admito que havia bebido um pouco demais de vinho no jantar e estava meio aéreo.

— Embriagado, isso sim — Daisy o acusou.

— Pode ser, mas isso não diminuía a melancolia de Eve. E eu queria trazer de volta aquele brilho em seus olhos de que me lembrava tão bem, fazê-la se interessar por qualquer coisa. Então, fui até atrás dela, fingi tropeçar e a toquei na perna.

— Que grande falta de educação! — ela exclamou.

— Mas deu certo.

Esquecida da tristeza e com os olhos fuzilando, Eve me bateu com o caderno e deu um pontapé em minha canela.

— Bem feito! — Daisy exclamou e encarou O’Hara com firmeza.

Ao contrário dela, que se assustava com qualquer confronto, Eve sabia se defender. Sentiu-se aliviada ao saber que a amiga havia retribuído o atrevimento de O’Hara à altura.

— Ela morreria se perdesse Lucien — ele afirmou numa voz mais séria, fazendo Daisy se arrepender por ter ficado contente com a reação de Eve a ele.

Havia mais de uns seis fantasmas naquele momento e eles começaram a se afastar dos cantos. Sombras e lampejos de luz se misturavam enquanto silhuetas nebulosas se dirigiam para o centro do quarto onde ela e O’Hara estavam.

— Estão vindo — Daisy murmurou ao chegar mais perto dele. Numa voz calma, O’Hara disse:

— Eles não podem fazer mal a você. Lembre-se disso.

— Estou com medo — ela sussurrou.

Os fantasmas não chegaram muito perto. Pararam a alguns passos de distância e formaram um círculo à volta deles. Então, encenaram suas mortes horríveis em silêncio. Um homem bem vestido esfaqueou uma mulher. Um soldado estrangulou o companheiro. Uma mulher aproximou-se de outra por trás e lhe cortou o pescoço. Um homem sacou a arma e começou a atirar. O espetáculo sangrento prosseguia e Daisy tremia ao ver o desenrolar das cenas.

O’Hara a aconchegou contra o peito e murmurou:

— Não olhe.

Grata, ela escondeu o rosto no ombro dele. Por que o achara baixo? O’Hara tinha a altura certa para ela. Seu rosto apoiava-se bem naquele ombro e ela não tinha de ver os espíritos que assombravam o hotel. Também era reconfortante ser amparada e não estar sozinha naquele momento terrível. Ela apenas esperava que O’Hara estivesse certo e os espíritos não lhes fizessem mal.

Daisy agarrou a jaqueta dele com as duas mãos. Embora tentasse, achava impossível ficar calma. Começou a tremer. Mesmo com o rosto apoiado nele, pelo canto dos olhos via lampejos de luz. Por Deus, mal conseguia respirar.

— Feche os olhos — O’Hara disse ao estreitá-la mais contra o peito. — Eles só querem assustá-la e não podem lhe fazer mal.

Ela obedeceu e apertou bem os olhos. Mesmo assim, podia ver os fantasmas como se eles estivessem atrás de suas pálpebras. Ilusão provocada pela imaginação, refletiu.

O’Hara massageava suas costas.

— Lembre-se que eles querem assustá-la. Seu medo fortalecerá Scrydan. Pense em alguma coisa linda e não em fantasmas.

— No momento, não posso pensar em nada lindo — ela confessou.

O’Hara a abraçou com força. Também sentia medo, Daisy suspeitava, mas não queria que ela e os espíritos soubessem.

— Quigley — ele disse baixinho.

— O quê?

— Meu terrível primeiro nome. Quigley. Quigley Tibbot O’Hara.

Apesar da situação, Daisy sorriu no ombro dele.

— É mesmo? Quigley?

— Se você contar para alguém, eu negarei. Tive muito trabalho para impedir que, além de meus parentes chegados, outras pessoas descobrissem esse horror.

— Horror é um pouco forte. — Ela riu com suavidade. — Talvez, não.

Ele começou a rir também e Daisy abriu os olhos. Os fantasmas que os tinham atormentado se dissipavam. Ela riu mais alto.

— Quigley Tibbot? Deve ser um nome de família.

— Era o de meu bisavô.

— Espero que ele tenha sido rico e lhe deixado uma fortuna, já que você herdou o nome dele.

— Ai de mim! Ele era sitiante e morreu cheio de dívidas.

As luzes e o ruído dos fantasmas apagavam-se. Daisy vislumbrou o rosto de uma mulher. Era mais triste do que pavoroso, mais trágico do que assustador. Uma a uma as imagens e luzes sumiram. Daisy ergueu a cabeça a fim de olhar para O’Hara. Sim, ele sempre seria O’Hara para ela. Quigley não combinava com ele.

Ao ver-lhe o rosto bem perto. Daisy imaginou se ele a beijaria. A mão continuava a subir e a descer por suas costas. Movimentos lentos, firmes e estimulantes. Ela já podia soltar-lhe a jaqueta, mas não o fez.

O’Hara ia beijá-la. Ele curvou a cabeça e a inclinou para o lado. Parou quando a boca estava bem perto da sua. Então, afastou-se.

— Viking?

Trancados do lado de fora, Lionel e Buster teriam ido buscar socorro? Quanto tempo levariam para voltar? No mínimo já seria de manhã quando chegassem. Eve achava estar sendo otimista demais.

Andava de um lado para o outro e Lucien a seguia com o olhar. Lionel e O’Hara diziam que seu amor o salvaria. Mas como? O homem a quem amava estava ali, ainda vivo e lutando contra Scrydan.

— Você há de vencer — Eve disse ao parar perto da cama.

O quarto estava parcamente iluminado pelo fogo da lareira e o luar fraco. Â luz pálida dançava sobre Lucien, cujos olhos pareciam queimar.

— Eu estou vencendo — Scrydan afirmou, presunçoso.

Aborrecida e assustada com tal arrogância, ela respondeu:

— Pois não está com jeito de que esteja vencendo coisa alguma. Continua amarrado na cama, impotente, e não irá a lugar algum até que eu consiga Lucien de volta.

— Ele mandou os outros me matarem se for necessário.

— Eu sei — ela disse, ríspida.

— Por sorte minha, não existe uma única pessoa aqui no hotel capaz de me matar enquanto eu estiver neste corpo. — Riu. — Todos olham para este rosto e vêem Lucien Thorpe e não a mim. Por isso, vencerei — afirmou ao olhar para o teto e franzir a testa.

— Algo errado, Scrydan? As coisas não estão indo como planejou?

— Falta pouco. Logo irão— afirmou ainda com a testa franzida.

— Quero falar com Lucien — Eve disse.

Scrydan a encarou.

— Não. Sabe, ele quase já se foi. Está cada vez mais fraco.

Eve sentou-se na beirada da cama para tocar aquele rosto querido. Amava Lucien mais do que jamais sonhara ser possível. Não aceitava que pudesse perdê-lo dessa forma e tão perto de alcançarem a felicidade. Sabia que a vida deles nunca seria normal, mas não mereciam ter mais tempo? Talvez não o tivessem para sempre, porém algum para compensar o horror desses dias.

Scrydan retesou as cordas que o prendiam. Eve observou os nós fortes e bem feitos. E se Scrydan estivesse certo e, com o passar das horas, fosse capaz de arrebentá-los?

Porém, ainda não estava forte o suficiente.

Ela o acariciou no rosto barbudo e roçou as costas da mão na garganta dele.

— Lucien, preciso falar com você — sussurrou.

— Pare com isso — ele disse baixinho.

— Por mim, lute contra ele.

Scrydan não estava mais tão calmo e confiante.

— Tarde demais.

— Lute contra ele, Lucien. Eu te amo muitíssimo.

Scrydan tornou a retesar as cortas, inclinando-se o máximo possível para ela.

— Você pensa que o amor ainda poderá ajudá-lo? Não seja ridícula.

— Então por que você ficou com tanto medo de repente?

Eve pôs a mão sobre o coração dele. Apesar do fogo na lareira, o ar estava frio, mas mesmo com o peito nu, a pele de Lucien ainda queimava. As batidas do coração eram rápidas e fracas.

— Não tenho medo de você— ele rosnou. — Sei que quer este corpo. Vá em frente, amor, e use-o. Não posso impedi-la. Você sempre quis ter Lucien desta forma? Acho que sim. Penso que gosta da idéia de ter poder sobre seu amante. Pode me amar se quiser.

— Você não faz idéia do que seja amar.

— Ponha sua mão um pouco mais abaixo e eu lhe mostrarei.

Ela ignorou-lhe a grosseria, o olhar malicioso e a maneira de mexer os quadris. Com um sorriso meigo e feito com esforço, ela pôs a mão perto da dele.

— Eu te amo, Lucien, e preciso de você.

Com os dentes arreganhados, ele aproximou a cabeça. Eve baixou a sua, fora do alcance dele, e beijou-lhe a pele sobre o coração.

— Volte — murmurou e tornou a beijá-lo.

— Por que você quer que ele volte? É um homem fraco, imperfeito e a esqueceu muitas vezes. Você nem imagina quantas. Eu sei. Aliás, sei tudo. Sou mais forte do que ele, mais poderoso. Posso lhe dar o que quiser.

Ela levantou a cabeça e o fitou bem dentro dos olhos.

— Então, me dê Lucien.

Dessa vez, quando ele lhe mostrou os dentes, Eve não recuou. O homem a quem amava continuava ali e não permitiria que Scrydan lhe fizesse mal. Inclinou-se para frente, pôs a boca sobre a dele e o beijou com meiguice. Após um momento, ele retribuiu o beijo. Os lábios dele mexeram sobre os seus, fazendo-a sentir o carinho, o medo e a paixão de Lucien.

Lágrimas rolaram por suas faces, umedecendo-lhes os lábios, mas eles continuaram a se beijar.

— Eu te amo — ela murmurou entre beijos molhados.

— Eve?— Lucien sussurrou.

Aliviada, ela rodeou-lhe o pescoço com as mãos. Havia temido nunca mais falar com Lucien. Beijou-o com paixão e então, afastou os lábios.

— Estou aqui e não vou ai lugar algum. Fique comigo, Lucien.

— Não penso que possa.

Ela esqueceu as próprias dúvidas.

— Você ficará. Precisa. Scrydan está mantendo todas as portas fechadas. Lionel e Buster estavam lá fora quando isso aconteceu e devem ter ido buscar ajuda. Katherine e Garrick preparavam café na cozinha e podem estar trancados lá. O’Hara e Daisy estão no terceiro andar. E eu penso, Lucien, que Hugh sofreu uma queda e se machucou muito. Não ouvi mais a voz dele.

— Não me importo com eles. Não existe ninguém neste quarto além de nós dois. Senti tanta falta sua. Quero abraçá-la, mas você precisa me soltar, Eve.

Sem refletir, ela pegou a corda no pulso direito dele. Tocou os nós e, então, parou e fitou Lucien. Ele desviou o olhar.

— Ser chamada por Eve a enternece, não é? — Scrydan indagou. — Tão meigo e adorável. E quase deu certo. Por uma questão de segundos, você teria me soltado, mas recobrou o bom senso. Venha me beijar de novo, mulher, e eu a farei esquecer outra vez.

Com a respiração presa, Eve afastou-se da cama. Ele a tinha tapeado num momento em que ela deveria ter sido mais perspicaz. Por um tempo mínimo, ela havia se convencido de que beijava e falava com Lucien. Teria se enganado?

Gostasse ou não, ela precisava encarar seu maior pavor. E se Scrydan estivesse certo e Lucien se fora para sempre?

Scrydan observava Eve andar de um lado para o outro. Ele tinha chegado tão perto! Quase a convencera de soltá-lo.

O fato de Lucien ter sido capaz de voltar à superfície outra vez era perturbador. Mesmo ele tendo ficado apenas uns dois minutos.

Ele deveria estar fraco demais para fazer tal esforço. Deveria estar morto! Mas havia acordado e lutado. Tudo por um beijo.

— Seu amigo no corredor está morto. A alma dele já ficou aprisionada aqui como tantas outras. Os demais também logo estarão — ele disse e sorriu ao ver sua expressão de tristeza. As coisas não estavam indo como ele tencionava, mas não podia deixar a mulher saber, e sim assustá-la. — Lá em cima, num quarto onde muitos já morreram, o tal O’Hara, de quem você não gosta, vai acabar pondo as mãos no pescoço da moça bonita para estrangulá-la. Só Deus sabe o que ele lhe fará antes. É um rapaz muito raivoso e acha sua amiga atraente. Duvido que a morte dela seja rápida.

Quando Eve estremeceu e virou o rosto para esconder o sofrimento, ele animou-se. Se agisse certo, não precisaria dos outros. Essa mulher o alimentaria e, depois, o soltaria. Ou ele estaria forte o suficiente para romper as amarras. Acrescentou baixinho:

— Ao se dar conta do que fez, ele se atirará da janela e quebrará o pescoço.

— Cale a boca! — ela disse numa voz rouca.

De fato ele não precisava do medo dos outros. A Eve de Lucien o aumentaria bem.

— Lá embaixo na cozinha, a viúva bonita está tendo uma conversa interessante com o marido morto. — Ele retesou as cordas o máximo possível.— Daqui a pouco, ela vai confundir seu amigo beberrão, Garrick, com o fantasma atormentador do marido e lhe esfaquear o peito. Em seguida, será a vez dos próprios pulsos. Os dois morrerão juntos numa poça de sangue.

— Será que vou ter de amordaçá-lo? — Eve indagou.

— Você não faria isso. Como é tola, pensa que Lucien poderá voltar e lhe dizer, pela última vez, que a ama. Sem dúvida você não quer perder tal oportunidade. E não quer saber o que acontecerá aos dois que saíram vagando por aí? — Riu alto. — Os idiotas seguiram pela direção oposta. Já estão perdidos. E nesse frio horrível! Dentro em pouco, acabarão dormindo e nunca acordarão.

— Isso não é verdade — ela balbuciou.

— É uma forma quase indolor de morrer. Eu só queria que o sitiante morasse mais perto. O rapazinho tem medo do que não vê e compreende. Por ser jovem, a morte dele seria muito revigorante. O medo da mulher crescia. Ele já podia senti-lo. Provocou-lhe uma onda de energia, um tinir de prazer pelo corpo inteiro.

— Não quer saber o que planejei para você, amor?

Uma luz no canto do quarto o distraiu. O espírito daquela bruxa desgraçada! Ela já tinha arruinado este quarto com suas pragas malditas. E era um fantasma em que não se podia confiar! Os outros obedeciam todas as ordens dele porque o temiam. Ela sempre o desafiava.

No momento, ela tentava se comunicar com Eve que, felizmente, não possuía o dom de Lucien. Não percebia a ajuda que lhe era oferecida.

Os humanos na casa mostravam-se tão desafiadores quanto a bruxa. Lutavam contra o medo e ajudavam aos outros. Havia muito amor na casa, muita esperança.

Embora a noite não estivesse progredindo tão bem quanto ele esperava, Scrydan não se preocupava. A esperança logo morreria, bem como todos eles.

 

— Ele se foi mesmo? — Katherine indagou, nervosa.

— Foi, mas poderá voltar. Se aparecer de novo, devemos ignorá-lo, não importa o que diga ou faça — Garrick determinou.

Ela assentiu com um gesto de cabeça apesar de saber que seria impossível ignorar o fantasma do marido. Na verdade, Jerome havia lhe feito mais mal em vida do que o fantasma poderia.

Garrick a tinha distraído com aqueles beijos. Ninguém jamais a havia beijado daquela maneira. No início e de vez em quando, Jerome lhe dava uns beijos brutos, violentos. Nunca a tinha beijado com meiguice, a feito se sentir estimulada simplesmente por mexer os lábios sobre os seus. De forma alguma jamais a tinha abraçado como Garrick.

Katherine tentou esquecer. Tudo bem gostar de Garrick como amigo, mas impossível pensar em algo além disso. Pelo brilho nos olhos dele, não era só um amigo.

Jerome costumava mostrar um brilho semelhante nos olhos, porém, o que se seguia nunca era prazeroso.

As mulheres eram tão sentimentais! Amor e afeto não passavam de sonhos cornos quais os homens não compartilhavam. Katherine tinha aprendido a ser fria e prática. Não mais se deixaria iludir com palavras bonitas.

Ela foi para o outro lado da cozinha a fim de se afastar de Garrick. Tinha a impressão de que ele era muito hábil em fazer os galanteios que as mulheres apreciavam. Mentiras. Não podia ficar muito longe na cozinha pequena, queria apenas uma distância que impedisse contatos físicos. Isso até ter a chance de reconstruir a muralha com que se protegia.

Como se soubesse que ela estava exposta, Jerome apareceu com ar de caçoada. Garrick aproximou-se depressa e ela, numa.atitude de defesa, posicionou-se entre o fantasma do marido e o amigo.

— Pare com isso, Jerome. Não tenho medo de você, pois não pode mais me fazer mal — ela afirmou.

— Posso, sim, claro — ele disse, os olhos indistintos em seu rosto, os intangíveis punhos cerrados estendidos para ela.

Katherine não recuou e os punhos não a atingiram. Num gesto de apoio, Garrick pôs a mão em sua cintura. Morna e real. Ela precisava disso no momento. Do contato e do calor da mão de um ser humano.

— Diga-lhe para ir embora — Garrick sugeriu baixinho.

Um conselho simples que ela nunca havia seguido. Quando o marido era vivo, não tinha se atrevido. Nas ocasiões em que lhe sentia o espírito na casa, após a morte dele, havia praguejado e o ofendido, mas não o mandara embora.

— Você é a única pessoa que pode ordenar-lhe para se ir de uma vez por todas — Garrick sussurrou.

Katherine Cassidy nunca fora uma pessoa de força de vontade. Em vão tentava ser forte, mas sabia que era fraca.

— Diga-lhe de uma vez como você se sente — Garrick insistiu.

Katherine ergueu bem os ombros e respirou fundo.

— Eu te desprezo, Jerome. Você era um beberrão mau e aproveitador, além de um péssimo marido. Não é justo que você não tenha pago por esses pecados. Você nunca sofreu.

Algo em seu íntimo rompeu. Uma parede esfacelou-se e deixou escapar seus temores secretos.

Virou-se para o fantasma com os punhos cerrados que vararam a imagem difusa. Então, começou a gritar:

— Você morreu depressa demais! Muito injusto! Devia ter sido torturado e sofrido uma morte lenta, dolorida. Não foi justo!

O fantasma de Jerome afastou-se dela.

— Katherine, diga-lhe para ir, para deixá-la para sempre — Garrick voltou a aconselhar baixinho.

Lágrimas queimavam seus olhos, porém, ela as reprimiu. Com toda a certeza, não deixaria que Jerome a fizesse chorar.

— Não, isso é fácil demais. Ele não pode ter passado a descansar em paz após a morte. Quero que ele sofra.

— Meu bem, acho que ele está sofrendo — Garrick murmurou.

Katherine virou-se depressa para ele.

— Não me chame de meu bem! Só porque deixei você me beijar não quer dizer que pode me tratar por meu bem — ela vociferou ao dar-lhe uns tapas no peito.

Jerome a tinha chamado umas vezes de meu bem, o que ela odiava. Tornou a bater em Garrick.

Ele não se retraiu e nem desistiu de aconselhá-la.

— Diga a Jerome para ir. Penso que se você o mandar embora com sinceridade vinda do fundo do coração, ele irá — sussurrou.

— Não pode ser assim tão fácil — ela disse e, mais uma vez, bateu em Garrick.

Como resposta, ele a rodeou com os braços. Katherine lutou para escapar, mas não muito. Os braços lhe transmitiam calor e segurança. Exausta, descansou a cabeça no peito de Garrick e respirou fundo.

— E se for fácil? — ele perguntou. — Diga a Jerome para ir embora, para sair de sua casa e de sua vida. Pense em tudo que você poderá fazer quando ele sumir finalmente. — Beijou-a na cabeça. — Você poderá dançar, rir. Eu lhe comprarei um vestido amarelo e nós queimaremos todos os pretos. Passearemos pelas ruas de braços dados. Ela balançou a cabeça.

— Começaremos uma nova vida. Juntos — ele disse.

Katherine escapou da falsa segurança do abraço aconchegante.

— Não haverá uma nova vida. Você e eu, definitivamente, não faremos nada juntos.

— Penso que te amo — Garrick disse em voz baixa.

Katherine o estapeou nas duas faces.

— Você poderá me bater o quanto quiser. Isso não mudará nada — ele afirmou sem rancor.

De repente, Katherine deu-se conta do que havia feito. Jerome tinha lhe batido tantas vezes que ela perdera a conta já no primeiro ano de casamento. Seria ela igual ao marido morto ao agredir Garrick com as mãos só porque ele não lhe dizia o que desejava ouvir? Não, ela não poderia ser igual a Jerome. Cruzou os dedos e apertou as mãos.

— Lamento muito.

— Eu...

— Não — ela disse ao dar um passo rápido para trás. — Por favor, não repita. Não quero seu amor, nem o de ninguém mais.

Ele estendeu a mão para tocá-la, mas puxou-a ao vê-la se retrair.

— Você é muito jovem para desistir do amor.

— Palavras bonitas de um homem cuja idéia de amor limita-se a uma viagem a Savannah, onde uma mulher paga lhe aquece a cama.

Garrick era igual ao pai. Eles não se atreviam a ter prazer com as mulheres disponíveis da cidade. Membros da família mais rica de Plummerville, temiam escândalos, comentários maledicentes e pequenos bastardos Hunt brincando nas ruas. Não, ambos iam a Savannah para comprar suas mulheres. Pelo menos uma vez por mês, faziam a viagem a título de negócios.

Sua raiva passou depressa. Se Lucien estava certo, Garrick era um bastardo Hunt e ainda não tinha assimilado a informação.

— Caso você tenha prestado atenção, sabe que não fui a Savannah nem uma vez nos últimos cinco meses — Garrick disse com firmeza.

— Isso não significa...

— Talvez signifique que eu queira mais do que uma mulher para esquentar minha cama a troco de pagamento. Significa que aspiro algo mais para minha vida do que trabalho, uma família mal-humorada e amizades superficiais. — Tentou de novo tocá-la e, dessa vez, ela não se esquivou. — Talvez eu esteja pronto para amar, Katherine.

— O amor é apenas um disfarce bonito. Um ardil do coração e pode matar caso se deixe.

Ele balançou a cabeça.

— Amei Jerome antes de descobrir como ele era. Eu o amei com o coração e o otimismo de uma jovenzinha. Aquele amor foi morrendo aos poucos e magoando muito. Ainda magoa.

— Será por isso que você não o deixa ir embora?

Deus do céu, era verdade! Ela prendia Jerome junto a si. Imaginava que podia puni-lo por todos os pecados dele? Ou pensava que o amor, sentido por ele um dia, ainda vivia enterrado em seu coração gelado? Era um pensamento aterrador.

— Não sei — ela balbuciou.

 

— Um viking! — O’Hara exclamou ao baixar as mãos e recuar.

Excitada, Daisy tinha esquecido seu dom de ver dentro das pessoas quando as tocava. Deus do céu, jamais devia ter permitido que ele lhe encostasse a mão.

— Não sei do que você está falando — disse numa voz afetada.

O’Hara suspirou.

— É claro que sabe. Moças como você sempre perdem a cabeça por Lionel.

Daisy franziu o nariz. Não deveria explicar a fantasia fugaz.

— Não perdi a cabeça por ninguém.

Talvez no fundo dela eu tenha comparado Lionel a um viking. Deve ter sido uma idéia inconsciente, provocada pelo fato de ele ser alto e ter cabelos compridos e loiros.

O’Hara lhe dirigiu um olhar de zombaria.

— E o que "moças como você" quer dizer? — ela indagou.

— Viking — ele resmungou em vez de responder.

— Não penso que este seja o momento, muito menos o lugar, para discutirmos sobre algo que possa ter passado por minha cabeça. Além do mais, meus pensamentos não são da conta de ninguém — Daisy declarou.

O’Hara acalmou-se.

— Sei por que você gosta de Lionel — disse em voz suave.

— Não gosto nem desgosto... — ela começou, mas O’Hara prosseguiu como se não a tivesse ouvido.

— Ele a deixa segura, certo? Lionel é arredio e tranquilo. Vive quase o tempo todo em outro mundo, portanto, não representa uma ameaça para você.

— Essa é a coisa mais ridícula...

— Ele não é real. Você vê um rosto bonito e sonha com vikings.

— Não sonhei com vikings — ela insistiu.

— Sonhou, sim. Apenas não se lembra — O’Hara sussurrou.

Daisy sentiu o rubor queimar-lhe o rosto.

— Mesmo que tenha sonhado...

— Você se esquiva de mim desde que chegamos aqui. Não sou um tipo atraente e, não importam meus dons, me esforço bastante para levar uma vida consistente neste mundo. Tenho os peno chão, Daisy. Você teme mesmo que um homem assim possa prejudicá-la?

O coração de Daisy disparava e não por causa dos fantasmas. Imaginava quanto O’Hara tinha visto quando a tocara,

— Agora que pôs as mãos em mim, você já sabe tudo? — ela indagou numa voz estridente.

— Não, claro. Ninguém vê tudo. Esse não é o propósito de certos dons. Não tenho controle sobre o que me é, ou não, revelado quando toco em alguém ou em alguma coisa.

— Esse poder é apenas em suas mãos?

— É, sim.

Naquele caso, se ele a beijasse, não veria seus segredos, desde que mantivesse as mãos longe.

— O que mais você sabe sobre mim além dessa tolice de que eu possa ter comparado Lionel a um viking! — ela perguntou e prendeu a respiração à espera da resposta.

— Nada chocante. Você é muito mais forte do que dá a perceber e tem bom coração. Quando ama alguém, entrega-se por completo. Ah, você detesta abóbora.

— Minha mãe sempre teve uma horta. Dois anos seguidos, tivemos tantas abóboras que ela as servia em todas as refeições. Um dia, até quis me forçar a comer um tanto no café da manhã. Nunca mais tolerei abóbora.

— Interessante— O’Hara comentou.

Os fantasmas reapareceram e os dois, afastados um do outro, estavam vulneráveis. Juntos, ficavam mais fortes, sentiam menos medo. Havia duas mulheres de branco e dois homens idosos. Flutuavam pelo quarto e uma das mulheres acomodou-se na cama, Quando um dos homens sacou uma faca, Daisy gritou. Real ou não, a reencenação dos assassinatos era horrorosa.

— Eles não podem lhe fazer mal. Olhe para mim e não para eles — O’Hara disse,

Daisy focalizou o olhar na silhueta sombreada dele. Apenas um luar fraco impedia que o quarto ficasse em completa escuridão. Não podia negar que a presença de O’Hara a deixava aliviada. Mais do que ninguém do grupo, ele a fazia se sentir protegida.

— Como posso não me assustar? — murmurou.

— Pense em vikings — ele sugeriu.

— Eu não sou... você viu só uma pequena parte... — De nada adiantava seu esforço para se livrar do embaraço. — Ai, você é um homem intolerável!

— Eu?

— Sim, você, Quigley Tibbot O’Hara.

— Falta de delicadeza sua trazer meu nome à baila numa hora como esta — ele reclamou.

Fazia muito tempo que ela sentia medo. Mais do que dos fantasmas que O’Hara garantira que não lhe fariam mal. Não cria que ele lhe mentisse a esse respeito e também tinha mais medo dos vivos do que dos mortos. Talvez ele estivesse certo ao afirmar sua atração por Lionel, pois ela não intuía ameaças nisso.

No íntimo, ela desejava aquele beijo que quase havia recebido.

Porém, O’Hara nunca a beijaria. Bastara uns poucos toques leves para convencê-lo de que ela estava embevecida com Lionel.

Olhou para o fantasma na cama, uma mulher de olhar triste.

— Suma — Daisy ordenou e olhou para os outros. — Vocês todos também. Sei que têm a intenção de nos assustar, mas apenas nos aborrecem. Cada um de vocês parece mais triste do que assustador. Portanto, sumam. Não podemos ter uma conversa particular com vocês nos observando.

Um a um, todos obedeceram. Ela suspeitava que o único espírito mau no hotel era Scrydan. Os outros estavam presos ali como O’Hara e ela.

— Deu certo — ele comentou, surpreso.

— É claro que deu.

— A maioria das mulheres estaria à beira da histeria.

— Não faço parte da maioria.

— De fato, não — O’Hara concordou com suavidade.

Daisy eliminou a distância entre ambos. Respirou fundo antes de pegar a mão direita de O’Hara como se fosse cumprimentá-lo. Mas em vez de apertá-la, juntou palma com palma. A mão grande dele envolveu a sua. Transmitia calor no quarto frio. Os dedos retesaram e, depois, relaxaram enquanto ele fechava os olhos.

— Há muito tempo sinto pavor de deixar qualquer pessoa descobrir o que você vai saber sobre mim agora. Talvez não veja tudo, porém, mais do que viu antes, acredito. Acho que pode ver além de minha aversão por um certo legume ou da atração tola e fugaz por um homem que eu nem conhecia quando permiti certas fantasias.

— Daisy — O’Hara sussurrou ao tentar puxar a mão, o que ela impediu.

— Talvez você esteja certo quanto a eu querer levar a vida em segurança e só me interessar por homens que não representem uma ameaça para meu coração. Sempre me esquivo de qualquer um que possa me interessar mais do que um rosto bonito.

— Eu nunca devia ter dito aquelas coisas. Estava bravo — ele confessou.

— Tudo bem. Faz parte da vida zangar-se, não faz? Sabe, O’Hara, nem me lembro da última vez em que me importei com alguma coisa a ponto de ficar brava.

Ele apertou sua mão com força.

— Daisy, estou tentando não ser indiscreto e não ver demais, mas não tenho esse tipo de controle. Não posso continuar bloqueando-a. Largue minha mão.

— Não. Se Scrydan vencer e nós morrermos aqui, não quero ir sozinha. Quero ir de mãos dadas com alguém que me conheça realmente. Tudo, o bom e o mau. Não bloqueie nada.

O’Hara a tocou na face com a mão esquerda. Daisy fechou os olhos e o deixou acariciá-la ali com os dedos delicados e experientes. Só então sentiu medo do que O’Hara pensaria sobre ela quando largasse sua mão.

 

Eve se viu de relance no espelho acima da cômoda empoeirada. Por Deus, estava tão assustadora quanto qualquer fantasma. Soltos e embaraçados, os cabelos caíam em todas as direções. E o elegante vestido de noiva? Manchado em vários lugares, descosturado em outros e já sem muitas das pequenas pérolas que o enfeitavam. Seus olhos encheram-se de lágrimas.

Se Scrydan estivesse certo, todos eles morreriam no hotel e ela chorava por causa de um vestido arruinado. Um vestido branco de noiva, símbolo de pureza, de felicidade perene e da vida que ela tanto almejava e jamais teria.

— Por estranho que pareça, ele acha você bonita — Scrydan disse.

Eve olhou para o homem amarrado na cama. Scrydan, com o rosto e o corpo de Lucien, a fitou com olhar de escárnio.

— Fique calado. Não quero ouvir nem mais uma palavra sua — ela afirmou ao enxugar as lágrimas.

— Você vai me amordaçar? — ele indagou.

— Talvez.

— E se Lucien voltar e quiser lhe dizer que a amará até o fim e que deseja um último beijo? — Scrydan sugeriu ao lhe mostrar a língua num gesto obsceno.

— Amordaçá-lo está me parecendo cada vez mais uma ótima idéia.

— Você não assumirá o risco de me silenciar — ele afirmou.

Num canto, algo atraiu o olhar de Scrydan e o sorriso mau dele desapareceu. Eve virou-se para verificar o que lhe havia chamado a atenção. Uma luz movia-se no canto sombrio.

Poderia esse novo fantasma possuí-la como Scrydan fazia com Lucien? Não tinha certeza se esse espírito seria capaz disso, mas a última coisa de que precisava era ser controlada por uma força sob o comando de Scrydan.

Lucien sempre falava da necessidade de se construir paredes em volta da mente a fim de manter fora espíritos indesejáveis. Eve fez isso e a imagem no canto retorceu-se e sumiu.

Pouco depois, ouviu um ruído no corredor. Era como se alguma coisa ou alguém estivesse sendo arrastado pelo chão. Por um momento, prendeu a respiração. O ruído foi chegando cada vez mais perto da porta. Poderia Scrydan abri-la caso quisesse que aquilo lá fora entrasse no quarto?

— Eve? — uma voz fraca murmurou.

Um alívio imenso a inundou.

— Hugh? Você está bem?

— Não tenho certeza. Bati a cabeça e tudo está meio confuso. A escuridão é absoluta. Só encontrei a porta porque vim apalpando o chão enquanto me arrastava. O que aconteceu?

Em poucas palavras, Eve contou o que havia ocorrido e onde os outros estavam.

— Não importa o que acontecer, não solte Lucien — Hugh ordenou.

— Não é Lucien — ela afirmou em voz baixa.

— É mesmo. — As palavras não estavam muito claras. — Ele não é... — Hugh mexeu-se contra a porta. — Eve, alguma coisa está aqui.

— Bloqueie isso, Hugh!

Não houve resposta. Nem mesmo quando ela bateu com força na porta e gritou o nome dele. Ajoelhou-se para ficar mais perto do amigo caído lá fora.

— Hugh! — tornou a chamar.

Numa voz calma, Scrydan disse:

— Poderemos sair daqui agora mesmo. Só você e eu. Quando estivermos a algumas milhas de distância do hotel, tudo voltará ao normal e seus amigos estarão em segurança.

Eve levantou-se e o encarou.

— Você é um mentiroso! Disse que Hugh estava morto.

— Tem certeza de que era Hugh? Pode ter sido uma fantasia de sua imaginação ou um fantasma fazendo se passar por seu amigo.

— De jeito nenhum! — ela protestou

— Você pode salvá-los. Só você. Em recompensa, lhe darei tudo que quiser. Beleza, fortuna, fama.

Enquanto Eve andava em direção da cama, Scrydan sorriu-lhe. Ela inclinou-se e chegou a sentir o calor irradiado por aquele corpo. Mas parou antes de chegar perto demais.

— Você é um mentiroso! — repetiu.

Ele deu de ombros.

— E tudo o que quero é Lucien.

Scrydan retesou as cordas. Não estava ficando mais forte, ela notou. Quando isso acontecesse a ponto de ele conseguir se soltar, de que forma ela poderia detê-lo?

 

Jerome tinha sumido, mas Katherine suspeitava que ele continuava ali. A chama da única vela oscilou e, ao vê-la, Garrick pegou sua mão. Numa voz suave, disse:

— Venha cá. Você precisa se sentar.

Ele ocupou a única cadeira da cozinha e a puxou para o colo.

— Eu não... — ela começou ao mesmo tempo em que tentava se levantar, mas Garrick a forçou a voltar.

— Também preciso me sentar e não quero ficar sozinho. Por favor, Katherine — murmurou ao firmar os braços em sua volta.

Ela nunca tinha ouvido Garrick dizer por favor! Por isso, ficou. Levando-se em consideração as circunstâncias, era agradável estar tão perto de outro ser humano. Tão quentinho. Disse a si mesma que se sentava no colo de Garrick pelo bem dele e não do seu. Também porque ele havia pedido e não porque gostasse da maneira como ele a segurava. E ainda, não por ser a primeira vez, em muito tempo, que ela não estava sozinha.

Katherine viu a chama da vela tornar a oscilar e rezou para que não se apagasse. Não queria se sentir perdida nas sombras da noite e, muito menos, que Jerome viesse perturbá-la na escuridão.

Numa voz baixa, Garrick começou a falar:

— Quando sairmos daqui...

— Se sairmos — Katherine aparteou.

— Quando sairmos daqui e voltarmos para Plummerville, você me dará permissão para visitá-la?

Seu coração pulou no peito.

— Não, claro!

— Por que não?

— Ora, você vai embora para o oeste e eu não vejo razão para começarmos alguma coisa que não poderemos terminar.

— Não quero começar nada que não possa terminar.

— A resposta continua sendo não.

— Por quê?

Katherine suspirou. Pelo menos estava sentada de costas para Garrick e não tinha de fitá-lo.

— Não quero outro homem em minha vida. Jamais. Não vou me casar de novo, não estou interessada em romance de qualquer tipo e não pretendo mudar.

Num tom defensivo, Garrick argumentou:

— Não somos todos iguais a Jerome. Muitos homens são dignos de confiança e atenciosos. Tantos maridos cuidam de suas mulheres e as amam como ele nunca fez. São bondosos, sensatos e...

— Você bebe tanto quanto ele bebia.

Katherine queria se levantar, mas ele a segurava com firmeza. Tinha esperado enraivecê-lo a ponto de largá-la, mas a provocação não dera certo.

— De fato bebo demais, não nego. Garanto que não adoro beber e, muito menos, preciso disso. Se tiver um motivo justo, poderei largar a bebida.

— Não é assim tão fácil. Perdi a conta das vezes em que Jerome prometeu nunca mais beber. Se o gosto pelo álcool está dentro de você, não há nada que se possa fazer.

— Eu pararia por você — Garrick confessou, confiante. — E o faria. Calculo que você pense ser fingimento meu.

— Penso, sim.

— Acha que eu diria qualquer coisa para conseguir o que quero?

— Penso.

— Eu te quero. Aqui. Na próxima semana. No ano que vem. Para sempre.

Tensa, ela teve a sensação de que o coração se contraía.

— Pare e...

— Não vou mentir para você sobre qualquer coisa, Katherine. Você é muito importante para mim para ser conquistada com mentiras.

— Bobagem — ela murmurou e engasgou com a palavra.

— Mas farei o possível para conseguir o que quero. Você sabe, sou muito mimado — ele brincou.

Como ele podia gracejar num momento como esse?

— Existe um problema com o que, suspeito, você quer de mim. — Tinha de ser franca. Não podia permitir que Garrick continuasse a esperar pelo que ela não lhe daria. — Se eu nunca mais tocar num homem, ótimo! Jamais receberei outro em minha cama. Não quero isso. — Engoliu em seco. — Não quero você.

— Como pode dizer isso? — ele indagou, ofendido.

— O casamento oferece estabilidade para as mulheres. Uma casa que elas não teriam de outra maneira. Filhos, se não se importam com a trabalheira. — Empertigou-se. — Calculo que as mulheres que você paga para ter sexo fingem apreciar a relação. Mas não é nem um pouco... não posso imaginar... eu nunca...

— Você tem de me dar uma chance para lhe provar que as coisas serão diferentes conosco, caso você permita — ele murmurou.

Ela balançou a cabeça e, com o coração disparado, admitiu:

— Você se tornou um amigo maravilhoso, especialmente depois que chegamos aqui. — E os beijos tinham sido deliciosos, pensou. — Mas não estou interessada em mais nada.

— Uma lástima — Garrick disse e suspirou.

A chama da vela tornou a tremer e, depois, apagou como se alguém a houvesse soprado. Um riso suave ecoou no ar e Garrick estreitou Katherine de encontro a ele.

Após alguns momentos, os olhos deles se ajustaram à escuridão. Ela indagou-se se seria imaginação sua ou a cozinha estava cheia de fantasmas. Sombras dançavam, um vento frio, o mesmo que apagara a vela e vindo não se sabia de onde, passou em seu rosto.

— Você tem mais fósforos? — ela indagou.

— Não. Os poucos que encontramos ficaram no vestíbulo. Eu ia acender o fogão com a chama da vela, mas me distraí.

Não importava, pois a vela estava prestes a acabar, Katherine refletiu. Uma sombra mexeu-se num canto a sua direita.

— Olhe para mim — Garrick disse em tom enérgico.

Obviamente ele também tinha visto o fantasma. Ela virou o corpo para o lado e o abraçou pelo pescoço. Embora não pudesse enxergar bem, fixou o olhar no rosto dele.

— Temos de tentar não sentir medo. É o que eles aconselham — Katherine murmurou.

— Falaremos sobre outras coisas — Garrick disse.

Difícil encontrar um assunto seguro, ela pensou, mas tentou.

— Estou começando a gostar da idéia de Daisy sobre uma sociedade de tortas. Se sairmos daqui, nunca mais vou querer falar em fantasmas!

— Quando sairmos — Garrick corrigiu.

— Está bem. Quando sairmos daqui, acabaremos com a Sociedade de Almas Penadas de Plummerville e formaremos a de tortas no lugar dela. Essa é a idéia mais ridícula que já ouvi.

— Esqueça Plummerville e vá para o oeste comigo — ele sugeriu.

— O quê? Tenho uma casa onde vivo com conforto e...

— Esqueça também o conforto. A vida não é confortável, Katherine. É difícil e imprevisível. Se você não agarrar o que quer quando pode, a chance se perde. Deixe para trás o fantasma de Jerome, sua casa e sua vida solitária e vá comigo — ele insistiu.

Parecia um ótimo plano. Aliás, demais. Tal vida não era para ela.

— Por que eu deveria?

Como resposta, ele a beijou de maneira suave e carente. Katherine afastou a boca...

— Já disse que não quero...

— Você não sabe o que quer.

Ela gostaria de discutir, mas Garrick estava certo. Ela sabia o que não queria, porém, não imaginava o que a faria feliz como fora um dia. Naquele tempo, ela não desdenhava tanto a vida.

Então, ela o beijou. Pelo menos isso era agradável. Afastou do pensamento os fantasmas, as dúvidas sobre se sairiam dali e, acima de tudo, seu medo.

Abraçados, com as bocas unidas, os corações batendo em harmonia e no meio da experiência horrível, eles fizeram algo lindo acontecer.

Sim, o beijo prolongado era lindo. Ser abraçada por Garrick era lindo. Beleza no centro do horror. Talvez fosse isso que deixasse o beijo tão ardente e maravilhoso. Ela nunca sonhara que beijar pudesse ser tão poderoso.

Garrick deslizou a mão pelo lado de seu corpo e hesitou um instante antes de tocar os seios. As carícias dos dedos provocaram uma excitação inesperada. Ao roçarem os mamilos, sensações incríveis percorreram seu corpo.

Ninguém a tinha tocado ali com essa delicadeza. Ela teve de se conter para não pedir uma repetição. Garrick não precisava ser orientado e roçou os mamilos outra vez.

Katherine sabia que deveria pedir-lhe para parar e se satisfazer apenas com o beijo. Mas não pediu. As carícias a estimulavam de uma forma que ela achava impossível. Com esforço, murmurou:

— Garrick, podemos beijar e eu deixo você me tocar. Mas isso é tudo. Nada mais.

— Se é o que você quer — ele sussurrou.

— E se sairmos daqui...

— Quando — ele a interrompeu e Katherine não discutiu.

— Quando sairmos daqui, você irá para o oeste e eu ficarei em Plummerville, que é meu lugar.

Ele tocou seu lábio inferior com a língua antes de dizer:

— Veremos.

 

Como se acordasse de um sono profundo, Lucien entreabriu os olhos. A mente estava confusa e, por um momento, ele não soube quem era e onde se encontrava. Uma mulher andava de um lado para o outro. Ele tentou chamá-la com um aceno e, quando não conseguiu, lembrou-se de tudo.

— Eve — balbuciou com dificuldade.

Ela virou-se depressa.

— Eu não lhe disse para ficar calado?

— Sou eu. Acho que manter as portas fechadas e tentar controlar os outros espíritos enquanto está neste quarto mais sossegado, enfraqueceu Scrydan. Ele ainda continua aqui, mas aquietou-se.

Eve o encarou.

— Já aguentei demais suas tapeações. Você mente e tenta me confundir.— Observou-o mais de perto. — Se você é Lucien como sabe que ele mantém as portas fechadas?

— Sei porque ele continua comigo. É como quando Alistair Stamper falou por minha boca e eu lembrei partes do passado dele como se fossem do meu.

— Como vou saber se você não está tirando informações da memória de Lucien para me enganar?

— Acho que não pode.

Ela virou-se de costas e recomeçou a andar. Lucien a chamou:

— Eve, não sei quanto tempo mais eu tenho. Ele pode voltar a qualquer momento e estou fraco demais para enfrentá-lo.

Furiosa e com olhar de desafio, ela tornou a encará-lo.

— Calculo que deva soltá-lo para que você possa...

— Não! — Lucien protestou. — Não se atreva a me soltar!

A expressão de Eve suavizou-se. As pernas fraquejaram tanto que ela mal conseguiu ficar em pé.

— Quero acreditar que seja você, mas...

— Apenas escute. Existe um único espírito nesta casa capaz de derrotar Scrydan com o auxílio de Lionel.

— Lionel teve de ir embora.

Lucien sacudiu a cabeça.

— Não foi coincidência que as portas fecharam quando ele estava fora do hotel.

Eve sentou-se na beirada da cama e tocou-o no rosto.

— Lucien quero acreditar que seja você e...

— Acredite.

Ele podia ver por sua expressão cansada que ela ainda tinha certas reservas. Numa voz suave, disse:

— Escute com cuidado. Existe uma bruxa chamada Melissa.

— Sei, uma bruxa com o nome de Melissa — Eve repetiu, cética.

— A irmã mais nova dela cometeu suicídio aqui e ela veio investigar.

— E encontrou Scrydan.

— Exato. Melissa conseguiu um emprego aqui quando o hotel ainda era luxuoso. Com seus poderes, ela não demorou para descobrir o que acontecia.

— Por que Scrydan não a matou?

— Finalmente ele o fez. Mas Melissa tinha uma certa magia protetora que manteve Scrydan longe dela por algum tempo. Ela tentou impregnar os aposentos com essa magia e é por isso que alguns são menos ativos do que outros. Este quarto foi onde ela espalhou a magia com maior sucesso. Motivo para ser mais calmo.

— Qual é a magia?

— Não sei. Minha esperança é que, com o nome da bruxa e essas poucas informações que pude captar de Scrydan, Lionel seja capaz de reproduzir a magia numa escala de grandeza tal que aprisione o espírito maligno. Isso o impedirá de cometer mais maldades.

— Lionel conseguirá fazer isso?

— Creio que sim. Ele possui o poder e já teve várias experiências em anular feitiços.

Havia muita coisa que Eve ignorava a respeito dele e dos companheiros. Ele sempre se esforçara ao máximo para protegê-la quando todos se reuniam.

— Scrydan vem bloqueando Melissa de Lionel, mas ele se envolveu com coisas demais. Não tem energia suficiente para manter o controle em mim, na casa e nos espíritos. E não terá enquanto todos vocês mantiverem a calma.

Pelo pouco que ele podia ver através de Scrydan, todos estavam bem, exceto Hugh. Mas ficaria bom, caso o tirassem dali a tempo.

— E se Lionel não voltar?

— Voltará, sim — Lucien afirmou.

Eve afastou-se de costas como se não suportasse mais vê-lo.

— Eve? Sinto tanto que você esteja presa aqui e por eu ter estragado tudo. Eu queria que nosso casamento fosse perfeito.

— Não queria, não. Suspeito que você não se importaria se nós casássemos ou não. No máximo aceitaria que o juiz de paz nos casasse no meio da rua. Eu, sim, era quem queria um casamento perfeito. Você não se importava.

— Eu me importava, sim.

Ela virou-se de frente e Lucien viu suas lágrimas. Por isso ela ficara de costas. Não queria que ele a visse chorar.

— Então por que veio para cá? Devia ter ficado em Plummerville em vez de fugir de lá.

— Eu não fugi — ele afirmou.

— Ora, a que você chama isso?

Talvez Eve estivesse certa e ele vivesse fugindo de uma coisa para outra. Havia fugido do poder de enxergar o mundo dos mortos quando não o entendia e lhe parecia mais uma maldição do que um dom. Tinha fugido desde então, ou havia até conhecer Eve.

— Eu te amo.

— Desta vez, isso não basta. Você não pode dizer que me ama e esperar que tudo acabe bem. Veio até aqui num capricho e, agora, nós dois e nossos amigos vamos morrer porque veio sozinho quando deveria estar se casando.

Ela estava certa. Sem saber, ele tinha atraído todos para esta armadilha.

— Transmita a informação para Lionel quando ele chegar.

— Caso ele consiga, será de manhã, o mais cedo possível. Até então, poderemos estar todos mortos.

— Tenha fé, Eve,

Ela balançou a cabeça.

— Tarde demais para isso.

 

O’Hara baixou a mão e Daisy roçou-lhe a palma com os dedos. Ele estava certo desde o inicio. Ela possuía um bom coração e, quando amava, era com grande intensidade.

— Não há necessidade de sentir medo.

— Há sim, claro — ela afirmou.

— Não estou me referindo ao hotel e aos fantasmas.

— Nem eu. — Daisy o fitou bem dentro dos olhos. — Você me despreza agora? — indagou baixinho.

— De jeito nenhum!

O’Hara a tocou numa das faces e ela não se esquivou. Não precisava mais. Ele tinha visto seu segredo escondido tanto tempo atrás. Era como se ela lhe houvesse impingido a informação, como se precisasse que ele soubesse.

— Nenhum homem me amará tanto a ponto de perdoar o que fiz.

Daisy era tão frágil e forte ao mesmo tempo. E muito mais complicada do que ele tinha suspeitado.

— Você cometeu um engano faz muito tempo. Qualquer homem que a ame, entenderá isso. Você apenas precisa se perdoar — ele murmurou ao acariciá-la no rosto.

— Eu o amava. Pelo menos pensava que sim.

— Você era muito jovem.

— Dezessete anos.

— E ele a enganou.

Se O’Hara quisesse matar alguém, haveria de ser o homem que tinha seduzido uma jovem inocente e lhe despedaçado o coração.

— Ele disse que estava me levando ao pastor de uma outra cidade para que pudéssemos casar sem que meu pai nos impedisse. Então, nos perdemos e já anoitecia quando encontramos uma choupana abandonada. Pelo menos tínhamos um lugar para dormir. — Suas mãos começaram a tremer e O’Hara as segurou. — Ele afirmou que já éramos como marido e mulher e... — ela balbuciou e sua voz sumiu.

— Essa não é uma boa razão para você desistir do amor e do casamento. Você vem sufocando isso por muito tempo, Daisy. Livre-se da velha mágoa.

O’Hara odiava a idéia de ela ficar sozinha quando merecia contar com um marido e filhos.

— Como posso me casar com um homem sem lhe contar o que aconteceu? Um marido esperaria certas coisas — ela disse em voz fraca e incerta.

Um marido esperaria uma virgem no leito nupcial era o que ela não diria em voz alta. Era seu temor quando ele segurara sua mão.

— Qualquer homem que a mereça aplacará seu medo. Ele a amará e todos os dias agradecerá aos céus pelo amor que você lhe dedicar.

Ele ergueu suas mãos e as beijou. Não desejava jamais largá-las. Eram tão delicadas e macias. Tão diferentes das dele e feitas só para serem acariciadas. Não se conteve, e as beijou outra vez.

— Quando acordei de manhã, ele tinha ido embora — Daisy murmurou.

— Eu sei.

— Dois meses depois, descobri que ia ter um filho— contou com um fio de voz.

O coração de O’Hara confrangeu-se.

— Vi isso também.

— Chorei muito durante dias e dias. Isso provocou um aborto espontâneo. Matei meu próprio filho e ninguém jamais soube. Nem o pai do bebê ou meus pais.

— Você não matou seu bebê. Ponha essa idéia para fora da cabeça — O’Hara aconselhou, veemente.

— Como posso ter certeza?

— Porque estou lhe afirmando. — Aconchegou-a entre os braços e pôs uma das mãos atrás de sua cabeça. — O que aconteceu com o desgraçado que lhe fez isso? Não consegui ver.

— Foi embora. Eu o vi umas duas vezes antes de ele se mudar de Plummerville. Ele riu de mim, mas eu não dei a perceber o quanto estava magoada. Para ele tudo não tinha passado de uma brincadeira — ela balbuciou e estremeceu da cabeça aos pés.

O’Hara não tinha notado antes como Daisy era pequenina, mas ao senti-la de encontro ao corpo, surpreendeu-se. Era pequena, frágil e delicada. Não deveria lutar contra fantasmas e ocultar o coração ferido. Daisy merecia ter um marido amoroso, um lar confortável e filhos para amar. Era o tipo de mulher que um homem valorizava.

As mulheres que sabiam da habilidade dele, mantinham-se afastadas. Não queriam se envolver com um homem que, ao tocá-las, descobriria seus segredos sombrios e desejos profundos. E as que ignoravam a habilidade e ele as tocava, o repeliam depois. Muitas importavam-se só com si mesmas ou com o que um homem pudesse lhes dar. Tantos corações repletos de egoísmo e de rancor. Fora por isso que ele tinha ficado tão triste ao ver o sofrimento de Eve depois de Lucien a ter deixado diante do altar a primeira vez. Havia muito poucas mulheres verdadeiramente excepcionais neste mundo. Eve era uma delas.

Daisy Willard também.

— Você está exausta — ele murmurou com suavidade.

Daisy assentiu com um gesto de cabeça.

— Pelo jeito, vamos passar a noite aqui. Por que você não se deita e descansa?

Ela o observou com cuidado. Imaginava se ele tentaria seduzi-la depois de saber que não era mais virgem.

Pelo tato, O’Hara percebeu e respondeu antes que ela indagasse em voz alta:

— Não farei isso. Não sou tão depravado quanto minha reputação faz crer.

— Ótimo. Mas acho que não posso deitar naquele colchão. Se Scrydan está em tudo do hotel, não há de estar nele também? Além do mais, não sabemos o que aconteceu na cama. Pessoas morreram nela. E outras tantas coisas.

De fato pessoas haviam morrido ali. Eles tinham visto tudo naquela noite quando os fantasmas haviam encenado suas mortes.

— Tive uma idéia —O’Hara disse ao pegar sua mão e levá-la até perto da janela onde havia uma cadeira. Puxou-a um pouco pata que recebesse o luar e sentou-se. — Sente-se — disse para Daisy.

— Em seu colo?

— Por que não?

— Meio impróprio.

— Você vai passar a noite inteira em pé?

Ela suspirou e, rígida, sentou-se nos joelhos dele.

— Só por pouco tempo. Preciso descansar meus pés.

— Calculo.

Era muito bom tê-la assim tão perto e sem temer o contato. Levou uns momentos para ela relaxar um pouco. Mas não se recostou nele e não o faria nesta noite. Parecia se sentir confortável, o que o surpreendia.

Daisy olhou para a janela, o luar batendo em seu rosto lindo.

— Sabe, não é justo — afirmou em voz suave.

— O que não é?

— Você pode ver dentro de mim e eu não vejo nada de você.

— Não há muito para se ver.

— Duvido. Creio que você seja um homem muito interessante...

— Na verdade, sou bem simples e com necessidades simples — O’Hara disse ao começar a passar a mão ao longo de sua espinha. Ah, ela ainda temia um pouco que ele tentasse seduzi-la e não tinha certeza se gostava ou não da idéia.

— Você não parece nem um pouco simples.

— Preciso das mesmas coisas que qualquer homem. Uma boa refeição, o calor de um fogo e uma mulher bonita sentada em meu colo. O que mais um homem pode desejar?

— Que tal um lugar sem fantasmas para passar a noite? — ela sugeriu.

— Não se pode ter tudo.

Daisy não precisava se preocupar com a possibilidade de ele tentar seduzi-la. Depois de tudo pelo que havia passado, ela merecia algo melhor. O’Hara sabia disso não porque a tocasse e sim porque ela o tocava bem no fundo. Daisy Willard merecia um homem que a cortejasse, a adorasse e a seduzisse muito na noite de núpcias.

Por um instante, passou-lhe pela cabeça que ele poderia ser esse homem.

 

Katherine não tinha idéia de quanto tempo ela e Garrick estavam se beijando no escuro. Muito, mas não o suficiente.

Não havia fogo na cozinha e, mesmo assim, ela não sentia frio. Era como se seu sangue estivesse circulando depressa pelo corpo e a esquentasse.

Enquanto se beijavam, ele a acariciava o tempo todo no rosto, no pescoço e nos seios sobre a seda preta. A certa altura, ela inclinou-se para frente, pedindo mais. Enquanto Garrick a atendia, tocou-o no rosto e sobre o coração.

Ela estava com quase trinta anos e nunca havia tido uma experiência amorosa igual a essa. Será que por estar presa ali sentia essa carência tão grande? Ou seria o medo de que não vivesse até de manhã? Não se importava com o motivo, apenas queria gozar as sensações.

Garrick gemeu com a boca junto à sua, uma das mãos em suas costas e a outra num dos seios. Apertou de leve o mamilo ereto, provocando-lhe um arrepio de prazer ao longo do corpo.

— Quero tocá-la — ele murmurou.

— Você está me tocando — ela disse sem afastar a boca da dele.

— Quero mais, Katherine. Quero tocar sua pele.

Beijou-a com paixão e invadiu sua boca com a língua. Depois, afastou-se um pouco.

— Se você não quer que eu a toque assim, diga e eu não insistirei.

Esse era o tipo de contato que ela estava determinada a nunca ter. No entanto, ansiava por ele. A perspectiva de apreciá-lo fez seu coração disparar.

— Está bem — sussurrou e começou a desabotoar a blusa.

— Não, deixe eu fazer isso — Garrick pediu com a mão sobre a sua.

Continuou a beijá-la enquanto soltava os botõezinhos que iam do decole à cintura. Quando terminou e os dedos encostaram em sua pele, ela sentiu o contato até a medula dos ossos. O ar frio em sua pele quente era tão sensual quanto os movimentos dos lábios dele nos seus.

Garrick enfiou a mão sob a camisa e aninhou um seio. A mão estava quente, era tão delicada e... apropriada. Ela nunca havia ficado tão junto de outro ser humano. Era como se respirasse Garrick em cada inalação de ar. Ele tocou o mamilo como o polegar, fazendo-a estremecer e quase despedaçar-se.

Continuaram a se beijar ao mesmo tempo em que ele acariciava seus seios. Sensações jamais imaginadas a assaltavam. Havia tanto prazer nos afagos e no beijo. Devagar e com firmeza, algo começou a se avolumar em seu âmago como as labaredas vorazes de uma fogueira. Esse algo novo escapou depressa de seu controle.

Ela o desejava. Por mais que se contorcesse, não chegava perto como ansiava. As roupas de ambos atrapalhavam. Jamais sonhara desejar o contato de um homem como o de Garrick.

Katherine abriu mais os lábios e a língua dele dançou com a sua enquanto os dedos a excitavam e surpreendiam. Um gemido rouco e aflito escapou-lhe da garganta.

— Katherine, se vamos parar, precisa ser agora — murmurou ele.

Ela entendeu bem o que Garrick insinuava. A carência crescente e dominadora não era o que ela havia esperado desse encontro.

Beijar era muito bom, mas eles já tinham passado muito do ponto de se contentarem só com isso. Desejavam mais. De maneira incrível, ela não queria que esse momento terminasse.

— Não pare — sussurrou.

— Você sabe o que está...

— Não pare — ela repetiu.

A mão que acariciava seus seios desceu, roçou na barriga e nas coxas. Garrick levantou sua saia e a mão começou a subir, acompanhada pelo ritmo rápido e forte da respiração de ambos.

Suas coxas abriram e, pela primeira vez desde que tinham começado, Katherine sentiu uma ponta de alarme. No momento, tudo era lindo, mas se prosseguissem, a beleza acabaria. Seria brutal, penoso e, no fim, ela só sentiria mágoa.

Mas, em seu íntimo, uma ponta de esperança garantia que, dessa vez, seria diferente. Garrick era diferente e, naquela noite, ela se tornara uma mulher diferente.

Quando ele a tocou intimamente pela abertura do calção, ela esqueceu os temores. Garrick afagou-a, excitando-a mais enquanto a paixão crescia.

Lampejos de prazer atravessavam seu corpo e ela estremeceu. Sentia um desejo ardente, algo novo para ela como beijar e ser acariciada.

— O que você está fazendo comigo? — perguntou.

— Estou te amando — ele respondeu com a boca sobre a sua e a mão executando maravilhas inesperadas.

Sem se conter, Katherine começou a mexer os quadris no ritmo dos toques da mão dele.

Logo não havia mais nada no mundo a não ser os dois e sua necessidade premente de receber Garrick em seu corpo. Desabotoou-lhe a calça e libertou o membro. Sem a mínima inibição, aninhou-o entre os dedos. Estava quente e firme. Garrick gemeu quando ela o acariciou por inteiro.

Com a ajuda dele, Katherine virou-se no colo até ficar com uma perna de cada lado. Por um momento, hesitou. Como isso tinha lhe acontecido? O que fazia ali? Ignorou as dúvidas e soergueu o corpo para que Garrick penetrasse nele.

Não sentiu dor, nem arrependimento, apenas prazer e amor. Havia desistido de apreciá-los tanto tempo atrás, no entanto, os descobria no lugar e na hora mais improváveis.

Garrick a preenchia totalmente e, com os impulsos, a levava cada vez mais perto de algo novo e maravilhoso. Verdadeiro milagre. Encontrou um ritmo que satisfazia a ambos. Ele acariciava seus seios e a beijava no pescoço.

Katherine queria que isso durasse a noite inteira, mas sua carência crescia a cada novo impulso. Ele a beijou na boca com uma paixão prontamente retribuída.

Estava tão escuro que ela não podia ver as feições de Garrick. Mas os outros sentidos percebiam tudo. O odor dos corpos unidos, o sabor dos beijos, o som dos suspiros e, acima de tudo, a sensação do contato íntimo.

Katherine gritou quando o prazer intenso do êxtase a atingiu, tomando-a de surpresa. Sentia-se triunfante de várias maneiras. Física e emocionalmente, Garrick a capturava. Seu corpo cantava e vibrava, as mãos tremiam.

Com um último impulso, Garrick alcançou o apogeu. Gemeu abraçado a ela e estremeceu por fora e dentro de seu corpo. O que tinha sido frenético tornou-se calmo.

Ofegante e saciada, Katherine apoiou a cabeça no ombro dele e fechou os olhos. Continuavam unidos e ela não queria que se separassem logo. Ele a acariciou nos cabelos e a beijou na testa.

— Nossa primeira vez não foi numa circunstância romântica, mas você não vai me pegar reclamando — ele brincou.

— Nem você a mim. — Ela sorriu. — Eu nunca... quando era casada, nós não...

Garrick a pegou pelo queixo e a fez erguer a cabeça.

— Não vamos mais falar do passado, do seu ou do meu. Se sairmos daqui, começaremos vida nova. Queimaremos seus vestidos pretos e você passará a usar amarelos, azuis e verdes. Então, seguiremos para um lugar onde não existam lembranças, exceto as que nós criarmos.

— Quando — ela murmurou.

— O quê?

Katherine o beijou nos lábios com a meiguice que acabara de descobrir.

— Quando sairmos daqui.

 

Ao ouvir algo arranhar a porta, Eve assustou-se. Lucien voltara a dormir. Era como se não tivesse energia para ficar acordado muito tempo. Enquanto isso, Scrydan se fortaleceria?

O ruído do arranhar se repetiu e, dessa vez, foi seguido por um murmúrio rouco.

— Eve, você está bem?

Ela correu a ajoelhar-se perto da porta.

— Hugh? É tão bom ouvir sua voz outra vez. Pensei que você tivesse desmaiado — Eve disse com os olhos cheios de lágrimas.

— Caí na escada. Está tão escuro aqui no corredor. Por favor, me deixe entrar aí.

— Não posso. Scrydan está mantendo todas as portas fechadas. Lembra-se?

Hugh gemeu e mexeu-se contra a porta.

— Alguém está sozinho?

— Acho que não. Daisy e O’Hara estão lá em cima, Katherine e Garrick, na cozinha.

— Ainda bem. Assim será mais difícil para os espíritos amedrontá-los. Eles devem ficar juntos e manter a energia.

Hugh estava sozinho, mas conhecia bem as atividades de lugares como este. Podia lutar contra elas melhor do que ninguém, exceto Lionel.

— Você está muito machucado, Hugh?

— Não sei. Minha cabeça dói e sangra um pouco. Os ombros também doem. Acho que torci alguma coisa quando caí.

— Scrydan não pode manter as portas fechadas por muito mais tempo. Logo estaremos livres — ela disse sem muita convicção.

Hugh ficou calado por um bom tempo. Então, murmurou:

— Jane? É você?

Ele chamava pela esposa morta havia tanto tempo, a mulher que ele amava muito e perdera. Scrydan sabia que Hugh se culpava pela morte de Jane e não se importava em usar o sentimento de culpa e o pesar contra um homem indefeso e bondoso. Muito injusto, Eve refletiu ao levantar-se.

Furiosa, segurou a maçaneta da porta e, mais uma vez, a sacudiu com força.

— Seu desgraçado, me deixe sair daqui! — gritou.

Scrydan estava torturando Hugh. Estaria fazendo o mesmo com os outros? Conhecia-lhes os temores e as fraquezas. Pura maldade controlá-los dessa forma.

Ela parou de lutar contra a porta e virou-se para Lucien que continuava a dormir. Com as pernas e os braços amarrados e mal podendo se mexer, ele parecia tão indefeso. Mas não estava. Fosse lá o que fosse, algo dentro dele mantinha as portas fechadas e torturava Hugh. Se ela quisesse que as portas se abrissem, teria de lutar contra Scrydan. Sabia que nunca viria em primeiro lugar na vida de Lucien, mas o amava. A luta não ia ser fácil, pois Scrydan usava o rosto dele.

Eve inclinou-se sobre a cama e bateu de leve no rosto de Lucien.

— Acorde — ordenou, mas ele continuou dormindo.

Ela tornou a bater-lhe no rosto e, dessa vez, com um pouco de força. Novamente, ele não mostrou reação alguma.

No corredor, Hugh começou a gemer.

Eve subiu na cama e sentou-se com as pernas abertas sobre Lucien. A saia do vestido de noiva espalhava-se à volta deles e os cabelos soltos caíam-lhe no rosto. Criou coragem, ergueu o braço e o estapeou com força.

As pálpebras mexeram e abriram devagar. Ao focalizar os olhos nela, Eve percebeu logo que não era Lucien e sim Scrydan. Ele lhe sorriu e disse:

— Ah, amor, tão logo acordei e a vi aí em cima de mim, percebi o que você quer.

Ela deu-lhe mais tapas e com tanta força que a cabeça dele virou para o lado.

— Abra as portas! — ordenou.

— Você acha que é assim tão fácil? — ele indagou, rindo.

Ela o esbofeteou um sem fim de vezes enquanto seus olhos se enchiam de lágrimas. Não é Lucien, dizia a si mesma.

— Duvido que você seja tão forte quanto quer que eu acredite, Scrydan. Tudo não passa de encenação. Você é fraco. Este quarto e meu amor por Lucien o enfraquecem. Nosso amor pelos amigos o deixa confuso e fraco — declarou e tornou a bater nele até ver-lhe o sorriso desaparecer.

— Se sou assim tão fraco, como é que você e seus amigos estão presos aqui?

— É tudo que você pode fazer. Não é todo poderoso. Você controla este hotel, aprisiona espíritos solitários, mas não é tão forte que eu não possa lhe bater.

— Você é uma criança — ele murmurou com um sorriso torto.

— Você só pode ficar em Lucien por causa do poder dele para aceitá-lo. Sem ele, você não é nada — Eve disse e o esbofeteou novamente.

— Se isso é verdade, tudo que você tem a fazer para salvar seus amigos é matar Lucien. — Aproximou-se dela o máximo que as amarras, permitiam. — Mas você não fará isso, não é?

— Você não é Lucien. Parece Lucien, mas...

— Tenho o cheiro dele, não tenho? — ele a interrompeu. — A voz também é igual, Eve. Quer que eu diga que te amo? Essas palavras a farão se sentir melhor?

— Você não é...

— Sou, sim. Se você encostar esses lábios lindos em minha pele, sentirá o sabor dele. — Meneou a língua para ela. — Se você me desamarrar, eu a possuirei e você verá que me aposso de minhas mulheres exatamente como ele fazia. — Mexeu os quadris contra ela. — Você não precisa me desamarrar para fazer o teste, mas prometo que não se arrependerá e...

Parou de falar quando Eve bateu de novo nele.

— Cale a boca! Você não é nada. Não me assusta ou a ninguém. Você não passa de uma patética concha vazia de um espírito. Veja como está indefeso. Se é tão forte quanto pensa, por que não luta contra mim? Vamos lá, Scrydan, pelo menos finja que pode lutar — ela o provocou e, mais uma vez, deu um tapa nele.

— Pare! — ele ordenou, mas Eve bateu mais.

— Você é tão patético, Scrydan. Melissa levou a melhor contra você e, agora, também estou vencendo. Você não pode derrotar uma mulher, Scrydan.

— Melissa era uma bruxa e não uma mulher. E você não é nada. Não pode me fazer mal e nem mudar o que acontecerá aqui esta noite.

— Não posso? — ela murmurou e, então, o estapeou mais.

 

O’Hara correu o olhar pelo quarto que, de repente, parecia sossegado demais. Os fantasmas tinham sumido.

— Você pode ficar em pé por um instante, Daisy? — perguntou ao ajudá-la a se levantar.

— Claro — ela respondeu e afastou-se uns passos.

Ele foi até a porta e tocou a maçaneta que girou, mas não abriu. Parecia menos firme. Virou-se para Daisy e, sorrindo, pediu:

— Venha me ajudar.

Ela o atendeu depressa. Com as mãos sobre as dele, puxaram a porta várias vezes, Ela não abriu, embora mexesse um pouquinho. Em vão, tentaram novamente. A porta continuou fechada.

— Acho que logo sairemos daqui — O’Hara disse.

— É mesmo?

Ele fez um gesto afirmativo com a cabeça e espalmou as mãos na porta. Dessa vez não sentiu sinais de perigo e sim inquietação, sofrimento e esforço violento.

— O’Hara? — Daisy chamou baixinho.

Ele baixou as mãos e virou-se. Daisy Willard era a mulher mais linda que ele já tinha visto. E havia permitido que ele a tocasse com as mãos. Mulheres que sabiam de seu dom não o deixavam chegar perto. Para ele, não existiam amizades duradouras, ninguém com quem conversar no final do dia. Na verdade, ele tinha invejado Eve e Lucien a ponto de se amargurar profundamente.

— Tudo vai dar certo, tenho certeza — ele afirmou.

— Também penso assim. A situação parece diferente, não concorda?.

Daisy não possuía poderes, mas seu instinto estava correto.

— Concordo, sim.

Daisy ficou na ponta dos pés e balançou um pouco o corpo. Que mulher magnífica ela era! Quando voltassem a Plummerville, ele ficaria lá por uma boa temporada. Visitaria Daisy como um perfeito cavalheiro e lhe levaria flores e bombons. Iria cortejá-la da maneira mais refinada possível.

— Você não vai contar a ninguém o que viu quando me tocou, não é? — ela indagou, nervosa.

— Claro que não!

— Seria melhor se você não mencionasse, de forma alguma, que pegou minha mão.

Ele sentiu um aperto no coração e respondeu em tom seco:

— Certamente.

— Pensei que íamos morrer — ela explicou. — Eu nunca teria deixado... Você sabe o que estou tentado dizer, penso.

Magoava, mais do que ele esperava, ouvir Daisy admitir que só o tinha deixado tocá-la porque achava ser sua última noite de vida.

— Se você não contar meu nome a ninguém, guardarei seu segredinho.

Não era um segredinho, mas um desgosto profundo e arraigado. Ele jamais o contaria a quem quer que fosse, não importava o que Daisy dissesse ou fizesse quando saíssem desse quarto.

Teria ele imaginado que Daisy lhe daria toda a atenção do mundo fora dali? Ela havia se amparado nele porque estava com medo. Teria feito o mesmo com qualquer homem que estivesse ali para protegê-la.

— O poder nas paredes está enfraquecendo — O’Hara contou.

— Como não estamos alimentando Scrydan com o medo de que necessita, ele já perdeu muita energia. No momento, luta. Luta e perde, quem sabe. Numa voz áspera, acrescentou:

— Além do mais, tenho certeza de que seu viking chegará para nos salvar logo ao raiar do sol.

 

Katherine apoiou a cabeça no ombro de Garrick. Jerome tinha sumido e a cozinha estava calma. Suspeitava que ele houvesse se ido para sempre, mas queria ter certeza absoluta. Garrick a tinha ensinado a deixá-lo.

Ninguém jamais a havia abraçado com tanta meiguice como Garrick fazia naquele momento. Um prazer inesperado e estimulante.

— Não quero morrer— ela murmurou.

— Eu sei — Garrick disse ao passar a mão em suas costas.

Katherine ergueu a cabeça e o observou. Nunca havia suspeitado que ele lhe sentisse afeto. E, muito menos, do seu por ele.

— Você não sabe, não. Durante muito tempo, eu não me importava com nada. Não havia razão para viver.

Garrick sorriu. O pequeno e ordenado mundo dele tinha virado de cabeça para baixo, a situação terrível em que se encontravam estava longe de terminar e ambos sabiam que não poderia haver nada entre eles se saíssem vivos dali. Mesmo assim, ele sorria.

— Você é tão linda — ele murmurou.

— Você diz isso no escuro— ela provocou.

— Posso vê-la, Katherine. Mentalmente, tenho um exato retrato seu. — Enquanto acariciava seu rosto, descreveu as feições: — A pele tão alva e macia, nariz afilado e perfeito, lábios, que já conheço tão bem, têm um sabor delicioso e são tão maravilhosos quanto parecem. E, quando amanhecer e eu a vir à luz do dia, sei que você estará mais linda ainda.

— Eu não sou... assim.

— E não discuta comigo sobre isso — ele a interrompeu.

Ela o acariciou nos cabelos e Garrick inclinou-se para beijá-la no pescoço.

As sensações deliciosas, às quais ele dera vida, começaram a surgir de maneira insistente. Para tanto, bastava o contato sensual dos lábios dele em sua pele. Ela fechou os olhos e suspirou. Sentia-se tão viva.

Katherine não era inexperiente. Viúva, havia compartilhado a cama durante anos com o marido. Mas nunca homem algum tinha feito amor verdadeiramente com ela. Até então, ignorava o que fosse isso.

Enquanto Garrick a beijava, ela puxou-lhe a camisa para fora da calça e enfiou a mão para tocá-lo na pele. Estava quente, sentiu. Ele passou a beijá-la na boca. Seus lábios abriram e o beijo aprofundou. Seu corpo estremeceu.

— Por que não ficamos presos num quarto com uma boa cama e um acolchoado macio? — Garrick indagou numa voz rouca.

Katherine decidiu ser bem audaciosa e tocou-o sensualmente.

— Você está reclamando?

— Não!

 

Este não é Lucien, Eve disse a si mesma e tornou a estapeá-lo.

Sua força não era fora do comum, mas os sinais das pancadas já surgiam no rosto dele. Um fio de sangue escorria do canto da boca, o queixo estava vermelho e a pele sob os olhos inchava.

— Lute contra mim, seu maldito.

— Eve, eu jamais poderia machucá-la.

Este não era Lucien, não importava o que dissesse. Pelo menos não inteiramente. Estava ali, mas Scrydan o controlava. E era contra ele que lutava.

O cinzento do amanhecer já coloria o céu. Se Lionel e Buster chegassem logo, ela pediria a Lionel para descobrir a magia que enfraqueceria Scrydan. Isso só seria possível se eles pudessem abrir a porta da frente e entrar.

Bater em Lucien era mais difícil do que ela havia esperado. Cada tapa a machucava mais do que a ele.

Eve ergueu a mão, mas a parou no ar. Não conseguia mais golpeá-lo. Tinha de haver outra maneira de lutar e enfraquecer Scrydan. Relaxou a mão e tocou-o no rosto. Os nós dos dedos estavam esfolados e vermelhos. Num murmúrio, perguntou:

— Lucien, você pode me ouvir? Não sei se ainda está aí. — Acariciou-o no rosto. — Eu te amo. Não importa o que aconteceu para nos trazer aqui e eu não ter certeza de estar agindo bem. Eu te amo.

Scrydan lhe dirigiu um olhar carrancudo.

— Você pensa mesmo que isso importa?

Numa voz calma, ela respondeu:

— Penso, sim. Acredito que o amor seja mais forte do que o ódio e o medo. Sem dúvida é mais forte do que você. Imagino que você não compreenda essa idéia. Amor.

— Luxúria, nada mais. Era o que vocês dois sentiam um pelo outro antes de eu chegar.

— Não foi luxúria, nem simples afeto que me trouxe aqui. Foi amor. É o que mantém Lucien vivo, mesmo neste momento.

— Não será por muito tempo. Ele quase já se foi. Está fraco — Scrydan sussurrou.

— Não acredito em você — Eve afirmou e imaginou se ele podia perceber que mentia.

— Você não quer fazer uma troca?

— Que tipo de troca? — ela indagou, tensa.

— Deixarei seus amigos irem embora.

— Eles ainda estão vivos?

— No momento, sim.

Eve não podia acreditar e nem confiar nele. Mas que escolha tinha a não ser ouvi-lo?

— E o que você quer em troca?

— Que você me solte. Então, sairemos juntos daqui.

— Por que você deixaria todos nós vivos?

— Não vejo razão para não dizer a verdade, Eve. Não será por muito tempo que manterei você viva. Quando chegar a hora certa, claro. Talvez eu permita que Lucien fique mais um pouco para ver. Vocês dois juntos me alimentarão com medo bastante para me deixar forte por um bom tempo.

— Se você tiver o corpo de Lucien e estiver fora do hotel, para que precisará de medo?

— Gosto do sabor dele.

Se Lucien não saísse vivo do hotel, ela não se importaria de morrer. Não queria, mas sacrificar-se a fim de salvar cinco pessoas não era uma idéia tão má.

— Você teria de deixá-los sair primeiro — estipulou.

— Não confia em mim, Eve?

— Nem um pouco. E pare de me tratar por Eve.

A ordem o fez sorrir.

— Então, temos um trato, amor?

Sua vida por cinco. Não era uma grande escolha.

— Temos.

 

O’Hara recomeçou a andar de um lado para o outro. Em pé, Daisy mantinha-se imóvel. A escuridão não era mais absoluta, pois o amanhecer já se anunciava. Pela janela, entrava uma luz fraca que deixava ver a pobreza do quarto sujo e cheio de teias de aranha.

Era melhor não olhar para elas. Nem para a cama e a cadeira em que tinham passado parte da noite. Preferia observar O’Hara.

Ele continuava bravo. Nunca a perdoaria pela tolice de comparar Lionel a um viking. Bem, isso não importava, se saíssem dali. Quigley O’Hara iria embora de Plummerville bem depressa, ela imaginava. Por que haveria de ficar? Não por sua causa, sem dúvida. Ele levava uma vida animada e devia achá-la, bem como a cidade, muito aborrecidas. Seria bom mesmo ele ir embora antes de, sem querer, deixar escapar seu segredo,

Todas as pessoas cometiam erros. A maioria não era tão grande quanto o seu. Mesmo assim...

A quem tentava enganar? Até O’Hara tinha gostado um pouco dela. Não mais. Sabia que ela era fraca e leviana. Havia acertado ao pensar que ele não se importava com sua pessoa e nunca lhe perdoaria o erro antigo. Isso fazia tanto tempo que ela não se sentia mais como a jovem apaixonada cujos coração e corpo tinham lhe governado a cabeça.

Talvez fosse diferente se aquela noite não houvesse sido tão marcante e maravilhosa. Quem sabe ela não esqueceria seu erro horrível se a noite tivesse sido penosa e assustadora?

Porém, ela havia adorado se deitar com Tucker a quem amava muito. Tinha apreciado as sensações, a intimidade e o prazer de senti-lo dentro do corpo. Esse seu traço de libertina, descoberto naquela noite de paixão, apenas deixava muito mais difícil livrar-se do sentimento de culpa.

Daisy tentou acalmar as preocupações com O’Hara e o passado feio e pensar em outras coisas. Sentia pena de Katherine e Garrick. Até bem pouco tempo atrás, eles não se davam bem, mas pareciam estar se relacionando melhor. Imaginava como eles estariam se comportando onde tinham ficado presos. Na cozinha, calculava.

Eve estava com Lucien, ou melhor, Scrydan. E se ele conseguisse se soltar? Ao passar pelo corredor, ela o tinha visto amarrado na cama e com expressão cruel. Eve acabaria concordando em soltá-lo?

Hugh tinha caído, O’Hara dissera. Se houvesse sobrevivido, estava sozinho. Situação terrível passar a noite naquele hotel sem ninguém para ampará-lo e lhe falar.

— Obrigada — Daisy murmurou.

O’Hara parou de andar e a encarou.

— Pelo quê?

— Por tudo. Eu teria enlouquecido se não fosse por você.

— Ora, de nada — ele respondeu, ríspido.

— Não precisa ser indelicado.

— Pois acho que tenho...

Antes de ele terminar, a porta abriu-se. E as outras também, Daisy ouviu. Estalaram e rangeram ao longo do corredor do terceiro andar, bem como do segundo. O’Hara não perdeu tempo. Agarrou-a pela mão e a puxou para fora com uma única ordem:

— Não olhe para trás.

Ela não o fez e em questão de segundos já tinham descido a escada. Até a porta do terraço estava aberta. A luz da manhã iluminava o vestíbulo e parte da escada para o segundo andar.

Apenas uma porta ali permanecia fechada, a do quarto de Lucien e onde Eve esperava. Hugh encontrava-se caído diante dela.

— O’Hara? — Eve chamou pela porta fechada.

— Estou aqui. O que aconteceu?

— Leve Hugh e Daisy para fora do hotel. Katherine e Garrick estão na cozinha. Mande-os sair depressa também.

— E quanto a você? — O’Hara indagou, aflito.

Uma voz profunda resmungou algo indecifrável. Lucien. Ele, não. Desesperada, Eve avisou:

— Você não tem muito tempo. Leve todos para fora!

O’Hara praguejou por entre os dentes. Com esforço, pôs Hugh em pé, mas teria de arrastá-lo, pois o pobre não poderia andar.

— Vamos embora — resmungou.

— Você não pode deixar Eve para lutar sozinha contra aquele espírito — Daisy protestou enquanto o seguia rumo à escada.

— Voltarei para ajudá-la quando vocês todos estiverem em segurança — ele explicou em voz baixa.

— Poderá ser tarde demais! — ela argumentou.

No vestíbulo, viram Katherine e Garrick sair da sala de jantar.

Pela aparência, haviam passado uma noite terrível. Além dos rostos abatidos, tinham as roupas amarfanhadas como se houvessem lutado contra algo horrível. Coitados.

— Lá para fora! Imediatamente! — O’Hara ordenou.

Katherine e Garrick não perderam um segundo. De mãos dadas, correram para o terraço.

Daisy parou dentro do vestíbulo e esperou que O’Hara deixasse Hugh sob os cuidados de Garrick. Então, murmurou:

— Não posso ir embora e deixar Eve aqui.

O’Hara voltou para dentro. Sem dúvida ia ajudá-la a salvar Eve. Juntos, eles...

Com um movimento rápido, ele a agarrou, jogou-a sobre o ombro e saiu para fora. No momento em que a pôs de pé no chão, a porta do Honeycutt Hotel bateu com estrondo, trancando-se novamente.,

 

Nervosa, Eve sentou-se na beirada do colchão. Scrydan sorriu-lhe. Ela não se iludiu de que talvez fosse Lucien.

— E então? — ele indagou ao puxar os pulsos presos.

— Quando eu tiver certeza de que todos estão em segurança, eu o soltarei — ela respondeu em voz calma.

Naquele momento, precisava da máxima tranquilidade. Levantou-se e foi até a janela. O amanhecer estava lindo. O resto da neve derreteria nesse dia, pois não havia nuvens para sombrear o solo congelado.

Eve abriu a janela e deixou que o ar frio de janeiro a envolvesse. Na distância, viu Lionel e Buster cavalgando rumo ao hotel. Vinham depressa e conduziam várias montarias. Ótimo. Logo os outros se afastariam para a segurança.

Bem atrás dos dois, ela reconheceu Elijah. Prendeu a respiração. O menino, que tinha tentado salvar Lucien, não podia chegar perto do hotel. Não enquanto a luta continuasse ferrenha.

A que distância Lionel poderia intuir que Elijah os seguia? E também para mente dele receber uma mensagem da sua?

O’Hara rodeou o canto do hotel e olhou para sua janela.

— O que você pensa estar fazendo? — ele gritou.

— Foi a única solução. Vocês todos tinham de sair e ficar em segurança — ela explicou.

— Engano seu. Como posso voltar aí para dentro?— ele gritou.

— Avise esse tolo para não tentar — Scrydan resmungou. — Diga-lhe que se voltar, comerei as entranhas dele no jantar.

Eve o ignorou e respondeu apenas a O’Hara:

— Você não pode. Tarde demais para isso.

Daisy rodeou o canto da casa correndo e O’Hara esbravejou.

— Eu lhe disse para ficar com os outros.

— Não sou obrigada a fazer o que você manda — ela replicou e ergueu a cabeça a fim de olhar para Eve. — Eu não queria deixar você aí, mas este cretino me carregou para fora à força.

— Ele fez muito bem. Agora, quero que você o force a fazer uma coisa que ele não quer — Eve disse.

— Com o maior prazer — Daisy declarou.

— Insista para ele a levar, bem como aos outros, de volta a Plummerville. Vejam, Lionel e Buster estão chegando com montarias. Vão encontrá-los e avisem Lionel que Elijah os acompanha de longe. Mandem o menino para casa e digam-lhe para nunca mais vir até aqui.

— Por que não? O menino nunca me apeteceu. Ele não tem imaginação fértil — Scrydan queixou-se.

— Você não pode descer pela janela, Eve? — Daisy sugeriu, tentando, em vão, falar em voz baixa.

— Avise que se você fizer isso, as paredes tremerão, fazendo-a cair e quebrar o pescoço — Scrydan advertiu em voz baixa.

Ao responder, Eve olhou para O’Hara e Daisy:

— Não posso. Contem a Lionel que existe uma tal Melissa aqui...

Furioso, Scrydan a interrompeu:

— Está na hora de você me desamarrar. Cumpri minha parte do acordo. Agora, é sua vez.

Eve fechou a janela sem dar ouvidos aos gritos de O’Hara e Daisy.

— Só cumprirei a minha quando eles se forem — ela disse.

— Isso não fazia parte do acordo — Scrydan protestou. Puxou a mão direita com força. A guarda da cama rangeu. Com apenas ela na casa, as energias dele se concentrariam mais.

Ficaria mais forte e, em pouco tempo, ele próprio se soltaria.

— Pois faz parte do acordo agora. Qual é sua pressa?

— Estou aprisionado aqui faz tempo demais. Até Lucien chegar, eu já tinha esquecido o prazer de respirar e de sentir sabor. Também o de penetrar no corpo de uma mulher disposta a me aceitar.

Deus do céu, na noite anterior ela quase havia feito sexo com Scrydan! Porém, Lucien tinha emergido para protegê-la e não deixara Scrydan lhe fazer mal.

Lucien continuava ali, fraco, mas vivo.

— Se esperou até agora, pode esperar mais um pouco — ela disse.

— Já esperei demais!

Inquieta, Eve pôs-se a andar pelo quarto enquanto Scrydan resmungava e forçava as cordas. Pouco depois, ela voltou para perto da janela. O’Hara e Lionel conduziam os outros para longe do hotel. Elijah seguia o caminho de casa. Estavam em segurança. Restava uma única solução.

Eve virou-se e viu que Scrydan lhe sorria.

— Vai me soltar agora?

— Ainda não.

O vestido de noiva parecia ter mais de cem botõezinhos ao longo da blusa. Sem pressa, Eve começou a abri-los.

— O que está fazendo? — Scrydan perguntou.

— Você foi honesto o bastante para dizer que vai me matar. Talvez eu queira, antes de soltá-lo, abraçar Lucien pela última vez, encostar pele na pele.

— Lucien não está aqui — ele afirmou.

— Está, sim — Eve insistiu para, depois, despir o vestido bem devagar.

Era uma incumbência que Lucien teria assumido no quarto deles, na noite de núpcias. Ela não se apressou, pois não sentia prazer em executar a tarefa. Apenas pensar que Lucien poderia estar ali, em algum lugar, a incentivava. Quem sabe esta não seria a única maneira de atingi-lo?

 

Já se encontravam longe do hotel e Daisy não parava de azucrinar O’Hara.

— Não posso acreditar que você a tenha deixado lá. Como pôde fazer isso? Que tipo de homem você é? — indagou em prantos.

Daisy não descontava a revolta nos outros, apenas nele.

— Se eu fosse homem, estaria lá para lutar por meus amigos. Caso você não tivesse me tirado à força de lá — ela acrescentou.

— Daisy, fique quieta — ele pediu.

— De jeito nenhum.

O’Hara olhou para Lionel que cavalgava sem ninguém ao lado.

— Você acha que estamos longe o suficiente?

Lionel fechou os olhos e respirou fundo, enquanto o cavalo seguia em frente por conta própria.

— Sim — ele respondeu finalmente.

— Longe o suficiente para quê? — Daisy quis saber.

Um a um, todos pararam as montadas sob umas árvores ao lado da estrada.

O’Hara não respondeu e dirigiu-se a dois dos homens:

— Garrick e Buster, vocês estão encarregados de levar as moças e Hugh até a cidade. Tão logo cheguem lá, providenciem um médico para ele.

— Estou bem. Meu lugar é ao lado dê você e de Lionel — Hugh declarou numa voz fraca que o desmentia.

— Vocês dois vão voltar? — Daisy indagou, temerosa.

Como se inclinasse para o lado de O’Hara, ele não pôde ignorá-la.

— Vamos, claro — ele respondeu ao estender-lhe a mão a fim de ajudá-la a desmontar.

Ela a pegou com naturalidade, esquecida do dom daquela mão. O’Hara tentou bloquear os sentimentos que o atingiram, mas a aflição era tão intensa que foi impossível ignorá-la. Preocupada com os amigos e com ele, Daisy segurou-lhe a mão por uns momentos antes de pular ao chão.

— Tomem cuidado — ela recomendou.

— Tomaremos.

— Eu não devia ter dito aquelas tolices, O’Hara. Sei que você não é covarde e tinha certeza de que não iria embora, deixando Eve e Lucien lá para... Tomem cuidado — repetiu.

Talvez mesmo Daisy soubesse que a morte não seria o pior que os amigos poderiam enfrentar, O’Hara refletiu.

Lionel já se afastava e ele o seguiu. Deixar Daisy para trás tinha sido mais penoso do que ele esperara.

— Scrydan saberá que estamos indo? — indagou, concentrando-se na missão difícil.

— Depende. Se Eve estiver lutando, talvez ele se mantenha ocupado demais para pressentir nossa aproximação.

— Esperemos que sim — O’Hara murmurou.

— Penso que já sei o que fazer quando chegarmos lá. Será perigoso, mas poderá ser nossa única opção.

— Apenas me diga o que fazer. Acho que, a esta altura, já passamos do ponto de nos preocupar com o perigo.

— É verdade — Lionel concordou, distraído.

Quase toda a neve já tinha derretido, mas ainda restavam umas faixas brancas em lugares sombrios. Pelo menos Daisy e os outros estavam em segurança e Hugh teria cuidados médicos. Ele se consolaria com isso, não importaria o desfecho que tivessem de enfrentar.

Numa voz baixa, Lionel afirmou:

— O’Hara, Daisy Willard não gosta de mim. Ela gosta de você.

— Muito tempo atrás, fizemos um acordo de não ler os pensamentos uns dos outros — O’Hara protestou.

Lionel sorriu.

— Não li os seus, Quigley. Li os de Daisy.

 

— Para que essa faca? — Lucien perguntou quando Eve subiu na cama, depois de se despir.

Para ela fazer o que precisava, tinha de pensar que era Lucien e não Scrydan.

— Para cortar as cordas quando for a hora certa— ela respondeu ao apertar o cabo da faca deixada por Buster.

— Já é a hora certa — ele insistiu.

— Ainda não.

Com dedos trêmulos, desabotoou-lhe a calça. Tinham feito amor muitas vezes, mas esta seria diferente. Scrydan governava a cabeça e o corpo de Lucien, mas não o coração. Sem saber como, tinha certeza disso. O maldito ainda não tinha domínio absoluto.

Ao enfiar a mão na calça, ela encontrou o membro já ereto. Tirou-o para fora e o acariciou.

— Por que você não me solta para eu também participar disto? — Scrydan sugeriu num tom malicioso. — Ou você é pervertida? Aposto como fazia este joguinho com Lucien. Alguma vez ele a amarrou e a possuiu com brutalidade? Ele já a machucou?

— Você sabe que não. Lucien me ama e nunca me faria mal — ela murmurou.

— Pensa que deixarei Lucien emergir para participar disto só porque você quer ser a rameira dele pela última vez? — Scrydan sorriu e piscou. — Pode continuar. Não acho isso nem um pouco desagradável. Mas entenda que não existe ninguém mais aqui além de mim, Eve. Talvez você já saiba isso e goste mais de mim do que quer admitir...

Sem dúvida ele sabia que a insinuação de achá-lo atraente a repugnava. Scrydan era um demônio, um monstro. Ela amava Lucien, o homem que o desgraçado tinha capturado.

— Lucien está aqui. Posso sentir-lhe o odor e a textura da pele — ela murmurou ao acariciá-lo no peito.

Espalmou a mão sobre o coração. Batia depressa demais como desde que a batalha no íntimo tinha começado. Inclinou-se para frente e roçou a ponta da língua no pescoço dele.

— Não mudei de idéia e pretendo matá-la quando sairmos daqui — Scrydan avisou.

Eve sentou-se sobre ele com cada uma das pernas de um dos lados do corpo. A proximidade era tanta que a penetração seria fácil.

— Não vai dar certo. Tudo que você está fazendo é me fortalecer — ele murmurou.

— Então por que está preocupado? — ela indagou.

— Não estou. Você não significa nada, amor. Não pode me fazer mal. Muito menos me empurrar para o lado a fim de trazer de volta o homem que não existe mais. Continue, se insiste, mas é a mim que você está seduzindo e não seu amado Lucien.

Eve não acreditava que ele estivesse certo. Lucien havia lutado para emergir antes. Tinha certeza de que ele o faria de novo ao sentir Scrydan invadir seu corpo. Lucien a amava muito.

Scrydan sussurrou:

— Você já sabe que sou apenas eu. Talvez não se importe de quem seja o espírito dentro deste corpo. Você só se importa com ele.

Ao provocar-lhe asco, ele tentava fazê-la desistir mesmo antes de começar.

Tantas noites ela havia tocado o corpo deste homem. Conhecia-o tão bem. Mais do que isso, conhecia o coração que batia no peito e o espírito que regia Lucien Thorpe.

Eve prendeu a respiração enquanto o guiava na penetração, mexendo-se devagar para ajudá-lo. Ele permaneceu imóvel, com aquele maldito sorriso. Scrydan estava ali, mas Lucien também. Podia senti-lo com o coração.

Com delicadeza, começou a erguer e baixar os quadris. Ao mesmo tempo, murmurava:

— Eu te amo, Lucien, mais do que jamais amei outra pessoa a vida inteira. Mesmo quando estou brava e penso que não existe mais esperança para nós, eu te amo.

A faca estava em sua mão direita, segura com firmeza. Estendeu a esquerda e o acariciou no rosto. Um vento frio, vindo não se sabia de onde, atingiu seu corpo nu, enregelando-o. Ela não prestou atenção. Apenas Lucien e a maneira com que se uniam existiam. Nada mais importava.

Ele não tentou mordê-la como fizera antes. Ela levantava e baixava o corpo, recebendo-o em seu âmago. Fechou os olhos e lembrou-se das muitas vezes em que tinham se unido dessa forma. Era mais do que sexo, um ato físico.

Cada um era a melhor metade do outro. Completavam-se e, separados, valiam menos. Juntos, poderiam fazer qualquer coisa, como lutar contra esse ser que havia se apossado do corpo de Lucien.

O vento frio passou. O homem sob ela começou a mexer os quadris e gemeu baixinho. Eve abriu os olhos e, sem a menor sombra de duvida, soube que fitava Lucien. Num sussurro e sem interromper os movimentos, instigou-o:

— Lute contra ele. Você é meu, Lucien. Não o deixarei ir embora.

Eve estendeu a mão para cortar a corda.

— Ainda não. Ele ainda está aqui — Lucien avisou.

— Lute contra ele. Lucien. Lute por mim, por nós e pela vida que jamais teremos se ele vencer.

— Eve — ele murmurou.

— Lute pelos filhos que não tivemos tempo de conceber. Talvez o primeiro deles já cresça dentro de mim. Se deixarmos Scrydan vencer, esse bebê nunca nascerá. Morreremos aqui neste lugar horrível, você, eu e nosso filho.

— Não deixarei que isso aconteça — Lucien murmurou, meio rouco.

— Sei que não deixará. Resista a ele, Lucien, expulse-o para fora. Você tem o poder, a vontade e a mim. — Enquanto falava, ela continuava os movimentos. — Não permita que ele durma ou se esconda. E tão logo que o expulsar, feche as portas de sua mente para que ele não possa voltar. Ele se esforçou muito para manter você preso, controlar o hotel e os espíritos. Está fraco. Chegou a hora — ela afirmou e cortou a corda que lhe prendia uma das mãos.

Lucien ergueu o braço, girou-o e a abraçou. Eve passou a faca para a mão esquerda e cortou a outra corda. Como antes, Lucien a abraçou com o novo braço livre.

Era Lucien quem a segurava, ela sabia quando um hotel, furioso, começou a tremer. Tudo tremia, paredes, soalho, móveis.

— Lucien? — ela sussurrou.

— Sou eu, sim, Eve.

Abraçada a ele, sorriu e, pela última vez, o acolheu no fundo do corpo. O prazer explodiu em seu âmago. Ela não o largou e exultou quando Lucien estremeceu, dominado pela satisfação plena. Ao mesmo tempo, a casa tremia, portas batiam, porém, eles ignoravam o barulho, pois só se importavam consigo mesmos.

Eve voltava a sentir o corpo aquecido. O coração de Lucien havia retomado o ritmo normal. Continuavam unidos espiritual e fisicamente. Juntos, tinham expulsado Scrydan. Pelo menos, era o que ela pensava.

— Ele se foi? — perguntou enquanto se separavam e para, logo em seguida, cortar as cordas que prendiam as pernas de Lucien.

— Foi, sim. Completamente. Podemos sair deste lugar maldito?

— Sim, pelo amor de Deus!

Eve enfiou-se no vestido de noiva sem perder tempo com as roupas de baixo, meias e sapatos. Ao vê-la começar a abotoar o vestido, Lucien a impediu.

— Você pode terminar isso lá fora.

Pegou-a pela mão, saíram do quarto e correram escada abaixo. Rumaram para a porta que Lucien não conseguiu abrir.

— Não importa o que você faça, mantenha as portas da mente bem fechadas. Não deixe que ele volte — Eve aconselhou.

Lucien assentiu com um gesto de cabeça e correu o olhar pelo vestíbulo.

— Tantos espíritos — murmurou.

— Você não pode receber nenhum. Lembre-se do que aconteceu na última vez— ela avisou.

— Eu gostaria que você tivesse trazido o registrador de espectros.

Então, Eve convenceu-se plenamente de quê tinha Lucien de volta. Segurou-lhe a mão com força. Separados, ficavam vulneráveis, juntos, seriam invencíveis.

— Como podemos sair daqui? — perguntou.

Naquele instante, ouviram o tropel de cavalos e correram para uma janela. Viram Lionel e O’Hara que sé aproximavam a galope. Tão logo desmontaram, correram para o terraço. Foi Lionel quem os viu primeiro.

— A porta não abre? — ele indagou bem alto para ser ouvido apesar do barulho das paredes que tremiam.

— Sim — Lucien gritou de volta ao mesmo tempo em que tentava, em vão, abrir a janela. — Vou quebrar a vidraça.

— Não, espere! — Lionel avisou.

Fechou os olhos e ficou imóvel por um momento. Quando os abriu, focalizou-os em Lucien por algum tempo. Estaria ele verificando se era, de fato, o amigo que tentava salvar? Finalmente, sorriu.

— Fiquem perto da porta, mas longe das janelas, e prontos para correr. Tenho uma idéia.

— Afinal, você vai me explicar essa tal idéia? — O’Hara indagou quando Lionel desceu do terraço.

— A mensagem de Eve sobre Melissa abriu uma nova porta. Tive uma visão de uma janela sendo quebrada, o que provocou uma reação.

— Como assim? — O’Hara perguntou.

— Janelas explodiam, paredes desmoronavam, ou seja, o fim do Honeycutt Hotel e de tudo dentro dele. Scrydan está fraco, mais do que jamais esteve. Este é o momento para atacar. Se o hotel se for, ele morrerá.

— E os espíritos aprisionados? — O’Hara quis saber.

— Finalmente ficarão livres para partir. Mas será perigoso. Não sei exatamente o que acontecerá. Nada aqui é o que parece ser. Minhas visões ficam alteradas neste lugar. Tudo é distorcido.

— Você tem alguma outra idéia? — O’Hara indagou.

Lionel balançou a cabeça num gesto negativo.

Depressa, eles levaram os cavalos para a mata, longe do hotel, onde os animais ficariam protegidos pelos troncos das árvores. Enquanto retornavam à antiga construção, cataram pedras que poderiam atirar com facilidade.

Numa voz soturna, O’Hara perguntou:

— Apenas atiraremos pedras num hotel mal-assombrado na esperança de que isso provoque uma catástrofe? E se não der certo?

— É mais do que isso. A bruxa Melissa amaldiçoou o lugar anos atrás. Por alguma razão, não posso ouvi-la com clareza, mas, de um ponto, estou certo. Antes de morrer, ela lançou uma praga no hotel. O início de destruição provocaria o fim. Suspeito que ela própria quisesse começá-la, mas morreu antes.

— Vale a pena tentar — O’Hara declarou.

Os dois posicionaram-se o mais longe possível do hotel. De lá, Lionel gritou para Lucien e Eve:

— Afastem-se das janelas!

Então, girou o braço e atirou uma pedra na direção de uma das janelas do segundo andar. Errou o alvo.

— Um viking e tanto você é — O’Hara resmungou ao atirar uma, também numa janela do segundo andar.

Acertou em cheio. Fez-se um momento de silêncio absoluto. Nada acontecia! O’Hara jogou fora as outras pedras e, mentalmente, fez pouco caso da visão de Lionel.

Então, um segundo depois, começou. Todas as janelas explodiam, lascas de vidro caiam dentro do hotel e voavam para fora. O barulho era infernal. Os dois protegeram os olhos contra as lascas que chegavam tão longe e Lionel elogiou:

— Boa pontaria.

— Graças ao beisebol — O’Hara explicou.

A destruição não parou com a explosão das janelas. As paredes tremiam e o telhado do terraço balançava.

— Vou buscá-los — O’Hara avisou, mas Lionel o impediu de ir.

— Não será necessário.

A porta de entrada abriu-se, dando passagem para Lucien e Eve que correram para fora. Ele tentava protegê-la contra lascas de vidro e de madeira. Pela porta aberta, tinha-se a impressão de que um tornado destruía o vestíbulo.

Lucien não usava nada além da calça escura e Eve, descalça, mal cobria o corpo com o vestido de noiva em péssimas condições. Ambos estavam descabelados e Lucien parecia ter sido esbofeteado. Mas estavam vivos e relativamente bem.

Quando alcançaram O’Hara e Lionel, os quatro correram para a mata.;

— Sou o único que quer ficar para olhar? — Lucien perguntou.

— Sim! — três vozes responderam ao mesmo tempo.

— Mas é tão fascinante. Talvez nunca mais possamos observar um fenômeno como esse — ele argumentou.

— O lugar ainda é muito perigoso para você, Lucien. Sugiro que fujamos depressa — Lionel disse ao ajudá-lo a montar e, depois, acomodar Eve na frente da sela.

Lucien concordou com um aceno e Lionel montou na garupa de O’Hara. Este não resistiu e, enquanto se afastavam num trote rápido, olhou para trás.

Telhas voavam do telhado, paredes rufam, quatro colunas desmoronaram uma a uma. Em poucos momentos e com um barulho tremendo, o hotel estava reduzido a escombros.

Lucien e O’Hara pararam as montadas e as viraram para trás. Com os olhos esbugalhados e em silêncio, os quatro observaram a destruição total.

Viram vários pontos brilhantes subirem das ruínas. Os fantasmas ascendiam ao céu azul, envoltos em luz e em todas as cores do arco-íris.

Algo sombrio os seguiu, numa espiral cinza e preta. Scrydan. Mas enquanto os espíritos escapavam, a nuvem sombria se viu aprisionada. Scrydan ainda estava ligado à casa que depressa se destruíra e à terra sob ela. O’Hara esperava ver a nuvem sombria descer à terra e teve a impressão de que o espírito tentou.

Porém, a maldição da bruxa dera certo. A nuvem escura rodopiou acima das ruínas do hotel e, então ouviu-se um uivo tremendo. O grito de Scrydan.

Enquanto os quatro olhavam, a nuvem desintegrou-se totalmente, acompanhada de um último uivo.

Eve escondeu o rosto no peito de Lucien, ele a abraçou e virou o cavalo para o outro lado. Lionel suspirou de alívio e de exaustão.

— Ele se foi realmente? — O’Hara perguntou.

— Foi, sim — Lionel respondeu.

— Deveríamos voltar lá e...

— De jeito nenhum! Não existe razão para voltarmos — Lionel afirmou com veemência.

Isso significava que só lhes restava seguir em frente, solução um tanto temerosa.

 

O que se diz a uma mulher que lhe salva não só a vida como também a própria alma? Eu te amo parece trivial e inadequado. Ele havia pronunciado essas palavras centenas de vezes e sempre com a maior sinceridade, mas não pareciam suficientes em tal situação. Obrigado? Nem de longe.

Felizmente, Lucien não precisava dizer nada ainda. Eve dormia entre os braços dele, enquanto cavalgavam para casa.

— Você tem certeza de que não quer meu paletó? — O’Hara ofereceu pela terceira vez.

— Tenho sim, obrigado.

Deveria sentir frio, Lucien sabia, pois estava com o peito nu e descalço. Scrydan se fora, estava morto, porém, tinha deixado uma pequena parte dele em seu íntimo. Isso explicava estar insensível ao frio. Quando ele encaminhava almas para o além, ficavam lembranças da memória da pessoa falecida. Nunca duravam muito, não mais do que algumas horas. Porém, ele nunca fora possuído por um espírito tão maligno quanto Scrydan e por um período tão longo. Como iria reagir? A dúvida o assustava.

Lucien lembrava-se de tudo que Scrydan tinha feito antes e depois de morrer. Lembrava-se como se ele próprio houvesse praticado tudo aquilo. Racionalmente, sabia que não tinha e que as lembranças se apagariam. Mas se isso não acontecesse dessa vez? Se Scrydan ficasse para sempre com ele?

— O’Hara, não estou mesmo com frio, mas, se não se importar, aceito seu paletó para agasalhar Eve.

Mesmo dormindo, ela tiritava de frio.

— Claro — O’Hara concordou prontamente.

Depois de pararem as montarias, Lionel e O’Hara tiraram os paletós que entregaram a Lucien. No mesmo instante, ele os arrumou em volta de Eve. Ela mexeu-se um pouco, mas não acordou. Estava exausta.

— Eu ainda o desprezo, O’Hara. Um dia vamos ter uma longa discussão sobre a maneira adequada de tratar uma dama de respeito — Lucien afirmou.

— Por que você simplesmente não me dá uns murros e acaba de vez com essa história? — O’Hara sugeriu.

— Talvez eu faça isso.

Era uma idéia tentadora, mas fora de cogitação no momento. Ele estava sem energia e não tinha coragem de dar socos no homem que havia ajudado a salvar sua vida e a de Eve.

— Parece que alguém já lhe deu uns bons murros. O que aconteceu? — O’Hara perguntou.

Lucien tocou um lugar dolorido no queixo. Um dos olhos estava meio inchado. Teve de pensar um pouco e, de repente, lembrou-se. Estava amarrado na cama com Eve sentada em cima dele, batendo-lhe sem piedade, chorando e implorando para ele voltar.

Distraído, Lionel aparteou:

— Foi Eve. Ela lutava contra Scrydan da única maneira que sabia. Eve foi uma guerreira. Ela o salvou, Lucien. Aliás, a todos nós.

— Eu sei.

Eles tinham horas de cavalgada pela frente para chegar a Plummerville, especialmente com duas pessoas em cada montaria. Horas em que Lucien não sentia frio e imaginava se o demônio ainda vivia em seu íntimo. Horas em que ele conjeturava se deveria ou não se casar com Eve, Ele a amava demais para romper a relação, mas ao mesmo tempo, esse amor profundo o impedia de forçá-la a enfrentar outra experiência como esta.

— Você é um homem de sorte — O’Hara disse.

— Eu sei.

— Será que sabe mesmo? Por acaso imagina o número pequeno de homens que conhecem o tipo de amor que Eve sente por você? Ela sabe o que você faz, como leva a vida, o que vê todos os dias e, no entanto, ainda o quer. Ela o conhece até o fundo da alma e continua amando-o. Você é mais do que um homem de sorte, é um abençoado.

— Você não precisa me dizer isso — Lucien respondeu.

— Obviamente alguém precisa. Depois disto tudo, do que ela fez por seu bem, se você for embora, a destruirá.

Numa voz alterada, Lucien indagou:

— Você começou a ler pensamentos? Sem dúvida não me tocou.

— Não preciso disso. A verdade está escrita em seu rosto. Qualquer membro daquela idiota sociedade secreta de Plummerville poderia decifrar isso.

— Eve não é de sua conta — Lucien declarou.

— Eve é minha amiga e qualquer pessoa que a tratar mal ou ameaçar sua segurança, passará a ser de minha conta.

— Comovente — Lucien resmungou.

— Parem com isso. Vocês parecem duas mulheres velhas discutindo, o que está me dando dor de cabeça — Lionel reclamou.

— O’Hara pensa que tem o direito...

— Parem! — Lionel repetiu. — Esta não é a ocasião e nem o lugar para vocês discutirem. Estamos com frio, fome e enfrentamos o próprio demônio.

Lucien baixou o olhar para Eve. Como se soubesse estar sendo observada, ela entreabriu os olhos, sorriu e tornou a fechá-los, continuando a dormir.

 

Plummerville. Em casa finalmente. Katherine não sabia se sentia alívio ou desaponto. Voltar para casa significava o fim do que ela havia encontrado com Garrick.

Na primeira parte da viagem, ele tinha cavalgado com Hugh a fim de ampará-lo. Daisy, que não montava bem, ia com Buster. Katherine tinha um cavalo e uma sela só para si mesma. Uma lástima. Teria apreciado uma desculpa para abraçar-se a Garrick por um pouco mais de tempo.

Quando chegaram ao lugar onde tinham abandonado a carroça, deitaram Hugh na parte de trás. Ela, então, havia sentado no banco da frente, ao lado de Garrick que dirigia o veículo.

Voltar para casa significava o fim de sonhos lindos. Não existiriam vestidos coloridos, nem viagem para o oeste. Nada para ela e Garrick. Afinal, não passava de uma viúva de parcos recursos e ele era o filho do homem mais rico da cidade. Eles não se pertenciam, apesar das sensações deliciosas que Garrick lhe provocava ao acariciá-la.

Não havia um futuro digno para eles e Katherine não aceitaria a condição de amante. Seria uma grande tentação se Garrick a procurasse uma noite e a fitasse com aquele olhar meigo. Se cedesse, ficaria em pé de igualdade com as prostitutas de Savannah que o atendiam. Ela podia ser pobre, mas jamais seria a rameira de um homem.

Na rua principal, as pessoas saíam das lojas para saudá-los. A pedido de Garrick, um homem foi avisar o médico para abrir o consultório. Quando a carroça chegou lá, o Doutor, como era chamado pela população inteira, já os aguardava.

Devagar e seguidos por Daisy, Buster e Garrick começaram a levar Hugh para o interior. Katherine desceu da carroça, mas ficou longe do grupo. Já quase na porta, Garrick virou-se para trás e perguntou:

— Você não vem?

— Não posso. Preciso ir para casa.

Ele fez um sinal com a cabeça e retornou a atenção para Hugh que mal podia ficar em pé.

E, assim, tudo terminava.

 

Quando chegaram à estrada principal, Lucien pareceu saber para que lado seguir. O’Hara ficou para trás, permitindo que ele cavalgasse na frente.

Lucien, o desgraçado, ia largar Eve outra vez. O’Hara via a verdade no rosto dele. Eve quase tinha morrido para salvá-lo e se mostrado disposta a se sacrificar por todos e Lucien ia abandoná-la!

Perder o homem a quem amava tanto a mataria como Scrydan teria feito se houvesse tido a chance.

O’Hara gostaria de meter um pouco de bom senso na cabeça dele. Lucien não sabia como Eve era uma pessoa rara?

Ele havia pensado que Daisy também fosse. Mas tão logo ela havia descoberto que não iam morrer, mudara de atitude. Havia admitido estar arrependida por deixá-lo pegar sua mão. Sua recomendação para ele tomar cuidado no esforço para resgatar os amigos fora sincera, mas não por sua causa e sim pela deles.

Estaria ele destinado a levar uma vida solitária? A de Hugh era desde o falecimento da esposa e ele não se queixava. Lionel dava a impressão de gostar de ficar sozinho grande parte do tempo. Parecia não se importar com o fato de não haver lugar para uma companheira na vida dele.

O’Hara se importava. E muito,

Eve mexeu-se. Acariciou o peito nu de Lucien com movimentos suaves. Estaria sonhando? Ou acordara apenas por um instante para confessar seu amor ao homem de sua vida?

— Isso não é de nossa conta — Lionel disse baixinho.

— E você não deve ler meus pensamentos — O’Hara afirmou.

— Não posso evitar. Tenho a impressão de que você está gritando dentro de minha cabeça. O que aconteceu no hotel me esgotou. Não sobrou energia para eu bloquear tudo. Pelo amor de Deus, pare — Lionel protestou.

— E se eu não puder?

— Não acho que você tenha escolha.

Como tudo em sua vida, ele nunca tinha escolha. Lucien ia estraçalhar o coração de uma mulher excelente e Eve feneceria sem o homem a quem amava. Daisy se esquivaria dele e de outros homens. E ele continuaria solucionando os problemas de outras pessoas e ignorando os próprios.

O que ele não daria por uma vida mais ou menos normal! Sem dúvida não era o único a desejar certas coisas que outros homens contavam como certas e, por isso, não davam valor. Uma esposa, filhos, um lar. Os outros desejavam algo além disso? Ansiavam pelo que não poderiam ter?

— Sim — Lionel murmurou.

Dessa vez, O’Hara não reclamou do amigo por invadir sua mente.

 

A sossegada Plummerville os aguardava. Eve sentia-se bem na cidadezinha, Lucien sabia. Era onde tinha construído seu lar, o santuário ao qual voltava depois que ele lhe falhara pela segunda vez. Não importava o que viesse a acontecer no futuro, ela sempre estaria em segurança ali.

A tarde chegava ao fim e o céu já escurecia. Por ser inverno, os dias eram mais curtos. A primavera não demoraria muito e, então, Eve poderia cultivar a horta planejada. Ela e Daisy preparariam jantarzinhos festivos. Com ou sem ele, a vida continuaria ali. Buster os viu e saiu depressa do consultório médico. Lucien diminuiu o passo da montaria, mas não parou.

— Hugh? — indagou lacônico.

— O médico disse que ele vai ficar bom — Buster respondeu e olhou para Eve. — Como está ela?

— Bem, mas cansada. Dormiu a viagem inteira — Lucien respondeu.

Ansiosos para verificar o estado de Hugh, Lionel e O’Hara desmontaram. Lucien continuou rumo à casa de Eve.

Eve começava a sentir frio. Seria um bom sinal? Talvez, mas não tinha certeza. Não se surpreendeu com os olhares atônitos das pessoas por quem passavam. Ele estava seminu e Eve, com o vestido de noiva, dormia nos braços dele. Histórias sobre o fim de semana desastroso já deviam circular, pois os outros tinham chegado no início da tarde. Quantas estariam baseadas na verdade? Eram tão fantásticas que ninguém, que não houvesse estado lá, acreditaria.

Quando pararam em frente da casa de Eve, a porta abriu e quatro pessoas saíram. Os tios de Eve e as duas primas de olhos arregalados. Lucien murmurou baixinho:

— Acorde, querida, chegamos em casa.

Ela entreabriu os olhos e sorriu.

— Acho que nunca fiquei tão contente de chegar em casa.

Lucien ajudou-a a descer para os braços firmes do tio. Em seguida, desmontou e a pegou no colo. Eve suspirou, apoiou a cabeça no ombro dele e tornou a fechar os olhos.

Enquanto Lucien a carregava para o interior da casa, a voz estridente de Constance se fez ouvir:

— Deus do céu! O que aconteceu? Em que estado se encontram os dois! Sujos, descabelados, a roupa em petição de miséria! E o sr. Thorpe seminu! Meninas, virem-se de costas. Isto não é uma cena apropriada para olhos inocentes.

Dóceis, as primas de Eve obedeceram sem protestar.

Ao entrar em casa e rumar para a escada, Lucien esforçou-se por ignorá-los. Já ia subir, quando ouviu a ordem peremptória:

— Pare onde está!

Ele obedeceu e virou-se. As duas moças continuavam de costas enquanto Constance e Horace o encaravam com olhar furioso.

— O que fez para minha sobrinha? E como se atreve a entrar nesta casa como se morasse aqui? — Constance esbravejou.

Eve sempre se esforçava para impedi-lo de dizer a verdade o tempo todo. Segundo ela, embora tal qualidade fosse admirável, em excesso se tornava irritante.

No momento, Lucien não dispunha de tempo e energia para avaliar o efeito das palavras. Numa voz calma, disse:

— Eu moro aqui. E se os senhores levantarem a voz outra vez e acordarem Eve, eu os atirarei na rua. Parentes ou não.

Constance ficou rubra e uma das moças espiou por sobre o ombro.

— Seu atrevido! — Harold vociferou.

Ainda, numa voz calma, Lucien aconselhou:

— Voltem para casa. Eve está exausta e precisa de meus cuidados. Não posso fazer isso discutir com os senhores ao mesmo tempo. Voltem para casa — repetiu e recomeçou a subir a escada.

— Espere! Alguma coisa parece estranha, errada. Que tipo de cientista o senhor é? — Constance indagou.

Lucien tornou a virar-se para eles.

— Não sou cientista. Sou médium,

— O quê? — o tio de Eve indagou, ríspido.

— Falo com os mortos. Vejo fantasmas nos cantos. Converso com espíritos que não têm quem os ouça.

Constance pôs a mão na testa e balançou o corpo como se fosse desmaiar. Mas ao ver que o marido não prestava atenção e não a ampararia, recuperou-se depressa.

— Incrível. Se os senhores observassem o que acontece a sua volta, já teriam ouvido falar em mim. Sou bem conhecido em Savannah e quase todos os moradores de Plummerville sabem o que faço. Mas os senhores não enxergam um palmo adiante do nariz.

— Essa foi uma grosseria desnecessária — Constance reclamou.

— A pura verdade — Lucien disse e virou-se de costas.

Dessa vez, quando o chamaram, ele se recusou a ouvi-los. Entrou no quarto de Eve, aliás deles, e deitou-a na cama. Ela suspirou, mas não acordou.

— Eu te amo. Mais do que jamais imaginei amar qualquer coisa na vida — ele murmurou.

Eve nem percebeu quando Lucien a cobriu com o acolchoado. Ambos precisavam de um bom banho quente, de alimento e água. Mas no momento, dormir era o mais urgente. Ele deitou-se a seu lado, aconchegou-a entre os braços e fechou os olhos. Imagens indesejadas dançaram sob as pálpebras. Lembranças de Scrydan e, agora, dele.

Afastou-as e forçou-se a substituí-las. Em todas elas, havia Eve. Adormeceu, entregue a um sono profundo e sem sonhos.

 

Katherine levou um susto quando bateram na porta. Quem poderia ser assim tão tarde? Eram quase dez horas.

Seu coração disparou. Sabia muito bem que só Garrick viria bater em sua porta a essa hora da noite. Por um momento, pensou em não atender, mas a batida-se repetiu com mais foiça.

Ao chegar em casa, ela havia tomado um longo banho quente, lavado os cabelos e vestido roupa limpa, Conseguira livrar-se do cheiro do Honeycutt Hotel, mas não do odor de Garrick.

Katherine respirou fundo e abriu a porta.

Garrick estava com a mesma aparência com que tinha vindo embora. O terno escolhido para o casamento de Eve e Lucien ficara em péssimas condições, os cabelos continuavam emaranhados e os olhos revelavam um imenso cansaço. A ordem impiedosa morreu em seus lábios ao fitá-lo.

— Conversei com meu pai. Tudo que Lucien contou é verdade — ele disse num fio de voz.

Ela o pegou pela mão e o puxou para dentro.

— Está muito frio para ficar aí fora. Sente-se enquanto vou preparar um chá.

— Não quero chá e sim sua companhia — Garrick disse ao estender-lhe as mãos, mas baixou-as ao vê-la se esquivar. — Jerome apareceu por aqui?

— Não senti a presença dele desde que cheguei. Ele se foi.

— Ótimo.

Se comparasse com a dele, Garrick deveria achar sua casa minúscula, feia e atravancada. Mas ele mantinha os olhos nos seus e não no ambiente.

— No fundo, eu tinha me convencido de que a história contada por Lucien não era verdadeira. — Garrick passou a mão pelo rosto cansado. — Meu pai não negou nada. Minha mãe verdadeira era amante dele. Foi assassinada aqui em Plummerville quando eu era criança.

— Sinto muitíssimo.

— Enquanto ele descrevia cada detalhe feio eu só pensava em vir aqui para ver você.

— Mas não pode ficar — ela murmurou.

— Por que não?

— Este não é seu lugar.

Ele a tomou nos braços e a estreitou contra o peito.

— Penso que é.

Como ele estivesse cansado e triste, Katherine não só permitiu o abraço como até o retribuiu. Só por essa noite.

— Tudo vai acabar bem. Seu pai continua sendo seu pai e tenho certeza de que gosta de você. Seu lugar ao lado dele está seguro — ela o consolou.

Se tivesse um filho, ela o amaria sem restrições. Sem dúvida essa era a regra geral para todas as pessoas, mesmo para Douglas Hunt.

— Ele ficou furioso quando soube que eu tinha descoberto tudo. Mas tão logo começou a me contar o que tinha acontecido, não conseguia mais parar.

— A agitação dele vai passar logo.

— Eu queria que ele parasse para eu vir aqui. Precisava ver seu rosto, tocar em você. — Com o dedo sob seu queixo, ele a fez fitá-lo. — Já me sinto melhor.

Katherine deixou que Garrick a beijasse, pois intuía que ele precisava desse contato e de um ombro amigo. Porém, não se iludia. Tinham voltado e tudo havia mudado. O pai o perdoaria por ter descoberto o segredo e ele perdoaria o pai por esconder a verdade por tanto tempo. Garrick continuaria a trabalhar no moinho e, na vida dele, não haveria lugar para uma viúva pobre que o tinha amparado quando o mundo dele desabara. Ele teria sentido o mesmo calor humano por qualquer mulher que estivesse a seu lado naquele momento. E se virado para qualquer pessoa que pudesse consolá-lo quando pensavam que não sobreviveriam aquela noite.

Então, abraçada a Garrick, ela o beijou e se forçou a esquecer que o amava.

 

No meio da noite, Eve acordou assustada. Levou uns instantes para se dar conta de que estava em seu quarto, na própria casa, com Lucien dormindo a seu lado.

Ele tinha um aspecto horrível. O rosto estava machucado e a barba, crescida. Seria difícil desemaranhar os cabelos e, apesar de ele ter dormido muito no hotel mal-assombrado, as olheiras eram profundas. Ela sabia que também devia estar horrorosa.

Aconchegou-se mais a Lucien. Tinha havido momentos lá em que ela duvidara que sobrevivessem. No entanto, ali estavam eles juntos, em segurança e felizes. Em casa.

Lucien não parecia muito feliz, mas sofrerá demais. Tinha quase morrido. Se pudesse, Scrydan o teria aprisionado no hotel com os outros espíritos.

Eve ergueu um pouco o acolchoado e espiou. Ainda estava com o vestido de noiva, aliás, completamente arruinado. Ele tinha lhe custado uma pequena fortuna, mas era lindo. Pelo menos fora por umas horas.

No próximo casamento, seria prática, como deveria ter sido desde a primeira vez. Nada de cetim branco, luxuoso. Lucien havia estado certo o tempo todo. Deviam ter sido casados pelo juiz de paz meses atrás.

Como se soubesse que Eve pensava nele, Lucien entreabriu os olhos e a acariciou.

— Eu te amo, Eve — murmurou sonolento. Puxou-a para mais perto e acrescentou: — Eu gostaria, com um estalar dedos, de fazer com tudo voltasse a ficar bem.

— Eu também te amo e tudo está bem. Chegamos em casa juntos e todos se salvaram.

— Estou com frio, me abrace — ele pediu.

Depressa, Eve encostou-se mais nele. De fato ele estava gelado. Após aqueles dias em que escaldava de maneira anormal, a temperatura baixa parecia mais marcante.

— Assim está melhor?

— Está — ele murmurou e voltou a dormir.

 

O banho quente tinha sido uma terapia incrivelmente efetiva, Eve pensou enquanto preparava uma xícara de chá. Pequenas coisas a que pessoas não davam valor a não ser se passassem um fim de semana num hotel mal-assombrado onde não havia tais confortos.

Lucien continuava a dormir. Volta e meia, ela ia espiá-lo. Queria ter certeza de que ele respirava bem e mantinha a temperatura normal. Ele repousava tranquilamente.

Eve correu ao ouvir uma familiar batida na porta da cozinha. Ao abri-la, Daisy entrou depressa com os braços abertos.

— Ai, que bom! Você está bem — a amiga disse ao abraçá-la.

— Estou mesmo — Eve respondeu, mal acreditando na boa sorte.

Daisy a soltou e fechou a porta por onde entrava um vento frio.

— E Lucien? Lionel e O’Hara afirmaram que ele ficaria bem, mas eu queria ter certeza.

— Ele voltará ao normal em pouco tempo — Eve garantiu com falsa segurança na voz.

Não podia ter certeza de que tudo voltasse a se normalizar. Em vez de revelar alívio por todos terem sobrevivido, Daisy rompeu em prantos.

— Ai, desculpe. É que... tudo foi tão... não posso acreditar... — ela gaguejou entre soluços.

Eve a abraçou carinhosamente. Sabia por que a amiga se sentia abalada. Até esse fim de semana, Daisy nunca fora exposta às ocorrências do mundo sobrenatural. Fantasmas. Portas que não abriam. A posse de um espírito mau. Fatos novos para ela. Mesmo assim, Daisy reagira bem.

Quando os soluços pararam, ela soltou-se e ergueu o queixo.

— Desculpe. Não vou mais pensar nisso. É a única maneira de resolver a questão. Direi a mim mesma que os últimos três dias não existiram. Se fizer isso com frequência, acabarei convencida de que tudo não passou de um pesadelo.

Ignorar. Típico de Daisy.

— Penso que todos nós sempre fazemos o impossível a fim de sobreviver. Você aceita chá? — Eve ofereceu.

— Por favor.

Durante a meia hora seguinte, falaram sobre receitas, moda, vida alheia, mas não mencionaram o Honeycutt Hotel. Eve chegou à conclusão de que a idéia de Daisy não era tão absurda, pois sentia-se muito melhor depois de uma conversa normal.

Daisy tinha se tornado sua amiga bem depressa, embora as duas tivessem muito pouco em comum. Difícil explicar como se podia sentir afeto por certas pessoas e não por outras. Eram sobreviventes. Esse fim de semana as tinha unido como soldados num mesmo campo de batalha. Daisy não era mais apenas uma amiga. Era irmã.

A conversa esmoreceu e Daisy suspirou. Era um daqueles suspiros longos, indicadores de novidade.

— Você tem sorte de contar com Lucien — Daisy comentou.

— Tenho, mesmo.

A amiga ainda sentia atração por Lionel?, Eve indagou-se. Não importava, pois ele não ficaria muito tempo na cidade. Nem Hugh e O’Hara. Havia sempre um trabalho urgente esperando por eles. Porém, Eve não queria ver a amiga sofrendo por amor. Daisy era frágil e padeceria muito se ferisse o coração.

— Embora Lucien tenha aquelas habilidades estranhas, vocês dois se amam. É difícil aceitar que ele possa ver coisas que outras pessoas não percebem?

Daisy continuava, sim, atraída por Lionel, Eve pensou e disse:

— Às vezes é. Mas você deve lembrar que passei grande parte de minha vida entre tais curiosidades.

— Quando seu pai tentava se comunicar com sua mãe falecida, não é? — Daisy indagou.

— Isso mesmo. Portanto, estou acostumada com as coisas que Lucien vê e ouve.

— Isso não a perturba, Eve?

— Nem um pouco.

— Mas Lucien não pode ler seus pensamentos. Talvez ele converse com fantasmas de vez em quando, mas isso não quer dizer que ele possa ver dentro de você. Seria terrível! Pense só nos problemas que surgiriam!

Eve não soube o que dizer. Não podia encorajar a amiga a procurar Lionel e, muito menos, admitir que tal relacionamento seria impossível.

— Calculo que seria preciso alguém muito especial para enfrentar as dificuldades de tal associação.

Daisy não disfarçou o desaponto.

— A vida não é justa — choramingou.

— Nem um pouco — Eve respondeu.

Daisy voltou para casa arrastando os pés. Eve tinha dito não saber ainda para quando ela e Lucien remarcariam o casamento. Isso queria dizer que, tão logo Hugh pudesse viajar, os três visitantes de fora da cidade tomariam o primeiro trem que partisse dali.

Ela não deveria se importar. Não se importava. O fato de Quigley Tibbot O’Hara ter, inesperadamente, se tornado tão adorável não deveria interessá-la. Eles dois não combinavam nem um pouco. Daisy empurrou seus segredos bem para o fundo, mas não havia um lugar para escondê-los de O’Hara. Ora, ele já os tinha visto.

Era humilhante que um perfeito estranho estivesse a par deles se seus melhores amigos os ignoravam. Mesmo se ele ficasse, a cortejasse e até a beijasse, três coisas que não ocorreriam, que futuro ela teria com um homem que caçava fantasmas para ganhar a vida? O melhor seria ele ir embora o mais depressa possível.

Eve e Lucien dariam certo. Ela fazia parte daquele mundo. Viajaria com ele se quisesse e até o ajudaria no trabalho. Após esse fim de semana, Daisy sabia que não seria da mínima utilidade numa situação como aquela. E não pretendia se encontrar em outra novamente! Já havia lutado contra seu último fantasma.

Mesmo assim, era frustrante não ter ganho aquele único beijo.

O aconchego de sua casa a aguardava um pouco adiante. Aquele era seu lugar, refletiu.

Menos de um ano depois de ter perdido o bebê e não contar nada a ninguém, sua mãe havia morrido de repente. Quatro anos mais tarde, o pai tinha pegado pneumonia e não se recuperado. Daisy sentia muita falta deles e lamentava não ter confiado no julgamento do pai sobre Tucker e nem na mãe durante aquele período difícil. Na época, sentia-se tão embaraçada. Um erro. Deveria ter se apoiado nos pais enquanto eles estavam a seu lado. Desejava, do fundo do coração, que a mãe estivesse ali para que ela pudesse lhe falar sobre O’Hara. Eve nunca a entenderia.

Chorar por O’Hara era uma perda de tempo. Logo ele iria embora e ela não pretendia sofrer por um homem que nunca poderia ter. Ele a tinha acusado de ser cautelosa demais e de só se interessar por homens que não ameaçassem seu coração. Que mal havia nisso?

Daisy decidiu apressar o passo. Talvez Garrick a pedisse em casamento outra vez e ela surpreendesse a todos aceitando o pedido. Casar-se com um amigo era fácil e cômodo, dois detalhes que ela apreciava muito.

Então por que seu coração quase parou ao reconhecer O’Hara em seu terraço, batendo furiosamente na porta?

— Alguma coisa errada? — ela indagou ao pisar na calçadinha do jardim.

Surpreso ao ouvir sua voz, O’Hara virou-se depressa.

— Não. Como você não atendesse a batida na porta, fiquei... — Calou-se, franziu a testa e concluiu: — Curioso.

— Ah! — ela exclamou e parou a vários passos de O’Hara.

Ele quase havia dito preocupado. Tinha se afligido por ela.

— Vejo que você está bem — ele comentou.

— Fui ver Eve.

— Como está ela? E Lucien? — ele indagou, interessado.

— Bem. Lucien ainda dormia, mas Eve disse que eleja melhorou muito — Daisy respondeu e, ao ver O’Hara se aproximar um passo, recuou depressa.

Tal reação o imobilizou. Teria se ofendido com sua atitude? Difícil. Ele estava acostumado com pessoas que, cientes de seu dom, não o deixavam tocá-las.

— Eu o convidaria para entrar e tomar chá. Mas como está sozinho, não posso. Não seria apropriado.

— Não, claro.

Daisy precisava ignorar o fato de ter passado uma noite inteira presa com O’Hara e vários fantasmas, num quarto de hotel, de ter sentado no colo dele e pegado-lhe a mão. Estava em casa agora e tudo havia mudado.

— Você está com aspecto bom — ela disse para mudar de assunto.

— Bem como você — ele afirmou com suavidade.

— Eu me sinto bem, apesar de tudo. Como vai Hugh? — ela indagou.

— Muito melhor hoje.

— Então, ele logo vai poder viajar — Daisy.comentou com um leve peso no coração.

— Sem dúvida alguma.

O’Hara continuou a andar em frente e ela prendeu a respiração. Ele não se atreveria a tocá-la ali no jardim. Ele passou sem nem fitá-la, o que a fez virar-se para observá-lo. Ele continuou em frente, passou pelo portãozinho e, quando tomou a direção da cidade, Daisy gritou:

— Espere!

O’Hara parou e virou-se para fitá-la.

— Pois não?

— Você não me disse por que passou por minha casa.

Ele não respondeu logo. Esperou uns instantes.

— Eu queria apenas me despedir. Lionel, Hugh e eu partiremos no trem amanhã cedo.

— Ah!

— Estou contente ao ver que você superou a experiência terrível. De fato sua aparência está ótima.

— Obrigada — ela murmurou.

Ele recomeçou a andar em direção à cidade e, dessa vez, Daisy não teve uma desculpa para fazê-lo parar.

 

Irritada, Katherine enxugou as lágrimas no rosto e terminou de abotoar o vestido preto de gola alta. Ela havia dito que não seria amante de Garrick Hunt e o que tinha feito? Caído na cama com ele com a maior facilidade, depois de recebê-lo em casa. Havia cedido sem pensar duas vezes.

E quando havia acordado no início da tarde, após uma longa noite de amor, ele tinha ido embora. Sem uma única palavra, ele simplesmente escapara. O que ela poderia ter esperado? Sabia o tempo todo que, quando voltassem para Plummerville, ela e Garrick não teriam futuro.

Seus olhos secaram e ela não chorou mais. Não se desesperaria porque as coisas não tinham corrido de acordo com seus desejos. Garrick Hunt era um homem como outro qualquer. Tudo que ela precisava fazer para superar esse desastre sem sofrer mais era ignorá-lo até que ele fosse embora da cidade. Pelo que ele havia dito à noite, seria logo.

Ela havia amado Jerome quando era uma jovenzinha fascinada pelo rosto bonito, o encanto e as promessas dele. Ela só o tinha conhecido bem depois do casamento. O amor havia morrido dolorosa e rapidamente.

Desta vez seria mais difícil. Ela havia se apaixonado por Garrick como uma jovenzinha de olhos esbugalhados, mas com o coração experiente de mulher adulta. Sabia que esse amor levaria muito tempo para morrer.

Uma batida na porta quase a fez pular. Endireitou os ombros e, com passos firmes, saiu do quarto. Ninguém poderia saber o quanto ela era tola.

A batida se repetiu e, dessa vez, alguém chamava seu nome. Garrick.

Katherine parou a vários passos da porta. Não queria vê-lo. Teria ele vindo para se despedir ou para seduzi-la mais uma vez antes de partir? Ela não permitiria.

Mas não podia ficar parada ali. Teria de enfrentar Garrick e mandá-lo embora.

Quando abriu a porta, sua expressão estava impassível. Garrick sorria e tinha as mãos às costas. Ele havia tomado banho, feito a barba e posto roupas limpas. Os cabelos estavam muito bem penteados. Voltava a ser Garrick Hunt, o filho encantador de um homem rico.

— Consegui! Contei a meu pai que vou embora da cidade — ele disse, alargando o sorriso.

— Quando você parte? — ela indagou com frieza.

O sorriso dele murchou.

— Amanhã de manhã.

— Boa sorte — Katherine disse e começou a fechar a porta.

— Espere! Qual é o problema? — Garrick indagou enquanto, com o pé, a impedia de fechar a porta.

— Nenhum. Estou em casa e tudo voltou ao normal. Foi muita amabilidade sua me distrair enquanto estávamos presos naquele lugar horrível, mas não há motivo...

— Distraí-la? — ele a interrompeu.

Era melhor romper logo, com firmeza e antes de se envolver demais. Assim não sofreria muito. Aliás, já sofria, ela admitiu.

— Você não pensou que esse nosso caso fosse sério, não é? Não temos nada em comum — ela afirmou em voz seca.

— Penso que temos muito em comum, sim — ele argumentou.

— Não combinamos nem um pouco. Aliás, não é de hoje.

Garrick a observou como se não a conhecesse. Não mesmo, de fato.

— Não vou partir sem nada, Katherine. Tenho meu próprio dinheiro — ele informou em voz suave.

Ora, Garrick pensava que o rejeitava porque ele não tinha dinheiro suficiente? Se pensava assim, não a amava como dizia.

— Ótimo para você — ela disse com displicência.

Katherine estava convencida de que a proposta de Garrick não daria certo. O que eles tinham encontrado era lindo, mas passageiro. Pura atração física e não amor. E ele não a tinha pedido em casamento, apenas sugerido que fossem embora juntos. Se aceitasse, um dia, Garrick olharia para ela e se arrependeria. Ou então, pegaria o frasco de bebida e se embriagaria. Pior, a espancaria se ela dissesse ou fizesse a coisa errada. Seria o recomeço do pesadelo.

Melhor seria terminar tudo naquele momento, enquanto ela ainda guardava umas boas lembranças para consolá-la.

— Pensei que você fosse comigo. Quando contei a meu pai que ia embora da cidade, no fundo do coração sabia que você acompanharia cada passo meu — Garrick confessou.

— Não posso. Tenho minha casa aqui e um pouco de dinheiro guardado. Não preciso de um homem para cuidar de mim — Katherine afirmou.

— Nunca dei a entender que você precisasse.

— Adeus, Garrick — ela murmurou ao tentar outra vez fechar a porta. — Por favor, não torne isto mais difícil do que já é.

— Deus me ajude a não dificultar nada para você. — Ele puxou uma das mãos às costas. Seda amarela brilhou sob o sol de inverno. — Pegue isto. Não me serve e a cor não combina comigo.

Como Katherine não pegasse o vestido, ele o largou no chão.

— Não quero isso — ela disse ao vê-lo se afastar.

— Nem eu — Garrick respondeu.

Pela fresta da porta, ela o acompanhou com o olhar. Depois de uns passos, ele parou e tirou o frasco de bebida do bolso. Mas não tomou um gole. Esvaziou o conteúdo no chão e, depois, atirou-o longe. Ele caiu numa touceira de mato, do outro lado da rua.

 

Havia escurecido pouco tempo atrás, mas Eve e Lucien ainda estavam exaustos. Juntos, subiram a escada iluminada pela vela na mão de Eve.

— Lamento que tudo tenha dado errado com seus tios — Lucien desculpou-se.

Eve não parecia aborrecida.

— Eles costumam ser irritantes. Quando tiverem tempo para esfriar a cabeça, eu lhes escreverei uma carta longa e amável. Uma reconciliação será mais fácil se eles forem mais cordatos. Talvez no próximo Natal. Ou no seguinte.

Constance e Harold Phillips, mais as filhas, tinham feito as malas naquela tarde e, furiosos, ido embora de Plummerville.

— Eu só atrapalhei, sinto muito. Devia ter encontrado uma maneira de melhorar a situação antes de irem embora. Afinal, são seus parentes — Lucien tornou a se desculpar.

Entravam no quarto e Eve sorriu.

— Você é o único parente que me interessa, Lucien Thorpe.

Por Deus, ela só dificultava tudo! Lucien sabia que não podia se casar com Eve, aliás, com ninguém. Lembranças de Scrydan ainda permaneciam dentro dele. Algumas tinham sumido, mas não muitas. Algo maligno continuava dentro dele e nunca seria erradicado totalmente. Talvez existissem outros espíritos como o de Scrydan que se mantinham à espreita de um hospedeiro acessível como Lucien. Ele não podia expor Eve a tal perigo.

Hugh e os outros partiriam na manhã seguinte. Lucien deixaria a cidade essa noite, a cavalo e sozinho.

Eve pôs a vela na mesinha de cabeceira e já ia apagá-la, mas Lucien a impediu ao puxá-la de encontro ao corpo.

— Deixe acesa. Quero admirar você esta noite.

— Como desejar — ela murmurou numa voz insinuante.

Lucien queria que a última união deles fosse ali e não aquela no maldito hotel. Desejava ser quem penetrasse em seu corpo. Unicamente ele.

Despiu-a bem devagar, beijando-a no pescoço e nos ombros, instigado por uma vontade ardente. O sabor de sua pele, seu perfume eram inigualáveis. Ele os sentia mesmo quando estavam longe um do outro e suspeitava que os sentiria para sempre.

Maravilhava-se com sua maciez, a perfeição de suas curvas, sua beleza. Eve era um sonho fascinante e ele a amaria até morrer.

Eve já estava quase nua quando virou-se para crivar-lhe o rosto de beijinhos rápidos e meigos.

— Estou contente por você ter feito a barba. É tão melhor beijar assim — ela murmurou.

— Quero que tudo seja especial esta noite.

Lucien terminou de despi-la e soltou-lhe os cabelos. Ele os adorava desde que a conhecera. E mais ainda se estavam soltos. Quando faziam amor, a cabeleira os envolvia em ondulações sedosas. Ela tentava ser sensata, prática, firme, mas quando Lucien lhe soltava os cabelos, ela esquecia tais atributos e tomava-se apenas sua mulher. Nem mais, nem menos.

Enquanto ele a beijava no pescoço, Eve desabotoou-lhe a camisa. Seus dedos tremiam, mas não de medo essa noite.

Lucien ansiava para que Eve jamais sentisse medo outra vez, que os Scrydans malignos deste mundo ignorassem sua existência e que ela sempre vivesse em segurança. Ia fazer a parte dele a fim de concretizar esse desejo.

Ele a deitou na cama e terminou de se despir depressa. Não desviou os olhos, nem por um segundo, de seu corpo iluminado pela vela. Eve não era acanhada com ele e sorriu-lhe.

Tão logo Lucien se acomodou a seu lado, ela confessou:

— Pensei que você tinha se ido, Lucien. Eu te amo muito e não posso perdê-lo.

— Não vamos falar sobre isso esta noite. E nem sobre coisa alguma — ele murmurou, pois não suportaria.

Lucien sabia onde beijar e acariciar Eve para fazê-la esquecer de tudo o mais. No pescoço, logo abaixo da orelha, nos pulsos, naquele lugarzinho na parte interna da coxa. Tocava e beijava todos eles e, às vezes, parava a fim de admirar o contraste das mãos másculas com seu corpo macio. Ele queria que essa noite fosse especial e perfeita em tudo para ambos. A lembrança dela teria de durar pela vida inteira.

Enquanto tocava em Eve, Lucien tentava esquecer que essas carícias seriam as últimas, mas não conseguia. Ouvia seus suspiros, o arfar de sua respiração e pensava que jamais o faria de novo. Angustiado, tentava diminuir a passagem do tempo e fazê-lo parar.

Com a ponta da língua, rodeou um mamilo e, depois, sugou-o no fundo da boca. Eve arqueou o corpo, gemendo baixinho. Bem devagar, ele deslizou a mão pela parte interna de sua coxa, do joelho até o vértice.

Numa súplica silenciosa, seu corpo mexia-se contra o dele. Lucien levou sua boca à dela a fim de saborear sua paixão. Prensou a mão sobre seu coração para sentir e memorizar as batidas rápidas e firmes.

Eve estava perto da realização plena quando ele rolou sobre seu corpo e penetrou nele depressa. Ela o abraçou, passou as pernas em volta dos quadris dele e soergueu-se para receber os impulsos. A maneira com que se uniam era tão mágica quanto qualquer aptidão sobrenatural. Mexiam-se como um só e uniam-se de todas as maneiras.

Enquanto se amavam, Lucien esqueceu que essa seria a última vez deles. Perdeu-se nas sensações e na energia que seus corpos criavam, no impulso que o levava a ela, até que não existisse mais nada, exceto Eve. Ela o recebia no corpo, exigia e amava, nada importava a não ser como se completavam.

Com um grito rouco, ela atingiu o êxtase e, enquanto latejava em volta dele, sentiu-o estremecer. A chama da vela bruxuleou e o fogo crepitou na lareira.

Lucien deitou a cabeça ao lado da de Eve. Ofegantes, tentavam normalizar a respiração.

— Eu te amo, Eve. Muitíssimo — ele murmurou a seu ouvido. — Não importa o que...

— Não fale mais sobre o que aconteceu. Passou tudo, Lucien. Estamos bem, juntos e nada mais importa.

Ele sempre tinha dificuldade em se comunicar com pessoas. Falar com fantasmas era mais fácil. Amava Eve. Precisava dela. Porém, não encontrava a maneira apropriada para lhe dizer que ia embora.

 

Lucien cavalgava devagar pela rua principal de Plummerville. O ferreiro não tinha feito objeção alguma em lhe vender o cavalo que ele alugava com frequência. Também não tinha indagado seus motivos para comprá-lo.

Ele devia ter pegado a colhedeira de ectoplasma e o registrador de espectros no quarto de depósito da casa de Eve. Mas havia ficado com medo de acordá-la ao mexer no equipamento. Além do mais, seria muito peso para a montaria carregar por um período longo, já que não sabia para onde iria. Poderia pedir para Eve despachá-los para ele mais tarde. Melhor, construiria novos aparelhos com algumas modificações.

Era tarde, estava escuro e fazia frio. A cidade inteira parecia dormir. Por isso, ele surpreendeu-se ao ver luz acesa na igreja, onde Eve e ele tinham planejado realizar o casamento frustrado. O segundo casamento frustrado. A luz era fraca, talvez de apenas duas velas.

Lucien planejava seguir em frente, mas apanhou-se parando. A vida toda havia detestado igrejas e as pessoas que as frequentavam. Quantos pastores tinham tentado expulsar sua habilidade abominável? Quantas vezes a mãe não havia implorado a um pastor amedrontado para curar o filho avariado? Mais vezes do que ele podia se lembrar.

Racionalmente, ele sabia que seu medo não era pela igreja e sim pelas pessoas lá dentro que ainda lhe provocavam arrepios ocasionais.

Sem dúvida era o reverendo Watts que trabalhava até tão tarde. Lucien desmontou e prendeu a montaria na grade. O reverendo Watts não era o pior dos pastores que ele tinha conhecido. Nas poucas vezes em que haviam se encontrado, ele mostrara ser uma pessoa prática e afável. Como houvesse deixado a maioria dos preparativos do casamento por conta de Eve, sua interação com o pastor tinha sido limitada.

Talvez isso fosse mais uma coisa que ele pudesse fazer por Eve antes de partir. Explicaria que o casamento fora cancelado e, portanto, ela precisaria de um ombro amigo até se recuperar. E se recuperaria. Sua Eve era muito forte.

O reverendo Watts limpava os bancos quando Lucien abriu a porta e entrou. O pastor parou e sorriu-lhe.

— Um pouco tarde para ainda estar limpando, não acha? — Lucien perguntou.

— Não estou apenas limpando, mas também refletindo sobre o sermão de domingo.

Lucien balançou a cabeça. As palavras que tinha vindo dizer estavam na ponta da língua. Vou embora da cidade. Não haverá casamento. Cuide de Eve por mim. Em vez disso, perguntou:

— Reverendo, o senhor acredita no mal?

O pastor ficou confuso por um momento, mas respondeu com firmeza:

— Acredito, sim.

— No mal real e puro? — Lucien especificou.

O reverendo Watts largou o pano de pó no encosto do banco.

— Nunca o constatei, mas acredito que exista.

— Pois eu, sim. Toquei e fui tocado por ele.

O pastor não mostrou medo.

— Lamento saber — afirmou.

Bravo, Lucien perguntou:

— E se não for embora? Se esse mal passar a fazer parte de mim para sempre?

Para espanto seu, o pastor sorriu.

— Não se aflija, filho. Homens corruptos não se interessam pelo estado de suas almas. Apenas um homem bom se preocuparia com a possibilidade de seu espírito ser invadido pelo mal.

— Entendo o que o senhor quer dizer. E se isso não bastar? Estou falando de um mal tão sombrio...

Balançou a cabeça. Como explicar Scrydan e as lembranças que ele guardava?

— Sente-se — o pastor disse.

Depois de um instante, Lucien obedeceu e o reverendo Watts acomodou-se ao lado. Na parca luminosidade e no silêncio da noite, o ambiente da igreja era de paz. Após uns instantes, o pastor declarou:

— Se existe o mal puro no mundo, pela lógica existe também o bem puro.

— Não é tão simples assim — Lucien afirmou.

— Claro que é. Existe equilíbrio no.universo bem como dentro do senhor, de mim, de todos. Cada pessoa na face da terra luta entre o bem e o mal muitas vezes. Talvez tome uma decisão fugaz, mas que poderá lhe afetar a vida inteira. Pode ainda ser uma batalha duradoura, algo que todos nós enfrentamos às vezes.

— Não como esta.

O bem puro. Lucien não acreditava em tal conceito mais do que no do mal puro antes de conhecer Scrydan intimamente.

— Equilíbrio, sr. Thorpe. Onde existe um, deve existir o outro — o reverendo Watts insistiu com suavidade.

Lucien fitou o pastor idoso.

— O senhor não sabe o que posso fazer, o que já vi.

— Tenho ouvido histórias — o pastor contou, sorrindo.

Que ele provavelmente rejeitava como tolices. Numa voz clara para que o reverendo Watts entendesse bem e se zangasse como os outros, Lucien pormenorizou:

— Falo com os mortos. Vejo fantasmas em todos os cantos e em volta de cada pessoa que encontro.

— Nesse caso, Deus o abençoou com um dom precioso — Watts comentou em voz serena.

Lucien mal acreditou no que ouvira. A maioria... não, todos os pastores ficavam apavorados com o que ele podia fazer. Ele era abominável, uma anomalia. Pelo simples fato de existir, eles lhes atiravam no rosto o que sabiam de sua fé.

Havia um espírito, não um fantasma preso à terra, mas um ser de luz sobre o ombro direito do pastor. Uma mulher. Ela sorriu. Sem perguntar, Lucien sabia que era a esposa falecida do reverendo Watts. Mesmo após sua morte, ela lhe dava a bênção da paz.

— Se o mal for mais forte do que o bem? — Lucien indagou.

— Não é. Cofie em mim. Passei a vida inteira acreditando nisso.

— Se o mal vencer a batalha?

O velho homem balançou a cabeça.

— O mal só vence quando permitimos.

Lucien não podia aceitar tal simplicidade. A vida podia ter sido simples um dia, mas deixara de ser.

— O senhor é um homem de sorte — o reverendo Watts disse. — O amor é o maior de todos os bens e o senhor o tem em abundância.

— O amor vem e vai...

— Não é verdade — o pastor o interrompeu e, pela primeira vez, se mostrou ofendido. — O amor é o poder mais forte na face da terra. Creio nisso com todo meu ser, sr. Thorpe. É essa crença que me faz levantar de manhã, ou que me traz aqui à noite, quando não posso dormir, para limpar os bancos e conversar com Deus.

Uma resposta simples para um mundo simples. Mas o de Lucien não era. Correu o olhar pela beleza modesta de pequena igreja. Ele não tinha medo de templos, mas temia seus frequentadores. Temia pessoas assustadas, bravas e intolerantes.

— A vida inteira as pessoas fogem de mim porque não entendem o que posso fazer.

— As pessoas não são perfeitas. Não foram feitas para ser — o pastor explicou. s

— Não espero perfeição.

— De ninguém, exceto de si mesmo.

— Cometi tantos erros.

— Nós todos os cometemos. É assim que aprendemos.

— O senhor tem resposta para tudo, não tem? — Lucien indagou, ríspido.

O reverendo Watts sorriu.

— É meu trabalho.

Lucien escorregou um pouco no banco. Essa não era a conversa que queria ter ao entrar ali. Devia ter seguido em frente sem parar, mas não conseguira. Distraído, disse:

— Eve queria se casar aqui. Ela gosta do senhor. Diz que é um homem muito bom.

— Agradeço. Ela parece ser uma mulher excelente.

— É, sim — Lucien concordou.

Boa demais para ele, para passar a vida perseguindo fantasmas e arrancando-o da beira da morte. E isso aconteceria uma vez atrás da outra até que os matasse.

— Nós todos temos escolhas difíceis para fazer de vez em quando — o pastor afirmou. — Se quiser, fique sentado aí a fim de refletir sobre a sua.

— Preciso ir — Lucien disse, mas não se levantou.

— Como queira.

O reverendo Watts recomeçou a limpar os bancos e Lucien continuou sentado. Não discutiu com o pastor.

Ele queria o melhor para Eve. Amava-a o suficiente para lhe dar o que ela precisava. O que lhe era melhor e o que ela queria não eram a mesma coisa. Estaria ele certo?

 

Duas coisas acordaram Eve de um sono profundo. A primeira era alguém batendo com força na porta da frente e a segunda, a ausência de Lucien a seu lado na cama. Algo estava errado.

Levantou-se, acendeu a vela e vestiu o penhoar enquanto descia a escada depressa. Abriu a porta com a leve esperança de ver Lucien, mas era Daisy retorcendo as mãos no terraço. Lionel sentava-se no banco de uma charrete, segurando as rédeas.

Deus do céu, o que Daisy teria feito?

— Trata-se de Lucien — a amiga disse ao entrar correndo.

— Qual é o problema?

— Ele perdeu a cabeça!

O coração de Eve disparou. Scrydan teria voltado? As ocorrências do fim de semana o tinham enlouquecido. Sofria e sentia-se só.

— Ah, não literalmente — Daisy acrescentou ao ver a expressão de Eve. — Vá se vestir e venha conosco.

Daisy fez um sinal para Lionel entrar a fim de escapar do frio e seguiu Eve escada acima. A amiga abria o guarda-roupa de onde tirou um velho vestido marrom.

— Esse não! — Daisy protestou ao entrar depressa no quarto.

— Que diferença faz o que eu usar? — Eve indagou.

Daisy passou por ela e pegou um dos vestidos novos que Laverne tinha feito recentemente.

— Este azul é mais quente e está muito frio lá fora — respondeu.

Sem se importar com o que usasse, Eve pegou o azul. Ao começar a tirar o penhoar, Daisy virou-se de costas, mas não desceu para ir fazer companhia a Lionel.

— Lucien está bem? — Eve indagou enquanto se vestia depressa.

— Acho que sim, Eve. Está meio estranho. A maneira de ele agir nem sempre faz sentido, não é?

— Não.

— Se eu me casar um dia há de ser com um homem firme, seguro, comum, sossegado, estável e coerente — Daisy declarou.

— Nesse caso, sugiro que fique longe de Lionel — Eve aconselhou.

— Lionel?! Ah, sim, eu o achei atraente quando o conheci e ainda acho que seja, mas ele não é meu tipo.

Eve respirou aliviada.

— Então por que vocês dois estão juntos esta noite?

— Ora, não estamos juntos. Lucien me pediu para vir aqui buscar você e O’Hara se ofereceu para dirigir a charrete a fim de apressar as coisas. Mas Lucien não concordou e pediu a Lionel para me trazer — Daisy explicou.

— Você vai me contar o que está acontecendo, Daisy?

— Não posso. Lucien me fez prometer.

Eve olhou para o relógio na cômoda. Era quase meia-noite. Qual seria o problema para que os amigos estivessem zanzando pela cidade a essa hora? Fosse o que fosse, não devia ser nada bom. Com certeza, Lucien queria lhe contar pessoalmente.

Eve fez um coque apressado e usou um punhado de grampos, para prendê-lo. Pegou a vela e, acompanhada por Daisy, saiu do quarto. Nervoso e impaciente, Lionel as esperava ao pé da escada.

— Vamos embora — Eve disse ao pegar sua capa no cabide junto à porta e seguir os amigos até a charrete.

Lucien estava nervoso. E muito, algo raro. Não parava quieto e nem desgrudava o olhar da porta da igreja. A qualquer minuto, Eve entraria por ela. O que diria? Seria bem feito se ela o considerasse presunçoso, arrogante e lhe virasse as costas. Sim, seria bem merecido.

A porta abriu e Eve entrou depressa. Daisy e Lionel a acompanhavam de perto.

Eve parou ao ver as velas acesas nos candelabros e os amigos sentados nuns poucos bancos. De um lado, estavam Katherine e Garrick, mas em fileiras diferentes. Hugh e O’Hara sentavam-se juntos do outro lado. Lionel e Daisy separaram-se ao entrar na igreja. Ele foi sentar-se com os amigos e ela ao lado de Katherine.

Finalmente, Eve dirigiu o olhar para Lucien e o reverendo Watts, diante do altar, e perguntou enquanto se aproximava deles:

— O que estamos fazendo aqui?

— Vamos casar, espero — Lucien respondeu. — Quer dizer, se você ainda me quer. Sei que não está com um vestido de noiva elegante, não há flores e nem haverá uma recepção. Mas estamos aqui e as pessoas de quem gostamos também. Pensei que talvez isso fosse o suficiente — explicou e, ao vê-la sorrir, o medo dele diminuiu.

— Você planejou isso sozinho! — Eve exclamou.

— Sim — Lucien admitiu, mas a necessidade de revelar a verdade o fez acrescentar — Eu estava indo embora da cidade, Eve. Queria fugir porque temia muito, um dia, a magoar profundamente.

— Mas você não fugiu — ela murmurou.

— Não consegui. Embora eu ache que você ficaria mais segura e seria mais feliz sem mira, não tive coragem de ir.

— Ainda bem. Se houvesse me abandonado, eu o procuraria como a um criminoso,

Lucien sorriu. Eve era uma mulher excelente e lhe pertencia.

— Passarei a vida me esforçando para fazê-la feliz.

— Farei o mesmo por você — ela prometeu.

Pela primeira vez, Lucien tinha certeza de estar agindo certo. Ambos precisavam um do outro, embora de maneiras diferentes.

— Não importa o que vier a acontecer, você me aceita, Eve?

— Você sabe que sim.

Ele pegou suas mãos e as beijou.

— Você é o bem em minha vida. Preciso de você. Não sobreviverei sem você. É um grande egoísmo meu aceitá-la como esposa.

— Você me ama?

— Mais do que a qualquer coisa neste mundo.

Eve lhe sorriu e, naquele momento, só existia o bem no mundo de Lucien.

— Então, vamos nos casar — ela disse com firmeza.

 

O’Hara seguia para a estação ferroviária com a maleta na mão. Lucien e Eve haviam se casado finalmente. Tinham esperado bastante. Muito apropriado o fato de a cerimônia ter sido à meia-noite. Eles combinavam com perfeição. Sentia-se feliz pelos amigos e, ao mesmo tempo, morria de inveja.

Lionel e Hugh caminhavam à frente dele. Apesar de Hugh ter afirmado que se sentia bem e não precisar de ajuda, Lionel carregava-lhe a mala. Hugh ainda não estava totalmente bom e talvez levasse umas semanas para ficar. Negava-se a comentar o que havia acontecido naquela noite. Mas estava forte o suficiente para viajar.

— Para onde você vai?

Surpreso com a indagação que lhe interrompia as reflexões, O’Hara diminuiu o passo para deixar Garrick Hunt o alcançar.

— Para Savannah primeiro e, depois, para o norte. E você? — indagou, apontando para a mala de Garrick.

— Também para Savannah e, de lá, para o oeste.

Ele não parecia muito satisfeito com tal itinerário.

— Tem certeza de que quer ir? — O’Hara perguntou.

— É o que me resta fazer — Garrick resmungou; — Por acaso você é casado?

— Não — O’Hara respondeu.

— Alguma mulher especial em sua vida?

No mesmo instante, O’Hara pensou em Daisy, mas a descartou.

— Não.

— Nesse caso, acho que você não pode me explicar o que elas querem de um homem.

— Já vi dentro da mente de muitas mulheres, mas não faço idéia do que elas querem. Acho que nem elas sabem a não ser nos torturar, simplesmente porque somos homens. Elas não precisam de outra desculpa.

— Torturar. Isso mesmo — Garrick resmungou.

Enquanto continuavam a andar rumo à estação, O’Hara pediu:

— Sei que é muito cedo ainda, mas você não pode me dar um gole daquele seu frasco?

Garrick disse algo que O’Hara não entendeu.

— O quê?

— Joguei fora.

— O frasco? Por quê? — O’Hara indagou, espantado.

— Não bebo mais.

— Por que não?

— No presente, prefiro sofrer minhas dores com lucidez — Garrick explicou, amargurado.

O’Hara desconfiou que Garrick não seria uma companhia agradável até Savannah.

Já estavam perto da estação, onde o trem aguardava os passageiros na plataforma. Foi então que os dois homens ouviram uma ofegante voz feminina gritar:

— Espere!

Daisy? O’Hara virou-se, bem como Garrick. Katherine Cassidy estava lá com um vestido amarelo vivo e uma valise na mão.

— Você ainda quer me levar? — ela indagou, olhando para Garrick e esperando a resposta com a respiração presa.

Ele largou a mala na calçada e foi até ela. Um sorriso substituía a expressão triste de até um minuto atrás.

— Quero muitíssimo, claro.

— Eu ia deixá-lo partir. Estou com tanto medo...

Largou a valise e deixou Garrick abraçá-la e a levantar do chão.

— Mas eu não podia ficar sentada lá e não fazer nada enquanto você partia. — Respirou fundo quando ele a pôs de volta ao chão. — Então, escrevi um bilhete deixando a casa para Elijah e a mãe dele, pois Buster contou que eles não têm quase nada no casebre onde moram. Aí, pus meu vestido novo, arrumei a valise com umas peças de uso pessoal, um pente e o broche de minha mãe. Larguei o resto para trás e não vou voltar. Eu te amo, Garrick. Eu te amo.

Garrick murmurou algo em seu ouvido e a estreitou contra o peito. O sorriso de Katherine revelou a O’Hara o que ela deveria ter ouvido. O amor. Um mundo de...

— Gostaria de assistir a outro casamento?— Garrick perguntou ao passar o braço pelos ombros de Katherine e pegar sua valise.

— Não. Tenho de pegar um trem — O’Hara respondeu lacônico.

— Nós também. Vamos nos casar em Savannah. Deus do céu, eu nunca fiz o pedido! Você aceita se casar comigo? — perguntou ao fitar uma sorridente Katherine.

— Aceito, claro!

A expressão de felicidade de Garrick era irritante. O’Hara apressou o passo, deixando os namorados para trás. Ouvi-los o deprimia.

Seria ele forçado a se deparar com casais felizes pela vida afora? Deus lhe provava o fato de nenhuma mulher o aceitar? Havia pensado que talvez Daisy fosse diferente, capaz de esquecer seus temores sobre o que ele podia fazer e ver o homem atrás do poder anormal: Mas, não!

Pelo menos sabia que Lionel e Hugh também eram frustrados em relação a mulheres.

No vagão, os dois sentavam-se juntos e O’Hara acomodou-se no banco em frente a eles. Não podia esperar a hora de ir embora de Plummerville de uma vez por todas.

— Pensei que Lucien e Eve viriam se despedir de nós — Hugh disse ao olhar para a plataforma.

O’Hara resmungou qualquer coisa. Pela maneira como aqueles dois se olhavam ao sair da igreja na véspera, ele calculava que não sairiam de casa por um mês. A não ser que ficassem sem comida.

— Calculo que estejam ocupados agora de manhã — Lionel disse.

— Bem, teremos de vir visitá-los, dentro de uns dois meses, para ver como estão vivendo.

— Boa idéia — Lionel concordou.

— Pois eu não venho. Esta cidadezinha atrasada, com seus habitantes de mentalidade tacanha não me agrada nem um pouco. Vocês podem vir. Passarei minhas folgas em qualquer outro lugar.

Nova York, Boston, Savannah, tanto fazia, desde que Daisy Willard não estivesse lá.

Garrick e Katherine entraram no vagão de mãos dadas e rindo. A passagem para ela tinha sido comprada bem na hora. Sentaram-se na outra extremidade do vagão, onde poderiam continuar a murmurar aquelas coisas irritantes sem incomodar.

Impaciente, O’Hara pôs-se a tamborilar os dedos no braço do banco. Quanto tempo mais teria de esperar para escapar de Plummerville? Sentia-se tão prisioneiro ali quanto fora no Honeycutt Hotel. Finalmente o trem apitou, avisando a partida. Graças ao bom Deus. Quanto mais depressa saísse da cidade, melhor. Mas a composição mal começava a se mexer.

Foi então que Lionel perguntou:

— Aquela não é Daisy Willard?

A cabeça de O’Hara rodopiou para a plataforma. Sem dúvida era Daisy cujo olhar examinava as janelinhas enfumaçadas do vagão. Procurando-o? Talvez.

Ele pulou do banco e correu para a porta onde segurou-se no corrimão a fim de descer uns degraus. Daisy o viu e começou a correr enquanto gritava, acompanhando o trem vagaroso:

— Vim me despedir de você!

— Chegou atrasada!

— Eu não podia resolver o que vestir.

Ela correu mais depressa e chegou mais perto. O’Hara balançou a cabeça. Mulheres! Ele não as entendia, ainda mais essa.

— Adeus! Faça uma boa viagem — ela gritou.

Estava cada vez mais perto e, para a surpresa de O’Hara, estendeu-lhe a mão. Correndo, com os olhos brilhando, ela lhe estendia a mão!

Ele inclinou-se para fora e esticou a dele no momento em que o trem ganhava velocidade. A de Daisy mal lhe tocou a palma um instante antes de o trem o levar para longe de seu alcance.

— Adeus! — ela gritou outra vez.

Ainda com a mão estendida, O’Hara a observou. Ela a havia tocado de leve com a sua, mas a mensagem estava clara. Cretino. Você nunca chegou a me beijar.

Com a brisa provocada pelo movimento do trem agitando-lhe os cabelos curtos e o paletó, ele continuou na escadinha até não ver mais Daisy. Então, voltou para seu lugar com uma estranha alegria tinindo pelo corpo.

— Q que ela disse? — Lionel perguntou.

— Adeus.

— É por isso que você está com esse sorriso satisfeito?

— Ela também nos desejou boa viagem.

Hugh disse qualquer coisa e Lionel suspirou.

Enquanto via a paisagem da Geórgia voar lá fora, O’Hara disse:

— Sabem, talvez eu tenha me apressado em julgar Plummerville como um lugar desagradável. A cidade tem seu encanto. Pode ser que eu me convença a vir visitá-la outra vez.

— O que o fez mudar de idéia? — Lionel indagou.

— Nada em especial.

— Cretino — Lionel o chamou, baixinho.

O’Hara sacudiu o dedo para o amigo.

— Você não pode fazer isso!

Lionel sorriu, recostou-se no banco e fechou os olhos. O’Hara continuou a apreciar a paisagem.

Sim, sem dúvida alguma, ele voltaria.

 

                                                                                Linda Fallon  

 

                      

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