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SOMBRAS DE UM CRIME
SOMBRAS DE UM CRIME

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

   

 

45.

A detetive Joanne Gibb atravessou o corredor em direção ao escritório de Steve Preston. Seu andar saltitante não dava a perceber as horas que ela passara curvada
sobre o computador, verificando os registros criminais de cada nome presente na lista de eleitores de todas as ruas entre Kentish Town e Tufnell Park.

Ela estava quase vesga de cansaço e prestes a chorar de frustração pela tarefa infrutífera quando o telefone tocou. Na véspera, tentara entrar em contato com o
policial que cuidava dos registros na delegacia da região que Terry havia identificado, apenas para descobrir que o sujeito estava de férias e só voltaria na segunda.
Aquela fora a gota-d'água, mas, ainda assim, ela continuara a verificar a lista, na esperança, mesmo remota, de que algo surgisse.

Então, quase na hora do almoço, recebera a ligação. O policial, Darren Watson, passara pela delegacia para pegar alguma coisa e vira a mensagem "urgente" de Joanne.
Já sem paciência e praticamente sem esperanças, Joanne descreveu o que estava procurando.

- Certo - respondeu Darren. - Dois sujeitos me vêm à mente. Por que você não vem até aqui e a gente dá uma olhada?

- Agora? - Joanne mal conseguiu acreditar na sorte. Sabia, por experiência, que os policiais de folga fariam de tudo para evitar serem arrastados de volta ao trabalho.

- Claro. Acabei de passar uma semana em uma casinha na Cornualha com minha cara-metade e, para ser franco, qualquer coisa que me mantenha longe de casa por uma
ou duas horas será uma dádiva. Venha até aqui e a gente vê o que consegue desencavar.

Ele não precisou convidar duas vezes. Joanne desceu correndo para pegar o carro e provocou várias explosões de raiva em outros motoristas no caminho até a delegacia
de North London, onde Darren Watson talvez tivesse a resposta para suas orações. Os Local Information Officers, escritórios de Informação regional, eram responsáveis
por guardar os arquivos informais de inteligência da delegacia. Além de manter uma ficha de cada bandido da área, com detalhes sobre suas condenações, um bom oficial
registrava possíveis cúmplices, suspeitas e fofocas. Havia bons motivos para que muitas das informações que eles coletavam jamais fossem inseridas num computador.
Uma ficha podia ser convenientemente guardada no lugar errado, enquanto os registros deletados de um computador deixavam rastros. Saber de tudo e, ao mesmo tempo,
poder negar o fato era a marca registrada de um bom arquivista. Joanne esperava encontrar exatamente isso.

Darren encontrava-se em um pequeno escritório subterrâneo, com a atmosfera de um bunker do comando de guerra. Uma das paredes estava coberta de mapas em larga
escala da área, com percevejos de cores diferentes marcando localizações específicas. Em outra havia vários fichários. A terceira parede ostentava prateleiras envergadas
sob o peso de inúmeras caixas de arquivos empilhadas. Darren estava sentado na ponta de uma mesa que tomava quase todo o espaço da quarta parede, vestido como
um civil: um casaco de lã azul-marinho sobre uma camiseta branca, calça jeans e tênis branquíssimos. A julgar pela aparência do homem, pensou Joanne, os arquivos
deviam ser imaculados. Ela estava perfeitamente consciente de que o desgaste gerado pelo trabalho e as poucas horas de sono tinham-na deixado muito aquém de Darren
no quesito aparência.

Após se apresentarem, Joanne foi direto ao ponto: - Como eu lhe falei, estou tentando descobrir um suspeito para uma série de estupros. Temos motivos para desconfiar
de que ele seja da sua área. Passei em revista a lista dos eleitores, mas não consegui nada. Acreditamos que ele possa ter uma ficha por ataques sexuais leves,
talvez até

mesmo tentativa de estupro. Estamos procurando por um criminoso que age ao ar livre e ataca mulheres brancas, geralmente louras. Ele usa uma faca para intimidar
e talvez utilize uma bicicleta como veículo de fuga. É possível que alguns dos ataques tenham sido testemunhados por crianças pequenas.

Darren se afastou da mesa e andou até os fichários. - Andei pensando um pouco e dois nomes me vieram à mente. - Ele abriu uma das gavetas e verificou as fichas.
- Aqui vamos nós. - Pegou um punhado de fichas presas com um elástico. - Gordon Harold Armstrong. - Entregou as fichas para Joanne e voltou a atenção para outra
gaveta.

Gordon Harold Armstrong tinha 25 anos, estava desempregado e já entrara e saíra da prisão algumas vezes por roubo e ataques sexuais leves. Ele costumava agarrar
mulheres que estavam voltando para casa do trabalho, apertar seus seios e expor o próprio pênis. Já ameaçara três vítimas com uma faca. Não havia menção a bicicleta
nenhuma, mas para Joanne o fator crucial que o desqualificava era o fato de ser negro. Com base tanto na análise de Fiona sobre o assassinato de Susan Blanchard
quanto no depoimento das vítimas de estupro, o homem que procurava era branco. Darren virou-se novamente com outra ficha.

Joanne fez que não. - Estou procurando por um homem branco. , Darren entregou-lhe a ficha. - Verifique esse. Gerard Patrick Coyne, 27 anos. Nascido na Nova Zelândia,
chegara ao Reino Unido aos 18 anos, o que explicava seu nome não constar na lista dos eleitores, percebeu Joanne. Formara-se em ciências sociais na Kent University
e, desde então, trabalhara em várias empresas de pesquisa de mercado como analista de dados. Sua primeira prisão ocorrera quatro anos antes, depois que uma mulher
dera queixa por ele a ter atacado num parque da vizinhança. Ele a jogara no chão e tentara estuprá-la. Ela, porém, havia lutado e conseguira escapar. A queixa
havia sido posteriormente arquivada por insuficiência de provas. Alguns meses depois, a segunda prisão. Um policial que fazia a ronda o encontrara agachado entre
os arbustos noutro

porque, dessa vez com uma faca. Ele havia sido indiciado por porte de arma branca e recebera dois anos de liberdade condicional. Segundo as anotações no verso
da ficha, Coyne era suspeito de mais dois outros ataques sexuais. Em um dos casos, a vítima ficara tão traumatizada que se recusara a fazer uma identificação.
No outro, a mulher tinha sido incapaz de decidir entre ou suspeitos apresentados para reconhecimento.

De modo nada surpreendente para um criminoso sexual, Coyne não tinha parceiros conhecidos. O que ele tinha era uma bicicleta. As anotações Impecáveis de Darren
Watson revelavam que ele era membro do clube de ciclismo do bairro e já havia ganhado várias corridas.

Joanne deixou que um sorriso iluminasse lentamente seu rosto. - Darren, você é um anjo - disse, brandindo a ficha como um bilhete de loteria premiado.

- Gostou do nosso sr. Coyne, foi? - Se eu gostei? Eu adorei. - Enquanto falava, Joanne tirou um bloquinho de dentro da bolsa e começou a copiar os detalhes sobre
Coyne. Endereço, data de nascimento, data das prisões e da condenação por porte de arma. E o nome do clube de ciclismo.

Agora, ao bater à porta do escritório de Steve, meia hora depois, Joanne estava convencida de que o chefe também ia adorar o potencial de Gerard Patrick Coyne.
Entrou no escritório com um sorriso de orelha a orelha.

- Tenho novidades! - começou, sentando na cadeira em frente a ele sem esperar ser convidada. Abriu suas anotações e leu em voz alta os detalhes sobre Coyne. Ergueu
os olhos. - Verifiquei os registros criminais dele. Parece que finalmente temos um suspeito, chefe. - Passou os olhos por um bando de folhas impressas e escolheu
algumas para entregar ao chefe.

- Mas nada que o ligue a Susan Blanchard - lembrou-lhe Steve. - Nada, exceto especulações e algumas análises feitas através do computador. - Ele pegou as folhas
e olhou para a que estava por cima, a qual continha as fotos de Coyne. - Espere um pouco - disse, com um toque de animação na voz.

- O que foi, chefe? - Joanne inclinou-se para a frente, ansiosa, como se pudesse captar o que deixara Steve tão animado.

- Conheço esse rosto. Já o vi. - Ele fechou os olhos e franziu o cenho, concentrando-se. Ao abri-los novamente, o rosto todo se iluminara.

- Ele estava no Bailey no dia em que Blake foi solto! Tenho certeza, ele me chamou a atenção por causa da roupa de ciclista. Estava carregando um capacete. Era
ele, Joanne, sei que era.

- Tem certeza? - Era como se ela não ousasse ter esperanças. - Tenho. Eu estava prestando atenção à multidão porque não conseguia tirar da cabeça que tínhamos
levado o homem errado a julgamento. Estava verificando os rostos. Só para o caso de ver alguém que me fizesse lembrar de alguma coisa. - Steve levantou e começou
a andar de um lado para o outro. - O que a gente precisa fazer... Joanne, quero que você providencie o vídeo que fizemos no funeral de Susan Blanchard. A gente
fez uma cobertura total, todos os ângulos. E veja o que você consegue com a imprensa. Qualquer foto ou vídeo que eles tenham feito do lado de fora do Bailey. E
o tribunal dos magistrados, veja se descobre alguma coisa por lá. Você precisa ser discreta, sabe que eles vão subir nas tamancas se acharem que estamos pegando
pesado. Vá e fale com o assessor de imprensa, veja o que ele consegue para você.

- E quanto ao Coyne? Não vamos vigiá-lo? Steve abriu as mãos em sinal de frustração. - Não tenho ninguém para fazer isso, Jo. Deixe-me ver... - Ele estava meio
que falando consigo mesmo, rabiscando em seu caderninho. - John vai render o Neil na frente do apartamento de Blake às seis... Talvez Neil possa ir até a casa
do suspeito e ficar com ele até meia-noite... - Ergueu os olhos para Joanne. - Alguma chance de você conseguir chegar aqui amanhã às sete para vigiar o Coyne
durante o dia?

Joanne fez que sim, o entusiasmo superando o cansaço. - Claro. Essa pode ser a oportunidade que estávamos esperando. No entanto... se não se importa que eu pergunte...
por que vamos continuar vigiando Blake agora que surgiu o Coyne?

Steve concordou com um aceno de cabeça, resignado. - Bem-colocado, Jo. Acho que tenho uma pulga atrás da orelha com relação ao Blake. Sei que ele não é o assassino.
Mas, se Fiona Cameron estiver certa, e ele tiver visto o que aconteceu no Heath naquela manhã, eu adoraria pegá-lo por alguma coisa. Até onde sabemos, ele pode
estar em contato com Coyne. Enquanto pudermos, quero continuar mantendo-o sob vigilância. Mas você não precisa se preocupar com Blake agora. Deixe isso

comigo, vou tomar as providências. Apenas vá até a casa do Coyne amanhã As sete e fique de olho nele.

Ela se levantou. - Se isso é tudo, vou embora agora, preciso tentar recuperar o sono. - Você merece. Bom trabalho, Jo. Muito bom. - Ele sorriu. - A sorte virou
a nosso favor. Estou com um bom pressentimento.

Antes mesmo que a porta terminasse de fechar, Steve já estava com o telefone na mão. Em quinze minutos, resolvera tudo. Neil aceitara assumir a nova vigilância,
e outro oficial do Departamento de Investigações Criminais iria cobrir Blake no dia seguinte, deixando a equipe de Steve livre para se dedicar a outra coisa. Isso
estava longe de ser satisfatório, mas foi o melhor que ele conseguiu arrumar em tão pouco tempo. E, dada a forma como as coisas pareciam estar correndo a seu favor,
ele não pôde deixar de se sentir otimista. Talvez eles finalmente conseguissem capturar o verdadeiro assassino de Susan Blanchard. Nada o deixaria mais feliz.

Mas então se lembrou de Terry Fowler e fez uma ressalva.

Tudo estava no seu devido lugar. Não fazia diferença que a van que ele havia alugado com uma de suas carteiras de motorista falsas não tivesse um logotipo na lateral;
as transportadoras muitas vezes alugavam vans brancas comuns quando sua própria frota estava sobrecarregada de serviço. De qualquer forma, ela era apenas um acessório
de menor importância. O principal veículo, o Toyota 4 x 4, já estava estacionado na ruazinha estreita atrás da fileira de casas onde seu alvo morava.

Só fora preciso ter paciência. Havia passado pela casa umas duas vezes hoje. Nenhuma surpresa. Se havia algum tipo de proteção antes, ela desaparecera sob o holofote
enganoso da confissão da véspera. Mal acreditara em sua sorte ao ligar a televisão na noite anterior. No momento em que pensara que as coisas ficariam mais difíceis,
a polícia caíra num engodo. Agora ninguém estaria esperando por ele, muito menos seu alvo.

Tudo estava indo de vento em popa. Até mesmo o tempo estava a seu favor. Uma tarde cinzenta e chuvosa significava ruas vazias e pouca visibilidade. Girou a chave
na ignição e ligou a seta. Pronto ou não, aqui vou eu.

Kit olhou fixamente para a tela sem ver as palavras. O tempo passara sem que ele percebesse, absorto como estava em seu luto pela amiga. As imagens de Georgia
não lhe saíam da mente, tal como um filme: seus gestos, expressões faciais, o jeito de rir. Trechos de suas conversas foram resgatados da memória e agora reverberavam
em sua cabeça. Eles tinham ficado tantas vezes até tarde em bares de hotéis, conversando sobre o trabalho, os colegas, o meio editorial, aos poucos passando para
assuntos mais pessoais. Ela falava com carinho de Anthony e com lascívia, sobre os amantes. Ele lhe contara como se apaixonara por Fiona, e até o último momento
compartilhara mais sobre o relacionamento deles com Georgia do que com qualquer outra pessoa.

Não que dependessem um do outro. Semanas se passavam sem que eles se encontrassem, mas a amizade que os unia era daquele tipo que é retomada exatamente do ponto
onde parou. Kit sentia falta dela, uma dor embotada como o começo da fome. Queria que Fiona estivesse com ele. Ela entendia o mecanismo da perda; poderia guiá-lo
por aquele terreno desconhecido que era o pesar.

Sacudiu a cabeça como um cachorro incomodado com uma mosca. Abriu seu e-mail. Baixou a mensagem de Fiona e leu. Palavras a distância, mas ainda serviam para tranquilizá-lo.

Kit olhou de relance para o relógio e ficou surpreso ao ver como já estava tarde. O detetive da City viria pegar seu depoimento dali a meia hora. Não que tivesse
muito a dizer. Suspeitava que a lembrança vaga de ter recebido um manuscrito de Redford não ajudaria muito no caso. Imaginou se Georgia também havia recebido uma
das ofertas não solicitadas de Redford. Se tivesse, ela devia ter isso registrado em algum lugar. Ao contrário dele, Georgia contratara uma secretária em regime
de meio expediente para lidar com sua correspondência. Sem dúvida, ela teria uma cópia da carta que devolvera junto com o manuscrito em algum lugar.

O guincho do portão interrompeu suas divagações e ele olhou pela janela. Um entregador vinha subindo o caminho de entrada com uma grande caixa de papelão, do tipo
que contém as cópias do livro de um autor. Uma prancheta equilibrava-se em cima da caixa.

Kit se levantou e saiu para o corredor. Abriu a porta da frente antes mesmo que o entregador tocasse a campainha.

- Entrega para Martin - informou o homem, olhando por cima da caixa.

Kit esticou o braço para pegar a caixa. Ela era tão pesada quanto esperava, e ele deu um passo para trás de modo a poder se virar e depositá-la no chão, longe da
porta. Pelo canto dos olhos, viu algo se mover. Meio que se virou quando o braço do entregador desceu com uma força violenta. Kit viu o golpe se aproximando, chegou
a fazer menção de levantar o braço para interceptá-lo. Mas, assim que sua cabeça foi atingida, soube que era tarde demais. Um brilho de dor vermelho e branco se
formou atrás de seus olhos. E então tudo ficou escuro.

O entregador voltou pelo caminho de entrada, balançando a prancheta. Subiu na van e partiu. Duas ruas adiante, encontrou um lugar para estacionar. Tirou a jaqueta
apertada do uniforme e a trocou por outra preta de couro. Subiu na traseira da van, despiu as grosseiras calças azuis e vestiu um par de jeans pretos em seu lugar.
Em seguida, trancou a van e voltou caminhando até a rua que dava para o jardim dos fundos da casa de Kit Martin. Abriu o portão do jardim que destrancara alguns
minutos antes. Então, sob a luz difusa do cair da noite, passou pelas ameixeiras com seus galhos desnudos e cruzou o pátio até as janelas francesas que deixara
destrancadas. Tinha sido conveniente da parte de Kit deixar a chave na fechadura. Atravessou a cozinha e o corredor. Lugar bacana, se você gostasse daquele tipo
de coisa. Na opinião dele, preferia as cozinhas mais tradicionais, tipo as de fazendas, a toda aquela parafernália moderna.

E lá estava ele. A vítima número quatro. Amarrado como uma galinha, mãos e pés atados com aquelas convenientes algemas de plástico. A boca coberta com uma larga
fita adesiva cirúrgica que permitiria que ele respirasse mesmo que seu nariz ficasse tampado. Não o queria morto ainda. De jeito nenhum. Não era mais tão poderoso,
não é mesmo, sr. Kit Martin? Criador de deuses falsos. Destruidor de vidas.

Estava na hora de Martin encarar sua própria destruição.

Contudo, primeiro era necessário ter mais paciência. Precisava da escuridão. Não seria nada aconselhável que os vizinhos vissem a amigável celebridade da casa ao
lado sendo rolada pelo jardim como um carpete desajeitado e jogada na traseira de uma caminhonete 4 x 4.

Checou a hora em seu relógio de pulso. Precisava esperar mais meia hora. Então eles poderiam pegar a estrada e dar início à longa viagem para casa.

46.

A sala de vídeo possuía uma tecnologia tão moderna quanto a de qualquer emissora de transmissão. Steve não sabia ao certo como os técnicos conseguiam verba para
um equipamento tão sofisticado, mas pelo menos dessa vez achou que isso valia cada centavo desviado das formas mais diretas de policiamento. Estava sentado ao
lado do técnico que lhe mostrava os vídeos do funeral de Susan Blanchard.

O enterro ocorrera num dia bonito e ensolarado, o que, com certeza, devia ter parecido estranhamente inapropriado para os familiares e amigos de luto, mas que
facilitara bastante o trabalho dos operadores de câmera da polícia. Três câmeras haviam sido posicionadas a uma distância discreta do túmulo, tirando proveito
dos velhos teixos que circundavam o pátio da igreja. Elas tinham filmado as pessoas chegando à igreja e se reunindo em torno do túmulo para o enterro. Então, depois
que a multidão se dispersara, uma das câmeras continuara filmando a sepultura pelo restante da tarde.

Steve mantinha os olhos grudados na tela enquanto o vídeo rodava diante dele em câmera lenta. De vez em quando, pedia que o técnico congelasse o quadro e aproximasse
a imagem, de modo a poder olhar mais de perto alguma pessoa em particular. A primeira gravação não lhe forneceu nada de concreto, embora tivesse ficado com a impressão
de que poderia ser Coyne em umas duas tomadas de fundo.

Quando eles já estavam na metade da segunda gravação, Steve começou a sentir os olhos cansados e cheios de areia.

- Preciso de um intervalo - falou com o técnico, empurrando a cadeira para trás e se espreguiçando. - Só uns dez minutos.

Ele saiu da sala de vídeo e subiu os dois lances de escadas até seu escritório. Encontrou um grosso envelope pardo sobre a mesa, com os dizeres: "Urgente. Favor
entregar ao superintendente Steve Preston", escrito em caneta hidrocor preta. Steve o abriu e puxou meia dúzia de fotos em preto e branco. Um bilhete escorregou
de dentro do envelope e caiu sobre a mesa. O pacote fora enviado pelo editor de fotos de um jornal diário nacional, um homem com o qual ele tomara uns drinques
e trocara algumas piadas numa das medonhas festas de Teflon no Natal anterior. Nada melhor do que contatos pessoais para se obterem resultados no obscuro campo
de atuação da mídia e da polícia.

Todas as fotos haviam sido tiradas do lado de fora do Old Bailey no dia em que Francis Blake fora solto. Steve vasculhou a primeira gaveta de sua mesa em busca'
de uma lupa e começou a analisar as fotos de maneira metódica. Ao verificar a terceira foto, soltou um suspiro de alívio. Sua memória não estava lhe pregando peças.
O rosto inconfundível de Gerard Coyne encontrava-se na periferia da multidão que cercava Blake. Steve verificou as fotos restantes e encontrou Coyne em mais duas.
Numa delas, seu rosto aparecia de frente, bem destacado; nas outras duas, ele estava de perfil. No entanto, não havia sombra de dúvida.

O homem identificado pelo perfil geográfico de Terry estivera presente no julgamento do suposto assassino de Susan Blanchard.

Tomado por uma nova onda de entusiasmo, Steve desceu correndo as escadas até a sala de vídeo.

- Vamos continuar - falou. - Ele está aí em algum lugar, tenho certeza. Sua paciência foi recompensada dez minutos depois. A segunda gravação captara Coyne saindo
do meio das árvores que ladeavam o túmulo. Ele usava um terno escuro, camisa com colarinho e gravata, a indumentária apropriada para a ocasião. Mantivera-se afastado
do grupo de pessoas em torno da sepultura, permanecendo à margem. Em respeito ao luto da família, muitas pessoas tinham se mantido afastadas enquanto os gêmeos
de Susan jogavam rosas sobre o caixão da mãe e o observavam ser abaixado para a

cova. No entanto, todas elas tinham se dispersado rapidamente ao fim da cerimônia. Coyne, por sua vez, se enfiara no meio das árvores e, quando a última pessoa
sumiu, ele reapareceu e começou a andar em direção ao túmulo.

Steve sentiu o pulso acelerar à medida que Coyne se aproximava em câmera lenta. Ao passar pela cova aberta, ele sequer lançou um olhar de relance para os lados,
apenas continuou seguindo seu caminho. Dois túmulos adiante, parou abruptamente e se virou de frente para a lápide de Susan.

- Merda - xingou Steve baixinho. - Não dá para ver o rosto dele. Aposto que ele está olhando para o túmulo. Eu apostaria o dinheiro que fosse. Coyne permaneceu
ali com a cabeça ligeiramente curvada por uns dois minutos e, então, voltou pelo mesmo caminho. Nada em seu comportamento sugeria algo estranho. Ele poderia, se
pressionado, alegar que tinha adiado sua visita ao túmulo próximo ao de Susan por causa do enterro que acontecia naquele momento. Só que isso, somado à presença
dele no Old Bailey e ao perfil geográfico, representava mais um tijolo na construção de um caso circunstancial, o que talvez fosse suficiente para colocá-lo atrás
das grades.

- Quero que você imprima uma série de quadros desse vídeo - pediu Steve. - As melhores imagens do rosto dele. Amplie-as para que possamos ter a melhor definição
possível. Não quero que ninguém tenha dúvida alguma com relação a isso. - Sem problema - replicou o técnico. - Imagino que isso seja urgente, certo?

- É urgente. - Steve já se dirigia para a porta. Olhou para o relógio de pulso. Teflon tinha o hábito de inventar desculpas para sair cedo nas sextasfeiras, mas
talvez ainda conseguisse pegá-lo. O comandante Telford estava esperando pelo elevador quando Steve apareceu.

- Fico feliz por encontrá-lo ainda aqui, senhor. Preciso lhe falar com urgência sobre o caso Susan Blanchard - declarou com firmeza.

- Não pode esperar, superintendente? Tenho um compromisso. Com um copo grande de gim e tônica, pensou Steve com cinismo. - Infelizmente, não. Talvez o senhor
possa ligar e dizer que terá de se atrasar...

Telford contraiu os lábios e fungou.

- Tudo bem. Mas seja rápido. - Ele se virou e marchou de volta para o escritório.

Steve mal acabara de fechar a porta quando Telford perguntou: - Então, o que aconteceu de tão importante? - Temos um suspeito viável no caso de Susan Blanchard,
senhor. Pretendo trazê-lo para interrogatório e fazer uma busca no apartamento dele. Achei que o senhor gostaria de ser informado. - Andou até a cadeira destinada
aos visitantes e sentou, ignorando o fato de que Telford ainda estava em pé.

- De onde surgiu isso? - indagou Telford, incapaz de esconder seu ceticismo.

- O senhor não se lembra de que me autorizou a utilizar o programa de conexão criminal e perfil geográfico, tendo como base casos com elementos semelhantes? A
partir dos resultados dessa análise, meus oficiais passaram em revista os registros criminais e encontraram um provável nome.

- Isso é tudo? - interrompeu Telford. - Você acha que a corte vai aceitar isso como uma desculpa razoável para intimar alguém a ser interrogado e vasculhar o apartamento
dessa pessoa?

- Tem mais, senhor - continuou Steve, engolindo a frustração. - O suspeito é membro de um clube de ciclismo, e temos duas testemunhas que viram um ciclista na
cena do crime. Mais importante ainda foi que reconheci o suspeito ao ver sua foto. Eu já o vira antes, senhor. Ele esteve no Old Bailey no dia do julgamento de
Francis Blake. Verifiquei as fotos tiradas no dia. E examinei também os vídeos que fizemos durante o funeral de Susan Blanchard. Ele esteve lá também. Depois do
enterro, passou ao lado da cova dela. Na minha opinião, senhor, temos provas circunstanciais suficientes para prendê-lo sob suspeita de assassinato. E para conseguir
um mandado de busca com base na seção 18 do Police and Criminal Evidence Act 1984 (PAGE).*10 - Ele manteve os olhos fixos nos de Telford, obrigando-o a concordar.
Sabia que tinha mais força do que o comandante, mas

*10. O PACE é um estatuto homologado pelo Parlamento britânico que institui diretrizes legislativas ao poder policial na Inglaterra e em Gales no combate ao crime, assim como códigos de conduta para o exercício desse poder (N. T.)

nunca tentara colocar isso à prova. Talvez devesse ter feito isso meses antes, quando Telford fizera pressão para que eles afastassem Fiona e usassem Horsforth.
Ele, porém, se acovardara na época, e o preço que tivera de pagar fora alto demais para que se sentisse disposto a arriscar deixar isso acontecer novamente.

- Essas provas são frágeis - reclamou Telford. - E você já meteu os pés pelas mãos nesse caso antes. Não quero outro fracasso em minhas mãos.

- Podemos manter tudo em sigilo por enquanto, senhor. Não há necessidade de fazer nenhum tipo de declaração até estarmos prontos para indiciá-lo. Ninguém precisa
saber sobre a prisão e as buscas. Posso fazer tudo na surdina... só quem vai saber sou eu e minha equipe direta.

Telford fez que não. - Seus argumentos são convincentes. Mas eu quero a permissão do comissário antes de prosseguirmos.

- O comissário está de férias - protestou Steve. Podia sentir o caso escorregando de suas mãos e se sentia impotente para impedir que isso acontecesse.

- Ele volta na segunda de manhã. Sugiro que você marque uma reunião com ele o mais cedo possível. Até lá, não faça nada que possa alertar o suspeito. - Telford
abriu um sorriso afável. Encontrara um meio de fugir à responsabilidade, e estava feliz por isso. - Já esperamos muito tempo. Dois dias a mais não farão diferença.

- Isso não é bom o suficiente. - Steve sentiu o rosto ficar vermelho de raiva enquanto o sorriso de Telford se transformava num franzir de cenho. - Minha equipe
trabalhou dia e noite para conseguir isso, e não estou disposto a perder o pique. Sugiro deixar uma mensagem no telefone de casa do comissário para que ele possa
me contatar assim que chegar.

- Como ousa ameaçar passar por cima de mim? Você enlouqueceu, superintendente - gritou Telford com toda a força de um homem que sabia estar passando dos limites.

Steve se levantou. - Pode ser, senhor. Mas essa investigação é minha e não vou colocá-la em risco. Estou preparado para assumir toda a responsabilidade.

Vendo-se diante de uma determinação que não conseguiria aplacar, Telford imediatamente recuou.

- Se você acha necessário, então faça. Mas é bom que esteja muito seguro de si se pretende perturbar as férias do comissário.

- Obrigado, senhor - respondeu Steve, num tom que beirava a insolência. Saiu da sala antes que seu temperamento fugisse ao controle, segurando-se para não bater
a porta. Não era o resultado que esperava, mas pelo menos conseguira contornar Teflon. O comissário não ficaria nada animado ao chegar de sua viagem de férias ao
exterior e encontrar uma mensagem urgente em sua secretária eletrônica. Contudo, embora fosse tão competente no jogo político quanto qualquer administrador experiente,
o comissário tinha sido um detetive muito mais corajoso do que Telford jamais conseguira ser. Ele entenderia sua motivação. E, Steve tinha certeza, lhe daria
sinal verde para prosseguir. Até então, teria de manter uma vigilância o mais discreta possível.

Nada, pensou enquanto voltava para seu próprio escritório, era tão simples quanto parecia.

Esse era um sentimento com o qual Fiona provavelmente concordaria. Ela havia verificado todos os arquivos sobre o assassinato de Drew Shand, o que acabara sendo
uma tarefa particularmente improdutiva sob o ponto de vista de desenvolver elementos fortes de ligação. Uma das poucas coisas que podia afirmar até então era que,
apesar da montagem cuidadosa do cenário, não havia nenhuma indicação de que o motivo sexual presente nas mortes fictícias tivesse sido replicado nos crimes reais,
o que, por si só, era importante. Isso significava que certamente havia outro motivo por trás das mortes de Georgia e Drew. Ambos tinham sido seguidos; ambos sequestrados;
nenhum dos dois fora morto em sua própria casa, mas num local específico; e os dois eram escritores premiados de romances sobre serial killers que tinham sido
adaptados com sucessos por outros veículos de mídia. Entretanto, tudo isso pertencia ao campo da psicologia do ato. Havia pouca coisa de natureza concreta a partir
do que outras provas pudessem ser desenvolvidas. O que intrigava Fiona era que o assassino parecia disposto a se desviar do modelo. Em cada um dos casos, ocorrera
uma alteração significativa

entre os eventos descritos no livro e a forma como ele agira. Com Drew Shand, o local da desova era diferente. Embora houvesse lugares próximos que teriam combinado
melhor com a descrição do livro, o corpo do escritor fora deixado em outro lugar, provavelmente porque era um local menos exposto e o assassino poderia chegar
lá de carro. Com Jane Elias, a tortura Imposta à vítima ainda viva fora traduzida na mutilação do corpo após a morte. Ou o assassino calculara mal seu ataque inicial
ou não tivera estômago para aquele nível de sadismo. Fiona sentia-se inclinada à última opção, pois ela combinava com o elemento de conveniência do primeiro caso.

Já no caso de Georgia, a diferença crucial era a descoberta da cabeça junto com os restos da vítima. Além disso, segundo Duvall, o assassino não copiara o livro
tão ao pé da letra; nenhum indício de que ele houvesse feito sexo com a cabeça decepada. Mais uma vez, um misto de fragilidade emocional e conveniência se fizera
presente. Para que o assassino tivesse certeza de que suas ações seriam identificadas, ele precisava se certificar de que os pedaços de carne no freezer eram indubitavelmente
os restos de Georgia Lester. Assim sendo, ele fizera alterações.

Isso não configurava exatamente uma assinatura, mas era um padrão. Com essa nova percepção em mente, Fiona chegou ao apartamento de Drew sentindo-se mais otimista
do que antes. Talvez descobrisse algo novo ali.

No fim da tarde, em plena hora do rush, Murray recebera ordens de levá-la até o apartamento de Drew Shand na Cidade Nova. Ele abrira a porta e depois a deixara
sozinha, com instruções de que trancasse o apartamento ao sair e levasse as chaves de volta para St. Leonard na manhã seguinte.

Era um belo apartamento, pensou Fiona. Cômodos bem proporcionais, com elaboradas sancas em gesso na sala de estar e no quarto principal, os quais, voltados para
oeste, davam vista para um grande jardim público, delimitado por uma grade de feno que protegia seus gramados e suas árvores, e a rua que o separava das casas
vizinhas. O apartamento tinha sido ricamente mobiliado, com cortinas pesadas e móveis confortáveis. Pôsteres emoldurados de filmes noir decoravam as paredes, um
interesse refletido na coleção de vídeos que enchia uma estante inteira na sala de estar. Apesar disso, e dos livros enfileirados no escritório absurdamente arrumado, o

apartamento parecia mais um showroom do que um lar. Até mesmo o banheiro era excessivamente arrumado, com todos os objetos normais escondidos atrás de belos armários
cromados e espelhados. Nem mesmo uma pasta de dente usada perturbava a ordem.

Isso tudo Fiona percebeu na primeira volta pelo apartamento. Mas ela não era uma psicóloga comportamental. Não era seu papel tentar entender o crime a partir de
uma leitura da vítima. Naquele momento, seu objetivo principal era encontrar algo na vida de Shand que o ligasse a Charles Cavendish Redford. Sabia que a polícia
havia feito uma busca minuciosa pelo apartamento, mas, na época, eles estavam procurando por algum tipo de ligação com o universo sadomasoquista, não uma carta
de um escritor frustrado.

Ela puxou a cadeira do escritório até o armário de documentos e começou a verificar as pastas. A gaveta de baixo era dedicada aos papéis pessoais - hipoteca, contas
do banco, recibos de compras, seguro do carro, os detritos normais da vida moderna. A gaveta seguinte continha uma série de documentos que pareciam estar relacionados
ao trabalho de Drew, tanto o já publicado quanto o que estava em curso. Fiona passou os olhos rapidamente pelos arquivos, na possibilidade remota de ele realmente
ter roubado alguma ideia de Redford. Contudo, não havia nada que indicasse que o material pudesse ter qualquer outra origem que não a imaginação dele.

A gaveta de cima era dedicada à correspondência. Havia pastas relacionadas ao agente literário, ao editor, aos contratos de publicação e, por fim, uma marcada "Cartas
dos fãs". Essa última era surpreendentemente grossa, pensou Fiona enquanto a tirava da gaveta. Vivia com Kit a tempo suficiente para ter uma ideia da quantidade
de correspondência que um escritor de sucesso recebia normalmente, mas a pasta de Drew superou suas expectativas. As primeiras doze cartas eram mais ou menos o
que ela esperava: elogios ao primeiro romance, perguntas sobre quando viria o segundo, pedidos de livros autografados e uma ou outra em que o autor apontava com
certo constrangimento algum pequeno erro no texto. Havia umas duas cartas em que a pessoa se mostrava indignada com a violência em Copycat, mas nada que pudesse
despertar uma preocupação real.

A maior parte do conteúdo da pasta, porém, consistia em cartas e e-mails impressos de homens que expressavam um interesse em conhecer o autor

do Copycat, tanto por o acharem atraente quanto por estarem curiosos em gabar se seus textos refletiam seus gostos sexuais pessoais. Esse grupo estava preso por
um clipe. Grudado sobre a folha de cima, um papelzinho escrito "Arquivo sadomasoquista".

Enquanto folheava, uma carta solitária desprendeu-se do fundo da pilha. Era uma folha A4 dobrada. Ao desdobrá-la, Fiona soltou um longo suspiro de satisfação.

Drew Shand, sua carreira mal começou e já se baseia perigosamente em plágio. Você me roubou. Sabe que pegou meu trabalho e o passou adiante como se fosse seu.
E suas mentiras me privam daquilo que, por direito, é meu.

Seu trabalho é um débil reflexo da luz de outras pessoas. Você toma, destrói, você é um parasita que vive da força vital daqueles cujos dons inveja. Sabe que isso
é verdade. Coloque a mão na consciência, e não poderá contestar as coisas de que me privou.

Chegou a hora do acerto de contas. Você não merece nada além do meu desprezo e do meu ódio. Se matá-lo é o que preciso fazer para garantir o que é meu por direito,
que assim seja. É um preço justo por roubar a minha alma.

A hora e o dia serão de minha escolha. Acredito que isso irá lhe tirar o sono, mas você não merece dormir em paz. Vou gostar de assistir ao seu funeral. De suas
cinzas, renascerei como a fênix.

Havia diferenças entre essa carta e as outras que ela vira antes. As semelhanças, porém, eram inacreditáveis. Fiona não tinha dúvidas de que a carta de Drew Shand
fora enviada pela mesma pessoa que escrevera para Georgia e Kit, e que também havia escrito o folheto distribuído na coletiva de imprensa em que admitia sua culpa.

Era difícil encontrar um argumento que pudesse contradizer o que Fiona começava a aceitar como verdade. As coincidências eram muitas. Quem quer que tivesse matado
Georgia matara também Drew. E, ao que parecia, essa pessoa era mesmo Charles Cavendish Redford.

47.

O apartamento de Terry era como ela, pensou Steve. Claro, radiante e cheio de estilo. Impertinente e ousado. Terry vivia no último andar de um antigo prédio de
tijolinhos, próximo a City Road. Os três andares abaixo eram ocupados por uma empresa de desenho gráfico, uma fábrica de couro e uma ilha de edição para cineastas
independentes. A plaquinha ao lado do botão do elevador de serviço dizia simplesmente: Depósito Fowler. Steve suspeitava que não havia permissão para utilizar
o prédio como local de moradia. Suspeitava também que Terry não ligava a mínima para isso.

O apartamento consistia em um único cômodo aberto com cerca de 12 por 15 metros. Uma porta no fundo dava para um banheiro estreito e um boxe com chuveiro. A área
principal era branca, caiada, com um piso pintado de terracota escuro e brilhante. O espaço se dividia em um "quarto" com uma cama de metal amarelado e uma arara,
também de metal, para pendurar as roupas, uma "sala de estar" com meia dúzia de sacos de juta servindo como almofadões e um pequeno aparelho de som, além de um
"escritório" com uma escrivaninha, um computador e prateleiras de livros que iam do chão ao teto. A "cozinha" ficava espremida num dos cantos, junto às janelas;
completando-a, uma mesa redonda de madeira de pinho e seis cadeiras dobráveis. Uma televisão portátil e um aparelho de DVD ficavam sobre um carrinho num dos cantos.
As paredes eram decoradas com gravuras emolduradas

de Keith Haring, suas pinceladas brilhantes sendo a principal fonte da cor em todo o apartamento.

Terry abriu a porta com um floreio, imitando o som de trombetas com os lábios contraídos. Steve parou sob o umbral, avaliando o aposento com olho

Fez que sim. - Uma bela visão - disse. - Gostei. Steve entrou e eles se abraçaram, e suas bocas famintas buscaram satisfação. Tempo para se despir, nem pensar,
apenas afastar com urgência qualquer peça de roupa que estivesse no caminho, o desejo varrendo tudo para longe, exceto a consciência do corpo um do outro.

Satisfeito o desejo, eles permaneceram esparramados, as respirações misturadas, sem inibição nenhuma.

- Então, qual é o prato principal? - perguntou Steve. Terry deu uma risadinha e enfiou as mãos por baixo da camisa dele. - Isso não foi nem a entrada. Considere
uma prova. - Prova deliciosa. Terry se desvencilhou e se levantou. Steve ficou observando seus pequenos movimentos ágeis.

- Vamos ficar mais à vontade - disse ela, tirando o vestido pela cabeça e chutando os sapatos para longe.

- Boa ideia - concordou ele, levantando-se. Puxou o celular e o pager de dentro do bolso e andou até a escrivaninha, onde os deixou ao lado do teclado. Tirou as
roupas e as jogou sobre a cadeira da escrivaninha.

- Banheiro? - perguntou. Terry apontou. - Ali. - Não saia daí. - Como se eu fosse a algum lugar. - Assim que a porta do banheiro se fechou, ela deu um pulo
e foi de modo decidido até a escrivaninha. Olhou para o celular e o pager. O humor de Steve fora destruído na véspera por uma ligação que nem mesmo era sobre um
caso dele, mas que lhe trouxera à mente todos os medos e preocupações pelo amigo. E o pior: metera Fiona Cameron no meio deles. Terry não sabia ao certo qual era
a história dele com ela, mas todos os seus instintos lhe diziam que havia algo mais além de

uma simples amizade. A linguagem corporal dele se alterava sempre que o nome dela vinha à tona, indicando que devia haver algo sob a superfície. Naquela noite,
não queria que Fiona fosse para a cama com eles. Impulsiva como sempre, Terry pegou os dois objetos e, rapidamente, os desligou. Além disso, ponderou enquanto
seguia para a cama, hoje era sexta, o trabalho da semana acabara. Se fosse ter um relacionamento com aquele homem, precisava mudar sua obsessão pelo trabalho.
E não havia momento melhor do que o presente.

Sarah Duvall se enfiou debaixo da ducha fraca e imaginou por que toda delegacia em que já trabalhara tinha chuveiros tão ruins. Passara a última hora na sala dos
computadores, onde os oficiais do seu esquadrão inseriam pacientemente os resultados de todas as entrevistas já realizadas no Smithfield Market, e que ainda estavam
sendo conduzidas por toda a grande Londres. Como não conseguira arrancar nada de produtivo de Redford, Duvall decidira pressionar seus subordinados em outras áreas
da investigação. Tinha acabado de sair da sala quando percebeu que o texto da tela dos computadores continuava dançando na frente de seus olhos como se os observasse
através de óculos de mergulho. Se tomasse mais café, seu sistema provavelmente entraria em crise cardíaca, portanto seguiu para os chuveiros do vestiário feminino
na esperança de que uma ducha gelada fizesse seu cérebro voltar a funcionar normalmente.

As primeiras 24 horas eram cruciais numa investigação de assassinato. Infelizmente, para Duvall, essas horas essenciais transcorreram há mais de uma semana. Agora
corria atrás de um rastro já gelado. Até onde podia dizer, nenhuma declaração de testemunha alguma, exceto a da agente literária, fornecera qualquer pista razoavelmente
boa que pudesse ligar Redford com mais força ao crime. E, mesmo assim, ela só dizia respeito à motivação, e não a uma conexão direta com o assassinato. A única
coisa de concreto que eles tinham era o fato de um motorista ter visto uma caminhonete com tração nas quatro rodas, talvez um Toyota ou um Mitsubishi, estacionada
atrás do Jaguar de Georgia Lester no dia em que ela desaparecera. O motorista não tinha visto nem Georgia nem o dono do 4 x 4. No entanto, não havia registro algum
indicando que Charles Redford possuísse um

veículo assim. Duvall já mandara uma pessoa checar as empresas de aluguel de carros para ver se ele havia alugado um recentemente.

Duvall fechou o chuveiro minguado e saiu do boxe. Secou-se com a toalha e vestiu a única roupa limpa que tinha no armário - jeans azuis e uma camiseta do DP de
Chicago. Não era exatamente a roupa ideal, porém era melhor do que o conjunto amarrotado que estivera usando nas últimas 36 horas. O tecido limpo de encontro à
pele fez com que ela se sentisse mais refrescada do que a própria ducha. Uma olhada de relance no espelho e estava pronta para voltar ao trabalho.

Ao retornar à sala de operações, ela imediatamente sentiu a nova onda de entusiasmo que pairava acima do zumbido dos computadores. Mal dera dois passos para dentro
da sala quando um de seus oficiais se aproximou.

- Chegou uma coisa de Dorset - disse ele, incapaz de manter uma expressão solene.

Apesar do cansaço, Duvall tentou esboçar um ligeiro sorriso. - Conte-me mais - pediu, puxando a cadeira mais próxima e se sentando.

- Tem uma casinha no fundo do terreno, atrás da propriedade. Eles não tinham percebido que ela pertencia à cabana, e por isso não a tinham vasculhado até agora.
De qualquer forma, parece que o marido mencionou isso a um dos oficiais, portanto eles entraram umas duas horas atrás e descobriram que foi lá que ela foi assassinada.
Há bancos de pedra ao longo de uma das paredes, cheios de marcas de sangue. E o que é melhor ainda: o assassino deixou suas ferramentas para trás. Facas, serrote
de metal, cinzel, martelo, o pacote inteiro.

Duvall concordou com um meneio de cabeça. - Provavelmente ele achou que era mais seguro do que ficar com as ferramentas e tentar se desfazer delas em algum outro
lugar. Imagino que eles tenham enviado uma equipe inteira de peritos para lá agora, certo?

- Eles estão vasculhando tudo, centímetro por centímetro. - Ótimo. Me mantenha informada. Ela saiu, feliz por ter um objetivo definido. Seu oficial sequer notara
o olhar de preocupação no rosto da chefe. Pela primeira vez desde que Redford abrira caminho de maneira triunfal até a sala de interrogatório, alguma coisa parecia
não combinar com o que ele tinha dito. Ela precisaria checar de

novo. Duvall, porém, tinha quase certeza de que ele lhe dissera que havia levado Georgia para "um lugar que conhecia há anos, um local que eles jamais descobririam".
Isso combinava com o que estava escrito no livro.

No entanto, destoava completamente da descoberta feita pela policia de Dorset. Duvall sentiu o corpo cansado ser tomado por um mal-estar súbito, tão palpável
quanto um enjoo. E se seu instinto estivesse errado? E se Redford estivesse apenas atrás de atenção? E se o assassino ainda estivesse à solta? Duvall sacudiu a
cabeça para espantar a ideia, não queria sequer pensar na possibilidade. Não podia ser. Redford parecia tão seguro de si, ela sentia isso no fundo de sua alma.

Mas e se estivesse errada?

Primeiro veio a dor. Um pulsar desesperador dentro de sua cabeça, que vinha em ondas vermelhas, amarelas e brancas por trás dos olhos. Quando tentou gemer, Kit
descobriu que não conseguia mexer a boca. Em seguida as outras dores se fizeram presentes. Os ombros doíam, os pulsos latejavam. Tentou mudar de posição, e acabou
virando de barriga para cima. Suas mãos se enterraram nas costas de maneira desconfortável, e ele precisou girar os ombros com força para voltar à posição menos
dolorida do começo, de lado. Nada fazia sentido. Abrir os olhos tampouco ajudou. A escuridão era mais profunda do que antes de forçar os olhos a se abrirem.

Seu estômago se contorceu. As ondas de dor emitidas pelo cérebro pareciam estar diretamente ligadas às suas entranhas, provocando um enjoo desconfortável. Aos poucos,
Kit percebeu que, onde quer que estivesse, estava em movimento. Podia escutar o ronco baixo de um motor e os ruídos de uma estrada. Um murmúrio de vozes abafadas
lhe indicou que um rádio estava tocando. Acabou entendendo que estava no porta-malas de um carro, e o motorista estava escutando o rádio.

A compreensão trouxe de volta a lembrança com uma rapidez assustadora. O entregador à porta com a caixa de livros. O movimento percebido pelo canto dos olhos. Em
seguida nada, até agora.

Com uma estarrecedora clareza que afastou momentaneamente a dor, Kit reconheceu o cenário. Estava preso no pesadelo que ele mesmo criara.

Estava vivendo a história de Susannah Tremayne, a segunda vítima do serial Killer que batizara de Pintor Sanguinário. O assassino a sequestrara fingindo ser um
entregador que trouxera um pacote. Em seguida a enfiara em sua van e a levara para sua casa de veraneio.

Vinte e quatro horas antes estaria atento a isso. Jamais teria aberto a porta para um entregador, nem mesmo para um já conhecido. Contudo, isso fora antes de Charles
Redford ter sido preso, antes de Sarah Duvail dizer a Mona que o assassino estava sob custódia e a vida podia voltar ao normal, sem que o medo se insinuasse a
cada instante.

Eles tinham errado feio. O terror esmagou-lhe o peito. Sabia exatamente o que estava por vir. Afinal de contas, ele próprio escrevera o enredo.

Antes de sair do apartamento de Drew Shand, Fiona deu uma olhada no mapa das mas de Edimburgo que encontrou em uma das prateleiras e decidiu voltar para o hotel
a pé. Três quilômetros pelas ruas da cidade a ajudariam a clarear a mente. Saiu perambulando pela Cidade Nova georgiana em direção à Queensferry Road, o ar frio
e úmido agarrando-se à sua pele e ao cabelo. Não havia quase ninguém nas ruas. Virou na ponte Dean, apreciando a vista que se desdobrava acima das copas das árvores,
observando através da névoa rala o brilho amarelo pálido das luzes aleatoriamente acesas nos fundos dos prédios da Cidade Nova. Poderia parecer assustador, pensou,
e, se alguém com o talento de Kit ou Drew descrevesse a cena, ela faria os pelos de sua nuca se arrepiarem. Contudo, após um dia de aeroportos aliado ao trabalho
num escritório fechado, a sensação era de curiosa liberdade, uma breve trégua das preocupações do trabalho e do amor.

Ao chegar ao hotel, Fiona sentiu-se quase relutante em entrar. O breve período ao ar livre fora refrescante, deixando-a com vontade de fazer algo mais agradável
do que pensar em assassinatos. A única perspectiva tentadora da noite agora era a chance de uma conversa com Kit.

Verificou na recepção se alguém lhe deixara alguma mensagem. Nada. Tinha esperanças de que ele tivesse ligado em resposta a um dos e-mails que enviara mais cedo.
Não tinha importância, pensou. Ligaria para casa, talvez ele estivesse monitorando a secretária eletrônica e atendesse ao ouvir sua voz. Subiu e telefonou para
o número do serviço de quarto. Enquanto

esperava, ligou o laptop para checar seus e-mails de novo. Nenhuma mensagem do Kit. Isso não era típico dele, pensou. Eles não tinham se falado desde que ela saíra
de manhã, o que era uma quebra em sua comunicação usual. Olhando de relance para o relógio, viu que passava um pouco das nove. Ele não podia estar trabalhando
ainda. Esperava que atendesse o telefone.

Discou rapidamente o número familiar, mas seus dedos se atrapalharam e ela teve de desligar e começar de novo. O telefone tocou. Três, quatro, cinco vezes. Então
a secretária atendeu. Pela primeira vez, a voz dele na gravação não serviu para tranquilizá-la. Fiona esperou o bipe.

- Kit, sou eu. Se estiver aí, atenda, por favor... vamos lá, preciso falar com você... - Ela esperou em vão.

Enquanto comia a massa que havia pedido, acompanhada por uma taça de vinho, Fiona analisou as cartas de novo para ver se tinha deixado passar algo.

Quando o telefone tocou, ela largou o garfo, que bateu no prato de forma barulhenta. Atendeu, ansiosa:

- Alô? - Fiona, é a inspetora-chefe Duvall. Fiona sentiu um grande desapontamento. - Ah, oi. Esperava que fosse outra pessoa. - Estava imaginando se você fez
algum progresso - replicou ela de modo abrupto.

Fiona descreveu seu dia de trabalho em detalhes. Enquanto relatava suas descobertas, Duvall ficou quieta, exceto pelo eventual barulho de concordância de alguém
tomando notas.

Quando ela terminou, Duvall disse: - Então você não encontrou nada que derrube a teoria de que Redford seja o assassino?

Era uma forma estranha de colocar as coisas, pensou Fiona. - Não, nada. Por quê? Você descobriu alguma coisa? - Uma forte fisgada de ansiedade percorreu-lhe o peito.

Fiona sentiu que, do outro lado da linha, Duvall hesitava. - Uma pequena discrepância, só isso - respondeu ela rapidamente. - Pequena como? - exigiu saber Fiona.

Duvall contou sobre a descoberta da polícia de Dorset, e como isso batia de frente com o pouco que Redford falara sobre o assunto.

- Vamos entender melhor quando pegarmos o resultado da perícia. - Mas isso pode levar dias - protestou Fiona. - Se você estiver com o homem errado sob custódia,
então outras pessoas estão em risco. - Uma pessoa em particular, pensou, o medo começando a apertar seu estômago. - O assassino vai se sentir seguro. Vai estar
confiante para atacar de novo. - E não consigo falar com Kit.

- Sei disso. Estamos fazendo tudo o que está ao nosso alcance para confirmar o que Redford disse.

- Não consegui falar com Kit o dia inteiro - soltou Fiona. - Um dos meus oficiais ia interrogá-lo hoje. Vou ver o que ele tem a dizer. Talvez Kit tenha mencionado
algum plano para hoje à noite - replicou Duvall, com uma confiança que não sentia. - Eu te ligo de volta.

- Vou ficar esperando. - Fiona desligou com delicadeza, como se de alguma forma o gesto pudesse manter Kit a salvo. Estava aterrorizada, reconheceu. De repente,
correu para o banheiro, mal conseguindo chegar a tempo. A massa mal digerida boiou em meio a um bilioso mar vermelho de molho de tomate e vinho. Seu estômago continuou
a se esvaziar por reflexo, muito depois de já não ter mais nada para colocar para fora. Fiona apoiou-se nos calcanhares, com uma camada de suor cobrindo sua testa
e a respiração ofegante.

Pensando na ligação de Sarah Duvall, forçou-se a se levantar. Deu descarga e escovou os dentes. Por que ela estava demorando tanto? Fiona passou as mãos pelo cabelo
e se olhou no espelho. Seus olhos pareciam assombrados, seu rosto estava abatido pelo medo que a corroía por dentro.

- Você está com uma aparência horrível - disse para seu reflexo. - Controle-se, Cameron.

O toque do telefone fez com que saísse do banheiro em um pulo e cruzasse correndo o quarto.

- Sim, Fiona Cameron. Alô? - Parece que temos um pequeno problema - falou Duvall de modo hesitante.

Meu Deus, não!, gritou ela em silêncio. - Que tipo de problema? - Forçou-se a perguntar.

- Aparentemente, ele não estava em casa quando meu oficial chegou. Fiona gemeu:

- Alguma coisa aconteceu com ele. -Acho que você não deve tirar conclusões precipitadas, dra. Cameron. Meu oficial falou que chegou mais de uma hora atrasado para
o encontro. O sr. Martin talvez tenha desistido de esperá-lo. Segundo o marido da sra. Lester, os escritores amigos dela iam se reunir hoje para uma espécie de
celebração. Seu companheiro deve estar lá no momento. Olhe só, a confissão de Redford bate em todos os detalhes, menos um. Para ele, esses interrogatórios são
um jogo, uma guerra de inteligência. É bem possível que ele esteja nos enganando deliberadamente porque não quer nos dar nada de concreto. Ele quer sair livre
dessa. - A voz de Duvall não deixava transparecer o menor sinal de dúvida. - Tenho certeza de que o sr. Martin vai entrar em contato. Tente não ficar preocupada.

- Mais fácil falar do que fazer, inspetora. - Ainda acredito que pegamos o homem certo. - Você tem de dizer isso. Você investiu demais para dizer qualquer outra
coisa.

- Se até amanhã de manhã o sr. Martin não entrar em contato, me ligue.

- Pode apostar. - Fiona bateu o telefone com força. Sua mão tremeu quando o largou. - Oh, Pai - ofegou. - Por favor, meu Deus, não permita que seja ele.

Ela começou a andar de um lado para o outro do quarto. Seis passos, vira, seis passos, vira, como um gato numa jaula. A aparente confiança de Duvall não ajudava
a deixá-la nem um pouco mais tranquila. Sabia que Kit não a deixaria assim, em suspenso, sem dizer nada.

- Pense, Fiona, pense - ordenou a si mesma. Ela pegou sua agenda pessoal e procurou o número de Jonathan Lewis. Não tinha muitos telefones dos amigos de Kit, mas
Jonathan e a esposa, Trish, haviam jantado com eles regularmente nos últimos dois anos, portanto ela acabara anotando o número deles. Trish atendeu ao terceiro
toque e ficou bastante surpresa ao perceber que era Fiona.

Jonathan está? - perguntou Fiona.

- Não, ele foi para o evento em memória da Georgia. Kit não foi com eles? - respondeu Trish.

- Deve ter ido. Eu estou em Edimburgo e venho tentando falar com ele, mas não consegui nada até agora.

- Eles marcaram de se encontrar às seis - informou Trish. - Você sabe onde? - Jonathan falou alguma coisa de o Adam ser membro de um clube de bebidas no Soho.
Mas não sei o nome. Sei que ele estava esperando encontrar com o Kit lá.

- Você deve estar certa - suspirou Fiona. - Ele já deve estar na segunda garrafa agora. Desculpe te incomodar, Trish.

- Não foi incômodo nenhum. Se for urgente, você pode ligar para o celular do Jonathan.

Fiona anotou o número do marido de Trish e ligou assim que desligou. O celular tocou meia dúzia de vezes antes que ele atendesse. Pelo visto, uma pequena revolução
acontecia ao fundo.

- Alô? Jonathan? - gritou. - Aqui quem fala é Fiona Cameron. Kit está com você?

- Alô? Fiona? Não, cadê o vagabundo? Ele devia estar aqui. - Ele não está aí? - Não, é isso o que eu estou dizendo. - E não entrou em contato? - Não, espere
um pouco. - Fiona escutou o grito um tanto abafado: - Alguém aí sabe do Kit? Algo do tipo: por que ele não está aqui? - Fez-se uma pequena pausa, então Jonathan
voltou a falar com ela. - Ninguém sabe dele, Fiona. Não sei o que ele aprontou, mas não está aqui.

Fiona sentiu o estômago se contrair de novo. - Se ele aparecer, pede para me ligar. Por favor, Jonathan. - Sem problema. Fique calma, Fiona, não se preocupe. Eles
desligaram e Fiona sentiu o medo percorrer seu corpo de novo. Queria gritar. No entanto, forçou-se a encarar a situação de forma racional.

Se Kit fosse o alvo, o livro a ser copiado seria The Blood Painter, obviamente. Ele havia sido adaptado para a TV e se enquadrava no padrão que o assassino adotara
até então. Se o assassino estivesse seguindo o livro, Kit ainda devia estar vivo. A característica do Pintor Sanguinário era manter as

vítimas prisioneiras e retirar o sangue delas em intervalos diários, usando-o para pintar murais no lugar onde as mantinha cativas. Portanto, se Kit fosse realmente
a próxima vítima, quem quer que o tivesse sequestrado precisava mantê-lo vivo pelo menos pelos próximos dois dias para reproduzir o assassinato do livro da forma
mais fiel possível.

Tudo o que precisava fazer era descobrir onde ele estava sendo mantido preso.

Já fazia um tempo desde que lera o livro, mas se lembrava de que todas as vítimas em The Blood Painter tinham alugado casas de veraneio em lugares remotos nos
seis meses anteriores às suas mortes. Quando decidia matá-las, o Pintor Sanguinário alugava a mesma casa e as mantinha lá por uma semana, enquanto lhes drenava
o sangue pouco a pouco e criava suas obras grotescas.

Só que ela e Kit jamais tinham alugado uma casa de veraneio. Eles nem sequer passavam um fim de semana de folga na Inglaterra, sempre preferiam viajar nos momentos
de descanso. Onde ele estaria mantendo Kit? Onde eles poderiam estar se o assassino estivesse realmente determinado a copiar o livro?

48.

A M6 estava praticamente vazia no extremo norte de Manchester. A maior parte do trânsito de sexta-feira à noite saíra na M55 em direção a Blackpool ou ao primeiro
cruzamento que levasse para a ponta sul do Lake District. Enquanto a estrada subia em direção à vila de Shap, apenas poucos carros e um punhado de caminhões dispersos
voltavam à Escócia para o fim de semana.

Na pista de alta velocidade, um Toyota 4 x 4, cinza-escuro metálico, prosseguia a confortáveis 135 quilômetros por hora. Não tão rápido que pudesse atrair a atenção
da polícia rodoviária, mas a uma velocidade suficiente para percorrer com rapidez os quilômetros que se interpunham entre o motorista e seu destino. Ele desistira
do rádio, trocando as vozes civilizadas da BBC por um livro falado. The Blood Painter, de Kit Martin. Lido pelo autor. No mínimo, isso o manteria no curso, para
o caso de ter deixado passar qualquer detalhe.

Não podia pensar em nada que fizesse os quilômetros passarem mais rapidamente.

O detetive superintendente Sandy Galloway estava na metade de seu copo de uísque digestivo Caol Ila. Seus gêmeos adolescentes estavam lá em cima competindo para
ver quem devastava primeiro algum planeta distante no

PlayStation, e a mulher colocava a louça na máquina. Teria de dar um pulo no trabalho na manhã seguinte por causa do tal caso de Londres. Contudo, um dia de cada
vez, esse era o seu lema. Então, sentou-se com o uísque na frente da televisão para assistir a um drama policial e saborear todos os erros.

Quando o telefone tocou, ele ignorou. No entanto, não pôde ignorar o berro que o filho deu lá de cima:

- Pai, uma mulher inglesa quer falar com você! - Ah, merda - murmurou, levantando-se da cadeira e atravessando o corredor. Pegou o telefone e esperou o clique
que indicava que a extensão do segundo andar tinha sido desligada.

- Alô, Sandy Galloway falando. - Galloway, aqui é Fiona Cameron. Desculpe incomodá-lo em casa. Consegui seu número com o sargento de serviço. Ele não queria me
dizer, mas suponho que eu tenha feito uma pressão bastante forte, portanto não fique zangado com ele. - Ela despejou tudo num fôlego só.

- Não tem problema, doutora. O que posso fazer para ajudá-la? Ou é você que pode nos ajudar? Descobriu mais alguma carta nas coisas do Shand?

Fez-se uma pausa. Ele a escutou inspirar fundo. - Isso vai parecer paranoia. Você sabe que meu companheiro é Kit Martin, o escritor de suspense?

- Sim, sei. - Desde que formulei a teoria de que talvez houvesse um serial killer à solta, estou ciente de que Kit se enquadra perfeitamente no perfil da vítima.
Estou preocupada com a possibilidade de ele ser um alvo. Quando a City prendeu Redford, nós todos relaxamos. Mas acabei de falar com a inspetora Duvall, e ela
disse que há uma pequena discrepância no caso contra Redford. Não consigo falar com Kit. Ele não está atendendo o telefone, e não entrou em contato comigo via
e-mail.

- Ele não pode estar trabalhando? - Galloway tentou soar calmo e despreocupado. Se houvesse uma discrepância séria no caso, Duvall teria lhe falado.

- Ele não estava em casa quando a polícia passou por lá mais cedo para pegar sua declaração. E ele nunca deixa de responder aos meus e-mails.

O problema é que, se Kit for o alvo, o assassino vai copiar o livro The Blood Painter, Writer. Ele vai mantê-lo em algum lugar até estar preparado para matá-lo.
Galloway podia perceber pela voz de Fiona que ela estava louca de preocupação.

- Posso entender sua preocupação, Fiona. - Ele se dirigiu a ela pelo primeiro nome, na esperança de que isso a acalmasse. - O problema é que não há nada que sugira
que algo tenha acontecido com ele. Talvez ele tenha encontrado com os amigos para fazer um brinde a Georgia em algum lugar.

- Isso é exatamente o que ele devia estar fazendo. Mas falei com um dos amigos dele, e Kit não apareceu. De qualquer forma, se ele estivesse planejando fazer isso,
teria me avisado - insistiu ela.

- Pode ter acontecido qualquer outra coisa. Talvez ele tenha encontrado algum outro amigo no caminho e tenha decidido ir tomar um drinque com ele primeiro. Ele
pode ter ficado preso no trânsito. Fiona, se houvesse algum problema sério com o caso contra Redford, a City já teria nos falado. Pode ter certeza disso. - Galloway
acreditava piamente que ela não tinha motivo para ficar com medo. Como policial, sabia que sem alguma evidência de crime não haveria como justificar uma investigação
formal. E, como homem, sabia que nem sempre as pessoas conheciam seus parceiros tão bem quanto pensavam. Mesmo que fossem psicólogos. - As vezes os e-mails não
chegam - ressaltou ele. - Os servidores saem do ar. Talvez ele ache que você está sabendo de tudo.

Ele a escutou soltar um suspiro exasperado. - E talvez ele esteja nas mãos de um assassino. A polícia devia verificar essa possibilidade.

Galloway inspirou fundo, e resolveu arriscar: - Se... e esse é um grande se... ele estiver, então onde a polícia deveria procurar?

- De acordo com The Blood Painter, o assassino deveria levá-lo para uma casa de veraneio. Só que a gente nunca alugou uma na Inglaterra. Kit, porém, tem uma cabana
em Sutherland, aonde costuma ir para escrever. Acho que é para lá que eles iriam.

- Onde em Sutherland? Ele sentiu a hesitação dela.

- Esse é o problema. Não sei ao certo. Nunca estive lá, entenda. Só sei que fica perto do lago Shin.

- Você não tem o endereço? - Não. Quando ele está lá, a gente só se fala por e-mail. Ele tem um telefone via satélite, mas não o usa para falar com ninguém. Nós
dois achamos que fica mais difícil aguentar a separação se ficarmos nos falando, entende? De alguma forma, o e-mail é mais tolerável quando ele fica fora por semanas
a fio. - Percebendo, de repente, que estava se desviando do assunto, Fiona forçou-se a voltar ao cerne do problema. - Mas com certeza a polícia local deve saber
onde fica, certo? Achei que todo mundo se conhecesse nas Terras Altas da Escócia.

Galloway passou a mão por cima da boca. O medo dela se transferira para ele, fazendo-o suar acima do lábio superior.

- "Perto do lago Shin" é uma área muito grande, Fiona. Só o lago deve ter, o que, 25 ou 27 quilômetros de comprimento. Duvido muito que eles possam fazer alguma
coisa hoje à noite, isso supondo que consigamos convencê-los de que existe uma razão válida para eles fazerem uma busca.

- A gente precisa fazer alguma coisa! Não podemos ficar aqui sentados sem fazer nada enquanto a vida de Kit está correndo perigo. - Agora a raiva substituíra o
medo na voz de Fiona.

- Escute, Fiona, talvez você esteja fazendo tempestade em copo d'água. Mas responda: esse assassino fictício criado pelo sr. Martin... o que ele faz com as vítimas?

- Ele as mantém cativas por uma semana, retira o sangue delas e pinta murais com ele.

- Bom, isso sugere que o tempo não é tão importante quanto seria se o assassino matasse as vítimas rapidamente, certo? Além disso, se nem você sabe onde fica a
cabana, como o assassino saberia? Por que a gente não espera até amanhã de manhã? Talvez o sr. Martin apareça até lá. Se não aparecer, a gente fala com a policia
das Terras Altas logo cedo. Prometo. Me encontre em St. Leonard às sete e meia que a gente vê o que vai fazer. Tudo bem? - A voz dele passava tranquilidade, sem
o menor sinal de arrogância.

- Não, não está tudo bem - replicou ela com amargura. - Mas vai ter de ser assim, não vai?

- Vai, infelizmente isso é o melhor que eu posso fazer. Nesse meiotempo, vou falar com a inspetora Duvall e descobrir se temos motivos para preocupação. Tente dormir,
Fiona. Sei que você está imaginando o pior, mas tudo indica que Redford seja o nosso homem e seu companheiro esteja vivo e bem, a caminho de uma noite de bebedeira
com os amigos. Para tentar conformar-se com a morte da Georgia. Você sabe muito bem que esse é, de longe, o cenário mais provável. A gente se vê de manhã.

Ele recolocou o telefone no gancho e ficou por um longo minuto em pé no corredor, pensando. Não, estava certo. Não fazia sentido tentar acionar nada nem ninguém
com base num argumento tão frágil quanto aquele. Sem algo mais concreto do que as suspeitas de Fiona, eles não tinham a menor chance de convencer a polícia das
Terras Altas a levá-los a sério. Se até a manhã seguinte Kit Martin não aparecesse saudável, seguro e de ressaca em sua própria cama, talvez conseguisse convencê-los
de que eles tinham motivos razoáveis para entrar em ação. E, na verdade, não havia razão para pensar de outro modo. Convencido de que Fiona estava reagindo exageradamente
por causa do que acontecera com a irmã tantos anos antes, Galloway voltou para seu programa na televisão e seu copo de uísque.

Fiona deixou-se cair na cadeira. Dera o melhor de si. No entanto, isso às vezes não era suficiente. Dera o melhor de si no caso de Lesley também. Não podia mudar
nada com relação à morte da irmã, embora houvesse feito tudo ao seu alcance para se certificar de que a pessoa responsável pagasse por isso. Fracassara na época,
e conhecia o preço desse fracasso. Não podia desistir de Kit agora, não apenas pelo bem dele, mas pelo próprio bem. Talvez Duvall e Galloway a considerassem uma
idiota histérica, mas conhecia Kit e sabia que tinha motivo para estar preocupada. Galloway tentara tranquilizá-la ao sugerir que o assassino não tinha como saber
onde ficava a cabana. Fiona, porém, sabia que ele era astuto; ele havia seguido cada uma de suas vítimas até então. Não podia se dar ao luxo de ser complacente.

Pegou o telefone de novo e discou o número que conhecia de cor. Três toques e a secretária atendeu: "Você ligou para Steve Preston. Por favor, após o bipe, deixe
a sua mensagem que irei retornar assim que possível." Beep.

- Steve, sou eu, Fiona. Ligue para o meu celular assim que receber esta mensagem. Preciso da sua ajuda. - Fiona desligou e, sem recolocar o telefone no gancho,
imediatamente ligou para o celular dele. Nada. Em seguida, a voz impessoal: "O número que você ligou está fora da área de cobertura ou desligado. Por favor, tente
mais tarde. O número que você ligou..." Ela desligou. - Não acredito - murmurou, pegando a agenda para localizar o número do pager. Quando o atendente respondeu,
ela deixou uma mensagem pedindo que Steve ligasse direto para o seu celular.

Havia, supôs, uma chance remota de que ele ainda estivesse no trabalho, portanto ligou para a linha direta de seu escritório. O telefone tocou dez vezes antes
que Fiona desistisse. Onde diabos estava Steve quando precisava dele?

Não lhe ocorreu em nenhum momento ligar para Terry.

O apartamento de Gerard Coyne parecia ter sido feito para ser vigiado. Ele ficava no segundo andar de um prédio com jardim, umas duas ruas atrás da Holloway Road.
Pelo fato de haver duas entradas na frente, Neil presumiu que não houvesse nenhuma nos fundos. A porta do apartamento de Coyne ficava bem em frente a um lance
de escadas que levava ao segundo andar. O que fazia com que ele fosse tão perfeito para o propósito de Neil era o pub do outro lado da rua. O Pride of Whitby
era um típico pub de esquina do norte de Londres - aconchegante, apertado e cheio. A velha vidraça decorada e fora de moda, porém, tinha sido substituída por uma
de vidro transparente que permitia uma visão perfeita do outro lado da rua. Neil chegou pouco depois das seis e meia e conversou rapidamente com o dono, ressaltando
a necessidade de discrição. Não especificou quem estava vigiando ou o motivo, apenas pediu que não contasse a ninguém que ele era um tira.

O proprietário não pareceu ficar incomodado. Ele mantinha um pub organizado e confiava na polícia local para resolver qualquer problema que surgisse. No que lhe
dizia respeito, desde que Neil não esperasse receber bebidas de graça, era bem-vindo para se sentar ao lado da janela pelo tempo que desejasse.

Neil já confirmara que Coyne estava em casa. Tinha visto uma bela mountain bike amarrada no jardim da frente, e as luzes do apartamento

estavam acesas. No entanto, só para checar, ligou para o telefone de Coyne. Quando este atendeu, Neil fingiu ter ligado para o número errado. Satisfeito, sentou-se
com uma cópia do Evening Standard e um copo de cerveja sem álcool.

Às sete e meia, passou os olhos pelo cardápio e pediu um prato de lasanha com batata frita. A comida chegou às dez para as oito. Neil terminou de comer em quinze
minutos. Voltou para seu jornal, certificando-se de manter as janelas acesas do apartamento de Coyne em sua visão periférica. Qualquer movimento, ele perceberia,
mesmo cansado como estava. Por volta das oito e meia, o lugar ficou lotado. Todas as outras cadeiras da mesa de Neil foram ocupadas, enquanto o restante das pessoas
se apertava em volta com seus copos de cerveja e maços de cigarros. De vez em quando, um ou outro tentava puxar conversa, mas Neil não dava atenção, respondia
de forma monossilábica e voltava a se esconder atrás do jornal.

Pouco depois das dez, as luzes no apartamento de Coyne se apagaram. Imediatamente alerta, Neil dobrou o jornal e virou o resto de seu terceiro drinque. Afastou
a cadeira ligeiramente, atento ao que pudesse acontecer. Uma luz se acendeu na luminária da entrada do apartamento de Coyne, e, em seguida, a porta se abriu. Neil
não conseguiu ver Coyne muito bem por causa da luz que o iluminava por trás, apenas a silhueta de um homem magro com altura mediana. Aprontou-se para sair.

Coyne fechou a porta atrás de si e saiu para a rua. Graças a Deus ele não ia pegar a bicicleta, pensou Neil. Coyne olhou para ambos os lados por cima dos carros
estacionados ao longo da rua e atravessou.

Ah, merda, pensou Neil, ele está vindo para cá. Desdobrou o jornal de novo e puxou a cadeira mais para perto da mesa. Ao levantar os olhos novamente, Coyne se dirigia
ao balcão, cumprimentando os homens que estavam em pé com suas canecas de Guinness.

Não havia como confundir aqueles olhos encovados no rosto estreito, com cavanhaque e bigode, e dentes ligeiramente proeminentes. Aquele era o homem cuja foto do
registro criminal ele memorizara. No que lhe dizia respeito, as provas podiam ser circunstanciais, mas ele estava convencido. Se gostasse de apostas, Neil apostaria
um ano de seu salário que estava diante do assassino de Susan Blanchard.

Lutou para esconder sua animação e observou Coyne comprar uma caneca de cerveja escura. Afastou a cadeira, disfarçou dizendo boa-noite para os outros sentados à
mesa, como se eles fossem seus companheiros de bebida, e abriu caminho entre a multidão, dirigindo-se para a porta.

O ar frio da noite atingiu-lhe como um soco ao sair do pub abafado. No entanto, não ajudou em nada a acalmar a ansiedade que o agitava por dentro. Tinha funcionado.
Um bom e sólido trabalho policial, ajudado por um pouco de talento e inspiração, e agora olhava para o primeiro suspeito promissor pelo assassinato de Susan Blanchard
desde Francis Blake. Só que dessa vez eles tinham acertado. Sentia isso em seus ossos.

Neil andou a passos rápidos pela rua até o lugar onde estacionara o carro. Dali, tinha ângulo para ver tanto a porta do pub quanto a do apartamento de Coyne. Sentou
atrás do volante e pegou o celular. Hora de fazer um relatório. Apertou com força os botões que o conectariam a Steve. Não acreditou em seus ouvidos quando escutou:
"O número que você ligou está fora da área de cobertura ou desligado. Por favor, tente mais tarde."

- Idiota - bufou, tentando o telefone da casa de Steve. Quando a secretária eletrônica atendeu, xingou baixinho. Sabia, porém, que não devia desligar sem deixar
uma mensagem. - Aqui é Neil McCartney, chefe. Estou do lado de fora da casa do suspeito. Ele acabou de atravessar a rua para ir tomar um drinque no pub em frente.
Sei que devia largar a vigilância à meia-noite, mas vou ficar aqui até Joanne me render ou você entrar em contato comigo. Não quero que ele fuja da gente.

Por fim, Neil deixou uma mensagem no pager de Steve. Com certeza ele receberia essa, certo? O chefe nunca ficava fora de alcance, especialmente desde que eles
tinham começado aquela operação com tão pouca verba. Ele sabia que Neil estava vigiando o novo suspeito, devia estar esperando o contato. Mais cedo ou mais tarde,
ligaria de volta.

Até então, não havia mais nada que pudesse fazer, a não ser observar e esperar.

49.

Fiona não aguentava esperar. Não quando temia pela vida de Kit. Galloway tentara tranquilizá-la, mas isso não havia ajudado em nada a apaziguar a tempestade. Sabia
que não adiantava querer seguir o conselho de Galloway e tentar dormir. Se resolvesse se deitar, tudo o que aconteceria seria ficar rolando de um lado para o outro,
com uma ansiedade terrível. O melhor a fazer era ficar acordada e tentar descobrir uma forma de ajudar Kit.

Se pelo menos ela soubesse onde ficava a cabana. Levando em consideração que quem quer que tivesse sequestrado Kit teria de dirigir de Londres até lá, provavelmente
eles não estavam nem perto do lago Shin ainda. Se ela descobrisse a localização exata, talvez conseguisse interceptá-los antes que chegassem lá.

Ainda que Galloway dissesse que havia tempo suficiente, Fiona sabia que não podia contar com isso. Em cada um dos crimes, o assassino se desviara do modelo do livro
do modo como achara melhor. Manter Kit vivo por uma semana obviamente seria um risco enorme e, pelo que ela já vira de seu trabalho, ele era um homem que gostava
de minimizar os riscos. Quanto mais rápido chegasse a Sutherland, maiores as chances de encontrar Kit vivo. Esperar Galloway entrar em ação no dia seguinte era
arriscado demais. Tinha de fazer o que estivesse ao seu alcance, o mais rápido possível. Claro que agora já estava muito tarde para encontrar qualquer lugar aberto
onde pudesse comprar um mapa da área do lago Shin, a fim de verificar as possibilidades. Fiona encheu outro cálice de vinho e se conectou à Internet.

Digitou as palavras "lago Shin" no mecanismo de busca e passou os olhos pelos resultados com impaciência. Havia sites onde fotógrafos amadores exibiam suas fotos
da área; sites para aqueles que acreditavam que o Monstro do Lago Ness tinha parentes no lago Shin; sites de aluguel de casas de veraneio com vista para o lago;
sites que ofereciam conselhos sobre pescarias; e até mesmo um dedicado à estação de energia hidroelétrica. Contudo, nenhum mapa em larga escala. O mapa fornecido
pela versão on-line da Ordnance Survey, a agência nacional de cartografia britânica, era pequeno demais para que ela pudesse ver qualquer detalhe útil.

Fiona chegou a tirar um tempo para se atormentar com as fofocas mórbidas de Murder Behind the Headlines. Mesmo enquanto entrava no site, sabia que ele não ajudaria
em nada a deixá-la mais tranquila, mas, tal como uma casquinha de machucado que começa a coçar, precisava ver o que a morte de Georgia havia provocado.

Por fim, Londres confirmou o que qualquer pessoa com a metade de um cérebro já sabia. Sim, há um serial killer à solta caçando aquele pessoal estranho e esquisito
que passa os dias escrevendo sobre, adivinhem, adivinhem, serial killers. Embora isso possa soar um pouco como morder a mão que te alimenta, é verdade!

Ainda mais surpreendente foi a confissão que interrompeu uma coletiva de imprensa organizada pela polícia. Enquanto a polícia revelava ao mundo que os restos da
escritora de suspense britânica Georgia Lester haviam sido encontrados em um freezer em desuso no Smithfield Market, um homem que afirmou ser o assassino distribuiu
um FOLHETO para os jornalistas, descrevendo seus motivos para a série de mortes bizarras.

O sujeito é um aspirante a escritor chamado Charles Cavendish Redford. Ele alega que os três escritores em questão plagiaram os manuscritos que lhes enviou na esperança
de que o ajudassem a ter seus livros publicados. Redford, de 47 anos, já trabalhou como atendente em um hospital, onde provavelmente teve a oportunidade de desenvolver
suas habilidades homicidas. Ele está sob custódia, preso, mas até o momento não foi formalmente acusado.

A descoberta dos restos de Lester forneceu provas incontestáveis de algo que alguns de nós já deduzira. Para citar Oscar Wilde: Primeiro -

Drew Shand - um azar. Segundo - Jane Elias - uma formidável coincidência. E terceiro - Georgia Lester - uma série...

Lester desapareceu há mais de uma semana. Os cínicos disseram que ela armou deliberadamente seu desaparecimento para atrair publicidade, tal como o fizera a Rainha
do Crime, Agatha Christie, na década de 1920. E é verdade que Lester vinha reclamando que seus editores não a estavam protegendo como deveriam. Ela havia exigido
guarda-costas para acompanhá-la no tour de lançamento de seu último livro, porém seu pedido fora rejeitado por editores com mais bom-senso do que dinheiro - por
si só uma raridade nos dias de hoje.

No entanto, quando lemos os relatos sobre seu desaparecimento - o carro abandonado numa estradinha rural, a aparente ausência de sinais de violência, a falta de
testemunhas-, alguns de nós, antenados nesse tipo de coisa, sentimos um arrepio de medo ao nos lembrarmos do destino das vítimas em And Ever Shall Be So, o único
romance de Lester sobre um serial killer que foi adaptado para o cinema.

Estão dizendo que os policiais londrinos receberam a dica para fazer as buscas no Smithfield Market de uma psicóloga criminalista - uma daquelas lendárias Clarice
Starling*11 (e todos sabemos o que aconteceu com Clarice, não é mesmo???), que descobre o que o criminoso vai fazer em seguida. Mas vejam bem: não era necessário
um doutorado em psicologia para descobrir o desfecho deste crime em particular. Só era preciso saber ler.

Ainda assim, alguns escritores de suspense vão dormir melhor hoje. Porque, se Redford não tivesse convenientemente dado com a língua nos dentes, podem apostar
que levaria um bom tempo e mais alguns corpos antes que a polícia o capturasse.

LEMBRE-SE DE QUE VOCÊ LEU ISSO EM MURDER BEHIND THE HEADLINES

Zangada consigo mesma por ter sucumbido à malícia insidiosa do site, Fiona desconectou a Internet. Perdera quase uma hora e não chegara a lugar algum.

*11. A agente do FBI em O Silêncio dos Inocentes e Hannibal. (N T.)

Frustrada, tentou os telefones de Steve de novo. Nada. Ele ainda estava fora de alcance. Fiona fechou os olhos e massageou as têmporas. Tinha de haver algo trancafiado
em algum lugar de sua mente que a levasse até a cabana. Pense em outra coisa, disse a si mesma. Deixe seu subconsciente fazer o trabalho. Mais fácil falar do que
fazer, ponderou, quando tudo o que conseguia era pensar em Kit e no que ele devia estar passando.

Uma caminhada, isso. Um passeio rápido pelas ruas da vizinhança, onde poderia se forçar a observar os detalhes das casas e dos jardins. Isso talvez liberasse sua
mente o suficiente e abrisse a porta para a informação que sabia estar guardada ali.

Feliz por ter algo positivo para fazer, Fiona colocou-se de pé num pulo e pegou a capa de chuva ainda úmida e amontoada sobre a cama, onde a jogara ao entrar.
Vestiu-a, pegou o celular e saiu quase que correndo porta afora e escada abaixo em direção à rua.

Ela virou à direita e começou a andar. Enquanto seguia, observava com atenção as casas, olhando de relance para os porões e avaliando o que as pessoas tinham feito
para torná-las atraentes. Analisou as cortinas, apreciou uma videira russa particularmente robusta, fez uma anotação mental sobre uma elaborada argola para portas
de entrada. Passatempos para o cérebro.

Ao chegar ao final da rua, dobrou à esquerda e começou a descer a ladeira íngreme em direção a Sotckbridge, descrevendo para si mesma os prédios altos de arenito
pelos quais passava. Já na base da ladeira, parou para olhar a vitrine de uma loja de bebidas, selecionando mentalmente as garrafas dispostas. Atravessou a rua
e decidiu retornar sem parar um minuto sequer de catalogar o que via em torno enquanto subia.

Fiona já estava na metade da rua onde ficava o hotel quando sua mente liberou o tesouro que ela sabia que estava escondido ali dentro.

- Lee Gustafson - falou, num tom de quem pensa em voz alta. E pôs-se a correr de volta para o quarto do hotel, a fim de dar um destino prático ao presente que
acabara de receber.

Indiferente ao olhar atônito do vigia da noite, Fiona passou voando pela recepção e subiu a escada. Antes que a porta terminasse de bater, sua capa de chuva já
estava amontoada sobre a cama novamente e ela, sentada na frente do laptop. Lee Gustafson era um escritor policial americano que

entrevia suspenses ecológicos. Ele e Kit tinham o mesmo editor nos Estados Unidos. E haviam viajado juntos numa turnê promocional uns dois anos antes, durante
a qual aproveitaram para beber e visitar as livrarias do centro-oeste americano, forjando uma amizade que alimentavam através de e-mails. Cerca de um ano antes,
Kit emprestara a cabana para Lee, a fim de que ele pudesse fazer uma pesquisa sobre a conservação das espécies raras das Terras Altas. Lee Gustafson devia saber
exatamente onde ficava a cabana.

Tudo o que precisava agora era encontrar Lee.

Glasgow era um brilho dourado a oeste. Kit, porém, não via nada disso. Sofria com a câimbra no braço preso debaixo do corpo e se esforçou para mudar de posição,
ficando de barriga para baixo. Isso aliviou a dor nos ombros e as fisgadas na perna, mas não ajudou em nada a dor surda que ainda lhe embotava o cérebro.

Tinha perdido a noção de tempo. Tudo o que sabia era que estava preso num veículo em movimento havia pelo menos duas horas. E só sabia disso porque, numa espécie
de tortura requintada, fora obrigado a escutar a própria voz lendo em voz alta as palavras que temia virem a ser o seu destino. Pelos seus cálculos, ainda faltava
uma hora de leitura para terminar Tiw Blood Painter.

Tentara desligar-se do livro, entoando mentalmente suas músicas favoritas. Mas isso não havia funcionado. A história interminável continuava a penetrar seu cérebro,
abrindo caminho até sua consciência. Percebeu a ironia de ver-se preso pelo poder de seu próprio dom.

Pelo menos, enquanto estivessem em movimento, havia esperança. Em algum momento, seu sequestrador teria de parar para abastecer o carro. Essa seria sua chance.
Poderia tentar chutar a guarda traseira, a tampa do porta-malas, a porta de trás ou qualquer outra coisa que o estivesse impedindo de cair rolando na estrada. Tentou
se lembrar. Estava calçado com o quê? Sentiu um profundo desânimo. Estivera em casa o dia inteiro. Chinelos,

estava de chinelos. Mesmo que chutasse com toda a força, só conseguiria provocar um barulho surdo que dificilmente seria escutado em meio aos ruídos dos motores
do posto de gasolina. Além disso, não acreditava que

uma pessoa tão cuidadosa quanto o homem que o sequestrara iria estacionar no meio de uma área movimentada, deixando Kit para trás enquanto ia comer um hambúrguer
e tomar um café.

Devia haver alguma coisa que ele pudesse fazer. Afinal de contas, ele próprio construíra a armadilha. Tinha de ser capaz de bolar uma forma de escapar, se é que
havia alguma.

Ajudaria muito se não tivesse de escutar a própria voz o condenando à morte.

Fiona não teve grandes dificuldades em arrumar o telefone de Lee Gustafson. Uma pesquisa pela lista telefônica internacional mostrou que ele era um ex-assinante,
o que não a surpreendeu. Só tinha tentado essa rota primeiro por educação. Na verdade, não sentia o menor escrúpulo em ligar para um dos escritores policiais
cujos números estavam gravados em sua agenda. Disse a si mesma que não fazia a menor diferença que já fosse quase uma da manhã. Ainda assim, escolheu deliberadamente
Charlie Thompson primeiro. Charlie vivia sozinho e ela sabia que ele era uma pessoa notívaga. As probabilidades eram de que ele estivesse esparramado em sua poltrona,
assistindo a um filme de terror, com o gato no colo e um cálice de conhaque na mão. Melhor ele do que uma pessoa que acordaria em pânico com o telefonema.

Ele atendeu o telefone no quarto toque. - Meus cumprimentos, terráqueo. - Uma voz grave de barítono retumbou em seu ouvido.

- Oi, Charlie. Aqui quem fala é Fiona Cameron. - Meu Deus! Você já não devia ter virado abóbora a essa hora da noite? Ou será que você está falando da seção de
frutas e verduras da Tesco?

Fiona trincou os dentes e tentou não gritar com ele. - Desculpe te incomodar, Charlie, mas Kit está fora da cidade e eu preciso do telefone de Lee Gustafson.

- Fiona, querida, se você quer que um homem sussurre bobagens melosas em seu ouvido enquanto Kit está fora, não precisa pagar uma ligação internacional. Ficarei
feliz em ajudar. - Ele riu.

- Vou me lembrar disso, Charlie. Você tem o telefone do Lee? - Desprezado de novo, ahn? Espere um pouco, Fiona, está no outro quarto. - Ela escutou o som de mobília
sendo arrastada, um gato protestando e, em seguida, passos pesados se afastando. Charlie, o único homem que ela conhecia que usava botas de motociclista em casa.
Um longo minuto se passou e, então, os passos se fizeram ouvir de novo. - Você ainda está aí? Tem uma caneta?

- Estou. Tenho. Ele recitou o número de Gustafson e depois repetiu para ter certeza de que ela anotara corretamente.

- Divirta-se com o Lee - acrescentou. - Mas não tanto a ponto de esquecer que meu coração ainda bate forte por você.

- Jamais poderia esquecer isso, Charlie - replicou ela, forçando-se a adotar o tom de flerte padrão que caracterizava a amizade deles. - Muito obrigada.

- Sem problema. E diga àquele seu companheiro que ele está me devendo um e-mail.

- Eu digo. Boa-noite. - Vou tentar ter. - A linha ficou muda, e Fiona imediatamente discou o número que Charlie lhe dera.

O toque singular do sistema telefônico americano ressoou em seu ouvido. Uma, duas, três vezes. Em seguida, o clique da secretária eletrônica. "Oi, você ligou para
Lee e Dorothy. Mas não nos pegou aqui. Estamos fora da cidade até segunda de manhã. Deixe uma mensagem que retornaremos quando chegarmos."

Fiona não acreditou em seus ouvidos. Estava começando a sentir como se o universo estivesse armando uma conspiração em massa contra ela e Kit. Estava tão convencida
de que Gustafson seria a resposta.

Frustrada, entrou em seu e-mail de novo, agarrando-se à fraca esperança de que Galloway estivesse certo e Kit tivesse mandado uma mensagem que, de alguma forma,
ficara presa no ciberespaço. Talvez o servidor dele tivesse ficado fora do ar e, por causa disso, todas as correspondências houvessem se atrasado. No entanto, não
havia nada, é claro.

Por impulso, já que estava usando o laptop de Kit e ele estava programado para abrir sua conta de e-mail automaticamente, resolveu verificar.

Talvez ele tivesse mandado uma mensagem para sua própria caixa por engano. Ela não conseguia imaginar como isso poderia ter acontecido, mas estava disposta a se
agarrar a qualquer fiapo de esperança, por mais fino que fosse.

Havia doze mensagens na caixa de entrada dele. A maioria parecia ser de outros escritores de suspense, falando sobre a Georgia. Não havia nada ali que pudesse
ter vindo do próprio Kit. E o mais preocupante: a julgar pela hora das mensagens na caixa, ele não verificava seu e-mail desde o começo da tarde. E isso era tão
incomum nele quanto o fato de não tê-la contatado. Em vez de consolo, Fiona encontrou mais razão ainda para se preocupar.

Ela se desconectou, mas continuou a olhar fixamente para a tela. De repente, algo faiscou no fundo de sua memória. Pouco antes de Lee ir para a cabana, ela e Kit
tinham viajado de férias para a Espanha. Kit, como sempre, levara seu laptop. Para ele, ter acesso a seu e-mail era como respirar. E, enquanto eles estavam fora,
ele e Lee haviam se comunicado para falar da cabana.

De maneira ansiosa, ela abriu o arquivo eletrônico onde Kit guardava todos os e-mails antigos, enviados e recebidos. Clicou no ícone "Cópias de mensagens enviadas",
arrumadas por data. O programa oferecia também a possibilidade de organizar as mensagens por ordem alfabética do recebedor, e Fiona escolheu essa opção. Tamborilou
os dedos sobre a mesa enquanto esperava que o programa terminasse de carregar a ordem. Em seguida, baixou o cursor até o nome de Lee Gustafson e começou a checar
os e-mails pela data. Sabia qual mês estava procurando, e logo o encontrou. Kit enviara nove mensagens para Lee naquele mês. Fiona começou pela primeira e foi
descendo.

Lá estava ela.

Pegue a A839 ao sair de Lairg. Cerca de 1,5 quilômetro depois, você vai ver uma estrada de terra com a placa Sallachy. Pegue essa estrada (ela é bem esburacada,
você vai gostar de ter pegado emprestado meu Land Rover) e siga por mais 9 quilômetros. Você vai cruzar um desfiladeiro com um rio embaixo, o Allt a'Claon. Logo
em seguida, vai ver uma saída à esquerda; vire nela. Mais uns 800 metros e outra saída à esquerda. A trilha vai te fazer passar de novo pelo desfiladeiro do rio,
só que dessa vez por

uma ponte de cordas. Ela é muito mais resistente do que parece, mas é melhor passar bem devagar, não mais que uns 8 quilômetros por hora. Assim que cruzar o rio,
vai se ver cercado de árvores. A cabana fica mais ou menos 1,5 quilômetro à frente. Eu diria que não tem como errar, mas você provavelmente me mataria.

Fiona sentiu um imenso alívio. Sabia para onde o assassino estava levando Kit. E agora sabia como chegar lá. Para o inferno com Sarah Duvall o suas certezas idiotas.
Para o inferno com Sandy Galloway e seus clichês apaziguadores. E para o inferno com Steve, que não estava disponível quando ela precisava dele. Encontraria Kit
com ou sem a ajuda deles.

50.

Edimburgo podia alegar ser uma cidade que funcionava 24 horas por dia durante O festival, porém, como Fiona logo descobriu, quando se tratava de alugar um carro,
ela continuava a ser estritamente de oito às oito. Mesmo no aeroporto, que não fechava nunca, as firmas de aluguéis de carros paravam de funcionar após a chegada
dos últimos voos.

Já tendo verificado todas as opções profissionais, ela foi forçada a se voltar para as pessoais. Cansada, Fiona pegou o telefone e discou novamente. Escutou doze
toques distantes. Em seguida, um murmúrio indistinto.

- Alô? - Caroline? - Não. Quem está falando? - A voz parecia bastante zangada. - Ah, Julia. Desculpe. Aqui é Fiona Cameron. Posso falar com a Caroline?

- Você sabe que horas são? - O nível de hostilidade aumentou. Fiona sabia que isso não tinha nada a ver com a hora.

- Sei. Sinto muito. Mas preciso falar com a Caroline. O telefone foi deixado de lado de forma barulhenta. Fiona escutou, sabendo que era de propósito, o sussurrar
mal-humorado de Julia.

- É Fiona Cameron. São duas horas da manhã. Não sei que merda... Em seguida, a voz de Caroline, sonolenta, porém cheia de preocupação: - Fiona? O que aconteceu?

- Desculpe te acordar, mas é muito importante. - Claro que é. O que posso fazer para te ajudar? Qual é o problema? Fiona inspirou com força. Ao fundo, escutou
o suspiro exasperado de Julia. Ao contrário de Caroline, Julia não tolerava imprevistos.

- Estou em Edimburgo, mas preciso ir para Inverness. Se eu esperar os trens voltarem a funcionar, vai ser tarde demais.

- Quer que eu te leve lá? - Não precisa. Só quero seu carro emprestado. Fiona escutou barulho de movimento, indicando que Caroline tinha mudado de posição.

- Tudo bem. Deixe-me ver... cinco minutos para me vestir... Provavelmente uma hora para chegar aonde você está. Que lugar em Edimburgo?

- Estou num hotel chamado Channings. Mas o problema, Caroline, é que o tempo é vital. Tem algum lugar onde a gente possa se encontrar no meio do caminho? Algum
lugar onde eu possa ir de táxi?

Fez-se uma pausa. Fiona escutou Caroline andando de um lado para o outro, como se estivesse juntando suas roupas.

- Tem um pequeno comércio na M90 - falou Caroline. - Alguns quilômetros depois da ponte. Em Halbeath, eu acho, ou algo parecido. Fica no retorno para Dunfermline
e Kirkcaldy, logo depois de uma enorme revendedora da Hyundai. Peça para o táxi te deixar lá. Chegarei lá em... 35, quarenta minutos. Tudo bem?

- Obrigada, Carol. Acredite em mim, fico muito grata. - Não tem de quê. Você me conta tudo quando a gente se encontrar. - Em seguida, a linha ficou muda. Fiona
sorriu pela primeira vez em horas. Finalmente estava lidando com alguém que confiava nela sem questionar, alguém que não achava que ela estava exagerando. Steve
teria feito o mesmo. Só que ele estava fora de alcance. E ela não tinha tempo para provar que estava certa.

Enquanto esperava pelo táxi, escreveu uma mensagem rápida para Galloway, dizendo para onde tinha ido e quando saíra. Pediu ao vigia da noite que a enviasse para
o fax pessoal de Galloway em St. Leonard. Pelo menos, se precisasse de cobertura, eles saberiam onde encontrá-la.

Vinte e cinco minutos depois, o táxi a deixou diante da área comercial de Halbeath, em frente à saída da M90 que seguia para o norte. A garoa fina que tornara
Edimburgo sombria o dia inteiro se transformara numa chuva forte, e agora castigava o estacionamento. Fiona buscou abrigo debaixo da marquise do restaurante e
ficou olhando através da chuva o brilhante letreiro em néon do posto de gasolina enquanto pensava no que tinha de fazer.

Dez minutos depois, um par de faróis de um carro que se aproximava pela estrada sobressaiu em meio à escuridão e Fiona deu um passo à frente, na expectativa. As
luzes do posto revelaram um Honda sedan que parou a alguns metros dela, levantando água. A porta do motorista se abriu e Caroline saiu num pulo, veio correndo
em sua direção e a envolveu num abraço.

- A cavalaria chegou - disse Caroline. - Nunca fiquei tão feliz em te ver. - O que está acontecendo? Por que a urgência? - Caroline a soltou e deu um passo para
trás, colocando-se sob a marquise.

- Você tem visto as notícias? - perguntou Fiona. - Isso tem a ver com a escritora de suspense assassinada? - Caroline sempre fora rápida nas conclusões. - Achei
que eles tivessem prendido alguém pelo crime, não?

- Prenderam. Mas acho que existe uma possibilidade de a pessoa em custódia ter feito uma confissão falsa. Acho que é apenas alguém atrás de atenção. Se eu estiver
certa, o assassino ainda está à solta. E estou com medo de que ele tenha capturado Kit.

-Ai, meu Deus! E eles estão indo para Inverness? - Pela primeira vez, Caroline pareceu abalada.

- Kit tem uma cabana na região de Sutherland. Acho que é para lá que o assassino está planejando levá-lo. Kit mantém um Land Rover num estacionamento em Inverness.
Preciso chegar lá, pegar o Land Rover e tentar interceptá-los antes que eles cheguem à cabana.

Caroline franziu o cenho. - Desculpe se eu estiver sendo ingênua, mas não é a polícia que deveria estar lidando com isso?

- É. Só que eles acham que o homem sob custódia é o assassino. Nem ao menos estão convencidos de que Kit sumiu. Acham que ele saiu para se divertir com os amigos,
para afogar as mágoas pela morte da Georgia.

- E você não acredita nisso, certo? Fiona abriu as mãos. - Eu conheço Kit. Caroline fez que sim, como se isso fosse suficiente. - Tudo bem. Entre no carro. Eu
te levo lá. -Não precisa, juro. Posso ir dirigindo. Só preciso do seu carro emprestado.

Caroline esticou o braço e agarrou o pulso de Fiona com delicadeza. Um gesto curiosamente íntimo.

- Já falei, eu te levo lá. Além disso, como vou voltar para St. Andrews a esta hora da noite?

- Não, Carol, essa briga não é sua. Chame um táxi. Eu pago. Só me dê as chaves do carro, Carol, por favor.

Caroline fez que não. - De jeito nenhum. Você sempre me deu apoio quando eu precisei. Não vou deixá-la sozinha. - Ela se virou nos calcanhares, marchou de volta
para o carro, abriu a porta do motorista e entrou. Deu partida e abriu a janela. -Achei que você estivesse com pressa. Fiona?

Enquanto elas seguiam a estrada em direção a Perth, Caroline quebrou o silêncio:

- Me conte o que aconteceu com o Kit. Fiona contou a história toda, do assassinato de Drew Shand em diante. - Talvez eu esteja sendo paranoica - admitiu. - Mas
esse risco é meu, e estou disposta a assumi-lo. Fazer papel de idiota às margens do lago Shin seria, na minha opinião, o melhor desfecho possível para esta noite.

- Só que você sabe no fundo de seu coração que não é esse o caso - retrucou Caroline com pesar.

Fiona concordou com um meneio de cabeça. - Ele não desapareceria assim. Kit ficou abalado com a morte da Georgia, e ele só se abre comigo. De todas as vezes que
ele poderia me

ignorar, essa é a menos provável. - Elas recaíram no silêncio, cada qual perdida em seus próprios pensamentos enquanto as palhetas varriam a chuva do para-brisa.
Penetravam cada vez mais nas Terras Altas, e as silhuetas escuras das montanhas elevavam-se em torno delas à medida que Caroline ia subindo a estrada em direção
a Inverness, dirigindo ao som dos Cowboy Junkies. Àquela hora da noite, havia pouco trânsito para perturbar a interminável faixa da A9 que se estendia em zigue-zague
à frente delas.

Perto de Kingussie, Fiona fechou os olhos e apoiou o cotovelo na beirada da janela. Sem necessidade de Caroline parar para abastecer (e sem lugar algum para parar,
mesmo que precisasse), Fiona caiu num cochilo leve até elas alcançarem os arredores de Inverness, pouco depois das seis e meia.

No entanto, para alcançar a cabana antes de Kit, como havia planejado, Fiona precisaria ter chegado ali duas horas e meia antes.

Joanne Gibb passou dirigindo devagar pela rua onde Gerard Coyne morava. Graças a Deus, não havia movimento àquela hora. Mas, também, isso era exatamente o que
ela esperava naquela área do norte de Londres, numa manhã de sábado bem cedinho. Tinha esperança de que continuasse assim por mais algum tempo. Precisava identificar
a casa e depois encontrar um lugar para estacionar o carro que lhe permitisse ficar de olho no apartamento. Não podia se arriscar a perdê-lo porque não encontrara
um lugar para estacionar sem atrapalhar o trânsito. Ajudava bastante ter um Golf com insulfilme escuro nos vidros. Impossível para os transeuntes verem quem estava
lá dentro, e com o bônus extra de que qualquer rapaz da região pensaria duas vezes antes de mexer nele, pois alguém que possuía um veículo de aparência tão ameaçadora
era provavelmente uma figura mais indigesta do que ele próprio.

Ao passar pela primeira vez, ela identificou a casa. Como não viu um lugar para estacionar logo de cara, seguiu até o final da rua, fez a volta e retornou devagar.
Cerca de uns 11 metros do apartamento de Coyne, um par de faróis piscou para ela. Sua primeira reação foi de que alguém percebera sua intenção e estava indicando
que ia sair da vaga. Em seguida, porém, reconheceu o Ford de Neil, um carro quase tão desmazelado quanto o dono. Ao emparelhar com ele, ambos baixaram o vidro
ao mesmo tempo. Joanne fungou quando o fedor estagnado de homem sem banho atingiu seu nariz.

- O que você está fazendo aqui? - perguntou. - Você devia ter ido embora à meia-noite e deixar nosso amiguinho entregue à própria sorte.

Neil bocejou. - Não pude fazer isso. Tentei falar com o chefe, mas não consegui encontrá-lo. O celular dele está desligado, o telefone de casa está na secretária
e ele também não retornou a mensagem que eu deixei no pager. Não acredito. Steve nunca fica fora de alcance. E logo ontem à noite, de todas as noites, quando ele
sabia que a gente ia dar início a uma nova vigilância. Não faz sentido. De qualquer forma, decidi ficar até você aparecer, só para me assegurar.

Joanne abriu um sorriso maroto. - Aposto que sei onde ele está. - Onde? - Ele está namorando. - Bobagem - zombou Neil. - O chefe é um monge. Ele até já se esqueceu
como se faz.

- Você nunca esquece como se faz - retrucou Joanne. - Ele foi ver a tal acadêmica no outro dia e voltou todo saltitante. E ele me pediu para recomendar um restaurante.

- Meu Deus, ele devia estar desesperado. - Muito obrigada, Neil. De qualquer forma, acho que ele foi para a casa dela e decidiu que, para variar, ia esquecer essa
porcaria de trabalho e se divertir.

Neil fez que não. - Ele nunca desliga o pager. - Isso é o que você pensa. Então, o que você vai fazer agora? Neil esticou o braço e girou a chave na ignição.
- Vou voltar para a Yard e deitar por umas duas horas, até ele aparecer. Onde quer que esteja, ele vai dar uma checada lá agora de manhã para ver o que está acontecendo,
aposto o dinheiro que for.

- Para você, o dinheiro que for é uma caneca de cerveja. Espere aí até eu fazer a volta de novo para pegar a sua vaga, tá? - Joanne se afastou. Ao retomar, Neil
já estava saindo da vaga, a fim de deixar espaço para ela assumir a vigilância. Ela acenou para o colega e estacionou. Só esperava que Gerard Coyne não estivesse
planejando um passeio de bicicleta logo mais.

51.

Caroline parou num trevo nos arredores de Inverness e desligou o som.

- Para onde agora? - perguntou. Fiona bocejou e esfregou os olhos com a ponta dos punhos fechados. Estava com aquela sensação de vazio, de enjoo, decorrente de
pouco sono e muita adrenalina. A chuva havia parado, e uma camada fina de névoa cinzenta pairava no ar, reforçando ainda mais a imagem de cidade-fantasma que a
hora já garantia a Inverness.

- Não sei - admitiu Fiona. - Tudo o que eu sei é que o dono do estacionamento onde Kit guarda o Land Rover se chama Lachlan Fraser.

Caroline bufou: - Isso ajuda muito. - Presumo, então, que Fraser seja um nome bem comum nessa região, certo?

- Pode-se dizer que sim. A residência tradicional do chefe do clã fica a uns 10 quilômetros subindo a rua. Fraser é um nome tão comum em Inverness quanto Smith
é em Londres. - Ela passou a marcha e tomou o rumo do centro da cidade.

- Para onde você está indo? - perguntou Fiona. - Na dúvida, pergunte a um policial. - Caroline continuou descendo a rua principal. - Ou encontramos uma delegacia,
ou vamos dar de cara

com um par de uniformes de lã da patrulha noturna comendo um sanduíche de bacon na lanchonete 24 horas.

- Você acha que Inverness tem uma lanchonete 24 horas? - indagou Fiona, a profissional cética.

Caroline abriu um sorriso sombrio. - Não cometa o erro de acreditar na propaganda turística. Inverness está muito mais para O Romance de Morvern Callar do que
para Local Hero.

- Isso significa que você sabe onde me arrumar um pouco de speed? Caroline ergueu as sobrancelhas. - Imagino que seja cedo demais ou tarde demais para qualquer
coisa desse tipo. Isso foi uma piada, certo?

O sorriso de Fiona foi selvagem. - Apenas tecnicamente. Piadas deveriam ser engraçadas, e a forma como estou me sentindo agora não tem nada de engraçado. É melhor
me virar com uma lanchonete 24 horas e uma boa dose de cafeína. Se eu acabar nos braços da lei, a última coisa que preciso é que eles descubram que estou cheia
de anfetaminas.

- Espere um pouco, aqui vamos nós. - Caroline saiu em uma tangente, apontando para a esquerda, onde uma loja gigantesca do tipo "faça você mesmo" ocupava quase
todo o horizonte. Parados no enorme estacionamento, um trailer que vendia peixe e batatas fritas, um carro da polícia e a carreta de um caminhão articulado. Com
uma guinada, ela virou na rua escorregadia e seguiu em direção ao carro de polícia.

- Você pede as informações. Você tem o sotaque certo. Eu pego o café da manhã - instruiu Fiona, saindo do carro e se espreguiçando. Por mais desesperada que estivesse
para chegar à cabana, precisava de algo para comer e beber, mais do que dos cinco minutos que iria poupar se não parasse agora. Debruçando-se no balcão alto, sentiu
o cheiro rançoso de gordura fria, vinagre barato, cebolas fritas e diesel. O cardápio estava escrito em caneta hidrocor num quadro que um dia havia sido branco.
Descrever sua cor atual ia além do vocabulário de Fiona. Cor de cueca velha de homem era o mais perto que conseguia chegar. O quadro oferecia peixe, batata frita,
hambúrguer, salsicha, enrolados e tortas. Outro cartaz anunciava que tinham à disposição "Chá, café e bebidas variadas". Fiona sorriu para o

homem corpulento atrás do balcão. A julgar pela sua palidez, ele vivia do que cozinhava.

- Dois enrolados de batata, por favor - pediu Fiona. Provavelmente era a opção mais segura. Além disso, todos aqueles carboidratos compostos lhe dariam energia
por algumas horas. - E duas xícaras de chá - acrescentou.

- Certo - respondeu a montanha em forma de homem. Ele se virou para cuidar da frigideira sibilante. Fiona se virou para ver como Caroline estava se saindo com
os policiais. Ela estava debruçada sobre a janela aberta, com uma expressão alegre e simpática. Será que ela e Lesley teriam ficado juntas?, imaginou Fiona. Provavelmente
não. Era raro isso acontecer com o primeiro amor. E então ela própria teria perdido a amizade de Caroline, certamente. Com o espanto típico, de uma ficha que acaba
de cair Fiona deu-se conta de que a morte de Lesley tinha lhe dado um presente. Coçou a cabeça, decidindo guardar o pensamento para outra hora, quando poderia
dar-lhe a devida atenção. Por ora, esforçava-se para se agarrar à realidade de algo que cada vez mais parecia um pesadelo.

Caroline voltou a ficar ereta. Sorriu, agradeceu-lhes com um aceno de cabeça e voltou para o carro. Ao ver que Fiona olhava para ela, levantou os polegares.

- O seu pedido, querida - falou o homem do trailer, colocando sobre o balcão dois enrolados de pão bem gordos e um par de guardanapos de papel. Fiona entregou
uma nota de 5 libras e fez sinal com a mão indicando que ele podia ficar com o troco. Concentrou-se em seguida em equilibrar os dois enrolados e os dois copos
plásticos com chá.

De volta ao carro, elas se puseram a comer e beber. Entre uma bocada e outra de sanduíches de batata surpreendentemente saborosos, Caroline explicou para onde
deviam ir.

-A casa de Lachlan Fraser fica fora da cidade, no caminho para o aeroporto. Os tiras o conhecem. Não por nenhum motivo ruim, entenda. Apenas porque... bom, eles
sabem dessas coisas. - Ela se pôs a caminho, com o sanduíche numa das mãos e o chá entre as pernas, tomando cuidado nas curvas para não derramar a bebida.

Enquanto seguiam, as ruas começaram a acordar. De repente, fachos amarelados de luz quebravam o cinza das fachadas das casas. De vez em

quando, um carro de passeio ou de um entregador de leite passava por elas, e os primeiros raios de luz começavam a pintar o céu noturno a leste. Fiona imaginou
onde Kit estaria. Se ela chegaria a tempo ou se já era tarde demais. Se o assassino iria se ater à trama ou se optaria por algo aproximado. Se tivesse permitido
sua imaginação correr solta em vez de guardar o que sabia sobre The Blood Painter em uma caixa trancada no fundo do cérebro, ela provavelmente teria conjurado uma
aproximação razoável do que acontecia naquele exato momento, a duas horas de carro dali.

Ainda tonto, Kit esforçava-se para voltar à consciência, mas foi tomado por uma leve vertigem, seguida de fisgadas de dor lancinante. Tomara uma segunda pancada
na cabeça. O longo período na escuridão deixara-o incapaz de evitar o golpe que recaiu sobre ele assim que a traseira do Toyota foi aberta. Fora a dor, a primeira
sensação que o acometeu foi frio. Estava congelando. Forçou-se a abrir os olhos e se viu no meio de um cenário que lhe pareceu o pior tipo de déjà-vu. Conhecia
o lugar porque era dele; conhecia a situação porque ele mesmo a criara. Estava sentado, nu, sobre o vaso sanitário, os dois braços algemados a argolas de aço que
tinham sido aparafusadas na parede. As pernas presas por uma corrente que passava por trás do vaso, deixando-o praticamente incapaz de se mover.

Estava sozinho. Sabia, porém, que isso não ia durar muito. Sabia o que estava por vir.

Caroline parou em frente a uma antiga casa de pedra de dois andares, com um cartaz branco e vermelho descascado onde se lia "Garagem do Fraser". Ela parecia estar
ali desde muito antes da invenção do motor a combustão interna. A maior parte da fachada consistia em dois portões largos de madeira com uma portinhola embutida
em um deles. Num dos lados, havia outra porta simples de madeira com o número 31. No andar de cima, uma luz brilhava por trás de uma janela de vidro jateado. Fiona
se inclinou para abraçar Caroline.

- Obrigada - disse. - Tenho uma grande dívida com você. - Ei, ainda não acabou - replicou Caroline. - Você não acha que eu vou embora agora, acha?

Fiona recostou-se de volta no assento. - Não faça isso, Caroline. Você precisa ir para casa agora. Caroline fez que não. - De jeito nenhum. Não vim até aqui para
virar as costas e te deixar sozinha. Não pode me trazer até aqui e depois me mandar embora quando o problema começa.

- Isso não é um jogo, Carol. Se eu estiver certa, o homem que pegou Kit já matou três pessoas. Ele não vai pensar duas vezes antes de matar quem quer que se coloque
entre ele e seu objetivo. Não posso deixar você se meter nisso. - Fiona estava decidida, e isso ficou claro tanto em sua voz quanto em sua expressão.

- Já que ele é tão cruel, você precisa igualar as chances um pouco. - Não. Sei o que estou fazendo. Não posso arriscar terminar com o seu sangue em minhas mãos.
Não poderia viver com isso. - Ela soltou o cinto e abriu a porta do carro. - Por favor, Carol. Vá para casa. Eu te ligo mais tarde, prometo. Vou sair do carro
agora, e eu não vou a lugar nenhum até te ver dar a volta e se afastar. - Abriu bem a porta e saltou, em seguida se inclinou de volta. - Estou falando sério. -
Fechou a porta com delicadeza e deu um passo para trás.

Caroline bateu com a palma da mão no volante, num gesto de frustração, em seguida passou a marcha e partiu. Fiona ficou observando enquanto ela manobrava para fazer
a volta e seguia na direção que elas tinham vindo. Quando as lanternas do Honda desapareceram depois da curva, Fiona se virou para a porta pequena. Inspirou fundo
e apertou a campainha.

Fez-se um longo período de silêncio e, então, ela escutou passos pesados descendo uma escada. A porta se abriu, revelando um homem de vinte e muitos anos, com
botas de operário, jeans e uma camisa xadrez de flanela aberta sobre uma camiseta cinza. Em uma das mãos ele segurava uma caneca de chá. Sua expressão demonstrava
uma leve e amigável curiosidade.

- Lachlan Fraser? - perguntou Fiona. Ele fez que sim.

- Sim, sou eu. - Desculpe incomodá-lo tão cedo... Ele sorriu. - Não é tão cedo assim. E não estou incomodado. Em que posso ajudá-la? - Meu nome é Fiona Cameron...
Seu sorriso se ampliou ao interrompê-la: - Você é a garota do Kit. É claro! Eu deveria tê-la reconhecido da foto que Kit tem na cabana. Ei, é um prazer conhecê-la
afinal. - Ele olhou por cima do ombro dela. - O homem não está com você?

- Não, peguei uma carona com uma amiga minha. Vou encontrar com o Kit mais tarde. Ele me pediu para pegar o Land Rover. Tudo bem?

- Tudo bem, sem problema. - Lachlan pegou uma chave no bolso e apontou para a porta ao lado. - Vou pegar as chaves do carro. - Passou por ela e destrancou a portinhola.
- Elas estão logo ali. Só um minuto. - Ele desapareceu porta adentro e uma luz se acendeu. Saiu logo em seguida com um molho de chaves. - Vem comigo. Ele está
lá atrás. O tanque está cheio, e o recipiente de combustível para o gerador está completo com diesel - acrescentou, falando por cima do ombro enquanto guiava o
caminho por um beco estreito até uma área descampada atrás da garagem. Meia dúzia de veículos velhos estavam estacionados de modo aleatório. Lachlan seguiu em
direção a um Land Rover que dava a impressão de ser uma relíquia de guerra.

- Aqui está - informou, destrancando a porta do motorista e saindo de lado para Fiona poder se sentar atrás do volante. - Já dirigiu um desses antes?

Ela fez que não. - Nunca tive o prazer - respondeu com ironia. Lachlan listou as excentricidades do veículo, explicou como funcionava a tração nas quatro rodas
e, em seguida, esperou que ela manobrasse para sair da vaga e se dirigisse para a entrada do beco. Então acenou alegremente quando ela continuou em direção à manhã
cinzenta.

Na área sob a jurisdição da City of London Police, há 385 sistemas de câmera de circuito-fechado distintos. Juntos, eles empregam 1.280 câmeras. O Smithfield Market
é bem monitorado por um desses sistemas, com praticamente todos os nichos e cantos cobertos por uma ou outra câmera. Inevitavelmente, algumas delas produzem imagens
melhores do que outras, dadas as diferenças de luz e ângulos de visão.

Uma das primeiras medidas tomada pela inspetora-chefe Sarah Duvall foi levar cada fita disponível, referente aos dez dias anteriores, até a central da City em
Snow Hill, onde montara sua sala de operações. Os detetives haviam passado a noite inteira verificando horas de gravações, tentando não perder a concentração enquanto
procuravam por Charles Cavendish Redford.

A própria Duvall só dormira quatro horas. Eles tinham persuadido um magistrado a permitir uma prorrogação da prisão de Redford, depois disso ela fora tirar um
cochilo. Duvall sequer se dera ao trabalho de ir para casa, para seu apartamento ao lado do rio, em Isle of Dogs; apenas seguira para seu escritório e se enroscara
no sofá de dois lugares que tinha mandado instalar exatamente para esse propósito. Quatro horas era muito menos do que seu corpo pedia, mas era o suficiente para
continuar funcionando. Provavelmente.

Ela voltou para a sala de operações pouco depois das sete, e verificou ansiosamente os relatórios da noite para ver se havia aparecido alguma coisa que confirmasse
o envolvimento de Redford. Quando o confrontara sobre a discrepância entre sua declaração e a descoberta da casinha, ele sequer piscara. Apenas encolhera os ombros
e dissera:

- Não é isso o que a senhora queria? Me pegar em uma mentira? Não é isso o que os criminosos fazem?

De certa forma, isso havia confirmado sua crença de que ele não estava disposto a oferecer nada que pudesse corroborar a confissão.

Mais cedo ou mais tarde, um dos oficiais de sua própria equipe ou um dos detetives de Dorset encontraria a informação necessária para ligar Redford de forma incontestável
ao assassinato brutal de Georgia Lester. Poderia ser qualquer coisa, pensou ela com tristeza. Qualquer coisinha mesmo, visto que, até então, eles não tinham nada.

Enquanto folheava o que lhe pareceu uma grande pilha de coisa alguma, um dos oficiais a chamou. Ela ergueu os olhos e viu que ele segurava o telefone.

- Sim? - A senhora pode dar um pulo na sala de vídeo? Um dos rapazes disse que encontrou uma coisa, e gostaria que a senhora desse uma olhada.

Duvall saiu da sala antes mesmo de ele desligar o telefone. Com passos largos, atravessou o corredor até a sala onde seus oficiais verificavam os vídeos do mercado
feitos pela CCTV. Mal cruzara a porta quando um dos detetives começou a falar:

- Preciso que a senhora dê uma olhada nisso. - A voz dele saiu esganiçada e atropelada.

- O que foi, Harvey? - Duvall se colocou atrás dele, olhando por cima de seu ombro. - Você o encontrou?

- Estive olhando as fitas do corredor que é preciso atravessar para chegar à área da manutenção. Não dá para ver a porta em si, mas não é possível chegar lá de
nenhum outro jeito. De qualquer forma, esse é o vídeo de sexta-feira, dois dias antes do desaparecimento de Georgia. - Ele apertou o play. Com os movimentos robóticos
de um filme em câmera lenta, um homem apareceu, visto de trás. Ele usava um jaleco branco e calças escuras, e um daqueles chapéus de feltro com abas estilosas
usados pelos açougueiros por motivos de higiene. Parecia estar carregando uma grande bandeja de plástico com carne ensacada. Harvey apontou para a tela. - Ele
atraiu minha atenção porque dá para ver que tem alguma coisa enrolada em saco preto na bandeja. Logo ali, viu o que eu quero dizer?

- Vi - respondeu Duvall com cautela. - Mas esse não é Redford. O formato do corpo não bate. Dá para ver ele voltando?

- É isso o que eu queria que a senhora visse. - Ele apertou o botão para adiantar a fita e a cena passou rápido. De repente, o homem surgiu de novo. Harvey congelou
a imagem quando o homem ficou a cerca de 3 metros da câmera. - Essa é a melhor imagem que temos do rosto dele.

Duvall franziu o cenho. Havia algo de familiar no rosto que ela via diante de si, mas não conseguia se lembrar.

Harvey ergueu os olhos em expectativa.

Duvall olhou para a tela, desejando que a imagem se tornasse mais clara. De repente, uma luz se acendeu no fundo de sua memória. Não fazia sentido, mas tinha certeza
de que estava certa. As implicações daquilo eram terríveis demais para ela nem sequer pensar no assunto. Empertigou-se.

- Amplie isso, o mais rápido possível. Vou ter uma palavrinha com o pessoal da Polícia Metropolitana. Estarei no meu escritório. Bom trabalho, Harvey.

52.

Ao sair de Inverness rumo ao norte, o dia foi clareando aos poucos. Fiona encontrara mapas das estradas e outros da região no porta-luvas do carro, e seguia pela
A9 com um deles aberto sobre o banco do carona. Passou pela ponte espetacular que cruzava por cima do encontro das águas de Beauly Firth e Moray Firth, e atravessou
as terras férteis de Black Isle, o céu cinzento adquirindo gradualmente um tom azul, a névoa da manhã se desfazendo sob o suave calor do sol outonal.

Verificou os pontos de referência do mapa enquanto prosseguia pela estrada tranquila. Não que houvesse muita chance de errar o caminho. Naquela região, havia poucas
estradas importantes para correr o risco de pegar a saída errada. Alness. Invergordon. E, então, a ponte sobre Domoch Firth, com sua areias cinzentas e molhadas
estendendo-se logo abaixo. Pouco depois, Fiona pegou a saída para Bonar Bridge, rumo ao interior, deixando para trás as planícies baixas da região costeira e indo
em direção à área montanhosa do país.

Logo se viu acompanhando o estuário estreito de Kyle of Sutherland, com suas águas escuras ladeadas por densas florestas de coníferas, o que dava um aspecto um
tanto sinistro à estrada iluminada pelo sol que se estendia rumo àquela imensidão inóspita. Ao pegar a saída para o rio Shin, a caminho de Lairg, Fiona percebeu
que estava entrando na região noroeste das Terras Altas propriamente ditas e, de repente, grandes vistas se abriram

à sua frente, montanhas arredondadas recobertas por várias espécies de arbustos baixos, com seus cumes rochosos e cinzentos sobressaindo de modo aleatório. Espalhadas
pelo cenário, viam-se as paredes em ruínas das casas de campo, em geral com apenas um par de cumeeiras danificadas ainda em pé. Aquele era o cenário das Highland
Clearances, o despovoamento brutal da região campestre, quando os pequenos fazendeiros foram expulsos de suas terras por ricos latifundiários, famintos pelo dinheiro
fácil conseguido com a criação de ovelhas Cheviot. Agora as ruínas de suas casas eram o único sinal de que aquela terra tinha sido o ponto de origem da diáspora
das Terras Altas que havia colonizado o Império Britânico.

Fiona nunca andara por aquele lado da bacia hidrográfica, embora já tivesse visitado a região de Assynt, a oeste de Sutherland, umas duas vezes antes em suas caminhadas.
Conhecia a flexibilidade dos arbustos sob seus pés, os traiçoeiros e escorregadios brejos de turfa, e o barulho alto das rochas estratificadas sob suas botas.
Se pretendia se aventurar na área remota onde ficava a cabana de Kit, precisava fazer uma parada em Lairg. Os sapatos leves e as roupas típicas da cidade que trazia
consigo não eram adequados àquele terreno.

Lairg acordava quando ela passou pela rua principal. As lojas estavam abrindo, um punhado de pessoas andava para lá e para cá, aproveitando ao máximo o suave calor
da manhã. Fiona encontrou um lugar para estacionar em frente a uma loja de artigos de montanhismo e saltou do Land Rover. Antes de se dirigir para a loja, verificou
a área para guardar mantimentos atrás dos bancos. Além de três recipientes com 23 litros de diesel cada um, encontrou um pulôver de lã leve e um impermeável.
Pegou o pulôver e o segurou de encontro ao rosto, inalando o perfume familiar de Kit. Por favor, meu Deus, faça com que ele esteja bem, pensou.

De modo relutante, colocou o pulôver e o impermeável de volta no lugar. Ambos eram grandes demais para ela, mas serviriam, decidiu. Em seguida, entrou na loja.
Quinze minutos depois, saiu vestida com uma calça de lã impermeável, uma camisa térmica de gola alta, um chapéu de lã marrom-escuro, meias de alpinismo com solas
acolchoadas e um par de botas de verão que estavam na promoção. Elas não eram ideais para aquela época do ano, porém eram tão flexíveis que não precisariam ser
amaciadas, o que acontecia com as botas mais pesadas. Era uma escolha razoável,

desde que não estivesse planejando andar uma longa distância com elas. Elas seriam confortáveis para uma simples caminhada ou subida, e era isso que importava.
Fiona também comprara um punhado de barras energéticas para qualquer emergência, bolsas térmicas de aquecimento instantâneo e um kit de primeiros socorros. Tinha
uma boa ideia do que a esperava, e queria estar preparada para qualquer eventualidade.

De volta ao Land Rover, Fiona vestiu o pulôver e o impermeável de Kit, e jogou suas roupas de trabalho no lugar onde eles estavam. Ainda havia uma última coisa
a fazer. Chegara a hora de relembrar em detalhes the Blood Painter. Precisava estar equipada para o que poderia encontrar. Comprou um par de alicates de corrente,
um cinzel e uma maneta na loja de ferramentas. Pensando bem, acrescentou também um estilete de lâmina retrátil à sua cesta de compras.

Ao voltar para o Land Rover, percebeu que não estava mais sozinha. Estacionado logo atrás dele estava um familiar Honda sedan. Caroline estava encostada contra
o capô, de braços cruzados e com um sorriso teimoso no rosto. Fiona fechou os olhos, frustrada. Ao se aproximar o suficiente para falar, disse:

- Isso não é engraçado, Carol. - Eu sei. É por isso que estou aqui. Já que não quer me deixar ir com você, pelo menos deixe que eu lhe dê cobertura. Quero estar
lá para me certificar de que você vai sair dessa viva. Por favor?

Fiona abriu a mala do Land Rover e meteu suas compras lá dentro. Ao se virar, perguntou:

- Você trouxe o celular? Caroline deu uma risadinha. - Você acha que tem alguma possibilidade de conseguir sinal lá? - rebateu ela, apontando para as montanhas
ao redor da cidade.

Fiona abriu um sorriso desanimado. - Pergunta idiota. Certo. Vamos fazer o seguinte. Você me segue até o ponto em que eu sair da estrada principal. Isso fica a
mais ou menos 1,5 quilômetro da cidade. Não adianta querer me seguir depois disso. Segundo Kit, a estrada é tão ruim que só dá para passar com um carro com tração
nas quatro rodas. Me dê uma hora. - Ela abriu a bolsa e tirou um bloquinho e

uma caneta. Abriu o bloco e anotou os telefones do escritório de Sandy Galloway e de sua casa. - Se eu não voltar em uma hora, significa que estou precisando de
ajuda ou então que consegui falar com a polícia pelo telefone via satélite do Kit. De qualquer forma, ligue para esse número e peça para falar com o superintendente
Galloway. Diga a ele onde eu estou e o que estou fazendo. Eu mandei um fax, mas talvez ele não pense que seja urgente. Só um minuto, vou te passar as direções.
- Fiona abriu a porta do motorista e pegou sob o mapa o e-mail com o itinerário, o qual tinha a sensação de haver imprimido séculos atrás. Esticou o braço, a fim
de entregar o papel para Caroline, mas o puxou de volta. - Espere um pouco. Você tem de me prometer que, não importa o que aconteça, não vai tentar ir atrás de
mim.

Caroline concordou com um meneio de cabeça, relutante: - Prometo. Tudo bem? - Estou falando sério. Caroline manteve os olhos fixos nos de Fiona por algum tempo.
- Juro pela vida da Lesley. Fiona curvou a cabeça em concordância. - Vou aceitar. Como eu disse, devo conseguir chamar ajuda se precisar, mas talvez eu não consiga
descobrir como o telefone via satélite funciona. Você é o meu reforço. - Ela entregou o papel com as direções e inspirou fundo. - Vamos lá. - Subiu no Land Rover
e deu partida. Suas mãos suavam ao segurar o volante e sentia como se seu estômago estivesse sendo esmagado. Fiona sabia que as chances estavam contra ela. Eles
estavam mais adiantados. Já deviam ter chegado à cabana há uma hora ou mais. Fiona também sabia que o assassino não estava sendo totalmente fiel ao texto. Talvez
ele decidisse tirar todo o sangue de Kit de uma vez só em vez de torturá-lo por dias a fio e assumir todos os riscos decorrentes disso.

Talvez já fosse tarde demais.

O cheiro de café acordou Steve. Ele piscou por alguns segundos para espantar o resto do sono, e sofreu a estranheza de acordar num lugar diferente. Forçou-se a
se sentar e viu Terry sentada à mesa, com uma caneca entre as mãos.

- Estava começando a imaginar se ontem à noite tinha sido demais para você, achei que você tinha entrado em coma - brincou ela.

- Que horas são? - perguntou ele, sem a menor ideia de quanto tempo tinha dormido.

- Nove e vinte. Steve levantou da cama num pulo. - Está brincando! - exclamou, parecendo mais abalado do que feliz. - Hoje é sábado, Steve. As pessoas dormem
até mais tarde. - Ela sorriu. - Até mesmo os tiras.

- Não acredito que ninguém ligou. A vigilância... Neil devia ter ligado para dizer que estava indo embora - disse, falando mais consigo mesmo do que com ela. -
E o comissário, o avião dele estava marcado para pousar há duas horas. - Ele andou até o celular e o pager. Olhou atônito para as telas apagadas. - O que foi que
aconteceu? - perguntou, olhando para o celular com o cenho franzido. Terry aproximou-se dele por trás e passou os braços em torno de sua cintura.

- Eu os desliguei. Você precisava descansar, Steve. Ele se desvencilhou e se virou; sua expressão era um misto de raiva e incredulidade. - Você fez o quê? - gritou.
Steve abriu e fechou a boca; pela primeira vez ficava sem palavras.

- O mundo não vai acabar se você ficar fora de alcance por uma noite - replicou Terry, com um quê de incerteza na voz.

- Estou no meio de uma operação importante! - berrou Steve. - Minha equipe está vigiando um suspeito de assassinato. Por Deus, Terry, um monte de coisas poderia
acontecer. Como você pode ter feito algo tão irresponsável? - Enquanto falava, ele foi reunindo as roupas. Vestiu a cueca e as calças.

- Você não me disse nada - esbravejou ela de volta. - Como eu podia adivinhar? Da última vez em que fomos interrompidos, o caso nem era seu. Você não me deu nenhuma
indicação de que estava no meio de algo importante. Steve estava abotoando a camisa, mas parou no meio do caminho e lançou-lhe um olhar lívido.

- É confidencial, foi por isso que não falei nada. Não converso sobre meu trabalho com civis.

As palavras cortaram como uma navalha. Contudo, em vez de fazerem Terry recuar, elas afiaram sua resposta:

- A menos que a civil seja Fiona Cameron, certo? - explodiu. - É disso que se trata? Você está com ciúmes da Fiona? - Steve não podia acreditar no que estava escutando.

Terry baixou o tom de voz e o encarou com uma expressão serena: - Não, estou falando de confiança, Steve. De se abrir. De não me tratar como se eu fosse uma criança.
Tudo o que você precisava fazer era mencionar que estava trabalhando em algo que talvez interrompesse nossa noite. Que merda! - explodiu ela de novo. - E quanto
a uma simples cortesia?

Steve vestiu a jaqueta e agarrou o sobretudo. - Sou um oficial de polícia. As pessoas precisam entrar em contato comigo fora do horário.

- O Sr. Indispensável. Você não quer uma amante, Steve, você quer uma audiência.

Ele meteu o celular e o pager no bolso da jaqueta e se dirigiu para a porta, balançando a cabeça.

- Não acredito nisso. - Você devia ter me falado, seu cabeça-dura! - gritou ela, a raiva dirigida tanto à própria impulsividade quanto à reserva dele.

A única resposta de Steve foi bater a porta ao sair. Ao chegar ao carro, suas mãos continuavam a tremer por causa da injeção de adrenalina provocada pela raiva.

- Inacreditável - murmurou ele por entre os dentes, sentando-se atrás do volante. Ligou o pager. Cinco mensagens. Steve xingou baixinho enquanto verificava os
recados. Dois de Fiona, enviados tarde da noite. Um de Neil, pouco antes das onze. Outro de Neil, pouco depois das seis. - Merda, merda, merda - disse, enquanto
via o último. O comissário lhe enviara uma mensagem há pouco mais de uma hora.

Ele ligou o celular, ligou para o telefone de casa e digitou a combinação que liberaria as mensagens da secretária eletrônica. Fiona de novo, pedindo para ele
retornar com urgência. Neil, dizendo que tinha decidido ficar vigiando Coyne a noite inteira, só por segurança. Neil de novo, falando que Joanne o rendera e que
estaria na Scotland Yard se precisassem dele para

uma prisão e uma busca. E uma mensagem do comissário, dizendo que esperava o retorno de Steve.

Ele esfregou o rosto com as mãos, tentando se acalmar o suficiente para pensar em como pedir a prisão de Gerard Coyne. Após um minuto inspirando e expirando com
força, decidiu que estava pronto, melhor não poderia ficar. Teria apenas de mentir e dizer que a bateria de seu pager acabara sem que ele percebesse. A hora perdida
provavelmente não faria muita diferença. Mas poderia ter feito.

Enquanto discava o número do comissário, sentiu uma fisgada de arrependimento. Tinha depositado tanta esperança no relacionamento dele com Terry. E, como sempre,
tudo fora por água abaixo.

Só podia esperar que tivesse mais sorte com Coyne.

A 650 quilômetros dali, Sandy Galloway pegava um enrolado de bacon na cantina de St. Leonard. Estava esperando por Fiona Cameron fazia quase duas horas e não estava
nem um pouco feliz com isso. A mulher dera a impressão de estar em pânico quando ligara na noite anterior e, agora, sequer se dava ao trabalho de aparecer na
hora marcada. Ela nem mesmo lhe deixara uma mensagem, quer fosse na delegacia ou na recepção do hotel. E o hotel estava sendo pago com a verba da polícia, lembrou-se,
irritado.

Tinha falado com Sarah Duvall conforme prometera. Acabara de assistir a seu programa e depois ligara para o escritório dela na Wood Street. Duvall era uma moça
bastante esperta, se era. Ela lhe contou em detalhes a discrepância entre a declaração de Redford e o que a polícia de Dorset havia encontrado. Explicou por que
isso a incomodara a princípio, e depois descreveu a linha de raciocínio que havia tomado. Aquilo obviamente conseguira acalmar sua consciência, e ela estava inclinada
a acreditar que sua conclusão estava correta.

O que significava, é claro, que Fiona Cameron estava ladrando para a árvore errada. Galloway sentia-se apenas irritado por ela não ter se dado ao trabalho de informá-lo
sobre seus planos.

Não lhe ocorreu verificar o fax que ficava atrás da mesa da secretária, na antessala de seu escritório.

53.

O itinerário estava gravado em sua memória como a inscrição de uma lápide. "Pegue a A839 ao sair de Lairg." Fiona deixou o centro da cidade e cruzou os estreitos
do rio Shin antes de ele se abrir na primeira das duas enseadas que existem na base do lago. A Rodovia A839 acompanhava a margem do rio por uma curta distância,
depois virava para oeste e contornava uma pequena colina à direita. Fiona olhou pelo espelho retrovisor para verificar se Caroline ainda estava atrás dela.

"Cerca de 1,5 quilômetro depois, você vai ver uma estrada de terra com a placa Sallachy." Isso, lá estava a estrada de terra coberta de cascalho. De modo conveniente,
havia um telefone público em frente a ela, do outro lado da rodovia principal. Fiona encostou o carro e apontou exageradamente para a cabine. Caroline mostrou
o polegar para cima, indicando que tinha entendido, e apontou para o relógio; em seguida, passou por Fiona e estacionou ao lado da cabine. Fiona verificou a hora.
Nove e trinta e sete. Tinha sessenta minutos. Partindo, virou à direita para fazer a volta.

"Pegue essa estrada (ela é bem esburacada, você vai gostar de ter pegado emprestado meu Land Rover) e siga por mais 9 quilômetros." Fiona seguiu as instruções.
A estrada, que logo se tornou uma trilha esburacada de pedras soltas e terra batida, situava-se cerca de 12 metros acima do lago, com árvores espalhadas pela margem
íngreme. Uma plantação de coníferas ladeava o lado esquerdo da estrada, que seguia colina acima até a crista

para bloquear o horizonte. Só que Fiona, agora totalmente concentrada em sua missão, não tinha olhos para as belezas do cenário à sua volta. Assim que a plantação
terminou, aos pés de uma encosta coberta de arbustos baixos, ela passou por um punhado de cabanas. Não havia sinal de vida, além da leve fumaça de turfa que saía
de uma chaminé.

Mais ou menos 1,5 quilômetro depois, a estrada começou a subir e as árvores voltaram a aparecer. Dessa vez, porém, em vez das fileiras organizadas de coníferas,
a variedade de árvores era maior. Sorveiras, bétulas, amieiros e grupos de altos pinheiros escoceses retorcidos cresciam de maneira aparentemente caótica em meio
a um belo bosque, separado da estrada por uma cerca alta presa a espaçadas estacas de madeira.

As árvores terminavam de modo abrupto numa curva. À frente ficava a ravina, a qual se podia cruzar através de uma ponte de madeira aparentemente robusta, com barras
tubulares de aço em cada um dos lados, à guisa de corrimão. "Você vai cruzar um desfiladeiro com um rio embaixo, o Allt a'Claon." Não havia como errar, estava
no caminho certo. Na metade da ponte, Fiona reduziu bem a velocidade, até quase parar, e olhou para baixo, 15 metros de rochas escarpadas até as águas raivosas.
O rio corria velozmente pelo meio do desfiladeiro que ele próprio abrira, explodindo em nuvens de espuma branca ao atingir as pedras que obstruíam seu caminho.
Isolado dos raios de sol pelas paredes do desfiladeiro, suas águas ostentavam um brilho marrom-escuro e esfumaçado, semelhante ao âmbar em estado natural.

Fiona mudou de marcha e prosseguiu, a tensão de seu corpo sendo transferida para as mãos que agarravam o volante como garras. "Logo em seguida, vai ver uma saída
à esquerda; vire nela." Ela virou, lutando com o volante quando o Land Rover derrapou por causa das pedras soltas sob as rodas. Estava na hora de ligar a tração,
pensou, e fez do jeito que Lachlan havia lhe mostrado. O Land Rover tremeu ligeiramente, em seguida as rodas se fincaram com mais força e ela se viu prosseguindo
com mais facilidade pela superfície irregular.

"Mais uns 800 metros e outra saída à esquerda. A trilha vai te fazer passar de novo pelo desfiladeiro do rio, só que dessa vez por uma ponte de cordas. Ela é muito
mais resistente do que parece, mas é melhor passar bem devagar, não mais que uns 8 quilômetros por hora." Fiona pegou a saída e

se aproximou da ponte, uma construção de tábuas de madeira estreita, suspensa por cordas amarradas a troncos grossos de cada lado da ravina. Seu coração acelerou.
Ela parecia frágil demais para aguentar o peso do Land Rover. No entanto, teria de confiar na palavra de Kit. Parou no começo da ponte e, com cuidado, engatou
a primeira marcha. Com uma velocidade pouco maior do que a de uma pessoa caminhando, lançou-se à frente. A ponte rangeu ameaçadoramente sob o peso do veículo,
contudo, embora Fiona a sentisse oscilar, aguentou firme quando ela prosseguiu devagar pelos 27 metros que a separavam da outra margem.

Ao se ver de volta em solo firme, Fiona soltou o ar que sequer percebera que estava segurando. Largou o volante e secou as mãos suadas nas coxas.

- Merda, espero estar certa a respeito disso - falou em voz alta. - E espero chegar a tempo.

"Assim que cruzar o rio, vai se ver cercada de árvores." Estava quase chegando. Prosseguiu em direção ao cinturão de árvores que pontilhavam a trilha. Uns 200
metros adiante, fez uma curva e, para sua surpresa, quase atropelou um homem que vinha descendo a trilha com um machado de cabo longo sobre o ombro e um feixe
de gravetos debaixo do braço. O Land Rover patinou ao parar. Fiona abaixou o vidro. O homem, envolto numa capa, um gorro de lã e um cachecol enrolado no pescoço
que lhe cobria também o queixo, ergueu uma das mãos em sinal de saudação.

- Estou procurando a cabana de Kit Martin - disse Fiona. - A estrada é essa mesma?

Ele ergueu as sobrancelhas escuras. - O escritor? É essa mesma, ela fica a cerca de 1,5 quilômetro adiante. - A julgar pelo sotaque, ele não era uma das pessoas
nascidas e criadas ali, mas sem dúvida conhecia a área. Com certeza um dos imigrantes que, como Kit, tinham comprado uma das várias propriedades disponíveis no
mercado, seduzidos pelos preços baixos e pela paz do estilo de vida rural.

- Obrigada - agradeceu Fiona. - Você não o viu hoje, viu? O homem fez que não. - Acabei de sair para pegar um pouco de lenha. Fiona despediu-se com um aceno de
mão e seguiu. Pouco tempo depois, as árvores ficaram para trás e ela emergiu junto à encosta de um morro com vegetação baixa. Os arbustos queimados pelo frio,
com seus caules finos e

amarronzados, estendiam-se morro acima, entremeados por afloramentos de rochas que variavam desde uma única pedra de tamanho razoável a trilhas irregulares de
pedras menores com 30 metros de comprimento. Um pouco mais à frente, Fiona viu outro grupamento de árvores. Imaginando ser a barreira que protegia a cabana de
Kit, parou o Land Rover no canto da estrada antes de alcançar a mata.

Enfim, chegara. Não havia como voltar agora. Fiona sentiu o estômago se contorcer de medo e antecipação, mas precisava seguir em frente. Pegou as sacolas com as
compras da loja de montanhismo e de ferramentas e enfiou tudo por baixo do impermeável. Inspirou fundo, sentindo a respiração trêmula, abriu a porta e saltou.

Sabia que não podia se aproximar da cabana diretamente. Se o assassino estivesse lá com Kit, sem dúvida estaria observando a trilha. Estudou os perigos do terreno
à sua volta e tomou sua decisão. Penetrou a mata, afastando os galhos das árvores jovens e pisando sobre os arbustos que obstruíam o caminho. O avanço era difícil,
principalmente porque tentava fazer o mínimo barulho possível.

Uns dez minutos depois, as árvores terminaram de modo abrupto e uma ampla clareira se abriu à sua frente. No centro, uma casa simples de pedra com telhas de ardósia.
Estava diante da parede dos fundos, sem janelas. Perfeito para seus planos. Fiona olhou para ambos os lados e ficou desconcertada ao não ver nenhum carro. Se o
assassino estava lá com Kit, eles tinham de ter chegado ali de alguma forma. E se já fosse tarde demais? E se ele já tivesse feito o que pretendia e matado Kit?
Fiona nunca se sentira tão assustada. Nem tão sozinha.

- Controle-se - murmurou por entre os dentes. Na pior das hipóteses, eles tinham apenas duas horas de dianteira. Era importante para o assassino completar o ritual
do assassinato de acordo com as descrições do livro. Ele não teria tido tempo de retirar todo o sangue de Kit e pintar as paredes. Ou eles ainda não tinham chegado
ou o assassino fora até Lairg comprar mantimentos.

Ou então ela estava completamente errada. Recusando-se a permitir que essa ideia fincasse raízes, Fiona optou pela ação. Com a adrenalina a mil, correu agachada
do meio das árvores para a

proteção do beiral dos fundos, grata pela flexibilidade das botas leves. Em seguida, com muito cuidado, foi seguindo bem devagar, agarrada à parede, até chegar
à ponta. Ali, arriscou uma olhada para a lateral da cabana. Nenhum sinal de vida. Fiona notou três janelas. Após secar o suor da testa, tomou coragem e fez a curva.

Podia sentir o coração batendo contra o peito ao prosseguir devagarinho até a primeira janela e olhar com cuidado por sobre o peitoril. O aposento que viu era,
sem dúvida, o quarto de Kit. Nenhum sinal de atividade. A sensação era curiosa, olhar para uma vida tão familiar e, ao mesmo tempo, tão estranha. Sentiu o peito
ser tomado por uma forte emoção que lhe tirou o ar.

Engoliu em seco e passou rapidamente pela janela, diminuindo, mais uma vez, a velocidade ao se aproximar da segunda. Ela parecia ter sido acrescentada depois,
sendo diferente das outras duas tanto no tamanho quanto no formato. Ao chegar mais perto, notou que o interior estava completamente obscurecido por uma persiana.
Devia ser o banheiro. Se estivesse certa, era ali que Kit estaria sendo mantido prisioneiro. Fiona virou a cabeça em vários ângulos para tentar ter um vislumbre
do interior através das quinas da persiana, mas não conseguiu ver nada.

Frustrada, passou para a terceira janela. Mais uma vez, um simples olhar de relance confirmou que não havia movimento nenhum dentro do aposento. Como não viu ninguém,
Fiona demorou-se mais observando o interior. A sala continha uma mesa grande; duas poltronas, uma de cada lado de um fogão a lenha; uma pequena cozinha, tipo a
dos barcos; e um par de armários que iam do chão ao teto. Um estreito gabinete de metal encontrava-se aberto, mas sua porta bloqueava a visão do que havia dentro.
No chão ao lado da porta de entrada, duas sacolas do supermercado Waitrose. Elas não deviam estar ali há muito tempo, visto que aparentemente não estavam empoeiradas.
Fiona também sabia que o Waitrose mais próximo ficava a quase 500 quilômetros dali. Uma pequena prova, mas o suficiente para convencê-la de que tirara as conclusões
corretas.

Foi então que viu algo que confirmou seus piores medos e fez seu estômago se contorcer dolorosamente. No canto mais distante da sala, meio escondida, naquele ângulo,
pela chaminé, estava uma pequena mesa ligeiramente

inclinada. No chão ao lado dela, vários pedaços destruídos de plástico e metal. Sem dúvida alguma, os restos do telefone via satélite.

Então eles estavam ali. E, a julgar pela ausência de um veículo, o assassino tinha saído. Ele era obviamente um indivíduo cauteloso, a destruição do telefone era
um sinal claro de que ele considerava a hipótese, mesmo que remota, de seu prisioneiro conseguir escapar. Fiona pensou por alguns instantes no homem que encontrara
na mata. Ele lhe parecera perfeitamente inocente, com seu feixe de gravetos e o machado. Além disso, estava a pé. Ela gostaria de ter tido a ideia de perguntar
a ele se tinha visto algum carro estranho nas redondezas.

Só que ficar pensando era perda de tempo. Fiona se afastou da janela e deu a volta correndo na casa. Passou por uma pequena casinha de pedra onde ficava o gerador
a diesel e seguiu para a porta da frente. Logo descobriu que as portas duplas de madeira estavam fechadas e trancadas. Deu um empurrão com o ombro, mas elas nem
se mexeram.

Teria de arrombar para entrar, e os fundos eram o melhor lugar para fazer isso. Correu de volta até a janela do quarto e tentou levantar a esquadria. Trancada.
Pegou a marreta que estava escondida debaixo do impermeável e testou seu peso. Não adiantaria quebrar apenas o vidro, teria de arrebentar a estrutura de madeira
que dividia, na vertical, o caixilho da janela ao meio. Inspirou fundo, jogou o braço para trás e lançou a maneta à frente num movimento em arco. A madeira ficou
em pedaços e o vidro de ambos os lados explodiu. Naquela encosta silenciosa, o som foi inacreditavelmente alto. Duas gralhas saíram voando da mata às suas costas,
e seus grasnidos roucos a fizeram dar um pulo.

Fiona quebrou o restante da haste central da janela o mais rápido que conseguiu, e limpou os cacos de vidro que haviam caído sobre a moldura para evitar se cortar
ao entrar. Com cuidado, passou primeiro uma perna pelo buraco, em seguida ergueu o corpo sobre o peitoril e se deixou cair dentro do quarto. A casa estava em silêncio,
embora não com aquela quietude indefinível de uma casa vazia. Ela ficou parada por alguns instantes, tentando escutar qualquer sinal de perigo.

De forma cautelosa, cruzou o quarto e abriu bem a porta. À esquerda, em meio à penumbra do corredor, a porta do banheiro estava fechada.

Esticou o braço de modo hesitante em direção à maçaneta, com muito medo do que poderia encontrar ali. Fechou os olhos com força, forçando-se a recobrar o controle,
e agarrou a maçaneta, girando-a e abrindo a porta num único movimento.

54.

A 950 quilômetros dali, em Londres, Steve Prestou parabenizava-se por conseguir persuadir o comissário de que tinha provas suficientes para prosseguir com o plano.
Agora tudo o que tinha a fazer era passar as instruções para a equipe que daria cobertura a Joanne e Neil quando eles trouxessem Gerard, e para o time de peritos
que auxiliaria nas buscas pelo apartamento de Coyne. - Pensei muito nisso. Não quero prendê-lo em seu apartamento porque, como todos vocês sabem, isso significaria
que, de acordo com o PACE, só poderíamos fazer uma busca nos parâmetros da seção 32, com todas as restrições que isso implica. O que eu quero fazer é esperar até
que ele saia, e aí pegá-lo a céu aberto. Nós o traremos para a Scotland Yard e o prenderemos sob suspeita de assassinato, e então poderemos fazer uma busca nos
parâmetros da seção 18, o que nos dará muito mais liberdade de ação. Para nos certificarmos de que ele não consiga escapar, um de vocês estará de bicicleta e outro
de moto. Ele é um excelente ciclista, tudo indica que, quando sair, será sobre duas rodas.

Steve se forçou a manter uma expressão séria, controlando seus ímpetos de entusiasmo.

Inexplicáveis cortes, hematomas ou ossos quebrados. Quero que o entreguem como se ele fosse porcelana fina.

'Assim que o trouxermos para cá, quero que Coyne seja preso sob suspeita de assassinato. Vamos deixá-lo irritado logo de cara. Mas não vamos impedi-lo de chamar
o advogado assim que quiser. Quero seguir o livro à risca. Não podemos deixar nenhuma brecha para alguém chegar depois e dizer: 'Espere um pouco, vocês não seguiram
o PACE aqui.' Alguém tem alguma pergunta?"

Um jovem detetive levantou a mão. - O que exatamente vamos procurar no apartamento de Coyne? - Boa pergunta - respondeu Steve. - Qualquer coisa que o ligue ao
assassinato de Susan Blanchard, ou aos estupros do norte de Londres. Isso significa: recortes de jornal, mapas com as cenas dos crimes destacadas, diários, fotografias.
E quero todas as facas que vocês encontrarem no lugar. Ah, e também quaisquer roupas que combinem com as descrições do ciclista do Heath ou dos. estupros. Eu sei,
depois de todo esse tempo, provavelmente estamos tentando uma medida desesperada. No entanto, eu quero Coyne, e juntos vamos agarrá-lo, e Susan Blanchard poderá
enfim descansar.

Steve passou os olhos pela sala. Nenhuma outra pergunta. Ele se virou para o quadro às suas costas e apontou para a foto dos gêmeos de Susan.

- Não quero justiça por minha causa. Nem mesmo por causa da Polícia Metropolitana. Quero justiça por esses dois. Agora vão e consigam isso para eles. - Odiava
o apelo emocional, mas eles precisavam estar entusiasmados, e ele sabia exatamente como conseguir isso.

Steve observou os oficiais saírem da sala, imaginando quanto tempo tinha até que eles voltassem com o prisioneiro. Precisava descobrir o que Fiona estava aprontando.
Tentara ligar para o celular dela várias vezes desde que chegara à Scotland Yard, mas só conseguira uma gravação dizendo que não era possível completar a ligação.
Graças a Sarah Duvall, sabia que ela tinha ido para a Escócia, a fim de analisar as provas do caso Drew Shand. Um telefonema para o oficial responsável era, provavelmente,
um bom lugar para começar.

Pegou o telefone mais próximo e pediu à mesa telefônica que o conectasse com a Lothian and Borders Police. Steve levou algum tempo até descobrir que o homem com
quem precisava falar era o superintendente

Sandy Galloway. Só que Galloway não estava no prédio. Frustrado, Steve deixou uma mensagem pedindo que Galloway ligasse para ele o mais rápido possível. O que
diabos Fiona estava aprontando, deixando mensagens que ele não tinha como retornar? Dada a discussão que eles haviam tido na última vez em que se encontraram, tinha
de ser algo sério. Talvez fosse bom tentar falar com Kit, pensou. Só que, ao ligar para a casa deles, Steve deparou-se com outra mensagem eletrônica.

Não havia mais nada que ele pudesse fazer. Precisava esquecer disso por enquanto e se concentrar em como lidaria com Gerard Coyne. Aquilo era importante demais
para permitir que qualquer outra coisa o distraísse.

Era pior, muito pior do que a cena correspondente na adaptação para a TV. Pior, infinitamente pior do que a sua imaginação conjurara. A primeira impressão de Fiona
foi que Kit estava morto. Ele estava nu sobre o vaso sanitário, os braços algemados às paredes, as pernas acorrentadas em torno do vaso. A pele dele estava branca
como cera, e sua cabeça pendia sobre o peito. A única coisa que o impedia de cair eram as amarras. Fiona não conseguia ver sinal algum de respiração ou pulso. Na
veia do braço esquerdo, havia uma agulha grossa espetada. E, nas paredes em torno dele, desenhos amadorísticos de árvores e flores, em horripilantes tons que iam
do vermelhoescuro ao marrom. Cerca de metade das paredes do pequeno banheiro estava coberta. Fiona não tinha como estimar quanto sangue fora usado para pintar
aquilo. Sentiu um aperto no peito, causado pelo medo e pela aflição. Com um gemido sem palavras que mais pareceu um soluço, Fiona atravessou o banheiro, se ajoelhou
e passou os braços em torno da pele gelada de Kit. Seus olhos estavam marejados de lágrimas. Para sua surpresa, sentiu um leve tremor contra seu rosto. Em seguida,
um fraco suspiro fez cócegas em sua orelha. - Kit? - balbuciou. - Kit? Pode me escutar? - Ela colocou a mão no pescoço dele e sentiu a pulsação, fraca e irregular.
Tomou-lhe a cabeça entre as mãos e, com delicadeza, a ergueu, até que ficasse na mesma altura que a

dela. As pálpebras dele tremularam, e Fiona viu o branco de seus olhos por entre os cílios. - Estou aqui, Kit. Sou eu, Fiona. Vai ficar tudo bem.

Kit abriu ligeiramente os olhos e gemeu. Ela o apertou, desesperada para transmitir um pouco de calor para ele. Choque, era isso. Ele estava em choque em virtude
da perda de sangue e do frio. A primeira coisa que precisava fazer era aquecê-lo. Fiona se afastou delicadamente e correu até o quarto. Pegou um saco de dormir,
duas camisas de flanela e um par de jeans, e correu de volta para o banheiro. Jogou o saco de dormir sobre os ombros dele, mantendo um fluxo constante de palavras
tranquilizadoras. Em seguida, puxou a sacola de compras de dentro do impermeável e pegou o alicate de corrente. Foi preciso toda a sua força, mas ela conseguiu
cortar a corrente que prendia as pernas dele e desenrolá-la de seus tornozelos. As pernas de Kit estavam imóveis e geladas em suas mãos, mas Fiona as puxou para
a frente, meteu os pés dele dentro do jeans e puxou a calça até os joelhos.

Pegou, então, o cinzel e a marreta e atacou as algemas que o prendiam às paredes. Começou pelo braço direito; duas marretadas foi tudo o que precisou Para soltar
a argola da parede. O braço dele caiu como o de um boneco de pano ao lado do corpo e ele gemeu de novo.

Fiona posicionou-se do outro lado e ponderou. Não queria mexer na agulha fincada no braço, com medo de que, se a tirasse, ele começaria a sangrar de novo. Pegou
um rolo de esparadrapo cirúrgico no kit de primeiros socorros e, com cuidado, enrolou-o em torno do braço dele, mantendo a agulha firmemente presa. Então repetiu
o procedimento com a marreta e o cinzel, soltando o braço. Kit caiu para a frente, um peso morto despencando sobre os joelhos. De alguma forma, lutando com o peso
do tórax dele, Fiona conseguiu vestir-lhe as camisas, cortando as mangas para conseguir passar as algemas por dentro.

Em seguida, gemendo com o esforço, ela o colocou de pé e o apoiou contra a parede, a fim de poder puxar as calças para cima. Estava demorando muito, pensou, com
uma pontada de pânico. O assassino não devia estar longe. Com certeza ele não se arriscaria a deixar Kit sozinho por muito tempo.

Fiona deixou Kit cair de novo sentado no vaso sanitário. Pegou as bolsas térmicas, flexionou-as para ativar a reação química que produziria o calor e

as meteu por baixo das camisas, próximas à pele. Depois voltou ao quarto e procurou até encontrar um par de meias grossas e algum tênis velho.

Sua próxima parada foi a sala de estar. Dentro de um dos armários, Fiona encontrou duas latas de Coca-Cola. Perfeito. Líquido e açúcar. A cafeína provavelmente
não seria um problema para um homem que, no dia a dia, consumia tanto café quanto Kit. Ao se virar, o estreito gabinete de metal chamou sua atenção. No lugar onde
devia estar a espingarda que Kit usava para caçar coelhos, apenas um espaço vazio. Uma caixa de cartuchos estava aberta, e pela metade. Fiona sentiu outra pontada
de pânico. Onde quer que estivesse, o sujeito que sequestrara Kit estava com uma espingarda de dois canos. A situação, que já era desesperadora, de repente ficou
pior.

Correndo de volta para o banheiro, ela calçou Kit com as meias e o tênis. Em seguida, puxou-o para a frente, fazendo-o ficar ereto.

- Vamos lá, Kit. Preciso que você acorde, meu querido. Você precisa ser capaz de reagir.

O calor começou a surtir efeito. Ainda tremendo de frio, Kit abriu os olhos de verdade. Olhou para ela, surpreso.

- Fiona - murmurou. - Sim, sou eu, isso não é uma alucinação. Eu te encontrei, meu amor. Agora, preciso que beba isso. - Ela levou a lata de Coca-Cola até sua
boca e se forçou a ser paciente enquanto ele tomava pequenos goles através dos lábios ressecados e rachados. - Vou te tirar daqui, prometo.

- Cadê o Blake? - perguntou ele, com uma voz estranha e falhada, as consoantes arrastadas.

- Blake? - repetiu Fiona, imaginando de que canto delirante da mente ele tirara aquele nome.

- Francis Blake - insistiu Kit. - Ele me trouxe até aqui. Ele fez isso comigo.

Nada daquilo devia fazer sentido, mas, de repente, tudo fez. O homem pelo qual passara a caminho da cabana. As lembranças afloraram subitamente. Fiona nunca encontrara
Blake, mas escutara a voz dele na televisão. A recordação auditiva desencadeou uma imagem visual. Não vira muito bem o rosto do estranho, mas, agora que tinha
uma figura com a qual comparar, soube que era ele. O homem com o machado era Francis Blake.

No entanto, mesmo enquanto sua mente processava a identificação, seu lado racional recusava-se a aceitar. Por que diabos Francis Blake sequestraria Kit? Ele não
podia ser o tal serial killer, podia? Aquilo não fazia sentido, era um absurdo.

Era também algo em não podia se dar ao luxo de pensar agora. - Ele se foi - respondeu ela, com uma confiança que não sentia. Onde estava Blake, e o que ele estava
fazendo? A julgar pelo machado, ele saíra para cortar lenha. Ou isso ou então ele apenas usara os gravetos como uma forma de disfarce elaborado para esconder a
espingarda. Blake devia estar, sem dúvida, voltando para a cabana depois de ter escondido o carro em algum outro lugar. E a escutara se aproximando. Mesmo que
não soubesse quem era, sabia que ela estava se dirigindo para a única casa naquela trilha em particular e, portanto, devia ter dado meia-volta, a fim de dar a
impressão de que estava se afastando dali.

Uma artimanha bastante simples, mas havia funcionado. Ela não suspeitara nem por um momento. E agora ele sabia que ela estava ali. Não poderia simplesmente deixá-los
ir embora, poderia? Isso seria inconcebível.

Fiona sacudiu a cabeça, tentando clarear os pensamentos. - Vou buscar o Land Rover - falou ela num tom brusco para tentar esconder o medo que lhe corroía as entranhas.
- Quero que fique aqui. Tente beber o resto da Coca-Cola, vai te fazer bem. Mas não se preocupe se seus dedos ainda não estiverem respondendo aos seus comandos.
Vai demorar um pouco para sua circulação voltar ao normal. Você sabe quanto sangue perdeu?

- Mais de meio litro. - Ele suspirou. Sua voz ainda soava como a de um bêbado. - Eu desmaiei. Acredito que ele tenha parado então. - Kit piscou e se concentrou
no entorno pela primeira vez, tremendo ao ver a pintura feita com seu próprio sangue. - Que merda - falou, com uma risada que se transformou em tosse. - Ele é um
péssimo pintor.

Fiona se levantou e abraçou a cabeça de Kit de encontro ao peito. - Vou o mais rápido que puder. - Ela o soltou, tirou o estilete da sacola, colocou 2,5 centímetros
de lâmina para fora e o guardou com cuidado no bolso do impermeável. Deixar Kit para trás era a coisa mais difícil que ela já tivera de fazer, mas a única forma
de eles escaparem dali era com o

Land Rover. Não podia se dar ao luxo de esperar Caroline chamar a cavalaria, não agora que sabia que Blake tinha uma arma.

Fiona correu até a porta da frente e abriu apenas uma nesga. Olhou através da clareira para a trilha entre as árvores. Nada se mexeu. Estava arrepiada de tanto
medo. Ele podia estar no meio das árvores, em qualquer lugar, observando-a pela mira da espingarda. Ele podia estar escondido atrás do Land Rover com o machado
na mão, pronto para decapitá-la. A simples ideia fez seu estômago se contorcer. Com cuidado, abriu um pouco mais a porta; a mão livre escorregou para dentro do
bolso e agarrou o cabo do estilete. Tudo continuava quieto. Se ele estivesse observando com a arma apontada, ela seria um alvo mais difícil se movendo do que parada.
Hesitante, falou para si mesma de modo firme: Agora ou nunca.

De seu ponto de partida, Fiona atravessou a clareira e desceu a trilha numa corrida desabalada. Alcançou o Land Rover numa rapidez que a surpreendeu, tendo esquecido
o quanto aquela rota era mais direta do que o caminho que fizera para se aproximar da cabana. Abriu a porta do carro de uma vez só e pulou para dentro. Ofegante,
encostou a cabeça no volante por um momento e soltou um suspiro de alívio. Recomponha-se, repreendeu-se, empertigando-se.

Ao enfiar a chave na ignição, sentiu uma fisgada de pânico. E se Blake tivesse danificado o motor? Com rapidez, girou a chave e quase chorou de alívio quando o
motor deu partida e pegou logo de primeira. Engatou a primeira marcha e prosseguiu pelo restante da trilha, virando o volante pesado ao alcançar a clareira para
poder fazer a volta e deixar a traseira de frente para a porta da cabana.

Deixando o motor ligado, Fiona abriu a porta da caçamba do Land Rover e entrou correndo. Kit parecia um pouco mais refeito, encostado contra o reservatório de
água da descarga. Ele ainda estava com uma palidez cadavérica, mas tinha os olhos abertos e parecia mais alerta. Fiona deu uma rápida vasculhada no quarto, descobrindo
dois cobertores e um travesseiro. Pegou também o restante das camisas de Kit e levou tudo para o Land Rover, acrescentando o saco de dormir na segunda viagem. Improvisou
uma espécie de cama na caçamba e, em seguida, voltou para pegar Kit.

- Vou precisar da sua ajuda - disse. - Não vou conseguir carregar você.

Kit fez que sim. - Acho que já consigo me levantar. Tem uma bengala na sala de estar. Talvez ela ajude. - A voz dele estava falhada e quase inaudível.

Fiona a encontrou encostada num canto. Era uma bengala moderna, de alumínio, com uma mola na ponta para absorver o impacto, e passível de ser encurtada. Ela a
esticou ligeiramente, de modo que Kit pudesse usá-la como um pastor usa um cajado.

De volta ao banheiro, Fiona ajudou Kit a passar a mão por dentro da alça de tecido da bengala e fechar os dedos em torno da empunhadura.

- Estou com uma sensação de formigamento - murmurou ele. - Isso é bom sinal, confie em mim - replicou Fiona. Ela passou o outro braço dele por cima de seu ombro
e o ajudou a se colocar de pé.

- Meu Jesus Cristo, estou com câimbra - gemeu ele, o braço direito dobrando ligeiramente ao receber o peso do corpo.

Pareceu levar uma eternidade até ele conseguir colocar um pé na frente do outro. Fiona podia sentir o suor do medo escorrendo por suas costas. Lentamente, eles
foram tropeçando pelos metros que os separavam da porta da frente. E então alcançaram o Land Rover. Fiona o girou de modo a colocá-lo sentado sobre a guarda traseira.
Em seguida jogou as pernas dele para dentro e o ajeitou para que ficasse o mais confortável possível.

- Você está bem? - perguntou. Ele abriu um sorriso lívido. - Comparado a quê? Minha cabeça está explodindo, tudo está girando e eu estou tonto como um gambá.

- Isso é apenas desidratação e pressão baixa. Confie em mim, Kit. Fiona foi tomada por uma incrível onda de euforia quando finalmente fechou a porta e engatou
a primeira marcha. Conseguira. Contra todas as probabilidades, ela o encontrara a tempo. Eles iam conseguir escapar! Partiu, quase com vontade de cantar. Penetrou
a mata e, então, campo aberto de novo. Já podia ver o cinturão de coníferas à frente que escondia o trecho final de acesso à ponte.

Ao se aproximarem das árvores, a voz de Kit soou baixinho, vinda da traseira:

- Ele não vai deixar a gente partir assim, Fiona - comentou, a voz fraca. - Encoste.

Por mais que isso batesse de frente com seus instintos - queria sair dali o mais rápido possível -, ela fez o que ele pediu. Virou-se no assento para poder fitá-lo.

- Qual é o problema, Kit? - Se a ponte tiver sido destruída, estamos encurralados - respondeu ele. - Abra o porta-luvas... binóculos. Vá e dê uma olhada, por favor.

- Ele está com a sua arma, Kit. Pode estar nos observando neste exato instante.

- Ele já teria atirado na gente. Por favor? Fiona pensou por um momento. O que Kit estava dizendo fazia sentido. Se Blake estivesse daquele lado da ravina, poderia
ter atirado neles com facilidade quando eles entraram no Land Rover. Pelo menos, tinha as coníferas para lhe dar cobertura. No estado de choque em que Kit se encontrava,
não estava preparada para assumir riscos desnecessários. Desceu do carro e, mantendo-se perto das árvores, andou até a curva da estrada de onde teria uma visão
da ponte. Ao fazer a curva, escondeu-se atrás de um grupo de abetos plantados bem próximo uns dos outros, e sorriu ao ver a ponte no lugar onde deveria estar.
O medo de Kit não tinha fundamento, pensou satisfeita. No entanto, como ele a fizera levar os binóculos, decidiu checar de qualquer forma. Não faria mal nenhum
verificar se não havia alguma tábua solta. Colocou os binóculos diante dos olhos e focalizou a ponte. A princípio, tudo parecia estar bem. Mas então seu coração
deu um pulo, em pânico. Baixou os binóculos, inspirou fundo e olhou novamente. Quase começou a chorar.

Do outro lado da ponte, as duas cordas tinham sido cortadas até a metade; era possível ver com clareza os fiapos através das poderosas lentes.

Não havia como escapar. A ponte, antes sua tábua de salvação, fora transformada numa armadilha mortal.

55.

Caroline verificou mais uma vez o número que Fiona lhe dera e, nervosa, olhou de novo para o relógio. Sessenta e um minutos tinham se passado desde que ela se
despedira de Fiona. O que quer que tivesse surgido ao final da jornada da amiga, obviamente não estava sendo fácil. Caroline estava irritada consigo mesma por
ter deixado Fiona enfrentar o perigo sozinha, embora reconhecesse a lógica do que tinha sido instruída a fazer. Se Fiona não conseguisse lidar com aquilo sozinha,
provavelmente ela, Caroline, seria mais um estorvo do que uma ajuda. No entanto, saber disso não aliviava a culpa nem o medo.

De modo apressado, enfiou todo o trocado que tinha no receptáculo de moedas do telefone e discou o número. O telefone do outro lado da linha tocou três vezes e,
em seguida, ela escutou o clique surdo da ligação sendo transferida para outro aparelho. Dessa vez, alguém atendeu no segundo toque:

- Departamento de Investigações Criminais, detetive Mullen falando - resmungou uma voz rouca de homem.

- Preciso falar com o superintendente Sandy Galloway - informou Caroline.

- Ele não está disponível no momento. Posso ajudá-la? Por onde começar? - Você está trabalhando no caso Drew Shand? - perguntou ela.

- A senhora tem algo a informar a respeito da investigação, madame? Posso anotar o seu número?

- Não, não tenho nada novo a informar. Estou ligando a pedido da dra. Fiona Cameron. Ela está ajudando Sandy Galloway no caso. Olhe só, eu preciso falar com ele,
é vital.

- Infelizmente ele não está de serviço. Posso anotar sua mensagem? Exasperada, Caroline se esforçou para encontrar uma forma rápida de explicar ao detetive o que
estava acontecendo, sabendo que, a cada segundo, soava mais e mais como uma lunática.

- Ela está seguindo uma pista, e me disse que a situação podia ser perigosa. Ela acha que o assassino ainda está à solta, entenda. E me pediu para entrar em contato
com o superintendente Sandy Galloway se não voltasse em uma hora - falou Caroline rápido, ciente de que não estava explicando a situação muito bem. - Acho que
ela precisa de reforço.

- Reforço para quê? - Ele parecia perplexo. - Fiona acha que o assassino está com a próxima vítima. Ninguém quis escutá-la; portanto, ela foi atrás dele sozinha.

- Olhe só, moça, acho que está havendo um mal-entendido aqui. O assassino de Drew Shand está sob custódia. De onde a senhora está ligando?

- Estou perto de Lairg, às margens do lago Shin. - Lairg? Infelizmente a senhora está fora da nossa jurisdição - respondeu ele, com um jeito divertido. Obviamente
decidira enquadrá-la na categoria "loucos". - Talvez fosse melhor a senhora falar com a polícia das Terras Altas?

- Espere, não desligue! - gritou Caroline. - Sei que isso parece maluquice, mas não sou louca. Fiona Cameron está em perigo. Preciso de ajuda.

- Fale com a polícia de Lairg. Eles são os responsáveis por essa área. Poderão ajudá-la. Ou isso ou deixe uma mensagem comigo para o superintendente Galloway.

- Você vai entregar a mensagem a ele imediatamente? - exigiu ela saber.

- Vou me certificar de que ele a receba. - Certo, Diga a ele que Fiona está na cabana de Kit Martin. Ela fica perto do Allt a'Claon, às margens do lago Shin.
- Soletrou o nome do desfiladeiro do rio para ele. - Fiona mandou um fax para Galloway, mas não

sei se ele recebeu. Por favor, diga a ele que precisamos de ajuda, é urgente. - Uma voz eletrônica lhe disse que ela só tinha mais dez segundos. - É muito importante
- enfatizou, e a linha ficou muda.

Caroline estava com uma terrível sensação de que a polícia local estaria ainda menos inclinada a levá-la a sério. No entanto, não havia outra coisa a fazer. Teria
de voltar a Lairg de qualquer jeito, a fim de conseguir mais moedas para as ligações.

Amaldiçoando a própria incompetência, Caroline voltou para o carro, rezando sem parar para que Fiona continuasse inteira.

- Não vai ser graças a você se ela estiver, seu cretino - falou em voz alta, enquanto fazia o retorno e se dirigia de volta para a cidade.

Quando Gerard Coyne deixou seu apartamento naquela manhã, Joanne soltou um suspiro de alívio.

- Ele não vai pegar a bicicleta - falou, olhando pelo espelho retrovisor - Graças ao bom Jesus - replicou Neil. Ele olhou pelo espelho lateral que ajustara com
cuidado, viu Coyne se aproximar do carro, passar por eles e seguir em frente. Antes que chegasse à esquina, dois detetives já estavam em sua cola, um de cada lado
da rua. Joanne ligou o carro e saiu da vaga. As instruções eram claras. Esperem Coyne parar e, então, o cerquem. Cada um dos oficiais a pé tinha seu próprio reforço,
além de Joanne e Neil no carro, prontos para entrar em campo no final do jogo.

Coyne cortou caminho pelo labirinto de ruas estreitas e saiu na Caledonian Road, perto do ponto onde ela cruzava com a Holloway Road. Ao se aproximar da loja de
bicicletas, com suas mercadorias tomando quase toda a calçada em frente, ele diminuiu o passo e parou para analisar uma bicicleta de corrida.

- Hora de entrar em ação? - perguntou Neil a Joanne enquanto eles seguiam bem devagar em direção à loja.

- Acho que sim - respondeu ela, pisando no freio e ligando o piscapisca.

Neil pegou o rádio. - Alfa Tango para todas as unidades. Fechem o cerco em torno do suspeito agora. - Ele pulou para fora do carro e seguiu pela calçada. Os outros

oficiais tinham cercado Coyne, que estava com as costas voltadas para a vitrine da loja e os olhos esbugalhados de surpresa.

- Gerard Patrick Coyne? - perguntou Neil. - Sim, quem é você? - rebateu Coyne, tentando manter a calma, mas sem muito sucesso.

- Sou o detetive Neil McCartney, da Polícia Metropolitana. Gostaria que o senhor me acompanhasse até a Scotland Yard para nos ajudar com uma investigação a respeito
de um assunto bastante sério.

Coyne fez que não. - Você deve estar enganado, meu chapa. Eu não fiz nada. - Seus olhos dardejavam de um lado para o outro, como se buscassem uma saída. Contudo,
todas as saídas estavam bloqueadas por oficiais da polícia, assim como por pedestres que haviam parado para ver o que estava acontecendo.

- Nesse caso, o senhor não vai se incomodar de responder a algumas perguntas, não é mesmo, senhor? - Neil deu um passo à frente.

- Eu estou sendo preso? - exigiu Coyne saber. - Isso depende do senhor. Preferiríamos que nos acompanhasse por livre e espontânea vontade.

- Não tenho muita escolha, tenho? - replicou ele, no tom de choramingo daqueles que se sentem vitimados.

- Um carro está à nossa espera. - Foi tudo o que Neil disse. Os oficiais formaram uma falange em torno dele, e o escoltaram até o banco de trás do cano, onde ele
foi impelido a entrar por Neil e mais outro detetive. O rosto estreito de Coyne parecia uma máscara de petulância, e ele manteve os braços cruzados sobre o peito.

- Vocês estão cometendo um grande erro - reclamou ele. - O senhor terá a oportunidade de nos corrigir - retrucou Neil com prazer. Podia se dar ao luxo de ser cortês,
tudo saíra conforme o plano.

Fiona apoiou a cabeça no volante.

- O que a gente faz agora? - perguntou. - Tenho reforço... Caroline já deve ter entrado em contato com os tiras. Só que eles não vão dar prioridade a isso, sei
que não. Além do mais, eles vão levar uma eternidade para chegar aqui. Você disse que não há outra saída?

- Pela estrada, não - respondeu Kit. Ele estava sentado. Agora que a câimbra e o formigamento haviam passado, sentia-se um pouco menos como alguém às portas do
céu. Ainda sentia como se estivesse meio bêbado, meio de ressaca, mas aos poucos estava se acostumando com a sensação. - A pé. Há uma forma de sair daqui a pé.
Pelo morro, mais ou menos uns 10 quilômetros. Não acho que eu consiga. Mas você pode ir pedir ajuda.

- Não vou deixar você aqui - protestou Fiona, com a voz abafada de alguém que fala para dentro. - Não há nada que impeça Blake de voltar para pegar você. Não sabemos
nem se ele foi embora. Se eu fosse ele, estaria na mata do outro lado da ravina, esperando para nos ver mergulhar em direção à morte. E, se o tempo passar e a gente
não aparecer, ele provavelmente vai dar uma olhada no mapa e deduzir o que a gente está fazendo. E então ele vai voltar para pegar você. Mesmo que ele tenha de
descer a estrada até a ponte ao lado do lago e depois subir de novo pela mata, ainda assim vai chegar em você antes que eu alcance a rodovia.

- Que outra escolha nós temos? A não ser esperar pelo seu reforço? - Você tem de ir para o hospital, Kit. Além disso, o que vai acontecer quando eles chegarem?
Ou vão notar o que aconteceu com a ponte e ficar presos do outro lado da ravina, ou não vão perceber e vão acabar se arrebentando no fundo do desfiladeiro, como
deveria ter acontecido com a gente.

Após uma longa pausa, Kit falou: - Tem uma coisa que pode funcionar. É uma chance em mil, mas... - Uma chance em mil é melhor do que nenhuma chance.

- Talvez você não concorde depois que ouvir a ideia.

Steve foi generoso com os elogios à equipe.

- Vocês fizeram um excelente trabalho. Como um relógio, e seguindo o livro à risca. Não deixaram nem uma brecha sequer para a defesa se apegar. Bom trabalho. Os
drinques hoje à noite são por minha conta. Ele já foi formalmente acusado, certo?

Neil fez que sim. - Sob suspeita de assassinato. Ele ficou absolutamente chocado. Mas sabe do que se trata. A única coisa que ele disse foi que queria seu advogado.

Steve pegou um papel que estava sobre a mesa. - Certo. Fiz um esboço do pedido de busca sob os parâmetros da seção 18. Quero que você se encarregue disso, Neil.
Você sabe o que estamos procurando. Agora, quero que John e Joanne comecem o interrogatório. Vou ficar assistindo da sala de observação. John, quero que Joanne
assuma a liderança. Esse sujeito tem problemas com as mulheres. Quero deixá-lo irritado, e vamos conseguir isso com Joanne fazendo o papel do policial machão.
Tudo bem por você, Joanne?

Ela abriu um sorriso impiedoso. - Vai ser um prazer, chefe. Antes que Steve conseguisse dizer mais alguma coisa, seu telefone tocou. Ele atendeu, dizendo:

- Detetive superintendente Preston. - Steve? Aqui quem fala é Sarah Duvall. Estava pensando, tem alguma possibilidade de você poder vir até Snow Hill? Gostaria
que visse uma coisa.

- Sarah, estou enrolado até o pescoço no momento. Não dá para esperar? -Na verdade, não tenho certeza. Deixe-me explicar. Coloquei uma equipe para verificar os
vídeos do Smithfield Market, e acho que encontramos o homem que deixou os restos de Georgia no freezer.

- Isso me parece uma boa notícia. Mas por que você está me ligando? - respondeu Steve com impaciência.

- Achamos que o sujeito é Francis Blake. - O quê? - Steve não acreditou no que estava ouvindo. - Eu mesma dei uma olhada. Comparei com as fotos de Blake. Acho
que não restam dúvidas quanto a isso.

Confuso, Steve disse: - Mas e quanto a Redford? Fez-se uma pausa antes de Duvall responder: - Talvez estejamos errados com relação a Redford. Os ouvidos de Steve
começaram a apitar. Se Redford não era o assassino, como poderia ser Francis Blake?

E o mais importante, se Redford não era o assassino, onde estavam Kit e Fiona?

- Então, você pode vir até aqui dar uma olhada? - Ele escutou Duvall dizer, como se estivesse muito longe.

- Eu acabei de... não, eu estou prestes a... Sarah, você pode me enviar o material?

Outra pausa longa. - Essa é uma investigação de homicídio em curso, senhor. Você não pode me ceder meia hora? - A repreensão era evidente tanto no tom quanto nas
palavras.

- A gente acabou de prender um suspeito pelo assassinato de Susan Blanchard - replicou Steve de modo frio. - Não posso deixar a Scotland Yard agora. Espere um
pouco. - Ele cobriu o bocal do telefone e, com a mão livre, fez sinal em direção à porta. - Me deem cinco minutos. Vejo vocês na sala de interrogatório. - Enquanto
eles saíam, Steve voltou sua atenção para Sarah Duvall de novo. - Olhe só, você precisa saber que Fiona Cameron parece ter sumido da face da Terra. Ela devia ter
ido se encontrar com o superintendente Galloway hoje de manhã, mas não apareceu. Agora, ele me disse que falou com ela ontem à noite e ela estava encucada, achando
que Redford não era o assassino. Fiona estava convencida de que o verdadeiro assassino ainda estava à solta. E também estava convencida de que ele havia sequestrado
Kit Martin. Não consigo falar com ela nem com ele. Acho que estamos com um sério problema nas mãos.

- Não posso deixar de concordar - retrucou Duvall. - Mas não consigo ver como pode ser Blake. Segundo meus relatórios sobre a vigilância, Blake não saiu do apartamento
hora nenhuma ontem.

- É Blake, Steve. Posso apostar minha vida como é. O que preocupava Steve era o fato de que não era a vida de Duvall que estava em risco.

- Você precisa falar com Galloway. Só que Duvall tinha suas próprias prioridades. - A pessoa com quem eu preciso falar é Francis Blake.

De sua posição privilegiada em meio às árvores do outro lado da ravina, Francis Blake vigiava a trilha que ia dar na ponte. Por que eles estavam demorando? Ela
já devia ter conseguido soltá-lo. Havia uma caixa de ferramentas

na casinha do gerador, ele tinha certeza. Fora lá que encontrara o machado que usara para destruir o cadeado e pegar a espingarda.

Não podia acreditar na sua falta de sorte. Só tinha saído para tirar seu 4 x 4 da frente da cabana e transferi-lo para a outra margem da ravina. Contudo, algum
excesso de cautela o fizera levar a espingarda, escondida em meio a um feixe de gravetos. Por sorte, ele escutara o Land Rover se aproximando, e tivera o bom-senso
de dar meia-volta para parecer que estava saindo da mata. Se tivesse percebido um pouco antes, poderia estar pronto, esperando pela piranha. Tudo bem, isso seria
uma quebra do padrão, mas matar Fiona Cameron cara a cara teria sido um grande bônus.

Blake apoiou a espingarda contra uma árvore e enfiou as mãos nos bolsos para aquecê-las. O sol podia estar brilhando, mas estava em outubro, e ali, sob a copa
das árvores, era como se estivesse no meio do inverno. No entanto, a espera valia a pena só para ver os dois despencarem no desfiladeiro. Isso acabaria com eles,
sem confusão nenhuma.

E então ele ficaria livre, quer fosse para matar de novo ou deixar para lá. Não acreditava que a polícia representasse qualquer ameaça. Fiona Cameron estava agindo
sozinha, tinha certeza. Ela não havia conseguido convencer seus amiguinhos na polícia a dar cobertura a algo que só podia ser um palpite. Afinal de contas, eles
tinham aquele lunático do Redford sob custódia. Deviam estar certos de que tinham o verdadeiro assassino atrás das grades. Caso contrário, dada a influência que
Fiona tinha na polícia, eles teriam aparecido em peso se achassem que havia uma possibilidade real de colocarem as mãos num assassino do seu calibre. Aquilo era
uma doce ironia. Eram exatamente psicólogos como ela, que traçavam perfis, que haviam destruído sua vida, e ele resolvera destruir as pessoas que transformavam
esses psicólogos em deuses. Agora, a própria psicóloga não conseguia fazer ninguém acreditar nela. Talvez isso significasse que ele havia conseguido provar seu
ponto de vista, não?

Blake tirou uma das mãos do bolso e começou a morder a pele da lateral do polegar. Psicólogos filhos da puta. Haviam armado contra ele para provar o quanto eram
espertos. Só que ele era mais. Ele tinha virado a mesa e agora ninguém poderia tocá-lo.

Blake tivera bastante tempo para armar seu plano. Sempre soube que sairia livre quando o caso fosse a julgamento, e usou o tempo em que ficou

atrás das grades para remoer a injustiça que lhe fora feita. Seria óbvio demais ir atrás dos tiras e do psicólogo que armara contra ele. Além disso, eles jamais
sofreriam o suficiente para compensar o que lhe tinham feito. Ele havia perdido sua casa, seu trabalho, sua namorada e sua reputação. Eles só perderiam suas vidas.

Não, alguém mais tinha de pagar. Quem eram os responsáveis por fazer o mundo acreditar que aqueles psicólogos traçadores de perfis tinham todas as respostas?
Simples. Os escritores de suspense. Especialmente os que tinham tido seus livros adaptados para o cinema ou para a televisão, em filmes vistos por milhões de pessoas.
Eram eles os verdadeiros responsáveis pelo que havia acontecido a Francis Blake. Eles é que deveriam pagar por isso.

Fora fácil conseguir os livros enquanto ainda estava na prisão e relativamente fácil descobrir os detalhes de suas vidas. Eles estavam sempre conversando com os
jornalistas. Além disso, todos os escritores britânicos constavam num livro com entrevistas detalhadas que algum nerd infeliz acabara de publicar. Então, ao sair
da cadeia, ele tivera acesso também à Internet. Não levara muito tempo para juntar todas as peças. A coisa mais difícil de descobrir havia sido a localização exata
da cabana de Kit Martin. Ele sabia mais ou menos onde ela ficava, graças a várias entrevistas. Contudo, uma pesquisa pelo Registro de Imóveis lhe dera o endereço
exato, e um mapa da Ordnance Survey fizera o resto.

Ninguém o vigiara enquanto ele estava na Espanha, tinha certeza. E, da Espanha, tinha sido bastante fácil cruzar as fronteiras da Europa de carro e pegar o barco
para atravessar o canal. Além disso, enganar a patética vigilância da Polícia Metropolitana ao voltar fora moleza. Bastara mostrar a cara de vez em quando e dar
a impressão de estar vivendo como um recluso, e eles não tinham se dado ao trabalho de averiguar melhor, deixando-o com intervalos de 48 horas para fazer o que
precisava ser feito em Dorset e, depois, em Sutherland. Poderia até mesmo apostar que eles não sabiam da entrada dos fundos de seu prédio, que dava para a ruazinha
atrás das lojas.

Uma coisa eles jamais entenderiam: o quanto a sua vida havia mudado depois do que vira em Hampstead Heath. Naquele momento, percebeu como era fácil tirar uma vida.
E, para falar a verdade, fazer aquilo com as próprias mãos provara ser moleza.

Até Fiona Cameron aparecer e destruir seus planos tão bem elaborados. Bom, ela teria a punição merecida em pouco tempo.

Blake relembrou tudo mais uma vez. Havia tirado seu Toyota da frente da cabana logo após descarregar Kit e o prender. Ele não geraria tantos comentários se um
morador local o visse antes da curva da estrada que dava acesso à cabana do que se o percebesse parado do lado de fora dela. O Toyota estava estacionado a cerca
de cinco minutos de onde ele estava, virado para o lago, como se alguém estivesse descendo a colina. Dali, poderia pegar a estrada para o sul em pouquíssimo tempo.

Nesse momento, escutou o Land Rover de novo; ouviu o som do motor aumentando, apesar de não conseguir vê-lo. Logo após a curva, ele diminuiu a velocidade. Através
do para-brisa, Blake viu a silhueta de duas pessoas. O carro prosseguiu em direção à ponte, o motor reclamando em virtude da aceleração excessiva na primeira marcha.

Assim que as rodas da frente atingiram a ponte, as cordas arrebentaram. Em meio ao colapso de madeira e metal, o Land Rover continuou vindo, mergulhando abismo
abaixo em um emaranhado de tábuas de madeira e corda. Houve um instante de silêncio, em seguida um estrondo terrível de madeira e aço batendo nas rochas.

Blake abriu caminho por entre os arbustos baixos e se aproximou da beirada da ravina. Inclinou-se para a frente, com medo de escorregar e ir se juntar às vítimas.
Olhou para baixo, na esperança de ver pedaços de corpos em meio aos destroços.

A queda pelo desfiladeiro havia arrancado o teto do Land Rover, expondo sua base destroçada à correnteza do rio. Entretanto, no lugar onde ele esperava ver Fiona
Cameron e Kit Martin, não havia nada além de roupas rasgadas e o que lhe pareceu um par de caçarolas.

Blake soltou uma série de palavrões. Os filhos da mãe se achavam mais espertos do que ele, não é mesmo? Bom, podiam esquecer isso. Furioso, correu de volta para
o Toyota e pegou o mapa da Ordnance Survey no portaluvas. De um jeito ou de outro, teria o sangue deles em suas mãos até o fim do dia.

56.

Caroline olhou para o policial atrás do balcão da delegacia de Lairg e se desesperou. Ele parecia ter uns 12 anos. Um moleque bobo e desajeitado, para ser sincera.
Seu cabelo louro-escuro dava a impressão de ter sido cortado por alguém o menor talento para o trabalho. O rosto era pálido e cheios de calombos - a testa encaroçada,
as maçãs do rosto proeminentes, o nariz fino e aquilino com uma ponta curiosamente batatuda, o maxilar pouco definido, o queixo pontudo e o pomo de adão do tamanho
de um figo maduro. Na verdade, o garoto chegou a corar quando Caroline entrou e disse que precisava da ajuda dele.

- Isso vai soar um pouco estranho - disse ela. - Mas é uma questão de vida ou morte. -Ah, merda, já estou parecendo uma maluca.

Ele pegou uma caneta e falou: - Seu nome, por favor. - Dra. Caroline Matthews. - Às vezes, ter um título ajudava. Às vezes, até mesmo a interpretação errada desse
título vinha a calhar. - Olhe só, não quero ser chata, mas dá para a gente deixar o formulário de lado por enquanto? A vida da minha amiga pode estar em perigo,
e acho que isso é uma questão mais urgente.

Ele apertou os lábios numa expressão de teimosia, porém cinco segundos do olhar azul gélido de Caroline o reduziram a um estado de submissão.

- Tudo bem. Certo. Qual é o problema, doutora?

Não havia sentido em tentar explicar a história toda, percebeu Caroline. - Um amigo meu tem uma cabana aqui na região. Kit Martin? O escritor de suspense?

O rosto do rapaz se acendeu com um sorriso. - Ah, sim, lá para os lados do Alit a'Claon. - O problema é o seguinte: ele vinha recebendo cartas ameaçadoras e sua
companheira ficou preocupada porque não conseguia falar com ele. Ela estava com medo de que alguém o estivesse perseguindo e que alguma coisa pudesse ter acontecido
com Kit. Bom, de qualquer forma, ela foi até lá cerca de uma hora e quinze minutos atrás. E me disse que, se não voltasse em uma hora, eu devia ir à polícia. -
Ela lhe ofereceu seu sorriso mais caloroso. - Então, aqui estou eu. Acho que vocês deviam ir até lá e ver o que aconteceu.

Ele pareceu hesitar. - Vou ter de falar com alguém sobre isso - disse, num tom de voz que indicava estar sugerindo algo tremendamente difícil.

O que você está esperando então?, Caroline teve vontade de gritar. - Por favor, seja rápido. Ele coçou a cabeça com a ponta da caneta. - Vou falar com alguém
então. - Esticou o corpo magro e comprido e se dirigiu a uma porta nos fundos da sala. - Espere um pouco, já volto.

Caroline fechou os olhos. Sentia vontade de chorar. A cada minuto, seu pavor crescia. Por favor, meu Deus, mantenha Fiona a salvo, rezou para uma divindade na
qual nunca acreditara. Ele não mantivera Lesley a salvo; no fundo de seu coração, sabia que Ele também não ia ajudar Fiona.

No entanto, não havia mais nada que ela pudesse fazer.

As notícias da equipe que estava trabalhando nas buscas do apartamento de Gerard Coyne eram bastante encorajadoras. Steve começou a se sentir um pouco menos ansioso
ao escutar o relatório preliminar do oficial responsável.

Sob o tapete do banheiro, eles haviam encontrado uma seção das tábuas do piso que tinham sido cortadas e coladas para permitir que uma área pudesse ser levantada,
como um alçapão. Dentro da cavidade havia um saco plástico com zíper, repleto de recortes de jornal. As matérias

cobriam cada um dos estupros que Terry identificara como parte de um grupo, assim como mais uns dois periódicos do norte de Londres, de distribuição gratuita, falando
da incidência de ataques sexuais na região. E, o mais importante, uma grande quantidade de recortes relacionados ao assassinato de Susan Blanchard. Não havia matérias
sobre nenhum outro crime no saco.

Na cavidade eles também encontraram uma faca de cozinha Sabatier, com a lâmina bastante afiada. Ela já estava a caminho dos laboratórios do Ministério do Interior,
onde seria testada exaustivamente em busca do menor resquício de sangue de Susan Blanchard.

- Não acredito que ele ficou com a faca - falou Steve, ainda capaz de se surpreender com a estupidez, ou arrogância, dos criminosos.

- Não sabemos ainda se essa é a faca - preveniu um colega. - Pode ser a que ele usou nos estupros. Não tem de ser necessariamente a que ele usou para matar Susan
Blanchard.

Entre as roupas de Coyne, eles encontraram vários conjuntos de lycra usados por ciclistas, todos os quais tinham sido ensacados e mandados para análise.

Eles também acharam vários troféus e certificados de corridas de bicicleta que Coyne havia ganhado. Não restava dúvidas de que ele poderia ser o ciclista visto
na trilha do Hampstead Heath naquela manhã. Ele tinha tanto habilidade quanto preparo físico para ter feito aquilo sem sequer suar.

Steve entrou na sala de observação e se sentou, a fim de observar os dois oficiais que escolhera para interrogar Gerard Coyne botarem mãos à obra. O interrogatório
mal havia começado quando Sarah Duvall ligou de novo.

Ao analisar o mapa, Blake viu apenas uma possibilidade. Eles não desceriam até a estrada que ladeava o lago, de jeito nenhum. Sabiam que ele tinha um carro à disposição
e que não teriam chance de escapar dele por ali. A única opção era atravessar a encosta da colina. Desse jeito, eles sairiam na estrada que levava a Lairg perto
de algumas cabanas, onde, provavelmente, alguém teria um telefone.

Não acreditava que Martin fosse ter força ou vigor para aguentar a distância. Ela provavelmente o deixaria na cabana e sairia para pedir ajuda.

Isso seria perfeito, pensou com satisfação. Se fosse de carro até a ponta da rota de fuga dela, poderia subir a colina e encontrar uma posição privilegiada de
onde a liquidaria com a espingarda. Havia um monte de lugares para esconder um corpo num terreno tão selvagem quanto aquele.

Depois ele poderia atravessar a colina de volta e terminar o que havia começado. Seria um bônus poder retomar o plano original, The Blood Painter. Muito mais satisfatório
do que se eles tivessem morrido na ravina.

Pelo visto, os deuses tinham decidido recompensá-lo por sua paciência. Ele merecia, embora não fosse muito comum as pessoas terem o que mereciam no decorrer da
vida. Ele vinha mudando isso, e era bom perceber que o universo estava conspirando a seu favor.

Blake girou a chave na ignição e sorriu com satisfação ao descer a estrada em direção às águas escuras do lago Shin.

Poucos, entre os oficiais que trabalhavam com Steve Preston, já o tinham visto de mau humor. No entanto, não havia como duvidar da tremenda raiva que lhe extravasava
pelos poros enquanto descascava os pobres oficiais responsáveis por vigiar Blake. Joanne e John, retirados da sala de interrogatório antes mesmo que este começasse,
e Neil, que fora chamado de volta da casa do suspeito antes que as buscas terminassem, não tinham a menor dúvida de que não haviam apenas fracassado na missão,
mas metido os pés pelas mãos completamente.

- Não dá para acreditar - explodiu Steve, pálido, com exceção de duas manchas vermelhas nas maçãs do rosto. - Vocês deviam ter vigiado esse homem de perto, mas,
ainda assim, segundo a City, ele entrou e saiu do apartamento quando bem quis, sem que nenhum de vocês percebesse. Vocês não fazem ideia do que ele andou aprontando,
fazem?

- Ninguém nos falou a respeito da bicicleta - replicou John com teimosia.

- Todo esse tempo, Blake tinha uma bicicleta de corrida de dez marchas no pátio dos fundos, a chave da porta dos fundos e o acesso a uma ruazinha que fica atrás
da fileira de casas. Durante todo esse tempo em que vocês deviam estar vigiando Blake, ninguém teve a ideia de verificar os fundos do prédio?

Neil baixou os olhos para o chão. Joanne encolheu os ombros, sem saber o que dizer.

- Não achamos que fosse possível acessar a porta dos fundos pelo apartamento de Blake, senhor - tentou ela.

- Vocês são detetives - rebateu ele, a voz carregada de desprezo. - Um cadete uniformizado teria tido mais tino do que os três juntos. Do jeito como foi, a City
acha que somos um bando de incompetentes. - Ele bateu com a palma da mão sobre a mesa. - Algum de vocês faz a mínima ideia de onde Francis Blake está agora?

Ninguém respondeu. Steve fechou os olhos e cerrou os punhos. Não precisava disso. Kit parecia estar desaparecido. Fiona estava Deus sabe onde nas Terras Altas,
fazendo Deus sabe o quê, e ele não podia fazer nada a respeito disso porque o caso Susan Blanchard voltara à vida com força total. Sentia como se estivesse vivendo
seu pior pesadelo. Abriu os olhos e rosnou:

- Quando foi a última vez que um de vocês o viu entrar ou sair do apartamento?

- Ele foi até a papelaria na sexta de manhã - respondeu Neil. - O dia estava horrível. Diante disso, não fiquei surpreso por não vê-lo sair de novo. A luz do apartamento
ficou acesa o dia inteiro.

- Ela podia estar conectada a um temporizador, não é mesmo? - esbravejou Steve. - Então, para resumir, ninguém tem ideia de onde Blake está desde ontem de manhã,
certo? E também ninguém sabe quando ele vai voltar.

Mais uma vez, não houve resposta. - Algum de vocês faz alguma ideia de para onde ele possa ter ido? Eles se entreolharam. Ninguém disse nada. - Ótimo. - Steve
inspirou fundo, tentando controlar a raiva. Pegou um charuto na gaveta da mesa, abriu o invólucro e o acendeu. A nicotina pareceu ir direto até sua alma, acalmando-o
com sua familiaridade. - Neil, quero que vá até o apartamento do Blake. Fale com os vizinhos, veja se consegue arrancar alguma coisa deles que a City não tenha
conseguido. E vocês dois... vão tomar um café e esfriar a cabeça. Estejam aqui de volta em vinte minutos. Temos um suspeito para interrogar, mesmo que a City não
tenha.

Quando eles saíram, Steve deixou os ombros penderem. Aquele estava se tornando rapidamente o pior dia de sua vida. E podia piorar ainda mais antes de melhorar.

Fiona contornou o afloramento de rocha onde deixara Kit quinze minutos antes. Ele estava sentado sobre uma pedra plana, encostado contra o paredão de rocha, tomando
uma Coca-Cola. Seu rosto ainda estava fantasmagoricamente pálido, mas ele parecia mais alerta do que quando o ajudara a cruzar os poucos metros do Land Rover até
ali.

- Como foi? - perguntou ele. Ela esfregou o ombro no ponto onde batera ao cair. - Digamos que parece muito mais fácil nos filmes - respondeu. - Mas funcionou?
Ela fez que sim. - Deixei a porta do motorista aberta, engatei a primeira, apoiei a pedra no acelerador e pulei. Como você disse, a porta bateu às minhas costas,
e o Land Rover seguiu em linha reta. Até a ponte e ravina abaixo. Não acho que ele tenha conseguido ver nada.

Kit abriu um sorriso cansado. - Você fez tudo direito, Fiona. - Foi assustador, preciso dizer. - Está machucada? Ela fez uma careta. - O ombro. Bati numa pedra
ao rolar. Nada demais, eu acho, mas vou ficar com um hematoma enorme. Agora, é melhor a gente se botar a caminho.

- Não sei se consigo fazer isso - disse Kit. - Ainda estou muito tonto.

- Também não sei se você consegue - replicou ela. - Mas não vou deixá-lo aqui. Se Blake descobriu nossa pequena artimanha, vai vir atrás da gente. E eu não vou
deixá-lo sozinho e vulnerável. Vamos nos distanciar daqui o máximo que pudermos. Se você não conseguir continuar, a gente encontra um lugar onde você possa se
deitar e esperar enquanto eu vou buscar ajuda. Mas aqui estamos perto demais da cabana. Temos que colocar alguma distância entre nós e Blake.

Ela desdobrou o mapa da Ordnance Survey e eles o estudaram juntos. Após perceber o problema com a ponte, Fiona voltara com o Land Rover até a cabana, e depois
prosseguira o mais longe que tinha conseguido pelo terreno incerto atrás dela, onde deixara Kit. Segundo ele, era possível ir caminhando dali até a rodovia principal,
onde Caroline havia ficado esperando. Era uma distância de mais ou menos 8 ou 9 quilômetros, calculou. Sozinha, levaria pouco mais de duas horas. Com Kit em seu
estado atual, provavelmente umas quatro ou cinco. Mas eles tinham de tentar. Pelo menos, ele não parecia estar com nenhuma concussão séria, o que teria feito com
que a ideia ficasse fora de questão.

Fiona o obrigou a explicar a rota e, em seguida, repetir tudo para ter certeza de que não deixara passar nada. Durante a maior parte da jornada, eles caminhariam
mais ou menos no plano, seguindo a linha que contornava, por cima, as plantações de coníferas. Segundo Kit, havia uma trilha irregular - pouco mais do que um caminho
aberto pelas ovelhas - na maior parte do percurso.

- Tudo bem, vamos lá - falou Fiona, tirando o impermeável e ajudando Kit a vesti-lo. Seria bom que ele mantivesse a temperatura do corpo. E ela suspeitava de que,
em pouco tempo, não precisaria do calor extra. Enfiando-se debaixo do braço direito dele, ajudou-o a se levantar. Com a bengala na mão esquerda, ele começou a
avançar devagar pela trilha. Fiona andava em meio aos arbustos, ao lado da trilha estreita, com os olhos voltados para o chão, a fim de evitar as pedras soltas
e as raízes traiçoeiras. Pelo menos o clima estava ajudando, pensou. No estado de Kit, um vento frio ou até mesmo uma pancada de chuva poderia ser fatal. O céu,
porém, estava mais ou menos limpo, o sol brilhando de maneira constante, e não havia praticamente vento nenhum.

A respiração entrecortada de Kit era tudo o que ela conseguia escutar, o peso de seu corpo contra o dela tudo o que conseguia sentir, e o tamborilar baixo de seu
medo tudo o que conseguia perceber. Eles não desperdiçaram energia em conversas, concentrando-se apenas em colocar um pé na frente do outro.

Cerca de meia hora depois, Fiona decidiu fazer uma parada no primeiro local que considerou adequado, uma longa e baixa escarpa de xisto, com

sua dúzia de tons de cinza sobressaindo contra o amarronzado dos arbustos. Ela colocou Kit sentado e, em seguida, sentou-se ao lado dele.

- Cinco minutos - disse. - Tem algumas barras energéticas no bolso do impermeável. Consegue comer uma?

Ele fez que sim, cansado demais para falar. Pegou uma das barras no bolso, mas seus dedos dormentes não conseguiram abrir a embalagem. Fiona tirou a barra da mão
dele e a abriu.

- Você vai ficar bem - tranquilizou-o. - Sei que nada está funcionando direito. É porque seu organismo ainda está em choque.

Ele comeu devagar, mastigando com cuidado cada pedaço antes de engolir. Ofereceu a barra a Fiona, mas ela fez que não, recusando. Quando Kit terminou, ela se levantou.
Hora de continuar. Pelos seus cálculos, eles tinham percorrido cerca de 1,5 quilômetro; não era o suficiente.

Mais uma vez, eles se puseram a caminho, com Fiona arcando com todo o peso de Kit que conseguia aguentar. A forma como o corpo humano reagia a uma crise era estupenda,
ela se lembrou. Que droga fabulosa era a adrenalina! Ela sabia que ia desmoronar quando tudo aquilo terminasse, mas também sabia que, até então, sua resistência
seria maior do que imaginava.

Outra meia hora, outra parada. Fiona podia ver que Kit estava se cansando rápido, e sabia que ele não conseguiria percorrer mais 6,5 quilômetros de uma caminhada
difícil, de jeito nenhum. Se conseguisse que ele avançasse mais 1,5 quilômetro, procuraria um esconderijo no qual pudesse deixá-lo, decidiu. Em seu próprio ritmo,
cobriria os 5 quilômetros restantes em trinta, quarenta minutos, esforçando-se. A ajuda não poderia estar muito longe, uma vez tão perto de Lairg. Com sorte,
Caroline teria persuadido Sandy Galloway a mobilizar algum tipo de cobertura local. Eles poderiam fazer o resto por ela

Ela ajudou Kit a se levantar de novo e o incitou a continuar. O terreno estava mudando, as encostas cobertas de arbustos estavam dando lugar a rochas. A trilha
meio que desaparecera, e eles precisavam prestar mais atenção ao caminho. A rota ainda era clara, mas estava ficando mais irregular, com trechos cheios de pequenas
pedras soltas que ameaçavam lançá-los no espaço. Cerca de vinte minutos depois, Kit falou:

- Preciso parar. Não consigo...

- Sem problema. - Fiona olhou em volta, procurando um lugar adequado. Alguns metros adiante havia um par de rochas planas que serviriam para sentar. Guiou Kit em
direção a elas e o ajudou a se acomodar. Ele estava com a respiração fraca e ofegante, o rosto coberto por uma fina camada de suor. Fiona inspirou fundo algumas
vezes e tentou manter a calma. Eles deviam estar perto da metade do caminho, pensou. Estava na hora de começar a pensar em achar uma toca para ele. Recostou-se
na pedra e olhou para a encosta à frente.

De repente, algo atraiu seu olhar. Cerca de uns 800 metros adiante, e uns 21 metros acima, na colina, Fiona teve a impressão de ver um carro aparecendo e desaparecendo
de vista em meio ao capim alto. Deu-se conta, com uma clareza aterradora, de que era o cano de uma arma. Blake não era um homem do campo; não percebeu que, embora
se mantivesse abaixado, o cano da arma era tão visível quanto um cão mastiff em meio a um grupo de dachshunds.

- Kit - disse. - Não quero que se preocupe, mas acho que tem alguém ali em cima, um pouco adiante. Na colina. É possível que seja algum morador da região? Ou um
andarilho?

- Onde? - perguntou ele, de modo letárgico. - Não quero apontar, para o caso de ser Blake. Mas é mais ou menos onde um homem razoavelmente em forma estaria se
tivesse seguido de carro até a rodovia principal e começado a caminhada de lá. Lá em cima, à esquerda, uns 20 metros acima da gente. Há uma saliência rochosa no
cume atrás dele. Ele está a uns 35, 45 metros à direita dessa saliência.

- Não consigo ver nada - respondeu ele. Sua voz estava ficando pastosa de novo, notou Fiona com ansiedade.

- Vi algo que me pareceu o cano de uma arma subindo e descendo. Poderia ser um morador da região?

- Acredito que não. Não há razão para eles estarem por aqui. Não há nada para caçar.

- Merda. - Fiona fez uma pausa, tentando ver melhor. - Ele está vindo atrás da gente. Vamos continuar um pouco e ver o que ele faz.

Cansados, eles se colocaram de pé e seguiram com dificuldade até o próximo ponto onde poderiam se sentar, um esforço de uns cinco minutos.

- Ele se mexeu? - perguntou Kit.

Fiona inclinou a cabeça de modo a dar a impressão de que olhava para o cume da colina. No entanto, pelo canto dos olhos, esquadrinhou a área onde tinha visto o
cano da arma.

- Achei. - Ela inspirou. - Na verdade, consigo ver o contorno do rosto dele. Acho que ele não se moveu.

- Ótimo - respondeu Kit. - Cerca de uns cinco minutos adiante, tem uma espécie de fenda na rocha, com 1 metro e pouco de largura. Só que, de onde ele está, ela
parece apenas uma linha escura. A fenda se abre de novo uns 800 metros depois. Blake não vai conseguir nos ver ali. Me deixe ali e siga, você vai ter uma pequena
vantagem. A rodovia principal não fica longe, você vai conseguir escapar.

- E quanto a você? Kit suspirou: - Não vou conseguir sair daqui, não tem jeito. Estou prestes a cair de joelhos. Não consigo ir muito mais longe. Ele não precisa
pegar nós dois. Por favor, Fiona. Me deixe.

Ela fez que não: - Não vou deixar você, Kit. Não posso. Não depois da Lesley. Morrer seria mais fácil, acredite em mim. Mas não tenho planos de morrer agora. Me
dê o mapa.

Kit tirou o mapa do bolso e ela o abriu sobre os joelhos. - Tudo bem. Nós estamos aqui, certo? - apontou. - Não, não andamos tanto - corrigiu-a, apontando de modo
desajeitado para o lugar onde eles estavam.

- Um córrego cruza a trilha aqui - observou ela. - A que distância ele fica da outra extremidade da fenda?

- Alguns metros. Talvez uns 11? - Qual é a profundidade das margens até a água? - Acho que pouco mais de 0,5 metro... - A voz dele começou a falhar enquanto
perdia o resto de sua energia.

Fiona anuiu: - Se eu conseguir chegar até o córrego sem que ele me veja, posso me esconder e vir por trás dele. Posso interceptá-lo. Atacá-lo com uma pedra ou
algo parecido. Acabar com ele, de algum jeito.

- Você não vai conseguir fazer isso. Ele é um sujeito grande e forte - protestou Kit. - E está armado.

- Eu sei. Mas posso apostar que minha vontade de viver é mais forte do que a dele. E isso, meu amor, é uma opinião profissional.

- Isso é loucura. Ele vai te matar. Fiona meteu a mão no bolso do pulôver e tirou o estilete. - Não estou completamente desarmada. E estou disposta a usá-lo. É
nossa única chance, Kit. Não vou ficar aqui sentada e esperar que ele nos mate.

Kit pousou sua mão sobre a dela. - Tome cuidado. - Ele franziu o cenho ao perceber a inadequação das palavras. - Eu te amo, Fiona.

Ela se curvou e lhe deu um beijo na face. O suor frio que cobria o rosto dele a fez lembrar que não havia tempo a perder. Verificou se Blake ainda estava no
mesmo lugar. Em seguida, levantou-se.

- Vamos lá,

57.

Caroline olhou para o relógio. Sentia como se a metade de uma vida tivesse passado enquanto esperava ali na recepção da delegacia. O que quer que estivesse acontecendo,
estava demorando muito.

Por fim, a porta nos fundos da sala se abriu de novo e o policial retornou, seguido por um homem que parecia tão sombrio e monolítico quanto algumas das saliências
rochosas da montanha mais próxima. O terno cinza-claro estava amarrotado em todos os lugares onde deveria estar passado, e ele não demonstrou o menor sinal de
prazer ao ver Caroline.

- Sou o sargento Lovat - disse. - A senhora tem sorte por eu estar aqui. Só dei uma passada para entregar uma mensagem ao Sammy.

- Ele lhe explicou a situação? - Bom, ele me contou o que a senhora contou a ele, o que não me parece uma explicação muito boa. - Ele se apoiou no balcão e inclinou
a cabeça meio de lado, como se a analisasse e não estivesse gostando muito do que via.

Caroline tinha consciência de que não estava com a melhor das aparências. Seu cabelo estava todo emaranhado e suas roupas provavelmente tão amassadas quanto a do
sargento Lovat. Ainda assim, precisava causar boa impressão.

- Nunca falei mais sério na vida, sargento - declarou. - Realmente acredito que Fiona Cameron esteja enfrentando alguma adversidade.

- Adversidade, é? - repetiu Lovat, mastigando a palavra como se fosse um chiclete de hortelã.

- Olhe só, sei que parece uma história bizarra, mas a dra. Cameron não é uma mulher que gosta de desperdiçar o tempo da polícia. Ela trabalhou como consultora
para a Polícia Metropolitana por vários anos, e não acho que eles... - Sua voz falhou ao se dar conta de uma possível solução para seu dilema. Tinha ficado tão
preocupada em repassar a mensagem que perdera de vista a alternativa óbvia. Inspirou fundo e sorriu para Lovat.

- O detetive superintendente Steve Preston - anunciou. - Da Scotland Yard. Por favor, ligue para ele. Conte a ele o que eu lhe contei. Ele saberá que não estou
inventando isso.

Lovat pareceu ligeiramente divertido. - A senhora quer que eu ligue para a Scotland Yard assim, sem mais nem menos?

- Isso só irá lhe tomar alguns minutos. E poderá salvar uma vida. Por favor, sargento Lovat. - Ela se forçou a abrir um sorriso frio. - Seria muito melhor se ele
escutasse isso do senhor do que de mim. Mas, se o senhor não quiser ligar, eu ligo.

Lovat olhou para o policial e ergueu as sobrancelhas. - O que você está esperando, Sammy? Essa vai ser boa.

As paredes de pedra com cerca de 3,5 metros de altura se fecharam em torno deles, formando um corredor estreito que fazia uma curva para a esquerda. Assim que
se viram sob a proteção da fenda, Kit incitou Fiona a prosseguir.

- Vá, agora. Me deixe aqui. Vou encontrar um lugar para me sentar. Ela jogou os braços em volta dele num abraço rápido. - Eu te amo - disse. E então partiu, movendo-se
rapidamente pela base da passagem. Com passos decididos e determinação, Fiona movia-se com a confiança de uma pessoa acostumada às difíceis caminhadas pelas montanhas
e colinas. Em poucos minutos, percebeu que a fenda começava a se alargar, abrindo-se num declive rochoso entremeado por arbustos e samambaias. Ela parou, analisando
os perigos do terreno à frente.

O córrego abrira seu próprio caminho pelo pântano de turfa. Suas margens ostentavam o tom rico de chocolate meio amargo, debruadas pelo amarelo típico das gramíneas
das montanhas e o avermelhado das samambaias. Ele ficava, como Kit dissera, a uns 11 metros da saída da fenda. Não havia como verificar se Blake descobrira o lugar
onde eles acabariam emergindo ou se continuava a esquadrinhar a encosta da colina, frustrado, imaginando onde eles poderiam ter se metido.

Fiona ponderou por alguns instantes. Se atravessasse correndo até o riacho, sua própria velocidade poderia atrair a atenção. O pulôver era de um vermelho vivo.
No entanto, a camisa térmica de gola alta era cinza e as calças, de um tom verde-oliva. Se tirasse o pulôver, ficaria bem camuflada contra a pedra. Valia a pena
tentar.

Ela puxou o pulôver pela cabeça e o jogou no chão. Em seguida, lembrou-se do estilete e o pegou, certificando-se de que a lâmina estivesse retraída antes de enfiá-lo
no bolso da calça. Colocou-se de joelhos e então deitou sobre a pedra. Apesar da aflição que isso lhe causava, ordenou-se a seguir se arrastando, sentindo-se terrivelmente
exposta enquanto cruzava os 11 metros até o córrego. Ao alcançar a margem, virou de modo a cair com os pés primeiro. A água estava tão gelada que, por alguns segundos,
não conseguiu respirar. Agachou na água, que lhe batia na altura das panturrilhas, deixando a cabeça ligeiramente acima da margem. Esquadrinhou a encosta da colina,
procurando pelo ponto de observação de Blake.

- Te peguei - falou baixinho. Daquele lado, era possível vê-lo com nitidez. Fiona distinguiu o contorno de seu corpo contra a encosta, o cano da arma sobressaindo
como uma prótese obscena. Ele estava com uma das mãos sobre os olhos, como se olhasse através de binóculos. Fiona calculou mais ou menos onde precisaria estar
para se aproximar por trás e pular em cima dele. O riacho fazia uma curva acentuada à esquerda, alguns metros depois do lugar onde ela queria se posicionar. Tomando
isso como base, ela se curvou, de modo a ficar com a cabeça abaixo da margem, e começou a subir o córrego.

Era uma subida traiçoeira, as pedras do leito do riacho estavam escorregadias por causa das algas, além de serem desiguais demais, o que a forçou a subir devagar
e um tanto desajeitadamente. Mais de uma vez, Fiona escorregou e caiu de cara na água gelada. Depois do terceiro ou quarto tombo,

decidiu que não dava para ficar ainda mais molhada e começou a usar as mãos e os braços para ajudá-la a prosseguir mais rápido, fazendo com que parecesse um chimpanzé.

Ela estava tão concentrada em seu progresso que a curva do riacho surgiu diante dela antes que percebesse a distância que já havia percorrido. Fiona ficou de cócoras,
tentando recuperar o fôlego. Não teria a menor chance de se aproximar silenciosamente se estivesse ofegante como um cachorro num dia de verão.

Devagar e com cuidado, Fiona deu uma olhada por cima da margem do riacho. Franziu o cenho. Tinha certeza de que estava olhando na direção certa. No entanto, não
viu sinal de Blake. Virou-se na direção de onde tinha vindo, para se certificar de que subira o suficiente. Estava exatamente onde planejara, o que significava
que Blake deveria estar a uns 90 metros de distância e talvez uns 4,5 metros abaixo. Só que ele não estava.

Fiona sentiu uma fisgada de pânico no peito. Levantou-se, analisando a encosta. Não havia sinal de sua presa.

- Merda - murmurou, saindo da água e subindo pela margem rochosa. Mesmo daquele ponto de observação mais alto, não havia como se enganar. Blake desaparecera.

Isso só podia significar uma coisa, pensou. Ele tinha entrado em pânico ao perceber que eles haviam sumido e descera até o lugar onde os vira pela última vez.
O lugar onde Kit estava deitado, fraco e vulnerável como o menor filhote da ninhada.

Fiona saiu correndo como uma lebre da montanha. Sem se preocupar com sua segurança, atravessou a encosta íngreme num ângulo que esperava levá-la até a abertura
da fenda, onde deixara Kit. As botas molhadas faziam barulho de água, escorregavam e deslizavam enquanto corria, e apenas seus excelentes reflexos a impediam
de despencar de cabeça encosta abaixo.

Enquanto descia correndo a encosta, o que, a princípio, parecia apenas um veio escuro na rocha foi aos poucos ganhando os contornos de uma fenda. Daquele ângulo,
parecia uma rachadura enorme numa rocha gigantesca. Quanto mais se aproximava, mais Fiona percebia que havia escolhido mal o ângulo de descida. Daquele jeito, iria
atingir a beirada no meio do caminho. Ajustou ligeiramente o curso; entretanto, a encosta agora era íngreme demais para a devida correção.

Diminuiu o ritmo para uma caminhada, descendo de lado até alcançar a beira da fenda. Olhou em direção à entrada, porém o ângulo da curva era acentuado demais para
conseguir ver o caminho todo até o ponto onde deixara Kit. Sem a concentração da descida para distraí-la, o medo percorreu seu corpo como uma corrente elétrica.

Fiona se forçou a inspirar fundo e começou a subida traiçoeira de volta pela rocha. A meio caminho de seu destino, parou de supetão ao escutar uma voz de homem
elevar-se raivosamente. Deu um passo à frente, a fim de poder olhar por cima da beirada.

O que viu fez seu estômago se contorcer de puro terror. Logo abaixo, a uns 4,5 metros distância, Kit estava sentado no chão, com as costas apoiadas contra a parede
da rocha. De costas para ela, Francis Blake estava em pé por cima dele, balançando a espingarda como se para testar seu peso. Ela não conseguiu entender o que
ele dizia, mas sua intenção era clara. Ele deu um passo para trás e começou a levantar a arma.

Sem parar para pensar, Fiona partiu para a ação. Correu a pequena distância que a separava da beirada e se atirou no espaço.

No momento em que a arma ficou em posição, Fiona caiu por cima de Francis Blake, e a colisão fez com que os dois despencassem em cima de Kit.

O estalido de um tiro cortou o ar da montanha.

58.

A cidade abaixo dela cintilava como uma galáxia espalhafatosa, zircônio em contraste com as faíscas de diamantes das estrelas, ofuscadas pela poluição da luz.
Isso era provavelmente o que ela merecia, pensou Fiona. Apesar do ar frio da noite, tinha ido até seu local de observação favorito no Heath, pois desejava o máximo
de solidão que poderia encontrar em pleno coração da cidade.

Tirou a carta do bolso, apalpando-a entre as luvas. Estava quase escuro demais para ver o cabeçalho, mas Fiona precisava constatar se era a carta mesmo. A promotoria
pública decidira que ela não seria acusada de homicídio culposo. Não haveria consequências formais por aquele minuto de caos em que a espingarda disparara, levando
consigo a maior parte da cabeça de Francis Blake. Eles haviam finalmente aceitado que seus atos não tinham sido premeditados; alguns segundos mais cedo ou mais
tarde e o resultado teria sido bem diferente. Um pouco antes, e Fiona talvez não tivesse vencido a luta pela arma. Um pouco depois, e Blake teria atirado e matado
Kit. De alguma forma, por milagre, ela caíra sobre ele no momento exato. A arma dera um solavanco, com o dedo de Blake no gatilho, e, de repente, tudo havia terminado.

Fiona e Kit tinham se machucado também, e esse era provavelmente o motivo de a polícia ter acreditado quando ela lhes dissera que não tinha a intenção de matar
Blake ao pular da beirada da fenda em suas costas. Seria,

pensou ela, muito mais difícil de acreditar se eles não tivessem sofrido algum dano colateral.

Fiona não podia realmente culpar a polícia por duvidar. Ela devia ter sido uma visão grotesca, cambaleando colina abaixo, coberta de lama e sangue, e molhada
até os ossos. Mesmo tonta pelo choque do que acontecera, tivera sangue-frio suficiente para despir o casacão acolchoado de Blake e usá-lo para deixar Kit o mais
confortável possível. Em seguida, deixara-o sozinho e percorrera os últimos poucos quilômetros até a rodovia, em um misto de dor e medo, cada passo enviando uma
fisgada nauseante pelo ombro que sofrera com a explosão do tiro no momento fatal.

Apenas a adrenalina a fizera continuar seguindo até a rodovia. Ao emergir, finalmente, do último cinturão de árvores, a cabine telefônica onde havia deixado Caroline
brilhara como uma miragem através da névoa de sua exaustão. Fora mancando até ela e discara o número da emergência. Seu alivio ao ser transferida para um oficial
da polícia quase a fez cair de joelhos.

Em poucos minutos, aparecera uma viatura. De alguma forma, tinha conseguido explicar toda a história. E, como Caroline havia convencido a polícia a falar com Steve,
eles a levaram a sério. Ainda que a olhassem com suspeita.

Pelo menos eles haviam chamado um helicóptero da emergência para levar Kit até o hospital. Ela sequer tivera tempo de aproveitar seu alívio; enquanto os paramédicos
extraíam os estilhaços da bala de seu ombro, ela fora cercada por policiais de rosto duro, nada simpáticos, à espera de encontrar algum furo em sua história.

No final, porém, eles tinham acreditado nela. Todos, desde Steve até Sandy Galloway, haviam lhe assegurado que ela não seria indiciada por nada, mas, mesmo assim,
foram semanas de ansiedade até a notificação oficial lhe ser entregue.

Fiona não sabia ao certo como estava se sentindo. Parte dela acreditava que merecia alguma espécie de punição por ter tirado a vida de outro ser humano. Seu lado
racional, porém, lhe dizia que era bobagem imaginar que qualquer punição formal poderia aliviar a culpa. E não podia negar que sentia uma espécie de alívio por
não ter de reviver aqueles terríveis segundos em que precisara tomar uma decisão de vida ou morte, a qual, em última instância, não fora realmente uma escolha.

Era irônico saber que a única pessoa que seria levada até a corte por algo relacionado com os assassinatos de Francis Blake fosse o falso confessor, Charles Redford.
Ele aguardava o julgamento na prisão, e responderia por interferir no curso da justiça, pelas ameaças de morte e pelas ofensas à Lei de Proteção contra o Assédio.
E estava na mesma ala que Gerard Patrick Coyne, prestes a encarar o júri pelo assassinato de Susan Blanchard. A proximidade dos dois homens que serviam de elo aos
crimes de Francis Blake proporcionava uma simetria satisfatória aos olhos de Fiona.

O som de passos na trilha a arrancou de seus devaneios. Fiona virou a cabeça e viu uma figura familiar se aproximando. Olhou de volta para as luzes da cidade,
sem querer passar a impressão de que estava ansiosa por companhia.

Steve pigarreou. - Achei que fosse encontrá-la aqui. Kit falou que você tinha saído para dar uma volta. - Ele ficou parado em pé ao lado do banco, com uma expressão
de dúvida.

- Ele não mencionou que eu não queria companhia? Steve pareceu constrangido. -As palavras exatas dele foram: "Você está por sua conta e risco, meu amigo. Ela
está dando uma de Greta Garbo."

Ela suspirou: - Já que você está aqui, é melhor se sentar. - Eles tinham acertado a maioria das suas diferenças no decorrer das semanas anteriores, porém a sensação
de que Steve, de alguma forma, a traíra ainda encontrava espaço no coração de Fiona. Isso era outra coisa que ela queria esquecer, junto com a lembrança de ter
matado Blake.

Steve se sentou ao lado dela, mantendo uma distância física. - Kit também me contou as novidades. - Você não sabia? Achei que tivesse vindo por isso - respondeu
Fiona. - Não, eu vim porque finalmente consegui convencer Sarah Duvall a me dar uma cópia do diário de Blake. Ele começou a escrevê-lo enquanto ainda estava na
prisão, e continuou até uns dois dias antes de sua morte. Ele estava escrito em código, mas nada muito complicado. Sarah mandou transcrevê-lo. Achei que você fosse
gostar de ver o diário.

Fiona fez que sim.

- Obrigada. - O diário relata todos os aspectos práticos de como Blake armou o plano e o colocou em execução. Como conseguiu despistar a polícia espanhola quando,
supostamente, estava em Fuengirola. Ao que parece, ele tinha um primo que mora na Espanha. O primo emprestou seu carro para Blake, e simplesmente ficou na casa
enquanto Blake voltava para o Reino Unido e ia até a Irlanda, a fim de matar Drew Shand e Jane Elias. Eles se parecem e, já que os tiras espanhóis viam alguém
que correspondia à descrição de Blake ao passarem pela casa umas duas vezes por dia, jamais imaginaram que não fosse ele.

Fiona concordou com um meneio de cabeça indiferente: - Entendi. - Ele conseguiu entrar no Reino Unido e na Irlanda de balsa, sem problema, porque, é claro, ninguém
havia emitido um alerta geral contra ele. Blake conseguiu todas as informações de que precisava através da Internet e das matérias publicadas sobre seus alvos.
Conseguiu até descobrir a localização da cabana do Kit pelo Registro de Imóveis. O filho da mãe era esperto. Ele cobriu todos os rastros. O único erro que cometeu
foi não levar em conta as câmeras da CCTV no Smithfield.

- Isso é fascinante, Steve. Mas esse diário responde a pergunta principal?

- Você quer dizer o motivo? - E o que mais? - Tentar entender a mantivera acordada um número incontável de noites. Sabia que tinha de haver algum motivo coerente
nos atos de Blake, mesmo que só ele visse a lógica naquilo. No entanto, Fiona não conseguira captar até então o porquê de ele querer se vingar dos escritores de
suspense pelo que lhe acontecera.

- É meio louco, mas faz certo sentido - respondeu Steve. - E não faz sempre? - replicou Fiona de modo irônico. - Então, qual é a história?

- Blake estava consumido pelo desejo de se vingar pelo que acontecera com ele. Contudo, sabia que, se partisse para uma vingança direta, nunca conseguiria escapar.
Enquanto remoía, deu-se conta de que havia outros, além da polícia, em quem poderia colocar a culpa.

- Os escritores de suspense? - protestou Fiona. - Ainda não consigo ver a ligação.

- Ele achava que, se a polícia não tivesse chamado um psicólogo especializado em perfis, sua vida nunca teria sido destruída. E ele também achava que o principal
motivo de esses psicólogos serem levados a sério é porque eles foram transformados em heróis infalíveis. E quem os transformou em heróis?

Fiona soltou um longo suspiro. - Todas as suas vítimas escreveram romances em que o psicólogo que montava o perfil era o responsável por capturar o assassino.
E suas obras foram adaptadas para o cinema e a televisão, o que espalhou a ideia para uma audiência bem maior. Dessa maneira, em última instância, eles eram os
responsáveis.

- Isso resume bem o caso - concordou Steve. - E, ao ver Susan Blanchard ser morta, ele percebeu que não seria um tabu tão difícil de quebrar - acrescentou Fiona,
meio que para si mesma. Ergueu os olhos para Steve. - Ele fala do assassinato dela?

- Exaustivamente. Como isso o deixou excitado. Como o fez perceber que matar era a coisa mais poderosa que alguém poderia fazer com outra pessoa.

- Tudo sempre se resume a poder - comentou ela baixinho. Levantou-se. - Obrigada, Steve. Eu precisava saber isso.

- Foi o que eu pensei. - Quer jantar com a gente? Tenho certeza de que Kit deve estar esperando que você apareça.

Steve se levantou. - Adoraria, mas não dá. - Ele baixou os olhos para o chão, em seguida os ergueu para encarar a expressão interrogativa dela. - Combinei de
encontrar Terry para um drinque.

Fiona abriu um sorriso de prazer genuíno. - Já não era sem tempo - disse, dando um passo à frente e o abraçando. - Eu estava ficando de saco cheio de dizer aos
dois que tinham interpretado mal um ao outro.

- É, bem, não posso dizer que a perdoei pelo que ela fez. Mas chegamos à conclusão de que deveríamos pelo menos escutar o que o outro tem a dizer, agora que a
poeira assentou.

Fiona desviou os olhos para o parque.

- Foi isso o que aconteceu? - Não é o que sempre acontece depois que o mundo é virado de cabeça para baixo? - retrucou Steve. - Mesmo que leve um tempo, a poeira
sempre assenta.

Epílogo

Querida Lesley, Estou escrevendo para me despedir. Se você ainda estivesse por aqui, saberia que me tornei o tipo de psicóloga que não acredita realmente em conselhos
terapêuticos desse tipo, mas, desde que concordei em fazer terapia para resolver meu transtorno de estresse pós-traumático, sinto-me impelida a fazer o que o profissional
recomenda, não importa o quanto isso me faz sentir boba e constrangida.

É surpreendente como sabemos pouco sobre o que provoca as nossas reações. Mesmo profissionais treinados como eu não conseguem enxergar com clareza quando se trata
de suas próprias motivações. No entanto, o que percebo agora é que sua morte e a maneira como ocorreu nunca deixaram de me afetar, não importa o quanto eu tenha
tentado fingir que havia superado. Seu legado foi a dor e a culpa. Eu me sentia culpada porque a encorajei a ir para St. Andrews em vez de vir morar comigo em
Londres. Eu me sentia culpada porque sobrevivi e você não. Eu era sua irmã mais velha e devia protegê-la, mas falhei. Eu me sentia culpada porque não consegui
forçar a polícia a descobrir seu assassino. E eu me sentia culpada porque não consegui impedir o que aconteceu com papai depois da sua morte.

Além disso, havia a dor da perda. Em todos os momentos importantes da minha vida, tinha consciência de que você não estava lá. Fico imaginando o que você teria
alcançado e como sua vida seria. Vejo Caroline mudar e crescer, cometer erros e fazer de tudo para corrigi-los, e penso em como você teria lidado com esses erros
de maneira diferente.

Às vezes olho para Kit e desejo mais do que qualquer outra coisa que vocês pudessem ter se conhecido. Sei que vocês gostariam um do outro. As duas pessoas que
eu mais amo no mundo. Como você poderia deixar de gostar dele? Vejo o tempo que poderíamos ter passado juntas e perdemos, a felicidade que não mais está ao nosso
alcance, e isso acaba comigo. Sinto tanto a sua falta, Lesley. Você é o centro de muitas das minhas melhores lembranças. Você era a que tinha o dom do otimismo,
a generosa. Eu sentia tanto orgulho de você, mas nunca lhe disse isso. Eu a amava tanto, tanto, e também nunca lhe disse isso. Você morreu sem saber o quanto
era querida, e esse é outro arrependimento amargo que carrego comigo. Como a culpa e a dor foram fortes demais por muito tempo, perdi qualquer noção da bênção
que você foi enquanto esteve viva. O que estou tentando fazer agora é resgatar as coisas boas do fundo da minha memória e colocá-las em primeiro plano, na esperança
de que elas, aos poucos, aliviem a dor e impeçam que essa dor molde minha visão de mundo.

O que também preciso aprender a aceitar é o fato de minha vida profissional ser outro legado do seu assassinato. Por sua causa, escolhi determinado caminho. Era
como se eu sentisse que, por ter falhado com você, eu precisava tentar fazer o que fosse possível para impedir que algo semelhante acontecesse com alguém mais.
Acho que estava buscando uma espécie de redenção.

Desse modo, preciso reconhecer que, quando Kit desapareceu, meu subconsciente provavelmente se agarrou à ideia de que, se eu o salvasse, estaria salvando a mim
mesma. Ao olhar para trás, vejo que podia, devia ter tentado com mais afinco forçar a polícia a entrar em ação. No entanto, em algum nível, percebo agora que eu
praticamente desejava ser rejeitada para que fosse obrigada a andar pela corda bamba.

Não imaginava que isso me deixaria com sangue nas mãos e uma espécie diferente de culpa.

Quando vi o homem que amo face a face com a morte, não pensei em nada disso. Simplesmente agi sem pensar ou hesitar e fiz a única coisa que estava ao meu alcance
fazer.

No entanto, ainda acordo no meio da noite escutando o som do tiro e com a terrível imagem da cabeça de Francis Blake explodindo no meu rosto.

Contudo, o item pendente, segundo meu terapeuta, é minha necessidade de me reconciliar com você. É disso que se trata esta carta. Suponho que preciso aceitar ser
impossível mudar o passado. Preciso aceitar que o que aconteceu com você e com a nossa família não foi minha culpa, mas sim do homem que tirou sua vida.

Acho que tinha medo de que, se admitisse isso para mim mesma, não teria mais motivo para continuar a fazer o que faço tão bem. Eu estava errada. O que faço tem
valor por si só. Provavelmente nunca teria escolhido esse caminho se você não tivesse morrido da forma como morreu ou naquele momento. Isso, porém, não deveria
ser um peso pendurado em meu pescoço. Devo pensar nisso, tal como em minha amizade com Caroline, como um presente que sua morte me trouxe.

Entender e aceitar são duas coisas diferentes, é claro. Mas uma certamente levará à outra, e esta carta é o primeiro passo nessa jornada.

Assim, eu me despeço de você. Nunca a esquecerei ou deixarei de amá-la. Só espero que um dia eu pare de sentir que lhe devo algo que nunca poderei pagar.

Com amor, Sua irmã, Fiona

 

                                                                  Val McDermid

 

 

 

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