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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


SOMBRAS SUSPEITAS / Patrícia Macdonald
SOMBRAS SUSPEITAS / Patrícia Macdonald

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

SOMBRAS SUSPEITAS

 

 

 

Uma tarde de terça-feira em finais de Outubro

 

Rebecca Starnes lançou a cabeça para trás, endireitou-se no banco de jardim e enfiou sub-repticiamente a camisola de lã por baixo das calças de ganga de forma a realçar ainda mais as curvas do corpo. Pelo canto do olho observava o rapaz que saltara o muro do parque de estacionamento no seu skate e aterrara no pavimento. Era uma acrobacia ousada e Rebecca tentava abafar um grito de cada vez que ele não conseguia fazer o looping completo. O rapaz usava óculos de sol e era impossível saber se estava a olhar para ela; Rebecca, aliás, não queria que ele se apercebesse de que estava a observá-lo.

 

Tinha a certeza de que já o vira antes, provavelmente num jogo de basquetebol. Só não sabia em que liceu ele andava. Havia muitos liceus católicos na área e eram várias as equipas que participavam no campeonato. Podia pertencer a qualquer delas. Do que tinha a certeza era de que não frequentava Perpetuai Sorrows porque Rebecca não deixaria de reparar naquele rapaz se ele andasse no liceu onde ela era aluna. Passando um braço por cima do banco, tornou a lançar a cabeça para trás.

 

Uma mulher que empurrava um carrinho de bebé pelo pavimento sinuoso parou em frente de Rebecca e sorriu.

 

Que querido! exclamou. Que idade tem?

 

Seis meses respondeu Rebecca, impaciente. Instalado na sua cadeira, Justin Wallace estava entretido a examinar a sua roca de borracha decorada com desenhos do Pato Donald e dos seus três sobrinhos.

 

Rebecca estendeu o pescoço na tentativa de espreitar para trás da mulher, que lhe tapava a visão. Não se dando conta de que constituía um obstáculo, a mulher sorriu. Resignada, Rebecca tentou mostrar-se simpática.

 

E que idade tem o seu? perguntou, indicando o carrinho que a mulher fazia rolar gentilmente.

 

É um recém-nascido respondeu a mulher enquanto compunha a fina rede que cobria o carrinho. Está a dormir.

 

O Justin... começou Rebecca, olhando de relance para o bebé a seu lado, desejosa de que aquela mulher se fosse embora. Estou a tomar conta dele achou por bem explicar.

 

Compreendendo que não ia estabelecer-se a cumplicidade nata entre mães, a mulher despediu-se, acenou a Justin e afastou-se empurrando o carrinho. Rebecca ergueu os olhos com as pálpebras semicerradas e avistou o rapaz do skate, que ainda se encontrava no mesmo local. Mais uma vez, Rebecca endireitou-se no banco na esperança de parecer atraente sem se mostrar demasiado provocadora.

 

Entretanto, Justin começou a agitar a sua roca impacientemente, mordiscou-a e observou-a com a curiosidade de um cientista que executa uma experiência. Em silêncio, o pequeno Justin ponderou o efeito bumerangue. Analisou as hipóteses e por fim lançou a roca pelo ar. Mal acabara de a lançar, com a sua mãozinha rechonchuda, apercebeu-se de que errara nos seus cálculos. A roca caiu a poucos metros da cadeira, na lama, à sombra das pétalas murchas e acastanhadas de um arbusto de hortênsias. Os olhos cinzentos de Justin, segundos antes iluminados pela antecipação da experiência, ensombraram-se e ele entrou numa crise de choro.

 

Esquecendo-se das suas fantasias acerca do rapaz do skate, Rebecca virou-se e lançou um olhar irritado ao bebé, mas a vontade de lhe ralhar desvaneceu-se por completo logo de seguida. O pequeno Justin era adorável, com a sua camisola de lã vermelha em que se via um dálmata tricotada pela avó.

 

 

Rebecca gostava de todas as crianças, em geral, mas sentia um carinho muito especial por Justin. Os pais de Justin eram novos e viam-se obrigados a trabalhar arduamente para conseguir que o dinheiro chegasse até ao fim de cada mês. Em regra, a mãe de Donna ajudava o casal, mas de tempos a tempos Donna pedia a Rebecca que tomasse conta do pequeno Justin, algo que muito agradava à rapariga, que aceitaria a tarefa sem receber qualquer pagamento a fim de ajudar o casal; Johnny e Donna, no entanto, haviam insistido em pagar-lhe. Rebecca considerava a forma como aquele casal se constituíra bastante romântica.

 

Sempre que mencionava à mãe aquela sua opinião, Sandi Starnes era acometida por um acesso de raiva.

 

Nem penses em fugir de casa, engravidar e depois ficar à espera que a tua mãe se torne de um dia para o outro uma ama-seca! gritava. Era o que faltava! E não parava de dizer à filha que esta não fazia sequer a menor ideia de como era difícil ser-se uma mãe tão nova como Donna Wallace, o que ela devia saber melhor do que ninguém.

 

O pai de Rebecca saíra de casa quando a filha tinha apenas cinco anos. Agora constituíra outra família, no Massachusetts. Rebecca via-o três vezes por ano. Não era mau pai, mas Rebecca sabia que a mãe tinha de trabalhar muito para conseguir criá-la. Fazia turnos duplos no restaurante para que Rebecca pudesse frequentar o liceu católico. Rebecca olhou para o pequeno Justin no seu carrinho. Tudo parecia indicar que cuidar de um bebé seria algo de maravilhoso, mas muitas mães, tal como Donna Wallace e a sua, acabavam por ter de trabalhar durante todo o dia, enquanto não poucos casais se separavam. No entanto, não tinha de ser forçosamente assim. Alguns casamentos resultavam e os casais permaneciam unidos.

 

Olhou novamente para o pequeno Justin.

 

O que se passa, Justin? perguntou.

 

Justin fitou-a, incapaz de explicar-se. As lágrimas afloraram-lhe aos olhos e rolaram pelas suas delicadas bochechas. Rebecca pegou na pequena manta de croché que lhe cobria os pés, mais um trabalho manual da avó do bebé, e tapou-o.

 

Tens frio? quis saber, preocupada.

 

 

O tempo arrefecera. Até ali o Outono fora ameno, mas estava-se quase em Novembro e os dias começavam a ser mais agrestes.

 

Justin, sentindo a amarga frustração dos incompreendidos, reagiu furiosamente. O seu choro tornou-se mais compulsivo enquanto agarrava com as mãozinhas anafadas a barra que se estendia à sua frente.

 

Justin resmungou Rebecca enquanto perguntava a si mesma se o rapaz do skate pensaria que ela era uma baby-sitter incompetente, pára com isso. O que se passa? Pára de chorar. Tens sede? Já trato disso, mas pára de chorar.

 

Era em momentos como aquele que Rebecca sabia que a sua mãe não tinha razões para se preocupar. Rebecca não tencionava ficar presa a um bebé. Queria prosseguir os estudos no liceu e talvez tornar-se técnica de laboratório. Gostava de Ciências. Era a sua disciplina favorita. Também sonhava ter um apartamento e um carro e desejava poder ajudar a mãe dando-lhe algum dinheiro. Esboçou um sorriso nostálgico ao pensar na mãe, que se preocupava em vão. Rebecca ainda nem sequer namorava e muito menos planeava ter um bebé.

 

Baixando-se, vasculhou a bolsa do carrinho à procura do biberão com sumo de maçã. Sentia as faces coradas, enquanto o bebé continuava a chorar, e não se atrevia a erguer o olhar para saber qual seria a reacção do rapaz do skate.

 

Penso que é isto que ela quer exclamou uma voz masculina.

 

Rebecca estacou, assustada, mas ao mesmo tempo esperançosa. Não ouvira passos. Talvez fosse ele, o rapaz do skate. Talvez tivesse decidido aproveitar aquela oportunidade para meter conversa com ela. Respirou fundo e ergueu o rosto na expectativa. Contudo, em vez do atraente rapaz do skate viu um homem de calças castanhas e blusão que tinha a roca na mão.

 

Rebecca olhou para o parque de estacionamento. O rapaz do skate desaparecera.

 

Obrigada murmurou, suspirando, enquanto pegava na roca. Justin, empertigado na sua cadeira, observava aquela troca de palavras com os olhos muito abertos. Mas é um menino.

 

A sério? exclamou o desconhecido, admirado.

 

É que pensei, por causa dos caracóis, que...

 

Rebecca passou a mão pelos cabelos encaracolados de Justin.

 

Muitas pessoas pensam o mesmo.

 

A roca está um pouco suja comentou o desconhecido. Ele lançou-a para baixo daquele arbusto. É melhor eu ir lavá-la à fonte.

 

Está bem concordou Rebecca enquanto se sentava novamente no banco de jardim. O desconhecido afastou-se em direcção à fonte, passou a roca por água, regressou e entregou-a a Rebecca. De seguida sentou-se no banco sem se aproximar demasiado da rapariga, mas Rebecca, mesmo assim, sentiu por breves instantes um certo mal-estar. Reprimindo aquele sentimento súbito, disse a si mesma que aquele homem não podia ser um tarado porque tinha uma aparência normal.

 

Deve estar muito orgulhosa dele comentou o homem num tom de voz afável, parecendo julgar que Justin era filho de Rebecca.

 

Não é meu explicou Rebecca, enquanto pensava como os adultos podiam ser estúpidos. Primeiro fora a jovem mãe e agora aquele homem. Rebecca não gostava de pensar que parecia suficientemente velha e feia para passar por mãe.

 

Estou a tomar conta dele acrescentou. Justin, entretanto, voltara a mordiscar alegremente a sua roca. Tenho apenas quinze anos.

 

Compreendo murmurou o desconhecido, acenando. De seguida tirou um pacote de bolachas com queijo do bolso do blusão, abriu-o e tirou uma.

 

Não devia estar na escola? inquiriu.

 

Ando no liceu católico explicou a rapariga e hoje celebra-se um feriado religioso.

 

Ah... tornou a murmurar o homem enquanto provava com ar pensativo a sua bolacha. Então, parecendo lembrar-se subitamente de algo, estendeu o pacote a Rebecca.

 

Desculpe. Não era minha intenção comer à sua frente. Quer uma?

 

Rebecca encolheu os ombros. Tinha algum apetite, mas hesitou. Tal como todos os outros adolescentes, já ouvira falar dos perigos de aceitar doces de estranhos. Os pais pareciam mostrar-se constantemente atormentados por casos do género, mas aquele homem não era propriamente um pervertido, a babar-se, que ela encontrara num lugar deserto. Uma mulher de óculos lia um livro sentada num banco um pouco mais à frente e Rebecca vira-a erguer o olhar maquinalmente. Do outro lado do lago um asiático praticava exercícios budistas numa clareira e um carro da polícia passara por ali havia menos de dez minutos. Todos aqueles pensamentos lhe passaram pela cabeça enquanto olhava para as bolachas no interior do pacote de celofane. Tinha de reflectir antes de tomar uma decisão. Afinal todas as notícias publicadas nos jornais metiam medo. Não necessariamente ali, em Taylorsville, mas nunca se sabia... O homem esboçou um sorriso constrangido.

 

Não estão recheadas com qualquer substância perigosa. Acabo de comprar o pacote ali, na loja de conveniência.

 

Rebecca corou violentamente, humilhada por se dar conta de que aquele homem lhe lera os pensamentos e percebera que ela desconfiava dele.

 

Não se sinta envergonhada retomou o desconhecido. Todo o cuidado é pouco nos dias que correm. As crianças são o bem mais precioso do mundo e deviam avisá-las de que tivessem cuidado. Tenho a certeza de que os seus pais lhe devem ter enchido a cabeça com avisos e conselhos. Afinal, todos os pais se preocupam com o que pode acontecer aos filhos.

 

Partindo do princípio de que o desconhecido tinha filhos, Rebecca sentiu-se imediatamente mais à vontade. Sorriu, se bem que aquelas palavras a fizessem experimentar uma certa melancolia. Desejava ter um pai que achasse que a sua filha era o bem mais precioso do mundo, mas não conseguia imaginar Bud Starnes a dizer semelhante coisa em relação a ela.

 

Já não sou uma criança replicou.

 

E como se chama o bebé? perguntou o desconhecido indicando o carrinho.

 

Contente por ver que o homem mudara de

 

Justin Mark Wallace e é o meu melhor amigo.

 

Ao ouvir o seu nome, o pequeno Justin ergueu os olhos e brindou Rebecca com um grande sorriso desdentado. Rebecca retribuiu o sorriso e por fim tirou uma bolacha.

 

O desconhecido sorriu por sua vez e aproximou-se um pouco mais de Rebecca. Pousou o braço sobre as costas do banco de forma a aflorar com a ponta dos dedos a pele da rapariga.

 

Quando o carro parou na berma do carreiro circular de pedra, Maddy Blake contemplou a mansão imponente de estilo Tudor iluminada pela luz do crepúsculo. Folhas em tons de âmbar desprendiam-se em silêncio das árvores seculares atapetando o relvado brilhante, enquanto ramos espinhosos trepavam de cada lado da mansão, fazendo que esta parecesse ter raízes próprias, como se estivesse ali há uma eternidade.

 

Caramba! exclamou Maddy. Que bela casa! Não admira que ele cobre honorários tão elevados!

 

Mas vale o seu peso em ouro replicou Doug, à defesa.

 

Claro, claro apressou-se a concordar Maddy, evitando o olhar do marido.

 

Maddy e Doug eram convidados de Charles Henson, o advogado de Doug, para celebrar a ocasião. Na semana anterior, Charles defendera Doug com êxito, ilibando-o da acusação de assédio sexual que lhe fora feita por uma estudante do liceu onde Doug era professor de História. O juiz absolvera-o de todas as acusações e, ao fim de cinco semanas de dispensa, Doug recuperara o seu posto de trabalho, embora com a sua reputação muito abalada.

 

Disseram-me que a mulher dele pertence a uma família abastada comentou Doug. O que faz uma grande diferença.

 

Foi a vez de Maddy olhar de relance para o marido, que fitava a propriedade. Teria sido uma insinuação?, perguntou-se.

 

Aquele suplício saíra-lhes muito caro, tanto monetária como psicologicamente. Tinham gasto todas as economias para pagar os honorários de Charles Henson e as demais contas ao longo das cinco semanas em que Doug não trabalhara. Maddy, uma artista especializada em vitrais, laborava por conta própria e os seus rendimentos eram irregulares. Não pertencia a uma família abastada, mas trabalhara afincadamente, na tentativa de manter estáveis as finanças da família durante a dispensa forçada do marido.

 

Doug não lhe deu tempo para reflectir sobre o comentário que fizera momentos antes. Voltando-se para trás, sorriu à filha do casal, com três anos de idade.

 

Chegámos, Amy. Está na altura de saíres do carro. Amy, tão loura como o pai, brindou-o com um bonito sorriso.

 

Vou levar o George comigo anunciou, empunhando um macaco de peluche que era o seu companheiro constante.

 

Maddy observou o marido, de cabelos louros e macios e olhos de expressão afável, e pensou como ele estava elegante com o seu fato de tweed e a sua gravata. Não ficara admirada quando soubera que uma das alunas de Doug se apaixonara por ele. Poucos anos antes, ela própria se apaixonara por Doug à primeira vista. No entanto, a forma como a estudante descrevera a relação, alegando que Doug a submetera a chantagem, exigindo que tivesse relações sexuais com ele em troca de uma boa nota... Felizmente, quando o caso fora a tribunal, a queixosa não aparecera, por duas vezes; quando finalmente testemunhara, o questionário a que Charles Henson a submetera revelara que a jovem dera três versões diferentes do mesmo caso.

 

Não podes deixar o teu macaco no carro? perguntou Doug, de sobrolho franzido.

 

O rostinho de Amy ensombrou-se.

 

Mas eu preciso dele... respondeu em tom suplicante.

 

Deixa-a levar o boneco sussurrou Maddy. Os Henson insistiram em que trouxéssemos a Amy e as crianças fazem-se quase sempre acompanhar pelos seus bonecos de estimação.

 

Está bem, pronto... anuiu Doug. Maddy virou-se para a filha.

 

Podes levar o George.

 

Depois de sair do carro, Doug abriu a porta de trás e libertou a filha do cinto de segurança enquanto Maddy alisava o vestido de malha que usava. Hesitara na escolha do que vestiria para aquela ocasião.

 

Estou bem? perguntou dirigindo-se ao marido.

 

Estás linda respondeu Doug aproximando-se de Maddy com a filha pela mão.

 

Continuo sem perceber muito bem porque insistiram em receber-nos murmurou Maddy e porque quiseram que trouxéssemos a Amy.

 

Doug e Maddy tinham convidado os Henson para jantar fora a fim de exprimirem a sua gratidão, mas Charles Henson fizera uma contraproposta.

 

Nem eu replicou Doug. Ele disse-me que a mulher não gosta de sair. Tenho ideia de que ela é um pouco estranha. Não sei quem foi que me disse que teve uma depressão e passou um ano num hospital psiquiátrico.

 

A sério? espantou-se Maddy.

 

Não tenho a certeza retorquiu Doug. Nos últimos tempos desconfio de qualquer boato. Além de que, como é natural, não é o tipo de assunto que eu aborde com o Charles.

 

Claro que não concordou Maddy, pensativa.

 

De qualquer maneira, tenho a certeza de que vai correr tudo bem durante o jantar. Se bem me lembro, ele disse-me que tinham uma cozinheira.

 

Não me leves a mal. Pela minha parte não há qualquer problema justificou-se Maddy. Jantaria onde ele muito bem quisesse porque nos salvou da desgraça.

 

Doug alisou os cabelos.

 

Mas não porque cometi um delito grave replicou.

 

Claro que não! apressou-se a acrescentar Maddy. O que eu queria dizer era que podia ter... Nos tempos que correm, a inocência já não parece ser garantia do que quer que seja.

 

Fico muito grato pelo teu apoio comentou secamente Doug.

 

Sentindo-se culpada, Maddy deu o braço ao marido.

 

Desculpa. Não queria que interpretasses as minhas palavras dessa maneira. Sempre acreditei em ti. É que... Sabes, também estou cansada, meu querido. Esgotada... pela experiência por que passámos.

 

Doug deu-lhe uma palmadinha na mão que ela enfiara debaixo do seu braço, mas Maddy evitou de novo o olhar do marido. Fora-lhe surpreendentemente fácil apoiá-lo quando Heather Cameron apresentara queixa e a direcção da escola o suspendera. Passado o choque inicial dedicara-se de imediato à defesa do marido. Haviam lutado como um casal, uma família, em reacção natural a um problema grave. Agora que tudo terminara e que Maddy tinha mais tempo para pensar sentia-se envergonhada por reconhecer que em certos momentos suspeitara de Doug.

 

Doug indicou o caminho e subiu os degraus de pedra. O portão da mansão abriu-se logo de seguida. Charles Henson surgiu, vestido informalmente com um pólo e um casaco de malha. Os seus cabelos grisalhos e espessos estavam perfeitamente penteados e mesmo em traje informal deixava transparecer uma certa distinção. Uma mulher de aparência frágil espreitou por trás dele.

 

Entrem, entrem! convidou Charles. Os dois homens trocaram um aperto de mão. Doug agarrou a mão de Charles com as suas. Maddy comprimiu os lábios ao observar aquele cumprimento. A gratidão de Doug parecia-lhe um tanto ou quanto obsequiosa de mais. "Não sejas tão crítica", recriminou-se mentalmente. "É natural que o Doug esteja muito grato ao Charles."

 

Obrigado... pelo... pelo seu convite balbuciou Doug.

 

Seja bem-vinda, Maddy. Olá, Amy saudou Charles. Haviam-se já encontrado, aquando do julgamento e das reuniões que marcara em casa de Doug e de Maddy a fim de delinear a estratégia da defesa do professor. Deixem-me que vos apresente a Ellen, a minha mulher.

 

Maddy sorriu abertamente à mulher franzina, de expressão tímida, que continuava postada atrás do marido. Usava calças de ganga e camisa de algodão. Era tão esguia como uma adolescente, muito embora, segundo os cálculos de Maddy, devesse andar pelos cinquenta anos. Ainda mantinha a beleza da juventude, apesar dos cabelos grisalhos e encaracolados, que usava presos no alto da cabeça com algumas madeixas soltas. Cumprimentou Maddy, mas o seu olhar estava fixo na pequena Amy. Depois, baixando-se, falou-lhe em tom carinhoso. Maddy sentiu uma imediata simpatia por aquela mulher que prestava tanta atenção a uma criança.

 

Entrem! Aceitam uma bebida? perguntou Charles. A Paulina ainda não tem o jantar pronto.

 

Como em resposta ao seu comentário, uma mulher forte de avental surgiu no vestíbulo.

 

O jantar estará pronto daqui a meia hora anunciou, com uma pronúncia originária da Europa Central. A menina vai querer salsichas e puré de batata?

 

Com certeza que sim respondeu Maddy agradecida. Ela adora cachorros-quentes.

 

Seguiram Charles até à imensa sala de estar mobilada com sofás de couro, tapetes espessos e obras de arte ricamente emolduradas. A atenção de Maddy foi de imediato atraída para o quadro que se achava por cima da cornija da lareira. Era um quadro a óleo de uma Ellen muito mais nova, com um braço protector em volta de um rapazinho com cerca de cinco anos, que agora devia ser adulto e provavelmente já dera netos ao casal.

 

Charles encheu taças com champanhe e entregou-as aos seus convidados e à esposa.

 

Brindemos à justiça feita propôs.

 

Doug fitou as pequenas bolhas que se haviam formado na sua taça.

 

Charles, nunca saberei como agradecer-lhe o que fez. Passámos por momentos muito difíceis nestes últimos meses.

 

Não se preocupe. Sentir-se-á menos grato quando receber a conta.

 

Todos se riram, se bem que com algum nervosismo.

 

Sinto-me tão contente por este pesadelo estar terminado... acrescentou Maddy. A rapariga fez aquelas acusações e de repente o nosso mundo desabou e tornou-se um caos.

 

Eu sei, é terrível replicou Charles acenando com expressão grave. E o facto de ela ser filha do chefe da polícia ainda complicou mais as coisas. Estamos perante um novo tipo de macarthismo. Pelo menos é essa a minha opinião. Os miúdos, hoje em dia, têm um poder aterrador. São suficientemente inteligentes para saber exactamente o que dizer de forma a que as suas acusações pareçam credíveis, mas, por outro lado, ainda são muito novos para ter noção de como os seus caprichos maliciosos podem destruir a vida de uma pessoa. Mas, Charles... interrompeu gentilmente a mulher. Sabes bem que há muita maldade neste mundo. E algumas das vítimas são crianças inocentes...

 

As palavras de Ellen Henson atingiram Maddy como se alguém tivesse acabado de dar-lhe um murro no estômago. Pensaria Ellen Henson que Doug era culpado? Fora isso que tentara insinuar?

 

No entanto, Charles mostrou-se absolutamente impassível perante o protesto da mulher.

 

Minha querida retorquiu, sou o primeiro a reconhecer que muitas crianças são maltratadas por adultos e que devem ser tomadas medidas contra isso, mas as coisas assumiram proporções desmesuradas. Esta nova realidade tornou-se uma verdadeira caça às bruxas.

 

Na minha opinião, a Heather Cameron é uma rapariga com problemas emocionais, mas a culpa não é do meu marido rematou Maddy.

 

Em resposta, Charles ergueu a taça na direcção de Maddy.

 

O modo como apoiou o seu marido foi verdadeiramente admirável e ajudou-nos muito durante o julgamento.

 

Maddy, atrapalhada, corou violentamente.

 

Pareceu-me óbvio que o juiz percebeu que a Heather mentia replicou, constrangida.

 

Entretanto, Ellen pousara a sua taça numa mesa baixa de mogno e anunciou em voz baixa:

 

Quero mostrar uma coisa à pequena Amy, antes do jantar. Amy, queres ir comigo até lá fora?

 

A pequenita ergueu o olhar, animada, porque estava sempre disposta a uma nova brincadeira. Ellen estendeu-lhe a mão, enquanto Maddy, por sua vez, pousava a taça. Aquela mudança parecia-lhe algo abrupta, mas por outro lado sentia-se contente por a conversa haver tomado um novo rumo.

 

Eu acompanho-vos declarou.

 

Óptimo. Ouviste, Amy? A mamã também vem connosco.

 

As duas mulheres e a menina avançaram para a porta no preciso instante em que Charles convidava Doug a sentar-se.

 

Já no jardim, Amy começou a correr e as duas mulheres seguiram atrás dela, com as mãos enfiadas nos bolsos dos casacos, enquanto esmagavam com os saltos dos sapatos as folhas secas e quebradiças que cobriam o relvado.

 

Caminharam lado a lado, absortas num silêncio incómodo, durante alguns minutos, até que Maddy achou por bem falar.

 

Queria que soubesse que estamos muito gratos ao seu marido.

 

O Charles é um excelente advogado na sua especialidade.

 

Maddy acenou, mas teve a nítida sensação de que a outra mulher reprimira a custo a sua desaprovação, o que lhe provocou um certo mal-estar. No entanto, tinha de reconhecer, por muito que lhe custasse, que iria deparar com muitas outras reacções idênticas. A vitória na sala de tribunal não significava que ela pudesse finalmente baixar a guarda. As pessoas nutriam especial predilecção por acreditar no pior... Assim, tentou encontrar outro assunto de conversa.

 

Tem uma bela propriedade.

 

Tenho, não é verdade? animou-se Ellen. Foi aqui que passei a minha infância. Custa-me muito ver que o Inverno se aproxima. Dedico-me à jardinagem. É a minha grande paixão.

 

Já eu não tenho jeito nenhum para a jardinagem... confessou Maddy.

 

Espero que não se tenha importado de jantar aqui. Não gosto de sair. Sou aquilo a que se pode chamar uma eremita.

 

Não me importo nada. Foi muito gentil em receber-nos replicou Maddy, mas não pôde deixar de pensar no que Doug lhe dissera a respeito de Ellen haver tido uma depressão nervosa e examinou de relance a outra mulher, que era aparentemente uma pessoa serena e de bem com a vida.

 

Amy! exclamou Ellen, chamando a pequenita. é aqui, na garagem!

 

Maddy perguntou a si mesma a que garagem estaria Ellen a referir-se. A mansão remontava aos dias em que se andava de carruagem ou a cavalo. Os carreiros do jardim eram ladeados por candeeiros, já acesos, em virtude do anoitecer, e uma sucessão de anexos interligados, ladeando a alameda de pedra, condizia em estilo com a mansão. Uma das portas estava entreaberta e dela saía um fio de luz. Ellen apontou naquela direcção. Ao perceber para onde a mulher se dirigia, a pequena Amy correu para a porta entreaberta.

 

Maddy ouviu os gritos de alegria da pequenita antes de se lhe juntar. Entrou na garagem, vazia e sombria, e precisou de alguns segundos para localizar a razão da alegria da pequena Amy. Por fim avistou a um canto um grande caixote de madeira forrado com um pano de flanela. No interior aninhavam-se uma gata e as suas crias. Não eram recém-nascidos, porque exploravam activamente o solo coberto com palha da garagem, mas eram pequeninos e peludos e Amy, ao vê-los, bateu palmas de contentamento. Depois agachou-se e tentou pegar num dos gatinhos.

 

Não lhe pegues com muita força, minha querida aconselhou Maddy, algo assustada, esboçando uma expressão de contrariedade por saber que lhe ia ser difícil afastar Amy daquelas pequenas criaturas adoráveis.

 

Deixe-a brincar com os gatinhos protestou Ellen. Tenho a certeza de que não lhes fará mal.

 

Logo de seguida conduziu-a para fora da garagem, e Maddy, cada vez mais preocupada, olhou novamente para a filha.

 

Bem, penso que não vai haver problema acabou por conceder. Seguiu atrás de Ellen por uma encosta, em direcção a um banco de ferro forjado que se encontrava perto de um pequeno bosque. As duas mulheres sentaram-se. Um candeeiro a gás lançava um manto de luz amarela sobre os seus ombros. O ar era húmido, ameaçando chuva. Ao longe, rodeado por arbustos, podia ver-se um anexo de dimensões diminutas, que mais parecia uma casinha de bonecas, com um lanternim de cada lado da fachada. Apesar do fulgor do candeeiro a gás, era impossível discernir qual a cor com que havia sido pintado o pequeno anexo.

 

Que anexo tão amoroso! exclamou Maddy.

 

O que é?

 

Era a casa de brincar do meu filho respondeu Helen. Na realidade, é uma construção muito antiga. Se bem me recordo, foi em tempos idos a oficina de um funileiro. Trouxemo-la para cá e mandámo-la restaurar, há alguns anos.

 

É realmente adorável. Espere até que a Amy veja a casinha!

 

Não permito que ninguém entre ali ripostou Ellen, para logo a seguir acrescentar, algo envergonhada: Se bem que saiba que se trata de uma mania minha...

 

Maddy examinou o anexo com mais atenção e percebeu que a porta estava trancada, as janelas bloqueadas e as cortinas corridas. Sentiu-se novamente invadida por um estranho pressentimento, como se houvesse algo de tenebroso naquela casinha tão alegre.

 

Não tem importância replicou, ciente de que cometera uma gafe. Duvido que consigamos afastar a Amy dos gatinhos.

 

Como se Maddy não tivesse falado, Ellen prosseguiu, num tom de voz monocórdico.

 

O meu filho chamava-se Ken. Morreu com cinco anos de idade. De meningite. Hoje seria o dia do seu aniversário. Faria vinte e um anos se fosse vivo.

 

Aquela trágica coincidência atingiu Maddy como um murro. Tinha a sensação de já o saber, mesmo antes de as palavras terem saído da boca de Ellen. Pressentira, assim que a vira, que havia nela algo de trágico. Nem se atrevera a perguntar quem era o menino do retrato. No entanto, era o pior de todos os pesadelos e sentiu uma grande piedade pela mulher frágil sentada a seu lado.

 

Deve ter sido horrível... murmurou.

 

Chegou do jardim-de-infância a queixar-se de dores no pescoço. Morreu passados três dias.

 

Lamento imenso. Deve ser um triste dia para si. Não devíamos ter vindo.

 

Não é um dia mais triste do que qualquer outro rematou Ellen meneando a cabeça.

 

Posso imaginar replicou Maddy, se bem que não conseguisse imaginar tamanho sofrimento. Olhando novamente para a garagem, avistou a cabeça da filha.

 

As duas mulheres remeteram-se ao silêncio, cada uma absorta nos seus pensamentos. Por fim, Ellen prosseguiu:

 

Portanto, agora a sua vida vai regressar à normalidade. Maddy respirou fundo ao perceber a ironia expressa naquele comentário.

 

Assim o espero.

 

O Charles disse-me que era pintora.

 

Trabalho em vitrais. Possuo um estúdio nas traseiras da nossa casa.

 

A sério?

 

Começou por ser um passatempo. Depois recebi algumas encomendas e como não gostava do emprego que tinha...

 

Transformou o seu passatempo numa profissão.

 

Vendi algumas das minhas obras numa loja de artesanato da zona, mas não dava para viver. Mais tarde recebi uma encomenda para pintar os vitrais da capela de uma igreja católica, o que levou a outras encomendas...

 

Ellen olhou na direcção do diminuto anexo.

 

Foi uma sorte tê-la conhecido replicou. Tenho andado a pensar que gostaria de fazer algumas modificações na casa de brincar e talvez possa ajudar-me.

 

Maddy sentiu um vivo sobressalto ao verificar que a conversa regressara ao assunto da casa trancada a sete chaves, mas esforçou-se por manter uma expressão impassível.

 

Estava a pensar no Peter Rabbit.

 

Peter Rabbit? repetiu Maddy.

 

Sabe, com aquele casaquinho azul que ele usa. E também no Benjamin Bunny. Dariam vitrais magníficos. Já posso imaginar os retratos dos dois coelhos, com a luz do Sol a iluminá-los, formando desenhos no chão. Com aquele tom azul do casaco do Peter Rabbit. Pensa que poderá pintar os dois bonecos em vitrais?

 

Maddy hesitou. Parecia-lhe um pedido estranho, mas a casa de brincar devia constituir um santuário para aquela mulher. Por outro lado, as obras de Maddy nas capelas eram sempre de homenagem a determinada pessoa, por encomenda dos seus entes queridos.

 

Penso que sim. As janelas são muito antigas e pequenas e estou certa de que não vai querer substituir os vidros de origem acrescentou com todo o cuidado. Talvez pudéssemos fazer algo que pendesse do tecto. Um móbil, por exemplo...

 

Nesse mesmo instante, Charles Henson surgiu à porta das traseiras.

 

A Paulina já tem o jantar pronto anunciou.

 

Já vamos respondeu Ellen, levantando-se abruptamente e sacudindo a poeira das calças de ganga. Então, vai esboçar o projecto?

 

Maddy levantou-se por sua vez, algo desorientada com o rumo que a conversa tomara.

 

Vou precisar de tirar as medidas das janelas...

 

Eu encarrego-me disso atalhou Ellen em voz firme. E depois telefono-lhe.

 

Maddy absteve-se de dizer que tinha de ser ela a tirar as medidas por ter a sensação de que aquele projecto não viria a concretizar-se.

 

Quero que a Amy fique com um dos gatinhos anunciou Ellen. Maddy ainda tentou protestar, mas sabia que de nada lhe serviria. Apesar da sua fragilidade, Ellen era uma mulher determinada, que ninguém poderia contrariar. Além do mais, Maddy e Doug tinham por obrigação demonstrar a sua gratidão. Mesmo assim, Maddy continuou a sentir um vivo mal-estar quando regressaram à mansão. Tentou dizer a si mesma que era provocado pela aquisição inesperada de um animal de estimação e nada mais. No entanto, baixou-se para pegar em Amy ao colo e abraçou-a com força mal entraram na casa.

 

Mary Beth Cameron tirou da gaveta da secretária a grossa pasta de propriedades à venda e abriu-a na ficha relativa a uma bela mansão em tijolo de estilo colonial que ultrapassava largamente o orçamento estipulado pelo homem e pela mulher, bem vestidos e algo nervosos, sentados à sua frente. Virou a ficha na direcção do casal para que pudessem ver melhor a fotografia, acariciando indolentemente a imagem com uma unha pintada de rosa-pálido. Ambos contemplaram a mansão como se fossem Hansel e Gretel a olhar para a casa de massapão coberta de chocolate.

 

É uma bela casa disse Mary Beth, fingindo não reparar na ansiedade do casal. Conhecia bem a sua clientela. Havia muitos casais como aquele em Taylorsville. Não tinham dinheiro suficiente para comprar uma casa nos subúrbios de Manhattan, mas estavam dispostos a empenhar-se num empréstimo elevado a fim de adquirir uma casa imponente mais para norte, em Taylorsville, na ilusão de encontrar alojamento a preço razoável.

 

Sei que é um pouco maior do que aquela que tinham em mente admitiu Mary Beth, mas possui todas as comodidades de que precisa um casal jovem que pensa constituir família.

 

Está um pouco acima do nosso orçamento replicou o homem.

 

Mary Beth fitou-o, mostrando-se surpreendida.

 

Ah, sim? replicou, enquanto virava a página com a mesma unha bem arranjada. Mas temos outras propriedades dentro do vosso orçamento. Ora vejamos...

 

Pôde perceber que o marido se encolheu na poltrona perante as suas palavras, enquanto a mulher olhava pela última vez com nostalgia, talvez até com alguma irritação, a casa dos seus sonhos.

 

No entanto, podemos sempre voltar à minha primeira sugestão acrescentou Mary Beth astutamente.

 

Enquanto o casal olhava com o semblante carregado para uma outra fotografia, Mary Beth consultou o relógio. Como de costume estava atrasada. Já começara a anoitecer e tinha um outro compromisso. Mas, como dizia a Frank, trabalhar no ramo imobiliário não era sinónimo de emprego regular, com horário das nove às cinco. Era preciso estar disponível sempre que apareciam clientes novos, como sucedia naquele momento.

 

A campainha da porta da frente da Agência Imobiliária Kessler tocou e a porta abriu-se. Mary Beth, erguendo o olhar, viu que era a sua filha, Heather. Não gostava dos dias em que Sue, a recepcionista, saía às cinco em ponto. Na maior parte das vezes, era precisamente depois dessa hora que havia mais trabalho na agência e Mary Beth detestava ter de se ocupar de duas tarefas ao mesmo tempo. O que queria era concentrar-se em ganhar uma bela comissão com aquele casal. Mesmo assim, sorriu abertamente a Heather, mas a expressão do seu olhar era fria.

 

Olá, Heather saudou.

 

Olá, mãe replicou a rapariga com voz enfadada. Mary Beth examinou mais atentamente a adolescente que

 

se achava à sua frente. Heather saíra ao pai. Tinha o rosto redondo e tão branco como a cal, olhos pequenos, cinzentos, e cabelos escorridos que lhe chegavam aos ombros. Possuía, no entanto, uma silhueta esguia, embora nada fizesse para mantê-la. Com o que comia deveria estar gorda como um texugo. As roupas que usava não lhe realçavam a aparência: fato-de-macaco muito largo, com uma alça caída sobre o que parecia uma camisola interior, e uns ténis de cano alto, desapertados; tudo isto fazia que mais parecesse uma pedinte. Por mais que Mary Beth se oferecesse para levar a filha às compras ou ten tasse ensiná-la a maquilhar-se, Heather teimava em escolher as roupas mais desleixadas e ridículas. E, apesar de haver dado o seu melhor para apoiá-la, Mary Beth não ficara admirada quando o juiz ilibara o professor das acusações que lhe haviam sido feitas. Com tantas raparigas mais bonitas no liceu, que homem escolheria uma criatura pouco atraente e de ar antipático como Heather?

 

São só mais uns minutos murmurou Mary Beth, enquanto tentava manter um ar profissional. Porque não te sentas ali?

 

Heather fitou a mãe com ar desconfiado, o que fez que Mary experimentasse por breves segundos um certo complexo de culpa. Tinha-lhe prometido que estaria despachada quando ela chegasse, mas entretanto aquele casal aparecera e Heather parecia não compreender que era preciso agarrar qualquer oportunidade sempre que ela surgia.

 

Temos revistas novas acrescentou, irritada por fazer as vezes da recepcionista. Fora como recepcionista que começara a sua carreira, mas não fazia a mínima tenção de voltar atrás.

 

Heather dirigiu-se com passos arrastados para a recepção, deixou-se cair numa poltrona e começou a folhear uma revista.

 

Esta parece interessante dizia o marido com uma ponta de esperança à sua decepcionada mulher.

 

Mary Beth virou-se para examinar a fotografia de uma casa nova, ao estilo de Cape Cod.

 

É uma casa adorável e podem remodelá-la ao vosso gosto.

 

Talvez possamos visitá-la replicou o homem, enquanto a sua esposa deixava transparecer cada vez mais uma expressão de vivo descontentamento.

 

Nesse preciso instante o telefone tocou.

 

Analisem melhor a fotografia enquanto atendo aconselhou Mary Beth. Logo de seguida, levantou o auscultador, olhou de novo para a filha e percebeu que Heather se erguera e começara a andar de um lado para o outro deitando olhares persistentes ao relógio de parede.

 

Fala Mary Beth Cameron. Em que posso ajudá-lo?

 

Temos de ir embora, mãe interrompeu Heather. Mary Beth, desesperada, fez sinal à filha para que voltasse a sentar-se, mas Heather ignorou-a.

 

Foste tu que me disseste que devia estar aqui às seis horas insistiu a jovem. Estou farta de esperar.

 

Mary Beth tapou o bocal com a mão.

 

Já te disse que não demoro nada sibilou, furiosa. Depois olhou de soslaio para os seus clientes. Felizmente, o jovem casal parecia absorto no estudo da pasta de propriedades à venda. Tinham voltado à mansão de estilo colonial e a mulher mostrava-se visivelmente mais animada. Do outro lado da linha, o homem que telefonara não parava de falar sobre arrendamentos. Mary Beth evitou o olhar frio da filha, que por fim voltou para a zona da recepção e se sentou, sem, contudo, deixar de olhar insistentemente para a mãe.

 

Frank Cameron, chefe da polícia de Taylorsville, mudou de posição na cadeira, consultou o relógio e meneou a cabeça, demonstrando a sua irritação.

 

Estou cheio de trabalho. Sou um homem muito ocupado. Ela sabe que tenho mil coisas com que me ocupar, mas continua a fazer-me esperar, de propósito.

 

Quem? A Heather?

 

Não, a mãe dela respondeu Frank em tom de desdém.

 

O Dr. Larry Foreman serviu-se do seu décimo café do dia, sem se esquecer de oferecer uma chávena a Frank Cameron. Dava consultas até mais tarde, duas vezes por semana, e por vezes tinha de privar-se de jantar. O café, para ele, era um substituto da comida.

 

Não, obrigado. Só bebo café de manhã respondeu Frank. Um por dia é o suficiente para mim. Até porque a cafeína faz muito mal às mucosas do estômago, mas o senhor deve sabê-lo...

 

O Dr. Foreman acenou afirmativamente enquanto adicionava açúcar ao seu café.

 

Mas se estivesse a beber uma cerveja retomou Frank, já lhe fazia companhia...

 

O Dr. Foreman contornou a secretária, detendo-se para admirar o seu reflexo nas portas espelhadas da sua biblioteca. Parecia em excelente forma física; o jogging conseguira ajudá-lo a livrar-se do excesso de peso, em comparação com o chefe da polícia, a quem a camisa branca e a gravata realçavam a barriga saliente. A seguir tornou a ocupar a poltrona de couro e, depois de beber um gole, pousou a chávena de café com todo o cuidado sobre um guardanapo.

 

Porque acha que a sua esposa faria tal coisa? perguntou.

 

Porque faz tudo o que pode para me irritar replicou Frank em tom desdenhoso. É casado, doutor?

 

O Dr. Foreman, mais uma vez, acenou afirmativamente, enquanto Frank pegava numa fotografia emoldurada onde podia ver-se o Dr. Foreman com a esposa e as filhas. Examinou o retrato durante alguns momentos.

 

Ainda vai tentar ter um filho varão? Ou já desistiu? perguntou. Nunca tentámos ter um filho varão replicou friamente Larry Foreman.

 

Hum... resmungou Frank. Eu tenho um filho. O Frank Júnior. É casado, arranjou um bom emprego e vai dar-me um neto daqui a poucos meses. Nunca tive problemas com ele. Nem uma única vez. Costuma dizer-se que os rapazes dão mais problemas do que as raparigas, mas o Frankie... Jogou na Liga Juvenil, fez parte do quadro de honra da sua turma e deu-me muitos outros motivos para me sentir orgulhoso.

 

Ao contrário da Heather rematou o Dr. Foreman.

 

Não tente aplicar os seus conhecimentos de psicanálise comigo, doutor. Poupe-me. Já me basta ter de lidar com os seus colegas nos tribunais todos os dias ripostou Frank, esboçando uma careta. Convencem-se de que conseguem enganar uma pessoa ao fazer comentários insidiosos, mas eu já estou calejado. Por isso, deixe-me em paz. Nem sequer estaria aqui se o juiz não tivesse insistido para que a levássemos a um especialista. Não sei porquê, mas algo me diz que a minha mulher o escolheu ao acaso acrescentou, numa clara tentativa de se mostrar desagradável.

 

O Dr. Foreman, contudo, fugiu àquele engodo óbvio.

 

Mas estava a dizer que sente muito orgulho no seu filho...

 

E na Heather também. Sinto orgulho em ambos os meus filhos. São bons miúdos. Só que a Heather... está a atravessar a adolescência e são muitos os jovens que se metem em sarilhos durante essa fase. E eu devia sabê-lo melhor do que ninguém. Vejo-os todos os dias na esquadra. Os seus filhos já chegaram à fase da adolescência?

 

O Dr. Foreman meneou a cabeça, olhando de soslaio para o retrato da família.

 

Então espere e verá retomou Frank, à laia de aviso.

 

Até mesmo as raparigas. Cada vez mais. Portanto, é melhor tratar-me bem, porque, se assim for, eu serei compreensivo para com os seus filhos quando eles aparecerem na esquadra.

 

Mais uma vez, o Dr. Foreman ignorou o reparo.

 

Mas no caso da Heather trata-se de algo mais grave do que uma crise da adolescência, Frank. Ela podia ter destruído a carreira e a vida daquele professor, o que é uma coisa muito séria.

 

Frank Cameron lançou um olhar fulminante ao psicólogo.

 

Pode tratar-me por "chefe".

 

Está bem, mas aqui não é chefe replicou Larry Foreman num tom de voz neutro.

 

Frank Cameron riu-se, mas o seu semblante tornou-se de novo carregado quando, mais uma vez, consultou o relógio.

 

Vai chegar atrasada até mesmo ao seu próprio funeral...

 

resmungou.

 

O silêncio que se seguiu pareceu opressivo a Frank Cameron. Levantou-se e começou a andar de um lado para o outro como uma pantera numa jaula.

 

Tem um belo consultório comentou enquanto olhava pela janela. Situado num bairro elegante, com muito espaço para se estacionar o carro. Palpita-me que se trata de um bairro onde só vivem pessoas abastadas. Não admira que a minha mulher o tenha escolhido acrescentou, sempre em tom sarcástico. A minha Mary Beth desenvolveu um gosto apurado pelas coisas boas da vida.

 

A chuva começara a bater nas vidraças da janela. Frank contemplou a rua e as suas várias lojas.

 

Quando era miúdo, Taylorsville era uma cidade pacata. Todos se conheciam. Naquele tempo já havia a classe operária e os ricos. Agora existe uma classe nova, de arrivistas bem sucedidos. Pessoas como a minha mulher sabem-no e querem de tal forma ascender socialmente que fariam fosse o que fosse para o conseguir. Após aquele desabafo, Frank meneou a cabeça em sinal de reprovação e suspirou. No meu tempo, se tínhamos um problema, desabafávamos com o padre ou bebíamos uns copos e isso parecia dar resultado. Havia menos loucos do que hoje em dia. Nessa altura virou-se e encarou o psicólogo. Sabe o que penso? Que vocês é que põem os vossos pacientes malucos. Nunca conheci um único psicólogo que não tivesse um parafuso a menos.

 

Larry Foreman esboçou um sorriso forçado. Recusava-se a responder à letra. Não iria deixar-se intimidar por aquele polícia corpulento e agressivo. A sua profissão consistia justamente em lidar com os outros, algo que fazia de forma notável, razão pela qual era tão bem pago.

 

Todos nós temos problemas, Frank replicou, mantendo sempre o mesmo tom de voz impassível. E você não é o único a ter essa opinião acerca dos psicólogos. Mas não estamos aqui para falar sobre a minha profissão ou sobre os meus colegas. Estamos aqui para falar da Heather e para tentar descobrir a razão por que está tão perturbada. Existe um ambiente tenso em casa? Entre si e a sua mulher, por exemplo?

 

Deixe o meu casamento fora disto. O problema diz apenas respeito à Heather. É com isso que deve preocupar-se e nada mais. Concentre-se única e exclusivamente na Heather, que eu encarrego-me da minha mulher.

 

Mas existe sempre a hipótese de que o ambiente familiar esteja relacionado com o problema da Heather. '

 

Frank meneou tristemente a cabeça, abandonando por momentos a sua atitude agressiva. Para ser sincero, não faço a menor ideia de qual seja o problema da Heather confessou.

 

Crê que ela disse a verdade em relação ao professor? quis saber o Dr. Foreman.

 

Frank Cameron sentiu-se tomado de súbita cólera ao pensar em Douglas Blake. Inconscientemente, cerrou os punhos e desferiu um murro no espaldar da poltrona.

 

Na minha opinião, aquele homem é um pervertido e um filho da mãe de primeira apanha! Com a ajuda do seu advogado janota tentou safar-se e fazer-me passar por parvo e o juiz caiu que nem um patinho. Sabe o que o juiz disse em relação a mim? Afirmou que a investigação havia sido "manchada por influências pessoais"! Manchada!

 

Sendo assim, posso concluir que acredita na Heather... Frank encolheu os ombros.

 

Não sei. Ela está muito transtornada. Não passa de uma criança e não tem qualquer apoio da mãe. Verá quando elas chegarem. Se é que ainda vão aparecer, raios! vociferou Frank, furioso.

 

Nesse mesmo instante alguém bateu à porta do consultório. Antes que o Dr. Foreman pudesse proferir qualquer palavra, Frank avançou e abriu a porta.

 

Onde raio se meteram as duas? perguntou em tom exaltado. Tenho de policiar uma cidade e não posso perder tempo...

 

Mary Beth passou pelo marido, pediu desculpa pelo seu atraso ao Dr. Foreman e sentou-se. Heather seguiu atrás da mãe, encolhendo-se quando o pai a beijou na testa, e recusou-se a sentar-se.

 

Porque é que eles estão aqui? perguntou a rapariga. Pensava que a sessão era só comigo. Não vou falar à frente deles.

 

Queria ter oportunidade de conhecer primeiro a tua família, Heather explicou o Dr. Foreman.

 

Dr. Foreman confidenciou Mary Beth, sei que queria conhecer a família. Se o meu filho não veio foi por eu não encontrar qualquer razão que o envolvesse no caso. Tem um emprego importante, uma posição de destaque e uma mulher grávida do primeiro filho, e vivem a mais de cem quilómetros daqui...

 

O Frank Júnior é perfeito atalhou Heather. Nunca se meteu em sarilhos. É o herói deles.

 

Cala-te, Heather ordenou o pai.

 

Não tem importância interveio Larry Foreman. Estão aqui para conversar e para que os senhores e a Heather digam tudo o que vos vai na alma...

 

Foi então que um beeper soou. Todos fitaram Frank, que vasculhou o bolso do seu casaco de cabedal.

 

Posso usar o seu telefone, doutor? perguntou depois de ler a mensagem.

 

Há um telefone na recepção respondeu Larry calmamente.

 

Frank levantou-se e saiu do gabinete.

 

É mesmo típico dele comentou Mary Beth com un trejeito do olhar. Até parece que é um neurocirurgião..

 

Bom, Taylorsville talvez seja uma cidade pacata, mas tem muitos habitantes.

 

Além de que gosta de armar-se em importante prosseguiu Mary Beth, não dando ouvidos ao reparo conciliador do Dr. Foreman. Tem sempre de ser o grande chefe.

 

Heather, entretanto, avançara até à janela e olhava para a rua. A chuva escorria pelas vidraças.

 

Passados poucos segundos Frank voltou a entrar no consultório.

 

Tenho de me ir embora anunciou.

 

Frank, tu prometeste! protestou Mary Beth em voz estridente.

 

Uma baby-sitter e o bebé de quem ela estava a tomar conta não regressaram a casa esta noite replicou Frank com voz grave.

 

Compreendo murmurou Mary Beth sentando-se de novo.

 

Desculpe, doutor. Se a minha mulher tivesse chegado a horas... Mas trata-se de uma emergência. Heather, minha querida, vai ter de ficar para outro dia.

 

Heather endireitou-se, mas nada disse.

 

Larry Foreman examinou o rosto da rapariga, pálido, com uma expressão de raiva; depois fixou o pai dela, vestido da cabeça aos pés com o uniforme da autoridade incontestável, impedindo-a de o desautorizar. Por fim consultou o relógio.

 

Heather sugeriu num tom de voz suave a fim de não assustar a rapariga. Porque não te sentas e tentamos resolver certas questões?

 

Heather reagiu à sua sugestão e, afastando-se do pai, sentou-se obedientemente numa cadeira.

 

Frank Cameron entrou no caos que era a esquadra da polícia de Taylorsville e varreu a sala com um olhar preocupado. Seis pessoas imediatamente se aproximaram dele, todas reclamando a sua atenção. A altura, o tronco largo e forte e os cabelos grisalhos do polícia conferiam-lhe uma aparência imponente. A sua entrada pareceu acalmar os outros, dando-lhes a sensação, se bem que momentânea, de que em breve tudo regressaria à normalidade.

 

Sentada à sua frente, sozinha, como se estivesse numa ilha deserta, uma mulher de quarenta anos trajando o uniforme de empregada de mesa apertava contra si a fotografia de uma adolescente. Não ergueu sequer o olhar. Parecia estar em transe.

 

Quem é? perguntou Frank em voz baixa a Len Wickes, um dos seus assistentes.

 

Mistress Starnes, a mãe da rapariga desaparecida respondeu Len.

 

Em seguida, Frank olhou para o jovem casal que se achava sentado em frente da secretária do detective-chefe Pete Millard. Haviam-se virado quando Frank entrara e agora fitavam-no, atormentados; não havia qualquer dúvida de que eram os pais do bebé.

 

Chefe, apresento-lhe os pais do bebé desaparecido anunciou Pete, a Donna e o Johnny Wallace.

 

Frank apertou a mão ao casal com ar grave. O rosto de Donna estava vermelho de tanto chorar. Johnny, que não passava de um rapaz, tentava consolar a mulher. Mau grado os seus esforços, tinha dificuldade em manter a calma. Usava calças de ganga e camisa de flanela, traje que escolhera enquanto trabalhador da construção civil ao serviço da DeBartolo Brothers. Donna, por seu lado, usava um vestido às flores, que lhe ficava largo, e sapatos de salto alto. Escolhera aquela indumentária porque trabalhava num banco, mas também porque naquele dia, após o expediente, deveria participar na festa de despedida de solteira de uma das suas antigas colegas de liceu, que casava em breve.

 

Estavam a contar-me o que aconteceu explicou Pete.

 

Já é a terceira pessoa com quem falamos protestou Donna.

 

Pois bem, chegou a vez de falarem comigo rematou Frank.

 

A verdade é que recomeçou Donna, depois de respirar fundo, tentando reprimir o seu desespero ele costuma ficar com a minha mãe, mas como hoje ela devia comparecer a duas consultas e a Rebecca não tinha aulas... Interrompeu-se e recomeçou a chorar. Porque foi que a deixei com o meu bebé?

 

Sandi Starnes, a mãe da baby-sitter desaparecida, estremeceu perante aquela acusação implícita. Quis gritar que Rebecca era uma boa menina, que eles o sabiam e que, se acontecera algo ao bebé, também acontecera à sua filha, mas fez um esforço para não pensar mais. Achava que a única forma de sobreviver àquela tragédia era ficar sentada, em silêncio, e deixar o seu espírito alhear-se de tudo o resto. Tinha visto na televisão um documentário do Life time Channel sobre os poderes da meditação e de como podiam ajudar a combater o stresse, e agora tentava aplicar as técnicas que aprendera.

 

Muito bem declarou Frank, indicando Pete Millard, o detective de meia-idade de casaco cinzento que recolhera o testemunho dos Wallace. É melhor ires directo ao que interessa, Pete. Faz-me um resumo da situação.

 

Pete assim fez. Rebecca Starnes havia tomado conta do bebé na sua casa durante toda a manhã. À hora do almoço, depois de Sandi sair para o emprego, Rebecca planeara levar o bebé a passear. Não haviam voltado. Donna Wallace, com o marido atrás dela, aproximou-se do detective e interrompeu o seu relato, tentando acrescentar pormenores num tom de voz que o pânico tornara demasiado estridente. Frank, que não era nada paciente, compreendeu mesmo assim a angústia daquela mãe e só a avisou, uma vez e em tom afável, de que tinha dificuldade em ouvir o seu assistente.

 

Quando Pete Millard terminou, Frank examinou a fotografia de Justin Wallace que os seus pais lhe haviam estendido. Não pôde deixar de pensar que já havia muito poucas coisas inocentes no mundo, ao contemplar o rosto dócil, de traços ainda não formados, daquele bebé. Ao longo da sua carreira já tinha visto todo o tipo de crueldades infligidas a inocentes muitas vezes perpetradas por aqueles que fingiam amá-los, o que era suficiente para revoltar qualquer um. Furioso por experimentar um sentimento de impotência, sentiu um nó no estômago provocado pelo receio, que tentou ignorar.

 

Muito bem, Mister e Mistress Wallace retomou, devolvendo a fotografia. A questão é a seguinte: geralmente, quando uma pessoa desaparece, só iniciamos as buscas passadas quarenta e oito horas...

 

Quarenta e oito horas! gritou Donna. Só pode ser...

 

Frank ergueu a mão para a calar.

 

... mas quando se trata de um caso que envolve crianças retomou em voz mais alta, quando se trata de crianças... e, tecnicamente, os dois incluem-se nessa categoria... iniciamos logo as buscas. Voltando-se para Pete Millard vociferou: Quero que se abra de imediato uma linha telefónica para este caso. Temos de fazer que ele chegue ao conhecimento do público. Dá ordens aos teus homens para que se ponham em contacto com os jornais. Também podemos apelar à cooperação das estações de rádio da região.

 

Já tratei disso assegurou Pete, em resposta.

 

Óptimo replicou Frank em voz baixa. Pode ser uma medida prematura, mas todo o cuidado é pouco quando se trata de crianças.

 

Virando-se, o seu olhar penetrante fixou-se em Sandi, que continuava sentada. Tinha nódoas de ketchup na blusa branca e parecia atordoada, como se tivesse acabado de acordar. Só depois foi sentar-se a seu lado.

 

Pelo que sei, a senhora é a mãe da Rebecca.

 

Sandi fitou-o com uma expressão de espanto estampada no rosto.

 

Aconteceu algo de terrível murmurou.

 

Talvez, mas ainda não sabemos exactamente o quê e é isso que temos de descobrir. Acha possível que tudo não passe de um grande mal-entendido? Estão todos a falar de sequestro e coisas do género... Existe uma possibilidade de que Rebecca tenha resolvido ir visitar alguém e levado o bebé? Consegue pensar em alguém que ela possa ter ido visitar? Um amigo, um parente?

 

Já lhe fiz essa pergunta interrompeu o detective Millard.

 

Sim, mas agora quem está a fazer perguntas sou eu! vociferou Frank. Dirigindo-se novamente a Sandi Starnes, o seu tom de voz voltou a ser afável. O que pensa desta minha ideia?

 

Sandi sabia perfeitamente o que ele pretendia. Queria que lhe fornecesse uma lista de pessoas que uma adolescente distraída pudesse encontrar, visitar ou com quem pudesse passar algum tempo. Alguém que atraísse a atenção de uma adolescente de tal forma que ela se esquecesse de levar o bebé para casa à hora combinada ou até mesmo de telefonar.

 

Não existe ninguém sussurrou.

 

Está a dizer-me que não têm amigos nem parentes? E o pai dela? Onde está?

 

Voltou a casar e vive no estado de Massachusetts. Frank Cameron encolheu os ombros, exasperado.

 

Talvez se encontrasse na zona... sugeriu e tenha passado por vossa casa depois de a senhora sair.

 

Sandi ponderou aquela hipótese. Bud Starnes não era o pior pai do mundo, mas não era dado a fazer visitas de surpresa à filha. Cumpria as suas obrigações para com Rebecca, mas não passava disso.

 

Vejo que hesita prosseguiu Frank Cameron. Depois virou-se para Pete Millard. Temos o endereço do pai da rapariga?

 

Já telefonei para casa dele, mas não está ninguém informou Pete.

 

Volta a tentar ordenou Frank. Mistress Starnes, a Rebecca disse-lhe onde pensava levar o bebé a passear? Havia algum lugar em especial onde ela gostasse de ir?

 

Ali estava uma pergunta à qual Sandi podia responder.

 

Gostava de levá-lo até à margem do rio para ver os pescadores. Ou, outras vezes, até ao centro comercial, quando ia fazer compras. Ou até ao parque. A Rebecca gostava muito de passear com o bebé pelo Parque Binney, mas não me disse o que tencionava fazer.

 

Quero que todos vocês vasculhem esses locais ordenou Frank aos seus homens, que se tinham agrupado à sua volta e o escutavam atentamente e que interroguem todos aqueles que possam ter visto a rapariga e o bebé. Compreendido? Os lojistas do centro comercial e os vendedores ambulantes. Eles não desapareceram assim, sem mais nem menos. Alguém deve tê-los visto. Vamos precisar de estabelecer o seu paradeiro; descubram onde eles foram vistos pela última vez. É muito importante. Também quero que descubram quem estava de serviço, tanto na estação de comboios como nas paragens de autocarro. Quero saber se a Rebecca comprou algum bilhete esta tarde. Se foi esse o caso, quero saber para onde ela foi e com quem. Quero ver-vos, a todos, a trabalhar neste caso! Compreendido replicou Pete. Depois falou em voz baixa com os seus colegas, que logo de seguida se dispersaram, dirigindo-se para os seus telefones. Frank voltou-se mais uma vez para Sandi. Conhece bem o casal Wallace? perguntou. Donna tinha a cabeça pousada sobre o ombro do marido e as suas lágrimas haviam formado uma mancha escura na camisa dele.

 

Sandi olhou com uma expressão vaga para os Wallace. Tinha respondido afirmativamente naquela mesma manhã. Eram seus vizinhos. Viviam duas casas abaixo da sua e sempre haviam sido afáveis. Johnny limpava-lhe o jardim sempre que nevava porque ela não tinha marido. Por outro lado, as duas mulheres costumavam sentar-se no pátio da casa dos Wallace durante a licença de parto de Donna. Sandi sempre gostara muito de bebés e Donna, como todas as mães, ficava feliz por lhe mostrar o seu. Sandi poderia ter dito, como o fizera naquela mesma manhã, que eram amigos e que conhecia bem o casal.

 

Agora, contudo, sabia que não era verdade porque os ouvira acusar Rebecca, insinuando que raptara o filho. Nenhuma pessoa que conhecesse bem Rebecca diria tal coisa acerca dela.

 

Conhecemo-nos mutuamente replicou por fim. Vivemos na mesma rua.

 

E a Rebecca já antes tomara conta de Justin acrescentou Frank.

 

Por mais de uma vez replicou Sandi, se bem que o seu olhar se tivesse perdido novamente.

 

Mistress Starnes, a sua filha tem algum historial de perturbações mentais?

 

Sandi, despertando do seu devaneio, fitou aquele homem que lhe era estranho e lhe fazia todas aquelas perguntas sobre Rebecca como se ela fosse uma louca... ou uma criminosa.

 

Logo de seguida desviou o olhar e contemplou a fotografia que continuava a segurar contra o peito. Humedeceu os lábios, que haviam ficado muito secos, e esforçou-se por dar voz aos seus pensamentos numa frase que o chefe da polícia compreendesse.

 

Premindo os lábios, lançou-lhe um olhar tão intenso quanto pôde. Ergueu a fotografia da bonita rapariga sorridente, com uma gargantilha e um medalhão em forma de coração, até ele ser forçado a vê-la.

 

Esta... é... a Rebecca balbuciou.

 

Foi então que concluiu pela expressão do olhar daquele homem que ele não compreendera.

 

Charles Henson abriu a porta e, franzindo as sobrancelhas, contemplou a chuva que caía com força.

 

Atrás dele, Maddy espreitou o pavimento molhado e reluzente à luz dos candeeiros que se alinhavam ao longo da alameda e estremeceu.

 

O vento parece gemer, não acha? comentou.

 

O tempo piorou replicou Charles. Precisam de guarda-chuvas?

 

Não, a distância é pequena respondeu Doug. Só temos de correr até ao carro.

 

Levantada pelo vento, a chuva gélida fustigou-lhes as costas quando se despediram apressadamente à porta da mansão dos Henson.

 

Esperem! gritou Ellen no exacto momento em que os Wallace se preparavam para correr até ao carro, e abriu o armário para tirar uma gabardina.

 

O que se passa, minha querida? quis saber Charles Henson, algo apreensivo, antes que a esposa desaparecesse nas trevas da noite. Mas onde é que ela vai?

 

Não faço ideia respondeu Maddy. Doug, não te importas de levar a Amy?

 

Claro que não.

 

Baixando-se, pegou ao colo na filha, que continuava agarrada ao seu macaco de peluche. Amy deixou tombar a cabeça no ombro do pai, soltando um pequeno soluço.

 

Está cansada explicou Maddy com um sorriso, tentando colmatar aquela espera por saber que os outros aguardavam o regresso de Ellen. Foi um serão encantador repetiu mais uma vez.

 

Ficámos contentes por terem vindo replicou Charles cortesmente enquanto espreitava para a escuridão.

 

Aqui estou eu! gritou Ellen, surgindo das trevas sob a forma de uma aparição amarela devido à cor da gabardina. Trazia na mão um cesto de vime com tampa. Levantou-a com um sorriso tímido e estendeu o cesto na direcção da pequena Amy, que, ao colo do pai, baixou a cabeça para ver o que era.

 

É um gatinho! gritou a menina, encantada. Maddy olhou para o interior do cesto e viu um gatinho preto, aninhado sobre um jornal dobrado.

 

Ah... exclamou, constrangida.

 

Não era o que queriam oferecer à menina? perguntou Ellen.

 

Doug lançou um olhar reprovador à mulher, mas respondeu:

 

De facto, estávamos a pensar em arranjar-lhe um gatinho.

 

É adorável acrescentou Maddy, mas a verdade é que não estamos preparados para que ela tenha um animal de estimação tão de repente...

 

Ah, mas eu pensei nisso atalhou Ellen. Antes do jantar enchi um saco com serradura e coloquei-o, juntamente com duas latas de comida, no vosso carro. Será o bastante até amanhã.

 

O meu gatinho! exclamou Amy, radiante.

 

Nunca poderemos agradecer-lhe devidamente esta oferta murmurou Doug. Foi muito gentil da sua parte.

 

Acalmada pelos agradecimentos de Doug, Maddy esboçou um sorriso.

 

Obrigada por tudo.

 

Bom, agora é melhor irmos... anunciou Doug. Correram para o carro. Maddy carregava o cesto. Abriu a porta de trás, enquanto Doug colocava o cinto de segurança em torno da pequena Amy. Depois ocuparam os respectivos lugares e fecharam as portas.

 

Maddy, sacudindo a chuva dos cabelos, voltou-se para acenar a Charles e a Ellen. Os seus vultos distorcidos recortavam-se na luz da entrada.

 

Vou ligar o aquecedor disse Doug enquanto se afastavam da alameda.

 

Sim, é melhor.

 

No banco de trás, Amy cantarolava, contente com o seu novo animal de estimação.

 

Vais ter de pensar num nome para ele, minha querida... disse Maddy.

 

Vai chamar-se Blacky anunciou a menina.

 

Gosto desse nome replicou Maddy, olhando para o vidro da frente varrido pela chuva que nem os limpa-pára-brisas conseguiam eliminar. Que noite!

 

Não foi assim tão mau ripostou Doug, à defesa.

 

Não estava a referir-me ao jantar, mas ao tempo apressou-se a esclarecer Maddy. Logo de seguida interrompeu-se, pensativa. No entanto, achei algo estranho ela oferecer-nos o gatinho.

 

Provavelmente julgou que a Amy ia gostar.

 

Hummm.... Sei que ela o fez por bem, mas houve qualquer coisa de estranho no seu gesto...

 

Em princípio, os ricos são excêntricos atalhou Doug. Quem me dera levar uma vida como a deles.

 

Pois a mim pareceram-me pessoas solitárias.

 

Mesmo assim insistiu Doug, não me importava de tentar. Criados, propriedades, carros luxuosos, obras de arte...

 

A felicidade que o dinheiro pode comprar concluiu Maddy.

 

Não sejas tão desmancha-prazeres, quando nem sequer sabes como é. Se bem que, por este andar, não tenhas muito com que te preocupar. Haveremos de levar o mesmo estilo de vida para sempre.

 

O que queres dizer com isso? perguntou Maddy. Existe algo de errado na forma como vivemos?

 

Não, nada. É que me senti muito bem naquela mansão. Poder passar algum tempo numa propriedade assim, por entre todo aquele luxo.

 

Pois eu penso que levamos uma vida decente e que nada nos falta replicou Maddy, abstendo-se de relembrar ao marido que todas as economias destinadas a proporcionar-lhes uma vida melhor tinham ido parar ao bolso de Charles Henson. No entanto a culpa não era de Doug. Teria sempre de se defender das tresloucadas acusações de Heather Cameron, custasse o que custasse.

 

Sim, realmente, levamos uma boa vida concedeu Doug. Debruçado sobre o volante, tentava ver a estrada à sua frente. Meu Deus, está a chover muito. Devíamos ter aceitado os guarda-chuvas que eles quiseram emprestar-nos.

 

Quero ver o Blacky pediu Amy, no banco de trás.

 

Agora não, minha querida respondeu Amy, esticando o pescoço para ver a estrada à frente, à medida que o carro avançava devagar. O papá está a tentar concentrar-se. Tens de ficar quieta. Quando chegarmos a casa poderás ver o Blacky.

 

Seguiram viagem em silêncio durante alguns minutos até que a chuva abrandou. Só então Doug se recostou no banco e retomou a velocidade normal.

 

Maddy sentiu-se um tudo-nada mais tranquila e pensou de novo na reacção de Doug em relação à riqueza dos Henson. Sabia que o marido se sentia frustrado por achar que não tinha sorte no que dizia respeito à fortuna e à fama. Quando o conhecera, Doug acabara de sofrer um ferimento no joelho que pusera um fim abrupto à sua carreira no basebol após uma temporada numa das principais equipas que disputavam o campeonato nacional. Era um jovem revoltado, e Maddy gostava de pensar que o seu amor pelo marido o ajudara a ultrapassar o seu azedume, mas por vezes parecia-lhe que ele nunca ultrapassaria a sua revolta.

 

Sabes bem que o dinheiro não é tudo na vida, Doug voltou ela à carga.

 

Pois não, sobretudo quando se é rico rematou Doug em tom sarcástico.

 

Eles perderam o seu único filho. Sabias?

 

Não. A sério?

 

Tinha cinco anos. Morreu de meningite. Hoje seria o dia do seu aniversário.

 

Meu Deus! Que horror! exclamou Doug. O Charles nunca me disse nada, mas a verdade é que nunca me falava da sua vida pessoal quando eu me reunia com ele. Era eu que falava...

 

Eu sei. O que quis dizer é que eles também tiveram a sua quota-parte de sofrimento.

 

Tens razão anuiu Doug.

 

Comparados com morte de um filho, os nossos problemas são insignificantes.

 

Tens razão repetiu Doug, absorto nos seus pensamentos,

 

O Blacky é um gatinho lindo! exclamou uma vozinha no banco de trás, como para lhes recordar a bênção que era ter um filho.

 

Maddy sorriu. A filha dava-lhe tantas alegrias... O primeiro ano fora difícil para ela e para Doug. Não haviam planeado ter um filho tão cedo depois de casar. Doug começara a sua carreira como professor do ensino secundário, tentando esquecer-se da desilusão que sofrera relativamente à carreira desportiva. Maddy encorajara-o a singrar no ensino, em parte porque nutria grande respeito pelo seu pai, já falecido, que fora professor, e também porque lhe parecera ideal ser casada com alguém com a mesma profissão.

 

Durante o seu primeiro ano de casada dera consigo a perguntar a si mesma se Doug se adaptaria à sua nova carreira. Por vezes parecia-lhe que o marido se sentia oprimido pelas novas responsabilidades de pai e de professor, se bem que ela também não se tivesse julgado apta para ser uma boa mãe. Finalmente haviam conseguido adaptar-se. Nada preenchia a vida de um ser humano com tanta alegria como um bebé. Pensou então em Ellen e Charles. Como deviam ter sofrido. Meneou a cabeça e olhou para o seu próprio reflexo no vidro da janela, por onde escorriam gotas de chuva. "Não queria estar na pele dos Henson, nem por todo o dinheiro do mundo", concluiu.

 

Raios! bradou de súbito Doug. Maddy voltou-se para o marido, sobressaltada. Uma mancha negra obscurecia o rosto dele.

 

Blacky! gritou a pequena Amy.

 

Maddy não compreendeu imediatamente o que se passava. Só compreendeu quando se voltou para trás e viu o cesto aberto, a menina com os braços estendidos para o pai e o rosto de Doug marcado por arranhões de onde jorrava sangue espesso que reluzia na escuridão do carro. O gato bufava. Com a sensação de que o tempo se tornava mais lento, Maddy ouviu o chiar dos travões.

 

Blacky saltou do pescoço de Doug para o painel do carro. Por breves segundos, os olhos amarelados do gato, cujas pupilas se tinham reduzido a duas linhas, fitaram os de Maddy. O brilho de faróis próximos iluminou o gatinho com o pêlo eriçado, uma perfeita encarnação de mau augúrio. Encandeada pelos faróis, Maddy ainda ouviu Doug gritar "Segurem-se!" enquanto, desesperado, se agarrava ao volante.

 

Amy! gritou Maddy quando o carro guinou e derrapou, descontrolado, no pavimento escorregadio.

 

O átrio de entrada do hospital estava mal iluminado, mas mesmo àquela hora da noite havia grande actividade. Os enfermeiros iam e vinham e os seus sapatos de sola de borracha guinchavam no pavimento polido. Uma voz suave e bem modulada chamava os médicos pelo altifalante. Carregando Amy ao colo, Maddy esfregava as costas da filha, caminhando ao lado de Ruth Crandall, a mãe de Ginny, uma das colegas da menina.

 

Não sei como agradecer-lhe por ter vindo tão depressa, Ruth murmurou.

 

Não tem nada que agradecer-me. Fico contente por poder ajudá-la.

 

Vais com Miss Ruth, minha querida explicou Maddy à menina, com doçura. Ela vai levar-te, a ti e ao George, para casa.

 

É verdade acrescentou alegremente Ruth. A Ginny está encantada com a tua visita. E vais dormir no quarto dela!

 

Maddy abraçou a filha com força, ainda com o espírito atormentado pelas imagens e os sons do acidente, pelo momento de puro terror, pelos ruídos que pareciam rebentar-lhe os tímpanos e, por fim, quando o carro se imobilizara, pelo medo de não saber se a sua menina estava a salvo. Fora uma sensação momentânea, mas que lhe ficaria gravada na memória para sempre.

 

Adoro-te, minha querida sussurrou à filha.

 

Vamos embora, pequenina chamou Ruth. A menina exausta, nem sequer protestou e caiu nos braços de Ruth, segurando pela mão o seu macaco de peluche.

 

Irei buscá-la amanhã de manhã prometeu Maddy. Dorme bem, meu anjo.

 

Beijou mais uma vez as bochechas macias e húmidas de lágrimas da menina e, não sem alguma angústia, deixou-a partir. Por trás das portas automáticas da entrada, acenou às duas figuras que depressa desapareceram na escuridão e, com um peso no coração, voltou à sala das urgências.

 

Maddy! chamou uma voz que lhe era familiar. Maddy voltou-se, cansada, mas o seu rosto iluminou-se ao ver o homem que se aproximava dela com expressão preocupada.

 

Pa... Padre Nick! balbuciou.

 

Quantas vezes terei de lhe dizer que me trate só por Nick?

 

É uma reacção maquinal. Deve ser por causa do colarinho.

 

Nick Rylander suspirou e passou um dedo por baixo do colarinho, como se ele estivesse apertado.

 

Fiz hoje a minha visita semanal à prisão e sempre que lá vou uso o colarinho. Não quero que pensem que sou um presidiário e me tranquem por engano numa cela.

 

Maddy esboçou um ténue sorriso.

 

Não o censuro. Estou certa de que deve ser muito duro para si.

 

Por acaso, não me incomoda explicou o padre Nick. E hoje fiquei feliz por lá ter ido. Um homem que visitei durante vários anos foi posto em liberdade. Era uma espécie de arruaceiro crónico, mas cumpria uma pena por homicídio, se bem que tenha sempre clamado a sua inocência. Acontece que há pouco tempo a polícia deteve outro homem que cometeu um crime similar e que acabou por confessar ser também o responsável pelo outro. Assim, o homem que eu visitei durante todos estes anos foi posto em liberdade, o que fez que o meu dia tenha sido particularmente feliz. Mas isso agora não interessa. O que está aqui a fazer a esta hora?

 

Tivemos um acidente de carro.

 

Não pode ser! exclamou o padre Nick, e a sua veemência surpreendeu-o. O que aconteceu?

 

Maddy falou-lhe então da visita a casa dos Henson e da fuga do gatinho, que havia provocado o acidente.

 

O Doug está nas urgências e vou voltar para lá.

 

Está muito ferido?

 

É o que tenho estado a tentar descobrir. Já perguntei um ror de vezes às enfermeiras, mas ainda não consegui obter qualquer informação.

 

Maddy fazia girar nervosamente uma pulseira prateada. Os seus pulsos pareceram a Nick muito finos e frágeis.

 

E a Amy? Como está? Onde está?

 

A minha vizinha veio buscá-la e levou-a para a casa dela. Está bem, graças a Deus. No meio de toda aquela confusão o gatinho fugiu para a mata e não conseguimos encontrá-lo. A Amy ficou mais transtornada com a fuga do gato do que com o acidente.

 

O gato vai safar-se. Sabe, eles caem sempre sobre as patas.

 

Assim o espero.

 

E as pessoas também; portanto, não se preocupe.

 

Espero que tenha razão replicou Maddy, meneando a cabeça.

 

Eu acompanho-a.

 

Mas já é tão tarde, padre... Quero dizer, Nick corrigiu Maddy. Pode ir-se embora que eu fico bem.

 

Nem pensar! protestou Nick, pousando a mão ao de leve sobre o cotovelo de Maddy.

 

Já me esquecia... disse Maddy em tom algo irónico que é a sua profissão...

 

Nicholas Rylander não a corrigiu. Conduziu-a pelo corredor, com a mão sempre pousada no frágil cotovelo. Olhou de relance para Maddy e reparou que o seu rosto revelava uma grande tensão e cansaço. Estava ao corrente das acusações feitas por uma adolescente contra Doug, muito embora Maddy nunca lho houvesse contado. Mas em Taylorsville todos o sabiam. Maddy mantivera a sua dignidade, no papel da esposa fiel e dedicada. No entanto, com os seus cabelos compridos, franja e sardas, mais parecia uma adolescente.

 

Passou por maus momentos ultimamente disse. Maddy assentiu nervosamente.

 

Não posso deixar de pensar como fui estúpida. Tudo isto poderia ter sido evitado. Sinto pena dos passageiros do outro carro. Foram transportados na ambulância... Nem sequer sei para que hospital os levaram. E a culpa foi nossa, padre... quero dizer, Nick.

 

Não diga isso.

 

Mas é verdade. Foi um acidente, é certo, mas se eu não tivesse colocado o gato no banco de trás, ao lado da Amy...

 

Como acabou de dizer, tratou-se de um acidente atalhou Nick Rylander com voz firme. E não é possível evitar acidentes.

 

Tem razão anuiu Maddy. Chegámos. Maddy precipitou-se para a recepção e perguntou por Doug.

 

Não tenho qualquer informação para lhe dar declarou a enfermeira, claramente exasperada.

 

Mas eu tenho de saber como ele está insistiu Maddy.

 

Enfermeira McCarthy interveio gentilmente Nick, debruçando-se sobre o balcão, estaremos na sala de espera. Ficava-lhe muito grato se pudesse fazer-me o favor de se informar do estado de saúde de Mister Blake.

 

A enfermeira fitou-o admirada e corou.

 

Com certeza, padre Nick replicou, contente com aquela oportunidade de ajudar o padre da sua paróquia.

 

Vamos sentar-nos ali, Maddy.

 

Não sem alguma relutância, Maddy deixou-se conduzir até à sala de espera, mais iluminada que os corredores, mobilada com cadeiras cor-de-laranja e azuis, uma caixa de brinquedos e mesas baixas, sobre as quais havia várias revistas espalhadas. Um televisor suspenso na parede estava ligado, mas com o volume no mínimo. Maddy sentou-se numa cadeira, de costas para o televisor. Nick dirigiu-se a uma máquina de onde tirou dois copos de plástico. Havia poucas pessoas ali. Um homem gordo, de cabelos grisalhos, com uma camisa aos quadrados estava recostado na cadeira com a cabeça apoiada na parede e os olhos fechados. A um canto, perto da janela, duas mulheres tricotavam enquanto falavam uma com a outra em voz baixa. A seu lado estavam dois sacos de lona que pareciam conter tudo o que era necessário para uma longa estada na sala de espera. Um casal de meia-idade mantinha-se perto da porta, espreitando constantemente para a recepção, à espera que o médico aparecesse.

 

Nick regressou e estendeu um dos copos a Maddy, que olhou com expressão acanhada para o líquido quente.

 

Talvez seja melhor beber um café, porque não me parece que consiga dormir esta noite.

 

Nem eu replicou Nick, bebendo um gole.

 

Qual é a sua desculpa?

 

Tenho de fazer as malas e arrumar a casa.

 

É verdade! Vai-se embora! exclamou Maddy, reparando que o rosto atraente e sério do padre deixava transparecer uma certa angústia. Quando parte? Estive tão embrenhada nos meus problemas pessoais...

 

Nos problemas pessoais do seu marido", pensou Nick, sem conseguir evitar um certo azedume. Sabia que Doug fora ilibado e que o processo fora arquivado. Afinal, não testemunhara ele próprio, naquele dia, como um homem inocente podia ser injustamente detido? No entanto, tinha algumas dúvidas no que dizia respeito a Doug Blake. Era um homem de modos afáveis, mas havia uma grande frieza no seu olhar. Todavia, se Nick fosse sincero consigo mesmo, a sua antipatia por Doug devia-se ao facto de ser o marido de Maddy. Por outro lado, onde havia fumo...

 

Nick?

 

Na realidade, parto depois de amanhã. Pelo menos, assim o espero.

 

Tão cedo? exclamou Maddy com uma ponta de tristeza na voz. Agora que eu começava a conhecê-lo melhor!

 

Haviam-se encontrado quando Maddy se encarregara da pintura dos vitrais para a nova capela da igreja de que Nick era o padre. Simpatizara com ele por ser um bom conversador e dotado de grande intuição.

 

Vai para uma paróquia mais pequena, em... Onde é? Nova Escócia, não é verdade?

 

Por acaso, não vou ocupar-me de uma paróquia...

 

Não?

 

Nick mudou de posição na cadeira como se o rumo que a conversa tomara o incomodasse.

 

Vou coordenar um restauro de arte num antigo mosteiro. Maddy quis perguntar-lhe porquê, mas percebia que Nick não queria falar mais no assunto.

 

Vou ter saudades suas.

 

Nick olhou à sua volta e fitou o aparelho de televisão.

 

Já ouviu falar daquilo? perguntou, em tom grave. Maddy virou a cadeira para ver o que suscitara a atenção de Nick. No ecrã via-se uma mulher de cabelos desgrenhados e vestido às flores com os olhos inchados de ter chorado muito, e, a seu lado, um homem bastante novo, de expressão estóica e barba por fazer. Quando a mulher começou a descrever a camisola de lã com o desenho de um dálmata que a avó do bebé tricotara irrompeu num choro convulsivo. Em rodapé passavam números de telefone. Maddy sentiu as lágrimas aflorarem-lhe aos olhos.

 

O que aconteceu? quis saber.

 

A baby-sitter desapareceu com o filho deles, hoje, aqui em Taylorsville explicou Nick.

 

Meu Deus, que horror! Parecem tão novos!

 

Nesse mesmo instante, Doug surgiu à porta da sala de espera seguido da enfermeira McCarthy, que sorriu abertamente a Nick.

 

O rosto de Maddy iluminou-se. Levantou-se de um salto e correu para o marido.

 

Sentes-te bem, meu querido? O que disse o médico? Nick, por sua vez, também se levantou e estendeu a mão a Doug, que declinou o cumprimento, indicando o ombro.

 

Ainda estou um pouco dorido desculpou-se.

 

Como se sente? perguntou Nick, enquanto pensava se o outro homem não evitara cumprimentá-lo de propósito.

 

Bem. O médico pensa que desloquei o ombro, mas ainda não me deu alta porque está à espera das radiografias.

 

Mas não tens nada partido, pois não? insistiu Maddy, aflita.

 

Aparentemente não.

 

Ainda bem! exclamou Maddy, não escondendo o seu alívio.

 

Bom, tenho de ir andando interrompeu Nick.

 

Boa noite.

 

Obrigada por tudo, Nick agradeceu Maddy. E se não nos virmos...

 

Nick acenou-lhe sem sequer se voltar para trás. Doug deixou-se cair no lugar que Nick acabara de deixar vago.

 

Queres alguma coisa, meu querido? Um café? Uma água?

 

O que queria ele? perguntou Doug.

 

Apesar de toda a sua angústia, Maddy resolveu ser cautelosa na resposta.

 

Esteve a fazer-me companhia. Encontrei-o no átrio de entrada quando a Ruth veio buscar a Amy.

 

Que coincidência... comentou Doug, com o olhar fixo nas costas de Nick, já longe.

 

Ele é padre ripostou Maddy e vem visitar os pacientes do hospital.

 

Doug passou a mão sobre os olhos.

 

Eu sei. Desculpa. É que me sinto irritado porque ainda me custa a crer que tivemos um acidente. São umas atrás das outras...

 

Assim parece concordou Maddy.

 

E tudo por causa daquele maldito gato!

 

Eu bem tentei avisar-te de que os gatos pretos dão azar

 

comentou Maddy em jeito de brincadeira, enquanto acariciava o braço do marido na tentativa de consolá-lo. Mesmo assim tivemos sorte. Não sofreste nenhum ferimento grave, a Amy também não e teremos o carro de volta amanhã. O homem da garagem disse-me que só havia um pneu rebentado.

 

Doug olhou de relance para a mulher e, por breves momentos, uma expressão de vivo rancor passou pelo seu rosto.

 

Maddy retraiu-se, como se tivesse acabado de levar uma bofetada.

 

Foi então que a enfermeira voltou a aparecer e lhes fez sinal.

 

Tenho de ir explicou Doug, levantando-se. Porque não voltas para casa? Não sei por quanto mais tempo me vão manter aqui.

 

Quero ficar à tua espera insistiu Maddy num fio de voz, evitando o olhar do marido.

 

Doug deu-lhe uma palmadinha no ombro e seguiu atrás da enfermeira.

 

Maddy ficou a vê-lo afastar-se, um pouco trémula. Doug estava exausto. Além do mais, sabia que o seu optimismo por vezes o irritava. Mas não passava disso. Mais tranquila, pegou num número antigo da People e tentou ler um pouco. Uma mulher magra, de óculos e cabelo castanho encaracolado, entrou na sala e foi sentar-se à frente de Maddy. Embalava um bebé, que dormia; a chupeta pendia-lhe da boca e estava vestido com uma camisola de capuz azul-clara. Mesmo no seu sono parecia exausto. A mulher pousou uma mala castanha e puída e um saco de fraldas garrido sobre o espaldar da cadeira. Maddy sorriu-lhe, mas voltou à revista, tentando concentrar-se no artigo que começara a ler.

 

Poucos segundos depois, um médico surgiu na sala de espera e o casal de meia-idade levantou-se.

 

Mister e Mistress Sobranski? perguntou o médico. Marido e mulher deram as mãos, petrificados.

 

O que se passa? perguntou o marido. Como está o Cliff?

 

Está bem, apesar de engessado, porque tem duas roturas de ligamentos no tornozelo.

 

Não parece ser coisa grave concluiu a mulher, esperançada.

 

Não parece ser coisa grave! vociferou o marido, atraindo a atenção das outras pessoas. Maddy não foi excepção. O homem, de seguida, tapou o rosto com ambas as mãos e meneou a cabeça.

 

Ficou com a vida arruinada! gritou.

 

É melhor sairmos daqui aconselhou o médico. Mistress Sobranski, visivelmente desorientada, empurrou o marido e seguiu atrás do médico. Maddy ainda os observou durante alguns minutos, mas por fim, encolhendo os ombros, retomou a leitura. Bonnie Lewis?

 

Maddy ergueu o olhar e deparou com um agente uniformizado da polícia, que entrara na sala e se achava com uma caneta e um bloco na mão à frente dela. Era um homem novo, de cabelos pretos luzidios e pele clara e macia.

 

Não sou eu.

 

Sou eu interveio a mulher com o bebé. O jovem agente aproximou-se dela.

 

Mistress Lewis, sou o agente Termini. Estou aqui para apurar as causas do acidente. Informaram-me de que o seu marido ainda se encontra na sala de operações. Pode dizer-me o que aconteceu?

 

A mulher deixou transparecer grande nervosismo.

 

Não posso dizer-lhe ao certo onde se deu o acidente porque não somos daqui.

 

O seu carro tem matrícula do estado do Maine, não é verdade?

 

Acabámos de chegar à cidade. O meu marido arranjou um novo emprego aqui. Viajávamos pela estrada principal, que segue ao longo do rio. Levantara-se um temporal. Chovia muito e o pavimento estava escorregadio.

 

Fez uma pausa para ponderar as palavras que devia dizer enquanto ajustava os óculos que lhe haviam escorregado pelo nariz. De repente... Vindo não se sabe de onde, um carro que vinha em sentido contrário derrapou e entrou na faixa por onde seguíamos...

 

Era a senhora que conduzia?

 

Sim, era eu. Tinha revezado o meu marido porque ele se sentia cansado. Tentei evitar o embate, mas a minha carrinha despistou-se e foi parar a uma vala. O meu marido ficou ferido...

 

Maddy escutava a outra mulher com interesse crescente. Não chegara a ver os passageiros da outra viatura. Tinham derrapado para a outra berma da estrada e, antes que Maddy e Doug pudessem recompor-se, o condutor de um Land Rover, que tinha telemóvel, parara e chamara uma ambulância. Com a chuva, as ambulâncias e toda a confusão... Mas só podia tratar-se do mesmo acidente em que eles tinham estado envolvidos.

 

Desculpem interrompeu, levantando-se. O agente e a mulher fitaram-na. Maddy aproximou-se e sentou-se ao lado dela. Desculpem, mas não pude deixar de escutar... O meu nome é Maddy Blake acrescentou, mordendo o lábio inferior por perceber que Mistress Lewis a olhava com viva desconfiança. Estávamos no outro carro envolvido nesse mesmo acidente.

 

O agente da polícia consultou o seu bloco.

 

Eram os passageiros de uma carrinha Ford Taurus cinzenta? inquiriu.

 

Depois de acenar afirmativamente, Maddy olhou com expressão triste para a mulher sentada a seu lado. Lamento imenso. A culpa foi nossa. Senhor agente, a culpa foi toda nossa. Hesitou, perguntando a si própria se devia ter dito aquilo. A facilidade com que as pessoas instauravam processos nos tempos que corriam era preocupante. Maddy podia ter-se justificado com o piso escorregadio... Se ao menos não tivesse colocado o cesto no banco de trás, ou de maneira que Amy não conseguisse abri-lo... Contudo, fora o que acabara por suceder e tudo aquilo provocara um acidente. E agora aquela pobre mulher tinha o marido na sala de operações. Maddy não podia esquivar-se às suas responsabilidades. Detestava aqueles que o faziam e não ia cometer o mesmo erro. Tínhamos um gatinho no carro. Ele soltou-se e assustou o meu marido explicou.

 

A outra mulher pestanejou e tapou os ouvidos do bebé, como se o que o que Maddy acabara de dizer fosse uma obscenidade.

 

Mistress Blake, pensava ir procurá-la a seguir replicou o agente. Mas poupou-me tempo.

 

Já terminou comigo? perguntou abruptamente Mrs. Lewis. É que preciso de ir à casa de banho... E talvez... Há uma cantina neste hospital?

 

Há um pequeno bar que está aberto toda a noite, minha senhora informou o agente. Fica ao lado do átrio de entrada.

 

Maddy baixou-se, pegou nos pertences da outra mulher e entregou-lhos.

 

Espero que tudo corra bem com o seu marido disse com todo o fervor.

 

Bonnie Lewis assentiu, mas o seu olhar era desconfiado. Sempre agarrada ao filho, pegou nos sacos e saiu da sala de espera apressadamente.

 

Tens a certeza de que te sentes bem? perguntou Maddy a Doug. Queres sentar-te? O que foi que o médico disse?

 

Sinto-me bem, a sério. O médico prescreveu analgésicos e aconselhou-me a não fazer esforços. Vou aviar a receita na farmácia do hospital.

 

Nesse caso vou telefonar à Ruth, que deve estar ansiosa por ter notícias nossas.

 

Vai. Não te preocupes comigo. Eu encarrego-me do resto e depois chamo um táxi.

 

Maddy regressou ao átrio de entrada e olhou em sua volta até encontrar um telefone público. Ligou para Ruth, que a tranquilizou, dizendo-lhe que Amy dormia a sono solto. Enquanto falava, Maddy não pôde deixar de espreitar pelos vidros, para o bar. Estava quase vazio, àquela hora da noite. Avistou Bonnie Lewis, sentada a uma mesa. O bebé acordara e ela colocara-o numa cadeira alta. Devia estar com fome porque levava algumas bolachas à boca, enquanto Bonnie, muito tensa, com uma expressão de viva angústia, escutava o que lhe dizia um médico magro, com a bata verde de cirurgião. Quando o médico se levantou e se voltou, Maddy percebeu que se tratava de uma mulher. Parecia muito cansada, mas os traços finos do seu rosto ostentavam a máscara impenetrável de uma verdadeira profissional. Saiu pouco depois. Maddy desligou e, após alguma hesitação, resolveu entrar no bar.

 

Mistress Lewis? proferiu timidamente. Não quero incomodá-la, mas sente-se bem?

 

Bonnie ergueu o olhar, atordoada. Era tão magra e pequena que mais parecia um passarinho.

 

Sim respondeu, num fio de voz.

 

Era a médica que operou o seu marido?

 

Sim. Disse-me que o Terry já saiu do bloco operatório.

 

E vai ficar bem? perguntou Maddy ansiosamente

 

Penso que sim. Teve uma perfuração no baço. Foi arremessado para fora do carro quando caímos na vala. Parece que vão ter de extrair-lhe o baço. A doutora assegurou-me que isso parece mais grave do que na realidade é e que o meu marido poderá levar uma vida normal.

 

Graças a Deus!

 

Vai passar a noite nos cuidados intensivos. Bonnie consultou o relógio de parede que havia no bar. Perdi a noção do tempo justificou-se, constrangida.

 

É normal, especialmente num lugar como este retorquiu Maddy, sentando-se a seu lado e colocando a mão sobre o antebraço magro de Bonnie. Quer que lhe vá buscar um chá ou outra bebida?

 

Bonnie contemplou o tabuleiro em que mal tocara como se não soubesse do que se tratava.

 

Não, obrigada. Foi então que os seus lábios começaram a tremer, mas esforçou-se por recuperar o controlo sobre si mesma. Vou poder vê-lo amanhã de manhã. Ergueu a chávena, bebeu um gole, tornou a pousá-la, suspirou e espreitou pelas janelas exteriores do bar. Maddy apercebeu-se de que ela tentava reprimir as lágrimas. O bebé, que esgotara toda a diversão que podia obter de uma sanduíche de manteiga de amendoim, começou a chorar e a debater-se na cadeira alta.

 

Não chores, Sean. O papá vai ficar bom.

 

É muito difícil ficar aqui à espera, não é verdade? observou Maddy.

 

Bonnie pegou num saco de fraldas de onde tirou uma roca com a forma de um elefante. Sean parou de chorar e examinou o objecto.

 

Vai ser uma noite muito comprida...

 

Onde vão ficar? quis saber Maddy.

 

Bonnie não a fitou, enquanto agitava a roca.

 

Acho que nos contentaremos com a sala de espera. Tem sofás...

 

Mas será um sacrifício muito grande para si e para o bebé protestou Maddy.

 

Não tenho alternativa. Não posso dar-me ao luxo de pagar um quarto de motel. O Terry está desempregado há já algum tempo e agora não sei se vão poder esperar por ele no novo emprego...

 

Maddy hesitou por breves segundos, mas logo de seguida sentiu-se envergonhada pela sua hesitação. Deitando um olhar de relance para o átrio de entrada, avistou Doug, que acabara de sair da farmácia e a procurava. Estava exausta, queria voltar para casa com o marido, enfiar-se na cama e esquecer-se de tudo o resto, mas, por muito cansada que se sentisse, sabia que só podia tomar uma atitude.

 

Ouça, não vai dormir na sala de espera. Vem connosco. Temos muito espaço e tenho uma menina de três anos que vai ficar encantada por ver um bebé em casa amanhã de manhã.

 

Não! Nunca poderia aceitar apressou-se a protestar Bonnie.

 

Faço questão insistiu Maddy. E não se fala mais no assunto. Não pregaria olho, só de pensar em si e no Sean, aqui. O meu marido vai chamar um táxi. E amanhã de manhã trago-a ao hospital para que possa ver o seu marido. Poderão ficar em nossa casa pelo tempo que acharem necessário.

 

Mas, com certeza a senhora também tem os seus problemas. O vosso carro também ficou muito danificado, não é verdade?

 

Não. Só tivemos um pneu rebentado. Amanhã já no-lo devolvem. Além do mais, temos outro.

 

Bonnie parecia algo atrapalhada, como se não conseguisse compreender que uma família pudesse ter dois carros, o que aumentou o complexo de culpa de Maddy.

 

Mas vamos causar-lhe incómodo retomou Bonnie, já sem grande veemência.

 

Disparate! Só estará a fazer-me um favor porque ficarei com a consciência menos pesada.

 

Mas não tem motivos para sentir a consciência pesada! Bom... Está bem... Obrigada...

 

Apesar da sua insistência, Maddy sentiu uma ponta de apreensão ao dar-se conta de que a sua proposta havia sido aceite. Não sabia como Doug iria reagir e lembrou-se mais uma vez da expressão de maldade que vira nos seus olhos naquela mesma noite. Mesmo assim, empenhou-se em não deixar transparecer as suas dúvidas.

 

Então, está combinado! exclamou jovialmente.

 

Acha que ainda tenho tempo de ir ver o Terry, antes de sairmos do hospital?

 

Claro que sim! respondeu Maddy, enquanto perguntava a si mesma se Doug iria aborrecer-se por ter de esperar, pois devia estar exausto. Vá vê-lo descansada. Eu tomo conta do pequeno Sean. Não me parece que o deixem entrar na unidade de cuidados intensivos...

 

Bonnie hesitou e Maddy percebeu o seu dilema: por um lado, uma súbita desconfiança; por outro, uma viva relutância em parecer mal-educada ou ingrata. Maddy lembrou-se então da mulher que falara na televisão, implorando que lhe devolvessem o seu filho, e compreendeu a relutância de Bonnie.

 

Talvez fique assustado por ele ficar sozinho com uma estranha... explicou.

 

Tem toda a razão. Esqueça.

 

Bonnie levantou-se e tirou a criança da cadeira. Apesar de estar entretido com a roca, as suas mãos pegajosas agarraram a gola do vestido e os cabelos da mãe.

 

Eu não demoro. Vou só espreitar o Terry de longe.

 

Estaremos no átrio à sua espera. Aí vem o meu marido. Quando estiver despachada, encontramo-nos lá acrescentou, ao ver que Bonnie, mais uma vez, se mostrava relutante. Por fim, Bonnie pegou nos seus sacos.

 

Quer que os guarde? ofereceu-se Maddy. Bonnie meneou a cabeça.

 

Bom, então ao menos dê-me o saco de fraldas. Bonnie fitou ansiosamente o saco, como se julgasse que Maddy pudesse roubá-lo e fugir.

 

Não, é melhor eu guardá-lo porque posso precisar.

 

Maddy sentiu-se um tanto ofendida com tantas reticências, mas tentou não o demonstrar. Afinal, se havia alguma coisa que nunca se devia confiar a um estranho era um bebé. Mas um saco de fraldas? Teve de se conter para não protestar.

 

Está bem. Agora vá ver o seu marido e boa sorte. Enquanto Bonnie saía apressadamente do bar carregando a custo os seus sacos, Maddy dirigiu-se para o átrio.

 

Doug voltou-se ao senti-la aproximar-se, sorriu e depois consultou o relógio.

 

Estás pronta? Maddy respirou fundo.

 

Prepara-te. Vamos ter hóspedes.

 

Hóspedes? Quem?

 

Maddy olhou em seu redor, como para se certificar de que ninguém escutava a conversa.

 

Conheces os passageiros da carrinha?

 

Doug fitou-a de sobrolho franzido, como se ela estivesse a falar-lhe num idioma estrangeiro.

 

Os passageiros do acidente insistiu Maddy. Doug, o dono da carrinha acaba de sair do bloco operatório, o carro deles está na garagem e não têm para onde ir. São do Maine e não conhecem ninguém aqui. A mulher foi ver como ele estava.

 

E porque é que não se alojam num hotel?

 

Porque não têm dinheiro sussurrou Maddy. Ele vinha para cá à procura de um emprego. Está desempregado, o que é uma situação que podemos compreender.

 

Porque não lhes damos antes algum dinheiro para que possam pagar um quarto num motel? ripostou Doug.

 

E como é que eles sobreviviam? Não podem sequer pagar um táxi. E depois, têm um bebé.

 

Doug suspirou.

 

Além de que, se eles estão nesta situação, foi por culpa nossa, Doug suplicou Maddy. Não podia deixá-los assim.

 

Não digas isso! ripostou o marido. Não quero que comeces a dizer a toda a gente que a responsabilidade foi nossa. Só espero que não tenhas dito tal coisa a essa mulher. Não disseste, pois não?!

 

Maddy meneou a cabeça negativamente, se bem que estivesse a mentir.

 

Foi um acidente, não te esqueças! continuou Doug.

 

Pronto, foi um acidente, mas não podemos tomar uma atitude acertada?

 

Maddy... A resposta de Doug foi interrompida quando um rapaz muito alto, de muletas, chocou com ele. Atravessava, cambaleante, o átrio de entrada e o seu rosto era o espelho de uma profunda revolta e sofrimento.

 

Doug observou atentamente o rapaz.

 

É o Cliff Sobranski sussurrou a Maddy.

 

Quem? De repente avistou o casal que estivera na sala de espera e que agora se precipitava para o rapaz. A mulher chamou-o, com a sua voz de mãe, rouca pela preocupação, enquanto o pai não escondia a sua fúria.

 

É a grande promessa da nossa universidade em basquetebol. A NBA anda atrás dele para o integrar na sua equipa de juniores explicou Doug.

 

Ouvi o médico dizer aos pais que ele tinha duas roturas de ligamentos no tornozelo murmurou Maddy.

 

Não pode ser... comentou Doug, compadecido, enquanto com o olhar seguia aquela família até desaparecer na escuridão. Pobre miúdo. Tinha o mundo a seus pés. Podia ter ido muito longe. É inacreditável...

 

Maddy percebeu imediatamente que Doug se lembrara da lesão que havia posto fim à sua carreira desportiva. Parte dela sentia pena do marido, mas outra parte queria replicar: "E depois? Há coisas muito piores na vida!" Contudo, nada disse. De nada lhe valia discutir o assunto porque sabia que Doug acabaria por lhe dizer, como sempre, que ela nunca o compreenderia.

 

Foi então que Bonnie apareceu, procurando ansiosamente Maddy, enquanto embalava o filho, que continuava a chorar, na tentativa de o aquietar. A expressão do seu rosto tornou-se mais serena assim que avistou Maddy e Doug.

 

Pensava que já se tinham ido embora.

 

Maddy não pôde deixar de perguntar a si mesma por que motivo aquela mulher pensara tal coisa.

 

Eu disse-lhe que esperaríamos por si.

 

Em resposta, Bonnie encolheu os ombros como para expressar a sua falta de confiança em tais promessas.

 

Bonnie, apresento-lhe o meu marido, Doug Blake. Doug, esta é a Bonnie Lewis, de quem te falei. Dito isto, voltou-se novamente para a outra mulher. E como está o seu marido? Conseguiu vê-lo?

 

Ainda está a dormir e nem deu pela minha presença... Em seguida encarou Doug. A sua esposa convidou-nos para que ficássemos na sua casa explicou, atrapalhada, mas, se o senhor não concordar...

 

Doug esboçou um sorriso forçado.

 

Não, não, não há problema. Vou ver se o táxi já chegou.

 

Maddy lançou um sorriso encorajador à outra mulher, enquanto Doug se dirigia para a saída.

 

Vai correr tudo bem, verá.

 

Bonnie anuiu com a cabeça, tristemente, enquanto acariciava as costas do filho, cujos soluços ecoavam no átrio imerso em silêncio.

 

Indicando o caminho, Maddy subiu a escada e abriu a porta do quarto de hóspedes. Estava mobilado com duas camas e uma escrivaninha. A um canto havia um berço onde Amy há muito deixara de dormir. Maddy decorara aquela divisão para quando recebesse visitas de amigos ou de parentes que tivessem filhos pequenos. Bonnie olhou em seu redor e, pela primeira vez, pareceu mais animada.

 

É lindo! exclamou.

 

Maddy contemplou, satisfeita, as paredes pintadas de amarelo-claro, o tapete rústico e as colchas de patchwork. Lembrava-se do dia em que, na Primavera anterior, ela e Doug haviam pintado o quarto. Doug começara por se queixar de não ter dinheiro para tal obra, mas por fim os dois haviam-se divertido pintando as paredes, enquanto Amy dançava feliz à volta dos pais.

 

Talvez consigamos arrendar uma casa acrescentou Bonnie, se o meu marido ficar com o emprego. Sempre vivemos em apartamentos, mas agora, com a chegada do Sean...

 

Há quanto tempo estão casados? quis saber Maddy.

 

Há poucos anos. Tive dificuldade em engravidar. Quando consegui, tudo correu pelo melhor. Trabalhei até à semana em que ele nasceu.

 

Deitou o bebé no berço e descalçou-lhe as botinhas de lã.

 

Em que trabalhava? perguntou Maddy, encostando-se à soleira da porta.

 

Como? Ah, na biblioteca, como assistente.

 

Nesse caso, não deve ter grande dificuldade em arranjar emprego aqui, porque me parece que há sempre falta de pessoal na nossa biblioteca.

 

Não tenciono voltar a trabalhar, pelo menos por enquanto. O Terry insiste em sustentar-nos aos três. Assim que o meu pequenino for para a escola poderei pensar em voltar a trabalhar replicou Bonnie com ar sonhador. O Terry e eu falámos muito sobre o assunto. Ambos pensamos que é importante uma mãe ficar em casa para acompanhar os primeiros anos de vida do filho.

 

Maddy sorriu, lançando-lhe um olhar aprovador. Bonnie devia ter trinta e muitos anos e não era particularmente bonita, mas arranjara um marido e tivera um filho, o que devia ter sido, para ela, a concretização de um sonho e explicava a sua vontade de ficar em casa. Provavelmente, o casal acabaria por ser bem sucedido, apesar do pesadelo por que tinham acabado de passar, com o chefe de família internado no hospital.

 

Bonnie dirigiu-se para uma das camas e começou a vasculhar o saco de fraldas, de onde tirou um pijama de bebé que pousou cuidadosamente sobre a colcha.

 

Ainda bem que não o guardei na mala comentou. Depois tirou do saco um frasco de óleo de bebé, outro de pó de talco e um recipiente de plástico que continha um sabonete.

 

Eu levo-a à garagem, amanhã, para que possa reaver a sua bagagem.

 

Bonnie regressou para junto do berço e tirou as calças de veludo ao bebé, que recomeçou a chorar.

 

Talvez fosse melhor deixá-lo dormir com a roupa vestida aconselhou Maddy, para que não tenha de acordá-lo.

 

Bonnie fitou-a indignada.

 

E deixá-lo todo sujo como está? Não me parece... "Para a próxima, mete-te na tua vida e não dês conselhos",

 

recriminou-se mentalmente Maddy. "Cada mãe tem a sua maneira pessoal de cuidar dos filhos."

 

Bom, vou deixar-vos. Vemo-nos amanhã ao pequeno-almoço.

 

Sem fruta replicou Bonnie.

 

Como?

 

Não inclua peças de fruta no pequeno-almoço. O Sean é alérgico à maior parte dos frutos.

 

A minha Amy também não lhes toca. Boa noite despediu-se Maddy com um sorriso. Quando fechou a porta olhou para trás e viu que Bonnie continuava a despir o bebé.

 

Maddy percorreu o corredor até ao seu quarto na ponta dos pés para não acordar Doug. Ao aproximar-se pensou ouvir o marido murmurar qualquer coisa. Por fim abriu aporta e deparou com Doug sentado na beira da cama com as costas curvadas e uma expressão de sofrimento estampada no rosto.

 

- O que se passa, Doug? inquietou-se Maddy. Sentes-te bem?

 

Sim.

 

Talvez fosse melhor tomares um analgésico.

 

Em resposta, Doug limitou-se a fazer que não com a cabeça.

 

Mas foi exactamente por isso que o médico os prescreveu.

 

Não preciso de analgésicos teimou Doug. Maddy suspirou.

 

Como queiras. Já acomodei os nossos hóspedes. O choro do bebé chegava-lhes aos ouvidos, muito embora o outro quarto se situasse no extremo oposto do corredor. Maddy tirou uma camisa de dormir do armário.

 

Que noite...! desabafou

Maddy...

 

Sim?

 

Existe um outro problema...

 

Maddy sentiu o seu coração bater mais depressa pela súbita

 

apreensão que a invadiu e instintivamente colocou a camisa de dormir à sua frente, como para se proteger.

 

Que problema? Só depois, retomando o controlo sobre si própria, fitou o marido com ar sério. Com quem estavas a falar ao telefone agora mesmo?

 

Estiveste a escutar atrás da porta? insurgiu-se Doug.

 

Não. Ouvi a tua voz antes de entrar, mas não pude perceber o que dizias.

 

Era o Stanley Plank.

 

Mas quem é o Stanley Plank?

 

O meu conselheiro da companhia de seguros respondeu Doug.

 

Ah, telefonaste-lhe para lhe dar conta do acidente. Mas afinal qual é o problema?

 

Ouve, Maddy... Sabes como os últimos meses foram caóticos para nós, por causa do julgamento. E, como não trabalhei...

 

Sim? persistiu Maddy, consciente de que retinha a respiração.

 

Ainda no mês passado, quando quis pagar as nossas despesas, não havia dinheiro suficiente.

 

Dinheiro suficiente para quê?

 

Tive de deixar para trás certas facturas, por não ter alternativa. Doug evitava o olhar da mulher, com os olhos postos no tapete.

 

Não me digas que não pagaste o seguro do carro!

 

Provavelmente, pouca ou nenhuma importância terá porque se tratou de um acidente e ninguém teve culpa.

 

Maddy afastou-se do marido.

 

Mas logo o seguro do carro, Doug?

 

Era uma decisão importante ripostou Doug, irritado. De qualquer forma, acabará por se resolver...

 

Maddy meneou a cabeça. Sentia-se atordoada.

 

Não posso acreditar. Em que estavas a pensar? E se eles decidirem processar-nos?

 

Doug levantou-se de um salto e voltou-se para a mulher, lançando-lhe um olhar fulminante.

 

Se eles nos processarem, será por tu te teres comportado como se a responsabilidade fosse nossa, convidando-os a ficar em nossa casa... Só te faltou admitires que a culpa foi toda nossa.

 

Maddy corou, por saber que fora exactamente aquilo que dissera ao agente da polícia.

 

De repente, ambos ouviram um ruído no corredor. Doug olhou para a porta.

 

Quem está aí? perguntou.

 

Maddy, ao virar-se, viu um vulto pela porta entreaberta do quarto. Amy não estava em casa. Só podia ser uma pessoa. E Maddy ainda corou mais ao pensar que aquela pessoa talvez tivesse escutado a discussão entre ela e Doug.

 

Doug, entretanto, avançara para a porta e abriu-a de rompante. Bonnie achava-se do outro lado, com um biberão vazio numa das mãos.

 

O que está a fazer aqui? quis saber Doug, irritado.

 

Desculpe ripostou Bonnie, indignada. Só queria saber se me podem arranjar um pouco de leite para o Sean. Não era minha intenção incomodar-vos.

 

Claro que sim respondeu Maddy num fio de voz. Encontrará uma garrafa de leite no frigorífico.

 

Bonnie, espetando o queixo, deu meia volta. Mas antes, Maddy ainda pôde ver no olhar da outra mulher algo que a assustou: um lampejo inconfundível de satisfação.

 

Frank Cameron encheu a sua chávena de café, bocejou e passou a mão pelo rosto largo e acabrunhado. Passara grande parte da noite na esquadra chefiando as investigações e a sua tez revelava-se tão cinzenta quanto os seus cabelos. De volta a casa, conseguira dormir no sofá durante duas horas de seguida e agora preparava-se para regressar à esquadra.

 

Mary Beth estava sentada à mesa da cozinha com o seu computador portátil aberto ao lado de um prato com uma tosta. Tinha o olhar fixo no monitor enquanto premia as teclas com as unhas pintadas de rosa-claro. Estava vestida e arranjada para ir trabalhar, com uma maquilhagem impecável e um fato de saia e casaco vermelho. Frank ainda se lembrava de quando ela resolvera trabalhar novamente. Heather entrara para o terceiro ano e Mary Beth há muito se queixava de que pouco tinha a fazer em casa. Naquela época, o seu guarda-roupa profissional consistia apenas em duas saias, uma cinzenta e outra azul-escura, e um par de conjuntos de malha Muito embora a sua transformação houvesse sido gradual, Frank tinha a sensação de que lhe passara completamente ao lado; era como se um dia a mulher que ele conhecia tivesse desaparecido e sido substituída por aquela astuta especialista do ramo imobiliário.

 

A que horas chegaste? perguntou Mary Beth sem sequer desviar o olhar do pequeno monitor.

 

Não faço ideia. Talvez às cinco ou seis da manhã

 

Encontraram-nos?

 

Ainda não, Mary Beth replicou Frank num tom contundente que a sua mulher pareceu não notar.

 

Foi então que Heather surgiu na cozinha. Arrastando os pés, dirigiu-se ao frigorífico.

 

Olá, Heather saudou Frank.

 

Olá, pai respondeu a rapariga. Brindou-o com um breve sorriso antes de inspeccionar o conteúdo do frigorífico. Frank não pôde deixar de pensar como era estranho estarem os três reunidos na cozinha à mesma hora. Em geral, ele saía de casa antes de a mulher e a filha acordarem e, quando regressava, Heather estava trancada no seu quarto; esperava-o um jantar, que ele tinha de aquecer no microondas porque Mary Beth marcava encontros pelo telemóvel ou estava ligada à Internet a fim de partilhar as suas mágoas com outras mulheres frustradas.

 

Lembrou-se do tempo em que Frank Júnior e Heather eram crianças e a família tomava sempre as refeições em conjunto. Muitas vezes obrigara-os a esperar por ele, mas mesmo assim tinham sido os melhores anos da sua vida. Olhou fixamente para a filha, que acabara de sentar-se, depois de pousar na mesa um pacote de sumo de fruta e um prato de cereais. Sentiu um enorme e súbito afecto por ela, provavelmente por haver passado toda a noite a preocupar-se com o paradeiro de Rebecca Starnes, que tinha a mesma idade que Heather. De repente, a filha pareceu-lhe vulnerável, com o seu fato-de-macaco largo, que tanto gostava de usar. Tomado por um impulso, aproximou-se de Heather e acariciou-lhe os cabelos.

 

Mary Beth, por seu lado, arrastou a cadeira para trás a fim de examinar a filha, com um ar crítico.

 

Heather, o que foi que te levou a usar essas duas peças de roupa juntas?

 

A rapariga baixou a cabeça para ver melhor a camisa verde e o fato-de-macaco lilás que vestira e só depois olhou para a mãe.

 

Para mim, combinam bem.

 

Mary Beth, contudo, meneou a cabeça em sinal de desaprovação.

 

Parece mais o traje de um palhaço, Heather! E ainda te admiras por não teres amigos!

 

Frank fechou os olhos. Veio-lhe subitamente à cabeça a imagem de Sandi Starnes, com a blusa manchada de ketchup, apertando contra o peito a fotografia da filha e fazendo todo o tipo de promessas a Deus se voltasse a ver Rebecca.

 

Pois na minha opinião a Heather está muito bem assim replicou entre dentes.

 

Mary Beth levantou-se e foi buscar a cafeteira de café. Ao fazê-lo os saltos altos dos seus sapatos ecoaram no chão coberto de linóleo.

 

O que percebes tu de moda, Frank?

 

A resposta do marido foi interrompida por pancadas na porta. Mary Beth abriu-a, preparada para enxotar a pessoa que se atrevera a interromper o pequeno-almoço da família, mas a sua agressividade dissipou-se perante a visão de dois jovens

 

Karla! exclamou, sorridente. Que agradável surpresa! Entra!

 

Ao perceber de quem se tratava, Heather empalideceu. Karla Needham vivia duas ruas acima da sua e era uma das raparigas mais populares do liceu. Era chefe de claque, tinha uma silhueta perfeita, roupas impecáveis e um namorado que fazia que Heather sentisse as pernas bambas de cada vez que pensava nele. Namorado esse que estava ao lado de Karla, à soleira da porta.

 

Quem é este rapaz? O teu namorado? perguntou Mary Beth.

 

Sim. O nome dele é Richie Talbot. Olá, Heather.

 

Heather engoliu os cereais à pressa e, quando saudou a colega, algumas migalhas saíram-lhe da boca espalhando-se sobre a mesa. Heather conhecia Karla Needham desde que nascera. Quando eram crianças brincavam juntas, mas assim que chegara ao quinto ano Karla passara a interessar-se por outras coisas. Não que não fosse simpática. Cumprimentava sempre Heather e perguntava-lhe pelos pais, mas não passava disso Até àquele momento, ali, na sua cozinha. Heather sentiu de súbito uma grande angústia.

 

Como passámos por aqui, pensámos que talvez quisesses ir para o liceu connosco explicou Karla em tom agradável.

 

Porquê? perguntou Heather.

 

Heather! interveio Mary Beth, zangada por ver em risco uma oportunidade de ouro para que Heather andasse com as companhias certas. Não sabes ser mais simpática? Dito isto, voltou-se para o casal que permanecia à porta. A Heather estava a preparar-se para ir para o liceu, não é verdade, minha querida? Tenho a certeza de que ficará encantada por ir convosco.

 

Nesse preciso instante o telefone tocou. Frank atendeu, feliz por ter um pretexto para não ver mais o patente mal-estar da filha e as maquinações demasiado óbvias da mulher. Escutou a voz do outro lado durante alguns segundos e depois disse:

 

Está bem. Vou já para aí.

 

Encontraram aquela rapariga e o bebé, Mister Cameron? perguntou Karla, sempre em tom afável.

 

Ainda não. Mas talvez tenhamos descoberto a pista de que precisávamos. Se me dão licença...

 

Antes que a porta se fechasse atrás dele ainda teve tempo de escutar Mary Beth, usando do seu charme com os visitantes, enquanto ordenava a Heather que se despachasse.

 

O que se passa, Pete? perguntou Frank depois de bater com força a porta da esquadra.

 

Pete Millard, com o nó da gravata desfeito, o colarinho da camisa desabotoado e os cabelos em desalinho, indicou com a cabeça a secretária ocupada por um dos sargentos. Uma mulher anafada, de óculos com aros de metal e cabelos louros presos num rabo-de-cavalo, envergando um blusão universitário e ténis Reebok, olhava em seu redor com vivo desdém.

 

Encontrámos uma testemunha explicou Pete. Erguendo as sobrancelhas, Frank, interessado, fitou a mulher.

 

Afirma que leu a notícia no jornal de hoje continuou Pete.

 

O quê? Ela não vê televisão? Passaram a notícia durante toda a noite exclamou Frank, espantado.

 

Segundo fez questão em dizer-me, não tem televisão em casa.

 

Já percebi... Trata-se de uma intelectual concluiu Frank em tom zombeteiro.

 

O que interessa é que está aqui para depor replicou Pete.

 

Óptimo. Leva-a para a sala um.

 

Frank levantou-se, seguiu pelo corredor e acendeu as luzes de uma das salas de interrogatório. Depois deixou-se cair numa das cadeiras de plástico e consultou o relógio. Tinham-se passado quinze horas desde que a rapariga e o bebé haviam sido dados como desaparecidos e, à medida que o tempo avançava, as esperanças tornavam-se cada vez mais ténues. A porta abriu-se e Pete Millard fez entrar a mulher.

 

Chefe, apresento-lhe Miss Julia Sewell.

 

Obrigado por ter vindo, Miss Sewell agradeceu Frank em tom cortês por saber que todo o cuidado seria pouco com aquela estranha criatura, que devia rondar a casa dos trinta anos e não era estudante universitária, apesar do casaco que usava. O detective Millard disse-me que a senhora teve hoje conhecimento do desaparecimento de Rebecca Starnes e Justin Wallace pelos jornais.

 

Exacto.

 

Reconheceu-os pelas fotografias?

 

Reconheci a rapariga porque a vi ontem.

 

Ela estava sozinha?

 

Não. Estava com um bebé, mas não posso afirmar que era o mesmo da fotografia porque aos meus olhos são todos iguais.

 

Onde os viu?

 

Encontrava-me no parque, a ler.

 

Frank sentiu o seu coração bater mais depressa.

 

Em que parque, Miss Sewell?

 

No Parque Binney. Eu estava sentada num banco, a ler, perto do lago dos patos, em frente do parque de estacionamento. Frank tinha a sensação de já haver visto aquela mulher anteriormente, mas não conseguia lembrar-se onde, talvez devido' ao cansaço.

 

E a que horas os viu? perguntou enquanto tomava alguns apontamentos.

 

Por volta das duas horas da tarde.

 

O que fazia a rapariga?

 

Encontrava-se sentada num banco, enquanto o bebé estava numa cadeira.

 

E reparou em algo de estranho? Algo que a levasse a observá-los mais atentamente?

 

Um homem aproximou-se e começou a falar com a rapariga.

 

Miss Sewell deu aquela informação com uma lúgubre satisfação.

 

Frank sentiu que os seus pêlos se eriçavam. "Eu sabia! Estamos perante um caso que envolve um pervertido! O que vai na cabeça daqueles filhos da mãe para se meterem com crianças?" Pensou então na própria filha e na recente experiência que ela tivera com um professor. Nem mesmo na escola as crianças estavam a salvo nos tempos que corriam.

 

Ficou com a ideia de que esse homem era um conhecido da rapariga?

 

A mulher meneou a cabeça.

 

Não. Fiquei com a nítida sensação de que se tratava de um estranho.

 

Importa-se que lhe pergunte como foi que chegou a tal conclusão? quis saber Frank, prosseguindo num tom afável porque desconfiava sempre das testemunhas que reparavam em tudo.

 

Pela linguagem corporal respondeu Miss Sewell. Anuindo, Frank anotou a resposta na folha de papel que tinha à sua frente, se bem que não o satisfizesse. Havia qualquer coisa naquela mulher que o punha de sobreaviso. Na sua maioria, as testemunhas que se apresentavam por sua própria vontade mostravam-se ansiosas e não hostis. Cheias de boa vontade e prontas a ajudar a polícia.

 

Pode descrever o homem?

 

Claro que sim.

 

Qual era a sua altura, idade e peso? A mulher inalou ruidosamente.

 

Não posso precisar a idade, ao certo, porque não estava assim tão perto deles, mas diria que devia andar na casa dos trinta, tinha cabelos louros acastanhados e estatura média.

 

Imediatamente, veio à mente de Frank Cameron a imagem de um homem cuja aparência correspondia àquela descrição. O homem que estivera sentado no banco dos réus e negara haver forçado a sua própria filha adolescente, Heather, a ter relações sexuais com ele. Douglas Blake. De súbito, a curiosidade de Frank tornou-se mais pessoal do que profissional.

 

E que roupas usava?

 

Calças de veludo e um blusão escuro.

 

De que cor?

 

Não tenho a certeza... Talvez fosse azul, mas não sei... Semicerrando os olhos, Frank observou aquela mulher e foi então que se lembrou de onde a conhecia. Fora já há algum tempo. Apresentara queixa contra um homem, afirmando que ele a agarrara e tentara violá-la, mas não conseguira porque ela o assustara ao gritar. Nunca tinham conseguido localizar o agressor.

 

Miss Sewell, estava a pensar que o seu rosto me é familiar. Não foi a senhora que veio relatar uma agressão de que foi vítima, há uns anos atrás?

 

Julia Sewell corou, mas não se deixou intimidar.

 

Sim, fui eu, há dois anos, e a vossa investigação deu no que deu... Mas que diferença pode isso fazer agora?

 

Frank consultou os seus apontamentos e por fim encolheu os ombros.

 

Nenhuma. É que sinto alguma apreensão por pensar que a senhora pode não ter interpretado correctamente a situação, em virtude da sua experiência pessoal. Não nos interessa perder tempo a tentar caçar um homem que se deteve só para perguntar as horas a Rebecca Starnes.

 

Julia Sewell fitou-o num misto de desprezo e ultraje. Pensou em responder-lhe à letra, mas deteve-se a tempo. A sua primeira reacção fora insultar aquele homem, mas havia algo mais importante em jogo e até mesmo os agentes da polícia, mau grado os seus modos grosseiros, se esforçavam por resolver o caso. Além disso, sentia um certo complexo de culpa porque devia ter intervindo. Devia ter-se aproximado e confrontado o homem, ordenando-lhe que deixasse a rapariga em paz.

 

Julia recompôs-se antes de replicar:

 

Ele dirigiu-lhe a palavra, depois sentou-se ao lado dela no banco, e em seguida ofereceu-lhe algo, mas o quê, não sei. A rapariga ainda hesitou, mas acabou por aceitar. Então ele começou a aproximar-se mais dela. Tem razão. Desconfiei imediatamente das intenções daquele homem, se bem que a minha experiência pessoal tivesse sido um pouco diferente: eu estava a caminhar quando um homem me agarrou por trás e me puxou para os arbustos.

 

Seguiu-se um breve silêncio.

 

A rapariga tinha uma expressão estranha no olhar continuou Julia, como se estivesse a sentir-se pouco à vontade. Por fim levantou-se e afastou-se.

 

Ela levantou-se e afastou-se? repetiu Frank.

 

Sim.

 

E o que fez o homem?

 

Ficou sentado no banco durante o tempo necessário para fingir que tinha um motivo para estar ali e acabou por levantar-se e afastar-se também.

 

Na mesma direcção da rapariga?

 

Sim.

 

Frank trocou um olhar solene e preocupado com Pete Millard.

 

E depois? Pôde ver o que se passou?

 

Não respondeu Julia Sewell num fio de voz, com os olhos postos no chão. Eu devia tê-los seguido. Como me arrependo de não o ter feito!

 

Não podia imaginar o que se passava, Miss Sewell. Muito bem, gostaríamos de tentar obter um esboço desse homem segundo a descrição que a senhora nos forneceu. Talvez consigamos obter um retrato fidedigno do suspeito. Talvez se lembre deste procedimento, em virtude da sua experiência pessoal. Pensa que poderá trabalhar conjuntamente com o nosso retratista?

 

Claro.

 

Diga-me retomou Frank, consultando os seus apontamentos, haverá outras pessoas que possam ter visto esse tal homem? Reparou se havia mais gente no parque? Alguém que pudesse identificar o suspeito?

 

Julia suspirou e contemplou a superfície de estuque do tecto baixo.

 

Havia algumas mulheres com crianças. Lembro-me de uma que passeava um bebé num carrinho. E também alguns homens a correr... Espere! Havia um homem que fazia exercícios de tai chi. Penso que se trata de uma arte marcial.

 

Eu sei o que é atalhou Frank, irritado. E qual era a aparência desse indivíduo?

 

Era oriental, novo, com vinte e muitos anos, e usava fato de treino.

 

Já temos um ponto de partida concluiu Frank, levantando-se. Obrigado por ter vindo procurar-nos. Se conseguir lembrar-se de outros pormenores...

 

Eu telefono-vos prometeu Julia Sewell. Frank hesitou, mas por fim acrescentou:

 

Como gostava que alguém tivesse feito o mesmo por si quando foi atacada...

 

Julia deteve-se à porta.

 

Espero que não seja tarde de mais.

 

Também eu retorquiu Frank. Também eu.

 

O cabeçalho do Taylorsville Tribune anunciava em letras garrafais DESAPARECIDOS, por cima das fotografias de uma bonita adolescente e de um bebé risonho, de cabelos encaracolados. Ellen Henson olhou para as fotografias e leu o artigo: "Justin Wallace, de seis meses de idade, e Rebecca Starnes, de quinze anos..."

 

Então o que vai ser, minha senhora? perguntou o homem do quiosque.

 

Ellen olhou para ele, surpreendida com o seu tom brusco, e pegou num pacote de pastilhas de mentol.

 

Isto... e o jornal.

 

O homem fez a conta e Ellen enfiou o jornal e o pacote na mala. Desceu o quarteirão olhando para as montras pelas quais passava. Estava tão preocupada que mal conseguia registar o que via. Por fim deu consigo parada a observar durante algum tempo uma montra. Leu o nome da loja e sentiu-se desorientada. Há quanto tempo aquela loja estava ali? Raramente ia à cidade, mas, mesmo assim... não existia quando Ken era ainda bebé, disso tinha a certeza.

 

Empurrou a porta da Loja dos Pequeninos e entrou, com alguma relutância. As paredes estavam pintadas de bege-claro, e um friso, decorado com patos, flores e as letras do alfabeto, contornava o tecto. Ellen, com os olhos esbugalhados, passou em revista as prateleiras de vestidos com folhos, jardineiras com desenhos de animais e minúsculas camisolas em tons pastel. Não se atrevia a tocar no que quer que fosse. Percorreu a loja agarrando a mala como se receasse ser roubada, muito embora não houvesse mais ninguém ali, à excepção da jovem vendedora, que estava sentada atrás de um balcão envidraçado repleto de gorros de bebé e de rocas de prata. Dobrava toalhas de turco com capuz em pilhas muito alinhadas e sorriu à mulher de rosto pálido e cabelos grisalhos, que parecia um pouco perdida.

 

Posso ajudá-la? perguntou.

 

Estou só a dar uma vista de olhos respondeu Ellen

 

É para o seu netinho?

 

Ellen fitou a rapariga como se não conseguisse compreender aquela pergunta.

 

Não... retorquiu finalmente. É para um bebé, Se a vendedora ficou admirada com a resposta de Ellen, não o demonstrou.

 

E que idade tem o bebé?

 

Ellen, muito embora a fitasse, tinha o olhar perdido no vazio. Então, instintivamente, olhou de relance para o jornal que saía da sua mala.

 

Hummm... Cerca de seis meses.

 

É menino ou menina?

 

É um menino.

 

A rapariga saiu de trás do balcão e conduziu Ellen à prateleira de roupinhas coloridas com desenhos de carros de bombeiros, cães ou bolas de basebol. A variedade dos artigos era um encanto para a vista. Ellen separou gentilmente cada pequeno cabide, enquanto os seus olhos se iam iluminando a cada nova roupinha que descobria.

 

Ele gosta de girafas? perguntou a rapariga, tirando uma camisola verde-clara com animais da selva.

 

Gosta de todos os animais respondeu Ellen.

 

E carrinhos? Já gosta de carrinhos? prosseguiu a rapariga alegremente, exibindo um conjunto, em tons de azul vivo e amarelo-canário, com motivos alusivos a corridas de carros.

 

Também ia gostar desse conjunto... admitiu Ellen

 

A vendedora mostrou-lhe mais conjuntos, seleccionando uma meia dúzia de fatos que Ellen concordava em comprar

 

Contente, mas ao mesmo tempo algo admirada com a aparente indecisão da cliente, a rapariga colocou os fatos no balcão.

 

A mãe dele vai ficar radiante comentou. Ellen lançou-lhe um olhar desconfiado.

 

O que quer dizer com isso?

 

Que tem um guarda-roupa completo, aqui, por assim dizer. E da melhor qualidade. Se houver algo que ela já possua ou que queira trocar, diga-lhe que venha cá. Teremos todo o gosto em proceder a qualquer troca.

 

É muito simpático da sua parte. Eu... Eu dir-lhe-ei.

 

Como se chama o bebé? quis saber a rapariga. Ellen empertigou-se.

 

Ken. Chama-se Ken.

 

Que lindo nome elogiou a rapariga, enquanto retirava as etiquetas de cada fato com uma pequena tesoura. Vai pagar com cartão de crédito?

 

Não. Em dinheiro apressou-se a responder Ellen enfiando a mão na mala à procura da carteira. Para tal, teve de tirar primeiro o jornal, que pousou no balcão com a primeira página virada para cima. Por fim encontrou a carteira, enquanto a rapariga dobrava, com todo o cuidado as suas compras e as enfiava num saco de papel azul-claro decorado com laços brancos.

 

É horrível, não concorda? comentou, deitando um olhar de relance ao jornal. O bebé desaparecido...

 

Ellen fitou a rapariga, atordoada.

 

Como? Ah, sim...

 

Na sua pressa e dominada pelo nervosismo de entregar à rapariga um maço de notas, fez que o jornal caísse ao chão. Ellen dobrou-se e apanhou-o.

 

Quem pode ter feito tal coisa? exclamou a rapariga, meneando a cabeça em sinal de reprovação enquanto se dirigia para a caixa registadora. É inacreditável... Os pais devem sofrer muito. Não sei onde este mundo irá parar... acrescentou, mais parecendo uma pessoa de idade com aquele último comentário. Por mais que me esforce, não consigo compreender... rematou, absorta nos seus pensamentos, enquanto guardava as etiquetas de preços na caixa registadora.

 

Terminada a transacção, voltou-se para dar a factura a Ellen, mas tanto o saco como a cliente haviam desaparecido. A rapariga franziu as sobrancelhas, espantada com aquele inesperado desenlace, mas por fim encolheu os ombros. Sabia o que iria acontecer. A dada altura, na semana seguinte, a mãe entraria pela porta, na esperança de trocar algumas das roupas sem ter factura.

 

Porque será que as pessoas são tão descuidadas? perguntou em voz alta. Encolhendo mais uma vez os ombros, pegou no espanador e começou a limpar as molduras que estavam expostas. Foi então que reparou de repente na carteira de couro vermelho que se achava em cima do balcão. Logo de seguida, o sininho da porta retiniu e a rapariga ergueu o olhar, julgando que iria rever a mulher que acabara de sair dali e deixara ficar a carteira. Mas, em seu lugar, uma mulher bonita, loura, entrou na loja empurrando um carrinho de bebé e começou a examinar as prateleiras, enquanto a rapariga pegava na carteira e espreitava o seu conteúdo.

 

Maddy percorreu o corredor do hospital olhando para os números dos quartos. Deixara ali Bonnie e Sean, e agora, como prometido, regressara para vir buscá-los. Maddy reprimiu um bocejo. Tinha sido uma noite agitada, com o choro contínuo de Sean. Não conseguira dormir, preocupada com a situação do seguro automóvel. Sentia-se exausta pelos acontecimentos dos últimos dias e só queria fugir para algures e esconder-se do resto do mundo. Infelizmente, não havia qualquer forma de se evadir.

 

Parou em frente do quarto 304, espetando o pescoço para espreitar melhor. Não havia visitas. O homem que ocupava a primeira cama estava sentado a ler o jornal. Tinha cabelos ralos, rosto redondo e devia estar na casa dos quarenta. O seu companheiro encontrava-se deitado, na outra cama, virado para a janela. Tudo o que Maddy conseguia descortinar daquele homem eram os seus cabelos negros e compridos e o antebraço, onde havia uma tatuagem. Por fim, dirigiu-se ao homem que lia o jornal.

 

Mister Lewis?

 

O homem indicou a outra cama e retomou a sua leitura. Maddy avançou na ponta dos pés até à segunda cama.

 

O homem voltou-se e fitou-a. Maddy mal pôde esconder a sua surpresa. O marido de Bonnie não correspondia minimamente ao que ela imaginara. A sua face larga, de maçãs do rosto salientes, devia ter sido atraente, em tempos, antes de ficar marcada por cicatrizes de acne. Tinha bigode espesso e preto, salpicado por fios grisalhos tal como o cabelo, e as ligaduras que lhe cobriam o alto da cabeça contribuíam para lhe dar um ar de pirata. Pendendo de um fio que trazia ao pescoço, um crucifixo de prata repousava sobre a bata fina de algodão do hospital. Os olhos pareciam vítreos, pelo efeito dos analgésicos. Mexeu-se na cama e Maddy não pôde deixar de reparar nos músculos desenvolvidos do torso.

 

Mister Lewis? perguntou de novo, embaraçada pelo tom de incredulidade na sua voz.

 

Sou eu respondeu Terry Lewis, tentando sorrir e revelando dentes pequenos e tortos.

 

Maddy não conseguia desviar o olhar dele. Nunca teria imaginado que Bonnie, uma mulher pouco atraente, pudesse ter um marido que parecia um motard. Só depois se apercebeu de que ele esperava pela continuação do diálogo.

 

O meu nome é Maddy Blake. A sua esposa e o seu filho estão... estão alojados em minha casa.

 

Ah, sim. Olá!

 

Lamento imenso o que lhe aconteceu murmurou Maddy, atrapalhada.

 

Foi realmente muito simpático da sua parte acolher a minha família.

 

Era o mínimo que podia fazer. Pensando no problema com a companhia de seguros, acrescentou: Fiquei feliz por ajudá-los. A sério.

 

Terry Lewis mudou de posição na cama e gemeu baixinho

 

Como se sente? quis saber Maddy, deixando transparecer a sua ansiedade.

 

O homem pousou uma mão sobre o abdómen.

 

Tenho de confessar que as dores são muitas. O médico diz que eu não devo fazer esforços, mas felizmente sou dotado de um espírito forte.

 

Tenho a certeza de que com esse estado de espírito vai recuperar-se rapidamente.

 

Assim o espero... A Bonnie falou-lhe de nós? Quer dizer, da nossa situação?

 

Disse-me que tinham acabado de chegar a Taylorsville porque o senhor devia apresentar-se num novo emprego.

 

Uma vaga expressão de tristeza passou pelo rosto de Terry Lewis, que desviou o olhar.

 

É verdade.

 

Sinto-me tão mal por causa de tudo isto. Acha que vão esperar por si no novo emprego? Se quiser, posso telefonar ao seu futuro patrão e explicar-lhe o que aconteceu. Já sabe se vai poder voltar a trabalhar? O que foi que o médico lhe disse?

 

Terry encolheu os ombros, o que lhe provocou um novo esgar.

 

Disse-me que eu não podia levantar pesos, o que vai ser complicado porque sou operário.

 

Um sentimento de culpa invadiu Maddy ao pensar nos problemas dos Lewis. O marido entre dois empregos, um bebé. Parecia um fardo muito pesado para o casal.

 

Lamento imenso repetiu.

 

Não sinta pena de mim. Sou um homem de sorte. O bom Deus zela por mim. Quanto ao resto, lá me desenvencilharei.

 

Maddy esforçou-se por sorrir.

 

Sabe onde posso encontrar a Bonnie e o Sean? Os olhos vítreos de Terry iluminaram-se.

 

Penso que ela foi dar de comer ao bebé. O que acha do meu petiz? perguntou com evidente orgulho.

 

Desta vez Maddy sorriu abertamente.

 

É um menino adorável.

 

Terry olhou para uma fotografia de Sean, ainda recém-nascido, com os olhos fechados, que estava encostada a um jarro de água na mesa-de-cabeceira.

 

Nunca me canso de olhar para esta fotografia. Foi o dia mais feliz da minha vida... O dia em que o meu filho nasceu. Tem filhos?

 

Uma menina, Amy respondeu Maddy, surpreendida por perceber que Bonnie não o dissera ao marido. Tem três anos e já anda num jardim-de-infância.

 

São a maior dádiva de Deus, não concorda? Independentemente do que possa acontecer-nos, ficarão para sempre nos nossos corações.

 

Dito isto, Terry pegou na fotografia e acariciou o rosto do bebé com a ponta do dedo.

 

Concordo plenamente replicou Maddy.

 

Aquele homem tão másculo, mas que, no entanto, revelava tanta dedicação pelo filho fê-la sentir uma súbita melancolia. Doug nunca falava daquela maneira sobre Amy. Talvez se tivessem um rapaz as coisas se passassem de modo diferente. Maddy sabia que os homens, por vezes, tinham um elo especial com os filhos...

 

Espero ter uma menina, no futuro continuou Terry. Uma princesinha que eu possa carregar aos ombros. Isto, se Deus o permitir...

 

As palavras de Terry fizeram que Maddy despertasse do seu devaneio.

 

Bom anunciou, endireitando-se. Vou ver se encontro a Bonnie e o Sean para os levar de volta para casa.

 

Pode passar-me a Bíblia antes de sair? pediu Terry, indicando a mesa-de-cabeceira. É que não consigo alcançá-la...

 

Com certeza.

 

Maddy abriu a gaveta de onde tirou uma Bíblia que entregou a Terry. A pele dos dedos do marido de Bonnie era áspera.

 

Olhe! Aí estão eles! exclamou Terry, de súbito feliz. Maddy ergueu o olhar. Bonnie surgira aos pés da cama com Sean ao colo.

 

A madona e o menino... murmurou Terry, suspirando.

 

Bonnie corou, furiosa, e, evitando o olhar espantado que Maddy lhe lançou, aproximou-se do marido para beijá-lo.

 

No regresso a casa, Bonnie, sentada ao lado de Maddy, manteve-se em silêncio, contemplando pela janela o céu escuro de Outubro. No banco de trás, Amy estava sentada ao lado de Sean e fingia ler-lhe uma história do livro ilustrado que trouxera do jardim-de-infância, enquanto Sean se agitava na sua cadeirinha e emitia pequenos ruídos de protesto.

 

De quando em vez, Maddy olhava de relance para a outra mulher. Bonnie usava uma saia plissada cinzenta e comprida e uma camisola de gola alta roxa, sem forma definida e puída pelas muitas lavagens. Calçava ténis e meias curtas e os seus cabelos encaracolados pareciam rebeldes a qualquer penteado. Muito embora tivesse as mãos pousadas sobre o regaço, dobrava e desdobrava os dedos num tique constante e impaciente. Os seus olhos cinzentos viravam-se para a esquerda e para a direita como se examinassem o que a rodeava. Maddy pensou em Terry, um homem plácido com uma tatuagem e que lia a Bíblia e não pôde deixar de perguntar a si própria o que havia de comum entre eles para que se tivessem casado.

 

O seu marido parece estar a reagir muito bem comentou.

 

Bonnie estremeceu como se tivesse acordado de um pesadelo, com o rosto vincado por uma ruga de preocupação.

 

Sim, de facto parece estar melhor... concordou.

 

O médico disse quanto tempo ele vai ter de permanecer no hospital?

 

Talvez tenha de ficar mais um dia ou dois. Mas quer que saiamos de sua casa?

 

Não, claro que não! replicou Maddy, um pouco espantada com o tom brusco de Bonnie. Podem ficar o tempo que quiserem.

 

Partiremos muito em breve afirmou Bonnie em tom firme. Estamos ansiosos por começar uma nova vida.

 

O que é natural, mas permanecendo em minha casa sempre podem descansar um pouco. Deve sentir-se muito cansada. O Sean teve um sono muito agitado esta noite.

 

O que quer dizer com isso?

 

Maddy detectou a desconfiança na pergunta de Bonnie e tentou voltar atrás.

 

Bem, foi um dia muito duro para ele... O acidente, o hospital, uma casa estranha. Tenho a impressão de que vocês os dois pouco dormiram.

 

Tanto eu como o Sean estamos bem.

 

Maddy suspirou. Não quisera tecer qualquer crítica, mas Bonnie parecera entender o contrário e mostrava-se na defensiva.

 

Fiquei contente por ter boas notícias acerca da sua carrinha disse, tentando mudar de assunto. Tinham passado pela garagem onde lhes haviam dito que os prejuízos que a carrinha sofrera se limitavam ao depósito de óleo, que se partira com o embate. O mecânico prometera substituí-lo até ao fim do dia.

 

Bonnie assentiu, sempre com o olhar fixo na paisagem.

 

Sim, de facto, foram boas notícias, se tivermos em conta tudo o que aconteceu...

 

O seu marido vai sentir-se aliviado por saber que terão a vossa carrinha amanhã. Pareceu-me muito simpático. Gostei de falar com ele.

 

Bonnie fitou-a, estreitando os olhos.

 

Falaram de quê?

 

Ciente da crescente desconfiança da outra mulher, Maddy, algo exasperada, encolheu os ombros.

 

Ele falou sobretudo do Sean. Vê-se que é um pai muito dedicado.

 

A ruga de preocupação que vincava o rosto de Maddy pareceu atenuar-se ligeiramente.

 

Sim, eu sei. O seu maior sonho era ter um filho.

 

Mamã! choramingou Amy no banco de trás. O Sean está a puxar-me os cabelos!

 

Bonnie voltou-se imediatamente para trás. Sean agarrava um punhado de cabelos de Amy com a sua mãozinha pegajosa. Bonnie abriu-lhe a mão. Depois deu duas palmadas na mão do bebé, agitando o dedo indicador na sua direcção

 

Que menino tão feio! Isso não se faz!

 

Com os olhos esbugalhados, Amy fitava-a, enquanto Sean começava a chorar.

 

Bonnie, indiferente a tudo o resto, acomodou-se melhor no seu lugar.

 

Sempre fui a favor da disciplina afirmou com patente orgulho. Temos de ensiná-los desde cedo a comportar-se.

 

Maddy teve de fazer um grande esforço para não deixar transparecer o seu espanto. Quis protestar, dizendo que um bebé com a idade de Sean não sabia distinguir o mau comportamento do bom, mas não fez mais comentários. Qualquer mãe tinha o direito de educar os filhos à sua maneira. Mesmo assim, fazia-lhe impressão perceber que Bonnie parecia não se importar com os soluços do bebé. Talvez ela tivesse sido criada da mesma maneira, reflectiu Maddy.

 

Já passou, Sean murmurava com voz doce a pequena Amy, tentando acalmá-lo por se sentir culpada de o haver metido em sarilhos.

 

Estamos quase a chegar a casa! exclamou Maddy com uma jovialidade exagerada. Quando dobraram a esquina da rua onde morava, Maddy avistou a luz vermelha dos faróis do tejadilho de uma viatura da polícia e ouviu os estalidos de comunicações via rádio. Bonnie endireitou-se e olhou ansiosa pela janela.

 

O que é aquilo? perguntou.

 

Não sei respondeu Maddy, tomada de súbito receio. Estão parados em frente da nossa casa.

 

E que estão eles a fazer ali? exclamou Bonnie com voz estridente.

 

Provavelmente, tem a ver com o acidente respondeu Maddy com uma confiança que não sentia. Reconheceu o Mercedes cinzento de Charles Henson, o que a fez sentir um nó no estômago.

 

Polícias! gritou a pequena Amy quando esticou o pescoço para espreitar pela janela.

 

Maddy parou na pequena alameda e saltou do carro. Um guarda da patrulha encontrava-se perto de uma das viaturas da polícia.

 

O que se passa aqui? perguntou Maddy. O polícia meneou a cabeça como se não quisesse responder. Maddy voltou para o carro, abriu a porta de trás, desapertou o cinto de segurança de Amy e pegou-lhe ao colo.

 

Que querem eles? perguntou Bonnie de olhos muito abertos.

 

Não sei, mas tenciono descobri-lo quanto antes. Com a filha nos braços, avançou até à porta. Amy aninhara-se contra a mãe, intimidada com as estranhas imagens e ruídos. O peso da menina impediu que Maddy tremesse de medo.

 

Abriu a porta e entrou. Doug estava sentado numa cadeira no átrio de entrada com a cabeça entre as mãos. Charles Henson achava-se na sala de estar e falava com três homens. Um deles era um oficial de uniforme, outro um detective à paisana que ela conhecia e o terceiro homem era o chefe Cameron.

 

O que se passa aqui?

 

Doug fitou-a, abatido. Depois deitou um olhar de esguelha aos três homens e meneou a cabeça.

 

Ele anda atrás de mim explicou num tom de voz quase inaudível. Quer vingança por causa da Heather. Não vai descansar enquanto não tiver a minha cabeça. Sei que não vais acreditar, Maddy!

 

Doug, o que estão eles a fazer aqui? gritou Maddy, desesperada. A pequena Amy, assustada, pôs os braços à volta do seu pescoço.

 

Frank Cameron saiu da sala de estar.

 

Voltámos a encontrar-nos, Mistress Blake saudou, lançando um olhar glacial a Maddy.

 

Porque está aqui? repetiu ela, mal contendo a sua angústia.

 

Foi a vez de Charles Henson se aproximar. Frank Cameron estendeu a Maddy uma folha de papel com o desenho de um homem.

 

Reconhece-o? perguntou.

 

Não lhe responda interveio de imediato Charles. Agarrando-se com mais força à filha, Maddy examinou o desenho. Era o rosto de um homem de barba escanhoada e traços perfeitos. Tinha cabelos claros penteados para trás, como Doug tantas vezes usava. Ao olhar de novo para o marido percebeu que corriam perigo.

 

Não lhe parece familiar? insistiu em tom mais suave Frank Cameron, se bem que o seu olhar revelasse um fulgor de crueldade.

 

Nem por isso respondeu finalmente Maddy.

 

Não lhe responda avisou de novo Charles. Doug, penso que o melhor é colaborarmos com a investigação encetada pela polícia.

 

Nessa altura Amy voltou-se e olhou para o retrato.

 

É o papá! exclamou alegremente. Os olhos de Cameron semicerraram-se.

 

A verdade sai sempre da boca das crianças sentenciou.

 

Leva-a daqui! ordenou Doug fora de si.

 

Está bem.

 

Maddy dirigiu-se à cozinha. O seu coração batia com mais força. O que estariam aqueles homens a fazer na sua casa? Por quanto tempo mais iria Frank Cameron persegui-los, e tudo por causa das mentiras de Heather? Maddy sentia-se dividida entre um sentimento de medo e de ultraje. Na ansiedade daquele momento, a sua fúria pelo erro de Doug com o seguro do carro evaporara-se por completo. O que mais os esperava, quando a vida deles já corria tão mal? Sem se dar conta, apertou a filha nos braços com demasiada força.

 

Larga-me, mamã! protestou Amy. Maddy pousou-a no chão, enquanto tentava raciocinar. A pequenina, entretanto, começara a despir o casaco.

 

Espera! Não te dispas. Vem com a mamã. Abriu a porta que dava para a garagem e saiu. O seu carro continuava parado na alameda, atrás do de Doug. Bonnie permanecia sentada no lugar do passageiro. Maddy pegou no carrinho de bebé de Amy, arrastou-o pelo carreiro e abriu a porta do lado de Bonnie.

 

A mulher agarrou-se à maçaneta e não parecia querer largá-la.

 

O que está a polícia a fazer aqui?

 

O chefe da polícia nutre um profundo sentimento de vingança contra o meu marido explicou Maddy, num fio de voz. Ouça, eu explico-lhe tudo mais tarde. Não se importa de levar a Amy a passear com o Sean até eles saírem daqui? Quero estar presente, mas não queria que a Amy...

 

Está bem resmungou Bonnie, saindo finalmente do carro.

 

Há um parque ao fundo da rua. Pode ver-se daqui indicou Maddy. E tem balouços.

 

Já percebi atalhou Bonnie sem sequer se dar ao trabalho de ver onde ficava o parque. É só até eles se irem embora...

 

Bonnie afastou-se. Abriu a porta de trás do carro, debruçou-se para a frente e enfiou de tal forma o pequeno capuz da camisola de Sean na cabeça do bebé que apenas se podia ver parte do seu rosto. Depois tirou-o da cadeira, mas o bebé esperneou.

 

Também devias ter um chapéu comentou Maddy, olhando para a filha porque está a arrefecer. Espera aqui que a mamã já vem. Abriu o porta-bagagens, de onde tirou um gorro vermelho de lã.

 

Tudo o que se encontra aqui dentro bastava-nos para viver murmurou. Depois baixou-se e enfiou o gorro na cabeça da menina.

 

Agora vais passear com a Bonnie e o Sean até ao parque dos balouços. Vemo-nos mais logo.

 

Amy nada disse e ajudou Bonnie a pôr o bebé no carrinho.

 

Obrigada, Bonnie murmurou Maddy.

 

De nada resmungou esta.

 

Maddy voltou finalmente para dentro. Doug procurava algo no armário do vestíbulo.

 

O que estás a fazer? gritou, aterrorizada. Onde vais?

 

Porque não usa o seu blusão azul? interrompeu Cameron em tom sarcástico.

 

Ele não tem nenhum blusão azul retorquiu Maddy. Charles Henson pegou-lhe no braço e sussurrou-lhe ao ouvido com voz calma mas firme:

 

Estão a investigar o desaparecimento de uma baby-sitter e de um bebé. Uma testemunha declarou ter visto um homem a falar com eles no parque e ao que parece o chefe Cameron acha que o Doug se assemelha ao homem do retrato.

 

Mas pode ser qualquer um! protestou Maddy. Pela janela podia ver Amy no outro lado da rua com o seu gorro vermelho. A menina subira para um dos balouços, enquanto Bonnie estava sentada num banco com o carrinho de bebé a seu lado.

 

Tem toda a razão tentou tranquilizá-la Charles. Doug tirou o seu casaco verde-escuro do armário e vestiu-o.

 

Onde vais, Doug? insistiu Maddy, detectando uma expressão de revolta contida no rosto do marido.

 

Tenho de alinhar no jogo dele. Não te preocupes. Ele está desesperado e é capaz de tudo.

 

Frank Cameron corou, mas não reagiu àquela acusação.

 

Vamos a despachar. Temos uma testemunha à sua espera na esquadra para o identificar.

 

Identificá-lo? Vão prender o meu marido? insurgiu-se Maddy.

 

Só depois de ele ser reconhecido replicou Cameron. Charles, mais uma vez, pousou a mão no braço de Maddy.

 

Vamos colaborar com a investigação deles, independentemente dos motivos que tenham. Estaremos de volta dentro em pouco.

 

Eu vou com vocês ofereceu-se Maddy.

 

Não retorquiu Charles muito sério. É melhor ficar aqui. Eu trago o seu marido para casa o mais depressa possível.

 

Doug olhou para a mulher, constrangido.

 

Desculpa, minha querida... Como me custa teres de passar por isto... Já tiveste a tua conta nos últimos meses....

 

Maddy apertou a mão do marido, como para lhe dar forças.

 

A culpa não é tua. Não te preocupes comigo. Eu fico bem acrescentou com todo o fervor.

 

Contudo, ao vê-los partir sentiu o coração apertado. O toque da campainha do telefone fê-la sobressaltar-se.

 

Mistress Blake? perguntou uma voz estridente.

 

Sou eu respondeu Maddy, preparada para lidar com aquela intrusão.

 

Daqui fala a Ellen Henson.

 

Ah... exclamou Maddy, mais tranquila. Está à procura do seu marido? Ele acabou de sair daqui...

 

A sério? Não, não ando à procura dele. Queria... É que acabo de ler no jornal que sofreram um acidente. Como se sente? E a sua família?

 

Maddy olhou pela janela. Os carros-patrulha já tinham partido. Resignada, suspirou antes de responder:

 

Estamos todos bem, obrigada...

 

E o gatinho?

 

Maddy a princípio não compreendeu, mas logo de seguida lembrou-se.

 

Ah, o gatinho... Receio que com toda a confusão de ontem o gatinho tenha fugido. Deve ter-se refugiado na mata. A Amy ficou muito triste.

 

Não o encontraram?

 

Bem, era um cenário caótico. O meu marido estava; ferido... Ainda tentei procurá-lo, mas estava muito escuro,!

 

Mas o gatinho pode morrer! gritou Ellen. É apenas um bebé!

 

Maddy sentiu as lágrimas rasarem-lhe os olhos.

Eu sei. Lamento imenso...

 

Tivera uma súbita visão do gatinho, perdido na mata, com a sua vida de súbito em perigo, apesar de não ser sua culpa, porque apenas fora vítima das circunstâncias.

 

Lamento imenso...

 

Não se sinta culpada replicou Ellen, igualmente angustiada. A culpa é toda minha. Não devia ter-lhe dado o gatinho. É que vi a menina e... agi impulsivamente. A senhora não me pediu um gato. Fui eu que insisti para que a menina ficasse com ele. Porque será que fazemos certas coisas mesmo quando sabemos que não devemos?

 

Lamento imenso repetiu Maddy sem saber o que fazer. Eu devia ter procurado melhor.

 

Não se preocupe atalhou Ellen em tom lúgubre. Eu sou a única responsável.

 

Antes que Maddy pudesse dizer qualquer coisa a outra mulher desligou.

 

O padre Nicholas Rylander tirou uma mão-cheia de livros das prateleiras que se alinhavam na sua sala de estar e enfiou-os nos caixotes espalhados pelo chão. Vivia na casa paroquial, composta por três divisões. Aquela sala de estar, com vista para o Parque Binney, uma pequena cozinha e um quarto de dimensões diminutas, que mais parecia uma cela de monge. Apesar de ter pouco para embalar, era uma tarefa pesada que adiara o mais que pudera. De vez em quando parava e fechava os olhos, tentando combater a enxaqueca que lhe atingia a sobrancelha esquerda. Sentia-se como se suportasse as consequências de uma grande ressaca, muito embora não houvesse tocado numa só gota de álcool. Sentia picadas nos olhos e os músculos do pescoço estavam tensos. Pousou um grande livro de arte sobre a secretária e abriu-o. Contemplou o Martírio de S. Sebastião de Botticelli. No quadro, o santo erguia pacientemente o olhar para o céu apesar do corpo trespassado de flechas em todas as direcções. A mortificação da carne era um ideal a que qualquer padre aspirava por ser esse o desígnio de Deus. Esfregando a testa, Nick fechou o livro e enfiou-o num dos caixotes. "Amanhã", pensou, "estarás longe daqui. Não podia ter acontecido em melhor altura."

 

Nick não havia sido educado na devoção a Deus. Pelo contrário, os seus pais discutiam constantemente e, quando não o faziam, afogavam as suas mágoas em álcool. O testemunho daquela tortuosa união levara-o a não querer casar-se. Fora quando iniciara os seus estudos de arte na universidade, o mais longe possível dos pais, que dera consigo a sentir-se maravilhado com a inspiração dos artistas do Renascimento. Apouco e pouco sentira-se atraído pelo catolicismo e os seus estudos haviam-no conduzido à fé. O sacerdócio parecera-lhe uma extensão natural desse pendor.

 

Agora tentava imaginar-se de regresso ao Canadá. O mosteiro ficava situado no meio de uma floresta, longe dos problemas com que se deparara em Taylorsville. Trabalharia no restauro de obras de arte e retomaria o controlo da sua vida. Começaria do zero e tentaria fazer as escolhas acertadas. Ou aquelas que Deus quisesse que ele fizesse. Não se deixaria iludir pela luxúria e não cometeria mais erros.

 

Nick? exclamou uma voz doce.

 

Parecia que os seus pensamentos a haviam atraído. A voz perpassou todo o seu corpo atirando-o para um buraco sem fundo. Odiou-se por perceber como os seus sentidos reagiam de forma tão pueril à presença dela a visão, o olfacto e a audição. Nem sequer se atrevia a imaginar qual seria a sua reacção ao tacto. Sentiu um ardor nas faces. O que o levava a pensar que um dia conseguiria dominar aquelas sensações?

 

Erguendo a cabeça, viu Maddy Blake de mãos dadas com afilha. Bateu à porta e depois espreitou para o interior sombrio da sala. Nick apercebeu-se de que, muito embora conseguisse vê-la, ela não podia discernir o seu vulto e aproveitou aquela oportunidade para observá-la melhor. Os seus cabelos negros brilhavam, mesmo à luz difusa do candelabro que iluminava o vestíbulo. O que faria que os cabelos reluzissem daquela forma? A pele dela parecia igualmente brilhante, apesar das profundas olheiras.

 

Nick? chamou de novo Maddy. A sua voz invadiu todo o corpo dele.

 

Estou aqui! respondeu por fim. Entre!

 

Maddy conduziu a pequena Amy pela sala escura. As paredes estavam forradas de prateleiras, na sua maioria vazias. Um crucifixo de prata achava-se afixado a um dos painéis de madeira de outra parede, por cima da cornija da lareira. No entanto, aquela sala pouco ou nada revelava sobre o homem que a ocupava.

 

Olá. Estou muito contente por ver que ainda cá está, Incomodo?

 

Nick reprimiu um sorriso triste. Maddy não fazia a menor ideia de quanto o perturbava... de quanto invadia as suas orações e atormentava o seu sono.

 

Não. Entre. Uma pausa vai fazer-me bem. Mas a que devo o prazer da sua visita?

 

Vejo que está ocupado replicou Maddy, atrapalhada. Parecia haver passado a noite em claro, embora Nick duvi dasse que tivesse sido pelo mesmo motivo que o impedira de pregar olho.

 

Não, não. Fico contente por ter vindo. Estou farto destas arrumações.

 

Tentei ligar para o seu escritório e parece que uma bússola me trouxe até aqui...

 

Ainda bem retorquiu Nick, enquanto retirava do sofá um caixote meio vazio. Sente-se. Tu também, Amy São ambas bem-vindas.

 

Maddy tirou da mala um brinquedo que consistia num livro que fazia música. Amy pegou-lhe avidamente e começou a carregar nas diversas teclas. Só depois é que Maddy, sentada na beira do sofá, olhou em seu redor e estremeceu.

 

Está frio aqui...

 

É que resolvi praticar para a minha viagem até ao Canadá replicou Nick sorrindo enquanto indicava a camisola de lã cinzenta que trazia vestida.

 

Parece já ter tudo embalado disse Maddy, não sem uma ponta de tristeza na voz. Sou o homem mais preguiçoso e desorganizado do mundo justificou-se Nick, mas depressa se deu conta de que o seu comentário não havia sido ouvido por Maddy, que parecia muito longe dali.

 

Como deve ser bom levar uma vida simples, sem ter um milhão de complicações... murmurou.

 

No fundo, isso está relacionado com a forma como encaramos a vida. Maddy, sei que não veio até cá para falar sobre a minha mudança. O que se passa? Ainda ontem, quando nos encontrámos no hospital, me disse que estava tudo bem. Aconteceu alguma coisa?

 

Não no que diz respeito ao acidente...

 

Então o que é?

 

Maddy levantou-se e começou a andar pela minúscula sala.

 

Para ser sincera, não sei o que me trouxe até aqui. Nem sequer me considero uma pessoa de grande fé. Estou certa de que já terá reparado que não sou a mais assídua das suas paroquianas...

 

Nick ergueu a mão como para a mandar calar, mas Maddy parecia incapaz de se interromper.

 

Tão-pouco estou aqui para falar consigo enquanto padre. Preciso de um amigo... De alguém em quem possa confiar.

 

Nick corou, sentindo-se feliz por a sala estar imersa numa obscuridade quase total.

 

Provavelmente, foi só por tê-lo encontrado ontem à noite no hospital. E também porque já trabalhámos juntos, quando pintei os vitrais. Algo me diz que me conhece bem. Mas tem muito que fazer e estou a tomar o seu tempo. Não tenho o direito de incomodá-lo.

 

Nick debruçou-se para a frente, tentando captar o olhar dela.

 

Pare com isso, Maddy.

 

O mais provável é que já se tenha despedido psicologicamente deste lugar. Sei como é. Nos últimos dias funcionamos em piloto automático.

 

Isso não se aplica a tudo.

 

Nick sentia-se espantado com a falta de argúcia de Maddy. Seria deliberado? Como podia ela não se aperceber do efeito que tinha sobre ele? Lembrou-se então de que Maddy viera ali à procura de um conselho ou de ajuda. Independentemente do que viesse a dizer, escolhera-o por ele ser padre e por saber que podia contar com a sua discrição.

 

Talvez seja porque se vai embora retomou Maddy, como se pensasse em voz alta. Sei que partirá, levando consigo todas as monstruosidades que vou contar-lhe, e que não terei de encará-lo depois de desabafar o que me vai na alma.

 

Nick teve de usar toda a sua força para não permitir que ela se apercebesse de como aquele comentário o ferira.

 

Maddy, o que aconteceu desde ontem à noite? Pensava que tudo corria pelo melhor. Por favor, diga-me o que se passa.

 

Maddy suspirou.

 

Muito bem anuiu. A seguir respirou fundo, como para ganhar coragem. Albergámos em nossa casa os passageiros do outro carro que esteve envolvido no acidente de ontem porque não tinham onde ficar.

 

E como está o homem que ocupava o outro carro

 

Estava a reagir muito bem, esta manhã. Sabe como são os hospitais. Operam num dia e dão-nos alta no dia seguinte Tudo por causa das companhias de seguros. Não querem nada com as despesas concluiu, mas um esgar passou pelo seu rosto, como que acometido por uma dor aguda.

 

Foi de uma grande bondade acolher essa família em casa comentou Nick.

 

Era o meu dever retorquiu Maddy enquanto torcia maquinalmente a pulseira de prata. Senti-me tão culpada pelo que lhes aconteceu.

 

Nick brindou-a com um sorriso algo matreiro.

 

O eterno complexo de culpa... Como conseguiriam" viver sem ele?

 

Preferiria dizer que foi obra do Espírito Santo ripostou Maddy, mas na realidade fui movida pela culpa.

 

É uma pessoa sincera, Maddy Blake.

 

Não é bem assim teimou Maddy. Ontem à noite, quando chegámos a casa, e depois de os instalar, o Doug disse-me... que não tinha pago o prémio do seguro do carro e que, se aquela família decidisse processar-nos, não estariam" cobertos pelo seguro.

 

Nick estremeceu. "Que tonto és!", pensou. Sabia mais sobre os problemas do dia-a-dia do que a maior parte dos seus paroquianos suspeitava. Vira pessoas permanecer em empregos que detestavam apenas para terem direito ao seguro. Vira outras arruinadas por não terem seguro. Douglas Blak ao deixar fugir aquela protecção, tornara a sua família vulnerável

 

A sua antipatia por aquele homem intensificou-se de tal forma que lhe provocou um nó na garganta.

 

Foi uma estupidez concluiu Maddy com fervor.

 

Tirou-me as palavras da boca concordou Nick.

 

Eu estava furiosa com ele. Depois de tudo o que tínhamos passado por causa da Heather Cameron... E não finja que não está ao corrente.

 

Nick evitou o olhar de desafio de Maddy.

 

Sim, de facto estou ao corrente, mas como nunca falámos sobre isso...

 

Eu sei. Nunca falei disso com ninguém. Mas sentia... Esqueça. Não quero reviver o passado. A polícia foi a nossa casa há uma hora e levou o Doug para o interrogar por causa do desaparecimento daquela baby-sitter e do bebé.

 

Como? exclamou Nick, não conseguindo esconder a sua estupefacção.

 

Maddy lançou-lhe um olhar suplicante.

 

Nick, não sei o que pensar. O Doug nunca... Quero dizer, ele é... Por vezes é irresponsável. Ultimamente tem-se mesmo mostrado cruel e revoltado, em certos momentos. Mas isto...

 

Tenho a certeza de que não...

 

Mesmo assim, não posso deixar de me questionar! interrompeu Maddy.

 

O que é perfeitamente normal.

 

Amy, que estava sentada no chão com as pernas estendidas, soltou um gritinho quando chegou à página em que um pássaro cantava.

 

Maddy debruçou-se e passou gentilmente a mão pelos cabelos louros e sedosos da filha. A sua pulseira prateada brilhava ainda mais, em contraste com os caracóis dourados da menina. Por fim Maddy retirou a mão e passou os dedos pela pulseira, absorta nos seus pensamentos.

 

Não conhece o meu marido...

 

De facto, não conheço o seu marido anuiu Nick, ciente de que Maddy se preparava para defender Doug Blake, coisa que não sabia se queria ouvir.

 

Inclinando a cabeça para o lado, Maddy suspirou de novo.

 

Ele... Antes de eu o conhecer bem achava que não passava de um homem mimado e egocêntrico. Era atraente e, naquela altura, tinha muito dinheiro, que esbanjava à toa. Sabe que o Doug foi jogador profissional de basebol?

 

Não sou grande apreciador de desporto.

 

Nem eu. Era até bastante preconceituosa e pensava que todos os jogadores de basebol eram estúpidos, mas o Doug provou-me que estava errada. É muito inteligente e um excelente professor. E tem o coração no devido lugar...

 

Maddy interrompeu-se, hesitando.

 

Mas...? insistiu Nick.

 

Não era por aí que eu queria ir. O Doug pode parecer alguém que nasceu num berço de ouro e foi muito acarinhado pelos pais, mas na realidade teve uma infância difícil. Os pais dele... A mãe dele é uma mulher insensível e fria. Nunca telefona, nem mesmo quando ele faz anos. Nunca lhe enviou sequer um postal. Consegue imaginar tal coisa? Quanto ao pai, era um homem muito passivo. Entregou-se aos seus negócios e deixou o Doug à mercê de si próprio. Não foi fácil para o Doug crescer num ambiente assim...

 

Nick assentiu, lembrando-se dos seus próprios pais, que tudo haviam feito para o levar a tomar partido nos seus com bates.

 

É espantoso o que as crianças têm de suportar replicou. E como as pessoas conseguem sobreviver aos traumas de infância sem sofrerem danos irreparáveis.

 

Eu sei! concordou Maddy com todo o fervor. A minha vida foi tão facilitada... Os meus pais mimavam-me muito, assim como o meu irmão. Não faço ideia do que é ser-se um filho... rejeitado. Por isso mesmo, sempre que o DOUG se mostra frio ou impaciente, tento compreender as suas atitudes. O seu comportamento não significa que ele não nos ame nem que fosse capaz de fazer... de ser culpado de um acto tão hediondo como... como o que terá acontecido à Heather. Ou à baby-sitter desaparecida. É apenas a maneira dele de reagir aos problemas.

 

Apesar de acenar em sinal de concordância, Nick, no seu íntimo, não conseguia compreender. Como podia Doug Blake menosprezar aquela dádiva de Deus e pensar que o amor que a mulher lhe devotava era uma espécie de trofeu? Mesmo antes de se tornar padre, Nick vivera sozinho e isso nunca o incomodara. Após as discussões e os gritos que ouvira na casa dos pais, o silêncio fora para ele uma bênção. Depois de ter encontrado a sua fé nunca mais se sentira sozinho. Encontrara o bem-estar comungando com Deus, e o silêncio voltara a ser uma bênção após os seus deveres na vida paroquial. Fora então que conhecera Maddy e começara a desejar uma presença humana, o que aniquilara a sua paz de espírito. Experimentava um sentimento de solidão por não estar ao lado dela. Fitou Maddy, cujos olhos se mostravam ensombrados pela preocupação, e deu-se conta de que ela aguardava a sua resposta.

 

E agora quer saber se deve continuar a acreditar no seu marido... É essa a pergunta que deseja fazer-me, não é verdade?

 

Maddy acenou, visivelmente constrangida.

 

Pois penso que já sabe a resposta. Depois do que acabou de dizer-me ainda acredita no seu marido, que neste momento precisa mais do que nunca de que fique a seu lado.

 

Tenho plena consciência de que o chefe da polícia o odeia por causa da Heather explicou Maddy.

 

As pessoas cometem actos irracionais quando procuram vingança.

 

É a isso que tudo se resume... À vingança.

 

Não sei... Talvez...

 

No fundo não tem a ver com o que realmente aconteceu. Como fui capaz de pensar tal coisa do Doug? gritou Maddy, desesperada.

 

Nick fitou-a, olhos nos olhos, embora pudesse aperceber-se de que Maddy não o via.

 

Não era difícil para Nick pensar o pior de Doug Blake. Não confiava naquele homem e achava que seria capaz de seduzir Heather Cameron. Por outro lado, sabia que, lá no fundo, tinha inveja de Doug Blake por ser casado com a mulher que ele amava, o que fazia que lhe fosse impossível ser justo ou imparcial.

 

Se aconselhasse Maddy a dar ouvidos às suas piores suspeitas, poderia arruinar aquele casamento, o que seria pecado. Decidira optar pela sua vocação e esquecer a sua paixão por Maddy. Não podia ser o agente da destruição do casamento dela, se queria salvar a sua própria alma. Se não acreditar nele... replicou em voz baixa, com quem poderá ele contar? Precisa de todo o seu apoio e lealdade...

 

Maddy suspirou e por fim sorriu.

 

Tem razão. Devo manter a fé. Dito isto, levantou-se. Peço-lhe que não conte a ninguém os meus receios... Mal pronunciou as últimas palavras deu-se conta de como havia sido insultuosa para com o padre. Desculpe... Sei muito bem que nunca revelaria as minhas confidências. Vim até cá por saber que podia confiar em si.

 

E também por saber que estou de partida rematou Nick levantando-se por sua vez.

 

Maddy avançou para Nick e estendeu-lhe a mão. O rosto de Nick revelava uma tristeza tão grande que lhe custava fitá-lo. "Está triste por partir", concluiu mentalmente. "Nada tem a ver comigo." Contudo, quando os seus olhares se cruzaram Maddy compreendeu e teve a sensação de haver desvendado de súbito um segredo tão assustador quanto maravilhoso. Tomada por um impulso, abraçou-o. Nick envolveu-a nos seus braços. A enorme ternura e afecto que o invadiram fizeram-no| querer dizer-lhe quanto a amava, mas não deixou escapar nem um murmúrio.

 

Maddy suspirou de novo e sentiu no seu íntimo como que, uma ameaça, capaz de levá-la a ceder enquanto estivesse nos braços de Nick. Tentou dizer a si mesma que era normal abraçar um amigo que estava de partida. Mas não foi amizade que sentiu quando fechou os olhos, sempre abraçada a Nick. Desejava acariciar-lhe os cabelos, encostar o seu rosto ao dele e procurar-lhe a boca. Mas só podia ser consequência do seu cansaço e do conforto que o abraço de Nick lhe trazia. No entanto, era uma sensação assustadora e Maddy afastou-se abruptamente.

 

É melhor eu ir andando disse, evitando o olhar de Nick. Talvez o Doug já tenha regressado. Obrigada... Nick. Vamos embora, minha querida murmurou, enquanto ajudava a filha a levantar-se. Não queremos incomodar mais o padre Nick. Ele tem de fazer as malas.

 

Vai de férias? perguntou a menina.

 

Maddy olhou para Nick e viu que o seu rosto deixava transparecer uma estranha agonia.

 

Penso que o padre Nick se vai embora.

 

Mas volta? insistiu Amy.

 

Não, minha querida. Vai partir de vez. Amy voltou-se e acenou a Nick.

 

Adeus! despediu-se, pouco convencida pela explicação da mãe. Até à volta!

 

Maddy não se voltou para trás quando conduziu a filha até à porta e saiu.

 

Ernest Unger pressentiu, mais do que viu, um movimento no pequeno bosque, ao longe, e experimentou a mesma excitação que aquele movimento lhe provocava sempre. Movendo-se com a delicadeza de anos de prática, voltou-se sem produzir o menor ruído e avistou a presa. O cervo encontrava-se ao alcance da mira da sua espingarda. Os chifres do animal ocupavam todo o espaço entre duas árvores. "Que belo exemplar", pensou Ernest, fitando maravilhado a sua presa enquanto planeava os próximos passos. Podia já imaginar aquela cabeça imponente pendurada na parede da sua cabana. Marie não o deixava expor os trofeus numa outra divisão. Ernest mandava embalsamar apenas os espécimes mais imponentes e aquele cervo merecia tal privilégio. Haveria de falar daquela caçada durante anos a fio. Sentiu um arrepio perante a expectativa. "Não te precipites." Muitas eram as balas que se perdiam e por vezes os animais fugiam. Colocou-se em posição, silenciosamente. O cervo não se' mexeu. Se o seu maldito genro ficasse quieto, onde quer que se encontrasse... Ernest detestava levar Dan consigo quando ia caçar. Muito embora Marie e Susie o tivessem equipado com os apetrechos mais sofisticados e Dan se mostrasse disposto a aprender, não sabia nada de caça, era trapalhão, fazia muito barulho e desperdiçara muitas oportunidades de ouro quando Ernest já rejubilava com a certeza de caçar a sua presa. Sabia que devia estabelecer um elo com o rapaz como se dizia í agora. Ernest tinha saudades dos bons velhos tempos em que os homens saíam juntos e aquelas lamechices eram coisas de mulheres. Caçar era um desporto de homem, uma das poucas actividades que ainda podia praticar sem ter um bando de mulheres à sua volta. Se bem que para Ernest a companhia de Dan fosse quase tão má como a de uma mulher.

 

Na realidade, Ernest desconfiava que Dan era um tudo-nada sensível de mais e não queria aprender a caçar, muito embora não fosse tão mau caçador como isso. Ernest vira-o atingir um alvo com razoável pontaria. O que lhe fazia confusão era o derramamento de sangue. Susie, a mulher de Dan, crescera entre caçadores e tentara explicar-lhe como aquele desporto era ecológico mantendo o nível da população de cervos controlada e como lhe permitia ter carne durante todo o Inverno, finda a época da caça. Dan parecia compreender, mas sempre que Marie lhe servia bifes de cervo Ernest via-o empurrar a carne para o rebordo do prato. No fundo, pouco lhe importava. Se Dan não tinha estômago para a caça, só tinha de o dizer. Entretanto, tornara-se um verdadeiro empecilho quando Ernest ia caçar.

 

O cervo ergueu a cabeça e inalou o ar, alerta, com os músculos tensos. Da mesma maneira, Ernest, com cada músculo do seu corpo igualmente tenso, ergueu lentamente a espingarda e apontou-a na direcção do animal. Por breves momentos, caçador e presa eram apenas um, unidos pelo destino. Ernest passou o dedo devagar à volta do gatilho e preparou-se para o premir.

 

Foi então que um grito aterrador cortou o silêncio. Ernest, preparado para matar, desatou a disparar e quase caiu para trás. O cervo voltou-se, encontrou o olhar de Ernest e fugiu, em ágil galope.

 

"Filho da mãe!", praguejou mentalmente Ernest. "Basta! Bem podem implorar-me, que nunca mais trago aquele ignorante, aquele inútil...!"

 

Reconhecera a voz de Dan chamando-o num grito rouco. Ernest colocou a espingarda ao ombro. O seu rosto ardia de cólera. Sempre se tivera na conta de um homem pacífico e sensato que nunca usaria uma arma num momento de raiva, mas por breves segundos, enquanto caminhava pelos arbustos com o seu fato camuflado, percebeu como as coisas podiam descontrolar-se quando alguém estava armado.

 

O que foi? vociferou ao aproximar-se do genro. Dan estava encostado a uma árvore e o seu rosto estava tão cinzento como o peito de um pombo.

 

Pai... sussurrou numa voz tão infantil, tão apavorada, que a raiva de Ernest se dissipou imediatamente, dando lugar a um súbito instinto paternal.

 

Veja... murmurou Dan, indicando com mão trémula uma clareira no meio dos arbustos.

 

Ernest dirigiu-se para a clareira.

 

Oh, meu Deus! exclamou com a voz entrecortada pela emoção. Oh, meu Deus!

 

Dan dobrara-se para a frente e vomitava, enquanto Ernest fitava, horrorizado, o corpo deformado da rapariga, a sua camisa rasgada, as calças meio despidas. Os insectos e as minhocas já tinham começado a habitar o interior daquele estranho ser de olhos esbugalhados.

 

Ernest nada disse. Sem desviar o olhar do rosto da rapariga deu uma palmada nas costas de Dan. Depois pousou a espingarda, tirou o casaco e avançou para o local onde jazia o corpo Ajoelhando-se, tapou a rapariga com o seu casaco, ajeitando-o gentilmente, como um pai que tapa o filho adormecido.

 

Meia hora depois o bosque silencioso transformara-se numa feira macabra. Polícias, fotógrafos e jornalistas percorriam a zona, enquanto as câmaras de vídeo filmavam em frente da fita amarela que isolava o local onde o corpo havia sido encontrado. Os rádios emitiam estalidos e o assistente do promotor público falava com o seu gabinete pelo telemóvel.

 

Ernest Unger, agora muito pálido, sentado num balde virado ao contrário que Dan encontrara no carro, bebia uma Coca-Cola que o genro lhe dera. Dan mantinha-se ao lado do velhote, com uma mão pousada sobre o seu ombro, num gesto protector, enquanto repetiam pacientemente aos diversos agentes como tinham encontrado o corpo. Frank Cameron desviou o olhar do triste espectáculo que constituíam os restos mortais de Rebecca Starnes, enquanto os homens do médico legista cobriam o corpo e o colocavam numa maca. Dirigiu-se ao médico, o Dr. Simon Tillis, que guardava alguns instrumentos médicos na sua maleta.

 

Como foi que ela morreu? perguntou.

 

Na realidade, morreu com umA bala na cabeça, disparada à queima-roupa. A julgar pela ferida, diria que se tratava de uma arma de pequeno porte, muito embora tenhamos de encontrar a bala para ter a certeza.

 

Ela tem contusões muito graves.

 

Isso deve-se a não ter tido morte instantânea e a ter sido arrastada até aqui. Bonito... resmungou Frank pensando na mãe da rapariga agarrada à fotografia da filha. Houve violação?

 

O médico encolheu os ombros.

 

Tudo indica que sim, mas só saberemos quando forem recebidos os resultados do laboratório.

 

Esses psicopatas costumam preferir navalhas ou, ainda melhor, a morte por estrangulamento.

 

De facto, mas tendo em conta o estado de decomposição em que a encontrámos...

 

Já percebi. De quanto tempo vão precisar para nos dar os resultados da autópsia? Pelos meus cálculos, receberá o relatório amanhã.

 

Pois bem, diga aos seus homens que quer os resultados para ontem! vociferou Frank.

 

O Dr. Tillis sabia que a fúria de Frank Cameron não era dirigida contra a sua pessoa.

 

Está bem.

 

Pete Millard aproximou-se de Frank e juntos observaram o corpo, agora tapado, que estava a ser colocado na carrinha mortuária.

 

Então o que temos? perguntou. Tratou-se de um crime sexual ou queriam apenas sequestrar o bebé?

 

Ainda não sei. Parece mais um crime sexual, mas teremos de esperar pelos resultados do laboratório.

 

Mas, se foi um crime sexual...

 

Eu sei. Há algum indício...?

 

Pete compreendeu por que motivo o seu chefe não terminara a frase. Queria referir-se a Justin sem ter de falar mais do espectáculo macabro com que acabara de deparar.

 

Estão a passar o local a pente fino.

 

Chegámos tarde de mais murmurou Frank. Merda. Aquela pobre mulher...

 

Temia o momento em que bateria à porta de Sandi Starnes e teria de encontrar as palavras certas para lhe explicar o que acontecera à sua adorada filha.

 

Talvez ainda encontremos o bebé comentou Pete, esperançado. Se não estiver aqui, é bom sinal.

 

Pois claro... rosnou Frank, enquanto o seu olhaR percorria as árvores do bosque. Que bela notícia...

 

Heather Cameron estava sentada, sozinha, a uma mesa de seis pessoas, com o tabuleiro do almoço à sua frente, fingindo ler um livro. Esforçava-se por não se aperceber de que os outros a evitavam, muito embora tivesse a impressão de ouvir pronunciar o seu nome no meio do burburinho que percorria o refeitório. Não tencionava erguer o olhar uma só vez. Não lhes daria tal prazer. Contudo, o seu coração bateu mais forte quando, pelo canto do olho, viu duas pessoas aproximarem-se da mesa que ocupava. Implorando para que mudassem de direcção e se sentassem na mesa ao lado, fingiu retomar a leitura. Infelizmente, dois tabuleiros foram pousados na mesa, um à sua frente, o outro a seu lado. Sentindo-se como se tivesse sido apanhada numa emboscada, tentou reprimir as lágrimas que começaram a deslizar-lhe pelo rosto.

 

Olá, Heather proferiu uma voz doce. Desconfiada, a rapariga ergueu o olhar. Karla e Richie, que a tinham acompanhado até ao liceu naquela mesma manhã e falado com ela como se não soubessem da sua desgraça ao ser considerada oficialmente uma mentirosa, estavam agora ali, à sua frente.

 

Olá... murmurou, fitando o casal com crescente desconfiança. Pensara que eles apenas haviam querido mostrar-se simpáticos acompanhando-a até aO liceu. Afinal, ela e Karla tinham crescido no mesmo bairro. E, como Karla sempre fora muito bonita e tivera vários namorados, era-lhe fácil ser simpática. Mas agora parecia-lhe que a colega estava a ser simpática de mais, como se Heather fosse o alvo de algum plano forjado por ela, sobretudo depois de perceber que o casal trocara um olhar cúmplice.

 

Podemos sentar-nos aqui? perguntou Karla.

 

Claro, se quiserem respondeu Heather, mas não sorriu.

 

Karla acomodou-se na cadeira.

 

Ouviste falar daquela rapariga de Perpetual Sorrows?

 

Que rapariga?

 

A que desapareceu com o bebé.

 

Ah, sim...

 

Encontraram-na. O teu pai apareceu na televisão.

 

E ela está bem? quis saber Heather.

 

Não respondeu Richie. Está morta.

 

Meu Deus! exclamou Heather, fechando o livro. Os três jovens permaneceram em silêncio durante algum tempo, atordoados com a ideia de que alguém com a sua idade e vivendo em Taylorsville pudesse ter tido tão triste fim.

 

Ouvi na televisão que eles interrogaram Mister Blake por causa da rapariga acrescentou Richie. O teu pai deteve-o.

 

Heather corou violentamente. Desejou que um buraco sE abrisse no refeitório e a tragasse.

 

Foi uma estupidez replicou.

 

Porquê? Aquele homem é um tarado insurgiu-se Ri chie. Tu própria o disseste.

 

Karla lançou um olhar reprovador ao namorado. Heather abriu de novo o seu livro.

 

O que estás a ler? quis saber Karla, sempre em tom afável.

 

Heather teve de consultar a capa do livro para poder rEsponder.

 

Um livro de matemática.

 

Aproveitou para olhar de relance Richie, que, atrapalhado parecia muito concentrado em arrancar a lingueta de uma lata de sumo.

 

Por que carga de água é que vocês os dois são tão sim páticos comigo? perguntou então.

 

Richie olhou para ela inocentemente, como se tivesse ficado ofendido com aquela pergunta, mas Karla nem se deu ao trabalho de fingir. Enfiou uma palhinha num pacote de leite e fê-la rodopiar.

 

Devem ter um motivo qualquer insistiu Heather.

 

Não podemos ser apenas simpáticos? protestou Richie.

 

Heather brindou-o como uma careta.

 

Não tentes fazer-me passar por parva. Já me basta o que aconteceu. Primeiro acompanham-me até ao liceu. Agora vêm sentar-se à minha mesa. Toda a gente sabe que sou uma espécie de leprosa, por causa daquela história com Mister Blake.

 

Está certo. Tens razão, Heather confessou Karla. Estamos a tentar ser simpáticos contigo, mas juro-te que não te queremos fazer mal.

 

Mas querem qualquer coisa em troca. Richie suspirou e começou a comer a sua piza.

 

Mais ou menos... admitiu Karla.

 

Heather sentiu um aperto no coração. Apesar de teimar consigo mesma que já o sabia, nutrira uma secreta esperança de que talvez aqueles dois jovens tão belos quisessem ser seus amigos. A sua desilusão, contudo, não foi muito grande porque só alimentara aquela esperança desde o início da manhã, mas mesmo assim...

 

Karla pousou a mão pequena e de formas perfeitas no seu braço.

 

Ouve, Heather. Conheço-te desde miúda, não é verdade?

 

Heather assentiu, incapaz de reprimir o nó de desapontamento que se lhe alojara na garganta.

 

Eu acredito em ti, Heather. Quero dizer, mais ou menos.

 

Heather, como se já esperasse aquela afirmação, encolheu os ombros.

 

Richie debruçou-se sobre a mesa e fitou-a com os seus belos olhos verdes, o que fez que Heather sentisse o estômago às voltas. Como seria saber que um rapaz como Richie estava apaixonado por ela?

 

Ouve, Heather, sei que toda a gente pensa que Mister Blake é um tipo às direitas, mas não é essa a minha opinião. Ele deu-me um "medíocre" no período passado que me afastou da equipa de futebol.

 

E mereceste-o? ripostou Heather sarcasticamente

 

Faltei a um teste por causa de uma lesão num treino Não me deixou compensar a falta e disse-me que teria automaticamente um "mau".

 

Porque não lhe apresentaste um atestado médico?

 

Foi o que eu fiz. Só que ele alegou que, se eu estava assim tão fraco, não podia pertencer à equipa de futebol. Aquele homem é um verdadeiro filho da mãe.

 

Porque não contaste isso à tua mãe ou ao director?

 

E acabar como tu? Heather suspirou.

 

Mas porque foi que ele te fez isso?

 

Richie esboçou uma careta e apertou a lata de Coca-Cola com tanta força que a amolgou.

 

Porque penso que ele andava a tentar atirar-se à Karla respondeu por fim.

 

Disparate!

 

A sério. Fez-me um monte de perguntas sobre ela e disse-me que com certeza a Karla gostaria de me ajudar a regressar à equipa de futebol...

 

Ele nunca faria tal coisa! protestou Heather. Ele não...

 

Ele não o quê? Pensava que te tinha forçado a teres relações com ele em troca de uma boa nota.

 

Não quero falar nisso murmurou Heather.

 

Estávamos esperançados em que ele fosse despedido, depois do que te fez interveio Karla.

 

Eu também replicou Heather.

 

E provavelmente teria sido despedido se tu não tivesses mudado tantas vezes a tua versão acrescentou Karla em tom subitamente brusco. Porque fizeste isso? Porque não compareceste no tribunal para depor?

 

Heather, espetando o queixo, olhou para o seu tabuleiro. Sentia o rosto em brasa e tudo o que queria era que aqueles dois se fossem embora.

 

Isso não vos diz respeito respondeu por fim.

 

Gostavas muito dele, não é verdade? retomou Karla.

 

Não sussurrou Heather. Karla e Richie entreolharam-se.

 

Sabes, Heather, já tinha ouvido certos rumores sobre ele antes disso. Nada de concreto. Apenas algumas conversas...

 

Então tenta provar o que ouviste replicou Heather em tom mordaz.

 

Karla agarrou-a pelo braço.

 

É exactamente isso que queremos fazer. Queremos apanhá-lo e acho que conhecemos uma maneira... Temos uma ideia...

 

O coração de Heather bateu mais depressa. Sentia uma imensa alegria e também outro sentimento, mais estranho. Uma espécie de esperança. Mesmo durante o julgamento nunca se havia apercebido do quanto queria vingar-se do seu professor. A decisão de acusá-lo em público fora tomada mais num momento de loucura do que por outra razão qualquer. Nunca poderia imaginar que as coisas fossem tão longe. Mas agora que arruinara a sua reputação e todos pensavam que não passava de uma pobre idiota dava-se conta do seu erro. Olhou encantada para os seus dois novos aliados.

 

Têm uma ideia? exclamou.

 

Sim respondeu Karla. Queres ajudar-nos?

 

Paulina Tomczuk consultou o relógio e franziu as sobrancelhas. Andava à procura de Ellen havia mais de uma hora, mas não tivera sorte e sentia-se frustrada. Podia estar em qualquer parte. Paulina já tentara verificar alguns dos locais onde julgava poder encontrá-la. A estufa onde ela comprava plantas, as poucas lojas onde se abastecia e calcorreara as ruas e os parques de estacionamento de Taylorsville, mas nem sinal do jipe encarnado de Ellen.

 

"Sou uma cozinheira, não um detective", pensou, irritada, quando transpôs os portões do cemitério onde Kenny repousava. A área extensa, varrida pelo vento, estava deserta e imersa em silêncio total. Por cima do relvado viçoso voavam folhas mortas, que iam pousar nas pedras tumulares. Paulina seguiu pelos caminhos sinuosos do cemitério, parando por breves momentos para examinar o talhão onde se encontrava a sepultura do menino. Os pais haviam escolhido uma sepultura situada por baixo de uma árvore que florescia na Primavera, Contudo, sob a sombria e triste luminosidade do Outono os seus ramos desnudados estendiam-se como os braços de uma mãe inconsolável que protegia as pedras tumulares.

 

Era naquela altura do ano que Mr. Henson se preocupava mais com a esposa, sobretudo nos dias que se seguiam ao aniversário do filho. Paulina, no entanto, achava que Ellen parecera encontrar-se bem no dia do aniversário, como se nem sequer pensasse em tal data. No dia seguinte mostrara-se preocupada e agitada, o que deixara Mr. Henson mais preocupado do que se a tivesse visto triste e chorosa. Agora, porém, Paulina era forçada a concordar com a angústia de Mr. Henson. Não que fosse especialista em problemas do foro psicológico. Criara quatro filhos que, graças a Deus, eram normais e saudáveis, tal como os seus netos. Por outro lado, não tinham passado pelo sofrimento de Ellen. Era algo de que uma mulher nunca se recompunha. De qualquer maneira, quando se apresentara ao trabalho, de tarde, e Mr. Henson telefonara, nem sinal de Ellen. Mr. Henson, mostrando-se muito angustiado, dissera-lhe que telefonara para casa durante toda a manhã, mas que ninguém atendera. E Paulina conhecia o motivo da sua angústia: Ellen raramente saía e, as poucas vezes que o fazia, era após horas de reflexão, regressando pouco tempo depois. Paulina acedera ao pedido do patrão e metera-se no carro para ir procurar Ellen. Tirara o avental para proceder à busca e passada uma hora ali estava, sem ter encontrado a patroa.

 

Não adivinho o pensamento dos outros resmungou em voz alta. Estava aborrecida por o patrão lhe ter feito aquele pedido e também por haver falhado. Muito menos sou detective acrescentou.

 

"Talvez já tenha voltado para casa", concluiu mentalmente. "Se calhar desencontrámo-nos. Além do mais tenho de preparar o empadão para o jantar. Bom, é melhor regressar."

 

No momento em que se preparava para dar meia volta e dirigir-se para a saída do cemitério, Paulina teve uma súbita inspiração. O veterinário. Ellen andava tão preocupada com os gatinhos... Provavelmente resolvera consultar o veterinário para esclarecer uma dúvida. "É a última tentativa", pensou, virando para a estrada que seguia ao longo da margem do rio. Poucos minutos depois bastou-lhe olhar de relance para o parque de estacionamento da clínica veterinária para perceber que a resposta também não se achava ali.

 

Tenho de começar a preparar o empadão resmungou mais uma vez. Não podia andar a passear o dia todo. Olhando para a figura da Virgem que estava afixada ao painel de instrumentos do carro murmurou:

 

Vais ter de zelar por ela, Santa Maria.

 

Mal acabara de pronunciar aquelas palavras, avistou uma mancha vermelha à altura do seu ombro. Abrandou e parou atrás do jipe, estacionado de banda. Sentindo um súbito receio, saiu do carro. Não se via vivalma. O jipe estava vazio.

 

Mistress Henson! gritou. Ellen!

 

À excepção do estalido das folhas e dos gritos queixosos ', dos pássaros, o silêncio reinava no bosque. Viam-se marcas negras de pneus na estrada, revelando uma paragem abrupta, e uma lasca da borracha de um dos pneus que saltara para o relvado.

 

Ellen!

 

Ouvindo o farfalhar dos arbustos atrás dela, Paulina voltou-se, sobressaltada.

 

Quando percebeu que aquele ruído não correspondia aos passos de alguém que se aproximara concluiu que devia ter sido um animal que passara por ali. Então, por entre as árvores, ouviu de novo alguém que se movia perto do solo e, logo de seguida, soluços abafados. Paulina não era uma mulher particularmente corajosa, mas sentiu uma súbita determinação de encontrar Ellen. Avançou por entre os arbustos que ladeavam a estrada. Dera alguns passos quando a viu.

 

Ellen, de gatas, rastejava pelo solo.

 

Mistress Henson! gritou de novo Paulina, correndo para a patroa sem sentir que os ramos lhe rasgavam as meias por baixo das calças forradas. Os seus sapatos azuis de saltos baixos não eram adequados para passeios pela mata, mas mesmo assim Paulina precipitou-se para a mulher frágil que se' achava a poucos metros dela. Por fim Ellen ergueu a cabeça e Paulina percebeu que a sua patroa estava fora de si. Estendeu os braços, como se fosse uma criança, e Paulina agarrou-a com as mãos ainda com vestígios de farinha.

 

Mas afinal o que vem a ser isto? explodiu, descontrolada.

 

Ando à procura do gatinho... murmurou Ellen, agarrando a mão de Paulina.

 

A cozinheira fitou-a, atónita.

 

Que gatinho?

 

O que dei à menina.

 

Paulina precisou de alguns segundos para compreender do que falava a patroa.

 

E o que a leva a pensar que o gatinho está aqui? O casal não ficou com ele?

 

O gatinho fugiu! ripostou Ellen, cravando as unhas nas mangas do casaco de Paulina. E ninguém se lembrou de o procurar! Ele é tão pequenino. Fui eu que o dei. Nunca devia tê-lo dado. Estou farta de procurar... Tenho de o encontrar...

 

Paulina ajoelhou-se, ignorando as pontas espinhosas das folhas que se agarravam às suas calças e a lama que se lhe pegava aos sapatos. Não conseguia compreender o que Ellen lhe dizia e isso assustava-a. O que estava ela a fazer ali, rastejando pelo bosque? Mr. Henson sempre tinha razão para se preocupar. Paulina pôs os braços à volta dos ombros estreitos daquela mulher tão frágil e acariciou os seus cabelos grisalhos e desgrenhados.

 

Está tudo bem... O gatinho vai salvar-se. Agora vamos voltar para casa.

 

Não compreendes teimou Ellen. O facto de isto ter acontecido nesta altura é um sinal! É um castigo!

 

Disparate. Vamos embora. É melhor voltarmos para casa.

 

Ellen pareceu aceder finalmente, enquanto Paulina perguntava a si mesma como iria contar a Mr. Henson o que acabara de presenciar. Não era difícil perceber que aquele episódio era sintoma de uma... crise. Chegava a ter medo de ver a expressão do rosto do patrão quando soubesse. Desejou, como tantas vezes antes, que os seus patrões tivessem mais fé, a que pudessem recorrer como conforto. Ela sempre encontrara refúgio nas suas orações e nas contas do seu terço, que desfiava com os dedos minados pela artrite. Rezando em silêncio, ajudou Ellen a levantar-se, sustentando o peso do corpo dela enquanto passavam pelos arbustos.

 

Muito embora a casa de Donna e Johnny Wallace estivesse apinhada de gente, o ambiente era calmo. Apenas se ouvia o som do televisor, ligado constantemente. As bancadas da cozinha estavam cheias de comida envolta em celofane e papel de alumínio e todas as cadeiras e sofás se encontravam ocupados por uma tia, um tio ou um primo. Johnny Wallace bebia uma cerveja, por ser a única maneira que encontrara para se acalmar. Encostado à bancada da cozinha, o seu olhar parecia perdido no vazio, enquanto o irmão mais velho se achava sentado em frente da mesa da cozinha e lhe falava, tentando fazer o ponto da situação sob uma perspectiva optimista.

 

No quarto, Donna Wallace estava sentada na cama, atafulhada de animais de peluche. Usava ainda o roupão de Johnny por cima da camisa de dormir e, nos pés, pantufas em forma de cãezinhos. Segurando na mão direita vários lenços de papel ensopados, contemplava o retrato de Justin colocado sobre a mesa-de-cabeceira, que fora tirado no momento em que o bebé recebera uma lambidela carinhosa do cão da sua avó. A criança ria, encantada.

 

Donna Wallace sabia o que devia fazer. Tinham sabido da notícia a respeito de Rebecca em simultâneo pelo telefone e pela televisão. Desde o momento em que Justin desaparecera' a multidão que invadira a sua casa ainda não diminuíra. Os seus familiares, revoltados, enxotavam os jornalistas e não permitiam sequer que se aproximassem dela, mas agora Donna não podia furtar-se ao seu dever. Deitou os lenços no cesto dos papéis e levantou-se sentindo as pernas trémulas. Despiu o roupão do marido, a camisa de dormir e arranjou-se com todo o cuidado; escolheu uma blusa lavada, calças pretas e sapatos de salto alto. Nunca poderia usar ténis para o que se propunha fazer.

 

Em seguida olhou-se ao espelho. Estava muito pálida, o que contribuía para realçar as suas olheiras. Passou um pouco ' de creme nas faces, realçou os lábios com uma camada de batom, mas nada podia fazer quanto ao cabelo, se bem que isso pouco importasse. Quando abriu a porta do quarto, a prima Rose, de sentinela, fitou-a espantada.

 

O que se passa, minha querida? perguntou.

 

Diz ao Johnny que estou pronta respondeu Donna.

 

Achas realmente que...

 

Dá-lhe o recado, por favor.

 

Rose afastou-se, regressando passados poucos minutos na companhia de Johnny, que entrou no quarto. Trazia no braço uma parca.

 

Vais precisar disto...

 

Donna olhou para o marido e percebeu que ele fizera a barba. Acenou em sinal de aprovação e passou as costas da mão pelo rosto.

 

Vamos sair pelas traseiras anunciou Johnny enquanto ela vestia a parca. Sentia os braços e os ombros doridos como se tivesse febre. Estás pronta?

 

johnny lançou-lhe um olhar encorajador e, mais uma vez, Donna sentiu-se feliz por ter casado com ele.

 

O marido deu-lhe a mão e saíram pela porta dos fundos. Tiveram a impressão de ouvir pessoas a discutir na sala de estar. O tempo estava frio e húmido e, apesar de agasalhada, Donna sentiu calafrios. Johnny agarrou-lhe na mão com mais força. Atravessaram o pequeno pátio da casa e depois mais dois, adjacentes ao seu, onde havia grelhadores enferrujados e balouços de plástico. Felizmente naquele quarteirão os jardins não eram separados por cercas. Chegaram ao pátio da pequena casa de Sandi Starnes, onde ainda havia móveis de Verão. O guarda-sol da mesa branca fora fechado e parecia pegajoso.

 

Johnny e Donna entreolharam-se e ela assentiu. Só depois o marido bateu à porta corrediça, de cortinas fechadas, que se abria para o pátio.

 

Um homem forte e de ar antipático afastou as cortinas e lançou-lhes um olhar fulminante para logo de seguida se mostrar algo atrapalhado quando reconheceu o casal.

 

Podemos entrar? perguntou Johnny.

 

O homem voltou-se e dirigiu a palavra a alguém que se encontrava no interior. Donna e Johnny, tiritando de frio, aguardaram no pátio contemplando o céu cinzento.

 

Nessa altura houve um movimento junto das janelas até que Sandi Starnes puxou as cortinas e abriu a porta. O seu rosto estava inchado de tanto chorar.

 

Donna sentiu um aperto no coração.

 

Sandi...

 

Olá, Donna. Donna pensou que não iria conseguir falar, que ficaria ali parada, no pátio, como uma estátua. Então, de repente, as palavras saíram-lhe.

 

Sandi, talvez não queira voltar a falar-nos nunca mais e não a censuraria por isso, mas acabámos de saber... acabámos de ouvir a notícia acerca da Rebecca e tínhamos de vir até cá para lhe dizer... para lhe dizer...

 

Não conseguiu terminar, sufocada pelos soluços. Johnny pigarreou e retomou o discurso no ponto onde a mulher se interrompera.

 

E dizer-lhe quanto lamentamos e quanto nos sentimos envergonhados por termos pensado... ou termos dito que talvez a Rebecca... Sentindo por sua vez um nó na garganta, forçou-se a reprimir a emoção. Que era tão boa menina,, Donna afastara-se, escondendo o rosto, mas Sandi, que tinha apenas uma camisola de lã fina vestida, saiu para o pátio e pousou a mão no ombro dela.

 

Voltando-se, Donna, disposta a ouvir tudo o que merecia fitou aquela mulher mais velha.

 

Deve odiar-me... soluçou. Tenho nojo de mim mesma...

 

Sandi meneou a cabeça. Sentia uma estranha paz interior até mesmo alguma compaixão pelo casal. "Quem pode adivinhar", pensou, "o que eu teria imaginado se aquele bebé fosse a minha Rebecca? Passam-nos as piores coisas pela cabeça. Em geral, acaba por não ser nada de grave. Os nossos filhos resolveram ir comer um gelado e não deram pelo passar das horas ou esqueceram-se de telefonar ou então tiveram um furo E preocupámo-nos em vão. Criamos cenas catastróficas nas nossas cabeças e de repente a porta abre-se e os nossos queridos filhos aparecem, felizes e contentes. E depois começamos a berrar com eles por nos terem dado tantas preocupações

 

Contemplou Donna e Johnny. Pareciam tão vulneráveis, ali parados como duas crianças, mas eram na realidade os pais aterrorizados de um bebé desaparecido.

 

Sandi apertou os dedos trémulos de Donna, que, agarrando-lhe a mão e sem saber muito bem o que fazia, a beijou em sinal de agradecimento.

 

Ao menos a minha espera terminou sussurrou Sandi.

 

Paulina trocou um aperto de mão com o padre, que se achava no átrio de entrada da mansão dos Henson..

 

Obrigada por ter vindo. Sei que está a fazer as malas. Não tem importância, Paulina. Para ser sincero, não estava a avançar grande coisa...

 

Lembrou-se de Maddy nos seus braços, naquele breve abraço que o deixara febril de ansiedade. Depois de ela sair,í Nick tentara em vão prosseguir com as suas arrumações.

 

Fiquei contente por receber o seu telefonema acrescentou, e estava a ser sincero. Sentira-se grato por aquela oportunidade de escapar aos pensamentos pecaminosos que o atormentavam e por poder ocupar-se dos outros.

 

Não consegui encontrar o marido dela explicou' Paulina. É advogado, mas não estava no escritório. Nessa altura lembrei-me do senhor. Não é católica, padre, mas é uma alma atormentada e achei que talvez pudesse falar com ela. E, se há alguém que sabe quanto as suas palavras nos podem ajudar, sou eu, porque foram muitas as vezes em que as procurei em busca de algum conforto.

 

Nick sorriu.

 

Não me custa nada tentar... Disse que ela perdeu um filho? Já foi há muitos anos e desde essa altura teve várias depressões nervosas. Mas, desta vez... Parece carregar um grande fardo. Pessoalmente, sempre encontrei apoio na minha fé. Não quero forçá-la a crer na minha religião, mas não me

lembrei de outra maneira de ajudá-la. Disse-lhe que ia telefonar-lhe, mas ela pareceu não me ouvir. E é muito provável que quando o vir lhe diga que saia e a deixe em paz.

 

Não seria a primeira vez... replicou Nick. Só me resta oferecer-lhe o meu apoio.

 

Dito isto, fez sinal à cozinheira para que lhe indicasse o caminho e Paulina subiu a escada.

 

Correu muito melhor do que eu pensava comentou jovialmente Doug enquanto desapertava o nó da gravata. Estava sentado numa cadeira de couro frente à escrivaninha de mogno de Charles Henson na sede da Henson, Newman & Pierce, situada numa mansão renovada fronteira à biblioteca pública. O escritório de Charles tinha ainda uma lareira com cornija de pedra trabalhada, tapetes persas e candeeiros Tiffany espalhados por todo o lado.

 

Charles, que se preparava para abrir a pasta, deteve-se e olhou para o seu cliente. Doug passara um braço sobre o espaldar da poltrona. Sabia por que motivo Doug se mostrava animado. Julia Swell não conseguira identificá-lo e, apesar de a polícia ameaçar que apresentaria outras testemunhas, aparentemente não havia mais. Charles acabara por ser forçado a declarar que processaria a polícia por abuso de autoridade e finalmente Doug fora mandado para casa.

 

Se fosse a si, mantinha o nó da gravata apertado murmurou. Isto ainda não acabou.

 

A expressão de satisfação de Doug desvaneceu-se. Endireitou-se na poltrona e apertou o nó da gravata. Charles recriminou-se por haver sido tão ríspido. O seu cliente tinha motivos para se sentir contente. Charles perguntou a si mesmo se a grande angústia que sentia não estaria a influenciar as suas atitudes. Nessa altura ouviu tocar o telefone no gabinete adjacente, mas não sabia se a secretária se encontrava no seu posto porque não a vira quando entrara. Sentiu-se um tanto tenso por julgar que era uma chamada de Paulina. Contudo, quando viu apagar-se a luz que indicava um telefonema em linha de espera, abriu a sua pasta.

 

O que quer dizer com "ainda não acabou"? perguntou Doug.

 

Esta manhã tratava-se apenas de um caso de pessoas desaparecidas. Agora estamos perante um caso de homicídio e o Frank Cameron não quer outra coisa senão colocá-lo de novo no banco dos réus. Está de olho em si, Doug.

 

O Charles falava a sério quando disse que o processam por abuso de autoridade?

 

Charles bateu maquinalmente com a sua caneta MontBlanc no braço da poltrona.

 

Talvez tenhamos de chegar a esse ponto. Como uma espécie de greve preventiva para que ele saiba que não pode arrastá-lo até à esquadra sempre que houver novas provas

 

E poderíamos obter uma grande soma de dinheiro? perguntou avidamente Doug. Pensa que poderíamos ganhar?

 

Charles quase podia ver os cifrões a dançar nas pupilas do| seu cliente.

 

Não estamos propriamente a falar da lotaria. Este tipo de processos pode arrastar-se nos tribunais durante anos a fio E por ora não temos provas fortes.

 

Mas aquele retrato era tão vago que podia ser o de qualquer homem! protestou Doug, indignado.

 

Por outro lado, podia ser o seu. Apresentava semelhanças, Doug. Não me parece que a testemunha tenha descrito um homem baixo, careca e de tez morena...

 

Mas ela não conseguiu reconhecer-me ripostou Doug.

 

Pois não e esperemos que tudo isto acabe depressa.

 

Então porque falou num processo? insistiu Doug visivelmente desiludido. '

 

Doug, você acabou de ser ilibado de uma acusação muito grave e neste momento está a tentar reabilitar a sua reputação. Todos sabemos como os jornais podem arruinar a vida de um homem acusando-o de um determinado crime, para depois publicarem umas poucas linhas de desmentido, quando percebem que estavam enganados.

 

É verdade...

 

E de repente eis que você aparece novamente na televisão e, se é apenas porque o chefe da polícia não consegue tolerar o facto de que a filha dele mentiu...

 

É essa a minha perspectiva.

 

Bem, se for esse o caso, um processo poderá ser o único recurso, se quisermos defender-nos. Mas só o faremos se o Frank Cameron continuar a persegui-lo, Doug.

 

Porque não avançamos já com o processo?

 

Porque espero que a minha ameaça seja suficiente para que aquele homem recupere o bom senso e o deixe em paz. E estou certo de que você não vai querer arrastar novamente a sua família para um caso...

 

Não, claro que não murmurou Doug mordendo os lábios, pensativo.

 

Charles consultou o relógio e olhou para o telefone.

 

Mas não vejo que alternativa me resta! retomou Doug. De que outra forma posso impedir o Frank Cameron de me perseguir de cada vez que uma adolescente pensar que ouviu um ruído estranho à porta de casa? A verdade é que me tornei a personificação do... do papão. Ora tenho de pôr cobro a tal coisa. E não me parece que um processo possa ser mais prejudicial à minha família do que esta situação...

 

Charles suspirou.

 

Como já afirmei, penso que a minha ameaça verbal terá sido suficiente. Se não, teremos de ponderar as diferentes atitudes a tomar. Deve compreender que, se nos envolvermos num processo contra a polícia, você irá sujeitar-se a que eles passem a vigiar todos os seus actos, e sei que a Maddy está ansiosa por ver a sua vida regressar à normalidade.

 

Só que não é normal teimou Doug que me levem para a esquadra pelo mero capricho de um chefe da polícia! A Maddy iria compreender.

 

Claro replicou Charles, já algo exasperado, mas o facto de eu os ter ameaçado com um processo foi uma táctica para evitar que continuem a persegui-lo. Além do mais, o Frank Cameron não ultrapassou os limites, por enquanto. Não se esqueça de que uma adolescente foi assassinada e de que um bebé continua desaparecido. O Cameron tem de seguir todas as pistas e fazer tudo o que estiver ao seu alcance para encontrar o culpado, mesmo que tenha de ferir a susceptibilidade de terceiros. Se o processar agora, só porque teve de responder a algumas perguntas que ele lhe fez, posso assegurar-lhe que passará a ser o inimigo público número um. Doug enterrou-se na cadeira.

 

Está bem resmungou. Suponho que saiba disso melhor do que eu. Mas a decisão fica pendente.

 

O telefone tocou e o advogado sobressaltou-se.

 

Dê-me licença murmurou ao levantar o auscultador. A sua secretária informou-o então de que tinha Paulina em linha. Passe a chamada ordenou.

 

Doug fixava uma unha partida da sua mão direita e parecia perdido nos seus pensamentos, enquanto Charles escutava a voz estridente da cozinheira. Como está ela? perguntou. Depois de escutar a resposta, afirmou: Vou já para aí. Desligou e levantou-se. Doug, vai ter de me desculpar, mas tenho de sair imediatamente. Doug levantou-se, atrapalhado, e estendeu-lhe a mão. Mais uma vez, obrigado por tudo, Charles.

 

O advogado apertou-lhe apressadamente a mão e dirigiu-se para a porta. Falaremos mais tarde exclamou à laia de despedida. Doug, apercebendo-se de que a conversa terminara, saiu do gabinete

 

Charles avançou por entre o tráfego da hora de ponta, arriscando-se a ser multado por excesso de velocidade. Sempre que a estrada se apresentava menos congestionada de viaturas. Não ligara o rádio nem o leitor de CDs. Os seus nervos não o suportariam. Concentrou-se na condução, esforçando-se por não ceder ao pânico. Tentava convencer-se de que estava tudo bem, mas no seu íntimo uma vozinha dizia-lhe o contrário.

 

Na noite anterior deparara com o velho cadeado enferrujado da casa de brincar no caixote do lixo. Quando se dirigira a casa verificara que havia um novo cadeado. Encontrara igualmente algumas lascas de tinta no carreiro, o que indicava que Ellen andara a raspar as tábuas da fachada. E quando lhe perguntara se estava tudo bem, Ellen respondera que sim, muito embora ele soubesse, havia já alguns dias, que não era verdade

 

Estacionou o Mercedes atrás do jipe encarnado de Ellen e de um Buick preto, que não conhecia. Abriu a porta da frente e chamou Paulina, enquanto atirava a pasta para a cómoda do vestíbulo. Pairava no ar um agradável aroma a canela e a maças cozidas.

 

Paulina surgiu, vinda da cozinha, e ao ver o patrão limpou as mãos ao pano que trazia preso à cintura.

 

Ainda bem que já está em casa afirmou. O padre Rylander está lá em cima com ela.

 

O padre Rylander? Quem é?

 

Paulina fez-lhe sinal para que a seguisse até ao escritório. Era formal, com drapeados de seda pesados e uma extensa biblioteca. O arranjo floral de crisântemos e lírios que decorava a mesa dava o único toque de cor àquela sombria divisão.

 

É o padre da minha paróquia explicou então a cozinheira.

 

E ela está bem? quis saber Charles. O que está um padre a fazer aqui?

 

Não consegui encontrá-lo a si, e como não sabia o que havia de fazer...

 

O que aconteceu?

 

Tive uma trabalheira para a encontrar. Corri tudo, os lugares onde ela costuma ir, e nem sequer são muitos...

 

Charles compreendia o que a cozinheira tentava dizer-lhe e acenou afirmativamente. Pousou a mão no ombro forte de Paulina.

 

Que Deus lhe pague... murmurou.

 

Ia desistir de procurá-la e regressar a casa quando avistei o jipe parado na berma na estrada que segue ao longo do rio.

 

O que estava ela a fazer nessa estrada?

 

Disse-me que andava à procura do gatinho que deu àquele casal que esteve aqui há uns dias. Encontrei-a no bosque, de gatas. Tem vários arranhões.

 

O casal sofreu um acidente de carro e o gatinho fugiu explicou Charles.

 

Foi o que ela me disse.

 

E terei ouvido mal ou quando me telefonou também mencionou qualquer coisa sobre uma loja de artigos de criança?

 

Quando regressámos a casa, uma empregada dessa tal loja telefonou para me informar de que Mistress Ellen deixara lá a carteira esta manhã.

 

Irei buscar a carteira amanhã. Talvez ela quisesse comprar um presente...

 

Paulina meneou tristemente a cabeça.

 

A rapariga da loja disse-me que Mistress Ellen comprou cinco conjuntos de bebé...

 

Por vezes ela comete algumas extravagâncias admitiu Charles enquanto tentava lembrar-se de alguém que Ellen conhecesse e tivesse filhos pequenos.

 

Mistress Ellen explicou à rapariga que as roupas eram para um bebé... chamado Ken.

 

Charles sentiu um calafrio percorrer-lhe as costas.

 

E encontrei isto no jipe prosseguiu Paulina. Pegou num saco de papel que tinha escrito "Loja dos Pequeninos", decorado com laços brancos nas pegas. Estava vazio e escondido por baixo do banco de trás. Quando lhe perguntei o que era ficou muito zangada, respondeu que não fazia a menor ideia daquilo de que eu estava a falar, subiu ao andar de cima e fechou-se no quarto.

 

Charles afastou-se, indo postar-se em frente da janela que dava para as traseiras da propriedade. O jardim de Ellen murchara. Apenas alguns tons rosa e escarlates espreitavam por entre as folhas mortas, onde alguns arbustos ainda sobreviviam ou uma rosa solitária se mantinha agarrada ao seu caule desnudado. A meio do jardim erguia-se a casa de brincar, sombria e silenciosa, com o telhado de duas águas e as paredes de madeira. Uma casinha de sonho, vazia e em ruínas. Charles sentiu os olhos húmidos, enquanto recordou o alegre passado que aquela casa havia representado.

 

Paulina... murmurou, com a voz embargada pela emoção. O que vai acontecer-lhe?

 

A cozinheira endireitou-se e voltou a limpar as mãos ao pano.

 

É melhor o senhor ir vê-la. Pensei que ela ficasse furiosa por eu ter chamado o padre, mas ele está lá em cima há já um bom bocado...

 

Charles saiu do escritório, atravessou o vestíbulo e subiu a escada. Religião. Era a solução de Paulina para todos os males e parecia haver resultado tanto para ela como para a sua família. Contudo, Ellen não voltara a entrar numa igreja desde o dia do funeral de Ken. Charles respirou fundo ao começar a subir o segundo lanço de degraus que conduziam ao seu quarto.

 

Aceitara as extravagâncias da mulher por saber melhor do que ninguém quanto ela havia sofrido. Ele também sofrera, mas regressara ao mundo porque era esse o seu dever. Tinham uma casa para manter, uma vida inteira pela frente e ele precisava de trabalhar. Ellen, por seu lado, concentrara toda a sua vida ali, naquela propriedade, junto do filho, e ali ficara. Charles ainda tentara levá-la a sair, mas ela insistira sempre que o seu lugar era naquela casa. Passado algum tempo, Charles pensara que a sua mulher se havia recuperado. Não que tivesse voltado a ser totalmente normal, mas quem o era?

 

Ao alcançar o quarto a porta abriu-se e o padre Rylander saiu.

 

Mister Henson? exclamou Nick estendendo a mão. Muito prazer em conhecê-lo. Estive a conversar com Mistress Ellen, que não se cansou de elogiar o marido que tem.

 

Charles franziu as sobrancelhas.

 

Ela disse-lhe... Tem ideia do que a perturba? Nick hesitou por breves segundos.

 

Como deve calcular, eu sou um estranho para a sua esposa. Falámos durante algum tempo sobre as formas como Deus dá e tira e como é difícil compreender os Seus desígnios. Não sei se lhe trouxe algum conforto, mas tentei...

 

Obrigado por ter vindo.

 

Não tem nada que me agradecer porque gosto de ajudar.

 

Nick apertou a mão de Charles com força, como para lhe dar coragem, e depois desceu a escada.

 

Charles ainda hesitou algum tempo em frente da porta do quarto. Ellen e ele haviam passado ali muitos momentos de felicidade, rindo e amando-se, no início, chorando e tentando refugiar-se do desgosto, depois. E agora sentia-se aterrorizado. Não podia continuar a negar o caminho que Ellen havia seguido. Podia suportar tudo o resto, excepto... Nem sequer se atrevia a pensar em tal coisa. Abriu a porta e espreitou.

 

Ellen estava deitada na cama, de lado, aninhada em posição fetal, por baixo da colcha de cetim. Charles aproximou-se na ponta dos pés. Ellen voltou-se e fitou-o. Os seus olhos mostravam-se assustados e sombrios.

 

Sentes-te bem, minha querida? Acabo de me cruzar com o padre Rylander.

 

Foi muito gentil comigo.

 

Parece um homem bondoso.

 

Não consegui encontrar o gatinho...

 

Charles sentou-se na beira da cama e passou a mão pelos cabelos encaracolados e grisalhos da mulher. Ainda se lembrava de como haviam sido louros e sedosos.

 

Não faz mal... Ele vai salvar-se.

 

Ciente de que teria de lhe falar da loja de artigos de criança, procurou as palavras certas.

 

Amanhã passo pela loja de artigos de criança e trago a tua carteira.

 

Ellen voltou-lhe as costas.

 

Devem tê-la encontrado na rua. Passei por um quiosque que fica em frente dessa loja, mas... não sei porquê, a Paulina convenceu-se de que estive lá. Ora o que iria eu fazer a uma loja de artigos para crianças?

 

"E o saco?", quis gritar Charles. "Onde estão as roupas? E porque haveria a empregada da loja de mentir?", mas nada disse. Aquele homem que se mostrava implacável numa sala de tribunal sempre que interrogava uma testemunha ficou sentado, em silêncio, na beira da cama, por não querer eliminar o último resquício de esperança que ainda mantinha forçando Ellen a responder às suas perguntas.

 

Ellen voltou-se de novo e olhou para o marido, reparando como parecia angustiado. Tentando tranquilizá-lo, pegou na mão dele.

 

Desculpa, Charles... É que tenho medo. Nunca tive tanto medo em toda a minha vida...

 

Charles acariciou-lhe os cabelos, sentindo um aperto no coração com as palavras da mulher.

 

De que tens medo, minha querida?

 

Ellen fitou-o mas não lhe respondeu. Tremia por baixo da colcha quente.

 

Não precisas de ter medo. Tenta descansar.

 

A voz de Charles era apaziguadora, mas no seu íntimo algo lhe dizia: "Por favor, meu Deus, tudo menos isto. Ainda não me tiraste o suficiente? Por favor, por favor, meu bom Deus! Tudo menos isto!"

 

No dia seguinte, Doug e Maddy passeavam pelo pequeno jardim da sua casa, tiritando de quando em vez em virtude do frio matinal, enquanto observavam Amy, entretida a colher um raminho de folhas mortas.

 

Que noite tão longa... disse Doug.

 

Maddy trouxera a sua chávena de café e bebia em pequenos goles. Deteve-se para contemplar o bairro sossegado onde viviam. Havia sido mais uma noite em branco, por causa do choro contínuo de Sean, e ambos tinham olheiras profundas. Tinham ficado deitados, lado a lado, acordados, sem querer perturbar o bebé. Maddy tinha plena consciência de que o marido a culpava por aquela noite em branco, mas não queria falar no assunto.

 

Onde vais? perguntou.

 

Até à garagem, para ver se a carrinha deles já está arranjada. O mecânico disse-me que hoje já podia ir buscá-la.

 

Repararam o nosso carro num instante. Esperemos que aconteça o mesmo com a carrinha deles.

 

Vou ficar na garagem até que a carrinha esteja arranjada. Não suportarei outra noite como a de ontem. Começo a trabalhar amanhã, Maddy, e temos de tirá-los daqui quanto antes para que eu possa descansar um pouco.

 

Eu sei, Doug... assentiu Maddy num fio de voz

 

Vai-me ser muito difícil regressar àquele liceu. Tentar ignorar os olhares e os sussurros. E, como se não bastasse, agora querem associar-me ao caso da baby-sitter morta e do bebé desaparecido. Julgas que não vão falar sobre isso no liceu? Só te digo isto, Maddy: estou ansioso por processar a polícia. Estou farto de ser o bode expiatório do Frank Cameron!

 

Mas já foste ilibado replicou Maddy num tom de voz quase inaudível.

 

Só que isso não faz a menor diferença para as coscuvilheiras. Vives numa torre de marfim, se por acaso julgas... Esquece. Tudo o que sei é que preciso de descansar antes de retomar as minhas funções.

 

Eu sei quanto precisas de descansar, Doug. Eu também.

 

Enquanto eu estiver ausente, é melhor falares com ela e dizeres-lhe que têm de sair da nossa casa ainda hoje.

 

Está bem, está bem! Maddy chamou a filha.

 

É melhor entrarmos, minha querida. Queres ir ver o Sean?

 

Amy aproximou-se e entregou o seu raminho à mãe, que lhe pegou, distraída, e a beijou, enquanto Doug entrava no carro e seguia em direcção à garagem. Só depois entraram em casa. Maddy olhou em seu redor, estarrecida. Parecia reinar ali uma desordem total. Não que Bonnie fosse uma mulher desarrumada. Pelo contrário, era muito meticulosa nos seus hábitos, mas duas pessoas a mais na situação já de si caótica em que Maddy se encontrava tinham contribuído para criar uma completa barafunda nos últimos dois dias.

 

Bonnie e Sean não estavam no piso térreo. Maddy instalou a filha no chão depois de lhe dar um quebra-cabeças para trincar e começou a fazer algumas arrumações. A rotina da lida da casa tinha o condão de acalmá-la. Preparava-se para enfiar a roupa suja na máquina de lavar quando se lembrou que os seus hóspedes provavelmente também teriam roupa a precisar de ser lavada. E, se ia expulsá-los, o mínimo que podia fazer era lavar-lhes a roupa.

 

Subiu a escada e dirigiu-se ao quarto de hóspedes. Quando se aproximou ouviu os gritos habituais de Sean. Bateu à porta ao de leve. Bonnie perguntou com voz roufenha: O que quer?

 

Maddy abriu a porta e entrou no quarto, que estava impecavelmente arrumado. Todos os pertences de Bonnie se achavam agrupados ao lado da sua mala, como se ela não fizesse tenção de permanecer ali por muito tempo. Encontrava-se sentada na cama a ler. Maddy olhou de relance para a capa e viu que se tratava de um romance histórico. Sean, sentado no chão com as costas encostadas a uma cadeira, choramingava í mordia os dedos. A seu lado tinha um boneco de peluche que pertencera a Amy.

 

Vou ligar a máquina de lavar afirmou Maddy í decidi vir perguntar-lhe se não quer juntar alguma coisa sua

 

Bonnie fitou com alguma relutância a pilha de roupas que estava ao lado da mala.

 

Talvez algumas camisolas de Sean? insistiu Maddy. Bonnie levantou-se para ir buscar a mala. As roupas da mãe pareciam velhas e puídas, em contraste com as de Sean, que ostentavam o viço e a alegria das roupas novas, o que é normal, concluiu Maddy, porque em geral as mães preocu pam-se mais com os trajes dos filhos do que com os seus. Bonnie pareceu pesar numa mão um par de calças e algu mas camisolas de Sean e por fim, mas sempre relutante, entre gou-as a Maddy.

 

Se vai ligar a máquina...

 

Maddy pegou nas roupas e enrolou-as. Sabia que chegara o momento de dizer a Bonnie que ela teria de partir. Prometera a Doug que o faria, mas agora tinha dificuldade em pronunciar as palavras. Perguntava a si mesma se Bonnie escutara a discussão que Doug e ela haviam tido por causa do seguro automóvel. Nunca mais se falara no assunto, mas Maddy tinha receio de que Bonnie lho atirasse à cara. Talvez fosse mesmo ao ponto de ameaçá-la quando lhe pedisse delicadamente que partisse. Havia algo de volátil na personalidade de Bonmie que deixava antever actos imprevisíveis. "Não fujas mais ao inevitável", recriminou-se mentalmente Maddy. "Vai em frente e depois logo verás como ela reage. Hummm, Bonnie, tenho de falar consigo. Bonnie estava a fechar a mala e ergueu a cabeça, desconfiada.

 

Sei que lhe disse que podia permanecer na minha casa durante o tempo que quisesse... e creia que me custa muito, mas..

 

Quer que partamos atalhou secamente Bonnie. Maddy esboçou uma careta, como para se desculpar.

 

O Doug foi ver se a sua carrinha já está reparada.

 

Bonnie pousou a mala no chão com todo o cuidado, como se contivesse explosivos, o que impedia Maddy de ver qual havia sido a sua reacção.

 

Para ser sincera, não queria que se fossem embora apressou-se a acrescentar, mas com o bebé a chorar toda a noite. O meu marido esteve de licença durante algum tempo e recomeça a trabalhar amanhã... Sente-se... um pouco preocupado por não ter descansado o suficiente.

 

Bonnie endireitou-se, mas não se voltou para fitar a sua anfitriã. Durante uma fracção de segundo, Maddy receou que a outra mulher, acometida de um súbito ataque de fúria, se atirasse a ela.

 

Lamento imenso... murmurou, sem saber o que fazer

 

Bonnie voltou a sentar-se na cama e olhou friamente para Sean, que continuava a choramingar.

 

Não tem importância. Eu própria já não consigo tolerá-lo.

 

O seu tom de voz não deixava transparecer qualquer ressentimento. Na realidade, quase se mostrava amável, o que levou Maddy a sentir-se ainda mais culpada por ser forçada a expulsá-los de sua casa.

 

É muito duro, quando eles passam o tempo todo a chorar... retorquiu Bonnie, com uma ruga de preocupação vincada na testa, fitava o filho.

 

Por vezes é tão difícil saber o que eles querem...

 

Eu sei concordou Maddy, sem sair da soleira da porta. Mas tudo se torna mais simples logo que começam a falar.

 

A minha mãe costumava dizer que quando chegasse a minha vez eu seria uma péssima mãe. Não parava de o repetir, mas, como é evidente, também pensava que eu não prestava fosse para o que fosse. Também fazia questão de dizer-me que eu nunca casaria porque nenhum homem haveria de me querer, mas enganou-se! rematou com uma gargalhada rouca.

 

Maddy percebeu que por detrás daquela mulher adulta se escondia uma criança rejeitada e mal-amada. Como era possível que uma mãe humilhasse uma filha daquela maneira? Não admirava que Bonnie se mostrasse tão desconfiada.

 

O primeiro ano é o mais difícil. Pelo menos foi o que sucedeu comigo.

 

Também foi difícil para si?

 

Se foi! exclamou Maddy. É tudo tão confuso. Não sabemos o que devemos fazer...

 

Quando eles choram durante toda a noite não podemos impedir-nos de sentir que falhámos acrescentou Bonnie, inclinando a cabeça para a frente. Maddy sentiu imediatamente vontade de abraçá-la. É apenas uma fase disse. Na minha humilde opinião, o melhor remédio é pegar-lhes muito ao colo.

 

Bonnie olhou de novo para o pequeno Sean, como se aquela ideia nunca lhe houvesse ocorrido.

 

"Aposto que a tua mãe nunca te pegou ao colo", pensou Maddy olhando entristecida para a outra mulher. Também é possível que esteja com a irritação dos dentes acrescentou, sempre com todo o cuidado. A Amy costumava ter crises de choro como as do Sean quando os dentes lhe começaram a nascer. Nalguns casos ajuda dar-lhe um pano molhado para que possam mordê-lo.

 

Bonnie empertigou-se, como se fosse ripostar, mas logo a seguir acenou afirmativamente. É muito provável... murmurou.

 

Eu vou buscar um pano húmido ofereceu-se Maddy Antes que Bonnie pudesse protestar, atravessou o corredor, entrou no seu quarto, tirou do armário um pano branco que passou por água na casa de banho, regressou e entregou-o a Bonnie.

 

Toma, Sean... É para ti...! exclamou Bonnie, mas o bebé nem sequer ergueu a cabeça. Maddy pensou mais uma vez se o pequeno Sean não seria surdo. Nunca reagia quando o chamavam, o que explicaria o seu comportamento. Contudo, decidiu nada dizer porque era mais que certo que Bonnie consideraria qualquer opinião sua como uma crítica. Se o bebé tinha problemas de audição, descobri-lo-iam muito em breve. Bonnie baixou-se para pegar no pequeno Sean ao colo. Assustado, o bebé começou a gritar. Bonnie ergueu a mão como se pretendesse dar-lhe uma palmada, mas deteve-se a tempo e tornou a pousar o bebé no chão.

 

Está provado que não gosta de colo afirmou bruscamente.

 

Maddy sentiu pena pelo visível embaraço da outra mulher. Muito embora não tivesse culpa, Sean levava a mãe a sentir-se rejeitada.

 

Digamos antes que é temperamental... comentou, procurando reconfortá-la.

 

Ele não gosta de mim... sussurrou Bonnie com os olhos rasos de lágrimas.

 

Claro que gosta! protestou Maddy. Ele ama-a. Não se esqueça nunca que é a mãe dele!

 

Bonnie tirou os óculos para enxugar as lágrimas, num gesto impaciente.

 

Desculpe... É que me sinto... exausta...

 

Maddy podia ver o cansaço estampado no rosto e na postura de Bonnie. Devia ser muito duro para aquela mulher lidar com um bebé nervoso, ter o marido internado e ainda ser forçada a encontrar um lugar onde ficar. Aquele cansaço poderia revelar-se perigoso para o bebé, que não sabia como dar algum descanso à mãe.

 

Maddy, que se preparava para sair do quarto, deteve-se pensando no que Doug lhe havia dito: que mãe e filho teriam de se ir embora ainda naquele dia. Mas afinal porquê tanta pressa? Que importância teria se eles ficassem mais um dia? E a solidariedade? Não contava?

 

Ouça, porque não tenta dormir um pouco? propôs. Eu tomo conta do Sean. A Amy vai ficar radiante por poder brincar com ele. E mais tarde levo-a ao hospital.

 

Mas tenho de procurar alojamento replicou Bonnie com voz cansada.

 

Isso pode ficar para depois insistiu Maddy. Ainda nem sequer tem a sua carrinha, lembra-se? Bonnie contemplou nostalgicamente a almofada da cama.

 

Não vou negar que me sinto cansada...

 

Deite-se um pouco aconselhou Maddy em tom firme enquanto tirava o pano húmido das mãos de Bonnie.

 

Perante a sua insistência, Bonnie deitou-se. Obrigada... balbuciou. Tem sido muito boa comigo... O seu tom de voz indicava que haviam sido poucas as pessoas que se haviam importado com ela. Não pense em mais nada rematou Maddy. Baixou-se e pegou em Sean, que parecia muito leve em comparação com Amy. Foi então que o bebé estendeu os braços para o pano húmido que Maddy ainda tinha na mão. Quando Maddy lho deu, o pequeno Sean examinou o pano durante alguns segundos. Por fim levou-o à boca e começou a mordê-lo furiosamente. Maddy virou-se de forma que Bonnie não reparasse no que acabara de acontecer. Cansada como estava, poderia interpretar aquela reviravolta no comportamento do pequeno Sean como uma traição, mas era pouco provável, porque depois de se voltar de lado, para a parede, parecia ter adormecido.

 

Descanse... sussurrou Maddy, falando nas costas de Bonnie e não pense em mais nada.

 

Dito isto, fechou a porta.

 

Maddy ligou a televisão do seu estúdio, sintonizou o canal de desenhos animados e deu a Amy, que parecia um pouco distraída, um pacote de bolachas de aveia. Sean estava sentado na velha cadeira de balouço de Amy e continuava a morder o pano húmido. Maddy acomodou-se no banco, por trás do grande balcão de fórmica que constituía o seu estirador. Tinha de preparar vários fragmentos de vidro e parecia-lhe ser boa aura para o fazer. Era um processo que não exigia grande concentração, o que vinha mesmo a calhar porque se sentia exausta. As crianças estavam sossegadas e o silêncio reinava no estúdio. Bebeu um segundo café enquanto ia dobrando o fio de cobre em torno do perímetro dos fragmentos de vidro que cortara para a janela em que estava a trabalhar. Depois seriam soldados uns aos outros. Para Maddy, a fase em que contornava cada pedaço de vidro com o fio de cobre constituía o mesmo tipo de tarefa que o desfiar de um novelo de lã para uma tecedeira: uma das etapas enfadonhas mas necessárias do seu ofício.

 

Amy ria-se baixinho com as aventuras do seu gato preferido, que queria à força caçar um rato, mas nunca conseguia. Mordendo energicamente o pano húmido enquanto se balouçava, Sean parecia completamente desinteressado dos desenhos animados. Maddy perguntou de novo a si mesma se o bebé não teria problemas de audição. Era difícil despertar a sua atenção. Bebeu mais um gole de café e pegou num fragmento de vidro azul. O esboço da janela era muito bonito e Maddy sentia que seria a sua obra mais perfeita. Por um breve momento lamentou que o padre... que Nick não estivesse em Taylorsville para apreciar o novo vitral.

 

Ao pensar em Nick lembrou-se do breve abraço que haviam trocado no dia anterior antes de se despedirem. Corou ao recordar-se da sua reacção quando ele a tomara nos braços. Maddy não era tão ingénua que não soubesse quando havia uma atracção sexual entre um homem e uma mulher. Só não compreendia como ainda não havia reparado nisso antes. Talvez já o houvesse sentido, mas recusara-se a admiti-lo. Afinal ele era padre e Maddy sempre julgara que os padres que optavam pelo celibato recorriam a um bloqueio mental para evitar qualquer atracção física.

 

Agora que reflectia naquela questão era forçada a admitir que ninguém podia fugir à tentação. Por alguém fazer votos ' fossem de celibato ou de casamento não ficava imune à tentação. Quando se fazia um juramento devia-se honrá-lo. Era tão simples como isso.

 

No entanto, pensando na conversa que haviam tido, apercebeu-se de quanto ia sentir saudades de Nick. A sua amizade, os seus comentários e observações haviam-se tornado gradualmente importantes para ela ao longo do último ano em que tinham trabalhado juntos. Muitas vezes dera consigo a pensar em assuntos de que queria falar a Nick. Agora apercebia-se com inegável tristeza de que já não poderia guardar para mais tarde um assunto de que quisesse falar. Nick já não estaria em Taylorsville. Tão-pouco lhe valia a pena fingir que iriam manter-se em contacto. Especialmente agora, depois de admitir que sentia por ele um certo desejo. Talvez fosse melhor para ambos que ele partisse. A amizade que os unia ameaçava tornar-se demasiado importante na vida de Maddy. Muito embora Doug estivesse enganado ao desconfiar de algo mais impróprio entre ela e Nick, era provável que tivesse adivinhado antes dela o que sentia pelo padre.

 

O que mais importava, tentou dizer a si mesma, era o conselho de Nick: o seu dever de apoiar o marido e manter a confiança na inocência dele. Por muito que se sentisse desiludida com o marido, havia uma grande diferença entre a irresponsabilidade e a pura maldade. Além do mais, tinha a obrigação de fazer que o seu casamento voltasse ao normal, tanto para o bem de Amy como para o seu. Investira muito naquela união e tinha de restabelecer a confiança mútua que antes existira entre ela e Doug. No dia anterior tudo lhe parecera sombrio, mas agora sentia-se melhor, ainda um pouco abalada, mas com renovada esperança.

 

O desenho animado acabara e um serviço noticioso interrompeu a programação normal. Era a repetição da notícia do assassínio de Rebecca Starnes. Maddy meneou a cabeça, entristecida, ao pensar naquela pobre rapariga, tão nova, cuja vida fora ceifada de forma violenta. Sentiu uma súbita fúria contra Frank Cameron; apesar de tudo o que se passara com a filha, era uma monstruosidade da parte dele pensar que Doug seria capaz de cometer um crime tão hediondo. O apresentador anunciou que iriam passar de novo a gravação do apelo dos pais de Justin Wallace. Os pedidos de Donna e Johnny Wallace eram pungentes. Donna Wallace tinha na mão uma fotografia instantânea do filho, que infelizmente mais parecia uma garrafa de leite com olhos vermelhos e um tufo de cabelos encaracolados.

 

"Quem quer que seja, se tem em seu poder o nosso filho, por favor, devolva-no-lo. Não sentiremos raiva de si. Não instauraremos um processo. Apenas queremos o nosso Justin de volta."

 

Donna Wallace interrompeu-se, não podendo mais conter as lágrimas, e o marido, abraçando-a, aproximou-se do microfone.

 

"Queremos o nosso filho de volta, por favor", pediu com voz grave e embargada pela emoção que tentava reprimir.

 

Maddy, que por piedade assistia àquela peça enquanto continuava a trabalhar, ouviu de súbito um ruído na cadeira onde Sean estava sentado. O bebé endireitara-se tanto quanto podia, aparentemente galvanizado pelo que via na televisão. Tinha os olhinhos esbugalhados e emitia um ruído que parecia soar como "Pá... pá..."

 

Maddy sentiu um arrepio percorrer-lhe o corpo. Sean, muito agitado, balouçava-se freneticamente na sua cadeirinha, enquanto repetia:

 

Pá... pá...

 

O que é que ele está a dizer, mamã? perguntou Amy.

 

Maddy não tirava os olhos do bebé.

 

Não sei murmurou.

 

Parece que ele está a dizer "papá" explicou Amy,

 

Eu sei replicou Amy num fio de voz. Entretanto, anunciaram uma partida de caça e a pequena

 

Amy declarou:

 

Não quero ver este programa, mamã!

 

Sean começou a chorar convulsivamente enquanto estendia o seu dedinho na direcção do televisor.

 

Maddy aproximou-se, ainda atordoada, mudou para o canal que transmitia a Rua Sésamo, baixou-se e tirou o pano húmido das mãos de Sean. Correu até ao lava-louça e abriu a torneira. "Não sejas estúpida!", pensou. Lembrou-se de Terry Lewis, deitado numa cama do hospital. Tinha cabelos escuros, como Johnny Wallace. E este último, no seu desespero, revelara uma aparência algo desleixada, tal como Terry Lewis. Provavelmente, tudo não passava de uma estranha coincidência. Sean vira na televisão aquele homem que lhe lembrava o pai. Se... se é que fora a palavra "papá" que o bebé tentara pronunciar.

 

Humedeceu o pano, tirou o excesso de água, molhou-o de novo e regressou ao estúdio. Sean apontava para a televisão:

 

Piiiu...!

 

Ele quer dizer "piu-piu" informou a pequena Amy. O Sean já sabe falar!

 

Maddy avançou devagar na direcção do bebé, que nunca poderia falar se tivesse problemas de audição. Por outro lado, isso não significava nada. Nunca se sabia o que os bebés pensavam. Observou-o com mais atenção. Não se parecia com a criança desaparecida. O tom de pele era o mesmo, mas o bebé da fotografia tinha cabelos encaracolados e compridos. Inclinando a cabeça, Maddy examinou os cabelos macios e cortados à escovinha do bebé. Tinha a mesma cor de cabelo do da fotografia, mas isso também nada queria dizer. Muitos bebés tinham o cabelo daquela cor. "Mas que maluquice a tua!

 

pensou. "Não sejas estúpida! Este é o Sean, o filho da Bonnie e do Terry."

 

O bebé continuava a balouçar-se na cadeira enquanto um nó de lágrimas corria pelas suas faces, como se tivesse ficado muito triste por deixar de ver as imagens que tinham passado havia poucos minutos na televisão.

 

Maddy aproximou-se do bebé por trás e estendeu-lhe o pano húmido.

 

Justin... sussurrou.

 

Sean voltou-se e olhou-a, admirado. Depois brindou-a com um sorriso desdentado e pegou no pano.

 

O Dr. Larry Foreman entrou no elevador do prédio onde tinha o seu consultório e carregou no botão do terceiro andar. Trazia um saco de papel que continha um copo de plástico com café e um pãozinho de leite. Recriminou-se por começar o dia com uma refeição tão pouco saudável, mas havia alturas em que não lhe apetecia agir correctamente. Estava um dia frio e deprimente. O céu estava cinzento e Larry sofria de um problema de falta de sol. Tudo o que podia fazer era sonhar com as férias de Inverno, no apartamento dos sogros, na Florida. Se não fosse o empréstimo elevado do apartamento e as suas três filhas, que precisavam de aparelhos para os dentes, sem contar com o dinheiro que devia pôr de parte para a sua educação e mais tarde para os seus casamentos, passaria algumas semanas numa estância de luxo nas Caraíbas. Por ora, sabia que a única maneira de viver o suficiente para voltar a ver o mar das Caraíbas era subir a escada e comer meia tosta integral ao pequeno-almoço, mas por vezes era difícil sujeitar-se a tantas privações. A porta do seu consultório estava aberta e as luzes acesas, o que significava que a recepcionista já iniciara o seu trabalho. Como só tinha consulta dali a quarenta minutos, sobrava-lhe algum tempo para se deliciar com o pãozinho de leite e para ' pôr a papelada em ordem. Saudou Arlene, que lhe indicou com a cabeça uma das cadeiras da sala de espera. Contrariado, Larry voltou-se e viu Charles Henson sentado no rebordo de uma cadeira com a pasta sobre os joelhos.

 

Charles! exclamou, admirado por ver ali o advogado em pessoa. Testemunhara algumas vezes como especialista a pedido de Charles Henson, mas tudo havia sido combinado por telefone, entre as respectivas secretárias, muito antes de eles se encontrarem.

 

Havia muito tempo, quando Larry, no início da sua carreira, tinha poucos clientes, conhecera Charles Henson em circunstâncias muito diferentes. Tratara de Ellen Henson após a morte do filho. Havia sido uma intervenção tardia. Ellen já se achava profundamente deprimida quando o marido a convencera a consultar um especialista. Larry não tivera outra opção senão recomendar que ela fosse internada num hospital, onde, graças a uma terapia contínua e a um tratamento médico eficaz, fora melhorando gradualmente.

 

Charles Henson levantou-se. O seu rosto revelava uma grande tensão.

 

Preciso de lhe falar, Larry afirmou.

 

Ao observar o rosto de Charles, Larry depressa se deu conta de que aquilo que trouxera o advogado até ali nada tinha a ver com um dos seus processos. Resignado, compreendeu que ainda não seria naquele dia que poria toda a sua papelada em ordem e fez sinal ao advogado para que entrasse no seu gabinete.

 

Porque não nos sentamos perto da janela? sugeriu. Importa-se que eu beba um café enquanto falamos?

 

Charles, depois de indicar que não se importava, sentou-se numa das cadeiras perto da janela. Larry, que já vira muitas pessoas deprimidas ou desfeitas pelo desespero, sabia reconhecer os sintomas. Enfiou o saco de papel que continha o seu pequeno-almoço na gaveta da secretária, avançou para a janela e sentou-se, lançando um olhar compadecido ao advogado.

 

O que se passa, Charles? Em que posso ajudá-lo? Charles Henson suspirou.

 

. Trata-se da Ellen.

Era o que pensava. Parece-me muito agitado. Qual é o problema?

 

Charles abriu a boca para falar, deteve-se, mas tentou de novo.

 

Tenho-me esforçado por ignorar certos sinais, Lary, mas lembro-me do que aconteceu quando fiz o mesmo há muitos anos atrás. Naquela altura passava o tempo a dizer a mim mesmo que tudo acabaria por se resolver e que bastaria deixar as coisas seguirem o seu rumo...

 

E ambos sabemos que isso nem sempre funciona com pessoas que estão sujeitas a uma grande tensão nervosa... acrescentou Larry diplomaticamente.

 

Receio que desta vez seja ainda mais grave...

 

Sou todo ouvidos. Charles contou-lhe os acontecimentos dos últimos dias tão

 

sucinta e friamente quanto pôde. O seu relato era inquietante e Larry manteve-se calado até Charles terminar.

 

Não era por esta altura que se celebrava o aniversário do Ken? perguntou então.

 

Faria vinte e um anos esta semana.

 

Bom, como sabe, os aniversários... podem ser datas muito difíceis.

 

Ela sempre sofreu de depressão no Outono explicou Charles. Mas este ano o seu comportamento... Não conseguiu terminar a frase. Larry suspirou. Charles, não posso fazer um diagnóstico baseando-me no que me contou, mas, se quer saber se ela precisa de apoio profissional, a minha resposta é que sim...

 

Aceitaria vê-la de novo se eu conseguisse convencê-la?

 

Teria todo o gosto.

 

Charles levantou-se abruptamente.

 

Muito bem. Agora já sei o que fazer anunciou, í Larry acompanhou-o à saída. Quando passaram pela sala de espera, uma mulher elegantemente vestida levantou-se da cadeira e interceptou-os.

 

Doutor Foreman!

 

Larry voltou-se e avistou o rosto redondo, emoldurado por cabelos lisos, de Heather Cameron, a sua primeira paciente do dia, que estava embrenhada na leitura de uma revista. A mulher que o abordara era Mary Beth Cameron.

 

Não se importa de esperar por mim no corredor? pediu Larry a Charles. Em seguida voltou-se e sorriu a Mary Beth.

 

Em que posso ajudá-la, Mistress Cameron?

 

Trouxe a Heather um pouco mais cedo do que o combinado porque tenho três entrevistas esta manhã e pensei que talvez pudesse começar já.

 

Não há problema respondeu Larry, pensando com alguma nostalgia no seu pequeno-almoço.

 

Julga que pode ajudá-la, doutor? perguntou Mary Beth em tom confidencial. Heather suspirou ruidosamente, mas Mary Beth insistiu. Se conseguisse melhorar a imagem dela, não precisaria de... sabe, de viver num mundo de fantasia. A Heather precisa de ter amigos da idade dela e de uma vida social como a das outras raparigas.

 

Se quer falar sobre a sua filha, porque não marca uma consulta para si? Entretanto a Heather pode ficar aqui afirmou Larry em tom firme. Agora dê-me licença...

 

Mary Beth empertigou-se. Só depois se voltou e atirou um beijo à filha.

 

Heather, tenho de ir!

 

E saiu sem esperar pela resposta.

 

Larry foi encontrar Charles no corredor. Mary Beth passou por eles apressada, sem sequer se dar ao trabalho de os cumprimentar com um aceno de cabeça.

 

Não era a Heather Cameron que estava na sala de espera? perguntou Charles em voz baixa.

 

O juiz aconselhou-a a procurar ajuda respondeu Larry.

 

Não podia ter melhor especialista comentou Charles.

 

Não tenho a certeza de que seja ela que precise de ajuda... confidenciou o psicólogo.

 

Refere-se à família? Larry suspirou.

 

Para começar, a mãe julga que ela inventou tudo acrescentou meneando a cabeça. Só depois se lembrou, subitamente, de que Charles havia sido o advogado de Douglas Blake.

 

Charles Henson fitou-o, admirado.

 

Não pensa o mesmo?

 

Larry franziu as sobrancelhas, visivelmente contrariado

 

Não... Não devo nem posso falar sobre isso.

 

Mas a rapariga alterou a versão dela uma dúzia de vezes... insistiu Charles.

 

Ouça, diga à Ellen que me telefone. E não se preocupe Sei que podemos ajudá-la.

 

Deu-lhe uma palmada amigável nas costas e regressou ao seu consultório antes que o advogado lhe fizesse mais perguntas embaraçosas.

 

Maddy andava de um lado para o outro na sala de estar, espreitando a cada dois minutos pela janela para verificar se Doug regressara da garagem. Uma enfermeira telefonara para informar que Terry ia ter alta. Maddy, consequentemente, esperava que Doug regressasse antes que Bonnie fosse ao hospital buscar o marido.

 

Por fim, uma caravana de carros surgiu na rua: o de Doug à frente, depois a carrinha de Bonnie e por último uma terceira viatura para levar de volta o condutor da carrinha. Doug agradeceu aos dois homens e depois de vê-los partir atravessou o jardim. Amy precipitou-se para a entrada a fim de recebê-lo, mas antes olhou para trás para se certificar de que Sean e Maddy continuavam a brincar.

 

Missão cumprida anunciou Doug. A carrinha deles está como nova. Agora já não têm mais pretextos para ficar.

 

Maddy puxou o marido pela manga do casaco e sussurrou-lhe:

 

Ouve, Doug, vou dizer à Bonnie que a Amy está doente e tem de ficar em casa. Telefonaram do hospital. O Terry vai ter alta. Preciso que a leves até lá e lhe faças companhia enquanto espera.

 

O quê? protestou Doug, passando as mãos pelos cabelos. Mas porquê? Tenho mais que fazer! Começo as aulas amanhã e tenho de preparar as lições.

 

Podes levar os teus papéis contigo e preparar as lições enquanto esperas.

 

Mas por que raio temos de ajudá-la? Ela que vá buscar o marido sozinha e que desapareçam de uma vez por todas! A carrinha está ali. Porque não pode ela partir agora?

 

Doug, confia em mim, por uma vez! Preciso que os tires daqui. É muito importante, acredita!

 

Mas o que foi que te passou pela cabeça de repente; Maddy respirou fundo.

 

Não quero que penses que enlouqueci, mas escuta... Espreitou novamente pela janela para a sala de estar. Não havia sinal de Bonnie. Penso que o Sean pode ser aquele bebé desaparecido.

 

Pelo amor de Deus! Poupa-me! bradou Doug, erguendo os olhos para o céu.

 

Queres ouvir-me ou não? As crianças estavam a ver televisão esta manhã e, quando a gravação com o apelo dos pais do menino passou, o Sean ficou de repente muito agitado; pôs-se a apontar para o aparelho.

 

Como suspeitava, Doug fitou-a como se ela tivesse enlouquecido. Mas isso é o que todos os bebés fazem! Fazem ruídos, apontam para a televisão!

 

Ele não respondia quando o chamávamos pelo nome Aliás, já começava a pensar se não seria surdo. Mas quando o chamei por Justin ele voltou-se imediatamente e olhou para mim, Doug.

 

Maddy... tudo isso é absurdo... replicou Doug, angustiado. Aquele casal é do Maine. Nem sequer estava aqi quando...

 

Não sabemos há quanto tempo eles chegaram a Tai lorsville. Além do mais, ela não... ela não se comporta com uma verdadeira mãe.

 

Ou não se comporta de acordo com o que tu pensas da forma como uma mãe deve tratar o filho? replicou Doug. Sabes bem que todas as mães são diferentes. A minha tratava-me como se eu fosse o filho dos vizinhos e nem por isso deixava de ser a minha mãe...

 

Sou a primeira a admitir que parece uma loucura, mas faz-me esse favor. Quero que a Bonnie se ausente durante algum tempo para que eu possa vasculhar as coisas dela. Não podes fazer isso por mim?

 

Eu disse-te que te livrasses deles! Que lhes dissesses que deviam partir!

 

Mas a verdade é que continuam aqui sussurrou Maddy e quero que me faças este favor, Doug. Olha que não é só por mim. Se o Sean é o bebé desaparecido, então ficarás livre de qualquer suspeita de uma vez por todas. Sabes melhor do que ninguém como o Frank Cameron gostaria de acreditar que foste tu que assassinaste a Rebecca Starnes.

 

Se queres armar-te em detective, ao menos não finjas que estás a fazê-lo para meu bem, percebeste?

 

E se eu tiver razão, Doug? E se o Sean for aquele bebé desaparecido? Não pensas que descobrir a verdade vale alguns minutos do teu precioso tempo?

 

Estás a querer dizer que o Terry Lewis assassinou a rapariga?

 

Maddy pensou em Terry, com a sua aparência de brigão, o seu fanatismo religioso e o orgulho no filho.

 

Não sei... Não sei... Talvez eu esteja a imaginar coisas, mas tenho de tirar esta história a limpo.

 

Doug ergueu os braços, rendido.

 

Pronto, como queiras. Estou muito cansado para continuar a discutir contigo.

 

Discutir? Sobre quê? exclamou uma voz. Bonnie achava-se à porta e fitava-os desconfiada. Voltando-se, Maddy brindou-a com um sorriso radioso.

 

Estava a pedir ao Doug que a levasse ao hospital para ir buscar o Terry porque a Amy se sente um pouco febril e quero que fique em casa comigo.

 

Bonnie espreitou para a sala, onde as duas crianças continuavam a brincar.

 

Parece-me estar de perfeita saúde.

 

Bom, mas a verdade é que estou um pouco preocupada replicou Maddy.

 

Eu levo-a interveio Doug. Vá buscar as suas coisas.

 

Se quiser deixar o Sean aqui, eu tomo conta dele ofereceu-se Maddy.

 

Se a menina está doente, não vou deixá-lo aqui respondeu Bonnie. Maddy não pôde deixar de perguntar a si mesma se o motivo que a levava a desconfiar daquela mulher era a sua antipatia por ela.

 

Como preferir...

 

Sem dizer mais nada, Bonnie entrou e começou a preparar o que precisava de levar para o hospital. Vestiu Sean com a camisola de capuz, cobriu-lhe a cabeça com um chapéu e por fim pegou na carteira e no saco de fraldas. Doug, por seulado, escolheu algumas pastas a fim de as examinar melhor no hospital e seguiu atrás de Bonnie e de Sean. Contudo, antes de sair ainda se voltou para trás e olhou para Maddy como para lhe dizer: "Ficas a dever-me um favor".

 

Ansiosa por que eles partissem quanto antes, Maddy sentiu-se zangada com o marido por ele haver assumido uma atitude de mártir. Ela não o apoiara durante todo o processo sem nunca se queixar? Não contraíra dívidas, de tal forma que tal vez nunca conseguisse pagá-las, com o único intuito de defen der a reputação de Doug? Seria pedir-lhe muito que conduzisse aquela mulher ao hospital?

 

Mesmo assim, acenou-lhe da soleira da porta para que tu do parecesse normal.

 

Mal o carro de Doug desapareceu na rua, Maddy fechou a porta e aproximou-se de Amy, que continuava sentada no chão. Minha querida, não preferes ir brincar para o teu quarto, lá em cima?

 

Em resposta, a menina levantou-se e pegou no seu livro preferido, um grande volume de contos de fadas que se achava na mesinha.

 

Lê-me uma história, mamã. Lê-me O Patinho Feio. Agora não posso. Tenho que fazer lá em cima. Porque não vens comigo?

 

Quero ouvir a história do Patinho Feio... choramingou Amy. Maddy suspirou enquanto consultava o relógio. Ainda dispunha de muito tempo porque Sean e Bonnie ainda terriam de esperar um bom bocado até ser dada alta a Terry.

 

Está bem. Vou ler-te a história do Patinho Feio, mas depois sobes com a mamã, combinado?

 

Amy, feliz, assentiu com a cabeça e aninhou-se ao lado da mãe Tentando não se apressar demasiado, Maddy leu-lhe a história, dando oportunidade a Amy, como de costume, de fazer os seus comentários sobre os patos maus e de sentir pena do patinho, que, sozinho e assustado, tremia de frio em pleno Inverno.

 

Pronto anunciou Maddy, fechando o livro. Agora vamos subir e ver que brinquedos há no teu quarto.

 

Guardou o livro enquanto Amy se levantava.

 

Mamã, quero um sumo...

 

Maddy pôs as mãos nas ancas e fitou com ar sério o rostinho que olhava para ela.

 

E o que é que se diz?

 

Se faz favor...

 

Muito bem! Mas depois vamos subir. Podes beber o sumo no teu quarto desde que não o entornes.

 

Amy seguiu atrás da mãe até à cozinha, abriu o frigorífico e escolheu o seu aroma preferido.

 

Eu ponho a palhinha no pacote lá em cima, está bem? Agora vamos, depressa!

 

Amy, pensando que se tratava de um desafio, começou a galgar a escada à frente da mãe. Mas quando Maddy se preparava para subir alguém bateu à porta.

 

Maddy sentiu o coração saltar-lhe no peito. O que seria agora? Avançou para a porta, contrariada, e abriu-a de rompante. Heather Cameron encontrava-se à entrada.

 

Maddy corou ao ver a rapariga que acusara Doug, ali, à porta da sua casa. Heather usava uma camisola muito apertada, calças muito largas, ténis verdes desapertados e trazia uma mochila na mão.

 

Gostaria de falar com o Doug, por favor anunciou. Maddy, ainda mal refeita da surpresa, respondeu em tom glacial.

 

Mister Blake não está.

 

Sabe a que horas ele regressa?

 

Ele foi levar... uma amiga nossa ao hospital e pode demorar.

 

Heather mordeu o lábio inferior. Qual dos hospitais? perguntou, depois de uma breve reflexão.,

 

Maddy sentiu que o seu corpo começara a tremer.

 

Como te atreves a vir até cá, Heather? Não tens vergonha de bater à minha porta depois de tudo o que nos fizeste!

 

A rapariga apertou a mochila contra o peito.

 

Eu não fiz nada de errado...

 

O que pretendes? gritou Maddy fora de si. Não achas que já nos causaste desgostos que bastem? Julgas por acaso que nos esquecemos de tudo o que disseste...?

 

Não estou aqui para a aborrecer. Só queria esclarecer' um assunto com o Doug ripostou Heather em tom arrogante. A Karla anda a dizer a toda a gente que ela e o Do..,, e Mister Blake estão apaixonados e queria saber se é verdade,:

 

O coração de Maddy batia muito depressa, mas esforçou-se por manter uma expressão impassível.

 

De que é que estás a falar?

 

Da Karla Needham respondeu a rapariga espetando o queixo. É uma brasa, faz parte da claque e tem todos os rapazes atrás dela, mas anda a dizer a quem a quiser ouvir que existe uma certa... química entre ela e Mister Blake...

 

Porque me falas nesse tom, Heather? Nem eu nem Mister Blake somos teus colegas de turma. Não te apercebes de que estás a pôr em causa o meu casamento? De que estás a falar do meu marido?

 

Bem, provavelmente a senhora sente o mesmo que eu, Pode dizer-lhe da minha parte que é melhor ele não se envolver com a Karla? Porque, se o fizer, será muito injusto comigo? E eu hei-de acabar por descobrir, se ele andar com a Karla!;

 

Maddy não sabia se estava mais chocada com aquela insinuação se com a visita de Heather e o modo como ela se lhe dirigia. Era como se a rapariga nada tivesse aprendido com a sua sórdida experiência, primeiro durante a investigação e mais tarde ao longo do processo.

 

Julgava que andavas num psicólogo, Heather replicou. Vou ser forçada a telefonar aos teus pais e a dizer-lhes que vieste até cá à procura do meu marido.

 

Não, não faça isso, por favor! Eu apenas queria saber se Desculpe. Não era minha intenção...

 

Tens um grave problema, Heather, sabias? sibilou Maddy.

 

Diga-lhe que eu estive aqui, por favor.

 

Voltou-se e desceu a escada aos saltos, como se jogasse à macaca. Completamente atordoada, Maddy observou a rapariga a atravessar a rua e a entrar num Ford Escort amarelo onde havia mais pessoas.

 

O que levara aquela miúda a ir até ali para insinuar que Doug andava envolvido com outra estudante? Heather Cameron tinha um grave problema. Talvez fosse obsessiva. Talvez tivesse mesmo enlouquecido. Contudo, apesar da ameaça que a visita de uma adolescente obsessiva representava, Maddy, estranhamente, achava aquela ideia reconfortante porque só provava que Heather sofria de graves perturbações mentais. Ninguém no seu perfeito juízo se teria comportado daquela maneira. E, apesar de se sentir ainda algo abalada, Maddy forçou-se a não pensar mais em Heather Cameron. Tinha mais que fazer.

 

Mamã? chamou a pequena Amy do topo da escada.

 

Já vou!

 

Doug acompanhou Bonnie e o pequeno Sean, que entretanto adormecera, até ao piso onde Terry se achava internado. Uma jovem e atraente enfermeira sentada atrás do balcão conversava com um médico. Bonnie aguardou que o médico se afastasse e só depois avançou.

 

Sou Mistress Lewis informou em resposta à saudação da enfermeira. Vim buscar o meu marido... O nome dele é Terry Lewis e está no quarto trezentos e quatro.

 

O médico está com ele neste momento. Vai ter de assinar estes papéis... Depois mandaremos alguém buscar uma cadeira de rodas.

 

Bonnie passou Sean, juntamente com o saco de fraldas e a carteira, para o lado esquerdo a fim de poder assinar os formulários. Cumprida aquela formalidade, devolveu-os à enfermeira, que, depois de se certificar de que estava tudo em ordem, olhou novamente para Bonnie. '

 

Sabe, minha senhora, em regra não permitimos que os bebés subam a este andar.

 

Bonnie lançou-lhe um olhar ultrajado.

 

Mas já não é a primeira vez que eu o trago retorquiu com alguma agressividade. A enfermeira encolheu os ombros.

 

É para o bem da criança. Não queremos que se exponha a infecções explicou.

 

Bonnie empertigou-se. O pai do meu filho sofreu um acidente. Não está doente.

 

Talvez o seu amigo possa levá-lo sugeriu a enfermeira fazendo um sinal com a cabeça na direcção de Doug. Temos uma sala de espera no lado esquerdo do átrio de entrada.

 

Doug suspirou, exasperado. Devia ter adivinhado que não poderia trabalhar ali.

 

Por mim, não me importo de ficar com o Sean... Bonnie entregou-lhe o bebé com visível relutância.

 

Posso vê-lo? perguntou gentilmente a enfermeira saindo de trás do balcão. Adoro bebés.

 

Não, não pode! replicou Bonnie em tom ríspido. Já há aqui muitos germes! Não foi o que acabou de dizer?

 

A enfermeira, sentida com aquela reacção inesperada, retomou o seu posto, enquanto Doug colocava a cabeça do pequeno Sean sobre o ombro.

 

Não é melhor dar-me também o saco das fraldas? perguntou.

 

Não vai ser necessário respondeu Bonnie agarrando-se ao saco. Limite-se a mantê-lo ao colo. Quando estivermos prontos iremos ter consigo.

 

Contraindo os músculos do rosto, Doug dirigiu-se para o elevador. Premiu o botão e esperou que as portas se abrissem enquanto passava a mão pelas costas do bebé e seguia Bonnie com o olhar.

 

Cabra... resmungou entre dentes.

 

Sentia-se furioso por ter de passar aquele último dia antes do regresso ao trabalho a fazer de motorista daqueles idiotas. Contudo, compreendera, pelo olhar que Maddy lhe lançara, que de nada lhe valeria discutir com ela. Metera-se-lhe na cabeça que Bonnie não era a verdadeira mãe do bebé só porque ela não era carinhosa com o filho como Maddy com a pequena Amy, o que apenas demonstrava que não tinha noção de que havia muitas mães como Bonnie Lewis.

 

Tenho pena de ti, pequenote sussurrou, mas deves contentar-te com o que tens.

 

Entrou no elevador e carregou no botão do rés-do-chão. Quando as portas começaram a fechar-se pensou reconhecer um vulto familiar que entrara apressadamente no átrio. O que lhe despertou a atenção foram os cabelos grisalhos e desgrenhados. Quantas pessoas conhecia com cabelos assim?

 

Ellen! chamou, mas o espaço entre as portas reduziu-se rapidamente e as outras pessoas olharam para ele desconfiadas. Mesmo que fosse Ellen, talvez não se lembrasse dele. Afinal todos diziam que tinha um parafuso a menos. Resolveu não insistir e retomou a expressão impassível que convinha adoptar quando se andava de elevador.

 

Sem olhar para trás, Bonnie avançou pelo corredor em direcção ao quarto de Terry. Antes de entrar tirou um pequeno estojo da carteira. Apesar da pouca luz, esforçou-se por se examinar bem ao espelho. Passou batom pelos lábios e em seguida tentou pentear os cabelos espigados e em desalinho, embora isso fosse uma tarefa difícil. Sempre tinham sido rebeldes. "Tens os cabelos do teu pai", dizia a mãe em tom desdenhoso e meneando a cabeça sempre que entrava de rompante no quarto de Bonnie e a encontrava a tentar domá-los com rolos ou com gel. A mãe dela tinha cabelos sedosos e louros e tivera uma aparência impecável até ao fim dos seus dias.

 

Bonnie guardou o estojo na carteira, ajustou os óculos e respirou fundo. "Ele ama-te tal como és", disse a si mesma. "É o teu marido e aos olhos dele és bela."

 

És bela aos olhos dele disse em voz baixa, como para ganhar coragem. Para o Terry, és a mulher mais bonita do mundo.

 

Abriu a porta e entrou ignorando o homem que ocupava a primeira cama. A Dr.a Tipton, a cirurgiã sempre atraente, mesmo de bata branca, achava-se ao lado de Terry, que, já vestido, estava sentado na beira da cama. Agora que usava as suas próprias roupas parecia mais fraco e pálido. Bonnie sentiu o coração saltar-lhe no peito e logo de seguida, como de costume, uma enorme ternura ao ver o marido. Terry ergueu a cabeça quando ela se aproximou e o brindou com um sorriso radioso.

 

Olá, beleza! exclamou Terry. Onde está o meu menino?

 

O sorriso de Bonnie desvaneceu-se de imediato.

 

A enfermeira não mo deixou trazer. Mister Blake levou-o para a sala de espera.

 

Que pena... Estava a falar do nosso filho à doutora.

 

Mistress Lewis interrompeu a médica, acabo de dizer ao seu marido que não deve fazer esforços. Precisa de muito repouso e não pode levantar pesos nem conduzir pelo menos durante duas semanas. Se tiver cuidado agora, não sofrerá sequelas a longo termo. Como já lhe havia explicado, ele vai poder levar uma vida normal. Só não quero que os pontos rebentem. Ah, e quero voltar a vê-lo daqui a quinze dias.

 

Isso é que já não posso prometer-lhe... retorquiu Bonnie.

 

De qualquer maneira, mesmo que já não estejam em Taylorsville, ele terá de consultar um médico para que examine a cicatriz. Se quiser, posso recomendar-vos um colega.

 

Eu encarrego-me disso volveu Bonnie. Obrigada pelo seu cuidado, mas creio ser capaz de cuidar do meu marido.

 

Como queira. Boa sorte, Mister Lewis. Dito isto, a médica apertou a mão de Terry.

 

Não a incomodo mais, doutora. Sei que tem de tratar dos outros pacientes porque é essa a sua vocação: curar os enfermos. E obrigado por tudo o que fez por mim.

 

Não tem de me agradecer respondeu a jovem médica, já de saída. Bonnie sentou-se por fim ao lado de Terry, que gemeu baixinho.

 

O que foi, Terry? inquietou-se Bonnie.

 

Tive uma dor quando a cama cedeu ao teu peso. Bonnie, aflita, levantou-se de um salto, o que levou o marido a deixar escapar novo gemido.

 

Desculpa, desculpa! exclamou Bonnie angustiada.

 

Não foi nada de grave. Não te preocupes que já passa tentou tranquilizá-la Terry, mas ainda tinha o rosto marcado por um esgar de dor.

 

Seguiu-se um momento de silêncio até que de repente marido e mulher começaram a falar ao mesmo tempo.

 

O que...

 

Como...

 

Bonnie calou-se imediatamente, constrangida por ter cortado a palavra a Terry.

 

Fala tu primeiro murmurou.

 

Como está o nosso menino hoje? Dormiu bem?

 

Está óptimo. Novo silêncio.

 

O que me querias dizer? quis saber Terry.

 

Estava a pensar que temos de partir já.

 

Partir?

 

Sim, temos de sair da casa daquela gente. Dos Blake acrescentou Bonnie com uma expressão de azedume estampada no rosto. Mal posso esperar por sair da casa deles.

 

Mas foram tão bondosos contigo! exclamou Terry.

 

Acredita no que te digo: eles não me acolheram por serem pessoas bondosas. Escutei-os, por mero acaso, a conversar e pareciam muito preocupados com a hipótese de nós os processarmos. Nem sequer lhes disse que temos seguro. Eles que continuem a preocupar-se! A propósito, já nos devolveram a carrinha. Assim poderemos partir quando quisermos.

 

Eu vou tentar, mas, como ouviste, não posso ir para muito longe.

 

Tudo o que quero é sair daquela casa. Podemos tentar arranjar um quarto.

 

Terry suspirou e o casal mergulhou mais uma vez no silêncio.

 

Bem, pela minha parte vou ficar feliz por sair daqui afirmou Terry passados alguns momentos, enquanto olhava em seu redor.

 

A enfermeira vai trazer uma cadeira de rodas informou Bonnie.

 

Como se as suas palavras a tivessem chamado, a enfermeira entrou no quarto logo de seguida.

 

Ora aqui estou eu! Vamos tentar ajudá-lo a sentar-se, Mister Lewis.

 

Terry tentou levantar-se da cama. Bonnie correu para o amparar e passou os braços com todo o cuidado à volta das costas do marido.

 

Apoia-te em mim.

 

A enfermeira tentou ajudá-la, mas ao dar-se conta do olhar fulminante que Bonnie lhe lançara recuou.

 

Eu consigo sentá-lo sem a ajuda de ninguém.

 

Estou bem murmurou Terry. Avançou com passos arrastados até à cadeira e sentou-se enquanto Bonnie o largava, contrariada por pensar que os braços dela haviam deixado marcas nas costas do marido.

 

A enfermeira, cumprindo o seu dever, aproximou-se novamente e preparava-se para empurrar a cadeira quando Bonnie mais uma vez a deteve.

 

Posso fazer isso sozinha! afirmou em tom autoritário.

 

Desculpe, mas são as regras do hospital ripostou a enfermeira. Mas pode levar os pertences do seu marido, se quer assim tanto ajudar.

 

Em cima do radiador, junto da janela, havia um pequeno saco de plástico com a foto de Sean, a sua Bíblia e outros artigos pessoais. Bonnie pegou no saco e tentou passar por entre a cadeira e a parede, mas não conseguiu e viu-se forçada a seguir atrás da enfermeira.

 

Terry acenou ao seu companheiro de quarto quando passou pela cama dele.

 

Deus te abençoe, irmão!

 

Vai com calma, pregador replicou o homem em tom sarcástico fitando-o por cima dos óculos.

 

É assim que ele me trata. Por pregador explicou Terry à mulher muito orgulhoso. Tinham chegado ao corredor e agora Bonnie já podia andar a seu lado.

 

Que simpático da parte dele replicou.

 

Em frente do elevador Bonnie premiu o botão. As portas abriram-se e eles entraram. Nenhum deles falou no elevador. Quando saíram, a enfermeira empurrou a cadeira.

 

Vou ver se encontro o Sean e aquele tal Mister Blake anunciou Bonnie para lhe pedir que vá buscar o carro.

 

Se não se importam, volto para o meu posto disse a enfermeira porque hoje estamos com falta de pessoal.

 

Terry sorriu-lhe.

 

Não se preocupe, que eu sou abençoado por Deus. Tenho uma mulher que saberá cuidar de mim.

 

Bonnie fitou o marido com ternura.

 

Sim, meu querido, saberei cuidar de ti.

 

Maddy, de mãos nas ancas, observava com curiosidade as várias peças de roupa espalhadas pela cama. Passara em revista todos os pertences de Bonnie, à excepção dos que ela levara consigo até ao hospital. Sentia-se culpada, mas dizia a si mesma que, se a sua teoria em relação a Sean fosse correcta, aquele seu gesto era perfeitamente justificado. Se estava enganada, também não os prejudicara. No entanto, sentia-se mal por vasculhar os pertences de outras pessoas. Afinal convidara-os para ficarem em sua casa, mas isso não lhe dava o direito de Invadir a privacidade dos Lewis. Embora achasse que havia algo de estranho em alguns dos seus haveres, ainda não encontrara nada que indicasse um acto criminoso.

 

As duas malas eram velhas e surradas. O guarda-roupa de Bonnie reduzia-se a algumas camisolas de alças muito puídas, um par de camisolas de manga comprida com borbotes, duas saias de fibra acrílica, algumas peças de roupa interior quase rotas e uma camisa de dormir azul brilhante, de alças finas e aplicações de renda esburacadas, que ainda trazia a etiqueta. Maddy achara quase cruel inspeccionar os míseros pertences de Bonnie. Pelo contrário, o vestuário de Sean era composto por roupas em muito bom estado, o que não era assim tão surpreendente. As pessoas ofereciam sempre muitas peças de roupa aos bebés recém-nascidos e mesmo as mães com grandes dificuldades económicas conseguiam comprar roupas novas para os filhos.

 

Só as roupas de Terry a intrigavam. Eram novas e ainda não haviam sido usadas. As meias de ténis ainda estavam embrulhadas. Os dois pares de calças de ganga ainda tinham a etiqueta com o preço e as três camisas de xadrez ainda estavam dobradas nas respectivas caixas. Até mesmo a sua roupa interior era nova, ainda acondicionada em pacotes de três umidades. Era natural que ele tivesse comprado roupa para se apresentar no seu novo emprego, mas era estranho não haver qualquer peça que já tivesse sido usada. Vasculhou então os bolsos da mala, mas apenas encontrou um estojo que continha objectos de higiene, um batom de Bonnie e dois livros. Nada havia ali de particular. Nada que revelasse o carácter das pessoas que viajavam com aquelas malas.

 

Maddy suspirou, dando azo à sua frustração. Foi então que de repente julgou ouvir uma porta bater. Assustada, endireitou-se e pôs-se à escuta. Do quarto de Amy vinha o som de uma cassete de canções de embalar. A pequenita acompanhava o ritmo batucando numa lata de biscoitos. "Foi a Amy", pensou Maddy. "Estou com os nervos em franja porque tenho medo de ser apanhada em flagrante." Mesmo com aquele pensamento, era forçada a admitir que a visita de Heather a deprimira e deixara ansiosa, como se a sua vida tivesse sido novamente ensombrada por aquela rapariga. "

 

Pára! Não penses mais na Heather! Concentra-te no que estás a fazer. É melhor arrumares tudo." Não havia ali nada que lhe dissesse mais do que ela já sabia. Abriu as malas e tentou lembrar-se de como cada peça se encontrava arrumada. Estava concentrada na sua tarefa quando de súbito sentiu que havia alguém atrás dela. Um calafrio percorreu todo o seu corpo. Estacou, aterrorizada. Porque seria que eles tinham regressado tão cedo. Porque não tentara Doug avisá-la? Como ia ela explicar o que estava a fazer? Tentou inventar um pretexto, manter-se impassível e só depois se voltou. Maddy? exclamou o padre Nick olhando-a admirado. Bati à porta, mas penso que não me ouviu. Oh, Nick, pregou-me um susto!

 

Desculpe. Chamei por si, mas devia estar absorta. o que está a fazer? perguntou olhando para as malas. Vai viajar?

 

Não, e não faz ideia de como estou contente por vê-lo aqui. Dê-me só um minuto. Tenho de terminar.

 

Apressou-se a arrumar tudo com cuidado, voltou a colocar cada peça de roupa no seu lugar e guardou as malas. Nick permaneceu à porta observando-a.

 

É melhor descermos disse Maddy por fim. Vou fazer chá. Mas antes deixe-me ir ver como está a Amy.

 

Passou pelo quarto da menina e espreitou. Amy estava entretida a brincar. Maddy começou a descer a escada fazendo a Nick sinal de que a seguisse.

 

Quando chegaram à cozinha, Maddy pôs a chaleira a aquecer. As mãos tremeram-lhe quando acendeu o lume.

 

O que se passa? perguntou Nick. Parece muito nervosa.

 

Maddy sentou-se numa cadeira à frente dele.

 

E estou nervosa. E, se lhe contar porquê, vai pensar que enlouqueci.

 

Ponha-me à prova.

 

Falei-lhe dos passageiros do outro carro que esteve envolvido no acidente? E que estão alojados aqui?

 

Sim.

 

Pois bem, meteu-se-me na cabeça que foram eles que raptaram aquele bebé. Sabe, o filho dos Wallace.

 

E chamou a polícia? Maddy suspirou.

 

Para lhes dizer o quê? Que o casal tem um filho, mas que a mãe não o trata normalmente? Que o bebé ficou muito agitado quando viu os Wallace na televisão?

 

Ah! É verdade, passaram a fotografia do bebé dos Walace na televisão. Conseguiu reconhecê-lo?

 

Mostraram uma fotografia instantânea de um bebé com caracóis que se assemelhava a muitos outros. Eu acolhi-os e que vou fazer agora? Apresentar queixa deles à polícia? Ficar-me-ia muito bem, logo a mim, que me armei em boa samaritana!

 

Compreendo...

 

O facto de Nick a compreender animou Maddy, que por breves segundos fitou o padre. Uma mensagem complexa passou entre eles, mas ambos se apressaram a desviar o olhar.

 

Além do mais retomou Maddy já tivemos problemas que bastam com a polícia. Eu contei-lhe o que aconteceu ao Doug? Vieram buscá-lo para o interrogar só porque a rapariga que desapareceu era uma adolescente.

 

Contou, sim. E como correu?

 

Tinha razão quando me encorajou a confiar no Doug. Não deu em nada. A testemunha não conseguiu identificá-lo. O nosso advogado ameaçou processar a polícia por abuso de autoridade.

 

Portanto agora tudo está bem disse Nick, se bbem que com ar circunspecto. Nessa altura Maddy pensou em Heather e suspirou. Depois levantou-se para ir buscar a chaleira. Nick observava-a enquanto ela se movia pela cozinha.

 

Maddy?

 

Sim, está tudo bem respondeu ela, à excepção de ter andado a espiar os pertences dos meus hóspedes, convenci da de que são um casal de sequestradores.

 

Mas afinal quem é essa gente? quis saber Nik. Disse-me que eles não eram daqui.

 

Maddy deitou a água a ferver no bule.

 

O apelido deles é Lewis e são do Maine. Tenho de dizer que formam um casal muito estranho. Ele parece um matará e ela uma bibliotecária. No entanto, o marido parece ser muito devoto. Terry Lewis! exclamou Nick atónito. Maddy voltou-se de imediato.

 

É esse o nome dele.

 

E Bonnie. E Sean.

 

Não me diga que os conhece!

 

E muito bem até. O Terry saiu há poucos dias.

 

Saiu? De onde?

 

Da prisão respondeu Nick calmamente.

 

Da prisão? exclamou Maddy.

 

Lembra-se de eu lhe ter falado de um homem que foi condenado por homicídio, mas que foi libertado depois de o verdadeiro culpado confessar tudo?

 

Maddy fitou-o boquiaberta. Lembro-me de me haver dito, na noite do acidente que tinha ido visitar alguém à prisão.

 

Nick sorriu.

 

Tinha ido até lá para me despedir do Terry e encontrei a Bonnie e o Sean, que vinham buscá-lo.

 

Não pode ser! exclamou Maddy. Deve haver algum engano. Eles são do Maine. A matrícula da carrinha deles... Deteve-se, esmagada pela confusão que reinava na sua mente.

 

Efectivamente, a Bonnie é oriunda do Maine e estou certo de que a carrinha em que seguiam está em nome dela. O Terry cumpria uma pena de prisão perpétua. Tratou-se de um daqueles assaltos a estações de gasolina e um cliente julgou identificar o Terry. Ele já tinha cumprido cinco anos quando o verdadeiro assassino confessou tudo, depois de ter sido apanhado num assalto similar.

 

Não posso acreditar murmurou Maddy pensando no homem que conhecera no hospital e que não parecia ter passado cinco anos na prisão.

 

Eu visitava-o todas as semanas. O Terry aceitava a sua situação com uma fé espantosa. Perdoou ao homem que o incriminara. Não sei se conseguiria ser tão bondoso e humano como ele. Eram encontros sempre muito emotivos. De qualquer maneira, ele foi libertado anteontem...

 

Isso explica as roupas novas... balbuciou Maddy.

 

Que roupas novas?

 

As que encontrei numa das malas. As roupas dele nunca foram usadas. Ela deve tê-las comprado para o marido quando soube que ia ser libertado.

 

O Terry disse-me que estava em vias de arranjar emprego, assim que saísse. Não restam dúvidas de que estamos a falar do mesmo homem.

 

Meu Deus, Nick! Mas um homem que esteve na prisão durante tanto tempo... Já devia ter cadastro, para ser condenado a uma pena tão pesada, e depois, fechado naquele ambiente hostil e violento... E pensar que os convidei a ficar em minha casa!

 

Nick ergueu a mão para calá-la.

 

Lembre-se de que ele não pertence àquele mundo mais do que eu ou você. Passou por momentos muito difíceis antes de ser preso. Não vou negar que tinha antecedentes, mas creio que esta experiência o modificou radicalmente. Tenho a certeza, aliás, de que o Terry vai ser capaz de mudar de vida. Espere até o Doug o saber... murmurou Maddy meneando a cabeça.

 

Pois o seu marido, mais do que ninguém, devia conceder o benefício da dúvida aos outros replicou Nick incapaz de reprimir um tom de censura na voz. Maddy fitou-o e sentiu que uma pequena faísca se interpusera entre eles. Baixando os olhos bebeu um gole de chá

 

Quer dizer que eles são realmente casados? perguntou.

 

Fui eu que celebrei o matrimónio.

 

Na prisão?

 

Na capela da prisão, e foi uma cerimónia muito simples.

 

Como foi que aqueles dois se conheceram?

 

Foi um desses namoros por correspondência, o que é comum nas cadeias. Só que este conduziu ao casamento. Não sei porquê, mas tinha a ideia de que ela devia levar uma vida solitária antes de se casar. E não se enganou replicou Nick. Ela começou' por lhe enviar livros, uma coisa levou à outra e casaram-se

 

E quanto ao Sean? É filho deles. Mas pensava que os prisioneiros não podiam... quero dizer... bom, sabe a que me refiro...

 

Não podiam ter relações sexuais? rematou Nick ao aperceber-se do constrangimento de Maddy, que acenou afirmativamente. Mas podem. Na realidade, o casamento deles foi um pouco apressado. Não que alguém tenha apontado uma pistola ao Terry para o obrigar a casar. Pelo contrário, mostrava-se muito empenhado em arcar com as suas responsabilidades. Quanto à Bonnie, nunca ninguém parecera interessar-se por ela como o Terry. Mas, voltando à sua pergunta, o Sean é o filho legítimo do casal. Eu próprio o baptizei, há dois meses.

 

Oh... exclamou Maddy, sentindo-se ao mesmo tempo admirada e aliviada, mas também um tanto desapontada, reacção que não passou despercebida a Nick.

 

Estava à espera de ter sequestradores em casa?

 

Não, claro que não. Creio que me deixei envolver pelo sofrimento do bebé desaparecido e no meu íntimo desejei poder ajudar a reavê-lo são e salvo. Corta o coração a qualquer um ver aquele jovem casal na televisão.

 

É de facto muito triste concordou Nick. Mergulharam num silêncio tenso, beberricando o chá.

 

Nem sabe como fiquei contente com a sua visita. Ajudou-me muito. Maddy fitou-o com a cabeça inclinada. Mas a que se deve a sua visita? Não está de partida?

 

Sim, receio bem que sim. Nick enfiou a mão no bolso do casaco. Não usava o colarinho clerical e Maddy deu-se conta de como a sua aparência era muito menos austera com uma camisa azul.

 

Tome continuou Nick tirando do bolso uma pulseira de prata e pousando-a na mesa. Encontrei-a presa à minha camisola de lã.

 

Mas como...? Maddy deteve-se, corando violentamente ao lembrar-se do abraço que haviam trocado. É incrível! Nem dei pela falta da minha pulseira! acrescentou, pegando-lhe e examinando-a.

 

Pensei que tentasse reavê-la.

 

Seguiu-se novo silêncio; desta vez ambos sabiam que era devido à relutância em dizerem o último adeus um ao outro.

 

Bom, tenho de preparar o meu carro antes de me fazer à estrada anunciou Nick levantando-se.

 

Maddy imitou-o limpando as mãos às suas calças de ganga.

 

Chegará à Nova Escócia ainda hoje?

 

Não porque... me atrasei. Penso fazer uma paragem e pernoitar algures durante a viagem. Devo chegar lá amanhã.

 

Maddy nada disse.

 

Nick esforçou-se por sorrir.

 

Acompanha-me até ao carro?

 

Sim, claro que sim murmurou Maddy. Sentia-se esmagada por um súbito sentimento de perda. Quando saíram

 

ficou feliz por estar demasiado frio, o que lhe evitaria ter de ficar muito tempo à porta de casa. Então olharam um para o outro.

 

Lamento imenso, Nick...

 

Muito embora não tencionasse tocar-lhe, o padre não desejava que ela se apercebesse da expressão do seu rosto e puxou-a para si, abraçando-a com fervor. O perfume dos cabelos) de Maddy, o seu corpo frágil envolto nos braços dele, levaram-no a manter-se abraçado a ela por mais tempo do que devia. Foi então que ouviu um carro a entrar na rua e a largou bruscamente.

 

Doug estacionou ao lado do carro de Nick e saiu seguido de Bonnie. Sean, sentado na sua cadeira, gesticulava inquieto No lugar do passageiro da frente, Terry Lewis passara o seu braço tatuado por cima da janela e espreitava.

 

Padre Nick! exclamou.

 

O rosto de Nick iluminou-se ao vê-lo. Avançou para o carro e apertou gentilmente a mão do outro homem.

 

Olá, meu caro amigo. Soube que sofreu um acidente

 

Saí de um inferno para me meter noutro... gracejou Terry revelando os dentes torcidos quando sorriu.

 

Deixe-me ajudá-lo a sair ofereceu-se Nick. Abriu a porta, debruçou-se para a frente e colocou os seus braços em torno do tronco de Terry.

 

Obrigado agradeceu Terry endireitando-se. Não lhe dou mais trabalho. Prometo.

 

Nick, sorrindo, voltou-se para Bonnie.

 

Olá, Bonnie. Disseram-me que estava aqui com o Sean.

 

Padre Rylander! exclamou ela surpreendida.

 

Faça favor de cuidar bem do Terry.

 

Pode ficar descansado replicou Bonnie com a sua habitual brusquidão, mas por uma vez olhou timidamente para os sapatos.

 

Nick debruçou-se e beijou ao de leve a testa do bebé, que não continuava a debater-se.

 

E não se esqueça de cuidar bem do Sean, que é um belo rapazola.

 

O Terry tem de entrar retorquiu Bonnie. Doug, entretanto, observava a mulher intrigado.

 

Explico-te mais tarde... sussurrou-lhe Maddy.

 

Bom, tenho de ir andando anunciou Nick esboçando um sorriso contrafeito e estendendo a mão a Doug. Só passei por aqui para me despedir.

 

Doug apertou a mão do padre, mas a expressão do seu rosto revelava uma nítida agressividade.

 

Bonnie, colocando um braço em torno do marido, ajudou-o a atravessar o pequeno jardim. Nick entrou no carro sem olhar para trás. Maddy, sentindo que Doug lhe punha uma mão à volta da cintura, esforçou-se tanto quanto pôde por reprimir as lágrimas.

 

Maddy voltou-se e suspirou. Doug continuava a fitá-la, desconfiado. Nesse preciso momento, o bebé, que ainda estava no carro, começou a chorar.

 

Podes ir buscar o Sean? pediu Maddy libertando-se do abraço possessivo do marido. Eu vou abrir a porta. Bonnie e Terry tinham-se aproximado da casa devagar e só | então Maddy se deu conta de que ainda não o tinha visto de pé. Parecia mais baixo do que julgara; na realidade não era muito mais alto do que a mulher.

 

Correu para a porta e abriu-a. O rosto de Terry estava pálido do esforço que fizera.

 

Entre! convidou Maddy sorrindo-lhe. Aposto que está contente por ter tido alta do hospital.

 

Terry assentiu com a cabeça e começou a subir os degraus com cuidado, sob o olhar ansioso de Bonnie, que se mantinha a seu lado. Por fim, Terry entrou no vestíbulo e olhou em seu redor.

 

Sentes-te bem? perguntou Bonnie.

 

Melhor do que nunca respondeu-lhe o marido enquanto examinava a modesta residência dos Blake. Meu Deus! Parece um palácio! exclamou e estava a ser sincero,

 

Obrigada, mas sente-se, por favor.

 

Primeiro quero abraçar o meu menino.

 

Está ali retorquiu Maddy indicando a sala de estar. Entretanto Doug tirara Sean do carro e levara-o para a sala

 

Terry endireitou-se perante a perspectiva de abraçar o filho. Avançou a cambalear até à porta da sala.

 

Olha quem está aqui! exclamou jovialmente.

 

Não te atrevas a pegar-lhe ao colo! interveio Bonnie, passando à frente do marido e tomando nos braços o bebé, que começou a chorar.

 

Porque não se senta no sofá para que possamos pôr o Sean a seu lado? sugeriu Maddy.

 

Terry franziu as sobrancelhas, mas obedeceu-lhe e deixou-se cair pesadamente no sofá esfregando o estômago.

 

Pronto, já podem trazer-me o meu menino anunciou.

 

Maddy observou a cena com grande curiosidade. Bonnie levou o bebé ao pai, um pai que ele mal conhecia, mas, no entanto, Sean parou de chorar quando Bonnie o sentou ao lado de Terry no sofá. Com olhos esbugalhados, ergueu a cabeça para ver o rosto moreno de Terry e estendeu a mãozinha para lhe puxar o bigode; o homem gritou, feliz, e começou a brincar com o bebé. Maddy olhou então para Bonnie, esperando deparar com um sorriso indulgente no rosto da mulher. Ao invés, a expressão de Bonnie, que se afastara cruzando os braços era austera.

 

Maddy aproximou-se dela.

 

Ouça, Bonnie, estive a pensar... O Terry não deve subir a escada. Temos uma cama desdobrável na sala de jogos, se quiser usá-la. Não queria tirar as suas coisas do quarto sem falar primeiro consigo.

 

Não vai ser preciso ripostou Bonnie porque nos vamos embora.

 

Hoje? espantou-se Maddy, embora experimentasse também algum alívio. Por outro lado, sentia-se preocupada com Terry, que fora operado havia tão pouco tempo e parecia ainda muito debilitado. Tem a certeza de que é uma medida sensata? Pensa que o seu marido poderá viajar?

 

Cá nos arranjaremos.

 

Mas onde vão ficar?

 

E que diferença faz isso?

 

Bonnie... estou preocupada convosco. Prometi ao Ni... ao padre Rylander que zelaria por vocês.

 

Eu sei muito bem porque nos acolheu na sua casa retomou Bonnie. Não foi por um acto de simples bondade, mas sim porque estava preocupada com o acidente e com a possibilidade de os processarmos.

 

Isso é muito injusto da sua parte! insurgiu-se Maddy, ferida pela crueza daquela acusação, mas ciente de que em parte correspondia à verdade.

 

Bonnie esboçou uma careta, como se tivesse acabado de detectar um cheiro nauseabundo.

 

Pronto, admito que estava inquieta, mas também me sentia preocupada convosco. Todos nós temos os nossos motivos e não sou melhor do que os outros.

 

Bonnie pareceu ceder perante aquele desabafo.

 

Não tem de se atormentar com o acidente porque temos seguro. Incluí o Terry na minha apólice quando nos casámos. O carro está em meu nome e quando partirmos nunca mais ouvirá falar de nós.

 

Maddy pensou em Doug, que desaparecera na cozinha, e em como ficaria aliviado. Andava tão nervoso que aquela notícia o faria sentir-se melhor, embora Maddy soubesse que a primeira reacção do marido seria mostrar-se céptico. Havia de dizer que os Lewis acabariam por mudar de ideias. No entanto, era uma notícia que ia deixá-lo contente, por muito que pusesse em dúvida as promessas dos Lewis.

 

Do que estão a falar as senhoras? perguntou Terry. O pequeno Sean agarrara o seu polegar, que movia para cima e para baixo.

 

Estamos a falar da nossa partida explicou Bonnie.

 

E eu estava a dizer à sua mulher que não me parece que esteja em forma para se ir embora acrescentou Maddy.

 

Realmente, já tive dias melhores admitiu Terry com um suspiro.

 

Toma uma bebida? Um chá, por exemplo?

 

Um café, se não der muito incómodo.

 

Claro que não. Bonnie, toma um chá?

 

Bonnie limitou-se a dizer que não com a cabeça e foi sentar-se no sofá ao lado de Sean. Os três, sentados lado a lado, formavam um quadro comovente aos olhos de Maddy.

 

Tinham passado por muito, segundo o que Nick lhe contara. Terry vivera um pesadelo do género de... Nessa altura Maddy pensou em Doug... um pesadelo a que ele saberia dar o devido valor. Ali estava a prova de que um homem inocente podia cair em desgraça e ser preso injustamente. E Bonnie não só apoiara Terry como casara com ele. Não restavam dúvidas de que acreditava na inocência de Terry, o que era admirável da sua parte. "Só mais um dia", disse Maddy a si mesma. "Estou certa de que conseguiremos arranjar-nos. Eles merecem-no." Dirigiu-se para a cozinha a fim de pôr a chaleira ao lume. Doug estava sentado em frente da mesa. Quando Maddy entrou, ergueu o olhar e fitou-a com uma expressão de vivo antagonismo. Maddy podia sentir que a observava enquanto ela se movia de um lado para o outro na cozinha, pegando maquinalmente no frasco de café e dispondo as chávenas no balcão. Maddy sabia que ele matutava por trás do seu silêncio, mas fingiu ignorá-lo.

 

O que estava ele a fazer aqui? perguntou Doug

por fim.

 

Fazendo sinal a Doug para que falasse mais baixo, Maddy espreitou para o vestíbulo e depois fechou a porta da cozinha.

 

Veio devolver a minha pulseira respondeu, mostrando a fina corrente de prata que trazia no pulso.

 

Doug franziu as sobrancelhas fitando a pulseira que tinha oferecido à mulher aquando do primeiro aniversário de casamento.

 

E como é que ele tinha a tua pulseira?

 

Maddy não pôde impedir-se de pensar como fora que a sua pulseira ficara presa à camisola de lã de Nick. Lembrou-se daquele abraço impulsivo, do sentimento profundo que os invadira e corou.

 

Ficou presa a qualquer coisa na... no gabinete dele quando fui visitá-lo.

 

Visitar? Para quê?

 

Para falar com ele respondeu Maddy irritada.

 

É por isso que aquela gente ainda aqui está? Por ele ser tão amigo deles?

 

Não. Ainda aqui estão porque aquele homem saiu do hospital há menos de uma hora.

 

Pedi-te que te livrasses deles, mas seja feita a vontade do padre Nick...

 

Ele nada tem a ver com o assunto.

 

Desculpa! Mas parece-me que no que toca a um pedido fico sempre em último lugar na tua lista de prioridades.

 

Oh, pelo amor de Deus!

 

E não me digas que ando a imaginar coisas. Eu bem reparei como o padre olhava para ti com ar de cãozinho perdido. Ou julgas que ele te abraçou apenas como amigo à porta de casa?

 

Maddy sentiu-se ofendida, mas também culpada com aquela insinuação. A verdade é que nada de pecaminoso se havia passado entre ela e Nick, e por conseguinte não tinha de pedir desculpa pelo que quer que fosse.

 

Não sejas malicioso, Doug. Somos apenas bons amigos. Além do mais ele vai-se embora hoje e veio despedir-se.

 

Talvez seja assim que vês as coisas, mas eu não ripostou Doug.

 

Maddy meneou a cabeça.

 

Queres café? perguntou.

 

O quê? Também passaste a ser a criada daquela gente?

 

Esquece, não tem importância.

 

Se o teu padre gosta assim tanto daquela gente, porque não os abrigou? Ah, já sei... Porque esperava que o fizesses. E porque haverias tu de corresponder às suas expectativas? Que ascendente tem ele sobre ti? Nenhum! A não ser que haja algo que eu não saiba...

 

Maddy lançou-lhe um olhar fulminante.

 

Mesmo que fosse verdade, e não é, como te atreves a revelar tão pouca confiança em mim, Doug? Como pudeste pensar por um minuto sequer...?

 

Ouve, por vezes esse tipo de coisas acontece replicou Doug, encolhendo os ombros.

 

Maddy fitou-o. O conceito de moralidade de Doug era demasiado vago para ela.

 

Não, Doug, esse tipo de "coisas" não acontece assim sem mais nem menos, a não ser que tu o permitas. A verdade é que sou a tua mulher e prometi ser-te fiel, se é que ainda te lembras. Ora acontece que não faço promessas de ânimo leve.

 

É melhor mudarmos de assunto replicou Doug baixando a cabeça.

 

Foi então que Maddy se lembrou de Heather, à porta de sua casa, e deu consigo a questionar-se... Acreditaria realmente Doug que as coisas aconteciam assim e que não era possível impedi-las? Teria havido algo entre ele e Heather? Maddy ainda tentou conter-se, mas não conseguiu.

 

A Heather Cameron esteve aqui hoje.

 

Que queria ela? perguntou Doug e o seu mal-estar era visível.

 

Maddy suspirou. Não era justo da sua parte atormentar Doug; a verdade é que ele fora ilibado da acusação. No entanto, retivera na memória a estranha conduta de Heather e como ela a tranquilizara.

 

Sabes que mais? Penso que ela tem problemas mentais Deu a entender que sentia ciúmes teus por estar convencida de que tu te envolveste com uma colega sua chamada Karla,

 

Karla?

 

Uma outra estudante que tem um fraquinho por ti ou coisa do género. A Heather parecia fora de si, como se tu lhe tivesses sido infiel. Consegues imaginar uma coisa assim? Vir até cá para me falar das suas suspeitas? Foi uma cena de loucos. Chegou a ser assustador. Ainda pensei em chamar a polícia, mas ela foi-se embora sem causar mais escândalos.

 

A Karla... Needham? exclamou Doug, incrédulo. Ela tem um fraquinho por mim?

 

Isso não é o mais importante, Doug replicou secamente Maddy.

 

Não, claro que não concordou o marido. A Heather é uma miúda perturbada e precisa de ajuda.

 

Maddy, contudo, apercebeu-se de que, apesar do que acabara de dizer, Doug pensava noutra coisa.

 

Então perguntou Doug, o que descobriste enquanto andaste a armar-te em detective? O mapa do tesouro escondido?

 

Não te armes em esperto comigo.

 

Não era essa a minha intenção protestou Doug aproximando-se da bancada e pousando as mãos sobre os braços de Maddy. Desculpa. Peço-te que me perdoes por a Heather ter vindo até à nossa casa e te ter aborrecido. Que pena eu não estar... Ter-lhe-ia pregado um valente sermão Mas... sinto alguma curiosidade em relação aos nossos hóspedes. Descobriste alguma coisa?

 

Maddy fitou-o atrapalhada.

 

Maddy, desculpa... Passei dos limites.

 

Passaste, sim replicou ela com azedume.

 

Muito bem, e...?

 

Não encontrei nada de especial. Quem tinha as informações mais interessantes era o Nick.

 

Ah, ah! exclamou Doug. Preparava-se para tecer um comentário sarcástico, mas deteve-se a tempo.

 

Ao que parece, Mister Lewis saiu da prisão anteontem. Doug deu um salto.

 

Meu Deus! E só agora mo dizes? De que estavas à espera? Como pudeste deixar-me na total ignorância de tal coisa?

 

O caso não é bem o que parece. Ele esteve preso por um crime que não cometeu. Quando o verdadeiro assassino confessou tudo, o Terry foi posto em liberdade.

 

Assassino? Assassino? exclamou Doug. Só faltava mais essa! Quer dizer que ele foi condenado por homicídio?

 

Por um homicídio que não cometeu murmurou Maddy fazendo-lhe sinal para que falasse em voz baixa.

 

E pensar que eles estão na nossa sala de estar! insistiu Doug.

 

E podem passar mais uma noite aqui.

 

Passar a noite aqui? Por acaso julgas que vou permitir que um criminoso violento esteja debaixo do mesmo tecto que a minha família?

 

Não grites, por favor! implorou Maddy. Já te disse que ele não matou ninguém e foi libertado porque estava inocente. Foi o Nick que mo contou. Visitou o Terry na prisão durante todos estes anos e afirmou que ele sempre se mostrou forte e confiante na justiça.

 

Não me admira! vociferou Doug. Um hipócrita a encobrir outro. Não podes acreditar nessa história, Maddy. Puxa pela cabeça.

 

O que estás a querer insinuar? O Nick não é hipócrita.

 

É muito pior que isso! Enquanto anda a ler versículos da Bíblia corre atrás da minha mulher. Porque haveremos de crer na sua palavra e confiar num ex-presidiário? Ah, claro...

 

Pois deixa que te diga o seguinte, Maddy: aquele homem não fica nem mais um minuto nesta casa. Percebeste?

 

Proíbo-te que fales comigo nesse tom! Lembra-te de que esta casa não é só tua!

 

Foi então que a porta da cozinha se abriu. Era Bonnie

 

O Terry está à espera do café anunciou. Maddy e Doug trocaram um olhar glacial e por fim Doug saiu da cozinha, atravessou o corredor e subiu a escada.

 

Está quase pronto murmurou Maddy tirando a chaleira do lume com mãos trémulas.

 

Porque gritava ele? perguntou Bonnie.

- Acabo de lhe dizer que o Terry esteve preso. o padre Nick explicou-me tudo, mas o Doug ficou um pouco surpreendido.

 

- E o padre Rylander também lhe disse que o Terry estava inocente?

 

- Sim.

Nesse caso, é um assunto que não interessa a mais ninguém, até porque não foi por culpa sua que passou cinco anos na prisão.

 

Eu sei, e era exactamente isso que estava a tentar explicar ao meu marido. Bonnie lançou-lhe um olhar de vivo desdém.

 

Não queremos ficar aqui. Estou ansiosa por me ver livre de si e da sua vida perfeita. O que mais desejo é que me deixem em paz, ter um lugar para viver e dedicar-me à minha família. Quanto menos pessoas souberem do passado do Terry, melhor.

 

Maddy não pôde deixar de pensar que a vida dela não era tão perfeita quanto parecia.

 

O facto é que ninguém quer dar uma oportunidade a um ex-presidiário, mesmo que saibam a verdade retomou Bonnie.

 

Pois faço questão de lhe dizer que a admiro pela forma como apoiou o seu marido. Ele tem muita sorte por poder contar com uma esposa como a Bonnie.

 

Nem perante aquele sincero elogio Bonnie cedeu.

 

Crê mesmo no que acabou de afirmar? perguntou, sempre em tom agressivo.

 

Sim, creio, e espero que tudo corra pelo melhor para vocês. O Nick contou-me como o conheceu, primeiro escrevendo-lhe e mais tarde enviando-lhe livros.

 

Trocámos correspondência durante dois anos antes de nos conhecermos confessou Bonnie. Nunca tive um namorado antes do Terry.

 

Que romântico! exclamou Maddy. ' Quando ele me enviou a sua fotografia' e vi como era atraente, não quis enviar-lhe uma fotografia minha. Dizia-lhe que não tinha uma para lhe enviar porque achava que, quando ele visse como eu era, não gostaria de mim, mas enganei-me. O rosto de Bonnie iluminou-se perante aquela recordação. Escreveu que eu era uma bênção para os seus olhos cansados.

 

Nesse mesmo instante ouviu-se um choro.

 

Querida, o Sean está a chorar! chamou Terry.

 

A voz do marido fez Bonnie despertar dos seus devaneios românticos; o seu rosto contraiu-se imediatamente e o brilho que lhe iluminara os olhos desvaneceu-se como o belo traje da Gata Borralheira à primeira badalada da meia-noite.

 

Crianças! comentou delicadamente Maddy. Quebram um pouco o romantismo...

 

Tenho de ir resmungou Bonnie. E dirigiu-se para a porta.

 

Acaba de chegar isto do gabinete do médico legista anunciou Delilah Jones, uma bela negra recém-formada da Academia de Cadetes.

 

Eu levo-o ao chefe replicou o agente Len Wicka. Estava curioso por conhecer o conteúdo daquele sobrescrito. Tanto ele como os seus colegas mal haviam posto o pé na esquadra desde a descoberta do corpo de Rebecca Starnes. Tinham-se lançado ao trabalho, batendo às portas a procurar pessoas que tivessem estado no parque no dia em que Rebecca e Justin haviam desaparecido. Tinham interrogado todos os praticantes de skate e todas as mães que haviam encontrado no ° parque, bem como todos os homens de nome próprio asiático que haviam conseguido localizar. Tinham igualmente virado literalmente cada pedra e folha da floresta, dragado o rio e rastejado por entre os arbustos na busca de indícios relativos ao bebé desaparecido. Mas nada. Len sentia um nó no estômago por ainda não haver encontrado o pequeno Justin, se bem que de certa forma já não quisesse encontrá-lo porque enquanto continuasse desaparecido havia sempre a hipótese de ainda estar vivo. Dirigiu-se ao gabinete do chefe Cameron e bateu à porta. Entre! vociferou Frank Cameron. Len abriu a porta e viu que o seu chefe examinava algumas fotografias. É o relatório do médico legista, chefe. Frank Cameron levantou-se de um salto...

 

Dê-mo, Wickes.

 

Len entregou-lhe o sobrescrito e recuou, esperançado em que o seu superior lhe revelasse a conclusão do relatório. Frank rasgou o sobrescrito e deu uma rápida vista de olhos ao relatório, passando à frente de certos dados que já conhecia.

 

Ora, ora... resmungou. E esta? Não houve violação. No entanto, alguém quis certificar-se de que pensávamos o contrário...

 

Len pigarreou ruidosamente e Frank Cameron ergueu o olhar.

 

- Chefe?

 

Frank não podia deixar de se sentir divertido com a aparência quase militar de Wickes.

 

Diga...

 

Talvez o assassino tenha tentado, mas não tenha conseguido...

 

Frank Cameron inclinou a cabeça, pensativo.

 

Já aconteceu antes. Por vezes matam a sua vítima para terem a certeza que ninguém saiba da humilhação que sofreram.

 

Foi apenas uma ideia que me passou pela cabeça, chefe

 

explicou Len, visivelmente satisfeito com a receptividade do superior hierárquico à sua sugestão.

 

Diga ao Pete e ao Rocky Belmont que venham até cá ordenou Cameron.

 

Len endireitou-se, só lhe faltando fazer a continência, e saiu para ir informar o detective Millard e o inspector Belmont de que o chefe queria vê-los. Pete e Rocky entreolharam-se e seguiram atrás dele.

 

Quando entraram no gabinete de Frank Cameron, ele brandiu o relatório. Nem sequer se deu ao trabalho de os convidar a sentarem-se.

 

Cavalheiros, eis o relatório do médico legista. Não encontraram quaisquer indícios de relações sexuais.

 

Tanto Pete como Rocky exprimiram o seu espanto com um murmúrio.

 

No entanto, e como o Wickes tão bem fez notar, isso não significa que não tenha havido tentativa de violação...

 

Len sorriu encantado.

 

Sabemos muito bem como esses depravados ficam furiosos quando falham. Contudo, a vítima foi morta sem recurso a grande violência. Não foi mutilada nem apunhalada umas quarenta vezes ou coisa do género. Muito embora devamos tomar em consideração todas as hipóteses, temos de lidar com os factos que se nos apresentam. E que indicam que não se tratou de um crime sexual. Sendo assim, o homicídio da rapariga só pode estar relacionado com o desaparecimento do bebé. No entanto, ainda não houve um pedido de resgate, o que talvez indique que os sequestradores queriam ficar com o bebé. E quem se encaixa neste perfil?

 

Uma mulher respondeu Pete.

 

Exactamente, o que faz que talvez tenhamos de procurar uma mulher, não é verdade?

 

Len Wickes levantou a mão numa tentativa de chamar a atenção do chefe, que lhe fez sinal para que falasse.

 

Não podemos excluir a possibilidade de uma rede de traficantes. Há uma grande procura de bebés brancos e hoje em dia já não é preciso pedir um resgate para se lucrar com um sequestro. Basta encontrar um cliente interessado.

 

Ele tem razão concordou Rocky Belmont. Frank Cameron fitou o jovem Len com expressão céptica,

 

Era o exemplo vivo do homem que vivia para o seu trabalho. Ainda era inexperiente, mas não havia dúvida de que gostava do que fazia. Frank lembrava-se de como havia sido assim no início da sua carreira e de como cada novo caso constituía um excitante desafio. Talvez um dia Len Wickes o substituísse no cargo de chefe de esquadra, o que em nada incomodaria Frank. Na realidade, era quase um alívio para ele pensar na reforma, especialmente num dia como aquele.

 

É uma possibilidade a ter em conta admitiu. Pode tratar-se de um estranho na região. Ou de um grupo de homens com máscaras e um carro, com ligações a uma rede de advogados pouco escrupulosos, mas com clientes milionários. Por isso mesmo, temos de ser humildes. Vamos ter de bater à porta das agências nacionais e de verificar os ficheiros do FBI para obter esse tipo de informação. Já estabelecemos algumas ligações?

 

Fizemos uma busca exaustiva pela Internet nos ficheiros de todas as agências nacionais, mas até agora as informações que obtivemos são muito vagas. Ainda não temos pistas suficientes que possamos fornecer-lhes. No entanto, agora, com o relatório da autópsia, talvez consigamos progredir reduzindo as pesquisas e concentrando-nos em casos similares: baby-sitter assassinada, bebé desaparecido. Sim, agora será mais fácil.

 

Ainda bem replicou Frank.

 

Não percebia grande coisa de computadores, mas respeitava os resultados que apresentavam, se bem que se sentisse mais à vontade com os métodos policiais antigos.

 

Debrucemo-nos sobre o aspecto local e sobre a possibilidade de o responsável ter sido uma mulher. Estamos perante uma mulher que provavelmente não pode engravidar ou que teve um filho que morreu. E que, acima de tudo, sofre de algum problema mental. Talvez tenha tentado adoptar um bebé, mas não o tenha conseguido. Pete, quero que contactes as agências de adopção. Rockie, verifica as mortes recentes de bebés na região.

 

Já fiz alguns telefonemas nesse sentido informou Pete.

 

Óptimo. Penso que não é preciso dizer-vos que estamos a lidar com um caso sensível. Precisamos de obter o maior número possível de informações, mas não devemos ferir susceptibilidades.

 

Len sentiu-se triste ao ver que as suas ideias tinham sido relegadas.

 

Que deseja que eu faça, chefe?

 

Naquele mesmo instante, Delilah Jones bateu à porta, que ficara aberta.

 

Chefe, está na altura da conferência de imprensa. Frank expirou ruidosamente.

 

Merda. Odeio conferências de imprensa. Não tenho nada para lhes dizer, mas sou obrigado a fingir que estamos a avançar na nossa investigação.

 

Chefe... insistiu Len Wickes.

 

Atenda os telefonemas, homem, até ordem em contrário. Pete, Rocky, venham comigo.

 

Len não conseguiu disfarçar o seu espanto.

 

Atender os telefonemas? quis certificar-se. Mal podia crer no que acabara de ouvir. Afinal, estavam a investigar um sequestro e um homicídio.

 

Está surdo? rosnou Frank. Passou por ele e quase chocou com Delilah Jones ao sair. A jovem olhou para Len e encolheu os ombros.

 

Len arrastou-se pela esquadra. Todos os agentes andavam na rua à procura de novas informações, enquanto ele tinha de ficar ali para atender telefonemas. E, como que para marcar ainda mais a sua triste sina, o telefone de Pete Millard tocou. Len levantou o auscultador.

 

O detective Millard ausentou-se, mas em que posso ser-lhe útil?

 

Olá... exclamou uma voz doce do outro lado do fio. Daqui fala Caitlin Markus, da Agência de Adopção Arco-íris. Obtive as informações que o detective Millard me pediu e quero enviá-las por correio electrónico.

 

Não há problema replicou Len Wickes sentando-se em frente da secretária de Pete Millard e ligando o computador. Pode enviá-las.

 

Enquanto aguardava que as informações relativas a casais que queriam adoptar bebés surgissem no monitor pegou numa folha de papel que se achava em cima da secretária. Era uma lista das crianças de tenra idade que haviam morrido em Taylorsville nos últimos vinte e cinco anos com as respectivas datas de nascimento. Foi então que Len Wickes, depois de passar uma vista de olhos pela lista, teve uma ideia. Verificou por alto os óbitos ocorridos em Novembro e depois voltou a ler os nomes dia a dia. Encontrou dois nomes, que conferiu com os registos da agência de adopção. Uma das famílias recorrera aos serviços da agência e adoptara uma criança, mas a outra não. Tomou nota dos dois nomes. E as outras agências! Podia ser uma investigação demorada. Nesse preciso instante o telefone de Rocky Belmont tocou. Len olhou em seu redor e avistou Delilah Jones.

 

Não te importas de atender, Delilah? É que estou a verificar uma coisa no computador...

 

Delilah fitou-o desconfiada. Não ia permitir que os seus colegas a tratassem como uma simples empregada. Alcançara o seu distintivo por haver passado pelos mesmos testes e treino que os seus colegas do sexo masculino. Por outro lado, compreendia que Len tentasse armar-se em importante na tentativa de esquecer a humilhação por que passara quando o chefe lhe ordenara que se ocupasse dos telefonemas. Não podia deixar de sentir pena dele. Era ambicioso, mas possuía um certo encanto. Parecia um menino que queria brincar com os mais velhos. Por isso atendeu a chamada.

 

Len consultou de novo a lista. De súbito, as datas de nascimento despertaram-lhe a atenção e resolveu verificá-las. Pousou os dedos no teclado e humedeceu nervosamente os lábios. "E se me sair a sorte grande e eu deslindar este caso?", pensou. "A Laurie ficaria muito orgulhosa." Mas pensar na sua mulher naquele momento só iria distraí-lo. Forçou-se a deixar para mais tarde os seus devaneios e começou a martelar no teclado do computador.

 

Quando Doug não desceu para jantar, Maddy inventou um pretexto para justificar a sua ausência. Estava ocupado a preparar o regresso ao liceu, explicou. A família Lewis não revelou qualquer interesse no assunto, absorvida pelo seu reencontro. Doug tão-pouco apareceu ao chegar a hora de Amy ir dormir e Maddy deitou a menina, prometendo-lhe que o pai lhe daria um beijo de boas-noites quando tivesse acabado de trabalhar. Por fim, Maddy não aguentou mais. A sua mãe confiara-lhe certa vez que ela e o pai nunca se deitavam zangados um com o outro. Maddy sempre admirara o casamento dos pais e tentava aplicar aquele ensinamento com Doug, embora nem sempre o conseguisse.

 

Odiava discussões. Era nocivo para o casamento e para Amy, que podia acabar por sofrer as consequências. As crianças pareciam adivinhar quando os pais discutiam. Não precisavam de saber do que se tratava. Pressentiam o conflito no ar. Portanto, era melhor aliviar a tensão e acabar com aquela disputa tola. Maddy colocou o seu prato na bancada e subiu a escada. "Porque tenho de ser sempre eu a pedir desculpa?", pensou.

 

Suspirou, dizendo a si mesma que era por ser mais difícil para Doug, que fora criado num lar onde não havia amor. O pai era dominado pela sua distante mulher e Doug ficava sempre no meio. Procurava o pai em busca de apoio, mas de nada lhe servia. Era um homem demasiado fraco para defender o filho. Quando Maddy conhecera Doug, o pai dele falecera havia pouco tempo. Com a mãe, Frances Blake, não tinham qualquer contacto; nas raras vezes que telefonava ao filho costumava lembrar que tinha uma vida própria. Maddy lembrou-se de tudo aquilo enquanto subia a escada a fim de conseguir encarar Doug sem muito rancor. No entanto, sentiu um cansaço crescente ao aproximar-se do escritório de Doug. Havia códigos de conduta em todos os casamentos e seria bom que por uma vez ele tomasse a iniciativa de se reconciliar com a esposa. Só depois se lembrou que após o casamento cada um dos cônjuges tinha de aprender a viver com os defeitos do outro.

 

Bateu à porta do escritório de Doug. Não obtendo resposta, girou a maçaneta e abriu-a. Todas as luzes estavam apagadas, à excepção de um pequeno candeeiro. Doug, sentado atrás da secretária, tinha na mão uma fotografia. Parecia desfeito e as lágrimas corriam-lhe pelo rosto.

 

Ao deparar com aquela cena a raiva de Maddy dissipou-se.

 

O que se passa, meu querido? perguntou, avançando para a secretária. Foi então que viu a fotografia. Era um retrato de Doug, no seu uniforme dos Philadelphia Phillies, antes de a sua lesão no joelho o ter posto fora da jogada. Quando se tinham conhecido, Doug ainda não se havia refeito da sua desilusão. Por vezes Maddy dava consigo a pensar que o marido nunca a ultrapassaria. Aproximando-se dele, examinou melhor a fotografia. Doug, no seu uniforme, parecia eternamente jovem, esboçando o alegre sorriso da vitória e da exultação.

 

Doug pousou a fotografia virada para baixo sobre a secretá´ria e enxugou as lágrimas envergonhado.

 

Maddy pôs uma mão sobre o seu ombro, mas Doug retirou-a.

 

O que queres?

 

Fiquei preocupada por não teres descido para jantar. Porque estás tão aborrecido?

 

Desculpa. Tudo corre mal e tenho medo de regressar ao liceu amanhã.

 

Maddy tirou a almofada que decorava a poltrona e sentou-se no chão ao lado do marido.

 

Não tens de fingir que te sentes alegre por mim. Sei quanto sofreste.

 

Doug fitou-a durante algum tempo com uma expressão insondável.

 

És-me tão fiel.

 

Muito embora as suas palavras tivessem soado frias e quase cépticas, Maddy tinha a certeza de que ele quisera ser gentil.

 

Sou a tua mulher e formamos um casal. Por isso mesmo, sou-te fiel. Sei que vai ser difícil para ti regressares às aulas depois de tudo o que aconteceu, mas lembra-te de que o juiz te declarou inocente e de que quem está errada é a Heather. Recordou-se da visita da adolescente. Só espero que não comece a perseguir-te amanhã.

 

Eu encarrego-me dela.

 

Pois eu acho que é melhor manteres-te afastado daquela rapariga sugeriu Maddy.

 

Sei tomar conta de mim resmungou Doug. Não preciso dos teus conselhos. Maddy calou-se, ferida por aquela reacção do marido. Ao aperceber-se disso, Doug esforçou-se por se justificar.

 

Não é só isso, sabes?

 

Então o que é? ripostou Maddy É por causa dos Lewis?

 

Isso pouco importa. Por mim podem ficar. Uma noite a mais não vai fazer a menor diferença.

 

Então o que se passa? exclamou Maddy pegando-lhe na mão. Doug não tirou a sua, mas também não correspondeu àquela aproximação. Os seus dedos estavam tão frios como uma pedra. è porque me zanguei contigo por causa do seguro?

 

Não, Maddy, não é...

 

Ouve, tenho plena consciência do pesadelo por que passaste e por vezes dou comigo a pensar que não te apoiei tanto como devia...

 

Doug tirou a mão e pegou novamente na fotografia.

 

Foste perfeita. Fizeste tudo o que devias. O problema não és tu, Maddy acrescentou, enquanto olhava para o seu próprio retrato com visível nostalgia. Olho para este rapaz e pergunto a mim próprio o que lhe aconteceu. O que foi feito do jovem que tinha o mundo a seus pés e para quem tudo era fácil? Que era feliz, bem sucedido e admirado por todos? As raparigas suspiravam por ele enquanto os homens lhe pediam autógrafos. Porque foi que tudo se desvaneceu em fumo? Porque tive de perder tudo?

 

Maddy levantou-se e afastou-se, sentida com aquele insulto ao seu casamento e à vida que tinham em conjunto. Tentava convencer-se de que Doug não o fizera por mal. Por vezes as pessoas ficavam deprimidas e diziam coisas sem pensar. Mesmo assim sentia-se magoada, mas Doug nem sequer pareceu dar-se conta disso.

 

Desculpa se não conseguimos fazer-te feliz disse com vivo azedume.

 

Não se trata disso murmurou Doug, absorto nas suas memórias. Mas olha para o rapaz da fotografia. Tinha tudo o que queria. O que pode comparar-se com tal sensação?

 

Maddy sentiu náuseas.

 

Muito obrigada pela parte que me toca.

 

Doug, erguendo a cabeça, olhou-a surpreendido; depois franziu as sobrancelhas.

 

Não leves o meu desabafo a peito, por favor.

 

Estás a pedir-me que não leve o teu desabafo a peito? Como querias que reagisse? Tanto eu como a Amy fazemos tudo ao nosso alcance para que sejas feliz, mas ficou provado que isso não tem grande valor para ti.

 

Se vieste até aqui para discutires comigo, perdeste o teu tempo.

 

Pois perdi, porque estás demasiado ocupado a pensar em ti próprio! ripostou Maddy. Meu Deus, se soubesses como estou farta dos teus queixumes!

 

Virando-se de repente, Doug agarrou-a pelo pulso. Os seus olhos faiscavam. Maddy ficou assustada com aquela agressividade, que quase lhe tinha cortado a respiração. Era a primeira vez que Doug levantava a mão para lhe bater, mesmo num momento de raiva. No entanto, encarou o marido, determinada a não chorar apesar da dor no pulso.

 

Larga-me murmurou. A voz soara-lhe firme, mas no seu íntimo faltava-lhe a confiança. E durante alguns segundos que lhe pareceram uma eternidade perguntou a si mesma se Doug iria soltá-la ou partir-lhe o braço.

 

Logo de seguida, Doug deixou tombar a mão da mulher.

 

Sabia que não compreenderias. Nunca compreendeste... sussurrou tapando o rosto com as mãos.

 

Maddy sentiu-se invadida por um súbito cansaço e desejou fechar os olhos e dormir durante dias a fio. Só queria virar as costas a Doug, não pensar mais nas palavras que ele proferira e no que elas significavam.

 

Esfregando o pulso, levantou-se e saiu. De volta ao corredor, apoiou as costas contra a parede e fechou os olhos. Doug enganara-se ao acusá-la de não o compreender. O que justamente preocupava Maddy era sentir que começava a compreender bem de mais o marido.

 

Quando ouviu alguém bater à porta, Paulina entreabriu-a e olhou desconfiada para o polícia que se encontrava do lado de fora.

 

Sim? perguntou.

 

Len Wickes achava-se na soleira, inalando o ar fresco daquela manhã de Outono, com o chapéu enterrado até às sobrancelhas. Passara toda a noite a investigar. Enquanto a sua mulher, Laurie, lhe ia dando café, Len estudara as várias listas e fizera vários telefonemas. Agora tinha algumas perguntas pertinentes a fazer.

 

Posso falar com Mister e Mistress Henson, por favor?

 

Mister Henson não se encontra. Está no escritório. Len calculara aquele imprevisto. Já tinha ouvido falar de Charles Henson. Na esquadra todos conheciam o famoso advogado, mas não era com Charles Henson que ele queria falar.

 

Nesse caso posso falar com Mistress Henson? perguntou cortesmente.

 

Entre.

 

Paulina abriu a porta e Len entrou para o vestíbulo da magnífica mansão de estilo Tudor. Tirou o chapéu, que guardou na mão.

 

Aguarde ali, por favor disse a cozinheira indicando a sala de estar. Vou ver se ela está. Paulina preparava-se para subir a escada quando se voltou para trás Do que se trata?

 

Apenas de algumas perguntas de rotina respondeu Len, tentando manter um ar casual.

 

Paulina não tinha por hábito questionar a polícia. Para ela os polícias eram homens em quem se podia confiar e que protegiam os cidadãos. Embora ultimamente Ellen andasse nervosa, Paulina tinha consciência de que, apesar de querer protegê-la, não podia ultrapassar certos limites, como por exemplo entrar em conflito com um agente da autoridade. Fitou de novo Len Wickes com ansiedade e por fim subiu a escada. Len dirigiu-se à sala de estar e olhou em seu redor. Era como se houvesse entrado num outro mundo, que lhe era estranho. Perguntou a si mesmo quanto custaria uma mansão como aquela. Por certo muito mais do que ele alguma vez conseguiria ganhar. Contudo, Len não era um homem ganancioso. Sentia curiosidade, mas não inveja. Além de que, ao olhar para o retrato da mãe e do seu filho há muito falecido, se dava conta de que o dinheiro não era sinónimo de felicidade. Não havia dinheiro que devolvesse a vida àquela criança. De acordo com os registos das várias agências, as tentativas encetadas pelos Henson para adoptar uma criança haviam falhado. Len pensou então na sua mulher e nas esperanças de ambos para o futuro: dois ou três filhos, que teriam quando chegasse o momento certo. Definitivamente, ainda havia certas coisas que o dinheiro não conseguia comprar.

 

Ao ouvir alguém pigarrear delicadamente atrás de si, voltou-se. Ellen Henson entrara na sala silenciosamente porque usava apenas meias de lã nos pés. Era uma mulher de quarenta e muitos, se não cinquenta anos, e de aspecto frágil. Tinha uma impressionante cabeleira comprida e encaracolada, onde se mesclavam madeixas grisalhas e louras. Fitava-o com ar' preocupado.

 

Em que posso ajudá-lo? indagou.

 

Len perguntava a si mesmo se Ellen Henson seria capaz de um acto de violência levada pelo seu desejo de ter um filho. Não parecia louca; talvez um tudo-nada ansiosa, mas não lou-' ca. No entanto, sabia que as aparências iludiam. Na noite anterior recolhera as listas das várias agências de adopção, bem como as estatísticas sobre nascimentos e óbitos ocorridos nos últimos vinte e cinco anos, levara toda a documentação para casa e estudara as diferentes listas até encontrar as analogias que procurava. Verificara-as uma a uma tentando descobrir algo de estranho até que chegara ao caso dos Henson. Muito embora fosse sua obrigação informar os colegas da sua descoberta, mantivera-a para si. Havia a possibilidade de acertar numa pista importante que lhe conferiria a respeitabilidade de que se achava merecedor.

 

Como deve saber, estamos a investigar o desaparecimento do pequeno Justin Wallace.

 

Sim, eu li a notícia no jornal. Mas não quer sentar-se? Len sentou-se na borda de uma cadeira. Esperava ser suficientemente subtil.

 

Estamos a seguir todas as pistas possíveis, por exemplo, decidimos falar com as pessoas que, por um motivo ou por outro, possam ter motivos para arranjar um bebé a qualquer custo.

 

Não estou a compreender... murmurou Ellen.

 

Mistress Henson, tenho a certeza de que se trata apenas de uma coincidência, mas reparámos, após uma consulta aos registos civis, que o aniversário do seu falecido filho coincidiu com o dia em que Justin Wallace desapareceu. Também apurámos que a senhora tentou adoptar uma criança sem, no entanto, o conseguir.

 

Os olhos de Ellen faiscaram, mas Len continuou.

 

Procedi a mais algumas investigações e soube que a senhora passou algum tempo no departamento psiquiátrico do Hospital Shady Groves. Se fosse possível, gostaria que me dissesse de que problema sofria.

 

Sofria de depressão respondeu Ellen provocada pela morte do meu filho. Muito embora o seu tom de voz fosse calmo, Ellen começara a tremer. Parece-lhe estranho, agente Wickes?

 

Não necessariamente replicou Len. Pode dar-me conta dos seus actos no dia em que o Justin Wallace desapareceu?

 

Sentada na sua cadeira, Ellen não mexeu um só músculo. Len pensou que acertara em cheio ao ver o rosto da sua interlocutora deformado pelo sofrimento e experimentou uma sensação de triunfo. Aquela mulher escondia algo. Ele sabia-o. Podia senti-lo. Se Ellen Henson não respondesse no minuto seguinte, pediria para revistar a mansão. Provavelmente, Mrs. Henson, com um marido advogado, sabia que para tanto era necessário um mandado de busca, mas por vezes até mesmo os mais bem informados cediam à pressão e confessavam tudo. E ela parecia tão frágil, ali sentada, que Len estava convencido de que acabaria por ceder.

 

Mistress Henson... insistiu em voz grave, mas nem por isso menos afável.

 

Por fim, Ellen respirou fundo.

 

Compreendo que está a cumprir o seu dever e que o sofrimento que me inflige neste momento não é nada comparado com o tormento em que vivem aqueles pais. Fez uma breve pausa, esforçando-se por manter a compostura. Aquele jovem casal que sofre tanto, julgando que... Fechou os olhos. Nem consigo pensar nisso... acrescentou, como se falasse mais para si própria do que para Len Wickes.

 

Mistress Henson, queira ter a bondade de responder à minha pergunta.

 

Ellen fitou-o como se tivesse muito que dizer-lhe, mas não conseguisse.

 

Passei o dia todo aqui respondeu por fim. Não saí de minha casa, como a minha governanta poderá confirmar. Se tem mais perguntas, é melhor fazê-las ao meu marido. Dito isto, levantou-se. E agora saia.

 

Gostaria de dar uma vista de olhos pela propriedade, se a senhora não se importar.

 

Importo-me, sim. Não voltará a pisar esta casa sem trazer um mandado. E agora saia, antes que eu comece a gritar.

 

Len achou que aquele comportamento era muito estranho. Estava convencido de que não lhe seria difícil persuadir o seu chefe a arranjar um mandado quando o informasse dos seus progressos.

 

Como queira, mas desde já lhe digo que voltarei. Ellen, impassível, conduziu-o à porta, que fechou sem pronunciar uma só palavra. Paulina, que entretanto descera a escada na ponta dos pés, viu-a ali parada, como uma boneca partida, com o rosto encostado à porta.

 

Sente-se bem? perguntou, aflita. Ellen anuiu com a cabeça.

 

O que queria ele?

 

Queria saber se eu raptei o bebé Wallace que desapareceu.

 

Valha-me Deus! exclamou Paulina levando as mãos ao peito como para se proteger de tão hedionda hipótese.

 

O homem é maluco! Porque quis falar com a senhora?

 

Porque o bebé desapareceu no dia do aniversário do Ken.

 

E depois?

 

E porque também descobriu que não conseguimos adoptar uma criança.

 

Isso não quer dizer nada. São muitos os casais que têm dificuldade em adoptar uma criança declarou Paulina.

 

Ele verificou todo o meu passado e descobriu que estive internada num hospital psiquiátrico depois da morte do Ken. Ellen voltou-se e sorriu a Paulina, mas os seus olhos estavam marejados de lágrimas. Ele julga que eu sou louca e provavelmente tem razão.

 

Não se deixe abater! ripostou Paulina. Nesse preciso instante o telefone tocou.

 

Eu atendo disse Ellen.

 

Apesar de não conseguir ouvir o que Ellen dizia, Paulina viu como o corpo tão frágil da sua patroa se dobrou para a frente quando ouviu a voz do outro lado do fio.

 

Paulina correu para a porta da rua. Ao ver o carro-patrulha afastar-se meneou a cabeça. Quando Charles Henson soubesse o que acontecera haveria de fazer a polícia pagar caro o que fizera.

 

Ellen desligou. Por momentos não se mexeu. Depois afastou-se com cuidado do telefone, como se o chão fosse de vidro.

 

Vou até lá fora... Até à casa de brincar anunciou.

 

Mas para quê? Não há lá nada! Ellen não lhe respondeu.

 

Espere! gritou Paulina correndo atrás da patroa.

 

Venha comer qualquer coisa!

 

Ellen continuou a andar como se tivesse ensurdecido. Paulina seguiu-a. Ellen já abrira a porta dos fundos.

 

Ao menos vista um casaco! insistiu Paulina.

 

Ellen nada disse. Atravessou o pátio e destrancou a porta da casa de brincar. Paulina ainda hesitou ao ver a patroa desaparecer no interior do pequeno edifício, mas logo de seguida voltou para trás e correu para o telefone.

 

Nick acordou na escuridão do quarto de motel, voltou-se e consultou o despertador. Ficou admirado com a hora. Raramente dormia até tão tarde. Sentia-se em liberdade, mas, mais uma vez, sentiu um aperto no coração. Olhou para as janelas tapadas por cortinas pesadas por onde transparecia um raio de luz. Passando as mãos pelo rosto, levantou-se e dirigiu-se a uma das janelas a fim de contemplar o local onde pernoitara. O parque de estacionamento do motel estava quase vazio por não haver muitos viajantes a meio da semana, especialmente naquela altura do ano. Dali a pouco tempo celebrar-se-ia o Dia de Acção de Graças e haveria mais viajantes nas estradas, mas por ora o motel parecia deserto. Tudo o que podia ver pela janela era o céu pálido e o azul-esverdeado das árvores que se erguiam nas colinas formando uma linha irregular no horizonte. Se bem que aquela localidade ficasse a poucas horas de Taylorsville, Nick tinha a sensação de estar no campo.

 

Não viajara muito na noite anterior. Depois de deixar Maddy, regressara a casa convencido de que já tinha tudo pronto e de que lhe bastaria entrar no carro e partir. Mas não fora assim tão simples. As pessoas tinham passado para se despedir dele e Jim Warren, o seu substituto, tinha muitas perguntas a fazer-lhe. Além do mais, Nick ainda encontrara na casa paroquial objectos seus que se esquecera de embalar ou de deitar fora. Demorara uma eternidade até ter tudo pronto. Já passava das cinco da tarde quando finalmente se fizera à estrada e conduzira até muito depois do cair da noite, só se convencendo de que era tempo de parar quando sentira fome e sono. Afinal não tinha pressa. Ninguém o esperava e só teria de se apresentar no mosteiro no final da semana.

 

Nick puxou as cortinas e resolveu tomar banho. Ao passar pelo telefone fitou-o perguntando a si mesmo se iria tocar enquanto ele estivesse debaixo do duche, como de costume. Só depois se lembrou de que ninguém sabia que ele estava ali Assim, tentou convencer-se de que era bom dispor da liberdade e do anonimato que sempre desejara.

 

Contudo, enquanto abria as torneiras, entrava na banheira e puxava a cortina, deu consigo a manter-se à escuta. Habituara-se às constantes exigências da sua função, a atender as pessoas que o procuravam na esperança de um milagre ou de algo que ele não lhes podia dar. Ensaboou-se sem pressa deixando que a água lhe corresse pelo corpo e esforçou-se por aproveitar a sua nova liberdade e a privacidade do motel. Imaginou que não estava sozinho, ali, naquele motel anónimo, longe de tudo e de todos, mas na companhia da única pessoa...

 

A dor que sentiu ao lembrar-se dela era quase intolerável e, pela força do hábito, afastou-a do seu pensamento. Já não precisava de fingir que não a amava. Ali, naquele motel solitário, podia mesmo gritar os seus sentimentos a plenos pulmões. Afinal, agora ela pertencia ao passado. Nunca saberia o sofrimento por que o fizera passar de cada vez que o olhara e lhe sorrira ao longo da estranha conversa que haviam tido no dia anterior. Podia revê-la mentalmente, na cozinha, enquanto lhe oferecia chá como se partilhassem uma vida a dois. Movendo-se pela cozinha, com o pensamento nos seus próprios problemas, não o encarara como um homem. Para ela ele não passava do padre Nick, disposto a confortá-la e a dissipar as suas dúvidas. Foi então que se lembrou das palavras que ela proferira ao despedir-se. Não dissera "Adeus", mas "Lamento imenso". Mas lamentava o quê? Lamentava, tal como ele, que se tivessem conhecido tarde de mais? "Não te deixes levar pelas tuas fantasias de adolescente", recriminou-se. "Estás a construir castelos no ar, baseando-te em duas palavras inócuas proferidas por uma mulher que nunca pensou em ti como homem."

 

Contudo, no seu íntimo, a sua intuição dizia-lhe o contrário. Não era propriamente um novato no que dizia respeito a mulheres. Antes de abraçar o sacerdócio tivera algumas experiências limitadas e pouco satisfatórias. Mas fora o suficiente para saber distinguir a indiferença da esperança. Em parte, fora por isso que se sentira forçado a sair de Taylorsville. Se tivesse ficado mais tempo, teria de o descobrir e mais cedo ou mais tarde tentaria obter uma resposta dela e acabaria por dizer algo que não devia. Ela era casada e ele padre. Por muitos pecados que houvesse cometido em espírito, não queria levá-la ao adultério. Apesar de se sentir desiludido consigo próprio, tentaria não ceder à tentação nem trair a sua vocação.

 

Nick saiu do duche, secou-se e vestiu-se. Olhou para um cartão amarelo pousado sobre a televisão que lhe dava direito a um pequeno-almoço gratuito no restaurante. Era melhor comer alguma coisa antes de retomar viagem. Guardou os seus poucos pertences no saco de viagem, que levou até ao carro. Já destrancara a porta da bagageira e arrumara as malas quando percebeu que se esquecera da pasta.

 

Como fui capaz...? exclamou. Contudo, sentira-se tão embrenhado nos seus sentimentos, tão... acompanhado pela memória dela que não dera pela falta da pasta ao partir. Além disso, ao chegar ao motel sentira-se demasiado cansado para verificar se a tinha. Balouçando as chaves na mão reflectiu sobre o que devia fazer até que por fim trancou a bagageira e regressou ao seu quarto.

 

Sentado na beira de uma das camas de solteiro, marcou o número de telefone do seu gabinete. A campainha tocou várias vezes até que uma voz que conhecia bem respondeu:

 

Casa paroquial...

 

Marge? perguntou Nick, reconhecendo a voz da sua governanta.

 

Padre Nick? É o senhor?

 

Sim, sou eu.

 

Está a telefonar do Canadá? perguntou Marge Sheehan.

 

Não. Ainda estou a caminho. Ouça, o Jim está? Penso que me esqueci da minha pasta no gabinete.

 

Não, ele não está... respondeu Marge com voz triste. Tem de oficiar o serviço fúnebre da rapariga que foi assassinada.

 

A Rebecca Starnes? Não sabia que era católica.

 

Não frequentava a nossa igreja, mas foi baptizada e estudava no liceu de Perpetual Sorrows. O pai é católico e insistiu para que o velório da filha fosse numa igreja católica. Monsenhor Hathaway não queria porque os pais eram divorciados, mas chamaram o padre Warren. Para lhe dizer a verdade, a mãe da rapariga está tão desfeita pelo desgosto que nem se opôs. É muito triste...

 

De facto concordou Nick, sentindo-se culpado por não estar ali a apoiar aquela família, embora não a conhecesse. "Não! Esquece!", recriminou-se mentalmente. "Esse período da tua vida faz já parte do passado." Já encontraram o bebé?

 

Não, e, se quer que lhe diga, aquele inocente já está na paz dos anjos, padre.

 

Talvez tenha razão, Marge.

 

Quer que eu diga ao padre Warren que lhe telefonei

 

Ainda estou a caminho. Se ele encontrar a minha pasta, peça-lhe que a envie para o mosteiro, está bem? Eu deixei o endereço...

 

Não se preocupe replicou Marge.

 

Telefono-lhe quando chegar ao Canadá.

 

Já sentimos a sua falta, padre Nick disse Marge, e estava a ser sincera.

 

Obrigado. Eu também já tenho saudades de todos vós. Depois de se despedir desligou e deixou-se ficar sentado

 

na beira da cama. Pensava em Rebecca Starnes. O que lhe teria acontecido no parque? Lembrou-se imediatamente de Douglas Blake. Nick aconselhara Maddy a confiar no marido e a ser-lhe leal, mas teria sido um bom conselho? Ou dera-o apenas para que a sua partida lhe custasse menos, por saber que ela era fiel ao marido? Tê-la-ia aconselhado a manter-se leal a um homem maldoso, capaz de cometer um crime?

 

Foi então que alguém bateu à porta entreaberta. Nick voltou-se, sobressaltado. Uma mulher anafada, de cabelos grisalhos presos num carrapito e com um avental anunciou:

 

Serviço de limpeza. Posso limpar o quarto? Nick levantou-se.

 

Sim, acho que sim.

 

Olhou pela última vez à sua volta para se certificar de que não se esquecera de nada e saiu enquanto a empregada começava a empurrar o carrinho da roupa. Antes de entrar no automóvel hesitou por breves momentos. "Agora já não há ponto de retorno", pensou ao ligar o motor. "Deste-lhe o conselho que ela queria ouvir. Está com o Doug Blake por vontade própria. Cumpriste a tua parte. Agora esquece-a e prossegue a tua vida.

 

Doug passou o apagador pelo quadro e suspirou. Se pudesse apagar tão facilmente os erros que cometera... Se pudesse tapá-los com um pano macio e fazê-los desaparecer como num passe de magia... Recuou e contemplou a superfície verde do quadro. Ainda havia marcas de giz, formando uma névoa esbranquiçada.

 

Ia ser mais difícil do que ele pensava. Podia percebê-lo pelos olhares que lhe lançavam. Todos o cumprimentavam e lhe sorriam, dando-lhe mesmo os parabéns, mas a dúvida mantinha-se, manchando, tal como o giz manchava o quadro, a sua reputação. Doug começara por assistir à reunião de docentes e depois dera três aulas. Ninguém lhe dissera nada de menos próprio. No entanto, a dúvida continuava a persegui-lo. E por baixo daquela sua preocupação escondia-se outra. Muitas outras, todas relacionadas com a morte de Rebecca Starnes, mesmo que se sentisse em segurança. Se ainda não o sabiam...

 

Doug pousou o apagador, limpou as mãos, guardou alguns papéis na pasta e fechou-a, perguntando a si mesmo porque se dava ao trabalho de os levar para casa. Não seria capaz de se concentrar, mas era sua obrigação retomar a vida normal. Vestiu o blusão verde escuro, pegou na pasta e saiu para o corredor. Os alunos falavam uns com os outros aos gritos enquanto fechavam os respectivos cacifos. Pareciam embrenhados nas suas vidas e não lhe prestaram grande atenção. Mesmo assim, Doug resolveu tomar um atalho até ao parque de estacionamento, saindo por uma das portas laterais. Quanto menos tivesse de falar com os outros melhor.

 

Quando o ar frio o atingiu sentiu-se mais sossegado. Parou junto do muro de pedra que corria ao longo do perímetro da escola e observou durante alguns minutos a equipa feminina de hóquei que treinava no campo. Pareciam tão angelicais, tão alegres, com os seus cabelos ao vento e as suas pernas longas e firmes aos saltos. Eram uma bênção para os olhos e só de vê-las sentiu fome. Enfiou a mão no bolso do casaco, tirou um pacote já aberto de bolachas com queijo, levou uma à boca e provou-a. Estava mole e sem sabor.

 

Mister Blake? chamou uma voz doce atrás dele. Doug engoliu o pedaço de bolacha que provara e apressou-se a guardar o pacote no bolso. Só depois se voltou e deu de caras com Karla Needham. Usava um casaco comprido, em tons de azul e cinzento e com o monograma de Taylorsville. Os seus cabelos castanhos e brilhantes caíam-lhe sobre os ombros. E sorria-lhe... com aqueles seus belos lábios e olhos... Olá, Karla.

 

Era uma das raparigas mais bonitas do liceu, embora fosse difícil admirar o seu corpo perfeito, enfiada naquele sobretudo. Examinou-a rapidamente da cabeça aos pés quando ela se aproximou e se postou a seu lado apertando os livros contra o peito e contemplando o campo de hóquei. Os cotovelos dela quase roçaram os seus e Doug sentiu o coração bater mais depressa. Não podia deixar de pensar no que Maddy lhe contara. Heather acusara-o de ter um romance com Karla porque, segundo ela, a colega tinha um fraquinho por ele.

 

Estou contente por vê-lo de regresso disse a rapariga.

 

Doug sorriu no seu íntimo. Sempre desconfiara de que Karla gostava dele. Quando o via o seu rosto iluminava-se. Recorria àquele olhar tímido, que ele já havia visto em tantas outras. Eram novas, mas sabiam bem o que queriam. Os adultos achavam-nas ingénuas, quando na realidade as hormonas daquelas jovens estavam em constante estado de alerta. Rondavam pelo liceu roçando-se contra os rapazes e olhando para os fechos de correr das suas calças na esperança de provocar uma reacção masculina.

 

Obrigado. Também me sinto contente por ter voltado replicou.

 

Karla virou-se e encostou-se contra o muro de forma a ficar de frente para ele.

 

Na minha opinião, o que lhe fizeram foi uma injustiça comentou.

 

Os olhos dela brilhavam como se fosse começar a chorar.

 

Não faz mal murmurou. São coisas que acontecem.

 

Não, a sério! protestou Karla enquanto desenhava com a ponta dos seus ténis um círculo no cascalho. Depois sacudiu a cabeça e os seus cabelos agitaram-se numa massa flamejante. Todos sabiam que a Heather Cameron tinha um fraquinho pelo senhor. No ano passado costumávamos gozar com ela por causa disso.

 

É uma rapariga perturbada replicou Doug gentilmente. Tem muitos problemas e... e receio que os tenha projectado na minha pessoa...

 

Karla fitava-o por baixo das suas pestanas compridas e reviradas. Doug, fascinado, não conseguia desviar o olhar do seu corpo.

 

Ainda bem que não foi verdade... retomou a rapariga.

 

Não passou de uma fantasia dela... retorquiu Doug.

 

Porque me custava muito pensar no senhor com ela... murmurou Karla.

 

Doug fechou os olhos e experimentou aquela sensação familiar e perigosa invadi-lo. "Endoideceste?", pensou. "Como podes sequer atrever-te a pensar nisso? Estás a poucos metros do liceu, os teus inimigos esperam que tu cedas e a tua vida parece prestes a desmoronar-se. Nem sequer podes pensar em tal coisa."

 

No entanto, pensava em tal coisa. E quanto mais pensava mais sentia o néctar perfumado correr-lhe nas veias, dizendo-lhe que estava novamente vivo e que voltara a ser um herói, um conquistador. Era como se os deuses lhe houvessem dado aquela prenda, e ele, mau grado os seus esforços, não pudesse evitá-lo.

 

Acompanhas-me num passeio? perguntou com voz rouca.

 

Karla assentiu, como se estivesse demasiado emocionada para falar.

 

Doug pousou a mão na cintura da rapariga. Quase podia sentir a pele dela por baixo das pregas do sobretudo. Com os dedos em brasa, conduziu-a gentilmente quando atravessaram a rua. Olhou para um lado, depois para o outro fingindo verificar se não havia trânsito, quando, na realidade, examinava a área à procura de outros estudantes que pudessem conhecê-lo. Mas não havia mais ninguém. Puxou-a ao de leve para mais perto de si, como se a levasse a apressar-se, quando na realidade estava desejoso de sair dali. Nessa altura abrandaria. As raparigas precisavam de tempo... e de alguma delicadeza.

 

Conduziu-a até a uma rua sossegada, ladeada de casas velhas, em direcção a um jardim público situado em frente de um banco que estava encerrado. Hesitando, ao ver os dois pilares que contornavam a entrada, Karla consultou-o com o olhar. Doug anuiu e entraram no jardim. Aquele jardim era muito concorrido na Primavera e no Verão, mas agora, em pleno Outono, era sossegado, com carreiros sinuosos ladeados por candeeiros e por muitas zonas arborizadas. Era o tipo de local onde as jovens gostavam de passear imaginando encontros românticos. Tinha levado Heather até àquele jardim, uma vez, e muitas mais, com as outras, porque constituía o melhor lugar para dar início às suas investidas.

 

Que jardim tão bonito comentou Karla. "Dizem sempre a mesma coisa", pensou Doug. "São todas iguais, ao mesmo tempo tímidas e excitadas, tremendo enquanto aguardam que eu as possua, incapazes de dizer algo mais coerente do que um tímido comentário ao tempo ou à beleza do jardim."

 

Nesse caso, condiz contigo replicou.

 

Seguiram por um carreiro que mais parecia um túnel devido aos ramos das árvores que o encobriam e que se encheriam de flores brancas na Primavera. Por baixo de uma árvore havia um pequeno banco de cimento com braços trabalhados. Doug indicou o banco e Karla sentou-se em silêncio. Doug instalou-se a seu lado, permitindo-se roçar o seu joelho na perna destapada da rapariga.

 

Karla baixou timidamente os olhos. Cruzara as mãos, pequenas e macias, sobre os livros. Doug contemplou-as como se fossem dois brilhantes.

 

Sinto-me um pouco nervosa confessou a rapariga com um risinho abafado.

 

Porquê?

 

Quando ela meneou a cabeça, Doug tocou-lhe ao de leve na mão, como se quisesse aflorar uma espécie de opala mística que, como por milagre, parecia derreter-se ao contacto dos seus dedos.

 

Então ela ergueu a cabeça e fitou-o com olhos muito abertos.

 

Sempre esperei que talvez... o senhor me pudesse ver... de uma maneira diferente.

 

Pois acho que és uma rapariga muito bela replicou Doug num sussurro.

 

A sério?

 

Claro que sim.

 

A necessidade de possuí-la era mais forte do que tudo o resto. Sentia-se levado por uma vaga de prazer intenso, que o elevava aos céus e o inebriava de prazer. Pedia-lhe que a possuísse. Sabia que devia parar, levantar-se e ir-se embora, mas era sempre o mesmo. A sua própria ansiedade e a sensação de perigo aumentavam ainda mais o seu desejo. Todos os seus sentidos se tornavam mais intensos. E não era apenas a visão e o olfacto. O vento, as folhas que estalavam e a beleza da paisagem, que lhe pareciam supérfluos e enfadonhos no seu dia-a-dia, tomavam uma nova dimensão. De súbito, sentia-se renascer. Por alguns momentos voltava a ser um herói, detentor da inocência e dos sonhos da juventude e sentia-se invadido por um prazer intenso, que não lhe consentia confinar-se às responsabilidades dos adultos.

 

Contudo, quando fechou os olhos viu o rosto de Maddy pedindo-lhe explicações e compromissos. Era a personificação de uma torrente interminável de exigências. Esforçou-se por afastar aquela imagem do seu pensamento e abriu os olhos para fitar Karla, que olhava para ele como em adoração. Era como se recuasse no tempo e regressasse aos melhores dias da sua vida. De imediato, sentiu o peso da sua infelicidade dissipar-se. Deleitava-se com um prazer intenso e sensual. No entanto, se fosse sincero consigo próprio, saberia que a sua juventude não tinha sido tão idílica como pensava. Os seus amores de liceu haviam sido complicados e frustrantes. A transição para a idade adulta trouxera-lhe muitas dores físicas e uma vida solitária. Os dias felizes, que tanto procurava, nunca haviam existido. Eram um sonho de infância, na procura do prazer puro, do amor de uma mulher que o idolatrasse e vivesse apenas para ele. Nunca conhecera aquele tipo de amor, mas continuava a procurá-lo. Tinha de tentar, porque, se não o alcançasse, de que lhe serviria viver?

 

Estendeu o braço enquanto as sombras do crepúsculo se alongavam atrás dele e quase lhe tocavam. Deslizou a mão por baixo do sobretudo, tocando no seio redondo e macio de Karla. Ao mesmo tempo debruçou-se para o rosto que o fitava e procurou aquela mesma macieza nos lábios dela.

 

No interior do seu carro, estacionado na estrada deserta que atravessava o jardim, Richie Talbot focou a lente da câmara de vídeo do pai, que mantinha apoiada sobre a janela aberta.

 

Ele caiu na armadilha sussurrou. Fizeste um bom trabalho, Heather.

 

Dizia que este jardim era o nosso local especial murmurou Heather, sentada ao lado de Richie. Acreditara nas mentiras de Doug quando ele lhe dizia como ela era bonita e especial. Denunciara-o apenas porque ele lhe havia anunciado friamente que quando o novo ano escolar começasse tudo acabaria entre eles. Agora, ali estava ele, tentando fazer o mesmo com Karla, tal como Richie previra. As lágrimas formaram-se nos olhos de Heather quando por fim se apercebeu de que nunca tivera qualquer importância para aquele homem.

 

Apanhámo-lo disse Richie sorrindo. Sabia que a sua afirmação ficaria gravada, mas não se importava. Uma imagem valia mais do que mil palavras.

 

Paulina, de pé, em frente da velha mesa de madeira da cozinha, preparava massa de pão na superfície polvilhada de farinha de uma tábua. Batia e puxava a massa pegajosa que lhe deslizava por entre os dedos tentando transformá-la numa bola macia e acetinada, como lhe haviam ensinado. À medida que ia pressionando com força a massa com os dedos, o peso do seu coração parecia tornar-se menor.

 

A porta da cozinha abriu-se e Charles Henson estacou O seu rosto estava tão branco como a farinha que ainda se colava às mãos de Paulina.

 

Vim o mais depressa que pude afirmou. Ela ainda lá está?

 

Paulina assentiu com a cabeça, olhando de novo pela janela da cozinha.

 

Depois de falar consigo telefonei ao chefe Cameron e disse-lhe o que pensava dos seus métodos. Também lhe prometi que iria arrepender-se por se ter metido comigo. Como puderam sequer pensar...? A rapariga foi assassinada!

 

Sim, eu sei.

 

Como se ela fosse capaz de fazer mal a alguém! É inacreditável!

 

Ambos se calaram até que por fim o advogado perguntou

 

Como foi que ela lidou com a situação?

 

Ficou aborrecida. Logo de seguida recebeu um telefonema e fechou-se lá respondeu Paulina, indicando a casinha de madeira.

 

Os ombros de Charles curvaram-se e toda a sua indignação se dissipou.

 

Sabe, falei com um psicólogo declarou. O mesmo que a tratou, anos atrás. A Ellen simpatizou com ele, na altura. Além do mais, goza de muito boa reputação. Contei-lhe tudo o que aconteceu e está convencido de que pode ajudá-la.

 

Ela não irá ver esse tal psicólogo retorquiu a cozinheira.

 

Mas vai ter de ir, Paulina. Não sei que mais posso fazer.

 

A cozinheira enterrou os dedos na bola de massa.

 

Isso é um assunto que só diz respeito aos senhores.

 

Censura-me, é isso? Só quero ajudá-la.

 

Eu sei. A culpa não é de ninguém...

 

Charles dirigiu-se para a janela e contemplou a pequena casa de madeira.

 

É melhor ir até lá para tentar falar com ela anunciou.

 

Paulina não ergueu o olhar. Não queria ver a expressão do rosto do patrão.

 

Charles abriu a porta das traseiras da cozinha, saiu, fechou-a e, com passos arrastados, seguiu pelo carreiro de jardim em direcção à casa de brincar. Ainda se lembrava do dia em que os carpinteiros tinham terminado o seu trabalho, depois de passar a segunda demão de tinta na porta. Ken ficara encantado. Charles explicara ao filho que era uma espécie de esconderijo só para homens, depois de percorrer de mãos dadas com o menino aquele mesmo carreiro coberto por um tapete de flores. Kenny comentara que parecia mais a casa da floresta do ursinho Winnie the Pooh e Charles concordara.

 

Embora o dia estivesse cinzento, Charles quase podia sentir, passados tantos anos, o calor daquela pequena mão na sua ou o sol a bater-lhe nos ombros, como para o abençoar. Tinha trinta e cinco anos quando Ken nascera e dedicara-se de corpo e alma ao filho. Nunca estava demasiado ocupado para o menino e sentia uma grande alegria em saborear todos os momentos que passava com Kenny. Charles adorara ser pai e aquela experiência ainda lhe trazia algum reconforto volvidos tantos anos. Tentava pensar naquela época como numa bênção que lhe havia sido dada e pela qual tanto ele como Ellen haviam ficado eternamente gratos.

 

Quando alcançou a casa de brincar fez a única coisa que lhe pareceu correcta: bateu à porta.

 

Quem é? perguntou Ellen do interior.

 

O seu tom de voz parecia normal, quase alegre, o que deixou Charles ainda mais angustiado. O que significava? Seria o reflexo de uma nova mania em antecipação a outra depressão nervosa? Não queria que ela fosse internada porque não estava certo se voltaria a vê-la. Lembrou-se então da época que Ellen passara no hospital. Fora uma fase terrível para ele. Quando ia visitá-la ela fitava-o mas não o reconhecia. E quando regressava a casa não havia ninguém para o receber.

 

Sou eu, minha querida respondeu, e o amor que nutria por ela abafou a ansiedade na sua voz.

 

Entra.

 

Abriu a porta e baixou-se para poder entrar. Precisou de alguns segundos para que a sua visão se adaptasse àquela penumbra. Ellen estava sentada no chão, sobre uma manta, com os joelhos dobrados e encostados ao peito. Um pequeno candeeiro a petróleo emitia uma luz ténue. Ao vê-lo, Ellen tocou na manta.

 

Vem sentar-te ao meu lado.

 

Porque não voltamos para casa, minha querida? respondeu Charles. É que aqui está muito frio...

 

Não. Ainda não tinha pensado nisso, mas este parece-me ser o local ideal. Senta-te aqui a meu lado.

 

Parecia quase uma jovem, à luz do candeeiro. Os seus cabelos encaracolados tinham reflexos dourados e o seu rosto brilhava, iluminado por uma expressão estranhamente serena, o que assustou ainda mais o marido.

 

Desculpa... Esqueci-me de que tens vestido um fato de qualidade retomou.

 

Isso pouco importa retorquiu Charles enquanto puxava para cima as calças de lã fina com dobra e se sentava, cruzando as pernas e deixando à vista os sapatos impecávelmente engraxados. Só tu contas. A Paulina disse-me que a polícia esteve aqui.

 

Ellen inclinou a cabeça tristemente.

 

Estão a tentar encontrar aquele bebé...

 

Não sabes quanto lamento que eles te tenham importunado, minha querida, e também o facto de não estar aqui para expulsá-los.

 

Não faz mal replicou Ellen pegando-lhe na mão. Não os censuro.

 

Porque não voltamos para casa e bebemos um cálice de xerez? sugeriu gentilmente Charles. Vai ajudar-nos a aquecer.

 

Ellen sorriu-lhe e, aproximando-se, passou os dedos pelos seus cabelos brancos.

 

Ainda és um homem tão bonito... murmurou. Charles fitou-a, intrigado.

 

Também tu és muito bonita.

 

Já não somos novos.

 

Eu sei.

 

Charles, tenho de dizer-te uma coisa que ando a esconder há algum tempo. Já suspeitava, mas ontem, quando fui ao hospital e vi o médico...

 

Charles sentiu que as suas mãos se empapavam em suor devido ao pânico que o invadira. "Não admira que tenha andado estranha ultimamente. Ela bem me dizia que estava com medo. Como pude ser tão estúpido?", censurou-se. "Está doente. Não a nível mental, mas a nível físico." Agora tudo fazia sentido. Tinha um cancro, porque houvera vários casos na sua família.

 

Oh, não... gemeu.

 

Não, não é isso... replicou Ellen, como se lhe tivesse lido o pensamento. Não estou doente. Estou... grávida.

 

Charles pensou novamente na possibilidade de uma perturbação mental. Fitando-a, esforçou-se por manter uma expressão impassível para que Ellen não adivinhasse o que lhe ia na mente.

 

Eu sei continuou Ellen. Foi o que eu pensei. Quando comecei a ter os primeiros sintomas, julguei que sofria de uma doença terrível ou que imaginava coisas. Cheguei a acreditar que a minha mente estava a pregar-me partidas. Só depois comecei a suspeitar. Era como uma cruel ironia do destino. Uma última reviravolta para me torturar.

 

Mas és muito...

 

Velha rematou Ellen, sorrindo. Podes dizê-lo. Eu pensei o mesmo.

 

Durante todos estes anos... nunca conseguimos...

 

Eu sei, eu sei. Agarrou as mãos do marido e apertou-as com tanta força que Charles sentiu uma dor súbita, maravilhado com a energia que emanava de Ellen. Mas é verdade. Compreendeste o que acabei de te dizer? Apesar de tudo o que nos aconteceu, vamos ter um bebé.

 

Oh, meu Deus...

 

Sentindo dores fortes nas pernas, Charles descruzou-as e aproximou-se de Ellen. Parecia-lhe apropriado estar ali, naquela casa de brincar, porque se sentia tão apavorado como uma criança.

 

Oh, meu Deus, Ellen...

 

Ela riu-se e o seu riso era cristalino e alegre.

 

Mas... na nossa... idade... E as probabilidades... Tanta coisa que pode correr mal...

 

Recusava-se a pensar porque se sentia invadido pelo mais puro terror.

 

Sei como te sentes porque passei pelo mesmo nestas últimas semanas, mas agora isso já faz parte do passado. Tive todos os medos possíveis e imaginários. Mas sabes... sussurrou Ellen de repente desapareceram. O médico telefonou esta manhã, logo depois de aquele agente da polícia sair, e disse que está tudo bem. Vou ter de tomar hormonas. Consegues imaginar? É tão simples quanto isso! Só tenho de tomar hormonas. E vitaminas, claro. É espantoso, não achas? Refugiei-me aqui, desde que tive a confirmação, para me lembrar de tudo. E para fazer planos. Sabes que mais, Charles? Deixei de ter medo. Sinto-me em paz. Tenho a certeza. Este é o nosso milagre, meu querido.

 

Ellen, e se... Não sabemos se...

 

E que há para saber? Tudo nos será revelado a seu tempo.

 

Temos de seguir em frente e descobrir o que Deus nos reservou. Vou ter de me submeter aos exames destinados às mulheres da minha idade para saber se o bebé é normal, mas sei, no meu íntimo, que está tudo bem. E dentro de muito pouco tempo poderemos vê-lo num monitor por meio de um exame a que chamam ecografia. O médico disse-me que poderia dizer se é um menino ou uma menina, mas respondi-lhe que não queria saber. Achas que fiz bem? perguntou gentilmente. Disse-lhe que para nós tanto fazia.

 

Charles deixou-se ficar ali, sentado. Sentia-se completamente atordoado. Se Ellen lhe tivesse dito que ia morrer, não se teria sentido menos assustado. Depois aninhou-se nos braços de Ellen e deixou-a abraçá-lo enquanto os seus receios e esperanças o faziam tiritar como se tivesse febre. Surgiam em vagas sucessivas, ora conferindo-lhe esperança, ora esmagando-o de medo. E durante todo esse tempo Ellen manteve-se abraçada a ele, embalando-o e dizendo-lhe gentilmente que compreendia e que tudo iria correr bem.

 

Len Wickes, ainda de uniforme, puxou o fecho de correr do seu blusão de cabedal e meteu por um dos carreiros sinuosos do Parque Binney, que se revelava uma bela paisagem em tons de verde-escuro e cinzento. O silêncio reinava, entrecortado apenas pelo piar de um pássaro e pelos ecos dos passos de um casal de corredores. Len não olhou para o casal ao passar em frente do banco de jardim. Sentia receio de que, se o fitassem, acabassem por menear tristemente a cabeça. Estava convencido de que o mundo tinha conhecimento da sua humilhação.

 

Regressara à esquadra disposto a comunicar as suas suspeitas acerca de Ellen Henson ao chefe Cameron, mas este, depois de o ouvir, quase tivera um ataque de apoplexia. Tanto Charles Henson como algumas das mulheres que Len interrogara haviam telefonado a Cameron, a queixarem-se. Assim, em vez de receber um abraço caloroso pelos seus esforços, ouvira uma valente descompostura que lhe valera uma suspensão, sem vencimento, de uma semana.

 

"Como vou dizer à Laurie?", pensou. Naquele momento ainda estava a trabalhar no instituto de beleza, mas quando chegasse a casa e desse de caras com ele... Len suspirou. Laurie ficara entusiasmada quando ele levara as listas para casa. Admirava o marido por vê-lo dedicar-se por sua conta e risco a uma investigação que não lhe fora pedida. Tinha-o na conta de um polícia exemplar. E agora Len sofria ao pensar no que sentiria Laurie, que sempre tivera tanto orgulho nele, quando descobrisse qual fora o resultado das suas investigações. Continuava sem compreender o que fizera assim de tão errado, além de que não estava habituado a ouvir reprimendas. Quando muito, os colegas costumavam espicaçá-lo por acharem que ele mais parecia um escuteiro, mas Len nunca se importara com esses comentários jocosos. Alistara-se na polícia porque queria ajudar o seu próximo. Quando acontecia uma tragédia, como o assassínio de Rebecca Starnes e o desaparecimento do bebé Wallace, ficava transtornado. Constituía um insulto ao seu modo de vida. A única coisa que desejava era deslindar aquele caso.

 

Caminhou sem rumo ao longo do lago dos patos por não saber para onde ir. Um pato selvagem deslizava indolentemente sobre a superfície da água. Uma mulher sentada num banco vigiava o seu filho, que brincava com um barquinho numa das margens. Len sorriu à mulher, que lhe correspondeu, e parou por breves instantes para observar o menino. "Espero ter um filho, mais tarde", pensou. Tinha a certeza, de que tanto ele como Laurie seriam bons pais. Mas a lembrança da mulher tornou-o novamente triste e frustrado. Ia custar-lhe muito dizer a Laurie o que acontecera.

 

O menino, entretanto, parecia ter alguma dificuldade em evitar que o barco se virasse. Len ajoelhou-se a seu lado e indicou-lhe como devia conduzir o barco sem que se virasse. Endireitou-se, cumprimentou a mãe com uma curta vénia e afastou-se. "Talvez passe pela loja de conveniência e beba um café", pensou. Não tinha vontade de voltar para casa. Afinal era um agente da autoridade. Que tinha para fazer em casa? Atravessou a clareira que se abria do outro lado do lago, cabisbaixo, com as mãos enfiadas nos bolsos das calças, e quase chocou com um homem que se equilibrava num pé, com os braços estendidos.

 

Desculpe murmurou Len, afastando-se. Só depois estacou e voltou para trás. O homem tinha mudado de posição. Len fitava-o, atónito, como se acabasse de ver um fantasma. A polícia vasculhara aquele parque durante dias e procurara todos os homens orientais que residiam em Taylorsville. Aqueles com quem haviam falado tinham conhecimento do sequestro e da consequente morte de Rebecca Starnes e alguns até haviam afirmado ter algum interesse pelo tai chi, mas nenhum treinara ao ar livre no Parque Binney, muito menos no dia fatídico.

 

"Só pode ser ele", pensou Len com um súbito entusiasmo, que o atingiu como um choque eléctrico. Sem se apressar, aproximou-se do homem.

 

Desculpe... balbuciou, esforçando-se por manter um tom de voz casual. Posso falar consigo?

 

O homem, de rosto largo e sereno, franziu as sobrancelhas e, de imediato, os seus olhos negros revelaram uma expressão' desconfiada. Endireitou-se, mas os seus braços estavam ligeiramente dobrados, numa posição de ataque.

 

Pode respondeu com voz grave.

 

O meu nome é Leonard Wickes e pertenço ao Departamento de Polícia de Taylorsville continuou, mentindo porque tecnicamente não estava de serviço naquele momento Gostaria de fazer-lhe algumas perguntas que dizem respeito à morte da Rebecca Starnes e ao sequestro do Justin Wallace.

 

Não sei de nada resmungou o homem.

 

Está a praticar exercícios de tai chi, não é verdade?

 

Sim. E costuma vir treinar para o parque com frequência?

 

Pelo menos quando estou na cidade, porque viajo muito em trabalho...

 

Bom, Mister...

 

Ishikawa rematou o homem com alguma relutância.

 

Mister Ishikawa... É um nome de origem chinesa?

 

Não, é um apelido japonês. Os meus pais são japoneses, mas eu sou americano replicou o homem com alguma impaciência.

 

Desculpe. E reside em Taylorsville?

 

Vivo naqueles apartamentos que se podem ver daqui.

 

Nesse caso deve ter ouvido falar do que aconteceu neste parque na terça-feira passada.

 

Não, por acaso não. Ando um pouco desactualizado com o que se passa na cidade porque estive em viagem. Mas o que aconteceu?

 

Estava em viagem!", pensou Len, eufórico. "O que já explica tudo. Não admira que ele não se tenha apresentado. Estava fora da cidade." Len sentia o coração mais leve. Acabara de encontrar a testemunha que procuravam. Mal podia esperar para informar o seu chefe, que com certeza o readmitiria ao serviço imediatamente.

 

Então esteve fora em negócios? comentou em tom amigável.

 

Não respondeu o homem. Estive fora porque tinha bilhetes para a final do campeonato.

 

Len, boquiaberto com aquela resposta, esqueceu-se por completo dos seus problemas.

 

O Campeonato do Mundo? Conseguiu arranjar bilhetes? E foi assistir à final?

 

Mr. Ishikawa anuiu timidamente ao aperceber-se da admiração que aquele homem revelava.

 

Sou um grande adepto de basebol justificou-se.

 

Ena! Caramba! exclamou Len.

 

Sentados em frente da secretária de Frank Cameron, Donna e Johnny Wallace fitavam-no furiosos. Frank, que havia dormido quase tão pouco como os pais do bebé, tentava mais uma vez tranquilizá-los dizendo que estava a fazer tudo o que se achava ao seu alcance para encontrar o pequeno Justin.

 

Johnny Wallace levantou-se e, interrompendo-o, começou a gritar:

 

Estamos fartos das vossas promessas! Queremos o nosso filho de volta!

 

Eu compreendo o que sente e posso assegurar-lhe que queremos o mesmo. Mas tudo o que podemos fazer, a não ser que tenhamos notícias do sequestrador, é prosseguir com a nossa investigação. Interrogando qualquer possível suspeito e seguindo cada nova pista. Mas agora pergunto: o que estão aqui a fazer? E se o sequestrador resolver telefonar-vos para exigir um resgate enquanto estão aqui?

 

Já não consigo ficar sentada o dia todo à espera respondeu Donna, como para se desculpar.

 

Não tente virar as coisas e fazer que a culpa pareça ser nossa! gritou por seu lado Johnny.

 

Bom, Mister Wallace, a verdade é que também não é minha replicou Frank, tentando não ser demasiado hostil.

 

Ele tem razão observou Donna dirigindo-se ao marido. Um de nós devia ter ficado em casa. Levantou-se. As lágrimas corriam-lhe pelo rosto. Telefona-nos se tiver alguma novidade?

 

Se houver qualquer coisa... Seja o que for... assegurou Frank pousando uma mão no ombro dela. Tinha pena daquela mulher, ou melhor, dos dois, mesmo que não o percebessem.

 

Foi então que o telefone tocou. Frank contemplou o aparelho, cansado. Além de fazer tudo o que podia para encontrar uma pista relativa ao sequestro de Justin Wallace, perdera muito do seu precioso tempo a ouvir um cidadão furioso após outro queixar-se dos interrogatórios a que havia sido submetido por Len Wickes. Frank tinha quase a certeza de que era novamente Charles Henson para o ameaçar com um processo. Quando soubera que Len resolvera estabelecer, sem que houvesse recebido ordens para tal, um elo de ligação entre os pedidos de adopção efectuados nas agências e o sequestro, empregando métodos pouco ortodoxos para interrogar as pessoas que figuravam na sua lista, dera-lhe uma valente reprimenda. Por muito que Frank precisasse da ajuda de todos os seus homens, não podia permitir tal coisa. Len saíra da esquadra muito abatido.

 

Frank levantou o auscultador como se fosse uma granada de mão e identificou-se. Para seu alívio reconheceu a voz de Pete Millard, que saíra para se inteirar dos esforços da equipa de mergulhadores que revistava o lago da floresta à procura do corpo de Justin Wallace. Até ali não haviam encontrado nada. Ao saber das últimas notícias perguntou a si mesmo se devia passar ou não aquela informação aos Wallace. Enquanto não encontrassem um corpo, a esperança mantinha-se, mas, por outro lado, a imagem de um bebé afogado, com o corpo enterrado na lama das margens podia ser muito violenta para Donna Wallace.

 

Mas quando terei uma nova pista? exclamou irritado.

 

Pete sabia que aquela pergunta era apenas retórica.

 

Vou voltar para lá replicou.

 

Mantém-me informado.

 

Desligou no mesmo momento em que Delilah Jones passava a cabeça pela porta e espreitava.

 

O que é? vociferou.

 

Delilah brindou-o com um sorriso malicioso.

 

O Len está aqui anunciou. Frank levantou-se de um salto.

 

Eu disse àquele ignorante...

 

Pois parece-me que vai gostar de voltar a vê-lo atalhou Delilah, fazendo-lhe sinal com uma unha pintada para que a seguisse.

 

Frank nunca se habituaria a ver mulheres-polícias, de farda azul e unhas pintadas de encarnado. Franziu as sobrancelhas, mas no seu íntimo sentia alguma esperança. Sabia que Delilah nunca se atreveria a anunciar-lhe que Len Wickes voltara à esquadra se não tivesse a certeza de que era portador de boas novas. Assumindo uma expressão dura e impenetrável, saiu do gabinete.

 

Len Wickes achava-se de pé junto da secretária de Rocky Belmont. Ainda se encolheu ao de leve ao avistar o chefe, mas depressa se recompôs. Sentado a seu lado, na cadeira de Belmont, estava um homem bem-parecido, de traços orientais, que devia ter vinte e muitos anos e usava fato de treino. Frank lançou um olhar reprovador a Len.

 

O que quer desta vez? bradou.

 

Quero apresentar-lhe Mister Tom Ishikawa. Encontrei-o no Parque Binney quando praticava os seus exercícios de tai chi.

 

Você está suspenso das suas funções relembrou-lhe Frank. Voltou-se então para Mr. Ishikawa, que se havia levantado cortesmente.

 

Como está? cumprimentou.

 

Mister Ishikawa encontrava-se no parque no dia em que a Rebecca Starnes e o Justin Wallace desapareceram explicou Len. E viu-os.

 

Frank brindou a testemunha com um olhar fulminante.

 

É verdade? inquiriu.

 

Sim, senhor.

 

Andámos à sua procura. Não sabe ler os jornais?

 

Ele esteve fora da cidade explicou Len mais uma vez.

 

Muito bem. Então diga-me: viu-os a falar com alguém quis saber Frank, ignorando o seu subordinado.

 

Vi a rapariga a falar com um homem.

 

Consegue descrevê-lo?

 

Len e Delilah entreolharam-se e, enquanto ele respirava fundo, a jovem sorria abertamente, pronta para o que se se guiria.

 

Na realidade, conheço-o respondeu Mr. Ishikawa. Frank fitou-o, incrédulo.

 

Bom, não o conheço pessoalmente, mas sei quem é. Jogou durante dois anos numa equipa da segunda divisão e uma época como primeira base nos Philadelphia Phillies. O nome dele é Douglas Blake.

 

O sangue pareceu esvair-se do rosto de Frank Cameron que teve de se apoiar à mesa. Tem a certeza? perguntou. A certeza absoluta respondeu o adepto de basebol

 

Filho da mãe... resmungou Frank entre dentes.

 

E ele disse-nos que não tinha estado no parque naquele dia interveio Len.

 

Frank endireitou-se. Obrigado por se ter apresentado, Mister Ishikawa. Por favor, queira deixar um número de telefone onde possamos encontrá-lo.

 

Mr. Ishikawa olhou desconcertado para Len, como perguntando: "É tudo?", mas o jovem fez-lhe sinal de que tinha acabado, enquanto Frank, voltando para o seu gabinete, vociferava:

 

Jones, telefone ao Pete Millard! Wickes, a sua suspen são terminou, mas não se meta em mais alhadas, ouviu? Pode vir comigo. Vamos fazer uma visita a Mister Douglas Blak

 

Papá! Papá! exclamou de repente Heather. Frank, que começara a vestir o casaco, ergueu a cabeça

 

A filha achava-se ali, à entrada do seu gabinete, acompanhada por outros dois adolescentes. Agora não, Heather. Tenho de tratar de um assunto muito importante.

 

Heather amuou por o pai a dispensar sem sequer a cumprimentar primeiro, mas Richie Talbot, que não tinha quaisquer elos sentimentais com o Frank Cameron, avançou.

 

Penso que o senhor vai ter interesse em ver isto anunciou.

 

Frank franziu o sobrolho quando o rapaz lhe estendeu uma cassete de vídeo.

 

O que é isso? perguntou.

 

Richie Talbot brandiu a cassete no ar como se quisesse que Frank a apanhasse.

 

É um filme muito especial.

 

Não tenho tempo para brincadeiras, rapaz sibilou Frank em tom ameaçador.

 

É uma gravação de Mister Douglas Blake apanhado em flagrante delito.

 

E que queres dizer ao certo com isso?

 

Têm aqui um vídeo? inquiriu Richie com um sorriso. Penso que vai achar o filme muito interessante.

 

Frank Cameron, passando a mão pelo queixo, olhou para Len e Delilah, que se encontravam atrás dos adolescentes.

 

Bom, penso que ainda tenho tempo para ver esse tal filme... declarou por fim.

 

Maddy entrou em casa pela porta dos fundos. De nada lhe servia tentar trabalhar. Estivera no seu estúdio, contemplando os escantilhões, e tentara, em vão, concentrar-se. Na noite anterior, ela e Doug tinham-se deitado a horas diferentes, sem se falarem. Parecera-lhe constrangido, de manhã, e pedira-lhe que lhe desejasse boa sorte para o seu regresso ao liceu. Maddy ainda tentara encontrar palavras de encorajamento, mas tudo em que conseguira pensar fora nos seus dedos, apertando-lhe o pulso, e no brilho de pura maldade nos olhos de Doug

 

Mistress Blake?

 

Maddy sobressaltou-se ao ouvir aquela voz atrás de si. Era Terry Lewis. Bonnie saíra para comprar fraldas e comida de bebé e ao mesmo tempo para ver se encontrava um motel barato.

 

Maddy voltou-se e olhou apreensiva para Terry. Afinal, aquele homem era um ex-presidiário e não lhe agradava saber que estava sozinha em casa com ele.

 

O que foi? perguntou com certa agressividade.

 

O Sean adormeceu no sofá e, como não posso pegar-lhe ao colo, não se importa de ir deitá-lo no berço?

 

Maddy sentiu um grande alívio perante aquele pedido tão banal.

 

Claro que não.

 

Passou à sala de estar seguida por Terry, que ainda tinha dificuldade em andar. Sean dormia a sono solto no sofá. Os seus cabelos macios e curtos estavam húmidos e começavam a encaracolar-se. Quando se debruçou para a frente e lhe pegou, Sean deixou-se cair pesadamente contra o seu peito.

 

Pensei que talvez pudesse descansar um pouco enquanto ele dorme explicou Terry.

 

Boa ideia concordou Maddy.

 

Passou a mão pelas costas do bebé e encaminhou-se para a escada. Carregou o bebé até ao quarto de hóspedes e deitou-o gentilmente no berço. O quarto estava arrumado e as malas feitas. Bonnie encarregara-se de tudo antes de sair. Sean agarrou uma ponta da colcha, mas não acordou.

 

Maddy fechou a porta atrás de si e regressou ao corredor quando de repente Terry a chamou de novo, desta vez com um tom de ansiedade na voz.

 

O que foi? perguntou Maddy, descendo a escada a correr.

 

A polícia está aqui! O que querem eles?

 

Não sei respondeu Maddy sentindo-se invadida por uma súbita angústia.

 

Não quero ter mais problemas com eles acrescentou Terry.

 

Provavelmente é por causa do acidente replicou Maddy tentando tranquilizá-lo.

 

É melhor eu ir para ali teimou Terry, indicando a sala da televisão que ficava ao fundo do vestíbulo.

 

Maddy pouco se importava com o sítio para onde ele ia. Toda a sua atenção se concentrara nas pancadas que alguém dava na sua porta bem como no carro preto e branco que podia ver pela janela. Arranjou-se o melhor que pôde e abriu a porta. Era o chefe Cameron acompanhado por um detective que usava um fato amarrotado e por um agente uniformizado.

 

Chefe Cameron... comentou secamente. Outra vez...

 

Sim, outra vez! bradou Frank empurrando-a e entrando no vestíbulo.

 

Ouça lá! protestou Maddy. Que eu saiba não o convidei a entrar!

 

Onde está o seu marido?

 

Não sei. Provavelmente teve de trabalhar no liceu até mais tarde. Mas penso que é melhor eu telefonar ao meu advogado porque o senhor não pode continuar a perseguir-nos desta maneira. Muito embora o seu tom de voz fosse firme, sentia um nó no estômago. Onde se tinha enfiado Doug! Porque não voltara ainda para casa?

 

Pois acho que faz muito bem porque vai precisar de um advogado replicou Frank Cameron com indisfarçável satisfação.

 

Mas afinal do que se trata? quis saber Maddy.

 

Do assassínio da Rebecca Starnes, para começar. Temos uma testemunha que viu o seu marido a discutir com a jovem, no parque, pouco antes de ela morrer, embora ele tenha afirmado que não esteve com ela no parque naquele dia.

 

Maddy sentiu que o seu coração desfalecia. Talvez fosse outro bluff.

 

E depois? ripostou muito empertigada. É muito provável que a vossa testemunha se tenha enganado, tal como aconteceu com a anterior, tanto quanto me lembro...

 

Semicerrando os olhos, Frank Cameron fitou-a por breves instantes.

 

Ouça, Mistress Blake. Ainda não o sabe, mas vai descobri-lo em breve. Acreditou nas mentiras dele quando se tratou da minha filha, e não a censuro por isso. Mas só quero avisá-la de que tem de se preparar porque a bomba vai rebentar.

 

Mal conseguia conter o júbilo e a sua convicção era assustadora.

 

Entretanto, o detective, com o olhar, passava em revista a casa como se tencionasse arrendá-la. Quanto ao agente uniformizado olhava para Maddy com um misto de desdém e de pena. Maddy sentiu que o pânico se apoderava dela.

 

O meu marido não está tornou a dizer. Agora querem fazer o favor de sair?

 

Nesse mesmo instante o telefone tocou.

 

Talvez seja o seu marido sugeriu em tom desagradável Frank Cameron.

 

Maddy avançou para a consola e levantou o auscultador,

 

Está?

 

Olá, Maddy. Vou a caminho de casa e pensei que podia passar pelo clube de vídeo e trazer um filme. Há algum que queiras ver em particular?

 

Maddy estremeceu ao ouvir a voz do marido, afável, atencioso e disposto a fazer as pazes.

 

Olá, Ruth retorquiu. Quer que passe por aí para ir buscar a Amy?

 

O que se passa? perguntou Doug, alarmado. Só depois inquiriu: A polícia está aí?

 

"Como é que ele adivinhou?", pensou Maddy. Porque esperava a visita deles? O que estava a passar-se?

 

Exactamente respondeu.

 

Oh, meu Deus! exclamou Doug.

 

Onde está? perguntou Maddy. Silêncio do outro lado do fio.

 

Irei buscar a Amy se me disser onde quer encontrar-se comigo.

 

Doug, contudo, mantinha-se em silêncio, tentando reflectir.

 

Não, não, Ruth, faço questão continuou Maddy.

 

Está bem. Encontramo-nos no forte, perto da casa do guarda.

 

O Forte Wynadot era um monumento histórico que no Verão atraía muitos visitantes. Fora cenário de algumas batalhas entre os índios e os colonos. E devia estar deserto, naquela época do ano.

 

Combinado. Encontramo-nos em St. Anne, daqui a uns quinze minutos.

 

Doug desligou sem acrescentar palavra. "Ingrato", pensou Maddy. "Vais ter de me dar algumas respostas antes que a polícia te leve ou o Charles Henson comece a dar-te conselhos sobre o que deves dizer."

 

Pousou o auscultador e regressou ao vestíbulo.

 

Tenho de sair para ir buscar a minha filha.

 

Alguém está a fumar ali dentro observou Frank Cameron.

 

Temos um hóspede explicou Maddy.

 

Pete ordenou Cameron, fazendo sinal ao detective para que revistasse a sala situada ao fundo do vestíbulo.

 

Pete Millard atravessou o vestíbulo e abriu a porta de rompante. Terry Lewis, inclinado para a frente no sofá, fumava nervosamente um cigarro sem filtro. Pete franziu o sobrolho ao deparar com aquele homem de aspecto bizarro, que mais parecia um fora-da-lei.

 

Tudo bem, irmão? cumprimentou Terry, não conseguindo disfarçar a sua ansiedade. Pete não lhe respondeu. Examinou, desconfiado, aquele homem, mas por fim regressou ao vestíbulo.

 

Não é ele anunciou.

 

Tenho de sair insistiu Maddy. A minha filha espera-me.

 

Está bem, vá! ripostou Frank abrindo os braços como para lhe dar passagem. Que não sejamos nós a impedi-la de sair!

 

Maddy pegou no casaco pensando na primeira coisa que tinha de fazer quando estivesse longe dali: telefonar a Ruth Crandall e combinar com ela que iria buscar a filha. Não queria que Ruth aparecesse em sua casa enquanto a polícia ali estivesse; se assim fosse, descobririam que tinha mentido. Tentou raciocinar. Havia uma cabina telefónica na drogaria, ao dobrar da esquina. Podia passar por lá e telefonar a Ruth, a caminho do forte. Perguntou a si mesma se Doug já estaria à sua espera e o que aconteceria se Frank Cameron descobrisse que ela mentira. Poderia prendê-la? Que sabia ele? Onde estava a verdade?

 

Frank Cameron observou-a, sempre desconfiado, enquanto Maddy se arranjava para sair.

 

Vou servir-me do seu telefone declarou, enquanto Maddy verificava se tinha a carteira e as chaves do carro na mala.

 

Esteja à vontade respondeu, desnecessariamente, porque ele já começara a discar um número.

 

Tenho pena de si, sabia? comentou Cameron. Siga o meu conselho e deixe-o. Assim a imundície não a atingirá a si e à menina

 

Maddy chamou Terry no que esperava ser um tom de voz normal.

 

Terry, vou ter de sair para ir buscar a Amy, mas não me demoro.

 

Ignorou a resposta que ele deu entre dentes. Desceu os degraus da entrada onde três agentes conferenciavam entre si. Foi então que um outro carro preto e branco surgiu na rua com a sirene ligada.

 

"Perfeito!", pensou. "Pois que todo o bairro fique a saber!"

 

Então estremeceu. De repente parecia-lhe que toda a gente o saberia, de uma maneira ou de outra. Entrou no automóvel lembrando-se do plano e do trajecto que estabelecera. Primeiro teria de passar pela loja e telefonar a Ruth. Felizmente tinha a sua agenda de telefones e endereços na mala. Depois seguiria para o forte. Consultou o relógio. Estaria lá dentro de quinze minutos, o mais tardar. Dali a quinze minutos Doug teria de lhe dizer tudo porque ela ia obrigá-lo a contar-lhe a verdade.

 

O Forte Wynadot, ou pelo menos o que dele restava, erguia-se no topo de uma colina, a meio de uma reserva natural, nos arredores de Taylorsville. Do alto dos seus baluartes avista-se o rio Hudson e muitas das cenas dos filmes Davy Crockett e Deerslayer desenrolaram-se por entre as suas sebes. Havia ainda canhões pequenos, maciços e pesados, onde as crianças gostavam de se sentar e de onde fingiam disparar.

 

Para os que vinham com uma perspectiva histórica mais restrita havia visitas, durante o Verão, com os guias vestidos de índios para conferir cor local ao ambiente. E o parque, com os seus bosques, era muito concorrido para piqueniques sempre que o tempo o permitia. Contudo, naquele entardecer de um dia cinzento, tanto o forte como o parque estavam desertos. Maddy conduziu lentamente por entre as estradas arborizadas da reserva e parou no parque de estacionamento que ficava na base da colina, onde estacionou ao lado do carro de Doug. Saiu e olhou à sua volta. Nem sinal do marido. Dissera-lhe que estaria ali, mas, como não o viu, Maddy começou a subir a colina.

 

Chegada ao cume tornou a olhar à sua volta. Àquela distância, o rio Hudson parecia um pequeno riacho de reflexos prateados, abrindo caminho por entre um vale onde predominavam o verde e o castanho. Percorreu o perímetro do forte perguntando a si mesma onde estaria Doug e sentindo-se cada vez mais zangada com aquele jogo de escondidas que ele parecia querer jogar.

 

Doug! gritou.

 

Só à terceira chamada obteve resposta.

 

Estou aqui em cima!

 

Erguendo a cabeça, avistou-o num dos cantos do forte, apoiado a um dos visores que, por vinte e cinco cêntimos, permitiam uma vista panorâmica quando alguém queria apreciar melhor os arredores.

 

Desce! exigiu Maddy.

 

Porque não vens tu até cá? replicou Doug. A vista é fabulosa! A escada fica no interior.

 

Não estou com disposição para apreciar a vista! replicou Maddy em tom glacial.

 

Doug lançou um último olhar à paisagem e, com ar resignado, desapareceu para surgir segundos depois no portão do forte. Maddy esperava-o com os braços cruzados.

 

Doug aproximou-se dela e deu-lhe um beijo na face. Depois indicou um banco do parque.

 

Não é melhor sentarmo-nos?

 

Não.

 

Ah, é assim que queres? Está bem.

 

Está bem? Tive de mentir ao chefe da polícia para vir até aqui!

 

O que quer ele?

 

Quer falar contigo.

 

A sério? Porquê?

 

Sabes muito bem porquê! Pára de fingir!

 

Não, não sei! Percebeste? Não faço a menor ideia!

 

É acerca da Rebecca Starnes. Têm uma testemunha que te viu a falar com ela pouco antes de morrer.

 

Isso foi o que o Cameron disse da outra vez zombou Doug. Lembras-te? Mesmo assim é melhor eu telefonar ao Henson. Mais obstáculos que teremos de transpor. Começa a ser ridículo.

 

Se é assim tão ridículo, porque vieste esconder-te aqui? perguntou Maddy.

 

Ouve lá, foste tu que fingiste que eu era a Ruth Crandall quando telefonei. Eu não sabia o que te passara pela cabeça. Não me leves a mal. Foi muito gentil da tua parte tentares proteger-me, no teu papel de esposa leal...

 

Para dar maior ênfase à observação tentou dar uma palmadinha no ombro de Maddy, mas ela recuou.

 

Não te iludas. Não estou a tentar proteger-te. Se estou aqui é porque não quero ser a última a saber o que realmente aconteceu.

 

Sabes muito bem o que aconteceu! protestou Doug. Aquele polícia tresloucado quer vingar-se de mim porque a filha dele revelou a todos a mentirosa que é.

 

Tens a certeza de que é ela que está a mentir? Doug olhou para a mulher com vivo azedume.

 

Já começava a perguntar-me quando chegaria o momento em que te virarias contra mim. Só Deus sabe como é difícil viver contigo. A Santa Madalena em pessoa...

 

De súbito, Maddy teve a certeza de que o seu casamento estava em jogo. Quis ir-se embora e deixá-lo ali. Um casamento era uma interligação complexa de duas vidas. Ela e Doug estavam ligados por milhares de fios diferentes, compostos por palavras, momentos e recordações. Se não lhe fizesse mais perguntas, se continuasse a acreditar nele, talvez os laços que os uniam não se rompessem definitivamente. No seu íntimo, uma voz desesperada implorava-lhe que se agarrasse ao seu casamento e não acendesse o rastilho que destruiria a sua vida. Tinham uma filha, uma casa, uma vida em comum. Se ela parasse a tempo, talvez...

 

Contudo, foi uma sensação momentânea. Quanto tempo mais poderia viver na ignorância? Era impossível fingir ter fé em alguém. E ultimamente reparara em certas coisas no marido que a haviam deixado assustada. Sim, tinha as suas suspeitas. Mais do que isso: graves dúvidas. E o sarcasmo de Doug em nada a ajudava a esquecê-las. Se produzia algum efeito nela, era levá-la a querer continuar.

 

Sabes qual é o teu problema? continuou Doug. Sentes-te frustrada porque o teu querido padre se foi embora e te deixou. Eu nunca teria interferido. Ter-vos-ia deixado levar o vosso romance avante. Sabes porquê? Porque eras muito mais gentil quando podias refugiar-te nos braços dele. Olhando para o marido, Maddy perguntou a si mesma porque fora que um dia o achara atraente. Agora, à luz do crepúsculo, parecia-lhe disforme, sem qualquer expressão.

 

Não te livras de mim recorrendo ao insulto replicou friamente. Quero saber a verdade.

 

Doug lançou-lhe um olhar furioso.

 

Não me surpreende. Há muito sabia que não acreditavas em mim. Estavas desejosa de dizê-lo, portanto vá, diz! Seria verdade? Teria Doug razão? Tentara acreditar nele porque era aquilo que mais queria. Quantas vezes a imagem dele nos braços daquela adolescente insípida lhe viera à mente e ela se esforçara por bani-la do espírito? Só lhe restavam duas hipóteses: acreditar nele ou encarar o facto de que o seu casamento estava a desfazer-se.

 

Meneou a cabeça tristemente.

 

Estás enganado... Quis acreditar em ti, mais do que tudo na vida.

 

Bom, mas querer e acreditar realmente são duas coisas diferentes sibilou Doug.

 

Olhava para as árvores. Os seus olhos deixavam transparecer um estranho fulgor e cruzara os braços. Maddy sentia que o coração lhe ia saltar pela boca, em parte devido à cólera que a invadia, em parte por causa do medo que a assaltava. Medo porque assim que as palavras fossem pronunciadas não haveria ponto de retorno e nunca mais nada seria como dantes. Pensou então em Amy e no que devia fazer pela filha. Doug era o seu pai. Amy tinha o direito de se orgulhar dele e não era justo que viesse a saber que a mãe o deixara. Contudo, de nada lhe serviu pensar na filha porque tinha de viver em paz consigo própria.

 

Acreditei realmente em ti, mas receio que tenha sido um erro da minha parte.

 

Doug olhou-a, ligeiramente surpreendido por compreender que a sua táctica de se mostrar ofendido não resultara. Maddy nunca se mostrara dura e inflexível com ele. Lembrava-se de ter pensado, quando a conhecera, que era uma mulher dócil e submissa. Nunca se teria casado com ela se houvesse conhecido aquele seu lado determinado. Tivera a sua quota-parte de mulheres autoritárias com a mãe, que o marcara para o resto da vida. Infelizmente, ao fim de tantos anos de vida em comum, descobria que Maddy tinha as mesmas tendências que as outras.

 

Era sempre a mesma coisa com as mulheres. De início eram meigas e ansiosas por agradar, mas mais tarde revelavam -se frias e implacáveis. Era a sua natureza. Do que mais gostavam era de castigar um homem.

 

Ali parado, contemplando a mulher, Doug experimentou de repente uma sensação de desprendimento e de liberdade inesperadas. Pouco lhe importava o que ela pensava ou se acreditava ou não nele. Agora já não tinha importância. Sabia que havia lutado até ao fim.

 

O que se passa, Doug? perguntou Maddy.

 

Julgas que mais alguém pensa como tu? Se a nossa própria mulher nos vê dessa maneira, não é de admitir que o resto do mundo faça o mesmo?

 

Maddy suspirou.

 

Não compreendo o que estás a tentar dizer-me, Doug. Doug não retorquiu. Começou a descer a colina em direcção ao seu carro.

 

Espera! gritou Maddy. Não podes deixar-me aqui!

 

Correu atrás do marido aos tropeções enquanto descia a colina. Ao aproximar-se do carro ele voltou-se para a fitar.

 

Vão todos dizer o mesmo... murmurou.

 

Douglas Blake! chamou uma voz atrás deles. Ambos se voltaram sobressaltados. Era o chefe Cameron

 

acompanhado por outros três homens.

 

Maddy e Doug olharam um para o outro.

 

Não me diga que julgou que íamos acreditar naquele seu estratagema de quinta categoria quando nos disse que ia buscar a sua filha... comentou sarcasticamente Frank Cameron. Sabe, não nasci ontem...

 

Maddy, atordoada, viu Frank Cameron pegar em Doug por um braço e conduzi-lo até ao carro-patrulha. Doug olhou para trás.

 

O que foi que fizeste? gritou com voz rouca. Deixaste um rasto de migalhas, como o Pequeno Polegar? Obrigado, pela parte que me toca!

 

Maddy sentiu o rosto em brasa perante aquela acusação.

 

Eu não lhes disse nada, Doug...

 

Ela fingiu estar a falar com a baby-sitter atalhou Frank Cameron. Julgou realmente que éramos assim tão estúpidos?

 

Belo trabalho, Maddy! exclamou Doug.

 

Frank Cameron, que ainda agarrava Doug por um braço, sacudiu-o violentamente.

 

Cala-te, cretino! vociferou.

 

Vá com calma, Frank interveio Pete em voz apaziguadora, olhando à sua volta para se certificar de que ninguém os espiava.

 

Tens cá uma lata para acusar a tua mulher! Ela só queria proteger-te, meu grande filho da puta!

 

É melhor metê-lo no carro tornou a intervir Pete.

 

Maddy, telefona ao Charles Henson e diz-lhe que a polícia voltou a assediar-me!

 

Assediar-te? gritou Frank Cameron fora de si, puxando Doug contra ele de forma que os seus narizes quase se tocassem.

 

Faz muito bem em tratar-me dessa maneira continuou Doug. Quero ter as marcas dos seus dedos nos meus braços para provar que tenho razão.

 

Frank Cameron agarrou-o com mais força.

 

Não te armes em esperto comigo porque estás prestes a perder a jogada. '

 

Continue, vá! insistiu Doug. Violência e brutalidade cometidas por um oficial da polícia. Sabia que é algo que o cidadão comum não aprecia lá muito, porque não quer ser maltratado pelo agente de rua que se cruza no seu caminho?

 

Ele tem razão, Frank interveio Pete, já desesperado, Não permita que esse imbecil arranje forma de escapar

 

O meu marido não tem direito à presença do seu advogado? perguntou Maddy, indo em defesa de Doug, pela força do hábito.

 

O que sabe ela sobre ti? perguntou Frank, não dando ouvidos aos outros. A tua doce esposa, que faz tudo para tentar proteger-te?

 

Não há nada para saber replicou Doug. A sua filha não passa de uma mentirosa.

 

E quanto à Karla Needham? A tua mulher sabe que tentaste violar outra estudante esta tarde?

 

Doug empalideceu.

 

Quem é a Karla Needham? quis saber Maddy, inquieta. Doug?

 

Ninguém. Ele está a tentar confundir-te.

 

Um sorriso de contentamento estampou-se no rosto de Frank Cameron.

 

Apanhei-te, não foi? Nem te apercebeste de que não estavas sozinho esta tarde! Do que está ele a falar, Doug? indagou Maddy, aflita. O marido limitou-se a menear a cabeça.

 

Vai telefonar ao Charles Henson. Ele livrar-me-á desta alcateia de lobos.

 

Por fim, Frank voltou-se para Maddy. Quer mesmo saber? perguntou. É que terei todo o gosto em revelar-lho. Pete, entretanto, aproximou-se do seu chefe e pegou-lhe gentilmente pelo braço.

 

Vamos embora, Frank. Sabe bem que não está a seguir o procedimento normal.

 

Frank, contudo, libertou-se enraivecido.

 

Isto já não é um caso oficial, mas sim um assunto pessoal! Olhou para Maddy com uma expressão que a assustou por ser mais de sofrimento do que de cólera. Ele fez a minha filha passar por mentirosa e, não contente com isso, ainda deu a entender que ela era uma miúda perturbada. Tenho de confessar que nem sempre fui o melhor pai do mundo, mas senti-me ferido. Sofri pela minha filha, mas nada podia fazer. Enquanto você, por seu lado, se esforçava por acreditar nele... Eu percebia como se recusava a acreditar numa só palavra da Heather.

 

O juiz também não acreditou nela lembrou-lhe Maddy.

 

Ele anda atrás das raparigas. É um verdadeiro abutre em busca das suas presas. Na minha opinião andava atrás da Rebecca Starnes, mas ela não quis nada com ele e penso que isso o enfureceu a ponto de matar. E estou convencido de que poderemos prová-lo.

 

Maddy tapou os ouvidos com as mãos.

 

Ele tem razão. O senhor anda a persegui-lo. Tudo isso não passa de especulação...

 

Ah, sim? Pois no que diz respeito à Karla Needham não se trata de pura especulação! ripostou Frank.

 

Mas quem é essa tal Karla Needham? exclamou Maddy, completamente atordoada.

 

Frank fitou-a com o que parecia ser alguma compaixão.

 

A Karla Needham e a Heather conhecem-se praticamente desde que nasceram. Acontece que a Karla e o namorado dela, o Richie Talbot, acreditaram na Heather porque sabiam que ela não estava a mentir e queriam prová-lo.

 

Não lhe dês ouvidos, Maddy! interveio Doug.

Maddy, contudo, olhava fixamente o chefe da polícia perguntando a si mesma o que a esperava.

 

E como podem prová-lo? Foi a palavra da sua filha contra a do Doug.

 

Agora já não, porque temos uma gravação. Esta tarde, o seu marido procurou uma nova presa, uma jovem inocente que o fizesse esquecer os seus problemas. E a Karla Needham estava à mão.

 

É mentira! gritou Doug. Frank voltou-se e fitou-o.

 

Eles entregaram-nos a cassete. O Richie Talbot ainda vai tornar-se um grande fotógrafo. Sabes porquê? Porque na gravação mais pareces uma estrela de cinema, com as tuas manápulas a passar por baixo da saia e da blusa da rapariga

 

Não pode usar essa cassete em tribunal. Foi uma cilada... Maddy, telefona ao Charles e diz-lhe que eles me prenderam sem terem provas concretas...

 

Maddy recuou.

 

Admites que...?

 

Oh, mas posso apresentar a cassete em tribunal retorquiu ao mesmo tempo Frank Cameron. Sabe, na verdade é permitido, desde que não tenha sido a polícia a fazer a gravação.

 

Você está a mentir! bradou Doug. Não tem qualquer autoridade para me prender!

 

Não estamos aqui por causa da gravação. Sabes, temos uma testemunha que te viu a conversar com a Rebecca Starnes pouco antes de ela morrer, no dia em que, segundo declaraste, não te aproximaste sequer do parque. Ora acontece que esse homem é um grande adepto de basebol e se lembrava de ti, da época em que jogaste na primeira divisão.

 

Ao ouvir aquela revelação o rosto de Doug tornou-se impenetrável.

 

Frank, desvairado, empurrou-o com tanta força que Doug perdeu o equilíbrio.

 

Agora, diz-me, meu sacana: onde está o bebé? O que lhe fizeste?

 

O bebé? exclamou Maddy. Não! Espere! Não pode ser!

 

Frank empurrou de novo Doug, que bateu com a cabeça no carro.

 

O que fizeste ao bebé? vociferou o chefe da polícia. A mãe dele não vai aguentar mais a pressão!

 

Maddy, petrificada, fitava o marido.

 

Não fiques aí parada! gritou-lhe Doug. Vai telefonar ao Charles!

 

Doug, tu não... Não, sei que não o farias... De súbito uma ideia hedionda passou-lhe pela cabeça. Sabes onde está aquele bebé?

 

Ah, grande cabra! sibilou Doug. Vê mas é se chamas o meu advogado!

 

Nessa altura, Frank Cameron ergueu o punho, mas Pete Millard agarrou-lhe o braço, tentando evitar que o seu chefe esmurrasse Doug.

 

Não faça isso sussurrou, exasperado. Já disse mais do que devia. Não lhe dê mais armas com que possa defender-se.

 

Maddy afastou-se, curvada para a frente. Frank, por fim, fez sinal a Pete.

 

Mete-o no carro. Depois colocou-se em frente de Maddy e aguardou que ela olhasse para ele. Não vai tê-lo de volta enquanto eu não souber o que aconteceu ao Justin Wallace.

 

Não o quero de volta.

 

Nem vou mentir-lhe e dizer-lhe que lamento ter sido eu a contar-lhe tudo continuou Frank Cameron.

 

Já calculava...

 

Sei que tem uma filha e um dia talvez consiga compreender...

 

Ele nunca faria mal àquele bebé... sussurrou Maddy.

 

Não o conhece. Não sabe do que ele é capaz.

 

Vejo que não mentiu em relação àquela tal gravação...

 

Se quiser, pode vê-la. Sabe, de acordo com o psicólogo da Heather, homens como o seu marido são compulsivos. De certa forma querem ser apanhados em flagrante porque o perigo os excita. Afinal, e bem vistas as coisas, foi mais do que uma simples estupidez da parte dele tentar seduzir a Karla Needham logo no primeiro dia em que retomava as suas funções. Era como se quisesse ser apanhado e, quem sabe, castigado.

 

Maddy limitou-se a assentir, perdida.

 

E terei muito gosto em ser eu a castigá-lo rematou Frank Cameron. Quer que alguém a acompanhe a casa? Parece um pouco trémula.

 

Isto já passa replicou Maddy. Dito isto, avançou para o seu carro e abriu a porta.

 

Talvez seja mais seguro que um de nós a conduza a casa insistiu Frank Cameron.

 

Eu cá me arranjarei. Não me resta alternativa.

 

Frank encolheu os ombros, apercebendo-se da verdade implícita naquelas palavras. Virando as costas, dirigiu-se para o carro-patrulha onde os outros o aguardavam e entrou. Passados poucos minutos os dois carros arrancaram. Maddy caiu de joelhos, sentindo as pedras arranharem-lhe as pernas, e ali ficou durante algum tempo, sem se mexer, olhando sem ver a paisagem que a rodeava.

 

Mamã!

 

Amy avançou para a mãe aos saltos. Pusera por cima das suas roupas o fato de Ginny para a Noite das Bruxas, um vestido de princesa de tafetá azul.

 

Maddy pegou na filha ao colo e enterrou o rosto nos cabelos sedosos da menina.

 

Olá, minha querida saudou, esforçando-se por manter uma voz calma. Está na hora de voltarmos para casa.

 

Olhou então para Ruth Crandall, que começara a pôr a mesa na cozinha.

 

Desculpe ter-me atrasado tanto, Ruth. A Amy portou-se bem?

 

Portou-se como um anjo respondeu Ruth. Eram três, hoje. A Sara Harrison também cá esteve e divertiram-se muito.

 

Ao contemplar o rosto sereno e belo da filha, com os cabelos em desalinho, disfarçada de princesa, Maddy sentiu-se invadida por uma profunda tristeza. A vida de Amy, tal como ela a conhecia, ia mudar. Muito embora o destino do seu pai ainda estivesse em dúvida a nível jurídico, Maddy sabia que em casa nada seria como dantes e que os seus problemas conjugais não tinham solução. "Nunca quis que isto te acontecesse", dirigiu-se mentalmente à filha. "Queria que levasses uma vida feliz, com dois pais que te amassem e se mantivessem unidos. Sinto-me responsável por ter tornado a tua vida um caos."

 

O que tens, mamã? perguntou a menina fazendo beicinho a fim de imitar a expressão triste da mãe. As crianças adivinhavam sempre.

 

Nada. Vamos. Ah, e não te esqueças de tirar o fato da Ginny e de arrumá-lo no quarto dela.

 

Obediente, Amy correu, chamando a amiga. Ruth, que ainda tinha os talheres na mão, parou e fitou Maddy franzindo as sobrancelhas.

 

Aconteceu alguma coisa? perguntou. Está com muito má cara.

 

Maddy meneou a cabeça. Era-lhe impossível adoptar uma expressão de felicidade. Se bem que Ruth e ela não fossem amigas íntimas, tinham passado muito tempo a tomar conta das respectivas filhas, o que criara entre as duas um relacionamento de confiança mútua. No entanto, Maddy sentia vergonha de contar a Ruth o que acontecera por recear que ela não permitisse mais que Amy brincasse com a sua filha. Por outro lado Ruth iria descobri-lo em breve, tal como todos os outros.

 

Receio bem que sim... O Doug...

 

O que lhe aconteceu? perguntou Ruth, e o seu tom de desaprovação levou Maddy a fitá-la surpreendida. Teve mais problemas?

 

E bem graves confessou Maddy.

 

As duas mulheres entreolharam-se. Ruth suspirou e continuou a pôr a mesa.

 

Lamento imenso, Maddy.

 

Não parece surpreendida. Ruth encolheu os ombros.

 

Não sei que problemas ele tem, mas aquela história com a filha do chefe da polícia...

 

Mas ele foi ilibado! protestou Maddy.

 

Bem... oficialmente, sim.

 

O que quer dizer com isso? exclamou Maddy. Ter-me-á passado algo ao lado?

 

É que tenho filhos adolescentes explicou Ruth indicando os lugares na mesa, e eles falam connosco...

 

Quer dizer que falavam sobre o Doug? gritou Maddy. Ruth mostrava-se compungida.

 

A esposa é sempre a última a saber...

 

Não! protestou Maddy. Só depois encarou a outra mulher. Mas nunca me disse nada nem proibiu a Ginny de brincar com a Amy. Pois se foi mesmo buscá-la ao hospital...

 

Gosto muito da Amy. A culpa não é dela, nem tão-pouco sua.

 

Maddy sentou-se, atordoada com aquela conversa.

 

Como pude ser tão cega...? balbuciou.

 

Todos nós nutrimos a esperança de que os nossos problemas acabem por se resolver.

 

No meu caso nunca se resolverão atalhou Maddy. Ruth aproximou-se e passou o braço sobre os ombros de Maddy.

 

Pronto, pronto... Acalme-se. Vai ver que tudo passará. A sua filha é maravilhosa, a Maddy tem talento e de uma maneira ou de outra há-de ultrapassar este momento difícil...

 

Tenho tanta vergonha sussurrou Maddy, destroçada. Parece que toda a gente sabia menos eu...

 

Não se esqueça de que o juiz o ilibou, o que a levou a acreditar nele. Não tem nada que se envergonhar disso. E o que esperam de nós enquanto esposas, Maddy.

 

E entretanto os alunos do liceu sabiam-no melhor do que eu! lamentou-se Maddy.

 

Não perca mais o seu tempo a pensar nisso aconselhou Maddy. Leve a Amy para casa, abrace-a e tente descansar. Desligue o telefone e tranque a porta. Tudo lhe parecerá melhor amanhã.

 

Ao escutar os conselhos da outra mulher, Maddy lembrou-se repentinamente de Terry e de Bonnie, que ainda estavam na sua casa. Talvez já tivessem partido e deixado um bilhete de despedida. "Meu Deus, espero que eles já lá não estejam!", pensou. "Tudo o que quero é ficar sozinha!"

 

Amy regressou à cozinha seguida de Donny, o filho mais velho de Ruth. Maddy não se atreveu a fitá-lo. Afinal era um adolescente e frequentava o liceu onde Doug leccionava. Era impressão sua ou ele olhava para ela com ar compadecido por saber que o seu marido tentava seduzir as alunas do liceu que frequentava?

 

Vamos, Amy murmurou, pegando na filha ao colo. Ruth abriu-lhe a porta.

 

Lembre-se. A Amy é sempre bem-vinda aqui. E a Maddy também.

 

Maddy não lhe respondeu por ter medo de começar a chorar. Abraçou a filha com força e dirigiu-se para o carro.

 

Ao estacionar em frente de sua casa, Maddy viu com algum alívio que a carrinha dos Lewis já lá não se encontrava. "Graças a Deus! Devem ter-se ido embora!", pensou. Bonnie nunca levaria tanto tempo para fazer compras. "Com certeza fizeram as malas e partiram. Por favor, meu Deus, faz que eles se tenham ido embora!", implorou. Não queria que lhe agradecessem ou se despedissem dela. Só desejava ter a sua casa só para si a fim de chorar em paz.

 

Abriu a porta e ajudou Amy a sair.

 

O papá está em casa? perguntou a menina. Maddy sentiu uma dor no peito. Que podia dizer-lhe? Que a polícia suspeitava que o seu pai era um assassino? Ainda lhe custava a crer naquela hipótese, mas por outro lado dava-se conta de que não conhecia Doug. Talvez tivesse razão quando afirmara que Frank Cameron queria vingar-se dele por causa do que se passara com Heather. Talvez a gravação em que ele figurava com Karla nada provasse. Talvez a nova testemunha se tivesse enganado. Talvez, talvez, talvez. Só lhe restava aguardar como os outros. Fartara-se de ser a esposa dedicada e leal. O homem com quem julgava estar casada deixara de existir. Tivesse ou não assassinado Rebecca Starnes, pusera um termo ao seu casamento.

 

E não era apenas por causa das traições e das mentiras. Era por causa daquelas raparigas. Doug não lhe fora apenas infiel. Cometera um acto vil. Aquelas raparigas ainda eram crianças. Um dia Amy seria como elas: vulnerável, insegura e atraente aos olhos dos homens. As adolescentes, naquela idade, deviam confiar nos seus professores. E em vez de ser um modelo a seguir Doug fora um verdadeiro predador.

 

Maddy pensou de novo no seu pai. Ainda se lembrava da reacção das pessoas quando afirmava ser filha dele. Antigos alunos do pai, de ambos os sexos, diziam-lhe então como ele tivera uma influência positiva nas suas vidas e como tinha sorte por ser filha de quem era. Maddy olhou para Amy. Nunca ninguém diria semelhante coisa à menina. Seria uma vergonha para ela ser filha de Douglas Blake. Maddy sentiu intensificar-se o ódio que nutria por Doug, mas não queria que Amy se apercebesse disso. Para a filha tinha de mostrar-se como sempre.

 

Não, o papá não está respondeu. É melhor entrarmos.

 

A menina pareceu satisfeita com aquela resposta vaga. Depois de entrar e fechar a porta atrás de si, Maddy suspirou. Como era bom poder refugiar-se do mundo exterior. A primeira coisa que fez foi desligar o telefone, tal como Ruth a aconselhara a fazer. Tinha telefonado a Charles Henson antes de passar pela casa de Ruth Crandall e não tencionava mover mais um dedo. O advogado parecera-lhe algo distraído, mas concordara em ir ter com Doug à esquadra.

 

Maddy perguntava a si mesma se Charles Henson sabia que Doug era culpado quando o defendera tão habilmente em tribunal. Parecia-lhe ser um homem demasiado honrado para fazer tal coisa, mas nos tempos que corriam os advogados eram tidos como verdadeiros tubarões e talvez Charles Henson, por trás da sua fachada paternalista, não constituísse excepção. Maddy meneou a cabeça como para banir aquela dúvida do seu espírito. Já não lhe importava saber quem acreditava ou não em Doug. O que contava para ela era ter a certeza de que deixara de confiar nele.

 

Descalçou os sapatos, pegou na correspondência e sentou-se para a examinar. Amy, entretanto, já começara a brincar com alguns dos seus brinquedos na sala de estar. O silêncio reinava. "Felizmente foram-se embora", pensou Maddy de novo.

 

Quero o Piu-Piu exclamou a pequenina fazendo beicinho.

 

Maddy olhou em seu redor à procura do boneco. Não estava ali.

 

O Sean deve tê-lo deixado lá em cima. Procuramos o teu boneco mais tarde, está bem?

 

Esperava que Bonnie não tivesse deixado o filho levar o boneco preferido de Amy porque a menina ficaria inconsolável, mas duvidava que fosse esse o caso; Bonnie era uma pessoa meticulosa e devia ter deixado as coisas arrumadas, tal como as encontrara.

 

Vou procurar agora anunciou Amy.

 

Está bem assentiu Maddy, distraída.

 

Amy avançou, decidida, para a escada enquanto Maddy, com uma ruga a vincar-lhe a testa, passava em revista os sobrescritos que ia abrindo. Eram contas e mais contas. Não tinham conseguido saldar as dívidas enquanto Doug estivera suspenso e agora ser-lhe-ia impossível pagá-las. Sentiu-se oprimida e, pela primeira vez, assustada. "Não penses nisso", recriminou-se logo de seguida. "Se pensares sempre na mesma coisa, ainda acabas por enlouquecer. Trata de um problema de cada vez. Que mais podes fazer?"

 

Pôs de parte as contas e tentou folhear um catálogo de roupas para criança, mas largou-o de seguida. Não haveria dinheiro para comprar roupas nem para o resto. E a visão daquelas crianças tão bem vestidas só a fizera sentir-se mais angustiada pela sua filha e por ela própria.

 

Mamã! Vem cá! gritou de súbito Amy do alto da escada, aterrorizada. Maddy levantou-se de um salto e precipitou-se para a escada. A menina indicava o fundo do corredor. Mamã, vem cá ver!

 

Maddy nem parou para perguntar o que era. Podia perceber pela expressão e pelo tom de voz da filha que era alguma coisa grave. Subiu os degraus dois a dois, com uma energia que não pensava ter, e pegou na menina ao colo.

 

O que se passa, minha querida? Magoaste-te?

 

É o papá do Sean! gritou a menina soluçando. O papá de Sean? O que significava aquilo? Ainda estariam ali? Mas ela não vira a carrinha! O que se passava? Correu até ao quarto de hóspedes, mas estacou em frente da porta. Sean, sentado no chão, apenas com uma camisola vestida, agitava um chocalho que devia ter caído do berço. A seu lado, estendido no chão, Terry Lewis agarrava-se ao estômago. Estava muito pálido e por baixo das pálpebras semicerradas os seus olhos pareciam vítreos. Uma fralda molhada e aberta achava-se perto dele.

 

Maddy pousou a filha no chão e ajoelhou-se. Depois passou delicadamente um braço por baixo do pescoço de Terry e ergueu-lhe a cabeça.

 

O que aconteceu? perguntou, aflita. Onde está a Bonnie? O que está a fazer aqui em cima?

 

Olhou em seu redor desvairada. Não havia vestígios de sangue, mas Terry parecia muito mal.

 

Ela... ainda... não voltou... balbuciou Terry. O Sean... estava... a chorar...

 

A voz dele era quase inaudível.

 

Oh, meu Deus! gritou Maddy, apercebendo-se do que acontecera. Subiu a escada e pegou nele para o tirar do berço? Terry teve grande dificuldade em assentir com a cabeça.

 

Oh, meu Deus, lamento imenso. Quando saí esqueci-me...

 

Lembrou-se então de como saíra de rompante, tentando fugir da polícia para encontrar Doug antes que o apanhassem.

 

Lamento imenso... Desculpe... repetiu.

 

Pegou numa almofada e colocou-a por baixo da cabeça de Terry.

 

Não se mexa. Vou telefonar para as emergências. Parece estar muito mal.

 

O homem estendido no chão nem sequer protestou. Quando Maddy se preparava para se levantar ouviu um grito atrás de si. Voltou-se, assustada. Bonnie, à entrada do quarto de hóspedes, com o rosto desfigurado pela inquietação, olhava para o marido, estendido no chão.

 

Terry, Terry! O que aconteceu?

 

A culpa foi minha explicou Maddy. Pensei que não ia demorar e que regressava passado pouco tempo.

 

Bonnie, contudo, não a ouvia.

 

Meu querido! gemeu. Ajoelhou-se junto de Terry, ergueu-lhe a cabeça e, comprimindo-o contra o seu peito, começou a embalá-lo. O que aconteceu, meu amor?

 

Maddy, entretanto, debruçou-se para a frente e passou a mão pelos ombros do pequeno Sean.

 

Ao que parece, o Terry ouviu o Sean chorar, subiu a escada e tirou-o do berço. Vou chamar uma ambulância porque ele parece estar muito mal.

 

Terry olhou para a mulher.

 

Ele não parava de chamar pelo papá sussurrou. Um sorriso rasgou-se no seu rosto pálido e já marcado pela dor.

 

Seu estúpido! gritou Bonnie. Fizeste isso por este miúdo? Ele nem sequer é teu filho! E olha o que aconteceu!

 

Maddy contemplou a outra mulher, debruçada sobre o marido. Depois olhou para Sean, que continuava sentado aos pés do berço. Por momentos pensou ter percebido mal, mas pelo nó que se formou na sua garganta sabia que não se enganara.

 

Nesse mesmo instante, Bonnie endireitou-se e pareceu estacar. Terry, atónito, olhava para ela por entre uma névoa de dor. Quando Bonnie se voltou, Maddy pensou que nunca vira tanta frieza num rosto humano.

 

Maddy ainda fingiu não ter ouvido o que Bonnie deixara escapar, mas de nada lhe serviu. Bonnie apercebera-se imediatamente do seu erro e ambas sabiam o que aquilo significava.

 

O meu filho... gemeu Terry, enquanto Bonnie e Maddy se fitavam uma à outra, olhos nos olhos.

 

O locutor anunciou o dueto do segundo acto de Manon na estação de rádio de música clássica que Nick sintonizara. Era um dos seus favoritos e o trecho que iam passar, interpretado por Monserrat Caballé e Plácido Domingo, era para ele uma das melhores versões. As recriminações iradas de Dês Grieux à vaidosa e fútil Manon, que preterira o seu amor em favor da riqueza, enquanto por seu lado Manon lhe suplicava, angustiada, que lhe desse uma segunda oportunidade comoviam-no sempre profundamente. Seguia-se o final, com a declaração de amor mútua, intensa e apaixonada. Era uma ária que comovia sempre Nick. No entanto, sentiu-se tentado a desligar o rádio. Não passava de uma fantasia. Na vida real as pessoas não abdicavam do luxo e do conforto por amor. Faziam as suas opções e raramente confessavam os seus erros. Estendeu a mão para o interruptor, mas a seguir mudou de ideias e colocou-a novamente sobre o volante. Não conseguia resistir à beleza daquela ária e estava disposto a deixar-se levar pelo sofrimento que lhe causava. As gloriosas vozes elevaram-se no interior do carro. Nick deixou-se invadir pela música, que depressa dissipou o seu momentâneo cinismo.

 

"Desde quando me tornei tão céptico e amargo?", perguntou a si mesmo depois de soarem os últimos acordes. Vira uma grande deslealdade e infidelidade nos casais que o procuravam, queixando-se do modo como a sua vida em comum se havia tornado vazia. Por outro lado, também testemunhara a suprema devoção dos amantes. Conhecera casais que permaneciam unidos durante a doença e a tragédia. Sabia que o amor verdadeiro e eterno existia e era uma chama que nunca se apagava, apesar das graves vicissitudes da vida. "Só porque o teu amor não é correspondido não deves tornar-te insensível", concluiu. Sentia-se contente por haver ouvido aquele trecho. Não devia deixar de ter sentimentos só porque nunca teria o seu amor para si.

 

Seguia viagem à luz do crepúsculo. Sentia-se cansado e procurava uma localidade onde pernoitar. Os dias tinham-se tornado mais curtos e não estava habituado a conduzir durante horas seguidas. Então, como que em resposta aos seus pensamentos, avistou um sinal. Indicava que a cidade de Gravesport ficava a quinze quilómetros. Se bem que o nome lhe fosse familiar, precisou de algum tempo para o identificar. Até que por fim se lembrou. Fora naquela cidade que Bonnie Lewis trabalhara como bibliotecária. Pensou em Bonnie e em Terry, cuja história de amor era única e quase impossível, mas que mesmo assim terminara em casamento. Não havia esposa mais devotada do que Bonnie: fizera todas aquelas viagens até Taylorsville para apoiar Terry apesar de a sua opção a ter exposto à desaprovação geral. Não se podia negar que aqueles dois se tinham conhecido em circunstâncias extraordinárias, mas agora eram uma família.

 

Fora realmente lamentável que tivessem sofrido um acidente de carro no dia em que Terry fora libertado, mas por outro lado tinham tido a sorte de encontrar Maddy. Se bem que de certa forma o casal parecesse não ter mais ninguém com quem contar. Bonnie era uma mulher demasiado orgulhosa para admitir que precisava de ajuda. Nick deu consigo a pensar se alguém, sabendo das dificuldades por que ela estava a passar, se sentiria disposto a ajudá-la. "Talvez vá até à biblioteca onde ela trabalhou. Não me custa nada tentar descobrir se algum conhecido da Bonnie gostaria de prestar-lhe auxílio."

 

Passados poucos minutos entrou em Gravesport, contente por sair finalmente da auto-estrada. Seguiu até ao centro da cidade e atravessou lentamente a rua principal. Num edifício de tijolos muito velho havia um cartaz que anunciava: "Hotel." Nick parou e entrou.

 

O átrio era mal iluminado e despojado de qualquer decoração, à excepção do papel de parede garrido com motivos de carros de bombeiros antigos sobre fundo castanho-claro. Perto da janela virada para a rua havia duas cadeiras à volta de uma mesa baixa, com um arranjo de flores de plástico, poeirento, e de um sortido de revistas como o Reader's Digest e a Yankee. Nick dirigiu-se à recepção e olhou em seu redor. Não havia vivalma. A única indicação de que estava num hotel era-lhe dada pelo chaveiro com vários compartimentos.

 

Está alguém aqui? chamou.

 

Uma mulher anafada e já de alguma idade surgiu de detrás de um cortinado e examinou o recém-chegado com certa desconfiança.

 

Tem um quarto livre?

 

Depois de anuir com um gesto de cabeça, a mulher estendeu-lhe o livro de hóspedes e uma caneta. Nick preencheu a ficha enquanto a mulher pegava numa chave e lha entregava. Nick sabia que as gentes do Maine eram pouco faladoras e aparentemente aquela mulher não constituía a excepção à regra.

 

Depois de estudar a assinatura de Nick, comentou por fim:

 

Quanto tempo pensa ficar?

 

Só esta noite.

 

Então são vinte e cinco dólares adiantados. Nick contou o dinheiro e deu-lho.

 

Pode recomendar-me um bom restaurante?

 

Há um café ali, à esquina da rua.

 

Obrigado.

 

O seu quarto é o número um.

 

"Serei o único hóspede aqui?", perguntou a si próprio enquanto subia a escada carregando o seu saco de viagem. "Terão clientes suficientes para que o quarto número dois seja ocupado?" Destrancou a porta, abriu-a e entrou. O quarto era asseado e confortável, se bem que, tal como com o átrio, ninguém houvesse perdido tempo com frivolidades na decoração. A cama de casal tinha um colchão já velho e uma manta verde, a casa de banho era pequena e antiga e duas litografias numeradas pendiam, na sua esplêndida solidão, por cima da cama e na parede em frente. "Serve-me", concluiu Nick. Desligou a luz da mesa-de-cabeceira e saiu.

 

De volta ao átrio verificou que a mulher desaparecera novamente. Nick saiu para a rua e olhou à sua volta. Viu o cartaz luminoso do café e dirigiu-se para lá. Quando dobrou a esquina reparou que a biblioteca pública, um edifício baixo de fachada branca situado do outro lado, ainda estava aberta. Ainda hesitou, mas por fim atravessou a rua.

 

A biblioteca era de dimensões razoáveis para uma cidade como aquela e Nick tentou imaginar Bonnie a trabalhar ali todos os dias. Depois passou uma vista de olhos pelas prateleiras, se bem que estivesse mais interessado no local em si do que nos livros. Além de duas adolescentes, que ocupavam uma mesa e se riam baixinho, não havia mais ninguém. Atrás do balcão estava sentada uma mulher de idade muito avançada cuja aparência era tão frágil que se tinha a sensação de que, se lhe tocassem, se desfaria em pó. Ergueu a cabeça lançando um olhar de desaprovação às duas adolescentes, que imediatamente pararam de rir para recomeçar pouco depois. Nick avançou para o balcão e sorriu, mas a velhota não lhe correspondeu.

 

Sim? proferiu.

 

Boa noite. Eu sou... Estou de passagem pela cidade por uma noite. Tenho uma... uma amiga que costumava trabalhar aqui. Bonnie Lewis. O nome de solteira dela era...

 

Nolan atalhou a velhota secamente. Não parecia surpreendida ou sequer interessada pela introdução de Nick. Não perguntou tão-pouco pela saúde de Bonnie, o que revelava que não devia estar interessada em ajudá-la.

 

É isso mesmo. Nolan observou Nick. E pensava... se ela ainda tem familiares aqui...

 

A Bonnie? Não, já não tem ninguém. Viveu com a mãe até ela morrer, há uns anos atrás.

 

E não havia mais ninguém?

 

A velhota olhou de relance para as adolescentes que tinham recomeçado a rir.

 

Meninas! Não se esqueçam de que estão numa biblioteca!

 

Desculpe, Miss Carr respondeu uma das raparigas, debruçando-se de imediato sobre o livro que consultava.

 

Meneando a cabeça, a velhota retomou a conversa.

 

Depois da morte da mãe, a Bonnie alugou um quarto numa casa em Maple Street. Quer que procure o endereço?

 

Não se importa? Ficava-lhe muito grato.

 

Não me importo nada respondeu Miss Carr num tom que significava que era essa a sua ocupação. Folheou meticulosamente uma pasta. Não admirava que Bonnie tivesse saído dali. A sua antiga colega nem se dignara perguntar: "E como é que ela está? E o bebé?" Aquelas pessoas deviam ter ficado escandalizadas quando Bonnie, já grávida, se casara com um homem que cumpria pena perpétua. Ali, em Gravesport, os habitantes não deviam ter um espírito aberto e tolerante.

 

Miss Carr entregou a Nick um cartão onde escrevera o endereço numa caligrafia impecável.

 

Aqui tem anunciou. Dito isto consultou o relógio. Faltam quinze minutos, meninas!

 

Obrigado agradeceu Nick.

 

Ainda esperou que a velhota acrescentasse alguma coisa, mas nada; para ela, obviamente, a conversa com ele terminara. De regresso à rua, Nick sentiu-se aliviado. Leu o endereço, procurando a luz de um candeeiro. Podia ler-se: "Bonnie Nolan", mas o apelido fora riscado e o nome "Lewis" dactilografado por cima. Por baixo lia-se: A/C Hartwell, Maple Street, 12."

 

Nick suspirou. Duvidava de que tivesse mais sorte ao visitar a antiga residência de Bonnie Lewis. A pessoa que ali morava não era parente de Bonnie, mas sim alguém com quem ela coabitara. E, se Miss Carr lhe servisse de referência, então poucos deviam ser aqueles que sentiam a falta de Bonnie.

 

Decidindo-se a jantar antes de passar pela casa dos Hartwell, guardou o cartão no bolso e atravessou a rua em direcção ao café.

 

Alisando o cabelo, Doug seguiu Charles Henson quando este saiu do elevador e atravessou o átrio do tribunal de Taylorsville. Só conseguiu alcançar o advogado quando saíram para a rua, onde os candeeiros difundiam uma pálida luminosidade ao cair da noite outonal.

 

Charles afirmou, estendendo a mão ao advogado, foi formidável, mais uma vez. Tinham acabado de falar com o promotor público, que tentara convencê-los a que Doug se declarasse culpado de uma acusação menos grave do que a do assassínio de Rebecca Starnes. Charles, contudo, rejeitara aquela proposta, insistindo que ainda não havia provas suficientes para acusar Doug e muito menos para levá-lo a tribunal. E se passássemos por um bar e tomássemos uma bebida?

 

Voltando-se, Charles Henson agarrou a pega da sua pasta com as duas mãos no esforço evidente de se esquivar ao aperto de mão.

 

Obrigado, mas quero regressar para junto da minha mulher. Hoje é um dia muito importante para nós. Para ser franco, hesitei em vir até cá, mas dada a gravidade das acusações...

 

Doug não perguntou que ocasião especial celebravam os Henson, por estar demasiado preocupado com a sua situação.

 

Bom, talvez fique para outra altura... Charles lançou-lhe um olhar frio.

 

Esta guerra mal começou, Doug, como espero que tenha compreendido. Ganhou esta batalha, mas ainda falta muito para o final.

 

Tenho toda a confiança em si.

 

Doug, tem direito ao melhor representante jurídico e não me parece que eu seja o homem indicado.

 

Doug fitou-o, atónito.

 

Um momento! Está a querer dizer-me que vai abandonar-me? Ou está preocupado por eu não poder pagar-lhe? Porque, se for isso...

 

Charles meneou a cabeça.

 

Posso recomendar-lhe alguns colegas meus que...

 

Não preciso das suas recomendações. Quero-o apenas a si e a mais ninguém!

 

Lamento, mas é impossível. Tomei a minha decisão, enquanto estávamos lá dentro. Ouça, este caso vai exigir uma grande disponibilidade de tempo. Eles não vão baixar os braços. O chefe Cameron não descansará enquanto não o vir na prisão, Doug. Tudo isso vai exigir muito tempo e dedicação de um bom advogado e neste momento tenho assuntos mais urgentes na minha vida pessoal. Não posso envolver-me num caso como este. Aliás, penso reduzir a minha clientela e não aceitar mais casos tão complicados...

 

Mas eu estou inocente! protestou Doug. Não matei aquela rapariga! E nada sei sobre o bebé desaparecido. é um absurdo. Não podem provar nada porque não fui eu, mas mesmo assim quero que me defenda.

 

Charles examinou-o por entre a fraca luminosidade dos candeeiros de rua com um mal disfarçado desdém.

 

Diga-me uma coisa: está mesmo inocente, Doug?

 

Claro que estou! Onde quer chegar?

 

Depois de ter visto aquela gravação no gabinete do promotor público penso que é um pouco insensato da sua parte clamar inocência.

 

Mas não devia preocupar-se exclusivamente com o crime em si?

 

Charles deitou um olhar de relance ao grande relógio que havia na cúpula do tribunal.

 

Por vezes... acontecem-nos certas coisas na vida que nos fazem lembrar a existência de valores que nada têm a ver com a lei. E neste momento é importante para mim ficar do lado dos anjos.

 

Como se atreve a mostrar-se tão altivo? Não passa de um vulgar mercenário! Nem sequer devia estar a julgar-me! protestou Doug, indignado.

 

Tem toda a razão. Isso não me diz respeito. Pense em tudo isto como um não peremptório, mas sem qualquer motivo específico. Sendo assim, é inútil prosseguirmos com esta conversa porque nada mais tenho a dizer-lhe. Boa noite.

 

Sem sequer esperar pela resposta, Charles virou as costas e dirigiu-se ao parque de estacionamento. Doug manteve-se em frente do tribunal vendo-o partir e sentindo-se paralisado. Precisara de toda a indignação que conseguira arranjar para tentar convencer Charles Henson a manter-se a seu lado, mas não resultara.

 

Quando finalmente conseguiu mexer as pernas, dirigiu-se ao seu carro, entrou e ligou o motor. Contudo, ao alcançar a saída do parque de estacionamento, hesitou. Para onde podia ir? Tentou imaginar-se a regressar a casa, mas ao lembrar-se da expressão de Maddy naquela mesma tarde estremeceu. Provavelmente ela já trocara a fechadura. Amy ficaria contente por vê-lo, mas ele não se sentia com disposição para lhe prestar a atenção devida. As crianças eram tão cansativas e exigentes. Sabia que Maddy queria mais filhos, mas não percebia porquê. Não, não podia voltar para casa.

 

Virou na direcção oposta tentando pensar num amigo que pudesse visitar, mas por muito que se esforçasse não se lembrava de nenhum. Não sabia quando se tornara tão solitário. Por fim pensou em ir até a um bar. Por muito que apreciasse o esquecimento que alguns copos lhe trariam, não queria envolver-se em conversas de loucos com um estranho.

 

Se ao menos pudesse ter a certeza de que não encontraria alguém conhecido e de que a conversa se resumiria ao futebol ou ao basebol, tudo correria às mil maravilhas. Mas... e se uma mulher se sentasse a seu lado ao balcão? As mulheres queriam invariavelmente falar de problemas pessoais. E que diria se lhe fizessem perguntas sobre a sua vida pessoal? Que era um homem que conhecera em tempos idos a fama e a fortuna, mas que agora tinha demasiadas dívidas para poder pagar os honorários do seu advogado? Que estava na iminência de perder o emprego por causa de um estúpido regulamento sobre as relações entre os alunos e os professores? Que era suspeito de ter assassinado alguém? Com as suas confissões deixaria vazios os balcões de todos os bares. Mesmo assim, a ideia de beber um copo seduzia-o. Seguiu até a uma loja que vendia bebidas, parou e entrou.

 

A loja não estava cheia, mas também não estava vazia. Doug hesitou durante alguns segundos até que por fim pegou numa garrafa de vodca. O empregado enfiou-a num saco de papel e Doug levou-a até ao carro. E agora? O que se seguiria? Uma nuvem de desespero envolveu-o enquanto olhava para o saco pousado no lugar do passageiro. Aquela garrafa era a sua companheira. Mas para onde podia ir beber em paz? Ainda pensou no Parque Binney, mas depressa rejeitou aquela ideia por lhe parecer absurda. Do que menos precisava naquele momento era de se lembrar de tudo o que lhe acontecera só porque se sentara num banco e passara algum tempo com uma bonita rapariga. Que mundo era aquele onde um tal acto era tido como um crime? Tinham conversado e partilhado um pacote de bolachas, mas depois ela levantara-se e partira com o bebé. Sim, ele pousara um braço sobre o espaldar do banco e tocara-lhe no ombro. Mas não passara dali. Fora por acaso por culpa dele que a rapariga havia sido assassinada? Se não tivesse ficado tão nervosa quando ele a tocara ao de leve no ombro, talvez ainda estivesse viva. Mas não; levantara-se de um salto, como se o banco estivesse a arder, e deixara-o sozinho e envergonhado. E afinal o que ele quisera fora apenas conversar, procurando um pouco de calor humano.

 

Doug ligou o motor. O Parque Binney estava fora de questão. Talvez o forte. Sempre podia lá voltar. Tê-lo-ia apenas para si durante toda a noite. Por vezes os miúdos iam até ao forte, de noite, mas não o incomodariam. Não era o refúgio ideal, mas Doug não se lembrava de mais nenhum.

 

Ligou o rádio e arrancou. Planeara beber um gole apenas quando chegasse ao seu destino, mas sentia uma sede invulgar. Não tinha por hábito beber, mas naquele momento tudo o que almejava era esquecer. Ainda pensou de novo em voltar para casa e tentar levar Maddy a ficar do seu lado. Procurar fazer as pazes. Todavia, quase teve vontade de rir perante aquela ideia. Mesmo que ela lhe perdoasse, haveria outras exigências. Além do mais, não se sentia na disposição de se ajoelhar à frente dela.

 

De certa forma, a culpa também era de Maddy, não em relação ao seguro do carro, porque ele se portara como um imbecil, mas, se cometera tal imprudência, fora apenas porque tentara poupar algum dinheiro. E, quanto ao acidente, era algo que podia acontecer a qualquer um. Mas, se continuava a pensar que o próprio marido era um assassino, isso punha a nu mais a personalidade dela do que a dele. Afinal era de esperar que uma mulher acreditasse no marido. A única razão que o levara a procurar raparigas novas fora Maddy ter perdido todo o encanto. Havia sido algo gradual, depois do nascimento do bebé. Ela passara a ser... tão maternal, tão velha e tão séria, com as suas inquietações sobre o futuro... Enquanto ele precisava de alguém que o ajudasse a esquecer tudo o resto e não de uma mulher autoritária. Começara com a compra da casa, depois fora o desejo dela de ter mais filhos e por fim pedira-lhe que fizesse parte da associação de pais. Se o sexo já não era fonte de diversão e de esquecimento, para que servíaí Doug tornou a menear a cabeça. Maddy nunca o compreendera. Por que motivo achara uma boa ideia casar-se e constituir família? Provavelmente porque sentira a pressão da sociedade. Pressões e mais pressões. Estava farto de todas as pressões que lhe eram impostas.

 

Pegou no saco de papel, abriu a garrafa, olhou à sua volta para se certificar de que ninguém o observava e bebeu um trago.

 

O líquido deslizou-lhe pela garganta como um sedativo tépido e sentiu imediatamente dissipar-se a pressão que o oprimia. Nunca apreciara o gosto do álcool, mas não podia negar que trazia algum alívio. "Assim, sim! Já me sinto melhor!", pensou.

 

Então conduziu em direcção ao forte.

 

Não deixava de ser estranho, pensou Maddy, como certos momentos pareciam perdurar e certas palavras ficar suspensas no ar enquanto se analisavam todas as possibilidades e se tentava avaliar o impacto de cada resposta que proporcionasse uma melhor hipótese de sobrevivência. Como se tivesse sido apanhada numa avalancha ou tragada por uma onda gigantesca, sentia a adrenalina correr-lhe no sangue. Tinha de fazer a escolha acertada quanto antes. O seu processo mental demorou uma fracção de segundo que lhe pareceu infinito, o tempo de uma vida inteira em câmara lenta.

 

"A minha melhor hipótese", pensou, "é fingir que não ouvi. Convencer-me de que nada ouvi ou de que interpretei mal. O mais importante é levá-la a acreditar em mim."

 

Tentou que o seu corpo seguisse os seus pensamentos e não os seus sentimentos. Tinha de manter uma expressão impassível e um tom de voz calmo e evitar que as mãos lhe tremessem enquanto olhava para Bonnie com complacência.

 

Vou chamar uma ambulância. Ele precisa de assistência médica imediata.

 

Todavia, quando se preparava para sair do quarto, Bonnie levantou-se e agarrou-a por um braço.

 

Não vai fazer nenhum telefonema!

 

Largue a minha mamã! gritou a pequena Amy.

 

Cala-te! sibilou Bonnie.

 

Mamã, porque é que ela te está a agarrar?

 

Está tudo bem, Amy explicou Maddy. Sentia o medo invadi-la, mas não podia deixá-lo transparecer, para o bem de Amy, para o seu e para o bem do bebé. Largue-me. Está a assustar a Amy.

 

Quero lá saber! ripostou Bonnie. Agora vai passar a fazer o que eu lhe disser!

 

Maddy olhou para Sean, sentado no chão.

 

Mas porque está a agir desta maneira, Bonnie? perguntou.

 

Não se arme em parva. Sei muito bem que ouviu.

 

Ouvir? Mas ouvir o quê? Do que é que está a falar?

 

Está a irritar-me... ripostou a outra, que parecia tremer. Bonnie tentava analisar a situação, desejosa de acreditar, tal como Maddy, que o seu segredo estava a salvo. Sean, entretanto, começou a chorar e Maddy olhou novamente para o bebé enquanto Bonnie mantinha o seu olhar fixo nela.

 

Não é melhor encarregar-se do bebé? sugeriu Maddy.

 

Pare de me dizer como é que devo tratar o meu filho! Maddy sentiu uma súbita esperança. Estava a resultar.

 

Bonnie regressara ao seu mundo de fantasia.

 

Desculpe... Tenho de confessar que é um mau hábito da minha parte...

 

De súbito, uma voz débil interveio:

 

Bonnie, porque disseste aquilo? Porque disseste que ele não era o nosso filho?

 

As duas mulheres voltaram-se. Terry conseguira sentar-se e apoiara as costas à cómoda. Enquanto Bonnie observava o marido, Maddy sentiu a sua última réstia de esperança desvanecer-se. De nada lhe valia. Bonnie não era actriz nem sequer uma mulher subtil. Era alguém com mão pesada, de que devia ter-se servido para desferir uma pancada na cabeça de Rebecca Starnes a fim de lhe tirar o bebé. Só de pensar na rapariga, tão jovem e inocente, trabalhando como baby-sitter para ganhar uns cêntimos sem suspeitar de que isso a levaria à morte, Maddy sentia-se arrasada.

 

Mas por que razão fazia Terry aquelas perguntas? Não estivera envolvido no sequestro? Aparentemente, Terry estava convencido de que aquele bebé era seu filho. Maddy lembrou-se de repente das palavras do padre Nick que a tinham levado a crer que os Lewis eram boas pessoas. Ele dissera que baptizara Sean e o padre Nick nunca mentiria em relação a um assunto tão sério.

 

Nesse caso não podia ser Justin Wallace! Ou podia? Maddy sentiu a esperança renascer no seu íntimo enquanto analisava as outras hipóteses. Talvez Bonnie tivesse adoptado uma criança, mas nada tivesse dito ao marido, o que não era um pecado terrível, bem vistas as coisas. Talvez discutissem um com o outro, acabando por fazer as pazes, e tudo regressasse à normalidade.

 

Bonnie? insistiu Terry, mas logo de seguida deixou escapar um grito de dor. Apesar do sofrimento, parecia determinado a obter uma resposta da mulher. Porque disseste aquilo? O Sean é o nosso filho.

 

Bonnie, de olhos esbugalhados, fixava Terry.

 

Saiu-me, mas não era minha intenção... Terry, então, tentou pôr-se de pé.

 

Foste para a cama com outro? Bonnie meneou a cabeça, assustada.

 

Não, Terry. Nunca! protestou. Só contigo! Na sua ansiedade, largou Maddy e dirigiu-se para junto do marido. Nunca faria tal coisa, meu querido. Juro.

 

Então porque disseste aquilo? murmurou Terry.

 

Foi um erro respondeu Bonnie, e parecia genuinamente arrependida. Nem sei o que me levou a dizer tamanho disparate.

 

Maddy esfregou o braço. Tinha a certeza de que Bonnie estava a mentir. Nenhuma mãe, por muito insensível que fosse, rejeitaria o seu próprio filho. Não fora um erro, como Bonnie pretendia, mas Terry ignorava-o.

 

Não me mintas ameaçou Terry e pela primeira vez Maddy tomou consciência da ameaça que representava aquele homem que passara vários anos na prisão. Ouvi o que disseste.

 

Bonnie interveio Maddy num tom de voz tão afável quanto possível. Adoptou o Sean? Ou era órfão e está a tomar conta dele enquanto não o adopta?

 

Virando-se, Bonnie lançou-lhe um olhar fulminante.

 

Não se meta nisto!

 

Sean chorava desalmadamente e Maddy teve de conter-se para não lhe pegar ao colo. Quanto a Amy, muito pálida, agarrara-se à perna da mãe e mantinha-se calada.

 

Mas ela estava grávida... retomou Terry. Foi por isso que casámos.

 

Não foi esse o único motivo protestou Bonnie, magoada.

 

Não faça esforços interrompeu Maddy para desviar a atenção dele porque, pela parte que lhe tocava, não queria ouvir o que ia seguir-se. Quanto mais soubesse, mais perigo correria. Tem de ir para o hospital imediatamente. Poderão falar sobre isso mais tarde.

 

Terry, contudo, não lhe deu ouvidos.

 

Disseste-me que estavas grávida e pensei que era a vontade de Deus que eu casasse com a mulher que carregava o meu filho no seu ventre.

 

Não digas isso. Estávamos apaixonados murmurou Bonnie com os olhos subitamente marejados de lágrimas.

 

Não sejas infantil, Bonnie. Sabias quais eram os meus sentimentos. Escrevi-te muitas cartas em que te falava do meu novo objectivo de seguir o caminho de Deus.

 

Mas assinavas sempre: "Com todo o meu amor!" gemeu Bonnie.

 

E agora dizes que não é o meu filho? continuou Terry, fechando os olhos pelas dores que sentia.

 

Maddy sabia que ele tinha razão e que Bonnie escondia uma mentira, mas ignorava porquê e preferia não o saber. Tudo o que desejava era ver aquela gente fora da sua casa. E a sua oportunidade chegara. Era agora ou nunca.

 

Bonnie, isso não pode esperar? disse em tom firme. O Terry precisa de um médico e já!

 

Bonnie, no entanto, nem sequer se deu ao trabalho de a fitar. Agarrou no marido por um braço e começou a abaná-lo.

 

Disseste que me amavas. Prometeste que ficaríamos juntos para sempre e que não era apenas por causa do bebé, mas sim porque me amavas, a mim e a mais ninguém, e eu sabia que era verdade!

 

Terry não abriu os olhos.

 

Se ele não é o meu filho, então não és a minha mulher sibilou.

 

Logo de seguida teve de apoiar-se à cómoda e voltar a sentar-se no chão. Bonnie soluçava.

 

Estás a ser injusto!

 

Maddy quase sentiu pena dela, tão grande era o seu desespero. Aquela mulher feia e solitária quisera acreditar na história da Gata Borralheira. Aferrara-se àquela fantasia e agora a verdade atingia-a como uma bofetada.

 

Amy, sempre agarrada à perna da mãe, perguntou baixinho:

 

Porque está ela a chorar, mamã?

 

Porque está aborrecida, minha querida. Agora vai para o teu quarto.

 

E porque é que o Sean está a chorar?

 

Eles têm de partir explicou Maddy enquanto pensava rapidamente numa resposta plausível, e ele quer ficar.

 

Mas não pode levar o Piu-Piu anunciou a menina, determinada.

 

Está descansada que ele não vai levar o Piu-Piu.

 

Vai, vai! O Piu-Piu está no saco. Eu vi.

 

Amy, pára! ordenou Maddy.

 

Mas ele não pode levá-lo! teimou a menina batendo com os pés no chão. Eu vou buscá-lo. Está ali, que eu vi

 

O saco de fraldas com que Bonnie andava sempre achava-se no chão, no local onde o pousara ao entrar. A pata do boneco saia pelo fecho. E antes que Maddy se apercebesse do que a filha fazia a menina avançou para o saco para recuperar o seu boneco.

 

Amy, não faças isso! avisou Maddy em tom autoritário, mas a pequenita já agarrara na pata do boneco e tentava puxá-lo. Quando a cabeça amarela do boneco surgiu, uma mancha vermelha despertou a atenção de Maddy. Já a vira nas notícias por mais de uma vez. Sempre que mostravam a fotografia de Justin Wallace, com os seus cabelos encaracolados, mencionavam que o bebé usava uma camisola de lã, com um dálmata bordado na parte da frente. Amy soltou um gritInho triunfante e abraçou-se ao seu boneco enquanto Maddy olhava fixamente a camisola vermelha que caíra no chão. Ao reparar na expressão de Maddy, Bonnie baixou o olhar e viu a camisola que tão bem guardara no saco de fraldas. Suspirou e encarou Maddy. Devia tê-la deitado fora, mas estava como nova... Maddy fingiu que continuava a não compreender.

 

Não me parece que essa vossa discussão vos leve a qualquer lado. Vou levar a minha filha daqui e quando eu regressar espero que já cá não estejam. Não me interessa saber para onde vão ou o que farão. Só quero que saiam da minha casa.

 

Nem pensar! vociferou Bonnie.

 

Essa discussão só a vocês diz respeito replicou Maddy, fingindo mostrar-se farta. Não tenho nada a ver com isso.

 

Deixa Mistress Blake em paz ordenou Terry, ainda sentado no chão. A culpa não é dela.

 

Ela sabe de mais ripostou Bonnie.

 

Maddy experimentou uma sensação súbita de pânico.

 

Eu nada sei nem a vossa vida pessoal me interessa.

 

Havia traços de rímel no rosto de Bonnie, o que surpreendeu Maddy, que pensava que ela não se maquilhava. Dava-se agora conta de que nunca olhara atentamente para a outra mulher, mas Bonnie era o tipo de pessoa que passava completamente despercebida até ser tarde de mais.

 

Sabe quem ele é, não é verdade? proferiu friamente Bonnie, indicando Sean com a cabeça.

 

Era óbvio que Maddy sabia. Apesar do que o padre Nick lhe dissera, só restava uma hipótese. Olhou para o bebé, que chorava sentado no chão. O que significava que a mulher postada à sua frente, com uma camisola de gola alta sem forma e saia cinzenta, era uma assassina.

 

Maddy sentiu dificuldade em respirar, como se tivesse acabado de correr. Como se houvesse sido forçada a fugir e se encontrasse agora num beco sem saída. Não lhe restava alternativa: tinha de encarar os factos. De repente, como num momento de acalmia no caos que a rodeava, compreendeu que não poderia ignorar mais a verdadeira identidade daquele bebé, tal como não podia ficar insensível ao seu choro ou a todas as coisas horríveis que haviam acontecido.

 

Avançou para o bebé, que tinha o rosto vermelho e o nariz ranhoso de tanto chorar. Parecia-lhe desumano deixá-lo ali, sentado no chão. Nenhum deles ultrapassaria aquela situação sem ficar marcado. O mínimo que podia fazer era pegar no bebé ao colo. Baixou-se e, tomando-o nos seus braços, embalou-o. Depois, limpou-lhe o nariz, beijou-o na cabeça e apertou-o contra o seu peito.

 

Não chores, Justin... murmurou.

 

O bebé parou de chorar e, abrindo os olhos, agarrou-se a Maddy.

 

Só depois se voltou e encarou Bonnie, que empunhava uma arma.

 

Havia apenas três clientes no café e o empregado servira o jantar a Nick sem revelar qualquer curiosidade sobre a identidade do forasteiro. O ambiente não o incitara a permanecer ali. Comera o bife à pressa e regressara à rua deserta.

 

Agora achava-se parado em frente do número doze de Maple Street, uma casa baixa, com fachada de madeira pintada de cinzento, erigida no meio de um terreno abandonado. A fachada estava quase totalmente coberta de heras e mesmo por entre a escuridão Nick podia ver que a tinta começava a destacar-se das tábuas. Havia algumas luzes acesas, que passavam pelas cortinas das janelas, mas Nick sentia-se indeciso. Não sabia o que fazer. A casa era modesta e velha e parecia-lhe muito pouco provável que um dos seus habitantes pudesse ter meios para ajudar financeiramente os Lewis. Por outro lado, talvez houvesse ali alguém que gostasse de Bonnie. E o apoio moral podia ser tão precioso quanto o apoio monetário. Não lhe custava nada tentar. O pior que podia acontecer era ser rapidamente despachado, como parecia ser comum naquela pequena cidade.

 

Avançou para a porta e premiu o botão da campainha. Ficou admirado por a ouvir ecoar no interior pois calculara que estivesse avariada dado o estado deplorável da casa. Enquanto aguardava que alguém atendesse reparou que uma das persianas caíra da janela e estava encostada ao muro, como se esperasse que alguém viesse proceder à reparação.

 

Ouviu passos e por breves momentos sentiu uma ponta de apreensão. A casa era tão velha e sinistra que estava à espera que uma figura fantasmagórica lhe abrisse a porta. Para seu espanto e alívio, a porta abriu-se e surgiu uma rapariga bonita, na casa dos vinte, descalça, que vestia calças de ganga e camiseiro às flores. O seu olhar era inocente e o sorriso iluminava o sombrio corredor.

 

Olá! exclamou afavelmente, abrindo a porta.

 

Miss... Hartwell?

 

Mistress Hartwell corrigiu a rapariga com um sorriso. Ou melhor, Colleen.

 

"Esta rapariga não deve ser daqui", concluiu Nick. Custava-lhe crer que ela vivesse naquela cidade, onde ainda não vira um sorriso desde que chegara.

 

Hummm... O meu nome é Nick Rylander. Sou um padre católico e... e a verdade é que tenho uma amiga que viveu aqui.

 

Em Gravesport? Nick consultou o cartão.

 

Sim, mas o que eu queria dizer era que essa minha amiga viveu nesta casa. Segundo sei, arrendou-lhe um quarto. Chama-se Bonnie... Bonnie Lewis.

 

A rapariga estendeu imediatamente a mão a Nick e apertou vigorosamente a dele.

 

Então quer dizer que é amigo da Bonnie? Faça favor de entrar, padre.

 

Agradavelmente surpreendido com aquela recepção, Nick avançou para o sombrio corredor.

 

Desculpe estar tão escuro. É que a lâmpada fundiu-se e não consigo alcançar o candeeiro do tecto sem um escadote. Estou à espera que o meu marido volte para que possa mudar a lâmpada explicou Colleen Hartwell enquanto lhe fazia sinal para que a seguisse até à sala, que parecia mais iluminada.

 

O seu marido trabalha até tarde? perguntou Nick. Colleen riu-se, como se a sua pergunta fosse engraçada.

 

Não. Devo ter-lhe transmitido uma ideia errada. O meu marido é pescador e ausenta-se durante semanas seguidas. É por isso que esta casa está a cair... Ele não está cá para fazer a manutenção. A expressão plácida de Colleen irradiava gentileza, mas nenhum vestígio de inteligência. Eu bem tento, mas é impossível...

 

Olhando à sua volta, Nick perguntou a si mesmo até que ponto Colleen se esforçava por manter a casa em bom estado porque a desarrumação era patente e nos cantos chegava a haver montículos de sujidade. Colleen afastou alguns jornais e revistas de banda desenhada e um par de meias sujas do canto do sofá e lançou tudo aquilo para cima de uma mesa de canto. Só depois perguntou afavelmente a Nick:

Não quer sentar-se? Posso oferecer-lhe alguma coisa? Um chá?

 

Nick disse que sim antes de parar para pensar no estado em que estaria a cozinha. Bom, mas um chá não passava de água a ferver a que se adicionavam ervas e não deveria fazer-lhe mal.

 

Ia agora mesmo fazer chá declarou Colleen. Dito isto dirigiu-se à cozinha, desligou o pequeno televisor que se achava sobre a bancada e passados poucos segundos espreitou pela porta.

 

Bebe chá com leite?

 

Apenas com açúcar.

 

Voltou pouco depois com duas chávenas cujos pires estavam rachados. Entregou uma a Nick, abriu espaço na mesa de café para pousar a sua e para poder sentar-se teve de tirar um urso de peluche, algumas peças de roupa e uma pilha de catálogos espalhados sobre uma cadeira.

 

Bebeu um gole, passou uma madeixa de cabelo por trás da orelha e mais uma vez brindou Nick com um sorriso caloroso.

 

Então o que o traz até Gravesport? É sempre agradável termos visitantes. Sentimo-nos muito sós, com o Georgie no alto mar durante a maior parte do ano.

 

Na realidade, estou apenas de passagem, a caminho da Nova Escócia, no Canadá.

 

De férias?

 

Não. Vou trabalhar lá, num mosteiro. Dedico-me ao restauro de obras de arte.

 

Se bem que Colleen assentisse com a cabeça, como se ponderasse a sua resposta, a sua expressão revelava que não fazia a menor ideia do que ele acabara de dizer-lhe.

 

E como foi que conheceu a Bonnie? perguntou de seguida.

 

Nick fitou-a, desconfiado. Não parecia ser o género de pessoa que se dedicasse a julgar os outros, mas, como ignorava até que ponto ela conhecia Bonnie, tentou escolher as palavras acertadas.

 

Na realidade, conheci primeiro o marido dela.

 

O Terry! exclamou Colleen. Conheceu-o antes de ele ser preso?

 

Não havia qualquer tom de reprovação na voz dela e Nick congratulou-se por haver decidido visitá-la. Aquela mulher talvez não pudesse ajudar Bonnie, mas era visível que gostava dela.

 

Conheci-o enquanto esteve preso. Passámos muito tempo à conversa e fui eu que celebrei o casamento deles.

 

Não me diga! Que maravilha! A Bonnie contou-me tudo sobre o casamento e descreveu-o tão bem que era como se eu tivesse estado presente. Penso que é porque leu muitos livros. Eu não sou muito dada à leitura, mas a Bonnie era diferente.

 

Lembro-me de o Terry me anunciar que publicara um anúncio a pedir que lhe enviassem livros e foi assim que eles se conheceram explicou Nick.

 

Colleen pareceu encantada com aquela revelação.

 

Sempre pensei que a história de amor deles era linda, sabia? A Bonnie era tão solitária... E quando eles começaram a escrever um ao outro... Não sei, mas havia um lado antiquado e romântico na história de amor deles. Ela costumava esperar ansiosamente pelas cartas do Terry. Punha-se ao lado da caixa do correio e quando recebia uma carta corria para o quarto como uma adolescente.

 

Nick não pôde impedir-se de sorrir.

 

Foi uma bênção para ambos comentou.

 

Como é evidente, nunca pensei que o Terry um dia fosse libertado. Costumava dizer à Bonnie: "Ele nunca poderá ser um marido a sério para ti", mas a Bonnie não se importava. Amava-o e só isso contava para ela. Então de repente o outro confessou tudo! Não foi maravilhoso?

 

Fiquei muito feliz pelos dois concordou Nick.

 

Foi um milagre acrescentou Colleen. Não percebo como é que as pessoas não acreditam em milagres. Pois se foi o que aconteceu com eles!

 

Concordo plenamente.

 

Bem, não me admiro, visto ser padre. Pobre Bonnie. As pessoas daqui diziam que ela nunca arranjaria um marido. Ela é um pouco... Colleen interrompeu-se para pensar na frase adequada. Ela é um pouco dura... Mas, quando a conhecemos melhor...

 

Conhecia-a bem? perguntou Nick.

 

Tanto como os outros. Ela não era muito de confiar nas pessoas, mas mesmo assim dávamo-nos bem. Sabe, a pobre teve uma vida difícil confidenciou Colleen. A mãe foi muito má para ela. Era uma mulher bonita, ao contrário da Bonnie. Segundo me contaram, fazia da filha uma escrava e não me parece que lhe desse carinho e amor. Não admira que a Bonnie se refugiasse nos seus livros. Só lhe digo que aqui ninguém derramou uma lágrima quando aquela mulher morreu.

 

Nick anuiu com um movimento de cabeça. Só confirmava o que sempre suspeitara.

 

Longe de mim não querer ser cristã acrescentou apressadamente Colleen ao lembrar-se de que o seu visitante era padre. Sei que devemos amar o próximo e tudo o resto, mas...

 

Com algumas pessoas é mais difícil, não é verdade? rematou Nick sorrindo.

 

Colleen suspirou, aliviada, aninhando-se no sofá.

 

Tenho de confessar que sinto a falta da Bonnie. Foi-se embora há uma semana e repare nesta desarrumação. Quando ela aqui vivia a minha casa era um brinquinho. Chegava a sentir alguma culpa por lhe cobrar renda porque ela tratava de tudo. Não só arrumava a casa, como ainda se encarregava das compras. Mas não quero que pense mal de mim. Nunca tentei aproveitar-me dela, até porque já tivera a sua conta com a cabra da mãe. Pelo contrário; estava sempre a dizer-lhe: "Não se canse. Não precisa de me ajudar." Só que a Bonnie não suportava ver a casa desarrumada, ao passo que eu nem reparo... admitiu por fim Colleen.

 

Nick teve de fazer um esforço para não sorrir. Saltava à vista que Colleen não se importava com a desarrumação que reinava na sua casa. Contudo, mostrava uma bondade que o encantava.

 

E como é que eles estão agora? quis saber Colleen. Nick pousou a chávena e debruçou-se para a frente, cruzando as mãos.

 

Foi exactamente por isso que vim procurá-la. Não sabia se a Bonnie tinha parentes na cidade...

 

Sou, aqui, a pessoa que lhe era mais próxima.

 

Já me tinha apercebido disso. A verdade é que... Um choro de bebé interrompeu-o. Ecoava de um quarto ao fundo do corredor escuro. Colleen ergueu as mãos.

 

Desculpe... É só um minuto... Volto já... Avançou pelo corredor dizendo: Já vou, meu anjo! A mamã vai já!

 

Ouviu-a murmurar algo e o choro cessou. Poucos minutos mais tarde regressou à sala carregando um bebé anafado nos braços. A camisola e as calças que trazia vestidas estavam manchadas de nódoas, mas o bebé ria, feliz, ao colo da mãe.

 

Apresento-lhe o George Júnior exclamou Colleen, não disfarçando o seu orgulho.

 

Um belo rapagão! elogiou Nick.

 

Colleen dirigiu-se à cozinha com um braço à volta do filho para ir buscar um biberão de leite. De volta à sala sentou-se, acomodou o bebé no regaço e deu-lhe o biberão. Enquanto o bebé mamava tranquilamente, Colleen olhava-o com tão grande devoção que teve de se forçar a prestar novamente atenção ao seu visitante.

 

Que idade tem ele? quis saber Nick, por simples cortesia.

 

Oito meses e já é muito manhoso. Saiu ao pai, mas por outro lado também herdou a bondade dele. A Bonnie por vezes tomava conta dele, o que me dava muito jeito. Lembro-me de um fim-de-semana... Eu soube que o barco do George iria aportar e queria ir ter com ele para lhe fazer uma surpresa, mas não podia por causa deste menino. Foi quando a Bonnie insistiu para que eu fosse ter com o meu marido. Deixei o menino com ela, peguei na minha roupa interior mais bonita, fiz as malas e lá parti. O George ficou tão contente com a minha surpresa! Foi como uma segunda lua-de-mel. Tivemos o fim-de-semana só para nós.

 

A Bonnie gosta de ser prestável comentou Nick, se bem que neste momento seja ela quem precisa de ajuda.

 

Não pense que fui eu que lhe pedi que ficasse com o bebé. Não quero que fique com má impressão de mim insistiu Colleen. Foi ela que se ofereceu. Mas disse que ela precisa de ajuda? O que aconteceu?

 

Bem, mal o Terry saiu da prisão eles tiveram um acidente de carro...

 

Oh, não! exclamou Colleen. Outro não!

 

Outro?

 

Foi assim que a mãe dela morreu. A Bonnie ia levá-la a uma reunião da igreja ou coisa parecida, mas perdeu o controlo da direcção e o carro embateu contra uma árvore. A Bonnie não ficou ferida, mas a mãe dela teve morte instantânea. Ia no lugar do morto e, ainda por cima, como era da velha guarda, recusava-se a pôr o cinto de segurança. A polícia afirmou, na altura, que a velhota nem soube o que a atingira.

 

A Bonnie nunca me falou disso comentou Nick.

 

Aconteceu há alguns anos atrás e parece-me que ela não quer relembrar o que se passou. Mas fico muito triste por saber que teve outro acidente... E logo quando ela e o Terry iam começar uma vida nova.

 

Eu sei. Felizmente houve uma alma caridosa que também esteve envolvida nesse acidente e que os abrigou enquanto o Terry era operado. Extraíram-lhe o baço.

 

Os abrigou? repetiu Colleen enquanto limpava o queixo do bebé com a ponta da camisa.

 

Sim. Essa alma caridosa abrigou a Bonnie e o Sean. Colleen fitou-o.

 

O Sean? Quem é o Sean?

 

Nick sentiu uma súbita ansiedade.

 

O filho da Bonnie.

 

O filho? A Bonnie não tem filhos.

 

Nick reprimiu uma exclamação de surpresa. Sentia-se como se lhe tivessem acabado de lançar um balde de água fria. Passavam-lhe pelo espírito imagens confusas, enquanto tentava a custo organizar o seu raciocínio.

 

Claro que tem. O Sean é o filho da Bonnie e do Terry. Fui eu próprio que o baptizei.

 

Colleen, abraçando com mais força o seu bebé, recuou um pouco, como se Nick se houvesse tornado subitamente uma ameaça para ela.

 

Desculpe, mas estamos a falar da mesma Bonnie?

 

Não sei... replicou Nick. Mas de repente soube.

 

Agarrando-se ao ventre, Terry tentou sentar-se enquanto fitava a mulher, que apontava uma pistola a Maddy e a Justin Wallace.

 

O que raio estás a fazer? perguntou.

 

Não sei. Nada disto devia ter acontecido.

 

Onde arranjaste essa pistola? E porque foi que ela chamou Sean por... já não me lembro do outro nome...

 

Justin replicou Maddy enquanto acariciava a cabeça do bebé. Chama-se Justin Wallace. Há poucos dias atrás foi sequestrado e a sua baby-sitter assassinada.

 

Está a mentir replicou Terry em tom categórico.

 

Diga-lhe, Bonnie. Afinal ele é o seu marido e tem o direito de saber continuou Maddy, dirigindo-se à outra mulher.

 

Ela está a dizer a verdade, Bonnie? perguntou Terry. Valha-me Deus! Diz-me que não é verdade, por favor!

 

Bonnie voltou-se para o marido furiosa, sempre de pistola em punho. Por uma fracção de segundo Maddy pensou se devia tentar desarmá-la ou fugir, mas ser-lhe-ia impossível fugir de uma sala tão pequena, com Terry no caminho, deitado no chão. Além do mais tinha o bebé nos braços e não ia deixá-lo ali. O pequeno Justin tremia, como se pressentisse o perigo.

 

Bonnie lançou um olhar fulminante ao marido.

 

Eu escrevi-te enquanto estiveste preso. Telefonava-te e ia visitar-te quando todos pensavam que eras um assassino. Nunca te perguntei que crime tinhas cometido porque isso pouco me importava. Amava-te pelo que eras e não tinha vergonha de casar com um assassino. Então porque te mostras tão altivo comigo, de repente?

 

Porque não quero voltar para a prisão! gritou Terry, mas dobrou-se, com o rosto desfigurado por um esgar de dor.

 

Por qualquer coisa que nem sequer cometi acrescentou num murmúrio. Mas de que me vão acusar.

 

Fi-lo por ti! protestou Bonnie. Tu querias tanto ter um filho!

 

Terry ergueu a cabeça e nos seus olhos havia agora uma expressão de puro ódio.

 

Por mim?

 

Por ti e por mim ripostou Bonnie com súbita petulância. Por nós.

 

Mataste uma rapariga e sequestraste um bebé por mim?

 

Terry riu-se, mas os seus olhos deixavam transparecer um grande desespero. Muito obrigado.

 

Ficaste tão contente com a chegada do Sean! choramingou Bonnie.

 

Porque pensava que ele era o meu filho. Porque estava convencido de que era pai e de que teria uma oportunidade de dar mais amor ao meu filho do que o meu pai me deu. Aquele pulha miserável... Respirou fundo, mas estremeceu, tantas eram as dores que sentia. E durante todo este tempo nem sequer me apercebi de que eras louca. Logo eu, que convivi durante anos com doidos de toda a espécie... Era meu dever reconhecer os sintomas, mas não. Tinha de casar com uma louca varrida. Não me orgulho dos pecados que cometi na minha vida, mas isto... isto ultrapassa todos os limites. Casei-me com uma doida varrida que se transformou numa assassina e numa sequestradora! E por causa disso volto para a prisão antes do amanhecer!

 

Mas tu amas-me insistiu Bonnie apontando-lhe a pistola como se fosse um dedo acusador.

 

Terry riu-se de novo.

 

Deus ama-te. Quanto a mim, desejava nunca te ter conhecido!

 

Bonnie pareceu ceder, por breves instantes. Fitou o marido até que sibilou:

 

Seu filho da mãe.

 

Depois empertigou-se e encarou-o com um ódio impiedoso e assustador. Não hesitou sequer. Apontou a pistola ao peito dele e disparou. Apanhado de surpresa, Terry abriu os olhos enquanto levava a mão ao local onde a bala o atingira. O sangue começou a jorrar-lhe por entre os dedos e a empapar-lhe a camisa.

 

Maddy gritou e recuou. Nessa altura Bonnie voltou-se para ela. Um fio de fumo saía da pistola e o cheiro acre a pólvora espalhava-se pelo quarto. Até àquele momento não se dera conta de que as pistolas exalavam cheiro quando alguém disparava.

 

Matou-o! gritou, apavorada. Foi então que Amy, assustada pelo estrondo, apareceu à porta a chorar.

 

Terry deslizou até tombar no chão, com os olhos revirados.

 

Bonnie, trémula, olhava horrorizada para o seu marido, que se esvaía em sangue.

 

Matei-o! Matei o único homem que me amou! Depois meneou a cabeça. Não, ele nunca me amou. Meu Deus! Meu Deus!

 

Mamã...! gritou a pequena Amy ao ver o homem ensanguentado no chão e Bonnie com a pistola na mão.

 

Maddy não perdeu mais tempo. Sem largar Sean, avançou e tentou tirar a pistola da mão de Bonnie. Sentiu o metal quente nos dedos até que Bonnie se libertou.

 

Afaste-se! vociferou, fora de si. Afaste-se ou mato-a!

 

Maddy ajoelhou-se ao lado da filha, tentando desviar a atenção da menina daquele cenário de horror e proteger as duas crianças da loucura de Bonnie. O seu coração batia, acelerado, e ela sentia vontade de vomitar, mas murmurou frases ternas às duas crianças.

 

Bonnie, por fim, baixou a arma e fitou impassivelmente o homem estendido no chão.

 

Nunca sai nada como eu planeio...

 

Maddy observava-a, ignorando o que se seguiria. Bonnie passava da histeria ao desprendimento total. Dirigira-se à janela e contemplava a escuridão da noite. Ali ficou durante alguns momentos, perdida nos seus pensamentos, sem prestar atenção ao marido, que jazia a seus pés.

 

Então voltou-se mais uma vez para Maddy.

 

Vamos anunciou. Não nos resta qualquer alternativa.

 

Vamos? Para onde? perguntou Maddy.

 

Não sei, mas temos de fugir.

 

Por favor, Bonnie. Leve o meu carro e fuja quanto antes, mas deixe-nos ficar, por tudo o que é mais sagrado. Não telefonarei para a polícia. Juro. Se quiser, pode arrancar o fio do telefone, mas deixe-nos ficar. Pode desaparecer, que nunca ninguém saberá da minha boca quem você é. Pode sempre recomeçar a sua vida noutro local, mas, por favor, não faça mal às crianças. Porque têm de sofrer?

 

O olhar de Bonnie intensificou-se ao ouvir a última frase pronunciada por Maddy.

 

Eu sofri muito, sabia? ripostou. Porque não hão-de eles sofrer também? Vamos, temos de sair daqui. Se me prometer que se porta bem, deixo-a num sítio qualquer quando tiver terminado. Mas agora tenho de levar-vos comigo. Vamos insistiu, empunhando a pistola. Temos de sair daqui!

 

Olhando para o corpo inerte de Terry, Maddy não se atreveu a discutir com ela.

 

Vamos, Amy. Temos de ir com Mistress Lewis.

- Porquê? Eu não quero ir com ela!

 

Veste o teu casaco e faz o que te digo.

 

Ainda pensou em pedir a Bonnie que a deixasse pôr uma fralda e vestir um par de calças ao pequeno Justin, mas preferiu agir. Procurando numa das malas, puxou o primeiro par de calças que encontrou e tirou uma fralda do saco. Bonnie parecia não lhe prestar muita atenção. Continuava com o olhar fixo em Terry. Maddy deitou Justin na cama e vestiu-o à pressa.

 

Bonnie ajoelhou-se ao lado de Terry e, com ternura, ajeitou uma madeixa de cabelo que se lhe colara à testa.

 

Porque não se limitou ele a dizer que me amava? exclamou. Teria feito tudo o que me pedisse! Que mais queria de mim?

 

Maddy não sabia se devia responder ou não porque a última pergunta parecia ser dirigida a um universo imaginário. Por fim, optou por expressar uma compaixão que não sentia.

 

Ainda está a tempo replicou. É melhor chamarmos uma ambulância. Ele ainda pode estar vivo.

 

Não, já é tarde de mais concluiu secamente Bonnie. Maddy tentou imaginar o turbilhão de sentimentos que passavam pela mente de Bonnie e esforçou-se por não pensar em Rebecca Starnes e nos Wallace, que deviam estar à beira da histeria, tal era o seu desgosto; preferiu ponderar o que deveria dizer.

 

Sei que sofreu muito, Bonnie murmurou, e que deve ter sido horrível para si, mas não pode deixar estes dois inocentes fora disto tudo? Nunca fizeram mal a ninguém. Não os podemos deixar aqui?

 

Deixá-los sozinhos em casa? Que espécie de mãe é você? ripostou Bonnie impaciente, levantando-se. Não se deve deixar uma criança sozinha em casa porque pode magoar-se.

 

Podíamos telefonar a alguém e pedir que os viesse buscar quando já estivéssemos longe daqui.

 

Não seja idiota. Eles vêm connosco. Agora vamos. Maddy pegou em Justin e preparou-se para o levar até à etapa seguinte da sua jornada. "Por favor, meu Deus", rezou em silêncio. "Faz que esta não seja a última viagem dele."

 

Os ramos desnudados das árvores recortavam-se sob a claridade da lua cheia. Nuvens pálidas passavam calmamente a caminho de outros destinos. Doug pegou na garrafa de vodca e fez um brinde à Lua e a todas as estrelas do céu. Já havia brindado a tudo aquilo de que se lembrara; porque não havia de fazer também um brinde à Lua? Era uma boa companheira, algo que não podia dizer da maior parte das pessoas que conhecia. Apoiou-se ao parapeito do baluarte mais alto do Forte Wynadot. A única coisa que se elevava mais acima era a guarita. Doug pensou novamente naquela Lua e desejou ter uma moeda de vinte e cinco centimes para poder estudá-la num daqueles aparelhos de vista panorâmica, como um astrónomo. Enfiou as mãos nos bolsos do casaco, mas deixou cair as moedas que encontrou.

 

Raios! resmungou. Vou subir e observar a Lua lá de cima.

 

Uma escada estreita conduzia à guarita, mas havia uma corrente e um cartaz que dizia: "Passagem proibida aos visitantes a partir deste ponto."

 

Que se lixe! vociferou, depois de ler o cartaz. Enfiou a garrafa debaixo do braço e passou uma perna por cima da corrente.

 

Nessa altura, Nina Stefano e Randall Burke entraram no parque de estacionamento. Randall tentou esconder o carro por baixo dos ramos de uma árvore a fim de ter mais privacidade. Desejava conhecer outro lugar onde pudesse levar a rapariga, mas o melhor que conseguira fora o carro emprestado do seu irmão mais velho. Até ali, Nina mostrara-se agradável, mas era algo temperamental e Randall sentia-se como se andasse num campo de minas, tentando não dizer ou fazer alguma coisa que a irritasse.

 

Discutiam muito, o que só aumentava a sua paixão por ela. Passavam um bom momento, riam-se e trocavam algumas carícias até que de repente ele dizia algo que ela levava a mal e pronto, a noite acabava da pior maneira. Os olhos negros de Nina faiscavam; lançava os cabelos sedosos para trás e exigia que ele a levasse imediatamente a casa porque, se não o fizesse, voltava a pé. Eram muitas as noites que acabavam assim. Contudo, naquela noite as coisas pareciam correr bem. Randall sentia que as suas mãos, pousadas sobre o volante, estavam suadas e experimentou uma descarga de prazer antecipado ao olhar de relance para o belo perfil de Nina. Estacionara com o que esperava ser grande descontracção e só depois se voltou para Nina, aflorando-lhe a face com a ponta dos dedos.

 

Hoje o parque parece um pouco sinistro, com esta lua cheia... observou.

 

Nina, para não fugir à regra, empertigou-se, irritada.

 

Isso é apenas fruto da tua imaginação.

 

Não que não gostasse de Randall. Pelo contrário; também o desejava. Era atraente, à sua maneira, com um corpo entroncado de irlandês, que lhe era ao mesmo tempo desconhecido e familiar. Afinal, e tanto quanto se lembrava, apaixonara-se invariavelmente pelos meninos de coro da Igreja de Nossa Senhora com aquele mesmo físico. O problema era a forma como Randall lidava com a situação... Era sempre... tão respeitador, o que, por qualquer motivo que ela desconhecia, a enfurecia.

 

Talvez haja fantasmas aqui continuou Randall, esboçando um sorriso valente enquanto pensava em passar o braço à volta da cintura de Nina. Já falta pouco para a Noite das Bruxas...

 

Ao sentir o toque dos seus dedos, Nina esgueirou-se e empurrou-o.

 

Pára.

 

Mas afinal o que se passa, Nina?

 

A rapariga sentiu a fúria familiar invadi-la.

 

Nada respondeu.

 

Randall debruçou-se para a frente e tentou beijá-la na face, mas Nina desviou o rosto e o beijo dele foi aterrar nos seus cabelos.

 

Pensei que quisesses vir até cá resmungou Randall, recuando atrapalhado.

 

Não fazia ideia de que o seu único crime era ser demasiado tímido. Que, se não fosse mais veemente, depressa a perderia para um rapaz mais velho e experiente. Nina, por seu lado, não queria ter de lhe dar permissão para avançar. Era contra a sua religião fazer de sua própria vontade o que ele queria. Achava que Randall tinha de levá-la a perder a cabeça. Precisava que ele insistisse a ponto de ela se esquecer de tudo o resto. E como Randall não parecia perceber aquilo, ficava furiosa, se bem que, para ser justa consigo mesma, ignorasse porquê. Assim, ali ficaram, sentados lado a lado, desejando-se um ao outro, mas sem conseguirem dar o primeiro passo. Nina encostou-se à porta e olhou pela janela. Randall pousou a mão sobre o volante, meneou a cabeça e suspirou. Perdera todas as esperanças no que dizia respeito a Nina.

 

De súbito a rapariga endireitou-se.

 

Randy! gritou, num tom de voz que o fez sobressaltar-se. O que é aquilo?

 

O rapaz voltou-se, sentindo uma esperança renovada e foi então que percebeu que ela indicava o forte.

 

Lá em cima! Olha! Parece um fantasma!

 

O rapaz seguiu com o olhar o ponto que Nina indicava.

 

Valha-me Deus! exclamou.

 

Um homem achava-se no topo da escada, perto da guarita, segurando-se à porta apenas com uma mão.

 

Mas o que está ele a fazer? exclamou Nina, assustada.

 

Não sei.

 

Ainda hesitou, mas por fim abriu a porta do seu lado.

 

O que vais fazer, Randy?

 

É melhor tentar falar com ele.

 

Tem cuidado! avisou Nina, agarrando-se ao seu braço. Quando ele se voltou para a fitar, à luz do luar, e viu o medo que transparecia nos seus olhos, puxou-a para si e beijou-a apaixonadamente. E, pela primeira vez, Nina correspondeu-lhe com igual fervor. Esqueceu-se do homem que se achava no alto da escada que levava à guarita, mas, porque sempre fora um rapaz às direitas, afastou-se de Nina e, suspirando, resignado, abriu a porta do seu lado.

 

Subiu devagar a colina em direcção ao forte. Fez tanto barulho quanto pôde, assobiando e dando pontapés nas folhas, para não assustar aquele homem, que à menor distracção podia cair, se bem que Randall o mantivesse debaixo de olho. O desconhecido balouçava ligeiramente de um lado para o outro com o olhar fixo nas estrelas. Tinha qualquer coisa na mão e Randall julgava saber o que era. Já vira muitos bêbedos e tinha quase a certeza de que aquele homem agia sob o efeito do álcool. Quando alcançou o carreiro que corria à volta do forte postou-se num local iluminado pelo luar, onde o bêbedo pudesse vê-lo bem.

 

Olá, amigo! chamou em voz alta. Entretanto Nina saíra do carro e observava a cena, apavorada.

 

O homem que subira a escada exterior da guarita olhou para baixo, mas não revelou qualquer surpresa.

 

Olá! saudou em voz arrastada, acenando com a garrafa na direcção de Randall.

 

Sabe que não é muito seguro estar aí? Talvez não fosse má ideia descer!

 

Douglas Blake contemplou o adolescente que se achava na base do forte e experimentou um sentimento de bondade para com ele e para com o mundo em geral, porque estava acima de qualquer problema.

 

Vem até cá acima! Anda beber um gole comigo! convidou, brandindo a garrafa quase vazia.

 

Não, obrigado.

 

Doug olhou novamente para baixo, irritado com aquele desmancha-prazeres. Mas que espécie de homem ia recusar-se a tomar um bom trago ali em cima numa noite tão bela?

 

Está uma noite tão bonita.... insistiu. Anda lá!

 

É melhor o senhor descer. Precisa de ajuda?

 

Eu não preciso da ajuda de ninguém! Não preciso de nada! E inesperadamente começou a chorar.

 

Pois eu acho que precisa. Vou subir, ouviu? Deixe-se ficar onde está!

 

Doug fungou e limpou o nariz enquanto o rapaz se dirigia ao portão do forte.

 

Na realidade, não estou onde não estou gritou, dirigindo-se a ninguém em particular. Estou embriagado, mas não estou bêbedo!

 

Aquele seu trocadilho pareceu diverti-lo muito, porque desatou a rir.

 

Sentia-se bem outra vez. As suas lágrimas tinham secado tão rapidamente como haviam surgido. Sentia-se o dono do mundo. Já se embebedara várias vezes, quando era novo, e vivia na companhia de outros estudantes. Geralmente acabava por desmaiar, mas era algo que não o divertia e não lhe fora difícil parar. Nos últimos anos, tanto ele como Maddy não bebiam mais do que um pouco de vinho em ocasiões especiais. Pensou em Maddy e por breves instantes sentiu a falta dela. Queria que estivesse ali, perto dele, como quando se tinham visto pela primeira vez.

 

Ergueu a cabeça para contemplar as estrelas, mas depois fechou os olhos. Não, não queria Maddy ali, ao pé dele, porque era uma chata. Do que ele precisava era de um amigo como o adolescente que lhe dirigira a palavra. Debruçou-se para ver se o rapaz ainda se achava na base do forte. Esquecera-se de que ele entrara no forte para ir ao seu encontro. Então, ao longe, perto de um carro estacionado no parque de estacionamento, teve uma visão. Era uma mulher, nova e encantadora, com cabelos negros e sedosos e pernas compridas e bem torneadas. Tinha as mãos unidas junto ao peito e os seus grandes olhos pareciam tristes, como se o chamasse. "É uma deusa!", pensou e, apesar do seu estado de embriaguez, sentiu um súbito desejo. É minha!"

 

Instalou-se em cima do corrimão redondo da escada e endireitou-se para ver melhor a sua deusa. Ergueu a garrafa para lhe acenar, mas ela escorregou-lhe da mão e caiu pelos degraus abaixo.

 

Mas que merda! vociferou indignado, como se a garrafa lhe tivesse fugido. Então baixou-se para tentar agarrá-la. Sentiu os pés deslizarem no corrimão em que se empoleirara. E quando estendeu os braços para se agarrar ao muro perdeu o equilíbrio.

 

Randall, que correra até ao baluarte mais elevado, ouviu primeiro um gemido prolongado perto dele e, mais ao longe, os gritos de Nina. Seguiu-se o eco de um baque surdo. Randall correu para a escada que levava à guarita. O homem desaparecera. Só depois espreitou por entre as ameias. A primeira coisa que viu foi Nina, chamando por ele, desvairada, enquanto subia a colina. Quanto ao bêbedo, nem sinal dele.

 

Foi então que Randall se debruçou um pouco mais.

 

Lá em baixo, o homem jazia rodeado por uma poça escura de sangue e pelos cacos da garrafa de vodca, que à luz do luar brilhavam como diamantes.

 

Nick mantinha o auscultador colado à orelha e, pelo que lhe pareceu a milésima vez em vinte minutos, ouviu o irritante sinal de ocupado. Ela não podia estar a falar há tanto tempo. Desligou e marcou o número das avarias.

 

Ainda está ocupado? perguntou Colleen, ansiosa. Andava na ponta dos pés pela casa, como se estivesse numa igreja, tentando manter o bebé sossegado enquanto Nick telefonava.

 

Nick anuiu bruscamente e depois fez-lhe sinal para indicar que a telefonista atendera a chamada.

 

Gostava de saber se pode interromper uma comunicação telefónica. Trata-se de uma emergência.

 

Qual é o número?

 

Nick indicou-lho e enquanto aguardava consultou o relógio e bateu com a ponta dos dedos no tampo da mesa até a telefonista retomar a comunicação.

 

O número de telefone que me indicou não está ocupado por nenhuma chamada informou.

 

Raios! Só significava que o telefone estava desligado. Existe alguma maneira de assinalar a esse assinante que tem o telefone fora do descanso?

 

Receio que não replicou a telefonista.

 

Obrigado.

 

Nick desligou e, com uma ruga de preocupação a vincar-lhe a testa, cruzou os braços.

 

Conseguiu? quis saber Colleen.

 

Não. Vou telefonar à polícia.

 

Também penso que é melhor concordou Colleen. Nick pediu o número da polícia de Taylorsville e marcou-o. Uma telefonista anunciou num tom ríspido:

 

Polícia de Taylorsville. Em que posso ajudar?

 

Olá, o... o meu nome é Nick Rylander e creio ter informações sobre o bebé Wallace...

 

Antes que pudesse pedir para falar com o chefe, a telefonista replicou:

 

Não desligue. Vou passar a sua chamada para a linha das informações...

 

Nick ouviu vários estalidos até surgir o sinal de chamada. Enquanto esperava impacientemente que alguém atendesse pensou em Terry Lewis e sentiu-se invadido por um sentimento de culpa e de pesar. Tinha a certeza absoluta de que Terry havia sido sincero na sua crença de que Sean fosse seu filho. Terry confiara nele, fizera-lhe confidências e agora, com aquele telefonema, Nick ia enviá-lo de volta para a prisão, mesmo que ele não tivesse tido parte activa no sequestro, porque todos os anos que passara na prisão iriam pesar contra ele.

 

Conseguiu falar com alguém? sussurrou Colleen.

 

Sim. Eles têm uma linha especial só para este caso. Colleen andava de um lado para o outro enquanto dava palmadinhas nas costas do filho que, aninhado nos seus braços, chuchava o polegar.

 

Não compreendo o que a levou a fazer tal coisa. Porque disse ao marido que tivera um bebé? Porque fingiu que o meu Georgie era filho dela?

 

Nick encolheu os ombros.

 

Porque queria casar com ele e sabia quanto Terry desejava um filho. Depois de lhe mentir sobre a sua gravidez foi forçada a arranjar um bebé.

 

Mas por quanto tempo mais pensava a Bonnie que iria manter aquela mentira? O que tencionava ela fazer quando o Terry saísse da prisão?

 

Não se esqueça de que quando a Bonnie casou com o Terry estava convencida de que ele cumpriria uma pena perpétua.

 

Nesse caso, quais eram os planos dela? Continuar a levar o meu Georgie com ela sempre que ia visitar o Terry? E o que aconteceria quando o bebé crescesse e começasse a falar?

 

Não sei. Talvez a Bonnie não tenha antevisto o futuro a longo prazo. Talvez...

 

Talvez pensasse em adoptar uma criança? sugeriu Colleen.

 

Com o marido na prisão? Duvido muito...

 

E quando o Terry foi libertado a Bonnie percebeu que precisava rapidamente de arranjar um bebé... concluiu Colleen.

 

Nick levou um dedo à boca pedindo-lhe que se calasse, porque naquele instante ouviu uma voz do outro lado do fio.

 

Linha especial da polícia de Taylorsville. Em que posso ser-lhe útil?

 

Gostaria de falar com o chefe da polícia.

 

Está a telefonar por causa do assassínio da Rebecca Starnes e do sequestro do bebé Wallace?

 

Sim, mas...

 

Faça o favor de indicar o seu nome e de me dar as suas informações que eu passá-las-ei ao chefe Cameron.

 

O meu nome é Nicholas Rylander. Sou o padre que costumava celebrar a missa na Igreja de Santa Maria...

 

Isso significa que já não reside na cidade? De onde está a telefonar?

 

Do estado do Maine, mas não percebo que diferença isso possa fazer...

 

E que informações possui?

 

Nick não permitiu que a revolta que sentia o perturbasse porque se tratava de um assunto demasiado grave.

 

Tenho motivos para crer que uma certa Mistress Bonnie Lewis possa ter sequestrado o bebé Wallace.

 

O que o leva a pensar em tal coisa?

 

Porque sei que ela se encontra em Taylorsville e viaja com um bebé que não é dela.

 

E como o sabe?

 

No seu desespero, Nick agarrou o auscultador com tanta força que quase o partiu.

 

Ouça, não quero alongar-me mais em pormenores. Deixe-me falar com o Frank Cameron.

 

Todas as informações que recebemos lhe são comunicadas. Como deve compreender, recebemos centenas de chamadas e daremos seguimento à sua o mais depressa possível.

 

Não me parece que esteja a compreender ripostou Nick, furioso. Trata-se de um caso de vida ou de morte!

 

Pode ficar descansado que compreendemos perfeitamente e verificaremos todas as informações que nos fornecer. Onde podemos localizar essa tal Mistress Lewis? Sabe onde ela vive? Conhece o número da matrícula da viatura em que ela viaja?

 

A fúria de Nick intensificou-se perante o tom daquela voz impassível.

 

Não sei o número de matrícula do carro dela. Está alojada em casa do Douglas e da Maddy Blake, em Decatur Street. Peça ao seu chefe que envie alguém até lá imediatamente.

 

Contudo, a mulher manteve a calma.

 

Trataremos do caso assim que nos for possível. Obrigado por nos ter contactado.

 

E antes que Nick pudesse dizer o que quer que fosse a mulher desligou.

 

Nick sentou-se na beira de uma cadeira e esfregou as mãos.

 

Talvez haja outra explicação resmungou baixinho. Tem a certeza de que ela não estava grávida?

 

Tanto quanto o senhor. Custa-me crer que ela tenha levado o meu Georgie, assim, sem mais nem menos, e o tenha feito passar por filho dela... O que foi que eles disseram? Vão tentar encontrá-la?

 

Nick tomara a atitude acertada ao alertar a polícia. Mesmo que isso implicasse trair a confiança de Terry e, muito possivelmente, enviá-lo novamente para a prisão. No entanto, algo lhe dizia que não era o suficiente. Tinha de entrar em contacto com Maddy porque, se ela corresse perigo, seria por culpa dele. Lembrou-se das suspeitas de Maddy e de como revistara as malas de Bonnie à procura de um indício revelador quanto ao bebé. E quem a havia tranquilizado a respeito de Bonnie? Não fora ele? Dizendo-lhe que baptizara Sean? Sim, sentia-se responsável. Logo de seguida meneou a cabeça, absorto nos seus pensamentos. Não se tratava somente de uma questão de responsabilidade. "Ao menos sê sincero contigo próprio", recriminou-se mentalmente. O seu desejo de proteger Maddy fazia que sentisse um nó na garganta. Consultou de novo o relógio. Demoraria muito tempo a regressar a Taylorsville de carro. Tinha de arranjar outra forma, mais rápida, de lá chegar.

 

Lembrei-me de outra coisa interveio Colleen com patente ansiedade. Bom, a verdade é que eu estava preocupada com o facto de a Bonnie viajar sozinha e, como tinha uma velha Colt32 que pertencia ao meu pai...

 

Uma pistola?

 

Nem sei se ainda funciona. Disse à Bonnie que pelo menos podia apontá-la se alguém a molestasse. E rimo-nos perante semelhante possibilidade... Antes de ela seguir viagem.

 

Nick pensou em telefonar outra vez à polícia, mas levantou-se.

 

Onde fica o aeroporto mais próximo? perguntou.

 

Maddy conduzia com Amy sentada a seu lado. No banco de trás, Justin encontrava-se ao lado de Bonnie que, instalada atrás do lugar do condutor, apontava a pistola à nuca de Maddy. Esta sentia dores por tentar não se mexer. Ao menor movimento sentia o aço frio da pistola a aflorar-lhe a pele, o que lhe provocava um calafrio de medo. Seguindo as instruções de Bonnie, viajava para norte, em direcção a parte incerta, o que a levava a pensar que Bonnie não tinha um destino em mente e que estava apenas desesperada por fugir.

 

Amy parecia compreender que corriam perigo. Pouco falava, não chorava nem pedia explicações. Justin tinha uma chucha na boca e acabara por adormecer, embalado pelos movimentos do carro, o que trouxera uma acalmia momentânea e frágil ao interior do automóvel. A cada quilómetro que passava, Maddy sentia o pânico aumentar. Ninguém sabia onde eles estavam. Ninguém os procuraria. Estavam encurralados naquele carro, seguindo para parte desconhecida, com uma mulher que já nada tinha a perder. De tempos a tempos ouvia Bonnie murmurar o nome de Terry por entre soluços abafados, mas sempre com a pistola a pressionar a nuca de Maddy.

 

Foi então que Maddy avistou um carro da polícia na direcção contrária à sua, que seguia uma viatura cujo condutor cometera uma infracção por excesso de velocidade na auto-estrada deserta. Tentou em vão pensar num meio de não passar despercebida. Esperançada em despertar a atenção do guarda ao fazer disparar o radar, carregou a fundo no pedal do acelerador, mas Bonnie, reagindo, enterrou mais a pistola na nuca de Maddy enquanto lhe ordenava que abrandasse.

 

Maddy obedeceu. Ignorava se teria alguma hipótese de escapar, mas sabia que não podia cometer uma imprudência com duas crianças sob a sua responsabilidade. Os quilómetros iam sendo percorridos, enquanto as cidades por onde passavam se tornavam menos conhecidas.

 

Sabe exclamou Bonnie depois de enxugar as lágrimas, independentemente do que ele disse, estou convencida de que me amava de verdade...

 

Maddy não pôde deixar de se sentir estarrecida com a capacidade de Bonnie de chorar pelo homem que acabara de matar a sangue-frio. Sentir-se-ia menos aterrorizada se Bonnie amaldiçoasse o marido ou gritasse que ele devia pagar por tudo o que lhe fizera. Seria uma revolta previsível, até mesmo compreensível. E ser-lhe-ia mais fácil saber o que dizer. Mas aquilo...

 

Durante dois anos escreveu-me uma carta duas vezes por semana continuava Bonnie, muito antes de nos conhecermos pessoalmente. Não é incrível? Contava-me tudo sobre ele naquelas cartas. Confidenciava-me o que lhe ia na alma. Não passava de um rapaz solitário que se metera em sarilhos. Sentíamo-nos muito próximos um do outro. Provavelmente ter-se-ia casado comigo se eu não lhe tivesse dito que estava grávida. Mas senti que precisava de um pequeno empurrão. É que os homens são tão teimosos no que diz respeito ao casamento... Não querem comprometer-se. Poderá pensar que foi um acto estranho para um condenado a prisão perpétua, mas ele era um americano de sangue quente, como qualquer outro.

 

Por vezes os homens precisam de algum encorajamento concordou Maddy à cautela, numa tentativa de agradar a Bonnie. Alguma vez... Estava realmente grávida quando se casou com ele?

 

Tentei engravidar, mas não é fácil com um namorado preso. Não o via com frequência e, quando tentávamos ter relações sexuais, havia sempre muitas interrupções. A voz de Bonnie ganhara algum entusiasmo enquanto narrava a sua história. Mas quando lhe disse que estava grávida ele acreditou em mim e casámos. Só depois tive de arranjar um bebé. Bonnie interrompeu-se, absorta nos seus pensamentos. Primeiro limitei-me a tomar emprestado o filho de uma amiga minha e a fazê-lo passar por meu. Não sei... Não tinha esboçado nenhum plano... Quem podia adivinhar que ele iria ser libertado? Fora condenado a prisão perpétua. Convenci-me de que teria tempo para encontrar uma solução... Como, por exemplo, dizer que o nosso filho se afogara, fora atropelado ou algo do género...

 

Maddy teve de reprimir um grito. Era o tipo de acto tresloucado que ela nunca conseguiria compreender. Esforçou-se por se lembrar de que para Bonnie tudo aquilo fazia sentido. Apercebia-se de que a outra mulher tinha vontade de falar sobre a sua vida e de se justificar. Se conseguisse estabelecer uma comunicação com aquela mulher, talvez... O que importava era fingir não a julgar pelos seus actos.

 

O que... Procurava um bebé... E depois, o que aconteceu? A baby-sitter apanhou-a em flagrante?

 

Àquela pergunta o tom de voz de Bonnie alterou-se, deixando para trás os soluços e os queixumes e tornando-se glacial ao recordar como alcançara o seu objectivo.

 

Vi-os no parque. Eu tinha um carrinho de bebé e fingia passear o meu filho. Era um boneco, mas a rapariga nunca poderia perceber. Parei e falei com ela durante um minuto sobre bebés para poder ver melhor o miúdo que ela guardava. Era o que me convinha, mas ela não o largava de vista um minuto sequer. Assim, quando me afastei resolvi vigiá-la. Depois um fulano apareceu e começou a meter-se com a rapariga. A dada altura, ela levantou-se para fugir do homem...

 

Maddy sentiu o sangue gelar-se-lhe nas veias ao lembrar-se do retrato apresentado pela polícia e das suas suspeitas contra o marido. Agora, à luz do que sabia...

 

E era o Doug? perguntou de rompante. Era o meu marido?

 

Como quer que eu saiba? ripostou Bonnie, aborrecida por ter de interromper a sua história. Não olhei duas vezes para ele. Estava mais interessada no bebé, para ver se era o que realmente me convinha, enquanto tentava ganhar coragem para fazer o que tinha de fazer. Sabe, não foi fácil... rematou, como se esperasse que Maddy a felicitasse pelo seu feito.

 

Sim, tenho a certeza de que não deve ter sido fácil murmurou Maddy, horrorizada com aquela narrativa. Era como concordar com alguém que afirmava que a Terra era quadrada. Assim que se aceitava a primeira premissa, tudo o que se seguisse era possível.

 

Foi então que os vi sair do parque retomou Bonnie. A rapariga estava um bocado transtornada porque o fulano lhe tocara. Aproximei-me dela num ponto onde sabia que ninguém nos veria. Fingi ter pena dela e falei-lhe dos perigos que as mulheres correm com esses tarados. Depois ofereci-lhe boleia e ela aceitou. Foi o seu maior erro declarou, triunfante, como se falasse de um movimento em falso do seu adversário num jogo de xadrez.

 

Maddy estremeceu violentamente ao pensar na inocente Rebecca Starnes, que fora assassinada apenas pelo seu desejo, tão louvável, de não se meter em sarilhos. Não queria ouvir o resto, mas Bonnie parecia cada vez mais animada com as suas recordações.

 

Pode não acreditar, mas não tencionava matar a rapariga. Não parava de dizer a mim própria que só o faria se isso fosse absolutamente necessário.

 

Riu-se baixinho e Maddy sentiu um novo calafrio, forçando-se a manter-se atenta à estrada para combater aquele horror.

 

A princípio, a rapariga ainda estava demasiado afectada por haver sido importunada por aquele devasso para reparar em alguma coisa, mas depois começou a fazer perguntas sobre o meu bebé. Porque não viajava numa cadeirinha? Queria vê-lo e mostrou-se muito insistente. Por fim pediu-me que a deixasse apear-se. Não parava de dizer: "Encoste, encoste! Deixe-nos sair!", o que me deixou muito irritada recordou Bonnie, revelando viva indignação. Não tinha quaisquer motivos para pensar mal de mim! Começou a baixar a maçaneta e a dar pontapés na porta deixando marcas de poeira, quando eu passara o dia todo a limpar a carrinha para ir buscar o Terry. Disse-lhe que parasse com aquela birra, mas a miúda era mesmo chata. Até que por fim saquei da pistola e disparei. Nem deu por nada. Tombou sobre o painel. Tive de fazer um desvio e depois arrastar o corpo até à floresta porque não sabia onde mais podia largá-la. Mas agora arrependo-me, juro! gritou inesperadamente. Quem me dera poder voltar atrás! Sabe, mal este tipo de coisas começa é como uma bola de neve. Fiz tudo o que podia pelo Terry, para que ele tivesse o filho que tanto desejava...

 

A sua voz esmoreceu ao perceber que todos os seus esforços haviam sido em vão porque Terry nunca a amara. Maddy sentiu o estômago às voltas, perguntando-se de novo se teria sido Doug que estivera no parque e incomodara Rebecca Starnes. De qualquer maneira não fora ele que a assassinara. Aquela revelação deveria fazê-la sentir alguma pena de Doug, mas na realidade Maddy estava completamente atordoada. Olhando pelo espelho retrovisor viu que Bonnie apoiara a cabeça no antebraço, contemplando a escuridão, mas nem por isso deixara de manter a pistola apontada à nuca de Maddy. "Ela é louca", pensou Maddy. "Não vê mal nenhum no que fez. Assassinar a rapariga parece ter para ela o mesmo valor moral que o roubo de um chocolate numa loja. Tens de agir e agora." Mas que podia fazer sem pôr em perigo a vida das duas crianças? Sentia-se uma inútil por ser incapaz de encontrar uma solução.

 

Foi então que um automóvel ultrapassou o seu a toda a velocidade. Volvidos alguns minutos, avistou pelo espelho retrovisor a luz de um carro-patrulha e ouviu uma sirene. Sentiu uma súbita esperança, que depressa se desvaneceu quando o carro-patrulha por sua vez a ultrapassou na perseguição do outro carro. Bonnie, por seu lado, ao ouvir a sirene, despertou do seu devaneio.

 

Segue aquele carro que me ultrapassou a grande velocidade explicou Maddy. Só depois se deu conta de que mais à frente o carro-patrulha interceptaria a outra viatura e podia até ficar parado na berma da auto-estrada. Se assim fosse, talvez ela pudesse fazer algo. "Por favor, meu Deus, dá-me uma oportunidade", rezou em silêncio.

 

Mamã, tenho fome choramingou Amy.

 

-Já te arranjamos comida respondeu Maddy, esforçando-se por dar a impressão de que mantinha tudo sob controlo. Bonnie... talvez devêssemos parar numa localidade, algures, para pernoitar.

 

Porquê?

 

Porque vou acabar por adormecer ao volante.

 

Continue. Não quero parar.

 

A resposta de Bonnie não surpreendeu Maddy. Nem fazia ideia do que a levara a fazer aquela pergunta.

 

Sou viúva afirmou de súbito Bonnie. Agora sou viúva.

 

"E de quem é a culpa?", quis perguntar Maddy. Aquela afirmação parecera-lhe tão perversamente cómica que quase se riu, embora estivesse à beira das lágrimas. "Mantém a calma e presta atenção ao que te vai surgir mais à frente", concluiu.

 

Percorrido mais um quilómetro avistou-os. O condutor do carro estacionara na berma da estrada e o guarda estava debruçado sobre a vidraça da janela. "Por favor, olhe para mim!", implorou Maddy em pensamento.

 

E que tal um pouco de música? sugeriu, estendendo a mão para o rádio.

 

Não quero ouvir música ripostou Bonnie. Preciso de silêncio para pensar.

 

Maddy, contudo, apenas quisera arranjar um pretexto para carregar no botão dos faróis de emergência, e aguardou, desesperada, que o oficial reparasse antes que Bonnie desse pelo súbito piscar no painel. Não fazia ideia do que se ia seguir nem se atrevia a olhar pelo espelho retrovisor.

 

Nesse instante Justin acordou e começou a chorar quando a chucha lhe caiu. Bonnie apanhou-a e enfiou-a na boca do bebé. "Obrigado, pequeno Justin", agradeceu Maddy.

 

O que se seguiu na auto-estrada passou-se em poucos segundos. Assim que passaram pelo carro-patrulha, Maddy premiu o botão para desligar os faróis. Bonnie nem pareceu reparar e Maddy continuou a conduzir, sem se atrever a olhar para trás.

 

Havia cinco passageiros a bordo do pequeno avião com destino ao aeroporto de Taylorsville em que Nick Rylander viajava. Não gostava das pessoas que corriam para serem as primeiras a desembarcar, mas naquele dia pouco se importava de ofender alguém. Levantou-se e avançou para a porta ignorando o olhar de reprovação da hospedeira, cuja única função naquele voo doméstico fora informar os passageiros sobre o que fazer em caso de uma tragédia, ao passo que Nick pensava em outras tragédias.

 

Desculpe... Dê-me licença murmurou ao passar pelos bagageiros que se tinham aproximado do aparelho parado na pista. Viajara sem malas. Apenas levara a carteira. Deixara a restante bagagem no aeroporto do Maine. Encontrara um voo que ligava Nova Iorque a Taylorsville e não iria perdê-lo por causa de uma mala. De qualquer maneira, não era importante. Tudo o que contava, para ele, era regressar.

 

Abriu uma das portas envidraçadas do terminal e dirigiu-se, apressado, ao balcão da agência de aluguer de automóveis, mas não havia ninguém. Olhou à sua volta, desesperado, e viu que um funcionário de uma das companhias de aviação voltava ao seu posto com uma chávena de café e uma fatia de torta.

 

Desculpe interpelou-o Nick. Sabe onde se encontra o encarregado da agência de aluguer de automóveis?

 

Por acaso, sei. Ela está no bar.

 

Obrigado.

 

Correu pelo terminal, encontrou o bar e entrou. Duas mulheres estavam sentadas ao balcão. Uma usava uma farda semelhante à do funcionário da companhia de aviação; a outra, uma rapariga de cabelos louros, usava um casaco vermelho cujo bolso ostentava o logotipo da agência.

 

Desculpe... dirigiu-se-lhe Nick. Preciso de alugar um carro imediatamente.

 

A rapariga não escondeu a sua irritação por aquele homem interromper a sua pausa, mas ao reparar na ansiedade estampada no rosto de Nick mudou de atitude.

 

Está bem concedeu.

 

Lamento incomodá-la, mas trata-se de uma emergência.

 

A rapariga levantou-se.

 

Já vou. Pegou na lata de Coca-Cola e disse à outra rapariga: Vemo-nos mais logo.

 

Regressou sem pressa ao seu posto e Nick teve de cerrar os dentes para não lhe gritar que se despachasse, mas assim que se postou atrás do balcão mostrou-se rápida e eficiente. Poucos minutos depois Nick achava-se num carro, a conduzir pelas estradas sinuosas e mal iluminadas que levavam a Taylorsville.

 

Ainda ligou o rádio, mas como a música o deixava ainda mais nervoso desligou-o. Talvez fosse uma estupidez, até mesmo uma loucura da sua parte, mas não se importava. Tinha de descobrir por si próprio o que acontecera e, acima de tudo, de certificar-se de que Maddy estava bem. Só então se lembrou de que ela tinha um marido, mas isso também não o afectava. Douglas Blake sempre fora um homem egoísta. Isso podia ler-se no seu olhar. Se, contudo, era o que Maddy queria, tanto pior, mas naquele momento estava convencido de que inadvertidamente pusera Maddy em perigo e de que só ele podia ajudá-la.

 

Felizmente conhecia o caminho, porque o trajecto, em particular quando se seguia ao longo da margem do rio, podia ser traiçoeiro. Quando a estrada se tornou mais íngreme, abrandou; não queria sofrer um acidente, no seu zelo pela segurança de Maddy.

 

Porém, embora conhecesse bem aquelas estradas, enganou-se por duas vezes antes de encontrar o caminho que levava a casa de Maddy. Afinal, e contando com o dia anterior, estivera apenas duas vezes em casa dela. Os seus outros encontros haviam sido sempre no seu próprio território. Provavelmente, até poderia ter encontrado pretextos válidos para visitá-la com mais frequência, mas a ideia de estar na casa onde ela vivia, comia e dormia com o marido nunca lhe agradara. Recusava-se a ver tudo o que lhe lembrasse que a mulher que amava tão perdidamente era casada. Teve de se convencer de que nada mudara e de que mal aquele pesadelo terminasse viajaria para o Canadá, ao passo que Maddy ficaria na cidade, ao lado de Doug. Tinha igualmente consciência de que as pessoas achariam que aquele seu regresso, tão súbito e inesperado, era estranho e revelava uma preocupação exagerada pelo bem-estar de Maddy. E depois? Partiria para o Canadá e não teria de encarar os olhares de soslaio nem de ouvir os mexericos. Além do mais, se estivesse certo quanto a Bonnie Lewis e ao bebé, qualquer acção que desencadeasse seria plenamente justificada.

 

Reconheceu Decatur Street, virou a esquina e subiu a rua devagar até parar em frente da casa de Maddy. Havia luzes acesas no primeiro andar, mas o rés-do-chão estava imerso na escuridão. Só o carro de Maddy se encontrava estacionado. A carrinha dos Lewis desaparecera. Nick, sentado em frente do volante, sentiu o rosto em brasa. A carrinha dos Lewis desaparecera! "Perfeito! Vais fazer uma linda figura! Não conseguirás iludi-la por um minuto sequer. A primeira coisa que te vai dizer será: 'O que está a fazer aqui?' E provavelmente com o marido ao lado. E vais ficar à porta, com ar de pateta, a tentar explicar que tinhas de regressar para a salvar." Foi então que se lembrou de que não regressara apenas por Maddy. Havia uma criança inocente envolvida, um bebé que não pertencia à mulher que afirmava ser mãe dele.

 

"Concentra-te nisso", concluiu. Afinal, uma pessoa podia dar a volta do mundo à procura de uma criança que corria perigo sem que alguém achasse estranho tal procedimento. Nick abanou a cabeça, como a aprovar os seus próprios actos. Abriu a porta do carro, saiu e atravessou o carreiro. Sentia o coração aos pulos quando alcançou a porta e bateu, imaginando o eco dos passos dela e depois a expressão do seu rosto.

 

Ninguém respondeu. Nick aguardou alguns minutos e voltou a bater. Não havia ninguém em casa. Nick franziu as sobrancelhas. Talvez Maddy, Amy e Doug tivessem saído para celebrar a partida dos Lewis. Ficou ali, sem saber o que fazer. Não havia dúvida de que o seu regresso intempestivo redundara num fracasso, porque não havia ninguém em casa. Sentiu que uma enxaqueca ameaçava latejar sob a sua sobrancelha esquerda, provocada mais pela raiva do que pelo cansaço. Levando as mãos às ancas, pensou no que devia fazer a seguir. Talvez os Lewis tivessem desaparecido, mas ele ainda tinha de detê-los, por muito que lhe custasse. Pensou em Terry. De quem gostava, mas que devia arcar com as responsabilidades. O mais importante naquilo tudo era a criança. Só lhe restava dirigir-se à esquadra e contar o que descobrira. Nada mais podia fazer.

 

Preparava-se para regressar ao carro quando julgou ouvir um ruído que se assemelhava a um gemido. Voltou-se e examinou a casa mais atentamente, mas concluiu que devia ter sido o vento a assobiar por entre as folhas das árvores. Aquela época do ano era particularmente sinistra em qualquer local. Mesmo ele, um padre, não se atreveria a passear num cemitério na Noite das Bruxas. Hesitou, mas retomou o seu caminho. Só quando ouviu o mesmo ruído abafado pela segunda vez teve a certeza de que não era o vento.

 

Voltou atrás e tentou abrir a porta girando a maçaneta. Estava trancada. Não havia ninguém em casa, mas não podia ir-se embora. Examinou a porta e os painéis de vidro que a rodeavam. "Já fizeste figura de parvo, portanto não vieste de tão longe para te deixares levar pelo medo."

 

Olhou à sua volta. A um canto viam-se três estatuetas de sapos por baixo de um arbusto. Nick escolheu o sapo mais gordo. E, depois de um silencioso pedido de desculpas aos proprietários, ao sapo e aos painéis de vidro, arremessou a estatueta e partiu a vidraça que se achava mais perto da maçaneta.

 

Voltou a pôr a estatueta no seu lugar e passou a mão pelo buraco do vidro até conseguir destrancar a fechadura. Em seguida tirou a mão, girou a maçaneta e entrou. O vestíbulo estava às escuras.

 

Está aqui alguém? chamou em voz alta.

 

Não obteve resposta. Avançou alguns passos e foi então que ouviu novamente o gemido. Sentiu um calafrio. Era um gemido distinto, mas muito ténue, e vinha do primeiro andar.

 

Subiu os degraus a dois e dois até ao andar de cima. Uma luz fraca brilhava no corredor.

 

Está aí alguém?

 

O gemido que se seguiu foi mais insistente, sem dúvida para chamar a sua atenção. A sua primeira reacção foi agradecer a Deus por haver regressado. Afinal não fizera uma triste figura; alguém precisava de ajuda. Havia luzes acesas em dois dos quartos. Dirigiu-se ao primeiro e espreitou. Era o quarto de Amy. Estava desarrumado, mas vazio.

 

Sentindo a boca seca e a pulsação acelerada, avançou para o segundo quarto e, antes de entrar, murmurou uma prece.

 

O espectáculo com que deparou era hediondo. Terry Lewis jazia no chão no meio de uma poça de sangue. A sua tez estava tão pálida como a cal e tinha os olhos vítreos.

 

Meu Deus, Terry! O que lhe aconteceu? gritou Nick ajoelhando-se ao lado do homem ferido. Apesar de o cheiro a sangue ser enjoativo a ponto de o fazer sentir fortes náuseas, Nick forçou-se a examinar Terry mais de perto. Foi baleado!

 

Terry mal conseguiu acenar com a cabeça.

 

Oh, meu Deus! exclamou Nick. Podia ver que a vida se esvaía daquele homem. Precisa de um médico imediatamente! Ouça, vou pedir uma ambulância, está bem? Volto já. Você precisa de ajuda.

 

Quando Nick tentou pousar a cabeça dele novamente no chão antes de se levantar, Terry agarrou-lhe o pulso com uma força surpreendente para alguém que estava tão fraco. Os anos de prática de exercício físico na prisão pareciam concentrar-se na forma como Terry agarrava o seu salvador.

 

Terry, largue-me. Tenho de ir buscar socorro.

 

A Bonnie. balbuciou Terry. Se...ques...tro.

 

A sua voz era tão fraca que Nick teve de aproximar o ouvido da boca de Terry para perceber o que ele lhe dizia.

 

O bebé! exclamou Nick. Ela sequestrou o bebé dos Wallace, não foi?

 

O aceno de Terry foi quase imperceptível.

 

Eu já sei tudo acerca do Sean. Descobri que não é seu filho e lamento imenso.

 

Terry tentou humedecer os lábios ressequidos.

 

Eu não sabia...

 

Eu sei. Ela enganou-nos a todos. E a Maddy? Está bem? Está com Amy e o marido?

 

Terry tentou humedecer novamente os lábios e engoliu em seco. Parecia agitado.

 

Partiram murmurou a custo. Nick sentiu um aperto no coração.

 

Para onde? Partiram com a Bonnie?

 

Terry, num derradeiro esforço, assentiu com a cabeça. Depois, aliviado por saber que o padre compreendera, fechou os olhos.

 

Ouça, Terry afirmou Nick em voz baixa enquanto tentava que Terry lhe largasse o pulso. Deixe-me ir telefonar à polícia. Tenho de alertá-los a respeito da Bonnie e preciso de pedir ajuda para si.

 

Terry, contudo, pestanejou, meneando a cabeça.

 

Por favor, Terry. Precisa urgentemente de ajuda médica.

 

Queria libertar-se daquele homem, que continuava a agarrar-lhe o pulso, mas havia um apelo silencioso no olhar de Terry que o demoveu.

 

Salmo... vinte e três... indicou Terry num fio de voz.

 

Nick não conseguiu conter mais as lágrimas. Esquecera-se da sua fé. Talvez fosse tarde de mais para o auxílio médico e Terry sabia-o. Mas nunca era demasiado tarde para o conforto espiritual. Nick segurou as mãos fortes de Terry nas suas e uniu-as tanto quanto lhe foi possível.

 

Estou aqui consigo, meu amigo.

 

Um leve resquício de sorriso iluminou por segundos o rosto de Terry. Nick benzeu-se.

 

O Senhor é meu pastor. Não quererei...

 

Foi então que ouviu de súbito as portas de um carro a bater e estalidos de rádios vindos da rua. Ouviu passos pesados dirigirem-se à porta e em seguida vozes que se identificaram como sendo da polícia chamando por Mrs. Blake. Nick olhou para Terry, mas este parecia estar para lá de qualquer sentimento. Teria a polícia finalmente decidido agir após o seu telefonema? Também havia descoberto o mesmo que ele?

 

Aqui em cima! gritou. Precisamos de ajuda!

 

Terry bateu ao de leve com a cabeça na lapela do seu casaco, como uma criança cuja história preferida tivesse sido interrompida e pedisse ao pai que continuasse. Nick, ao fitar mais uma vez Terry, apercebeu-se da rude inocência no olhar daquele homem.

 

Lamento imenso... murmurou, e não se referia apenas àquela interrupção. Olhou com tristeza aquele filho de Deus, que havia sonhado começar de novo a sua vida.

 

Vamos lá... disse gentilmente. O Senhor é meu pastor...

 

Os agentes da polícia e do laboratório forense haviam invadido a casa de Maddy recolhendo provas e fazendo telefonemas. Na rua, uma ambulância esperava enquanto quatro paramédicos colocavam Terry Lewis numa maca com todo o cuidado, depois de lhe terem posto uma máscara de oxigénio na boca. Frank Cameron tinha lançado um aviso de busca em relação à carrinha de Bonnie, enquanto Pete Millard telefonara a Donna e a Johnny Wallace para lhes anunciar que Justin estava vivo e de saúde e que, com alguma sorte, o encontrariam em breve.

 

Nick, por seu lado, encostara-se à bancada da cozinha depois de ter respondido às perguntas dos detectives. Frank Cameron desligou o telefone e examinou o rosto cansado do padre.

 

Então porque não nos telefonou quando descobriu que tinha sido a Bonnie Lewis?

 

Mas eu telefonei! Verifique as chamadas para a linha especial.

 

É que recebemos centenas de telefonemas por dia e é difícil dar seguimento a todas... desculpou-se Frank.

 

Não posso acreditar que o Doug Blake tenha morrido... murmurou Nick. Ficara a saber que fora esse o motivo principal que levara a polícia até à casa de Maddy. Queriam informá-la da queda fatal do marido da torre do forte.

 

Ficámos livres de um homem que não prestava comentou Cameron sem revelar qualquer piedade. Só depois se lembrou de que falava com um padre. Desculpe. Eu nutria um rancor pessoal contra aquele homem. Prejudicou muito a minha filha e não posso dizer que lamento a morte dele. Nick meneou a cabeça, impaciente. Detestava que as pessoas lhe pedissem desculpa por exprimirem os seus verdadeiros sentimentos, como se ele fosse um hipócrita em vez de ser um homem de carne e osso com sentimentos que nem sempre eram os mais nobres.

 

Ele saltou? Foi uma queda deliberada? perguntou.

 

Não. Dois jovens viram tudo. Ele estava bêbedo e não devia ter ido armar-se em valente para o forte.

 

Nick pensou em Maddy, algures, numa estrada, com uma louca, sem desconfiar de que se tornara viúva. "Ajudá-la-ei a ultrapassar tudo isto", disse a si mesmo. "Só te peço, meu Deus, que ma devolvas sã e salva."

 

De repente a porta principal abriu-se e Donna Wallace entrou seguida pelo marido e por um oficial à paisana que tentava detê-los.

 

Onde está o meu bebé? gritou. Johnny agarrou-a pelos ombros. Estava exausto.

 

Frank fez sinal a Donna para que se acalmasse.

 

Sabemos onde ele está e vamos agora mesmo resgatá-lo.

 

Ele foi tomado como refém, não é verdade?

 

Neste momento não quero utilizar essa expressão replicou Frank. Se tudo correr bem, iremos interceptá-los sem quaisquer problemas.

 

O detective Millard afirmou que aquela mulher o tinha...

 

Efectivamente, foi Mistress Lewis. Tanto quanto sabemos o seu filho está bem de saúde e foi bem tratado, o que já são boas novas, não concorda?

 

Donna não conteve mais os soluços.

 

Espero que não percam o rasto do meu filho avisou Johnny. Não podem deixar escapar esta oportunidade.

 

Frank franziu as sobrancelhas por ouvir em voz alta aquilo que intimamente mais temia.

 

Não vamos deixá-lo à mercê daquela mulher resmungou irritado. Bom, mas tenho muito que fazer e não posso ficar aqui a conversar convosco.

 

O telefone tocou de novo e Frank atendeu. Ao escutar a voz do outro lado do fio a expressão do seu rosto alterou-se.

 

Está bem. Óptimo. Vamos a caminho. E desligou. Agora ouçam com atenção. Um guarda da brigada de trânsito acaba de avistar a carrinha. Mistress Blake terá chamado a atenção acendendo e desligando os faróis de alarme. Seguem para norte pela auto-estrada principal.

 

Donna deixou escapar um grito, mas depressa levou as mãos à boca.

 

Frank voltou-se para Len Wickes.

 

Vamos embora ordenou. Você conduz.

 

Sim, senhor! exclamou Len, exultante.

 

Nós também vamos anunciou Donna Wallace com triste determinação.

 

Frank nem se deu ao trabalho de argumentar, por saber que era inútil.

 

Pete, leva os Wallace no teu carro.

 

Eu também quero ir foi a vez de Nick afirmar.

 

Que eu saiba não vamos participar de um cortejo! explodiu Frank.

 

Eu conheço a Bonnie Lewis e talvez possa falar com ela...

 

Frank ponderou aquela hipótese. Len Wickes balouçava as chaves na mão.

 

Está bem, raios! Mas aviso-os desde já: não interfiram no meu trabalho!

 

Nick seguiu atrás de Cameron e de Len Wickes.

 

Se bem que não houvesse outras viaturas à vista, Bonnie não parava de olhar para trás como se pressentisse algo.

 

Tenho fome, mamã... choramingou Amy.

 

Quando pararmos vais comer, está bem? prometeu Maddy.

 

A estrada parecia interminável à sua frente. Quanto tempo passaria até que alguém desse pela sua falta? Ao que tudo indicava, a sua tentativa de despertar a atenção dos agentes da brigada de trânsito não surtira efeito. Nesse mesmo instante avistou algo pelo espelho retrovisor que fez o seu coração dar um salto. Não se ouviam sirenes, mas, muito ao longe, viam-se luzes intermitentes.

 

Vire aqui ordenou Bonnie.

 

"Também teria visto as luzes?", interrogou-se Maddy.

 

Onde? perguntou, tentando ganhar tempo.

 

Ali, onde está a seta. Vire agora ou mato a sua filha. Maddy virou para a direita, em direcção a um sinal com uma flecha que quase passava despercebido. Subiu uma rampa enquanto olhava com pesar para as luzes que agora pareciam ainda mais distantes.

 

Agora pare ordenou Bonnie. Vamos abrigar-nos ali.

 

O edifício de um só andar e fachada de tijolo era uma estação de serviço sem escritório nem restaurante. Num recanto, dois camiões estavam estacionados lado a lado. Quando entrou no parque de estacionamento, onde não havia mais carros, Maddy perguntou a si mesma se conseguiria chamar a atenção dos camionistas, mas não se via vivalma no interior. Talvez estivessem a descansar para recuperar energias. Lembrava-se de haver visto na televisão, algures, que os camionistas tinham por hábito dormir nas cabinas. "Talvez consigam ouvir-me." E sem parar para reflectir carregou na buzina tantas vezes quantas pôde. Contou dez toques antes de sentir uma dor lancinante na cabeça. Bonnie batera-lhe com toda a força com a coronha da pistola.

 

A mamã está a sangrar! gritou a pequena Amy. Não lhe faças mal!

 

Da próxima vez mato a tua mamã sibilou Bonnie. Maddy levou a mão à cabeça e olhou atordoada para o sangue que lhe escorria pelos dedos. Bonnie, entretanto, desapertara o cinto de segurança e tentava estrangulá-la.

 

Agora saia do carro e faça o que eu mandar!

 

Está bem sussurrou Maddy, mal podendo respirar. Podia sentir o sangue a correr-lhe pelo rosto. Desapertou o cinto e debruçou-se para a filha a fim de a ajudar. Bonnie já saíra do carro. Abriu a porta do lado de Amy e puxou brutalmente a menina para fora.

 

Pare! Não toque na minha filha! gritou Maddy.

 

Limite-se a trazer o bebé.

 

Primeiro largue a minha filha!

 

Preciso dela para me certificar de que você faz o que eu lhe mando.

 

Maddy fechou os olhos. É verdade. Enquanto tiveres a minha filha farei tudo o que me disseres." Voltou-se para o banco de trás, pegou em Justin e segurou-o contra o peito. Sentindo que o bebé tinha a fralda molhada, Maddy enfiou uma mão no saco de fraldas e tirou uma. Olhou para os dois camiões parados ao fundo do parque de estacionamento. Não havia qualquer sinal de vida no interior. "Devem ter pensado que os meus toques de buzina faziam parte dos seus sonhos", concluiu, desesperada. Justin, que acordara, esfregou os olhos e começou a emitir ruídos de protesto.

 

Entrem! ordenou Bonnie.

 

Maddy apressou-se a obedecer, com os olhos fixos na mão de Bonnie, que agarrava a pequena Amy pela gola. Como receava, não se encontrava ninguém na estação de serviço. No átrio havia apenas uma prateleira com guias turísticos e dois distribuidores automáticos, um de refrigerantes e outro de salgados e bombons.

 

Por favor, mamã... Posso beber um sumo? E comer umas bolachas?

 

Agora não! bradou Bonnie. Maddy empertigou-se.

 

Por favor intercedeu. Ela está com fome.

 

Já disse que não!

 

Demora apenas um segundo insistiu Maddy. Se não lhes der de comer e de beber, vão ficar rabugentos e começar a chorar. E sabe bem como isso pode ser irritante...

 

Bonnie franziu as sobrancelhas, mas acabou por ceder.

 

Está bem, mas despache-se.

 

Maddy procurou alguns trocos nos bolsos do casaco. Enquanto Bonnie vigiava com visível impaciência o átrio de entrada, Maddy enfiou as moedas na máquina e seleccionou um refrigerante e um pacote de bolachas amanteigadas para Amy. A menina olhou agradecida para as guloseimas e começou a comer.

 

Vem comigo ordenou-lhe Bonnie. Tenho de ir à casa de banho.

 

Podemos esperar cá fora sugeriu Maddy.

 

Uma ova!

 

Apontou a pistola às costas da menina, arrastando-a para o lavabo das senhoras. A garrafa de refrigerante saltou da mão de Amy, que começou a chorar. Não dando ouvidos aos seus protestos, Bonnie puxou-a para a porta. Maddy correu atrás da mulher, implorando-lhe que tivesse cuidado para não magoar a filha.

 

Uma vez no interior da casa de banho de dimensões reduzidas, Bonnie arrastou a menina consigo para uma cabina.

 

Não! Mamã! gritou Amy, olhando aterrorizada para a mãe.

 

Bonnie, por tudo o que é mais sagrado, não faça isso! suplicou Maddy fora de si. Deixe-a esperar aqui comigo. Prometo-lhe que nada farei. Juro!

 

Bonnie limitou-se a acenar que não com a cabeça e empurrou a pequena Amy para o interior da cabina. Maddy cerrou os punhos com tanta força que sem se dar conta as suas unhas cravaram-se nas palmas das mãos enquanto ouvia os gritos da filha. Voltando-se, por não suportar mais aquele suplício, viu a sua imagem reflectida no espelho da casa de banho. O sangue escorria por um dos lados do rosto e as suas mãos já estavam pegajosas.

 

Poucos segundos depois a porta de metal da cabina abriu-se e Bonnie saiu com Amy, muito vermelha de tanto chorar. Então a menina libertou-se da mão de Bonnie. Correu para a mãe, agarrou-se à sua perna e enfiou o rosto entre os seus joelhos.

 

Maddy baixou-se e, sempre com Justin ao colo, passou um braço pela cintura de Amy.

 

Desculpa, minha querida sussurrou.

 

Não queria olhar para Bonnie com medo de deixar transparecer o ódio que sentia por aquela louca.

 

Vamos embora! ordenou a mulher.

 

Maddy endireitou-se e deu a mão à filha. Bonnie empurrou-as para fora do lavabo. Quando regressaram ao átrio ouviram portas de carros a fechar-se. Bonnie empalideceu. Correu para a janela e apoiou a pistola no caixilho.

 

Ai, meu Deus! exclamou, depois de olhar pela janela entreaberta. Não tentem entrar aqui! Tenho duas crianças comigo e estou armada!

 

"Com quem estará a falar?", pensou Maddy. Nessa altura ouviu distintamente vozes vindas de fora e mais portas a bater. Foi então que a voz de um homem ressoou, amplificada por um megafone.

 

Mistress Bonnie Lewis, somos da polícia. Saia com as mãos atrás da cabeça. Não faça mal aos outros e nada lhe acontecerá. Repito: saia imediatamente!

 

Maddy agachou-se com um braço protector em volta das duas crianças. A polícia tinha-os encontrado. Estavam a um passo da liberdade. "Obrigada, meu Deus", agradeceu em pensamento. Depois olhou para a sua sequestradora, que espreitava pela janela.

 

Por favor, Bonnie... De que lhe serve continuar com isto? Já não pode fugir mais deles.

 

Bonnie não a ouvia.

 

Vou matá-los um a um! bradava na direcção dos faróis. Nada tenho a perder! E, se não acreditam em mim, ouçam isto! Voltou-se para o trio agachado perto da porta e apontou-lhes a pistola. Eu já lhes mostro! vociferou.

 

Não! gritou Maddy baixando a cabeça e agarrando-se às crianças quando Bonnie disparou.

 

Donna debatia-se, tentando libertar-se do oficial da polícia que a agarrava.

 

Largue-me! protestou. Largue-me!

 

Tinha-se passado uma hora desde que haviam entrado no parque de estacionamento da estação de serviço. Uma hora em que Bonnie tinha anunciado que mataria todos os reféns, uma hora em que tinham ouvido um tiro e um grito no interior do edifício. Um agente com um colete à prova de bala tentara a dada altura aproximar-se da porta do pequeno abrigo, mas Bonnie disparara pela janela e a bala roçara-lhe nos pés, o que o levara a recuar e a proteger-se por trás da barreira de carros.

 

A espera começava a tornar-se intolerável. Donna Wallace, que tinha conseguido aguardar durante dias a fio com mais paciência, começava a revelar-se muito agitada perante a ideia de que o filho pudesse levar um tiro e morrer a poucos metros dela. E o pior ainda era saber que não podia pegar-lhe ao colo. Johnny não se cansava de tentar acalmá-la mostrando um optimismo exagerado, mas de nada lhe valera. Donna Wallace não conseguia deixar de pensar naquela louca, armada e fechada no edifício, e sentia que ia ceder, como se cada momento fosse mais insustentável do que o precedente.

 

Libertando-se finalmente do oficial, precipitou-se para Frank Cameron, que falava com um agente da polícia estadual.

 

Porque não conseguem fazê-la sair? gritou. Porque não actuam? Usem gás lacrimogéneo! Obriguem-na a sair dali! Quero o meu filho!

 

Estamos a fazer todos os possíveis, mas não devemos nem podemos precipitar-nos. Ela já disparou contra um homem e pode ter atingido Mistress Blake. E como viu disparou contra um agente da polícia ainda há pouco. Tem de compreender que é uma mulher muito perturbada e perigosa. Por favor, mantenha-se à distância. Estamos a tentar tirar dali os reféns com vida.

 

Donna lançou-lhe um olhar fulminante, mas Frank mostrou-se impermeável à sua fúria. Ela não parecia dar-se conta de que aquela situação poderia acabar num massacre. Qualquer manobra mais abrupta por parte deles era susceptível de levar aquela mulher a perder completamente as estribeiras.

 

Voltou as costas a Donna e esta, sentindo-se impotente, avançou para Pete Millard, que consultava um manual sobre brigadas de intervenção. Pousara o megafone sobre o tejadilho do seu carro. Donna pegou no megafone, examinou-o e, depois de premir um botão, levou-o à boca e começou a gritar.

 

Ouça, sua louca... Fala Donna Wallace! Sou a mãe do Justin e quero o meu filho de volta! O seu grito de raiva foi substituído por soluços. Por favor, saia e devolva-mo...

 

Antes que pudesse continuar, Pete Millard tirou-lhe o megafone das mãos.

 

Não se meta nisto, Mistress Wallace! ordenou em tom ríspido. Temos uma equipa de especialistas que sabem lidar com este tipo de situação.

 

Entretanto Frank Cameron aproximara-se.

 

Pelo que vejo, não me parece que sejam assim tão grandes especialistas! ripostou Donna, para depois se abraçar ao marido. Quero pegar no nosso bebé. Ele está lá dentro. Não pode fazer nada? Meu Deus, já não aguento mais!

 

Estamos a fazer tudo o que está ao nosso alcance, acredite tentou acalmá-la Pete.

 

Levem-na daqui! ordenou Frank, por seu lado. Mistress Wallace, se não conseguir controlar-se, vou ser obrigado a mandar um dos meus homens escoltá-la até Taylorsville. Compreendeu?

 

Não lhe grite interveio Johnny Wallace. Não percebem que, para vocês, isto faz parte da vossa profissão, mas ela é a mãe daquele bebé?

 

Está bem, pronto. Desculpe... aquiesceu Frank, irritado. Mas calem-se todos. Estas situações podem levar algum tempo.

 

Nick, que não parara de andar de um lado para o outro desde que ouvira o tiro no interior do edifício, aguardou que aqueles pais desesperados fossem conduzidos para um local mais seguro. Só depois se aproximou de Frank Cameron.

 

Sei que tem os seus métodos, mas eu gostaria de falar com a Bonnie Lewis. Fui eu que celebrei o casamento dela... e que baptizei o bebé... Talvez ela confie em mim e me dê ouvidos.

 

Frank suspirou.

 

Quem me dera que conseguíssemos fazer o maldito telefone daquela espelunca funcionar.

 

A cabina pública que havia no átrio estava avariada. A pedido da polícia, a companhia dos telefones trabalhava diligentemente para conseguir restabelecer a linha do exterior e estabelecer uma comunicação com a estação de serviço.

 

Nick passou as mãos pelos cabelos como se quisesse arrancá-los.

 

Estava a pensar que... E se eu entrasse ali...?

 

Endoideceu? Nem pensar! Ou está com vontade de morrer?

 

Se eu entrasse desarmado... tenho a certeza de que ela o permitiria.

 

Não seja idiota ripostou Frank. Viu o que ela fez ao marido. Só nos resta esperar. Ela não pode aguentar por muito mais tempo. Quanto mais não seja, a dada altura há-de acabar por ceder ao sono. Neste tipo de situação temos de ser pacientes.

 

Mas é... que Mistress Blake está lá dentro com ela... para não falar das duas crianças. E sabe como são as crianças. Podem enervá-la ainda mais se começarem a chorar...

 

Mas que percebe você de crianças? perguntou com rispidez Frank Cameron.

 

Receio que muito pouco admitiu Nick. Mas, tal como o senhor, tive oportunidade de conhecer muitas pessoas e de auxiliar várias famílias sob pressão...

 

Frank acenou, reconhecendo em silêncio a verdade contida na afirmação do padre.

 

Não podemos perguntar-lhe se posso entrar para falar com ela?

 

Não sei... Vou pensar.

 

Dito isto, afastou-se para ir expor a questão aos outros agentes. Nick aguardou na escuridão, por trás dos faróis que iluminavam a relva, enquanto fitava o pequeno edifício onde Maddy se achava prisioneira. Tinha consciência do que passava pela cabeça dos oficiais da polícia. As probabilidades de que nenhum dos reféns saísse dali com vida eram elevadas. Ao pensar naquilo sentiu o estômago às voltas.

 

"Pensa antes no que dirias à Bonnie", disse a si mesmo. "Imagina que te dão a oportunidade de a trazeres à razão." Esforçou-se por organizar os seus pensamentos, mas não conseguiu. Só lhe vinha à mente o salmo vinte e três assim como o rosto de Maddy fitando-o do alto de um escadote, na capela, com os cabelos sedosos a cair-lhe pelos ombros. "Dá-me uma oportunidade", pediu sem, contudo, saber a quem se dirigia.

 

Por fim, Frank Cameron regressou e fez-lhe sinal de que obtivera autorização. A verdade era que Frank nunca comandara uma operação de resgate de reféns em toda a sua carreira e contava com a experiência dos homens que o acompanhavam. Todos tinham aprovado o plano de enviar o padre como intermediário.

 

Muito bem afirmou. Primeiro vamos perguntar-lhe. Se ela concordar, está preparado para entrar? Vai ter de ir desarmado e não quero que se arme em herói. Percebido?

 

Nick endireitou-se. O seu coração parecia querer saltar-lhe do peito, tão depressa batia. Talvez Bonnie disparasse mal ele transpusesse a porta, só para provar que levava as suas ameaças a sério.

 

Sim, estou preparado respondeu sem hesitar.

 

Muito bem. Aqui vai...

 

Frank avançou para Pete Millard, que não largara mais o megafone, e comunicou-lhe o plano que haviam elaborado. Pete acenou e ligou o megafone.

 

Mistress Lewis anunciou em tom afável, o padre Nick Rylander está aqui e gostaria de entrar para falar consigo. Diz que é seu amigo e do seu marido. Se concordar, ele entrará desarmado.

 

Não houve resposta do interior da estação de serviço. "Vá lá. Deixa-me entrar. Por favor, dá-me uma oportunidade", implorou mentalmente Nick. Os dois polícias entreolharam-se.

 

É um sim ou um não? quis saber Nick.

 

O oficial que comandava as operações encolheu os ombros.

 

É difícil saber...

 

Pete resolveu tentar de novo.

 

Se concordar, abra e feche as venezianas.

 

Com os olhos postos na janela, aguardaram contendo a respiração. De súbito, houve um movimento na janela. As venezianas abriram-se, para logo depois se fecharem uma única vez. Mas todos haviam visto o sinal.

 

Está certo confirmou Pete pelo megafone, sorrindo. Compreendido!

 

Agora, que era definitivo, Nick sentiu um nó na garganta e esforçou-se por apagar da sua mente a imagem de Terry Lewis jazendo numa poça de sangue.

 

Está pronto, padre? perguntou Frank Cameron. Nick anuiu com a cabeça.

 

Não se esqueça de que não deve fazer nada senão falar com ela interveio o chefe do corpo de intervenção. Não tente armar-se em herói. Pode pôr em perigo a vida dos reféns. Esqueça os filmes de James Bond. Fale-lhe apenas do ponto de vista religioso e tente minimizar as consequências. Não quero que lhe faça promessas, tal como a de que não será condenada...

 

Pete Millard riu-se.

 

Não exagere...

 

Mas continuou o chefe do corpo de intervenção tente tranquilizá-la. Não lhe diga que se encontra numa situação desesperada... É muito importante que não a ponha mais nervosa do que ela já está.

 

Compreendido anuiu Nick, enquanto o seu estômago parecia haver-se tornado um remoinho.

 

E não se esqueça de que não pode contar com qualquer segurança ou apoio avisou-o Frank.

 

Nick acenou, por lhe faltar a voz.

 

Ponha as mãos atrás da cabeça ao entrar aconselhou o outro oficial.

 

Nick obedeceu. Rezou uma prece em silêncio e avançou, passando pelos faróis dos carros-patrulha e das carrinhas das várias televisões.

 

Ao vê-lo afastar-se, Frank Cameron meneou a cabeça.

 

Têm a certeza de que vai resultar? Não me agrada...

 

Por vezes, os loucos como ela só dão ouvidos a um padre e a mais ninguém. Não seria a primeira vez.

 

Frank mordeu o lábio inferior.

 

Não sei... Acho que ela já foi longe de mais e há muito que passou as raias do desespero. Ele pode acabar por se tornar um refém. Eu é que não arriscaria a minha vida entrando ali.

 

O chefe do corpo de intervenção encolheu os ombros e, com o olhar, seguiu Nick, que, com as mãos levantadas num gesto de rendição, avançava em direcção à estação de gasolina.

 

Vai ser o funeral dele comentou.

 

Esperemos que não replicou Pete.

 

Maddy sentiu um calafrio quando estendeu o seu casaco no chão.

 

Porque não te deitas aqui? perguntou a Amy, que chorava agarrada à mãe desde que Maddy fora atingida por uma bala.

 

Está cheio de sangue... soluçou a menina.

 

Eu sei, minha querida sussurrou Maddy, mas a mamã precisa da tua ajuda. Se te deitares, talvez o Justin durma a teu lado.

 

Amy enxugou as lágrimas e olhou com renovado interesse para o bebé que estava ao lado da mãe. Devia ser melhor dormir com um bebé de verdade do que com um ursinho de peluche. Então deitou-se sobre o casaco.

 

Maddy tremia de frio. Apertou a camisola à volta da cintura, tentando acalmar as dores que sentia no local onde a bala penetrara. Após o choque inicial a dor diminuíra e só se tornava mais lancinante quando ela tentava mexer-se. Mas agora só usava uma camisola de algodão fina, manchada de vermelho.

 

O ferimento provocado pela bala sangrara menos do que o lanho que se abrira na sua cabeça quando Bonnie a atingira com a coronha da pistola. No entanto, ignorava que lesões internas os seus ferimentos haviam provocado. Quando se apercebera de que Bonnie disparara contra ela, vira o átrio escurecer subitamente até se tornar um ponto minúsculo. Maddy sabia que podia entrar em estado de choque e esforçava-se por não sucumbir. Não podia abandonar Amy e Justin nem queria que eles percebessem quanto sofria. Já estavam aterrorizados. Tinham começado a chorar ao ouvir o tiro e Bonnie havia brandido a pistola, ordenando-lhes que se calassem. Maddy, contudo, conseguira acalmá-los, abafando os seus gritos de dor, mas agora todo o seu corpo se ressentia com o frio, o medo e a exaustão.

 

Estou pronta anunciou Amy, estendendo os braços para o bebé.

 

Maddy tinha plena consciência de que não seria fácil. Justin não era um urso de peluche, mas um bebé esfomeado e assustado e receava não ter forças para o erguer. Respirou fundo e, servindo-se dos músculos dos braços, colocou-o sobre o casaco tão depressa quanto pôde, enquanto Amy falava carinhosamente com o bebé, sussurrando-lhe que se deitasse a seu lado e dormisse. Maddy esforçava-se por ganhar fôlego a fim de lhes entoar baixinho uma canção de embalar quando, de repente, ouviu alguém anunciar que o padre Rylander estava lá fora e queria entrar.

 

O padre Rylander? Precisou de alguns segundos para compreender que estavam a falar de Nick. Mas que estava ele a fazer ali? Sentiu o coração mais leve. A esperança renascia. O resto pouco importava. Ele estava ali. Só isso contava. E estava disposto a enfiar-se na toca do lobo. Olhando discretamente para Bonnie, interrogou-se sobre o modo como iria ela reagir àquela sugestão. Bonnie mantinha-se de vigia à janela, com o olhar perdido, enquanto batia com a pistola no caixilho. Maddy não se atreveu a falar-lhe e recomeçou a cantar baixinho, enquanto aguardava.

 

O que quer ele? resmungou Bonnie. Ignorando se Bonnie lhe fizera uma pergunta, Maddy nada disse, mas Bonnie voltou-se e olhou para ela.

 

O que julga que ele quer?

 

Maddy acariciava Justin e Amy, aninhados, muito juntos, sobre o casaco. Já aprendera que não devia irritar ou contrariar a sua sequestradora.

 

Não sei... Talvez queira ajudar.

 

Talvez queira ajudá-la a si, isso sim! ripostou Bonnie com patente desdém.

 

Não faço ideia de como veio cá parar confessou Maddy. Ele ia a caminho do Canadá.

 

Será que ele sabe o que aconteceu ao Terry? perguntou Bonnie. Ele sabia quanto o Terry me amava.

 

Maddy sentiu alguma esperança ao detectar uma ponta de nostalgia no tom de voz de Bonnie.

 

Ele falou-me de si e do Terry disse, usando de toda a prudência. Contou-me tudo sobre a vossa história de amor e quanto representavam um para o outro.

 

Está a ver? exclamou Bonnie.

 

Foi o que ele me disse concordou Maddy. Bonnie olhou de novo pela janela, fitando a barreira de carros-patrulha e o que a esperava fora daquele edifício.

 

Mas como pode ele ajudar-me? perguntou, desalentada.

 

"Ela precisa de um escape", compreendeu Maddy. "Talvez queira que eu a convença a deixá-lo entrar."

 

Talvez ele tenha conhecimento de alguma coisa que possa ajudá-la respondeu, medindo as suas palavras. Sentia-se como se andasse na ponta dos pés sobre uma camada de gelo fino. Era importante que se abstraísse da dor e se concentrasse em encontrar as frases adequadas. Ele é padre, Bonnie. Nunca lhe mentirá. E está do seu lado. Além do mais, sabe tão bem como eu o quanto ele gosta de si e do Terry.

 

Bonnie olhava fixamente para ela e para as crianças.

 

Eu devia pôr cobro a tudo isto, agora afirmou com voz cansada, apontando-lhes a pistola.

 

Maddy estremeceu, ciente de que Bonnie podia disparar a qualquer momento. O seu desespero era genuíno e muito perigoso.

 

Mas porquê pôr cobro a tudo isto retomou Maddy, esforçando-se por parecer calma antes de ouvir o que ele tem para lhe dizer? Não há pressa. Eles não podem apanhá-la enquanto estivermos aqui. E talvez lhe faça bem falar com alguém que a compreende realmente...

 

Bonnie suspirou.

 

Está bem.

 

Voltando-se de novo para a janela, puxou o cordão que abria e fechava as venezianas. Maddy teve a impressão de que acabara de levar um murro no peito e quase se dobrou para a frente, tão grande foi o alívio que sentiu. Ajoelhou-se ao lado da filha e aguardou, sem se atrever a erguer a cabeça, enquanto Bonnie espreitava pela janela. Depois do que lhe pareceu uma hora, se bem que não fossem mais do que poucos minutos, ouviu Bonnie dirigir-se para a porta e abri-la.

 

Sentiu a brisa aflorar-lhe o rosto. Por fim ergueu a cabeça e viu-o. Usava uma camisola de lã cinzenta. Estava pálido e o seu rosto não escondia a inquietação que sentia. Ao ver o sangue que já secara no rosto dela, mas que continuava a empapar-lhe a camisola, sentiu uma tontura, mas nada mais pôde fazer. Os seus olhares cruzaram-se por segundos e Maddy tentou enviar-lhe um aviso, em silêncio. Nada disse nem sequer esboçou um sorriso. Nick compreendeu e desviou o olhar.

 

Só depois se voltou para Bonnie. Sabia agora que estava perante uma assassina, uma sequestradora, uma pessoa que violara as leis dos homens e de Deus. Matara uma rapariga inocente, disparara contra o seu próprio marido e derramara o sangue da mulher que ele amava.

 

Bonnie recuou com a pistola apontada a Nick.

 

O que quer? perguntou.

 

Ajudá-la respondeu Nick com toda a sinceridade. Não se sentia intimidado pela arma. O seu lugar era ali e pensava no versículo doze do capítulo nove de São Mateus: "Não são os que têm saúde que precisam de um médico, mas sim os doentes."

 

Não pode ajudar-me replicou Bonnie com desprezo. Aliás, acho que também vou matá-lo.

 

Estive com o Terry anunciou Nick, ignorando as ameaças da mulher. Falei com ele. Ele não morreu, Bonnie. Sabia que ele ainda está vivo?

 

A polícia dissera-lhe pelo megafone que Terry estava vivo, mas Bonnie pensara tratar-se de uma manobra de diversão.

 

Está a dizer isso apenas para me iludir. Para me levar a sair daqui. Como pode estar vivo se jazia numa poça de sangue?

 

Pediu-me que lhe recitasse o salmo vinte e três. Apertou a minha mão com tanta força que pensei que ia partir-me os dedos.

 

Ele é muito forte comentou Bonnie, animada. Depois de observar atentamente a expressão do padre, concluiu que ele estava a dizer a verdade e, de imediato, os seus olhos iluminaram-se. Eu não acreditei neles. Estava convencida de que o Terry morrera.

 

Nick ignorava Maddy e as crianças, embora desejasse correr para elas e abraçá-las. Estaria Maddy gravemente ferida? Tinha de libertá-la. Só então teve consciência de que Maddy ainda não sabia o que acontecera a Doug. Ignorava que o marido morrera, mas não seria Nick a dizer-lho. Só uma coisa contava, agora. Tudo o resto podia esperar. Se não conseguisse estabelecer um elo de ligação com Bonnie, nada mais os salvaria.

 

Eu sei, Bonnie, mas posso assegurar-lhe que ele não morreu. Juro pelo que há de mais sagrado. Não vou dizer que está em grande forma, porque a Bonnie sabe-o, mas ele é teimoso, um lutador, e não vai desistir facilmente.

 

Nick sorriu-lhe e Bonnie correspondeu-lhe. Por um breve momento, o seu rosto feio e anguloso iluminou-se ao recordar o seu grande amor. Aos olhos de Maddy, era como vislumbrar a alma da outra mulher, ou antes, o seu último recanto de pureza, em que Terry Lewis tocara. E sabia que só Nick seria capaz de atingir aquele canto inacessível aos outros, por ser o único que os conhecera, por nunca haver duvidado deles nem criticado o amor que os unia e por haver testemunhado quanto eles se amavam. Ou talvez porque dele irradiasse compreensão e tolerância.

 

Não admirava que Bonnie o tivesse deixado entrar. O seu ódio já começara a dissipar-se, só de ouvir as palavras de Nick. Maddy ainda hesitou antes de falar, consultando discretamente Nick com o olhar à procura da sua aprovação; o padre acenou-lhe.

 

Bonnie... interveio Maddy por fim. Talvez nem tudo seja tão mau como pensa...

 

Ele é ou não é um lutador? exclamou Bonnie, ignorando-a por completo.

 

É um homem duro, com um coração de ouro concordou Nick.

 

De súbito, o entusiasmo dissipou-se e Bonnie voltou a ser uma mulher azeda.

 

Isso não interessa. Mesmo que ele recupere, vai odiar-me...

 

Maddy olhou ansiosa para Nick.

 

Isso não é verdade, Bonnie disse timidamente. Foi uma discussão que se descontrolou. Todos nós discutimos. O meu marido e eu passamos a vida a discutir. Não é o fim do mundo. Nick evitava fitá-la e Maddy convenceu-se de que ele já estava a par da vergonha que atingira Doug, o que a fez corar.

 

Como foi que tudo aconteceu? Sim, porque sei quanto você ama o Terry proferiu Nick.

 

Bonnie teve de reprimir o impulso de se aninhar nos braços do padre.

 

Ele descobriu a verdade sobre o bebé. Disse que não me amava e que nunca me tinha amado, padre. Ela pode dizer-lho, porque ouviu tudo.

 

Nick sabia que Bonnie se referia a Maddy, mas não se permitiu olhar para ela.

 

Pode muito bem ter declarado isso, mas sem sentir realmente o que dizia, porque estava debaixo do efeito da ira.

 

Bonnie empertigou-se ao recordar a dor que as palavras do marido lhe haviam provocado.

 

Ele não me quer. Nada mais há que me leve a querer viver.

 

Ele sentiu-se traído por causa do bebé e não pode censurá-lo. Pense bem. Não teria sentido o mesmo? Mas a Maddy tem razão. Não são o primeiro casal que teve uma discussão.

 

Pois não concordou Bonnie num fio de voz. Depois, ao recordar a monstruosidade do seu acto, meneou a cabeça. Mas a maior parte das mulheres não dispara contra o marido.

 

Maddy podia perceber que Nick sentia uma verdadeira compaixão por aquela mulher.

 

Existe uma coisa muito importante chamada perdão.

 

E eu sei que o Terry foi abençoado com o dom de perdoar. Terá a capacidade de lhe perdoar e talvez vocês possam encontrar-se de novo no vosso amor.

 

Nessa altura Bonnie acordou bruscamente do seu devaneio.

 

O que sabe você sobre o amor? É um padre! Não sabe nada! E não me venha com a conversa do amor divino! Aviso-o desde já de que não sou como o Terry. Não acredito nessas patranhas. Não foi para ouvir um sermão que o deixei entrar aqui. Aliás, nem sei porque consenti que viesse cá para dentro.

 

Maddy teve de reprimir um grito de dor. Bonnie era absolutamente imprevisível. Nick, contudo, mantinha a calma.

 

Penso que me deixou entrar porque precisava de falar com alguém que a conhecesse e que soubesse tudo por que passou.

 

E que também sabe que nada mais me resta rematou Bonnie.

 

E o Sean? perguntou Nick.

 

Maddy ergueu a cabeça, sobressaltada, por mal acreditar no que acabara de ouvir. Sean? Ele não sabia? A polícia ainda não sabia que aquele bebé era Justin Wallace? O que estava a passar-se? Acharia Nick que Bonnie endoidecera, quando ela não perdera a noção da realidade? Quando sabia perfeitamente que era uma sequestradora e uma assassina? Estava a tentar que ela os matasse a todos? Maddy sentiu uma fúria repentina. Era como se Nick tivesse avançado por um caminho sinuoso, com passos seguros, carregando-a, a ela e às duas crianças, aos ombros, para em seguida dar um valente trambolhão. Nick apercebeu-se da expressão horrorizada de Maddy e lançou-lhe um olhar para lhe transmitir que devia confiar nele. Bonnie reagiu da mesma maneira que Maddy.

 

O Sean? exclamou. Então não sabe quem ele é? acrescentou, indicando o bebé com a pistola. Eu... eu sequestrei-o. Fui eu que matei aquela rapariga. Não sabe de nada? repetiu, fora de si. Não existe nenhum Sean!

 

Nick fitou-a, com expressão penetrante, sem se deixar abalar.

 

Claro que existe.

 

Bonnie começou a tremer.

 

Não! Você está louco!

 

Sei que aquele bebé é o Justin Wallace, mas há um Sean. O sonho de uma vida. O bebé que quis ter do Terry. Fui até ao Maine, Bonnie. Estive na casa onde viveu e conheci a Colleen. Fui até lá para ver se encontrava alguém que pudesse ajudar-vos, por causa do acidente que sofreram. Você e o Terry queriam começar uma vida nova e tudo parecia correr-vos mal. A Colleen falou-me muito de si. Contou-me tudo sobre a sua mãe e a vida dura que ela lhe fez passar. Foi mesmo ao ponto de afirmar que ninguém merecia ser mais amada do que você.

 

Ela nada sabe sobre a minha mãe replicou Bonnie em tom de escárnio. Ninguém sabe. Nem sobre o acidente, nem sobre o que realmente aconteceu. E tenho a certeza de que ela não me teria feito tantos elogios se estivesse a par da verdade.

 

Nick tentou ignorar a resposta de Bonnie, embora ela viesse ao encontro das suas suspeitas acerca da morte "acidental" da mãe, mas não queria pensar nisso. Tinha de se concentrar em tentar convencê-la.

 

A Colleen disse-me que a Bonnie foi muito boa com ela. Contou-me como você a ajudava e confessou que sentia saudades suas.

 

Eu também tomei o bebé dela anunciou Bonnie em tom de desafio, se bem que a sua voz se revelasse algo trémula. Aposto que ela não lhe disse isso. Sabe porquê? Porque ela nunca o soube. Fi-lo passar pelo Sean, até mesmo no dia em que o senhor o baptizou. Disse à Colleen que tomaria conta do bebé dela, trouxe-o comigo até aqui e disse a todos que era o Sean. Mas nunca houve nenhum Sean. Não compreende?

 

Eu sei que foi o filho da Colleen, o George Júnior, que baptizei naquele dia. Mas também sei que para si era, na verdade, o Sean. Ou não era?

 

Bonnie fitou-o, perplexa.

 

E não está zangado comigo? perguntou, e a sua voz mais parecia a de uma criança.

 

Nick estendeu os braços.

 

Você tinha um sonho chamado Sean. Representava a vida que tanto desejava ter. Era o símbolo da família a quem podia dedicar todo o seu amor. Não era pedir assim tanto. Apenas algo que nunca conheceu. E o Sean tornou-se real, tanto para o Terry como para si. Existia no vosso espírito e no vosso coração.

 

Bonnie desviou o olhar. Maddy, retendo a respiração, apoiou-se contra a parede tentando levantar-se. Bonnie lutava contra o peso que as palavras de Nick lhe haviam trazido ao coração. Habituada a ser criticada e rejeitada, era-lhe impossível aceitar a compreensão do padre. Mas o seu espírito exausto começava a sucumbir aos golpes constantes da compaixão de Nick.

 

Está bem concedeu. Diga-me apenas uma coisa: o Terry disse-lhe que me amava?

 

Nick, ciente do que Bonnie queria ouvir, se bem que não correspondesse à verdade, hesitou. Do ponto onde agora se encontrava, Maddy apercebeu-se da hesitação fatal que ensombrou o rosto de Nick, e não foi a única porque também Bonnie depressa compreendeu.

 

Tentou enganar-me! gritou. Eu sabia! Ergueu a pistola em direcção a Nick, soltando um urro.

 

Maddy lançou-se para a frente, arranhando o rosto de Bonnie e atirando-lhe os óculos ao chão. Apanhada de surpresa, Bonnie perdeu o equilíbrio. Nick, desta vez, não hesitou. Agarrou-a por um braço, que torceu atrás das costas da mulher. Depois tirou-lhe a pistola e lançou-a a Maddy, que a apanhou imediatamente.

 

Bonnie ainda se contorceu, fora de si, até que de repente, ao perceber a sua derrota, tombou de joelhos e começou a chorar. Nick ergueu-a gentilmente, como se fosse uma criança. Maddy avançou, cambaleando, para a porta, com o olhar fixo em Bonnie, como se fosse uma fera que pudesse atacar de novo a qualquer momento. Mas Bonnie achava-se já muito longe dali.

 

Maddy abriu a porta e lançou a pistola para o relvado. Só sentiu um enorme alívio quando a arma desapareceu na escuridão. Já nem sentia dores. Voltando-se para as duas crianças, que tinham erguido timidamente os rostos, escondidas por entre as dobras do seu casaco ensanguentado, estendeu-lhes os braços.

 

A arma jazia no relvado sob a luz forte dos faróis. Os polícias começaram a avançar, cautelosamente, como se fosse um meteoro que tivesse acabado de cair.

 

É uma pistola! gritou alguém, e os homens que se tinham reunido para tentar pôr cobro àquela situação perceberam então que o cerco terminara.

 

Donna Wallace foi a primeira a agir. Ignorando os avisos do marido e da polícia, passou pelos carros que formavam a barricada.

 

Correu em direcção ao edifício de tijolos tão depressa que mal conseguia respirar. Foi a primeira pessoa que viu Maddy quando esta surgiu com Justin ao colo.

 

Amy pressionou o nariz contra o vidro e olhou encantada para o céu infinito. Ergueu a sua boneca, Loulou, e indicou-lhe as nuvens, que, mais abaixo, pareciam elefantes. Uma hospedeira parou com o carrinho perto dos lugares que Maddy e a filha ocupavam e perguntou se queriam uma bebida e alguns salgadinhos.

 

Queres um sumo, minha querida? perguntou Maddy. Amy voltou-se.

 

Sim, por favor respondeu.

 

Um sumo de maçã pediu Maddy. Não, obrigada, eu não quero nada.

 

Baixou o tabuleiro de Amy, que agarrou no copo com ambas as mãos e começou a beber. Depois voltou-se de novo para contemplar as nuvens.

 

Maddy fitou a filha com ternura. Muitas vezes ainda sentia medo perguntando a si mesma que cicatrizes poderiam ter deixado na menina as experiências do ano anterior. Mas Amy vivia o dia-a-dia, o que constituía a grande alegria e o bálsamo da infância, e Maddy mantinha a esperança, e nada mais, de que ela ultrapassasse o que passara sem ficar muito traumatizada. A alegria que sentira por ser libertada do cativeiro a que Bonnie as forçara desaparecera com a notícia da queda fatal de Doug. Entre o choque provocado pela morte de Doug e a operação a que havia sido submetida, Maddy não conseguia lembrar-se dos dias seguintes. Tinha uma vaga ideia de que certas pessoas tinham sido bondosas para com ela: Charles Henson, Ruth Crandall, mas, acima de tudo, Nick. Mesmo assim, guardava poucas lembranças dos piores momentos da sua vida. Os jornais haviam-se deliciado ao relatar pormenorizadamente os pecados de Doug, insinuando que a sua morte não fora mais do que a maneira que ele encontrara de escapar ao castigo que o aguardava. O jovem casal de namorados que assistira a tudo visitara Maddy propositadamente para lhe assegurar que Doug não saltara. Pensavam que talvez a ajudasse saber o que realmente acontecera e, de facto, ajudara, pelo menos um pouco.

 

A hospedeira passou de novo para recolher o copo.

 

Vai ter de levantar o tabuleiro agora disse a Amy. Vamos aterrar dentro de poucos minutos.

 

Maddy explicou à menina como fechar o tabuleiro, enquanto o avião iniciava a descida.

 

Mamã, não vamos perder-nos no meio das nuvens, pois não?

 

Não, minha querida respondeu Maddy sorrindo enquanto esfregava a mãozinha da filha.

 

Mamã, doem-me os ouvidos... queixou-se Amy.

 

Tenho aqui uma coisa que te vai ajudar.

 

Maddy pegou no seu saco, de onde tirou uma pastilha elástica que deu a Amy.

 

Toma. Mastiga bem, que te vai ajudar a não teres dores de ouvidos.

 

Amy olhou para a mãe, espantada, pensando por que razão se lembrara a mãe de uma coisa tão estranha, mas, como gostava de pastilhas elásticas, ficou contente.

 

Maddy preparava-se para fechar o seu saco quando viu o sobrescrito aberto, com um selo do Canadá colado a um canto. Tirou a carta que lá vinha, desdobrou-a e releu-a. Já a lera e reflectira sobre o seu significado tantas vezes que quase a sabia de cor.

 

Começava assim:

 

"Querida Maddy,

 

Foi bom falar consigo na outra noite. Quando recebi o seu telefonema sentia a vista cansada de olhar para os slides. Ser professor de História de Arte faz-me compreender de quanto me esqueci desde que andei na escola. Felizmente, o director do departamento é muito paciente e parece querer manter-me no corpo docente. Tenho boas novas para lhe dar sobre o bebé dos Henson. Não tenho quaisquer dúvidas de que Charles deve ter andado muito preocupado com a ideia de a sua mulher dar à luz, apesar de todas as maravilhas da medicina moderna. Por isso mesmo, deve ter suspirado de alívio, para já não dizer que deve ter ficado louco de felicidade, agora que a pequena Katherine nasceu com saúde. Sei que o Charles a ajudou muito ao longo deste último ano. Parece-me ser bom homem e fiquei muito satisfeito com a alegria deles.

 

Recebi uma outra carta da Bonnie, hoje. Como é normal, está muito deprimida tentando lidar com a realidade de que vai passar toda a vida na prisão, até porque não lhe parece importante saber se o merece ou não. Vou responder à carta dela. Espero que não fique zangada comigo. Depois de tudo o que aconteceu, sinto ser esse o meu dever. Não posso agradecer suficientemente a Deus por ela se ter declarado culpada, poupando-nos a todos a agonia de um julgamento. De qualquer maneira nunca teria hipóteses de ser ilibada. Diz-me que recebeu uma carta do Terry há uns dias. Agora é ele que lhe escreve para a prisão. A vida é estranha, não acha?

 

Tenho pensado muito no que me disse pelo telefone. Quero deixar tudo bem claro. Não abandonei o sacerdócio na esperança de que se case comigo. Deixei de ser padre porque sabia, no meu íntimo, que não poderia continuar a manter os meus votos. Não tinha outra escolha. Não sei como posso convencê-la da sinceridade da minha opção. Tenho plena consciência de que a sua confiança nos homens e no casamento ficou muito abalada.

 

Tentei ser optimista por nós os dois, mas também não quero que fique com uma ideia errada acerca de mim. Não sou nenhum santo. Amo-a e a Maddy sabe-o. Disse-lho, num cenário dos mais românticos que pode haver: uma estação de serviço. Naquela noite, quando a vi ali agachada com as crianças temi pelas nossas vidas e prometi a mim mesmo que, se Deus nos libertasse daquele martírio com vida, lhe diria o que sentia por si, sem pensar nas consequências.

 

E, para que fique bem claro, volto a dizê-lo. Amo-a, Maddy. Quero casar consigo. Quero que a Maddy, a Amy e eu possamos ser uma família e que tenhamos mais filhos. Penso que não fiz segredo dos meus sentimentos desde aquela terrível noite.

 

Por outro lado, a Maddy nada disse. Se bem que esta minha carta não seja um ultimato, existem outras coisas que preciso de saber. Encontrará, junto com esta carta, dois bilhetes para um voo, na próxima sexta-feira à tarde, com destino a Monreal. Quero que a Maddy e a Amy venham até cá para conhecerem a minha casinha (que precisa urgentemente de um toque feminino) na floresta e a universidade onde lecciono. Sei que sente medo, mas todo o amor exige um voto de confiança e muita fé.

 

Não tem de me telefonar novamente. Estarei no aeroporto, com o coração nas mãos. Se não estiver a bordo do avião, sofrerei, mas estou disposto a ver as minhas esperanças dissiparem-se e a ser humilhado publicamente. Já posso imaginar a cena um homem crescido a tentar trepar por uma corrente, gritando: "Deixem-me verificar o interior do avião com os meus próprios olhos! Elas têm de estar aí, algures!"

 

Maddy não pôde impedir-se de sorrir ao ler aquelas últimas linhas.

 

"Por favor, esteja lá. Com todo o meu amor, Nick."

 

Recostou a cabeça na almofada e suspirou. Não o censurava por querer que ela tomasse uma decisão. Assim que o admitira, o seu amor por ela havia sido ardente. Maddy não esperava aquela declaração de amor nem nunca suspeitara que um dia a receberia. Nick protegera-a com unhas e dentes ao longo do último ano. No início quisera que ela abandonasse Taylorsville e o acompanhasse, mas ela nunca poderia pensar em tal um ano antes. Quando Nick decidira deixar o sacerdócio, Maddy avisara-o, zangada, de que não o fizesse por sua causa porque não podia prometer-lhe nada.

 

Maddy olhou para Amy enquanto o avião pousava na pista. A menina estava deliciada com os solavancos provocados pela aterragem.

 

Por favor, mantenham-se sentados nos vossos lugares até que o avião pare pediu a hospedeira quando alguns dos passageiros começaram a levantar-se.

 

Chegámos anunciou Maddy.

 

O Nick está ali? Vem buscar-nos?

 

Sim respondeu Maddy. Tinha a certeza, embora soubesse que nunca viria a recompor-se de todas as desilusões que Doug lhe provocara. Olhando para a filha interrogou-se sobre se um dia deveria contar-lhe toda a verdade acerca do pai. Tentara não ceder ao azedume durante o período de luto. Tinham chorado juntas a morte de Doug, e Maddy concluiu que talvez fosse melhor deixar as coisas como estavam. Se um dia, mais tarde, Amy fizesse perguntas sobre o pai... Quem sabe? Podia nem sequer se lembrar dele. Seria apenas uma ténue recordação alojada no seu inconsciente. Além do mais, nunca fizera mal à própria filha. E, quando Maddy sentisse algum azedume, deveria lembrar-se disso.

 

Ajudou a menina a desapertar o cinto.

 

Não te esqueças da Loulou... Amy agarrou-se à sua boneca.

 

Vamos para a floresta disse à boneca, muito séria. E fazer fogueiras.

 

Levantaram-se e seguiram ao longo do corredor do avião. Ao alcançarem a porta, Amy despediu-se alegremente da hospedeira, que lhe retribuiu com o mesmo entusiasmo. Maddy sentiu o coração bater com mais força quando percorreram o túnel que conduzia à porta de desembarque. Alguns passageiros caíam nos braços dos seus entes queridos. Passou em revista a sala de espera com o olhar, procurando-o, e, por breves momentos, teve medo. A pouco e pouco admitira a si mesma que o amava. Mas, como se sentiria ali, no mundo dele, dizendo-lho cara a cara?

 

Foi então que o viu. Avançava para elas e a sua expressão preocupada depressa se dissipou pela alegria de as ver. Era um homem atraente, corajoso e amava-a. Sentiu todas as suas dúvidas elevarem-se no ar, como bolhas que se dissipavam. Amy largou-a e correu para os braços dele. Nick ergueu a menina no ar com uma gargalhada. "São os dois amores da minha vida", pensou Maddy ao vê-los. E quando se juntou a eles sentiu-se flutuar.

 

Sabia que viria murmurou Nick.

 

Maddy estava certa de que ele mentia. Não havia fé no mundo que pudesse garantir a alguém que o seu amor seria correspondido. Mas havia mentiras que as pessoas tinham de dizer a si próprias para continuarem a viver. "Sei que elas virão. Sei que ficaremos juntos. Tenho a certeza de que seremos felizes para sempre." Nem sequer eram bem mentiras, mas sim a essência pura da esperança.

 

Amo-o sussurrou Maddy. Sentiu-o tremer quando a abraçou.

 

Repita o que acaba de dizer. E Maddy assim fez.

 

                                                                                Patrícia Macdonald  

 

 

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