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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


SOMENTE UMA ESCOLHA / Jamila Mafra
SOMENTE UMA ESCOLHA / Jamila Mafra

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Aquela parecia ser mais uma tarde monótona, daquelas bem sem graça. Há dois dias eu havia mudado de sala. Comprei, por um preço irrisório, móveis seminovos que pertenceram a uma advogada que largou a carreira para se dedicar ao lar. Em breve ela seria mãe. Para muitas mulheres a família é a prioridade. Eu queria dar uma cara mais feminina à minha sala; meus móveis antigos eram escuros, combinavam mais com homem. Logo você entenderá por que as coisas que aconteceram naquela tarde transformaram minha vida para sempre.
Éramos quatro advogados, sendo eu a única mulher do grupo. O escritório costumava ser movimentado durante a semana, apesar de, em certos dias, não ser possível ver um só cliente passar por aquela porta.
O meu drama era o mais comum de todos: escolhi a profissão que eu não gostava, passei anos da minha vida estudando o que eu não queria de verdade, só para não ficar sem direção e dar uma satisfação à família. Eu queria mesmo era ter estudado ciências, os astros, a natureza.
Não que eu odiasse a advocacia, mas ocorria o que dizia à minha vizinha, a Doris, uma advogada falida que vivia da pensão que o marido pagava para seu filho:
— Ah, querida, lamento por você ter escolhido essa profissão. A advocacia não é fácil no Brasil, sobreviver dela exige uma perspicácia e, digamos, até um malabarismo de artista para fidelizar clientes e conseguir receber honorários. O pior é o começo: a carteira de advogado custa quinhentos reais, sem contar a prova da Ordem que é de um valor absurdo. Quero dizer, o estudante mal sai da faculdade e já tem uma despesa de setecentos reais, quase um salário mínimo. Isso é uma afronta contra o jovem advogado. Uma vergonha, você não acha?

 

 

 

 

Pobre Doris! Ela tinha transtorno bipolar; às vezes dava até escândalo na rua. Mas em uma coisa ela estava certa: como um jovem que acabou de sair da faculdade vai desembolsar setecentos reais para ter o direito de exercer a profissão? Eu é que sei. Passei por isso. Tive que pegar dinheiro emprestado com o banco e demorei mais de um ano para pagar. Lutei tanto para conseguir a bolsa de estudos. Estava desesperada para conseguir qualquer coisa e ser alguém na vida.

Como a Doris disse, quando se tratava de um advogado iniciante, tudo ficava mais complicado, e eu era iniciante. No começo da faculdade diziam que essa era sem dúvida a profissão fantástica.

Um ano depois de concluída a graduação, a realidade com a qual me deparei mudou completamente o discurso otimista dos docentes. Fui à uma entrevista de estágio, quando o entrevistador, um advogado veterano, me disse sem papas na língua:

— Garota, para não dizer que é o mais desvalorizado, o advogado é um dos profissionais mais desvalorizados do país. Um dia já foi glamoroso ser doutor, mas agora é uma guerra para que esse doutor (ou doutora) consiga que os clientes paguem o preço justo pelo seu trabalho. Você está preparada pra enfrentar essa guerra interminável?

Fiquei meio sem graça e fiz que sim com a cabeça, mas não convenci. Era mais que evidente que eu não estava disposta e enfrentar guerra nenhuma, eu queria mesmo era paz e tranquilidade. Ter que lutar para alguém pagar pelo meu serviço? Ah, isso não!

Infelizmente foi nesse clima de motivação que a realidade se apresentou diante de mim. Eram essas as palavras de incentivo que eu ouvia quase sempre. Mas tudo bem, nem tudo estava perdido, estudar Direito teve suas vantagens. A parte teórica me interessava muito. Pensei em ser doutrinadora, escrever uns manuais de Direito Civil e ganhar um dinheirinho.

Nos dias de maior desespero, cheguei a me olhar no espelho e pensar: “Caramba! Passei seis anos sentada no banco daquela universidade pra não chegar a lugar nenhum agora!” O jeito era fazer o que eu não queria. A vida é assim para todo mundo.

Minha história na advocacia começou turbulenta mesmo. Depois de várias desilusões, uma crença de que eu jamais seria aceita no meio profissional me dominou de modo avassalador. Eu sei, era falta de autoestima, uma espécie de síndrome do impostor, e tudo isso pelo fato de me sentir estranha e um peixe fora d’água entre tantos advogados elegantes e bem-sucedidos.

Eu já havia tentado antes, em outra cidade, mas não tive sucesso nas primeiras empreitadas. Sofri deboches por ser inexperiente, cometer alguns erros e não ter grana. Mas então, naquele escritório, encontrei colegas que me acolheram até de modo inesperado. Enfim meu preconceito foi embora, e eu já não achava mais grande coisa os advogados bem-sucedidos e bem vestidos. Tudo se tornou comum, normal, trivial.

Como eu fui parar naquele escritório? Vi a vaga no site da Ordem dos Advogados e decidi arriscar, não porque eu queria nem porque eu estivesse decidida a me engajar na advocacia, mas sim pura e simplesmente pela pressão da família e de pessoas conhecidas que me crucificavam por eu não exercer a profissão.

Está certo; estudei por seis anos, lutei horrores para concluir a faculdade, para depois ficar sem exercer? Sim, é quase inaceitável não fazer nada depois de tanto penar, mas o fato era que eu não me sentia bem no mundo jurídico. Parecia que tudo aquilo não era para mim.

Com o primeiro divórcio remunerado que fiz, consegui um dinheiro legal e renovei meu guarda-roupa. Enfim eu passei a me vestir elegantemente, como tinha que ser, tratando-se de uma advogada. Ninguém riria mais das minhas calças jeans azuis largas, compradas na promoção.

Voltando àquela tarde monótona no escritório, eu estava distraída em meus serviços paralelos no computador, corrigindo trabalhos acadêmicos. Sim, eu também era orientadora particular de monografias e trabalhos de conclusão de curso; havia me pós-graduado em Docência no Ensino Superior há alguns meses, pois, como expliquei anteriormente, viver apenas da advocacia no início era muito difícil. Fui professora em escolas públicas por mais de cinco anos, desde o início da faculdade.

Então, lá estava eu, fazendo as leituras dos trabalhos que os alunos enviavam por e-mail, quando o doutor Dario bateu à porta. Ele a abriu e pediu licença para entrar. Mas o Dario não estava sozinho. Um jovem alto, magro, de cabelos escuros e pele clara entrou com ele.

— Bom dia, doutor Dario. — Eu me levantei e o cumprimentei.

— Bom dia, doutora Jaqueline de Morais. Esse é o doutor Luiz Bragança, nosso novo colega de trabalho. Ele vai ficar na sua antiga sala.

— Muito prazer, doutor Luiz. Seja muito bem-vindo entre nós. — Retribuí o sorriso dele.

— O prazer é meu, doutora. — Luiz sorriu e me cumprimentou, olhando no fundo dos meus olhos.

— Bom, acredito que terei que fazer a retirada dos meus antigos móveis da sala — concluí, olhando para a porta.

— Queremos falar com você sobre isso. O doutor Luiz tem interesse em comprar seus móveis.

— É mesmo?

— Sim, vou querer ficar com sua mesa e as cadeiras — Luiz disse.

— Móveis vendidos, então. — Fechei o negócio. Estava mesmo precisando de dinheiro. Dei aquele meu risinho sem sal.

Dario se retirou, dizendo:

— Vou deixá-los a sós para negociarem o valor dos móveis. Agora tenho que buscar meu filho na escola. — Ele estava sempre na correria, dividido entre o trabalho e a família. Era o advogado faz-tudo!

— Até mais, doutor — me despedi.

— Sente-se, doutor Luiz. — Ele sentou-se.

— Obrigado. Gostei mesmo dos seus móveis.

— Olha, vendo tudo por quinhentos reais — lancei o preço.

— Quero saber se posso pagar em duas vezes — ele perguntou, já demonstrando que a situação não estava fácil para ninguém.

— Claro que pode.

— Eu agradeço por ser tão bem recebido entre vocês.

— Sei bem como é. Cheguei aqui porque estava meio perdida, e, pra falar a verdade, ainda estou. Acho até que mais perdida do que nunca. Durante esses cinco meses no escritório só fiz divórcios extrajudiciais.

— As coisas não são fáceis. Acabei de sair de uma sociedade com outra colega.

— Por quê? Não deu certo?

— Não que não estivesse dando certo, mas acredito que a parceria é mais vantajosa pra nós que estamos começando a carreira.

Senti um pouco de vergonha. O Luiz havia se formado depois de mim, mas já estava suando muito a camisa pela profissão, dando tudo de si para se manter no ramo. Esse é o retrato de quem gosta do que faz.

— Então você escolheu o lugar certo! Aqui somos parceiros na divisão das despesas e podemos fazer trabalhos juntos quando surgir a oportunidade — continuei a conversa, tentando demonstrar otimismo.

— Tenho certeza de que vou gostar — ele disse.

Luiz era um homem fascinante, jovem advogado de coração humilde, prestativo e amável. Ele tinha o costume de deixar, algumas vezes, um bombom na mesa de cada colega durante a manhã; era sempre uma surpresa quando eu chegava e via o chocolate ali. Sonho de Valsa era o meu preferido.

 

 

O relógio marcava dez horas da manhã quando o Luiz entrou em minha sala, como sempre, com seu jeito tímido. Ele trouxe chocolate e colocou os bombons sobre a minha mesa. Agradeci e ele saiu. Luiz era o tipo de homem que fazia gentilezas sem muito alarde, sem esperar retribuições, um notável cavalheiro.

Minha vida de advogada teria sido tão monótona se não fosse pelas causas de divórcios inesperados que chegavam ao meu escritório como uma bomba ou um tsunami. Naquele dia meu telefone tocou. Atendi; era uma amiga dizendo que havia passado meu contato para outra amiga que pretendia se divorciar.

Logo meu WhatsApp fez barulho. As mensagens chegavam sem parar, fossem estas dos meus alunos ou dos meus clientes. Minha amiga até disse o nome da mulher, mas não reconheci.

Marquei a consulta para aquele mesmo dia. À tarde o interfone tocou. Atendi; era ela, a mulher que até então eu desconhecia.

Alguém bateu na porta. Abri. Fiquei surpresa. Meus olhos arregalaram-se. Eu estava sim acostumada a fazer divórcios e a ver como os casamentos estão fracassando, as famílias se desfazendo, mas naquele caso a família em questão parecia tão perfeita. Eu os conhecia, eram frequentadores das missas na Catedral, que inclusive se localizava ao lado do meu escritório. Costumavam participar dos eventos da Igreja e ela sempre se dizia uma mulher feliz.

— Você? — exclamei surpresa ao vê-la entrar.

— Sim, sou eu.

— Sente-se. — Eu ofereci as cadeiras diante da minha mesa.

— Obrigada. — Ela sentou-se.

— Então é você, Elise.

— Sim. Infelizmente as coisas não são como esperamos.

— Sem dúvida.

Elise despejou a história triste de seu casamento de dois anos que acabava de fracassar. Enquanto ela falava, eu pensei “Vocês pareciam tão felizes e fiéis!”

Sim, o divórcio era uma epidemia no Direito de Família. Para onde quer que eu me virasse havia alguém se divorciando. Poderiam pensar que desse jeito eu ficaria rica fazendo tantos divórcios. Sem ilusões; eram pessoas com poucos recursos econômicos que pagavam parcelado, ou às vezes nem pagavam. Está certo, eu sei, é a mesma coisa que o médico oncologista reclamar que só vê gente com câncer no consultório.

Essa história do lar desfeito eu vi se repetir várias vezes em minha família. Meus tios eram divorciados, meus avós eram divorciados, e por fim meus pais também decidiram se divorciar, justamente naquele momento em que eu iniciava minha carreira de advogada. Cada vez mais eu acreditava que o amor das novelas e dos contos de fadas era para poucos.

— Ele não era quem eu pensava que fosse. Ficamos dois anos juntos. Agora ele se revelou um homem agressivo, preguiçoso, andou mexendo com a minha filha. — Elise me revelou.

— Eu lamento. — Quebrei minha imparcialidade.

Eu não tinha que lamentar nem comemorar nada. Advogado é tipo dono de funerária, não se alegra nem se entristece com a chegada do defunto. Houve um tempo em que eu comecei a me fragilizar e lutei muito para manter a imparcialidade.

— Mas eu nem o amava. Esse já é meu segundo divórcio. O pai dos meus filhos foi o único homem que eu amei de verdade e só larguei dele porque se tornou alcoólatra.

Naquele caso o amor verdadeiro foi sufocado pelo vício. A família de Elise parecia ser tão feliz, do tipo família de comercial de margarina. Mas nesse caso descobri que a margarina estava estragada; quase sempre está. Os filhos de Elise eram lindos. Certa vez, na Catedral, depois de uma missa, esbarrei no filho mais velho, o Gerson. Ele era muito lindo; seus olhos azuis profundos cruzaram com os meus no momento em que nos esbarramos naquele dia. Meu coração até acelerou. Gerson tinha uma beleza inigualável. Ele sorriu para mim. Foram breves instantes, mas inesquecíveis.

A Elise deixou os documentos comigo, fez o pagamento, e então eu preparei a petição. No dia marcado nos encontramos no tabelionato para assinar a escritura pública de divórcio.

Eu até a aconselhei a ficar um tempo sozinha, para repensar sua vida, curtir mais a si mesma, ser livre um pouco, afinal, essa coisa de romance estressa, ainda mais em relação a ela, que tinha acabado de terminar um casamento. Elise até concordou comigo na hora, mas no fim não deu ouvidos aos meus conselhos; dois dias depois já estava namorando um cara que eu nem sabia quem era e também não precisava saber.

Para falar a verdade, depois desse dia, eu nunca mais dei conselhos para ninguém; apenas fiz meu trabalho sem opinar e, cá entre nós, naquela altura do campeonato, meus conselhos não valiam lá aquelas coisas. Passei a guardar dentro de mim todas as emoções.

 

 

Fiz o divórcio da minha velha amiga Amanda, que tinha se casado há apenas três meses. Viajei por uma hora para chegar à sua cidade no litoral. Ela me contou horrores sobre seu curto casamento com Augusto. Disse que seu ex-marido queria vida de solteiro e baladas com amigos.

Eu disse “Amiga, não caia mais nessa cilada!”. Ela era jovem, tinha apenas vinte anos, e acabei reforçando mais uma vez o conselho que eu tinha jurado que não daria mais: “Nem pense em se casar de novo tão cedo!”

O mais bizarro dessa história era que a tabeliã que lavrou a escritura de divórcio também foi minha amiga na faculdade. O mundo é mesmo pequeno e as decepções repetidas.

— Nossa! Vinte e dois anos e divorciada! — Amanda exclamou, colocando as mãos na cabeça. Já estávamos assinando os papéis da escritura.

— Então eu nunca mais serei solteiro. — Augusto disse, me olhando; queria confirmar seu estado civil.

— Enquanto você não se casar de novo, seu estado civil será sempre divorciado. Acostume-se! — ressaltei, com meu riso sem graça.

No fim de tudo, abracei minha amiga e desejei-lhe sorte em sua longa e dura caminhada em busca do amor.

***

O Luiz tinha uma namorada e dois filhos pequenos. Ele comentava de vez em quando que não pretendia se casar justamente para depois não ter que se divorciar. Essa lógica até que fazia sentido. Conheci o filhinho dele na confraternização de Natal que fizemos no escritório, naquele fim de ano. Foi legal, conversamos muito. A namorada dele não estava presente, apenas nós advogados e o pequeno Brian, de seis anos.

— Brian, essa é a tia Jaqueline.

— Olá, pequeno Brian. — Eu afaguei os cabelos do menino. — Está gostando de conhecer o trabalho do papai? — eu perguntei.

Ele fez que sim com a cabeça.

Brian sentou-se na cadeira do Luiz e eu tirei uma foto para registrar aquele momento.

— Vai ser advogado igual ao papai! — comentei, enquanto tirava a foto.

Tiramos todos juntos uma selfie.

***

Todo ano a Ordem dos Advogados oferecia um jantar para seus membros e familiares. Eu não era muito de participar, mas naquele ano decidi ir. Fui acompanhada de umas colegas advogadas, a Telma e a Gislene.

Já era por volta das vinte horas e o salão de eventos estava lindo, todo decorado para o jantar de Natal com luzes coloridas, guirlandas e bonequinhos de Papai Noel no centro das mesas. Os advogados acompanhados de suas famílias chegavam sem parar. Aos poucos o local estava lotado.

Eu e as meninas tomamos nossos lugares à mesa. Músicas natalinas tocavam.

— Eu adoro os jantares da Ordem. — Telma comentou.

— Também amo. Têm um clima de encantamento essas luzes, enfeites, pessoas bonitas. Fascinante. — Gislene se mostrou empolgada.

— Esse é o primeiro jantar em que eu venho, mas estou amando tudo. Se a advocacia fosse sempre esse clima de festa, eu não pensaria em abandonar a profissão — entrei na conversa, vislumbrando o ambiente.

— Jaqueline, você anda muito pessimista. Já que está aqui, aproveite. Sua inscrição na ordem pode te proporcionar muitas coisas boas.

— Como, por exemplo...? — lancei a questão.

— A chance de conhecer um advogado gato e muito rico e não precisar mais trabalhar! — Telma disse, sarcástica.

— Meninas, vocês me fazem rir muito. Ainda não recuperei o dinheiro que gastei na faculdade. Ainda vai levar anos pra eu recuperar o que gastei com transporte, alimentação e material. — Relembrei os tempos de angústia.

— Ai, credo, Jaqueline! Não é hora de lembrarmos dos tempos complicados de universitária. Hoje a noite é pra curtir. E daqui eu já estou vendo três advogados lindos e solteiros entrando na festa. — Gislene disse, otimista.

— O doutor Luiz, meu amigo do escritório, acabou de chegar também. Vou até lá cumprimentá-lo. Com licença, meninas. — Me levantei.

O Luiz e eu nos tornamos bons amigos, nos víamos todos os dias no escritório e já estávamos acostumados a ver um ao outro lutando no dia a dia. Eu me aproximei dele, que vestia um lindo terno azul marinho. Achei estranho o fato da Paula, a namorada dele, não estar lhe fazendo companhia.

— Luiz. — Beijei seu rosto.

— Doutora Jaqueline! É bom vê-la. A festa está linda.

— Sim. Onde está a Paula? Ela não veio com você?

— Minha namorada não pôde vir hoje, teve que ficar cuidando de um dos nossos filhos que está doente. Eu só vim porque ela insistiu e também porque tenho um cliente importante aqui. Sabe, preciso marcar presença.

— Sei bem como é. Eu estou ali naquela mesa com as minhas amigas Telma e Gislene. Elas advogam no mesmo escritório. São iniciantes também — eu disse, apontando em direção à mesa.

— Que legal! Vou me sentar com os meus amigos doutores que me esperam logo ali. Mais tarde nos falamos, doutora.

— Muito bem. Bom jantar, doutor. — Eu sorri, daquela vez um sorriso sincero, animado, espontâneo.

***

Voltei para minha mesa, as meninas também estavam lá. Logo o jantar foi servido. Enquanto degustávamos a deliciosa paella, Gislane começou a dissecar suas análises sobre o comportamento dos jovens advogados presentes na festa:

— Meninas, nem conto. Desde que o jantar foi servido, o doutor Fábio não para de olhar para a doutora Ketlin. Eu noto que esses dois têm alguma coisa desde a cerimônia de entrega das carteiras.

— Nossa, Gislene, como você adora xeretar a vida das pessoas! Deixe-os em paz — eu tentei adverti-la.

— Pelo que eu percebo, não é só o doutor Fábio que não para de mirar a mulher amada — Telma comentou, tomando um gole do champanhe sem álcool.

— O que você quer dizer com isso, Telma? — perguntei, já entendendo suas intenções.

— Jaqueline, desde que você se sentou à mesa, o doutor Luiz não para de te olhar.

— Impressão sua, Telma. Ele pode estar olhando pra qualquer mesa que está nessa mesma direção. Pare de inventar coisas! Ele tem namorada — tentei contradizer o que era óbvio.

— Estou apenas comentando o que está acontecendo.

— Pois guarde os seus comentários inconvenientes pra você — adverti.

Rimos.

Tudo corria bem. Houve então a chegada do Papai Noel, que distribuiu presentes para as crianças, filhos e filhas dos advogados e convidados. O ambiente ficou colorido, mágico.

Quase no fim da festa iniciou-se uma espécie de baile para os casais presentes. Provavelmente, naquela noite, eu não teria companhia pra dançar. A maior parte dos advogados já estava com seu par.

Telma e Gislene já haviam dançado duas músicas. Dois bacharéis, filhos de advogados veteranos, as convidaram para bailar.

Eu estava distraída com os docinhos que os garçons serviam de instante em instante. Tinha certeza de que eu não iria sair daquela cadeira. Foi quando ouvi uma voz chamar meu nome:

— Doutora Jaqueline, me daria a honra de ter essa dança com você, minha querida amiga?

Ergui meus olhos e então pude vislumbrar o doutor Luiz ali, parado diante de mim, esperando a minha resposta. Ele estendeu suas mãos intencionando segurar a minha.

Olhei para os lados, fiquei meio desnorteada.

— Mas é claro que sim. Aceito dançar com você — respondi, meio que balbuciando.

Segurei a mão dele, que me conduziu ao centro do salão.

Naquele momento, a música que tocava era “Sem Peso e Sem Medida” do Fábio Junior. Eu nunca me esqueço dessa canção tão especial que marcou aquele momento.

A Telma e a Gislene observavam tudo de longe.

O Luiz sorriu o tempo todo. Girávamos lentamente no balanço daquela melodia. Confesso que naquele instante mágico meus pés mal tocaram o chão. Sei lá, foi tipo momento conto de fadas, quando a cinderela dançou com o príncipe.

As músicas seguintes foram de arrasar o coração: “Vou Ganhar Você” do Peninha e “Não Diga Nada”, também na voz do Fábio Junior. Falando sério, não sei o que aconteceu comigo naqueles instantes. Meu coração bateu mais forte, meus olhos lacrimejaram de emoção. Talvez fosse a reação de uma mulher carente que há anos não conseguia arrumar um namorado. Também, complicada do jeito que eu era, quem poderia me querer?

Telma e Gislene se aproximaram de mim. Já chegava a hora de ir embora.

— Então era só impressão minha, Jaqueline? Eu vi tudo. Aliás, todo mundo viu.

— Viu o quê, Telma? O que tem de mal em dançar com um amigo?

— Nada. É que você ficou tão diferente só por causa de uma dança com seu amigo... Olhos brilhando demais, nervosa... Olha só pra você — Telma se justificou.

— Quer saber? Vou pra casa. Já chamei o táxi! E pare de inventar histórias e de se intrometer na minha vida. — Saí dali nervosa.

A Telma bem que tentou me alcançar pra pedir desculpas. Ficou igual a uma louca chamando pelo meu nome, mas eu nem olhei para trás. Eu queria mais era me livrar de sua língua comprida, pronta para espalhar para todo mundo que eu tinha algum interesse pelo doutor Luiz.

***

Naquele fim de ano viajei de férias por uns dias e voltei em meados de janeiro. As coisas já não iam tão bem quanto antes. Muitos clientes não me pagaram e eu já começava a achar que manter aquele escritório não valia mais a pena. Talvez todos aqueles que me criticavam estivessem certos quando diziam que eu deveria rasgar meu diploma e fazer alguma coisa que daria dinheiro de verdade.

 

 

Divórcio era algo tão comum pra mim. Só no início daquele ano eu havia feito cinco divórcios consensuais de amigas minhas e outros três de pessoas conhecidas. Para falar a verdade, eu não conseguia entender o que estava acontecendo com o amor e com mundo. Mas houve um divórcio em particular que me desiludiu, que me fez desacreditar de vez no tal “felizes para sempre” tão idealizado nos filmes e nas novelas.

Fiz o divórcio dos meus próprios pais! Eu sei, é um pouco mórbida essa situação. Mas pelo menos minha graduação serviu para livrar minha mãe do cativeiro do casamento que a fez refém por trinta anos. Ela disse que nunca amou meu pai e sempre se sentiu sozinha. Caramba! A primeira vez que minha mãe visitou meu escritório foi para assinar a procuração me autorizando a realizar o feito, ou melhor, a desfazer o mau feito que foi ter se casado com um homem que ela nunca amou.

Minha mãe elogiou a beleza da minha sala, achou tudo incrível, sentou-se diante de mim e contou-me a história que eu já estava cansada de saber. Com quarenta e nove anos, enfim, ela havia tomado a decisão que deveria ter tomado há muitos anos. Enquanto ela despejava nos meus ouvidos seus sentimentos de dor e arrependimento por ter perdido quase uma vida inteira ao lado de alguém que tanto a fez chorar pela ausência e promessas não cumpridas, eu digitava a petição do divórcio e a procurações para que ela e meu pai assinassem.

Imprimi os papéis, coloquei tudo sobre a mesa e ela assinou. Pude perceber o olhar de alívio e satisfação da minha pobre mãe ao assinar a petição e procuração. Meu pai estava de acordo com tudo, não havia outro jeito. Era o segundo divórcio na vida dele, que sempre fez de tudo para ajudar os outros ao seu redor, mas esqueceu de si mesmo e de sua esposa. Ele já tinha sessenta anos; ficou deprimido por ter notado tarde demais os erros que cometeu.

Não se engane! Minha tristeza foi gratuita. Não cobrei nada dos meus pais e nem poderia cobrar. Eles me ajudaram tanto durante a faculdade, fizeram de tudo por mim, e eu tinha a falsa ilusão de que eles permaneceriam juntos para sempre. Mas tem uma música que diz bem a verdade: “... O pra sempre sempre acaba.” E eu vi tantos “pra sempre” se acabarem do dia para a noite.

A coisa foi tão complicada que meus pais não tiveram coragem de olhar um no outro no dia de assinar a escritura pública de divórcio no tabelionato. Diante disso, minha irmã e meu irmão mais velho os representaram na data marcada. Depois daquele dia eu já poderia morrer em paz; havia feito algo de bom na vida dos meus genitores: os libertei das amarras do vínculo jurídico. Apenas senti muita pena do meu pobre papai. Decidi morar com ele para não o deixar sozinho. Ia ser difícil ficar sem o delicioso almoço da minha mãe todos os dias, sem sua alegria nos sábados à noite por preparar o jantar. Eu queria minha família unida, mas na vida a gente nunca pode ter tudo o que quer.

Voltando ao momento em que minha mãe assinava os papéis ali, naquele escritório que se tornou tão triste e sombrio naquele instante, me fiz de forte, fui o mais imparcial possível; tentei enxergar minha mãe como uma amiga e não como a mulher que estava deixando o meu pai para seguir seu próprio caminho. Na hora eu cheguei até a sorrir para ela e lhe desejar boa sorte em sua nova fase, desejei que ela encontrasse um homem que a fizesse feliz de verdade, que ela formasse uma nova família e tivesse a vida que ela tanto merecia. Ela disse que me amava e saiu. Falei tudo isso com a boca, mas não era o que dizia o meu coração. Meu coração gritava “Mãe, fica!”, “Mãe, eu quero nossa família unida, você em casa todo dia, sua alegria, sua cantoria no sábado à noite só por estar preparando o jantar!”

Depois que ela saiu do escritório eu pensei comigo: “Eu sabia que tinha que aproveitar aqueles momentos que nunca mais vão voltar!”

Minhas lágrimas foram inevitáveis. Infelizmente comecei a chorar como uma criança de dez anos que vê os pais se separarem. Foi quando o Luiz entrou na minha sala e me flagrou aos prantos.

— Doutora Jaqueline, o que aconteceu? Não está bem? Por que chora tanto? Vi que uma mulher acabou de sair daqui. Quem era? — ele perguntou, aproximando-se de mim. Enxugou minhas lágrimas que não paravam de cair.

— Era a minha mãe que estava aqui. Eu não estou bem. Estou fazendo o pior divórcio da minha vida.

— Como assim? O que sua mãe queria?

— Estou fazendo o divórcio dos meus pais. É isso que minha mãe quer: a liberdade, sair do cativeiro de um casamento que nunca foi real. Foram só anos de brigas, ausência e privações. Eu vi tudo, cada momento.

— Eu sinto muito, doutora. — Os olhos do Luiz brilharam de compaixão.

— Minha mãe está decidida a seguir seu caminho. Meu pai concordou, mas está sofrendo muito. Está deprimido.

— Entendo a sua dor, doutora, mas você tem que ser forte, até para poder ajudar seu pai a se reerguer.

— Sabe, Luiz, eles lutaram tanto para que eu conseguisse me formar e ser alguém na vida! Eu gostaria que eles estivessem juntos no momento das minhas conquistas.

— Eu compreendo, é triste mesmo. Esse é o fim que ninguém espera.

— O que está acontecendo com o mundo? Ninguém fica mais com ninguém. As pessoas não se amam mais. Eu fiz tantos divórcios, mas dessa vez está doendo muito. Nunca imaginei que eu reagiria dessa forma, como uma criança perdida, tendo que escolher entre pai ou a mãe.

— Ah, eles podem ter a sua guarda compartilhada. Passe quinze dias na casa de cada um deles. — O Luiz tentou me fazer rir e conseguiu.

Rimos um pouco.

— Só você mesmo, Luiz, pra me fazer rir diante de uma situação dessas.

— É por isso que eu não me caso — ele disse, me olhando com feição séria.

— Eu também não quero me casar nunca. Não tenho sorte no amor mesmo. Não nasci pra ser dona de casa, nem sei cozinhar e não quero ter filhos.

— Sua lista de não desejos espanta mesmo todos os pretendentes, doutora.

— Acontece isso justamente depois que meus pais sofreram tanto pra me sustentar! Tivemos uma vida difícil, passamos muita pobreza e momentos ruins. Eu só queria que eles estivessem juntos no momento das minhas conquistas. Essa era a minha ilusão.

— As ilusões existem para serem desfeitas — Luiz afirmou.

— Você tinha que ver o olhar de alívio da minha mãe quando ela assinou os papéis do divórcio aqui na minha mesa. É como se ela tivesse ganhado um prêmio por casamento com meu pai.

— Entendo a sua tristeza.

— Ele foi um bom pai, mas não foi um bom marido. Minha mãe estava sempre sozinha comigo e meus irmãos. Meu pai era envolvido com tantas coisas: esportes, política, amigos...

— Isso os afastou cada vez mais. Sei bem como é. A ausência às vezes é pior do que a falta de amor.

— Minha mãe sempre ficava de lado, só em casa, cuidando dos meus irmãos menores. Agora ela quer ser livre, ela quer viver. Eu vi a dor nos olhos dela, a dor de não ter se sentido amada, a dor de ter perdido anos de vida. Agora todos os filhos são adultos e ela quinze anos mais nova que o meu pai.

— Sua mãe tem toda razão em querer seguir em frente, com uma nova vida.

— Meu pai está tão deprimido. É seu segundo casamento que termina.

— Jaqueline — Luiz chamou meu nome, me encarando com olhar profundo.

— Diga, doutor.

— Você precisa ser feliz pra fazer valer a pena tudo que seus pais sofreram pra te ajudar. Não sofra mais por isso. Já basta toda a dor que eles passaram e estão passando agora com o divórcio. Seja feliz, doutora. Assim poderá ajudar seu pai a superar essa fase.

— Você está certo.

Luiz me abraçou com carinho.

 

 

Quando muita gente dizia que eu deveria rasgar o meu diploma, quando muitos gritavam para que eu largasse essa profissão tão ingrata e rodeada de dificuldades que é a advocacia no Brasil, o Luiz esteve do meu lado o tempo todo, insistindo para que eu não desistisse. É triste lembrar que existam pessoas ao nosso redor tão desmotivadoras. Mas é bom lembrar que no meio da tempestade pode haver alguém capaz de nos dar forças para não cairmos de vez. E o Luiz fez de tudo para que eu continuasse, tudo isso muito antes do sucesso chegar.

Aquele mês foi terrível. Sofri um calote de mais de seis mil reais. Eu tinha minhas contas para pagar, o aluguel do escritório, o aluguel de casa, dívidas, remédios do meu pai para comprar... Não fazia ideia de como resolver a situação. Para falar bem a verdade, eu estava certa do que eu deveria fazer: largar de vez a advocacia e arrumar um emprego que me remunerasse com um salário garantido todo mês.

Os credores não paravam de me ligar. Eu não atendia as chamadas. Eu já estava há quatro dias sem aparecer no escritório; era a vergonha de dever e não poder pagar.

Naquela manhã eu não quis me levantar da cama; estava com a alma angustiada, me sentia um zero à esquerda. De repente chegou uma mensagem do Luiz pelo WhatsApp:

“Bom dia, doutora. Não vem mais para o escritório?”

Pensei em deixá-lo sem resposta, porém ele sempre foi tão legal comigo; decidi responder:

“Estou devendo o aluguel, levei o maior calote. Acho que não volto mais para o escritório! Agora eu tenho certeza de que não nasci pra isso.”

Desliguei meu celular. Não queria falar com ninguém. Fiquei pensando em uma possibilidade de emprego decente, ainda deitada na cama; quem sabe voltar pra sala de aula no ensino público. O Estado não paga tão bem, mas pelo menos o salário é garantido. Trinta minutos depois da mensagem do Luiz a campainha do meu apartamento tocou. Juro que eu não queria levantar para abrir a porta. Eu ainda estava de pijama. Meu pai não estava em casa, pois havia ido à uma consulta médica. Enfim, me levantei daquele jeito mesmo, caminhei até a sala e abri a porta sem conferir pelo olho mágico quem estava do outro lado.

— Luiz! — eu exclamei surpresa por vê-lo ali.

— Doutora, ainda está de pijama!

— Acabou. A advocacia não é pra mim. Eu não sou advogada faz-tudo como você. Levei um calote tremendo. Estou devendo o aluguel de casa, do escritório! Tenho muitas dívidas. Não posso passar a minha vida toda a mercê da sorte. Em um dia tenho dinheiro, no outro não tenho. Eu cansei de tudo isso. Acho que eu vou voltar a ser professora no ensino público. O governo paga pouco, mas pelo menos é um salário garantido.

— Você vai desistir assim, logo na primeira queda?

— Não é a primeira queda. Eu já estou há dois anos remando contra essa maré. Cansei.

— Doutora, me escuta. Eu quero te ajudar. Não desista agora. Erga a cabeça, se arrume e venha enfrentar a vida comigo!

— Você sempre me resgatando das cinzas. O fardo está tão pesado nas minhas costas que o mais cômodo seria seguir outro caminho.

— Tente mais uma vez e, se não der certo, aí sim você larga tudo. Eu quero que você trabalhe comigo, fazendo as minhas audiências. Estou cheio de trabalho e não tenho tempo sobrando para comparecer a todos os compromissos. É uma semana toda de trabalho. Eu te pago bem e logo você terá dinheiro para quitar as contas desse mês. O que me diz? — Ele ainda estava de pé, na porta.

— Eu agradeço as suas boas intenções, mas até quando isso vai durar? Eu sei que você tem a sua própria vida, tem seus filhos pra sustentar, não deveria se preocupar comigo. Desculpe pela minha falta de educação, nem te convidei pra entrar. Entre.

Ele entrou e sentou-se no sofá. O Luiz ficou me olhando com aqueles olhinhos brilhantes. É difícil explicar como alguém que estava apenas há alguns meses em minha vida já significava tanto pra mim. Não houve um só momento em que o Luiz não estivesse ao meu lado me ajudando.

Decidi aceitar sua proposta, afinal, eu precisava de dinheiro o quanto antes.

— Tudo bem, Luiz. Eu faço as audiências. Vamos trabalhar juntos nesses dias.

— Então vá logo se arrumar, mude essa cara de desespero, fique linda e arrase, porque a partir de hoje vamos ganhar dinheiro juntos. — Ele sorriu.

Então eu me produzi, coloquei meu terninho azul marinho predileto. Quando entrei na sala, o Luiz, sentado no sofá, estava olhando o celular. Ao perceber minha presença ele ergueu a cabeça.

— E então, como estou? Parecendo uma advogada de sucesso? — perguntei.

— Mais que isso. Você está fantástica! Agora vamos, porque as audiências trabalhistas nos esperam ainda nesta manhã.

— Luiz, às vezes eu acho que você é generoso demais comigo.

Ele mirou meu rosto com ternura e me disse:

— Eu sou sempre legal com quem eu gosto.

***

No trajeto até o fórum, o Luiz e eu conversamos sobre nossos clientes e as lembranças de quando éramos crianças:

— As audiências dessa manhã são trabalhistas e durante a tarde a maioria é de transação penal, muitos bicheiros pra defendermos! A prática de jogos de azar aqui na região ainda é grande. A partir das quinze horas vamos para a vara penal.

— No Brasil todo é assim.

— Sim.

— Sabe, agora você me fez lembrar a época de infância — eu disse, sorrindo, ao recordar meus tempos de criança.

— O que recordou? — Ele ficou curioso.

— Quando eu era criança, achava que o jogo do bicho era uma prática lícita porque eu via todo mundo no bairro jogando. Meu avô também jogava e, inclusive, ganhava muitas vezes.

— Eu também gostava muito.

— O resultado dava até na rádio. Acho que era rádio pirata. Minha mente infantil jamais desconfiou que uma atividade amplamente praticada fosse algo contra a lei. Eu achava até divertidas aquelas cartelas coloridas com os bichinhos — eu disse.

— São as doces lembranças da infância.

— Meu falecido avô sempre perguntava se a gente tinha sonhado com algum bicho. E olha que às vezes eu sonhava mesmo. Eu contava pra ele, que ia lá e jogava. O bicheiro ficava sentado em uma mesa, dessas de plástico, na esquina dos becos vendendo os bilhetes — relembrei.

— Também já vi essa cena típica dos anos noventa. Era algo comum nas vilas, aquele “tipão” usando corrente no pescoço, contando a grana dos bilhetes vendidos. Inesquecível. — Luiz sorriu.

— Até que um dia a gente cresce para livrá-los da prisão e dos processos — comentei, lembrando o momento presente.

— É a vida. Tem bandidos de verdade soltos por aí e ninguém faz nada — ele comentou.

 

 

Já era horário de almoço. Voltamos juntos do fórum trabalhista caminhando lado a lado pela avenida. O escritório era próximo. Aquela foi minha primeira manhã de audiências ao lado do Luiz. Só ele mesmo pra me fazer trocar aquele pijama por um traje decente de advogada. Ele conseguiu me fazer não desistir da advocacia por mais um tempo.

— Ainda bem que você pôde vir — Luiz me agradeceu.

— Minha agenda tem andando meio vazia. Achei que passaria o resto do dia vestida naquele pijama e pensando em arrumar um emprego bem remunerado — eu disse, recordando as horas anteriores.

Passamos em frente à farmácia:

— Espere um pouco! Quero me pesar na balança. — Entrei depressa pela porta da farmácia.

Luiz parou e ficou me olhando. Em poucos segundos eu já estava de volta na calçada ao lado dele.

— Eu controlo meu peso. Engordo muito fácil, por isso estou sempre de dieta. Nada de muito açúcar nem carboidratos. Chego fácil aos cem quilos — expliquei minha situação metabólica.

— Comigo é o contrário. Já fiz de tudo pra ganhar peso, mas não consigo. Quanto mais como, mais magro fico — ele comentou, sorrindo.

— Você é quem tem sorte.

— Doutora — ele chamou, aparentemente com a intenção de mudar de assunto.

— Sim.

— Vou ser pai de novo. Minha namorada Paula está grávida!

— Nossa! O terceiro! Não é à toa que você é advogado faz-tudo! Precisa mesmo de muitas audiências e todo tipo de processo pra sustentar esse monte filhos.

— Não espero os seus parabéns, doutora, porque eu sei que você acha um absurdo essa coisa de colocar pessoas inocentes nesse mundo cruel e decadente. — Ele relembrou minha filosofia de vida um tanto quanto radical na época.

— Espere aí. Eu também não sou tão desumana assim, doutor. Sei bem que aquilo que não me traz felicidade pode ser motivo de felicidade para outras pessoas. No mais, você tem razão. Não vou te dar os parabéns por você ter tão somente cumprido com suas funções biológicas, inclusive para a qual você foi programado pela natureza.

— Uau! Você sempre me surpreende sendo assim tão racional — ele disse, com seu sorriso lindo e largo.

Rimos.

A Paula costumava estar no escritório auxiliando o Luiz. Era bacharel em Direito, mas não tinha previsão de quando faria a prova da Ordem, para então depois poder se inscrever como advogada. Então era por isso que ela andava sumida: sua gravidez estava tendo um começo difícil, ela passava muito mal.

Estávamos quase chegando à entrada do prédio, quando comentei:

— Não sei se você sabe, mas eu escrevo poesias e livros infantis.

— Sim, eu já ouvi comentários a respeito. É legal o que você faz — ele disse.

— Dizem que ser escritor no Brasil não dá dinheiro, mas estou vendo que ser advogado também não — comentei, ironizando a situação de dificuldade que sempre passávamos. Nós rimos. — Mas ainda estou no começo, minhas obras novas serão publicadas daqui a uns três meses.

— Também me interesso por publicação. Quero lançar livros e manuais de Direito Civil.

— Que coincidência, doutor! Também estou planejando publicar material didático na nossa área jurídica. Já tenho as editoras para lançarem as obras. Planejo ainda um livro na área de Direito Ambiental, sobre rejeitos radioativos e o impacto no meio ambiente.

— Interessante, doutora.

— É mais que interessante, eu diria fascinante! — eu estava radiante, e isso só porque o Luiz me fazia sentir bem.

— Aqui na esquina do prédio tem uma hamburgueria, o sanduíche deles é bom. Está com fome?

— Estou sim. Não comi desde cedo.

— Aceita que eu te pague o lanche? — Luiz me perguntou quando já estávamos chegando à porta da lanchonete.

Fiquei surpresa com o convite, pois o Luiz era o último homem que eu imaginava que me convidaria para comer alguma coisa em um ambiente descontraído.

— Claro, eu adoraria. — Não contive meu sorriso.

Eu era tão carente. Qualquer sorriso me animava. Imagine então um convite pra comer com alguém legal! Entramos na lanchonete e nos sentamos. Ali estávamos, frente a frente. Meu amigo se mostrou muito empolgado com a ideia de lançarmos os manuais de Direito e livros didáticos na área. Os olhos dele brilhavam.

— Doutora, eu sempre quis fazer isso. Só estava esperando encontrar a pessoa certa para ser minha parceira nos livros e nos negócios jurídicos. E agora eu encontrei essa pessoa. Você, doutora Jaqueline! — o Luiz me revelou, com olhar compenetrado.

A cada minuto que passava eu ficava mais surpresa com as suas reações. Quando eu menos esperava eu estava ali, comendo um lanche gostoso, com uma companhia legal e fazendo planos!

— Vai ser incrível escrevermos os livros juntos. E a versão eletrônica está em alta hoje em dia. Muitos estudantes de Direito estão preferindo os e-books por conta da praticidade, e para evitar o peso e o grande volume dos livros impressos que precisam ser carregados pra lá e pra cá. Eu que o diga! Minhas costas doem até hoje de tanto carregar aquele Vade Mecum nas minhas costas.

— Sim, vai ser legal. Me dê três semanas pra eu levantar conteúdo e fazer as pesquisas — ele pediu.

Comemos os sanduíches. Luiz perguntou o que eu gostaria de beber. Pedi água. Foi um momento agradável, mas havia chegado a hora de voltar ao trabalho. Que saudade senti agora desses momentos que já passaram!

Sempre fui nostálgica, do tipo que deseja que os bons momentos durem para sempre.

***

Foi assim que o Luiz e eu iniciamos nossa parceria. Naquela mesma semana eu já estava de novo no fórum, representando o doutor em várias outras audiências. Como aquele fórum era grande! Tinha um restaurante e lanchonete enorme. Comecei a gostar mais de estar ali. As semanas se passavam e eu comecei a me sentir uma advogada de verdade. Consegui mais divórcios e meu trabalho com o Luiz me trouxe mais clientes.

 

 

A hora do almoço se aproximava. Depois de mais uma manhã de audiências no fórum, era hora de relaxar. Eu estava descendo as escadas e o doutor Luiz subindo; esbarrei nele (ou ele em mim). Sua agenda estava sempre cheia de compromissos; a minha ainda mais ou menos, mas com certeza melhor do que antes.

— Luiz.

— Doutora! — eu adorava quando ele me chamava de doutora, quase nunca de Jaqueline.

— Estou indo ao restaurante. É a primeira vez que almoço aqui. — Sim, de verdade, eu nunca havia almoçado lá antes.

— Tenho só mais uma audiência e te acompanho em seguida. Estou faminto. — Luiz me disse.

— Ok. Te espero lá. Já vou reservar a nossa mesa.

— Combinado. Sim, reserve, porque daqui a pouco já estará lotado. — Ele sorriu e seguiu para o corredor da terceira vara cível.

Naquele dia eu estava animada. De cabeça erguida entrei no restaurante. Os advogados começavam a chegar e ocupar as mesas. Reservei a minha. Uns vinte minutos depois, lá estava ele, o Luiz, alto, bem vestido em seu terno azul escuro. De longe ele sorriu pra mim. Acenei. Ele se aproximou. Deixou sua maleta na cadeira e sentou-se diante de mim.

— Já fez o pedido? — ele perguntou.

— Esperei você chegar pra escolher.

— Então vou pedir agora. Estou morrendo de fome. Encarar juiz chato quase todo dia não é fácil, e à tarde tem mais. Em uma hora e meia começa tudo de novo.

— Garçonete! — chamei por ela.

Optamos pelo menu italiano; nhoque à bolonhesa e suco de laranja, meu preferido.

Rimos muito e conversamos enquanto almoçávamos. O sorriso do Luiz era cativante, seus olhos sempre brilhavam. Não canso de dizer isso, porque é difícil encontrar alguém que sorri com os olhos.

Em dado momento da conversa tive que dizer:

— Sabe, doutor, você não é um dos caras mais bonitos que eu já conheci...

— Jura?

— Sim, mas você é o homem com o coração mais lindo que eu já encontrei.

— Assim você me deixa sem graça — ele me disse.

— Ninguém é capaz de tirar a sua graça.

— Me deixou sem graça de novo.

— Quando eu entrei para o escritório, eu estava só fingindo que era advogada, mas depois que você chegou na minha vida e me apoiou nos momentos mais complicados, eu passei a me sentir uma advogada de verdade.

— Você sempre foi uma advogada de verdade.

— Agora eu não estou naquele escritório só pra provar pros outros que eu sou capaz. Estou lá porque eu gosto, porque eu quero.

— Sério? Não imaginava que eu faria tanta diferença na sua vida. Te ajudei porque somos amigos e eu me importo com você.

— Eu tenho certeza disso. Os sentimentos são demonstrados com atitudes. Nem sei como te agradecer por tudo. Se não fosse você, eu nem estaria aqui agora. Adoro esse fórum, já amo esse lugar. — Eu agradeci com um largo sorriso.

***

Naquela tarde de audiências, a Paula me acompanhou a pedido do Luiz. Ela estava mais inteirada sobre os processos daquele dia. Notei que ela parecia não estar muito à vontade com a minha companhia; aparentava estar com algo entalado na garganta.

— Doutora Jaqueline — ela chamou meu nome enquanto caminhávamos no corredor do fórum.

— Sim, Paula. Pode dizer. — Já senti que o clima não estava tão bom.

— Posso fazer uma pergunta para a doutora?

— Claro que pode. Pergunte o que quiser — consenti.

Paramos de caminhar por um momento. Ficamos frente a frente.

— Doutora, rola alguma coisa entre você e meu namorado? — Ela foi direto ao assunto.

Eu não quis acreditar naquilo que havia acabado de ouvir.

— Paula, você está falando sério? Rolar? Alguma coisa tipo o quê?

— Tipo paixão, atração.

— Ora essa. De onde você está tirando essas ideias absurdas, Paula? Eu e seu namorado somos apenas bons amigos de trabalho e nada mais.

— Não sei, é que você se tornou uma mulher tão interessante e bem-sucedida nesses últimos tempos... Você e o Luiz estão sempre juntos pra lá e pra cá, nesse fórum e em outros eventos. Estão fazendo tantos planos.

— Obviamente eu e o Luiz somos colegas de trabalho. Nada mais natural do que andarmos sempre juntos, uma vez que trabalhamos no mesmo local. Temos planos em comum porque atuamos na mesma área, é normal. Você não acha?

— Eu me sinto tão diminuída na minha condição de mera ajudante. Estou grávida de novo e passo a maior parte do tempo cuidando das crianças. Acho que nunca vou poder exercer a profissão, vou ficar dentro de casa tendo que dar conta de criar três crianças — a Paula lamentou, olhando fundo nos meus olhos.

— Paula, me poupe! Não é pra mim que você tem que reclamar, não fui eu que te engravidei. Faça as suas reclamações diretamente ao pai dos seus filhos. Se não está satisfeita com sua vida, o problema não é meu. Converse com o Luiz e me deixe fora disso. Com licença — eu disse irritada. Saí dali me sentindo afrontada, exposta a uma situação que não me dizia respeito.

 

 

Algo estranho aconteceu. Passaram-se alguns dias e o Luiz não apareceu no escritório. Liguei, mas ele não retornou, mandei mensagem pelo WhatsApp, mas ele não me respondeu. Dessa vez me preocupei de verdade. Eu queria notícias. Meu melhor amigo não poderia simplesmente ter sumido, assim, sem deixar rastros.

Quinze dias depois, em uma manhã fria e cinza, o Luiz finalmente apareceu. Só que dessa vez foi diferente. Ele não me disse “bom dia”; na verdade, nem olhou na minha cara. Em passos apressados e de cabeça baixa, ele entrou diretamente em sua sala, sem nem deixar o chocolate na minha mesa, como era de costume.

O Luiz não sorriu. Senti meu grande amigo tão distante, como se houvesse algo ferindo o seu coração...

Não ousei me aproximar; percebi minha inconveniência naquele instante. As horas se passaram, lentamente, mas se passaram. Já era quase hora de ir embora e, para minha surpresa, o Luiz me chamou em sua sala.

Assim que entrei sentei-me diante dele, que permaneceu sem me dar um sorriso. No momento já fiquei constrangida; aquele não era meu amigo. O assunto foi a respeito de processos pendentes, audiências a serem feitas.

— Luiz, aconteceu alguma coisa? Você sumiu de repente sem dizer nada — eu perguntei, depois que já tínhamos tratado dos trabalhos pendentes.

Os olhos dele ficaram vermelhos e lacrimejantes.

— Doutora, será que nós podemos continuar conversando apenas sobre o nosso trabalho? — ele me perguntou em tom de voz austero e agressivo.

— Tudo bem. Se é assim que você prefere, vamos falar apenas sobre o trabalho. Eu só fiquei preocupada com você. Bom, acredito que já conversamos o suficiente sobre as audiências e processos pendentes. Eu vou para minha sala. Com licença, doutor. — Eu me levantei.

Já estava quase me retirando quando o Luiz disse de modo repentino:

— A Paula perdeu o nosso bebê. O coração da criança parou de bater.

Ao ouvir aquelas palavras meu corpo tremeu. Fiquei nervosa, não sabia como agir. Eu me virei novamente em direção a ele. Sentei-me de novo à mesa.

— Eu lamento muito, Luiz. Você deveria ter me telefonado, eu poderia ter te ajudado, ter ficado do seu lado nesse momento tão triste — eu disse, olhando profundamente em seus olhos já cheios de lágrimas.

— Obrigada pela preocupação, doutora, mas você não poderia ter feito nada — ele me desiludiu.

— Como não? Eu sou sua amiga. Você já me ajudou tanto. Imagino o quanto foi difícil pra você enfrentar esse momento.

— Foi mesmo muito difícil. Foi horrível. A Paula ficou muito mal.

Respirei fundo. Tentei não sentir a rápida vertigem que sempre me acomete em momentos tensos.

— Vamos tratar dos nossos processos e audiências — ele afirmou novamente. Dessa vez ele sorriu. Talvez tenha sido uma tentativa de voltar a ser o Luiz que era antes do terrível acontecimento.

— Que bom te ver sorrindo de novo, meu amigo. Sei que não está sendo fácil. Mas acredite, é difícil não te ver sorrir.

— Quer torradas?

— Claro! Eu já estava com saudades de dividir o prato de refeições com você. Almoço, chocolate, biscoitos! Apenas me prometa que se algo de ruim acontecer em sua vida eu serei a primeira a saber. — Segurei as mãos dele.

— Eu prometo. — Ele sorriu mais uma vez.

— Nunca mais me esconda nada.

Ele se levantou, abriu o armário, pegou o pote com as torradas e as colocou em um prato no centro da mesa.

Comemos dois pratos de torradas com manteiga.

— Para falar a verdade, doutora, no momento em que tudo aconteceu você foi a última pessoa que pensei em chamar. — Ele acabou retomando o assunto da tragédia.

— Nossa! Eu sou tão péssima amiga assim? — Me senti meio excluída. Mordi mais uma torrada.

— Acontece que você está sempre criticando aqueles que enchem de filhos esse mundo cruel e decadente. Grita aos quatro cantos que não quer ser mãe. Achei que a situação não faria bem pra você. Até achei que seria um fardo algo que não te diz respeito — ele justificou seu afastamento.

— Luiz! Como você pôde pensar algo assim sobre mim? Acha mesmo que eu sou tão desumana assim?

— Não foi isso que eu quis dizer. Devo ter me expressado mal.

— Só porque eu não quero ter filhos, só porque eu acho um absurdo as mulheres saírem por aí enchendo o mundo de pessoas para depois as deixarem abandonadas nas lixeiras, nos orfanatos, nas ruas, não significa que eu seja alheia ao sofrimento das pessoas que eu gosto. Não quer dizer que eu deseje a morte dos bebês ou que eu ache merecido o sofrimento dos pais que perdem um filho ainda em fase de gestação. Eu também sou um ser humano.

— Doutora, me desculpe. Não foi isso que eu quis dizer. Você tem sido minha melhor amiga durante todo esse tempo. Você me ajudou também. Conquistamos muitas coisas juntos.

— Mas foi isso que você disse. Me chamou de insensível, de desumana.

— Eu só não quis te incomodar com os meus problemas. Entenda.

— Quer saber de uma coisa? É melhor mesmo a gente conversar só sobre o trabalho. Com licença, doutor. — Eu estava furiosa. Estava cansada de ser chamada de desumana. Saí daquela sala e segui para o lado de fora do prédio. Meus olhos se encheram de lágrimas. Eu detestava ser chamada de desumana só porque em alguns pontos eu pensava diferente das demais pessoas.

O Luiz me seguiu. Me chamava enquanto me alcançava:

— Doutora, espera! Espera!

Ele me alcançou e me segurou pelo braço.

— Me larga. Me deixe sair daqui. — Eu já estava na metade das escadas.

Ficamos frente a frente, olhos nos olhos.

— Doutora, me escuta.

— Estou cansada de ser tratada como a diferente, como a estranha, como a revoltada com a natureza!

— Eu peço desculpas. Eu não quero perder a sua amizade. Eu não quero perder o seu carinho.

— Tudo bem, Luiz. Deixa pra lá. Eu sei que você não está bem. Eu é que peço desculpas por ter me exaltado. É melhor eu ir pra casa agora. Fica bem, tá?

— Está certo.

Nós nos abraçamos. Terminei de descer as escadas e fui para casa.

***

Durante todo aquele mês, todo dia depois do expediente passávamos duas horas escrevendo nosso livro jurídico. O Luiz levava o jantar em um potinho e eu a sobremesa. Ficava tudo no nosso frigobar, na cozinha. Quase sempre eu levava bolo com sorvete. Se havia uma coisa que eu sempre soube fazer era bolo de chocolate. Ah, e pudim de leite condensado.

Certa noite o Luiz me deu uma carona. No meio do caminho passamos em frente à casa em que ele morava. Havia acabado de se mudar pra lá. Parou o carro por uns instantes.

— Eu moro aqui, doutora. Aluguei há poucos dias. Estou adorando. Viu como é mais perto do escritório?

— É mesmo bonita. Parece aconchegante, pelo menos olhando daqui de fora — respondi.

— Você não gostaria de entrar para conhecer? Eu posso fazer uma sopa para a gente jantar. Depois eu te levo para sua casa — ele me convidou.

— Se não for um incômodo, eu adoraria experimentar sua sopa. Mas não vou ficar até muito tarde; meu pai pode preocupar-se.

— Tudo bem. Depois da sopa eu te levo pra casa.

Entramos. Ele estacionou na garagem e saímos do carro.

A casa era mesmo bonita por dentro. Entramos na sala, que era toda decorada com um papel de parede bege, vasos grandes de plantas nos cantos, um pequeno lustre no teto e abaixo havia a mesa em vidro com seis cadeiras “Drive Siena” de cor chocolate-canela.

— Mesa grande para quem mora sozinho.

— Sempre recebo a Paula e meus filhos.

— É mesmo. Você tem uma família grande.

— Eu não quero ser intrometida, mas minha curiosidade não quer calar. A Paula não reclama por vocês serem apenas namorados, mesmo já tendo constituído uma família juntos?

— Às vezes sim, mas a verdade é que eu ainda não estou pronto pra casar.

— Tem a casa, a mulher e os filhos, mas não está pronto? Essa eu não entendo. Depois eu é que sou a estranha. Mas tudo bem, se vocês preferem viver assim, cada um na sua casa, sem se casarem legalmente, eu não tenho nada no que dar palpites. Eu também não pretendo me casar.

— Sente-se, doutora.

Eu me sentei.

— Vou tirar esse terno e em seguida vou pra cozinha. Eu te ensino a fazer minha sopa.

— E eu agradeço. Preciso mesmo aprender a cozinhar.

Na cozinha colocamos o avental. Fiquei de ajudante do doutor Luiz.

— Corte os legumes.

— Vou tentar.

— Credo, doutora. Você não cozinha nada?

— Eu até tento, mas fica uma porcaria. Eu passei sete anos me dedicando o dia inteiro aos estudos e ao trabalho. Comia fora, e aos fins de semana minha mãe fazia tudo. De que jeito eu iria aprender a ser uma boa dona de casa?

— Entendo.

— E tudo ficou pior depois que minha mãe se divorciou do meu pai. Estou tendo que me virar sem ela em casa. A sorte é que meu pai sabe cozinhar um pouco. Pra falar a verdade, a única coisa que eu sei fazer e que fica bom é bolo de chocolate e pudim de leite condensado.

— Você havia me dito que sofre preconceito por não ser boa nos serviços domésticos.

— Ah, sempre! Aliás, sempre que sou convidada para jantares ou almoços, principalmente os dos fins de ano, eu chego bem tarde, só na hora de comer.

— Já sei por quê: para não precisar ajudar a preparar a comida e não passar vergonha por conta de as pessoas perceberem que você não sabe fazer nada.

— Acertou. Como você é esperto, doutor!

Rimos.

Continuei:

— Tenho certa inveja das mulheres que são intelectuais e ainda sabem cozinhar com maestria. Minha tia vive me dizendo: “Jaqueline, Jaqueline, você precisa se desenvolver em todas as áreas da sua vida e não só na área intelectual! Tem que saber cozinhar pra você mesma, tem que ter autossuficiência emocional, pessoal, além da financeira!”

— Os conselhos das tias são os melhores. Pois então, nesta noite, você vai fazer a sopa, doutora.

— Eu?

— Sim. Eu vou te explicando e também te ajudando.

— E se ficar intragável?

— Você vai caprichar, é o nosso jantar!

— Tudo bem, vou tentar.

— Então, primeiramente, prepare os temperos e todos os ingredientes que serão utilizados.

— Está aí uma coisa que eu não faço. Vou pegando tudo de qualquer jeito e jogando dentro da panela.

— Isso se chama ansiedade, doutora. É a pressa de ter a comida pronta. Mas cozinhar é uma arte e uma terapia; tem que ser feito com calma e esmero. Vamos, respire fundo — ele me disse e eu respirei. — Agora pegue os ingredientes um a um, sem pressa.

— Eu percebo que minha ansiedade acaba comigo. — Peguei o tomate.

— Olha, o tomate já está aqui sobre a mesa. Agora corte-o bem devagar, certinho, em cubinhos. A coisa mais importante do mundo agora pra você é cortar bem direitinho esse tomate. Não pense em mais nada. Concentre-se no alimento. Respire fundo mais uma vez e relaxe suas mãos. Noto que elas estão contraídas e ainda um pouco nervosas. — Ele me orientava, segurando as minhas mãos que seguravam a faca.

— Só há pouco tempo notei que tenho ansiedade até para colocar chocolate. Comecei a perceber que minhas mãos ficavam tensas e apressadas por fazer uma coisa tão simples — eu disse.

Peguei os outros temperos e ingredientes. Continuei respirando fundo e me acalmando.

— Acredite, essa sopa vai ficar boa — ele me animou.

O Luiz foi um amor. Finalizamos a sopa e ele arrumou a mesa enquanto eu lavava a louça e limpava a pia.

Sentamos à mesa.

— Ficou deliciosa. Parabéns, doutora! Já pode se casar — ele me disse, soltando um riso em seguida.

— Menos, Luiz. Não vai ser uma panela de sopa bem-feita que vai me qualificar para tanto.

De repente, eu comecei a chorar. Lembrei-me dos meus pais, em especial da minha mãe. Ela costumava fazer uma sopa deliciosa nas noites frias dos fins de semana.

— Ei, o que foi? Por que tá chorando?

— É que eu me lembrei dos meus pais.

— Não superou ainda?

— Nunca imaginei que eu reagiria desse jeito pelo divórcio deles, logo eu que estou tão acostumada a ver famílias e casamentos serem desfeitos.

— Mas aprenda: quando é com a gente, dói mais. Sentir na pele não é o mesmo que apenas ver os outros sofrendo.

— Sabe, quando eu vi minha mãe sair por aquela porta, com as malas nas mãos, indo embora para sempre, senti como se algo tivesse morrido aqui dentro da minha alma. O rosto triste do meu pai, irradiando angústia, arrebentou meu coração de pena.

— Imagino o quanto deve ser difícil ver seu pai assim.

— Quando se é criança tudo é mais fácil, porque geralmente as crianças ficam sempre com a mãe. Mas no meu caso foi tão difícil ter que escolher entre um dos meus pais. Tive de optar por quem eu sentia mais pena, por quem está mais frágil. Minha mãe tinha planos de encontrar um novo amor, mas meu pobre pai, que já está velho e doente, não tem essa expectativa. Optei por ele, mas sinto muito a falta da minha pobre mãe, que também sofreu tanto por muitos anos. — Desatei a chorar ainda mais.

— Chore, doutora, coloque pra fora toda a dor que está aí dentro do seu coração. É o seu direito. — O Luiz enxugou minhas lágrimas que já caíam dentro do prato de sopa.

Eu e ele nos abraçamos.

 

 

Mesmo que eu já pudesse ser chamada de “uma advogada de verdade”, o Direito Penal ainda não era a minha praia. Eu era muito boa na parte teórica, mas continuei não me sentindo bem visitando presídios nem lidando com o crime. Porém, como eu havia trabalhado quase um mês com o Luiz na preparação de uma defesa envolvendo o tribunal do júri, decidi auxiliá-lo no dia do julgamento. Nossa tese era legítima defesa com excesso culposo. Entretanto, eu iria apenas e tão somente auxiliá-lo organizando os papéis do processo, leis e relembrá-lo de pontos importantes a serem levantados no momento do julgamento. Desse modo, fiz a parte escrita e o Luiz faria toda a sustentação oral. Vale dizer que eu sofria com crises de ansiedade que provavelmente me impediriam de enfrentar uma situação dessas. Para resumir, a verdade é que eu não tinha mesmo paciência para esse tipo de coisa. Vou dizer uma coisa pra você: eu comecei a ter certeza de que estava na faculdade errada quando as pessoas que me conheciam riam da minha cara quando eu contava que estava me graduando em Direito.

Tinha que ser o Luiz pra mudar minha vida de uma vez por todas. Naquele dia vesti minha toga preta (foi a primeira vez que a usei). Eu a havia comprado logo no primeiro mês em que me formei, na ilusão de vesti-la quando por ventura eu fosse defender um recurso no Tribunal de Justiça.

Cheguei ao fórum na hora certa; na verdade um pouco antes. Precisava preparar tudo para quando o doutor Luiz chegasse. Aos poucos as pessoas tomavam os seus lugares para assistirem ao tribunal do júri. Comecei a ficar nervosa e preocupada quando vi entrar o acusado, seus familiares e a família da vítima.

Quando os jurados chegaram, meu coração acelerou. Todo mundo já estava ali, menos o doutor Luiz. Ele seria o ator principal daquele momento. Eu pensei: “O Luiz não faria isso comigo.” Liguei pra ele.

— Luiz, onde você está? Daqui a pouco o julgamento começa.

— Oi, doutora, ainda estou a caminho. O trânsito está parado por conta de um acidente.

— Venha logo, doutor. Por favor, não me deixe aqui sozinha.

— Aguenta aí que eu tô chegando.

Ele desligou.

Mais dez minutos se passaram e o julgamento estava prestes a começar. Liguei para o Luiz de novo:

— Doutor, tá chegando?

— Doutora, eu não vou conseguir chegar a tempo.

— Pelo amor de Deus, doutor! Você não pode me deixar aqui sozinha. Eu nunca fiz isso antes. O pior é que minha oratória está enferrujada. Para falar a verdade, nunca defendi um acusado de homicídio antes. — Tentei fazê-lo entender que minha situação não era favorável.

— Doutora, se acalme. Você conhece o caso, estudou comigo todo o processo, preparou comigo a defesa. Eu sei que você consegue. Faça isso hoje por mim. Já está todo mundo aí. Falei para o cliente que você é ótima.

— Falou o quê? Não brinca, doutor.

— Estou falando sério.

— Luiz, isso é loucura. E se o pobre réu for condenado por minha causa?

— Eu confio em você, doutora. Escute, minha bateria vai acabar. Faça o seu melhor e tudo vai dar certo. — Ele desligou o telefone.

Uma forte vertigem me acometeu. Pela primeira vez pensei em fugir. Eu poderia fingir que não estava bem, mas o Luiz havia confiado tanto em mim que decidi enfrentar a situação mesmo tremendo de nervoso. Minha oratória estava terrível, eu não me sentia bem falando sobre crimes.

De um lado a família do réu, do outro a família da vítima. A plateia estava cheia de estudantes de direito e estagiários em busca de novos aprendizados com seus cadernos para as anotações. Eu não poderia fazer feio. Mas eu tremia por dentro. Respirei fundo e mentalmente fingi que aquilo tudo era apenas uma encenação, uma simulação da faculdade. Se eu não acreditasse que era verdade, talvez fosse mais fácil conter o nervoso.

Enfim, era chegada a hora. Posicionei-me na tribuna e iniciei os cumprimentos aos presentes:

— Excelentíssimo doutor Arthur Augusto de Moraes, presidente deste emérito tribunal do júri, é uma honra trabalhar com Vossa Excelência pela primeira vez, ressaltando minha admiração por vosso exímio trabalho e imparcialidade nesta comarca. Minhas saudações ao ilustre representante do Ministério Público...

Continuei meus cumprimentos ao júri e aos demais presentes. Essa era a parte mais fácil, dava para enrolar por uns quinze minutos. Prossegui:

— Senhores jurados, hoje vossas excelências têm uma das mais difíceis missões humanas, missão essa que é o ato de julgar. São os senhores que dirão se absolvem ou condenam o réu. Vossas excelências proferirão o veredicto. Por isso eu peço aos senhores que me deem credibilidade, pois eu não me desviarei nem por um instante das provas dos autos. Vou me ater apenas às verdades presentes nos autos deste processo, e nada além disso.

Respirei fundo. Já estava menos tensa, mas minhas mãos ainda suadas. Os estudantes e estagiários me olhavam atentos. Continuei:

— A questão analisada nos presentes autos parece simples demais e esse talvez seja o maior perigo de processos assim, que não são tão volumosos, o perigo de processos que começam e terminam rapidamente, pois é nessa ilusória simplicidade onde se ocultam muitas vezes questões e verdades jurídicas complexas, ocultam-se dramas que não foram devidamente investigados, dramas que não foram devidamente considerados. Vossas excelências fizeram o juramento de analisar esse caso conforme os ditames de vossa própria consciência e de acordo com os reclames da justiça.

A essa altura minhas mãos já estavam secas, e não mais tremiam como no momento em que eu soube que teria que conduzir sozinha toda a situação. De vez em quando eu olhava em direção à porta; tinha esperança de que o Luiz fosse aparecer de repente. Prossegui:

— Um dos conceitos mais elementares de justiça é aquele que diz que justiça é dar a cada um aquilo que é seu, e sendo assim, se a tese da acusação for acolhida, no sentido de que o senhor Francisco teria assassinado o senhor Adalberto, não se estaria distribuindo essa justiça que é dar a cada um aquilo que é seu. Para julgar alguém e dizer que esse alguém errou, dizer que esse alguém cometeu um crime e merece a punição, que no Brasil é algo extremamente grave, tendo em vista a situação do sistema carcerário brasileiro, é exigido um pouco mais de cautela. É preciso nos colocarmos no lugar do senhor Francisco, ao menos um pouco. Não digo nos colocarmos no lugar dele fisicamente, mas sim mentalmente. Para isso, é necessário que façamos um esforço. Para isso é preciso analisar os fatos, não aquilo que teria acontecido hipoteticamente, mas sim o que de fato consta nos autos do processo. Eu quero levá-los mentalmente à situação do senhor Francisco e vou lhes demonstrar que seus atos foram praticados em legítima defesa, e que se houve excesso, esse excesso foi culposo. Minha concepção é firme e inamovível: legítima defesa. No entanto, eu não posso apostar o futuro do senhor Francisco, nem a sua vida, então, caso vossas excelências não acatem o entendimento de legítima defesa, então que possam acatar a tese de homicídio privilegiado, com a devida redução de pena. Vossas excelências, todos nós algum dia poderemos nos deparar com a situação em que teremos que escolher entre matar ou morrer. Nesse mundo carregado de maldades, absurdos e coisas ruins existe o direito à legítima defesa, e esse direito deve ser exercido para proteger a nossa comunidade, a nossa família e a nossa própria vida.

Foram os quarenta minutos mais demorados da minha vida. Antes de terminar esses primeiros instantes do julgamento, o doutor Luiz apareceu, sentou-se no meio das pessoas e me observou até o recesso de meia hora. Eu sorri pra ele. Foi um sorriso de agradecimento por mais uma vez ele ter me proporcionado mais um momento inesquecível. Mais uma vez eu havia superado minhas fraquezas; foi como se eu estivesse provando a mim mesmo que eu era capaz.

O doutor Luiz assumiu o posto no resto daquela tarde de julgamento. Sua defesa foi magistral, meus olhos brilharam de admiração por aquele homem que irradiava serenidade e confiança.

O nosso cliente havia sido acusado de homicídio doloso por desferir cinco facadas na vítima, e naquele dia foi absolvido do crime e sua ação considerada pelo júri como Legítima Defesa com Excesso Culposo, tendo sido ele condenado a apenas dois anos de detenção em regime semiaberto, só mesmo pelo excesso.

Ao fim cumprimentamos a família do acusado e eu e o Luiz nos abraçamos. Foi um dos dias mais emocionantes que eu vivi.

— Doutora, precisamos comemorar nossa vitória.

— Tem toda a razão.

— Você foi brilhante! Obrigado por ter me ajudado hoje e me substituído. Fiquei preso naquele trânsito caótico.

— Só você para me fazer descobrir que eu posso.

— Eu confio em você, doutora. Não duvidei nem por um instante que daria tudo certo.

Ele me abraçou mais uma vez.

 

 

Naquela tarde o doutor Dario nos chamou para conversar em sua sala. Confesso que eu não imaginava o que ele teria de tão importante para nos dizer, mas, ao julgar pelas suas feições de entusiasmo, a notícia era boa.

Entramos na sala. O Luiz parecia ser o mais ansioso para saber do que se tratava. Já o doutor Pedro estava compenetrado, com ouvidos atentos às palavras de Dario.

— Queridos colegas, que bom que estão todos aqui.

— Estamos curiosos pra saber o que o doutor tem a nos dizer — eu disse.

— E vou dizer agora.

— Então diga — o Luiz prosseguiu.

— Nosso escritório recebeu o convite para participar do 16º Congresso Latino-Americano de Direito Internacional em Buenos Aires. Ganhamos de cortesia as entradas e a hospedagem no Gran Hotel Capital. Um velho amigo meu advogado está participando da organização do evento e conseguiu para nós essa regalia. Serão quatro dias. — Doutor Dario nos contou a novidade.

— Amei! — exclamei.

— Teremos que arcar apenas com nossas passagens de avião — continuou. — Lembrando que essa cortesia é apenas para nós, advogados. Se quiserem levar alguém da família, terão que pagar separadamente. E isso tem que ser visto logo porque tudo indica que as vagas para o evento já estão quase esgotadas. O congresso acontecerá no centro de eventos do próprio hotel onde ficaremos hospedados.

— Que máximo, doutor! Esse hotel deve ser fantástico! Mal posso esperar pelo momento de estar lá — comemorei mais uma vez. Eu era a mais animada do grupo.

— Sim, doutora. É um dos mais caros de Buenos Aires. Será uma oportunidade única de ouvirmos grandes juristas, além de conhecermos um novo país. O evento é o mais importante e expressivo na área de Direito Internacional na América Latina e um dos maiores eventos no campo do direito do mundo. No Congresso, expõem os mais importantes internacionalistas do Brasil, Argentina, Estados Unidos, autoridades diplomáticas, professores nacionais e estrangeiros, e pesquisadores — Dario afirmou.

— É só dizer o dia que eu arrumo minhas malas. Buenos Aires, aí vou eu! — Só faltei pular de felicidade.

— Terei que falar com a minha namorada. Qual é a data do evento? — Luiz perguntou, mas não parecia muito animado.

— Daqui a vinte dias. Temos tempo de nos preparar. Podemos comprar nossas passagens para o mesmo voo e viajarmos juntos. Eu pelo menos irei sozinho. Dessa vez não poderei levar minha família comigo — Dario disse.

— Eu acredito que também irei sozinho — Pedro afirmou.

— Então é uma boa ideia comprarmos as passagens juntos para o mesmo voo. Assim faremos companhia um para o outro — eu disse, toda entusiasmada. — Lá vai estar friozinho nessa época do ano. Tenho que comprar casacos novos!

— Então podemos embarcar juntos no aeroporto de Guarulhos um dia antes do evento. Que tal comprarmos as passagens uma semana antes pra garantir?

— É o mais sensato — Pedro concordou.

Em seguida, observou Luiz.

— Luiz, você não parece animado.

— É que eu não sei se poderei ir. Nesse mês tive gastos inesperados, além de dívidas atrasadas. Tenho dois filhos pequenos, estou sem grana sobrando nesse mês, e talvez minha namorada não queira que eu vá para outro país sem ela — Luiz concluiu, pensativo.

Naquele momento meu pensamento foi inevitável: "Deus me livre de depender da autorização de alguém pra viajar. Viva a liberdade!"

— Espero a confirmação de vocês em quinze dias — Dario disse.

Só de pensar que algum dia eu precisaria da autorização de alguém para viajar para onde eu quisesse, me veio uma sensação de sufoco a qual logo fiz questão de mandar embora. Afinal, eu era livre.

***

Foi tudo emocionante: o momento de comprar as passagens, eu nas lojas escolhendo casacos novos... Eu mal podia acreditar que estava a caminho de conhecer um novo país. O Luiz não estava na agência de viagens. Tudo indicava que ele não iria conosco. Perguntei várias vezes e ele sempre dizia não ter certeza por conta dos vários problemas para resolver naquele mês conturbado.

Nada poderia tirar minha empolgação. Muitos anos atrás, quando fiz um curso de espanhol por correspondência, nos tempos em que a internet no Brasil ainda era para poucos, me encantei pelos pontos turísticos da cidade de Buenos Aires mostrados nas apostilas que eu estudava.

***

Liguei para o Luiz para me despedir, mas ele não atendeu. Aliás, não foi para o escritório naquele dia, anterior ao do nosso embarque.

***

Lá estávamos nós: eu, o doutor Dario e o doutor Pedro, a caminho do nosso portão de embarque. Naquele fim de tarde o aeroporto de Guarulhos estava cheio de pessoas que, ansiosas e empolgadas, caminhavam de um lado para o outro, uns partindo, outros chegando. Era a vida acontecendo. Eu já tinha andado de avião antes, em voos domésticos. Aquele seria meu primeiro voo internacional.

Eu segurava meu sobretudo nos braços. Minha mala de rodinhas estava repleta de roupas novas que comprei só pra usar durante os dias de passeios na terra do tango.

Quão não foi nossa surpresa quando nos deparamos com o doutor Luiz lá, parado de pé, já nos esperando antes de passarmos pelo raio X.

— Olha só quem está ali — doutor Dario comentou.

— É o doutor Luiz — doutor Pedro confirmou.

— Achei que ele não viria.

— Todos nós achávamos — doutor Dario comentou.

Fui a primeira a sorrir. Deixei minhas malas no chão, corri em direção ao meu melhor amigo advogado e o abracei.

— Luiz! Você veio. Que bom! Sem você essa viagem seria tão sem graça. — Eu já estava com meus braços envoltos em seu pescoço.

— Eu quis fazer surpresa. Comprei ontem a passagem.

— Não confirmei sua presença no evento, doutor Luiz — Dario lembrou.

— Não se preocupe, doutor Dario. Eu liguei lá e confirmei já há uma semana — Luiz esclareceu.

— Que bom que vai conosco, Luiz — Pedro comentou.

— Será uma divertida viagem entre amigos — eu comentei, saltitante.

— Mas e a Paula? Ela não vem? — Dario perguntou.

— Não. Dessa vez ela teve que ficar com as crianças. Não sobrou dinheiro e, além do mais, nosso filho Brian quebrou o pé faz duas semanas e ainda não se recuperou completamente do ocorrido. Tem que ficar em repouso.

— Que pena. Seria legal se ela viesse — afirmei.

— A Paula é uma grande mãe — doutor Pedro disse.

— Sim, a Paula é sensacional. Ela fez questão que eu viajasse com vocês e ainda disse que eu não poderia perder essa oportunidade única.

— São só quatro dias. Passa rápido — doutor Dario comentou.

— Certamente. Então vamos. Temos que passar pelo raio X. Depois seguiremos ao portão de embarque — eu falei, já com as minhas malas de volta nas mãos.

***

Eu me sentei na poltrona do corredor, o doutor Pedro no meio e o doutor Dario na janela. O Luiz sentou-se do outro lado, mas também no corredor. Ficou praticamente do meu lado. Passei dias mostrando meu bilhete de viagem para ele, que foi esperto e conseguiu uma poltrona próxima.

No momento da decolagem, senti aquele frio na barriga e uma rápida vertigem. Eu sempre fechava os olhos até o avião já estar no céu. Passado esse primeiro impacto da decolagem, tudo ficava bem. Parecia até que a aeronave estava parada.

Foram as três horas de voo mais divertidas da minha vida. O doutor Dario e o doutor Pedro eram mais sérios e mais velhos, já estavam na casa dos 45/50 anos. Já o Luiz e eu éramos os mais jovens: eu tinha 27 e ele 25 anos. Ríamos quase o tempo todo. Meu melhor amigo advogado era muito brincalhão.

***

O piloto avisou que estávamos prestes a aterrissar em solo argentino. Meu coração bateu mais forte, afinal era a primeira vez que eu visitava outro país.

***

O Aeroporto Internacional Ministro Pistarini, mais conhecido como Aeroporto Internacional de Ezeiza, é o maior aeroporto da Argentina. Quando recebemos autorização para sair do avião, minhas mãos começaram a suar de ansiedade.

Ao respirar pela primeira vez os ares argentinos, me senti em outro mundo, me senti mais jovem, nunca estive tão empolgada. Aquele aeroporto era considerado um dos aeroportos mais modernos da América Latina e do hemisfério sul.

Era tudo muito grande, infraestrutura de dar inveja, longe cerca de uma hora do hotel onde ficaríamos hospedados. Havia uma cafeteria Starbucks logo na área de embarque, além de um McDonald’s mais adiante. Me bateu aquela fome quando senti o cheiro do lanche e dos cafés.

Eu me encantei com o um amplo free shop, quis entrar para comprar algumas coisas, mas meus amigos não deixaram, disseram que tínhamos que ir logo para o hotel; aliás, o serviço de transporte do Gran Hotel Capital já nos esperava na saída do aeroporto.

Dias antes eu já tinha feito o câmbio do meu dinheiro. Comprei pesos para comprar as coisas que eu quisesse. Os táxis eram amarelos ou pretos. O carro que nos esperava era um Subaru Forester XT Turbo, enorme e espaçoso por dentro. Os doutores foram no banco de trás e eu na frente, ao lado do motorista.

— Esse hotel é lindo! — eu disse, assim que entramos no saguão.

***

— Vamos fazer o check-in, doutores. Nós três ficaremos no mesmo quarto, em camas separadas, é claro. Doutora, você vai ficar em um quarto separado, mas no mesmo andar que o nosso. Temos que pegar os cartões magnéticos. E não reparem, esse é chique, mas para nós foram reservados os quartos mais simples — doutor Dario explicou.

Depois do check-in, seguimos para o quinto andar. Eu não parava de olhar ao redor, estava encantada e mal podia esperar para conhecer a cidade no dia seguinte, ou ainda naquela noite.

***

— Nossa! Esse é o quarto simples? — eu perguntei, maravilhada com a decoração e o refinamento no local. — Tem até hidromassagem.

— O serviço de quarto fica disponível durante as vinte e quatro horas do dia — a camareira me informou.

Agradeci a atenção em espanhol. Da minha janela pude vislumbrar a grande cidade de Buenos Aires toda iluminada. Era início da noite e bateu uma vontade de sair e explorar cada canto daquele lugar.

 

 

Aquele foi o primeiro dia de congresso. Já tínhamos passado a tarde ouvindo palestrantes e importantes juristas. Luiz e eu nos sentamos lado a lado. A sequência de palestras e discursos duraria até às nove horas da noite. O relógio ainda marcava sete. O auditório estava lotado.

O Luiz olhou para minha cara. Olhei para cara dele e disse:

— Que tédio!

— Vamos sumir daqui? O que você acha?

— Acho uma excelente ideia. Estou louca pra explorar a noite em Buenos Aires — eu disse ao pé do ouvido dele. Ninguém poderia nos escutar.

— O passeio hoje cedo com o doutor Dario e o Doutor Pedro foi um saco.

— Tem razão, foi entediante. Tá louco, passeio de gente velha! Museu, restaurante... — Soltamos uma risada, em voz baixa, pra não chamar atenção.

— Então tá. Eu saio primeiro e você vem em seguida. Te espero lá no estacionamento.

— Estacionamento?

— Aluguei uma moto.

— Uau! Já tinha pensado em tudo.

— Sou um homem prevenido contra o tédio. Vou lá.

— Ok, daqui a cinco minutos eu vou também — eu disse.

Aquela noite de agosto em Buenos Aires estava geladinha, cerca de onze graus Celsius. Meu sobretudo, casaquinho por baixo, bota, luvas e um chapeuzinho de lã foram suficientes para aplacar a brisa fria.

O Luiz já estava me esperando no estacionamento com o capacete na cabeça. Nossa! Como aquele lugar estava lotado de carros importados e caríssimos.

— Nossa! Como é sensacional estar no meio de gente rica — afirmei depois de olhar ao redor.

— Coloque o capacete, doutora! Vamos explorar a noite em Buenos Aires. Já preparei o GPS que vai nos guiar para onde quisermos.

— Com certeza, doutor! Contei os dias para esse momento. — Coloquei o capacete, subi na moto e segurei firme na cintura do Luiz, que deu a partida rumo aos lugares mágicos daquela cidade que anos eu havia conhecido somente nas apostilas de espanhol.

Eu queria muito visitar aqueles restaurantes cinematográficos nos quais havia apresentações de tango, mas isso só depois de explorar os cantinhos mais esquecidos da cidade.

Passamos mais uma vez em frente à Casa Rosada. Na manhã daquele dia já tínhamos visto o local com os doutores.

— Vamos conhecer um lugar lindo, doutora. Fica a 45 minutos daqui.

— Nossa! Tudo isso?

— Um pouquinho longe, mas vai valer a pena.

Chegamos ao Jardim Japonês por volta das vinte horas. Tínhamos apenas mais uma hora para aproveitar aquele lugar lindo antes de fechar.

— Quis vir logo aqui. Olha só esse paisagismo, lagoas, as exposições, um viveiro de plantas, e ainda tem um restaurante japonês mais adiante — o Luiz disse, enquanto atravessávamos a pequena ponte vermelhinha.

— Esse lugar é mesmo lindo! A arquitetura e cultura japonesa me fascinam. Quando eu era criança, amava ver na TV essas pontes redondas sobre os laguinhos ou rios. É tão delicado. Obrigada por ter me convidado. Esse é um momento único.

— Não precisa agradecer. A gente merece uma noite agradável depois da manhã chata que tivemos com os doutores.

— Pobrezinhos, tiveram boa intenção. Parece que está esfriando mais. E você nem trouxe luvas.

— Eu trouxe sim. Só me esqueci de colocá-las. Olha só, estão aqui, no bolso do meu sobretudo.

Conhecemos mais cantinhos daquele lindo jardim.

— Bateu uma fome agora — eu disse, já faminta.

— Pensei nisso. A nossa próxima parada é uma casa de tango, que promete um jantar delicioso. Reservei uma mesa ainda ontem.

— Estou impressionada por você já ter preparado todo o itinerário.

— Eu sempre penso em tudo. É pertinho daqui, na Esquina Carlos Gardel. Em quinze minutos estaremos saboreando um jantar especial.

Subimos na moto mais uma vez.

***

Enfim chegamos à Esquina Carlos Gardel. Tango Show e Restaurante era uma das casas de tango mais refinadas da cidade. Ao entrar no local me senti em um filme de Hollywood. Era enorme, parecia um grande teatro de ópera, com lustres de cristais no teto. Os lugares eram mesas pretas enormes onde os clientes se acomodavam para degustar o jantar e apreciar o show de tango que acontecia em um palco grande no alto.

As cortinas do palco eram vermelhas com detalhes dourados, assim como os detalhes dourados das paredes e lustres menores que pareciam serem feitos de ouro, pois reluziam. Havia também mesas menores, de três lugares, algumas no alto, em espécies de camarotes, com uma vista mais próxima do palco.

Luiz e eu nos sentamos em uma das mesas menores localizadas no alto, na área VIP, com vista de frente para o palco. As taças de cristais postas sobre a mesa, os pratos amarelos cor de ouro, traduziam o refinamento e requinte do ambiente.

O jantar já estava sendo servido há cerca de quarenta e cinco minutos. O show de tango começaria em uma hora e meia, tempo suficiente para saborearmos o jantar e depois voltarmos nossa atenção para as apresentações.

O cardápio era variado. Optei pelo prato “Mi Buenos Aires Querido”, lombo bovino grelhado com batatas douradas na manteiga de alecrim, e de sobremesa escolhi “amargura”, mousse de chocolate em biscoito bretão e xarope de pistacchios. O Luiz escolheu o prato “Velhos Tempos”, Salmão do Atlântico com farinha de amêndoa, cogumelo portobello e manteiga de limão em conserva. A sobremesa foi a mesma que a minha.

— Luiz, esse é um restaurante caro. Eu faço questão de te devolver o dinheiro. Não se acha mil reais assim.

— O que é isso, doutora! Eu te convidei, eu banco. Não se preocupe, estou pagando no cartão de crédito, uma mixaria se analisar todo o momento especial que estamos vivendo nesse lugar incrível.

— Você é quem sabe. E, a propósito, esse jantar está divino! Nunca tinha provado esse tempero, nem manteiga de alecrim.

— Daqui a pouco o show de tango vai começar.

— Estou ansiosa pra assistir.

***

O figurino dos artistas era impecável; a cor dos ternos dos dançarinos combinava com a cor dos vestidos brilhantes das dançarinas.

— Estou me sentindo em um filme de Hollywood — eu disse.

— A vida é um filme que passa rápido. Precisamos saber aproveitar cada instante — Luiz completou.

***

O relógio marcava meia-noite quando o show terminou. Estávamos a caminho do estacionamento.

— Enfim vamos para o hotel. Já estou imaginando a cara dos doutores sem saber onde estamos — eu sugeri.

— Voltar para o hotel agora? Tá brincando! Somos adultos e não tenho medo da cara feia dos doutores. Tem mais um lugar pra gente conhecer e se divertir um pouco mais.

— Onde?

— Sobe na moto que eu te levo lá.

— Tá certo.

Não fazia ideia para onde ele estava me levando. A noite estava divertida e ficaria ainda mais.

Quinze minutos depois o Luiz parou a moto em frente à casa de shows Club Aroaz.

— Chegamos.

— Que lugar é esse?

— Uma casa de shows. Comprei ingressos para o show da banda de rock argentina Águilas de Fuego, muito conhecida aqui. Já começou há uma hora, mas ainda temos tempo pra aproveitar. Não poderíamos passar essa noite sem dançar ao som das batidas de um bom rock.

— Já que é assim, vamos entrar logo.

***

A banda já estava no palco, todos pulavam e cantavam animados. Os amantes do rock com certeza estavam ali, entregando sua alma à apreciação da arte. Gostei das músicas que ouvi. Eu e o Luiz dançamos muito. Eu adorava rock.

— Que loucura! O som deles é mesmo alucinante!

— Eu não te falei que a gente tinha que vir?

— Sim, você sempre tem razão.

***

O show terminou por volta das duas horas da manhã.

— Agora eu não aguento mais, preciso ir para o hotel. Não é perigoso você dirigir com sono?

— Estou um pouco cansado, mas ainda tenho pique pra gente ensaiar uns passos de tango no hotel.

— Eu acho que você já não está mais falando nada com nada. Vou chamar um táxi.

Em dez minutos o táxi chegou e entramos no banco de trás. Passei para o motorista o endereço do hotel. O Luiz recostou a cabeça no meu ombro e dormiu. Eu também peguei no sono, mal me aguentava em pé.

— Acordem! — o motorista gritou depois de parar em frente ao hotel.

Levei um tremendo susto.

— Acorda, Luiz. Chegamos.

— O quê?

— Temos que sair do táxi.

Paguei o motorista. Saímos do carro. Chegamos à porta do meu quarto meio cambaleantes e, para nossa surpresa, o doutor Dario estava lá no corredor, vestido em seu hobby.

— Doutor Dario — eu disse.

— Doutor Luiz, doutora Jaqueline, eu os procurei por toda parte e não os encontrei. Onde estavam? Eu e o doutor Pedro ficamos preocupados.

— Eu a doutora estávamos jantando — o Luiz tentou se explicar.

— Jantando? Às três horas da madrugada?

— Ficamos conversando e nem vimos o tempo passar. Mas agora eu vou entrar no meu quarto, preciso descansar. Boa noite, doutores. — Eu entrei no meu quarto e nem quis saber do sermão que o doutor Dario proferiria ao Luiz, mas meu melhor amigo me contou como tudo aconteceu.

Eles entraram no quarto e o Dario começou os sermões:

— Luiz, o que você fez? Poderia ter pelo menos esperado o congresso terminar pra depois sair por aí com a sua amiga. Ela ainda é apenas sua amiga, não é mesmo?

— Ah, sim, claro. A Jaqueline e eu somos praticamente irmãos, e que ninguém duvide disso.

— Assim espero. Eu quis te apresentar juristas importantes, palestrantes e professores americanos, argentinos. Não ganhamos as cortesias para você simplesmente sair por aí curtindo a noite, e, para piorar, sem avisar. Estamos viajando em grupo em um país que não é o nosso, em lugares que desconhecemos.

— Desculpa, doutor, eu deveria ter pelo menos avisado.

— Olha, eu sei que você é jovem, e não me importo que você saia pra se divertir, contanto que seja na hora e local adequados e que avise.

— Tudo bem. Vou me deitar — o Luiz concordou, tirou o sobretudo e caiu na cama.

Eu passei o restante das horas dormindo e sonhando com os momentos que vivemos na casa de show de tango. Tudo parecia um filme, desses que a gente não consegue parar de ver nunca mais.

 

 

Senti uma vertigem, uma sensação de que o chão se abria sob meus pés. De longe eu pude ver minha mãe entrar pela porta da livraria acompanhada de seu novo namorado. Era um homem mais jovem, tinha uns quarenta anos. Meu pai virou-se e a viu também. Notei que o semblante do meu pobre pai mudou de repente, seu sorriso desapareceu e seus olhos vermelhos de depressão voltaram de vez. Aquela seria uma grande noite, a noite do lançamento do livro jurídico meu e do Luiz. Levamos tanto tempo pra escrever, nos dedicamos tanto.

Minhas mãos começaram a suar. Não imaginava que minha mãe traria alguém, mesmo sabendo que a livraria era pública. A falta de ar começou, eu mal sabia o que dizer para o meu pai. Fui para um canto e me escondi atrás de uma prateleira de livros. Eu lutava, mas essas crises de ansiedade e mal-estar sempre vinham em momentos como aquele. O Luiz percebeu que eu me escondi e foi atrás.

— Doutora, o que aconteceu? Você está bem?

— Não, eu não estou bem. Quero ir embora daqui. Vou tirar meu pai desse lugar.

— O que você está falando? É o lançamento do nosso livro. Você vai discursar, esqueceu?

— Minha mãe acabou de chegar acompanhada do namorado dela. Meu pai ficou arrasado. Não vou suportar ver isso. Achei que viesse sozinha.

— Doutora, me escute. Você não vai embora agora. Você vai ficar aqui, é o lançamento do nosso livro!

A Paula chegou de repente e se intrometeu na conversa.

— Luiz, está acontecendo alguma coisa?

— Nada, é que a doutora está tendo uma crise de ansiedade. Ela acaba de ver sua mãe chegar acompanhada do namorado, e isso a abalou porque o pai dela ficou triste.

— Mas você está tremendo, doutora Jaqueline.

— Sim, Paula, estou tremendo, e acho que vou começar a chorar. Ver isso é relembrar toda a infelicidade que a minha família passou. Eu vou embora daqui.

O Luiz segurou no meu braço e disse:

— Doutora Jaqueline, você não vai a lugar nenhum. Respire fundo, se acalme. Olha só: não pode desistir dos seus sonhos, não pode deixar de viver seus momentos bons por causa dos seus pais. Eles escolheram esse destino, o seu pode ser diferente. Não chore mais pelos cantos, seja uma mulher de verdade, enfrente e vença a sua dor. A força está aí, dentro de você. Agora você vai até sua mãe, vai abraçá-la e cumprimentar o namorado dela. Depois você vai falar com seu pai e perguntar se ele quer ir embora. Se ele quiser, eu peço para um amigo levá-lo até em casa.

— O Luiz tem razão, doutora. Você não pode deixar de viver seus bons momentos por causa dos seus pais. Você tem a sua própria história.

— Vocês têm razão. Eu vou lá cumprimentar minha mãe. Vou ver se meu pai ainda quer ficar, vou discursar e depois vou embora. Mesmo que meu pai queira ficar, eu vou pra casa. Não estou me sentindo bem.

— E o coquetel? — o Luiz me perguntou.

— Dane-se o coquetel! Será que vocês não percebem que a cena que eu acabei de ver me machuca? — eu soltei, em tom de voz alterado.

— Tudo bem, doutora. Eu e a Paula levamos você para casa depois do seu discurso.

— Obrigada. Não precisa. Eu pego um táxi — eu disse, me retirando em seguida.

Fiz o que o doutor me disse. Me fingi de madura e equilibrada e cumprimentei minha mãe e o namorado dela rapidamente. Por incrível que pareça, meu pai decidiu ficar, mas depois que chegamos em casa naquela noite ele chorou muito, ele chorou como eu nunca tinha visto antes. Ele me dizia que o divórcio foi o maior dos fracassos em sua vida.

 

 

O Luiz me chamou todo empolgado em sua sala. Fui logo ver o que ele queria. O lançamento do nosso livro completava pouco mais de um mês naquela semana.

— Luiz, o que foi? Está tão agitado.

— Doutora, a editora acabou de me avisar. Nosso livro vendeu mais de vinte mil cópias impressas e cinco mil cópias eletrônicas! Não é incrível? Já chamei a Paula pra comemorar com a gente no melhor restaurante da cidade — ele exclamou atônito.

— Isso é maravilhoso! Parabéns pra nós! — eu disse. Em seguida, pulei para perto dele e nos abraçamos. Foi um abraço longo, que durou mais do que deveria.

Caramba! A Paula entrou na sala do Luiz bem no momento em que eu e ele ainda nos abraçávamos, eu nunca a havia visto daquele jeito.

— Luiz! — ela exclamou, como se estivéssemos fazendo algo errado.

Nosso abraço foi interrompido. Olhamos para ela.

— Paula, meu amor — ele disse, aproximando-se dela.

— Luiz, o que foi essa cena que eu acabei de ver? — ela repetiu o nome dele com os olhos lacrimejando.

— Eu estava abraçando a doutora Jaqueline pra comemorar as vendas do nosso livro. Eu fiz alguma coisa errada?

— Sabe, eu me fiz de cega durante todos esses meses, mas só não ver quem não quer. Você é apaixonado pela doutora Jaqueline.

— Paula, de onde você tirou essa ideia?

— De onde eu tirei essa ideia? Estou tudo vendo tudo com meus próprios olhos. Vocês estão sempre juntos, trabalhando e fazendo planos. Foram até pra Buenos Aires. Foi legal, né? Eu vi as fotos. O jeito que vocês se olham e se abraçam diz tudo.

— Paula, eu e a doutora Jaqueline somos muito amigos e companheiros de trabalho. É natural que estejamos sempre juntos.

— Amigos? Pois eu não vou mais engolir essa amizade colorida de vocês.

Eu não aguentei e falei:

— Paula, escute aqui: fica tranquila, eu não sou apaixonada pelo seu namorado, não quero nada com ele. Aliás, quero sim, quero continuar trabalhando com ele e vendendo livros. Ele precisa de dinheiro pra sustentar seus filhos. Ou você acha que dinheiro dá em árvore?

— Se fosse só trabalho tudo bem, mas vocês vivem saindo juntos que eu sei.

— Você está enganada, Paula. O Luiz e eu às vezes almoçamos juntos aqui do lado do escritório. Em algumas vezes o doutor Pedro vai com a gente. Algo normal entre colegas e amigos que passam o dia inteiro juntos. Eu o visitei umas duas vezes apenas, mas o Luiz nunca tocou em mim. Sabe por quê? Porque ele gosta mesmo é de você. E se ainda não se casaram, a culpa não é minha não.

— Eu conheço o pai dos meus filhos. Ele nunca teve uma amizade tão colorida assim antes.

— Ah, Paula, as coisas mudam. Ele nunca teve antes uma amiga como eu porque ainda não me conhecia. E quer saber de uma coisa? A amizade e todo relacionamento tem que ser colorido mesmo. Sem cores a vida não tem graça. Relacionamentos cinza não têm vida.

— Doutora, não tente disfarçar o que não tem disfarce. Eu quero você longe do meu namorado.

O Luiz disse:

— Chega, Paula. Vamos embora. A gente conversa em casa. Fui eu que sempre procurei a doutora Jaqueline.

— Agora vai defendê-la?

— Escutem vocês dois: eu não preciso que ninguém me defenda. E tem mais: eu já cansei dessa novela, já cansei de estar entre vocês dois. Já cansei de ouvir seu drama feminino, Paula, o drama de ter um namorado que não quer se casar com você. Não quero mais ouvir desaforos. Podem ficar. Eu vou sair desse escritório hoje mesmo, aqui não é mais lugar para mim. Estou vislumbrando novos horizontes.

— Doutora, você não pode fazer isso. Não pode deixar o escritório.

— Claro que posso. Eu posso fazer o que eu quiser da minha vida e ninguém tem nada a ver com isso. Estou feliz por termos vendido milhares de cópias do nosso livro, doutor Luiz. Vamos receber um dinheirinho legal. Já fizemos muita coisa juntos. Agora já chegou a hora de você cuidar mais da sua família e decidir o futuro de vocês. Eu vou pra casa. Não tenho mais nada pra fazer aqui! — Meus olhos ardiam em fúria.

O Luiz ficou me ligando quase a noite toda, mas não atendi.

***

Eu nem fiz questão de pegar meus móveis do escritório, vendi para o doutor Dario a preço de banana. Aluguei uma nova sala em um prédio lindo, onde atendia clientes uma ou duas vezes por semana. Já ganhava meu dinheiro com a venda dos livros e apostilas de Direito pela internet.

 

 

O elevador parou. Senti a típica falta de ar repentina. Entrei em pânico, sempre tive medo de ficar presa dentro daquele negócio. Pelo menos eu não estava sozinha. O Luiz estava lá comigo. Nos encontramos no shopping para fazer as pazes depois de dois meses sem nos vermos nem nos falarmos.

Sem percebermos, já estávamos abraçados depois do meu grito.

— Você está bem, doutora? — Luiz me perguntou com olhinhos brilhantes.

— Não! Não estou bem. Tenho claustrofobia, acrofobia, todas as fobias que você possa imaginar — eu disse de olhos fechados. — Nem posso abrir meus olhos pra não perceber que estou presa dentro desse lugar.

— Fobias? Achei que você estivesse indo ao psicólogo.

— E estou, mas as consultas não têm resolvido muita coisa.

— Acho que você precisa mesmo é de outra coisa.

— Do quê?

— De amor. Você precisa ser amada de verdade.

— Se depender dos rapazes e homens de quem eu gostei, isso nunca vai acontecer. — Continuei de olhos fechados.

— Talvez você esteja gostando dos homens errados.

— Virou conselheiro sentimental agora, é? Minhas mãos estão suadas e minhas pernas tremendo.

— Calma, doutora Jaqueline. Estou aqui com você. Não tenha medo. Respire fundo. Abra os olhos lentamente e mire só o meu rosto.

Permanecemos abraçados. Lentamente abri meus olhos e encarei o doutor.

— Jaqueline.

— O quê? Nossa! Você me chamou de Jaqueline. — Senti que algo estava para ser revelado.

— E se eu dissesse que estou apaixonado por você? — ele me questionou.

— Então eu diria que você está encrencado.

— Por quê?

— Já expliquei. Não sou mulher pra ser dona de casa. Não sei cozinhar, não sei lavar, muito menos arrumar, uma negação total pra ser do lar.

— Eu contrato uma empregada.

— Não quero ter filhos.

— Eu já tenho dois.

— Adoro sair e viajar com os meus amigos.

— Eu também. Não me importaria se você fosse. — Ele insistiu em seus argumentos para tentar me convencer de que entre nós poderia haver algo.

— Assim você me deixa sem saída, Luiz. Ainda estou tremendo, presa nesse lugar. Estou sentindo muita falta de ar.

— É só isso que tem pra me dizer?

— Tem mais coisa — eu disse, ainda trêmula.

— Fala.

— Você é um forte candidato.

— A quê? — ele quis saber.

— A não me ter nunca.

— Palavras muito duras para uma jovem mulher que está em pânico, presa no elevador.

— Sempre tive medo de que isso acontecesse — eu disse.

— Eu me apaixonar por você?

— Não! Ficar presa no elevador! — afirmei.

— Ah, sim.

— Estou ficando ainda mais tonta.

— Nossa! Sua fobia é grave, doutora.

— Você nem imagina o quanto. Vamos tocar logo a campainha de emergência.

— Já toquei.

— Nem percebi. Será que vão demorar pra consertar essa coisa? — Eu parecia estar prestes a parar de respirar.

— Pode ser que sim, pode ser que não. Mas veja pelo lado bom: estamos juntos.

— É. Pelo menos não estou sozinha. Não entro mais nesse negócio.

Dez minutos se passaram e ouvi um barulho. Estávamos quase nos beijando quando de repente o elevador voltou a funcionar. Nos assustamos, a porta se abriu e várias pessoas já esperavam para entrar, aglomeradas do lado de fora.

Minha respiração ainda estava ofegante. Seguimos pelo corredor do shopping. Eu disse depois do susto:

— Nossa! Ainda estou tonta. Momentos terríveis aqueles, presa dentro daquele elevador.

— Doutora.

— Sim.

— Lembra-se do que eu disse?

— Não sei, ainda estou recobrando a consciência. Minha crise de fobia foi inenarrável. — Respirei fundo mais uma vez.

Paramos por um instante.

— Doutora.

— Luiz.

— Diga.

— Eu decidi sair mesmo do país. Quero fazer coisas novas. Vou realizar meu sonho de passar um tempo em Nova York. Os livros estão vendendo muito bem. Já temos nosso bom salário com eles.

— Fico feliz por você, mas sentirei sua falta.

— Estou realizando ao menos uma parte dos meus sonhos — afirmei, já mais calma.

— Também vou sentir a sua falta, a falta do meu amigo que sorri com os olhos.

Nos abraçamos.

 

 

Minhas malas já estavam arrumadas e minha passagem de avião comprada, passaporte e visto americano em mãos. Tudo correu bem para mim. Eu estava prestes a realizar meu sonho de passar um tempo fora do Brasil. Eu mal via a hora de respirar outros ares e conhecer lugares, pessoas e costumes novos.

Luiz e eu marcamos um encontro de despedida, pasmem, nos jardins do fórum, lugar esse onde vivemos nossos momentos mais marcantes. Nunca imaginei que ali, o lugar do qual outrora eu fugia, seria tão especial para mim. Quando eu cheguei, ele já estava lá, me esperando, aflito para me dizer algo.

Beijei o rosto dele.

— Pensei que não viria mais — ele comentou.

— Eu jamais deixaria de vir para nos despedirmos.

— Eu não gosto de despedidas — ele comentou com olhos fixos em minha face.

— Também não gosto, mas as coisas são assim mesmo — argumentei já o admirando.

— As coisas podem ser diferentes se nós queremos.

— Ah, Luiz, só de pensar que tempos atrás eu dei uma de advogada de porta de cadeia com você fico toda arrepiada — eu relembrei nossas aventuras.

— Foi divertido, não é mesmo? — ele questionou-se com um sorriso.

— Pra falar a verdade, eu detestei entrar naquele presídio, mas mais engraçado foi o bicheiro que ficou emocionado quando eu contei pra ele que o jogo do bicho fez parte da minha infância — eu completei, olhando nos olhos do Luiz, que lacrimejavam.

— Vivemos grandes momentos juntos, doutora — ele me disse, com os olhos vermelhos e cheios d’água.

— Sim, vivemos. O mais tenso e gratificante foi mesmo o tribunal do júri. Naquele momento eu me senti uma advogada de verdade. Nada de porta de cadeia! Nem advogada de fachada! Eu devo isso a você.

— Se você ficasse aqui comigo você teria uma carreira brilhante como advogada ao meu lado.

— Pode até ser, mas eu preciso tomar novos rumos. A vida é longa demais pra gente fazer a mesma coisa até o fim dos nossos dias — justifiquei.

— Falando em fim dos nossos dias, acho que descobri por que é tão difícil conseguir ficar com a mesma pessoa pelo resto da vida — o Luiz me surpreendeu, usando, no entanto, um tom de voz triste.

— Uau! Enfim encontrou a resposta para o dilema? Por que é tão difícil? — eu quis saber.

— Porque no fim das contas, doutora, a vida exige que façamos somente uma escolha — ele afirmou.

— É complicado. Eu sou uma pessoa que ainda não se sente capaz de fazer essa escolha, pelo menos não agora. — falei, convicta dos meus sentimentos.

— Talvez nenhum de nós se sinta. — Ele ficou cabisbaixo.

— Desculpe perguntar, mas o que aconteceu com a Paula, sua namorada, mãe dos seus filhos e nossa antiga estagiária? Não a vejo há tempos. — Eu estava mesmo curiosa para saber.

— Jaqueline, eu e a Paula decidimos terminar nosso relacionamento. Isso já faz uns dois meses. Preferi manter segredo.

— Nossa! Eu sinto muito, de verdade. Por isso você anda meio triste. E ainda está cabisbaixo — constatei.

— Ela foi passar uns meses com as crianças na casa dos pais dela, no interior. Meus filhos já estão até matriculados em uma nova escola. Parece que estão se adaptando. Eu disse pra você, doutora, é por isso que eu não me caso. É tão difícil ficar com a mesma pessoa para o resto das nossas vidas. — Ele se mostrou ainda mais desiludido.

— É como você disse: a vida exige que façamos somente uma escolha. E provavelmente ainda não estamos preparados para tomar essa decisão. Confesso, uma decisão difícil, que eu tão cedo não serei capaz de fazer — eu afirmei mais uma vez.

— Tem toda a razão. Se fosse uma escolha fácil, não haveria tantos divórcios, nós sabemos muito bem disso, curiosamente ganhamos a vida fazendo divórcios. — ele relembrou nossa situação como advogados.

— Pelo menos a gente ganha nosso dinheiro. — Tentei expressar algum bom humor.

— Verdade. — ele concordou ainda me olhando fixamente.

Sorrimos.

— E quando será que estaremos preparados para escolher? — ele me questionou mais uma vez.

— Ah, meu amigo, eu já nem me preocupo com essa resposta. Descobri que eu ainda sou tão jovem, tenho o mundo para conhecer. Falando nisso, você vai ficar um tempo ainda mais solitário porque, como sabe, estou indo pra Nova York passar dois ou três meses. Vou realizar meu sonho e respirar novos ares. Quem sabe eu fique por lá mesmo. — Eu o relembrei da minha partida.

— E os nossos livros? A nossa turnê de divulgação do nosso material jurídico? Poderíamos viajar juntos apresentando nossa obra, fazendo palestras. Tem as entrevistas nas rádios...

— Não me olhe assim, Luiz. Eu tenho minha carreira individual. Estou realizando o sonho de ir aos Estados Unidos e tenho certeza de que você vai me representar muito bem na divulgação dos nossos livros jurídicos aqui no Brasil, que, aliás, estão entre os mais vendidos em várias livrarias virtuais.

— Não vai ser a mesma coisa sem você, minha Jaque. — Ele acariciou meu rosto.

— Bom, me encontre lá em Nova York então — eu sugeri.

— Não duvide que eu vá, Jaqueline.

— Uau! Você me chamou de Jaqueline. Duvidar eu não duvido, mas não demore, podem aparecer concorrentes — eu brinquei.

— Eu não tenho medo deles. — Luiz disse determinado.

— Sabe, minha primeira paixão foi um americano que eu conheci no Brasil. — eu revelei.

— É sério?

— Sim. Coisa de adolescente vislumbrada. Depois ele voltou para os Estados Unidos e se casou com uma loira muito bonita — contei-lhe rindo.

— Já ouvi histórias assim.

— Quer saber de uma coisa, doutor?

— Diga, minha doutora.

— Essa ideia de ter que escolher apenas uma pessoa pra passar o resto da nossa vida me parece assustadora, eu diria até perturbadora.

— Por quê?

— Você ainda pergunta, doutor? Cada dia eu acredito menos que possa existir apenas uma pessoa que vá me fazer sentir completa e que vá me apoiar em tudo e todo esse blábláblá. Olha só quantos divórcios nós fazemos.

— Muitas pessoas encontram esse alguém para toda a vida. Talvez eu e você façamos parte da estatística negativa, daqueles que ainda não encontraram.

— Durante toda a nossa vida temos mais de um familiar, temos mais de um amigo, temos mais de um irmão, então por que acreditar que só uma única pessoa no mundo nos fará feliz no amor? — eu demonstrei mais uma vez minha dúvida.

— A lógica é interessante, mas seria esse seu argumento pra não ficar comigo, doutora? — ele me colocou contra parede com semblante sério.

— Agora você pegou pesado. Eu não sabia que o “eu e você” estava fazendo parte dessa conversa. Só estou querendo dizer que eu não acredito no “felizes para sempre com uma única pessoa.” Pelo menos não pra todo mundo, pelo menos não agora. Só uma minoria consegue esse feito. — tentei me defender.

— Pelo menos agora você foi mais direta. O grande dilema é a escolha, que deve ser só uma, apesar dos amores e afetos serem vários, e muitas vezes inesperados. Mas podemos ser felizes juntos por esse ano, por esse mês.

— A maior parte de nós não consegue fazer essa escolha de maneira correta, sabe, acertar de primeira. — eu insisti na ideia.

— Essa nossa conversa está pessimista demais, doutora. Eu conheço vários casais que ficaram juntos até morrer, ou que envelheceram juntos. — Luiz tentou ser mais otimista.

— Como eu disse, já tive várias paixões, mas apenas dois grandes amores. Não pudemos ficar juntos. Isso já faz dez anos e o amor por um deles ainda está aqui dentro do meu coração. Nunca ninguém me fez sentir o que eles fizeram — eu confessei.

— Eu entendo. Os amores não se repetem, acontecem de maneiras diferentes, mas ainda assim podem ser vividos, mesmo que não sejam para sempre. Cada um tem seu algo especial e inigualável. Como eu disse, nós podemos ser felizes pelos menos por esse mês, pelo menos por esse ano, ainda que não seja um amor tão intenso e avassalador como os primeiros foram.

— O amor de verdade é raro. Não se encontra em qualquer esquina — afirmei. — E, pelo o que eu vejo, você ainda não encontrou seu grande amor, doutor.

— Talvez eu o tenha encontrado, mas pode ser que ela não admita que exista esse sentimento bom entre nós dois. — ele me disse.

— Luiz, eu reconheço que ninguém demonstrou tanto afeto por mim como você durante todo esse ano em que trabalhamos juntos.

— E então?

— Quando eu estava na pior, foi você quem me reergueu, só você me apoiou, Luiz. Eu seria capaz de jogar tudo para o alto para tentar alguma coisa com você agora, mas minhas incertezas não permitem isso.

— Jaqueline.

— O quê?

— Eu acho que nós temos que parar de conversar um pouco.

— Por quê?

— Porque eu preciso fazer uma coisa, mesmo que seja só agora. — ele me disse.

— Que coisa? — eu quis saber.

— Isso!

O Luiz acariciava o meu rosto quando aproximou sua boca da minha e me beijou. Foi um beijo tão intenso que senti até tontura. Minhas pernas tremeram; foi como se meus pés não tocassem mais o chão. Não sei se era amor, mas carinho eu senti. Eu gostava muito dele.

— Luiz! Você me beijou! — eu exclamei ainda atônita e com o olhar perdido.

— Você também me beijou, doutora. — ele sorriu.

— Foi um beijo de despedida — eu disse.

— Desses que se dá uma vez só na vida — ele completou.

— A música! — exclamei, relembro nossa banda do sul predileta.

Sorrimos.

— Por favor, não me diga adeus, minha jurista preferida. — Luiz quase implorou.

— Nunca é adeus, meu amigo. É apenas um “até logo”. — eu tentei acalmá-lo.

— Até logo? — ele perguntou aflito.

— Eu preciso desse tempo longe de tudo e de todos. — expliquei-lhe, acariciando seu cabelo.

— Compreendo. — ele ficou cabisbaixo.

— Luiz, eu te agradeço por ter transformado a profissão que eu tanto detestava em uma lembrança boa e divertida. Desejo que você seja feliz com seus filhos. Eles sim são sua família para sempre.

— Amo os meus filhos. Sou feliz por tê-los em minha vida — ele afirmou e sorriu.

— Que bom. Eu gosto muito de você. Você é lindo de todas as maneiras. Vou sentir saudade de te ver sorrindo com os olhos.

— Obrigado. É tão bom ouvir essas palavras da sua boca, minha doutora.

— Mas agora eu tenho que ir. Embarco amanhã cedo rumo à uma nova aventura — eu finalizei, já em tom de despedida.

— Até qualquer dia, doutora.

Nos abraçamos.

Eu sorri, beijei o rosto dele e segui meu caminho com a alma livre.

Toda vez que eu penso que nada de empolgante pode acontecer a mim, a vida vem e me mostra o contrário. Momentos inesquecíveis surgem de repente, pessoas especiais aparecem em nossas vidas sem pedir licença, mudam o rumo da nossa história e muitas vezes nem nos damos conta disso.

Sabe de uma coisa? Eu tenho certeza de que essa história não termina aqui. Para falar a verdade, a história não termina nunca, e pode ter certeza de que cada vez que algo especial acontecer, você leitor, será o primeiro a saber.

 

 

Um ano depois da minha partida para os Estados Unidos, voltei ao Brasil. Fazia apenas uma semana que eu havia chegado quando o Luiz me enviou uma mensagem pelo WhatsApp.

Ele conseguiu meu número novo com uma amiga em comum. Na verdade, no tempo em que eu fiquei fora, conversamos muito pouco pelas redes sociais. Até que foi melhor assim, porque, depois que ele se reaproximou das crianças, seus sentimentos pela Paula voltaram. Sei lá, talvez tenha sido seu instinto de pai falando mais alto. Mas não se casou, ainda estava naquela de namorar a mãe dos seus filhos.

Na mensagem, Luiz me deu as boas-vindas e me convidou para reviver os velhos tempos de advogada participando com ele de uma audiência no Tribunal Regional do Trabalho.

Confesso que meu coração bateu mais forte depois que eu li sua mensagem. Um filme passou pela minha cabeça. Sim, eu estava com saudades. Depois de um ano fora, percebi que meu carinho por ele era tão real.

No dia seguinte acordei bem cedo. Eu estava muito ansiosa pelo reencontro que aconteceria ainda naquela tarde. Passei a manhã toda escolhendo roupa, ensaiando falas, imaginando como tudo seria.

A audiência aconteceria às 13:30, mas eu cheguei mais cedo, precisávamos de tempo para conversar. Peguei um táxi que me deixou na esquina do tribunal. Logo que eu saí do carro, pude avistar o Luiz na entrada, todo elegante de terno e gravata. Logo que me viu ele sorriu, com os lábios e com os olhos.

Quando enfim estávamos frente a frente, nos abraçamos. Foi um abraço forte e cheio de saudade. Ele beijou meu rosto.

— Que saudade, doutora! — Luiz exclamou com olhos brilhantes.

— É bom ver você, doutor. — Eu sorri.

— Pronta pra matar a saudade? Hoje temos uma audiência de conciliação, estou esperando o cliente chegar.

— Demissão sem justa causa?

— Sim. Espero que o cliente chegue logo.

— Se ele não aparece, não recebe nada, não é mesmo?

— Sim. Verdade.

— Então vamos entrar e esperar lá dentro. Não conheço muito esse novo prédio do tribunal.

— Vamos sim. Enquanto o cliente não chega, eu te mostro tudo lá dentro. — Luiz sorriu.

Seguimos para dentro do edifício. Passamos pelo detector de metal; tudo certo. As audiências aconteciam a partir do primeiro andar. Nós iríamos para o quarto.

Depois que entramos no elevador, permanecemos em silêncio, apenas nos olhávamos. O horário da audiência se aproximava e o cliente ainda não havia chegado.

— Depois da audiência eu te mostro os andares de cima — ele me disse, olhando para o relógio. Já estava aflito pela ausência do cliente.

— Legal. Um tour pelo tribunal. Mas então, como está tudo no novo escritório?

— Tudo certo. Minha sócia é uma velha amiga. Temos muitos clientes. Você tem que aparecer lá qualquer dia.

— Sorte a sua. Sustentar três filhos não deve ser fácil mesmo. Eu quero sim conhecer seu novo escritório. — Sorri.

— Estou me virando. Já gastei todo o dinheiro que recebi pelas vendas do nosso livro. O jeito agora é advogar.

— Vejo que você está aflito pela ausência do cliente.

— Preciso avisar minha sócia que o cliente não apareceu.

— Então liga pra ela.

— A bateria do meu celular acabou agora, nesse exato minuto.

— Não se preocupe, por isso estou aqui. Meu telefone. — Eu entreguei meu smartphone nas mãos dele.

— Obrigada, doutora. Você sempre me ajudando quando eu preciso. — Ele sorriu.

O Luiz fez a ligação. O cliente não apareceu e o acordo foi firmado no valor de mil reais.

Foi legal viver aqueles momentos de novo. Não era o que eu queria para minha vida, mas com alguém especial por perto tudo se torna mais leve, prazeroso.

Chegou a hora do tour pelos andares do tribunal. Luiz pegou em minha mão e fomos para o elevador. Subimos até o sétimo andar, que estava completamente vazio e com as luzes apagadas.

— Que legal. Então esse é o sétimo andar do tribunal regional do trabalho! — eu exclamei sorrindo.

— Pois é. Hoje esse andar não tem expediente.

Luiz ficou quieto de repente, apenas me olhava.

— Sabe, doutora?

— O quê? — perguntei.

— Tem uma coisa que você e eu ainda não fizemos juntos.

— E o que é?

— Nós ainda não dançamos juntos em um andar vazio do tribunal.

— Você está falando sério?

— Claro. Vamos?

— E por que não? Mas não temos música.

— Claro que temos, no seu smartphone. Escolha uma, e bem romântica.

— Já que você insiste... — Eu sorri.

Procurei uma música dançante em minha playlist. Dançamos a canção americana “I am Not The Only One”, de Sam Smith. Foi um momento memorável, que terminou com Luiz beijando minha mão direita.

Ele me mostrou os outros andares do prédio. Depois desse tour, quando íamos nos despedir em frente ao tribunal, ele me convidou para tomar um suco na lanchonete naquela mesma avenida. Eu aceitei.

Estávamos empolgados como colegas de escola quando têm novidades para contar.

Entramos na lanchonete, pedimos suco de maracujá, nos sentamos à mesa, lado a lado. A garçonete serviu-nos.

Contei a ele como haviam sido meus doze meses nos Estados Unidos, minhas experiências hilárias e sentimentos. Nós rimos. Ele contou os momentos engraçados e alguns nem tanto que havia vivido naqueles últimos meses, me contou sobre os seus filhos e, é claro, falamos sobre a Paula.

— Quando eu viajar, você tem que ir junto. Vai ser divertido — ele afirmou, sorrindo com os lábios, com os olhos e com o coração.

— Como foi divertido em Buenos Aires.

— Verdade. Eu sempre me lembro de Buenos Aires. Foi fantástico. Doutora, foi muito bom estar com você hoje. Mas o dever me chama. Minha sócia me espera no escritório. Inclusive você está convidada a nos fazer uma visita.

— Pode me esperar. Qualquer dia desses eu apareço por lá. — Eu sorri mais uma vez.

Nos levantamos. O Luiz já havia pagado a conta. Na entrada da lanchonete nos despedimos. Ele me abraçou, eu o abracei.

— Até logo, doutora. Vê se aparece.

— Até logo, doutor. Pode deixar. — Sorri e me virei em direção ao ponto de táxi.

Luiz seguiu seu caminho a pé até o escritório perto dali, a três quadras.

 

 

                                                                  Jamila Mafra

 

 

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