Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
SOMOS TODOS INOCENTES
Observando o que se passa no mundo, onde a violência, a crueldade, a corrupção, a maldade, a hipocrisia, parecem haver tomado conta de tudo, você se pergunta como Deus permite que pessoas inocentes, bondosas e honestas sejam forçadas a suportar essa convivência.
E a noção da injustiça e o medo vão estabelecendo uma descrença progressiva que como um vírus destruidor vai contaminando as pessoas, inferiorizando-as e colocando-as como vítimas indefesas da sociedade.
Julgando defendê-las, você briga com a vida, procura os culpados, deseja vê-los punidos e, dedo em riste, vai tentando descobri-los entre os políticos, os jornalistas, o governo, os artistas, os escritores, os militares, os sindicatos, os empresários, etc.
Dentro desse processo, é fácil ir para o âmbito pessoal e culpar o patrão pela sua falta de dinheiro, a esposa ou o marido, pela sua infelicidade, os pais, os amigos, a crise, a recessão, a poluição, a sorte. Para o que sofre, sempre haverá um culpado.
A culpa tornou-se um elemento fundamental. Somos todos muito rigorosos quanto a isso. Quem fez deve pagar. E prazerosamente, divulgamos casos onde as pessoas que erraram, pagaram pelos seus erros.
E o que dizer da mea-culpa? Quem cultiva a culpa, costuma ser um cobrador inveterado de si mesmo.
Entretanto, a moral cósmica é muito diferente. Tendo militado nas leis da Terra, custei muito a compreender isso. Mas agora eu sei que somos todos inocentes.
Diante do quadro que você tem diante dos olhos, talvez não concorde comigo. Mas, eu sei que o que você quer mesmo, é melhorar as suas condições no mundo, melhorando a sociedade.
Se é o que deseja, comece a perceber que a culpa nunca contribuiu para isso, nem a punição jamais conseguiu consertar ninguém.
Cada um tem um nível que lhe é próprio e vai agir de acordo com ele. Será inútil exigir de alguém algo que ainda não pode dar. Quanto aos erros, eles representam degraus necessários à aprendizagem. Culpar alguém por isso, é injusto e ineficaz.
Claro que a sociedade precisa de leis que regulamentam a ordem e precisa preservar o direito do homem, mas só.
Além do mais, Deus nos fez do jeito que somos, com o poder de criarmos nosso destino, de manusear a matéria, até certo ponto. O sofrer é desagradável, mas educa, o esforço é trabalhoso, mas desenvolve, a confiança é abstrata, mas harmoniza; a consciência do próprio poder, centra e dignifica.
Escrevendo esse livro, coloco em suas mãos a descoberta dessa realidade. Se você não quiser vê-la agora, não importa. Eu sei que um dia você vai chegar lá. Então, nesse dia, poderá olhar o mundo de hoje e compreender que ninguém é vítima de ninguém, que apesar das aparências, a vida mantém tudo sob controle e tudo está certo como está.
Lucius
Condenado à prisão, o Jovino olhava desconsolado as paredes frias e tristes, sujas e descoradas de sua cela. Rosto vincado pela amargura, coração oprimido, alma dorida, sequer encontrara forças para defender-se.
Estava cansado de lutar contra o destino que considerava cruel e inapelável. Deixara-se levar qual folha batida pelo vento, sem reagir, convicto que nessa luta considerava-se perdedor.
De nada lhe valera contar a verdade, quem acreditaria? As aparências estavam contra ele e as evidências o colocaram como réu de um crime que não cometera.
A quem recorrer? Em quem confiar, se os amigos que julgava fiéis o tinham traído? Onde buscar o alívio para a tremenda mágoa que o acometia frente à injustiça e à vergonha?
Estava já habituado a ser subestimado, colocado em segundo plano. Sua orfandade, agasalhada em casa do dr. Homero, médico conceituado e bem na vida, sempre fora lembrada no olhar de tolerância dos membros da família, nos elogios a D. Aurora pela bondade em recolher o filho de sua empregada quando ela fora atropelada e morta por um automóvel. Como Jovino não tinha pai, foi ficando ali, fazendo pequenos serviços, obedecendo os filhos de D. Aurora, conformando-se em vestir as roupas velhas dos dois meninos e em aturar-lhes as birras e caprichos.
Eles não eram maus. Porém o Jovino era para eles uma espécie de valete, e devia sempre estar disposto às brincadeiras ou a cumprir as ordens que lhes ocorressem dar.
Magali era mais doce, todavia, mal reparava no menino triste e quieto que estava sempre pronto a buscar seus cadernos, suas bonecas, seus sapatos, seu agasalho; a levar o guarda-chuva na escola quando chovia ou seu lanche quando o esquecia.
Alberto era o mais velho, o Rui tinha dois anos menos. Jovino era um ano mais novo do que ele e um ano mais velho do que Magali. Miúdo, magro, não por falta de comida, porque neste particular D. Aurora era pródiga. Deus nos livre de alguém dizer que ela não tratava bem do Jovino! O que seus filhos comiam, ele também comia. Doces, guloseimas, frutas, etc. Ele era magro por natureza, costumava dizer, vendo-o miúdo ao lado dos seus viçosos e bem tratados filhos. Alto, cedo se curvara, abaixando a cabeça, obedecendo a uns e a outros.
Os amigos da família, freqüentemente, olhavam-no com simpatia, alguns batendo amigavelmente em seu ombro, falando-lhe da bondade do dr. Homero e de D. Aurora, acolhendo-o, dando-lhe tudo. Até na escola ele ia, aprendendo a ler e a escrever!
O Jovino, envergonhado, abaixava a cabeça concordando e seu coração apertava-se num vazio triste e sem remédio.
Às vezes, na solidão do seu quartinho apertado, deitado, sem conseguir dormir, olhos abertos no escuro, ficava pensando. O rosto da mãe era lembrança vaga em sua memória e a cada dia, menos conseguia recordar-se de seus traços.
Lembrava mais o calor de seus braços morenos em torno de seu corpo e os beijos sonoros que lhe dava nas faces, suas mãos passando pelos seus cabelos. Nessas horas, a solidão doía e ele chorava, triste. Daria tudo na vida para que ela voltasse. Talvez ela o pegasse ao colo como D. Aurora fazia com os meninos que disputavam seus braços acolhedores de mãe.
Gostava da família. Devia ser grato pela bondade deles. Porém a tristeza e o vazio brotavam dentro dele, sem remédio, sem esperança.
O Jovino limpava cuidadosamente o carro todos os dias, tremendo só em pensar que um dia ele se sentaria naquele banco, para conduzi-lo.
Quando completou dezoito anos, tirou carta de motorista e dava gosto vê-lo, de uniforme discreto, muito elegante, conduzindo garboso o carro de luxo, sempre trocado a cada dois anos, cuidando dele como se fosse seu maior tesouro.
A princípio, revelava certa insegurança, mas depois de algum tempo tornou-se eficiente e discreto. Conhecia o carro nos mínimos detalhes, mantendo-o polido e escrupulosamente limpo.
Assim, o Jovino passou a acompanhar todos os membros da família. As escapadas do dr. Homero à boate, ou ao encontro furtivo com alguma aventura, a visita aos clientes que estavam mal, altas horas da noite, as idas de D. Aurora ao dentista, à modista, ao mercado. As aulas de balé de Magali, as festinhas em que ela comparecia, que o Jovino tinha que levar e buscar, o colégio que ela às vezes cabulava por causa de um cinema ou de algum encontro de namorado.
Quando não estava ocupado com um desses três, os rapazes também serviam-se do carro. Assim, Jovino participava da vida íntima de cada um, conhecendo-lhes os segredos, as fraquezas, os hábitos, tudo. Era calado, discreto, mas gostava de D. Aurora e não se sentia à vontade vendo as aventuras do dr. Homero; preocupava-se com os namoros de Magali sempre às escondidas, com os pileques do Alberto e as brigas do Rui, sempre escondido dos pais.
Era paciente, discreto, pedia prudência aos jovens sempre que necessário. Não queria que nada de mal lhes acontecesse.
Eles estavam tão habituados com a presença do Jovino que não tinham meias palavras diante dele. Confiavam. Para eles, o moço era uma espécie de robô que os obedecia cegamente, com dedicação.
Tudo começou numa noite de inverno. Os rapazes foram a um clube de bairro. O Alberto andava namorando uma moça da periferia, bonita e graciosa. O Rui foi junto.
Já era tarde quando os dois, acompanhando as moças, saíram do clube e depois de levá-las para casa não distante dali, iam voltando ao clube onde dentro do carro Jovino os esperava. Alguns vultos sorrateiros caíram sobre os rapazes. Surpreendidos, eles se defenderam como puderam. O Jovino, porém, sacando a arma que tinha no porta-luvas, gritou com voz firme:
— Parem ou eu atiro!
Vendo que eles não atendiam, deu um tiro para o ar e os atacantes largaram os rapazes. Um deles ainda ameaçou:
- Se ele não deixar a Mariazinha, eu mato os três! Principalmente você, seu cachorro!
Jovino fez um gesto ameaçador e eles fugiram esbaforidos. Os dois rapazes, rindo satisfeitos, não se cansavam de elogiar o Jovino pela atuação pronta e bem-sucedida.
O moço, contudo, estava preocupado:
- Não voltem mais por aqui. Eles são perigosos. O melhor é esquecer a moça.
— Ela é uma gracinha — disse o Alberto enlevado - Não vou deixá-la para ele.
O Jovino abanou a cabeça preocupado.
- Não se preocupe, Jovino. Vamos dar um tempo, eles vão esquecer. Não falaram mais nisso, e tudo foi esquecido. Foi exatamente um mês depois que tudo aconteceu. O dr. Homero, D. Aurora e Magali haviam viajado. Na casa, ficaram, além de uma criada, os dois rapazes e o Jovino.
O Alberto queria ir ver Mariazinha. Jovino tentou dissuadi-lo, o Rui também. A princípio o moço relutou, mas depois concordou. O Rui saiu para um cinema e o Alberto não quis ir. O Jovino recolheu-se para dormir. Contudo, estava inquieto e sem sono. Sentia o coração oprimido.
Levantou-se, dirigiu-se à cozinha para tomar água. Depois, devagarinho, foi ao quarto do Alberto e abriu a porta sem fazer ruído. A cama estava vazia. O moço saíra. Assustado, o Jovino pensou:
- Ele foi ver Mariazinha!
Sem pensar em nada, vestiu-se e saiu rapidamente. Foi até o clube de bairro, circulou por perto da casa da moça, procurou durante horas, mas não o encontrou. O dia já estava raiando quando ele voltou para casa. Foi ao quarto do Alberto, e o moço ainda não havia voltado.
Tentou acalmar-se. Talvez ele tivesse ido a outro lugar. De vez em quando ele passava mesmo a noite fora. Não havia razão para preocupar-se. Deitou-se e por fim adormeceu.
Mas o Alberto não apareceu no dia seguinte, e o dr. Homero, já de volta, procurou a polícia. Dois dias depois, num terreno baldio atrás do clube de bairro, na beira do rio, encontraram o corpo. A autópsia revelou que uma das balas acertara a cabeça e a morte fora imediata. A arma estava ao lado do corpo.
Foram dias intermináveis. A família estava inconsolável. A polícia descobriu que a arma do crime era a do dr. Homero, que ficava no porta-luvas do carro. Tinha as impressões digitais do Jovino no cano, embora o cabo estivesse sem marcas.
Jovino foi acusado pelo delegado e não soube explicar onde havia estado na noite do crime. A criada, vira-o sair sozinho, e algumas pessoas lembravam-se de tê-lo visto rondando o clube naquela noite.
Foi em vão que Jovino procurou dizer a verdade. Ninguém acreditou. Para piorar as coisas, nas mãos do Alberto foi encontrado um cachecol do Jovino, como se houvesse sido arrancado na hora do crime.
Todos estavam convencidos de que ele havia matado o Alberto. O horror de D. Aurora, de Magali, de Rui; o ódio do dr. Homero, o desprezo com que o trataram sem dar-lhe crédito de maneira alguma, deixou-o arrasado. Ele chorava e repetia:
— Eu gostava do Alberto como irmão. Fui defendê-lo. Não tinha motivo para matá-lo!
A imprensa, revoltada com o crime, publicou manchetes violentas contra o Jovino. Os conhecidos o repudiaram, reprovando sua ingratidão e apareceram até psiquiatras que explicaram que o crime do Jovino contra o Alberto fora cometido por inveja. Enquanto o moço assassinado tinha tudo, ele, Jovino, não tinha nome, amor, família, posição.
Cansado de gritar, de chorar, de explicar, Jovino calou-se. Ouviu calado as ofensas, suportou o ódio do dr. Homero, o ressentimento do resto da família. De que lhe valeria protestar? De que adiantaria repetir que era inocente?
Foi nesses dias que o Jovino sentiu mais sua orfandade. Ele estava só e não tinha ninguém que se preocupasse em ouvi-lo, em compreendê-lo, em acreditar nele. Tornou-se amargo, cético, indiferente. Olhava as paredes da cela e evitava pensar.
Como a arma fora parar ao lado do Alberto? Como seu cachecol estava nas mãos dele? Parecia um plano para incriminá-lo.
Não se incomodava com os estranhos, mas a atitude da família causava-lhe imensa dor. Havia nascido naquela casa. Conheciam-no muito bem. Como acreditá-lo capaz de cometer tal crime? Esforçava-se para esquecer, mas essa mágoa atormentava-o constantemente.
Foi condenado a vinte anos. O Tribunal do Júri comovera-se com o depoimento dos familiares do Alberto, dos clientes do dr. Homero, dos parentes. Todos falaram da bondade de Aurora, da paciência do dr. Homero, da amizade dos meninos, dividindo com ele guloseimas, roupas, brinquedos.
Sentado no banco dos réus, Jovino não conseguia nem chorar. Foi apontado como assassino frio e cruel, como ingrato, invejoso, mau-caráter, que calado, escondia seu rancor e sua revolta.
Jovino sentiu-se traído. Amava aquelas pessoas, elas eram sua família, sentiu-se abandonado, escorraçado, desprezado.
Na prisão, tornou-se um indiferente. Ninguém o visitava e até os carcereiros olhavam-no como se fora um monstro. Todas as portas se haviam fechado para ele que não via nenhuma possibilidade de auxílio.
Os dias se sucediam iguais, tristes, e o Jovino continuava amargo, calado e só. Não havia nada nem ninguém em quem apegar-se. Não tinha esperanças.
Seus companheiros uniam-se entre si. Muitos rezavam, pedindo a Deus a liberdade. Iam à missa, quando era rezada na capela do presídio. A maioria tinha esperanças de sair logo, impetravam recursos jurídicos, faziam o máximo, tentando reconquistar a liberdade. Tinham família que lutava por eles do lado de fora.
Jovino não tinha nada. Não acreditava em Deus. Como poderia? Era inocente, por que Deus não o defendera? Se ele existisse,
- pensava desanimado
— não teria permitido a condenação de um inocente.
Fechou seu coração. Nada conseguia tocá-lo. Nem a dor, nem a alegria dos seus companheiros, nada. Obedecia às ordens que os carcereiros lhe davam, procurava manter a cela asseada. Não tolerava interferência dos outros presos em sua vida, quando tornava-se até agressivo.
Isso impôs respeito frente aos demais, que compreenderam que se o deixassem em paz, ele não se intrometeria em nada, tornando-se inofensivo.
Mariazinha levantou-se um pouco assustada, olhando o relógio com preocupação. Precisava apressar-se para não chegar atrasada.
Lavou-se rapidamente, vestiu-se e engoliu uma xícara de café com leite, apanhou a bolsa e saiu, mal ouvindo as recomendações da mãe para que se alimentasse melhor.
Precisava tomar o bonde das sete para chegar às sete e vinte e cinco na porta da fábrica. Não conseguiu. O bonde já havia passado. O remédio era esperar.
Eram sete e dez quando conseguiu enfiar-se em um bonde cheio, apertada por todos os lados, segurando firme a bolsa para não perdê-la.
Mariazinha estava acostumada a essa luta. Há dois anos trabalhava nessa fábrica do Brás e todos os dias tomava o bonde na Penha, onde morava, e, tanto na ida como na volta, eles passavam cheios. Sem importar-se com o desconforto, Mariazinha pensava.
Havia dormido mal naquela noite. A figura de Alberto não lhe saía do pensamento. Apaixonara-se por ele. Embora o houvesse visto poucas vezes, ele representara para ela o príncipe encantado. Jovem, bonito, elegante, instruído, rico, havia sido um sucesso sua presença no clube do bairro, geralmente freqüentado por rapazes de nível social mais modesto.
As garotas o haviam disputado. Ele, porém, só tivera olhos para ela. Haviam dançado e a moça sentira seu coração bater mais rápido aspirando gostosamente o perfume delicioso que vinha dele, sentindo seus braços ao redor do seu corpo, olhando seus olhos castanhos e profundos, onde havia admiração e carinho. A voz grave de Alberto dizia-lhe palavras doces, e Mariazinha deixou-se levar nas asas do sonho. Apaixonou-se desde o primeiro dia.
Sentiu que Alberto a apreciara. Havia sinceridade em seu olhar, em sua voz. Sairam juntos do clube, ela, o Alberto, sua amiga Nair e o irmão dele, Rui.
Foram caminhando lentamente para a casa delas que moravam perto uma da outra, e Mariazinha queria que o tempo parasse, que não chegassem nunca. Pararam na esquina, e Mariazinha disse:
- Vamos nos despedir aqui. Papai pode acordar e já passa da meia-noite. Se nos vir acompanhadas, pode zangar-se.
Ficaram conversando mais algum tempo. Alberto não estava querendo ir embora, e Mariazinha queria que ele ficasse. Mãos dadas, olhos nos olhos, ele dissera em voz baixa:
- Eu vou, mas volto. Já sei o caminho. Não vou esquecer esta noite.
- Eu também. Estarei esperando.
- Não há ninguém que tenha chegado antes?
Mariazinha sacudiu a cabeça negativamente:
- Nada importante.
- Posso voltar a vê-la?
- Claro.
Os olhos dela brilhavam e Alberto levou aos lábios a mão que segurava, beijando-a com delicadeza. O coração de Mariazinha descompassou-se e uma onda de calor a envolveu. Naquela noite, ela custou a dormir. Pensava nele com entusiasmo, tecendo sonhos para o futuro.
No dia seguinte, quando regressava do trabalho, Nair já a estava esperando ansiosa.
- Você não sabe o que aconteceu ontem, depois que os dois nos deixaram!
- O que foi?
- Um horror. Até tiros houve. Mariazinha empalideceu:
- Alguém ferido?
-Não. Foi só briga e o susto. O porteiro do clube me contou. Uma turma tentou bater nos dois e parece que o motorista do carro, você sabe que eles têm carro com motorista?
- Mariazinha fez que não. Nair continuou:
- Pois tem. Vieram em um carro último tipo, com motorista de uniforme e tudo. Foi ele quem tirou o revólver e assustou os malandros.
- Não aconteceu nada a eles?
- Nada a não ser o susto.
- Quem você acha que pode ter sido?
- Desordeiros, só pode ser a turma do Rino.
- Será?!
- Claro. Ele está apaixonado por você. Tem nos seguido por toda parte.
Meu Deus! Se for assim, o Alberto não voltará mais aqui! —
Mariazinha agarrou o braço da amiga com força:
- Eu estou apaixonada. O que: será de mim se ele não voltar?
Não é tanto assim. Ás vezes, uma disputa dessas aumenta o interesse. Depois, o Alberto parece um moço superior. Não vai se intimidar por um despeitado como o Rino.
- Não gosto dele. Se soubesse que ia me causar tantos problemas, nunca teria saído com ele algumas vezes.
- Cheguei a pensar que você estivesse interessada por ele. É um cafajeste. Ainda bem que desistiu.
- Tem boa aparência. No início foi gentil, depois começou a mostrar o que é. Queria mandar até no ar que respiro. Ciumento, desconfiado, mentiroso, mau-caráter. Hoje, tenho-lhe aversão. Já lhe disse que não quero nada com ele. Que me deixe em paz.
Por um desses acasos que não se explicam, alguém levantou-se para descer e Mariazinha sentou-se.
Em seu pensamento, ainda estavam vivas as lembranças. Continuou recordando. Depois daquela noite, Alberto não apareceu mais no clube e Mariazinha que esperava ansiosamente, começou a perder a esperança.
Por outro lado, Rino não a deixava em paz. Seguia-a por toda parte e a moça tratava-o com irritação e desprezo.
Uma noite de sábado no clube, Rino aproximara-se dela, com olhar apaixonado.
- Vamos dançar?
- Não sinto vontade.
- Você não vai me dar tábua. Se não dançar comigo, vou fazer um escândalo.
- Estou cansada.
- Se fosse aquele boneco de luxo, garanto que seu cansaço passava!
- Deixe-me em paz.
- Venha, - disse ele, puxando-a com força pela mão.
Assustada, a moça levantou-se. Não queria ser motivo de escândalo. Se seu pai soubesse, não a deixaria mais freqüentar o clube. Essa era a sua melhor distração e a esperança de rever Alberto.
- Está bem, - disse séria. - Só esta vez. Rino enlaçou-a com força e a moça teve que colocar a mão em seu ombro empurrando-o.
- Se fosse aquele bocó, você não faria isso. Eu vi como se colou nele naquela noite.
- Nada tenho com você. Sou livre para namorar quem eu quiser.
- Você é que pensa. Vai casar comigo ou não se casará com mais ninguém.
- Não diga isso. Não pode me obrigar. Não quero namorar com você, muito menos casar. Não percebe isso?
- Vai gostar de mim, verá. Tenho muitas mulheres que beijariam o chão se eu pedisse.
- Fique com elas, deixe-me em paz. Sabe o que mais? Não quero dançar com você nunca mais. Se me ameaçar vou falar com o guarda.
Mariazinha, zangada, empurrou Rino com força e saiu nervosa, indo procurar o guarda-civil que ficava de serviço na porta do salão. Enquanto o guarda procurava por ele para adverti-lo, Rino misturou-se aos demais e, rosto fechado, olhar rancoroso, deixou o local.
Alberto não aparecia e Mariazinha pensou que ele a houvesse esquecido. Uma noite em que se encontrava em casa, Nair chegou dizendo com euforia:
- Mariazinha, advinhe quem está aí fora, na esquina!
- Quem?!
- O Alberto. Eu vinha vindo da padaria quando passei por ele que me cumprimentou e perguntou por você. Está lá, a sua espera.
Mariazinha sentiu o coração descompassar e as pernas tremerem.
- Vou me arrumar. Diga a ele que espere.
- E seu pai?
- Está ouvindo rádio na sala. Fica aqui, é melhor, vou dizer que vou à sua casa ver uns figurinos.
- Está bem.
Rápida, tremendo de excitação, a moça arrumou-se discretamente, sem pintura para que o pai não desconfiasse e saíram. Enquanto a amiga entrava em casa, Mariazinha, coração cantando de alegria, foi ao encontro do Alberto.
- Boa noite
- foi dizendo com suavidade.
- Boa noite
— fez Alberto segurando a mão dela com delicadeza, retendo-a com carinho.
- Pensei que nunca mais me procurasse
- disse a moça.
- Tentei, mas não pude. Seus amiguinhos tentaram acabar comigo, e eu esperei um tempo para que eles esquecessem.
- Eu soube do que houve.
- Amor contrariado?
- Bobagem. Foi o Rino. Não tenho nenhum compromisso com ele nem nunca terei. Enfiou na cabeça que vai casar comigo e tem me perseguido em todos os lugares.
- Você não gosta mesmo dele ou está comigo para fazer ciúmes?
Mariazinha abanou energicamente a cabeça:
- Não diga isso. Não quero nada com ele. Tenho pensado muito em você. Não esqueci aquela noite!
- Eu também não. Vamos dar uma volta. Precisamos conversar. Mãos dadas, trocando olhares carinhosos, os dois foram andando
lentamente. Mariazinha esqueceu tudo o mais que não fosse o moço de olhar doce, o calor que vinha de sua mão que de vez em quando apertava a sua deliciosamente.
Conversaram bastante e quando em um canto discreto Alberto a beijou, a moça pensou haver encontrado o céu. Sentiu-se completamente apaixonada por ele.
- Aquele seu admirador vai ter que se acostumar comigo. De agora em diante, estarei sempre por aqui.
Mariazinha sorriu feliz. Era tarde da noite quando ela voltou para casa, procurando entrar sem que o pai percebesse. Na cama, a moça deu livre curso aos seus sonhos de amor. A recordação do perfume dele, da maciez dos seus lábios, da delicadeza do seu trato, dos beijos carinhosos que ele de quando em quando lhe dava na mão, faziam-na estremecer de felicidade e foi pensando nisso que naquela noite adormeceu.
Eles haviam combinado um passeio no dia seguinte, um sábado à tarde e ela mal podia esperar. Porém, Alberto não apareceu. Decepcionada, Mariazinha não saiu de casa, esperando, olhando de quando em quando para a esquina onde ele deveria aparecer. Nada do Alberto. Nem no domingo.
Foi na segunda-feira que a bomba estourou. Quando voltou da fábrica, Nair a esperava um tanto pálida, tendo nas mãos um jornal.
- Mariazinha, aconteceu uma desgraça! : — O que foi? - indagou ela assustada.
- O Alberto! Está morto!
- Não pode ser! - fez a moça, sentindo-se desfalecer.
- Olha aqui o retrato no jornal! É ele mesmo.
Com mãos trêmulas Mariazinha apanhou o jornal e de fato, a notícia era assustadora: Moço da nossa sociedade aparece morto, atrás de um clube no bairro da Penha. A polícia está investigando.
Deixou-se cair em uma cadeira desalentada.
- Não é possível! Não posso crer!
- Infelizmente é verdade - fez Nair preocupada. — Quem você acha que foi? Teria sido o Rino?
Mariazinha sentiu um arrepio de terror:
- Espero que não. Para mim, isso não importa. O Alberto era todo meu sonho de amor, que agora se desfaz! Se você visse como era carinhoso, educado, fino! Não pode ser. Custo a acreditar.
Mas era verdade e ela tivera que render-se à evidência. Olhou em volta e deu o sinal. Estava na hora de descer. A custo conseguiu chegar à porta de saída e saltar do bonde.
Ia chegar atrasada, quase quinze minutos. Mas ela não estava tão preocupada por isso. Sentia-se particularmente acabrunhada naquele dia, sem poder esquecer a tragédia e o seu amor truncado.
Já em frente ao tear onde trabalhava, envergando o uniforme, enquanto maquinalmente suas mãos experientes executavam seu trabalho de rotina, não pôde deixar de pensar no seu drama.
O choque havia sido grande. As investigações da polícia, os tinha levado até ela. O suspeito, o motorista de carro do Alberto, contara que o moço havia se interessado por ela e a agressão que os dois irmãos tinham sido vítimas naquela noite. Dissera recear que Alberto houvesse sido assassinado por aqueles rapazes.
Assim, Mariazinha foi intimada a comparecer na delegacia. Apavorou-se. Seu pai, preocupado com o envolvimento da filha, pediu-lhe que negasse esse fato, para não envolver-se em maiores encrencas.
A moça, porém, estava interessada em contar a verdade. Todavia, na tarde anterior ao seu depoimento na delegacia, na saída da fábrica, foi procurada pelo Rino.
- Você não vai dizer nada sobre aquela noite
- dissera ele segurando seu braço com força.
- Vou sim
- respondera ela com raiva. - Foi você quem o matou.
- Você está louca! Posso ser violento, mas assassino não. Não há mulher no mundo que valha isso.
- Então do que tem medo?
- Não quero ser envolvido. Se me delatar e a polícia me inco-modar, vai pagar muito caro por isso.
- O que você pode fazer?
- Se tem amor ao seu pai, trate de fechar o bico.
- Está me ameaçando? Será capaz de matar meu pai?
- Quem falou em matar? Mas uma lição ele leva. Uma boa surra, um assalto, um susto, mas só. Deus sabe como ele vai reagir.
Mariazinha empalideceu:
- Deixe meu pai em paz. Afaste-se dele.
- Só se você não contar à polícia aquela briga.
- Vou pensar. Meu pai não tem nada com isso.
- Depende de você!
Foi tremendo que Mariazinha compareceu à delegacia para declarações. Não falou da briga, que por sinal nem assistira, nem do ciúme do Rino. Só relatou seus dois encontros com Alberto. Soube que o porteiro do clube havia declarado ter ouvido tiros naquela noite, mas quando saiu para ver o que era, os atacantes já haviam ido embora. Assim, apesar do Rui, irmão do Alberto, haver confirmado a agressão e a ameaça de um deles para que Alberto se afastasse da moça, a polícia não se interessou em investigar. Tinha já um suspeito e tudo indicava que ele havia sido o assassino. Talvez até ele o tenha assassinado ali, naquele local, para impingir a culpa aos que o haviam agredido.
Mariazinha, porém, tinha suas dúvidas. Embora Rino afirmasse o contrário, ela desconfiava dele. Contudo, não queria falar sobre isso com a polícia, sentia medo.
O tempo passava, mas a figura de Alberto não lhe saía da mente. Recordava com amor cada frase trocada, cada gesto, cada olhar e tudo isso, agora, ganhava uma conotação especial.
Freqüentemente era assaltada pelas dúvidas. Apesar da polícia haver prendido o chofer e considerá-lo culpado, teria mesmo sido ele? Eram só suspeitas e ela nada poderia provar. Sentia medo do Rino. A sua ameaça assustava-a. Julgava-o capaz de tudo.
Sentia-se infeliz e desanimada. Nunca mais encontraria alguém como Alberto. Felizmente Rino havia deixado de importuná-la. Ela não fora mais ao clube e ele não mais a procurara.
Naquela tarde porém, ao sair da fábrica, teve desagradável surpresa. Rino esperava-a na porta, tendo um jornal nas mãos. Mariazinha fingiu não tê-lo visto, foi saindo, ele segurou-a pelo braço.
- Espere aí. Não me viu a sua espera?
- O que quer?
- Falar com você.
- Estou cansada e com pressa de ir para casa.
Ele não escondeu a irritação.
- Você vai falar comigo de qualquer jeito.
- Não temos nada para conversar.
- Engana-se. É um assunto sério.
Ela parou e olhando-o com frieza respondeu:
- Está bem. Mas seja breve.
- Vamos conversar em um lugar sossegado. Não no meio deste povo.
- Já disse que estou com pressa. A voz dele tornou-se súplice:
- Mariazinha, não seja injusta comigo. Vou provar para você que não sou ruim como pensa.
- Até agora, só tem demonstrado o contrário.
- Sou impulsivo. Depois me arrependo. Estou louco por você. Meu ciúme tem me feito sofrer muito. Quero que compreenda.
- Está bem. Vamos conversar naquela esquina. Não tem ninguém lá.
Caminharam para outro lado da rua em local discreto.
- Aqui estamos sós. Pode falar.
- Estou muito magoado com você. Suspeita de mim, acha que tenho alguma coisa a ver com a morte daquele moço.
- Você o agrediu e ameaçou — respondeu ela.
- Só por ciúme. Mas eu não seria capaz de matar ninguém.
- Você me ameaçou também.
- Procurei defender-me. Se me incriminasse, a polícia ia me envolver.
- Se é inocente, não tem nada a temer.
- Não é bem assim... Sabe como são as coisas. Ia ter aborrecimentos. Até que tudo se esclarecesse...
- Bom, mas afinal, o que quer?
- Veja neste jornal. O motorista foi julgado e condenado. Ele é o culpado. Ficou provado. Trouxe o jornal para que comprove a injustiça que fez comigo.
Mariazinha apanhou o jornal e leu: "Motorista do crime da Penha, condenado a vinte anos," mais abaixo o relato do julgamento. Apesar do réu jurar inocência, as provas eram contra ele, e os jurados o com sideraram culpado.
Os olhos de Mariazinha encheram-se de lágrimas.
- Espero que tenha se arrependido de haver suspeitado de mim.
- Você parece muito alegre com essa notícia.
- Claro. É a prova que eu esperava para que você esqueça o passado.
Mariazinha olhou-o com tristeza.
- Gostaria de esquecer. Entretanto, jamais conseguirei.
- Bobagem. Mal o conhecia. Iludiu-se. Ele era rico, almofadinha. Mas eu estou aqui e a amo muito. Vou ajudá-la a esquecer.
- Olha, Rino, é inútil. Apesar do motorista dizer-se inocente, eu até posso acreditar que você não foi o assassino do Alberto. Mas eu gostava dele de verdade e se quero esquecer o crime, o meu amor por ele continua. Ninguém poderá arrancá-lo do meu coração. Sei que você gosta de mim, mas não adianta. Não quero namorar ninguém. E posso garantir que nunca vou aceitar seu amor. Peço-lhe que me deixe em paz. Procure esquecer-me. Há de encontrar outra moça que o ame e o faça feliz.
Rino estava pálido.
- Isso passa. Você não pode amar um morto. É jovem, não vai passar a vida inteira sozinha.
- É o que eu sinto agora. Se amanhã eu mudar de opinião, será por sentir por outro um amor maior do que o que tenho por Alberto. Nada tenho contra você. Podemos até ser amigos, mas amor, não. É definitivo.
Embora contrariado, Rino procurou dominar o rancor. De nada lhe valeria expressá-lo. A moça se afastaria mais ainda. Decidiu contemporizar.
- Está bem. Apesar da dor que sinto, respeito seus sentimentos. Um dia, você ainda me amará e receberá de braços abertos.
- Agora preciso ir.
- Vou levá-la até sua casa.
- Melhor não. Prefiro ir só. Desculpe.
- Disse que podíamos ser amigos!
- Disse. Mas hoje quero ir só. Não leve a mal mas estou muito cansada.
Vendo-lhe o rosto pálido Rino concordou.
- Está bem. Seja como você quer. Só desejo que quando me encontrar, não me evite ou me ignore. Ser seu amigo, me conforta.
- Está bem - concordou ela ansiosa para ver-se livre dele. Apertou-lhe a mão e saiu apressada. Estava escurecendo quando
chegou em casa. Depois do jantar, procurou a amiga para desabafar. Nair ouviu-a com ar preocupado.
- Você não vai ser amiga dele, vai?
- Quero distância dele, mas se ele compreender e aceitar minha recusa, será melhor.
- Não acredito nele. Viu que não vai conquistar você com brutalidade e agora quer passar por bonzinho. Daqui a pouco vai chorar a seus pés um amor tão grande que pode ser até que você com pena o acabe aceitando.
- Deus me livre. Tenho-lhe aversão.
- Cuidado. Tenho minhas dúvidas se não foi ele quem assassinou o Alberto.
- A polícia diz o contrário. Será que eles podem haver se enganado?
- Não é o primeiro caso. O motorista não confessou.
- Isso me intriga. Mas será que o Rino seria capaz de matar? Ele é um pouco papudo.
- Isso é. Mas também ele é muito violento. Numa hora de raiva, não sei, não.
- A polícia deve saber o que está fazendo.
- Amanhã a Ana vai me dar o endereço de uma cartomante. Quer ir?
Mariazinha animou-se:
- Quero! Embora esteja desiludida, estou curiosa. Ela é boa mesmo?
- Acertou tudo pra Ana. Ela estava entusiasmada!
- É longe?
- Não. Ela vai me dar o endereço. Amanhã, quando você chegar da fábrica, nós iremos. Vamos ver se ela descobre a verdade.
- Mal posso esperar.
No dia seguinte as duas amigas foram à casa de D. Guilhermina.
Estavam ansiosas e excitadas. Sentadas na sala simples da pequena casa, esperavam.
A mulher que as atendera era de meia-idade, cabelos grisalhos, fisionomia simpática.
- Vamos entrar - dissera com simplicidade. - Sentem-se que vou pegar o baralho.
Logo depois ela voltava com um maço de cartas bem usado.
- Quem quer vir primeiro?
- Ela, - disse Nair, indicando a amiga.
- Melhor irmos para o quarto — disse Guilhermina.
- Não, - respondeu Mariazinha. - Não tenho segredos para ela.
- Muito bem. Vamos começar — disse, indicando as cadeiras ao redor da mesa.
Depois de vê-las acomodadas, colocou o maço de cartas diante de Mariazinha, dizendo:
- Corte três vezes com a mão esquerda.
Mariazinha obedeceu. Guilhermina dispôs as cartas e começou a falar. Disse coisas triviais, sem importância até que a certa altura, levantou os olhos admirada, fixando Mariazinha. Juntou as cartas e disse:
- Vamos ver de novo.
Dispôs as cartas na mesa, depois levantou a cabeça e seus olhos perdiam-se em um ponto distante:
- Você está entre dois homens, - disse. - Cuidado. Os dois estão desesperados. Não deve querer nenhum deles.
Mariazinha não entendeu:
- Dois?
- Sim. Um é ciumento, perigoso, desonesto e se você o aceitar, vai sofrer muito.
- Sei quem é — disse Mariazinha, - mas não quero nada com ele.
- Ele não desistiu. Vai assediá-la. É até obsessão. Cuidado. Não deve dar a mínima esperança a ele. Mas há o outro. Esse também está desesperado. É um amor impossível. Foi cortado pelo destino, mas ele sofre muito e está a seu lado.
Mariazinha assustou-se.
- Engana-se — disse com ar preocupado. — Tive um namorado a quem amo ainda, mas ele morreu.
Guilhermina olhava fixamente para frente e parecia haver esquecido as cartas dispostas sobre a mesa.
- O corpo morreu, mas ele continua vivo. Você não sabe que a vida continua?
Nair segurou a mão da amiga, apertando-a com força como para infundir-lhe coragem. Guilhermina continuou:
- Deve rezar para que ele a esqueça. Ele a segue por toda parte.
- O que ele quer de mim? - indagou Mariazinha com voz insegura.
- Não sei. Mas diz que você pode ajudá-lo. Vejo uma trama, uma injustiça, muita luta.
- O que devo fazer?
- Rezar. Pedir a ajuda de Deus. Procure um lugar, um Centro Espírita, você precisa.
- Sou católica. Tenho medo dessas coisas - respondeu Mariazinha preocupada.
- É só o que posso dizer — completou Guilhermina voltando a olhar atentamente para as cartas na mesa.
- Tem muita proteção. Não precisa ter medo de nada. Há uma possibilidade de casamento para daqui dois a três anos. Uma mudança de vida para melhor.
A cartomante fez algumas previsões sem que Mariazinha desse importância. Foi a vez de Nair que com ar divertido ouviu as informações de Guilhermina e depois de haverem pago, as duas saíram.
Mariazinha estava impressionada.
- Ela falou sobre o Rino.
- Eu não disse que ele não serve? Ela pediu para você não lhe dar ouvidos.
- Isso eu sei. Não pretendo nada com ele. Mas e o outro? E o Alberto. Ela disse que ele me acompanha. Será verdade? Será que os mortos podem voltar e acompanhar os vivos?
- Que pode, pode. Eu mesma sei de vários casos. Meu tio Mário era acompanhado pela alma de minha avó Josefa, porque ela queria que ele voltasse pra casa. Meu tio havia se separado da mulher e dois filhos. Gostava de beber. Ele tinha crises e dizia que vovó estava com ele. Que ele a via e que ela queria que ele largasse a bebida e voltasse para casa.
- A bebida dá alucinações. Com certeza, ele bebia e pensava ver a mãe. Sempre quando nós fazemos alguma coisa errada, a figura da mãe aparece em nossa memória.
- Não sei, não. Tio Mário sofria muito.
- E agora?
- Agora? Voltou pra casa há alguns anos e parece que melhorou. Faz tempo que não ouço falar das bebedeiras dele.
- Se ele deixou de beber, é claro que não viu mais a alma da sua avó.
Quanto a isso, ele fala sempre com muita convicção. Ele anda freqüentando um Centro Espírita. Aliás, D.Guilhermina aconselhou você ir procurar um.
- Bobagem. Não gosto dessas coisas. Se o Alberto pudesse voltar e ficar perto de mim, não ia me fazer mal. Ele me amava tanto quanto eu a ele.
- É, mas agora ele morreu e é melhor que fique longe. Não é bom ter um encosto desses. Eu, se fosse você, procurava um Centro e ia me benzer.
- Isso é superstição. Vou à igreja e pronto, tudo fica em paz.
Daquele dia em diante, Mariazinha passou a ir à igreja com mais assiduidade. Rezava pela alma de Alberto com devoção e saudade.
Nair estava preocupada com a amiga. Achava que ela precisava esquecer. Afinal o Alberto estava morto mesmo, e ela era jovem, bonita, tinha o direito de ser feliz.
Compreendia que Mariazinha estivesse deslumbrada com o romance, porquanto o Alberto era o que se chama um bonito moço, pertencia a um nível social superior, fora atencioso com ela, e sua morte trágica colocara naquele romance uma auréola dramática.
Mariazinha era muito romântica, sensível e sonhadora. Por isso, mesmo depois de quase um ano da morte de Alberto, ela ainda conservava-se chorosa e triste, fugindo aos divertimentos dos quais tanto gostava e isso não era bom. Parecia-lhe que a amiga estava cultivando uma paixão doentia e prejudicial. Para ela, nenhum rapaz tinha o porte de Alberto, sua gentileza, seu sorriso.
Mariazinha isolava-se mais a cada dia, tornando-se angustiada, triste, amarga. Nair tentava de todas as formas tirar a amiga dessa situação. Convidava-a freqüentemente para ir ao clube, a passeios, procurava trazê-la para a realidade, estimulando-a ao flerte e aos divertimentos. Contudo, Mariazinha não melhorava. Se ia ao clube, ficava triste, sentava-se a um canto, recusava-se a dançar. Dizia não poder esquecer o Alberto, e tudo quanto fazia, aumentava sua saudade.
Nair preocupou-se de verdade. Rino não lhes dava descanso e assediava-as por toda parte. Mariazinha, porém, não cedia. Sua aversão pelo moço era evidente. Apesar disso, ele não desistia. Ao contrário. Parecia até que quanto mais ela o recusava, mais ele se obstinava.
Uma manhã de sábado, Nair encontrava-se no centro da cidade fazendo compras, quando cruzou com o Rui. Ele olhou-a sério. Ela parou, estendendo-lhe a mão.
- Como vai?
- Bem... e você? - respondeu ele educadamente.
- Também. Gostaria de falar-lhe por alguns minutos. Foi bom tê-lo encontrado.
- Comigo?
- Sim. Talvez possa ajudar-me.
- Vamos tomar alguma coisa e nos sentarmos um pouco -propôs ele.
Entraram em uma confeitaria e sentaram-se. Rui pediu refrescos. Estava admirado. Nunca mais a havia visto depois daquela noite no clube, quando Alberto conhecera Mariazinha.
- Sinto muito quanto ao seu irmão. Foi um golpe duro — foi dizendo logo que se viram a sós.
Rui suspirou fundo:
- Obrigado. Ainda não nos refizemos da tragédia. Minha mãe está inconsolável.
- Imagino. A Mariazinha também. Está dando trabalho. Não consegue esquecer Alberto. Está magra, abatida, não sai para divertir-se. Mudou completamente. Era alegre, bem humorada, disposta, agora, parece uma sombra.
- Sei que não teve culpa, mas cheguei a ter raiva dela. Foi para vê-la que Alberto saiu naquela noite.
- Não faça essa injustiça. Ela o amava muito. Está sofrendo pelo que aconteceu. Na minha opinião, um pouco demais. Afinal, eles se viram por duas vezes apenas. Não houve tempo para conhecerem-se melhor e amarem-se de verdade.
- Ela ficou impressionada por causa do crime. Se ele estivesse vivo, era possível que nem continuassem com o namoro.
- Também acho. Ela está até doente. Talvez, se você a procurasse e conversasse, como irmão dele, Mariazinha encarasse a realidade.
- Eu?! Não saberia o que dizer-lhe. Depois, eu também não consegui esquecer. Naquela noite, ele enganou-me. Disse que ia ter com ela, mas como nós tentamos impedir, mentiu.
-- Nós?
A fisionomia do Rui sombreou-se de tristeza.
- Aquele perverso do Jovino. Tentou impedir que o Alberto saísse. Fingiu, naturalmente. Ah! Se eu tivesse desconfiado! É claro que ele quis preparar seu jogo. E eu fui ao cinema. Como não percebi? Como não evitei aquela barbaridade?
Na ir olhou penalizada o rosto contrariado de Rui. Guardou silêncio durante alguns momentos, depois, quando ele pareceu mais calmo, disse pensativa:
- Tem certeza mesmo que foi ele?
- A polícia comprovou. Por mais duro que possa ser, é verdade. O Jovino foi criado em casa, como filho. Participava de nossas brincadeiras, era como irmão. Quem podia saber a inveja e o ciúme que ele guardava no coração?
- Ele sempre jurou inocência.
- Claro que ele não ia confessar. Mas as provas eram todas contra ele. Matou meu irmão com a arma que papai colocara no porta-luvas do carro para nos proteger.
- Ele alguma vez demonstrou insatisfação?
- Nunca. Soube enganar-nos muito bem.
- Você já pensou que ele pode mesmo estar dizendo a verdade e ser inocente?
Rui sacudiu a cabeça energicamente.
- Isso não é possível. Além da arma, há o cachecol dele que estava na mão de Alberto. Depois, ele foi visto com o carro perto do local do crime. Foi ele mesmo.
Nair calou-se. Suspeitava de Rino, mas não possuía nenhuma prova. De que lhe adiantaria falar? Ninguém acreditaria. Depois, e se Rino fosse inocente? Eram apenas suspeitas, nada mais.
- Sinto tê-lo feito recordar-se de um assunto tão triste. Mas, quando não podemos fazer nada, o melhor é tentar esquecer.
- Tem razão. É difícil mas é preciso.
- Obrigada por ter me escutado. Ainda penso que se Mariazinha conversasse com você, desabafasse, talvez saísse da depressão em que se encontra.
Rui deu de ombros.
- Se acha que posso fazer alguma coisa, vou dar-lhe um cartão meu. Telefone e combinaremos.
Tirou do bolso um cartão e entregou-o à moça. Terminaram de tomar o refresco e despediram-se.
— Que Deus os ajude a esquecer — disse a moça com sinceridade.
— Vai ser difícil, mas o que podemos fazer? Obrigado e até outro dia.
- Telefonarei.
- Está bem.
Guardando o cartão na bolsa, Nair sentia-se esperançosa. Se Mariazinha falasse com Rui, desabafasse, conseguisse esgotar sua mágoa, poderia esquecer aquela tragédia e partir para uma vida normal.
Rui saiu da confeitaria um tanto nervoso. Era-lhe penoso recordar-se da morte do irmão. Lembrando-se de Jovino, um sentimento de rancor invadiu-lhe o coração. Sentia vontade de esganá-lo com suas próprias mãos. Profunda amargura sombreava-lhe a fisionomia enquanto caminhava rumo ao lar.
Um garoto aproximou-se de mão estendida: Moço, me dá uma ajuda?
Rui teve vontade de esmurrá-lo. Sai daqui seu sem-vergonha — disse com raiva. O moleque saiu assustado perdendo-se no meio dos transeuntes. Sua mãe devia ter jogado o Jovino na rua, - pensou o moço irritado - de que lhe adiantara proteger aquele traidor? Alimentara a serpente que os haveria de destruir.
Seu coração estava apertado e seus olhos refletiam a revolta e o ódio que lhe iam na alma. Nada havia para ser feito e a sensação da própria impotência esmagava-o. Contra a morte, não havia remédio.
Chegou em casa, cenho carregado, engolfado nos próprios pensamentos. Não aceitava a morte do irmão, em plena juventude e de maneira tão trágica.
Magali, vendo-o entrar na sala, observando sua fisionomia, procurou acalmá-lo.
- Você voltou cedo. Hoje é sábado, pensei que só voltasse pela tarde.
- Não tenho disposição para passeios - respondeu Rui de mau humor. - Perdi o companheiro. Sozinho não tem graça.
Magali aproximou-se fitando o irmão preocupada. Ela também sofria pela tragédia que abalara toda a família. Porém, tinha vinte anos, uma vida inteira pela frente. Amava o irmão desaparecido tão tragicamente, mas não queria passar a vida inteira chorando. Nada que fizesse poderia devolver a vida de Alberto. Era um fato consumado e sem volta. Tinham que superar a dor e continuar a viver. Ela recusava-se deixar vencer. Aceitava a morte do irmão contra a qual nada lhe restava fazer, mas queria refazer sua vida.
Suspirou fundo, depois disse:
- Compreendo sua dor, mas Alberto não voltará nunca mais. Você não pode passar a vida se lamentando. Precisa fazer amigos, sair, levar vida normal.
- Você é insensível. Como pode dizer isso?
-Engana-se. Sinto tanto quanto você pelo que aconteceu, porém, não nos cabe culpa alguma, assim como também nada podemos fazer para mudar os fatos. Contudo, não pretendo passar minha vida toda chorando. Quero viver, ser feliz, usufruir da minha mocidade. É injusto destruir nossas vidas por um drama que não criamos e que não podemos modificar.
- Isso é egoísmo. Nossos pais sofrem, nós sofremos e você pensa em sua própria felicidade. Não vê que nunca mais seremos felizes? Não percebe que a sombra de Alberto estará sempre em nossas vidas, como uma chaga dolorosa que sempre carregaremos?
Magali sacudiu a cabeça.
- Não eu. Eu quero libertar-me dela. Vocês não são religiosos? Mamãe não vive na igreja a ouvir sermões e a rezar? Por que não aceitam a vontade de Deus?
- Não blasfeme. Deus não pode permitir um assassinato como aquele.
- Nesse caso, o assassino é mais poderoso do que Deus?
- Você é criança, só fala besteiras - retrucou ele sério.
- Vocês dizem sempre que Deus é absoluto. Que pode tudo. Que não cai uma folha da árvore sem que ele permita. Logo, se Alberto morreu daquela forma, foi com a permissão de Deus.
- Que absurdo!
- Então ele não pôde impedir, logo, ele não é tão absoluto se um reles assassino pode mais do que ele.
- Não se pode conversar com você que só diz asneiras.
- Você não tem argumentos
- fez ela triunfante. –
- O que eu quero dizer é: se Deus permitiu, quem somos nós para não aceitar? Você quer ser maior do que Deus.
- Quando você começa com essas idéias, não há quem agüente. Deixe-me em paz.
Magali segurou o braço do irmão dizendo com voz súplice:
- Rui, não vale a pena guardar tanta tristeza. Não tem jeito mesmo. Nós precisamos esquecer. A vida continua e nossos pais precisam de nós. Se perdemos o irmão, eles perderam o filho. Isso dói muito mais. Temos que cultivar a alegria para que eles encontrem em nós a ajuda que necessitam. Se nos abatemos, se destruímos nossas vidas, como > eles poderão suportar a dor? Se formos felizes, eles se sentirão confortados. Perderam um filho, mas pelo menos, os outros dois foram felizes. Não acha mais acertado?
Rui olhou a irmã admirado. Sua fisionomia distendeu-se quando disse:
- Não havia pensado nisso.
- Nós somos a esperança que lhes resta. Vamos fazê-los felizes com o que temos.
- Tem razão - considerou ele. — Eu a chamei de egoísta mas só pensei em minha dor. Perdoe-me. O egoísta sou eu. Você está certa. Vou esforçar-me para ocultar a tristeza e procurar melhorar.
- Podemos ir ao cinema hoje, - sugeriu ela séria. - Tem um ótimo musical no Rosário.
Rui sentiu ímpetos de recusar, porém controlou-se.
Está bem. Iremos na sessão das quatro. Magali levantou-se na ponta dos pés beijando a face do irmão com meiguice.
Agora sim. Encontrei meu irmão Rui. Ele sorriu. Sentia-se mais calmo. A tensão havia passado.
Nair chegou em casa pela hora do almoço e esperou com impaciência que Mariazinha voltasse da fábrica. Com o cartão do Rui em seus dedos, foi procurá-la. A moça surpreendeu-se:
- O irmão do Alberto?
- Sim. O Rui, bonitão e cheiroso como o irmão.
- Ele a viu?
- Claro. Você acha que eu ia perder a chance? Sempre desejei encontrá-lo. Parei e cumprimentei.
- Você teve coragem?
- Naturalmente. Ele foi muito educado. É um moço fino. Estendeu-me a mão e me reconheceu. Eu disse que precisava falar-lhe e ele conduziu-me a uma confeitaria para podermos conversar.
O coração de Mariazinha batia descompassado. Seus olhos encheram-se de lágrimas.
- E então?
- Ele está muito sentido com a morte do irmão. Não se conforma.
- É natural.
- Pensa que foi o motorista.
- Pode ser.
- Eu não acho. Tenho minhas idéias, mas não tenho provas. Mariazinha deu de ombros. Conhecia os pensamentos da amiga.
- Falei de você, do seu sofrimento, do seu amor pelo Alberto.
- E ele?
- Deu este cartão. Combinamos de nos encontrar para conversarmos.
- Vocês dois?
- Não, nós três. Bem que eu gostaria que ele se interessasse por mim, mas isso não aconteceu. Eu disse que você não esqueceu o Alberto, e ele quer conversar um pouco. Só isso. Pensei que você fosse gostar.
- Claro. Tudo quanto diz respeito ao Alberto interessa-me.
- Amanhã é domingo. Podemos telefonar e marcar um encontro. Mariazinha segurou o braço da amiga com força.
- Faça isso. Mal posso esperar.
No dia seguinte, Nair telefonou para Rui que não se sentia com vontade de encontrar-se com elas. Não desejava rever o lugar onde Alberto perdera a vida. Deu uma desculpa alegando outro compromisso e arrependeu-se de ter-lhes dado o número do telefone.
Magali, vendo-o recusar o encontro comentou:
- Por que não saiu com a garota? Desde quando recusa um convite desses?
- Não sinto vontade. Não se trata da minha garota. É a amiga de Mariazinha, a menina que o Alberto foi procurar naquela noite.
Magali olhou-o curiosa.
- O que ela quer com você?
- Encontrei-a na rua ontem. Disse-me que Mariazinha tem estado doente desde que o Alberto morreu. Pediu-me para conversar com ela.
- Ficou muito chocada, é claro.
- Ficou impressionada. Nair contou-me que ela se recusa a sair para passear, vive triste e chorosa. Ela acha que se eu conversasse com ela, talvez pudesse ajudá-la de alguma forma.
Magali considerou: ,
- Eu gostaria de conhecê-la. Afinal, Alberto gostava dela, senão, não teria voltado a vê-la.
- De certa forma, ela foi culpada. Se ele não houvesse ido a sua procura, talvez ainda estivesse vivo.
- Não seja injusto. Se o Alberto tinha que morrer daquele jeito, isso ia acontecer de uma forma ou de outra. A moça nada teve com isso. perdeu o namorado, o que sempre é triste.
- Aquele cachorro estava aqui, dentro de casa, ia matar de qualquer forma. Nesse ponto você tem razão, mas não acho que minha presença possa fazê-la esquecer. Ao contrário. Vendo-me, ela se recordará mais dele.
- Não sei, não. Você podia ter marcado o encontro. Não custava nada ter ido. Eu gostaria muito de conhecer essa moça.
- Uma pequena bonita de bairro, nada mais.
- Que interessou o Alberto.
- Bobagem. Coisa passageira por certo.
Nair desligou o telefone decepcionada.
- Ele não pode. Tem outro compromisso.
- Ou não quis encontrar-se conosco. Afinal, para quê? Nada que fizermos vai trazer o Alberto de volta...
- Telefonaremos outro dia. Não vamos desistir.
Naquela mesma tarde, Nair foi a procura da amiga.
- Vamos dar uma volta. Quero sair, passear um pouco.
- Não tenho vontade, - respondeu Mariazinha desanimada.
- E eu? Você não é minha amiga? Quero passear, ver gente, estou cansada de ficar em casa. Que tal irmos até a cidade ver as vitrines? Podemos tomar um sorvete.
- Está bem, vamos.
Nair sorriu satisfeita. Estava cansada de ver as lojas da cidade, mas queria tirar a amiga de casa de qualquer jeito. Quando estavam no bonde Mariazinha perguntou:
- Você trouxe o cartão do Rui?
- Está na bolsa, por quê?
- Tem o endereço. Eu li. Sinto uma vontade imensa de ver onde Alberto morava, sua casa, parece que indo lá, eu fico mais perto dele.
Nair abanou a cabeça.
- Saímos para passear. Para esquecer as tristezas. De que lhe servirá ir até lá? Vai ficar mais triste ainda. Não. Nós não iremos.
Mariazinha agarrou a mão da amiga com força.
- Por favor! - pediu com voz súplice. - Eu quero ver a casa!
- Nair suspirou fundo. Teria sido bom haver conseguido aquele endereço? Estava relutante. Mariazinha insistia. Desceram na Praça da Sé e tomaram outro bonde para a casa de Alberto.
Os olhos de Mariazinha brilhavam de forma diferente e Nair observava-a com ansiedade. Chegaram. Foi fácil encontrar a casa, Mariazinha parou frente ao portão de ferro da entrada, coração batendo forte, olhando o jardim bem cuidado com emoção.
- Você já viu a casa, agora vamos embora - disse Nair querendo afastá-la dali.
- Não, - disse ela firme. — Conheço este lugar. Vou entrar.
- Não faça isso. Viemos só olhar a casa. Vamos embora.
- Não, - repetiu ela tentando abrir o portão sem conseguir.
Seus olhos estavam abertos e pareciam olhar sem ver. Nair assustou-se. Mariazinha não estava bem. O que ela sempre temera, havia acontecido. Seu sistema nervoso não suportara mais aquela depressão, aqueles pensamentos doentios.
Olhou em volta, mas não havia ninguém. Precisava levar a amiga embora dali. Segurou-a pelo braço.
- Mariazinha, vamos embora. Chega. Vamos para casa. A moça soltou o braço com violência.
- Deixe-me em paz. Daqui eu não saio. Preciso de ajuda. Vou entrar!
Nair apavorou-se:
- Mariazinha! Vamos embora. Alguém pode ver e não vai ficar bem
- Eu vou entrar. Para isto vim. Ninguém vai tirar-me daqui! Abra este portão. Eu vou entrar!
Sacudia o portão com ambas as mãos. Nair estava apavorada. Mariazinha demonstrava estar fora de si.
Alguém abriu a porta da casa. Era Magali. Saiu admirada, vendo Nair puxando Mariazinha que, agarrada ao portão, o sacudia. O que estava acontecendo? Foi até lá.
- O que é isso? - indagou admirada.
- É Mariazinha, - disse Nair preocupada. - Quis ver a casa de Alberto e teve uma crise. Não consigo controlá-la. Desculpe por favor
Mariazinha parou e olhou fixamente para a moça que a encarava curiosa.
- Magali!
- disse
- Que saudade! Até que enfim!
Antes que uma das duas pudesse dizer alguma coisa, Mariazinha desmaiou.
Nair amparou-a assustada. Magali abriu o portão rápido, ajudando-a a sustentar o corpo da moça.
- Meu Deus, - gemeu Nair. - Ela está mal!
- Desmaiou, - disse Magali. - Acalme-se. Vamos levá-la para dentro.
Tocou a campainha no portão e uma criada apareceu. As três levaram Mariazinha até a sala de estar, colocando-a no sofá. Rui acorreu preocupado. Seus pais haviam saído, mas Magali procurou socorrer a moça afrouxando-lhe a roupa e colocando um vidro de amoníaco perto do seu nariz. Mariazinha suspirou levemente.
- Graças a Deus! - fez Nair. - Que susto!
- O que houve? — indagou Rui.
- Ela quis ver a casa do Alberto. Disse que queria só passar em frente, ver onde ele tinha vivido. Porém, quando chegamos aqui, ficou transtornada, disse coisas sem nexo, parecia fora de si. Agarrou-se ao portão e queria entrar de qualquer jeito. Não consegui afastá-la. Quando vi 11'0 chegou - apontou Magali - ela desmaiou.
- Ela me conhecia — disse Magali impressionada — chamou-me pelo nome e disse que sentia saudades.
, - Ela disse coisas sem nexo, - resmungou Rui. — Estava fora de si. - Eu nunca a vi antes. Como sabia o meu nome?
- Com certeza Alberto falou de você. Olha, parece que ela está melhorando. Suas cores estão voltando. Já respira normalmente.
O moço estava aborrecido. Por que dera o cartão a elas? Magali porém, condoía-se da moça. Compreendia seu abalo. Sentou-se a seu Lado.
Mariazinha abriu os olhos ainda um tanto alheia, aos poucos foi se sentindo melhor. Olhou Nair um pouco assustada.
-Nair! O que aconteceu?
- Você desmaiou. Não se lembra?
-Eu?
- Não importa. Agora você já está bem, - disse Magali olhando-a com simpatia. — Vou mandar trazer um café. É bom para reanimar.
Mariazinha estava envergonhada.
- Não se incomode. Já vamos embora. Desculpe o incômodo. - Olhou para o Rui admirada.
— Você por acaso não é o Rui?
- Claro. Você está em minha casa.
Ela corou encabulada. Estava em casa do Alberto. Seus olhos encheram-se de lágrimas.
- Você é a irmã dele? - indagou emocionada.
- Sim. Magali. Chamou-me pelo nome, não se lembra?
- Eu?! Não sabia que se chamava Magali. Muito prazer.
- Melhor pedir o café, - disse o Rui.
A moça parecia mesmo muito perturbada.
- Desculpe, - continuou Mariazinha sem saber o que dizer. - Não tencionava incomodar. Porém, sinto uma sensação diferente, uma emoção muito grande.
- É natural, - disse Nair. - Você não tem feito outra coisa senão pensar no Alberto, falar no Alberto, desde que ele morreu. Bem que eu não queria vir. Você precisa esquecer. Afinal, o mal é sem remédio.
As lágrimas corriam pelas faces de Mariazinha sem que pudesse contê-las. Rui apressou-se em pedir o café e o trouxe ele próprio. Era muito desagradável aquela situação. Fora ingênuo em dar o cartão. A moça era desequilibrada e poderia trazer-lhes aborrecimentos. Magali pegou a xícara e a ofereceu a Mariazinha.
- Beba. Vai sentir-se melhor.
Ela apanhou a xícara e suas mãos tremiam tanto que Nair perguntou:
- Quer que segure?
- Não, - respondeu Mariazinha procurando dominar-se. Apesar do tremor que lhe sacudia o corpo, bebeu o café.
Magali sentou-se a seu lado. Mariazinha era bonita e apesar de vestir-se modestamente, era elegante, discreta, tinha bom gosto, Compreendia porque seu irmão se interessara por ela. Seus olhos eram brilhantes e seu rosto muito expressivo. Mariazinha devolveu a xícara a Magali dizendo:
- Obrigada. Sinto-me melhor.
- Então vamos embora, - decidiu Nair percebendo o desagrado de Rui e contrariada por ter atendido o desejo da amiga. Parecia-lhe estar abusando da confiança dele, invadindo sua casa quando ele recusara encontrá-las. Estava claro para ela que Rui não tinha outro compromisso. Simplesmente não desejava vê-las.
Mariazinha fez menção de levantar-se. Magali a deteve.
- Fique um pouco mais. Você ainda está trêmula e um pouco pálida. Não se preocupe. Espere melhorar para poder sair.
- É muito gentil, - respondeu Mariazinha olhando-a nos olhos. Sentiu-se bem ali. Gostava da casa, dos móveis e mais ainda da moça bonita e educada que a olhava com simpatia. Percebia que ela a compreendia. Era a irmã do Alberto, com certeza eles se amavam muito. Aos poucos foi se sentindo mais calma. Suas mãos esquentaram, o tremor passou.
Mariazinha levantou-se. Despediu-se de Rui. Nair, estendendo a mão a ele, prometeu:
- Fique tranqüilo. O que aconteceu hoje, não mais se repetirá. Não voltaremos a incomodar. Eu não sabia que ela pretendia entrar aqui.
Rui apertou a mão dela respondendo sério:
- Estas cenas são sempre desagradáveis. Para nós, já basta nossa própria tragédia. Nossos nervos não suportam mais. Agradeceria muito que você cuidasse disso realmente. Ainda bem que mamãe não estava, teria entrado em crise, chorado, recordado tudo novamente.
Nair lançou um olhar furtivo a Mariazinha que já no jardim conversava com Magali. Felizmente não tinha ouvido.
- Fique tranqüilo. Apesar do que houve, Mariazinha é discreta e não pretende perturbar ninguém, muito menos vocês. Adeus.
Nair estava irritada. Rui demonstrara frieza e orgulho. Pena. Bonito por fora, feio por dentro, - pensou ela desalentada. - O Alberto também seria assim? Estaria Mariazinha chorando por quem não merecia? Agora, mais do que nunca, lutaria para que ela pudesse esquecer.
Magali acompanhou Mariazinha ao portão.
- Estou envergonhada, — disse ela. - Não sei o que se passou comigo. Nunca tive isso antes. Foi a primeira vez na vida que desmaiei. Sempre fui saudável, equilibrada. Logo aqui que eu gostaria de causar uma boa impressão.
Magali olhou-a firme nos olhos:
- Sempre tive vontade de conhecê-la. Queria saber quem tinha abalado o coração do Alberto. Ele ficou muito impressionado com você.
Os olhos de Mariazinha iluminaram-se.
- Ele falou em mim?
- Na ocasião não prestei muita atenção. Você sabe, ele e o Rui sempre conversavam sobre garotas. O Rui caçoou muito dele porque ele falava em você e estava muito interessado.
- Obrigada por me haver contado. Conhecer o Alberto foi para mim a coisa mais maravilhosa. Apaixonei-me desde o primeiro dia. Ele correspondeu. Quem poderia prever o que ia acontecer?
- De qualquer forma, gostei de conhecê-la. Gostaria de conversar mais com você, um outro dia quando estiver mais calma. Posso contar-lhe muitas coisas sobre ele. Você me falará como ele era para você. Vamos matar as saudades?
Mariazinha sorriu:
- Faria isso? Verdade? Sinto-me acanhada. O Rui não gostou de eu ter vindo perturbar seu sossego.
- Não gostou mesmo, - disse Nair que tinha ouvido as últimas palavras da amiga. - Acabo de prometer-lhe que nunca mais voltaremos aqui.
Magali sacudiu a cabeça.
- Não se preocupe com as rabugices do Rui. Ele também está muito acabrunhado com o que aconteceu. Ele e Alberto eram inseparáveis. Até agora, ele ainda não aceitou o que aconteceu. Antes, ele era mais alegre, agora, está contra o mundo. Mas não importa. Eu pretendo vê-la muitas vezes. Se me der o endereço, irei à sua casa qual quer dia destes.
Nair suspirou. Estava difícil cortar as lembranças de Mariazinha. porém, não teve outro remédio senão pegar um papel na bolsa e escrever o endereço.
- Eu trabalho durante a semana, mas a noite ou aos domingos eu estou.
- Talvez no próximo domingo. Vamos ver, - prometeu Magali.
- Adeus e obrigada, - despediu-se Mariazinha estendendo a mão. Magali apertou a mão que ela lhe oferecia e puxando-a para si, beijou-lhe as faces com sinceridade.
- Tive muito prazer em ver você. Senti o Alberto muito perto de mim. Espero que se sinta melhor.
- Obrigada.
- Adeus, - tornou Nair.
Magali beijou-a na face com delicadeza. Quando saíram, Magali entrou na sala onde Rui tomava um café, olhar perdido em um ponto distante.
- Você podia ter sido mais atencioso - reclamou ela. Arrancado de seu mundo interior, ele respondeu:
Tenho mais em que me ocupar do que suportar a histeria de uma menina desequilibrada.
- Não seja rude. A moça estava em crise, não me pareceu nem histérica nem louca.
Não falava coisa com coisa... Magali sentou-se pensativa. É estranho que em sua crise ela soubesse o meu nome. Falou comigo como se me conhecesse. Nunca nos vimos antes. Como poderia?
- Bobagem. Quem nos garante que Alberto não tenha falado em Você, mostrado seu retrato?
- Que eu saiba ele não andava com nenhum retrato meu na carteira.
- Você sempre se apega a detalhes sem importância. Será mesmo que ela disse isso? Não pode ter-se enganado?
Magali sacudiu a cabeça. Certamente, não. Que ela disse tenho certeza. Disse também: que saudades! Saudades de quê? Nunca nos vimos antes.
O que prova que ela estava fora de si. Vamos esquecer este assunto que estragou meu domingo. Arrependo-me de ter lhe dado o cartão.
Eu gostei. Mariazinha é moça boa e sincera. Pretendo conhecê-la melhor.
- Você não a convidou para vir aqui, convidou?
- Não. Já que você foi tão indelicado, e ela percebeu, vou à sua casa qualquer dia destes.
Rui deu um salto e segurou Magali pelo braço.
- Não fará isto. Não permitirei.
- Por quê?
- O ambiente lá não é para você. Não deve misturar-se com essa gente.
- O que tem isso? Mariazinha é uma moça bem-educada.
- Uma operária!
- Rui! Desde quando se julgam as pessoas pela sua posição social? São esses valores podres e distorcidos que vocês querem impingir-me. Pode saber desde já que não vão conseguir. Recuso-me a escolher meus amigos pela posição que desfrutam. Um dia vocês vão arrepender-se de tanto orgulho.
-Não vou discutir com você. Papai é que vai cuidar da sua rebeldia.
Não quero que vá ver essa moça e pronto. Papai e mamãe concordarão comigo.
- Vocês são farinha do mesmo saco. Eu não penso assim.
- Você se mistura com a ralé. O Alberto deu-se mal. Ainda não foi o bastante?
- Sei o que faço — respondeu ela séria e afastou-se antes que Rui revidasse.
Ele tinha máu gênio, mas o pior é que o dr. Homero e Aurora sempre o apoiavam. Ela era mulher, mais nova, tinha que obedecer ao irmão. No tempo do Alberto, este sempre a protegia. Não deixava o Rui fazer o que queria. Ele sempre dava a última palavra. Tinha muita ascendência sobre o irmão e até sobre os pais. Agora, sem ele, Rui dava vazão a seu temperamento hostil, sem que ninguém o contivesse. Os pais eram condescendentes com ele. Afinal, era agora o único filho homem.
Eram severos com Magali. Uma moça precisava ser submissa, educada, sem muita cultura para não ficar pedante mas boa filha para poder encontrar um bom marido e vir a ser boa esposa e mãe.
Magali tinha idéias próprias e reagia às determinações da família. Gostava de ler sobre todos os assuntos e discutir livremente seus pontos de vista, no que era sempre muito criticada pelos pais e pelo Rui. Alberto era mais liberal. Com ele trocava idéias, podia dizer o que pensava e ouvia sempre esclarecimentos, orientações, que mesmo não sendo aceitas inteiramente por ela, davam margem a reflexões proveitosas.
Era com ele que ela conversava mais, principalmente sobre os assuntos proibidos. Apesar do pai ser médico, não podia mencionar certas doenças que lembrassem sexo, gravidez. Adultério e desquite também eram temas proibidos.
Magali tinha sede de saber. Obteve permissão só para ler os romances da coleção das moças, onde a heroína era sempre cheia de virtudes, rodeada pela maldade de algumas pessoas e que ao sacrificar-se pela honra e pela renúncia, acabava por derrotar seus inimigos.
Ela também gostava de ler esses livros. Era romântica. Contudo, sentia-os muito distantes da realidade e buscava respostas através de outros livros científicos, filosóficos, enfocando os problemas humanos do dia-a-dia. Quando conseguia um desses livros, escondia-o e lia-o no Quarto, até altas horas da noite, meditando sobre eles. Depois, perspicaz e observadora, procurava testar essas teorias na vida prática, rejeitando o que não achasse verdadeiro.
Por essa razão, muitas vezes não concordava com o que a família desejava que ela fizesse. Habituada a questionar as coisas, Magali não se submetia aos acanhados padrões dos familiares, embora condescendesse em admitir que eles agiam assim pretendendo poupá-la aos problemas da vida, desejando mostrar-lhe apenas o lado cor-de-rosa que ele, em sua ingenuidade, favoreciam.
Ela irritava-se com isso, porque seus pontos de vista eram tão singelos e pueris que ela sentia-se subestimada em sua inteligência. Por isso, era considerada rebelde e os pais apoiavam Rui na difícil tarefa de discipliná-la.
Não importa — pensou Magali trancando-se no quarto. - Vou visitar Mariazinha e pronto. Vou escondido.
Não gostava de mentir mas era a única forma de escapar daquela pressão injusta e sem sentido. Ela sabia o que queria e quando resolvia uma coisa, ninguém a faria desistir, a não ser que lhe provassem estar errada. Quando se convencia de que não tinha razão, voltava atrás com a maior facilidade. Estendeu-se no leito e como era seu costume, procurou recordar os acontecimentos da tarde. Ela tinha o hábito de rever tudo quanto lhe acontecia nos mínimos detalhes. Era possuidora de rara acuidade de percepção, bem como de certa facilidade, desenvolvida pelo uso, de fotografar com a mente os fatos que a interessavam.
Foi com certa facilidade que recordou-se de tudo. Estava na sala quando ouviu um ruído no portão, abriu a porta e viu duas moças lá fora. Ela reviu tudo mentalmente e chegou a sentir de novo a emoção que as primeiras palavras de Mariazinha lhe causaram. Tivera vontade de abraçá-la, logo depois substituída pelo susto, vendo-a desmaiar.
Por que tanta emoção frente a uma moça desconhecida? Estaria sendo romântica, deixando-se envolver pela atmosfera mística de Mariazinha? Não saberia dizer. Só sabia que a presença da moça a emocionava muito e que desejava ir a sua casa, conhecê-la melhor. Talvez seu amor pelo Alberto as aproximasse. Sentia-se tocada no íntimo do ser e essa sensação desconhecida era como um ímã levando-a a buscar de novo a presença de Mariazinha.
Decidiu ir vê-la, assim que pudesse iludir a vigilância do irmão. Ele era astuto. Por certo, estaria de olho nela para tentar impedi-la. Magali sorriu. Teria o prazer de despistá-lo. Apanhou um livro que escondera sob o colchão e tranqüilamente começou a ler.
Mariazinha chegou em casa um pouco triste. Nair passara-lhe um sermão durante o trajeto, insistindo que não ficava bem perturbar a família de Alberto já tão sofrida, afirmando que ela, Mariazinha, acabaria doente se não procurasse esquecer.
Nair tinha razão. Ela compreendia isso. Todavia, nos dias que se seguiram, embora tentasse reagir, sentiu-se debilitada, descontrolada. Idéias diferentes afluíam ao seu pensamento, provocando inquietação, desespero, revolta e depressão.
Aquele desmaio a preocupava muito. Por isso finalmente decidiu ir ao médico. A noite, não dormia bem, as náuseas e as dores de cabeça repetiam-se a miúde. Quando conseguia pegar no sono, ouvia como que Um estrondo que a acordava, em meio ao terror, a angústia e a dor na cabeça.
Estava doente. Embora amasse Alberto, não desejava morrer. Ao contrário, amava a vida, apesar de tudo. Seus pais preocupados queriam que ela tirasse uma licença na fábrica, ela recusava-se.
Marcou o médico e resolveu esquecer Alberto. Era triste, mas a situação não podia continuar. O médico ouviu os sintomas e diagnosticou abalo nervoso. Receitou calmantes e sugeriu que ela procurasse se interessar por outros rapazes para esquecer.
Mariazinha saiu do consultório mais animada. Precisava reagir. O sonho terminara. Alberto não voltaria nunca mais.
Nessa disposição, começou o tratamento médico. Vitaminas e calmante para dormir. Sentiu-se melhor.
Uma noite, sonhou com Alberto. Ele estava pálido, abatido, e em meio a uma neblina chamava-a insistentemente. Mariazinha sentiu grande emoção. Olhou para ele que lhe estendeu os braços, dizendo:
- Não me abandone, pelo amor de Deus! Você pode me ajudar! Por favor, não me deixe! Preciso muito de você. Está tudo errado, e eu sofro muito por isso. Só você me escuta. Tem dó de mim, ajude-me!
A moça trêmula, surpreendida, respondeu:
- O que posso fazer? Você está morto! Preciso esquecer.
- É mentira! Eu não morri. Estou aqui. Eu a amo muito. Não me deixe. Ajude-me. Sofro muito!
Mariazinha horrorizada viu os ferimentos de bala em seu corpo e sentiu-se mal.
- Não tenha medo - pediu ele. — Não vou fazer-lhe mal. Só quero ajuda. Não me expulse do seu lado nem do seu coração. Deixe-me ficar!
- Não posso - balbuciou ela. - Estou doente. Preciso esquecer.
Ele aproximou-se, tentando abraçá-la, e Mariazinha chegou a ouvir a respiração dele em seu rosto. Apavorada, acordou, coração batendo descompassado, corpo coberto de suor frio e um tremor incontrolável.
Assim que teve forças, gritou pela mãe que acudiu prontamente.
- Mamãe, eu vi o Alberto - disse ela nervosa. - Ele veio pedir para que eu não o abandone! Quer ficar comigo.
- Não vai ficar, não. Deus é grande. O lugar de quem já morreu é no outro mundo. Que Deus o perdoe.
Mariazinha soluçava, abraçada à mãe.
- Ele disse que me ama! Que precisa de ajuda. Pediu para não o esquecer.
Isabel alisava a cabeça da filha e respondeu já mais calma:
- Foi apenas um sonho. Você ainda está muito abalada. O médico disse que está com os nervos atacados. Um sonho não é verdade. É uma fantasia. Você diz que quer esquecer, mas no fundo ainda pensa nele. Foi isso. Só um pesadelo, nada mais.
- Ele estava vivo, falou comigo, vi os seus ferimentos. Ele tinha um buraco na testa, do lado esquerdo. Oh! mamãe, foi horrível! Estava pálido e pedia que o ajudasse.
- Foi pesadelo, repito. Você nem sabe onde foram os tiros. Não me parece que tenham sido na testa. Depois, ele está morto, bem morto, enterrado e tudo. Como poderia estar vivo? Os mortos não voltam, infelizmente. Não seja criança. Foi pesadelo, pode crer.
- Ele quis me abraçar. Disse que me ama. Isabel sorriu.
- Está vendo? É o que você gostaria que fosse verdade. Que ele estivesse vivo, que dissesse que a ama. Não vê que foi fruto da sua fantasia?
- A impressão foi muito forte. Senti a respiração dele em meu rosto.
Tive medo. Ele estava pálido, sofrido, depois, eu sabia que ele estava morto e que eu estava vendo um fantasma.
— Bobagem, filha. Acalme-se. Vou fazer um chá de cidreira. Não pense mais nisso. Foi só um pesadelo.
Mariazinha acalmou-se um pouco. Porém, no dia seguinte, a figura de Alberto, conforme o tinha visto no sonho, não lhe saía do pensamento. Sua mãe tinha razão - pensava. - Alberto estava morto e os mortos não voltam. Não acreditava que eles pudessem voltar.
Ainda assim, não conseguia tirar aquela cena dolorosa da mente. Quando fechava os olhos, parecia-lhe ver Alberto estendendo-lhe os braços pedindo ajuda, seus olhos sofridos, seu rosto pálido e a ferida terrível em sua testa.
Ele lhe dissera estar tudo errado. Por quê? Seria errado ela tentar esquecer? Sentia-se confusa. Todos lhe diziam para tirar Alberto da lembrança. Até o médico. Por que sonhara com ele pedindo o contrário? Preocupada, sem conseguir entender, atendeu aos conselhos de Isabel, procurou o padre.
Ouvida em confissão, Mariazinha abriu o coração e o padre depois de ouvi-la atencioso respondeu:
— Minha filha, refugie-se na oração. Está muito nervosa. Em seu subconsciente, isto é, no íntimo do seu ser, você queria que ele estivesse vivo e a amasse. Por isso sonhou. O sonho é a realização de um desejo, disse um grande homem que estudou muito a mente humana. Foi o que aconteceu.
- Mas padre, se eu queria, por que tive medo? Eu queria o Alberto bonito, alegre, como ele era e não aquele moço ferido, pálido parecendo um fantasma.
- Você queria mas sabia que ele estava morto e fora ferido. Você mesma criou tudo isso. Teve um pesadelo, criado por sua própria mente.
- Não consigo esquecer o sonho padre!
— Vamos orar. Nosso Senhor Jesus Cristo vai ajudar. Não tem fé?
- Sim, senhor.
— Então não esqueça. Vamos deixar os mortos em paz. É pecado estar perturbando o sono deles. Vai rezar dez pais-nossos e dez ave-marias, agora e todas as terças-feiras, durante nove semanas. Essa novena a ajudará a esquecer. Tenha fé.
A moça concordou. O padre devia estar certo. A um canto da igreja, rezou a penitência e depois voltou para casa, sentindo-se um pouco mais calma. Mas à noite, ao deitar-se, tinha receio de dormir. E se tivesse outro pesadelo?
Tomou o calmante e lhe pareceu que agora ele já não fazia o mesmo efeito. A partir daquela noite, seu estado agravou-se. Acordava assustada, tinha medo de dormir, sonhar de novo. Começou a emagrecer, e seu rosto abateu-se a ponto de seu chefe na fábrica aconselhá-la a procurar tratar-se. Seu trabalho decaiu de produção e embora ela lutasse para fazê-lo melhor, não conseguia.
Foi o médico da fábrica quem diagnosticou anemia e abalo nervoso e conseguiu uma licença, antecipando suas férias. Insistiu para que ela viajasse para a praia ou para o campo, como lhe fosse mais fácil e procurasse no repouso e na boa alimentação, recuperar-se.
Mariazinha voltou para casa desolada. Ela não conhecia ninguém que pudesse emprestar-lhe uma casa nessas condições, ou convidá-la para isso e não tinha meios para gastar com uma viagem dessas. Seu pai, preocupado, resolveu:
- Se você precisa ir para fora, daremos um jeito. Sua saúde está em primeiro lugar. Tenho algumas economias e por certo cobrirão as despesas. Você irá com sua mãe para a praia. Ficará o tempo que for preciso.
Isabel concordou:
- D. Dulce conhece uma pensão boa em S. Vicente.
- Você vai também? - indagou Mariazinha.
- Não, filha. Tenho que trabalhar.
- Você nunca ficou só em casa. Quem vai cozinhar para você?
- Eu me arranjo. Não vou morrer de fome por isso.
Mariazinha comoveu-se. Abraçou o pai, beijando-lhe o rosto bondoso. Animou-se. Podia considerar-se uma moça feliz. Era muito amada pelos pais.
- Iremos. Adoro praia. Haveremos de aproveitar bastante. Hei de melhorar com certeza.
Foi com certa euforia que a moça preparou-se para viajar. Precisava comprar maiô e algumas peças de roupa. Alegre, Mariazinha foi ao centro da cidade para as compras.
Andou bastante, comprou o que precisava. Sentia-se melhor. Tomou um sorvete e dirigiu-se ao ponto do bonde para voltar. Enquanto esperava teve uma surpresa desagradável. Rino também estava lá. Vendo-a aproximou-se imediatamente.
- Mariazinha! Que bom encontrá-la.
- Olá — disse ela procurando dissimular o desagrado.
- Estava louco de saudades! Você sumiu. Não tem ido mais ao clube, nem ao cinema. Por onde tem andado?
- Em casa. Não tenho me sentido bem.
Ele olhou-a um tanto desconfiado e concluiu:
- É, você emagreceu. O que tem?
- Nada sério. Anemia, cansaço, só. Rino pegou-a pelo braço.
- Precisa cuidar-se. Não quero que nada de mal lhe aconteça. Mariazinha tentou soltar o braço que ele segurava.
- Deixe-me segurar seu braço, por favor - pediu ele com emoção - sinto vontade de abraçá-la, beijar seus lábios, apertá-la de encontro ao peito, aqui mesmo.
Mariazinha assustou-se.
- Por favor, Rino. Contenha-se. Estamos na rua. Não gosto de cenas.
O moço, empolgado pelo encontro inesperado, não estava disposto a perder aquela oportunidade.
- Não vou fazer nada, - prometeu ele. - Quero passar o braço pela sua cintura, segurar sua mão, nada mais.
A moça sentiu que ele passava um braço em sua cintura enquanto que com a outra mão procurava a sua. Algumas pessoas começavam a olhar e ela corou de vergonha. Tentou desvencilhar-se sem conseguir.
- Solte-me - pediu ela. - Não faça isso. Não somos namorados, nem nada.
- Porque você não quer. Eu não consigo esquecê-la. Sonho com você, com seus beijos, seu amor. Você ainda será minha! Há de me amar tanto quanto eu a amo.
- Nunca! - reagiu ela. - Eu não mudarei. Largue-me, por favor!
Rino, cego pela emoção, sentindo a proximidade dela, não parecia disposto a soltá-la. Ao contrário, apertou-a ainda mais, encostando o rosto aos cabelos da moça, enquanto dizia-lhe ao ouvido:
- Eu quero você! Nunca a deixarei. Nunca será de outro, não permitirei!
Foi nessa hora que o rosto de Mariazinha se modificou. Sua expressão de medo foi substituída pela firmeza enquanto que fixando os olhos de Rino, como se quisesse penetrar em seu íntimo, disse com voz modificada:
- Assassino!
Rino estremeceu violentamente e soltou Mariazinha imediatamente enquanto seu rosto refletia o terror que lhe ia na alma. Ela, olhos muito abertos, continuava a olhá-lo com severidade:
- Deixe-a em paz, covarde. É comigo que você vai ajustar contas! Ainda nos encontraremos face a face.
O Rino tremia e seu rosto estava pálido. Mariazinha fechou os olhos e teria caído se o moço não a houvesse amparado. Ele queria sair dali, seu desejo era de correr, desaparecer, mas a moça parecia atordoada, e ele não podia abandoná-la.
Felizmente ela já parecia melhor, e as cores tinham voltado a seu rosto.
- O que foi? - perguntou ela, vendo o rosto pálido de Rino e percebendo algumas pessoas ao redor, inclusive uma senhora que segurava seus pacotes.
- Sentiu-se mal, quase desmaiou — respondeu ele com voz que procurou tornar natural.
- Sinto muito - disse ela tentando sorrir. — Estou bem agora. Pode me dar os pacotes. Já passou. Tive uma tontura. Estou em tratamento médico. Anemia. Andei muito hoje... obrigada... já estou bem.
Rino olhava-a temeroso. O que a moça sabia? Agora mais do que nunca precisava tê-la por perto, vigiar-lhe os passos. E se ela começasse a falar?
- Será bom tomar um café - propôs ele. — Vai sentir-se melhor. Mariazinha sentia as pernas bambas e certa fraqueza. Teve medo
de aceitar. Rino percebeu e prometeu:
- Não vou abraçá-la de novo. Peço que me perdoe. Estava com muitas saudades. Perdi a cabeça. Não vai acontecer outra vez.
- Está bem - disse ela. - Aceito.
Foram a uma leiteria onde se sentaram. Ele estava curioso, precisava saber a verdade. Pediu café com leite e torradas. Enquanto esperavam, perguntou:
- Sempre se sente mal como hoje?
A moça passou a mão pela testa num gesto preocupado.
- Estou adoentada. Tirei férias da fábrica e vou para a praia com mamãe. O médico mandou.
- Essa tontura... dá sempre?
- Não. Assim, não. Sinto-me fraca, angustiada, por causa da anemia, mas a tontura como a de hoje, só tive duas vezes. A outra vez até desmaiei. Hoje não cheguei a tanto. Estou com esgotamento
nervoso.
- Eu não sabia. Sem querer, provoquei seu mal-estar. Disse algumas palavras desconexas, lembra-se delas?
A moça sacudiu a cabeça.
- Não. O que foi que eu disse?
- Bobagens sem sentido.
- Senti muita raiva de você, depois uma onda de calor, uma dor aguda na cabeça, um torpor, só me recordo de ver seu rosto aflito perto do meu e depois tudo passou.
- De fato, precisa tratar-se. O médico tem razão.
- Não sei o que se passa comigo - tornou ela, triste. - Tenho pesadelos, não consigo dormir.
O rosto de Rino estava mais tranqüilo quando disse:
- Você ainda não esqueceu aquele caso. Precisa cuidar de sua vida, esquecer o passado.
Mariazinha suspirou triste:
- Não consigo. A figura de Alberto não me sai do pensamento!
- Esqueça essa ilusão. Mesmo que você não me ame, deve sair dessa confusão. O que passou, passou. Ele está morto e nunca mais voltará. Você é jovem, precisa viver a sua vida.
- Eu sei. Mas não consigo. Ainda uma noite destas sonhei com ele, estava pálido e implorava que eu o ajudasse.
- Foi fantasia. O sonho é ilusão. O desabafo faz bem. Conte-me como foi. Analisando seu sonho, você pode descobrir a causa de seus problemas emocionais.
Mariazinha esperou que o garçom colocasse as coisas na mesa e os servisse. Quando ele se foi, ela disse:
- Todos me dizem isso, mas foi tão real que até agora me parece verdade. Senti sua respiração no meu rosto e vi seus ferimentos. Tinha um buraco na testa e outro no peito. Não sei onde foram os tiros que o mataram, mas na hora tudo parecia tão real que não duvidei. O Alberto estava comigo.
Rino estava pálido. Remexeu-se na cadeira e perguntou:
- O que mais ele lhe disse?
- Que estava tudo errado e que eu precisava ajudá-lo a colocar as coisas no seu lugar.
Rino levou a xícara aos lábios, procurando dominar o tremor que lhe percorria o corpo.
- Tem pesadelo que parece verdade, mas não passa de ilusão. Felizmente a gente acorda.
- É verdade. Sei que foi só um pesadelo, mas a impressão foi muito forte. Ainda agora, falando nisso, parece-me vê-lo de novo. Ele me disse que está vivo.
Rino sorriu:
- Por aí você percebe o absurdo. Está morto e bem morto. E os mortos não voltam.
- Eu sei.
- É melhor esquecer.
- Estou tentando. Vou descansar na praia, tratar-me direitinho e voltarei boa. Estou disposta a esquecer e a recomeçar minha vida.
Rino sorriu de novo com satisfação. Fora estúpido de sua parte forçar a situação. O melhor mesmo seria conquistar-lhe a confiança, a amizade, para chegar onde queria.
Tomaram o bonde de volta, conversando naturalmente durante o trajeto. Mariazinha achava que assim Rino acabaria compreendendo e aceitando sua recusa. Ele descia primeiro, ela seguia mais adiante.
- Vou descer no próximo ponto. Está se sentindo bem? Permite que a acompanhe até sua casa?
A moça sacudiu a cabeça:
- Obrigada. Não precisa. Estou muito bem.
Rino tomou a mão dela apertando-a com delicadeza.
- Desculpe o meu arrebatamento. Não pude controlar-me. Amo- a muito. Prometo ser mais discreto.
- Passou. Quero que compreenda. Eu não o amo. Não quero que se iluda.
- A esperança é a última que morre - volveu ele, sério. — Não quero magoá-la. Aproveite bem suas férias. Adeus.
- Adeus - disse ela aliviada por ver-se livre dele.
Mesmo depois do que aconteceu, a moça estava animada com a viagem. Ia voltar curada. O médico estava certo. Ela estava mesmo muito nervosa. A insistência de Rino havia evidenciado seu mal-estar. Seus nervos não suportaram. Estava resolvida a tratar-se e recomeçar a vida. Afinal, era jovem e o Alberto estava morto. Outro homem haveria de aparecer e ela aprenderia a amá-lo, seria feliz de novo e não deixaria sua oportunidade escapar.
Nessa disposição, no dia seguinte, arrumou as malas, despediu-se de Nair a quem abraçou comovida e viajou para Santos.
O pai acompanhou-as até a estação e quando o trem apitou, abraçou-as com força recomendando:
- Cuide-se bem. Boa viagem.
As duas, acomodadas no banco, viram-no descer do vagão e permanecer em frente à janela onde Mariazinha se acomodara, abrindo- a para vê-lo melhor. Mais um apito e eis que o trem partiu, enquanto as duas acenavam comovidas.
Seu José procurou conter as lágrimas sem conseguir.
Apressadamente passou a mão nos olhos tentando disfarçar e olhando para os lados a verificar se alguém havia percebido sua emoção. Era a primeira vez em vinte anos que elas saíam sem ele. Confiava que sua Mariazinha pudesse voltar curada.
Era sua única filha, nascida quase cinco anos depois do seu casamento e muito esperada. Isabel sofrera uma gravidez difícil e um parto penoso, depois do qual ficara impossibilitada de ter outros filhos.
Mariazinha era para eles todo seu tesouro. Fariam qualquer sacrifício para vê-la saudável e feliz. Sentia-se confiante. Com a ajuda de Deus, ela voltaria boa.
Nos dias que se seguiram, procurou acostumar-se à nova rotina. A vizinha cuidava da casa e deixava sempre um prato de comida no fogão. Isabel só concordara em viajar depois de ter acomodado as coisas para o marido. Não era justo que ele chegasse com fome do trabalho e não tivesse nada para comer.
Sua vizinha também precisara dela quando fora cuidar da mãe doente, e ela cuidara de tudo, lavara a roupa de todos, cozinhara e dera até banho no cachorro. Agora, era justo que a outra a socorresse o que aliás ela prontificou-se a fazer de coração.
Apesar disso, José sentia muito a falta da família. Sua casa estava triste, e ele consolava-se pensando no bem-estar da filha. Isabel, por sua vez, também merecia esse descanso.
Uma tarde, ao chegar em casa do trabalho, foi surpreendido por uma moça que tocava a campainha da porta. Aproximou-se:
- Procura alguém? - indagou.
- Mariazinha. Não é aqui que ela mora?
- É. Sou o pai dela.
- Muito prazer. Meu nome é Magali. Ela me deu o endereço e eu vim visitá-la.
- Sinto muito. Ela está viajando. Está de férias.
- Ah! Não sabia. Quando estará de volta?
- Dentro de duas semanas, dia vinte e seis.
- Está bem. Voltarei depois desse dia. Quando ela chegar, diga que a Magali esteve aqui e deixou um abraço.
José olhava-a admirado. Conhecia as amigas da filha e nunca havia visto essa moça. Era bonita e agradável. Gostou dela.
- Direi, sim. Não deixe de voltar. Será muito bem-vinda. Venha tomar um café conosco. Isabel terá muito prazer em recebê-la.
Magali sorriu.
- Obrigada. Virei mesmo. Até logo. Passe muito bem.
José entrou em casa, e Magali afastou-se um pouco contrariada por haver perdido a viagem. Ao dobrar a rua, deparou com Nair.
- Magali!
- Nair! Que bom encontrá-la. Vim visitar Mariazinha, mas ela está viajando.
- Está. As coisas não andam bem com ela.
- Por quê?
- Está doente. Venha até minha casa, vamos tomar um café. Lá, conversaremos melhor.
- Aceito. Obrigada.
As duas moças entraram em casa de Nair onde a mãe da moça serviu café com bolo.
- Vamos conversar no meu quarto. Ficaremos mais à vontade. Sentadas na cama, Magali perguntou:
- O que Mariazinha tem?
-Não sei explicar. Ela não esquece o Alberto, contudo, me parece que há alguma coisa de sobrenatural.
- Por que diz isso?
- Por vários motivos. Veja você. No começo, ela não queria esquecer o Alberto, mas agora ela quer. Não dorme bem, emagreceu, tem anemia. Vive deprimida. O médico receitou calmantes, disse que é do sistema nervoso, mas ela não melhorou com o tratamento. Assustada com o rumo que as coisas estão tomando, ela quer sair disso e tem se esforçado. Houve época em que ela parecia bem melhor. Foi quando teve o pesadelo. O sonho com Alberto.
- O sonho? - fez Magali, curiosa.
- Sim. Ela disse que ele apareceu, pedindo que ela não o abandonasse, que precisava de ajuda.
- O que ele disse mais?
- Que estava tudo errado e que ela precisava ajudá-lo a pôr tudo em seu lugar.
- Ele disse isso?
- Sim. E disse que estava vivo. Mariazinha contou que tudo parecia tão real que ela sentiu a respiração dele e viu seus ferimentos.
Magali olhou-a séria.
- Ela não teria ficado impressionada com os jornais ou coisa assim?
- Não. Ela ficou tão chocada por ocasião do crime que nunca quis saber dos detalhes. Sequer sabia onde foram os tiros e quantos foram.
- Tem certeza disso?
- Absoluta. Tenho acompanhado tudo de perto. Sou sua amiga íntima e confidente. Ela realmente não sabia.
- E onde ela disse que foram os ferimentos?
- Na testa e no peito. Ela via do lado esquerdo da testa. Magali levantou-se surpreendida.
- Realmente, foram dois tiros. Um na testa e outro no peito. Só que o ferimento foi do lado direito da testa.
- Esse é um detalhe. Eu procurei me informar e descobri sobre os ferimentos. Não contei a ela, para não impressioná-la ainda mais.
- Fez bem. Você tem razão. Tem se passado coisas estranhas com ela. Aquele dia em minha casa, ela me chamou pelo nome e disse que sentia saudades.
- Não dei importância a isso. Estava preocupada com a situação, o escândalo e com ela. Afinal, eu tinha lhe dado o endereço. Seu irmão não quis nos ver.
- Não ligue para o Rui. Ele é assim mesmo. Diga-me, ela sabia o meu nome? O Alberto havia falado em mim?
- Se falou, eu nunca soube. Sabíamos que ele tinha uma irmã, além do Rui. Eu mesmo o ouvi mencionar você uma vez, chamando- a de irmãzinha.
- Era assim que ele sempre me chamava.
- Eu não sabia o seu nome e acredito que Mariazinha também não. Nunca o mencionou.
- E como se explica o que aconteceu? Isso tem me intrigado muito.
- Pensando bem, você tem razão. Ela disse mesmo o seu nome.
- Disse. Você falou em sobrenatural, acha que o Alberto pode estar mesmo perto dela?
Nair sentiu um arrepio percorrer seu corpo.
- Não sei. Nós fomos outro dia em uma cartomante, você acredita nisso?
- Mais ou menos. às vezes acertam algumas coisas, às vezes, não.
- Mas essa, disse que Mariazinha tinha dois apaixonados. Um é o Rino, mau-caráter que está sempre atrás dela. Foi a turma dele que atacou seus irmãos uma vez. E o outro, nós não identificamos, porque o Alberto está morto. Ela garantiu que seu espírito continua ao lado dela, e que ela deveria benzer-se em um'Centro Espírita.
- E ela foi?
- Foi nada. Ela não acredita nessas coisas. Acha que os mortos não voltam. Foi ao médico, ao padre, mas não conseguiu melhorar. Eu acho que é mesmo o Alberto. Você acredita nisso?
Magali sacudiu a cabeça.
- Não sei. Pensando bem, acho que pode ser. Afinal, para algum lugar devem ir os que morrem na Terra. Meu irmão era cheio de vida, de projetos para o futuro. Era generoso,, não posso crer que tudo isso tenha se acabado quando aquelas balas o mataram. O espírito existe, eu sinto que isso é verdade.
- Você acha então que poderia ser ele?
- Sabemos tão pouco sobre essas coisas, mas por que não? Já li um pouco sobre isso e há até gente de muita cultura que acredita nisso.
- Eu pensei sempre que fosse coisa de gente simples, ignorante.
- Engana-se. Há cientistas muito interessados nesses assuntos. Já pensou se for verdade? Já pensou, por exemplo, que Alberto estaria vivo em algum lugar e que um dia poderíamos estar com ele, abraçá-lo de novo, matar as saudades?
Os olhos de Magali brilhavam expressivos, e Nair comoveu-se:
- É verdade. Seria bom reencontrar os que já morreram. Mas tenho medo de cultivar uma ilusão.
- Nós sabemos muito pouco sobre isso, porém se fosse verdade, explicaria tudo. A dificuldade de Mariazinha esquecer, a vontade de entrar em nossa casa, suas palavras ao ver-me, o sonho no qual ele contou que está vivo.
- É verdade. Estou toda arrepiada.
- Só não explica suas palavras, dizendo que está tudo errado.
- Tenho pensado muito nisso. Você tem certeza de que quem atirou no Alberto foi mesmo o seu motorista?
- Foi difícil acreditar. O Jovino sempre foi nosso amigo, nasceu em nossa casa, era tido como da família. As evidências eram contra ele.
- Eu sei. O revólver, a echarpe, mas ele jamais confessou. Sempre jurou inocência.
- É verdade. Mas, se não foi ele, quem foi? Afinal não houve roubo.
- Eu tenho minhas suspeitas. Mariazinha não acredita, mas eu acho que o Rino teve alguma coisa a ver com isso.
- A polícia não deu atenção ao caso. Mariazinha sequer o mencionou. Só o Jovino aventou essa hipótese.
- Ela foi ameaçada pelo Rino. Ele chegou a prometer dar uma surra no seu José caso ela contasse a polícia sobre a briga, ou sobre a paixão dele por ela.
- Ela concordou?
- Ficou apavorada. Tinha medo da polícia. Nunca havia entrado em uma delegacia. Depois, adora o pai. Não queria que ele sofresse.
- Que canalha!
- O Rino não presta. Continua perseguindo ela. Felizmente ela não o aceita. Para mim, ele é sem-caráter e capaz de tudo, até de matar! É rancoroso, prepotente.
Magali sentou-se novamente na cama.
- Isso faz sentido. Se o Jovino for inocente, está mesmo tudo errado. É preciso fazer alguma coisa, achar o verdadeiro culpado. A alma de Alberto não pode ter sossego enquanto não desfazer essa injustiça.
- Estou assustada. Você juntou todas as peças desse quebra cabeça. E agora, o que vamos fazer?
- Não sei... Tentar chegar à verdade. Você me ajuda?
- Mariazinha é para mim como uma irmã. Eu a estimo muito. Farei tudo por ela. Depois, odeio injustiças. Se esse moço está preso, inocente, avalio sua dor, seu sofrimento.
- É verdade! Tremo só em pensar nisso. Deus vai nos ajudar. Descobriremos tudo.
- Como? Tem uma idéia por onde começar?
- Não sei. Poderemos insistir com Mariazinha para ir ao Centro Espírita. É preciso escolher um bom lugar, sério, eficiente. Tentarei descobrir um. Possuo amigas que entendem dessas coisas... perguntaremos ao Alberto o que aconteceu. Se ele está mesmo querendo comunicar- se conosco, vamos dar-lhe uma oportunidade.
Nair abanou a cabeça pensativa:
- Mesmo que essa hipótese seja real, e ele se comunique contando a verdade, nós vamos precisar de algo mais. A justiça não vai aceitar nossa versão. Precisaremos de provas concretas.
- É mesmo. Descobrir a verdade será meio caminho andado, mas nós teremos que provar na justiça que o Jovino é inocente. Encontrar o verdadeiro culpado, fazê-lo confessar ou arranjar tantas provas que ele não possa negar a verdade.
- Que loucura! Será que estamos no caminho certo?
- Tudo leva a crer que sim. Porém, vamos investigar. Se o tal Rino ameaçou Mariazinha foi porque sua consciência não está muito limpa.
- Que tal é esse Jovino?
- O Jovino sempre foi muito eficiente. Ponderado, lustrava tanto o carro da família que ele parecia novo.
- Era invejoso, mau-caráter, deixou transparecer algum desagrado alguma vez?
- Nunca e foi isso o que mais nos surpreendeu. Jovino foi nosso companheiro nas brincadeiras da infância. Foi sempre meu amigo, me protegendo de tudo e de todos. Eu estava tão acostumada com ele, confiava tanto em suas palavras que jamais poderia acreditar que fosse capaz de matar meu irmão. Foi um choque tremendo para todos nós.
- E se ele for inocente?
- Pensando bem, eu gostaria muito que isso fosse verdade. O Jovino era como um irmão para mim.
- Imagino o que ele sofreu e deve estar sofrendo, acusado por um crime que não cometeu...
- Tudo são hipóteses. Podemos estar enganadas...
- Concordo. Contudo penso que é mais fácil um mau-caráter como o Rino cometer um crime do que um moço bom como o Jovino. Foi ele quem defendeu seus irmãos na noite da briga. Se ele quisesse, naquela noite, poderia ter deixado as coisas como estavam. Se não gostasse de seus irmãos teria feito de conta que não estava vendo e não os teria defendido. Se o fez, foi porque os queria bem. Assim sendo, não acho provável que tenha matado o Alberto um mês depois. Já experimentou perguntar a ele o que realmente aconteceu naquela noite? Magali abanou a cabeça.
- Nunca mais conversei com o Jovino. Minha família ficou muito revoltada contra ele.
- Se ele fosse culpado, seria o caso, mas se for inocente? Deram- lhe chance de explicar-se?
- Na polícia. Ele prestou depoimento, disse que naquela noite saiu preocupado com Alberto e não o encontrou. Voltou para casa de madrugada. Foi isso que o condenou, quando ele foi visto perto do local onde o corpo foi encontrado. A arma que ele portava, havia matado o Alberto. Encontraram também o cachecol. Como duvidar?
- Foram muitas evidências contra ele, só que o assassino bem pode ter roubado a arma e o cachecol, ali mesmo, perto do local do crime. Será que ele não saiu do carro uma vez sequer?
- É mesmo, nunca pensei nisso...
- Mariazinha vai demorar a voltar. Que tal se nós fôssemos visitar o Jovino, falar com ele?
- Não sei... nunca fui à penitenciária.
- Aos domingos eles recebem visitas. Podemos ir e falar com ele. Magali olhou-a um pouco assustada.
- Tem que ser escondido. Se alguém de casa souber, nem sei o que pode me acontecer.
- Se você não quer, posso compreender. Que seria útil, isso seria... Os olhos de Magali brilharam decididos.
- Mas talvez seja melhor esperar a volta de Mariazinha. Iremos ao Centro Espírita para confirmarmos se é mesmo o Alberto que está com ela.
- Você está com medo. Deve reconhecer que a única explicação lógica que temos para os fatos estranhos que têm acontecido, é essa.
- É verdade. Tem razão. Vamos agir. Haveremos de descobrir o que realmente aconteceu. Vou investigar algumas coisas e quando tiver as informações, voltarei para decidirmos o que fazer.
- Ótimo. Estarei esperando. Pode contar comigo para o que for preciso.
As duas despediram-se afetuosamente. Magali saiu pensativa e durante todo o trajeto de volta, quanto mais analisava os fatos, sentia aumentar suas suspeitas e a vontade de buscar a verdade. Se o Jovino fosse inocente, elas haveriam de descobrir.
Sentada na areia da praia, Mariazinha, pensativa,olhava o céu azul e sem nuvens. Um domingo, havia sol e muita gente ao redor, uns estendidos na areia, outros entretendo-se em jogos diversos e outros ainda entregando-se ao banho de mar.
Mariazinha sentia-se bem. Estava mais disposta, alimentava-se melhor e as cores haviam voltado ao seu rosto. Aqueles dez dias em Santos fizeram-lhe muito bem e sua mãe estava radiante. Ela dormia melhor e sem pesadelos, tanto que já acreditava haver recuperado a saúde.
De repente, foi arrancada de seus pensamentos. Uma bola atingiu- a nas costas e ela soltou um grito, mais de susto do que de dor. Virou- se e logo viu um par de pernas musculosas, mais atrás, um rosto moreno que abaixou-se até ela dizendo:
- Desculpe. Machucou?
Mariazinha estava irritada.
- Deviam tomar mais cuidado. Afinal, há tanta gente hoje aqui.
Alguém pode machucar-se.
- Sinto muito - respondeu ele. - Foi o Zezinho. Ele não fez por mal.
Mariazinha olhou mais adiante e viu um menino de uns nove ou dez anos esperando. Ela levantou-se.
Ele continuou:
- Está doendo muito?
- Um pouco.
- Não vamos mais jogar. Você tem razão, alguém pode se machucar.
- Pena que não tenha decidido antes...
Ele olhou-a e sorriu. Tinha belos dentes e uma covinha no queixo. Mariazinha também sorriu.
- Posso resolver isso já. Deixe-me ver...
Pegou-a pelo braço, virando-a de costas. De fato, havia uma mancha vermelha onde a bola batera. Antes que Mariazinha saisse da surpresa, ele friccionou o lugar várias vezes.
- É para fazer o sangue circular, - disse.
- Já estou bem - garantiu ela um pouco corada.
Ele chamou o Zezinho que se impacientava:
- Guarda a bola. Não vamos jogar mais.
O menino olhou contrariado, mas apanhou a bola e saiu.
- Meu nome é Júlio e o seu?
- Mariazinha.
- Vamos fazer de conta que estamos nos encontrando agora. Que o acidente com a bola não aconteceu.
- O que é fácil para você.
- Faz-me sentir melhor.
- Está certo.
Mariazinha gostou do rosto franco do moço, sua naturalidade. Teve a impressão de conhecê-lo há muito tempo. Foi fácil conversar com ele, o tempo passou com rapidez.
Ele morava em São Paulo e havia ido a Santos passar o fim de semana com os dois irmãos.
- Eu havia prometido ao Zezinho esse passeio se ele melhorasse na escola.
- Pelo jeito, ele melhorou.
- Muito. E eu tive que cumprir. Não vim com muita disposição, mas agora, acho que valeu a pena.
- Está um lindo dia. A praia é uma beleza.
- É verdade. Nós iremos embora hoje à noite, o que é pena. Você vai ficar?
- Vou. Ainda tenho uma semana de férias.
- Quer dizer que estará aqui no próximo domingo?
- Estarei. Iremos embora na terça-feira da outra semana. Agora devo ir. Mamãe me espera para o almoço.
- Onde você está?
- Em uma pensão aqui perto.
- Vamos até lá.
Foram andando lentamente, conversando animadamente. Ao chegarem à porta da pensão ele perguntou:
- Vai sair a tarde?
- Geralmente fico por aqui mesmo. Às vezes dou uma volta com mamãe.
- É bom saber. Até logo.
Ele saiu acenando um adeus e Mariazinha entrou na pensão. Sentia-se contente. Júlio era um moço bonito e muito simpático. Gostaria de voltar a vê-lo. Naquele instante a lembrança de Alberto estava muito distante.
— O ar da praia fez-lhe muito bem - comentou Isabel contente vendo a disposição da filha.
— É verdade. Conheci um moço muito simpático.
— Daqui mesmo?
— Não. Mora em São Paulo.
Isabel exultou. Rezava todas as noites pedindo a Deus que Mariazinha conhecesse outro moço. Acreditava que se isso acontecesse ela esqueceria o Alberto.
— Vai voltar a vê-lo?
— Não sei. Ele não disse nada.
As duas conversaram animadamente. Após o almoço, deitaram- se um pouco para descansar. Mariazinha dormiu com facilidade. Acordou mais de uma hora depois, descansada e alegre.
Levantou-se, arrumou-se cuidadosamente. Isabel observava com satisfação. Finalmente a filha estava curada.
— Onde vamos esta tarde? — perguntou.
— Dar uma volta, tomar um sorvete.
A mãe concordou. Saíram. As ruas estavam movimentadas e alegres. Foram andando lentamente pela avenida na beira da praia, conversando. Pararam em frente ao Cassino Atlântico.
— Vamos entrar? - propôs Mariazinha. - Nunca entrei em um cassino.
— Não é lugar para nós.
— A porta está aberta e tem gente entrando. Vamos ver como é. Um pouco contrariada, Isabel seguiu a filha que decidida, entrou.
Havia muita gente e elas olharam o belíssimo "show room", onde havia uma orquestra tocando, e as mesas estavam repletas. Depois passaram pelas salas de jogos, onde ainda se encontravam pessoas em trajes noturnos, mulheres com muitas jóias, ao redor das mesas, jogando.
Mariazinha se perguntava por que em plena tarde as pessoas estavam vestidas assim. Havia muita fumaça de cigarros e a maioria jogava carteado em silencio, enquanto a roleta girava, o número dito em voz alta, o ruído das fichas e das vozes na torcida dos jogadores.
Foi quando as duas saíam do cassino que Mariazinha ouviu a voz de Júlio:
- Você gosta de cassinos?
Ela voltou-se.
- Olá! Entrei para conhecer. Nunca havia entrado num. Esta é mamãe.
O moço apertou a mão de Isabel.
- Como vai?
- Bem - respondeu ela.
- Que tal o cassino?
- Lindo. Muita gente bem vestida, principalmente nas salas de jogo, em plena tarde, vestidas com trajes de noite.
- É que elas estão jogando desde ontem. A paixão pelo jogo é tanta, que nem vão embora. Emendam.
- Sem dormir?
- Muitos não sentem sono, alguns dormem algumas horas nas dependências do próprio cassino e voltam ao jogo. O cassino os trata muito bem. Dá-lhes comida e bebida quase de graça. O jogo cobre tudo.
- Não é uma vida sadia - comentou Isabel.
O moço riu bem-humorado.
- Não é mesmo. É ruim para a saúde e para o bolso. Muitos perdem dinheiro nesse vício.
Foram andando e Júlio convidou:
- Vamos tomar sorvete? Conheço uma sorveteria ótima.
Conversando agradavelmente, alcançaram a sorveteria onde se sentaram. Júlio era um rapaz alegre, educado, fazia tudo com naturalidade. Elas sentiam-se à vontade. As palavras fluíam em conversa animada.
Depois do sorvete, sentaram em um banco na beira da praia e na hora de voltar à pensão, Júlio acompanhou-as. Lá chegando, Isabel despediu-se do moço e entrou. Vendo-se sozinho com Mariazinha, ele estendeu a mão que a moça apertou, e ele conservou entre as suas.
- Vou voltar agora a São Paulo. Não quero perder você de vista.
Preciso do seu endereço.
Anotou tudo e voltou a segurar a mão dela.
- Só estarei de volta na outra terça-feira.
- Não esquecerei. Até logo.
- Boa viagem - desejou ela.
- Até breve - disse ele, levando a mão dela aos lábios, beijando-a com delicadeza.
- Até breve - repetiu ela sentindo uma onda de alegria invadir seu coração.
Quando entrou, Isabel comentou:
- Agradável, esse moço. Educado, boa companhia.
- Também acho. Gostei dele.
Isabel abraçou a filha com alegria.
- Estou feliz. Parece um bom moço.
- Por enquanto somos só amigos. Não ponha fantasias em sua cabeça.
- Que ele está interessado em você deu para notar. Isso não me surpreende. O que me deixa feliz é que você interessou-se por ele. Mesmo que não aconteça nada entre vocês, seu interesse demonstra que você está curada. Voltou ao normal.
Mariazinha sorriu animada.
- Tem razão, mamãe. Tudo passou e eu estou muito bem.
Os dias que se seguiram foram de calma e alegria. As cores voltaram ao rosto jovem de Mariazinha, e Isabel escreveu uma carta ao marido descrevendo a recuperação da filha. Queria que ele compartilhasse da sua alegria.
Mariazinha sentia saudades do pai, da amiga, mas, ao mesmo tempo, valorizava cada minuto de suas férias. A medida que o tempo passava e aproximava-se o dia do regresso, a moça comentava:
- Os dias passam muito depressa! Dentro em pouco teremos que voltar... Sentirei saudades destes momentos.
- Eu também. Tenho saudades de seu pai, de nossa casa. Voltar também vai ser bom. Principalmente porque você recuperou a saúde.
- Vou trabalhar bastante, fazer horas extras para juntar dinheiro. Faremos outras férias, viajaremos e traremos papai.
Isabel sorriu.
- Nossa alegria seria completa se ele estivesse aqui.
- Chegará o dia, se Deus quiser. Agora que já sentimos como nos fez bem essa viagem, voltaremos outras vezes. Seria bom se papai pudesse ter esse descanso. Ele merece.
Isabel sorriu feliz. Agora que Mariazinha estava bem, a alegria e o otimismo haviam voltado.
No domingo, Mariazinha foi à praia pensando no Júlio. O moço não lhe prometera voltar, mas dera a entender essa intenção. Perscrutou a praia com certa ansiedade. Júlio não estava.
Quando regressou à pensão para o almoço, sentia-se um pouco decepcionada.
- O Júlio não veio, mamãe — comentou ela.
Isabel balançou a cabeça.
- Naturalmente não pôde.
- Ou não quis. - disse ela pensativa.
- Nós não sabemos. Ele tem nosso endereço. Se estiver interessado, irá a sua procura.
- Gostei dele. Mesmo como amigo, gostaria de vê-lo.
Isabel sorriu.
- O que importa é que você está bem, quer fazer amigos, interessa-se por outros moços. Filha, estou muito contente. Você é moça bonita, boa, honesta, um dia aparecerá alguém que você vai amar e que a fará feliz.
Mariazinha sorriu.
- Também acho, mamãe. Quero gostar de alguém, esquecer as coisas tristes e encontrar a felicidade.
Na terça-feira, foi com misto de tristeza e alegria que elas arrumaram as malas para voltar.
A felicidade de José não tinha limites. Comprou guloseimas que Isabel gostava, pediu à vizinha que arrumasse tudo. Gostaria de não trabalhar nesse dia, poder ir esperá-las na estação, mas não podia faltar ao emprego.
Com impaciência, consultava o relógio imaginando o que elas estariam fazendo. Quando deu o sinal, foi o primeiro a sair e o mais rápido que pôde correu para casa.
Elas já haviam chegado, abraçaram-se comovidos. Fora duro para ele aqueles dias de solidão. Não se queixava. Mariazinha estava bem. Isso era o mais importante.
Conversaram animadamente. Estavam felizes. Nair foi abraçar a amiga e vendo-a tão bem e alegre, não mencionou a visita de Magali, nem as conclusões a que haviam chegado. Temia que Mariazinha se envolvesse de novo. Agora que tudo parecia esquecido, o melhor seria silenciar. Fora difícil para Mariazinha superar aquele drama. Não seria justo fazê-la voltar a ele.
Nair saiu da casa da amiga pensativa. Feliz pela melhora dela, vibrara ao saber que ela havia se interessado por outro rapaz, ainda que de maneira superficial. Ela estava voltando ao normal.
Contudo um pensamento a incomodava. Se o Jovino estava inocente, seria justo não fazer nada para libertá-lo?
- Não tenho nada com isso - pensava ela tentando banir esse pensamento. — Sequer posso fazer nada por ele!
Todavia, pensando no moço preso injustamente, não podia furtar-se a um aperto no coração. E o espírito do Alberto, estaria mesmo interessado em restabelecer a verdade? Ele existia mesmo ou tudo não teria passado de ilusão, sugestão?
Sentiu-se angustiada.
- Não vou mais me envolver nessa história — decidiu - Se Mariazinha esqueceu, está bem, devo dar graças a Deus.
Mas a insatisfação, a preocupação não a deixavam. Naquela noite, deitou-se, mas não conseguiu dormir.
- Vou rezar, - pensou.- Estou impressionada.
De fato, a conversa com Magali não lhe saía da lembrança e só quando o dia já começava a clarear foi que conseguiu adormecer.
Nos dias que se seguiram, Nair não falou com a amiga sobre o assunto, apesar de não conseguir esquecê-lo. Afinal, o que tinha com isso? Mariazinha estava bem e ela não queria entristecê-la. Precisava apagar a preocupação da cabeça definitivamente.
Magali voltou a procurá-la em casa. Perguntou por Mariazinha.
- Já voltou das férias?
- Já. Ela agora está bem. Conseguiu superar os problemas. - suspirou fundo e prosseguiu — não quero mais envolver-me com esse caso. Você sabe, Mariazinha pode piorar. Não é justo.
Magali olhou-a nos olhos e disse com voz firme:
- Nair, eu preciso de você! Eu também não quero prejudicar Mariazinha. Porém, desde que conversamos naquele dia, não consegui deixar de pensar no Jovino. Como poderemos esquecer? E se ele for inocente? Será justo deixá-lo lá, sem fazer nada, pagar por um crime que não cometeu?
- Esta é só uma hipótese. Não temos certeza de nada. Ele pode mesmo ser culpado.
- Pode. Mas por que o Alberto disse que tudo estava errado? Por que seu espírito não tem sossego no outro mundo?
Nair permaneceu alguns segundos pensativa depois disse:
-Agora que tudo passou, pode ter sido alucinação de Mariazinha. Nós podemos estar entrando em uma grande ilusão.
- Quando saí daqui, ia disposta a descobrir os fatos. Fui procurar a mãe de uma amiga, que é médium espírita. Relatei tudo e ela aconselhou-me a orar por ele. Queria que fôssemos às sessões no Centro Espírita.
- Por quê?
- Garantiu que Mariazinha tem mediunidade.
- O que é isso?
- Sensibilidade para perceber além dos cinco sentidos físicos. Ela pode perceber coisas que acontecem em outras dimensões da vida, ver pessoas que já se foram deste mundo, conversar com elas.
Nair sentiu um arrepio percorrer-lhe o corpo.
- Será que ela viu o Alberto mesmo?
- Dona Dora diz que sim.
- Mesmo assim, não devemos envolvê-la agora que está bem.
- Concordo. Mas nós duas podemos fazer alguma coisa.
- Era ela quem precisava ir ao Centro Espírita. Nós não temos nada a fazer lá.
- Se o Alberto quiser comunicar-se comigo, terá oportunidade. D. Dora emprestou-me o Livro dos Espíritos. Estou encantada. Esse livro explica todas essas coisas com muita clareza. Lendo-o, estou convencida de que era o Alberto mesmo que estava com Mariazinha. Quando a gente morre, não acaba tudo. Nós continuamos a viver em outro mundo. Não é maravilhoso?
- É verdade.
- Agora, tudo ficou mais claro para mim. O Alberto continua vivo, porém, não se conforma com a prisão do Jovino. A cada dia que passa, mais eu acredito em sua inocência.
- Mesmo assim, o que nós podemos fazer? Quem acreditará em espíritos? Nada conseguiremos, pode crer.
Magali segurou o braço da amiga com força enquanto dizia:
- Deus nos ajudará. Não consigo tirar o Jovino da cabeça. Pensando bem, ele nunca cometeria tal crime. Era um moço bom, amigo.
- Agora é tarde para fazer qualquer coisa.
- Você não se comove com a prisão de um inocente?
- Claro. Já passei noites sem dormir pensando nessa possibilidade. Porém, nada podemos fazer. Ele já foi julgado, condenado. Não temos nenhuma prova de sua inocência. Como vamos ajudar?
- Resolvi visitá-lo na penitenciária. Queria que fosse comigo.
- Sua família sabe?
- Claro que não. A visita é no domingo. Podemos ir até lá tentar falar com ele. Quero que nos conte como tudo aconteceu.
Nair sentiu um friozinho correr-lhe pelo corpo. Apesar do medo que sentia resolveu:
- Irei com você. Vamos deixar Mariazinha fora disto.
- Está bem. Farei o que você quiser. Agradeço sua ajuda. Sozinha eu teria medo de ir. Vamos rezar muito, pedir a ajuda de Deus nesses dias que faltam.
- Está certo.
Passava um pouco das quatorze horas no domingo, quando as duas moças deram entrada no presídio. Passaram pela revista, Nair abriu o pacote com algumas frutas que trazia. Magali não comprara nada para o Jovino, porém Nair pensava que devia levar alguma coisa.
Havia muita gente entrando e depois de passar pela revista, encaminharam-se para outra sala onde davam o nome do preso que queriam visitar.
Magali deu o nome do Jovino e foi convidada a sentar-se e esperar. Os minutos passavam e nada. Depois de quinze minutos, foi que o encarregado chamou-as e esclareceu:
- O Jovino não quer receber visitas. Ele não virá.
As duas sentiram-se decepcionadas.
- Por favor, - pediu Magali - é muito importante. Eu preciso vê-lo, falar-lhe. Diga que é a Magali. Ele virá, tenho certeza. Por favor!
O encarregado, vendo a aflição dela, concordou.
- Está bem. Vou falar com ele de novo.
- Por favor! Ficarei muito grata.
Novamente sentaram-se a espera, quando, depois de certo tempo, ele voltou e elas levantaram-se.
- É inútil. Ele não quer vê-las.
- Disse-lhe o meu nome?
- Disse. Mas não adiantou.
As duas sentiram-se desanimadas.
- Como está ele? - indagou Magali.
- O Jovino é muito fechado. Arredio. Não faz amizade com ninguém. Vive calado. É uma pessoa esquisita. Não se interessa por nada.
- Ele não era assim — comentou Magali pensativa - era alegre, disposto, animado.
- Pois não parece - tornou o funcionário. - Aqui é calado, sério, nunca sorri. Aceita tudo da disciplina, da direção da Casa, mas que nenhum outro preso mexa com ele. Agride sem pena. Reage violentamente. No começo, andou surrando alguns mais abusados. Agora, os outros têm medo dele. Ele não mexe com ninguém mas não mexa com ele.
- Ele mudou - disse Magali. - Estamos interessadas em ajudá-lo. Gostaríamos muito de vê-lo.
- Sinto muito. Se eles não querem ver as pessoas, não podemos obrigar. É um direito deles.
- Dê-lhe estas frutas - pediu Nair.
- Vou escrever um bilhete, poderá entregar-lhe por favor?
- Certamente. - ele pegou as frutas. - Quando estiver pronto, avise-me.
Magali conseguiu uma folha de papel e escreveu: "Jovino, vim ver você. Tenho pensado muito em tudo quanto aconteceu. Agora, custa- me a crer que você tenha cometido esse crime. Inquieta-me pensar que você pode ser inocente. Desejo ouvir a verdade de seus lábios. Gostaria que me contasse tudo. Voltarei no próximo domingo. Não se recuse a ver-me. Peço-lhe, por favor! Magali"
Mostrou a Nair, dobrou e entregou-o ao encarregado. Saíram pensativas. Nair objetou:
- Pensei encontrar o Jovino ansioso para ver você. Ele não era tão seu amigo?
- Era. Custo a crer que ele seja esse que o guarda falou. Era calmo e bom. Nunca agrediu ninguém, mesmo quando Rui o provocava. O Rui sempre foi briguento. Quando eram meninos, Rui sempre abusava do Jovino. Escondia suas coisas, caçoava quando ele olhava para alguma moça, implicava com suas saídas,seus horários, enfim, era difícil de lidar.
- E ele nunca reagiu?
- Ele não era submisso, porém sempre conservava a calma. Jamais foi violento.
- Pelo que ouvimos, ele mudou. Será que estamos certas? Será que ele é inocente mesmo? Se ele reage com violência, pode bem ter atirado no Alberto.
Magali guardou silêncio por alguns instantes, depois disse:
- Não creio. Se ele mudou foi agora, com a injustiça, com a convivência dos outros presos. Não deve ser fácil conviver com eles.
Contam-se coisas terríveis dentro dos presídios.
Nair sacudiu a cabeça.
- Não sei se estamos fazendo bem nos envolvendo neste caso. Ele pode ser culpado mesmo.
- Pode. Mas enquanto houver uma possibilidade dele ser inocente, não desistirei. É um caso de consciência. Enquanto eu não tirar as dúvidas, não vou ter paz.
Combinaram voltar ao presídio no domingo seguinte. Contudo, Jovino novamente recusou-se a recebê-las. Magali deixou outro bilhete, as frutas que Nair levara e retiraram-se decepcionadas.
- Ele não quer nada mesmo - concluiu Nair - melhor será desistirmos.
Magali abanou a cabeça.
- Eu não vou desistir.
- O que vamos fazer? Ele não quer nos ver.
- Não sei. Vou pensar. Hei de encontrar um jeito. Você vai ver.
- O que você decidir, eu aceito. Já entrei nisso mesmo...
- Obrigada, Nair. Você tem me ajudado muito.
Despediram-se. Magali sentia-se indecisa. Não sabia como
prosseguir. Se Jovino não cooperasse, o que poderia fazer?
Chegou em casa preocupada, pensativa. Resolveu procurar a mãe de sua amiga Dalva, D. Dora e pedir conselho.
Sentada em agradável sala de estar, Magali contou o que lhe ia no coração. Dora ouviu-a com interesse. Ela concluiu:
- Estou desorientada. Não sei o que fazer. Não tenho certeza da inocência do Jovino, contudo, a dúvida me perturba, porque também não tenho certeza da sua culpa. Estarei sendo precipitada?
- Não, minha filha - respondeu Dora com calma. - A dúvida justifica plenamente seu desejo de saber a verdade. Se ele for inocente, algo deve ser feito em seu favor.
- É isso! A senhora compreendeu meu ponto de vista. Em casa, eles não querem sequer tocar neste assunto. Não duvidam de que Jovino seja o culpado. Sozinha, está difícil conseguir saber a verdade, provar o contrário.
- Sozinha, seria mesmo difícil. Porém, você não está só. Além de Nair, há o próprio Alberto, que me parece interessado em mostrar a verdade.
- Mas ele está morto. Não posso falar com ele.
- Se realmente ele deseja comunicar-se com você, se o Jovino for mesmo inocente, se ele puder libertar-se dessa prova dura a que foi submetido, tudo se esclarecerá. Deus nos ajudará.
Magali olhou-a admirada:
- Se ele puder libertar-se? Se ele for inocente, seria injusto permanecer preso. Deus não haveria de permitir.
Dora fixou Magali com seriedade quando respondeu:
- Diante da justiça de Deus, se ele fosse inocente, não teria sido preso.
Magali arregalou os olhos.
- Tem certeza de que ele é culpado? E os erros judiciários? Quem é preso sempre é culpado? Nunca leu nos jornais os enganos e as injustiças que se têm cometido neste mundo?
- Você não me compreendeu. Não disse que o Jovino é culpado pela morte do Alberto. Estou mais inclinada a crer que ele esteja inocente desse crime.
- E então?
- Mas como ele foi preso, acusado, as evidências eram contra ele, sabendo que Deus é justo e não cai uma folha da árvore sem a sua permissão, temos que convir que de alguma forma ele fez jus a lição que está recebendo. Talvez em vidas passadas, esteja a resposta do que está lhe acontecendo agora.
Magali estava admirada.
- Não será injusto sofrer agora por algo que aconteceu em outra vida da qual agora ele não se lembra? Que vantagem teria? Deus seria vingativo?
Dora sorriu. Gostava da franqueza de Magali que sempre ia direto ao ponto sem importar-se com o convencional.
- Quando praticamos uma ação, adequada ou não, acionamos energias, interferimos nos ciclos da vida, desorganizamos programas alheios, colocamos nossa atuação, nossos atos, impondo aos outros nossa forma de ser. É uma escolha nossa. E a vida responde, de acordo com as nossas crenças, à contribuição que lhe demos, à reação que provocamos nos outros, daqueles que envolvemos diretamente, a fim de educar-nos frente ao desenvolvimento de nossa responsabilidade de espíritos eternos, tornando-nos mais lúcidos e conscientes. Essa resposta nos chegará, seja onde for que estivermos e embora a bondade divina tenha nos apagado da memória a recordação do passado, vivenciar determinadas experiências, nos vai ensinar a perceber coisas que ignorávamos e que permitiram ou contribuíram para que nós praticássemos aquelas ações que foram causa dos nossos sofrimentos.
- É difícil compreender...
- Não é. Se Jovino não matou Alberto, e ele foi julgado culpado, preso, por certo deve estar sendo justiçado por outro crime, cometido em vidas passadas. Ninguém vai preso inocente. Deus não permitiria. É uma lição que é ministrada só a quem necessita aprender.
- Os erros judiciários estão certos? Neste caso, devemos deixar o Jovino continuar preso?
- Se podemos compreender por que Deus permite que uma pessoa seja punida, sendo inocente do crime pelo qual é acusada, não quer dizer que devamos ser coniventes com o erro. Quem somos nós para conhecer toda a verdade e julgar de fato a culpa de cada um? Nosso papel será sempre de buscar a verdade. De ajudar as pessoas. De coibir os enganos, impedir os erros judiciários e de sempre que houver dúvida, jamais condenar. Nossa consciência nos diz que essa é a atitude correta.
- Então, estou certa.
- Claro, minha filha! O que eu queria que entendesse é que o fato do Jovino não haver matado seu irmão, não vai aparecer. Você não vai conseguir as provas materiais de que precisa para livrá-lo da prisão, se ele não estiver liberto diante da justiça de Deus. Se a lição que a vida preparou para ele não houver sido assimilada, se seu espírito ainda necessitar ficar ali, nós não vamos conseguir libertá-lo.
- Nesse caso, sinto-me impotente. Como lutar contra forças tão desiguais?
- Nós não vamos lutar contra. Vamos a favor. Vamos nos unir com Deus. Você não tem nenhuma prova da inocência dele para reabrir o processo. Sequer sabe como encontrá-la. Contudo, o espírito do Alberto tem procurado ajudar.
- Agora até ele parece que desistiu. Mariazinha não sentiu mais nada.
- Isso pode ser temporário. No momento você quer ver Jovino, falar com ele. Eu penso que esse seja o caminho certo. Ele está ferido, magoado, precisamos tocar seu espírito.
- Como?
- Deus sabe. Gostaria que me acompanhasse ao Centro Espírita que eu freqüento. Buscaremos orientação e ajuda. Por certo encontraremos recursos para chegar ao Jovino.
- Está bem. Irei. Só que em casa ninguém deverá saber. A senhora sabe, eles não gostam dessas coisas. Odeiam Jovino, não se pode tocar em seu nome.
- Infelizmente. Fique tranqüila. Guardaremos segredo. Você poderá ir na quinta-feira à tarde?
-Sim.
Quando saiu da casa de Dora, uma hora mais tarde, Magali sentia-se mais calma. D. Dora tinha razão, era preciso esperar. Se Deus ajudasse, se Alberto realmente estivesse interessado, ele teria ocasião de se manifestar.
Magali chegou em casa passava das sete. Aurora esperava-a com impaciência.
- Até que enfim! Onde esteve até esta hora?
- Em casa de Dalva.
- Você sabe que temos horário. Atrasamos o lanche a sua espera. Seu pai não tolera atrasos.
- Desculpe, mamãe. Não precisavam esperar-me, não estou com fome.
- Agora não vai fechar-se no quarto como sempre. Esperamos para o lanche. Seja educada e pelo menos sente-se à mesa conosco. Nem parecemos uma família. Agora, cada um vai para seu lado e eu fico só. Seu pai, atendendo clientes fora de hora, não agüento mais. No tempo do Alberto, tudo era diferente.
Magali olhou a mãe sem comover-se. Estava habituada as suas reclamações. Teve vontade de dizer-lhe que era por isso que a família não encontrava mais prazer em estar reunida. Não havia alegria. Só queixas, acusações, ressentimentos. Magali percebia que o pai entregara-se mais ao trabalho para fugir daquele ambiente sempre triste e desagradável. Porém, não adiantava falar com Aurora, ela não aceitava. Não percebia a verdade. Sempre que pretendia tocar no assunto com ela, provocava uma avalanche de queixas, justificativas para o sofrimento, acusações para todos.
Olhando-a, Magali sentiu o quanto ela estava enganada. Como fazê-la enxergar?
Em outros tempos, teria argumentado, tentado dizer o que pensava, mas naquela noite, estava cansada, interessada em pensar nos últimos acontecimentos. D. Dora havia lhe dado o livro "O Evangelho Segundo o Espiritismo". Ela embrulhara-o cuidadosamente, colocando-o entre os jornais para que ninguém o percebesse. Estava ansiosa para folheá-lo. Teve que concordar com a mãe. Se queria ficar sossegada, seria melhor tomar lanche.
- Está bem, mamãe. Vou lavar-me e já desço. Pode servir.
Aurora olhou a filha admirada. Não esperava tanta passividade.
- Melhor assim - pensou.- Está na hora dela tornar-se mais comportada. Afinal, já é uma moça.
Magali foi para o quarto, escondeu o livro embaixo do colchão, lavou as mãos e desceu para a copa onde os demais já haviam se sentado ao redor da mesa.
Depois de um "boa noite papai" e um "olá, Rui", Magali sentou-se. O dr. Homero resmungou um "boa-noite" e continuou a servir-se em silêncio. Aurora sentou-se, olhando-os com tristeza. Fundo suspiro escapou-se-lhe do peito. Precisava conformar-se. Agora, as reuniões de família seriam sempre assim. Nunca mais a alegria voltaria a sua casa.
Não conseguiu conter as lágrimas.
O dr. Homero baixou mais a cabeça sobre o prato, Rui parecia interessado em passar manteiga no pão, e Magali procurou comer mais depressa para poder ir para o quarto.
O silêncio era opressivo. Aurora não suportou. Rompeu em soluços e levantou-se da mesa, indo refugiar-se no quarto. Fundo suspiro escapou do peito do dr. Homero.
Por que havia ficado em casa? Não agüentava mais aquele ambiente. Ele era de carne e osso. Precisava esquecer a tragédia. Alberto era o seu orgulho. Mais inteligente, mais bonito do que Rui. Sentia-se revoltado com sua morte de forma tão brutal. Porém, agora que tudo estava consumado, o que poderia fazer? O culpado estava preso e nada que fizesse poderia devolver a vida do filho.
A dor era grande, todavia ele sentia que precisava esquecer. Seus nervos não suportavam mais a lembrança do crime. Mergulhara no trabalho para fugir a sua dor e isso o ajudara um pouco. Quando estava trabalhando, esquecia suas preocupações. Contudo, ao chegar em casa, a revolta, a angústia, voltavam. Ele não acreditava mais em Deus.
Se ele existisse - pensava no auge de sua dor - não teria permitido que seu filho morresse daquela forma.
O mundo era dos maus, dos perversos. Sentia-se agitado, nervoso, insone, revolvia-se no leito sem poder conciliar o sono, percebendo que Aurora também não tinha um sono tranqüilo, apesar dos tranqüilizantes que a obrigava a tomar.
Havia momentos em que ele temia enlouquecer. Não agüentava mais aquele ambiente triste, opressivo. Terminou de comer rapidamente e levantou-se. Dentro de alguns minutos voltou à copa. Vestira o paletó e apanhara o chapéu que mantinha entre os dedos.
- Preciso sair, - disse.
- Mamãe está em crise, - argumentou Rui um pouco irritado. – Não será melhor socorrê-la?
Homero abanou a cabeça.
- Não vai adiantar. É melhor deixá-la desabafar. Sua dor é imensa, o que poderemos fazer?
Magali nada disse. Se pudesse, também sairia dali, iria respirar um outro ar. Compreendia o pai e percebia que ele estava chegando ao limite do que podia suportar.
Vendo-o sair, Rui considerou:
- O lugar dele era ao lado dela, confortando-a. Ele não pode abandoná-la nesta hora.
- Mamãe precisa reagir. O Alberto morreu, todos sofremos muito com essa tragédia. Papai adorava Alberto. Tinha orgulho dele. De certa forma, era seu predileto. Está sofrendo muito também. Mamãe é que precisava confortá-lo.
Rui olhou-a admirado.
- Ela é mulher, frágil, a obrigação é dele. O homem precisa apoiar a mulher.
- E a mulher ao marido. Mamãe está sendo egoísta, pensa só na sua dor e se esquece de todos nós.
- Não seja injusta.
- É verdade. Todos sofremos, mas a vida continua e não há como trazer o Alberto de volta. Por que agora infelicitar toda a família? Por que viver na tristeza, sem pensar que nós todos temos direito à felicidade, à alegria e ao bem-estar?
- Você é que é egoísta. Como pode dizer uma coisa dessas? O amor de mãe é sagrado!
- Eu sei. Mas de que adianta chorar por uma coisa que não tem remédio e esquecer que ainda tem outros filhos que deve amar, um marido que é um ser humano e também precisa de atenção e de amor?
- Mamãe não está em condições de entender isso. É preciso apoiá-la.
- Ao contrário. Se a apoiarmos, ela jamais sairá dessa mágoa. Jamais enxergará o quanto está errada e arriscando-se a perder o que ainda lhe resta de afeto e que está em suas mãos agora.
- Você é criança e não entende dessas coisas. Mamãe nunca nos vai perder.
Magali olhou-o séria.
- Se ela cultivar aqui esse ambiente de tristeza, papai é o primeiro que se afastará. Ele não agüenta mais. A cada dia fica menos em casa. Eu, por minha vez, me isolo no quarto e espero encontrar um homem para casar e sair daqui para sempre. Você, eu percebo que também não pára em casa. O ar está pesado e só nos sentimos bem fora.
Rui não se deu por achado.
- Esse clima vai passar. Tudo vai melhorar. Não vai acontecer nada disso.
- Se mamãe reagir, pode ser. O clima do lar depende quase sempre da mãe.
- Você é muito fria - disse ele. - Vou ter com ela, confortá-la.
- Faça como quiser.
Magali foi para o quarto. Deitada no leito, pensava. Sentia pena do sofrimento da mãe, mas entendia que ela precisava sair daquela posição. Muitas mães haviam passado por essa perda e conseguido refazer a vida. A morte é lei da natureza e é irreversível, ainda que seja antes do que se espera.
Lembrou-se do livro. Fechou a porta à chave e apanhou-o. Deitou- se e abriu-o ao acaso e leu: "Causas anteriores das aflições". Interessada, mergulhou na leitura desse trecho.
Mil perguntas afluíam-lhe à mente. Se Jovino, embora fosse inocente desse crime, estava preso por atos cometidos em outra existência que teriam ficado impunes, por que o Alberto teria morrido daquela forma?
Se Deus não erra, e se o Alberto nesta vida não havia cometido falta grave, sua morte estaria ligada a problemas de vidas passadas? Sua morte teria tido um motivo justo?
Ela não havia justiçado apenas a ele. Toda a família sofria por isso. Sua mãe sofria, no seu entender, até mais do que ele. Estariam todos também respondendo por esses problemas de vidas anteriores? Estaria lá, a verdadeira causa de tantos sofrimentos do mundo, das tragédias, das calamidades, das doenças que atingem a humanidade?
Magali sentou-se na cama admirada. Se isso fosse verdade, era fenomenal! Conseguiria resolver todos os problemas e indagações que há séculos envolviam a humanidade e seu senso de justiça.
Deus, dentro desse contexto, aparecia em toda sua glória dando a cada um segundo suas obras, como dissera Jesus. Era extraordinário! Por que essa descoberta não era espalhada pelos quatro cantos da Terra?
Magali reabriu o livro, sentindo aumentar seu interesse. Quanto mais lia, mais identificava-se com seus ensinamentos. Era dessa forma que ela sempre havia pensado, embora de maneira pouco precisa.
Lágrimas apareceram em seus olhos, diante de certos conceitos que lhe falavam ao coração. Sentia que acabava de encontrar Deus. Não um Deus distante e circunscrito a templos, religiões, mas um Deus verdadeiro, atuante, o Deus vivo que Jesus mencionara.
Apesar da euforia da descoberta, Magali sentiu descer sobre ela um sentimento de paz. Guardou o livro no esconderijo e sentindo uma alegria nova dentro do coração, adormeceu.
Foi com o coração aos saltos que Magali entrou no Centro Espírita, ao lado de Dora e de Dalva. Apesar de desejar conhecer e dos motivos que a levavam até lá, estava um pouco receosa. Imaginava um lugar misterioso, escuro, cheio de símbolos, como em certos filmes americanos que havia assistido, onde os médiuns apareciam vestidos de negro, falando com voz cavernosa.
Surpreendeu-se ao entrar na sala agradável, muito limpa, com as paredes pintadas de azul-claro, tendo uma mesa grande rodeada de cadeiras, onde havia já algumas pessoas sentadas e um pouco além, cadeiras dispostas em fileiras. Sobre a mesa, um vaso cheio de flores, uma bandeja contendo uma jarra com água e alguns copos.
O ambiente era alegre, acolhedor. As pessoas conversavam em voz baixa e Dora a cada passo encontrava amigos a quem abraçava com prazer.
Magali sentiu-se bem ali. Onde estavam os "loucos" que sempre ouvira sua mãe mencionar? Onde os charlatães, os endemoninhados, os ludibriados pelo espírito do demônio que freqüentavam o Espiritismo?
Aquelas pessoas não se assemelhavam a nada disso. A grande maioria trazia um sorriso nos lábios, olhos brilhantes de alegria e muito carinho entre si.
Dora colocou as duas moças sentadas na primeira fileira de cadeiras dizendo a Magali:
- Não se preocupe com nada. Ore, peça a Deus que nos ajude. Lembre-se de Alberto e de Jovino.
Magali concordou. Sentia-se emocionada. Percebia o ar diferente ali dentro, como que uma brisa fresca, leve e gostosa.
Dora sentou-se à mesa e dentro de mais alguns instantes fez-se silêncio e uma senhora, que dirigia a reunião, levantou-se e fez sentida prece.
Magali sentiu lágrimas virem-lhe aos olhos. Apesar da sala fechada e repleta, ela sentia uma brisa leve, agradável envolvê-la e uma sensação de grande bem-estar.
Depois, foi aberto ao acaso o livro "O Evangelho Segundo o Espiritismo", e ela leu: "Perda de pessoas amadas. Mortes prematuras".
Magali sentiu crescer sua emoção. Aquela página respondia a muitas das indagações que lhe iam na alma. Terminada a leitura, ela fez curta explanação, depois passou a palavra para as outras pessoas sentadas ao redor da mesa e algumas delas também, cada uma por sua vez, comentou a lição da tarde. Depois a dirigente pediu prece e concentração, passando a palavra aos espíritos presentes que quisessem manifestar-se através dos médiuns.
Magali sentiu aumentar a emoção. Alberto estaria ali? Iria reencontrar o irmão?
Um médium começou a falar sobre as dificuldades que logo após a morte, os espíritos encontram para libertarem-se do magnetismo do lar, dos familiares, dos amigos. Considerou que as lamentações, as queixas e o inconformismo dos familiares, são como polvos que em forma de energias viscosas, tentam impedi-los de seguir o novo destino, atraindo-os para o lar, onde prolongam indefinidamente seus sofrimentos, atrasando sua libertação e seu equilíbrio.
Magali pensava em seu próprio lar, sua mãe, seu pai e até o Rui, conservando a mágoa, o pessimismo, a revolta. Estariam com isso atormentando o espírito de Alberto? Estariam aumentando os seus sofrimentos?
Quando a médium acabou de falar, outro espírito manifestou-se através de outra pessoa. Desta vez para falar sobre a justiça dos homens e a justiça de Deus. Acabou pedindo a todos que se sentiam injustiçados pelos homens que se entregassem a Deus, e esperassem em sua justiça que nunca falha, embora muitos ainda não consigam percebê- la de pronto, porquanto ela age no íntimo de cada ser, à medida em que ele se encontra pronto para aprender a lição.
A confiança em Deus é fundamental, porquanto só ele tem poderes para saber o que cada um precisa passar para aprender.
Mais alguns espíritos se manifestaram e a sessão foi encerrada. Apesar de sentir-se muito bem, Magali ficou um pouco decepcionada. Esperava que Alberto se comunicasse. Se ele estava tentando há tanto tempo, por que não o fizera ali, onde tudo era favorável?
Dora abraçou-a com carinho e considerou:
- Você esperava que Alberto falasse, dissesse tudo sobre o crime, confirmasse a inocência de Jovino e indicasse os meios de libertá-lo.
- É verdade. Eu esperava.
Dora sorriu.
- Isso seria uma interferência indevida nos fatos e jamais seria permitido pelos espíritos superiores.
- Por quê?
- Porque se a vida dispôs as coisas assim como estão, aproveitou os acontecimentos para preparar lições a todos os envolvidos, anular tudo isso seria prejudicial. É preciso que os fatos ocorram normalmente. Que as situações se transformem com aproveitamento de todos e a superação de suas dificuldades.
- Quer dizer que não adianta fazer nada? Teremos que esperar? Dora abanou a cabeça.
- Não disse isso. Ao contrário. As mensagens de hoje deram a você preciosa orientação sobre as primeiras providências a serem tomadas no caso.
- Como assim?
- Em primeiro lugar, o Evangelho mostrou que a morte não é uma desgraça irreparável. Que quando ocorre prematuramente, pode ser até uma libertação para aquele que não mais precisa estar recluso no corpo de carne. Depois, os espíritos nos mostraram as conseqüências da falta de compreensão dos familiares. Pelo que sei, esse é um campo em que você vai precisar lutar muito para conseguir fazer alguma coisa.
- É verdade. Principalmente minha mãe. Ela não se conforma.
- Ela não sabe que a vida continua. Que Alberto está vivo.
- Meu pai, agora, sequer crê em Deus...
- Eis aí um trabalho importante que você pode desenvolver. A falta de fé é responsável por grande parte dos sofrimentos humanos.
Magali suspirou.
- Eu não havia percebido tudo isso. Sei que é preciso fazer alguma coisa para ajudar os meus. Mas não sei o que é. Eles não aceitariam o Espiritismo. Sequer posso contar que estive aqui.
Dora alisou os cabelos de Magali com carinho.
- Não cultive a ansiedade. Ela sempre é prejudicial. Uma das mensagens nos pediu para confiar na justiça de Deus. Ore, envolva os seus familiares em pensamentos de amor, fé, esperança. Prontifique-se a ser instrumento de Deus, dentro do seu lar, a favor do que ele determinar e verá que as coisas começam a acontecer para melhor.
- A situação em casa está insustentável. Ninguém agüenta mais as lamentações, a dor, a tristeza.
- É urgente quebrar esse círculo vicioso. Todos os dias, faça suas preces, leia o Evangelho, medite, confie em Deus.
- Farei isso - concordou Magali. - Esperei tanto que Alberto viesse!
- Não é tão simples como pode nos parecer. As comunicações entre nós e eles obedecem a determinadas condições físicas, nem sempre favoráveis. Depois, ele pode não haver obtido permissão. Em sessões organizadas, há muita disciplina. Cada Centro Espírita tem seus dirigentes espirituais que com muito critério conduzem os acontecimentos. Você pode perceber que, embora o Alberto não tenha se manifestado pessoalmente, suas indagações foram respondidas, seus problemas estudados e eles dispensaram grande cota de tempo com seu caso.
- Isso é verdade. Seria muita coincidência.
- Foi programado. Ninguém a conhecia aqui, não avisei que viria, não sabem dos seus problemas. Logo, foram os espíritos que conhecem o seu caso, que dispuseram tudo.
- E quanto ao Jovino? Não disseram nada.
- Coloquei seu nome no caderno de preces. Ele está sendo atendido. Por que não tenta visitá-lo de novo?
- Acha que me receberá?
- Não sei. Vamos orar, pedir, quem sabe... tudo pode acontecer.
Magali chegou em casa pensativa. Aquele mundo novo, empolgava-a. Sentia vontade de contar a todos, de dizer à mãe que Alberto estava vivo e que ela não devia chorar por ele.
A casa estava em penumbra e não havia ninguém. Sua mãe estaria no quarto com certeza. Recolheu-se. Estirou-se no leito. Precisava pensar! Tantas coisas passavam pelo seu pensamento!
Alberto estava vivo, em outra dimensão da vida. Gostaria de vê-lo feliz. Branda sonolência a envolveu, e Magali adormeceu.
Sonhou que estava sentada na sala de estar e que Alberto estava junto a seu lado no sofá. Tudo parecia-lhe natural e conversavam animadamente. Até que ela, de repente, se lembrou:
- Alberto, você morreu!
- É mentira, eu estou aqui.
Aproximou-se e beijou-a na face. Magali acordou sobressaltada, sentindo ainda o beijo do irmão. Passou a mão pela face e disse:
- Que saudade!
Aquele beijo fora tão real que ela instintivamente olhou ao redor procurando pelo Alberto.
- Foi sonho - murmurou.
Sentiu viva emoção. Aquele havia sido um sonho diferente. Estaria sugestionada? Teria mesmo estado com ele?
Levantou-se rápida, abriu a porta do quarto e desceu as escadas.
Aurora encontrava-se na cozinha.
- Mamãe, mamãe, estive com Alberto! - disse Magali com euforia. Aurora olhou a filha assustada. Estaria em seu juízo perfeito?
- Estive com ele, mamãe. Ele disse que está aqui!
- Não seja maluca. Seu irmão está morto e os mortos jamais voltam.
- Pois ele voltou. Ele não está morto, ele continua vivo!
- Você sonhou. Teve uma alucinação.
Magali abanou a cabeça:
- Ele estava sentado no sofá da sala e eu também. Conversávamos e eu não lembro sobre o que. De repente eu lembrei que ele havia morrido e disse a ele: "Você está morto", e ele respondeu: "É mentira, eu estou aqui", e deu-me um beijo no rosto. Acordei sentindo esse beijo. Foi ele mesmo. Seu espírito veio aqui. Eu sei que é verdade.
Aurora estava boquiaberta. Não sabia o que dizer. Várias vezes desejara sonhar com ele, vê-lo ao menos, mas nunca conseguira.
- Os sonhos são produtos dos nossos desejos. Freud já disse isso. Tanto desejamos uma coisa que sonhamos com ela.
Magali abanou a cabeça.
- Não é verdade. Eu estive com Alberto. Ele me beijou.
- Você está impressionada.
- Estou porque senti sua presença. E se for verdade? E se a vida continuar de alguma forma depois da morte? E se Alberto estiver vivo?
Aurora abanou a cabeça negativamente.
- Deus sabe como eu daria minha vida para que isso fosse verdade. Mas é impossível! Quem morre jamais volta. Você sonhou, nada mais. Ponha na sua cabeça que Alberto está morto, e nunca mais o veremos.
- Você diz que tem fé! Não acredita que haja um outro mundo para o qual vão todos os que morrem?
Aurora olhou-a triste.
- Ilusão. Alucinação. Vontade que isso seja verdade. É duro aceitar o "nunca mais".
- E se for verdade? E se o espírito de Alberto estiver vivo depois da morte? E se ele estiver aqui, vendo você chorar e sofrer, acha que não ficará infeliz com isso?
- Um filho jamais ficaria infeliz com o amor de sua mãe. O melhor é você tirar essas fantasias da cabeça. Vão fazer-lhe mal.
- Seria bom que você esquecesse um pouco a tragédia e melhorasse o ambiente da nossa casa. O Alberto morreu e não há nada a fazer quanto a isso, mas nós estamos aqui, vivos e precisamos esquecer.
Aurora olhou a filha revoltada.
- Jamais esquecerei o que aconteceu. Minha dor não cicatrizará nunca. Ele era seu irmão, como pode ser tão fria?
Magali abraçou a mãe com carinho.
- Engana-se. Eu adoro o Alberto. Sofro sua ausência, mas esta tristeza, este clima de tragédia, está fazendo mal a todos nós, inclusive ao Alberto. Dizem que chorar, lamentar-se causa sofrimento ao morto, sem falar do mal que faz aos vivos.
Aurora indignou-se:
- É fácil falar quando não se viveu este drama. Meu consolo é chorar. Jamais me conformarei. E você, se amasse mesmo seu irmão, não diria todas essas besteiras.
Magali desanimou. Tudo quanto pudesse dizer não iria modificar o pensamento de sua mãe. Apesar disso, ainda afirmou:
- Seja como for, acredite ou não, foi ele quem me beijou. Ele está aqui e eu sinto que isso é verdade.
Voltou as costas e afastou-se.
Aurora parou admirada, olhando-a afastar-se. Sentiu até uma ponta de inveja. Gostaria de ser como ela. De poder acreditar que Alberto, ou que alguma coisa do Alberto, estivesse ali. Mas ela precisava manter o equilíbrio, os pés no chão. O fato de querer o filho de volta, não devia fazê-la ter alucinações e entrar pelos caminhos da loucura. Tinha uma família para cuidar e precisava manter sua sanidade.
Contudo, sonhar com ele, como ela gostaria! Poder ver de novo seu rosto bonito, seus olhos alegres, seu sorriso amigo! Sonhar com ele, abraçá-lo de novo, como ela seria feliz!
Sentiu sua emoção aumentar e lágrimas vieram-lhe aos olhos. Ela não percebeu que o espírito de Alberto estava ali, abraçando-a comovido, tendo sua cabeça inclinada em seu ombro, sem conter o pranto, misturando suas lágrimas, aumentando a emoção dela e sua vontade de chorar.
Foi para o quarto, estirou-se no leito desalentada. O que lhe restava na vida senão chorar?
E o espírito de Alberto, vendo-a tão triste, não resistiu ao desespero e deitado a seu lado, desanimado, angustiado, não encontrou outra solução senão chorar, sem forças para sair dali, deixando-a em crise.
Muitas vezes já a havia abraçado e tentado dizer-lhe que estava vivo. Que a morte apenas lhe arrebatara o corpo. Tudo inútil. Ela recusava-se a ouvir. Não acreditava que ele pudesse continuar vivo após a morte física. E ele, vendo-a sofrer, não tinha coragem de afastar-se, permanecendo a seu lado, até que ela serenasse.
Nesses momentos, recordava a cena do crime, sua dor, sua tristeza, sentia-se morrer novamente. Era-lhe muito penoso esse estado.
Ao lado de Magali, ficava muito melhor. Sua alegria, seus pensamentos, faziam-lhe bem ao coração. Principalmente suas leituras sobre a justiça de Deus, sobre a morte e a continuidade da vida.
Comparecera à sessão espírita, acompanhando Magali, e lá, fora atendido por um assistente espiritual, que conversara com ele, respondendo as indagações que fizera e convidando-o a permanecer com eles.
Alberto não aceitara. Como deixar a família tão sofrida? Como deixar o Jovino preso inocente? Ele não queria ir. Preferia ficar até esclarecer tudo.
Foi inútil pedir que confiasse em Deus, que esperasse a manifestação de sua justiça. Ele não aceitou. Queria falar com Magali, contar tudo, pedir que o ajudasse a desmascarar o verdadeiro assassino, mas não pôde. Os orientadores da reunião não permitiram, alegando que isso iria conturbar ainda mais a situação. Que ele orasse, confiasse em Deus e continuasse a esperar.
Como ele houvesse ficado muito decepcionado, concordaram em ajudá-lo a encontrar-se frente a frente com Magali, desde que ele omitisse qualquer queixa e desse ao encontro um enfoque positivo.
Acompanharam-no a casa e aproximando-se de Magali, envolveram-na, fazendo-a adormecer. Na sala, Alberto esperava ansioso.
- Aja com naturalidade - disseram-lhe - qualquer atitude mais dramática, poderá levá-la de volta ao corpo.
Magali, vendo-o, abraçou-o com alegria e Alberto emocionado conversou com ela como fazia anteriormente quando estava na Terra, esperando que ela mencionasse a verdade. De repente, ela lembrou-se:
- Alberto, você morreu!
Ele aproveitou esse instante para afirmar:
- É mentira, eu estou aqui!
Ela afastou-se surpreendida, procurando voltar ao corpo adormecido. Alberto seguiu-a, abraçou-a, beijando-a na face com muito amor.
Ela acordou sentindo esse beijo.
- Que saudade! - disse.
Quando ela correu contar para a mãe, ele exultou. Finalmente sua mãe saberia a verdade. Aprenderia a conformar-se. Porém ela não aceitou, preferiu não ver. Escolheu a dor, a mágoa, a tragédia.
Alberto decepcionou-se. Convidado a partir com os assistentes que o haviam auxiliado, não aceitou. Recusou-se a deixar sua mãe naquele estado.
Vendo que ela não cedia, afastaram-se e então Alberto, longe da influência positiva desses amigos, deu largas ao sofrimento, mergulhando também na depressão e na dor.
Sentadas na sala em meio a outros visitantes, Magali e Nair esperavam ansiosas. Teriam sucesso dessa vez?
Conforme Dora pedira, as moças haviam feito uma prece ao sair para o presídio, pedindo a Deus pelo êxito da visita. Enquanto Nair carregava um pacote com frutas e chocolate, Magali levava num embrulho, cuidadosamente preparado, um exemplar do Evangelho Segundo o Espiritismo. Naquele livro, ela havia encontrado muitas respostas As indagações que a afligiam. Confortara-a e dera-lhe paz.
Por certo, se Jovino o lesse, poderia também encontrar esclarecimento e conforto.
O encarregado voltou, dizendo a Magali:
- Vocês conseguiram. Ele vem aí. Podem entrar para a sala do lado.
As moças entraram, sentindo o coração bater forte. Em frente a divisória, pararam. Várias pessoas conversavam pelos guichês com os presos e Magali emocionada procurou pelo Jovino.
Por trás da tela, frente a um guichê aberto, ele estava lá. Magro, rosto endurecido, olhos frios, sério, ele esperava de cabeça erguida.
Magali aproximou-se. Seus olhos se encontraram. Os dele frios, indiferentes, os dela, brilhando pelas lágrimas que a emoção justificava.
- Jovino, - disse Magali
por fim - vim vê-lo porque preciso conversar com você. Quero ouvir de seus lábios a verdade. Custa-me crer que você tenha cometido esse crime. Tenho pensado muito e alimento sérias suspeitas de que todos cometemos tremenda injustiça com você.
Ele olhou-a firme. Por seus olhos passaram um brilho de emoção que ele logo dominou. Ela prosseguiu:
- Preciso conhecer a verdade. Você pode ajudar-me. Juntos, haveremos de provar sua inocência e encontrar o verdadeiro culpado.
Jovino olhou-a sério e respondeu:
- Gritei minha inocência o quanto pude. Tudo quanto sei, contei à justiça. Ninguém acreditou. Agora, tudo está consumado. Só reabrirão o processo se aparecer uma prova convincente, um fato novo.
Não sei quem cometeu esse crime, embora tenha suspeitas, mas como provar? Como?
- Conte-me o que aconteceu naquela noite.
- Para quê? Ninguém acreditou. Preferiram pensar que eu fosse capaz de matar uma pessoa, e o que é pior, meu próprio irmão. Não vai adiantar. Seu pai, sua mãe, o Rui, todos me condenaram, acreditaram que eu fosse capaz de tal crime.
A voz de Jovino tinha um tom amargurado embora ele lutasse por dissimular. A moça aproximou o rosto do guichê e segurou a mão dele apertando-a com força.
- Compreendo sua mágoa. A tragédia nos envolveu e até agora lá em casa, ninguém encontrou a paz. Procura perdoar. As evidências eram contra você. A polícia afirmou. Todos estávamos perturbados.
Jovino retirou a mão com raiva:
- E agora, o que mudou? Por que me procura se ainda pensam que fui eu?
- Começaram a acontecer coisas. Começo a crer que a morte seja uma ilusão. O Alberto continua vivo. Isto é, seu corpo morreu, mas seu espírito continua a viver em outro mundo.
Jovino olhou-a admirado. Nunca havia pensado nisso. Ela continuou:
- Ele tem nos chamado atenção de várias formas. Tenho motivos para afirmar que ele está interessado em provar sua inocência e em esclarecer tudo.
Jovino não sabia o que dizer. O que ela dizia parecia-lhe fantástico, mas por outro lado, se fosse verdade, se o Alberto estivesse vivo no outro mundo, sabia que ele era inocente.
Emocionou-se. Todo sofrimento represado, toda mágoa acumulada durante aquele tempo de sofrimento aflorou de repente e o Jovino não conseguiu mais deter o pranto, que curvou ainda mais seus ombros magros, sacudidos pelos soluços.
As duas moças deixaram as lágrimas correr pelas faces, envolvidas pela emoção. Quando ele se acalmou, Magali segurou sua mão, apertando-a com carinho.
- Jovino, precisamos nos unir. Deus nos ajudará. Haveremos de descobrir a verdade, provar sua inocência. Eu acredito em você. Você é meu irmão, sempre amigo, velando pelo nosso bem-estar. Jamais seria capaz de tal crime. Eu sei.
Não será fácil provar — disse ele.
- Para nós, talvez - considerou Magali - para Deus, não. Você está magoado, revoltado, sofrido, porém eu tenho fé. Deus tudo pode e nos ajudará. Gostaria que todos os dias você pensasse em Deus, rezasse. Eu trouxe este livro para você. Leia-o com atenção. Tenho certeza de que encontrará nele muitas respostas para explicar o que nos aconteceu. Pense em tudo, peça a ajuda de Deus. Voltaremos aqui no próximo domingo. Analise bem os fatos daquela noite. Procure lembrar-se nos mínimos detalhes. Hoje, estamos muito emocionados.
Jovino apanhou o pacote que ela lhe estendia e concordou com a cabeça. Magali continuou:
- Esta é a Nair. Ela sabe de tudo e quer nos ajudar. É amiga de Mariazinha, a moça que Alberto namorou. Mora perto da casa dela e conheceu o Alberto.
Jovino fitou-a.
- Eu estava com Mariazinha no clube quando ela conheceu Alberto. Saímos juntas naquela noite. Farei o que puder para ajudá-lo.
- Obrigado.
Magali aproximou-se do guichê e disse com carinho:
- Fique com Deus, Jovino. Eu gosto muito de você. Sinto-me feliz por tê-lo encontrado hoje.
Jovino não encontrou palavras para responder. Seus olhos brilharam. Apertou a mão que elas lhe estendiam e pegou os pacotes de Nair. Não disse nada, mas pela primeira vez depois de tanto tempo, sentiu um brando calor no peito e uma agradável sensação de paz.
Quando elas se foram, sobraçando os pacotes, pensativo, saiu da sala. Em sua cela, estirado na cama, ele sentia-se emocionado. O rosto comovido de Magali, suas palavras haviam conseguido quebrar a camada de indiferença com a qual ele tentara proteger-se frente aos acontecimentos.
Sentia-se sensibilizado. Magali acreditava nele. Estava do seu lado. Confiava em sua inocência. Pretendia ajudá-lo.
Jovino não tinha ilusões quanto ao seu caso. Achava difícil conseguir provas da sua inocência. Magali era jovem, inexperiente e não dispunha de meios para enfrentar a ação da justiça. Ele não acreditava que ela conseguisse provar a verdade.
Entretanto, seu apoio e sua amizade sincera tiveram o dom de despertar nele o desejo de reabilitar-se. Podia ter esperanças. Não estava só. Sentia-se confortado. O interesse de Magali pelo seu destino despertara nele funda emoção. No futuro, quem sabe, o Rui, o dr. Homero, D. Aurora, reconheceriam também sua inocência.
Sabia que Magali tinha idéias próprias. Alberto costumava dizer que ela era a mais inteligente e a mais lúcida da família. Enxergava longe. Estava certo. Magali fora a primeira a perceber a verdade.
Não tinha religião. Fora sempre um indiferente. Depois do que lhe acontecera, tornara-se descrente. Se Deus existisse, se fosse bom como diziam, perfeito e justo, não teria permitido tanta injustiça. Nada fizera para ajudá-lo.
Magali pedira-lhe para rezar. Não sentia vontade. Não acreditava que adiantasse. Mesmo assim, o interesse dela comovia-o. Recordou-se da infância, do convívio amoroso, da família, das brigas do Rui, das peraltices do Alberto, das escapadas de Magali, dos cuidados de D. Aurora, da vontade que sentia de abraçá-la como os meninos faziam sem nunca haver tido coragem.
Como ela estaria? Pela primeira vez começou a pensar na dor de D. Aurora. Sabia que ela adorava o filho. Percebera o brilho de seus olhos sempre que o fitava, a luz que ela refletia quando falava nele. Muitas vezes sentira-se enciumado desse afeto. Não que ela deixasse de gostar do Alberto, mas que viesse a sentir por ele, também o mesmo sentimento. Pobre D. Aurora, tão boa!
Um arrepio de horror percorreu-lhe o corpo. Ela pensava que ele houvesse matado Alberto. Devia odiá-lo com certeza.
Lágrimas desceram-lhe pelas faces, funda amargura o acometeu.
- Um dia ela saberá a verdade - pensou - e como Magali, acreditará em mim.
Sentiu-se mais calmo depois disso. Sentou-se no leito, abriu o pacote e comeu um pedaço de chocolate. Há quanto tempo não experimentava um? Há quanto tempo não sentia o gosto dos alimentos?
Depois de comer, abriu o pacote que Magali lhe dera. Olhou a capa do livro sem muito interesse. "O Evangelho Segundo o Espiritismo", leu. Admirou-se. Magali nunca fora adepta de nenhuma religião. Freqüentava a igreja por imposição dos pais e escapava sempre que podia. O que teria mudado? Depois, Espiritismo era coisa de gente ignorante. Magali era uma moça instruída. Sentiu certa curiosidade.
Ela lhe dissera que Alberto continuava a existir no outro mundo. Como podia saber disso? O Alberto sabia a verdade. Queria ajudar a desmascarar o verdadeiro assassino. Seria possível? Jovino duvidava disso.
No entanto, quando tudo estava contra ele, todos acreditando em sua culpa, quem convencera Magali da sua inocência? Como acontecera? Quando ela voltasse, ele poderia perguntar.
Lembrou-se das palavras dela:
- Leia esse livro, tenho certeza de que encontrará nele muitas respostas ao que nos aconteceu.
O moço folheou-o, enquanto pensava:
- O que poderei encontrar em um livro?
Deteve-se em uma página e leu: "A eficácia da prece. Por isso digo: todas as coisas que vos pedirdes orando, crede que as haveis de ter e que assim vos sucederão". (Marcos XL24)
- Mentira, - pensou. - Muita gente reza e não acontece nada.
Aqui mesmo, quantos vivem de terço na mão?
Baixou os olhos novamente para o livro e leu: "Há pessoas que contestam a eficácia da prece".
Crítico, descrente, Jovino prosseguiu lendo. Aqueles argumentos começaram a interessá-lo. Colocavam a prece como elemento de ajuda espiritual, oferecendo coragem, conforto, paciência, inspiração, sem isentar quem ora de fazer a parte que lhe cabe, na solução dos problemas da sua vida.
Pensou no seu caso. Há muito que se entregara ao desânimo, sem coragem para defender seus direitos. Curvara a fronte diante dos golpes do destino. Sabia que possuía inteligência. Estudara. Fizera até o curso ginasial com muita facilidade. Contudo, não procurara utilizá-la para conseguir provar sua inocência. Conforme dizia o livro, preferira esperar por um milagre sem nada fazer, aceitando a sentença injusta e cruel, como fatalidade sem apelação. Abatera-se diante dos acontecimentos.
Um vulto luminoso de mulher, aproximou-se de Jovino, colocando a mão sobre sua testa, dizendo-lhe ao ouvido:
- Reze, meu filho. Busca Deus, nós vamos ajudá-lo.
Jovino nada viu nem ouviu, mas, de repente, sentiu uma força nova brotar dentro dele e pensou:
- Eu não sou fraco nem estou sozinho. Tenho a força da verdade. Sou inocente deste crime! Posso lutar, gritar minha inocência. Magali me ajudará. Hei de vencer o destino!
Fechou o livro pensativo. Pelo menos agora sentia vontade de lutar. E se Alberto estivesse mesmo vivo no outro mundo, querendo ajudá-lo? Até que ponto ele teria influenciado Magali?
Sentiu um arrepio. Nunca havia pensado muito nessas coisas de espíritos. O que o impressionava era o fato de que se tudo fosse verdade, Alberto sabia da sua inocência. Sabia também quem fora o verdadeiro assassino.
Os fatos daquela noite voltaram-lhe à memória com nitidez. Deixara o carro perto do clube e circulara ao redor para verificar se havia gente lá dentro, se o Alberto estava. Como não vira nada além dos funcionários, ele voltara ao carro onde permanecera ora parado ora circulando pelas ruas adjacentes. Não vira nada de anormal.
Não possuía elementos para esclarecer Magali. Suspeitava dos rapazes que haviam brigado com Alberto. Seu corpo fora encontrado por aqueles lados. Quem, senão eles poderia tê-lo assassinado? Com seu próprio revólver, seu cachecol. Teriam roubado o revólver do carro quando saiu a pé? E o cachecol? Ele não estava no carro. Como fora parar lá?
Precisava descobrir a verdade. Se Alberto estava interessado em ajudar, que aparecesse, contasse como aconteceu, só ele conhecia realmente. Para conseguir isso o que ele deveria fazer? Magali pedira-lhe para rezar, Deus o ouviria?
Deus! Seu relacionamento com ele não era dos melhores. Afinal, onde estava ele quando permitiu a sua condenação? Sabia que ele era inocente.
Abriu novamente o livro. Fixou os olhos e leu: 'As vicissitudes da vida têm pois, uma causa, e como Deus é justo, essa causa deve ser justa".
Não concordou. Fora preso inocente enquanto o verdadeiro culpado permanecia impune. Como aceitar tanta injustiça? Como aceitar que Deus pudesse permitir tanta maldade como as que tomava conhecimento dentro do presídio? Seu sofrimento era injusto e ele não encontrava uma causa.
Fechou o livro pensativo. Como aceitar sua prisão como uma causa justa? Só para poder afirmar que Deus era perfeito?
Uma onda de revolta envolveu seu coração. As pessoas costumam torcer as coisas conforme seus interesses. Os padres faziam isso, os religiosos em geral também. Tentar explicar o inexplicável só para que Deus continuasse em seu trono de perfeição, era uma acomodação ingênua.
Colocou o livro de lado. Ele não conseguiria rezar. Se Deus existisse, por certo estava longe e desinteressado deste mundo, porquanto o que mais via ao seu redor eram as injustiças. A crueldade triunfante sobre a bondade, a ingenuidade. O mundo era dos poderosos, dos que tinham dinheiro.
"Rico não vai pra cadeia" era uma frase comum ali. Ele mesmo não passava de um pobre diabo, criado de favor, sem ter recursos nem nome. Se ffosse rico, filho de gente importante, por certo acreditariam em suas palavras. Nem teria sido preso. Estava ali porque era um joão-ninguém, pobre, apagado.
Jovino sentiu-se desanimado e muito só. Lembrou-se do rosto emocionado de Magali. Ela acreditava nele. Tivera coragem de ir ao presídio, sem que os pais soubessem, incentivá-lo a lutar pela sua liberdade. Não estava só como pensava.
Um sentimento de ternura pela moça o acometeu e pensou:
— Não posso decepcioná-la nem parecer covarde.
Apesar de tentar encorajar-se, Jovino sentia-se inútil e impotente para enfrentar a justiça dos homens que o esmagara com tanto rigor.
Quem iria descobrir a verdade? Ele, preso, estava de mãos amarradas. Magali, moça, inexperiente, o que poderia fazer?
- "Eu tenho fé. Deus tudo pode e nos ajudará".
As palavras convictas de Magali acudiam-lhe à memória. De novo Deus! Como rezar se ele estava magoado, ferido? Se Deus permitira seu castigo injusto, como pedir-lhe ajuda?
Sentiu inveja de Magali que se confortava na oração. Ele não possuía esse conforto. Reconhecia que mesmo sem ser atendido, a prece poderia representar um ponto de apoio, uma maneira de aliviar o coração, de varrer o desespero e agüentar a situação difícil.
Ah! Se ele pudesse rezar! Se ele conseguisse um pouco de fé, talvez encontrasse mais coragem.
Fundo suspiro escapou-se-lhe do peito. Apanhou o livro novamente, abriu-o e leu: "As vicissitudes da vida são de duas espécies; têm duas origens bem diversas que importa distinguir. Umas têm causa na vida presente, outras, fora desta vida."
Surpreendeu-se. Estava inocente, seus problemas não tinham explicação na vida presente, como teriam origem fora desta vida se ele não existia? Interessado, continuou a leitura.
Achava justo que os faltosos, os culpados, fossem punidos pela sociedade, mas e os inocentes?
"Mas se há males nesta vida dos quais o homem é a própria causa, há também outros que, pelo menos em aparência, são estranhos à sua vontade e parecem golpeá-lo por fatalidade".
Era o seu caso. Jovino bebia as palavras com ansiedade, sua cabeça trabalhava reagindo a cada frase que lia, criando argumentos, indagações, porém, prosseguindo a leitura, as respostas se sucediam, como se quem escreveu o livro estivesse ali, ao vivo, dialogando com ele.
Mil pensamentos acudiam-lhe a mente. Uma vida anterior! Seria possível? Por que ele nascera sem pai e fora atirado a orfandade, en- quanto outros tinham mãe, família, dinheiro? Muitas vezes se perguntara o porquê dessa discriminação injusta. Agora, pela primeira vez, alguém lhe oferecia uma explicação lógica.
Tratava-se de uma teoria um tanto fantástica, mas capaz de fazer compreender melhor as desigualdades sociais.
A cabeça de Jovino fervilhava. Esqueceu onde estava. O tempo, a hora e continuou lendo com avidez. Só largou o livro quando o sono o impediu de continuar.
Fechou os olhos e pensou: abençoada a hora em que Magali aparecera. Sentia que daquele dia em diante, sua vida mudaria. Talvez Deus não houvesse esquecido dele, como havia pensado, mas fora ele que não tivera condições de perceber Deus.
Sentindo um brando calor envolvendo seu coração, finalmente adormeceu.
Sentadas na varanda da casa de Mariazinha, as duas amigas conversavam. Nair dizia com energia:
Você faz muito bem. Um dia ele vai desistir.
Assim espero. Fui clara mais uma vez. Não gosto dele. Não adianta ir me esperar na fábrica, nem dizer que não pode viver sem mim.
Conversa fiada. O Rino é caprichoso. Não se conforma de ser recusado. É vaidoso. É até um homem bonito. Mesmo sem caráter, tem muitas moças que são caidinhas por ele.
Pois que fique com elas — frisou Mariazinha com raiva. – Não quero nada com ele.
- Faz bem. Ele não serve.
- Ele queria ir ao cinema hoje. Prefiro ficar este sábado em casa do que ir com ele.
- Se quiser ir ao cinema, poderemos ir juntas na primeira sessão. E o moço da praia, não apareceu?
Mariazinha suspirou.
- Não. Esses moços são todos falsos. Ficou de voltar a Santos no domingo seguinte e não apareceu. Por certo nunca mais o verei.
- Você deu o endereço. Qualquer dia, ele aparece.
- Não creio.
- Você gostou dele. Era bonito?
- Gostei. Era bonito, simpático. Até mamãe gostou. Educado, gentil. Mas de que adianta isso agora?
- Você gostaria que ele viesse...
- Gostaria. Porém, não quero me iludir. Nunca mais o verei.
Nair sacudiu os ombros.
- Pena. Vamos mesmo ao cinema?
- Vamos. São seis horas. Espera eu me arrumar e vou com você até sua casa.
- Está bem.
As duas entraram. Mariazinha aprontou-se e as duas saíram exatamente no momento em que alguém se aproximava do portão.
Mariazinha parou assustada.
- Júlio!
- Olá! Pensei que já não se lembrasse de mim! Como vai?
A moça apertou a mão que ele lhe estendia, apresentando-o à amiga. Depois dos cumprimentos, ele esclareceu:
- Não pude voltar a Santos naquele fim de semana. Alguns problemas de família.
- Espero que nada grave - respondeu a moça com delicadeza.
Ele sorriu.
- Agora está tudo bem. Vocês iam a algum lugar?
- Até minha casa - disse Nair - eu moro ali do outro lado da rua.
- Posso roubar Mariazinha um pouqinho? Faz três semanas que não nos vemos.
- Ia mesmo para casa. Minha mãe está esperando. Foi um prazer conhecê-lo.
Quando se viram a sós, ele olhou-a nos olhos dizendo:
- Vamos dar uma volta?
- Vamos.
- Eu temia que você me houvesse esquecido.
- Não esperava mais tornar a vê-lo.
- Não pense que sou sem palavra. Geralmente faço o que digo, contudo, não pude vir antes, infelizmente.
- Alguma namorada?
Ele riu divertido.
- Você é ciumenta?
Mariazinha enrubesceu.
- Desculpe. Minha pergunta foi indelicada. Simples curiosidade.
- Não respondeu a minha pergunta. Você é ciumenta?
- Por que quer saber?
- Quero conhecê-la melhor. Um pouquinho de ciúme é bom, muito, é desagradável.
- Também acho. Não tenho nenhum motivo para ter ciúmes de você. Afinal, mal nos conhecemos.
- Estou aqui para remediar isso. Gostaria que você me apreciasse. Segurou a mão dela, levando-a aos lábios com carinho. Mariazinha sentiu seu coração bater mais forte. Teria encontrado de novo o amor?
Nair ficara bem impressionada com Júlio. Bonito, bem vestido, fino, educado, tinha um jeito de olhar nos olhos das pessoas que lhe agradava. Sentia-se feliz pela amiga. Mariazinha merecia esquecer e encontrar a felicidade.
Pensou no Jovino. Seu rosto não lhe saíra da mente durante a semana toda. No dia seguinte, voltariam a vê-lo. Como as receberia?
Magali pedira-lhe para rezar. Ela o fazia de coração. Ia à igreja e pedia a Deus por ele, mas ao mesmo tempo, sentia-se impotente. Reconhecia que só Deus poderia libertá-lo. Acreditava em sua inocência.
Que injustiça! Enquanto o moço sofria inocente, o verdadeiro assassino estava livre para cometer outras maldades. Lembrou-se de Rino.
Teria sido ele? Tinha sérias suspeitas, mas como descobrir?
A arma, o cachecol, eram provas difíceis de serem recusadas.
Depois, o Rino era filho de gente rica. O pai era comerciante e metido em política. Quem se atreveria a suspeitar dele?
De repente, Nair sobressaltou-se. Se Rino visse Mariazinha com Júlio, poderia fazer alguma coisa. Não era bom eles ficarem andando pelas ruas do bairro. Se alguém da turma dele os visse, poderia contar-lhe.
Ficou angustiada. Mariazinha tinha o direito de escolher o namorado e ele não podia impedi-la. Entretanto, ele era além de ciumento, vingativo. Sua paixão era perigosa.
Ao chegar em casa, foi para o quarto e orou pedindo a nossa senhora proteção para o jovem casal. Depois disso, sentiu-se mais calma, porém, a cada pouco, ia espiar pela veneziana, olhando a esquina por onde eles deveriam passar ao regressar. Só se acalmou quando os viu atravessar a rua de mãos dadas, conversando tranqüilamente.
- Graças a Deus - pensou e recolheu-se para dormir.
O casal parou frente ao portão.
- Chegamos!
- Precisa entrar?
- Já é tarde. Quase dez horas.
-Já? Passou rápido. Não vai convidar-me a entrar?
- A estas horas? Já pensou no que diria papai?
- Amanhã virei mais cedo. Quero cumprimentar sua mãe.
- Fazer média.
- Claro. Tem todo jeito de uma grande mãe.
- Ela é a melhor mãe deste mundo.
- Sabia que você ia dizer isso!
Continuaram conversando e quando Mariazinha entrou em casa, seu coração cantava de alegria. Júlio era encantador. Apreciava cada frase do moço, seu jeito franco, seu sorriso alegre e bonito.
Sua mãe já se recolhera, e ela, procurando não fazer ruído, foi para o quarto e deitou-se.
Sentia-se feliz! Naquela hora, a lembrança de Alberto estava distante, substituída pelo rosto bonito de Júlio, seu jeito afetuoso, seu ar encantador.
Entusiasmada, Mariazinha rememorava cada palavra, cada gesto, cada momento daquele encontro, sentindo prazer de viver. Embalada por novos sonhos de felicidade, adormeceu.
No dia seguinte, logo após o almoço, Nair foi ver a amiga.
- Pelo seu rosto já sei que tudo foi muito bom.
Mariazinha sorriu:
- Acertou. Ele apareceu assim, quando nem eu esperava mais!
- Ele é encantador.
- Você notou?
- Sim. E além de tudo pareceu-me um bom moço.
Mariazinha não escondeu seu entusiasmo.
- Também acho. Vai vir mais cedo hoje para cumprimentar mamãe.
- Nota-se que é um moço decente.
- Você simpatizou mesmo com ele!
- Muito. Desejo de coração que dê tudo certo. Você merece!
- Você é minha amiga. Torce por mim. Gosto dele, vamos nos conhecer melhor, quem sabe...
- Você encontrou um novo amor. Seria prudente não andar muito pelo bairro com ele. Rino é mau-caráter. Não desejo preocupá-la, mas tenha cautela. Nunca é demais.
Mariazinha permaneceu pensativa alguns segundos, seu rosto estava sério.
- Não havia pensado nisso. Você acha que ele poderia tentar alguma coisa contra o Júlio?
- Não sei. Ele é louco por você. Não vai gostar do seu namoro.
- Isto fez-me pensar no Alberto. Ele teria alguma coisa a ver com o crime? O culpado está preso.
- Não sei.
Vendo a palidez da amiga, Nair não teve coragem de contar-lhe sobre o Jovino. Ela poderia ter uma recaída. Não desejava impressioná-la. Por isso, sorriu tentando desviar o assunto.
- Ninguém sabe bem como aconteceu. Eu só disse para tomar cuidado, porque Rino é bem capaz de provocar briga. Briguento, ciumento, isso ele é.
- É mesmo. Foi bom você lembrar. Seria muito desagradável se ele aparecesse para provocar o Júlio.
- Evite os lugares onde ele costuma estar e pronto. Nada acontecerá.
- Tem razão. Fez bem em me alertar.
Nair mudou de assunto e logo Mariazinha voltou a sorrir. Despediu-se da amiga e saiu, sem contar onde iria naquela tarde. Emocionava-se ao pensar em rever o Jovino. Como estaria?
Foi ao encontro de Magali com ansiedade. Abraçaram-se com alegria.
- Tenho esperança de encontrá-lo mais animado -disse Magali.
- Alguma novidade? Magali abanou a cabeça.
- Nada. Tudo na mesma. Fui ao Centro Espírita e as mensagens (oram para ter paciência, confiar em Deus e esperar sem desanimar.
- Não temos outro remédio.
No presídio, as duas aguardaram ansiosas. Desta vez não tiveram que esperar muito. Jovino estava tão ansioso quanto elas. Apertando a mão de Magali, ele disse com emoção:
- Temia que não viesse. Que se arrependesse. Fui muito rude. Magali sorriu.
- Você foi, porém nós compreendemos.
- O que vocês estão fazendo por mim, jamais esquecerei.
- Você é inocente - disse Nair olhando-o firme. - A verdade há de aparecer.
- Eu acredito nisso - ajuntou Magali - o que fizeram com você não tem cabimento.
Jovino olhou-as dizendo com voz embargada:
- Ouvir isso faz-me um grande bem. Até agora, eu estava sozinho carregando o peso do meu drama. Desacreditado, sem esperança. Conforta-me saber que vocês acreditam em mim, em minha inocência.
- Não descansaremos enquanto não conseguirmos provas para libertá-lo - disse Magali.
Jovino suspirou triste.
- O que vocês estão fazendo, está me ajudando muito. Com vocês do meu lado, sinto-me mais calmo, mais conformado. Pensei muito recordei tudo como aconteceu e não vejo meios de provar minha inocência. Não há testemunhas. Ninguém viu nada a não ser eu mesmo circulando próximo ao local onde o corpo foi encontrado. Nem eu posso explicar como meu cachecol foi parar lá, nas mãos de Alberto. Onde encontrar as provas? A justiça não aceita hipóteses, quer fatos.
- Eu também tenho pensado muito. É capaz de contar-me minuciosamente tudo quanto aconteceu naquela noite?
- Posso. O Alberto estava no quarto, se aprontando para sair. Vi quando o Rui o interpelou e ele respondeu que ia a procura de Mariazinha. Entrei na conversa e tanto eu, como o Rui, tentamos convencê-lo a não ir. Relutando, ele por fim concordou. Rui convidou-o para ir ao cinema, ele não aceitou. Disse que preferia ir dormir. Rui saiu sozinho. Alberto fechou a porta do quarto, e eu fui para o meu quarto. Porém, meu coração estava oprimido. Alberto nunca desistia com facilidade. No meu quarto, por mais de uma hora, fiquei atento ao menor ruído. Não ouvi nada. Deitei-me e passei por um sono rápido, acordei sobressaltado. Levantei-me angustiado. Você sabe que eu me preocupava muito quando eles saíam e voltavam tarde. O Rui porque brigava, e o Alberto porque sempre se metia em confusão.
Magali assentiu com a cabeça, e o Jovino prosseguiu:
- Pé ante pé, fui ao quarto de Alberto ver se ele estava dormindo. Abri a porta de leve e na obscuridade olhei a cama vazia. Nem fora desfeita. Ele mentira. Fiquei irritado. Se ele insistisse em ver a moça eu o teria acompanhado. O carro estava disponível. Mas ele preferira ir só. E se aquela turma o agredisse de novo? Ninguém estaria a seu lado para defendê-lo. Fui para o quarto, vesti-me rápido e saí procurando não acordar ninguém. Pretendia encontrá-lo e de longe ficar vigiando. Quando se despedisse da moça, voltaria comigo. Eu sabia onde ela morava e o clube onde eles se conheceram.
- Viu que horas eram quando saiu de casa? - perguntou Magali.
- Vi. Faltavam dez minutos para as dez. Circulei perto do clube, depois passei pela casa dela, estava às escuras. Voltei ao clube, parei o carro e desci. Circulei a pé por ali, havia luz mas não parecia noite de baile. Voltei para o carro e fiquei ali, sem saber onde procurar. Várias vezes andei por ali, pelas ruas próximas da casa de Mariazinha. Não vi nada. Já era muito tarde, o clube já estava fechado, e eu comecei A pensar que meus temores eram infundados. O Alberto não teria ido ao encontro da moça. Saíra para outro local, eu estava fazendo papel de bobo. Por aqueles lados, ele não estivera. Voltei para casa, guardei o carro e fui ver o quarto, continuava vazio. Intrigado, sem saber o que fazer, deitei-me. Estava cansado. Procurei dormir. O resto você já sabe.
- Sei, - disse Magali pensativa. - Lembra-se que horas se deitou?
- Passava das duas.
- Em nenhum momento percebeu que o revólver não estava no carro?— perguntou Nair.
- Ele estava sempre lá. Eu não o tirava para nada. Mantinha o porta-luvas fechado à chave. Não olhei quando saí. Não abri o porta-luvas. Não sei como ele poderia ter sido tirado de lá. A chave estava comigo, no chaveiro do carro.
- Quando você desceu do carro, perto do clube, deixou a chave dentro? - perguntou Nair.
- É, eu pensei na hipótese de alguém tê-lo roubado quando você circulou a pé - considerou Magali.
Jovino abanou a cabeça.
- Não poderia. Não me recordo desse detalhe, mas não creio que tenha deixado a chave no carro. É automático. Qualquer motorista sabe, a primeira coisa que se faz ao sair do carro é pegar a chave.
- Então, como o revólver poderia ter saído de lá?
- Isso me intriga. Não consigo entender. Magali suspirou pensativa.
- Tem de haver uma explicação. De alguma forma a arma foi parar lá. Notou se o porta-luvas foi forçado? Para uma pessoa habilidosa, não seria difícil abri-lo. Os ladrões abrem fechaduras e até cofres com facilidade...
Jovino sacudiu a cabeça.
- Não notei nada de anormal. Se a fechadura houvesse sido forçada, eu perceberia. Teria sido um bom argumento em meu favor.
- Só o Alberto poderia esclarecer o que de fato aconteceu. Jovino não se conteve:
- Acredita mesmo que ele esteja vivo? Isto é, que exista mesmo esse outro mundo dos espíritos?
- Acredito, Jovino. Mariazinha o viu várias vezes. Eu sonhei com ele e não foi um sonho comum.
As duas relataram tudo quanto sabiam a respeito, como haviam se conhecido, os esclarecimentos de D. Dora, os problemas de - Mariazinha.
- É incrível - disse ele - mas eu acredito! O Alberto foi sempre bondoso, justo. Ele sabe que sou inocente. Que fiz tudo para protegê-lo e evitar a tragédia. Deve reconhecer que foi imprudente e por isso perdeu a vida, me envolveu nessa situação. Seria justo ele desejar restabelecer a verdade. Esclarecer os fatos, ver o verdadeiro culpado punido.
- Confio na ajuda dele - tornou Magali.
- Se ele pensa assim, não poderia relatar como foi? Se seu espírito está vivo e interessado, por que não aparece e conta tudo?
- Não é tão fácil assim - esclareceu Magali. - Eles não podem tudo. Sozinho, ele não saberia como fazer isso e os que dirigem as comunicações nos Centros Espíritas não permitem uma interferência direta nos acontecimentos.
- Por quê? - indagou Jovino.
- Porque tudo quanto acontece obedece às leis da vida, a própria força das coisas. Nós escolhemos livremente este ou aquele caminho e isso determina esta ou aquela experiência. Só a sabedoria divina conhece quando o melhor momento para recolocar tudo nos devidos lugares e naturalmente o fará, porquanto Deus só faz o bem, e o mal é ilusão passageira. É compreender, crer na ação do bem e esperar.
Jovino abanou a cabeça.
- Não escolhi este caminho. Nunca roubei, nem matei ninguém e estou aqui preso por um crime que não pratiquei.
A voz de Magali estava um tanto diferenciada quando disse:
- Você não era violento por índole,mas sempre acreditou na violência. Via perigo em tudo. Estava sempre querendo nos proteger. Não acreditava que Deus tinha poderes para isso e o que é mais grave, acreditava na força do mal, confiava mais na arma que guardava no carro do que na providência divina.
Jovino olhava-a admirado. O que ela dizia era verdade, porém não se deu por achado:
- Não sou religioso, mas o mal não é ilusão. Este presídio está cheio de gente ruim, que matou, roubou, traiu, odeia, grita por vingança. Eu mesmo nunca fiz mal a ninguém, mas fizeram comigo esta maldade.
- Pensando dessa forma, será difícil restabelecer a verdade. Você acredita no mal e o alimenta com a força da sua mente. Para perceber o que é verdadeiro, é preciso compreender que Deus só faz o bem, que Ele quer o bem e que só existe o bem. O homem acredita no mal e o alimenta, mas dia virá em que terá que perceber que está destinado à luz, ao amor, à alegria e que tudo o mais vai acabar. Que a programação divina nos criou para sermos felizes.
Os olhos de Magali brilhavam iluminados por um magnetismo diferente e tanto Nair quanto Jovino, envolvidos, não conseguiam desviar os olhos dela.
- Você acredita no mal, agora não cometeu nenhum crime, mas pode tê-lo feito em encarnações passadas, quando escolheu a violência como solução dos seus problemas. O que está acontecendo com você é para que compreenda que a violência não só agrava ainda mais uma situação, como atrai a lição que precisamos aprender. Entretanto, como Deus é justo, amoroso e nunca pune ninguém, se você modificar sua Crença, deixar de dar força para o mal em sua vida, os fatos que o envolvem também se modificarão. Percebendo que só o bem existe e é a única força verdadeira da vida, começará a dar um espaço a que ele possa atuar em você.
Jovino ficou impressionado:
- Desse jeito, você diz que de certa forma eu contribuí para o que aconteceu.
- Você é o único responsável pelo que acontece em sua vida.
- Nunca me acreditei culpado. Os outros é que me envolveram nesta situação.
- Engano. Os outros foram envolvidos pela força das coisas que você desencadeou. Obedeceram. A responsabilidade é sua. Pense nisso. Percebe como você deu guarida ao medo da violência, como você sempre se colocou como vítima social, como sempre esperou tudo dos outros.
Jovino fitava-a assustado. Ela prosseguiu:
- Pense e modifique seus pensamentos. Só Deus tem poder. Só o bem existe realmente. Quando acreditar nisso, toda sua situação se modificará. Experimente e verá.
Magali calou-se. Suspirou, passou a mão pela testa. -Você disse coisas estranhas. Acredita mesmo nisso?
- Falou como se estivesse vendo o futuro - ajuntou Nair. -Não havia pensado nisso antes, dessa forma. Mas sinto que estes
pensamentos que me ocorreram são verdadeiros. Acredito neles. No fundo da minha alma, sei que são reais.
- Quisera possuir a sua fé - disse Jovino pensativo. - Custa-me pensar que eu possa ter ocasionado estes fatos. Parece-me absurdo.
- Você não o fez conscientemente, por ignorar certas coisas. Mas experimente acreditar no bem, não alimente o medo, o pessimismo, o mal. Cultive pensamentos bons. Deus o ama muito e vai por certo dar-lhe o melhor e vamos esperar os resultados.
Quando elas se foram, Jovino de volta a cela, estendido no leito, rememorou toda a conversa.
Magali era ingênua, sonhadora. Só o fato dele acreditar no mal ou no bem, não iria modificar os fatos. Ele precisava de provas que o inocentassem, de encontrar o verdadeiro assassino, e ela lhe oferecia palavras, conceitos, procurando justificar os fatos com a ilusão.
Um sentimento de ternura o acometeu. Magali queria animá-lo, erguer sua moral. Como não dispunha de recursos mais objetivos, estimulava sua fé, seu otimismo.
Jovino remexeu-se no leito. Podia compreender a intenção dela. A vida o ensinara que era preciso não sonhar. A realidade era bem outra.
"Você acreditava na violência, vivia querendo nos proteger".
- Claro - pensou ele. - A maldade do mundo é uma constante. Há mais pessoas ruins do que boas. A vida para ele fora sempre de sofrimento, dor e dificuldade. Magali estava enganada. Ele não se sentia responsável pelo próprio destino.
Não escolhera nascer sem pai, nem perder a mãe de forma tão dolorosa, em uma idade em que sequer sabia pensar por si.
Lembrou-se da reencarnação. Teria mesmo tido uma vida anterior? Considerava injusto ter que responder por uma vida da qual sequer lembrava.
Visualizou o rosto de Magali, enquanto dizia:
- Você acredita no mal. Agora não cometeu nenhum crime, mas pode tê-lo feito em encarnações passadas. - Teria sido um assassino?
Estremeceu. Se fosse verdade, ele estaria agora respondendo pelo seu crime. Como saber? Existiria mesmo a justiça divina? Ele temia a violência, mas seria capaz de matar?
Teve que reconhecer que sim. Se tivesse visto Alberto ferido ou em perigo, se houvesse surpreendido seu assassino, não teria hesitado em atirar. Quem não o faria? A defesa era legítima.
Suspirou fundo. Era difícil julgar. As pessoas agrediam, matavam e havia necessidade de defesa. Deus estava distante e não aparecia para defender ninguém.
Há momentos em que é preciso defender-se. Ali no presídio, se ele não houvesse sido duro, mostrado sua força, por certo teria sido submetido a todos os vexames.
Ele não era agressivo, porém, quando agredido, sabia defender-se.
Novamente o rosto expressivo de Magali, acudiu-lhe à memória enquanto dizia:
- Perceba como você deu guarida ao medo, a violência, como você sempre se colocou como vítima social, como sempre esperou tudo dos outros.
- Eu não me coloquei
- reagiu ele
- foi a vida. Eu tinha que esperar tudo dos outros, fui criado de favor. Jamais tive autonomia.
"Só Deus tem poder. Só o bem existe realmente. Quando acreditar nisso, toda sua situação se modificará. Experimente e verá".
Acreditar no bem? Como?! A vida para ele só oferecera orfandade e tristezas. Como acreditar em uma força que nunca vira?
Lágrimas assomaram-lhe aos olhos e ele deixou-as correr livremente.
- Se ele pudesse crer na existência do bem - pensou - poderia cultivar a esperança e sofrer menos. Nesse ponto, Magali estava certa. Se pudesse ter fé, enfrentaria a vida com mais coragem.
Pensou em Deus e pediu:
- Eu quero ter fé, mostra-me o caminho!
Uma brisa leve o envolveu, e ele sentiu-se mais calmo. Não viu o vulto de mulher que, aproximando-se com carinho, beijou-lhe a testa, afagou-lhe os cabelos com amor. Sem perceber a amorosa presença, Jovino adormeceu.
Mariazinha saiu da fábrica e caminhou rapidamente para o ponto do bonde. Estava com pressa de voltar para casa. Ao atravessar a rua, alguém a segurou pelo braço enquanto dizia:
- É sempre assim tão apressada?
Ela parou agradavelmente surpreendida:
-Júlio! Não esperava vê-lo por aqui!
— Hoje não era dia de ir a sua casa, mas senti saudade!
Mariazinha corou de prazer. Há dois meses eles estavam namorando. Júlio freqüentava sua casa regularmente três vezes por semana e Mariazinha sentia que estava apaixonada por ele. Seus pais, felizes com o namoro, apreciavam Júlio e a cada dia reconheciam nele melhores condições de tornar Mariazinha feliz.
- Queria ver onde você trabalha!
- Devia ter me avisado. Eu teria me arrumado melhor.
Ele riu enquanto dizia:
- Isso não. Eu queria ver como você é sem artifícios.
— E então? — perguntou ela em tom de desafio.
Ele olhou-a sério e havia algo em seus olhos que fez o coração de Mariazinha bater mais depressa.
- O que eu queria mesmo é vê-la, estar com você. Não agüentei
pensar que hoje não iria encontrá-la.
- Estou feliz que tenha vindo. Eu também sentia muita vontade de estar com você.
Júlio levantou delicadamente o queixo da moça e beijou-lhe os lábios com carinho. Ela sentiu um calor agradável percorrer seu corpo e não disse nada.
O bonde estava cheio e Mariazinha ficou em pé entre os bancos, enquanto Júlio pendurava-se no estribo. Logo alguém desceu e a moça sentou-se. Saíra cansada do trabalho mas nem se lembrava mais disso.
Estava feliz. Alguém mais desceu e Júlio pôde sentar-se a seu lado.
Passou o braço sobre seus ombros e apertou-a de encontro ao peito. Suas cabeças encostaram-se enquanto conversavam baixinho.
De repente, Mariazinha sentiu um arrepio e levantou os olhos.
Encontrou os olhos fuzilantes de Rino que no estribo do bonde, bem no banco onde eles estavam, os fixavam rancorosos. Mariazinha estremeceu.
O que foi? - perguntou Júlio, surpreendido.
Seguiu o olhar dela e seus olhos se encontraram com os de Rino.
Havia tanto ódio neles que ele inquietou-se.
- Você o conhece? Quem é?
Mariazinha desviou os olhos com o coração descompassado. Temia que Rino provocasse uma cena. Fingiu ignorá-lo, respondeu baixinho:
- Depois eu explico. Melhor ignorá-lo.
Afortunadamente, estavam no ponto da casa de Rino e foi com grande alívio que Mariazinha o viu descer.
Durante seu namoro com Júlio, nunca eles haviam se encontrado. Aliás o moço desaparecera do bairro, estivera viajando. Metera-se em uma encrenca e seu pai o mandara passar algum tempo fora.
-Você ficou tensa por causa daquele sujeito. Não gostei da forma como ele nos olhava. Estava louco de ódio.
- Você sentiu?
— Claro. Pensei que ele fosse me agredir.
Mariazinha suspirou fundo. Estava na hora de descer. Enquanto caminhavam para a casa dela, Júlio considerou:
- Quero que me conte o que há com ele. Seja sincera. Eu gosto de você de verdade. Não pode haver segredos entre nós.
- Certamente. Vamos até em casa. Mamãe se preocupa quando não chego no horário. Aviso-a que cheguei e continuaremos nossa conversa.
Depois de conversar com Isabel, sentaram-se na varanda. Júlio esperou que ela falasse.
— Contei a você que tive um namorado, a quem vi poucas vezes e que foi encontrado morto com dois tiros aqui perto, em um terreno baldio atrás do clube.
Júlio assentiu, e ela prosseguiu:
- Você sabe como fiquei impressionada com isso e até adoeci, razão pela qual tive as férias em Santos.
- Sim, continue.
- Porém, não contei os detalhes. Agora, é melhor que saiba para prevenir-se contra o Rino. Ele meteu na cabeça que eu tenho que ser dele e jurou que não serei de mais ninguém.
- Você já o namorou? Deu-lhe esperanças?
- Quando o conheci, ele interessou-se por mim. Encontrei-me com ele algumas vezes. Logo percebi que não o apreciava e que jamais
iria aceitá-lo. Fui franca. Com educação e respeito, disse-lhe a verdade. Jamais dei esperanças. Isso parece haver aumentado seu interesse. Na noite em que conheci o Alberto...
Mariazinha contou minuciosamente tudo quanto acontecera e ao final ele disse:
- Se o assassino do Alberto não estivesse preso e condenado, eu seria capaz de dizer que esse Rino teve a ver com esse crime.
- Você fala como Nair. Ela suspeita dele. Principalmente por ele me haver ameaçado e proibido de contar à polícia sobre a briga.
- Você acompanhou o caso. Quem está preso e por que cometeu o crime?
- O motorista da casa, um moço que foi criado pela família. Era estimado e ninguém suspeitava que ele pudesse matar. Dizem que foi por inveja.
- E ele, o que disse?
-Jura inocência. Jamais admitiu o crime. Mas as provas eram todas contra ele. O revólver era o que ele guardava no porta-luvas do carro e seu cachecol estava nas mãos do morto. Depois, ele foi visto rondando o clube naquela noite. Disse que estava preocupado com o Alberto e procurava por ele.
-Acha que foi ele?
A moça fitou-o interdita. Omitira seus sonhos com Alberto, sua ida à cartomante. Tinha receio de parecer ignorante. Vencendo a vergonha, acabou por relatar o resto, inclusive sua ida à casa de Alberto,
onde não se lembrava de haver chamado a irmã dele pelo nome e acordara surpreendida e envergonhada, na sala de estar da família.
Júlio ouviu-a sério e opinou:
- Naturalmente, o espírito de Alberto está interessado e envolveu você.
— Acredita nisso?
- Por que não? A morte não é o fim de tudo. O espírito continua vivo em outro mundo e conserva os mesmos afetos, problemas, desejos, a mesma personalidade que tinha no corpo.
- Acredita nessas coisas?
- Acredito. Por certo, você é médium.
Mariazinha segurou a mão do Júlio temerosa.
- Por favor, não diga isso. Eu não quero. Custei muito a encontrar equilíbrio. Não desejo voltar a sentir aquelas coisas de novo.
- Não sonhou mais com Alberto? Não soube nada dele?
- Felizmente, não. Naturalmente foi ilusão. Se fosse verdade, ele não teria desistido. Eu estava impressionada, só isso.
> A Nair estava com você quando foi a casa dele. O que ela acha?
- Que o moço que está preso pode ser inocente e que por isso o Alberto disse que tudo está errado. Certamente ela exagera. Suspeita do Rino, ela não gosta dele. Ele não presta, contudo chegar ao crime, não o acredito capaz.
- Eu não diria isso. Gostaria de conversar com a Nair sobre isso.
- Acha bom? Receio envolver-me novamente...
Júlio apertou sua mão com força enquanto dizia:
- Seja o que for que tememos, sempre será melhor enfrentar do que fugir. Depois, ser médium é uma condição natural. Tudo quanto Deus faz é certo. Se ele nos fez mais sensíveis a ponto de percebermos coisas que a maioria das pessoas não percebem, é para o nosso bem. O melhor é aprendermos a usar esse potencial do nosso espírito, comandando-o da maneira adequada do que sermos, à nossa revelia, conduzidos a contragosto por espíritos nem sempre equilibrados a situações
dolorosas e enfermiças.
- Você entende dessas coisas.
- Sou estudioso desses assuntos. A vida me colocou em situações que me mostraram esse caminho. Acredite, precisa vencer o medo,
confiar em Deus, porque ele nunca erra.
- Eu confio em Deus!
— Quem confia não sente medo. O medo está sempre onde não existe fé.
— Ainda assim, estes assuntos me causam arrepios. Veja como estou arrepiada.
- É seu corpo querendo chamar sua atenção para as energias que circulam ao seu redor. Só isso.
Ela sorriu mais calma:
- Você diz as coisas de um jeito!
— Coloco as coisas como elas são, de forma natural. Todas essas coisas são naturais. Pertencem à vida. Chega um tempo na existência de cada um, que não se pode ignorar mais essa realidade. Então, coisas começam a acontecer para demonstrar isso.
Isabel apareceu na porta da varanda com um sorriso nos lábios.
- Vocês estão conversando e ainda não comeram nada. Preparei um lanche para nós.
Júlio levantou-se:
- Desculpe, D. Isabel, por eu haver aparecido fora de hora. Não desejo abusar. Não queria que se incomodasse.
- Nossa casa está sempre aberta para você. Deve aparecer sempre que sentir vontade.
- Obrigado. Eu queria ver Mariazinha, senti saudades. Pretendia trazê-la em casa e ir me embora. Ficamos conversando e o tempo passou.
Isabel sorriu. A alegria que via no rosto da filha tornava-a muito feliz.
- Alegro-me que esteja aqui. Entre, vamos ao nosso lanche.
Mariazinha não estava com fome, porém não quis desagradar a mãe.
A mesa estava posta com carinho e tanto Isabel como José procuraram deixar o moço à vontade, conversaram com ele alegremente.
O ambiente carinhoso que reinava naquele lar, agradava Júlio que sentia-se muito bem ali.
Quando voltaram à varanda depois de comer, Júlio retornou ao assunto.
— Ainda estou pensando no que me contou.
Foi nesse instante que Nair apareceu no portão. Entrou, quando os viu na varanda, hesitou. Levantaram-se ambos.
- Entre, Nair.
A moça abraçou a amiga, cumprimentou Júlio, depois disse:
— Desculpe. Não sabia que você estava aqui.
- Foi meu pensamento que a atraiu para cá - disse Júlio.
- Por quê?
- Estivemos conversando. Mariazinha me contou tudo sobre Alberto e Rino.
- Júlio foi esperar-me na saída da fábrica, voltamos juntos. Rino estava no bonde, olhou-nos com tanto ódio que cheguei a pensar que nos fosse agredir.
Nair não ocultou a preocupação.
— Sempre tive medo que ele os visse.
- O que ele pode fazer? - indagou Júlio. — Mariazinha não o quer.
Deverá conformar-se.
- Não ele. É vingativo, teimoso. Cuidado quando sair daqui à noite, ande prevenido. Poderá encontrá-lo com sua turma em alguma esquina.
- Não tenho medo.
— Cautela não faz mal a ninguém.
Mariazinha foi buscar mais uma cadeira.
— Não vou demorar...
- Fique - pediu Júlio. - Eu queria mesmo lhe falar, ouvir sua versão dos fatos.
- Que fatos?
- A morte do Alberto, o envolvimento de Mariazinha, tudo.
Nair olhou a amiga sem saber o que dizer. Mariazinha pediu:
- Conte tudo, Nair. Já contei a ele o que passei, não temos segredos.
Concordando, Nair contou ao moço tudo quanto Mariazinha já sabia e terminou um pouco hesitante:
— Estou contente por Mariazinha haver conhecido você e estar bem agora. Receio que este assunto possa perturbá-la novamente.
Júlio retrucou:
— O medo sempre é prejudicial. Em qualquer situação o melhor será enfrentá-la, compreendê-la. Se o espírito de Alberto deseja esclarecer alguma coisa, ele voltará.
Mariazinha arrepiou-se:
— Não acredito nisso. Ele não teria ido embora sem conseguir o que desejava.
- Ele pode estar tentando agir de outra forma, através de outras pessoas para não perturbá-la.
Nair admirou-se:
-Você entende desse assunto!
— Um pouco. O suficiente para perceber isso.
- Falar sobre isso não vai prejudicar Mariazinha?
- Nesses casos, é sempre melhor conhecer do que ignorar. Diga-me com sinceridade, você acha que esse motorista é mesmo o assassino?
Nair remexeu-se na cadeira, tomou coragem e respondeu com voz firme:
- Jovino é inocente. Não matou Alberto.
- Como sabe? — tornou Mariazinha. - Como pode afirmar isso?
- Porque eu o conheço. Sei que é inocente. Acredito que esteja dizendo a verdade.
Mariazinha olhava entre surpreendida e assustada; Júlio interessou-se ainda mais:
- Como assim?
Nair contou tudo. Sua amizade com Magali, suas dúvidas, a ida ao presídio e as mensagens no Centro Espírita.
Mariazinha não saía da surpresa:
- Você não me disse nada! Como pôde ocultar tudo isso?
Nair abanou a cabeça.
- Desculpe. Não fiz por mal. Temia perturbá-la. Você está tão bem! Agora, com o Júlio, ganhei coragem. Mesmo porque tenho a certeza da inocência de Jovino e o verdadeiro assassino está solto por aí. E se houver sido o Rino? Vocês precisam estar prevenidos.
- Que horror! - Mariazinha encolheu-se, apertando fortemente as mãos que Júlio retinha entre as suas.
- Terei feito mal em contar?
- Nem pense nisso. Como você diz, o melhor é estar prevenido.
- E se foi mesmo o Rino? - Mariazinha estava pálida. — Ele poderá tentar algo contra você!
- Calma - disse Júlio. - Por enquanto é apenas uma suspeita. Não sabemos nada. Pode não ter sido ele.
- Nesse caso... - começou Nair.
- Nesse caso, o melhor será investigar. Tentar descobrir a verdade.
- Vai ser difícil. O Jovino não esclareceu nada. Não sabe nem como a arma sumiu do porta-luvas.
- Vocês sabem o nome completo e o endereço do Rino?
— Sei — disse Mariazinha.
- Eu quero por escrito. Vamos colher informações sobre ele. Há pessoas que trabalham nesse setor.
- Um detetive? Isso custa muito dinheiro!
Júlio sorriu.
- Tenho um amigo que fará isso por mim, de graça. Vamos saber o que esse moço faz na vida, como age ou pensa.
Nair suspirou:
- Sinto-me aliviada por haver contado. Eu e Magali temos estado sozinhas.
— Têm tido a ajuda de Deus e dos amigos espirituais, e até do maior interessado que é o Alberto. Como acham que conseguiram vencer a resistência do Jovino?
— É verdade. Foi surpreendente e emocionante. Confesso que não contive as lágrimas. Estou animada com seu interesse.
- Pois pode contar comigo. Mariazinha é livre para escolher seu caminho. Esse moço não tem o direito de perturbá-la.
- Tenho medo dele! Não o desafie! - ponderou Mariazinha.
- Não sou de briga. Porém não gosto de imposições nem de injustiças. Vamos procurar a verdade. Parece-me que Deus está conosco e deseja restabelecer as coisas. Podemos nos tornar instrumentos dele. Quando estamos com Deus, tudo se resolve com facilidade.
- Que alívio! - desabafou Nair radiante. - Dividir esse problema fez-me bem. Magali gostará de saber que contamos com aliados.
- Gostaria de conhecer o Jovino. Como é ele?
Nair permaneceu pensativa durante alguns segundos depois disse:
— No início, ele pareceu-me revoltado, descrente, negou até a existência de Deus... Agora, percebo que é apenas um menino assustado. De qualquer forma, nosso apoio fez-lhe bem. Pude notar que tem muito carinho por Magali e mostra-se atencioso comigo. Não sei explicar por que, mas acredito que esteja dizendo a verdade. Há algo em seus olhos que me diz que Jovino não seria capaz de haver cometido esse crime. Fala das pessoas da família e do próprio Alberto com muito afeto.
Júlio ouvia atento, ao final disse:
- Vocês se incomodariam se eu as acompanhasse ao presídio?
Nair deu de ombros.
— Da minha parte, acho bom. Falarei com Magali.
- Faça isso. Quando pretendem ir visitá-lo?
- Sem ser no próximo domingo, no outro.
- Quer ir também? - indagou Júlio a Mariazinha.
- Não sei. Nunca fui a um presídio. Vou pensar...
Júlio assentiu.
- Pense. Se quiser, iremos juntos. Lembre-se, Mariazinha, que o medo distorce a verdade e tumultua nossa vida. Quando Deus nos coloca em determinadas situações, precisamos estar preparados para vivenciá-las sem receio, porque vencendo-as, desenvolveremos nossos potenciais, melhoramos nossa vida. Depois, agindo no bem, acreditando no bem, contamos com a ajuda de Deus. Quando estamos com Deus, quem nos prejudicará?
Mariazinha considerou:
- Quando você fala, meu medo desaparece. Minha mãe não vai gostar, mas irei com vocês se Magali concordar.
— Conversarei com D. Isabel. Ela vai compreender.
Continuaram conversando animadamente. Quando Nair retirou-se estava feliz. Júlio revelava-se um moço sério, bom, interessado em fazer o bem. Parecia gostar de Mariazinha de verdade. Aquele namoro tinha tudo para dar certo. Desejava à amiga toda a felicidade do mundo. O único problema era o Rino, mas Júlio estava prevenido. Rino não seria tão louco a ponto de agredi-lo e de despertar suspeitas.
A esse pensamento, Nair sentiu um aperto no coração. Ele poderia mandar outra pessoa, não aparecer. Era vingativo, e seu louco amor por Mariazinha, um motivo muito forte.
- Devo confiar em Deus - pensou, tentando acalmar-se. Estamos fazendo o bem e ajudando um inocente. Ele há de nos mostrar a verdade. É só o que desejamos, descobrir a verdade.
No dia seguinte, telefonou a Magali, colocando-a a par de tudo.
Ela ficou radiante. Finalmente aparecera alguém interessado em ajudá-las. Já no sábado, encontrou-se com Nair e juntas foram à casa de Mariazinha onde Júlio as esperava.
Isabel estava nervosa. A presença da irmã do moço assassinado poderia transtornar Mariazinha. Preferia que ela esquecesse Alberto.
Era loucura pretender envolver-se nesse caso. Contudo, Júlio estava decidido a convencê-la do contrário. Isabel relutava.
- É uma temeridade. Nada temos com o caso. O moço morreu mesmo e nada podemos fazer em seu favor. Mariazinha sofreu muito já por causa disso.
- Compreendo sua preocupação. Entretanto há um moço que está preso inocente.
— Não temos certeza - argumentou ela.
- A senhora diz bem, não temos certeza. Por isso mesmo é preciso descobrir a verdade. E se ele for inocente mesmo? Já pensou a tremenda injustiça? E se esse moço fosse seu filho, como a senhora estaria?
Isabel ficou pensativa por alguns segundos, depois disse:
- Pensa que poderão descobrir alguma coisa?
- Tentaremos. Tudo indica que o próprio Alberto esteja interessado em esclarecer as coisas.
- Cruz-credo! Você fala dele como se estivesse vivo!
Júlio sorriu alegre:
- Ele está vivo! O corpo morre, mas a alma, o espírito sobrevive.
- Não creio - respondeu ela.
- Ele já deu inúmeras provas de que está vivo e preocupado com o erro judiciário que foi cometido contra o Jovino.
- Você diz isso de um jeito! Parece verdade.
- E é D. Isabel. A morte é apenas uma mudança de estado, de lugar.
- Não gosto de falar nesses assuntos. Tenho medo.
- Não precisa preocupar-se. O Alberto não deseja fazer nenhum mal. Não deve temê-lo.
- Ainda penso que vocês deveriam esquecer esse caso... Trazer essa moça logo aqui em casa...
Júlio levantou-se, dizendo:
- Não sabia que a senhora não ia gostar. Ela desejou nos falar, e Mariazinha convidou-a a vir aqui. Contudo, se a senhora não concorda, iremos esperá-la lá fora, conversaremos em outro local. Desculpe, não desejo aborrecê-la.
O rosto de Isabel distendeu-se. A cada dia gostava mais de Júlio.
Sua delicadeza e educação, seu carinho com Mariazinha tocavam fundo seu coração. Não queria desgostá-lo. Depois, ele entendia desses assuntos, confiava nele.
- De forma alguma, - respondeu. - você sabe qual é minha preocupação. Quanto ao resto, concordo plenamente. Se esse moço for inocente, alguém deve tentar ajudá-lo. Segundo sei, ele não tem família.
Se fosse meu filho, eu estaria desesperada. Podem receber a moça aqui
em casa. Não tem cabimento agora vocês conversarem lá fora. Só peço para terem cuidado com Mariazinha.
Júlio colocou delicadamente a mão sobre o braço de Isabel ao responder:
- Não tema. Mariazinha é médium e por isso fugir não vai resolver seu problema. Ao contrário. É enfrentando, compreendendo, estudando, que ela poderá ficar bem.
- Ela está bem. Por isso é que eu não queria voltar a esse assunto que ela custou tanto a superar.
- Ela ainda não o superou. Tanto que quando falamos sobre isso, ela se ressente. Se houvesse superado, não sentiria mais nada.
- Nesse caso, como ela melhorou?
- O Alberto afastou-se temporariamente. Magali procurou um Centro Espírita, isso deve tê-lo ajudado. Principalmente, conseguiu que sua irmã se interessasse pelo Jovino e tentasse libertá-lo. Foi isso que o acalmou e o fez deixar Mariazinha em paz. Porém, ele pode voltar, se julgar necessário, não se esqueça disso.
— Deus me livre!
- Ele é um moço bom, não há o que temer.
— Você fala dos mortos com uma calma!
- Não há motivo para temer. Não cai uma folha da árvore sem a vontade de Deus.
Isabel abanou a cabeça:
- Não sei não... Mariazinha é todo nosso tesouro. Cuide bem dela.
- Obrigado por confiar em mim. Velarei por ela com todo carinho.
Pode ter a certeza de que se eu suspeitasse que isso iria prejudicá-la, seria o primeiro a evitar.
Mariazinha apareceu na porta da sala:
- Elas estão chegando.
Magali emocionou-se. Abraçou Mariazinha com carinho. Apertou a mão do Júlio e de Isabel. Quando se acomodaram na sala, Magali considerou:
- Fiquei feliz por contar com vocês. Não sabia que atitude tomar e estava desanimada.
- Sua família, o que pensa?
- Com eles, não podemos contar. Mamãe está muito revoltada. Não se conformou com a morte do Alberto. Meu pai mergulhou no trabalho e mal o vemos em casa, meu irmão Rui pensa como eles. Ninguém duvida da culpabilidade do Jovino.
-E você?
- Eu sei que ele não matou meu irmão. Não sei explicar por que. No começo eu duvidava, mas agora, depois de tê-lo visto, olhado em seus olhos, não o julgo capaz de ter feito esse crime.
- Como era esse Jovino? Ele foi criado em sua casa.
- Foi. Odete veio trabalhar em nossa casa antes do meu nascimento, o Jovino tinha meses. Mamãe conta que gostava muito dela. Quando ela morreu, atropelada por um automóvel, Jovino ficou só no mundo.
A Odete era mãe solteira e não gostava dos parentes aos quais nunca procurava. Mamãe nem pôde avisá-los de sua morte porque sequer sabia onde encontrá-los. Jovino a esse tempo estava com quatro ou cinco anos. Meus pais resolveram adotá-lo. Era um menino obediente e nunca deu trabalho. Adorava o carro de papai e ficou muito feliz por cuidar dele e preparar-se para ser nosso motorista. Estudou, fez o ginásio e depois não quis continuar.
— Como ele era com vocês em casa? — indagou Júlio.
- Ele era como um irmão mais velho, embora fosse mais novo do que meus irmãos. Tinha muito cuidado comigo, ia levar-me e buscar-me no colégio, todos os dias. Alberto era distraído, e ele vivia cuidando para ele não esquecer dos compromissos importantes. O Rui era briguento e metia-se em encrencas, e ele sempre procurava acalmar os ânimos. Jovino nunca deu nenhum problema. Quando foi preso, todos ficamos muito chocados.
- Ninguém aventou a hipótese dele ser inocente?
Magali deu de ombros.
- Estávamos todos muito abatidos. Ninguém tinha condições de pensar claramente. A polícia concluiu, e nós não duvidamos. As provas apresentadas pareciam concludentes.
- Por que mudou de opinião? - quis saber Júlio.
- Por causa dos acontecimentos. Não conhecia Mariazinha e quando a vi no portão de minha casa, fui ver o que estava acontecendo. Você já sabe da história. Ela olhou-me fixamente, eu vi amor em seus olhos quando disse: "Magali, que saudade!"
— Não me lembro de nada disso. Vocês falam, porém custa-me a crer que eu tenha dito isso!
- Pois disse! - afirmou Magali. - Chamou-me pelo nome sem nunca me ter visto antes. Fiquei intrigada porque depois, quando você voltou ao normal, não sabia onde estava, nem quem eu era. Como explicar isso?
- A forma mais plausível é a de que Alberto tenha envolvido Mariazinha e tenha falado com você através dela. Isso é fato comum na mediunidade - esclareceu Júlio.
- Eu não entendia nada desses assuntos. Contudo, não pude esquecer o episódio e desejei aproximar-me de Mariazinha para tentar descobrir o que acontecera. Vim procurá-la, mas ela havia viajado.
Conversei com Nair e fiquei sabendo dos problemas de Mariazinha. O resto vocês já sabem. Fui procurar a mãe de uma amiga que é espírita e iniciou-me nesses assuntos. Agora sei que Alberto continua vivo, vivendo em outra dimensão, deseja ajudar o Jovino porque sabe que ele é inocente. Quer contar à minha família, principalmente a minha mãe, que ele continua vivo, que a separação é temporária. Porém, ela não aceita. Vive em desespero. Sua revolta transformou nossa casa em um lugar triste, desagradável. Ninguém pode sorrir mais, esquecer, viver.
Meu pai, meu irmão, eu, permanecemos em casa o mínimo possível.
Desse jeito, ela acabará destruindo todas as nossas possibilidades de alguma alegria nesta vida!
- Ela passa por uma grande dor - considerou Isabel.
— É verdade - ajuntou Júlio. - Deus deve estar muito errado.
Todos olharam-no admirados. Ele prosseguiu:
— Já que ele permitiu que esse crime acontecesse!
Isabel encorajou-se a dizer reticenciosa:
- Mas Deus é perfeito! Você não pode dizer isso!
- Sim. Ele é perfeito! Logo ele não erra. Se ele permitiu esse acontecimento tão doloroso, é porque terá suas razões, seus motivos que nós desconhecemos. Reconhecer isso poderia confortar a dor dos envolvidos. A fé restabelece a harmonia e transforma acontecimentos desagradáveis em lições proveitosas de amadurecimento. Um dia, todos saberemos as causas que provocaram esse triste acontecimento e então poderemos compreender melhor. Cultivar revolta, ressentimentos, mágoas, não vai melhorar os fatos passados, que fogem ao nosso controle, nem devolverá a vida de quem partiu. Mas, certamente aumentará a infelicidade alimentando-a, atraindo doenças, afastando todas as possibilidades de quem está aqui agora, precisa e pode ser feliz.
- É assim que eu penso - disse Magali, comovida. - Nada devolverá a vida do Alberto. O melhor agora, será esquecer e procurarmos aproveitar a oportunidade de viver aqui, de aprender.
Júlio sorriu.
- Vejo que tem aproveitado suas leituras.
- Tenho, sim. Mamãe diz que eu sou fria porque não alimento sua depressão.
- Dramatizar exageradamente uma situação, só prejudicará ainda mais. Infelizmente, muitas pessoas têm tendência de exagerar as coisas desagradáveis que lhe acontecem. Assim, ampliam sua cota de sofrimento, ao mesmo tempo que enfraquecem seu espírito. Acabam quase sempre dominados por entidades desencarnadas que as subjugam e conduzem.
- Meu Deus! - disse Nair. - Isso pode acontecer?
- Pode - respondeu Júlio. - Cada um escolhe o caminho que deseja seguir. Quem prefere a dor, o sofrimento, a revolta, não se alimenta de fé, não reage, torna-se vulnerável à energia doentia desses espíritos com os quais se afina.
- Isso pode acontecer com mamãe? - perguntou Magali.
- Pode. Mas você pode ajudá-la a sair dessa situação, tentando esclarecê-la sobre a vida espiritual.
- Ela não acredita! - desabafou Magali.
- Agora. Com o tempo, a própria vida se encarregará de mostrar-lhe a verdade.
- É isso que o Alberto quer - tornou Magali. - Eu sei que ele deseja isso.
- Ele também precisa de nossas preces, de nossos pensamentos otimistas. É difícil para ele desligar-se do lar, dos amigos, da vida na Terra.
Foi arrancado do corpo em plena mocidade, quando estava cheio de sonhos e projetos. Ele precisa de pensamentos calmos e compreensivos. A atitude mental de sua mãe deve fazê-lo sofrer. Por certo, ele deseja que ela se acalme e procure compreender, para que ele possa seguir seu caminho.
- De todas as formas, eu acho que se mamãe reagisse um pouco e aceitasse o que ela não pode mudar, tudo melhoraria e aos poucos, nós poderíamos voltar a viver uma vida normal.
Isabel baixou a cabeça comovida. Podia compreender o sofrimento dessa mãe, mas também reconhecia que de nada valia revoltar-se.
— Foi muito proveitosa nossa conversa - disse Júlio. — Temos já alguns objetivos a atender: descobrir e provar a inocência de Jovino.
Ajudar sua família a encontrar a fé e a serenidade. Assim, estaremos por certo atendendo ao espírito de Alberto, que por sua vez poderá seguir em paz.
Mariazinha olhou Júlio com carinho. Sentiu brotar dentro de si um profundo respeito e admiração para com ele, um misto de confiança e de amor, uma agradável sensação de paz.
Faltavam dez minutos para as quatorze horas quando o grupo deu entrada no presídio. Magali, Nair, Júlio e Mariazinha. Isabel dera permissão para a filha ir e condoída pela situação de Jovino, preparara algumas guloseimas que eles levavam de boa vontade.
Desta vez, foram conduzidos a uma sala onde poderiam conversar mais à vontade sem o incômodo guichê. Jovino apareceu e havia ansiedade em seus olhos que brilharam de satisfação vendo as duas moças. Após cumprimentá-las, Magali apresentou os companheiros:
- Esta é Mariazinha, lembra-se dela? Este é o Júlio.
Jovino olhou-a curioso. Por causa dela as coisas haviam acontecido. Reconhecia que ela não tivera nenhuma culpa, porém, vendo-a, seu rosto tornou-se sério e a ansiedade reapareceu.
Constrangida, Mariazinha disse:
- Você deve pensar que eu tenha sido o motivo da tragédia. Já sofri muito por isso, mas o que aconteceu, ninguém poderia prever.
- Eles acreditam em você. Vieram porque querem ajudar-nos a encontrar a verdade!- disse Magali.
Jovino respirou fundo. Júlio esclareceu:
- Sentimos muito o que lhe aconteceu e viemos dizer-lhe que vamos investigar. Haveremos de descobrir o verdadeiro culpado e fazer justiça.
Estendeu a mão para Jovino que a apertou.
- Desculpe. Ultimamente eu não tenho conhecido gente boa.
Obrigado por desejarem ajudar-me.
Estendeu a mão para Mariazinha.
- Sei que não tem culpa.
A moça apertou sua mão comovida. Avaliava o que ele estava passando.
- Vamos nos sentar - convidou Jovino indicando o banco vazio a um canto da sala.
Acomodaram-se. Foi Magali quem falou primeiro.
- O Júlio conhece todo o caso e entende muito dessas coisas de espíritos.
- Sou apenas um estudioso do assunto. Sei o bastante para afirmar que o Alberto continua vivo em outra dimensão e que deseja provar sua inocência.
Jovino admirou-se:
- Acredita seriamente nisso?
- Acredito. Os fatos estão mostrando essa verdade. Ele sabe que não foi você quem o matou.
Os olhos de Jovino encheram-se de lágrimas que ele lutou para reprimir. Foi com suavidade que respondeu:
- O Alberto era meu irmão. Crescemos juntos, ele me ensinava quando eu estava na escola, eu fazia tudo quando ele me pedia. Era meu ídolo. Eu gostaria de ser como ele, bonito, bom, inteligente. Tinha muita estima por ele. Jamais levantaria uma palha contra ele. Logo eu...
Parou engasgado. Não sabia por que estava tão emocionado.
Geralmente, conseguia controlar-se, porém, naquela tarde, uma comoção diferente o envolvia tornando-o sensível e perturbado.
Magali abraçou-o com carinho e Jovino, não podendo conter-se mais, chorou comovido. Apoiado no ombro de Magali, sentindo a amizade dela, soluçou durante alguns instantes.
Mariazinha levantou-se e puxando Jovino pelo braço, fê-lo voltar-se para ela e abraçou-o dizendo com voz embargada:
-Eu também gosto muito de você. Vou tirá-lo daqui! Tenha fé em Deus!
Jovino tremia, sentindo arrepios pelo corpo, enquanto Mariazinha, olhos fixos em um ponto indefinido continuava:
- Tenha esperança, companheiro, o que é esse problema para um crânio como você? Tudo vai dar certo.
Jovino abriu os olhos assustado e empalideceu. Júlio levantara-se e postara-se atrás de Mariazinha enquanto as duas moças olhavam admiradas.
Mariazinha soltou Jovino e teria caído se Júlio não a houvesse amparado.
— Tudo está bem — disse Júlio com voz calma — não foi nada. Passou. Sente-se aqui.
Mariazinha olhava, parecendo não entender. Júlio continuou:
— Respire fundo. Passou.
A moça suspirou.
- O que aconteceu? Tive outra crise?
- Não se assuste. Tudo é natural, não tenha medo.
Jovino pálido, olhava Mariazinha com fundo respeito.
- Quem me abraçou não foi ela - disse - foi o Alberto! Agora eu sei que ele está vivo. Acredito em tudo que vocês me disseram.
Mariazinha segurou a mão de Júlio com força.
- Como pode ter certeza? - perguntou Magali emocionada.
- Porque ele falou como quando eu lhe pedia para me ensinar matemática: "O que é esse problema para um crânio como você?" Ele sempre me dizia isso, todas as vezes, eu até já sabia e chegava a falar ao mesmo tempo que ele. Era ele mesmo, tenho certeza. Depois, eu estou muito comovido. Não consegui chorar nem quando fui condenado. Eu creio, agora eu creio!
- Ele deseja que você nos ajude, cultivando a esperança e tendo fé em Deus.
— Talvez agora ele possa dizer o nome do verdadeiro culpado! — desejou Jovino.
- Não sei se ele terá permissão para fazer isso. Os acontecimentos da vida obedecem a uma necessidade de esclarecimento e de desenvolvimento dos envolvidos. Os espíritos desencarnados não têm permissão para precipitar as coisas. Tudo acontecerá pelas vias naturais, quando chegar a hora e for oportuno.
- Nesse caso, tudo ficará como estava antes - disse Nair. - Ele não esclareceu nada.
— Engana-se - respondeu Júlio. - Ele nos deu a certeza de que estamos no caminho certo. A cada um de nós, deu alguma coisa nova.
Ao Jovino, a certeza da imortalidade e a esperança no futuro. A Magali,
a certeza de que ele continua vivo e consciente da situação. A mim, a certeza da inocência do Jovino e de que estamos sendo ajudados em nossos propósitos. A Mariazinha, a comprovação de uma mediunidade preciosa e muito bem sintonizada, que permitiu ao Alberto expressar-se fielmente. Todos ganhamos muito hoje com o que aconteceu.
- Tem razão - reconheceu Magali - A prova foi muito convincente.
Eu mesma não me recordava desse hábito do Alberto de fazer frases jocosas.
- Estou lendo o livro que Magali me deu sobre Espiritismo.
Encontrei ali muitas explicações sobre as possíveis causas do que me aconteceu. Contudo,eu duvidava. Parecia-me fantasia demais. Viver depois da morte! Reencarnar!Sinceramente, eu temia estar entrando em uma ilusão que me levaria no fim a um desânimo maior. Agora tudo ficou diferente. Vou estudar melhor e com mais atenção. Percebi que de fato, eles estão certos. Os espíritos existem e podem comunicar-se conosco.
- Vou trazer outros livros sobre o assunto. Tenho a certeza de que o esclarecerão. Agora vamos estudar as providências práticas. Tenho um amigo que está investigando o caso. Ele foi detetive particular e não está cobrando nada para fazer isso.
- Não posso pagar. Nem para um advogado tenho dinheiro. Se ao menos eu pudesse trabalhar!
- Agora não pode. Não se preocupe. Vamos nos empenhar em descobrir alguma coisa. No momento, ele está colhendo informações sobre o Rino. O moço que brigou com o Alberto.
- Boa idéia, Júlio. Sempre desconfiei dele!
- Logo teremos informações.
- Não há testemunhas do crime e se as houver, não desejam falar - disse o Jovino.
- Vamos manter o pensamento positivo. Não entre no pessimismo. Ao contrário. Pense sempre que a polícia vai encontrar o verdadeiro culpado, que pode não ser esse moço. Não sabemos ainda se foi ele realmente.
- Está bem. Obrigado por terem vindo. Mariazinha, de agora em diante terá em mim um amigo agradecido. Deus lhe pague o que fez por mim!
- Eu não fiz nada! — respondeu ela, um pouco perturbada.
Júlio abraçou-a carinhosamente:
— A mediunidade, quando bem sintonizada, pode fazer muitos benefícios às pessoas. É uma bênção de Deus.
Mariazinha não respondeu, havia em seus olhos o brilho de uma lágrima e em seu coração, um sentimento de alegria gratificante. Sentia-se serena, feliz. Por fim, disse:
- Júlio, eu não sabia que podia acontecer dessa forma. Estou comovida. Era como se Jovino fosse meu irmão, e eu lhe quisesse muito bem. Ainda estou sentindo essa sensação!
- É o Alberto quem está sentindo isso. Você está registrando os sentimentos dele.
- É incrível! - comentou Nair, admirada.
- É natural - esclareceu Júlio. - A mediunidade é isso. A pessoa pode perceber além dos cinco sentidos físicos e registrar pensamentos, emoções, sentimentos, idéias, dos seres que vivem em outras dimensões. Acontece mais vezes do que supomos.
A conversa seguiu animada por mais meia hora, quando esgotou o tempo permitido para visita. Despediram-se. Jovino abraçou-os comovido. Não estava mais só. Sentia que esses amigos o encorajavam a ter esperanças em melhores dias para o futuro.
Saíram e tomaram o bonde para o centro da cidade. Júlio convidou-as para tomar sorvete.
Sentados na sorveteria, conversavam animadamente. A certa altura, Mariazinha calou-se pensativa, alheando-se do ambiente. Os três notaram e Júlio perguntou:
- O que aconteceu?
- Estou pensando em uma coisa...
- Em quê? — perguntou Nair.
- No que aconteceu no dia em que encontrei o Rino. Foi muito estranho.
- O que foi?— indagou Júlio — Conte tudo.
Mariazinha balançou a cabeça afirmativamente:
- Está bem. Foi na véspera da minha viagem a Santos. Vim à cidade para algumas compras e na volta, no ponto do bonde, Rino apareceu. Veio logo falando que estava com saudades, que me amava e que eu ainda o aceitaria.
- E você? - inquiriu Júlio.
- Fui franca, como sempre que ele insistia. Disse que não o amava, que ele desistisse. Porém, ele não se conteve e tentou beijar-me. De repente, senti uma raiva muito grande. Tive vontade de esmurrá-lo. É só o que me lembro. Tive uma crise. Quando dei por mim, estava sentada no chão e o rosto pálido e preocupado de Rino debruçado sobre mim. Fiquei envergonhada. Procurei levantar-me, ele me ajudou. Uma senhora segurava meus pacotes. Sentia-me atordoada, fraca, meu peito doía. Rino estava modificado. Respeitoso, amável, desculpando-se.
Levou-me até uma leiteria onde insistiu para que eu tomasse café.
- Não se lembra de nada do que aconteceu depois que sentiu raiva? - perguntou Júlio.
- Nada. Fiquei assustada, nervosa. Agora, estou pensando que talvez tenha sido o espírito de Alberto.
- É muito provável - concordou Júlio. - O Rino não comentou nada?
- Ele estava preocupado. Disse que eu pronunciara palavras desconexas. Infelizmente, não consigo lembrar-me. Foi como hoje. Só me lembro que de repente, olhei para Jovino e senti muita emoção, muita amizade, vontade de abraçá-lo. Depois, mais nada. Quando voltei, sentia certa fraqueza e não me lembrava de haver dito nada.
- Mas você disse - esclareceu Nair. — Todos ouvimos. Até sua voz ficou um pouco diferente.
— Se foi o Alberto - tornou Magali — o que ele teria dito ao Rino?
- Uma coisa é certa. O Alberto sentia raiva dele. Essa emoção, quem sentia era ele - considerou Júlio.
— Eu também sinto raiva quando ele insiste em me namorar. A raiva poderia ser minha. Ele estava tentando me abraçar contra a minha vontade.
- Sua raiva iria a ponto de querer esmurrá-lo? Geralmente é o homem quem briga aos murros. É claro que se o espírito de Alberto estava perto, deve ter ficado zangado com a atitude dele e é provável que tenha querido defendê-la.
- O Alberto era muito cavalheiro. Seria incapaz de abraçar uma moça contra a vontade dela. Se ele estivesse aqui, por certo a defenderia - opinou Magali.
- Fale mais da atitude de Rino. Ele voltou a insistir em namorá-la?
- Não. Ao contrário. Ele estava modificado. Tratou-me com amabilidade. Desculpou-se. Disse que respeitava minha vontade. Foi muito delicado.
- Aí tem coisa - ajuntou Nair. - Rino jamais seria delicado. É alterado, briguento e quer que sua vontade prevaleça.
- Acha que me enganei? - perguntou Mariazinha.
- Não é isso. Acho que ele deve ter ficado muito assustado.
- Ele nunca me viu desmaiar. Pode ser que não tenha acontecido nada de mais. É que foi igualzinho ao que aconteceu hoje. Só que naquele dia senti raiva e a sensação foi muito desagradável, enquanto que hoje, ao contrário, senti amor, amizade, foi muito bom.
— De qualquer forma, você deve ter sido envolvida por algum espírito.
Foi ele quem sentiu raiva. Tem certeza de que não o agrediu? — perguntou Júlio.
- Não sei. Não consigo lembrar-me. É isso que me assusta. Como posso falar, fazer coisas das quais não me lembro depois?
- Você tem um tipo de mediunidade pouco comum. Precisa estudar o assunto para compreender de que forma deverá educá-la para que se apure a cada dia e possa cumprir sua finalidade. Creia Mariazinha, que não corre nenhum risco, ao contrário, trata-se de uma capacidade que pode beneficiar pessoas. Você é um canal de Deus através do qual a revelação divina se faz presente para mostrar aos homens a verdade.
A maioria das pessoas não tem essa possibilidade.
Mariazinha apertou a mão que Júlio retinha entre as suas, segurando as dele com força.
- Eu não quero ser nada disso. Desejo levar vida comum, como as outras pessoas.
- Nada a impedirá - respondeu Júlio, calmo. - O médium é pessoa como qualquer outra, com os mesmos defeitos e qualidades comuns. Apenas tem habilidade para registrar e transmitir coisas de outras dimensões da vida, além dos nossos cinco sentidos. É só isso.
- Eu queria lembrar o que foi que eu disse - reclamou Mariazinha.
— O médium inconsciente interfere menos na comunicação dos espíritos. Se você fosse consciente, talvez não tivesse permitido ao Alberto se expressar com tanta fidelidade. O médium consciente também pode transmitir fielmente uma comunicação, sem interferir, permitindo ao espírito que o envolve manifestar-se livremente,mas para isso precisa educar convenientemente sua sensibilidade. Conhecer muito bem a interferência dos espíritos e os mecanismos dessas comunicações. Isso leva tempo e exige experimentação adequada. Depois, você está desenvolvendo agora. Com o tempo pode acontecer até que você se recorde das comunicações. Quando estiver mais calma, mais preparada emocionalmente.
- Que bom! - exclamou Nair. - Deus faz tudo certo!
- Por quê? - indagou Mariazinha.
- Você arranjou o namorado que lhe convinha. O Júlio entende desse assunto. Não podia haver melhor combinação — finalizou ela.
- Sem falar da ajuda que está prestando a todos nós, que não entendemos nada sobre isso - considerou Magali.
Mariazinha sorriu. Confiava no Júlio e mais do que isso, começava a amá-lo de verdade.
— Eu também agradeço a Deus tê-lo colocado em meu caminho - disse com suavidade.
Júlio olhou-a nos olhos enquanto dizia sério:
- Pois pode preparar-se para aturar-me durante muito tempo. Não pretendo deixá-la escapar. Comigo, não precisa ter medo de nada. Vamos aprender juntos e perceber as coisas do espírito. Vai ser uma viagem maravilhosa!
Conversaram durante alguns minutos mais e quando saíram, Magali despediu-se dizendo:
- Obrigada por tudo.
Abraçaram-se, trocando poucas palavras, porém, todos sabiam que naquela tarde uma grande e verdadeira amizade havia se estabelecido entre eles.
Magali chegou em casa pensativa. A cada dia mais suas dúvidas se dissipavam. Acreditava que Alberto continuava vivo em outro lugar e que estava perto deles tentando comunicar-se. Gostaria de ser médium para poder sentir-lhe a presença, vê-lo, talvez ouvir telepaticamente suas palavras.
Entrou e encontrou a mãe sentada na sala. Vendo-a, perguntou:
- Onde esteve a tarde inteira?
- Com alguns amigos, mamãe.
- Demorou!
- Fomos tomar sorvete e a conversa estava muito agradável. E o resto do pessoal?
- Todos saíram. Seu pai, como sempre trabalhando. As pessoas não
têm nenhuma consideração. Chamam-no aos domingos e fora de hora.
Ele nunca diz não, nem impõe horário. Afinal, ele é um ser humano, tem direito ao descanso. Depois, ele tem família. Não temos condições nem de conversar.
Magali não soube o que responder. Percebia que o pai procurava sair de casa sempre que podia, permanecendo ali o menos possível.
Aurora prosseguiu amargurada:
- Você também não liga mais para mim, para minha solidão. O Rui nem almoçou em casa hoje.
Em outros tempos, Magali teria dado uma desculpa e se recolhido ao quarto. Porém, naquela tarde, vendo a mãe tão sofrida, tão alheia a tantas coisas que ela estava descobrindo, sentiu vontade de conversar. Sentou-se a seu lado no sofá e disse calma:
- Estou aqui, mamãe. Posso fazer-lhe companhia.
Aurora olhou-a surpreendida.
- Esta casa ficou muito triste depois da tragédia - disse.
— Mamãe, há muitas coisas neste mundo que não temos condições de compreender. O que nos aconteceu foi terrível, mas Deus não impediu. Ele deve ter uma razão boa. Deus faz tudo certo, você não acha?
Aurora abanou a cabeça desalentada. Muitas vezes havia se perguntado por que Deus permitira essa desgraça. Nunca encontrara resposta.
- Não sei — disse com tristeza. - Até hoje não entendi por quê.
- É difícil, mamãe, por causa da perda sofrida. Contudo, neste mundo muitas pessoas passam por provas difíceis e dolorosas. Nós não somos os únicos. Deve haver uma razão para isso. Deus é bom e justo.
Se permite a dor e o sofrimento é porque isso nos vai ajudar a perceber certas coisas, sensibilizar nossa alma, amadurecer nosso espírito.
- Não posso aceitar — retrucou Aurora sacudindo a cabeça – um moço bom, nobre, belo, inteligente, morto brutalmente pela inveja de um menino que comia em nossa mesa, que aqui só recebeu amparo e amizade.
Magali retrucou com firmeza:
- Você sofreu duas perdas. A do Alberto e a do Jovino a quem estimava verdadeiramente. Sofre pela morte do Alberto, mas sofre muito também pela ingratidão do Jovino. Você o queria bem. Orgulhava-se dele.
Aurora levantou o rosto e em seus olhos brilhava o rancor:
- Isso é verdade. Fui enganada. Alimentei a mão que matou meu filho. Deus há de castigá-lo por isso. O remorso há de torturá-lo enquanto viver!
- Mãe, não posso devolver a vida do Alberto, isso é impossível, mas posso aliviar seu coração de um grande peso.
Aurora olhava-a sem compreender. Magali prosseguiu:
- Sei que não foi Jovino quem matou Alberto. Tenho a certeza disso.
Aurora arregalou os olhos:
- Como?! Ficou provado que foi ele. O ingrato! Depois de tudo quanto fizemos por ele!
- Mãe, pense um pouco. E se ele for inocente? E se as provas foram forjadas contra ele? Já pensou que injustiça? Pode imaginar o que ele estaria sofrendo?
Aurora balançou a cabeça negativamente.
- Isso é impossível! Foi ele mesmo.
- A polícia pode ter se enganado. Nunca ouviu falar dos erros judiciários? Eu tenho a certeza de que ele é inocente!
- Como pode afirmar isso? Que provas tem do que está dizendo?
Magali respirou fundo, tomou coragem e respondeu:
- Algumas coisas aconteceram que mudaram minha forma de pensar. Hoje tenho a certeza absoluta de que Jovino é inocente. Tenho algumas provas, mas ainda insuficientes para reabrir o processo na justiça. Alguns amigos meus estão investigando. Todos temos certeza da inocência do Jovino. Vamos conseguir as provas para restabelecer a verdade e libertá-lo.
Aurora agitou-se:
- Você enlouqueceu! Quer libertar aquele assassino?
- Ele não matou o Alberto!
- Você mesmo disse que não tem provas suficientes. Acha que sabe mais do que a polícia?
- Ainda provarei o que estou dizendo. Já pensou que enquanto o
Jovino jura inocência e está preso por um crime que não cometeu, o verdadeiro assassino está impune, livre, sem responder pelo que fez?
Aurora não soube o que dizer. Pela primeira vez pensou nessa possibilidade. Queria que o assassino fosse justiçado. A morte do Alberto não podia ficar impune.
- Você me assusta. Por que está me dizendo tudo isso? Como chegou a essa conclusão?
- Como eu disse, várias coisas aconteceram que me levaram a descobrir que o Jovino está inocente.
- Que coisas foram estas?
- Por enquanto, prefiro não revelar. Só quero que você comece a pensar na possibilidade de termos todos nos enganado e cometido com
Jovino uma terrível injustiça. Ele foi sempre bom, amigo, amoroso, companheiro. Gostava do Alberto, admirava-o.
- Invejava-o. Essa foi a razão do crime.
-Não creio. O Alberto sabe a verdade. Ele sabe que não foi Jovino e está interessado em provar isso.
- Você enlouqueceu? O Alberto não sabe de nada. Está morto!
- Está vivo! Mamãe, o nosso mundo não é o único no universo.
De onde vêm os espíritos que nascem e para onde vão os que morrem?
Acredita que Deus seja tão pobre que só tenha criado seres vivos na nossa insignificante Terra? Mãe, o nosso espírito é eterno, nunca morre.
Mudamos de estado, mas continuamos a viver. A morte é ilusão, aparência, transformação!
Aurora olhava-a boquiaberta sem encontrar palavras para responder.
Magali falava com alma e sua voz vibrava com uma força diferente.
- Você não acredita que Alberto esteja noutro mundo, em outra vida, de onde deseja comunicar-se conosco?
Aurora suspirou triste:
- Quem dera que isso fosse verdade!
- É verdade, mãe. Se você desejar procurar, encontrará provas do que afirmo. Eu as tive.
-Como?!
- Acreditaria se eu lhe contasse?
- Não sei. Parece tão fantástico! Seria bom demais para ser verdade.
— Você está sendo materialista. É triste pensar que a vida termina com a morte. Todos nós vamos morrer um dia. Afinal, para que lutar se todos acabaremos no nada, sem apelação? Mãe, você está negando Deus! Não percebe isso?
- A dor transtorna o coração, mata a fé.
- Não é verdade. A fé aceita as determinações da vida, compreende e confia.
- Sempre fui pessoa de fé.
- Não é verdade. Se tivesse fé, saberia que Deus age sempre para o nosso bem e não estaria tão revoltada. Sei que não é fácil passar pelo que nos aconteceu. Todos sofremos a saudade, a ausência do Alberto.
Eu o amo muito! Mas, se aconteceu, foi porque a vida não podia evitar e a vida é Deus em ação, age sempre em nosso favor. Deus é perfeito e escreve direito por linhas tortas. Um dia ainda teremos condições de compreender isso.
Aurora respondeu com voz triste:
- Reconheço que você tem mais fé do que eu. Devo admitir que Deus sabe o que faz. Mas, dói muito. Meu coração ainda sangra vendo meu menino morto por um assassino cruel!
- Um infeliz que certamente ajustará contas com Deus. Pelo seu ato cruel, fará jus a uma lição dolorosa que o ensine a respeitar a vida.
Ouso afirmar que é preferível ser a vítima do que o algoz.
Aurora admirou-se:
- Por quê?
- Porque a vítima, se aproveitar a lição, amadurecerá, poderá libertar-se de muitos sofrimentos em razão disso, enquanto que o algoz está atraindo para si mesmo experiências dolorosas. Um já sabe que a violência não é solução para nada, o outro terá que descobrir isso.
- Você diz coisas estranhas! O Alberto era um moço bom de bons costumes. Ele não cultivava a violência. Já o Rui é mais belicoso.
Magali passou a mão pelo braço da mãe em meiga carícia. Depois disse:
— Mãe. Tenho estudado muito certos problemas da vida. Você sabe como eu sou. Nunca aceito nada sem questionar, indagar, pesquisar. Tenho amor à verdade e por causa disso, muitas vezes temos discutido. Você contemporiza, ajeita, eu não. Vou direto ao ponto, sem importar-me com a opinião dos outros.
— Isso é verdade — concordou Aurora.
Magali prosseguiu:
- Você diz que tenho mais fé em Deus do que você. Hoje, pode ser. Porém, quando Alberto morreu, fiquei abalada. Se Deus existe e é perfeito, bom, tudo sabe e vê, e não cai uma folha da árvore sem sua permissão, por que teria permitido a morte do Alberto? Por que permitiria que os maus agissem e ferissem os bons? Por que a vilania, a safadeza, o roubo, o crime, existiriam no mundo? Das duas uma: ou Deus não é tão perfeito como se diz e não tem poder para vencer o mal, ou o mal teria tanto poder quanto ele.
Aurora olhava-a pensativa. Nunca havia pensado dessa forma.
Magali continuou:
— Nesse ponto, minha fé já havia sido abalada. Foi quando aconteceu o incidente com Mariazinha...
- Aquela história?
— Pense bem, mãe. O Alberto só viu essa moça duas ou três vezes.
Ela não me conhecia. Foi tão inesperado! Elas não tocaram a campainha. Eu as vi no portão. Uma, agarrada nele, e a outra, tentando tirá-la de lá. Fui ver o que era. Quando cheguei, ela olhou-me e disse emocionada: "Magali! Que saudade!"
- Pensando bem, é estranho mesmo. Vai ver, essa moça é desequilibrada.
— Por mais que fosse, como poderia ter-me reconhecido? Eu nunca a havia visto antes!
- É mesmo!
— Depois ela desmaiou. Quando acordou, nem sabia o meu nome.
Fiquei intrigada e resolvi descobrir a verdade.
- O que foi que você fez?
— Fui procurá-la algum tempo depois.
- Que loucura!
- Você sabe que quando eu quero, descubro as coisas.
-E aí?
- Ela estava de férias, havia viajado, mas encontrei sua amiga Nair, que me contou coisas muito interessantes...
Vendo que a mãe ouvia interessada, Magali foi aos poucos relatando os acontecimentos. Quando disse que fora ao Centro Espírita, Aurora reagiu:
- Você ousou? Isso é um perigo! Espiritismo leva as pessoas à loucura!
— Engana-se, mamãe. D. Dora, mãe da Dalva, é espírita há muitos anos e é muito equilibrada. A senhora a conhece!
- Ela nunca me falou sobre o assunto.
- Porque é delicada. Sabe que você não pensa como ela. Respeita sua forma de ser.
- Seja como for, não quero você metida com essa gente, indo a esses lugares.
- Você está muito enganada. É um lugar tranqüilo, de orações, aberto aos que sofrem e estão desesperados.
- Você está sugestionada.
- Você sabe muito bem que não sou pessoa sugestionável. Ao contrário, só aceito uma coisa depois de entendê-la bem.
Aurora sabia que era verdade, mas a palavra Espiritismo assustava-a.
- Seja como for, não quero que vá mais a esses lugares.
- Mamãe, não seja preconceituosa! Se queremos descobrir a verdade, não podemos condicionar as coisas. É preciso abrir nossa cabeça
para analisar todas as hipóteses. Não se preocupe, sei o que estoufazendo!
— Você é uma criança. Pode ser iludida.
- Se não quer ouvir, paramos por aqui. É pena. Tenho outras coisas para contar, mas começo a pensar que você talvez não esteja preparada para saber. Jesus disse: "Quem tem ouvidos, ouça." Você certamente não está nesse grupo.
Aurora admirou-se, nunca a vira citar Jesus. Além disso, Magali parecia-lhe diferente. Apesar do medo, estava curiosa. Desejava saber.
-Já que você estava lá, o que aconteceu? Falaram no Alberto?
Magali respondeu com voz firme:
- Se você quer saber mesmo contarei tudo. Mas antes, vai esforçar-se e prometer: seja o que for que eu disser, não vai recriminar-me.
— Já vi que você deve ter feito coisas que eu não aprovaria.
- É melhor não dizer nada. Um dia, talvez, possamos falar disso livremente.
Aurora segurou o braço da filha, enquanto dizia:
- Não, Magali. Quero saber. Agora preciso saber. Pode falar. Não vou recriminá-la.
— Está bem, mamãe. Vou falar porque desejo que você enxergue a verdade e possa conformar-se com os desígnios de Deus. Desejo que você acalme seu coração e que a esperança possa voltar, fazendo-a acreditar em dias melhores.
Aurora suspirou. Apesar da sua descrença, as palavras de Magali faziam-lhe muito bem. Vendo que a mãe ouvia-a atentamente, Magali continuou seu relato. Contou tudo minuciosamente.
Aurora surpreendeu-se. Não possuía a coragem da filha. Suas mãos estavam frias e trêmulas. Magali fora ao presídio! Que horror!
- Você abusou. Que temeridade! Se seu pai souber.
- Mãe, não há perigo. É um lugar triste, cheio de gente sofrida, revoltada, alguns arrependidos, outros cheios de ódio. As famílias vão visitá-los, há crianças, muita disciplina.
Magali prosseguiu contando tudo, e Aurora à medida que ouvia, pensou pela primeira vez na hipótese de Jovino ser inocente. A filha falava com tanta certeza, dizia que a alma de Alberto queria ajudar
Jovino. Ela pensava: e se todos estivessem mesmo enganados? E se
Jovino fosse inocente?
Lembrou o rosto do rapaz, seus cuidados com Magali, com os meninos, a atenção com Homero, a diligência em atender o que ela pedia e sentiu um aperto no coração. Teriam cometido com ele tal injustiça?
Magali teria razão?
- Para mim, ele é inocente. Você vai ver. O verdadeiro culpado vai ser encontrado.
- Você não tem provas.
-Materiais, não. Mas o Júlio está investigando. Deus nos ajudará.
Depois o Alberto quer libertar o Jovino. Pense bem, mãe, ele sabe quem o vitimou.
- Esse segredo morreu com ele.
- Ele não morreu. Continua vivo em outra dimensão da vida. É um lugar para onde todos nós iremos ao deixar a Terra. O Alberto ainda se comunicará conosco, tenho certeza.
Os olhos de Aurora brilharam.
- Será mesmo? Eu poderia falar com ele, vê-lo ou sentir sua presença?
- Poderia. Contudo esse fenômeno obedece a determinadas condições. É preciso que Deus permita. E sempre acontece espontaneamente, como hoje no presídio.
- O que foi?
- Ainda não contei o que aconteceu hoje.
Magali relatou as palavras de Mariazinha para Jovino. Aurora assustou-se:
- É estranho!
- O quê?
- Como essa moça podia saber que o Alberto sempre dizia isso ao Jovino? Eu mesma ouvi muitas vezes.
- Aí está mamãe. Ela nunca conviveu conosco aqui em casa. Só podia mesmo ser o Alberto. O Jovino ficou muito comovido. Até chorou. Disse que vai ler o "Evangelho Segundo o Espiritismo" que eu lhe levei.
- Jovino nunca foi religioso.
- Foi o que ele disse. Acreditou que o espírito do Alberto estava ali de verdade.
Aurora baixou a cabeça pensativa. Depois de alguns segundos disse:
- Tudo que me contou é muito estranho. Tenho medo de estar entrando em uma ilusão. Alimentando esperanças vãs.
- Mãe, pense bem! Deus é pai bom e justo. Acha que faria o universo tão pequeno que só existiria vida aqui na Terra? Olhou o céu, as estrelas, a imensidão dos planetas? Mãe, abra o seu pensamento rumo ao infinito. No mundo nada acaba, apenas se transforma. A morte é uma transformação. Deixamos o corpo material da Terra e vamos com o corpo espiritual viver em mundos cheios de beleza e luz. Deus é grandeza, bondade, amor e alegria.
Magali falava com voz serena, e Aurora sentiu descer sobre ela um novo sentimento de paz que nunca experimentara antes. Abraçou a filha e não reteve as lágrimas. Deixou-as correr livremente. Quando elas terminaram, Aurora deixou-se ficar, abraçada à filha, sentindo-se calma. Toda a amargura que feria seu coração, havia desaparecido.
Abraçado às duas, com emoção e alegria, Alberto agradeceu a Deus porque sua mãe, naquela tarde de domingo, começara a ouvir.
Júlio e Mariazinha chegaram em casa dela ao anoitecer, alegres e esperançosos quanto a solução do caso do Jovino. Ao mesmo tempo, à medida em que as coisas aconteciam, eles sentiam-se mais unidos e apaixonados. Júlio desejava levá-la a conhecer sua família, e a moça sentia-se confiante e feliz.
Conversaram com os pais dela sobre os acontecimentos da tarde, tomaram lanche e sentaram-se na varanda, abraçados em doce harmonia.
Passava das dez quando Júlio despediu-se:
- Não sinto vontade de ir - reclamou - dia virá em que estaremos sempre juntos.
Ela sorriu com prazer.
- Desejo que seja logo - respondeu.
Júlio beijou-lhe os lábios com delicadeza e carinho várias vezes.
- Até amanhã - disse. - Se eu puder irei buscá-la na fábrica.
— Durma bem e sonhe comigo.
Ele afastou-se e após o adeus costumeiro, com o coração cantando de alegria, Mariazinha entrou em casa.
Júlio distanciou-se, sentindo ainda a emoção dos beijos que trocaram. Estava amando Mariazinha, como nunca havia amado outra mulher. Desejava mais do que nunca estabilizar sua situação financeira e casar-se com ela.
- Casar-se! - Nunca havia pensado nisso antes.
Caminhava devagar para o ponto do bonde. Ao dobrar uma esquina, três vultos caíram sobre ele, dominando-o. Traziam chapéu desabado sobre os olhos e lenço escuro sob o nariz, não lhe permitindo ver suas fisionomias.
Assustado pelo imprevisto, Júlio perguntou:
- O que foi? O que querem?
- Dar-lhe uma lição.
- Ele bem que precisa!
— É um assalto! — disse um.
Falavam e o arrastavam para um terreno baldio não muito distante.
Não tenho muito dinheiro, mas podemos conversar. Não precisam usar violência!
Vejam o Romeu! - ironizou um deles. - Está com medo! – riu sadicamente. Júlio pressentiu que estava em perigo. Viu a arma na mão de um deles. Se gritasse, não tinha dúvida que ele atiraria.
Não vamos matá-lo! Somos benevolentes - disse outro. - Dar-lhe-emos uma chance!
Um deles agarrou-o pelo colarinho, enquanto os outros dois seguravam-no por trás.
Júlio podia sentir o ódio contido em seu rosto apesar do lenço que o cobria.
- Nunca mais queremos vê-lo por aqui. Nunca, entendeu?
Júlio pensou em Mariazinha. Teria entendido bem?
- Por quê? - arriscou.
- Porque nós queremos. Se tem amor à pele, afaste-se destes lados...
- E de Mariazinha - completou Júlio.
Sentiu que a mão que o segurava crispou-se com força.
- Você ouviu — repetiu - e pelo que disse, sabe entender as coisas.
- E se eu não quiser?
Júlio sentiu-se levantado no ar pela mão que, como garra de ferro, o sustinha.
- Tenho vontade de acabar com você agora! Veja, está em minhas mãos. Atrevido!
Aproveitando-se de que os outros dois o seguravam, deu-lhe violentos socos. Júlio sentiu dor aguda, percebeu que estava prestes a perder os sentidos. Eles realmente podiam matá-lo. Seu pensamento aflito procurou Deus numa súplica muda e sincera, em seguida, perdeu os sentidos.
O homem continuou a bater numa fúria incontrolável.
- Ele desmaiou - disse um.
- Você vai matá-lo - disse outro.
- Ele merece. Tem que sair do meu caminho!
Um deles procurou impedi-lo de continuar.
- Chega. É o bastante. Quer despertar suspeitas? Esse nunca mais voltará aqui. Pode estar certo!
Ambos largaram o corpo de Júlio que, sangrando pelo nariz, caiu ao chão pesadamente e tentaram conter a fúria do companheiro.
- Ela é minha - dizia ele entre dentes. - Ninguém vai tirá-la de mim. Eu o mato! Cachorro!
— Vamos, chega. Um crime agora não seria bom para nós. Você está louco? Acalme-se. Esse está liqüidado. Foi uma boa lição.
Mais calmo, ele parou um pouco e os outros dois o arrastaram para longe do local e logo sumiram na rua deserta.
Júlio acordou sentindo algo quente no rosto. Abriu os olhos e viu a cabeça de um cão que lhe lambia o rosto. O que acontecera?
Estava no chão, no meio do mato. Tentou erguer-se. Seu corpo doía terrivelmente, então, lembrou-se do que lhe acontecera.
Olhou ao redor, o dia já estava clareando.
— Calma, - pensou. - Estou vivo. Agradeço a Deus!
O cão, alegre, olhava-o abanando a cauda. A custo, Júlio levantou o braço acariciando-lhe a cabeça.
- Obrigado, amigo! Sei que quer ajudar-me.
Aos poucos, ele foi se movimentando e, apesar das dores que sentia, procurou perceber se haviam quebrado seus membros. O rosto inchado, a língua grossa, os lábios ardendo, mas ele precisava reagir, buscar socorro.
Conseguiu levantar-se a custo e chegar à calçada. A casa de Mariazinha, apenas a três quadras, parecia-lhe muito distante. A rua ainda estava deserta. Sua aparência deveria estar horrível, e ele não desejava assustar Mariazinha.
Um homem vinha vindo, provavelmente um trabalhador começando seu dia. Júlio chamou-o:
- Senhor, por favor.
O homem olhou-o assustado, receoso de aproximar-se.
- Não tema - disse ele - fui assaltado ontem à noite. Por pouco não me mataram.
O homem aproximou-se admirado.
- Você está mal - disse sério.
— Tenho amigos aqui perto. Por favor, quer avisá-los para mim? Não estou podendo andar muito...
Vendo que Júlio mal se sustinha nas pernas, disse prestativo:
- Conheço todo mundo aqui, pode falar.
- Conhece Nair que mora nessa primeira rua?
- A filha de D. Luísa?
- É alta, morena, tem um sorriso simpático.
- É ela. Mas é melhor chamar a mãe dela. A esta hora!
Júlio respirou fundo para ganhar forças:
- Sou o noivo de Mariazinha, filha do sr. José e de D. Isabel. Não desejo assustá-los. Por isso, pensei em Nair. É muito amiga deles.
- Por que não disse logo? Agora estou reconhecendo você. Que barbaridade! É caso de polícia.
- Veremos isso depois. O que eu preciso é de médico.
- Pode andar, ainda que devagar?
- Não sei. Sinto-me mal.
- Segure-se em mim. Vamos, eu o apoiarei. Calma. Cuidaremos de tudo.
Condoído, o homem fê-lo apoiar-se em seu braço e lentamente começaram a andar.
- Meu nome é João - disse ele.
- Eu sou Júlio.
Nunca um caminho lhe pareceu tão longo. Parados em frente à casa de Nair, João tocou a campainha com insistêmncia. Logo as luzes se acenderam e uma voz de mulher perguntou:
- Quem é? — notava-se-lhe a preocupação.
- Sou eu, D. Luísa, o João. Abra, por favor!
- Já vai.
Um minuto depois ela apareceu na soleira. Vendo Júlio, assustou-se:
- Meu Deus! O que aconteceu?
— Preciso de ajuda, D. Luísa. Por favor!
Suas forças estavam esgotadas e teria caído pesadamente se ambos não o tivessem segurado.
- Ele foi assaltado D. Luísa. Ontem a noite. Ficou desmaiado no mato. Está mal. Precisa de um médico.
- Que horror! Pobre moço. Vamos colocá-lo no sofá. Venha.
- Vamos chamar o dr. Matoso - sugeriu João.
- Bem lembrado. Mas o senhor vai perder o dia de serviço. Se precisa ir, pode deixar que eu mando o Zequinha até lá.
- Obrigado, eu aceito. Se eu andar depressa, ainda pego o bonde das seis e vinte.
Ele saiu apressado, e Luísa chamou o filho, ele só iria para o trabalho as oito.
- Zequinha, acorda. Vai chamar o dr. Matoso, depressa.
O rapaz remexeu-se no leito preguiçosamente, mas, diante da insistência da mãe, não teve outro remédio senão levantar-se correndo.
Inteirado do ocorrido, saiu rápido em busca do médico.
Nair acordara com o barulho e levantou-se para ver o que estava acontecendo. Deparou com Júlio no sofá e levou tremendo susto.
- Mãe, é o Júlio! O que foi?
- Um assalto. Ontem à noite, decerto quando ele saiu da casa de Mariazinha.
Nair ouviu a mãe contar o que sabia.
- Quero ver o que ele vai dizer. Assalto aqui?!
Condoída, Luísa afrouxou a roupa do moço, esquentou água e delicadamente com algodão molhado começou a limpar-lhe o rosto inchado.
O dr. Matoso chegou e, ao par do acontecido começou a examiná-lo.
- Parece que não houve fratura. Porém a pegada foi dura. Muita crueldade. Eu diria mesmo, ódio.
Nair estremeceu. Tinha uma suspeita, mas nada disse.
- Acho melhor não removê-lo para o hospital. Preciso examiná-lo melhor. A senhora poderia colocá-lo em uma cama, em melhores condições?
— Por certo, doutor. No quarto de Zequinha temos duas camas. Vou prepará-la.
Saiu e voltou pouco depois.
— Trouxe um pijama. Era do meu marido. Está limpinho. Suas roupas estão sujas.
— Ótimo. Com licença dos jovens, nós vamos acomodá-lo.
O doutor tirou as roupas de Júlio e, ajudado por Luísa, limpou os ferimentos, vestiu-o com o pijama limpo.
Em seguida, o médico colocou-lhe um frasco sob as narinas, e Júlio moveu a cabeça, abriu os olhos. Vendo Luísa debruçada sobre ele, disse baixinho:
- Obrigado. Desculpe o trabalho.
- Esse é o doutor Matoso. Veio atendê-lo.
- Estou mal, não é, doutor?
- Foi uma boa pegada, não resta dúvida. Mas não o suficiente para derrubá-lo. Dentro de alguns dias, tudo estará bem.
- Folgo em saber.
- Vamos, meu rapaz - disse o médico - pode levantar-se. Queremos levá-lo para o quarto.
Júlio olhou para Luísa.
- Quanto transtorno! Desculpe vir incomodá-la. Não quis assustar Mariazinha. Ela é muito sensível, a senhora sabe. Lembrei-me de Nair, tão amiga dela.
- Fez bem. Não se preocupe. Mariazinha não andou bem de saúde.
Precisamos ter cuidado com ela. Poder ajudar é um bem do qual não abro mão. Agradeço sua confiança nos procurando em uma hora tão difícil.
Júlio tentou levantar-se.
- Tudo dói - disse. - Tenho medo de fazer qualquer movimento.
O médico tirou da sua maleta um frasco e pediu um cálice de água. Colocou algumas gotas e deu-o a Júlio.
- Beba isto. Vai sentir-se melhor.
O moço obedeceu prontamente. Levantou-se com dificuldade e, amparado pelo médico e Luísa, conseguiu ir até o quarto. Deitou-se na cama asseada e sentiu-se comovido.
- Deus lhe pague pela ajuda e pelo carinho — agradeceu.
- Vou preparar uma receita, a senhora mande aviar imediatamente. Se a farmácia estiver fechada, bata na casa do sr. Nicanor, é ao lado. Peça-lhe urgência. Com a medicação, ele vai sentir-se aliviado.
Nair entrou no quarto.
- Está melhor?
- Agora, estou. Pode fazer-me um favor?
- Claro.
— No bolso do meu paletó, minha carteira. Pode apanhá-la para mim?
— Certamente.
Nair saiu e voltou em seguida com a carteira. Júlio abriu-a e lá estava intacto todo seu dinheiro e ele entregou-o a Luísa.
- Por favor, para as despesas, se não der, mandarei buscar mais em casa.
— Você disse que foi um assalto, mas eles não levaram seu dinheiro!
Foi briga?
-Não.
Em poucas palavras, Júlio contou como lhe acontecera.
— Parece vingança - considerou o médico. — Aconselho-o a dar parte à polícia. Para sua segurança e quem sabe até de outras pessoas.
É preciso prender os responsáveis.
- Concordo - respondeu Júlio - mas não lhes vi o rosto. Como identificá-los?
- Está claro que foi alguém que deseja afastá-lo de Mariazinha - interveio Nair. - Não é difícil saber quem.
- Não posso provar. Preciso pensar melhor. Garanto que não me pegará de novo.
- Quer que avise Mariazinha?
- Não. A estas horas ela já foi trabalhar. Não quero preocupá-la.
Logo mais, à tarde, quando ela chegar, você vai e avisa. Gostaria de avisar em casa. Mamãe deve estar preocupada. Não tenho o hábito de dormir fora...
- Por certo - disse Luísa. - Nair pode ir até lá. O Zequinha precisa ir para o escritório.
- Não será preciso tanto. Temos telefone em casa. Se o Zequinha puder fazer o favor, é só ligar e contar o que aconteceu, sem assustar.
Diga que estou bem.
- Vou anotar o nome e o número. Fique tranqüilo. Eu mesma vou ligar da padaria - disse Nair. - Acha que é muito cedo?
- Não. Pode ser que ela esteja preocupada. Melhor ligar agora.
Ele deu as informações e Nair anotou.
- Agora, tudo está em ordem - disse o médico. - Assim que o remédio chegar, tome uma porção e procure dormir. Far-lhe-á bem.
- Pode deixar, doutor - observou Luísa. - Vou tomar conta dele.
- Agora preciso ir. Passarei ao anoitecer para ver como está.
O médico despediu-se, Luísa acompanhou-o até a porta. Vendo-se sozinho no quarto, Júlio fechou os olhos, tentando relaxar.
Estava claro que não fora um assalto. Mariazinha havia sido o móvel do atentado. A ameaça não dava margem a dúvida. Pensou em
Rino. Apesar de não reconhecer ninguém, sabia que ele deveria ser o responsável. Eles eram capazes de tudo. Teriam assassinado Alberto?
Era muito provável, uma vez que o móvel do crime não fora roubo. Que outra razão poderia haver determinado esse crime? O amor de Mariazinha. Alberto interessara-se por ela e não fizera caso da ameaça que recebera. O ciúme é força perigosa.
Começava a acreditar que Rino estava por trás de tudo. Ele era o culpado. Porém, como provar? A justiça age baseada em fatos, provas, e ele nada tinha senão suspeitas.
O que fazer. Não pretendia desistir de Mariazinha. Amava-a e não queria perdê-la. Depois, havia o Jovino preso, inocente. Como deixá-lo lá sem fazer nada para ajudá-lo?
Sua cabeça doía, e ele agitou-se no leito. Nair entrou, dando-lhes notícias da mãe. D. Ester estava nervosa, e Nair fez o possível para acalmá-la.
- Ela disse que viria imediatamente. Ia tomar um táxi - finalizou Nair.
- Eu esperava isso. Ela é muito preocupada. Logo estará aqui.
- Eu também ficaria com uma notícia dessas - considerou Luísa.
- Seu remédio ficará pronto daqui a uma hora, Nair vai pegar depois.
- Obrigado. Nunca esquecerei o que estão fazendo por mim.
- Procure descansar. Trarei o remédio quando chegar.
- Não consigo relaxar. Minha cabeça dói, pensamentos agitados impedem-me de descansar.
- Depois do que passou, é natural. Ninguém me tira da cabeça que foi o Rino - disse Nair.
- Não diga isso, filha. Pode estar sendo injusta. Afinal, o Júlio não viu quem foi.
- Eles me ameaçaram. Mandaram eu sumir. Que nunca mais apareça por estes lados. Percebi que falavam de Mariazinha.
- O que vai fazer? - indagou Luísa.
— Ainda não sei. Amo Mariazinha e não vou perder seu amor por causa disso.
- Vá à polícia. Eles podem voltar - sugeriu Luísa.
- Talvez eu vá.
Júlio fechou os olhos procurando acalmar seus pensamentos.
Quando sua mãe chegou, ele estava mais calmo. Confortou-a porém ocultou o verdadeiro móvel da agressão. Para que agravar-lhe a preocupação?
Aos poucos, ela foi se acalmando, aceitou de bom grado o café que Luísa lhe ofereceu. Agradeceu muito os cuidados com o filho e só na hora do almoço concordou em ir embora. Precisava ir para a repartição trabalhar. Júlio não via razão para que ela faltasse ao emprego.
Era uma mulher elegante, beirando os cinqüenta, simpática e bem- educada.
- Vá, mamãe. Estou melhor. O remédio fez-me bem. Preciso ficar porque o médico mandou. Amanhã, por certo, me mandará para casa.
- Espero que seja assim.
Depois de agradecer várias vezes a Luísa e a Nair, abraçou-as com muito carinho e despediu-se. Luísa acompanhou-a até a porta.
- Agora Júlio, procure dormir - aconselhou Nair. - Fique calmo.
Quando Mariazinha chegar, falarei com ela.
Ele obedeceu, cerrou os olhos e afinal conseguiu adormecer.
Quando Mariazinha soube de tudo, ficou assustadíssima. Correu à casa de Nair e vendo o rosto intumescido de Júlio empalideceu ainda mais.
- Meu bem, o que lhe fizeram?
Luísa deu-lhe água com açúcar, e Júlio procurou atenuar o choque.
- Não se preocupe. Estou inteiro. Logo estarei bom.
- Por que não me procurou? Meu Deus! Eu fui trabalhar sem saber de nada e você aqui...
- Fui muito bem tratado. Depois eu não queria que você me visse tão feio!
- Bobo! - disse ela, tentando reter as lágrimas.
- Você podia me dar o fora!
Mariazinha segurou a mão dele apertando-a carinhosamente.
- Agora não tem mais remédio - disse. - Terei que agüentá-lo assim mesmo.
Trocaram idéias sobre o atentado, Mariazinha também suspeitava de Rino. Era muita audácia! Que crueldade!
- Não terei mais sossego de agora em diante. Melhor você não vir me ver durante algum tempo. Podemos nos encontrar na cidade...
- É cedo para preocupar-se - disse ele. - Uma coisa é certa: continuaremos a nos ver.
Quando o médico passou para vê-lo, apesar do seu otimismo, não permitiu que ele fosse para casa. Júlio teve que ficar, e Mariazinha fez-lhe companhia, só se recolhendo quando os pais foram ver Júlio e a levaram para casa,.
No dia seguinte, Mariazinha não quis ir trabalhar. Preferiu ir à casa de Nair e ficar com Júlio. Não havia dormido bem aquela noite.
Sonhara com Alberto ferido, pedindo justiça e, de repente, seu rosto transformava-se no de Júlio e ela, vendo-o desfalecer gritara apavorada:
- Júlio, você não vai morrer!
Acordara suando, aflita e não conseguira mais dormir o resto da noite. Seria o Rino assassino de Alberto? Poderia matar o Júlio também?
A paixão de Rino a atemorizava e sufocava.
- Por que ele não me esquece? - pensava temerosa.
- Você precisa ir à polícia - disse ao Júlio horas mais tarde. – Quem sabe eles prendem o Rino.
- Não tenho provas para acusá-lo.
- Precisa de garantia de vida, de proteção - tornou Nair.
- Eu sei. Mas a polícia não pode fazer nada agora, só registrar os fatos e eles não esclarecem nada. Vou chamar o Vanderlei.
- Quem? - indagou Mariazinha.
- Meu amigo que foi detetive. Aliás ele já está investigando o Rino.
- Vamos avisá-lo - sugeriu Mariazinha.
- Certo. Você telefona e pede para ele vir até aqui.
- Eu faço isso - decidiu Nair. — Vou avisar Magali. Ela também precisa saber.
— Concordo.
Nair pegou o número e foi telefonar. Vanderlei chegou à tarde e ao entrar no quarto de Júlio, ele conversava com Magali, Nair e Mariazinha. Moço de estatura média, olhos e cabelos escuros, moreno, vestia-se com elegância e apuro. Cumprimentou as moças e apertou a mão do amigo.
- Tentaram apagar você? - perguntou sorrindo, mostrando dentes alvos e bem alinhados.
— Tentaram. Mas eu sou duro. Vaso ruim não quebra.
- Estou vendo. Como foi?
Júlio contou tudo, ao final:
— Suspeito daquele sujeito que eu pedi para você levantar a ficha dele.
Vanderlei sacudiu a cabeça afirmativamente:
— Eu sei. Como sou prevenido, trouxe já alguma coisa. Ele não é flor que se cheire.
- Isso eu já sabia. O que descobriu?
Vanderlei tirou do bolso do paletó um papel cuidadosamente dobrado.
— Arruaceiro, desordeiro. Foi expulso de dois colégios durante a adolescência. Formou um grupinho o qual lidera e todos o obedecem.
Todos o temem. Os outros grupos de jovens do bairro fogem sempre de um confronto com eles. Meteram-se em muitas brigas e quebra-quebras, mas nunca ficou nada provado contra eles. Sua ficha policial é limpa.
Não estuda, não trabalha. Perdeu muito dinheiro no jogo e o pai pagou.
- Não é muito - comentou Júlio.
- O bastante para saber que se trata de um elemento perigoso e esperto.
- Tenho razões para pensar que foram ele e seu bando que me agrediram.
- Também acho provável. Se ao menos você pudesse reconhecê-los na delegacia!
- Isso não seria possível. Não lhes vi o rosto.
- Depois, sua suspeita sobre aquele crime. Eu também acho que é válida. Principalmente agora, depois do que lhe fizeram.
— Era meu irmão — disse Magali séria. - Queremos descobrir a verdade. Um inocente está preso, e o assassino, impune. Sem falar que ele pode tirar a vida de outra pessoa.
- Eu temo pelo Júlio - ajuntou Mariazinha.
- Calma — pediu Vanderlei. — Precisamos pensar. Eu já estava interessado no caso, mas agora, depois do que aconteceu, vou descobrir a verdade de qualquer jeito. Vamos trabalhar com inteligência. Todas as suspeitas recaem sobre o Rino. Só ele teria interesse no desaparecimento do Alberto e do Júlio. Amor não correspondido justifica sua atitude. Acostumado a ser obedecido, ele não aceita a recusa de Mariazinha. Seu orgulho está ferido. Isso, na cabeça de um tipo como ele, assume grandes proporções.
- Seria prudente o Júlio afastar-se daqui por algum tempo – tornou Mariazinha preocupada.
- Não farei isso - retrucou Júlio.
- Não precisa - garantiu Vanderlei. - Será até melhor que ele se sinta desafiado. Poderemos pegá-lo.
- Não há perigo? - perguntou Magali.
- O perigo existe enquanto esse moço estiver em liberdade. A experiência tem me ensinado que é melhor preparar-se e enfrentar o perigo. Claro que de maneira inteligente. Colocarei dois homens para segui-lo por toda parte, sem que ele desconfie. Estarão sempre alerta a qualquer suspeita.
- Boa idéia, Vanderlei - concordou Júlio.
- Eu sabia que você encontraria solução.
- Vocês todos vão fazer o que eu disser. Quero detalhes do crime.
Vou ver o processo e falar com o Jovino.
- Vou ao Centro pedir ajuda - propôs Magali.
Vanderlei olhou-a pensativo, depois disse:
— Faça isso.
- O espírito de meu irmão está interessado em nos fazer encontrar a verdade. Por certo nos ajudará.
Vanderlei sorriu:
- Ele sabe quem foi e como foi. Se pudesse nos contar, tornaria as coisas mais fáceis.
- Você brinca, mas sabe que é verdade. Ele já nos tem ajudado e quando for o momento, tudo se esclarecerá.
Continuaram conversando animadamente, saborearam o gostoso café com bolo de Luísa, depois Magali despediu-se:
- Preciso ir - disse. - Meu pai não sabe que estou aqui.
- Eu também vou - tornou Vanderlei. - Posso levá-la. Para que lado vai?
— Aclimação.
- Vou para Vila Mariana. Deixo-a em casa.
- Aceito, obrigada.
Saíram e acomodaram-se no carro, e a conversa durante o trajeto foi espontânea e agradável.
- Para a família é sempre difícil enfrentar um crime. É chocante.
- Nós ainda não nos recuperamos. Meu pai acabrunhado, enterrou-se no trabalho, minha mãe está descontrolada e chora a qualquer pretexto. Meu irmão era um tanto arredio e inconformado, ficou insuportável.
- E você?
- Eu? Agora estou melhor. Depois que descobri que a morte não é o fim de tudo, que tudo quanto Deus faz é justo e que o Jovino é inocente.
- Vocês gostavam do Jovino?
- Muito. Era como um irmão, amigo e dedicado. Pensar que ele nos tivesse enganado nos machucou muito.
- Certamente. E o que a fez acreditar em sua inocência? Afinal, ele foi condenado pela justiça.
- A princípio, acreditei em culpa, mas depois, tantas coisas aconteceram!
Aos poucos Magali foi contando como tudo havia acontecido.
Falava de maneira clara e Vanderlei conseguiu compreender melhor os fatos. Ao final, considerou pensativo:
- Não possuímos provas que justifiquem um pedido de reabertura do processo. Se o Rino estiver envolvido, conforme suspeitamos,
como provar? Ninguém viu o crime, a arma era do Jovino e por certo não foram encontradas impressões digitais.
- O que pretende fazer?
- Ver o processo. Trabalho com meu tio que é advogado criminal e posso conseguir isso. Depois, falar com o Jovino, pensar, encontrar uma pista, uma saída para descobrir a verdade.
- Não é um caso simples. Confio que com a ajuda de Deus, haveremos de conseguir.
Vanderlei concordou.
- Por que não? Onde nós não penetramos e não sabemos o que se passa, Deus vê. Seu irmão, morto tão jovem, por certo não está satisfeito com a impunidade do criminoso e muito menos com a prisão de um inocente.
- Logo ele. Sempre tão nobre nos sentimentos, tão a favor da justiça e tão amigo do Jovino.
- Esperamos que ele nos ajude. Em nossa profissão, muitas vezes somos favorecidos com o que alguns chamam de "sorte" ou de "acaso". Eu pessoalmente acredito em uma intervenção espiritual. Um caso difícil, quase insolúvel, sem pistas, de repente aparece um fato novo, inesperado que muda os fatores e soluciona toda a questão.
Magali animou-se.
- Quem estaria por trás disso? Amigos espirituais comuns, interessados em ajudar, ou seriam como no caso de Alberto, os espíritos das vítimas, tentando fazer justiça?
- Quem pode saber? É por esta razão que tanto os meus amigos policiais, como até os próprios marginais, são muito supersticiosos.
- Eu prefiro aceitar que quando uma coisa chega na hora de ser esclarecida, ninguém conseguirá mantê-la oculta.
— E o que determina essa hora?
Magali deu de ombros:
- Não saberia dizer. Talvez a necessidade emocional e espiritual dos envolvidos, seu amadurecimento, sua visão da vida e dos seus mecanismos.
— Acredita que essas sejam as determinantes?
- Sim. Sei que Deus é justo e sempre faz o bem. Por isso, tudo quanto aconteceu, obedeceu a uma necessidade nossa de sensibilização e amadurecimento. A maneira como os fatos se deram também tem a ver com essa situação. E ela vai ser mantida enquanto nós precisarmos dela. Enquanto nossos espíritos não assimilarem os resultados dessa experiência. Quando conseguirmos isso, ela terminará e tudo se modificará para novos rumos do conhecimento e da nossa evolução.
Vanderlei ficou calado por alguns momentos. Muitas vezes havia conversado com Júlio a respeito desses assuntos, lera alguns livros e até freqüentara algumas sessões espíritas. Porém, nunca analisara as coisas dessa forma.
- Do jeito que você coloca, não podemos fazer nada senão esperar.
Magali sacudiu energicamente a cabeça.
- Absolutamente. O que eu sinto é que mesmo procurando de todas as formas solucionar nossos assuntos, eles só irão resolver-se quando a vida julgar oportuno e adequado. Como não sabemos o momento que isso vai ocorrer, se o caso for difícil não devemos perder a esperança e continuar trabalhando. Afinal, sempre poderemos ajudar um pouquinho, tentando entender por que estamos passando por determinadas coisas e o que elas estão querendo nos ensinar.
Vanderlei sorriu:
- Não resta dúvida que você é otimista. Isso é muito bom. A propósito, estou morrendo de fome. Aceitaria jantar comigo?
Magali consultou o relógio.
- Não posso demorar-me. É um pouco cedo para jantar, mas um pouco tarde para chegar em casa. Depois, comemos bolo, tomamos café. Estou sem fome.
- Para ser sincero, eu também. O que eu quero é conversar mais,
nosso assunto está muito interessante. Se não quiser jantar, poderemos tomar um sorvete, qualquer coisa e prolongarmos nossa conversa.
Afinal, você ganhou tempo vindo de carro.
Magali sorriu alegre. Vanderlei possuía um jeito cativante de falar e um sorriso muito agradável.
- Você pensa em tudo - disse. — Está bem. Vira a próxima rua à direita. Tem um ótimo lugar para o nosso sorvete.
O moço obedeceu prontamente. Havia nos olhos de Magali uma chama que ele ainda não havia visto em ninguém e que começava a interessá-lo.
Uma manhã, depois que o dr. Homero saiu e o Rui ainda dormia, Aurora aproximou-se de Magali que na copa tomava seu café.
- Magali – disse - estive pensando. Se é verdade que a morte não é o fim de tudo, e o Alberto deve estar vivo no outro mundo, eu quero vê-lo. Preciso encontrá-lo, falar com ele. Quero ir a uma sessão espírita.
Magali olhou-a séria:
- Podemos ir ao centro onde vai D. Dora.
- Seu pai não precisa saber. Por certo não aprovaria.
- Como quiser, mamãe. Poderemos ir amanhã à tarde. É o dia em que eu costumo ir.
Aurora suspirou pensativa, depois perguntou:
- Será que ele irá?
- Não sei. Pelo que tenho estudado desse assunto, não é fácil para o espírito comunicar-se conosco.
— Por quê? Se há os médiuns e vontade de conversarmos. Você afirmou que o Alberto deseja falar conosco. Esclarecer o mistério de sua morte. Sendo assim, não há melhor ocasião.
Magali fixou o rosto ansioso da mãe e esclareceu:
— Quem deixa a Terra passa a viver em uma dimensão diferente de vida, onde há leis e regras que eles precisam obedecer. Para que se expressem em nosso meio, além do médium com o qual precisarão obter sintonia, é preciso uma permissão dos chefes espirituais. Eles só permitem em casos que eles acham necessário.
- Trata-se de fazer justiça. Acha pouco prender uma pessoa por um crime que não cometeu? Você disse que o Jovino pode estar inocente. Só o Alberto pode esclarecer a verdade.
- As coisas não são tão simples assim. Mesmo que ele viesse através de um médium e contasse a verdade, como poderíamos provar? Como conseguir elementos para reabrir o processo?
- Nós saberíamos tudo e iríamos à polícia testemunhar.
- As coisas não acontecem assim. Deus sempre faz tudo certo. Ele não erra.
Aurora revoltou-se:
- Isso é que não consigo aceitar! Não sei como você pode pensar assim. Como pode achar certo um assassino cruel matar seu irmão?
- Mãe, estou tentando compreender! Pense um pouco. Deus é perfeito. Ele não erra nunca. Quando a dor nos fere o coração, não encontramos justificativa, preferimos pensar na fatalidade, na crueldade, na injustiça. Como conciliar isso com a bondade de Deus? Eu prefiro aceitar que nós ainda não temos a verdade total. Que ainda não conseguimos penetrar nas profundezas da nossa alma para perceber por que somos submetidos a experiências tão rudes. Dentro desse pensamento, posso entender que essas experiências modificam nossas vidas, amadurecem nossos espíritos, nos fazem crescer, evoluir.
- Para quê? Nossa evolução à custa da vida do Alberto truncada tão cedo?
- Um dia compreenderemos as verdadeiras causas de tudo isso. O que eu quero dizer é que se Deus, sendo bom e justo, permitiu que tudo acontecesse, foi porque nós tínhamos que passar por isso. Era uma experiência necessária, tanto para nós quanto para ele.
Aurora balançou a cabeça:
- Não posso aceitar isso. A infelicidade mora em nossa casa desde aquele dia.
- A felicidade é conquista nossa. Podemos escolher entre a alegria e a tristeza. Você escolheu ser infeliz.
- Como pode dizer isso? Como posso estar alegre depois do que aconteceu?
Magali levantou-se e colocou as mãos nos ombros da mãe, dizendo:
- Mamãe, não estou desrespeitando sua dor. Sei como dói. Mas não adianta cultivá-la. As coisas não vão melhorar por isso, ao contrário.
Precisamos aceitar a vontade de Deus que tem nas mãos o poder da vida e da morte. Depois, pelo que sei, nossa tristeza preocupa Alberto, faz-lhe mal. Não devemos prejudicá-lo.
- Acha isto?
- Certamente. Ele fica inquieto, angustiado vendo sua revolta sem poder fazer nada. Pense um pouco, se você estivesse no lugar dele. Se tivesse morrido e vendo-nos chorar angustiados, sem que pudesse falar conosco ou aparecer para nós. Como ficaria?
- Desesperada.
- Ele, por certo, estará assim por sua causa, Faça um esforço. Pense que ele viajou, está bem e merece ser feliz.
— Gostaria muito que fosse assim!
- Então, pense nisso.
— Ele irá a sessão?
- Não sei. Pode ser. Mas tenha calma, as coisas só acontecem na hora adequada. Vamos pedir com fé e esperar. Também gostaria que ele viesse e nos esclarecesse tudo. Só não quero que você espere demais e se decepcione caso não aconteça.
- Se tudo isso é verdade, ele dará um jeito de me avisar de alguma forma. É o que eu procuraria fazer se estivesse lá.
Magali concordou com a cabeça.
Meia hora antes do início da sessão, as duas já se encontravam na sala. Dora abraçou-as carinhosamente, mostrando-se feliz em vê-las.
Aurora sentia-se pouco à vontade, embora o ambiente fosse alegre e as pessoas agradáveis, estava constrangida. Nunca pusera os pés em um Centro Espírita. — Que loucuras se faz por amor aos filhos - pensava ela.
Cumprimentou Dora, respondendo com voz baixa suas palavras.
- Fez bem em vir - disse Dora com naturalidade. - Deus acalmará seu espírito e balsamizará suas feridas. Você verá.
- Assim espero - respondeu ela, acanhada.
Dora acomodou-se, a sessão ia começar.
- Pense em Deus, mamãe - recomendou Magali - reze.
Aurora fechou os olhos e rezou uma prece ansiosa e dolorida. Sentia-se angustiada, aturdida. Seus pensamentos estavam confusos, tumultuados. Mesmo assim, implorou a Deus que a ajudasse, que a fizesse conhecer a verdade.
A sessão estava em meio, quando, quebrando o silêncio da sala, uma médium agitou-se e disse com voz triste:
- Toda mãe que sofre é digna de respeito. Por que acha que sofre mais do que as outras? Por que se coloca como vítima e não percebe o quanto tem sido cruel?
Aurora abriu os olhos e segurou o braço de Magali presa de viva comoção. A médium prosseguiu:
- Você só pensa na sua dor! Sequer percebe quantas pessoas sofrem ao seu redor.
Dora levantou-se, aproximou-se da médium, dizendo com voz calma:
— Acalme-se. Todos temos dificuldades a enfrentar, não é acusando que conseguiremos viver melhor.
- Vim para dizer a verdade. Ela quer saber, mas se esconde no egoísmo. Julga-se vítima, mas tem sido muito cruel. Vim para dizer-lhe que, se ela quer justiça, eu também quero. Também sou mãe! Tive que partir, meu filho ficou com ela. Fiquei desesperada. Não esperava o acidente nem a morte!
- Precisa conformar-se com a vontade de Deus - disse Dora.
— Eu me conformei. Meu filho estava bem, e eu fiquei grata. Mas agora não posso me calar. Por que ela não o defendeu? Por que deixou que o atirassem à prisão sem esperanças, como um assassino cruel? Não sabe que ele é inocente? Por que permitiu isso? — sua voz tornou-se grave - ela só pensa em sua dor. E eu? Não sou mãe também? Tenho assistido a dor do meu amado filho sem poder fazer nada. Você quer a verdade, aí a tem. Espero que me ajude. Que cuide do meu filho, conforme prometeu. Se fizer isso, vou ajudá-la como puder.
Aurora soluçava sem poder conter-se. Magali abraçava-a emocionada.
- Preciso ir - continuou a médium.- Meu tempo acabou. Obrigada por haverem me atendido. Sou Odete.
Dora pediu a todos uma prece em favor daquela mãe aflita. Quando a sessão acabou, Aurora ainda chorava nos braços da filha. Dora abraçou-a com carinho, levando-lhe um pouco de água que ela bebeu, tentando conter a emoção.
Estava estupefata. Ninguém ali conhecia o nome da mãe de Jovino. Não possuía nenhuma dúvida de que o espírito de Odete estivera ali, para falar dos seus sofrimentos. Ela acusara-a. Pedira-lhe contas. Chamara-a de egoísta. Pela primeira vez pensou na dor que sentiria se seu filho estivesse preso. Ela aceitara a culpa de Jovino. A polícia chegara a essa conclusão, condenara-o. Ela sentia-se a maior vítima. Perdera o filho barbaramente. Odete estava sendo injusta.
- Acalme-se - aconselhou Dora com suavidade. - Tudo vai passar.
Aos poucos Aurora foi conseguindo dominar-se, envergonhada por não haver conseguido conter o pranto.
- Vamos embora - disse à Magali. - Sinto ter dado esse vexame.
Ainda estou descontrolada. Não deveria ter saído.
- Não se preocupe, Aurora. Esta é uma casa onde se fala com o coração e as emoções afluem naturalmente. Acontece com freqüência. Comigo também já aconteceu.
- Ela veio pensando no Alberto. Guardávamos a esperança de que ele pudesse comunicar-se - esclareceu Magali.
- Quem veio foi a Odete. Jamais pensei que ela estivesse vigiando nossos atos. Sempre ouvi dizer que quem morre nunca mais volta.
—Já deve ter percebido seu engano, o que, em seu caso, representa muito conforto.
Aurora suspirou, ficou pensativa por alguns instantes, depois disse:
- Não esperava a Odete, nem suas duras palavras que considero injustas, mas, se ela continua viva e sabe de tudo quanto aconteceu, Alberto também o estará e um dia poderá vir e falar conosco.
- Deus não atendeu seu pedido sobre o Alberto, mas permitiu um fato que despertou sua fé - considerou Magali, confortada.
- Estou admirada. Queria acreditar, temia iludir-me, agora tenho que reconhecer: foi a Odete! Ela falou comigo quase vinte anos depois de sua morte. O que ela disse pode ser injusto para mim, mas os fatos a que se referiu, são verdadeiros. Ninguém, à exceção de você, me conhecia aqui e nem Magali se recordava da mãe do Jovino. Foi um milagre. Um verdadeiro milagre.
- Não se trata de milagre - interveio Dora, atenciosa. – Fatos como esses vêm ocorrendo aqui com certa freqüência. As pessoas que morreram, continuam vivas no outro plano da vida e quando podem, comunicam-se com os que ficaram. É natural e simples.
- Para mim foi um milagre. Meu filho vive e agora tenho esperanças de encontrá-lo de novo. Virei aqui todas as semanas. Quero notícias.
Dora sorriu, compreensiva:
- É justo que deseje uma comunicação dele. Ficamos radiantes quando recebemos notícias dos que se foram. Porém, sei que o ama muito e que a felicidade dele está em primeiro lugar em seu coração.
— É verdade - concordou ela.
- Sendo assim, deve pensar um pouco nele. Em suas necessidades e seus problemas.
- Como assim?
- Ele foi arrancado da Terra de forma inesperada em plena juventude. Sente-se preso à família que amava, aos amigos, aos hábitos. Terá que distanciar-se de tudo isso para viver uma vida nova, diferente, em outro lugar. Sente-se inseguro. Assiste à dor, ao inconformismo das pessoas que ama, que o julgam morto para sempre. Vê o Jovino, preso inocente. Como poderá deixar tudo e ter serenidade para seguir seu novo caminho? Deseja ficar, contar a verdade, dizer que está bem, mas, ao mesmo tempo, sofre frente à própria impotência em realizar o que pretende e a necessidade de seguir seu novo destino.
- Pobre filho. Estaria nessa triste situação?
- Acredito que sim. Está tentando comunicar-se, porém, as dificuldades físicas que separam os dois planos nem sempre podem ser vencidas.
Aurora ficou alguns instantes pensativa, depois disse:
- Não quero que ele sofra. Fico horrorizada só em pensar como ele morreu. Se ficou ferido, atirado ao mato sem que ninguém o socorresse.
- Se quer ajudar seu filho, essa é uma cena que deve esquecer - disse Dora com firmeza. — De nada adiantará remexer o passado e sofrer por ele. Nada mudará por causa disso. É preciso pensar no presente.
- Agora, o que posso fazer?
- Pensar nele sem tristeza. Imaginá-lo em seus melhores dias, bem- disposto, alegre, saudável, feliz. Não guardar ressentimentos nem mágoas do passado. Ter paciência com a separação. Virá à sessão todas as semanas, guardará a esperança de receber uma mensagem dele, mas não insistirá nisso chamando-o em todos os instantes.
- Por que não posso fazer isso?
- Porque aumentará sua angústia, caso ele não possa vir. O mantê-lo-á prisioneiro a seu lado, ansioso e triste.
- Deus me livre. Não quero perturbá-lo.
- Entendo seu coração amoroso de mãe. Ajudaria muito se pensasse nele como sendo livre e dono dos seus atos. Mande-lhe pensamentos de amor, de fé, de esperança e de alegria. Anime-o a seguir seu caminho, mostre-lhe que seu amor é forte e verdadeiro. Que sua fé a fez esperar com serenidade a hora em que ele puder comunicar-se de alguma forma. Mande-lhe pensamentos de paz.
O rosto de Aurora distendeu-se em brando sorriso:
- Vou tentar - disse. - Obrigada por me contar essas coisas.
As duas despediram-se e saíram. Aurora não falou durante a volta. Estava pensativa. Uma vez em casa, Magali perguntou:
- Como se sente?
Melhor. Preciso pensar no que aconteceu. Na injustiça de Odete me acusando.
Pense, mamãe. Talvez a possa compreender.
Nada posso fazer pelo Jovino. Não tenho culpa de nada. Não o acusei.
Mas como todos nós, aceitou sua culpa sem tentar descobrir se ele falava a verdade. Ele sempre pretextou inocência. Não acreditamos nele.
- Tudo estava contra ele.
- Nós o conhecíamos desde criança. Sempre foi bom, dedicado, obediente, sério. Jamais deu motivos a menor desconfiança. Nós éramos sua família. Na hora em que precisou, o abandonamos.
Por que diz isso? E seu irmão morto, cruelmente? Depois, até agora tenho dúvidas. Pode ter sido ele mesmo. Não houve roubo. A polícia tem as provas. Não estará sendo muito ingênua?
Não, mamãe. Tenho a certeza de que é inocente. Posso compreender a dor de Odete, vendo o sofrimento do filho. Sente-se impotente para ajudá-lo. Espera que nós o façamos.
- De que forma? Se não foi ele, quem foi e por quê?
- Temos nossas desconfianças. Há o Vanderlei, que foi policial, e está investigando.
- Se a polícia toda não descobriu ninguém mais, acredita que ele possa conseguir?
- Acredito. Sei que quando for oportuno, a verdade aparecerá. O verdadeiro culpado responderá pelo crime, o Jovino estará livre.
- Isso é muito vago. Você é muito otimista.
-Tenho fé, mamãe. Os espíritos bons, o Alberto e hoje a Odete, estão nos ajudando. Tudo se esclarecerá.
- Vamos ver.
- Você verá mesmo.
Magali afirmava convicta. Aurora olhou-a com admiração. Gostaria de ser como ela. De ter sua fé e confiança. Apesar dos conhecimentos novos, conservava muitas dúvidas no coração.
Se fosse mesmo verdade? Se o Alberto estivesse vivo e bem em outro mundo, ela sofreria menos. Se ao menos pudesse vê-lo, um instante que fosse, para certificar-se, acalmar seu coração, tudo estaria bem. Porém, ela não conseguia.
E a presença de Odete? Como explicá-la? Naquele lugar estranho onde ninguém a conhecia? Quando se lembrava dela, apesar de sentir-se injustiçada, suas dúvidas desapareciam. Se ela estava viva e viera,
Alberto também o estaria e poderia vir.
- Você precisa pensar com calma - aconselhou Magali, vendo-a calada. - Ore, peça a Deus para mostrar-lhe a verdade. Ele tem meios para isso.
Aurora olhou a filha e disse com carinho:
- Farei isso. Obrigada, filha. Na hora da necessidade é que se conhece as pessoas. Estou começando a perceber como você vale ouro. Eu não sabia.
Magali sorriu alegre:
- Não acredite nisso! Poderá mudar de idéia logo mais.
Aurora beijou-lhe a testa com afeto.
— Você fala coisas que às vezes não gosto de ouvir, mas em alguns casos, pode até ter razão.
- Mãe, precisamos melhorar o ambiente aqui em casa. Somos mulheres, a tarefa é nossa. Papai e Rui merecem nossa atenção e afeto.
- Sinto, mas não tenho ânimo para pensar em coisas tão corriqueiras. Tenho um problema doloroso na alma, não sinto vontade de fazer nada. Se pudesse, não saía da cama.
— Precisa reagir a essa depressão. Pense na tristeza do Alberto vendo-a nesse estado. Pense no papai que passou pela mesma dor e agora ainda precisa viver em um lugar triste, sem que ninguém o conforte. Já reparou como ele está abatido, cansado?
-Já. Eu sempre disse que ele trabalha demais, tem exagerado.
- Sente-se melhor afundando no trabalho do que ficar aqui, vendo-a chorosa e abatida, a relembrar a tragédia a todo o instante.
- Não posso ser diferente.
- Pode e deve. Agora já sabe que Alberto continua vivo, está bem. Que ele precisa de alegria, conforto, serenidade, que nossa tristeza o perturba e incomoda. Precisa transformar nosso lar em um lugar sereno onde ele possa vir buscar forças e renovação. Onde ele possa permanecer sem sofrer, sentindo nosso amor por ele, mas também nossa alegria de viver, nossa fé em Deus e em sua justiça. Isso o ajudaria e a nós também, tenho a certeza, a superar nossa angústia e viver melhor.
Aurora suspirou pensativa e não respondeu. Magali continuou:
- Pense na dor de papai. O Alberto era para ele o filho preferido.
Aurora fez um gesto negativo.
- Não adianta negar, mamãe. Todos sabemos o quanto papai orgulhava-se dele, da sua inteligência brilhante, seu porte bonito, seu caráter. Pense como ele deve sentir-se. Ele não crê na sobrevivência da alma após a morte. Nunca o vi expressar esse pensamento. A idéia do "nunca mais" deve estar amargurando seu coração. Não tem o consolo que nós agora temos, nem a esperança do reencontro.
- Não podemos contar-lhe. Ele não acreditaria. Não permitiria que fosse ao Centro Espírita.
- Mãe, a verdade é como o sol, ninguém consegue impedi-lo de nascer todas as manhãs. Um dia, ele também brilhará para ele.
- Não sei, não. Ele sempre combateu esses casos de Espiritismo. Diz que levam as pessoas à loucura.
— Não diremos nada por agora, mesmo porque, quando ele estiver pronto para entender, maduro para saber, a vida tem seus métodos próprios para mostrar-lhe. Não é com isso que precisamos nos preocupar. Devemos confortá-lo, envolvendo-o com nosso afeto e melhorando nossas atenções.
Apesar das restrições e das negativas, a partir daquele dia, Aurora foi pouco a pouco saindo do estado de depressão doentia em que mergulhara. Voltou a interessar-se pela casa, pelas plantas e até cuidava um pouco melhor da aparência. Era com ansiedade que esperava o dia de ir à sessão e, embora a comunicação do Alberto não acontecesse, ela sentia-se mais calma, dormia melhor.
Interessara-se vivamente pelos livros espiritualistas e os lia com atenção, trocando idéias com a filha.
Fizera lá, muitas amizades. Pessoas sofridas que naquela casa haviam encontrado amparo e conforto, muitas havendo solucionado angustiantes problemas. Algumas havia que, como ela, tinham perdido um ente querido e lá obtiveram notícias.
Aurora foi se sentindo mais animada. O dr. Homero observava-a admirado. Ela agora parecia-lhe modificada. Não voltara a ser como antes da tragédia, ele sabia que isso nunca aconteceria, contudo, ela mostrava-se mais ponderada, mais serena e até mais interessada nos problemas humanos, coisa que nunca fizera.
Uma noite, Aurora sentia-se particularmente saudosa do filho. Estivera arrumando algumas gavetas onde havia fotografias e vendo-as, não pudera conter as lembranças.
Deitou-se pensativa. Fazia dois meses que ia às sessões espíritas, sem obter notícia. Nem a Odete voltara a comunicar-se. Por quê?
Quanto mais pensava e tomava conhecimento dos livros, dos estudiosos e até dos cientistas comprovando a sobrevivência do espírito após a morte e a possibilidade da sua comunicação com os vivos, sentia desvanecer as dúvidas. Agora, era-lhe natural aceitar que Alberto continuava vivo em outro mundo. Ah! Se ela pudesse vê-lo! Era só o que pedia a Deus.
Fez sua oração e adormeceu. De repente, viu-se em um jardim muito bonito e cheio de flores, verdes gramados. Havia uma claridade diferente, o sol brilhava, mas o ar era leve e a brisa, agradável.
Aurora sentiu uma alegria nova e percebeu que alguém a abraçava e conduzia. Era uma mulher. Vendo-a, Aurora sorriu. Ela lhe disse:
- Prepare-se para o encontro.
Aurora olhou em frente e viu Alberto, aproximando-se. Ele estava belo e sorria feliz.
-Alberto!
-Mãe!
Abraçaram-se com força, misturando suas lágrimas de alegria.
- E você, meu filho! Mal posso crer. Está mesmo vivo!
- Estou, mãe. Vivo e feliz. Vem, vamos conversar, aproveitar este momento. Sente-se aqui, a meu lado.
Segurando suas mãos, Aurora obedeceu. Em seu peito cantava a felicidade.
- Meu filho, que saudade! Quase enlouquecemos com o que aconteceu.
-Não falemos de coisas tristes. Conseguimos este encontro graças à bondade de Deus e de alguns amigos, e também porque você modificou o teor dos seus pensamentos.
- Não está sendo fácil - queixou-se ela.
- Não diga isso. Será cada dia mais fácil. Continue se esforçando para aprender a verdade. Não tema. Deus nos ajudará. Você vai indo muito bem, agradeça a Magali. Ela é um espírito lúcido. Confie nela.
- Ela tem me ajudado. Mas fale-me de você, como está?
- Melhor agora que vejo vocês mais calmos. Estou conformado. Um dia ainda saberemos por que nos aconteceu tudo isto.
- E o Jovino?
- Lastimo-o. Pobre amigo.
-É inocente?
- Não foi ele quem me matou, se quer saber.
- Diga-me, quem foi?
- Mãe, para que lembrar fatos que nos fazem sofrer? Disseram-me que deveríamos só falar no bem em nosso encontro, se quisermos nos ver de novo.
- Não me deixe - pediu ela. — Quero ficar com você.
- Não pode ainda. Sua missão na Terra não acabou. Você tem uma família para amar e ser feliz. Vem, mãe, quero que conheça como é belo este lugar. Agradeçamos a Deus tanta bondade!
Os olhos de Alberto luziam de emoção e Aurora, fascinada, segurando sua mão, acompanhou-o por entre as aléias floridas, as colinas verdejantes e perfumadas, sentindo uma imensa satisfação interior, uma alegria intraduzível.
- Lembre-se, mãe, eu estou muito bem. Confie em Deus e cultive a alegria. Tudo se resolverá a seu tempo, não tema.
Aurora acordou em sua cama, sentindo ainda dentro do peito a emoção daqueles instantes.
- Meu Deus! - disse - Que alegria!
Homero remexeu-se no leito:
— O que foi? - indagou.
- Homero, estive com o Alberto! Ele está vivo e muito bem.
- Você sonhou, Aurora. Só isso.
- Eu o vi, abracei, conversamos muito. Homero, ele estava lindo e feliz!
- Foi alucinação. Tanto pensou nele que até sonhou.
Aurora não se deixou convencer.
- Era ele! Sinto ainda o calor de sua mão na minha, seu abraço saudoso onde misturamos nossas lágrimas. Ah! Eu nem queria voltar.
É um lugar lindo, cheio de flores. Ele afirmou que o Jovino é inocente. Homero, precisamos fazer algo por ele. Não podemos deixá-lo na prisão por um crime que não cometeu.
- Você não sabe o que diz. Vou buscar um calmante, vai tomar e dormir.
- Não preciso de calmantes. Homero, agora que tive a prova de que o Alberto vive, que posso aceitar que a morte não é o fim de tudo, que finalmente sinto brotar dentro do meu coração a alegria e a compreensão, você quer impedir-me?
- Você está exaltada. É natural. Entrou em fantasia. Não aceita a perda do seu filho.
Aurora sentou-se na cama, acendeu o abajur e olhou firme o rosto do marido.
- Tenho pena de você, porque sua incredulidade só lhe oferece o vazio, a morte, a dor, o nunca mais. Eu prefiro a fé, a crença em Deus
que é tão grande e sábio, poderoso e justo, que está me mostrando que existe um outro mundo para onde vão as almas que deixam a Terra e que um dia nos reuniremos de novo quando a morte nos chamar.
Homero olhava-a admirado. Ela continuou:
- Você fala da morte, eu sinto a vida! Alberto vive e um dia você ainda perceberá isso! De hoje em diante Homero, nunca mais me verá chorar pelo Alberto. Ele está muito mais feliz do que nós, em um belíssimo lugar. Quero agradecer a Deus por isso.
Ali mesmo, diante do olhar aparvalhado do marido, Aurora ajoelhou-se e proferiu comovida prece de gratidão.
Depois, deitou-se, apagou a luz e logo adormeceu. Homero, ouvindo-lhe a respiração calma e cadenciada, não conseguiu mais conciliar o sono e só fazia pensar, pensar, pensar.
Rui chegou em casa muito irritado. Procurou Magali, não a encontrando, foi falar com a mãe.
- Papai já chegou?
-Não.
- Precisamos conversar - disse ele, parando em frente da mãe, cenho franzido.
Aurora suspendeu um pouco seus afazeres na cozinha e olhou-o sem muito interesse. Estava em uma fase em que procurava melhorar seus pensamentos, reencontrar a alegria de outros tempos, sabia que Rui agastava-se por coisas pequenas. Não queria perder o bom humor.
— Logo mais ele estará em casa para jantar. Acha necessário levar-lhe problemas? Ele tem estado tão abatido ultimamente!
- Não falaria com ele se o caso não fosse extremamente grave.
- O que é? - perguntou Aurora mais interessada em poupar o marido do que em conhecer do que se tratava.
- É a Magali. Anda saindo em má companhia, freqüentando lugares perigosos.
- Magali? Não acredito nisso. Ela tem mais juízo do que todos nós.
Rui irritou-se ainda mais.
— O que deu em você? Ultimamente tomou-se de amores por ela e aceita tudo quanto ela diz ou faz.
- Não fale assim de sua irmã. Ela não merece.
— Pois é com papai que eu vou me entender. Ele precisa tomar providências.
Voltou as costas e ia saindo, Aurora segurou-o pelo braço.
- Afinal, o que vai contar a seu pai?
Havia um ar triunfante no rosto dele ao responder:
- Ela anda saindo com um reles investigador de polícia, e sabe onde ele a levou? Ao presídio, visitar aquele assassino.
Aurora suspirou aborrecida.
— Como soube disso?
— Um amigo meu, advogado, os viu lá. Não é uma loucura? Magali é inconseqüente. Não deve mais sair sozinha.
- Deixe sua irmã em paz - tornou Aurora com firmeza. - E não vá perturbar seu pai com esse assunto.
- É isso que você diz? Quer protegê-lo apesar de tudo?
- Não se trata disso. Sua irmã nada fez de mal.
— Como não? Acha pouco? Ir escondido visitar aquele assassino?
Papai ficará tão indignado quanto eu e tomará suas providências.
- Ela não foi escondido. Eu sabia que ela havia ido lá. Depois, ao que sei, o Vanderlei é um moço decente que está investigando o caso. O Jovino é inocente. Não foi ele quem matou o Alberto.
Rui olhou-a boquiaberto.
- A coisa é pior do que supunha. Quer dizer que você sabia e nada fez para impedi-la? Desde quando tomou a defesa daquele marginal?
Aurora entristeceu-se. Doía-lhe ver o Rui tão agressivo. Com voz grave tornou:
- Filho! Não seja tão intransigente. Um dia ainda se arrependerá dessa atitude. Eu sei que o Jovino é inocente.
Rui riu com sarcasmo:
-Você? Desde quando? Que eu saiba a justiça condenou-o e até agora nada prova o contrário. Ele continua cumprindo pena, como merece.
- Não foi ele. Hoje eu sei.
- Como?
— O Alberto me disse pessoalmente que não foi o Jovino quem o matou.
Ele olhou-a admirado a princípio, depois desatou a rir. Aurora sentiu aumentar sua tristeza. Quando ele parou de rir, assumiu um ar condescendente:
- Vamos, mãe. Você tem pensado muito nele, estado muito depressiva, papai poderá dar-lhe um remédio que a ajudará.
Aurora sacudiu a cabeça:
-Não estou doente. Ao contrário, começo a viver novamente, estou muito bem.
- Essa sua exaltação, suas idéias, essas fantasias, podem ter conseqüências mais graves. Papai sabe?
- Sabe. Já lhe contei meu encontro com o Alberto. Ele está muito bem no outro mundo, tão lindo, num jardim cheio de flores. Não gostaria de vê-lo tão rancoroso como agora.
Rui olhava com ar de comiseração.
- Está bem, mãe - concordou. - Deixemos esse assunto para mais tarde.
Preferia falar com o pai. Sua mãe não estava regulando bem. Foi para o quarto disposto a resolver a questão a seu modo. Ouviu quando o pai chegou e procurou-o imediatamente.
Homero colocara o chapéu no cabide e pretendia ir ao escritório guardar a valise quando foi abordado pelo Rui:
— Pai, preciso falar-lhe com urgência. Trata-se de assunto sério.
Homero olhou-o um pouco aborrecido. Tivera um dia exaustivo, um dos seus pacientes passava mal, não tinha certeza de conseguir curá-lo.
- Venha ao escritório - disse.
Entraram. Rui fechou a porta, enquanto o pai colocava a valise sobre a mesinha, sentando-se frente à escrivaninha lavrada.
- O que há?
- Coisas graves estão acontecendo nesta casa — disse Rui. Diante do silêncio paterno, prosseguiu: - Magali tem saído em má companhia e sabe onde foram?
Homero sacudiu a cabeça negativamente. Rui continuou:
- Ao presídio. Visitar aquele assassino.
Homero franziu o cenho:
- Tem certeza?
- Tenho. O Jucá é advogado e viu-os lá, falando com ele.
Homero passou a mão pelos cabelos, contrariado.
- Não é lugar para uma moça - considerou pensativo. — Com quem ela estava? Que má companhia era essa?
- Um detetive.
- Por que faria isso sem nos dizer?
- Não sei. Falei com mamãe e fiquei assustado. Ela sabia de tudo. Até o nome do investigador. Pai, você deve fazer alguma coisa. Mamãe está dizendo coisas estranhas, tendo alucinações. Precisa de tratamento. Afirma ter visto o Alberto, falado com ele. Isso é grave.
— Diz que o Jovino é inocente. Acredita firmemente nisso.
- Ah! Você sabia! Mamãe está desequilibrada. Você não fez nada?
Homero permaneceu silencioso durante alguns instantes, depois disse:
-Não.
-Não vai dizer que acredita no que disse - tornou Rui, com ironia.
- Não. Não acredito. Mas tenho notado que essa fantasia fez-lhe bem. Está mais animada, voltando a interessar-se pela vida. Nunca mais teve aquelas crises de depressão.
Rui admirou-se:
- Não será perigoso deixá-la cultivar uma ilusão?
- Tenho pensado muito e resolvi não interferir enquanto ela estiver melhorando. Para ser franco, eu também gostaria de acreditar nisso. Diminuiria meu sofrimento.
Rui não soube o que responder. De repente, o pai pareceu-lhe envelhecido e cansado. Calou-se durante alguns instantes, depois perguntou:
- E Magali? Precisa impedi-la de freqüentar esses lugares. É perigoso.
Homero fixou-o sério:
— Resolverei esse assunto. Prefiro que não interfira.
Rui concordou e saiu. Ao passar pela sala viu Magali que estava chegando. Antegozando a reprimenda que o pai deveria dar-lhe disse-lhe:
- Magali, chegou bem na hora. Papai quer falar-lhe urgente no escritório.
Pelo ar do irmão, Magali desconfiou que algo não estava bem.
Aurora, que esperava a filha com ansiedade, apareceu na soleira e ouviu as palavras do filho. Aproximou-se de Magali:
- Seu pai sabe que você esteve com o Vanderlei, visitando o Jovino.
- Quando vi o Jucá lá, compreendi o que ia acontecer.
Rui olhava-a desafiador. Magali desviou os olhos e beijou a face da mãe carinhosamente.
— Não se preocupe, mãe. Não vai acontecer nada. Só vou lavar as mãos e irei ter com ele.
Magali fechou-se no lavabo. Seu pai era muito severo. Dali para frente, não poderia mais sair com a mesma facilidade. O que fazer?
Sentiu vontade de rezar, pedir ajuda aos espíritos que a protegiam. Ali mesmo, fechou os olhos e pensou em Deus, pedindo inspiração para falar com o pai.
Sentiu-se mais calma. Nada havia feito de mal, não precisava temer. Quando se sentiu segura de si, foi à procura dele. Bateu ligeiramente na porta e entrou.
Homero estava sentado ainda em frente a escrivaninha e segurava a cabeça entre as mãos. Seu olhar era triste e cansado. Vendo-o Magali enterneceu-se. Aproximou-se, beijou-o na face, coisa que não fazia desde a infância. Pareceu-lhe vislumbrar uma lágrima em seus olhos.
Homero pigarreou e tentou endurecer a voz ao dizer:
- Magali, o que você fez é grave. O que foi fazer no presídio? Não é lugar para uma moça!
- Pai, gostaria que me ouvisse. Que me compreendesse.
- Compreender o quê? Vai explicar o que foi fazer lá.
- Nada de mais. O Vanderlei é um policial amigo que está investigando a morte do Alberto. Queria falar com o Jovino e fomos com ele. Estava com alguns amigos meus, e nada fizemos de mal.
Homero levantou-se, enquanto dizia:
- O que vocês querem fazer? A polícia já investigou tudo minuciosamente. Você e sua mãe estão criando uma fantasia. Esse detetive, por certo, as está explorando. Um caso resolvido! Vocês são sentimentais.
Magali sacudiu a cabeça negativamente, dizendo com firmeza:
- Engana-se, papai. Ele não está cobrando nada por isso.
- Isso é ainda pior. Que interesse teria? Ninguém faz nada de graça a não ser...
- O quê?
- Que esteja interessado em você!
- Engana-se novamente. O Vanderlei está fazendo isso por causa de um amigo dele. Nos conhecemos agora. Há duas semanas apenas.
- Sua história não está clara.
- Se se dispusesse a ouvir-me, compreenderia.
- Nada justificaria a ida de uma moça como você, num lugar daqueles.
- Pai. Se em vez de Jovino fosse o Rui quem estivesse lá, preso - inocente, você não iria socorrê-lo?
- Não é a mesma coisa. O Rui não cometeria um crime desses.
- O Jovino também não.
- Por que afirma isso? Baseada em quê? Não vá dizer-me que a alma do Alberto apareceu e disse!
Magali olhou-o firme nos olhos e respondeu com suavidade:
- Pai, por que você é tão incrédulo? Um médico, dedicado e bondoso como você, como ainda não conseguiu enxergar a verdade? Você tem assistido pessoas que morrem, observado esses processos, forçosamente terá passado por experiências reveladoras, da força do imponderável que atua permitindo a morte ou restabelecendo a vida. Quando percebe que a sua medicina é impotente para salvar o doente, nunca pensou no poder superior ao seu que restabelece o equilíbrio e transforma todas as coisas? Nunca pensou que, um dia, nós também cruzaremos o vale da morte e o que nos acontecerá depois? Nunca se perguntou de onde trazemos idéias inatas, aptidões especiais; por que em certos momentos sentimos como se estivéssemos repetindo cenas já vividas? Terá se perguntado o porquê da desigualdade física, social e emocional das pessoas?
Homero olhava-a admirado. Os olhos de Magali brilhavam iluminados e havia certeza em suas palavras.
- O que tem isso a ver com o nosso assunto?
- Tudo, pai. Hoje, não mais devemos aceitar os mistérios da vida. Precisamos encontrar a chave que solucionará nossos problemas. Deixar de passar pela Terra como mortos vivos, sem ver nada, saber nada, indiferentes. É preciso questionar, pensar, investigar. Procurar a verdade, onde ela estiver, encontrar explicações satisfatórias para as nossas dúvidas. Se acreditamos em Deus, ele que criou tudo, cuida do universo, só pode ser perfeito e capaz. Assim sendo, tudo que ele fez só pode estar certo. O que nos parece errado no mundo, vem da nossa visão parcial e obtusa. A vida é rica e tem todas as respostas. Precisamos encontrá-las.
- Por que está dizendo tudo isso? De onde tirou essas idéias?
- Porque é muito triste ver alguém sedento, rodeado de água límpida e pura, não conseguir saciar sua sede.
Homero admirou-se. Magali nunca lhe falara assim. Suas palavras pareciam responder às indagações que fizera naquele dia. Emocionou-se:
- Estou ficando velho — pensou.
Sentou-se novamente, colocando a cabeça entre as mãos. Magali guardou silêncio. Depois de alguns instantes, ele levantou a cabeça e fitou-a:
- Por que acha que é isso? Julga-me incapaz de perceber as coisas?
- Não, papai. Mas dá para sentir que você está prestes a explodir.
Que não agüenta mais a pressão de seus próprios conceitos. A morte de Alberto tocou fundo nossa alma. Todos mudamos a partir desse dia. Fica difícil para você pensar que não existe nada para quem morre. Que tudo acabou para sempre. Não agüenta mais ver o sofrimento humano, sem que nenhuma esperança possa balsamizar suas indagações. Trabalha demais para não ficar em casa, onde a presença de Alberto ainda permanece no vazio triste e sem remédio. Mas, no trabalho, ainda a morte, a dor, o sofrimento das pessoas, tudo parece convidá-lo a pensar, perguntar e tentar descobrir o que há além de tudo isso. Você está exausto e no limite de sua resistência. Agora, ou dá um passo a frente, ousadamente, tentando penetrar o desconhecido, ou se petrifica na negação e na incredulidade e aí não haverá mais esperança para você.
Magali estava transfigurada. Seus olhos brilhantes e abertos fixavam-no penetrantes, e sua voz tinha modulações que ele nunca ouvira.
Homero lutava para conter as lágrimas, envergonhado de fraquejar diante da filha, mas não conseguindo, elas desciam-lhe pelas faces qual catadupas longamente represadas que ele não conseguia mais conter. Baixou a cabeça numa tentativa de esconder a emoção.
Magali aproximou-se e colocou a mão sobre seu ombro com carinho. Com voz carinhosa, continuou:
- Você pode chorar a morte do Alberto, a sua decepção pelo que aconteceu, mas não negue seu direito a ser feliz e ter esperança. As coisas não são tão tristes como imagina. Um dia, perceberá isso. Acalme-se. Deus nos vai ajudar e você não está sozinho. Todos o amamos muito, mamãe, eu, o Rui. Vamos nos ajudar e reconstruir nossa paz.
As palavras de Magali eram como calmantes para Homero. Ele suspirou fundo. Depois de alguns minutos, sentiu-se melhor.
- Vamos orar juntos, papai. Vamos pedir a Deus que nos mostre tudo quanto precisamos enxergar, aprender. O Alberto está vivo no outro mundo, onde vão todos os que morrem e para onde iremos um dia. Ele mesmo o ajudará a compreender a verdade.
Homero não saberia explicar o que lhe estava acontecendo. Mas sentia imensa saudade do filho. Como gostaria que isso fosse verdade! Estava cansado. Tantos sofrimentos, tanta dor, para quê? De que lhe adiantava curar um doente para que ele vivesse alguns anos mais e morresse depois inapelavelmente?
Era uma luta desigual e injusta, na qual ele sempre perderia. Sentia vontade de abandonar tudo e sumir.
Magali passou o braço pelos seus ombros e orou com comovente sinceridade. Pediu a Deus que lhes permitisse enxergar a verdade, agradeceu todas as bênçãos que possuíam.
Homero, cabeça baixa, aos poucos foi se acalmando. Comovia-se diante das palavras singelas de Magali e do seu interesse em confortá-lo. Sentia que ela o amava, e isso fazia bem ao seu coração sofrido. Quando ela se calou, ele permaneceu pensativo durante algum tempo. Sentia vergonha de haver sido apanhado em um momento de crise. Logo ele, um médico, e diante da filha.
- Pai, posso compreender como se sente, — disse Magali com suavidade. - Respeito seus sentimentos. Não se constranja por causa deles. Um homem também pode sentir, amar, sofrer. É natural.
Ele admirou-se de novo. Ela parecia ler seus pensamentos. Fez o possível para imprimir um ar de tranqüilidade em seu semblante e disse com gravidade:
- Você disse bem. Desde a morte de Alberto, não somos os mesmos. Mas, nada que possamos fazer nos vai devolver sua vida. É preciso aceitar o que aconteceu.
- Sim. Mas é preciso compreender. Aceitar não é conservar o ressentimento, a amargura e a mágoa no coração. É muito mais, é lutar para encontrar novamente na vida razões que nos permitam refazer nossas horas e aproveitar bem nosso tempo. Reencontrar a felicidade.
- Você é jovem. Tem um futuro pela frente. Pode ter esperanças.
- Você também. A felicidade não depende da idade. Podemos conquistá-la em qualquer tempo e lugar. Basta querer.
Homero olhou-a como se ela estivesse narrando um conto de fadas. Naquele momento de sua vida, o que ele menos acreditava era em felicidade. Parecia-lhe um sonho distante e impossível. Contudo, a fé ingênua de Magali fazia-lhe bem. Não desejava destruir-lhe os sonhos.
- Gostaria de ser como você
- disse
- poder acreditar novamente.
- Poderá, papai. Você é inteligente. Não vai ficar muito tempo nessa descrença.
Homero sacudiu a cabeça:
- Mas eu não sou descrente. É a segunda vez que fala nisso.
-Você crê socialmente. Aceita a religião, e até freqüenta a igreja de vez em quando. Não é disso que eu falo.
-Não?
- Não. Eu era como você. A religião consistia em cumprir determinadas fórmulas, rituais e pronto. Era uma coisa à parte do meu dia-a-dia. Não me refiro a isso. Fé é muito mais. É perceber a força de Deus atuando em tudo e em todos, fora e dentro de nós, que responde indagações, ajuda-nos a desenvolver nossa própria capacidade, permite-nos sentir, compreender, crescer.
- Onde aprendeu essa filosofia? Não sabia que gostava desses assuntos.
- Pai, meu interesse não é filosófico ou intelectual, é o de aprender a viver melhor. Isso é o que me tem levado a questionar os padrões estabelecidos pelos homens, pela sociedade e até pelas religiões.
- Você? Uma moça interessada em assuntos tão áridos?
- Como pode dizer isso? Em>nossas universidades, aprendemos muitas coisas as quais jamais utilizaremos na vida prática. Não seria mais útil olhar para dentro de nós mesmos e procurar descobrir o porquê da vida, o que ela significa, para que vivemos no mundo, e a célebre pergunta, para onde vamos?
- Você tem idéias originais. Quem poderia responder tudo isso?
- Há muita gente pesquisando esses assuntos, inclusive em medicina. E, nesses livros, podemos encontrar explicações e provas que desenvolvem nossa fé. São pessoas que estudam fenômenos naturais e que podem nos mostrar outros aspectos da vida que respondem muitas das nossas indagações.
- Fala dos cientistas?
- Sim. Observadores da natureza, sem preconceito, sem julgamento, estudando fatos, aventando hipóteses bastante esclarecedoras.
- A que se refere?
- Aos estudantes do comportamento humano, dos fenômenos espíritas que têm ocorrido desde tempos remotos e continuam acontecendo até hoje.
- Não pode acreditar nessas fantasias! Com certeza anda lendo livros impróprios.
- Afirmo que não. Ouviu falar em Sir William Crooks?
- O grande cientista inglês?
- Sim. Há um livro de pesquisas que eu li em que ele relata suas experiências com uma médium. Ele obteve provas indiscutíveis da sobrevivência do espírito após a morte. Chegou a fotografar um espírito materializado.
Homero surpreendeu-se. Para ele, Espiritismo era coisa de pessoas crédulas e ignorantes.
- Não pode ser — disse. - Um cientista jamais se prestaria a uma coisa dessas. Preciso ver que livros você anda lendo.
- Vou buscá-lo para você.
Ela saiu, foi ao quarto e apanhou o livro "Fatos Espíritas" e sem fazer caso do Rui que na sala a olhara com curiosidade, e do ar preocupado de sua mãe, entrou de novo no gabinete do pai, fechou a porta e entregou-lhe o livro.
Homero revirou-o entre as mãos admirado. Folheou-o, examinando as fotos, os dizeres. Não sabia o que pensar.
- Gostaria que o lesse, depois trocaremos opiniões.
- Estou vendo, mas não posso acreditar! Um cientista tão famoso! Por que teria se metido nisso?
- Porque é um dos problemas mais angustiantes da humanidade. A morte tem sido uma realidade nossa ainda pouco investigada. Depois pai, não é tão impossível assim compreender que a vida continua depois da morte do nosso corpo físico. Para algum lugar terão que ir as pessoas depois que morrem. Este universo imenso, tão pouco conhecido, certamente guardará outros mundos, outras possibilidades de vida, fora deste pequeno planeta. Depois, uma prova dessas, mostra que nossos entes queridos que já morreram, continuam vivendo em outro lugar, e um dia a eles nos reuniremos, quando chegar a nossa vez. A morte significa apenas uma viagem, uma separação temporária, provocada apenas pela pobreza dos nossos cinco sentidos que nos impedem de perceber-lhes a presença.
Homero respirou fundo:
- Que bom se fosse verdade!
- Eu creio sinceramente. Leia esse livro. Reflita, observe na vida prática, procure comprovar se isso é verdade. Tenho certeza de que a própria vida lhe dará as provas que necessita para enxergar. Se quiser, posso emprestar-lhe outros livros.
- De cientistas?
- De pesquisadores. Verificará surpreendido que há nomes consagrados e famosos entre eles.
- Você conseguiu distrair-me, mas não posso permitir que vá ao presídio. Uma moça não pode freqüentar um lugar desses.
- Um dia compreenderá que Jovino não cometeu crime algum. Enquanto ele está lá, preso injustamente, o verdadeiro assassino anda em liberdade. Isso pode até ser um perigo para outras pessoas.
- Por que diz isso? O que sabe? Que detetive é esse que foi com você?
- Tive provas de que ele é inocente. Contudo, elas ainda são insuficientes para libertá-lo. Vanderlei quer ajudar a descobrir a verdade.
- Seja como for, não quero vê-la envolvida nisso.
- Pai, Jovino viveu aqui em casa. Foi sempre um menino bom, obediente, amoroso e dedicado. Mostrava-se mais ponderado do que o Rui e até do que o Alberto. Ninguém muda tão de repente. Depois, ele não tinha motivos.
- O coração humano é ihsondável. A polícia descobriu tudo.
- Ele jamais confessou. Tem sofrido muito com a idéia de que aceitamos sua culpa.
Homero baixou a cabeça. Cada vez que recordava o assassinato do filho, sentia vontade de destruir o seu assassino.
- Quando lembro do crime, fico indignado. Não consigo pensar como você.
- E se ele for inocente realmente? Alguma vez já lhe ocorreu essa possibilidade?
- Nunca.
- Pense nisso. Muitos erros judiciários já foram cometidos no mundo. Jovino pode ser um caso desse.
- É uma possibilidade remota.
- Que se for verdadeira, nos colocaria na posição de criminosos, coniventes com essa injustiça.
- Fala com muita certeza. Afinal, que provas são essas que possui?
- Posso falar sinceramente? Não colocará sua autoridade de pai, ante sua vontade de descobrir a verdade?
- O que você fez? Por certo coisas que eu não aprovaria.
- Nada fiz de errado, papai. Mas se pretende ser severo comigo, nada direi. Talvez seja melhor. Não sei se já está maduro para compreender.
Homero estava curioso. Sua filha parecia-lhe mudada, falava com segurança. Não lembrava a menina chorosa e irreverente de tempos atrás.
Agora, impunha respeito pela maneira digna de colocar suas idéias. Depois de haver se mostrado tão deprimido, não estava disposto a impor severidade. Seu papel de pai severo estava começando a cansá-lo. Magali sentara-se do outro lado da escrivaninha e olhava-o com seriedade.
- Pode falar Magali. Não vou criticar. Farei o possível para entender. Magali começou a contar tudo quanto sabia. Desde o dia em que Mariazinha estivera em sua casa pela primeira vez. A medida em que falava, Homero interessava-se pelo assunto, e reflexões nas quais ele nunca se detivera, acudiam-lhe à mente, como que inspiradas por alguém interessado em mostrar-lhe os fatos.
Na verdade, Alberto estava lá. Desde o momento em que Magali, fechada no lavabo, pedira ajuda, ele aproximara-se acompanhado de uma assistente a que fora permitido cooperar.
Alberto, desde a tarde em que Magali havia comparecido ao Centro Espírita pela primeira vez, compreendera sua verdadeira situação e concordara em abrigar-se em um local de recuperação e socorro. Pelo seu excelente comportamento e dedicação, estava em condições de continuar visitando a família, no seu desejo legítimo de aliviar-lhes os sofrimentos, mostrando-lhes a verdade. Abraçara o pai, procurando fazê-lo esquecer os preconceitos e aceitar melhor o que Magali dizia.
Ela não omitiu nada. Homero, admirado, procurava atentamente não perder nenhum detalhe. Quando ela acabou, ele estava alarmado:
- Você acha que esse moço, o Rino, poderia haver sido o verdadeiro assassino do Alberto?
- Não sei, papai. Ele estava com medo, ameaçou Mariazinha para encobrir a briga. O que posso afirmar é que se trata de um elemento perigoso. A surra que deu no Júlio, deixou-o de cama alguns dias.
Homero passou a mão pelos cabelos, pensativo.
- Estou perplexo — disse. - Se as coisas se passaram como me contou, realmente, é preciso investigar. Tem certeza de que não esqueceu nada?
- Tenho, papai. Sinto-me aliviada. Sua compreensão nos será de grande valia.
- Sua mãe já sabe de tudo isso?
- Sabe. Quando ela resolveu ir ao Centro Espírita, já sabia.
- Hum! Agora entendo certas coisas que ela dizia. Sua mãe melhorou, devo reconhecer, tem estado mais calma.
- Conforta o coração saber que o Alberto vive e que o Jovino é inocente.
- Quanto a isso, ainda veremos. Vou ler esse livro hoje mesmo. Estou muito interessado em verificar esse assunto. Mas prometa que não irá mais ao presídio.
- Pai, por favor! Deixe-me confortar jovino. Não me impeça de vê-lo. Não irei sozinha, meus amigos são pessoas de caráter e qualidades de coração. Você pode ir comigo. Eu posso trazer esses amigos aqui, para que os conheça. São pessoas de bem. Têm me ajudado muito. Sou-lhes muito grata.
- Está bem, Magali, vou pensar no assunto, mas gostaria que não fosse lá sem eu saber.
- Está bem, papai. Não há mais motivo para ir escondido. Agora, vamos comer. Há horas que estamos aqui. Deve estar com fome.
Homero sorriu. Seu mau humor havia passado. Abraçado à filha, saiu do gabinete e dirigiram-se à sala de estar.
Rui olhou-os ironicamente, ia falar alguma coisa, mas Homero não lhe deu tempo:
- Aurora, estamos com fome. Podemos jantar?
Olhando a fisionomia distendida do marido e o brilho dos olhos de Magali, sentiu-se alegre e calma.
- Claro. Está tudo pronto. Vou mandar servir. Você vai sair?
- Não. Esta noite eu pretendo ficar em casa. Se ninguém me chamar, é claro.
O Rui olhava sem entender. Todos pareciam muito bem e ele sentiu-se insatisfeito e enraivecido. O Alberto sempre fora o preferido dos pais, agora que ele se fora, eles apegavam-se a Magali. Ele, como sempre, ficava em último lugar. Teve vontade de criticar o pai por não haver dado a Magali o castigo que merecia.
- Vejo que foi mole com ela - disse ferino. - Nesta casa agora, ela faz e desfaz. É a queridinha.
- Não é verdade, meu filho - respondeu Homero, calmo. - Estou cansado e desejo paz. Espero que compreenda isso e respeite.
- Mas ela está proibida de ir ao presídio, não é?
- Como eu já disse, é melhor não se envolver nisso. Eu posso cuidar desse assunto.
Vendo a mãe e Magali que voltavam da cozinha, levantou-se e disse irritado:
- Se é assim, façam bom proveito. Não quero jantar.
Saiu rápido batendo a porta. Alberto que o abraçara tentando inspirar-lhe bons pensamentos, quis segui-lo, mas sua companheira não permitiu:
- Deixe-o - disse. - Não poderá fazer nada por agora. Somos mais úteis aqui, para manter a calma do ambiente.
Olhando as duas que se preocupavam com a atitude do Rui, Homero disse com voz firme:
- Ele se acalmará. Não posso permitir que ele interfira em minhas decisões. Vamos jantar. Quero agora ouvir a versão de Aurora. Vai contar-me suas impressões.
Jantaram tranqüilos e acomodaram-se confortavelmente na sala de estar, onde Homero quis ouvir Aurora, e eles conversaram durante muito tempo.
Alberto retirou-se satisfeito. Pela primeira vez depois que ele partira, a serenidade, a harmonia, a compreensão, voltaram àquele lar.
Já passava muito da meia-noite, e o presídio estava às escuras. O Jovino, deitado em sua cama na cela, não conseguia conciliar o sono. Pensava em sua vida, tentando encontrar as causas que justificassem o que lhe acontecera.
Não sentia revolta. Essa fase havia passado. Agora, pensava de forma diferente. Desde o dia em que Magali o visitara, tudo se transformara. Os livros que lera e continuava lendo, fizeram-no olhar os fatos através de uma ótica mais ampla, espiritual.
Era incrível como os problemas, observados diante do conceito de eternidade, da reencarnação, da continuidade da vida após a morte, modificavam-se.
O que ele teria feito em outras vidas para estar ali agora? Por que nascera órfão de pai e perdera a mãe tão cedo? Por que fora criado de favor em uma família estranha? Que ligações teria tido com eles em vidas passadas?
Era inegável que os estimava. Durante sua permanência com eles, muitas vezes desejara haver nascido ali, como verdadeiro filho.
Aprendera a enxergar Deus como sendo perfeito e bom. Assim sendo, tudo quanto acontece tem uma causa justa e reflete essa bondade.
Era preciso partir desse pensamento claro e objetivo para tentar entender os fatos, da forma como aconteceram. Ah! Se ele pudesse saber por quê! Se pudesse voltar a viver em casa do dr. Homero, ser respeitado por eles, estar ali! Como fora bom o tempo em que estivera lá! Como gostaria de deitar no seu pequeno quarto, olhando aquelas paredes amigas e acertando o despertador para o trabalho do dia seguinte.
Lágrimas de saudade vieram-lhe aos olhos e ele limpou-as com as costas da mão. A ferida ainda estava aberta. Sentia-se muito só. Voltaria algum dia ao antigo quarto? Ele era inocente daquele crime, o que teria feito em vidas passadas?
Remexeu-se no leito ansioso. E se descobrissem o verdadeiro assassino? Ele ganharia de novo a liberdade. Para onde iria? D. Aurora o receberia de volta? E o Rui, o dr. Homero, aceitariam?
Jovino sentiu profunda emoção. Apesar da angústia que sentia, pensou com firmeza:
- Deus é bom e justo. Da mesma forma que ninguém fica sem responder pelo que fez, ele conduz todas as coisas de forma mais certa. Se algum dia, em outra vida, cometi algum crime, agora, não me lembro dele. Só sei que não matei o Alberto e Deus por certo mostrará isso. A verdade aparecerá e eu confio. Entrego em suas mãos o meu problema. Aceito o que a vida decidir. Se eu tiver que cumprir minha pena até o fim, é porque é melhor assim. Deus me dará a resposta. Se eu puder sair, tudo acontecerá para isso.
Jovino sentou-se no leito e sentiu vibrar dentro do seu coração sincera emoção.
- Deus, - pediu - mostra-me o caminho da minha libertação, mesmo que ele seja o destas grades que me oprimem, eu aceito, porque reconheço haver aprendido muito nesta situação. No entanto, aguardo confiante meu momento, quando todas as coisas serão esclarecidas. Diante da sua justiça, eu sei que será assim. Obrigado meu Deus, por restabelecer a verdade. Ensina-me a enxergá-la e a esperar.
Mais calmo, Jovino sentiu que sua angústia desaparecera e deitando-se novamente, logo adormeceu.
Alberto comovera-se. Ficara ao lado de Jovino, observara-lhe os pensamentos corajosos. Com carinho alisou-lhe a cabeça adormecida.
- Pobre amigo — disse. - Tem sofrido muito. Mercedes aproximou-se.
- Não se deixe envolver pela emoção. Reconheça como ele tem amadurecido. Isso é muito bom.
Ela acompanhava Alberto em suas visitas e fora designada para prestar auxílio em seu caso.
- É verdade. Como eu gostaria de intervir, revelar a verdade, libertá-lo!
- Calma. Tudo acontecerá na hora certa, quando Deus determinar. Jovino confia, nós também. A ajuda, para ser efetiva, não pode pensar apenas em uma parte. Deverá resolver todos os ângulos da questão, desenvolvendo, beneficiando a todos.
- Isso já me foi explicado. Agora, o Jovino dorme, mas seu espírito não se afastou desta cela. Ele não está nos vendo, eu gostaria de um encontro direto entre nós, como tive com Magali ou com mamãe.
Mercedes abanou a cabeça.
- Hoje não será possível. Quem sabe outro dia. Precisamos voltar. Está na hora.
Uma onda de tristeza passou pelo rosto de Alberto.
- Sinto deixá-lo aqui, desta forma.
- É preciso - tornou ela com energia - Sua tristeza poderá envolvê-lo e piorar as coisas, você já sabe disto. Jovino está num processo de amadurecimento interior, qualquer interferência agora só o prejudicaria. O que ele precisa receber de nós são energias positivas e harmoniosas.
Alberto baixou os olhos envergonhado.
- Tem razão Mercedes. Desculpe-me. Prometo controlar as emoções. O Jovino precisa de amor e eu quero-lhe muito bem.
Mercedes sorriu satisfeita.
- É melhor assim. Vamos embora.
- Sinto-me angustiado quando venho a este lugar.
- É natural. A densidade de pensamentos negativos aqui é sufocante. É prudente isolar-se deles tanto quanto possível.
Uma vez na rua, respiraram profundamente procurando receber novas energias.
- Vamos passar para ver a Odete. Prometi levar-lhe notícias. Alberto concordou e dentro de meia hora alcançaram um Posto de Socorro perto da Terra. Mercedes identificou-se e os pesados portões abriram-se para dar-lhes passagem.
Entraram em um pátio, rodeado de pavimentos, cercado por extensos jardins. Mercedes procurou um dos alojamentos e entrou seguida pelo Alberto. Sem hesitação, seguiram pelo corredor até o quarto de Odete. Mercedes bateu delicadamente. Foi Odete quem abriu a porta, vendo-os, disse com emoção:
- Ainda bem que vieram. Sinto-me preocupada, ansiosa. Entrem. O quarto era simples, mas confortável.
- Sentem-se, por favor - continuou Odete designando o sofá e as poltronas a um lado do aposento.
Vendo-os acomodados, sentou-se por sua vez, indagando:
- E então? Como está ele?
- Muito bem - respondeu Mercedes. - Sem revolta e procurando melhorar seus padrões mentais.
- Não me conformo com o que lhe fizeram — disse ela com certa amargura. - Foi uma grande injustiça.
- Acalme-se, - respondeu Mercedes - o Jovino está progredindo muito, amadurecendo. Temos esperanças, se ele continuar reagindo, de poder libertá-lo.
- Um menino bom como aquele, puro, eu diria até ingênuo, ser acusado por um crime que não cometeu! Você sabe que não foi ele! Tem obrigação moral de ajudá-lo.
- Tenho feito tudo para isso - tornou Alberto com ar preocupado. - Infelizmente não sei como fazer isso. Meus orientadores aconselharam-me a ser paciente e a confiar em Deus que quando for oportuno, agirá de forma adequada.
Odete levantou-se inquieta:
- A mim dizem a mesma coisa. Mas até quando teremos que esperar? Até quando deixar o meu menino no meio daqueles assassinos e ladrões, sofrendo maus-tratos e privações, humilhações e angústia? Ele não é um deles. Não cometeu nenhum crime.
- Não julgue ninguém - retrucou Mercedes com firmeza. - Lembre-se que os outros que estão naquele presídio, têm família que os ama e sofrem duplamente por vê-los reclusos ali e por saberem que são culpados. Você não carrega esse peso. Jovino não cometeu nenhum crime. Nada tem a lamentar quanto a isso. Está lá, cumprindo uma experiência necessária ao seu aperfeiçoamento. Devia sentir-se feliz porque ele tem aprendido a enxergar as coisas do espírito. Colocado na prova dura, está sabendo levá-la a bom termo, sem revolta ou ressentimentos.
Odete baixou a cabeça pensativa. Depois disse:
- Quisera compreender. Foi duro deixar o mundo em plena mocidade, abandonar meu filho na casa de estranhos. Lutei muito para conformar-me. Ele era bem tratado, vivia bem e eu acabei por aceitar. Mas, quando o acusaram, fiquei revoltada. Esperava que Aurora, o dr. Homero o defendessem. Mas não. Eles não só o abandonaram como passaram a odiá-lo.
Odete chorava desconsolada.
- É justo isso? - perguntou com amargura.
Mercedes levantou-se e parou diante dela, olhando-a com firmeza:
- Odete, se continuar a lamentar-se, iremos embora. Pensei em alegrá-la com as boas notícias que trouxemos, mas se prefere fixar-se no negativismo e na queixa, não voltaremos mais.
- Não, por favor, não me deixem! — gemeu ela assustada.
- Todos nós sabemos como Deus é justo e bondoso. Que nada acontece sem motivo. Que ninguém é vítima e sofre sem necessidade. Se tudo tem acontecido dessa forma é porque no momento era o melhor para todos. Você fala como se ainda vivesse na Terra, na faixa estreita da carne. Onde está sua fé? Onde está sua compreensão?
Odete não encontrou palavras para responder, e Mercedes indagou:
- Você ama seu filho, quer ajudá-lo, não é mesmo?
- É o que mais quero na vida.
-Nesse caso, expulse da mente esses pensamentos negativos. Não alimente a mágoa, a depressão, a revolta. Quer passar para ele esses sentimentos?
-Não.
- Ele precisa receber afeto, pensamentos harmoniosos de paz e de alegria, de esperança e de fé. Isso é que pode enviar-lhe.
- Não me permitem vê-lo.
- Seu descontrole o prejudicaria com certeza. O Alberto passou por uma prova difícil, porém, já tem permissão para algumas visitas, desde que contenha suas emoções.
- Estou tentando, Odete, e tenho conseguido. Tenho visto minha mãe, meu pai, a família. Hoje estive com Jovino, abracei-o e procurei transmitir-lhe forças. Não é fácil porque, as emoções brotam espontâneas dentro de nós. Mas a vontade de não perturbar, de ajudar, nos permite um domínio maior. Tente mudar seus pensamentos e por certo conseguirá permissão para vê-lo.
- Ah! Como seria bom!
-Tente, Odete. Comece agora. Sinta a alegria da libertação dele. Pense no restabelecimento da verdade, agradeça a Deus por isso tudo, todos os dias e um dia, isso acontecerá realmente.
- Tentarei - tornou ela, humilde. — Se ao menos eu soubesse por que tudo nos aconteceu! Sei que há um bom motivo, você disse e é verdade, mas não consigo ainda lembrar-me de minhas vidas passadas. É lá com certeza que se encontra a chave para nossos problemas.
Mercedes passou a mão acariciando os cabelos de Odete.
- Tem razão. Os motivos existem, mas se ainda não consegue recordá-los, torna-se necessário esperar.
- Você poderia ajudar-me. Sei que existem recursos para nos ativar a memória. Se eu pudesse lembrar!
- Acha que seria bom?
- Sim. Compreender ajuda a suportar.
- Verei o que posso fazer. Consultarei meus superiores. Agora precisamos ir. Se quer melhorar sua vida e conseguir ajudar seu filho, não permita que nenhum pensamento negativo a domine. Cada vez que ele vier, não lhe dê atenção. Procura pensar só no bem, na alegria, na harmonia. Verá que as coisas mudarão a sua volta, para melhor. Comece agora. Sorria com coragem e confiança.
Odete esforçou-se por atender. Se era bom para Jovino, ela o faria.
- Está melhor assim. Confie em Deus. Voltarei assim que puder trazer novas notícias.
- Obrigada. Deus os abençoe. Sinto-me melhor. Alberto abraçou-a carinhosamente.
- Isso, Odete. Haveremos de vencer. Deus nos ajudará.
- Obrigada, meu filho.
Saíram e puseram-se a caminho do local onde viviam. Alberto seguia calado, imerso nos próprios pensamentos. Chegaram ao prédio onde Alberto residia e à porta, antes da despedida, ele considerou:
- Eu também não me recordo das encarnações anteriores. Por quê?
- A energia do mundo terreno é muito forte. Seu magnetismo, em alguns casos, demora para sair, retendo o espírito sob o esquecimento, principalmente quando ele não desejava deixar o corpo e possui interesses na Terra.
- No meu caso, seria isso?
- Você deixou o corpo a contragosto, em pleno vigor físico. Esperava desfrutar da experiência terrena e não conseguiu. Sente-se responsável pelo sofrimento dos seus, deseja restabelecer a verdade. Está preocupado com os que ficaram. Isso o prende ao magnetismo terreno e retarda sua reintegração no passado.
- Contudo, muitas vezes tenho me perguntado o porquê de tudo isso. Se eu soubesse, talvez compreendesse melhor os fatos. O que a Odete disse é verdade? Há alguma forma de apressar essa conscientização?
- Há e, em alguns casos, essa ajuda é até recomendada.
- Como é feito isso? Hipnose?
-Não. Projeção astral. Rememoração através dos registros akásicos. Ouviu falar deles?
Alberto sacudiu a cabeça negativamente: - Não.
- Tudo quanto acontece no universo fica gravado no éter. Nossos especialistas conseguem transferir esses registros para um visor, e você pode assistir como no cinema, ao que desejar.
- É extraordinário! Não pensei que existisse essa possibilidade.
- Contudo, esse processo só é utilizado com permissão dos nossos orientadores e apenas daquilo que será útil ao nosso aproveitamento. A curiosidade sem utilidade não é permitida.
- Quer dizer que eu poderia rever minhas vidas passadas?
- Não só as anteriores como a última.
- Pode arranjar isso para mim?
- Não sei. Deve convir que nem sempre estamos preparados para a verdade.
- Seja o que for, é melhor saber.
- Se isso fosse verdade, ninguém esqueceria o passado ao reencarnar. O esquecimento é uma pausa, um alívio, uma bênção.
- Pode ser. Mas eu desejo muito recordar o passado. Pode ajudar-me?
- Falarei com meu superior, verei o que será possível fazer. Alberto estendeu-lhe a mão com entusiasmo.
- Obrigado, Mercedes. Você tem me ajudado muito. Ela sorriu alegre.
- Pode contar comigo. Farei o que puder.
Despediu-se com um sorriso, e Alberto entrou no prédio. Olhando o quarto simples porém aconchegante e agradável, pensou:
- Se os meus pudessem ver-me agora, que bom seria! Por outro lado, lembrar das outras vidas, poder conhecer o passado, compreender as causas dos problemas dolorosos, conseguir a chave daquele quebra-cabeça que tantas vezes o atormentava, excitando sua imaginação, como seria bom!
Pela primeira vez desde que deixara a Terra, começou a perceber o quanto estivera distanciado da realidade, procurando inutilmente reatar o fio de sua vida física, quando havia tanto para conhecer e objetivos maiores e mais belos a atingir.
- A vida — pensou ele - não se restringia à superfície do pequeno mundo onde estivera durante sua curta existência. Guardava segredos e possibilidades inesperadas.
Ele, que estivera sempre com o pensamento ligado a Terra, naquele instante começou a sentir vontade de conhecer o novo mundo para o qual fora arremessado e onde passara a viver. Que maravilhas guardaria?
Que conhecimentos poderia usufruir? Existiriam outras cidades, outros mundos que ele pudesse visitar? Teria em alguma parte amigos de outras vidas?
De repente uma onda de alegria o envolveu. Alguma coisa muito familiar que não saberia explicar. Era como se estivesse voltando para casa depois de longa ausência.
Embora fosse apenas uma sensação, sentiu-se reconfortado e em paz. Teve vontade de orar. Pensou em Deus com emoção e ajoelhan-do-se ao lado da cama, conversou com ele, sobre o que lhe ia na alma, expressando sua gratidão. Depois, estendeu-se no leito e adormeceu.
Quando acordou já era dia claro. Levantou-se apressado e parou em frente a um espelho. Admirado, notou que estava um pouco diferente. Seus cabelos haviam escurecido, seu rosto, modificado um pouco.
Sentia-se diferente também. Mais amadurecido, mais experiente. O que teria ocasionado essa transformação?
Abriu a janela e seus olhos percorreram o pedaço do imenso jardim que circundava o edifício. Tudo era-lhe extremamente familiar. Havia estado ali antes, podia lembrar-se.
Passou a mão pela testa pensativo. Sim, ele começava a lembrar-se. Sentou-se em confortável poltrona ao lado da janela e fechou os -olhos. Seu pensamento voltava no tempo.
A casa solarenga e bela onde vivera com os pais e seus dois irmãos mais velhos. Via-se jovem, belo, cavalgando pelos bosques, sentindo-se o dono do mundo. O pai, político influente, coronel, como era chamado, comandava a cidade com mãos de ferro, colocando e tirando homens nos cargos públicos a seu bel prazer.
A mãe ocupava-se com saraus e coisas da moda, sempre às voltas com revistas européias e obras de arte. Os dois irmãos, um, o mais velho, Antônio, era calado e estudioso. Vivia às voltas com os livros, poesias, literatura. João, o do meio, não. Era seu amigo e companheiro preferido. Apesar de ser mais jovem do que os irmãos, João o seguia por toda parte. Divertia-se com suas diabruras de rapaz rico, vibrava com suas conquistas, defendia-se sempre.
Perdido em suas lembranças, Alberto continuava recordando. Tempo bom aquele. A vida lhe sorria e era feliz.
Um dia, Antônio apaixonou-se. Fez versos, serenatas. Andava mais circunspecto do que o costume. Alberto recordou-se o quanto o ridicularizara. Antero, era esse o seu nome naquele tempo, tudo fez para conhecer a musa do irmão o que finalmente aconteceu quando ele ficou noivo.
Maria era moça simples, de família pobre, sem cultura nem tradição. Muito bonita, graciosa e delicada, possuía bom gosto e finura inatos.
A princípio, seus pais não queriam o casamento com uma moça pobre e sem projeção, mas Antônio foi tão dramático e decidido que por fim eles aceitaram. O Coronel Teotônio considerou afinal que a moça era bonita, distinta e de família honesta.
Casaram-se com todas as pompas e costumes da época e foram residir junto com os pais dele, na casa da família. Contudo, Antônio, apaixonado, perdia-se de ciúmes pela jovem esposa, seguindo-a por toda parte, não lhe oferecendo nenhum momento de liberdade.
João, por sua vez, apaixonou-se pela filha de um político e casou-se, indo morar na casa paterna, como era costume na época.
Se Maria era discreta e fina, Amélia era extrovertida, gostava de chamar a atenção sobre si, de ir a festas e manter intensa vida social. João não era ciumento. Sentia-se orgulhoso ao ver a esposa brilhando e sendo requestada.
Entretanto, ao chegar em casa uma noite, Antero viu um vulto no jardim. Pé ante pé, seguiu-o e viu quando uma janela abriu-se, uma figura de mulher apareceu. Abraçaram-se, beijaram-se e antes que ele pudesse sair da surpresa, o homem saltou para dentro e a janela fechou-se rapidamente.
Antero ficou intrigado. Estava escuro e ele não pudera reconhecer ninguém. A janela dava para um corredor dos quartos que tanto poderia ir para a ala do João como do Antônio. Seria uma criada? Não teria tanta ousadia. O pior é que tanto João como Antônio não estavam, haviam viajado com o pai. Qual das duas cunhadas teria um amante?
Sentiu revolta e repulsa. Teve vontade de dar alarme, vasculhar a casa, surpreender os tratantes.
Entrou decidido, e bateu na porta do quarto do João. Logo em seguida bateu na porta do Antônio. Maria apareceu assustada e Antero entrou pelo quarto vasculhando tudo, sem encontrar nada. Procurou no quarto de Amélia e também nada viu.
No entanto, ele jurava ter visto o homem entrar. Acordaram a mãe, os criados, vasculharam tudo, nada encontraram. Antero não se deu por satisfeito. Haveria de descobrir a verdade.
Quando os irmãos voltaram, contou-lhes tudo. Para Antônio, foi como se ele já tivesse a verdade. Tornou a vida de Maria um verdadeiro inferno. Sua imaginação doentia o atormentava.
Antero contudo, observava as duas cunhadas e chegara a conclusão que Maria jamais teria coragem de cometer adultério. Pela sua formação, sua maneira de pensar, o estoicismo com que suportava as desconfianças do marido, vivendo enclausurada, ele não a acreditava capaz da traição. Já Amélia, sim. Flertava abertamente e João nem percebia. Era fogosa e ardente e ele pensava que talvez João, pouco afeito às conquistas e aos jogos do amor, não fosse bastante para satisfazê-la.
Disfarçadamente passou a vigiá-la. Astuta, ela percebeu e um dia o interpelou:
- Você tem se ocupado muito comigo — disse. Se não fosse meu cunhado, poderia até pensar que se interessa por mim.
Antero riu divertido. Ela era esperta, e ele abriu o jogo:
- Ainda hei de provar quem estava com o homem naquela noite. Tenho a certeza que Maria nunca seria capaz disso.
- Quer dizer que desconfia de mim?
- Que eu saiba, eram as únicas moças daquela ala, e os maridos estavam fora.
- Não pensei que fosse tão antiquado. Por que sou expansiva, gosto de ser admirada, concluiu que tenho um amante? Se fosse verdade acha que eu seria tão ingênua a ponto de trazê-lo a esta casa? Quando uma mulher quer trair, sempre consegue um lugar seguro.
Antero olhou-a admirado. Sabia que ela tinha razão. Ele deduzira sem nenhuma prova.
- Você saberia como fazer isso, tenho certeza.
- Não me agrada que desconfie de mim. Seu pai olha-me com desconfiança, sua mãe e até os criados. O João pensa, mas não se atreve a dizer. Esta situação é insustentável. Vou esclarecer tudo. Descobrirei a verdade. Provarei que estou inocente.
Antero curvou-se, dizendo:
- Se puder, será ótimo. Não pretendo deixar um irmão ser enganado. Nenhuma adúltera usará o nome de nossa família. Com provas, agirei rigorosamente e garanto-lhe que quem prevaricou, cedo se arrependerá de tê-lo feito.
Os olhos dela faiscaram rancorosos.
- Você verá
- disse.
Alberto passou a mão pela testa pensativo. Agora, parecia-lhe natural recordar-se. Fechou os olhos novamente procurando o que aconteceu depois.
Na semana seguinte, colocando a mão no bolso, encontrou um envelope. Curioso, abriu-o e retirou um bilhete que dizia:
"Se quer saber a verdade, vá quinta-feira, ás sete horas da noite, à tapera do engenho. Não conte a ninguém e terá boa surpresa."
Não estava assinado e a letra de fôrma não deixava perceber quem o escrevera.
Antero ficou revoltado. A pouca vergonha já estava na boca do povo. Com certeza, algum dos peões resolvera preveni-lo. Haveria de punir os adúlteros.
Chamou os dois irmãos e mostrou-lhes o bilhete revelador. Antônio empalideceu, e João apertou os dentes com força. A raiva os descontrolava. Antero propôs:
- Calma. Vamos todos verificar. Se for verdade, surpreenderemos os culpados. Iremos armados. Lavaremos nossa honra.
Faltavam dois dias para quinta-feira e eles dissimularam com naturalidade. As duas nada notaram.
No dia aprazado, os três saíram às cinco horas, dizendo que pretendiam ir à cidade a negócios e só voltariam muito tarde.
Tomaram o caminho da vila e às seis horas voltaram pela picada e esconderam-se perto da tapera. Esperaram durante certo tempo, silenciosos. Viram um vulto de homem aproximar-se, envolto em uma capa, chapéu enterrado na cabeça. Vinha a pé e com cuidado, olhando para os lados, entrou na cabana.
Os três, tensos, seguravam o cabo da arma com força. A noite estava escura, mas eles viram perfeitamente um vulto de mulher, andando cautelosa , entrar na cabana.
- Viu quem era? - indagou Antônio, baixinho.
- Não - respondeu Antero. - Vamos dar alguns minutos e surpreendê-los.
Pelas frestas da tapera, puderam perceber que eles haviam acendido uma vela.
- Quando eu der o sinal, correremos para lá e abriremos a porta - disse Antero. - Um, dois, três, já.
Saíram correndo, entraram na tapera. Dentro, assustados, estavam o administrador da fazenda e Maria, um na frente do outro. Antônio sentiu-se desfalecer de raiva.
- Bandidos, traidores - disse. - Vou acabar com vocês! Eu sabia que você me traía!
Maria olhava-os apavorada. Antero disse com raiva:
- Ele é seu, Antônio. Acabe com esse bandido. Éum direito que você tem.
- Esperem - dizia o homem apavorado. — Estão enganados... Antônio apontou a arma, sua mão tremia e ele não conseguiu puxar o gatilho. Antero apontou e atirou duas vezes no administrador, prostrando-o. João disse com rancor:
- Ela também deve pagar pelo seu erro. A honra de nossa casa deve ser vingada!
Maria queria gritar, mas não conseguiu emitir nenhum som. João deu no gatilho e ela tombou ali mesmo numa poça de sangue. Antônio desesperado torcia as mãos e perdeu os sentidos.
Alberto levantou-se angustiado. Aquela tragédia não terminara ali. Os crimes foram abafados pelo coronel, mas Antônio nunca se recuperou. Vivia chorando pelos cantos, deu para beber e um dia foi encontrado morto em seu quarto. Enforcara-se.
João viveu muitos anos com a esposa. Antero casou-se e teve filhos, substituiu o pai na chefia da família quando ele morreu. Não sentia remorso pelo crime que praticara. Seu irmão era um fraco, acabou com a vida. Não lhe cabia culpa pela traição de Maria. Haviam feito o que qualquer pessoa de honra faria num caso desses.
Quando morreu, Antero custou para compreender que deixara a Terra. Aparecia-lhe a figura do Antunes, o administrador assassinado, querendo conversar com ele.
Crendo-se vítima de alucinações, Antero fugia espavorido. Um dia, finalmente, foi auxiliado, conduzido a uma colônia no mundo espiritual onde recebeu esclarecimentos. Melhorou, equilibrou-se mais, contudo a figura do Antunes não o deixava em paz.
Preocupado, conversou com seu assistente que disse:
- Você perguntou-lhe o que deseja? Por que o procura com tanta insistência?
- Não. Ele queria pedir-me contas. Eu atirei nele. A causa era justa. Nossa honra precisava ser vingada.
O assistente olhou-o sério e sugeriu:
- O melhor será conversar com ele, saber o que deseja. Sem isso ele não o deixará em paz.
Antero, contudo, não quis fazer isso.
- Ele vai culpar-me - pensava. - Vai desejar punir-me. Quer vingar-se com certeza.
Interessado em melhorar, Antero atendia as orientações que lhe eram dadas, mas recusava-se a tocar no assunto do Antunes.
Quando João morreu, Antero pôde esperá-lo e assisti-lo nos primeiros tempos. João chegava triste. Não queria deixar a Terra. Amélia não estava bem. Fora atacada por estranha doença. Perdera o juízo. Falava obcenidades diante das pessoas, levantava a roupa querendo desnudar-se, colocava as coisas em lugares impróprios. As duas filhas envergonhavam-se dela e não sabiam o que fazer para contê-la.
João era paciente e cuidava dela com dedicação. Deixá-la na Terra fora-lhe penoso esforço. Ele queria de qualquer forma ficar a seu lado. A custo, Antero o convenceu de que o melhor seria confiar em Deus. Ele cuidaria dela melhor do que eles. Enquanto isso, ele deveria tratar-se, ficar bem para poder voltar e ajudá-la. Finalmente, ele aceitou, dedicando-se ao esforço de equilibrar-se.
Depois de certo tempo, finalmente conseguiram permissão para vê-la. Foram acompanhados por um assistente espiritual e a encontraram em lastimável estado. Sem poder contê-la, as filhas a trancaram em um quarto que ela transformara em reduto imundo.
Estirada no leito, dementada e enferma, Amélia vivia toda a pungência do seu drama. Sombras escuras a cercavam, emanando energias eróticas de pesado teor.
- Não se deixem envolver por essas energias - disse o assistente com firmeza. - São formas pensamentos dela. Se os pegar, ficarão enredados. Precisamos de equilíbrio e paz. Nada de pieguismo. Senão, não poderemos prosseguir.
Os dois esforçaram-se para atender essa observação. Sabiam que ( Üáudio entendia do assunto.
- Vamos mentalizar luz - continuou ele - e orar para arejar o ambiente.
Com o coração confiante, os dois obedeceram. Nesse momento viram chegar o Antunes. Ambos fizeram um gesto de surpresa:
- Continuemos orando - pediu Cláudio. - Ele não pode nos ver. Tentando vencer a emoção, continuaram em oração. Antunes aproximara-se de Amélia e chamava-a em altos brados.
- Amélia, estou esperando. Agora eu sei de tudo! Maldita traidora!
Amélia arregalou os olhos e seu semblante modificou-se:
- Vai embora, maldito. Vou acabar com você de novo! Desta vez, será para sempre!
- Eu a amava como louco. Você me provocava. Divertia-se comigo! Acha que eu podia suportar? Até quando um homem pode agüentar?
- Eu não o quero, — disse ela com raiva. — Eu o odeio!
- Naquela noite, quando abriu a janela e fui a seu quarto, você gostou. Vibrou nos meus braços. Você também me queria.
- É mentira - disse ela com raiva. — Só o aceitei porque você me seguiu, sabia do Américo e ameaçou contar tudo. Eu cedi só por isso.
Antero olhou assustado para João que teria caído ali mesmo se Cláudio não o tivesse amparado. O que estavam dizendo? Amélia e Antunes? Como? E Maria? Também fora amante dele?
- Eu estava louco, só via você em toda parte. Não dormia, não tinha paz. Eu a amava!
Amélia riu desdenhosa.
- Pretensioso! Como pensou que eu pudesse amá-lo? Não se enxerga?
- Você me tentava. Não podia suportar mais. Pensei que a paixão se acalmasse quando a possuísse, mas foi pior. Seu amor queimava como fogo. Eu não sabia que podia ser tão cruel. Posso compreender que me odiasse, mas não consigo aceitar o que fez com D. Maria. A pobre nada lhe fez. Você foi perversa. Ela encontrou-se comigo atendendo a um pedido seu, para pedir-me que a deixasse em paz. Era uma boa e honesta criatura. Como pôde ser tão cruel?
- Cale-se. Não lhe dou o direito de pedir-me contas. No mundo, quem não é esperto não sobrevive. Aquela sonsa não via um palmo diante do nariz. Depois, eu estava em perigo. Antero desconfiava de mim. Tinha que defender-me.
- Louca! Como pode ser tão egoísta? Olhe para você, veja a que ficou reduzida. A uma prisioneira da própria maldade. Nem precisei vingar-me. A vida já a está punindo. Pensou ter acabado comigo, mas eu estou aqui, vivo, para ver sua decadência, sua ruína, sua loucura, sua morte. Quero rir de você, do seu orgulho, da sua ilusão. Olhe-se. Veja como está feia, nenhum homem a deseja mais.
Amélia levantou-se furiosa.
- Sai daqui, bandido, - gritava - vou acabar com você. Desta vez não voltará a atormentar-me.
Olhos arregalados, começou a apanhar os objetos e a atirar sobre o espírito do Antunes que rindo, deslizava pelo quarto sem que ela lograsse atingi-lo.
Amparados por Cláudio, João e Antero, arrasados, davam livre curso às lágrimas, soluçando em desespero.
- Acalmem-se — disse Cláudio com firmeza. - Todos nos enganamos e é duro enfrentar a hora da verdade.
- Matei uma mulher inocente! - considerou João. Não a deixei explicar-se sequer! Sou um assassino miserável. Jamais me perdoarei. Matei em defesa da própria honra, mas a pessoa errada! Meu Deus, que loucura!
- Matei um homem enlouquecido por uma mulher leviana e perversa. Não há honra a defender. Ela era mais culpada do que ele - disse Antero.
- Não podemos julgar ninguém - considerou Cláudio. - A verdade chega para ajudar-nos a compreender nossas próprias necessidades. O julgamento, a violência, trazem sempre junto o arrependimento. Só a compreensão, o perdão, podem aliviar nossas almas e nos dar serenidade. Temos diante de nós dois infelizes, absorvidos pelas próprias ilusões. Vamos orar por eles, porquanto nós também nos enganamos muitas vezes em nossas escolhas, preferindo o mal ao invés de cultivar o bem. Nesta hora, só Deus tem o poder de nos conceder a paz.
Enquanto Antero e João abaixavam a cabeça pensativos, Cláudio proferiu confortadora prece.
Antunes aquietou-se. Exasperar Amélia era sua ocupação predileta. Contudo, naquele instante, súbita tristeza o acometeu. Sentia-se cansado de sofrer e se havia momentos em que se vingava de Amélia, outros havia em que pensava na família.
Embora abafado o escândalo, o caso chegara ao conhecimento de sua esposa. O coronel e os filhos não permitiram mais sua presença em seus domínios, e ela se vira em grandes dificuldades. Fora para a vila, trabalhara duro, fazendo doces que os filhos iam vender na porta da igreja e nas casas. Lavara roupas para fora. Conseguira criar os cinco filhos com dignidade em sua pobreza. Mas, não perdoara o Antunes. Ensinara os filhos a desprezá-lo. Quando ela morreu, ele fora a seu encontro. Todavia ela não o aceitou mais. Perdoou-o finalmente, mas não lhe tinha amor.
Antunes sentia-se só e triste. Por causa daquela mulher estragara sua vida. Essa certeza o levara a continuar atormentando-a. A cada acesso de Amélia, as filhas pensavam em interná-la em um manicômio. Não tinham nenhuma esperança de cura e estavam cansadas de cuidar dela.
Cláudio aproximou-se de Antunes, olhando-o com firmeza. Então, ele os viu.
- O que querem? - indagou assustado.
- Ajudá-lo - respondeu Cláudio.
- Eles me odeiam! - volveu ele apontando os dois irmãos que o olhavam calados.
- Não estamos aqui para julgar ninguém — disse Cláudio. — Hoje eles souberam toda a verdade.
- Eles mataram uma inocente, devem estar arrependidos. Mas eu... sou culpado. Não devia ter me apaixonado.
- Você está cansado, triste, precisando de ajuda. Estamos dispostos a levá-lo conosco. Em nossa cidade, poderá tratar-se, recompor sua vida, equilibrar-se.
- Sou um perdido. Não tenho perdão - disse em desespero. -Não seja tão severo. O passado já acabou. Você enganou-se ao escolher seus caminhos. Contudo, hoje, Deus lhe concede a oportunidade de mudar, de procurar viver melhor e mais adequadamente. De nada vale chorar e lamentar os erros passados que não podem ser remediados. Bom e útil é realizar agora sua renovação íntima, procurando entender a vida, cultivando só o bem, compreendendo que Deus está em tudo e em todos e vive em nós.
Antunes soluçava comovido. Antero e João calados, não sabiam o que dizer. Ambos compreendiam que haviam sido precipitados e arrastado pessoas inocentes na tragédia.
Amélia acalmara-se e estirada na cama, olhos muito abertos, continuava perdida em seus pensamentos íntimos. Não via a cena que se desenrolava a seu lado.
- Eu quero ir. Farei o que quiserem. Desejo sair deste inferno.
A um sinal de Cláudio, os dois irmãos os acompanharam silenciosos.
Alberto com emoção continuava a recordar. Antunes, levado ao tratamento, fora aos poucos se recuperando. Amélia morrera e perambulava pelas zonas inferiores, envolvida com espíritos desequilibrados sem querer atender ninguém.
Passados os primeiros dias, Antero e João lembraram-se de Antônio.
Sabiam que ele, após alguns anos de sofrimento, renascera na Terra em tristes condições de saúde, tendo vivido lá durante vinte anos. Desencarnara novamente. Tendo-o procurado, demoraram algum tempo para encontrá-lo. Ele já sabia a verdade. Contara seus sofrimentos após haver se suicidado. O horror de perceber a inutilidade de seu gesto extremado de rebeldia e desafio, não querendo aceitar a vida.
Foi Maria quem o visitou e socorreu. Ele estava magoado, enciumado e não compreendeu porque ela estava tão cheia de luz. Maria contou-lhe a verdade e ele finalmente percebeu o quanto estivera enganado. Choraram juntos.
Ele queria ficar com ela. Contudo, não era possível. Tinham caminhos diferentes. A custo Antônio aceitou a separação. Sua saúde estava abalada. Ele tinha crises de asfixia que o prostravam. Por isso decidiu reencarnar para através da matéria densa transferir essas energias e libertar-se. Maria prometeu ajudá-lo e cumpriu a promessa. Durante os vinte anos em que esteve reencarnado, ela o ajudou, visitando-o com freqüência, acalmando-o quando se rebelava com seu precário estado físico.
O tempo foi passando e com ele todos foram se transformando. João pedira perdão a Maria, ajoelhando-se a seus pés. Ela ouvira calada, depois dissera com simplicidade:
- Nada tenho a perdoar. Se essas experiências não me fossem necessárias, Deus as teria evitado.
- Eu não me perdôo. Fui cego e precipitado.
- O que você quer dizer é que a intransigência, o orgulho, só nos levam a atitudes desastrosas. A falsa noção de honra, os papéis a que nos impomos na família e queremos representar a todo custo, nos impedem de enxergar a verdade e de compreender os outros. Pense nisso e não se atormente mais com o que já passou. O importante é agir corretamente agora.
- Você é muito nobre. Agora posso ver isso. Fomos enganados covardemente e a culpada expia seu crime na loucura.
Maria olhou-o com olhos muito lúcidos e brilhantes ao dizer:
- Amélia escolheu o sofrimento, acreditando encontrar o prazer e o amor. Prefere não olhar esse fato, mergulhando mais na fantasia. Quando se cansar e desejar perceber a realidade, estará ainda no mesmo ponto e deplorará o tempo perdido.
- Você também a perdoou?
— Nunca a acusei de nada. Acreditar que ela pudesse ter me ferido, seria outorgar-lhe um poder sobre mim que ela não possui.
— Não entendo — disse João, admirado.
— É simples. Só Deus tem força para atuar sobre nós. Se eu não necessitasse passar por aqueles fatos, ele os teria evitado facilmente. Se não o fez, foi porque, para mim, o melhor era viver essa experiência. Gostaria que entendessem a verdade. Podemos estar rodeados de pessoas desequilibradas que agem cruelmente, sem que nada nos aconteça, se essa for a vontade de Deus porque ele é o único poder determinante de todas as coisas.
— Isso não anula a traição de Amélia. Ela merece punição. Maria sacudiu a cabeça negativamente:
— Ela sequer percebeu o alcance de seus desacertos. Eu diria que foi a forma que encontrou para defender-se. Não desejava ser descoberta.
— Quisera ser tão nobre quanto você. Quando penso que fui enganado, traído, sinto vontade de castigá-la. Nunca desconfiei dela! Por sua causa tornei-me um assassino.
— Diga antes que seu orgulho o instigou a matar.
— Chega já a culpa que carrego! Apesar de que tentando lavar a honra do Antônio, era a minha que eu lavava.
— Seja como for, todos compreendemos que nos enganamos. Tenho meditado, trabalhado, estudado e recebido orientações de planos mais altos. Assim sendo cheguei a conclusão que não adianta nada remoer o passado, cultivar a culpa, o remorso, o ressentimento. O melhor, agora que estamos aqui, que conhecemos mais sobre a vida e reconhecemos nossa necessidade de progresso, nosso desejo de felicidade, de amor, de paz e de alegria, é não perdermos tempo com ilusões ou desentendimentos desnecessários. Uma coisa é certa: para alcançarmos todas essas coisas boas, precisaremos proceder de maneira adequada. Nossa maneira de agir e de pensar provocou acontecimentos desagradáveis e muitos sofrimentos. Está na hora de mudar. De não julgar, de tentar compreender, de sermos bons e sinceros. Qual de nós pode atirar a primeira pedra? Se somos benevolentes com os nossos enganos, por que sermos rigorosos com os outros, se estamos longe de saber o que se passa dentro de suas almas?
Os três irmãos não conseguiram responder, permaneceram pensativos calados. Maria os concitou a orar por Amélia. Sob o império daquele exemplo de bondade, eles acabaram concordando. Oraram por ela e vendo-a dementada e sofredora, acabaram por penalizarem-se do seu estado.
Só Antônio resistia, e Maria pacientemente tentava mostrar-lhe a verdade e concitá-lo ao perdão.
Foi preciso largo espaço de tempo para que Amélia reequilibrasse um pouco. Após sofrimentos e lutas, finalmente ela começou a recuperar-se. Porém, quanto mais ela se tornava consciente e a bondade de Maria a envolvia, mais deprimida ela ficava. O remorso amargurou sua alma.
Ninguém a acusava e não precisando defender-se, sua culpa agigantava-se. Então, ela acusava-se e caía em crise.
A mãe dos três, ligada a eles por laços de amor, desejava ardentemente ajudá-los. Havia sofrido duramente a tragédia que enlutara a família, juntara-se a Maria, a quem aprendera a amar e a respeitar e nutria o desejo intenso e sincero de trabalhar em favor da recuperação dos seus filhos amados.
Sofreu, lutou, esforçou-se por vencer sua animosidade contra Amélia, tendo por fim entendido que ela não possuía ainda conhecimento para proceder de forma diferente do que fora.
Finalmente, chegou a conclusão que o seu grupo familiar estava ligado emocionalmente e que para ajudar a um, seria necessário ajudar os outros.
Sob a proteção e o carinho de orientadores capacitados, reuniram-se para tentar resolver seus problemas.
Emocionaram-se, choraram, desabafaram, trocaram justificativas e reconheceram seus enganos. Todavia, Antero estava desiludido, abatido, triste, arrependido. Não conseguia esquecer a noite fatídica, e os olhos apavorados e súplices de Maria o acompanhavam por toda parte.
Antônio entregava-se à tristeza, querendo que Maria ficasse a seu lado. Amélia era constantemente envolvida por entidades viciadas, tendo crises de erotismo e obsessão sexual. Nos momentos de prece e de lucidez, todos queriam esquecer.
Por fim, a solução surgiu: o melhor seria reencarnar. O corpo novo na Terra representa um oásis de paz interior, uma oportunidade de esquecer, uma trégua para a recuperação, uma mudança que lhes permitiria recomeçar, fazer novos relacionamentos, novas escolhas, novas chances.
Aceitaram aliviados. Homero e Aurora uniram-se a eles, reencarnando primeiro, devendo novamente receber Antero e Antônio como filhos. Maria também renasceria como irmã deles, para sustentá-los nas lutas. João estabelecera laços muito fortes com Amélia. Ela fora participante ativa daquela tragédia, recebera dele amor, dedicação e sentia-se arrasada vendo-o sofrido e ralado de remorsos.
Ela gostava dele, não desejava prejudicá-lo. Fora para poupá-lo que planejara tudo. Ele não merecia ser enganado, contudo, ela sentia o fogo das paixões e entregava-se descontroladamente. Não o traía para causar-lhe sofrimento. Dava vazão as suas emoções descontroladas. Vê-lo sofrer, era-lhe penoso. Por isso, concordou em renascer e recebê-lo como filho.
Sabiam que a vida os reuniria na Terra e que seus problemas emocionais escondidos no subconsciente, atrairiam lutas e situações na tentativa de mostrar-lhes os valores reais que precisavam aprender.
Alberto levantou-se e passou a mão pelos cabelos, perdido ainda em suas recordações. Agora lembrava-se: Magali era Maria. Odete era Amélia que, em plena juventude, não controlando suas paixões, tornara-se mãe solteira do Jovino. Jovino era seu irmão João! Por isso, o consultava antes de tomar qualquer atitude. Por isso, ele cuidava do seu bem-estar e do Rui, que era o Antônio!
Tudo ficou claro em sua cabeça. Ele ceifara a vida do Antunes, acreditara na violência como solução dos problemas humanos, e a violência o alcançara ceifando-lhe a vida em plena juventude. Meu Deus!
Quando entenderia que a violência apenas agrava qualquer situação, desequilibrando a alma, anulando sua defesa natural, atraindo para si a ira alheia?
Pensou no Jovino, preso inocente. Ninguém quisera ouvi-lo no julgamento. Ele não acreditava na palavra dos outros. Não deixara Maria falar, explicar-se, matara uma inocente. Certamente, na prisão, estava tendo condições de meditar como o nosso julgamento é falho e passível de erro.
Experimentara na carne a dor de ver-se punido injustamente. Agora, por certo, estaria abrindo seu coração para uma compreensão maior dos sentimentos humanos.
Alberto não se conteve. Chorou sentidamente. Finalmente ele entendia o que lhe acontecera! Havia uma razão boa para tudo.
Quando se acalmou, sentiu brotar dentro do coração, profundo sentimento de gratidão e paz. Uma força nova, mais vigorosa o animou e ele sentiu que dali para frente tudo em sua vida iria mudar.
Mariazinha estugou o passo. Queria chegar em casa cedo. Júlio iria falar com seu pai naquela noite e pedir-lhe permissão para a oficialização do noivado.
Dirigia-se ao ponto do bonde quando sentiu que a agarravam pelo braço.
- Onde vai com tanta pressa?
A moça puxou o braço, olhando-o contrariada. Depois do que acontecera com Júlio, Rino desaparecera de sua vida.
- Deixe-me em paz - respondeu, continuando a andar.
De um salto ele agarrou seu braço de novo obrigando-a a parar.
- Preciso falar com você - disse ele, sério.
- Não temos nada para conversar. Tenho pressa. Preciso chegar cedo em casa. Largue meu braço.
- Largarei se me escutar. Não suporto esse seu ar de desprezo. Ainda há de me valorizar.
- Rino, realmente não tenho nada a lhe dizer. Por favor, deixe-me em paz.
- Você me deixa louco. Continua saindo com aquele palhaço. Mariazinha irritou-se:
- Aquele palhaço é meu namorado. É o homem que eu amo. Vamos nos casar. Desista de uma vez por todas.
Ele apertou o braço que segurava, fazendo-a soltar pequeno grito de dor.
- Não permitirei. Você não se casará com ele nem com ninguém. Eu juro! Se ele não sair do meu caminho, se arrependerá. Não estou brincando!
- Largue meu braço. Você enlouqueceu!
- Você será minha ou de ninguém mais.
- Eu não gosto de você. Nunca o aceitarei. Desista.
- Está com pressa porque vai se encontrar com ele.
- Estou cansada. Trabalhei o dia inteiro. Quero ir logo para casa. A moça estava pálida. Ele largou o braço dizendo com raiva:
- Diga àquele palhaço que pense bem no que está fazendo. Meus amigos, vendo-me nervoso, pretendem defender meus interesses. Se eles o encontrarem por lá, não me responsabilizo. Mariazinha estremeceu.
- Não se atreva - disse com raiva. - Se tentar alguma coisa, irei a polícia e desta vez, contarei tudo.
Antes que ele respondesse, a moça afastou-se rapidamente percebendo que o bonde se aproximava. Subiu no coletivo, mas ainda teve tempo de ver o olhar rancoroso do Rino fixo nela. Seu coração batia descompassado e seu corpo tremia.
O bonde estava cheio. Em pé, procurou segurar firme tentando acalmar-se. Pensamentos agitados a envolviam. Por que Rino a perseguia? Não acreditava que a amasse. Quem ama não procede como ele. Era capricho, orgulho de menino mimado. Teimava só porque ela o recusara.
Seria só isso? Ele ameaçara Júlio. E se ele o agredisse de novo? Lembrou-se de Alberto e seu coração bateu mais forte. Talvez Nair tivesse razão. Teria sido Rino? Jovino era inocente. E se tivesse mesmo sido o Rino? E se ele matasse o Júlio?
Sentiu sua ansiedade aumentar. Talvez fosse melhor dar um tempo, acabar com o namoro, esperar que o Rino esquecesse.
Quando Mariazinha entrou em casa, Isabel assustou-se:
- Você está pálida! Sente-se mal? O que aconteceu?
A moça tremia e sentia dificuldade em falar. Isabel deu-lhe um copo com água.
- Fale, filha.
- Foi o Rino, mãe.
- De novo?
Mariazinha contou-lhe tudo.
- Sinto medo, mãe. O Júlio vem aqui hoje, conversar com papai sobre nosso noivado. Não sei o que fazer. Talvez seja melhor acabar com tudo até que ele esqueça.
- Calma filha. De nada adianta ficar deste jeito. Conversaremos com o Júlio e encontraremos uma boa solução. Vanderlei nos ajudará. Não fique assim. Logo hoje que você precisa ficar bem bonita! Afinal, vamos tratar do seu futuro.
- Tenho tanto medo, mãe!
- Deus nos ajudará. Por que não vamos ao Centro Espírita com Magali?
- Mãe! Você também!
- Claro. Ela tem alcançado tantas graças! Nós podemos pedir proteção. Você tem direito à felicidade. Sua amiga Nair tem ido sempre lá, nos acompanhará por certo.
- Não sei o que dizer. E papai?
- Tudo que for para seu bem ele fará de boa vontade.
- Acha que podem nos ajudar?
- Por que não? Quem sabe eles influenciam o Rino para que desista. Não custa tentar. Agora vá preparar-se. Tenho fé que nada acontecerá ao Júlio.
- Você acha?
- Tenho certeza. Agora vá. Precisa ficar muito bonita esta noite. Mariazinha sentiu-se melhor. Procurou dominar o receio. Sentir-se-ia mais segura se Júlio trouxesse o Vanderlei. Esforçou-se para esquecer o incidente.
Apesar disso, quando Júlio chegou, logo notou sua preocupação. Ela não pôde ocultar a verdade, finalizando:
- Sinto medo! Não seria melhor nos afastarmos por algum tempo? Júlio tomou a mão dela apertando-a carinhosamente.
- Eu não tenho medo. Agora, estou prevenido.
- Não me agrada vê-lo armado. Pode acabar mal. Chega o que houve com o Alberto. Não quero que nada lhe aconteça.
- Temos que enfrentá-lo. Quando ele perceber que não consegue nada, desistirá. Se nos afastarmos, estaremos fortalecendo seus intentes. Depois, não suportaria ficar sem vê-la e é por isso, por desejar estar sempre a seu lado que pretendo conversar com seu pai. Anseio pelo dia em que ficaremos juntos para sempre.
Mariazinha olhou-o comovida, abraçaram-se e beijaram-se com amor.
Naquela noite mesmo, Júlio conversou com os pais dela, pedindo permissão para ficarem noivos. Com simplicidade, tirou do bolso uma caixinha com as alianças. Um colocou na mão do outro. Estavam noivos.
José, feliz, abriu uma garrafa de champanhe, e Isabel trouxe o bolo que havia preparado para a ocasião.
- Gostaria de convidar sua família para um almoço no próximo domingo - disse.
- Obrigado, D. Isabel - respondeu Júlio. - Não vai lhe dar muito trabalho?
Isabel sacudiu a cabeça.
- Será um prazer. Precisamos comemorar.
- Está bem. Falarei com mamãe.
Júlio saiu da casa da noiva, passava das doze. Mariazinha abraçou-o na varanda, dizendo:
- Tome cuidado. Vá pelo meio da rua.
- Não se preocupe. Estou atento.
Ela ficou parada na varanda até vê-lo dobrar a esquina. Entrou em casa inquieta, pensativa. Contemplou com enlevo a aliança que reluzia no anular de sua mão direita. Amava o Júlio profundamente. Ninguém haveria de interpor-se entre eles.
No quarto, estendida no leito, recordou-se de Rino e sentiu um aperto no coração. Por que ele a perseguia? O que deveria fazer para libertar-se dessa obsessão?
Tentou conciliar o sono, não conseguiu. Lutava para apagar os acontecimentos da tarde, inutilmente, e quanto mais os recordava, mais sentia que o Rino poderia estar envolvido na morte do Alberto.
Nair poderia estar certa nessa suspeita e nesse caso a vida do Júlio estaria em sério perigo. Apavorada, Mariazinha levantou-se e ajoelhou-se ao lado da cama. Rezou de todo coração pedindo a Deus que protegesse Júlio e evitasse nova tragédia.
Deitou-se novamente, mas o sono não vinha. Na manhã seguinte, levantou-se abatida e nervosa. Notando-lhe a indisposição, Isabel, preocupada, não a deixou ir para o trabalho. Mariazinha protestou:
- Não é nada. Isso passa. Dormi mal.
- Não gosto nada dessas olheiras. Não quero que adoeça novamente. Fique em casa hoje. Conversaremos com Nair e iremos procurar aquele Centro Espírita.
- Não é preciso.
- É sim. Olhe no espelho. Depois, tenho pensado muito. Essa perseguição do Rino, tudo quanto nos tem acontecido, não tem uma explicação lógica. A Nair sente-se bem indo a esse Centro, e a D. Luísa me disse que ela melhorou muito. Não se queixa mais de nada, vive alegre, resolveu até aprender corte e costura. Falaremos com ela e iremos até lá.
- Faria isso por mim?
- Claro. Eles entendem de espíritos. O Alberto pode se comunicar, nos orientar.
- O Júlio acredita nisso. Para ele, o Alberto já se comunicou através de mim.
-Já?! Por que não me disse nada? O que foi que ele falou?
- Não comentei porque não tenho certeza de nada. O Júlio afirmou, o Jovino, a Nair e até a Magali, mas eu não me lembro de nada. Por mais que eles mereçam crédito, não consigo aceitar. Eles podem estar enganados.
Isabel olhou a filha procurando esconder a preocupação.
- Está decidido. Você não irá trabalhar. Precisa refazer-se. Descansar. Hoje é um dia de alegria. Você está noiva de um moço bom e o ama. Iremos ao Centro Espírita o quanto antes.
Mariazinha concordou. Sentia-se cansada, oprimida. Nair, colocada a par da situação, telefonou a Magali e combinaram de ir ao Centro Espírita naquela mesma noite. Mariazinha telefonou ao Júlio que prometeu acompanhá-las.
Magali preparou-se para sair, e Rui inquiriu-a sério:
- Vai sair agora? -Vou.
- Com quem?
- Com algumas amigas. Por que pergunta?
- Porque não é adequado uma moça sair à noite desacompanhada. Onde vai?
Magali, embora contrariada, tentou ser delicada:
- Não se preocupe comigo. Sei preservar-me.
- Isso não é resposta. Onde vai?
- Por que deveria dizer-lhe?
- Porque sou seu irmão e papai está viajando.
- Você não manda em mim.
- Veremos isso. Aurora aproximou-se:
- O que está havendo?
- Magali está me desafiando, como sempre. Quer sair sozinha numa hora dessas e sequer diz onde vai.
- Ele não é meu pai para mandar em mim.
- Calem-se os dois. Ainda estou aqui e posso decidir quem deve fazer o quê dentro desta casa. Pode deixar, Rui, que eu resolvo com Magali.
- Vai protegê-la como sempre. É a filhinha predileta.
-Vamos, Magali. Venha comigo e explique-me o que pretende fazer. As duas foram para o quarto procurando ignorar a carranca ofendida do Rui.
- Deve evitar discussões com o Rui, sabe como ele é - advertiu Aurora logo que fechou a porta.
- Ele está sempre me vigiando, querendo controlar minha vida. Quando o Alberto estava aqui, não era tanto, mas agora não me larga. Implica com tudo.
-Tenho notado. Sente ciúmes. Ficou apegado depois do que aconteceu. Tem medo de perder você depois que os dois não estão mais aqui.
- Seja como for, ele me oprime. Quando papai está, ele não fala, mas me persegue assim mesmo. Implica com o Vanderlei.
- É porque ele não conhece bem o moço. A profissão dele também é assustadora.
- Não é isso, não. O Vanderlei é um moço excelente, bem empregado, é estudante de direito e trabalha no escritório de advocacia do tio dele. Como já trabalhou na polícia, tem lá muitos amigos, procura ajudar seu amigo Júlio. O Rui sempre implicou com todos os meus amigos. É um bicho do mato. Não gosta de ninguém. Não quer que eu namore.
Aurora suspirou:
- Sei que ele tem gênio e é difícil, mas você que tem mais compreensão é quem precisa contornar as coisas. Afinal, por que a discussão?
- Vou com D. Dora ao Centro Espírita esta noite. A Mariazinha vai estar lá, senti vontade de ir. O Alberto é muito ligado a ela. Pode ser que tenhamos notícias dele. Não queria que o Rui soubesse.
- Fez bem. Ele não compreenderia. Nesse caso, vou junto. Ele não dirá nada. Também desejo estar lá, ver o que acontecerá.
Quinze minutos antes do início da reunião, as duas chegaram com Dora. Mariazinha, Júlio, Isabel, já se encontravam na sala. Magali aproximou-se e depois dos cumprimentos apresentou a mãe.
Mariazinha apertou a mão de Aurora, mas não teve tempo para conversar, porque as luzes foram parcialmente apagadas, indicando que a sessão iria começar.
Dora foi chamada para tomar assento ao redor da mesa, conduziu Mariazinha, Isabel e Júlio para a primeira fila de cadeiras. Magali e a mãe acomodaram-se mais atrás.
Mariazinha sentia-se angustiada, aflita, respiração difícil. Teve ímpetos de sair dali, fugir, seu corpo tremia como se estivesse com frio, e ela segurou a mão do Júlio apertando-a com força.
- Júlio, vamos embora. Não quero ficar aqui.
- Acalme-se. Não tenha medo. Não vai lhe acontecer nada. Relaxe. Respire fundo.
Mariazinha suspirou e tentou obedecer. A mão de Júlio na sua e seu braço sobre seus ombros deram-lhe uma sensação de proteção. Alguém proferiu uma prece, mas ela nem conseguiu entender as palavras.
Sentia enorme opressão e controlava-se com dificuldade. De repente, empurrou Júlio violentamente e levantou-se de um salto, dizendo com voz diferenciada:
- Finalmente! Finalmente posso falar! Posso cantar, dançar, viver como antes. Estou viva! Estou aqui.
A um sinal da dirigente, Dora levantou-se e pegando Mariazinha pela mão, fê-la sentar-se em seu lugar, ao redor da mesa.
- Vem, vamos conversar - disse.
- Quem é você? O que quer?
- Uma pessoa amiga. Já que veio nos visitar, podemos nos conhecer.
- Não quero falar. Quero música para dançar. Tenho saudades! Bons tempos aqueles!
- Pode ser, mas já passou. Hoje tudo é diferente. Deve olhar o presente.
- Não quero! Chega de tristezas. Eu quero alegria. Só alegria!
- Tudo é alegria. Tudo está muito bem. Só que você precisa afastar-se desta moça, deixá-la em paz.
- Não posso. Eu preciso dela. E agora que consegui dominá-la, o resto será fácil.
- Seu domínio é passageiro. Aproveite estes instantes para perceber a verdade e se ajudar.
- Estou cuidando da minha felicidade. Ela me separou dele, ela nos deve unir!
- Não se pode forçar uma situação. Não dará certo. Pense bem. Deixe-a em paz!
- Não. Quando ela nos separou, não pensou em meus sofrimentos. Agora decidi. Vou separá-la do seu amor, você verá!
- O que lucrará com isso?
- Ela nasceu, eu não. Colei-me a ela. Quando ele a olha, é a mim que vê. É minha energia que ele sente. Ele se arrependeu do passado, mas de que me adianta agora? Tenho o direito de ser feliz. Chega de sofrer! Por isso, ficarei com ele através dela. Não tenho corpo de carne, usarei o dela!
- Isso não é possível! Deus não permitirá. Desista dessa idéia.
- Não posso! Deve preveni-los. Ai de quem se interpuser em meu caminho. Destruirei!
- Não conseguirá. Deus é grande.
- Duvida? Um já foi e o outro logo mais será afastado. Ela não o quer, mas acabará cedendo. Fará o que eu quiser! Só assim pagará o que me deve.
- Pense bem, está procurando mais sofrimento.
- Não adianta. Ninguém me demoverá. Irei até o fim. Vim avisar. Saiam do meu caminho. Ela que me atenda se quiser evitar problemas. Acabará por reconhecer que ele é o único homem que ela pode aceitar. Agora, já vou. Falei demais.
-Espere. Gostaria que nos contasse mais sobre você, não sabemos a quem se refere.
- Ela sabe. Pergunte-lhe. Ela ainda o odeia por causa do passado. Mas isso passará, eu prometo.
- Agindo assim, você aumentará sua infelicidade! Deixe a cada um a liberdade de escolher o próprio caminho.
- Não adianta. Jamais mudarei. Adeus.
Antes que Dora respondesse, Mariazinha estremeceu e sua cabeça pendeu sobre a mesa. Isabel chorava assustada, e Júlio tentava acalmá-la dizendo-lhe ao ouvido que confiasse em Deus.
Dora pediu aos presentes orações para esse espírito e todos silenciosamente obedeceram. Mariazinha continuava com a cabeça e os braços sobre a mesa. Outros espíritos manifestaram-se através dos médiuns, e o último deu belíssima mensagem, cheia de espiritualidade, exortando a necessidade de cultivar pensamentos positivos e confiar em Deus.
Quando as luzes se acenderam, Mariazinha estava bem. Quando ela se aproximou, Isabel não se conteve:
- Você está bem?
- Muito bem. Achei linda essa mensagem final. Conseguiu me acalmar.
Isabel, apesar de preocupada, não comentou nada. Dora aproximou-se ao mesmo tempo que Magali com a mãe.
- Você está bem agora? - indagou dirigindo-se a Mariazinha.
- Estou.
- Precisamos conversar - continuou Dora. - Aqui há muito ruído. Venham comigo. Podem vir todos.
Conduziu-os a pequena sala onde os convidou a sentar. Assim que se acomodou por sua vez, pediu a Mariazinha:
- Conte-me o que sentiu desde que chegou aqui.
- Eu não cheguei bem. Esta noite dormi mal, senti-me inquieta, nervosa, o dia inteiro. Quando cheguei aqui o desconforto aumentou. Suei frio, passei mal, a respiração curta e uma vontade enorme de sair, fugir. Se o Júlio não me segurasse, eu teria ido embora.
-E depois?
- Depois, chegou um momento em que não suportei mais, cheguei a sufocar, acho que gritei. Fiquei tonta, não sei bem. Não vi nada. Acordei e estava com a cabeça na mesa. Não me lembro de ter ido lá.
- E agora?
- Sinto-me calma. Aquela mensagem deu-me muita paz.
- Como se sentiu logo ao acordar, qual a primeira emoção?
- Não me lembrava onde estava, mas senti-me aliviada, leve. Logo a memória voltou e vi que estava melhor.
Dora tomou a mão de Mariazinha segurando-a com carinho:
- Você possui muita sensibilidade. É médium. Sabe disso, não é?
- Sei. O Júlio tem me explicado. Mas eu não quero ser, sinto medo. Vim aqui pensando em me libertar dos meus problemas. Minha vida está muito complicada.
- O Júlio já deve ter-lhe dito que a mediunidade é natural no ser humano. Quando ela aparece, ninguém a poderá anular. Faz parte do progresso do ser e é uma janela a mais para enxergar a vida, as coisas. O mais adequado é estudar como ela funciona em você e aprender as Leis naturais que a regem. Agindo assim, perceberá que ela é um bem e pode desenvolver muito seu espírito.
- Senti-me muito mal. Não quero sofrer essas coisas.
- Você estava mal, antes de vir aqui. Como se sente agora?
- Muito bem. Voltei ao normal.
-Justamente. Você estava assediada por um espírito que estava com medo de vir aqui, porque sentia que seria pressionado a deixá-la em paz.
- E agora, ele se foi?
- Sim. Afastou-se. Ainda não deseja esclarecer-se.
- E se ele voltar?
- Não só ele poderá voltar, como você poderá atrair outros. Por isso, desejo recomendar-lhe que venha ao Centro, freqüente, não só para que esse espírito se esclareça como para que você aprenda a defender-se desses assédios.
- Acha que conseguirei?
- Se perseverar, tenho certeza que conseguirá. Você é dona do seu corpo e da sua vontade. Ninguém a usará se você não permitir.
- Mas eu nunca quis ou permiti que eles me usassem.
- Não falo do consentimento verbal. Falo da utilização da força do seu espírito no uso das energias que nos rodeiam.
- Se ela freqüentar as sessões, ficará boa? - indagou Isabel não ocultando a preocupação.
- Ela não é uma pessoa doente. Simplesmente ainda não aprendeu a disciplinar sua sensibilidade. É só questão de tempo.
- Quase me arrependi de ter vindo aqui. Pensei que ela houvesse piorado. Sempre ouvi dizer que espiritismo pode deixar a pessoa variada. Entretanto, percebo que agora ela está melhor. As olheiras sumiram e as cores voltaram a seu rosto.
- Quem não conhece o assunto pode dizer o que quiser. As pessoas se envolvem com problemas emocionais, escolhem mal o seu caminho, abrem campo para as intervenções de espíritos em desequilíbrio, recusam o auxílio da espiritualidade superior, teimam em cultivar suas ilusões, perseveram nos enganos, põem fé em pensamentos negativos, alardeiam sua dor, acreditam-se vítimas da fatalidade. Vêm ao Centro Espírita como vão a outra religião qualquer em busca de um alívio, um milagre que lhes permita continuar com as mesmas idéias, sem as conseqüências de seus desacertos. Ignoram que Deus ajuda a quem se ajuda, age dentro e através do próprio indivíduo e nunca esteve omisso. Quando não conseguem o que pretendiam, ou descobrem que terão que mudar, esforçar-se para obter, afastam-se decepcionados, qual crianças caprichosas, continuando em seus enganos. A mediunidade não equilibrada, aberta aos pensamentos descontrolados e às emoções exacerbadas, pode levar à loucura. O Centro Espírita existe exatamente para evitar esse mal. É remédio, não causa. É escola para os que desejam realmente aprender, crescer, não para servir aos interesses subalternos do ser humano.
Dora calou-se e o silêncio se fez por alguns instantes. Foi Mariazinha quem falou:
- Nunca pensei que fosse uma coisa tão séria. Suas palavras fizeram-me compreender que vindo aqui estarei protegida. Tudo quanto me aconteceu, desde a morte do Alberto, deixou-me muito insegura. Estou aliviada. Quero vir aqui. Seja o que Deus quiser.
- É uma decisão sábia - concordou Júlio, emocionado. -Muito bem - concluiu Dora com suavidade. - Às quintas-feiras à noite você poderá vir. Eu estarei aqui para encaminhá-la.
- A senhora acha que ela ficará boa? - indagou Isabel novamente. Dora sorriu.
- Sua filha não está doente. Aprenderá a usar a sensibilidade que tem e a harmonizar-se interiormente.
Despediram-se todos e no caminho de volta Mariazinha estava pensativa. Conversaram pouco. Foi na hora de despedir-se do noivo, a sós na varanda de sua casa que Mariazinha mencionou o assunto.
-Júlio, sinto-me insegura como das outras vezes. Compreenda. Não consigo lembrar-me de nada. Por favor, conte-me exatamente o que aconteceu, o que eu disse.
Júlio tentou desviar o assunto:
- Bobagem. Era um espírito em desequilíbrio. É melhor não falar sobre isso.
-Porquê?
- Por nada. Que utilidade teria?
- Poderia esclarecer-me em relação a certos problemas de minha vida. Sinto que o que aconteceu tem muito a ver comigo.
- De que forma?
- Não sei. Há momentos em que sinto uma espécie de raiva de mim mesma, é difícil explicar, como se eu quisesse me punir por alguma coisa. Uma dualidade de sentimentos que me confunde.
Júlio segurou a mão dela com carinho:
- É natural. Você está captando a energia de outra pessoa.
- Não posso tirar o rosto do Rino da minha frente. O que ele tem com isso? Sinto medo.
Júlio abraçou-a, beijando seus cabelos com carinho. Suspirou fundo, depois decidiu:
- Está bem. É melhor que saiba. Não tenho certeza de nada, mas pelo que houve esta noite, vocês foram ligados em vidas passadas.
Júlio contou tudo quanto ouvira, finalizando:
- Ela quer usar você para se aproximar dele a quem pretende envolver.
- Por que ela não o procura diretamente?
- Porque não pode. Ele por certo não sente sua influência. Por isso, ela quer servir-se de você.
- Que horror!
- Isso talvez explique a obstinação do Rino. Ele sente a presença dela, com você. Claro que não está consciente disso, mas de certa forma, sem saber, ele quer fazer o mesmo.
-Júlio, sinto medo!
- Faz mal. As coisas não são do jeito que eles pensam. Só vão conseguir se você permitir.
- Isso nunca!
- É preciso estar consciente dos fatos e não se deixar envolver. Não se esqueça de que ela ama o Rino e pode confundir os seus sentimentos. Isso é comum na captação de energia.
- Estarei alerta, jamais verei o Rino de outra forma.
- O que é preciso é ir ao Centro e receber ajuda.
- Irei. Você me acompanha?
- Claro.
Os dois conversaram um pouco mais e quando se despediram, Mariazinha sentia-se mais calma e confiante.
Na manhã do dia seguinte, Rino levantou-se mais cedo do que o costume, sentindo-se indisposto. Tivera uma noite mal dormida, cheia de pesadelos onde a figura de Mariazinha aparecia dizendo que o amava e beijando-o com paixão, para depois repudiá-lo friamente. Ele sentira acender seu desejo com redobrada violência.
Amava aquela mulher e haveria de tê-la. Atribuía sua indisposição ao amor não correspondido. Quando a tivesse entre os braços, ela acabaria por render-se ao seu amor. As mulheres resistem até serem vencidas. Sentia que era atraente. Inúmeras moças disputavam sua preferência e bastaria ligeiro aceno e viriam correndo para seus braços.
Contudo, Mariazinha era seu desespero. O clímax do pesadelo era quando ele a beijava no auge da emoção, ela o empurrava e saia levada por outro homem. Ele esforçava-se para segui-la, mas o outro colocava-se entre os dois e o impedia de chegar a ela. Por mais força que fizesse, não conseguia aproximar-se. Rugindo de ódio, via os dois afastarem-se abraçados.
Nervoso, andando de um lado a outro do quarto, ele pensava:
- Vou perdê-la para sempre. Esse sonho é um aviso. Com certeza ela vai casar-se com aquele idiota. Preciso fazer alguma coisa. Não posso ficar de braços cruzados enquanto ele a rouba de mim!
Fora ingênuo acreditando que a surra o afastaria dela para sempre. Arrependia-se de não haver acabado com ele de uma vez. Fora prudente demais. Afinal, saíra-se bem da outra vez, por que temer?
Talvez, se idealizasse um bom plano, poderia fazer o serviço agora. Era verdade que ele andara assustado. Teria o Júlio dado queixa a polícia? Precisava idealizar um plano perfeito que o pusesse a salvo de quaisquer suspeitas.
Várias idéias sinistras passavam por sua mente sem perceber que um vulto de mulher o abraçava, dizendo ao seu ouvido com paixão:
- Eu te amo! Se você não o tirar do caminho, jamais estaremos juntos de novo. Vem para mim, meu amor!
Rino não registrou aquela presença, mas sentiu uma onda apaixonada envolvê-lo, e em sua mente o rosto de Mariazinha aparecia como causa dessa paixão.
- Preciso controlar-me - pensou ele lutando com a emoção. -Não posso cometer uma loucura. Tenho que usar a cabeça. Alguma coisa me diz que disponho de pouco tempo. Vou tomar um calmante, dormir um pouco e depois, mais calmo, resolverei o que fazer.
-Nervosamente, apanhou o vidro de comprimidos que tomava para dormir e ingeriu seis deles de uma vez. Sabia que se não aumentasse a dosagem, não faria efeito. Deitou-se novamente pensando decidido:
- Quando acordar, terei a idéia certa.
Suspirou fundo, remexeu-se um pouco no leito, mas em pouco tempo mergulhou em sono profundo.
Quando Magali sentou-se à mesa para o café da manhã, Aurora foi logo dizendo:
- Filha, até agora não entendi bem o que aconteceu ontem. Esperava notícias do Alberto e ao invés disso, aconteceu aquilo. Por que será?
Magali balançou a cabeça:
- Não sei, mãe. Tenho aprendido que esses fenômenos não são como a gente quer. Isto é, não ocorrem como desejamos.
- Fiquei um pouco decepcionada.
-Não deve. Mariazinha resolveu freqüentar o Centro, veremos o que acontecerá. D. Dora sempre diz que Deus age de maneira diferente da que esperamos, mas sempre para o melhor.
Aurora suspirou:
- Tenho tanta saudade! Gostaria de saber como ele está, se já aceitou a morte tão trágica e quem sabe, dizer-nos quem o matou. Quero crer na inocência do Jovino, mas as provas... às vezes chego a duvidar. É uma tortura. O receio de estar cometendo uma injustiça com nosso menino e por outro lado, se houver sido ele?
Magali encarou a mãe com energia:
- Nós já falamos sobre isso e não tenho nenhuma dúvida. Você não deve abrigar esses pensamentos no coração. Ele é inocente, tenho a certeza. Um dia teremos provas disso.
- Ah! Se isso fosse verdade!
- Claro que é. O que todos deveríamos fazer é tentar tirar o Jovino da prisão. Enquanto ficamos titubeantes, ele está lá, preso, pagando por um crime que não cometeu.
Aurora não conteve as lágrimas:
- Meu Deus! Se isso for verdade, que crueldade! Mas o que poderemos fazer? Ele já foi julgado e condenado. Para reabrir o processo é preciso existir uma prova aceita pela justiça que o inocente.
- Eu sei, mamãe. E é por isso que até agora ele continua lá. Mas o Vanderlei tem trabalhado no caso, investigando os suspeitos possíveis.
Aurora suspirou fundo:
- Mesmo assim. Acho difícil conseguir alguma prova agora. O tempo passou, tudo mudou.
- Eu tenho esperança. Deus sabe que ele não cometeu esse crime e sabe também quem foi. Quando julgar conveniente, as provas aparecerão.
- Nesse caso, por que Deus permite que uma injustiça dessas aconteça?
- Deus jamais permite a injustiça. Tenho aprendido que todos os acontecimentos da vida têm uma causa justa.
- Não consigo concordar.
- Pense bem, mãe. Deus é só bondade. Se passamos por determinadas situações, elas têm sempre a finalidade de nos mostrar algo, de nos ensinar. No fundo, nós é que, com o nosso pensamento, atraímos isso ou aquilo em nossas vidas.
- O Alberto era bom e o Jovino, pelo menos, parecia bom. Por que a tragédia?
- Já falamos sobre isso, mamãe. Claro que eram bons, mas por certo, em suas atitudes, havia a crença de que a violência pode resolver os problemas.
- Seu irmão não era violento.
- Não parecia ser. Mas quem pode saber o que lhe ia no coração? Uma coisa é certa, tanto ele quanto o Jovino receberam o que necessitavam. Deus jamais seria injusto.
- Nesse caso, não há esperanças.
- Não é assim. Eles amadureceram e todos nós mudamos muito com o que aconteceu. Mexeu com todos nós. Fomos forçados a olhar a dor, a morte, a separação, a vida.
- Tem sido duro.
- É, tem sido. O que me consola é que a vida não acaba com a morte e, por isso, todas essas coisas, agora tão dolorosas, passarão e nós, um dia, reunidos com o Alberto, faremos a avaliação do que aprendemos agora.
- Você é muito otimista. E se nada disso for verdade? E se nunca mais estivermos com ele?
- Nesse caso, a vida não passaria de um momento infeliz sem justificativa nem objetivo. Mãe, jogue fora seu materialismo. Isso é justamente o que a vida quer nos ensinar. Mostrar a espiritualidade. Aprenda a lição para não nos acontecer coisa pior.
Aurora fez um gesto de horror:
- Acha que poderia acontecer algo mais? Magali balançou a cabeça.
- Não sei. Só sei que se uma não foi suficiente o bastante para nos despertar, outras virão.
-Deus nos livre!!
- É a nossa necessidade que atrai. A vida só responde ao que precisamos, dando sempre o melhor para nosso progresso.
Aurora baixou a cabeça pensativa. Magali saiu apressada. Vanderlei a esperava. Ele lhe telefonara marcando o encontro.
- Alguma novidade? - quis saber Magali assim que se encontraram.
- Nada muito especial
- É desanimador.
- Nem tanto. Tenho um plano e quero saber sua opinião. Vanderlei abriu a porta do carro e pediu a Magali que se acomodasse. Sentou-se a seu lado e continuou:
- Tenho pensado muito. Amigos meus da polícia destacaram investigador para seguir o Rino. Temos inclusive uma foto do grupo dele, e o Júlio reconhece um apesar de estarem com o rosto encoberto naquela noite. Pelo corpo, o tipo, etc. Por isso, não temos dúvidas, foram eles que o agrediram.
- Não há como provar.
- Por causa disso, vamos criar uma armadilha. Anunciar o casamento de Mariazinha. Isso o fará revelar-se.
- É perigoso.
- Estaremos vigilantes.
- Mariazinha não aceitará. Teme pelo Júlio.
- É um risco que precisamos correr se quisermos resolver o caso. Vigiaremos o Júlio vinte e quatro horas por dia. E assim, faremos o flagrante.
Daí, teremos provas, argumentos para reabrir o processo. O que acha?
- Sinto um frio no estômago! Por outro lado, penso que tem razão. Vanderlei tomou a mão dela e olhou-a nos olhos ao dizer:
- Seu apoio é muito importante para mim. Não farei nada sem sua aprovação. Confio na sua intuição.
Magali sorriu e sentiu o coração acelerar suas batidas.
- Obrigada — disse - Você tem nos ajudado muito. Jamais esquecerei.
- Não se preocupe. O Júlio é meu melhor amigo. Depois, sempre tive uma queda para colocar os patifes fora de circulação. E então?
- Está certo. Se acha que poderá controlar a situação, resta saber se os outros concordarão.
- Hoje mesmo falaremos com eles. Quando eu sair do escritório, virei buscá-la e juntos iremos à casa de Mariazinha. Júlio estará lá e Nair também. Verá que dentro de pouco tempo, resolveremos o caso.
- Assim espero.
A noite, na varanda da casa de Mariazinha, Vanderlei expôs sua idéia. Nair daria um jeito de aproximar-se do Rino e contar-lhe que o casamento da amiga seria dentro de um mês.
Mariazinha relutava em concordar, porém Júlio convenceu-a.
- É preciso acabar com essa situação. Não podemos continuar vivendo sob ameaça.
- Tenho medo.
- Estaremos atentos — interveio Vanderlei. - Não descuidaremos um minuto.
- Está certo — disse Mariazinha por fim — se você tem certeza...
- Uma vigilância dessas ficará muito caro. Onde arranjaremos dinheiro? - considerou Júlio.
- Darei um jeito — ajuntou Vanderlei. — Usarei meu tempo livre para ajudar e tenho amigos que me devem alguns favores. Por certo farão o trabalho por preço acessível.
- O dinheiro não será problema. Eu tenho algum, e mamãe por certo desejará ajudar — tornou Magali.
- Nesse caso, tenho algumas economias que darei de bom grado para resolver essa história - concluiu Júlio.
- Garanto que não precisaremos muito. Verão. Agora, vamos aos detalhes.
A idéia era simples. Esperavam que ao saber do próximo casamento de Mariazinha, Rino tentasse impedi-lo de forma violenta. Então seria apanhado. Tanto Rino como Júlio seriam seguidos o tempo todo.
Quando se separaram, havia ansiedade e esperança em cada um. No dia seguinte, Nair, como que por acaso, passou pelos locais onde Rino costumava ficar com um ou outro amigo. Parou, olhando a vitrine de uma sapataria, bem próxima de onde ele estava.
Rino aproximou-se imediatamente. Havia dois dias que se sentia angustiado e preocupado.
- Nair, como vai? Preciso falar com você.
- Olá. Eu vou bem. O que quer?
- Saber de Mariazinha. Como está ela?
- Muito bem, obrigada.
Ele hesitou um pouco, depois continuou:
- Ela sumiu. Não a tenho visto.
- Continua trabalhando no mesmo lugar.
- Tenho circulado à noite e nunca mais a vi.
- Agora, ela quase não sai à noite.
- Por quê? Aquele palhaço ainda anda por lá?
- Não fale assim do Júlio. É um moço muito bom. Eles vão se casar logo.
Rino empalideceu:
- Casar? Com aquele pateta?
- Ela gosta dele. Acho bom você não se meter nisso. Aceite a idéia, será melhor para você.
- Mariazinha é minha e nunca se casará com ele!
Nair sentiu um arrepio pelo corpo, percebendo o ódio com que ele dissera essas palavras.
- Melhor se conformar. Dentro de um mês estarão casados. Rino apertou os lábios com raiva, fazendo evidente esforço para controlar-se. Seu sonho fora um aviso. Precisava agir o quanto antes! Não devia demonstrar sua revolta. Precisava evitar suspeitas. Por isso disse com voz que procurou tornar firme:
- Se ela de fato fizer isso, nunca mais quero vê-la. Odiá-la-ei para sempre.
Nair não sabia se sentia mais receio quando ele demonstrava ser violento ou quando tentava controlar-se. Movida por sincero impulso, disse-lhe com suavidade:
- Rino, esqueça Mariazinha! Ela não o ama. Por que insistir se isso o torna infeliz? Por que não tenta encontrar outra pessoa que possa amá-lo verdadeiramente? Forçar uma situação nunca daria certo. Deixe disso enquanto é tempo!
- Ela ainda não se casou! As coisas podem mudar...
- Será difícil. Eles se amam e tudo já está preparado. -Veremos!
- O que vai fazer?
- Eu?! Nada. Tenho esperanças, só isso.
Mais tarde, quando relatou o encontro ao resto do grupo, ao final Nair aduziu:
- Apesar de nervoso, ele fez tudo para controlar-se. Mas eu senti que ficou muito abalado.
- Será que engoliu a isca? - perguntou Júlio.
- Por certo - aduziu Vanderlei. - Agora vocês devem agir como se fossem mesmo se casar logo. Sabe como são essas coisas. Compras, igreja, etc. Nós faremos o resto.
Nos dias que se seguiram, nada aconteceu. Uma semana antes do dia em que eles haviam marcado para o falso casamento, tudo seguia como sempre. -Mariazinha e Nair começaram a desanimar. Estariam mesmo na pista certa? E se o Rino fosse inocente?
Quatro dias antes do prazo, Vanderlei procurou o grupo.
- Tenho novidades! Começo a achar que ele desistiu.
- Por quê?- quis saber Júlio.
- Comprou passagem para o exterior e embarca para Nova York.
- Terá desistido? - inquiriu Nair.
- Parece. Em todo caso, o Mendes não o perde de vista. Vamos ver se embarca mesmo - informou Vanderlei.
- Nesse caso, o que faremos? - quis saber Magali.
- Continuaremos vigilantes. Ele pode ter deixado com outra pessoa a incumbência.
- Talvez estejamos todos enganados - tornou Mariazinha.
- Pode ser. Mas não convém facilitar.
- Se não houver sido ele, voltamos à estaca zero - comentou Magali. - O Jovino está tão esperançoso!
- O que não podemos é desanimar. Seja como for, continuaremos investigando.
- E se houver sido um ladrão comum? E se a turma do Rino nada tiver com o crime? - perguntou Mariazinha.
- Aí veremos. Eu porém não creio nisso. Alguma coisa me diz que eles mataram Alberto. Seja como for, não descansarei enquanto não descobrir a verdade - disse Júlio.
- Concordo - ajuntou Vanderlei.
Entretanto, nos dias subseqüentes nada aconteceu. Rino embarcara na noite marcada, e eles foram forçados a admitir que o plano não surtira efeito. Chegaram a desanimar. Não havia nenhuma outra pista que eles pudessem seguir. Como descobrir a verdade?
Magali pensava no Alberto. Ele podia ajudar. Se ao menos ele aparecesse para dar uma pista! Todas as noites, ao se deitar pensava nele e pedia-lhe auxílio.
Nesses momentos, muitas vezes o espírito de Alberto fora atraído ao local. Quando isso ocorria, tentava confortar Magali, abraçando-a, sugerindo-lhe paciência e calma.
Ele também pensava no Jovino preso. Porém, mais lúcido e amadurecido, compreendia que libertá-lo não estava em suas possibilidades. Havendo recordado o passado, conhecendo as necessidades de cada um, percebia que apesar de tudo, Jovino estava aprendendo valiosa lição que muito o auxiliaria no desenvolvimento de sua maturidade.
Apesar disso, desejava muito poder libertá-lo. Havia consultado especialistas do comportamento, e o líder espiritual da sua cidade. Todos foram unânimes em afirmar que não seria possível ajudar um elemento em separado. Era preciso beneficiar todos os envolvidos.
A princípio, ele discordara. Não seria justo. O Jovino estava indo bem. Por que teria de esperar que os outros também melhorassem?
Cláudio, seu assistente espiritual, explicou com simplicidade:
- Ele melhorou, progrediu, mas não o bastante. É preciso entender que nós não comandamos a vida.
- Tenho aprendido aqui que nós criamos nosso destino. Somos donos dos nossos pensamentos. Se os modificarmos, toda nossa vida também mudará. Por que não funciona com ele?
- A lei é universal. Ninguém está fora dela.
- O que está errado? Por que ele não consegue sua liberdade se já mudou sua forma de pensar? Se já aprendeu a não julgar sem provas?
- Nada está errado. Você pode controlar sua mente, escolher pensamentos melhores e mais verdadeiros, acreditar e perceber novos e elevados valores, contudo, para mover as coisas é preciso mais. Para influenciar e reorganizar os fatos, é preciso emitir o teor de energia adequada.
O que move os acontecimentos, modificando-os para melhor, é a qualidade da energia. Ela é a força que transforma, que cria.
- Não conseguimos fazer isso pelo pensamento?
- O pensamento é o caminho. Quando você põe fé nele, acredita, gera sentimentos que, admitidos e cultivados, produzem emoções e energias.
- Estamos sempre produzindo energias. Somos emocionais.
- É verdade. Estamos sempre movendo os fatos com ela. A experiência demonstra que espécie de energia emitimos e assimilamos. Para harmonizar nossa vida, ser feliz, alcançar paz e equilíbrio, alegria e entusiasmo, só há um meio: sentir o amor! Essa é a energia chave. O amor gera energia capaz de mover fatos, pessoas, modificar para melhor os acontecimentos.
Alberto baixou a cabeça pensativo. Apesar de mais maduro, Jovino ainda não chegara a esse ponto. Inquietou-se:
- Não é fácil. No caso do Jovino, por exemplo...
- Não se inquiete. Ele está indo muito bem. Não guarda mágoa, embora esteja triste.
- Mas daí a sentir amor...
- Ele está mais próximo do que imagina. E você? O que sente? -Eu?!
- Sim. Em relação ao crime do qual foi vítima.
- Conformei-me. Sei que errei muito no passado.
- Se quer ajudar o Jovino, é preciso mais.
- Estou me esforçando. Porém, as barreiras são enormes. Não sei o que fazer.
- As barreiras parecem grandes quando nos sentimos pequenos. Quando nos posicionamos adequadamente, todas as portas se abrem.
- De que forma?
- Lembre-se que a energia do amor incondicional é o elemento mais poderoso do universo.
- Como chegar a ele?
- Percebendo que as outras pessoas são uma extensão de você mesmo. Compreendendo-as nas fases de experiências onde se encontram, sabendo que assim como você, elas também aprenderão. Não há quem valha mais, nem menos. Apenas os que já sabem e os que ignoram. Poderá amá-los se sentir neles a criança espiritual.
Alberto ficou pensativo por alguns instantes, depois disse:
- E o Rino? Devo olhá-lo dessa forma?
- Se puder!
- Ele me tirou a vida! É perigoso. Preciso defender os meus. Ele é mau. Pouco se importa se um inocente está preso em seu lugar. Ao contrário, forjou provas contra o Jovino, colocando em minha mão aquele cachecol que ele havia deixado cair no dia da briga, para incriminá-lo. Ainda agora, pensa em matar o Júlio!
- Ele acha que está se defendendo! Sente-se preterido. Você já o olhou sem esse sentimento de rancor?
- Está enganado. Eu não o odeio. Ao contrário. Já o perdoei. Mas não posso permitir que ele prejudique pessoas inocentes.
- Todos somos iguais. O mal é só ilusão! A realidade só nos aparece quando percebemos isso. Você se defende tanto quanto ele. Tem a pretensão de poder impedir fatos que não estão em sua mão modificar.
- Essa impotência me desespera!
- Por que não tenta outro caminho? Não percebeu que esse é enganoso, ineficiente?
- Como chegar à verdade?
- Percebendo que o mal é ilusão. Olhando o Rino como um ser carente de sua ajuda, tentando ampará-lo.
-Eu?!
- Que melhor chance para provar que não guarda rancor? Não acha que ele está iludido o bastante quando pensa que, ferindo seu corpo, o matou para sempre? Sobre quantas outras coisas terá uma visão distorcida? Se quer ajudar o Jovino, é esse o esforço que deve fazer. Tente compreender o Rino e inspirá-lo a perceber a verdade. Esse é o ponto importante do caso.
- Como fazer isso?
- Vá e prometo ajudá-lo.
Alberto retirou-se pensativo. Precisaria de muito esforço para poder pelo menos pensar na possibilidade de ajudar Rino. Só ao pensar nele, sentia forte rejeição. Não pensava em vingar-se. Isso não. Sabia que a vingança só lhe traria sofrimentos. Entretanto, para ser bem sincero, esperava que a vida fizesse justiça, castigando-o pelo crime cometido.
Afinal, era um direito - pensava. - Quem mata, agride o sagrado direito à vida, logo, precisava ser corrigido. Não estava ele mesmo pagando alto preço pelo crime que cometera? Assim como ele fora justiçado, esperava que seu assassino também o fosse. Por que deveria auxiliá-lo? O Antunes nunca o ajudara. Era verdade que ele era mais necessitado do que ele próprio. Por certo não teria meios para isso.
Mil indagações acudiam-lhe à mente, e ele tentava respondê-las sem êxito. Ajudar o Rino! Se a liberdade do Jovino dependesse disso, por certo seria difícil libertá-lo.
Não se conformando com a situação, circulou em volta de Magali e seus amigos, aproximou-se de Rino, tentando descobrir o que ele pensava dos planos de Mariazinha e Júlio.
Rino ocupava-se em preparar uma mala para viajar. Vendo-o, Alberto sentiu-se ligeiramente tonto, enquanto uma dor no peito o fez recordar o mortal ferimento. Reagiu.
- É só impressão - pensou. - Tudo já passou. Eu estou muito bem agora.
Aos poucos, sentiu-se melhor. Lembrou-se da tarde em que Rino tentara abraçar Mariazinha, e ele a defendera interpondo-se entre ambos. Rino sentira sua presença. Pôde perceber isso.
- Preciso ter calma - pensou. - Não posso me descontrolar. Se fizer isso, Cláudio não me ajudará. Eu preciso muito da sua ajuda.
Gastou alguns minutos em acalmar-se, procurando pensar nos amigos que o ajudaram em seu atual estado. Estava se sentindo melhor quando viu que uma mulher de aparência jovem mas inquieta, aproximou-se de Rino, abraçando-o apaixonadamente, dizendo-lhe ao ouvido:
- Meu amor! Sou eu. Estou aqui. Você não pode me ver, mas eu voltei. Veja, sou a mesma de outros tempos. Breve estaremos juntos e nada nos há de separar. Ela nos separou, ela nos unirá de novo.
Rino não podia vê-la, porém, sentiu uma onda de paixão. Em sua mente desenhou-se a figura de Mariazinha e ele pensou:
- Eles pensam que me enganam! Estão cegos. Não sabem com quem estão lidando. Tentam me enganar. Não há nada marcado na igreja e os proclamas sequer correram. Era mentira da Nair.
O espírito de mulher não percebera a presença do Alberto e abraçando-o ainda mais, segredou-lhe:
- Não é bem assim! Eles vão se casar mesmo. Vai facilitar? Eu os vi aos beijos, aqueles traidores.
- Eles estão juntos! - pensou Rino, enraivecido. - Com certeza beijam-se!
Tinha que separá-los. Precisava tirar Júlio do caminho. Seu plano era bom e o poria em prática. Viajaria para o exterior, com alarde e grandes preparativos. Planejava voltar, sem ninguém saber, liqüidar o Júlio e voltar. Tinha tudo preparado. Possuía até um passaporte falso onde colocara foto sua com a peruca e o bigode postiço que pretendia usar como disfarce. Faria o serviço e ninguém poderia culpá-lo. Desta vez, não haveria testemunhas como da outra. Ninguém saberia de nada.
- Isso mesmo - segredou ela - deve reagir. Cuidado! Eles preparam uma cilada. Não facilite!
- Todo cuidado é pouco - pensou ele.
Elaborara tudo, não poderia falhar. Ninguém desconfiaria de nada.
Deitou-se, porém não conseguiu dormir. A lembrança de Mariazinha o perseguia. O espírito de mulher permanecia a seu lado, abraçando-o apaixonadamente.
Alberto notou que ela pensava em Mariazinha, visualizando seu rosto enquanto dizia ao ouvido de Rino:
- É ela! Ela me deve ajuda. É com ela, meu amor, que realizaremos nossos sonhos. Você precisa casar com ela. Depois, é só deixar comigo. Sei como dominá-la.
Rino remexia-se no leito, perturbado por pensamentos eróticos. Alberto surpreendeu-se. Não esperava por isso. Como não percebera antes? Rino estava sendo pressionado por ela.
Observando a energia escura e viscosa com que ela o envolvia, descobriu que ela mantinha grande ascendência sobre ele. Teria ela sido inspiradora do crime que o vitimara? Rino seria também uma vítima?
Sentiu-se atordoado. Mil idéias misturavam-se em sua mente e ele desejava saber a verdade. Recordando o passado, encontrara causas inesperadas para o que lhe acontecera, mas e o Rino? Não o conhecera antes, por que lhe tirara a vida? Sabia que todo efeito possui uma causa. Por que exatamente ele? Por que, em meio a tantas moças bonitas que conhecera na Terra, fora interessar-se por Mariazinha? Não se lembrava de havê-la conhecido em vidas anteriores.
Sentou-se a um canto do aposento pensativo. Apesar da mulher não o notar, ele podia sentir a energia envolvente que ela emanava. Sabia que seria perigoso abordá-la. Aprendera que certas emanações mentais são tão fortes e destrutivas que seria melhor evitá-las, uma vez que ele ainda não estava imune a elas. Por isso, ficou ali observando sem interferir.
Notou que Rino estava totalmente dominado por ela. Agitado, insone, por fim apoderou-se de um vidro de pílulas tranqüilizantes e ingeriu algumas.
- Dorme, meu bem. Eu vigiarei seu sono.
Rino acomodou-se e logo adormeceu. Seu duplo, porém, ficou ali, sobre o próprio corpo, sem consciência, enquanto que ela, abraçada a ele, prazerosamente acomodou-se feliz.
Alberto sentia-se inseguro. Reconhecia que Rino não estava em condições de agir por si mesmo. Compreendeu por que Cláudio lhe dissera que precisavam ajudá-lo. Apesar do que vira, ainda não se dispunha a fazê-lo, porém, ter raiva de alguém tão infeliz, obscurecido e sem lucidez para discernir, era desigual. Se pudesse, teria ficado frente a frente com ele e lhe pedido contas pelo crime. Todavia, agora, como fazê-lo? Como responsabilizar um alienado? E ela? Até que ponto estaria envolvida?
Angustiado, resolveu voltar e procurar Cláudio. Precisava esclarecimentos. Não se sentia com forças para decidir nada.
Quando Magali encontrou Vanderlei, notou logo sua contrariedade.
- O que aconteceu? — perguntou curiosa.
- Nosso pássaro bateu asas.
- Como assim?
- Foi embora. Viajou para o exterior, em grande estilo, como se nada fosse. Com a despedida dos amigos, etc.
-Não diga! Quer dizer que...
- Nosso plano não deu certo. Das duas uma, ou ele não acreditou ou não ligou.
- Será?
- Não sei. Agora voltamos ao ponto de partida. Nosso suspeito não mordeu a isca.
- E agora, o que faremos?
- Não sei. Não vou afrouxar a vigilância. Ele pode ter viajado para não despertar suspeitas e haver encarregado alguém de executar o serviço.
- Você acha?
- Acho. Tudo parecia tão claro! Nair disse que ele empalideceu com a notícia do casamento.
- Estará querendo despistar?
- Pode ser. Em todo caso, há a hipótese dele haver descoberto a verdade. Que o casamento não estava marcado realmente. Devíamos ter agido de outra forma. Júlio disse-me que pretende casar-se dentro de alguns meses. Seria bom que adiantasse essa data.
- Por quê?
- Para não haver margem de dúvida. Quem nos garante que ele tenha investigado?
- Será?
- Em todo caso, não afrouxarei a vigilância. Quando menos se espera, eles podem tentar alguma coisa.
Foram até a casa de Mariazinha. Sabiam que o Júlio estaria lá. Vanderlei foi logo contando a novidade.
- Nos enganamos - comentou Mariazinha com certo alívio.
- Não diria isso - tornou Júlio pensativo. - Ele pode estar despistando.
- É o que eu penso. Entretanto, a notícia do casamento era falsa. Teria ele descoberto?
- O que faremos agora? - indagou Júlio.
- Ainda não sei. Manteremos a vigilância. Não confio nem um pouco naquele sujeito. Pode haver preparado algo e ter viajado para despistar. Uma coisa seria muito bom fazer.
- O que é?- perguntou Júlio.
- Apressar o casamento. Gostaria de saber o que ele faria.
- Por mim, poderia ser amanhã. Mariazinha é quem deseja esperar um pouco mais, terminar o enxoval.
- De fato. Sabe como é, não dá para comprar tudo de uma vez. Faço questão de levar tudo direitinho.
- Posso entender isso - comentou Vanderlei - mas diante das circunstâncias, esse fato poderia resolver nossos problemas.
- Começo a pensar que sim - interveio Magali. — Se você não se ofender, gostaria de fazer-lhe uma proposta...
- Qual é? - indagou Mariazinha.
- Ajudá-la a comprar o que falta no enxoval. Por favor, não se ofenda. Seria um empréstimo. Você me pagaria quando pudesse. Sabe, não vejo a hora de libertar o Jovino. Isso não tem preço.
Júlio segurou a mão de Mariazinha e apertou-a com carinho. Abraçou-a dizendo:
- Por favor! Aceite. Sei que é de coração. A moça, corada, não sabia o que dizer.
- Aceite, Mariazinha. Deixe-me cooperar com a solução deste caso.
- Não sei... Quem nos garante que daria certo?
- Bem... garantir, não podemos. Contudo, tentar é um direito nosso - opinou Vanderlei.
- Não sei se minha mãe vai concordar.
- Com D. Isabel falo eu. Sei como convencê-la.
Mariazinha sorriu. Sabia que sua mãe gostava muito do Júlio. Ele não lhe deu tempo para responder e continuou:
- Marcaremos o casamento para daqui a uma semana.
- Isso não será possível. Há o prazo mínimo para correr os proclamas etc. Digamos que para daqui a um mês. Costuma levar mais tempo, mas tenho um amigo que poderá ajudar - concluiu Vanderlei.
- Está resolvido. Casaremos dentro de um mês. Amanhã mesmo tomaremos todas as providências - resolveu Júlio. — Vamos agora falar com seus pais.
Júlio e Mariazinha entraram para tratar do assunto, enquanto que Magali e Vanderlei permaneceram na varanda conversando animadamente, planejando tudo para o casamento. Meia hora depois, os dois voltaram:
- Eles ficaram assustados. Custaram a concordar — disse Júlio. — Posso compreender. É-lhes penoso separar-se da filha. Desejaram retê-la mais tempo. Contudo, acabaram aceitando. Afinal, desejam muito a nossa felicidade.
- Vai dar tudo certo - considerou Magali. - Como faremos? Se quiser, posso ir com você, ajudá-la nas compras. Adoro fazer isso!
- Obrigada. Aceito com prazer. Você tem muito bom gosto. Vai ser ótimo!
- Posso ir junto? - indagou Júlio.
- De forma alguma! Algumas coisas que vamos comprar o noivo só vai ver no dia do casamento! - disse Magali com alegria.
- É bom ir treinando - ajuntou Vanderlei - quando for a sua vez, saberá como proceder.
Magali corou e sorriu. Gostava de Vanderlei, do seu riso franco, seus olhos castanhos e brilhantes, e do sentimento terno que algumas vezes surpreendera neles. Não sabia se estava apaixonada por ele. Sentia alegria em estar a seu lado, em conversar, e quando ele a tocava, um arrepio de prazer lhe percorria a espinha. Seria amor ou estaria apenas sendo grata pelo que ele estava fazendo?
Não tinha pressa. Ele nunca lhe dissera nada a respeito. Não gostava de forçar nada. Se alguma coisa verdadeira começasse a existir entre eles, se definiriam na hora certa. Não desejava precipitar-se.
Conversaram animadamente, combinando os detalhes e a maneira ostensiva pela qual divulgariam o casamento.
Os amigos de Rino precisavam saber. Se nada acontecesse, paciência. Vanderlei acreditava seriamente que as coisas podiam ser diferentes. Avisaram Nair que logo prontificou-se a ajudar. Conhecia algumas comadres que poderiam ajudá-los muito. Era contar-lhes as novidades e logo o bairro inteiro saberia.
Dois dias depois Rino no exterior recebia um telefonema de um amigo. Colocado a par do próximo casamento de Mariazinha, sentiu um aperto no coração.
Contudo, não queria que ninguém desconfiasse dele, nem seus amigos mais íntimos. Fingiu estar conformado:
- Não adianta mais nada. Ela não me quer mesmo. Resolvi desistir. Que se casem e nunca mais cruzem o meu caminho!
- Não vamos fazer nada? Deixar aquele safado vencer essa?
- Quem disse que ele vai vencer? Em qualquer tempo podemos dar-lhe uma lição. Só que agora, não quero fazer nada. As coisas aqui vão melhor do que eu esperava.
- Tem mulher no pedaço?
- Claro! Agora eu estou interessado em outra. E ela está caidinha. O outro riu divertido.
- Estava na hora de esquecer essa provinciana da Mariazinha. É isso mesmo. Só não me conformo daquele intrometido sair ganhando.
- Não se aborreça, Lineu, que ele não perde por esperar - garantiu Rino. — Veremos quando eu voltar.
- Quando vai ser isso?
- Daqui uns dois meses ou mais. Enquanto as coisas estiverem boas aqui, vou ficando.
- Feliz de você que tem pai rico. Se eu fosse você, morava mesmo aí, nos States.
Quando desligou o telefone, Rino trincou os dentes com raiva.