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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


SONHOS À MEIA NOITE / Ana Seymour
SONHOS À MEIA NOITE / Ana Seymour

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Bridget considerava o Mosteiro de São Gabriel seu lar desde que aparecera ali, misteriosamente, anos antes. Isolada de olhares curiosos, sentia-se feliz em poder retribuir a atenção de seus amáveis protetores. Entretanto, depois de ler as fantásticas fábulas do rei Artur e Guinevere, Bridget começou a sonhar em encontrar um cavaleiro...

Em busca do irmão desaparecido, sir Ranulf Brand decidiu vasculhar o interior da Normandia. Atacado por bandidos e dado como morto, ele acordou no Mosteiro de São Gabriel para deparar-se com a visão de um anjo de cabelos dourados, que cuidava de seus ferimentos à luz de velas. Mas os monges insistiam em dizer que não passava de uma alucinação provocada pela febre. Mas que alucinação era aquela, que o fazia sentir o toque dos lábios daquela bela jovem nos seus?

 

 

 

 

                                                       CAPÍTULO I

Era maravilhosa a sensação de estar montado em Trovão após a árdua travessia do canal. Ranulf Brand lembrou-se das intermináveis ondas e de como chegara perto de colocar pára fora tudo o que tinha em seu estômago.

Assim era melhor. Respirou fundo o ar refrescante da primavera. Os pastos da região campestre da Normandia estavam cobertos por uma vegetação viçosa.

Um animal pulou de repente de detrás de um arbusto logo à sua frente, assustando-o.

Ranulf sorriu. Sua avó Ellen sempre dizia que sua terra natal, a Normandia, era o lugar mais lindo do mundo, além de Lyonsbridge. Ranulf já passara por lá uma vez, voltando das Cruzadas, mas viajara com um exército caótico depois da captura do rei Ricardo. Portanto, não tivera grandes oportunidades de admirar o cenário.

Também nessa viagem não teria muito tempo, o que lhe tirou o sorriso do rosto. Não estava ali por diversão. Viera à procura de Dragão, e só voltaria para o calor e o conforto de Lyonsbridge quando o encontrasse.

Todos julgavam seu irmão, Edmund, mais novo como morto. Dois longos anos haviam se passado sem nenhum sinal de que estivesse vivo. Secretamente, sua avó ordenara que se iniciassem os ritos pela alma dele.

         Mas Ranulf se recusava a acreditar que Edmund, um guerreiro tão destemido, apelidado de Matador de Dragões, estivesse morto. Faria de tudo para achá-lo, mesmo que demorasse uma eternidade. Procuraria em cada canto do continente, inclusive se tivesse de ir até Jerusalém.

Seu primeiro destino era um pequeno e obscuro mosteiro chamado São Gabriel. Não conseguia imaginar o que Edmund procuraria em um lugar como aquele, entretanto, o irmão partira dizendo que ia para lá.

Bridget estalou a língua em sinal de reprimenda quando o irmão Francis entregou-lhe mais um hábito com o punho todo rasgado. Costurar para os monges vinha se tomando sua principal atividade no São Gabriel, tamanho o descuido dos religiosos com suas roupas.

– Se vocês insistirem em continuar fazendo todo tipo de serviço com esses hábitos, daqui a pouco não vão mais ter uma só peça para vestir – ela disse, meneando a cabeça.

As faces rosadas de Francis enrubesceram.

– Seria um grande problema se o bispo passasse aqui para nos visitar. Um bando de monges nus recebendo ordens de uma mulher...

– Cuidado com suas palavras, irmão Francis, se não quiser ser punido pelo que diz. – Bridget sorriu. – E quem falou que dou ordens?

O pequeno gorducho parecia querer segurar-lhe os ombros, mas não o fez.

– Minha filha, vamos chamar de coordenar, e não dar ordens. E você sabe muito bem que metade da irmandade morreria se não fosse por seus cuidados conosco. Nossa vida melhorou muito desde que começou a nos ajudar, Bridget.

– Tenho de admitir que às vezes fico pensando como faziam antes de eu chegar, irmão. Este mosteiro deveria ser uma desordem completa.

– Foi o Senhor que a enviou até nós. É a única resposta que encontramos. Pensamos nisso desde o dia...

Bridget esperou, mas sabia que o irmão Francis não diria mais nada a respeito de sua misteriosa chegada ao mosteiro, quando era ainda muito pequena. Era o único lar que conhecera na vida, mas, mesmo agora que já era adulta, eles se recusavam a contar-lhe como fora parar ali.

Então, não questionava mais. O fato de ser amada e de amar os monges lhe bastava. E, por mais que devorasse livros sobre a vida fora dos domínios do recluso santuário, estava contente entre eles. Adorava o jardim florido, a animação da sala de jantar e a pacífica solidão das caminhadas dos religiosos.

– Aposto como o Senhor me mandou até aqui porque sabia que os monges brancos do Mosteiro de São Gabriel tinham sérios problemas com suas vestimentas – brincou, erguendo a bainha rasgada e sorrindo.

– Algumas vezes acho que a sobrecarregamos demais com tanto serviço, Bridget. Como uma garota tão delicada pode cuidar sozinha de quarenta velhos desleixados?

– Quarenta almas muito queridas e bondosas, isso sim. E todos vocês cuidaram de mim desde que cheguei aqui.

– Parece-me um fardo pesado demais para uma jovem.

Bridget deu a risada que iluminava os corredores, alegrando a vida de seus habitantes.

– Se for um fardo, eu o adoro, irmão Francis. Estou muito contente aqui.

– De qualquer modo, se o irmão Ebert rasgar seu hábito mais uma vez, vou mandá-lo costurar sozinho. Ele está tão orgulhoso de seu fatiador de pão! Não sei qual o problema em arrancar os nacos, como sempre fazíamos.

Bridget sorriu para o monge rechonchudo, que ia embora.

Dissera a verdade a Francis. Não tinha do que se queixar, e gostava demais de estar entre eles, fazendo de tudo para agradá-los.

Algumas vezes, todavia, pouco antes de adormecer, tinha visões do mundo além da fortaleza do São Gabriel. Mas, na manhã seguinte, nem se lembrava daqueles sonhos.

Bridget passou os dedos no tecido rústico e olhou para o fogo da cozinha. Não tinha a menor intenção de conhecer aquele outro mundo, de sair do convento pelo motivo que fosse.

A princípio, Ranulf achou que era mais um pássaro saindo dos arbustos que lhe acertou o pequeno elmo de couro que usava. Não trouxera sua armadura completa para a França. As guerras haviam chegado ao fim, e ele não tinha a menor vontade de lutar.

Quase de imediato, contudo, Ranulf notou que não se tratava de uma ave, mas sim de uma flecha. Antes que conseguisse pegar a espada em sua bainha, viu-se atacado por um bando de homens. Quatro pelo menos, talvez mais.

Tentou se defender com as mãos, fortes como o martelo de um ferreiro. Mesmo antes dos anos das Cruzadas, os três irmãos Brand mediam suas forças em competições amigáveis, sempre ávidos por se destacar entre eles.

Com a intensidade de seus golpes, derrubou de seus cavalos dois dos adversários, mas outro, um homem usando uma armadura preta e braceletes de metal, veio substituí-los.

Ranulf cerrou o punho e acertou o metal, o que lhe causou choques por todo o braço. O sujeito empurrou o braço de sua vítima como se fosse uma mosca varejeira, depois virou-se em sua sela e ergueu a arma.

A última coisa que Ranulf pôde ver foi uma clava com uma bola cheia de cravos na ponta descendo em sua direção, apagando o sol da Normandia.

– O irmão Alois disse que não podemos nos arriscar permitindo que você cuide do homem, Bridget.

           – Que bobagem, irmão Francis! Ele está desacordado faz dois dias. O próprio Deus poderia estar cuidando desse' estranho, e ele nem saberia a diferença. – Bridget terminou de misturar o chá de ervas na caneca e se levantou. – Não se preocupe. Caso o moço comece a recuperar a consciência, correrei para as sombras como uma aranha.

– Sabe que se alguma pessoa de fora descobrir que você mora aqui conosco, seus dias no convento estarão contados.

– Sim, sei bem. Mas isso não acontecerá. Prometo tomar cuidado.

Bridget passou ao lado do monge segurando a bandeja com cuidado para não derramar o chá.

De vez em quando se irritava com a superproteção dos monges, e aquele era um desses dias* Estava certa de que seu dissabor tinha algo a ver com o jovem inconsciente acomodado no quarto reservado aos enfermos. Conseguira olhá-lo de soslaio quando fora trazido pelos irmãos Ebert e Alois, na véspera. Eles voltavam das compras em Beauville quando o encontraram desmaiado.

– Irei com você. – Francis ergueu-se com dificuldade da cadeira.

– De jeito nenhum! Não posso cuidar de um paciente e do meu cozido ao mesmo tempo. Fique sentado aí e mexa de vez em quando com a colher de pau para não grudar no fundo.

O monge olhou para a jovem, depois para a panela.

– Você não pretende... tocá-lo, não é?

– Seria difícil dar chá para uma pessoa desacordada sem tocá-la, não acha?

– Acho melhor acompanhá-la, minha filha, isso sim. Nunca se sabe o que pode acontecer. E se ele atacá-la?

– Ora, Francis! No estado em que o pobre-coitado se encontra, não consegue nem matar uma mosca! Cuide do cozido. Voltarei dentro de alguns minutos, e, se as

cenouras estiverem grudadas no fundo da panela, vou mandá-lo à horta para colher outras.

Com um breve suspiro aliviado, Bridget abriu a porta da cozinha e caminhou pelo pátio em direção aos dormitórios que abrigavam os monges cistercienses do São Gabriel. Quando criança, não podia entrar naquele prédio, mas sua organização e boa vontade lhe haviam garantido o acesso.

Hoje em dia, Bridget cuidava de todo o convento, e usava tanto sorrisos quanto determinação para mantê-lo funcionando com a precisão do relógio d'água inventado pelo irmão Ebert.

Problemas quase não existiam, pois os religiosos a adoravam, mas alguns deles eram um pouco... esquecidos. Era esse o melhor termo, decidiu. Assim, parte de sua rotina consistia em relembrá-los de alimentar os animais, de cuidar da horta, de tirar o pão da semana do forno, dentre inúmeras outras atividades.

Foi até o maior dos quartos. Ao longo das paredes havia dezesseis camas muito bem-arrumadas. Os cobertores estavam dobrados ao pé de cada uma.

Antes de ela tomar à dianteira, os monges nem camas individuais tinham Demorara a conseguir colocar tudo no lugar, mas o asseio e a organização agora faziam parte do cotidiano de todos.

Lembrando-se de sua missão, Bridget seguiu depressa, passando pelos outros dois dormitórios até o aposento mais afastado da construção, onde viam-se dois leitos reservados para cuidar dos doentes. Entretanto, eles não gostavam muito de ser tratados por uma mulher nesses momentos de vulnerabilidade.

O estranho ocupava esse dormitório. Uma única vela, pousada na mesinha ao lado, iluminava o ambiente. Também entrava um pouco de luminosidade pela janela.

Por um momento, Bridget ficou parada à seleira, apenas estudando-o.

Durante todo o tempo em que estivera ali, nenhum noviço entrara no convento, o que significava que o mais jovem dos religiosos que a criara tinha idade suficiente para ser seu pai.

Quando o visitante ferido adentrou as paredes da abadia, os monges a esconderam, impedindo-a de ser vista. Aquela era a primeira vez, notou Bridget, que estava no mesmo aposento com alguém jovem.

O rapaz deitado tão quieto a sua frente não parecia muito mais velho que ela mesma. Na verdade, era a primeira vez que tinha algum tipo de contato com alguém de fora do São Gabriel. Ao mesmo tempo em que a assustava, a idéia a encantava.

A cabeça dele estava cheia de bandagens, e o rosto, pálido nas partes em que não havia sangue. Ele tinha os olhos fechados e olheiras profundas.

Aquele homem não era uma visão das mais agradáveis, mas mesmo assim, fascinante.

O irmão Ebert e o irmão Alois o tinham encontrado destituído de qualquer coisa que talvez pudesse identificá-lo. Fora atacado e abandonado como morto. Coisas assim aconteciam do lado de fora, Bridget sabia, e esse era mais um dos motivos pelos quais se contentava com sua existência tranqüila atrás das paredes do São Gabriel.

O chá começava a esfriar em suas mãos. Bridget foi até a cama e colocou a caneca na mesa ao lado.

O desconhecido estava tão quieto que ela até chegou a pensar que poderia ter morrido. Mas, ao baixar o olhar para seu peito, viu o suave subir e descer de sua respiração. A túnica, branca, mostrava-se toda manchada de sangue, o que a arrepiou. Antes de qualquer coisa, ele precisava de uma boa limpeza.

Decidida, se virou e voltou pelos aposentos dos monges, atravessou o pátio e chegou à cozinha. Assim que a viu, Francis se endireitou na cadeira.

– Eu mexi muito bem o cozido, minha filha. Bridget não lhe deu muita atenção.

– Continue a fazê-lo, Francis, pois o destino do jantar desta noite está em suas mãos.

Então, ela pegou uma panela de ferro e a encheu de água.

– O que está fazendo?

– Preciso de água quente.

– Para fazer mais chá?

– Não, para dar banho no homem.

O pobre monge arregalou os olhos, sem acreditar no que escutava.

– Sim, Francis, ele está imundo. Como podemos cuidar dos ferimentos se nem conseguimos enxergá-los?

– É muito ousado de sua parte querer fazer isso, menina. Por um lado, um banho poderia acabar o que os assaltantes começaram, pois a situação do moço é muito grave. Além do mais, você não pode estar pensando em... – Parou de falar e uniu as mãos sob as longas mangas de seu hábito.

Bridget pegou a panela com a ajuda da barra de sua saia e começou a se afastar.

– Esqueça que falei alguma coisa, Francis. E cuide das cenouras! – gritou ela, do pátio.

Bridget ainda ria da expressão consternada do monge. Não deveria estar se divertindo, mas suas chances de fazer algo fora do comum, quanto mais chocante, eram inexistentes naquela abadia.

Tratava-se de uma aventura, mesmo que estivesse apenas indo limpar um estranho, que, a julgar por sua aparência, estava destinado ao pequeno cemitério atrás da capela.

A vela queimara até o fim, porém, o sol da tarde entrava pela pequena vidraça, iluminando bastante o aposento.

Após um momento hesitando, Bridget endireitou os ombros e foi até o leito. Colocou a panela de água no chão e ajoelhou-se ao lado, ficando com o rosto próximo ao do homem desacordado.

Com a proximidade, Bridget viu os pêlos da barba por fazer em seus traços angulosos. Foi tomada por uma urgência incontrolável de saber qual a sensação de tocá-los e, ao perceber que nada a impedia, esticou o dedo e tocou-lhe o queixo.

A sensação áspera a surpreendeu. Escondeu a mão nas costas como se tivesse se queimado, mas depois repetiu o gesto, mais devagar.

Os olhos fundos eram cobertos por cílios fartos. Fios de cabelos pretos escapavam pela atadura. De que cor seriam os olhos?

Bridget respirou fundo. Pegou um dos panos que trouxera junto, mergulhou-o na água quente e começou a limpá-lo.

O sangue já completava dois dias, por isso teve de esfregar para removê-lo. Seu paciente gemeu e se mexeu, impaciente, mas não acordou.

Quando tirou a atadura, Bridget deparou-se com um corte grande e profundo na têmpora. Após o jantar, voltaria para lhe aplicar um ungüento, mas, por ora, enrolou um pedaço de pano limpo em volta da cabeça. Terminou, então, de limpar o rosto, depois o pescoço. Sem sujeira e sangue, aquele estranho era bem bonito, apesar da palidez.

Tocou a gola da túnica e parou, incerta. Tinha de tirá-la, ainda mais agora. Jogou o pano na água e se levantou.

Seria mais sensato se pedisse aos monges que o desnudassem. Força para a tarefa, sem dúvida, não lhe faltava, pois seus dias de trabalho árduo a tinham tornado mais forte do que muitos dos irmãos. Sua única dúvida era sobre a propriedade do gesto.

Bridget ficou em pé olhando para o paciente por alguns instantes, sem saber ao certo como agir. Ele voltara para seu estupor mortal. Na verdade, não seria muito diferente de limpar o sangue do bezerro que nascera semana anterior.

Assim, reuniu coragem e puxou o cobertor de cima dele e deixou-o no chão. Debaixo da longa túnica, o jovem usava uma calça de lã.

Bridget engasgou. Já vira figuras em livros, mas os únicos homens que conhecia eram os religiosos, sempre escondidos em seus hábitos sombrios. As pernas daquele moço salientavam um grande vigor físico. E no meio delas...

Enrubescendo, Bridget sentiu um nó no estômago. Deveria chamar os monges, pensou ela, mesmo já erguendo a túnica e começando a limpeza.

O peito nu era tão rígido e musculoso quanto as pernas. De repente, ela sentiu a boca seca, e não soube explicar o motivo.

Sem desviar o olhar do corpo do homem, inclinou-se para enxaguar o pano na água que já esfriava. Sim, estava observando aquelas formas, mas quem a repreenderia? Então, espantada com sua própria audácia, Bridget continuou a banhar o misterioso cavaleiro, da cabeça... aos pés.

Ranulf não compreendia por que estava demorando tanto para cruzar o canal. E por que o tinham colocado em um barril durante a travessia, impedindo-o de ver o mar e o céu.

Tentou erguer o braço para abrir a tampa e ordenar que fosse solto, mas não conseguia se mexer. Nenhum membro obedecia a seus comandos. Apenas o barril se movia, acompanhando o vaivém das ondas.

Ranulf achava que estava enjoado, mas não tinha certeza. O que estava acontecendo? Perguntou-se, de repente tomado pelo pânico.

O barril levantou-se de novo, subindo, subindo, mantendo-se no alto por alguns momentos, depois despencando. Sua cabeça latejava de tanta dor. O que havia de errado?

De repente, a tampa do barril se abriu e revelou uma linda mulher loira, que sorria. Tentou chamá-la e pedir ajuda, mas sua garganta não colaborou.

Mais alguns momentos de escuridão e lá estava ela de novo, o anjo dourado. Ranulf tentou falar mais uma vez, mas tudo o que conseguiu emitir foi um gemido, que ecoou pelas laterais do barril. A medida que o som aumentava, o anjo fechava a tampa. Tudo tomou a escurecer.

O irmão Alois, abade do São Gabriel, imaginava que fora o irmão Francis quem banhara o ferido e o vestira com um dos hábitos marrons. Nem Bridget nem Francis tentaram corrigir o superior.

Entretanto, após a sessão íntima com o desconhecido, na véspera, Bridget decidiu que seria melhor que os monges cuidassem dele. Tivera mais uma daquelas noites cheias de sonhos com o mundo exterior. Sonhara ter acompanhado os monges para fazer compras no mercado de Rouen, caminhando livre ao lado deles na estrada, e que todas as pessoas com quem cruzavam olhavam para ela.

Acordou decidida a manter-se distante do hóspede, e ficou firme durante o dia todo, até que Francis veio pedir-lhe ajuda.

– Você comentou sobre seus ungüentos, filha, e acho que poderiam ajudar na cicatrização do ferimento daquele moço. O sangue do pobrezinho deve estar envenenado.

Bridget terminara de arrumar a cozinha após o jantar, e o monge a encontrara pronta para se recolher. Muitos anos antes, o pequeno aposento que hoje era seu refúgio fora uma cervejaria, e o aroma ainda impregnava as paredes de alvenaria.

Mas fazia cerca de dez anos que já dormia ali, desde que os monges determinaram que ela deveria ter um canto só seu. Além da cama, havia uma pequena mesa-de-cabeceira e um armário, construído pelos religiosos, para guardar suas poucas roupas. E um pesado cadeado protegia a porta de madeira.

Não que eles temessem que algum dos membros de sua ordem pudesse cometer um pecado inimaginável que toda aquela proteção sugeria. Mas o irmão Alois lembrara que nenhum deles acreditara que o pai de Bridget também fosse capaz de um ato desses...

– Eu tinha pensado em colocar um ungüento, ontem, mas acabei me esquecendo.

– Quer fazê-lo agora ou prefere esperar o amanhecer?

– Quanto antes, melhor. Vou preparar a pasta e levar até lá.

O irmão Francis olhou para o céu, que começava a escurecer.

– Irei com você.

– Não precisa, irmão. Você está cuidando dele desde o amanhecer. Vá repousar. Demorarei apenas alguns minutos para aplicar o remédio, depois irei dormir.

Após ponderar por alguns instantes sobre o assunto, Francis se virou para partir. Bridget voltou para a cozinha para preparar um dos medicamentos à base de ervas.

Ela começara a estudar as artes da cura anos antes, jogo após a morte de um dos monges de que mais gostava, de uma doença, na verdade, insignificante. Passara quase um mês trancafiada na biblioteca da abadia, e depois convencera os irmãos Ebert e Alois a comprarem-lhe algumas ervas em suas idas ao mercado. Desde então, cultivava as plantas no jardim, e a saúde dos monges do São Gabriel tomara-se excelente.

Ao aproximar-se do quarto do ferido, Bridget sentiu um misto de excitação e medo por saber que o veria mais uma vez.

Entrou pela pequena porta no aposento escuro.

Depois do sóbrio relato do monge, se surpreendeu ao notar que o paciente estava bem melhor do que na noite anterior. Todavia, ao chegar mais perto, viu que a melhora da aparência devia-se à coloração rosada que antecipava complicações e morte. Isso acontecia quando os ferimentos infeccionavam.

A gravidade da condição dele afastou todos os outros pensamentos de sua mente, e Bridget quase nem reparou no corpo perfeito que lavara com tanta curiosidade. Sentou-se ao lado dele e começou a desatar as bandagens de sua cabeça.

Como da primeira vez, o rapaz gemeu ao toque de Bridget. Ela obrigou-se a ignorar o som e aplicou o ungüento, apertando bem para que o medicamento penetrasse em todas as partes do corte.

Sob seus dedos, o couro cabeludo do ferido queimava. Aquele estranho não significava nada para ela, entretanto, se se recuperasse, sua presença na abadia poderia tornar-se perigosa.

Bridget fez uma breve oração para Santa Brígida, abalada com a crueldade da possível morte de uma pessoa tão jovem.

O estranho soltou mais alguns gemidos quando Bridget recolocou a bandagem para manter as ervas no lugar.

– Você precisa lutar, meu caro. Junte os poderes internos de sua alma para ajudá-lo nessa luta contra a morte.

Com suas palavras, o ferido se mexeu. Depois, abriu os olhos azuis e ficou olhando com intensidade para Bridget.

 

                                             CAPÍTULO II

Bridget se assustou e foi para trás, deixando a bandagem cair de suas mãos. Seu primeiro pensamento foi sair correndo, mas, como as folhas do ungüento começaram a deslizar, percebeu que teria de terminar o trabalho e preocupar-se mais tarde com as conseqüências.

Ranulf a olhava sem piscar.

– Você acordou? – perguntou Bridget, sem conseguir respirar direito. – Está se sentindo bem?

Ele não respondeu. Talvez o ferimento o tivesse deixado surdo. Ou não falava francês. Bridget repetiu a pergunta em latim, com o mesmo resultado.

O mais depressa possível, Bridget terminou de colocar a atadura, embora fosse perturbador trabalhar sendo observada. Apesar da pouca iluminação, o brilho dos olhos azuis era intenso.

– Você me entende, senhor?

Não houve sinal de movimento dos lábios secos.

Ela ficou imóvel por alguns instantes, não sabendo o que fazer. Aquelas eram as primeiras palavras que dirigia a alguém de fora do mosteiro, e pelo visto não surtiram nenhum impacto.

Bridget sentiu um arrepio. Quem sabe não teria nascido com uma missão especial, destinada a viver entre dentro do São Gabriel e ser vista e escutada apenas pelos monges? Já lera inúmeros contos de fadas, mas jamais se imaginara parte de um.

Será que o desconhecido a enxergava? Passou a mão na frente dos olhos dele e recebeu uma piscada como resposta. Pelo menos não era invisível para aquele tão belo estranho.

Bridget não conseguiu evitar uma certa decepção por ele não a estar compreendendo. Tinha curiosidade de saber mais a respeito do visitante. De onde viera? O que lhe acontecera?

Levantou-se suspirando. Agora que o homem recuperara os sentidos, na certa não poderia mais receber seus cuidados.

– Anjo... – disse ele, em um sussurro quase imperceptível.

Bridget parou e voltou-se. Terminou de limpá-lo e preparou-se para ir embora, pois não deveria ficar ali de jeito nenhum. Todavia, não conseguindo se conter, ajoelhou-se ao lado da cama.

– Você consegue me escutar?

– Bandidos – disse ele.

– Sim, você foi atacado, é lógico, e a intenção de quem o agrediu, pelo visto, era matá-lo. Estamos cuidando de você com medicamentos à base de ervas.

Gotas de suor começavam a se formar acima de seus lábios. Ranulf tentava engolir, mas parecia uma tarefa difícil.

– Sede...

Bridget pegou a caneca de chá que alguém deixara no chão e levou-a até os lábios de seu paciente. Como ele não conseguiu levantar a cabeça, Bridget deslizou o braço por sua nuca, ajudando-o para que pudesse beber.

– Não beba demais – aconselhou-o. Ranulf deu mais um gole.

– Obrigado, meu anjo.

– Não sou um anjo, mas apenas uma criada.

O fato de poder conversar e ser compreendida por ele a deixava exultante, ainda mais por tratar-se de seu primeiro contato com o exterior.

– Anjo – Ranulf insistiu, agarrando-lhe os braços com dedos fortes. – Ajude-me.

O gesto a assustou, mas Bridget logo se acalmou.

– Não tenha medo, você está em boas mãos. Ninguém o machucará aqui.

– Ajude-me a encontrar... Dragão.

Estaria ele procurando um dragão? Era isso o que escutara? Bridget mordeu o lábio inferior. Lera a respeito desses temíveis animais, mas chegara à conclusão de que tais criaturas monstruosas não existiam.

– Você precisa descansar para se recuperar. Os monges cuidarão de seus ferimentos até que esteja são.

– Diana... – sussurrou ele.

Bridget estava confusa. Talvez ele procurasse uma mulher, não um dragão. De qualquer modo, Ranulf não tinha forças nem para erguer a cabeça, quanto mais para buscar alguém. E essa inquietação não era favorável para sua saúde frágil. Bridget pensou em preparar-lhe um de seus chás calmantes, que às vezes fazia quando o irmão Alois tinha dificuldade para dormir.

– Fique quieto agora. E a melhor coisa a fazer. Encantada com aquele estranho, Bridget não conseguia tirar os olhos de suas feições angustiadas. Ele era tão diferente dos monges! Não se tratava apenas de sua juventude... Existia uma força inerente que o envolvia, característica inexistente nos irmãos tranqüilos do Mosteiro de São Gabriel. De repente, a mão que segurava-lhe o pulso puxou-a para perto dele. Assustada, Bridget caiu sobre o peito firme. Ranulf a envolveu com o braço e, sem dar-lhe tempo para reagir, tocou os lábios dela com os seus.

– Eu o encontrarei, Diana!

Bridget pulou para trás, levando a mão aos lábios úmidos. Abriu a boca para protestar, mas parou quando viu que o visitante voltara a dormir.

Chacoalhou-lhe o ombro, mas Ranulf não respondeu.

As mãos de Bridget tremiam. Sentou-se, tentando recobrar a compostura. O pobrezinho estava fora de si. Era evidente que a tinha confundido com sua mulher, Diana. Não havia outro significado.

Entretanto...

Ela saiu do pequeno aposento para a noite fria, deliciando-se com a brisa suave. O misterioso visitante estava delirando. Era um desconhecido, talvez até um malfeitor. Contudo, fora seu primeiro beijo na boca.

– Você estava delirando, meu filho. A mente das pessoas fica muito confusa quando estamos desacordados – falou o irmão Francis, com sua voz calma.

– Não, eu juro, irmão, havia uma mulher neste quarto, ontem. – Ranulf esforçou-se para sentar-se no leito e olhou ao redor do dormitório.

A idéia era absurda. O religioso lhe explicara que estava dentro de um mosteiro, e era tratado por eles. Todavia, as visões do lindo anjo lhe pareciam tão reais! Assim como os cabelos loiros brilhando à luz das velas.

Ranulf apoiou a cabeça, que latejava, na almofada de palha.

– Eu poderia jurar que ela era real. Francis sorriu.

– Acho que foi uma visão enviada pelo Senhor para auxiliá-lo a superar esse momento tão difícil. Nenhum de nós achou que você sobreviveria, com um ferimento tão grande. Havia muito pus no corte...

As ondas de dor diminuíam aos poucos, com a ajuda da respiração controlada.

– Preciso sobreviver, irmão. Estou em uma missão, e a minha família depende do meu êxito.

Além de outras pessoas. A imagem de Diana quando a vira da última vez, os olhos cheios de lágrimas, veio-lhe à memória. Ranulf a amava mais do que tudo na vida, mas o coração daquela jovem sempre pertencera a Dragão. E Ranulf estava determinado a trazê-lo de volta para ela.

– Pelo jeito, parece-me que é uma missão muito perigosa.

– Não, ninguém sabe que estou aqui. Creio que foi atacado por acaso.

– Eram assaltantes, então?

– O que mais poderiam ser? – Ranulf tentava se lembrar da cena. Era algo distante e não muito claro. – Porém, acho que estavam muito bem vestidos e bem montados para serem ladrões comuns. O homem que me atacou usava uma armadura das mais elegantes.

O monge suspirou.

– Ainda há cavaleiros criminosos nesta região. Trata-se de um triste vestígio dos esforços de libertar lugares sagrados do cristianismo das garras dos pagãos.

As tentativas de Ranulf de lembrar o ataque o estavam deixando tonto. As recordações do anjo loiro eram bem mais agradáveis e, embora parecessem tão reais quanto a palha pinicando-lhe o pescoço, pelo visto não passavam de delírio.

– Então nenhuma mulher cuidou de mim?

– Não, filho. Não há nenhuma mulher aqui no Mosteiro de São Gabriel. – Francis se ergueu para deixá-lo.

Uma vez sozinho, Ranulf continuou lutando contra as visões, tão reais. Recordava ter beijado seu anjo loiro, aqueles lindos lábios vermelhos. Ficou confuso por alguns momentos, achando que estivera de novo com Diana, despedindo-se, prometendo-lhe que não voltaria sem Dragão.

Fechou os olhos, perdido nas recordações. Seu anjo poderia ser um fantasma, mas o toque delicado dos lábios persistia em sua boca.

A maioria das construções do São Gabriel era de pedra, e os telhados feitos em palha pelas hábeis mãos dos monges. Elas formavam um pequeno quadrângulo interrompido em uma das extremidades pelo pátio, que ficava ao lado da igreja.

Isolada em meio ao bosque que distava quase duas horas da cidade mais próxima, Beauville, a igreja não tinha outros paroquianos além dos próprios monges, o que não os incomodava. Sendo assim, não tinham de lidar com uma procissão de sacerdotes enviados pelo bispado local intrometendo-se em seu sossegado cotidiano.

Isso também significava que poucas pessoas apareciam para visitar a região. Desse modo, não percebiam a estranha construção localizada a cerca de um quilômetro a oeste da igreja. Os monges a chamavam de oficina de trabalho, mas o termo não era dos mais adequados pois o local era bem maior que qualquer tipo de estrutura que englobasse a descrição. Era tão alta quanto a torre do sino e, além do estábulo, que abrigava duas mulas, três vacas leiteiras e alguns outros animais, era a única construção do São Gabriel feita de madeira.

Bridget evitava a cabana sempre que possível. Lá os monges desenvolviam suas invenções. A frágil estrutura abrigava os mais variados odores e sons. Entretanto, como Francis não viera informá-la sobre o estado do paciente, a curiosidade a fez ir atrás do monge em seus afazeres vespertinos.

Francis e Ebert vinham passando grande parte do dia na oficina nos últimos quinze dias. Haviam negociado suas tarefas de jardinagem com outros religiosos para poderem continuar a trabalhar na mais nova invenção, um modelo mais requintado do relógio d'água produzido por Ebert.

Bridget era a primeira a admitir que a engenhosidade dos irmãos facilitava sua vida na abadia. Tinha um espeto que virava a carne automaticamente, controlado por um dispositivo localizado na parede da lareira que girava com o calor do fogo. Claro que, antes de o mecanismo funcionar com perfeição, vira vários pedaços de carne arruinados.

Balançou a cabeça ao se aproximar da cabana, e foi recebida pelo barulho de altas marteladas. Abriu uma das grandes portas de madeira e espiou para dentro.

Ebert estava inclinado sobre seu relógio, um aparelho que consistia de pequenas canecas presas em volta de < uma roda. Ele era alto e magro. Mesmo inclinado, ficava mais alto que o irmão Francis.

Quando Bridget entrou, as batidas do outro lado pararam. Vinha de perto do maior orgulho dos monges, uma grande fornalha que eles apelidaram de rajada de labaredas, devido ao ruído peculiar e da intensidade do calor que gerava.

Algumas vezes Bridget se via encantada com os planos dos monges, apesar de toda a determinação de se manter afastada. Naquele dia, entretanto, tinha a mente ocupada com outros assuntos.

– Como está o paciente, irmão Francis? O ungüento ajudou a cicatrizar o ferimento?

O sorriso do monge pareceu um tanto quanto nervoso.

– Acho que até demais, filha. Ele recuperou a consciência pela manhã e ficou me questionando sobre a bela jovem que o tratou durante a noite. Chamou-a de anjo dourado.

Bridget sorriu.

– Há anos tento lhe dizer que sou muito mais santa do que você acha.

– Não devemos brincar com isso, Bridget. Poderia ter sido um grande desastre, mas creio que consegui convencê-lo de que tudo não passou de delírio.

Bridget se entristeceu. Aquilo era tudo o que poderia ser para alguém do lado de fora daquelas paredes. Mas, se seu destino fosse aquele, deveria se contentar e parar de pensar no mundo lá fora.

– Se a febre baixou, devemos mudar o ungüento – disse ela, determinada a não ficar aborrecida.

Ebert endireitou-se, impondo-se ao lado de seu colega e de Bridget.

– Francis está certo, minha filha. O estranho não deve vê-la de novo. Não seria uma atitude sábia, Bridget.

– Prepare o ungüento, e eu o aplicarei no moço – Francis propôs.

Bridget sentiu uma pontada de ressentimento. Pensara no estranho o dia todo, e agora lhe parecia injusto ter de se esconder da pessoa de quem cuidara com tanta dedicação.

– Gostaria de ver o progresso da cicatrização com meus próprios olhos. Assim, vou saber quais ervas usar.

Os dois a olharam com seriedade.

– Você não pode ir lá de jeito nenhum, minha filha – disse Francis, com gentileza. – Eu lhe farei um relatório completo sobre o andamento da situação.

Ela mordeu o lábio. Os monges do outro lado da oficina escutavam a conversa. Algumas vezes era difícil distinguir os irmãos de longe, devido aos hábitos idênticos, mas sempre reconhecia o irmão Cirilo. Não era tão gorducho quanto Francis, nem tão alto quanto Ebert, mas havia alguma coisa diferente nele, na maneira como se movimentava, sua energia e firmeza.

A maior parte dos frades se mostrava relaxada e contente, mas Cirilo parecia estar sempre se movendo com impaciência de uma tarefa para outra. Bridget achava que o dinamismo dele ajudava a animar os outros a realizarem seus afazeres.

Cirilo e dois outros religiosos trabalhavam em cima da grande fornalha, e ela sabia que de nada adiantaria incluí-los no debate. Os monges eram muito unidos para protegê-la dos perigos.

– Ele está desacordado, Francis? Falou alguma coisa?

– Sim, disse que se chama Ranulf.

– É um nome saxão.

– Sim, o jovem é inglês.

Um arrepio de excitação percorreu o corpo de Bridget. Além de ser de fora da abadia, o homem não era da Normandia! Tinha viajado, atravessado o oceano...

A vontade de vê-lo e de conversar com ele aumentou ainda mais. Uma ou duas horas na companhia daquele misterioso Ranulf lhe ensinaria mais do que um mês trancada na biblioteca do mosteiro, Mas estava fora de cogitação ficarem conversando. Pelo menos poderia tomar a vê-lo.

– Prefiro ver o ferimento sozinha, irmãos. Esperarei até Ranulf estar dormindo, depois entrarei no quarto e trocarei a bandagem. Se eu tomar cuidado, não acordará.

– E um risco muito grande. Ainda mais em se tratando de um desconhecido.

– O pobre também é filho de Deus, não é, Ebert? Francis? – Bridget apelou para o monge que sempre cedia a seus apelos.

– Sim, mas...

– Sendo assim, merece o mesmo cuidado que qualquer pessoa. Não é o que dizem as Regras?

Embora todos os passos da existência cisterciense fossem regidos pelo conjunto sagrado de leis chamado Regras, nenhum dos monges do São Gabriel sabia com absoluta certeza o que a proclamação continha.

Francis e Ebert trocaram olhares perturbados, e Bridget aproveitou-se da vantagem.

– E assim, posso afirmar. Já li mais de uma vez o documento e, como filha devota desta abadia, mesmo que não de forma oficial, é meu dever ser fiel às normas impostas. Irei examinar o Ranulf bem tarde, quando estiver dormindo pesado. Se acordar, ele pensará que seu anjo veio visitá-lo outra vez.

– Filha, não podemos... – começou Francis,

– Combinado – interrompeu-o, e, antes que os dois a contrariassem, Bridget deu-lhes as costas e deixou a cabana.

Henri LeClerc, barão dos castelos de Darmaux e Mordin, estava sentado na sala onde recebia as pessoas, em seu castelo de Darmaux. Olhava para o homem a sua frente como se fosse um inseto que saíra de uma das fissuras da parede.

– Eu não lhe disse para matar o sujeito, Guise. – Sua irritação evidente. – Pedi que descobrisse por que estava em busca do Mosteiro de São Gabriel.

Charles Guise, xerife de Beauville, não se incomodou com o tom mordaz do barão.

– O senhor tinha razão, milorde. O homem é um grande lutador. Mostrou mais resistência do que esperávamos, então, achei melhor acabar com sua vida de uma vez.

– Achou melhor? – LeClerc levantou-se e caminhou até o xerife, até que seus olhos violeta estivessem a poucos centímetros dos de Guise. – Você não trabalha para mim para pensar, Guise. Agora não sabemos por que esse cavaleiro estava aqui, nem quanto sabia sobre o mosteiro!

O xerife encarou LeClerc,

– Como eu disse, aquele era um guerreiro. Poderíamos não ter conseguido trazê-lo vivo.

– Cinco homens contra um cavaleiro sem armas? Pelo visto, só tenho incompetentes trabalhando para mim, a começar por você!

Gotas de saliva das veementes palavras do barão acertaram o rosto de Guise, mas o xerife pareceu não notar.

– Sinto muito, senhor, pelo aborrecimento. LeClerc bufou, exasperado, e voltou a sentar-se em sua cadeira.

– Acho melhor conversarmos com nosso amigo sagrado do mosteiro, para descobrir se ele sabe o motivo de o guerreiro estar procurando o São Gabriel.

– Ainda falta pouco para nosso encontro mensal, e nós lhe prometemos não chegar perto de lá.

– Não sei como você vai fazer, mas encontre uma maneira de falar com ele.

– Como desejar, milorde.

– O que fez com o corpo?

Pela primeira vez, Guise mostrou-se incomodado.

– Acho que... saiu do lugar, milorde.

Os olhos de LeClerc se estreitaram, mostrando toda sua fúria.

– Saiu do lugar – repetiu, com calma.

– Sim, milorde. Depois do combate, nós fomos embora, mas, na metade do caminho, ponderei melhor sobre o assunto e mandei alguns homens de volta para cuidarem do morto. Só que ele não estava mais lá.

Toda a raiva desapareceu das feições do barão.

– O que significa, meu caro xerife, que você não tem nem certeza de que o homem morreu.

– Sim, ele está morto. O golpe que dei na cabeça não deixa a menor chance de sobrevivência.

– Quero que o encontre. Guise.

– Sim, milorde. – O xerife fez uma reverência.

– Sugiro que seja rápido.

As mãos de Guise começaram a suar.

– Como quiser, milorde.

Fora mais fácil sonhar com uma visita ao paciente do que realizá-la, concluiu Bridget, parada no corredor próximo à porta do quarto de Ranulf.

E se ele não estivesse dormindo? E se acordasse e percebesse, dessa vez, que não estava diante de um anjo, mas sim de uma mulher de carne e osso?

E se a confundisse outra vez com a misteriosa Diana e tomasse a tentar beijá-la? O pensamento causou-lhe forte rubor.

Com o ungüento quente esfriando em suas mãos, respirou fundo e entrou no dormitório.

A vela fraca iluminava um pouco as feições abatidas sobre a cama. Bridget ficou aliviada ao ver que, além de dormir pesadamente, seu paciente estava ruborizado devido a seu estado febril. Portanto, seus cuidados poderiam, mais uma vez, ser confundidos com um sonho.

Sentou-se ao lado de Ranulf. Apesar da febre, parecia estar melhor. As olheiras já não eram mais tão profundas.

Os livros haviam lhe ensinado que os saxões eram um povo vigoroso. Tinha certeza de que aquele homem se mostraria muito valente, se preciso fosse. A energia se evidenciava na linha de seu maxilar e no poder de seus ombros largos.

Bridget estudou seus lábios carnudos. Aquela boca não se mostrara feroz, mas sim carinhosa e quente.

Afastando o pensamento, endireitou as costas. Não tinha nada de ficar rememorando o beijo. Então, começou a desenrolar a bandagem ao redor da cabeça dele. Ranulf gemeu e entreabriu os olhos.

– Quietinho... Está tudo bem. Vim aqui para ajudá-lo a melhorar.

– Meu anjo dourado...

– Sim, é seu anjo que está cuidando de você. Feche os olhos e tente dormir.

Mas Ranulf a desobedeceu.

– Você não é Diana.

– Diana é sua esposa?

– Ela será... a esposa de Dragão – Ranulf respondeu, com certa dificuldade.

– Não, não sou Diana. E não há dragões aqui. Fique sossegado, pois está a salvo, no mosteiro. Vamos cuidar de você até que se recupere.

– Anjo...

– Posso ser seu anjo, se quiser. – Bridget colocou o medicamento no lugar e enrolou a nova atadura. – Agora está bem melhor, não?

– Quem é você?

– Achei que já tínhamos decidido. Não falou que sou seu anjo?

Ranulf estudou-lhe as feições por alguns instantes. Depois, baixou o olhar para a gola do vestido, que escondia o delicado e alvo pescoço.

– Sim, mas me enganei. Se o céu tivesse anjos como você para oferecer, minha linda, os homens estariam correndo para chegar até aqui.

De repente, Bridget achou que era ela quem estava com febre, tamanha a quentura que sentia.

– E a prova disso é que anjos não ficam vermelhos. O comentário foi tão absurdo que Bridget não conseguiu evitar o riso.

– Como sabe disso? Não me lembro de tal proibição nas Escrituras.

– Eles são criaturas sagradas e não sofrem de fraquezas humanas, como constrangimento ou vergonha, que é o que colore esse lindo rosto.

Aqueles não eram os comentários de um homem delirante, percebeu Bridget, apesar de seu rubor febril. O estranho a sua frente mostrava-se em seu mais perfeito juízo e bastante ciente de sua presença.

Ela levantou-se depressa, deixando a bandagem usada cair ao chão.

– Peço-lhe que feche os olhos e durma, senhor. Amanhã cedo se recordará de ter recebido os cuidados de um anjo. E, se recordar de alguma outra coisa sobre nosso encontro, peço-lhe que guarde-a consigo.

Ranulf esticou o braço para pegar a mão dela.

– Não vá, por favor. Seja meu anjo, então. Prometo que não farei mais perguntas. Fique mais um pouco comigo.

Em vez de sair correndo, Bridget permitiu-se ceder e sentar-se outra vez, junto daquele moço encantador.

– Preciso ir embora. E você tem de descansar. Pela primeira vez, Ranulf esboçou um lindo sorriso que a fez perder o fôlego.

– Ah, bela jovem, os sábios dizem que ficar diante da beleza pode ser uma cura mais poderosa do que qualquer medicamento à base de ervas.

– Quem falou tamanho absurdo?

– Minha avó Ellen. E ela cura o povo de Lyonsbridge há mais de cinqüenta anos.

Apesar de conhecer os riscos que corria conversando com Ranulf, Bridget não sabia o que fazer para controlar sua curiosidade.

– Lyonsbridge? É lá que você mora?

– Sim. Fica na Inglaterra, mas minha avó nasceu e cresceu aqui na Normandia.

Bridget tentou imaginar essa senhora normanda. Como seria viajar para um país desconhecido, construir um lar e formar uma família?

– Sua avó é curandeira?

– Ela cuida do povo como senhora da propriedade que é. Os olhos de Bridget se arregalam, evidenciando seu espanto. Então aquele jovem deitado naquela simples cama, abandonado e indefeso, não era um errante, mas neto de um lorde. Isso significava que decerto viriam a sua procura. Se ela e os monges não o ajudassem a se recuperar rápido, logo alguém chegaria para buscá-lo.

Bridget se ergueu.

—Você falou demais, milorde. Peço, por favor, que durma.

– Não sou lorde, meu anjo. Meu nome é Ranulf Brand. E, como já estabelecemos que você não faz parte do exército celestial, também gostaria de como se chama.

Bridget não podia dizer como se chamava. Fora das paredes do Mosteiro de São Gabriel, ela não tinha nome. Na verdade, nem existia.

– Por que não quer me dizer?

Em resposta, Bridget se virou e saiu do quarto.

 

                                       CAPÍTULO III

Como uma mariposa atraída pela luminosidade do fogo, Bridget estava obcecada com um desejo perigoso de ver Ranulf mais uma vez. Queria fazer-lhe perguntas sobre a travessia do oceano, sobre sua terra natal, Lyonsbridge.

Já podia imaginar tudo o que Ranulf tinha a lhe contar sobre a vida fora do mosteiro. Mas os monges guardaram segredo sobre sua presença ali todos aqueles anos. E ela não se atreveria a se expor.

Portanto, não veria Ranulf de novo, disse a si mesma, enquanto realizava as tarefas matinais. Não chegaria nem perto dos dormitórios dos monges até que ele estivesse bem longe dali.

Entretanto, não conseguia se livrar da lembrança dos olhos azuis e do sorriso provocante. E as palavras dele ecoavam em seu íntimo.

Por volta do meio-dia, Bridget desistiu de se concentrar no trabalho e se pôs a caminhar pelo pátio até a igreja. Sua consciência lhe dizia para passar o resto do dia de joelhos implorando o perdão de Deus por ter sido tão ingrata com a existência que lhe fora destinada.

Mas, ao se aproximar da capela, mudou de idéia e foi para a construção ao lado, que guardava a coleção de manuscritos da abadia. Como de costume, não havia ninguém na biblioteca.

Era uma pequena coleção, comparada às dos grandes mosteiros da Europa, mas continha os textos religiosos esperados. Os monges limpavam as publicações todos os meses, mas quase não as liam.

Os irmãos do Mosteiro de São Gabriel se interessavam mais por volumes científicos, que ficavam na cabana de trabalho, onde o acesso a eles era mais fácil. Mesmo assim, não cultivavam o hábito da leitura, pois essas publicações serviam apenas para consultas.

Algumas vezes, Bridget achava que a biblioteca era seu santuário particular. Lera cada um dos livros várias vezes, mas sempre voltava para uma prateleira que abrigava volumes impróprios para a leitura dos monges.

Tinha quase quinze anos quando se atrevera a folheá-los pela primeira vez. Tendo começado, entretanto, os livros passaram a ser seus favoritos. Lera o trágico mito grego de Orfeu, que viajara até o fim do mundo para encontrar sua Eurídice. Suspirava com a beleza dos poemas de amor de Ovídio. Mas o que mais a fascinava eram as fábulas do grande rei inglês, Artur, e seus destemidos cavaleiros.

Tirou o exemplar da prateleira e começou a lê-lo, embora já conhecesse quase toda a história de cor.

Será que Ranulf era um cavaleiro? Os monges o haviam encontrado sem nada, mas, se fosse de família nobre, decerto estaria viajando a cavalo.

Tinha a força de um guerreiro, concluiu Bridget, enrubescendo ao recordar a noite em que tirara sua túnica ensangüentada, revelando o corpo perfeito.

Seu olhar percorria o texto com avidez. Lancelote tinha saído do continente com destino à Inglaterra para juntar-se à fabulosa corte do rei Artur. Lá, encontrara o amor na bela Guinevere.

Agora, Ranulf, seu cavaleiro, viera da Inglaterra para o continente com sua nobre missão. Será que ele também encontraria o amor? Bridget sorriu da própria fantasia. O homem hospedado no mosteiro e usando um dos hábitos dos monges não tinha nada a ver com o lendário Lancelote. E uma pobre jovem educada em um esquecido convento não poderia jamais possuir a mais remota semelhança com a famosa rainha inglesa.

– Bridget! Você está aí?

O irmão Francis interrompeu seus devaneios. Rápido, ela fechou a capa de madeira do grande livro e guardou-o no lugar.

– Sim, estava estudando – respondeu, pulando do banco e indo até a porta, para que o monge não descobrisse o que tanto a encantava.

A expressão dele era séria, e o primeiro pensamento de Bridget se dirigiu a Ranulf.

– O homem piorou? – quis saber, alarmada. – A febre aumentou?

– Não, Ranulf já está melhor. Esse é o problema. Está em pé, jurando a Alois que pretende procurar em todos os cantos do mosteiro a adorável enfermeira que o curou.

– Você lhe disse que eu fazia parte do delírio?

– Sim, sua pequena causadora de confusões! Só que agora Ranulf está muito seguro de si. Não quer saber de me ouvir.

Francis meneou a cabeça, em reprovação.

– Eu avisei que seria tolice ir até o quarto dele de novo, Bridget.

– Então terá de lhe dizer que eu sou uma criada que veio de Beauville para ajudá-los a tratá-lo. E mande-o procurá-la na cidade.

– Mentir para...

– Perdoe-me, irmão, mas quantas mentiras você já contou para manter minha presença aqui em segredo? Uma a mais, uma a menos, não fará diferença.

– Vou pensar no assunto. Agora, vamos falar com Alois. Bridget franziu a testa. Alois era um homem muito bom, mas não tinha o menor senso de humor. Sabia que a reprimenda dele seria bem mais severa do que a de Francis.

– Ranulf falou que eu salvei sua vida, Francis.

– Eu sei minha filha. Todos nós sabemos que seus medicamentos operam maravilhas, mas não foi isso o que causou a preocupação do irmão Alois.

– O que foi, então? Francis baixou os olhos.

– Aquele homem... o... O paciente está dizendo que beijou você.

Além do irmão Alois, Cirilo e Ebert a esperavam para conversar. Bridget imaginou que encontraria o irmão Ebert, pois era quem tinha o maior contato com o mundo exterior. Fora ele quem achara Ranulf na estrada, ao voltar das compras.

Sempre que os monges precisavam de algum artigo que não podiam cultivar ou criar sozinhos, Ebert ia até Beauville. Em geral era algum item para as invenções dos monges.

Os três aguardavam-na sentados lado a lado na pequena sacristia. Usavam hábitos idênticos, uma vez que Alois se recusara a diferir dos outros, usando o hábito de abade.

Bridget sabia que não tinha nada a temer, todavia, estremeceu ao vê-los ali.

Francis ficou junto dela quando Bridget parou na frente deles.

– Minha filha, está sob nossa responsabilidade durante todos esses anos, e os monges deste mosteiro juraram protegê-la e cuidar de você como uma verdadeira filha.

– Eu sei irmão Alois, e sinto muito se causei...

Alois ergueu a mão.

– Não é culpa sua, Bridget. Mas sim nossa, por não ter percebido como seria difícil mantê-la longe de tudo, agora que você se tomou uma... uma mulher.

Bridget já fora chamada à presença dos monges várias; vezes por motivos menores, mas percebia que algo de diferente nessa audiência. As expressões deles eram sérias demais, o que lhe causou um certo medo.

– Sinto muito – murmurou.

O irmão Ebert inclinou-se para frente.

– Você tem alguma coisa para nos contar, Bridget? Esse homem, o estranho, fez alguma coisa que...que ...

Ele parou de falar. Nem o irmão Ebert, que tinha mais contato com o mundo, conseguia dizer o que o atormentava.

Bridget sentiu um aperto no peito. O que Alois dissera era verdade. Os monges a haviam protegido e educado como se fosse filha deles, mas em algum momento os papéis se inverteram, e agora eles pareciam ser os filhos.

Conhecia muito pouco sobre a vida, mas, graças aos livros, Bridget tinha bem mais noção do que podia acontecer entre um homem e uma mulher. Era evidente que os monges estavam preocupados, e que também não tinham a menor idéia de como comunicar o medo ou o amor que inspiravam tanto cuidado.

Desejou poder abraçar cada um deles, mas esse gesto, claro, era proibido pelas Regras. Tentou, então, colocar seus sentimentos em um sorriso.

– Parem de se preocupar comigo. Não aconteceu nada entre mim e o visitante. Talvez eu tenha errado em querer cuidar dele, mas agora é tarde demais para arrependimentos.

Cirilo batia o pé no chão, nervoso.

– Ela disse que não aconteceu nada. O que mais querem da menina? – inquiriu, impaciente. – Façam-na jurar que não o verá mais, e vamos terminar logo com essa reunião.

Era raro Bridget ver Cirilo fora da oficina, o que a fez imaginar que estava ansioso para retomar a seus afazeres.

Ebert assentiu com um gesto de cabeça, mas Alois não se mostrava muito confiante.

– Como abade, preciso ter certeza.

Francis, que continuava ao lado de Bridget, se pronunciou pela primeira vez:

– O homem estava ardendo em febre, irmãos. Ele não se lembra nem do que o deixou nesse estado. Além disso, logo não estará mais aqui. Portanto, a meu ver, não há necessidade de prosseguir com esse interrogatório.

– Você promete, Bridget? – Alois, por fim, concordou.

– Sim, juro que ficarei bem escondida até que vá embora.

– Está bem, minha filha. Não se toca mais no assunto. Os três freis se levantaram e suspiraram aliviados.

Em seguida, saíram da saleta em silêncio.

Ranulf estava na ponta da cama, segurando seu pesado cinto de tecido.

Os ladrões que o assaltaram, se é que eram ladrões, agiram com tremenda impaciência, ou estupidez. Levaram seu cavalo, suas armas, suas roupas, até mesmo suas botas, mas deixaram a pequena fortuna escondida em sua túnica debaixo. E o monge lhe entregara o cinto intacto. Para um homem que apanhara quase até a morte, Ranulf tinha bastante sorte.

– Qual é distância daqui até essa cidade, irmão? – perguntou a Francis. – E como a jovem se chama? Gostaria de ir até a casa dela para agradecer-lhe e compensá-la por tudo o que fez por mim.

– Ela não o receberá, senhor. É melhor deixar as coisas como estão. A única recompensa que nos interessa é sua saúde. Agora que a febre passou, não deve demorar muito para que recobre suas forças e possa continuar com o que veio fazer aqui.

Ranulf ainda não estava pronto para contar ao monge que seus negócios começavam naquele mosteiro. Teria de se recuperar por completo e estar com as idéias em ordem para poder começar a fazer perguntas sobre Edmund.

– Aprecio tudo o que fizeram por mim, irmão, mas creio que foi o ungüento que me salvou a vida. Não pretendo ir embora sem expressar minha gratidão.

Francis suspirou.

– Beauville fica longe daqui, sir Ranulf. E você ainda não está forte o suficiente para a viagem.

A cabeça dele continuava dolorida, mas sua mente readquirira a astúcia. Algo na entonação do frei o confundia.

– Se a moça mora tão longe daqui, como estava cuidando de mim no meio da noite, irmão?

– Quem disse que era noite? Ela vem perto da hora do almoço.

Ranulf olhou para a minúscula janela, que permitia a entrada de um raio de luz no dormitório. Será que estivera tão atordoado a ponto de não saber se era dia ou noite? Ou noite e dia eram a mesma coisa naquele país estrangeiro?

– Ela me tratou à luz de velas. Lembro-me com perfeição.

– Seu estado não lhe permitia recordar-se de fato algum com perfeição, meu jovem. Agora, acho que está na hora de se deitar e tentar dormir um pouco, caso não queira voltar a delirar.

Ranulf olhou para Francis, depois para o dinheiro em sua mão.

– Devo confiar-lhe o que possuo para que fique seguro? Francis caiu na risada.

– Não precisa se preocupar com ladrões dentro das paredes do São Gabriel. Sua riqueza não vale nada para nós.

Ranulf balançou a cabeça, maravilhado. Nunca encontrara homens assim antes. Os religiosos que haviam cuidado dele se mostravam bastante satisfeitos com seu destino. Pareciam não possuir nenhuma das falhas dos simples mortais: ganância, ambição, desejo.

Colocou o pesado cinto no chão ao lado do leito.

– Vou deixá-lo aqui, por enquanto, mas, se sua sagrada irmandade não tiver nenhum interesse por meu ouro, aposto como minha enfermeira encontraria um bom uso para algumas dessas moedas. Não desisti de procurá-la. Assim que puder montar, irei atrás do meu anjo dourado.

– Aqui no convento você encontrará apenas mulas.

– Sem problemas, não me importo em ir de mula. – Sorriu. – Não monto uma desde criança, mas não desdenharei a besta, se ela me levar aonde quero ir.

– Dizem que são animais bastante estáveis. Qualquer hora, irei dar um passeio de mula.

Ranulf engoliu uma gargalhada ao imaginar o monge rechonchudo em cima do pequeno animal.

– Talvez possamos ir à procura da criada juntos, quando eu estiver melhor, irmão.

– Quem sabe? Trate de dormir. Quanto mais cedo recuperar suas forças, mais rápido poderá continuar seus negócios.

Assentindo, Ranulf recostou a cabeça no colchão. Tinha a impressão de que o religioso estava louco para se livrar dele, e mais ainda para evitar questões relacionadas à bela jovem que viera duas vezes àquele quarto.

Havia algo de esquisito na história sobre a criada da cidade. E era noite quando a vira, tinha certeza absoluta. Só não compreendia por que tantas evasivas dos monges.

Mas dentro em breve descobriria. Queria começar a perguntar sobre Dragão, porém fazia três anos que não tinha notícias do irmão...

Então não faria diferença esperar alguns dias a mais, enquanto tentava solucionar a charada da misteriosa mulher que o curara.

Como era bom sentir o sol em seu rosto, pensou Ranulf. Ainda mais depois de ter estado tão próximo da morte.

– Diga, onde está a magnífica mula que prometeu me emprestar, irmão? – perguntou ele, caminhando lado a lado de Francis.

– Tem certeza de que está pronto para cavalgar? Seu ferimento ainda é recente, e não cicatrizou por completo.

– Sim, mas minha mente poderá apodrecer se eu não sair um pouco daquele quarto. Vou experimentar montar por alguns minutos.

Ranulf trouxera Trovão, seu garanhão preto, por toda a travessia só para tê-lo roubado por assaltantes. A perda doía mais que o machucado.

– Pelo menos nossas mulas não lhe trarão problemas.

Elas são velhas e preguiçosas, já tiveram nomes um dia,mas hoje as chamamos de Tartaruga e Caracol.

Os dois continuaram, rindo, até alcançar a porta do estábulo.

– Qual é qual? – quis saber Ranulf.

Francis ia responder, mas parou quando escutaram um barulho na direção da entrada dos fundos.

A visão de Ranulf ainda não tinha se ajustado ao ambiente sombrio, mas ao olhar para o suave raio de sol que entrava avistou uma figura esbelta esquivar-se e desaparecer.

– Esta é Tartaruga – respondeu Francis, virando Ranulf para a baia da direita.

Ele voltou-se para verificar de novo a porta. Podia quase jurar que a figura que vislumbrara fugindo era de uma mulher.

– Minha enfermeira veio me visitar da cidade, irmão Francis?

– Não, ela não vai voltar, agora que você já está bem.

– Achei ter visto...

– ...o cocheiro? Ele vem limpar o estábulo, de vez em quando.

– Achei que você tinha me dito que os monges faziam todo o trabalho aqui. – Ranulf franziu o cenho.

– Sim, quer dizer... é que... A não ser por esse garoto. Ele mora em uma fazenda aqui perto, e sua família é muito pobre.

Apesar da pouca experiência, Ranulf achava que as pessoas ligadas à Igreja eram honestas, mas mais uma vez teve a impressão de que o agradável Francis estava lhe faltando com a verdade. Podia jurar que a pessoa que vira tão de relance era a jovem que procurava.

Observou as duas mulas e não as achou tão abomináveis quanto a descrição do monge, mas não tinha como compará-las a Trovão. Uma das duas o levaria até a cidade, onde compraria um cavalo novo e algumas armas.

Ranulf sentiu-se um pouco tonto ao montar Tartaruga, mas logo recuperou o equilíbrio. Uma breve caminhada ao redor do estábulo era tudo de que precisava para se assegurar de que podia montar de novo. Entretanto, ainda não estava cem por cento recuperado, pois se cansou demais.

Decidiu esperar mais um ou dois dias, ao devolver o animal para Francis. Nesse ínterim, tentaria descobrir por que o monge mentia sobre o lindo anjo noturno que viera ajudá-lo.

Não conseguia acreditar que tudo aquilo fora um sonho. Lembrava-se muito bem de tê-la beijado.

Bridget correu para trás das construções da abadia e entrou na cozinha, ofegante. Escapara por pouco. Prometera ficar bem escondida enquanto o estranho estivesse no mosteiro, mas quase o encontrara.

– Como eu poderia imaginar que Francis o levaria ao estábulo? – pensou em voz alta, dirigindo-se ao gato deitado ao lado do fogão.

O animal bocejou e logo voltou a dormir.

A princípio, Bridget achou que se tratava de um dos monges. Ranulf ainda usava o hábito que lhe colocara na primeira noite. Porém, alguns segundos depois, percebeu que se enganara. Mesmo por trás da roupa, reconheceu os ombros largos e braços fortes do visitante. E o hábito terminava na altura das canelas, pois era mais alto do que todos os irmãos do São Gabriel, sem contar Ebert.

Ergueu o jarro da mesa e serviu-se de um pouco de água, no intuito de controlar a irritação. Sabia que os irmãos só estavam preocupados com seu bem ao ordenar-lhe que ficasse longe de Ranulf, mas detestava ter de fugir como um coelho assustado.

– Qual o problema de alguns minutos de conversa com o rapaz? – perguntou para o gato, que a fitou com seus olhos arregalados. – Logo ele irá embora e nem se lembrará de minha existência.

O animal continuou a fitá-la, como se estivesse esperando que mais algum ruído interrompesse sua sesta matinal. Mas o silêncio fez com que esticasse as patas e adormecesse outra vez.

Os monges do São Gabriel tinham uma relação de tarefas, como cozinha, jardim, manutenção, animais, que iam alternando, para que todos fizessem um pouco de cada coisa.

Bridget organizara o sistema e ajudava em quase tudo, mas cuidar dos animais não constava de sua lista de atividades. Entretanto, tinha o costume de verificar o estábulo todos os dias, para certificar-se de que tinha sido bem limpo.

Os lapsos não aconteciam devido à preguiça ou falta de vontade. Entretanto, como os monges passavam grande parte do tempo distraídos com suas invenções, não era de se espantar que se esquecessem dos afazeres rotineiros.

A repentina chegada de Francis e Ranulf a impedira de fazer a ronda matinal. Um dia não faria diferença, mas, quando terminou de arrumar a cozinha após o jantar, Bridget decidiu dar um passeio até a estrebaria antes de se recolher.

O longo crepúsculo da primavera começava a sumir quando ela abriu as pesadas portas. Pedaços do céu rosado podiam ser vistos pelas duas aberturas no teto da grande construção, mas o interior estava mais escuro que o normal. Deveria ter trazido uma lamparina. Uma lufada de vento causou-lhe um arrepio.

O estábulo estava bem mais quieto do que durante o dia. Alguns dos animais já dormiam.

As duas mulas colocaram a cabeça para fora das baias quando Bridget passou, mas logo perderam o interesse ao notar que não ganhariam as cenouras que ela costumava lhes trazer.

Foi até a ilha central, onde ficavam as vacas, depois até as galinhas. Tudo parecia na mais perfeita ordem, e o zênite estava quase escuro.

Afastando o desconforto, decidiu ir embora.

De repente, alguém segurou-a pelo braço.

– Boa noite, meu anjo.

Bridget arregalou os olhos, e seu coração parou de bater por alguns instantes. Ao se virar, deparou-se com o encantador semblante de seu paciente inglês.

 

                                       CAPÍTULO IV

Bridget engasgou, ao deparar com os olhos azuis de Ranulf, que mostravam divertimento.

– Você vem cuidar dos animais à noite, como faz com enfermos, minha linda?

Ela abriu a boca para falar, mas a poeira do estábulo fechou sua garganta.

– Eu... Eu...

O sorriso dele sumiu de seus lábios assim que viu a expressão aterrorizada de Bridget.

– Acalme-se, meu anjo. Não foi minha intenção assustá-la. Faz dois dias que a estou procurando para agradecer por tudo o que fez por mim. Devo-lhe minha vida.

– Não foi nada. Preciso ir. – Tentou se soltar, mas Ranulf a segurava com firmeza.

– Prometo que não vou machucá-la, cara jovem. Não fuja de mim outra vez.

As advertências dos monges sobre o que lhes aconteceria se alguém descobrisse que uma mulher vivia entre eles retumbavam na cabeça de Bridget. O perigoso jogo que brincara com o estranho se tomara uma ameaça. Suas quase perfeitas condições de saúde lhe diziam que não poderia mais usar a desculpa de estar sonhando.

– Você não compreende. Por favor, solte-me – Bridget implorou.

Durante mais alguns momentos, os dois sustentaram os olhares. O de Bridget, angustiado, o dele, confuso. Então, Ranulf atendeu ao pedido aflito e a soltou. Sem demora, ela saiu correndo do estábulo, desaparecendo na escuridão.

Ranulf ficou ali parado, pensando no que acabara de acontecer. Pelo menos tivera resposta para uma de suas perguntas. A moça existia, era real. Não segurara o braço de uma aparição, e sim de uma mulher de carne e osso.

As lindas feições que vira, onde se via tanto espanto, pertenciam a uma moça belíssima, cheia de sardas no nariz arrebitado e com um leve rubor nas faces. Os lábios que um dia tocara com os seus no auge de sua febre eram vermelhos e carnudos.

Um tanto atordoado, Ranulf percebeu que seu rápido encontro com a misteriosa mulher tinha mexido com seus sentidos, deixando-o estremecido, com uma sensação muito próxima do desejo.

Nunca fora de cortejar ou se envolver com mulheres. Na verdade, durante as Cruzadas, sentia nojo dos companheiros que iam atrás de prostitutas para satisfazer suas necessidades físicas. Não que os reprimisse, porém aquele tipo de comportamento não fazia parte de seu cotidiano.

Preferia concentrar-se em outras coisas. Embora jamais tivesse admitido a ninguém, costumava usar as visões da noiva prometida de Dragão, Diana, quando o cansaço da guerra o fazia ansiar por imagens mais temas do que mulheres e sua casa.

E o mais engraçado era que a beleza etérea de Diana de repente parecia-lhe insignificante diante da lembrança da jovem que encontrara no estábulo.

Ranulf olhou ao redor. A noite caíra, e os animais dormiam em silêncio. Quase não conseguia distinguir as formas, no escuro.

Começou a caminhar em direção à saída, a mente fervilhando com inúmeras perguntas. Por que a moça fugira daquele jeito? Do que tinha tanto medo? E por que o irmão Alois mentira a seu respeito?

Alcançou o pátio e estreitou os olhos para conseguir enxergar entre a neblina. Nenhum sinal de sua linda enfermeira.

Em um dos cantos do quadrado havia uma capela cora o cemitério atrás. A sua esquerda ficavam os dormitórios dos monges, e à direita, a cozinha. E a pequena construção atrás? Teria ela ido para lá?

Ranulf continuou a andar no meio do pátio. O pequeno casebre não possuía janela, e não havia nenhum sinal de iluminação saindo pela fresta da porta. Se seu anjo dourado tivesse entrado ali, estaria sentada no escuro.

Cabisbaixo, Ranulf suspirou. Não tinha forças para procurá-la por todo o mosteiro, muito menos à noite. A mulher que o salvara continuaria a ser um mistério por pelo menos mais um dia. Mas não desistiria de encontrá-la.

– Bridget, é muito perigoso para você continuar aqui agora – informou Alois, com toda a calma, diante dela, sentada em sua cama, entregue ao mais profundo silêncio.

– Os Marchand são pessoas bastante amáveis. Eles a receberão com muito carinho. Se alguém a descobrir ali, a sra. Marchand irá apresentá-la como sua sobrinha, filha de uma irmã que morreu.

– Não é muito honesto o que estamos fazendo, minha filha – adicionou Ebert —, mas sei que Deus nos perdoará, pois só estamos agindo assim para protegê-la.

Bridget meneou a cabeça de um lado para o outro.

– Eu não vou. Vocês não podem ficar sem mim. Francis acomodou-se ao lado dela na estreita cama do abade e, ignorando as convenções de sua ordem, colocou o braço ao redor de seu ombro e puxou-a para si.

– Nós vamos dar um jeito, Bridget. Não somos tão desajeitados assim. Até que vivíamos bem antes de você chegar.

– Mas a cozinha... Os jardins... A organização de tudo! – Bridget não acreditava no que estava ouvindo.

Os monges a estavam mandando embora do único lar que conhecera, apenas por ter trocado algumas palavras com um estranho que partiria dentro de alguns dias e nunca mais os importunaria de novo.

– Sentiremos muito sua falta, Bridget, e faremos tudo o que estiver a nosso alcance para impedir que o mosteiro vire uma bagunça. – Havia uma ponta de diversão na voz do irmão Alois.

– Aposto como você vai gostar de viver lá fora, minha filha – adicionou Ebert. – Está mais do que na hora de conhecer o mundo, de fazer algo mais interessante do que ficar cuidando de um bando de homens velhos.

Bridget olhou para Francis, que ainda a segurava bem perto, depois para os rostos ansiosos de Alois e Ebert. Pelo visto, dessa vez a conversa era mais séria do que o normal. Sempre conseguia convencê-los de que, o que quer que tivesse feito de errado, não era tão grave assim. Naquele momento, entretanto, nenhuma palavra que proferisse poderia adiantar.

– Nunca quis outra vida além desta – balbuciou, sem esconder a emoção. – Sou muito feliz aqui. Não me mandem embora. Não sei o que será de mim sem vocês todos.

Alois se endireitou.

– A decisão já está tomada, minha filha. Ebert a levará amanhã cedo, antes do amanhecer. Quando nosso visitante inglês acordar, você estará bem longe daqui. Agora é melhor ir se deitar e descansar para a viagem.

Assim que a fraqueza momentânea passou, Bridget soltou-se do abraço de Francis e ficou em pé, colocando as mãos na cintura.

– Não vou! Sinto muito por tê-los preocupado ao falar com o jovem, mas logo ele irá embora daqui. Portanto, não vou permitir que a estada desse homem acabe com o sossego do São Gabriel.

Francis se levantou com dificuldade.

– Acho que o abade tem razão, Bridget. Essa é a única maneira que encontramos para protegê-la. O que as pessoas achariam se descobrissem que foi criada entre nós?

– Eu não me importo com o que os outros pensam.

– Mas trate de pensar nas conseqüências para nós. – Alois a encarou, sério. – Nossa existência correria sérios riscos caso alguém descobrisse que a mantivemos escondida por todos esses anos.

Era um argumento que não tinha passado pela cabeça dela.

– Você acha que a Igreja...

– Ordens sagradas foram desfeitas por motivos bem mais insignificantes – interrompeu-a Alois.

Bridget tornou a sentar-se, tentando digerir o que estava acontecendo. Mesmo que não conseguisse se imaginar fora da abadia, parecia que não tinha alternativa a não ser concordar com a decisão de Alois, Seria banida de seu próprio lar para longe de todos os que amava.

– Prometam-me que, assim que o estranho partir, eu poderei voltar.

Francis estava com o coração partido.

– Filha, o mundo está cheio de horizontes a serem descobertos. Será uma experiência maravilhosa. E, quando o se inglês for, você poderá nem ao menos querer voltar para este mosteiro isolado.

– Claro que vou querer! – afirmou Bridget com determinação. – Esta é minha casa, e sempre será.

Os freis trocaram um olhar triste, mas nenhum deles atreveu-se a contrariá-la.

– Assim que ele partir, poderei voltar? – ela insistiu.

– Conversaremos sobre o assunto quando chegar a hora – respondeu Alois.

E Bridget teve de se contentar com isso.

Ranulf encontrou o irmão Francis saindo da igreja após as orações matinais.

– Como está sua cabeça hoje? – perguntou o bondoso monge.

– Melhor a cada dia.

Ranulf notou algo de estranho no comportamento de Francis. Nem sinal daquele entusiasmo que o envolvia.

Francis olhou a sua volta. Vários monges estavam deixando a capela, dirigindo-se para suas atividades. Em seguida, fez um sinal, indicando a horta.

– Vamos até lá para conversar com mais calma, sir Ranulf. Preciso colher alguns legumes; pois hoje é meu dia de cozinhar.

Nenhum dos dois abriu a boca até chegarem ao espaço onde os religiosos cultivavam grande parte dos legumes e hortaliças consumidos no mosteiro. Francis pegou uma cesta.

– Vocês também cultivam vegetais em seu país, meu caro inglês?

Ranulf, entretanto, não perderia seu objetivo de vista. Ignorou a questão do frei.

– Eu a vi de novo ontem, irmão Francis, a enfermeira da meia-noite. Meu anjo dourado. Por que mentiu para mim?

Hesitando por alguns instantes, o monge colocou a cesta no chão e olhou bem para o moço ao seu lado.

– Peço perdão ao Senhor, mas tive meus motivos. Gostaria de lhe pedir que não fizesse mais perguntas sobre essa moça.

– Mas por quê? Posso pelo menos ter uma explicação? Estamos falando da pessoa que salvou minha vida.

– Sinto muito.

– Não pode nem me dizer o nome dela?

Ranulf admirou-se com sua própria insistência diante da angústia evidente de Francis. O melhor a fazer era esquecer aquele lindo rosto e concentrar-se em procurar seu irmão.

Todavia, algo o impelia a querer saber mais sobre ela. Sentiu a têmpora latejar de novo. Cerrou os dentes e retomou o olhar implacável do monge. Descobriria pelo menos alguma coisa, por menor que fosse.

– Então, vou fazer minhas próprias investigações. Aposto como alguém na cidade poderá me falar sobre essa mulher. Não podem existir tantas jovens com a mesma descrição e poderes de cura.

Preocupado, Francis ergueu um pouco a barra de seu hábito e ajoelhou-se sobre a terra.

– Você é um jovem muito teimoso.

– Já me disseram isso antes.

– Ela não está mais aqui.

O monge começou a colher vagens. Antes de continuar a falar, porém observou a expressão descrente de Ranulf.

– Desta vez é verdade. Ela partiu hoje cedo para Beauville. Mas peço-lhe que creia em mim quando digo que sua curiosidade pode colocar a segurança dessa jovem em risco.

Não era bem o que Ranulf esperava escutar. Imaginara vários motivos para a relutância do monge em informá-lo sobre o paradeiro da jovem, mas nada semelhante.

– O que poderia afetar a existência de uma moça em um lugar tão sossegado, irmão?

Francis continuou, metodicamente, a tirar as vagens da haste.

– Mais uma vez, não posso lhe contar. É um segredo que foi guardado durante todos esses anos. Eu lhe imploro para que a esqueça.

De repente, o desejo de saber mais sobre a jovem tomou um rumo bastante diferente. Se o que Francis dissera fosse verdade, se seu misterioso anjo dourado estivesse correndo perigo, talvez Deus o tivesse enviado àquele mosteiro para ajudá-la.

– Gostaria de poder fazer algo por ela.

Seu tom foi tão sincero que o monge parou com o que fazia, perdido em pensamentos.

Percebendo que Francis começava a ceder, Ranulf decidiu pressioná-lo:

– Não farei nada que a prejudique, irmão. Juro por tudo o que é mais sagrado. E talvez eu tenha sido enviado para auxiliá-la.

– Duvido que possa fazer alguma coisa, filho. Mas se você jurar jamais contar a alguém as circunstâncias em que a conheceu, lhe direi onde ela está. Então, poderá ir até lá para agradecer-lhe e recompensá-la pela ajuda.

Ranulf sentiu um grande entusiasmo, que lhe parecia um pouco desproporcional ao simples fato de poder agradecer a uma donzela que cuidara de sua saúde por alguns dias.

– Onde a moça está?

– Antes quero sua palavra de honra, meu jovem.

– De que não falarei dela?

– Sim.

Parecia um pedido estranho, mas Ranulf concordou.

– Juro que jamais revelarei como a conheci.

O frei olhou para o cesto, longe de estar cheio. Resmungando, apoiou as mãos na terra e se levantou.

– Essa informação tem um preço.

– Está bem. Irei até meu quarto pegar o dinheiro e... Francis o interrompeu com uma risada sonora.

– Não quero isso, meu filho. Mas sim que colha as vagens para mim. Quando o cesto estiver bem cheio, encontre-me na cozinha.

Como os monges disseram a Bridget, Claudine e Philip Marchand eram pessoas simpáticas, apesar da idade avançada.

De certa forma, a fragilidade do casal era confortante, pois ela logo começou a colocar a casa em ordem, limpando e organizando tudo. Depois, preparou uma refeição saudável e, em um momento, chegou a pensar que estava no mosteiro.

Partira do São Gabriel antes do nascer do sol, na companhia de Ebert. A cada passo dado por Tartaruga e Caracol, Bridget se via cada vez mais longe de seu lar.

Entretanto, o tempo lhe dera a chance de ponderar sobre os aspectos positivos de sua aventura- Conheceria o mundo! Mesmo que se mantivesse reclusa na residência de um casal de camponeses nos arredores de Beauville, seria suficiente.

Quando chegou ao pequeno casebre dos Marchand, Bridget foi capaz de controlar a emoção ao despedir-se de Ebert, repetindo mais uma vez que voltaria para lá assim que Ranulf se fosse.

Em seguida, retribuíra o abraço carinhoso da sra. Marchand, sentindo uma onda de calor que evocou sensações além de suas lembranças. Imaginou se um dia teria estado tão perto de outra mulher, mas a idéia lhe parecia impossível. Os únicos abraços que recebera haviam sido os poucos que os monges lhe davam, de vez em quando. Agora compreendia que esses gestos eram proibidos pelas Regras, o que os tomava mais especiais ainda.

Philip Marchand a cumprimentara com um tapinha nas costas. Bridget logo notou que o velhinho bem-intencionado era quase surdo, e algumas vezes um pouco mais do que confuso, mas sua esposa fazia de tudo para agradá-lo.

– Acho que não seremos uma boa companhia para uma linda jovem como você – disse Claudine, ao acenarem para o irmão Ebert.

– De forma alguma. Será um prazer ficar com vocês. – Depois de mais alguns elogios, Bridget se pôs a analisar a casa para ver por onde começar. Havia muito a fazer ali.

A quantidade de trabalho fez com que seu primeiro dia longe da abadia passasse rápido e, quando se deitou para dormir no pequenino quarto localizado nos fundos, chegou à conclusão de que talvez esse interlúdio não fosse não desagradável assim.

Os monges escolheram os Marchand por eles terem muito pouco contato com o resto da comunidade e também porque a propriedade ficava um pouco afastada da cidade. Na certa voltaria para o convento sem que ninguém notasse sua presença ali e, nesse meio tempo, ajudaria o simpático casal de velhinhos.

Lógico que a idéia de dar um passeio na cidade era tentadora, agora que dera o primeiro passo. Mas, se fosse até Beauville, perguntas surgiriam. Era melhor ficar escondida em seu canto. E logo poderia voltar para seu verdadeiro lar.

– Não compreendo o que tudo isso tem a ver com o São Gabriel, meu caro inglês – dizia Francis, sentado com o inglês na cozinha.

Já era tarde, e a maioria dos freis se recolhera para o merecido descanso. Embora Ranulf já tivesse escutado uma mentira daquele homem, tinha certeza de que a confusão dele era verdadeira.

– Eu também não, irmão. Só sei que a última coisa que soubemos de Edmund foi de uma carta que ele enviou para sua noiva. Contou que estava indo para uma abadia de monges cistercienses chamada São Gabriel. E este foi o único lugar que encontrei com esse nome.

– Sim, não conheço outro.

– Mas tem alguma idéia do que meu irmão poderia querer aqui?

– Não imagino o que levaria uma pessoa a vir até nós, filho. Para você ter uma idéia, faz vinte anos que nosso bispo apareceu pela última vez.

Ranulf olhou para as brasas fracas do fogo.

– Talvez ele estivesse querendo se referir á cidade.

– Beauville? Não creio que seja possível. Beauville é um lugar tranqüilo, conhecido pela boa qualidade de seus vegetais nas feiras semanais-

– Por que Dragão não foi mais específico? – A expressão de Francis era de grande frustração.

– Dragão?

– Meu irmão. Sempre o chamei assim. Já em Lyonsbridge ele era conhecido como Matador de Dragões. – Seus lábios formaram um breve sorriso. – Edmund era o maior de três irmãos. Podia lutar comigo e com Thomas juntos, que sempre vencia.

Ranulf endireitou-se em sua cadeira, percebendo, com súbito horror, que estava se referindo ao irmão no passado, como se estivesse morto.

– Ele sempre nos vence e continuará vencendo – corrigiu-se. – Assim que conseguir encontrá-lo.

– Gostaria de poder ajudar mais. – Os olhos azuis do monge irradiavam simpatia.

– Há um xerife em Beauville? Ou um juiz?

– Sim, um xerife, Charles Guise. E também o braço direito do senhor feudal, o barão Henri LeClerc. Ele mora no castelo de Darmaux e tem algumas possessões pequenas, incluindo um castelo em Mordin.

– E esse xerife, Guise, trabalha com ele?

– Sim. Duvido que possa ajudá-lo. Se um cavaleiro como seu irmão tivesse aparecido em Beauville, nós teríamos escutado algo, mesmo aqui no mosteiro.

– Quero falar com o xerife mesmo assim, e talvez com o barão também. Preciso comprar um cavalo novo e armas.

– Encontrará preços melhores se for até Rouen. As possibilidades de Beauville são mais limitadas. Mas na certa encontrará um animal a preço justo.

– O preço não me preocupa. Tenho de ficar bom para poder continuar com minha missão. Já estou muito atrasado. Irei até a cidade amanhã, se você me emprestar uma de suas mulas.

– Tem certeza de que já está bom o suficiente?

– Sim, já fiquei muito tempo na cama.

Ranulf se levantou. Estava ansioso para começar a indagar sobre seu irmão, mas não disse ao frei que parte dessa ansiedade devia-se ao desejo de encontrar mais uma vez sua bela enfermeira.

– Está bem, filho. Amanhã cedo nos encontramos no estábulo.

– E você me dirá como encontrar o xerife Guise... e também a casa onde ela está hospedada. Certo?

Francis ficou em silêncio por um longo instante.

– Não costumo ir muito à cidade, mas posso lhe dizer como encontrá-la.

– Obrigado, irmão.

O monge olhou com seriedade para Ranulf.

– Lembre-se de sua promessa.

– Sobre não comentar que ela me curou?

– Sobre não tocar no nome dela quando for embora daqui.

– Apesar de eu não compreender os motivos, dou-lhe minha palavra de honra.

Assentindo, o monge se virou para o fogo, e seus olhos revelavam toda sua confusão.

– Bem, já é alguma coisa – disse o barão LeClerc, desmontando seu garanhão.

Acabara de voltar de um passeio ás terras de Darmaux, sendo recebido pelo xerife e suas boas notícias. Para sorte de Guise, a cavalgada sob o ar fresco da primavera fizera muito bem ao humor do barão.

– Achei que fosse melhor vir até aqui pedir mais instruções, milorde, pois o senhor nunca quis que interferíssemos no cotidiano da abadia.

– Não. – O barão ficou pensativo por alguns momentos- – Meus homens não devem aparecer por lá. – Jogou as rédeas do animal para um cocheiro. – Então nosso informante disse que o inglês está sendo tratado na abadia, mas não sabe por que está aqui?

– Isso mesmo. O cavaleiro não lhe pareceu muito coerente. Está com febre por causa do ferimento.

O barão seu um sorriso sádico.

– Pelo menos sua desastrada tentativa de impedir o homem de continuar em sua missão não foi tão infeliz assim, Guise. Há chances de ele morrer?

– Nosso monge não soube me dizer.

LeClerc tirou suas longas luvas de couro e bateu-as contra a palma da mão.

– Mantenha contato com o mosteiro. Caso o sujeito se recupere, quero saber por que veio e o que pretende.

– Sim, milorde. E se ele morrer?

– Nesse caso, seria o fim de tudo, não, seu imbecil?!

– Sim, milorde. – O xerife fez uma mesura, mas manteve o olhar nas costas de LeClerc enquanto ele caminhava para o castelo de Darmaux.

O passo da mula era muito lento, mas constante. Mais uma vez, Ranulf suspirou pela perda de seu belo garanhão. Seria difícil encontrar um cavalo que chegasse aos pés de Trovão, ainda mais em Beauville.

Já avistava a cidadezinha. Francis explicara que a casa dos Marchand ficava um pouco afastada do centro, em uma pequena estrada ao norte.

O passeio lhe dera um pouco mais de tempo para refletir sobre sua insistência em tornar a ver aquela linda moça. Não imaginou que pudesse haver algo que o detivesse em sua missão de encontrar Dragão. Talvez o golpe em sua cabeça tivesse deixado alguma seqüela. Era a única explicação que conseguia encontrar para essa estranha obsessão.

Então, ele a viu. Seu anjo estava do lado de fora de um pequeno chalé, ajoelhada no jardim muito malcuidado. Usava um vestido amarelo que ressaltava o dourado de seus cabelos.

Prendeu a respiração e sentiu o coração bater forte no peito. Sem dúvida o golpe afetara sua cabeça, pois não se lembrava de algum dia ter tido uma reação tão rápida ao ver uma mulher. Não fora assim nem quando vira Diana pela primeira vez, quando ele e Dragão voltaram das Cruzadas. Claro, Diana tinha ido correndo para os braços de seu irmão, sem notar o embevecimento de Ranulf

Sua enfermeira também não percebeu que era observada devido à concentração no trabalho. Em um momento de honestidade, Ranulf admitiu para si mesmo que não viera em busca da enfermeira para agradecer ou recompensá-la. Estava ali porque queria o anjo dourado para si.

 

                                          CAPÍTULO V

Bridget estava tento dificuldades em manter a firmeza e o ânimo que decidira ter, na véspera.

Os Marchand acordaram muito cedo e ficaram bastante contentes ao encontrar a deliciosa refeição que ela preparara para começarem o dia. Mas, assim que terminaram de comer, o casal acomodou-se em suas poltronas ao lado do fogo e voltou a dormir. Bridget ficou a escutar seus suaves roncos, enquanto lavava a louça. Não era bem o que imaginava quando pensava em viver longe do Mosteiro de São Gabriel.

Decidiu, então, procurar alguma coisa para fazer do lado de fora, para que o brilho e calor do sol melhorassem seu humor.

Logo ao chegar percebera que o jardim precisava de cuidados urgentes. Era evidente que alguém tinha tratado dele outrora, mas agora era apenas um emaranhado de mato e ervas daninhas.

Contente por poder estar mexendo com plantas, por mais feias que estivessem, Bridget começou a arrancar as parasitas, jogando água na terra limpa. Sua concentração no trabalho era tanta que não percebeu a aproximação da mula até que estivesse bem perto. Quando olhou para cima, com o regador na mão, e viu Ranulf em cima de Tartaruga, deixou o balde cair.

Ele abriu um belo sorriso.

– Desculpe-me, não era minha intenção assustá-la. Bridget fitou sua saia molhada e suja de terra.

– O que está fazendo aqui?

– Vim falar com você. – Ranulf desmontou.

As mãos de Bridget alisavam a roupa, tentando melhorar um pouco sua aparência.

– Você não pode... Quero dizer... não poderia saber que estou aqui.

– Acontece que sou muito hábil quando se trata de encontrar anjos fugitivos. E uma de minhas qualidades.

O coração de Ranulf se regozijava por estar vendo aquele rosto lindo outra vez.

Sentindo que a cor sumia de suas faces Bridget lutou para manter o controle de sua voz:

– Não sou um anjo.

– Mas está fugindo. Por que fugiu de mim quando nos encontramos no estábulo anteontem à noite?

– Quem lhe contou que eu estava aqui?

– O irmão Francis. Ou melhor, troquei a informação por trabalho. Tive de colher um cesto gigante de vagens. Além disso, descobri que ele estava mentindo. Eu nunca tinha visto um religioso mentir.

Seu tom não era de reprovação, mas Bridget sentiu a necessidade de defender seu amado guardião:

– Ele o fez por minha causa.

Ranulf ajoelhou-se ao lado dela, estudando-lhe as feições.

– Por quê? O que lhes causa tanto medo a ponto de não poderem nem me dizer como você se chama? O que tanto escondem, meu anjo?

Ranulf não estava mais usando o hábito de monge.

– Estou vendo que encontrou alguns trajes – disse Bridget, ignorando outra vez a pergunta dele.

Divertindo-se com a evasão dela diante de suas questões, Ranulf decidiu conceder-lhe espaço para acostumar-se à idéia. Deu, então, um passo para trás e apontou para a túnica branca rústica e a calça de lã.

– Foi Francis quem as encontrou para mim. A julgar pelo odor das peças, quando as recebi, imagino que tenham vindo de um criador de porcos, mas deixei-as arejando a noite toda. Portanto, você não terá de prender a respiração para falar comigo, anjo sem nome.

Bridget gargalhou, divertido-se com o bom humor dele.

– Meu nome é Bridget.

As palavras foram recompensadas por mais um sorriso maravilhoso. Ela nunca vira um homem tão bonito antes. Não que achasse os monges feios, mas a juventude de Ranulf a encantava.

– Bridget... – repetiu ele, deliciando-se com a sensação de pronunciá-lo. – Bridget, o anjo.

– Alguns dos irmãos não concordariam com você. Quando criança, eu era mais um diabinho do que um anjo.

– Quer dizer que vai ao mosteiro desde menina?

– Sim, quer dizer...

Por algum motivo, Francis revelara seu paradeiro àquele estranho, que era o culpado de seu afastamento do São Gabriel, mas, pelo visto, não contara mais nada sobre seu passado. Continuava sendo segredo, e deveria mantê-lo guardado.

– Sim – afirmou, apenas.

Ranulf esperou mais alguma coisa, mas, quando notou que Bridget não diria mais nada sobre si, decidiu não insistir.

– Vim até aqui para agradecer-lhe por ter cuidado de mim com tanta dedicação. Quero recompensá-la por ter salvado minha vida.

– De jeito nenhum. Não quero nenhum tipo de recompensa. O simples fato de você ter conseguido sobreviver, a despeito da gravidade do ferimento, já me deixa muito feliz.

Bridget estava bastante contente por ter Ranulf ajoelhado a seu lado. Não se lembrava da última vez que se vira tão feliz. Devia ser pela novidade da situação, pelo contato com aquele mundo desconhecido, cheio de novidades.

– Ah, mas seria um grande prazer poder recompensar você, minha querida Bridget. Talvez aceite alguma coisa de mim se eu lhe pedir mais um favor.

Ela não conseguia quebrar a magia daquele olhar.

– E qual seria?

Hesitante, Ranulf olhou para a porta do chalé.

– Talvez eu deva pedir permissão a seus pais. O rubor dela se acentuou.

– Os Marchand não são meus pais. Apenas moro com eles.

– Está sob a guarda do casal?

– Sim.

Por sorte, Ranulf não notou a falta de firmeza da resposta.

– Gostaria de ter sua companhia durante a tarde de hoje. – Ele se ergueu e ofereceu-lhe as mãos para ajudá-la. – Quero conhecer Beauville. Preciso comprar um cavalo e outras coisas mais. Aceita vir comigo?

Um nó se formou no estômago de Bridget. O que Ranulf lhe estava pedindo era impossível! Como poderia lhe mostrar Beauville se ela mesma nunca tinha estado no centro da cidade?

E sabia que os monges esperavam que ficasse escondida na residência dos Marchand. Não que precisasse ficar trancafiada dentro do quarto, mas ir até a cidade? Todavia, a idéia de conhecer algo novo e, melhor ainda, na companhia do misterioso Ranulf, a encantava.

– Não costumo ir até lá com muita freqüência. É melhor você procurar um guia em Beauville, que poderá lhe mostrar todos os encantos de lá.

– Não consigo imaginar uma pessoa mais adequada do que meu próprio anjo. Por favor... Pode encarar isso como parte do tratamento, pois, na verdade, sinto-me um pouco tonto sob esse sol forte. Talvez precise de alguns cuidados durante a tarde.

Aquilo era uma loucura perigosa, mas irresistível.

Bridget permitiu que Ranulf a levantasse, sem se incomodar com as mãos cheias de terra.

– Acho que quem está um pouco tonta sou eu, Ranulf, pois acho que devo aceitar seu pedido. Espere aqui, enquanto mudo de roupa, sim?

– Certo eu a aguardarei.

Bridget titubeou um pouco. Depois, antes que pudesse perder a coragem, virou-se e correu para dentro.

A primeira coisa que chamou a atenção de Bridget foram as cores da cidade, bem diferentes da abadia. Apesar de muitas das casas serem da mesma pedra de São Gabriel, o contorno delas era muito colorido.

Pedaços de pano esvoaçavam dos varais. As crianças corriam de um lado para o outro, alegres por poderem brincar. Ao longo das ruas, pessoas puxavam carrinhos cheios de legumes, potes, sapatos de couro tingidos e todo tipo de mercadorias intrigantes.

Bridget respirou fundo e sentiu a mistura de aromas de toucinho, tabaco e lavanda.

– Não é maravilhoso? – exultou.

Ranulf sorriu para ela, mas achou estranho Bridget estar tão entusiasmada com aquele cenário tão comum.

Bridget tentou manter a compostura, mas olhava de um lado para o outro, deliciando-se com cada nuança do que via. Podia vir a ser sua única experiência com o mundo exterior. Portanto, aproveitaria ao máximo cada segundo.

– De acordo com o irmão Francis, o xerife mora do outro lado da cidade – falou Ranulf, aguardando uma confirmação.

Os dois caminhavam pela rua, e ele ofereceu-lhe o braço para conduzi-la em meio à sujeira deixada pelo comércio.

– Ninguém a cumprimenta, Bridget? Os cidadãos de Beauville são tão grosseiros a ponto de ignorar uma bela jovem? O que acontece por aqui?

O casal atraíra muita curiosidade, mas ninguém dissera uma só palavra a eles.

– Não conheço muita gente aqui, sir Ranulf Eu lhe disse que seria melhor procurar um guia.

– E acha que eu encontraria um guia tão belo como você, meu anjo? Não há um rosto mais bonito e com traços tão delicados quanto o seu por aqui. Andei reparando.

Ela não sabia como responder ao elogio, ou à provocação.

– Tenho certeza de que encontraria muitas moças bonitas em Beauville se procurasse nas casas certas.

– Nem pensei nisso. Estou muito contente com a companhia perfeita que já encontrei. Na verdade, nem vou mais observar os demais. – Ranulf parou e colocou as mãos ao lado dos olhos. – Olhe, estou com antolhos, como os cavalos. Não vou ver nenhum outro semblante lindo além do seu, no dia de hoje.

Divertindo-se com o espírito brincalhão dele, Bridget não pôde deixar de rir.

– Não há problema algum em olhar para as pessoas. Na verdade, se não vir o que tem pela frente, poderá tropeçar em alguma coisa, cair e se machucar. – Bridget tirou-lhe as mãos do rosto, e segurou-as.

Por um longo momento, ficaram se olhando no meio da via, de mãos dadas.

– É melhor continuarmos andando. Todos nos olham – disse Bridget.

Ranulf pareceu voltar à realidade, lembrando-se, de repente, de onde estavam.

– Claro, sinto muito. – Ele lhe ofereceu o braço de novo. – Na verdade, nem preciso de antolhos, pois só consigo enxergar meu anjo.

Ranulf, então se virou, e eles continuaram passeando pelas ruas de Beauville.

Havia algo de estranho sobre sua adorável enfermeira, e não era só a magia que tinha lançado sobre ele. Como podia ter morado sempre em um lugar e não ser reconhecida por uma única pessoa?

Além disso, Bridget espantava-se com as coisas mais comuns. Ao passarem pela loja de cobre, ela pedira para parar e observar como o dono e seu jovem assistente colocavam os pedaços de madeira ao redor do barril que estavam fazendo. Era como se nunca tivesse visto nada igual antes. E, pelo jeito, também ali ninguém a conhecia.

Quando chegaram ao final da rua onde deveriam encontrar a casa do xerife, Ranulf ficou um pouco confuso.

– Imagino que conheça o xerife, Bridget.

– Não, nunca o vi.

Ele se virou para encará-la.

– Tem certeza de que morou aqui sua vida toda? Os Marchand a mantiveram escondida todo esse tempo? – Ranulf falava em tom de troça, mas viu a tensão se formando no rosto dela.

– Concordei em vir com você, mas terei de voltar para casa se continuar a me fazer tantas perguntas. Prometa-me que não perguntará mais nada a meu respeito.

– Eu não compreendo...

– Sinto muito. Por favor, não pergunte nada mais. Bridget estava determinada, mas havia medo naqueles lindos olhos verdes. O que Francis teria dito? Ranulf tentou recordar os termos exatos do monge. Ele comentara algo sobre Bridget estar correndo perigo.

– Quem é você, minha jovem? O que tanto a assusta?

– Nada de perguntas, por favor, sir Ranulf. Se continuar insistindo, terei de ir embora.

– Só quero ajudá-la. Você me salvou. Quero poder fazer alguma coisa para...

– Será que vou ter de sair correndo para que pare de me questionar, sir Ranulf?!

Sua única opção era manter-se calado, pois não queria que Bridget se fosse. Entretanto, a alegria que,sentira com a idéia de passar a manhã na companhia dela diminuíra um pouco.

E seu humor piorou mais ainda quando descobriram que o xerife tinha ido ao castelo de Darmaux e só voltaria mais tarde.

A informação foi dada pelo vizinho do xerife, um sapateiro que não tirou os olhos de Bridget nem quando respondia às indagações de Ranulf.

– Vou esperar pelo xerife, pois preciso conversar com ele. Mas necessito comprar um cavalo. Pode me indicar onde achar um bom animal?

– Milorde encontrará cavalos melhores em Rouen – respondeu o velhinho, ainda olhando para Bridget.

– Sim, mas não tenho como ir até lá – explicou Ranulf, com paciência. – Duvido que não exista um cavalo para eu comprar aqui na cidade.

– Jean, o ferreiro, deve ter algum para você. E armas, se estiver precisando.

A beleza de Bridget era estonteante, mas a forma como o sujeito a encarava começava a irritar Ranulf, ainda mais por sentir que ela estava desconfortável. Pediu depressa informações sobre como chegar à casa do ferreiro, depois abraçou-a e afastaram-se do homem com um breve agradecimento.

– Aquele homem ficou me olhando como se meus cabelos tivessem ficado verdes de uma hora para outra – disse ela, alguns passos adiante.

Ranulf tivera a mesma impressão, e caiu na risada.

– Acho que ele não vê uma mulher bonita há muito tempo.

– Senti-me mal.

– Não se incomode. Achei que você já estivesse acostumada aos olhares de admiração dos homens.

– Não. Na verdade, não estou nem um pouco acostumada. Aquilo deixou-o ainda mais curioso. O mistério ao redor daquela mulher parecia se aprofundar cada vez mais.

– Gostaria que me contasse um pouco mais a seu respeito... – começou ele, mas não conseguiu conter o grito com o que viu. – Trovão!

Estavam caminhando em direção ao grande estábulo do ferreiro Jean. Ruminando em silêncio dentro de um curral via-se um belo garanhão negro. Ranulf soltou Bridget e saiu correndo até o animal.

O cavalo olhou para cima e, ao ver o cavaleiro se aproximando, deu alguns passos para encontrá-lo na cerca.

– É o meu cavalo! – gritou Ranulf, virando-se para trás. Quando Bridget conseguiu alcançar a cerca, eleja tinha pulado para o outro lado e estava parado ao lado de Trovão, afagando-lhe o pescoço. Trovão balançava a cabeça, mostrando que reconhecera o dono.

– Que bom vê-lo de novo, garoto! – Ranulf fitou Bridget, sorrindo. – Trovão é um bom cavalo. Passe a mão nele, se quiser.

Do lado de fora, Bridget esticou o braço, um pouco vacilante, e tocou a testa dele.

– É mesmo. Ele é um amor. As mulas me morderiam se eu tentasse afagá-las.

Ranulf segurou a crina de Trovão e montou-o com extrema agilidade.

– Trovão jamais ousaria fazer isso. Eu o treinei para atacar o inimigo e para ser gentil com as mulheres bonitas,

– Só com as bonitas?

– Sim. As feias ele morde. A risada dela o contagiou.

– Mas o que seu cavalo está fazendo aqui? Foi este o que os ladrões levaram?

– Sim. – Acariciou Trovão mais uma vez o traseiro e apeou. – Não tenho a menor idéia de como veio parar aqui, mas, quando encontrarmos esse tal ferreiro, será a primeira coisa que vou lhe perguntar.

– O ferreiro pode querer lhe fazer a mesma pergunta – veio uma voz do fundo do estábulo.

Bridget e Ranulf se viraram ao mesmo tempo, para se deparar com um homem tão alto que quase tinha de se abaixar para não batê-la no batente usava um avental de couro inteiriço por cima da calça, e nada mais, deixando os braços e ombros à mostra. Sua cabeça sem um único fio de cabelo brilhava com a luz do sol.

– Por acaso você é Jean, o ferreiro?

– Sim, sou eu – confirmou o gigante, e cada passo seu parecia fazer o chão estremecer. – Quem são vocês e o que fazem tão perto de meu cavalo?

Ranulf sorriu e estendeu a mão para cumprimentá-lo,

– Foi uma grande coincidência. Seu cavalo e eu somos velhos conhecidos.

Depois de vacilar por alguns instantes, o ferreiro apertou a mão dele. Embora a mão de Ranulf fosse grande, a de Jean a cobria.

– Bem, agora ele me pertence.

– Você se incomodaria em me dizer como o cavalo chegou até aqui?

Bridget observava a conversa com interesse. De certa forma, o ferreiro, grande e imponente, era tão fascinante quanto Ranulf, ainda mais para alguém que vira apenas monges até então.

– Sim, eu me incomodo. O povo daqui não gosta muito de estranhos que aparecem cheios de curiosidade.

– Não vou discutir com você se o garanhão chegou a suas mãos de maneira honesta ou não – disse Ranulf, controlando a irritação crescente —, mas gostaria de comprá-lo.

– Ele não está à venda.

Nenhum dos dois piscou enquanto se encararam por um longo momento. Bridget tossiu com delicadeza e virou-se para Jean.

– Esse animal foi tomado de sir Ranulf por meios ilícitos, senhor. Deveria agradecer-lhe por estar se oferecendo para comprá-lo de volta, em vez de tomar o que é seu de direito.

Ranulf a olhou, espantado, e só então o ferreiro notou que havia uma mulher ali.

– Quem é você?

– Não interessa. Estamos falando do cavalo, que deve voltar às mãos do verdadeiro dono.

O homem ficou olhando para o casal.

– Sir Ranulf... – ele repetiu. – Você é mesmo um cavaleiro?

– Sim. E este cavalo realmente me pertence.

– Não se pode dizer que você é um cavaleiro a julgar pelas roupas que está usando, mas, se o cavalo é seu, imagino que não seja um camponês. É o animal mais bonito que já vi por aqui.

– Obrigado. Trovão me serviu muito bem por todos esses anos.

– Porém, agora é meu. E paguei muito caro para consegui-lo.

– Ofereço-lhe um preço razoável por meu cavalo, e o dobrarei se me disser de quem o comprou.

Os olhos do ferreiro se arregalaram. Toda sua hostilidade desapareceu.

– Quem me trouxe o cavalo não era bandido, mas um dos homens de confiança do barão.

– E quem seria esse barão?

– Henri LeClerc, barão de Darmaux. E, antes que você pense que o barão é um criminoso, eu lhe digo que é subordinado ao duque da Áustria.

– Quem é o duque da Áustria? – Bridget quis saber. Os dois a olharam com surpresa, e foi Ranulf quem respondeu:

– É um dos homens mais poderosos do continente. Foi ele quem capturou Ricardo Coração de Leão, quando voltava das Cruzadas, e o manteve prisioneiro. Meu irmão Thomas e eu estávamos entre os homens que arrecadaram dinheiro para pagar seu resgate.

– Então, talvez seja por isso que o barão ou o duque o atacaram?

– Duvido. O duque tem mais armas do que qualquer nobre na Europa. Não consigo imaginar que tipo de interesse teria em um pobre cavaleiro inglês.

– Eu sabia que a informação não seria útil – disse Jean, dando de ombros. – Mas aceitarei o dinheiro que você está me oferecendo pelo cavalo e mais alguns tostões pelos problemas que possam surgir com meu esclarecimento.

– Está bem. – Ranulf estendeu-lhe a mão mais uma vez.

O ferreiro os convidou para entrar no barracão, onde mostrou suas armas a Ranulf.

Bridget lembrou-se dos monges discutindo seus experimentos na oficina e se manteve em silêncio, vendo Ranulf acertar a compra de uma espada, um cinturão com uma bainha e um elmo de couro.

Logo que viu o ouro de Ranulf, Jean tomou-se bem mais simpático e amável. Quando terminaram de acertar o valor, Ranulf avistou um elmo preto conhecido.

– O que é aquilo?

O ferreiro abriu um largo sorriso.

– Trata-se de um objeto incrível, feito de um metal que ninguém nunca viu antes. – Jean tirou o elmo do lugar e bateu-o contra uma pesada bigorna.

O elmo retumbou como um sino.

– Você o arruinou!

– De jeito nenhum, sir. Olhe você mesmo – sugeriu Jean.

Ranulf pegou-o e virou-o em suas mãos.

– Nem uma marca...

O metal negro suscitava alguma lembrança, mas ele não sabia distinguir ao certo o que era.

– E um material novo.

Curioso, Ranulf continuava a estudá-lo.

– Acho que vou preferir este em vez do de couro.

– Não posso vendê-lo, sir.

– Posso saber por quê?

– Este elmo já está prometido para outro cliente.

– Pago o dobro.

O ferreiro parecia constrangido.

– Sinto muito, mas não posso vendê-lo de forma alguma.

– Está bem. – Ranulf colocou-o de volta na prateleira. – Levarei o de couro mesmo.

– Ótimo. É uma escolha perfeita. Vou limpar e polir tudo para você.

– Está bem. Levarei o cavalo e a sela agora, depois virei buscar as armas.

– Excelente! Elas ficarão prontas amanhã cedo. – Jean olhou para Bridget. – Ela é sua esposa?

– Não – respondeu Bridget, enrubescendo.

– A srta. Bridget mora aqui em Beauville. Fico surpreso por vocês não se conhecerem

Jean passou a mão na careca brilhante e franziu - sobrancelhas.

– Engraçado... achei que conhecesse todos por aqui.

– Eu... acabei de chegar – Bridget explicou. – Vim morar com meus tios, os Marchand.

A resposta pareceu satisfazer o ferreiro. Ranulf, entretanto, se confundia cada vez mais.

Demoraram mais alguns minutos para encerrar a transação e, após o pagamento, Jean selou o garanhão, e o casal deixou a casa do ferreiro.

Ranulf, puxando Trovão atrás de si, caminhava muito quieto pela estrada. Bridget sentiu que o bom humor de antes já não era mais o mesmo. Também achava que tinha algo a ver com a parte final da conversa com Jean.

– Que sorte você ter conseguido comprar seu cavalo de volta!

– Sim.

Bridget fez uma nova tentativa de diálogo dois ou três minutos depois:

– Imagino que esteja morrendo de vontade de montá-lo de novo.

– Não, o dia está bom para andar.

Aborrecida, Bridget percebeu que a alegria do dia começava a sumir, e notou que o ótimo estado de espírito que nutrira até então tinha mais a ver com a companhia de Ranulf do que com todo o resto. Agora que ele se calara, era como se as nuvens tivessem escondido o sol.

 

                                     CAPÍTULO VI

Bridget continuava mentindo, supôs Ranulf, com certa tristeza. Esperava que ela começasse a confiar nele, que quaisquer que fossem os segredos que estivesse escondendo não interfeririam na atração que começava a se desenvolver entre ambos.

Mas Bridget dissera que não tinha parentesco com os Marchand, e agora contara ao ferreiro que eram seus tios. Que motivo a levaria a mentir sobre algo tão simples? Nada de perguntas, pedira.

Ranulf deu mais uma resposta distraída. Depois se surpreendeu quando a viu parada com as mãos na cintura.

– Você está bravo comigo, sir Ranulf?

A irritação dela acentuava o rosado natural de suas faces.

– Não. – Ele exalou um suspiro.

– Acho que não foi nada agradável ter de pagar uma quantia tão alta por um cavalo que já era seu.

– Não ligo para o dinheiro. Bridget demonstrava preocupação.

– O que foi, então? Você me parece aborrecido.

Se lhe dissesse que estava preocupado com ela, Ranulf temia que o dia deles terminasse ali.

– Estou frustrado por não ter conseguido encontrar o xerife – mentiu, forçando um sorriso. – Vim para a Normandia procurar meu irmão, e é um assunto que já foi adiado por vários motivos. E, pelo visto, vou ter de esperar ainda mais.

A medida que prosseguiam por uma rua sombreada a caminho da casa dos Marchand, Ranulf contou-lhe de forma sucinta sobre o desaparecimento de Dragão e da carta que o trouxera ao Mosteiro de São Gabriel.

– Então era seu irmão que você tanto chamou em seus momentos de delírio... – Agora Bridget compreendia.

– Não me espanta que eu o tenha feito. Edmund não sai de minha cabeça. Penso nele sem parar. Nós nos damos muito bem e gostamos muito um do outro.

– E a moça... Diana? Você também chamou por ela. Ranulf piscou e de repente teve uma vaga recordação de tê-la chamado de Diana e depois a ter beijado. Mas não fora bem Diana que beijara...

– Sim, ela é a noiva que foi prometida a meu irmão.

Em um gesto inconsciente aos olhos de Ranulf, Bridget levou os dedos aos lábios.

– Trata-se de uma dama? Como Guinevere?

– Então você conhece Guinevere, Bridget? A bela jovem que arruinou a vida do bravo rei Artur? Espero que Diana não seja igual a ela. Não vejo meu irmão ao lado de uma mulher com um espírito tão fraco.

– Não, Guinevere não era fraca. Ela foi uma moça que recebeu um destino, mas teve a coragem de ir em busca de sua felicidade, desafiando a todos.

– Mas ela traiu o rei Artur.

– Se ficasse ao lado dele, Guinevere estaria traindo seu próprio espírito. Seu dilema começou porque quis encontrar seu caminho sem machucar outras pessoas, o que nem sempre é possível.

Ranulf parou de andar e encarou a jovem que o acompanhava, maravilhado. Como uma pessoa que vivera desde sempre em uma cidadezinha podia ter tantos conhecimentos a ponto de discutir literatura e filosofia?

– Você sabe ler, minha bela?

– Sim.

Ranulf ficou mais pasmo ainda.

– Os monges me ensinaram logo cedo. Passei grande parte de meu tempo na biblioteca do mosteiro.

– Conheci muito poucas mulheres que sabiam ler.

– Sua avó Ellen é uma delas?

– Sim, e tenho certeza de que vovó concordaria com você a respeito de Guinevere, pois acredita que uma mulher deveria ter o mesmo direito do homem de decidir seu futuro.

– Acho que eu gostaria de sua avó.

– Tenho certeza de que vocês duas se dariam muito bem. Ficaram em silêncio por alguns minutos, e ela se deu conta da impossibilidade da simples Bridget de Beauville conhecer a grande lady de Lyonsbridge. Mas a discussão trouxera o bom humor de Ranulf de volta.

– Precisa retomar logo para casa, Bridget? Seu tio e sua tia a estão esperando?

Ela pareceu não notar o ligeiro sarcasmo.

– Não, eu lhes falei que voltaria no final do dia.

– Mas eles podem ficar sozinhos tanto tempo assim?

– Podem. Os dois já estão acostumados. Além disso, deixei o jantar pronto. E, como eles dormem a maior parte do dia, nem notarão minha ausência.

Logo, alcançaram o pequeno mercado semanal de Beauville, atrás da igreja.

– Que tal fazermos algumas compras, Bridget? Vamos ver o que os comerciantes de Beauville têm a oferecer. Imagino que esteja morrendo de fome.

– Na verdade, estou faminta – afirmou, sem hesitar.

– Vamos encontrar alguma coisa para você também, Trovão. – Ranulf amarrou o animal em um poste de madeira, pegou a mão de Bridget e seguiram para o mercado.

Bridget sabia que não deveria se expor indo a um mercado semanal no centro da cidade. Primeiro, teve de enfrentar os olhares curiosos das pessoas enquanto passeavam pelas ruas. Em seguida, o vizinho do xerife a olhara como se fosse um fantasma. Para completar, o ferreiro perguntando de onde viera. E agora teria contato com os comerciantes.

O maior alvo da curiosidade daquelas pessoas era Ranulf, sobretudo das mulheres. Alto e bonito, mesmo usando as roupas velhas e surradas de um fazendeiro, ele andava com a postura de um guerreiro. Em seguida, os comerciantes a fitavam. E cada vez mais o casal recebia olhares confusas e ao mesmo tempo surpresos.

Seguiram até uma barraca cheia de guloseimas quentes, e Ranulf tirou algumas moedas do bolso para comprar um doce recheado com frutas para cada um. Ignorando a curiosidade do doceiro, Bridget mordeu o doce com gosto.

Ranulf divertiu-se com sua alegria.

– Você deveria ter me dito antes que estava com tanta fome, meu anjo. Não tinha pensado nisso antes, pois achei que os anjos não comiam a mesma comida que nós.

– Este aqui, sim – respondeu, assoprando o doce para não queimar os lábios.

Ranulf terminou o seu depressa, em grandes bocadas.

– Para começar, está bom. – E puxou-a, para continuarem o passeio.

Quando avistou uma barraca de artigos de couro, Ranulf foi até lá e pegou uma delicada bolsa.

– Você não usa uma destas, Bridget. Onde guarda seu dinheiro?

Bridget hesitou. Não guardava as moedas em nenhum lugar pelo simples fato de nunca ter tido uma,

– Achei que não fosso precisar dele hoje.

– E não precisa mesmo, mas as mulheres gostam de coisas novas. Deixe-me dar-lhe um presente.

– Não é necessário, sir.

Colocando a bolsa que tinha em mãos de volta, Ranulf pegou outra no fundo da banca. Era tingida de vermelho e tinha uma rosa desenhada na frente.

– Esta é muito bonita. – Estudou-a com cuidado, Bridget aproximou-se e ficou observando a bolsa. Nunca possuíra nada parecido, mas não podia aceitar nada dele.

– Não tenho necessidade de uma bolsa, Ranulf.

O garoto que cuidava da barraca resolveu se intrometer, certo de que estava prestes a realizar uma venda.

– Esta é a mais bonita de todas, senhor. E também a mais delicada.

Ranulf entregou uma moeda ao menino, depois voltou-se para Bridget.

– Posso colocá-la? – Deslizou a mão pela cintura dela. Bridget forçou-se a manter a fleuma e não dar um pulo, pois não estava acostumada com a sensação de mãos masculinas ao redor de si.

Ranulf deu um passo para trás para ver direito o resultado.

– Olhe só que linda! Você gostou?

– Sim, sir Ranulf Muito obrigada.

Com um belo sorriso, ele tomou-lhe o braço de novo e continuaram seguindo pela movimentada rua.

Pararam para comer um pedaço de torta de carne e tomar um copo de vinho.

No final do mercado, Ranulf tomou a parar, agora diante de uma mulher sentada diante de uma grande peça de queijo.

– Boa tarde, senhora. Poderia cortar um belo pedaço para esta jovem e para mim, por favor?

A mulher, assim que deparou-se com Bridget, soltou uma exclamação, fazendo o sinal-da-cruz:

– Sagrada Maria!

Ranulf olhou para Bridget, que se espantara diante da atitude da queijeira. Por um momento, ninguém falou nada, e a estranha continuou a encarar para Bridget como se estivesse diante da própria Virgem.

– O queijo não está à venda? – indagou Ranulf, tentando normalizar a situação.

A queijeira virou-se para ele,

– Você é um deles?

Ranulf e Bridget trocaram olhares, imaginando que a mulher não era muito boa das idéias.

– Como assim, cara senhora?

– Os malditos. Um dos homens do barão.

Bridget foi até a lateral da barraca e ajoelhou-se ao lado da pobre senhora, que ficava cada vez mais agitada. Pegou a mão cheia de veias e afagou-a.

– Ninguém aqui é mau. Sir Ranulf é um bom homem, que esteve nas Cruzadas. Veio até aqui para procurar seu irmão.

Havia um pouco de saliva no canto dos lábios da mulher quando ela ergueu os dedos para tocar o rosto de Bridget.

– Deve encontrar um lugar para se esconder, minha filha, para se proteger, e também ao bebê. Eles vão matar vocês dois.

Bridget olhou para Ranulf, que meneou a cabeça, sem nada entender.

– Acho melhor irmos embora, sir.

Mas ela ficou onde estava. Parecia haver um brilho de reconhecimento nos olhos daquela senhora.

– A senhora me conhece? A mulher assentiu.

– Precisa se esconder deles, Charlotte, e fazer de tudo para proteger a criança.

Era óbvio que a senhora a confundia com outra pessoa, mas, com repentina curiosidade, Bridget percebeu que a perturbação poderia ter alguma relação com seu passado.

– Quem é Charlotte?

Mas a queijeira estava agitada demais para compreender qualquer coisa.

– Não liguem para ela. – Um homem se aproximara com um cesto cheio de ovos. – Sinto muito, mas tive de sair por alguns instantes. Vou guardar estes ovos e já volto para atendê-los,

Bridget afagou mais uma vez a mão da mulher, depois se levantou. A senhora tinha os olhos fechados e se balançava para frente e para trás, cantarolando.

– Sou Pierre Courmier – apresentou-se o homem.

– Esta é Camille, minha mãe. Ela é um pouco atrapalhada, mas gosta de vir ao mercado para ver as pessoas. Mesmo com a memória fraca, consegue cumprimentar todo o povo de Beauville pelo nome.

– Ela me chamou de Charlotte.

– Que estranho... – Pierre franziu a testa e estudou as feições de Bridget. – Você não é daqui.

Bridget olhou para Ranulf antes de responder:

– Não.

– Não me lembro de ninguém em Beauville chamado Charlotte. Deve se tratar de alguém que Camille conheceu no passado. – O assunto não parecia preocupá-lo.

– Querem provar um naco de queijo?

Ranulf pegou mais algumas moedas e comprou um pedaço para cada um deles.

– De onde vocês vêm? – Pierre quis saber, com um sorriso amistoso.

Cada vez mais confuso, Ranulf olhou para Pierre, depois para Camille e, por fim, para Bridget.

– Está aí uma boa pergunta... Pierre mostrou-se confuso.

– Sir Ranulf é um cavaleiro, que acabou de voltar das Cruzadas – Bridget falou, depressa.

Analisando a situação das roupas do suposto cavaleiro, Pierre deu de ombros.

– Ah! Bem, se precisarem que laticínios, procurem pela família Courmier. Nossa fazenda fica fora da cidade, perto da casa dos Marchand. Vocês os conhecem?

Bridget deu um sorriso nervoso, assentindo, e comeu o último pedaço.

– Preciso voltar para casa, sir Ranulf.

Sem dizer uma só palavra, os dois caminharam até o poste onde haviam deixado Trovão.

Ranulf não sabia mais o que pensar, mas sua curiosidade em conhecer o mistério que rondava Bridget aumentava cada vez mais.

Por que tantas mentiras? O que teria feito de tão grave para estar correndo perigo, como o irmão Francis lhe dissera?

Bridget o observou desamarrar o cavalo. Praticamente não o conhecia, portanto, não lhe devia nenhuma explicação. Não havia por que colocar o mosteiro em risco revelando seus segredos.

Mas podia perceber que Ranulf estava magoado e talvez até irritado com suas mentiras. E não queria vê-lo aborrecido, pretendia acertar a situação.

– Gostaria de cavalgar até a casa de seus... dos Marchand, Bridget?

– Imagino que esteja se indagando por que escutou tantas versões diferentes sobre minha história em um só dia.

Ranulf jogou as rédeas em volta do pescoço de Trovão.

– Se não quiser me falar nada, não há problemas. – A verdade, contudo, era que queria muito saber mais a respeito de Bridget, e talvez até ajudá-la. – Você me pediu para não questioná-la.

– É verdade.

– Então, quer ir a cavalo?

– Acho que é a mesma coisa do que montar Caracol, mas um pouco mais alto.

Sem tecer nenhum comentário à brincadeira, Ranulf montou o animal e abaixou-se para puxá-la para a sela.

– Coloque seu pé em cima do meu e deixe-me levantá-la.

Ranulf acomodou-a a sua frente. A sensação era calorosa e agradável, mas, ao seguirem em direção ao chalé dos Marchand, Bridget sentiu de novo o peso de seu silêncio.

– Você está bravo, Ranulf? Ele não respondeu.

– Você está bravo.

Com delicadeza, Ranulf virou-a para que pudesse olhá-la nos olhos.

– Há algum motivo para eu estar, anjo? Primeiro, me disse que não tinha nenhum tipo de parentesco com os Marchand. Depois falou para o ferreiro que é sobrinha deles. Para o queijeiro, afirmou que não é de Beauville. Será que a escutei contar alguma verdade hoje?

O rosto dele mostrava aborrecimento, mas Bridget via tristeza nos olhos azuis. E a culpa era sua.

– Sinto muito...

Bridget sabia que estava errada, mas não como solucionar o problema. Os monges tinham lhe pedido para não contar a ninguém que morara no mosteiro.

– Admite que mentiu?

– Sim, sir.

– Por quê, Bridget? Não pode achar que eu teria coragem de fazer algo para prejudicá-la. Você salvou minha vida. Gostaria demais de saber o que tanto a aflige e a leva a contar mentiras desse jeito.

– Não estou preocupada comigo. Preocupo-me com pessoas que podem ser prejudicadas por minha causa.

Aos poucos ele começou a compreender.

– É o mosteiro, não é? Está protegendo os freis? Agora foi a vez de Bridget se assustar.

– O mosteiro poderia ser desfeito se alguém descobrisse, sir.

– Que você mora lá?

– Sim. O São Gabriel é meu lar.

– Há quanto tempo vive lá?

– Faz muito tempo.

– Anos?

– A vida toda. – Bridget voltou o rosto para a frente.

– Mas você com certeza viajava, ia até a cidade... – A voz dele foi sumindo à medida que ela fazia que não.

Isso explicava seu espanto e sua curiosidade com coisas tão banais.

Estavam se aproximando de um lugar em que havia uma bifurcação para uma pequena estrada ao lado da principal. Ao fundo, um conjunto de árvores ladeava um riacho. Ranulf virou a montaria para a estradinha.

– Aonde você está indo?

Sem responder, Ranulf continuou guiando o cavalo até alcançarem as árvores. Depois, abraçou-a e se abaixou para colocá-la no chão, descendo em seguida.

– Vamos dar um pouco de água a Trovão. Ele está com muita sede. – E aproximou o animal da margem.

Todos os sinais de raiva tinham sumido de sua expressão, e, quando se virou para Bridget, ela não soube decifrar o que via em seu olhar.

Seguiram até um lugar próximo à margem, e Bridget se sentou. Ranulf acomodou-se ao lado, tomando-lhe as mãos entre as suas.

– Vamos começar pelo início. Se você mora no mosteiro, por que a encontrei na residência dos Marchand?

Agora que ele já sabia um pouco, Bridget não via motivos para não lhe contar o resto.

– Os monges me mandaram para lá no dia seguinte àquele em que conversamos no estábulo. Eles ficaram com medo do que poderia acontecer se você me descobrisse ali.

– Mas como chegou ao mosteiro, Bridget? Você não tem pais? Família?

– Só tenho aos monges.

– Que vida mais estranha para uma mulher tão jovem...

– Também acho, mas em momento algum fui infeliz. Os freis sempre me trataram como uma filha e me deram tudo o que estava ao alcance deles.

Ranulf ficou em silêncio, digerindo o que acabara de escutar.

– E nunca tinha estado em Beauville antes?

– Não. Jamais saí do São Gabriel. O percurso até a casa dos Marchand foi meu primeiro contato com o mundo exterior.

– Mas tive a nítida impressão de que aquela senhora, a queijeira, a conhecia.

– Impossível. Nunca a vi na vida. Além disso, ela me chamou por outro nome.

– Charlotte, não é? Conhece alguma Charlotte?

– Não conheço ninguém além dos monges, sir.

– E agora também me conhece. – Ranulf abriu um belo sorriso.

– Sim, é verdade.

– Isso explica todos os olhares em nossa direção. Imagino que o povo de Beauville não esteja acostumado a ver todos os dias um cavaleiro inglês vestido de fazendeiro e um lindo anjo desconhecido passeando de braços dados pelas ruas.

Bridget retribuiu o sorriso, depois olhou para a água correndo a sua frente.

– Você precisa parar de me chamar de anjo. Sua febre já passou, e o delírio também.

– Sei disso, mas sua beleza não é menos angelical do que em meio a meu delírio.

O tom rouco da voz de Ranulf causou uma sensação estranha no ventre dela.

– E também foi a febre que fez com que você me beijasse...

– Com certeza. Nunca teria tomado tal liberdade com a mulher que salvou minha vida se estivesse em meu estado normal. Peço-lhe minhas mais sinceras desculpas.

Ele tinha soltado a mão de Bridget que esfriara sem o calor de seu toque.

– Não foi nada de mais.

Querendo saber o que se passava no íntimo dela, Ranulf prosseguiu:

– Se você sempre morou no mosteiro, quer dizer que aquele foi seu primeiro beijo?

– Sim, o primeiro, e imagino que o último. Quando eu voltar para o São Gabriel, os monges farão de tudo para me manter longe de estranhos.

– Voltar! – A exclamação dele foi alta o suficiente para fazer com que Trovão se virasse para ver se havia algo de errado com seu dono. – Pretende regressar à abadia e continuar levando uma vida tão isolada?

– Aquela é minha casa, sir. Como já falei, os monges são minha família.

– Mas você é uma linda moça, e não pode passar a existência toda trancafiada com um bando de religiosos. Precisa conhecer homens que possam cortejá-la e lhe oferecer a possibilidade de constituir um lar. Deve ser beijada de verdade, e beijar muito mais.

Seus lábios formaram um lindo sorriso. Não havia o menor sinal de vergonha na expressão de Bridget.

– Foi de verdade.

Ranulf pegou-lhe os ombros e virou-a.

– Não, não foi, Bridget. Um beijo de verdade não é um gesto desajeitado, no escuro, entre dois estranhos. E... É uma expressão que duas pessoas usam quando seus corações não encontram outra maneira de fazê-lo.

Bridget ficou confusa e com vontade de chorar. A beira do rio, Trovão relinchou, impaciente, mas era como se o som estivesse muito longe.

– Pelo visto, jamais saberei o que é isso. Erguendo a mão calejada, Ranulf limpou uma lágrima que lhe escorria pela face.

– Saberá, sim, meu anjo. – Então, inclinou-se para beijá-la.

 

                                                   CAPÍTULO VII

Era a última coisa que Ranulf pretendia fazer. Sim, tinha a intenção de recompensar a mulher que lhe salvara a vida, mas não de tirar vantagem de sua inocência em nome de seu próprio prazer.

Contudo, observou um ligeiro tremor nos lábios carnudos quando Bridget dissera que nunca seria beijada de verdade, e soube que era ele quem o faria.

Bridget tinha uma vida muito estranha, e dentro em breve voltaria ao mosteiro. Portanto, não perderia a chance de lhe mostrar a mágica que podia existir entre um homem e uma mulher.

Faria isso por ela, e porque não conseguia mais se conter. Fora arrebatado por seu anjo dourado. Como isso poderia ter acontecido? Indagou-se. E toda a afeição que acreditava nutrir por Diana? Pelo visto, não passara de carência.

Bridget correspondeu ao beijo com um doce suspiro de aceitação. Sua boca estava úmido e exuberante, e o corpo de Ranulf respondeu de imediato.

Temendo assustá-la, ele fez de tudo para se controlar e, por vários minutos, não a afagou. Seu beijo era calmo e lento, com alguns toques ocasionais e atormentadores de sua língua.

Quando escutou o gemido dela, Ranulf não resistiu, e envolveu-lhe a cintura, puxando-a para mais perto e aprofundando a carícia.

Totalmente envolvida pela novidade, Bridget passou os braços ao redor dele e o trouxe para mais perto, encostando seus mamilos intumescidos contra o tecido da túnica de fazendeiro que ele usava.

Bridget acompanhava o ritmo do beijo, alucinando-o com seus movimentos. Ranulf sentiu um desejo imenso tomá-lo, e achou melhor se afastar.

Bridget ficou aninhada em seus braços, enrubescida, os lábios inchados e um belo sorriso.

– Obrigada.

– É o homem que costuma agradecer, meu anjo.

– Por quê, se a mulher também sente prazer?

Ranulf ficou pensando um pouco, encantado com o conhecimento dela depois de tantos anos trancafiada em um mosteiro. Pelo visto, estava ali uma devoradora de livros!

– Não sei ao certo, querida. Imagino que quando um homem e uma mulher fazer amor, o homem sempre fica com a melhor recompensa.

– Quer dizer que você também gostou?

– Sim. – Ranulf se divertia com a ousadia de Bridget.

– Que bom! Mas ainda assim foi muito gentil de sua parte.

– Gentil de minha parte?

– Sim. Foi muita bondade sua você ter tido compaixão de mim, impedindo que eu jamais viesse a saber como era um beijo de verdade.

– Não teve nada a ver com compaixão, posso garantir.

– Mas queria que eu soubesse como é um beijo de verdade, sir Ranulf Foi por isso que me beijou, não foi?

– Bem, eu queria que você soubesse, mas também queria beijá-la.

Bridget não pareceu ter se convencido, mas inclinou-se para trás, apoiando o corpo nos braços e cerrou as pálpebras com um sorriso satisfeito, como se estivesse saboreando a experiência.

 

– Que bom que quis fazê-lo, sir! E também fico contente que tenha sido você, Ranulf. Eu adorei!

Ranulf meneou a cabeça, aturdido. Embora não fosse tão galanteador quanto fora seu irmão Thomas até conhecer a esposa, Alyce Rose, já beijara várias moças em seus vinte e seis anos de existência. Mas nunca vira uma delas reagir como Bridget.

Era ela quem experienciava algo novo, e se mostrava no controle da situação. Ele, por sua vez, estava tentando lidar com o desejo que aumentava a cada sílaba proferida por aquela boca doce e sensual.

– Sim, foi bom – concordou Ranulf, depois de um momento. – Diga, abriria mão de toda uma vida cheia de alegrias por um mundo de clausura atrás das paredes do São Gabriel?

Bridget o encarou, e o largo sorriso desapareceu.

– Não tenho outro lar, Ranulf.

– Nunca tentou descobrir alguma coisa sobre sua família?

– Quando criança eu perguntava, mas faz anos que não toco mais no assunto. Só lembro que minhas perguntas causavam olhares preocupados e conferências dos monges. Então, parei de especular. Eles sempre foram tão bons comigo que preferi não magoá-los com minha curiosidade.

Ranulf sentiu uma pontada de frustração em relação à irmandade do São Gabriel. As intenções dos freis pareciam boas, mas eles não tinham o direito de privar uma jovem das maravilhas que o mundo tinha a oferecer.

– Você pode fazer mais perguntas para Camille, que achou tê-la reconhecido. Também tive a impressão de que o vizinho do xerife a conhecia. Pelo visto, ele não a olhava apenas por sua beleza.

Bridget meneou a cabeça, cheia de determinação.

– Não, eu nem deveria ter ido até a cidade. Tenho certeza de que os monges acharam que eu ficaria quietinha dentro da casa dos Marchand até poder voltar para o convento..

– Depois que eu fosse embora.

– Isso mesmo. Mas, agora que o irmão Francis lhe revelou onde eu estava, acho que posso voltar para o São Gabriel com você hoje mesmo. – Franziu a testa, incerta. – Você pretende ir para lá?

– Sim, eles concordaram em deixar que eu ficasse até sarar.

– Ah, meu Deus! Tinha até me esquecido! O ferimento está doendo? Não houve nenhum problema quando... quando...

– Quando estávamos abraçados? – terminou ele, sorrindo. – Não, não foi bem minha cabeça que começou a doer depois de nosso interlúdio.

Bridget não compreendeu a referência, e ele também não tinha a menor intenção de explicar. Havia meses que não ficava com uma mulher, e agora encontrara uma que o encantava e o surpreendia a cada instante, ainda mais por sua inocência.

Evidente que Bridget não sabia o que podia acontecer entre um rapaz e uma moça. Sua honra lhe dizia para montar Trovão e fugir para bem longe do São Gabriel, o mais depressa possível.

– Eu ficaria contente em levá-la de volta, Bridget, mas não sei o que pode acontecer se formos juntos. Francis me fez jurar que não contaria para os outros que a encontrei.

– Sem dúvida seria um escândalo. – Bridget mordeu o lábio. – Eu também não devo vê-lo. O irmão Alois, nosso abade, me daria uma penitência para ficar orando de joelhos

^ a semana inteira se soubesse que passamos uma tarde juntos.

– Se você ficar na casa dos Marchand, voltarei aqui para vê-la amanhã, quando for procurar o xerife.

– Eu ficaria muito contente, sir.

– Mas os Marchand não se oporão?

– Como já disse, eles dormem muito. Parece que nem se deram conta de minha chegada.

Ao longo do riacho, o sol estava baixo no horizonte. Ranulf se levantou e estendeu a mão para ajudá-la.

– Sendo assim, vou levá-la embora agora. De manhã nos encontraremos de novo. Se o xerife ainda não tiver voltado, nós poderemos fazer um belo passeio a cavalo por esta bela região normanda.

Bridget olhou o cenário tranqüilo que os rodeava.

– Eu só conheço, e muito pouco, a área ao redor do mosteiro. Conheceremos os arredores juntos.

O sapateiro idoso colocou seu chapéu e tirou a poeira da roupa, nervoso com a insistência do homem que entrará ao lado do xerife de Beauville.

– Esse estranho disse por que estava atrás do xerife? – perguntou ele, pela terceira vez.

Sem encarar o homem com estranhos olhos violeta, o velhinho fez que não.

– Você falou que a cabeça dele estava enfaixada? E parecia bem de saúde?

– Sim, ele entrou caminhando muito bem, milorde. Suas botas eram de péssima qualidade.

– Não estou interessado nas botas dele, seu tonto! – berrou o nobre. – Fale-me sobre a moça.

– Era a imagem perfeita de lady Charlotte.

O barão se virou para o xerife.

– Podemos acreditar no que este sujeito está dizendo, Guise? Será que era mesmo a filha de Charlotte passeando pela cidade?

– Eu costumava fazer os sapatos dela – respondeu o sapateiro, antes do xerife. – Lady Charlotte sempre vinha até minha loja, e nunca vi mulher mais bonita por aqui. Era um verdadeiro anjo, milorde.

O sapateiro ergueu o queixo e fez um breve sinal-da-cruz. Depois, voltou a olhar para o chão.

– Ele está falando a verdade, barão. Eu ainda era jovem, mas me lembro das visitas de lady Charlotte à cidade como se fosse ontem. Ela sempre tinha uma palavra amável e um sorriso para os mais humildes. Aposto como muitos dos mais velhos se lembram dela.

– Sim, mas aquela não era lady Charlotte, que morreu faz muitos anos – afirmou o sapateiro. – A garota que vi não era nenhum fantasma. Ficou bem perto de mim, como vocês dois agora, e pude ver bem seus olhos. Verdes com reflexos dourados, como os de lady Charlotte.

– Comentou alguma coisa sobre sua semelhança com Charlotte?

– Não, milorde.

– Eu sabia que um dia esse problema voltaria a me rondar. Não deveria ter permitido que a criança vivesse.

– Acha que isso significa que o monge quebrou o acordo...

– Não acho nada, Guise. Dependo dos fatos.

– Sim, milorde. LeClerc fitou o sapateiro.

– Você comentou o assunto com alguém?

Ele olhou assustado para o barão, depois para o xerife, cuja mão segurava o punhal em sua cintura.

– Não, nem vou fazê-lo. Eu prometo, milorde.

– Pode deixá-lo ir, Guise – disse LeClerc. – Se por acaso descobrirmos que anda falando demais, corte-lhe a língua.

O sapateiro fez uma rápida mesura, depois saiu correndo.

– Poderia jurar que o sujeito estava morto depois do golpe que lhe acertei.

– Não pode ter sido outra pessoa?

– Com a cabeça enfaixada? Duvido, milorde, só pode ser ele.

– Quero saber onde está e por que ia para o Mosteiro de São Gabriel.

– Farei o possível. E o que faço com a moça, milorde? LeClerc cerrou os dentes e suas pupilas brilharam.

– Acho que chegou a hora de eu me livrar desse problema em especial.

– Esse seu amigo é muito bonito—disse a sra. Marchand, com um suspiro, recostando-se outra vez em sua poltrona.

Bridget terminou de debulhar as ervilhas que colhera no jardim. Depois as colocaria de molho antes de sair com Ranulf. E, quando voltasse, prepararia uma gostosa sopa.

– Sir Ranulf não é meu amigo, Claudine. Ele é um estranho de quem cuidei no mosteiro.

– No mosteiro... O irmão Ebert não fez muitos comentários quando me pediu para hospedá-la aqui, portanto, vou perguntar a você. O que uma jovem tão linda fazia em uma abadia?

Bridget já descobrira que os Marchand sabiam muito pouco sobre sua história e, se pretendesse voltar a viver com os monges, era melhor que continuasse assim.

– Perdi meus parentes muito cedo. – O que não deixava de ser verdade.

Os olhos de Claudine se encheram de lágrimas.

– Pobrezinha! Mas eu falei para o irmão Ebert que você pode ficar conosco quanto tempo desejar. E receber visitas de seu namorado sempre que quiser.

– Ele não é meu namorado.

Entretanto, Claudine pareceu não se importar com sua afirmação. Fechou os olhos e ficou em silêncio por alguns minutos.

– Eu me lembro como se fosse ontem dos dias em que Philip vinha me cortejar. Faz tantos anos... – Então, fixou o rosto de Bridget. – Ele era alto e bonito. Sabia falar muito bem e era educadíssimo. Ah, você precisava ter conhecido meu Philip naquele tempo...

– E vocês ainda se amam depois de todos esses anos?

– Sim. Quando o amor é verdadeiro e há sinceridade nos corações, é como o rouxinol... quase não canta, mas essa canção é toda sua vida.

Foi a vez dos olhos de Bridget ficarem mareados.

– Você tem muita sorte, Claudine.

– Sim. Nós dois temos, por termos um ao outro. Embora hoje em dia seja mais difícil.

Claudine olhou a sua volta, para o pequeno chalé que melhorara bastante depois da chegada de Bridget.

– A verdade é que já vivemos demais. Foram cinqüenta e dois anos juntos. Philip está cansado.

Ela observou a cama no canto do aposento, onde seu marido dormia. Seus semblante evidenciou todo o amor que ainda sentia, mas continha um quê de tristeza.

– Você cuidou muito bem de seu marido, Claudine. A senhora sorriu.

– Foi muito gentil ter me aceitado aqui em sua casa.

– Minha filha, você só nos trouxe alegria com sua juventude. Sem contar a ajuda. Limpou a casa, arrumou o jardim e fez um delicioso cozido ontem. Nós não éramos tão bem tratados desde que nossa filha se casou e se mudou para Rouen. Mas é muito difícil ter disposição para fazer as coisas e não poder porque o corpo não permite.

Bridget não sabia o que dizer.

– Fico contente por poder ajudá-los. Claudine endireitou-se e forçou um sorriso.

– Querida, não precisa ficar aqui escutando uma velha lembrar seu passado. Vá se arrumar para seu namorado.

– Ele não é meu...

– O amor é um sentimento maravilhoso. Sim, Philip e eu sabemos o que é isso. Não havia nenhum jovem em Beauville que fosse mais galante do que Philip Marchand...

A cabeça de Claudine pendeu um pouco para o lado.

Parecia ter adormecido. Bridget pensou em ajeitá-la na poltrona, mas achou melhor deixá-la em paz. Dormir de manhã pelo visto era um hábito do casal, bem como a maior parte da rotina diária.

Ficou observando os dois por um longo tempo, imaginando como seria ter um companheiro com quem compartilhar todos os momentos, com o passar dos dias, meses e anos. Teria os monges, consolou-se Bridget, embora não fosse a mesma coisa.

Levantou-se e deixou o chalé.

Era mais um lindo dia de primavera. Olhou para a estrada por onde Ranulf surgiria. Uma sensação familiar de alegria tomou conta de seu peito.

Caminhou até o pequeno poço atrás da casa e pegou um pouco de água para lavar o rosto. Ranulf poderia não ser seu namorado, como tentara deixar claro para Claudine Marchand, mas era tão lindo quanto a senhora afirmara. E viria passar o dia em sua companhia.

Logo não mais o veria, mas por enquanto poderia fingir que era um jovem galante, como Philip Marchand fora com Claudine, tantos anos atrás. Suspeitava que Ranulf Brand também tinha seu charme e que era capaz de dizer alguns galanteies, se quisesse.

Sorrindo com a própria fantasia, Bridget enfiou as mãos no balde e levou-as ao rosto, acalmando-se com a água fria.

– O xerife não estava – explicou Ranulf quando desmontou Trovão na frente do chalé. – E a casa do sapateiro estava fechada. Portanto, minhas perguntas terão de aguardar mais um dia.

– Estou contente por podermos passear a cavalo. – Bridget sorria,

– Eu também. Mas estou me sentindo um pouco culpado por não ter feito muitas perguntas sobre Dragão. Se o xerife não aparecer até amanhã, pretendo ir a Rouen.

– Não há por que se culpar. Você estava se recuperando de um ataque de violência. Na verdade, acho que nem deve se arriscar era uma viagem tão longa assim. Preciso ver como está seu ferimento.

Ranulf segurou a mão que ela estendeu para tocar-lhe a cabeça.

– Ele está ótimo, graças a uma linda enfermeira que costumava aparecer no meio da noite para cuidar de mim. – Beijou-lhe a ponta dos dedos. – O que me fez lembrar que preciso recompensá-la.

– Não quero nada, mas gostaria de certificar-me de que meus medicamentos cumpriram seu papel.

– A ferida está bem. Quase curada. Só estou usando a bandagem para não assustar as crianças na rua. Temo que minha cabeça tenha ficado um pouco deformada.

– Não se preocupe, ela voltará ao normal depois de um tempo.

– E bom saber disso, mas não me importo com a cicatriz. Quando encontrar Dragão, vou usá-la para mostrar o quanto sofri por sua negligência em ficar longe de casa por tanto tempo.

Bridget escutara o suficiente sobre as Cruzadas para saber que centenas de soldados não retomaram para seus lares. Se fazia três anos que o irmão de Ranulf estava desaparecido, as chances de encontrá-lo eram mínimas, mas Bridget não se atreveria a discutir o assunto, pois ele tinha certeza absoluta de que o encontraria vivo.

– Imagino que Dragão também deva ter algumas cicatrizes.

– E melhor ele ter, mesmo, ou uma boa desculpa para ter nos deixado por tanto tempo preocupados. – Ranulf olhou para a porta do chalé. – Vai avisar aos Marchand que está saindo?

– Não. Os dois estão dormindo feito anjos. Mas hoje de manhã eu disse a Claudine que iria passear com você. Ela o chama de meu "namorado". Ranulf sorriu, enigmático.

Apesar de todos os livros que lera na biblioteca do convento, Bridget nunca imaginara algo parecido com o que experienciava fora dos muros do São Gabriel.

Não tinha a menor idéia de como era cavalgar com os braços ao redor do peito de um homem, rir com ele ao atravessarem as campinas perfumadas com os aromas da primavera, transpondo riachos rasos.

Estava maravilhada, pois jamais se sentira tão viva, tão consciente da cor de uma flor, do canto de um pássaro, de cada raio de sol que brilhava na água.

Eles riam de tudo e de nada.

Por volta do meio-dia, Bridget admitiu para si mesma que começava a sentir algo diferente por aquele estranho que atravessara o canal, um sentimento que os bardos costumavam descrever em seus antigos poemas de amor.

– O irmão Francis preparou um piquenique para nós. – Ranulf parou Trovão ao lado do rio.

– O irmão Francis?

– Ele está cuidando da cozinha desde que você partiu, e não pára de reclamar um só minuto.

– Coitadinho... Mas voltarei logo para aliviá-lo desse terrível fardo.

Ranulf ajudou-a a apear.

– Para ele parecerá uma eternidade. Espero que tenha preparado algo gostoso para nós.

– Não estou com fome – falou Bridget. Entretanto, quando Ranulf abriu a cesta e colocou o frango, o pão fresquinho e a garrafa de vinho em cima da toalha, ela se viu encantada com a situação que estavam vivendo juntos.

– Comprei algumas tortas quando fui até a cidade procurar o xerife. – Ranulf mostrou os doces que ela tanto apreciara na véspera. – Droga! Arruinei as tortas no caminho!

– Que nada! – Bridget pegou uma torta toda desmantelada do embrulho e mordeu-a com avidez.

Ranulf nem se importou com a sua, encantado com a alegria dela.

– Está deliciosa, sir!

Ranulf gargalhou e inclinou-se para beijar-lhe o canto dos lábios, onde viam-se resquícios de açúcar.

– Você é deliciosa. Permita-me. – E começou a limpar o excesso de doce do rosto dela com a língua.

Bridget respirou fundo quando as mordidinhas em seu lábio inferior tomaram-se um beijo profundo.

– Você precisa comer sua torta, sir. Ranulf empurrou o doce para o lado.

– Prefiro uma fruta que é bem mais gostosa.

E Ranulf recomeçou a beijá-la. Os beijos eram delicados, em um primeiro momento, como no dia anterior, mas depois tomaram-se mais quentes.

Ele movimentava a boca e a língua sobre os lábios de Bridget como uma chama ardente. Ela sentiu um forte calor e arrepios percorrendo-a de cima abaixo.

– Ranulf... – ela sussurrou.

O som de seu próprio nome pareceu incendiá-lo ainda mais. Sem parar de beijá-la, Ranulf inclinou-a para deitar-se na toalha e tocou-lhe o seio.

Bridget gemeu ao sentir o mamilo enrijecer diante da carícia. Por um momento, abriu os olhos e deparou-se com o céu azul que os rodeava, mas logo os fechou, deixando-se levar pelas inúmeras sensações produzidas pelos lábios e mãos dele.

Após alguns instantes, Ranulf parou e deitou-se ao lado de Bridget.

– Obrigada.

Ranulf tinha os olhos cerrados.

– Por ter-lhe dado o segundo beijo de verdade?

– Sim, mas não foi só um.

– Alguns...

– Para ser franca, eu não estava contando. E não me importaria com mais alguns.

– Nós paramos na hora certa – disse ele, encantado com a inocência de seu anjo, e tentando acalmar a volúpia que consumia cada parte de seu ser.

– Como assim?

Ranulf virou-se de lado e apoiou a cabeça no cotovelo.

– A tempo de salvar sua virtude, minha querida. Eu não me responsabilizaria por meu comportamento se tivesse continuado.

Bridget tinha uma vaga noção do que ele tentava dizer, mas achava sua preocupação um pouco tola. Por que motivos tinha de proteger sua virtude se iria passar a vida toda em um mosteiro?

– Da mesma forma, eu não teria me incomodado com mais alguns beijos.

Ranulf deu-lhe um beijinho na ponta do nariz.

– É por isso que vou levá-la de volta a salvo, antes que seus lindos olhos verdes me façam mudar de idéia.

Seu dia de fantasia tinha chegado ao fim. Na manhã seguinte, Ranulf partiria em busca do irmão desaparecido. Bridget voltaria para seus afazeres no Mosteiro de São Gabriel, ao lado de seus queridos monges. Francis poderia, então, parar de cozinhar, o que também seria um grande alívio para os outros irmãos. Tudo voltaria ao normal. Mas aqueles momentos ficariam para sempre guardados em sua memória. Ninguém lhe tiraria essa lembrança.

Retornaram sem pressa para o chalé. Quando se afastaram do riacho, Bridget se espantou ao ver que o sol começava a se pôr, e sentiu um grande remorso por ter deixado os Marchand sozinhos. Esperava que Claudine não tivesse tido problemas em preparar a comida dos dois.

– Os Marchand devem estar se perguntando onde estivemos até agora – comentou ela, descendo de Trovão.

– Acho que eles não vão se preocupar. Sabem que está em boa companhia.

Bridget sorriu.

O chalé lhe pareceu quieto demais. Não havia nenhum sinal de luz saindo pelas pequenas janelas, nenhum cheiro de madeira queimando ou de comida. Nem os pássaros cantarolavam.

– Claudine! – chamou, temendo algo de muito ruim. Ranulf ajeitava as rédeas do cavalo e não percebera nada de anormal, mas assustou-se com o tom de voz dela.

– Está tudo bem, Bridget?

Sem responder, ela correu para dentro.

Philip continuava deitado na cama onde o deixara de manhã. Claudine estava no chão, e as ervilhas que debulhara antes de sair, caídas a sua volta.

Bridget levou a mão aos lábios, horrorizada.

 

                                         CAPÍTULO VIII

Ranulf ajudou-a a se equilibrar e a teria segurado por mais tempo, mas Bridget se soltou e correu para ajoelhar-se ao lado da senhora.

Ela ainda respirava, e Bridget aninhou-a em seu colo. Então, Claudine abriu os olhos.

– Philip!

Alarmado, Ranulf foi até a cama verificar o estado do homem, e voltara com expressão preocupada.

Bridget ninava Claudine como a um bebê, engolindo as lágrimas que ameaçavam sufocá-la. Será que a velhinha tinha escorregado e caído quando fora preparar a comida?

Mas e Philip? Não havia sinal de sangue. A não ser pelas ervilhas espalhadas no chão, nada mais estava fora do lugar.

Ranulf endireitou Philip no centro do leito, depois cobriu-o por inteiro. Claudine começou a gemer ao ver o marido imóvel.

– Você está machucada? – Bridget deu-lhe um beijo na testa. – Sente alguma dor?

Claudine meneou a cabeça, deixando que o pranto escorresse por suas faces.

Aproximando-se delas, Ranulf se agachou.

– Pode nos contar o que aconteceu, senhora? Claudine se mostrava incapaz de responder, e os dois trocaram um olhar impotente.

– Eles têm família em Beauville, Bridget?

– Não. A filha deles mora em Rouen.

Ranulf ficou observando a senhora, que continuava gemendo nos braços de Bridget.

– Há vinho aqui?

Bridget apontou para um pequeno armário de madeira. Ranulf foi até lá e pegou uma garrafa. Voltou até elas e ofereceu a bebida a Claudine.

Depois de alguns goles, ela afastou a garrafa com as mãos e indicou que queria se levantar. Ranulf e Bridget a levaram para a poltrona ao lado da cama do marido.

Com rapidez, Bridget recolheu as ervilhas, sem conseguir afastar a sensação de culpa que a atormentava.

– O que houve, Claudine? A vasilha estava muito pesada? A cor começava a voltar ao rosto pálido da mulher.

– Não, filha, não é isso.

– Conte-nos o que aconteceu, minha senhora – pediu Ranulf, colocando a mão em seu ombro a fim de acalmá-la.

Com a voz trêmula, Claudine lhes falou que ela e o marido tinham sido despertados do sono vespertino por homens armados. Não sabia quantos eram, mas portavam armas.

– O líder era um homem muito alto e forte. E, quando meu Philip tentou mantê-lo afastado, ele o empurrou para longe, como se fosse uma criança. Seus braços eram muito fortes, e usava braceletes pretos e pontiagudos que pareciam de metal. Meu Philip caiu bem aqui... em cima do leito.

Ranulf lembrou-se dos mesmos braceletes que Claudine descrevera descendo contra sua cabeça na estrada para o Mosteiro de São Gabriel. Não lhe tinha ocorrido que os assaltantes ainda poderiam estar a sua procura.

– Eles estavam atrás de mim?

– De você? – Claudine arregalou os olhos. – Não. Procuravam por Bridget.

Os vizinhos dos Marchand, os Courmier, tinham sido chamados para ajudar. Pierre, o queijeiro que haviam conhecido no mercado, viera com seus cinco irmãos e levara o corpo de Philip para a igreja, para ser velado. Claudine concordara em ir para a fazenda deles até que conseguissem contatar sua filha.

Bridget despediu-se da amiga com um abraço, chorando sem parar. Não apreciava a idéia de deixá-la sob os cuidados de outras pessoas, mas estava atordoada com a Idéia de saber que sua presença na residência dos Marchand causara tanta dor. Claudine ficaria mais segura longe dela.

– Não havia cicatrizes no corpo do velhinho – disse Ranulf, ao se verem sozinhos. – Acho que o coração dele parou, com o susto.

– Que tipo de gente atacaria um casal de velhinhos indefesos? Não consigo acreditar que existam pessoas tão perversas neste mundo.

Atordoado com tudo que estava acontecendo, Ranulf abraçou-a para dar-lhe um pouco de conforto em um momento tão difícil. Para quem não conhecia nada além da tranqüilidade do mosteiro, os dias de Bridget andavam muito agitados.

– A vida é assim, minha querida. Mas há mais pessoas boas do que ruins.

Bridget não pareceu convencida. O curto período longe dos monges fora bem pior do que todos seus sonhos, até então. Sentia-se pronta para voltar para a segurança das paredes do São Gabriel e nunca mais sair de lá. Isto é, se tudo ainda estivesse na santa paz.

– E se aqueles homens, quem quer que sejam, forem me procurar no convento? Será que os freis também correm perigo?

– Disse-me que ninguém nunca soube que viveu lá, Bridget Acho que é o melhor lugar para que fique até descobrirmos quem são esses malfeitores e o que eles querem.

– E você também ficará no mosteiro?

Ranulf olhou para o pequeno chalé a sua volta, onde todas as evidências materiais da vida do casal continuavam intactas.

– Sim, Bridget. Até chegarmos a uma conclusão plausível, ficarei no São Gabriel.

Pierre Courmier concordara em cuidar de Claudine Marchand até que a filha viesse buscá-la. Eles não haviam lhe dito aonde Bridget iria, e ele também não perguntara.

Curioso, Ranulf quisera indagar a Camille Courmier sobre os motivos de ter chamado Bridget de Charlotte, mas achou melhor levar seu anjo de volta para a abadia antes que acontecesse mais algum incidente.

Assim que chegaram ao São Gabriel e contaram todo o ocorrido ao irmão Alois, ele convocou uma reunião com seus conselheiros e Francis, que era membro ex-officio. Todos concordaram que Bridget deveria ficar escondida na abadia e que Ranulf também poderia permanecer entre eles, enquanto tentava descobrir a identidade dos assaltantes, que imaginava serem os mesmos que o atacaram na estrada.

O último assunto da reunião causou grandes divergências.

– Ela tem o direito de conhecer seu passado – interveio Francis. – Ainda mais agora, que parece que alguma coisa relacionada ao que passou está colocando sua segurança em risco.

– Do que está falando? – Ebert o encarou. – Uma senhora confusa achou que os homens estavam atrás de Bridget. Eles podiam muito bem estar atrás de Ranulf.

Cirilo as sentiu.

– Também acho. Se ninguém apareceu para procurá-la aqui no mosteiro durante todos esses anos, por que de repente a curiosidade?

– Em minha opinião, devemos abrir os registros do abade José e descobrir a verdade – Francis falava com firmeza. – Ou você já conhece a resposta, irmão Alois?

Os três monges olharam para o abade.

– O que sei é que Bridget nos foi dada como responsabilidade sagrada. Nós lhe demos o nome de uma santa virgem, e a educamos para ser pura, de modo que pudesse superar o pecado de seu nascimento profano.

– Por favor, Alois! Bridget não tem nada a ver com seu nascimento, e não tem nenhum pecado para superar. É uma moça pura de coração, o que é o mais importante.

O irmão Ebert se levantou e começou a andar de um lado para o outro na sacristia.

– Ninguém está desconfiando do bom coração de Bridget, irmão Francis. O problema é que não sabemos o que fazer com ela. Se for verdade que esses homens a estão procurando, então existe a possibilidade de aparecerem por aqui.

Relutante, Cirilo concordou.

– Talvez tenha chegado a hora de pensarmos em mandá-la para outro lugar, onde possa viver tranqüila. Não queremos pessoas se intrometendo nos assuntos da abadia. Temos de nos preocupar com nossas invenções.

– As invenções são secundárias em relação ao bem-estar de Bridget, não acha, caro irmão? Se o convento for o local mais seguro, deveremos mantê-la aqui. Entretanto, acredito que, para o bem de todos, devemos abrir os registros do abade José para descobrir quem realmente foi a mãe dessa pobre garota.

O irmão Alois estava cabisbaixo, absorto em seus pensamentos.

– As últimas palavras do abade José para mim foram que, devido ao parentesco de Bridget, ela moraria para sempre atrás das paredes do Mosteiro de São Gabriel.

– Sim, mas isso por causa do irmão...

Alois ergueu a mão para interromper Francis. Nenhum dos monges tinha permissão de pronunciar o nome do monge cujo pecado carnal levara ao nascimento de Bridget.

– E por causa de nosso compromisso sagrado, Francis – falou Alois, com calma. – E é tudo o que precisamos ter em mente sobre o assunto. Bridget ficará conosco aqui. E o livro do abade José continuará lacrado.

Cirilo e Ebert trocaram olhares frustrados, mas a conduta de Alois indicava que a conversa chegara ao fim.

Bridget não imaginava que seu destino estava sendo decidido pelo conselho dos freis. Voltara para casa, para seu pequeno recanto em meio à fortaleza do São Gabriel. Sentia-se confortável e segura, Nunca deveria ter saído dali, repetia sem parar, ao vestir a camisola. Deveria ter insistido para permanecer com os monges.

Se não tivesse saído do São Gabriel, teria perdido a chance de conhecer o mercado em Beauville, de cavalgar com Ranulf entre as campinas floridas da primavera. Não conheceria os beijos daquele inglês encantador.

Entretanto, se tivesse ficado em casa, Philip e Claudine Marchand poderiam, naquele momento, estar dormindo abraçados, muito sossegados.

Pulou da cama ao escutar uma batida na porta. Não estava acostumada, pois os monges nunca a procuravam em seu santuário particular. O visitante poderia ser apenas uma pessoa, e Bridget sentiu o coração bater mais forte. O rosto de Ranulf evidenciava toda a tensão por que passara, fazendo-a lembrar que poucos dias atrás não acreditava que ele fosse sobreviver ao ferimento.

– Vim ver se está tudo bem com você, meu anjo. Abrindo mais a porta, Bridget o convidou para entrar.

– Sente-se no leito – ela ordenou. – Quero dar uma olhada em seu ferimento.

– Mas eu vim aqui para saber se você estava bem, e não o contrário. – Porém, a obedeceu.

Bridget acomodou-se ao lado de Ranulf.

Fazia tempo que o curativo não era trocado, pois saiu com dificuldade.

– Acho que vamos precisar de outro ungüento.

– Não foi um dia fácil para você...

– Não. Nem para você. O corte está soltando líquido de novo, e, se não cuidarmos direito, a infecção voltará. – Quando Bridget se levantou para pegar a caixa de medicamentos, Ranulf a impediu, pegando-lhe as mãos.

– Aconteceu mais alguma coisa, meu anjo, além do incidente com os Marchand?

Bridget se soltou e foi até o cesto onde ficava sua caixa de remédios. Será que Ranulf não percebia que tudo estava acontecendo? Será que não notava que jamais seria a mesma mulher depois dos beijos daquela tarde? E que tudo o que mais desejava era ser as mesma Bridget de antes, com sua existência secreta, para que ninguém mais corresse perigo por sua causa?

– Um homem morreu por culpa minha, Ranulf. Não acha que é motivo suficiente para eu ficar aborrecida?

– Sim, claro que é – respondeu Ranulf, após estudá-la por alguns minutos.

Mantiveram-se em silêncio enquanto Bridget cuidava do ferimento, aplicando o ungüento fresco e recolocando uma bandagem limpa.

– Assim está melhor.

– Obrigado, Bridget. – Ranulf se levantou. – Vou deixá-la dormir.

Ela deu um passo para trás, mas evitou seu olhar.

– Boa noite.

Ranulf tentou segurar-lhe a mão, mas Bridget não permitiu, mantendo-as firmes contra seu ventre. Então, ele levantou-lhe o queixo, obrigando-a a encará-lo.

– Bridget, nós vamos encontrar esses homens. Eles vão pagar por tudo o que fizeram.

– Com mais violência? Com mais gente sofrendo por minha causa? E eu nem sei direito qual é minha culpa!

– Você precisa permitir que eu a ajude. Ela fitou o chão, meneando a cabeça.

– Está muito cansada, Bridget. Amanhã cedo conversaremos, depois de uma boa noite de descanso.

Como Bridget continuou calada, ele achou melhor não insistir mais.

– Boa noite, meu anjo. – Em seguida, virou-se e saiu para seu quarto.

Bridget apagou a vela e deitou-se. Sua garganta ardia pelas lágrimas não derramadas, mas o pranto apenas aumentavam o peso de sua tristeza. Deveria estar chorando por Philip e por Claudine e o amor que tinham perdido, mas no fundo sabia que chorava por si mesma e pelo amor que nunca teria chance de conhecer.

Charles Guise esperara fazia horas e horas na antecâmara do barão, no castelo de Darmaux, mas não revelou nenhum indício de sua impaciência quando, enfim, entrou na sala de conferências de LeClerc. Passava da meia-noite.

– O que você descobriu, xerife? Guise fez uma mesura.

– O corpo do velho está na igreja, milorde. Eles o enterrarão logo de manhã. Não haverá perguntas.

– A velha está viva?

– Sim, mas irá para a casa da filha, em Rouen. Ela não nos causará problemas.

– Ótimo. Conseguiu descobrir por que a jovem estava hospedada com eles?

– A informação é a mesma de antes. Ela estava vivendo com os Marchand e esteve ontem em Beauville, com o cavaleiro inglês. E agora sumiu.

O barão levantou-se e foi até a mesa, onde Guise estava parado.

– As pessoas não somem sem mais nem menos, Guise. A garota voltou para o mosteiro?

– Não sei, milorde.

Os olhos do barão brilharam com a luz das inúmeras lamparinas que iluminavam a sala.

– Então – disse com toda a calma —, o que ainda está fazendo parado a minha frente?

– O senhor pediu que eu viesse até aqui.

– Para me trazer respostas, seu incompetente! E não foi o que aconteceu!

– Eu achei que...

LeClerc acertou um tapa no rosto do xerife.

– Não é pago para pensar, idiota! Agora vá descobrir onde ela está!

– Amanhã cedo...

– Agora! Se nosso contato no São Gabriel nos traiu, quero saber o mais depressa possível.

– Sim, milorde.

– O que está esperando?!

Guise fez outra mesura e saiu depressa, esperando a porta se fechar para passar a mão em sua face vermelha.

Era muito bom estar de volta a sua cozinha. Bridget despertara antes do nascer do sol e pulara as orações matinais para preparar pão fresco para os monges.

Também esteve na horta, verificou as camas dos monges nos dormitórios, refazendo várias, limpou as mesas e o chão do refeitório, carregou muitos baldes de água do poço e matou e limpou cinco galinhas para o jantar.

No final da manhã, já estava toda suada e rubra, com os cabelos desgrenhados. Bridget não comera absolutamente nada, e suas mãos tremiam quando sentou-se perto do fogão e pegou uma fatia de pão.

– Fiquei sabendo de rumores sobre um redemoinho divino rondando a abadia, esta manhã – disse Francis, aparecendo à soleira. – Era nossa querida Bridget voltando para nós.

Ela esboçou um sorriso triste e baixou a cabeça.

– Minha aventura fora daqui não saiu conforme o planejado, Francis, e estou morrendo de remorso.

O frei pegou uma cadeira e sentou-se diante dela.

– Não pode se culpar por todo o mal que existe na face da terra, minha filha.

– Aqueles homens não teriam vindo atrás de mim se eu não tivesse ido até a cidade com sir Ranulf. Foi minha curiosidade que matou o pobre Philip.

– Não há nada demais em sua curiosidade, filhinha. Você passou toda a vida trancada em um convento. O estranho seria se não quisesse saber o que havia além daqui.

– Mas, a partir de agora, deixarei para aprender o que quero na biblioteca do São Gabriel. Estou muito contente por ter voltado.

Francis olhou para o pedaço de pão na mão dela, intocado.

– Tanto que pretende trabalhar sem comer até desmaiar de cansaço e fraqueza? Não se alimentou desde que chegou, pensa que não sei?

Bridget olhou surpresa para a fatia em sua mão.

– Eu ia comer. Quer dizer, estava indo comer.

– Ah, bom! – Francis se levantou, pegou uma caneca ao lado do fogo e mergulhou-a na panela de sopa. Depois estendeu-a para Bridget. – Pode começar com esta sopa. Vou ficar bem aqui a seu lado, observando-a. Não quero ouvir uma só palavra até que termine de beber.

Bridget não sabia como seu estômago aceitaria a comida, mas obedeceu o monge e, quando terminou, teve de admitir que estava se sentindo bem melhor.

– Muito bem. – Francis uniu as mãos. – Um corpo sem alimento é como uma alma sem oração.

– Ficarei bem, Francis. – Bridget, emocionou-se com a preocupação dele.

– Sei que sim. Mas não tenha medo de admitir que as coisas estão mudando.

Ela olhava para o fogo, muito triste.

– Nada precisa mudar. Estou de volta a meu lugar.

– E acredita mesmo que viver aqui no mosteiro continuará a satisfazê-la?

– Fiquei fora apenas dois dias, irmão. Não posso ter mudado tanto assim.

– Não me referi apenas a seu passeio na cidade.

De todos os monges, Francis sempre fora o que conseguira enxergar seu coração. Era ele quem a confortara na infância, quando levava alguma reprimenda por ter feito algo de errado. Embora os papéis estivessem mudando com o passar dos anos, à medida que ela passara a assumir mais e mais deveres na abadia, Francis era o mais próximo de um pai. E um homem inteligentíssimo.

– Você está se referindo a Ranulf...

– Sim, filha. Ontem, quando chegou aqui, vi a expressão em seu rosto. Você se apaixonou por ele.

– Não, não se trata de amor. Nós apenas passamos bons momentos juntos.

– Mas gostaria de poder ficar mais tempo com Ranulf, certo?

– E tolice desejar coisas que não podemos ter, Francis. Ranulf é um nobre, de uma grande propriedade na Inglaterra. Logo voltará para lá, e nunca mais o verei. E, quanto mais cedo, melhor, pois aconteceram vários incidentes desde que chegou aqui.

Francis pareceu refletir por um momento.

– Pode ser que a chegada de Ranulf tenha sido providência divina, minha filha. Uma mensagem para todos nós de que não podemos mantê-la aqui para sempre.

Bridget, porém, não queria saber de nada. Beijara um homem pela primeira vez e repetira o gesto outras tantas. Sentiu a pele formigar e o coração disparar. Nunca se esqueceria disso, mas agora estava na hora de voltar a sua antiga rotina, antes que mais alguém se machucasse.

Entretanto, Ranulf não saía de sua cabeça. A tarde na companhia dele fora inesquecível, e era incrível como se entendiam bem.

A ternura com que ele a beijava, com que a tocava e a acariciava a encantaram ainda mais. Estaria mesmo começando a desenvolver o sentimento sobre o qual tanto lera nos romances da biblioteca? Estaria se apaixonando por aquele cavaleiro inglês? Existiria a possibilidade de Ranulf ter surgido em seu caminho para apresentá-la ao mundo?

Bridget nem sequer notou quando Francis se ergueu, deixando-a a sós, perdida em devaneios, nas agradáveis lembranças ao lado daquele encantador inglês.

 

                                     CAPÍTULO IX

Por fim, parecia que Ranulf conseguiria conversar com o xerife de Beauville. Havia alguns cavalos parados na frente da casa dele, observou, montado em Trovão, após sair da residência do ferreiro, onde fora pegar suas armas.

Desmontou o animal e começou a amarrá-lo em uma árvore quando surgiu um guarda caminhando em sua direção.

– O que você faz aqui?

Parecia uma acolhida grosseira para um guarda provincial, mas Ranulf se lembrou de que houvera uma morte violenta na cidade, no dia véspera.

– Gostaria de conversar com o xerife – Ranulf respondeu, com simpatia. – Tenho algumas perguntas a lhe fazer sobre uma pessoa desaparecida.

O homem observou as roupas dele. Ranulf ainda usava a túnica e as botas surradas de fazendeiro, mas por cima havia um cinturão contendo uma adaga das mais finas, e na cabeça um elmo de couro que escondia seu ferimento.

Ranulf deu seu nome ao guarda, que desapareceu no interior da construção, e esperou, paciente, por seu retomo. Alguns minutos depois, o soldado reapareceu e ordenou que o seguisse.

Charles Guise estava sentado em um dos cantos da sala, em uma grande cadeira com braços que mais parecia um trono. Não se levantou, nem fez o menor sinal de reconhecimento à entrada do cavaleiro, mas Ranulf ignorou o insulto. Estava ali para obter informações, e não para trocar cortesias.

– Não temos a menor idéia do que meu irmão esperava encontrar no Mosteiro de São Gabriel – falou Ranulf, ao concluir sua história. – E na abadia ninguém nunca ouviu falar nele.

– Quer dizer que está hospedado no mosteiro?

– Sim, xerife. Os monges cuidaram de mim depois que fui atacado, na estrada.

– Teve sorte por ter sido encontrado pelos religiosos. Ranulf notou um curioso desdém na observação.

– Mas não tive a mesma sorte em relação ao assalto, não concorda?

– Talvez deva encarar o fato como um sinal de que as Cruzadas chegaram ao fim. Está na hora de cavaleiros ingleses como você retomarem a seu país e nos deixarem em paz.

Em Lyonsbridge, Ranulf aprendera a respeitar a autoridade e as regras da lei. Nunca imaginara que chegaria a desconfiar de um xerife. Mas, quanto mais conversavam, menos gostava daquele sujeito antipático e rude. Entretanto, procurou não deixar seus sentimentos transparecerem.

– Não vejo a hora de voltar para minha querida Inglaterra, mas isso só acontecerá quando eu puder fazê-lo na companhia de meu irmão. Pensei que você, como xerife desta cidade, pudesse me ajudar a solucionar esse mistério. Porém, como não pode me dar nenhuma informação, terei de começar a busca por conta própria.

– Descobriu alguma coisa que possa ter causado o interesse de seu irmão no São Gabriel?

– Não. Indaguei aos monges se eles sabiam de algo, mas nenhum pôde me ajudar.

Guise ficou calado por um longo momento.

– Depois de todo esse tempo, seu irmão sem dúvida encontrou o mesmo destino de milhares de mercenários como ele. Que pode se repetir com você, se insistir em continuar em uma cidade onde não é bem-vindo.

O xerife, então, se levantou e caminhou até Ranulf, permitindo-lhe, pela primeira vez, que o analisasse melhor.

Guise era encorpado. Vestia uma camisa de mangas compridas por baixo de uma pesada túnica. Em volta de seus punhos havia dois longos braceletes forjado em metal preto.

Ranulf respirou fundo, tentando manter o controle de suas ações, pois não queria colocar tudo a perder. Graças aos céus. Guise nada percebeu.

O xerife estava bem diante de Ranulf, e dois de seus homens também se encontravam presentes. De repente, o ambiente tomou-se ameaçador.

Ranulf não conseguira guardar as fisionomias daqueles que o atacaram na floresta, mas jamais se esqueceria daqueles fortes braços enfeitados pelos braceletes negros.

– É uma pena que não possa me ajudar, xerife -falou Ranulf, com cautela, pesando a situação. – Espero que sirva melhor o povo de Beauville do que os visitantes.

Ele sabia que havia pelo menos um guarda parado do lado de fora da casa. Com o xerife, eram quatro homens armados contra um portando apenas um pequeno punhal. Sua única vantagem era que Guise não sabia de suas desconfianças.

– Não estamos acostumados a receber estranhos nesta parte da Normandia – disse o xerife, evidenciando sua irritação crescente.

Os dois soldados tinham se endireitado, prontos para agir.

Em um movimento que aprendera na campanha sarracena, Ranulf se virou, ligeiro, e acertou um chute na barriga de Guise. Ele lutou para manter o equilíbrio, com uma expressão de espanto.

Antes que os guardas pudessem se mover, Ranulf pulou a janela, perdendo seu novo capacete e raspando a cabeça no batente, antes de cair no gramado.

O quarto guarda apareceu ao escutar a agitação, mas Ranulf já estava na metade do caminho quando o homem conseguiu se levantar, após ser atingido. Nos segundos que demorou para desembainhar a espada, Ranulf já tinha montado Trovão, e galopava depressa.

O sangue escorria em cima de seus olhos, enquanto ele cavalgava, a caminho do convento. Só então percebeu que sua acrobacia na janela abrira o ferimento, e talvez o tivesse aprofundado.

Ranulf blasfemou por sua falta de cuidado. Não imaginara que pudesse encontrar algum perigo quando saíra em busca de Dragão, mas o ataque na estrada deveria tê-lo advertido de que não seria bem assim.

Agora estava diante de um dilema. Não tinha a menor idéia dos motivos que levariam o xerife de Beauville a querê-lo morto, mas era evidente que fora ele que tentara matá-lo.

E Ranulf teve grandes oportunidades de ver que estava lidando com gente extremamente perigosa. A última coisa que queria fazer era levá-los até a sossegada vida do mosteiro, ainda mais por Bridget estar lá.

Podia partir de Beauville e voltar para casa, onde trataria de seu machucado. Então, quando estivesse melhor, voltaria para lá, trazendo reforços de Lyonsbridge.

Entretanto, os bandidos que tinham entrado na casa dos Marchand estavam em busca de Bridget, e não dele, embora a conclusão lógica fosse que se tratava das mesmas pessoas.

Agora que o xerife sabia que Ranulf estava no mosteiro, decerto iria procurá-lo para se vingar. Portanto, antes de tomar uma decisão, tinha de se preocupar com a segurança de seu lindo anjo.

Que mistério envolveria Bridget? Questionou-se Ranulf. Será que o irmão Francis se referira aos guardas do xerife quando lhe pedira para não fazer mais perguntas, porque ela corria perigo?

Mas o que uma mulher tão nova e dócil teria feito de tão grave para despertar a ira de alguém? Ou quem sabe seu passado escondesse segredos que a comprometiam?

Ao alcançar a bifurcação, Ranulf fez Trovão seguir para a esquerda, guiando o animal na direção do Mosteiro de São Gabriel.

– A idéia de atacar a abadia para capturá-lo não me agrada nem um pouco. Se é que ele foi tolo o suficiente para ter voltado lá. – Henri LeClerc falava mais consigo mesmo do que com o xerife, que passara a última hora ajoelhado aos pés do barão.

– Meus homens tomariam o cuidado de não prejudicar as operações da fornalha, milorde. Eu poderia prendê-lo por ter desrespeitado minha autoridade, e nós o tiraríamos do mosteiro. Os freis jamais saberiam o que aconteceu com seu hóspede.

LeClerc continuou em silêncio, irritado com a incompetência de seu subordinado.

– Pelo visto, a aparição desse inglês aqui em nossa pacata cidade está se tornando uma encrenca maior do que eu imaginava. Achei que se tratasse apenas de um cavaleiro querendo saber mais sobre a abadia. Mas, agora que sabemos que veio de um lugar tão poderoso como Lyonsbridge, matá-lo não resolveria nosso problema. Os ingleses, sem dúvida, enviariam mais homens a sua procura. E eu nem gosto de pensar nessa hipótese.

– O que pretende fazer? – Guise quis saber, sem dar o menor indício de que seus joelhos começavam a doer.

Sabia que tinha muita sorte por o barão não ordenar que fosse decapitado, quando descobrira que Ranulf estivera dentro de sua casa e conseguira escapar.

LeClerc andava de um lado para o outro.

– Se o rapaz permanecer no mosteiro, vamos deixá-lo em paz. Em breve descobrirá que ninguém sabe nada a respeito de seu irmão, e assim retomará à Inglaterra.

O xerife não gostou da decisão de seu superior, mas agiu com sabedoria, mantendo-se calado.

– Então, quer que eu mantenha meus homens longe do convento?

– Por enquanto, sim.

– E a jovem, sir? Nosso informante disse que ela voltou para lá.

LeClerc ficou pensando no assunto por alguns instantes.

– Se a garota ficar escondida lá, não haverá problemas. Vamos deixar esse assunto para depois. Teremos tempo de sobra para nos livrar dela assim que nossos homens terminarem as armas e as enviarmos para o duque.

– Devo dizer ao monge que ficaremos afastados, por ora?

– Não, deixe o maldito clérigo curioso sobre nosso próximo movimento. Assim que as armas estiverem prontas, creio que talvez seja melhor acabarmos com ele. Não haverá motivos para guardar os segredos do São Gabriel uma vez que o mundo os descobrir.

– Sim, milorde.

Cansado de discutir aquele tema com o xerife, LeClerc fez sinal para que ele se levantasse e saísse da sala. Charles obedeceu e esfregou as pernas com cãibra.

– Mais uma coisa, Guise – falou o barão quando ele estava quase na porta.

– Sim, milorde?

– Acho que está na hora de nos livrarmos de nosso prisioneiro no castelo de Mordin.

– Achei que quando as armas estivessem prontas o senhor iria oferecê-lo ao duque em troca de um resgate.

LeClerc sentou-se pesadamente em sua cadeira.

– Sim, mas mudei de idéia. Agora que Lyonsbrldge enviou homens atrás dele, não posso me arriscar a mantê-lo preso. Há muitas coisas em jogo. Livre-se do sujeito.

– Sim, milorde. – Guise fez outra mesura, e se foi.

A tontura começara na metade do caminho para o mosteiro. Agora, já dentro do São Gabriel, Ranulf juntou todas as forças para continuar em cima do cavalo. Por sorte, Trovão não precisava de muitas instruções, e manteve o passo constante até o estábulo.

Não saberia dizer como chegara até lá. Quando ergueu as pálpebras, Ranulf viu que estava de novo no minúsculo quarto, com a cabeça latejando, mais uma vez encarando as íris verdes de seu anjo dourado.

– O que aconteceu, Bridget?

– Eu também gostaria de saber. Era a pergunta que pretendia lhe fazer assim que terminasse de repreendê-lo por ter arruinado todo meu trabalho com seu ferimento.

Ranulf fechou os olhos por um momento, torcendo para que o dormitório estivesse mais estável quando tornasse a abri-los. Mas isso não aconteceu.

– Sinto muito por ser um péssimo paciente.

O sorriso sumiu dos lábios de Bridget, quando viu a expressão de dor no rosto dele.

– Você abriu a ferida de novo.

– Parece que abri a cabeça inteira.

– Não, ainda sobrou um espaço, para o caso de você querer sair e se arriscar mais um pouco.

Ranulf podia jurar que o tom ríspido dela procurava camuflar sua preocupação.

– Hoje não.

– Prepare-se, meu caro cavaleiro, pois não pretendo permitir que saia dessa cama na próxima semana. Chamarei os monges para amarrá-lo, se julgar necessário.

Em perfeita saúde, Ranulf teria enfrentado os quarenta monges de São Gabriel sem auxílio, mas, naquele momento, sentia-se impotente como um recém-nascido. Queria poder se entregar a um sono que durasse anos. Mas não viera ao São Gabriel para descansar.

– Não posso ficar aqui, meu anjo. Nem você. E muito perigoso.

– Conseguiu descobrir alguma coisa sobre os homens que foram procurar por mim na casa dos Marchand?

– Sim, e cheguei à conclusão de que são os guardas de confiança do próprio xerife de Beauville.

– O xerife?!

Ranulf tentou sentar-se no leito, mas Bridget o impediu.

– Preciso tirá-la daqui antes que eles venham atrás de mim.

Ela pressionou os ombros dele de volta no lugar.

– O diabo em pessoa pode vir a sua procura, mas daqui você não se levanta! Perdeu tanto sangue até chegar à abadia que toda a cor de suas faces sumiu. Nem sonhe em sair daqui!

Bridget nem precisava estar segurando-lhe os ombros, pois Ranulf estava muito fraco. Quase nem se mexia, e falava com dificuldade.

– Então, por favor, chame Francis e o abade. Preciso falar com eles.

Ele adormeceu no instante em que Bridget saiu do aposento em busca dos freis, mas lutou para manter os olhos abertos quando viu os dois irmãos entrando, seguidos de Ebert e Cirilo.

– Vocês precisam estar preparados para uma visto do xerife e de seus soldados.

– Eles são bem-vindos ao mosteiro, como todo os cristãos de Beauville – respondeu o irmão Alois, preocupado, mas irradiando calma.

– Não sei se pode-se dizer que o xerife é um bom cristão, irmão, mas é um excelente lutador. Foi Guise quem causou a abertura de meu ferimento.

– O xerife Guise?! Você só pode estar enganado, meu filho.

Os outros três monges se mostraram céticos. Ranulf desejou que sua têmpora parasse de latejar para que conseguisse raciocinar com clareza.

– Precisam acreditar em mim, irmãos. E tem mais: acredito que foi o xerife e seus homens que invadiram a residência dos Marchand atrás de Bridget.

– Nós não deveríamos ter permitido que ela saísse daqui – falou Cirilo. – Bridget estava segura até termos oferecido hospedagem a esse estranho. Desde então, tudo virou uma grande confusão.

Bridget olhou irritada para o monge. Cirilo estava muitíssimo aborrecido com a possibilidade de que lhe causassem algum mal, o que a surpreendeu. Ele quase não se pronunciava sobre assuntos que não fossem suas teorias científicas e os últimos acontecimentos na oficina. Bridget se emocionou.

– Acho que Bridget tem razão. Você não deve sair dessa cama – disse Alois. – Ficaremos cuidando da estrada para observar a aproximação de estranhos, e, se alguém aparecer, cuidaremos para que ela esteja bem escondida.

– Podemos até usar alguns truques para mantê-los bem longe. – Ebert esfregou as mãos.

Bridget reconheceu o brilho em suas pupilas, o mesmo de cada vez que trabalhava em uma nova invenção.

– Vamos torcer para que sir Ranulf esteja enganado sobre o xerife – comentou ela. – Todos queremos que o São Gabriel retome a antiga rotina.

Balançando a cabeça em sinal de aquiescência, os quatro monges se retiraram, deixando-a a sós com Ranulf

Bridget colocou a mão na bandagem para ver se estava mais quente que o normal. Então, ajeitou a manta sobre o cavaleiro e se preparou para deixá-lo.

– Eles vão colocar alguém de guarda? – Ranulf indagou, em um fio de voz.

– Eu diria um sentinela. Mas, sim, Alois sempre cumpre o que diz.

– Amanhã a levarei para longe daqui. Para Lyonsbridge. Com segurança.

– Sim, amanhã...

Lyonsbridge... Bridget imaginava um lindo lugar, mas a probabilidade de conhecê-lo era remotíssima.

Ficou observando o lindo inglês por alguns instantes, até que sua respiração se estabilizou. Como viveria ele na Inglaterra? Não teria nenhuma noiva a sua espera? E a avó, por quem mostrava nutrir tanto orgulho e carinho?

As questões iam e vinham no íntimo de Bridget, e não sabia como respondê-las. Na verdade, não sabia nem mais o que queria. Só compreendia que não deveria nunca mais colocar os pés para fora do Mosteiro de São Gabriel.

Entretanto, essa simples idéia a aborrecia. Em vez de sair dos aposentos, acomodou-se em uma cadeira ao lado do leito de Ranulf

Algum tempo depois, Ranulf despertou. Sonhara que havia voltado para Lyonsbridge e que disputava uma de suas costumeiras lutas com Dragão. Seu irmão o segurava e não queria soltá-lo, e a brincadeira até então amigável se tomara séria demais.

Quando conseguiu focalizar o quarto, Ranulf percebeu que a dor em sua cabeça não tinha nada a ver com Edmund, mas sim com seu ferimento. A boca estava seca como poeira.

Viu-se sozinho, e nenhuma vela queimava na mesinha-de-cabeceira. Onde estaria Bridget? Foi tomado de um pânico incontrolável. Será que os homens do xerife conseguiram entrar na abadia e levá-la prisioneira?

Ranulf sentou-se depressa, mas se arrependeu no ato, tamanha a pressão em sua cabeça.

– O que acha que está fazendo, sir Ranulf Brand?! Com um suspiro aliviado por vê-la parada à soleira, o cavaleiro forçou um pequeno sorriso.

– Eu não sabia onde você estava – murmurou, mal-humorado e dolorido.

Bridget entrou e colocou no chão a bandeja que trazia.

– Além de cuidar de você, tenho outros afazeres. Como você está se sentindo, esta manhã?

Manhã? – Olhou para a janela, o pedaço de céu acinzentado não deixava saber as horas.

– Bem, é quase meio-dia. Você dormiu a noite toda e um pouco mais.

– E não aconteceu nada? Os soldados de Guise não apareceram procurando por um de nós?

– Não, o mosteiro está na mais santa paz. A menos que levemos em consideração os gritos de Ebert por Cirilo estar usando as peças do relógio de água para consertar sua fornalha.

– O que é uma fornalha?

– Uma fornalha é... Não sei ao certo, mas os monges têm muito orgulho dela. Está na cabana de trabalho, com as outras bugigangas.

– Gostaria de conhecer esse lugar.

– Tenho certeza de que eles adorariam mostrá-la a você, meu caro inglês. Embora seja pecado, de acordo com as Regras, os monges têm muito orgulho de suas invenções.

– O que é pecado? As invenções?

– Não, o orgulho. – Bridget esboçou um ligeiro sorriso. Ranulf sentou-se de novo, dessa vez com mais cautela.

– O irmão Alois colocou alguém de guarda, conforme me prometeu?

– Não há necessidade disso. Podemos avistar os visitantes chegando quando eles ainda estão a uma légua de distância, pois a única estrada é ao longo da campina. E não apareceu nem mesmo um coelho desde que você voltou da cidade.

O olhar dela continha a diversão que Ranulf aprendera a reconhecer.

– Creio que os homens do xerife preferem esperar você partir daqui, em vez de ter de enfrentar os temíveis monges cistercienses do São Gabriel.

– Temíveis? Até concordo que Ebert possa intimidar alguém, com sua altura, mas Francis tem a velocidade de uma tartaruga, e Alois está ficando velho...

Ela o interrompeu;

– Não é a força física de que assusta as pessoas, porém, suas extravagâncias. Todos sabem que podem ser alvo de teste dos seus projetos, às vezes insanos. Lembro-me de que quando o ferreiro esteve aqui, no mês passado, para consertar o parapeito de ferro na torre do sino, Ebert e Cirilo o mantiveram trancado lá em cima a tarde inteira, enquanto tentavam aperfeiçoar um dispositivo de um novo sistema que tinham inventado.

– Mas você os ama.

– Sim. Eles são meus pais. Cada um deles.

– Nunca ouvi nada parecido. – Ranulf sorriu. – É difícil acreditar que tenham conseguido mantê-la em segredo aqui por todos esses anos.

– Como eu disse antes, o São Gabriel é um lugar muito tranqüilo. O povo de Beauville nos deixa sossegados com nossas invenções.

– E os superiores da Igreja? Sabem que você vive aqui?

– De jeito nenhum! E por isso que temos de ser tão cautelosos. Seria o fim do São Gabriel se fôssemos descobertos. – A alegria sumiu de suas lindas feições, dando lugar à aflição. – Não pode contar para ninguém, Ranulf.

– Jamais revelarei seu segredo, meu anjo dourado. Mas continuo achando que aqui não é lugar para uma linda moça como você. Pense em toda a vida que está perdendo do lado de fora. Nem ao menos imagina as maravilhas que de que poderá desfrutar.

Bridget se manteve quieta por um momento, pensativa.

– Já conheci muita coisa em tão pouco tempo... Sobretudo como é um beijo entre um homem e uma mulher. Aliás, não só um, vários.

– Sim, minha querida. E nunca vou me esquecer deles.

Ranulf colocou os pés no solo com uma certa dificuldade. Não ousou se erguer, pois ainda sentia-se fraquíssimo. Olhou para Bridget, e os dois ficaram se encarando por um longo momento.

– Precisa comer alguma coisa. – Bridget apontou para a bandeja. – Acha que consegue se alimentar sozinho?

– Sim.

"Assim que meu desejo de tomá-la nos braços e beijar seus lábios carnudos passar, poderei comer, tranqüilo, meu anjo."

– Pode ir sossegada cuidar de suas tarefas. Não se preocupe comigo, Eu estou bem.

Bridget inclinou-se para pegar a bandeja e colocou-a ao lado dele.

– Comece com a sopa, mas bem devagar.

– Sim, senhora.

Quando Ranulf pegou a colher, Bridget se virou e saiu.

Ao cair da tarde, Ranulf sentia-se tão bem quanto antes da visita ao xerife, e ficar na cama como um inválido o incomodava.

Bridget lhe trouxera algumas peças novas de roupa. Eram tão simples quanto as do fazendeiro, mas cheiravam a sabão e a sol.

Vestiu-as e deixou o quarto. O dia ainda estava bastante claro, mas algumas nuvens se formavam a oeste, e o ar era abafado.

Não havia ninguém no dormitório dos monges, o que indicava que deveriam estar cuidando de seus afazeres diários, mas o pátio também estava vazio. Ninguém cuidava do jardim ou do estábulo.

De repente, Ranulf escutou o sino da igreja e soube que era hora das orações vespertinas, o que explicava a quietude. Imaginou que seria de bom-tom juntar-se aos religiosos, mas, agora que saíra daquele aposento minúsculo, não tinha a menor intenção de passar uma hora de joelhos.

Ao observar o horizonte, viu que Bridget falara a verdade. Dava para ver de longe quem se aproximava do território do mosteiro.

Entretanto, apesar de ela defender com unhas e dentes seus queridos monges, Ranulf não a imaginava protegendo o São Gabriel com a ajuda deles. Tinha de partir de imediato para Lyonsbridge e buscar reforços. E era melhor que Bridget fosse junto.

Dirigiu-se à cozinha, mesmo supondo que ela também estivesse rezando. Então, a viu correndo do estábulo para a capela, com a saia nas mãos e os cabelos soltos, esvoaçando.

Ao olhar para a cozinha, todavia, Bridget o avistou e parou. Soltou a saia e ajeitou a cabeleira para trás, e continuou andando com passos mais lentos, dessa vez na direção de Ranulf.

– Como está se sentindo?

– Melhor, minha bela. Muito melhor. E me cansei de ficar deitado.

– Está indo rezar?

– Não se eu tiver uma opção melhor. Ela gargalhou.

– Sempre fico pensando em desculpas para não comparecer.

– Você pode dizer que estava cuidando de mim.

– Ainda precisa de cuidados?

O tom de flerte na voz dela não indicava que tinha passado a existência trancafiada dentro de um convento. O coração dele acelerou.

—Acho que sim—brincou Ranulf, com um sorriso maroto nos lábios. – Assim nos livraríamos de uma hora de reza.

Bridget piscou, marota.

– Você disse que queria ver as invenções dos monges. É uma boa oportunidade para conhecer a oficina, enquanto eles estão na igreja.

Ranulf se esquecera de que queria conhecer a cabana de trabalho, mas, ao ficar parado ao lado dela escutando sua voz suave, sentindo o doce aroma de lavanda de seus cabelos, sabia que a seguiria para qualquer canto.

Bem, vamos para a cabana.

Bridget permitiu que Ranulf segurasse sua mão ao atravessarem o pátio, caminhando como crianças, quando se aproximaram da capela. Escutaram os murmúrios dos monges e prosseguiram, até chegarem à oficina.

– É aqui – disse Bridget, diante da imponente construção. – Quando os monges estão lá dentro trabalhando, a barulheira é grande.

Embora não houvesse ninguém lá dentro, podia-se escutar um ronco.

– E a fornalha – ela explicou.

Ranulf ajudou-a a abrir as portas e entrou. A esquerda havia um amontoado de pedaços de madeira e pequenos recipientes.

– Meu Deus! É por isso que Ebert estava tão aborrecido. Seu relógio de água está destruído!

Maravilhado, Ranulf analisava tudo.

– O que é isso? – perguntou quando viu um objeto feito com uma série de rodas, pesos e pedaços de madeira.

– Não faço a menor idéia. E difícil manter o controle de tudo o que inventam, pois os freis mudam de idéia toda semana. – Bridget indicou uma estrutura alta, no canto, feita de ripas estreitas de madeira. – É uma escada especial que Ebert projetou para colher maçãs no pomar. É uma pena que, a última vez que foi usada, ela caiu em cima do irmão Robert, quase quebrando sua perna. Acredito que esteja aqui para ser consertada.

– Espero que sim.

Seguiram em meio à desordem em direção ao ronco, que vinha de um grande cilindro que começava em uma base de ferro no chão e terminava no telhado.

– Aqui está a fornalha. Os freis falam que é mais quente do que um forno normal por causa da forma e da altura.

Curioso, Ranulf foi até a grande fornalha, olhando de cima para baixo. Nunca vira nada parecido antes. Podia escutar o som das chamas. Pelo visto era muito potente.

– Estou impressionado!

– É o grande orgulho deles. Os monges sempre estão falando da fornalha. Uma vez, Francis tentou assar uma galinha lá dentro. Não sobrou nada além de cinzas.

– Uma coisa como essa seria capaz de coisas incríveis.

– Sim, os monges dizem o mesmo.

– O que é aquilo? – Ranulf indicava uma série de tubos que se estendiam ao longo da fornalha e terminavam em uma outra engenhoca, que parecia um recipiente de ferro gigantesco.

– E um dos maiores orgulhos do irmão Cirilo. É como uma fornalha auxiliar, para dar um sopro extra de ar quando a temperatura lá dentro fica muito quente. Mas decidiram não usá-la.

– Por que não?

– Cirilo fez um teste com um modelo, e o resultado foi uma enorme explosão. De qualquer forma, o irmão Cirilo disse que a fornalha já é quente o suficiente.

 

Ranulf ficou pensativo. A maioria das invenções dos monges era de objetos que facilitavam seu cotidiano no mosteiro, mas aquela fornalha era algo bem diferente.

– Imagino que há homens muito poderosos que adorariam ver essa coisa em ação.

– Nós não recebemos visitas aqui.

O olhar de Ranulf focalizou um pedaço de metal jogado de lado. Foi até lá e abaixou-se para pegar o objeto.

– Esse é o metal que eles forjam – explicou Bridget. O cavaleiro observou o aço frio em sua mão. Era tão negro quanto carvão e tão duro quanto diamante. Já vira aquele metal antes, na casa de Jean, o ferreiro. E em volta dos pulsos do xerife pouco antes de o homem quase partir seu crânio ao meio.

 

                                     CAPÍTULO X

Pelo visto, Bridget não era o único segredo que os monges haviam escondido durante todos aqueles anos, concluiu Ranulf, ainda atordoado peia descoberta da fornalha.

Já vira o metal negro em ação, quando o ferreiro jogara o elmo longe com toda sua força e nada acontecera.

Mas a pergunta que não queria calar era: será que Dragão viera atrás do metal negro no Mosteiro de São Gabriel? Se sim, então o que teria lhe acontecido?

Ranulf diminuiu o passo de Trovão ao se aproximar da cidade. Não conseguia entender por que o xerife e seus escudeiros não tinham ido em seu encalço na abadia, mas também não gostaria de encontrá-los por acaso.

Seguiu até a residência de Jean, procurando manter-se o mais discreto possível. Esperava conseguir com o ferreiro algumas respostas para suas indagações.

Não havia sinal de outros visitantes, e podia-se escutar o barulho de uma bigorna. Amarrando Trovão em um poste, Ranulf seguiu até a porta do estábulo. Avistou o ferreiro sozinho, confeccionando uma arma.

Jean logo parou quando o viu. Fez uma mesura, cm sinal de respeito.

– Bom dia, sir Ranulf Espero que suas compras tenham sido satisfatórias.

– Sim, mas voltei para tratar de outro assunto. – Olhou para a estante onde vira o capacete da primeira vez que estivera ali. – Gostaria de obter mais informações sobre o elmo que me mostrou.

Jean deixou o martelo de lado e limpou as mãos cheias de poeira.

– O que quer saber? – Seu tom foi casual demais.

– Onde o conseguiu?

– Foi feito em uma ferraria perto daqui.

– No Mosteiro de São Gabriel?

– Como você sabe do São Gabriel?

– Estou hospedado lá, com os monges. Jean pareceu confuso.

– Você veio para ser monge ou algo do gênero? A idéia obrigou Ranulf a sorrir.

– Aquilo não é vida para mim. Cheguei lá devido a um acidente, e os religiosos cuidaram de meus ferimentos. Então, vi a fornalha e me lembrei do elmo que me mostrou.

– Eles me pediram para não comentar o assunto em hipótese alguma.

– Quem pediu?

– Sir Ranulf, permita-me dar-lhe um conselho. Os homens que estão interessados no metal negro o querem mais do que se possa imaginar. Não gostarão de saber que um estranho está especulando sobre o assunto.

O inglês olhava ao redor para ver se encontrava algum outro objeto que fosse feito de metal, mas não encontrou nada.

– Tenho um motivo muito forte para querer saber, Jean.

– Então, é melhor você se abrir comigo, pois só poderei lhe contar alguma coisa se seu caso for mesmo grave.

Assentindo, Ranulf fez um breve relato sobre o desaparecimento do irmão. Não coloriu os termos com sentimentalismos, mas observou uma certa simpatia no olhar do ferreiro.

– Esse Dragão é seu irmão mais novo?

– Sim, Jean. Tem um ano a menos que eu. Vacilante, o ferreiro passou ao lado do cavaleiro e foi até a parede oposta a onde estavam, e pegou um grande cesto de palha. Abrindo-o, apontou para dentro, para que Ranulf desse uma olhada.

– Aqui está seu metal negro, caro inglês. Pontas de lanças e de flechas para o Exército do duque da Áustria, fornecidos por seu fiel seguidor, Henri LeClerc, o barão de Darmaux.

Ranulf se aproximou e observou o conteúdo da cesta. Um raio de sol entrando por uma janela iluminava os objetos pretos e pontiagudos.

– Por que pontas de lanças, Jean?

– Por um motivo muito simples. Elas são capazes de furar armaduras.

Ranulf arregalou os olhos.

– São tão duras assim?

– Sim. Tentamos fazer armaduras e outros itens, como o elmo que lhe mostrei, mas é muito difícil, pois o aço é tão duro que se torna quebradiço. Mas é perfeito para coisas pequenas.

– Flechas e lanças que perfuram armaduras poderiam mudar toda a natureza de uma guerra.

– Os exércitos que as possuírem serão praticamente indestrutíveis. – Jean abaixou-se e tirou uma ponta de lança do cesto que media cerca de vinte centímetros. – Com o golpe certo, isto atravessa o peito d& um homem com a maior facilidade.

– Você as fabrica aqui?

– Cuido do acabamento. As peças são forjadas no mosteiro.

– Eles forjam armas lá?!

– Isso mesmo.

– Não é possível!

Em silêncio, Ranulf tentava compreender o que acabara de descobrir. Não podia acreditar que os amáveis, excêntricos e distraídos monges do São Gabriel confeccionassem armas de guerra para um barão inescrupuloso e seu superior, o duque da Áustria.

– Quantas pessoas sabem disso na cidade, Jean?

– Não muitas. Como eu disse, correrá risco de perder a vida quem falar demais.

– Mas eles resolveram incluí-lo no plano por precisar de suas habilidades.

– Sim. O barão necessitou do meu trabalho.

O inglês surpreendeu-se com a ira observada na entonação de Jean.

– Estou percebendo uma certa irritação sua em relação ao barão...

Os nós dos dedos de Jean ficaram brancos ao redor da ponta que segurava.

– O barão precisa de mim porque o outro ferreiro de Beauville morreu.

– O que aconteceu com ele?

– O barão achava que falava demais.

Mais uma vez o olhar dos homens se encontraram, mostrando cumplicidade.

– Ele era seu amigo?

Jean bateu a parte oca da ponta de metal em seu peito. Depois, fitou o teto, com os olhos mareados.

– Era meu irmão.

– Eu quero saber – repetiu Bridget, com determinação. – Desde que me recordo, ninguém nunca quis me contar como cheguei aqui ou de onde vim. Duvido que tenha nascido de um ovo. Alguém aqui dentro deve ter informações a meu respeito.

Ela e Francis esfregavam com areia as longas mesas do refeitório. O monge continuou seu trabalho, evitando encarar Bridget.

– Eu lhe disse, minha filha, que chegaria um momento em que você não se contentaria mais com sua vida aqui na abadia.

Irritada, ela bateu o pé no chão.

– Sou feliz aqui, mas também sou curiosa, Francis. Quando estive em Beauville com Ranulf, todos olhavam para mim como se eu tivesse ressuscitado dos mortos. O que eles sabem? Quem acharam que eu era?

– Algumas vezes a curiosidade é muito perigosa, querida.

– Se não quiser me contar, Francis, acho que terei de voltar à cidade e questionar os estranhos.

Ao ouvir isso, o frei se endireitou, deixou o pano de lado e virou-se para ela.

– Por favor, não faça isso, ainda mais agora. Lembre-se dos homens que foram procurá-la na casa dos Marchand.

– Mas você não percebe, irmão? E por isso que preciso saber. Não é uma simples curiosidade. Por que aqueles homens estavam me procurando? Como ninguém em Beauville me viu antes dessa semana, tenho certeza de que existe alguma relação com meu passado.

Francis hesitou. Então, puxou um banco de baixo da mesa que estivera limpando e indicou para que Bridget se acomodasse na outra ponta.

– Vou lhe contar o que posso, minha filha.

As mãos dela começaram a suar. Até aquele momento, sempre conseguiam dissuadi-la de querer conhecer sua origem, mas dessa vez estava determinada a saber tudo. Não sairia daquele refeitório sem uma explicação. Assim, acomodou-se no banco, pronta para escutar o pior.

– Você nasceu aqui – começou Francis. Ela arregalou os olhos.

– Aqui? No mosteiro?

– Sim.

– Mas por que...

Francis estendeu a mão para interrompê-la.

– O irmão José e o irmão Eustáquio ajudaram sua mãe a dar à luz.

Os dois monges já haviam morrido.

– Minha mãe... Ela não tinha uma família para ajudá-la? Nenhuma mulher? E meu pai?

– Tinha só a nós.

– O que aconteceu com minha mãe? – Bridget sentiu a garganta seca.

O religioso se aproximou dela e colocou a mão em seus braços, cruzados em cima do tampo.

– Morreu, minha filha. Doze dias depois de seu nascimento, ela não resistiu, e faleceu.

Bridget fechou os olhos. Doze dias... Tivera uma mãe por doze dias, apenas.

– Foi o parto que causou sua morte?

– Sim, foi o parto.

Ao abrir os olhos, Bridget deparou-se com a expressão solidária de Francis,

– Mas sua mãe a amou com todas as forças, Bridget. Não parava de repetir que você foi a melhor coisa que aconteceu para ela.

– E meu pai?

– Desculpe-me, filha, mas não posso lhe contar nada sobre ele.

– Mas se minha mãe estava aqui, sob os cuidados dos monges, deve ter lhes revelado quem era meu pai.

– Nós conhecíamos seu pai, minha filha.

– Ora, me conte quem ele era! Faz vinte anos, irmão. É tempo suficiente para se honrar um segredo.

– Alguns segredos precisam ser guardados para sempre. O que posso lhe dizer é que seu pai morreu alguns dias depois de sua mãe, e nos deixou você como uma responsabilidade sagrada.

A julgar pelo olhar de Francis, mais uma vez Bridget receberia o silêncio como resposta às questões sobre seu passado. Não conseguia entender o porquê. E nenhuma das breves respostas que escutara explicava os olhares assustados, a menos que sua mãe tivesse morado em Beauville.

– Eu me pareço com ela? Francis abriu um belo sorriso.

– Sim, é a imagem perfeita dela. Sua mãe era uma bela mulher.

Bridget ficou surpresa, pois era a primeira vez que algum dos monges fazia algum comentário sobre sua aparência.

– Ela era de Beauville? Foi por isso que todos ficaram me olhando como se eu fosse um fantasma?

– Essa é a verdade, minha filha. Não sei quem era sua mãe. Mas sei que não era de Beauville.

– Não a conhecia, Francis? Ninguém aqui conhecia sua identidade?

– O irmão José sabia, mas jurou jamais revelá-la.

– Ela se chamava Charlotte?

– Sim, isso eu posso lhe contar.

Não era suficiente. Durante todos aqueles anos Bridget se contentara em ser a filha do mosteiro. Os monges eram seus pais, e o São Gabriel, sua herança. Porém, de repente, seus pais haviam se tomado pessoas de verdade. Sua mãe tinha um nome, um lindo nome; Charlotte, e vivera e amara sua filha por doze dias.

E seu pai a confiara aos monges como se fosse um tipo de tesouro para ficar guardado e escondido.

As indagações não paravam de atormentá-la.

– O irmão José revelou a identidade de minha mãe para alguém, antes de morrer? Talvez para o irmão Alois?

Francis se ergueu, pouco à vontade.

– Eu já lhe falei mais do que podia, filhinha. Vamos colocar um ponto final nessa história. Você está feliz aqui na abadia, e é isso o que importa. Se não terminarmos de limpar essas mesas, vamos perder as orações das seis.

Bridget também se levantou e recomeçou a limpeza, embora sua mente estivesse bem longe. O irmão Francis tinha razão. Ela era feliz no mosteiro, ao lado de seus queridos freis, mas não era só isso o que importava. Queria saber quem era.

Ranulf tinha o coração disparado ao desmontar Trovão e o levar a uma baia vazia no estábulo do convento.

Passara grande parte da tarde conversando com Jean, mas nenhuma das informações do ferreiro lhe dera algum indício do que poderia ter acontecido com Edmund. Sua única teoria era de que, se Dragão estava à procura do metal negro, o homem que talvez soubesse a resposta para o desaparecimento dele era Henri LeClerc.

Mas, óbvio, não poderia perguntar-lhe, pois tivera uma amostra da cordialidade dos poderosos de Beauville quando estivera na casa do xerife. Não seria tão tolo a ponto de aparecer sozinho no castelo de Darmaux.

– Precisamos voltar para Lyonsbridge o mais depressa possível, garoto – disse ele a Trovão, enquanto tirava a manta do lombo do cavalo.

– Está pensando em ir embora? – perguntou uma voz doce atrás dele.

Pouco depois de terem voltado ao normal, seus batimentos cardíacos se aceleraram de novo ao escutar Bridget.

Ranulf a viu parada perto de um monte de feno, linda em seu vestido azul.

– Preciso ir até lá, meu anjo. Vou buscar ajuda.

– Conseguiu descobrir alguma coisa sobre seu irmão?

– Sim e não. Acho que o desaparecimento de Dragão tem alguma ligação com as invenções de seus monges.

Bridget o encarou, confusa.

– Acha que ele estava vindo até aqui para conhecer as invenções?

– Não. Creio que vinha em busca do metal preto.

– Não estou entendendo, Ranulf

– Na verdade, eu também não. Preciso de mais algumas respostas para conseguir compreender pelo menos um pouco de todo esse mistério. Mas, pelo visto, ninguém quer me ajudar. Como foi seu dia, Bridget? Falou com Francis?

– Sim.

Ela fez um breve resumo de sua conversa com o frei.

– Isso significa que, decerto, Camille, que a chamou de Charlotte na cidade, conhecia sua mãe.

– Sim. Francis me falou para não cometer o erro de ir até Beauville em busca de esclarecimento, ainda mais por terem ido me procurar na residência dos Marchand, mas não consigo pensar em outra coisa. Quero me encontrar com aquela senhora de novo. O que acha?

– Na verdade, eu estava pensando em levá-la comigo para Lyonsbridge e deixá-la por lá, em segurança, enquanto retorno para procurar Dragão.

A noite começava a cair, e o interior do estábulo já estava escuro. Bridget conseguia apenas enxergar o repentino brilho dos olhos azuis. Sentiu um nó na garganta. O convite de Ranulf a pegara de surpresa.

– Levar-me para Lyonsbridge, sir?

– Sim, meu anjo. A idéia de deixá-la aqui, desprotegida, não me agrada nem um pouco. Os homens do xerife podem vir procurá-la, e, por mais que você idolatre seus monges, duvido que eles tenham forças para enfrentar aqueles malfeitores.

Bridget foi tomada por uma incontrolável decepção. Fora tola ao crer, mesmo que apenas por um instante, que a sugestão do inglês fora algo além de um gesto galante. Cavaleiros tinham o dever de proteger mulheres indefesas. Todas elas.

– O que sua elegante avó diria se você aparecesse com uma pobre jovem normanda sem um sobrenome conhecido?

Ranulf sorriu.

– Ela diria: “Bienvenue, ma chère”. Vovó é daqui, não se lembra?

– É uma normanda nobre – salientou Bridget. – Agradeço muito por sua gentileza e preocupação comigo, mas ficarei bem aqui onde estou.

– Em um mosteiro cheio de homens?

– Que sempre cuidaram de mim como se fossem meus pais. Sim, meu lar é aqui, e ao lado deles, Ranulf.

Quando vira o inglês se aproximando, cavalgando Trovão com toda imponência, Bridget correra para a estrebaria, ávida por lhe contar a conversa com Francis. Mas agora estava arrependida de ter vindo. Seus olhos se encheram de lágrimas.

Ranulf percebeu a súbita tristeza de seu anjo dourado antes que ela pudesse se virar. Aproximou-se de Bridget e envolveu-a com seus braços fortes.

– Não chore, querida – murmurou, tentando confortá-la. – Sinto muito. Sei o quanto você gosta dos freis, mas acho difícil entender que você não tenha vontade de viver em outro lugar.

– Este é o único lar que conheço.

– Sim, mas há um mundo lá fora para você desbravar.

– Pelo pouco que conheci, creio que prefiro a segurança da abadia.

Ranulf aninhou-lhe a cabeça em seu peito.

– Não gostou de nada lá fora?

– Sim, Ranulf, gostei de algumas coisas.

Quando ergueu o queixo para olhar para o rosto de Ranulf, Bridget deparou-se com um lindo sorriso. As pupilas dele continham a mesma emoção que vira quando passaram a tarde juntos, na beira do riacho. Ranulf deu-lhe um beijo na face?

– E posso saber o que foi?

– Sou capaz de jurar que você já sabe, sir. Apertando-a com mais firmeza, Ranulf movimentou a cabeça de um lado para o outro.

– Quero escutar de sua boca, meu anjo. Ranulf mordiscou-lhe o lóbulo da orelha.

– Disso – ela respondeu, num fio de voz.

– Disso? – Ranulf mordeu-lhe o lábio inferior.

– Sim... – Suspirou.

– Ah, Bridget! Se você soubesse... Isso é apenas o começo de uma experiência inesquecível.

 

                                     CAPÍTULO XI

Ranulf tomou-lhe os lábios com firmeza, movimentando a boca e língua com tanta volúpia que Bridget teve dificuldade em manter-se em pé. Pegando-a no colo, o inglês olhou a sua volta, no estábulo.

– Espere um pouco, meu amor. – E carregou-a para um canto, ao lado das baias onde, havia uma pilha de feno fresco. Com um movimento rápido, Ranulf colocou-a no chão. – Por favor, não se mexa.

Mais depressa ainda, ele pegou algumas mantas e jogou-as em cima do feno, ajeitando-as. Quando terminou, olhou para a porta aberta, que permitia a entrada dos últimos raios de sol.

– Existe a possibilidade de algum dos monges aparecer por aqui esta noite?

– Não. Eles estão fazendo as orações finais. Depois, irão direto para a cama.

– Que bom! Sendo assim, não vou fechar a porta.

Quero poder ver seus olhos enquanto fazemos amor.

Bridget sentiu um frio na barriga ao escutar aquelas palavras.

– Nós vamos fazer amor? – perguntou, sem o menor sinal de protesto.

– Sim, querida. Vamos, sim.

A idéia era deliciosamente sedutora. Bridget lera sobre a arte de amar nos livros proibidos do mosteiro, mas nunca acreditou que fosse acontecer com ela. De alguma forma, com a proximidade daquele cavaleiro, parecia algo natural e inevitável.

– Acho que será excelente! – sussurrou Bridget. Com calma, Ranulf primeiro a despiu, depois tirou suas próprias roupas, livrando-os de qualquer empecilho.

Por fim, os dois estavam nus, as mãos dele acariciando-lhe as costas, para cima e para baixo, em suaves movimentos. Bridget fechou os olhos e deixou a cabeça pender para o lado, com um breve murmúrio de deleite.

– É esquisito... Nunca senti nada parecido, Ranulf. As Regras proíbem que as pessoas se toquem.

Quando criança, os monges a tinham abraçado algumas vezes. Bridget podia até contar nos dedos essas ocasiões. A maioria delas quando se machucara ou chorava por algum motivo. Também a consolavam com tapinhas no ombro.

Mas, no geral, as carícias de Ranulf começavam a lhe abrir um mundo novo de sensações. Os dedos fortes pareciam vivificar cada pedaço de pele que afagavam.

– Acho que todo o mundo deve ser tocado – ele falou, massageando-lhe o pescoço e ombros. – Faz parte da natureza humana.

Bridget ergueu as pálpebras e sorriu, um discreto sinal de que concordava com a afirmação.

– Também devo tocá-lo.

– Sim. – Contudo, o simples fato de imaginar as mãos delicadas acariciando-o foi suficiente para excitá-lo ao extremo.

Por vários instantes, exploraram um ao outro. Então, Ranulf acariciou Bridget até alcançar-lhe as nádegas. Em seguida, puxou-a para bem perto de si, para que sentisse sua masculinidade.

Os mamilos de Bridget encostaram-se nos pêlos enrolados do peito dele e enrijeceram com o contato.

A princípio, ela o tocou com cautela, sem saber como agir direito, mas depois foi mais ousada em seus movimentos, deixando suas mãos esculpirem o forte contorno de seus braços, depois descerem pela lateral de Ranulf.

– Toque-me, meu anjo...

Bridget levou os dedos ao baixo-ventre de Ranulf, acariciando-o com delicadeza. Ao escutá-lo respirando fundo, ela temeu tê-lo machucado.

– Doeu? – perguntou, assustada.

– De jeito nenhum, minha linda. Não se preocupe, você está fazendo tudo direitinho.

– Na verdade, não sei muito bem como agir. – Bridget tinha as faces muito rosadas.

– Qualquer coisa que a faça sentir-se bem, querida. Depois, relaxe e deixe-me fazê-la sentir-se bem. As coisas acontecem assim, meu amor.

– Eu devo...

Ranulf interrompeu-a tocando-lhe os lábios com a ponta dos dedos.

– Pare de pensar, pare de falar. Vamos deixar as coisas acontecerem.

Ranulf começou a beijá-la de novo, trazendo de volta todas as delícias desconhecidas que ela começara a experienciar. Não conseguiu mais concatenar os pensamentos quando ele lambeu seu seio, sugando, sem seguida, o mamilo intumescido. Com a mão, Ranulf desenhava círculos em sua barriga, descendo aos poucos.

No instante em que se posicionou em cima dela, Bridget sentia que faltava pouco para começar a flutuar. Quando sentiu Ranulf dentro de suas carnes, teve uma ligeira pontada, mas a sensação dolorida foi logo substituída por uma plenitude inexplicável que parecia tocar a parte mais essencial se seu ser.

A respiração deles tomou-se irregular e agitada. Sem

conseguir controlar o que estava sentindo, Bridget apertou-o com mais força, e logo os dois atingiram o êxtase juntos. Ela nunca imaginou que pudesse existir algo igual.

– Meu anjo... – Ranulf deitou-se ao lado de Bridget, aninhando-a como a um bebê. – Meu lindo anjo dourado...

Aos poucos sua mente conseguiu voltar ao normal, ciente da mão acariciando-lhe a pele suada, da lã contra suas costas. Demorou até conseguir juntar forças para falar:

– Então é assim que se faz amor.

Ranulf divertiu-se com a ingenuidade dela. Bridget não pensava duas vezes antes de dizer o que queria.

– Sim, minha querida. E como se conseguíssemos chegar ao paraíso.

– Obrigada.

– Precisa parar de me agradecer. – Sorriu.

– Mas estou muito agradecida. E contente. Espero que sua cabeça não piore por causa do esforço, mas pense um pouco. Se você não tivesse sido atacado por aqueles malvados, jamais teria chegado ao São Gabriel, e eu não saberia como é fazer amor.

– Eu me machucaria todos os dias se essa fosse a recompensa. Fico feliz em saber que gostou da experiência.

Bridget encaixou a testa no pescoço de Ranulf.

– Nunca me esquecerei destes momentos, meu cavaleiro inglês. Muito menos de você, Ranulf.

As palavras tinham ares de que algo chegara ao fim. Um súbito arrepio percorreu-lhe a espinha à medida que a brisa noturna entrava pela porta aberta do estábulo. Ranulf nada disse, apenas a estreitou com mais força, querendo que aquele momento durasse para sempre.

– Ranulf? – Bridget chamou-o, minutos depois, sentindo que ele adormecera.

Com os olhos sonolentos, seu amado beijou-lhe a testa.

– Parece-me que não vou conseguir escapar do cansaço que me acomete, querida.

Com remorso, Bridget soltou-se do abraço.

– Ah, meu Deus! Eu me esqueci de seu ferimento! Está tudo bem? Tem certeza de que não se machucou? Sua cabeça está doendo?

– Meu ferimento está bem, Bridget. E o resto do corpo que está sem energia. Foi um dia muito longo.

– E você deveria ter voltado há muito tempo, pois precisa ficar em repouso. Por que demorou tanto na cidade?

Ranulf contou-lhe sobre toda a conversa com o ferreiro e, quando terminou de falar, Bridget afastou-se dele e começou a se vestir.

– Aconteceu alguma coisa, querida?

– Acredita que esse homem falou a verdade?

– Jean? Claro que sim.

– Então acha que os monges, os meus monges, fazem essas coisas terríveis? Que trabalham para esse monstro que é LeClerc, o assassino do irmão do ferreiro?

Sabendo que tinha de tomar o máximo de cuidado com o que dizia, Ranulf sentou-se. A entonação de Bridget já não era mais a mesma, evidenciando toda sua irritação com o que ele sugeria. Com o que era a mais pura verdade. A fabricação de armas explicava a existência de uma fornalha daquele tamanho em um simples convento.

– Sim, Bridget – afirmou, com seriedade. – Acredito que as armas são feitas aqui no Mosteiro de São Gabriel. Mas não sei quem está envolvido. Podem ser todos os freis ou só alguns.

Bridget terminara de se compor, e virou-se para encará-lo.

– Bem, eu não acredito.

– Não existe outro forno tão poderoso para forjar um metal como aquele. Nunca vi nada parecido em toda a Europa, ou mesmo na Inglaterra.

– Então outra pessoa a está usando. Não consigo imaginar os monges fabricando armas.

– Seja razoável. Os religiosos passam o dia todo trancados nessa oficina. Como alguém poderia estar usando a fornalha sem que eles soubessem?

Bridget empinou o queixo da maneira teimosa que Ranulf já começava a reconhecer.

– Não sei, mas não é possível que os irmãos do São Gabriel sejam guerreiros e assassinos. A história me parece um rematado absurdo, Ranulf.

– Mas não foi seu irmão que sumiu – disse ele, com certa exasperação. – Preciso considerar todas as possibilidades para encontrar Dragão.

– Sim, eu sei. – Bridget ficou um pouco mais calma. – Procure suas respostas com o xerife e o barão de Darmaux. Acho pouco provável que as encontre aqui na abacia.

Quando conseguiu fechar o cinturão, Ranulf esticou os braços e pegou as mãos dela, prendendo-a entre as suas.

– Quer ir comigo até Lyonsbridge e ficar por lá enquanto eu volto para tentar solucionar esse grande mistério?

Devagar, Bridget fez que não.

– Meu lugar é aqui, ao lado dos monges.

Ranulf olhou para as mantas amarrotadas em cima do feno.

– Mesmo tendo conhecido um pouco das maravilhas que o mundo tem a lhe oferecer?

– Sim. Encaro a vida lá fora como sendo uma grande caixa cheia de seduções que confundem o pensamento lógico enquanto tenta ferir as pessoas que mais amamos.

Ranulf não imaginava que Bridget fosse recusar-se a partir com ele, ainda mais agora, depois de tudo o que houvera entre ambos. A idéia de deixá-la desprotegida e desamparada fez com que seu tom de voz se alterasse mais do que pretendia:

– Não quero machucar ninguém, Bridget. Desejo apenas encontrar meu irmão.

– Seu irmão é um cavaleiro como você, Ranulf. Aqui é um lugar de paz. Você não o encontrará aqui.

O céu lá fora estava preto, o que o impedia de ver seu semblante, mas a irritação era evidente em sua voz doce.

Ranulf queria dizer alguma coisa que pudesse fazer renascer um pouco dos sentimentos que tinham compartilhado poucos momentos atrás, enquanto estavam deitados abraçados sobre o feno, mas, antes que pudesse abrir a boca, Bridget se afastou correndo.

Bridget acordara bem antes do amanhecer, mas continuava deitada na cama, tomada pelas muitas dúvidas.

Tentou não se lembrar do toque sensual de Ranulf em seu corpo, na véspera, mas a recordação não parava de atormentá-la, junto com um desejo irracional de repetir a deliciosa experiência.

Então, lembrou-se de como a noite terminara, de como ele acusara seus adorados monges de cumplicidade na fabricação de armas e assassinato.

Antes que os galos começassem a cantar no cercado localizado atrás do estábulo, Bridget se levantou e foi até a cozinha. Esperava que Francis acordasse logo para ajudá-la nas tarefas matinais. Ele costumava fazê-lo, mas Bridget desconfiava que pulava mais cedo do leito mais para saciar a fome do que por devoção ao trabalho.

Sentiu um grande alívio ao vê-lo.

– Irmão Francis, que bom que está aqui! Bom dia. O frei colocou o último pedaço de pão com manteiga na boca.

– O que aconteceu, filha?

– Ah... E que... São tantas coisas... – Bridget mordeu o lábio para conter as lágrimas.

Francis pegou a outra fatia de pão que começara a preparar e foi até ela.

– Sente-se, Bridget. Conte-me o que aconteceu, o que a aflige.

Ela sentiu as faces arderem ao perceber que nunca poderia revelar-lhe os momentos maravilhosos e inesquecíveis que tivera ao lado de Ranulf, mas relatou-lhe as suspeitas do cavaleiro sobre a fornalha.

Quando terminou de falar, Francis sentou-se pesadamente no banco a seu lado, muito preocupado.

– O que foi, irmão Francis? Você não pode estar achando que existe alguma verdade nessas acusações. Armas no Mosteiro de São Gabriel? Ora, a idéia é ridícula! Armas sendo fabricadas por seguidores de Deus... Onde já se viu?

Francis ficou em silêncio por tanto tempo que Bridget se alarmou.

– E uma idéia absurda, não é, irmão?

– Não tenho muita certeza, minha filha.

– Como assim? O que está querendo dizer? Francis a encarou com seriedade.

– Nunca entendi por que construíram aquela fornalha. Não sei por que, mas aquele forno gigante me incomoda. E acredito que grande quantidade de metal seja produzida aqui. Só não sei o que acontece depois. Parece que some!

– Mas como...

– Não sei – interrompeu-a Francis.

– Alguém deve saber.

– Sim, alguém deve saber.

– Precisamos convocar uma reunião e contar nossas desconfianças para os outros monges e perguntar a atitude a tomar.

– De jeito nenhum, Bridget. Se um dos irmãos do São Gabriel está escondendo esse segredo e aliou-se ao barão de Darmaux, é pouco provável que o admita diante de todos.

– Ranulf pretende trazer reforços da Inglaterra para atacar o barão.

Francis meneou a cabeça e suspirou.

– Se algum dos freis estiver mesmo envolvido nessa história absurda, será o fim do Mosteiro de São Gabriel.

Bridget sentiu um arrepio.

– Precisamos descobrir quem é e impedi-lo de continuar com a fabricação de armas, Francis. Se ninguém aqui quiser cooperar, o barão não terá quem faça suas armas.

– Sim, mas precisamos tomar muito cuidado, pois o barão é um homem perigosíssimo. Irei até a cabana de trabalho agora mesmo para ver se consigo descobrir alguma coisa. Ainda é muito cedo e os monges demorarão para acordar. E Ranulf?

– Acredito que conseguirei convencer nosso cavaleiro inglês a adiar sua volta para casa enquanto você tenta descobrir alguma coisa.

Francis assentiu e se levantou da cadeira.

– Essa... essa tática de atraso não envolve nada que necessitaria de uma confissão posterior, não é, minha filha?

Bridget enrubesceu mais uma vez diante da indagação indiscreta do monge. Estaria tão óbvio assim que fizera amor com Ranulf?

– Não, irmão Francis. Fique sossegado. Prometo que apenas lhe pedirei ajuda em um determinado assunto.

Depois de alguns minutos observando-a, Francis se mostrou satisfeito e virou-se para sair.

– Ótimo. Esse cavaleiro inglês me parece uma excelente pessoa, mas é um nobre, e os nobres são conhecidos pela falta de escrúpulos ao lidar com pessoas... – Fez uma pausa, tentando escolher os termos adequados. – Com pessoas de classes inferiores.

Aquilo foi como um soco no ventre de Bridget, mas ela forçou-se a sorrir.

Não se preocupe, Francis. Sei muito bem que um homem tão fino quanto Ranulf Brand jamais se interessaria por uma mulher como eu.

– Ele está bom outra vez? – perguntou o barão para 0 homem encapuzado que o encontrara no bosque atrás do Mosteiro de São Gabriel.

– Sim. E pretende partir amanhã cedo para Lyonsbridge em busca de reforços – contou o monge.

– E a jovem também está com vocês.

– Sim, ela voltou para casa.

LeClerc bateu o chicote em sua própria perna.

– A garota tomou-se um perigo para nós.

– Bridget não sabe de nada, e não quer nada além de viver em paz no convento, como antes. Foi parte de nosso trato.

– Sim, mas o acordo pode ser mudado. Não podemos permitir que pessoas fiquem passeando em volta do convento até que todo o carregamento de armas para o barão esteja pronto.

– Eu sei, milorde, mas já lhe disse que a garota não lhe trará mais problemas.

– Veremos. Enquanto isso, iremos nos livrar desse cavaleiro inglês. Se as coisas continuarem assim, ele poderá atrapalhar nossos planos.

– O senhor não pretende matá-lo dentro do mosteiro, não é?

– Não, seria uma estupidez. Além disso, não há necessidade. E também uma morte dentro do São Gabriel causaria uma investigação do... intrometido bispado, que até agora conseguimos evitar.

– Concordo. É melhor o cavaleiro estar bem longe de lá quando vocês o matarem. Só espero que dessa vez seus homens sejam mais eficientes do que da primeira.

LeClerc caminhou até seu cavalo e montou-o com um pouco de dificuldade.

– Guise é um tolo! Dessa vez pretendo fazer o serviço com minhas próprias mãos.

O religioso fez uma ligeira mesura, mostrando o respeito que sentia por aquele temível nobre.

– Está bem, milorde. Peço apenas que espere ele estar bem longe de nós.

– Deixe que eu me preocupe com o cavaleiro inglês, irmão. Seu dever é manter a tranqüilidade e a ordem dentro da abadia e cuidar para que os outros monges fiquem afastados da oficina de trabalho durante a noite, enquanto meus homens trabalham. O duque espera que seu carregamento chegue o mais depressa possível.

O monge assentiu.

LeClerc puxou as rédeas do cavalo, e o animal empinou.

– E lembre-se: se a jovem começar a causar problemas, serei obrigado a me livrar dela também.

– Compreendo, sir.

O barão virou a montaria e sumiu em meio às árvores do bosque.

– Eu mesma teria ido se você não tivesse sido tão categórico sobre o perigo que corro, com os homens do xerife atrás de mim – disse Bridget, sentada ao lado de Ranulf, na cama dele.

Todos os monges já tinham acordado e saído dos dormitórios. Isso significava que estavam sozinhos.

– Camille Courmier não sabe nem seu próprio nome direito, quanto mais o de sua mãe – observou Ranulf.

Estava envergonhado por ter sido pego deitado àquela hora da manhã, e espantou-se com a súbita mudança no comportamento de Bridget. Na noite anterior ela deixara o estábulo furiosa. Agora, mostrava-se doce e amável, mas impedira que ele segurasse sua mão, mantendo-a em cima da saia.

– Preciso pelo menos tentar, Ranulf Camille me chamou de Charlotte, e sabemos que esse é o primeiro nome de minha mãe. Tenho certeza de que a sra. Courmier também sabe o sobrenome dela. Espero apenas que consiga se lembrar.

Ranulf levantou-se e pegou a túnica, vestindo-a depressa.

– Esperava que você fosse comigo para Lyonsbridge.

– E quando eu voltasse da Inglaterra, a sra. Courmier poderia estar morta, o que significaria que perderia a chance de descobrir o que ela sabe sobre mim e sobre o passado de minha família.

– O filho dela, Pierre, disse que não tinha a menor idéia de por que ela a chamou de Charlotte.

– Pierre deve ser poucos anos mais velho que eu. Duvido que possa recordar se seus parentes conheciam minha mãe.

Ranulf terminou de se vestir depressa tentando decidir o que fazer. Agora que vira o metal negro e sabia do envolvimento do xerife com o barão LeClerc, estava ansioso para voltar para sua terra natal, contar as novidades para seus avós e recrutar a ajuda de seu irmão Thomas.

Por outro lado, sentiu um grande alívio ao ver que a raiva de Bridget passara. Além disso, se a acompanhasse até a fazenda dos Courmier, talvez conseguisse convencê-la de ir com ele até a Inglaterra.

– Muito bem, querida. Vamos partir o mais rápido possível, antes que percamos mais tempo.

– Não fui eu quem ficou na cama a manhã toda. – Ela esboçou um sorriso maroto.

A vontade que Ranulf tinha de beijá-la era incontrolável, mas sabia que as coisas entre eles já não eram mais as mesmas. Assim, contentou-se em tocar-lhe a ponta do nariz.

– Acha justo rir de um cavaleiro que se recupera de uma batalha?

Ranulf ressaltou a última palavra, deixando que Bridget decidisse qual interpretação dar a ela, Era seguida, a acompanhou para fora do quarto, em direção ao estábulo do São Gabriel.

 

                                   CAPÍTULO XII

Pierre Courmier cumprimentou Bridget e Ranulf com muita cortesia quando os viu chegando à fazenda. O cavaleiro ficou contente com a simpatia daquele homem, pois seu último encontro fora para pedir-lhe ajuda devido à tragédia envolvendo os Marchand.

– A sra. Marchand está segura em Rouen – disse ele, assim que Ranulf desmontou Trovão e virou-se para ajudar Bridget. – A filha dela chegou ontem e deixou a venda da casa sob minha responsabilidade.

Ranulf esticou o braço para apertar a mão calorosa do queijeiro e leiteiro.

– Pode-se ver que você é gente de confiança, Pierre. Eu lhe devo muito, caro amigo.

– Não se preocupe com isso, sir Ranulf. Trata-se de camaradagem entre vizinhos.

– Mesmo assim, estou muito agradecido por seu auxílio. E, por favor, não me chame de sir. Meu nome é Ranulf.

– Está bem. Mas não foi nada de mais. Os Marchand eram ótimas pessoas.

O sorriso de Bridget, que escutava a conversa em silêncio, sumiu de seus lábios.

– Sim, eram mesmo.

– Mas viemos por outro assunto – interveio Ranulf, ao observar a tristeza nos olhos verdes de seu anjo. —Você se lembra do dia em que nos conhecemos no mercado, quando sua mãe chamou esta jovem por um nome?

– Sim, claro. Mamãe chamou-a de Charlotte. Mas eu lhes disse que ela não anda muito boa da cabeça. Sempre confunde tudo.

– Será que poderíamos fazer-lhe algumas perguntas?

– Ranulf amarrou Trovão em uma cerca que rodeava a bela horta do leiteiro.

– Creio que sim, mas algumas vezes ela fica muito agitada quando tenta recordar alguma coisa e não consegue. – Pierre notou a expressão de Bridget, que quase implorava. – Mas acho que vocês podem tentar.

– Prometemos parar, caso ela comece a se agitar. Pierre assentiu e os guiou até a construção de pedras.

– Cuidado com o batente – advertiu ele, dirigindo-se a Ranulf.

Os dois tiveram de se abaixar para não bater a testa.

O interior da casa era bastante iluminado, pois havia três janelas bem grandes. Uma porta saindo da sala principal levava aos dormitórios na parte dos fundos. Era evidente que os Courmier eram uma família próspera.

Não havia ninguém na sala de estar.

– Meus irmãos estão trabalhando – explicou Pierre.

– E minha mãe está descansando, deitada.

– Então não vamos acordá-la – disse Bridget.

– Não tem problema, pois está na hora de acordá-la. Mamãe não costuma dormir muito durante o dia, senão não consegue adormecer à noite. Vou chamá-la. Aguardem um momento, por favor. Sentem-se.

Ranulf olhou ao redor, em busca de algum brinquedo, de algum indício de criança, mas não avistou nada. Pelo jeito, os Courmier eram todos solteiros.

– Quantos irmãos e irmãs você tem? Pierre sorriu.

– Nenhuma irmã sobreviveria aqui. Somos seis homens.

– Seis! – exclamou Bridget.

Ranulf a fitou com compaixão. Deveria ser difícil imaginar uma casa cheia de irmãos depois de ter passado toda a infância sozinha, ainda mais em um convento, sem contato com outras crianças.

– Sim, seis. O povo de Beauville nos chama de "os levados Courmier", pois costumávamos dar muito trabalho quando meninos.

– Tenho apenas dois – contou Ranulf. – Você e seus irmãos seriam oponentes perfeitos para nossas brincadeiras de luta.

Os dois homens trocaram um típico olhar masculino de competição.

– Quem sabe não marcamos um encontro qualquer dia desses? – E Pierre afastou-se. – Vou buscar minha mãe.

– Thomas, Dragão e eu acabaríamos com todos de uma vez – afirmou Ranulf, cheio de orgulho, quando o homem desapareceu no corredor.

– Você parece os monges, quando eles tentam mostrar quem é o melhor em suas invenções malucas. Mas pelo menos não terminam com dores no corpo, nem ossos quebrados.

– Sim, nós, homens, somos uns bárbaros, não? Entretanto, não foi uma competição amistosa que causou este ferimento.

– Eu sei.

Eles se viraram quando Pierre apareceu à porta de braço dado com a mãe. A sra. Courmier parecia mais frágil e mais esquecida do que parecera no mercado, e Bridget sentiu uma grande dor no coração. Pelo visto, a matriarca da família de leiteiros não poderia ajudá-la.

Pierre auxiliou a mãe a acomodar-se em uma poltrona confortável, baixa e curta o suficiente para que ela conseguisse alcançar o chão com os pés. E os braços eram um pouco mais altos do que o normal, para impedir que a boa senhora caísse. Assim que se sentou, Camille fitou os visitantes.

– Já lhe ofereceram o bolo de passas?

Foi Ranulf quem respondeu, pois Bridget estava sem saber por onde começar:

– Obrigado, cara senhora, mas não precisamos de nada. Viemos apenas conversar um pouco.

– Tento educar bem meus filhos e vivo insistindo para que sejam simpáticos com as visitas. Entretanto, eles sempre se esquecem do bolo de passas. – Camille suspirou.

– Nós já comemos – disse Ranulf, um pouco mais alto, achando que ela era um pouco surda.

Bridget começava a perder as esperanças. Pierre ajoelhou-se ao lado da mãe e colocou a mão em seu braço, para tranqüilizá-la.

– Ranulf e Bridget vieram visitá-la, mãe.

– Eu sei disso. Ela vem todos os sábados. – Camille indicou Bridget. Então voltou-se para o filho. – E nós lhe oferecemos bolo de passas, que ela adora.

Pierre ergueu a cabeça, rápido.

– Eu me lembro disso – afirmou, maravilhado. Ranulf tomou os dedos de Bridget e apertou-os. Ela ficou imóvel no assento.

– Você se lembra exatamente do quê, meu amigo? Como se quisesse clarear as idéias, Pierre meneou a cabeça de um lado para o outro.

Eu era apenas um garoto, Ranulf. Devia ter cinco ou seis anos. Mas recordo a bela jovem que vinha ver minha mãe. O perfume dela me encantava.

– E acha que essa mulher é a mesma Charlotte que Camille mencionou no mercado?

– Minha Charlotte... – disse a senhora. – Minha pequena Charlotte, que eduquei desde pequena...

Os três se entreolharam, cada vez mais confusos.

– Você falou que não tinha irmãs.

– Estou tentando me lembrar da moça que vinha nos visitar. Acho que, antes de se casar com meu pai, mamãe foi babá dessa jovem por vários anos.

– O que significa que ela era uma mulher de posses. – Ranulf apertou mais uma vez a mão de Bridget.

De repente, ela começou a ficar nervosa, imaginando que se queria mesmo conhecer seu passado e a verdade sobre seu nascimento. Será que continuaria a mesma pessoa? Saber os nomes de seus pais melhoraria sua vida de alguma forma? Ou o fato poderia lhe trazer mudanças imprevisíveis?

Pierre continuava perdido em devaneios.

– Lady Charlotte... Sim, meu pai costumava falar de lady Charlotte.

– Minha preciosa criança – falou Camille. – Eles a mataram. Assassinaram minha bela Charlotte. Tentei adverti-la...

Uma lágrima escorreu pelo rosto enrugado da senhora. Ranulf olhou para Pierre, pedindo explicações.

– Sinto muito, mas não sei de mais nada. Só que um dia as visitas pararam. Fazia anos que eu não pensava no assunto.

– Será que algum de seus irmãos lembra de mais alguma coisa?

– É pouco provável, Ranulf, pois sou o mais velho. Bridget parecia estar em transe. Levantou-se do banco

e caminhou pela sala até chegar aos pés de Camille. Então se ajoelhou na frente dela.

Pierre se levantou e afastou-se para dar-lhe espaço.

– Ninguém matou Charlotte, minha querida – começou Bridget, segurando as mãos da senhora. – Ela morreu alguns dias depois de meu nascimento.

– Não fui capaz de salvá-la. – Camille choramingava.

– Se a tivesse mantido afastada deles, poderia estar viva ainda.

– Não, não havia como evitar sua morte. Mas, de certa forma, um pedaço dela ainda continua vivo. Eu sou a filha de Charlotte.

Os olhos azuis de Camille mostraram um brilho de lucidez, de súbito.

– E verdade? Você é filha de minha Charlotte?

– Sim. – Bridget se inclinou para frente, para que a mulher a abraçasse. – Não se culpe pela morte dela, pois foi Deus quem decidiu tirar-lhe a vida em troca da minha.

Camille segurou o rosto de Bridget.

– Sim, você é muito parecida com sua mãe, meu anjo. Tão linda quanto ela.

Trêmula, Bridget respirou fundo, tomando coragem para continuar com as perguntas:

– Você se lembra do sobrenome dela? Do lugar onde cuidou dela?

Camille mostrou-se surpresa.

– Ora, eu cuidei dela em casa. Em Darmaux. Meu bebê era Charlotte LeClerc, e eu cuidava dela no castelo de Darmaux.

O leiteiro assobiou, estupefato.

– Não sei a conexão, mas Charlotte não pode ser filha do atual barão de Darmaux. Ele não tem idade para ser pai dela.

– Poderia ser irmã dele? – Ranulf indagou. Bridget sentiu-se mal. De alguma forma, era o que temia, desde que vira a mulher entrando na sala: descobrir sua origem e não conseguir suportar a realidade. Será que tinha mesmo alguma ligação com aquele homem monstruoso que fora responsável pela morte do pobre sr. Marchand e também do irmão de Jean, o ferreiro? Poderia aquele demônio ser seu tio? Ela olhou para Ranulf, que leu seus pensamentos.

– Ainda não temos certeza de nada, querida – tentou tranqüilizá-la. Então, voltou-se para Camille. – Quem era Charlotte, minha senhora?

Mas Camille estava mais uma vez vagando era algum , lugar. Acariciou as faces de Bridget.

– Minha linda Charlotte. Você precisa comer um pouco mais. Lembre-se do bebê. – Virou-se para o filho, – Pierre, traga-lhe um pedaço de bolo de passas.

– Sim, mamãe. Camille assentiu, satisfeita, depois fechou os olhos.

– Acho que ela está cansada – disse Pierre. – Mamãe não costuma receber visitas.

Bridget levantou-se e beijou a testa de Camille.

– Obrigada por amar tanto minha mãe, senhora. – Quando se endireitou, seus olhos estavam cheios de lágrimas.

Ranulf sentiu um aperto no peito por vê-la assim. Mais uma vez tentou imaginar uma infância sem sua família, sem Lyonsbridge. Aproximou-se dela e abraçou-a, tentando dar-lhe um pouco de conforto.

Pierre endireitou a mãe na poltrona.

– Gostaria de conseguir me lembrar de mais alguma coisa, senhorita.

– Você nos ajudou demais, Pierre. – Ranulf deu-lhe um abraço. – Muito obrigado, meu amigo.

O leiteiro os acompanhou até a saída e ficou observando o casal montar Trovão e partir. Eles seguiram em silêncio por alguns minutos.

– Já é um começo, Bridget. Agora que você sabe de alguma coisa, fica mais fácil procurar mais respostas, e talvez descobrir algo sobre seu pai.

Bridget segurou-o com mais força.

– Se minha família for responsável pela morte de Philip Marchand, não quero saber de mais nada sobre eles.

O cavaleiro não soube como responder. Pelo pouco que conhecia do barão de Darmaux, também não queria que tivesse seu sangue.

– O monge disse que houve indagações sobre o metal negro. – O xerife Guise fora até o castelo de Darmaux antes do amanhecer e conduzido ao quarto do barão.

LeClerc esfregou os olhos sonolentos.

– Quem está fazendo perguntas?

– Um dos freis em especial. Mas suspeito que o inglês esteja por trás disso. Creio que está na hora de irmos até lá e acabarmos com ele.

O barão bocejou e esticou os braços, espreguiçando-se.

– Eu disse ao duque que enviaríamos o próximo carregamento dentro de quinze dias. Não podemos interromper a produção agora de jeito nenhum.

– Mas será interrompido de qualquer forma se alguém descobrir nossas atividades noturnas na fornalha.

LeClerc, perdido em conjecturas, demorou um pouco para falar:

– O inglês ainda não saiu do São Gabriel?

– Não. Coloquei um de meus homens de guarda na estrada principal de acesso ao mosteiro.

– Precisamos acabar com ele, mas ainda prefiro que não o façamos no convento. Coloque alguns sentinelas em volta do complexo. No instante em que colocar os pés para fora, nós o mataremos.

– E o que fazemos em relação aos monges curiosos.

– Deixe-os. Mesmo se descobrirem que um deles nos ajuda a fabricar armas, decerto não farão nada. São um bando de velhos de saias que não conseguem pensar em nada além de suas orações e invenções. E nosso homem manterá tudo sob controle.

O xerife não se mostrou tão convencido assim.

– E se algum deles resolver contatar o bispado?

– Acho pouco provável. Eles vivem em paz sem a interferência da Igreja faz muitos anos. Não se arriscarão a perder seu sossego. – LeClerc terminou de vestir sua túnica. – O irmão do inglês está morto?

– Enviei um homem ao castelo de Mordin para ordenar que o silenciem.

– Que pena! – LeClerc deu um sorriso sarcástico. – Assim que o segredo do metal negro fosse descoberto pelo mundo, não teríamos mais motivos para mantê-lo preso e poderíamos ter conseguido um bom resgate. Lyonsbridge é uma cidade muito rica.

– Bem, já está feito. O mensageiro deve estar chegando ao castelo com a ordem.

– Ótimo! Espero que os irmãos Brand sejam eliminados bem depressa. – Pegou o cinturão de um suporte e torceu-o nas mãos, como se estivesse enforcando alguém. – Depois, cuidaremos da filha de minha falecida prima.

Bridget saiu à procura de Francis assim que chegaram ao mosteiro. Encontrou-o caminhando com passos lentos voltando da oficina.

– O que conseguiu descobrir, irmão?

– Passei a maior parte da tarde perto da fornalha. Quase enlouqueci Cirilo e Ebert. Simplesmente não consigo acreditar que um deles possa estar envolvido nessa história absurda, mas, agora que sabemos da existência desse metal preto, encontrei várias evidências da produção dele em nossa cabana.

– Então é possível que seja verdade?

– Sim, filha. E quase certeza. Também encontrei isto. – Francis estendeu o braço e mostrou-lhe um pedaço de metal preto em forma de um objeto pontiagudo.

– O que é? – Bridget tentava controlar o arrepio que lhe percorria a coluna. – Você o encontrou lá?

– Sim. Acredito que seja parte de algum tipo de arma. Parece-me a ponta de algo. Parece-me muito longo para ser a ponta de uma flecha. É mais provável que se trate de uma lança. É afiado como uma adaga e, quando fiz um teste contra uma pedra, pude comprovar que é mais duro do que qualquer metal já conhecido.

– O suficiente para perfumar uma armadura, como disse Ranulf?

– Não posso confirmar suas suspeitas, querida, pois sou um homem de paz, mas imagino que sim.

Bridget sentiu-se enjoada. Pegou a ponta de metal das mãos de Francis e olhou-a como se estivesse segurando uma serpente.

– Você falou que a encontrou?

– Sim, caída no solo, perto de um dos equipamentos.

– Perguntou alguma coisa a Cirilo e Ebert?

– Ainda não. Pensei em conversar primeiro com Alois, e irei até a oficina à noite. Se alguém de fora do São Gabriel estiver usando o lugar para fabricar armas, deve ser quando nenhum de nós está lá.

Os monges passavam as últimas horas do dia e quase a manhã toda orando, e dormiam à noite, o que deixava a cabana vazia por bastante tempo.

– Pretende ir hoje?

– Sim, e de manhã vou conversar com o abade. Por um momento, Bridget foi atacada por uma grande dúvida. Mesmo antes de ter se tomado abade, Alois sempre fora diferente dos outros monges, mais reservado, mais imparcial.

– Você acha que o irmão Alois poderia estar envolvido em tudo isso?

Tal suspeita nem sequer ocorrera a Francis.

– De jeito nenhum, minha filha. Alois é nosso líder há muitos anos. Por que trairia a irmandade?

A idéia também parecia inconcebível e Bridget, mas também não conseguia imaginar os outros freis envolvidos naquela história horrorosa.

Ebert era quem tinha mais contato com a vida profana, mas estava sempre alegre e de bem com os demais. Não conseguia vê-lo negociando armas.

E Cirilo era tão envolvido com a ciência e suas invenções que muitas vezes se esquecia de almoçar. Na verdade, a única pessoa que podia interrompê-lo no trabalho era ela, para quem sempre tinha um sorriso amável e uma palavra simpática. Cirilo a amava, assim como os outros monges. Não queria crer que havia um traidor entre eles, entre aqueles homens que considerava seus pais.

– Precisamos descobrir a verdade, Francis. Ranulf quer ir até Lyonsbridge para buscar reforços. E depois, o que acontecerá conosco?

Francis suspirou.

– Seria bom se conseguíssemos resolver esse mistério sozinhos. Acha que consegue retardar um pouco mais a viagem do inglês?

O costumeiro rubor tomou-lhe as faces ao imaginar a maneira mais convincente de impedi-lo de partir, que seria a repetição dos momentos de amor que tinham compartilhado algumas noites antes, no estábulo.

Claro que não pretendia usar essa tática. Mesmo porque, falou a si mesma, agora que Ranulf já fizera amor com ela, talvez nem tivesse mais interesse em repetir a experiência.

– Vou ver o que posso fazer. – Bridget ergueu o queixo. – De alguma forma, eu o manterei aqui dentro, nem que precise amarrá-lo no leito

Francis parecia muito distraído para imaginar o que se passava no íntimo daquela linda moça que descobrira havia pouco as artes do amor.

– Que bom, filha! Amanhã teremos descoberto mais alguma coisa.

Mudando de assunto, Bridget relatou-lhe a conversa que tivera com Camille Courmier sobre sua possível ligação com o barão de Darmaux. Francis não se mostrou surpreso, mas jurou que não sabia mais nada sobre a identidade de lady Charlotte.

– Não imaginei que ela fosse nobre, Bridget. O irmão José nos contou que, devido a circunstâncias extraordinárias, o mosteiro a abrigaria nos últimos dias de gravidez, inclusive no momento do nascimento da criança. Jamais revelou quais eram essas circunstâncias.

– Mas você sabia a identidade do pai. Se me contasse um pouco mais, eu poderia reunir outras pistas sobre ele.

– Posso lhe garantir, Bridget – disse ele, depois de hesitar por instantes —, que seu pai não tinha nenhuma ligação com o castelo de Darmaux. E de nada adiantaria se eu revelasse seu nome.

Ela tentou insistir um pouco mais, mas Francis se calou.

– Quer que eu o acompanhe à oficina mais tarde, irmão?

– Não, obrigado. Cuide de Ranulf. Vou apenas observar se há alguma atividade clandestina. Prometo não me meter em encrenca.

Eles combinaram de se encontrar na cozinha antes do amanhecer para decidir qual o próximo passo. Então, Bridget desejou-lhe boa sorte e começou a caminhar para seu quartinho.

Ainda tinha a ponta da lança em mãos. Se alguém estivesse fabricando armas no convento, tinham de descobrir quem era e impedi-lo de continuar, o que talvez significasse que não conseguiria preservar a existência sossegada que sempre tivera em meio aos religiosos. Mas, se houvesse uma forma de protegê-la, Bridget o faria.

E começaria evitando que Ranulf partisse para Lyonsbridge.

 

                                  CAPÍTULO XIII

Uma lua amarela, quase cheia, enfeitava o céu da meia-noite enquanto Francis caminhava para a oficina de trabalho.

As orações noturnas tinham terminado havia muito, e os monges já tinham se recolhido para o sagrado descanso. Francis ficara deitado por mais de uma hora em sua cama, fingindo estar dormindo. Depois, cora todo cuidado, se levantara e percorrera o dormitório, verificando os leitos. Todas pareciam ocupados.

Sentiu-se um pouco tolo por estar espionando o mosteiro àquele horário avançado, mas a situação exigia tal atitude.

Ao aproximar-se da cabana e escutar o ronco da fornalha, Francis reafirmou sua decisão. Se alguém estava traindo a confiança do São Gabriel, essa pessoa tinha de ser desmascarada, ainda mais se estivesse ajudando na fabricação de armas.

As portas da oficina estavam abertas. No interior, via-se iluminação, e a fornalha funcionava a todo vapor. Alguém estava lá dentro.

Tentando ser o mais discreto possível com suas sandálias, o monge escondeu-se atrás da porta e ficou olhando pela fenda. Do outro lado, homens iam e vinham, movimentando-se com rapidez em tomo da fornalha. Havia pelo menos seis, e, para seu alívio, nenhum com hábito de frei.

De repente, ao escutar vozes vindas do caminho do convento pelo qual acabara de chegar, Francis encostou-se na parede e parou de respirar. Ficou escondido, esperando que se aproximassem.

– O barão quer que terminemos depressa – disse alguém, entrando na cabana.

Francis observou pela fenda. Os rostos dos homens estavam iluminados pela luz do fogo. Reconheceu quem falara como o xerife de Beauville e, com um aperto no coração, arregalou os olhos ao ver com quem ele conversava. Era o irmão Cirilo.

– Os homens conseguem produzir uma determinada quantidade por noite – dizia Cirilo, com a entonação animada e especial que costumava usar quando discutia uma de suas invenções. – Se tentarmos ir mais depressa ou modificarmos a mistura, ele não ficará contente com os resultados.

O xerife resmungou ao escutar a explicação de Cirilo.

– Não sei por que não podemos vir aqui e pegar a fornalha. Desse modo, produziríamos noite e dia.

—Você prometeu que não violaria a santidade da abadia.

– Sim, mas é porque o duque da Áustria quer manter suas armas em segredo. Mas, assim que começar a usá-las em sua nova campanha, todo o mundo saberá sobre o maravilhoso metal negro do São Gabriel.

Francis notou a expressão aflita de Cirilo, mas achou que se tratava da maneira como as chamas iluminavam seu semblante.

– O que acontecerá depois?

O xerife bateu a mão no ombro do monge.

– Você será um homem famoso, irmão! Não era isso o que queria? Não queria mostrar ao mundo toda sua inteligência?

– Sim, queria ser reconhecido por todos – admitiu cabisbaixo —, mas não que isso significasse o fim do Mosteiro de São Gabriel.

– Ah, que pena, caro irmão! – zombou Guise. – Não acha que é um pouco tarde para se preocupar com isso?

Os dois, se viraram para sair, aproximando-se mais uma vez da porta, onde Francis estava escondido. Sem pensar, o xerife empurrou-a para deixá-la mais aberta, mas com o monge lá trás, a porta voltou.

– O que é isso? – gritou Guise, ao escutar o som que o monge emitiu quando foi atingido na barriga.

Antes que pudesse pensar em fugir, Guise já o descobrira ali.

– Irmão Francis!

– Quem é ele? – exigiu saber o xerife, segurando o pescoço do monge com tanta força que quase o estrangulou.

– É um dos freis – respondeu Cirilo, desesperado.

– O que ele está fazendo aqui?

– Não sei. Ninguém sabe sobre a atividade noturna da cabana. Não o machuque!

Guise afrouxou um pouco o aperto.

– O que está fazendo aqui, irmão? Francis tossiu, depois virou-se para Cirilo.

– Vim para descobrir quem traiu nosso mosteiro, irmão Cirilo. E pelo visto foi mais fácil do que eu esperava.

O xerife imprecou, olhando para Cirilo.

– Quem mais sabe de nosso segredo, irmão?

– Não faço idéia.

– Dentro em breve, todos saberão – interveio Francis. Guise fitou irritado os dois monges.

– Malditos monges de Deus! – Em seguida, ainda segurando Francis contra a parede. Guise tirou a adaga da bainha e colocou-a contra a garganta do monge.

Cirilo partiu para cima dele, puxando a mão com a adaga para longe do pescoço de seu companheiro.

– Não!

Sem o menor esforço, o xerife desvencilhou-se de Cirilo. Depois, com um movimento rápido, levou o braço para trás e enfiou a adaga no hábito de Francis.

Cirilo observou, horrorizado, o frei cair ao solo, sem emitir um único ruído.

Guise limpou a adaga em sua túnica e começou a sair da cabana.

– Você terá de enterrar seu amigo gorducho, Cirilo, a não ser que queira que seus preciosos irmãos da abadia descubram que foi o responsável pela morte de um de seus homens.

Cirilo segurava a porta, para não perder o equilíbrio, tamanho seu nervosismo. Estava mortalmente pálido, não conseguindo acreditar no que acontecia.

– Você o matou!

– Sim, e ele é apenas o primeiro da noite. Com sorte, conseguiremos exterminar o inglês antes do amanhecer.

– Você queimará no inferno, Guise! – Cirilo fez o sinal-da-cruz.

– É bem provável, mas nos encontraremos lá. Afinal, caro irmão, quem é o maior assassino? Aquele que mata um monge irritante com um golpe de adaga ou quem inventa um metal que causará a morte de centenas, talvez milhares de pessoas?

A porta entreaberta impedia a luz de chegar ao local em que Francis caíra. Cirilo ajoelhou-se ao lado dele e sentiu seu corpo em meio à escuridão. Todo o lado direito do monge estava coberto de sangue, mas ele emitiu um gemido ao sentir algo no ferimento.

– Francis! Você pode me escutar?

– Sim, Cirilo. – Abriu os olhos. – É o que eu sempre digo. Às vezes o excesso de peso pode ajudar um homem. O corte foi apenas superficial.

– Você está sangrando...

– Sim, mas não foi nada de mais.

– Francis, jamais imaginei que as coisas pudessem chegar a esse ponto. Nunca tive a intenção de colocar o mosteiro em perigo.

– Não? E os soldados que estava condenando à morte com suas armas diabólicas?

Cirilo se calou.

– Mas agora não é o melhor momento para conversarmos sobre isso – decidiu Francis. – Preciso de um curativo, caso contrário sangrarei morrer. Você me ajuda?

– Claro! – Cirilo estava tomado peio remorso.

– E depois precisaremos encontrar Ranulf. O que o xerife quis dizer sobre a primeira morte da noite? Ele vai matar Ranulf?

– Sim, e também seu irmão. Eles o mantiveram preso durante meses desde que veio em busca de informações sobre o metal negro.

– Ah, meu pobre Cirilo... Como você se envolver com homens tão cruéis?

– Tudo começou porque eu queria... Só desejava que minha descoberta se tornasse conhecida por todos. O barão me ofereceu ajuda em troca de meu silêncio.

– Não temos tempo de discutir isso agora. Ajude-me a me levantar, e então vamos sair daqui antes que o xerife descubra que precisa de muito mais do que uma adaga para matar este gorducho aqui.

A batida na porta foi leve, mas Bridget não teve dificuldades em escutá-la, nem de reconhecer o murmúrio que a chamava do lado de fora:

– Você ainda está acordado?

Ela achara que Ranulf já estava dormindo, o que lhe causou um grande alivio, uma vez que não teria de se preocupar com táticas para atrasar sua viagem por mais um dia.

– Sim, estou. – E Bridget se dirigiu à porta. Ranulf estava vestido e não mostrava o menor sinal de cansaço, apesar da longa cavalgada da tarde e da hora.

– Vim até aqui para tentar convencê-la a me acompanhar a Lyonsbridge, querida. Você sabe que a esperança é a última que morre.

Firme em sua decisão, Bridget balançou a cabeça de um lado para o outro. Não podia deixar os freis sozinhos no mosteiro. Além disso, não pretendia ter mais nenhum tipo de contato com a vida fora da abadia.

– Os monges precisam de mim aqui. Meu lugar é no Mosteiro de São Gabriel. Aliás, você também deveria ficar mais alguns dias, até melhorar de vez. Seu ferimento ainda não está tão bom assim para que se atreva a cruzar o canal.

O cavaleiro abriu um belo sorriso, fazendo o coração dela disparar.

– Meu ferimento está ótimo, graças a meu lindo anjo. Não gosto da idéia de deixá-la aqui sozinha, meu amor. Não sabemos se os homens do xerife desistiram de procurá-la.

– Eles não virão até aqui, Ranulf Duvido que sejam tão ousados a ponto de invadir uma casa de Deus. – Ela fez-lhe sinal para que entrasse. – Quando está pensando em partir?

– Agora.

– Esta noite?! Você não pode cavalgar na escuridão!

– A lua está quase cheia. Trovão e eu ficaremos bem, e chegaremos à costa antes do amanhecer. Com sorte, estarei de volta dentro de dois dias, no máximo três, com um exército de Lyonsbridge. Então, veremos do que LeClerc é capaz.

Bridget tinha de agir rápido, antes que ele se fosse mesmo.

– Mas por que tanta pressa, Ranulf? Não acha melhor esperar o nascer do sol e cavalgar com a luz do dia?

– Não. Já adiei demais minha partida. – Estendeu os braços e segurou-lhe as mãos. – Minha querida, sei que Dragão está em algum lugar esperando que eu apareça para salvá-lo. Não acredito, por mais que todos insistam em fazê-lo, que meu irmão está morto, Ninguém nunca viu o corpo. Sendo assim, não quero fazê-lo esperar ainda mais.

– Mas... – Tentava encontrar argumentos para conseguir convencê-lo a ficar, ciente o tempo todo das mãos quentes que seguravam as suas, frias.

Por fim, decidiu ser mais direta:

– O que acontecerá com o mosteiro se você trouxer todos esses homens para cá? O que acontecerá com os monges?

Ranulf mostrou-se constrangido, mas sabia que não havia outra forma de agir.

– Bridget, se seus freis estiverem envolvidos na fabricação de armas para matar pessoas, não merecem continuar sob o nome de uma ordem sagrada. Peço que me desculpe a sinceridade mas é assim que penso.

– Então seria o responsável pelo fim do São Gabriel?

– Se fosse preciso. Bridget soltou-se.

– Gostaria de lhe pedir para que desse um pouco de tempo para que eu e Francis pudéssemos descobrir a verdade sobre o assunto.

Ranulf ficou surpreso.

– E Francis acha que sabe alguma coisa sobre isso?

– Não, mas vai conversar com o abade amanhã, e talvez conversar com alguns dos outros monges. Se esperar um pouco, nós podemos encontrar algumas respostas para você.

– Enquanto isso, meu irmão continua preso em alguma masmorra fria e escura.

Nervosa, Bridget engoliu a seco.

– Se Dragão esperou até agora, que diferença fará mais um dia?

A expressão de Ranulf evidenciava tristeza.

– Não sei se faria alguma diferença. É por isso que preciso buscar ajuda o mais rápido possível. Acha que gosto de deixá-la desprotegida aqui neste convento? Mas preciso de auxílio, pois não vou conseguir nada sozinho. Não tenho como vencer o xerife e LeClerc.

Bridget encarou seus olhos azuis.

– Estou lhe pedindo para esperar.

– Anjo, eu não posso.

Aproximando-se da vela na mesa-de-cabeceira, Bridget pegou o objeto pontiagudo de metal negro que Francis lhe entregara.

– Não ganho um beijo de adeus? As palavras o surpreenderam.

– Eu jamais nego um beijo a um anjo. – Ranulf sorriu. Em dois passos, ele a tinha nos braços, e logo os lábios se tocavam. Bridget uniu todas as forças para não se deixar abater, mas sentiu os joelhos moles quando a língua de Ranulf percorreu seu lábio inferior. Em outro momento, seria incapaz de agir.

Segurando a ponta de lança com firmeza, a ergueu, pressionando-o contra o pescoço do cavaleiro.

– Não se mexa, Ranulf, pois isto é muito afiado. – Ela sentiu o corpo de Ranulf enrijecer.

– Que tipo de jogo é esse?

– Não é nenhum jogo. Eu lhe fiz um pedido muito simples e você recusou. Agora não se trata mais de um pedido, e sim de uma ordem. Quero que se sente na cama aí atrás, e com muito cuidado, pois posso furá-lo.

Para espanto de Bridget, Ranulf atendeu a seu pedido sem protestar. Ela manteve a ponta no pescoço dele enquanto se movimentavam até o leito, mas depois se afastou, mantendo-a em posição de ataque. Ranulf a olhava com uma expressão misteriosa.

– O que é isso, Bridget? Algum tipo de charada? Você faz parte da conspiração?

Bridget se espantou ao ouvir a pergunta daquela boca que tanto gostava de beijar. Não podia acreditar que desconfiava dela, mas era o preço que tinha de pagar por estar usando de táticas como aquela para tentar mantê-lo no mosteiro.

– Não faço parte de conspiração alguma, Ranulf. Estou apenas tentando proteger meus monges de serem atacados por dois exércitos. O seu e o do barão.

A resposta pareceu agradá-lo. O cavaleiro acomodou-se na cama, bem mais aliviado.

– Então sua intenção é me manter preso aqui? – Ranulf esboçou um sorriso malicioso.

– Por enquanto. – Bridget procurou não se sensibilizar com a discreta provocação. – Até que Francis consiga descobrir o que acontece na oficina durante a noite.

– E acha que essa pequena arma é suficiente para me manter aqui?

– Trata-se de um objeto muitíssimo afiado que poderia cortá-lo como as garras de um gato selvagem.

– Bem, mas não queremos que isso aconteça, não é mesmo?

Bridget mordeu o lábio. Sentia-se um pouco tola, parada na frente de um nobre cavaleiro com um pedaço de lança na mão. Mas também não podia ficar o tempo todo de guarda.

Ranulf pareceu relaxar. Estava encostado contra a parede, com as pernas esticadas pelo colchão. Continuou a observá-la, com um pequeno sorriso.

– Dá-me sua palavra de que não irá embora se eu o deixar sair daqui, Ranulf?

– Não.

Bridget engoliu a seco, mais uma vez. "Ah, minha santa Brígida, eu deveria ter esperado Francis voltar..."

– Então, deite-se – ordenou.

Mais uma vez, Ranulf se surpreendeu com a atitude dela. Aonde queria chegar?

– Deite-se – repetiu, balançando o metal. – Não permitirei que vá a lugar algum. Sendo assim, trate de se ajeitar de maneira confortável.

– Assim? – Ranulf se estendeu todo.

Havia um brilho nos olhos dele quando fez a pergunta para Bridget, o que lhe causou arrepios. Evitou olhar para ele enquanto abria seu cesto de itens pessoais para pegar as fitas que o irmão Ebert lhe comprara na cidade, alegando que uma jovem precisava se enfeitar. O gesto a emocionou demais, bem como cada uma das pequenas atitudes que indicavam o carinho que os freis nutriam por ela, mesmo não podendo demonstrá-lo com abraços e beijos. Portanto, faria tudo o que estivesse a seu alcance para protegê-los.

Bridget olhou para as fitas em suas mãos, duvidando que pudesse prendê-lo com elas. Pareciam frágeis se comparadas às cordas que os monges usavam para amarrar os animais no estábulo, mas nada mais naquele quarto serviria para ajudá-la a manter Ranulf ali.

O peito do cavaleiro subia e descia devagar, e ele não se mostrava nem um pouco incomodado. Bridget, por outro lado, sentia os batimentos cardíacos acelerados e respirava depressa.

– Se você me prometer que não sairá daqui, não o amarrarei, Ranulf

Ele continuou a observá-la, quieto. Suas pupilas brilhavam com a luz da vela. Assim, Bridget colocou o metal entre os dentes para ficar com as mãos livres, depois aproximou-se.

Obedecendo-a, Ranulf cooperou e levou as mãos para cima da cabeça. Seu olhar nunca deixou o rosto dela.

Ajoelhando-se, Bridget amarrou uma ponta da fita ao redor do pulso dele. Em seguida, prendeu a outra ponta na perna do leito. Foi para o outro lado e fez o mesmo com o outro braço.

Assim que terminou, Bridget se endireitou e tirou o objeto pontiagudo da boca, aliviada.

– Pronto. Vai conseguir ficar assim? – perguntou ela, voltando para onde estava antes.

– Gosta muito daqui, não é, meu anjo?

De tão compenetrada que estava em detê-lo, Bridget quase não compreendeu a questão. Só depois de alguns instantes percebeu que Ranulf se referia ao mosteiro.

– Sim. Tanto quanto você ama Lyonsbridge.

– Bridget, jamais tive a intenção de ferir você ou qualquer um dos monges, a quem tanto ama, mas há algo muito errado acontecendo na abadia. Acredito que alguma coisa diabólica penetrou em seu mundo tranqüilo, e nada será o mesmo desde que não descubramos o que é.

– Mas é o que Francis e eu estamos tentando fazer!

– Não há como vocês dois enfrentarem alguém tão poderoso como LeClerc. Eu, que sou cavaleiro e tenho experiência em guerra, estou indo em busca de reforços!

– Podemos tentar. – Bridget sabia que sua entonação soava defensiva. Era estranho estar parada diante de Ranulf deitado e indefeso.

– Precisamos de ajuda, meu anjo. Solte-me para que eu possa ir até Lyonsbridge e trazer reforços.

– Não.

O olhar momentâneo de irritação de Ranulf desapareceu, substituído por um lindo sorriso.

– Ah, meu amor, sob quaisquer outras circunstâncias eu teria considerado uma honra estar amarrado em sua cama. E um tipo de terapia que usa com seus pacientes?

A referência a fez se lembrar do ferimento na cabeça dele, o que causou-lhe um certo remorso.

– Não está com febre, está?

– Não por causa do ferimento – disse ele, provocante. Bridget compreendeu muito bem a brincadeira. Ela própria sentiu-se febril.

– Então, tente dormir. – E deu um passo para trás.

Ranulf movimentou os dedos das mãos amarradas.

– Acho que não conseguirei adormecer.

– Se você não tentar fugir, eu o solto – tentou ela, mais uma vez.

– Não, isso eu não posso prometer.

– Então terá de ficar preso. – Bridget puxou seu banco para se acomodar, preparada para permanecer acordada até que Francis retornasse de sua missão.

– Ficará mais confortável deitada aqui, a meu lado.

– Não há lugar para duas pessoas.

– Eu irei um pouco mais para lá. – Ranulf virou-se de lado, oferecendo um estreito espaço para ela se deitar.

Bridget respirou fundo. Concentrou-se na chama da vela, pedindo, por favor, a seu coração que voltasse a bater com normalidade. Tinha a sensação de que aquela seria uma noite muito longa.

 

                                      CAPÍTULO XIV

Os dois ficaram em silêncio por alguns minutos, até que Ranulf emitiu um gemido, assustando-a.

— O que há de errado?

— Não é nada.

Ranulf tinha os olhos fechados e parecia estar em paz, mas Bridget achou ter notado um pouco de suor em sua testa.

– Tem certeza? Sua cabeça não está doendo?

Ela se levantou e se aproximou dele. Era difícil dizer, devido à pouca iluminação, mas parecia possível que o rosto de Ranulf estivesse um pouco mais rosado que normal.

– Está doendo? – perguntou mais uma vez. Ranulf virou a cabeça para os lados, mas no final do movimento soltou mais um gemido.

– Está, sim – concluiu Bridget, alarmada. Sentou-se perto dele e levou a mão até o tecido que envolvia o machucado. – Deixe-me ver se está quente,

– Talvez outras partes de meu corpo precisem de seus cuidados, meu anjo.

Então, sem que Bridget pudesse saber o que estava acontecendo, o cavaleiro se levantou, rompendo com facilidade as fitas que lhe prendiam os pulsos.

– Ou devo dizer, meu diabinho? Esta noite você foi bastante travessa.

O rápido movimento a surpreendeu, mas, quando Ranulf a colocou em seu colo, Bridget confirmou suas suspeitas de que essa seria a única maneira de mantê-lo no São Gabriel.

E percebeu que era isso o que queria desde que escutara as batidas na porta de seu quarto. Todas suas terminações nervosas ansiavam por seu toque, por mais momentos de prazer nos braços daquele encantador cavaleiro inglês.

– Você estragou minhas fitas... – protestou ela mesmo assim.

Ranulf deu uma risadinha e começou a mordiscar-lhe a ponta da orelha.

– Prometo que lhe compro um monte de fitas novas, meu bem. E uma corda um pouco mais firme para a próxima ver que decidir tentar manter alguém cativo.

– Não fiz um bom trabalho, não é?

Ranulf não parava de beijá-la ao redor da boca, e colocou-a a seu lado no leito.

– Não, meu amor, você está errada. Sabe que acabei de decidir que nem o exército inteiro de LeClerc conseguiria me convencer a ir até Lyonsbridge neste momento. De certa forma, conseguiu, sim. Vou ficar bem aqui onde estou.

– Que bom! – Bridget envolveu-o pelo pescoço.

Por alguns momentos, os dois ficaram apenas se beijando, deixando que suas bocas e línguas se explorassem. Pela primeira vez, Bridget participava com a mesma intensidade dele, querendo lhe proporcionar o mesmo prazer que recebia com suas carícias. Provocou-o com a ponta da língua, depois mordiscou-lhe o lábio inferior.

– Meu anjo tomou-se uma tentação...

Bridget caiu na risada e depois, com certa ousadia, enfiou a mão sob a túnica dele e tocou a parte da calça de lã que concentrava sua masculinidade.

– Ela teve um bom professor.

Ranulf deitou a cabeça no travesseiro e cerrou as pálpebras, entregando-se àquela deliciosa exploração. Em seguida, com um gemido, se levantou e tirou as roupas, aproveitando o instante para respirar fundo e recuperar as forças. Não queria decepcioná-la.

Bridget fez o mesmo, e logo os dois estavam de novo na cama, nus, trocando carícias e deliciando-se com as sensações.

Ela se esticou como uma gata, inconsciente de seu poder de sedução, e ele lançou-lhe um olhar de desejo. Ranulf passava as mãos pelas laterais das formas perfeitas, provocando-a sem tocar suas partes mais sensíveis.

– Acho que chegou a hora da próxima lição – disse ele, incapaz de conseguir conter a volúpia.

Bridget assentiu com um sussurro, sem conseguir falar direito.

– Vire-se, querida.

Surpresa, ela obedeceu, deitando-se de bruços.

Ranulf começou a massagear-lhe as costas, o pescoço, as nádegas, maravilhado com a formosura de seu anjo. Prosseguiu com os afagos pelas pernas, chegando aos delicados pés.

Bridget parecia estar flutuando em um mar de novas sensações.

Os dedos de Ranulf faziam círculos na sola dos pés dela, depois foi a vez de seus lábios e de sua língua. Ela riu, sentindo um misto de cócegas e luxúria.

– Quer dizer que vai rir de mim, é? Pois saiba que está na hora de o assunto ficar mais sério. – O cavaleiro a virou mais uma vez e colocou-se em cima dela. – Quer alguma coisa mais séria, minha linda? – Ao mesmo tempo, esticou a mão para senti-la úmida e pronta para recebê-lo.

– Sim, por favor, Ranulf – sussurrou, ajeitando de maneira a que o encaixe fosse perfeito.

Ranulf a penetrou com delicadeza, e fazia movimentos lentos, aproveitando a magia de cada gemido que escapava-lhe da garganta.

Bridget foi tomada por uma inexplicável noção de plenitude.

– Meu amor... – Ranulf gemeu. – Sinto muito...

Ele acelerou os movimentos e deparou-se com uma intensidade que não existira no primeiro encontro. Parecia menos focalizado em Bridget, mais em suas próprias necessidades.

O pensamento a fez sentir-se sensual e poderosa. Ela sorriu ao se entregar por inteiro. Em instantes, os dois atingiram o clímax.

– Ali, minha querida, espero que tenha aprendido a lição por manter cavaleiros presos em seu quarto. – Ele brincou com o nariz de Bridget.

– Quem sabe não era essa a minha intenção? Ranulf, exausto, se ajeitou ao lado dela, apoiando a

cabeça na mão para melhor observá-la.

– Nunca conheci uma mulher como você, Bridget. Um pouco anjo, um pouco enfermeira, um pouco beata, um pouco sábia... – Ele beijou-lhe a face com ternura. – Você é uma garota incrível. Perfeita demais para ser verdade.

Era evidente que Ranulf falava sério sobre as qualidades que acabara de enumerar, mas Bridget não conseguiu evitar uma pontada de decepção em meio à felicidade. Nenhuma das características alteraria o fato de ela ser uma jovem, sem sobrenome, educada por monges, enquanto ele era um nobre.

Por mais incrível que fosse a relação corporal deles, os dois eram de níveis sociais opostos, e o tempo que deviam passar juntos era curto. Na verdade, talvez fosse até a última vez que estivessem tão perto um do outro.

Decidida, Bridget afastou tristeza que queria envolvê-la.

– Quantas vezes as pessoas podem fazer isso? – perguntou, sem o menor pudor.

Cada vez mais surpreso com a ousadia dela, Ranulf gargalhou.

– Fazer o quê? Amor?

– Sim. Pode ser mais de uma vez por noite? Ranulf se esforçou para não rir da questão sincera e ingênua,

– Sim, meu bem.

– Então, acho que devemos começar tudo de novo. – Bridget tinha um brilho encantador nos olhos verdes.

– Ah, é?

– Claro! Pelo menos mais uma vez. Quem sabe duas? O que você acha?

Ranulf, em resposta, puxou-a, colocando-a em cima dele, e Bridget sentiu sua masculinidade despertar outra vez.

– Como já falei antes, nunca digo "não" para um anjo.

Bridget despertou sonolenta ao escutar mais uma vez batidas em sua porta, o que não era nada comum. Estava deitada ao lado de Ranulf, ambos nus.

A vela chegara ao fim, e estava quase escuro no ambiente, mas, a julgar pela súbita tensão, percebeu que ele também acordara.

Ranulf agiu mais depressa. Levantou-se, pegou as roupas no chão e passou-as para ela.

– Você sabe quem é, Bridget?

– Não. Ninguém jamais vem até aqui, muito menos durante a noite. – Ela sentiu que havia algo de muito errado.

Mesmo porque, Francis combinara encontrá-la na cozinha, o que diminuía as chances de ser o monge.

– Droga! Minhas armas estão todas em meu dormitório.

– Ainda tenho o metal pontudo.

– Não quero ferir seus sentimentos, querida, mas você e sua ponta de lança são tão indefesos quanto uma ovelha.

Bridget ficou indignada com a comparação.

– Pelo menos consegui dominá-lo.

Ranulf aproximou-se dela e beijou-lhe a ponta do nariz.

– Sim, meu anjo, é verdade. Você me dominou de uma maneira encantadora.

Como não tinham tempo para perder com provocações, Bridget aproximou-se da porta.

– Quem é?

– Abra, Bridget.

– Acho que é o irmão Cirilo – disse ela, espantada. O que ele estaria fazendo no quarto dela a uma hora daquelas?

Ao abrir, o luar iluminou todo o quarto. Cirilo permaneceu do lado de fora, e respirava com dificuldade. Carregava Francis, que começava a despencar.

Bridget soltou um grito, e Ranulf saiu de trás da porta para ajudar o monge a segurar Francis.

– O que aconteceu, irmão Cirilo?

– Ele foi golpeado por uma adaga.

Juntos, os dois homens levaram o religioso ferido para dentro e o deitaram na cama de Bridget. Ela acendeu uma vela, clareando mais o ambiente. Em seguida, ajoelhou-se perto de seu querido monge e tomou-lhe a mão.

– Onde está machucado, Francis? Ele abriu os olhos.

– Não foi nada, minha filha. Um pequeno corte na lateral da barriga, mas a caminhada foi um pouco mais demorada do que eu supunha. Creio que fui um fardo muito grande para Cirilo, nos últimos metros.

– Você estava na cabana de trabalho, irmão Cirilo? – Bridget quis saber.

Cirilo assentiu, mortificado.

– Alguém os seguiu até aqui?

– Não, sir Ranulf, Guise acha que matou Francis. Ele me deixou com a incumbência de enterrá-lo.

– Quer dizer que foi o xerife?

– Sim, sir.

– Vamos deixar as perguntas e explicações para mais tarde – determinou Bridget. – Primeiro precisamos cuidar desse corte. Onde foi o ferimento, irmão?

– Acho que arruinei mais um hábito, minha querida. Mais costura para você...

Bridget conteve uma lágrima. Não suportaria se acontecesse alguma coisa a seu querido Francis.

– Pouco me importa o hábito. Como está o corte?

– Não foi nada de mais. – E Francis desmaiou em seguida.

– Nossa Senhora! – exclamou Bridget, assustada. Levou a mão ao peito dele, e constatou que ainda respirava. Assim, virou-se para os outros dois.

– Preciso da ajuda de vocês para tirar a roupa dele e poder fazer o curativo.

Os três se puseram a cuidar de Francis sem dizer uma só palavra.

Bridget sentiu um grande alívio ao notar que ele dissera a verdade. A lâmina fizera apenas um machucado superficial perto da cintura, mas ainda continuava a sangrar. O melhor seria dar alguns pontos, decidiu ela, agradecida por Francis ter continuado em seu torpor enquanto o costurava.

Quando terminou, verificou sua pulsação, e a cor rosada em seu rosto a tranqüilizou. Por fim, sentou-se no banco, com um suspiro.

– Agora – falou Bridget, se dirigindo a Cirilo, que estava parado, olhando para o chão, a um canto —, conte-nos o que aconteceu.

O monge não tentou suavizar a verdade. Admitiu seu envolvimento com o xerife e o barão.

– Achei que Alois nunca permitiria que fabricássemos o metal. O abade se mostrava sempre tão implacável quando eu o sondava sobre compartilhar nossas descobertas, mesmo que fosse apenas com o povo de Beauville... – Como de costume, os olhos negros de Cirilo brilhavam ao falar de suas invenções, mas dessa vez também continham angústia. Embora Cirilo sempre a tivesse tratado muito bem, Bridget ainda não estava pronta para perdoá-lo por ter sido o responsável pelo ataque a Francis. Além de quase causar a morte do monge, ele colocara em perigo todos os habitantes do São Gabriel e a existência do próprio mosteiro.

– Como o xerife descobriu sobre o metal preto? – Bridget quis saber, expressando-se com frieza.

– Eu o levei para Guise. Sabia que teria muitos usos, e achei que o xerife seria a pessoa mais adequada com quem conversar, na cidade.

– E ele apresentou o metal para o barão de Darmaux? – interveio Ranulf

– Sim. – Então lembrou-se de algo muito importante.

– Ah, eu quase ia me esquecendo! Tenho uma informação, sir Ranulf É sobre seu irmão.

Ranulf ficou imóvel. Esperou, sem piscar, que o monge continuasse.

– Eles... LeClerc e Guise... o prenderam.

– Edmund está vivo?!

– Sim, mas não sei se por muito tempo. Hoje o xerife me disse que pretendia matar os irmãos ingleses o mais depressa possível.

– Onde ele está?

– Preso no castelo de Mordin. Edmund começou a fazer perguntas em uma cidade vizinha sobre o metal negro, e o barão achou melhor prendê-lo. LeClerc o manteve vivo para poder pedir um belo resgate depois que... o metal negro se tomasse conhecido. Mas agora mandou matá-lo.

– Onde fica o castelo de Mordin?

– A cerca de duas horas de cavalgada ao leste.

– E quando o xerife pensa em matá-lo?

– Não sei. – Cirilo era a imagem do constrangimento, por ter traído a confiança de seus irmãos. – Mas creio que não demorará muito. Lamento dizer, mas o xerife falava como se já o tivessem liquidado.

– Você vai para Lyonsbridge? – Bridget agora sentia-se tremendamente culpada por tê-lo atrasado.

– Acho que não adiantará mais.

– Não pode atacar LeClerc sozinho, Ranulf – Ela temia pela vida de seu querido cavaleiro.

– O castelo deve estar bem protegido—adicionou Cirilo. Ranulf esfregou as mãos, tentando controlar a raiva cada vez maior.

– Talvez possamos ajudar.

– Com sua ponta de metal, Bridget? Cirilo se endireitou.

– Não, sir Ranulf, ela tem razão. Podemos ajudá-lo. Nós, os monges.

– Muito obrigado. Acho que prefiro ir sozinho do que guiando um bando de freis que... Ora, me desculpe, Bridget. A preocupação deixa minha língua afiada.

– O que é bastante compreensível, na atual circunstância. Mas ainda assim acho que deve escutar Cirilo. Os monges podem não ser jovens guerreiros, mas são bem mais engenhosos do que possa imaginar.

A alegria de Ranulf era tamanha que seu coração parecia que explodiria a qualquer momento. Dragão estava vivo, a apenas duas horas de distância.

Mas não tinha forças para ajudar o irmão, que estava ameaçado de ser assassinado. Estudou a expressão ávida de Bridget e o jeito arrependido de Cirilo. A idéia de invadir um castelo com um bando de freis era absurda, mas pelo visto não tinha alternativa.

– Será que eles estarão dispostos a me ajudar?

– Conheço muitos que adorariam, sir Ranulf. Aqui é um lugar muito parado. Vários religiosos anseiam por um pouco de aventura.

– E se houver violência?

Pela primeira vez desde que entrara no quarto, Cirilo sorriu.

– Fui famoso por arrebentar algumas cabeças antes de conhecer o caminho do Senhor.

Aquela foi a noite mais espetacular que Ranulf Brand tivera. Meneou a cabeça, incapaz de acreditar, ao observar a procissão que seguia pela estrada que os levaria ao castelo de Mordin. Liderando o grupo, iam os seis irmãos Courmier. Fora Bridget quem se lembrara de ir até a fazenda deles pedir apoio.

– Se os outros cinco forem tão fortes quanto Pierre – ela dissera para Ranulf —, você será escoltado por um exército excelente.

Ele tivera dúvidas de que a família aceitaria se arriscar tanto por um desconhecido, porém concordara em ir até lá com Ebert e perguntar.

Ranulf tentara de todas as maneiras mantê-la afastada, ao discutir a estratégia de ataque, mas Bridget insistira em acompanhá-los até a propriedade dos Courmier, depois até a casa de Jean Smithy, o ferreiro.

– Já era hora de alguém ter coragem de enfrentar o barão – falara Pierre, quando desmontara seu cavalo.

– Todo o povo de Beauville sabe que ele mandou matar o irmão de Jean e, se a memória de minha mãe não a estiver enganando, LeClerc foi o responsável pela morte da mãe de sua querida, a tal lady Charlotte.

Ranulf não costumava perder muito tempo com agradecimentos, mas o aperto de mão que dera em Pierre fora sincero, do fundo da alma.

Ele se surpreendera ao ver o ferreiro se aproximar.

– Você trabalha para o barão.

– Não mais, sir Ranulf É como Pierre disse. Está na hora de alguém enfrentá-lo. Fui um covarde durante muitos anos, mas não vou ficar quieto olhando outro homem perder o irmão, como aconteceu comigo.

Então o grupo tinha crescido, com cavalos emprestados, alguns trazidos do estábulo de Jean, outros recrutados ao longo do caminho. Escolheram dez dos monges mais valentes para acompanhá-los. Cirilo insistira em ser incluído, apesar das desconfianças de Ranulf.

– Posso ajudá-los com alguns truques – afirmara. – Além disso, preciso tentar me redimir de todo o mal que causei.

O irmão Jacques era o mais novo do mosteiro, apesar de já estar lá fazia mais de duas décadas. Enviaram-no à oficina para saber como andava a situação, e ele voltou dizendo que os homens do xerife tinham ido embora e que já estava tudo na santa paz.

Depois disso, Cirilo conduzira os monges que acompanharia a expedição para pegar alguns utensílios na cabana que pudessem ajudá-los em momentos mais difíceis.

– Você por acaso não teria nenhuma arma com o metal negro, Cirilo?

– Não, sir Ranulf

Então Jean tirara uma sacola do lombo do cavalo.

– Trouxe algumas pontas de lança que foram deixadas em minha ferraria, mas não possuo nenhum arco.

– Ótimo! Eu tenho alguns arcos guardados. – Cirilo ficara mais animado.

E assim fora a noite toda, até pouco antes do amanhecer, quando se puseram a caminho do castelo de Mordin.

O cavalo de Jean era a única montaria digna de uma guerra, além do próprio Trovão.

– Acha que eles colocaram sentinelas na estrada? – indago Jean, chegando perto de Ranulf

– Não sei. Você conhece essa região?

– Sim. Se houver guardas, eles estarão nas colinas Venteux, a oeste do castelo. Irei na frente para verificar, caso queira.

– Está bem. Eu nunca vou me esquecer disso, meu amigo.

– Não precisa me agradecer. – Jean o encarou com extrema seriedade. – Esperei oito anos por esta oportunidade.

Então, o imenso ferreiro esporeou seu cavalo e saiu em disparada pela estrada.

Bridget caminhava de um lado para o outro no estábulo, sem saber o que fazer. Essa ansiedade a acompanharia até que os homens voltassem da missão no castelo de Mordin.

Pedira para Ranulf levá-la junto, mas ela mesma tinha de admitir que era uma idéia absurda. Suas habilidades em cima de um cavalo não eram das melhores.

Sorriu ao lembrar-se de seus queridos partindo em Tartaruga e Caracol, e nos outros animais emprestados, tanto cavalos quanto mulas. Os irmãos Courmier tinham até trazido um asno, que fora escolhido para carregar o equipamento que o irmão Cirilo queria levar.

A maioria dos freis do São Gabriel nunca tinha feito nada parecido, e aqueles que outrora foram soldados já nem se lembravam mais de como era uma batalha. A preocupação a atormentava ao ponto da agonia.

A importância da questão de sua identidade parecera ter diminuído com a urgência do assunto do irmão de Ranulf, mas, ao relembrar o fato, percebeu que os acontecimentos estavam conectados. Se fosse mesmo uma LeClerc, então era um parente seu que mantinha o tal Dragão em cativeiro. E se o que Camille Courmier afirmara fosse verdade, era a mesma pessoa que capturara sua mãe, e talvez fosse o responsável por sua morte.

Não conseguia parar de pensar em sua origem, e acreditava que tudo o que precisava descobrir estava escrito em algum dos livros que o irmão José deixara para o irmão Alois. E o irmão Alois os mantinha guardados a sete chaves em seu pequenino escritório, nos fundos da biblioteca.

De repente, algo lhe ocorreu. Alois ordenara que os freis passassem o dia todo trancafiados na igreja, rezando pela segurança de seus irmãos. Isso significava que todo o mosteiro estaria deserto, incluindo o escritório do abade.

Bridget olhou para uma das vacas que ruminava.

– O que você acha? Devo ir?

A vaca a olhou com seus grandes olhos castanhos.

– Mantive-me indiferente por muito tempo, amiguinha. Se queremos que as coisas aconteçam, devemos ir atrás delas.

Com essa resolução, Bridget saiu do estábulo e seguiu na direção do escritório do abade, decidida a desvendar o mistério que a envolvia.

Não agüentava mais não ser ninguém. Queria conhecer a história de sua vida, entender o que acontecera com seus pais. Será que os dois tinham experimentado uma grande paixão? Será que chegaram a se casar?

Assim que chegou, Bridget parou diante da construção, crendo que, dali a alguns momentos, conheceria tudo sobre si. Respirando fundo, reuniu toda sua coragem e entrou no aposento.

 

                                     CAPÍTULO XV

O castelo de Mordin era um pequeno complexo rodeando uma velha torre. As paredes estavam malcuidadas e começavam a soltar as pedras, e era evidente que ninguém cuidava de sua conservação. Parecia fazer anos que ninguém morava lá.

O grupo vindo do Mosteiro de São Gabriel parou em uma pequena colina para estudar os arredores. Jean informara que não encontrara guardas pelo caminho, e também não havia nenhuma evidência de seguranças na entrada. O ferreiro mais uma vez aproximara seu cavalo do de Ranulf.

– Pretende invadi-lo, sir? Ranulf balançou a cabeça.

– Não podemos nos arriscar assim. Eles podem matar meu irmão antes de conseguirmos encontrá-lo.

"Isto é, se Edmund ainda estiver vivo." A dúvida o torturara durante toda a viagem, desde que saíram da abadia. Estava tão perto de encontrar o irmão que a idéia de perdê-lo agora era insuportável.

– O que vamos fazer? – Pierre Courmier, mesmo um pouco afastado, escutara sua resposta.

– Os monges e eu planejamos uma estratégia de ação.

– Ranulf sorriu e apontou para um grupo de árvores.

– Vamos parar ali para fazer os últimos ajustes.

A não ser por Ebert e Jacques, os freis desmontaram com dificuldade, exaustos, mas Ranulf deu-lhes pouco tempo para se recuperar.

Todos reunidos, revisaram o plano. Imaginavam que Edmund Brand estivesse preso em alguma masmorra subterrânea. A primeira tarefa, portanto, era entrar no castelo, dominar os soldados e libertar o prisioneiro. E fugir antes que pudessem ser atacados.

– Deixe que eu cuido dos guardas. – Jean uniu suas grandes mãos.

Os irmãos Courmier concordaram.

– Excelente! Mas primeiro temos de trocar de roupa. – Ranulf fez um gesto para Ebert e Cirilo, que tiraram um saco do lombo do asno, cheio de hábitos brancos.

– Ah, não! – protestou Jean. – Não vou me vestir como uma velha.

Entretanto, ao receber os olhares zangados dos religiosos, decidiu colaborar.

– Quer dizer, não me parece certo tentar parecer sagrado. Cirilo pegou uma das peças e jogou-a para o ferreiro.

– Deixe a vaidade de lado, meu filho. É por uma boa causa.

Sem mais reclamações, Jean, Ranulf e os Courmier vestiram as roupas brancas. Eram bem mais altos do que os verdadeiros monges, mas alguém que observasse o grupo reunido não diria que estavam disfarçados.

Sem delongas, Ranulf forneceu maiores detalhes de como deviam agir. Em seguida, montaram seus cavalos e prosseguiram pela colina que descia até o castelo. Os primeiros raios de sol começavam a brilhar nas paredes de pedra.

Como tinham previsto, um guarda sonolento abriu a porta e os deixou entrar.

– O barão não está aqui, irmãos – disse ele —, mas acho que não há por que vocês não descansarem no pátio.

– Que a paz esteja convosco, meu filho – abençoou-o Ebert, e todos entraram.

As esperanças de Ranulf aumentaram. Talvez ninguém os desafiasse, e conseguissem resgatar Edmund sem derramamento de sangue.

Ao alcançarem a torre principal, o grupo foi recebido por um guarda imenso.

– Vamos trazer um pouco de sopa para vocês – resmungou ele, sem esconder o mau humor. – Depois, poderão prosseguir viagem.

Ebert aproximou-se do homem.

– Gostaríamos de ficar um pouco dentro do castelo, meu filho. Lá deve estar bem mais fresco.

O guarda meneou a cabeça.

– Impossível. Ninguém pode entrar no castelo de Mordin quando o barão não está.

Ebert olhou para Ranulf

– Deixe que sua consciência decida, irmão.

Em um instante, o pátio se transformou em um grande caos. Ranulf, os irmãos Courmier e o ferreiro tiraram seus hábitos. Ranulf sacou a espada, e os outros pegaram várias armas que o ferreiro lhes trouxera. Em um instante, uma dezena de guardas apareceu de dentro do castelo, a maioria empunhando espadas pequenas.

Os monges tiraram debaixo de seus hábitos uma série de instrumentos misteriosos. Cirilo segurava um aparato que parecia uma atiradeira, mas que tinha um buraco no meio, onde podia enfiar as pontas de lança fabricadas com o metal negro que trazia em um saco em suas costas.

O irmão Jacques tinha um tipo de alavanca que, quando puxada para um lado, atirava para o outro com tremenda força. Usou-a contra o queixo de um soldado que vinha atacá-lo, e o homem caiu duro no chão.

Jacques olhou a sua volta, surpreso e um pouco desconfortável com seu próprio sucesso. Quando notou que ninguém se dera conta de seu feito, correu de encontro a outro guarda e repetiu o gesto.

O soldado que os impedira o acesso ao interior da fortaleza lutava com Ranulf com uma grande espada, mas o sujeito não chegava nem aos pés do cavaleiro inglês. Dentro de poucos instantes, jazia no solo, imóvel, acertado por um golpe na cabeça.

Minutos depois, todos os guardas de Mordin estavam inconscientes no chão, e alguns tinham ido tentar curar seus ferimentos. Nenhum dos homens do São Gabriel mostrava um único arranhão. A primeira parte do plano saíra conforme o esperado.

Ranulf encarou seu grupo e assobiou, surpreso.

– Vocês foram magníficos, meus amigos!

Os homens trocaram olhares de triunfo, mas Ebert estudou os homens deitados no sol.

– Nós não matamos todos, não é? Tenho certeza de que isso não é permitido pelas Regras.

– E um pouco tarde para se preocupar com elas, irmão Ebert – disse Jacques. – Mas não, nenhum deles me parece morto.

– Agora precisamos encontrar meu irmão, antes que eles acordem.

Ranulf não via a hora de achar Edmund. Seria possível que ele estivesse ali, talvez debaixo de onde se encontravam? Então a sombra do medo o assolou mais uma vez. E se tivessem chegado tarde demais?

Jean pareceu reconhecer a emoção que tomara o amigo.

– Precisamos nos dividir e procurar em diferentes partes – o ferreiro falou, com autoridade, tomando as rédeas da situação. – Entrem em cada aposento. Se encontrarem o prisioneiro, gritem e tragam-no para cá.

Ranulf recuperou a capacidade de falar:

– Reúnam-se em grupos de três ou quatro, para o caso de encontrarem mais vigias pelo caminho. E depressa, antes que esses soldados recuperem a consciência.

Jean e dois dos irmãos Courmier subiram as escadas. Os outros irmãos seguiram para trás do pátio para ver se o complexo estava seguro. Ebert e Cirilo acompanharam Ranulf.

A escadaria foi ficando cada vez mais escura à medida que eles desciam. Ranulf pegou uma tocha na parede para iluminar um pouco mais o caminho. A escada terminava em mas sólida parede de pedras. Ele se voltou para os dois monges com uma expressão de tremendo espanto.

– Chegamos a um lugar sem saída.

Os monges olhavam atentamente para a parede.

– Eu não acho – afirmou Cirilo.

Ranulf ficou vendo os freis se ajoelharam e se porem a estudar cada pedra. Por fim, Cirilo se endireitou, com um sorriso triunfal.

– Trata-se de um antigo sistema de alavancas. – Então, empurrou a pedra que escolhera, e toda a parede começou a se abrir em uma grande porta.

As palmas das mãos de Ranulf começaram a suar, tamanha a expectativa de encontrar Dragão, mas, quando a porta se abriu, revelou um pequeno aposento vazio. Ele quase gritou com a decepção.

Ebert tirou a tocha de sua mão e ergueu-a, para conseguir enxergar mais no escuro aposento.

– Ali! – exclamou ele, apontando para um dos cantos. Do outro lado, via-se uma portinha. Podiam escutar sons de correntes vindo de trás das pedras.

Com energia renovada, Ranulf correu até lá e tentou abrir. Em vão.

– Dragão! – gritou ele, o desespero evidente em sua voz. Escutaram uma resposta, mas não se podia distinguir as palavras. – Dragão! – repetiu, tentando de qualquer jeito passar para o outro lado.

– Deixe-me tentar, sir Ranulf – Cirilo tocou-lhe o braço. – A porta está trancada.

O frei segurava uma ferramenta que enfiou bem abaixo da maçaneta. Ranulf aguardou em silêncio, enquanto ele trabalhava.

Depois de alguns momentos, Cirilo soltou um longo suspiro.

– Acho que conseguimos. – Deu um passo para trás, dando espaço para o cavaleiro tentar de novo.

Ranulf virou a maçaneta, e a porta se abriu, raspando contra o chão. Parado do outro lado, pálido mas saudável, estava Dragão.

Os dois irmãos se entreolharam, depois correram para se abraçar.

– Você sempre se metendo em encrencas, irmãozinho... Edmund sorriu.

– Porque eu sabia que meus irmãos mais velhos viriam me salvar.

– Da próxima vez, não tenha tanta certeza assim. Há coisas mais interessantes para eu fazer na vida do que ficar procurando meu irmão pelo mundo.

Edmund olhou para os dois monges atrás de Ranulf.

– Espero que... Você não está seguindo o exemplo desses bondosos irmãos, espero...

– Não, seu tolo! Estes são dois dos monges cistercienses do Mosteiro de São Gabriel, que vieram me ajudar a resgatá-lo deste terrível esconderijo.

– São Gabriel? Era esse o mosteiro para o qual eu seguia, à procura do...

– Sim, do metal negro. Mas, se não se incomodar, Edmund, vamos deixar as explicações para mais tarde, até estarmos seguros longe deste maldito lugar. Você está bem? Acha que consegue cavalgar?

– Sim, os carcereiros cuidaram muito bem de mim. A comida era boa. Ah, meu Deus, como é bom vê-lo, Ranulf! Nem acredito que isso está acontecendo!

– Nem eu.

Eles se olharam mais uma vez, depois todos se voltaram para começar a subir as escadas a caminho da saída.

Uma das principais instruções das Regras era a obediência a todas as coisas, e Bridget sentiu uma grande culpa por estar entrando no escritório de Alois, que sempre lhe fora proibido. Mas, agora que começara a busca, sua curiosidade não cederia, e a oportunidade parecia muito perfeita para deixá-la passar.

No aposento havia a mesa do abade, que tinha o mesmo modelo das que ficavam na biblioteca ao lado. Antes de começarem a se interessar pelas invenções, os monges de São Gabriel, bem como seus outros companheiros por toda a Europa, passavam horas e horas copiando manuscritos.

Não havia nada em cima do tampo, mas ela sabia que os registros da abadia ficavam em um armário na parede do escritório com pouca mobília.

Caminhou até o armário de madeira e ajoelhou-se diante dele. A porta era pesada e, apenas por um momento, enquanto a abria, Bridget imaginou se não seria melhor fechá-la e sair dali. Se aquele móvel contivesse os segredos de sua família e de seu passado, talvez devesse se poupar de descobrir o que estava escrito nos livros.

Bridget sabia que não tinha que olhar. Poderia continuar na ignorância, sendo apenas Bridget, uma jovem sem sobrenome conhecida apenas pelos monges do São Gabriel e escondida do resto da humanidade. Sua vida poderia mudar por completo se descobrisse quem realmente era.

Hesitou por mais alguns instantes, temendo tomar a decisão errada. O que leria naqueles documentos mudaria tudo, mesmo que essa mudança fosse insignificante.

Então, respirou fundo e escancarou o armário. Em seu interior, os livros empilhados não demonstravam nenhum indício de ameaça a sua pacata existência.

Pegou o primeiro volume, levou-o à mesa e sentou-se no banco para começar a leitura. Tratava-se de um registro da contabilidade, de acontecimentos importantes, dias de festas e banquetes, e compras no mercado. Se todos tivessem o mesmo conteúdo, Bridget não via como encontrar as respostas que tanto procurava.

O meio-dia se aproximava, e logo os religiosos estariam terminando as orações para almoçar. Precisava encontrar o volume correspondente ao ano de seu nascimento.

Ajoelhou-se mais uma vez diante do móvel e começou a procurar mais depressa, sabendo que seu tempo diminuía e lutando contra a curiosidade crescente. Encontrou-o no sétimo volume, referente ao ano de 1773.

Entretanto, ao abri-lo, não encontrou nada além dos mesmos registros que os demais. Bridget sentiu as lágrimas chegando a olhos, tamanha sua decepção. Pelo visto, seu segredo estava muito bem escondido.

Sentou-se no chão ao lado do armário e obrigou-se a ler os relatos. Em última instância, descobriria coisas interessantes sobre a vida do São Gabriel antes de seu nascimento. Não era bem essa sua intenção, mas pelo menos era alguma coisa.

Ao virar as páginas, espantou-se ao encontrar um envelope quase no meio do livro. Era de pergaminho, e as inscrições eram em francês. Pegou-o com os dedos trêmulos.

A assinatura no verso era de Henri LeClerc, o barão de Darmaux.

Mordendo forte o lábio inferior, abriu-o e começou a ler.

Não escutou a porta do escritório se abrir, mas logo a voz suave de Alois interrompeu sua concentração;

– Eu sempre soube que não conseguiríamos mantê-la a salvo dos acontecimentos para sempre, minha filha.

Bridget se sobressaltou, assustada e ao mesmo tempo sentindo-se culpada. Fechou o livro. Em seguida, depois de respirar fundo algumas vezes, olhou para cima.

– Nunca me importei em não saber nada a meu respeito, abade. Sempre fui muito feliz aqui.

Alois entrou.

– Sim. Todos nós sempre fomos muito felizes aqui, e agora tudo começa a mudar. Maldito Cirilo e suas invenções! Eu sabia desde o início que seria o fim de nosso mosteiro.

Alois tinha uma expressão que Bridget jamais vira antes. Seu olhar frio mostrava um brilho estranho.

– De jeito nenhum, irmão Alois. Assim que Ranulf e os monges resolverem o problema do metal negro...

– Sim, o metal negro. Ele torna os homens gananciosos e os faz quebrar promessas e querer mais.

Bridget não conseguia entendê-lo, e começou a se assustar. Alois, o líder severo que sempre controlava tudo com extrema calma, agora parecia incoerente. Ela quase se esqueceu do papel que começara a ler.

– Você sabia sobre este pacto? – Bridget ergueu a carta.

– Que os monges do São Gabriel manteriam seu segredo guardado para sempre em troca de sua vida? Sim.

– Mas por quê?

Alois a olhava com um sorriso estranho.

– Você era um bebê tão meigo, Bridget. Nenhum de nós tinha visto nada parecido quando sua mãe deu à luz. Não suportávamos a idéia de entregá-la ao barão. Ele a teria matado no ato. Não tenho a menor dúvida disso.

– Mamãe era prima dele.

– Sim, e a verdadeira herdeira de Darmaux. Henri tinha direito apenas a Mordin, uma propriedade bem menor e menos importante. Não era suficiente para ele.

– Então forçou-a a fugir.

– Quando Henri descobriu que Charlotte estava grávida, carregando um possível herdeiro, ficou furioso. Ela se recusava a dizer quem era o pai, e Henri acreditava que era um cavaleiro poderoso que poderia ajudá-la a reivindicar o castelo.

Seu pai... O pedaço de papel não continha nenhuma evidência sobre sua identidade.

– Quem foi meu pai?

– É aí que está a ironia, minha filha. – Alois deu uma sonora risada. – Seu pai não era nenhum cavaleiro, Bridget. Na verdade, ele nunca poderia lhe dar seu verdadeiro sobrenome.

– Vai me contar logo ou não?

– Não faz mais diferença. Na verdade, nada mais faz diferença. O mosteiro está arruinado. – Alois caminhou até ela. – E tudo começou com a chegada do cavaleiro inglês. Agora todos sabem sobre o metal negro e também seu segredo. É o fim de tudo.

Bridget começava a ficar preocupada. Nunca vira o monge naquele estado antes, e o olhar estranho dele começava a assustá-la.

– Perdoe-me, irmão, mas você está errado. O São Gabriel continua firme como antes. Assim que Ranulf encontrar Edmund, tudo voltará ao normal.

Aproximando-se cada vez mais, Alois balançava a cabeça, perdido em seus pensamentos.

– Não, minha querida Bridget, é tarde demais para tudo voltar a ser como antes. O São Gabriel está acabado, e nós iremos em seguida.

Então ela arregalou os olhos quando ele levantou o frasco de tinta da mesa e acertou-a na cabeça.

Alois estava parado, cabisbaixo, com as mãos enfiadas nas mangas do hábito.

– Foi a jovem sozinha que descobriu o segredo, milorde. Ninguém na abadia revelou-lhe nada. Ela entrou no escritório e encontrou os registros.

O abade tivera de ir andando até o castelo de Darmaux, pois as duas mulas tinham sido levadas na expedição ao castelo de Mordin. Encontrou o barão muitíssimo mal-humorado, gritando com o xerife. Guise, que estava de joelhos na entrada do salão. Um mensageiro acabara de voltar do castelo de Mordin, relatando a fuga do prisioneiro inglês. Alois sabia que não chegara em um bom momento com as novidades, mas não se importava com mais nada. Durante anos sentira o peso de seu pacto com o diabo. Agora estava na hora de começar seu caminho para o inferno e passar a eternidade colhendo os frutos de sua barganha.

– Nosso acordo seria que eu não usaria meu poder com o bispo para tomar as terras do São Gabriel desde que você mantivesse a garota em silêncio, abade. Se ela aparecer e conseguir apoio, ainda poderá exigir a posse de Darmaux. E isso, meu caro, jamais acontecerá.

– Faça o que quiser com ela, milorde. – Alois encarou com indiferença o olhar furioso de LeClerc. – Eu a deixei presa na oficina.

– E daqui a pouco o inglês estará de volta com aquele exército que reuniu para ir até Mordin! – berrou o barão.

A ira fez com que as veias saltassem em seu pescoço. Ele chutou a barriga do xerife, que continuava ajoelhado a sua frente.

– Junte os homens, seu incompetente! Dessa vez irei com você para garantir que o serviço será bem-feito. Quero a garota morta e ao mosteiro seguro. Também exijo que os irmãos ingleses sejam capturados antes do pôr-do-sol!

Nos primeiros instantes, Bridget ficou imaginando se haveria alguma verdade nas palavras de Alois, Era como se o mundo que conhecera estivesse morto, ou pelo menos morrendo.

Primeiro fora o choque com a traição do irmão Cirilo, depois a revelação de que os monges tinham cuidado dela durante todos aqueles anos apenas para proteger o mosteiro, e não por ela.

E agora essa do irmão Alois... O abade se mostrara muito distante quando a levara para a cabana e a colocara atrás de um armário, prendendo-lhe os pulsos e tornozelos com uma corda. Bridget teve a ligeira impressão de que seu cérebro já não funcionava mais direito.

– Pobre Bridget, pobre Bridget... – Alois ficara repetindo, ao amarrá-la como um novilho após o abate, pronto para ir para o mercado. – Tentei protegê-la, mas agora não tem mais jeito. Preciso ir falar com o barão, e ele decidirá o que fazer com você.

Então o abade saiu, deixando-a sozinha tentando compreender todos os acontecimentos dos últimos dias.

Conforme o acordo do irmão José com o barão, a abadia poderia abrigar a filha de Charlotte LeClerc em segredo desde que a criança jamais descobrisse sua ligação com os LeClerc. Em troca, o barão usaria seu poder para garantir que o poderoso bispado deixaria o Mosteiro de São Gabriel funcionando em paz e com autonomia. O pacto com o diabo ameaçava comprometer tudo em que ela sempre acreditara sobre sua educação.

As cordas machucando a pele sensível de seus pulsos a fizeram lembrar que não havia tempo para pensar. Alois decerto já estava com o barão, e, se fosse tão cruel como imaginava, LeClerc deveria estar a caminho do convento com seus homens, preparado para acabar com a vida de um parente tão perigoso.

Com o dia designado às orações, seria pouco provável que algum monge aparecesse na oficina, o que significava que teria de se soltar sozinha.

Aos poucos, Bridget foi se arrastando para a frente do armário. Assim que começou, descobriu que não era difícil, mas demorava muito. Não conseguiria ir longe, portanto.

Levantou a cabeça e olhou a sua volta. Com todo o aparato que os monges usavam para suas invenções, na certa haveria algo com que pudesse cortar as amarras.

Demorou pouco para Bridget conseguir encontrar a solução e, por ironia do destino, foi um pedaço do metal negro. Primeiro usou-o para cortar a corda em seus pés, depois, com mais dificuldade, levou-a à boca e começou a partir a outra em seus pulsos. O processo parecia interminável, e seu pescoço doía devido à tensão, mas, por fim, as cordas cederam e se romperam.

Estava livre, mas o que fazer? Poderia demorar horas para Ranulf e os outros regressarem. E se o abade chegasse antes com os soldados do barão? Pensou em ir até a igreja para contar aos outros monges o ocorrido com Alois, mas rejeitou a idéia no ato. Aqueles eram os mais velhos, por isso tinham ficado, e muitos deles tinham a saúde frágil. De nada adiantaria alarmá-los e prepará-los para uma batalha contra guardas armados.

Ficou por um instante parada no meio da cabana, tentando chegar a uma solução. Não, se os homens do barão voltassem para procurá-la, tinha de se preparar sem ajuda de ninguém.

Começou, então a procurar as bugigangas dos monges. Bridget sempre estranhara que, em meio às invenções úteis à abadia, houvesse algumas muito menos pacíficas.

Se tivesse armas suficientes ali dentro, poderia, sem dúvida, enfrentar os guardas de LeClerc, mas não tinha quem a ajudasse.

Foi então que deparou-se com a fornalha, que rugia, como de costume.

 

                                           CAPÍTULO XVI

Ainda havia muitas coisas para serem resolvidas, pensou Ranulf a caminho do São Gabriel. Teria de enfrentar LeClerc e descobrir o mistério que envolvia o passado de Bridget.

Sem falar no metal negro. Agora que tantas pessoas conheciam o segredo, muitos senhores feudais ávidos por guerras começariam a construir fornalhas por toda a Europa para produzir pontas de lanças e flechas capazes de furar armaduras. Era isso o que todos chamavam de progresso?

Cavalgando ao lado de Dragão sob o sol da Normandia, Ranulf sentia como se seu mundo tivesse voltado ao normal, agora que encontrara o irmão. Afinal de contas, por isso atravessara o canal.

De vez em quando olhava para Edmund, tão parecido com ele, para certificar-se de que era mesmo verdade que estava salvo e saudável, e a seu lado mais uma vez.

– Então, como é sua Bridget? – Edmund interrompeu-lhe os pensamentos.

– Em primeiro lugar, ela não é minha Bridget.

– É mesmo? Sendo assim, por que a moça foi seu primeiro comentário quando saímos do castelo de Mordin?

– Porque estava curioso de saber o que você acharia dela.

Edmund sorriu para o irmão.

– Se é tão bonita quanto você diz, posso querer conhecê-la um pouco melhor...

– E Diana, meu caro? Já se esqueceu de que sua noiva o espera em Lyonsbridge?

Edmundo inclinou-se para trás na sela, suspirando.

– Não, mas já faz tanto tempo que parece que Diana não passa de um sonho bom.

– Nada disso, Dragão. Diana é uma mulher de carne e osso que esperou durante três anos por seu retomo. Atrevo-me a dizer que ela é um prêmio muito maior do que um errante como você merece!

– Sim. – Edmundo esboçou um sorriso maroto. – Mas estar voltando para os braços da noiva não significa que não possa achar as outras mulheres bonitas e atraentes. Por favor, Ran, você está falando com um homem que passou meses tranca-fiado em uma cela escura, sem o menor contato com o mundo. Bridget é atraente? Loira ou morena? É encorpada, com adoráveis quadris e...

Edmund parou de falar quando levou uma leve chicotada do irmão.

– Eu deveria tê-lo deixado apodrecendo naquela masmorra! – Ranulf, brincou.

– Bem, de qualquer forma, ela é sua Bridget.

– Não, não é.

Edmund sorriu ainda mais, e os dois cavaleiros esporearam suas montarias para alcançar os outros homens.

No final das contas, Bridget teve de pedir ajuda a Francis. Suas preparações foram tranqüilas, mas a operação exigiria duas pessoas, uma para sinalizar a aproximação dos homens do barão, a outra para atear fogo na fornalha auxiliar.

O tempo tinha de ser perfeito, pois, se esperasse demais, os bandidos entra-riam na cabana antes de a fornalha auxiliar ter esquentado o suficiente. Isso os colocaria direto na linha de explosão.

Bridget não queria que ninguém se machucasse. Sua intenção era apenas assustar o barão com a fornalha e, no processo, destruir o aparelho que lhes causara tantos problemas. Os monges ficariam decepcionados com a perda de suas bugigangas, mas logo descobririam maneiras de inventar novas.

Francis se movimentava com dificuldade devido ao ferimento em sua cintura. Ficara atordoado ao saber o que Alois fizera.

– Quem poderia imaginar que o abade seria capaz de uma coisa dessas? Alois nos guiou por todos esses anos!

Bridget não tinha tempo para ficar discutindo as revelações do dia. Precisava se preparar para lutar contra um exército, e havia uma fornalha para explodir.

Os dois combinaram que Francis ficaria escondido próximo à campina que levava ao mosteiro. Quando avistasse o barão, o xerife ou qualquer um de seus homens, assobiaria do jeito que o irmão Jacques inventara para chamar os irmãos que estivessem trabalhando no campo.

Bridget ocupou-se em colocar na fornalha auxiliar tudo o que queimasse depressa e a deixasse bem quente. Então, sentou-se e esperou.

A noite começava a cair, Bridget observou, através das janelas da oficina, quando escutou o assobio de Francis.

Com as mãos trêmulas, ela começou a friccionar as duas pedras. Em meio ao nervosismo, demorou alguns minutos até conseguir atear fogo nos galhos, mas, uma vez aceso, queimou depressa.

Bridget olhou ao redor, com um súbito remorso. Talvez devesse ter removido alguma coisa que os monges mais valorizavam.

Bem, agora era tarde demais, decidiu, dando de ombros ao ver o fogo da fornalha auxiliar aumentar. Além do mais, as Regras impediam que as pessoas se apegassem a bens materiais.

Entretanto, em um repentino impulso, Bridget guardou na bolsa que Ranulf lhe comprara no mercado em Beauville o pedaço de metal negro que usara para cortar as cordas. Um forte ronco de dentro da fornalha a fez lembrar que, se não se mexesse depressa, toda a cabana explodiria, e ela junto, caso não saísse logo dali.

Rápida, passou pelas grandes portas de madeira em direção ao bosque adjacente. Olhou uma última vez para a cabana, rezando para que tudo corresse conforme o planejado. Queria assustá-los. Só isso.

Tinha andando apenas cem metros quando, de repente, viu o bosque cheio de homens. Virando-se, tentou esconder-se atrás de um arbusto, mas, quando se deu conta, já estava nos braços de um guarda fortíssimo.

– Peguei-a! Aqui! – O homem a segurava com facilidade, embora Bridget não parasse de se debater para tentar se soltar. – Calma, sua pequena selvagem!

Então, colocou-a em seu ombro e levou-a para a floresta, ignorando os golpes que levava nas costas.

Chegaram à clareira em frente à cabana de trabalho, e o sujeito atirou-a ao solo.

– Esta jovem é uma peste! – berrou, massageando as costas.

Bridget abriu os olhos e deparou-se com um homem muito bem vestido, que estava parado segurando um chicote.

– Esse é o tipo de oponente com o qual você pode lidar, xerife – disse ele, dirigindo-se a Guise. – Uma mulher.

O semblante de Guise se encheu de ódio, mas ele ficou em silêncio.

– Eles falaram a verdade – comentou o barão. – Você é muito parecida com minha falecida prima.

Bridget sentiu um grande alívio ao perceber que não possuía nenhuma semelhança física com aquele homem cruel.

– A prima cujas terras você roubou? O barão sorriu.

– E ainda por cima tem o mesmo gênio da mãe. Charlotte também nunca sabia quando ficar calada. – Virou-se para Guise. – Mate-a.

Naquele momento, o barulho da fornalha aumentou, e Bridget percebeu, em pânico, que a fornalha auxiliar começara a enviar ar para a principal. Olhou para a campina a sua volta. Estavam muito próximos. Se a fornalha explodisse, todos morreriam.

– Espere! – gritou ela, no momento em que o xerife tirava uma adaga da bainha em sua cintura. – Todos temos de nos afastar daqui. E muito perigoso.

Um ronco da fornalha reforçou suas palavras. O barão ergueu a cabeça.

– Ela fez alguma coisa com a fornalha. Guise, pegue seus homens e entre para ver o que há de errado. – O barão apontou para os três guardas parados perto de uma árvore.

O xerife olhou para os soldados, depois para LeClerc e Bridget. A fornalha roncou de novo.

– Vá sozinho, LeClerc! Não vou explodir meus miolos por sua causa!

– Eu ordeno que entre. Guise!

O xerife deu um passo para trás e apontou a adaga para o barão.

– Sugiro que façamos o que a jovem disse e saiamos daqui.

– Seu tolo! – berrou LeClerc. – Sigam-me! – disse ele, virando-se para os guardas, caminhando, em seguida, para dentro da oficina.

– Não o deixe entrar! – gritou Bridget, desesperada.

O xerife ficou imóvel, apenas olhando o barão se afastar. Os roncos da fornalha tomaram-se mais fortes, e vários guardas saíram correndo para o bosque. Bridget se levantou,

– Precisamos sair daqui o mais depressa possível, xerife. Guise assentiu, mas não se mexeu.

– Vamos! – chamou Bridget.

Então, todo o chão debaixo de seus pés tremeu com uma explosão.

A noite já caíra quando a exausta procissão retomando do castelo de Mordin alcançou a bifurcação na estrada onde um dia Ranulf beijara Bridget.

Além de não terem dormido, os homens tinham passado o dia inteiro cavalgando. E não era nada fácil se manter em cima do lombo de um cavalo por muitas horas, ainda mais quando o animal não era dos melhores.

A cabeça de Ranulf latejava, e seu irmão demonstrava a exaustão de meses de reclusão.

– Será bom voltar para o mosteiro, Edmund. Aquele é um lugar muito sossegado.

– Nunca o imaginei seguindo a vida monástica, irmão.

– Não é bem o estilo de vida que escolhi, mas estou pronto para deitar em uma daquelas camas e dormir até não poder mais.

– E o barão e o xerife?

Ranulf contara toda a história para Edmund durante trajeto.

– Teremos de enfrentá-los, mas, agora que você está comigo, não tenho a menor pressa. Poderemos buscar ajuda em Lyonsbridge.

– E levar sua jovem conosco? Ranulf ficou quieto por um momento.

– Sim. Não pretendo deixá-la sozinha de novo.

– Vovó vai adorá-la.

– Tenho certeza de que sim. Ela já adora a esposa de Thomas, Alyce Rose, como se fosse sua própria neta.

– Vovó sempre dizia que havia muitos homens em casa. – Edmund sorriu, saudoso. – Não vejo a hora de reencontrá-la.

– Ela terá algumas palavrinhas a lhe dizer por ter nos deixado tanto tempo preocupados.

– Disso não tenho a menor dúvida, caro irmão. Contudo, quando eu lhe contar que foi o próprio rei Ricardo quem me mandou em busca do misterioso metal negro que começou a aparecer pelo continente assustando a todos, talvez me perdoe.

– Acredito que vovó o perdoaria até se você estivesse trabalhando para o próprio diabo, mas...

Suas palavras foram interrompidas pelo som distante de uma explosão. Ranulf ergueu-se, apoiando-se no estribo, e olhou na direção da abadia no instante em que um brilho alaranjado coloriu o céu escuro.

– Bridget! – gritou ele, saindo em disparada com Trovão.

Ranulf tinha deixado os monges fazia muito para trás, quando alcançou a clareira que seguia até o Mosteiro de São Gabriel, mas seu irmão, Jean e os Courmier o acompanhavam.

Já desconfiava da causa e do local da explosão, e não se surpreendeu ao ver os homens usando as armaduras de Darmaux espalhados pelo solo.

– Eles trabalham para o barão! – berrou para Edmund. – Vou procurar Bridget.

Um homem corria com dificuldade para a cabana, e Ranulf reconheceu o monge.

– Francis!

O frei se virou, arfando,

– Bridget estava na cabana de trabalho! Depressa!

– Então continuou a correr.

Um forte arrepio percorreu a espinha de Ranulf. Edmund analisou o território.

– Essa oficina explodiu por causa da fornalha, Ran?

– Sim.

– Jean virá ajudá-lo. Eu vou com os irmãos Courmier verificar se o complexo do mosteiro está seguro.

Ranulf assentiu com um gesto, sem conseguir responder. Olhava para a fumaça saindo de cima da cabana destruída. Se Bridget estivesse lá dentro...

– O que quer que façamos com o barão, se o capturarmos? – Edmund perguntou.

Ranulf obrigou-se a concentrar-se na tarefa que tinha em mãos.

– Diga-lhe que o rei da França determinará seu destino. Mas o xerife é meu. – Apontou para a cabeça enfaixada.

– Tenho um assunto particular para resolver com ele. Assentindo, Edmund se afastou. Ranulf fez um sinal para Jean, e os dois seguiram em direção à oficina. Acima das árvores, o brilho alaranjado aumentara mais ainda.

– Foi a fornalha, sir.

– Sim, Jean.

– Espero que não tenha sobrado nada dessa maldita fornalha!

Aos poucos, Bridget se levantou, surpresa por conseguir se movimentar e ver que seus membros continuavam inteiros.

Demorou um pouco para notar que seu plano fora bem-sucedido. Explodira o malfadado aparelho!

Esfregou os braços, doloridos. Sim, acabara com tudo, mas a que preço?

Sentindo-se péssima e culpada, olhou para as portas pelas quais o barão desaparecera. Os três guardas que 0 haviam acompanhado jaziam no chão, mas se movimentavam. Nenhum sinal de LeClerc, e a situação dentro da cabana era infernal.

Atrás dela, o xerife se mexia, o que a fez começar a se afastar. Ele, entretanto, a impediu.

– Aonde você pensa que vai?

Os dedos dele machucavam-lhe o pescoço, e Bridget tentava se soltar de todo jeito.

– Acho que lhe devo algo pela noite de hoje, menina. Estava na hora de alguém mandar LeClerc para o inferno.

– Então, solte-me.

Guise arreganhou a boca, deixando ver seus dentes podres.

– Preciso encontrar uma maneira bastante adequada de lhe mostrar minha gratidão.

– Pode mostrar para mim, Guise.

Com um alívio indescritível, Bridget reconheceu a voz de Ranulf. Mas se preocupou ao notar quê Guise era bem maior que o cavaleiro, e Ranulf demonstrava a dor que estava sentindo devido ao ferimento.

O xerife sorriu e pegou sua pequena adaga.

– Você não vai escapar de mim com suas acrobacias, inglês bastando! – Em seguida, o xerife levantou a arma e baixou o braço na direção do cavaleiro.

Em um movimento ágil, Ranulf conseguiu evitar o golpe.

Bridget olhou para trás e viu que Jean cuidava dos três guardas, apontando-lhes a espada para que continuassem deitados. Estudou ao seu redor para tentar encontrar uma maneira de ajudar Ranulf, mas avistou apenas pedaços de madeira e pedras, na clareira.

Depressa, Ranulf recuperou o equilíbrio e tentou acertar Guise com a espada. O xerife também tentou acertar-lhe outro golpe mortal, mas o cavaleiro conseguiu se livrar.

Bridget foi tomada por um grande desespero ao ver seu adorado correndo tão grande risco. E, pelo visto, não conseguia reunir todas as forças para lutar, devido à dor provocada pelo corte em sua cabeça. Ranulf tinha o rosto todo pálido.

Bridget tirou o pequeno pedaço de metal negro da bolsa. Quando o xerife ficou de costas, ela acertou-lhe a nuca com o objeto cortante.

Guise gritou e deixou a adaga cair. Então, virou-se e agarrou a cabeça dela.

– Vou quebrar seu pescoço, sua... – Antes que ele pudesse terminar, Ranulf acertou-lhe um golpe mortal.

O xerife foi ao chão, inerte.

– Você está bem, minha querida? – Ranulf tomou-a nos braços.

– Sim. – Seus olhos estavam cheios de lágrimas.

O cavaleiro se virou para ver se Jean precisava de ajuda com os guardas. Depois, fitou Guise. Quando vira aqueles dedos imundos em volta do delicado pescoço de Bridget, não conseguiu pensar em mais nada. E pelo visto o matara.

– Você salvou nossas vidas, meu anjo.

– Ele...

– Sim, está morto – confirmou Ranulf. – E o barão? Bridget apontou para a cabana em chamas.

– Estava lá dentro.

Ranulf respirou fundo, aliviado.

– Assim seja.

– O barão era primo de minha mãe. E Alois estava ligado a ele. Havia anos. E...

– Não fale nada agora, minha linda. Depois conversaremos com mais calma. Por enquanto, estou feliz por saber que está a salvo e por eu ter encontrado meu irmão. Nada mais importa.

 

                                         CAPÍTULO XVII

Bridget pegou mais um hábito rasgado da pilha e enfiou, irritada, a agulha no tecido.

– Não quero saber do castelo de Darmaux, nem de nada relacionado a ele. Tudo de que preciso para viver está aqui dentro deste mosteiro. – Ela apontou para a cozinha. – Você nunca teve vontade de fazer mudanças, irmão Francis.

O monge encostou a cabeça na parede, suspirando.

– Minha vida está estabilizada, filha. Eu escolhi seguir o caminho de Deus e, portanto, não preciso de mais nada. Minha grande alegria no momento é terem enviado o irmão Alois para Roma e o irmão Ebert ter sido nomeado seu sucessor. Mas o mundo tem muito mais a lhe oferecer, querida. Agora você é uma nobre, herdeira de uma grande propriedade. E um par perfeito para Ranulf, se ele for o homem que escolheu.

– Não sou nem um pouco diferente do que eu era ontem – afirmou, com certo desdém.

– Mas agora tem mais dinheiro. Ou melhor, mais dinheiro, não, porque a abadia não lhe oferecia nenhuma segurança material.

– Não preciso disso. Francis tentou outra tática:

– Bridget, agora que tudo ficou esclarecido sobre o metal negro e o acordo de Alois, o bispado voltou a participar das atividades do São Gabriel. Sendo assim, logo teremos um dos representantes do bispo aqui para verificar o funcionamento de nosso convento. Isso se o próprio bispo não decidir aparecer.

– Deixe que venham. Eu me esconderei, como sempre fiz.

– Já existiram muitos segredos no São Gabriel, minha filha. – Francis a encarou, com seriedade. – Acredito que essa tenha sido a forma que Deus encontrou para nos dizer que devemos levar mais a sério o caminho que escolhemos.

– Acha que o bispado proibirá a reconstrução da cabana?

– Não, mas nunca mais haverá uma fornalha aqui.

– Espero que em nenhum outro lugar, irmão. Um aparato como aquele jamais tornará a vida melhor.

– Mas as coisas serão diferentes, Bridget. Nada mais de segredos. Portanto, não poderemos escondê-la por muito mais tempo. Está na hora de você ter um lugar só seu, de conhecer todas as maravilhas lá de fora.

Os olhos de Bridget brilhavam quando ela fitou o monge.

– Não quero ir embora, Francis. Tenho certeza de que fui muito mais feliz aqui do que meu falecido primo com todas suas propriedades.

– Mas sua mãe estava fugindo para os braços do homem que amava.

– Para os braços de meu pai...

– Sim.

Bridget colocou o hábito no colo e encarou o monge.

– Como você disse, nada de segredos. Isso significa que chegou a hora de me contar quem era meu pai?

Francis hesitou por tanto tempo que Bridget achou que mais uma vez escutaria suas evasivas.

– Ele foi um de nós, filha. Ele era um dos monges brancos do Mosteiro de São Gabriel.

O aposento pareceu se mexer. Bridget se apoiou no fogão para não perder o equilíbrio.

– Um monge? Mas... Não pode ser. Monges não podem... Como poderia?

– Ele pôde, porque, além de ser monge, era um ser humano, Bridget, como todos nós. Quando Charlotte passou a vir aqui para fugir dos abusos do primo, ela e o irmão Renault se apaixonaram, como todos os jovens que se apaixonam desde o começo dos tempos.

– Mas as Regras... Os votos...

– Sim, as Regras, os votos. Renault sofreu, e muito, por suas transgressões, mas no fim acho que conheceu o perdão de Deus.

– Eles se amavam mesmo?

– Sim. Formavam o casal mais apaixonado que conheci. Renault pediu para ser liberado de seus votos e, devido às condições de Charlotte, o irmão José o atendeu, entregando-o à felicidade que desfrutaria ao lado da bela jovem. Eles se casaram no mesmo dia.

– Meus pais se casaram?! – Bridget sentiu uma imensa alegria.

De alguma forma, sempre acreditara que seus pais nunca tivessem tido oportunidade de jurar seu amor um para o outro em algum tipo de cerimônia.

– Sim. E foi aqui, em nossa capela. Todos comparecemos. A Igreja não teria aprovado nossa atitude, mas não fazia a menor diferença, pois sabíamos que sua mãe estava morrendo, e Renault também o sabia.

Por algum estranho motivo que não conseguia compreender, Bridget temeu fazer a pergunta que dançava em sua mente.

– O que aconteceu com ele?

– Você precisa entender, minha filha... Renault compreendia que sua situação não lhe permitiria educar o bebê que acabara de nascer. Um de seus últimos pedidos foi que cuidássemos de você como uma filha e que a protegêssemos de todos os perigos. Ele a amou muito, anjinho. Sofreu demais por ter de deixá-la, mas decidiu que seria o melhor a fazer.

– E então o que houve?

– Renault foi encontrar-se com sua amada Charlotte, pois disse que a vida não teria o menor significado sem seu grande amor.

Bridget ficou em silêncio por um longo momento. Suicídio era um pecado mortal, mesmo quando a pessoa acreditava não ter mais motivos para viver. Seu pai morrera sozinho e triste.

– Acha que eles estão juntos, Francis?

– Sim, pois acredito em Deus. Foi Ele quem permitiu que seus pais se amassem, e duvido que tenha lhes concedido esse presente para depois tirá-lo.

Bridget olhou para cima e segurou as mãos de Francis.

– Obrigada por me contar – falou, em meio às lágrimas que escorriam de seu rosto.

Francis engoliu o próprio pranto. Depois soltou-a e recostou-se na cadeira, pois tocar alguém era proibido pelas Regras.

Ranulf balançou a cabeça quando Pierre lhe ofereceu mais um pouco de cerveja.

– Não, obrigado, caro amigo, mas Dragão e eu precisamos ir embora. Agradeço-lhe pela hospitalidade e pela ajuda para resgatar meu irmão.

Ele se levantou, empurrando o banco para trás.

A espaçosa sala da família Courmier estava lotada com os dois cavaleiros ingleses, os seis irmãos, e Jean, o ferreiro. Camille desistira de ficar em meio a tantos homens e preferira se deitar.

Pierre assentiu.

– Também lhe devemos muito por ter nos ajudado a acabar com a corrupção do xerife e com a crueldade do barão.

– Beauville será um lugar diferente, doravante. – Edmund colocou-se ao lado do irmão.

– Sim, ainda mais com nosso novo xerife. – Pierre deu um tapinha nas costas de Jean.

– Acredite, pretendo acabar com todos os solteiros da cidade, arrumando-lhes lindas esposas – brincou Jean.

Enfrentar o perigo juntos unira demais os nove homens, e a tristeza foi gerai no momento das despedidas.

Mas, por fim, Ranulf e Edmund estavam montados em seus cavalos, dirigindo-se para o Mosteiro de São Gabriel.

– Com isso terminamos nossos negócios aqui? – perguntou Edmund. – Podemos começar a voltar para Lyonsbridge? Não vejo a hora de rever vovó, Diana e todos os outros.

– Creio que sim.

– Ou há mais algum assunto a ser resolvido? – Edmund fingia inocência.

– Se está se referindo a Bridget, ela não quer saber de mim.

– Ah, peço desculpas... Em algum momento devo ter parado de prestar atenção, sabe? Acho que foi bem na parte em que você me contava que tinha lhe dito que a amava e que queria passar o resto de seus dias ao lado dela por Bridget ser a única mulher capaz de conquistar seu coração. Isso sem mencionar Diana, porque ela é minha.

Ranulf virou a cabeça, atordoado.

– Você conhecia meus sentimentos em relação a Diana?

– Caro irmão, para um homem esperto, sempre foi um pouco ingênuo em relação às mulheres. Toda Lyonsbridge sabia que você admirava Diana, Mas não se tratava de amor. Raciocine: se eu não tivesse voltado, você teria trocado Bridget por Diana?

– Em hipótese alguma.

A simples idéia era absurda. Não havia como comparar. Diana era linda, simpática, mas nada além de uma bela pintura que podia observar de longe. Bridget, por outro lado, era bem mais real do que qualquer outra que conhecera. Era espirituosa e calorosa, inocente e sábia. Era tudo o que sempre sonhara para uma companheira.

– Nem por um segundo, Dragão.

– Nesse caso, me espanta saber que, depois de ter escutado toda essa declaração de seus lábios, a jovem o tenha desprezado.

– Bem, ela não me desprezou exatamente.

– Então não deve ter agido direito. Talvez seja melhor que peça de joelhos. As mulheres são um pouco cruéis.

– Você sabe muito bem que não toquei no assunto com ela. – Ranulf sorriu.

– Ah, bom! Sempre soube dessa característica das moças de ler os pensamentos dos rapazes. Acho que é bastante justo, pois o corpo delas as coloca em vantagem diante de nós, meros egoístas.

– Bridget diz que seu maior sonho é retomar seu pacato cotidiano entre as paredes do mosteiro e que gostaria que nunca tivéssemos aparecido por aqui para acabar com a tranqüilidade do São Gabriel.

Edmund olhou para a estrada escura atrás deles.

– Não sei por que é o irmão mais novo que aconselha o mais velho em nossa família, mas vou fazê-lo de novo. As mulheres precisam ouvir, Ranulf. Elas têm de ser amadas, aduladas, receber carinhos, mas, acima de tudo, necessitam escutar que são amadas.

Seguiram em silêncio por alguns instantes.

– Acha que devo lhe dizer?

– Sim, caro irmão, lógico que deve. Abra seu coração para sua Bridget e veja o que acontece.

Mais uma vez o som de batidas na porta interrompeu seu sossego. Bridget não estava dormindo, mas deitada na cama.

Fazia quase uma hora que se recolhera, mas o sono não chegava. A história que Francis lhe contara sobre o amor eterno de seus pais não lhe saía da cabeça, além dos momentos de prazer com Ranulf.

Caminhou descalça e girou a maçaneta. Claro, só podia ser ele.

– Cheguei muito tarde? Sinto muito, querida. Pelo visto você já estava dormindo.

Bridget afastou-se para o lado, permitindo que Ranulf entrasse. Então, acendeu uma vela.

– Ainda não. Só estava deitada. Veio se despedir? Achei que só partiriam de manhã.

Ranulf entrou e fechou a porta.

– Não vim para me despedir, Bridget.

– Não? – Agora, com o quarto iluminado, ela se deu conta de que usava apenas uma fina camisola. Sentou-se no leito e puxou o lençol, cobrindo-se.

– Está com frio?

– Não.

A quietude os envolveu durante intermináveis minutos.

– Por que veio, então?

– Vim para lhe contar uma história.

– A essa hora?

– Sim, querida. Eu não podia esperar.

– É muito longa? – perguntou Bridget com um breve sorriso.

Puxou os joelhos para perto do corpo e preparou-se para escutar o que Ranulf tinha a lhe dizer.

Parecendo relaxar, ele acomodou-se no pequeno banco ao lado dela,

– Não, não é muito comprida. É que me lembrei de que você gosta de ler histórias na biblioteca,

– Sim, de aventura. De cavaleiros e suas damas.

– Histórias de amor. Ela assentiu.

– Como recordei que você gostava tanto delas, pensei em contar-lhe a saga de um cavaleiro e de sua jovem amada.

– Acho que não é o momento... Ranulf ergueu a mão.

– Prometo que não vou demorar. Passarei a parte do "era uma vez" e começarei pelo momento em que o cavaleiro se apaixona.

Bridget não conseguia desviar-se de seus lábios e de seu sorriso, ao escutá-lo. Entretanto, forçou-se a prestar atenção.

– O cavaleiro se apaixona...

– Ele acha que é amor, mas não é.

– Por que não, Ranulf?

– Porque essa jovem pertence a outra pessoa, e o único motivo de o cavaleiro achar que a ama é por nunca ter encontrado uma mulher que pudesse ser só sua.

Bridget se recostou na parede, encantada.

– Por favor, não durma agora, querida. Chegarei à melhor parte.

– Não vou dormir.

– Muito bem. Esse cavaleiro, que sempre achara estar apaixonado, parte em viagem para uma terra desconhecida.

– Para um lindo castelo?

– Vamos dizer que um lugar mágico. Lá, conheceu um lindo anjo que lhe salvou a vida.

– Mas ele não poderia se apaixonar por um anjo. Os anjos não moram na terra.

– Tem razão. Mas digamos que o cavaleiro sabia que não podia se apaixonar por um anjo. Mesmo assim, se apaixonou.

– Ah, meu Deus! Coitado do cavaleiro...

– Pois é. Coitado. Por um bom tempo ele ficou muito aborrecido com tudo isso.

– E depois, o que aconteceu?

Ranulf aproximou o banco da cama e tomou-lhe as mãos.

– O cavaleiro a transformou em uma mulher de verdade.

– Ele fez isso?

– Bem, é que ela era uma mulher de verdade desde o começo, e tudo deu certo.

– Sei...

Ranulf se levantou e puxou-a consigo.

– Sim. Deu certo. Dará certo.

Em seguida, suas bocas se encontraram em um ávido beijo.

– Eu te amo, Bridget, meu anjo. E nunca mais quero me separar de você. Não faz diferença se viveremos em Lyonsbridge, em Darmaux ou no São Gabriel. Pode ser até em uma caverna. Quero que fique a meu lado para sempre. Quero fazer amor com você todas as noites para que tenhamos muitos lindos anjinhos como você, meu grande amor.

Bridget riu, exultante.

– Bebês anjos?

– Isso mesmo. – Ranulf tomou beijá-la, acariciando-lhe a pele sob a camisola. – Ainda se lembra de como se faz?

– Não tenho tanta certeza... Acho que você terá de me dar mais uma aula.

– Era o que eu esperava escutar.

Nenhum dos dois teve paciência para esperar, como se a declaração de Ranulf tivesse liberado uma necessidade que seria preenchida quando seus corpos se unissem.

Com as roupas espalhadas pelo chão, eles se movimentaram em uma união perfeita até se saciarem.

Abraçados na cama de Bridget, os amantes se olhavam, extasiados.

– Ainda não terminou a história, querido.

– Você me deixou com poucas energias para isso.

– Mas quero saber o que aconteceu.

– Com o cavaleiro e seu anjo?

– Sim.

– Ah, meu amor... Imaginei que você soubesse o final. O cavaleiro e seu anjo viveram felizes para sempre. – Aproximou o rosto do de Bridget e a beijou com ternura. 

 

                                                                  Ana Seymour

 

 

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