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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


SONHOS DE CAMELOT / Quinn Taylor Evans
SONHOS DE CAMELOT / Quinn Taylor Evans

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Quinto livro da série O Legado de Merlim

SONHOS DE CAMELOT

 

 

 

 

Da bruma entre as trevas da noite e a luz do alvorecer, a irmã de Merlin emergiu de seu refugio em Avalon para uma Bretanha devastada por batalhas e onde um corajoso guerreiro cativaria para sempe a sua alma!

Inglaterra, 1068

Connor de Lyonesse sempre lutou para preservar a Bretanha para Arthur, o menino-rei que fugira de seu reino quinze anos antes. O leal cavaleiro não acreditava em mitos e contos de fadas. Ele era um soldado, um homem que vivia pela espada e que pela espada morreria um dia. Mal sabia Connor que a linda jovem que por pouco não perdera a vida por suas próprias mãos, numa úmida manhã de orvalho, era uma lenda viva que provocaria uma reviravolta arrasadora em sua vida conturbada. Tampouco imaginava que tão frágil criatura fosse capaz de exercer uma magia poderosa em seu coração, a ponto de mantê-lo cativo do desejo e da paixão por toda a eternidade...

 

 

                   Inglaterra, 1068, País Ocidental

Aporta do quarto se abriu lentamente. A luz da lamparina a óleo na parede emoldurou uma jovem esbelta, fazendo faiscar os brilhantes cabelos vermelhos que lhe caíam até a cintura, e iluminou as feições pálidas e os olhos marejados de lágrimas.

Vivian deteve, hesitante, a mão no trinco, tal qual a pouca luminosidade que se espalhava pelo chão de arenito pálido até ser engolida pela escuridão além.

”Não há o que temer”, repreendeu a si mesma. Vira a morte incontáveis vezes antes, afinal. Porém, em seu coração, Vivian teve de lutar contra a tristeza que a inspirava e trazia novas lágrimas a seus olhos. ”Você sempre foi parte de minha vida, querida. Não posso imaginar que tenha deixado de ser. Que nunca mais ouvirei seus pensamentos a se unir aos meus, a me transmitir seus sábios conselhos; que nunca mais tornarei a sentir sua mão em meu braço num aperto suave de orientação; que você jamais segurará a criança que carrego agora no ventre, assim como segurou a mim e minhas irmãs, quando éramos bebês.”

Resposta alguma veio de dentro do quarto, da forma como acontecia antes. Talvez se não entrasse, se fechasse a porta e fosse embora...

Era a esperança que lhe falava dentro do peito, porém Vivian sabia que isso não mudaria os fatos. Não encontraria a idosa e amada babá no salão principal lá embaixo, a aliviar a dor dos velhos ossos cansados diante do calor do fogo. Nem a acharia na cozinha, como tantas vezes, instruindo a cozinheira na preparação da refeição da noite. Nem no berçário, a cantarolar doces canções e a embalar o filhinho de Vivian para que dormisse.

Meg não estaria lá. Estava ali, naquele quarto, à espera de Vivian.

Ela deixou seus outros sentidos se expandirem e guiarem-na através da escuridão até a cama onde jazia a ama, trazida até ali depois de ter sido golpeada brutalmente, ao tentar proteger o filho de Vivian dos poderes das Trevas.

”Eu devia ter sentido o perigo. Tinha de estar lá para protegê-la, como você sempre me protegeu. Lamento tanto por ter fracassado, querida!”

Meg, sua velha ama, se fora.

Vivian estendeu a mão, os dedos a tocar a borda do pano pálido e diáfano, tentando captar a essência da mulher que a criara desde criança. Clara e forte, como se estivesse de pé a seu lado naquele mesmo instante, Vivian sentiu a presença poderosa de Meg.

Aspirou a essência prolongada de ervas fragrantes, que sempre se agarrava às roupas de Meg e agora penetravam por seus sentidos como a eterna primavera. Sentiu-a no calor gostoso que a confortara quando menina e que naquele instante afagava sua face como uma carícia terna. Ouviu-a nas frases suaves que sempre a guiaram, e que então eram sussurradas dentro de sua mente.

— Não chore por mim, minha criança. Estou em paz. Cumpri meu destino.

Porém, quando Vivian tocou a ponta da mortalha, ela se moveu como se agitada por alguma corrente invisível de ar. com um murmúrio que Vivian captou com a sensibilidade, a mortalha estirou-se sobre a cama e Meg desapareceu.

Vivian ofegou e puxou a mão para trás.

— Você não a achará aí.

Ela se virou. Seus sentidos se expandiram mais ainda, ao perceber outra presença logo além da escuridão do aposento.

Uma pálida névoa vaporosa se derramava pela janela aberta. Espalhou-se numa lagoa reluzente que brilhava como se captasse e retivesse a luz das estrelas nos céus. Então se expandiu, aos poucos, e se alongou, assumindo o contorno e a forma de um homem, conforme um portal se abria de um mundo para o outro.

— Pai?

Merlin abriu os braços, e Vivian correu para aconchegar-se, como fizera incontáveis vezes quando menina, ao precisar de conforto, abrigando-se na força e no sereno entendimento do pai a respeito de coisas que ela não conseguia compreender direito.

Ele a deixou chorar até que suas lágrimas se esgotaram.

— Eu queria vê-la uma última vez... — Vivian soluçou. — Havia algo... que gostaria de dizer a ela.

Vivian chorava, frustrada.

— O que gostaria de ter dito, filha?

— Que eu a amava muito, e o quanto significava para mim. Que sentirei saudade todos os dias de minha vida. — Respirou fundo. — Queria que Meg tivesse encontrado aquilo que encontrei: paixão e amor imensos... Ela merecia ter sentido a alegria de ter o próprio filho nos braços, visto o primeiro sorriso do fruto do próprio ventre.

Novas lágrimas escorreram por seu rosto.

— Meg passou a vida inteira se dando para os outros, pai. Nunca conheceu esse tipo de paixão ou alegria. Nunca soube o que é ser amada como eu sou.

— É nisso que crê, Vivian?

— E você não? Há algo que não sei?

— Sim.

— O quê?

— Aquilo que Meg nunca lhe pôde contar, a verdade que jurou guardar como preço pela troca que fez.

Merlin sorriu ao sentir que a filha tentava sondar-lhe os pensamentos.

— Deixe-me contar-lhe uma história...

 

                   A Ilha na Bruma

O jarro de barro caiu e explodiu no chão de pedras coberto de cacos espalhados, resto das tentativas anteriores.

— Você precisa focar seu poder — veio a gentil reprimenda da instrutora. — Concentre-se. Pode conseguir qualquer coisa. Erguer algo tão simples como um pote de barro ou mudar o curso de um rio. Agora, por favor, tente de novo, senhora.

Outro jarro se ergueu da superfície da mesa, a agitar-se no ar. Depois, começou a mover-se, titubeante a princípio, parecendo em queda iminente.

Aos poucos, porém, firmou-se e conseguiu impulso, circulando o quarto com rapidez crescente.

— Visualize o objeto — a instrutora insistiu. — Em seguida, deve tornar-se ele, guiando seu vôo, decidindo o rumo que irá seguir.

O jarro ganhou velocidade, a girar pelo aposento num rumo oscilante, caótico.

— Concentre-se! — a professora ordenou, ao sentir que a jovem aluna estava prestes a perder o controle mais uma vez.

O jarro passou tão perto da cabeça da instrutora que ela teve de se proteger embaixo da mesa. O objeto continuou e fez a volta mais uma vez.

— A mocinha agora parece que, enfim, fez a coisa certa — uma voz abafada comentou, perto da lareira.

— É algo difícil de dominar, Cosmo. Ela conseguirá com a prática.

— E ficaremos sem louça, Grendel.

Em sua forma mais comum, aquelas eram criaturas visíveis para alguns e completamente invisíveis para outros do mundo mortal. Eram chamadas de várias formas: duendes ou espíritos da floresta.

Na verdade, eram companheiros e guardiões, enviados pelos Anciãos para o mundo mortal, para procurar aqueles que realmente possuíam grandes poderes: os filhos da Luz.

— Basta por hoje. Da próxima vez, trabalharemos em busca de um maior autocontrole. — A professora saiu, e a porta bateu atrás dela.

Por vários instantes ouviu-se apenas o silêncio e, em seguida, um suspiro de alívio quando ela não voltou.

— Seja humilde e obediente todas as vezes.

— A regra número um é demais para mim — resmungou Meg. — Sei que vocês estão aí! — gritou para os pequenos espectadores, ainda escondidos em segurança atrás da pedra da lareira. — Não gosto de ser espionada. Se não aparecerem, eu os transformarei em ratos.

Cosmo e Grendel fugiram para o aparador, tropeçando um no outro para escapar.

— Um aprendiz deve usar seu tempo a sós para avaliar o conhecimento e a sabedoria que conquistou. Não pode sair até que lhe seja dada permissão. Tal é a humildade que precisa aprender.

A regra número dois era demais para ela também.

Meg esperou até ter certeza de que Grendel e Cosmo não espreitavam além da porta, e transformou-se numa corrente de ar, que passou sem ser vista pela janela.

O lugar que Meg procurava ficava na vila dos encantados, logo além do templo. com um simples pensamento estava lá, a passar através da bruma que subia em ondas pelo chão, conforme o sol da manhã esquentava.

Aquele era um local de aprendizagem, uma ponte entre os mundos mortal e imortal. Um lugar que poderia ser visto de relance naqueles momentos entre a noite e o dia, quando a terra fica suspensa no crepúsculo. Mas apenas por aqueles que acreditavam e sabiam onde o portal se abria.

Por fim, chegou à cabana que procurava. Pertencia à encantada, Dannelore, metade mortal, que tinha trânsito livre entre os dois mundos.

Meg fora levada ali várias vezes por sua guardiã, Elora, para aprender o que precisava saber a respeito da vida mortal, ligada a seu mundo além do portal do tempo.

A curiosidade de Meg sobre o desconhecido, que Dannelore tinha liberdade de vivenciar, enquanto ela, como imortal, não podia, dera início a uma amizade que forjara um elo profundo entre as duas.

Sempre que possível, Meg procurava a cabana da encantada.

Ficava horas a ouvir as histórias dos mortais; os contos fantásticos de incursões e guerras para as quais ela não encontrava compreensão lógica; e casos de pessoas gentis e delicadas que Dannelore encontrava, inclusive um homem de quem falava com freqüência.

Sentia por ele algo estranho, como... um sentimento humano demais, que não conseguia identificar.

Dannelore tentara explicar tais emoções a Meg. A felicidade simples de se acordar numa manhã de primavera e ver as flores numa campina, com o sol a lhe aquecer o rosto, após um longo e frio inverno; a doçura do mel provado pela primeira vez, na ponta da língua. E depois, falara da paixão e do prazer encontrados na junção física com um homem.

Ao entrar na pequena residência, percebeu, com estranheza, que as coisas pessoais de Dannelore, que ela trouxera do mundo mortal, estavam arrumadas com todo o cuidado, como se à espera de serem recolhidas e guardadas.

Sentiu a presença de Dannelore, que voltava pela trilha e logo chegou à cabana.

— Pelos Anciãos, senhora! — exclamou a encantada, levando a mão ao coração. — Você me assustou! — Dannelore fechou a porta, depressa, e correu para o vão da janela, cerrando as venezianas. — O que faz aqui?

— Você está de partida! E não vai voltar.

— Não posso mais suportar ficar separada dele.

— Mas os Guardiões proibirão. — Foi então que Meg sentiu aquilo que a outra pretendia. — Você não vai pedir licença para partir...

— Eles não me dariam. Pensam que os mortais não são dignos de nós. John me ama com todo o coração e alma, e com uma paixão que eu não posso nem mesmo descrever.

— Ele é um mortal! com o tempo, ficará velho e morrerá, mas você não. Terão apenas um curto espaço de tempo juntos e depois serão separados para sempre.

— Sim, mas é melhor termos o que nos é possível, juntos, do que nada.

— Quando irá embora?

— Hoje, quando a noite se tornar dia no mundo mortal.

— Tão cedo?!

— Quanto mais eu ficar aqui, maior será a chance de meu plano ser descoberto, pois os poderes dos Guardiões são imensos. Se souberem o que planejo, irão impedir minha partida.

Meg a encarou, a expressão vibrante e um brilho nos olhos de um azul cristalino.

— Leve-me com você.

— Não sabe o que está pedindo, Meg. Não posso.

— Por que não?

— É proibido. Você é uma imortal. Ninguém como você foi alguma vez viver entre os mortais.

— Merlin vive no mundo mortal.

— Merlin foi mandado pelos Guardiões. É o destino dele. É a única esperança para a humanidade contra os poderes das Trevas.

— Então eu serei a esperança para a humanidade também. Dannelore ficou horrorizada.

— Não sabe o que está dizendo! Os mortais temem criaturas como você. Dizem que condenaram alguns à morte.

— Como assim, criaturas como eu? Não sou diferente de você.

Dannelore usou seus poderes limitados para agarrá-la e empurrá-la para diante da bacia de água.

— Diga-me o que vê refletido na superfície.

Meg relanceou o olhar para a bacia e deu de ombros.

— O reflexo do interior da cabana. Mesa, cadeiras, uma fresta de luz nas venezianas, e você.

— O que mais?

— Nada.

— Exatamente. Você não tem aparência mortal. É uma imortal. Não é igual a eles.

— Então, eu me transformarei em gente. Não pode ser mais difícil que assumir a forma de um rato ou de uma coruja.

— Ouvi dizer que é muito difícil, muito complicado. E arriscado. É perigoso, pois você não tem conhecimento físico de tamanha transformação. — Dannelore ergueu a mão e flexionou os dedos. — Por mais simples que seja, você pode fazer isto?

— Não preciso.

— Vai precisar, se for mortal. Se usar seus poderes, será acusada de bruxaria, feitiçaria e de ter os poderes das Trevas. Qualquer mortal ficaria com medo De você.

— Que ignorância!

— Sim, por ignorância, você talvez seja condenada e enforcada por ser uma criatura do mundo infernal.

— Eles não podem me fazer mal. O que existe a recear?

— Certo, não terão o poder de prejudicá-la, mas isso não impedirá que a machuquem através de alguém com quem se importe muito.

— Você se esquece de que não sinto emoções assim. É impossível.

— O que quer no mundo mortal?

— Experimentar o calor do sol em meu rosto. Quero provar mel. Sentir a grama do campo sob meus pés.

— Por favor, entenda. Não posso levá-la comigo.

— Eu poderia delatar seus planos aos Guardiões — Meg ameaçou, embora soasse uma ameaça vazia.

A expressão de Dannelore toldou-se de tristeza, mas se tornou resoluta.

— Então, siga em frente.

Por vários instantes ficaram trancadas num teimoso silêncio. Enfim, Meg não conseguiu suportar mais a tristeza da amiga.

— Ora, muito bem, eu não a trairei — disse, com doçura, e depois ergueu os olhos. — Pelo menos me deixará ir com você até o portal? Se não posso ultrapassá-lo, gostaria apenas uma vez de olhar de relance para o lado de lá.

Dannelore hesitou.

— Está bem. Pode vir. Mas só até o portal e não mais além. A empolgação de Meg fez o ar ondular.

— Eu a encontrarei aqui quando chegar a hora de partir.

— Não se atrase. O portal fica aberto apenas por uns poucos minutos, e não quero perdê-lo.

Meg concordou.

Retornou a seu quarto, mas achou impossível concentrar-se em suas lições. E durante toda a reunião da noite, no templo, manteve os pensamentos fechados de modo que ninguém os captasse. Mais tarde, quando faltava menos que um quarto do tempo combinado, foi para a cabana.

Dannelore esperava a uma curta distância, escondida.

Seguiram a antiga trilha através da floresta, limite entre os dois mundos. O céu começou a clarear no horizonte. Logo seria hora, aquele momento mágico suspenso entre a noite e o dia.

Dannelore afastou um pesado véu de trepadeiras de lado, expondo um monolito de pedra negra polida que parecia brotar do solo.

Um facho de luz perfurou o véu cinzento que pairava sobre a trilha e caiu sobre a rocha. Naquele exato instante, Dannelore pousou a mão sobre o monolito. A enorme laje se moveu, girando com um som rascante.

Num olhar de relance, aquele mundo não deu a impressão de ser diferente daquele em que Meg vivia. Avistou uma abertura através da vegetação espessa, muito semelhante às trepadeiras e samambaias que Dannelore afastara de lado. Viu os primeiros momentos da alvorada idênticos aos daquele lugar, como se os dois mundos existissem lado a lado, separados apenas por aquele monolito escuro.

— Tem de voltar agora — Dannelore relembrou-a. — Antes que os Guardiões descubram que sumiu.

Meg concordou.

— Sim, é claro. — Abraçou a amiga em pensamento, envolvendo-a com os poderes de sua energia. — Obrigada por sua amizade.

— Obrigada por não trair meu segredo.

Com um último olhar de relance e um sorriso de despedida, Dannelore entrou pelo portal.

A luz na passagem, de um brilho extremo, reluziu em círculos concêntricos que se irradiavam a partir do centro, como quando uma pedra é jogada na água, e Dannelore desapareceu.

Por uns poucos instantes mais, o portal permaneceu aberto. Então, devagar, começou a se fechar...

 

                   O Retorno

As ondas se erguiam pelo canal inglês como se tentassem lançar o escaler de volta ao mar. Mas os remadores batalhavam nos remos, e o barco foi empurrado para frente, num último impulso rumo à beira-mar, sob os penhascos de um branco espantoso que subiam contra o céu cinza-chumbo.

Antes mesmo que o casco raspasse as pedras da praia, um dos passageiros saltou, a percorrer o trecho difícil da arrebentação. Ajoelhou-se, afundando os punhos enluvados primeiro na areia molhada, a pegar punhados como se fosse um moribundo, e a areia, a própria vida.

— Graças a Deus! — Arthur murmurou, e um som doloroso brotou de sua garganta. — O lar!

Então, erguendo os punhos para o céu, anunciou, como se desafiasse os próprios deuses:

— Estou em casa!

— Bendito seja, estamos todos em casa!

Um por um, os demais foram para a praia, até que o escaler virou de lado, sinalizando o final da jornada.

Então, como se o sol os abençoasse pelo fim da longa viagem, espiou através das nuvens e baniu o cinza opaco do firmamento, fazendo reluzir os cabelos castanho-avermelhados do guerreiro alto que conduzia seus soldados.

Nas belas feições, via-se a marca de seus ancestrais, tanto celtas como romanos. Os olhos eram tão azuis como o céu infinito ao alto, e refletiam uma extraordinária sagacidade e inteligência. Ele trazia no sangue a marca do destino.

— O que diz, Marcus Merlinus? — Arthur se dirigia ao jovem a seu lado, de cabelos escuros que lhe caíam pelos ombros.

Suas íris, também de um azul cristalino, faziam lembrar o coração das gemas raras. As sombras que as toldavam guardavam os segredos das eras, disfarçados por sua juventude.

— Digo que conquistamos apenas esta pequena faixa de praia, milorde. Toda a Bretanha jaz ainda diante de nós.

O jovem líder explodiu num riso alegre e confiante.

— A Bretanha será uma só, meu amigo. Não previu que seria assim, Merlin?

— Mas não sem imenso sacrifício e sofrimento.

— Nada temo. Enfrentarei tudo de bom grado, pois a Bretanha é meu lar. Não irei embora outra vez. Porém, tenho de rever minha família e a terra de minha infância. Isto é, se os cavalos que foram prometidos e bem pagos estiverem esperando por nós.

— Estarão lá, como prometido. — Então, como se sentisse alguma coisa mais, algo urgente, vago, distante, Merlin disse aos homens: — Precisamos nos apressar. Não é seguro ficar exposto aqui, no aberto. Existem muitos que iriam preferir manter a Bretanha no caos, uma presa fácil para seus inimigos. Não querem vê-la unida, pois uma causa comum gera força, e eles a receiam.

— Afundem o barco. Não queremos que ninguém saiba de nossa chegada. Pelo menos, ainda não. Depois, saquem suas armas e mantenham a atenção naqueles penhascos.

Envolveram as roupas em grossas mantas e esconderam as espadas, assumindo o disfarce de simples peregrinos de retorno à Terra Santa. Assim que encontraram os animais no local combinado, rumaram para o lugar de onde Arthur partira quando era apenas um menino.

Cavalgaram durante dias, parando apenas umas poucas horas a cada noite para descansar as montarias.

Toda a Bretanha jazia ensangüentada e em meio ao caos. Os senhores da guerra logo chegariam aos locais onde ainda não estavam. Nenhuma aldeia ou vila se encontrava a salvo ou intocada. Apenas os mais distantes postos avançados ficavam além de seu alcance, e só porque aquelas terras inférteis e geladas nada ofereciam de valor.

Nos dias subseqüentes, quanto mais se internavam pela Bretanha, mais urgente a jornada se tornava. Até mesmo o remoto país ocidental não escapara dos conflitos da guerra civil.

— Meu tio é um homem poderoso. Caerleon é bem protegida — Arthur afirmou. — Lady Ygraine e minha irmã estão a salvo lá.

Merlin não contara da visão que tivera semanas antes, de Caerleon e de lady Ygraine, a mãe de Arthur. Rezava para que a visão fosse um presságio, e não o aviso daquilo que já havia acontecido com Caerleon apenas a poucas centenas de metros adiante, ou talvez sentindo algo no silêncio de Merlin, Arthur incitou seu cavalo de batalha à frente.

Merlin lamentou tamanha impaciência e mandou que os homens de Arthur o acompanhassem. Abriu os canais sensitivos ao descer a colina, porém pressentiu o perigo tarde demais. Arthur e seus homens iam muito adiante. E rumaram direto para uma armadilha.

Arthur aproximou-se dos portões de Caerleon. Seus guerreiros o alcançaram instantes antes que os atacantes investissem das muralhas.

Merlin incitou o garanhão e, ao chegar ao lado de Arthur, fechou a mão forte em seu braço de espada.

— Parem! — ordenou a todos. — Guardem as armas!

— Solte-me! — Arthur gritou. — Por Deus! Enlouqueceu?

— Veio até tão distante para morrer uma morte estúpida? Não chegou sua hora, meu amigo, a menos que você escolha assim. Então tudo estará perdido!

A horda de bárbaros separou-se para deixar que um homem passasse, indo até Arthur e seus guerreiros em suas montarias, completamente cercados. Um cão enorme, muito magro, com um pêlo cinzento emaranhado e olhos como chamas amarelas o seguia, ao lado.

— Voltou para limpar os ossos dos mortos? — escarneceu o guerreiro. — Talvez haja ainda alguma jovem viva que seus homens não tenham estuprado, ou uma criança a rastejar no sangue da mãe assassinada.

Cuspiu no chão, com nojo.

— Talvez seus homens não tenham roubado alguma bugiganga insignificante, ou pisado uma mísera côdea de pão! O que restou que não foi destruído da primeira vez?

Arthur livrou-se de Merlin e desmontou.

— Eu lhe pergunto o mesmo, bárbaro. Exijo saber o que houve aqui!

Merlin interpôs-se entre Arthur e o guerreiro ao mesmo tempo que seus sentidos se expandiam sobre os homens reunidos em torno, sedentos de sangue. Mas não captou a emanação de traição, de instinto cruel e sanguinário que explicaria a morte e a destruição da qual o jovem guerreiro falava.

Algo tenebroso, de fato, se dera em Caerleon, porém ele sabia, sem dúvida, que aqueles homens não eram os responsáveis.

— Acabamos de chegar da costa, depois de muitos dias de jornada — Merlin falava de forma convincente, deixando seu poder trabalhar por meio das palavras. — O que aconteceu aqui? — questionou, usando aquele mesmo poder para acalmar a raiva e as suspeitas do bárbaro. — Quem são esses homens?

Mas aquele não era um homem tão fácil de se manipular, nem suas suspeitas seriam dissipadas assim, apenas com afirmações. Encarou-os com cautela, seu olhar agudo a se dirigir a Merlin e a Arthur.

— Pergunto o mesmo a você, estranho — o bravo retrucou, ao avançar os últimos poucos passos que faltavam para que ficasse frente a frente com Arthur.

— Quem chega rastejando sob o manto da escuridão aos portões de Caerleon, com espadas de batalhas e escudos, se não os mesmos assassinos em busca de mais sangue?

— Não vim rastejando! — Arthur esbravejou, destemido.

— Sou Arthur de Caerleon! Esta é minha casa!

Os olhos do guerreiro se estreitaram na máscara escura de suas feições. Bufou, com desprezo.

— Arthur fugiu da Inglaterra, deixando o reino num caos. Enquanto suas terras e o povo eram saqueados e espoliados, ele faz peregrinação em Roma. As colinas e os vales bretões se banham do sangue de seu povo, na mão dos bárbaros, e ele permanece seguro do outro lado do oceano, em esplendor principesco. Se estivesse aqui, eu o mataria com minhas próprias mãos! — E postou-se diante de Arthur.

Os olhares se cravaram numa batalha silenciosa, cada um à espera de que o outro fizesse o primeiro movimento.

— Não foi dada escolha a um garoto a não ser partir do reino, em vez de se tornar um peão para aqueles que o usariam. Em seu coração, ele apenas desejava ficar na Bretanha

— Arthur explicou, com igual intensidade.

— Sofri cada injustiça e cada morte dez vezes mais porque não podia voltar e lutar ao lado de meu povo.

A voz de Arthur tremia de raiva e outras emoções que ele lutava para controlar.

— E quando as colinas e os vales da Bretanha verteram sangue, eu teria alegremente encharcado a terra com o meu, junto com o dos outros. Sou Arthur! Este é meu lar! E, se Deus quiser, sangrarei a terra agora para defendê-lo.

O guerreiro chegou mais perto. Segurou Arthur pela túnica e, por alguns instantes, Merlin teve certeza de que iriam entrar em refrega.

— Minha família partilhava refeições à mesma mesa que o senhor e a senhora de Caerleon — o guerreiro murmurou, num tom baixo e ameaçador. — Quando criança, empunhei uma espada de madeira contra o sobrinho deles e o fiz cair de traseiro no pátio externo.

Uma expressão de reconhecimento cruzou as feições de Arthur.

O guerreiro o empurrou para longe, o semblante toldado de desprezo.

Nada do que tinham ouvido sobre as notícias de casa, por vezes levadas durante meses por um padre através de vilas, aldeias e pelo mar, nada do que Merlin vira em sua mente poderia tê-los preparados para o que encontraram em Caerleon.

Os restos do tio de Arthur, o que não fora devorado pelos cães selvagens, foram enterrados junto com os demais mortos em Caerleon. Quase oitenta pessoas que ele um dia conhecera e amara. Exceto sua mãe, lady Ygraine, e sua meia-irmã, Morgana. O destino de ambas era desconhecido.

As muralhas de Caerleon ostentavam as cicatrizes da batalha que tivera lugar ali. As edificações de madeira haviam sido saqueadas e queimadas. Armazéns pilhados. Nada restara, a não ser o salão principal em ruínas, suas paredes de pedra enegrecidas de fuligem. O teto de madeira abria-se para o céu com apenas o esqueleto fantasmagórico de vigas negras a se projetar em ângulos quebrados.

— Você acredita que eu traí meu país. — Arthur não cabia em si de tristeza, ao parar diante do fogo que fora aceso no que sobrara da enorme lareira.

— Você poderia ter unido o povo. — Connor sentou-se com ele, à frente do fogo. — Mas o deixou morrer. Traiu a todos.

Filho de um nobre celta e amigo de infância de Arthur, Connor exibia as cicatrizes dos anos de guerra desde que Arthur partira da Bretanha, assim como seus homens.

Havia várias dezenas deles. Estavam escondidos, em sua maioria, nas montanhas distantes. Atacavam à noite em bandos violentos de ladrões e mercenários, e desapareciam de dia.

Connor e seus soldados descobriram os mortos em Caerleon vários dias antes, tendo chegado tarde demais para salvá-los. Ao verem Arthur e seus guerreiros rumando para a fortaleza em ruínas, julgaram que os assassinos, decerto, tinham voltado em busca de qualquer coisa que o fogo não houvesse destruído.

— Eu era um garoto de quinze anos — Arthur tentou explicar, sem pedir desculpas. — Nenhum homem seguiria um menino numa batalha, e eu tinha muitos inimigos. Acreditei que serviria melhor a Bretanha se partisse.

A luz das chamas reluziu nos olhos cinzentos de Connor.

— Eles teriam seguido você.

— Tentaram matá-lo — Merlin murmurou, encarando Connor. — É a razão pela qual partimos. Não era seguro para ele ficar. Não na ocasião.

Havia uma tranqüila certeza e serena convicção nas palavras que não seriam aceitas como verdade, caso contrário.

— E agora? — indagou Connor.

— Não posso mudar o passado. — Sonhos de traição, sangue e morte assaltavam Arthur quase toda noite. — O futuro ainda não está escrito, e tenho necessidade de cada homem que possa se juntar a mim. Fomos amigos certa vez, Connor. Irá me acompanhar nessa luta?

Merlin observava do outro lado do fogo. Sentiu a mágoa e a esperança de Arthur entrelaçadas. Assim como a desconfiança e a ira de Connor, alimentada por anos de guerra, derramamento de sangue e o assassinato de tantos corajosos guerreiros. Quando se ergueu, seus homens pegaram as armas e se levantaram com ele.

— Não precisou de nós antes, Arthur. — Connor não procurava disfarçar o desdém. — Não precisamos de você agora. Iremos lutar com o que temos, sem sua espada. Bem-vindo ao lar, Arthur de Caerleon.

Então, virou-se para sair.

Merlin expandiu seus sentidos, mas nada encontrou da amizade que um dia existira entre os dois garotos. Conhecera Connor durante aquele último verão, quando ele e Arthur chegaram à beira da puberdade, e ele viera a Caerleon para cumprir seu destino junto com Arthur. Era um intruso então, e Connor não fazia esforço algum, como agora, para disfarçar seu desprazer com ele. Mas, por outro lado, Connor nutria uma fidelidade inabalável por Arthur.

Os anos o modificaram.

— Seus soldados estão famintos, e alguns, feridos. — Merlin pousou a mão no braço de Connor, tentando construir uma ponte sobre o abismo do tempo e da suspeita. — Vamos partilhar a comida que temos, perto do fogo. Tenho conhecimento de cura e posso cuidar dos ferimentos.

Connor o encarou com aquele olhar hibernal, os sentimentos da meninice ainda não esquecidos.

— Dizem que você serve ao poder das Trevas.

— Sirvo a Arthur. Como sempre.

— Não é o que se ouve nas colinas e montanhas.

— Nunca dei importância a boatos ou especulações. Isso é conversa vazia de tolos que não têm nada melhor a fazer. Venha, divida o pão conosco e partilhe de uma caneca de vinho. É hora de curar velhas feridas, pois muita coisa jaz adiante de todos nós.

Connor olhou para a mão em seu braço. Ouvira falar da força e dos poderes do feiticeiro, mas não os temia. Fitou Merlin.

— Lutamos e sobrevivemos por conta própria e com nossas espadas. Continuaremos assim, pois aprendemos que os únicos em quem podemos confiar somos nós mesmos. Guarde sua comida e seu vinho. Não queremos nada vindo de vocês.

Se quisesse, Merlin poderia impedi-los todos de partir com um simples encantamento, mas não o fez. Arthur necessitava de homens cuja lealdade viesse do fundo da alma, não por força de sortilégios.

A fidelidade daquele homem teria de ser conquistada pelo próprio Arthur. Merlin lamentou o fato, pois aquela amizade era imprescindível a Arthur. Soltou o guerreiro.

Connor e seus homens se foram, desaparecendo pelas muralhas e no meio da noite, como se nunca tivessem estado ali.

Arthur reuniu-se a Merlin, o rosto marcado por sombras de dor.

— É tarde demais? O reino está perdido?

O homem ao lado de Merlin tinha a sagacidade e a habilidade de um guerreiro para aceitar as coisas como eram, não como desejava que fossem. Só a verdade importava.

— Estará perdido apenas se você permitir.

Arthur fechou os dedos em torno do cabo da espada que pendia do cinto.

— Jamais!

— O que faremos? — Simão, o Prudente, indagou, quando Connor e seus homens se esgueiraram para a densa cobertura da floresta assim que a aurora despontou no horizonte.

Era tão alto quanto Connor e igualmente largo de ombros, os olhos escuros e observadores. Em Caerleon, mantivera-se à parte, a analisar tudo em silêncio, imaginando o que significaria a volta de Arthur.

— Confia nele, Connor?

— Longo tempo atrás, eu conhecia o coração do rapaz, antes que partisse da Bretanha. — Sua voz endureceu. — Não conheço o coração do homem em que se transformou.

— Irá segui-lo, se ele reunir um exército contra os senhores da guerra?

— Por quinze anos não segui homem algum. Não empenhei minha espada a nenhum senhor poderoso. E todos esses anos, Arthur deixou a Bretanha à própria sorte. Não farei aliança com alguém que não posso respeitar.

A escuridão começou a se dissipar. Os primeiros raios de sol se infiltraram por entre as árvores. Estavam todos com fome.

Connor e os soldados adentraram a mata, seguindo as pegadas de um cervo que pastara por ali havia pouco. Uma trilha de folhas devoradas de suas plantas favoritas e os galhos pendurados indicavam que o animal estava alheio à presença de humanos.

Cervos não costumavam se alimentar sozinhos. Onde havia um, poderia haver mais. Connor fez sinal a seus homens para ladearem a trilha.

Encontraram mais pegadas recentes que mostravam existir mais de um animal e apenas a uma curta distância à frente.

Connor indicou a Simão que seguisse a sua direita, quando ouviu o som distinto de um bicho que se movia pelo mato poucos metros adiante.

Um cervo surgiu aos poucos da espessa vegetação, a cabeça baixa, revolvendo o chão em busca de folhas tenras e brotos. Então, um segundo animal apontou perto do primeiro, e foi para a margem de um riacho nas proximidades.

Simão ergueu o arco e fez mira. Connor também. Comeriam bem naquela noite e por várias noites seguidas.

Conforme Connor retesou a corda, um bando de pequenas aves surgiu de repente de uma moita ali perto. O som de seu vôo agitado assustou o cervo. Uma cabeça majestosa se ergueu, os olhos ariscos de alarme. Enquanto Simão disparava a flecha, o segundo veado fugiu pelas ramagens.

Com uma praga, Connor correu atrás do animal em fuga. Acompanhou o ruído dos galhos quebrados e viu o movimento de um vulto marrom entre o verde profundo da floresta. Sabia que não teria outra oportunidade. Retesou a corda e disparou a flecha.

Meg poderia jurar que ouvira alguém a chamá-la, Grendel talvez, pois as duas criaturas sempre pareciam segui-la aonde quer que fosse. Mas ignorou o fato, ao passar pelo portal de pedra para o outro lado.

Como as ondas na superfície de uma lagoa, os fachos de luz reluziram a seu redor. Visões e sons a assaltaram de todos os lados: o alegre cantar dos pássaros, seu vôo repentino e assustado, e, depois, outros ruídos. Feitos por mortais.

Em meio a gritos ferozes que nunca ouvira antes, Meg entrou no mundo mortal como um recém-nascido a emergir no ventre da mãe.

Nada que soubera por Dannelore a preparara para aquilo. As cenas e o barulho eram aterrorizantes, ensurdecedores, dolorosos. E, como um recém-nascido, ela caiu no chão da floresta e ficou ali, deitada, o coração disparado, o sangue a pulsar, incapaz de se mover, incapaz de pensar, conforme aspirava o primeiro sorvo de ar para dentro dos pulmões, que nunca haviam respirado ou precisado de oxigênio.

Ouviu mais sons a ressoar pela floresta, bem perto agora. Emoções que nunca experimentara antes a invadiram, num turbilhão de sensações das quais não tinha compreensão, a não ser uma: o instinto natural de todas as criaturas de fugir, de correr para se esconder, antes que aqueles ruídos e os que os provocavam estivessem sobre ela.

Mas não se acostumara ainda com a forma física que assumira. Lições e histórias contadas não davam conhecimento prático das habilidades ou limitações da matéria. Tivera apenas uma chance e se transformara.

A corça fora uma escolha natural. Era uma transformação que dominava com habilidade desde criança, e a floresta era um refúgio conhecido.

Segurara as runas de cristal na mão ao firmar a imagem da corça na mente e depois se imaginara, a si e ao animal, como uma coisa só. Mesmo quando a metamorfose tivera início, ouviu os mortais a se aproximarem cada vez mais. Reuniu forças conforme as longas pernas se formavam e, num impulso para a frente, dolorosíssimo, saltou de pé num movimento veloz.

Sem demora, disparou pela mata. Sentia o calor pela pele, que se somava ao requeimar do sangue nas veias à medida que escapava e deixava aqueles baralhos humanos para trás. Então, uma dor penetrante espalhou-se por seu ombro.

Dilacerou carne e tendões, resvalando pelo osso e se alojando logo abaixo do pulmão, de tal modo que não conseguia respirar fundo.

Dor era uma sensação nova e impressionante. Meg jamais experimentara algo assim antes. Sentiu-se cambalear, os joelhos dobrarem, a fraqueza se espalhar conforme tentava voltar a se erguer.

Adiante havia um riacho. Teria apenas de atravessá-lo como fizera inúmeras vezes quando criança, nas brincadeiras. Agora, porém, era diferente. Não conseguia dar um passo a mais, não importava o quanto desejasse.

Gritou, ao tentar se levantar, um som de animal ferido, apavorado e trespassado de sofrimento. Não poderiam encontrá-la assim.

Lutou para ficar de pé, mas não foi capaz. Então, o lamento doloroso transformou-se num débil soluço de uma mulher, quando ela se transformou mais uma vez.

Sentiu a essência da corça abandoná-la, levando a carne e o sangue do animal cujo corpo assumira ao passar pela primeira vez pelo portal.

Flexionou os dedos. Pareciam estranhos e inúteis naquela forma carnal que ela agora exibia. Não bastava mais pensar num movimento e experimentá-lo, como naquele estado etéreo e incorpóreo que um dia definira quem e o que Meg era, no mundo imortal.

Tentou concentrar os pensamentos e seu poder, mas sentiu que era drenado para longe, a mente consciente focada na dor jamais sentida antes, que latejava em seu ombro e lhe tirava o fôlego.

— Você o pegou? — Simão perguntou, ao correr pelo mato e alcançar Connor.

— Caiu ali na frente. — Connor avançava pela vegetação cerrada.

Tinha certeza de que a flecha acertara o animal naquele breve momento em que o cervo ficara visível sob a luz.

Encontraram a trilha de sangue, e depois ouviram o ruído mais próximo, conforme o animal se debatia enlouquecido.

Connor detestava ferir um animal. O cão avançou, e ele teve de chamá-lo de volta, pois o animal causaria ao cervo mais padecimento.

— Traga sua faca! — gritou a Simão.

Dois golpes nas grandes veias do pescoço do cervo, e tudo estaria acabado.

Continuou a seguir a trilha sangrenta, o som do bater das patas agora menos frenético. com um uivo, o cão saltou adiante.

Connor correu atrás dele, pulando uma árvore caída. Alcançou-o e puxou o cão para trás. Simão logo chegou a seu lado, com a faca na mão.

Connor abaixou-se num joelho. Afastou de lado as folhas e os galhos partidos que encobriam uma forma. A curva pálida de um ombro apareceu. Aflito, ele empurrou mais folhas, deixando à vista a flecha enterrada na carne macia e clara.

— Jesus! — Simão exclamou, ao avistar os longos cabelos dourados.

— Uma mulher!

Meg os ouviu. E, em seguida, sentiu de repente o calor impressionante de um toque humano, o primeiro de sua existência. Era estranhamente agradável, até gentil, e reconfortante. Nada do que lhe tinham ensinado que deveria esperar de um mortal. Abriu os olhos devagar e viu a criatura que se debruçava sobre ela. Um homem.

Seu rosto era manchado com todas as cores da floresta e da terra. Parecia misturar-se à vegetação que os rodeava, de tal modo que Meg não tinha certeza se o via, afinal.

Divisou-lhe os olhos. Nem castanhos, nem azuis, mas da cor do céu antes da tempestade: cinza-chumbo e frios como gelo.

Instinto era algo a respeito do qual Meg possuía pouco conhecimento. Porém, apanhada, encurralada e incapaz de reunir energia e concentrar seus poderes, o instinto era tudo o que lhe restava. E ele lhe disse que nada tinha a temer daquele homem.

Seu corpo ferido latejava. Uma letargia desconhecida a invadiu. E a escuridão desabou sobre ela.

— Quem é? — Simão perguntou, incrédulo. — O que fazia sozinha por aqui?

— Não sei. — Connor ainda tentava entender como pudera confundir a jovem com uma corça. Tinha certeza do que vira e, no entanto...

— Mas não podemos deixá-la aqui. Encontravam-se no meio da floresta. Se não cuidassem dela, a jovem iria morrer.

Ela era miúda, mais uma menina que uma mulher, pelo ombro pálido exposto em meio às folhas onde caíra.

Mais mulher que menina, percebeu Connor, ao ajeitar-lhe os cabelos de um loiro muito claro e descobrir que estava completamente nua.

O que, em nome de Deus, acontecera a ela?

E se fosse filha do inimigo? Nesse caso, poderia ser de grande valor para eles. Então, Connor descobriu os cristais fechados na palma da mão da estranha jovem.

Eram pequenos e cinzelados, com figuras gravadas na superfície de cada um. Tilintaram quando ele os apanhou, um som delicado como o de sininhos. Connor enfiou-os na bolsa do cinto.

Arrancou a túnica pela cabeça e enrolou-a em torno da moça. Ergueu-a com delicadeza, com cuidado para não tocar o ombro com a flecha ainda enterrada. Teria de ser removida se fosse para aquela criatura viver e ser de alguma serventia para eles.

A jovem deixou escapar um suspiro profundo, que fez estremecer aquele corpo frágil, e receou que estivesse morta. Ao puxá-la contra o peito, porém, constatou que se enganara, pelo calor do hálito que lhe roçava o pescoço.

— Faremos nosso acampamento aqui, por esta noite — Connor disse a seus homens, após carregá-la de volta pela mata, sem imaginar que alguém o observava pela moldura cerrada das árvores próximas.

Um galho estalou e voltou a seu lugar.

Dannelore mordeu o lábio, dividida pela indecisão.

Poderia voltar pelo portal e buscar ajuda, mas não havia meio de saber quanto tempo se passaria. Uma hora no mundo mortal? Uma semana? Um mês?

Não tinha dúvida alguma de que era sua senhora a criatura presa naquele corpo mortal e gravemente ferido, incapaz de ajudar a si mesma.

Dannelore pensou no homem pelo qual deixara o mundo imortal. Estava a sua espera, naquele momento mesmo.

Os ruídos dos guerreiros de partida se tornaram mais fracos, além da vegetação cerrada. Ela enrolou o manto com mais força em torno do corpo e saiu atrás deles.

— O ferimento é fundo. Perfurou o pulmão. — O velho Radvald, muito sério, se inclinou sobre a jovem miúda, enrolada na túnica de Connor e num quente pelego de carneiro.

O velho viking, de cabelos um dia ruivos e agora entremeados de fios grisalhos, ostentava as cicatrizes de lâmina e machado de muitas batalhas, e outras, mais sutis, porém não menos dolorosas, dos ferros em brasa com que fora torturado. Fora Connor que o libertara. E selara para sempre o elo de sua amizade.

Connor praguejou baixinho.

— Irá sobreviver?

Radvald examinou o ferimento com os dedos rudes.

— Se a flecha não for removida, o corte irá infeccionar e ela morrerá. Tirar a flecha provocará mais dano e mais hemorragia. Depois, infecção.

Não era preciso dizer mais nada. A morte era uma triste realidade que enfrentavam muitas vezes. Um guerreiro nunca se recuperava de ferimentos assim. Tinha uma morte lenta e dolorosa, em geral sozinho, pois seus companheiros não podiam arriscar-se a ser capturados ou a morrer ficando a seu lado.

— Seria melhor que terminasse agora — Radvald sugeriu. — Qualquer de seus homens pediria isso a você. E é o que se faria a um animal que sofresse.

— Sim, qualquer um de meus homens, inclusive eu mesmo. A expressão de Radvald abrandou-se.

— Cuidarei disso, Connor. Será rápido, indolor. — Tirou a faca da bainha.

Connor fechou a mão sobre o braço do velho guerreiro.

— É minha flecha. Eu farei isso.

Radvald meneou a cabeça e enfiou a faca no cinto. Quando Connor ajoelhou-se ao lado da garota, o velho virou-se e se afastou.

Meg jazia imóvel na cama de peles, debaixo de um pesado cobertor. Connor ergueu-a com um braço passado pelo ombro. A cabeça caiu para trás, os cabelos a escorrerem como uma cascata de ouro derretido. Eram de uma tonalidade incomum, entre o brilho da fria bruma da manhã e o calor do sol do meio-dia. Cílios loiros mais escuros curvavam-se sobre as maçãs do rosto. O queixo era delicado, os lábios cheios se entreabriam a cada respiração ofegante.

Era pouco mais que uma menina e, no entanto, uma mulher na plenitude sensual dos seios fartos, da cintura esguia e das nádegas voluptuosas que ele apertara contra si quando a carregara de volta para o acampamento.

Como teria ido parar na floresta, sozinha e nua? Quem era? Esposa, irmã, filha de alguém?

Pensou em sua mãe e nas irmãs, mortas no ataque que também vitimara seu pai e o irmão. Só um pensamento ainda o assombrava e o assombraria até o dia em que morresse: rezava para que não tivessem sofrido.

Apertou a jovem, tomado da necessidade de confortá-la como não pudera confortar os seus. Sentiu a face fria sob a sua. Tinha apenas de inclinar a faca. Um movimento rápido, e a dor dela findaria.

— Perdoe-me — ele murmurou, ao fechar a mão em torno do cabo da lâmina.

Um forte calor invadiu Meg ao ouvi-lo. Foi como passar das sombras para a luz do sol, como o momento em que dera o passo através do portal de pedra para o mundo mortal, como sair das Trevas em direção à Luz.

Respirou fundo. Seus cílios dourados estremeceram. Abriu os olhos. Seu corpo foi sacudido por um tremor e um espasmo, não na agonia final, mas na luta para sobreviver. Segurou a lâmina da faca com a mão nua.

As íris dela eram de uma tonalidade intensa de azul, diferente de qualquer cor que Connor já vira antes. E reluziam como o coração de uma chama. Nas profundezas, ele não enxergou a calma aceitação da morte, mas uma poderosa vontade de viver.

O sangue escorreu de seus dedos onde a lâmina se enterrara, tão forte fora o aperto. Ela parecia alheia à dor, a encará-lo, com uma expressão quase selvagem.

Seus lábios se moveram, sem nada dizer a princípio, e depois formaram palavras de um som antigo que ele não compreendia.

Poderia ser latim ou o antigo celta. Fazia tanto tempo desde que Connor ouvira algo assim, que não poderia garantir.

— Eich lê, mo chroi — Connor sussurrou, vezes seguidas, frases que lhe ocorriam, vindas da lembrança da infância, quando acalmava uma das irmãs que se machucava. — Tudo bem, você está em segurança, pequena.

Meg o fitou com aquela mescla de cautela e uma coragem quase feroz, quando Connor abriu-lhe os dedos, seu sangue a se misturar ao dela. Por fim, jogou a faca de lado.

— Não irei machucá-la. — E repetiu: — Você está em segurança.

Meg cerrou as pálpebras. Connor colocou-a de novo sobre a cama e enrolou um pedaço de pano com firmeza em torno da palma cortada. Ela não despertou, mas continuou imóvel, a respiração ofegante, porém uniforme.

Tão grave era o ferimento da flecha, e tanto sangue ela perdera que na certa sucumbiria em poucas horas. Contudo, em seus olhos, naquele breve instante em que o encarara, Connor encontrou algo apaixonado e quase desafiador, como se a própria vida queimasse dentro dela e a jovem pudesse fazer a morte recuar, só pela paixão e a vontade de viver.

— Quisera que toda a Bretanha possuísse tamanha coragem. — Ele afastou uma mecha de cabelos da testa de Meg. — Qualquer um assim merece a chance de viver.

A quietude do acampamento foi de repente quebrada por um tumulto. Simão e vários homens se reuniram, as armas em punho.

Connor pegou a faca que jogara de lado momentos atrás e saltou de pé. Atravessou o acampamento em passadas largas, a esquadrinhar o perímetro, todos os sentidos em alerta contra qualquer perigo.

Quando se aproximava, o círculo de homens se abriu de repente e uma forma delicada avançou às cegas do meio. Era uma mulher, os cabelos emaranhados a escapar do capuz de seu manto simples.

Teria corrido direto para ele se não fosse pela corda que a prendia pelo pescoço. com um puxão, a corda apertou-se, e ela caiu no solo, aos pés de Connor.

A mulher ofegou e engasgou, tentando desesperadamente soltar a corda com as mãos, que estavam amarradas.

— Ela rondava o acampamento — Simão informou, do outro lado da corda.

— Solte-a.

— A moça é perigosa, Connor. Cortou-me com sua faca. — Simão ergueu a lâmina para que Connor a visse.

Não era o tipo de arma que um guerreiro levaria, mas uma faca encontrada à mesa de algum senhor. Não causaria grande dano, muito menos a um guerreiro experiente.

— Solte a corda.

Bufando de desgosto, Simão o obedeceu.

— Tome cuidado para que ela não lhe corte a garganta.

— com o que, Simão? com as unhas?

Segurou a mulher pelos ombros e ergueu-a de pé. Ela empinou o queixo, o olhar cauteloso. Lutava para recuperar o fôlego, a respiração entrecortada por causa do aperto da corda no pescoço.

Não era nenhuma beleza. Tinha feições bastante comuns, porém havia uma força silenciosa dentro dela que, por um momento, relembrava a da jovem ferida. Contudo, tal força foi bem depressa oculta com cuidado, quando ela baixou os olhos e se impôs um silêncio gelado.

Connor soltou o nó e removeu a corda. Só então ela mostrou algum sinal de fraqueza, ao cambalear conforme inalava um profundo sorvo de ar. Ele firmou-a, mas Dannelore enrijeceu-se ao contato, afastou-se, os olhos ainda baixos.

— O que fazia na floresta?

— Sem dúvida foi mandada por Maelgwyn, Connor — sugeriu Simão, ao caminhar na direção deles, enrolando a corda. — Ou talvez aquele filho de uma cadela, Aethelbert, o cortagargantas. Ambos reclamam o domínio sobre esta mata.

Ela não respondeu. Simão a segurou pelos cabelos, puxando-lhe a cabeça para trás, e apontou-lhe a faca tão de perto que o brilho da lâmina luziu nos olhos inexpressivos.

— Foi mandada para descobrir nossa posição e mandar notícias a seu senhor? — ele indagou.

Mas mesmo a ameaça da arma não pôde arrancar uma palavra dela.

— Imagina que seria mais fácil para ela nos dizer alguma coisa se você lhe cortasse a garganta? — Connor ponderou.

Simão a soltou e enfiou a faca no cinto.

— Tenha cuidado, meu amigo. — E foi se juntar aos demais, que retornavam às fogueiras onde os coelhos assavam no espeto, junto com perdizes e galinhas selvagens e um pernil de veado. — Você pode se ver estripado na ponta de sua própria faca.

— Se a garota tentar algo, eu a matarei — retrucou Connor e pegou os pulsos amarrados de Dannelore.

Seu olhar encontrou o dela, quando a libertou. Dannelore esfregou as marcas avermelhadas, primeiro um punho e depois o outro, o tempo todo a observá-lo.

— Qual é seu nome? — Connor quis saber.

Ela pestanejou, surpresa. Não esperava uma tal cordialidade. Era mais provável que a surrasse ou talvez a amarrasse ao tronco de uma árvore para os animais devorarem-na, depois que seus homens tivessem se saciado. Mas havia momentos em que se ganhava mais com a diplomacia do que com força bruta.

— Chamam-me Dannelore — murmurou, hesitante.

— Tem algum conhecimento de cura?

— Um pouco, meu senhor.

— Preciso de você. — Connor tomou-lhe o braço e a foi conduzindo.

Ao se aproximarem do lado oposto do acampamento, Dannelore lutou contra a reação instintiva diante da visão de sua ama, não por causa do espírito incorpóreo, etéreo, do mundo imortal, que possuía os maravilhosos poderes da Luz, mas pela criatura de carne e osso em que ela se transformara ao entrar no mundo material.

Meg jazia imóvel e silenciosa na cama de peles, coberta com um pelego grosso de carneiro. Uma bela mulher, uma metamorfose natural de sua forma imorredoura e muito semelhante à que tinha naquele outro mundo; uma criatura de ouro e luz cintilante, de cabelos de um cetim dourado até a cintura, que se espalhavam sobre a cama e cobriam um ombro pálido. Então, viu o eixo da flecha e a carne ensangüentada.

Seu coração confrangeu-se de medo. A carne apodrecia com o veneno que se movia no sangue humano que agora fluía pelas veias de Meg. Sua ama tinha o poder de lutar contra o veneno, mas por que não despertava?

— Aconteceu na floresta, de manhã cedo. A flecha alcançou o pulmão — Connor a informou, sem mais explicações ou desculpas. — Pode ajudá-la?

Dannelore reuniu energia e respirou fundo.

— Farei o que eu puder.

Tentou lembrar-se dos ingredientes exatos para o antídoto do veneno, conhecimento que deixara para trás ao retornar ao mundo imortal.

Mesmo assim, o remédio mais forte seria de pouca utilidade enquanto a flecha continuasse cravada no ombro de sua ama, e Dannelore sabia do risco em tentar removê-la. Não tinha habilidade para tanto.

— Necessito de fogo, meu senhor. E uma faca e panos limpos para amarrar o corte.

Uma sobrancelha se arqueou na máscara verde-amarelada do rosto de Connor diante dos modos bruscos da desconhecida. Dannelore viu a surpresa na repentina dureza daqueles olhos cinzentos, mas ele concordou.

— Providenciarei aquilo de que precisa. — Entregou a própria faca a ela.

Dannelore espantou-se. Hesitante, apanhou-a e, por um instante, ficou a imaginar se ele possuía o poder de um encantado. Tinha certeza de que vira os próprios pensamentos refletidos naqueles olhos cinzentos.

— Se tentar escapar, meus homens serão forçados a persegui-la. Faça tudo para que ela sobreviva — Connor resmungou, ao se virar e se afastar.

E, naquelas poucas palavras, Dannelore sentiu o quanto o guerreiro lamentava o que causara a sua ama. Mais uma vez surpreendeu-se.

Então, ele se foi, gritando ordens para todos, mandando que fizessem uma fogueira, levassem água e panos limpos a ela.

Logo, as chamas ardiam e a água foi colocada para ferver numa vasilha de metal. Trouxeram tiras de pano, linho e lã, que deixaram dentro do caldeirão. Após escaldadas, várias delas foram penduradas para secar, e outras, mergulhadas na água fervente, postas para esfriar apenas um pouco e depois, com muita gentileza, comprimidas contra o ferimento no ombro de Meg.

Ela acordou, sobressaltada, os olhos arregalados de perplexidade, de medo e da dor física que a trespassava. Gritou, o som selvagem de um bicho ferido. Seus pensamentos se debateram em desespero, quando constatou que não conseguiria se separar do corpo físico que a aprisionava.

Dannelore pousou a mão sobre sua testa, conectando-se à mente de sua ama, enquanto tentava atrair os poderes limitados que poderiam confortá-la por meio daquele simples contato.

— Não lute contra isso, senhora. Você sofreu um grave ferimento. Tem de descansar.

Na interligação das mentes, Dannelore sentiu a confusão de Meg, os sentidos desarmados e indefesos, ao mesmo tempo que seu corpo mortal lutava contra a febre e a dor que nunca sentira antes, perplexa diante da fragilidade humana.

Meg não possuía conhecimento prático da encarnação mortal. Nunca assumira tal aspecto antes. Suas reações e seus movimentos eram parecidos com os da corça em que primeiro se transformara. Debatia-se, levada mais pelo instinto de um animal machucado que pela racionalidade, e se arriscava a provocar mais danos a si própria.

— Não, senhora! Não deve lutar. Confie em mim. Eu não a deixarei.

Dannelore tentou contê-la, mas Meg era muito mais forte, mesmo ferida.

Connor ouviu os gritos desvairados. Num segundo estava ao lado de Dannelore, segurando com gentileza, porém firme, a cabeça de Meg sobre o leito.

Ela os encarou, tresloucada, e uma mudança a dominou. Dannelore sentiu isso de imediato. Meg parou de se debater e caiu de costas sobre a cama, a tremer muito, e a cada respiração um esforço terrível.

Connor enrolou-a no pelego e logo Meg voltou a dormir. Dannelore substituiu os panos úmidos que tinham esfriado por outros, secos, prendendo-os no lugar.

— Como foi ficar sozinha na floresta? — Connor perguntou.

Dannelore escolheu as palavras, dizendo o mínimo possível.

— Colhia ervas na floresta.

Era uma resposta plausível para alguém com habilidade em cura. Mas Connor não se deixou enganar. Segurou-lhe a mão e virou-a para cima. Dannelore fechou os dedos sobre a palma. Não havia manchas de sumo de plantas colhidas neles. Soltou-se com um safanão.

— Tinha acabado de entrar na mata quando deparei com seu acampamento — ela explicou, depressa. — Pensei que vocês poderiam ser de Caerleon.

— O que sabe sobre Caerleon?

— Sou de lá. Estava voltando para lá depois... de ter me ausentado por algum tempo.

No silêncio que se seguiu, Dannelore sentiu os pensamentos de Connor. Fitou-o, uma ruga a marcar-lhe as feições.

— Esteve lá?

Ele também franziu a testa.

— Sim, vim de Caerleon esta manhã.

Um frio glacial fechou-se em torno do coração de Dannelore. Nos pensamentos sombrios do guerreiro, sentiu que algo terrível acontecera.

— Tem família em Caerleon, Dannelore? Ela fez que sim.

— O cavalariço do duque da Cornualha. Seu nome é John. Logo nos casaremos. — Afligiu-se. — O que é? Aconteceu alguma coisa por lá?

Não houve necessidade de ele falar. Em seu íntimo triste Dannelore descobriu a resposta: a devastação que Connor e seus homens encontraram, o corpo do velho duque entre os mortos, todos os outros assassinados ou desaparecidos. E o destino de John, o cavalariço, desconhecido.

— Há quanto tempo saiu de Caerleon? — Connor perguntou.

— Tempo demais. — As lágrimas começaram a escorrer pelas faces dela.

O dia findava, trazendo o frio cortante do inverno no ar. As fogueiras queimavam, e o aroma pungente do pinho se misturava ao de carne assada.

Connor e seus homens viveram os últimos anos fora das terras habitadas, dormindo sob as árvores e se escondendo em cavernas nas montanhas, sempre em guarda contra um ataque de surpresa.

Encontros com Maelgwyn e Aethelbert o fizeram cauteloso. Aqueles dois eram ambiciosos e reclamavam a posse da terra que rodeava a floresta no período em que Arthur partira da Bretanha.

Aethelbert era instruído. Dos dois, era ele quem possuía mais perícia como general de campo. Seu exército era altamente organizado segundo o sistema das antigas legiões romanas.

Havia, por outro lado, Maelgwyn. Jamais antes nascera um bastardo mais violento e perigoso. Suas ambições eram ainda mais sangüinárias e traiçoeiras. Vinham correndo rumores de que Maelgwyn trouxera mercenários pictos do país do norte para fortalecer seu exército e solidificar sua reivindicação das terras ocidentais. De acordo com esses boatos, sua ambição se estendia ao leste também, rumo a Londres, o coração histórico, rico centro comercial e chave de toda a Bretanha. Só duas coisas se postavam em seu caminho: Aethelbert de Kent, que já se declarara governador regional das terras orientais, e o velho duque da Cornualha, que exercia o poder a partir de Caerleon para o oeste.

Depois do ataque a Caerleon, apenas Aethelbert se interpunha em seu caminho. Porém, tinha as forças dispersas a oeste, lutando contra bolsões da insurgência que Maelgwyn sem dúvida planejara. O trono estaria sujeito a ser tomado por Maelgwyn, o que lançaria toda a Bretanha num caos ainda mais sangrento, do qual poderia não haver resgate.

Com Arthur ali, havia esperança. Ele era de uma família nobre. Seus ancestrais foram diplomatas que governaram com sabedoria e trouxeram paz à Bretanha. A lenda começara com as circunstâncias de seu nascimento. Depois de muitos anos sem filhos do casamento com o antigo duque da Cornualha, lady Ygraine enfim concebera, e a criança nascera vários meses depois da morte do duque.

Lady Ygraine se casara outra vez, sem demora. E tivera uma filha, Morgana. Mas a esperança para o futuro da Bretanha recaíra sobre Arthur.

Acampar em terreno aberto deixava Connor inquieto e nervoso. Deu ordens a seus homens para empacotar as provisões que pudessem carregar e se aprontarem para partir antes do nascer do dia. Em seguida, voltou ao abrigo rústico improvisado diante de uma fogueira.

O velho Radvald aproximou-se e postou-se a seu lado. Acabara de voltar de seu turno de vigia na floresta.

— Viu alguma coisa?

— Passaram pela floresta vários dias atrás. Achei sinais a uma boa distância daqui. Eram poucos em número e não se demoraram.

Quando Dannelore o encarou, na expectativa, o velho jogou uma bolsa no chão, diante dela, sem nenhuma explicação.

Ela a apanhou no mesmo instante, remexeu o conteúdo de várias folhas, galhos e frutinhas até que encontrou o que queria, que esfarelou com liberalidade dentro do caldeirão fumegante.

Algo intrigado, Connor percebeu que Dannelore fizera o velho guerreiro sair para colher folhas. Agachou-se ao lado da garota, afastando a beirada do pelego.

— O veneno provoca febre — explicou Dannelore. — A mistura ajudará, mas não é o suficiente. A flecha terá de ser removida.

— Então, tire.

— Minha habilidade é limitada a cortes simples, furúnculos ocasionais ou em aplicar emplastros numa queimadura. — Meneou a cabeça, muito séria. — Isso exige uma perícia muito maior que a minha. Se fosse tentar... poderia matá-la.

O velho Radvald ouviu com atenção, os olhos azuis pensativos sob as sobrancelhas cerradas.

— Existe alguém que possui tal habilidade — disse, com rispidez. — Em Caerleon.

Dannelore ergueu a cabeça de imediato.

— Você falou que estavam todos mortos ou desaparecidos em Caerleon.

— Nem todos. Há um curandeiro lá.

— Não, Radvald! — exclamou Connor. — Não há ninguém que possa ajudar em Caerleon. Não voltaremos lá.

Dannelore sentiu a imediata hostilidade entre o chefe e o velho guerreiro.

— Partiremos às primeiras luzes do dia e encontraremos refúgio nas colinas orientais. Lá, acharemos um curandeiro que possa auxiliá-la.

Connor ajeitou a pele felpuda em torno do ombro da jovem ferida. Meg não se moveu, mas continuou a dormir, inquieta, os lábios secos e a pele quente da febre que lhe percorria o corpo. A mão de Connor demorou-se no rosto dela. E ele franziu o cenho ao constatar a alta temperatura.

Dannelore ficou a observar, curiosa. Havia uma sutil gentileza naquele toque, um pesar não vocalizado no íntimo do guerreiro.

— Mandarei que tragam mais lenha, Dannelore. Mantenha o fogo queimando. — E Connor se afastou.

— Se todos fugiram, então quem é o curandeiro em Caerleon? — Dannelore perguntou a Radvald.

Ele coçou a barba espessa do queixo. E Dannelore sentiu sua dúvida em falar, mas também percebeu a preocupação com sua ama.

— É Merlin — murmurou. — Ele voltou dos reinos do Oriente com Arthur.

As esperanças de Dannelore se intensificaram.

— Merlin está em Caerleon?!

Era mais do que poderia esperar. Depois de todos aqueles anos, Merlin voltara. E ele tinha o poder de salvar sua ama. Estendeu a mão para Radvald.

— Por favor — implorou. — Ajude-me a levá-la até Caerleon. É sua única chance!

— Mas Connor proibiu. Iremos para as colinas do leste.

— Ela nunca sobreviverá à viagem, e pode não haver ninguém lá para cuidar de seu ferimento. Sua única chance é ir para Caerleon. — Sentiu que ele vacilava. — Que diferença pode fazer se a jovem for a Caerleon? Não significa nada para ele.

— Connor se sente responsável pelo que aconteceu.

— Melhor então que a garota seja bem-cuidada. Por favor, Radvald. — Pousou a mão no braço dele, usando de toda a persuasão de seus poderes limitados. — Se quer salvá-la, colabore com nossa fuga.

Dannelore poderia tê-lo convencido se um grito de alerta não ecoasse pelo acampamento.

Cada guerreiro empunhou sua arma. Radvald deu meia-volta, o olhar agudo a esquadrinhar o acampamento enquanto os demais corriam para o lado oposto.

— Fique aqui! — Pegou a faca que Dannelore usara para cortar o pano para as ataduras e jogou-a para ela. — Use isto, se precisar. Não estarei longe.

Ele atravessou o acampamento e embrenhou-se no mato cerrado com vários outros guerreiros.

Aquela poderia ser a única oportunidade que as duas jovens teriam de escapar sem serem vistas.

Assim Dannelore arrancou a pele pesada de cima de sua ama e a sacudiu para acordá-la. Custou, mas por fim os olhos de Meg se abriram. Aos poucos, Dannelore viu o reconhecimento surgir naquelas profundezas toldadas pela febre.

— Temos de ir embora, senhora. Não é seguro ficarmos aqui. Faça um esforço, sim?

Meg lutou para afastar a névoa dolorosa que atordoava seus sentidos. A princípio, a voz de Dannelore dava a impressão de vir de muito longe. Sentia-se estranha, incapaz de se mexer, os pensamentos desvinculados dos sentidos e dos poderes que sempre definiram suas habilidades. Então, experimentou uma sensação aguda e intensa que se irradiou, dispersando-lhe o raciocínio, reduzindo-a a quase nada.

— Isso é dor — Dannelore informou, ao fazer Meg se erguer da cama de peles. Tomou cuidado para não machucar o ombro com a flecha cravada fundo nele.

— Precisa tentar ficar de pé, senhora — encorajou-a. Meg achou que Dannelore enlouquecera. Que necessidade tinha de ficar de pé? Mas, ao tentar se mover pelo método antigo, descobriu que não podia. Seus movimentos eram desajeitados, aos trancos e descoordenados. Além disso, a febre a requeimava e molhava o manto em que Dannelore a envolvera antes. Não conhecia o corpo mortal que agora usava.

— O que está acontecendo? — Meg gritou, por meio daquela conexão mental. — Por que me sinto tão fraca? Parece que não consigo me mexer.

— Irá aprender, senhora. Tal como aprendeu nas transformações em outras criaturas.

— Mas o que está havendo? Por que não posso me transformar?

— Foi ferida, e eu não tenho a habilidade de curar isso. Precisamos chegar a Caerleon. Mas tem de colaborar, senhora. Tente.

Seus esforços foram débeis, a princípio, tanto pela falta de familiaridade com o corpo mortal que assumira quanto pelo ferimento que drenava sua força física. Contudo, Meg acabou conseguindo se erguer e dar alguns passos hesitantes, apoiada pesadamente em Dannelore.

Cada movimento se refletia em ondas pelo ombro, e a dor tornava o andar uma agonia. Gotas de sangue deixaram uma trilha no chão conforme elas se esgueiravam para fora do abrigo e para dentro da floresta.

O corpo do guerreiro encontrado na mata foi rolado de face para cima. Uma flechada no coração o matara na hora. Depressa demais para conseguirem alguma informação.

— Tive receio de que ele pudesse escapar — Simão explicou-se. — E informasse nossa posição aos outros.

— Sim. — Connor suspirou. — Mas adiamos o inevitável apenas por umas poucas horas. Em algum momento irão procurar por ele.

— Aethelbert? — cogitou Radvald, pois foram vistos grupos de atacantes apenas a um dia de distância dali, nas últimas semanas.

Connor ajoelhou-se ao lado do morto, analisando as marcas pintadas em sua túnica. Do cinto, pegou uma tira de pano encontrada em Caerleon e revirou-a, pensativo, entre os dedos. Tinha as mesmas marcas: o chifre de alce com as espadas cruzadas de Aethelbert. Óbvio demais.

Aethelbert era ambicioso, porém nenhum tolo, e estava longe de seus territórios orientais. Alguém quisera que pensassem que tinha sido ele. Um ataque no coração das terras ocidentais por alguém que pregava a unidade com a Cornualha seria visto como um ato de traição. O tipo de coisa que uma mente matreira poderia tentar.

— Maelgwyn. — Connor se levantou, esquadrinhando a floresta que os rodeava. — Enterre-o, tão fundo que ninguém encontre o cadáver. — E ordenou ao restante de seus homens que voltasse ao acampamento.

Maelgwyn se tornara mais ousado. Tinha de ser detido.

— A mulher sumiu — Radvald o informou, assim que retornaram. — E a garota com ela. Embrenharam-se na floresta.

Connor praguejou por entre os dentes. Todos eles correriam perigo com aquele ato imprudente. Achou as manchas frescas de sangue no pelego de carneiro e depois a trilha que levava para longe dali.

Uma neve ligeira começara a cair. Se não seguisse os rastros depressa, seriam cobertos pelos flocos e ocultos pela escuridão, conforme a luz baixava, devagar. Destacou três homens, inclusive Radvald, e partiu para a floresta.

— Precisa tentar, senhora! — Dannelore implorava, desesperada, ao sentir a forças vacilantes de Meg, presa dentro daquele corpo ferido de morte.

Sua própria resistência estava quase esgotada de suportar o peso da ama, mesmo leve, ao seguirem aos trambolhões pela floresta. Seguiam uma trilha que ela tomara meses antes, quando voltara ao portal, vinda da floresta, naquela que julgara que seria a última vez.

Aquilo a fez lembrar-se de John e seu paradeiro desconhecido, bem como as demais pessoas dadas por desaparecidas em Caerleon. Maldisse o dom da visão que não era suficiente para lhe dizer se ele vivia ou se tinha morrido.

Tinham de descansar. Mas, se parassem, talvez não pudesse fazer a sua ama se mover de novo. E começara a nevar, só um pouco a princípio, depois mais pesado.

Quanto faltaria para chegarem a Caerleon?

Se tivesse o poder da transformação, poderia se converter num pássaro e voar dali em menos tempo do que demoraria piscar duas vezes. Mas o não possuía.

Pelo menos se Meg pudesse se metaformosear ou enviar os pensamentos a distância, conseguiriam auxílio. Mas, perdida como se achava naquela forma mortal e incapaz de atrair seus poderes no estado físico debilitado em que se encontrava, Meg nada poderia fazer.

Por fim, Dannelore não conseguir ir adiante. Tropeçou no escuro, e tentou amortecer, aflita, a queda de sua ama contra o chão duro.

— Perdoe-me — murmurou, as lágrimas e a frustração evidentes.

Pensar que Meg poderia morrer como qualquer mortal, e que seus maravilhosos poderes assim estariam perdidos para sempre, era uma idéia por demais difícil de suportar.

O crepitar de folhas sendo pisadas arrancou-a da tristeza. com todos os sentidos em alerta, Dannelore tirou a faca do cinto. Seu olhar rebuscou a escuridão reinante que se fechara em torno. Então, outro som lhe chamou a atenção na direção oposta.

Chegaram sobre ela antes que pudesse até mesmo gritar. A faca foi arrancada de seus dedos, as tochas surgiram de repente numa explosão de luz fantasmagórica.

Dannelore saltou de pé e atacou o primeiro guerreiro com as mãos nuas, a dentadas, unhadas e chutes, como uma criatura selvagem, ao tentar proteger sua ama.

— Não a machuque!

— Pare! — Connor esbravejou, golpeando-lhe a cabeça com a mão aberta, deixando-a por instantes atordoada. — Que bem achou que faria em arrastá-la para cá?

— Mais do que esperar que morresse em seu acampamento! — Dannelore retrucou com desprezo, sentindo que poderia ter selado o destino de ambas com suas palavras atrevidas.

 

Quais são as notícias? — Arthur indagou, quando Gawain entrou no salão arruinado de Caerleon e dirigiu-se até o fogo que queimava na velha lareira de pedra. Ele e alguns homens tinham saído a campo desde a véspera, a cavalgar pela região que circundava Caerleon, procurando sobreviventes que fugiram para as colinas, alguém que pudesse saber do destino de lady Ygraine e lady Morgana.

Arthur retornara apenas um pouco antes, com seus soldados e cavalos exaustos de uma busca semelhante ao sul. O esgotamento era visível em cada rosto. As últimas horas fizeram pouco para dissipar a sensação de que tudo poderia estar perdido.

Gawain sacudiu o manto, a neve a cobrir o chão de pedra, e puxou de dentro um pedaço de tecido fino que poderia ter sido usado por uma dama de alto nascimento. Colocou o pano sobre a mesa, uma das poucas peças de mobília que permanecera intacta, embora o tampo estivesse marcado com talhos profundos.

— Estão vivas. Pelo menos sobreviveram ao ataque.

Arthur levantou-se no mesmo instante.

— Onde?

— Correm rumores de que de foram levadas para a Abadia em Amesbury, sob a proteção de Constantino.

Os olhos de Arthur se estreitaram.

— Proteção? Do velho adversário de meu tio? Gawain concordou com um sorriso irônico.

— Foi a palavra que os aldeões usaram, e com grande cuidado.

— Reféns — Merlin emendou, com certeza.

— Parece que ele foi designado governador regional. — Gawain deu de ombros.

— Constantino... — Arthur recordou-se de quando ouvira pela última vez aquele nome. — O sudoeste é seu domínio. É natural que una seu grupo a Aethelbert contra Maelgwyn, para proteger suas terras.

— Ou talvez isso seja o que querem que se acredite — ponderou Merlin. — Você esteve fora por muitos anos. As lealdades mudam, e uma como a de Constantino se inclinará para o lado que o vento sopre. Se for atacá-lo, isso o deixaria exposto pelo flanco norte.

— E uma presa fácil para Maelgwyn — Arthur acompanhara o raciocínio. — Não tenho exército para realizar o ataque, porém. Além disso, como alguém saberia de meu retorno?

— A essas alturas, todos já sabem disso, milorde. Desde o momento em que você pôs os pés neste solo. Um guerreiro e seus homens vistos a cavalgar através do interior, rumo a Caerleon? Quem mais, a não ser Arthur?

Gawain meneou a cabeça, assentindo.

— Não falam de outra coisa, sir. As velhas empurravam nacos de pão e sacos de farinha sobre nós. Os homens, velhos e jovens, mesmo garotos, juravam sua lealdade. Seguiram-nos de volta a Caerleon.

— Seguiram? Até aqui?! — Arthur ficou estupefato. — Mas com que finalidade?

— Empenhar suas espadas e a vida ao futuro rei. — Merlin estendeu as mãos na direção do fogo para aquecê-las. — Já começou.

— Começou?! — Arthur gritou, zangado. A devastação e a morte em Caerleon cobrara seu preço. — Olhe ao redor, meu amigo. O que vê? Meu reino? Este salão destruído pelo incêndio com neve a cair pelo teto? Sepulturas por aí? Caerleon, mais ainda que toda a Bretanha, jaz ferida, sangrando e morrendo de fome. Maelgwyn e Aethelbert lutam pelos despojos como carniceiros, a esperar apenas para limpar os ossos um do outro!

Pôs-se a andar de lá para cá.

— Sinto o fedor de morte e podridão no ar que respiro, Merlin. Em cada vila e aldeia pela qual cavalgamos vejo o povo esfaimado e crianças moribundas. — A voz de Arthur tremeu de exaustão, frustração e ódio. — Quem, então, há para tomar a espada e lutar?

Antes que alguém pudesse responder, a porta principal do salão se abriu. Vento e neve se infiltraram em redemoinhos pela abertura, apagando velas e diminuindo a mísera iluminação. O fogo da lareira dançou, agitado, as fagulhas a explodir com a súbita corrente de ar gelado.

Arthur e seus guerreiros se prepararam para o ataque. Mas foi Merlin quem avançou desarmado na direção daquela porta entreaberta, mergulhada em sombras, e circundada de neve. Tochas foram erguidas pelos guardas de Arthur.

Um dos intrusos deu um passo à frente, a cabeça e os ombros escondidos sob um pesado manto. O capuz escorregou para os ombros, revelando as feições duras, o nariz aquilino e os olhos tão frios como a primeira tempestade de inverno.

Carregava um fardo. A borda do pelego de carneiro se abriu, revelando as feições pálidas e delicadas de uma jovem que parecia à beira da morte.

— Você é um curandeiro! — Connor exclamou. — Prove!

Merlin relanceou o olhar para a mulher imóvel nos braços de Connor. Sentiu muito pouca vida na batida débil, rasa do coração, e algo mais que não conseguiu nomear. Captou muito mais no guerreiro: raiva, ressentimento, desprezo. Talvez estivesse ali a oportunidade de remediar o profundo abismo entre dois homens que precisavam um do outro.

— Qual é o ferimento dela?

— Levou uma flechada no ombro. Perfurou o pulmão. Merlin continuou a encará-lo, e Connor acrescentou, num tom solene:

— Minha flecha.

Merlin ficou surpreso. Honestidade sincera, nascida da alma, era a última coisa que esperava de um homem que parecia não ter uma; um homem que era quase um mito, tal como Arthur.

Desde a chegada a Caerleon, ouvira muitas coisas sobre Connor e seus homens. Como viviam nas colinas, muitas vezes desaparecendo por meses, vistos de novo só quando atacavam um acampamento inimigo, na calada da noite, como espíritos do mundo das sombras. Sem misericórdia, deixavam a marca — a letra A, da casa de Anglia, seu berço perdido — num lugar de destaque, de maneira que quem encontrasse os mortos saberia quem estivera ali.

Tanto Maelgwyn como Aethelbert colocaram a cabeça de Connor a prêmio. Muita gente pensava que ele já estava morto, que era seu fantasma que descia as colinas como um anjo vingador, a espalhar a morte e a destruição entre seus inimigos.

As histórias o fizeram duvidar de que Connor de Monmouth fosse capaz de gostar de alguma coisa neste mundo. Entretanto, ali estava, diante de Arthur, depois de jurar que não precisava de nada deles, pedindo-lhe que salvasse a vida de uma jovem.

— Verei o que pode ser feito — Merlin afirmou. Arthur ofereceu:

— O quarto de lady Ygraine é o único não de todo arruinado. Pode levá-la para lá.

Quando Merlin fez um gesto para pegar a garota, Connor disse apenas:

— Eu a carregarei.

— Como desejar. — Merlin precedeu-os pelos degraus estreitos até o segundo andar, acima do salão.

Dannelore seguiu-os em silêncio, a olhar para aquele que caminhava à frente, na forma de ser de carne e osso.

Merlin fora criado como mortal e vivera toda a vida neste mundo. Ela nunca o vira, mas ouvira falar dele pelos Instruídos.

Ele possuía os poderes da Luz, transmitidos por aqueles de sua essência que tinham vindo antes dele. Como sua irmã, a ama de Dannelore possuía aqueles mesmos poderes, mas Meg permanecera no mundo imortal. Até o dia anterior.

Ao chegarem ao topo da escada, concluíram que a devastação não era tão grande como no salão principal, abaixo, embora se vissem as evidências de pequenos focos de incêndio iniciados pelos atacantes.

Caerleon fora, um dia, uma fortaleza impressionante, lar dos duques da Cornualha por muitas gerações. Era quase toda de pedras naturais e lajes de ardósia, com contrafortes de madeiras pesadas.

Os incêndios não alcançaram as vigas de apoio. O cheiro horrível de madeira, peles e de tecidos de lã queimados pairava nos dormitórios de cima e fechavam a garganta de Dannelore.

Dentro do quarto da senhora, o dano não fora tanto. Dannelore estivera ali muitas vezes, atendendo lady Ygraine. Depois do choque inicial, às pressas reuniu as peles espalhadas e as mantas de couro com que arrumou o leito.

Connor carregou Meg, sem dizer palavra, para dentro e colocou-a, com toda a gentileza, sobre o colchão macio. Ela se remexeu, murmurando algo por entre os lábios requeimados pela febre. Em seguida, mergulhou na inconsciência profunda mais uma vez.

Ali perto, Dannelore fez fogo no braseiro para aquecer o ambiente gelado. As chamas lutaram e depois ganharam vida, emprestando uma luminosidade dourada ao recinto.

Connor tocou a face de Meg, lutando contra o pesar que o amargurava. Embora ela não acordasse, virou-se na direção dele como se tivesse sentido seu toque.

— Cuide para que ela viva, curandeiro — disse Connor, ao sair. Não era um pedido, mas uma ameaça.

— Farei o que puder — Merlin prometeu.

Então, também ele saiu do quarto para procurar panos limpos para atar o ferimento e combustível para fazer fogo.

Dannelore debruçou-se sobre a cama e examinou as ataduras no ombro de sua ama. Os olhos de Meg se abriram.

— Está a salvo, senhora — Dannelore lhe assegurou. — Chegamos em Caerleon. Há alguém aqui que irá ajudá-la.

Meg não tinha a força, nem a capacidade para falar como um ser comum. Mas Dannelore captou sua pergunta na conexão dos pensamentos.

— É Merlin, senhora. Ele voltou com Arthur.

O espanto de Meg foi imediato. Dannelore sentiu-o e tentou reconfortá-la.

— Ele é um grande curandeiro. Possui a perícia dos Anciãos. Poderá remover a flecha e fechar o ferimento.

— Você não compreende...

O pensamento de Meg começava a se tornar lento e hesitante. Até aquela simples habilidade ameaçava fugir-lhe.

Deveria ser como morrer, imaginou. Iria perder as capacidades e a essência para o nada. Lutou para concentrar-se, forçando-se a se conectar com Dannelore.

— Ele não deve saber quem eu sou! Iria me forçar a voltar, e haveria sérias conseqüências. Por favor, tem de me ajudar!

— Não posso. — Dannelore sentia o desespero de sua ama. — Não tenho o poder. E talvez seja melhor que você volte.

— Não! Não voltarei. Não farei isso! Você tem de me obedecer.

Poderá colaborar, se unir seu poder ao meu. — Ergueu a mão.

Custou-lhe imenso esforço coordenar o movimento daquele corpo mortal do qual apenas recentemente assumira a forma. E estava fraca com a perda de sangue e com o veneno que queimava em suas veias.

— Junte sua mão à minha.

Dannelore comprimiu a palma na de Meg. Ao contato, Meg experimentou um repentino fluxo de calor que formigou por seus dedos, correu por seus braços e por todo o caminho através de seu ser.

Foi o bastante. Conforme a pesada tapeçaria da abertura do quarto foi puxada para trás, ela lançou um simples, mas efetivo encantamento, escondendo a verdadeira identidade de todos, inclusive de alguém tão poderoso como Merlin.

Sua mão desabou na cama conforme mergulhava mais uma vez num sono exausto. A conexão se desfez, e a força fluiu de novo através de Dannelore.

— Venha cá, mulher — Merlin a chamou. — Precisarei de você.

Ele notara aquela jovem que chegara com Connor e seus homens. Agora percebia algo mais nela.

— Você tem dons — observou, calmo, ao mexer uma mistura de pós numa bacia d’água.

Dannelore o encarou.

— Sim, meu senhor.

Ele a fitou de alto a baixo.

Será que perceberia o encantamento? Poderia ficar muito zangado, e Dannelore não tinha vontade alguma de experimentar sua ira. Merlin, porém, sorriu-lhe.

— Ótimo. Suas habilidades serão muito úteis.

Merlin carregou a bacia d’água para perto da cama, e Dannelore deixou escapar um suspiro de alívio. Quando ele puxou a borda do pelego de carneiro de cima de Meg, ela percebeu um movimento na tapeçaria que fechava a abertura do quarto. Não ouviu nada, porém tomou consciência de que alguém se postava nas sombras ali perto.

— Veio para montar guarda? — Merlin indagou, sem erguer os olhos, ao começar a retirar a atadura grosseira que Dannelore fizera de pedaços de linho e lã encontrados no acampamento.

Houve apenas uma hesitação momentânea, mas o guerreiro não deu nenhuma indicação de que a observação de Merlin o surpreendera.

— Ouvi dizer que você possui grande destreza. — A mão de Connor apertava o cabo da espada, que tinha apontada para a frente.

— Mas você duvida.

— Duvido de sua lealdade — Connor sussurrou.

— Acredita que sirvo a outra causa.

— A sua própria.

Dannelore podia sentir aqueles olhos cinzentos e frios a observarem cada movimento seu, ao colocar a bacia mais perto e depois estender ao curandeiro um pano molhado na infusão de ervas para limpar o ferimento.

Quando Merlin se debruçou sobre Meg, a tensão aumentou.

Dannelore manteve o olhar baixo, os pensamentos e energias concentrados na tarefa a realizar.

— Crê que sirvo as forças das Trevas — Merlin sugeriu, provocando uma ruga em Dannelore.

Ele não estava zangado, apenas curioso. Era Connor quem se mostrava desconfiado.

— Creio que serve a si mesmo.

— No entanto, trouxe a garota a mim.

— A alternativa era a morte.

— Ah, uma escolha de último recurso...

— Isso mesmo. Pode salvá-la?

— E mitigar sua culpa?

Aquilo fora dito sem desafio ou grosseria e, no entanto, Dannelore conteve a respiração, pois as palavras soavam bastante perigosas. Sentiu que a mão de Connor se apertava ainda mais no cabo da espada.

O guerreiro, contudo, tinha agora algo que valia mais que sua própria vida, e se recusou a entregar-se à ira.

— Responderei por meus pecados diante de Deus. Não diante do Príncipe das Trevas.

— Nesse caso, quem sabe devesse chamar seu Deus para curá-la...

Aquele era um desafio de longa data entre a fé e os poderes pouco compreendidos do universo.

O guerreiro saiu das sombras, por entre a tapeçaria da abertura do quarto. Ergueu a espada e nivelou-a à altura da garganta de Merlin.

— Pela misericórdia de Deus chegamos a Caerleon a tempo. Pela misericórdia de Deus você possui habilidades de curandeiro.

Ou assim me disseram. Use seus conhecimentos agora, ou o abaterei sem dó aqui, onde está.

Nenhum golpe mortal poderia abater Merlin. Contudo, por alguma razão, ele hesitou.

— Acho que devemos acertar esse assunto algum dia — retrucou Merlin.

— Escolha quando.

— Agora não é a hora, nem o lugar. Baixe essa espada, Connor de Monmouth, e acalme-se. Pois, para o que deve ser feito, precisarei de sua força.

Connor franziu a testa, e Merlin explicou:

— Não existe nenhuma mágica que eu possa utilizar para remover a flecha. Será muito doloroso, muito mais do que aquilo que a moça já suportou. Você deve segurá-la com firmeza para que não cause um dano maior a si mesma. Assim que a flecha for retirada, fecharei o ferimento. É a única maneira.

Dannelore tinha certeza de que Connor se recusaria. Mas, por fim, ele baixou a espada. Encostou-a contra uma cadeira próxima e tornou a se aproximar da cama.

— Ali — Merlin o instruiu a se postar na ponta do catre. — Tem de segurá-la pelos ombros. Não a deixe se mexer, não importa o que aconteça.

Então orientou Dannelore a prender-lhe o baixo-ventre e as pernas.

— A flecha perfurou o pulmão. Terei apenas uns poucos momentos para fechar o ferimento depois que a seta for removida. Isso tem de ser feito com rapidez, se for para ela sobreviver. — Merlin olhou diretamente para Connor. — Você não deve questionar ou interferir, aconteça o que acontecer. Compreendeu?

Connor concordou, embora de má vontade.

— Vamos logo com isso, curandeiro.

Dannelore se afligiu. Sua ama não era mortal. Merlin sentiria isso quando a cura começasse? Ou o encantamento o impediria?

Como guerreiro, Connor vira muitos ferimentos. Tão duro e entorpecido se tornara que nem notava os mortos que caíam diante de sua espada. Se o resultado se voltasse contra ele, e fosse sua própria vida a ser perdida, que fosse.

Por que a flechada acidental naquela jovem o afetara tão profundamente? E quanto ao sangue que ele continuava a sentir, quente em seus dedos, mesmo depois de o ter limpado?

Era porque se sentia responsável por ferir alguém que não tinha meios de se defender? Ou porque sua inocência maculada o relembrava demais sua mãe e suas irmãs, estupradas e mortas sem ninguém para salvá-las?

Connor colocou as mãos nos ombros de Meg quando Merlin começou seu trabalho. E o olhar do mago encontrou o seu.

— Connor de Monmouth, você não deve deixar que ela se mexa, por nada neste mundo.

Connor assentiu e firmou os ombros de Meg.

Ela não despertou, nem quando Merlin colocou uma tala de couro grosso entre seus dentes, nem quando a mão do mago se fechou em torno do eixo da flecha. No momento seguinte, Merlin colocou a outra mão na base da haste, bem no ponto em que penetrava na carne.

Apenas Dannelore tinha consciência do poder que Merlin convocava, projetando-o dentro do corte através dos dedos, relaxando as fibras sob a pele para ajudar a facilitar a passagem da seta. Em seguida, com um gesto firme, extraiu a flecha.

Meg estava anestesiada pela letargia febril. Mas seus instintos ainda eram os de uma criatura ferida. E, como um animal machucado, o choque entorpecia seus sentidos. Mas não a dor que a dilacerou quando a flecha lhe foi arrancada.

Era um sofrimento lancinante, mais intenso que o ferimento original, pois, além dos músculos e tendões rasgados pela seta pontuda e a haste partida, as terminações nervosas também ficaram expostas.

Gritou, a se debater com uma força que Connor não julgaria possível, tão fraca ela estava com a perda de sangue.

Seus dentes se enterraram na tala de couro, enquanto ela jogava a cabeça para frente e para trás. Os olhos arregalaram-se. Meg agarrou-se às mãos e aos braços de Connor e arqueou-se para trás. Teria se machucado mais se ele não a forçasse para baixo, empurrando-a contra as peles do catre.

Dannelore jogou-se sobre as pernas de Meg, o peso do corpo a impedi-las de se mover.

E, de repente, Meg desmaiou. Sua respiração se tornava ofegante e difícil, conforme o pulmão perfurado se enchia de sangue, que borbulhava em jatos do corte aberto.

— Curandeiro! — Connor rosnou, num aviso ameaçador.

— Precisamos trabalhar depressa — Merlin falou, ignorando a ameaça, e ordenou a Dannelore: — Traga mais panos. — Virou-se para Connor. — Afaste-se!

— Se ela morrer...

— Se não fizer o que eu disse, ela morrerá! — esbravejou Merlin. — Você a trouxe para mim. Agora, deixe-me fazer o que tem de ser feito.

A mancha escarlate no pelego se espalhava sem cessar. Connor nunca se sentira tão impotente em toda a vida. Recuou, afastando-se.

Dannelore estancava a hemorragia. Merlin retirou um cristal azul do pescoço e colocou-o sobre o peito de Meg. Juntou as palmas das mãos, os dedos estendidos e cerrou as pálpebras.

Quando Connor ia agarrá-lo pelo ombro, Dannelore o conteve pelo braço e o puxou para trás.

— Não deve interferir!

Merlin respirou fundo, fechando-se a tudo o que o rodeava, concentrado apenas na garota que jazia diante dele e ao poder que invocava. Voltou os pensamentos para o íntimo, onde tempo e lugar não mais existiam, mas tudo se expandia através de milênios de Luz, até onde a força vital do poder habitava.

Na medida em que a energia crescia, expandia-se e se movia através dele, palavras antigas, aprendidas longo tempo atrás, eram sussurradas por meio de seus sentidos.

A tapeçaria ondulou como se impelida por uma corrente invisível de ar. As chamas das lamparinas de repente estremeceram, e então queimaram com mais intensidade. O fogo no braseiro estalou, ganhando vida.

A cabeça de Merlin pendeu para trás. Suas feições luziam com uma cor dourada, e seus olhos eram como os corações de duas chamas — azul brilhante no centro, bordejado por um dourado vibrante. O mesmo azul do cristal faiscante que se achava no peito de Meg, em cima do coração, como se o mesmo fogo queimasse através de ambos.

Merlin pôs de lado o pano que Dannelore usara para estancar o sangue e pousou a mão nua sobre o ferimento. De olhos fechados, sentiu a profundidade da lesão, viu o tecido rasgado, o osso esfacelado e a fenda mais funda no pulmão. Continuou a sussurrar as palavras antigas.

— Elemento do fogo, espírito de luz, essência de vida, acordai a noite. Fogo da alma, chama de vida, assim como a luz revela a verdade, requeimai num brilho dourado.

Atraiu o poder dos Anciãos, guiando-o através dos dedos para estancar o fluxo hemorrágico. Projetou-o mais ao fundo conforme tomava a dor para si mesmo, lacrou o pulmão danificado e drenou dele o sangue. Depois, com imenso cuidado, fundiu o osso esfacelado, emendou o tecido rasgado, teceu o músculo delicado e a carne frágil até que ficaram inteiros outra vez.

Isso lhe exigiu imensa concentração e força, o poder a queimar dele para dentro dela, enquanto extraía a febre e o veneno das entranhas de Meg.

Connor olhava, incrédulo, conforme o sangue desaparecia de sob os dedos do curandeiro e a carne se fechava a seu toque, até que tudo que restou foi uma fita de um rosado brilhante de carne nova onde houvera o corte fatal.

Merlin aprumou a cabeça, devagar. Abriu os olhos. Eram, mais uma vez, de um azul profundo e calmo, não mais a requeimar com um fogo oculto. O cristal luziu de novo com aquela mesma cor azul intensa.

O mago deixou escapar um suspiro doloroso, ao se sentar sobre as pernas dobradas e, pouco a pouco, levantar-se outra vez. Embora fossem quase da mesma idade, parecia que o curandeiro envelhecera diante dos olhos de Connor. Movia-se com lentidão e com grande dificuldade, como se não pudesse colocar um pé diante do outro. Custou-lhe um grande esforço procurar a cadeira perto da cama e desabar nela, enfraquecido. Suas feições estavam abatidas, e parecia que seria necessário um esforço sobre-humano para que conseguisse respirar. Recostou a cabeça contra o espaldar da cadeira. De olhos fechados, descansou por momentos. Por fim, ficou de pé e fitou Connor.

— A hemorragia está estancada; o ferimento, fechado — disse, baixinho.

Quando Connor ia falar, Merlin ergueu a mão.

— Nem mesmo Arthur viu o que você presenciou esta noite. Peço que não conte nada a ninguém.

Connor devia isso a Merlin.

— Não estou certo daquilo que vi — retrucou, ao não acreditar num fato que a lógica se recusava a aceitar e, ao mesmo tempo, incapaz de explicar o contrário. Um milagre, talvez? — Estou em débito com você.

— Eu contava com isso.

Connor deu-se conta da armadilha ardilosa em que caíra. Merlin o conhecia bem. Confiava de que Connor não recusaria um favor pedido em troca de um favor dado. E Connor sabia com absoluta certeza qual seria esse favor: ficar em Caerleon e juntar-se à missão de Arthur.

— Considero o débito quitado pela minha concordância em nada dizer daquilo que presenciei.

Os olhos de Merlin faiscaram de admiração.

— Eu deveria saber que você não se deixaria encurralar com facilidade.

— De fato.

Merlin sentia as forças restauradas.

— Não há nada que eu possa dizer ou fazer que o convença a ficar?

— Já tem minha resposta.

O mago se rendeu ao argumento por um instante e deu instruções a Dannelore para enfaixar o corte com um ungüento feito da cocção das ervas que ele preparara.

— Ela viverá? — Connor quis saber.

— Ora... Fico magoado que você tenha tão pouca fé em minhas habilidades. — Brincalhão, Merlin levou a mão ao peito, como se mortalmente ofendido.

— Não é sua habilidade que questiono, feiticeiro. Tenho provas dela. É essa mistura fedorenta que você ferveu. — Connor apontou para a bacia que fervia sobre o braseiro.

— É um curativo para muitas coisas. — Merlin piscou para Dannelore. — Inclusive enfermidades nas partes inferiores. Tem um efeito que quase nos faz levitar.

As faces de Dannelore avermelharam, e ela se pôs a recolher às pressas panos limpos para o ungüento. Merlin soltou uma risada.

— Sim, ela viverá, guerreiro. Tem um coração forte e um espírito raro.

Connor aproximou-se do leito. Meg estava imóvel como morta. Parecia exangue sob o tremeluzir suave da luz das lamparinas. Mas não mostrava o azulado da morte, que ele vira tantas vezes. Em vez disso, a pele parecia cintilar como que iluminada por dentro, exceto no rosado mais profundo da cicatriz. Sem dúvida, uma ilusão de óptica.

Não teria acreditado se não tivesse visto e, no entanto, a flecha fora removida; e o horrível som agonizante do pulmão perfurado a cada respiração cessara.

A ferida se fechara como se curada vários dias atrás, e já cicatrizara.

Connor roçou os dedos pela face de Meg. A pele estava fria, em vez de queimar de febre. Ela se remexeu e, como se atraída pelo toque, voltou-se na direção do calor de sua mão.

Não acordou. Continuou a dormir um sono profundo e sem sonhos, livre do sofrimento, por fim, os lábios a roçar a palma da mão dele.

— É bom que ela viva, curandeiro — Connor resmungou. Então, ele se endireitou, passou por Merlin sem mais uma palavra e recolheu a espada. Rumou para a entrada e puxou a tapeçaria de lado. Seu frio olhar cinzento cravou-se no de Merlin.

— Agora, não serei forçado a matá-lo.

Dannelore horrorizou-se, imaginando o que Merlin poderia fazer.

Porém, ele nada fez. Pensativo, observou Connor sair e ir se reuniu com seus homens no salão abaixo.

O guerreiro era teimoso, de vontade forte, e intratável. Mas seu coração era sincero, e sua lealdade, entranhada no sangue. Lutaria contra Maelgwyn e Aethelbert até seu último suspiro ou até que fosse o único que restasse de pé.

Com homens como ele, todas as coisas se tornavam possíveis. Talvez até mesmo erguer um reino.

Connor seguiu pela passagem até a curva estreita de degraus de pedra que ligavam os quartos do segundo andar ao salão principal, abaixo.

Fazia quase um ano desde que vira Caerleon pela última vez. Conflitos e necessidades mais urgentes o fizeram ir, junto com seus homens, pelas colinas para os territórios do norte, enquanto Maelgwyn investia com firmeza rumo ao sul num esforço de expandir sua reivindicação.

Apenas um ano atrás, Caerleon pouco mudara desde a época em que ele e Arthur brincavam ali, quando garotos.

Uma existência passada, ele pensou, diante da visão das paredes arruinadas e tochas apagadas que ainda atulhavam os corredores onde os incêndios foram ateados na tentativa de destruir Caerleon por dentro.

Quando chegou ao salão principal, Simão e os outros o esperavam. Embora estivessem com frio e ensopados, não se aproximaram dos soldados de Arthur diante da lareira, mas esperaram à parte, próximo da entrada, pelo retorno do chefe. Arthur levantou-se ao avistar Connor e atravessou o salão. A separação de ambos não fora nada amistosa, mas não havia nem cautela nem hostilidade em seu comportamento quando se aproximou. Nem súplica ou exaltação. Seu olhar era avaliador, as verdadeiras intenções ocultas por trás de uma expressão imperscrutável.

— Como está a moça? — Arthur indagou, com sincera preocupação.

— Viverá — Connor afirmou, sem mais explicações.

— Excelente! Agora, talvez você e seus guerreiros possam se juntar a nós. — Abriu os braços num gesto largo, englobando a todos. — Está frio. Venham. Aqueçam-se ao fogo. Não é uma noite para se viajar.

Muito do mobiliário fora destruído. Alguns dos homens se sentavam no chão de pedra, mastigando um pedaço de carne de veado ou um naco de pão velho. Outros observavam, desconfiados. O salão principal de Caerleon não se assemelhava nem um pouco à sala do trono para um futuro rei, mas a um acampamento militar.

Os soldados de Arthur eram bretões e celtas, e alguns, como o próprio Arthur, tinham o sangue dos ancestrais romanos a correr nas veias. Alguns, dos impérios do Oriente Médio, haviam se unido a ele no meio do caminho, formando um elo de fraternidade que os trouxera de volta à Bretanha.

Ali, todos eram guerreiros, o que se reconhecia com facilidade pelas armas mantidas à mão e os olhares atentos dirigidos a ele e seus homens.

Arthur sempre tivera a habilidade de atrair pessoas em torno de si. Era dono de grande energia e um entusiasmo descontraído, e a capacidade de fazer o mais comum dos homens acreditar que era um igual. Nascera para ser líder.

Tamanho era o carisma de Arthur que, se uma coroa pudesse ser conquistada apenas por sinceridade e palavras persuasivas, ele teria sido rei aos dez anos de idade.

Connor não ficara imune a tal carisma, mas resolveu ser prudente. Conhecia Arthur tão bem como a si próprio; todos os pontos fortes e fracos e todas as maquinações elaboradas de sua mente aguçada. Via-o pelo que era, não pelo que poderia vir a ser um dia.

Além do mútuo entendimento de um e outro, tinham crêscido com recíproco respeito. Mas fora a um longo tempo atrás, antes que Arthur partisse da Bretanha. Connor meneou a cabeça.

— Iremos embora agora.

— A tempestade está sobre nós — Arthur retrucou, com uma lógica que sempre o servira muito bem. — O clima não melhorará antes das primeiras luzes matinais. Seus homens estão famintos e exaustos. Venha, partilhe nosso fogo e nossa comida. Receio que não seja muito, apenas o que trouxemos conosco. Mas será suficiente. E aposto que mesmo Maelgwyn estará aquecido e bem alimentado numa noite como esta.

Então, pensou Connor, Arthur sabia a respeito de Maelgwyn. Havia muito pouco que ele não soubesse, pelo visto. Naquele homem, Connor viu de relance o rapaz esperto que certa vez fora seu amigo.

Era difícil contra-argumentar. Como se para comprovar as palavras de Arthur, o vento sacudiu as portas do salão principal, mantidas no lugar com tábuas escoradas aos destroços chamuscados.

Só um tolo, Connor sabia, se arriscaria a deixar a fortaleza numa noite como aquela. Poderiam avançar por um metro ou dois antes que o frio os dominasse; mas com que propósito? Arthur tinha razão. Onde quer que Maelgwyn se achasse, estaria aquecido e bem alimentado, não a vagar pelas redondezas. Olhou para seus homens. Todos, sem exceção, famintos, gelados. Teriam muitos dias de jornada pela frente, se quisessem chegar ao norte para se juntar aos demais contra uma investida maciça de Aethelbert a partir do leste. Mas eles nada disseram enquanto esperavam por suas ordens.

Se pedisse, sabia a resposta que obteria. Simão não disfarçava sua ansiedade em partir. Radvald, cuja sabedoria Connor buscava com freqüência, haveria de se pronunciar em favor de buscar abrigo em Caerleon.

— E quanto a nossos suprimentos, Radvald?

— Um pouco de carne de galinha, de coelho e uma porção de veado. O suficiente para dois dias.

Dois dias. Não bastaria para que chegassem aos pés da montanha, mesmo que não tivessem perdido tempo em ir a Caerleon.

— Digo que é melhor partimos hoje! — Simão exclamou. — Agora, antes que a tempestade piore!

Connor não estava nada feliz com a idéia de ficar ali por mais tempo, além do absolutamente necessário. Porém, vivera quando garoto naquelas regiões, e sabia a tolice de sair andando durante um temporal. Nada haveria a ganhar ao partir naquela noite, mas talvez houvesse muito a perder.

Tomou a decisão:

— Ficaremos aqui, e partiremos com as primeiras luzes.

Partilharam a comida que tinham caçado. Os homens de Arthur dividiram pão, queijo, frutas do último verão e vinho comprado nas vilas durante a viagem pela região costeira ao canal.

Os homens se misturaram, amistosos, ligados pela fraternidade comum de todos os guerreiros. Connor não se juntou a eles, mas continuou à parte, a ouvir as conversas da reclusão das sombras à beira do salão, enquanto mastigava uma tira de carne assada de veado.

Arthur se manteve em profunda conversação com dois homens que pareciam ser veteranos, estudando um mapa da área que rodeava Caerleon e ouvindo, circunspecto, os comentários. Vários homens buscaram seus catres. Alguns saíam para aliviar as necessidades. A cada vez que alguém saía ou voltava, a neve entrava em redemoinhos pelas portas. A tempestade piorara.

Por fim, o mago apareceu. Connor não o vira descer a curva estreita dos degraus.

Seus olhos se estreitaram ao observar Merlin atravessar o salão. Tentou descobrir pelo comportamento do conselheiro de Arthur se a garota piorara.

Merlin não deu a perceber que sabia que Connor se achava ali, quando se serviu de uma caneca de vinho.

— Ela dorme muito bem — disse, de forma inesperada, mostrando que sabia da presença do guerreiro. — Ficará fraca, pela perda de sangue, mas irá se recuperar sem dificuldades.

Connor não se manteve calado. Se o curandeiro esperava uma palavra de agradecimento, não deu demonstração disso.

Merlin tomou um gole de vinho e ponderou, muito sério:

— Seus homens são excelentes guerreiros. Leais e bem disciplinados. Você os treinou muito bem. Arthur poderia usá-los naquilo que está por vir.

— Eles não servem a mim. Lutamos juntos as batalhas que enfrentamos.

— Mas alguém deve liderar. — Merlin contestou. — É sempre assim. Alguém de maior experiência a quem os outros recorrem. - Radvald é mais experiente que qualquer outro.

— Sim, mas difere de você nas decisões.

Merlin não queria discutir, apenas compreender, e então quem sabe persuadir Connor a entender a missão que os aguardava.

— É sempre assim, Connor de Monmouth. Existem aqueles que possuem a habilidade de ver com clareza seu caminho através das coisas, visualizar o curso de ação e os meios de realizá-la, com um olhar perspicaz rumo ao resultado.

— Não existe nenhuma grande visão — Connor retrucou com secura.

— Maelgwyn e os outros lutam pelo governo da Bretanha como cães por um pedaço de carne. Homens e mulheres morrem de fome. Velhos e crianças definham. Alguém tem de tomar a espada. E mesmo assim, eles seguem você e o buscam para liderá-los.

Connor deu de ombros.

— Tenho um conhecimento melhor do país. Nada mais que isso. — Jogou um pedaço de osso com carne para o cachorro que se deitava, atento, ali perto. — Se você não faz nada, morre. Se luta, pode sucumbir, mas pelo menos não irá se humilhar de joelhos para um bastardo assassino pelo direito de morrer.

— E agora existe a chance para todos os homens de escolher se viverão ou morrerão — Merlin ponderou.

Connor virou-se e o encarou.

— Seguindo Arthur?

— É a razão pela qual ele voltou. É o destino dele.

— E a razão por que partiu?! — Connor esbravejou de volta.

Ambos sabiam o resultado daquela discussão.

— Ele está aqui agora. Não lhe dará seu apoio?

— Arthur não precisa de meu apoio, feiticeiro. Ele é quem é. Os homens não se submeterão sem restrições, por amor e lealdade?

— Você o fará? — perguntou Merlin, expandindo seus poderes para tentar compreender por que Connor não se uniria a eles.

— O homem adulto não é o mesmo que o garoto que fugiu? E na pergunta de Connor estava a resposta de Merlin. Achavam-se num impasse mais uma vez. Connor conhecia o jogo de Merlin: convencê-lo a juntar-se a Arthur e ficar em Caerleon. E não tinha vontade de discutir o tema.

Connor afastou-se e atravessou o recinto, com a intenção de encontrar Radvald. Queria seus homens prontos para partir logo ao amanhecer.

Mas, naquele momento, Simão e vários dos homens de Arthur irromperam pelas portas para dentro do salão principal, em meio a um tumulto. Empurravam uma criatura muito menor, presa a uma corda, que tropeçou, e um dos soldados de Arthur a cutucou com uma lança, provocando uma série de gritos horríveis.

Ao se aproximar de Connor, um dos guardas puxou a corda e, com um pontapé bem aplicado, jogou a criatura de rosto para baixo no chão.

O pequeno ser debateu-se e se contorceu em meio a sons ofegantes e soluços, agarrado à corda em torno do pescoço. A lã pesada que o cobria estava coberta de galhos, folhas e espinhos. E aquela coisa grunhia, cuspia e arranhava como um animal selvagem. Cheirava como um também.

Era, na verdade, um homem de pouca estatura, um anão, vestido com uma simples túnica e calça por baixo da manta de lã pesada. Seus cabelos castanhos estavam trançados nas têmporas e na franja sobre os olhos espertos. Sua barba também era trançada do jeito do povo da floresta, e havia um fedor em torno dele que aumentara desde o momento em que entrara no salão aquecido. Devia ter se sujado de medo nas mãos dos homens de Arthur.

O guarda tornou a cutucá-lo. O homenzinho virou-se, balançando-se para frente e para trás num pé e noutro, apontando um dedo para o agressor.

— Se ousar uma vez, comete um erro — avisou, ameaçador. — Se duas vezes ousar, grave risco assumirá; se três vezes se atrever, seu pescoço quebrará! — E fez um gesto de partir um pedaço imaginário de madeira com as duas mãos.

O guarda ergueu a lança para aplicar outro golpe.

— Porco-espinho nojento! Veremos que pescoço se quebrará!

O homenzinho curvou-se sobre si mesmo numa bola e rolou, aterrissando num salto aos pés de Connor. O cão teria saltado e abocanhado a criatura se Connor não o segurasse de volta.

— Pare, Dax!

Connor segurou o homenzinho pela nuca. O cheiro era pavoroso. Fazia com que se lembrasse das crenças do povo da floresta em gnomos, monstros e outras criaturas do submundo. A cabeça dele era um emaranhado de tranças e barba desgrenhada.

Suas feições pareciam a casca de uma árvore, escura e nodosa, com tufos de sobrancelhas que caíam sobre os olhos, os beiços grossos e um nariz muito largo.

A criatura sorriu então, encarando-o com um olhar de bobo. Mas os olhos que luziam debaixo naquelas sobrancelhas hirsutas denotavam uma inteligência sagaz.

— Não me bata, mestre! — O anão ergueu os braços, para proteger o rosto. — Não me bata!

— Não pretendo lhe bater. Embora um bom mergulho no poço seja tentador.

— Um mergulho? Um mergulho... Por piedade, não! Por piedade, não! com certeza congelado, enregelado eu ficaria.

— Pare! — Connor começava a se arrepender de estar ajudando a criatura.

O homenzinho o espiou por entre os braços cruzados. Os olhos escuros o estudaram, e depois faiscaram com ar de reconhecimento.

— Ah, achei, achei, sei quem é. Não tem medo de mim, tem?

— Não tenho medo de ninguém, homenzinho. Vi morte demais para isso.

— Deveria saber, saber eu deveria. Coração sincero é raro, raro é o coração sincero.

Atraídos pela confusão, Arthur e seus soldados se aproximaram.

— O que é isso?

Os guardas e os homens de Connor se afastaram para deixá-los passar, até que Arthur confrontou o prisioneiro.

— Achamos esta criatura dentro dos portões — um homem chamado Agravain explicou.

Arthur estudou o prisioneiro.

— Qual seu nome? Quem é seu povo?

O homenzinho voltou-se para Arthur e repetiu:

— Qual é seu nome? Quem é seu povo? A resposta surpreendeu Connor.

— Sou um simples guerreiro tentando encontrar meu caminho como Deus me concedeu. — Inclinou um pouco a cabeça. — Meu nome é Arthur, e estou a seu dispor.

— Arthur, é? É Arthur!

Aquilo impressionou o anão, que fez uma profunda reverência.

— Eu sou Grendel, Grendel eu sou. Um mercador por profissão, por profissão um mercador.

Arthur achou engraçado.

— O que comercia, mercador? Grendel esboçou um sorriso largo.

— Palavras para rir, risos por palavras. Talvez uma canção pelo sorriso de uma moça, uma risada, e truques por um pedaço de pão, de pão um pedaço.

— Meus homens estão precisando dar risada — Arthur afirmou. — Mostre-me seus truques e encontraremos um pedaço de pão. Quanto ao sorriso de uma bela moça... suas canções terão de esperar.

— Há uma bela moça, uma bela moça há? — Grendel mostrou genuíno interesse, os olhos a faiscar e a percorrer o salão.

— Sim, talvez. Mas venha e se aqueça ao fogo e nos conte que notícias traz da região. Depois, faça uns poucos truques para nos entreter.

Aquilo pareceu agradar o homenzinho ainda mais do que a promessa do pão. Grendel se inclinou em reverência mais uma vez, olhou feio para o guarda que o tinha maltratado e fez seu primeiro truque: um trejeito de mão que tirou um coelho a se debater da bolsa que pendia do cinto do soldado.

O guarda ficou confuso, e todos os demais riam.

— Não havia nada na bolsa, eu juro! Ela foi revistada.

— Muito provavelmente não há nada agora — um dos outros disse-lhe, quando o coelho fugiu e esgueirou-se entre suas pernas.

— Isso é uma refeição miserável, homenzinho. Todos morreremos de fome se não puder fazer melhor que isso. — Gawain deu uma piscadela para os companheiros. — Tem alguma coisa mais carnuda nessa sua bolsa?

Grendel sorriu, piscou também e enfiou a mão na bolsa. Para diversão de todos, dessa vez retirou um porquinho.

— Você é bem-vindo — declarou Arthur. — Mas deve melhorar esses seus truques. Temos quase sessenta homens para alimentar.

— Virão, eles virão! — E Grendel correu para o calor do fogo.

— Quem virá? — Arthur ofereceu-lhe um espeto de carne.

— O povo virá, virá sim.

— Que povo?

Grendel pegou o espeto e com grande entusiasmo começou a arrancar os pedaços de carne com os dentinhos pontudos. Conforme mastigava, seus olhos se cravaram no guerreiro com o enorme cão ao lado. E se estreitaram com interesse quando Connor apanhou uma tocha e saiu do salão principal.

— Lutar irão, eles lutarão — Grendel assegurou a Arthur, a mastigar com ruído.

Merlin juntou-se a eles. Sentou-se à cadeira diante da lareira, as pernas esticadas, os dedos juntos.

— Certa vez, conheci alguém... — Escolhia as palavras com cuidado — ...que falava como você. Era uma criaturinha aborrecida. Muitas vezes pensei em esmagá-lo sob os pés, como um inseto.

Grendel engoliu em seco. E Merlin sorriu.

— Conte-nos mais sobre esse povo de quem falou.

— Irão se juntar a Arthur; por Arthur se juntarão — disse o homenzinho, hesitante, agora cauteloso. — Nas vilas se reúnem. Ligados por Caerleon, por Caerleon ligados.

Era tarde, e os quartos superiores de Caerleon estavam frios e escuros, a luz da única tocha a luzir pelas paredes de pedra.

Então sua luminosidade se espalhou pela abertura do aposento. Connor puxou a pesada tapeçaria para o lado.

Os carvões luziam debilmente no braseiro. As velas queimavam no toco. A tapeçaria fez um ruído farfalhante ao cair de volta no lugar, e uma figura remexeu-se na cadeira ao lado da cama.

Era a mulher, Dannelore, que ficou em pé no mesmo instante, com uma expressão atenta e séria.

— Ela não acordou?

— Não, senhor. É muito provável que não acorde por muitas horas — acrescentou depressa —, de acordo com o curandeiro.

Connor andou pelo cômodo, a observar os sinais da destruição pela primeira vez. Percebeu ainda que Dannelore repetia cada movimento que ele fazia, de modo a se manter entre ele e a jovem, quase como se quisesse protegê-la. Uma devoção tão incomum o intrigou.

— Saia — Connor ordenou-lhe.

— Senhor? — ela murmurou, espantada.

— Eu disse que você pode ir embora agora.

— Ficarei — Dannelore retrucou, com calma, como se houvesse escolha.

— Não está com fome? Ela pestanejou.

— Senhor?

— Tem algo para comer?

— Não, senhor.

— Há comida no salão principal, embora, com a chegada de nosso último hóspede, eu não possa afirmar por quanto tempo.

— Não sinto fome.

— Irá comer, de qualquer jeito.

— Mas, senhor, se ela acordar...

— Cuidarei dela.

— Mas o senhor não pode...

— Não posso?

— A senhora precisa tomar mais da infusão se acordar, e o senhor terá de colocar mais lenha no fogo...

Um simples olhar foi o bastante para expulsá-la dali. Quando Connor e Arthur eram crianças, vinham com freqüência àquele quarto. Nas manhãs antes que tivessem permissão para sair do salão para se atirarem a aventuras, como faziam todos os garotos, lady Ygraine costumava ler-lhes os antigos textos latinos que tanto valorizava.

Fora uma época feliz aquela em que ele e Arthur eram amigos. Não havia nada que Connor não houvesse feito por Arthur. E acreditara que seu amigo sentia o mesmo. Então, Arthur deixara a Bretanha.

— Voltarei — prometera.

Connor ouvia as palavras ainda agora, de quando os dois se separaram pela última vez.

Com a ansiedade de uma criança embarcando para uma grande aventura, Arthur acenara de dentro do navio que o levaria da pequena baía até o promontório de Land’s End. Connor ficara a olhar até que a embarcação passou a ser um minúsculo ponto no horizonte. Arthur não voltara num ano ou dois, mas depois de uma existência inteira de derramamento de sangue e morte.

Connor colocou mais lenha no fogo e acendeu outra vela. Depois, tirou a espada da bainha e encostou-a ao lado da lareira, à mão.

Sentou-se, as pernas esticadas, as várias camadas dos pesados pelegos de carneiro a aliviar o frio em suas costas e a dor dos músculos cansados. Olhou para os cristais reluzentes que balançavam em seus dedos, o único pertence que a garota trazia consigo quando a encontrara. Imaginou o que seriam.

Devolveu os cristais à bolsa no cinto. Meg não se mexera desde que Merlin removera a flecha e enfaixara o ferimento. Contudo, sua respiração era firme, e a pele tinha um tom de rosa pálido em vez da palidez cinzenta de antes.

A despeito de seus esforços para permanecer acordado, suas pálpebras logo se tornaram pesadas. Através dos olhos semicerrados, teve a impressão de que ela estava rodeada por uma suave luz dourada e, por um momento, conforme Connor divagava entre recordações e sonhos, ele julgou ter visto outra criatura junto da cama: a corça que ele caçava na floresta.

Não saberia dizer o que o despertara. Talvez um som. Ou sua percepção aguçada de guerreiro, mesmo no sono, mesmo dentro da segurança das muralhas de quatro metros de espessura que o rodeavam. Ou quem sabe o instinto de caçador, de nunca saber quando poderia se tornar a caça.

Fosse o que fosse, Connor acordou de repente, todos os sentidos aguçados. Levou a mão para a espada.

O quarto estava imerso em sombras. A única luz vinha do braseiro e de uma vela que se consumia. Tentou enxergar pela escuridão, mas não divisou nada além do brilho débil daquela vela. Apurou a audição. Nada ouviu, a não ser o bater firme do próprio coração.

Apanhou a vela e encostou-a ao pavio da lamparina a óleo. A chama se acendeu. A claridade se expandiu pelo chão e pelas paredes, e então incidiu sobre a jovem esguia que estava de pé, nua, ao lado do leito.

A pele branca parecia quase sem sangue. Os olhos eram azuis, profundos e luminosos. Os cabelos se espalhavam em desordem pelas costas e pelos ombros, revelando mais do que escondiam dos seios redondos, da cintura fina e dos quadris curvos.

As pernas eram longas. Possuía tornozelos torneados e pés pequenos. Feições delicadas, de uma beleza quase frágil. Estendia uma das mãos à frente, como se procurasse o calor do fogo no braseiro. Então, Connor se deu conta de que, na verdade, ela enfiara a mão entre as brasas.

Deu um passo em sua direção. Meg se encolheu, pronta para fugir. Mais outro passo e ela se lançou para a porta.

Seus movimentos eram desajeitados e sem coordenação. Ela tropeçou e caiu. Praguejando, Connor foi atrás dela.

Meg se ergueu e desviou-se depressa. Connor a pegou na abertura da porta e fechou o braço em torno de sua cintura. Precisou de ambas as mãos para impedi-la de escapar.

Meg se debatia. Quando isso não deu certo, tentou livrar-se, lançando-se ao solo. Connor a prendeu, puxando-a contra si, os braços travados em torno dela, segurando-a de uma forma que nem mesmo um homem conseguiria escapar.

Com sons guturais desesperados, ela lutou, gemendo e enterrando as unhas nos braços de Connor. Para alguém que estivera tão doente com febre e um terrível ferimento até horas atrás, mostrava uma força incrível.

— Pare! — Connor a suspendeu do chão, para que não pudesse se apoiar nos pés.

Meg continuou a se debater, e Connor receou que pudesse machucá-la. Mas, por fim, sentiu que a energia a abandonava.

A respiração da jovem era quase imperceptível. A cabeça pendeu para trás e se apoiou no ombro dele. Connor virou-a e a tomou no colo.

Carregou-a para a cama e colocou-a sobre as peles, com incrível suavidade. Cobriu-a com os pelegos, afastando as mechas douradas da testa úmida e das faces.

Ela não acordou. Nem mesmo se mexeu. Dormia tão profundamente que ele quase poderia acreditar que tudo aquilo jamais se dera de fato. A não ser pelos arranhões que sangravam em seus braços, como se atacado por um bicho selvagem.

 

Imagens invadiram os pensamentos de Meg: a jornada apavorante pelo portal; o caos e a confusão quando emergira do outro lado, dentro do mundo mortal; a dolorosa transformação numa criatura da qual não tinha conhecimento prático. Depois, a dor lancinante no ombro, que a pusera fraca, indefesa e, pela primeira vez, incapaz de fugir ou de ajudar a si mesma.

Isso tudo se misturava a outras imagens: um acampamento; a percepção vaga de que seus pensamentos e movimentos estavam estranhamente desconjuntados, como se não pudesse mais controlá-los e coordená-los; a confusão de palavras e sons que não compreendia; então, outra imagem... Daquela criatura de aparência feroz que surgira sobre ela pela primeira vez na floresta.

A imagem continuou mudando. Num momento, assumia as cores verde-escuro e verde-claro da mata. No seguinte se alterava, revelando as feições de ângulos agudos de um mortal. A não ser por aqueles olhos frios que a tinham encarado pela primeira vez através da máscara de muitas cores.

Aqueles olhos não mudavam. Continuavam com aquela mesma dureza, a cor fria como a de nuvens antes de uma tempestade — a fitá-la, a buscá-la, tão próximos que tentou se desviar, mas descobriu que não podia.

Aqueles olhos estavam em toda parte, a espreitá-la, até que Meg teve medo de se perder naquela gélida tempestade cinzenta. Um som estranho, solitário, lamentoso, como o de um animal ferido, ecoou, mais e mais, por sua mente confusa. E Meg de repente acordou num sobressalto.

Um caos selvagem de sensações substituiu aquelas visões. O súbito afluxo de ar frio, o tremor incomum que a perpassava e não desaparecia; o som desesperado e urgente quando puxou o ar para os pulmões; o bater frenético que ouviu e sentiu; a palpitação surda que espiralou dentro de seu corpo, criando outras sensações de que não tinha conhecimento prático.

Não fazia idéia de onde se encontrava e do que houvera, além daquele encontro depois que atravessara o portal.

Fechou os olhos, tentando bloquear o desconforto invulgar que a percorria. Aquela sensação incômoda, como se tudo a seu redor estivesse de repente virado de cabeça para baixo, um nó a se formar em suas entranhas e aos poucos a subir e forçar sua garganta.

Por instinto, aspirou forte. Por fim, tudo em torno pareceu endireitar-se, e a pressão na garganta cessou. As batidas frenéticas diminuíram de ritmo, e ela ergueu as pálpebras, devagar. Paredes de pedra, chão de pedra, nada semelhante ao portal pelo qual passara. Ao alto, vigas de madeira, não as árvores da floresta.

Não era diferente de seu quarto na vila, em Avalon. E ali perto, o bastante para que sentisse o calor, o fogo queimava.

Luz dourada, chamas de um laranja-azulado. Meg estendeu a mão para a luz radiante até que as labaredas lamberam as pontas de seus dedos e queimaram mais alto.

Meg tornou a fechar os olhos e visualizou as chamas, fonte de força e poder, conforme luziam pela extensão de seu braço, irradiavam-se por sua pele e se inflamavam em seu íntimo, devolvendo-lhe energia.

Quando voltou a fitá-las, as chamas haviam recuado, a descansar mais uma vez no receptáculo de metal. Examinou a mão que estendera diante de si. Era de um formato elegante, com ossos frágeis e tendões esguios. Levou a outra mão ao alto e observou as duas.

Tocou o polegar com o indicador, e o contato provocou uma sensação mais estranha: suavidade, calidez. Foi aí que descobriu movimentos mais complexos ao estender a mão outra vez e bater numa bacia de água.

Um pouco do conteúdo espirrou nela. Era tão quente como as labaredas, e do mesmo modo não deixou nenhuma marca, mas encheu-a com uma curiosa sensação de deslumbramento.

Meg tentou assimilar aquilo que aprendera sobre o mundo mortal ao tocar a bacia. Mas foi desajeitada, e a bacia escorregou para longe de seu alcance. Então, canalizou os pensamentos à maneira antiga, fez a bacia levitar com facilidade e devagar a baixou sobre o tampo da mesa.

Desejosa de explorar mais as imediações, pegou o pelego que a cobria e enterrou os dedos na lã macia, logo a percepção foi tomada por outras impressões e imagens vagas de alguém a cobri-la. Puxou o pelego para o lado e tentou ficar de pé.

Em ocasiões anteriores transformara-se em criaturas sobre as quais tinha conhecimento: um falcão, uma raposa e uma corça. A raposa e a corça eram bichos de quatro patas, mas o falcão tinha a vantagem das asas. Nada sabia sobre a maneira desajeitada de ficar de pé sobre duas pernas.

Requeria força física e equilíbrio, os quais não tinha. Tropeçou e caiu. Ficou deitada ali, tremendo e frustrada com a incapacidade de dominar até mesmo o mais simples movimento humano. Uma criança que começava a andar teria mais coordenação.

Foi como Dannelore a encontrou, esparramada no piso, nua, os olhos a luzir com lágrimas de frustração, os punhos fechados de raiva.

— Pelos Anciãos! — ela exclamou, ao agarrar uma coberta da cama e jogá-la sobre os ombros de Meg. — O que pensou? — perguntou, a voz aguda e aflita ao ajudar Meg a se sentar. Meg tapou os ouvidos, assustada com os sons e ruídos desconhecidos.

— Oh, perdoe-me, senhora! — Dannelore a fitou com carinho. — Estou me desacostumando a falar do modo antigo.

— Afastou as mãos de Meg das orelhas. — É que você me assustou. Ao vê-la deitada ali, assim, pensei... — Hesitou.

Meg, por fim, a encarou.

— É que esteve doente demais e dormiu por muito tempo, senhora. Temi que tivesse piorado outra vez.

Meg não se recordava daquele lugar ou de como chegara ali. A última coisa da qual se lembrava bem era de ter seguido Dannelore pelo portal, e depois o som dos humanos na floresta.

— Quanto tempo faz que estou aqui, Dannelore?

— Quatro dias.

— Quatro dias!

Meg não compreendia bem. O conceito de tempo em forma de dias, semanas, meses, anos não existia em seu mundo, mas ouvira falar disso através daqueles que se moviam entre os mundos e sabia que quatro dias não eram pouco tempo.

— Sim, e o mestre tem vindo vê-la todo dia.

— Meu irmão?

Dannelore assentiu.

— Toda manhã e toda noite, para verificar o ferimento em seu ombro e dar as instruções para o ungüento que devo fazer.

Só então Meg se recordou do ferimento, de ter feito um sortilégio para que o irmão não a descobrisse. Tocou de leve a cicatriz.

— Merlin suspeita de algo?

— Não comentou nada. Embora eu não possa ter certeza. Ele tem seus métodos, como você. — Foi nesse momento que Dannelore viu a pele em carne viva na palma da mão de Meg.

— Precisa ter mais cuidado, senhora — reclamou, usando palavras por um lapso. — Até aprender como se movimentar.

Meg estendeu a outra mão e tocou os dedos nos lábios de Dannelore.

— Ensine-me como dizer as palavras.

— É um modo muito inconveniente de comunicação. E existem idiomas diferentes, que não consigo entender. Algumas vezes esses mortais não sabem nem a própria língua.

Gritam e berram uns com os outros, e nenhum entende o que se diz.

— Quero aprender — Meg insistiu, com a mesma teimosia que a levara a atravessar o portal.

Dannelore suspirou.

— Isso vai nos meter em confusão, senhora. É melhor que volte. Chegou bem perto de ser morta. E não se sabe que problemas desabarão sobre nós quando descobrirem que você veio para cá.

Meg a imitou com perfeição, franzindo as sobrancelhas e soltando um suspiro pesado, mas seus olhos brilhavam de malícia. Sentiu um pensamento que Dannelore tentava esconder.

— Nem pense nisso, Dannelore. Se tentar contar a meu irmão ou lançar um encanto, serei forçada a transformá-la.

— Não faria algo assim.

— Conheço seu íntimo, não esqueça. E meus poderes retornam multiplicados por dez até o momento, mesmo que eu ainda não possa dominar este corpo mortal. — Sorriu. — Seria imprudente desafiar-me em minha condição física enfraquecida. Eu poderia calcular mal um sortilégio e transformá-la num rato... Ou num porco-espinho talvez.

Dannelore meneou a cabeça.

— Posso ver que não há como convencê-la a voltar.

— Não, não há.

— Nesse caso, suponho que seja minha responsabilidade cuidar para que nada lhe aconteça.

Meg esboçou outro sorriso, ignorando o fato de que isso tornava suas feições de uma rara e estonteante beleza, de tirar o fôlego, e que fez Dannelore resmungar palavrões.

— Posso tomar conta de mim mesma — Meg asseguroulhe. — Preciso apenas de sua ajuda para me adaptar à metamorfose. Ainda bem que não é uma forma tão pavorosa. Não ligo que esses mortais tentem me caçar como uma corça outra vez, nem ficaria assustada, porque estou horrível de se olhar. Sempre posso mudar, se julgar necessário. — Olhou para Dannelore em busca de um conselho sobre o assunto.

A encantada meneou a cabeça.

— Não acho que seja necessário, senhora. Não será caçada como um animal. Na verdade, suas feições estão muito agradáveis de se olhar.

— Como pode ser isso?

Foi então que Dannelore percebeu que sua ama não tinha a menor idéia de sua aparência

— Um passo de cada vez — disse, ao estender as mãos a Meg. — Primeiro, terá de aprender a andar. Não é tão difícil assim.

— É fácil falar. Não é você que está com essas marcas horríveis. Não gosto da sensação que provocam.

— São machucados. com o tempo, irão sarar. — Dannelore a fez ficar de pé.

O pelego escorregou para o chão, e Meg se postou diante de Dannelore no glorioso esplendor de sua nudez, com nada mais que o cetim espesso dos cabelos dourados que lhe caíam até a cintura, a cobri-la.

— Primeiro, precisamos de roupas.

— Roupas? — Meg repetiu, experimentando os sons.

— Sim. — Dannelore fez que sim, ao pegar o pelego e segurá-lo com firmeza sobre os ombros de sua ama.

— Mantenha isto fechado ou teremos mais problemas a enfrentar do que se mestre Merlin descobrisse quem você é.

— Não está sendo clara — Meg retrucou, exasperada, fechando a mão sobre o punho de Dannelore. Já assimilara os movimentos mais simples. Aprendia depressa. — Quero saber tudo sobre o mundo mortal.

— Sim, sim, e saberá. E tem de ser bem depressa. Pelo menos consegue assimilar tudo com rapidez. Observe, ouça e aprenda. Ajudarei quanto eu puder.

— O que você teme, Dannelore?

— A fortaleza foi atacada, e lady Ygraine e sua filha, raptadas. Toda a região está em guerra. Essa é a razão de Arthur e Merlin terem retornado: unir o povo contra seus inimigos.

Mas Meg sentiu algo mais, uma súbita modificação nos pensamentos de Dannelore e a fonte daquela mudança repentina.

— Há algo mais. É com aquele que você chamava de John?

Dannelore ergueu o olhar. Havia uma tamanha angústia neles que Meg se espantou. Nunca sentira emoções tão poderosas.

Dannelore não respondeu de imediato, mas pegou a tigela que trouxera e quase a derrubou. Levou Meg para a cadeira diante do braseiro e sentou-se do outro lado com o recipiente no colo.

— Se vai viver entre os mortais, é necessário que coma. — Pegou uma porção do conteúdo da tigela de metal com uma concha. — Não é tão ruim assim, depois que a gente se acostuma. Algumas são bastante boas, com textura e sabor surpreendentes, embora haja pouca coisa assim aqui.

Meg pousou a mão sobre a de Dannelore.

— Tem de me contar o que houve.

Dannelore recolocou a concha na tigela. Seus ombros se encolheram. Meg sentiu as emoções poderosas que se moviam dentro da amiga.

— Ele estava aqui. Muitos morreram no ataque, outros fugiram. Não há notícias de John.

Meg teve vontade de confortar Dannelore. Era estranho e um pouco desconcertante, essa necessidade de se achegar a outro mortal que parecia tão cheio de dor.

— Se algum mal aconteceu a ele você não deveria sentir? Dannelore a encarou, as feições tomadas de uma débil esperança.

— Sim!

— Então, John ainda deve estar vivo, Dannelore. Temos de encontrá-lo e ajudá-lo. Isso, pelo menos, eu posso fazer, por todo o auxílio que você tem me dado.

Apanhou a concha e colheu uma porção do conteúdo do recipiente de metal, do jeito como Dannelore fizera. Em seguida, tal qual a amiga, esvaziou a concha na boca. Estremeceu, e as feições delicadas se retorceram, numa reação de horror.

— Como esses mortais sobrevivem?!

— Essa é uma pergunta que muitos se fazem — admitiu Dannelore, empurrando a tigela na direção dela. — Mas, se quiser ficar, tem de comer.

Meg olhou para o alimento, pensando no que gostaria de fazer com aquilo. Mas, por fim, teve de admitir que o efeito era bem melhor que o gosto. Sentiu-se mais forte depois de engolir uma quantidade suficiente do caldo, embora tivesse escondido vários pedaços de coisas desconhecidas nas dobras do pano que Dannelore pusera em seu colo. Na primeira oportunidade, jogou-as no fogo do braseiro.

Assim que Meg terminou a refeição, Dannelore examinou-a com atenção.

— Você cheira mal, Meg. Pode ser bom para mortais, mas não é bom para mim. É preciso resolver essa situação imediatamente.

Meg a fitou, confusa.

Dannelore pegou-a pelo pulso e ergueu-lhe o braço, expondo uma axila.

— É incrível, mas alguns desses mortais não se importam com isso. Se deixarmos por eles, vão feder a um curral de ovelhas.

Meg ficou a pensar naquilo. Parecia pairar uma essência estranha em torno dela.

— Acha que estou cheirando igual a um curral de ovelhas?

— Não; a bode morto.

— Isso não é bom?

— Não é! Mas existe um remédio para isso.

Depois de sua primeira experiência ingerindo comida, Meg não estava de todo certa se queria descobrir que remédio era aquele. Ficou a observar com cautela Dannelore despejar a água fumegante de um caldeirão de sobre o braseiro dentro de uma bacia colocada na mesa.

Filetes de vapor subiam da superfície, e pouco a pouco sumiram conforme a água esfriava. Dannelore ia esparzir algum tipo de mistura de ervas ali dentro, quando Meg a deteve.

— O que é isso? — Apontou para as duas imagens refletidas na superfície. Uma, a de Dannelore, que reconheceu de pronto. A outra, não.

— Essa é você — explicou-lhe a encantada.

Meg tocou a água, e as imagens se distorceram. Por fim, a superfície se acalmou e ela viu com nitidez, mais uma vez. E tocou, hesitante, a própria face, sentindo o contato ao mesmo tempo que se via refletida no espelho d’água.

Não eram os traços de que se recordava dos sonhos. Aqueles a sua frente eram fortes, duros, ríspidos num instante e depois estranhamente modificados, todos numa confusão que não fazia sentido.

Mirou os próprios olhos, nem frios e nem cinzentos com a tempestade de emoções ocultas a se revolver nas profundezas, mas de um tom mais escuro, a encará-la com curiosidade.

Tocou o queixo, o nariz, a testa e as faces. E comparou tudo a Dannelore.

— Não gosto muito do jeito como me pareço. É muito diferente. Você tem feições melhores. Prefiro muito mais. Vou me transformar.

— Não! — Dannelore a impediu. — Não deve.

— Por que não? Posso ser qualquer coisa que eu quiser.

— Senhora, eles já a viram assim. Estranharão se ficar diferente de repente. — E acrescentou a razão mais importante de todas, que sabia que Meg entenderia de imediato. — Alguns poderiam até mesmo suspeitar e pensar que você não é mortal.

Meg concordou.

— Sim, você está certa. Terei de me adaptar a isto. Mas espero não assustá-los.

— Ah, não vai — Dannelore lhe assegurou.

— Oh! — Meg exclamou ao inspirar profundamente. — É como o cheiro das campinas na primavera!

Sentou-se na cadeira diante do braseiro, enrolada numa grossa manta de lã, a pele ainda gotejando de água perfumada, os cabelos molhados a cair por sobre o ombro como ouro derretido.

— Agora, compreendo.

— Sim, senhora. E deve se lavar com freqüência, ou ficará de novo com cheiro de bode morto.

Meg torceu o nariz.

— Vou me lembrar.

A manta caiu até sua cintura, expondo a curva dos seios e o ventre liso. Meg olhou para baixo e de novo para Dannelore.

— O que é isto? — perguntou, ao tocar a carne sedosa e observar os mamilos se contraírem, fascinada. Enquanto Dannelore explicava os fundamentos da anatomia humana feminina, ela continuou a exploração. — E isto? — Tocou o vão entre as pernas.

— Explicarei depois. — Dannelore atravessou o aposento, nervosa, à procura de algo com que vestir sua ama. Que os Anciãos a ajudassem. — Você é bonita demais de se olhar. Para seu próprio bem, teremos de arranjar algo para cobrila. Não pode andar enrolada em pelegos e mantas, ainda mais com esses homens por aí, que encherão a cabeça com todo tipo de idéias. Agora, se quiser agir como os mortais, terá de saber falar como falam. Preste atenção a tudo com muito cuidado.

Dannelore continuou verbalizando os pensamentos, para que Meg se adaptasse.

— Deve haver um vestido de lady Ygraine que não tenha sido queimado ou rasgado em pedaços. — A encantada procurou pelos baús espalhados pelo quarto.

— Gostaria de abrir as venezianas — Meg falou. — Não gosto de estar confinada dentro destas paredes.

— Senti o mesmo quando vim viver no mundo mortal pela primeira vez. Mas esses corpos são frágeis. Por isso os humanos constróem paredes para proteção. Ouça com atenção, vai escutar o vento. A tempestade não amainou ainda. Os mortais morreriam facilmente com tamanho frio. Esta é a razão pela qual muitos dos homens estão inquietos. Querem partir e não podem.

— Por que pretendem ir embora?

— Suspeitam de Merlin e não acreditam na causa de Arthur. Dannelore encontrou umas poucas peças que escaparam da rápida pilhagem dos assaltantes e também pilhas de tecidos rasgados e em tiras. O vestido poderia servir. Era de lã, de um tom acinzentado. Uma cor sem graça que lady Ygraine não apreciava e nunca fora usado.

— Sim, servirá.

Dannelore examinou as outras vestimentas que poderia modificar, inclusive uma bela túnica azul e uma pelerine de cetim dourado.

— Não olharão para você com esta cor neutra, e verei o que pode ser feito com as outras roupas. Talvez possam ser tingidas. De marrom ou preto seria bom.

— Não gosto de cinza. — Meg torceu o nariz. — É muito apagado. Fará com que eu pareça uma galinha-d’água. Prefiro os outros, se devo usar roupas, afinal.

— É melhor ser uma galinha-d’água do que uma pomba para se refestelarem.

Meg não compreendeu. com a testa franzida, voltou a atenção para os cabelos molhados que caíam pesados por seus ombros — algo com que nunca se preocupara antes.

Por fim, exasperada e incapaz de explicar a irritação em palavras, abandonou a tentativa e esbravejou em pensamentos:

— O que deve ser feito com isto?!

A farta cabeleira começara a secar em uma massa gloriosa de ondas reluzentes.

— Corte-os — Dannelore resmungou para si mesma, sem pensar. — Talvez então não notem você.

Para Meg, aquela era uma solução razoável. Por isso, pegou a faca da mesa, e ia cortar as mechas douradas, quando Dannelore a impediu.

— Terei de ser mais cuidadosa com o que digo até que você se familiarize com o jeito dos mortais se expressarem.

Tirou a faca da mão de Meg.

— Não é adequado para uma mulher cortar os cabelos. Iriam pensar que é ruim da cabeça se o fizesse, ou pior: uma bruxa ou feiticeira. — Dannelore suspirou. — Acharemos um jeito de cobri-los. Um capuz, talvez.

Meg sorriu, brincalhona.

— Você se preocupa demais, minha amiga.

— E você não se preocupa o bastante. Se mestre Merlin descobrir o que fez...

— É necessário garantir que não descubra!

A capacidade de Meg de assimilar as coisas era incrível, e aumentava a cada nova informação recebida. Ela estava faminta de conhecimento do mundo mortal.

Durante aquela manhã, sua habilidade em falar melhorou muito.

— E quanto às minhas outras habilidades? São diferentes aqui, Dannelore?

— São as mesmas de antes. Apenas tudo o mais ao redor é bem diferente. Esses mortais não compreendem nossos métodos. Você deverá ter muito cuidado ao se utilizar de seus poderes.

De repente, Meg se calou.

— Alguém vem vindo. Meu irmão! — Meg dirigiu um jorro de energia para o alto.

Segundos antes de Merlin puxar a tapeçaria para o lado e entrar pela abertura no quarto, pela vontade de Meg a bacia que se achava sobre a mesa subiu até a cabeça da encantada e virou, ensopando Dannelore e fazendo as linhas estourarem nas costuras de seu vestido. Mangas e pedaços de tecido flutuaram até o chão, aterrissando aos pés de Merlin.

Em sua aflita tentativa de escapar do banho, Dannelore escorregou no chão molhado e caiu sentada. Seus cabelos grudaram na testa e entraram em seus olhos.

Merlin analisou o aposento, os pedaços espalhados de tecido, as venezianas abertas, com a neve a entrar, e a aparência lamentável de Dannelore.

— Algo errado, Dannelore?

Ela empurrou os cabelos molhados para trás. Seus olhos se estreitaram sobre Meg, que se sentava com ar inocente diante do braseiro, como uma paciente em convalescença, a manta de lã presa em torno dos ombros trêmulos, enquanto tentava sufocar uma gargalhada.

Por um momento, Meg teve certeza de que Dannelore contaria tudo ao irmão. Sabia que merecia isso, mas não conseguira se refrear.

— Não, meu senhor — Dannelore disse, por fim. — Não há nada errado. Apenas escorreguei no chão molhado.

Merlin olhou de uma para a outra. Meg sentiu-lhe os pensamentos avaliadores, mas manteve os seus bem ocultos. E o sortilégio que lançara quando chegara a Caerleon manteve seu segredo a salvo.

O mago pegou os retalhos e ajudou Dannelore a ficar de pé.

— Precisa tomar mais cuidado, senhora. — Então passou por ela e foi até a janela, fechar a veneziana. — Não deveria se machucar ou ficar doente com o frio. Nem passar o esfregão no chão durante uma tempestade e com as venezianas abertas.

— A senhora Dannelore não estava em seu juízo perfeito

— Meg interveio depressa, e então teve uma idéia engenhosa:

— Está preocupadíssima com alguém que vivia aqui. Não se tem notícia dele desde o ataque.

— Muitos estão desaparecidos — afirmou Merlin. — Qual é o nome dele? Verei o que pode ser feito para descobrir seu paradeiro.

— John — respondeu Dannelore. — Era cavalariço do duque da Cornualha.

— Ele pode ter fugido para as colinas com os outros. Quase diariamente tem gente que retorna, agora que Arthur voltou. Talvez alguém possa dar notícias dele.

— Obrigada, senhor. Fico muito agradecida.

Merlin voltou a atenção para Meg. Estava satisfeito com o progresso da cura.

— Você foi muito afortunada; a flecha não atingiu o coração — comentou, ao examinar-lhe o ferimento. — Sente-se mais forte?

Para espanto de Meg, Dannelore se adiantou, mal-humorada:

— Na verdade, a dama não deveria se exceder. Pode ter uma recaída.

Merlin sentiu a exasperação da encantada e julgou que talvez Meg tivesse alguma responsabilidade no caos que encontrara ao adentrar ali.

— Como se chama?

Meg sentiu-se enregelar. Seu nome. Não podia mentir, isso lhe era proibido. O que Merlin saberia a seu respeito? Não poderia examinar-lhe os pensamentos sem expor os próprios.

— Chamam-me Meg.

— Conheci alguém com esse nome Muito tempo atrás. Era pouco mais que um bebê. — Fitou-a, a estudá-la, circunspecto.

— Tinha os olhos muito azuis. Bem parecidos com os seus.

Dannelore parou de respirar. Meg também conteve o fôlego.

Então, Merlin sorriu, de novo observando a cicatriz no ombro da jovem.

— O corte fechou com bastante facilidade, mas nunca se pode contar com essas coisas. E não sou de aceitar fracassos.

— Agradeço aos céus que não seja. — por trás dele, Meg ouviu Dannelore, enfim, suspirar fundo.

Durante o exame, Meg avaliou Merlin. Ouvira incontáveis histórias sobre seu irmão. De que fora tutorado pelos Anciãos; de sua provação no Grande Desconhecido; de sua transformação, nascido como mortal, porém com a sabedoria das eras no sangue; de seus encontros com os poderes das Trevas; e de seu vínculo com Arthur, que poderia um dia ser rei, se fosse bem-sucedido em unir toda a Bretanha.

Era tanto uma lenda como um mito, ao mesmo tempo mais e nada daquilo que ela esperava.

Merlin aplicou um bálsamo sobre a palma arranhada da mão dela. Abaixo, havia uma cicatriz antiga, um ferimento de faca do qual ela não se lembrava. O toque de Merlin era gentil e suave, com um calor radiante que penetrava-lhe a pele até os ossos.

Fora aquele mesmo poder curativo que fechara o ferimento da flecha e salvara a vida de Meg. Merlin era gentil, em nada lembrando o feroz guerreiro-feiticeiro de quem ouvira falar em murmúrios cheios de deferência e admiração no mundo imortal — uma força a ser respeitada e temida.

Seu irmão era muito agradável de se olhar, quando comparado a outros mortais que Meg vira desde que atravessara o portal. Seus cabelos eram escuros e caíam até os ombros em ondas reluzentes. Usava uma barba cheia, cortada curta, que moldava um queixo forte e a boca belamente curvada. Seu nariz era longo e reto, as sobrancelhas escuras, cerradas pela concentração, acima dos perspicazes olhos azuis.

— O que é, moça, que acha tão fascinante que fica a me encarar? — ele indagou, sem erguer o olhar.

Por trás dele, Meg viu a expressão de advertência de Dannelore. Seus pensamentos ligaram-se aos de Meg.

— Tome cuidado com o que vai dizer!

— Estava pensando que o senhor não parece um dragão que lança fogo e de presas afiadas, afinal — Meg falou, com honestidade.

Dannelore fitou o teto.

Merlin pigarreou e encarou-a, divertido e espantado.

— Quem lhe disse algo semelhante?

De novo, ela percebeu a expressão aflita de Dannelore. Sorriu, achando a situação engraçada.

— Fala-se por toda parte. Há muitas lendas sobre Merlin, o Iluminado.

— Ora, esse é um nome que não escuto há tempos. O que mais ouviu dizer?

— Que tem a capacidade de materializar objetos no ar.

— Tal como coelhos de um bolso? — ele sugeriu, pensando no truque de prestidigitação de Grendel.

— Sim.

— Por favor, continue!

— Dizem que é capaz de chamar as forças da natureza com uma simples invocação.

— Muito interessante. Que mais?

— Transformação, claro.

— Ah, sim! O dragão que lança fogo.

— com dentes horríveis para dilacerar os mortais em pedaços.

— Se eu pudesse fazer tudo isso, não lhe parece razoável que faria parar essa tempestade tenebrosa para que não ficássemos sitiados pela neve?

— Suponho que sim.

— E, quanto aos coelhos... — ele virou o bolso da túnica para fora, para provar que estava vazio — ...como pode ver, não tenho nenhum.

— Não esqueça o dragão.

— De fato, o dragão. Asseguro que se tivesse tal poder, seria obrigado a não usá-lo. — Inclinou-se para mais perto e sussurrou: — Ouvi dizer que pode ser bastante perigoso.

Meg sorriu. Descobriu que gostava muito dele. Merlin tinha respostas espertas para cada uma de suas teorias sobre ”O Mago”, embora sem negar nada e sem dizer mentiras.

— E quanto a você, moça? Como aconteceu de ficar sozinha na floresta?

Aquilo a pegou desprevenida.

— Lembro-me de muito pouca coisa antes de minha chegada a Caerleon. São imagens vagas...

— E quanto a Maelgwyn?

Era uma questão muito simples, porém uma armadilha. Meg sentiu de imediato e notou que o mago sondava seu íntimo, em busca da verdade.

— Nunca ouvi falar esse nome antes de estar em Caerleon.

— Viu alguém na mata? Outros que não fossem o guerreiro que a encontrou?

— Não, senhor.

— Talvez venha a recordar, com o tempo.

— É possível.

Merlin lhe acariciou de leve a palma da mão. E Meg experimentou um calor profundo e penetrante, no mesmo instante. Quando olhou, o ferimento estava quase curado.

— Acho que você sobreviverá! — ele exclamou, satisfeito. — Talvez gostasse de se juntar a nós na refeição da noite.

— Eu gostaria muito.

— Ela precisa descansar — interferiu Dannelore. — Talvez amanhã ou depois.

— Claro — Merlin meneou a cabeça. — Quando estiver recuperada. Um salão cheio de guerreiros não seria a companhia adequada para uma jovem dama. Talvez possamos conversar mais sobre suas aventuras na floresta.

Estava na ponta da língua de Meg dizer a ambos o que deveriam fazer com suas idéias sobre jovens damas, quando Dannelore interpôs-se entre os dois:

— Está me parecendo muito pálida, minha querida. Vou preparar um chá fortificante.

— Eu a visitarei mais tarde, para verificar as ataduras e se o ferimento não infeccionou. — Merlin se inclinou numa reverência e saiu.

— Estou pensando em lhe preparar um belo veneno, Dannelore! Por que o mandou embora? Gosto da companhia dele. É muito desafiadora.

— Você aprecia jogar joguinhos bobos. — Dannelore apontou-lhe um dedo. — Irá se meter em encrenca se continuar assim. É melhor manter-se longe de Merlin. Você não é tão esperta quanto pensa, e ele é muito mais inteligente do que imagina. Enxergará através do encantamento.

Meg soltou uma risada.

— Você tem tão pouca fé... Precisa confiar em mim.

— Confiar? Sim, e ambas nos veremos lançadas no mundo inferior!

— Talvez tenha razão... Posso ter agido com imprudência. Dannelore a encarou por entre os olhos apertados.

— Que novo jogo é esse?

— Nenhum. Apenas identifico o erro de meus modos. Serei mais cuidadosa doravante.

Dannelore pousou a mão na testa de Meg.

— Sente-se bem?

— Um pouco fraca.

— Não é de admirar. Agindo como agiu, fazendo voar coisas pelo quarto, arriscando-se a ser descoberta...

Meg respirou fundo, contrita.

— Sente-se e descanse diante do fogo — Dannelore aconselhou. — Tenho uma sopa reforçada fumegando desde manhã cedo na cozinha lá embaixo. Será melhor que carne seca de veado, que é dura como casca de árvore. Depois veremos como remendar o vestido cinza. Você não pode sair nua por aí. — E Dannelore a deixou para ir buscar o alimento.

Meg não tinha vontade alguma de se sentar ou descansar. Visto que era alguém que nunca estivera confinada, as paredes de pedra faziam-na se sentir encurralada. Queria explorar aquele mundo novo.

Olhou para a túnica azul. O tecido era macio e sedoso, e captava o calor de sua pele quando o segurou contra o corpo. E lhe agradava muito mais a cor vibrante da túnica ao cinza do outro vestido.

Colocou o vestido primeiro e depois a túnica e a pelerine, amarrando de lado como fizera Dannelore. As roupas serviam bem, a pelerine com cordões firmes na cintura, as mangas do vestido ajustadas nos braços e a barra a roçar os pés descalços. A túnica caía solta sobre tudo e proporcionava mais quentura. Aquilo que pensara ser incômodo e desnecessário mostrava ter uma finalidade.

Viu seu reflexo na bacia e se assustou. As cores vibrantes reluziam na superfície da água; o azul da túnica a combinar com o tom de seus olhos, e seus cabelos a brilhar como uma cascata de ouro.

Como não tinha experiência com tais temas, não saberia julgar se era bom ou ruim; só sabia que as cores a agradavam bem mais que o vestido cinza. Depois, voltou a atenção para explorar o lugar.

O quarto pertencera um dia a lady Ygraine. Restos de tapeçarias que certa vez adornavam as paredes ainda pendiam por ali. Vários baús de madeiras tinham sido revirados, o conteúdo espalhado pelo chão.

Dannelore tentara colocar alguma ordem em tudo. As cadeiras foram endireitadas e postas diante de uma mesa. Havia a luz do fogo do braseiro e das diversas lamparinas a óleo, que queimavam com força. Ao longo das paredes, em nichos, pequenas estátuas, uma ânfora de metal e diversos objetos pessoais.

As paredes e o chão eram feitos da mesma pedra de arenito cortado em quadrados, como o resto de Caerleon, com vigas de madeira cruzadas no alto. Uma pesada tapeçaria pendia na abertura da porta.

Seu olhar fixou-se naquela abertura. Um guarda se colocava na passagem logo além. Não para impedi-la de fugir, Dannelore explicara, mas para protegê-la de outros que pudessem querer entrar.

Meg não entendia bem a lógica daquilo, nem via razão para tanto. Mas ninguém entrara ali, a não ser Dannelore e Merlin.

Roçou as mãos na superfície das pedras da parede. Se pelo menos pudesse sair um pouco e voltar antes que Dannelore descobrisse...

Tamborilou os dedos, e então sentiu que eles não se detinham na superfície, mas afundavam nela!

Espalmou a mão e a comprimiu de leve ali. Não foi a pedra que se moveu, mas sua mão, que passou pela pedra.

Dannelore dissera que suas habilidades eram as mesmas de antes. O mundo ao redor é que era diferente. Meg precisava apenas se adaptar a essa diferença. Concentrando seu poder, enfiou a mão pela pedra, que passou com facilidade.

Puxou-a de volta e sorriu. Dannelore não iria ficar nem um pouco contente.

Em seguida, concentrou seu poder mais uma vez. Reuniu toda a energia na mão e a comprimiu contra a pedra na parede. Dentro dela, em seu âmago, onde a Luz queimava, a transformação começou devagar. Não era fácil. Meg não estava acostumada ainda àquele corpo mortal.

Acalmou-se e se imaginou a mudar, mesmo sentindo a textura rústica da pedra na pele, a friagem cortante que se derretia a seu contato, a própria essência a se modificar, moldando-se aos minúsculos espaços e fissuras feitos séculos atrás, quando a pedra se formara.

Então, a parede a circundou. A princípio, a substância resistiu, o frio escuro tentando lançá-la de volta, mas, como a luz poderosa da qual nascera um milênio atrás, Meg a aqueceu e alcançou o outro lado.

— Quatro dias! — Connor se debruçou sobre o mapa aberto diante de si, em cima da mesinha na capela adjacente ao salão principal. — Será que essa maldita tempestade nunca vai passar?!

Por toda Caerleon, seus homens se ocupavam da melhor forma que podiam, cuidando dos vários ferimentos, reparando ou substituindo armas perdidas entre as poucas deixadas para trás por descuido depois do ataque, remendando túnicas e botas, conseguindo alimentos, mantas, peles felpudas, tudo o que pudesse ser necessário e levado sem dificuldade.

— É como se o clima conspirasse contra nós! — Simão expôs sua frustração. — Enquanto isso, Maelgwyn fecha o cerco.

— Ele não é nenhum tolo. — Connor sabia muito bem do que falava. — Não há necessidade de arriscar seus homens nesse tempo. Tem contingente e recursos para esperar. Irá se abrigar nas colinas, poupando ambos para um ataque contra nós. Será melhor para Maelgwyn se puder nos capturar debilitados aqui, em Caerleon.

O mapa detalhava com exatidão o vale circundante, a floresta e as colinas distantes na direção de Dumonia, ao norte, reinos antigos dos galeses e das cidadelas de Maelgwyn.

Havia dezenas de marcações, as localizações dos encontros com Maelgwyn durante o ano anterior. Seu encontro, quatro dias atrás, na floresta de Caledon, fora o mais recente.

Connor passou as mãos pelos cabelos, desanimado, e jogou longe o pedaço de carvão que usava para marcar os locais. Sentia-se como um animal enjaulado.

— Estarei lá em cima, nas ameias, Simão — disse, irritado.

No corredor do segundo andar, passou pelo guarda postado do lado de fora do quarto de lady Ygraine. Seguiu em frente e, por fim, subiu os degraus que conduziam às ameias, dois e três ao mesmo tempo, lembrando-se da última vez em que estivera em Caerleon com Arthur, quando eram ainda garotos imberbes. Meninos num momento, homens no outro; não mais amigos.

Ao final da passagem, uma porta robusta se abria para as ameias, uma série de balizas trabalhadas em pedra, construídas por trás de uma meia parede que bordejava o topo das quatro muralhas da fortaleza retangular de pedra.

Os duques da Cornualha não reinaram durante seis gerações por acaso. Eles aprenderam que a vigilância constante era a chave para conservar o poder, e aquela fortaleza oferecia tanto proteção como condições de vigília. Até uma quinzena atrás.

Havia uma única tocha ali. A despeito da luminosidade débil, Connor viu um movimento nas sombras. Sua mão fechou-se em torno do cabo do punhal de lâmina curta, que nunca abandonava.

A sombra se aproximou, e a lâmina foi sacada, a brilhar sob a meia-luz da passagem.

— Você aí, rapaz! Guarde essa faca, senão pode se ferir. — Radvald avançou para a claridade, o brilho da tocha a luzir nos olhos atentos e nos pêlos ruivos da barba.

— Por Deus Pai, velho! Eu poderia tê-lo estripado como um bacalhau antes que desse outro passo.

— Não se eu o estripasse primeiro. — Radvald rebateu, bem-humorado. — Fez barulho demais ao subir por aquela passagem, Connor.

— De fato. Esteve nas ameias?

— Sim, quase congelei o traseiro.

— Sem condição, então?

— Chance alguma. Ora está chovendo granizo o bastante para cegar homens e animais, ora resolve nevar. Faz-me lembrar de meu lar de menino... e recordar o motivo por que parti. Detesto o frio úmido. Talvez melhore pela manhã.

O nórdico passara a infância nas rotas do Mar do Norte, antes de se perder numa tempestade. Lançado à deriva perto da costa oriental da Bretanha, sobrevivera à custa da esperteza e da força. Um homem livre que não devia fidelidade a nenhum outro dera sua lealdade ao pai de Connor, depois que o duque de Monmouth interviera quando ele se metera em confusão e ia ser enforcado.

— Vá se aquecer ao fogo, Radvald. Não quero que seus ossos gastos travem na hora que precisar de seu machado de guerra para proteger minha retaguarda.

Radvald bufou.

— Ainda posso fazer você morder a poeira, menino. Só me dê um pouco daquela sopa reforçada e darei conta do recado.

Connor meneou a cabeça quando o guerreiro desapareceu pela passagem num passo poderoso que desafiava os anos. Estava prestes a retornar pela passagem atrás de Radvald quando de repente parou.

— Sei que você está aí! — exclamou.

Meg mordeu o lábio ao recuar para a escuridão. Se ficasse absolutamente imóvel, talvez ele julgasse que se enganara.

— Pode se mostrar.

Não havia esperança. Será que Connor tinha dons? Fora tão cuidadosa quando atravessara a parede...

Por fim, Meg saiu de seu esconderijo.

Connor não tentou esconder o espanto. Ela era a última pessoa que ele esperava encontrar ali, aquela garota esbelta que dias antes fora ferida com gravidade por sua flechada.

Contudo, a palidez mortal sumira, os olhos eram cheios de vivacidade, e a jovem não dava a menor impressão de ter se abatido com o ferimento ou a perda de sangue.

— O que faz aqui?

Por falta de algo mais apropriado, Meg exigiu:

— O que você está fazendo aqui?!

Aquilo o surpreendeu ainda mais, assim como o sorriso dela. Connor estava acostumado a ser obedecido e a receber respostas diretas, não a ser questionado em retorno.

— Como passou pelo guarda?

— Andando.

— Ele não tentou impedi-la?

— Nem sequer me viu.

— Terei de discutir isso com ele.

— Você se aborreceu.

— O guarda foi instruído a permanecer do lado de fora dos aposentos sem descanso, para impedir qualquer um de entrar.

— Então ele cumpriu seu dever, milorde. Ninguém entrou lá, a não ser Dannelore e mestre Merlin.

Em vez de discutir com ela, Connor a informou:

— Vou acompanhá-la de volta.

— Não irei.

Ele se virou devagar, até poder encará-la. Meg sentiu que falara de forma errada e procurou, aflita, uma maneira melhor de se explicar.

— Quero dizer... não quero voltar para meu quarto. Claro que compreende. Faz quatro dias que estou lá.

Sentiu a recusa de Connor e procurou por alguma coisa a mais que pudesse convencê-lo.

— Não gosto de paredes. — Sua voz tornou-se muito baixa e tristonha. — São frias e dão uma sensação de confinamento. Prefiro mais...

— A floresta?

— Sim!

— Foi por isso que estava lá? Fugiu e foi para a mata se esconder?

— Algo assim.

Connor tomou a mão de Meg na sua e pousou-a em seu braço. Ela usava um belo vestido com uma túnica amarrada na curva da cintura estreita, as mangas a destacar os braços delicados.

O azul do traje refletia a tonalidade profunda dos olhos dela, cheios de uma luz vibrante. Connor sentiu que Meg recuava ao contato de sua mão. Seus dedos se fecharam sobre os dela.

— Diga-me, sempre sai por aí sem sapatos? — perguntou, ao conduzi-la pelos degraus do corredor para o segundo andar.

Meg fitou os pés descalços e franziu a testa. Connor respondeu à própria questão:

— Veremos o que fazer quanto a isso. Acabará ficando doente de verdade se continuar andando assim.

Pararam no patamar do pavimento superior. O guarda ergueu os olhos num breve sinal de reconhecimento. Então, seu rosto ruborizou-se quando a viu, e um vermelhão subiu-lhe pelo pescoço. Meg não tinha nenhuma referência para constrangimento ou pesar e, portanto, não compreendeu o que se passava. Mas sentiu o extremo desconforto do homem e entendeu que tinha a ver com sua fuga.

Captou os pensamentos dele e de Connor. O guerreiro não estava disposto a esquecer o incidente. Não mais necessário em seu posto, com a expressão muito séria, o guarda seguiu-os pelas escadas até o salão principal.

— Como sabia que eu estava na passagem, milorde? Talvez ele fosse dotado, afinal.

— Senti o cheiro.

Ela puxou a mão da dele. Sua expressão tornou-se séria, a boca macia e cheia, curvada em arco para baixo. Os grandes olhos azuis se encheram de uma expressão sombria, a fitá-lo.

— O que foi?

— Eu cheiro como um bode morto?

Os ombros de Connor sacudiram numa risada muda, quando ele tentou disfarçá-la por trás de um súbito ataque de tosse.

— Eu lhe asseguro que não.

— Tem certeza? — Ela ficara preocupadíssima. Mesmo com as sobrancelhas cerradas de aborrecimento e a boca franzida num beicinho ansioso, era uma criatura arrebatadora.

— Absoluta, minha senhora.

— Então não me acha repugnante?

Era visível o alívio em seus vívidos olhos azuis. E havia também curiosidade.

— Não — Connor afirmou.

A honestidade e a maneira direta de Meg eram reconfortantes, comparadas ao comportamento de outras mulheres, tais como a meia-irmã de Arthur, lady Morgana. Fazia muitos anos desde a última vez que a vira. Fora uma experiência desgastante.

— Ótimo. Eu não gostaria de cheirar como um bode. Não acho que seria muito prazeroso. Bodes não têm um odor muito agradável nem quando estão vivos. Não acho você desagradável, também. Não parece, nem cheira como um monte de estrume.

Aquela sinceridade sem afetação tornava difícil se ofender com o que ela dizia. No entanto, custou um momento até Connor se recuperar, sobretudo das gargalhadas. Ao parar, se voltou para encará-la. Era uma criatura inocente demais e muito interessante.

— Um monte de estrume? — Lutou com as risadas e a incredulidade.

Viver da terra não era fácil, ainda mais no que se referia a se manter limpo e com boa aparência. Porém, isso nunca fora motivo para falta de atenção por parte das mulheres.

— Sim, como na floresta, com sua face pintada. Foi então que ele compreendeu do que ela falava.

— Algumas vezes é necessário disfarçar as feições de alguém. Espero não tê-la assustado.

— Não, mas me fez pensar. Afinal, eu fora avisada.

— Avisada? — A curiosidade de Connor se aguçou. — A respeito de encontrar guerreiros na floresta?

— Qualquer um. — Ela se inclinou e emendou, discreta: — Disseram-me que cheiram muito mal.

— Quem lhe disse isso?

Conversar com Connor era muito bom. E fizera o guerreiro rir, o que descobrira ser um som muito bonito, que o transformava por completo. As linhas em torno da boca e dos olhos se atenuaram, os lábios se curvaram numa expressão interessante, e os olhos não pareciam tão frios e hostis.

Bem ao contrário, Meg descobrira profundezas ocultas que faiscavam com lampejos de luz dourada. Mas fora o som de sua voz que a fascinara.

— Um amigo me falou — Meg respondeu, por fim. — Porém teve uma experiência muito desagradável, na certa por sua própria culpa. Tem uma natureza muito briguenta.

— Você é franca e direta, não é mesmo?

— Não sei como ser de outra forma, milorde. Isso o ofende?

— Não, de modo algum.

— Que bom! Não posso mentir, de qualquer jeito.

A risada de Connor ecoou pelas paredes de pedra ao chegarem ao térreo, no salão.

Os sentidos de Meg foram assaltados pela visão e os sons de quase oitenta homens que agora acampavam em Caerleon. E ela ficou fascinada pelas conversas ruidosas e pelos comentários divertidos, entre o barulho e tinir de pratos da refeição da noite, conforme canecas e travessas eram colocadas sobre a mesa.

Mas o foco de sua fascinação era o curandeiro, Merlin, e o homem que se sentava junto dele, entretido numa conversa profunda: Arthur de Caerleon.

Então, captou a presença de Dannelore. A encantada os viu, de onde ajudava a servir o jantar. Atravessou o salão, a expressão pálida e tensa. Não houve necessidade de palavras quando seus pensamentos procuraram os de Meg, aflitos. — O que está pensando? Não deveria estar aqui!

E, quando alcançou Meg, disse-lhe:

— É bom vê-la de pé e ativa, mas não deve se cansar. Não vai querer causar mal a si mesma...

A última frase foi dita com uma ênfase especial que Meg preferiu ignorar. Jogou a cabeça para trás, em desafio, e respondeu com doçura:

— Obrigada por sua preocupação. Mas não estou nem um pouco cansada. Acho o confinamento muitíssimo desgastante.

E, na conexão das mentes compartilhadas, emendou:

— Não tenho intenção alguma de voltar àquele quarto!

— Senhora, por favor!

Qualquer pedido ou aviso posterior foi cortado assim que Arthur e Merlin se acercaram.

— Ouvi risadas, meu amigo? — Arthur perguntou, com simpatia. — Parece que esta jovem dama conseguiu o que ninguém mais poderia: trazê-lo para o salão.

Foi como se o dia se tornasse noite. Meg sentiu o conflito entre os dois de imediato, e viu-o na frieza glacial dos olhos de Connor. A resposta que Arthur ouviu dele não foi ameaçadora, nem simpática:

— Acho a companhia e a honestidade dela reconfortantes. Arthur não ignorava a animosidade também, e, contudo, seu sorriso não se apagou.

— Nesse caso, talvez possa convencê-la a se juntar a nós para a refeição, desde que meu conselheiro declare que a jovem está suficientemente recuperada. Não gostaria de arriscar sua saúde, moça.

Meg percebeu a cautela de Connor, mas não havia tempo para perscrutar seu íntimo. Na presença do irmão, ela precisava manter a mente e os poderes sob controle.

Merlin tomou-lhe a mão, seus dedos a se fecharem sobre os dela. Naquele toque, seus poderes a penetraram, e Meg sentiu um calor suave no ombro.

Era perigoso e intrigante confrontar o irmão que nunca conhecera, usar os próprios poderes para manter os dele ao largo para se proteger.

Se sentiu alguma coisa, Merlin não deu indicação, mas, ao contrário, afagou-lhe a mão, muito gentil.

— Ela me parece bastante bem.

— Sem dúvida devido a suas habilidades, amigo. — Arthur se voltou para Meg: — Junte-se a nós.

— Você se julga muito esperta, Meg! O que fará quando mestre Merlin souber da verdade?

— Não pretendo que ele descubra, Dannelore. E quem sabe eu possa descobrir algo sobre John.

Dannelore, por fim, cedeu, mas não estava feliz.

Por sua vez, Connor não teve outra escolha a não ser acompanhá-los. Não confiaria Meg a Arthur, nem a nenhum de seus homens.

O barulho da primeira vez, quando Meg descera as escadas, não era nada comparado ao que os rodeou à mesa. Vários dos soldados de Connor se levantaram para dar lugar a eles. Meg sentou-se perto de Radvald no longo banco, com Connor do outro lado.

A comida era espartana, mas adequada, e incluía a sopa reforçada de que Dannelore falara, um ensopado espesso e fumegante com pedaços grandes a flutuar, a maioria não identificável.

A sopa era servida em conchas dentro de pratos fundos e tigelas de madeira e, depois, devorada com avidez com pedaços de pão quente.

— Está muito bom! — Radvald assegurou-lhe.

Meg olhou para a sopa com grande ceticismo. O aroma não era desagradável. Na verdade, era quase bom, com uma essência de ervas que lhe era familiar. Mas Meg não gostava da aparência daqueles pedaços desconhecidos boiando. E não tinha certeza de conseguir pegar os bocados com pedaços de pão. Embora a coisa toda não parecesse representar muito problema para Radvald, nem mais ninguém.

Todos embebiam os pedaços e enfiavam a mistura ensopada na boca com um ruído de mastigar e de lamber os lábios, entre conversas e grandes explosões de gargalhadas. Desnecessário dizer, uma boa porção da sopa voava para as mangas e para a frente das túnicas. O que escorresse dos dedos era limpo com a língua, por falta de um pano para enxugá-los.

Connor não comeu. Ficou a observar as pessoas, muito atento. Aquele não era o homem que rira com tamanha facilidade antes.

— Por que não gosta de Arthur?

Meg viu a surpresa faiscar naquelas íris cinzentas e julgou que ele iria negar o fato. Porém, Connor não o fez.

— Conheci Arthur quando éramos meninos. Isso foi longo tempo atrás. Ele mudou. Não o conheço mais.

— E você não mudou? — indagou Meg, determinada.

— Acha que eu não deveria ser tão crítico?

— Penso que não deveria ser tão apressado em julgar. Connor cortou outro pedaço de pão. Empurrando a mão de Meg para o lado, mergulhou a fatia e pegou um pedaço de carne e o caldo grosso. Estendeu-o a ela.

Meg passou os dedos em torno da mão de Connor e mordiscou, desajeitada, o naco molhado, como uma criatura confiante que não tem razão para temer aquele que a alimenta. Seus dentes eram pequenos e simétricos, os dedos, delicados e frágeis em torno do punho do guerreiro.

— É bom! — ela exclamou.

— Você não deveria ser tão apressada em julgar. — Connor sorriu-lhe.

Arthur era um anfitrião encantador. Aprendera muito dos modos do Oriente e deliciava os homens de Connor com histórias dos impérios orientais.

Connor não tinha interesse em tais narrativas. Queria ir embora de Caerleon. Meg sabia disso, e não compreendeu por que tal idéia a perturbava.

— A tempestade está quase no fim, milorde. Logo você poderá partir de Caerleon.

— Espero que tenha razão, moça — Radvald se intrometeu, animado. — Connor está como um bicho enjaulado, com o vento a uivar lá fora dessas muralhas. Receio que logo a borrasca há de ser preferível ao animal.

— O clima melhorará amanhã — ela afirmou, já que tudo indicava ser isso tão importante.

Connor encarou-a, estranhando. Meg sentiu aquele exame e achou que talvez tivesse cometido um erro grave ao fazer o que deveria ser uma simples previsão do tempo.

— Fala com muita segurança sobre isso, moça — Arthur comentou, por sobre a caneca de cerveja.

A boa disposição faiscou em seus olhos quando trocou um olhar com Merlin. Apenas umas poucas horas antes seu conselheiro dissera o mesmo, mas com uma garantia que vinha de seus poderes incomuns de percepção.

— Como sabe que amanhã o clima estará bom?

Meg sentiu os olhares especulativos cravados nela, inclusive o de Merlin. Ele lhe sondava a mente, por isso ela manteve os pensamentos protegidos.

Das sombras logo atrás, onde Dannelore se instalou desde que Meg entrou no salão, juntando-se a Arthur e a seus homens, a encantada advertiu:

— Tome cuidado, senhora. Mestre Merlin perceberá qualquer estratagema.

Mas, antes que ela pudesse responder, Radvald, sem querer, veio em seu auxílio.

— Isso não exige nenhuma grande habilidade ou conhecimento — o velho guerreiro afirmou, de bom humor, em grande parte devido à segunda caneca de cerveja que acabara de esvaziar. Enxugou a boca na manga. — Posso sentir em meus ossos. Assim como dias atrás. E meus ossos nunca se enganam.

— Nem poderiam se enganar, com todo o estalar alto deles e suas reclamações — um jovem brincou, ao lado.

Todos caíram na gargalhada, à custa do velho Radvald.

— Divirtam-se, seus vira-latas! Mas ainda posso com três de vocês. Mesmo com esses velhos ossos estalando!

As conversas voltaram ao normal. Outras histórias divertidas e narrativas impossíveis de aventuras misturavam-se às tentativas da parte dos mais novos de mostrar seu valor, enquanto desafiavam Radvald para uma queda-de-braço.

Meg sentiu o silencioso alívio de Dannelore e sua recriminação:

— Viu como deve ser cuidadosa? Vamos embora antes que haja outra confrontação.

Mas Meg recusou-se. Estava fascinada. Tudo era novo para ela, que reagia com o entusiasmo de uma criança. Dannelore decidiu parar de recriminá-la, mas continuou a esperar ali perto, nas sombras.

Meg expandiu seus sentidos e deixou-os flutuar pelo salão, descobrindo muita coisa das conversas ouvidas ao acaso. A preocupação de todos com os dias que viriam, a incerteza do que Arthur e seus soldados encontraram na chegada a Caerleon, a ansiedade dos homens de Connor para partir. Sonhos, ambições, esperanças, velhos e novos adversários, tudo entrelaçado numa tapeçaria de risos, intrigas e até mesmo perigo.

Não era assim o guerreiro chamado Simão, o Prudente. Aliás, Simão, o Perigoso, em sua maneira de julgar. Era belo, de feições enxutas, mais como um lobo, de olhos escuros e observadores e um comportamento predatório, que analisava, andando em círculos. E ela era a presa.

Meg sentiu isso naquele olhar que a observava sem cessar, semelhantes aos de um animal faminto, a esperar pelo mínimo erro.

— Diga-nos... — Simão a encarava. — ...o que fazia na floresta? Uma dama, sozinha... Quem é seu povo?

Ela sentira aquela mesma pergunta em Connor, mas ele não a interrogara. Agora, também esperava, com ar especulativo, pelo que Meg diria.

— Não tenho nenhuma lembrança de nada antes de ser encontrada. Apenas vagas imagens.

— Mas decerto tem família. Seus parentes devem estar muito preocupados com sua segurança.

Ela respondeu com honestidade:

— Não me recordo deles. Se havia outros lá, não lembro.

— Um dos homens de Maelgwyn foi encontrado perto de nosso acampamento — Simão ponderou. — Onde há um, há mais.

Meg não precisava de nenhum dom de visão interna para entender o significado da frase. Ele tinha certeza de que ela fora enviada por Maelgwyn.

— Não conheço o homem de quem fala.

O salão caíra em silêncio, todos interessados no diálogo, inclusive Arthur e Merlin. Um olhar irônico brilhou nos olhos de Simão.

— No entanto, acabou de afirmar que não se lembrava de nada. Portanto, pode ter se separado de Maelgwyn e simplesmente não se recordar disso. Ou quem sabe prefira não lembrar...

Meg não sabia o que fizera para conquistar a inimizade daquele homem, mas conseguira. Simão procurava de todo jeito pegá-la numa armadilha. Nem mesmo Merlin, com suas habilidades de sentir o que os demais não podiam, fizera isso. Dannelore tinha razão a respeito de ser cuidadosa. Apenas não captara a verdadeira fonte do perigo.

Com habilidade, Meg intrometeu-se na mente de Simão. Lá, viu os cantos sombrios da ambição e da crueldade que faziam de seu nome uma zombaria. Simão, o Prudente... E ficou a imaginar se Connor conhecia as profundezas daquela cobiça e impiedade. Se ele tivesse sido o primeiro a alcançá-la na floresta, estaria morta.

Então, usou de seu poder para confundir, desorientar e atrapalhar as memórias que Simão tinha das coisas. E, tal como a bruma, retirou-se com cuidado.

— Não estou familiarizada com assuntos de guerra, meu senhor. Mas, pelo que ouvi vocês dizerem de Maelgwyn, se ele estivesse na mata, você não estaria vivo.

Meg sentiu o instinto do guerreiro de discutir, acusar e encurralá-la. Mas logo meneou a cabeça como se tentasse desfazer a confusão e não conseguisse.

— Tem razão, é claro, moça.

Meg esboçou um sorriso doce. Aprendera uma lição valiosa. Existiam perigos ali que, mesmo Dannelore, com o conhecimento dos mortais, não antecipara.

Connor escutara, muito atento.

— Simão é um guerreiro experiente, mas há momentos em que é apressado em seus julgamentos.

— E quanto a você?

— Sou mais cauteloso.

Meg sorriu. Connor era cauteloso em todas as coisas. Então, ela sentiu uma cutucada no cotovelo. Ao se virar, espantou-se.

— Soube que esteve doente. Gostaria de lhe oferecer algo para expressar meu desejo de uma completa recuperação, moça. Uma rosa talvez, tão linda como você é bela.

O homenzinho se vestia com uma túnica de lã rústica e calção, com calça de couro apertadas nas pernas curtas e tortas. Seu rosto era circundado por uma barba emaranhada. Tinha um nariz achatado e sobrancelhas hirsutas sobre olhos muito familiares ao faiscarem com humor e malícia.

Ele se inclinou até a cintura, a mão estendida com uma rosa delicada.

— Meu nome é Grendel. Sou um mercador por profissão, por profissão um mercador.

Meg quase estourou numa risada franca. Um mercador de que, ela quis perguntar. De roupas? Esperava que não, pois as dele eram ridículas. De malícia? Sem dúvida. Pelos Anciãos, como Grendel fora parar ali?!

— Tenho vagado por terras distantes — ele respondeu, e ela percebeu que lera seus pensamentos. — Uma jornada muito perigosa, através de rochas e selva profunda. Tudo por causa de uma bela e jovem moça... muito parecida com você.

— Uma moça? — Radvald bufou. — É mais provável que o pai dela o obrigasse a partir, pequenino. Suas ”perspectivas” são um tanto curtas.

Grendel olhou feio para Meg, mas tudo que ela pôde fazer foi juntar-se aos outros no divertimento. Até Connor achou graça nas declarações do amor perdido do homenzinho.

Na conexão de suas mentes, Meg captou a crítica que viria, e o interrompeu:

— Obrigada por sua preocupação, Grendel. Asseguro-lhe que estou muito bem. E não estou pronta para voltar!

Se Grendel desapontou-se, não deixou transparecer.

— Talvez eu possa lhe mostrar alguns de meus truques, moça.

Meg sorriu-lhe, agradecida.

— Eu gostaria muito.

Grendel entretinha os homens de Arthur com seus insultos rimados, histórias e truques de prestidigitação, quando os guardas de Arthur irromperam pelas portas do salão principal escoltando uma dúzia de homens ensopados.

Um deles foi se aquecer diante do fogo. Por fim, tirou o pesado capuz e o manto felpudo. Tinha a idade aproximada de Connor e Arthur. Meg sentiu de imediato a reação de Connor. Ele conhecia aquele homem.

— Sou Geoffrey de Exmoor. Meus homens e eu viemos nos juntar a Arthur.

— Geoffrey de Exmoor... — Arthur levantou-se da cadeira e rodeou a mesa.

— Se nos aceitar — Geoffrey emendou. Arthur estendeu o braço, apertando o ombro dele.

— Passou-se um longo tempo.

— É verdade.

— Sim, eu o aceitarei conosco, e a seus homens. — Arthur voltou-se para os demais. — Bem-vindos. São todos bem-vindos. — E de novo para Geoffrey. — Venha sentar-se conosco. Temos muito que conversar.

Geoffrey reuniu-se a Arthur e Merlin, e seus homens rodearam o fogo, para se aquecer.

— Há mais gente, Arthur, que virá assim que a notícia se espalhar.

— Exmoor fica longe daqui. Como soube antes dos outros, Geoffrey?

— De um mercador que chegou ao porto. — Bebeu um gole de vinho quente perfumado com especiarias. — Falou de uma pessoa principesca que aportara na praia com um escaler, várias semanas atrás, com uma vintena de seguidores. Pela descrição, eu soube que não poderia ser outro. Por Deus, esperamos uma eternidade!

— Todos nós esperamos, meu bom amigo.

Dannelore trouxe comida da cozinha, e Geoffrey e seus homens comeram, contando a Arthur e Merlin o que sabiam sobre Maelgwyn e seu exército.

— Seu ataque a Caerleon foi simbólico — Geoffrey concluiu. — Ao destruir Caerleon, era sua intenção destruir qualquer esperança de que você pudesse retornar para liderar um exército contra ele. — Olhou em torno. — Quantos se agregaram?

— Apenas os que vê aqui. Você está entre os primeiros. Rezo para que haja mais.

O olhar de Geoffrey esquadrinhou o ambiente.

— Pelos santos! — exclamou, ao se levantar da cadeira e se aproximar de Connor.

Connor ficou de pé também para cumprimentá-lo. Apertaram-se os braços e, no gesto fervoroso, Meg sentiu uma afeição genuína. Geoffrey sorria quando se afastaram.

— Você se aliou também!

— Não.

O sorriso de Geoffrey desapareceu.

— Mas está aqui...

— Apenas pelo infortúnio do clima. Assim que o tempo clarear, iremos embora.

— Mas... esperamos por este dia!

— Partirei pela manhã.

A expressão de Geoffrey transformou-se por completo.

— Então, nada mudou.

— Nada. Não arriscarei a vida de meus soldados pela causa de um covarde.

— Tinha esperanças de que você pudesse pensar de forma diferente. Precisamos de Arthur, Connor.

— Precisamos de um homem em quem possamos confiar que não nos abandonará em nossa hora de necessidade. — A voz de Connor era tão fria como a expressão em seus olhos cinzentos. — Não vejo tal homem neste salão. Certamente não é Arthur.

 

As venezianas foram abertas, e Meg sentou-se no beiral de pedra da janela, as pernas dobradas sob o corpo, o rosto erguido para o calor do sol que se infiltrava pela abertura.

Tal como previra, o tempo clareara. As nuvens cobriam o longínquo horizonte sobre as colinas distantes, e o céu tinha um incrível tom de azul.

Tudo era espantoso para ela, o calor do sol e as cores vívidas, tanto do céu como da paisagem abaixo, vista com seus olhos mortais e sentida na pele. Cada nova experiência a fascinava. Tocou a face, admirada com a sensação tépida.

Do pátio lá embaixo vinha o barulho dos homens de Arthur, que saíam do salão. Preparavam-se para ir até a abadia.

— Fale-me sobre lady Ygraine, Dannelore.

— É uma dama muito gentil. — A encantada enrolava as peles e as guardava no canto do quarto. Em seguida, reabasteceu o óleo das lamparinas e pôs ordem no aposento. — Mas uma pessoa triste. Podemos ver isso nos olhos dela.

— Triste? Por quê? — Meg ainda achava as emoções mortais difíceis de compreender. Usava de cada oportunidade para aprender mais sobre elas.

— Só vim para Caerleon faz pouco tempo, senhora. Grande parte do que sei ouvi dos outros, que estiveram com ela durante muitos anos. O velho duque morreu algum tempo atrás. Era o pai de lady Morgana.

— E de Arthur também — emendou Meg.

— Alguns pensam diferente.

Dannelore então explicou a história que ouvira entre as serviçais, da época anterior ao nascimento de Arthur, quando lady Ygraine desaparecera logo depois da partida do duque da Cornualha.

— Desapareceu? Onde?

— Não se sabe. Alguns dizem que foi raptada, pois o duque da Cornualha era um homem poderoso e pagaria uma soma vultosa por seu retorno. Outros julgam que ela não fora raptada de forma alguma, mas resolvera ir se encontrar com um amante secreto. Alguns alegam que se hospedou com lady Anne. E outros afirmam que a senhora de Monmouth lhe deu abrigo.

Dannelore leu os pensamentos de Meg.

— Sim, a casa do guerreiro que a encontrou na floresta. Ele e Arthur foram criados juntos quando crianças, tão próximos como irmãos.

Meg refletiu sobre aquela informação. O que teria causado o estranhamento que existia agora entre os dois?

— O que houve quando o duque da Cornualha voltou?

— Lady Ygraine retornou a Caerleon. Logo após, foi anunciado que ela esperava um filho. Dizem que Arthur não é filho do velho duque, afinal, mas de outro. Contudo, o duque o reconheceu como herdeiro e recusou-se a tolerar especulações contrárias. Dizem que isso tem o dedo dos Anciãos. E é por essa razão que mestre Merlin foi mandado para o mundo mortal, para ser o conselheiro de Arthur.

— Por que lady Ygraine é triste? Seria uma grande honra ser mãe de um futuro rei.

— Era bastante jovem quando se casou com o duque da Cornualha, depois que a primeira esposa dele morreu. Foi um casamento arranjado.

— Não posso entender por que duas pessoas não podem ficar juntas se assim desejam.

— Concordo.

O pátio fervilhava de atividade. Mais gente chegara durante a manhã, agora que o firmamento clareara. Alguns carregavam armas, outros chegavam apenas com a roupa do corpo. Vieram se juntar a Arthur.

Meg debruçou-se na janela, a mente a voar para longe como um falcão. Quase podia sentir o alçar do vento sob suas asas.

— Oh, não! — Dannelore a segurou pelos ombros, puxando-a para trás. Fechou as venezianas e passou o ferrolho. — Tudo aquilo de precisamos é que alguém a veja se transformar. Já há comentários...

— Quais?

— Dizem que você foi enviada por Maelgwyn. Meg se irritou.

— Simão. Não posso imaginar por que ele é chamado de Simão, o Prudente.

— A dúvida foi semeada, senhora. Você não deve dar motivos para que desconfiem ainda mais.

”Até que eu possa convencê-la a voltar a Avalon”, Dannelore pensou consigo mesma.

Meg sorriu diante das reflexões dela.

— Fale-me sobre lady Morgana.

— Ela é muito bonita. É também muito...

— Vaidosa?

Dannelore se ergueu, de mão nos quadris, ponderando sobre a resposta correta.

— Vaidosa é uma palavra restrita.

Meg virou-se na outra direção e andou na ponta dos pés ao longo do parapeito da janela e completou.

— Voluntariosa, mesquinha, conivente, falsa... Dannelore fez meia-volta.

— Está lendo meus pensamentos, senhora? — Então viu Meg, empoleirada no estreito parapeito da janela como uma borboleta delicada, prestes a alçar vôo. Estremeceu de pavor.

Meg não corria risco de cair. Mas, ao erguer os olhos, deparou com Connor à soleira.

A concentração se foi, e Meg perdeu o equilíbrio. Não tinha coordenação ou a habilidade de salvar-se sem seus poderes. Impedida de usá-los por não querer se denunciar, Meg caiu.

Pela segunda vez em sua vida, sentia-se indefesa. E, pela segunda vez, Connor estava ali. Pegou-a com um braço em torno da cintura e o outro sob os joelhos.

— Quer saltar da janela, moça? — ele resmungou.

Meg o fitou, um tanto assustada com outra daquelas emoções sutis com que não estava familiarizada.

— Costumo abri-las primeiro, meu senhor.

Sua resposta foi tão direta que por um segundo o desconcertou. Connor a carregou até a cadeira e a colocou sentada.

— Da próxima vez que decidir sair andando pelos parapeitos, deve pensar em arranjar um par de asas primeiro.

Por sobre o ombro, Meg trocou um olhar intrigado com Dannelore, que meneou a cabeça.

— Não necessito de asas quando você está por perto, para me salvar.

— Não estarei a seu lado da próxima vez.

— Tenho grande fé em você, milorde. Esteve por perto cada vez que precisei de seu amparo.

A expressão dele endureceu. Meg sentiu que o guerreiro lutava com algum problema que o abalava profundamente. Connor lançou um olhar cortante para Dannelore.

— Deixe-nos.

Havia uma inquietude em sua entonação que incomodou até mesmo Meg.

— Senhora!

Meg sentiu-lhe a intranqüilidade. Ela também nunca vira o guerreiro com tal ânimo. Parecia aborrecidíssimo com algo, mas era impossível discernir qual o motivo disso.

— Tudo ficará bem, Dannelore. Por favor, faça o que ele pede.

Dannelore se foi.

Connor agachou-se diante da cadeira, a lutar com as palavras que achava difíceis de pronunciar, por alguma razão.

— Estou de partida de Caerleon.

— Sim, eu sei. Arthur e os outros se aprontam para partir também.

Meg presumira que ele iria com Arthur e os demais, e Connor não viu razão para se explicar.

— Sente-se bem esta manhã?

— Sim, muito. Estou mais forte. Graças às habilidades de cura de Merlin.

Aquilo provocou uma ruga em Connor, e ela percebeu. Algo se dera no passado entre o guerreiro e o curandeiro, alguma dificuldade que Connor de Monmouth não conseguia esquecer.

— Fico contente. Tinha esperanças em sua plena recuperação. — Ele fez uma pausa, ponderando. — Foi minha flecha que a derrubou na floresta.

— Sim, eu sei. — Meg falou com toda a candura e sem nenhuma ponta de recriminação.

E aquilo o pegou de surpresa.

— Sabia disso?

— Sim. — Meg raciocinou rápido. — Dannelore me contou.

— E não sente raiva de mim por causa disso? Meg ficou confusa.

— Deveria?

— Qualquer homem que conheço sentiria. Poderia ter custado sua vida.

Meg procurou alguma forma de lhe aliviar o remorso. Se pelo menos estivesse mais bem adaptada às emoções mortais e aos meios de lidar com elas...

— Mas não custou.

Pousou a mão de leve sobre a dele, como vira Dannelore fazer ao confortar os feridos.

A mão de Connor era marcada de cicatrizes, e naquelas marcas Meg sentiu a dor que cada uma provocara, assim como o espírito feroz do guerreiro na ocasião, sincero, honrado, corajoso e leal.

— Poderia ter sido outro a me encontrar naquele dia na floresta, milorde. Assim, veja, eu lhe devo minha vida.

Connor meneou a cabeça. Havia alguma verdade naquilo que ela dizia. Porém sabia bem de quem era a responsabilidade.

O toque daqueles dedos como a brisa quente da primavera sobre um espírito frio, de uma alma que morrera havia um milênio. Fazia-o refletir sobre outras coisas, dias perdidos, amizades perdidas, sonhos perdidos. Virou o punho para cima.

A mão de Meg era pequena e esguia, muito branca e macia. Perdia-se dentro da do guerreiro, enorme e calejada. Contudo, existia força ali, que penetrava através dele e de alguma forma tocava algum lugar profundo em seu âmago, que Connor julgara enregelado e morto.

Seu olhar encontrou o dela.

— Você está segura aqui — ele disse, por fim, olhando para baixo.

Então, como se de repente chegasse a alguma decisão, virou-lhe a mão para cima. Procurou dentro da túnica e tirou algo dela. Abriu-lhe os dedos. Um tímido tilintar se ouviu quando os cristais caíram na palma de Meg.

Os olhos dela se arregalaram de prazer.

— Pensei que as tivesse perdido quando... — Ia dizer que as perdera quando passara pelo portal. Refreou-se, e em vez disso, emendou: — Na floresta.

— Foi onde as encontrei. — Connor adorou vê-la feliz por ter os cristais de volta. Recordou-se de que a encontrara completamente nua. Não apenas não tinha outros pertences; não tinha roupas.

— Contente?

— Sim! Obrigada por me devolver, milorde.

— Não reconheci os símbolos.

— São muito antigos. Estão em minha família faz um longo tempo. — Parou, ao se dar conta do erro estúpido. — Pelo menos, é o que creio.

Era próximo da verdade, com umas poucas omissões, já que não poderia mentir, nem se atrever a contar tudo a ele.

Connor assentiu, pelo visto satisfeito. Mesmo assim, notara a hesitação dela.

— Vai me prometer não andar pelos parapeitos.

— Prometo. E você deve tomar cuidado também. Eu não gostaria que caísse de alguma grande altura.

Ela pretendia fazer uma piada. Porém, Connor franziu a testa, numa ruga profunda, que lhe alterou as feições. Meg o zangara, de alguma forma.

Num rompante, ele a puxou contra si e deslizou a mão direita para a nuca de Meg. A esquerda enterrou-se pelos cabelos dourados. Antes que ela pudesse piscar, antes que conseguisse até mesmo pensar, Connor inclinou-lhe a cabeça para trás e cobriu-lhe a boca com a sua.

Meg ficou estupefata. Não estava preparada para aquilo. Foi tomada apenas por emoções desencontradas, experimentando a boca de Connor, doce, vibrante e quente.

Faltou-lhe energia. Não poderia pôr um fim àquilo ou empurrá-lo, se tentasse. Sentia-se consumida por algo que jamais imaginara existir. Estava indefesa como quando ele a encontrara pela primeira vez na floresta.

Seus braços adquiriram vida própria, e Meg se agarrou a Connor.

Era violento, apavorante e espantoso. E terminou tão rápido como começara, quando Connor a afastou de si, tão aturdido quanto ela.

Meg soube disso ao ver-lhe os olhos, o rosto, e ao ouvi-lo praguejar, baixinho, algo entre a agonia e a impotência.

Tomada de um impulso, tomou a iniciativa e beijou Connor.

Ele a empurrou para longe e se levantou, sem uma única palavra. Encarou Meg, infeliz, e em seguida se foi.

Meg permaneceu estática na cadeira até que, enfim, sentiu o retorno de Dannelore.

— Você está bem?

— Não há nada errado — Meg assegurou, mas quando tocou os lábios com a língua, ainda estava lá o gosto de Connor. No mais profundo de seu íntimo, sentia o calor que fora aceso com aquele beijo.

Os homens de Arthur se preparavam para a jornada até a Abadia em Amesbury, para conseguir a libertação de lady Ygraine e lady Morgana. A distância, no canto oposto do pátio, como se separados por um muro invisível, os soldados de Connor estavam quase prontos para empreender viagem.

— Não há nada que eu possa dizer que o faça mudar de idéia, Connor?

— Você conhece meus sentimentos, Geoffrey. — Enfiou uma manta num saco de couro que já continha rações de comida. Ao se endireitar, lançou um olhar para as janelas do segundo andar do salão.

— Esperava poder mudá-los — Geoffrey admitiu, com um leve sorriso. — Está errado a respeito de Arthur, e sabe disso.

— Não vejo assim.

— Não é prova bastante que ele tenha voltado? Olhe a seu redor, para os homens que já vieram aliar-se a ele.

— E quanto aos que morreram sem necessidade nas mãos de Maelgwyn e Aethelbert durante anos, enquanto ele esperava, no estrangeiro?

— Não finjo conhecer as razões que o mantiveram longe, Connor, mas confio nele quando diz que era necessário.

— Esse é o feiticeiro falando, isso sim. E até que ponto se pode confiar num homem que alguns dizem que não é um homem, afinal, mas é a prole do demônio?

— Isso são histórias de gente supersticiosa, velhas e criancinhas que acreditam em dragões. O agora é que é importante. Arthur está aqui, e eu creio que é o único que poderá unir toda a Bretanha. O povo acredita nisso também, ou não teria vindo.

— Gostaria de poder dizer algo que o convencesse a não ir. Arthur esteve longe por muito tempo. Não conhece Maelgwyn como nós. Não está pronto para isso. Talvez nunca esteja. Receio aquilo que o aguarda, meu amigo — replicou Connor.

— Mais uma razão para termos conosco cada bom soldado em Amesbury! Junte-se a nós, Connor. Sei que lutou uma longa batalha. Como diz, você, acima de todos, conhece a mente e o coração de Maelgwyn, pois o enfrentou várias vezes em combate. Arthur precisa de você. Connor fez um esgar de desprezo.

— Em minha opinião, Arthur necessita apenas ter consigo seu feiticeiro.

— O conflito entre vocês é antigo. Não posso resolvê-lo em seu lugar. Esperava apenas que pudesse colocar isso de lado por uma causa maior.

— Seguirei a trilha de Maelgwyn na floresta. com o tempo clareando, ele se colocará em movimento. — Connor envolveu o amigo pelos ombros num abraço fraternal. — Cuidado com o que acontece a suas costas, meu amigo.

— E você também.

Os portões foram abertos, e Arthur saiu com seus homens, tendo Merlin a seu lado na vanguarda dos guerreiros montados. Os demais iam a pé.

— Quais as ordens? — Simão perguntou, ao se reunir a Connor. Lançou um olhar cauteloso para os guerreiros que partiam.

— Estaremos em Shepston ao cair da noite. — Connor guardou o mapa que fizera. — Depois, pegaremos a trilha dos assaltantes de Maelgwyn na floresta, com as primeiras luzes do dia.

Assobiou para o cão de caça de longas pernas e foi com ele até o portão de Caerleon, tomando rumo leste, em direção às colinas distantes.

Mantiveram um passo firme e se aproximaram de Shepston pelo meio da tarde. A vila ficava na curva do rio Tye, rodeada por colinas onduladas. Era um pequeno enclave de cabanas de teto de palha que se espalhava numa curva abrigada do rio. A encosta que a rodeava era coberta de rochas dispersas, algumas mais altas que um homem, e inadequada para a lavoura. Mas ovelhas não se importavam com pedras.

Dax farejou algo e lançou-se para adiante. Voltou depressa, inquieto e ansioso ao se aproximar de Connor.

— O que é, Dax?

Num único movimento rápido e fluido, Connor saltou no chão e tirou a espada da bainha, a suas costas. Seus homens fizeram o mesmo. A um sinal, eles o seguiram pelo curso do rio até Shepston. Ao contornarem a curva, o cão começou a rosnar, desassossegado.

Os olhos do velho Radvald se estreitaram quando ele ergueu o rosto na direção do vento.

— O ar tem cheiro de morte. Foi isso o que Dax farejou. Connor sentiu também aquele inconfundível odor de carne podre.

— Sim — murmurou, e com outro sinal, mandou que metade de seus guerreiros subisse a margem até o topo da colina que dominava Shepston. Melhor ver de terreno alto para onde se caminha do que descobrir tarde demais.

A outra metade atravessou o rio raso. Connor, com toda a cautela, avançava na direção da vila, ao longo da margem.

Seus sentidos se aguçaram. O silêncio era absoluto. Nenhum bicho se mexia, nem um único passarinho cantava. Ovelha alguma pontilhava as colinas. Voz nenhuma se ouvia. Nada de fumaça de fogão espiralando pelas chaminés nos tetos de palha.

Sobre a colina que dominava a vila, seus homens indicavam que nada fora visto.

Entraram na primeira cabana. Estava escuro dentro, e o fedor era quase insuportável.

— Uma tocha! — Connor ordenou.

Bateram uma pederneira, que soltou faíscas, e um molho torcido de palha logo pegou fogo. Um dos homens ergueu-o ao alto.

— Jesus! — exclamou, e quase deixou cair a tocha de palha.

— Firme, rapaz! — Radvald encontrou uma vela de sebo, colocou-a sobre um prato de metal, pegou o tufo de palha e a acendeu.

A claridade encheu a pequena casa e revelou o cenário de horror ali dentro.

Pai e filho tinham sido brutalmente torturados. Achavam-se amarrados nas cadeiras, os braços atados para trás, os pés presos pelos tornozelos. Seus olhos haviam sido arrancados, e as línguas, cortadas. As gargantas tinham sido abertas, e as línguas, decepadas, enfiadas no buraco no pescoço.

— Por que alguém faria uma coisa dessas?! — O jovem guerreiro empalidecera.

— É um aviso — Radvald traduziu a mensagem horripilante. — Quanto a dar informação ao inimigo.

— Que inimigo? Esse povo não tinha inimigos.

— Maelgwyn... — Connor sussurrou, e olhou para o jovem guerreiro, que parecia prestes a vomitar.

Tinham visto muitas atrocidades nos anos em que lutaram juntos, mas nada como aquilo.

— Diga aos outros o que encontramos, depois se junte a Simão na colina acima. — E, lembrando-se do aviso de partida de Geoffrey, emendou: — Cuidado com a retaguarda.

Do lado de fora, espalhou-se a informação de atrocidades semelhantes em outras cabanas. Ninguém fora deixado vivo.

A vila era pequena, meia dúzia de cabanas, todas dentro de um raio de cem metros. Connor acocorou-se no chão lamacento.

— Algo está errado aqui. — Levantou-se de repente e começou a caminhar devagar, ordenando aos soldados que ficassem onde estavam. Apenas Radvald foi com ele.

Examinou o chão enlameado diante de cada uma das cabanas. Havia marcas de pegadas na lama cheia de argila.

— Houve um propósito para tudo isso. — Connor agachou-se do lado de fora de uma casa e apontou para um conjunto de pegadas. — Diga-me o que vê, Radvald.

— Marcas de botas. Muitas.

— Alguma marca diferente?

— Ei, do que está falando? — O velho olhou mais de perto. — Um corte dentado no calcanhar de uma delas.

— Sim, e neste par de marcas desiguais. E veja aqui. — Indicou outra área bastante pisoteada.

— O calcanhar dentado e o par desigual, marcado várias vezes.

— O mesmo em cada cabana por que passamos.

— Quantos homens, então?

— Não mais que uma dúzia, mas as pegadas foram feitas para parecer que eram quatro vezes esse número. Por que se a dar a todo esse trabalho para disfarçar?

Radvald deu de ombros.

— Sabiam que nós os seguiríamos. Queriam que pensássemos que são mais do que de fato são.

— Não. Querem que pensemos que todos fugiram de volta para a floresta, mas foi apenas um punhado deles. As marcas que encontramos foram feitas por não mais que uma dúzia.

— Onde estão os demais?

O olhar de Connor aguçou-se. Pôs-se de pé e mandou que meia dúzia de seus homens procurassem por rastros que se afastavam da vila na direção oposta.

O resto da vila foi revistado. Enquanto isso, os outros guerreiros retornaram.

— Quais as novidades? — Connor quis saber.

— Achamos rastros várias centenas de metros a leste da vila.

— Quantos?

— Pelo menos vinte. Nenhum igual ao outro. Viajavam leves e depressa, com não mais que meio dia de vantagem.

Connor meneou a cabeça.

— Aqueles corpos não têm mais que meio dia.

— O que tem em mente? — perguntou Radvald.

— Um punhado de atacantes de Maelgwyn ruma para a floresta de Cadmon.

— E os outros? Para Caerleon?

— Arthur não está em Caerleon. — Connor encarou Radvald. Seus lábios se estreitaram.

— Constantino decidiu compartilhar a sorte com Maelgwyn. O devotado bispo e o carniceiro pagão... Arthur estará interiorizado, sem aviso do que o espera.

— Sim, e Geoffrey e seus homens também. — Connor meneou a cabeça.

Simão viera se juntar a eles e aguardava ordens para partir para a mata.

— O que fará, Connor?

— Partiremos para a abadia, Radvald! — Connor exclamou, sem fazer a menor tentativa de esconder a amargura diante de tal decisão.

— A abadia?! — Simão reclamou. — Enquanto os homens de Maelgwyn fogem para a floresta?! Você se juntou a Arthur, afinal?

— Não nos juntaremos a Arthur. Vamos salvar um amigo. Quanto à vila e aos mortos, ordenou a seus homens:

— Queimem tudo!

Dannelore observara sua ama. Desde a véspera, Meg se mantinha calada e retraída, a mente fechada. Espalhara os antigos cristais diante de si sob a luz de uma lamparina. Só os dotados viam as mensagens contidas neles. Dannelore nunca possuíra tal habilidade.

Meg passou a mão de leve sobre cada pedra, deixando o poder fluir pela ponta dos dedos. A luz faiscou dentro do núcleo de cada uma, crescendo em intensidade conforme ela as tocava, murmurando uma evocação em idioma antigo.

Viu a cruz venerada do deus dos mortais, o brilho de espadas, e olhos frios e cinzentos a fitá-la das profundezas do cristal.

— Eles seguiram Arthur, e estão todos em perigo — murmurou, ao roçar os dedos sobre outro cristal.

De repente, Meg soltou um grito e afastou a mão.

— O que foi? — indagou Dannelore, ansiosa. — Pelos Anciãos! Você se cortou! — Apanhou um pano de linho e conteve o sangue que escorria de Meg.

Mas, quando tirou o pano, não havia nenhum corte. Mesmo assim, gotas de sangue se formavam nas pontas dos dedos dela e pingavam sobre os cristais.

— O sangue veio da visão que tive.

Dannelore olhou para as pedras espalhadas diante de sua ama.

— O que viu? Meg a encarou.

— A morte.

Ela tremia. Visões premonitórias no cristal na forma mortal em que se transformara eram novidade.

— O bispo não soltará lady Ygraine e lady Morgana. Não as recolheu para protegê-las — explicava para Dannelore. — Deteve-as porque quer Arthur, e matará qualquer um que se interponha em seu caminho.

— Merlin protegerá Arthur. Não há nada com que se preocupar.

Dannelore jogou vários gravetos sobre os carvões, alimentando as labaredas. Mas, mesmo assim, Meg tremia, a despeito do calor que se irradiava do braseiro. Foi quando viu de relance a janela aberta.

A tramela fora removida. Uma das venezianas se abriu. Uma nuvem de neblina parecia pairar suspensa no parapeito. Então, como se movida por alguma corrente invisível de ar, desapareceu do beiral. Dannelore correu para lá.

Amanhecia. O sol acabara de subir no horizonte.

— Isso é loucura, Connor! Vai arriscar nossa vida por Arthur?!

— Não é por Arthur, Simão. Não abandonarei um amigo e deixarei que vá para a morte sem necessidade. E você se esquece de que Geoffrey salvou sua vida em mais de uma ocasião.

— Sim, reconheço. E sempre pensei que ele fosse são da cabeça. Mas aliar-se a Arthur é loucura. E se eu não quiser ir?

— Eu lamentaria sua ausência — disse Connor, com sinceridade. — Mesmo assim, cada homem aqui sabe que pode tomar seu próprio caminho se o quiser.

Os olhos de Radvald se estreitaram ao estudar Connor, que se virou e se afastou com longas passadas. Um por um, seus homens o acompanharam. Todos, exceto Simão.

— Sabe que é provável que paguemos por isso com nossa vida, velho — Simão se dirigia a Radvald.

O nórdico deu de ombros.

— Talvez. Creio que é por isso que somos chamados guerreiros. — Então, girou nos calcanhares e desapareceu na trilha, atrás dos companheiros.

Simão soltou uma praga de desgosto. Então, pôs no ombro o odre de água. Foi o último a atravessar o riacho e seguir a trilha.

— Encontramos guardas aqui, aqui e aqui — Agravain indicava pontos no mapa desenhado no chão, em torno do qual Arthur e seus homens se reuniam.

Custara-lhes dois dias de jornada para chegar à Abadia de Amesbury, pois mais da metade deles estava a pé.

— A torre também é guardada, além dessa muralha externa.

— Número total de guardas? — Arthur quis saber.

— Uma dúzia, pela nossa contagem, mais aqueles posicionados em campo.

— O que conseguiu apurar? — perguntou a um dos homens que viera de uma vila próxima após a chegada do grupo, na noite anterior.

— O bispo levou todos os homens para a abadia para servi-lo, e exigiu lealdade de suas famílias sob ameaça de perderem a vida. Pelo menos quarenta moradores da vila e da região vizinha.

— Isso pode ser útil quando chegar a hora. — Arthur suspirou. — Você se saiu muito bem. Descanse e coma.

Quando eles se afastaram, Arthur voltou a contemplar o mapa.

— Você ouviu, Merlin?

O mago se achava recostado num tronco de um velho carvalho, os braços cruzados no peito.

— Sim. E há uma quantidade desconhecida de homens leais ao bispo dentro da abadia. Qual é seu plano?

— Negociar a libertação de lady Ygraine e minha irmã.

— E se fracassar?

Arthur se levantou.

— Lembro-me bem de Constantino. Ele não é conhecido por usar palavras onde uma espada possa fazer um trabalho melhor. E seu poder cresceu muito. O que alguns homens podem fazer em nome de Deus! — Ergueu as mãos para o firmamento. — Teremos de entrar na abadia. Não temos nem os homens nem as armas para um cerco prolongado.

Merlin concordou.

— Todavia, é arriscado entregar a Constantíno aquilo que ele mais quer entrando lá.

— Sim, e nem todos nós iremos. A maioria ficará para trás e forçará a entrada aqui. — Arthur apontou o local na muralha dos fundos. — Existe uma rota de fuga aqui, perto da beira da floresta. Lembro-me dela, das ocasiões em que lady Ygraine visitava o bispo Alexandre, antes de Constantíno. Enquanto ela se reunia com o bispo, eu perambulava pela abadia, e descobri a passagem. Certa vez, ao darem por minha falta, os guardas de minha mãe me encontraram no alto de uma árvore dentro da mata.

— Estarei a seu lado quando você entrar na abadia, milorde. E como escaparemos?

— Do mesmo jeito que entrarmos. Não partirei sem lady Ygraine e lady Morgana. Se devo liderar minha gente contra Maelgwyn e outros como ele, haverei de começar aqui.

— E se falharmos?

— Diga-me o que vê, conselheiro?

— Sangue e morte.

— Minha morte?

— Não me pergunte isso. Arthur segurou-lhe o braço.

— Vê minha morte? — insistiu.

Merlin vira tudo de uma só vez, o futuro inteiro traçado como uma estrada pela qual uma jornada deveria ser iniciada e concluída.

— A trilha de sua existência se estende bem adiante, meu amigo, além da abadia de Amesbury.

Seria o máximo que lhe diria. E o resto? Talvez fosse possível mudar os acontecimentos vindouros.

— Ótimo, Merlin. De qualquer modo não estou pronto para morrer. Afinal, tenho ainda de edificar meu reino.

Os preparativos foram feitos; os planos, estabelecidos.

Túnicas e armas foram colocadas em galhos para fazer parecer que uma força muito maior aguardava pelo retorno de Arthur. Geoffrey e um contingente de guerreiros, sem suas túnicas, alcançariam a entrada da porta do monge. Um punhado de homens, inclusive Merlin, acompanharia Arthur pelos portões principais da abadia.

Arthur e os seus cavalgaram para a abadia sob o estandarte da Casa da Cornualha e com armas embainhadas. Receberam ordens de parar pelo guarda no topo do portão.

— Venho visitar lady Ygraine, duquesa da Cornualha. — Arthur não fez menção a Caerleon ou à destruição encontrada ali.

— Quem deseja visitar lady Ygraine? — o guarda perguntou.

Arthur e Merlin trocaram um olhar. Não houvera nenhuma tentativa de negar a presença da duquesa na abadia.

— Seu filho, Arthur da Cornualha. Merlin mantinha o olhar atento na torre.

O guarda desapareceu, e outro assumiu seu posto. Longos minutos se passaram até que o primeiro guarda retornou.

Ordenou-lhes que desmontassem e deixassem as armas, que não eram permitidas na casa de Deus. Arthur e Merlin trocaram outro olhar. Tão poucos em número, desprovidos de suas armas, seriam presa fácil para Constantino. E se o bom bispo também aprisionasse Arthur de Caerleon, seu poderio estaria completo.

— Façam o que ele pede — Arthur disse a seus homens.

— Não gosto disso... — Agravain murmurou, por entre os dentes, conforme desmontava, deixando a espada atravessada na sela.

— Nem eu — confessou Arthur, ao fazer o mesmo. Então, com uma piscadela para seus soldados, ele escondeu um longo punhal dentro da manga da túnica. Os outros o imitaram.

Um dos guerreiros recebeu ordens de ficar com os cavalos, e se juntar aos outros à beira da floresta ao primeiro sinal de problemas. Em seguida, Arthur e Merlin passaram pelo portão da Abadia de Amesbury.

Assim que entraram, o portão se fechou atrás deles.

O pequeno pátio fechado, a entrada do saguão da abadia, e as janelas da torre superior estavam completamente tomados pelo contingente que usava a insígnia do bispo nas frentes de suas túnicas e portava espadas nas bainhas, presas aos cintos.

— Aparências piedosas, não têm? — Merlin comentou, bem baixo, ao avaliarem a situação. — São estranhas as coisas que os homens fazem em nome da religião.

Um homem calvo, de capa ampla com uma cruz dourada pendente do pescoço, se apresentou:

— Sou o irmão Tomas. Fui encarregado de levá-los a Sua Reverendíssima, o bispo.

— Lady Ygraine estará lá também? Espero que minha mãe esteja bem.

Não houve resposta. O irmão Tomas seguiu rumo ao saguão da abadia. Mais guardas apareceram nas muralhas acima deles.

— Estamos cercados, Merlin?

— Completamente, milorde.

O saguão da abadia parecia bastante com o da lembrança de Arthur, com paredes de pedra, piso de terra batida e uma lareira central onde o fogo queimava num débil esforço para expulsar o frio que doía os ossos.

Diferente era a plataforma elevada ao fundo, a cadeira de espaldar alto, muito semelhante a um trono, na qual o bispo Constantino se sentava, a aguardar com ar imperial a chegada dos visitantes. Ou, pelo menos, dava a impressão de aguardálos. Até que se deram conta de que havia várias outras pessoas no átrio, a esperar por uma audiência com Sua Reverendíssima.

O bispo fazia parecer que presidia à corte, ministrando justiça como ele a encarava sobre aqueles que a tinham infringido, de uma forma ou outra. Era como o senado aberto em Roma.

Merlin expandiu seus sentidos e os projetou para longe, para cada canto da abadia, procurando inimigos, artimanhas e mentiras. Lady Ygraine e lady Morgana estavam lá. Mas algo estava errado. Muito errado.

— Tenha cuidado com o que diz, Arthur — Merlin avisou, quando o último suplicante infeliz foi conduzido para longe. — Lembre-se, não era a captura de lady Ygraine que ele queria, mas a sua.

— E quanto a Geoffrey?

— Está aqui dentro.

Então, o bispo cumprimentou Arthur.

— Adiante-se, Arthur de Caerleon — disse ele, como um rei a conceder favores. Em seguida, como se já não soubesse a razão: — O que o traz a Amesbury?

Naquele momento, uma lufada de bruma matinal derramou-se sobre as muralhas da Abadia de Amesbury. Os guardas não se deram conta de que algo passava por eles, um espírito feito de raios de sol e névoa, que entrou na abadia não obstante as portas trancadas e as espessas muralhas.

Meg insinuou-se para dentro do átrio. E ali, oculta pelas sombras e pelo poder da transformação, encontrou Arthur e Merlin. Em silêncio, ficou a observar das sombras.

Soube que Arthur e seus homens se achavam cercados, inferiorizados em número e desarmados. Contudo, ele confrontava o bispo sem temor, com dignidade.

— Sou muito grato por sua hospitalidade para com lady Ygraine — Arthur começou, com diplomacia e muita calma. — Vim para acompanhá-la, bem como a lady Morgana, de volta a Caerleon, agora que o perigo passou.

— Sua gratidão foi registrada, contudo é minha crença que lady Ygraine estará muito mais bem protegida sob meus cuidados. E, além disso, ela manifestou sua intenção de tomar o véu.

— Mais razão para que retorne a Caerleon por algum tempo, para ter certeza de sua escolha — retrucou Arthur. — É uma decisão muito séria. Sua gente preocupa-se com a proteção e a boa saúde dela. Sempre foram muito leais a lady Ygraine. com a região inteira em guerra, creio que seja uma questão de boa vontade acalmar-lhe os temores e aflições, visto que Caerleon fica tão perto de Amesbury.

— A senhora não tem dúvida do que quer, eu lhe asseguro.

Já tomou a primeira instrução como uma nova postulante. Farei com que escreva uma carta a eles, assegurando-lhe de seu bem-estar e da escolha que fez.

— Ah, a gente de Caerleon não é educada... Não sabe ler.

— Sim, sim, camponeses ignorantes! — O bispo meneou a cabeça, com total menosprezo.

— Não é educada, porém não ignorante. Pediram que eu falasse com milady em nome deles. São assuntos de grave relevância.

O bispo se perturbou. Não era dotado do poder dos antigos. Meg teria sentido isso de imediato, se ele fosse um espírito afim. Será que talvez possuísse os poderes sombrios? Não sentia nada disso, também. No entanto, Constantino escondia alguma coisa.

As escadas em caracol que conduziam do átrio para o alto, dentro da torre, atraíram sua atenção. Lady Ygraine estava lá. Meg se moveu, sempre sem ser notada.

A torre tinha apenas dois aposentos. Um pequeno, no primeiro patamar, e um maior, no topo das escadarias. Foi no menor que intuiu a presença de lady Ygraine.

Estranho... com tantos guardas embaixo, não havia nenhum ali. Captou a presença de dois humanos, mas havia algo estranho e desconcertante que a confundiu. Esgueirou-se pela porta.

Ao emergir do outro lado, viu que estava insuportavelmente frio dentro do aposento. Quase não tinha mobília. Não havia lareira ou braseiro. Apenas um catre estreito e erguido no centro, e duas velas enormes nos altos castiçais de metal em cada ponta.

Aproximou-se do catre e achou uma mulher deitada ali.

Naquelas feições, Meg reconheceu a semelhança com Arthur. Havia uma elegância inerente à dama, que contrastava com o vestido simples de lã desgastada que usava. Uma das mãos descansava sobre o peito, a outra, ao lado do corpo.

Meg buscou-lhe os pensamentos, mas não houve resposta. Então, estendeu o braço e tocou lady Ygraine. De imediato, puxou a mão para trás.

Não havia nenhum calor humano. Meg franziu a testa, confusa.

Sentiu alguém à soleira, e mal teve tempo suficiente para se esgueirar para as sombras, quando a porta se abriu. Uma jovem esbelta entrou. Aproximou-se, a fitar a mulher, até se postar ao lado dela, ainda com os olhos fixos na criatura imóvel.

— Ele está aqui, mãe. — Sua voz estremeceu entre a tristeza e o riso. — Depois de todos esses anos, Arthur retornou. Mas chegou muito tarde, não é? Seu precioso filho! O escolhido? O soberano de toda a Bretanha? — a jovem especulava. — Receio que não. Agora mesmo, Arthur pode ser assassinado no saguão lá embaixo.

De repente, ela girou ao redor.

— Quem está aí?

Era bonita, com cabelos negros como a asa de um corvo, pele pálida, olhos pretos de um brilho liqüefeito, com uma ligeira semelhança com a dama no catre. Meg deduziu que aquela deveria ser lady Morgana, a irmã de Arthur.

— Há alguém aí?

Morgana tirou uma vela do suporte e ergueu-a, mantendo-a diante de si de modo que a luminosidade alcançasse a parte escura do quarto.

Nada encontrou. Mas, ao se voltar para o catre e devolver a vela ao castiçal, um golpe de ar frio atingiu seu rosto.

Meg chegou ao átrio da abadia. Naquele momento, a tensão atingia o ponto de ruptura. A voz do bispo se alterara pela raiva:

— Lady Ygraine está reclusa.

— Pode dizer a ela que vim vê-la.

— Receio que isso seja impossível, Arthur.

— Insisto. Exijo ver lady Ygraine.

— Você nada pode exigir!

Constantino fez um sinal, e os guardas começaram a vir na direção de Arthur e seus homens. Todos sacaram suas armas escondidas nas túnicas e se postaram, prontos a enfrentar a força do bispo.

Quando um guarda investiu contra Merlin com sua espada larga, foi recebido com um soco na barriga, seguido por outro de partir os ossos na face.

O homem cambaleou para trás, o sangue a espirrar do nariz. Merlin tomou-lhe a espada, jogou-a para Arthur, e voltou-se para defrontar o próximo atacante.

Meg nunca vira uma batalha. Era chocante e terrível. Receou pelo resultado daquela refrega.

Invisível aos olhos mortais, era fácil para ela movimentar-se entre eles. Quando um dos guerreiros de Constantino investiu em sua direção, ela concentrou as energias e o fez rolar de costas para trás. Quando outro caiu e perdeu a espada, tornou a concentrar sua força e fez a espada deslizar pelo chão de terra para as mãos de um dos soldados de Arthur. Mas, mesmo com seus poderes e os de Merlin, não poderiam resistir por muito tempo.

Arthur lutava com ferocidade e surpreendente confiança.

Confiante demais, ela pensou, para alguém que estava tão grandemente superado em quantidade.

Foi quando sentiu a razão de tal confiança: mais de seus guerreiros entraram na abadia.

Mas algo continuava errado. Meg abriu os sentidos e viu que os guerreiros de Arthur encontravam resistência.

Em seu pensamento, viu a porta oculta atrás do altar. Estava entreaberta, e recebeu um alerta silencioso. Os guerreiros de Caerleon tentaram entrar pelo caminho do monge e caíram direto nas garras de vinte dos soldados de Constantino.

A guarnição de Caerleon não resistiria por muito tempo. Sem ajuda, Arthur e seus homens estariam condenados. Pela primeira vez em sua vida, Meg sentiu-se impotente. Tinha apenas seus poderes. Seus poderes...

Então, recolheu-se a seu íntimo, atraindo os poderes da Luz. Transformou-se numa única chama trêmula que de repente explodiu num inferno flamejante. E a tempestade de fogo se espalhou entre os soldados de Constantino. Gritos e berros de alarme soaram.

O fogo varreu a passagem, lambendo paredes, uma explosão de luz dourada que chegava ao teto, coleando, ondulando como uma serpente azulada ao longo do solo.

Os adeptos de Constantino espalharam-se por todas as direções e, no estalar das chamas, muitos julgaram ouvir o som de uma suave gargalhada.

Meg arrojou-se para a luminosidade do sol ao final da passagem numa chuva de bruma dourada, transformada mais uma vez, ao se esgueirar por entre os homens de Caerleon. Dera-lhes tempo precioso, embora fosse pouco. Os guerreiros de Constantino logo voltariam e retomariam a luta.

No interior da abadia, o poder de Merlin protegia Arthur e Os demais. Porém, de súbito, aconteceu algo que Merlin não previra.

O bispo se armara e se acercara do feiticeiro. A lâmina pegou Merlin de lado, abrindo uma fita de carne que desceu de suas costas até os quadris.

Merlin ficou estupefato. A dor o trespassou, fria como gelo. O golpe o aturdiu. Quase caiu de joelhos, mas reagiu.

Fora da abadia, Meg viu o que Arthur não poderia ver, e talvez nem mesmo Merlin tivesse consciência. O resto dos homens de Arthur enxameava nos portões, mas não conseguia ultrapassá-los. Se não entrassem, todos os companheiros lá dentro pereceriam.

Connor e seus homens seguiram os sons da batalha ao chegarem à beira da mata. Cortava o ar gelado, e provocou um nó de pavor em suas entranhas, conforme avançavam.

A fumaça espiralava em rolos cinzentos sobre a abadia, os guerreiros de Arthur tentando em vão arrombar os portões. Mas nem Arthur, nem Geoffrey estavam entre eles.

Connor deu ordens a seus guerreiros. Cordas com ganchos de metal foram desenrolados, a única esperança de penetrar por aquelas muralhas. Então, com espadas e machados de guerras sacados, juntaram-se ao combate.

Meia dúzia de ganchos de metal amarrados a cordas foi lançada sobre o topo das ameias.

Três foram cortados de imediato, derrubando os escaladores no meio da confusão abaixo. Dois homens chegaram ao topo, e ambos lutaram muito, antes de caírem feridos. O sexto conseguiu chegar ao topo. Outros o seguiram e a batalha continuou ao longo dos parapeitos.

Então, de repente os portões se abriram. com um grito de guerra, Connor e seus homens investiram para dentro da abadia, abrindo caminho à força pelo átrio. Connor lutava, furioso. Então, ouviu um sussurro.

-— Atrás de você!

Connor desviou-se por instinto e girou o corpo para bloquear um ataque que não vira. Tinha consciência de outro guerreiro que lutava a suas costas, a lhe dar cobertura.

Quando outro ataque veio de sua esquerda, o guerreiro deslocou a espada, empurrou o atacante para trás e o traspassou. Quando um golpe inesperado aturdiu o outro soldado de costas, Connor desviou-se de novo e abateu o atacante. Quem quer que fosse o guerreiro, lutava sem medo.

Olhou para a máscara pintada na face do bravo desconhecido que lutara com tanta coragem a seu lado e lhe salvara a vida. Connor não o reconheceu. Ele não usava as cores branca e vermelha dos guerreiros do bispo, nem se tratava de um dos homens de Arthur. Era alto e magro. Marcas incomuns foram pintadas por sua face, tornando impossível discernir suas feições, mas a espada que empunhava era diferente de qualquer uma que Connor vira alguma vez. Luzia como fogo azulado.

— Eu lhe devo a vida — disse Connor.

— Como devo a minha a você. — E o guerreiro se virou e desapareceu entre os homens em combate.

Connor abriu caminho na direção de Arthur.

”Onde estão os outros?”, pensou, procurando pelos soldados conhecidos. Nem Geoffrey, nem seus homens se achavam entre eles.

— Vá até a capela.

As palavras soaram tão claramente como se alguém lhe falasse ao ombro. Mas quando Connor fez meia-volta, não avistou ninguém por perto.

Não havia tempo para questionamentos, contudo. Assim, Connor chamou uma dúzia de homens e rumou para a capela.

Conhecia a passagem do monge muito bem. Ele e Arthur brincavam ali com freqüência, para evitar as longas horas das preces da tarde, quando lady Ygraine visitava a abadia.

Encontrou a porta aberta atrás do altar. Foram por ali e encontraram os homens de Constantino onde a porta do monge se abria para a floresta. Lá, o curso da batalha mudou quando seus homens se juntaram aos de Geoffrey e se fecharam em torno dos guerreiros do bispo.

Quando o último dos soldados de Constantino depôs a arma, um guerreiro solitário foi visto recortado pela luz das tochas do outro lado da passagem. Ergueu a espada numa saudação final, deu-lhe as costas e desapareceu.

Dannelore sentiu uma presença no momento em que entrou no quarto escuro, em Caerleon.

Acendeu uma vela ali perto. A luz se espalhou assim que a chama cresceu.

Havia uma forma agachada perto da abertura da janela. A veneziana estava aberta.

Ao chegar mais perto com a vela, viu os ombros curvados, a cascata de cabelos dourados e os braços delgados abraçados aos joelhos.

— Bendito sejam os Anciãos! — Dannelore exclamou, com fervor. — Você voltou, sã e salva! — Correu para sua ama, colocando a vela sobre a mesa próxima. — Minha menina querida... O que houve?

Meg ergueu a cabeça. Seus brilhantes olhos azuis se toldavam de sombras, e lágrimas escorriam por suas faces.

Dannelore soluçou. Nunca vira tamanha agonia e um sofrimento tão grande, vindo do fundo da alma de Meg. Na certa, nenhuma criatura imortal experimentara tais emoções. O medo penetrou-lhe o coração.

— O que foi? Onde esteve? O que viu? Meg se esforçou para falar, mas não foi capaz. Quando passara pelo portal para o mundo dos mortais, seu desejo era experimentar a vida. Imaginara, incontáveis vezes, como seria. No entanto, não fora preparada para aquilo que vira e experienciara em Amesbury: a luta feroz, o combate desesperado, o ódio, o sangue e os gemidos dos moribundos. Aprendera que havia outra face da vida — a morte —, e fora parte do aprendizado. As imagens ficaram entranhadas dentro dela, gravadas em sua memória e marcadas para sempre em sua alma.

 

A vitória em Amesbury foi vazia. Quando a notícia chegou a Caerleon, souberam que lady Ygraine estava morta.

Era de Arthur o pesar mais profundo. Passados tantos anos, ele voltara para encontrar seu lar destruído. E agora aquela perda.

Em questão de dias, os primeiros dos homens de Arthur retornaram. Houve baixas e muitos feridos. O povo de Caerleon, que continuava a chegar quase todos os dias apesar do mau tempo, ajudou a cuidar dos doentes.

Cada par de mãos em condições foi colocado para trabalhar. Um ferreiro arrumou sua forja e começou a fazer flechas de pontas de ferro e malhar o metal para espadas e lanças. Vinham carroças com a lavoura colhida no outono para alimentar a população crescente, junto com rebanhos de ovelhas laníferas, que iriam precisar de ferragem no inverno.

Um estábulo improvisado foi construído para abrigar os animais. E reparos feitos em todas as edificações externas da fortaleza. Cabanas rústicas se espalhavam dentro da proteção das muralhas.

Meg trabalhava com todos os demais. Assumira para si o armazenamento, a escolha e marcação de todas as ervas medicinais que eram colhidas, além de providenciar instruções para seu uso apropriado.

Nunca usara palavras escritas antes, mas aprendeu depressa, com a ajuda de um monge que se uniu a eles. Ela ouvia, atenta, as explicações de Dannelore quanto ao preparo dos remédios e seus usos, e escrevia tudo num diário.

Não vira Merlin ou Connor desde aquele fatídico encontro em Amesbury. Sabia que estavam vivos, mais nada. Havia muito a fazer por ali.

Arriscara-se muito. Não tinha certeza se Connor não a reconhecera. Em dado momento, no meio da batalha, ela sentira um lampejo instintivo, no instante em que ele a fitara e julgara que a conhecia.

Será que Connor recordaria, ela imaginou. Voltaria a Caerleon? Ou continuaria a perseguir o exército de Maelgwyn?

Dannelore a encarou. Havia algo na expressão de Meg que sugeria que ela estava muito longe.

— Onde estará meu John? — murmurou, também triste.

— Talvez esteja na abadia, com lady Ygraine.

— Quem sabe...

E Dannelore nada mais disse. Assim como nada dissera ao receber as primeiras notícias da vitória em Amesbury. Não se falara de sobreviventes, apenas da morte de lady Ygraine.

— Estão aqui! Arthur chegou! — Tristão, um garoto espevitado de dez anos, correu para o herbário, gritando a plenos pulmões.

Era um dos muitos refugiados que chegara a Caerleon para se unir a Arthur. Seus pais tinham sido mortos no inverno anterior num ataque de Aethelbert. Desde então, o menino vivia da terra e das esmolas que pedia. O que lhe faltava em tamanho sobrava em entusiasmo.

Em seus calcanhares, surgiu Grendel. Eram da mesma altura, embora de temperamentos desiguais. Grendel fora designado para manter o olho em Tristão, porque era o único pequeno o bastante para caber nos esconderijos em que o menino gostava de se enfiar.

— Precisamos arrumar um lugar para os feridos. — Havia uma nota de ansiedade na voz de Dannelore. — Pelos Anciãos, não tenho idéia de onde colocaremos todos, com o telhado arrebentado, as casas de madeira queimadas e o povo a surgir de tudo quanto é lado! — E saiu do pequeno cômodo às pressas.

Meg tampou as jarras, tirou o avental amarrado em torno da cintura e rumou para o salão principal.

As portas foram abertas. Além dos degraus, era possível ver os portões de Caerleon, recém-consertados, também abertos, com Arthur e seus homens passando.

— Você queria experimentar a vida — Dannelore lhe disse. — Então, veja, isso faz parte dela. Não tem idéia do que irá vivenciar, senhora.

Sim, Meg sabia. E muito bem. Vira a luta, o sangue e a morte. Sua garganta se apertou, de repente, e os dedos agarrou as dobras do vestido enquanto observava e esperava, tomada de uma nova emoção: a esperança que substituía o medo.

Arthur e os soldados foram os primeiros a chegar, montados em seus cavalos de batalha. Ele saltou da sela, ajudou um de seus guerreiros a desmontar, e depois, com um braço em torno de sua cintura, o auxiliou a andar até o salão.

Dannelore os encaminhou depressa para dentro, onde um fogo queimava. Havia pilhas de ataduras limpas sobre uma mesa, junto com as ervas curativas que Meg providenciara. As macas estavam estendidas, prontas.

Merlin entrou em seguida, ajudando outro guerreiro, Agravain. Embora parecesse bem de saúde, Meg viu a ruga profunda e as gotas de suor nas faces do irmão.

Agravain não se ferira tão seriamente como alguns dos outros, e recusou-se a se deitar num catre. Apenas concordou que seus ferimentos fossem cuidados por uma das mulheres da vila.

Meg virou-se para Merlin, de pé, encostado na parede próxima.

— Está machucado.

— Não é nada.

— É muito mais que nada, senhor conselheiro. — A preocupação de Meg crescia a cada instante. — O ferimento ainda está minando sangue.

Ele ergueu a cabeça depressa, os olhos azuis tão parecidos com os dela agora a perscrutá-la.

— Como sabe disso?

Meg sorriu e apontou a túnica.

— As manchas, senhor. Vai me deixar olhar?

— Não é nada, já disse. Há outros feridos de maior gravidade. Talvez mais tarde. — Merlin se afastou, retornando ao pátio para prestar auxílio.

Os feridos foram sendo levados para dentro e atendidos.

Em meio à agitação, Meg ouviu um som familiar: o latido longo e uivante de um cão cinzento.

— Dax! — Meg se ajoelhou quando o cachorro correu em sua direção.

Era um cumprimento de espíritos afins, aqueles que tinham vivido e experimentado o mundo animal no qual ele se destacava em inteligência, orgulho e força bruta. E aquela força bruta quase a jogou de costas, tamanha a alegria de Dax. Mas Meg conseguiu se equilibrar, e afundou as mãos no pêlo grosso do pescoço do cão.

”Onde está ele?”, ela se indagava, uma estranha sensação de leveza a invadi-la, aliada a um bater acelerado do coração mortal.

— Está perto, não é, Dax? Você não se aventuraria a ficar muito longe dele.

Então, ouviu-o chamar o cão.

— Ei! Dax! Onde se meteu?

E Meg o avistou, a silhueta recortada contra a pálida luz do fim de tarde, à soleira. Tinha o rosto banhado em sombras. Meg não conseguia ver-lhe a expressão, mas sentia-lhe o olhar, e captou emoções que a encheram de outras, ainda mais estranhas.

Connor entrou no ambiente. Devagar, caminhou na direção de Meg.

— Dax! — tornou a chamar, e o cão saiu do lado dela, embora relutante.

Meg ficou de pé, as mãos de repente inúteis a pender dos lados, a se torcer e retorcer, nervosas, como se tivessem vida própria. Enterrou-as nas dobras do vestido.

— Tudo bem, moça? — Connor quis saber. Espantada, Meg o encarou. Parecia absurdo que pudesse lhe fazer tal pergunta, depois de tudo pelo que ele passara.

— Estou muito bem, meu senhor. — E baixou a cabeça. Atrás dele, à entrada do salão, ouviu-se um grito repentino de mulher. Era Dannelore, que correu para os guerreiros feridos que se achegavam e lançou-se nos braços de um homem tão coberto de fuligem e manchado de sangue e de sujeira da batalha que era quase impossível discernir suas feições.

Seu alvoroço quase derrubou o ferido, que se apoiava em outro, e ele teria caído se não passasse os braços em torno da encantada. Dannelore pendurou-se no pescoço do homem e o agarrou. Depois, no meio do salão, com dezenas de pessoas em torno, os dois se beijaram.

A despeito dos ferimentos, não havia nada de hesitante ou gentil naquele beijo. Era apaixonado, o homem a segurar o rosto de Dannelore entre as mãos enormes e ensangüentadas, que tremiam, a devorá-la como se ela fosse a bebida mais doce, e ele um moribundo sedento.

Lágrimas escorriam pelas faces de Dannelore. E, não obstante o ser amado estar machucadíssimo, não o cobria com gestos gentis, mas o agarrava com uma inquietude e uma loucura desabrida, da qual Meg nunca julgara que ela fosse capaz. Às lágrimas somavam-se soluços abafados e arquejos urgentes de prazer e saudade. Sons que comoveram Meg, que observava. Algo visceral, primitivo e totalmente mortal, igual o que ecoara naquele beijo, dias atrás, quando Connor partira de Caerleon.

A dor da lembrança, envolta em medo, apertou-se dentro dela.

— John... — Meg murmurou, para Connor. — Dannelore estava ansiosa por notícias dele. Esperava que pudesse se achar em Amesbury.

— Ele e os outros de Caerleon lutaram com coragem. Nossas perdas seriam maiores se não fosse por eles. — Connor então emendou, sombrio: — Lady Ygraine morreu.

— Sim, eu sei. — E se apressou em esclarecer: — Recebemos notícias antes de sua chegada. — Levou a mão para a dele, enrolada num pano ensangüentado. — Você foi ferido!

O toque o percorreu, uma quentura suave que passou pela atadura, dissipando o frio, a dor e o cansaço dos últimos dias. Seus dedos se fecharam sobre os dela, retendo-os com gentileza.

— Não é nada. — Connor afastou-lhe os dedos. — Há outros com muito mais necessidade que eu.

Meg, nesse instante, percebeu Arthur entrando no salão, com um dos homens a se apoiar pesadamente em seu ombro. Connor o ajudou a carregá-lo.

— Traga-o! — Meg passou à frente deles, indo ao encontro dos demais feridos, deitados nos catres alinhados pelo chão.

Aquele homem demandava cuidados imediatos.

Não havia mais macas perto da lareira, de modo que ela improvisou uma, tirando a manta grossa dos ombros e estendendo-a sobre a palha fresca que cobria o piso de terra.

O homem fez uma careta de dor quando Arthur e Connor o fizeram deitar-se. Tinha outros ferimentos mais sérios, Meg notou logo, com um simples toque. Libertou-o do sofrimento ao conectar a mente à dele. Pelo menos, isso poderia fazer. Os olhos do soldado se fecharam, e ele mergulhou num sono sem sonhos e sem dor.

— Moça? Ele sobreviverá?

Meg se emocionou com a preocupação de Arthur.

— Ele viverá, milorde — afirmou, com séria determinação, e faria tudo em seu poder para certificar-se disso.

Uma balbúrdia à entrada do salão principal chamou-lhes a atenção. Uma jovem esbelta postava-se em atitude régia em meio à confusão, a silhueta recortada pela luz das tochas.

— Deixe tudo isso para mais tarde! — gritou para uma das mulheres de pé, os braços cheios de pilhas de ataduras. — Você virá comigo. Estou com frio e com fome. Quero um fogo em meu quarto e que me tragam comida.

A jovem trajava um vestido azul manchado de lama, com uma túnica. Seus longos cabelos escuros estavam puxados para trás e presos numa trança grossa que caía sobre um dos ombros. E sua voz se elevou, numa irritação incontida:

— Todos aqui são ignorantes? Façam o que eu mando!

— Obrigada por sua gentileza, moça — Arthur agradeceu a Meg, ao se levantar e ir ter com a jovem, cada vez mais agitada.

Foi então que Meg a reconheceu. Era a mesma dama que vira em Amesbury: Morgana, a meia-irmã de Arthur, raptada com lady Ygraine quando Caerleon fora atacada por Constantino.

Não tinha tempo a perder com a irmã de Arthur. Assim, concentrou-se na tarefa em mãos.

Connor agachou-se ao lado do catre e ficou a observá-la. Meg tirou a túnica ensangüentada do guerreiro. com toda a delicadeza removeu as ataduras emplastradas de sangue, sujeira e pedaços de carne. Ela não se acovardou ou empalideceu.

Demonstrava uma calma que parecia fluir pelos dedos, tranqüilizando o homem deitado ali.

Connor achou que nunca mais a veria, ao partir de Caerleon. Mas, a cada passo que o levava para longe, mais forte se tornava a lembrança da esbelta criatura desnuda que encontrara na floresta, ferida por sua própria flecha; das vezes incontáveis que ele irrompera pelo quarto, em Caerleon, ficara olhando Meg dormir, rezando para que vivesse; da sensação da pele dela ao se separarem, como cetim cálido, os cabelos como seda dourada a lhe roçar pelo braço; do som espantado que ela deixara escapar e do olhar confuso quando a beijara.

E o gosto dela. Como mel banhado de sol, a lhe preencher os sentidos e a lembrança com um doce fogo.

Queria nunca mais ter de deixá-la.

Aquilo o aturdiu, ressoando através de seu íntimo até os ossos. Houvera tantas partidas, tantas mortes, tantas perdas em sua vida...

Aprumou-se de repente, importunado pelos sentimentos.

— Precisa de alguma coisa? — disse, com rispidez. Meg ergueu os olhos.

— Mais água, e lenha para o fogo. Será necessário de muito mais.

— Terá. Mais o quê?

— Quero que me deixe ver sua mão — ela o relembrou. — Ou o ferimento irá infeccionar.

— Mais tarde.

Meg franziu a testa. Gostaria de saber o motivo da repentina mudança no comportamento de Connor, que se afastava, chamando o cachorro, ao sair. E diziam que as mulheres mortais é que eram volúveis e imprevisíveis...

Difícil acreditar que Arthur e seus homens tivessem saído vitoriosos de Amesbury. Ao lado de Dannelore e das outras mulheres, Meg trabalhou sem parar, indo de catre em catre, fechando feridas, aplicando ungüentos, rasgando pano para mais ataduras.

Merlin também trabalhava sem cessar junto com elas, recusando-se a ter o próprio ferimento cuidado, e insistindo que poderia tratar ele próprio de si mesmo.

O fogo queimava na lareira e em vários braseiros pelo enorme salão, somando-se ao calor de todos que dormiam ali. Acima do ressonar dos adormecidos podia-se ouvir um ocasional gemido de um dos feridos, logo atendido por uma mulher.

Dannelore tratara de John, que não se ferira a sério, e depois saíra com ele para a despensa, para encontrar algo para comer, pois sobrara pouco do ensopado de carne de veado que fizera antes da chegada de Arthur.

Lady Morgana não gostou nada das condições em que encontrou seu quarto, depois do retorno. Recusou-se a dormir ali, proclamando ser inadequado até mesmo para um guardador de porcos, e escolheu, em vez dele, o aposento maior, que fora um dia de lady Ygraine. Mas nada a satisfazia, e seus berros furiosos eram ouvidos a todo instante.

Pouco depois, Arthur retornou e se serviu de uma generosa porção de cerveja.

— Quase duzentos homens estão em Caerleon e muitos mais chegarão. Não temos comida suficiente, nem mantas ou lenha para aquecê-los. E eles não me causarão um centésimo dos problemas que estou tendo com uma única mulher. Que Deus nos ajude a todos! Eu deveria ter deixado que Constantino ficasse com ela! — Então olhou para Meg. — Você teria por acaso algo com efeito calmante?

— Lavanda, milorde. Talvez ela goste de um chá de lavanda.

— Sem dúvida será preciso um barril de chá para acalmá-la — ele murmurou, servindo-se de outra dose da cerveja forte.

— Se eu não a matar primeiro. Esqueci o quanto minha irmã pode ser difícil.

Arthur cochilava numa cadeira próxima, com os vários ferimentos enfaixados, nenhum com grande gravidade, a mão a descansar no cabo da espada a seu lado.

Meg não notou quando Merlin chegou perto.

— Você tem o toque da cura. — Tomou-lhe a mão entre as suas, afagando-a. — É um dom raro.

Meg se soltou, depressa, receosa do que ele pudesse sentir naquele mero contato.

— Minhas habilidades não são nada comparadas às suas. Um simples toque, uma atadura limpa, um ungüento para puxar o veneno. Nada mais.

— Suspeito que seja bem mais que isso, moça. Meg prendeu a respiração.

— Talvez seja sua docilidade feminina. Acho que os homens de Arthur reagem melhor ao seu toque do que ao meu.

Meg riu com bom humor e alívio.

— Uma noção tola, senhor...

— Não de todo. Posso ver no rosto deles quando a fitam. Uma tal beleza é rara, e acompanhada por um espírito gentil, ainda mais difícil de encontrar. Onde foi criada, mocinha?

— Desculpe-me, senhor, mas o que interessa é que tais coisas não são importantes para mim. Portanto, presumo que tenha sido criada para não valorizar tais coisas. Acha que a beleza é importante?

— Nunca pensei nisso. Prefiro evitar questões do coração. Ela o fitou, curiosa.

— Por que haveria de querer fazer isso? —Meg pensou na reunião entre Dannelore e John. Dannelore estava tão feliz que chorara. — Trazem tanta felicidade...

Merlin fez um gesto de descaso.

— Nada disso foi feito para alguém como eu. Ela ficou ainda mais curiosa.

— Por quê? — Sentiu-o a se esquivar da verdade real com palavras escolhidas com cuidado. Não uma mentira, só uma omissão.

— Meus deveres com Arthur são mais importantes que tudo. Nada mais importa.

— Talvez não seja uma opção amar ou não alguém, senhor. Creio que apenas acontece. — Meg já descobrira que emoções mortais eram muito imprevisíveis.

— Não permitirei. Se alguém é cauteloso, isso pode ser evitado.

— O mesmo se aplica a ser ferido numa batalha? — indagou ela, com uma lógica singela.

— Tem uma língua afiada, sabia?

Ela franziu a testa. Como uma língua poderia ser assim? Deu de ombros.

— Apenas digo a verdade. Se for possível evitar um, deveria ser possível evitar o outro.

— Usa bem a lógica. — Merlin arqueou uma sobrancelha. — Eu deveria ter evitado ser ferido.

— Mas, já que não pôde, irá pelo menos me deixar cuidar do corte?

— Não é nada profundo. Feriu meu orgulho mais que minha carne. — Piscou para Meg. — Uma lição bem aprendida: sempre prestar atenção ao homem a suas costas, mesmo quando acha que ele não está ali.

— Tentarei me lembrar.

Meg recolheu os restos dos panos de linho e a bacia de água com ervas. Não via Dannelore havia horas, por isso saiu à procura dela. Rumou para a despensa, onde panos extras e ervas eram guardados.

A passagem entre o salão e as cozinhas era pouco iluminada, com uma única tocha a clarear o caminho. Ao se aproximar da despensa, Meg ouviu sons abafados. E, ao chegar mais perto, distinguiu serem vozes. De Dannelore e de John.

Algo que a fez hesitar, uma impetuosidade e uma urgência que se projetavam das sombras.

Eram súplicas suaves de Dannelore e respostas ansiosas de John. Então, na poderosa conexão dos pensamentos, Meg visualizou as imagens dentro das sombras da despensa: a pressa com que as roupas eram arrancadas, o tremor das mãos de John ao se fecharem sobre os seios de Dannelore, o suspiro dela em resposta, seguido de uma repentina expectativa que pairava pesada no ar em torno, o súbito arrepio com o ar frio na pele nua. Em seguida, a conjunção carnal, os corpos tensos de urgência.

E Meg descobriu que, por mais aflitos e desesperados que fossem aqueles gemidos, Dannelore não queria, de modo algum, ser resgatada.

— Não creio que algum dia eu consiga compreender os mortais — murmurou Meg, ao se afastar rápido dali e ir para a cozinha.

Dois grandes fogões de pedra ocupavam uma parede. Uma mesa comprida tomava o centro, com um banco longo do lado oposto. Assim que entrou, Meg viu um movimento junto à parede. A criatura tinha quatro pernas em vez de duas.

— Dax — chamou, baixinho, e o enorme cão se lançou sobre ela, agitando a cauda em saudação e esfregou o focínho em sua mão. — Como está?

Meg tomou a cabeça dele entre as mãos, os dedos a se afundarem no pêlo grosso do pescoço. O cão inclinou-se, suspirando de prazer.

— Animal sem-vergonha! — Connor resmungou, ao surgir atrás de Dax e ver que seu destemido companheiro ficara reduzido a um indefeso cãozinho trêmulo diante de um simples agrado de uma moça bonita. — O último homem que tentou tocá-lo quase perdeu a mão.

— Não sou um homem — Meg retrucou, continuando a afagar o pescoço de Dax.

— Eu percebi.

— Ele está machucado — exclamou Meg.

Connor pegou uma costeleta numa travessa e sentou-se num banco perto da parede, a mastigar, as pernas esticadas.

— Vai sarar.

— Isso acontecerá mais depressa com o devido cuidado. Assim, Meg aplicou um emplastro de ungüento preparado com confrei. O cão não se moveu enquanto ela o tratava, e depois lhe lambeu a mão.

— Veja, milorde. Dax aprecia isso.

— É um animal. Não entende nada de apreciação. Apenas de comida, de água, de um lugar quente para dormir numa noite fria. Nada mais.

— Teremos de ser pacientes com ele, Dax. — Meg o olhou dentro dos olhos. -— Afinal, os humanos são criaturas tão tolas...

— Tolas?! Comparadas a um cachorro?

— Sim, tolas, senhor. Quem, a não ser um homem, andaria com uma ferida infeccionada e se arriscaria a perder a mão ou o braço envenenado?

Aproximou-se de Connor e lhe tirou o osso da mão, jogando-o para Dax, que o abocanhou e se pôs a mastigar o petisco.

Meg examinou o ferimento de Connor sob a luz trêmula das chamas do fogão.

— O que acha, meu amigo? — Ela se dirigia a Dax. O cão ergueu a cabeça e uivou baixinho.

— Sim, tenho certeza absoluta disso — concordou Meg, como se tivessem discutido o assunto. — Ele é arrogante.

— Arrogante?! Isso não tem nada a ver com arrogância. Havia questões a serem atendidas. Tinha de cuidar de meus homens. Era preciso erguer fortificações, postar guardas. A vitória em Amesbury tem seu preço. Maelgwyn logo saberá dela e atacará ainda mais duramente as terras do sul para se impor.

— E você será mais impressionante empunhando uma espada com um toco, em vez de numa das mãos. — Meg retirou a faixa rústica que ele enrolara de qualquer jeito em torno do corte e inspecionou-o. — Talvez possamos colocar uma tala em seu braço, como a perna de madeira que um dos camponeses usa.

— Talvez você se meta onde não deve.

Nem um pouco intimidada, Meg sorriu diante do tom de advertência.

— Pode ser. — Ela não permitiria que ele desse a última palavra. — Eu deveria deixar o ferimento infeccionar até que cheirasse como um velho bode morto.

Apertou a ferida para ver se inflamara. Connor recuou com a dor.

— Uma das mãos seria mais que suficiente para silenciar uma gralha enfadonha!

— Só se puder pegá-la, milorde.

— Isso é fácil de fazer.

Meg arquejou quando a outra mão de Connor deslizou sob seu queixo, os dedos fortes a erguê-lo para que o encarasse. Tal como naquele dia em que ele partira de Caerleon, a mão era quente, a requeimar onde a tocava.

A pele do polegar era calosa e raspou-lhe a curva do lábio inferior, quando Connor o esfregou para trás e para frente, criando uma quentura brusca que logo despertou a lembrança daquele beijo que ele lhe dera na manhã em que partira; e, como naquela ocasião, o gesto mexeu com algo profundo dentro de Meg.

O rosto de Connor era uma máscara tensa que camuflava suas emoções. Mas, mesmo sem o uso de seus poderes, Meg sentia o conflito, captando-o na mão que tremia ao segurá-la.

—Não vou machucá-lo, milorde. Pode perguntar a qualquer um dos outros. Não acharam minhas habilidades falhas ou meu cuidado desagradável.

— É isso o que pensa? Que tenho medo da dor?

— O que mais poderia ser, senhor? — Fitou-o, perplexa. — Não teme Constantino, nem Maelgwyn. Acho que nem mesmo teme a morte.

— Sim, nem mesmo a morte. Mas você...

— Eu, senhor? O que existe a recear de mim? Connor fez uma careta.

— Prepare o curativo, moça, antes que eu comece a feder como um bode morto.

Meg trabalhou depressa e com cuidado, com medo de que o humor de Connor pudesse mudar de repente, como antes. Limpou o corte e depois aplicou um ungüento cicatrizante, cobrindo-o com um grosso pedaço de linho para protegê-lo.

Connor comentou:

— Sua risada e sua honestidade são algo raro. Você não disfarça sua opinião com palavras escolhidas de duplo sentido.

Ela o encarou e franziu a testa. Não fazia a menor idéia do que ele estava falando.

— Milorde?

— Você não sente culpa, nem ambição.

— Ao que tudo indica, essas qualidades são bastante admiradas.

Ele achou graça, e se recostou contra a parede.

— Sua capacidade de perdoar...

Ela sabia que Connor se referia ao acidente na floresta.

— É coisa desimportante.

— E fala o que pensa.

— Por que não?

— Muitos seriam mortos por serem tão ousados. E muitos matariam os que se atrevessem a tamanha ousadia.

Meg deu de ombros, despreocupada.

Seus olhares se encontraram.

— Deveria — ele sussurrou, suavemente.

Ela terminou de amarrar a atadura, e Connor flexionou os dedos. A bandagem estava firme o suficiente para assegurar que o curativo permanecesse no lugar, mas não para tolher o movimento.

— Que pagamento exige por seu trabalho?

— Não há nada de que eu necessite, milorde.

— Nada mesmo? Um corte de tecido fino talvez, para um novo vestido. Um manto felpudo, quem sabe, para substituir aquele que você deu. Um pedaço de fita para os cabelos, ou talvez um enfeite. Disseram que o ferreiro é especialista em ouro e prata.

— Não preciso de nada assim. Quanto ao manto, o que uso é suficiente. É mais do que muita gente tem.

— Deve haver algo.

Meg sabia que Connor brincava, mas sentiu que, se pedisse algo, ele lhe daria.

— Um beijo, senhor. - Ele não respondeu, e se afastou.

— Acha-me repulsiva... — ela concluiu, arrasada. Pensou em lady Morgana. — Quem sabe eu não seja bastante alta, ou minha figura, elegante? Talvez eu o tenha ofendido de alguma forma.

Connor voltou o olhar para ela, sombrio e assustador como uma tempestade de inverno, aquele ânimo impulsivo a mudar mais uma vez.

— Não a acho desagradável, nem você me ofendeu.

— Deve haver algo errado comigo. — Meg tentava compreender.

Não havia nada de lógico naquilo. Connor a beijara. Não a achava detestável e, no entanto, era evidente que decidira não repetir o beijo.

— Não há nada errado com você, asseguro. Bem ao contrário. É muito agradável de se olhar. E inteligente e perspicaz. — Praguejou baixinho, a voz baixa e rouca. — Você me faz querer rir e chorar. Na verdade, é perfeita.

— Então me beije. É o pagamento que exijo.

— Para alguém que não tem medo, você assume grandes riscos.

— Não vejo nenhum risco. É pouca coisa o que peço.

— Pediu o mesmo dos outros de quem cuidou, esta tarde? Que ridículo, Meg pensou. Um enfeite ou um tecido para um vestido teria custado uma boa soma. Um beijo não custava nada.

— Não. — Meg deu de ombros. — Não me perguntaram o que eu queria.

— Não? — Connor não sabia se ria ou gritava.

Tinha certeza de que Meg estava sendo franca, porém possuía um jeito maluco de simplificar tudo. Sentiu que poderia estrangulá-la.

— Além disso, eu não queria que eles me beijassem.

— Mas quer que eu a beije.

Ela imaginou se Connor teria problemas auditivos.

— Eu disse isso, não disse?

— Sim. Mas acho que você não entendeu o que perguntei. Meg o encarou com aqueles olhos azuis reluzentes que faiscavam como o coração de uma chama.

— Entendi muitíssimo bem, milorde. É tão simples como o que pedi.

Era como se estivessem discutindo sobre alguma cura com ervas, o custo de uma barrica de cerveja ou sobre o clima. Mas as coisas mais simples eram conhecidas por provocar guerras ou queda de impérios, Connor lembrou-se.

Ela se aprumou com aquela mesma objetividade que sempre demonstrava.

— Estou pronta quando você estiver.

Mais uma vez, Connor teve de controlar a vontade de rir.

— Tem certeza?

— Sim, absoluta. Pode me beijar agora.

— Tem de chegar mais perto.

Meg se aproximou até estar de pé diante dele.

— Mais perto — ele ordenou, e foi recompensado com um lampejo de irritação daquelas íris resplandecentes.

— Não posso. Suas pernas bloqueiam o caminho. Connor as abriu, guiando-a entre as coxas. Sentiu um arrepio ao tê-la ajoelhada entre as pernas.

— Gostaria que fosse um muito bom.

— Tentarei fazer a experiência valer a pena. — Connor temia cair na gargalhada.

— Não como o primeiro também. Gostaria de um beijo diferente, desta vez.

Depois daquele que vira entre Dannelore e John, Meg pássou a suspeitar que havia tipos diferentes de beijos. E, embora o primeiro tivesse sido muito prazeroso, fora muito breve. Afinal, havia muito a aprender.

— Verei o que posso fazer — ele fingiu seriedade.

— Obrigada. Eu apreciaria.

— Fique quieta.

Meg pestanejou, surpresa.

— Perdão?

Não parecia ter sido um bom começo.

— Não posso beijá-la enquanto estiver falando — ele explicou, usando um pouco da mesma objetividade de Meg.

— Ah... Sim, entendo. Tem razão. Não direi mais uma palavra.

— E terá de chegar mais perto ainda. — E Connor a puxou, gentil.

Meg não resistiu, mas o observou, na expectativa, como uma aluna a aguardar que seu tutor começasse a aula. E aquela seria uma lição que não iria esquecer.

Como se desse ao assunto uma grande relevância, ele exclamou:

— Seus cabelos não estão como deveriam!

Meg levou a mão para a trança grossa que pendia pelo ombro, perplexa. Fez um biquinho sensual que a tornou ainda mais desejável.

— O que há de errado com eles?

Não entendia o que o cabelo tinha a ver com o assunto.

— Ora, ora, ora! — Ele, apontando um dedo, recordou Meg: — Nem uma palavra.

A boca adorável fechou-se, retorcendo-se num beicinho encantador.

E Connor decidiu que aquela seria uma experiência muito agradável, de fato.

Pegou a trança e tirou a fita da ponta. Soltou as mechas sedosas, penteando-os com os dedos até que caíssem em ondas douradas pelos ombros de Meg.

Depois, prendeu o rosto dela entre as mãos.

— Você deve fazer tudo o que eu disser.

Ela assentiu, ainda a observá-lo com atenção e concentração absolutas.

— Relaxe. — Connor começou com pequenos círculos nos tendões da nuca. — Feche os olhos. Pense no vento, nas árvores e na água a escorrer por entre as rochas. — Seus dedos deslizaram para as faces. — Imagine o sol quente de verão em sua pele.

Connor debruçou-se sobre ela e roçou os lábios de leve pelas pálpebras.

— Sinta-o em suas faces. — Os lábios foram para o rosto. Então, devagar, inclinou-lhe a cabeça para trás. Não houve resistência. — Sinta-o aqui. — Roçou a boca pelo queixo de Meg. — Aqui. — Pousou os lábios no canto de sua boca.

A voz de Connor era pouco mais que um murmúrio.

— Aqui..

E quando os lábios tocaram o outro canto da boca, as mãos de Meg se apertaram na frente da túnica de Connor.

— Aqui...

Ele acariciou todo o lábio inferior com a língua. A boca de Meg se entreabriu, e ela deixou escapar um arquejo espantado de prazer. Connor escorregou a ponta da língua pela curva do lábio superior, demorando-se no pequeno ressalto no centro.

— Aqui.

O deleite se tornou um gemido suave de desejo, e os dedos de Meg se fechavam mais ainda na túnica de couro.

— E aqui.

Por fim, Connor invadiu-lhe a boca com a língua.

Naquele primeiro beijo, quando ele partira, não houve ternura, apenas uma espécie de selvageria desesperada temperada de raiva. Agora, era diferente, em nada semelhante a algo que ela já tivesse experimentado.

Havia fogo em seu sangue, que queimava ao longo de cada terminação nervosa, sinistro e selvagem, conforme a língua de Connor deslizava por seus dentes, saboreando-a de um jeito assustador. E a fome despertou.

Não era o bastante, nem perto do suficiente. Não quando aquela língua ávida se enrascava na sua. Não quando Connor passou a lhe mordiscar o lábio inferior, a barba no queixo a raspar de leve sua pele. Não quando sua cabeça pendeu para trás e Meg sentiu que aquela boca escorregava para seu pescoço.

Ele a saboreava. Cada curva, o ângulo do osso acima do corpete do vestido, cada depressão sedosa de carne. Depois, levou as mãos para cima, acariciando as laterais de seus seios através do tecido do vestido.

Esfregou o polegar na frente do corpete e sobre a projeção de carne que endurecera. E a boca seguiu o mesmo caminho, sugando-a pelo tecido.

— Eis o que você deveria temer — ele sussurrou. Aquelas mãos fortes de guerreiro a agarraram, deslizando por suas costas, esgueirando-se por suas nádegas, comprimindo-lhe o corpo no ponto de junção de suas pernas como uma faca afiada.

Os seios subiam e desciam a cada respiração arquejante. A pele clara estava marcada onde a aspereza da barba a arranhara. A boca inchara de leve.

No aposento em penumbra, com apenas a luz de uma única lamparina a iluminá-lo e o ar pesado de desejo, os olhos dela se mostraram sombrios e misteriosos como safiras escuras.

Meg deslizou a mão por trás do pescoço de Connor, os dedos a se enterrar nas ondas espessas dos cabelos negros, que caíam sobre o colarinho da túnica. Aqueles olhos cinzentos eram duros, atentos; cada músculo do guerreiro estava tenso.

Connor deixou escapar um gemido assustado.

— Você tem de ficar quieto, milorde! Precisa relaxar...

A tensão latejou no baixo-ventre de Connor como o aviso de uma tempestade a caminho.

— Feche os olhos.

— Meg...

— Feche.

Com um palavrão, ele obedeceu.

Os lábios dela se entreabriam sob os dele. E Meg enterrou as unhas no couro macio que cobria o ombro de Connor, e aprofundou o beijo.

Seu corpo se acendia mais e mais conforme o tocava do jeito com que ele a tocara. As mãos afagavam os planos duros e a superfície firme do corpo másculo, cada músculo rígido, cada tendão encordoado, a saliente maçã da face, os pêlos firmes dos cílios espessos. E a impressão que tinha era de não tê-lo tocado o bastante.

Saboreou-o do jeito como Connor o fizera. A barba áspera no queixo, a ruga no canto da boca, o calor dos lábios. E não parecia bastar.

Aquilo fora o que sentira entre Dannelore e John. A necessidade, o anseio, a fome que doía por dentro. E muito mais. Não era uma coisa simples, afinal.

Aos poucos, Meg pôs fim ao beijo e se afastou de Connor. Precisou de um momento antes de recobrar os sentidos.

— Obrigada.

Connor ainda lutava para se controlar.

— Como? — Ele, incrédulo, procurava recuperar o fôlego. Era a primeira vez que uma moça lhe agradecia com um ”obrigada”. Costumava ser de outro jeito. Encarou-a, maravilhado.

— Foi diferente da primeira vez, milorde. E muito agradável.

- ”Agradável?!”

— Boa noite, senhor.

Meg deu-lhe as costas e saiu dali como se não tivesse feito nada mais que experimentar cerejas frescas ou uma torta quente do forno.

”Agradável?!” Connor, enfim, foi capaz de respirar fundo, e expeliu o ar numa explosão de riso. E ele que julgara que ensinaria uma lição a Meg!

Durante os muitos dias que se seguiram, todos, a não ser os mais seriamente feridos, se recobraram o suficiente para se reunir a seus companheiros. Connor não fazia segredo de que pretendia partir tão logo o grupo se recuperasse.

Era fim de tarde, e uma nova tempestade se avizinhava, forçando-os a procurar abrigo dentro das muralhas e no salão principal de Caerleon. Arthur aproveitou a oportunidade para formar um conselho com seus soldados e outros que lutaram em Amesbury.

Sentaram-se em torno de uma mesa redonda coberta de marcas de batalha, e Arthur frisou que ali todos tinham o direito de falar o que pensavam e expressar sua opinião.

Connor juntou-se a eles com relutância, à mesa redonda, mas não participou da conversação. Manteve silêncio, a ouvir atento os demais falarem.

— Se não fosse por aquela explosão na passagem do monge — disse Geoffrey —, teríamos morrido. Pegou os homens de Constantino de surpresa. Muitos deles não notaram. Muito obrigado, meu amigo.

— Não foi ação minha — refutou Connor. — Já havia acabado quando meus homens e eu chegamos.

— Mas nós ainda poderíamos ter sido confrontados de maneira muito dura se você não aparecesse.

— Todos teríamos sido, Geoffrey, se um de seus homens não tivesse aberto aqueles portões — um dos guerreiros de Connor comentou.

— Eu gostaria de levar o crédito — retrucou Agravain —, mas, na verdade, também não foi obra nossa. No momento em que nosso último homem alcançou o topo das muralhas, os portões já se achavam abertos. Presumimos que fosse alguém de dentro da abadia.

Muitos menearam a cabeça em concordância, mas ninguém sabia dizer quem abrira os portões.

— Foi uma sorte que seu homem lutasse tão bem à retaguarda, Connor. — Agravain recordou-se do guerreiro que vira no meio da batalha. — Contudo, não o vi desde nosso retorno. Espero que não esteja ferido. Eu lutaria ao lado de alguém assim a qualquer tempo.

— Nem eu o vi. Presumi que lutasse por Arthur. Arthur franziu a testa.

— Não conheço tal soldado. Talvez seja de Caerleon e fosse prisioneiro como os outros.

— Em plena armadura e com uma espada de batalha? — questionou Agravain. — Constantino não seria tolo de permitir que um homem guardasse sua arma.

— O guerreiro não era de Caerleon. Talvez lutasse sozinho.

— Nenhum guerreiro luta sozinho! — um dos homens de Arthur exclamou. — É desejar a morte. O mais provável é que tenha perdido muito nas mãos de Constantino e resolvido se juntar a nós, como aqueles que chegaram a Caerleon. Na certa irá se apresentar e se aliar a nossa causa.

— O que diz? — Merlin voltou-se para Connor. — Você lutou ao lado desse guerreiro. Como era ele?

O olhar de Connor procurava por Meg. Preferia a lembrança daquele beijo agradável a especular sobre um soldado desconhecido que não fora visto desde a refrega.

A memória estava dentro dela também. Vira isso na maneira como as mãos de Meg tremiam ao trocar um curativo. Sorriu sem querer.

— Não houve tempo para prestar atenção, feiticeiro. Só o vi direito uma vez, na passagem atrás do altar, na capela.

Seu olhar retornou a Meg, para o modo como que se movia, o corpo esbelto dentro do vestido macio de lã a lembrá-lo da sensação através do tecido e do gosto dela.

— Era alto e magro e, contudo, forte. Dominou três dos homens de Constantino lutando a meu lado. Mas não pude ver suas feições — prosseguiu Connor.

— Deve haver algo de que se lembre — Agravain insistiu. — Um guerreiro assim não se esquece com facilidade.

Connor continuou a analisar Meg: o jeito como sorria, gentil, para um dos feridos, o azul cristalino das íris conforme a luz do fogo se refletia nelas, a maneira como pendia a cabeça para ouvir uma queixa.

— Ele não seguiu pela passagem. — Connor franziu as sobrancelhas, pensativo. — Mas ergueu a espada em saudação e depois retornou à batalha.

— Eu o vi também — outro dos guerreiros de Arthur comentou. — Mas o soldado não voltou. Achei que tivesse seguido seus homens.

— Quem quer que seja, estamos em enorme débito com ele. — Arthur endireitou a coluna. — Só posso esperar que se junte a nós. Não gostaria de enfrentá-lo em combate.

Os demais assentiram.

Arthur e seus soldados passaram para outras questões. O surpreendente número dos guerreiros de Constantino, as condições deploráveis que o povo feito prisioneiro em Caerleon suportara, as câmaras de tortura, que faziam todos estremecer só de pensar em ser aprisionado nelas, e a tragédia da morte de lady Ygraine de alguma doença devastadora, apenas dias antes, passaram a ser o assunto.

— Constantino! — Gawain exclamou, com rispidez e dêsprezo.

— Pensar que tamanha crueldade se revestiu em trajes sagrados. E praticou tais atos sacrílegos como os que encontramos naquela câmara escondida.

— As artes negras, demonologia — um soldado que também vira falou, quase num murmúrio, como se temesse invocar aqueles mesmos demônios ao se referir a eles.

— Vimos o altar onde ele venera as trevas e o símbolo de sua própria destruição: o sinal do mal.

Vários ao redor fizeram o sinal-da-cruz para se proteger contra as forças malignas.

— Constantino está morto, meus amigos. — Arthur ergueu o dedo em riste. — E seu mal morreu com ele. Devemos agora dirigir nossos pensamentos a Maelgwyn. Meu conselheiro está certo. Ele logo saberá o que aconteceu aqui, se é que já não sabe. Devemos estar preparados para enfrentar o desafio.

— Necessitamos de uma estratégia para nos defender de Maelgwyn — Bedevere arrematou. — Temos de reforçar as fortificações.

Arthur ouviu a todos em silêncio. Enquanto seguiam as discussões sobre as fortificações maciças que deveriam ser construídas em Caerleon para resistir a um ataque de Maelgwyn, Connor sentiu que Arthur o observava, muito atento.

— Você ainda não falou.

Connor meneou a cabeça.

— Esses homens são seus guerreiros. Este não é meu lugar de falar.

— Você se defrontou com Maelgwyn em combate. Ainda tem as cicatrizes desse encontro. Dou grande valor a suas idéias sobre esse assunto. — Arthur viu a mão que se apertou

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em torno da caneca diante de Connor, quando fez menção a velhas feridas, mais profundas que as cicatrizes da carne.

Mas também conhecia o menino que aquele homem fora um dia, um garoto de coragem, honra, lealdade. Fora essa lealdade a Geoffrey que o levara a Amesbury e alterara o curso da batalha que poderia bem ter terminado com sua derrota.

— O que faria se liderasse um exército contra Maelgwyn, Connor?

Todos se calaram, esperando pela resposta.

— Defender uma pilha de rochas é morrer sobre elas, como um sacrifício sobre o altar sacrílego de Constantino — Connor pronunciava cada palavra com amargor. — Só um tolo faria um posto de resistência em Caerleon. — Tomou um longo gole de vinho. — É exatamente isso o que Maelgwyn espera.

— O que faria para detê-lo?

— Atacaria de surpresa. Iria encontrar seu acampamento nas montanhas e destruí-lo.

— E o clima? — um dos homens de Arthur quis saber.

— É mais um inimigo para Maelgwyn. Vocês têm a vantagem de conhecer o terreno, enquanto ele é um estrangeiro. A única maneira de encurralar o animal é procurar seu covil, não esperar que ele ataque sua porta. Arranque-o para fora e depois feche a armadilha em torno dele.

A discussão prosseguiu até que foi necessário acender mais lamparinas às mesas e tochas nas paredes. O fogo na lareira foi alimentado para aliviar o frio noturno que permeava as paredes de pedra e o chão de terra. A fumaça dos fogões nas cozinhas pairava no ar.

— Junte-se a nós para a refeição, moça — Arthur convidou Meg. — Estou cansado de olhar essas caras barbadas ao jantar. É o bastante para acabar com o apetite de qualquer homem. E também estou farto de conversas sobre batalhas e campanhas. Sua presença irá garantir boas maneiras e hábitos mais adequados.

O comentário provocou resmungos de desgosto e negativas.

Connor aguardou com grande interesse o que Meg diria. Desde o encontro de ambos, dias antes, ela se mantivera ocupada, com as demais mulheres. Ele sentia falta de sua lógica maluca e da maneira direta de se expressar. Sentia falta de rir. Tinha saudade dela...

Meg sabia muito bem que todos reunidos à mesa esperavam por sua resposta. Inclusive Connor.

Seria mais seguro fazer as refeições com as outras mulheres, como fazia desde que os guerreiros retornaram de Amesbury. Mas Meg não tinha intenção de deixar Connor acreditar que ele a perturbava.

— Obrigada, milorde. — Meg aceitou o convite. Fitou Connor por instantes, e depois de novo Arthur. — Creio que seria muito agradável.

— Combinado. — Então Arthur advertiu: — Vocês todos devem ter o melhor comportamento hoje.

— O que está fazendo? — Dannelore sussurrou, aflita, agarrando Meg pelo braço. — Arrisca-se demais, senhora. Merlin acabará descobrindo quem é você!

— Aflige-se sem necessidade, querida. Tomarei cuidado. E, além disso, não vim aqui para me esconder na cozinha ou na despensa. Não posso aprender sobre o mundo mortal atrás de sacos de cereais e barricas de maçãs secas. Tais coisas não levam a conversas interessantes.

— Prefere conversar com Connor de Monmouth? — a encantada indagou, com ironia.

Meg pensou em sua última ”conversa” e não conseguiu evitar um sorriso. Depois, tirou o avental sujo de sangue.

— Devo me lavar e encontrar um vestido mais adequado. Venha comigo.

Após o retorno de lady Morgana a Caerleon, Meg e Dannelore se mudaram para o quarto menor no fim do corredor do andar de cima. A encantada julgara que jamais o tornaria habitável, pois sofrera grandes danos, mas qual não fora seu espanto ao encontrar as paredes limpas e o chão livre de todo e qualquer resíduo de óleo. Olhara para Meg com suspeita, mas, antes que pudesse dizer uma palavra de reprovação, Meg erguera a mão.

— Não me passe sermão — dissera a Dannelore. — Existem algumas coisas neste mundo que não valem o esforço, e essa era uma delas. Resolvi que era mais fácil do meu jeito.

Meg ficara bastante satisfeita com o aposento. Espalhara ervas secas entre a palha no chão para espantar os insetos que pareciam estar por toda parte dentro de Caerleon, e galhos de pinheiro que dissiparam o resto do cheiro de fumaça.

Como a mobília se perdera no incêndio original, ela fizera camas para si e Dannelore com pelegos grossos espalhados sobre sacaria cheia de mais palha e ervas aromáticas.

Um fogo queimava no braseiro e as lamparinas a óleo abastecidas com resina de pinho enchiam a atmosfera de um aroma pungente.

Meg lavou-se numa bacia e em seguida trançou os cabelos. Por último, colocou o cinto de cristais, que emitiam sons musicais a cada movimento do tecido, conforme ela andava. Não tinha como avaliar sua aparência, mas pelo menos estava limpa.

— E não cheiro como um bode morto — disse a si mesma, ao se inclinar e ver seu reflexo na bacia.

A água estremeceu, clara e perfumada com o aroma das ervas e, de repente, tornou-se escura e turva quando ela olhou mais de perto. Tocou a superfície com o dedo e viu nuvens a se espalhar no fundo raso.

— Grendel disse que você vai jantar com lorde Arthur — Tristão quase gritou, ao irromper pelo quarto numa corrida. Chocou-se contra a mesa, e a água transbordou pelos lados.

Meg pegou a bacia antes que entornasse. Mas, quando a água se acalmou, as visões tinham sumido.

O menino tropeçara na calça, muito larga e comprida para seu tamanho. Estava todo encolhido, e seus olhos se encheram de lágrimas, mas Meg o acalmou.

— Não foi nada. Não chore. Isso acontece.

Teve de contê-lo quando o garoto disparou para a porta, a um passo de outro desastre quando as pernas da calça tornaram a se enganchar em seus pés.

— Vamos tirar isso do caminho — ela sugeriu.

Tinha apenas a fita que usava para prender os cabelos. Desamarrou-a, cortou-a em duas e atou cada pedado em torno das pernas da calça enrolada, como precaução.

— Você ficou sem a fita... — ele protestou com uma galanteria de mexer com a sensibilidade, aqueles olhos de um verde-musgo com os cílios espessos úmidos de pranto.

Quantas garotas perderiam o coração por ele?, Meg se perguntava. E nem mesmo tinha um pai ou uma mãe para cuidar de seu bem-estar, ou lhe ensinar o que quer. que fosse.

— Não tem importância. — Ela sacudiu a cabeleira, que caiu, livre.

Com imensa cerimônia, como se estivesse na corte de algum rei, o menino fez uma reverência profunda. E estendeu a mãozinha suja.

— Está pronta, moça?

Meg sufocou uma risada diante da figura que os dois decerto faziam: ela, no vestido manchado, de chinelos gastos e com os cabelos a esvoaçar em selvagem liberdade, acompanhada por uma criança de calça enrolada, rosto cheio de fuligem e sujeira em mais lugares do que ela gostaria de considerar.

— Arthur e seus guerreiros da Távola Redonda aguardam, milorde! — exclamou, com seriedade fingida e grande cerimônia.

Então, enviou-lhe uma piscadela e um sorriso encantador, ao tomar-lhe a mão na sua.

 

Connor ouviu a risada de Meg, que descia as escadas. Ela e o menino, Tristão, riam de alguma brincadeira particular. O garoto a acompanhava ao salão principal, como se Meg fosse alguma grande dama na corte de um poderoso rei.

Connor sentiu uma pontada aguda dentro de si. E invejou o pequeno de dez anos, com sua túnica a pender até os joelhos, a calça amarrada aos tornozelos, o rosto sujo e os olhos voltados em adoração para a visão de beleza que tinha ao lado.

— Lady Meg, até mesmo este sujo salão se ilumina com seu esplendor — Arthur a cumprimentou.

Ela se esforçou para ficar séria, e Connor notou a piscadela para o pequeno Tristão, como duas crianças surpreendidas em alguma travessura.

A refeição da noite foi agradabilíssima. A comida era comum e simples: veado e perdiz assados com verduras e maçãs aferventadas, preparados com ervas de gosto pronunciado e pinhões. Havia abundância de cerveja e hidromel, de que os homens de Connor abusavam, e vinho suficiente para os de Arthur.

Os guerreiros se sentavam em bancos de ambos os lados das longas mesas, colocadas de modo a formar um grande ”U” no centro do cômodo.

Connor percebeu que outra pessoa também observava Meg. Merlin. Acomodado em silêncio junto de Arthur, o mago ouvia todas as conversas ao redor, mas aqueles olhos, que pareciam tudo ver, estavam cravados nela.

No meio das conversações ruidosas entre os homens, a risada musical de Meg, que ouvia as histórias contadas pelos guerreiros, era como a luz do sol no brilho enfumaçado do salão. Eles falavam de mulheres e suas conquistas no campo amoroso. Era um contraste bem-vindo para o desfecho da batalha e a tristeza de muitos pela morte de lady Ygraine.

— Deve perdoá-los — Connor disse a ela. — Quase nunca têm oportunidade de comer em outra companhia que não a dos outros soldados, e esqueceram as boas maneiras.

Meg sorriu, nem um pouco aborrecida.

— E o que poderiam contar de você? — O ar malicioso de Meg lhe curvou a boca e fez os olhos faiscarem, e Connor recordou a jovem que encontrara na despensa, dias atrás. — Não deixou mocinhas com o coração partido para trás?

— Nenhuma.

— E aquela — um deles se intrometeu —, filha do ferreiro? Connor precisava muito dele para consertar sua espada.

— Sim, foram necessários muitos reparos depois que ela acabou com ele!

Todos gargalharam, e Meg ficou surpresa de que se atrevessem a caçoar de Connor. Mas nada em sua expressão indicava alguma reação negativa, a não ser o brilho glacial daqueles olhos.

— Do mesmo modo como você irá precisar, quando eu acabar com você — ele retrucou, com um sorriso gélido, mas parecido com o de um lobo a mostrar as presas.

As gargalhadas maliciosas dos homens de Arthur e de Connor encheram o salão, e Meg ficou fascinada com outro aspecto daqueles mortais: a força encontrada na camaradagem e na lealdade que lhes corria no sangue. Mesmo assim, caçoavam um do outro.

— Vejo que meu irmão se diverte como um rei recém-coroado numa corte. — A voz feminina se fez ouvir acima das risadas, por um momento silenciando o ambiente.

A atenção de todos foi atraída para os degraus de pedra. Lady Morgana de Caerleon se postava em real esplendor na escadaria, o olhar a varrer o salão, um leve sorriso a lhe curvar os lábios como se tivesse feito uma piada.

Aquele olhar não perdia nada e, de seu lugar à esquerda de Arthur, Meg descobriu-se de imediato o objeto da intensa curiosidade dela, a qual devolveu na mesma medida.

Lady Morgana era esbelta e de altura média, as feições penetrantes com forte semelhança com as do irmão, embora ainda mais impressionantes por causa da túnica preta sobre um vestido de mesma cor.

A semelhança terminava aí, porém. Arthur tinha os cabelos castanho-avermelhado e os olhos de um azul-claro iguais aos da mãe. Os cabelos de lady Morgana eram de um cetim negro, como a meia-noite, puxados para trás e presos por uma tiara de prata e um véu preto.

O efeito enfatizava o ângulo das maçãs do rosto e o olhar enviesado, que lembrou a Meg o de um gato astuto.

Arthur levantou-se e a cumprimentou:

— Bem-vinda, irmã. Fico feliz de ver que já se recobrou o suficiente de seu tormento para se juntar a nós.

Connor ficou a observá-la com um desinteresse ostensivo, conforme lady Morgana se aproximava em meio à admiração dos soldados. A criada a seguia como uma sombra.

Morgana foi até Arthur. Após um gesto de cabeça mal visível em direção ao irmão, encarou Merlin.

Ao que tudo indicava, não conseguia lembrar quem era ele. Meg, porém, captou uma hostilidade velada, que, por um momento, ficou exposta e desnudada no brilho dos olhos felinos de Morgana.

— Ah, sim! — exclamou, como se tivesse recordado. — Marcus Merlinus, o companheiro e tutor. Conselheiro, como meu irmão agora o chama, eu creio.

Merlin a cumprimentou, cordial:

— Boa noite, lady Morgana.

Um sorriso curvou os lábios da jovem, mas que não se refletiu nos olhos.

— Você levou embora o menino e retornou com o homem que governará a Bretanha. Alguns acreditavam que meu irmão jamais voltaria.

Será que Meg ouvira algo mais na sedosa suavidade da resposta? Incredulidade? Dúvida? Talvez mesmo raiva?

— Ou quem sabe esperassem por isso — retrucou Merlin. Morgana inclinou a cabeça, num gesto de anuência.

— Existem muitos que verão suas ambições frustradas com esse retorno.

— Junte-se a nós, irmã — convidou Arthur, interrompendo-os. — Sua presença é muito bem-vinda.

Dois dos guerreiros de Arthur se ergueram e ofereceram seus lugares. Morgana arregalou os olhos ao avistar Meg sentada ao lado de Arthur.

— O que é isso, irmão? — Arqueou uma sobrancelha divertindo-se. — Espólio de guerra?

— Lady Meg é hóspede em Caerleon — Arthur explicou, com a testa franzida. — Foi deixada na floresta, sem dúvida pelos mesmos bárbaros que levaram você e nossa mãe prisioneiras. Connor e seus homens a encontraram.

Morgana desviou-se para Connor, admirada.

— Você não me oferece seu lugar, milorde. — Sua boca se curvou num sorriso insinuante.

— Já tem mais a seu dispor do que pode ocupar. E daqui posso oferecer proteção a nossa hóspede. Guarde as garras, Morgana. Não tem nada a temer. Na verdade, pode muito bem vir a dever sua vida a ela, que é uma curandeira.

Morgana soltou uma gargalhada, sonora e gutural.

— Você sempre foi capaz de me tirar do pior humor, Connor! Se pelos menos estivesse aqui quando Caerleon foi atacada...

Uma travessa de comida foi colocada diante de Morgana pela criada. Ela fez um esgar.

— Traga-me alguma outra coisa.

— Não há nada mais — interveio Arthur. — E é o mesmo que todos temos comido, muito agradecidos, aliás, com toda a Bretanha em luta e passando fome.

— Leve isso embora! — ordenou à garota. Então, pegou a taça de vinho e fez um brinde: — Seu reino o aguarda, irmão.

Morgana tornou a fitar Meg.

— Você fala, moça? Ou sabe apenas olhar com ar estúpido para os melhores que você?

Meg ficou confusa. Como uma pessoa podia ser melhor que outra? Talvez mais sábia ou mais bem capacitada, mas não melhor. Aquela era uma pergunta ridícula.

— Posso falar muito bem, obrigada. Porém, na verdade, não vejo ninguém melhor que eu.

Connor sorriu por trás da mão apoiada no queixo. Arthur escondeu o sorriso na caneca de vinho. Até Merlin teve dificuldade em manter a expressão firme.

Meg notou que Dannelore surgira de repente e se postara logo atrás. Podia quase ouvir os pensamentos da encantada, que pousara a mão em seu ombro, num aviso mudo.

”Tenha cuidado”, o gesto parecia dizer, embora Meg não tivesse noção alguma do que fizera ou a razão para ter de se cuidar.

O rubor tingiu as faces de Morgana e requeimou em seus olhos.

— Que coisinha apimentada você encontrou, caro irmão! E eu aqui, julgando que nunca fosse voltar, e muito menos acompanhado de uma amante...

Um silêncio pesado se abateu sobre os comensais. Várias pessoas se remexeram, inquietas, e Meg descobriu-se o centro de uma constrangida atenção.

— Você entendeu mal, minha irmã.

Mas, antes que Arthur pudesse continuar, Connor se adiantou:

— Meg está sob minha proteção.

— Ah... Entendo. — A reação de Morgana foi um leve estreitar de olhos, sombrios, embora sorrisse. — E aquece sua cama também? Não achei que você se importasse com tais vínculos. Deveria tomar cuidado... Parece que a moça julgou meu lugar à mesa de meu irmão muito mais do agrado dela. Você poderá logo descobrir que sua cama ficou fria.

Atrás de si, Meg ouviu Dannelore fungar, e sentiu que a mão em seu ombro se apertava, a refreá-la.

Meg não tinha certeza do significado das palavras de Morgana, mas uma coisa compreendia: o ódio. E era óbvio que a irmã de Arthur a odiava e não fazia tentativa alguma para disfarçar.

— Não percebi que o lugar era seu, milady. Mas pode tê-lo de volta. Já terminei.

E descobriu que dissera algo engraçado, pois todos, de repente, riram. Exceto Morgana, que dava a impressão de ter engolido algo repulsivo.

— Céus, Connor! A menina é intratável! Tem de lhe ensinar boas maneiras.

Experiente em conflitos, Connor conhecia um quando o via. Levantou-se, deu a volta à mesa e enfiou a mão sob o braço de Meg, puxando-a para que levantasse.

— Saindo tão cedo, Connor? — Morgana o encarou.

— Pensei em tentar ensinar a ela algumas boas maneiras — Connor retrucou, num tom de descaso.

E empurrou Meg pelo corredor e contra a parede, as mãos empalmadas nas pedras de cada lado de sua cabeça, impedindo-a de escapar.

Meg se preparou. Se ele dissesse apenas uma palavra em defesa daquela megera de lábios apertados, iria transformá-lo num sapo!

Então, percebeu que Connor não estava zangado. E sim rindo! As gargalhadas escapavam de dentro dele, sacudindolhe os ombros, e lhe arrancavam lágrimas dos olhos. Ele meneava a cabeça de um lado para outro, incrédulo.

— Por Deus, você é maravilhosa! Meg o encarava, atônita.

Por fim, as risadas cessaram. Então, Connor deslizou as mãos pelos cabelos dela, aninhando seu rosto.

— Maravilhosa... — sussurrou.

E, antes que Meg pudesse respirar, Connor a beijou.

Profunda e violentamente, aquele calor que escorria em seu sangue requeimou-lhe a alma. E Meg correspondeu, sem reservas. E, de olhos fechados, deixou que o beijo a dominasse, numa espiral de sensações que a transportou para um mundo de crescente esplendor.

Passou-se um longo tempo antes que Meg pudesse respirar outra vez. Connor mostrava enfrentar dificuldade semelhante.

— Quer que eu aqueça sua cama, milorde?

Ele se afastou da parede. E dela. Não respondeu, mas virou-se como se não tivesse ouvido, ou não quisesse ouvir.

— Quer? — Meg insistiu.

Connor a encarou, então, vendo-a rodeada por uma nuvem de cabelos dourados que caíam até a cintura, esbelta como um salgueiro, os seios altos a se comprimir contra o tecido macio do vestido, fazendo-o se recordar do jeito como a encontrara na floresta. E aqueles olhos, como safiras brilhantes, incendiavam a alma de um homem.

— Qualquer um gostaria. — E, agarrando-a pelo pulso, empurrou-a de volta para o salão lotado.

Meg queria saber o que Morgana quisera dizer com aquilo. E desejava saber a resposta de Connor, de mais ninguém.

Estacou. Recusava-se a ir adiante. Exigia uma resposta. A resposta dele.

— Você quer?

Connor se virou. Não sabia nada sobre aquela jovem. Poderia ser a filha ou esposa de um dos chefes de clã de Maelgwyn. Uma mentira seria melhor para ambos. Porém, disse-lhe a verdade:

— Sim. Desde o primeiro momento em que a vi, e a cada instante depois.

Meg estava no topo da muralha acima dos portões de Caerleon. O frio era cortante, e o sol aparecera de relance através das nuvens tenebrosas que se reuniam pelo firmamento. Nevaria antes do cair da noite.

Usava apenas uma camisola de lã fina, mas não se incomodou de se agasalhar, mesmo quando outro golpe de ar gelado varreu a muralha, fazendo esvoaçar seus cabelos.

Dannelore a encontrou ali, como Meg sabia que encontraria, tal como fazia com crescente freqüência nos últimos cinco dias, desde que Arthur e seus homens partiram de Caerleon.

Maelgwyn atacava as terras do rio a leste de Caerleon, investindo contra as fortalezas daqueles que um dia foram leais ao duque da Cornualha. Arthur e seu exército partiram para se juntar a eles. Para espanto de muitos, inclusive de Arthur, Connor os acompanhara.

Desde então, todos os dias, Dannelore achava sua ama ali, com o olhar cravado no horizonte distante.

Daquele jeito que as conectava, Meg sentiu-lhe a presença antes que a encantada se aproximasse.

— Como está meu irmão?

Merlin continuava atormentado pelo ferimento que sofrera em Amesbury, e não pudera acompanhar Arthur. Embora nada dissesse, o corte infeccionara e o enfraquecera, pondo-o quase incapaz de montar um cavalo.

Merlin e Arthur tinham se reunido na noite anterior à partida do exército. Traçaram planos. Depois que os soldados se foram, Merlin se retirara para o pequeno quarto perto da capela, ocupado um dia pelo monge residente em Caerleon, para descansar e meditar.

— Não piorou — disse Dannelore. — Mas a febre persiste. Não compreendo. Os outros se recobraram, ele não.

— E seus próprios poderes de cura? Merlin se recusa a usar as próprias habilidades?

— Homens! — Dannelore fez uma careta. — São pacientes horríveis. E acho que os curandeiros são os piores. Julgam que sabem tudo. Consegui convencê-lo a tomar um pouco de meu chá especial. Mesmo assim, estou preocupada. Merlin nunca se feriu ou caiu enfermo antes. A batalha vindoura o aflige. É a primeira vez que ele e Arthur se separaram desde o retorno. Há muito perigo. Mas o que o confortou foi saber que Connor seguiu com Arthur.

Meg também tinha os pensamentos naquele que cavalgava ao lado de Arthur.

— A batalha ainda não começou — afirmou, com um olhar distante como se visse tudo, como na verdade via em sonhos. — Mas começará em breve.

Naquela manhã, Meg se levantara antes do nascer do sol, despertada por aqueles sonhos. Vira os acontecimentos a se desenrolar.

Viajara através dos sonhos até encontrar aquele que procurava, atraída por seu toque, a sensação dele nas recordações. Mesmo naquele momento, a lembrança de Connor a enchia de uma ânsia dolorosa que nunca experimentara antes. Envolveu os braços em torno de si como se pudesse reter aquela ansiedade, acabar com a sensação de vazio.

Queria acompanhá-los, como fizera em Amesbury. Seria fácil. Porém, com Merlin em Caerleon, Meg não se atrevera a partir, pois ele sem dúvida suspeitaria. Enfim, só poderia rezar para que todos ficassem seguros. Para que Connor se mantivesse são e salvo.

Mas conhecia a realidade da guerra. Vira em Amesbury a brutalidade, o derramamento de sangue, a morte.

Apertou ainda mais os braços, e dentro dela a dor se retorcia e se transformava em medo.

— Seus pensamentos a traem, senhora — Dannelore falou, com doçura. — É perigoso, e você sabe bem disso, ter esses sentimentos que nutre, tão mortais. Não deve permitir-se isso. Você não é como esses mortais. É apenas uma transformação, uma ilusão. As emoções são ilusórias.

— São reais. Nunca senti algo assim antes. Você, dentre todos, sabe o que digo. Desistiu de tudo para voltar ao mundo mortal, Dannelore.

— Sou metade mortal, você não. É uma imortal. Não deve se permitir sentir essas coisas. Não sabe o que está fazendo.

— Sei muito bem o que faço. Essa é a razão pela qual passei pelo portal. Queria me sentir viva!

— Tem de retornar antes que seja tarde demais! Meg meneou a cabeça.

— Não posso. Ainda não.

— Depois pode não ser possível!

Meg ergueu a mão e, pela primeira vez, Dannelore sentiu a força de seu poder.

— Você é minha amiga. Cuidou de mim quando fui ferida. Ensinou-me tanto... E lhe sou profundamente grata. Mas não ultrapasse seus limites.

Era uma advertência gentil, mas um aviso, não obstante; e um que Dannelore não se atreveria a ignorar. O poder dos escolhidos era algo a ser temido e respeitado.

— E não pense em me trair para meu irmão — emendou Meg.

— Dei-lhe minha palavra. — Dannelore suspirou, triste. — Eu a manterei.

O tempo piorou e, por fim, Meg foi forçada a se retirar para dentro da fortaleza.

Com o passar dos dias, a espera tornou-se um tormento. E lady Morgana, com todas as exigências, enlouquecia a criadagem. Como Dannelore era a única que tinha paciência com a irmã de Arthur, era Meg que muitas vezes levava as refeições para o irmão.

Merlin, sentado à mesa, cochilava, tendo sobre o colo um texto deixado pelo antigo monge. Ao acordar com a presença de Meg, sorriu e dispensou a refeição.

— Por favor, leve de volta. Tenho certeza de que há outros que a apreciariam mais do que eu.

— Tem de comer.

O irmão emagrecera, e suas forças pareciam diminuir a cada dia.

— Vou lhe preparar algo diferente.

— E ter Morgana aos gritos em cima de você?! Conheço os defeitos dela. Sempre foi uma criança petulante. Ao contrário do vinho fino, não melhorou com os anos.

Meg riu. Achava a companhia do irmão agradabilíssima.

— Venha, sente-se — ele a convidou. — Gosto de tê-la comigo.

Meg tomou uma cadeira.

— Só se deixar que eu veja seu ferimento.

— Você é muito persistente.

— Sempre sou lembrada disso.

Merlin cedeu, enfim, e recostou-se no espaldar, para que Meg o examinasse. Tinha fechado bem, mas a pele era mole ao toque, e dolorida. E havia a fraqueza dele, que não passava, só parecia piorar.

— Seu toque é suave, Meg. Tem o dom de uma verdadeira curandeira. Pode aprender muita coisa com Dannelore. Mas talvez queira saber mais. Que tal? Lembrou-se de alguma coisa anterior à flechada na floresta?

Meg escolheu as palavras com cuidado.

— Há pedaços e retalhos de recordações. Aí, desaparecem. Dannelore me garantiu que tudo voltará, no final.

— Eu poderia ajudá-la a lembrar.

— Por favor, não se ofenda, milorde. Mas eu ficaria com medo.

— Medo? O que há para se temer?

— Ouvi dizer que o senhor tem o poder de transformar a cabeça de alguém em mingau.

Merlin deu risada.

— Em seu caso, não creio que seja motivo para aflição. É uma moça muito esperta. Mais do que deixa ver. Quem mais seria capaz de colocar Morgana em seu devido lugar? E com tanta graça!

Merlin sorriu, muito doce. E Meg soltou a respiração que contivera.

— Não era onde eu gostaria de colocá-la.

— Morgana pode ser... difícil, às vezes.

— Não consigo entender como irmão e irmã podem ser tão diferentes.

— Não foram criados do mesmo jeito. Arthur já era um rapagão quando Morgana nasceu. Foi muito mimada pelo velho duque da Cornualha... — De novo ele procurava dar uma explicação mais diplomática.

— Por que ela era filha dele, e não Arthur?

— Andou ouvindo histórias antigas.

— É difícil não ouvi-las quando tanta gente chega a Caerleon a cada dia — Meg confessou, emendando: — Dizem que Arthur é filho de outro homem.

O olhar agudo de Merlin cravou-se no dela. Meg podia senti-lo a sondar seu íntimo e ocultou-o com cuidado.

— Boatos e lendas. — Fez um esgar de desdém. — Arthur é um homem, não alguma criatura mística conjurada das brumas. Mas tem seu destino, e deve cumpri-lo.

— E o senhor fará com que ele o cumpra.

Merlin deu de ombros, como se não fosse grande coisa.

— Farei minha pequena parte.

Meg pegou a taça de vinho e estendeu-a a ele. Mas, de repente, a taça escorregou-lhe das mãos e o conteúdo se espalhou pelo chão.

Vezes seguidas ela vira aquilo acontecer. E como as vozes dos Anciãos a murmurar através dos sonhos, Meg viu quando começou o desenrolar dos acontecimentos. As imagens se moviam a partir das muralhas de Caerleon, como nuvens a se juntar antes de uma tempestade. O momento em que a primeira espada foi erguida, o primeiro golpe desfechado, o sangue escorreu na terra, num distante campo de batalha, sob a luz da última lua cheia. Como o vinho derramado de uma taça.

Um silêncio crescente invadiu o quarto.

— Começou — disse Merlin, numa profecia.

Do lado de fora, Morgana hesitou, a mão no ferrolho. Ouvira o murmúrio de uma voz suave e depois a resposta de Merlin. Baixou o braço, os dedos a se curvar num punho cerrado. Tão silenciosamente quanto se aproximara, esgueirou-se pelas sombras.

O exército de Arthur atravessou o rio Severn, em Somerset. A cinco dias de Caerleon, juntou-se a sir Balan de Montrose, cujo contingente fora dispersado por Maelgwyn.

Exausto pelo combate e sitiado, sir Balan, embora estivesse ferido e isso lhe causasse enorme dor, ajoelhou-se e baixou a cabeça.

— Empenho minha espada a você, Arthur de Caerleon.

— Levante-se — Arthur pediu-lhe. — Lutaremos juntos. Lado a lado. Conte-me o que puder sobre o exército de Maelgwyn.

Depois de conversarem, Arthur solicitou a Connor que reunisse o conselho de guerra, pois havia trabalho a fazer.

— Este não é meu lugar, Arthur. Ficarei com meus homens. Arthur não apelou para o amigo, mas ao guerreiro.

— Balan defrontou-se com Maelgwyn em batalha apenas uma vez, pego de surpresa, e mal sobreviveu. Você, ao contrário, teve vários encontros com ele. Não pretendo cometer o mesmo erro. Conhecemos sua força e sua posição. Precisamos conhecer a mente desse homem. E não creio, depois de todos esses anos, que você venha a Somerset para permitir que seus soldados sejam mortos por Maelgwyn.

Connor examinou Arthur por vários minutos. Por fim, concordou.

— A maior força de Maelgwyn reside no número de seus guerreiros. Seus homens são implacáveis. Não existe nenhum código de honra entre eles. Atacam de frente, num golpe massivo, avassalador, matando todos no caminho. Para derrotá-lo, você tem uma vantagem.

— Qual é?

— Cavalos. Maelgwyn não os possui.

— Ótimo. E eu que julgava que a situação era completamente sem esperança.

— Não é.

Os planos de batalha foram feitos. O exército de Balan forçaria um assalto em campo aberto à retaguarda de Maelgwyn.

O exército de Arthur, somado ao de Connor e seus homens, deveria separar-se em duas frentes, uma delas a investir do norte e fechar-se como uma corda apertada em torno da garganta do lobo. Tudo dependia de Marhaus — alheio à presença do exército de Arthur e sem meios de conseguir notícias dele — sustentar a linha ocidental do combate.

Divisaram o exército de Maelgwyn uma hora ao leste, acampado nos limites de Somerset, a aguardar a alvorada vindoura e o combate com Marhaus.

— Ele está certo da vitória — disse Connor, quando viu as fogueiras distantes.

— Como sabe disso?

— Maelgwyn é conhecido por atacar à noite, enquanto o adversário dorme.

— E sua guarda está baixa — concluiu Arthur. Connor meneou a cabeça. E os olhos de Arthur luziram.

— Temos agora duas vantagens. Passe a notícia. Usaremos as táticas de Maelgwyn contra ele: atacaremos sob o manto da escuridão.

Como uma tempestade que desaba sem se anunciar, o exército de Arthur varreu o acampamento, engolfando-o com pequenos incêndios, que rápido se alastraram, proporcionando luz para os guerreiros e, ao mesmo tempo, criando um visual fantasmagórico sob o céu da meia-noite. O cenário flamejava, cheio dos gritos dos agonizantes e de sangue.

E, em meio ao caos e à morte, ouviram os brados de guerra dos homens de Marhaus, que, sem dúvida, ao verem a luz do incêndio no horizonte, irromperam do leste, apertando o cerco.

Connor arqueou-se do lombo do cavalo, investindo a sua esquerda e derrubando um guerreiro, com apenas um pensamento: Maelgwyn!

Rebateu golpe com golpe com uma hostilidade persistente, impulsionado por aquela única idéia, além do ponto da exaustão, além das emoções, como um bárbaro irracional. Não por uma causa ou crença, mas por sangue.

Então, ao chegar ao centro do acampamento, ele e Arthur viram-se lado a lado, rodeados por guerreiros em combate. Postaram-se costas contra costas, como tinham feito incontáveis vezes quando garotos nas batalhas de mentira, um a proteger o outro conforme deparavam com o ataque de frente.

Uma abertura se abriu pela multidão de inimigos que de repente investira contra eles, e Connor gritou para Arthur:

— Saia daqui! Posso contê-los!

— E deixar toda a glória para você?! — gritou Arthur. — De jeito nenhum!

Abateu outro guerreiro, virou-se para enfrentar o próximo golpe e viu a lâmina que investia para o lado vulnerável de Connor. Ergueu sua espada para cima.

Connor percebeu aquele súbito sibilar no ar de uma espada cortando e vislumbrou a própria morte. Então, ouviu o choque de aço contra aço, seguido de um grito mortal. Girou.

Como se o tempo se imobilizasse em imagens congeladas, Connor viu o guerreiro caído com a espada agarrada na mão, e se deu conta de que olhava para o que poderia ter sido seu fim. Então, distinguiu a espada de Arthur enterrada no peito do homem. com grande risco para si mesmo, Arthur salvara-lhe a vida.

Encararam-se. E, naquele momento, com o sangue do inimigo a lhes manchar as túnicas, eram como os dois meninos amigos, antes que o destino interviesse, com as espadas apontadas para o céu, a empenhar a vida um pelo outro.

O combate findava, e nenhum dos guerreiros de Arthur encontrara Maelgwyn no acampamento. Nem estava entre os mortos ou feridos ao longo do perímetro, nem em outra parte pelos arredores de Somerset, nos dias que se seguiram.

A escuridão que dera a Arthur a vantagem da surpresa no ataque inicial também proporcionara uma cobertura para a fuga do lobo.

— Ele desapareceu como o demônio nas trevas — disse Arthur, uma semana mais tarde, montado ao lado de Connor, após vasculhar a região. — Mas haverá um outro dia.

— Não quero outro! — exclamou Connor. — Quero a cabeça de Maelgwyn numa lança hoje!

— Enquanto caçamos o lobo, Caerleon fica desguarnecida. Nossos homens estão exaustos, os feridos precisam de cuidados. Melhor resguardar nossa força e lutar mais tarde.

Connor sabia que ele tinha razão.

— O miserável estava quase em nossas garras...

— E tornará a ficar, eu lhe prometo. Até agora, Maelgwyn matou, saqueou e pilhou à vontade. Mas ferimos o lobo, e ele rasteja para seu covil.

— Sim — reconheceu Connor. Haveria outra ocasião, outro lugar.

A tensão desapareceu de seus ombros, tal como a velha animosidade se dissipara entre os dois desde aquele momento, no campo de batalha, em que Arthur pusera de lado o destino e se colocara em grande perigo para salvar a vida de um amigo.

Connor estava cansado das batalhas e de tudo o que elas implicavam. E percebeu os pensamentos se afastarem do sangue e se voltarem para a suavidade de uma visão dourada que habitava seu coração e seus sonhos desde que partira de Caerleon.

— Sim — murmurou para Arthur —, é hora de ir para casa.

Se alguém a visse, teria jurado que ela voara pelos degraus até o salão lá embaixo, com apenas um pensamento e indiferente a qualquer perigo.

— Aonde vai?! — Morgana gritou, barrando sua corrida pelo salão.

— Arthur voltou!

— Voltou? Mas isso é impossível. Eu seria a primeira a saber.

Meg percebeu o grave erro que cometera. E, sem contar uma mentira, emendou:

— Acabei de saber. Um dos meninos retornou da caçada na floresta...

Tristão e dois outros meninos tinham de fato chegado da caçada apenas um pouco antes. E ela acabara de ver o retorno de Arthur nos antigos cristais.

Virou-se e fugiu pelas portas do salão. Ao chegar aos degraus, os guardas no topo da muralha deram o alerta. Arthur e seu exército se aproximavam.

Os portões se abriram. Arthur cavalgava rápido à frente, e, a sua direita, seguia Connor. As túnicas dos guerreiros traziam a lama, a sujeira e o sangue da batalha.

Muitos estavam irreconhecíveis. Alguns oscilavam de fraqueza nas selas, enquanto outros caminhavam, a apoiar os feridos ou carregá-los em macas. Mas no rosto de todos via-se a expressão da vitória.

Meg desceu os degraus, atravessou o pátio, passando entre os guerreiros, e alcançou o cavalo de Connor.

Ele estendeu-lhe o braço e tomou sua mão, erguendo-a para a sela, diante de si. Seu olhar encontrou o dela e, nas profundezas cinzentas, Meg viu o cansaço da refrega e a tristeza da morte.

Ele enterrou a mão nos cabelos sedosos, e depois a tocou, gentil, na face. E, enquanto o povo de Caerleon enxameava em torno de Arthur e seus homens, em celebração, Connor virou o cavalo na direção dos portões abertos.

Meg não perguntou aonde ele a levava. Não importava.

 

O sol baixava no horizonte quando pararam numa colina com vistas para um lago. A bruma se erguia da superfície como fantasmas a se reunir em algum antigo campo de batalha. E atrás daquele exército fantasmagórico assomava o castelo que defendiam: muralhas antigas de pedra e vigas, escuro, abandonado e em ruínas.

Connor conduziu o cavalo colina abaixo pelo terreno nevado que rodeava o lago. Assim que chegaram mais perto, as muralhas antigas surgiram, sombrias e ameaçadoras. Os portões estavam abertos. Nenhum guarda anunciou sua chegada. Ouvia-se apenas o som lamentoso do vento a sacudir os restos rasgados de um estandarte e a fazer bater uma veneziana nos gonzos; e som de água a escorrer por uma parede de pedra.

Connor desmontou e amarrou o cavalo. Então, estendeu os braços para Meg, descendo-a e colocando-a a seu lado.

Meg viu os restos dos estábulos, os currais, o pombal, o fumeiro e as cozinhas.

— Que lugar é este?

— Era meu lar.

Lar. Aquela era uma palavra que não tinha nenhum significado para Meg. Criada como fora pelo conselho dos mais velhos e os Instruídos, crescera num mundo que espelhava o mundo mortal, mas para todos os intentes e propósitos não tinha muralhas, nem limites, nem laços com lugares ou casas. Nenhum vínculo emocional com um lugar chamado de lar. Seu mundo simplesmente existia. Meg existia, simplesmente.

Porém, em seu período de tempo em Caerleon, ao ouvir Arthur falar de suas próprias lembranças e esperanças, seus sonhos para a Bretanha e para o futuro, ela compreendera aquele senso de pertencer a algo e de ter algo para si, fosse apenas em lembrança ou um lugar físico a que se retornava. Era o que definia o coração e a alma dos mortais: o que amavam, pelo que lutavam e morriam.

Meg ouviu tudo isso na voz de Connor, a melancolia saudosa por aquilo que fora um dia, e que se perdera.

Sua mão fechou-se sobre a dela.

O salão principal fora construído no antigo estilo romano, com largos degraus, um pórtico e colunas que apoiavam um balcão no segundo andar. A entrada da frente era de madeira, marcada pela luta feroz que ali ocorrera. com o tempo, a porta maciça empenara e, embora pendesse presa por um único gonzo imenso de metal, fechava a abertura.

Connor encostou o ombro nela e empurrou. A madeira estalou e rangeu, e depois cedeu por fim, abrindo-se sobre lajes manchadas e quebradas.

A destruição não parava na entrada. Meg sentiu, mesmo sem a luz de uma vela ou lamparina, o caos de mobílias arrebentadas, tapeçarias rasgadas, utensílios espalhados, um berço virado de lado, uma bonequinha de pano e palha cruelmente esmagada sob o calcanhar de uma bota, e o sangue que manchava as pedras.

Viu como Connor vira um dia, anos atrás, e sentiu a agonia do que ele encontrara. Então a luz se derramou, suavemente, de um resto de vela.

Connor colocou a vela num dente na pedra da lareira e começou a fazer fogo. Quando as chamas se ergueram, alimentou-as com achas, restos das tapeçarias espalhadas, pedaços de cadeiras, qualquer coisa que queimasse. Depois, desenrolou os pelegos que trouxera no cavalo e estendeu-os diante do fogo.

— Não sei como você sobreviveu até aqui, tão horrível é o cheiro em torno de mim — Connor murmurou. — Tenho o odor da morte impregnado. Mesmo passados todos esses anos, posso ainda senti-lo. — Levantou-se, de repente. — Não deixe o fogo se apagar. — Virou-se e saiu.

Meg alimentou a lareira. Também achou uma lamparina e mais velas e as acendeu. A luminosidade se espalhou pelo grande aposento.

Tudo era destruição e ruínas. Porém, a boneca de pano e palha sobrevivera, chutada num canto. Meg sentiu-a lá, escondida, à espera de ser encontrada, talvez no aguardo da mão de uma criança para segurá-la mais uma vez.

Os cabelos de fios de lã fora um dia uma trança grossa, agora embaraçada e suja. O vestido azul se rasgara, a impressão de um calcanhar de bota ainda visível depois de tanto tempo. As feições tinham sido bordadas em musselina. Mas parte dos pontos da boca sumira. O que um dia fora um sorriso, era agora apenas uma expressão desolada.

— Pertenceu à filha de meu irmão, Dalenn.

Meg fez meia-volta. Não percebera que Connor retornara. Tirara a túnica de couro e a camisa. Estava nu até a cintura, com as gotas d’água a luzir em seus cabelos e pelos ombros. A visão dele sem camisa, vestido apenas na calça justa e com botas de couro a perturbou.

Connor pegou a boneca.

— Ela estava com quatro anos de idade. Meu sobrinho tinha apenas poucas semanas de vida quando eles chegaram... — Calou-se, fechando os olhos. — Meu pai tomara precauções contra Maelgwyn. Porém, no fim, não fez diferença. Disseram-me que eles atacaram à noite, sob o manto da escuridão, quando minha família se reunia para a refeição. Uma tática que Maelgwyn aprecia muito. Não pouparam homem, mulher ou criança. Escapei apenas porque não estava aqui naquela noite.

— Mas, na verdade, você não escapou, Connor. Existem diferentes tipos de morte.

Ele enxugou as gotas geladas da pele com a camisa.

— Sabíamos do perigo. Foi a razão pela qual meu pai me fez levar meus homens para o interior, em busca de Maelgwyn. Não soube onde ele atacara até que retornei. — Jogou mais pedaços de mobília no fogo. — Gostaria de ter estado aqui.

— E morrido com eles? Como isso seria de serventia para seus familiares?

— Sei que meu pai não teria desejado minha morte, mas sempre senti que...

— ...havia algo que poderia ter feito para salvá-los — Meg terminou por ele. — Não poderia. Teria perecido também.

— E agora, tudo o que restou foram essas paredes marcadas, desabadas, e o sangue nelas.

Meg meneou a cabeça.

— Está enganado.

Caminhou pelo salão, correndo os dedos pelas pedras na parede, deixando seus sentidos se expandirem até tocar a essência daqueles que tinham um dia vivido ali.

Seus espíritos chegaram a ela, não do horror e violência de suas mortes, mas da vida que tiveram e do amor que compartilharam. Uma tola discussão entre irmãos, uma risada de criança, um afago apressado entre jovens namorados, um abraço demorado entre velhos amantes.

— Este era um lugar de felicidade e amor — disse Meg, ao retornar até Connor. — Você se recorda de um momento doloroso de perda. Não é melhor se lembrar de uma existência de felicidade?

Connor meneou a cabeça, compreendendo a lógica e a sabedoria daquelas palavras.

— Sim, e nos momentos mais sombrios de minha vida foi tudo o que me sustentou. — Pousou a mão no rosto de Meg. — Isso é tudo o que tenho a oferecer. Paredes desabadas e campos sem semeadura. Nada mais.

— Não quero títulos ou terra. — Meg sabia que, com sua resposta, alguma linha invisível fora cruzada entre o que era e o que poderia ser. — Quero você.

Com aquelas mãos rudes de guerreiro ele acariciou os cabelos de Meg. E o contato a excitou. Desde que Connor a tocara pela primeira vez, semanas atrás, o destino de ambos estava selado.

Meg perdeu-se naquele beijo. Connor tinha o sabor do frio ar noturno e da água gelada que gotejava da pele e escorria em seus lábios. Então, o beijo tornou-se mais intenso, a roubar o fôlego de Meg.

Ela sabia o que se passava entre um homem e uma mulher. Mais de uma vez, desde que chegara a Caerleon, deparara com um casal num canto escondido ou corredor pouco iluminado, quando os dois se tornavam um só, entre sons que falavam um idioma próprio.

Meg e Dannelore dividiam o mesmo aposento, e ela sabia que John se esgueirava para a cama no canto do fundo, onde a encantada dormia. Naquelas ocasiões, Meg ficava deitada, em silêncio, no escuro, tentando não ouvir, mas incapaz de bloquear os sussurros urgentes e o farfalhar enlouquecido das roupas sendo tiradas com pressa, seguido de um arquejo ofegante. E então ouvia o som da união, do mesmo modo aflita e selvagem, até que terminava, e os dois jaziam largados e saciados até as horas que antecediam o amanhecer, quando John ia embora.

Meg queria experimentar o que os mortais faziam quando se uniam daquele jeito. Queria sentir o que parecia crescer e ficar mais forte a cada vez, como uma fome nunca saciada.

Saboreara aquela avidez com os beijos de Connor, que provocavam uma dor e um anseio dentro dela que nunca iam embora, uma vontade de experimentar aquele contato outra vez, uma necessidade dele.

— Não sei o que fazer. — Meg fora dominada por aquelas emoções mortais, pela incerteza. Pela necessidade.

— O que você quer?

— Tocá-lo.

Connor respirou fundo. Era um daqueles momentos em que ela o fazia desejar rir e chorar. Não havia timidez ou hesitação em Meg. Apenas honestidade.

— Sendo assim, me toque.

Os dedos de Meg tremiam quando ela estendeu os braços, a traçar de leve a ondulação rija dos músculos no peito de Connor.

— Sua pele é tão quente... — comentou, admirada. Como era possível, se mal havia calor do fogo?

Afagou a curva da musculatura dura do ombro. Ali, sentiu a cicatriz profunda que contornava o músculo até o tendão. Traçou cada rede de carne estraçalhada, cada nó de músculo torcido com o toque de cura e a carícia de uma amante.

Por meio daquela conexão, soube da dor que Connor sofrera e suportara, e se deu conta da brutalidade que lhe infligiram; não um ferimento de batalha, mas sob tortura. E as lágrimas encheram seus olhos.

— Não chore por mim, Meg. Posso suportar tudo, menos isso.

Ao compreender essa dor, esse orgulho, e o homem, Meg roçou com ternura os lábios pela carne marcada.

Connor retesou-se, como se pronto para a luta. As mãos pendiam fechadas em punhos, dos lados. Contudo, não fez nada para impedi-la. Ao contrário, permaneceu absolutamente imóvel, o peito a se erguer e voltar a cada respiração arquejante, conforme Meg continuava a explorá-lo, descendo pela extensão daqueles braços musculosos, pelas mãos ponderosas que a seguravam com tanto cuidado e ternura. E depois, pela planície rija da barriga.

— Deus Todo-Poderoso! — ele exclamou, quando os lábios de Meg seguiram o caminho que os dedos haviam traçado.

Ela contornou aquela fita negra e estreita que subia da calça e abria-se em planos duros e em curvas no tórax largo, numa penugem macia que circundava os mamilos contraídos.

— Meg...

A boca rosada continuava avante, cada novo sabor a deixá-la mais ávida pelo próximo. Sua mão deslizou em torno do pescoço de Connor, e ela o puxou para receber seu beijo. Não um beijo hesitante, mas cheio de avidez e desejo.

Custou a Connor cada grama de autocontrole que possuía manter as mãos rígidas dos lados, tocando-a apenas com os lábios, deixando as explorações de Meg arrastarem a ambos para um terreno perigoso.

Valeria a pena, jurou. Valeria cada segundo de agonia. Tudo o que Connor queria era perder-se na quentura abrasadora e curativa do corpo de Meg, senti-la tremer, inquieta e desejosa sob ele, a volúpia a despertá-la, como naquele instante acordava em seu beijo.

A respiração dela roçou-lhe os lábios num suave gemido de espanto. Seus olhos azuis brilhavam, enormes, sombrios, cintilantes. Seu peito arfava. E, mesmo assim, Connor manteve as mãos cerradas e quietas.

— Agora, você deve me deixar tocá-la.

Meg não protestou quando ele passou as costas dos dedos acima do decote de seu vestido. Nem quando escorregou os mesmos dedos para baixo, acariciando de leve a curva de seus seios por entre o tecido. E muito menos quando Connor desfez o nó dos laços do corpete. Continuou, porém, a fitá-lo com aqueles olhos toldados de sombras.

Connor tirou-lhe o vestido dos ombros, expondo a pele pálida e sedosa e o rosado mais escuro do ferimento onde a flecha entrara. E, assim como Meg fizera, roçou os lábios pela cicatriz, lembrando a dor e o sofrimento que lhe causava, tentando apagar a lembrança com um beijo.

Ouviu o gemido que ela deixou escapar. Não um som de dor, mas de espanto, a descoberta do prazer. Puxou o vestido mais para baixo, expondo a curva de um seio, e sua boca desceu para prová-lo. Ao soltar o vestido mais ainda, seus lábios a acompanharem as mãos, a respiração de Meg tornou-se curta, entrecortada. A roupa escorregou, e ela parou de respirar. E Connor a saboreou como fora saboreado.

O ar escapou dos pulmões de Meg num gemido desesperado. Sentia-se destroçada pelas sensações físicas e emoções caóticas que se concentravam naquele lugar onde Connor a acariciava. Tudo o que aprendera sumiu, numa fração de segundo. Não tinha experiência prática para guiá-lo. Nem mesmo seus poderes, nem os dons com que nascera a ajudavam. Possuía apenas o instinto mortal para dirigi-la, apenas o que sentia.

E com esse mesmo instinto recém-descoberto, enterrou as mãos nos cabelos de Connor, comprimindo-o contra si, a lhe oferecer tudo que ela era.

Sua cabeça pendeu para trás, e Meg fechou os olhos, os lábios entreabertos num arquejo de deslumbramento e puro deleite. Nenhum de seus maravilhosos poderes, nenhuma transformação, sortilégio, nem ilusão, se comparava ao que vivenciava.

Era pura sensação. O gosto dele, o toque, o cheiro que permeava o ar, os sons suaves e sibilantes que Connor murmurava, em palavras incompreensíveis, contra sua pele. E a visão daquelas mãos poderosas a afagar sua carne em brasa. Toda ela se concentrava numa única sensação: nele.

Connor deslizou um braço sob os joelhos de Meg e tomou-a no colo. Ela não protestou, mas nas poças escuras, de seus olhos azuis havia dúvida, quando ele a depositou sobre a cama de peles.

Fechou as mãos fortes sobre as dela, quando Meg o puxou para baixo, num beijo apaixonado. E, depois, deslizou sua boca para baixo, refazendo o caminho que traçara antes.

Meg conteve o fôlego, numa expectativa ansiosa. Connor proporcionava-lhe as impressões mais desconcertantes, a provar cada centímetro de sua anatomia, a acender um fogo que a requeimava e a impedia de respirar direito, e fazia o sangue pulsar loucamente em suas veias.

Jogou a cabeça para trás mais uma vez e arqueou os quadris o mais que pôde. Suas pálpebras estavam cerradas, o corpo palpitava. E ela deixou escapar um grito soluçante, de súplica, querendo algo mais que na verdade não sabia o que era.

O gosto de Meg requeimava nas entranhas de Connor; inocência, suavidade, desejo despeito. Meg era como cetim cálido a escorregar por suas mãos, a atiçar seus sentidos, uma imagem reluzente em dourado, um calor úmido, uma força envolvente quando se arqueou a estremecer de desejo quando ele se encaixou entre suas coxas.

A noção de espaço, de tempo, de lugar desvaneceu-se. Havia apenas o aqui e o agora, e o desejo de possuir e ser possuído, de tocar e ser tocado, a abrasar o coração dos dois amantes.

— Quem é você? — ele quis saber.

— Sabe quem sou.

— Sim, sei. Você me faz rir quando quero maldizer o mundo; me faz ver a beleza onde existe apenas feiúra. Vejo vida quando tudo ao redor é apenas morte. Sei quem é você. — Suas mãos se fecharam sobre as de Meg, ao se enterrar ainda mais dentro dela. Beijou-a com ardor. — Você é outra metade de minha alma.

O fogo na lareira parecia se expandir e lamber as paredes. A luz que brilhava ao redor era igual à de centenas de sóis. Então, o sol explodiu dentro deles, em profundos espasmos que os sacudiram, quase a destroçá-los, destruindo o que tinham sido e criando o que seriam.

Muito tempo depois, Meg sussurrou, quando conseguiu recuperar o fôlego:

— Você se saiu muito bem.

Sentiu o riso sacudir o peito de Connor quando ele rolou de costas e levou-a consigo, para que ficasse sobre ele.

— Fico contente que tenha aprovado. Mas noto um sinal de desapontamento...

— Não! — ela exclamou, com veemência. E, em seguida, emendou: — É só que... — Mordeu o lábio inferior, como se não tivesse certeza de como se expressar.

— Só que...

— Fiquei pensando se não havia outras maneiras...

Connor caiu na gargalhada, até que as lágrimas saltaram-lhe dos olhos.

— De onde tirou essa idéia, menina?

— Em Caerleon.

— De ficar escutando casais escondidos nos cantos escuros.

— Não fiquei escutando! — contrapôs, indignada. — É um pouco difícil não notar quando acontece à plena vista, ou na cama ao lado. Dannelore e John não são muito discretos.

— Fazem muito barulho?

Connor tentava não rir. Meg estava muito séria e pensativa como se desse grande importância ao tema.

— Sim, barulhentos como dois esquilos numa árvore. E fazem todo tipo de sons esquisitos.

Connor a agarrou e a colocou mais uma vez de costas no leito de pele. A vontade de rir sumira. Suas mãos tremiam com outras emoções quando imobilizaram o movimento inquieto dos quadris de Meg.

— Deixe-me mostrar-lhe todas as outras maneiras.

O clima que os aprisionara em Caerleon tornou-se o aliado de Connor e Meg, conspirador e guardião. A cada manhã, quando se levantavam, uma nova nevasca caía. Assim, permaneceram em Monmouth por quinze dias, fechados num mundo bloqueado pela neve, com a maior parte da região intransitável. Porém, não estavam sozinhos.

Thaddeus era alto, anguloso e ossudo. Servira o pai de Connor e o pai dele antes, quando era apenas um menino. Limitado em muitos aspectos físicos, inclusive pelo pé deformado, ele compensava a deficiência com o intelecto privilegiado, sobretudo com letras e números.

Aprendera a ler e escrever, e era devotado ao pai de Connor. O duque de Monmouth fizera de Thaddeus o administrador dos estoques em Monmouth. Decisão acertada, pois as propriedades tornaram-se algumas das mais ricas em toda a Bretanha.

Se não fosse por sua perícia em providenciar quase tudo, desde uma bilha de vinho a ovos, pães e caça fresca como se os tirasse do ar, Connor e Meg poderiam ter sido forçados a retornar a Caerleon.

Thaddeus aparecera pela primeira vez no primeiro dia deles em Monmouth. Chovera granizo a noite toda, e o dia seguinte ficava cada vez mais frio com a promessa de nevasca antes do cair da noite.

Connor saíra para caçar, e Meg mantivera o fogo aceso como ele lhe pedira, mas não demoraria muito até que a lenha acabasse.

Fora procurar nas outras partes da casa, para ver se achava mais. Mas em vão. Encontrara apenas estilhaços de mobília e carregou o que pôde para o salão. Mas, ao entrar, deparou com várias achas de madeira amontoadas ao lado da lareira. O fogo já ardia, forte. As chamas afastavam a neve e o gelo, e o ar se enchia do cheiro de resina de pinheiro. Julgou que Connor voltara. Mas não era a presença dele que sentira no aposento.

— Sei que está aí! — exclamou, sem medo. — Pode sair. Thaddeus, então, se afastou das sombras para a abertura do corredor. Era tão anguloso, tinha as faces tão encovadas e as mãos tão ossudas que o desconforto que Meg sentia pareceulhe inconseqüente.

— Há alguma coisa que eu possa fazer por você? — ela ofereceu, achando que talvez ele estivesse doente.

— Não se assustar.

— Claro que não. Por que me assustaria? Você não quer me fazer mal.

Foi então que percebeu o grave erro que cometera. Ele não dissera nada. Meg respondera aos pensamentos daquele homem. E a surpresa que Thaddeus demonstrou foi imensa.

— Você é uma das abençoadas!

Como pôde ser tão descuidada, a ponto de ser descoberta assim?

— Não temos nenhuma comida — afirmou, em tom de desculpas, na tentativa de disfarçar. — Mas é bem-vindo, se quiser água.

— Temos comida agora — Connor falou, assustando-a, pois não o ouvira retornar. — com quem conversava?

A expressão de Connor foi da suspeita para a surpresa aturdida e, em seguida, para o júbilo ao ver Thaddeus.

— Por Deus! — Jogou de lado o par de coelhos que caçara. Atravessou o aposento quase correndo e lançou os braços

em torno do visitante desengonçado, com tamanho entusiasmo, que Meg temeu que os ossos do pobre homem pudessem quebrar.

— Pensei que estivesse morto! — A voz de Connor travou em sua garganta. — Deus do céu, achei que vocês todos tivessem morrido... Venha. Sente-se ao lado do fogo. Tem de me contar tudo.

Através da linguagem dos sinais de mão. Thaddeus revelou o que acontecera ali. Connor traduzira, explicando a Meg, embora nenhuma explicação fosse necessária. Ela ouvia a narrativa em seu íntimo tão claramente como se ele verbalizasse. Thaddeus dizia como ele e os outros criados lutaram, junto com o pai e o irmão de Connor, quando o ataque se deu. Depois, restaram morte e devastação; e sem esperança, o pai de Connor mandou Thaddeus abandonar Monmouth para encontrar o filho e avisá-lo sobre Maelgwyn.

Não pôde encontrar Connor, pois se perdeu na floresta. Mas ouviu falar dele tempos mais tarde, num outro local. Por fím, voltou para o que restara de Monmouth, fiel a seu dever e à crença de que um dia Connor regressaria.

Thaddeus ostentava as cicatrizes que sua lealdade lhe custara. Ficara cego de um olho. Mas via bem com o outro, e observava Meg com ávido interesse.

— Thaddeus e alguns outros vivem nos quartos dos criados perto da cozinha — explicou Connor. — Retornaram depois do ataque e passaram a morar aqui desde então.

O olhar assustado de Meg encontrou o de Connor.

— Estão aqui desde esse tempo? Ontem, quando nós.., — Suas faces enrubesceram diante da idéia de que poderiam ter sido vistos enquanto ela e Connor faziam amor.

— Fizemos barulho como dois esquilos numa árvore. — Ele foi incapaz de reprimir um sorriso. — Contudo, creio que não se aventuram para esta parte da casa faz muito tempo. É grande e cheia de correntes de vento, e difícil de manter aquecida.

Meg enfiou o atiçador na lenha, provocando uma explosão de fagulhas pela chaminé, enquanto Connor tentava, em vão, abafar a risada.

— Vou cuidar desses coelhos. — Meg fez uma careta. — Meu estômago está grudado nas costelas.

Mas, antes que pudesse pegar a caça, Thaddeus a recolheu e, com um aceno de mão, a levou para a cozinha.

— Preciso ajudar. — E Meg deixou Connor a rir a sua custa.

Ela estava ansiosa para conversar com Thaddeus sobre a descoberta que ele fizera de suas faculdades.

Encontrou-o na cozinha, a preparar os coelhos. Meg sabia que Thaddeus tinha consciência de que ela o seguira.

— Não se preocupe, moça. Sou do povo da floresta. A nossa é uma crença antiga. Nós, que cremos em coisas tais como a senhora, só podemos lhe devotar honra e respeito.

Dannelore falara a Meg sobre aquela gente, que acreditava no poder da terra, do vento e do fogo. Por milhares de anos aquelas pessoas reverenciaram aqueles com habilidades como as dela. Muitos deles ainda viviam vida muito primitiva, em lugares remotos, esculpindo seus símbolos sagrados nos troncos das árvores e erigindo monolitos, forçados com freqüência a sobreviver escondidos. A religião dominante, que pregava tolerância e misericórdia, não mostrava nada disso para aqueles que não acreditavam nela.

Com um sorriso gentil, Thaddeus assegurou:

— Seu segredo está a salvo.

Todos os dias, depois disso, houve comida suficiente; caça fresca, ovos quentes, queijos e tortas de fruta preparadas por uma das mulheres que voltara para Monmouth, tudo sob o olhar atento de Thaddeus.

A não ser o velho criado, raramente viam alguém. Mas Meg decidira, naquela primeira tarde, que ela e Connor não poderiam mais dormir diante da grande lareira no salão. Insistiu que ele e Thaddeus carregassem o tapete pesado para o quarto do segundo andar, o único que ainda tinha uma porta intacta.

— Não quero platéia quando estivermos dormindo. Porém, a partir de então, Meg se deu conta de muito mais.

Conviver com os mortais e aprender com eles era uma coisa, Mas deitar-se com um mortal, abrir seu coração, conhecer Suas emoções e experimentar as suas próprias pela primeira vez era não apenas imprudente, mas perigoso.

Seus mundos eram diversos. Connor era mortal; Meg, não; e nenhum dos dois poderia mudar esse fato. Ele se encontrava ligado pela honra, pelo orgulho e pela lealdade aos vínculos que lhe falavam profundamente ao sangue. Ela se ligava a uma outra dimensão, à própria essência do poder da Luz; uma criatura que escapara por um tempo e assumira uma forma passageira.

Meg via, sentia e provava tudo o que Connor via, sentia e provava. No entanto, seu destino se achava na eternidade. O dele estava preso ao mundo humano e finito.

Meg cometera a maior transgressão, certa de que, após experienciar a vida no mundo mortal, tudo o que teria a fazer seria retornar a Avalon. Porém, nada era como esperara. Não antecipara a profundeza dos sentimentos humanos que adquirira... nem as possíveis conseqüências.

Numa das noites, após fazer amor com Connor, ela se ergueu e apoiou-se no peito dele. Aqueles olhos cinzentos a fitaram com uma calma saciada que encontrava eco dentro dela. Uma paz que Meg detestaria destruir, mas deveria.

— O que é? Achou que faltou algo? Ela meneou a cabeça.

— Não. E é isso o que me preocupa.

— É a primeira vez que sou criticado por satisfazer uma moça.

— Não é a satisfação que me preocupa.

— Então, o que é? — Connor se sentou. — Eu a magoei? Para ela, era impossível dizer uma mentira.

— Não. Foi tudo maravilhoso.

Um brilho divertido brilhou nas pupilas de Connor.

— Ah... a virtude perdida.

Meg franziu a testa, e o surpreendeu com a resposta:

— A virtude se encontra dentro do coração de uma pessoa. Não é algo que possa ser perdido ou tomado.

— Concordo.

E concordava mesmo. Connor percebeu naquele momento que não teria lhe importado se Meg já tivesse se deitado com outro homem, marido ou amante. A questão seria se outro tivesse se apossado de seu coração.

— Então, se não é a virtude perdida, o que a preocupa? Meg escolheu as palavras com cuidado.

— Sei que existem precauções que podem ser tomadas.

— Precauções? Contra o quê?

— Um filho.

Connor ficou tenso.

— É disso que tem medo? Que possa conceber uma criança? — Havia dor mesclada de raiva em seu íntimo.

— Pode acontecer. — Meg hesitou, sabendo que o deixara zangado, pela expressão gelada no olhar.

Connor abraçou os joelhos, cada músculo tenso, as feições glaciais.

— Acha que não pensei nisso? — Connor indagou, e depois respondeu à própria pergunta, deixando-a espantada: — Sim, eu pensei. E rezei para que acontecesse.

— Você nada sabe sobre mim, minha família, de onde vê nho. Pode chegar um dia em que eu tenha de partir daqui.

— Não.

— Connor, por favor...

— Não!

Ele a agarrou pelos ombros e a forçou a deitar-se de costas, na cama de peles.

— Já perdi muito. Minha família, meu lar, meu orgulho e minha honra. Não perderei mais. Não outra vez. Não esta casa, não estas terras. — Suas mãos a machucavam, e sua boca comprimiu-se contra a dela, aflita. — Não perderei você!

Meg queria contar-lhe que nada que ele pudesse dizer ou fazer mudaria seu destino. Queria repudiar o calor do corpo de Connor, negar o calor de seu próprio corpo. Mas não podia.

Aquilo era uma loucura que se apoderara de sua alma; e Meg lhe dera as boas-vindas assim como acolhera Connor, tomando-o dentro de si numa conjunção carnal, primitiva, que a marcara como um ferro em brasa, fazendo-a render-se... entregar sua sina a um mortal que ela amava mais que à própria existência.

O tempo clareou. O sol brilhava com um calor hesitante e fugidio, como se dissesse: ”Isso não vai durar, aproveite enquanto pode”. E os dois aproveitaram, caminhando até a beira dos pomares onde Connor caçava, e depois seguiram por onde o muro se abria para um pátio de igreja, cheio de antigas lápides esculpidas.

Pararam diante das mais novas, sete ao todo. Os pais de Connor, suas irmãs, e seu irmão e a família. Os nomes das duas crianças foram entalhados numa pedra sepulcral com inscrição em latim.

Connor ajoelhou-se e curvou a cabeça. Meg sentiu que aquilo era algo profundo e particular, e ficou à parte, ouvindo-o murmurar preces a seu Deus. Depois, fez o sinal-da-cruz, tocando a testa, cada ombro e, por fim, os lábios. Ficou de pé.

— Não é uma crente? — perguntou, suavemente, assustando Meg.

— Creio que tais coisas são particulares, contidas apenas no coração de cada um.

— Talvez creia no mesmo que Thaddeus — Connor sugeriu, sem imaginar o quanto chegara perto da verdade. — O povo da floresta crê nos poderes do céu e da terra.

Meg assentiu.

— É uma crença muito antiga, que antecede o cristianismo.

— Só existe um Deus verdadeiro, Meg.

— Que é tolerante e benevolente. Mas seus seguidores trazem a morte a mulheres e crianças indefesas — ela contestou, pois não houvera misericórdia para quem perecera sob a espada de Maelgwyn... nenhuma piedade para a família de Connor.

Ele a encarou, pensativo.

— Talvez você creia no deus da floresta.

— Não é o seu Deus o Deus de todas as coisas, inclusive da floresta?

— Sim, é nisso que acredito. — Fitou as lápides eretas. — Aquilo em que devo crer.

Connor insistiu em verificar as armadilhas para coelho que colocara no pomar. Meg foi junto, explorando o local enquanto ele examinava os alçapões.

A primeira bola de neve o atingiu direto nas costas. A segunda, atrás da cabeça. Não houve tempo para mirar a terceira, pois ele se virou depressa e partiu na direção de Meg.

Connor a pegou com tanta facilidade como um gato a caçar um rato, e a arrastou para baixo, saltando sobre ela. Meg chutou e gritou na tentativa de se livrar, e ofegava sob Connor.

— Foi você quem me atacou com aquelas bolas de neve, mocinha. E, é claro, vai ser castigada por isso.

Os olhos de Meg se estreitaram.

— Enquanto me prende no chão? Que corajoso, senhor guerreiro!

— Lógico! Não sou nenhum bobo.

Prendeu os joelhos de Meg com a perna, e suas mãos procuraram a abertura do manto, para, de imediato, começar a lhe fazer-lhe cócegas.

— Você é um cão ordinário! — Meg gritou, entre gargalhadas, incapaz de pensar em algo mais para xingá-lo. Torceu-se e se virou, mas só conseguiu se enroscar mais.

— Terá de fazer melhor que isso! — Connor encontrava novos pontos para atormentá-la.

Meg ria como louca, as faces em brasa.

— Mais ordinário que excremento de bode!

— Já chega! — Connor se fingiu de ofendido. — Não haverá clemência!

Fez-lhe mais cócegas, e depois deslizou as mãos pelas coxas de Meg, levando a barra do vestido com elas.

— Connor, não! Você não pode estar pretendendo... — Sua risada de momentos atrás foi sufocada por um calafrio de desejo, ao experimentar as carícias dele.

— Não posso?

— Alguém poderá nos ver!

—- O que verão?

— Nós!

—- Se olharem, arrancarei os olhos deles!

Meg deu risada, pois sabia que era uma ameaça vazia.

— O que será do pobre Thaddeus? Ele já tem só um olho... — Então, mais séria, murmurou: — Precisa esperar, milorde.

— Por quê?

A respiração de Meg sibilou, num som arquejante e cheio de desejo.

— O senhor é implacável, sir.

— Sempre.

— Tenha piedade, senhor.

— Jamais.

Quando voltaram ao salão de Monmouth, chegaram cobertos de neve. Pareciam crianças, as roupas molhadas por dentro e por fora. Suas faces luziam. Connor não conseguia parar de agarrá-la, e Meg não parava de rir.

Foram recebidos à entrada por um Thaddeus muito sério. Ele tinha notícias.

Connor era necessário em Caerleon. Corriam rumores de que Maelgwyn e Aethelbert haviam se unido contra Arthur.

Meg ficou espantada. Esperara contar com mais tempo, na crença tola de que talvez nunca tivessem de voltar. Agora, o prazo se esgotara.

Connor deu instruções a Thaddeus para que providenciasse as provisões de que necessitariam para a manhã seguinte.

Não fizeram a refeição da noite com Thaddeus e os demais nas cozinhas, como costumavam, preferindo levar o alimento para o quarto.

Falaram pouco, cada um envolvido com as próprias aflições. O fogo queimava no braseiro.

Meg sentou-se na cama de peles diante das labaredas e desatou o laço da ponta da trança dos cabelos. E sentiu os dedos quentes roçarem os seus, quando Connor tomou a trança grossa e começou a soltar as mechas.

— Na primeira vez em que vi você, seus cabelos estavam soltos sobre os ombros. — Inclinou-se para a frente, na cadeira, e devagar espalhou as ondas soltas pelas costas de Meg que se mantinha imóvel. — Achei que deveria estar sonhando, que nada poderia ser tão belo, tão primoroso.

Connor afastou a pesada cortina de cabelos para o outro lado.

— Tive medo de que pudesse nunca mais ver algo tão admirável outra vez. — Sua voz tornou-se baixa e gutural, à lembrança. — E não podia suportar pensar nisso.

Meg lançou-se para dentro dos braços do amado. Eles se fecharam em torno dela num abraço forte, arrancando-lhe o ar dos pulmões. Connor enterrou o rosto em sua cabeleira.

— Vamos voltar — jurou, contra a maciez dos fios dourados. — Eu a trarei para cá, e nós nos casaremos. Dou-lhe minha palavra.

Meg o silenciou com a mão pousada contra a boca de Connor.

— Sem promessas — disse, com doçura, querendo de todo o coração ouvi-las, desejando do fundo da alma fazer aquelas mesmas promessas a ele, e sabendo que não poderia.

Seus dedos tremiam contra os lábios dele. Meg estremecia junto ao peito de seu adorado. Puxou-o para um beijo, muito emocionada.

— O dia de hoje é tudo que eu peço.

As sombras dançaram em estranhas figuras na parede. Um golpe de ar agitou as chamas no braseiro.

Seu amante não dormia. Agarrou-a, rolou-a de costas e comprimiu-a contra as peles grossas.

— Onde esteve? — O ciúme reluzia em seus olhos e exalava a cada sílaba. — Acha que pode me manter esperando como algum cão obediente por alguma migalha poupada que resolva, enfim, jogar em minha direção?

Ela não era páreo para a força máscula, porém o guerreiro não era páreo para sua sagacidade.

— Creio que sim, contanto que as migalhas sejam riqueza e poder!— ela o relembrou. — Agora, tire as mãos de cima de mim!

O amante rolou de lado e se levantou, a raiva a latejar em cada ângulo e plano de seu corpo conforme caminhava, nu, até a mesa, e enchia de vinho uma taça de madeira.

Morgana não o seguiu. Ainda não. Afinal, fazia parte da caçada. E ela adorava caçar. E capturar. Mais que tudo, apreciava a captura.

Ergueu-se devagar da cama, os longos cabelos negros a cair numa cortina em torno de si, mas revelando um ombro pálido, a curva do quadril, a extensão de uma coxa, um mamilo mais escuro. Aproximou-se dele, então, ao lado da mesa.

— Fui consultar um homem acerca do futuro. — Levou a mão à taça e bebeu um gole, suas íris a luzirem, sombrias, por sobre a borda.

— Foi ver o feiticeiro! Posso sentir o cheiro em você. As ervas e folhas que aquela bruxa prepara no caldeirão para ele... É o cheiro de coisas ímpias. Não quero nada disso!

— Tem certeza?

Ele não tinha certeza de mais nada. Talvez fosse o que o impedia de voltar atrás.

Devagar, Morgana estendeu-lhe as mãos. Seu amante a observou, cauteloso. Nas últimas semanas, desde que se deitara com ela pela primeira vez, aprendera que aquela mulher poderia ser imprevisível. Mas, em vez de tocá-lo, como costumava fazer começou a se acariciar.

Ele ficou a observá-la por entre os olhos estreitados, a imaginar que novo jogo seria aquele. Então, Morgana o deixou estupefato ao deslizar a mão por sua intimidade e em seguida correr a língua sobre um dos dedos, sem se desviar dele. Gemeu, num som gutural, ao sentir o próprio gosto. E arregalou os olhos como se tivesse uma idéia repentina.

— Gostaria de provar?

A emoção da caçada latejava em suas veias.

— Maldita!

Ele se recusou a tomar-lhe a mão, recusou aquele doce néctar que ela lhe oferecia, embora sua carne se intumescesse e se erguesse visivelmente.

— Prove. Agora — ela sussurrou.

O amante a agarrou pelo pulso, num aperto de quebrar os ossos que a fez gritar. Então, foi como se a saboreasse, doce, misteriosa, proibida, aquele gosto já em seus lábios quando, sem conseguir resistir, passou a língua por eles. Mas não bastava, como Morgana sabia que não bastaria.

Ele praguejou outra vez quando seus olhares se encontraram. Beijou-a, apressado, com dureza e avidez, tentando punila, mas era ele o castigado. Parecia nunca se saciar dela.

Não havia gentileza ou ternura quando a ergueu no colo e a jogou sobre a cama. Nenhuma doçura quando abriu as pernas claras e esguias. Nem quando enterrou os dentes num seio pálido ou quando a possuiu, apressado, com violência e profundamente.

Morgana gritava de prazer, as costas a se arquear com a emoção da conquista. Sentiu quando o momento do clímax estava próximo, e agarrou-se a ele. Seu corpo sacudiu-se em espasmos e ela cravou as unhas nas costas do guerreiro.

A conquista de Simão, o Prudente, estava completa.

 

Partiram de Monmouth às primeiras luzes da manhã. O cavaleiro que trouxera a mensagem de Arthur, um dos homens de Connor, os acompanhava.

A estrada se tornara uma confusão de sulcos e buracos, causando dificuldade aos cavalos para manter o passo. Por fim, abandonaram a estrada e cortaram a região por uma trilha que Connor percorrera com freqüência quando criança.

Pararam para descansar os animais e comeram um lanche frio de pão de centeio, carne seca e ovos duros, com um odre de vinho que Thaddeus arrumara para eles.

Após a refeição, Meg e Connor se separaram e se afastaram dos cavalos, de modo que ela pudesse aliviar-se, outro inconveniente de ser mortal.

— Preciso falar com você, Meg — disse Connor, quando ela surgiu de um lugar escondido atrás de uma moita.

O olhar dela encontrou o dele, solene. Connor havia tirado as grossas luvas de couro, e agora estendia a mão a ela, puxando-a para que se sentasse num tronco caído.

— Esperava que houvesse mais tempo, mas resta muito pouco e existem coisas que têm de ser ditas. Não podemos saber o que nos aguarda. Renovei meu compromisso de lealdade a Arthur. Meu dever como guerreiro está com ele.

Ela nada comentou, mas entrelaçou os dedos nos dele.

— Monmouth se acha em ruínas. Não há ninguém para reconstruí-la. Existe apenas um punhado de gente para cuidar da terra. Tenho apenas uma espada, meu escudo e meu nome para oferecer. E isto. — Tirou um anel do dedo anular.

Meg já o vira antes. Era simples, de prata, com inscrições em latim e o emblema de um chifre de alce. Nunca saíra da mão de Connor. Até aquele momento.

— Meu pai possuía muitas coisas belas. Porém, valorizava este anel acima de tudo. Era dado à mulher escolhida para ser a esposa do duque de Monmouth. Meu pai o deu a minha mãe, e eu o dou a você.

Meg tentou se soltar dele, mas Connor deteve sua mão com firmeza, enfiando-lhe o anel no dedo médio.

— com ele, você estará protegida por minha espada, meu escudo e tudo o que eu considero mais sagrado. — Fechou os dedos sobre os dela.

Fora sobre isso que Dannelore a avisara. Era uma doce armadilha da qual não poderia escapar, a não ser com a verdade.

E isso Meg não iria fazer, pois não suportaria ver a decepção de Connor quando soubesse quem e o que era ela.

A noite caía quando chegaram a Caerleon. Entraram por um pequeno portão lateral enquanto a escuridão envolvia a fortaleza e tochas apareciam nas torres de vigia. John saudouos e levou seus cavalos para o estábulo.

— Dannelore ficará aliviada ao saber de sua volta. — John sorriu.

— Aconteceu alguma coisa? — Mesmo enquanto perguntava, Meg abriu os pensamentos e sentidos em busca de alguma indicação daquilo que perturbava John. E uma apreensão repentina a dominou. — Mestre Merlin piorou?

— Não. Mas os ferimentos ainda não sararam direito. Isso tem afligido Dannelore. Ele come pouco e mal consegue dormir. Desde a notícia de que Aethelbert aliou-se a Maelgwyn contra Arthur, tem trabalhado até quase a exaustão. Dannelore está preocupadíssima com Merlin.

Meg franziu a testa. Não conseguia compreender por que o irmão ainda não se curara. Estremeceu, como se algum presságio ruim passasse como uma sombra por seus sentidos.

O cachorro, Dax, que os acompanhara a Monmouth, pareceu sentir também. Nem mesmo o cheiro convidativo de comida conseguiu atraí-lo. Na primeira oportunidade, esgueirou-se pela porta, preferindo o vento gelado do lado de fora à sensação glacial lá de dentro.

Era estranho, concluiu Meg, pois o cão nunca ficava longe de Connor.

A refeição foi servida e, com tanta gente agora residindo em Caerleon, a chegada dos dois não foi notada de imediato.

Meg esquadrinhou o salão buscando avistar o irmão, porém não o encontrou. Merlin não se encontrava em seu lugar habitual, à mesa de Arthur, agora ocupado por Morgana. E também não estava em nenhuma das outras mesas.

Vários dos homens de Connor, sentados mais próximos da entrada, os avistaram e gritaram saudações. Logo, a notícia se espalhou, e o olhar de Meg encontrou-se com o de Morgana.

Naqueles olhos escuros, ela viu uma frieza e um ódio que a irmã de Arthur não fazia questão de disfarçar. Meg se arrepiou, como se uma mão invisível e hostil lhe tocasse a alma. Desejou ter ficado em Monmouth.

— Venha — Connor convidou. — Vamos nos juntar aos demais. Um trago de vinho aliviará o frio da viagem.

Meg fez que não.

— Preciso encontrar Dannelore. Talvez haja um remédio que ela não pensou que pudesse ser feito para mestre Merlin.

— com certeza isso pode esperar, Meg. Acabamos de chegar.

— Não! Não pode! — Ela reprimiu a aspereza da voz. O que a deixava tão aflita?

Mas Connor percebeu.

— Há algo errado? Você não está bem?

Simão, o Prudente, de fisionomia fechada, veio até eles, dizendo que Arthur queria reunir-se com Connor.

Falou num murmúrio impossível de ser escutado por alguém mais, com o ruído reinante. Porém, Meg ouviu cada palavra com tanta clareza como se as dissesse a ela.

Por alguma razão inexplicável, cada sentido seu se exacerbara até o ponto em que cada pequeno som se multiplicava por cem.

A visão, o tato e o olfato também se refinaram. O ruído era quase ensurdecedor, uma cacofonia altíssima de vozes, risadas. O simples baque de uma caneca sobre o tampo ou o raspar de uma faca sobre uma travessa de metal parecia penetrar-lhe o cérebro. E em meio àquele caos, ela ainda podia distinguir cada voz individual, cada conversa, cada murmúrio. Sua cabeça começou a latejar.

Meg viu uma escuridão crescente envolvê-la, como um coração maligno que se tornava cada vez mais forte até que conseguiu ouvi-lo bater.

— Meg...

De algum lugar distante, ouviu a voz de Connor. A tontura a invadiu. Cerrou as pálpebras com força, tentando bloquear uma dor intensa, empurrando-a para trás até que conseguiu respirar de novo, quando a dor retrocedeu.

— Meg!

Aflita, e próxima agora, tornou a ouvir Connor. Então, sentiu o calor de sua mão na face.

Os dois homens a encaravam; Connor, preocupado, e Simão, com uma curiosidade ávida.

— Sem dúvida, é o cansaço. Foi uma longa jornada desde Monmouth.

Algo na entonação de Simão chamou a atenção de Meg. Uma familiaridade que não havia antes. Connor pareceu não notar.

— Há de se sentir mais forte assim que tivermos comido.

— Preciso encontrar Dannelore, Connor. E um remédio para mestre Merlin.

— Tem certeza de que isso não pode esperar?

— Sim, absoluta. — Era a única certeza que tinha, no momento.

Connor não fez objeção. E Meg sentiu que os pensamentos dele já se voltavam para as questões mais urgentes que o aguardavam. Contudo, aquele lampejo sensual em seus olhos a acariciou por inteiro, antes que ele se virasse para ir se juntar a Arthur no salão.

Simão também vira. Meg percebeu. E sentiu que ele continuou a observá-la enquanto ela subia as escadas para o segundo andar, em busca de Dannelore.

Ao passar pelo quarto que Morgana agora ocupava, uma impressão a fez parar: a essência de algo, como se alguém lhe falasse ou estendesse a mão e a tocasse de leve na manga.

— Quem está aí? — E de súbito chamou: — Grendel? Tristão? Podem sair.

Mas nem o amigo, nem o menino surgiram das sombras, sorrindo com seu costumeiro ar brincalhão. Sem pressa, Meg se aproximou da entrada do aposento.

Pousou a mão de leve no ferrolho. Estava frio como gelo! Não, mais frio. Tanto que sua pele queimou e os ossos em seus dedos, e mão doeram. Soltou-o, franzindo a testa, ao esfregar a pele congelada, para aquecê-la.

Retornou ao salão e seguiu pelo curto corredor rumo à capela e ao quarto do monge, que ficava anexo.

Encontrou Merlin sentado na cadeira ao lado da mesa, enrolado em peles quentes. Um pesado pelego cobria-lhe as pernas. Cochilava, e o queixo descansava sobre o peito. Havia um mapa em pergaminho com anotações detalhadas em seu colo. Uma das mãos o segurava. No jogo de luz e sombra, não parecia mudado. Mas, ao chegar mais perto, Meg viu o logro que a pouca luminosidade lhe pregava.

Não havia sinal externo da poderosa força interior que Merlin sempre possuíra. Os ângulos duros de suas feições, antes de uma beleza forte, agora mostravam um aspecto rijo, como se ela fitasse um esqueleto em vez de um homem. O medo cresceu dentro de Meg.

Tocou-lhe o braço. Merlin não acordou. Puxou-lhe a manga da túnica e fechou a mão sobre seu pulso. Então, aos poucos, expandiu os sentidos.

Num simples pensamento, impulsionou o poder através de seu sangue, a bombeá-lo pelo coração mortal a cada parte do corpo, numa suave corrente de quentura e luz, uma fusão da essência que partilhavam, protegendo com cuidado a mente para que ele não recordasse.

Franziu o cenho. Merlin era um imortal, imperecível diante de enfermidades e ferimentos que os mortais sofriam. E, no entanto, estava cada vez mais debilitado.

Ele se mexeu, então, talvez ao lhe sentir a presença. Seus dedos se fecharam em torno do braço de Meg num aperto poderoso que a estarreceu. Não o julgaria capaz disso um momento antes. Agora, a dor lhe subia pelo braço, e ela temeu que os ossos tivessem se quebrado.

Num momento, suas pupilas faiscaram com uma luz feroz e selvagem, e uma expressão que requeimava entre o ódio e a luxúria. Então, por fim, a calma da razão e o reconhecimento voltaram.

— Megan... — disse, sem nenhuma dúvida mais. — Perdoe-me. Por um momento, pensei...

— O quê?

— Que poderia nunca mais voltar. — Esboçou um ligeiro sorriso.

Não era a resposta que ela teria esperado, mas uma cautelosa esquiva.

— Caerleon teve saudade de sua risada e radiante beleza. — Fez um carinho gentil na ponta da trança dourada. — Senti falta de nossas conversas. Você está bem?

— Sim, milorde.

Ele se mostrou aborrecido.

— A não ser por essas marcas. — Afagou-lhe a mão. — Lamento que eu as tenha causado. Deixe-me desfazê-las.

Meg se soltou depressa, mas não sem notar as marcas no braço de Merlin, logo acima do punho da túnica. Eram pequenas e espaçadas uniformemente. Então o punho caiu no lugar, escondendo-as.

— Umas poucas marcas não me farão nenhum mal, milorde

— ela assegurou, ao se postar longe de seu alcance. Agora que ele despertara, poderia sentir alguma coisa no contato, e Meg não queria se trair.

— Mas pode fazer o duque de Monmouth ficar preocupado

— ele ponderou, e Meg entendeu que o irmão estava bem informado sobre as idas e vindas em Caerleon.

Sorriu para ele.

— Talvez não. Milorde está bastante acostumado a minha teimosia, e na certa há de presumir que foi culpa minha.

Merlin deu risada.

— Como me fazem bem suas tiradas espirituosas! Todos em Caerleon carecem de humor, sobretudo curandeiras irritadas.

Dannelore soltou um suspiro mal-humorado ao entrar no quarto, trazendo um pequeno caldeirão de ervas medicinais.

— Pior são os mal-humorados de quem temos de tratar!

— Se suas habilidades fossem tudo o que proclama, mulher, eu não estaria ainda atormentado com esta fraqueza.

— Se suas habilidades fossem tudo o que proclama, senhor, não haveria necessidade das minhas! Que bom tê-la de volta a Caerleon, minha lady. — Dannelore fez um leve aceno para Meg, por sobre a infusão perfumada. — Talvez possa ter mais sucesso do que eu tive. — Fez uma careta para Merlin.

Meg conseguiu convencê-lo a tomar um pouco do remédio de ervas. Dannelore acendeu mais velas pelo quarto. Embora Meg julgasse que Merlin deveria descansar, ele fez um gesto de descaso.

— Se sair, ficarei à mercê dessa harpia. Tenha piedade. Fique mais um pouco.

Dannelore trouxe outra travessa de comida, e Meg fez a refeição junto com Merlin, aproveitando para perguntar sobre as notícias recentes de Aethelbert e Maelgwyn.

— Arthur será bem-sucedido? — Meg quis saber.

— É preciso que seja, ou a Bretanha estará perdida. Será esmagada em poeira sob as botas daqueles que a destroçariam. Nós todos estaremos perdidos.

Suas últimas palavras eram proféticas, e Meg ficou a imaginar que significado maior estaria por trás delas. Porém, teria de esperar por outra conversa. Não houve oportunidade de perguntar, pois a porta se abriu de repente, e Morgana entrou.

— Boa noite, milorde. — Cumprimentou Merlin com alguma surpresa. — Não sabia que tinha visitas. Meu irmão está preocupadíssimo com o senhor. Não deveria se cansar.

— Assegure a Arthur que não estou às portas da morte. Na verdade, sinto-me mais forte.

— Ah! Então, talvez que os boatos sobre o conselheiro de meu irmão não sejam verdadeiros, afinal. Ele pode ser enfeitiçado por uma bela garota. — E depois emendou, à guisa de um conselho: — Connor não gosta de partilhar suas posses antes de se fartar delas.

Meg pegou o manto que Connor lhe dera e colocou-o sobre o braço.

— Confiarei em sua experiência e sabedoria em tais questões. — Em seguida, virou-se para pousar a outra mão no braço do irmão. — Boa noite, milorde. Espero que nossa conversa não o tenha cansado.

— Eu não a perderia por nada, minha lady. Por favor, volte logo.

O olhar de Meg encontrou o de Morgana, gélido e feroz, e, por um momento, ela se lembrou da experiência que vivenciara do lado de fora do quarto da irmã de Arthur.

— Gostaria muitíssimo.

Nas semanas que se seguiram, Meg tentou manter a promessa a Merlin, porém a maior parte do tempo de seu irmão foi passada no conselho, com Arthur e Connor. Das outras vezes, não estava sozinho.

— Morgana, sempre que pode, está com ele — Meg comentou com Dannelore, certa ocasião, depois de ter se aproximado do quarto do monge e ouvido a voz da irmã de Arthur.

— Como faz desde que voltou a Caerleon. Reveza a companhia dele com a de Simão.

Meg ficou espantada.

— Simão?!

— Sim. Levou-o para sua cama no mesmo dia em que lorde Arthur e seus homens retornaram do confronto com Maelgwyn.

Fora quando Meg partira com Connor para Monmouth.

— Arthur sabe?

— Era outro que ela desejava. — Dannelore comentou, hesitante, e, embora não fosse verbalizado, Meg descobriu quem Morgana queria para marido: Connor.

— Ela tentou seduzi-lo. Esperava uma aliança, pois Monmouth fora, certa vez, mais rica que Caerleon. E houve outros. Esse não foi o primeiro de seus homens, nem será último — a encantada disse, com tristeza. — Mas Arthur não se pronunciará contra isso. Embora irmãos, são estranhos um para o outro. Tenho a impressão de que ele se sente culpado por não ter estado aqui para protegê-la e a lady Ygraine do bispo Constantino. E suspeito que tem esperanças de casá-la com alguém da nobreza para fazer uma aliança. Mas Morgana tem suas próprias ambições.

— Sei...

— Enquanto Arthur esteve fora, ela desfrutou de muito poder em Caerleon. Agora sua casa está em ruínas, e ela depende do irmão. Acho que isso não lhe agrada, pois pretender um dia ser a senhora de toda Caerleon.

Um irmão que lhe era estranho. E agora reivindicava Caerleon como sua e que poderia um dia vir a ser rei da Bretanha.

Embora Meg ainda achasse certos aspectos das emoções mortais difíceis de compreender, entendia a dor da perda. Como, ponderou, a perda de tudo o que esperava e presumia ser seu poderia ter afetado a irmã de Arthur?

Não havia tempo para avaliar as razões para o despeito e rancor de Morgana, assim como houve para outros confrontos com a irmã de Arthur. A não ser durante a refeição noturna, quando estava no salão. Mas, com as dependências de Caerleon cada vez mais lotadas, pouco via Morgana.

Apenas uma vez Morgana a deixou sem saída, exigindo que lhe trouxesse um chá de ervas para um leve desconforto. Não houve como evitar isso, pois Dannelore fora chamada a uma das cabanas para ajudar no parto de uma mulher.

Meg entrou no aposento e a encontrou reclinada sobre uma cama coberta com peles luxuosas. O quarto recendia ao cheiro de sexo e alguma outra essência mais misteriosa que Meg não conseguiu identificar, mas que resvalava em sua pele como uma presença ameaçadora.

Então, deparou com aqueles olhos a fitá-la.

Morgana sentou-se no leito, os cabelos negros como a meianoite soltos em cachos ondulantes, e, por um momento, Meg se espantou com a semelhança daquele cetim escuro com uma serpente negra.

Preparou rápido a mistura de chás e deu à jovem criada as instruções para fervê-lo, ansiosa por fugir daquele cheiro enjoativo e do outro, mais sombrio, que não tinha nome, mas parecia ter vida própria.

A voz de Morgana de repente se ergueu num arquejo de surpresa. Semelhante ao alerta sibilante da víbora, antes de atacar.

Sua mão se esticou, fechando-se sobre o pulso de Meg como o golpe de uma cobra, tão ligeiro que Meg não o pressentiu.

— Você usa este anel?! — Suas unhas se enterraram na carne de Meg. — O que ele viu numa criatura como você, que não tem nome, nem família, nem memória, nada a oferecer-lhe?!

Meg, com uma calma que continha um aviso indisfarçável, sussurrou:

— Tire as mãos de cima de mim.

Morgana sorriu, e aumentou a pressão, as unhas a se enterrar ainda mais.

Uma triagem espalhou-se para dentro de Meg, de seu sangue, a se infiltrar pela extensão de seu braço. Morgana não tinha nenhuma intenção de soltá-la. Talvez pretendesse quebrar-lhe o pulso.

Meg não queria usar seus poderes. Porém, não teve escolha, pois Morgana era muito mais forte. Num único pensamento concentrado, focalizou o poder dentro de si e rompeu a pressão dos dedos numa explosão de energia que fez Morgana gritar de dor.

Morgana a encarou com uma mescla de raiva e incredulidade.

— Nunca mais ouse me tocar — Meg avisou, baixinho, ao se inclinar para que apenas Morgana pudesse ouvir.

Uma vez do lado de fora do quarto, Meg necessitou de uns poucos minutos para se recuperar. Lamentava ter sido forçada a usar seus poderes, mas Morgana não lhe deixara saída. A força incomum da mulher a surpreendeu. Olhou para o pulso, que ainda mostrava as marcas da agressão.

Profundos crescentes avermelhados cortavam sua carne. Embora as marcas começassem a clarear e logo desaparecessem, ela não se esqueceria com facilidade da crueldade daquelas unhas a se cravar, nem da frieza que se espalhara por seu sangue.

Dali em diante, Meg se manteve atenta e cautelosa, para evitar outro confronto. Morgana, porém, conservou-se prudentemente a distância.

O tempo que Meg e Connor aproveitaram em Monmouth parecia um sonho que poderia nunca ter acontecido. Meg quase não via o amado e, quando isso ocorria, conseguiam apenas partilhar um cumprimento apressado.

Tristão ajudou a aliviar sua tristeza. O ferreiro forjara uma pequena espada de uma maior, com a lâmina quebrada. Era mais adequada à estatura baixa do menino, e Connor lhe dera um pequeno escudo. Tristão mostrou ambos a Meg com imenso orgulho.

— Vou matar Maelgwyn e Aethelbert — anunciou, no pátio, quando Meg foi vê-lo praticar.

— Ambos? — Ela fingiu surpresa, divertindo-se com o garoto. — E não vai deixar nenhum para Arthur?

— Nenhum! — Tristão impôs à afirmação a autoconfiança de um verdadeiro guerreiro.

Enquanto Meg o observava brincar de combate, ouviu uma voz familiar entre os berros dos soldados e o raspar de metal contra metal, no pátio de exercícios.

— Vejo agora o que tem distraído meu mais corajoso guerreiro.

De um timbre profundo, aquelas palavras soaram como veludo rústico aos ouvidos de Meg. Ela se virou devagar, e avistou Connor caminhando em direção a eles.

Desde o momento em que o vira pela primeira vez na floresta, soube que algum elo invisível os ligara, um fio delicado como teia de aranha, que tinha início naquele olhar cinzento e gelado e se entranhava profundamente dentro dela.

Aquele elo estava ali, naquele momento, a se estender com mãos invisíveis, fortes, quentes, que se introduziam em Meg e se apossavam de seu destino e de seu coração.

Refreou as emoções caóticas. ”Impossível”, recordou-se.

Contudo, a palavra lhe fugia a cada passo que Connor dava adiante.

A calça justa e as botas estavam cobertas de lama do pátio de exercícios. A despeito da friagem do dia, ele despira a túnica, e gotas de suor porejavam em seu peito e nos ombros, sob o calor bem-vindo de um raro sol de inverno.

Meg reprimiu o desejo de tocar a carne escorregadia de suor, de limpar o sangue de um corte e depois comprimir a boca com ternura num beijo regenerador.

”Impossível.”

— Tem de segurar a espada assim — ele explicou a Tristão, com o comportamento tranqüilo de um sábio professor, mas era nela que sua atenção pousava, por sobre a cabeça da criança.

”Impossível.” Meg agarrou-se àquela palavra, sabendo com a mente lógica que era verdade.

— Endireite o pulso — Connor prosseguia. — Pense na espada como a extensão de seu braço. Alcança onde você não pode.

Sua voz alcançava onde não deveria: dentro da alma de Meg.

”Impossível.”

Então, Connor se postou atrás de Tristão, a guiar o menino passo a passo, familiarizando-o com o peso e o equilíbrio da espada, deixando que o corpo do garoto sentisse o movimento, o poder de cada investida que controlava o curso da arma.

— Você precisa comandar a espada, Tristão. Se não o fizer, poderá vir a ser a próxima vítima. — Soltou o garoto. — É fácil para seu adversário tomá-la e usá-la contra você. Entendeu?

— Agora, pratique.

Tristão fez uma careta e se recusou.

— Olhe pelo pátio de exercício. O que vê lá? O viking Radvald. Ele é o guerreiro mais velho — explicava Connor. — O bastante para ser meu pai. Radvald empunhou uma arma pela primeira vez com menos idade que você. E durante todos os anos que se seguiram, pratica mais arduamente e por mais tempo que qualquer outro homem. Radvald sabe que não é tão jovem como os demais. Sua força não é mais a que foi um dia, mas o que lhe falta em juventude e rapidez ele supera com sagacidade e persistência. E permanece no campo depois que os mais jovens fracassaram a seu redor. É por causa de suas outras qualidades que ele luta a meu lado em cada batalha.

Tristão pensou sobre aquilo por algum tempo.

— Então eu gostaria de ter sagacidade e persistência. Connor deixou escapar um suspiro de alívio, pois a lição tomou a direção que pretendia.

— Se é assim, deve praticar todo dia até que seja tão esperto e forte como Radvald.

— Posso fazer isso. — Tristão endireitou os ombros e se afastou para fazer o que poucos ousariam: desafiar o viking.

— Você tem jeito com ele — disse Meg, ao observar Tristão redobrar os esforços com a espada, a duelar com Radvald. — Como um pai, eu acho. Ou o que um pai deveria ter.

O olhar de Connor cravou-se no dela, não mais frio, mas cheio de nuances quentes.

— E está tudo bem com você?

Na pergunta cautelosa, Meg sentiu uma indagação mais profunda, subjacente.

— Bastante bem, milorde.

— Eu a tenho visto tão pouco nas últimas semanas que temi que tivesse adoecido.

— Não, milorde. Não sofro de doença alguma.

Meg experimentou da parte dele um indisfarçável desapontamento de que não tivessem concebido um filho daquela época em Monmouth.

— Também o vi muito pouco nessas últimas semanas... — Meg murmurou, forçando um sorriso através da inesperada tristeza. — Tive medo de que pudesse ter encontrado outra companhia que preferisse, ou outra para aquecer sua cama.

— Minha cama é nos estábulos, e meu companheiro, meu cavalo. — Soltou um bufo de desgosto.

— Creio que isto lhe pertence. — Radvald aproximou-se e empurrou Tristão para a frente, na direção de Connor. — Tem um pouco a aprender sobre espadas e os oponentes que desafia.

Os olhos de Radvald faiscaram de satisfação, a despeito da expressão feroz.

— O moleque promete. — com um grunhido, Radvald fez meia-volta. — Volte e venha me ver, menino, quando for mais alto e souber como usar essa vara de cutucar porco.

Meg puxou Tristão pelo braço.

— Venha comigo. Precisamos cuidar desse corte no queixo.

— Meg... — O humor desaparecera do rosto de Connor. Em seu lugar, surgiu algo indeterminado e ameaçador. — Partiremos em três dias.

O mensageiro que chegara naquela manhã...

— Tão cedo?!

O ar estremeceu com o que não foi dito e os desejos não expressos.

— Eu o verei durante a refeição noturna, milorde?

— Arthur se encontrará esta noite com os nobres, para fazer os planos finais. Eu esperava... — A frase ficou incompleta.

Meg sentiu aquela necessidade que compartilharam em Monmouth. Connor queria regressar. E ela sabia que iria com ele, se houvesse tempo.

Meg sentiu o olhar de Connor durante todo o caminho de volta ao salão, e o medo a retalhá-la.

Três dias...

Ao entrar na penumbra do salão, sentiu algo lhe roçar a manga. Então um calor possessivo deslizou, conforme a mão de alguém fechou-se em seu braço.

Espantada pelo encontro inesperado e pela sensação débil e sibilante de alerta que penetrou seus sentidos, Meg saltou para trás.

— Perdoe-me, não tinha a intenção de assustá-la — Simão, o Prudente, desculpou-se, ao sair das sombras. Olhou para o jovem Tristão e emendou: — Ou ao menino.

Meg se deu conta de que não captara a presença de Simão antes que ele passasse pela porta.

— Não me assustou. — Tristão fez cara feia para o guerreiro.

— Ah, outro bravo consorte que caiu a seus pés! — Simão exclamou, matreiro, olhando de soslaio para o menino.

— Ele se machucou no pátio de exercício — explicou Meg. — O ferimento necessita de cuidados.

Simão tomou-lhe a mão e cobriu-a com a sua.

— Se pelo menos um coração ferido pudesse sarar tão depressa...

Meg franziu a testa diante do comentário absurdo.

— Imagino que tenha encontrado a cura, sir Simão. Dizem que lady Morgana possui habilidades curativas raras.

Um faiscar vívido surgiu nas pupilas dele. Simão se inclinou para mais perto.

— A cura é rara e difícil de encontrar; impossível viver sem ela.

— Tome cuidado com curas raras — Meg o advertiu, soltando-se.

Viu os três pequenos ferimentos no pulso de Simão, logo abaixo da manga da túnica. O olhar do guerreiro acompanhou o dela.

— Tais curas extraordinárias podem muitas vezes ser mais perigosas que o ferimento — ela murmurou, pensativa, a refletir sobre aquelas marcas precisas e uniformes, em nada diferentes das que recebera no confronto com Morgana.

De pé entre os dois, Tristão olhou de um para outro, irritado.

— Estou sangrando! — anunciou, tirando a mão do queixo para mostrar o corte.

— com licença, milorde.

Simão deu um passo de lado, com relutância.

— Cuidará de meus machucados, moça?

— Não vejo nenhum que precise de meus cuidados. Quando empurrava o menino pelo salão, Meg avistou de relance um vulto colorido no patamar das escadas para os quartos do segundo andar.

Era de um escarlate brilhante, da cor de sangue vivo. Em seguida, sumiu.

— Homens! — Dannelore exclamou quando, enfim, deu o toque final ao curativo no queixo de Tristão, que tremia.

— Não olhe — Meg lhe disse. — Segure em minha mão e aperte tão duro quanto quiser.

— Não estou com medo... Tenho minha moeda da sorte.

— Moeda da sorte?

Moedas eram raras. As compras costumavam ser feitas por meio de trocas ou barganhas. Era difícil haver negócios com dinheiro, pois nem existia moeda corrente na Bretanha.

Tristão enfiou a mão no bolso da túnica e tirou um medalhão que pendia de uma grossa corrente. Era de ouro, plano e arredondado, e trazia a face entalhada com chifres duplos de carneiro a circundar uma máscara feroz.

— Onde conseguiu isso?

— Achei.

— Onde? Tristão sussurrou:

— No quarto de lady Morgana.

— Não deveria ter ido lá.

— Ela deixou a porta aberta.

Um ladrão. Meg meneou a cabeça e ficou a imaginar se Grendel tinha algo a ver com aquilo.

— Pode ficar com ele, se quiser — disse o menino, com um dar de ombros e uma generosidade incomum aos ladrões. — Se desse sorte de verdade, eu não teria me machucado.

Meg pensou que seria mais seguro se ele não ficasse de posse do objeto.

— Tentarei devolvê-lo sem que ela saiba. Bem, agora, prometo que não sentirá dor se segurar minha mão.

Tristão a encarou, surpreso, quando tudo terminou.

— Não doeu mesmo. — Franziu a testa. — Por que está chorando, Meg?

— Porque estou contente que esteja melhor agora. Ele meneou a cabeça.

— Não faz sentido.

Pegou a espada e retornou no mesmo instante para o pátio de exercício, com Dax em seus calcanhares.

— Ele teria desmaiado se você não afastasse a dor. — Dannelore sacudiu a cabeça e repetiu: — Homens! Não têm cérebro e são completamente indefesos. Não consigo entender por que os deixamos viver.

Meg arqueou uma sobrancelha.

— Inclusive John, é claro...

Estava ciente de que, na véspera, John informara a Dannelore que pretendia partir com os outros para lutar com Arthur contra Maelgwyn e Aethelbert na batalha vindoura. A encantada estava com um humor negro desde então.

— Todos os homens! — Dannelore o incluiu em seu rompante, mas Meg sabia que o medo era a verdadeira emoção por trás das palavras zangadas.

Um medo que ambas partilhavam.

Lorde Tarsan e o duque de Sorgales chegaram naquele fim de tarde com seus homens. Naquele momento, acampavam dentro das muralhas de Caerleon, junto com outros nobres, guerreiros e cavaleiros que haviam feito o juramento de lealdade a Arthur. Trouxeram consigo fundos de guerra, carroças de suprimentos, armamentos, cavalos, espadachins, arqueiros e guerreiros. Mas a atmosfera não poderia ser chamada de festiva.

Após o jantar, Arthur e os nobres, junto com Connor, retiraram-se para a mesa redonda do conselho.

Meg sentiu uma pontada de desespero. Esperara que ela e Connor pudessem passar algum tempo juntos. Ele a fitara várias vezes, e Meg vira aqueles mesmos pensamentos em seus olhos. Mas havia a reunião e as conversas com Arthur e os nobres.

Simão viu quando Meg se levantou, uma chama reluzente em dourado no salão mal-iluminado, à medida que as lamparinas eram apagadas e as pessoas seguiam para a cama. E a fome de possuí-la se apossou dele.

Meg caminhou com cuidado por entre os guerreiros adormecidos espalhados pelo salão. Roncos altos se misturavam a murmúrios furtivos e uma ocasional risadinha feminina. Ao passar, ela avistou duas sombras se juntarem, o prazer a envolvê-los além do alcance da luz das chamas da lareira. E pensou naquele breve período em Monmouth.

Quando entrou no corredor para a capela, uma mão se fechou em torno de seu pulso. E ela foi puxada para uma alcova escondida.

Um corpo duro, musculoso, comprimiu-a contra a parede, com a mão forte a lhe prender o braço atrás das costas enquanto a outra sufocava o grito assustado que Meg soltara.

— Pensou que poderia escapar assim tão fácil?

 

- Achou que eu a deixaria escapar? -Aquela primeira sensação de alarme tornou-se um calor sensual quando foi acariciada. Eram duras, mãos desesperadas. Tremiam de desejo e algo mais.

Connor a soltou, e deslizou os dedos pelo rosto de Meg. Algo terno, saudoso e muito ansioso.

Ele dissera a si mesmo que um toque era tudo o que queria, quando o sangue requeimava em suas veias diante da sensação daquele corpo macio e desejoso sob suas mãos, sob seu corpo.

Mas não era o suficiente.

Jurara para si mesmo que sentir a quentura dela por um instante era tudo de que precisava, enquanto deslizava a boca sobre a de Meg e forçava caminho por entre o gemido assustado que ela soltara, saboreando os suspiros suaves, entrecortados.

Nem perto do suficiente.

”Impossível.” A palavra estremeceu no ar entre os dois.

Meg respirou o hálito de Connor. Seu coração palpitava e seus pensamentos se dispersaram como ondulações pela superfície da água calma, impossíveis de se conter.

Então, ao redor, pairou uma necessidade mais misteriosa, mais primitiva.

O corpo másculo comprimiu o seu, percorrendo com os dedos rudes em seus cabelos. Connor aprisionou sua boca, mordiscou-lhe o lábio e deu-lhe um beijo profundo.

Os quadris fortes prensaram os dela, as mãos a lutar contra as camadas de tecido até que ele a encontrou. E, libertando-se, afundou-se dentro dela.

Tudo ali era volúpia, necessidade, fome. Estar daquele jeito com Connor fazia Meg se sentir viva. E fora assim desde o momento em que dera aquele primeiro e fatídico passo através do portal até então, a rechaçar toda lógica, toda razão, toda dúvida, a buscar por Connor.

Meg foi ao encontro de cada investida com uma vontade imensa. Queria guardá-lo dentro de si. Uma vida mortal. Um filho. O filho de Connor.

Os sons além daquelas paredes desapareceram. Depois se fragmentaram em mil pedaços quando ele derramou a semente da vida dentro dela.

Respirando fundo, Connor puxou-a para fora da alcova. Abraçou-a com força, saiu do salão, cruzou o pátio coberto de neve sob o céu sem luar e esgueirou-se para um canto escondido dos estábulos.

Nenhuma palavra foi trocada, pois não seria mesmo necessária.

Ele fez uma cama de peles sobre a palha espessa. Meg soltou o corpete do vestido. Tirando o manto, Connor lançou-o por sobre o portão para lhes dar privacidade. Ela afastou o vestido dos ombros.

Quando Connor se virou para lhe dizer que queria levá-la de volta a Monmouth, Meg deixou o vestido cair até os pés.

— Tenha piedade... — ele murmurou, ao se lembrar de como Meg uma vez implorara, ofegante, para que a possuísse, com aquelas mesmas palavras.

— Jamais — ela deu a mesma resposta que Connor lhe dera então, ao se unirem como faziam agora.

Merlin se acomodara na cadeira diante do braseiro no quarto do monge. Mas nunca parecia se sentir aquecido. O ferimento do lado doía. Ele todo doía, aliás.

A fadiga o abatia, tornava seus pensamentos lentos, entorpecia seus sentidos. Como uma droga que percorresse suas veias, apertava-lhe o coração e devorava sua alma.

Sentiu aquela lufada de ar, ouviu o estalar da porta se fechando, percebeu outra presença.

Ela estava lá, nas sombras. Uma sombra dentro das sombras.

Ouviu o farfalhar do cetim macio, viu o lampejo brilhante de cor conforme o tecido se amontoou no chão do quarto. E, bem devagar, caminhou em sua direção.

Os cabelos eram tão pretos como a noite contra o alabastro exangue do corpo nu, conforme se aproximava.

Merlin se levantou da cadeira, lutando contra ela com o restante de sua força. Aquela alma era tão negra como as profundezas do inferno quando o reclamou e se apossou dele.

— Tem de vir, depressa! — Grendel insistiu, puxando a mão de Meg.

— O que é?

Ela o fitou com um sorriso distraído, ao pentear a última mecha de cabelos. A noite anterior com Connor era uma recordação doce e triste ao mesmo tempo, que Meg tentava fazer perdurar na mente.

Ficara com ele até pouco antes da aurora e saíra enquanto Connor ainda dormia, para que não houvesse nenhuma palavra de despedida, nenhuma jura, nem desejo expresso ou promessas que poderiam jamais ser cumpridas.

E Meg retornara ao salão sem ser vista, esgueirando-se pelos guardas à porta como a bruma da manhã. Subira as escadas e fora para seu leito, para que não houvesse nenhuma pergunta, nem recriminações ou lembretes da encantada a respeito daquilo que era impossível.

Mas Grendel a forçava a empurrar as lembranças para um canto longínquo.

— Você precisa vir! É mestre Merlin! — ele exclamou, com aquela mesma urgência, o que a fez jogar a escova de lado e correr atrás dele pelas escadas.

Sentiu, mesmo antes de se aproximarem do quarto, uma golfada como o frio da morte, que por instantes a paralisou.

Empurrou a porta do aposento e abriu-a.

Viu Merlin sentado na cadeira diante do braseiro. Os carvões havia muito tinham se transformado em cinzas, e o cômodo se achava mortalmente gelado. Assim como o mago.

A cabeça de Merlin pendia para a frente, sobre o peito. Sua respiração era curta e entrecortada, e havia uma palidez cadavérica em sua pele.

— Encontre Dannelore! — Meg gritou para Grendel, a frieza do pavor a se fechar em torno de seu coração.

Grendel se foi.

Meg tocou a mão de Merlin.

— Caro irmão...

Mas nenhuma palavra poderia despertá-lo. Nem mesmo os pensamentos.

Dannelore soluçou quando deparou com ele e cobriu a boca, apavorada.

— Faça alguma coisa — Meg implorou. — Deve haver algo que você possa fazer.

Nenhuma infusão de ervas, nenhum medicamento conhecido poderia arrancá-lo daquele sono fatal. Merlin não estava morto, nem vivo, mas num lugar intermediário em que nada poderia alcançá-lo.

Arthur ficou devastado quando soube, e insistiu em ver Merlin. Foi procurá-lo, não como um futuro rei, mas como um homem que sente na alma a perda de um amigo.

— Merlin estava cansado, ontem, mas parecia bastante bem. Não se recuperara ainda do ferimento que recebeu em Amesbury. Eu não deveria ter nutrido tantas esperanças... e agora, está quase morto.

— Ele fez suas próprias escolhas, Arthur — Connor disse, mais tarde, sem falsas palavras de amizade, pois não apreciava Merlin.

— Eu confiava em seus conselhos, sua orientação. Fizemos juntos os planos para esta campanha. Como posso substituir sua lógica aguda e a estratégia brilhante?

Suspirou fundo sob o fardo da tarefa que deveria enfrentar sozinho.

— Não o culparia se preferisse pegar seus homens e partir — Arthur afirmou, com honestidade brusca.

Sabia que se Connor de Monmouth se fosse, outros nobres partiriam e, com eles, toda esperança de vitória sobre Maelgwyn e Aethelbert.

A última coisa que Connor esperava era tamanha sinceridade.

— Quando éramos garotos de dez anos e tolos demais para nosso próprio bem... — Connor recordou, a rememorar aquele tempo. — ...eu acreditava em você.

— Não somos mais garotos. Estes não são jogos da infância. Porém, talvez sejamos ainda tolos demais para nosso próprio bem. Sobretudo agora.

— Você tem razão, Arthur, isto não é um jogo. E não somos mais garotos. Mas acredito no homem ao lado de quem lutei em Amesbury e contra Maelgwyn. E lutarei com ele agora.

Um ânimo sombrio pairava sobre toda Caerleon. Os nobres logo souberam que Merlin contraíra grave enfermidade e não os acompanharia a Glastonbury. Mas foram céleres em reafirmar sua lealdade a Arthur, comprometendo-se com a guerra contra Maelgwyn e Aethelbert.

E, hora a hora, o prazo se esgotava. Connor partiria com Arthur para Glastonbury, sem Merlin ao lado.

— Deve haver algo que possamos fazer! — Meg chorava. Apenas Dannelore sabia de seu medo e sua angústia.

— Eu o levarei através do portal.

— Você não pode! — exclamou Dannelore. — É uma jornada perigosa. Merlin estaria perdido para nós para sempre.

Meg sabia que Dannelore falava a verdade. A jornada era perigosa, mesmo para os fortes o bastante para enfrentá-la.

Foi tomada pela impotência. A cada hora que passava, seu irmão definhava mais. Mesmo assim, recusou-se a crer que não havia nada que pudesse ser feito.

— Ele não morrerá. Não pode.

Meg viu Connor após o jantar, ao final da última reunião dele com Arthur.

— Preciso falar com você. — E a levou para a capela. Naquele lugar quieto e sereno, Meg sentiu que Connor rezava a seu Deus, ao relancear os olhos para o pequeno altar.

Connor voltou-se para Meg e tomou-lhe a mão.

— Há coisas que têm de ser ditas antes que eu parta. Você não tem lembrança de sua família. Nenhum nome de quem possa protegê-la.

— Não preciso...

Ele a impediu de continuar.

— Se eu não voltar...

Desta vez, foi Meg quem o interrompeu:

— Não! Não fale assim! Você voltará!

Tentou fugir daquilo que Connor dizia, mas, mesmo assim, sabia da realidade do perigo que enfrentariam. Muito mais agora, sem Merlin.

Connor apertou as mãos sobre as dela, recusando-se a soltá-las.

— Meg...

O som de seu nome, terno, doce, sofrido, a impediu de se mover.

— Se eu não voltar... Quero garantir que você ficará segura.

— Estou em segurança aqui, Connor. Não há motivo de aflição.

No entanto, ele não deixaria de expor o que tinha a dizer:

— É possível que agora você carregue meu filho.

O olhar de Meg cravou-se no dele. Em seu íntimo, ela desejava isso, mas não havia meio de saber. Era muito cedo.

— Não aconteceu antes...

Ele sorriu com indulgência.

— Você decerto deve saber que uma vez é tudo o que basta. E fizemos amor várias vezes, ontem. — Beijou-a, então, com tamanha ternura que lhe deu vontade de chorar. — Rezo por isso. Nada me daria mais esperança do que ter meu filho crescendo em seu ventre. — Afastou uma mecha de cabelos do rosto de Meg. — Mas tenho de saber que está segura. Meu nome a protegerá. Tomei as providências.

Providências? Meg não compreendia o que Connor dizia.

— Não há tempo para as formalidades normais, mas Arthur deu sua permissão para que nós nos casemos esta noite.

Meg ficou pasma. Seu cérebro parou de funcionar. Não poderia. Não ousaria.

Meneou a cabeça.

— Não é possível, Connor.

— Sim, é. Há um monge que viaja com o duque de Sorgales. Ele disse que dispensará as exigências usuais. Podemos nos casar agora mesmo.

Ela apertou as têmporas, tentando reunir os pensamentos dispersos em alguma ordem.

— Você nada sabe sobre mim!

— Sei tudo que seria necessário. — Connor acariciou, com o polegar, o anel que lhe dera. Seu anel. Seu nome. Talvez seu filho.

— Mas minha família... E se...

— Se já estiver casada com outro? — Ele tornou a sorrir. — Nenhum homem que a tivesse desposado deixaria de tocá-la e de reivindicar seus direitos de marido, pequena — afirmou, com certeza. — Você não foi de ninguém antes de mim. Meg, seja minha esposa. Tome meu nome. E se Deus permitir, dê meu nome a nosso filho.

Era um homem que acreditava absolutamente em seu Deus, na ordem das coisas no mundo, naquilo que podia ver, tocar e pelo que lutar. Meg sabia, do fundo do peito, que Connor jamais entenderia ou aceitaria quem ela era... o que era.

— Não posso — sussurrou, desesperada. — Precisa saber quem sou antes de fazer isso.

— Eu sei quem você é.

— Não suportaria trazer-lhe a desonra.

— Você jamais poderia me desonrar.

— Quando tudo acabar, haverá tempo suficiente...

— Talvez haja outra razão...

Meg captou a dor de Connor e entendeu que o magoara no fundo do coração. Não podia mentir, nem lhe contar a verdade.

— Connor, por favor! — As lágrimas escorreram por suas faces. — Eu o amo. Isso não é o bastante?

Nunca dissera aquilo, nunca pensara naquelas palavras. Mas as sentira e, de súbito, lá estavam, vocalizadas, para implorar que ele a compreendesse.

Connor estendeu-lhe os braços. Suportara tudo: a morte da família, a perda de bons homens, o afastamento de Arthur, a tortura nas mãos de Maelgwyn. Mas não poderia suportar ver o pranto de Meg. Roçou os lábios em sua testa.

Não entendia, porém teria de aceitar.

— Sim, é o bastante. Por enquanto. Mas se você necessitar de algo, mande notícias a Thaddeus. Ele providenciará e cuidará de tudo.

”Cuidará de você”, ele pensou, mas não disse. Saiu, em seguida.

Meg ficou na capela por um longo tempo. Não pela primeira vez ficou a pensar no Deus em que Connor acreditava, que lhe dava força, fé e coragem.

E, antes de se retirar, murmurou uma pequena prece por si mesma.

Era quase alvorada quando Meg desceu as escadarias para o salão.

Tudo estava silencioso. Em questão de poucas horas, Arthur e seus homens partiriam para Glastonbury, onde Maelgwyn e Aethelbert reuniam seus exércitos.

Meg seguiu para o quarto do monge, onde uma vela luzia debilmente e um fogo queimava no braseiro.

Uma jovem se debruçava sobre seu irmão. Assustada, saltou para trás quando Meg entrou.

— Oh, é a lady... — disse a garota, bastante abalada. — Deu-me um susto. Não tinha idéia que alguém estivesse acordado a essas horas.

Meg experimentou certo reconforto ao perceber o leve arfar do peito do irmão.

— Houve alguma mudança?

— Não, senhora. Dei-lhe o remédio, como Dannelore disse. Mas o mestre não acordou.

Meg sorriu, gentil, para a garota.

— Pode ir agora. Ficarei com ele por algum tempo.

— Não posso. Milady ordenou que eu deveria ficar até que ela mandasse alguém para me substituir.

— Sou uma curandeira. Não há necessidade de nós duas aqui. Você decerto está cansada. Descanse um pouco. — E, com uma firmeza que não permitia discussão, emendou: — Ficarei com Merlin.

— Como quiser. — com um último olhar para trás, a jovem se foi.

Meg passou o ferrolho na porta e se virou para a cama, onde Merlin jazia.

— Você não morrerá, caro irmão — afirmou. — Não permitirei.

Tirou a barra da janela e abriu as venezianas. As estrelas piscavam, mortiças, no veludo cinzento do firmamento, que começava a clarear no horizonte.

Esperou por aquela claridade, a luz do sol, o poder da Luz, do qual extraía sua força e na qual Merlin encontraria a própria energia através de Meg.

A luz surgiu, queimando a noite, destruindo a escuridão, e banhou o rosto encovado de Merlin, as feições um dia belas e agora devastadas pela febre que incinerava a vida dentro dele. Meg sentiu o calor nas mãos que segurava.

Então, viu as marcas. Quatro pequenos ferimentos perfurados, igualmente espaçados, e o sangue fresco que ainda minava.

Ficou estupefata. Eram idênticas às marcas deixadas quando Morgana a agarrara pelo braço... idênticas às que vira no pulso de Simão quando a fizera parar.

Ao tocar aqueles pequenos ferimentos, Meg experimentou a dor de uma ferroada no próprio braço, uma sensação de algo maligno, de um negrume que percorria as veias de Merlin a cada batida do coração e chegava até a alma dele.

As marcas eram iguais às que recebera. E aquela não era a cor de sangue que se costumava encontrar num ferimento. Aquele era enegrecido, tingido da escuridão da morte venenosa que requeimava através dele.

”Veneno!”

Meg limpou o sangue da mão. Uma triagem espalhou-se por ela, uma premonição de algo não visto, insidioso, de uma treva invasiva que aguardava logo além da alvorada, a buscar por ele... a buscar por todos eles.

Olhou para a janela aberta. Estava quase na hora.

Ajoelhou-se ao lado da cama e abriu a túnica de Merlin, desnudando-lhe o tórax onde aquele coração moribundo lutava. Em seguida, pousou a mão sobre o peito do irmão, seus dedos a formar uma estrela de cinco pontas. O pulsar débil fez eco com as batidas de seu próprio coração conforme Meg voltava os pensamentos para o íntimo.

Palavras santas ressoavam através dela, mais antigas que a alvorada, mais que o céu e a terra. Mais velhas que o tempo em si. Pertenciam a uma linguagem conhecida apenas pelas almas de uns poucos, os escolhidos, aqueles nascidos com o poder dos éons.

E a luminosidade do novo sol infiltrou-se pela janela aberta, alcançou suas formas mortais e queimou em seu âmago.

Meg a drenou, apossou-se dela, sentiu o poder da Luz a fulgurar em seu espírito, inundar-lhe o sangue e ir através das pontas da estrela que seus dedos faziam, e o canalizou para dentro de Merlin.

A Luz pulverizou o veneno que havia no sangue de Merlin, seguiu direto para o coração dele, e dentro de sua alma como um fogo purificador, baniu as Trevas e a morte.

O corpo dele se contorceu de dor. Os músculos flácidos, debilitados demais para poder erguer um dedo durante dias, de repente se contraíram em espasmos e ficaram tensos. Seus punhos se fecharam quando a dor daquele fogo requeimou através dele, e as veias grossas saltaram, visíveis sob a palidez quase translúcida da pele. Suas costas se arquearam e a cabeça tombou para trás. Cerrou os dentes conforme a quentura se espalhava e era bombeada, forte, vivificante.

Seus olhos, que tinham mostrado apenas sombras durante dias, agora luziam para Meg com o poder da energia vital que ela lhe dava, o poder da Luz que era a essência da própria existência de ambos, a substância da alma de Meg.

E, naquele poderoso olhar azul tão semelhante ao seu próprio, nas mãos que de repente buscavam as suas e fechavam-se sobre seus ombros, agarrando-se a eles como se fossem a própria linha da vida, Meg sentiu o remexer da alma do irmão à medida que se conectava à sua, num lampejo de reconhecimento e na única palavra que perpassou com incredulidade da mente de Merlin para a de Meg.

— Irmã?

— Estou aqui.

Não havia tempo para mais nada. Uma sensação de alarme estremeceu no ar dentro do aposento. Ecoou pelas paredes, pelos sentidos de Meg e atingiu-lhe o sangue com uma nova urgência.

O perigo estava muito próximo, forte e poderoso, uma sombra a se mover dentro das sombras. Agora, estava à soleira.

Ela precisava de mais tempo! Mas não havia.

A porta foi arrombada com violência, e os homens de Arthur irromperam dentro do quarto. Connor vinha com eles.

— Pegue-a!

Os guardas a rodearam e a arrastaram para longe do leito. A conexão foi cortada de imediato, dolorosamente, como se seccionada por uma faca. Merlin caiu de costas na cama, o corpo não mais retorcido de dor, as feições mais uma vez flácidas e encovadas.

O olhar de Meg encontrou o de Connor quando Arthur entrou. Não havia tempo para explicar.

Arthur aproximou-se na cama onde Merlin jazia ainda como morto, a túnica aberta, o sangue fresco a pingar daqueles pequenos ferimentos.

— O que é isto?! — Encarou Meg, o vestido manchado onde enxugara as mãos. — Explique-se!

Um movimento atraiu o olhar dela, a presença de alguém além da abertura da porta: a criada que estivera cuidando de Merlin.

Sombras a rodearam, estremeceram e em seguida desapareceram. E, quando ela se postou perto da porta, suas feições mudaram, alteradas e de súbito transformadas.

”Morgana!”

Alheios à transformação, os homens de Arthur abriram caminho depressa para dar passagem a Morgana, que se juntou a Arthur, com uma expressão de choque e ultraje.

— Assassina! — acusou, num tom dramático. — Veja o sangue que tem nas mãos! Ela tentou matar Merlin!

— Não! — Connor se interpôs entre as duas e afastou de lado as espadas apontadas para Meg. — Isso é um engano. Deve haver alguma explicação.

Então, voltou-se para Meg, seus olhos a buscar por respostas, querendo acreditar nela. Meg tinha apenas de contar a verdade e sabia que ele a defenderia, mesmo contra Arthur.

— Diga-lhes que isso tudo é uma mentira, Meg. Diga-lhes!

— Não tentei matá-lo — ela respondeu, com sinceridade. — Sou uma curandeira...

Mas Morgana a interrompeu, recusando-se a permitir que a ouvissem.

— Minha criada foi me procurar, apavorada. Temia pela vida de Merlin. Vejam por si mesmos o sangue no vestido e nas mãos. Deus sabe por quanto tempo ela vem drenando a vida dele, enfraquecendo-o a ponto de deixá-lo moribundo. Irmão...

Voltou-se para Arthur, as mãos estendidas, a implorar.

— Sei que você vê. Ela veio a nós sem nome, nem família. Uma estranha sem passado. Diz que não se recorda de nada, mas sabe que é uma curandeira. Disso ela se lembra. Como é fácil ganhar nossa confiança, andar entre nós sem suspeita enquanto joga seu jogo mortal! Veja o que ela tirou de você com suas mentiras e logros.

Com que facilidade Morgana distorcia a verdade, com que facilidade enganava todos eles. Meg sabia que seu silêncio a condenava. Porém, não poderia revelar nada.

— Diga-lhes — Connor repetiu, implorando agora.

— Levem-na daqui! — Arthur ordenou, a voz cheia de tristeza e raiva. — Prendam-na acorrentada.

Meg foi levada para um recinto abaixo do salão principal. Em tempos de cerco, os habitantes se amontoavam ali como um último refúgio. Era como uma tumba.

A umidade escapava das paredes e pingava do teto. Não havia luz, e seus companheiros logo se tornaram ousados, a rastejar pelas pedras e a correr pelo chão. Roçavam seus tornozelos, investindo para mordê-la.

Meg estava presa pelos tornozelos e pulsos com pesadas correntes fixas à parede, tornando de todo impossível que se movesse.

Dannelore tentara vê-la, mas Meg a avisara para não intervir.

— Não! É perigoso. Estou bem. Tome cuidado com Morgana.

Morgana.

A descoberta a pusera estupefata. O que era ela? Uma encantada, capaz de mudar sua aparência ou se transformar? Ou fora um truque, uma ilusão, tais como aqueles que Grendel realizava para divertir os outros?

Ou era algo mais?

As marcas do braço de seu irmão, como aquelas que recebera no ataque de raiva, tinham uma intenção bem mais perigosa. Veneno!

Sabia com certeza que fora Morgana que pouco a pouco envenenara Merlin. E seus poderes eram tais que tanto Merlin quanto Meg foram logrados.

Quantas vezes Morgana visitara aquele quarto? Quantas vezes mais, no disfarce de criada? E o veneno, como a escuridão, através do sangue roubara a própria essência de vida, roubara a alma de Merlin.

Meg fora forte o bastante para lutar contra o veneno em seu ferimento, mas Merlin não. Seria porque já sofrera um corte envenenado, recebido em Amesbury, que nunca sarava?

Meg pensou no quarto encontrado em Amesbury, e teve certeza de que fora o bispo, que praticava as artes negras, que conjurara os espíritos das Trevas dos reinos ocultos.

Mito? Ou realidade?

Lembranças de antigas profecias despertaram. Os poderes das Trevas tinham um dia procurado destruir os poderes da Luz.

Teriam os poderes das Trevas sido convocados por Morgana? Mas com que finalidade? A destruição de Merlin?

Meg sentiu a presença de Connor antes de ouvir o ranger de uma porta distante, atrás das pedras frias. Depois, mais perto. A luz de uma tocha bruxuleou pelas paredes e em suas feições duras. O pesado portão de ferro que a aprisionava impedia-o de chegar mais perto.

Meg tentou se aproximar dele, indo tão longe quanto as correntes permitiam, mas perto o suficiente para que pudesse quase sentir seu calor na friagem do recinto de pedra. Ansiava por tocá-lo, necessitava afagá-lo, precisava que Connor tentasse alcançá-la. Mas ele não o fez.

— Quero saber a verdade — implorou, falando baixo, desesperado. — Diga-me que as acusações de Morgana são todas mentirosas. Ajude-me a acreditar que você não teve participação naquilo.

Meg queria chorar. Sentiu-o a se distanciar dela naquele mesmo instante, e não havia nada que pudesse fazer para impedir que isso acontecesse. Nada que pudesse dizer.

— Eu fui sincera. Não fiz mal algum. Encontrei aqueles ferimentos nos braços de Merlin. É um veneno que o enfraqueceu com febres devastadoras. Não tive nada com isso.

— E quanto ao sangue em seu vestido e nas mãos?

— Não causei aqueles cortes. Você tem de acreditar em mim!

Connor lutava por crer nela. Meg sentiu.

— E quanto a isto? — Ele mostrou-lhe um frasco. — Foi achado em seu quarto. Dannelore não pôde dar nenhuma explicação a respeito.

Era, sem dúvida, o veneno que Morgana usara. Quando o pusera ali? Depois de sair do quarto de Merlin, e logo antes de convocar os guardas de Arthur?

— Não sei como foi parar lá.

— E isto?

Ergueu o medalhão, a luz das tochas a luzir pela superfície com a imagem dos chifres de carneiro, sem dúvida descoberto quando acharam o veneno.

— Eu o encontrei.

Meg sentiu que Connor começava a duvidar dela. Mas não poderia dizer que Tristão o roubara de Morgana. Seria a morte do menino.

— Foi com isso que Maelgwyn lhe pagou, Meg? com algo raro que ele prezava, que ostenta seu próprio selo?

— Como pode pensar uma coisa assim?! — Meg perguntou, incrédula.

— Foi planejado que eu a encontrasse? Ou tratou-se de um engano? Maelgwyn a enviou? É essa a razão pela qual se recusou a se casar comigo? Talvez seja casada com outro.

— Não!

Ouvir aquilo a machucava muito. Como poderia Connor achar isso dela? Fora ele o primeiro a possuí-la, e sabia, além de qualquer dúvida, que ela jamais se deitara com outro. Seus pensamentos se revolveram num caos, suas emoções se esfrangalharam.

Maelgwyn?

Maelgwyn dera o medalhão a Morgana?!

Dannelore falara da ambição de Morgana de ser a senhora de Caerleon e de tudo o que o título incluía. Então vira as ambições se desvanecerem quando Arthur retornou, e ela fora relegada a uma posição inferior como castelã dos domínios do irmão, a ser entregue a algum nobre de menor expressão num casamento vantajoso para Arthur.

Teriam suas ambições ido mais longe? Talvez o próprio trono da Bretanha? E quanto à morte súbita e inexplicável de lady Ygraine? Isso teria a mão de Morgana também?

Deveria a ré acusar sua acusadora?

Meg não poderia contar a Connor que o medalhão pertencia a Morgana. Ele jamais acreditaria em alguém sem passado, sem família, sem meios de provar sua inocência. Impossível.

— Eu lhe revelei tudo o que podia. Por favor, acredite em mim. — Mas Meg sentiu que ele se retraía ainda mais, antes mesmo de se virar e se afastar.

— Como posso?

Meg sentiu que Arthur e seus homens partiram de Caerleon, antes mesmo de um de seus companheiros sentar-se com particular curiosidade e a encarar com uma inteligência de certa forma avançada, até para um rato.

— Muito esperto — disse-lhe. — Mas se tiver mesmo a mais leve idéia de tentar me morder, eu o transformarei num monstro.

O rato logo mudou de aparência, e Grendel assumiu sua forma real, que não era a daquele mortal baixo, de pernas tortas, que realizava patéticas mágicas das quais até Tristão percebia o truque.

— Não achei que os guardas fossem suspeitar de um camundongo — ele comentou, ao se aproximar de Meg. — E você me chamou de rato várias vezes.

Ela esboçou um ligeiro sorriso diante da lembrança de todas as ocasiões em que o chamara assim. Mas a expressão de Grendel era séria.

— Arthur foi encontrar-se com Maelgwyn e Aethelbert.

— E quanto a Connor? — Mesmo antes de perguntar, Meg já sabia a resposta. Ele empenhara a lealdade a Arthur, as chagas da juventude curadas. E Connor, um homem de orgulho e honra, não renegaria o juramento. Sobretudo agora, quando Arthur não tinha junto a si o conselheiro, em quem confiara nos momentos mais graves de sua existência.

— Também foi. Assim como todos os cavaleiros de Arthur e os exércitos de lorde Tarsan e lorde Sorgales. Deixou apenas os guardas da casa e esses homens. — Apontou para aqueles que a guardavam. — John seguiu com eles. Foi sagrado cavaleiro esta manhã. Dannelore está transtornada de preocupação. Todos os guerreiros de lorde Connor o acompanharam, inclusive sir Geoffrey, sir Simão e aquele horrível viking repugnante. O homem medonho mesmo para um mortal.

Simão...

Morgana usara seu veneno em Merlin e tentara envenená-lo também. Um veneno do mal que destruía a alma. Também teria envenenado Simão? E com que propósito?

Fora suficiente dar a Maelgwyn uma vantagem maior ao tirar o fiel conselheiro de Arthur de seu lado? Ou havia algo mais no plano maligno de Morgana?

Era destino de Arthur unir a Bretanha. Mas e se Arthur não vivesse para cumpri-lo? E se fosse mortalmente ferido em Glastonbury? Então a Bretanha mergulharia no caos mais uma vez, presa fácil para os planos ambiciosos de Maelgwyn.

Simão cavalgava com Connor. E Connor lutaria por Arthur.

Meg estremeceu com a premonição de perigo e morte.

— E quanto a Merlin, Grendel?

— Dannelore está com ele. Ainda não acordou.

Meg expandiu os sentidos para além da pedra, da argamassa e da madeira, mas nada sentiu de Morgana, e sua aflição aumentou. Não conhecia a extensão dos poderes daquela mulher. Se fosse capaz de se transformar, poderia ser capaz de qualquer coisa. Mas como? Qual era a fonte de seu poder?

— E quanto a Morgana?

— Retirou-se para seu quarto com ordens de que ninguém fosse perturbá-la. — Grendel se aproximou mais. — Há alguma coisa maligna naquela mulher.

— Sim, Grendel. Uma perversidade sombria que receio seja semelhante a algo que não vemos faz muito tempo e está além de nossas recordações.

Ele teve até receio de indagar:

— O que pode ser feito?

— Pretendo fazer uma visita a Morgana.

Grendel meneou a cabeça e se afastou, os braços cruzados no peito.

— Não tenho vontade alguma de me encontrar com aquela uma.

Meg deu de ombros.

— Então, pode ficar aqui. — E voltou-se para seu íntimo, conjurando seu poder.

Os guardas se postavam em posição do lado de fora da cela. Mas, quando olharam para dentro, viram apenas a ilusão que Meg criara em suas mentes. Para eles, Meg continuava encostada à parede, presa pelas correntes.

Então, ela concentrou suas energias e passou pelas pedras na parede, fugindo com facilidade da prisão.

— Não me deixe aqui! — exclamou Grendel, girando em torno ao ver que ela sumira.

Meg canalizou seu poder para se mover através das pedras e da terra, e emergiu na escuridão do salão, agora deserto.

Grendel surgiu do corredor que dava para as câmaras subterrâneas minutos depois, o focinho de rato a se torcer para captar algum cheiro perigoso.

— Você me deixou lá! — acusou-a, transformando-se outra vez. — Não sabe o que aqueles camundongos tentaram fazer comigo.

— Sei o que Morgana fará se o ouvir, com todo o barulho que está fazendo.

Grendel fechou a boca com força.

Uma criada passou, alheia à presença deles. Meg chegou ao pé das escadarias, os sentidos aguçados para tudo ao redor. Captou a presença de Dannelore no quarto do monge, em segurança junto de seu irmão. O menino, Tristão, estava lá também.

— Fique com eles, Grendel. — E começou a subir os degraus.

Dessa vez, o duende não discutiu.

No patamar do segundo pavimento, Meg se escudou em seu poder. Tão fácil como escapara da prisão, moveu-se pela parede para o aposento de Morgana. Metamorfoseou-se mais uma vez em mortal e descobriu o que mais receava: Morgana sumira.

Meg sentiu uma presença remanescente, de uma friagem maligna que impregnava tudo, deslizava pelo chão e desaparecia pelos cantos. Porém era mais forte na janela por onde Morgana escapara, a aura negra deixada para trás como uma pegada em neve recente. E aquilo a traiu, pois Meg percebeu o caminho que tomara.

Ela fora rumo a Glastonbury.

Com a aflição se agigantando, Meg seguiu para o quarto do monge e deparou com Dannelore, Grendel e o jovem Tristão, que montava guarda com a espada sacada. Ele baixou a arma.

— Morgana desapareceu! — Meg exclamou.

— Sumiu?! — A voz de Dannelore soou muitíssimo séria.

— Sim, para Glastonbury. Para terminar aquilo que ela começou.

Meg se aproximou de Merlin. Ao tomar-lhe a mão nas suas, seus pensamentos buscaram os dele, do modo antigo.

— Caro irmão, preciso de você!

A febre não mais lhe requeimava a pele. O veneno não mais lhe corria no sangue. Merlin abriu os olhos devagar, desfocados a princípio, tentando ver com a visão interna.

— Você... — foi tudo que disse, e mesmo a única palavra exigiu-lhe mais forças do que possuía.

— Sim, irmão — murmurou, dando-lhe sua vitalidade na conexão das peles e das mentes.

Merlin congregava forças, atraindo os poderes de Meg. Quando tornou a fitá-la, foi com reconhecimento.

— Foi Morgana... o veneno... — E depois: — Você esteve aqui, eu senti... Deu-me seu poder e sua energia.

Meg sorriu com doçura.

— Tem de se poupar. Abra-me seus pensamentos. Conte-me tudo.

E, na conexão estabelecida entre os dois, como um fluxo de luz que se movimentasse de um para o outro, Meg soube aquilo que receava: Morgana conspirara para se apoderar do trono para si mesma, antes que Arthur retornasse à Bretanha.

Aliara-se a Maelgwyn. Juntos, os domínios do norte aliados aos de Caerleon e às terras ao sul garantiriam a derrota de Aethelbert.

Planejaram o ataque a Caerleon, durante o qual o velho duque foi assassinado, e Morgana e lady Ygraine, levadas pelo bispo Constantino, aliado de Maelgwyn. Apenas lady Ygraine permanecia um obstáculo para a ambição de Morgana. com sua morte, deixou de ser.

Morgana se enfureceu quando Arthur saiu vitorioso e a libertou em Amesbury. O retorno do irmão colocava em risco tudo o que ela esperava e armara para conquistar.

— Morgana convocou os poderes das Trevas — Merlin continuou. — Nada nem ninguém estará seguro... enquanto Morgana viver. Ela é a encarnação das Trevas.

Meg sentiu o esforço extraordinário que custara a Merlin repassar-lhe aquilo tudo. Seu irmão estava física e mentalmente exausto.

— Simão é parte disso — ele prosseguiu, agora verbalizando. — É a maior ameaça a Arthur neste momento. Irá atacá-lo no meio da batalha. — Seus olhos se fecharam por um momento, a respiração curta e rápida. — Se Arthur cair em Glastonbury, tudo estará perdido.

Meg sentiu um sofrimento, uma ferida tão profunda que o dilacerava com sua enormidade. Podia ver tudo naquelas idéias atormentadas. Como Morgana o procurara. Bela, nua, tentadora além de qualquer coisa que Merlin pudesse resistir; o mal encarnado. Ele lutara, porém estava fraco, seus poderes, incapazes de protegê-lo então. Por fim, ela o seduzira e depois se apossara de sua alma.

Lágrimas rolaram pelas faces de Meg.

— Houve um momento em que eu teria rendido qualquer coisa a ela. Tudo o que sou, tudo o que sempre serei... Mas havia algo que Morgana não poderia tomar de mim, nem poderia se apossar... porque uma maldade como a dela não tem compreensão disso. Algo mortal, entre todas as coisas: esperança. Minha esperança de que eu pudesse um dia sentir o que você sentiu com Connor — disse ele.

Merlin não disfarçava sua imensa tristeza.

— Amor. É parte daquilo que é exclusivo dos mortais, sua humanidade, que nós, com todos nossos maravilhosos poderes, não poderemos jamais ter.

Meg enviou-lhe um sorriso molhado de pranto.

— O amor é uma coisa muito frágil, caro irmão.

— Sim, mas aprendi neste mundo que algumas vezes aquilo que é mais frágil também é o mais forte. Os poderes das Trevas não têm nenhuma compreensão disso. É impossível a elas entender uma força como amor, ou esperança. Ao final, foi tudo o que Morgana não conseguiu destruir. Agora, eu devo destruí-la.

Merlin lutou para se erguer, mas o veneno e a febre tinham feito seu trabalho. Meg o empurrou, com toda a gentileza, para a cama.

— Você não pode, não vê? —: ponderou. — Não tem condições de confrontá-la de novo. Sabe que digo a verdade — disse, com a lógica que os norteava. — Perdemos tempo discutindo, irmão. Preciso de seus pensamentos, de tudo o que sabe acerca de Morgana. Tudo que viu quando sua mente uniu-se à dela.

Merlin a encarou por instantes, os olhos grandes e encovados nas feições devastadas. Apertou os dedos sobre os de Meg, que experimentou o fluxo da essência dele a penetrá-la.

— Tudo o que sou, todo meu conhecimento e o conhecimento daqueles que se foram antes irá para você. — Fez uma pausa, a mão fechada ainda sobre a dela. — Será perigoso. Você se arrisca muito. Porém, sua força maior contra Morgana reside no fato de que ela não sabe quem ou o que você é. Tal como se guardou de mim, guardou-se dela também. Essa é a arma que deve usar com sabedoria.

Meg assentiu.

O mago se calou, como se atormentado por alguma coisa contra a qual lutava.

— Quando juntou seu poder ao meu e salvou minha vida, senti algo...

E Merlin resolveu mais uma vez falar com ela pela mente:

— Você não sabe... mas carrega o filho dele.

Aquilo a deixou estarrecida. E arrancou-lhe novas lágrimas. Tinha esperanças de que pudesse acontecer. Lembrou-se das palavras de Connor e sorriu: ”É preciso apenas uma vez”.

Foi tomada de um agudo sofrimento ao recordar a separação, horas atrás, a frieza de Connor, o olhar com que a fitara, a certeza de que ela o traíra.

Como era possível sentir tamanha alegria e tamanha dor e angústia ao mesmo tempo?

Merlin a afagou, num gesto de conforto.

— A criança é parte de ambos, de você e de Connor. E porque seu filho é também mortal, você ficará vulnerável ao poder de Morgana. Deve resguardar-se para que ela não saiba, pois usará isso contra você. Proteja-se o tempo todo! Pelo seu bem e pelo bem do bebê.

Havia tanto em risco! A vida de Arthur. A vida de Connor. O filho de ambos, uma vida frágil feita de carne e sangue mortal e poderes desconhecidos.

Meg apertou-lhe os dedos.

— De todas as maneiras, você estará comigo, irmão. Como então posso falhar?

Dannelore e Grendel deveriam ficar em Caerleon e proteger Merlin. Meg puxou Grendel de lado e falou, para que só ele a ouvisse:

— Se eu não voltar, você deverá levá-los de volta pelo portal.

— Mas, senhora...

Meg meneou a cabeça, determinada.

— Se eu fracassar, nenhum lugar nesta terra será seguro. Deve prometer que fará o que eu pedi.

— Farei o que ordena, mas não preciso gostar. Em seguida, Meg se dirigiu a Tristão:

— Fique com Grendel e Dannelore. Não há ninguém mais a quem eu possa confiar essa missão.

— Eles não precisam de minha proteção, pois têm mestre Merlin. Ele os protegerá.

— Merlin está muito enfermo. Se as coisas não correrem bem em Glastonbury, Grendel deve levar Merlin e Dannelore para um lugar onde ficarão em segurança. Posso confiar nele, mas tenho menos certeza quanto a Dannelore...

Por mais que fosse jovem, Tristão compreendia.

— Ela gosta muito de John e pode se recusar a ir?

— Sim, é isso. Eles esperam se casar, mas John partiu para Glastonbury com Arthur. É por essa razão que peço-lhe isso. Ela tem sido uma verdadeira amiga. Não poderia suportar perdê-la.

Nem a ele, Meg concluiu consigo mesma. Aquela era uma maneira de garantir que ambos ficariam bem.

— Precisa garantir que Dannelore vá com Grendel e Merlin.

— Cuidarei para que todos fiquem seguros.

Meg gostaria de abraçá-lo com força. Porém, agradeceulhe, como faria com Geoffrey, Agravain ou qualquer dos corajosos cavaleiros que iam ao encontro de seu destino ao lado de Arthur.

— Obrigada, sir Tristão.

No segundo dia após a partida de Caerleon, Connor esquadrinhou a larga planície que se estendia diante deles.

Até que enfim o clima lhes era favorável. A antiga estrada romana estava seca, e agora dava lugar a uma planície uniforme que, com a primavera, viria a mostrar campinas e colinas verdejantes.

Uma primavera que poderiam não ver, se Maelgwyn e Aethelbert vencessem. Dois imensos exércitos se postavam no limiar do destino: a batalha para governar toda a Bretanha.

A sina de Arthur, nascido sob o mito e a lenda, ordenado por Merlin, a ser cumprida ou perdida na refrega vindoura.

Em que Connor agora acreditava?

Sempre crera em Deus e em sua espada. Porém, aprendera que havia algo mais no mundo do que um dia pudera supor. Havia honra, fé e confiança.

E mais. Algo em que perdera a capacidade de crer.

No amor.

”Meg...”

Ela lhe devolvera esse sentimento. Recordou então aquilo que ela lhe proporcionara: uma paixão fervorosa e um riso doce, que aliviava o sofrimento de sua alma, a se apossar dele de um jeito ao mesmo tempo terno e feroz, tal como o amara, com doçura e ardor.

Era preciso se lembrar da traição de Meg, manter a frieza da raiva como um escudo que o protegesse de outras memórias.

Arthur reuniu-se a ele, montado no cavalo de guerra. Do outro lado de Connor, Simão e Geoffrey, também a cavalo.

Connor sabia que Arthur estava profundamente preocupado com a ausência de Merlin. Como se pudesse ser um prenúncio daquilo que viria em breve.

Connor jamais acreditara em prenúncios, mas apenas em seus instintos. E eles o tornavam inquieto e atento a cada instante, como se um aviso se movesse através de seus sentidos. Mantinha a mão no cabo da espada e o olhar a esquadrinhar sem cessar o horizonte. Como se houvesse algo mais que precisasse enxergar, mas sem conseguir.

Acamparam na noite anterior a alguma distância, e despertaram duas horas antes do amanhecer para assumir as posições que Arthur e Merlin demarcaram, depois de receber os despachos finais, dois dias antes, em Caerleon.

Cavaleiros enviados à vanguarda tinham retornado mais cedo e confirmado que os exércitos combinados de Maelgwyn e Aethelbert se espalhavam pelas bordas da planície como uma serpente.

— Atacaremos conforme o planejado — Arthur ordenou. — Aguardem meu sinal.

Arthur aprendera as vantagens de um ataque de cavalaria e adquirira tantas montarias quanto fora possível para seus homens, enquanto nem Maelgwyn ou Aethelbert tinham cavalos.

O grito de guerra ecoou assim que o adversário se arrojou para a frente. E o grito em resposta foi ouvido quando os arqueiros de Arthur soltaram a saraivada de flechas que escureceu o céu. Então, seus guerreiros foram à carga.

Os dois sólidos exércitos colidiram como ondas a estourar na praia, os sons da refrega a explodir num caos de aço, sangue e morte. Então Arthur deu o sinal final, e seus guerreiros e cavaleiros montados, inclusive os homens de Connor, investiram de sua posição com as espadas a luzir ao sol da manhã.

À direita e à esquerda de Connor, soldados montados lutavam, a abrir e cortar caminho entre os inimigos, cortando a serpente em dezenas de grupos menores. Ao chegar à retaguarda da linha, viraram os cavalos em meia-volta e investiram de novo para o grosso da luta.

Então, saltaram para o chão. Simão e Geoffrey, à esquerda de Arthur. Connor, a sua direita. Moviam-se em cunha, as costas protegidas um pelo outro.

A batalha parecia ter uma pulsação, a bater e depois descansar, conforme metal se chocava contra metal e os brados ferozes se erguiam em meio aos gritos dos moribundos.

Connor foi atingido por um golpe de raspão que o fez cair de joelhos e enfraqueceu seu braço direito do ombro ao punho. Quando seu atacante aproximou-se para abatê-lo, a espada de Arthur aparou o golpe e transpassou o inimigo.

Então Connor levou a espada para a mão esquerda e se pôs de pé para se defrontar com o próximo adversário. O coração da luta pulsava, feroz, mais uma vez.

Como se alguém se postasse a seu lado e murmurasse a seu ouvido, ele ouviu, de repente:

— Cuidado! Arthur corre um grande risco!

Era como a voz daquele seu instinto, só que diferente. Mais forte, mais aflita, a correr por seu sangue.

— Arthur será traído!

Então, visualizou o perigo em lampejos de imagens: a cunha protetora em torno de Arthur era de súbito rompida; uma espada se voltava contra Geoffrey: a espada de Simão; o olhar de apreensão no rosto de Geoffrey ao distinguir as feições do atacante; e Simão erguendo a arma para o golpe fatal — contra Arthur.

Connor passou por um guerreiro inimigo e abateu dois outros, no esforço para chegar ao lado de Arthur. Gritou um aviso, mas Arthur não chegou a ouvir, pois foi abafado pelo som de metal tinindo contra metal quando outra lâmina defletiu o golpe de Simão, uma espada que reluzia como fogo azulado sob o sol do meio-dia.

Simão foi jogado a cambalear para trás com o impacto, atordoado. Grunhiu como um animal ao se esforçar para se erguer e retorceu o corpo para atacar de novo. Mas Connor o impediu dessa vez, desviando o golpe.

Simão, então, o atacou, investindo contra ele com a espada em riste.

— Pelo amor de Deus, homem! Está louco? — Connor gritou.

Simão parecia não escutar. Avançou em frente de novo e continuou a investir, além do limite da razão, além do ponto da persistência, até a fronteira da loucura.

Em seus olhos havia escuridão, demência e uma raiva inacreditável, conforme lutava mais e mais. Estava mesmo louco.

Por todas as campanhas que haviam enfrentado juntos, por todas as ocasiões que salvaram a vida um do outro, Connor implorou:

— Não me force a matá-lo, Simão!

Simão não se rendeu, nem baixou a espada. Em vez disso, continuou a ir de encontro a cada golpe com força quase inumana. A batalha em torno deles cessara de existir. Era matar ou ser morto.

Por fim, quando a morte sobreveio, foi como se uma parte de Connor morresse também. E, por um momento, reinou apenas o silêncio, como se tudo ao redor se imobilizasse. Como se o tempo parasse e o pulso da refrega estancasse. E Connor viu o guerreiro empunhar aquela espada de fogo azulado e salvar a vida de Arthur.

Era um sonho? Uma ilusão no coração do combate, como ondas de calor que deslizam por uma planície seca num dia de verão? Ou era real?

Uma vez interviera e salvara a vida de Connor. Não fora numa planície, mas na Abadia de Amesbury. Agora, surgia outra vez, como antes, do nada, para salvar Arthur.

O que queria? A quem servia aquele guerreiro?

— Morgana traiu Arthur. É aliada de Maelgwyn. Simão era parte disso. Neste momento mesmo, os guerreiros de Aethelbert se preparam para cercá-los.

O olhar de Connor seguiu a direção da vista do guerreiro até o leste, e viu a linha inimiga reunida ali. Um rápido exame a oeste confirmou o mesmo.

Morgana...

Simão estava morto, e sua morte provava sua traição. Aqueles guerreiros inimigos num grupo maciço eram a prova maior de que o plano de batalha de Arthur também fora delatado.

Estava tudo lá, claro para quem quisesse ver.

Mentiras, logros, traição. Será que Morgana também mentira sobre o que vira no quarto de Merlin?

Algo se retorceu dentro de Connor, uma angústia de dor diante daquilo que agora parecia tão evidente, e que ele se recusara a enxergar.

Se Arthur agisse rápido, ainda haveria possibilidade de mandar guerreiros montados para impedir o novo ataque.

Como se o desconhecido ouvisse seus pensamentos, ergueu a espada, que reluziu como fogo azul à luz do sol, e inclinou a cabeça numa saudação silenciosa.

A batalha de repente ganhou vida em torno de Connor, mais uma vez. Num movimento rápido, ele girou na direção de Arthur.

— Fomos traídos. Maelgwyn conhece nosso plano. Prepara um ataque a nossos flancos.

Arthur ficou estupefato. E foi tomado por um lampejo de dúvida. Connor soube o que era, os anos de distanciamento entre os dois, o tempo breve de reconciliação. Então, viu o exato momento em que Arthur expulsou a dúvida de lado.

Arthur assobiou para seu cavalo e se pôs em ação. Distribuiu ordens para que todos aqueles ainda montados formassem dois grupos para ir de encontro ao novo ataque.

Connor se apressou a fortificar as posições. Deu instruções para apoiar a investida de Arthur com soldados a pé. Depois, procurou o guerreiro que lhe dera o aviso.

Avistou-o na borda do campo de luta agora, com nuvens de neblina e fumaça daquelas fogueiras de sinalização a revolutear em torno dele.

— Quem é você? — Connor murmurou, para si mesmo, pois era impossível que o valoroso desconhecido ouvisse em meio a tanto barulho.

O guerreiro se voltou e, pouco antes de desaparecer naquela nuvem de névoa e fumaça, Connor viu de relance algo que reluzia na frente de sua túnica: um raio de sol arrancou faíscas das runas de cristal que pendiam de seu pescoço.

Quando a fumaça e a bruma se dissiparam, o guerreiro se fora.

Connor encontrou as pegadas das botas à margem do campo onde vira o desconhecido pela última vez. Os rastros conduziam para longe dali.

Arthur comandava seus homens numa estratégia alterada às pressas, e a vitória estava agora dentro de seu alcance. Cumprira o destino que Merlin previra, tantos anos atrás.

Um estandarte com as cores de Arthur ergueu-se no meio do combate.

Connor não mais era necessário ali. Sua presença não mudaria nada. E havia outra ameaça que ainda existia. Estava no lugar para onde o guerreiro fora.

Partiu, seguindo aqueles rastros, enquanto os primeiros gritos de vitória foram ouvidos sob aquele céu claro de dezembro.

 

Meg sabia aonde Morgana fora: encontrar-se com Maelgwyn, seu comparsa na traição. Sem dúvida para observar a batalha de algum lugar seguro, para tripudiar sobre a derrota de Arthur e, depois, reivindicar os espólios de guerra.

Com os horríveis avisos de Merlin a ecoar em seu íntimo, Meg encontrou os vestígios do acampamento de guerra de Maelgwyn no topo da uma alta colina rochosa e escarpada que dominava o terreno ondulado. Maelgwyn não estava lá. Fora se juntar a seus homens naquela campanha final, sabendo, com instinto de um guerreiro, que rumava para os braços de sua própria morte.

Morgana vira também. Todas suas ambições e seus objetivos escorregaram por entre seus dedos.

Meg sentiu sua presença, a imundície e a frieza do mal que pairava no ar, os últimos traços da aura maligna. E a raiva desesperada de Morgana, aguda como a lâmina de uma espada, que agora a tornava ainda mais perigosa.

Se Morgana vivesse, não haveria futuro.

A mão de Meg afagou o lugar onde crescia a vida. Um filho de carne e osso, e poderes imortais. Se Morgana vivesse, não haveria futuro para aquela criança.

Meg fechou a mente para todos os pensamentos sobre o filho que pudessem traí-la, cerrou uma pequena parte de si mesma, protetora, em torno daquela frágil existência, como um casulo delicado e, contudo, forte. Então, expandiu seus sentidos em busca de Morgana.

Connor seguiu aqueles rastros até o topo da colina rochosa e descobriu onde o guerreiro parara ao lado das cinzas de uma fogueira em extinção. E reparou que no lugar onde havia duas pegadas mais à frente apareciam quatro...

Morgana passara por ali, através do terreno ressequido pelo inverno, onde um bosque se aninhava em torno de uma colina.

Meg sentiu-a, captou-a naquela mesma friagem dolorosa que experimentara no pico rochoso. A presença de Morgana impregnava a atmosfera, a contaminá-la, a emanação asfixiante de pura maldade a se tornar mais invasiva, mais próxima a cada passo, além da mata, pelo campo.

Morgana girou, certa de que ouvira alguém, ao passar pela vegetação cerrada. Mas era apenas o vento nas árvores, que para ela se assemelhavam a mendigos, seus galhos desnudados a farfalhar como gargalhadas estridentes.

Seguiu pela extensão descampada e teve de novo a impressão, uma presença que a incomodava. Tornou a girar ao redor, mas nada viu.

Maldito Maelgwyn! Maldito Arthur, mil vezes! Aquilo tudo não terminara ainda. Não era o fim!

A presença outra vez; e o aviso de algum perigo mais próximo. Correu.

A terra tremia debaixo de seus pés, e um som ensurdecedor rompeu o ar. O chão diante de si de repente se abriu e uma imensa rocha se ergueu da terra, subindo a uma altura que a sobrepujava, barrando-lhe o caminho.

Morgana recuou devagar e disparou em outra direção. A terra roncou, e uma segunda rocha se ergueu do chão diante dela. Estacou e partiu para o outro lado. E um novo monolito rasgou o solo e surgiu.

Cada vez que Morgana se virava, uma enorme pedra aparecia, imensa, reluzente, monolitos brilhantes que refletiam o sol. Ela a tudo via, de olhos esbugalhados.

Achava-se no centro do anel de pedras, com o coração a bater num pulso frenético, os pensamentos disparados, as forças sombrias do mal dentro de si a se revolver violentamente.

— Não há para onde correr, Morgana. Você não pode escapar.

Morgana olhou em torno e se viu face a face com um guerreiro.

Ele era alto e magro, vestido numa túnica de couro e com calça justa. Suas feições se ocultavam debaixo de marcas pintadas incomuns, e portava uma espada.

Morgana tentou fugir entre duas das pedras eretas, mas foi lançada para trás por alguma força invisível que unia as rochas num campo imantado. Tornou a tentar, e novamente foi jogada para trás. Sua fúria cresceu.

Estava encurralada. Presa dentro daquele círculo por algum poder invisível. Encarou o guerreiro.

— Você não pode me impedir. Ninguém pode me deter!

Meg sentiu o sortilégio. A escuridão se reuniu e pairou sobre o anel de pedras como uma tempestade em formação. Em seguida, veio a explosão de um raio que sacudiu a terra e fez as rochas estremecerem.

O primeiro relâmpago cegou Meg, a dor a penetrar como agulhas em seus olhos. A gargalhada áspera e cruel de Morgana tiniu, dolorosa, em seus ouvidos.

O segundo raio atingiu-a na manga, cortando o couro macio e a pele por baixo, o calor do sangue a escorrer pelo braço.

Meg antecipou o próximo e, usando de seus poderes para guiá-la, desviou-o com a lâmina da espada. Sentiu o outro, e o seguinte também, e os afastou.

O anel de pedras explodia numa batalha primordial entre os poderes da Luz e os das Trevas.

Então, o próximo raio fulgurante foi defletido pela ponta de sua arma no ângulo exato, e atingiu Morgana no ombro. O choque a fez cambalear, confusa. Gritou, enlouquecida, virando-se para Meg como um animal ferido.

As Trevas se apossavam dela numa visão hedionda. O mal latejava em seu sangue. A cada batida de seu coração, ela era menos mortal e mais perigosa.

Transformou-se num leviatã, uma das antigas criaturas aladas que existiam apenas em mito. Até então.

Meg sentiu o cheiro repugnante, o frio cortante da morte naquelas asas que revolviam o ar dentro do círculo de pedras. Visualizou aquela imagem com o dom da visão interna que a protegia. Foi quando o ser avançou, os sons daquelas garras letais a retalhar o nada muito perto de seu rosto.

Girou a espada. Mas as asas poderosas arrancaram seus pés do chão, num golpe incrível que a atirou de costas e fez a espada voar de sua mão.

Meg rolou pelo solo. Estava desorientada, os sentidos atordoados pelos guinchos e pelo vento violento que vinha de todas as direções. Levantou-se a duras penas.

Sentiu a força concentrada das Trevas à medida que o leviatã atacava. Ouviu o bater daquelas asas, e foi jogada longe pelo golpe que a arremessou sobre o chão duro.

A besta do Mal circulou ao alto, sem sair do círculo de pedras, e em seguida projetou-se na direção de Meg, com suas garras mortais esticadas para dilacerá-la.

Meg olhou para dentro de si. Sua forma de guerreiro desaparecia à medida que concentrava o poder com que nascera numa súbita erupção de luz intensa, que explodiu quando o leviatã a alcançava. A criatura foi arremessada pelo círculo de pedras e se chocou contra um daqueles monolitos eretos com um ruído medonho.

Desnorteada e ferida pelo choque, Morgana sentiu que o poder do sortilégio usada por ela se desvanecia. Caiu prostrada, confusa e sangrando, na base da rocha.

Meg lutou para se erguer no cotovelo dobrado. Ofuscada por aquele primeiro raio, não recobrara a visão. Sentia-se fraca e impotente como um recém-nascido.

Ouviu a exclamação de surpresa de Morgana ao descobrir o que Meg já sabia: que não mais estava protegida pela transformação em guerreiro.

— O que temos aqui? Uma bruxa? Uma encantada? Feiticeira? Maga? Qual delas?

Então, deixou escapar um som de espanto ao penetrar dentro dos pensamentos de Meg.

— Merlin! — E, em seguida, com descrença: — Irmã?! A gargalhada maligna retiniu pelos monolitos eretos, fazendo aqueles gigantes tremerem.

— Você é irmã de Merlin! Eu deveria ter sabido! Deveria ter visto. — Exultou, triunfante. — Acreditava mesmo que poderia me parar? Que seria poderosa o suficiente? — Riu. — Sua tola! Merlin não foi páreo para mim, e você também não é. Eu a destruirei tão fácil como destruí seu irmão.

— Engana-se. Meu irmão está vivo. Você perdeu, Morgana. Perdeu tudo. Arthur é vitorioso. Assumirá o trono e cumprirá seu destino como rei da Bretanha. Não poderá impedir isso.

Era verdade. Morgana sabia. Sentira quando fugira do acampamento de Maelgwyn.

— Talvez não. Porém existe ainda algo que posso fazer... Posso acabar com você!

Meg soltou um grito ao sentir a mão fria das Trevas arrancando as camadas do casulo protetor. Então, sentiu o punho gelado da morte se fechar em torno da criança.

Morgana ria, um som áspero e cruel que lhe dilacerou a alma.

— Destruirei você e seu filho. Em seguida, concluirei aquilo que deve ser feito.

Morgana fez a espada do guerreiro levitar, de onde caíra, com a força do pensamento, e voar até sua mão.

Connor presenciara tudo desde que se aproximara do círculo de pedras. E viu com incredulidade quando a arma voou ao encontro de Morgana; e em seguida, com horror, quando ela a ergueu e a desceu.

— Não!

A espada de Connor acertou Morgana acima dos ombros e cortou-lhe o pescoço. A cabeça rolou pelo solo, o sangue a jorrar das veias seccionadas.

Seu corpo despencou, caindo sobre a espada ensangüentada. Um lampejo de chama azulada saltou em torno do cadáver de Morgana, e o consumiu. No anel de rochas, a cabeça cortada explodiu em chamas de luz branca incandescente.

Connor correu para Meg.

Ela estava pálida como morta, a pele fria ao toque. Seus cabelos, emaranhados sob o corpo; os dois braços passados, protetores, em torno do ventre conforme se curvara sobre si mesma, quando sentira a investida de Morgana, para proteger o filho. O filho de Connor.

Ele a trouxe de encontro a si.

— Não! — exclamou, rouco, lutando contra o pânico e o desespero.

Rasgou em tiras o tecido da saia do vestido dela, enrolou-as e pressionou-as contra o ferimento. Meg murmurou seu nome:

— Connor...

— Você ficará bem — ele afirmou, com veemência. — Eu a levarei de volta a Caerleon.

— Abrace-me.

— Estou abraçando...

Os olhos que o fitavam viam para além dele. A mão que se erguia parecia não poder encontrá-lo. O ar gélido que de repente emanou dela o alcançou, invadindo-lhe as entranhas.

— Por favor, me abrace!

— Sim, pequena.

— Havia uma coisa que eu queria lhe contar...

— Estou aqui, Meg. Eu a ouço. A mão hesitante roçou-lhe a face.

— Queria experimentar a vida. Eu a encontrei... em você. Lágrimas encheram os olhos de Connor. Ele entrelaçou os dedos nos dela.

— Assim como devolveu a minha para mim. Fique, e partilhe-a comigo agora. Fique!

— Abrace-me, Connor. Por favor, me abrace.

Ele a estreitou com força contra o peito, como se pudesse absorvê-la dentro do próprio corpo e protegê-la ali.

Um débil brilho dourado de luz aos poucos se expandiu, enchendo o anel de pedras, rodeando a ambos. O poder da Luz envolveu Meg, afastando o frio e a dor, enrolando-a numa quentura deliciosa, roubando-a das garras da morte. Levando-a para casa.

O céu azul cobriu os monolitos. E Connor, devagar, levantou a cabeça.

Tudo desaparecera. Restavam apenas aquele anel de pedras majestosas e o sangue que encharcava a frente de sua túnica.

E ele chorou. Até que sol afundou no horizonte. Até que a noite caiu. Até não ter mais lágrimas para derramar.

No que acreditava?

Sempre acreditara em Deus... e na espada em sua mão. Os dois definiam quem e o que ele era. Então, perdera tudo, talvez a si mesmo também. Não mais sabia quem era, ou se importava.

Meg devolvera-lhe isso tudo com sua risada, seu amor e a doce paixão. Devolvera-lhe a alma.

Não era o bastante. Nem perto do suficiente.

— Ela falou?

— Nem uma palavra.

— E quanto a seus pensamentos?

— Muito estranhos. São todos mortais. E emoções, como tristeza, alegria, sofrimento e perda. Tão profundos que posso quase senti-los em mim mesmo. E outros...

— Outros.

— Eu os sinto. Muito poderosos. E tristíssimos. Ela não sorri desde que voltou.

— Nunca deveria ter sumido.

— Se voltasse...

— Teria de viver como mortal. Seus poderes não mais existiriam. Não seria nada mais que uma encantada. Não é uma troca que alguém com poderes tais como os dela faria.

— E a criança?

— Não existe em nosso mundo. Era parte da transformação. Não é parte dela agora.

— Contudo, ela a sente... sente essa perda. Ouço seu choro à noite.

— Choro?

— Sim, lágrimas. Lágrimas de verdade. Como é possível?

— Não é possível.

Impossível. Emoções impossíveis, amor impossível, necessidade impossível...

Connor seguia com o resto de seus homens, montados em seus cavalos de batalha, bafejados pelo vento cortante daquele clima nórdico.

A neve ainda era um tapete branco sobre a terra em Dumonia, a cidadela de Maelgwyn, ao norte. Anos antes ele partira daquelas montanhas escarpadas e ameaçadoras e varrera as regiões ao sul, espalhando seu reino de terror, sangue e morte.

Sangue demais. Morte demais.

Agora, outro reivindicava o direito ao reino. Seu destino, profetizado por todos aqueles anos, se cumprira naquele dia, quando Maelgwyn tombara e Aethelbert, enfim, depusera as armas para apodrecer até o último suspiro numa ilha distante.

Arthur, rei da Bretanha, desmontou e subiu as escadas da fortaleza abandonada que parecia ser parte da montanha em si. Um lugar de lenda e mito, quase tão antigo quanto a lenda que rodeava o próprio Arthur.

Connor apeou. Seus homens o seguiram.

Arthur não fora até lá para saquear ou pilhar, mas para cumprir a profecia. Procurar o que poucos tinham visto e menos ainda tocado: a antiga espada de Dumonia, a lâmina cravada em pedra.

Diziam que era feita de metal reluzente que refletia o sol do meio-dia e, incrustada no punho da espada, existia uma magnífica pedra azul. Só o rei verdadeiro poderia arrancá-la da pedra.

Ninguém jamais conseguira tal feito. Nem mesmo Maelgwyn, com toda sua deslealdade, ambição e traições.

A espada estava num enorme aposento dentro da fortaleza, construído em torno da pedra. Merlin avançou devagar. Embora ainda fraco, insistira que aquilo ele precisava fazer.

A expressão em sua face mudou, a exaustão dissipada. Começou a murmurar antigas palavras, havia longo tempo perdidas, à medida que Arthur se aproximava do enorme bloco onde a espada se encravara.

Destino. Esperança. Prece. Tudo se reuniu quando Arthur fechou os dedos em torno do punho da espada e depois, devagar, a foi puxando.

Estava feito. A longa batalha fora vencida. Arthur era rei.

Dali em diante, tudo o que Connor desejava era ir para casa. Para Monmouth, para tentar encontrar os pedaços de sua vida.

Connor assobiou para o cachorro e rumou para a campina.

Ao cair da noite, alcançara a beira da floresta. Um coelho proporcionou o jantar, e o cão, a companhia que ele queria.

Dax farejou algo e investiu à frente. Connor tirou uma flecha da aljava às costas, e colocou-a na corda do arco.

Embrenhou-se na floresta, seguindo os rastros do veado.

Ouviu o ruído característico de um bicho a se mover pelas moitas. E avistou um vulto de relance. Um vislumbre de uma pele acastanhada.

Um veado apontou por entre as árvores, a andar devagar como se procurasse folhas tenras no chão.

Um bando de pássaros de repente alçou vôo de um arbusto ali perto. O som assustou o animal, que ergueu a cabeça, os olhos se arregalando, alarmados. Correu.

Connor soltou a flecha.

Ouviu o tropeçar e o baque do animal, e seguiu-o pelas árvores. Os latidos do cão de repente cessaram. Connor se enfiou pelos arbustos, certo da direção da flecha, certo de que encontrara seu alvo.

Dax começou a latir alto. Connor saltou por sobre um tronco caído, encontrou Dax e puxou-o para trás.

Ajoelhou-se e afastou os galhos, expondo a curva pálida de um ombro nu. Mais folhas e galhos afastados revelavam a cascata de longos cabelos dourados.

A floresta ficou silenciosa em torno dele. Até mesmo Dax emudeceu. Connor empurrou de lado as folhas, os brotos e o cascalho, e a envolveu nos braços.

Meg ouviu uma voz, sentiu um calor repentino de um contato humano. Era terno, gentil, e estranhamente reconfortante. Queria bem mais.

Abriu os olhos, mas nenhuma imagem se formou. Ficara cega em seu confronto com Morgana. Aquilo permaneceria. Mas fora o único ferimento que sofrerá.

O filho de Connor se aninhava em segurança em seu ventre, o corpo de ambos arrancados do mundo mortal pelos poderes da Luz naquele momento antes da morte, tal como Connor a conhecia.

No entanto, ela o via, com o dom da visão interna de uma encantada, uma das poucas coisas com que ficara como parte da troca que fizera para poder voltar para ele.

A flecha encontrara um alvo no tronco da árvore ao lado dela, talvez por causa de alguma mudança na brisa, no último instante. Ou uma alteração, no último minuto, no mundo.

Connor nada questionou. Apenas lhe importava o que segurava nos braços. Um homem que acreditava em Deus, em sua espada e no amor que encontrara no riso da mulher adorada.

— Tenha piedade, milorde... — Ela suspirou, ofegante, através das lágrimas e do riso.

— Jamais. — E Connor a envolveu na doçura de seu beijo.

 

                                                                                Quinn Taylor Evans  

 

                      

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