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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


SONHOS TRAIDOS / Barbara Cartland
SONHOS TRAIDOS / Barbara Cartland

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

SONHOS TRAIDOS

 

A hierarquia da criadagem manteve-se na Inglaterra até a Segunda Guerra Mundial.

Quando me casei, em 1927, minha cunhada era doze anos mais nova que meu marido.  Sua dama de companhia ficou furiosa quando teve de conceder seu posto ao mordomo de nossa família.  Houve muita mágoa acerca disso entre eles.

 Minha sogra empregou dezoito criados internos. Em grandes casas, porém, o número podia se elevar a quarenta ou cinqüenta.

Conforme uma dama de companhia comentara comigo, as arrumadeiras se divertiam muito, pois podiam dançar com os lacaios, que eram escolhidos a dedo de acordo com sua aparência e porte. E eles tinham de ser bem altos.

Nos anos 20, um jovem amigo meu que estava na Marinha e era bastante rico, adquiriu seu próprio aeroplano. O piloto que tomava conta do aeroplano também servia meu amigo, como criado.   Meu amigo voou para a Escócia a fim de se hospedar no Castelo Dunrobin, na companhia do Duque de Sutherland.

Após a primeira noite ali hospedado, seu piloto perguntou-lhe,

— Divertiu-se bastante ontem à noite, Milorde?

— Não tanto! — foi a resposta — Havia poucos convidados para o jantar e depois jogamos bridge para passar o tempo.

— Ah, Milorde, deveria ter vindo ao andar térreo, onde estávamos! — exclamou o piloto e criado — Tivemos uma noite agradabilíssima. Muito champanhe, muita dança até a uma hora da manhã.

Em Woburn, o Duque de Bedford, no início do século, fazia pagamentos semanais a cerca de duzentos criados internos e duzentos externos.

Como ele próprio dizia, a criadagem é "um estado dentro de um estado". Isso porque os nobres eram praticamente auto-suficientes com seus grupos de pedreiros, carpinteiros, pintores, lavanderia privativa e outros alojamentos.

 

1818

O Marquês de Mounteagle desceu de seu faetonte e informou ao cocheiro,

— Volte em uma hora.

— Como queira, Milorde.

O Marquês dirigiu-se ao Clube White e foi cumprimentado com deferência pelo porteiro.

Observou através da porta aberta da sala que o homem que procurava estava sentado numa das cadeiras de couro do clube.

Já se dirigia ao homem quando alguém nas proximidades disse, num sussurro que para ele foi bastante audível,

— Vejam, é Mounteagle! Por Deus, não o deixe consultar o Livro de Apostas.

Involuntariamente, o Marquês ficou apreensivo.

Então, com um autocontrole admirável, não olhou na direção de onde provinha o comentário.

Em vez disso, dirigiu-se a um conhecido que tinha encontrado recentemente nas corridas de cavalos e que se encontrava do outro lado da sala.

— Você derrotou algum vencedor? — perguntou o Marquês.

— Eu não tenho a sua sorte — foi a resposta.

Só então o Marquês se voltou para a direita e encarou o homem que ouvira cochichando havia pouco. Sem pestanejar, caminhou em direção ao seu amigo Lorde Charles Carrington que o esperava.

— Você está atrasado, Johnnie! — ele exclamou ao vê-lo — Pensei que tivesse caído nos braços de alguma mulher encantadora.

— Não, eu apenas me atrasei, pois estava escrevendo uma carta — respondeu o Marquês.

— Se me der três pistas eu descubro para quem você estava escrevendo — Lorde Charles pediu.

— Não — replicou o Marquês — Cuide da sua vida!

 Lorde Charles deu uma risada e pediu champanhe ao garçom.

Quando este voltou com a bebida, o Marquês pediu.

— Traga-me o Livro de Apostas.

— Muito bem, Milorde.

O Livro de Apostas no White era lendário. As anotações de apostas iniciaram-se havia cem anos. Era guardado com carinho por seus integrantes que, sendo apostadores, lançavam nele anotações diárias.

Enquanto o garçom saía para atender à solicitação do Marquês, Lorde Charles comentou.

— Achava melhor você não ver o livro!

O Marquês o olhou fixamente.

— O que você quer dizer com isso?

— Que poderá se aborrecer. O que os olhos não vêem o coração não sente!

— Não sei do que está falando — replicou o Marquês, ríspido — mas ouvi Perceval sussurrar algo quando entrei. Você está a par de alguma coisa?

— Creio que sei de algo — respondeu Lorde Charles — Por isso mesmo, não consulte o Livro de Apostas!

— Acho que você ficou louco! — retorquiu o Marquês — Se no livro houver algo que me diga respeito, logicamente vou querer saber, e se por acaso for alguma calúnia, eu corto o pescoço de Perceval!

Lorde Charles acomodou-se na cadeira, bebericando o champanhe.

 

— Não entendo Johnnie, por que você se preocupa tanto com uma pessoa tão desprezível como Perceval — interveio ele — Acho que é mais importante falarmos sobre cavalos.

Fez uma pausa e, então, continuou,

— Eu vi alguns animais no Tattershall que seriam uma ótima aquisição para seus estábulos.

— Aprecio seu interesse — declarou o Marquês — mas estou curioso para saber o que há de tão especial no Livro de Apostas.

Lorde Charles fez um gesto eloqüente com uma das mãos.

— Tudo bem, você é quem sabe — ponderou ele — Eu sempre acreditei que as pessoas não devem dar murros em ponta de faca!

— Você está cheio de citações hoje! — afirmou o Marquês — O que significa que está apreensivo pelo que eu possa vir a descobrir. Eu o conheço de longa data, e sei que quando começa a fazer citações é sinal de mau agouro.

Lorde Charles deu uma risada um tanto pesarosa. Antes que pudesse replicar, o garçom entregou o Livro de Apostas ao Marquês.

Como era muito velho, a capa estava um tanto amassada, mas havia uma inscrição em dourado sobre ele.

"Livro de Apostas de White

1713"

O Marquês abriu-o e foi virando as páginas até chegar às últimas anotações de apostas que eram rabiscos quase ilegíveis.  Várias notas se referiam ao tempo em que ele e Charles estavam lutando contra Napoleão.

Por um momento os olhos do Marquês detiveram-se sobre uma aposta feita no ano da batalha de Waterloo.

"O Capitão Capei faz uma aposta de cento e cinco xelins, com o Senhor Brummell, de que Napoleão não se tornará chefe do Governo francês em Paris dentro de dez dias, a contar desta data.

15 de Março de 1815 George Brummell"

Outra aposta feita quatro dias depois e assinada por três membros, contava,

"Senhor G. Talbot aposta mil e cinqüenta xelins contra cinco que Bonaparte não estará em Viena no prazo de três meses.

17 de Março de 1815 W. Howard G. Talbot Pd. G. Talbot"

O Marquês virou a página. Havia várias anotações referentes a esportes. Então ele leu, aos poucos,

"O Senhor Perceval aposta mil e cinqüenta xelins com o Senhor Hatton que um certo nobre Marquês não apanhará uma flor, até que se saiba se o Duque de D. viverá ou morrerá.

29 de abril 1818".

O Marquês leu a anotação duas vezes, dizendo em seguida,

— Se isto significa o que eu entendi, então é um grave insulto e vou chamar Perceval para um duelo.

— Você será tolo se o fizer — advertiu Lorde Charles.

— Por quê? O que você quer dizer?

Houve uma pausa antes que Lorde Charles respondesse,

— Veja bem, Johnnie, você é meu amigo e eu não quero romper nossa amizade. Só digo isso, ponha o livro de lado e finja não ter visto o que leu.

— Por que eu deveria? — inquiriu o Marquês, furioso — É bastante óbvio que essa aposta se refere a Fleur, e o que o Duque de Dorset tem a ver com ela?

Lorde Charles mordeu os lábios e nada respondeu.

— Ah, vamos, Charles! — incitou o Marquês — Seja lá o que me disser, eu não vou me zangar com você. É ao Perceval que eu detesto. Ele não passa de um mexeriqueiro e se não tem uma história sórdida a contar de alguém, ele inventa uma.

— Isso mesmo! E é o que ele está fazendo agora — argumentou Lorde Charles.

Infelizmente, ele respondeu rápido demais e o Marquês percebeu que mentia.

— Diga a verdade, Charles — pediu o Marquês.

Lorde Charles suspirou.

— Não adianta — começou — se você acha que vou brigar com você, está muito enganado.

— Não seja tolo! — replicou o Marquês — Eu não vou brigar com você. É com Perceval minha dívida.

— Muito bem — concordou Charles — Perceval está apostando, infelizmente, na verdade!

O Marquês fitou o amigo com o rosto pálido e surpreso.

— Você está me dizendo — foi falando devagar à medida que ia estudando o assunto — que Fleur está demorando em aceitar minha proposta de casamento porque se o Duque de Dorset morrer e Settington se tornar Duque, ela o aceitará como esposo?

— Eu sempre achei que você era perspicaz — argumentou Lorde Charles.

— Não posso acreditar! — exclamou o Marquês — Ela me ama, jurou amor centenas de vezes e só está mantendo em segredo nosso noivado porque a avó está doente.

— Que eu saiba a avó de Fleur está doente há três anos — informou Lorde Charles.

O Marquês deu um suspiro longo.

— Logo Settington! Você sabe o que sempre achamos dele!

— Um Duque é um Duque — murmurou Lorde Charles.

O Marquês terminou de beber o champanhe e se serviu de outro copo. Então perguntou,

— O que eu quero saber é como Perceval descobriu isso. Eu nunca mencionei uma palavra a alguém sobre meus sentimentos por Fleur e os dela por mim, exceto a você.

— Ei, eu não tenho culpa! — apressou a dizer Lorde Charles.

— Então quem é o culpado?

— Você não gostará de saber, mas o criado de Perceval está saindo com a pajem de Fleur.

 

— Você quer dizer que a pajem mexericou ao criado uma confidência para a qual sua ama pediu segredo?

— Meu querido Johnnie, criadas falam demais! — exclamou Lorde Charles — De fato, quase todos os mexericos que circulam ao redor de Beau Ton provêm da criadagem.

— Isto nunca me passou pela cabeça! — exclamou o Marquês.

— É claro que não — concluiu Lorde Charles — Quem você acha que divulgou o segredo sobre o envolvimento de Henry com aquela devassa, quase o levando a perder a fortuna que o tio estava deixando para ele?

— Isto realmente me intrigou na época que veio à baila — argumentou o Marquês.

— Criados são criados e, como o criado de Perceval é um linguarudo, eu não me importaria em apostar que de fato cada homem nesta sala saiba sobre você e Fleur.

Por um momento o Marquês cerrou os punhos. Então, com certo esforço, tentou acomodar contra o encosto da cadeira.

Ele sentira-se atraído por Fleur Munroe como nunca antes qualquer outra garota solteira o conseguira.

O Marquês tinha jurado, tempos atrás, que não se casaria antes dos quarenta anos.

Dedicava-se a aproveitar a vida com as sofisticadas e atraentes mulheres que cercavam o Príncipe Regente. Quase todas elas eram casadas e tinham maridos complacentes, que preferiam o campo à interminável e exaustiva busca do prazer que tinha sido adotada em Londres, tão logo a guerra terminara.

Paixões ardentes não duravam muito tempo, mas eram o tema de mexericos enquanto existiam.

Quando encontrou Fleur Munroe, quebrou todas as normas e, três semanas após o primeiro encontro, viu-se pedindo-a em casamento.  Fleur era mais velha do que uma debutante comum. Não aparecera em Londres antes dos dezenove anos, pois estivera de luto pela morte do pai.

Ela era adorável.

O fato de ter recebido uma grande fortuna era secundário na opinião do Marquês e de outros homens.

O Marquês sentiu tão logo se encontraram que havia harmonia entre eles.

Um magnetismo irresistível os atraiu.

Manter segredo sobre eles era, segundo Fleur, de essencial importância.

Ninguém deveria saber de coisa alguma, até que o luto dela terminasse.

— Você sabe como todos ficariam chocados — dissera Fleur em voz baixa — se eu anunciasse meu noivado antes de ter terminado meu período de luto.

O Marquês compreendera.

Fleur só viera mais cedo a Londres porque deveria fazer reverência na sala de recepção do rei, por ocasião de uma festa a ser realizada no Palácio de Buckingham.

Seria um insulto para o Príncipe Regente mudar essa tradição.

Fleur insistira para que o Marquês se comportasse de maneira tão casual quanto possível, quando eles se encontrassem em público.  Porém, poderiam ficar juntos em segredo, se ele conseguisse entrar despercebido na casa.

O Marquês achara reconfortante ter encontrado uma mulher que não se gabava de seu poder de atração.  Ele apreciava muito entrar no jardim de Park Street, onde Fleur vivia. Ela abria as grandes janelas do andar térreo para deixá-lo entrar. Então se beijavam até que ambos ficassem sem fôlego.

Faziam planos para o futuro e finalmente se despediam.

— Estou cansado de tanto segredo — comentara ele, noites atrás — Quero que todos saibam que você é minha.

— E eu te amo — dissera Fleur com doçura — Você é tão elegante, tão inteligente e melhor do que qualquer homem que eu já conheci.

— No futuro — argumentara o Marquês — não quero que você conheça outros homens. Fico louco ao vê-la dançando com aqueles estúpidos, quando deveria estar comigo.

Fez uma pausa para beijá-la e então continuou,

— Se alguma vez eu souber que eles estão te fazendo declarações de amor, não respondo pelas conseqüências.

— Oh, Johnnie, Johnnie! Como você é imperioso! — murmurou Fleur — Se eu vier a ser sua esposa, não será agradável ouvir as pessoas fazerem comentários grosseiros a meu respeito.

Deu um pequeno suspiro.

— Sinto que algumas pessoas têm ciúme de nós.

— Lógico que têm, pois você é tão bela! — interveio o Marquês, como era de se esperar.

Mas achou mais fácil se expressar através de beijos do que de palavras.

Quando a deixou, pois Fleur precisava se aprontar para um banquete, os olhos dela cintilavam.

Ela estava tão adorável que foi quase impossível para ele simplesmente partir.

Fleur o fez sair pela mesma janela que havia entrado e então advertiu-o num sussurro,

— Seja muito cauteloso, não seria agradável ver os outros mexericando sobre mim.

— Confie em mim, querida.

Ele atravessou o jardim a passos rápidos e saiu pela porta da estrebaria, com a chave que Fleur dera. Enquanto voltava para sua casa na Praça Berkeley é que se deu conta de que se esquecera de perguntar a ela em que banquete iria naquela noite. Se o banquete fosse antes do baile, ele certamente seria convidado e apareceria mais tarde. Pelo menos teria chance de dançar com ela.

Então lembrou-se de que se dançasse com uma moça solteira daria motivo a falatórios. Se houvesse a menor insinuação sobre planos de casamento no ar, ficariam todos agitados.

— É melhor eu ir para o clube — advertiu a si próprio.

Negligenciaria pelo menos cinco convites que seu secretário deixara sobre a penteadeira para que ele os avistasse. Porém, vira Fleur em dois bailes na semana anterior. Compreendia agora que, com certeza, ela dançara com o Conde de Settington, que era herdeiro do Duque de Dorset.

Era um jovem um tanto insípido que o Marquês vira na pista de corridas, enquanto cavalgava. Estava sempre embriagado no White. Nem Charles nem ele aceitaram-no como amigo. Nunca passara pela cabeça, porém, que tal rapaz poderia ser um segundo pretendente à mão de Fleur.

Havia outros homens que a perseguiam e ele sabia disso. Mas eles não tinham nem a riqueza nem a reputação do Conde e estavam fora de cogitação. Mas Perceval descobrira sobre ele e Fleur. E supor que Fleur estava em busca de um título maior do que o dele era mais do que ousava supor. Todas essas reflexões passaram pela mente do Marquês até que ele percebeu que o amigo o fitava com apreensão.

— O que quer que você possa estar sentindo sobre esse assunto— advertiu Lorde Charles — você não pode fazer uma cena aqui.

— Não é minha intenção fazer escândalos — replicou o Marquês — mas eu quero saber de toda verdade, Charles, nem que tenha de arrancá-la de você.

— Eu sabia que você ia se alterar — queixou-se Lorde Charles com voz entristecida.

— Lógico que estou nervoso! — esbravejou o Marquês — Quero que você me assegure que isso não é verdade!

— Sinto não poder dar essa certeza.

— Você quer dizer que é...

— Sinto muito, mas é a pura verdade.

— Como você tem tanta certeza?

O Marquês sentiu-se como um homem que se agarra em desespero a uma tábua de salvação.  Não podia acreditar, era impossível crer que Fleur o estava enganando.

Como pudera dissimular tanto suas declarações de amor e ter se entregado aos beijos dele com tanto ardor?

Como se estivesse lendo os pensamentos do amigo, Lorde Charles argumentou,

— Pelo que ouvi Fleur realmente ama você, aliás, nunca se importou tanto com alguém antes, mas ela não pode resistir à tentação de se tornar Duquesa!

— Como você sabe de tudo isto? — inquiriu o Marquês com impaciência.

Lorde Charles hesitou por um momento e só então continuou,

— Porque o mordomo de minha mãe é tio do criado de Perceval.

— Meu Deus! — exclamou o Marquês — Mais mexericos de criados?

— Você sabe tão bem quanto eu — replicou Lorde Charles que os criados das melhores famílias vão sendo legados de geração em geração, e seus filhos, primos e netos sempre encontram um lugar na aristocracia. Apesar de você detestar Perceval, a árvore genealógica dele é quase tão longa quanto a sua.

— Eu sempre ouvi que os criados são as criaturas mais esnobes sobre a face da terra — filosofou o Marquês — Mas nunca acreditei nisso.

— Isso é porque você nunca precisou contratá-los — replicou Lorde Charles — mas seu secretário sempre verifica todas as referências antes que um criado recém chegado tenha o privilégio de cruzar a soleira de sua porta.

Lorde Charles percebeu que o Marquês o escutava com atenção, então prosseguiu,

— Sua criadagem é composta de aldeões de sua propriedade e são treinados desde os doze anos para venerá-lo com admiração e reverência!

— Basta, Charles! — esbravejou o Marquês.

Ao mesmo tempo sabia que o amigo tinha razão. Pensando nisso agora, sabia que as mesmas famílias tinham ocupado cargos na Eagle, propriedade de sua família, por gerações. Lembrou-se de quando era menino e seu pai o levava em diferentes alojamentos. Dos carpinteiros, dos pedreiros, dos lenhadores e dos pintores.  A criadagem interna passava de cinqüenta indivíduos.

— Somos um Estado dentro de um Estado — o pai dele comentava — e você, Johnnie, deve sempre ter em mente que eles são seu povo e que deve cuidar deles, tomar conta, evitando que cometam enganos.

E isso era o que tentara fazer desde que fora instruído pelo pai. Ele era um líder brilhante, conforme Wellington dizia em suas citações.  Tomara conta de suas tropas da mesma forma que cuidava de seus guarda-caças, jardineiros, cavaleiros e jóqueis. Passava agora pela cabeça que talvez eles estivessem o tempo todo mexericando sobre ele da mesma forma que o criado de Perceval.

— O que me deixa furioso — o Marquês começou em voz alta — é que sempre confiei em meus criados. Nunca pensei que o que eu comentava na mesa ou no vestíbulo pudesse ser repetido em público.

— Você é um tanto ingênuo — avaliou Lorde Charles — É claro que eles falam e não acham desleal revelar segredos para seus irmãos, irmãs, primos ou qualquer um de seus parentes, já que são parte da família.

— Bem, se isso continuar assim, será um milagre não serem revelados todos os segredos de Estado.

Lorde Charles deu uma risada.

— Você devia saber Johnnie, que Napoleão tinha espiões por toda parte e quando os colocava na casa de um nobre, obtinha mais informações do que se bisbilhotasse nos ministérios.

— Isso é verdade? — perguntou o Marquês.

— Um dos lacaios do Palácio de Carlton era espião — explicou Lorde Charles — Por causa disso, Napoleão soube de muitas informações obtidas dos hóspedes do Palácio, até que finalmente o rei foi eliminado.

— Mas isso é apavorante! — exclamou o Marquês.

— Penso que se perdem muitas batalhas acirradas e tropas são exterminadas em virtude de comentários negligentes enquanto os criados estão por perto — observou Lorde Charles.

O Marquês não retrucou e após um momento Lorde Charles continuou,

— Meu pai costumava dizer que as pessoas julgavam serem os criados surdos e mudos, no entanto, são seres humanos como qualquer um.

— Eu estava só pensando — o Marquês falou — nas conversas que acontecem em Eagle e na Praça Berkeley que não deveriam interessar a outras pessoas que não a mim mesmo!

— Mas o mordomo e o lacaio que o servem, sem dúvida, ouviram conversas atrás das portas e gostaram das revelações! — foi a observação de Charles.

— Não quero acreditar em você! — exclamou o Marquês. Isso está parecendo invenções!

— Preferia que assim fosse — replicou Lorde Charles — Mas o que você tem diante dos olhos é a pura verdade, Fleur só aceitará sua proposta se o Duque recobrar a saúde e viver por mais alguns anos.

O Marquês se levantou,

— Vou obter a verdade de Fleur! — resolveu.

— Ela vai negar tudo, com certeza — afirmou Lorde Charles.

— Mas eu digo com franqueza, Johnnie. Isso não vai adiantar e só fará com que fique mais zangado do que já está.

— Zangado? Lógico que estou zangado! — foi a resposta ríspida do Marquês.

Pegou o copo de champanhe e o colocou em seguida sobre a mesa,

— Embriagar-me não vai resolver nada. Tenho de raciocinar.

Lorde Charles fitou o amigo com complacência. Não disse nada até que o Marquês perguntou num tom de voz diferente,

— O que devo fazer Charles? Você sabe que se o Duque se recuperar e Fleur se casar comigo eu não vou mais confiar nela, acho até que vou odiá-la por destruir meus ideais.

— Acho que entendo o que você quer dizer — foi a resposta de Charles — Você quer ser amado pelo que é e não pelos seus títulos ou propriedades.

— Lógico que é isso que eu desejo — concordou o Marquês.

— Acha que eu não reparo que todas as mães ambiciosas com filhas em idade de casamento estão no meu encalço há anos?

Fez uma pausa antes de continuar,

— Quando penso na maneira com que se exibem diante de mim, preferia ser antes de tudo um homem ridículo e sem atrativos.

— Você tem todas as desculpas — disse Lorde Charles — Fleur é adorável e muito esperta.

— Esperta demais, a ponto de me enganar — foi a resposta amarga do Marquês — Eu acreditei nela, realmente acreditei Charles!

— Você tem de encarar os fatos — consolou-o Charles — É muito difícil para uma mulher ignorar o brilho de sua nobreza e sua enorme Mansão em Eagle.

— Você está querendo dizer que ninguém me amará pelo que sou? — perguntou o Marquês com ansiedade na voz.

 

— Lógico que vão amá-lo — respondeu Lorde Charles — Você já teve provas disso, mas o que está perguntando é se elas se casariam consigo se fosse um homem comum sem outros bens que não seu rosto e personalidade.

O Marquês refletiu por um momento e então respondeu,

— Sim, é verdade e eu suponho que isso é o que todo homem almeja, ser amado pelo que é e não por outro motivo.

Lorde Charles sorriu.

— Por que você não faz um teste?

— Como assim?

— Vamos ver como o mundo se comporta se você for um pobre coitado e não o nobre Marquês de Mounteagle.

— Recuso-me a ter o nome de coitado — retorquiu o Marquês.

— Você pode usar o nome que quiser — respondeu Lorde Charles — Ouça Johnnie, vou fazer uma aposta.

Pensou um pouco antes de continuar.

— Aposto meu cavalo Falcão de Prata, que você tanto admira, contra o seu garanhão Tempestade, como não conseguirá ser um homem comum por duas semanas, pois prefere a vida que tem antes de qualquer coisa.

— Bom Deus, Charles, isso não é aposta. Lógico que eu consigo ser um homem comum sem perder a pompa. Não se lembra do desconforto que tivemos quando fomos para a península?

— E ainda assim você era o Comandante, dando ordens e sendo admirado por seus homens e pelos Generais.

— Tudo bem. Que maior desconforto você quer que eu enfrente?

Lorde Charles pensou um instante,

— Você acabou de admitir que nada conhece sobre criados. Que tal ser um deles por duas semanas? Certamente, fará parte da aposta que você não poderá ser demitido por incompetência.

— Como ousa sugerir que eu poderia ser demitido por incompetência? — defendeu-se o Marquês — A vida de um criado não é tão difícil assim!

— Isso é o que você pensa, pois nunca foi um deles — retorquiu Lorde Charles — Não consigo visualizá-lo limpando pratarias com a mesma eficiência de Mullins!

Mullins era o mordomo do Marquês em Eagle e era popular entre os amigos.

— Se eu tivesse de ser um criado — disse o Marquês — preferia fazer algum trabalho ligado aos cavalos. Pelo menos assim ninguém acharia falhas em minhas tarefas.

— Isso é verdade — argumentou Lorde Charles — vou providenciar para que você seja cocheiro.

— Isso já é alguma coisa — foi a resposta do Marquês — Sempre admirei Falcão de Prata e certamente vou adorar recolhê-lo para o estábulo.

— Se você se regozija com isso, eu vou me regozijar ainda mais montando Tempestade.

Ambos caíram na risada e o Marquês despejou champanhe num copo, entregando-o a Lorde Charles. Ao colocar a garrafa de volta ao balde, perguntou então,

— Você fala sério?

— E por que não? — perguntou Lorde Charles — E depois, se você vir Fleur poderá fazê-la saber de seus sentimentos e também poderá descobrir a verdade sobre os mexericos, pois estará no mesmo nível de Perceval.

O Marquês apertou os lábios.

— Esse é o maior dos insultos! — exclamou — É uma das coisas que eu não farei jamais.

— Muito bem, aceite minha aposta e vamos anotá-la no Livro de Apostas.

O Marquês pegou o livro que jazia numa cadeira próxima. Então mudou de idéia.

— Isso deixará as pessoas curiosas. O que temos a fazer é não deixar os outros desconfiarem de nada — Lorde Charles deu uma risada curta sem nenhum traço de humor — Você não consegue imaginar como os mexeriqueiros iriam gostar dessa história? Nós nunca conseguiríamos fazê-los esquecer.

 

— É verdade — concordou Lorde Charles — E eu prometo, Johnnie, não vou contar a ninguém.

— Nem eu, tampouco — assegurou o Marquês — E agora você me deixou apreensivo, nunca mais olharei para um criado novamente sem pensar que ele é um espião.

— Isto dará a chance de conhecer como é o outro lado da vida — argumentou Lorde Charles, sentindo um certo alívio por saber que o amigo não duvidava da verdade que ouvira.

O Marquês nunca estivera tão apaixonado como agora. Por isso, o Conde temia que ele perdesse a discrição e chamasse Perceval para um duelo. Procedendo assim, precipitaria um escândalo que inflamaria Londres inteira.

Por ter sido tão valente durante a guerra, o Duque de Wellington o elogiara em todas as ocasiões possíveis. O Marquês era, portanto, admirado por um grande número de pessoas cujas opiniões mereciam respeito. Era invejado apenas por aqueles que sabiam que nunca poderiam competir com ele.

Lorde Charles sempre suspeitara que Fleur era boa demais para ser verdade. Ficara aterrorizado quando soubera que ela andava se encontrando com o Conde de Settington exatamente da mesma forma que se encontrava com o Marquês. Seu primeiro impulso fora informar imediatamente ao amigo sobre a traição de Fleur, mas ficou bastante aliviado quando a aposta de Perceval falou por ele. Porém, sabia que o Marquês ficara profundamente ferido. Levaria ainda algum tempo para que ele se recuperasse dos efeitos causados pela perfídia de uma mulher.

A melhor coisa que o Marquês tinha a fazer era partir. Então, em meio à consternação, surgira a idéia que expusera ao Marquês. Isso certamente o manteria longe da mulher que o traíra e também poderia ajudá-lo a compreender como viviam as classes menos favorecidas.

O Marquês sempre tivera tudo, por isso não fazia idéia dos sofrimentos que molestavam os pobres.

Lorde Charles o admirava desde que o conhecera em Eton.  Naquele lugar o amigo se sobressaíra em todos os jogos, arrebatando muitos prêmios intelectuais, que segundo os invejosos foram ganhos de maneira injusta. 

Ele não nascera em berço de ouro, disse Charles a si próprio, mas sim incrustado em diamantes!

— Então vamos estudar o assunto — sugeriu em voz alta — A primeira coisa a fazer será conseguir um emprego e, para tanto, deveremos forjar as referências.

O Marquês, que até então se mostrava desalentado, se animou.

— Vamos planejar tudo como se fosse uma campanha — sugeriu ele.

— Isso é o que sempre você gostou de fazer — lembrou Lorde Charles.

— Suponho que de alguma forma eu vá apreciar essa farsa — comentou o Marquês — Mas o meu disfarce deve ser muito seguro.

— Lógico — concordou Lorde Charles — senão você perderá a aposta e Tempestade será meu.

— Aos diabos você! — praguejou o Marquês — Você é seguro demais! Se eu não puder ser um cocheiro capaz e recomendável, então terei vergonha de mim mesmo!

Sorriu antes de acrescentar,

— Não sei se você se lembra, mas eu era um ator muito bom quando estava em Eton. Você não pode esquecer aquelas peças de Shakespeare que tínhamos de representar. Eu era um excelente Shylock!

— Acho que você representou melhor Botton em Sonhos de uma Noite de Verão.

— Você está me insultando — protestou o Marquês — Estou disposto a fazê-lo concordar comigo como meu subalterno.

— Seria um grande erro — apressou-se a dizer Lorde Charles — pois eu tentaria fazer com que você não tirasse Falcão de Prata de mim.

— Essa idéia é maluca! — exclamou o Marquês — Vamos fazer um brinde.

Lorde Charles levantou o copo.

— Ao cocheiro mais bem apessoado que nunca dirigiu uma carruagem antes — caçoou ele.

— Eu prefiro pensar que sou mais eficiente com as rédeas replicou o Marquês. Então, à medida que bebia o champanhe, perguntava-se como se deixou convencer a pactuar de uma farsa tão maluca.

 

Quando voltou para sua casa na Praça Berkeley, o Marquês se pôs a fazer planos.

Concluiu que Charles tinha razão em insistir que deveria deixar Londres.  Seria um erro voltar a ver Fleur. Porém, apesar de sentir que odiava seu procedimento, uma parte de seu coração ainda suspirava por ela.

Fleur era atraente, meiga e sensível.

Não podia acreditar que por detrás daquela doce aparência escondia-se uma mulher ávida por ascensão social.

Diante dessas conclusões, não podia manter a paz de espírito.

Levantou de um salto e começou a caminhar pela biblioteca, adornada por prateleiras onde se aglomeravam inúmeros e variados livros.

O Marquês lia muito, apesar disso causar surpresa em algumas pessoas de seu convívio.   De repente, teve ímpetos de viajar, visitar outros países. Porém, não queria que Charles tomasse posse de Tempestade.

"Vou ganhar Falcão de Prata primeiro, e depois, se ainda não me sentir capaz de encarar Fleur, planejarei viagens ao redor do mundo.

Sentou à escrivaninha e tocou a sineta. Um lacaio apareceu no mesmo instante,

— Preciso ver Walters — ordenou o Marquês.

— Sim, Milorde.

O lacaio saiu à procura de Walters, que era o cocheiro do Marquês, em Londres.

Era jovem, se comparado com o cocheiro chefe de Eagle, que trabalhava nos estábulos havia trinta anos.

Enquanto esperava, o Marquês tamborilava os dedos com displicência na escrivaninha. Mas o cérebro trabalhava como se estivesse traçando planos de ataque contra os exércitos de Napoleão.

Fora tão bem sucedido na guerra que tornara-se alvo da admiração de muitos.

Pelo menos lá, tinha poder de comando e sabia quem era inimigo. Agora, porém, o adversário era alguém com um belo rosto e uma língua mentirosa e não sabia que armas usar.

A porta se abriu e o lacaio anunciou,

— Senhor Walters, Milorde!

O cocheiro entrou na sala.

O Marquês fitou-o com uma expressão diferente daquela com que sempre o encarava.

Walters era alto, talvez de uma estatura ainda maior que a do Marquês. Apesar das feições rústicas, era um homem de boa aparência, os cabelos negros para trás, deixando à mostra uma testa decidida.

Colocou-se com deferência ao lado da porta, até o Marquês se pronunciar,

— Quero falar com você, Walters!

— Sim, Milorde.

— Chegue mais perto, pois o que tenho a dizer é confidencial — pediu o Marquês em voz baixa.

Walters dirigiu-se até a escrivaninha, onde o Marquês o esperava.

— Um amigo meu — começou o Marquês — fez uma aposta que vale muito dinheiro e precisa de sua ajuda.

Walters parecia surpreso, mas nada disse.

O Marquês, então, continuou,

— Apostou que conduziria uma carruagem puxada a quatro cavalos por duas semanas, sem que ninguém percebesse que ele era um nobre.

Walters ouvia com atenção, um brilho de compreensão nos olhos, O Marquês prosseguiu,

— O que quero que faça para ajudar meu amigo é tentar obter para ele um emprego de cocheiro.

— Como poderei conseguir isso, Milorde? — inquiriu Walters.

— Não deve ser tão difícil assim! — respondeu o Marquês — Suponho que você conheça alguma agência ou cocheira de aluguel, aonde a maior parte das pessoas de Sociedade vai em busca de empregados.

— Conheço sim, Milorde. Fica na Rua Mount, é o Hunt's. Foi lá que procuramos um cocheiro temporário, quando Bill foi ferido.

— Eu me lembro — disse o Marquês — apesar de não ter, na época, a mínima idéia de onde viera o homem.

— Ele não era ruim — argumentou Walters — e Barrett deu boas referências sobre ele quando partiu.

O Senhor Barrett era o secretário do Marquês. Era um homem perspicaz, e o Marquês temia que ele soubesse de alguma coisa a respeito.

— O que estou pedindo — tornou o Marquês — é totalmente confidencial. Confio em você e sei que não contará nada a ninguém sobre o que vou pedir que faça pelo meu amigo.

— Fique tranqüilo, Milorde, nada direi a ninguém — jurou Walters.

Com esmero e cuidado, então, para que não houvesse enganos, o Marquês começou a expor o plano. Walters deveria ir à agência e pedir um emprego para si próprio.

— Você explicará que é meu segundo cocheiro, mas que aspira um cargo melhor, como primeiro cocheiro.

Fez uma pausa e continuou,

—Você, portanto, dirá a eles que tem bastante experiência como primeiro cocheiro.

— Eu compreendo, Milorde — assentiu Walters — mas se saio à procura de outro emprego, vão pensar que o Senhor está dispensando meus serviços.

— Ninguém vai pensar isso — assegurou o Marquês — porque você não usará seu verdadeiro nome.

— Como assim? — perguntou Walters estupefato — Não usarei meu verdadeiro nome?

 

— Claro que não! — exclamou o Marquês — Você nunca esteve numa agência antes e, pelo que me lembro, você me presta serviços desde muito jovem, não é? Sendo assim, ninguém o reconhecerá.

— Tem razão, Milorde — concordou o cocheiro, que parecia mais animado — Mas que nome poderei usar?

— Estive pensando em um — refletiu o Marquês — que deve ser bem simples.  Que tal John Lyon?

— Parece bom para mim, Milorde — respondeu Walters sorrindo.

O Marquês usara deliberadamente seu nome de batismo para evitar que, se o chamassem de súbito, não deixasse de responder.  Pensara em todas as situações em que pudesse cair em contradição.

— Isso é o que farei — afirmou Walters.

— Correto, Walters. E você fará isso esta tarde. Tome cuidado para que ninguém, na casa ou nos estábulos, saiba onde você foi.

— Ninguém vai estranhar, pois às vezes eu saio a passeio, quando estou de folga — foi a resposta de Walters.

O Marquês supunha que Walters freqüentasse uma taverna em Shepherd Mews ou um botequim na Rua Hertford, patrocinados por vários cocheiros.

— Não tenho trabalho para você esta noite, então vá e veja o que pode conseguir para mim.

De repente perguntou-se o que faria se não houvesse vagas.

Tomou de uma folha de papel e escreveu uma carta de referência para John Lyon,

"Este homem, escreveu, está a meus serviços por dois anos e, é um homem honesto, excelente e trabalha satisfatoriamente. Não hesito em recomendá-lo para um cargo mais elevado do que o que ocupa no momento".

Assinou o nome, fechou a carta e a entregou a Walters. Lançou ao empregado um olhar grave, como que advertindo-o para que não lesse o conteúdo da carta. Resolveu pegar o papel de volta.

— Vou ler para você, Walters — informou — Tudo que posso dizer é que, se algum dia você quiser me deixar, escreverei uma carta de referências ainda melhor que esta.

— Nunca o deixarei, Milorde — respondeu Walters sorrindo — não até estar bem velho que não veja um palmo à frente do nariz!

— E eu estarei ainda mais velho a ponto de não ter mais condições de escrever cartas de referências — respondeu o Marquês, também sorrindo — Quantos anos você tem, por falar nisso?

— Trinta e cinco, Milorde.

Como o Marquês era três anos mais novo que o cocheiro, achou bom ter escolhido Walters para representá-lo.

Despediu o homem, dando instruções para quando retornasse.  Pediria para falar com ele, dando a desculpa que um dos cavalos se ferira no estábulo.

A família, com certeza, estranharia se soubesse que o Marquês estava recebendo Walters sem que houvesse boas razões para isso.

— Não me esquecerei disso, Milorde — assegurou Walters ao deixar o estúdio, fechando a porta atrás de si.

Só então o Marquês se perguntou se o mordomo, ou qualquer outro lacaio, poderia estar ouvindo atrás das portas enquanto dialogava com Walters.

Essa idéia nunca passara pela cabeça antes, e ter de se preocupar com isso agora aborrecia-o bastante.

— Nunca mais me sentirei o mesmo com relação aos meus criados — argumentou para si próprio, com raiva.

Sempre tivera orgulho da eficiência da criadagem que o servia e da forma apurada com que cuidavam de suas casas.  Sabia que boa parte daquele sucesso ele devia ao Senhor Barrett.

Ser copeiro em Eagle era uma posição de destaque. Todos os meninos do burgo aspiravam a esse cargo na idade de doze anos.

As meninas sonhavam em ser arrumadeiras. E choravam desconsoladas quando não havia vagas na casa grande, pois eram obrigadas a procurar trabalho na cidade ou, o que era pior, em Londres.

Fazia tempo que Walters se retirara, e o Marquês resolveu abrir a porta do estúdio.

Olhou para os lacaios que estavam a serviço no corredor.

Achou que se os encontrasse cochichando era um claro indício de que sabiam de alguma coisa a respeito do que conversara. Porém, não conversavam, antes, pareciam entediados.

Fechou a porta.

Sentia raiva por suspeitar da própria criadagem e de si próprio, por não ter mais paz de espírito. Tinha certeza de que nunca mais se sentiria seguro.

Deveria ter cautela doravante, toda vez que fizesse amor com uma mulher bonita ou quando discutisse assuntos secretos com políticos.

— Tudo isso é um absurdo! — exclamou para si.

Mas qual seria a outra alternativa? Não podia se imaginar sem criados. Duas horas depois, chegou a suspeitar que Walters não tinha conseguido o emprego.

Foi quando a porta se abriu e Hanson, o mordomo, anunciou,

— Walters gostaria de conversar com o Senhor sobre Estrela Vermelha.

— Estrela Vermelha? — perguntou o Marquês tentando demonstrar surpresa.

— Espero que não tenha acontecido nenhum problema com aquele cavalo!

— Deve ser esse o motivo, Milorde!

— Mande-o entrar, então — ordenou o Marquês.

Walters entrou no estúdio com o rosto afogueado, mas satisfeito consigo mesmo.

Antes que pudesse dizer qualquer palavra, o Marquês pediu silêncio. Caminhou, então, para a janela que era bem longe da porta. Fez sinal para que Walters se aproximasse e então disse,

— Fale baixo. Não quero que sejamos ouvidos.

— Muito bem, Milorde. Acho que consegui um emprego excelente para o seu amigo!

— Conte-me tudo! — ordenou o Marquês com ansiedade.

Walters colocou a mão no bolso e tirou um pedaço de papel, onde se lia,

"Senhorita Horncliffe — Casa de Islington — Praça Islington".

O Marquês estudou o nome, sentindo-se satisfeito por nunca tê-lo ouvido.

— Você quer dizer que conseguiu o emprego? — perguntou o Marquês.

— Sim, Milorde. Admitiram-me na mesma hora, pois o cocheiro da Lady está com uma das pernas quebrada.

O Marquês assentiu, e Walters continuou,

— O secretário me disse que a Senhorita Horncliffe sairá para Herefordshire amanhã cedo e devo me apresentar às oito em ponto.

O Marquês reprimiu uma exclamação de surpresa, sentindo satisfação ao mesmo tempo.

Tudo acontecera tão rapidamente que ele mal acreditava. Significava que deixaria Londres antes que qualquer pessoa desse conta disso. Encarregaria Charles de inventar desculpas para sua ausência.

Sabia que tal atitude intrigaria Fleur e esperava mesmo que ficasse bem aflita.

Forçou-se a ouvir o que dizia Walters,

— Como a distância é longa, Milorde, a Lady quer viajar numa carruagem fechada, puxada a quatro cavalos. A bagagem seguirá mais cedo, num vagão puxado por seis cavalos.

Fez uma pausa e continuou,

— Haverá dois batedores à frente da carruagem também, Milorde.

— A Lady viaja em alto estilo, não? — brincou o Marquês.

Tentava coordenar as idéias, lembrar se já ouvira falar na Senhorita Horncliffe. Porém, não conseguia lembrar de ninguém em Islington com esse nome. Aquele local se convertera numa parte elegante de Londres.

— Enquanto esteve lá, Walters, soube alguma coisa sobre Lady Horncliffe?

— Somente que ela é muito rica e bastante sovina!

O Marquês deu uma risada. Era esse o tipo de informação que precisava saber.

— Mais alguma coisa?

— O secretário não fala muito, mas alguns dos cavalariços estão contentes por não terem de acompanhar a Lady nessa viagem tão longa.

— Obrigado, Walters. Tenho certeza de que meu amigo ficará muito contente ao saber o que conseguiu para ele — agradeceu o Marquês — Será mais fácil para ele atuar como cocheiro nessas condições.

— Diga que cuide bem dos cavalos, Milorde — advertiu Walters.

— Confio no seu poder de julgamento, Walters — confessou o Marquês — E, no que diz respeito a cavalos, ninguém consegue superá-lo em eficiência.

— Bondade sua, Milorde. Qualquer cocheiro que conduzir seus cavalos encontrará a mesma facilidade em manejá-los.

O Marquês tomou nota dessa afirmação e agradeceu Walters por ajudá-lo.

— Meu amigo ficará muito grato por sua assistência — informou o Marquês com cordialidade — Pediu que eu entregasse isto.

Colocou três guinéus na palma da mão de Walters, cujos olhos se iluminaram de contentamento.

— É muito generoso da parte dele, Milorde. Agradeça ao gentleman por mim e deseje-lhe boa sorte.

— Acho que ele vai precisar mesmo — foi a observação do Marquês — E se você disser qualquer palavra que possa desmascarar meu amigo, ele perderá a aposta.

— Ficarei calado como um túmulo! — prometeu Walters — E se seu amigo ganhar a aposta ficarei sabendo, Milorde?

— Claro que sim — assegurou o Marquês — Mas isso não vai demorar mais que duas semanas.

— Eu entendo e agradeço, Milorde.

Walters deixou a biblioteca.

O Marquês examinou o papel contendo o endereço de Lady Horncliffe.

— Amanhã, às oito horas em ponto — comentou consigo mesmo e colocou o papel no bolso.

Enviou, então, um mensageiro até a casa de Lorde Charles, convidando-o para jantar. Não fizera planos para a noite, pois não sabia a que horas Walters retornaria. Como não queria ficar sozinho com seus pensamentos, resolveu solicitar a companhia do amigo.

Olhou para o relógio.

Estava quase meia hora atrasado para a visita a Fleur. Ela costumava esperá-lo na janela, com certeza, não entendia por que o Marquês não viera para o encontro naquela noite.

Ele sempre a avisava quando qualquer assunto o impedia de comparecer aos encontros. Enviava um bilhete à criada de Fleur.

Jones era a única pessoa que, segundo Fleur, sabia do que sentiam um pelo outro.

Ficava enfurecido quando pensava que a criada revelara ao criado de Perceval tudo o que ela e Fleur confidenciavam.

— Maldita seja! É tão infiel quanto sua ama! — esbravejou o Marquês.

Diversas vezes naquele dia parara para se perguntar se o Duque morrera. Em caso afirmativo, de que forma Fleur diria que já não estavam mais comprometidos?

Sentia uma dor insuportável quando pensava que Fleur se entregaria aos beijos de Settington com o mesmo ardor com que se entregava aos dele.

Será que diria àquele homem que o amava, com a mesma vozinha doce e inocente que jurava amor?

— Aos diabos! A traição dessa mulher me perseguira para sempre! — esbravejou o Marquês em voz alta — Jamais confiarei em outra mulher novamente!

Seria tolo, porém, se tentasse ignorar as conseqüências sociais que o atingiam, ou seja, muitas mulheres aspiravam ao Marquesado de Mounteagle. Era o sonho de várias, usar a majestosa tiara da família na abertura do parlamento.

O Marquês sempre imaginara que quando escolhesse uma esposa esta deveria ser tão bela e caprichosa quanto sua mãe.

Quando era garoto, ficava horas a fio admirando o belo rosto da mãe, quando, nas grandes festas em Eagle, ela parecia uma majestosa Rainha.

Ficava muito bonita com os diamantes brilhando ao redor da cabeça e em torno do pescoço delicado.

Extasiava-se quando a mãe, nas noites de grande festa, vinha até seu quarto dar um beijo de boa noite. Perguntava nessas ocasiões,

— Há uma linda recepção esta noite, não é mãe?

— Sim, querido — assentira a mãe — e entre os convidados de papai encontram-se um rei e uma rainha estrangeiros e o Primeiro Ministro da Inglaterra.

— Gostaria tanto de fazer-lhe companhia! — choramingava ele.

A mãe, lançando um olhar bondoso, confortava-o,

— Um dia, meu querido, hás de sentar no lugar do papai e espero que tenhas uma esposa muito linda sentada no meu lugar.

— Ela jamais será tão linda quanto você, mamãe! — foi a exclamação fiel do Marquês.

A mãe sorrira da preocupação dele e respondera com brandura,

— Sim, ela será ainda mais bonita e te amará tanto quanto eu.

Após a mãe dar um beijo terno e assegurar de que se agasalhara, deixava o quarto. O Marquês ainda ficava acordado por muitas horas, os olhos fixos no teto, imerso em pensamentos.

Admitia agora, para si mesmo, que os desejos de sua mãe jamais se tornariam realidade. As mulheres sonhavam em se casar com ele somente por causa do título que adquirira ao ocupar o lugar de seu pai.

— Eu nunca me casarei! — jurou o Marquês.

Tais palavras eram um desafio, não somente para Fleur, mas para todas as mulheres. Porém sabia que, mais cedo ou mais tarde, deveria tomar uma mulher por esposa.

Precisaria de um filho que herdasse o título de Marquês, como era tradição na família, obedecendo, assim, as práticas tradicionais daqueles que possuíam um título.

Quando o atual Lorde Tenente de Oxford se afastasse, o Marquês o sucederia. No momento, era auxiliar honorífico e cavaleiro a serviço do Rei.

Toda Marquesa de Mounteagle tornava-se dama da Corte real.

Havia uma dúzia de outros postos que poderiam ser preenchidos por ele, simplesmente porque seguira os passos do pai.  E, por isso, queria ter um filho que o substituísse quando chegasse o tempo.

No entanto, agora, recuava diante da simples idéia de casamento.

Tentaria evitar as mulheres a fim de não se lembrar de como Fleur o enganara. Fora vítima de tantas mentiras!

Caminhava ainda de um lado para o outro no estúdio, quando o lacaio voltou com uma carta de Lorde Charles, dizendo que viria para o jantar às oito horas da noite.

O Marquês subiu para o quarto, a fim de mudar de roupa.

Storton, seu criado, o esperava. Ele era empregado da família desde muito jovem, e tornara-se criado do Marquês assim que este chegou de Eton.

O Marquês gostaria de ter contratado como seu criado o homem que o acompanhara em suas viagens pela França e Portugal, mas sabia que tal atitude causaria bastante ressentimento na criadagem da casa.

Como poderia nomear um estranho para ocupar um dos postos mais importantes da família?

O Marquês tivera de dispensar os serviços de Hawkins, o acompanhante, concedendo-lhe uma boa pensão.  Arranjara também, uma colocação na casa de um de seus amigos, que não era tão bem servido de criados como ele.

Storton era eficiente nos seus serviços e, segundo o Marquês julgava até então, extremamente fiel.  Agora, no entanto, se perguntava se Storton merecia mesmo crédito.

Se estivesse saindo com alguma pajem era certo que tudo o que ouvia na privacidade da casa, poderia ter repetido às claras. Tal suposição deixou-o tão furioso que resolveu tomar banho em total silêncio, dispensando os serviços do criado.

Storton fitou-o com incredulidade, não entendendo o porquê daquela atitude.

De súbito, ocorreu o pensamento de que talvez Storton soubesse de tudo sobre Fleur. E se acaso o criado se mostrasse deprimido ou até mesmo excitado sem motivo, isso poderia ser motivo de suspeitas.

— Oh, meu Deus! — exclamou para si próprio — Quando isso vai ter fim? Quando poderei me sentir à vontade outra vez.

Lembrou-se de que Storton não sabia que ele partiria na manhã seguinte para aquela louca aventura.  Com tremendo esforço, tentando imprimir um tom casual à voz, informou ao criado, tão logo saiu do banho,

— Esqueci de dizer, Storton, mas vou sair do país por um dia ou dois na companhia de Lorde Charles. Ele quer que eu examine alguns cavalos que poderão ser uma boa aquisição para os estábulos. Só não quero que o proprietário dos animais nos reconheça.

Storton fitou-o com surpresa.

— Como é que Milorde fará para não ser reconhecido? — perguntou o criado.

— Ele é um homem simplório, mas bastante astuto no momento de comercializar seus animais.

Storton concordou,

— Todos eles são assim, Milorde!

— Eu sei — assentiu o Marquês — Por isso quero que coloque na minha mala somente algumas roupas, as mais simples que puder encontrar.

— Sim, Milorde, e quando partirá?

— Amanhã às sete horas — respondeu o Marquês — Sendo assim, me acorde uma hora mais cedo. Lorde Charles vem me buscar, portanto você não precisará me acompanhar.

— Sinto muito, Milorde.

— Espero que encontre alguma ocupação na minha ausência — foi a observação do Marquês.

O sorriso malicioso de Storton fez com que o Marquês tivesse certeza de que o criado arranjara alguma mulher.   Desejou perguntar se era pajem de alguma Senhorita e qual era seu nome. Admitiu, então, ser imprudente fazer perguntas que seriam relembradas mais tarde.

— Faça as malas ainda esta noite — ordenou, enquanto se vestia — E, por favor, não coloque minhas roupas em malas que tenham meu emblema para que não saibam quem sou.

— Serei prudente quanto a isso, Milorde. Mas, com certeza, o Senhor desejará levar seus acessórios de montaria, não?

— Sim, naturalmente — concordou o Marquês — Providencie para que meu boné de montaria também conste da bagagem, caso tenha de enfrentar mal tempo.

— Como informei antes ao Senhor, seu boné já está bastante gasto.

— Tanto melhor — disse o Marquês — mas lembre-me de comprar um boné novo quando eu retornar.

— Farei isso, Milorde!

O Marquês desceu as escadas.

Charles já o esperava, com certeza. Concluiu que, se tivessem de conversar, teriam de sair da casa.  Os criados poderiam se colocar atrás da porta do estúdio, tão logo eles ali entrassem.

"Sinto-me como se fosse um cidadão em terra estranha", pensou. "Nunca antes suspeitei de alguém ao meu redor, desconfiei de alguma mulher ou senti que um homem com um título maior que o meu pudesse se tornar meu inimigo por isso!"

Quando entrou no estúdio, Charles o esperava. Tão logo viu o Marquês, pensou que era a primeira vez que via um sorriso cínico em seus lábios.

O Marquês chegou aos estábulos de Horncliffe às sete horas da manhã seguinte.

Charles providenciara, conforme tinham combinado, uma carruagem de aluguel que o levasse até o local.

— Tem alguma novidade? — perguntou o Marquês tão logo viu o amigo na Praça Berkeley.

Lorde Charles foi bem claro, pois sabia que tipo de novidade preocupava o amigo.

— Settington veio ao clube assim que você saiu — informou Charles — e ouvi alguém perguntar pelo pai dele.

— O que ele respondeu? — inquiriu o Marquês ansioso.

— Que o pai não passa bem — respondeu Lorde Charles — Mas não deixemos de ter esperança.

O Marquês pensou que Fleur, sem dúvida, tentaria contatá-lo para saber por que faltara ao encontro no dia anterior.

— O que você dirá a Fleur e aos amigos quando perguntarem onde estou? — inquiriu o Marquês.

— Não decidi ainda — informou Lorde Charles — Talvez eu diga que você se ausentou em virtude de assalto em uma de suas casas.

— Você acha que vão acreditar? — perguntou o Marquês.

— Isso é secundário — foi a resposta de Lorde Charles — Qualquer pessoa tem medo de ser assaltada e, por isso, começarão a falar de si próprios, esquecendo-se do motivo que os levou a perguntar sobre seu paradeiro.

O Marquês deu uma risada e perguntou,

— Em outras palavras, você acha mesmo que ninguém se importará com minha ausência?

— Somente Fleur. E saiba que, se o Duque recobrar a saúde, ela ficará desesperada para tê-lo de novo nos braços.

— Se isso acontecer, faça com que ela me espere, até que eu volte.

— Que você vai fazer, então?

— Ainda não decidi, mas acho que depois de resolver tudo, vou sair do país.

— Quer que eu vá com você?

— Claro que sim! Acho que juntos poderíamos explorar outros lugares do mundo que nunca vimos antes.

— Confesso que esta é uma aventura que sempre quis — respondeu Lorde Charles entusiasmado — mas nunca consegui afastar você de sua adorável Eagle e muito menos de seus cavalos que, creio, significam mais para você do que qualquer mulher.

— Isso é o que eu pensava até encontrar Fleur — afirmou o Marquês com assombro na voz.

— Você tem de esquecê-la — advertiu Lorde Charles — O tempo se encarregará de curar suas feridas.

— Acho que tem razão — concordou o Marquês — porém, até que eu consiga superar toda essa amargura, creio que sofrerei muito ainda.

— Eu sei — assentiu Lorde Charles — mas imagine se você descobrisse tudo isso só após o casamento. Não seria mais doloroso?

— Acho que sim — respondeu o Marquês após um momento de reflexão — E também sei por que você está me lançando nessa aventura. Mas saiba que, apesar das mudanças que vão ocorrer em minha vida, levará algum tempo até que eu me recupere desse choque!

— Anime-se! — encorajou-o Lorde Charles — Será uma grande aventura!

O Marquês deu uma risada.

— Muito bem, Charles, você venceu. Sei que está fazendo o impossível para me tirar desse vale de lágrimas, mas para dizer a verdade, sinto que tudo pelo que devo passar será bastante desagradável.

— Concordo que não será um mar de rosas, mas agradeça a Deus por eu ter condições de ajudá-lo.

— Você é um grande amigo — elogiou o Marquês — Talvez um dia eu ainda seja grato por essa fuga maluca e ridícula.

A carruagem subiu a ladeira que levava aos estábulos.

Lorde Charles inclinou-se para abrir a porta e despediu-se do amigo.

— Boa sorte e tenha cuidado. Se achar a aventura muito desagradável, sempre poderá desistir.

— O quê? E deixar que você ganhe Tempestade? Não me perdoarei se perder a aposta — foi a resposta furiosa do Marquês.

Lorde Charles deu uma risada divertida. O divertimento de Charles ficou ecoando na mente do Marquês até que ele alcançasse a estrebaria. Vestia roupas de montaria e sobre elas um pesado casaco.

O Marquês, de fato, tinha uma aparência elegante, reforçada pelo chapéu alto, que usava meio inclinado, e também pelas botas lustrosas. Essa espécie de chapéu tornara-se moda entre os criados dos nobres e os aristocratas mais idosos. Era, também, o mesmo tipo de chapéu que se via em todas as caricaturas de Napoleão Bonaparte. A única diferença entre o chapéu que o Marquês usava e o de seu cocheiro era que Walters adornava o acessório com um penacho na parte frontal. Só era permitido que um criado usasse tal adorno se seu Senhor tivesse um título. 

Como o Marquês não tinha certeza se Lady Horncliffe tinha algum, não podia chegar ali com um penacho no chapéu.

Walters dissera ao Marquês que o estábulo localizava-se na metade do caminho para a casa de Lady Horncliffe.

— É uma casa grande, pintada de verde escuro com, pelo menos, uma dúzia de cavalos.

O Marquês não teve dificuldade em localizar a propriedade. Empurrou a porta e encontrou quatro cavalariços que o fitaram com surpresa.

— Bom dia! — saudou, tentando imprimir à voz um tom de simplicidade — Sou John Lyon e acho que esperam por mim.

— Prazer em vê-lo — saudou o mais velho deles com um aceno de mão — Chegou na hora certa. Milady quer sair bem cedo e temíamos que os cavalos tivessem de partir sem você.

O homem riu de sua própria pilheria e o Marquês tentou sorrir também.

— Quanto tempo ainda resta até que partamos? — quis saber o Marquês.

— Não se preocupe! — exclamou um outro homem — Conosco acontece sempre a mesma coisa. Ela dá as ordens à noite e, na manhã seguinte, cancela tudo. Pode ser até que resolva nem viajar hoje.

— Parece uma mulher difícil — declarou o Marquês, preocupado — Mas acho que essa atitude é própria de mulher de idade.

O cavalariço fitou-o surpreso. Então, um dos outros três perguntou,

— O que o leva a pensar que Lady Horncliffe é velha?

— Foi a conclusão que tirei depois do que você me disse sobre ela — declarou o Marquês.

Os cavalariços riram juntos.

— Pois bem, terá uma surpresa — observou o mais velho — Lady Horncliffe não tem mais que vinte e cinco anos e é tão linda quanto uma flor. Que mais quer saber?

— Você me deixou curioso e surpreso — foi a resposta do Marquês, enquanto sorria divertido.

 

O Marquês conduziu uma carruagem nova, luxuosa e bela até a porta de frente da casa.  No momento em que tomou as rédeas, percebeu que os cavalos eram bons e que teria prazer em conduzi-los.

Um tapete de veludo vermelho adornava a porta da entrada, onde quatro homens, com seus uniformes matizados de vermelho e dourado, tinham no rosto uma expressão sombria.

O Marquês percebeu a causa daquela perturbação quando ouviu a voz aguda que vinha do interior da propriedade.  Alguém recebia ordens e, ao mesmo tempo, era induzido a cometer alguma má ação.

Supôs que aquela devia ser a voz de seu patrão.

O Marquês era esperto o suficiente para saber que devia mostrar-se indiferente ao que via e ouvia.

Abaixou a cabeça na intenção de que o chapéu ocultasse o rosto.  Percebeu, então, que um homem falava-lhe e supôs que era o secretário que entrevistara Walters.

— Aqui estão as instruções, Lyon, acho que você sabe ler, não?

— Sim, Senhor!

O Marquês tentou fazer com que as palavras tivessem a mesma articulação que Walters usava ao proferi-las.

— Milady exige que você dirija rápido, porém com segurança. Não se arrisque.

— Assim, farei, Senhor.

O Marquês pegou o pedaço de papel que era estendido e leu-o. Imaginou que deveria tomar a estrada fora de Londres, que os levaria a Oxford.

Como estudara naquele lugar por três anos, conhecia muito bem o caminho. Sabia que se o tempo fosse favorável, a estrada estaria em ótimas condições de percurso.

O lacaio que o acompanharia na viagem, estava de pé, ao lado dos cavalos.

Era mantido ali por precaução, até que Lady Horncliffe estivesse acomodada na carruagem.

O Marquês moveu a cabeça quando viu Lady Horncliffe aparecer na porta de entrada.

Os cavalariços tinham razão, ela era linda, mas sua beleza era extravagante. O cabelo dourado tinha reflexos acobreados, os olhos grandes e azuis adornavam um rosto oval.

Os lábios eram muito vermelhos, graças ao batom que usava.

As roupas e o chapéu, com pequenas plumas de avestruz, chamavam a atenção. Os raios de sol cintilavam sobre os brincos e o colar de ouro e diamantes.

O Marquês desviou os olhos com rapidez e, no entanto, sorria.

Pensou que Charles, sem dúvida, se divertiria se visse como era o patrão de seu amigo.

Lady Horncliffe entrou na carruagem, dando uma série de ordens ao secretário, com sua voz estridente.

Uma outra mulher a acompanhava.

Após terem se acomodado com as mantas sobre os joelhos, um lacaio fechou a porta.

Era um sinal para que o homem que segurava os cavalos subisse rapidamente na carruagem, ao lado do Marquês.

Partiram então, após terem se despedido do secretário, do mordomo e dos lacaios.

O lacaio, sentado ao lado dele, cujo nome era Jack, perguntou, após terem iniciado o percurso,

— Você conhece bem o percurso? Milady fica furiosa quando se errar o caminho.

— Conheço sim — foi a resposta do Marquês.

Tornou a ler as instruções e colocou o papel de volta no bolso. Deveriam parar para o almoço num local que, ele supunha, era alguma hospedaria.

Ficava a cerca de quinze quilômetros do ponto onde se encontravam.

Como tinham partido na hora prevista, calculava que venceria a distância sem dificuldade. Portanto, não teria problemas com atrasos.

O sol brilhava e havia no ar um frescor que o Marquês desfrutava com prazer.

Ocupou-se em conduzir os cavalos com atenção e se divertir enquanto o fazia. Sentia-se satisfeito por estar dirigindo aquela carruagem ao ar livre.

Já fora de Londres, entrando na zona rural, sentiu-se curioso e perguntou a Jack,

— Faz tempo que você está trabalhando para Lady Horncliffe?

— Dois anos, mas para mim parecem dois séculos, pois essa mulher vira um demônio quando fica nervosa.

O Marquês se divertiu com as palavras de Jack.

— O que houve com o marido dela?

— Morreu. Essa é a razão dela ter vindo para Londres.

— Imagino que ele era mais velho que ela — observou o Marquês após ter feito uma pausa.

— Por que pensa assim?

— E suponho também que ele era rico.

— Não, ela é que tem dinheiro.

O Marquês achou a revelação surpreendente.

Como os cavalos começaram a correr demais, ele tratou de se concentrar no trabalho de conduzi-los.

Tentaria descobrir mais sobre sua patroa quando tivesse outra chance.

Os batedores mantiveram-se ao lado da carruagem enquanto atravessavam a Praça Islington.  Depois, quando não havia mais aglomeração, dispersaram-se pelos campos dos dois lados da estrada.

Ambos eram bastante jovens.

Os cavalos que montavam eram tão bons quanto os que o Marquês conduzia.

— A Lady, com certeza, tem bom gosto quanto a cavalos — falou em voz alta e Jack respondeu,

— Não foi ela quem escolheu. O marido é que sabia selecionar bem os animais.

Alcançaram a hospedaria após terem passado por Uxbridge.

O Marquês conduziu os cavalos com elegância até um grande pátio e parou.

Jack pulou da carruagem para abrir a porta.

O Marquês ficou imaginando se a Lady faria algum comentário sobre a forma com que conduzira a carruagem ou se reclamaria de algo.

 Porém a moça caminhou para a hospedaria onde o proprietário a recepcionou com deferência, e não emitiu nenhuma palavra a ele.

Foi seguida pela dama de companhia que era uma figura jovem e elegante. Porém, só a vira de costas e não imaginava como era seu rosto.

Olhou de novo para as instruções que o secretário dera. Deveria substituir os cavalos naquela mesma noite, numa hospedaria chamada O Dragão, que era próxima de High Wycombe.

Tudo o que deveria fazer agora era lavar os cavalos e tirá-los do sol.

— Está com fome? — perguntou a Jack — Temos algo para comer?

— Pode ser que sim — foi a resposta duvidosa de Jack — Mas não comeremos muito, pois ela não nos paga o suficiente.

O Marquês alçou as sobrancelhas.

Era comum, em longas viagens, que o patrão fornecesse ao cocheiro e batedores não somente boa comida, mas acompanhada de cerveja, tanto no almoço como no jantar. Porém o Marquês nada comentou a respeito, pedindo ao rapaz da estrebaria local que olhasse os cavalos.

Seguiu os passos dos outros três homens que já haviam entrado. Localizou-os numa sala pequena e suja, destinada aos cocheiros viajantes.

O Marquês sabia, por experiência própria, que Lady Horncliffe deveria desfrutar de uma sala reservada só para ela.  Os outros viajantes almoçariam no refeitório geral.

Os três homens ocupavam uma mesa antiga. Sobre ela o Marquês viu um pedaço de queijo, um pão e uma pequena barra de manteiga rançosa.

— É só isso que temos para comer? — perguntou o Marquês ao tomar assento.

— Só o que ela nos paga para o almoço — foi a resposta de Jack.

 Um dos batedores, cujo nome era Ben, cortou um pedaço de queijo,

— Estou morto de fome! — exclamou com lamento na voz.

— Agora que comecei a pensar nisso, também estou — replicou o Marquês — vou ver o que posso fazer.

Saiu do recinto e viu o proprietário vindo da sala reservada.

Quando se aproximou dele, viu uma garçonete passando com uma bandeja, onde havia salmão defumado e ganso recheado. Outra garçonete apareceu com dois frangos assados e um leitão.

O proprietário, vendo-o olhar para a comida com avidez, apressou-se em dizer,

— Coloquei em sua mesa o que foi pedido!

— Eu sei — respondeu o Marquês — mas viemos de longe e temos um longo percurso ainda pela frente. Você deve saber que somos bastante jovens e temos fome.

O proprietário encolheu os ombros com desdém.

— Traga-me o presunto, a língua e a cabeça do leitão, caso a Lady não os queira. Eu pago a diferença — ordenou o Marquês.

O proprietário olhou-o surpreso.

— Ah, então você tem dinheiro? — perguntou com ironia — Bem, isso não é de minha conta!

— Não é mesmo! — concordou o Marquês — Mas eu quero a melhor carne e não o que for recusado pelos outros fregueses!

O proprietário olhou-o com fúria, como se quisesse dar uma resposta rude. Porém pensou melhor e nada disse. Apesar de tudo, impressionara-o a boa aparência do Marquês.

— Se puder pagar, poderá comer — respondeu de mau humor o homem.

O homem caminhou em direção à cozinha. Em seguida, uma garçonete levou até a pequena sala, onde esperavam o Marquês e os cavalariços, um presunto do qual só tinham consumido uma fatia e um peru frio.

Mais tarde, a cabeça do leitão foi trazida para satisfação dos batedores e de Jack.

— É muita gentileza sua! — exclamou Ben para o Marquês — Sinto-me um novo homem.

Ele realmente parecia mais disposto. Aquele ar faminto que Ben trazia no rosto, que era sinal de má alimentação, havia desaparecido.

Isso fez com que o Marquês se sentisse revoltado por algumas pessoas serem tão miseráveis.

Sempre insistira para que todos os seus criados tivessem comida variada e abundante. E agora via-se pagando tudo que consumira com aqueles homens, juntamente com as canecas de cerveja.

Fizera amigos e a atitude deles com respeito ao Marquês mudara. Sentira certa hostilidade no ar quando os vira pela primeira vez. Já que tinha uma aparência tão diferente dos cavalariços, eles, com certeza, imaginaram que o Marquês estivesse tramando alguma encrenca.

Agora se revelava como sendo um deles. Os rapazes conversavam com ele com total liberdade.

Passaram a apreciar sua inteligência e astúcia, após ter contado que tinha dinheiro, pois apostara num cavalo em Epsom, no início da semana e ganhara a aposta.

— Se eu apostar um tostão que seja num cavalo — brincara Jack — ele cai no primeiro obstáculo.

— Na próxima vez que eu tiver um bom palpite — argumentara o Marquês — eu digo a vocês. Mas saibam que apostar é geralmente uma maneira fácil de perder!

— É como fazer amor! — lembrou Ben — E quem ousa dizer não quando chega a hora?

Todos riram da piada.

Jack olhou para o Marquês e informou,

— É hora de partirmos.

O Marquês sabia que, sendo o cocheiro, deveria tomar todas as providências para que estivessem prontos quando a Lady aparecesse.

Já se acomodara no cubículo da carruagem e os batedores estavam montados em seus cavalos, quando Lady Horncliffe finalmente surgiu.

O Marquês esperou que ela fosse direto para a carruagem como fizera da última vez.

Para sua surpresa, porém, a Lady apareceu à sua frente e olhando-o fixamente nos olhos, disse com aspereza,

— Tenho pressa de chegar a meu destino. Sendo assim não perca tempo na estrada.

O Marquês tocou o boné com um dos dedos, mas nada respondeu.

Após um momento, ela continuou com voz ainda mais categórica,

— Você entende o que eu falo? Se fosse um cocheiro mais hábil já teríamos partido quinze minutos atrás.

Novamente o Marquês tocou o boné é não disse uma palavra.

Puxando as saias com impaciência e agitando a cabeça, Lady Horncliffe entrou na carruagem.

Quando a porta se fechou, Jack subiu na carruagem, tomando assento ao lado do Marquês, e eles partiram.

O Marquês entendeu que a admoestação dela provinha de ter ele conduzido os cavalos com moderação pela manhã.

Agora, porém, passara a conduzir os cavalos com tanta rapidez que a carruagem começou a sacudir.  Isso era uma coisa que não gostava de fazer, porém.

Alcançaram a cidade de High Wycombe, onde deveriam passar a noite, em tempo recorde.

A hospedaria era bastante atraente, mas não tão ampla quanto aquela onde pararam para o almoço.

O Marquês conduziu os cavalos para um pátio, quando o proprietário apareceu.

Jack saltou para abrir a porta.

Quando Lady Horncliffe saiu da carruagem, foi até a frente e disse,

— Rápido e perigoso demais! Se continuar assim, pode procurar outro emprego.

Ela não esperou que o Marquês tocasse o boné ou falasse alguma coisa.

Caminhou para a hospedaria.

O rapaz da estrebaria indicou os estábulos do outro lado do pátio.

O Marquês percebeu que eram limpos e tinham bom pasto para os animais.

Os batedores levaram seus cavalos para os estábulos e voltaram para ajudar com aqueles que conduziam a carruagem.

O Marquês ajudou a tirar os arreios dos cavalos e providenciou para que a forragem nas cocheiras fosse suficiente para alimentá-los.

Examinou, também, se a água nos baldes era fresca e limpa.

Quando Ben se aproximou do Marquês, este perguntou de maneira amistosa,

— Suponho que esteja faminto outra vez.

— Pronto para comer um boi! — foi a resposta do cavalariço.

O Marquês deu uma risada.

— Então, vamos ver se achamos um.

Entraram na hospedaria. Descobriram que seriam acomodados outra vez numa sala especialmente reservada para criados.

Havia lá dois cocheiros que se retiraram tão logo o Marquês chegou.

— Onde será que vamos comer? — perguntou Ben com esperança na voz.

Obteve logo a confirmação.

Uma garçonete colocou uma bandeja sobre a mesa. Uma pequena quantidade de carneiro cozido e um prato com batatas fritas era tudo o que havia sobre ela.

— Só isso? — perguntou Ben, surpreso.

Havia, também, um pedaço de pão adormecido e nada mais.

Ben e os outros demonstravam desapontamento. O Marquês então disse,

— Verei o que posso fazer.

Quando uma terrina com deliciosa sopa de coelho e um grande Pedaço de carne de porco foram trazidos, o Marquês nunca viu os amigos mais satisfeitos e agradecidos.

"Charles, com certeza, daria boas risadas se me visse nessas condições," pensou o Marquês. Acabou de comer antes dos outros, pôs-se de pé e disse,

— Acho que vou dar um passeio e examinar os cavalos antes de dormir.

— Dormir? — foi a exclamação rápida de um dos batedores.

— Você não encontrará uma cama sequer no celeiro!

O Marquês ficou paralisado.

— Celeiro? — perguntou atônito.

— É onde dormiremos — explicou o outro batedor — Eu só espero que haja bastante feno. Na última vez que viajamos com a Lady, a forragem não foi suficiente nem para cobrir os tornozelos!

O Marquês nada respondeu e deixou a sala.

Caminhou até o estábulo para verificar se os cavalos estavam bem instalados.

Dirigiu-se então ao jardim da hospedaria.

De forma alguma dormiria num celeiro, pensou.

Seus próprios criados nunca foram tratados dessa forma. Quando, mais tarde, retornou à estalagem, não havia mais sinal de Ben e dos outros. Chamou o proprietário e disse,

— Não estou passando bem — mentiu — Acho que estou gripado e gostaria de ter um quarto para passar a noite. Não se preocupe, pois pagarei por ele.

O proprietário quase disse para passar a noite no celeiro, juntamente com os outros. Mas quando encontrou os olhos do Marquês, mudou de idéia.

— Se quiser um quarto terá de pagar meio guinéu por ele — comunicou o homem.

O Marquês tirou a moeda do bolso e colocou-a sobre a mesa.

— Quero uma cama confortável — ordenou — Vejo que não tem isso por aqui.

O homem hesitou outra vez.

Então pediu a uma das criadas para acompanhar o Marquês até o andar de cima.

Ele levava consigo a mala de couro que escondera debaixo do assento da carruagem.

O Marquês supôs que fossem para o segundo andar, mas seguiram por um longo corredor no primeiro. A criada, uma mulher de meia idade, abriu a porta e garantiu,

— Você terá bastante conforto aqui, mas fico surpresa que o patrão o tenha deixado subir.

— Sou uma pessoa privilegiada — disse o Marquês.

— Acho que é isso o que todas as mulheres dizem de você — respondeu a mulher com uma nota de humor na voz que ele não esperava.

O quarto era limpo e asseado e a cama parecia confortável.

— Obrigado — disse ele à mulher.

Perguntou se devia dar uma gorjeta, mas chegou à conclusão que pareceria estranha tal atitude partindo de um cocheiro.

Em vez disso, sorriu para ela em agradecimento.

Antes de fechar a porta a mulher lançou um olhar repleto de admiração. Ela havia trazido uma vela para guiá-los pelas escadas que agora se encontrava sobre a penteadeira.

O Marquês acendeu outra vela.

Pensou se Charles não diria que ele quebrara as regras da aposta, não compartilhando do celeiro com os outros companheiros.

— Não entendo por que concordei com essa aposta ridícula — disse para si mesmo.

A resposta o fez lembrar-se de Fleur.

Foi até a janela e puxou as cortinas de algodão. Lá fora caíra o crepúsculo e as estrelas começavam a cintilar na abóbada azul escura do céu.

Lembrou dos beijos que trocara com Fleur duas noites antes no jardim, atrás da casa dela.

Ficaram duas horas juntos na sala de estar. Chegara à conclusão, naquelas noites, que ninguém podia ser tão doce e adorável quanto Fleur.

Beijara-a com ardor até sentir o sangue queimando nas veias e o corpo se enchendo de desejo.

Quando chegaram à porta que conduzia ao jardim, novamente ele a atraíra para si.

— Como podemos continuar vivendo assim? — perguntara com fúria na voz — Vamos nos casar logo... Amanhã e eu a ensinarei o amor, minha querida.

— Isso é o que eu quero também — murmurava ela — Mas temos de esperar!

Eles sempre discutiam sobre essa resistência da parte dela. Mas ele sabia que as palavras eram inúteis, então a beijava com paixão e impetuosidade.

Por fim ela se afastou dele e quase o empurrou pela porta.

O Marquês partira com a cabeça nas nuvens.

Desejava-a como nunca desejara antes uma mulher.

Agora sabia que a preocupação de Fleur era saber se o Duque viveria ou morreria.

— Maldita seja! — praguejou — Maldita! Maldita!

De súbito, ouviu o som estrondoso de uma porta sendo batida com força.

Alguém entrara no quarto ao lado do seu.

A hospedaria era antiga e podia-se ouvir com clareza que alguém caminhava pelo aposento. A pessoa, quem quer que fosse, jogou-se sobre a cama, que rangeu.

O Marquês saiu da janela.

Suspeitou que pudesse ser um homem embriagado que encontrava dificuldades para tirar a roupa. Esperava que seu vizinho, sóbrio ou embriagado, não fizesse muito barulho que o impedisse de dormir.

Já tirava o casaco, quando um som o surpreendeu. Era inconfundível.

O recém-chegado chorava.

Não era um pranto suave, calmo, mas desesperado e tempestuoso.

O Marquês apurou os ouvidos e viu que não se enganara.

Somente uma mulher bastante magoada choraria de forma tão patética e descontrolada. Nada havia de histérico no pranto que ouvia. Era o lamento de alguém em completa miséria.

Abriu a porta num impulso.

Deu alguns passos pelo corredor e bateu na porta ao lado da sua. Bateu de leve para não ser ouvido por ninguém.

O pranto não cessou, porém, e o Marquês resolveu girar a maçaneta. O quarto era uma réplica do seu.

Uma mulher jovem jazia na cama, os soluços sacudindo o corpo.

Havia uma vela queimando sobre uma mesinha e o Marquês viu somente as costas da mulher.

Ficou ali parado olhando-a, sabendo que ela não o ouvira entrar. Deixando a porta entreaberta, deu alguns passos na direção da cama.

— Posso ajudá-la? — perguntou com voz tímida.

 Enquanto falava, percebeu que a mulher de repente parou de soluçar.

— O que a deixou tão triste? — perguntou o Marquês com voz suave.

Ela ergueu o corpo para fitá-lo com total espanto.

As lágrimas escorriam pelo rosto delicado.

Os cabelos que emolduravam a bela face eram tão brilhantes quanto as estrelas que o Marquês vira há pouco no céu. Apoiou o corpo num dos braços e olhou fixamente para ele como se tivesse dificuldades de enxergar.  Quando a visão tornou-se mais nítida, a moça surpreendeu com a aparência do homem à sua frente.

— Quem é você? — perguntou e seus lábios tremiam.

— Estou no quarto ao lado — explicou o Marquês — Vim aqui para perguntar o que a deixou tão infeliz e se podia ajudá-la.

— Ninguém pode me ajudar — declarou ela com uma voz quase incoerente — sinto muito se o acordei.

— Você não me acordou — sorriu o Marquês — Eu não havia me deitado ainda.

Pensou, ao olhar para a moça, que jamais vira uma mulher parecer tão bela, enquanto chorava.

As lágrimas mais enfatizavam sua beleza do que a depreciavam. Ela levantou uma das mãos para secar os olhos, como faria uma criança.

O Marquês tirou um lenço do bolso e o estendeu para a jovem.

Ela acomodou-se na cama antes de pegá-lo das mãos do Marquês.

Então, enquanto secava os olhos, desculpou—se com voz trêmula,

— Sinto muito!

— Você não fez nada que tenha de pedir desculpas — acalmou o Marquês — Diga-me o que a aborrece tanto.

— Eu não sei o que fazer — lamentou ela — O que eu faço?

Ela falava como se estivesse sozinha no quarto.

— Tinha tanta certeza de que ela ia entender e deixar Peter comigo, mas agora...

As lágrimas começaram a rolar novamente pelo rosto.

Havia uma cadeira próxima à cama e o Marquês se sentou.

— Pare de chorar — ordenou com voz branda — Me conte tudo. É sempre desagradável ver uma bela mulher chorando.

A garota tirou o lenço dos olhos e fitou-o, dizendo,

— Sei que você é o novo cocheiro! Mas o que faz aqui?

 Foi então que o Marquês soube quem ela era. Vira-a de costas enquanto caminhava atrás de Lady Horncliffe para a hospedaria.

— Estou aqui — respondeu o Marquês — porque não me sentia bem para dormir no celeiro com os outros companheiros. Portanto, paguei um desses quartos para passar a noite com mais conforto. Só peço que não diga nada a ninguém do que acabei de contar.

— Claro que nada direi! — assegurou a moça — Papai, se fosse vivo, jamais concordaria em ver cocheiros e batedores sendo maltratados.

— Concordo com seu pai — disse o Marquês — Tenho certeza de que ele também não gostaria de vê-la sofrendo tanto assim.

A garota fechou os olhos.

— Papai morreu há algum tempo — declarou — Mas ele entenderia por que estou tão infeliz.

— Mas como seu pai não está mais aqui para ajudá-la — explicou o Marquês — por que não me conta o que aconteceu com você? Talvez eu tenha alguma solução.

A garota fez um gesto de desesperança e então disse,

— Ninguém pode me ajudar a não ser Lady Horncliffe, e ela se recusou!

— Recusou a fazer o quê? — perguntou o Marquês.

— A deixar Peter ficar comigo.

As palavras irrompiam dos lábios da moça com fúria e ela então continuou,

— Como posso deixar que ele seja mandado para um orfanato? Prometi a mamãe que tomaria conta dele, mas não tenho dinheiro e ela não me pagará pelo que eu faço.

Tudo aquilo soou incoerente para o Marquês e ele pediu com gentileza,

— Por que não começa do início? Qual o seu nome, antes de tudo? O que faz aqui e por que Lady Horncliffe não deixará que Peter fique com você?

Com muito esforço para manter o autocontrole, a moça secou os olhos.

Então olhou para ele e disse,

— Talvez eu não devesse estar falando nada disso...

O Marquês deu um sorriso que muitas mulheres achavam sedutor.

— E quem vai saber? — perguntou — Se não as estrelas e os ratos no porão?

— Você não entenderá — argumentou a garota — mas como disse, ninguém virá a saber sobre isso!

— Qual seu nome? — perguntou o Marquês.

— Leila Horn.

O Marquês alçou as sobrancelhas.

— Você é parente de Lady Horncliffe?

— Papai era um primo distante do marido dela.

— E você disse que seu pai morreu?

— Sim, de ferimentos graves há dois anos.

— Ferimentos? — foi a pergunta do Marquês.

— Papai era marinheiro de Lorde Nelson e Capitão de seu próprio navio — Havia orgulho na voz dela.

— E ele foi ferido — concluiu o Marquês.

— Ele derrotou dois navios franceses — respondeu Leila — mas uma bala de canhão atingiu-o numa perna — Ela deu um pequeno soluço antes de continuar — Mamãe e eu cuidamos dele e papai viveu por dois anos.

— E onde você morava? — perguntou o Marquês.

— Fomos para muitos lugares — respondeu Leila — Mamãe se apaixonou por papai enquanto seu navio patrulhava a costa escocesa.

Um silêncio os envolveu como se Leila estivesse visualizando as lembranças e o Marquês completou,

— Então eles se casaram?

— Sim, mas o pai dela proibiu-a de se casar com um saxão como era papai.

— Mas ela o desafiou — interveio o Marquês sabendo que já ouvira aquela história em algum lugar.

Leila concordou com um aceno de cabeça.

— Eles se casaram e mamãe seguiu papai para todos os portos onde ele devia trabalhar. Lembro-me de uma casinha que tínhamos em Portsmouth e outra em Plymouth. Mas ele se ausentava meses e meses em suas viagens pelo mar e mamãe parecia sempre aflita pensando que ele tivesse sido morto pelos franceses.

— O que houve depois que ele se feriu? — perguntou o Marquês.

— Aposentou-se como inválido na Marinha e, quando voltou para a Inglaterra, mamãe não fazia idéia de onde viveriam. Então escreveu para o Senhor Laurence Horn que era um primo distante.

O Marquês ouvia com atenção.

— Ele vivia num belo povoado em Kent, e por sentir pena de papai deu-nos uma casinha em sua propriedade onde fomos muito felizes.

— Então o que houve?

Leila desviou os olhos do Marquês e respondeu.

— O Senhor Laurence se casou! Ele não se casara antes, porque servira na Índia e em outras partes do mundo e não tivera tempo de se estabelecer — Ela deu um sorriso tímido e acrescentou, — Ele queria muito ter um filho!

— Então ele se casou com a Lady com a qual você está agora? — perguntou o Marquês.

Leila assentiu.

— Ela era linda e muito, muito rica.

— E com certeza mais jovem que ele?

— Ah, sim, mas o pai dela, o Senhor Cliffe, fizera uma grande fortuna em navegação.

O Marquês sabia como se faziam aquelas fortunas. Da mesma forma que a maior parte dos magnatas de Liverpool, transportando escravos da África para a América. E isso era um negócio que o Marquês abominava.

Sabia que os armadores obtinham grandes fortunas seqüestrando os negros da costa, entre eles, mulheres e crianças.

Transportavam-nos em porões sujos de navios que os traziam até o Novo Mundo.

A América necessitava deles para trabalhar nos campos de algodão.

— Então o Senhor Cliff e queria que sua linda e rica filha fosse "respeitável" — ironizou o Marquês.

— Como você soube disso? — perguntou Leila.

— Isso já aconteceu antes — foi a resposta do Marquês — Suponho que ele também desejou que seu próprio nome fosse acrescentado ao de Horn.

— Mamãe me dizia que ele era muito insistente quanto a isso, apesar de saber que papai ficara bastante chocado.

— E por acaso Lady Horncliffe teve o filho tão desejado? — questionou o Marquês.

Leila fez que não com a cabeça.

— E eu acho que é por isso que ela não quer que eu fique com Peter.

— Peter é seu irmão? — perguntou o Marquês.

— Sim, ele tem só oito anos e é um lindo garoto. Todo mundo gosta dele, pois é uma criança que não dá trabalho.

— O que houve com o resto de sua família? Sua mãe por exemplo?

— Mamãe morreu três meses atrás, logo após prima Averil ter decretado que mamãe não usaria mais roupas de luto.

A voz de Leila mudou de tom, quando disse,

— Foi... Terrível. Não consigo acreditar como tudo aconteceu tão rápido. Logo após o funeral de mamãe, prima Averil disse-me que vendera a propriedade e também nossa casa, que eu pensei pertencer a mim!

— Então você não tinha para onde ir — concluiu o Marquês.

— Ela disse que como eu costurava bem, podia viver com ela como acompanhante e costureira — Leila deu um suspiro antes de continuar — Ela me disse que ia para Londres e eu devia ir com ela. Pensei que fosse por pouco tempo... Então deixei Peter com uma governanta aposentada que daria aulas.

Leila olhou para o Marquês a fim de ver se ele se interessava pelo que dizia. Ao obter a certeza, continuou,

— Prima Averil disse que compraria uma casa nova no campo muito maior do que aquela onde vivíamos. Essa é a razão de estarmos indo agora para Hereford, para vermos uma. Pensei que Peter e eu teríamos um chalé só para nós, mas ela mudou de idéia.

Leila refletiu por um momento antes de acrescentar,

— Ela nunca disse realmente que poderíamos ficar juntos, mas não imaginei que pudesse nos separar.

— E foi isso o que descobriu esta noite? — perguntou o Marquês.

— Ela se referiu à casa que vamos visitar e sem pensar eu fiz uma observação. Disse que adorava saber que teríamos cavalos para Peter montar e mil coisas boas para fazer no campo.

Leila parou de falar, a voz embargada pelas lágrimas.

— E o que sua prima respondeu? — perguntou o Marquês.

— Ela disse, "Peter? O que você quer dizer com Peter? Não tenho espaço para garotos que já deveriam estar na escola aprendendo como ganhar a  vida".

Leila concluiu a afirmação e levou as mãos ao rosto. Após um breve momento disse, chorosa,

— Como posso perder Peter assim, deixando-o ir para o orfanato, onde ninguém poderá amá-lo como papai, mamãe e eu?

A voz ficou sufocada pelo pranto convulsivo. Leila, no entanto, continuava falando de maneira desesperada, as frases entrecortadas pelos soluços.  

O Marquês, ao observá-la, concluiu que nunca vira alguém tão infeliz. Após um momento ele declarou,

— Sei que é desagradável o que está acontecendo, mas não seria melhor pensarmos friamente no caso e tentarmos encontrar uma solução?

— Não há solução — respondeu Leila num suspiro — Não tenho dinheiro e nem para onde ir.

— Mas, com certeza, você tem parentes? — indagou o Marquês.

— Papai sempre dizia que seus parentes encontravam-se ou velejando em alto mar ou lutando em algum país distante.

— E quanto aos parentes de sua mãe?

— Como eu disse, os parentes de mamãe cortaram relações com ela após seu casamento. O pai dela, descendente dos Chieftain, era um homem muito severo e não a perdoou por deixar a Escócia.

Houve um breve silêncio, após o que Leila levantou a cabeça e murmurou,

— Muito obrigada por ter me ouvido, mas, como você pode ver, não há saída  para esse caso.

A angústia estampada no belo rosto de Leila emocionou o Marquês, que concluiu ser Averil Horncliffe tão egoísta e infiel quanto Fleur.

— Agora ouça! — ordenou o Marquês.

Como se recebesse voz de comando, Leila levantou a cabeça para fitá-lo.

Uma vez mais o Marquês pensou que era impossível uma mulher chorar com tamanho desespero e angústia e ainda assim manter-se tão bela e adorável.

De certa forma, era como se ela não fosse um simples ser humano.

Leila parecia como uma daquelas imagens de santas que vira nas igrejas da França, o rosto envolto numa aura de sonho e imaterialidade. Após essas reflexões ele continuou,

— Acho que, se você pensar melhor no assunto, encontrará uma solução, como por exemplo, fazer algum tipo de trabalho que permita ganhar dinheiro suficiente para manter Peter e você,

Leila resmungou baixinho, mas não o interrompeu,

— Até que encontre a solução — continuou ele — tenho um chalé desocupado para onde poderá levar Peter, caso sua prima ainda insista em mantê-lo longe de você.

Leila fitou-o com espanto, como se não acreditasse no que acabava de ouvir e, então, perguntou,

— Você tem certeza do que está dizendo? Tem mesmo um chalé vazio?

O Marquês sabia que não havia somente um chalé em sua propriedade, mas sim vários e então respondeu,

— Tenho sim e se você for para lá, terá tempo suficiente para pensar no que fazer.

— E Peter não precisará ir para o orfanato! — exclamou Leila após um suspiro de alívio.

Então ela juntou as duas mãos em atitude de agradecimento e disse com voz comovida,

— Como alguém pode ser tão gentil, tão maravilhoso? Tem certeza de que pode dispor desse chalé?

— Sim, claro — foi a resposta do Marquês — e de qualquer forma o aluguel de um pequeno chalé não é muito caro.

— Eu prometo que vou obter o dinheiro para pagá-lo — Leila apressou-se a dizer — Eu sei costurar muito bem e tenho certeza de que muitas pessoas vão me procurar para comprar as roupas que farei.

— O chalé está à sua disposição — comunicou o Marquês —  Agora vá dormir e pare de se preocupar.

— Eu não consigo acreditar que tudo isso seja verdade — interveio Leila — Quando saí correndo da sala, senti que todos haviam me abandonado, inclusive mamãe e papai.

— Tenho certeza de que, onde quer que se encontrem, seus pais jamais a abandonarão — argumentou o Marquês — Pare de se sentir infeliz e lembre-se que, no final dessa jornada difícil, haverá um lugar para você e Peter.

— Não acredito que você seja real! — exclamou Leila — Acho que você é algum anjo que desceu do céu para me ajudar.

— Não, digamos apenas que foi muito bom que eu me encontrasse hospedado no quarto do lado — brincou o Marquês — E lembre-se, isso é um segredo só nosso!

— Sim, claro! Como poderia eu fazer qualquer coisa que pudesse prejudicá-lo, se você foi tão gentil comigo?

— Tenho certeza de que você jamais faria isso! — disse o Marquês.

Ele se levantou da cadeira e continuou,

— Vá dormir e não esqueça que o sol brilhará amanhã e Peter esperará que você o busque.

— Prometa que você não desaparecerá e virá aqui amanhã para me informar onde é seu chalé — implorou Leila, com desespero na voz.

O Marquês deu uma risada.

— Eu não vou desaparecer. Conversaremos novamente assim que tivermos oportunidade. Mas você sabe que ninguém poderá descobrir que você esteve conversando com um simples cocheiro, não é?

— O mais gentil e adorável que eu já conheci em toda minha vida — foi a resposta de Leila.

O Marquês sorriu com bondade e se dirigiu para a porta.

— Obrigada... Obrigada! — agradeceu Leila uma vez mais.

O Marquês saiu, examinando antes o corredor para ver se não havia alguém à espreita.

Nada viu, e caminhou em seguida para o quarto. Enquanto trocava de roupa pensou que quando Charles o ouvisse contar sobre esse estranho encontro, ficaria intrigado.

"Certamente eu nunca esperaria que isso fosse acontecer na minha primeira noite como criado", foi o último pensamento do Marquês antes de mergulhar num sono profundo.

 

A bagagem foi acomodada na parte traseira da carruagem. Jack informou ao Marquês que aquela seria a última noite que passariam numa hospedaria.

— Amanhã vamos para a casa grande — informou ele — e, graças a Deus, lá não precisaremos dormir em celeiros.

— Não foi confortável? — perguntou o Marquês, com compaixão na voz.

— Não havia muito feno e os mosquitos quase nos comeram vivos — respondeu Jack com repugnância.

Quando o Marquês subiu na carruagem e acomodou-se no cubículo, Leila apareceu. 

Ela era ainda mais adorável à luz do dia do que à noite, pensou o Marquês.

Leila lançou um olhar tímido onde brilhava uma chama de gratidão. No entanto, ele não sorriu para Leila que se apressou em colocar algumas bagagens na carruagem.

Ela ficou esperando que Lady Horncliffe aparecesse.

Quando a mulher surgiu, novamente a aparição foi espetacular.

O Marquês percebeu que ela trazia um chapéu diferente daquele que usara no dia anterior.

O proprietário ocupava-se em bajular e reverenciar Lady Horncliffe, dizendo-lhe que fora uma grande honra recebê-la na hospedaria.

Lady Horncliffe nada respondia.  Entrou na carruagem, a porta se fechou e eles partiram.

O Marquês tornou a olhar para as instruções do percurso, depois do que Jack dissera. Foi com grande alívio que soube que realmente aquela seria a última noite que passariam numa hospedaria.

No dia seguinte chegariam à Crowstock Towers.

O Marquês sabia que para atingirem aquele local, deveriam seguir na direção norte de Oxford, e que Eagle não se localizava muito longe dali.

Tinha receio de que alguém o reconhecesse.

Vasculhou a memória a fim de tentar recordar se conhecia alguém com sobrenome de Crowstock, proprietário da casa que iam visitar.

Após terem vencido certa distância, fez a pergunta a Jack,

— O nome do Cavalheiro é Crow — respondeu Jack — É um amigo de Lady Horncliffe e pode apostar que é muito rico!

O Marquês tinha a resposta para seu problema. Já ouvira falar no Senhor Percy Crow, justamente por ser rico em demasia. Vencera na vida por esforço próprio e, tendo recebido um prêmio por suas contribuições generosas para os Fundos do Partido, fora agraciado com um título de nobreza.

Percy Crow, porém, tentara se tornar membro do Clube White e não conseguira.

Numa outra ocasião, o Senhor Crow tentou inscrever seu nome no Boodle's e foi imediatamente rejeitado. Desapontado por não ter sido aceito no Beau Ton de Londres, mudou-se para o campo.

Comprou, então, uma grande propriedade que pertencera a um nobre, cujo filho fora morto na guerra contra a França.

O Senhor Percy mudou o nome da propriedade, tão logo tomou posse. De início, tentou torná-la uma Mansão de nobres.

O Marquês lembrou-se então de que ouvira dizer que o Senhor Percy comprara o título de Mestre de Cães de Caça.

Contribuíra também, de maneira generosa, para as obras de caridade. Alguns jovens do campo aceitavam-no parcialmente. A geração dos mais velhos, no entanto, recusava qualquer convite que ele fazia.

"De uma coisa eu tenho certeza", pensou o Marquês à medida que dirigia, "nenhum de meus amigos estará em Crowstock Towers".

Fizeram uma parada para almoço e mais uma vez o Marquês providenciou comida extra para satisfação de Ben e dos outros homens.

Chegaram aos subúrbios de Oxford por volta das cinco horas da tarde.

O Marquês conduziu os cavalos até uma hospedaria que já conhecia.

O local se chamava Três Sinos. Descobriu, após ter chegado ao pátio, que os estábulos estavam quase  cheios.

Não era somente por causa dos animais dos outros viajantes, mas também em virtude de quatro cavalos que Lady Horncliffe enviara antecipadamente para substituírem os que viajavam. Os animais haviam chegado à hospedaria dois dias antes.

O Marquês concordou que os cavalos precisavam descansar e já não era sem tempo. Após aquele dia exaustivo, os animais mostravam-se esgotados e lentos. Os quatro cavalariços, que esperavam junto ao novo grupo de cavalos, fitaram o Marquês com curiosidade.

— Espero que esses cavalos sejam tão bons quanto os que conduzi até agora — observou o Marquês, divertido.

O homem para quem dirigira a palavra concordou com um gesto de cabeça.

— Muito bem, substitua-os — ordenou o Marquês — Os outros precisam descansar.

— É para já! — foi a resposta pronta do cavalariço que, em seguida, acrescentou — Gosto muito de Oxford. Já estive aqui antes.

O Marquês ia dizer o mesmo, mas se calou, pois tal revelação poderia trazer complicações.

Decidiu que não jantaria com os cavalariços, iria a outro lugar. Lembrou-se de que havia uma taverna excelente não muito longe dali, que freqüentar quando ainda era estudante.

Tratou primeiro de se certificar se os cavalos eram bem tratados ali. Depois, entrou na hospedaria a fim de pedir um quarto.

O proprietário, impressionado com a aparência do Marquês, explicou com cuidado que os quartos já estavam todos ocupados.  Apesar disso, o homem arranjou um quarto menor e não tão bem equipado quanto o que o Marquês ocupara na noite anterior.

No entanto, era melhor do que dormir em um celeiro que, com certeza, se superlotaria à noite.

Pediu água morna para um banho e colocou uma camisa limpa.

Saiu da hospedaria em busca da taverna de que se lembrava.

Era pequena, mas o Marquês ficou deveras satisfeito com a comida que foi servida.

O vinho que o Marquês provou depois pareceu razoável. Desejou ter tempo de entrar em Oxford e visitar a velha universidade.

Apreciava muito a educação que recebera naquela escola cristã e também os esportes que praticara, inclusive o remo. Obtivera ali sua graduação e o pai ficara orgulhoso quando isso aconteceu.

Já era tarde quando retornou à hospedaria.  Ao pé das escadas, quase subindo para o quarto, foi detido pelo proprietário que veio correndo para ele,

— Chamam-no na sala nobre — foi dizendo o homem, apontando para o corredor próximo à sala de jantar.

O Marquês pensou que àquela hora Lady Horncliffe já devia estar dormindo. Com  relutância, caminhou para a porta da sala nobre.

Seria desagradável ter de ouvir aquela voz esganiçada antes de ir para a cama. Abriu a porta e, para sua surpresa, era Leila quem o aguardava.

Encontrava-se sentada numa cadeira próxima à lareira e, quando o viu, deu um salto e veio correndo em sua direção dizendo,

— Quando soube que você não se achava mais na hospedaria, temi que tivesse partido.

— Não, ainda estou aqui — respondeu o Marquês sorrindo — Mas acho um erro nos encontrarmos.

Lembrou-se de que se os criados soubessem do que acabara de acontecer, com certeza comentariam.

— Não fui eu quem mandei chamá-lo — Leila apressou a dizer — Não ousaria fazer isso.

O Marquês alçou as sobrancelhas e Leila continuou,

— É prima Averil quem quer vê-lo. Quando disse que você tinha saído, pediu-me para avisá-lo para ir ao quarto dela tão logo chegasse.

— O que foi que eu fiz? — perguntou o Marquês com divertimento na voz.

— Eu não sei — foi a resposta de Leila — mas ela não parecia zangada.

— Isso já ajuda de alguma forma — sorriu o Marquês.

Ele caminhou até a lareira e procurou assento numa cadeira de balanço.

— Fale-me de você — pediu o Marquês — Sente-se mais feliz?

Leila, em vez de se sentar numa cadeira, acomodou-se num pequeno tapete aos pés dele.

— Muito feliz! — respondeu com o rosto iluminado pela alegria — Ainda não consigo acreditar como alguém pode ser tão gentil!

— Sua prima poderá mudar de idéia e então você poderá ter Peter a seu lado.

Houve uma pequena pausa enquanto Leila fitava o fogo na lareira, e logo após ela disse,

— Você pode me achar tola, mas se seu chalé se encontra vago, será muito melhor para Peter e eu vivermos lá do que com prima Averil.

O Marquês refletiu por um momento e só então respondeu,

— Talvez isso não seja somente questão de felicidade, mas o que chamamos de conveniência. Com certeza se prima Averil comprar a casa que deseja, haverá cavalos para Peter montar e, naturalmente, muitas guloseimas para ele comer!

Leila nada disse... E após um momento o Marquês perguntou.

— Você não concorda comigo?

— Não é bem assim — replicou Leila — É que prima Averil não gosta muito de abundância.

O Marquês esperou e, após um instante, ela explicou,

— Os velhos criados que viveram com primo Laurence por tantos anos reclamavam que, após seu casamento, já não viam mais na mesa nem boa manteiga e nem leite fresco.

— Você quer dizer com isso que sua prima é avarenta? — indagou o Marquês.

Leila desviou os olhos.

— Talvez eu não devesse estar contando isso a você, mas ela não gosta que eu me sirva de boas porções de comida na mesa e nem que coma bolo no chá. Eu não me importo, mas será difícil explicar a Peter por que ele não poderá comer o que tem vontade.

— Já ouvi mesmo dizer que gente rica tem muitas manias — argumentou o Marquês — Já encontrei avarentos em meu caminho, mas eram todos homens.

Leila deu um suspiro e disse,

— Ela é tão rica que parece estranho que coisas tão pequenas possam fazer diferença.

— Pois bem, o chalé espera por você e Peter — ofereceu o Marquês.

— Era isso que eu esperava ouvir — respondeu Leila com um suspiro de alívio — Comecei a bordar um pedaço de musselina que dará um belo lenço, porém não tenho tempo para trabalhar nele e...

— Imagino que você seja pajem de sua prima, além de dama de companhia e costureira — interrompeu o Marquês.

Leila deu uma risada adorável.

— É verdade, mas saiba que a verdadeira pajem de prima Averil a espera em Crowstock Towers.

Enquanto ela falava, as chamas da lareira cintilavam em seus lindos cabelos. A beleza se reforçava ainda mais pelos reflexos prateados que se prendiam a cada fio.

Era uma cor que o Marquês jamais vira nos cabelos de nenhuma mulher e que achava esplêndida.

Os cabelos dourado prateados emolduravam a testa e as maçãs do rosto de Leila, emprestando uma beleza translúcida.  Tinha o nariz pequeno e os traços perfeitos.

Os olhos, grandes e vivos, eram de um verde pálido com alguns toques de dourado nas pupilas.

"Ela é única, " pensou ele.

Tinha absoluta certeza de que se ela aparecesse em Londres com um vestido da moda seria uma sensação.

Imaginava como Lady Horncliffe, com sua obsessão por riqueza, não percebera que em comparação à prima era o tipo de mulher espalhafatosa e comum.

Ao se lembrar de que a patroa o esperava, pôs-se de pé de repente,

— Acho que é melhor subir — falou o Marquês — Por favor, mostre-me o quarto de Lady Horncliffe. Mas saiba que eu preferia ficar aqui conversando com você.

— Tem sido maravilhoso conversar com você, ainda que por poucos minutos.

Uma vibração de sinceridade modulava a voz de Leila.

O Marquês caminhou até a porta e disse,

— Acho que é melhor não sermos vistos juntos, a menos que não haja ninguém por perto. Fique aqui até que eu suba e, só então, vá para seu quarto.

— Sim, claro — concordou Leila — Foi tolo de minha parte agir assim.

— Apenas me diga onde é o quarto de Lady Horncliffe — pediu o Marquês.

Leila explicou que era no primeiro andar, na sexta porta após as escadas.

O Marquês deixou a sala nobre e fechou a porta atrás de si. Subiu as escadas de carvalho que rangeram sob seus pés. Contou as portas com cuidado e bateu na sexta, Ouviu a voz de Lady Horncliffe, ordenar,

— Entre!

O Marquês abriu a porta.

Para sua surpresa, ela estava sentada diante da penteadeira, usando um négligé insinuante. Aberto na parte da frente, revelava uma camisola de renda muito fina por baixo.

Lady Horncliffe voltou-se assim que o Marquês entrou.

Dois candelabros, com três velas acesas em cada um, repousavam ao lado da penteadeira. A luz que provinha deles realçava o tom acobreado dos cabelos de Lady Horncliffe, fazendo com que os fios parecessem pequenas chamas.

— Feche a porta, Lyon — pediu ela.

Ele obedeceu e ficou parado, esperando-a falar.

Lady Horncliffe lançou um olhar avaliador, como um comprador que estuda uma mercadoria antes de adquiri-la.

Ela então disse, com uma voz que soou estranhamente doce para o Marquês,

— Queria dizer que você conduziu a carruagem muito bem essa manhã. Estou muito satisfeita com seus serviços.

A forma com que fez essas afirmações era tão diferente de quando ela dirigira a palavra pela última vez, que o Marquês não pode deixar de fitá-la com surpresa.

Após uma pausa o Marquês agradeceu,

— É muito generoso de sua parte!

Ela se voltou um pouco na cadeira e exclamou,

— Você é um jovem de aparência tão fina, John! Não pode conseguir algum outro trabalho melhor para fazer do que guiar cavalos?

— Eu gosto desse tipo de serviço, Senhora — foi a resposta do Marquês — Pelo menos, posso manter-me ao ar livre enquanto trabalho.

— Entendo por que saiu esta noite — observou Lady Horncliffe — Onde andou? A mulher com quem esteve era atraente, afinal?

O Marquês deu uma risada sonora.

— Não foi nada disso, Milady. Fui visitar uma taverna local a fim de jantar e tomar vinho. Acho que devia saber que aqueles que trabalham para a Senhora não são bem alimentados e não recebem, como é de costume, nem um copo de cerveja.

— Tentarei me lembrar disso — assegurou ela em voz baixa.

Quando Lady  Horncliffe fitou o Marquês, ele percebeu no brilho dos olhos dela quais eram suas intenções.

Em seguida, ela fez um pequeno movimento.

O cabelo cor de cobre, antes preso no alto da cabeça, caiu em ondas até a cintura.

Foi tudo tão rápido que pareceu ter acontecido de maneira acidental.

No entanto, o Marquês sabia que aquela atitude fora premeditada.

Lembrou-se de que, quando se encontrava a sós com Fleur essas cenas de sensualidade também aconteciam. Ela dava pequenos gritos de espanto que ele também pensou fossem acidentais.

Agora constatava que aquilo era apenas um dos muitos artifícios de que uma  mulher se utiliza para seduzir um homem.

Fleur tencionara seduzi-lo da mesma forma que Lady Horncliffe fazia agora.Por um instante tudo ficou turvo aos olhos do Marquês.

Encontrava-se outra vez diante de uma mulher cheia de artimanhas, cuja única intenção era escravizar um homem. Encheu-se de ódio. Quando isso acontecia com Fleur, ele desalinhava-lhe os cabelos, beijando-a com paixão e desejo.

E quando ela protestava contra as investidas dele, ele se excitava ainda mais.

O Marquês realmente chegou a pensar, por um momento, que Lady Horncliffe  se sentia embaraçada pelo que acabara de acontecer. Mas se enganara.

Outra vez sentiu o ódio invadi-lo, contra Fleur e contra essa mulher que se insinuava para ele.

Abriu os lábios para dizer o que pensava dela. Porém se lembrou de que se assim o fizesse, perderia o emprego e a aposta, com a rapidez de um homem acostumado ao perigo, procurou uma forma de escapar.

Lady Horncliffe levantou-se e começou a caminhar na direção dele, o négligé  aberto, transparente, revelando as formas de corpo.

O Marquês pensou rápido numa saída e esta chegou como um relâmpago.

— Um rato, Milady! — foi a exclamação dele — Um rato acabou de entrar debaixo de sua cama!

Ele moveu-se na direção do suposto animal enquanto falava.

Lady Horncliffe soltou um grito.

— Um rato! Oh, meu Deus, mate-o! Odeio ratos!

Ela gritou de novo e subiu na cadeira. Segurando o négligé junto ao corpo, ela fitava o Marquês com os olhos  cheios de declarado terror.

Ele se ajoelhou no chão e colocou a mão debaixo da cama. Sentiu a maciez de um chinelo de veludo e o pegou.

Colocou-o debaixo do casaco e fez retorcer-se como se fosse algum animal tentando escapar desesperado.

Então, segurando o casaco bem junto do corpo com a outra mão pôs-se de pé.

Quando Lady Horncliffe viu as convulsões do suposto animal contra o peito do Marquês gritou apavorada,

— Mate-o! Mate-o!

O Marquês voltou-se para a porta e, aparentado uma grande dificuldade, tentou abri-la, enquanto segurava o desesperado "rato" contra o corpo.

Quando se viu no corredor, fechou a porta atrás de si com rapidez. Não havia ninguém ali e, ajeitando o casaco no corpo, foi até as escadas.

Segurava ainda o chinelo cor de rosa numa das mãos e tentou imaginar onde poderia deixá-lo. Então ocorreu que, se pela manhã Lady Horncliffe não encontrasse,

Leila poderia ter problemas. Ela precisaria colocar o par de chinelos na bagagem da Lady.

O Marquês, portanto, desceu para o hall e encontrando o porteiro pediu,

— Senhor, por gentileza, poderia levar esse chinelo ao quarto da Senhorita Horn, a acompanhante de Lady Horncliffe? — Tentou imprimir preocupação à voz — Diga que ficou na carruagem e que achei que ela fosse precisar logo que acordasse amanhã.

O porteiro, bastante amável, prometeu levar o chinelo a Leila no mesmo instante.

O Marquês então subiu para o quarto sorrindo. Fora salvo na vida por muitos artifícios diferentes, mas nunca por um chinelo cor de rosa.

O Marquês dormiu bem até demais, o que o surpreendeu.

Sentiu-se culpado na manhã seguinte quando viu que os outros companheiros tinham os olhos pesados de sono.  Precisavam de mais atenção e cuidados que os próprios cavalos.

Já que a distância até Crowstock Towers não era muito longa, ninguém partiu antes das dez e trinta. Prosseguiram a viagem, então cruzando a fronteira que delimitava Oxfordshire e Buckinghamshire.

Encontravam-se, naquela altura, nos campos de caça, o Marquês sabia disso. Mas as estradas eram estreitas e cheias de curvas. Mesmo com os cavalos descansados, não pode imprimir à carruagem a mesma velocidade do dia anterior. Com  prudência, chegaram à Crowstock Towers um pouco antes das cinco horas da tarde.

A casa do Senhor Percy era bastante grande, porém a arquitetura nada tinha de  especial.

O Marquês concluiu que aquele era o tipo de edificação própria de pessoas  ávidas por ascensão social. Qualquer um que tivesse a riqueza do Senhor Percy ficaria impressionado com a casa.

Não restava dúvida de que Lady Horncliffe era uma hóspede bem vinda. O próprio Senhor Percy veio correndo encontrá-la assim que a viu chegar. Deu-lhe um caloroso abraço e disse em voz alta o quanto sentia se satisfeito em vê-la. Bateu também no ombro de Leila, informando que muitos galanteadores esperavam sua chegada.

Aconteceria um baile àquela noite, anunciara ele, e Leila da dançaria tanto até que as solas dos sapatos ficassem gastas.

O Marquês não conseguiu ouvir o que Leila respondeu a esse convite disfarçado em brincadeira.

Lady Horncliffe reclamava do cansaço da viagem. Dizia que ansiava por desfrutar do conforto que teria em Crowstock Tower.

— Tenho um grande número de amigos que desejam consolá-la! — exclamou o Senhor Percy.

O Marquês se sentia à vontade enquanto se dirigia ao estábulo. Tinha certeza de que Lady Horncliffe não o molestaria, caso houvesse outros homens impedindo-a de se sentir sozinha à noite.

Jack tinha razão, eles seriam acomodados dentro da casa.

Portanto, não houve questionamento sobre dormirem ou não no celeiro.

Destinaram ao Marquês um quarto num dos alojamentos da casa reservado   para os criados. Era bem longe dos aposentos das mulheres que, por sua vez, localizavam-se no andar de cima.

O Marquês ficou satisfeito, pois em virtude de sua posição, seu quarto era um dos melhores e reservado só para ele. Percebeu, porém, que apesar do Senhor Percy não se importar com as despesas, seu gosto era lastimável. Mas fora sábio o suficiente para empregar o mesmo mordomo que servira os proprietários anteriores.

O mordomo, obviamente, considerava seu atual Senhor um novo rico.

O Marquês obteve dele uma lista de convidados. Sabia o nome de um ou dois deles, porém não leu o nome de ninguém que pudesse ser integrante do White's.

O Marquês soube que era esperado para o jantar na sala da governanta.

Do ponto de vista de um criado, isso era um grande luxo. Por ser essa uma grande reunião de convidados com um grande número de outros hóspedes que chegariam após o jantar, a criadagem encontrava-se bastante ocupada. A ceia para os criados com posições mais elevadas era servida exatamente  uma hora após os convidados terem jantado.

O Marquês aprendera muito tempo atrás, com sua mãe, como deveriam se  comportar os criados em Eagle. Na sala da governanta, o mordomo se sentava num dos extremos da mesa e a governanta no outro. As damas de companhia e os criados visitantes assumiam posições na mesa de acordo com o título de seus patrões. A dama de companhia de uma Duquesa, Marquesa ou Condessa deveria tomar  assento à direita do mordomo.

O criado de um nobre Senhor ficaria à direita da governanta e seu cocheiro à esquerda. O restante da mesa era preenchido de acordo com a importância dos patrões.

Ao Marquês, portanto, foi reservado o lado esquerdo da governanta. Não ficou surpreso ao constatar que a comida era ainda melhor do que a que serviam na sala de jantar. Foram servidos cinco tipos diferentes de pratos. Beberam vinho que o Marquês sabia ser da melhor safra do Senhor Percy. Não se surpreendeu quando começaram a circular mexericos do que ocorria em Londres.

Falavam da louca paixão do Rei pela Condessa de Hertford. Então o criado divertiu-os com a história de um nobre, que o Marquês conhecia bem, e uma encantadora mulher. O nobre fora visto descendo por um cano de esgoto em Mayfair. O marido da "encantadora mulher" voltou para casa de maneira inesperada e  não houve outra escapatória para o nobre. Ouviram-se muitas risadas. Então, a dama de companhia de Lady Horncliffe, que o Marquês acabara de  conhecer, disse,

— Não me importo em dizer que minha Lady causou sensação em Londres, e  que as beldades que souberam disso ficaram desconcertadas!

— Acho-a muito bonita! — respondeu a governanta com ar afetado — No entanto, há duas beldades que gostaria de conhecer!

— E quem são? — perguntou o criado.

— Uma delas é Lady Blessington — foi a resposta da governanta — e a outra é a Senhorita Mun... Munroe, que é Fleur Munroe! Ouvi dizer que ela é adorável!

O Marquês estremeceu ao ouvir o nome de Fleur.

Então, uma outra dama de companhia fez uma observação,

— Você está certa, ela é muito bonita. E digo mais, até o final do verão ela ganhará seu título de Duquesa.

Houve exaltação na mesa até que alguém perguntou,

— Você quer dizer que ela se casará com aquele Conde de Settington?

— Lógico que sim! — foi a resposta da criada — Ela será uma Duquesa maravilhosa. Mas o Conde terá muito trabalho com ela, como qualquer homem teria se resolvesse se casar com ela.

— Por que você diz isso? — perguntou a Senhora Field — Afinal, ela não passa de uma jovenzinha!

— Jovem em idade, mas bem sabida quando se trata de outros assuntos! — foi a resposta maliciosa da dama de companhia.

— O que você quer dizer com isso? — perguntou alguém.

— É o que comentam — a moça continuou — mas eu morei próximo à casa dele e quanto Fleur tinha dezessete anos fazia certas "atividades" em Manor, onde viviam.

— Ora vamos, conte-nos o que ela fazia — pediu outra mulher, persuasiva.

— Bem, ele era um rapaz bonito e parecia ainda mais elegante montado naquele cavalo! Mas a mãe de Fleur não ficaria contente se soubesse o que acontecia na floresta entre eles.

O Marquês sentiu que aquilo era mais do que poderia suportar. Levantou-se e disse à governanta,

— Sinto muito, mas vou me retirar. Estou com dor de cabeça e preciso me  deitar.

— Ah, sinto muito, Senhor Lyon! — exclamou a governanta com compaixão na voz — Vá para a cama. Espero que se sinta melhor amanhã cedo.

— Tenho certeza de que sim — foi a resposta educada do Marquês — Muito  obrigado por tudo!

Caminhou para a porta e o mordomo acenou com amizade. Enquanto saía, ouviu uma das mulheres comentar,

— É um homem muito bonito e elegante!

O Marquês apressou-se em deixar a sala, saindo pela primeira porta que encontrou. Sua cabeça doía de verdade e suspeitava que o coração se despedaçava aos poucos.

Tudo o que fora dito sobre Fleur ainda martelava os ouvidos. Como pudera ser tão tolo?

Como foi que a percepção e a crença de que ninguém o enganaria falharam desta vez?  Como se deixara enfeitiçar por aquela falsa inocência e beleza que pareciam tão imaculadas?

Mais uma vez sentia ódio de todas as mulheres, simplesmente porque fora  enganado por Fleur. Com o intuito de aliviar a angústia que sentia, caminhou até o bosque, além do jardim.

A lua levantava no seu esplendor e as estrelas salpicavam o céu limpo. O Marquês experimentou um certo bem—estar, e o ódio, aos poucos, desapareceu.

Charles dissera que o tempo era um grande remédio. E o tempo estava passando e, com certeza, logo esqueceria Fleur. Prometeu a si mesmo que nunca mais voltaria a acreditar numa mulher. Nunca mais se deixaria enganar por expressões de inocência, porque a verdade era dura e difícil de ser aceita.

À noite, as estrelas e as árvores aos poucos foram trazendo uma onda de paz ao coração do Marquês. Resolveu voltar, tomando um caminho diferente. Descobriu, após ter passado pelas árvores, que alcançara o jardim. Como tudo na casa, uma grande soma em dinheiro fora gasta naquele jardim.

Uma cascata artificial caía de pedras de granito para um córrego que seguia entre plantas exóticas e arbustos, até desembocar num lago rodeado das mais diversas flores.

Das janelas iluminadas da casa saía uma música alegre.

O Marquês esperou que Leila estivesse se divertindo. Se ela fosse viver em um chalé, num pequeno povoado, seria difícil freqüentar bailes. E nem teria dinheiro para comprar um belo vestido.

"Seria melhor se ela pudesse convencer Averil Horncliffe a pensar melhor", pensou o Marquês.

Continuou caminhando à sombra dos grandes arbustos de azáleas que rodeavam o gramado. Mais adiante avistou um chafariz. Ao luar, os jatos de água pareciam fios de prata subindo e descendo, e a visão era deslumbrante.

Ficou de pé ao lado do chafariz, admirando o belo espetáculo de luz e cor, quando ouviu uma voz de mulher gritando,

— Não! Por favor, não!

— Não seja tola — um homem retrucou — Sei que vocês garotinhas gostam  disso e eu quero beijá-la.

— Não, por favor, me deixe voltar para casa!

— Só depois que eu a beijar!

O Marquês olhou através dos arbustos e viu que não se enganara. Era Leila quem protestava enquanto um homem de meia idade, de constituição robusta, segurava-a pelo pulso. A outra mão encontrava nos ombros de Leila tentando atraí-la para si.

— Oh, por favor, por favor! — implorava ela — Eu não quero beijá-lo!

— Vou te ensinar a gostar disso — garantiu o homem.

A voz dele era pastosa como a de alguém embriagado. Leila soltou um grito, mas era óbvio que o homem era mais forte. Seus esforços para se libertar resultaram ineficazes.

— Venha aqui, minha linda menina — pediu o homem com impaciência — Não aceito um "não" como resposta!

Ele a puxou com rudeza e Leila soltou um grito agudo, virando a cabeça de um lado para o outro, a fim de evitar o beijo.

Foi então que o Marquês entrou em ação.

Caminhou a passos largos até o homem, agarrando-o pelo colarinho e pelo cinto das calças. Com força de um atleta bem treinado levantou—o do chão, jogando-o em seguida dentro do chafariz.

Leila ficou paralisada, os olhos arregalados e surpresos.

— Corra! — ordenou o Marquês.

Antes de obedecê-lo, deu um sorriso de agradecimento e admiração.

Quando o homem, praguejando e blasfemando, conseguiu sair da água, o  Marquês já tinha desaparecido. Voltara para as sombras dos arbustos de onde tinha saído em socorro de Leila.

Enquanto caminhava, pensava que essa era outra história que contaria a  Charles. O amigo tinha razão. Essa aventura tinha muitas novidades que ele não esperava. Entrou na casa pela porta da cozinha. Enquanto caminhava, pensou que quando surgisse uma chance, conversaria com Leila.

Diria que nunca mais acompanhasse homens estranhos a lugar algum, muito menos a um jardim escuro. Então as lembranças do que ouvira sobre Fleur voltaram à mente.

Perguntou se mais uma vez não estava se deixando iludir por uma mulher.

Será que Leila era tão inocente quanto aparentava? Então deu se conta de que não vira nenhum fingimento na maneira com que ela lutara contra o velho "Romeu".

E, certamente, não percebera nenhuma falsidade nos lindos olhos dela quando viu quem viera salvá-la.

— Um anjo dos céus — disse o Marquês para si próprio, enquanto subia as escadas.

Tinha certeza de que, naquele momento, era isso o que Leila pensava que ele fosse.

 

No dia seguinte, o Marquês soube que haveria um torneio de corridas a poucos quilômetros dali. Sabia que vários amigos seus compareceriam ao acontecimento. E jogadores, caçadores e cavalariços também poderiam reconhecê-lo. Felizmente, enquanto ainda se preocupava com esse assunto, soube que as carruagens e coches do Senhor Percy seriam conduzidos ao torneio de corridas pelos cavalariços. Com  um suspiro de alívio, o Marquês esperou até que partissem e dirigiu-se, em seguida, para o estábulo.

Travara amizade com o cavalariço chefe do Senhor Percy, que era mais que um administrador da propriedade. Com a perspicácia de um negociante que sabe tirar o melhor proveito dos negócios, o Senhor Percy contratara um homem competente para comprar e supervisionar seus cavalos.

Wainwright era o homem que ele, o Marquês, gostaria de ter contratado para si. No entanto, admitia que sabia cuidar tão bem de seus cavalos que não precisava da orientação de ninguém. Esperava que Wainwright também não quisesse ir às corridas.

Quando entrou nos estábulos, soube que não tinham sido vãs suas esperanças. Wainwright, sentado à mesa da sala de arreios, lia anúncios num jornal de esportes.

— O Conde de Maresbrook pôs à venda um de seus cavalos anunciou — Você acha que vale a pena dar uma olhada?

O Marquês se lembrou de que o Conde de Maresbrook era um homem idoso e que seu filho vivia do outro lado da cidade.

— Acho que será bom ir até lá — aconselhou o Marquês.

Quando Maresbrook era jovem, tinha fama de grande caçador. Wainwright  sorriu.

— Vou seguir seu conselho — tornou ele — Se você ainda estiver aqui, poderá ir comigo.

O Marquês achou que isso era improvável, mas o homem continuou,

— Como você já deve supor, tenho um favor a pedir.

Wainwright sorriu e continuou,

— A escolha é limitada, mas acho que podemos encontrar um cavalo com o qual você possa se exercitar.

— Isso é o que eu mais gosto de fazer — exclamou o Marquês entusiasmado — Aprecio conduzir carruagens, mas não há nada como cavalgar um cavalo arisco e bom!

— É o que eu também penso — respondeu Wainwright sorrindo — Vamos dar uma olhada nos estábulos.

Ao chegarem lá, o Marquês permaneceu calado até encontrar o cavalo que queria. Era um garanhão de grande estilo chamado Vitória.

O porte do animal superava a média padrão dos cavalos de sua idade e o Marquês concluiu que ele era bastante arisco e difícil de montar.

Olhou para Wainwright e disse,

— Você já sabia que este era o cavalo que eu desejava, não é?

— Custou ao patrão uma grande soma — informou Wainwright.

— Apenas peço que cuide muito bem dele, ou me cortarão o pescoço.

— Terei cuidado — assegurou o Marquês.

— Muito bem, Lyon — concordou Wainwright — Apesar da reputação que todos os cocheiros têm, sei que você não me desapontará.

O Marquês deu uma risada torta para o cocheiro. Tinha boa fama como cavaleiro e nunca pensou que isso pudesse ser questionado.

Porém, aquela não era hora de discutir, pois já obtivera o cavalo que tanto queria.  Os cavalariços selaram Vitória e o Marquês montou.

Após acenar para Wainwright, partiu.

Sentir-se livre ao vento, completamente sozinho e montando um cavalo excelente, era motivo de satisfação para o Marquês.

Vitória, um cavalo selvagem, tentava por todos os meios lançá-lo ao chão.

E o Marquês adorava essa eterna batalha de forças entre homem e animal, até que Vitória admitisse que seu cavaleiro saíra vitorioso e parasse de lutar.

O Marquês começou, então, a galopar em alta velocidade. Adentrou a região rural, tendo o cuidado de evitar povoados e lugarejos onde pudesse ser reconhecido. Quando já passava do meio dia, entrou numa pequena hospedaria a fim de almoçar.

Providenciou para que Vitória ficasse num estábulo, mas notou que estava em más condições, e dirigiu-se a um pequeno jardim, nos fundos da hospedaria, onde se sentou.

O proprietário, impressionado pela boa aparência do Marquês, trouxe uma refeição excelente, composta de carne fria, picles, queijo fresco e cidra caseira. Após o almoço, tomou o caminho de volta a Crowstock Towers, apesar de se sentir relutante.

A tarde findava.

Vitória demonstrava cansaço e o Marquês procurou cavalgá-lo com mais brandura. Quando se aproximou da enorme e horrível casa do Senhor Percy, resolveu  entrar no bosque.

As mesmas árvores que deram alívio ao coração na noite anterior, pareciam acolhê-lo agora com a mesma hospitalidade.

O sol, infiltrando-se entre os arbustos e atalhos estreitos, assim como os pássaros cantando suavemente, davam descanso e alegria ao coração.

O Marquês pensava nas muitas anedotas que contaria a Lorde Charles, tão logo o encontrasse. A lembrança de Fleur já não  causava tanta dor, como na noite anterior. "Talvez algum dia escreva um livro sobre essas aventuras", pensou o Marquês.

No entanto, sabia que poucas pessoas acreditariam que aquilo de fato acontecera alguma vez na vida de um nobre Marquês. Imaginou que suas aventuras, por outro lado, fariam os leitores rirem.

Apesar de se encontrar bem próximo da casa, o Marquês resolveu penetrar  na parte mais alta do bosque.

Viu então uma sombra um pouco mais além e não ficou surpreso ao constatar que Leila, sentada no tronco de uma árvore caída, parecia absorta em pensamentos.com a cabeça pendida para trás, enquanto observava o topo das árvores, o perfil dela contrastava com o palco verde do bosque.

As mãos delicadas cruzavam-se sobre o regaço, e a serenidade que transmitia encantou o Marquês. Ao ouvir o galope de Vitória, voltou-se assustada para ver quem se aproximava.

À vista do Marquês, não pode deixar de soltar uma exclamação de prazer. Quando ele se aproximou mais, Leila comentou,

— Pensei que tivesse ido às corridas!

— É para onde pensei que você tivesse ido também — foi a resposta do Marquês.

Leila desviou os olhos, um tanto tímida.

Por intuição, o Marquês sentiu que devia haver um bom motivo para que Leila não fosse ao passeio.  Resolveu apear e deixar Vitória em liberdade. Era um risco que queria assumir.

Isso tudo porque, quando inspecionou Vitória pela primeira vez após sua chegada, Wainwright contou a história do garanhão. O primeiro dono do animal, que o criara desde que nascera, ensinou-o a obedecer ao chamado através de um assobio.

— Eu fiz a experiência — contou Wainwright — e é verdade. Vitória pode ser um animal difícil, mas atende prontamente quando chamado.

Como não havia onde prender o animal no bosque, o Marquês resolveu também fazer a experiência. Na pior das hipóteses, se o animal se dispersasse, voltaria para casa a pé. Como a maioria dos cavalos bem treinados, Vitória retornaria aos estábulos sozinho, pois ali era bem alimentado.

O Marquês sentou-se ao lado de Leila no tronco caído. Tirou o chapéu e colocou no chão a seu lado.

— O cavalo que você montou é magnífico! — exclamou Leila.

— Tive vontade de cavalgá-lo desde a primeira vez que o vi respondeu o  Marquês — Como todos hoje foram às corridas, exceto você, tive a minha chance.

— Acho que se divertiu bastante — tornou ela — Gostaria muito de vê-lo cavalgando. Tenho certeza de que monta tão bem um cavalo quanto dirige carruagens.

— Esse é o tipo de elogio que adoro ouvir — brincou o Marquês — Pelo modo que fala, tenho certeza de que também cavalga.

— Sempre que tenho uma chance — respondeu ela — Quando primo Laurence era vivo deixava que eu e Peter cavalgássemos todos os cavalos do estábulo.

— O que imagino que não pode mais fazer desde que passou a viver com sua prima Averil.

— É verdade — respondeu Leila em voz baixa — Ela me mantém sempre ocupada para que eu não tenha tempo de me divertir.

— É por isso que não foi às corridas hoje? — inquiriu o Marquês.

Houve uma pequena pausa em que Leila desviou os olhos, demonstrando embaraço.

— Estou esperando uma resposta! — exigiu o Marquês, após constatar que ela nada dizia.

— Você foi tão maravilhoso na noite passada — respondeu Leila, afinal — Só estava aguardando uma chance de agradecer por ter me salvado.

— E eu também aguardava uma chance de dizer que não foi muito sensato de sua parte ter acompanhado um homem como aquele ao jardim — ralhou o Marquês.

— Só me dei conta de como fora estúpida quando ele tentou me beijar — desculpou Leila — Mas ele me disse que apenas íamos até o jardim para ver a fonte. Nunca pensei que ele pudesse se comportar daquela forma!

— Você é bastante jovem — avaliou o Marquês — mas tem idade suficiente para entender que nunca, e eu repito, nunca deverá aceitar convites de estranhos novamente para ir ao jardim, ao conservatório, à galeria de artes, onde quer que seja, a menos que queira que o homem que a convidou se comporte daquela maneira.

O sangue fugiu do rosto de Leila e ela tentou se desculpar, com voz chorosa,

— Sinto muito por ter sido tão tola. Se mamãe fosse viva me ensinaria o que devo e o que não devo fazer — lamentou ela.

— Se sua mãe fosse viva — interrompeu o Marquês — não gostaria de vê-la onde se encontra agora, na casa do Senhor Percy Crowe!

— Quando o homem me convidou para acompanhá-lo até o jardim, acho que aceitei para fugir de outra pessoa.

As palavras brotaram dos lábios de Leila num turbilhão.

— Que outra pessoa? — indagou o Marquês curioso.

— Sentei-me ao lado dele no jantar — respondeu Leila — Seu nome é Denton Parker.

Como o Marquês jamais ouvira esse nome antes, pediu,

— Fale-me mais sobre ele. Por que a perturbou?

— Ele me fez elogios que me deixaram bastante embaraçada.

O Marquês imaginou que por Leila ser ainda bastante jovem e inexperiente encarava elogios masculinos com timidez, o que seria motivo de prazer para uma mulher mais adulta.

— O que você sabe sobre esse homem? — insistiu o Marquês.

— Que ele me assusta! — queixou Leila — Esperava por mim quando voltei para casa e insistiu para que eu dançasse com ele. Eu queria ir dormir, mas era impossível sair da sala sem parecer rude e então...

— E então?

Incitou o Marquês, após a pequena pausa que Leila fez.

— Ele reclamou à prima Averil que eu tinha sido grosseira — após um soluço, Leila continuou — Na hora de dormir, prima Averil foi até meu quarto e me disse que eu era ridícula. Aconselhou-me a ser difícil sim, parar de fingir afetação, como ela sempre faz, mas que tinha de aprender a ceder na hora certa.

— Por que ela fez isso? — indagou o Marquês, curioso.

 

— O Senhor Denton Parker é muito rico — respondeu Leila — Ele fez uma grande fortuna durante a guerra, vendendo armamentos e botas ao exército.

O Marquês mordeu os lábios, contrariado.

Sabia muito bem que espécie de fortuna faziam os homens que não partiam para a guerra. Ficavam no país, enriquecendo em segurança, enquanto outros homens lutavam e morriam.

— Continue — pediu em voz alta — Que mais sua prima disse?

— Que eu seria uma tola se não aceitasse o que o Senhor Denton Parker tinha a me oferecer. Falou ainda que eu não ficasse esperando que ela fosse me sustentar a vida toda.

— E você não pensou em aceitar esse homem, já que é tão rico? — indagou o  Marquês com voz pausada.

— Existe alguma coisa muito ruim naquele homem que me faz odiá-lo. E, por outro lado, não quero seu dinheiro! — exclamou Leila com sinceridade.

O Marquês sorriu.

— Então tenha cuidado e tente evitá-lo, até que possa sair daqui — advertiu ele.

— É o que estou tentando fazer — respondeu Leila — Dei hoje um primeiro passo dizendo à prima Averil que não consegui terminar o vestido dela.

Não esperou que o Marquês se pronunciasse e continuou,

— Vai ter outra orquestra esta noite e sei que não poderei evitar o Senhor Denton Parker.

— Com certeza haverá um homem mais decente no baile — comentou o Marquês — que poderá conversar com você o tempo todo, mantendo o Senhor Parker a distância.

Enquanto falava deu-se conta de que o Senhor Parker tinha a mesma ambição por ascensão social que o Senhor Percy.

— Todos os homens aqui parecem iguais, mas nenhum é pior que o Senhor Denton Parker — reclamou Leila — Porém, todos eles gostam de se embriagar ao jantar.

— Então só há uma saída — arrematou o Marquês — Você sentirá uma forte dor de cabeça esta noite e irá para a cama cedo.

Leila sorriu.

— Boa idéia! É o que farei! — respondeu Leila, aliviada. E antes do jantar já direi à prima Averil que não estou bem.

Lançou ao Marquês um olhar meigo e agradecido, e perguntou,

— Como não pensei nisso antes?

— O que deve ter em mente — aconselhou o Marquês com voz firme — é que você sempre viveu no campo com seu pai e sua mãe e jamais teve contato com homens estranhos. Uma moça linda terá sempre problemas, como já pode perceber.

Leila fitava-o com surpresa.

— Tem certeza quando diz que sou bonita? — perguntou num tom de voz incrédulo.

— Eu não disse "bonita", eu disse "linda" — corrigiu o Marquês — Existe alguma diferença entre essas duas palavras.

Leila deu um suspiro profundo.

— Mamãe era tão linda! E eu rezava todas as noites para que, quando crescesse, ficasse como ela!

— E suas orações foram atendidas! — concluiu o Marquês com um sorriso — Mas deve ter cuidado, pois todos os homens, inclusive Parker, aquele homem que atirei na fonte, sempre a acharão irresistível.

— Todos eles são horríveis, absolutamente repugnantes! — exclamou Leila, com ênfase na voz — Seria melhor que fosse uma bruxa ou usasse máscara para fugir dos olhares daqueles homens.

O Marquês deu uma risada.

— Garanto que todos eles ficariam curiosos para saber o que há por detrás  da máscara! — brincou o Marquês.

 

— Você me assusta! — exclamou ela — Por favor, vamos parar de falar sobre mim. Seguirei seu conselho, assim que terminar o jantar, vou para a cama. Vou ler um livro após ter feito minhas orações por você, que é tão gentil!

— E acho que terá de fazer isso muitas vezes — reiterou o mar quês — se  continuar vivendo com aquela sua prima espalhafatosa e mal educada.

Leila fitou—o com atenção.

— Não admira prima Averil?

— Se quer saber a verdade, acho-a vulgar e exagerada — respondeu o Marquês com desdém.

— É o que também penso — confessou Leila em voz baixa —Não disse antes por temer que me achasse grosseira.

— Nada há de grosseiro na perspicácia — filosofou o Marquês.

— É por isso que te digo, não deve julgar os homens que conhecer nesta casa como aqueles que encontrar em Londres.

Ele fez urna pausa e continuou,

— E pelo que ouvi das damas de companhia daqui, todas são como Lady Horncliffe, superficiais e vulgares.

— São mesmo muito artificiais — concordou Leila — Na noite anterior pensei que, se mamãe estivesse presente, não aprovaria a atitude delas.

Leila fez uma pausa e continuou,

— Você não mudou de idéia quanto ao chalé, não é?

— Claro que não! — assegurou o Marquês — Tão logo sua prima retorne a Londres que, eu creio, será na próxima semana, tomarei as devidas providências.

— Gostaria de encontrar outras formas para te agradecer apressou a dizer Leila — Penso muito no que poderei fazer para ganhar a vida tão logo me instale no chalé com Peter.

— Se você conseguir terminar algum trabalho de costura antes de chegarmos a Londres, tentarei vendê-lo para você, a fim de que consiga algum dinheiro pelo menos para comprar alimentos — prometeu o Marquês.

— Agora você está sendo gentil novamente! — exclamou Leila — Prometo que, assim que puder, vou pagar um aluguel razoável pelo chalé.

— Não tem pressa! — exclamou o Marquês — Às vezes me pergunto por que não restou nenhum dinheiro para que pudesse se manter e não acho a resposta.

— Eu ainda tinha cinco libras — foi a resposta humilde de Leila — mas quando prima Averil me pediu para viver com ela, dei o dinheiro para a Senhorita Dean, a professora que cuida de Peter. Ela vive de uma escassa pensão e não tem condições de sustentá-lo.

Leila lançou ao Marquês um olhar preocupado, como se temesse que ele fosse achá-la extravagante. Então continuou,

— Peter é desenvolvido demais para sua idade e parece sempre faminto.

O Marquês então lembrou de como Lady Horncliffe desprezava pessoas que comiam mais do que ela julgava suficiente. Entendia o temor de Leila de que o irmãozinho tivesse de viver sob tais circunstâncias.

— Tenho certeza de que poderei conseguir um bom dinheiro pelos seus lenços ou qualquer outra confecção sua — garantiu o Marquês — E quando voltarmos a Londres, providenciarei encomendas de vestidos para você.

— Trabalharei dia e noite! — assegurou Leila com humildade — mas minha dificuldade no momento é conseguir os materiais de costura.

— Talvez você me deixe ser seu avalista! — ofereceu o Marquês.

Enquanto ele falava, lembrou de quantas vezes fizera ofertas para outras mulheres, mas nunca com fins tão altruístas. No entanto, esperava que nem mesmo Leila fosse recusar seus préstimos. Mas quando a fitou, viu consternação nos lindos olhos dela.

— Eu não quis dizer isso! — corrigiu Leila — Como poderia exigir mais de um homem que já me fez tanto? E ainda mais o dinheiro de seu suor! Jamais poderia pedir isso!

Ela falou com tanta determinação que o Marquês acabou perguntando,

— Por que isso a preocupa tanto?

— Porque tem de trabalhar para seu próprio sustento — foi a resposta firme de Leila — E tenho minhas dúvidas se prima Averil é generosa quando se trata de seu pagamento.

Leila estendeu a mão e tocou o braço do Marquês com delicadeza,

— Por favor, me perdoe — pediu com sinceridade — por preocupá-lo com meus problemas. Sei que deve ter os seus!

— Por que pensa assim? — perguntou o Marquês, curioso.

— Não quero me meter na sua vida particular — começou ela com cuidado — mas se trabalha como cocheiro é porque é bastante pobre!

— Na verdade esse é um trabalho que gosto de fazer — foi a resposta sincera do Marquês — Adoro estar entre os cavalos, adoro cavalgá-los ou conduzi-los. Já que preciso trabalhar, pelo menos que seja ao ar livre.

— Penso também que há outras tarefas que poderia fazer que não a de cocheiro, pois é bastante inteligente — foi a observação de Leila — vou rezar bastante para que consiga encontrar um bom emprego onde tenha contato com seus animais e amigos e seja muito feliz.

— Acho que devia rezar por você mesma — aconselhou o Marquês — Ambos sabemos que sua mãe não aprovaria as pessoas com quem está convivendo no momento. Por isso, quanto mais cedo se mudar para o chalé, melhor.

Enquanto falava, pensava que talvez pudesse solicitar a alguém de sua família para que tomasse conta de Leila e do irmão. Sabia, no entanto, que Peter era uma responsabilidade séria. Tinha certeza de que a avó ou mesmo as tias idosas da família gostariam de ter Leila por companheira.  Mas não podia esperar a mesma disposição de espírito quando se tratava de um garoto.

"Vou pensar em outra solução", pensou o Marquês. "Quanto miais cedo Leila deixar a casa do Senhor Percy Crowe, melhor."

— Vamos por partes — começou o Marquês — deve incentivar sua prima a deixar logo esta casa e partir para Herefordshire, onde ela tenciona ver a casa que quer comprar. Levaremos dois Bias para chegar lá. Após isso, voltaremos a Londres.

— Esse era o plano inicial — respondeu Leila — mas prima Averil parece gostar de ficar aqui em Crowstock Towers, recebendo elogios e flertes de tantos homens. Será difícil fazê-la partir depressa.

— Então finja dor de cabeça todas as noites — aconselhou o Marquês — Suba para seu quarto. Como não terá ocupações durante o tempo que estiver lá, trancada, permita que eu compre musselina, linho e outros materiais de costura necessários para que você possa iniciar seus trabalhos.

Leila pensou por um momento e respondeu,

— Tem certeza de que poderá arcar com essas despesas? Não se privará de qualquer outra coisa que goste por minha culpa?

— Não se preocupe com isso — pediu o Marquês — Como já disse aos outros criados, ganhei uma aposta no Epsom antes de sair de Londres. Tive condições até de pagar as refeições, pois a comida que sua prima forneceu não foi suficiente.

— Fez isso? — perguntou Leila com emoção na voz — Como pode ser tão generoso? Tenho certeza de que ficaram contentes e... Muito gratos.

— Como você, eles também me agradeceram bastante — foi a resposta do Marquês — mas não nos preocupemos com isso agora. Vou obter o material de que precisa na próxima cidade que passarmos, a caminho de Hereford.

Quando Leila fitou o Marquês, seus olhos cheios de admiração pareciam emitir raios de sol.

— Preciso levar Vitória para casa — informou o Marquês, levantando — Tenho certeza de que Wainwright pensa que fugi com seu adorado garanhão.

Leila sobressaltou-se e advertiu, preocupada,

— Não deixe que ele pense isso de você! E, por favor, não faça nada de errado para que prima Averil jamais tenha motivo para despedi-lo.

O Marquês sabia que tal possibilidade estava fora de cogitação, mas perguntou em voz alta,

— Se importaria se eu voltasse a Londres em desgraça?

— Oh, por favor — implorou Leila — não diga isso! Não suportaria vê-lo partir. Na noite anterior, quando me salvou, fiquei pensando como eu era venturosa de ter te encontrado!

— Fico contente de saber que fui útil — respondeu o Marquês em tom de brincadeira.

— Você é tão forte! — elogiou ela — Não conheço nenhum homem que pudesse jogar aquele infame dentro da fonte como você fez.

— Espero que ele te deixe em paz daqui por diante — declarou o Marquês.

— Acho que não me importunará mais — respondeu Leila.

Evitou até olhar para mim no café da manhã e espero que se sinta embaraçado toda vez que se aproximar de mim.

Enquanto Leila falava, o Marquês percebeu que ela sentia calafrios de desprezo. Como não suportava mais ouvir falar naquele homem, o Marquês deu alguns passos em direção às árvores.

Vitória se encontrava pastando a uma certa distância, próximo de alguns arbustos.

— Espere um minuto — pediu o Marquês a Leila — preciso fazer uma experiência.

Deu um assobio e por um momento o cavalo pareceu não se dar conta do chamado.

Em seguida, porém, Vitória levantou a cabeça e o Marquês assobiou novamente. O cavalo, com obediência cega, veio trotando na direção deles.

Leila batia palmas de encantamento.

— Como sabia que ele atenderia ao seu chamado? — perguntou maravilhada.

— Ele foi treinado para isso desde pequeno — respondeu o Marquês — mas temia que comigo o truque não funcionasse.

Leila ria a não mais poder, como se fosse uma criança, e isso encantou bastante o Marquês.

— Se Vitória te pertencesse — tornou ela — talvez você pudesse trabalhar em um circo. A platéia bateria palmas toda vez que ele te obedecesse como agora.

— Acha mesmo que isso mudaria minha vida para melhor? — perguntou o Marquês — Não tenho certeza se pessoas do circo ganham mais do que cocheiros.

Apesar do tom de troça que o Marquês imprimia à pergunta, Leila considerou-a com seriedade. E enquanto o Marquês desamarrava o arreio de Vitória, ela disse,

— Acho que se sairá bem em qualquer trabalho que fizer. É apenas questão de se achar um lugar adequado para você. Qualquer que seja a função que exerça, sei que a executará sempre de maneira brilhante!

— Obrigado! — agradeceu ele com entusiasmo — Quase nunca recebo tanto incentivo no que diz respeito aos meus talentos!

— Eu poderia dizer mais, muito mais — exclamou ela — mas temo que ficará enrubescido!

— Mais do que já estou, é impossível! — afirmou ele sorrindo.

— Fico pensando o que dirá você na próxima vez que nos encontrarmos.

Leila calou-se por um momento e então perguntou com voz quase infantil,

— Falará mesmo comigo na próxima vez em que nos virmos?

— Claro que sim! — assegurou o Marquês — Enquanto isso, cuide-se! E não saia sozinha com homem algum, mesmo que ele seja cego e manco.

Leila deu uma risada adorável.

O Marquês montou Vitória e, levantando o chapéu em sinal de despedida, partiu.

Leila ficou imóvel, vendo-o se afastar. Quando afinal o Marquês desapareceu entre os arbustos, ela deu um longo suspiro. Começou a caminhar por um atalho que a levaria ao jardim.

"Ele é maravilhoso, absolutamente maravilhoso!", refletia, "Como pude ser tão venturosa para encontrar um homem tão gentil?"

Enquanto caminhava, olhava para o céu e rezava,

— Sei, mamãe, que estou errada em aceitar o chalé sem pagar nada e ainda mais por permitir que ele me compre os materiais de costura. Porém, não consigo pensar em outra forma de obter o dinheiro.

Fez uma pausa antes de continuar,

— Não gostaria de ter dito a ele que prima Averil vendeu todos os objetos da casa, mas...

Caminhou até que a enorme casa se mostrou entre as árvores frondosas.

Leila parou, como se não tivesse mais vontade de prosseguir. Pensou como detestava todas as pessoas daquela casa.

Os homens, que estavam embriagados a maior parte do tempo, eram barulhentos e petulantes.  Sabia que todas aquelas coisas eram erradas.

As mulheres mais velhas que ela, ignoravam-na, mas quando avistavam prima Averil, faziam o maior alvoroço.

A julgar pelas palavras que ouvia daquelas mulheres a respeito da prima, concluía que eram invejosas ao extremo.

Os homens não eram gentis nem honestos como seu pai ou o Senhor Laurence tinham sido, enquanto vivos.

Denton Parker e o Senhor Percy, sem dúvida se classificariam no conceito de salafrário de seu pai.

Leila aproximou-se da casa. Dali a algumas horas, os visitantes chegariam do torneio e a algazarra que fariam, Leila não queria ver nem ouvir.

— Oh, meu Deus, tome conta de mim! — murmurou enquanto caminhava em direção à porta da frente — Esses homens e mulheres me apavoram!

 

Leila tinha acabado de se deitar quando ouviu as carruagens chegando das corridas.

O quarto que ocupava era no final do corredor do primeiro andar e ela supôs que aquilo era alguma espécie de privilégio por figurar na lista dos convidados favoritos do Senhor Percy.

O aposento, no entanto, seria mais adequado a um solteirão do que a uma moça.

Das paredes pendiam inúmeras flâmulas de esportes e o quarto seria mais atraente não fossem os tapetes de cores tão berrantes.

Leila sentia-se satisfeita, porém, com as grandes janelas que davam para a parte frontal da casa, o que permitia ver o sol raiar bem cedo. Lá fora, a primeira carruagem se aproximava da porta da frente.

Os recém chegados alvoroçavam e falavam em voz alta. A seguir, um coche se aproximou da carruagem e dentro dele várias mulheres faziam uma algazarra ainda maior.

Leila tinha certeza de que os homens haviam se embriagado. E, julgando pela maneira com que se comportavam, era óbvio que haviam se divertido. Agradeceu ao céu por não tê-los acompanhado.

Fora fascinante encontrar John Lyon no bosque e conversar com ele. Acreditava que não havia no mundo um homem mais fascinante. Dera conselhos sobre o que fazer e a protegera das maldades do mundo. Pensou, com desespero, o que faria quando ele não estivesse mais por perto.

Tinha esperança, porém, de que John Lyon continuasse trabalhando para prima Averil. Sabia, no entanto, como os criados de Londres e do campo desaprovavam a maneira com que a prima os tratava.

— Se eu não fosse tão velha — argumentara uma vez a governanta que servira o Senhor Laurence por longos anos — faria minhas malas imediatamente!

— Por favor, não faça isso! — pedira Leila na ocasião — A casa jamais será a mesma sem você.

Tanto a governanta como o mordomo e as arrumadeiras faziam o impossível para deixar tudo brilhando. Mesmo assim, Lady Horncliffe jamais parecia satisfeita.

 Leila lembrou da consternação que ela e todo o povoado sentiram quando foi anunciada a venda da casa. Ela e Peter não tinham dinheiro e nem para onde ir. A princípio sentira—se grata quando prima Averil solicitou que ficasse.

Mas quando soube que Peter não poderia acompanhá-la e que, pior, seria mandado para um orfanato, passou a odiar a prima. Nunca faltou amor na casa dela, enquanto o pai viveu.  Apesar de a mãe ter ficado desconsolada e perdida após a morte do marido, ainda assim amara, com devoção, os dois filhos. Peter e ela se agarraram à mãe, por ser a única pessoa que tinham na vida.

E agora não tinha em quem se apoiar. Estava sozinha! Não fazia idéia do que teria acontecido se John Lyon não aparecesse em sua vida. Passara uma boa parte da noite anterior acordada pensando numa forma de obter dinheiro rápido. Primeiro, para sustentar Peter ter e custear a educação e depois para pagar um aluguel adequado pelo chalé. Além disso, precisava providenciar a mobília para o chalé. Leila só tinha alguns pertences que restaram da mudança.

Quando prima Averil informou que sua casa fora vendida, acrescentou,

— Já que você vem morar comigo, não precisará de nada. Sendo assim, vendi sua casa com toda a mobília que há nela.

Leila pedira de joelhos à prima que pudesse guardar, pelo menos, alguns objetos de estimação que pertenceram a sua mãe.

Entre eles havia uma bonita escrivaninha de estilo francês, onde a mãe se sentava para escrever cartas. Uma mesa embutida, recordação do pai, que ali colocava o tabuleiro de xadrez, além de inúmeros quadros, sendo que um deles tinha um valor especial para Leila, pois o pai contara uma linda história sobre ele.

Conseguiu, afinal, permissão para tirar esses poucos objetos da casa, antes que o novo proprietário tomasse posse.O vigário, que sentia pena de Leila, permitiu que os móveis ficassem alojados nas dependências da igreja. A prima, no entanto, não deixou que ela recuperasse a cama e as cortinas. Somente quando John Lyon entregasse os acessórios de costura com os  quais trabalharia e obteria o dinheiro necessário, é que se preocuparia em adquirir um dormitório decente para ela e o irmãozinho.

— Vai ser difícil, muito difícil — concluiu — mas qualquer outra espécie de vida será melhor do que ter Peter afastado de mim ou ainda ver prima Averil reclamando de cada centavo que custamos. Com a ajuda de Deus, conseguiremos — disse para si mesma, levantando o queixo, como se quisesse desafiar o mundo.

O terceiro coche se aproximou e a primeira pessoa que saiu dele foi o Senhor Denton Parker.

Leila, ao avistá-lo, afastou das cortinas como se temesse ser vista por aquele homem odioso, apesar de ser improvável que isso acontecesse.  Porém, a simples visão do homem a fazia estremecer.

Sentia vergonha quando se lembrava das palavras, cheias de malícia, que ele dissera.

E ainda mais por conhecê-lo há tão pouco tempo, tais palavras soavam ainda mais injustificadas. Odiava-o pelo que dissera, mas odiava-o ainda mais pela maneira com que a olhara.  Havia uma expressão naqueles olhos que, Leila sabia, guardava pecado e maldade.

— Devo evitá-lo esta noite — ponderou ela — E espero que prima Averil resolva partir logo daqui.

A hora do jantar se aproximava. Leila tomou um banho e colocou um vestido simples que ela própria confeccionara. Aproveitara o tecido de um dos vestidos da mãe que já estava fora de moda.

Sabia que a beleza dos outros vestidos que veria durante e jantar ofuscaria a simplicidade de sua roupa.

Embora não percebesse, o vestido caía muito bem.A simplicidade e a maneira com que a roupa revelava-lhe as formas do corpo belo e escultural, realçando ao mesmo tempo a cintura delgada, dava um ar de deusa jovem e inocente.

No entanto, preocupava-se mais com o vestido que confeccionara para a prima do que com o que usava naquele momento.

Fora um trabalho complicado. O vestido tinha a etiqueta famosa de um costureiro de luxo de Bond Street e era lindo, com a pala bordada com brilhantes. A prima reclamava que a roupa estava apertada demais na altura do busto,  E Leila fizera o impossível para colocá-lo em ordem.

Esperava agora que a prima aprovasse o trabalho que fizera com tanto sacrifício. Decidiu não descer para o jantar antes que faltasse somente alguns minutos. Se chegasse antes à mesa, o Senhor Denton Parker a cortejaria como fez na noite anterior.

Ele não perdia as chances que tinha de tocá-la no braço, no ombro, nas mãos, o que a deixava furiosa.

Ouviu-se uma batida leve na porta.

Era a dama de companhia de prima Averil que vinha trazer um recado,

— Milady quer vê-la! — informou com voz seca e agressiva como sempre fazia quando se dirigia a Leila. Com  certeza a criada sentia ciúme por Leila ser útil a sua ama.

— Sempre fiz as mesmas coisas que você — dissera ela, de maneira agressiva, tão logo se viu a sós com Leila na primeira vez — e nunca ouvi nenhuma reclamação!

— Sei que você costura bem — elogiara Leila, pacífica — mas acho que esse é o único dom que tenho. Sendo assim, fico grata por Lady Horncliffe me deixar trabalhar para ela.

Sempre pensara que a dama de companhia, cujo nome era Smithers, se achava em condições melhores que ela. Pelo menos a criada era paga de maneira razoável, ao passo que ela nada  recebia por seus trabalhos.

Esperara receber alguma recompensa pelos trabalhos que executaria, mas quando chegou à casa da prima, esta disse,

— Já que vou sustentá-la e você é minha companheira e não criada, não há razão para que seja remunerada. Peça-me qualquer coisa que queira comprar.

Leila ficou desapontada quando se lembrou das muitas horas que passava costurando as roupas da prima e, ainda assim, não tinha direito a uma recompensa justa.

Com  timidez, pois se sentia nervosa, respondeu,

— Gostaria de ter algum dinheiro para comprar presentes para Peter e... Para você.

As últimas palavras soaram após alguns instantes de reflexão, porém Lady Horncliffe não se impressionou,

— Os presentes que quero receber de você são gratidão e lealdade — respondera a prima — Esses são tesouros incalculáveis.

Cinco semanas mais tarde, quase às vésperas da viagem à Heredfordshire, Leila ousou pedir, timidamente, um xale ou casaco leve.

— Tenho certeza de que posso comprar um bem barato — assegurara à prima como que se desculpando.

— Duvido! — foi a resposta seca de Lady Horncliffe — É melhor vasculharmos nas roupas que não uso mais.

Após uma longa verificação no guarda-roupa, a prima apareceu com um casaco velho e desbotado.

Um vestido de noite, manchado de vinho na altura do seio, também, foi cedido.

E, finalmente, Leila recebeu nas mãos um xale tão usado, que já tinha perdido todas as franjas. Leila, com mãos engenhosas, conseguiu deixar o vestido em ordem, livrando-o da mancha.

Esperava não precisar usar o xale, pois o detestara. A peça fazia com que se sentisse como uma criança carente.  Agora, como se Smithers tivesse guardado rancor, informou entre os dentes,

— Milady quer provar o vestido que você consertou. Se não ficar bom, não haverá dinheiro que pague o prejuízo!

— Diga que já vou — respondeu Leila.

Pegou o lenço e deu uma última olhada no espelho, para ver se o cabelo não se desarrumara. Caminhou, então, a passos largos, para o quarto da prima.

Lady Horncliffe se achava hospedada num dos melhores aposentos da casa.  Uma enorme cama de quatro colunas, adornada por um luxuoso cortinado de cetim e renda, ocupava metade do espaço do quarto.

A mobília não era atraente, mas parecia bastante cara. O mesmo podia-se dizer do tapete e do acolchoado.

Averil Horncliffe, que usava a lingerie mais cara que já se viu, esperava com impaciência.

Tão logo viu Leila entrar no quarto, reclamou em voz alta,

— Por que demorou tanto? Achei que era melhor me ajudar a provar o vestido. Afinal, foi você quem o consertou.

— Pois não, prima Averil — respondeu Leila, solícita — Espero que agora sinta-se melhor com o vestido.

— Ficarei muito aborrecida se não me sentir — foi a resposta seca de Lady Horncliffe — Essa roupa me custou os olhos da cara!

Leila e Smithers ajudaram Lady Horncliffe a se vestir.

Leila sentiu um grande alívio invadi-la ao constatar que a roupa ficara perfeita no corpo da prima, e que esta não tinha do que se queixar.

A Lady mirou-se no espelho. O aplique de brilhantes na pala cintilava à luz do sol poente que entrava pela janela.

— Usarei meu colar de diamantes!

— Mas a Senhora não ia usar o colar de turquesas, Milady? — perguntou Smithers, na tentativa de ser amável.

— Mudei de idéia! — respondeu a Lady com voz seca — Quero também o bracelete e os brincos de diamantes e, claro, meu lindo anel, também de diamantes.

— Estão todos guardados no cofre, como Milady pediu — foi a resposta de Smithers.

— Então vá buscá-los! O que é que está esperando? — ordenou Lady Horncliffe com voz severa.

Tão logo Smithers deixou o quarto, Lady Horncliffe disse a Leila,

— Agora que estamos sozinhas, tenho chance de falar contigo.

— Sobre o quê? — perguntou Leila, um pouco nervosa.

— Sobre seu ardente admirador, quem mais poderia ser?

Leila sentiu-se tensa, mas a prima continuou,

— Ele conversou comigo enquanto assistíamos as corridas e eu acho que você é uma garota de sorte!

Leila nada respondeu e a prima continuou,

— Por causa da paixão louca que você despertou nele, saiba que ganhará uma linda casa em Londres, com escritura em seu nome, além de um depósito de dez mil libras num banco!

Lady Horncliffe deu a notícia com nota de triunfo na voz. Fez, então, um gesto impetuoso com as mãos, dizendo,

— Ninguém poderia desejar algo melhor na vida e acho melhor você aceitar logo a proposta antes que ele mude de idéia!

Leila reteve a respiração. Queria gritar que odiava o Senhor Denton Parker e que não se casaria com ele nem que fosse o último homem sobre a face da terra. Lembrou—se, então, de que tal atitude despertaria a fúria da prima contra ela. Achou melhor dizer tudo pessoalmente ao homem em questão.

— Ele é tão rico! — exclamou Lady Horncliffe com entusiasmo — Até o Senhor Percy sente inveja dele.

Ela não parecia surpresa por Leila nada responder e, então, continuou,

— O que uma mulher precisa neste mundo é de posição e dinheiro e eu posso garantir que é difícil encontrar os dois ao mesmo tempo! — Sorriu à própria afirmação — Tenho tido muita sorte, devo admitir. E, prima, desejo conquistar Londres, ser aclamada pela classe privilegiada, antes que resolva me casar de novo!

Lady Horncliffe deu uma risadinha marota antes de prosseguir,

— Os homens me perguntam quando deixarei que coloquem uma aliança no meu dedo. Aí respondo que, primeiro, quero verificar suas contas bancárias! Agora, seja boazinha e diga ao Senhor Denton Parker esta noite tudo o que ele quer ouvir, certo? — Fez uma pausa e acrescentou,

— E, por falar nisso, eu não disse a ele nenhuma palavra sobre aquele seu irmãozinho enfadonho. E você também não deverá dizer até que tenha nas mãos a escritura da casa e as dez mil libras. Siga o meu conselho e se dará bem!

Felizmente não houve nenhuma chance de Leila replicar. A porta se abriu e Smithers entrou carregando vários porta jóias.

No momento em que Lady Horncliffe acabou de se aprontar, mais parecendo uma árvore de natal, já era hora de descerem para o jantar. Quando entraram na sala de visitas, onde costumavam se reunir antes do jantar, o Senhor Denton Parker olhou primeiro para Lady Horncliffe como que para obter alguma confirmação.

Ele sabia que Leila já fora informada de sua oferta e, a julgar pela expressão de seus olhos, tinha certeza de que não haveria recusa.

"Eu o odeio!", confessou Leila para si própria.

Então, para seu alívio, o Senhor Percy surgiu com novos convidados que acabavam de chegar para o jantar e os apresentou a ela.

Dois deles sentaram-se ao lado de Leila, na grande mesa de jantar.

Esses cavalheiros destoavam de todos os outros amigos do Senhor Percy. Ambos interessavam-se por cavalos e a conversa fluiu tranqüila e descontraída.

Os dois rapazes surpreenderam-se à vista dos outros convidados que acharam extravagantes e afetados. Ao final da recepção, estavam embriagados e bastante barulhentos.

"Vou subir para o quarto assim que as mulheres deixarem a sala de visitas", decidiu Leila.

Rezava para que a prima não percebesse quando deixasse o aposento.

Resolveu então que devia esperar até que a dança começasse e os cavalheiros se juntassem às Senhoras.

Quando chegaram à sala de visitas, outros convidados das casas vizinhas, alguns dos quais já haviam estado ali na noite anterior, esperavam ao redor de uma mesa grande, sobre a qual havia vários drinques.

Tudo fora arranjado durante o jantar e Leila percebeu ser aquilo uma espécie de trama entre o Senhor Percy e Lady Horncliffe para que esta fizesse o papel de anfitriã dos recém chegados.

Com  efeito, logo em seguida Lady Horncliffe se viu rodeada por homens que a elogiavam. Leila aproveitou a oportunidade para deixar a sala.

Subiu correndo as escadas em direção ao quarto.

Somente após fechar a porta atrás de si, é que se sentiu segura.

— Se ao menos eu pudesse conversar com John Lyon! — exclamou — Ele me diria o que fazer.

Sentia-se pressionada por prima Averil e o Senhor Denton Park, e era difícil desafiá-los sozinha. 

A ceia na sala da governanta aconteceu mais tarde naquela noite, tendo em vista o grande número de convidados extras que chegou para o jantar.

Quando o mordomo se viu livre das tarefas, a criadagem se distribuiu na mesa como de costume.

— Dois bailes por noite dá muito trabalho! — reclamou a governanta ao Marquês.

— É certamente um fardo pesado para toda a criadagem — concordou ele, tentando ser gentil.

— Minhas meninas não conseguem acabar o serviço antes das duas da manhã, quando há festas assim — reclamou novamente a governanta — Nesta noite, especialmente, não terminaremos antes que amanheça o dia.

— É bastante difícil para você, não? — perguntou o Marquês com complacência na voz.

— Você deve entender — continuou a governanta — mas era diferente quando Milorde vivia.

— Sente falta dele, não? — foi a pergunta do Marquês.

— Mais do que ouso pensar — respondeu a governanta — O Senhor Percy é generoso, não posso dizer que não, mas nada é como antes.

A mulher deu um sorriso de desgosto. O Marquês sabia que a mulher continuaria o magoado discurso não fosse o falatório que começou a tomar conta da mesa. E disso o Marquês não participava.

Foi divertido para ele saber que nenhum criado deixava de denegrir a imagem de qualquer mulher, caso esta parecesse leviana. Desejou estar longe dali, bebericando no White's com os amigos ou em companhia de Lorde Charles. O cansativo e tenso jantar afinal chegou ao fim. O Marquês despediu-se de todos, argumentando que daria algumas voltas pelo jardim antes que os casais apaixonados tomassem conta do local.

— E tome cuidado, Senhor Lyon — aconselhou uma das criadas — Soube que o pobre Senhor Mortimer foi atirado à fonte por um daqueles desordeiros e se ensopou todo!

— As roupas dele ficaram em petição de miséria — foi a observação do criado do Senhor Mortimer.

— Terei cuidado! — assegurou o Marquês, enquanto caminhava para a porta.

Esperava que Leila tivesse seguido suas instruções e não acompanhasse nenhum homem estranho ao jardim naquela noite. A moça era bastante assediada pelos homens em virtude de sua rara beleza.

Da sala de jantar vinha um barulho de vozes e algazarra.

Os cavalheiros não hesitavam em se embriagar mesmo antes das Senhoras deixarem a mesa.

"Graças a Deus não tenho esse vício", pensou o Marquês.

De fato, abstinha-se do álcool para manter o peso, pois isso o ajudava a cavalgar melhor. De qualquer forma sempre pensara que todo homem embriagado fazia o papel ridículo perante as outras pessoas.

No momento em que atravessava a copa, percebeu que vários criados ali se reuniram para mexericar. Poderia ter seguido em frente sem que fosse notado, porém uma frase chegou aos ouvidos, chamando a atenção,

— O Senhor "Fortuna" me prometeu duas libras.

 — Você quer dizer, o Senhor Denton Parker? — perguntou um outro criado.

— Nem imagina o que ele quer...

O Marquês mal ouvia a pergunta e já se encontrava fora da vista dos mexeriqueiros quando a resposta feriu os ouvidos com a intensidade de um trovão.

— A chave do quarto dela é o que ele quer!

O Marquês ficou paralisado. Passou pela cabeça, como um relâmpago, que não advertira Leila para que mantivesse a porta do quarto sempre trancada.

Voltou devagar até a frente da porta.

O lacaio que acabara de falar, segurava uma chave dourada na mão.

— Devia ter pedido mais por isso. É uma peça que vale ouro — foi a observação do outro lacaio.

— Duas libras não é assim tão mau! — defendeu—se o lacaio que segurava a chave.

O Marquês ficou parado na sombra, pensando no que fazer. Resolveu afinal e gritou em tom casual,

— É melhor ficarem alertas! Acabo de sair da sala da Senhora Field.

Os lacaios refletiram sobre a advertência do Marquês. Se a ceia terminara na sala da governanta significava que logo o mordomo apareceria por ali.

Teriam problemas, pois, se não estivessem em seus devidos postos. Os lacaios destinados ao serviços de corredor apressaram em deixar a copa. Os que serviram os convidados na sala de jantar trataram logo de se voltar para a pia e lavar as bandejas de prata.

Quando o lacaio com a chave passou perto do Marquês, este o agarrou pelo braço e ofereceu,

— Te dou três libras por essa chave que tem no bolso!

— A chave é do Senhor Denton Parker. Foi ele quem me pediu.

— Eu sei — foi a resposta do Marquês — mas acabei de te fazer uma oferta melhor. Faça uma escolha!

O lacaio tirou a chave do bolso.

— Que acha de quatro libras — sugeriu o lacaio — para que eu diga ao homem que não encontrei chave alguma no quarto da Senhorita?

O Marquês tirou o dinheiro do bolso.

— Sabe barganhar, hein? — repreendeu o Marquês com desprezo.

— Você, sem dúvida, vai longe, mau caráter como seu Senhor! — concluiu com aspereza na voz.

 O lacaio pegou o dinheiro e guardou-o rapidamente.

— Espero que se divirta! — foi a resposta maliciosa que devolveu ao Marquês, que teve vontade de esmurrá-lo por seu descaramento.

— Se falar sobre isso com alguém — advertiu — corto seu pescoço! — vociferou o Marquês.

Falou com a mesma voz baixa e ameaçadora que costumava usar com os homens mais fortes.

—  Jamais farei isso, Senhor Lyon — assegurou o lacaio com voz trêmula — Eu juro!

— É melhor mesmo que não faça! — advertiu o Marquês.

O Marquês subiu as escadas e quando se encontrava no primeiro andar, viu quando uma das camareiras saiu de um dos quartos de luxo.

— Alo, Senhor Lyon — cumprimentou a mulher, faceira — o que faz aqui?

— Tenho um recado para a Senhorita Horn — foi a resposta dele — Seja boazinha e me indique o quarto dela.

— Sempre sou boazinha com homens atraentes como você - respondeu a criada com uma risadinha maliciosa.

A mulher devia ter uns quarenta anos, porém parecia ainda um tanto imatura para a idade.

— Posso ver suas asas de anjo batendo — brincou o Marquês e a mulher deu um largo sorriso.

— O quarto dela é o último do corredor — informou apontando naquela direção — E ela esta lá, pois a vi subindo há pouco.

— Da próxima vez que a encontrar, quero vê-la com sua auréola — brincou o Marquês outra vez.

O Marquês ainda ouvia a risada da camareira quando se aproximou do quarto de Leila. Bateu de leve na porta. Após uma pequena pausa ela disse,

— Entre!

Leila, quando o viu em seu quarto, ficou surpresa. O cabelo dourado prateado espalhava sobre os ombros delicados.

Usava uma linda camisola fechada até o pescoço, o que conferia um ar infantil.

Sentada a uma mesa, sobre a qual havia três velas acessas, Leila costurava o vestido de Lady Horncliffe que se rasgara na noite anterior, enquanto dançava.  O Marquês entrou no quarto e Leila perguntou, com voz aflita,

— Aconteceu alguma coisa?

 Ele fechou a porta com cuidado.

— Isso! — respondeu, tirando a chave do bolso.

Leila colocou o trabalho sobre a mesa e se levantou.

— O que significa isso? — perguntou sem entender a expressão severa com que o Marquês a olhava.

— É a chave de seu quarto!

Leila reteve a respiração.

— Como conseguiu? Quem a tirou daqui?

— Aí é que está o porquê de toda a história! — exclamou o Marquês — E você devia saber que numa casa como esta deve manter a porta do quarto trancada!

Leila arregalou os olhos.

— Nunca pensei nisso!

— É algo que não deve esquecer no futuro, Leila — repreendeu o Marquês, com voz áspera.

— Mas eu... não estou entendendo!

— Denton Parker ofereceu duas libras a um criado para que ele conseguisse a chave de seu quarto.

Leila empalideceu.

— O Senhor Denton Parker? — ela repetiu, aflita — Você quer dizer que...

— Que ele tencionava fazer uma visita esta noite!

— Oh, não! Como ele é capaz de uma maldade dessas?

— Seria fácil para ele entrar no seu quarto, já que a idéia de trancá-lo não te ocorreu — comentou o Marquês.

— Lógico que não! Como eu podia imaginar que um homem fosse capaz disso?

— Trate de pensar a partir de agora, menina — aconselhou o Marquês com uma nota de advertência na voz — Seja mais cuidadosa no futuro. Tranque sempre seu quarto e quando notar que a chave desapareceu, procure a governanta e peça um outro quarto.

Leila juntou as mãos e perguntou desesperada,

— Como pode um homem se comportar de maneira tão desprezível? E ele pediu que prima Averil me fizesse aquela oferta absurda e ela quase me forçou, a aceitar.

Leila dizia as palavras atropeladamente, fazendo com que parecessem incoerentes.

— Que oferta? O que ele te propôs?

— Uma casa com escritura em meu nome e dez mil libras no banco.

— Que generosidade! — exclamou o Marquês com sarcasmo — Mas suponho que você queira se casar.

Enquanto Leila falava, sua expressão se enchia de perplexidade,

— Realmente ele me pediu em casamento. Mas ele é o último homem do mundo com quem me casaria!

— Ele já é casado! — informou o Marquês — Fiquei sabendo por seu criado, esta manhã, que Denton Parker é casado há dez anos e tem três filhos.

Leila colocou as mãos no rosto.

— Você tem certeza? Mas prima Averil disse que...  como pode? Como pode pensar que... eu fosse fazer algo tão errado... tão perverso?

— Não passou pela cabeça que ela queria que você fosse amante de Denton Parker? — perguntou o Marquês.

— Não! Nunca pensei que um cavalheiro fosse capaz de sugerir tal condição! E, agora, o que faço?

— Agora — ordenou o Marquês com firmeza— você se manterá trancada no quarto e amanhã dirá ao Senhor Denton Parker exatamente o que pensa dele.

Os olhos de Leila mostravam uma consternação tão grande diante da maldade do mundo que o Marquês jamais vira em qualquer mulher.

Colocou então a chave na fechadura e estava prestes a abri-la quando ouviu passos do lado de fora.

Seria fatal se fosse visto nos corredores. Fez então um gesto pedindo silêncio a Leila e girou a chave na fechadura.

Ouviu-se uma batida leve na porta e ambos ficaram tensos, com a respiração suspensa.

Leila não fez o menor movimento e, após alguns minutos, ouviu-se outra batida.

O Marquês fez um sinal a Leila.

Então, com uma voz débil e amedrontada, ela perguntou,

— Quem é?

Foi então que tentaram abrir a porta. Após a tentativa frustrada, ouviu-se a voz de Denton Parker, pedindo,

— Leila, abra esta porta! Tenho algo importante para te dizer!

Leila se dirigiu ao Marquês em busca de proteção. Quando se encontrava bem junto dele respondeu,

— Já é tarde e eu vou me deitar!

— Mas eu não vou me demorar muito — foi a resposta de Denton Parker — Tenho um recado de sua prima.

— Que recado?

— Não posso falar aqui, do lado de fora.

Enquanto Denton Parker falava, tentava por todos os meios abrir a porta e praguejava baixinho.

— Eu já vou me deitar — insistiu Leila — Diga à prima Averil que amanhã bem cedo conversarei com ela.

— Quero vê-la agora! — ordenou Denton Parker.

Por intuição, o Marquês percebeu que ele tencionava abrir a porta à força, caso não fosse obedecido. Com um gesto rápido, o Marquês se colocou contra a porta.

Só um homem muito forte poderia movê-lo dali.

Com efeito, Danton Parker começou a forçar a entrada no quarto, colocando as costas contra a porta. E teria conseguido arrombá-la, caso o Marquês não se encontrasse ali, naquele momento.

Após alguns minutos de intensa luta, Denton Parker mostrou se exausto, pois, após um débil e último esforço para entrar no quarto, desistiu e foi embora.

O Marquês esperou até que não ouviu mais o som dos passos dele.

Leila também esperou, ansiosa.

Deu um suspiro de alívio e correu na direção do Marquês, exclamando,

— Você me salvou! Você me salvou outra vez! — gritava— Como pode chegar

aqui na hora certa?

Leila agarrou-se a ele, cheia de emoção, e o Marquês a envolveu em seus braços. Percebeu que ela tremia da cabeça aos pés.

— Ele vai tentar de novo! O que farei então? Tenho de fugir daqui! — exclamou Leila aterrorizada.

O Marquês outra vez pensou que nunca vira uma mulher parecer tão bela enquanto sentia medo. Ao mesmo tempo, ela precisava de proteção.

— Está tudo bem! — acalmou—a o Marquês — Ele não tentará mais esta noite!

— Mas, e amanhã, quando prima Averil quiser fazer de mim uma pessoa tão perversa quanto Denton Parker?

Somente agora Leila se dava conta do plano de que era vítima.

— Diga-me, por favor, o que devo fazer? — implorou ela, chorando.

Sem outras reflexões, exceto que ela era adorável e estava ali, aninhada em seus braços, o Marquês atraiu-a para si e a beijou com ternura.

Por um momento, Leila ficou perplexa.

Então, à medida que o Marquês a beijava com mais ardor, sentiu como se ele tivesse aberto as portas do céu e a atraído para dentro do paraíso com ele.

Naquele momento descobriu que o amava desde o primeiro momento que o vira.

Mesmo se ele não a quisesse, sabia que já era uma parte dele e que ninguém podia mudar isso.

Leila sentiu como se todas as estrelas do céu tivessem descido àquele aposento. Uma luz infinita a iluminava por inteiro e, por ser pura e bela, parecia vir de Deus.

Os lábios de Leila provocavam sensações no corpo do Marquês que ele jamais experimentara com qualquer outra mulher. Mal podia acreditar no que aconteceria naquele momento, cheio de magia e novidade.

A mulher que tinha em seus braços não era comum, comparava-a uma jóia preciosa que só se encontra uma vez na vida.

A sensação que o invadia era arrebatadora e o Marquês sabia que Leila  sentia o mesmo êxtase divino naquele momento.

A intimidade que os unia não podia ser expressa em palavras. O Marquês jamais experimentara a metade que fosse desses sentimentos em nenhum de seus vários casos amorosos.

Depois do que pareceu um século de delícias, mas que na realidade durou apenas alguns minutos, o Marquês levantou a cabeça.

O rosto de Leila assumira uma expressão diáfana, mais característica de anjos do que de seres humanos.

Ela era parte do céu naquele momento.

Nada mais havia do pranto, do medo e da consternação que a invadira antes que o Marquês a tocasse.

O amor que irradiava não era físico, mas brotava do fundo de sua alma inocente.

Por um momento apenas se fitaram, calados.

Então, como se as palavras não devessem ser ditas para não macular aquele momento mágico, o Marquês tornou a beijá-la e continuou até que sentissem que flutuavam no paraíso e o mundo não os pudesse mais conter.

Outra vez um século se passou e de repente o Marquês confessou, sem nem mesmo acreditar no que dizia,

— Minha querida! O que você fez comigo? Que mágica é essa que você usa para me fazer sentir tanta felicidade?

— Eu... te amo! — murmurou Leila — Nunca pensei que quisesse me beijar!

— Não sei por que esperei tanto tempo! — exclamou o Marquês, beijando-a novamente.

Alguns minutos depois, ele falou com voz grave,

— Não pode ficar nesta casa nem mais um minuto!

Houve uma pequena pausa, como se Leila sentisse dificuldade de se localizar no espaço e no tempo. Então, ela disse,

— Graças a Deus você me entende! Eu tenho de fugir!

— Claro que a entendo! — concordou o Marquês — Agora vamos! Faça suas malas, vamos partir imediatamente!

Leila arregalou os olhos.

— Partir? — perguntou ela, perplexa — Mas eu não quero feri-lo e nem fazer com que perca o emprego!

O Marquês sorriu.

— Se importa realmente comigo, meu amor?

— Claro que sim! — exclamou ela com preocupação na voz.

— Se ao menos você me dissesse para onde devo ir, de sorte que aquele homem não me encontre, eu...

— Eu prometo que ele não ousará segui-la. Agora, faça suas malas!

Após pensar por um momento, o Marquês acrescentou,

— Você consegue levar suas malas lá para baixo, sozinha?

— Sim, consigo!

— Então, após se vestir, vá até o estábulo. Ficarei lá te esperando e será melhor que ninguém saiba que partimos, até o amanhecer.

— E prima Averil?

— Se ela realmente se importa com você, será bem feito! — vociferou o Marquês — Não tinha o direito de...

Ia dizer mais, porém concluiu que Leila podia se aborrecer. Beijou-a, então, com delicadeza e disse,

— Faça o que eu pedi e deixe o resto por minha conta.

— Tem mesmo certeza de que não será prejudicado? Prima Averil jamais dará uma carta de referência.

— Posso passar muito bem sem os favores de sua prima! — respondeu o Marquês com desdém — Agora, pare de se preocupar com isso e cuide da sua fuga.

O Marquês a atraiu para si e confessou com a voz embargada de emoção,

— Eu te amo, Leila!

Caminhou para a porta e, quando a abriu, disse,

— A título de prevenção, tranque esta porta enquanto se veste.

Os olhos dela se encheram de medo.

— Serei bem rápida! — respondeu com um sorriso encantador.

O Marquês correu para o seu quarto e juntou os poucos pertences que trouxera na mala de couro. Tirou o dinheiro de onde o escondera e desceu pelas escadas do fundo da casa, caminhando com rapidez na direção do estábulo.

Temia que Wainwright já tivesse ido dormir.

Para seu alívio, encontrou-o, como de costume, lendo o jornal de esportes na sala de arreios.

— Alo, Lyon — saudou ele quando o Marquês apareceu — não o esperava aqui a esta hora.

— Ainda bem que você está aqui agora — disse o Marquês, não podendo esconder o alívio.

Entrou então na sala de arreios, onde Wainwright lia o jornal, e apresentou ao cocheiro uma nota de vinte libras.

— São suas, se me ajudar — informou com firmeza.

Colocou mais cinco notas do mesmo valor num monte separado e acrescentou,

— Essas outras notas são uma garantia de empréstimo. Devolverei tudo que me emprestar.

Wainwright fitou-o surpreso,

— O que significa isto?

 

— Uma carruagem e dois cavalos, e quero os melhores que tiver — ordenou o Marquês.

— E realmente acha que vou emprestá-los? — perguntou o cocheiro, incrédulo.

— Gostaria de acreditar que confia em mim. Prometo que tudo que for emprestado será devolvido nas mesmas condições. Como sabe, o Senhor Percy jamais perceberá a falta.

Houve um longo silêncio.

O Marquês usou força de persuasão, a maior arma que teve na guerra. E, finalmente, Wainwright cedeu,

— Tudo bem, Lyon — concordou — Posso ser um tolo, mas confio em você e ficarei surpreso se me desapontar.

— Prometo que não o farei! — foi a resposta do Marquês —Poderia te dar um cheque no valor total do empréstimo, mas não poderia assinar Lyon. E acho melhor, caso ocorra qualquer contratempo, que você não sabia muito sobre mim.

Wainwrigth deu um sorriso inesperado.

— Sempre soube que você tinha algum mistério — confessou o cocheiro — Mas, sei que tem pressa, então não percamos tempo conversando.

Wainwrigth pegou as notas que o Marquês deixara sobre a mesa e as colocou no bolso.

Deu ordens então aos cavalariços que trabalhavam no estábulo àquela noite. Quando Leila chegou ao estábulo, dois dos melhores cavalos do Senhor Percy já se achavam atrelados à carruagem que era elegante e nova.

Tão logo o Marquês a viu, correu para ajudá-la com a bagagem. Nunca pensou que pudesse ver mulher mais bela e mais feliz.

— Vai mesmo me tirar daqui? — perguntou Leila em voz baixa.

— Imediatamente! — exclamou ele — Já está tudo preparado!

O Marquês ajudou a subir na carruagem, que tinha dois assentos na frente e um outro, na parte traseira.

A capota da carruagem foi arriada em virtude da noite quente.

O Marquês sabia que o luar iluminaria o caminho com mais eficiência do que as duas lanternas que pendiam nas laterais da carruagem.

Após acomodar Leila, estendeu uma manta. Foi então para o outro lado e tomou assento na direção.

Antes de partir, estendeu a mão para Wainwrigth,

— Obrigado, amigo — agradeceu o Marquês — Nunca me esquecerei da confiança que depositou em mim. Prometo que será bem recompensado.

— Boa sorte e que Deus os abençoe — despediu Wainwrigth com um sorriso.

O Marquês tomou as rédeas e conduziu a carruagem para fora do pátio. No momento em que passavam pelos grandes portões e entravam na estrada, Leila aproximou-se do Marquês,

—  Acho que estou sonhando — confessou — Tenho medo de acordar.

— Nós dois estamos sonhando — foi a resposta apaixonada do Marquês — E é um sonho que vai se tornar realidade!

O Marquês sabia que o que dizia era verdade.

Encontrara algo que jamais pensara encontrar em qualquer lugar do mundo e desta vez não haveria desilusões.

Porque era simplesmente algo com o nome de Amor.

 

O Marquês dirigiu por uma hora e meia.

Como a estrada era estreita e cheias de curvas, decidiu que era melhor parar para descansar o resto da noite. Já passava de uma hora da manhã, quando entrou num pequeno povoado.

Lembrou de que passava por ali muitas vezes quando ia caçar. Era um lugar bonito, com uma hospedaria pintada de branco e preto, contrastando com as casas verdes.

Havia um tanque com vários marrecos, rodeado de bocas de leão que, muito amareladas, refletiam—se na água esverdeada, dando um bonito efeito.

Enquanto o Marquês puxava os cavalos, Leila perguntou,

— Por que paramos?

— Porque não quero que se canse — respondeu o Marquês com ternura — Temos um longo caminho a seguir amanhã bem cedo.

Passou os arreios e pediu,

— Segure os cavalos enquanto vou ver o que posso conseguir para nós.

O Marquês caminhou até a hospedaria que se encontrava fechada. Foi para os fundos, na intenção de acordar o proprietário caso estivesse  dormindo.

— O que você quer? — perguntou o homem com voz truculenta até que viu o Marquês iluminado pelo luar — Senhor?

— Sinto muito perturbá-lo — desculpou-se o Marquês — mas minha irmã veio comigo e será difícil prosseguirmos viagem  se não pudermos descansar. Poderíamos passar o resto da noite aqui? Eu o recompensarei por isso!

O proprietário não esperou ouvir mais nada. Vestiu as roupas com rapidez e desceu as escadas.

Nesse ínterim, o Marquês examinou os estábulos. Havia dois muito bons e limpos que poderiam acomodar bem os cavalos.

Teve a preocupação de encher os cochos com água fresca. Com certeza, Wainwright colocara um saco de aveia na parte traseira da carruagem, para alimentar os animais.

Quando voltou dos estábulos, o proprietário o esperava,

— Sinto muito, Senhor, mas só tenho um quarto de hóspede vago, mas há um sofá muito bom lá.

— Eu aceito — foi a resposta do Marquês — Informo que já levei meus cavalos para o estábulo.

Quando o proprietário saiu e se deparou com os cavalos e a carruagem, ficou bastante impressionado.

O Marquês conduziu os animais para o pátio do estábulo e o proprietário ajudou-o a desatrelá-los.

Enquanto isso, a esposa do proprietário providenciava para que Leila se acomodasse no quarto de hóspedes.

Era um aposento bastante agradável, com teto de vigas e duas janelas, sendo que uma dava para o gramado e a outra para os fundos da hospedaria. No entanto, havia somente uma cama grande e um sofá.

— Ouvi o cavalheiro dizer que trazia a irmã com ele — informou a mulher a Leila — Sei que meu marido só tem esse quarto disponível hoje. Mas seu irmão poderá dormir no sofá, enquanto você ocupa a cama. vou providenciar mais cobertores e outro travesseiro.

Foi buscá-los e os colocou sobre o sofá. Perguntou então,

— Há mais alguma coisa de que precise, Senhorita?

— Não, obrigada — respondeu Leila — Tenho certeza de que teremos conforto.

Quando a esposa do proprietário saiu, Leila afastou o sofá o quanto pode da enorme cama.  Começou a tirar a roupa com rapidez.

Quando olhou pela janela viu o Marquês ainda no estábulo com o proprietário.

Uma lanterna estava acesa e a cabeça do Marquês se projetava na luz.

— Ele é tão maravilhoso — disse Leila, admirando-o — Obrigada, meu Deus, por tê-lo encontrado.

Quando terminaram de cuidar dos cavalos, o proprietário insistiu para que o Marquês tomasse um aperitivo.

Como era de se esperar, ele tinha uma sede violenta. Ficou satisfeito quando o proprietário trouxe uma caneca de cidra.

— Gostaria de levar um pouco para minha irmã — pediu ele — Faz tempo que estamos viajando.

— Infelizmente não tenho mais coisas para oferecer — comunicou o proprietário — Porém, tenho um pedaço de presunto, se quiser.

— Não temos fome — respondeu o Marquês — mas gostei da cidra e se quiser encher de novo minha caneca...

O proprietário se prontificou.

O Marquês então subiu as escadas com as duas canecas de cidra.

Abriu a porta do quarto.

Duas velas ardiam ao lado da cama que, no entanto, estava vazia. Leila dormia no sofá estreito do outro lado do quarto.

Dirigiu-se para ela, mas quando viu que dormia deteve-se. Leila mergulhara num sono profundo.

O Marquês colocou as canecas do lado da cama e foi até o outro lado do quarto, a fim de admirar a mulher amada.

Sabia que nenhuma outra mulher trocaria a cama pelo sofá. E com isso ela deixava claro, também, que não esperava que ele fosse se deitar ao seu lado.

Tinha certeza de que essa idéia jamais passaria pela cabeça de Leila.

Ficou ali parado, fitando com admiração o longo cabelo prateado que emoldurava o rosto angelical.

A mão que pendia do lado de fora do cobertor, parecia relaxada. Pensou que nenhuma mulher no mundo podia ser, a um só tempo, tão sedutora e tão inocente.

Desejou ajoelhar ao lado dela e beijá-la até que acordasse.Sabia que se a tocasse reavivaria o enlevo que quase os levara para o céu, na última vez que se tocaram.

Contudo, entendia que ela se sentia cansada. Não apenas pela viagem, mas também por causa da tensão da fuga que tivera de empreender.

Além disso, havia também o terror que Denton Parker despertara nela, quase arrombando a porta.

"Devo deixá-la repousar", pensou o Marquês.

No entanto, não ocorreu que aquela era a primeira vez na vida em que não pensava em si próprio, não colocava seus interesses em primeiro lugar. Seu gesto naquele momento era totalmente altruísta.

Movendo com cuidado pelo quarto, tirou a roupa e colocou o pijama.

Deitou e, antes de apagar a vela, ainda fitou Leila pela última vez naquela noite.

Outra vez agradeceu a Deus por tê-la encontrado.

Leila sonhava que era beijada.

Era como se o sol se movesse por seu corpo, transmitindo um calor prazeroso.

O mundo apresentava-se dourado demais para ser real. Porém, quando abriu os olhos, o Marquês a beijava de verdade.

Leila colocou os braços ao redor do pescoço dele, atraindo-o para si.

O Marquês beijou-a até que ela acordasse completamente.

— Gostaria de ficar dia todo beijando-a, dizendo o quando é adorável, mas temos uma longa viagem pela frente.

Leila percebeu que o Marquês já se vestira e era bem cedo. Disse então com voz sonolenta,

— Eu não vi quando veio dormir.

— Você dormiu rápido. Foi muito gentil da sua parte dormir no sofá, eu é que deveria dormir aí.

— Lógico que não! — respondeu ela — É muito pequeno para você. Preferia ficar acordada a noite toda do que vê-lo mal acomodado.

— Outra vez tomando conta de mim! — brincou ele.

— É o que desejo sempre fazer — foi a resposta de Leila.

— Vou aprontar os cavalos — informou ele — e ver se consigo para nós o café da manhã antes de partirmos.

Leila sorriu e o Marquês saiu do quarto, carregando suas malas. Pulou da cama e correu para a janela. Era irresistível ver o Marquês atravessando o pátio em direção ao estábulo. Não havia sobre a terra homem mais belo e nem mais elegante.

— Como ele pode me amar? — perguntou-se com humildade.

No momento em que Leila acabou de se vestir, o Marquês já havia atrelado os cavalos à carruagem. Providenciou para que um garoto segurasse os animais e agora esperava à mesa de refeições que fora posta para o café matinal.

Ao contrário das mulheres elegantes de Londres, Leila tomou um café da manhã reforçado.

Experimentou os ovos com bacon e comeu grandes fatias de pão fresco, nas quais espalhou manteiga e mel.

O proprietário e sua esposa pareciam surpresos com os dois hóspedes.

O Marquês conseguiu, com habilidade, se evadir de todas as perguntas que lhe eram dirigidas.

Quando, enfim, pagou a hospedagem, o proprietário ficou tão satisfeito com sua generosidade que se esqueceu de tudo o mais. Partiram com o sol despontando.

Somente quando já tinham vencido um longo percurso da viagem, Leila perguntou,

— O que vamos fazer?

— Nos casar! — foi a resposta imediata do Marquês.

Quando Leila levantou o rosto para o Marquês, seus belos olhos desprendiam raios de luz e felicidade.

— Quer mesmo se casar comigo? — ela murmurou.

— Eu te amo! E acredito que você me ama também. O que nos resta a fazer, senão nos casarmos?

— Eu... te amo! — exclamou Leila entre lágrimas de emoção.

— Eu te amarei até o final dos séculos, até quando eu deixar de existir. Mas, ao mesmo tempo eu penso.. — Leila hesitou por um momento e então continuou — penso se você tem mesmo condições de se casar — Antes que ele pudesse responder, ela prosseguiu — vou trabalhar, porque não quero ser um fardo para você. Além do mais, será difícil você conseguir um outro emprego agora, depois de ter abandonado prima Averil.

— Então, o que você sugere? — perguntou o Marquês se divertindo com aquela preocupação adorável.

Ao mesmo tempo ansiava por ouvir a resposta.

— Suponho que sejamos sensatos. Podemos esperar até que arranje um emprego onde ninguém tenha objeções quanto a você ser casado.

— Mas ficaremos frustrados — foi a resposta do Marquês — Quero você ao meu lado para sempre, Leila!

— É o que eu também quero! — concordou ela — Mas você tem sido tão gentil e maravilhoso que eu não suportaria vê-lo sofrendo por minha culpa.

— Se você não se importar de levar uma vida humilde ao meu lado — comentou o Marquês — não precisa se preocupar com mais nada.

— Viver ao seu lado é só o que me importa — respondeu Leila — Eu posso até mendigar nas ruas e esfregar assoalhos, se for preciso, contanto que viva a seu lado e seja sua esposa.

Quando proferiu a última palavra, o fez de maneira tímida e medrosa.

O Marquês sentia-se tão feliz por ter encontrado Leila que queria gritar isso para o mundo inteiro. Ela era tão diferente das outras mulheres! E o que o deixava ainda mais emocionado era saber que Leila o amava como ele se apresentava, um simples cocheiro, e não um rico Marquês.

Porém, decidiu que Charles jamais saberia da verdadeira história. 

Perdera a aposta, mas ganhara uma esposa adorável e sensível. Tinha certeza, porém, de que Charles daria Tempestade como presente de casamento a eles.

Continuaram a viagem.

O Marquês calculou que já passava do meio dia quando atravessaram os portões altos e dourados de Eagle.

Leila admirou-os com surpresa no olhar. E ficou ainda mais encantada quando se deparou com os antigos e imponentes carvalhos que margeavam o pequeno atalho por onde acabavam de passar.

O Marquês sabia o lugar exato onde devia parar para oferecer a Leila o melhor panorama de Eagle.

Parou a carruagem.

Á frente deles se via a majestosa Mansão que fora edificada pelos ancestrais do Marquês, no reinado da Rainha Elizabeth.

O sol se refletia em inúmeras janelas.

Estátuas e vasos antigos, no teto da edificação, contrastavam contra o céu azul.

Um gramado verde escuro contornava o lago oval de águas transparentes que margeava a casa.

Leila ficou fascinada com um bando de pombas brancas que passou voando na frente da casa, indo pousar no jardim.

Amendoeiras e magnólias floridas em grande profusão eram uma festa para os olhos.

O Marquês esperou.

— Será que pode haver algo mais belo que este lugar? — perguntou Leila — A quem pertence?

— A mim! — foi a resposta do Marquês. Leila deu uma risada divertida.

— Mamãe e eu costumávamos dizer a mesma palavra toda vez que víamos algo que adorávamos e não podíamos ter. Era como se pudéssemos ser donos daquilo por alguns instantes, guardando a beleza em nossos corações, que ninguém poderia roubar.

Leila fez essas observações com a voz arrebatada e comovida. O Marquês nada disse e continuou dirigindo. Cruzaram a ponte sobre o lago.

Quando alcançaram o pátio, defronte a casa, Leila advertiu o Marquês com voz nervosa,

— Talvez não devêssemos nos aproximar tanto! Ás pessoas poderão pensar que estamos nos intrometendo.

Alcançaram a grande escadaria da porta da frente.

Dois lacaios, que com certeza os viram se aproximando, correram para estender um tapete vermelho. O mordomo apareceu na porta como num passe de mágica. Um cavalariço veio correndo do estábulo na direção deles.

Leila se voltou e fitou o Marquês com olhar inquiridor.

— Está tudo bem, querida — garantiu ele.

O Marquês desceu da carruagem e ajudou-a sair. Segurando a mão, conduziu-a até o início dos degraus. Quando alcançaram a porta, o mordomo fez uma saudação,

— Bom dia, Milorde! Como é bom tê-lo de volta. Não o esperávamos, porém.

O Marquês sentiu uma repentina tensão na mão de Leila.

— Viemos de longe, Newman — respondeu o Marquês — Queremos almoçar logo e peça à Senhora Meadows que prepare os aposentos da Rainha para a Senhorita Horn.

— O aposento da Rainha, Milorde?

— Foi o que eu disse! — respondeu o Marquês com voz severa— Envie um cavalariço até o Vigário para pedir que venha aqui às duas horas.

— Muito bem, Milorde!

Era óbvio que Newman ficara atônito com o que acabara de ouvir. Ao mesmo tempo era bem educado para não emitir comentários a respeito.

O Marquês conduziu Leila até o aposento que só usava quando estava sozinho em Eagle.

Naquele local encontravam-se a escrivaninha e os livros que o Marquês mais gostava, apesar de que milhares de outros volumes eram guardados na biblioteca.

Várias Condecorações esportivas espalhavam-se pelas paredes.

Um retrato da mãe do Marquês pendia sobre a lareira. Ela usava o manto de dama da Corte e a tiara de diamantes dos Mounteagle, o que a tornava ainda mais bela.

Quando a porta se fechou após a saída do mordomo, Leila se voltou e fitou o Marquês,

— Eu não entendo! Por que estamos aqui? E por que ele o chamou de Milorde?

— Sinto muito, mas eu a enganei, meu amor — respondeu o Marquês sorrindo — Eu sou, na realidade, o Marquês de Mounteagle e esta é a minha casa.

Por um momento, Leila ficou paralisada, incapaz de qualquer ação. Para surpresa do Marquês, ela soltou um grito de angústia,

— Não, isso não pode ser verdade!

Ela se moveu em direção à janela e, de costas para ele, começou a chorar.

O Marquês se aproximou e a tomou nos braços com ternura.

— Por que chora? — perguntou aflito — Importa se eu não for um pobre cocheiro?

— Pensei que fosse me tornar sua... esposa — gaguejou ela.

— Isso é exatamente o que será tão logo o vigário chegue e faça a cerimônia.

— Não! Não serei sua esposa!

O Marquês mal podia acreditar no que ouvia.

— Por que diz isso? — perguntou ele com desespero na voz.

— Porque você é nobre e vive nessa casa majestosa. Não pode se casar com uma mulher como eu.

— Por que não?

— Porque você deve escolher uma mulher tão fina e importante como você.

— Para mim ninguém é mais importante que você — declarou o Marquês — Como a Marquesa de Mounteagle você será muito fina e importante também.

Leila sacudiu a cabeça e escondeu o rosto no ombro dele.

O Marquês sempre acreditara que qualquer mulher se excitaria diante de sua proposta de casamento.

Fleur fingira satisfação diante dessa idéia. Mas o que esperava era uma oferta melhor.

O Marquês nunca imaginou que pudesse ser rejeitado.

— Quero te fazer uma pergunta, Leila, e espero que me responda com sinceridade.

— Sabe que serei sempre sincera com você — murmurou ela.

— Falava a verdade quando disse que, quando nos casássemos, você se sujeitaria a trabalhar para que tivéssemos uma vida melhor, mesmo que fosse obrigada a esfregar assoalhos?

— Lógico que faria qualquer coisa para vê-lo feliz.

— Digo então, que me deixará muito feliz se quiser viver comigo nesta casa. Peço também que me ajude em tudo que tenho a fazer.

— Mas existem tantas mulheres que poderiam fazer tudo isso melhor do que eu...

— Isso é decisão minha — interrompeu o Marquês — E acredito, querida, que você me dará inspiração para me manter trabalhando, quando na verdade o que eu desejaria era fazer amor com você o tempo todo.

Leila deu um pequeno sorriso.

— Pensei que me amasse! — queixou-se o Marquês com voz tensa.

— Eu o amo, mas penso no que é melhor para você.

— Então, se me ama, case-se comigo. Eu não poderia ser feliz de outra forma!

Leila levantou os olhos para ele,

— Isso é realmente verdade? Jura pelo que há de mais sagrado?

— Juro! — exclamou o Marquês.

— Então vou tentar — prometeu Leila — Mas terá de me ensinar as regras para que eu não cometa enganos.

O Marquês nada disse, e beijou-a com ardor. Era impossível continuar falando.

Ambos sabiam que o amor os unira para sempre e que nem a cerimônia do casamento poderia aproximá-los ainda mais.

Almoçaram na sala nobre cuja decoração deixou Leila muda de perplexidade e admiração.

Um pouco antes de Leila subir para o quarto, o Marquês informou,

— Tenho algo a te dizer que a fará muito feliz.

— O que é? — perguntou ela curiosa.

— Pedi ao meu secretário que mandasse uma carruagem buscar Peter e a professora que cuida dele e os trouxesse até aqui.

Leila fitou-o, surpresa, como se não acreditasse no que acabava de ouvir.

O Marquês continuou,

— Tenho parentes que vivem em outra propriedade e eles têm dois meninos da mesma idade de Peter. vou sugerir que fiquem em Eagle, fazendo companhia a seu irmão, enquanto estivermos em lua-de-mel.

O Marquês beijou-a antes de continuar,

— Sei que as três crianças se divertirão cavalgando, pescando e fazendo todas as travessuras próprias da idade.

Por um momento Leila nada respondeu. As lágrimas então começaram a correr pelo rosto aveludado.

O Marquês perguntou, com preocupação na voz,

—Minha querida, por que chora? O que foi que eu disse que a aborreceu?

— São lágrimas de felicidade — respondeu ela entre soluços — Como pode um homem ser tão compreensivo e maravilhoso?

O Marquês a atraiu para si, envolvendo-a em seus braços.

— Como posso exprimir em palavras o quanto você é maravilhoso?

— Diga-me mais tarde — respondeu o Marquês sorrindo — Eu adorarei ouvir!

Com gentileza, ele secou as lágrimas do rosto de Leila e pediu,

— Agora vá para o quarto e se faça ainda mais bela do que já é. Quero recordar pelo resto de minha vida como minha noiva estava linda no dia do nosso casamento.

— Tentarei ser a mais bonita de todas as noivas — respondeu Leila com emoção na voz — mas se eu não conseguir, saiba que meu coração é completamente seu!

— E isso é tudo o que eu desejo — foi a resposta do Marquês.

Após receber um outro beijo apaixonado, Leila subiu correndo as escadas. A Senhora Meadows a esperava nos aposentos da Rainha.

O vestido bem simples de musselina branca de Leila fora passado durante o almoço e agora ela o ajeitava no corpo, como se fosse a primeira vez que o vestia.

A Senhora Meadows colocou um véu de renda sobre os cabelos de Leila, o que revestiu de solenidade seu vestido simples.

O Marquês escolhera uma tiara de brilhantes com formato de pequenas flores que agora resplandecia ao redor da cabeça de Leila, prendendo o véu.

Um colar de brilhantes adornava também o pescoço delicado, ressaltando sua beleza celestial.

Quando olhou-se no espelho, Leila demorou para acreditar que fosse a mesma pessoa.

Como podia naquele momento ser a mesma moça que costurava dia e noite na intenção de poder viver num chalé?

Antes de deixar o quarto, um lacaio trouxe um ramo de delicadas orquídeas brancas,

— Acabaram de desabrochar no orquidário da casa — informou o homem.

— Você está linda, Senhorita! — foi a exclamação da governanta, no momento em que Leila acabou de se aprontar — Você é a moça que esperávamos para ser a esposa do Marquês.

— Obrigada! — agradeceu Leila com voz meiga — Só espero não desapontá-los.

— Jamais fará isso! — respondeu a Senhora Meadows — E que Deus os abençoe neste dia glorioso!

Leila desceu as escadas devagar.

O Marquês a esperava no hall.

A fita azul dos Mounteagle sobre o peito dele deixava-o ainda mais elegante. Os olhos do Marquês demonstravam amor, e isso era tudo o que importava. Leila demonstrava nervosismo, e o Marquês beijou-lhe a mão antes de colocá-la em seu braço.

Enquanto caminhavam pelo corredor em direção à capela nos fundos da casa, ele confessou com ternura,

— Eu te amo, Leila. Esta é a maneira que sempre quis realizar meu casamento. Tranqüilo em minha própria capela, ficando sozinho com a mulher que amo, depois.

O sorriso de Leila confirmava o que as palavras dele significavam para ela.

A sinceridade pairava em cada gesto daquela mulher maravilhosa que dali a pouco se tornaria sua esposa.

Se tivesse se casado com qualquer outra mulher seria obrigado a realizar a cerimônia na Igreja de San George, na Praça Hanover. E, com certeza, enfrentariam uma luxuosa recepção em Carlton House.

"Esse é o melhor começo", admitiu para si próprio. "Um casamento diferente de tudo o que a Sociedade esperava de mim."

Quando se ajoelharam na linda capela, cujos vitrais cintilavam à luz do dia, Leila sentiu a presença viva dos pais.

Anjos cantavam acima da cabeça dos dois jovens apaixonados.

Após receberem a bênção do vigário, Leila sentiu que jamais sonhara em ser abençoada daquela maneira por Deus.

E não era a riqueza do Marquês que a fazia sentir-se venturosa nesse dia, mas sim o amor que devotava.

Após a cerimônia, entraram no salão de festas que Leila ainda não conhecia.

Os criados mais antigos como Newman, que se encontrava em Eagle há trinta anos, e a Senhora Meadows, os aguardavam com alegria. Os chefes de todos os alojamentos brindaram à felicidade dos noivos, com champanhe.

O Marquês fez um pequeno discurso, agradecendo as felicitações deles e seus longos anos de serviço. Acrescentou que esperava que ajudassem sua esposa em tudo que precisasse e terminou, dizendo,

— Vocês fizeram desta casa um lar cheio de alegria, desde que nasci. Quero que minha esposa, que perdeu seus pais, sinta que tem um lar também, assim como nossos filhos e outras gerações que nos sucederem.

Os criados os saudaram com satisfação.

Havia lágrimas nos olhos da Senhora Meadows e do velho cozinheiro que vivia em Eagle desde que o Marquês era pequeno.

Os criados continuaram brindando à felicidade deles, mas o Marquês conduziu Leila para o andar de cima. Indicou o vestuário feminino que dava para o quarto dela de um lado e para o dele do outro.

Era um aposento muito belo, repleto de relíquias que foram sendo reunidas por todas as Marquesas de Mounteagle ao longo dos anos.

Leila não teve tempo de admirá-las.

O Marquês levou-a para seu quarto onde a cama de quatro colunas tinha, gravado à cabeceira, o brasão dos Mounteagle.

Havia flores no vestiário feminino e, no quarto do Marquês, o perfume dos lírios também pairava no ar.

Ele fechou a porta e exclamou,

— Finalmente, querida, você é minha! Ninguém poderá roubá-la de mim. Eu te amo!

Leila levantou o rosto para ele, que a beijou com a mesma delicadeza de quando estavam na cerimônia de casamento.

Então, quando sentiu o arrebatamento e êxtase do corpo dela contra o seu, o Marquês tirou a tiara da cabeça de Leila, atirando, em seguida, o véu de renda ao chão. Aos poucos foi livrando-a do vestido e a levou para a grande cama que os aguardava para a consumação do amor.

Leila nada disse enquanto o Marquês a beijava. Era impossível traduzir em palavras a excitação que ele acendia em todo o seu corpo. O simples toque das mãos dele fazia com que arrepios de prazer e desejo percorressem cada célula de seu corpo, elevando-a para muito além das nuvens, para muito além do infinito.

O Marquês a puxou para si e Leila escondeu o rosto contra o ombro dele.

— Minha querida! Meu amor! — exclamou ele, a voz embargada pelo desejo que o invadia — Como posso expressar o que você significa para mim? Não sabia o que era felicidade até que chegasse este momento.

Leila se aproximou ainda mais dele e então disse com voz suave,

— Tenho algo a dizer...

O Marquês ficou paralisado.

Temeu que Leila tivesse uma confissão a fazer e que fosse algo sobre que fizera no passado, como Fleur e tantas mulheres que conhecera.

Sentiu que ser desiludido naquele momento era mais do que podia suportar. Tinha tanta certeza de que Leila era diferente que quase implorou para que nada dissesse e que guardasse esse segredo só para si.

Porém sabia que, se assim o fizesse, ficaria a vida toda curioso, o que seria pior do que saber logo a verdade.

— O que é? — perguntou o Marquês, afinal, com uma nota de aspereza na voz.

Houve uma pequena pausa.

Então Leila confessou,

— Sei que devo parecer estúpida e talvez seja algo que eu não deveria dizer, mas...

O Marquês esperou, sentindo que tudo ao redor estava prestes a desmoronar.

Ela escondeu o rosto outra vez e murmurou,

— Tenho pensado bastante e devo dizer que não calculo o que seja...fazermos amor. Tenho medo de desapontá-lo, medo de que deixe de me amar e...

As últimas palavras soaram débeis.

O Marquês sentiu que o mundo todo se iluminou pelo sol que havia pouco se escondera atrás de espessas nuvens de dúvida. Por um momento manteve os olhos cerrados, experimentando um alívio arrebatador. Então disse,

— Minha querida, minha inocente esposa. Acha mesmo que eu esperava que soubesse tudo sobre o amor?

Beijou os lábios, o pescoço e os seios com paixão desenfreada.

Leila curvou o corpo contra o dele, enquanto dizia com a voz arrebatada de desejo.

— Eu te amo... te amo...

— Você é minha, Leila! — exclamou ele com voz possessiva.

— Eu matarei quem quer que se aproximar de você. E matarei você também, se for infiel comigo.

— Como poderei ser infiel — perguntou ela — se eu o amo, se eu o adoro? Oh, meu querido esposo, ensina-me como te fazer feliz.

O Marquês procurou os lábios dela com desesperado desejo e a beijou com exigência e possessão.

Aqueles beijos eram diferentes de todos os que recebera do Marquês, mas Leila não sentiu medo.

Uma excitação selvagem e poderosa emergiu de seu ser.

Sentiu como se os seios e os lábios tivessem mergulhando num lago de delícias. E o Marquês era parte desse fogo de vida que agora a consumia.

— Eu te amo! Eu te amo!

Leila queria continuar dizendo essas palavras a vida toda. Mas não houve necessidade de dizer mais nada.

Quando se sentiu possuída pelo amor do homem que adorava, ouviu os anjos cantarem e o céu se abrir, despejando sobre eles a luz e o amor de Deus.

Esse sim era o amor, espiritual e divino.

O amor que todos os homens buscam, mas que poucos têm o privilégio de encontrar.

 

                                                                                            Barbara Cartland

 

 

                      

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