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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


SOU UMA RAPARIGA DO LICEU / Odette de Saint-Mauric
SOU UMA RAPARIGA DO LICEU / Odette de Saint-Mauric

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

SOU UMA RAPARIGA DO LICEU

 

Trrrrrrrrrrrrrrrrr

Rrrr... rrrrrrrrr... Mnnnnnnn!

Que maçada de mosca, a zumbir desta maneira.

E a Laura que nunca mais aprende a fechar bem fechadas as tabuinhas das persianas!

Aai! E zumba!

Sol no dia, sol no mundo, sol na vida. Baloiço que me leva pelo ar, suspensa de fios que não vejo mas que devem ser seguros porque nem sequer oscilo.

Zás! Partem-se os fios, sinto-me cair, não tenho nada a que me agarrar e despenho-me em cima duma coisa fofa que amortece o estremeção que dou e me acorda de vez.

A primeira visão real que tenho é a cara meio aborrecida meio trocista da Laura - a Laura como me conhece de pEquena acha que vai ficar para sempre a tratar-me como se eu não passasse mais, dos seis anos.

- Que temos -pergunto num último bocejo que significa ainda falta de noção das realidades. E a Laura, tirando a roupa de cima de mim (Dá-me a roupa que tenho frio! -Se tem frio vista o roupão) oferece-me o roupão de lã azul dentro do qual pareço uma enguia.

- Gostava de saber pra que é que obrigou o seu Pai a gastar dinheiro num despertador. Todos os dias era uma lamúria: Se eu tivesse um despertador não incomodava ninguém. Ele tocava, eu acordava, levantava-me, tomava duche e depois a Laura só precisava de dar- me o pequeno almoço. Vê-se! O despertador veio, e bem bonito que ele é! toca e a menina vira-se pró outro lado! Eu desde as seis da manhã que não durmo porque sei que se não venho cá não se levanta mesmo! Uff, que menina tão dorminhoca!

Estou de pé. Vesti o roupão (dentro do qual pareço uma enguia) e aliso maquinalmente o cabelo. Sei que a Laura disse apenas coisas certas, que não há nada a contestar mas como não gosto de ficar calada nas situações em que me encontro diminuída, procuro justificar-me.

- Então, ontem deitei-me tarde.

- A menina deita-se tarde todos os dias. A televisão nas casas é o que faz. Dá cabo da ordem e estraga os hábitos. Uma noite porque há isto pra ver, outra aquilo, outra não há nada mas vai-se ficando e acaba numa festa!

- A ver se tu também não gostas e não te pelas por ficar a ver isto e eaquilo.

A Laura formaliza-se, sem reparar que me fornece automaticamente a minha própria defesa.

- E então? Depois dum dia de trabalho sabe bem a gente distrair-se um bocadinho!

- assim, tal qual, Laurinha! Depois dum dia de trabalho sabe bem ete. ete. ete.

Um dia de trabalho.

Encontro-me de repente diante do dia concreto: O trabalho, O ponto de matemática ao terceiro tempo, daqui a bocado. E eu que ainda quero mostrar à Tina uns apontamentos do meu irmão, que dispensou com 19 dois anos! (Há realmente muita gente com a mania das grandezas)

Deixo a Laura a protestar contra as minhas maluquices, fecho-me na casa de banho onde tudo fica às três pancadas, visto-me a correr, engulo o café com leite, dou uma dentada no pão, corro a enfiar a bata, esbarro no Pai que sai do quarto a abrir a boca com grandes pancadinhas sobre ela - á- á-á-á atiro um beijo à Mãe que ainda dorme e zás! - voo para o liceu!

No caminho (não moro longe e vou a pé todos os dias) encontro-me com várias, muitas, imensas raparigas e reconheço mais uma vez que fazemos parte dum bando com destino comum. Parecemos aquelas pombas que correm juntas para uma direcção. E assim, lado a lado, quase perdemos a nossa personalidade. Ficam para trás os lares onde são sempre diferentes - ou parecem diferentes - os problemas, os gostos, os despertadores, as Lauras. Somos todas tão parecidas que à primeira vista somos iguais. Em grupo, não temos nomes. Somos algarismos romanos. Grandes e pequenas; as que terminam e as que principiam; as que gostam e as que não gostam; umas e outras passamos, acotovelamo- nos, empurramo-nos. chegamos.

A algazarra é total. Falamos todas - nunca percebi se porque temos realmente alguma coisa para dizer, se porque nos electrizamos com o barulho que as outras fazem, se porque nos sentimos com o direito de o aumentar com a nossa própria voz. A verdade é que nenhuma consegue calar-se. Ou se alguma se cala, ninguém dá por isso, ninguém percebe.

Reconheço muitas vezes que as coisas assim estão erradas. Mas quem pode, quem tem a coragem de reagir, tanto mais que.

Pois é, é assim mesmo!

O grupo compacto, pelos corredores larguíssimos, pelas escadas que se bifurcam, principia a dispersar-se. Cada rapariga, crescida ou miúda, sabe onde lhe compete poisar. Todas nós temos afinal rumo certo.

Sim, neste enorme bando de pombas, nenhuma falha a direcção.

Pelas portas escancaradas, passamos todas. E buscamos o poleiro certo - a carteira que nos compete! - sem enganos, sem atritos nem dúvidas. E aos poucos, nos rápidos instantes em que tudo isto se faz, em que ainda continuamos a ser números e letras, definimos as nossas posições dentro do liceu, recomeçamos a ser nós mesmas, a sabermos (mais ou menos ) o que estamos ali a fazer - é claro que algumas não sabem nada de nada-, a termos consciência do que deixámos em casa e continua presente connosco.

Falamo-nos. Sorrimo-nos. Acomodamo-nos. Conhecemo-nos todas com nomes e apelidos. Muitas entre nós são amigas, visitam-se.

Agora, porém, já nenhuma se ouve. A professora acaba de entrar. É uma rapariga ainda tão nova que às vezes, nos corredores, se confunde com as alunas mais velhas - já me tem acontecido passar por ela sem a ver.

A porta fecha-se. Por segundos, o silêncio domina.

E o que sucede na nossa aula, sucede em todo o liceu. O ritual cumpre-se, pelos anos dos anos que hão-de ser séculos.

O liceu mergulha numa estranha paz, tanto mais impressionante quanto sucede brusca ao tumulto, sem se instalar por graduações.

Quando me acontece, por chegar atrasada ou por faltar a qualquer aula e entrar a meio dum tempo para só comparecer a outro, faz-me impressão o silêncio do liceu! Depois, se me concentro, oiço nitidamente um barulho surdo, distante, fundo. Dentro do edifício estão cerca de duas mil alunas. - duas mil criaturas que respiram. E eu sinto a vida com a sua força espantosa, ali concentrada, ali segura mas pronta, ao menor sinal, a irromper com uma violência e uma decisão que pode fazer História - mil Histórias!

Nunca, nunca estou de acordo com a minha colega Ernestina que me diz que o liceu, a funcionar no silêncio, lhe faz lembrar um túmulo onde se enterra a mocidade. Que ideia! Brrr, que até faz frio! Que o nosso liceu, cá na minha opinião, de túmulo só tem uma coisa e coisa antipática. nesta altura, ser terrivelmente gelado e húmido.

Quando chega o Inverno, as constipações e as gripes invadem o velho casarão e espirramos todos em conjunto - os muros e nós. Bom, lá mais para diante, se me lembrar, hei-de falar neste assunto. Por agora, não.

Vou, parece-me, na comparação do liceu com o túmulo onde se enterra a mocidade. Repito a frase porque me soa bem, acho-a bonita. Mas não diz nada. É uma fantasia da Ernestina, que faz versos. Aliás uns versos muito intelectuais, daqueles que em geral ninguém Percebe mas declaram interessantíssimos com medo de se ser tomado por estúpido. Bom, mas a tal frase a propósito do liceu saiu aproveitável...

De vez em quando, no grande silêncio do nosso liceu em pleno funcionamento, por cima do rumor, da calma (ou do susto! ) das alunas que trabalham, há um som como que de guizo a repercutir-se incessante - tlim-lim-tim- lim-lim. E a voz aguda duma professora, a distância, explicando qualquer coisa.

De resto, mais nada.

Mais nada, não! Há as vigilantes, sentadas diante das suas mesas toscas, a fazerem renda ou malha e erguendo os olhos numa indignação quando alguma porta se abre e uma rapariga se escapa, com ar aflito, para ir numa corrida a certa dependência que não é lá muito elegante nomear.

A essa tal dependência estamos nós todas, agora, com exagerada vontade de ir.

O segundo tempo decorreu hoje com uma velocidade espantosa! E a aula de moral, com a Sr. D. Maria Vitória a falar-nos (ela fala aliás muito bem) do sentido mais alto da palavra Virtude. Trata-se dum assunto que gosto de ver aprofundado. Gosta a maioria das nossas, até. Mas agora nenhuma consegue concentrar-se.

A voz da Sr. D. Maria Vitória, um bocadinho monocórdica, embora não tenha nada de desagradável, não consegue vencer a barreira que Lhe é oposta pelas nossas cólicas. O ponto de matemática vai ser um caso sério!

A Sr. Dr. A D: Olga Violante preveniu-nos de que ia ser impiedosa e de que só dava nota a quem de facto a merecesse.

Impiedosa? Mas ela é sempre impiedosa! Eu não tenho por norma queixar-me das professoras. Sinto mesmo no meu coração uma certa tendência para as considerar simpáticas, para pensar que elas não estão ali senão para nosso bem, achando uma desculpa para todas as suas impaciências. A minha Mãe costuma dizer-me que sou muito humana. Este hunana significa que há em mim na verdade uma disposição natural para compreender os outros tanto nas suas grandezas como nas suas baixezas, tanto através dos seus pontos fortes como através dos seus pontos fracos. E realmente é assim. Dou comigo muitas vezes a tentar justificar ou desculpar coisas que os outros fazem e não parecem certas.

As professoras, claro, cabem dentro deste meu largo conceito, mas a Dr. D. Olga Violante não merece um lugar amplo dentro do meu natural desejo de a aceitar. É uma senhora com uma vida normal de quem se dirá que lhe agrada tornar as nossas anormais. Para mais, é casada e tem uma porção de filhos que estudam. Por isso não consigo perceber como reagirá nos casos deles (hão-de ter os seus casos, evidentemente) dado que aos nossos fica impermeável. Começa o ano com o dedo indicadór da mão direita estendido para o todo que nós formamos, a advertir-nos de que não está ali para tolerar ou estimular incompetências. Quem não sabe porque não estuda, não passa. Quem não sabe porque não assimila, não passa. As primeiras não adianta ajudar, porque serão sempre inúteis. As segundas, essas mais vale que aproveitem a pouca cabeça doutra forma. E assim, dado que nos pontos se torna difícil destrinçar as primeiras das segundas e as segundas das primeiras, não há que esperar compreensão. Ou seja: uma falta qualquer, um lapso de memória, um acidente, pode atirar qualquer, até mesmo a melhor de todas, para as duas categorias execradas. Fácil se torna assim imaginar a disposição com que todas nós nos sentámos diante da incógnita que nos espera. Nos sentamos

Algumas tremem. Outras, de lágrimas nos olhos, mal conseguem pegar nas canetas. Muitas estão pálidas.

A Inácia, que é extremamente nervosa, cobre-se de suores frios. Como fica na carteira mesmo ao lado da minha, vejo as bagas escorrerem-lhe pelas faces. Tenho medo que Lhe dê alguma coisa. E embora não sinta nenhuma simpatia especial pela Inácia, olho para a Dr. a D. Olga Violante com um olhar ameaçador que ela felizmente não nota (pensei-o depois). Naquele instante creio que se alguma coisa de mal sucedesse à minha colega, bem podia arriscar a minha nota provocando uma falta de castigo capaz de arruinar a presença irrepreensível que mantenho no liceu desde o primeiro dia.

Começámos o ponto mais enervadas do que as suas dificuldades o justificavam. Creio mesmo que sem os avisos prévios da nossa professora, nós o encararíamos com uma serenidade que nos levaria a muito melhor termo. Assim, cada uma de antemão predisposta para não saber, vimo-nos em sérios embaraços.

Eu mordi vezes sem conta a caneta. A Helena e a Marta, que são as duas cabeças fortes da turma; não morderam a caneta. Mas nunca levantaram os olhos do papel nem sorriram com aquela expressão nelas habitual desde sempre e que significa o pleno contentamento duma segurança total: nós sabemos tudo - nós não temos dúvidas -nós nunca somos apanhadas de surpresa. Bom, elas não estavam a ser apanhadas de surpresa, claro, mas lá dúvidas tinham. Se tinham Acho que esta deve mesmo ter sido na sua vida uma das raras vezes em que se aperceberam de que não sabiam tudo.

Bom, conforme o tempo foi decorrendo, as coisas melhoraram. O nosso estado de espírito aliviava-se dos terrores que o tinham oprimido e começávamos, todas, a raciocinar. E, raciocinando, a perceber que para algumas pelo menos o ponto não seria a catástrofe prevista e anunciada.

Eu, por mim, resolvi sem escolhos as três primeiras alíneas. Nas últimas, esbarrei, mas esbarrei com a certeza absoluta de que nunca aprendera tal coisa, de que nunca a oùvira explicar. A Helena e a Marta confirmariam depois as minhas impressões pessoais. Fora dado numa aula a que eu faltara. Resignei-me a não responder. Também, verdade seja dita, não corro como elas, as feras da turma, atrás dos enormes Bons + e muito Bons que traduzidos em valores são o incessante espanto e inveja dos Pais e das outras alunas quando aparecem afixados nos quadros de honra. A Marta e a Helena são dois casos de certo modo semelhantes aos do Pedro e do Paulo. 1 Eu, pobre de mim, sou bastante mais modesta. Contento-me com um Suficiente + ou um bom que já fazem as minhas delícias...

Quase no final do ponto, a porta abriu-se e entrou uma das contínuas. Trazia um recado da senhora vice-Reitora à Drª D. Olga Violante, o que, naturalmente, obrigou esta a distrair-se da aguda vigilância sob a qual nos mantinha, não fosse haver copianço... e foi o bastante para a Marta ter um gesto rápido e eficiente, um gesto nela aliás bastante vulgar. Uma folha escorregou-lhe do colo e passou para a carteira de trás, empurrada pelo pé. Na carteira de trás a Henriqueta baixou-se e ergueu-se rapidamente.

Não sei se mais alguém notou o facto. Eu dei por ele porque, como já tinha desistido de fazer as últimas alíneas, estava de nariz no ar a sentir passar o tempo. E dando por ele, observei-o sem estranhar, por demais habituada ao auxílio que a primeira do liceu - a Marta tem sido sempre a aluna mais classificada, - dava à última da nossa turma. Era um espanto! Dir-se-ia um pardal a ajudar um mosquito a livrar-se duma teia de aranha. E a pobre Henriqueta, pouco esperta, pouco estudiosa e pouco afortunada - Deus sabe os sacrifícios que o Pai faz para a ter no liceu - lá arranja sempre um 9 ou um 10 no fim dos períodos com os pedaços que consegue copiar dos borrões que a amiga - inteligente, aplicada e rica lhe fornecia!

Curioso! Nesta generosidade é que a Helena não compete com a Marta. A Helena é incapaz de ajudar seja quem for. Mas tenho a impressão de que não o faz só por egoísmo. Muitas vezes afigura-se-me que ela nem sequer percebe quanto os outros precisam de auxílio.

Desde muito pequena que sou assim. Assim, quer dizer: pouco dada. Pouco dada não no sentido de não falar a toda a gente. Lá isso falo com quem quer que seja. Mas falo para dizer bom-dia, boa-tarde e boa-noite. Agora falar para conversar é uma coisa para mim duma enorme dificuldade.

A minha Mãe sabe disto e aflige-se bastante, porque não consigo ter amigas. bom, não conseguia, até há pouco. Agora estou um bocado melhor. À força de hábito, de insistência familiar e dum esforço de vontade de que não me arrependo, aprendi a dar-me com certa intimidade com algumas das minhas companheiras - a Inês, a Marta, a Cristina. No entanto não sou, bem o sinto, uma rapariga vulgar, dessas que a todas abraçam e de todas se declaram grandes amigas. Sem querer, retraio-me imenso. Custa-me dizer em voz alta o que vejo, o que penso, o que sinto. E sinto, e penso, e vejo muita coisa.

Nunca porém sou capaz de compartilhar com quem quer que seja tudo quanto vai permeabilizando a minha alma. Estou sempre como se me fosse dado ficar de fora, a observar. E dentro de mim redemoinha um turbilhão de ideias, de reflexões, que sou incapaz de dizer em voz alta.

Será por isso que escrevo?...

É natural que sim. De contrário, ou explodia... ou morria atabafada sob o peso da quantidade de coisas que se amontoam no meu coração e no meu cérebro.

Gosto de escrever. É mesmo só por gostar de escrever que sempre que posso venho rabiscar nestes cadernos a que, depois de tantas tentativas falhadas, inutilizadas, me atrevi a pôr um título geral, como se realmente se tratasse dum livro, do livro com que tanto tenho sonhado. (Um livro!... Que peneiras!). Sou uma rapariga do liceu.

Sim, sou de facto uma rapariga do liceu, não passo disso e arrogo-me pretensões literárias!... O que me tranquiliza é a consciência de que não faço mal a ninguém. A minha mania é inofensiva - e ao cabo e ao resto há-de um dia ou ajudar-me a compreender-me melhor ou a recordar com a vivência da fotografia estes tempos que são, sem dúvida alguma, tão bons! É que eu gosto de ser uma rapariga do liceu! Gosto da minha bata branca; gosto da minha vida regrada; gosto das obrigações que pesam sobre mim. Gosto das alegrias que levo para casa e gosto das preocupações com que venho para as aulas. Gosto, gosto muito desta etapa da minha vida!

Em casa sou feliz. E no liceu também. Quando, ainda há dias, disse estas mesmas palavras diante de algumas colegas, houve risos de mofa e ditinhos de censura. (Será por isto que me custa a mostrar como sou feita por dentro?)

É claro que não me importo nada com a incompreensão das insatisfeitas...-que nem todas o são ou muitas o são apenas por "atitude".

E no entanto...

bom, no entanto creio que, inesperadamente, encontrei uma Amiga numa dessas insatisfeitas. É certo que essa insatisfeita não riu de mim nem fez comentários como as outras... Teve até para comigo, no gesto que nos aproximou, uma atitude bem diferente, uma atitude singular, dessas a que uma pessoa nunca mais pode ficar alheia.

Quando, naquela tarde, acabei de fazer a declaração de amor ao que sou e ao que tenho que me tornou alvo de tantas zombarias, ela aproximou-se de mim, olhou-me muito séria (atrevia-me a jurar que os lábios lhe tremiam) e disse-me, baixo:

- Eu também gostava de falar como tu. Deve ser bom poder viver assim a nossa idade, isto tudo que não nos torna a acontecer. Guarda bem dentro de ti a ventura que Deus te dá, Ana Maria. Olha, se eu fosse capaz de invejar alguma coisa a alguém, essa alguma coisa era com certeza a maravilhosa alegria de viver que trazes a brilhar-te nos olhos. - e afastou-se sem acrescentar uma só palavra.

Creio bem que vou procurar aproximar-me dela, a ver se descubro a razão do seu desânimo. É que tem de haver uma razão para o que me disse. Uma razão muito forte.

A minha colega chama-se Arabela.

Afinal parece que o ponto de matemática não será uma razia. Foi pior o medo que o trabalho. Às vezes, como costuma dizer o Pedro, o diabo não é tão mau como o pintam... Mas às vezes também acontece que o diabo ainda é muito pior do que o pintam...

Existe um dragão, no nosso liceu. E esse dragão é uma vigilante chamada Rafaela, gorda como um pote dos de tamanho maior, com um bigode grisalho e façanhudo que faria as delícias de certos "meninos" que têm a mania de querer parecer homens à custa de mais uns pêlos na cara.!.- e ainda por cima cheiinha de más intenções a nosso respeito.

bom. isto veio a propósito do diabo, mas o diabo, neste caso, não é a Rafaela, somos nós, as raparigas todas, o liceu feminino em peso.

A Rafaela - perdão, a D. Rafaela e ai de quem não disser assim! - costuma andar pelos corredores a fazer um barulho com os saltos como se usasse socos, a tremer o corpo mais que rechonchudo e a bufar, porque se cansa imenso. É engraçado ouvi-la. Faz pff, pff, pff... como se fosse uma locomotiva a vapor e resmunga constantemente em voz tão alta que todas nós a ouvimos: "Estas raparigas são o diabo... Estas raparigas são o diabo!..."

E às vezes somos o diabo, realmente.

E hoje de manhã o diabo "andou à solta!"

De repente, uma campainha intempestiva e estridentíssima ecoou por todo o liceu. Depois, nas salas de aula, uma voz imperiosa chamou, pelos alti-falantes:

"Quinto ano, turma A... apresente-se à senhora Reitora mal acabe este tempo.

O quinto ano, turma A, tem 41 alunas excelentes, afamadas. São todas meninas muito "bem", primorosamente educadas e de méritos comprovados. Conseguem não ter entre elas um único chumbo desde o primeiro ano... E a média geral das classificações sobe sempre acima da craveira normal.

Para a turma A do quinto ano ser assim chamada, alguma coisa devia ter acontecido de extraordinário e grave.

Acontecera.

As alunas do quinto ano, turma A, haviam sido acusadas pela D. Rafaela de estarem fechadas na casa de banho a fumar.

Quando a notícia se espalhou pelo liceu, com uma rapidez assombrosa, ninguém queria acreditar. Primeiro, porque a turma modelo não ia certamente praticar uma tal idiotice. Segundo, porque a D. Rafaela fazia suficiente barulho ao aproximar-se para surpreender alguém em flagrante na prática de qualquer asneira! Pois é... mas o diabo ainda consegue às vezes ser pior do que o pintam! E a verdade é que a animação das raparigas, o estardalhaço, a risota tinham sido tais que a D. Rafaela pudera aproximar-se e escancarar a porta e contemplar o quadro à vontade, até uma das moças a avistar e com um grito advertir as companheiras do perigo que corriam.

Houvera um sobressalto indiscritível, tosses, lágrimas... Não se podia ocultar o delito! O fumo subia nos ares e os cigarros lá estavam, meios fumados, a atestar a culpa.

Souberam-se depois vários pormenores. Primeiro, a origem do maço. Fora a Cristina von Kuper, neta duns alemães há longos anos estabelecidos em Portugal, que o trouxera de casa para iniciar as colegas que nunca haviam sido autorizadas a experimentar. Tinham-se reunido catorze para o grande cometimento que as punha nervosas, emocionadas... E durante os dez minutos de intervalo entre duas aulas, uma a uma marcharam para o "rendez-vous" na casa de banho. Cigarro a mim, cigarro a ti, cigarro- àquela... Fósforos, isqueiros... Só a Luíza Maria Teodoro Veiga, uma loira de olhos azuis que tem justa fama de ser das raparigas mais disciplinadas e correctas do liceu, incompreensivelmente arrastada para a grande aventura, à última hora se assustara, compreendendo a insensatez da proeza e procurando evitar o que de súbito se lhe afigurara (e era!) arriscado e condenável. Nenhuma atendera, ou ouvira sequer, as suas palavras cheias de bom-senso. Era tarde demais.

E Luísa Maria, rejeitando o cigarro que a amiga lhe oferecia, ficara intimidada a olhar o que as outras saboreavam como fruto proibido

- esse pecado no fundo bem inocente, sem interesse de maior e que no entanto podia ser duramente expiado. Que seria duramente expiado.

As catorze raparigas foram todas suspensas, enquanto se procedia a averiguações.

Dividiam-se as opiniões no liceu e fora dele, dado que as alunas levavam consigo as notícias do sucedido e os lares tomavam partido.

- Também não é razão para tanto...! opinavam uns.

- O que elas precisavam era de serem expulsas! - argumentavam outros.

- Maus exemplos, maus exemplos! - lastimavam bastantes.

- Criancices! O melhor seria dar-lhes um raspanete e acabar com a história! - sugeriam muito poucos e a este grupo, para mim o mais inteligente de todos, pertenciam os meus Pais.

Em todo o caso, no liceu temia-se pela sorte das catorze raparigas cujos encarregados de educação se afadigavam na ânsia de falarem à senhora Reitora a fim de obterem para as filhas o perdão sem o qual o ano escolar corria perigo. Todos se desolavam. "Que se elas são castigadas com a expulsão o pior é para nós que não temos culpa de nada!" - queixava-se um Pai com grande exasperação, no átrio e para quem queria ouvi-lo. Fora a Teresa Vieira quem o escutara e viera contar o desabafo, que aliás entre nós também não alcançou uma unanimidade de pareceres.

Uma achava que o tal Pai tinha imensa razão; outra que não tinha nenhuma, dado que as raparigas, em última análise, é que tudo sofreriam no futuro.

Eu, quanto a mim, acho que os Pais, no que diz respeito a consequências, sempre sofreriam na verdade menos do que as pobres tontas. Mas lá que no presente sofriam mais do que elas, disso também não podia haver dúvidas, porquanto só eles é que vislumbravam toda a gravidade do incidente, toda a sua repercussão.

No terceiro dia da suspensão, realizadas as necessárias averiguações para se chegar a conclusões acerca de possíveis antecedentes e verificado que era aquela a primeira falta cometida pelas catorze raparigas, foi resolvido, em conselho disciplinar, agir de acordo com a opinião dos meus Pais, ou seja, a das pessoas mais equilibradas.

As catorze pequenas foram todas convocadas

- marcadas as faltas como faltas, apenas, - e avisadas pela senhora Reitora, depois dum discurso amigo, de que o caso ia ser arrumado com um perdão colectivo. Deu-se então um incidente que teve justificado eco.

As raparigas que, ao que constava - e se notava! - estavam bastante enfiadas, depois de tudo ouvirem olharam umas para as outras parece que demoradamente... e uma delas, como se recebesse de todas as colegas uma ordem imperiosa, adiantou-se pedindo à senhora Reitora que a ouvisse em nome das companheiras.

- Fala, menina... - anuira a senhora Reitora, certamente intrigada com a atitude das pequenas que, em vez de saírem agradecidas, visto o caso estar arrumado, pretendiam alargar-se em considerações.

Mariana Franco-era o nome da que tomara a seu cargo ser o porta-voz do grupo - começara a medo, parece, mas disse-se também que aos poucos fora ganhando a segurança e a calma de quem sente que está a cumprir um dever.

- Senhora Reitora, nós agradecemos muito a benevolência com que fomos tratadas e prometemos merecê-la até ao fim do nosso curso. Contudo precisamos que se faça uma rectificação.

- Que rectificação?

- É que há uma dentre nós que não merece o perdão assim obtido.

Constou que ela a dizer isto e a senhora Reitora mais as professoras que assistiam a sobressaltarem-se, numa interpretação desagradabilíssima da frase.

- Como, como?...

Mariana Franco não devia ter-se apercebido imediatamente da estranheza que provocara, pois continuara a falar com um sorriso de simpatia.

- Essa aluna é a Luísa Maria Teodoro Veiga.

- Mas não merece o perdão, porquê? E ela:

- Senhora Reitora, mas porque o... perdão é só para as que procederam mal. Ora a Luisinha não fez mal nenhum!

E doze cabeças, ao som da frase simples, agitaram-se na negativa, enquanto algumas bocas se atreviam a confirmar:

- Pois... ela não fez mal nenhum! Nenhum !...

A décima-quarta - a própria Luísa Maria

- tornara-se escarlate. Via-se, no seu olhar assustado, que estava completamente fora do que se volvera decisão entre as companheiras.

- Como? Como? - insistiam a senhora Reitora e as professoras.

E a senhora Reitora intimou:

- Explica-te, menina.

Então a Mariana Franco contou tudo como fora.

- A Luísa opôs-se a que nós fumássemos. Era a única com juízo e nós não a ouvimos. Quando fomos descobertas, ela não quis abandonar-nos, não quis individualizar-se e sacrificou-se por nós. Ela não tinha nada que ser suspensa. Nós queríamos avisar logo, mas ela proibiu-nos... Estava connosco, fora connosco na disposição de praticar a mesma asneira, embora depois tivesse reconsiderado e reconhecido o disparate e a inutilidade desse risco tolo. Mas, dado o ponto de partida, comum, ela entendia dever sujeitar-se às consequências. O haver ficado de fora no momento exacto da culpa não bastava, segundo a sua consciência, para a livrar do castigo. E ninguém a convenceu do contrário. Nós, porém, é que também não ficávamos em paz se continuássemos a consentir em que as coisas fossem iguais para ela... Não, a Luísa Maria não merece o perdão, porque não mereceu o castigo! Por isso a verdade fica dita e esperamos que a senhora Reitora lhe tire as faltas, visto que esteve suspensa sem razão.

É fácil de imaginar as caras das professoras a olharem umas para as outras, espantadíssimas... Mas mais espantadas ainda ficaram as alunas que as viram sair da sala onde haviam permanecido fechadas cerca de duas horas. É que na verdade ninguém se lembrava de ver tantos sorrisos felizes à saída dum conselho disciplinar!...

Agora consta no liceu que as faltas não serão tiradas a ninguém mas que desapareceu de cima das cabeças das culpadas o risco dum abaixamento de nota em comportamento, o que, a suceder, arrancaria às bem classificadas do grupo em foco com o ambicionado e merecido e habitual quadro de honra a dispensa do exame do quinto ano!

Contei estas coisas à minha Mãe, que ficou com uma grande simpatia por essas raparigas. Vi perfeitamente na sua expressão que ela gostaria que eu escolhesse dentre elas pelo menos algumas amigas.

A Mãe desde há muito tempo que se preocupa, com o meu isolamento. É que na realidade não há forma de eu me ajeitar a ser como tantas moças da minha idade, aliás absolutamente normais, sãs e escorreitas. Elas estudam juntas, vão ao cinema juntas, almoçam e jantam nas casas umas das outras... e eu não consigo proceder da mesma maneira. É escusado!

E a verdade é que embora também me agrade a conduta do quinto ano, turma A, e me sinta cheia de respeito pelas catorze heroínas (pois não será um acto de heroísmo arrostar com o perigo e arriscar uma situação na defesa de inocentes?) não tenho qualquer disposição para estreitar relações. Continuo a dizer-lhes um rápido Olá... e fico-me por aí.

São seis horas da tarde.

A Mãe não está em casa, foi à Baixa fazer compras.

O Pedro, no quarto dele, estuda com o Paulo.

O Rumané, sentado diante de mim, faz uma retroversão de português-francês. Mas a atenção com que trabalha é pouca.

Acho este meu irmão um pedaço indolente. Os Pais não notam, porque ele é esperto que se farta e consegue levar a vida direitinha... Mas eu, como geralmente estudamos frente a frente, um de cada lado da mesa redonda da sala de estar, reparo no tempo que ele perde a brincar com coisas sem importância nenhuma, e a bocejar... Agora mesmo, lá está ele com a caneta no ar, inclina para a direita, inclina para a esquerda... Chamo-o:

- Rumané.

Não me ouve - ou finge - e eu insisto.

- Rui Manuel!

Desta vez percebe que estou a olhar para ele, baixa a caneta com precipitação, simula escrever, mas depois pára e decide encarar-me.

- A mana precisa de alguma coisa?

- Preciso que não perca tempo e estude direitinho.

- Eu estudo direitinho.

- Não, o menino não está a estudar nada que preste e isso assim não vai...

O Rumané cora, os olhos arrasam-se-lhe de lágrimas. Não sei porquê, pressinto que o miúdo precisa de ajuda.

- Rumané... que é que não está a correr bem?... - ele baixa os olhos com precipitação. - Rumané, responda. Que é que não está a correr bem?

- Mas... está tudo bem, mana.

- Há alguma coisa que o desgoste, lá no liceu?

- Não.

- Os professores desagradam-lhe ?

- Não.

- Então?

- Não há nada, Anita. - mas a negativa é frouxa, o que prova que se passa mesmo qualquer coisa, embora ele se recuse a deixar-me ler dentro da sua alma.

Isto não pode ser! Tenho de falar com a Mãe a este respeito. É preciso ajudar o garoto e só ela o pode fazer. O Rumané, aos outros, não deixa.

O ponto de matemática foi hoje entregue. A Helena e a Marta tiveram cada uma o seu bom Grande+ , que lhes garante o acesso à nota para que trabalham.

Eu fiquei-me no Suficiente +, o que não me garante nada, mas espero melhorar e merecer um pouco mais, embora reconheça que cada vez me pareço menos com o Pedro, que na Faculdade de Medicina se arrogou o direito de continuar as aventuras dos tempos do colégio sim, que o meu irmão mais velho andou sempre no colégio. Como era o primeiro, o Pai e a Mãe tinham medo que o "ar lho levasse" e o menino tinha de sair à porta de casa para entrar na camioneta e vice-versa... Depois, aluno extraordinário, não tiveram coragem de o mudar de direcção e até final do curso do liceu ele lá se conservou, mesmo já sem andar na tal camioneta... Entrou para a Universidade com média geral de 19,4... -19 valores autênticos! E nos 18, 19 e 20 tem andado de exame em exame, a par com o Paulo Manuel. Quando um tem 18, o outro apanha 20. Logo a seguir, as posições invertem-se - o de 18 consegue 20 e o de 20 baixa a 18... As duas feras não recuam perante nenhuma dificuldade, nada os assusta. São destemidos por uma questão de princípio. Aliás tenho muitas vezes a impressão de que qualquer deles gosta do perigo e luta com as complicações que a todo o momento os livros de estudo, aqueles imensos livros cheios de letras pequeninas que dizem coisas tremendamente complicadas e tremendamente importantes, lhes apresentam diante. São como certos navegadores históricos, esses que arrostavam com o mistério dos mares... ou como os astronautas já não menos históricos que se lançam nos céus ainda mais desconhecidos do que o foram os mares... (- acabo de reler o que escrevi atrás e palavra palavrinha acho que isto vai a melhorar...). bom, mas adiante no assunto, pois se perco o fio à meada nunca mais me entendo.

Ia eu raciocinando e chegando à conclusão de que estou longe de ser como o meu brilhantíssimo irmão. Não passo duma rapariga muito medianamente inteligente, com muito mediano interesse por todas as coisas e muito mediana habilidade para o que quer que seja.

Quando era mais nova, estava convencida de que havia de ser uma grande escritora. Sonhava escrever um livro, um belo livro que me consagrasse muito cedo, um livro por fazer realmente, um livro... um livro que contasse a minha vida no liceu. Mas agora, depois de o ter começçado tantas vezes, de tantas e tantas vezes ter rasgado tantas e tantas folhas garatujadas e de novo começar, para de novo destruir e principiar outra vez, chego à conclusão de que o "meu livro" é arriscado e o meu desígnio não passa duma ambição tola demais. Como posso eu definir a rapariga do liceu se nós somos tão diferentes umas das outras, se entre nós o dia a dia reflecte o exterior e não existe uma realidade global, um tipo que nos nivele?

Somos parecidas por fora. Mais magras ou mais gordas, quando nos amontoamos, de batas brancas, desgrenhadas, ficamos de facto iguais... tão iguais que o meu Pai já uma vez foi buscar-me ao liceu e não me descobriu no meio das outras todas. Mas por dentro!... Tenho a impressão de que, ao transpormos o portão de saída, não há duas que levem rumos idênticos dentro dos sonhos, dentro dos pensamentos. Caminhando para casa, a maioria nem sequer vai encontrar as mesmas coisas, os mesmos sentimentos à espera...

É por tudo isto que principio a achar quase, impraticável a obra que ambicionei. E tenho pena, porque há tanto para contar, tanto para. dizer! Mas não devo ser capaz. O meu livro, mesmo que um dia chegue ao fim, não será o documento humano a que os meus anseios acreditavam poder dar forma. E se continuo a rabiscar estas linhas, conforme posso e as ideias e as lembranças e os factos ocorrem, é porque realmente me interessa guardar um testemunho destes dias, destes anos em que me vou formando. Tornei-me muito mais modesta. Penso apenas que talvez no futuro eu goste de relembrar-me tal como estou a ser agora. Talvez possa perceber depois, e melhor, uma filha minha, se a tiver.

Eu sei que normalmente os adultos não entendem a idade a que chamam do "armário", a adolescência, este período estúpido por excelência em que já se não é pequeno e ainda não se chegou a grande e em que se principia a ter ideias de pessoa crescida vestidas com a imaginação da criança. A maior parte das gentes não se recorda de como foi, do que desejava, do que a desesperava, e depois classifica mal tudo o que significamos. E significamos tanto!

bom, eu, pessoalmente, não tenho razões de queixa, nada disso. Mas sei de quem as tem. É que na verdade eu ando no liceu de olhos bem abertos. Pelo menos o mais abertos que consigo...

Tão abertos que hoje não pude deixar de ver, à esquina do liceu, um pouco distante dum numeroso e ruidoso grupo, o Paulo!

O Paulo todo inteirinho, com o seu ar um pouco esgrouviado de rapaz que ainda não se habituou a ser tão alto. O Paulo, que logo que me avistou - e não vale a pena pensar que ele estava ali por outra razão que não eu própria - me sorriu com uma expressão de quem pedia "Não passes sem me falar!".

Eu sei porque é que ele assim o implorava. É que já por duas vezes faço de conta que não dou por ele (aliás costumo andar na rua com o olhar tão fito ao longe que geralmente não reparo nos que estão ou deixam de estar). Desta vez, porém, como ainda trazia os meus olhos abertos do liceu, decidi ter a coragem suficiente para lhe dar atenção, para o deixar desabafar... ao menos a ver se ele perde o ar embatucado com que se me dirige há tempos.

Despedi-me das colegas que tinha mais próximas de mim e caminhei para ele, decidida.

- Bom-dia, Paulo.

- Bom-dia, Ana.

- Talvez fosse melhor dizer boa-tarde. Já passa do meio-dia...

- Pois sim... boa-tarde!

Resolvi ajudá-lo, para acabar com a ansiedade que lhe leio no olhar.

- Estavas aqui à minha espera?

- Sim.

- Queres dizer-me alguma coisa?

- É isso, Ana Maria. Preciso de dizer-te... uma coisa.

- Não podemos conversar lá em casa?

- Acho melhor que seja a sós... primeiro.

- Vamos então andando, enquanto falas. Ele não se mexeu.

- Ana... será possível que a minha companhia te aborreça?

Encarei-o.

- Não me aborrece nada, que ideia! Sabes perfeitamente que sou muito tua amiga.

- Muito minha amiga desde pequena, não é?

- Claro!

- Mas nós crescemos muito, Ana. Não achas natural que os nossos sentimentos também tenham crescido? E que se tenham transformado. . tal como as crianças que fomos e já não somos?

- Não percebo onde queres chegar.

- Ana Maria, tu tens dezasseis anos e eu quase dezanove...

Sem premeditação, ri-me.

- Oh, Paulo, olha que ainda não chegámos a velhos!...

Ele não se riu.

- Não, Ana, ainda não chegámos a velhos. Mas estamos na idade de começar a olhar para diante de nós. Estamos na idade de escolher o futuro.

- Eu, por mim, digo-te que me parece cedo demais para. escolher esse futuro, todos os futuros.

Aproveitei o espanto dele, sincero, para me afastar do caminho por onde não me apetecia nada seguir.

- Olha, Paulo, quando chegamos ao quinto ano do liceu e o passamos com o brilho indispensável para alcançar a média, vemo-nos diante duma interrogação extremamente grave: letras ou ciências?... E a gente fica a pensar de que é que gosta mais, para que é que tem mais facilidade, o que é que lhe interessa menos aprender... Letras ou ciências?... E depois vêm as alíneas e os cursos vários a que elas dão acesso. Alínea F. Alínea E. Alínea G... e assim sucessivamente. E- lá nos decidimos, sem saber como nem porquê, apesar do ar imponente com que informamos a família: eu vou para médica... eu vou para advogada... eu sigo económicas... eu entro para Belas-Artes... Depois, ao cabo do primeiro mês de aulas, é um reboliço. Requerimentos ao ministro, alíneas superlotadas, mudanças de liceus... Olha, uma colega minha que de pequenina sempre disse com um ar tremendamente convencido que queria ir para engenharia mudou agora... sabes para quê? Para filosofia! Muito parecido, não achas? E sabes porque o fez? Porque chegou à conclusão de que detestava ainda mais a matemática do que o latim! E quando a gente muda no sexto ano, não é o pior! O pior é depois, na Faculdade! Aí a encrenca torna-se grave. Alguns conseguem mudar de novo sem perder mais do que um ano. Mas outros têm de voltar ao sexto ano do liceu para seguir outra direcção. E já não falo dos que chegam a tirar um curso completo e depois enveredam por outro ramo, por uma acção diferentíssima, obedecendo a uma vocação tarde demais aparecida ou sufocada antes até aos limites do possível. É por isso que eu te digo, Paulo, que a gente aos quinze anos não pode escolher nada porque nem mesmo sabe ao certo o que quer.

Disse tudo isto, mais ou menos (eu não falo muito amiúde mas quando falo costumo sair-me bem) e ia jurar que as mãos lhe tremeram, o que me fez ter muita pena dele.

Não vou armar em idiota e fingir que ignorava a intenção com que ele estava a procurar explicar-se. Por isso, quando me respondeu, tristíssimo: "então achas que não vale a pena dizer-te o que penso e o que sinto a teu respeito?" volvi-lhe, cheia de sinceridade:

- Não vale a pena, -Paulo, porque eu julgo que o sei. Conheço-te e acho que não estou enganada a teu respeito.

- Então...?

- É realmente muito cedo. Tu não sabes bem se gostas de mim.

- Eu?!...

- E eu também não sei se gosto de ti.

- Ana Maria?!...

- Pois, Paulinho, eu percebo que isto não tem nada de agradável... mas olha que também não é tão mau como o estás agora a imaginar. Porque se não é um sim-sim, também não é um não-não!...

- Será possível que tu não compreendas que a incerteza pode ser uma coisa terrível?

Não, não compreendo. Penso que aos dezasseis anos, aos vinte, mesmo, a incerteza é o sal da vida, o tempero, a coisa que lhe pode dar mais sentido, mais valor... Não se sabe ainda o que vai ser, como há-de ser, onde estará, como estará, o que será, onde chegará... e na nossa idade é o que mais importa, porque vamos a descobrir tudo, vamos à aventura, a sentir o sangue correr-nos nas veias e a vida despentear-nos os cabelos como um vento alegre e franco. É como se ainda estivéssemos a jogar às escondidas, naquela emoção imensa de não saber onde seremos agarrados ou se chegaremos, a salvo ao fim da corrida.

Não tive a coragem de lhe dizer todos os, meus pensamentos. Limitei-me a responder-lhe, tentando animá-lo:

- O tempo passa depressa.

O Paulo não se conformou. (Porque será que as pessoas, mesmo depois de crescidas, não são capazes de reconhecer o momento exacto em que devem deixar de dar um só passo a mais?)

- Ana Maria, creio que encontraste a forma caridosa de dizeres que não gostas de mim o bastante para pensares em vir a casar comigo.

Então decidi imediatamente usar da máxima franqueza.

- Escuta, Paulo. Eu sou muito tua amiga. Se gosto de ti o bastante para pensar em vir a casar contigo, isso não sei. E não sei exactamente porque sou ainda muito nova e não me sinto nada competente para compreender os meus verdadeiros sentimentos. Eu só posso saber se te vou querer para marido quando chegar a uma conclusão a teu respeito.

- Que conclusão?

Pensei "Meu Deus, como os rapazes inteligentes podem ser estúpidos", mas não lho disse. E tentei explicar-me.

- Eu hei-de querer para meu Marido, assim como a minha Mãe quis o meu Pai, um rapaz que dentre todos os que eu conhecer me pareça o melhor, o mais cheio de qualidades, o mais compreensivo, o mais simpático, o mais bonito

- ou seja, o primeiro em qualquer parte, para mim, está claro. Ora eu só tenho dezasseis anos. Os únicos rapazes com quem tenho convivido és tu, o meu irmão, o Fernando Vasco (e esse só lá de longe em longe desde que ele vive em França), o meu primo Artur, o Domingos... e o Rumané. Já vês que não posso, de maneira nenhuma, estabelecer um confronto entre ti e os outros e chegar à conclusão de que és, indiscutivelmente, o melhor... o único!...

Fiquei com a impressão de que o Paulo não estava em condições de assimilar o sentido exacto do que as minhas palavras queriam dizer. Pôs-se a olhar para mim com os olhos tão abertos que quase me meteu medo e depois comentou com um regougo que não sei se era um soluço ou uma risada:

- Nunca supus, Ana Maria, que pretendesses namorar vinte rapazes antes de escolher marido!...

Fiquei tão melindrada que me apeteceu deitar-lhe a língua de fora e desandar pela rua abaixo sem olhar para trás. Valeu-lhe (ou valeu-me!) pensar a tempo que uma tal maneira de agir seria de rapariga mal educada e miúda ainda por cima, e dominei-me. Dominei-me mas não pretendi, de forma alguma, disfarçar o meu desagrado.

- Se é esse o conceito que fazes de mim, se de tudo o que te disse, tão sensato, apenas

deduziste essa parvoíce, creio bem, Paulo, que nunca poderei ver em ti senão um grande amigo da minha infância. Boa-tarde!

- Ana!... Espera, Ana!... Esperei.

- Ana... é que... - tu bem o sabes! - não foi para te ofender!... Na verdade tenho medo de ficar sem ti. E creio que, sem ti, não vale a pena nada!

Olhei para ele muito séria, a reconhecer que dentro de mim se instalava uma grande preocupação que me não competia aliviar ou resolver.

- Não me fales dessa maneira, Paulo! pedi. - Não me fales assim porque me entristeces sem necessidade. Por favor, continua a trabalhar, a estudar, sem me ligares importância de maior. Deixa que o futuro se aproxime naturalmente, sem o forçarmos. Vai-o preparando sempre melhor e não perguntes nem porquê nem para quê a ti próprio. Porque a resposta está sempre diante de nós, Paulo Manuel!- e encarei-o. - Precisamos de viver a nossa vida, merecendo-a.

E ele:

- Tu não gostas de mim...

Pobre Paulo! Sei lá se gosto ou não!... É isso mesmo que preciso de compreender, EU!...

Oh, meu Deus, porque não há-de este rapaz ajudar-me, ter calma, deixar que o meu coração descubra se realmente quer dar-se-lhe para sempre!...

Despedimo-nos à esquina da minha rua.

Vi o Paulo dobrado para a frente como se um grande peso lhe tivesse caído às costas. O seu olhar, de costume quase transparente, pareceu-me vidrado, sem direcção. E senti na minha a pressão frouxa da sua mão húmida, fria.

- Paulo! - disse eu, alterada de repente. Paulo?!... Tu estás doente? Tu estás doente, Paulo!...

E ele, sem mais nada, a afastar-se:

- Quem me dera que viesse a morte! A morte?!...

Oh, meu Deus, mas em que horror de situação me vejo de súbito! O Paulo está louco, louco!...

A morte! ?...

Mas não pode ser, tenho de saber como hei-de agir, o que hei-de fazer, o que é preciso dizer...

Tenho de falar com a minha Mãe!...

- Mãe, preciso de falar contigo.

Os grandes olhos da Rosinha-Mãe, mais luminosos que nunca, divisam-me com uma expressão que não deixa de ser curiosa:

- Tem graça, .porque também preciso de falar contigo!

Beijamo-nos. Poiso os livros, dispo a bata, sento-me ao lado dela. A Mãe sorri-me.

- Qual de nós duas começa?

- Mas tu com certeza, Mãezinha.

A Mãe está com um arzinho que não lhe conheço. Parece um pouco atarantada, confusa... E insiste:

- Queres realmente que seja eu a primeira?

- Claro!

- bom...

Fico à espera. Mas a Mãe não diz nada. Olha para mim fixamente e eu não percebo se está com vontade de rir ou de chorar. Sei apenas que, contra o costume, a Mãe, tão resoluta, tão expedita, quer dizer qualquer coisa e não consegue.

Mas não consegue... porquê?

Assusto-me. O coração dá-me um salto no peito, bate acelerado... Mau!... Terei feito alguma tolice? Aconteceria alguma coisa ao Pedro? Ao Pai?!.., Ou será o problema do Rumané, o tal problema que anda latente e eu não prevejo qual seja, que veio à superfície? Por fim, e quando já me perco nas minhas inquietações, a Mãe principia num tom desconcertantemente inseguro:

- Ana Maria. . eu... eu... bem, tu...-e detém-se.

Continuo silenciosa, a aguardar. A Mãe? Eu?

- Ana Maria, tu... tu... Eu?...

- Tu gostas de crianças?

Penso um pouco, antes de responder. Se gosto de crianças? Crianças de que idade?

A criança que conheci mais de perto foi o Rumané. Lembro-me muito bem dele. Lembro-me de quando veio da Maternidade dentro duma alcofazinha azul e eu, na minha ingenuidade, perguntei ao Pai se era um leitãozinho que ali estava... bom, a verdade é que, embora a comparação se me afigure, como afigurou a toda a gente que se divertiu quando soube da minha saída, disparatada, não consigo deixar de pensar num leitãozinho quando vejo um bebé muito pequenino, muito vermelho, muito franzido, com o nariz esborrachado.

- Não respondes, Anita? Respondo, sim.

- Gosto de crianças, Mãezinha, pois claro que gosto! - e rio. - Principalmente quando não fazem asneiras..

- Todas as crianças fazem asneiras, minha filha. Tu também as fizeste.

De repente, acho a conversa absurda. Eu à espera duma coisa importante e sai-me isto!... Indago:

- Porque é que me fazes essa pergunta, Mãe? Vem alguma criança cá para casa?

E a Mãe.

- Espero que sim.

- Quando?

- Daqui por uns cinco meses.

Neste momento, mas só neste momento exacto, algo buliu dentro de mim.

bom, sou uma rapariga normal. Claro que conservo da ingenuidade a parte que me cabe. Mas de ignorante ou tola pouco tenho...

E uma ideia impõe-se-me.

Arregalo os olhos. Creio que arredondo a boca num oh, de espanto diante do mais que inesperado. Vejo que a Mãe se está a rir com os olhos cheios de lágrimas...

Percebo agora tudo sem ser necessário mais nada. Atiro-me aos braços dela, aperto-a ao peito.

- Mãe, Mãezinha querida, mas isso é mesmo verdade? vou ter outro irmão?

Ela não responde com palavras. Faz-me festas também e acena que sim, muito comovida.

- Oh, Mãe, mas que coisa maravilhosa! A voz da Mãe treme, de comoção.

- É verdade que ficas contente?

- Se fico contente?! . Adoro. Adoro!... Ai, quem dera que fosse já amanhã! -e pergunto:

- Os outros, já sabem ?

Os "outros" são os homens da casa, claro.

- Não... Os teus irmãos, ainda não. Bem vês, isto é um assunto mais para nós, mulheres, por enquanto!

Largo a rir, a rir...

- Oh, minha querida Mãezinha, que alegria tão grande! Um menino pequenino, outra vez!...

- Eu também estou muito contente, por mim e pelo Pai. Só me tem preocupado aquilo que vocês pudessem sentir. Já estão todos muito crescidos...

- Oh, Mamã, - interrompo-a, - mas não podemos sentir senão alegria! É mais um bem que Nosso Senhor nos dá. Eu só te digo que vou passar as horas livres a trabalhar para o bebé!

- e ponho as mãos. Vejo chailes, casaquinhos, camisinhas, fraldinhas... - Mamã, achas que vai ser um menino?

- Já agora, para ficarem dois casais, não se me dava que fosse outra menina.

Torno a abraçar-me à Mãe. Cubro-a de beijos, de carinhos.

- Oh, Mãezinha, tenho vontade de rir e de chorar! É tão maravilhoso, isto que nos acontece !...

A Mãe está profundamente comovida. Olha-me muito séria. Pressinto na sua expressão algo que ainda não estou à altura de compreender, certamente. E agora fala-me num tom diverso.

- Ana, creio que também tinhas qualquer coisa para me dizer. É a tua vez...

Abano a cabeça.

- O que eu queria dizer não tem importância nenhuma, Mãezinha.

- Importância nenhuma ?

- Nenhuma. A única coisa que tem importância és tu... tu e o outro menino que vem morar connosco.

Neste momento o telefone toca. Sei perfeitamente que se não fôssemos interrompidas a Mãe insistiria e eu acabaria por lhe contar o que se passou comigo e com o Paulo. E acho que é melhor não lhe dizer nada por enquanto. A Mãe ia talvez ficar desassossegada e parece-me que ela não deve ter preocupações.

A Laura, de fora da saleta, pergunta:

- Posso entrar?

- Podes. - respondemos a Mãe e eu, ao mesmo tempo.

E quando a Laura entra, com o telefone na mão e os fios todos enrodilhados, como é hábito, nós, que costumamos ambas protestar contra aquele desalinho, desatamos a rir como duas tontinhas.

- O telefone para a menina. - previne a Laura que não sabe porque rimos e nos olha com um ar bastante intrigado enquanto encaixa a ficha.

- Para mim?!...-e o coração dá-me um salto no peito.

Não me digam que é o Paulo! O Paulo... não!...

Não é o Paulo.

Uma voz feminina, dolente, fala-me de lá, com um ar triste que me impressiona.

- Desculpa maçar-te, Ana Maria. Naturalmente estavas a estudar...

- Não, diz.

- Sou eu, a Arabela.

- Já sei. Conheci-te logo.

- Ana Maria eu... eu...

Não oiço mais nada. Ou melhor, primeiro não oiço nada, mas depois percebo nitidamente que há soluços fundos, longos, do outro lado do fio.

- Arabela... tu estás a chorar?

A Mãe presta atenção, olha para mim. E faço-lhe sinal que escuto lágrimas que fazem barulho.

Pelo meio das lágrimas que fazem barulho há frases sincopadas.

- Ana Maria... eu não devia telefonar-te... mas estou desesperada... não sei o que hei-de fazer, não tenho ninguém... Tu interessas-te por mim, és boa... - e depois: - Olha, não ligues... não me ligues, deixa lá...

- Arabela, precisas de mim ?

- Preciso de desabafar. Sou... sou muito infeliz!

Não sei o que há. Não imagino sequer porque é que ela me telefona. Talvez porque se estabeleceu entre nós a corrente da simpatia que pode levar à amizade.

- Espera um pouco, Arabela. - peço-lhe. E tapo o bocal e conto à minha Mãe: - Mãe, é uma colega minha, deve estar aflita com qualquer coisa.

- Diz-lhe que venha ter contigo.

- Sim, Mãezinha! - e volto a falar para o aparelho que vai levar talvez um pouco de conforto a quem sofre. - Arabela, queres vir a minha casa ?

Não há resistência.

- Se me recebes, vou.

- Então não te demores.

- Até já.

- Até já. - desligo e fico-me a olhar para a minha Mãe. - Que será que ela tem?... É capaz de ser grave! A Arabela, lá no liceu, vive muito metida consigo, não convive com ninguém, não se diverte... Só lê! Passa a vida metida pelos cantos, a ler...

A Mãe suspira.

- Qualquer problema!

- com certeza.

- Se ela necessitar de ti, ajudá-la-ás na medida das tuas forças.

- Sim, Mãezinha.

Depois deste Sim que é um compromisso, fico a pensar, inquieta.

E sinto-me cada vez mais preocupada. Como se um sexto sentido me advertisse da minha falta de capacidade para ajudar os outros, para dar aos outros o apoio de que precisem.

Como poderei auxiliar a Arabela?

Está diante de mim, tão pálida que parece a todo o momento ir perder os sentidos. Os cabelos que são dum loiro claro, natural, lindíssimo, estão com um ar desbotado, como se também eles enfermassem do mal que torna a Arabela mais magra, mais frágil que nunca.

Sentada na minha frente, torce as mãos, abrindo e fechando os dedos, único sinal visível dum nervosismo que se expande.

A Laura veio trazer-me o tabuleiro com o chá e retira-se, não sem um olhar pouco lisonjeiro para a minha colega.

E eu espero, sem saber como agir para que ela tenha coragem de deixar sair as palavras que certamente pretende dizer-me.

Por fim ela sorri, um pobre sorriso de quem já não tem forças para chorar.

- Ana Maria, mais uma vez te peço desculpa de vir maçar-te... Mas estou tão desamparada, tão só, que pensei em ti... pensei que eras capaz de me ajudar com um bocadinho de amizade. Sabes? É só o que te peço! Amizade...

Dir-se-ia que ela tem medo de que eu julgue que vem à espera de mais.

- Oh, Arabela, mas eu gosto muito de ti! Na sua voz melodiosa, quente, magnífica, a Arabela replica-me.

- Não gostas muito! Não se gosta muito senão quando se convive intensamente. E nós convivemos tão pouco!... Mas simpatizas comigo, isso sim, eu sei. Eu percebo, quando as pessoas simpatizam comigo. E essa simpatia já é um começo!

- Que se passa contigo, Arabela?

- Sou muito infeliz, Ana Maria.

- Porquê ?

- Porque sou mesmo. E às vezes não há coragem para suportar o que tem de ser suportado. bom... o meu Pai foi-se embora.

- Foi-se embora para onde ?

- Para a terra dele.

- Qual é a terra dele?

- Oestrevil.

- Heim?

- Uma vila sueca.

- O teu pai é estrangeiro?

- Sim, nasceu na Suécia, filho duma grega e dum sueco.

Percebo de repente a estranha mistura dos olhos negros com a tez branca de neve e os cabelos tão claros...

- Ah... que cruzamentos!

- Se fossem só esses...

- Mas ainda há mais? Ela ilude a pergunta.

- com interesse neste momento, não! Sem perceber que estou a ser estúpida, indago:

- E quando é que o teu Pai volta? Arabela fita-me como se tivesse pena da minha dificuldade em entender.

- O meu Pai não volta.

- Não volta?! - e faz-se luz no meu espírito.

Ela abana a cabeça.

- Não, porque deixou a minha Mãe. Estou perante uma situação desconhecida

para mim. Um casal que se parte ao meio...

- O teu Pai deixou a tua Mãe? Deixou-te, a ti?

Arabela abre-se enfim. A torrente solta-se. E eu começo a ouvir o mais difícil de tudo.

- Há muito tempo que as coisas iam mal, lá por casa. Acho que foram sempre mal. Nunca percebi o viver dos meus Pais. Não me lembro de os ver juntos a conversar, a rir... Mas só depois de crescida percebi que aquilo não era normal. Nem sequer se falavam. O Pai saía sempre só. A Mãe passava dias inteiros a jogar. E noites. Às vezes eu acordava às tantas ao som de enormes discussões. Depois dessas discussões a Mãe levava às vezes dois dias a dormir...

- A dormir?

- Pelo menos, se não dormia, ficava deitada. Não havia que comer em casa, nessas ocasiões. As criadas despediam-se, saíam e eu ficava sozinha. Às vezes o Pai aparecia, notava o desalinho de tudo, acho que se compadecia da minha situação e levava-me então com ele a qualquer restaurante onde me dava de comer. Mas não se interessava por mim. Não perguntava o que quer que fosse, não me ajudava em coisa nenhuma. Eu bem queria explicar-me, pedir-lhe que me valesse porque me sentia abandonada, porque aquilo não era viver... Mas não conseguia abrir a boca. Penso que tinha medo dele, medo dos olhos dele.

Eu não digo nada. Oiço-a estarrecida. Nunca defrontei um caso assim trágico.

Tive conhecimento do que se passou em tempos com o Fernando Vasco antes de o Pai dele ter voltado de África. Mas o Fernando Vasco nunca foi tão desgraçado, nunca se sentiu despedaçar, como a Arabela. E a Mãe dele, a boa D. Laura, foi sempre uma Mãe dedicada, amiga dele, sacrificando-se para que ao filho nada faltasse...

Pobre Arabela!...

Continuo a escutá-la.

- Era quase todos os dias como se me cortassem em duas metades e não ficasse nada dentro de mim! Queria estudar, não podia. Queria distrair-me, pensar noutras coisas, não podia. Queria ir para qualquer lado, fugir daquilo tudo... e não podia! Mesmo assim, não imaginava que as coisas viessem a ser piores!

- Piores?

- Piores, sim.

- Mas piores, como?

- Agora.

- Porquê ?

- O meu Pai foi-se embora para a terra dele. Deixou uma carta à minha Mãe, uma carta que eu li...

- Que dizia a carta?

- Explicava que não podia aguentar mais... e que nada o prendia aqui, "- e rompe em soluços, mãos estendidas para mim, num desespero crescente. - Nada o prendia aqui, ouves, Ana Maria? Nada o prendia aqui... Eu sou nada Para o meu Pai, nada, nada!... Não sou nada!

Enquanto ela se debulha em pranto, cansada de sofrer, eu tenho uma reacção muito estranha. Levanto-me, saio da sala, vou ter com a minha Mãe e antes de lhe pedir o que desejo, atiro-me aos seus braços, aperto-a ao coração. E só posso exclamar:

- Oh, Mãe querida! Oh, Mãe querida, obrigada! Obrigada por eu ser feliz! Obrigada por eu ser feliz!

Creio que a minha Mãe só percebe o motivo desta explosão de ternura depois de eu a trazer comigo para junto da Arabela. É que eu não posso fazer nada pela minha amiga, mas a Mãe talvez possa. Pode com certeza!

- É preciso poder, Mãezinha!

A Mãe fala, com a sua voz doce e cantante que ajuda as pessoas a nunca perderem a fé, a nunca perderem a esperança.

- Ouve, Arabela. Por agora trata-se de não desmoralizar. Se tu estás nesse estado... como não estará a tua pobre Mãe! E se tu, que és a única pessoa capaz de a ajudar, lhe faltas com o teu apoio, com a tua compreensão, que será dela nesta hora terrível?

- O que o meu Pai fez... é um crime!

- Arabela, - diz a Mãe, - tu não deves julgar o teu Pai. O que ele fez com certeza não está certo. Mas tu não podes avaliar o que o levou até esse extremo, naturalmente. Podes admitir, tens de admitir, que se trata duma maldade, duma violência... ou duma loucura. Qualquer das interpretações há-de ter a sua origem e não te compete nem acusar nem ajuizar. Nesta situação dolorosa, só te compete sofrer e tentar tudo para te equilibrares no desequilíbrio em que te encontras.

- Mas a minha Mãe podia e devia...

- Arabela, - interrompe a minha Mãe, - a tua Mãe pode e deve tudo. Resta saber se tem forças! Há horas em que as pessoas nem sequer sabem o que estão a fazer. Ela, com certeza, está dentro dessa hora. E tu, se reconheces que se trata dum erro esse abandonar de tudo, essa desistência em que a vês desde há anos, só tens que reagir, que te defender, para evitar a todo o transe cair no mesmo extremo. Precisas de sentir que tens de lutar e de proceder duma tal maneira que te salves e ajudes a salvar a tua Mãe, caída numa espécie de redemoinho capaz de a fazer soçobrar...

Arabela, de súbito, levanta-se e, com a boca a tremer, aproxima-se da Rosinha-Mãe.

-Como... como eu gostava de ser sua filha!

- diz.

A minha Mãe fita-a, muito séria.

- Nunca se deve querer ser filho senão daqueles de quem somos. Deus é que sabe o que nos destina. Bem vês, se eu fosse tua Mãe, talvez não houvesse nada de comum entre nós, nenhuma afinidade... percebes? Talvez eu tenha uma forma de pensar que não se ligue com a tua. Talvez-nunca surgisse entre nós aquela corrente que estabelece o amor.

Olho para a Mãe disposta a discordar, a dizer-lhe imensas coisas que me enchem a cabeça. É que primeiro acho inadmissível que houvesse alguém capaz de não gostar de ser seu filho; e segundo, a Arabela, se fosse criada pela minha Mãe desde sempre, tinha por força de, como eu própria, sentir a tal corrente... Mas não pronuncio um som! Olho a tempo para os olhos dela... Compreendo que a Mãe quis travar assim qualquer possibilidade de controvérsia. A Mãe deseja que a Arabela não sinta o que disse! Mas tenho a noção de que a minha colega não se deixa convencer. No entanto, não discute. Limita-se a ajoelhar num impulso aos pés da minha Mãe, da minha incomparável Rosinha e abraça-a suplicando:

- Não se importa que lhe dê um beijo?

Ficámos tão impressionadas, a Mãe e eu, que durante o resto da tarde não falámos noutra coisa.

O drama - um autêntico drama! -de Arabela, fica A magoar-nos ainda mais porque temos a consciência, uma e outra, de não dispormos dum meio seguro para a aliviar.

É afinal tão pouco o que podemos fazer pelas pessoas em certos casos!

O dia não ia acabar ainda sem novos incidentes. Acontece!

Passam-se às vezes semanas em que tudo decorre normal, e depois lá vem de repente uma série de coisas inesperadas que chegavam, bem divididas e arrumadas, para encher de novidades vários dias a fio!

Hoje foi o que sucedeu.

Primeiro - a declaração do Paulo.

Segundo - a revelação da minha Mãe.

Terceiro - a complicação da Arabela.

Quarto - Quando eu já estava a acabar as minhas orações da noite para me enfiar na cama, o Rumané meteu a cabeça pela fresta da porta que deixo sempre entreaberta.

- Posso?...

Mais uma vez lhe fiz notar que aquilo de perguntar "posso?" depois de ter os olhos dentro do quarto (visto que os olhos são uma parte integrante da indiscrição) era mais do que inconveniente. Quando porém acabei a reprimenda ele já estava todo inteiro à beira da minha cama dentro da qual me instalei.

- Vamos lá a saber o que é que tu queres de mim.

Sim, porque lá dúvidas não havia. Ele queria qualquer coisa! Para o dorminhoco-mor vir procurar-me àquela hora já tardia para ele - onze e meia da noite - é porque algo se passava.

Lembrei-me de súbito do ar preocupado que andava a perceber nele, do vazio que lhe observara nos olhos e nas atitudes, duma certa incapacidade para os estudos que me havia inquietado e então tive consciência de que ele viera ter comigo para se abrir, talvez com uma necessidade imperiosa de fazê-lo e não menor dificuldade em consegui-lo, por timidez ou receio.

Encarei-o e vi que os lábios lhe tremiam. Compreendi que não era nada imprevisível que ele voltasse para trás sem me dar tempo sequer a repetir a frase com que acabava de convidá-lo a explicar-se. E modifiquei instantaneamente a minha atitude um tanto ou quanto rebarbativa.

Estendi a mão e agarrei a dele, puxando-o para mim.

- Senta-te aqui, meu pequenino... - e quando eu disse "meu pequenino" pensei que já não faltava muito para eu dizer meu pequenino com toda a propriedade a um verdadeiro pequenino, visto que o Rumané está a ficar um latagão...

Todo encolhido dentro do pijama, ele sentou-se.

- Então? - insisti. E ele calado.

- Há alguma novidade, Rumané?

O Salta-Pocinhas olhou-me por fim, a direito, o que me permitiu ver que nos seus olhos brilhavam duas grandes lágrimas, duas grandes lágrimas que lhe escorregavam pelas faces, seguidas por muitas outras, por fios contínuos!

Sim, qualquer coisa atormentava o meu irmãozito. O meu irmãozito precisava de ajuda!

Alarmada, abracei-o.

- Que se passa, Rui Manuel ? Aconteceu-te alguma coisa? Tiveste algum desgosto no liceu? Fizeste alguma asneira? Estás com medo de alguma coisa? Sentes-te doente?

Ele abanava a franja ondulada que lhe caía para a testa (restos dos antigos caracóis. quem dera que o futuro pequenito tenha caracóis como os do Rumané! -) a cada uma das minhas perguntas, em negativa formal.

- Então que há, meu querido? Diz-me o que te apoquenta, vá!

E ele, por fim:

- Ando triste, Anita.

- Triste porquê, Rumané?

- Estou...-e engoliu a saliva que lhe enchia a boca, - estou muito crescido!

Pus-me a rir.

- Lá isso estás! Mas acho que o crescimento normal não é motivo nenhum para tristeza.

- É. Para mim, é.

- Explica-te.

- Eu... bom, eu era pequeno, tenho sido sempre pequeno, toda a gente cá em casa gostava de mim porque eu era o mais novinho... Agora sou um rapaz grande, vão começar a pôr-me de lado!

Pensei de mim para mim "este rapaz está a ficar com sensibilidade excessiva! Sofrer assim só porque já tem mais de um metro e cinquenta!..."

- Ora, Rumané, eu também já sou crescida há muito tempo e ainda ninguém me pôs de lado!

- Pois sim... mas contigo foi diferente!

- Diferente ?

- Tu eras muito pequenina quando eu nasci!

- Ia fazer cinco anos.

- Pois pois!... Agora eu?!

Senti que os olhos se me arregalavam, de espanto. E ele prosseguiu:

- Eu estou um matulão! Tenho a certeza de que a Mamã, depois, não vai tapar-me, nem beijar-me... Sou crescido... demais. Sou quase grande. E no fim de contas preciso desses carinhos, desses mimos! Habituei-me!-e lavado em lágrimas: - Acho que não vou poder viver sem eles!

Uma palavra ficou a bailar-me -no espírito.

Depois. Depois? DEPOIS?

E de repente fui invadida por uma suspeita. Acaso o Rumané saberá... e terá ciúmes? E será por isto que anda neste desalento, nesta tristeza que desde há uns poucos de dias me traz impressionada?

Decidi investigar, sem mais preâmbulos.

- Rui Manuel, porque é que tu estás a pensar tudo isso? Sim, que ideias dessas não se metem na cabeça de ninguém sem mais nem menos. Aconteceu alguma coisa de extraordinário?...

Ele acenou que sim com a cabeça, que não baixou, e ficou-se a mirar-me com os olhos rasos de lágrimas.

- Fala. - exigi.

E ele, com a boca a tremer cada vez mais:

- Tu não sabes... tu não sabes... que vamos ter outro irmão?

- Sei. - respondi com a naturalidade com que aceitara o facto.

- E não te importas ? - era ele que pasmava para mim.

- Não. Acho até uma coisa maravilhosa!

- Uma coisa maravilhosa? - e finalmente o Rumané explodiu: - Uma coisa maravilhosa?!... Um intruso, um intruso é o que ele é!

- Um intruso, Rumané? - e mais do que a palavra difícil me atordoava a reacção dele.

- Pois! Uma criança que vem tirar-nos o lugar, que vem substituir-nos, que vem prejudicar-nos...

- Rui Manuel! - proferi, aterrada.

E o meu irmãozito, branco como a cal da parede, mãos convulsas apertadas uma na outra, prosseguiu, num desespero crescente:

- Daqui em diante a Mãe e o Pai só vão pensar nele, preocupar-se com ele, ocupar-se dele, gostar dele!...

- Não, não, não!... - e, irreflectidamente, tapei-lhe a boca, para o obrigar a calar-se. Não digas isso, Rumané, que não é verdade! Os irmãos nunca se prejudicam uns aos outros. Nunca! Cada um de nós tem o seu lugar, tu, eu, o Pedro...

O Salta-Pocinhas manteve-se obstinado, hostil às minhas crenças.

- Isso é o que tu julgas! Olha, eu tenho um colega que teve agora um irmão. Dantes, era tudo para ele. Agora, ninguém lhe liga. Quem trata dele é a criada. Os Pais só têm olhos para a miúda... e ele, ele é muito infeliz!

Tentei reagir, livrar-me duma dorzita surda que me entrou no peito assim, sem mais nem menos.

- Não acredito nisso, meu querido. Deve ser exagero do teu colega. É com certeza ciúme o que ele sente... e o ciúme, acredita, é um sentimento horrível, que complica tudo, que dá cabo das pessoas.

Então, de chofre, o Rumané ergueu-se, olhando-me com uma expressão reservada, cheia de suspeitas.

- Até tu!...

- Heim?

- Até tu, depois, és capaz de só ter olhos para o outro e de não me ligares nenhuma!

Abri-lhe de novo os braços, quis voltar a apertá-lo ao peito, garantir-lhe que ele seria sempre o meu pequenino. Não consegui demovê-lo duma resistência extraordinariamente firme. A todas as minhas diligências respondia com a sua atitude de revolta.

- Eu sei o que estou a dizer, Anita. Vai ser tudo para o outro. Todos se vão derreter com o miúdo. Todos, menos eu, que sou o mais prejudicado.

Sentia-me apavorada.

- Rui Manuel, - disse, procurando mostrar-me calma, - Rui Manuel, estás a afligir-me imenso! E não sei o que hei-de dizer-te para te aliviar, para te convencer... Acho... acho que é preciso falar com a Mamã.

- Proíbo-te!

Já um garoto de doze anos se atreve a dizer à irmã mais velha proíbo-te?!...

- Rumané, tu não me proíbes nada! Vê se tens termos.

Ele começou a chorar.

- Não te zangues comigo,-mana!... Mas é que eu não quero que digas à Mamã... nem ao Papá. Eu sei que eles começavam logo a fazer-me festas e a dizer-me coisas que não adiantavam. As palavras não servem para nada... porque depois é que eu hei-de ver... depois é que eu hei-de ver!...

- Rumané?!...

Ele refugiou-se nos braços que lhe estendi. E então perguntei, dando forma à surpresa que me invadia.

- Mas como é que tu soubeste, querido?

- Ouvi.

- Ouviste?

- Ouvi a Mamã contar à avozinha... há já uma data de dias!

- E porque é que não me falaste logo no assunto?

- Tu sabias?

- Não.

- Quando é que soubeste?

- Hoje.

- Pois é isso. Foi por isso. A Mamã estava a dizer à avó que não queria que os pequenos soubessem, que estava com medo da nossa reacção, com medo que a gente não gostasse... E foi por isso que eu percebi que ia ser mau para mim! Que a gente, para não gostar duma coisa, é porque essa coisa nos faz mal, não achas?

Acariciei a cabeça do meu irmãozinho. Beijei-o muitas vezes, muitas vezes.

- Não, Rumané.

- Não?

- Não. Às vezes não se gosta das coisas porque somos nós que temos manias, percebes? Metem-se-nos ideias na cabeça e depois, se não nos livramos delas a tempo e horas, arranjamos complicações e dissabores que nos atormentam. É preciso reagir e mostrar aos outros que não somos tontos e que aceitamos as coisas com o valor que têm. A vinda dum outro irmão, para nós, não é uma infelicidade, pelo contrário.

É mais um companheiro que chega! É mais um grande amigo que vamos ter.

Mas do coração do Rumané o espinho agudo não se desencravava.

- E se a Mãe depois só gosta dele?

- Há coisas que nunca acontecem.

- Mas se gosta mais dele?

- Pode fazer-lhe mais festas, até porque um bebé precisa mais de ternura e de mimos do que os crescidos como nós... - e continuei a argumentar neste sentido, da melhor maneira possível, tentando incutir-lhe confiança. E acho que o tranquilizei, senão inteiramente, pelo menos bastante. Vi-o sorrir por fim com um ar pacificado, descontraído.

Coisa estranha!...

Foi a partir desse momento que eu não me senti nem descontraída, nem em paz. Era como se o meu coração, feito esponja, tivesse absorvido as inquietações do meu irmãozinho.

Se na verdade a criança que eu me preparava para receber com tanta alegria viesse prejudicar-me, diminuir a importância da minha vida na vida da minha Mãe, na vida do meu Pai? Se eu deixasse, se eu deixar, de ser para eles o que tenho sido até agora?

E a dúvida pôs-se a crescer dentro de mim, sem me deixar migalha de sossego.

Deitei-me e não consegui conciliar o sono.

Revolvia-me incessantemente, angustiosamente, atormentada por imagens que me afligiam cada vez mais implacáveis. Sentia-me a suar, suores frios. Creio que chorei. Debalde queria dominar-me, repetindo a mim mesma as palavras que tinha dito ao Rumané. As implacáveis imagens vinham rebatê-las, despedaçadas.

Ouvi o Pai entrar, já passava da uma da noite-cada vez sai mais tarde do consultório e tem mais chamadas, o que determina que cada vez jantemos juntos menos, porque nós nos levantamos muito cedo e é preciso que as horas de sono sejam respeitadas, para que a nossa saúde não se ressinta.

O único que já não tem horas certas é o Pedro, que umas vezes estuda até altas horas da noite outras regressa altas horas da rua, diz ele que de estudar mas todos nós desconfiamos que vem da sua pandegazita...

Ouvindo o Pai entrar, tive vontade de levantar-me e ir fazer-lhe companhia, assistindo à refeição que sempre faz quando chega - chá ou leite, torradas, qualquer carne assada, um bolo... Mas não me atrevi. Ia afligi-lo, pois logo pensaria que eu estava doente. É que em geral (deito-me às dez e meia) adormeço de mergulho e só acordo quando o despertador toca... ou a Laura me chama.

Assim, deixei-me ficar quieta.

O meu coração registava os minutos que o relógio tiquetava e todos os rumores da casa.

O Pai deitou-se.

Deitaram-se as duas criadas.

Deitou-se a Mãe, depois da ronda da noite, sempre a última a ver que tudo esteja em ordem e em paz.

Veio até ao pé de mim e eu não mostrei que a sentia. E Deus sabe que uma pergunta ansiosa me subia aos lábios, uma pergunta que tudo dentro de mim gritava: "Mãe... depois tu gostas de mim da mesma maneira?..."

Deixei-a ir-se embora sem abrir a boca. E a pergunta crescia terrível dentro de mim, magoava-me o coração e a cabeça...

Quando não pude mais suportar aquela aflição, sentei-me na cama, abri a luz para ver as horas (o meu relógio da mesa de cabeceira não é luminoso). Três horas da manhã!

E eu que tenho um ponto de física ao primeiro tempo!

Uma decisão cresceu dentro de mim, vestida com as roupas fantasmagóricas que a noite empresta às ideias que não nos deixam dormir (li isto há dias num livro de filosofia). "vou levantar-me e vou perguntar à Mãe. É preciso que ela me responda!..."

Só de manhã, ao lembrar-me da resolução que me fizera saltar da cama, reconheci o quanto era pueril a esperança que a ditara. Que adiantava realmente uma resposta, por mais calmante, se a verdade só os factos a dariam e muito mais tarde?

Naquele momento, porém, eu não pensava em mais nada.

Pé ante pé, abri a porta do meu quarto e, coração aos pulos dentro do peito, fui até junto do quarto dos meus Pais. com mil cautelas, entreabri o batente, que ficava sempre encostado. Dei dois passos em frente, na escuridão. Detive-me. Ouvia o respirar calmo e regular dos dois, profundamente adormecidos. Veio-me um remorso enorme de ir acordá-los, talvez impedi-los de continuar o repouso tão necessário e merecido, por uma puerilidade, uma pergunta no fundo disparatada. A minha Mãe, no estado em que se encontra... O meu Pai, que trabalha exaustivamente... Não, não tenho esse direito!

E de repente, como um clarão, tão intenso que toda eu fui luz, veio-me à memória uma frase que li não sei onde nem quando mas era como se Deus, no momento da renúncia, me desse a recompensa máxima com a resposta única capaz de serenar-me.

"Os corações dos filhos apenas chegam para amar uma só Mãe. Mas os corações das Mães dão para elas amarem todos os seus filhos..."

Num murmúrio que não deve ter passado o limite dos meus lábios, repeti com suprema delícia a frase que me confortava, que me afagava... "os corações das Mães dão para elas amarem todos os seus filhos..."

Voltei para a minha cama, o mais depressa que pude. E nem dei porque adormeci.

Ponto de física.

Olhamo-nos inquietas, perplexas.

O ponto é enorme, confuso. Os enunciados parecem um emaranhado de coisas inúteis à força de esquisitas.

Tento raciocinar, escrever de acordo com o que sei. Mas não percebo isto, decididamente não percebo!

Sopro para a Helena, quando por momentos ela levanta a cabeça como se perguntasse ao ar alguma coisa (sei que apenas está a coordenar ideias):

- Não entendo nada.

E ela, encolhendo os ombros, noutro sopro.

- Não entendes porque não sabes.

Não tenho tempo de me escandalizar. É que já a Marta segreda:

- Isto ainda não foi dado!...

De súbito constato que desta feita a informação é exacta. A falta não é minha. Na verdade, esta parte ainda não nos foi explicada.

Mas então... vamos ser corridas a negativas, pela certa!

Há um sussurro de alarme.

A Dr.a D. Branca Mimosa - nada branca porque é bastante morena... - ouve o sussurro e como não percebe o motivo que o justifica dirige-nos um achiu imperioso e recomeça a ler o livro que tem aberto em cima da mesa.

A Dr.a Branca Mimosa está quase a atingir o limite de idade e toda a gente sabe que as suas qualidades intelectuais começaram a enfraquecer.

bom, aliás não é a idade que o motiva, com certeza. Porque a verdade é que há pessoas mais velhas - o meu avô Leonardo, por exemplo! em pleno uso da sua inteligência e com uma clareza de raciocínio que mete num chinelo os mais novos. É certo que também outras (como a avó Joana que Deus lá tem), principiam a ficar vagas, um tanto ou quanto pasmadas, de vez em quando fazendo perguntas e dizendo coisas sem... sem oportunidade, como as crianças. De resto, penso que tudo tem explicação na variabilidade da resistência orgânica das pessoas. E a nossa professora de física deve pertencer ao grupo das menos fortes. Porque se lhe nota o tal ar vago, pasmado... E faz tanta pena!

É que a Dr. D. Branca Mimosa foi uma física eminente, uma das primeiras mulheres a doutorar-se em Portugal. Apresentou há longos anos, num congresso de física que se realizou em Estocolmo, um trabalho de tal forma notável que foi publicado em dezanove idiomas! Foi com o dinheiro dessas traduções e o dum prémio que pouco depois ganhou nos Estados Unidos que ela pôde comprar a casa em que vive perto de Cascais e onde montou um laboratório, dizem que modelar. Uma vida gira!...

Sim, uma vida .gira, o que não quer dizer de maneira nenhuma que ela tenha sido uma mulher feliz, pelo menos de acordo com a minha maneira de conceber a felicidade. (Ah... a minha maneira de conceber a felicidade!... Hei-de falar nela assim que puder!...)

A Dr.a D. Branca Mimosa não tem família. Morreram-lhe:,os Pais quando ainda era rapariga; a única irmã há imenso tempo; o noivo durante a primeira guerra mundial - pelo que para sempre ela ficou a detestar as lutas sangrentas e começa invariavelmente os anos lectivos com uma prelecção contra a loucura que arrasta os homens a destruirem-se antes que a vida se lhes gaste.

Os seus companheiros são um cão de raça já meio cego, dois gatos pretos que depois duma experiência que ela fez se tornaram brancos e a seguir voltaram à cor primitiva (todo o liceu conhece a história e há numerosas testemunhas do facto) e uma criada meia tonta que leva meses sem limpar o resto da casa mas traz o laboratório sempre num brinquinho. De facto o laboratório é o grande amor da nossa professora. É lá que vive todas as suas horas livres, buscando incessantemente, ao que consta, descobrir a fórmula decisiva e definitiva para tornar brancas todas as peles do mundo, por mais escuras.

Ninguém sabe se a descoberta teria um interesse muito grande, esse em que ela sem desfalecimentos acredita. Os homens de peles escuras desejariam realmente aclará-las? Está na verdade o desentendimento aos homens baseado nas diferenças da cor das suas epidermes?

Mas a Dr.a D. Branca Mimosa não procura explicações que pessoa alguma se atreveria a garantir-lhe, julgo... Persegue um sonho e tenta, tenta, tenta...

É por isso que ela está... como está! Dizem que principiou justamente a ficar assim, vaga e pasmada, quando os seus gatos depois de haverem ficado brancos tornaram a ser pretos.

Pobre Dr.a D. Branca!...

Merece bem que toda a gente a respeite, perdoando-lhe as fantasias. Merece que todas lhe perdoemos este ponto que nenhuma de nós consegue fazer.

Tocou a campainha.

O liceu revive. O bulício alastra. Nós saímos da aula, umas descontraídas perante a verificação duma realidade absoluta, outras enervadíssimas, outras ainda lavadas em lágrimas... com espanto noto que as que choram são precisamente as menos espertas e as menos estudiosas! Coitadas, não compreendem o que sucedeu!... E é tamanha a sua noção de inferioridade... ou de culpa, que se perdem num choro sem causa.

Extraordinário!

Como extraordinário foi, dias depois, o resultado do ponto! É que não houve nenhuma negativa! Eu tive um Suficiente + ... talvez portanto um catorze.

Pobre Dr. D. Branca! Na verdade, a sua alma merece bem o nome com que está catalogada nos registos da vida - branca... e mimosa!

Tenho uma mania.

Gosto de ir ver o correio. Gosto de abrir a caixa, de tirar lá de dentro a correspondência, de espiolhar quanto há - e o que há quase sempre é uma abada de papelada para o Pai, na sua maior parte reclamos de medicamentos, anúncios e muitos folhetos que frequentemente seguem direitinhos para o lixo. Outras vezes, porém, surgem bonitas gravuras, estampas com categoria que eu e o Pedro disputamos e guardamos sem sabermos ao certo para quê, mas guardamos... De resto, correspondência para mim, não há.

A única pessoa que de longe em longe me escreve um bilhete-postal ilustrado é o Fernando Vasco; um-bilhete-postal ilustrado onde ele com uns enormes gatafunhos traça palavras que abrangem a família inteira "Saudades para todos" - "Nunca me esqueço de vocês" - ou "Continuo vivo"...

E eu não perco a mania de ir ver o correio.

Foi assim que hoje me veio parar às mãos, dentro dum sobrescrito elegante, uma grande carta do Fernando Vasco... para o Pedro!

Claro, já se sabe que as cartas grandes são para o Pedro! Para mim, os postais coloridos, muito bonitos, mas que não dizem nada, que não contam nada dessa vida apaixonante em que ele caminha firme e decidido sob um nome bem diferente daquele que só não perde para nós e para os Pais dele. Lá fora o Fernando Vasco chama-se Jacques Bertrand.

Sim, Jacques Bertrand, o jovem actor a caminho do estrelato que nós aqui em Portugal já vimos em dois filmes diferentes e no último nada mais nada menos do que ao lado da formosíssima Anette Stelbau - a actual coqueluche da França - é precisamente o nosso amigo Fernando Vasco a quem o acaso (ou um golpe de sorte ou o destino) abriu definitivamente as portas duma carreira nunca antevista por mais sonhada que tivesse sido, quando ele esteve com o meu irmão e o Paulo na Alemanha, no Reichvater.

A D. Laura, a Mãe dele, às vezes (sempre que recebe notícias importantes) telefona à minha e conta que o filho vai de vento em popa - para o seu coração que não deixa nunca de ser timorato talvez até de vento em popa... demais! A pobre D. Laura está sempre com medo de que o frágil bote em que o filho se aventurou venha a naufragar... A pobre D. Laura nunca mais na vida aprende a confiar seja no que for! Continua a recear tudo e mais alguma coisa!

A minha Mãe costuma dizer que não conhece ninguém que menos se afoite a acreditar mesmo naquilo que vê... Ela nem a sua própria felicidade, que sem dúvida possui, parece considerar segura! Está permanentemente incerta, desconfiada; imagina problemas e complicações por tudo e por nada, existe no pavor de que a hora seguinte venha dissipar o que na hora actual lhe sorri!

É claro que este estado de espírito tem a sua explicação. A vida um dia marcou-a e ela nunca mais conseguiu libertar-se das cicatrizes que o mal sofrido lhe deixou na alma.

Pobre D. Laura, sempre, sempre com medo de que as coisas boas se tornem más!... Deve ser horrível, uma pessoa sentir-se constantemente privada de tranquilidade.

A mim custa-me compreendê-la. Talvez porque sou como a minha Mãe. A Mãe parte do princípio que as coisas boas da vida, se existem, é porque Deus no-las quis dar e pronto!

Costumo ouvir a Rosinha dizer isto, sem tirar nem pôr, à D. Laura. Mas, embora não escute a resposta, claro, também sei que invariavelmente a Mãe do Fernando Vasco (Jacques Bertrand!...) replica: - ...E também as más são sempre más, querida amiga!...

Por causa do filho, os terrores que ela amontoa!...

O Fernando Vasco (Jacques Bertrand) tem um apartamento alugado a dois passos do Bois de Boulogne. "Veja em que sítio, querida amiga! Um bosque, certamente mal frequentado, onde parece que há assaltos a toda a hora!... Um dia matam-no e nunca mais ninguém sabe dele... Um horror, não acha?" A Mãe sorri. Não acha. "Querida amiga, imagine, ele comprou um carro de desporto e está a pagá-lo a prestações!... Se não pode satisfazer os seus compromissos, vai parar à cadeia, que aquilo lá não é para graças... Um horror, não acha?..." A Mãe sorri. Tenho a impressão que não acha e que a considera uma fatalista arrastada às últimas consequências do pessimismo... Pobre D. Laura!

Olhando para a carta que tenho na mão e lembrando-me de tudo isto dá-me vontade de rir... É que, pelos vistos, até agora o Fernando Vasco (Jacques Bertrand) ainda não foi nem assassinado... nem preso!...

Oiço de repente a voz do Pedro, a dois passos de mim.

- Desde quando é que principiaste a rir-te sozinha?

De começo, não percebo. Depois entendo... e rio ainda mais, divertida.

- Eu não estou a rir-me sozinha... rio-me por causa disto!... - e estendo-lhe, num gesto triunfante, a carta que ainda não larguei.

O Pedro mira-me com um ar que me intriga. Instintivamente procuro em mim algum pormenor que suscite nele um tal olhar de reprovação. Estarei desgrenhada? Terei o nariz enfarruscado? A bata suja?

O Pedro, calmamente, senta-se, rasga o sobrescrito, lê...

E eu esforço-me por conter a impaciência que me agita. Anseio saber o que aquelas folhas de papel contêm e o maçador do meu irmão, imperturbável, apodera-se das notícias como se fossem um exclusivo... Oh, que egoísta!...

Não me atrevo a reclamar, porém. Num esforço imenso, a fim de dominar a impaciência, dirijo-me para a janela, olho a rua através das vidraças, tamborilo com os dedos no parapeito. Volto-me a tempo de ver o Pedro dobrar a carta com evidente intenção de guardá-la.

Precipito-me.

- E eu, Pedro?...

Ele torna a olhar-me com aquele olhar de que não gosto.

- Ah... interessa-te ?

- Que pergunta tão tola! - refilo. - Claro que me interessa. Creio que o Fernando Vasco não é só teu amigo!... Ou é?...

O Pedro, com aquele ar de pessoa completamente crescida que de vez em quando assume, de testa franzida e nariz comprido, voltou a desdobrar a carta e, quando eu já estendia a mão para recebê-la, pôs-se a ler-ma em voz alta, fazendo pelo meio inesperadas paragens durante as quais me fitava como se fosse tirar-me o retrato.

É evidente que não decorei a carta. Ficaram-me dela apenas algumas vagas noções, principalmente uma passagem que está a acudir-me à memória:

E inesperadamente apareceu-me este contrato na índia, numa equipa formada e em apuros por causa dum acidente gravíssimo sofrido por um dos actores principais. E imagina tu onde era!... Precisamente na pátria do nosso Ma-hur.'... Fiquei doido com a ideia de ir encontrá-lo e nem olhei para trás. O meu trabalho em Paris permitia-me esta escapada, aliás. E por isso aqui me tens. Resta-me dizer que a minha amizade com o Ma-hur tem feito sensação. A nossa equipa tem gozado das maiores facilidades. E por isso não só estamos a rodar em exteriores autênticos como temos o ensejo de aproveitar o palácio real, onde sou o hóspede querido, para cenas que requerem um ambiente de luxo asiático... Vê tu as voltas que o mundo dá! Quem me diria a mim, quando ele no Reichvater nos convidou a visitá-lo, que tão depressa me seria possível viver o que então a todos parecia apenas um sonho! Olha, a propósito, ele pergunta-me por ti e pelo Paulo...

Do resto da carta já me não lembro, tanto mais que outras ideias vieram sobrepor-se à sua recordação.

- É natural que eu tivesse ficado meditativa ouvindo tais notícias, notícias com sabor a mais uma história maravilhosa, história das Mil e uma Noites!... Fernando Vasco (Jacques Bertrand) no palácio dum marajá coroado de pedrarias...

E via tigres e elefantes e túnicas resplandecentes e véus de todas as cores...

Do meu devaneio arrancou-me a voz severa do Pedro.

- Em que ficaste a pensar, Ana Maria? Protestei contra a intrusão.

- Em nada que seja de interesse para ti. E ele:

- Ana Maria, gostaria que te deixasses de fantasias e tivesses um pouco mais a noção das realidades.

Encarei-o.

- Oh, Pedro, mas que mal faz uma pessoa ficar por momentos fora do mundo? Tudo isso que tem acontecido ao Fernando Vasco é tão extraordinário!

- É. Mas num milhão acontece a um!... As pessoas não devem embalar-se em quimeras inúteis.

- Eu não estou a embalar-me em quimeras inúteis!

Ficámos a olhar-nos por instantes. E sei que o Pedro estava a ler dentro dos meus pensamentos como se lhos apresentasse escritos numa folha de papel.

Eu... a caçar tigres.

Eu... montada num elefante.

Eu... envolta em véus resplandecentes.

Eu... artista de cinema ao lado do Fernando Vasco (Jacques Bertrand)...

Corei.

O Pedro abanou a cabeça, reprovativo.

- Pelo amor de Deus, Ana Maria, não deixes de ser sensata!... A ventura não está nos impossíveis. Peço-te que te lembres sempre disto!

E não adiantámos conversa.

Mas sinto que daqui em diante o meu irmão me vigiará e eu não sei onde hei-de esconder os meus sentimentos e os meus sonhos de modo a que ele não os descubra.

Podem os meus sentimentos não ter futuro e os meus sonhos serem inúteis, mas pertencem-me e eu quero viver com eles.

Houve fita hoje de manhã, no liceu.

Estava um tempo de maravilha e como a professora de desenho faltou, fomos todas para o pátio interior do liceu - pátio para o qual se abre a janela da nossa turma.

Mais garotas que as garotas pequenas, só fizemos disparates. Dir-se-ia que aquele dia de Inverno com sabor a Primavera puxava por nós como puxa pela própria terra e nós desdobrávamo-nos em ideias pueris tal como o chão em ervinhas.

Jogámos os cinco cantinhos, o eixo-ribaldeixo... e acabámos aos polícias e ladrões!

Por duas vezes a D. Rafaela veio à porta repreender-nos por estarmos a perturbar a vida escolar, distraindo as que se encontravam nas aulas.

Durante instantes acalmávamo-nos, mas logo um diabinho nos puxava e tudo recomeçava.

Eis que veio porém uma advertência grave:

- Ou as meninas sossegam ou vão todas à senhora Reitora!... -e agora não era a D. Rafaela, a quem nós temos muito medo- mas nenhum respeito, que nos avisava. Era a vice-Reitora, um amor de pessoa mas nada para graças.

Ficámos estarrecidas. Irmos todas à senhora Reitora não se nos afigurava agradável... -E mal a vice-Reitora virou costas, enfiámos, como ratos, para o interior do liceu.

Só eu tive uma última maluqueira. Corri para a janela... e galguei-a.

Ai de mim!...

Quando ainda estava com uma perna fora outra dentro, dei de caras... com a senhora Reitora em carne e osso, que na nossa turma falava com... eu sei lá com quem é que ela falava!... Falava!...

A situação era tal que a senhora Reitora nem sequer tinha possibilidades de fingir que não me vira.

Estava na minha frente, a uns três metros de distância e olhava-me...-e agora quase posso jurar que a sua expressão era a duma pessoa morta de riso. Eu... eu nem para dentro nem para fora! Era como se estivesse a cavalo... e aquela montada levava-me vertiginosamente para o caminho dum inevitável castigo.

Havia no liceu uma proibição formal, muito antiga, de se saltar pelas janelas. Fora feita para corrigir a tentação que a pequenada tinha de entrar e sair por onde não devia. E quem fosse apanhado a transgredir a ordem podia logo contar com a punição.

Eis-me ali portanto, sujeita a uma baixa de nota em comportamento - e consequente perda do quadro de honra, o que se me afigurava desastroso.

Senti-me miserável!

Então a senhora Reitora, no meio do silêncio espavorido das minhas colegas, disse-me, bondosamente:

- Enganaste-te no caminho, filha. Isso é uma janela, não é uma porta. Talvez seja melhor voltares para trás e entrares como deve ser.

Obedeci com uma vontade imensa de ir saltar-lhe ao pescoço. É que percebi logo ali que o meu quadro de honra não corria perigo...

Querida senhora Reitora!... Obrigada. Obrigada por me mostrar assim, tão singelamente, o que é ser uma pessoa bondosa!

Há oito dias que não acrescento uma única linha neste caderno. Há oito dias que não acontece nada de especial. A única coisa que talvez seja digna de registo passa-se com a pobre da Arabela, que todos os dias me procura com um arzinho de cão batido, de cão sem dono, que me corta o coração.

A Mãe dela continua inconsciente e a Arabela pensa que um velho primo, que é a única pessoa que as visita uma vez por outra, está a pensar em interná-la num hospital.

E depois, que será da Arabela?

Eu sou feliz!

E sei, acredito saber, o que poderá ser para mim, ao longo da vida, a conservação da felicidade.

Dentro do impossível - que as coisas fossem sempre como são hoje, no meu lar, junto dos meus.

Dentro do natural - tirar o meu curso, tornar-me uma mulher útil, ocupada num trabalho que me dê gosto, casar com um rapaz que eu adore e de quem ao fim de vinte anos ainda goste mais do que no dia em que casar com ele (aliás acho que é isto o que sucede cá em casa, entre a Mãe e o Pai). Adorava ter três filhos, bonitos e inteligentes, que se criassem com saúde e sem darem preocupações, que é o que tem sucedido cá em casa, também.

Ao cabo e ao resto parece-me .que tenho falta de imaginação, porque o que eu desejo para mim é uma réplica do que me rodeia. E daí?... bom, talvez não seja exactamente o mesmo...

A ver se eu sou capaz de analisar o problema.

A minha Mãe consagrou a existência ao lar, à família, ao marido. É uma senhora quase à moda antiga que não tem senão os horizontes que a casa lhe dá e não precisa de outros. Ora para mim... só isto julgo que não bastará. Realmente apetece-me fazer mais qualquer coisa, preencher horas com trabalhos que me dêem possibilidades de me reflectir para além dos muros familiares. Creio que no fundo desejo ser... ser uma pessoa conhecida. Seduz-me a ideia de vir a ter um Nome, um Nome considerado sem o dever senão a mim, ao meu labor, ao meu esforço, às minhas capacidades! Creio que gostarei de levar uma vida activa, preenchida fora de casa. Uma vida talvez... um poucochinho masculinizada, se a expressão pode ser utilizada num caso destes. Uma vida que decorra em ambientes variados, que me permita sentir-me Pessoa e não apenas Comparsa.

Penso que se dissesse isto assim, tal e qual, à minha Mãe, ela não o compreenderia totalmente. E no entanto gostava de falar deste assunto a alguém. Mas a quem?

Obrigo-me a verificar, de súbito, que o meu contacto com a família está a ser escasso. Disponho de pouco tempo livre e as horas que me sobram não são concordantes com aquelas de que geralmente os meus Pais dispõem.

O Pai, com os seus dias super-ocupados de grande Médico cheio de clínica, quase não me vê. Quando eu era pequenita, arranchávamos todos, saíamos aos fins de semana, aos domingos... O Pai tinha que fazer, mas menos, claro. Nós ainda não andávamos absorvidos pelas nossas obrigações pessoais. Agora eu tenho estudos que me prendem - quantas vezes ao domingo sou forçada a ficar agarrada aos livros a preparar-me para um ponto! O Pedro...

- com esse então não se pode contar! Até porque, quando não tem nada de especial a ocupá-lo, faz "a sua vida" de rapaz que já traz as chaves da casa no bolso...

Sinto-me às vezes chegada ao ponto culminante em que a família principia a dispersar-se, a alargar o seu círculo estreito, a preparar-se para deixar as suas sementes irem dar fruto noutras terras.

Felizmente os meus Pais não sofrem com esta noção. Ou não dão por ela, preenchidos como andam pelas venturas do dia a dia. Eu não quero sofrer também. Porque hei-de sofrer? Porquê, se tudo vem tão longe e neste momento o que me rodeia faz parte de mim como eu faço parte de tudo o que me rodeia?

E não quero pensar em mais nada, hoje.

- Ana Maria, estás muito ocupada? Fechando a caneta, olho para a porta.

- Não, Pedro. O Pedro avança. Observo-o.

Está cada vez mais alto - metro e 84! e magro que mete aflição. O que lhe vale é ter os ombros largos, quando não parecia um pau... Assim parece um cabide a andar.

O meu irmão não está propriamente uma beleza. Não, uma beleza não está... mas é giro que se farta! Ainda há dias duas colegas minhas que me viram entrar a porta da rua ao mesmo tempo que ele me perguntaram "quem era a brasa que morava cá no prédio"...

bom, brasa-brasa, para o meu gosto, não chega a ser. Talvez porque estou demasiadamente habituada a vê-lo!

Habituada a vê-lo, sim, mas não com esta cara! Nunca vi o Pedro olhar para mim tão sério, com uma expressão tão carregada... Carregada, ou inquieta?

Percebo pouco de fisionomias, mas o que observo indica-me que as coisas não estão a correr bem para o meu irmão.

- Que há Pedro? - indago. - Sucedeu alguma coisa?

O Pedro puxa uma cadeira, senta-se na minha frente, apoia os cotovelos na mesa de trabalho, aproxima-se para me olhar de perto.

- Eu é que te pergunto a ti, Ana, o que foi que aconteceu!...

Espanto-me.

- A que propósito vem essa pergunta?

- A propósito de... -pára, mordisca o lábio inferior naquele jeito que nele sempre indica o maior nervosismo, e depois dispara-me á queima-roupa : - Que se passa entre ti e o Paulo?

Instintivamente, encolho-me. Sinto que devo pôr-me na defensiva.

- Nada. Não se passa nada.

- Nada?

- Absolutamente nada ! - e suporto o olhar dele, que tem qualquer coisa de agudo, como se quisesse ler dentro de mim, pesquisar- os meus pensamentos. (Será este o futuro "olho clínico" do Pedro?).

Pouco depois, o meu irmão prossegue:

- Ana, eu não sou parvo e sei que sucedeu qualquer coisa. Só lamento que o ocorrido tivesse para ti tão pouca importância que consigas responder-me Nada com toda a sinceridade. Porque eu sei que estás a ser sincera.

Pergunto:

- Foi o Paulo que te contou?

- O Paulo não me contou coisa nenhuma. Espero que tu me expliques.

- Era melhor perguntares-lhe, a ele.

- Não. Tu é que és minha irmã.

- E ele o teu amigo querido!

- Muito querido, sim. Mas isso não me dá o direito de o melindrar ou chocar. Pelo contrário.

- E dá-te o de vires aborrecer-me, a mim?

- Não estou a aborrecer-te, Ana. Estou a tentar ver claro numa situação que de súbito se me afigura confusa.

- Posso saber porque é que vens com toda essa história?

- Há uns dias que o Paulo não é o mesmo rapaz.

Tenho uma vontade louca de troçar e dizer "coitadinho dele" mas não me atrevo. E o Pedro continua a falar.

- Ele anda triste, quase não fala... e sempre que o convido para cá vir a casa dá uma desculpa. Hoje achei que eram desculpas a mais. E então resolvi pedir-lhe que fosse franco e me dissesse se havia alguma coisa que não estivesse a correr bem entre nós dois. O Paulo olhou-me de frente, como tu sabes que é costume dele, e respondeu-me: "Não, entre nós dois, não!..." Ante uma réplica tão expressiva, insisti, claro. "Mas, visto isso, existe alguma coisa... com outra pessoa!". E ele, com a mesma lealdade: "Desculpa, Pedro, mas só posso dizer-te que não me reconheço o direito de entrar numa casa onde sei que vou importunar". "Importunar, a quem?..." - quis eu saber. E ele: "Justamente à pessoa a quem menos desejo aborrecer".

E ao acabar de pronunciar estas palavras, o meu irmão ficou-se a contemplar-me como se esperasse que eu o esclarecesse imediatamente. Sim, era claro como água que a pessoa a quem o Paulo menos desejava aborrecer se chamava Ana Maria e estava ali diante dele muito caladinha, a pensar que tudo aquilo tinha seus quês de ridículo .. Por isso mesmo não abri a boca. De mim para mim ia pensando que o Pedro não devia meter-se em assuntos que não lhe diziam respeito.

Percebendo que eu não estava disposta a falar, o Pedro prosseguiu:

- Só depois daquelas palavras compreendi o que se passava. E sem insistir para que ele me explicasse .o que quer que fosse mais, decidi entender-me contigo. Importas-te de fazer o favor de me contar o que sucedeu?

Bastante contrariada, encolhi os ombros.

- Achas muito preciso que eu o faça?

- Sim, para evitar mal-entendidos prejudiciais para todos nós.

Primeiro hesitei. Depois bufei expressivamente a minha contrariedade e volvi-lhe:

- É simples. O Paulo pediu-me namoro e eu disse-lhe que não.

- Mas... não gostas dele?

- Gosto. Sou muito amiga dele.

- E não te basta ?

- Não.

Perante o meu Não tão rápido e categórico, vi o meu irmão sorrir, começar a perder o ar carrancudo que até aí mantivera.

- Se não estou em erro, aqui há uns tempos parece que pensavas doutra maneira...

- Era uma miúda, não percebia nada de sentimentos! Acho que tive um certo embeiçamento pelo Paulo. Posso mesmo dizer que ele foi o meu primeiro amor...

- Isso quer dizer que hoje tens um segundo amor?

Impacientei-me.

- Ó Pedro, deixa-te de tolices! Sou livre como um passarinho!

- Acaso tu, Ana, serás daquelas raparigas volúveis que desejam coleccionar namorados como outras coleccionam retratos de artistas de cinema ?

Não sei se o Pedro disse esta frase com segundo sentido. Sei que fiquei escarlate e reagi - reagi mal - pois logo acusei o toque.

- Acho idiota estares com insinuações dessas.

E o meu irmão, duríssimo:

- Se achas que estou com insinuações é porque admites que eu, ao dizer o que disse, atingi o alvo!

- Pelo amor de Deus, Pedro, cala-te! Não é verdade nada do que estás a pensar.

- E que é que eu estou a pensar? Nunca imaginei que um rapaz desta idade

pudesse ter tanta rijeza, ser tão insistente a perseguir um objectivo. Sentia-me tremer toda por dentro, quase a rebentar em soluços. Pus-me de pé, apoiada à mesa.

- Pedro, - implorei, - Pedro, não me fales nesse tom! Eu asseguro-te que não há nada de mal no que se passa... eu não tenho ideias... eu nem sequer percebo porque é que estamos nesta discussão!...

- Não se trata duma discussão. Trata-se apenas de eu querer saber porque é que o meu maior amigo me evita e foge da nossa casa, desta casa onde sempre foi recebido como se pertencesse à família.

Queixei-me.

- Era mais simples que ele te contasse tudo.

- Simples ou não, quero saber por ti a causa deste afastamento.

- Não admites que haja outra razão... uma razão que não tenha nada a ver comigo?

- Não, Ana, porque sou praticamente da idade do Paulo e sei que nas nossas idades uma atitude como esta, que determina um afastamento súbito, só pode ser motivado por uma rapariga. Ora como eu não pretendo nenhuma e ele se recusa a vir aqui onde existes tu... e ele sempre mostrou por ti uma preferência que aliás parecia não te desagradar... - e mirava-me bem de frente ao dizer estas palavras, - só posso admitir que essa rapariga és tu... e que tu, por qualquer razão que desconheço, te desinteressaste dele. Eis porque, depois de todas estas deduções, te pergunto: que houve para decidires correr com o Paulo?

- Mas eu não corri com o Paulo!... - e não pude mais evitar que as lágrimas me saltassem dos olhos. - Se... se foi ele que te deu a entender uma... uma coisa dessas... fez... fez muito mal!...

- Ele não me deu a entender coisa nenhuma. - e aqui pareceu-me que o Pedro começava enfim a quebrar, talvez impressionado com o meu choro que se via bem que era sincero. Fui eu que pensei.

- Mas pensaste porquê?

- É preciso que volte ao princípio e que te explique tudo outra vez?

- Não, não!...-e, precipitadamente, abanei a cabeça, agora já a sentir-me com imensa pena do meu irmão que ao começar a ser um homem a primeira coisa que acha que deve fazer é julgar mal as mulheres, incluindo a própria irmã. - Não podes então admitir que tudo seja bastante diverso do que pensas, que eu tenha procedido de modo a talvez só merecer a tua confiança e os teus elogios, que eu me comportasse como uma verdadeira rapariga de juízo deve fazê-lo? Olha que talvez o Paulo, reagindo como reagiu, mereça mais censuras do que eu!

Então, muito calmo, o Pedro pediu-me:

- Conta-me como as coisas se passaram.

- bom... o Paulo... o Paulo é claro que há muito tempo, pelo menos desde que eu voltei da viagem a África, que deixa perceber o quanto se interessa por mim...

- Queres dizer que ele não esconde o seu desejo de te namorar?

- Creio mesmo que ele pensa... que ele pensa num casamento.

- Não podia ser doutra forma, é evidente.

- Ao longo destes anos... tem tentado várias vezes falar comigo... mas eu sempre o obrigo a mudar de assunto para... olha, para evitar o que se deu agora!

- Mas tu não gostas dele?

- Importas-te de não me interromper? Ouvimos, nessa altura, um certo reboliço em

casa; um toque de campainha estridente, vozes alteradas, o som dum choro convulsivo (pareceu-nos) mas estávamos ambos tão enfronhados na conversa que nenhum de nós prestou atenção ao que quer que fosse que estivesse a acontecer, e eu prossegui, acalorada:

- Eu só tenho dezasseis anos, Pedro! Sou muitíssimo amiga do Paulo. Admiro-o e tenho confiança nele. Acho-o giro, gosto de o ver, gosto da sua companhia. Mas achas que isto basta para eu, tão nova, tão inexperiente, me decidir já a preferi-lo para sempre? Como é que eu posso, conscientemente, ter a certeza de querer viver com ele, para ele, a vida toda, toda, toda?...

O Pedro ficou a olhar-me durante alguns instantes, com aquela ruga entre os sobrolhos tão acentuada que me pareceu estar diante do meu Pai quando ele começa uma observação clínica, dessas de que podem depender a vida ou a morte de alguém. Por fim, inquiriu:

- É isso o que tu pensas, exactamente ?

- É.

- Foi isso o que disseste ao Paulo ?

- Sem tirar nem pôr, quando ele foi esperar-me à saída do liceu.

- Tu estás na razão.

Atirei-me ao pescoço do Pedro, abracei-o, apertei-o com quanta força tinha, percebendo . .que o meu irmão se tornara meu aliado.

- Pois não é verdade, Pedrinho? É preciso que eu conheça, que eu saiba o que desejo, o que quero... Quando escolher... -e até te digo que é muito natural que eu venha a escolher o Paulo!, quero saber o que estou a fazer. Porque eu, Pedro, no dia em que me ajoelhar no altar e disser sim ao meu companheiro... sou daquelas que o fará para toda a vida!

Um largo sorriso, aquele sorriso que o torna irresistível de simpatia, desanuviou o rosto do meu irmão. E depois de me dar um piparote na ponta do nariz, exclamou:

- Tenho de convencer aquele maluco de que não é indesejável. E de meter-lhe na cabeça a certeza de que só os fracos é que recuam diante dum cerco mais prolongado...

- Pois tu estás a comparar-me a uma praça forte?

- E que praça forte! Das medievais... das que deitam azeite a ferver em cima dos assaltantes.

- E tu achas mal que assim seja?

- Não, Anita. Estou até muito orgulhoso por tu pertenceres a esse número, tão escasso nos tempos que correm! - e suspirou. - Quem me dera ter a sorte de encontrar assim uma praça forte para conquistar!... - depois, ironicamente, acrescentou: - Agora, à moda... sou eu que tenho de resistir aos constantes assaltos de que sou vítima...

E, como tontos, largámos ambos a rir a bandeiras despregadas!

Quando enfim o nosso ataque de hilaridade terminou, demos fé de que estávamos sendo observados, com espanto, por dois pares de olhos, uns nitidamente inchados de chorar, os outros indecisos entre o acharem divertida ou inconveniente a nossa expansão. Eram a Arabela... e a nossa Mãe.

Eu, como não faço cerimónias com a Arabela, não me senti nada confusa com a sua inesperada aparição. O Pedro, porém, que diante das raparigas tem sempre a preocupação da elegância, empertigou-se, alisou à pressa os punhos da camisa e os cabelos, diligenciando aperfeiçoar o nó da gravata... que não trazia. Depois - e só depois! -é que se levantou delicadamente, enquanto a Mãe avançava trazendo a Arabela pela mão.

- Meus filhos, trago-lhes uma companheira. De hoje em diante, e enquanto Deus não mandar o contrário, a Arabela fica a viver cá em casa. Peço-lhes que a considerem exactamente como se ela pertencesse à nossa família.

O Pedro, muito cavalheiro, desconhecedor da tragédia que aquelas palavras escondiam, limitou-se a inclinar-se galantemente.

- Terei o maior gosto nisso!

Porque será que as mulheres às vezes têm pressentimentos? Nós não somos mais inteligentes do que os homens, mas parece que há ocasiões em que a gente adivinha... E depois, não aceitamos certas situações com a mesma simplicidade que eles!...

Porque é que o Pedro havia de achar tão natural a intrusão, a admissão duma rapariga que ele nunca vira, de cuja existência ele nunca suspeitara, na intimidade da família?

Eu não posso explicar o porquê. Mas a verdade é que mal a minha Mãe pronunciou aquelas palavras, senti-me transbordante de inquietação. Por mim? Por ela? Por nós todos?

Não sei. Não sei nada. Mas uma aflição enorme invadiu-me, transtornou-me.

Naquele momento atribuí-a à ideia que me acudia como explicação única. É que por certo o que assim obrigava a Arabela a vir acolher-se à nossa protecção devia ser horrível!

Dei por mim a perguntar-lhe:

- Aconteceu alguma coisa à tua Mãe ?

A Arabela não me respondeu. Mas, como uma pessoa incapaz de se conter dentro dos limites da mais elementar boa educação, incapaz de se dominar, rompeu em gemidos, em gritinhos desarticulados... (foi nesse momento que me lembrei do burburinho que tínhamos ouvido pouco antes) e agarrou-se à minha Mãe que a acalentou nos braços com aquele seu jeito tão doce, tão bom.

O Pedro, desconcertado com a cena, pigarreava, sem nenhuma noção da melhor atitude a tomar. Eu fitava a minha Mãe, à espera duma justificação para aquilo tudo. E a explicação veio:

- A Mãe da Arabela piorou. Foi preciso interná-la de urgência no hospital. A Arabela, como não tem ninguém aqui que olhe por ela, (o tal primo velho mora numa pensão residencial), vem viver connosco, pelo menos até sabermos o que o Pai resolverá. - e olhando carinhosamente para esta órfã de Pais vivos, acrescentou:-Vou escrever ao teu Pai como já te prometi, queridinha. É só dares-me a direcção. E agora sossega, descansa, que estás entre amigos. - afastou-a de si, com firmeza e doçura, e impeliu-a na minha direcção. - Ana Maria, confio-ta!

E saiu da sala.

"Ana Maria... confio-ta!..."

Agradeço a honra, mas por agora sinto-me com ela bastante atrapalhada.

É que não sei por que ponta hei-de pegar numa criatura que só chora, só chora, só chora...

Como é que se hão-de estancar as lágrimas de quem tem mais do que razões para se debulhar?...

Todas as consolações que eu estou habituada a ouvir dizer às pessoas que sofrem me parecem idiotas.

"Então... tem paciência...". "Conforma-te, filha". "Que é que se há-de fazer, a vida é assim!".

Eu acho que, no meio dum desgosto como este, tão grande que as suas dimensões humanas escapam à nossa possibilidade de compreensão, o que mais pode ajudar é o silêncio.

E calo-me.

Calado também está o Pedro, visivelmente aparvalhado com o que para ele é totalmente incompreensível.

E a sala de estar toa, com os soluços da Arabela.

Reconheço que o silêncio, o nosso silêncio, também não está a ajudá-la em coisa nenhuma...

Olho para o Pedro com súbito desespero, como se lhe gritasse cá de dentro "Pedro, faz alguma coisa!..."

E o Pedro, exactamente como se percebesse o meu apelo, teve aquilo a que depois chamei uma inspiração.

Levantou-se, foi à escrevaninha, tirou um livro de dentro dela e pôs-se a ler em voz alta.

A pouco e pouco, os soluços da Arabela foram espaçando, diminuindo de intensidade, até que cessaram por completo. E ela ficou a ouvir com uma atenção crescente, tão grande que em breve se tornou maior do que a minha, porque metade de mim estava toda presa às reacções dela.

Não posso deixar de transcrever aqui o que o meu irmão leu.

Miserável és, onde quer que estejas e em qualquer parte para onde vás, se não te convertes a Deus.

Para que te turbas se as coisas não correm como desejas? Quem existe que possa dizer que tenha tudo sucedido na medida dos seus desejos? Por certo, nem eu, nem tu, nem homem nenhum sobre a terra.

Ninguém vive no mundo sem alguma tribulação, ainda que seja Rei ou Papa.

E quem é, pois, que está melhor? Certamente o que pode sofrer adversidades por amor de Deus.

Muitos tíbios e fracos dizem: que bela vida leva aquele homem, tão rico e grande, poderoso e sublimado!

Levanta, porém, o pensamento aos bens celestes, e verás que todos os bens temporais são coisa nenhuma, antes se apresentam tão incertos e duvidosos e tão arriscados que ninguém os pode possuir sem inquietação e sem temores.

Não consiste a felicidade do homem em dispor da abundância dos bens terrenos; basta-lhe a mediania.

É verdadeira miséria viver sobre a terra. Quanto mais o homem se aplicar a viver pelo espírito, tanto mais se lhe faz amargosa a vida presente, pois melhor conhece e vê com clareza a corrupção humana.

Comer, beber, vigiar, dormir, descansar, trabalhar, estar sujeito às necessidades da natureza, na verdade é grande miséria para o homem que deseja desatar-se do seu corpo e estar livre de todo o pecado.

Não te preocupes em saber se os homens são a teu favor ou contra ti; mas seja teu principal cuidado pedir a Deus que te ajude em tudo o que fizeres.

Conserva pura a tua consciência e Deus te defenderá.

Quando Deus a Alguém quer ajudar, de nada vale a maldade dos homens. Se sabes calar e sofrer, terás o Socorro do Senhor. Ele sabe a ocasião e o modo de te aliviar.

Quando a voz do Pedro e o choro da Arabela deixaram em seu lugar o silêncio, levantei-me e pé ante pé fui espreitar o livro sobre o qual o meu irmão se conservava de cabeça inclinada. Queria ver-lhe o título.

Era a Imitação de Cristo.

Foi uma noite muito má a que eu passei, depois de tantas emoções, todas inesperadas e sucedidas num ritmo enervante.

A situação dramática da Arabela que esgotada dormia ao meu lado sem dar fé das minhas voltas e reviravoltas. A conversa com o Pedro e os meus próprios problemas (esta busca da verdade que em mim começa e à qual preciso de responder o mais sinceramente possível). Tudo me inquietava e confundia.

O facto é que a Ana Maria que hoje, como de costume de bata branca e um montão de livros debaixo do braço, foi para o liceu, era uma rapariga preocupada e um tanto cansada.

À hora do almoço o meu Pai estranhou-me.

- Estás com umas olheiras enormes, filha. Não te sentes bem?

- Sinto, Paizinho.

Menti sem pensar. Mas também é certo que não me adiantava nada, como nada adiantava ao meu Pai, que eu lhe dissesse que o meu espírito se perturba com uma pergunta desmedida: como poderei conquistar a felicidade?

Acho que ninguém é capaz de respomder-me. Eu não sei realmente qual será nem onde estará a melhor maneira de me defender, de me garantir, de acertar...

Reconheço que fui ajuizadíssima naquela dissertação que fiz sobre a melhor maneira de conduzir-me até ao momento duma escolha decisiva. Qualquer pessoa sensata, e o meu Pai com ela, afirmaria que penso muito bem... Mas dentro de mim, ladina e maliciosa, há uma secreta e impertinente Ana Maria a chamar-me aldrabona e a afirmar que a felicidade não é nada daquilo que a outra disse...

Essa Ana Maria, que se escapa de mim mesma, apetece coisas incríveis. Aventuras, festas esplendorosas, luxos, grandes viagens, pedras preciosas... E elefantes, e caçadas ao tigre... e o palácio dum príncipe indiano... tudo quanto um rapaz chamado Fernando Vasco (Jacques Bertrand) lhe podia dar!

Oh, meu Deus meu Deus, por favor, toma conta da outra Ana Maria, da que é razoável, comedida, normal!, Não deixes que estas miragens a façam sofrer!...

Uma manhã sobrecarregada.

Um ponto de filosofia, tremendo.

Parece que não correu bem a nenhuma de nós.

Saímos todas da aula imensamente mal-dispostas e preocupadas.

Foi quando a Susana Fontenova, uma do 7 B, veio ter comigo. Abordou-me com um encontrão, piscou-me o olho numa garotice e incomodou-me com uma pergunta:

- Olha lá, então diz-se pràí que a pírulas da Mãe da Arabela foi internada no manicómio e deixou a filha aboletada na tua casa?... Ê verdade?

Embora me chocassem a expressão e o tom em que a Susana se me dirigia, respondi-lhe que assim acontecia de facto.

E ela, numa risota disparatada:

- Eu, no teu lugar, tinha cuidado!... com a brasa do teu irmão e ela é capaz de haver berbicacho.

Felizmente que depois de largar esta picada venenosa a Susana se sumiu sem olhar para trás...

Nem me deu tempo a desabafar!...

É que o sangue ferveu-me... Que disparatada insinuação!

Como se a brasa do meu irmão não fosse um rapaz às direitas e a Arabela uma rapariga desditosa que só precisa da consideração e da estima das pessoas!...

A Marta, que estava comigo e ouviu o mesmo que eu, percebendo a minha indignação, acudiu com o seu arzinho cativante e simples:

- Não ligues, Ana. Aquilo é tudo estarolice...

Aquilo é tudo estarolice!...

A frase ficou a martelar-me na cabeça, no coração e nas veias, correndo-me no sangue, afligindo-me. Por mais que eu não queira, sou obrigada a pensar que é desta massa que se fazem certas mulherzinhas impertinentes, muito bem casadas, que falam de tudo e de todos com um ar entendidíssimo e que no fim só dizem o que não sabem de quem não conhecem, intrigando, amesquinhando, ridicularizando, quantas vezes, prejudicando!...

Quando já ia a entrar para a aula de organização, a D. Rafaela chamou-me:

- Menina Ana Maria, a senhora vice-Reitora pede à menina que vá falar-lhe no fim deste tempo.

Ouvi, naturalmente, mas não consegui interessar-me pela ordem recebida. Como não consegui concentrar-me nas explicações da professora que nos ia falando de leis necessárias à compreensão de problemas vitais na estrutura política da nação.

Por duas vezes fui interrogada e não consegui responder, tão evidentemente alheia ao que se passava que a Dr.a Mariana Teixeira observou:

- Não costumas estar tão distraída, Ana Maria!...

"Aquilo é tudo estarolice!..."

Se não fora a D. Rafaela repetir-me o recado, ia-me embora sem obedecer à chamada da vice-Reitora, diante da qual a mesma ideia me pungia e enervava.

As palavras da Dr. lida Fontes - uma das mais notáveis professoras de inglês do ensino liceal - vinham até mim como que coadas através dum véu.

"...e foi depois de termos chegado à conclusão de que essas palestras devem ser realizadas pelas próprias alunas, que de cada ano decidimos escolher aquela que sob vários aspectos nos parece reunir mais condições para falar às suas companheiras. Na verdade, constou-nos que tu gostas de escrever e que és bem dotada para isso. Assim, desejamos que sejas tu, Ana Maria, a dirigires-te ao 5.? ano. Sim, ao 5.? ano, precisamente. Cada aluna encarregada duma palestra terá, como principal auditório, o ano anterior ao seu. Portanto as do 6.? escutarão uma colega do 7.". As do 5.? ouvirão uma do 6. - tu!

- e assim sucessivamente. Às do 7.?, às finalistas, falará uma professora, aliás das mais jovens...".

E em mim, sempre a mesma ideia, tão enterrada nos meus pensamentos como um alfinete pode enterrar-se na carne. "Aquilo é tudo estarolice".

E sublinhada a cinzento e a rosa e a verde (fato de saia casaco cinzento, blusa cor-de-rosa e olhos verdes) a Dr.a lida Fontes continuava a diligenciar convencer-me de que entre as do sexto ano eu sou a mais competente para encontrar o caminho para o coração e para a inteligência das do 5.?...

"Aquilo é tudo estarolice".

- "Sabemos que estás a preparar o teu primeiro livro; não deve portanto ser-te difícil escrever uma palestrazinha para digamos, daqui a quinze dias. Aliás, as reuniões serão diárias e durarão quase duas semanas. No primeiro dia haverá uma sessão presidida pela senhora Reitora, que explicará "em linhas gerais os desígnios que motivaram esta realização. Logo a seguir será a palestra destinada ao 7.? ano. E a sessão terminará com a exibição dum filme de grande metragem. No dia imediato, falas tu ao 5." ano e passar-se-á outro filme. As restantes palestras serão acompanhadas por documentários considerados de interesse formativo para as raparigas. As do primeiro ano... bom, essas terão para elas... desenhos animados! Podemos contar contigo, não é verdade?"

Encolhi-me, quando consegui entender o que de mim pretendiam. Uma palestra, feita por mim?

Mas uma palestra sobre quê, Deus meu? A que respeito, acerca de que assunto?

Não é possível!

"Contamos contigo, Ana Maria", repetiu a senhora vice-Reitora.

E eu vou dizer-lhe que não sou capaz, que não entendo nada de palestras, que nem de perto nem de longe me passa pela cabeça uma ideia a servir-me de assunto.

"AQUILO é TUDO ESTAROLICE*

Como num quadro onde as letras ressaltassem luminosas, mais uma vez me lembrou a frase que não queria deixar-me.

E foi então que percebi que qualquer coisa mais forte do que a minha vontade, mais forte do que as determinações individuais, tinha acontecido, e que eu dispunha dum assunto que me obrigava, dum assunto sobre o qual devia falar às minhas irmãs raparigas.

Aquilo é tudo estarolice...

Só compreendi que estava a rir-me quando notei o ar espantado da Dr. lida Fontes e a ouvi perguntar-me, bastante intrigada:

- A que foi que achaste assim tanta graça, Ana Maria?

E eu mais não fiz do que confessar:

- Não ri por achar graça... ri de satisfação porque já sei de que é que vou falar!

Despedimo-nos cordialmente.

E vou tratar de arranjar tempo, o mais depressa possível, para escrever acerca do tema que aceitei.

Apesar de todas as minhas boas intenções, debalde procuro, há dois dias, tempo para me concentrar, para me dar aos meus pensamentos, concretizando-os no papel.

A minha casa está um tanto de pernas para o ar. Qualquer coisa não corre bem dentro do clima a que nos habituámos e que nos dá uma calma propícia ao desenvolvimento natural das nossas ocupações. E não chego a perceber porquê !...

Levantamo-nos às horas do costume. Comemos normalmente. Tudo se passa dentro daquela sequência a que a Mãe preside, atenta aos mais pequenos pormenores.

A presença da Arabela, sob o aspecto material, em nada prejudica o ritmo da nossa vida.

A única alteração visível é a presença dela ao meu lado, no meu quarto, na minha cama.

Pois apesar desta ser a única alteração... há mais qualquer coisa que me perturba. Eu ia jurar que perturba a todos.

Mas o que será, se nada se vê?...

O Pedro, hoje, apareceu com um protesto, quando ao pequeno almoço a Mãe surgiu a certificar-se de que não nos faltava coisa nenhuma, como costuma fazer uma vez por outra e exactamente quando menos a esperamos.

- Mãe, é preciso arranjar outro quarto para o Rumané.

- Outro quarto, porquê ? - ripostou a Mãe, admirada.

- Bem vês, Mãe, é que eu estudo muitas vezes até às tantas e ele de dez em dez minutos interrompe-me sempre com a mesma lamúria.

- Que lamúria?

- Diz que não pode dormir com a luz acesa! O Rumané justificou-se imediatamente.

- E é verdade! Tu pões a luz do candeeiro mesmo em cima do meu nariz!

- O menino é parvo. - ripostou o Pedro. A luz não está em cima do seu nariz, mas em cima da mesinha de cabeceira.

- Mas incomoda-me!

- E quer que eu deixe de estudar à noite por isso?

- Não quero que deixes de estudar à noite! Podes muito bem estudar aqui na sala, é escusado ires meter-te na cama com os livros e com os ossos...-e com a sua tremenda lógica, o Salta-Pocinhas concluiu, repugnado: - Se eu era capaz de ficar como este tipo a dormir com uns restos de esqueletos que a gente nem sabe quem foram!

Não tive tempo de averiguar se o que escandalizava o Rumané era a presença dos ossos ou a sua falta de identidade...

Tinham batido à porta pouco antes e agora estava diante de nós, inesperadamente, porque em boa verdade não tínhamos dado pela entrada dele, o meu primo, o Artur!

Foi uma alegria!

O Artur, que vive numa linda casinha nos arredores da cidade, num bairro acolhedor onde é muito agradável ir almoçar, tem uma vida ocupadíssima, dispõe de escassos momentos livres. No entanto, sempre que pode, dá uma escapadela e vem visitar-nos. Em geral, porém, só aparece ao fim da tarde, antes de apanhar a camioneta que o leva a tempo de não obrigar a

Mãe a requentar-lhe o jantar, coisa de que a tia Elisa não gosta nada, até mesmo porque o tio João, com a sua regularidade de empregado com horas certas, detesta atrasos. Detesta é pouco... Nem sequer os compreende! (Isto às vezes serve de tema a discussões por causa do terrível horário do meu Pai, que obriga o tio João a repetir, de olhos em alvo, "que morria em pouco tempo se fosse obrigado a almoçar à hora do jantar e a jantar à hora de dormir a sono solto...")

O Artur, nestas coisas, já é mais desportivo... Mas, cumpridor e bom rapaz - bom rapaz de verdade! - não contrariava a família. E por isso se privava de vir ver-nos sempre que lhe apetecia.

Depois dos cumprimentos normais e de lhe termos apresentado a Arabela (continuo a dizer que a presença da Arabela não altera em nada os nossos hábitos e insisto neste pormenor porque não consigo entender a impressão de espinho cravado no ar a chocar-nos com a sua invisível realidade), a minha Mãe pôs-lhe na frente um prato cheio de doce - um pedaço da tarte de maçã que sobrou de ontem, do jantar - porque sabe que ele é lambareiro...

E foi quando a Mãe lhe perguntou, com aquele interesse de todos os dias, sacramental à força de sincero - "então como vão os teus estudos?" - que eu dei pela anormalidade da hora em que ele aparecera.

- Espera... - exclamei. - Mas que é que tu estás cá a fazer?...

Olharam todos para mim, admirados com um reparo que à primeira vista até podia parecer incorrecto.

A Mãe fez-mo notar.

- Coitado do rapaz!... Então ele não pode aparecer quando lhe apetece ?

- Mas não é só quando lhe apetece, Mãezinha! É quando pode! E a estas horas, creio eu, ele não pode... Costuma estar a caminho do Conservatório!...

O Artur, além dum curso comercial, escolhido pelo tio Artur, está a tirar, no Conservatório Nacional, o curso de organista,-o que leva o Pedro a cumprimentá-lo muitas vezes com um bocadinho de ironia - "então como vai o nosso Bach...? - ou - "como passa o nosso Haydn?..." - ao que o Artur muito sério responde invariavelmente - "não brinques com nomes sagrados! ?" - . E também invariavelmente o Pedro apressa-se em dizer - "Pá, isto não era para faltar ao respeito aos teus ídolos...' mas acho graça a ter um músico na família!"

- E o Artur, como sabe que o Pedro se tornou um fervoroso admirador da Música e só perde um concerto ou um recital quando de todo em todo se lhe torna impossível assistir, ri e deixa seguir...

Aliás, perante o meu reparo, ele riu também, com os olhos a brilharem, um ar radiante que me mostrou ter "eu tido muita razão no que dissera.

Algo acontecera de invulgar e eu, sendo a primeira a notá-lo, ia oferecer ao meu primo o ensejo de revelar qualquer coisa que muito o entusiasmava e ali o trouxera tão cedo.

E mirando-me com uma pontinha de gratidão por eu lhe ter fornecido a deixa, ele explicou cheio de vivacidade:

- A Ana tem razão! Eu, normalmente, durante o dia não tenho tempo livre. Mas agora é diferente, ou antes, vai ser diferente!

- Diferente como e porquê? - indagou o Pedro, admirado.

E o Artur, acabando de rapar o prato do doce muito bem rapado:

- É que já não estou atrapalhado com as horas dos transportes! Por isso os dias rendem mais.

Havia grossa novidade...

Como se nos tivéssemos combinado, nenhum de nós o interrogou. Calámo-nos, ficámos à espera de que ele continuasse e revelasse o que o enchia de tão evidente satisfação.

E o Artur, de súbito todo pimpão, a olhar-nos de cima:

- é que o meu Pai deu-me uma moto!...

- O quê?...

Na verdade, ninguém se lembrara de semelhante hipótese...

- O teu pai deu-te uma moto?... - repetiu a minha Mãe, parecendo incrédula.

- Deu-ma no sábado! Quando entrei em casa, estava ela muito direitinha, novinha em folha, diante da porta. Eu vi-a, achei-a linda... mas nunca me passou pela cabeça que fosse minha!... O Pai, quando chegou para almoçar Xap, .sábado o Pai vai sempre almoçar a casa, como sabem), foi ter comigo à saleta onde eu já estava a estudar, sentou-se e começou a conversar comigo. - "Então, filho, como é que vão esses estudos?..." - "Vão bem, Pai!" - respondi. (A propósito - eu, enquanto o ouvia ia pensando que o Artur sempre teve imenso jeito para os diálogos - quem mo dera a mim!) E o meu Pai: - "Então continuas a gostar de tocar órgão?" - E eu: - "Imenso. Ainda ontem passei a tarde na Igreja de S. Roque. Oh, Pai, aquele órgão é maravilhoso..." - e dissertei sobre o órgão.

E dissertou.

E eu, enquanto ele falava, animadíssimo, ia-o observando. O Artur está engraçado. Não é tão alto nem tão elegante como o meu irmão, mas tem uns olhos bonitos, muito escuros, e uma cara esperta para a qual é agradável olhar.

Depois, como ele não se calasse, pus-me a notar as reacções dos outros. Sempre a minha mania das observações, claro!... A ânsia quase inconsciente de em tudo encontrar elementos capazes de um dia me servirem.

O Pedro estava agora o que se chama desinteressado e até um pouco como quem diz que é que eu tenho a ver com isso tudo...

A minha Mãe, sempre atenta a tudo o que somos e fazemos, essa continuava toda inteirinha a escutar o sobrinho. E a Arabela também não parecia nada cansada de o ouvir.

E o Artur prosseguia, todo entregue ao seu íntimo deslumbramento:

- ...Ora foi precisamente quando eu disse ao Pai que só tinha pena de não poder estudar o dobro das horas por dia, que ele me perguntou: "-Então porque é que não estudas?". E eu:

- "Porque o tempo não chega para tudo, Pai..." "Claro... - disse o Pai nesta altura. - Perdes imenso tempo em transportes..." - "Se perco!..." - Então, isso quer dizer que se tivesses forma de poupar esse tempo, podias aproveitá-lo no estudo?" - "Se podia!". - "E como é que isso havia de ser resolvido?" - "Ó Pai, só se vivêssemos ao pé do Conservatório! De resto, não vejo forma de resolver o problema!" - E então o Pai, com um ar matreiro que só depois percebi: - "bom... talvez houvesse um meio..."

- Arregalei os olhos. - "Qual?" - E ele: "Se tivesses um meio de transporte pessoal... não?". - Eu pus-me a rir. - "Um automóvel, Pai?..." - O Pai riu também: - "Não digo tanto, não digo tanto... ou uma motocicleta não te chegava?" - bom, nesta altura dei um berro, um autêntico berro!... É que acabava de me lembrar da moto que tinha visto à nossa porta!...

Aqui, o Pedro, que recomeçara a prestar-lhe atenção, interrompeu-o com um comentário.

- É claro como a água que nos vieste mostrar a tua moto.

O Artur não se melindrou. Pelo contrário, mostrou-se felicíssimo.

- Em parte, sim!... E por outro lado queria dizer-lhes que, como sou uma pessoa independente, já posso visitá-los quando me apetecer.

A minha Mãe aplaudiu, embora com restrições.

- Acho óptimo, Artur, desde que conduzas sempre com muito cuidado.

- Ó tia, garanto-lhe que sou prudente. Não me apetece nada ir parar ao hospital com a cabeça rachada.

- Não usas um capacete protector?...- indaguei.

- Uso sim. - e riu. - Mas mais do que o capacete me protegerá a cautela que eu tiver...

- Não podes contar só contigo, tens de lembrar-te dos outros... - obtemperou a minha Mãe. - De nós, defendemo-nos quando queremos. Mas dos loucos que não se respeitam nem nos respeitam!...

- Isso é verdade! - concordou o Artur.- Em todo o caso, a gente não há-de estar sempre com medo... E depois sabe tão bem não gastar tempo à espera dos transportes, obedecendo às conveniências gerais...

- Nisso tens imensa razão. - disse logo o meu irmão. - Só o meu autocarro daqui à Faculdade no fim de uma semana rouba-me horas!

O Artur, como sempre, mostrou-se generoso.

- Se algum dia precisares da moto é só dizeres!

E o Pedro:

- Obrigado, pá. Mas lá isso... para passear prefiro um automóvel. E no dia a dia já se sabe que não podes dispensá-la.

Foi nessa altura que a Arabela falou.

- Andar de moto é muito bom! O meu Pai, quando eu era pequena, levava-me na dele muitas vezes. Eu gosto imenso! - e, sem qualquer transição, pediu ao Artur: - Não eras capaz, uma tarde destas, de me levar à praia?

Houve uns instantes de silêncio, durante os quais cada um de nós, em vez de olhar para os outros, tenho a impressão de que olhou para dentro de si próprio...

Eu não me atrevo a imaginar os pensamentos alheios. Limito-me a registar os meus pela ordem em que o meu espirito lhes sofreu a imposição. Surpresa perante o pedido. Admiração por Arabela solicitar uma coisa que quando muito lhe devia ser oferecida. Estranheza por ela achar tão natural ir sozinha para a praia com um rapaz que ao cabo e ao resto não conhece. Compreensão de que o facto em si não tem qualquer mal. Reconhecimento de que os princípios fundamentais da educação da minha amiga são completamente diversos dos nossos, sem me atrever a julgar quais serão os melhores.

Efectivamente eu não tenho o direito de me considerar mais equilibrada, mais bem formada do que a Arabela, só porque sou incapaz de tomar uma atitude semelhante à dela neste momento. Porque o que importa é que as pessoas sejam puras e naturais - puras e naturais tanto nos seus pensamentos como nos seus actos.

Ora eu estou convencida de que a Arabela é pura e natural. Simplesmente a singularidade da atitude surgida assim entre normas constantes, normas que fazem parte de nós mesmos, como que nos sobressaltou. Foi como se num bando de pintainhos todos brancos de repente aparecesse um todo preto, ou vice-versa, o qual porém nem por ser de outra cor deixava de ser um simples pintainho!

E no entanto a verdade é que se me afigurou de súbito começar a perceber o porquê da tal coisa estranha que me parecia andar notando. Só eu registaria, com a minha sensibilidade, o impalpável do que não se definira ainda?

A verdade, porém, é que o meu irmão começara a morder o lábio inferior, gesto que nele sempre demonstra intranquilidade.

O Artur... bom, o Artur esse abria uns olhos desmedidos para a Arabela, uns olhos cheios de espanto e de contentamento.

- Se te levo à praia comigo?... - tartamudeou.- Pois está claro que levo! Levo-te com todo o gosto!

- E quando?

- Quando tu quiseres.

- O tempo está tão bonito!... Pode ser amanhã ?

Interveio a minha Mãe, com a sua voz doce e calma.

- Amanhã têm ambos aulas de manhã...

- Podíamos ir a seguir ao almoço!... A tia Rosa (- a Arabela começou a tratar a minha Mãe por tia Rosa assim, espontaneamente-) não se importa, pois não?

Quanto a mim, a Arabela estava a acabar por onde devia ter começado. E eu esperava que a Rosinha-Mãe lho fizesse notar. Mas não!... Fitou-a como se se sentisse um pouco perplexa, um pouco indecisa... mas limitou-se a responder-lhe:

- Se vocês acham que podem ir, não tenho nada que me importar, desde que me não dêem desgostos!

É claro que esta resposta evasiva cabe pouco nos hábitos da minha Mãe. Desinteressada, ela?... Na... Mas então?...

Fiquei sem ser esclarecida, porque já a Arabela e o Artur se embrenhavam num diálogo recheado de projectos, o Pedro pedia licença para se retirar a fim de ir estudar e a Mãe saía atrás do Rumané que precisava dela não sei para quê.

Fiquei a vê-la afastar-se. A Mãe está muito mais gorda!

E agora penso: será o estado que a influencia, tirando-lhe a vivacidade das reacções?

Sim, que lá achar natural que a Mãe tivesse concordado... isso não acho!

Preparo a minha palestra, mas não consigo concentrar-me como preciso.

Embora num tom de voz baixo, o Pedro e a Arabela tagarelam sem cessar e eu tenho dificuldade em alinhavar as ideias.

Lanço-lhes um schiu imperioso e depois uma reprimenda: - Que maçadores!... Vocês não têm que estudar?...

Eles riem e continuam e eu tento acertar as frases:

Está muito em moda atríbuir-se à juventude más tendências. Não serão as más tendências apenas o resultado duma falta de amparo familiar que a deixa à mercê de influências prejudiciais? Parece-me injustiça considerar a mocidade perdida, sem possibilidades de recuperação. Porque sou uma rapariga e vivo entre raparigas, não posso deixar de afirmar que as raparigas nunca são más...

Paro. A caneta é como se estivesse encravada. Não anda!

E eu penso, penso... Afinal de contas que sei eu das raparigas, para me atrever a falar assim ?

Ora!...

Rasgo a folha impiedosamente (como tenho rasgado tantas!) e procuro raciocinar, a ver se encontro forma de expressar as minhas ideias.

O zum-zum acaba por me pôr fora de mim.

- Arabela!-ralho. - Vê se acabas com tanta conversa inútil e se deixas o Pedro ir trabalhar.

E o meu ajuizado irmão, com um encolher de ombros desdenhoso, pega-lhe na mão, pisca-lhe um olho - vejo-o perfeitamente! - e diz-lhe:

- Vamos para a varanda. Ao menos lá não maçamos ninguém.

"Deixa-os ir", penso.

Mas, estupidamente (pois não serão estúpidas as lágrimas que se choram sem uma causa justificadora?), desatei a chorar sobre o papel em branco.

Quando vi as manchas, amarrotei-o, furiosa, e deitei-o fora.

Amanhã vou dizer à senhora vice-Reitora que não faço a palestra.

- O Pedro?

- O menino Pedro ainda não está. Ainda não chegou.

- Mas vem jantar ?

- Ai lá isso vem com certeza.

- Posso esperar por ele?

- Ora essa, menino Paulo, faz favor de entrar.

- Não está ninguém em casa ?

- Está só a menina Ana Maria. O menino entre que eu vou avisar a menina.

- Não, não... não a incomode! É capaz de estar a estudar e não quero que interrompa por minha causa. Eu espero pelo Pedro lá em baixo.

Oiço o diálogo nitidamente. As portas entreabertas não sabem o que seja discrição.

Oiço e sei que o Paulo vai desertar. Chegou trazido por uma esperança secreta, talvez incutida pelo próprio Pedro, e agora, sem o apoio dele, recua, dispõe-se a fugir.

Que maçada!

Porque havia toda esta confusão de sentimentos de vir estragar - estragar, é o termo!

- a nossa boa amizade ?

Pois deixa-o ir embora, que é para não ser parvo!

Isto é o que penso, não o que faço.

Levanto-me, corro para o vestíbulo. Vejo o Paulo já no patamar, sob o olhar cheio de dúvidas da Laura, que o conhece de pequeno e agora deve pensar dele, compadecida: - "Coitadinho!... O muito estudo virou-lhe o juízo".

Chamo:

- Paulo! Ele detém-se.

- Entra, Paulo! - convido, tão descontraída como a ele o pressinto contraído.

Ele avança, sem me cumprimentar. Mas avança, enquanto a Laura, verdadeiramente surpreendida com a cena, fecha a porta a olhar para mim e para ele, primeiro de esguelha e depois com um sorriso divertido, um sorriso de compreensão inesperada.

Eu mantenho o meu à-vontade.

- Queres fazer-me um bocadinho de companhia?

Ele gagueja.

- Não... não te incomodo?

- Não me incomodas nada! Vens até numa óptima ocasião. - e porque percebo que ele não acredita, explico: - Escuso de continuar a lutar com a necessidade de encontrar ideias que me fogem.

O Paulo entra na saleta, pára junto da porta, com um ar encolhido e estranho, como se tudo fosse novo para ele nesta divisão que lhe é mais do que familiar.

- Senta-te!-convido, apontando ao acaso a poltrona ao pé da televisão. - Senta-te.

Ele senta-se.

Observo-o e noto que está bastante mais magro.

Volto para o meu lugar, ao pé da mesa de trabalho e, embora ele nada me pergunte, sinto-me na obrigação de explicar-lhe:

- Imagina que estou encarregada de escrever uma palestra para uma semana cultural que vai realizar-se lá no liceu. Mas não sei o que foi que me deu que apesar de ter o tema escolhido não sou capaz de encadear duas frases! É preciso estar estúpida de todo, não achas?

O Paulo não levanta os olhos do tapete já ruço que encobre o chão da sala de estar e tão pouco tem que ver além das últimas nódoas do chocolate que o Rumané entornou e que nenhuma invenção caseira consegue limpar (a Mãe diz que o manda para uma tinturaria mas só quando formos no verão para S. Boaventura). E apenas balbucia:

- Acontece.

Interesso-me pelo assunto, apetece-me discuti-lo. Por isso agarro na lacónica resposta e procuro estabelecer o diálogo com ele. Sei que o Paulo é capaz de me compreender, de me ajudar, e no fundo desejo bastante que volte a haver entre nós a excelente convivência de outrora.

- Também te sucedem destas?

- Quantas vezes!

Calo-me, fico à espera que ele acrescente mais qualquer coisa. Mas o Paulo não abre a boca.

Fico-me a olhar para ele, sem ter de todo a consciência de que não estou a ser comedida... Mas é que ligadas à imagem que tenho sob os olhos há tantas outras que vêm de longe numa sobreposição que me faz saudades!...

O Paulo de sempre! O Paulo de calção curto, com quem brinquei tanto... O nosso primeiro ano na Quinta! Os nossos passeios! Os nossos passeios com ele e sem ele como... como a visita à Quinta Maior! Ai a visita à Quinta Maior e aquele tremendo banho de mangueira que eu levei por me ter apresentado de vestido de gala e sapatinhos finos numa tarde destinada à brincadeira!... Revejo-me duma forma tão nítida, encharcada que nem um pinto acabado de sair da casca que não posso conter-me e solto uma gargalhada! Só neste instante percebo que o Paulo deixou de olhar para o tapete e olha para mim! Acto contínuo, ponho-me séria outra vez.

Mal posso imaginar que a minha risada diante do passado vai modificar a situação presente! Porque o Paulo, sem ponta do ar encolhido com que entrara, me pergunta num tom de voz doloroso que me vem direitinho à alma.

- Ris-te de mim, Ana?

- Eu?...

- Divirto-te ?

- Não, não, Paulo, não penses uma coisa dessas! - precipito-me numa explicação sincera, ansiosa de desfazer a má interpretação que está a magoá-lo (a magoar o meu amigo de infância!) - Juro-te que não, Paulo! Ri-me porque estava a lembrar-me de ti noutros tempos... e de recordação em recordação, olha, fui parar a S. Boa ventura!...

Então, como que por encanto, o Paulo abre

- abrir é como eu costumo chamar a estas súbitas transformações para melhor. Que às que são o contrário destas chamo eu fechar...

Portanto o Paulo abre:

- Ah, S. Boa ventura! Belos tempos! - diz ele, sem mais parecer inquietar-se com o meu riso intempestivo. - Lembras-te da descoberta do tesouro?

- Se me lembro!...

- E da briga com os pequenos da Quinta Maior? A dentada gloriosa que o Rumané deu a um deles!...

- Isso é daquelas coisas que uma pessoa nunca esquece, nem que viva cem anos!...

E o Paulo:

- Sabes que encontrei aqui há dias o mais velho, lá na Faculdade?... Veio falar-me, razoavelmente simpático. Anda em Direito.

- Às vezes as pessoas mais embirrentas em pequenas são depois as mais simpáticas. E vice-versa!

- O vice-versa não é o meu caso, não?

- Não, não, Paulo. Tu foste sempre um amor... - e abandono logo o tema, prudentemente. - Que será feito da irmã dele ?

- Olha que não sei, não lho perguntei.

- Deve andar por aí... eles estão em Lisboa, desde que venderam a Quinta, isso ele disse-me. Mas é natural que tu o encontres no Chá e...

- No Chá? Qual Chá?

- O Chá da nossa Faculdade. Não sabes ?

- Não!

- O Pedro não te disse ?

- O Pedro nunca me diz nada. Então o Paulo explica-me:

- Vai haver um Chá que os caloiros oferecem aos finalistas de todas as Faculdades.

- Mas isso è uma inovação, não é?

- É. Precisamos de estabelecer mais contacto uns com os outros, de encurtar as distâncias, de lhes mostrar que confiamos neles e desejamos vê-los seguir brilhantemente pelos caminhos que hão-de vir a ser também os nossos. Pretendemos acabar de vez com aquela mania que os finalistas têm de que somos uns criançolas sem categoria.

- Acho bem!

- A mocidade é toda uma, precisa de se unir e de fazer com que entre si reine a compreensão. Se nos dividimos em plena juventude e nos hostilizamos mesmo que seja a brincar, nunca mais nos entendemos depois de homens feitos, de homens com responsabilidades.

- Tens toda a razão, Paulo. É isso mesmo! E creio até que em parte é obedecendo a essa mesma ideia que lá no liceu vão fazer-se as tais reuniões para as quais estou a escrever (estou a escrever é como quem diz!), estou a tentar escrever a palestra que não quer sair, como já te contei...

-Então como é isso organizado?

- Então... é assim: os anos das mais velhas vão falar às mais novas, ou seja, o sétimo ano fala ao sexto, o sexto ao quinto... etc!... Percebes?

- Isso é giro!

- Também acho.

- Nesse caso, tu diriges-te às do quinto ano?

- Pois!

- Parece-me bem pensado. E eu.

- Olha lá, e essa coisa do Chá?...

- O Chá realiza-se depois de amanhã às 16 e 30, no salão de festas do Convívio, com a plena concordância do nosso Reitor.

Eu corrijo.

- O Magnífico Reitor!

- Isso, o Magnífico Reitor!-e o Paulo ri-se. - A propósito, hei-de contar-te uma história muito engraçada...

- Conta já, antes que te esqueças.

- Um colega meu, muito distraído e muito cumpridor, queria, falando ao Reitor, tratá-lo pela designação honorífica... e não se lembrava! Então, zás, não esteve com meias medidas! Arranjou um sinónimo.

- Um sinónimo?

- Pois, um sinónimo, na opinião dele. E em vez de Magnífico chamou-lhe sempre, com o ar mais sério deste mundo, Formidável. Era o Formidável Reitor para a direita, o Formidável Reitor para a esquerda...

Rio-me com ele e depois insisto:

- Então e o tal Chá?

- bom, temos duas orquestras, uma que é mesmo nossa, uma orquestra de estudantes, a "Interfaculdades", criada para aproximação dos elementos artísticos das diversas faculdades, e uma profissional.

- Os estudantes vão com certeza meter-se em brios para não ficarem atrás dos outros!...

- Atrás hão-de ficar sempre, porque lhes falta a prática, já se vê. Mas sobeja-lhes genica e, a alguns, verdadeiro talento! Temos um trompetista famoso!... Faz lembrar um que vocês cá em casa costumavam ouvir muitas vezes, um preto que morreu há anos...

- O Sidney Bechet?

- Esse, esse!... E eu:

- Começa a haver imenso interesse pela música, não achas, Paulo?

- Acho e é estupendo. A mocidade como que principiou a acordar para novos interesses espirituais e artísticos! Não fazes ideia da quantidade de rapazes que se agrupam para tocar, quase sempre sem outro intuito que não seja recrearem-se dessa maneira!

- É óptimo! Conquanto eu não concorde que só se ocupem de ritmos modernos...

- Porquê?

- Porque, bem vês, as modas passam! Preenchem uma época e depois não interessam a mais ninguém. Ao passo que há outras coisas que são bonitas para todos e para sempre!

- Tens razão, Ana! Mas de qualquer maneira, antes estarem entretidos com modernices do que em ociosidades ou loucuras prejudiciais!

Rimos os dois, perfeitamente de acordo. Depois, o Paulo continua:

- Ora voltando ao assunto do Chá... estou muito admirado por o Pedro não te ter dito nada.

- Esqueceu-se, com certeza!

- Mas não tinha nada que se esquecer! É que eu não só lhe pedi que te falasse para tu ires, se quisesses, mas também para tu levares amigas e colegas tuas... Pelo menos entre as finalistas há com certeza muitas que gostariam de ir.

- E agora já é tarde, não te parece ?

- Sim, talvez. Mas em todo o caso, tenta.

- Está bem, tento!

- E tu? Vais?

- Não sei, Paulo. Tenho de falar com a Mãe. Neste mesmo instante, ouvimos abrir a porta

da rua e quase logo a seguir aparece a Mãe. Fala primeiro ao Paulo com o agrado de sempre e depois de me beijar pergunta, num tom em que julgo perceber certa inquietação:

- A Arabela? Não está em casa?

- Não, Mãezinha. O Artur tornou a vir buscá-la. Parece que hoje iam ao cinema.

A Mãe crispa-se, numa atitude de evidente desagrado.

- E o estudo? Decidiram entrar em férias antes do tempo?

Encolho os ombros, não sei responder. E como há outro assunto que me interessa muito mais, abordo-o.

- Mãezinha, tu achavas mal que eu fosse ao Chá"í...

- Que Chá ? - indaga a Mãe, a leste do caso.

Apresso-me a fornecer-lhe a explicação recebida do Paulo com os pormenores necessários.

A Mãe no fim pergunta:

- E tu arranjarás mais raparigas para te acompanharem ?

- Não sei, Mãezinha, vou tentar. Falo à Marta, à Helena, à Inês, à Madalena... e também à Cristina. Pode ser que alguma vá.

- E se não for nenhuma?

- com a Arabela, talvez...? E a Mãe.

- Se o teu irmão também for, podes.

- Se o Pedro não puder, ou não quiser ir, eu tenho muito gosto em acompanhar a Ana Maria, desde que a S'Dona Rosa Maria não veja mal nisso...

A Mãe sorri.

- Mal não vejo, Paulo, nenhum. Sei que a Ana ia muito bem, acompanhada por ti. Simplesmente não está nos meus hábitos, nem entra nas regras de educação que uso, deixar a Ana andar sozinha com um rapaz, a não ser que esse rapaz seja um dos irmãos dela.

O Paulo não ousa dizer mais nada, mas eu protesto.

- Ó Mãezinha, mas tu deixas a Arabela sair com o Artur!

- A Arabela não é.minha filha.

- Mas vive cá em casa!

- Transitoriamente! - e logo acrescenta:

- Além disso a Arabela provém duma família com uma orientação muito diferente da nossa. Nem sequer entenderia as razões que me levassem a cercear uma liberdade que sempre tem tido. Vocês duas não se parecem nada... nada! Creio que não gostarias de ir de moto para a praia com um rapaz que só tivesses visto uma vez...

- Ó Mãezinha, numa coisa daquelas, acho que nem com um que conhecesse bem!...

O Paulo ri comigo. E a Mãe continua a falar.

- Em todo o caso, Ana Maria, trata de ver se consegues que alguma das tuas colegas vá.

Aventuro-me a uma proposta.

- E... se tu fosses comigo?

A Mãe olha-me calada durante uns segundos, com uma expressão onde eu não sei se há uma pontinha de orgulho, se um lampejo de saudade. Num gesto leve, poisa a mão sobre a minha cabeça e força-me a encará-la.

- Minha querida... - diz-(e cada palavra é como um beijo que eu recebo), - obrigada por essa tua ideia, que me dá a. certeza de que ainda não sou para ti um estorvo... Vejo que és capaz de ter gosto com a minha presença ao teu lado. Mas tenho de responder-te o mesmo que um dia, há anos, fui obrigada a dizer ao Pedro. É que há um momento necessário, imperioso, lógico, certo! em que os Pais - e quem diz os Pais diz as Mães, claro! - precisam de começar a aprender a retirarem-se da vida dos filhos, a deixar que eles se conheçam a si próprios e saibam quais são as forças que possuem e até onde é que essas forças podem levá-los. A tua vez está a chegar, Ana. É preciso que comeces a saber viver contigo, sem dependeres de mim, sem precisares de mim. E por isso, só por isso, não te acompanharei ao Chá das faculdades, não irei contigo... Não vou lá fazer nada! Também, como já te disse, não te deixo nem ir só nem insuficientemente acompanhada. Quero que sintas pontos de apoio... mas não portas à tua frente. com raparigas, tão conscientes como tu, todas entregues a si próprias mas em regimen de colaboração estreita, tu estarás mais contigo do que com qualquer outra pessoa... Assim começarás a preparar-te para mais tarde seres a melhor companhia de ti própria, tua guardiã, tua defensora.

Os meus olhos abrem-se numa ânsia de com? preensão absoluta. Dentro de mim qualquer coisa retém as palavras que .não devo esquecer, nunca mais.

E a Mãe continua:

- E porque justamente chegou a altura de começar essa aprendizagem de independência... digamos amparada, é que não devo ir. Percebes? Eu... não!-e fita-me bem fundo nos olhos, a minha Mãe adorada. - Ana, vai começar para ti uma nova fase da vida. A tua Mãe, devagarinho, o mais devagarinho possível, para que não te custe muito, começa a retirar-se da tua vida. É preciso que aprendas a viver sem ela. - e sorri-me de dentro do coração. - Eis o meu segundo passarinho que principia a voar para a liberdade do amanhã!...

Oh, Mãe! Oh, Mãe!... Oh, Mãe querida, que às vezes esqueço-me de quanto és maravilhosa! E real!...

Porque isto é duma verdade e duma necessidade que me parecem cruéis mas que são a vida e todos nós precisamos de a aceitar!

E no entanto há uma angústia (será angústia ou um começo de embriaguez ao olhar os abismos por cima dos quais vou voar?) a encher-me os olhos de água.

Através do véu de lágrimas que me escorrem para a boca, quentes e salgadas, vejo a minha Mãe apertada nos braços dum latagão - latagão porque a minha visão deformada o vê com o dobro da largura...

O Paulo, num impulso, agarrou-se à Rosinha-Mãe, que lhe sorri estoicamente. E confessa-lhe vibrante, emocionado:

- Ó... ó minha querida S'Dona Rosinha... sabe que é realmente uma Mãe às direitas?... Ah, que se todas as Mães assim soubessem educar, nós tínhamos com certeza muito mais probabilidades de sermos felizes!...

E a Mãe, a rir:

- Está bem, está bem, já sei que morres de amores por mim!... - e tenho a impressão de que esta frase não reproduz lá muito bem o que a Mãe pensa... Sim, desconfio que ela entende mais do que mostra... Mas não há tempo para mais nada.

Ouvimos fechar a porta da rua e logo a voz do Pedro (o Pedro tem a chave de casa) alternando com o timbre agudo da voz da Arabela.

Percebo que está definitivamente interrompido este momento de aproximação em que eu e a Mãe nos achávamos mergulhadas sem quase darmos fé da presença atenta e respeitadora do Paulo.

Pouco depois aparecem, no limiar da saleta, o meu irmão, carrancudo, e a Arabela, normalíssima.

Logo após os breves cumprimentos da praxe, a Mãe vê as horas e pergunta:

- Vocês saíram ambos?...

A Arabela diz logo que não, que tinha ido ao cinema com o Artur e que se encontrara com o Pedro à porta da rua. E o Pedro, com um ar retorcido que eu não lhe conhecia, comenta, enquanto se senta com um livro na mão:

- A Arabela prefere a companhia do meu primo.

- Não, eu não prefiro coisa nenhuma! O que gosto é mais de andar em cima de rodas do que em cima dos pés... Não me canso!... - e agora tão alegre como se vivesse despreocupadíssima, larga a rir.

E eu, ouvindo-a, sinto-me invadida por um pensamento incómodo. Como pode a Arabela estar assim divertida e bem disposta, como?

Onde se sumiu aquela Arabela que há tão poucos dias aqui nos apareceu afogada em dor ?

Que quer isto dizer?

Percebo que a Mãe anda inquieta, talvez mesmo hesitante, o que não é hábito.

Continuo a registar na nossa casa um não sei quê de esquisito que não está a colaborar connosco. É como no caso em que uma pessoa sabe que está adoentada mas não ousa queixar-se porque não pode dizer que dói aqui ou ali...

Sim, é isto mesmo. A nossa casa está doente!

Inacreditável!

Inacreditável, o que hoje se passou. Tínhamos acabado de almoçar todos juntos - incluindo o Pai - o que não acontece agora senão em dias que já consideramos de festa, dado que as horas de cada um de nós são cada vez mais incompatíveis, como já contei algures, penso.

O Pai conversa com o Rumané, interessando-se por um problema de peles de urso e peles de foca que tinham de perfazer uma certa soma para darem determinado lucro ao caçador, visto este haver gasto não se sabia quanto para as adquirir... Um difícil quebra-cabeças do segundo ano de matemática que o professor dera para resolver aos quarenta e tal miúdos da turma do Rumané, a fim de lhes desentorpecer o cérebro...

- Enfim, - concluía o Pai, às aranhas, trapalhices do Rumané ou manias do professor...

E foi quando todos nós riamos desta confusão enorme - e quem mais ria era o avô Joaquim que viera almoçar connosco - que o Pedro disse:

- Quando puderes dar-me atenção, Pai, agradeço-te. Preciso de te falar dum assunto muito importante.

Extraordinariamente bem disposto, o Pai logo quis saber:

- Precisas que te ajude a resolver alguma questão de nervos emaranhados, lá na tua anatomia?

O Pedro, sisudo, ripostou:

- Já não sou uma criança, Pai! Aconteceu como se em cima de nós caísse um duche gelado!

O Rumané pôs o nariz no prato e remeteu-se ao silêncio. Eu deixei cair o garfo e dei por mim a esboroar pão em cima da mesa sem ninguém me ralhar. A Mãe enrugou a testa e olhou surpreendida para o meu Pai, tão surpreendida como se ele tivesse dito alguma inconveniência. O meu Pai, esse encarou o Pedro... e o Pedro não desviou as pupilas.

A Arabela continuava a comer, como se não desse pela súbita transformação do ambiente.

Então, num tom de voz em que perpassava algo de extraordinariamente grave, o meu Pai disse:

- Ah... tens toda a razão! Estás um homem, quase a ir para a tropa...

Teria esta pequena frase sido uma ameaça, uma advertência, ou uma simples constatação?

Impossível sabê-lo, percebê-lo através duma reflexão cuidada, até porque o Paizinho já continuava a falar:

- Vejamos qual a falta em que incorri para assim me lembrares a importância da tua idade actual. Fala.

E o Pedro:

- Pretendo tratar dum assunto sério e acho portanto descabidos os gracejos.

- Muito bem, retiro o gracejo. Escuto-te.

- eu... eu... - e nada!

- Então?

Pareceu-me que o Pedro se tornava irresoluto. Notei-lhe aquela expressão atarantada que nele sempre inscreve o despertar da consciência à tolice tornada inevitável.

- Então? - repetiu o Pai, acrescentando:

- Olha que os homens não recuam diante das situações sérias, pelo contrário! Encaram-nas e resolvem-nas. Se és um homem e estás diante duma situação grave, explica-te.

- Sim, Pai, com certeza!... - e num impulso, declarou:-"Pai... é que eu, como ainda há pouco o fiz notar à Mãe, perco tempo demais nos transportes diários.

- Como?

- Daqui ao Hospital é longe, os autocarros são demorados... E a juntar ao resto ainda tenho as aulas de alemão, de inglês... e a natação e a esgrima!...

- E depois?

- E depois... parece-me que me ficava muito mais tempo livre para trabalhar se dispusesse dum automóvel!

E pumba!!!... Estava tudo dito. Tudo?!... Tudo, bem... tudo não!

A Arabela parou enfim de mastigar e abandonou o talher para bater palmas, radiante da vida.

- Oh, Pedro, que maravilha!... Se o teu Pai te der um automóvel, conta com a minha companhia! Adoro andar de automóvel... muito mais que de moto!

- Arabela, tem termos!... - e a minha Mãe fustigava a Arabela com um olhar de repreensão.

A Arabela encolheu os ombros - (que pouca noção das conveniências tem esta rapariga!) e o Pedro, como se na frase dela tivesse colhido novo alento para continuar a correr sem ver o caminho por onde ia, prosseguiu:

- Todos os rapazes do nosso nível social têm os seus carros, Pai! Eu sinto-me bastante inferiorizado com as limitações em que me encontro. Acho que tu podes perfeitamente dar-me um automóvel!

Acho que tu podes perfeitamente dar-me um automóvel.

O meu Pai, com uma tranquilidade que me surpreendeu, acabou de descascar a banana que pusera no prato, cortou uma grossa fatia de queijo que partiu aos bocadinhos... mas quando picou os primeiros com o garfo fê-lo com uma violência que até o Rumané se sobressaltou. E só nesse instante redarguiu ao meu irmão:

- Poderás explicar-me uma coisa? O que é que te leva a formular um pedido desses mais com o tom de quem exige do que espera uma dádiva? A ansiedade de perderes menos tempo ou o desejo de te exibires?

E o Pedro, muito ancho no seu convencimento:

- Talvez ambas as coisas, Pai.

- Aceito a resposta como válida. Entretanto quero saber se perguntaste a ti próprio se eu neste momento terei as disponibilidades materiais necessárias para te comprar um carro...

- Mas não precisas comprar!

- Ah, não? Basta que te ceda o meu?

- Também não.

- Sendo assim?...

- Julgo que eu podia utilizar o carro da Mãe.

A Mãe recuou ligeiramente na cadeira e o Pai esqueceu-se de continuar a comer a banana e o queijo.

- Queres tirar o carro à tua Mãe?... É isso?...

E o Pedro:

- À Mãe faz menos falta do que a mim! A Mãe pode perfeitamente estar em casa, ao passo que eu...

Então aconteceu uma coisa dessas que marcam as pessoas bem dentro da alma.

O meu Pai levantou-se com tamanho ímpeto que a cadeira, empurrada, caiu no chão com fragor e eu julguei - mas julguei deveras! - ao ver-lhe o rosto transtornado, duro, que ele ia debruçar-se para o Pedro e encher-lhe a cara de bofetadas. Mas ao mesmo tempo, a minha Mãe, como adivinhando o que estava iminente, ergueu-se também e com a mesma rapidez poisou ambas as mãos nas mãos do meu Pai que se fecharam sobre si mesmas, convulsas.

Na sala, apenas o som das nossas respirações ofegantes.

O Pedro, lívido, aguardava. Ele sabia o que estivera iminente, o que estava iminente.

Na sua fisionomia era impossível decifrar o sentimento que o conservava imóvel. Estoicismo? Inconsciência?

Passaram segundos. com um esforço por certo enorme, o meu Pai dominou-se. Depois afastou-se da mesa, dirigiu-se para a porta.

A Mãe baixou a cabeça, tornou a sentar-se.

E o Pai, antes de sair da sala, voltou-se para trás. Numa voz que me pareceu trémula, disse ao Pedro:

- Podes tratar dos documentos e começar com as lições que te forem precisas para ter prática na cidade. Vais ter carta e carro. - e foi-se embora.

A Arabela recomeçou a bater palmas, radiante.

Eu desatei a chorar.

O avô Joaquim, esse abanava a cabeça.

bom, está assente que vou ao Chá das Faculdades e ando entusiasmadíssima com a ideia.

Sempre vamos umas poucas de raparigas. A Marta, a Helena e a Inês conseguiram convencer os Pais. A Marta até leva duas primas. Ao todo, com a Arabela, somos sete, o que já perfaz uma conta jeitosa.

Marcou-se a mesa e está tudo a postos para a festa.

- Mãezinha!?... - exclamo de súbito alarmada, a olhar para o interior do roupeiro.

- Que é, filha?

- Mãezinha... e que é que eu logo hei-de levar vestido?

- An?...

- Que é que eu hei-de levar vestido? repito.

- Talvez o teu vestido azul do ano passado. Ou o amarelinho, que também te fica muito bem.

- Não me serve nenhum deles!

- Não te servem ?

- Não. Nem os outros. Estão todos curtos, largos e apertados...

- Largos e apertados?

- Parece que engordei nuns lados e emagreci noutros...

A Mãe fica a olhar-me muito séria... Depois vem direita a mim, abraça-me, beija-me.

- Pois é, meu amor. Cresceste, engordaste e emagreceste... tens razão! Estás com outro corpo, um corpo já de mulher... No ano que passou eras ainda muito criança. E o pior é que a D. Amália daqui até logo (- a D. Amália é a nossa costureira de casa -) não te faz nada...

Como não gosto de complicar as coisas, trato de ser boa rapariga.

- Deixa lá, Mãezinha, não te apoquentes. vou de saia e blusa! Aquela verdinha fica-me bem, não achas?

E a Mãe, generosamente:

- Não, meu amor, não acho. Quero que vás... feliz! Assim que almoçarmos damos um pulinho à Baixa para comprares um vestido.

Eis-me no interior duma janotissima casa de alta costura.

Falta pouco mais de hora e meia para a festa e, para mim, a festa já começou!

Visto e dispo vestidos, de enfiada. Uns ficam-me curtos, outros compridos. Uns são giríssimos... e caríssimos. Outros mais acessíveis mas pouco atraentes, para o meu gosto.

Encontro-me por fim diante dum, ou melhor, dentro dum que me fica a matar e que é uma tara... -a propósito de tara: a primeira vez que me ouviu pronunciar esta palavra, o meu Pai protestou, alegando que não havia o direito de deturpar com modernismos ridículos uma língua tão rica e tão bela como a nossa, e o que valeu foi a Mãe largar a rir e explicar-lhe que tara vinha do verbo tarar e que tarar quer dizer pasmar (os tarados são pasmados por natureza!) e que tara pode considerar-se facilmente como sinónimo de espanto!...

Pois o vestido era mesmo um espanto! Verde, salpicado de continhas, com uma gola branca e um ramalhete verde feito com as mesmas continhas que o enchiam, direitinho, sem mangas...

bom, eu, que não sou especialidade nenhuma, quando me olhei ao espelho, palavra que tive vontade de dirigir um cumprimento àquela elegante que me sorria com um ar assaz comprometido com a novidade.

- Que tal, filha? Gostas?

- Se gosto, Mãe! É um amor!

O preço?!... Mil e seiscentos escudos. Suspiro. Paciência!...

- Deixa lá, Mãezinha!... -e torno a dizer, reafirmando a minha sincera renúncia: - vou de saia e blusa... Não hei-de ficar sentada toda a tarde por causa disso. - e gracejo: - Espero que pelo menos o Paulo não deixe...

Os olhos da minha Mãe resplandecem como é costume sempre que alguma coisa a alegra especialmente.

Dispo o vestido, satisfeita comigo mesma. A expressão feliz da Rosinha-Mãe compensa-me do sacrifício que faço. Não quero, não quero ter pena de não ir como me vi ao espelho, com o vestido verde salpicado de continhas...

- Faça favor... - diz a Mãe para a empregada que nos olha com o ar de quem acha muito mal empregado o tempo gasto connosco. - Pode embrulhar, sim?

E enquanto ela sai com o vestido nas mãos e um semblante bem diverso do anterior, eu abraço-me à minha querida.

O Paulo descobriu-me mal transpusemos o imenso portal. Viu-me nem sei como, pelo meio das outras todas, pelo meio da multidão alegre e exuberante que se diverte só com a ideia de que vai divertir-se.

Veio direito a mim e pareceu-me, ao olhar-me, como eu própria estive hoje diante do espelho ao ver-me como nunca me vi!... Em pasmo!

E o cumprimento que eu tive nessa altura vontade de dizer-me, oiço-o agora, formulado por ele.

- Oh, Ana... estás lindíssima!...

Agradeço-lhe com um sorriso franco. É bom perceber que não foi vaidade o que eu senti, mas uma espécie de gratidão porque... porque assim estou um bocadinho mais do que agradável à vista.

Aliás a minha própria Mãe, ao acabar de atar o laço verde que me prende os cabelos na nuca, com a simplicidade das meninas pequenas no ano de 1900, me afirmara, ouso acreditar que radiante com o facto:

- Estás muito bonita, filha!...

"Ainda bem, meu Senhor do Céu, - digo dentro do meu coração, - ainda bem!"

Subimos todas numa corrida a escadaria que leva ao salão. Chegam-nos já, atraentes, os sons duma música em voga. Só a Arabela fica para trás, ao lado do Pedro que se atrasou não sei porquê.

Entramos na grande sala e somos logo apanhadas pelo barulho, pelo ritmo, pela folia. O chá começou a ser servido ainda há pouco. Mas a animação não decresce só porque aqui e além se pára para comer sanduíches e bolos e beber tudo menos chá...

As caloiras - explica-me o Paulo - que estão encarregadas de fazer as honras da casa, de receber os finalistas, usam na lapela uns pequenos distintivos, uns lacitos minúsculos da cor da respectiva faculdade. As outras - imensas! - altas e baixas, gordas e magras, loiras e morenas, bonitas e feias, essas trazem todas, também como distintivo e igualmente com a cor da sua faculdade, fitas largas em volta da cabeça, mais ou menos rentes à testa, a prender os cabelos.

Só me admira uma coisa - é que a maioria delas não haja procurado harmonizar o tom do vestido com a fita. São poucas as que tiveram esse cuidado e estas, não há dúvida, evidenciam-se pelo arzinho elegante que as marca. O resto... que trapalhada! Vejo saias e blusas disparatadas, vestidos de praia e vestidos de noite (quase), chinelas que parecem de quarto e sapatos de cabedal em ligação com toilettes de renda...

Porque será que a maioria das pessoas não sabe vestir? E saber vestir não é, de forma nenhuma, usar tecidos caros confeccionados por modistas caríssimas!

A minha Mãe, por exemplo, anda quase sempre janota (para meu gosto) dentro do menor dispêndio possível. Quantas vezes anda lindamente trajada com vestidos feitos pela nossa querida D. Amália (a nossa costureira de trazer por casa como costumamos dizer)!...

Bem - e para mudar de assunto - como a alegria não tem nada a ver com o bom gosto... a alegria reina aqui onde ele falta. Sente-se no ar como bolinhas efervescentes que entram em nós e nos obrigam a comunicar, a actuar...

Agora, ao som dum surf que põe toda a gente em ebulição, o Paulo pergunta-me:

- Danças?

- Isto? Muito mal!

- Eu também não sou forte. Mas se nós imitarmos os outros, talvez não façamos má figura...

Rimos.

- Vamos então!... No fim de contas ninguém repara em nós.

E ele:

- E se repararem, façamos vénia e expliquemos que somos aprendizes!...

E começamos a dançar. A dançar, é das tais coisas... A andar por ali, mais ou menos ajeitadamente. Mas agora, a orquestra Interfaculdades rompe com um blue, sereno e calmo.

O Paulo enlaça-me.

E agora sim, dançamos.

Reparo na elegância do meu par.

Não sou perita para dizer se ele dança muito bem ou apenas regularmente. Mas é agradável ser conduzida por ele. Torna-se-me fácil acompanhar os passos que ele dá, deixar-me embalar pelo ritmo melodioso sem pensar sequer no que estou a fazer.

Danço com ele umas poucas de vezes a seguir e não me sinto nem cansada nem aborrecida.

É ele por fim que me reconduz à nossa mesa, com o aspecto calmo que voltou a assumir. E diz-me:

- Agora, Ana Maria, vou buscar alguns colegas meus para te apresentar.

- Para quê ? - indago. E ele:

- Para que não pares de dançar, ora essa!... Então, inesperadamente, faço uma pergunta

que a mim própria me espanta:

- Já estás farto de dançar comigo?

Ele olha-me bem a direito, julgo que bastante carinhosamente.

- Não, Ana! Mas desejo que, dançando com outros, saibas compreender até que ponto um par pode agradar-te ou não. - e sorri-me intencional. - Não quero de maneira alguma forçar-te a aturar-me durante toda a tarde... -e deixa-me só. Vai-se embora sem olhar para trás.

Fico perplexa, em busca do acerto dos meus pensamentos. Perco-me neles e decido renunciar a conclusões precipitadas acerca seja do que for.

Todas as minhas colegas estão a dançar um hully-gully divertido que muitos acompanham cantando e marcando o compasso com as mãos.

Vejo o Pedro a dançar com a Arabela.

De repente, percebo que não estou só. A Inês, sentada um pouco atrás de mim, pergunta-me:

- O teu irmão namora a Arabela ? Fito-a, admirada.

- Não, Inês. O Pedro não namora ninguém! Mas porque vejo os olhos dela erguidos para

mim numa dúvida onde paira leve tristeza, pergunto logo:

- Porquê ?

- A Arabela esteve ontem a falar dele.

- A falar dele?

- Sim, a gabar-se de ser capaz de fazer dele o que quisesse.

- O quê?

- Eu não sei se faço mal ou bem em contar-te isto. Mas como vocês são uma família... uma família digna de todo o respeito... e ainda por cima recolheram a Arabela por serem... como são, aquilo afligiu-me... e receio com o meu silêncio colaborar em qualquer coisa que não esteja certa... Percebes?

Sinto o coração bater-me em saltos descontrolados, tanto que levo ambas as mãos ao peito.

De súbito, foi como se o estranho peso que se adensava no ambiente da nossa casa, invisível e impalpável mas real, viesse apoderar-se de mim como um fumo que me impede de respirar.

- Percebo, Inês. Percebo lindamente! E o pior é que não imagino como é que se poderá resolver uma situação destas.

- Ela vai ficar para sempre na vossa companhia ?

- Não sei nada. Por enquanto ainda não se falou na questão tempo. Penso que os meus Pais tencionam deixá-la acalmar antes de tratar dos assuntos materiais que o caso dela envolve. Além disso aguarda-se uma resposta do Pai dela, a quem o meu escreveu, através da Embaixada da Suécia.

- É complicado, então?

- Muito.

Ficamos caladas por momentos, cada qual a reflectir segundo os próprios sentimentos.

Olho para a Inês. Vejo que as suas pupilas seguem o Pedro com ansiedade...

Então digo:

- Penso que o melhor é contar isso tudo à minha Mãe.

E ela, sem perceber que eu estou a ver-lhe o coração reflectido no brilho dos olhos:

- E se falasses primeiro com o.Pedro?

- Posso tentar.

- Faz pena ver um rapaz como ele à mercê duma rapariga com tão poucos escrúpulos.

- Custa-me a crer que a Arabela não seja como eu a julgava!

- Todas nós sabíamos que tu andavas iludida! Ela percebeu muito bem o que podia conseguir de ti e soube por onde devia chegar ao que pretendia.

-Mas porquê? Para quê?

- O tempo o dirá, com certeza!

- Mas como pode ela... ? Afinal tem a nossa idade!...

- É um sangue estragado de origem! Não adiantamos mais conversa, porque o

Paulo acaba de aproximar-se de nós à frente de cinco rapazes, bastante giros, devo confessá-lo.

Apresenta-mos e, a meu pedido, apresenta-os também à Inês. São o Manuel Fontes, o Tibúrcio Eiras, o Fausto da Cunha Brites, o Octávio António Franco e o D. Fernando de Lourelinho. (Depois saberia que estavam ali dois futuros médicos, um futuro notário, um quase engenheiro e um futuro diplomata).

Foi este último, aliás, o D. Fernando de Lourelinho, quem logo me convidou para dançar.

O Paulo levou a Inês.

Dancei ininterruptamente toda a tarde. O Paulo, porém, não voltou a convidar-me.

E o Pedro nunca se aproximou de nós, nem sequer para beber uma cerveja. E a Arabela também não, claro.

Ah, é verdade, não cheguei a encontrar o menino da Quinta Maior, o tal que anda em Direito.

Continua sufocante, o ambiente da nossa casa.

E contudo, depois duma conversa que a Mãe, à porta fechada, teve com a Arabela, esta não voltou a sair nem com o Artur nem com o Pedro. Julguei-me assim dispensada de incomodar a minha Mãe revelando-lhe o que a Inês me contara. Pode ser que as coisas se componham sem mais nada.

Valha-me Deus, porque é que a Inês não há-de ser acessível a uma fraqueza?...

O Artur arranja agora maneira de aparecer todos os dias e, quando se cruza com o Pedro, este carrega o sobrolho e fica com um ar esquisito que o modifica por completo. Ao vê-lo assim, tenho dificuldade em reconhecer o meu irmão.

Estará ele apaixonado pela Arabela? E se estiver? Será.razão para se mostrar desagradável, em vez de abrir-se em demonstrações de felicidade?

Eu, por mim, acredito que o amor só pode tornar as pessoas ditosas!

Oh, meu Deus, mas parece que com os rapazes tudo se passa de maneira diferente! Primeiro foi o Paulo, agora é o Pedro... Que o Paulo anda muito mais simpático outra vez. Dá-me a impressão de que, aos poucos, ele está voltando a ser o Paulo de sempre, aquele rapaz cordato, alegre, afável, que tanta estima me merece. Até recomeçou a vir a nossa casa como dantes!

O Pedro já está a tirar,a carta de condução. Mas não é nisso que reside o problema que me aflige, claro!

O Paulo quis falar comigo hoje de manhã.

Viemos juntos do liceu até aqui à porta e ele disse-me que está preocupadíssimo por causa do Pedro que, pela primeira vez na vida, não pensa nos estudos e desde há uma semana falta sucessivamente a todas as aulas, práticas e teóricas. Os mestres, que todos sabem a categoria do aluno, estranhando o facto, já perguntaram por ele, querendo saber se por acaso estará doente.

Doente? Isso sim!

É muito natural que algum deles, por certo amigo ou conhecido do Pai, venha a falar-lhe do irregular procedimento do meu irmão. E se isto acontece, como há-de ser?

Estou raladíssima.

Decido-me a abordar o assunto com a minha Mãe.

Sentada na poltrona com o ar fatigado que princípio a notar-lhe (a Mãe explica-me que já não é uma rapariga e que na idade em que se encontra o organismo não aguenta com a mesma facilidade de antigamente o enorme esforço a que se vê sujeito), a Mãe escuta-me sem me interromper.

Quando julgo ter explicado tudo suficientemente, ela responde-me sem procurar disfarçar a sua grande preocupação:

- O teu Pai já sabe disso, Anita. Nós trazemos o Pedro debaixo de observação. E na verdade o caso não é fácil de resolver. A Arabela enganou-nos a todos com o seu arzinho doce e sofredor. Admito até que ela seja mais vítima do que culpada. Mas o mal que se sofre não justifica o mal que se faz! Recolhemo-la, abrigámo-la, damos-lhe tudo quanto ela precisa, incluindo a nossa mais sincera afeição.. E ela, sem atenção por coisa alguma, procede como uma criaturinha sem alma nem princípios.

E eu:

- E parece realmente que ela não tem uma coisa nem outra, Mãezinha!

A Mãe continua:

- Não sei ao certo até que ponto devemos considerá-la a única responsável do que está a acontecer. Tudo o que ela viveu, ou não viveu, pode determinar as atitudes a que estamos a assistir. De qualquer modo, creio que devia respeitar-nos o bastante para não fazer aquilo que a mais elementar moral desaconselha.

Não me contenho.

- Ó Mãezinha, mas achas que ela sabe o que é a moral?

E a Mãe:

- Pelo menos no liceu, Ana Maria, há aulas de moral para todas as raparigas. Só as não aproveitam as que não querem.

E eu:

- Ou as que não podem!

E desta vez a Mãe não diz mais nada.

Vejo diante de mim olhos, olhos, só olhos... São dezenas, primeiro; depois centenas, milhares, e por fim... por fim tudo se condensa num único olho, enorme, que se fixa em mim com uma atenção desmedida: o olho do público!

Cerro os dentes e num esforço que não me fica mal, antes pelo contrário, liberto-me da vontade de fugir que me desce da cabeça para os pés. Procuro deixar de ver esse terrível olho atento que me espera, que me espia, que está a ver o que de mim sai, ou sairá...

Folheio as minhas folhas de papel - folhas dum caderno de capa vermelha cheias com a minha letra que está cada vez mais irregular e mais feia. O contacto com o papel ajuda-me a respirar. E embora com as mãos tão suadas como frias, consigo pegar nelas...

Na sala, reina um silêncio absoluto. Elas estão a portar-se bem. Curiosidade, expectativa ou simpatia?

De súbito, uma tosse, que reconheço- É a da senhora Reitora. E percebo o que ela, com essa tosse, pretende significar-me... É como se dali da primeira fila me avisasse - "Ana Maria, estás a levar tempo demais para começar..."

Quando dou por mim outra vez, já vou no final da primeira página, estou a virar a folha...

O grande olho geral voltou a subdividir-se e agora distingo perfeitamente os olhos atentos e interessados das minhas colegas, das minhas professoras, das raparigas do 5.? ano, todos postos em mim com complacência, talvez mesmo com agrado...

E eu, sentindo-me cada vez mais firme, continuo a ler.

"...É muito difícil e muito belo, e ainda mais belo por ser muito difícil, chegarmos à noite e depois de fazermos o nosso exame de consciência dizermos simples e calmamente: hoje procedi bem!

"Há pessoas que nunca ouvem a sua consciência, que nunca a consultam, que nunca se preocupam com ela. Pergunto a mim mesma se essas pessoas chegarão a ter consciência... Porque andar sob o peso esmagador da noção das coisas mal feitas deve ser horrível!

"Há sem dúvida uma preocupação que todos devemos ter. E se procedermos de acordo com essa preocupação, as pessoas, todas as pessoas, podem ser muito mais felizes. Essa preocupação consiste em escolher entre a infelicidade dos outros e a nossa - e quando digo infelicidade reporto-me àquela que provém da renúncia e do sacrifício. É que entre aquilo que é capaz de nos dar alegria momentânea entristecendo por muito tempo outro ou outros e o que no instante pode desconsolar-nos mas contribui para a duração do bem-estar alheio, creio que não devia poder hesitar-se.

"É claro que ao agir desta maneira qualquer pessoa tem o direito de pensar - mas se eu fizer sempre ISTO, alimentarei o egoísmo alheio e serei sempre aquele, ou aquela, que nada terá...

"E é verdade! Pode realmente acontecer assim mesmo, tal qual... se os outros não forem capazes de renunciar por sua vez e a nosso favor!

"Se toda a gente compreendesse a doutrina do amor comum, que maravilhosa seria a vida!

"É que a nossa ventura, a ventura de cada um, passaria a estar a cargo de todos os outros, a depender da boa-vontade, do interesse e da dedicação dos que nos rodeassem! E então viveríamos, uns e outros, a espalhar felicidade!

"De facto, julgo o egoísmo um sentimento condenável e que, muito embora.possa dar a ideia de resultar em bem no momento em que actua, não consegue nunca um objectivo amplo e definido. Quem faz isto ou aquilo só porque quer, só porque lhe dá prazer, só porque lhe promete um gosto de ocasião, chegará ao fim do seu tempo de vida sem nada e quantas vezes sem ninguém, ou então no meio duma desdita colectiva - ou seja, contribuindo para que os outros vivam tristes e portanto o ambiente que os rodeia falhe por completo.

"Ora é a nós, raparigas de hoje, futuras mulheres, amanhã esposas e mães, que cumpre pensar muito a sério neste grande problema que encerra em si, na maior parte das vezes, a chave da felicidade duma família completa - e a família é a obra mais perfeita de Deus porque encerra o máximo de beleza humana, e onde houver beleza humana há os desígnios eternos do Senhor, Criador do Homem e do Céu e da Terra...

"Estamos quase todas na idade de namorar.

(E aqui respondeu-me um sussurro de tal forma extenso que por momentos julguei que iam impedir-me de continuar. Mas logo em seguida o silêncio tornou-se como que ainda mais fundo, e eu pude prosseguir).

"Infelizmente, a maior parte de nós, raparigas, por motivos que não interessa agora observar, não dá à palavra namorar o seu verdadeiro sentido. Namorar, para imensas, é fazer olhinhos a um rapaz, passear com ele principalmente para as outras verem e se morderem de inveja, dizer uma dúzia de baboseiras e ouvir outras tantas sem nada de construtivo pelo meio. Ora namorar é afinal uma coisa bem diversa!

"Namorar é aprender a amar, mas aprender a amar para dar o coração todo inteiro, sem reservas nem exigências, a fim de compreender e justificar, de ajudar e amparar, até erguer num altar o que se servirá de joelhos, a família, a maior razão de viver e de sobreviver da criatura obra de Deus!

"A responsabilidade que nisto nos cabe a nós, raparigas, é muito grande! Exactamente porque a vida hoje nos exige que sejamos moldadas por figurinos novos, tão diferentes dos de antigamente - e diferentes porque tudo se modificou e os guerreiros que batalhavam cobertos de ferro deram lugar aos homens que lutam através de moléculas e à velocidade do som mais se nos deve pedir coerência e sensatez.

"Temos de ser cultas, educadas, aptas a deitar a mão ao trabalho tanto para substituir os homens como para os ajudar. Mas não devemos nunca querer viver como os homens, tal como aos homens não compete viver como as mulheres. Por isso é que Deus fez os homens-Homens e as mulheres-Mulheres!

"Ser mulher, penso eu, é uma coisa bela, que tem de ser bela e de saber impôr-se ao respeito e à consideração dos outros, para que seja reconhecida bela e como bela tratada. Há coisas sagradas de que não devemos abdicar. Nascemos mulheres; pois tenhamos orgulho em mostrar que somos autênticas Mulheres!

(Aqui interrompeu-me uma estrondosa salva de palmas).

"Ensinemos os homens, os rapazes, a venerar-nos. Não facilitemos uma aproximação que tenha apenas a finalidade de transformar-se em divertimento.

"Eu não sei se serei ousada em dizer uma coisa - mas parece-me que me atraiçoaria a mim mesma se a calasse. É que o amor é uma coisa séria e nunca uma brincadeira!

"Aqui neste ponto, vocês, minhas queridas colegas, podem perguntar-me: - mas então não admites que se seja amiga, camarada, dum rapaz?... - Admito, sim. Creio mesmo que devemos aprender de pequenas a andar com eles como se todos fôssemos irmãos. Mas lembrêmo-nos então de como os irmãos se conduzem uns com os outros e não façamos nada que não seja normal entre irmãos!

"É preciso que ensinemos os rapazes a respeitarem-nos, que façamos de modo a que eles tenham confiança em nós, tanta confiança que não receiem um dia escolher para sempre aquela que lhes parecer digna do maior amor da vida. E digo o maior amor da vida, porque o conheço bem. É aquele que liga os meus Pais!...

(Aqui, a voz tremeu-me e não sei se foi porque me emocionei um poucochinho ou se porque os outros se emocionaram que me detive para me assoar. Pareceu-me que até a senhora Reitora estava a limpar os olhos... e também a vice-Reitora... e a Marta... e a Inácia... e tantas, tantas!... Só decorridos instantes pude recomeçar. E recomecei).

"É necessário que nós, as raparigas, tenhamos muito juízo. É preciso que um mínimo de estouvamento não dê de nós uma ideia errada e que a inconsequência de actos irreflectidos, a estarolice, não crie problemas que podem dar-nos cabo da vida.

"As mulheres são as donas da felicidade. Das mulheres dependem os Pais, os maridos, os filhos, todo o futuro!

"Pois sejamos raparigas capazes de nos tornarmos nessas mulheres - as fiéis depositárias da grande palavra Ventura!

A minha palestra teve uma extraordinária repercussão.

Fui muito cumprimentada pelas minhas professoras e por imensas colegas. Mais tarde soube que houvera no liceu alguns dias durante os quais mais de um milhar de raparigas fora perfeitamente exemplar, mais do que exemplar, generoso e compreensivo... E depois?...

E depois?!...

Depois era preciso falar constantemente ao coração e à inteligência das pessoas, lembrando-lhes o mais belo caminho da existência para que a felicidade, em vez de ser às vezes uma coisa acontecida, pudesse normalmente ser uma coisa construída!...

Uma coisa construída!...

Em minha casa, a maravilhosa felicidade que se sentia estar dia a dia a ser feita pela vontade, pelos sentimentos, pelo amor dos meus Pais, está a sofrer um rude abalo ou a passar

por uma fase de transição que nos levará... sei lá até onde nos levará?...

A Arabela, depois duns dias de aparente reserva, deixou praticamente de preocupar-se connosco, com os nossos costumes, com a maneira de ser do lar onde foi recebida numa hora tão trágica para ela. E o que é pior - essa hora trágica mantém-se palpável, real, ameaçadora... e ela deixa-se ir ao sabor de fantasias que não sei para onde a arrastam e arrastam o Pedro, como se nada mais houvesse na vida senão esta maluqueira... esta maluqueira que se vê nos olhares que trocam, nas atitudes que assumem.

Não perceberá ela que de repente os meus Pais podem convidá-la a retirar-se e ficará sem casa onde dormir nem mesa onde comer?

bom, ela pressente com certeza que os meus Pais são incapazes de resolver os problemas que estão a afligi-los com a única atitude cómoda para eles, essa de abrir as mãos e deixar a tonta precipitar-se no abismo sobre que paira...

Sinto-me tão culpada no meio de tudo isto!... Mas como podia eu adivinhar que aquela doce, submissa, infeliz rapariga que me escolheu como confidente e amparo dos seus males, não passava duma hipócrita?

Vêm-me à ideia as minhas próprias palavras, escritas na palestra: "....julgo o egoísmo um sentimento condenável e que, muito embora possa dar a ideia de resultar em bem no momento em que actua, não consegue nunca um objectivo amplo e definido. Quem faz isto ou aquilo só porque quer, só porque lhe dá prazer, só porque lhe promete um gosto de ocasião, chegará ao fim do seu tempo de vida sem nada e quantas vezes sem ninguém, ou então no meio duma desdita colectiva - ou seja, contribuindo para que os outros vivam tristes e portanto o ambiente que os rodeia falhe por completo".

Releio estas palavras. E relendo-as parece-me que recupero de certo modo a paz da consciência. É que, mesmo que eu adivinhasse isto que se passa, não podia nem devia ter agido doutra forma, abandonando a Arabela à sua sorte, por comodismo, por egoísmo!

Não, sozinha já não sou capaz de perceber até que ponto estou errada ou certa. Preciso de alguém que me ajude, que me esclareça, que me ilumine.

Tenho de procurar a direcção espiritual da alguém que em nome de Deus me diga até onde o bem é Bem ou começa a ser Mal.

Se a minha Mãe pudesse ajudar-me! Mas a minha Mãe anda num estado de depressão que me é inteiramente desconhecido e me aflige mais que tudo. Sim, sem dúvida que numa ocasião normal a Rosinha, só por si, bastaria para remediar os acontecimentos e meter na ordem, senão a Arabela, pelo menos o Pedro.

Agora assim?!...

Aliás não chego a perceber se são as circunstâncias actuais que agravam o estado de saúde da Mãe, se é o seu estado de saúde que dá ainda maior volume a tudo quanto está a acontecer. Seja como for, a verdade é que nunca tinha visto a Mãe, durante o dia, passar horas e horas deitada. E o Pai, todas as manhãs, ao sair de casa, recomenda às criadas (e di-lo à Laura e à Arminda porque eu saio para o liceu quase sempre antes dele estar pronto): Cuidado com a Senhora. Sobretudo evitem que a incoModem.

Isto é o pior e o mais complicado. Porque o facto de ninguém ir levar-lhe os aborrecimentos e as arrelias ao quarto não impede que uns e outras atravessem os corpos opacos e vão todos ter com ela.

É certo que os maiores dissabores estão concentrados numa pessoa - justamente na pessoa que, bem o sei, tem sido desde sempre o expoente máximo de teorias, de crenças, de sonhos o filho mais velho!

Eu, graças a Deus, não estou a dar cuidados. O Rumané também não. O Pai, tão-pouco. É o Pedro!

O Pedro, o nosso rapaz às direitas!... E tudo por causa duma estouvada que avança por um caminho que ninguém (nem ela própria!) sabe a que conduzirá.

Filha dum lar desfeito, vítima de destrambelhamentos alheios, consequência duma falta absoluta de tudo o que há de mais importante na vida - que virá ela a ser?

Sim, devo ter pena dela, muita pena, nada mais que pena...

Mas não poderão as criaturas, com o seu próprio esforço, libertar-se da influência dos erros dos outros, procurando com as suas mãos, com a sua coragem, com a sua força de vontade, procurar e achar melhor?... Pelo menos, tentar encontrá-lo?...

- Ana Maria!... Ana Maria?!...

Sobressalto-me.

Estou tão enfronhada no estudo que não dei pela aproximação do meu Pai, do meu Pai que me olha com uma expressão de tal modo carregada - posso jurar que nunca o vi com esta

cara! - que fico transida não só de espanto mas também dum medo inteiramente desconhecido.

Os lábios do meu Pai estão quase brancos e parecem tremer.

- Ana Maria, que quer isto dizer?... - e põe-me debaixo dos olhos um bilhete que a princípio não entendo e não entendo porque nem sequer consigo lê-lo.

Só depois, aos poucos, começo a decifrar as letras, percebo umas frases:

A aluna n. 3 do ano VI... turma C... tem entrado toda a semana às 10 e 30 faltando às duas primeiras aulas...

O meu primeiro pensamento é, logicamente, este: que tenho eu a ver com isso?

Mas no mesmo instante um clarão abre-se diante de mim e dou um pulo na cadeira, tão grande que fico de pé diante do meu Pai.

É que a aluna n." 3, do ano VI, turma C, sou eu!...

Eu?!?

E o meu Pai, terrível:

- Ana Maria, tu sais daqui de casa todos os dias às 8 e 20... onde passas essas duas horas?

Tremo, mas não vacilo.

- No liceu, meu Pai.

- Mentes, Ana Maria.

Nunca ninguém me disse "- Mentes, Ana Maria!..."

As lágrimas soltam-se-me dos olhos, correm-me pela cara abaixo, soluço, num protesto de todo o meu ser:

- Não, Paizinho, eu não minto! Eu nunca minto! -e toda eu sou verdade cá por dentro.

- Mentes, sim, Ana Maria. Do liceu não me mandavam uma informação destas se tu entrasses a horas para as aulas.

Compreendo que se passa qualquer coisa... qualquer coisa com a qual eu não tenho nada a ver.

- Pai, eu não minto! - repito.

- Pois muito bem, Ana Maria, vamos ao liceu imediatamente.

Saímos. Chegamos ao liceu. Tudo sem trocar uma palavra.

Vamos primeiro à empregada da porta, encarregada de anotar as alunas que entram fora de horas. "Não sabia nem podia dar explicações. - disse. - Se estava registado é porque assim era..."

Então não posso conter-me.

- Mas olhe para mim! - quase grito.- Olhe bem para mim! Recorde-se da minha cara. Quem entra tarde não sou eu!...

Ela decide-se, com suprema indiferença, a fitar-me:

- Não sei. Eu não posso lembrar-me de vocês todas.

Mas de súbito torna-se mais atenta, observa-me com outro ar e gagueja:

- com efeito, parece que tenho ideia doutra cara... doutra cara com o seu número na bata...

- Aliás, - prossigo, sempre bastante fora de mim, - é fácil verificar que não tenho faltas marcadas pela senhora directora de ciclo!...

A rapariga, cada vez mais embaraçada, decide-se enfim a buscar certezas.

- Bem, eu vou ver aqui no ficheiro se por acaso me enganei.

O meu Pai, enquanto ela investiga, morde o cigarro apagado num sinal de extremo nervosismo.

Feita a verificação, ela, decerto impressionada com o nosso ar, até nos mostra os apontamentos. Não podiam restar dúvidas. Lá estavam, bem explícitos, o meu número e a minha turma.

Passámos à Secretaria, porque o meu olhar, ante a interrogação ávida do olhar do meu Pai, disse: até ao fim de tudo!

A D. Ema de Sousa, uma empregada que me conhece de pequena e ainda há dias foi das pessoas que mais aplaudiu a minha palestra, mostrou-se surpreendidíssima.

- Não, a Ana Maria quase não tem faltas, realmente. Vê-se aqui... duas em matemática, quatro em física, uma em organização e uma em desenho... mas nenhuma delas concordante com as datas que aí estão no aviso...

- Então? - perguntamos o Pai e eu, ao mesmo tempo.

- Não sei explicar! Um engano acidental, admitia-se. Mas assim?!... Tanto mais que a empregada da porta só toma conta dos números isolados que entram depois das horas! Claro que era impossível controlar a entrada das centenas e centenas de raparigas que passam a tempo e ao mesmo tempo. Portanto, lá que a empregada viu o número da Ana, isso viu!...

- Mas não há uma verificação entre esse facto e depois o anotamento das faltas assentes pela directora de ciclo? - indaga o meu Pai.

- Há, claro, mas só no fim do mês.

E o meu Pai, outra vez mais carregado.

- Então como pode garantir-se que a minha filha não faltou nestes últimos dias?

O meu Pai tem razão.

- Vai-se ver! - responde a D. Ema. Foi-se ver.

Eu não tenho faltas em nenhum destes dias!

A mão do meu Pai pega-me no braço, como se de súbito quisesse proteger-me contra alguém ou alguma coisa.

A sua voz, ríspida, indaga:

- Não lhe parece-, minha boa senhora, que antes de alarmar os Pais devia haver o cuidado de proceder à constatação que agora acaba de ser realizada! ?

A D. Ema faz-se de todas as cores.

- São coisas que acontecem, sr. Doutor. Coisas que depois se explicam...

- Ou não explicam. - volve o meu Pai.

- Como? - indaga a pobre senhora.

- É que não há dúvidas acerca dum pormenor. A empregada registou o número da Ana Maria. Alguém passou com o número da Ana Maria, portanto.

- Mas quem? Quem?

- Isso é o que eu vou investigar agora. Há outra rapariga lá em casa.

Quando saímos do liceu agarro-me ao meu Pai, já desfeita toda a minha anterior aflição, já esquecido o tormento por que passara:

- Paizinho... tu não estás a pensar que a Arabela fosse capaz de...?

-- Eu não quero pensar em mais nada sem ter certezas! - e depois de me dar um beijo na testa. - Tu, minha querida, perdoa-me! Mas o que nos rodeia é tão mau. tão perigoso, tão decadente, que uma pessoa como eu, uma vez louca de susto, nem se lembra de que uma rapariga como tu não faz um certo número de coisas!

Adoro o meu Pai. E entro em casa tão agarrada a ele como se qualquer coisa pudesse ainda separar-nos.

Já no vestíbulo, muito baixinho, depois de perguntar à Laura pela Mãezinha e de saber

que "a Senhora está a descansar"-noto perfeitamente que a Laura anda surpreendida e inquieta diante de tanta coisa tão diferente do que era, - faz-me notar que não devemos estar a afligir a nossa querida com estas ridicularias. E conduz-me para a sala de estar, cuja porta fecha.

De testa contraída, sulcada de rugas transversais, braços Cruzados sobre o estômago, mira-me atento. Depois inquire:

- Quantas batas tens tu, filha?

- Três, Paizinho. Visto uma lavada às segundas e às quintas-feiras e há sempre uma reservada para qualquer emergência.

- Onde está guardada?

- No meu roupeiro...-e vislumbro, num repente, o que o meu Pai está a pensar.

Corro ao meu quarto, abro o roupeiro, procuro...

Não encontro a bata!

O Pai, que me seguiu, está à porta e olha-me como eu o olho. Há nas nossas expressões, bem o sei, qualquer coisa de aterrado.

- Já calculava isto mesmo! -diz ele. E eu:

- É a Arabela! Ê a Arabela que passa com a minha bata!

O Pai avança, senta-se na borda da minha cama, busto descaído, ombros curvados, como uma pessoa extremamente cansada.

Oiço-o murmurar:

- E vá lá uma pessoa fazer bem sem olhar a quem!... Se eu algum dia julguei que uma criança que se afigurava tão dócil e infeliz, com um olhar tão límpido, fosse capaz de chegar a isto?!...

- Que se há-de fazer agora, Paizinho ?

- vou ter uma conversa com ela, filha. E das duas uma - ou a menina muda por completo... ou tem de mudar de casa!

Sento-me ao lado dele.

- Paizinho, lembra-te de que ela não tem mais ninguém!... Nem nada!

- Achas que isso basta para lhe permitir que faça o que não deve junto de quem procurou compensá-la de tudo o que lhe falta?

Argumento:

- E se a Mãezinha experimentasse falar-lhe outra vez à razão... ou melhor, ao coração?

- Primeiro, Ana Maria, receio que ela não tenha nem razão nem coração. Segundo... a tua Mãe não está em condições de continuar a apoquentar-se com assuntos desagradáveis. Temos de poupá-la o mais possível. Ela não anda bem, filha, ela-não anda bem.

Aproveito a ocasião para fazer uma pergunta que anda a queimar-me por dentro há que tempos já.

- Pai... a Mãezinha passou sempre assim, quando éramos nós que estávamos para nascer, ou agora está a ser diferente?

O Pai não fugiu a responder-me nem se pôs com evasivas que me tornassem mais difícil o lógico desejo de saber.

- É diferente desta vez, filhinha. A Mãe passou sempre muito bem, quando vocês estavam para nascer.

- Mas então... porque será?

- Razões de saúde, penso, impedem que esta gravidez decorra tão facilmente como as primeiras.

- Achas que é por a Mãe já não ser tão nova?

- Não, Ana Maria. A juventude não tem nada a ver com acidentes deste género.

- Acidentes?

E o Pai, resoluto, pegando nas minhas mãos geladas:

- vou tentar explicar-te em duas palavras o que se passa. O nascimento do teu irmãozinho tem estado a ser constantemente ameaçado duma interrupção desastrosa.

O coração aperta-se-me.

- Queres dizer com isso... que talvez não chegue a haver bebé?

- Tal qual!

- Oh!...

- Ora se eu, embora com a maior pena, podia conformar-me com essa ideia, a tua Mãe nem sequer aceita encará-la, percebes?

Digo que sim, só com a cabeça, porque acho que se falo... desato a chorar. E o Pai continua:

- Aí tens porque, a conselho do colega que a trata, ela deve agora conservar-se na cama o mais tempo possível e ser poupada às emoções que podem deitar a perder dum momento para o outro todos os cuidados. A máquina humana, filhinha, é uma coisa tão maravilhosa como complicada!

Consigo por fim descerrar os lábios, inquirir:

- Pai, tu pensas que estes últimos aborrecimentos... com o Pedro... sejam os culpados?...

- Não, os culpados, não! Mas capazes, se houver qualquer choque nervoso no meio disto tudo, de desencadear uma situação irreparável, isso sim!... Por isso, há que evitar tudo...

Olho-o bem de frente.

- Conta comigo, Pai!

O Pai sorri-me, um sorriso que vem bem lá do fundo da sua alma tão boa.

- Eu sei-o, querida...-e abraça-me, acalenta-me.- O pior é que o Pedro não ajuda...

- O Pedro está a portar-se muito mal... murmuro.

E o Pai.

- Muito mal, sim! Quero ter uma conversa com ele, mas digo-te, filha, que até sinto medo só de pensar nisso!

Pode lá ser!... Medo?... O meu Pai não é pessoa para ter medo seja do que for!

E no entanto os olhos do meu Pai expressam qualquer coisa que nunca vi neles!

Não, Pai, não pode ser! Eu não deixo que te sintas infeliz por causa dum filho!

Tenho de falar com o Pedro! Esta coisa de ele não ir às aulas e de a Arabela trazer vestida a minha bata... Sim, tenho de falar com o Pedro!

Hora a hora, cada vez esta ideia se torna mais forte e mais dominante se radica no meu espírito.

Ele falta, ela falta... Jesus, que complicação!

O Paulo telefonou-me há bocado.

- Ana, preciso de conversar contigo.

- Podes vir aqui a casa.

- É... é a propósito do teu irmão.

- Ele não está.

- Ana, o que te quero dizer precisa de ficar entre nós, por agora.

- Está bem.

- Podes vir ter comigo?

- Onde?

- Olha, sabes o que alvitro?

- Diz.

- Espero-te aí, à esquina da tua rua. Entramos para um autocarro daqueles de longo curso, damos a volta toda e voltamos a sair no sítio donde partimos.

- Está bem. vou já sair.

Nem penso que a entrevista assim pedida e marcada tem seu quê de ridículo. Acho-a clara, conveniente.

Aliso os cabelos com a escova, visto o lindo casaco de camurça azul que a avó Teresa me deu pelo Natal.

A Mãe, do quarto, chama-me.

- Ana!... Acorro.

- Mãezinha?

- Quem telefonou, filha? - e depois de reparar que estou pronta para sair. - Onde vais?

Sinto que esta não é a hora de dizer verdades.

- Era... era uma colega lá do liceu, a... a Inácia, a pedir-me uns apontamentos. vou levar-lhos e volto num instante, sim?

A Mãe levantou os olhos duma coisa minúscula que está a tecer-se em duas agulhas muito compridas - um casaquinho de tricot - e sorri-me.

- Vai e volta com juízo, meu amor.

Dou um beijo à Rosinha-Mãe, com uma pena imensa de não lhe explicar tudo como se passa. É tão bom abrir o nosso coração, desabafar, aliviar...

Mas a Mãe já não olha para mim. Conta as malhas que vai tecendo - uma, duas, três, quatro... - e eu domino o que neste momento reconheço que não seria uma virtude mas uma cobardia. Não tenho o direito de querer que a minha Mãe me ajude. Eu é que devo ajudá-la!

O coração pesa-me, dói-me.

Chego à paragem do autocarro com as pernas a tremerem-me.

Pressinto que o Paulo me vai dizer qualquer coisa de grave a respeito do meu irmão.

Oh, Pedro, Pedro! Como podes tu, - tu! ser capaz de fazer coisas que não deves!

O Paulo está à minha espera. Trocamos um aperto de mão, rápido, e ficamos calados, um ao lado do outro, à espera do autocarro.

Temos sorte. Não demora, é dos de dois andares e em cima está vazio.

Subimos e instalamo-nos, bem à frente. O Paulo, que percebe a minha angústia, entra imediatamente no assunto.

- Ana Maria, não vale a pena fugirmos às realidades. Por mais que andemos de roda a ver se lhes escapamos, elas trocam-nos as voltas e vêm ter connosco por outro lado.

- Onde queres tu chegar? - balbucio, com muito poucas forças para ouvir o que deve ser terrível.

- Precisamos de deter o Pedro custe o que custar.

- Detê-lo... em quê?

- No caminho que está a seguir sem compreender o mal que faz, sem ver o abismo que o espera.

- Deixou... deixou de estudar por completo, não é?

- Se fosse só isso?!...

- É pior?

- O professor Morais e Sousa e o Dr. Angelo Boasserra chamaram-me, hoje de manhã.

- A ti?

- Como nos conhecem bem e sabem o quanto somos unidos desde pequenos e têm ainda mais consideração pelo Pedro do que por mim, por ser filho dum colega que todos respeitam e admiram, quiseram certificar-se, primeiro se eu estaria ou não envolvido no mesmo lodaçal em que ele anda a patinhar, segundo se me seria possível ainda exercer sobre o meu companheiro qualquer influência...

- Mas porquê?

- Porque o nosso Pedro parece que anda por aí a meter-se em sarilhos, em reuniões clandestinas...

- Que dizes?

- É, Anita. Parece que o teu irmão deixou de pensar!

- Meteu-se na política?

- Qual política!... Ele, ou eu, temos lá idade para fazer política! Temos idade, sim, para concentrarmos todas as nossas forças a fim de nos orientarmos a nós mesmos. E depois, sim, depois de formados, com as ideias bem assentes, já um bocadinho amadurecidos, saberemos então o que é melhor para a sociedade que tudo tem o direito de esperar de nós. Até lá não passamos duns bonecos manejados pelos interesses de quem não conhece o mais elementar escrúpulo em servir-se de ingénuos, que é o que somos todos, para atingirem fins raramente confessáveis.

Eu olho-o entre lágrimas. E ele prossegue, no mesmo tom baixo, mas veemente.

- São criaturas que não hesitam em dar-nos cabo do futuro, da vida toda, quando mal começamos a dar os nossos primeiros passos..! Desgraçado de quem lhes cai nas garras!

O condutor vem cobrar os bilhetes; o Paulo paga. Depois, com um gesto protector, pega-me na mão, acaricia-a ao de leve.

- Não chores, Anita. Não deves chorar...- um soluço embarga-me a voz. Tenho de fazer um enorme esforço para conseguir dizer qualquer coisa... tão pouca coisa para tanto que é preciso!

- Ainda não tentaste falar-lhe ?

- Eu nem sequer o vejo! Há quinze dias que não aparece nas aulas! Esse tipo, agora armado em condutor de ideias, a primeira coisa que faz é deixar de cumprir!

- Podias procurá-lo.

- Onde? Em vossa casa?

- Porque não ?

- Está bem, Ana, se não o encontrar noutro sítio vou procurá-lo a casa, se bem que isso me custe imenso. Sinto-me diante dum caso tão estúpido, tão absurdo...

- Eu vou falar-lhe também! - decido, reagindo enfim. - Tem de ser. Precisamos de fechar o cerco em volta dele!

O Paulo sorri com incredulidade.

- Tens a certeza de que não se escapa por entre as malhas?

Não sou capaz de responder-lhe. Pode lá ter-se a certeza seja do que for!...

Quando saímos do autocarro e nos despedimos, sentíamo-nos tristíssimos. Creio bem que foi naquele momento que ambos tivemos dentro de nós os primeiros sinais de velhice.

Velhice, sombra, quietude, melancolia...

Tudo isto forma agora o ambiente da minha casa feliz!

Pobre casa!

A Mãe ainda não saiu do quarto. Diz-me a Laura que passou toda a manhã muito queixosa.

Para a minha Mãe, valente por princípio e por natureza, dar assim parte de fraca, é porque se sente bem pior do que nós supomos...

Mãe querida!...

vou espreitar à porta do quarto. Não dá por mim, é porque está a dormir.

Retiro-me com a mesma discrição e vou ao quarto do Pedro. Nem sinais do meu irmão que a desordem matinal em que ele e o Rumané sempre o deixam é toda reparada pela Laura o mais cedo possível.

Conheço perfeitamente os "cantos" do armário de espaldar onde ele guarda os cadernos, a correspondência e centenas de várias coisas que lá cabem.

Nunca buli nas coisas do meu irmão. E nem sei o que hoje me leva direitinha a abrir as gavetas, uma por uma, e a folhear, a vasculhar, como se uma íntima certeza gritasse que ali havia mais do que segredos - explicações, explicações!... Talvez a libertação da nossa angústia...

Cartas antigas, cadernos velhos, desenhos, uns versos, uns retratos, notas várias, apontamentos, flores secas, um relógio escangalhado, lápis, borrachas partidas, canetas inutilizadas...

Topo de súbito com cartas fechadas! Algumas vindas de muito longe!...

Vejo as datas nos carimbos dos correios. Algumas já estão aqui há mais dum mês.

Leio os remetentes.

Vic Nusen.

Luis Viegas Pastor.

Jean Paul Mignonet.

Fernando Vasco.

Não abro nenhuma, embora me sinta incapaz de. perceber como é que o Pedro pode ter perdido o interesse de saber o que estes rapazes lhe dizem... - estes amigos que ele afirmava não poder nunca esquecer!

Vic Nusen... Que será feito dele? Como irá a sua carreira de pianista? A carta vem de Londres.

Luis Viegas Pastor, o brasileiro afável que metia todos no coração... A carta vem de Buenos Aires.

Jean Paul Mignonet, aquele graças a cuja Mãe o destino de Fernando Vasco lançou uma ponte sobre o mundo. Vem de França.

Enquanto medito, os meus olhos pesquisam. E vejo, vejo que o fundo desta gaveta está coberto de papéis impressos que dizem... dizem ...

Mas são panfletos duma... duma...

Não chego a pegar em nenhum. Violentamente, a gaveta é fechada e uma voz cortante em que não reconheço a voz do meu irmão, fustiga-me.

- com que então, espia?

Mais tranquila agora do que antes - pelo menos sabia, sabia qualquer coisa de positivo!

- volto-me, encaro-o.

E ele, tão rude e agreste como se fosse bater-me:

- Que procuras?

- O que achei, Pedro.

- Documentos de culpas?

Cada vez mais serena, serena com toda a força da minha razão, da razão de todos nós que só lhe queremos bem, que só queremos o bem dele, encolho os ombros.

- As tuas culpas não precisam de documentos, Pedro. Estão à vista nos olhos com que me fitas... e na inconsciência com que procedes!

- Não te admito censuras, heim?

- Tu não admites nada a ninguém. Decidiste sozinho estragar tudo o que havia de mais belo na nossa casa, a Paz e a Felicidade.

Vejo o meu irmão enfiar as mãos nas algibeiras, tomar um ar de cinismo que eu nunca pensei que ele pudesse ter, e oiço-o retorquir-me num tom que me há-de fazer tremer até mesmo depois de tudo isto não ser mais do que uma má recordação - porque eu espero, eu tenho fé em Deus que tudo isto há-de passar:

- Que é que eu tenho com a vossa Paz podre e com a vossa Felicidade insípida? Cada qual vive a sua vida e nem vocês têm nada com a minha nem a mim me interessa nada do que vocês fazem!

Sinto que tudo anda à roda comigo... Mas agora é ele que recua, porque eu avanço e não garanto que não vou atirar-me a ele como certa vez, há muitos anos, numa refrega de miúdos.

- Não tens nada a ver comigo, com o Pai, com a Mãe, com os teus deveres, com os teus estudos, com o teu futuro, com tudo o que devia contar, para ti como conta para todas as pessoas normais? Tornaste-te tão estúpido, tão idiota, que .és capaz de pensar que o mundo é o que tu queres e não aquilo que Deus manda?

De repente, o Pedro solta uma gargalhada trocista, uma gargalhada que me gela. E seguindo a direcção do olhar dele vejo que se detém nas cartas que eu ainda não largara. Então, agitando-lhas na frente do nariz, quase lhe grito:

- Tornaste-te tão imbecil que nem sequer já respeitas a amizade?!...

E o Pedro:

- Pois sim, menina, pois sim... Eu bem sei o que te dana...

- O que me dana?...

- É não saberes o que diz uma certa carta que aí tens...

Nunca, nunca imaginei que o meu irmão fosse capaz de me falar desta maneira.

Atordoada, prestes a estalar em choro, repito:

- O que me dana?... - e depois, de jacto, como se novas forças me viessem do mais fundo de mim mesma, apostrofo-o. - Pois será possível que tudo quanto é bom, decente, puro, esteja a morrer dentro de ti? A mim não me dana nada!... Sim, sou amiga do Fernando Vasco, conheço-o de pequena, é natural que a sorte dele me interesse. Agora que para ti a família e os amigos sejam menos que uns fantoches, umas criaturas com as quais nada tens de comum... isso... isso não tem classificação, Pedro!...O que é que se passa contigo? - e as lágrimas soltam-se-me dos olhos. - Tu não vês que assim... que assim hás-de chegar a um ponto em que nada te fica? Porque nada fica, meu querido Pedro! Pensa no nosso Pai... na nossa Mãe...

- E quem pensa nos meus direitos?

Sei perfeitamente que é ainda uma resposta sem esperança mas que no entanto e apesar do desarrazoado em que me encontro me abre uma frestazinha, uma frestazinha pela qual eu talvez consiga passar ao encontro da verdade escondida lá bem dentro do meu irmão...

E tento o gesto.

Agarro-o pelos ombros, abraço-me a ele, apoio o rosto alagado no seu peito.

- Pedro, meu Pedro, volta para nós! Volta para os nossos corações... É à nossa beira que existe felicidade.

- Uma felicidade feita por medida, pela vossa medida?

- Pela nossa medida?...

- Sim, aquela que vocês querem impingir-me!... Porque eu sei o que desejo. Eu sei o que preciso, na concretização das minhas ideias e, repito-te, dos meus direitos!

- Mas quais direitos?

- O direito de ser livre, à frente de todos os outros.

- E a que chamas tu ser livre?

- A fazer aquilo que quero.

- E que é que tu queres ?

- O que é que eu quero ? - repele-me, mira-me de alto a baixo, respira fundo como se fosse dizer uma enormidade... e proclama:

- Mas ser livre!...

Crispo as mãos, a sentir-me agora não desgostosa mas enraivecida.

- Pedro, mas assim, com esses argumentos, é impossível chegar a uma conclusão! Explica-te. Fala! Diz-me o que pensas, mas diz tudo!

E é então que da porta a Arabela (e nunca me tinha parecido tão delambida e tão impertinente!) que por certo sem eu a ver já ali está a assistir desde o começo desta cena, exclama:

- Oh, Pedro, mas para que é que tu estás aí a perder tempo?

- A perder tempo? - insurjo-me.

O Pedro volta-se para ela.

- Ah!

- Não sabes que temos a reunião?...

- Pois é...

Ainda tento segurá-lo.

- Pedro, não, não saias agora!

O Pedro abala porta fora com a Arabela, que ri.

E eu, a chorar, deixo-me cair no chão, em cima do tapete, tão agarrada a uma cadeira como se desta dependesse o eu poder continuar a viver.

Passaram mais dois dias neste marasmo estúpido que é tudo o que mais detesto.

Não se pode fazer nada. Não se faz nada.

O Paulo telefonou-me já por duas vezes, desolado. Continua a não encontrar o Pedro.

É claro que resta sempre a hipótese de vir procurá-lo aqui a casa... Mas o meu irmão está a entrar cada vez mais tarde e não parece conveniente que uma discussão capaz de azedar-se possa ser travada depois da uma hora da manhã.

Como evitar que uma altercação entre eles degenere em conflito familiar?

Aliás, e de qualquer maneira, duvido muito que esse conflito possa ser evitado. Anda no ar; a borrasca avizinha-se...

Inesperadamente, o Pedro apareceu hoje à hora do almoço, pontual como dantes. Fiquei atónita.

Acaso o nada que se passou entre nós teria aberto uma pequena brecha na sua dureza, brecha por onde entrasse uma resteazinha de bom-senso ?

Quando o viu, a Mãe, que estava a arrumar umas gavetas da escrevaninha do Rumané, sem um sorriso mas também sem qualquer aspereza, disse-lhe, depois de o beijar na testa:

- Quando tiveres tempo disponível, vai a casa do avô Leonardo. Não está melhor e pergunta constantemente por ti.

É verdade. Ainda não registei nestes meus cadernos mais um dos factos que andam a pesar sobre nós. O avô Leonardo está doente há mais dum mês. Deu-lhe de repente uma grande dor nos intestinos. A princípio até o meu Pai julgou que fosse uma cólica, a sua velha colite agravada... Mas a dor aumentou, generalizou-se.

O Pai chamou colegas. Houve conferências. Fizeram-se radiografias, análises, sei lá bem o quê!

A dor não cedeu a nada. Abranda com umas injecções e volta.

Parece que é qualquer coisa de muito, muito grave. E no entanto o sorriso estóico do meu querido avô não se extingue. Sofre sem mostrar nem medo nem revolta. Talvez esteja convencido de que é mal que vai passar.

Meu querido, querido avôzinho!

Ao responder à Mãezinha, a voz do Pedro soou de tal modo que me fez estremecer. Lembrava a voz dele, dantes... Sim, a voz do verdadeiro Pedro, não a deste que anda disfarçado de mau...

- Não é nada de grave, espero!

- Nunca se sabe, naquela idade.

- Mas o avô não é assim tão velho como isso!

- Já fez os oitenta anos.

Pensei que a Mãe e o Pedro iam começar a conversar e pulsou-me o coração num frémito de alegria... - frémito que terminou num baque de inquietação.

Bumba!-fez a porta da rua num bater violento ao acabar de abrir-se.

E eis o meu Pai à entrada da sala, outra vez com aquele olhar terrível que eu em tão pouco tempo já lhe vi por duas vezes!

Pensei que acontecera qualquer nova coisa com o Pedro. Outra asneira, pela certa!

Mas este rapaz não se deterá no caminho por onde vai... - eu ia a escrever por onde o levam... mas a verdade é que a pessoa também só se deixa ir quando quer!...

De súbito, porém, todos os meus raciocínios foram paralisados pelo assombro.

Eu! Era eu o alvo do olhar do meu Pai! ?

Outra vez eu!...

Balbuciei, por um lado transtornada e por outro estupefacta (a consciência não me acusava de nada!):

- Que se passa, Paizinho?

- Segue-me, Ana-Maria. Preciso de falar contigo.

Olhei de relance para a Mãe e para o Pedro, que nos contemplavam admirados, conquanto no rosto do Pedro me parecesse vislumbrar um certo ar de cumplicidade a meu respeito, assim como de quem pensa "afinal, minha menina, há muitas afinidades entre nós!..."

Encarei o Pai, absolutamente serena. Ou melhor, consegui serenar enquanto o encarava.

Eu sabia que não tinha feito mal nenhum! E por isso não hesitei em exclamar:

- Mas, Paizinho, seja o que for que tiveres para me dizer, a mim, acho que não precisamos de sair daqui. Eu não tenho segredos para ninguém e muito menos para a Mãezinha e para o Pedro.

O Pai pareceu-me um pouco surpreendido. Mas logo os seus bonitos olhos cor de azeitonas de Elvas - como a Mãe costuma dizer, enternecida- voltaram a tornar-se severos.

- Muito bem. Sendo assim, responde-me. Desde quando é que tu andas acompanhada?

- Eu, acompanhada? - e não percebi o alcance da frase, juro-o! - Desde sempre, Pai. Em geral saio do liceu com as minhas colegas e vimos juntas até aqui, pelo menos a Marta, a Inês, a Cristina...

- Basta!

Fiquei atordoada com a. violência da imposição.

- Basta, Ana Maria! Não acabes de pôr-me fora de mim com esse ar de fingida inocência. Não estou a referir-me às tuas colegas, evidentemente. Perguntei-te e pergunto-te desde quando andas acompanhada por um rapaz.

Ouvi o Pedro comentar baixinho, trocista:

- Provavelmente desde que deu em espia. São serviços combinados.

Ouvi, mas não reagi.

Reagiu o meu Pai por mim, de tal modo e tão transtornado - ele até se esqueceu de que a Mãe precisa de ser poupada a todas as emoções!- que a Rosinha-Mãe interveio, numa súplica, aproximando-se dele:

- Rui Manuel, por favor, querido! Não percas a calma!...

Mas o Pai creio que nem a ouvira e apostrofava o Pedro que se afastava prudentemente.

- Tu... tu não te atrevas a falar, heim?... Contigo é daqui a pouco. - e ao notar decerto o seu crescente movimento de recuo: - Não, não vás para longe, que temos de entender-nos! Mas primeiro, a tua irmã. - e voltou a fazer pesar sobre mim as pupilas fusilantes. - Continuo à espera que me respondas.

- Pai... mas eu não ando acompanhada!

- Pois atreves-te a negar?

- Estou a dizer a verdade.

- Ana Maria?!... Pelo amor de Deus, Ana Maria... não me faças perder a cabeça!... Quem era o rapaz com quem andaste a passear de autocarro há oito dias?

- De autocarro?... -de súbito o espírito abriu-se-me, compreendi.

E o Pai:

- Ah... já te lembras?...

Percebi que a Mãe estava atrás de mim, pronta a amparar-me, a proteger-me. Mas graças a Deus eu tenho comigo o amparo e a protecção da minha consciência!

Encarei o meu Pai bem de frente. E sem pressa, agora que sabia qual a fonte da sua, noutras condições, perfeitamente justificada ira, respondi-lhe apenas com a queixa que me subiu do coração.

- Será possível, Paizinho, que tenhas pensado mal de mim? Outra vez? Embora me prometesses que havias de confiar na tua filha?

- Por favor, Ana Maria, deixa-te de evasivas. Quem era esse rapaz? Quem é?

- É o Paulo, meu Pai.

- O Paulo?... Mas... e a que propósito é que tu andas a passear de autocarro com o

Paulo? Não se podem falar aqui em casa, mesmo que... que se namorem? Ou o micróbio dessa destruição de princípios morais a que certas raparigas chamam liberdade infectou a nossa casa? Mas olha que eu desinfecto-a, Ana Maria, juro-te que a desinfecto!...

O Pai não compreendia, o Pai não sabia, o Pai não podia adivinhar... e de acordo com as suas suposições dos factos, para ele inexplicáveis, tinha razão.

A Mãe adiantou-se, passou rente a mim, foi poisar uma das mãos no braço do meu Pai, num gesto silencioso que pedia moderação. E eu sorri - sorri embora o meu coração chorasse, porque me doía muito verificar que duas vezes quase seguidas o meu Pai pôde julgar-me capaz de praticar actos que eu nunca, nunca faria!...

E disse:

- Não, Paizinho, não te aflijas. Garanto-te que não adoeci nem nunca hei-de adoecer com essa moléstia. Creio que estou vacinada contra ela! O que se passa é bem diferente.

- Mas diferente como? Diferente em que sentido?

- Em primeiro lugar, o Paulo não é meu namorado... embora haja umas certas possibilidades de eu vir a pensar nisso mais tarde...

- Mas então porque é que passeias com ele às escondidas?

- Aí é que está o teu engano, Pai. É que eu não passeio com ele. De facto, demos essa volta de autocarro... não foi há oito dias, foi há cinco dias. Mas só porque precisávamos de falar.

- Insisto em perguntar porque é que não falaram aqui?

- Porque o que tínhamos a dizer era de certo modo secreto! -e já cansada disto, decidi-me a esclarecê-lo, embora certa de que ia substituir mágoa por mágoa (mas que podia eu fazer num caso destes?) - O Paulo queria falar comigo por causa do Pedro... e como não desejava que o que tinha a contar-me viesse apoquentar ainda mais os meus Pais, procurou que o assunto ficasse entre nós, antes, pelo menos, de tentarmos encontrar uma solução para ele. E para não andarmos por essas ruas ao Deus dará, entrámos num autocarro... Demos a volta da carreira e tornámos a sair no sítio onde o tínhamos apanhado, lá em baixo, ao fundo da nossa rua. Afinal, houve quem achasse melhor prevenir o Pai sem saber até que ponto o que nós fazíamos estava bem ou mal feito!

O Pai não se interessou mais pelo meu caso pessoal. Desviava já toda a sua atenção para o Pedro que imperceptivelmente continuava a aproximar-se da porta da saleta. E enquanto a Mãe se abeirava de mim, a abraçar-me transbordante de carinho, deteve-o, interpelando-o:

- Que é que se passa contigo, Pedro, capaz de haver motivado o encontro da tua irmã com o Paulo?

O Pedro, agora imóvel, não respondeu. E eu, de súbito, pensando que um golpe bastante forte talvez pudesse salvar o Pedro de bem pior, resolvi-me a esclarecer o nosso Pai.

- O Pedro anda por aí armado em agitador político.

- Cala-te!-gritou o Pedro. E eu, implacável:

- Acompanha com uns desgraçados rapazes e raparigas num grupo a que a Arabela parece que também não é estranha. Faz propaganda subversiva, distribui panfletos, troca o trabalho sério e honesto que pode levá-lo longe e confirmar o seu valor tornando-o profundamente útil à humanidade, por uma loucura capaz de desgraçá-lo para sempre.

A minha Mãe largou-me e escondeu o rosto entre as mãos.

O meu Pai tornou-se mais branco do que estas folhas de papel em que estou a escrever.

- Foi isso o que o Paulo te disse ?

- Sim, Paizinho, foi! - e acrescentei, o mais depressa que pude, na ânsia de arranjar um remédio para aquela enorme ferida aberta no nosso lar. - Tenho a certeza, e o Paulo também, de que o Pedro está a ser arrastado por maus conselhos e...

O Pai interrompeu-me, a meia voz, como se estivesse a falar consigo mesmo.

- Mas as pessoas devem ter carácter, força de vontade, clarividência, bom-senso... - e voltando-se para o Pedro que se conservava próximo da porta numa atitude que eu a princípio não soube interpretar, intimou: - Aproxima-te!

Ele obedeceu.

Ficou parado diante do meu Pai, que o olhava como se quisesse continuar a falar e tivesse deixado de poder emitir um único som. Só decorridos instantes disse:

- Isto... isto é de tal modo inesperado e terrível, terrível para além de todos os meus receios, terrível para além de toda a destruição das razões duma vida, que eu não sei por onde hei-de começar...

E o Pedro, brutalmente:

- Pois então não comece. Acabe!

- Heim?

- Acabe! Dispenso o discurso, Pai. Sei perfeitamente o que me convém e compete fazer.

- O que te convém e compete fazer?... Mas tu não sabes nada! Tu não passas dum garoto que anda a fazer a pior maldade da sua vida, dum garoto tão garoto como no dia em que há anos quis pôr calças compridas e ia morrendo com medo dos ladrões...

- Já é tempo que deixe de me considerar um garoto. E fique sabendo que não lhe admito que se meta na minha vida!

- Pois tu atreves-te a falar-me nesse tom?

- Atrevo, sim senhor. De hoje em diante, acabou-se!

- Acabou-se ?!... Mas acabou-se o quê?

- Sou um homem livre! Não havia nada a fazer.

O meu Pai avançou como se fosse impelido por uma mola e vi o Pedro ser esbofeteado quatro, seis, oito, dez vezes... Julguei que ele ia ficar ali despedaçado sob a força tornada cega e espantosa por uma ira perfeitamente justificada.

Mas não!

O Pai cessara já de bater-lhe, mas agarrara-o pelas bandas do casaco e abanava-o, falando-lhe aos arrancos e perto da cara que se tornara inchada, e violácea.

- Livre?... Livre em que sentido, badameco?!... Não sou eu que o sustento? Não sou eu que o calço e que o visto? Não sou eu que o educo? Não depende inteiramente de mim, como é normal, aliás, que os filhos dependam dos Pais enquanto se preparam para tomar conta de si próprios, para sucederem aos Pais? Deve-me, enquanto isto, obediência. Obediência total principalmente desde que as circunstâncias da vida que levamos não demonstrem, com reconhecimento geral, que está a ser coagido a cometer actos que repugnem à sua consciência! E no dia em que me não dever essa obediência, deve-me respeito, respeito sempre e para sempre, um respeito de que não abdico, esse respeito que daria ao meu próprio Pai o direito de me partir a cara se eu fosse capaz de faltar aos meus deveres para com ele. Os Pais são sempre os Pais, ouve?

- Mas os filhos não são propriedade dos Pais e muito menos os pensamentos de cada homem podem depender da vontade dos outros!

- Pedro... mas tu ainda não és um homem, segundo aquilo que se entende por ser um Homem-Homem, senhor do seu futuro, apto a enfrentar sozinho os problemas, a encarar as consequências das suas decisões... Por enquanto, Pedro, a tua única liberdade é a de adquirires pelo estudo, pela análise, pelo desenvolvimento de todas as qualidades e faculdades, o direito de vir a ser Gente-Gente, capaz de se bastar na vida. Quando fores independente, autossuficiente, então sofre as consequências dos teus actos quando e como quiseres. Mas por agora vê se és capaz de entender que além de nunca chegares a parte alguma, tal como te encontras, fazes ainda desabar o teu mal sobre terceiros!

O Pai já o largara e o Pedro, sacudindo o casaco e alisando as bandas todas amachucadas, ripostou:

- Pois fique sabendo que me sinto no direito de desprezar imposições e conselhos que não me merecem a mínima consideração. Faço o que entendo e repito-lhe que não tolero que se meta na minha vida!

Malandro!... Nego-te o nome de filho! Eu nunca tinha assistido a uma discussão na minha casa. Peço a Deus, do fundo do coração, que me poupe a todas as que o destino, com o implacável rodar dos tempos, possa provocar à minha beira. É horrível!

O meu Pai, completamente transtornado, atirar-se-ia de certeza ao meu irmão se a Mãezinha o não tivesse manietado com os braços passados à roda dele segurando-o com uma força que não sei donde lhe vinha. Assim, ouvi-o gritar:

- Biltre!... Malandro!... Nego-te o nome de filho!...

O Pedro ainda teve forças para replicar:

- Pois negue à vontade, que eu também não reconheço como Pai um homem que me trata como se eu fosse um escravo!

Vi os braços da Mãe, pela força da reacção do Pai, abertos em cruz - a cruz em que ela estava a ser crucificada!...

Vi o meu irmão, antes que o Pai o atingisse, sair pela porta fora, tropeçar na passadeira do corredor e ir estatelar-se, desamparado, no vestíbulo, ante o olhar apavorado da Laura e da Arminda que tinham acorrido ao som da queda.

Vi-o levantar-se, cambaleante, com um fio de sangue a escorrer-lhe do nariz.

Vi-o transpor a porta da rua, enquanto os braços da minha Mãe vinham agora fechar-se em volta de mim.

E vi o meu Pai... vi o meu Pai andar de roda na saleta, como um animal enjaulado. E depois parar diante duma estante... e dessa estante tirar um livro... e com esse livro agarrado nas mãos, apertado ao peito, chorar, chorar convulsivamente, como eu nunca pensei que um homem pudesse chorar.

E dificilmente compreendo que possa haver coisa mais dolorosa de ver.

Abandonado em cima da mesa da saleta, está agora o livro que o meu Pai teve apertado ao peito.

É a História de Portugal, aquela História de Portugal encadernada, maravilhosa, que o meu irmão recebeu como prémio de excelência no colégio, no segundo ano, quando ele era considerado por toda a gente como um rapaz às direitas.

Oh, Pedro! Oh, Pedro?!...

Porque foi que mudaste tanto?!...

Como foi possível que mudasses tanto?!...

Há quatro dias que não sabemos do Pedro.

Passado o medonho desencadear da tempestade não houve nenhuma bonança, não. Ficou tudo sombrio, tudo negro, como um tempo ventoso e gelado que nos dá cabo da saúde e da vontade de abandonar o refúgio onde nos imaginamos ao abrigo da inclemência.

A minha Mãe está de cama, proibida de se levantar pelos médicos. Está de cama o corpo da minha Mãe. O espírito... esse deve andar por aí fora, doido de aflição, tentando descobrir o paradeiro do filho pecador.

O Rumané, integrado no clima doentio da nossa casa, estuda, come, dorme, entra e sai quase sem se dar por ele. Faz-me pena o meu irmãozinho! Porque há-de a adolescência dele ser diferente do que foi a nossa?

Nós éramos tão felizes!

Tudo corria bem, não havia por certo família mais harmoniosa, mais unida, mais segura dos seus bens morais, tão importantes que nada os substitui!...

A Arminda, na cozinha, desvela-se connosco. Mas na nossa boca até os doces têm o travo da amargura...

A Arabela já foi chamada à pedra pelo meu Pai - aliás na própria noite da cena com o Pedro.

Ela entrou para jantar, tão descontraída como se nada se houvesse passado. Na verdade acredito que ela não tivesse tido conhecimento do ocorrido, dado que os seus lindos e cândidos olhos claros (quem diria que uns olhos assim podiam ser tão falsos?) se abriram num sobressalto que não podia ser simulado quando eu, por alto, lhe contei o sucedido. E afirmava categórica que não vira o Pedro nessa tarde, o que aliás fizera imenso transtorno por causa duma reunião...

O Pai, quando chegou a casa, mais cedo do que o costume, chamou-a e, com a mais extrema severidade, falou-lhe como se diante dele estivesse uma mulher de trinta anos e não uma rapariga de dezassete.

- A Arabela tem a plena consciência do que anda a fazer? A Arabela, e já não me reporto à maneira indigna como tem estado a retribuir todo o bem que de nós recebeu, percebe ao que se arrisca, agindo como age?

E a Arabela, com um súbito descaramento que evidenciava a sua verdadeira índole, retorquiu:

- Claro que percebo! Pode pôr-me no olho da rua!

- Não, menina, não... não é bem isso!... O que pode é ser posta fora do país.

- Eu?!...

- Claro! Os interesses duma nação têm mais importância que os interesses dum lar, por mais importantes e sagrados que estes se afigurem ou sejam.

A Arabela empalideceu. Mas não mostrou medo.

- Então... se isso acontecer, alguém tomará conta de mim. Se eu tiver um destino, não lhe fujo.

- Nem faz nada para lhe fugir?

- Não vale a pena! De resto, não me interessa nada viver nesta terra. Mais tarde hei-de ir para outra onde serei considerada uma benfeitora e não uma indesejável... E se o senhor doutor não tem mais nada a dizer-me, eu retiro-me.

A Arabela acabava de tirar de vez a máscara da suavidade e da desdita com que tanto nos comovera.

O Pai não fez um movimento para a impedir de sair da saleta. Aliás o telefone, tocando, não tardou em chamar-lhe a atenção para novos factos.

Um doente pedia a sua comparência urgente. E o meu Pai teve de sair.

Pobre Pai! Como há-de ele ter cabeça para pensar na aflição dos outros, quando todo ele é aflição a que ninguém acode?

E no meio de tudo isto, pontos, pontos, pontos, pontos...

Pontos quase diários, de matérias tão diferentes umas das outras, como se as professoras não entendam que as nossas vidas, por mais que o estudo nelas ocupe o primeiro lugar, não são unicamente preenchidas pelo trabalho do liceu!

Cada qual tem, se mais não for, pelo menos a necessidade de comer e dormir. E além disso a capacidade de trabalho não é igual para toda a gente!

Eu tenho, é certo, muita facilidade em decorar, em fixar. Mas desta vez causas externas roubaram-me a forma e impedem-me de dar o rendimento habitual.

Ponto de física.

Ponto de matemática. Ponto de filosofia. Ponto de organização.

Como?!

Faço o primeiro.

Faço o segundo.

Faço o terceiro.

E o último?...

O último, o mais fácil de todos?!...

São duas horas da manhã, cabeceio, não percebo uma só das palavras que tento meter na cabeça.

Levanto-me pé ante pé, vou à cozinha, acendo o gás, aqueço café.

- Menina - diz-me a Laura lá do quarto delas (é impossível nesta casa dar um suspiro sem que a Laura o oiça), - isso faz-lhe mal!...

- Schiu! - protesto. E ela:

- Menina, vá dormir! Olhe que tanto estudo tresnoita!...

- Schiu!!...

No meu relógio de mesa, uma bolinha de vidro orlada de vermelho com os interiores todos à mostra - roda-roda-roda-roda... - os ponteiros avançam, avançam...

Mas eu não percebo nada do que leio!

Cada vez menos!...

Quem é que há-de estar às 8 e 30 da manhã a raciocinar sobre perguntas a que tem de responder em menos de 50 minutos?

Como há-de ser isto?

Que se passa?

Onde estive?

Ah... sim, em lado nenhum!

Creio que passei pelo sono, com a cabeça em cima do livro.

Oh, se a ciência entrasse dentro do cérebro através do crânio!...

É o entras!...

- Ana, minha filha?!... Gemo baixinho.

- Mamã?...

Penso semi-entorpecida "Mamã, tu não podes levantar-te, que os médicos to proibiram, se queres que o meu irmãozinho venha a ser como nós um filho vivo nos teus braços... nos teus braços, Mamã, assim como eu estou agora, abraçada, aconchegada, tão tua tão tua, Mamã... Mamã e porque é que eu não hei-de ser apenas tua, sem ter de suportar os outros, sem precisar de sofrer porque os outros não têm como tu o único desejo de me livrar de todos os males...? Mamã - igual a" Deus ?!..."

- Precisas de ir dormir, minha adorada. Precisas de ir dormir. Estás exausta, não aguentas mais.

- Mamã, mas eu não sei nada para o ponto!... É impossível. Não tive tempo. Foram quatro numa semana!

- Pois é, filha... um ponto dia sim dia não, parece-me exagero! Não sei porque é que as professoras não escalonam melhor o trabalho! Dois por semana já chegavam...

- Mamã, que é que eu hei-de fazer?

- Apenas uma coisa. Faltar.

- Faltar ao ponto?

- Sim, faltar. Tu não estás em condições de te apresentar. Muito tens feito, no meio de tudo isto. Vem.

Sinto-me levada, despida, deitada, aconchegáda:

E acabaram-se os problemas. Igual a Deus - Mamã!...

Devagarinho, entro na grande nave acolhedora.

O perfume a incenso, o cheiro da cera queimada, as chamazinhas das velas tremeluzindo, acolhem-me como os sons do órgão que me envolvem em doçura.

Não sei porque escolhi esta igreja. Sei que a escolhi e que estou aqui dentro dela, no meio de gente que não dá por mim, tão recolhida como eu.

Venho pedir a Deus que nos ajude a todos. Precisamos tanto de socorro, Senhor!...

Não sei porque escolhi esta igreja. Sei que a escolhi e estou aqui.

E agora o órgão cala-se.

E do púlpito, do ar, de cima de todos nós, do céu, uma voz grave, profunda, fala.

Fala para toda a gente que aqui está.

Fala para mim.

Eu oiço, oiço, oiço...

Não sei se foi isto o que eu ouvi. Mas foi pelo menos isto que eu percebi!

No coração das criaturas humanas esconde-se a nostalgia da perfeição. O desejo é infinito, mas os limites múltiplos. Mesmo que o pecado não existisse, mesmo que o homem sozinho pudesse harmonizar todas as suas forças e dominá-las, a insatisfação continuaria a atormentá-lo. É que a perfeição total, completa, tem a marca suprema do poder divino. E só pela graça de Deus a conseguirá quem quer que seja.

No fundo, o que mais faz sofrer a criatura são as íntimas insatisfações, todos os conflitos entre o que se pretende ser e o que se é; entre a natural fome de saber e o próprio mistério; entre a ânsia de ventura e os sofrimentos inevitáveis; entre o sonho de grandeza moral e a constante baixeza que o tolda; entre a sede de amor e os limites impostos por tudo quanto é humano!

Posto assim o problema, chega-se à conclusão de que o que mais faz sofrer é a própria imperfeição, natural da simples e humana condição.

Não deve nunca acreditar-se que a satisfação das aspirações individuais, por maiores que sejam, cheguem para alegrar a vida toda. Fica sempre alguma coisa que não é completa!

Seja em que idade for, o que mais se deseja, estruturalmente, é beleza, pureza, justiça, paz, verdade, amor, e tudo isto até ao Infinito! só aí a criatura chega enfim ao alvo que a espera, porque no Infinito está Deus, porque o Infinito não tem senão um nome - Deus!

Deus é a beleza, a pureza, a justiça, a verdade, a paz, o amor!

Há que reparar sempre que nenhum rio poderia correr se se negasse à sua origem, à sua fonte. Tal como a luz não brilharia se não proviesse do sol! Assim se confirma que ninguém pode viver completamente sem a graça de Deus seu Criador, Deus que oferece aos homens mais do que o direito de serem homens homens divinizados!

E divinizados como? Dirigindo-se para a fonte, no cumprimento absoluto das leis morais, das doutrinas máximas, que tornam a mais simples das vidas numa Vida a-caminho do seu destino glorioso e único - a Perfeição.

E para alcançar a Perfeição é preciso apenas singelamente aceitar a própria imperfeição, reconhecê-la e em cada dia oferecê-la a quem tudo entende e perdoa, rogando-lhe que a torne cada vez mais pequenina e mais fácil de erguer nos braços.

E com esta aceitação onde cabem todas as lutas, todas as dificuldades, todas as fraquezas, a Imperfeição se redime!

Então a insatisfação cederá o lugar, sem sobressaltos, com a maior naturalidade, à beleza, à pureza, à justiça, à paz, à verdade, ao amor, a tudo o que é infinito e está unicamente em Deus!

Saio da Igreja pacificada, agradecida àquela força imensa, vinda não sei donde, que me trouxe aqui à hora de tudo isto ouvir.

Creio que percebo, que percebo muita coisa, muita coisa...

Se eu ao menos fosse capaz de dizer ao nosso Pedro: é preciso aceitar as lutas, as dificuldades, as fraquezas para que a própria Imperfeição se redima!

Se eu pudesse, meu querido Pedro, explicar-te que não podes, que não podes fugir à tua origem, a tudo o que somos para ti, ao teu Deus!

Ao teu Deus que está à espera que tu te aceites com todo o mal que anda a atormentar-te, para que encontres o caminho desse Infinito a que pertences como qualquer de nós!...

Oiço reboliço, vozes, gritos de surpresa. E uma voz.

Uma voz!...

Uma voz que nem me atrevo a reconhecer!

Depois o coração bate-me com força. Pára e recomeça, numa doidice tão grande que até parece que me falta o ar.

Nem me lembro que estou por arranjar - ou antes, que estou mal arranjada, com aquele aspecto desmanchado com que costumo chegar do liceu, bata amachucada, cabelos ao Deus dará, nariz a luzir...

Todos os planos secretamente alimentados no meu peito durante tanto tempo (parece que na minha imaginação ficaria mais correcto...) caiem pela base. Uma Ana Maria elegante, cuidada, sofisticada, capaz de ofuscar o esplendor das vedetas de cinema em geral e de alguma em particular, pronta a dar de si a imagem da perfeição física, cede perante a garota que afinal, queira ou não queira, sou de facto e apenas.

Salto do quarto de banho onde vim lavar as mãos demasiadamente sujas da tinta da caneta que se avariou, corro para a sala de estar onde o alarido não diminui, antes pelo contrário.

E topo com Fernando Vasco!

Fernando Vasco!!!... (De repente, digo-o com sinceridade, nem me lembro de que por detrás dele existe um Jacques Bertrand)... Fico-me a olhá-lo, extasiada.

É que não pode, não pode haver mais bonito rapaz, mais janota, com melhor figura, com mais presença... Duma altura acima do comum (o meu metro e 68 perde importância ao lado do seu metro e 80 e tal...) o cabelo anelado, comprido e basto, a barba loira a emoldurar-lhe o rosto, a deslumbrar-me...

Quem é que ele me lembra?

Sim, é isso mesmo! Faz-me recordar uma imagem de. Jesus Cristo que temos lá na Quinta, uma linda imagem do século XVIII descoberta numa arrecadação que mais tarde se verificou ter sido uma antiga capela. Até os olhos dum azul luminoso (não está de óculos escuros, o Fernando Vasco!) se poisam em nós com aquele mesmo ar de doçura que nos deixa sem defesa, prontos a dizer "Aqui estou, Senhor, seja feita a tua Vontade!"

(Parece-me que estou a ser hereje - ou sacrílega ? - ao dizer isto, mas a verdade é que é assim que sinto...)

Fico-me embasbacada, perfeitamente idiota, com um sorriso estereotipado na boca que me treme, porque toda eu agora sou vontade de chorar!

O Rumané pula de roda do Fernando Vasco, insistindo para que ele lhe conte tudo, tudo o que tem feito e tem para fazer.

A minha Mãe, hoje reclinada no divã que aqui temos, maravilha-se com esta presença inesperada que tanto lhe diz ao coração.

A Laura e a Arminda cheiram-no como se ele fosse um bicho raro. "Ora não há, aquele menino que andava nas bocas do mundo e por quem elas dantes não sentiam grande consideração..."

A Arabela, feminina dos pés à cabeça, no que para mim a palavra feminina tem de menos agradável, pavoneia-se diante dele...

E o meu Pai interroga-o também, animadamente, referindo-se ao Oriente em termos que eu nem sequer entendo... eu, que há talvez mais de dez minutos aqui estou, à porta, sem que ninguém dê por isso, sem me atrever a fazer-me notar...

E o Fernando Vasco vai falando e martelando um reparo que se sobrepõe a tudo.

- Mas não percebo, não percebo como é que puderam deixar de saber de mim, como é que não me esperavam! Tenho escrito sempre, de toda a parte, avisei o Pedro de que chegava ontem de avião, de Londres, de regresso das filmagens... Custa-me a crer que ele não tenha recebido as minhas cartas! Para os meus Pais não se extraviaram nem sequer as que eu enviei da floresta...

E eu, de súbito e enfim, falo.

- As tuas cartas estão na secretária do Pedro, todas por abrir.

Agora!! Agora o Fernando Vasco vê-me! Vê a miúda que aqui está a devorá-lo com os olhos...

Avança para mim de mãos estendidas, agarra-me pelos ombros, dá-me dois sonoros beijos, um em cada face.

- Anita! Como tu estás crescida e linda!...

Tento coordenar ideias, mostrar-lhe que não sou parva, deslumbrá-lo, se não com o meu aspecto físico, pelo menos com o fulgor da minha inteligência. Sei que devo rir-me, responder-lhe que sim, que lá crescida estou, mas linda... isso?!!...

Pois é! Só consigo soltar uma exclamação aparvalhada.

- Achas?

E ele, imensamente senhor de si, a brincar

- santo Deus! - a brincar com a ponta do meu nariz.

- Qualquer dia casada, heim?... Felizmente para mim não espera resposta,

larga o meu nariz, volta-se noutra direcção.

- E esse Pedro, por onde anda ele?...

Só depois desta interrogação a que ninguém responde, a que se sucede um silêncio expressivo, é que ele mostra ter ouvido a frase com que eu marquei a minha presença:

- E afinal que história é essa de ele ter as minhas cartas por abrir?

E o meu Pai:

- Uma história para te contarmos depois do almoço, se nos dás o prazer de ficar connosco.

E o Fernando Vasco, a rir:

- Ó Só Tôr, eu já vinha a contar com o convite!

Fui-me arranjar num instante, tão nervosa que as minhas mãos geladas mal seguravam na escova com que eu tentava alisar o cabelo.

Empoei-me ao de leve, sombreei um pouco os olhos (muito pouco, porque o Pai detesta pinturas), pus a minha saia aos quadrados vermelhos e pretos e a camisola preta de gola alta. Como nota de suprema garridice, calcei os sapatos de tacão mais modernos que tenho.

Quando me mirei ao espelho, quase me atrevi a pensar que estava bastante gira. Ai de mim! À minha custa aprenderia que há pessoas em quem as primeiras impressões perduram de tal maneira que não as deixam ver o erro da visão inicial - se de erro se trata.

Fizesse eu o que fizesse, o Fernando Vasco continuaria a ver em mim apenas... uma rapariga do liceu!

E eu, pobre tonta, entrei na sala, para almoçar, à espera de ser recebida com exclamações de agrado. Eu estava de facto crescida e, se não linda, pelo menos razoável...

Mas o Fernando Vasco nem para mim olhou! Conversava com o meu Pai, entretidíssimo. E durante todo o almoço só contou coisas mirabolantes da sua recente estadia na corte de Ma-hur.

A pouco e pouco, fui-me interessando. Aquela narrativa empolgante prendia-me, arrebatava-me, quase que me dava vertigens. O palácio de mármore cor-de-rosa com móveis de prata maciça.

As taças cheias de pedras preciosas colocadas sobre os móveis como peças de decoração.

Os marfins trabalhados como rendas, a servirem de biombos e de tampos de mesa.

As sedas naturais de cores escaldantes e os veludos dourados cobrindo portas, paredes e pessoas.

O oiro tudo franjando e enfeitando.

E o povo, no fundo miserável mas à vista do estrangeiro apenas motivo de constante curiosidade, ajoelhando à passagem dos amigos brancos do seu príncipe trigueiro, que aprendera nas terras do outro lado do mar a ser compreensivo, a ser humano.

E os elefantes altos como montanhas a que era preciso subir sem mostrar receio.

E as lentas caminhadas pela floresta imensa, dum verde claro e fofo, onde se sentia um arrepio na espinha ao pensar nas serpentes terríveis, muito mais perigosas na sua pequenez do que os imensos tigres buscados para a morte.

E o tigre real abatido pelo jovem marajá e cuja pele magnificente ele, Fernando Vasco, trazia de presente ao Pedro.

Sim, Ma-hur subira já ao poder! O Pai morrera subitamente, vitimado ao que parece por uma doença cardíaca e o principezinho vira-se a braços com a responsabilidade do governo ainda sem os vinte anos feitos.

- É novo de mais! - comentava o meu Pai.

- Está ainda na idade de ser governado.

- Olhe que não, Só Tôr, olhe que- não! O Ma-hur sabe perfeitamente o que quer e como o deve querer! - redarguiu o Fernando Vasco. - Chegou a dar-nos a impressão, a mim e a todos os outros europeus que puderam conhecê-lo de perto, como o nosso realizador, os assistentes e os actores principais, dum tipo amadurecido... É como se o clima, os princípios, as necessidades até, influíssem no seu desenvolvimento mental. No entanto também penso que se ele não tivesse estado na Europa como esteve e não adquirisse uma formação especial, nunca seria o óptimo chefe que promete vir a ser. - e riu-se. - Querem saber qual é um dos aspectos culturais que lhe merece mais atenção.., talvez até aquele que mais o preocupa depois dos problemas da assistência? O que diz respeito às

artes.

O Pai estranhou.

- Às artes?

- Depois de instruir o povo como deseja, pretende vir a recreá-lo e educá-lo através de espectáculos válidos, convincentes. Imaginem que dentro de três anos quer apresentar na capital uma companhia de teatro francês e outra de ópera italiana e...

-E um de balet russo, não? - perguntei eu.

Fernando Vasco não pareceu estranhar que a irónica interrupção partisse de mim. Limitou-se a retorquir enquanto ia descascando uma laranja com toda a elegância.

- Isso não sei!... Mas para o fim do próximo ano já ele tem contratada uma grande orquestra sinfónica para uma temporada de concertos, com maestros e solistas de várias nacionalidades. Um dos primeiros a lá ir é o nosso amigo Vic Nusen.

O Pai comentou então:

- O vosso príncipe, pelo que vejo, é fiel às suas amizades!

- Inteiramente!

A minha Mãe, que em honra do Fernando Vasco pedira e obtivera licença para almoçar à mesa (prometeu que volta a deitar-se logo em seguida), quis então saber o que era feito do Vic.

- Vai lançado como merece, S'Dona Rosinha. Onde toca, deixa um público à espera que ele regresse... - e de novo voltou ao ponto nevrálgico. - O Pedro não sabe? O Vic não lhe tem escrito?

O Pai engoliu tão depressa o resto da laranja que tinha metido na boca que até se engasgou.

A Mãe, essa debruçou-se para dizer qualquer coisa ao Rumané.

Fui eu quem lhe deu a resposta que ele evidentemente esperava.

- O Pedro, tal como não abriu as tuas últimas cartas, não abriu muitas outras que estão amontoadas numa das gavetas da escrevaninha dele.

Então o Fernando Vasco passou o olhar vagarosamente por nós todos e depois interrogou o meu Pai.

- Passa-se então algo de grave?

- Sim, Fernando Vasco. Se queres, vamos os dois tomar café na sala e eu, antes de sair para o consultório, ponho-te ao corrente dos factos.

Inesperadamente, a Arabela, que até então se mantivera calada, sempre de olhos postos no Fernando Vasco, atreveu-se a falar.

- Ouve...

O Fernando Vasco encarou-a.

- Depois da conversa que o Senhor Doutor vai ter contigo, eu gostaria de te explicar umas coisas. É preciso que entendas que o Pedro não se transformou num monstro... mas sim num homem livre!

A minha Mãe, com os olhos a brilharem como lume, apostrofou-a.

- Cale-se! Como ousa falar dessa maneira?

- Tia Rosa, cada um tem as suas razões!

- As suas, nesta casa, deviam apenas lembrar-lhe as obrigações que tem para connosco.

- E que não me atirasse à cara com a esmola que me dão! Gente boa e generosa, não há dúvida! Não negam que são burgueses.

Coube a vez ao meu Pai de transbordar. com a mão direita, apontou a porta.

- Ainda bem que assim falou. Acaba de libertar-nos dum peso atroz. Pode arranjar as suas coisas e sair hoje mesmo. O seu destino não nos interessa mais.

- Mas interessa-lhe o do seu filho, creio! E eu posso fazer do Pedro o que me aprouver. Se eu trasnpuser as fronteiras, ele irá comigo.

A minha Mãe escondeu o rosto nas mãos. O meu Pai apertou os maxilares, mas conservou-se impassível - aparentemente.

- O meu filho não será cobarde a esse ponto. Mas como chegou a hora de querer escolher sozinho o seu destino, o mal que fizer será dele apenas. Para mim, para nós, não haverá senão um enorme desgosto cada vez maior!...

Pouco mais ou menos a meio disto, tínhamos ouvido soar a campainha da porta. Ninguém lhe ligou meia, claro.

Agora, porém, e no instante em que o meu Pai assim expulsava a Arabela, a Laura apareceu. Trazia uma carta-expresso para o meu Pai.

- Uma carta da Suécia?!...

E ao acabar de ler o remetente "Knut Sinfõlst, Oestrevil - Sweden", o Pai ordenou à Arabela, que já estava junto da porta:

- Pare, menina. Espere.

Ela parou... esperando com os olhos fitos na carta que o meu Pai sopesava nas mãos como se estivesse receoso de a abrir. Finalmente, resolveu-se. E ao acabar de ler, tinha um outro ar. Era como se um caminho novo e luminoso de súbito se lhe abrisse na frente.

Foi a Mãe que perguntou, ao notar a transformação do semblante pouco antes tão amargurado :

- Que se passa, meu querido?

E a Arabela, sem dúvida inquieta, perplexa, indecisa, ecoou:

- Que se passa, Senhor Doutor?... E o meu Pai:

- O que se passa é que a menina vai fazer as suas malinhas para ser expedida em grande velocidade para junto do seu Pai. Estão aqui a ordem... os documentos precisos... e o cheque para pagar a viagem de avião.

- Nunca! - e a Arabela, com o grito, precipitou-se para a porta. Mas o Fernando Vasco, agora atento a todos os movimentos dela, atravessou-lhe diante um braço contra o qual a rapariga, em fúria, lutou, escabujou, tentando livrar-se dele. Já porém o Fernando Vasco utilizava não um mas os dois braços, para a prender, para a impedir de escapar-se, embora não de mover-se. Estou certa de que ele deve ter ficado com as pernas cheias de nódoas negras, tantos pontapés levou.

Eu nunca tinha assistido a uma coisa destas, nem supunha que uma rapariga pudesse reagir de tal maneira.

Calmíssimo. como se nada de anormal se estivesse a passar, o Fernando Vasco ria, num comentário:

- Há-de ser custoso metê-la no avião... Se calhar só de jaula!...

A Mãe fora estender-se no divã, com um ar cansado mas ao mesmo tempo tão aliviado que as preocupações que o seu estado físico pudessem suscitar eram todas eliminadas pelo brilho que os seus olhos irradiavam.

O meu Pai foi colocar-se diante da Arabela, que se arreganhava para ele, como se quisesse morder-lhe.

- Assim tanto lhe desagrada, menina, ir para junto do seu Pai? Em vez de rejubilar porque afinal não está só na vida, insurge-se e desespera-se? Que ser anormal e monstruoso é, afinal?

- Chame-me o que lhe apetecer! - vociferou ela. -Chame-me o que lhe apetecer... mas não quero ir para o pé do meu Pai! Sou livre, livre, entende? E a minha liberdade vale mais que todos esses princípios ridículos da família e da paternidade! Isso não me interessa nada e não vou para a Suécia!

E o meu Pai:

- A menina pode não se interessar por isto à vontade, mas lá que vai para a Suécia, vai... e vai logo que os seus papéis estiverem em ordem de marcha!...

A luta dela, entre os braços do Fernando Vasco, recomeçou e de tal maneira violenta que ele se viu em sérios embaraços para a conter, conquanto, divertido com o incidente, dissesse, a mostrar os dentes muito brancos:

- Isto o que tem é de ser guardada à vista!...

- Mas é que vai ficar fechada à chave no quarto! - disse o meu Pai, severamente.

- E eu salto pela janela!-gritou a Arabela, de cabeça perdida.

- E em vez de ir para a Suécia vai para o Necrotério... - e depois, franzindo os sobrolhos, o meu Pai acrescentou: - Não há perigo, aliás... porque uma vez que se mostra em toda a sua força, fica fechada na despensa, que é para não ter por onde fugir!

A Arabela, ouvindo-o, uivou positivamente.

Eu, transida com o espectáculo, fui aninhar-me ao pé da minha Mãe.

Então, cáustico como tantas vezes se mostrava dantes, o Fernando Vasco observou:

- Esta rapariga tem qualquer coisa de hiena!...

A Arabela cuspiu-lhe em cima.

Fernando Vasco não se perturbou. Cruzou-lhe as mãos atrás das costas e, tranquilamente, pediu:

- O Só Tôr é capaz de me dar o seu cinto para eu a prender? Começo a estar cansado... e preciso de limpar a cara.

Foi neste instante que eu vi, entre portas, olhando tudo e todos com o ar mais justificadamente espantado do mundo, o Paulo.

Fiz-lhe um rápido sinal a significar-lhe que não se mexesse nem dissesse nada. E ele obedeceu-me, deixando-se ficar imóvel, enquanto o meu Pai, conscientemente furioso, ia tirando o cinto.

A Arabela, porém, teve uma reacção, uma reacção que nos obrigava a mudar de atitude para com ela, embora nenhum de nós pudesse garantir a sua sinceridade. Quem se atreveria a acreditar nesta rapariga, por desgraça nascida, ao que se afigurava, para enfileirar na linha das grandes traidoras, das grandes criminosas - e tremo de horror ao escrever isto e ao pensar que HÁ pessoas criadas para signos terríveis, incapazes de se livrarem da força que as arrasta... ou serão elas que arrastam a força trágica?...

- Não é preciso algemarem-me! -soluçou, desfeita em lágrimas. - Uma vez que não posso fugir ao que me é imposto... partirei! Lá, como cá, saberei traçar o meu destino e fazer o que quero! - e como percebesse que todos hesitavam em dar-lhe crédito, acrescentou: - Asseguro-lhes que não sairei do meu quarto sem autorização!

Então o meu Pai voltou-se para a minha Mãe com um olhar que lhe pedia perdão de estar a incomodá-la como último recurso.

- Rosa Maria, tem paciência... mas vai tu fechá-la.

Pus-me de pé ao lado da minha Mãe, que se levantou imediatamente.

- Eu também vou.

A Arabela fitou-me com ar de má.

- Para a defenderes da fera, não ?

Eu não achei que valesse a pena responder-lhe. Mas o Fernando Vasco não pensou como eu.

- com as feras todos os cuidados são poucos... Por isso, eu também vou. - e dando-lhe uma volta brusca, impeliu-a à frente dele. Foi quando avistou o Paulo. Os seus olhos saudaram-no com alegria, mas não se deteve a falar-lhe. Limitou-se a dizer-lhe "Já conversamos" e passou.

A Mãe e eu fomos atrás deles.

Quando voltámos, depois de deixar a Arabela prostrada em cima da cama com ar de mártir ("melodrama puro", rosnava o Fernando Vasco), o meu Pai, abraçado ao Rumané que o despenteava à força de festas, conversava com o Paulo e estava tão excitado com o que acabava de saber, que nem deu tempo às efusões do encontro entre os dois amigos - aliás as efusões por parte do Paulo tinham um travo de reserva que se os outros não percebiam eu vislumbrava a distância...

- Rosa... Ana... imaginem que o Paulo viu o Pedro!...

A Mãe, apoiando-se em mim com uma das mãos, levou a outra ao peito.

- E então ? Como está o meu filho ?

O Paulo olhou para o meu Pai. O meu Pai olhou para ele, fazendo-lhe um aceno com a cabeça.

- Conta-lhe!

E o Paulo contou.

- Está miserável... tristemente miserável... e, por enquanto, sem um rebate de consciência.

- Não! - soluçou a minha Mãe enquanto eu a ajudava a sentar-se primeiro e depois a estender-se. - Não!

- Foi procurar-me hoje de manhã ao Hospital. - prosseguiu o Paulo. - Pedi-lhe em todos os tons que voltasse às aulas. Negou-se. Disse-me que sabe que está marcado pelos professores, vigiado pela polícia... e que nada lhe interessa, pois tenciona...

- Tenciona... ?

- Tenciona fugir do país.

Vi a Mãe da cor da cera, a tremer, a chorar.

- Não. Não! NÃO!... - e numa aflição desmedida, como se quisesse agarrar algo do muito que lhe fugia, olhava o meu Pai, o Paulo, o próprio Fernando Vasco. - Pelo amor de Deus, não deixem, não deixem!...

O Fernando Vasco adiantou-se, resoluto ele que vinha em busca da alegria e caía em plena tragédia.

- Eu não sei ainda o que se passa... mas seja o que for, preciso de falar com o Pedro! Ele deve estar louco!...

O Paulo encolheu os ombros.

- Fala com ele à vontade, embora eu não acredite que sirva para alguma coisa!

- Sabes onde ele está?

- Sei.

- Dá-me a direcção. Quero ir ter com ele! A Mãe soergueu-se, disse:

- Quem vai ter com ele, sou eu. O Pai interveio.

- Não, Rosa Maria. Desculpa, mas eu não te deixo ir.

- Rui Manuel?!...

- Não vais tu nem vou eu. Nenhum de nós deve procurá-lo.

E a Mãe:

- E... se o prendem?

- Se o prendem...-o meu querido Pai reagia, estoicamente. - bom... se o prenderem... ele que sofra o que tiver de sofrer, o que for merecido... e depois, que volte! A porta da nossa casa não está, nem nunca estará, fechada para ele.

- Mas...

- Por ora, Rosa Maria, não há necessidade de inverter a ordem dos factores sagrados. O nosso filho - os nossos filhos! - devem-nos amor e respeito. Nesta casa vivem e viverão enquanto quiserem, formando connosco o maior núcleo de força existente - o lar. Se a vida no lar se lhes torna insuficiente, ou indesejável, buscam o seu próprio caminho. Podem voltar à fonte, à origem, quando quiserem. Mas nós não devemos segui-los.

- E... se ele precisar de nós? - gemeu a Mãe.

- Que nos chame e então acorreremos. A um grito dum filho responde-se mesmo que se esteja do outro lado do mundo. - e depois duma pausa, acrescentou com amargura: Mas o nosso filho não grita por nós... não é assim, Paulo?

Cabisbaixo, o Paulo assentiu:

- Desgraçadamente, o Pedro está dominado por ideias que não atendem a nada nem a coisa nenhuma! Tem o espírito de tal maneira envenenado, que me proibiu de falar nele aqui.

E tu ?... - perguntou o meu Pai.

Eu não me prendi por nenhum compromisso e por isso falei!

O Fernando Vasco, que principiava a vislumbrar a origem do conflito, repetiu:

Preciso absolutamente de falar com ele!

O Paulo encarou-o.

Não me parece que adiante, Fernando

Vasco. Ele nem a mim ouve...

O Fernando Vasco sorriu.

O que não quer dizer que não aceite as

minhas palavras! Sabes... é que eu tenho comigo o prestígio de quem já conhece o mundo porque tem vivido nele... - e como reparasse no arquear das sobrancelhas do Paulo, sinal inequívoco dum íntimo desagrado, logo acrescentou:- Eu não quero ofender-te, heim?... Mas tu sabes, é que estes anos passados em Paris deram-me um conhecimento enraizado- e pormenorizado de certas coisas que aqui estão tão em princípio que não passam de utopias, aliás perigosas. Em Paris há muito disso, não só entre os jovens franceses que se deixam arrastar por ideias que dão tanto cabo do que poderiam vir a fazer como deles próprios, mas também entre alguns desgraçados que para lá vão convencidos de estarem a caminhar para o paraíso! - e contou:-Um conheci eu, com 22 anos, fugido ao serviço militar...

O meu Pai, num terror que por certo era nele novo e desmedido, indagou:

- Desertor ?

- Refractário. Partiu daqui com passaporte de turista aos 18 anos e não voltou.

- Mas isso é diabólico! Não há nada mais grave na vida dum rapaz.

- Ele sabia-o, mas não se importava. Tinha dinheiro. Os Pais, que julgavam ter assim o filho ao abrigo dos riscos da tropa, mandavam-lhe, através duma firma, uma mensalidade que lhe permitia bastante desafogo. Ele vivia num hotel e acamaradava com a guarda avançada dos comunistas. E depois, um dia... desapareceu!

- Desapareceu ?...

- Completamente. Sem deixar rasto.

- Terá ido para a Rússia?

- Não se soube. Não se soube nada. As malas ficaram no hotel e nunca ninguém foi requisitá-las. Foi como se ele se tivesse submergido no Nada.

Houve um silêncio, pesado de inquietações. Pouco depois o Fernando Vasco prosseguiu:

- Mas há lá outros, muitos deles na miséria, convencidos de que são apóstolos.

- Apóstolos de merda!

Foi a primeira vez na vida que ouvi o meu Pai dizer um palavrão!

E já o Fernando Vasco continuava, inteiramente concordante:

- É isso mesmo, Só Tôr! Uma porcaria, moral e física! Cheiram a degradação; espalham degradação. Causam repulsa e vergonha e em torno deles só há...

Neste instante, abruptamente, o meu Pai interrompeu-o, voltou-se para o Paulo, tenso numa interrogação que dos pés à cabeça o enchia da obrigação de responder com absoluta lealdade.

- Paulo... o Pedro está realmente a pensar em fugir às suas obrigações militares?

E o Paulo, bem a direito:

- Receio bem que sim, Sr. Doutor. depois, resoluto, agarrou num braço do amigo.

- Vem comigo. Vamos procurar o Pedro. Tens realmente de falar com ele.

Deu-me uma vontade imensa de lhe saltar ao pescoço, para num abraço lhe agradecer a decisão que reacendia em nós uma chamazinha de esperança. Impediu-me de o fazer, mais do que a noção das conveniências, o seu ar distante, tão distante...

E agora tudo era movimento à nossa volta. Tal como se um maquinismo partido voltasse a funcionar.

O Pai deu um beijo à Mãe, preparou-se para sair.

- Valha-me Deus, vou chegar tardíssimo ao consultório!...

O Rumané também se levantou, declarando que ia estudar.

A Rosinha-Mãe, exausta, disse que ia voltar a deitar-se.

O Paulo, no limiar da saleta, esperava que o Fernando Vasco acabasse as despedidas.

E este, ao estender-me a mão, exclamou:

- Eh, pequena, sempre sou muito distraído! Imagina que te trouxe um presente e ia-me embora sem to dar! -e tirou duma das algibeiras do casaco uma caixinha minúscula que me entregou. - Toma. É para fazeres um anel.

com o coração aos pulos, abri a caixinha. Dentro dela, aninhada em algodão preto... uma pedra vermelha. Um rubi!

Um rubi enorme, maravilhoso, resplandecente, com o ar quase lendário das pedras preciosas dos livros de Salgari de que eu aos doze anos era o mais possível fã!...

Assombrada, a olhar o meu rubi, não podia nem sequer agradecer!

O meu Pai, aproximando-se para ver o que havia na caixinha, murmurou, também estupefacto:

- Mas isto vale uma fortuna! - e logo censurou o Fernando Vasco. - Ó rapaz, que disparate! Uma pedra destas custou um dinheirão, mesmo lá na terra delas.

O Fernando Vasco riu - tão bonito que ele é a rir!...

- Desculpe, Só Tôr, eu não me quero dar ares de grandeza... mas a verdade é que este rubi não me custou nada! Só tive de escolhê-lo numa taça que o Ma-hur me pôs na frente para eu de dentro dela tirar o que quisesse...- e ante o nosso pasmo, concluiu: Para a minha Mãe trouxe uma esmeralda ainda maior que este rubi. E trouxe também uma porção de pérolas, autênticas, lindíssimas... Creio que o meu Pai, e o Só Tôr, e o Pedro, e o Paulo, vão todos ter pérolas para as gravatas...- e sorrindo para a minha Mãe: - E as maiores que lá houver hão-de ser para a S'Dona Rosinha fazer uns brincos!

E foi-se embora, com o Paulo, ambos seguidos pelo meu Pai.

Em nossa casa tudo está sossegado, agora.

Tudo... menos eu!

Porque, quando dei por mim, estava aos beijos ao meu rubi e a dançar com ele muito apertado ao coração.

Já tenho uma pedra preciosa!

Preciosíssima!...

E no meio de tudo isto vem a professora de organização embirrar comigo.

Embirrar?!... Embirrar é pouco! Não há palavras que me cheguem para classificar o que hoje sucedeu na aula.

Sinto-me efervescente, doida, com vontade de chorar, a lembrar-me duma pobre Ana Maria catraia de onze ou doze anos que teve uma vez um problema parecido com este... E embora o de então já fosse bastante injusto, não adquiriu um aspecto tão selvagem como o de hoje. Selvagem, é o termo!

Entrei na sala normalmente, serena em relação à vida do liceu. Nunca me passou pela cabeça que fosse acontecer algo de extraordinário. E no entanto, mal subiu ao estrado, a Dr. D. Maria Baptista logo tirou da sua elegante pasta de cabedal castanho o monte de papéis que significava a entrega dos pontos.

A organização não mete medo a ninguém. Por isso as raparigas, num cochicho breve, esperavam as classificações que, se não brilhantes, pelo menos deviam safá-las...

Eu não esperava nada. E não esperava nada porque se tratava do tal ponto a que não comparecera por incapacidade física e a conselho da minha Mãe.

A professora começou a dolorosa entrega.

É verdade, dolorosa. Precisamente, a mais dolorosa de todo o ano, na disciplina que não mete medo a ninguém!

Vinte e duas negativas!... Vinte e duas negativas numa turma de 43 raparigas, não é nada mau...

Começaram então os protestos e as lágrimas. Raparigas de 16, 17, 18 e 19 anos, estavam a portar-se como miúdas...

O que é que podia ter acontecido, para semelhante e tão inesperado desastre?

Eu, intrigada com o facto, mas calma (ainda bem que faltara ao ponto!), continuava a assistir.

Saíram os pontos regulares, com as melhores da turma sem irem além dos Suficientes+...

E foi então que o inacreditável sucedeu.

A Dr. D. Maria Baptista cruzou os braços sobre a secretária e chamou:

- Ana Maria Ferreira de Macedo!... Ana Maria Ferreira de Macedo?!...

Uma chamada, com certeza. Justificava-se. Pus-me de pé, à espera. E a professora:

- Ana Maria Ferreira de Macedo, previno-a de que vou dar-lhe uma nota má no fim do período.

Um sussurro na aula serviu de fundo ao meu Como? transbordante de incompreensão.

- vou dar-lhe uma nota má. Consegui falar.

- Mas porquê, Senhora Doutora?... Tive um bom pequeno no primeiro ponto deste período e um bom mais na chamada... Posso ainda ser chamada outra vez, para confirmar a nota.

- Não tenho que a chamar. Tenho que a julgar pela sua conduta.

- Mas que é que a minha conduta tem de estranho ?

- Não admito a uma aluna que falte a um ponto, senão por doença. Esteve doente?

- Não, Senhora Doutora.

- Então é uma aluna cábula, que não me merece a mínima consideração.

Eu não podia crer no que ouvia! Saí do meu lugar, fui direita ao estrado, com a cara a escaldar, os punhos cerrados e a voz embargada.

- Senhora Doutora... eu... eu tive três pontos antes deste... não faltei a nenhum... e em dois deles já recebi a nota... que subiu em relação às anteriores.

- Não me interessa o rendimento que possa dar nas outras disciplinas, mas sim o que dá na minha. A menina não veio ao ponto porque não estava preparada.

- É verdade, Senhora Doutora, não estava preparada. Mas posso ter tido razões particulares e fortíssimas para que tal acontecesse!

- As suas razões particulares e fortíssimas não são comigo.

Fiquei boquiaberta, sem atinar com a resposta adequada. E ela:

- Vá para o seu lugar. Já perdi tempo demais consigo.

E eu, numa explosão.

- Minha senhora, eu sou uma aluna de quadro de honra!...

- Pois talvez deixe de ser!

- Oh, não!... - e não me contive. - Que lucra em ser tão... (não disse má - parei a tempo) injusta?

- Quer ser expulsa ?

O meu nome, numa súplica ciciada, ecoou atrás de mim, dito pela maioria das minhas colegas que pressentiam o perigo e, conquanto indignadas com tudo o que estava a suceder, procuravam deter-me antes que o mal fosse pior.

- Ana Maria, Ana Maria, Ana Maria, Ana Maria...

Sim, eu tinha de dominar-me, de não arranjar mais complicações, mais aborrecimentos...

Voltei para o meu lugar. Não ouvi uma única das palavras que a Dr. D. Maria Baptista pronunciou durante o resto do tempo. Não levantei a cabeça do papel que no fim vi que enchera de gradinhas e mais gradinhas. Saí da aula sem prestar atenção às minhas colegas que vinham atrás de mim, para me consolarem, para trocarem impressões comigo.

Tinha tomado uma decisão e caminhava direita ao meu objectivo.

- Onde é que a menina vai?

Mal consigo suster o gesto que me leva a afastar quem me detém os passos - a contínua. - vou falar com a senhora Reitora!

- Não sei se a senhora Reitora pode recebê-la.

- Tem de poder. É uma coisa muito importante!...

...E a senhora Reitora ouve-me, com atenção; interroga-me, creio que passa por cima das explicações que tento dar mas a que os soluços que já não consigo reprimir roubam muito da necessária justeza.

Quando por fim a senhora Reitora me percebe e percebe que apenas lhe digo a verdade

- "pode perguntar a qualquer uma das minhas colegas, senhora Reitora!" - levanta-se, abeira-se de mim, faz-me uma festa nos cabelos.

- Sossega, minha filha! Ninguém te faz mal.

- Eu não mereço, pois não?

- Tu não mereces!-e creio que nunca mais esquecerei o desabafo que lhe oiço e que me acalenta ainda e há-de acalentar daqui para o futuro, sempre, assim o espero. - Se nós exigimos aos que aprendem o rigoroso cumprimento das suas obrigações, mais temos de o exigir aos que ensinam, porque quem ensina é como quem manda, nunca deve espalhar à sua volta as sementes que os maus exemplos geram! - e depois: - Descansa, eu vou falar com a Dr.a D. Maria Baptista. No entanto, peço-te, a ti e a todas as outras, paciência para ela. Paciência e generosidade!

Sinto que os meus olhos estão, não a pedir, mas a exigir uma explicação!...

- Eu sei perfeitamente que tanto os professores como os alunos, ao transporem a porta da sala de aulas, devem deixar fora dela todos os seus problemas pessoais. Mas às vezes esses problemas são tão graves que a criatura não consegue livrar-se deles...

Intimamente, concordo. Se concordo!... E continuo a ouvir:

- A Dr.a D. Maria Baptista está a ser vítima duma coisa atroz. Depois de vários anos duma existência conjugal perturbada por constantes desavenças, o marido deixou-a... trocou-a por uma rapariga qualquer, parece que bastante nova.

Começo a perceber.

E a minha querida Reitora prossegue:

- Daí o seu destrambelhamento...

- ...a espécie de ódio que ela nos tem?

- Talvez.

Ergo o rosto, dou um beijo à senhora Reitora.

- Obrigada por me ter contado isso. Assim, é mais fácil perdoar.

A senhora Reitora sorri.

- Embora seja menos valioso...

Passa-me o braço pela cintura, a reconduzir-me até à porta. Pergunto:

- Senhora Reitora, posso contar isto às minhas colegas?

- Pensas que elas são capazes de perceber, todas?...

- Não posso afirmá-lo.

- Então não contes nada.

- Sempre as ajudava a ter calma...

- E se uma palavra imprudente desta ou daquela, menos compreensiva, agravasse a situação?

Calo-me.

E a nossa Reitora conclui:

- Acho preferível que ela as hostilize por instinto, sem quaisquer razões, só porque a vida lhe pisou o coração. Quanto ao resto... eu cá estou para tomar conta de tudo. vou falar com ela, chamá-la à razão. Tenho a certeza de que nada do que sucedeu hoje se repetirá. Confia em mim. - e antes de fechar a porta nas minhas costas:-Diz às pequenas todas que confiem em mim. As que merecerem a média, tê-la-ão!

Pois não é tão consolador poder acreditar na justiça?

Quando cheguei a casa, esta tarde, vinda da lição de alemão, (é verdade, parece que ainda não disse que ando desde o princípio do ano a estudar alemão) encontrei o Paulo a conversar com a minha Mãe no quarto dela.

Beijei a minha querida, sentei-me na beirinha da cama, a afagá-la.

- Não te sentes pior, não, Rosinha?

- Não, filha.

- Até está melhor... - disse o Paulo com tão evidente intenção que eu lhe perguntei, numa esperança:

- Há notícias do Pedro?

- Sim, há notícias do Pedro. - e olhou-me a direito. - Mas talvez prefiras ouvi-las da boca do Fernando Vasco. Ele não deve demorar-se.

E a minha Mãe:

- Telefonou-me há bocado, o Fernando Vasco. Convidei-o para vir jantar connosco, mais o Paulo. - e sorriu-me. - A propósito; se quiseres ir dar uma volta pela sala de jantar... A Laura sabe perfeitamente tratar de tudo, mas em todo o caso um olhar supervisor é sempre aconselhável...-e para o Paulo: A Ana está na idade de começar a aprender a ser dona de casa. São coisas que fazem sempre falta às raparigas. Como que as completa!

Saí sem olhar para trás.

É preciso que eu o confesse a mim mesma sinto-me dorida pelo sofrimento que estou a causar ao Paulo. Mas não posso fazer nada. Não posso fazer nada porque toda eu me dirijo, como se um hausto me sorvesse, para o Fernando Vasco, para aquele que o Fernando Vasco é, para o sorriso do Fernando Vasco, para a vida que o Fernando Vasco representa.

A vida que ele representa?!

Se eu conseguisse ler claro dentro de mim mesma! E perceber! E saber!...

Será mesmo o Fernando Vasco que me atrai... ou o que me atrai é precisamente essa

vida que se afigura a antítese da que o Paulo pode oferecer-me? Detesto a monotonia tanto como detesto a mediocridade. Sonho com o movimento trepidante duma existência preenchida por ideias porventura fantásticas mas possíveis de alcançar fora daqui!...

Paris, o cinema, as grandes vedetas, as galas, as viagens, o mundo... - tudo pelo braço do Fernando Vasco, em contraste com a calma, a ventura burguesa, a vida igual em cada mês, a vida estabilizada e simples ao lado do Paulo...

Fecho-me no quarto de banho, olho-me ao espelho, pergunto-me: "uma vida igual à da tua Mãe, acha-la má? Não a queres, Ana Maria?"

Eu sei lá o que quero! Eu sei lá!...

Lavo a cara, procuro arranjar-me para ficar pelo menos tão atraente como na tarde em que fui ao Chá dançante das Faculdades. Visto o meu vestido verde... penteio-me o melhor que posso...

Reconheço que não estou feia de todo... e contudo há no meu rosto uma expressão que me desfavorece. Sim, eu sei o que é. Ê a inquietação !...

Tenho de me resignar a ser como estou.

Oiço a campainha da porta e lembro-me de que ainda não fiz o que a Mãezinha me pediu.

Meu Deus, parece que começo a tornar-me egoísta!...

E vou a correr para a sala de jantar.

Duas mãos agarram-me pelas costas e qualquer coisa de sedoso me toca na face.

- Fernando Vasco!...

Ele abraça-me.

Eu quero pensar que este abraço não significa nada, ou se significa alguma coisa é demais para o que eu devo aceitar.

Mas não tento soltar-me e apoio a cabeça no peito dele.

- Oh, Fernando Vasco!... Ele diz-me:

- Estás realmente crescida, Ana!... Estás uma rapariga que eu não conheço!... Precisamos de conversar, sabes? Precisamos de estabelecer contacto, de reavivar a nossa amizade!

Assim como me abraçou, assim me larga.

-Vamos sentar-nos a falar?... Contas-me o que fazes, o que pensas, o que sonhas...

O que faço, é nada.

O que penso e o que sonho ?!...

Sim, o que penso e o que sonho são imenso, são tudo... Mas eu posso lá contar o que penso e o que sonho!

Consigo reagir, esquivar-me, num súbito medo de estar a cometer uma verdadeira loucura.

- Espera!... Logo, logo conversamos! Agora tenho de ir fazer uma coisa que a Mãe mandou.

- Mas logo é tarde. A seguir ao jantar tenho de sair. Esperam-me na televisão, por causa duma entrevista. Constou que eu tinha chegado, percebes? - e ri. - Estou um rapaz célebre, não é, Anita?

Sim... um rapaz célebre!... Jacques Bertrand!...

Entro na sala de jantar.

Estou tão nervosa que a Laura, que anda a acabar de pôr a mesa, repara que as minhas mãos tremem ao endireitar os talheres (quando será que ela aprende a pô-los direitos como a Mãezinha gosta?):

- A menina não se sente bem ?

- Porquê? - replico.

- Tem as mãos a tremer! Está com frio?

- Não, que ideia... - mas a tremura acentua-se quando a voz do Paulo soa mesmo rente a mim, numa frase que é como uma carícia e no entanto me sobressalta.

- Não, Ana Maria, não estejas nervosa .. Se eu pudesse escapar-me, evitá-lo!...

Se a Laura não saísse daqui!...

Mas a Laura já saiu, foi por certo buscar qualquer coisa que falta e eu não tenho maneira de me esquivar sem me tornar incorrecta, dura, grotesca.

Resta-me negar a evidência.

- Eu... eu não estou nervosa, Paulo!

Ele contempla-me com um olhar impressionante - um olhar que me faz lembrar o melhor olhar do mundo, o do meu Pai quando deseja para nós, os seus filhos, o supremo bem onde quer que ele esteja e custe o que custar alcançá-lo (o olhar do Homem quando atinge esta profundidade certamente não tem paralelo no mundo). E insiste:

- Estás nervosa, sim, Ana Maria... e talvez tivesses razão para isso se eu não fosse como sou. Já percebi muita coisa... Peço-te desculpa, Ana. Eu não sabia.

- Mas...

Ele não deixa que eu o interrompa.

- Minha querida Ana, se um de nós dois tiver de sofrer, esse um de nós dois serei eu. Tu, nunca!...Não quero que sofras, entendes? Por nada, e por mim muito menos. Não há problemas. Gosto de ti, suponho que vou gostar de ti até ao fim da vida. Mas serei feliz se tu fores feliz. Porque é a única coisa que exijo, Ana! É que aquele que te levar de mim saiba quanto vales e quanto mereces! Porque se falhar e eu o souber... creio que o odiarei ao ponto de desejar que esse alguém, seja quem for, pague cada lágrima tua com um gemido de dor!

Desejava suplicar-lhe que não pensasse assim, que esquecesse, que perdoasse desde já o que precisasse de vir a ser perdoado... Mas não posso nada... nada a não ser desatar a soluçar!

E da porta, o Fernando Vasco, que acaba de entrar, pergunta num tom de simplicidade total:

?-Porque é que a Ana está a chorar?

O Paulo olha-o extremamente sereno.

- A Ana tem preocupações demais para a idade dela. Precisamos de a aliviar do peso de quantas não forem absolutamente pessoais.

A Rosinha-Mãe surge atrás do Fernando Vasco e eu, recuando, volto-me a tempo de ela não ver as minhas lágrimas.

Sim, é que se eu-estou sobrecarregada... a minha Mãe ainda o está muito mais!

Que diferença, entre este jantar de hoje e os antigos, tão alegres, tão prazenteiros, em que todos nós vivíamos uma hora de satisfação completa!

Oh, meu Deus, porque é que as pessoas hão-de complicar tanto a existência, porquê?

Porquê ?

O Fernando Vasco era sem dúvida aquele que mais procurava aliviar o ambiente, contando mil coisas, evocando factos, descrevendo projectos.

Factos e projectos!...

Factos.

Um jantar com a Brigitte Bardot; um cocktail famoso em que ele encontrou, levado pela mão protectora da Simone Mignonet, entre outros: o Carlo Ponti, a Sofia Loren, a Soraya, a Claudia Cardinale, a Myléne Demortgeot, o Curd Jurgens, o Jean Paul Belmondo, etc.,

etc ; uma estreia sensacional no Olympia,

com gente de sangue real a assistir e menos elegantes alguns do que certos ídolos do palco e da tela; uma viagem a Monte Carlo para assistir à primeira exibição do seu quarto filme, levado em grande gala a favor da Cruz Vermelha Monegasca, de que a princesa Grace é a distintíssima Presidente.

Projectos?

A próxima estreia em Londres desse mesmo filme (constava que em Lisboa fora inexplicavelmente proibido pela censura, disse). E bailes, e recepções...

- No meio disto tudo, como é que arranjas tempo para trabalhar?

A pergunta, que andava no ar, saíra da boca do Paulo enquanto o Rumané, de olhos arregalados para aquele "monstro" que fora tão de trazer por casa, se esquecia de comer...

O Fernando Vasco lançou ao nosso comum amigo um olhar que de relance me pareceu algo desdenhoso.

- Mas, meu caro Paulo, tudo isto faz parte da minha profissão!

E continuou a falar dos seus projectos.

Um novo filme, com a Michèle Morgan; uma série de programas na radiotelevisão francesa; um possível contrato para a Itália; e, ao longe, uma vaga possibilidade de ir à América...

- Enfim, - disse a minha Mãe, - estás célebre e com certeza rico...

E ele:

- A caminho das duas coisas, S'Dona Rosinha, só a caminho, por enquanto!

Discutiram-se depois as razões que tinham exigido a troca do nome português pelo nome francês fácil de dizer, fácil de decorar - Jacques Bertrand! Aliás os franceses, nisso como em muitas outras coisas, são muito egocentristas. Gostam imenso de chamar a si aquilo que lhes interessa que seja deles.

Foi nessa altura que a Mãe sugeriu:

- Ainda um dia pensas em adquirir a nacionalidade francesa, não?

Mas, com vivacidade, o Fernando Vasco disse imediatamente que não!

- Não tenciono! Até porque para um dia, mais tarde, tenho ideias acerca do panorama nacional, no que diz respeito ao cinema, claro!

Então o Paulo inquiriu:

- É verdade, e com a tropa, como é que fizeste ?

- Obtive um adiamento através do nosso consulado, provando que eu estava de facto a trabalhar. E dentro de dias vou aqui apresentar-me, espontaneamente.

- E se te apuram ?

Fernando Vasco teve um trejeito de indecisão.

- bom, para a minha carreira não era lá grande coisa. Contudo, é possível que me livrem.

-Porquê?

- É que sou como o pavão... - e riu.- Tenho uns pés horríveis, chatos!...

- Tens os pés chatos?

- Chatíssimos!... E só em França é que o soube, quando me queixei de dores enormes nos pés depois de ter feito uma corrida durante umas filmagens.

- Nunca tinhas sentido nada, antes? - perguntou a minha Mãe.

- bom, eu nunca gostei de andar. Talvez porque me cansava, ou porque os pés me incomodavam... Não sei ao certo, nunca me detive a observar o caso. Hoje penso que a minha fobia aos longos passeios higiénicos me vinha da dificuldade em andar, à qual eu me afizera desde sempre, claro!

O Paulo voltou ao assunto da tropa.

- No entanto, essa coisa dos pés não deve ser suficiente para que te isentem. Podes ser útil em trabalhos de várias ordens...

- Eu sei! - retorquiu o Fernando Vasco. Eu sei, e se assim for cumprirei o meu dever. Em França, como cá, respeitam-se os que servem a Pátria.

- Em toda a parte se respeita os que servem a Pátria. - disse eu, irresistivelmente.

Não sei se o Fernando Vasco deu pelo meu comentário, porque ele continuou a falar, como se quisesse que o Paulo não tivesse quaisquer dúvidas acerca das suas resoluções.

- Saberei suportar as dificuldades como qualquer outro. Não sou nem mais nem menos do que eles. Portanto tenho os mesmos direitos e os mesmos deveres!

Confesso que me senti tão orgulhosa como se aquela declaração fosse feita por mim! Se um pouco de toleima, talvez até de basófia, se pode ter notado nas anteriores declarações do Fernando Vasco, ele redimiu-se assim e inteiramente do seu pecadilho aliás justificado...

No entanto, o Paulo não se deu por vencido. E indagou:

- Tencionas fazer essa declaração oficialmente, nas tuas próximas entrevistas?

O Fernando Vasco encarou-o.

- Eu não tenciono senão responder com lisura às perguntas que me fizerem...

E agora, enfim, sou eu que pergunto ao Fernando Vasco, depois de ele me falar do Pedro, de me dizer que o meu Irmão está menos mal de saúde mas num tal estado de espirito que não quer nem ouvir a mais pequena referência a nós:

- Ouve lá, Fernando Vasco... e como é?

- Como é a que respeito, Ana Maria?

- Eu sei que os meus Pais andam aterrados com medo que ele ainda esteja a pensar em fugir...

- Não, Ana. Agora o Pedro já não foge!

- Tens a certeza? Ou tens apenas a tua convicção?

O Fernando Vasco hesita.

- bom... tenho a minha convicção. Mas firme!... Porque o Pedro não é mau. Anda... anda perturbado, apenas.

Não me conformo.

- Mas perturbado porquê, afinal ? - e explico o que penso. - Eu sei que há rapazes, e até mesmo raparigas, que têm razões de sobra para se sentirem desnorteados, perdidos, tomados presas fáceis de ideias nocivas e de maus exemplos. Mas o Pedro?... O Pedro é como eu, como o Rumané!... Nunca nos faltou nada! Nem amor, nem conselhos, nem princípios, nem bem-estar, nem apoio, nem compreensão...

- Há coisas muito difíceis de entender, realmente! Tão difíceis que é por isso mesmo que ele anda mergulhado em confusão... Puro como o Pedro é - sim, que o teu irmão é puro! - torna-se num terreno propício a receber uma sementeira de ideias que de começo se apresentam convincentes, tentadoras... Agora, no fundo autêntico do seu carácter, tudo o que de novo recebeu ultimamente luta com quanto na verdade o constitui... Anda o lodo a querer infiltrar-se no granito, percebes?

- Percebo.

- E é isso o que o traz neste estado. Pergunto:

- E porque é que ele não volta para casa?

- Já te disse que não quer ouvir falar em nenhum de vós. Não sei se por revolta... se por falta de coragem.

- E... e se eu fosse procurá-lo?

- Não me parece aconselhável.

- Porquê ?

- Porque o mal está nele e é preciso que sozinho descubra onde está a verdade, ou melhor, qual deve ser o seu caminho.

- E o curso?

- Creio que, por agora, não pensa continuar os estudos.

- Não pensa ? - e foge-me da boca uma exclamação. - Coitados dos meus Pais!

O Fernando Vasco prossegue:

- Sabes, o ano está perdido e ele acha que não deve agarrar-se a uma coisa tornada inútil.

- Que ele tornou inútil. - corrijo.

- Aliás, não foi só com os estudos que ele cortou! Até a ideia do automóvel pôs de parte, vê tu! Tinha o exame já marcado e não o aproveitou.

- Que desgraça!

- Neste momento, Ana, o Pedro anda à deriva dentro de si próprio. É como uma pessoa mergulhada no mais cerrado nevoeiro. Não distingue nada, não percebe nada, tudo se volve inútil e perigoso à sua volta.

- Achas que ele nem a noção do perigo tem?. Há um pequeno silêncio. E só depois vem a resposta.

- Acho que o Pedro neste momento não vive. E como não vive, não sabe coisa alguma.

- E quem lhe vale?

- Ninguém, porque ele se tornou indiferente a todos os socorros.

Sinto que os olhos se me enchem de lágrimas.

- Mas como pode ele subsistir assim, como? Quem é que o sustenta? Onde é que ele está?

- Está no quarto dum companheiro. Quanto a comer... penso que ele nem sente a fome!

Oh, meu irmão, meu irmão, tu sofres e eu não sei como valer-te!

Até quando irá isto durar?

Os dias passam.

O Fernando Vasco tem continuado a procurar o Pedro, embora sem quaisquer resultados. E no entanto o meu Pai agarra-se a uma esperança, surda mas potente.

- Quem sabe? Talvez tudo isto seja... seja aquela fase do torpor que sucede ao fim do pesadelo...

Olha-nos, a mim e à Mãe, na ânsia de encontrar o eco do que pensa. Mas nenhuma de nós tem coragem de esperar o que não há forma de chegar.

E o Pai, que mais estraga o que tem no prato do que come - está tão magro e com tão mau parecer, o nosso querido! - prossegue:

- Vocês não acham que talvez um remorso... ou um reajustamento de ideias, o possa ter arrastado para esta situação de renúncia a tudo? Quem sabe se no fundo ele quererá voltar... e não se atreve?

A Mãe, na sua dor já incontrolada, não pode reprimir um soluço.

O Pai estende as mãos por cima da mesa, pega nas dela, estreita-lhas carinhosamente.

- Pobre, pobre Rosinha-Mãe! O que havia de te acontecer!...

Eu penso que não é - Pobre Mãe, mas sim

- Pobres Pais!

É que há Pais que pela falta de assistência que dão aos filhos, pela má construção que dão à família, quase não merecem mais do que o mal que encontram. Mas os meus Pais - os nossos Pais?!...

Estou quase a chorar também e não quero mostrar a minha fraqueza. Não devo.

Não devo!...

De mim para mim, repito - não devo, não devo, não devo...

Mas desato a chorar!

É que na verdade nem sempre a gente consegue obedecer a esta ordem íntima que, se vencesse sempre, com certeza tantos desgostos havia de evitar-nos!

Sim, sim, a maioria das vezes procedemos precisamente ao contrário do que devíamos.

Agora, agora mesmo eu o sinto, eu o reconheço.

O Fernando Vasco e o Paulo estão ambos aqui, à espera que o Pai chegue para irem todos três levar a Arabela ao aeroporto (ela vai-se hoje embora, felizmente!). E ante o meu desalento o Paulo olha-me profundamente, como que a suplicar-me que não perca a coragem, que não perca a fé... E eu, reconhecendo a afeição que ele me dedica, no infinito desejo impossível de me livrar de males e dores, só quero fitar e ouvir o Fernando Vasco, o Fernando Vasco que me distrai e prende a contar coisas e mais coisas agradáveis que lhe têm acontecido, que têm acontecido a esse Jacques Bertrand em que ele se torna assim que sai da nossa casa...

Que hei-de fazer?

Não posso aprofundar agora o assunto. O Pai acaba de entrar, esbaforido porque chega atrasado - e para chegar atrasado teve de interromper a sua consulta normal, que todos os dias decorre das quatro em diante.

- O avião parte às 18 e 42... Creio que não temos tempo a perder... - sorri para os dois rapazes que não quiseram que ele fosse sozinho despachar a Arabela, confessando ambos que temiam que ela no trajecto, apanhando o Pai ao volante, o arranhasse com as suas unhas de pantera. - Ela terá tudo pronto?

Sou eu que respondo.

- Pelo menos a mala está no quarto das nossas criadas desde o almoço.

- bom, deixa-me então ir buscar a fera. Sinto curiosidade em vê-la. A Arabela, que

tem vivido fechada no quarto desde há dez dias, depois de ciente da sua partida, nunca mais quis comer à mesa connosco, embora devore quanto a Laura lhe leva num tabuleiro onde nada falta.

A Mãe aparece. Embora o Pai procure cada vez mais impedi-la de fazer o que quer que seja, a Mãe insiste em despedir-se da Arabela.

Compreendo perfeitamente o que o seu coração extremoso sente. Aflige-a a estranha e gélida situação desta rapariga que tem como qualquer outra, como todos nós, o mais elementar direito à felicidade e que avança de olhos tapados para um abismo a que se não descobre o fundo.

Ao pensar nisto, apetece-me também lamentá-la.

Que vai ser desta infeliz que assim desprezou tudo quanto lhe garantíamos, dentro dos possiveis, claro?!

A Arabela, de casaco aos quadrados amarelos e pretos, boina de cabedal preta e a mala de alumínio na mão (tudo comprado pelos meus Pais, já se vê), surge no limiar da saleta com o ar mais indiferente do mundo e estende a mão (a mão!) à minha Mãe, sem calor, sem nada... e depois, numa voz irónica diz para mim:

- Adeus! E sê feliz à tua maneira... dentro desta gaiola!

Vejo-a sair e não me mexo. O meu Pai, o Fernando Vasco e o Paulo vão atrás dela, eu sei que como uma escolta, ela talvez a pensar que como guardiões.

A porta da rua bate. O elevador ruge.

Toda a pena que eu tive dela durante momentos morreu.

E lanço-me nos braços da minha Mãe, a soluçar:

- Oh, Mãezinha, Mãezinha, e fui eu que a trouxe para aqui! Desculpa-me... eu não podia adivinhar!

Tento reconstituir tudo o que o Pai nos contou quando, já perto das onze horas da noite, ainda com duas chamadas para atender (é heróico, ser médico, quando o homem cheio de problemas e dores tem de esquecer o que sofre para acudir ao sofrimento dos outros) chegou a casa para jantar.

- Então? - perguntou a minha Mãe, cujas olheiras estão cada vez mais fundas em volta dos imensos olhos dolorosos.

O Pai beijou-nos a ambas, quis saber se o Rumané já estava a dormir (há que tempos!) e só depois, diante das torradas e do leite em que não tocou, disse, com um ar nervosíssimo que logo de início me pôs de sobreaviso.

- bom, a estas horas... a pequena deve estar a chegar ao pé do Pai!...

A Mãezinha suspirou:

- Coitada dela! Oxalá possa ser feliz!

- Feliz como, Rosa Maria? Para se ser feliz há que ter um conceito de felicidade.

- Pensas que ela de facto não sabe o que quer?

- Penso que é uma criatura perdida para tudo o que é bom e útil, logo perdida para ela própria.

- Talvez o Pai consiga deitar-lhe a mão, ampará-la...

- Penso, pelo que conseguimos apurar acerca da vida daquela gente, que os princípios do Pai não vão levá-lo a preocupar-se com a parte moral da existência da filha.

- Em todo o caso, Rui Manuel, mostrou agora que se interessava por ela! Respondeu-te, mandou-a ir...

- Há laços que não se desatam facilmente na espécie humana... mas afrouxam tanto, tanto!... - e olhando alternadamente para mim e para a Mãezinha: - Vocês repararam que a Arabela não voltou a falar na Mãe?

- É verdade, sim! - respondeu a Mãezinha.

- Nunca mais mostrou qualquer interesse em saber o que fora feito da desgraçada da criatura !...

O Pai, começando enfim a beber o seu leite, disse:

- Durante o trajecto daqui até ao aeroporto, para a experimentar, perguntei-lhe se não queria ir dar à Mãe um abraço de despedida.

- E ela?

- Respondeu-me que a Mãe não lhe interessava, que era como se nunca tivesse existido.

- Pobre mulher!-murmurou a Rosinha-Mãe - Abandonada pelo marido, abandonada pela filha... É horrível!

O Pai continuou:

- Fiquei tão impressionado por causa disso mesmo que não resisti... E mal cheguei ao consultório telefonei para o Hospital.

- E que soubeste ?

- Falei com o meu colega de serviço. A desventurada não deve ir longe.

- Está completamente louca?

- Irrecuperavelmente! E além disso com uma doença gravíssima a miná-la... A morte não tardará em dar-lhe o golpe de misericórdia.

Durante momentos reinou o silêncio. A Laura perguntou da porta se já podia levar para dentro o tabuleiro do Senhor Doutor. A Mãe disse que não e o Pai que sim.

- Leva! - ordenou.-Não me apetece mais nada.

- Mas não podes ficar assim, Rui Manuel! Não almoçaste, agora não comes, depois dum dia de trabalho...

- Bebo mais um copo de leite, durante a noite, se mo deixarem à cabeceira.

A Laura declarou que ia tratar disso, retirou o tabuleiro, perguntou se não era preciso mais nada - "não, podes ir deitar-te" - e ficámos sós com o pensamento que não nos largava.

E foi a Mãe quem de novo o agitou:

- Rui Manuel, sabes o que pergunto a mim mesma?... A... a Arabela não atingiria este extremo de insensibilidade por ter chegado também a um extremo de sofrimento?

- Em que sentido e porquê, Rosinha ?

- Bem vês, no fundo de si própria, talvez até inconscientemente reconhecendo o mal da sua atracção para o Mal, ela pode responsabilizar a infeliz que não foi capaz de desempenhar-se da sua missão de Mãe.

- Sim, é possível que assim seja... - aquiesceu o Pai. - De qualquer maneira, porém, nós não podemos fazer nada... mas absolutamente nada, neste caso, e por isso vamos reagir, pôr ponto final nas preocupações que nos deu, e voltarmos toda a nossa atenção para outras coisas, coisas que precisam de nós...-e então, de chofre, com um brilho profundo nos olhos (um brilho que eu já notara mas de que não podia imaginar a origem) exclamou: - Minha querida Rosa Maria, estive com o Pedro!...

A Mãe soergueu-se na cadeira, com as mãos estendidas para a frente, como se quisesse agarrar ao menos o nome do filho.

Eu tive ao mesmo tempo vontade de rir, de chorar, de gritar e de cantar!... Sei lá bem o que foi que me apeteceu fazer!...

O Pai esteve com o Pedro?!... Meu Deus, se o Pai e o Pedro caiem nos braços um do outro, o Pedro volta a ser o Pedro, o nosso Pedro, o Pedro de quem eu tenho tantas saudades, tantas!...

A Mãe, já outra vez sentada, recostada mesmo, como se lhe fosse difícil suportar o peso da emoção, inquiriu:

- Onde? Como?

- Estava no aeroporto, ao pé do gradeamento, a ver o avião descolar.

- Não te evitou? Não te fugiu?

- Não. Creio que esperava o que de facto aconteceu.

- Foste ter com ele?

- Fui ter com ele.

- E então? Como está o nosso filho?

O Pai tirou um cigarro do maço. O isqueiro não queria dar lume, primeiro. Depois a pequena chama trémula não acertava com o cigarro.

- Como está o nosso filho ?!... Muito magro, muito desfigurado, inteiramente desprezível. O fato, sujo e amachucado; a camisa, esgarçada; a barba grande... e uns olhos de desorientado que é impossível fitar.

- Porque é que não o trouxeste contigo para casa?

- Não lhe falei nisso, sequer. -: Porquê ?

- Achei preferível não precipitar os acontecimentos.

- Julgas que se esquivaria a voltar ?

- Não sei. Não sei!

- Mas acreditas que ele te dissesse que não vinha? Pensas que nos pôs à margem da sua vida?

- Não, minha Rosa. De maneira nenhuma, pelo contrário.

- Pelo contrário? - e a Mãe impacientou-se. - Mas fala, Rui Manuel, pelo amor de Deus, explica-te!

Devagarinho, como se pesasse o sentido exacto de cada palavra antes de a proferir, o meu Pai disse:

- O que eu penso, Rosa Maria, é que o nosso filho está no início da convalescença duma doença terrível... Há que deixá-lo recuperar forças lentamente; há que esperar que o seu organismo atravesse este período em que as recaídas são fáceis e perigosíssimas. Sabes tu, querida? Ele tem a perfeita consciência da crise que está a atravessar.

- Conversaram muito?

- Sim, Rosa Maria. Tanto que regressei ao consultório mais tarde do que previa. A Maria da Glória e alguns clientes já se preparavam para irem procurar-me nos Hospitais e na Polícia, convencidos de que tinha tido um desastre... Não podiam supor que eu estava apenas no restaurante do aeroporto a auscultar o espírito do meu filho, a procurar desesperadamente saber o que devo e posso fazer por ele para o salvar.

- E tens esperanças?

- Sim, tenho esperanças. O Pedro é muito bom, Rosa Maria. Tem um carácter extraordinário e as suas raízes mergulham todas no lar, no ambiente em que foi educado. Dentro dele, tal como num sangue enfermo os glóbulos brancos lutam contra os micróbios invasores, os princípios que lhe incutimos lutam contra as influências nocivas. Creio precisamente que por o Pedro ser tão bom é que ideias novas e perturbadores o dominaram. Ele encheu-se de sonhos duma largueza e duma beleza que não o deixaram perceber as mentiras, os prejuízos, os perigos e as falsidades ocultos nas promessas duma doutrina aliciante quando vista pelo seu lado nobre (todas as doutrinas têm o seu lado nobre, claro!) e traidora e prejudicial na execução, porque visa destruir quanto na verdade não pode nem sequer parar, quanto mais morrer! O Pedro deixou-se arrastar por uma ilusão de fraternidade e igualdade, sem reparar que os que diziam querer iluminá-lo apenas o cegavam, encadeando-o com um archote acendido à força de despeitos, invejas, ódios e cobiças. Quantos rapazes como ele se têm perdido sem remédio só porque a tempo não perceberam a utopia desse bem que acaba por ser o maior mal de toda a humanidade!

- Disseste-lhe isso tudo, Rui Manuel?

- Isto e muito mais.

A Mãe tinha toda a sua vida nos olhos, suspensa.

- E ele? Entendeu-te?

- Penso que sim. Aliás tive a impressão de que havia cordas partidas dentro dele...

- Julgas que a Arabela lhe deixou pena?

- Julgo que sim. Pelo que lhe ouvi, ele amou-a sinceramente, com o seu primeiro amor de homem. E a indiferença com que ela o deixou deve tê-lo magoado, ao mesmo tempo que o esclareceu. Só no instante em que a viu afastar-se sem olhar para trás ele deve ter compreendido que aquela rapariga leviana e revolucionária não merecia as lágrimas que eu ainda vi brilhar-lhe nas faces... Sabes qual foi a última frase que ela lhe disse, ouvida pelos rapazes ?

- Pelo Fernando Vasco e pelo Paulo ?

- Sim.

- Não faço ideia.

- Esta: "E agora vê se não voltas a ser parvo!"

Fugiu-me da boca um comentário.

- Que cretina!...

A minha Mãe atalhou:

- Lamentemo-la, Ana Maria.

- Mas, Mãezinha...

E a Mãe, sem me deixar falar.

- No fim de contas, torna-se bem mais simples lutar por uma vida eficaz donde o bem transborde, donde o bem possa repartir-se buscando quanto, abaixo da vontade de Deus, está apenas ao alcance da vontade das criaturas!

Ficámos calados durante breves instantes. Depois o Pai levantou-se olhando o relógio.

- Meu Deus, já passa da meia-noite e ainda os dois doentes à minha espera! Detesto que isto aconteça!

- Está justificado por uma razão fortíssima.

- Uma razão com a qual eles nada têm, coitados!

A Mãe ia pôr-se de pé, mas o Pai não deixou.

- Daqui... só para a cama. A tua filha vai ajudar-te a deitar.

- vou com certeza, Paizinho!

A Mãe deteve o Pai, prendendo nas dela a mão que se lhe apoiava num ombro.

- E se eu... se eu também fosse falar com ele?

- Tu? Não, Rosa Maria, olha que não! É melhor que ele venha ter contigo...

- Rui, Manuel... pois não achas que a Mãe não deve ficar à espera que o seu filho infeliz a procure?... Não te parece que ao saber que o filho sofre a Mãe deve correr para ele, a ajudá-lo, a ampará-lo, como fazia no tempo em que ele era pequenino? O nosso Pedro caiu, magoou-se... É natural que precise de mim... e eu estou aqui!...

- Escuta, Rosa Maria... tu estás aqui... e estás no teu lugar! O nosso filho já não é pequenino... Caiu, magoou-se... mas tem de levantar-se sozinho e de vir aqui para acabar o tratamento. Sabe o mais importante de tudo: é que estamos sempre à espera dele!

- Mas se eu lhe estendesse a minha mão, talvez fosse mais fácil...

- Não. Não!-e olhando-a a direito nos olhos. - Compreendi perfeitamente quando ele me confessou que precisava de tirar a alma de dentro dele para a estudar por todos os lados.

- O Pedro disse-te isso?

- Disse-me até mais, querida! Quer arranjar um emprego...

- Um emprego ?

- Um emprego bem duro, bem custoso, bem contrário aos seus gostos, às suas aptidões...

- Mas para quê ?

- Para sentir a sua vontade reagir...

- ...numa espécie de expiação, pensas?

- Sim. Numa espécie de expiação... como cilícios na consciência!

Neste instante retiniu o telefone. O Pai precipitou-se para a porta, recomendando-me, ao ver que eu ia levantar o auscultador:

- Ana Maria, se for algum dos doentes que estão à minha espera... acabo de sair!...

Deixei a campainha tocar um pouco mais. E quando por fim atendi, disse a verdade:

- O Sr. Doutor já saiu.

Acabava justamente de ouvir fechar lá em baixo a porta da rua.

Como, Mãezinha, como?

Não entendo, não ouço...

Pode lá ser ?!...

Um convite! ? Um convite para irmos jantar, na maior intimidade, a casa do Fernando Vasco, na próxima quinta-feira... de hoje a três dias...?

- Telefonou a D. Laura a pedir muito que não faltássemos!

Quinta-feira... são os anos dele!...

- O Pai não acha aconselhável que eu vá, claro... E tu... não sei se queres ir.

Se quero ir?...

O coração dá-me um baque. As pontas dos dedos gelam-me. Mas consigo responder, displicentemente:

- Como tu entenderes, Mãezinha.

- É difícil recusar... não há razões... embora eu não goste muito que vás só a uma casa onde há apenas um rapaz.

- Oh, Mãe!... Mas não tem mal nenhum! Sou convidada pelos Pais e somos amigos há tanto tempo!

Só depois de falar percebo que a Mãe o que quis foi ouvir-me, ler nas entrelinhas da minha resposta...

Vi-a sorrir, com certo ar malicioso.

- Foi o que pensei quando disse à D. Laura que sim, que ias com muito gosto...

- Ah... pois, com muito gosto!

com muito gosto, com o maior gosto...- Deus do Céu! - mas com todo o gosto!

Ponto.

Ponto de filosofia.

Olho para as perguntas e as perguntas baralham-se debaixo dos meus olhos, confundem-se, riem e dançam umas com as outras.

Quero responder e não me apetece.

E eu sei. Eu sei tudo o que aqui está. Eu sei tudo isto. Mas não me apetece escrever nada. O meu coração pula-me no peito, travesso como um menino que não obedece a ordens.

A caneta escapa -se-me dos dedos que tamborilam no tampo da carteira.

Como é que eu posso fazer um ponto hoje, hoje que vou jantar com o Fernando Vasco, hoje que enfim posso estar mais tempo ao pé dele, conversar com ele, mostrar enfim o que sou, quem sou... - talvez (quem sabe?) fazê-lo reconhecer que já tenho dezassete anos (faço-os em breve), que estou uma rapariga crescida, capaz de interessar um rapaz com olhos para ver e alma para sentir...

Será assim muito difícil conquistar o Fernando Vasco? Deve ser, habituado como ele está lá fora às vedetas, às estrelas, aos manequins, a todas essas que enxameiam o meio em que ele vive deslumbrantes de beleza e de elegância!...

A beleza e a elegância! Tenho de pensar nelas, tenho de ir o melhor possível...

E às alíneas do ponto continuam a sobrepor-se perguntas dum tremendo interesse.

- Como é que hei-de ir penteada?

- O que é que hei-de levar vestido?

- E sapatos? Que sapatos?

É preciso que eu vá irrepreensível!

Vejo os pés sempre mal calçados da nossa professora, parados junto da minha carteira. Sinto que os seus olhos se apoiam no que não estou a fazer como uma imposição. E à exigência que me domina sucede-se uma outra:

- É preciso que o ponto fique irrepreensível!...

E eu sei, eu sei tudo... Desta vez eu sei!...

Levanto a cabeça, fito a Dr.a Clara Mendes que me encara sem nada dizer mas absolutamente estupefacta.

Afasta-se de mim, com certeza preocupada.

Sim, está preocupada, tão preocupada que volta para trás e, de chofre, pergunta-me:

- Ana Maria de Macedo, a menina está doente ?

Sou verdadeira na réplica.

- Não, Sr.a Doutora.

E neste momento, por mais indignação que o meu Eu possa ressentir pela tarefa que me impede de sonhar, vejo as horas no meu relógio de pulso.

Decorreram já vinte e cinco minutos... Vinte e cinco minutos perdidos para o ponto!

Não posso. Não tenho o direito de proceder assim!

E de súbito, liberta do meu ataque de estupidez - sei perfeitamente que estas idiotices não podem senão ser encaradas como tal por uma pessoa sãzinha de espírito como eu, graças a Deus, .o sou, - começo finalmente a escrever!

Quando tocou e nós nos levantámos para sair, faltavam-me apenas as duas últimas alíneas. bom, entrego um ponto incompleto, mas julgo que certo até onde consegui chegar.

A Dr. Clara Mendes torna a olhar-me com estranheza, ao receber as folhas garatujadas. Sorrio-lhe com toda a simpatia e no fundo muita gratidão, porque a verdade é que aos seus pés sempre mal calçados devo o ter acordado a tempo para o cumprimento do meu dever.

Saímos da aula.

Estou contente porque fui capaz de fazer a minha obrigação e contente porque já posso entregar-me sem peias ao meu sonho!

vou jantar ao pé do Fernando Vasco; vou ouvi-lo, falar com ele, explicar-me... e - quem sabe ? - talvez encontrar-me dentro duma realidade estupenda!

Fernando Vasco - Fernando Vasco - Fernando Vasco - canta tudo em volta de mim, como um carrilhão! E o meu coração, baixinho, ecoa: - Fernando Vasco - Fernando Vasco - Fernando Vasco...

A algazarra que me envolve é um fundo musical a embalar-me, a envolver a toada que me deslumbra. De súbito, duas mãos agarram-me, puxam-me, e duas vozes arrancam-me ao meu mundo.

- Ana Maria!

- Ana Maria, precisamos de ti!

Sou obrigada a parar, a ver, aquém do meu panorama íntimo, os rostos das minhas colegas Marta e Georgina.

- Que é que me querem?

- Falar contigo.

- Amanhã.

- Tem de ser hoje.

- Hoje porquê?

- Porque sim!

A Georgina explica-me, com os belos olhos castanhos a desafiarem-me.

- Ana Maria, precisamos de ti para tratar da nossa excursão do fim do ano!...

- Já escolhemos as organizadoras. - declara a Marta. - Tu estás à frente do grupo.

- És a chefe! - graceja a Georgina.

- Eu?... Mas eu a que propósito?

- A propósito de que consideramos muito a tua formosa cabeça pensante!

Encolho os ombros.

- Está bem, a gente depois vê isso. Acho que podemos perfeitamente falar amanhã!

- Aí é que tu te enganas.! - riposta a Gina.

- É da maior urgência... por causa duns certos projectos... projectos!...

- Mais que projectos!... Já temos o programa elaborado e queremos a tua aprovação! - explica a Marta.

- Ah, vocês já têm o programa feito e agora é que decidem precisar muito-de mim?!... Pois então podem continuar perfeitamente a dispensar-me!

Eu não costumo ser nem agressiva nem embirrenta.

A Marta e a Georgina entreolham-se com um oh de desolação. E depois, precipitadamente, a Marta explica-me:

- ó Anita, não te zangues... Palavra que a coisa nasceu de repente e eu e a Gina resolvemos pô-la em marcha sem mais demoras, quando não, não há tempo!

- Então não parem. A Gina intervém:

- Ó Ana Maria, mas que foi que te deu? Nós estamos a começar! Viemos buscar-te para ires presidir num instante à primeira reunião!

E a Marta, ansiosa por que eu entendesse:

- Nós as duas jantámos ontem juntas... E a conversar uma com a outra tivemos uma ideia que nos pareceu digna de que lutássemos por ela. Assim que aqui chegámos fizemos as convocações que julgamos mais convenientes: a Helena, a Madalena, a Ernestina, a Cristina, a Inês, a Celeste...

- Eu vou na cauda... logo não faço muita falta!...

Elas abrem a boca, pasmam.

- Ana Maria, que bicho é que te mordeu?...

- Ana Maria, tu ficaste para o fim porque ainda não tínhamos podido falar contigo! Além disso fartámo-nos de te fazer sinais, mas tu parece que estavas noutro mundo!...

Noutro mundo?... Sim, noutro mundo... dentro de mim mesma, com os meus sonhos, as minhas esperanças... e as minhas loucuras!...

Fico calada, porque elas têm razão.

E a Marta diz-me:

- Queríamos começar tudo já, porque formámos um plano muito engraçado. Mas para o realizar dispomos de pouco mais dum mês! Por isso agora alinhavávamos as ideias gerais e pedíamos para sermos recebidas pela senhora Reitora, ou logo à tarde ou...

- Logo à tarde, não! - defendo-me.

- Ou amanhã, para sabermos se ela nos autoriza!

A Gina pega-me na mão, implora:

- Vens, Ana?...

Tenho ainda um restinho de vontade de dizer que não... Mas domino-me (é nestas coisas que eu percebo que não sou má rapariga, reconheço a tempo os meus erros e procuro remediá-los).

- bom, toca a ver esses projectos e a começar as escavações!

E rebocada por elas, corro para onde as outras já nos esperam - o enorme ginásio vazio.

Dez mãos agarram-me, puxam-me, empurram-me, felicíssimas.

Rio-me com elas. Tenho de rir. São umas garotas, todas elas, ao pé de mim.

Umas garotas?!...

Não, não são todas tão garotas como isso. Por exemplo a Gina. Eu sei que a Gina tem um grande problema com ela. Contou-mo aliás há dois dias, durante um intervalo das aulas, numa daquelas ocasiões em que as pessoas têm por força de desabafar. bom, aliás o caso conta-se em meia dúzia de palavras. Namora um rapaz mais velho do que ela dez anos, um rapaz que tem estado positivamente à espera que ela cresça para poderem casar. Ao que parece, ele não vê outra coisa. Simplesmente os Pais dela não sonham sequer que a Gina possa ter lugar dentro do coração para outro amor que não o deles. Para a sua maneira de ser, a filha ainda não cresceu nem há-de crescer nunca. Não são capazes de ver nela a mulher. Aos seus olhos, a filha que idolatram ficará para sempre pequenina, uma criança, a sua coisa, a sua propriedade, o supremo bem que ninguém tem o direito de lhes disputar. E a Gina, que adora os Pais, que é feliz junto deles, que só lhes deve ternura, amor e compreensão em todos os outros aspectos da vida, não tem a coragem de lhes dizer: "-Pai, Mãe, eu cresci, hei-de um dia ter a minha casa como vocês dois tiveram a vossa, ter o meu marido para sermos ditosos como vocês dois o são um junto do outro, e um filho, ou vários filhos, para amar como vocês dois me têm amado a mim -". Ela sabe que se lhes falasse assim lhes daria um desgosto tremendo e por isso limita-se a ir namorando às escondidas, cheia de remorsos e de recalcamentos. Eu já lhe disse que ela procede mal e que, mais tarde ou mais cedo, os Pais vão ser obrigados a enfrentar a realidade e entretanto correm o risco de serem despertados em sobressalto para uma situação de qualquer modo bastante desagradável... Que problema!...

Pois é, problemas todos têm e às vezes quando menos se suspeita disso! E não me assiste o direito de pensar que elas são umas garotas só porque neste momento me desafiam entusiasmadas para viver com elas, para vivermos todas juntas, uma fase alegre da nossa vida de raparigas do liceu. Estamos na idade de principiar a tomar contacto com as exigências do que de facto requer de nós lucidez e bom-senso, e energia e calma, e coragem e entusiasmo. Em breve, creio, principiarão as decisões. Os cursos para seguir, os amores para aceitar, os caminhos para escolher. Quantas de nós, também, falharão redondamente e serão desventuradas!...

Solto um Hurrah súbito que sobressalta as minhas colegas. Quero dizer com ele: - Vivamos pois a hora presente que é de alegria e felicidade para todas nós! Meninas, vamos à festa!...

Elas não me percebem.

Não me percebem porque não adivinham, claro está. E também não perdem tempo a investigar. Basta-lhes sentir que estou com elas, por completo!

E dizem-me:

- Estamos a pensar o seguinte...

Não é possível compreender o seguinte, porque falam todas ao mesmo tempo.

- Uma de cada vez! -reclamo. - Ou uma em nome de todas!

- Explica a Marta...-gritam umas cinco das dez presentes.

- Podia explicar eu... - sugere a Ernestina, que gosta muito de se evidenciar em tudo menos nas notas, porque isso exige um esforço grande demais.

- A Marta é mais concisa. - discorda a Celeste. - Acho melhor que seja ela a falar.

- bom, - principia a Marta, - nós pensámos em fazer este ano a nossa excursão da maneira mais agradável... ou seja, uma excursão maior e sem limitações.

- Maior e sem limitações ? - pergunto.

- Sim. Porque tu bem sabes que no sexto ano é costume ir-se sempre perto e há imensas que mesmo assim não comparticipam porque não podem com as despesas. Ora nós queríamos ir mais longe... e levar todas.

- Todo o sexto ano? - pergunto.

- Todo!...

- Puxa!!!... Isso é obra!...

- Pois é.

- E para ir... onde?

- Bem... eu e a Gina falámos em Madrid...

- Madrid?

A Celeste ri-se.

- Depois humildámo-nos mais e sugerimos Sevilha...

- Ai, Sevilha, adeus! - trauteou a Cristina, ao som duma música antiga que está outra vez muito em voga.

Rio-me com elas.

- Esse adeus a Sevilha significa que também não pode ser ?!...

- Nós ainda não temos a certeza... Depende das contas e dos lucros que obtivermos.

- Lucros?...

- Pois, lucros!

- Aí é que está o nosso grande projecto! e a Marta continua: - Seja a Sevilha, ou decidamo-nos pelo Algarve ou pela Serra da Estrela, que são hipóteses a considerar, precisamos de dinheiro bastante a fim de que não fique nenhuma de fora.

- Explica-te lá. - peço.

- A nossa ideia reside no seguinte: fazermos uma grande festa com bilhetes pagos, que as raparigas passem às famílias, aos amigos...

- Isso é fácil! - concordo.

- Também pensamos em ter um bufete com tudo feito nas nossas casas e que será servido por algumas de nós, a fim de conseguirmos verbas de reforço...-diz a Inês.

E eu:

- Vocês estão muito adiantadas em projectos! Nem sei o que podem querer de mim...

- Ó menina, olha que foi tudo idealizado de ontem para hoje! - reafirma a Gina.

E a Cristina:

- É que se tivesse sido há mais tempo onde nós havíamos de ir era à Madeira!

- Mas vamos à Madeira para o ano! exclama a Ernestina. - Começamos a pensar nisso logo em Outubro e...

A Madalena, sempre ponderadíssima, interrompe-a:

- Ó menina, cada coisa no seu lugar! Se não nos organizamos com termos para agora, como é que nos atrevemos a pensar no que ainda lá vem tão longe?

- A Madalena tem razão!-corrobora a Inês. - Não nos percamos senão nunca mais nos achamos!

E a Cristina, a rir:

- Olha uma verdade do tal senhor de La Palice, que só dizia o que todos sabiam...

Olho para o relógio:

- Meninas, são quase horas de almoço! Assim nunca mais se acaba.

Faz-se sossego. E a Marta pode recomeçar.

- bom, a finalidade já está à vista, creio. Junta-se a receita obtida. Sabe-se o preço da excursão. Divide-se por cabeça. Vê-se o que cada uma pode gastar. O dinheiro em caixa vai reverter a favor das que...

- ...das que não tiverem nada, já sei! digo eu.

E a Marta.

- E também daquelas que só puderem pagar uma parte! Percebes?

- Ah!...

- Por exemplo, o preço da excursão será... suponhamos seiscentos escudos por cabeça. Mas há umas tantas que só poderiam comparticipar se nós não passássemos de Vila Franca de Xira,. aí por uns sessenta escudos, ou de Coimbra, por uns cento e cinquenta... O nosso fundo de reserva põe a diferença... e vamos todas, não se sabe ainda onde, como já disse, mas onde for uma... vão as outras, salvo as que motivos particulares impeçam de nos acompanhar! - e depois de me encarar e ver que eu estou seduzida com a ideia: -Que tal, Ana Maria?

- Acho uma ideia maravilhosa!

- Digna de ser posta em marcha, claro!... Agora, o meu Hurrah de há bocado, sem

réplica, parece que ecoa na boca de todas as minhas companheiras.

É neste momento que a D. Rafaela espreita a uma das portas do ginásio, tão desconfiada como se nós estivéssemos a praticar verdadeiras atrocidades.

- Que é que as meninas aqui estão a fazer em vez de irem almoçar?...

- Já vamos... -replica a Madalena, rápida e lacónica.

E a Gina, mais prudente:

- Estamos a começar a organizar a nossa festa deste ano, D. Rafaela.

- Sempre tarde e a más horas, como de costume! E depois não fazem nada que preste.

Mas vai-se embora. E nós desatamos a rir.

- De facto, se não andamos ligeiras, não fazemos mesmo nada que preste!-opina a Inês.

E eu:

- Acho melhor reunirmo-nos amanhã, calmamente, para organizarmos o programa!... Cada qual traz uma ideia, juntam-se as melhores para formar o conjunto...

E a Marta:

- E logo a seguir, com o programa direitinho, trata-se de obter a autorização da senhora Reitora e o apoio de algumas professoras.

- A D. Maria Vitória ajuda-nos!

- A Dr.a D. Clara Mendes também...

- Vão-nos ajudar imensas, tenho a certeza!

- afirma a Marta.

E com esta profissão de fé partimos finalmente a caminho do almoço, tão atrasadas que certamente em nossas respectivas casas já deve reinar o sobressalto...

Nunca fiz uma fita tão grande no cabeleireiro. Acabei por me sentir ridícula, o que me prova que afinal não sou inteiramente desprovida de bom-senso... Vá lá!...

Mas... e até chegar a esta conclusão?...

Cabelo para cima, cabelo para baixo, cabelo para os lados, cabelo para a frente, madeixas, franja, caracóis...

bom, por fim decidi que me deixassem com os meus cabelos caídos para depois os atar com uma fita na nuca, o mais simplesmente possível.

Ora porque é que hei-de querer parecer o que não sou?...

Arranjei as unhas (umas unhas que nestas últimas horas tenho roído vergonhosamente) mas não deixei que a manicure fosse além de me pôr um verniz que só dá brilho, não altera a cor.

Reconheço agora que consegui vencer o meu imbecil desejo de ofuscar as estrelas de cinema.

Tonta Ana Maria menina do liceu - é preciso que saibas que só temos o valor que temos e que o valor que nos atribuem há-de ser merecido pelo que somos e não pelo que aparentamos.

São sete da tarde.

Faço por estar calma e por empinar direitinho este capítulo de organização que não vai nada mal.

A melhor maneira de entreter a impaciência reconheço que ainda reside em ocupar o tempo!

A Laura aparece à porta a avisar-me de que a Mãe diz que são horas de me arranjar. Quase a medo, indago:

- És tu que me vais levar ?

Confesso que a ideia de sair de casa acompanhada pela criada, como se tivesse dez anos, não me agrada nada. Mas a verdade é que nunca andei sozinha depois de anoitecer. De dia, de casa para o liceu ou para quaisquer lições eventuais, ando só desde pequenita. Já tenho ido à Baixa de vez em quando e a casa duma amiga ou dos meus avós... mas sempre enquanto é dia claro! Agora, após escurecer, nunca saí senão com alguém de família (ou como tal considerado) .

Como há-de ser hoje, com o Pedro ausente, o Pai no consultório, o avô Leonardo tão mal - cada vez pior, coitadinho! - e a Mãe nam deve levantar-se...?

À minha interrogativa, a Laura responde:

- Não sei nada, menina Anita. A Senhora só mandou que a menina se aprontasse.

- Está bem, vou já.

Fecho o livro, coloco-o na estante, no sítio dele.

De repente sinto-me calma, tão calma que dentro de mim cresce um desejo imenso de simplicidade.

Ponho um tudo-nada de pó de arroz a tirar-me o brilho da pele, escovo as sobrancelhas para as libertar do pó, envergo sem qualquer hesitação o vestido branco, de fazenda fininha, que foi arranjado há dias, calço os meus sapatos de verniz. Prendo os cabelos com a fita verde que levei ao chá das Faculdades, pego no casaco aos quadrados verdes e pretos que herdei da minha Mãe, e vou sujeitar-me à opinião máxima:

- Mãezinha querida, estou bem? A Mãe contempla-me.

- Estás muito bem, filhinha.

- Mãezinha, e como é que eu vou para lá ? A Mãe pega no porta-moedas que tem em cima da mesa de cabeceira, abre-o, tira de dentro dele uma nota de cem escudos e estende-ma.

- Toma, filha.

- Mas eu ainda tenho doze e quinhentos que sobraram do que me deste para o cabeleireiro!

- Pois sim, mas não quero que saias de casa desprevenida. Nunca se deve trazer pouco demais na carteira, principalmente quando se anda só.

- Só?... Mas... mas eu vou só?

A Mãe sorri-me com doçura e ao mesmo tempo com qualquer coisa de fatalista no olhar.

- Minha querida Ana, recordo-te que está na hora de aprenderes a governar-te por ti... tal como um dia chegou a de aprenderes a ler.

De súbito, um susto aperta-me o coração. Olho para a janela, julgo ver a noite na claridade que ainda há lá fora.

Descubro que vai ser difícil achar-me sem ninguém ao meu lado para tomar conta de mim.

No fim de contas é tão bom confiar nos outros e saber que nos defendem e que não precisamos de pensar senão em metade das coisas que cansam as pessoas!...

Hesito e insisto.

- Mas... vou mesmo só... daqui até casa da S'Dona Laura?

- Porque não, filha ? Chegas à esquina da nossa rua, onde estão constantemente a passar táxis em todos os sentidos, apanhas um e mandas seguir para a morada do Fernando Vasco.

Haverá qualquer intenção nesta diferença de nomes como objectivo? O meu subconsciente regista a frase, enquanto oiço:

- Só te peço uma coisa. Assim que chegares telefona-me, para eu ficar descansada.

- Está bem, Mãezinha! -e quero já saber mais. - E depois, para vir?

- O Pai vai lá buscar-te.

- Sim, Mãezinha. - e dou-lhe um beijo. São horas de ir indo?

- São horas, sim.

- Então... até logo!

- Até logo, querida. E não te esqueças de dar muitos cumprimentos meus a todos... e parabéns ao Fernando Vasco.

Ah... o presente para ele, é verdade! Três romances de Eça de Queiroz. Oxalá goste!...

- Há-de gostar certamente. É um escritor de sempre, para sempre!

Concordo... e saio. Saio enfim, a caminho da casa de... ...mas da casa dos Pais do Fernando Vasco, evidentemente!

A D. Laura e o marido recebem-me com multiplicações de carinho, amabilidades e elogios que me confundem. Segundo eles estou uma mulher... estou linda... e que bem. vestida... e que magníficos cabelos... e que elegante...

Depois, são as explicações.

O Fernando Vasco ainda não está em casa. Foi falar com um produtor de cinema que o convidou para rodar um filme português.

- Uma hipótese de filme!-troça o Fernando Vasco ao chegar, aí um quarto de hora mais tarde, com aquele sorriso que eu acho uma perfeita maravilha.

Vamos para a mesa sem tempo para mais considerações.

Eu, aos poucos, consigo pôr em ordem, senão os meus sentimentos, pelo menos os meus pensamentos.

A conversa, enquanto comemos um esplêndido creme de espinafres, gira toda em torno da tal "hipótese de filme".

- Esta gente não tem processos de trabalhar, na maior parte das vezes, e depois queixa-se ! - censura o Fernando Vasco. - Descem em busca do efeito fácil, barato, transigindo com o mau-gosto de plateias de nível menos que medíocre, plateias inteiramente necessitadas de que lhe eduquem o gosto e lhe apurem a sensibilidade. Caiem assim na viciosa exploração dos temas baratos- e perdem-se irremediavelmente. O êxito é sempre a consequência duma iniciativa sincera, comunicativa, que alicia porque chega, que atrai porque dentro dela há beleza e até, quantas vezes, desinteresse. Embora, vamos lá, a especulação nem sempre se esconda nos assuntos banais e passe para outro extremo, ou seja, vá precisamente à descoberta dum intelectualismo rebuscado, sem profundidade nem realidade, que só espanta o papalvo e deixa sem objectivo o conteúdo emocional das criaturas.

- Mas o segundo género, entre nós, quase não tem sido cultivado!... - observa o Pai do Fernando Vasco.

- Não, o que faz com que o nível do nosso cinema seja tão baixo... tão baixo, que não vejo possibilidade de, tal qual está, me poder interessar. Não me vejo metido numa fita de que o produtor, logo às primeiras, me diz, com um dedo esperto a meter-se-me pelos olhos dentro

- "Isto é furo, rapaz!... Os tipos vão gostar à brava quando te virem diante do garraio a disputar o coração da moça que canta o fado bem trinadinho e morre de amores pelo filho do boticário que só pensa em formar um conjunto para tocar yé-yé..."

Rimos todos à gargalhada.

E o Fernando Vasco muito sério:

- Pois é... as pessoas até são capazes de rir... mas a maioria acaba por reconhecer que viu uma borracheira!...

A D. Laura intervém:

- Ó filho, mas essas fitas simples fazem falta para descansar uma pessoa das preocupações da vida!

- Mas, Mãe, a arte não é negócio de balcão com artigos de saldo!

Estamos a acabar um linguado no forno, com um molho tão bom que não resisto a repetir, apreciadora:

- Isto é uma delícia!... A D. Laura rejubila.

- A Anita gosta? Quer que lhe dê a receita, quer?...

O marido acode:

- ô Laura, mas tu julgas que a Ana Maria se interessa por essas coisas? Não vês que ela não tem mãozinhas de cozinheira?

Sinto-me desfeiteada.

- Ora essa, pode-se cozinhar sem ter mãos de cozinheira!

O Fernando Vasco corrobora o Pai:

- As raparigas de hoje não se interessam por essas habilidades femininas.

Olho para ele, muito séria.

- Estás muito a par dos interesses das raparigas como eu? - a frase tem um sentido particular que ele apreende, provando-me que é um adversário de respeito.

- Não, não estou muito a par dos gostos das crianças!...

Fico escarlate. Creio que me vêm lágrimas aos olhos, lágrimas que o fogo que me escalda logo seca. O meu subconsciente chama-lhe antipático, mas eu recuso-me a atendê-lo e riposto:

- Não sou tão bebé como isso!...

- O que não tem nada a ver com o gosto pela cozinha!

A D. Laura defende-me:

- Fernando Vasco, não arrelies a Ana Maria!...- e para mim. - Eu vou dar-lhe a receita para levar à sua Mãezinha.

- Agradeço muito.

A receita é a seguinte: cortam-se os lombos dos linguados em filetes que se temperam com alho, pimenta, sal e uns pingos de leite. Decorridas aí duas horas, limpam-se dos pedacinhos de alho, passam-se em manteiga, grelhando-os. No centro da travessa que vai servir coloca-se um bom molho de camarão com muitos camarões. Colocam-se os filetes de linguado à volta e depois, em derredor destes, batatinhas pequeninas, cozidas e passadas por manteiga. Põe-se sobre cada filete uma rodela de trufa.

O jantar continua a decorrer normalmente. Como assunto predominante... (predominante, não, único!) o Fernando Vasco.

Ele conta agora que talvez venha um dia a rodar um filme na Berlenga. Quer interessar nisso os produtores franceses.

(Berlenga, ilha deserta para um novo Robinson Crusoé...)

Conta mais coisas. Fala de dois semanários que vão publicar o retrato dele na capa, o que aliás lhe agrada atendendo a que o actor precisa absolutamente de publicidade. Ah, é verdade, a entrevista dele na televisão ficara definitivamente marcada para dali a três dias, num programa especial de cinema. Também lhe haviam falado para, na próxima temporada de Inverno, vir centrar uma companhia de teatro - à cabeça do cartaz. Claro que não aceitava por preço nenhum! Quem é que se atrevia a trocar tudo o que ele tinha já assegurado lá fora por um fogacho nesta terra onde os artistas têm tão poucas possibilidades?

Eu penso, enquanto saboreio o doce, que o Fernando Vasco até agora só disse coisas certas, razoáveis, lógicas... Mas eu como que me sinto cansada.

Cansada de mim ou cansada dele? Não sei! O certo, porém, é que não experimento nenhuma satisfação quando ele, ao levantar-se da mesa, chega à minha beira gentilíssimo (ah, a propósito, ele não desembrulhou o meu presente, os livros de Eça de Queiroz que lhe trouxe), a convidar-me:

- Ana, vamos para a sala? Quero que oiças uns discos que eu trouxe, e que ainda não existem em Portugal, duma rapariga inglesa que canta maravilhosamente e que assim que estiver lançada há-de bater todas as Hardys e todas as Vartans.

Vamos, os dois sós.

O casal não nos acompanha. Porquê? Eu sei lá porquê!...

O que sei de certeza é que não se trata dum propósito de facilitar um tête à tête entre mim e o Fernando Vasco. Conheço a D. Laura bastante bem. Para ela, o facto de estarmos sós, hoje, eu e o Fernando Vasco, é tão natural como se ainda fôssemos pequenos.

E porque não há-de ser natural, realmente?

Repito-o a mim mesma, enquanto me sento à espera que ele coloque os discos.

Sim, repito-o a mim mesma... mas tenho as mãos geladas e o coração oprimido por qualquer coisa que mais me parece ser angústia do que felicidade.

Sou muito nova ainda, não tenho experiência nenhuma de nada, nem sequer percebo claramente o que se passa em relação aos problemas dum futuro que se entreabre para ser um dia como eu hoje decidir.

Mas porque hei-de decidir?

Oh, meu Deus, porque é que não mo indicas, simplesmente, que eu aceito-o?!...

Principia uma canção.

O Fernando Vasco senta-se diante de mim, a olhar-me para me ver, pela primeira vez. É aflitivo!

Examina-me, pormenoriza-me, como se me descobrisse. Eu não sei como é que hei-de estar.

Ao cabo de uns minutos cheios pela voz quente, melodiosa, que povoa de sonhos o ambiente iluminado por dois candeeiros de pé com quebra-luzes doirados, o que dá aos nossos rostos tonalidades ricas, ele diz, baixinho:

- Estás uma bela rapariga, Ana! Uma bela rapariga que eu realmente conheço muito mal!... Queres falar-me de ti?...

Finalmente! Finalmente!...

O Fernando Vasco dá pela minha existência!

Mas eu não sou capaz de falar de mim!

De repente, surjo aos meus próprios olhos duma horrível insipidez, duma completa impossibilidade de contar-me. Que tenho eu para revelar com interesse para quem quer que seja e muito mais para o Fernando Vasco, habituado a um meio fascinante, a uma vida esplêndida, a ambientes que eu mal sou capaz de sonhar?!...

A canção na voz quente e melodiosa da intérprete que ele escuta embevecido continua a embalar-nos.

Fernando Vasco puxa a cadeira para o lado da minha, passa o braço por cima dos meus ombros. Vejo a mão dele, fina e branca, abandonada junto do meu rosto.

- Então, Anita?

- Mas a minha vida não tem nada que contar! É tudo tão banal! O lar, a família, o estudo...

- E esse coraçãozinho? Ainda livre... ou já há mouro na costa?...

Meu Deus..! e se...?

Agora, o Fernando Vasco trauteia a canção, repete palavras de amor, lindas palavras de amor, doces, embaladoras...

Se eu pudesse dizer-lhe que o meu coração não está livre, que o meu coração... Não, não sou capaz. Olho fascinada a mão que pende do meu ombro, a mão do Fernando Vasco. E eu, que não posso dizer nada, torno-me de súbito capaz de fazer o que não devo.

Não sei como é. Sei que baixo o rosto e de súbito colo a boca à mão dele!...

Imediatamente a mão me foge e ele se afasta de mim num movimento rápido, instintivo, enquanto uma frase tão cheia de espanto como de censura se lhe escapa dos lábios:

- Ana?!... Ana!!!... - e depois, olhando-me, percebendo que estou prestes a desatar a chorar, acrescenta, com uma doçura imensa, uma doçura que dói tanto, tanto, porque está cheia de compreensão e de pesar: -Ana... que criancice!...

Não se passa mais nada.

A Mãe e o Pai dele vêm para o pé de nós. Ouvindo os discos conversam de imensas coisas a que eu sei que de vez em quando tento responder, mas não me lembro como.

O meu Pai vem buscar-me às onze e tal, ainda sem comer a sua refeição da noite.

E eu acho que a vergonha que sinto vai chegar-me para a vida inteira!

Uma vergonha que arde, arde, arde...

Se ao menos fosse como a tintura de iodo e curasse!...

Mas qual!... É como se uma infecção se espalhasse no meu ser, e alastrasse, e me dominasse...

Estamos todas reunidas e combinamos criteriosamente a ordenação da nossa festa.

As ideias são como as cerejas, umas atrás das outras. Mas depois de expostas e analisadas, verificou-se que há muitas absolutamente impraticáveis.

Tentamos acertar as agulhas e elaborar o programa, embora com muitas dúvidas, claro.

Começaremos por ter na véspera missa e comunhão geral. Depois, no dia... No dia próprio, o espectáculo será dividido em três partes. Na primeira, "a poesia através dos tempos", ideia da Inês - uma palestra ilustrada com versos. Na segunda, "danças regionais", ideia da Marta. Na terceira, "uma peça de teatro", ideia da Celeste.

Eu, com a peça, fico hesitante. Uma peça?...

- Pois!-reforça a Celeste, -v- Uma peça representada por nós.

- Por nós? - aflige-se a Ernestina, que tem o mais primitivo horror ao palco.

- Pois, por nós... ou seja, por aquelas de nós que tiverem jeitinho.

- Isso!-aprova a Madalena. - Primeiro escolhe-se a peça e depois as intérpretes.

Ponho-me a rir.

- Sem ser pelas razões que levam a Ernestina a discordar, permito-me lembrar-lhes que representar uma peça não há-de ser nada fácil.

- Porquê? - perguntam várias, decepcionadas.

- Vocês já pensaram nos cenários, nas luzes, na encenação...?

- É para isso tudo que contamos contigo!

- declara a Georgina.

- Comigo?

- Claro!

- Mas comigo porquê?

- Ora porque há-de ser?! Porque és... porque és a mais intelectual de todas nós!

- Eu?...

- E a mais dada às artes!...-ajuda a Inês.

Miro-as de certo modo compadecida de tanta simplicidade.

- Ó meninas, mas vocês acham que por eu gostar de escrever sou capaz de meter-me a fazer uma coisa de que não percebo nada?

- Ora! - sentencia a Delfina. - Fazes por perceber! Aliás, ninguém vai pedir-nos obras-primas!...

- Mas lá por isso não temos o direito de lhes dar borracheiras...

Muito optimista, a Celeste afirma:

- Nunca será borracheira! É claro que vamos escolher uma peça simples, com uma marcação também simples...

Rendo-me. - bom, tentemos... Depois logo se vê.

A Helena, até agora muito calada, suspira:

- Do que eu gostava era que se arranjasse uma coisa em que pudéssemos entrar todas.

- Todas? Oh, Helena, para cento e tantas raparigas... acho que nem uma revista dessas que nós não conhecemos mas de que se vêem os anúncios nos jornais!...

Desatam todas a rir.

A Helena justifica-se.

- Bem, eu não queria referir-me à peça. Contava com os versos e com as danças regionais.

- Mesmo assim, há-de ser difícil! Então a Marta sugere:

- E se fizéssemos uma quarta parte?

- Uma quarta parte?

- com quê ?

- com canções.

- com canções?

- Pois! com certeza que a S'Dona Henriqueta não nos diz que não se lhe pedíssemos que nos ensinasse.

- Ó meninas, mas para isso então é melhor o coro!

- O nosso orfeão?

- Pois!

- Acho simpática a ideia e aprovo-a. E é então que a Delf ina sugere:

- E se arranjássemos um hino especial para nós?

- Um hino?

- Sim, um hino que já ficasse para o ano! O adeus ao liceu!

- Ora! - suspirou a Inês. - E quem é que o faz?

- bom... eu podia tentar a letra...

- Tu?...

- Eu.

- E a música ?

- Eu não sei se vocês sabem que eu tenho um primo que é compositor...?

- Tu ? - perguntam umas poucas interessadissimas.

- Sim, é aluno do Conservatório. E ele havia de gostar, se nós lhe pedíssemos a música.

Quase todas aplaudem. Só eu miro a Delfina bastante desconfiada (ou não saiba que ela tem a mania da evidência).

- Mas olha lá, ó Delfina... o teu primo faz música a sério... ou é desses de agora que alinhavam barulhos e guinchos como os selvagens?...

- Pior que selvagens!-riu a Cristina.

- Ele há cada um!...

A Celeste começou a contar não sei que história a propósito, descrevendo um concerto a que fora recentemente onde tinha visto tocar piano... com o rabo... enquanto outros músicos liam o jornal e desenrolavam papel higiénico ao mesmo tempo. Nós mandámo-la calar, porque aquelas idiotices não tinham nada a ver com o assunto de que estamos a tratar e muito menos com a música e o nosso hino.

E então acordámos em que o primo da Delfina viesse falar-nos o mais depressa possível.

E chegámos por fim ao mais importante de tudo: havia que elaborar o programa definitivo e apresentá-lo à aprovação da nossa Reitora.

E depois...

Depois, seria a excursão! Será a excursão!...

Mas isto tem de ficar para mais tarde. Por agora... a festa e o sim da nossa Reitora!

Está tudo em ordem - ou seja, em ordem de marcha!

A nossa Reitora, em princípio, aprova.

Começamos por isso amanhã a preparar o programa efectivo.

Cada qual tem a seu cargo, definitivamente, uma parte, como tínhamos pensado.

A Inês dirige a poesia. A Georgina, as danças. Eu... o teatro. A Cristina encarrega-se do coro cuja actuação há-de terminar com o hino.

Ah, é verdade, a Celeste e a Helena é que tomam conta do bufete.

A Marta, essa encarrega-se de ir começando os preparativos para a excursão.

Hoje ao entrar, logo ao entrar, sou acolhida por uma verdadeira onda de sensacionalismo, no liceu.

A Inácia e a Henriqueta são as primeiras a mostrar-me... - oh, meu Deus!-a mostrar-me uma revista de actualidades que mudou de cara, ou seja, que se vestiu com nova apresentação e que traz na capa a cores... o retrato do Fernando Vasco!...

Fico-me a olhá-lo, fascinada. O Fernando Vasco, claro e loiro, com um aspecto de perder a cabeça...

E depois dentro, nas páginas centrais, cenas dos seus mais recentes filmes, ainda por estrear entre nós...

O meu coração palpita duma maneira estranha. Tenho os olhos a arder. A boca seca.

Elas perceberão? Elas adivinharão? Ai aquela tremura tão grande dentro de mim...

Pobre Ana Maria quase maluca, não consegues deixar de te arrastar por aquilo que imaginas?...

Afinal... afinal elas estão assim todas entusiasmadas só porque sabem que eu o conheço desde pequena - desde os meus 12 anos, imagine-se!...

E por isso, só por isso, o alarido em torno de mim cresce. Querem pormenores, querem que eu lhes conte coisas, histórias, factos... um disparate!...

Valha-me Deus, como é que eu hei-de acalmar? Como?...

Durante a tarde, recebi telefonemas e mais telefonemas...

As raparigas passaram palavra umas às outras. E agora, colegas que eu nem sequer imagino quem sejam, falam-me só para me pedirem que lhes arranje autógrafos do Fernando Vasco... -não, do Fernando Vasco não, que o Fernando Vasco só existe para mim. Para elas, é o Jacques Bertrand.

Foi há pouco, na televisão, a entrevista com o Fernando Vasco...-não, com o Fernando Vasco, não! -com o Jacques Bertrand. Nunca o trataram senão por este nome, embora mostrassem as fotografias da primeira peça em que ele entrou, há anos.

Estivemos todos, a Mãe, eu, o Rumané, as criadas - o Pai não, que ainda não tinha chegado- embasbacados, a ouvir... a ouvir uma série de perguntas cujas respostas eu já conhecia uma por uma. Mas não pude deixar de o admirar muito, muito mais, ali, tão bonito, no pequeno écran...

Como é que eu posso renunciar, como? "Ana... que criancice..."

Oh, meu Deus, parece que me sinto doente!...

Pouco depois de terminar a emissão, o telefone tocou.

Era para mim e mal pude acreditar quando ouvi a voz.

- Fernando Vasco?... Tu?...

- Então, Ana, viste-me? Gostaste? A voz embargava-se-me na garganta.

- Vi... Gostei...

Ele riu um riso leve, envolvente.

- Ana Maria, achas que posso convidar-te para ires comigo ao cinema?

- Eu?... - e o meu coração rejubilava, cantava em festa dentro de mim.

Pois acaso...!!??

- Quando? - perguntei.

- Amanhã, por exemplo, a uma segunda matinée.

- Espera aí. Tenho de perguntar à minha Mãe se deixa...-e perguntei mesmo. - Mãezinha... o Fernando Vasco está a convidar-me para ir com ele amanhã ao cinema, a uma segunda matinée. Posso aceitar?

A Mãe olhou-me como se procurasse uma verdade qualquer na ponta do meu nariz. Percebi-a indecisa entre o desejo de permitir e a inquietação do que por muitos motivos pode não ser conveniente.

E a verdade desceu da ponta do meu nariz para a minha boca.

- Não tem mal nenhum, pois não, Mamã? E a minha Mãe concordou:

- Não, filha, não tem mal nenhum. Pude enfim responder.

- Sim, Fernando Vasco, a Rosinha dá-me licença.

- Óptimo! vou então buscar-te aí a casa às cinco e meia, está bem? - e após uma breve pausa indagou com aquela voz meiga que diz tão bem com a cor dos seus olhos: - Ficas contente ?

- Sim... sim!

. Meu Deus, se fiquei contente!...

- Então até amanhã, Ana.

- Até amanhã, Fernando Vasco. Desliguei.

Só agora percebi que devo ter ficado com ar de palerma.

.Dei por mim a ouvir a minha Mãe... e sem fazer a mínima ideia de quando é que ela começara a falar!

Fixei apenas as suas últimas palavras:

- ...as coisas não têm mal, filha. Os actos das pessoas é que podem tê-lo, como aliás as próprias pessoas.

Não vejo nada do que se passa no écran. Não vejo nada. Sinto os meus dedos apertados entre os do Fernando Vasco... e nos meus ouvidos martela o som das palavras da minha Mãe.

As coisas não têm mal, filha. Os actos das pessoas é que podem tê-lo, como aliás as próprias pessoas...

E tenho a impressão de que eu própria não estou certa...

Temos o nosso programa inteiramente aprovado pela senhora Reitora e a peça escolhida. Vamos representar uma comédia de Pinheiro Chagas, engraçadíssima, aliás descoberta pela Inês na prateleira das obras de teatro da grande biblioteca do Pai dela, que é professor da Faculdade (Românicas).

Divertimo-nos loucamente com a leitura da peça, que tem de facto imensa graça tanto na ideia como na forma utilizada.

"Quem desdenha..." - é o título, perfeitamente adaptado à acção.

E se nos divertimos com a leitura, muito mais nos divertimos com a escolha das intérpretes... principalmente das intérpretes às quais vai caber o desempenho das figuras masculinas.

E agora...

bom, agora começa para mim o sarilho!

É que além de ter de me decidir preferindo as que possam aliar o jeito ao tipo esguio que menos mal fique em travesti (é assim que se diz em linguagem teatral quando os actores têm de representar encarnando o sexo oposto) devo ainda fazer a marcação da peça!...

Tenho de fazer a marcação da peça.

Pois é... mas sinto-me deveras atrapalhada a olhar para isto. Sei lá por que ponta lhe hei-de pegar!...

Eu percebo tão pouco (nada, afirma o Fernando Vasco) de teatro!...

Como hei-de perceber, aliás?

Primeiro, o teatro é escasso entre nós. Segundo, o pouco que se faz é quase sempre para maiores de dezassete anos...

Não é verdade que não posso, nestas condições, fazer um trabalho consciencioso?

E por isso, aflitíssima, telefono ao Fernando Vasco, a pedir ajuda.

E por isso o Fernando Vasco me acode imediatamente e de bom grado se presta a auxiliar-me neste trabalho em que - diz ele - vou fazer um figurão!

E desde há uma semana que o Fernando Vasco todos os dias passa uma, duas, três horas, em nossa casa.

Às vezes fica para jantar, conversamos, ouvimos música...

Sinto que vivo um sonho, que isto não é mais do que um sonho. Mas, Santo Deus - eu tenho tanto medo de acordar!

 Delfina convidou-nos para irmos a casa dela, a fim de escutarmos o primo, o tal que vai ser o autor do nosso hino cuja letra, aliás, nos foi ontem lida, ainda em borrão. Só amanhã cada uma de nós terá a cópia da forma definitiva com que os versos hão-de ficar.

Os ensaios da nossa peça começaram há três dias.

Não sei se conseguirei fazer alguma coisa que se apresente, porque todas elas desatam-a rir ao declamar as frases dos papéis que lhes cabem e lhes parecem incríveis...

Diz a Elvira: (Inês) O amor, como eu o compreendo, deve envolver-se no mistério e no imprevisto. Não aceito um noivo oficial, anunciado por um telegrama e recomendado por meu Pai. O noivo que eu escolher há-de-me descantar debaixo da varanda a serenata de Almaviva, há-de trepar por uma escada de seda e entrar por aquela janela, de guitarra a tiracolo... Eis a minha última palavra!

Diz a Quitéria: (Cristina) Ó seu melcatrefe, seu troca-tintas, seu pelintra, seu janota empalhado! Você sabe lá quem eu sou, seu cara de fuínha? Você sabe lá quem é Quitéria do Espirito Santo, seu paspalhão do Martinho? Ponha-se já no olho da rua e não me torne a levantar os olhos para a minha filha!...

Diz o Henrique: (Helena por não haver nenhuma mais magra do que ela) Deixe, deixe minha senhora... É justo que eu seja punido, (e mais adiante) Ó senhor Silveira, não há por aí um rapaz qualquer que tome a responsabilidade das palavras daquela megera?

- Assim, não! Assim é uma vergonha e eu não me responsabilizo pelo espectáculo!

Elas riem-se de mim. E têm uma certa razão, porque a verdade é que eu não preciso de me responsabilizar por coisíssima nenhuma, visto que elas vão todas fazer o melhor que puderem, divertindo-se imenso e divertindo a assistência no que não pode ser mais do que uma brincadeira transbordante de simpatia.

A letra do hino, segundo a classificou o Fernando Vasco, é uma pirosada.

As minhas colegas, porém, estão radiantes e cada qual, encaixando os versos numa qualquer toada que lhes dê jeito, tenta a seu modo visionar o hino.

Tenho aqui o poema da Delfina e transcrevo-o porque posso perder a cópia que me deram.

É assim:

Quando a gente p'ró liceu em pequena se dirige, tem à volta quem nos guia e em tudo nos corrige.

O liceu é porta aberta a acolher-nos a incerteza. A alegria com que entramos é toda graça e beleza!

O hino que agora em coro cantamos é já bota-fora do ano em que estamos.

Traduz a saudade dos tempos vividos! Sete anos de felicidade nunca podem ser esquecidos!

Por isso quando à saída nos abraçar quem estiver, ouviremos perguntar: - mas quem é esta mulher ?

Releio os versinhos. Reconheço que não são nada de espanto. Mas também me parece cruel que sejam classificados de ridículos ou pirosos. Uma opinião destas só de quem não percebe até que ponto sentimos o que eles dizem, por se tratar duma verdade incontestável.

Nesta casa, pequeninas, fomos entregues um dia pela mão das nossas Mães. E que a vida se passava tão veloz, ninguém sabia...

etc., etc., etc...

bom, e depois, com música, vão parecer outros!

O Fernando Vasco não gosta, paciência.

Talvez ele tenha razão. Mas também nós temos razão e por isso não sinto vontade alguma de deitar os pobres versinhos da Delfina no cesto dos papéis.

O Fernando Vasco continua a ensinar-me a realizar a peça. E as minhas colegas estão entusiasmadíssimas com os méritos que evidencio.

Não escondo a nenhuma o auxílio precioso que estou a ter. E algumas delas, sem ser por mal, evidentemente, cobiçam a minha situação.

No entanto, eu, às vezes, penso comigo mesma - será a minha situação de cobiçar?

O que vem afinal a ser isto entre mim e o Fernando Vasco?

Ele trata-me carinhosamente, cheio de atenções, mas não aborda qualquer tema capaz de estabelecer um elo mais fundo entre nós.

Nós?!...

Nunca ouvi o Fernando Vasco dizer nós!... Ele apenas fala nele. É um mim e um eu constantes, repletos de projectos, de sonhos, de certezas...

Mas... se ele não pensasse nós?... porque perderia tanto tempo ao pé duma rapariguinha como eu?

Porque perderá ele tanto tempo ao pé duma rapariguinha como eu?...

Pergunta a que tive há pedaço a mais inesperada das respostas.

Tivemos esta tarde a tal reunião em casa da Delfina, por causa da música para o nosso hino. (A propósito, a música é um encanto. O primo dela, o Vicente Almedina, um rapazinho ainda muito novo, com um ar de artista cem por cento, cabelos claros cheios de caracóis, olhos enormes e um ar tímido mas ao mesmo tempo cheio de firmeza, tocou-nos uma série de composições dele que nos mergulharam em espantos sucessivos. E quando chegou ao hino, nenhuma de nós pôde conter a surpresa e a emoção. É que aqueles versos pobres, quase insignificantes, com as acentuações da melodia, adquiriram um sentido, um vigor e uma grandeza isuperáveis! Ele cantava-os, com uma voz rouca e desequilibrada... e nós todas, do trauteio inicial passámos ao coro espontâneo que nos irmanava no mesmo encantamento. Estávamos todas orgulhosíssimas com o nosso hino e quando no final felicitámos o seu autor, sentíamo-nos tão felizes como reverentes).

Cheguei a casa ansiosa por contar ao Fernando Vasco, à minha Mãe, a realidade. Aquela descoberta dum compositor tinha tanto de sensacional, de emocionante!

Sim, afinal, havia outros como o Vic Nusen, de quem eu oiço dizer tantas maravilhas!... Também podem nascer músicos em Portugal!...

Ao transpor a porta da casa, porém, mudei de ideias em relação ao Fernando Vasco. Talvez fosse melhor não lhe dizer nada por enquanto. Ele era muito capaz de não perceber, de troçar. Para ele, bem o sei, só contam os que têm um nome estrangeiro... Já não discuto os Nusen, os Aznavours, os. Adamo... Mas outros, outros, que parecem bons só porque não são portugueses... Eu sei, eu sinto, que o Vicente Almedina é capaz, se tiver oportunidades, que é o que nos falta muitas vezes, de -ser tão grande como os outros todos!...

A Laura, enquanto me ajudava a despir o casaco, observava:

- Veio tão tarde, queridinha! A sua Mãe já estava em cuidados!

Corri a ter com a Rosinha-Mãe e contei-lhe tudo exactamente como se passou. Compreendeu-me e acarinhou-me:

- Bem, filha, bem... Ansiosa, perguntei:

- Mamã, o Fernando Vasco ainda não veio?

- Veio, sim, Ana Maria. Está ele e está também o Paulo, há que tempos. Foram conversar para o escritório do Papá.

- Conversar?...

A testa enrugou-se-me. O Fernando Vasco e o Paulo... a conversar?...

A Mãezinha, cujo olhar é sempre como se me visse por dentro, animou-me.

- Vai ter com eles, se queres. Um receio deteve-me:

- Há notícias do Pedro?

- Não, querida. Trazidas pelo Paulo, não. Percebi qualquer coisa atrás da frase sem

reticências, no cansaço com que foi dita. E insisti.

- Mas há alguma coisa acerca do Pedro?...

- Em parte.

- Diz-me tudo, Mãezinha!

- O tudo é tão pouco, Anita!

- Mas esse pouco...

- Quando o teu Pai hoje chegou ao consultório, o teu irmão estava lá.

- Estava lá?...

- O Paizinho julgou que ele ia pedir alguma coisa. Talvez a licença de regressar a casa, talvez apenas dinheiro...

- E então?

- Não se tratava nem duma coisa nem doutra! Disse que sentira saudades... e foi-se embora.

- Saudades ?! Mas saudades de quem ? Só do Pai?

- Creio que de todos nós.

- Porque é que o Pai não o manda deixar-se de mais parvoíces e voltar?

- Não é tão simples como nós julgamos... Aliás, o Pai disse-lhe que eu também tenho saudades!

- E eu!

- E o Rumané. Todos nós temos saudades.

- E ele?

- Respondeu que "ainda não merecia"...

- Que ainda não merecia?!...

- Exactamente.

- Mas, Mãezinha, nesse caso?... A Mãe sorriu-me.

- Continuaremos à espera dele...-e após uma breve pausa. - É tudo, filha!...

Pé ante pé retirei-me, atravessei o corredor... o corredor às escuras. Pensei que o corredor assim é a actual imagem do nosso lar, cheio de sombras, sombras que existem porque um de nós deixou a luz apagada, ou melhor, apagou a luz... E numa revolta, porque os filhos não têm o direito de deixar o lar às escuras, dispus-me a dar a volta ao comutador mesmo junto à porta do escritório do meu Pai...

Mas fiquei imobilizada.

Do som nítido das vozes que me chegavam aos ouvidos acabava de sobressair o meu nome... o meu nome pronunciado pelo timbre cálido do Fernando Vasco.

Estaquei.

Não foi por querer, mas estaquei.

O coração batia-me tanto que me angustiava. E ouvi, ouvi tudo o que eles diziam, embora não me pudessem restar dúvidas de que a conversa já ia adiantada.

E o meu consciente, mais do que o meu subconsciente, registou, como um gravador em fita magnética, tudo quanto escutou.

É o Paulo que fala.

"...conhecemo-la ambos há muito tempo. Eu há bastante mais do que tu, no entanto!

Porque, enfim, sabes que eu principiei a vir a esta casa quando tinha apenas doze anos.

- Sim, eu sei. Conheço bem a história toda.

- A Ana era uma catraia, cheia de caracóis, deliciosa. Nunca vi ser mais bonito, mais simpático, mais bondoso. Creio que desde essa hora lhe dei o meu coração. Cresci para ela. Tudo o que faço na vida é por ela.

- A Ana aprecia imenso essa tua devoção!?...

- Não sei se dizes isso com ironia. Mas... se há ironia nessa expressão, torna-se injusta, até porque a Ana não pode avaliar quanto é para mim, quanto lhe ofereço. Talvez te pareça ridículo, mas acho que sem um amor como este não vale a pena existir.

- Queres dizer que se a Ana não vier a interessar-se por ti... tu morres?

- Eu não morro por causa disso."

- Então?

- E não morro porque sei o que devo ao Deus que me criou, aos Pais que se deram integralmente a mim, à humanidade que tem o direito de exigir que eu não seja uma criatura estéril.

- Que entendes por criatura estéril, tu?

- Aquela que não rende nada, que vive para si própria e não dá aos outros o máximo resultado dos seus esforços.

- Mas... se a Ana vier a aceitar-te, já podes esquecer-te da humanidade e tratar tu próprio de usufruir o máximo rendimento de tudo?

- Se a Ana me quiser, depois de eu saber que posso debruçar-me sobre ela para lhe dar a felicidade, toda a felicidade humana que está ao alcance de nós, da nossa vontade, da nossa devoção, sentir-me-ei com direito a receber a minha parte pessoal de ventura.

- E de contrário...?

- De contrário, tratarei de me esquecer de mim e de nada esperar em troca do máximo que render. Irei até aos limites extremos da fadiga, no sentido único de me tomar numa fonte inesgotável para os outros.

- E se a fonte secar, Paulo?

- Outras fontes surgirão nos caminhos alheios.

- Sendo assim... tens os teus planos formados ?

- Talvez.

- Posso perguntar-te, concretamente e uma vez que assim é, o que tencionas fazer se a Ana preferir outro que não tu?

- Se.a Ana te preferir... a ti, não é?

- Admite-o.

- Admito-o.

- E então?

- bom... se a Ana te preferir, a ti... acabarei o meu curso, calmamente, e irei dedicar-me, sem exclusão de partes, aos doentes pobres.

- Não pretenderás nem sequer ganhar a vida?

- Não pretenderei senão merecer a vida.

- Mas... e o dinheiro essencial à sobrevivência?

- Os meus Pais têm bens que chegarão para eu me manter até ao último dia sem precisar de ganhar um escudo, julgo. Um celibatário sem exigências não necessita de muito, Fernando Vasco.

- E... se a Ana te quiser?

- A Ana não vai querer-me.

- Porquê?

- Primeiro porque não sabe que é parte integrante de mim, tão parte integrante que sem ela ficarei metade. Segundo... porque tu... tu, para quem ela não vale a ponta duma unha que és capaz de cortar com a maior sem-cerimónia, apareceste.

- Pensas que a não mereço, então?

- Não a mereces, porque ela nunca será tudo para ti.

- Nesse caso porque é que estás disposto a ceder-ma?

- Porque ela está pronta a acreditar em ti cegamente... e. desde que isso acontece só tu poderás fazer com que ela seja feliz.

- E se eu não for capaz de corresponder à expectativa dela?

- Que Deus te perdoe o mal que espalhares à tua volta.

- Caramba, Paulo! Acho que a situação está a ficar bastante complicada!

- Não para ti. Para ti não há nada nem complicado nem difícil. Um dia atravessaste-te entre mim e o Pedro, que era, que é, o meu maior amigo... e eu consegui vencer a força que me levava a detestar-te e acabei por te estimar. Por isso, já vês: continuarei a ser teu amigo mesmo que a Ana venha a acompanhar-te.

- Desistes de lutar?

- Sim.

- Mas no fundo consideras-me uma peste?

- Não! E foi por isso mesmo que hoje quis falar contigo, aproveitando este encontro que dir-se-ia preparado pelo destino.

- Não percebo.

- É que eu ando há dias a desejar falar-te, para te pedir...

- ...que me afaste?

- Já te disse que não!

- Mas...?...

- Desejo apenas que te apercebas do dom maravilhoso que está a oferecer-se-te. E que o não desperdices. Que não cometas sacrilégio! A Ana é sagrada.

- Colocas-me diante dum dilema tremendo.

- Não coloco. E não coloco porque, para ti, estas coisas não têm profundidade. E no entanto, Fernando Vasco, é preciso que compreendas que não te assiste o direito de...

- ...de te roubar a Ana?

- De roubar a Ana à felicidade.

- Mas se ela gostar de mim?

- Obriga-te a gostar dela.

- E se eu não gostar dela o suficiente ?

- Dá-lhe uma desilusão, mas não lhe estragues a vida.

- Pensas que se eu desaparecesse do caminho dela, ela se inclinaria para ti?

- Nunca obrigarei a Ana a nada.

- E se eu gostar dela?

- Para que insistimos nisto, Fernando Vasco? Acho que já dissemos mais do que o bastante! O meu caso está posto. Expliquei-te tudo e pedi-te que não brincasses com coisas que valem mais do que qualquer de nós. Não o faço nem por egoísmo nem por falta de forças. Não me acobardo diante do sofrimento. O que está em causa é a Ana.

- Devo deduzir que me falaste como se fosses irmão dela?

- Sim, como se o Pedro aqui estivesse, lúcido como o conheci, a defender a Ana dentro dos limites possíveis à nossa condição mortal...

Não sei como terminou a conversa. Sei apenas que me senti esquisita, agoniada....

Corri para o quarto de banho, tive um vómito que só me aliviou de um pouco de água muito amarga. Mas foi como se nessa água muito amarga eu deitasse bastante do que me fazia mal. Porque na verdade logo a seguir toda eu fui alívio, libertação, alegria!

Pus um pouco de pó no nariz, penteei-me... e desatei a cantar. E foi a cantar que entrei na sala e disse aos dois rapazes que eram horas de jantar.

As complicações agravam-se.

O avô Leonardo está malíssimo! O meu Pai foi para lá passar a noite. Receia-se um desenlace... e é um horror!

Pedi que me deixassem ir vê-lo. A Mãezinha não concorda. Diz-me que o avô está sob a acção dos medicamentos, que não vai reconhecer-me, que mais vale que eu guarde para sempre dele a imagem do bom velhote espadaúdo e desembaraçado que tanto contribuía para que o ambiente da nossa casa fosse extraordinário!...

Nesta hora em que as dificuldades e os desgostos se amontoam, eu pergunto a mim mesma: é então forçoso passar por tudo isto?

E oiço o meu coração, baixinho, responder-me que não há rosas sem espinhos...

O avô venceu a crise. Não sei até quando viverá, mas passou a noite e a morte não o levou ainda.

Diz o Papá que ele tem uma resistência física excepcional.

Tão excepcional que ao recobrar um pouco de lucidez requereu a presença do Pedro!...

Se o Pedro lá fosse, ao pé do avôzinho... e no rasgar destes laços que Deus está a quebrar sentisse até que ponto deve fechar bem fechados nas mãos os que ainda estão a ser formados por nós!

No liceu, a organização da nossa festa vai de vento em popa.

Estou tão integrada nela, de tal forma comunico com tudo quanto lhe diz respeito, que mal contacto com os seus múltiplos aspectos e logo me torno eufórica.

Até as minhas colegas se espantam!...

E eu também pasmo da vibração que me anima, até porque nunca tive tanta capacidade de trabalho para nada! Sinto-me esperta, activa, desembaraçada...

Ensaiamos agora a nossa peça todas as tardes, às 6 horas. Só chego a casa às 8 e meia da noite, com prévia autorização da Rosinha-Mãe que sorri, que sorri como se compreendesse o que eu nem a mim própria disse ainda. Nem digo por enquanto. Já agora...

Já agora!!!...

O Fernando Vasco, que nos primeiros dias não esperou por mim, estava ontem, quando entrei, instalado numa poltrona de nariz enfiado nas páginas duma revista de cinema, a interpelar-me numa espécie de pasmo - pasmo... ou despeito?

- A menina não tem um telefone para me dizer a que horas é que se digna estar em casa para me receber? "

Ri-me, descontraída.

- A menina tem tido uma vida superocupada e nem se lembra de que existem telefones para coisas supérfluas.

- Ah... tornei-me então supérfluo ?...

- Supérfluo neste momento é tudo quanto não diga respeito à festa do meu liceu.

Respondeu-me acto contínuo e com certo azedume:

- Deixei de ser útil, não? Marcou a peça à minha custa, aprendeu vagamente a mexer-se dentro do assunto... e agora quer os loiros só para si?...

- De qualquer forma, quando for a festa já cá não estás! .

- De qualquer forma, parece-me que a menina está a portar-se como uma criancinha.

- Criancinha não direi... mas criança, porque não? Já não uso bibe... mas ainda uso bata!...

Creio que pela primeira vez o Fernando Vasco olhou para mim com a seriedade de quem não sabe interpretar o que ouve...

E eu sorri-lhe.

Porque não havia de sorrir-lhe?

Sou amiga dele, muito amiga dele!

E ele, como pessoa que não sabe ao certo o que há-de fazer, limitou-se a estender-me a revista que tinha nas mãos e a dizer-me:

- Recebi-a hoje de França. Tem duas páginas comigo. Pensei que gostasses de ver.

Não percebi se o Fernando Vasco me mostrou estas fotografias, aliás espantosas, por vaidade ou apenas por satisfação. Entre o lógico orgulho pessoal que acompanha o triunfo e a jactância oca, há uma ponte de passagem tão estreitinha que às pessoas escorregam com facilidade...

Mas porque eu já conheço a margem sólida em que me encontro colocada, admirei-as e louvei-as sem restrições. Tão sem restrições que ele me prendeu de súbito uma das mãos e perguntou, o mais perto de mim que pôde.

- Que tens tu, Ana Maria? Acho-te diferente !

- Que ideia, Fernando Vasco! Eu sou precisamente assim... Tu é que talvez pensasses de mim outra coisa!

Continuo a não imaginar o que pode ele ter deduzido desta frase, que eu pronunciei tão sincera.

Durante alguns momentos considerou-me sem nada dizer - quase me atrevo a afirmar que sem saber o que responder-me.

Só um pedacinho depois é que indagou, apontando a revista que eu voltara a olhar, aliás com verdadeira atenção:

- Queres guardá-la como recordação... ou não te interessa nada?

- Se não te faz falta, agradeço-te que ma deixes.

- Não faz. Quando amanhã chegar a Paris, arranjo outra para mandar aos meus Pais.

- Quando chegares?... Mas então... estás de partida?

- Estou. Tive de antecipar quase quinze dias o meu regresso. Recebi hoje uma carta do meu produtor. Vai principiar o novo filme em que entro mais depressa do que se esperava... e além disso há uns contratos e umas propostas para eu estudar. Enfim, é a minha vida.

- Nesse caso, quando partes ?

- Amanhã.

- Vais de comboio?

- vou de avião.

Tudo isto ele dizia de olhos postos em mim.

Houve um momento em que tive suspeitas da verdadeira razão que o levava a ir-se embora muito mais cedo. Mas logo dominei a ideia de que fosse eu a causa da partida, classificando-a como um expoente de "vaidoso convencimento". Não faltava mais nada senão que o jovem galã internacional - Jacques Bertrand! - tivesse medo de se apaixonar por mim, Ana Maria Ferreira de Macedo, uma rapariga do liceu...

Encarei-o, bem de frente, para que nenhuma intranquilidade ficasse a atormentá-lo a meu respeito.

- Nesse caso... estamos a despedir-nos?

- Se não quiseres ir dar-me um abraço ao aeroporto... superocupada rapariga!...

- A que horas embarcas ?

- Quatro da madrugada. - e pegou-me nas duas mãos. - Creio que a essa hora não poderás ir, de qualquer maneira.

- Claro que não!...

Deixei as minhas mãos nas dele e, de repente, decidi-me.

- Fernando Vasco?!...

- Diz.

- Fernando Vasco, vamos ficar bons amigos para sempre, sim?

- Amigos para sempre, sim!-aquiesceu ele. E depois de me fitar outra vez com uma ansiedade não isenta de espanto, insistiu: Ana... por favor... há uma coisa que eu deveras gostava que me explicasses...

- Que coisa?

- É que na verdade tu modificaste muito, em relação a mim, dum dia para o outro. Porquê?

Encolhi os ombros. E ele:

- Não deixes de me responder, peço-te! Se soubesses a confusão que me tem feito!

- Mas não vale a pena perderes tempo a pensar nisso.

- Reconheces então que houve de facto modificação?

- Sim, houve.

- Mas porquê ?

- É muito simples, Fernando Vasco. Eu andava a sonhar... e de repente acordei! Basta-te saber isto?

- Não inteiramente! Ê que... é que houve alguma coisa que te despertou!

- Não te preocupes... Foi o vento que mudou! - e ri-me. - Contudo acredita que ficarei sempre contente quando souber que estás feliz.

E assim nós dois nos despedimos: "adeus, até quando Deus quiser!"

A nossa festa já está a dar brado. A ideia de levar todo o sexto ano na excursão causa espantos e sobressaltos!

Como vamos torná-lo viável ?!

A nossa querida Reitora, concretizando o pensamento geral, considera-nos utópicas.

- Ó filhas, mas como é que esperam ter dinheiro para tanto?...

É a Delfina quem responde, convicta das suas certezas:

- Trabalhando, senhora Reitora! Trabalhando muito.

- Mas trabalhando como?...

E só então nos abalançamos a explicar o fundo das nossas intenções.

As entradas pagas para o espectáculo... O bufete em serviço permanente durante a tarde... Uma tômbola (ideia recente da Inês e aprovada por unanimidade entre as raparigas) em que se sortearão objectos oferecidos por nós - jarrinhas, livros, estatuetas, etc.

A nossa Reitora mira-nos.

- Trata-se então de arranjar dinheiro custe o que custar?

- Pelo menos, não tencionamos poupar-nos a esforços!... - afirma a Marta.

Sinto que vamos longe demais, para os hábitos, para a disciplina do liceu... Tremo. E se a nossa audácia feita coragem esbarra agora na discordância da senhora Reitora?

Percebo que todas as minhas companheiras estão a pensar o mesmo que eu.

A senhora Reitora tira os óculos, limpa os óculos, torna a pôr os óculos.

Depois comenta:

- Entradas pagas para o espectáculo...?!... Hum!...

Pressinto que esta é a inovação que mais a inquieta. E acudo, certa de que as outras, de aterrorizadas e desgostosas, não vão ser capazes de tomar a defesa das nossas intenções.

- Ó senhora Reitora, não vai parecer mal a ninguém! Toda a gente nos compreende, porque toda a gente que há-de vir sabe o fim que temos em vista! São as nossas colegas dos outros anos, as nossas famílias, os nossos amigos... Ninguém se recusará a pagar vinte escuditos por uma entrada, sabendo porque é que precisamos de ganhar dinheiro...

Nos lábios da nossa querida Reitora principia a esboçar-se um sorriso.

- Ah... os bilhetes serão todos a vinte escudos?

- Todos.

A Cristina, que é a mais brejeira do grupo, atreve-se a uma pergunta que nos gela.

- A senhora Reitora também paga, pois paga?

O sorriso torna-se riso no rosto que perde a rigidez formal.

Agora a Marta, que não deu por nada, de tão aflita, precipita-se, com explicações.

- Que disparate, Cristina! Olha a senhora Reitora pagar!... A senhora Reitora e as professoras não têm nada que pagar! São nossas convidadas!...

A Reitora larga a rir, com um riso alegre que desfaz os anos que nos separam, os medos, as incompreensões, as desconfianças...

- Nada disso! -protesta numa voz jovial.

- Nós podemos pagar. Nós queremos pagar! Só exijo uma coisa...

Esperamos, suspensas, doidas de contentamento com o óptimo resultado já obtido.

- Que coisa, senhora Reitora?

- Na verdade, as professoras e eu devemos distinguir-nos... concordo! Vocês vão reservar-nos as duas filas completas da frente e os nossos bilhetes custarão... acham bem cinquenta escudos cada?...

Somos tantas de roda dela, a abraçá-la, a beijá-la, que parecemos mais do dobro...

- Filhas, que me atabafam!... Deixem-me respirar...

Eis o programa já impresso.

 

I PARTE - Uma palestra ilustrada. A arte na vida dos novos. Versos, música clássica e quadros vivos.

II PARTE - Variedades. Danças regionais e o orfeão.

III PARTE - Representação da peça "Quem desdenha..." de Pinheiro Chagas, pelo Grupo Cénico do liceu.

Para fecho - O orfeão canta o hino do liceu.

 

Tudo simples e bem intencionado. Tudo aceite. Tudo a caminho da realização, com bufete e tômbola.

Tudo em marcha para que a excursão do ano 6 seja a grande excursão que nós idealizamos. Rumo de outros rumos, incentivo de outros incentivos, a abrir no liceu, a todas, as imensas portas duma certeza magnífica para qualquer" de nós - a vida tem sempre coisas maravilhosas para quem sabe e merece vivê-las!

Ainda não estou em mim do susto que apanhei!

Quando entrei em casa topei com a Laura e a Arminda doidas de aflição.

A Mãezinha tinha-Se sentido muito mal de repente, o Pai fora chamado de urgência e levara-a imediatamente para a Clinica.

Fiquei tão transtornada que nos primeiros momentos nem soube que fazer.

Depois, num grande esforço para pensar, decidi-me a ir ter com a minha Mãe... mesmo ignorando o nome da clínica para que o Pai a levara.

Tentando parecer, ou estar, calma, despi a bata, enfiei um casaco e corri pela escada abaixo. É que nem cuidei de chamar o elevador!

Ia a transpor a porta da rua quando me encontrei presa em dois braços, detida por um peito ao qual me encostei, buscando amparo e abrigo.

- Onde vais tu, filha?... Era o meu Pai, o meu querido Pai, que ao lembrar-se decerto que esta é a hora normal de eu chegar a casa, vinha para me ajudar.

- Pai, leva-me lá!...

Ele afagou-me, aconchegou-me, percebendo que eu tremia dos pés à cabeça. E então segurou-me no queixo, obrigou-me a olhar para ele e disse-me, com uma serenidade que veio direita à minha alma tão dorida:

- Filha... olha que tu também nasceste!

Só ao fim da tarde o Pai acedeu em levar-me à Clínica, para ver a Mãe.

Coisa estranha!

Fomos encontrá-la bem disposta, fresca, com um ar repousado que me intrigou enormemente.

- Mas então...?... A Rosinha riu-se.

- Parece que foi rebate falso... que o menino ainda não vai chegar... Estas coisas acontecem, sabes?

Muito tem de aprender uma rapariga para de facto conseguir uma consciência nítida, segura, do que é a vida! No fundo, creio que somos todas ignorantes. E o que se torna ainda mais espantoso é todas nós pensarmos em casar sem termos a mínima preparação para o casamento e para a maternidade!

Porque será que não nos ensinam a adquirir noções reais do que nos espera, do que se espera de nós?

Preciso de falar nisto ao meu Pai.

E falei.

Esta noite não me deitei à hora costumada.

Sem a Mãe em casa - e que estranha sensação esta de não ter a Mãe em casa pela primeira vez desde que me conheço (não me lembro nada do nascimento do Rumané, claro!) - que estranha e que desagradável! -o ar espantado com que eu e o Pai nos achamos sentindo o vazio! esperei pelo Paizinho, como logo percebi que era o meu dever absolutamente lógico.

A Laura ainda tentou aconselhar-me a ir dormir por causa do liceu, mas nem insistiu, de tal forma a encarei, segura da minha determinação.

O Rumané esse jantou e foi para a cama. A única manifestação que teve a demonstrar-me que também não ficara insensível ao estado anormal da situação da nossa casa, foi não requerer o direito de ver televisão depois daquele anúncio proibitivo com que engalinham todos os garotos abaixo da idade padrão.

O Paizinho chegou era meia-noite e meia-hora. Não mostrou estranheza por me encontrar a pé.

Creio que estou a reagir precisamente como ele, pelo que de mim conhece, de antemão esperava.

- A Mãezinha ? - perguntei.

- Está bem.

- E então?...

O Pai sorriu-me.

- Talvez tenha sido realmente rebate falso.

- Acontece com frequência ?

- Acontece muitas vezes.

- E é melhor ou pior?

- bom... quando a criança não tem o tempo todo, pode ser pior! Sempre há vantagem em que um bebé nasça de termo... conquanto hoje em dia os prematuros já não constituam um problema.

Decidi-me a perguntar o que julgo que devo saber.

- Paizinho, dantes era mais complicado ter os filhos do que hoje, não era?

- Muito mais, Ana Maria, muito mais! Não só pelos perigos que corriam Mãe e filho, mas também pela ignorância que rodeava o acto máximo da vida - esse que envolve a transmissão da existência.

A Laura entrou com o tabuleiro arranjado, colocou-o diante do Paizinho. Fiz-lhe sinal para que se retirasse e ela, com um sorriso de cumplicidade, assim como de quem diz: "pois, minha menina, estás a fazer tirocínio para dona de casa", deu as boas-noites e deixou-nos sós.

E eu abalancei-me a mostrar o mundo da minha curiosidade, uma curiosidade que se me afigura inteiramente razoável, sã.

- Paizinho, tu não achas que nós, as raparigas, devíamos aprender, estudar, todos os problemas da maternidade? Não te parece que seria útil que nós os percebêssemos, a fim de os encararmos com conhecimentos capazes de nos ajudarem na hora própria a levá-los a bom termo com plena consciência? Tenho a impressão de que as raparigas agem quase só por instinto... e o instinto deve ser pouco!...

- Tens muita razão, Ana Maria. As raparigas deviam ser educadas, preparadas, para que nelas tudo se tornasse inteligência e lucidez quando chegasse o momento de desempenharem o grande papel.

- E porque é que não se procede assim?

- Porque o assunto ainda não foi conduzido de molde a encontrar o justo apoio de quantos hão-de prestar-lhe colaboração.

- E quem julgas tu que sejam as pessoas mais indicadas para o fazer?

O meu Pai não se mostrava nada, mas absolutamente nada, surpreendido com o meu questionário. Dir-se-ia até que o meu interesse lhe agradava deveras.

- Quem? - e ficou a mastigar devagarinho uma torrada, como a situar qualquer ideia ainda por definir.

Eu insisti.

- Pensas que seja esse um dever dos Pais?

- Não.

- Não?

- Não. E não porque os Pais, na maior parte das vezes, não têm qualquer espécie de preparação que lhes permita ocuparem-se com suficiência dum assunto capaz de tornar-se melindroso. Quanto a mim, devia haver um ensino oficial, conduzido por pessoas idóneas sob todos os pontos de vista, aptas a darem aulas especiais onde fossem estudados, analisados, discutidos, os problemas da vida, essenciais. A adolescência precisa de os conhecer, mas conhecer debaixo duma orientação que os justifique, os aclare, a fim de que todas as jovens criaturas entrem perfeitamente esclarecidas (e ao dizer perfeitamente quero dizer com perfeição) no mundo em que são chamadas a viver sob formas físicas que para conduzirem a uma felicidade real necessitam de se integrarem em formas morais.

- Cursos para noivos, talvez?...-sugeri.

- Não, filha, só para noivos, não! Cursos para raparigas e rapazes, para todas as raparigas e todos os rapazes, a fim de os preparar para o desempenho da vida a dois, da vida como Deus a quer, tão infinitamente simples e tão infinitamente complicada!

- Não percebo, Papá. - confessei. - Como é que pode ser ambas as coisas ao mesmo tempo?

- Enfim, filha... simples porque é natural, é obra divina; complicada porque na convivência do dia a dia com o barro humano, gira, (e gera!), em volta de conflitos, de problemas, de inquietações... tudo bem fácil de evitar pela criatura normal de corpo e alma. Por exemplo, o assunto extraordinariamente importante que respeita a natalidade, visto sob a forma de puericultura...

- Mas a puericultura visa o tratamento dos bebés, não é, meu Pai?

- Sim, minha filha. O tratamento... mas ainda mais a lógica de receber de Deus e entregar à vida seres perfeitamente sãos. Ter filhos, Ana Maria, não pode ser encarado por gente civilizada como obra do acaso. Ás crianças que vêm para ocupar os nossos lugares têm o direito de exigir um máximo de garantias, das garantias que estão ao alcance dos Pais ou de quaisquer outros responsáveis pela sua criação. Entendes?

Foi neste momento que o telefone tocou.

O Pai e eu, tão profundamente mergulhados no assunto que tanto nos interessava, sobressaltámo-nos.

O Pai precipitou-se para atender. Eu quase nem me atrevia a respirar, suspensa.

O Pai sorriu.

- É a Mãe. Quer dar-te as boas-noites. Diz que se sente esplêndida.

E tão esplêndida se sentia, relativamente, claro está, que voltou para casa de manhã pelo braço do Pai, com o menino em muito bom recato, ou seja, à espera da sua hora de nascer que, pelos vistos, ainda não soou.

Tudo corre às mil maravilhas para a nossa festa.

Repartidos os encargos por vários núcleos, como não podia deixar de ser, a azáfama subdivide-se pelo liceu sem alaridos excessivos e desnecessários. E contudo a realização está muito próxima da fase de unificação total.

com grande esforço meu - e isso não posso deixar de registá-lo - a nossa peçazinha vai emergindo das folhas de papel muito sujas e amachucadas em que a princípio as minhas actrizes e os meus actores papagueavam frases que a falta de inflexões quase tornava sem nexo.

Escusado será dizer que o ridículo dos papéis masculinos nas vozes das raparigas constantemente nos faz perder o norte e rir como tolas. Depois, à força de eu enrouquecer pelo muito que tenho gritado, lá as convenço a prosseguirem e a tomarem a sério o fictício. Não sei como, mas já consegui que se movimentem razoavelmente, fixando marcações, fixando

cenas.

Amanhã vamos a um Guarda-roupa - uma casa dessas que confeccionam e alugam fatos de teatro, fatos de máscara (mais ou menos), escolher os trajos de acordo com a época da peça - fins do século passado. Bem, a ideia é delirante...

Creio que a euforia se aproxima do seu máximo.

E tinha muita razão em crê-lo.

Foi uma loucura!

O que todas se divertiram (e eu a assistir, a escolher, a dar sentenças!) vestindo e despindo saias, blusas, corpetes, calças, casacos, coisas horrendamente velhas e amachucadas que nos faziam entrar no reino maravilhoso da fantasia por onde todas nós passámos nos sonhos da nossa infância!...

As empregadas do imenso armazém e a professora que nos acompanhavam riam só de nos verem rir!

A imponência da Cristina, no papel da Quitéria, com um espalhafatoso vestido amarelo cheio de folhos...

E a comicidade da Madalena, que é a mais baixinha de todas, disfarçada de Eleutério!?...

E a Inês, de calças muito largas e um chapéu de palha na cabeça, com ar de faz-tudo?...

Irresistível! Inesquecível!

Elas fizeram tantas momices, deram tamanho espectáculo dentro da preparação do outro... que eu só tenho medo duma coisa: é que no dia, quando chegar a hora, se esqueçam de que há brincadeiras que se tornam coisas sérias!

No meio de tamanho gáudio, serão capazes de representar?

Serão capazes de representar?

O meu coração bate de enervamento, enquanto corro duma para outra, a ajudá-las a vestir, a pintá-las, a prender cabeleiras e a fixar bigodes...

Na sala, à cunha, sei que reina a expectativa, enquanto o programa vai decorrendo com muito agrado.

Nas primeiras filas a senhora Reitora e as professoras parece que estão a gostar. No entanto todas nós de certo modo receamos o entreacto que quase à última hora foi decidido intercalar no espectáculo, por iniciativa da Georgina, que é raro ter ideias mas que quando se sai com alguma geralmente acerta em cheio no êxito...

Trata-se duma cena muda, uma passagem silenciosa de não sei quantas raparigas encarregadas de mimarem os gestos mais característicos, os tiques, as atitudes, das nossas professoras e escusado será dizer que as escolhidas para alvo da brincadeira são precisamente aquelas de quem todas nós mais gostamos. A inspiração foi súbita e posta em prática de repente...

Por isso no fundo há uma certa intranquilidade entre nós.

Mas a intranquilidade não tarda em transformar-se em alegria, ouvindo o estralejar das gargalhadas.

E o riso agudo, raro, da nossa Reitora, chega-nos aos ouvidos.

As raparigas, de bata, apenas com um pormenor de identificação, evidentemente exagerado, desfilam...

A Inácia, com umas rosetas nas faces, muito mal postas, passa a assoar-se estrondosamente. É a Dr.â Mónica Sanches, uma das professoras de ginástica.

A Celeste atravessa o proscénio a bambolear um colar de pérolas que lhe chega aos joelhos...- é a nossa boa D. Maria Vitória, a nossa professora de moral. Depois sucede-se a Carolina, a tirar e a limpar os óculos...- o tique da Dr." Lucilia Mendes, a professora de literatura. Em seguida a Francisca de Menezes, aos regouguinhos como a nossa querida Dr.a lida Fontes...

E quase todas as professoras do 6." ano são assim inocentemente caricaturadas em apontamentos duma maneira de ser que elas na maior parte das vezes nem sabem até que ponto as definem.

O carmim nas faces - desejo duma beleza quando ela era mais do que uma necessidade, um direito.

O colar de pérolas - segurança duma posição social.

O nervosismo latente de quem pode menos do que quer, no tirar e limpar dos óculos.

O pigarreio hesitante - uma timidez bondosa na força de impor vontades...

Felizmente, toda a gente vê que" a sátira não pretende nem ao de leve magoar, mas apenas dizer: - compreendemos, compreendemos, conpreendemos!

Porque não havíamos de compreender? Pois não queremos nós vir a ser compreendidas?

As professoras aceitam a brincadeira como um beijo que do palco lhes é atirado.

Penso, de relance, no que sentirão todas essas mulheres que passam a vida a ver mudarem-se as caras .diante delas, com a verdade permanente das raparigas que se sucedem às raparigas e são sempre raparigas, umas após outras, sem deixarem nada de si próprias nas carteiras impessoais, sem entregarem coisa alguma às professoras que as vêem passar, passar, passar-iguais umas às outras nos sorrisos e nas atitudes... - e que um dia, de súbito, ainda sentadas na frente das meninas de batas brancas, sabem que a vida está praticamente a acabar... porque o limite de idade chegou!...

Não tenho tempo para mais nada. As palmas ressoam lá fora. Toda a gente, divertida, ri e aplaude. Está a segunda parte a acabar, vai subir à cena a nossa peça!

Se é lícito pedi-lo nesta hora... que Deus nos valha!

E é claro que este foi, como se calculava (apesar dos meus receios), o ponto mais alto do espectáculo.

Sem exigir demais às actrizes improvisadas

- e nenhuma, a não ser talvez a Cristina, me parece com talento suficiente para servir a arte de Talma - toda a gente aceitou as interpretações ingénuas que ainda aumentam mais a graça da peça e dos papéis.

Nos "travestis", então, foi um delírio! As raparigas vestidas de homens, com bigodes enormes e suíças farfalhudas, falando com as suas vozes fininhas, eram de fazer rir a bandeiras despregadas.

E todos riram.

Antes do hino final, enquanto no bufete professoras e alunas saborearam os últimos croquetes de várias proveniências e os óptimos bolos caseiros que muita gente comprava para levar, trocavam-se alegres e risonhos comentários.

A senhora Reitora, satisfeitíssima, dizia:

- Estas raparigas!... Do que elas são capazes !...

E fomos todas capazes, capacíssimas, até ao fim, de cumprir como queríamos.

A festa acabou em apoteose. O palco encheu-se. O coro ao fundo, as intérpretes destacadas a seguir... Quantas tinham feito algo de especial, tomaram lugar em evidência. Depois surgiram as intérpretes da peça, formando quadros alusivos aos seus papéis... A última a agradecer os intermináveis aplausos... bom, a última fui eu, que tive uma chamada especial.

Agradeci, desvanecida, sensibilizada.

Ao público, às professoras, à senhora Reitora, ao meu Pai que me sorria da quarta fila, ao Paulo que de súbito avistei na última fila ao lado da Luísa Maria Teodoro Veiga - uma do 5.? ano- (e porque será que fiquei parece que um bocadinho mal disposta nesse instante?). Logo me passou, porém, a impressão. É que... Eu não sei ainda se foi miragem ou realidade. Mas na verdade julguei ver o Pedro, no corredor lateral do lado das portas de entrada, lá bastante ao fundo, a aplaudir-me também...

A "tesoureira" veio dar-nos conta das contas dos dinheiros conseguidos. Somou a receita de tudo - espectáculo, bufete e tômbola, - vinte e dois contos e seiscentos, o que nos parece uma fortuna considerável. Nem nas previsões mais optimistas ousáramos esperar tanto!

bom, este tanto, porém, não chega para voos ambiciosos.

Pensamos, repensamos, fazemos cálculos...

Temos os preços das excursões e somamos os totais. Para Sevilha, nunca! A importância global excede de tal maneira os possíveis normais que desistimos da hipótese.

Verificamos agora quais são as que podem pagar, das cento e trinta e duas que desejam compartilhar da excursão - as que ficam de fora têm razões de ordem particular para não quererem ir connosco. Consultadas as respectivas famílias, sabe-se que trinta e duas podem pagar quinhentos escudos (cada); trinta e seis dão setecentos e cinquenta... e as outras todas dispõem de mil escudos (eu estou incluída neste número, por oferta espontânea do meu Pai). As restantes, não. Há vinte e nove que não podem dar senão cem escudos (estas são custeadas no seu estudo e vestuário pela nossa Associação).

Foi um trabalhão para chegarmos a um acerto de "investimentos" (como dizia a Marta). Mas tirando dumas para ajudar outras e acrescentando o total com os nossos fabulosos vinte e dois contos e seiscentos, conseguimos triunfalmente escolher uma excursão ao Norte do País!

Vamos passar três dias ao Minho! Levamos

8 professoras connosco - a nossa vice-Reitora também vai - e seguimos repartidas por três magníficos autocarros, direitas a Coimbra, Porto, Viana do Castelo, Braga, Guimarães. Dormimos uma noite em Viana e outra na Penha, em Guimarães. E como de nós todas só umas duas dúzias conhecem o Minho, o entusiasmo alastra.

E para não termos pena de não irmos a Sevilha, afirmamos umas às outras que assim é muito mais patriótico.

E é!...

Conheçamos primeiro a nossa terra... e depois então a terra dos outros!...

Chego a casa felicíssima com todas e por todas as notícias que tenho para dar. Mas esbarro com a Laura que se debulha em lágrimas ao ver-me.

O medo prende-me ao chão e emudece-me.

Não avanço, não recuo, não pergunto. Creio que só existo nos olhos... e os meus olhos vêem aproximar-se a Arminda, congestionada, a soluçar: "coitadinha, coitadinha..."

Sinto-me tão mal que por momentos imagino que morro. E quase nem me importo, se aquilo que penso é verdade.

Dou por mim a gritar desgarradoramente:

- Mamã! Mamã! Mamã!...

Quando percebo que perdi os sentidos, porque estou em cima da minha cama com a cara e os cabelos encharcados na água fria com que a Laura e a Arminda me reacordaram, oiço a Laura dizer-me:

- Queridinha, não se aflija assim! A Mãezinha está bem... foi para lá... foi para lá com o seu Paizinho que não deve tardar em vir aí buscar a menina...

Balbucio, com os dentes a baterem-me uns nos outros.

- Mas então ?

- Aninhas, é preciso ter coragem!... Foi da vontade de Nosso Senhor levar o avôzinho...

Compreendo.

Sento-me na cama, rompo em soluços.

- Avô! Avôzinho Leonardo! Oh, meu querido avôzinho!...

Avô Leonardo, foste tu!!!... Choro sem parar.

Choro agarrada ao meu Pai, que já chegou, que me acaricia, que me diz:

- Talvez seja melhor não te levar comigo, filhinha! No estado em que te vejo...

Mas eu faço um esforço enorme para me dominar.

- Eu quero ir, Papá! Eu devo ir!...

E vim, e estou.

Não é fácil mas consegue-se.

Olho para o meu avô imóvel, todo vestido de preto na longa caixa também preta com aplicações julgo que de prata. Vejo o bigode branco que me fazia tantas cócegas no pescoço. Vejo o cabelinho ralo... e sobre ele, poisada como a asa duma pomba, a mão branca da minha Mãe.

Procuro observá-la, tentar perceber como é que está a reagir, como é que aceitou esta dor terrível.

A Mãe não reage. Nem aceita. Rende-se, que é diferente. Rende-se por completo diante do que tem de ser. E chora, sem sobressaltos, sem arrancos, sem protestos. Mas que lágrimas, santo Deus!

Há muita gente nesta sala, pressinto-o. Eu só vejo a Rosinha.

A Rosinha e o avô, o meu avô que está morto.

Não me lembro de quando morreu a minha avó. Era muito pequenina. A única pessoa que me recorda saber desaparecida, foi o bom do Dr. Ajuda-te, há anos, lá em Penarim.

Até agora, todos os que me rodeiam, todos os que conheço, estão a meio da vida, em plena vida, a caminho da vida...

Mas aqui, diante do esquife do meu avô Leonardo, entra-me um espinho no coração com a certeza de que, à medida que eu vou crescendo, os outros se vão indo embora...

Avô Leonardo?!... Meu santo avôzinho, tão amigo, tão companheiro... Meu avô!... Meu avô, Pai da minha Mãe?!...

Olho aterrada para o meu Pai. Pai de mim própria ?!...

Pai, como é que será possível, se tiver de ser?...

Não quero pensar. Recuso-me a pensar. Há coisas que em nós, nunca!... E já não sei de que é que choro! Não sei se com pena do meu avô, se com medo de passar por coisas iguais a esta! Mamã, não!...

Caio de joelhos ao pé da minha Mãe. Abraço-a pela cintura, apoio a cara na sua barriga tão grande.

E é então que sinto - que sinto, Senhor do Céu! -uma oscilação sob o meu rosto, um movimento, primeiro indeciso, depois nítido... um sobressalto... uma afirmação de presença! E percebo... percebo... é ele, o menino, o meu irmãozinho... a Vida!

A Vida, que a morte não vence!... A Vida, que continua!

A Vida, verdadeiramente eterna!...

Levanto-me devagarinho, entontecida. Sei agora porque é que a Mamã aguenta. É por ele. É por nós!... Pelos seus filhos!

Encosto-me a ela, cinjo-lhe a cabeça, enxugo-lhe as lágrimas. E contemplo o rosto tão pálido do avôzinho.

E não me surpreende nada o sorriso que lhe vejo nos lábios sem cor.

O avó está tranquilo. O avô não morreu!

Acabou-se-lhe o tempo de vida na terra e agora está em Deus para sempre.

Nós ficamos para continuar a vontade do Senhor. Depois de nós, outros virão!

A vida não termina. Só muda de corpo e às vezes de nome.

Eu não queria tomar parte na excursão.

Primeiro por causa do nosso luto. Depois porque se aproxima cada vez mais a data do nascimento do meu irmãozinho. Mas a Mamã e o Papá impuseram-se e eu tive de obedecer. Oh, não contrariada, isso não! Mas com receio de não estar a proceder bem...

No entanto, que fazer, se a ordem é: tens de ir?!...

Eu sei que ambos querem que eu me distraia, que eu espaireça, que eu me arranque ao ambiente denso da nossa casa.

E têm razão com certeza! Talvez eu precise de armazenar coragem dentro de mim, como se fossem vitaminas.

Conquanto este passeio tão sonhado e tão apetecido não tenha todo o valor que eu idealizava, porque metade do meu coração não veio comigo, não posso deixar de me sentir como que chupada por quanto me rodeia!...

As paisagens, os interesses, as novidades, o encantamento constante, obrigam-me a comunicar!

Os nossos três autocarros transbordam de risos, de canções, de ventura.

Até as professoras fazem coro connosco!...

E é curioso!

O convívio estreita-se entre nós todas duma maneira extraordinária!... Falamos como nunca falámos; cantamos como nunca cantámos; confiamos como nunca confiámos...

É como se constituíssemos uma família perfeitamente articulada!

Creio que nunca mais nos esqueceremos umas das outras, mesmo as que até hoje, no liceu, dispersas em turmas diferentes, apenas diziam umas às outras bom-dia e boa-tarde... quando diziam!...

No grande hotel, um tanto velho mas absolutamente confortável, lá no cimo, na Penha de Guimarães, passámos uma-das noites mais belas que certamente teremos para recordar. Jantámos maravilhosamente, boa comida simples afirmava-o a nossa querida vice-Reitora, a Dr.a Lida Fontes - à antiga portuguesa. E bebemos - um pouquinho a mais... demais? - um vinho verde, a espumar nas ânforas, com um saborzinho que até aquelas que afirmavam não gostar classificaram de estupendo...

Depois instalámo-nos na grande varanda que dominava o vale, duma beleza e duma profundidade tão impressionantes como o céu repleto de estrelas que nunca tínhamos visto tão bonito, tão vasto e ao mesmo tempo tão acolhedor!

Pela imensa encosta, até ao fundo onde a vida se aninha, era o esplendor das casas com luzinhas trémulas, centros de vida própria, na sua maioria dominando Quintas que são verdadeiros paraísos neste Minho extraordinariamente sedutor.

Primeiro ficámos caladas, dominadas por tanta formosura, por tanta paz. Depois, aos poucos, fomo-nos agrupando e começando a falar.

Sonhos, aspirações, recordações, creio que tudo o que nos constituía ou um dia virá a constituir esteve presente aqui e além nas nossas conversas.

E as nossas vozes sussurradas iam dizendo coisas, coisas, coisas...

No meu ranchinho - éramos talvez umas dez - principiou por falar-se no ideal do casamento, numa igualdade de ambições quase monótona. O casamento - alvo e termo de tantos suspiros e sorrisos! - o amor, o namoro... E como nunca, até então, fomos desvendando umas às outras segredos bem guardados, pecadilhos tidos como sem importância, devaneios que talvez nunca cheguem a concretizar-se. Foi assim que, para além dos derriços pessoais, vieram à superfície assuntos que a todas se afiguravam apaixonantemente interessantes.

Eu devo confessar que ouvia mais do que falava. Ouvia como se tivesse quatro ouvidos... Sempre a mesma ânsia (ou mania?) de perceber, de PERCEBER.

Aos poucos, do abstracto passou-se ao concreto. E vieram as histórias, ou antes, os casos.

Foi assim que veio à baila o caso duma rapariga que eu nem sequer imagino quem seja. Aprendi apenas que se chama Julieta e que é filha dum qualquer senhor altamente colocado. Essa Julieta tem apenas quinze anos e namora contra vontade dos Pais um rapaz que já esteve preso por furto. Um rapaz que ela afirma estar completamente regenerado mas cuja actual existência nada prova. Ora a tal Julieta não atende quaisquer opiniões, conselhos, resguardos. Ela, carácter ainda em formação, tão longe de saber o que sentirá e o que pensará quando for mulher feita, sem dúvidas nenhumas afirma a sua independência... e a sua desobediência. Anda sozinha com o namorado por toda a parte e ameaça a família dum escândalo se -pretenderem exercer sobre ela qualquer violência - e parece que por violência se entende o desejo que os Pais têm de a mandar interna para um colégio.

Coitados de certos Pais!

- Serão vítimas ou culpados! ? - perguntou a Dr. lida Fontes que estava entre nós.

Não soubemos responder!

Isto de julgar os Pais torna-se muito complicado...

Onde começa a fraqueza e termina a ternura?...

Um outro caso não tardou em mostrar-nos a dificuldade de chegar a uma conclusão justa e ajustada.

Era a história dum casal extremosíssimo para cinco dos seus filhos e inexplicavelmente cruel para uma filha que por capricho do destino era justamente a que mais precisava de amparo e carinho.

A citada moça, aliás pouco saudável, namorara desde garota um rapazola pouco mais velho do que ela. Afigurava-se a todos tratar-se dum daqueles amores românticos a que o casamento serve de ponto e vírgula - ou seja, o parágrafo continua, a felicidade prossegue... A comunhão daqueles dois seres parecia perfeita, indissolúvel. E depois chegou a hora em que a noiva considerada geralmente como tal - perguntou ao noivo em que data podiam colocar o tal ponto e vírgula na sua vida. Ele teria dito - tal data...

E então começou a acontecer o incrível. Primeiro, os Pais esquivaram-se a dar-lhe o enxoval, a preparar-lhe o casamento, segundo os moldes dos três primeiros (com efeito já tinham três filhos casados a quem nada faltava nem faltara). Ela não hesitou, empregou-se para arranjar dinheiro. E depois... Depois o noivo, tão solícito e afectuoso até aí, começou a manifestar grandes incertezas acerca das possibilidades mútuas de entendimento, de ventura... Achava-se novo demais para assumir responsabilidades definitivas. Perdera a segurança dos próprios sentimentos... E mais ainda - parecia-lhe, em conclusão, que o nível intelectual da rapariga o não satisfazia. E assim quebrou todas as promessas e rompeu o noivado!

Durante instantes, ficámos todas a tentar visionar o que teria sido a dor, o desespero dessa pobre rapariga que assim vira destroçadas a sua fé e a sua esperança. Os anos perdidos eram ainda o menos - conquanto cada ano, cada dia, sejam um valor ilimitado para as criaturas de tempo limitado! - ante a perdida possibilidade de voltar a crer. Como podia ela recomeçar, como?

Foi a Celeste quem de súbito murmurou, numa tentativa de salvação que dava forma aos receios de todas:

- No fim de contas talvez seja possível viver sem amor, sem casamento, sem marido, sem filhos...

E ficou por momentos um silêncio, como se cada uma de nós virasse por todos os lados a hipótese, a estudar-lhe a viabilidade.

A Madalena acabou por murmurar.

- O egoísmo das pessoas talvez devesse aconselhá-las a viverem só para si próprias, sem darem nada para também nada esperarem. Às vezes penso que o casamento, para a rapariga, é uma espécie de mina a que os outros vão buscar tudo aquilo de que precisam até a deixarem vazia!

- Oh, não! - protestou a Marta. - Não!... Há tantas compensações! Tantas!... O amor do marido... o amor dos filhos... as alegrias da família...

E a voz alegre da Cristina.

- Se somos mina, é de oiro!... E então eu disse:

- É preciso dar, dar, dar... sem nada esperar em troca, sem nada pedir... talvez até com a certeza antecipada de que nada nos concede o direito de querer receber... - (parece-me que escutei mais ou menos isto aqui há tempos dito não sei já ao certo por quem...)

Houve ainda mais umas observações, sem densidade de análise. Ouviram-se alguns bocejos. Eram mais de onze horas e nós, cansadas, principiámos a ficar sonolentas. As professoras, por entre os grupos, propuseram a recolha.

Fomos abandonando o terraço, procurando os nossos quartos. Ficámos a duas e duas e a três e três. Era o hotel praticamente cheio só com a nossa excursão - facilidade permitida pela época não estival ainda mas tão agradável.

Abri de par em par a minha janela. Dava para uns penedos graníticos rudes, fortes como os bons sentimentos das pessoas.

Atrás de mim a Delfina gargarejava, lavando os dentes.

E de súbito larguei a rir.

As outras duas (a Inês além da Delfina), estranharam a gargalhada absolutamente intempestiva.

Que teria eu visto fora do hotel que tanto me divertisse?

O que vira estava dentro de mim, entre as minhas recordações.

- Vocês lembram-se... daquela vez lá no liceu?... Os dentes da Delfina... os lindos dentes tão bem cuidados da Delfina!...

Começaram ambas a fungar.

Quem não se recordaria da história, quando A Henriqueta convencera a Dr.a Branca Mimosa de que a Delfina sofria dum complexo horrível porque usava dentadura postiça... e vivia no terror permanente de que lhe caísse?...

E a Delfina, nessa célebre manhã, mão a tapar a pastilha elástica que se lhe pegara aos dentes, não conseguira responder à professora que a consolava do que não era de modo algum uma inferioridade. - "Há tanta gente sem dentes!"...

Creio que muito tarde nessa noite, dentro dos meus sonhos, eu ainda continuava a rir...

E pronto!

Acabaram-se as festas; acabou-se a excursão. Restam as saudades e os retratos para tornar perene aquilo que passou.

As aulas recomeçaram com a sua normalidade para todas nós, neste ano sem exame "que a maioria já tem assegurado. No entanto, e pelo menos na nossa turma, não há nenhuma que não deseje trabalhar para garantir uma média satisfatória. E por isso ouvimos atentamente a nossa professora de...

- Ana Maria Ferreira de Macedo!... Ana Maria Ferreira de Macedo!...

Olhamos todas a Dr.a D. Olga Violante. Ela também olha... mas olha para cima.

Percebo enfim que estou a ser chamada pelo altifalante.

- Ana Maria Ferreira de Macedo, acabam de telefonar de sua casa. Tem licença para sair imediatamente. Dirija-se para a Clínica de Santa Maria. E os nossos parabéns. A sua Mãezinha acaba de ter uma menina!

E pronto!

Ainda sem perceber como é que as pernas e a cabeça me conduziram, a verdade é que cheguei e depois de me ter abraçado, lavada em lágrimas de alegria e desfeita em risos de emoção, ao pescoço da minha Mãe recuperada - a minha Mãe com as suas dimensões vulgares conquanto na posição horizontal, a minha Mãe ainda muito pálida e olheirenta mas já serena e tranquila - me debrucei interessadíssima a mirar esta coisita com três quilos e seiscentos e cinquenta gramas que figura na lista da família como minha irmã mais nova.

- Estás contente por ser uma rapariga? perguntou o meu Pai, que me estreita os ombros com desvanecido orgulho.

- Muito! - confesso. E depois pergunto: E tu?

- Muito. - afirma e logo acrescenta: Conquanto tenha a estranha sensação de que foste tu que nasceste outra vez.

Beijo as mãos do meu Pai querido, infinitamente grata por estas palavras que me revelam toda a imensidade do seu amor por mim.

E pergunto-lhe, baixinho:

- Papá... é melhor ter filhos pequeninos ou crescidos?

E o meu Pai, no mesmo tom.

- Ainda não percebi bem.

- Porquê ?

- É que a certeza não depende do pormenor da crescença mas sim daquilo em que os filhos se tornam.

E de súbito, enquanto admiro a perfeição da minha minúscula irmãzinha (que orelhitas tão lindas, e que dedinhos de unhas cor-de-rosa e bem talhadas, quantas vezes mais bonitas do que estas minhas que não consigo deixar de roer!), oiço a minha Mãe balbuciar:

- Filho!... Oh, filho!...

Pensei, num relance, que era o Rumané que acabava de entrar... talvez por medo inconsciente de esperar outra coisa... Mas quando olhei para a porta, não foi o Salta-Pocinhas que eu vi... Foi o Pedro!...

O Pedro que avançou em bicos de pés e se ajoelhou à beira da cama da nossa Mãe e abraçou com os dois braços em arco o corpo esguio que tremia...

E ouvi-lhe enfim a voz, quebrada pelos soluços, a repetir uma única palavra:

- Perdão, perdão, perdão, perdão, perdão... A Mãe soergueu-se, conseguiu apertar a

cabeça dele ao peito, cobriu-o de beijos. E também não disse senão:

- Meu filho, meu filho, meu filho... Pensei naquele momento que uma mulher

não pode com certeza gostar mais dum filho do que doutro. Mas nenhum filho deve poder substituir essa espécie de misterioso laço que a rapariga ao tornar-se Mãe tece com o primeiro nascido. Eu sei que a Mãe não gosta mais do Pedro do que de mim, do Rumané ou da pequenina recém-nascida. Mas o Pedro!... O Pedro foi a esperança nova, a coisa por conhecer, a força da primeira criação...

O Pai, acariciando os cabelos da minha Mãe, pedia-lhe com doçura:

- Não estejas a afligir-te, querida. Pode fazer-te mal!

E a Mãe, a sorrir, luminosamente:

- Eu não estou a afligir-me!... - e para o Pedro, que se encontrava já cingido ao peito do meu Pai. - Como é que soubeste?...

- Há dias que rondo, à espera, sempre à espera...

E o Paizinho, a medo:

- Vieste... só para veres a tua Mãe? E o Pedro, bem de frente:

- Vim... para ficar, se mo consentirem.

- A tua cama nunca deixou de estar feita, Pedro. - disse a Mamã. E depois: - Ana, apresenta a menina ao teu irmão.

Eu dei a mão ao Pedro - esta mão gelada que apertou tanto a dele como a dele apertou a minha - e assim nos aproximámos ambos do bercito onde ela dormia o seu primeiro sono. O Pedro tocou-lhe com os lábios na cabecita recoberta por uma penugem esbranquiçada. E vencendo a comoção que lhe embargava a voz, inquiriu:

- Como se chama ?

- Como tu quiseres. - respondeu a Mãe, depois de consultar o Pai com o olhar. - Vai ser tua afilhada.

O Pedro encheu o peito de ar, num longo suspiro.

- Tenho a impressão de que será Rosa... Rosa de Maio, como tu! Da Rosinha-Mãe... nasceu a Rosinha-Filha!...

E ficou ali sentado a olhar para todos nós, como se precisasse de matar saudades.

Graças a Deus, tem sido uma alegria!

E eu não sei se as visitas que chegam festejam mais o nascimento da Maria Rosa (a Rosinha-Filha) ou o regresso do Pedro...

A avó Teresa, o avô Joaquim (que pena, o avôzinho Leonardo, que tanto havia de gostar deste novo botãozinho da sua Rosa!), a tia Elisa, o tio João, o Artur, o Dr. Lemos e a esposa, a D. Laura e o marido, o Paulo, e até as nossas criadas, todos entram para irem direitos ao berço. Mas mal dão de cara com o Pedro, abrem-lhe os braços e esquecem a menina que, felizmente, não sabe o que seja o ciúme. E oxalá que o não saiba nunca, para poder sentir-se feliz!

Agora estamos todos em casa.

A vida entra num ritmo normal, normal dentro da sua forma nova, claro! É que tudo se pauta pelas horas de Sua Excelência a menina pequena, que é a rainha do lar e dos nossos pensamentos. O Pai chega a ter de impor-se para não começarmos a estragá-la com mimos exagerados.

O Pedro parece reintegrado no ambiente familiar, como se os meses decorridos não tivessem existido.

Sentimo-nos todos, outra vez, felizes.

Até o Paulo, que nos visita normalmente.

Verifico que escrevi atrás umas palavras que não são reais no que pretendem traduzir.

Não, o Pedro não se reintegrou no ambiente familiar como se os meses decorridos não tivessem existido. Há qualquer coisa de estranho, talvez de angustiado, na sua atitude, a que ele de facto busca dar uma aparência tranquila. É como...-bem, como se o Pedro tivesse um remorso, ou uma vergonha, a martirizá-lo...

Ele e o Paulo fecham-se em longas conversas das quais nada transparece.

Até que hoje, de súbito, no fim do almoço, o Pedro declarou:

- Pai... Mãe... eu queria falar com os dois. O Pai e a Mãe, decerto sentindo o mesmo que eu, mostraram-lhe num simples olhar que estavam prontos a ouvi-lo.

Julguei que devia retirar-me para os deixar à vontade e fiz menção de levantar-me da mesa, exactamente como o Paulo que tinha chegado pouco antes, mas o Pedro logo nos deteve com um gesto.

- Deixem-se estar, Ana e Paulo. Não tenho segredos para ti, minha irmãzinha, nem para ti... meu Amigo.

E ambos ficámos.

O Pai, talvez divisando nele um embaraço que urgia desfazer, tirou do bolso a cigarreira de pele de crocodilo e ofereceu-lhe de fumar. A sério, foi a primeira vez.

O Pedro sorriu-lhe agradecido, aceitou o cigarro, acendeu-o... mas esqueceu-se dele no cinzeiro quando principiou a falar.

- Eu estou muito, muito grato ao Pai... e à Mãe... pela maneira verdadeiramente extraordinária como têm procedido comigo, sem uma censura, sem uma pergunta, sem uma queixa... Eu sei que o que foi... foi e não querem mais lembrá-lo. Mas há uma coisa presente em que não tocam e contudo têm o direito de me exigir explicações. Trata-se do meu curso, tão estupidamente abandonado...-e depois duma breve pausa que não passou de suspensão, acrescentou: - O curso que hei-de acabar se Deus me considerar digno dele. Mas não por ora... não enquanto eu sentir que sou o alvo de justas desconfianças, não enquanto o meu regresso for olhado com provocadas inquietações, não enquanto perante mim próprio eu não me reabilitar de tudo o que me enxovalhou. Não bastam nem o meu arrependimento nem a minha sinceridade para fazerem de mim o que fui até... até deixar de sê-lo. É preciso que... que eu me purifique!

Nenhum de nós ousava interrompê-lo. E ele parecia necessitar de qualquer coisa que lhe desse forças para continuar. Teve de encontrá-las dentro dele, só dentro dele.

- De maneira que... pensei o seguinte: estou prestes a ir à inspecção militar. Já me informei. Creio que sou chamado em Outubro ou Novembro. vou... vou alistar-me imediatamente, como voluntário, a fim de seguir para qualquer uma das nossas províncias ultramarinas... aquela para onde preferirem mandar-me.

De novo, um silêncio.

Eu, com o coração a bater-me forte, contemplei os meus Pais, a tentar perceber as suas reacções. Vi lágrimas em fio pelas faces da minha Mãe, calada. Vi o meu Pai, branco como uma parede caiada à antiga, mas com os olhos a brilharem, a brilharem...

O Paulo, esse mordia, os lábios, nervosamente.

E o Pedro, agora sereno, prosseguiu:

- Numa espécie de atordoamento, eu ia fazendo o mal que cabia nas minhas possibilidades à minha Pátria. Só posso resgatar-me fazendo agora por ela o bem que puder! O Pai e a Mãe e os que me conhecem, sabem que sou pacífico e que por isso me vai custar infinitamente pegar em armas. Como sabem que sou um comodista e por isso me será difícil viver ao Deus dará. Cumprirei porém o meu dever até aos seus extremos limites. Quanto mais o sentir doer-me na carne, mais bendirei a penitência, porque assim me estarei redimindo, porque assim recuperarei o direito à minha verdadeira personalidade. Julgo que se eu fosse por prazer... tinha menos valor, não é verdade? - e depois de sorrir, com aquela doçura antiga, demonstrando até que ponto amadurecera o seu plano, continuou: - Quanto ao meu curso... bem... se eu fosse para a tropa e morresse por lá, depois dele terminado, teria feito apenas despesas inúteis e esforços inglórios. Assim, vou-me à guarda de Deus. Se o Destino me poupar, então virei confiadamente concluí-lo para depois o exercer da melhor maneira.

A Mãe, pela única vez que se pronunciou, fê-lo na tentativa de o reter.

- Mas... se fosses depois de formado... não serias mais útil?

O meu irmão olhou-a nos olhos.

- Mãe... eu não mereço, por enquanto, ser aquilo que sonhei... e que tu sonhas!

O Pai pôs-se de pé. Estava profundamente comovido, mas procurava dominar-se.

- Muito bem, Pedro. Faz como queres. Confio em ti. Aliás eu próprio não sei se me conservarei por cá.

- Continua de pé aquela ideia de ires dirigir o novo hospital de Luanda?

- O Ministro insiste comigo em todos os tons... e a obra, como sabes, atrai-me com mil razões fortíssimas. Até ao fim do Verão tenho de me decidir, dado que o Hospital entrou na fase final da construção e parece que me caberia já o encargo de conduzir a sua montagem, o que seria precedido duma visita às principais capitais do mundo, a fim de me documentar sobre tudo quanto existe de mais moderno e eficaz.

O Pedro sorriu.

- Nesse caso, a família abandona Portugal? Fui eu que lhe respondi, com uma censura

que obrigou todos a rir:

- Pedro?!... Mas lá, como aqui, é tudo Portugal!

- Tens razão! - desculpou-se o meu irmão.

- Mas às vezes ainda enfermo do condenável hábito alfacinha de pensar que o país é Lisboa...

O Paulo, que se levantara e fora para junto da janela, parecia observar com muito interesse o voo duma mosca de encontro à vidraça. O Pedro interpelou-o:

- E tu, Paulo?

- Heim?

- Tu? Decididamente, não queres ir fazer-me companhia?

Ele abanou a cabeça e, de mãos nos bolsos, lentamente, foi-se aproximando.

- Não... e já te disse porquê. - decerto compreendendo que devia uma explicação aos meus Pais, prosseguiu:-Eu vou pedir um adiamento, na tropa. Quero acabar o meu curso o mais depressa possível, especializar-me e ir depois servir os doentes.

- No meu hospital? - gracejou o Pai. - Já estás à espera de protecção?

O Paulo sabia que o Pai estava a brincar.

- Não, Sr. Doutor. Nos meus primeiros anos tenciono andar pelo mato, algures, onde for necessário e puder ajudar os que sofrem. Quero ser útil, útil até me esquecer de mim.

E o Paizinho, muito sério agora:

- Pois acaso não te sentirias útil se me fosses ajudar numa obra que não posso levar a cabo sem auxiliares jovens, capazes e dedicados?

O Paulo encarou o meu Pai sem responder. E o Pedro, num suspiro que não consegui interpretar, observou:

- O Paulo vai rever isso. Na nossa idade, quando somos a esperança de alguém para alguma coisa, realmente não temos o direito de pensar só em nós! O Paulo reagiu.

- Mas eu vou dar sem nada pedir!

E, inesperadamente, eu dei por que falava também.

- ...Ou vais dar-te porque julgas que talvez não te dêem o que pedes!... - e mal acabara de pronunciar estas palavras, com os olhos da família estupefacta poisados em mim, percebi-me escarlate...

É que o sentido oculto do que eu dissera não escapara a ninguém. Pus-me de pé, a fugir.

- com licença... tenho de ir estudar. Amanhã há ponto de física.

E saí.

Mas não tão depressa que não pudesse ver

- meu Deus, naturalmente porque o olhei! - o Paulo a fitar-me numa ansiosa interrogação.

Acabou-se mais uma manhã de liceu. Correu-me muito bem, o ponto de física. Correu mesmo bastante bem a quase todas nós.

Saímos contentes, com os outros e connosco.

Cá fora, o céu azul, as árvores verdes, o sol quente, falam-nos das férias que estão a chegar e que nós, cumpridas as obrigações, vamos ter o direito de viver o melhor possível.

Parece até que cheira a praia, a campo...

A mim, parece-me que cheira a S. Boaventura, a S. Boaventura que o Domingos, o seu actual feitor - e que feitor! - já deve estar a limpar e a arranjar para nos receber.

Penso que este ano vou pedir licença à Mãe para levar a Marta, a Cristina e a Inês a passarem uns dias comigo. E penso também que se realmente formos para Angola, quando tornar a ver S. Boaventura já serei uma universitária, uma mulher feita...

Estamos na esquina onde normalmente as últimas que seguem juntas se despedem "adeus até amanhã!"

E de repente oiço uma voz humilde que me detém.

- Ana... posso falar contigo... num instantinho?

Diante de mim, o Paulo, mais pálido que nunca, todo ele olhos, no desejo e no medo de aproximar-se.

Estendo-lhe a mão... e quando a dele aperta a minha, numa ausência de palavras, percebo que não vou querer ficar muito tempo longe dele, que não devo querer viver sem ele...

Não sei como é, nem porque foi. São coisas para eu mais tarde tentar compreender. Sei apenas que o Paulo pertence também àquele grupo que tem de ir comigo na vida até ao fim, para além do fim: a Mãe, o Pai, os meus irmãos (incluindo a Rosinha-filha) e Ele!

Ele para comigo criar uma nova família, uma família continuadora de tradições e deveres, tão feliz como aquelas de que ambos então seremos partidos.

- Ana...-balbucia o Paulo por fim, - eu não consegui dormir toda a noite. Ana... que quiseste tu dizer ontem... com aquela frase...?

- Era preciso vires à minha procura para mo perguntares?

- Ana... eu não podia esperar... eu...

- Que rapaz tão pouco paciente!...

Percebo que estou a ser mazinha, de segura, de ditosa que me sinto porque ele há-de ser meu, já é meu, para sempre!.

Então abro o coração.

- Paulo, acho que podes ir pensando em ajudar o meu Pai...

- Ana?!... É o... o sim?...

- Paulo, estamos a dar nas vistas!... (não estamos nada, quem passa nem repara em nós...)

- Ana... - repete ele. - É o sim ? Olho-o nos olhos em que me revejo e sou sincera.

- É o sim, Paulo!

- Ana!!!... Ana?!... Oh, Ana... Engraçado! Nunca tinha reparado que o meu nome tinha tanta música!

Este foi o original, escrito em cadernos de linhas com capas azuis, encarnadas, cor-de-rosa e amarelas (os cadernos do Liceu) que a minha querida Ana Maria Ferreira de Macedo entregou ao meu coração e que li muitas vezes comovida e impressionada, que, para além dos seus naturais defeitos e incertezas (erros de construção, indecisões de forma, falhas de linguagem) tem o cunho da sinceridade e a importância duma vocação que promete definir-se.

Confesso que o senti de tal forma que não hesitei em dar-lhe todo o meu apoio.

Aqui e além permiti-me fazer-lhe umas pequenas emendas que em nada alteram a expressão da obrazinha e em vez de a prefaciar, como me pediu a minha pequena heroína tornada uma mulherzinha, decidi terminá-la com as palavras que aqui ficam.

Agora a Ana Maria está a acabar o sétimo ano, enquanto o Dr. Rui Manuel de Macedo continua a sua missão, em Angola, onde mais tarde, aliás, toda a família pela certa se reunirá. E vivendo tranquilamente o dia a dia, a Ana esperará a hora de ser pedida em casamento pelo Paulo, a hora de se chamar Ana Maria de Macedo de Ataíde Lemos.

E para chegar onde deve, estou certa de que a minha amiguinha nunca precisará senão de cumprir aquilo que lhe digo hoje: - Caminha em frente pela estrada do bem, Ana Maria! Todas as raparigas como tu viverão através de tudo e contra tudo (que há sempre o através e o contra,) ao ritmo da Felicidade!

 

                                                                                Odette de Saint-Maurice  

 

                      

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