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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


SOZINHA / Sara Beirão
SOZINHA / Sara Beirão

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

SOZINHA

 

Num recanto muito conhecido da Beira, vivia em perfeita harmonia um casal modesto.

         Tinha a sua casita sem luxo, mas tão confortável que encantava toda a gente. Possuia também umas propriedades de pouco valor, que, bem amanhadas, davam hortaliça á farta e cereais. Em ano regular, ainda os vendiam.

         Ele, médico municipal, tinha um ordenado que lhe permitia, em vista das suas poucas exigências, passar sem grandes dificuldades. Além disso, a clientela abastecia‑o de tudo.

         Assim, o facultativo e a esposa eram completamente felizes; não desejavam mais.

         Todos tinham os olhos pregados neles. Inveja? Não! Admiração, de verem a felicidade completa instalada, tão simplesmente, naquele lar, verdadeiro exemplo que desejariam seguir e que, por variadíssimas razões, não logravam imitar.

Maria Teresa era uma mulher elegante e sensata, de vontade firme, enérgica. Se Pedro, por vezes, esmorecia na luta que empreendera, encontrava sempre, a seu lado, o espírito forte e desempoeirado da companheira dedicada a estimular‑lhe a vontade, a animá‑lo, a sugestioná‑lo com o seu sorriso bom, a sua graça irresistível.

         Não existiam para ela obstáculos, e, quando o marido vacilava na marcha, logo ela surgia a desvanecer impressões, a desfazer mal‑entendidos, e a vida continuava serenamente.

         Nasceu‑lhes uma filha, Júlia, que era o vivo retrato da mãe. Esperta e linda; tinha grandes olhos negros a iluminar‑lhe a fisionomia franca e expressiva.

         Às vezes, os pais discutiam o futuro da garota.

         ‑ Havemos de dar‑lhe um curso ‑ dizia o médico, entusiasmado.

         ‑ Não é feia; casará antes de o concluir. É quase sempre o destino da mulher.

         ‑ Ora! O saber não ocupa lugar. Quantas mulheres há que tiram cursos e casam sem prejuízo do lar...

         ‑ Excepções. É difícil e exaustiva a missão da mulher. Complexos os trabalhos e inglórios. Tu bem vês como a nossa pequenina casa me absorve; e, todavia, não desempenho o meu papel como desejaria.

         ‑ És a melhor, mais diligente e bela das esposas ‑ rematava, beijando‑a com ardor dos primeiros dias do noivado.

         ‑ Cego, cego que tu és, meu querido... Conheço‑me bem e vejo quanto me falta para atingir a perfeição.

         ‑ Não creio que haja mulher como tu, adorada Teresa!...

às vezes assalta‑me um medo horrível de acabar esta felicidade. Estremeço com receio de te perder... Somos tão felizes!

         Teresa ria com vontade, sem sombra de temor pelo futuro, que antevia resplendente de sol, e respondia‑lhe:

         ‑ Ah!... não, não perdes... Confio na minha robustez e na tua solicitude. Se eu adoecesse, tenho a certeza de que o teu amor me ampararia; que o teu bem‑querer e saber me haviam de salvar. Ainda que um grande mal viesse, saberia... O teu afecto é para mim esteio seguro!

         ‑ Mas que conversa-... Pensemos no presente, deixando as tragédias para o momento oportuno. Vivamos o dia que passa; entreguemo‑nos completamente à nossa ventura, sem estragar as horas luminosas com ideias tétricas e pensamentos sem pés nem cabeça.

         As duas bocas juntaram‑se, num prolongadíssimo beijo. Júlia veio, a correr, abraçar os pais. O grupo estreitou‑se numa união tão intima, numa efusão tão completa e sincera, tão expressiva, que tentaria um escultor.

         Júlia tinha seis anos. Robusta e desembaraçada, olhos profundamente inteligentes. Era ela o mais forte dos elos a prender, cada vez mais, o ditoso casal.

         Como eles lhe queriam!

         Com uma intuição notável e uma precocidade extraordinária, compreendia o seu papel importantíssimo.

         ‑ Quando eu for grande ‑ dizia à mãe, muito contente ‑ também hei-de casar.

         Os dois riam‑se e ela, sem atingir a causa desse riso, não se desconcertava.

         Tinha já uns vagos projectos a respeito do futuro. Desejaria ter, sempre, um ambiente de ternura como sentia à sua volta, e afigurava‑se‑lhe que isso não era muito difícil.

         Não via claro para além das paredes do lar ditoso em que morava. A boa sorte era aquilo; muitos beijos, muita alegria, bastantes bolos e' um grande jardim para brincar. A abundância que a cercava parecia‑lhe tão natural que nem pela cabeça lhe passava que houvesse alguém que a não fruisse.

         A família Almeida não queria convivência. Viviam quase isolados. Não tinham tempo para visitas e, especialmente, não desejavam perturbar a calma do seu delicioso cantinho. Todo o contacto exterior, todo o olhar estranho que mergulhasse naquela doce intimidade, parecia‑lhes uma profanação.

         Nas tardes calmosas iam para os pinhais; a pequena corria, à vontade, atrás dos insectos ou rebolava‑se no musgo.

         Teresa levava sempre trabalho; Pedro, se tinha ocasião para as acompanhar, levava os jornais do dia, revistas estrangeiras, que o traziam a par dos progressos da ciência e do movimento do mundo.

         Era essa a única extravagância. às vezes lia, também, algum livro recente que a ambos interessava.

         Nem uma sombra nas almas. Estrada clara por onde marchavam, serenamente, sem grandes ambições, mas com uma fé e uma segurança recíprocas que a ambos dava energia para estugar o passo.

         Pedro, de vez em quando, tinha pressentimentos trágicos. Se ele faltasse, que seria do grupo que era o seu enlevo e preocupação?

         Educaria a filha de forma a poder ganhar a vida, garantindo‑lhe, assim, o futuro que doutra forma era impossível. Os proventos de médico de aldeia não davam para amealhar o suficiente

para assegurar o porvir.

         Teria tempo de a educar?

         Nos momentos em que esses pensamentos desagradáveis o assaltavam, as feições alteravam‑se‑lhe, mas ficava calado, sem coragem de comunicar à mulher os receios que as suas lucubrações engendravam e que iriam gelar‑lhe o riso nos lábios, entenebrecer‑lhe os dias que ela via sempre cor‑de‑rosa.

         Havia apenas um amigo íntimo com quem se abria em largas confidências. Era o padrinho

de Júlia.

         Tinham a mesma idade, estimavam‑se como irmãos e desde os bancos da escola primária seguiam juntos.

         Arranjaram partidos que, por singular acaso, pertenciam à mesma comarca. Eram, portanto, vizinhos.

         Viam‑se frequentemente e com a maior amizade continuavam vida fora.

         ‑ Bom ‑ respondia‑lhe Roberto Esteves

‑ isso são fantasias tétricas. Que diabo! tu não tens mais que fazer que inventar pensamentos torturantes? Nas mesmas condições estou eu, ou talvez pior, e não me entrego a essas meeditações impressionantes que tiram a energia para trabalhar. Sabes que mais? Se morreres, enterram‑te, e a rapariga não ficará por criar, nem por educar. Coração ao largo e para a frente é que é o caminho. Deixa‑te de magiquices.

         - Tens razão. Isto chega a ser mania. Para qualquer lado que me volte, vejo pairar sobre o horizonte nuvens carregadas de tristeza.

         ‑ Tudo isso é muito bom para quem gosta de rebuscar pesares; mas guarda para ti essas ideias e não comuniques a tua mulher tais visões. Podias impressioná-la e contribuir para desfazer a ventura que Deus vos deu.

 

Passaram‑se meses sem que coisa alguma anunciasse ou desse mostras que as previsões de Pedro viessem a tornar‑se na mais desagradável realidade. A mesma harmonia no lar, o mesmo sorriso animador de cada hora. Júlia com esplêndida saúde.

         Corria um Verão quente.

         Os ricos da terra abalaram para as praias. Os outros tinham de se aguentar a pé firme.

         A vila de Alvor ficava numa baixa e a torreira era ali insuportável.

Pedro lembrou‑se de alugar, também, uma casita modesta para irem refrescar. Que bem faria à pequena o belo ar do mar.

         Maria Teresa achou prudente não irem.

Era um luxo que lhes alterava as finanças; mais valia guardarem, pouco que fosse, para a educação da garota e para o seu dote, sendo possível. Depois, para quê? A filha era forte e eles tinham boa saúde, graças a Deus.

         ‑ Tu sabes melhor que ninguém quanto o dinheiro custa a ganhar.

         ‑ Tens razão; o teu senso prático é o meu maior orgulho. O ano, porém, é excepcional. Ninguém se lembra de uma calmaria assim.

         ‑ No consultório está sempre fresco. Iremos todos para lá. Tu é que não deves expor‑te, porque és a alma e vida deste lar e deste povo. Querem‑te muito e com razão; fazes da clínica um sacerdócio; sacrificas‑te exageradamente e isso... não entendem nem avaliam todos.

         ‑Ora... coitados... não sabem o que me hão‑de fazer... Creio que todas as galinhas da região põem ovos para nos mandarem.

         ‑ É certo; são pobres, que mais hão‑de dar? Mas não te exponhas tanto, para bem deles, também. Precisam de ti como do pão, e como a saúde é o dom mais precioso que existe, não a desbaratemos.

Apareceu numa aldeia próxima o primeiro caso de tifo. As fontes de chafurdo em quase todos os lugarejos ofereciam admirável ensejo para a cultura dos bacilos e, portanto, para o desenvolvimento do terrível mal.

         Maria Teresa alarmou‑se. Se o marido se contagiava naquele foco, ele que não evitava sair pelo pino do sol?...

         Toda a região estava em péssimas condições higiénicas. Havia estrumeiras nas ruas e os currais dos porcos eram contíguos aos casebres ou sob as habitações, difundindo emanações pestilenciais.

         ‑ Não sei como a epidemia não alastra, devastando tudo!... Que calamidade se tal acontece.

         ‑ Háos bons ares que tonificam e afastam as mais graves doenças.

         ‑ Realmente, se a natureza não faz alguma coisa... mal de nós.

 

        Um dia Maria Teresa acordou com a cabeça pesada. Sentia um abatimento que a inibia de saltar da cama com a costumada presteza.

         ‑ Tomas uma cafiaspirina e isso passa‑te.

         Serviram‑lhe o pequeno almoço no leito, contra o seu costume. Levantou‑se tarde. Sentia‑se esmagada por aquelas ardências com fúrias tropicais.

         Mil vezes os rigorosos invernos, de que se defendiam à braseira, do que aquele inferno que abrasava a terra e as pessoas; que asfixiava, que queimava.

         Quando Pedro chegou, à noite, não a encontrou melhor. Olheiras negras e profundas e uma prostração desusada. Alarmou‑se, mas conteve‑se.

         ‑ É conveniente meteres‑te na cama. Deve ser uma gripezita, mas antes prevenir que remediar.

         Maria Teresa sentia‑se, pela primeira vez, apreensiva. E, numa voz sumida, murmurou tristemente:

- Se for só isso... Pedro, tenho medo... ‑ segredou, segurando‑lhe o pulso.

O marido sorriu para a tranquilizar.

         ‑ Não parece de ti essa atitude, Teresa... Que preocupação por uma simples e vulgar dor de cabeça... É preciso coragem... Não pareces a mesma mulher destemida, que me animava quando me assaltavam pensamentos sombrios...

         ‑ Nessa altura, meu amigo, temias o que não existia, o que a tua imaginação criava; hoje é diferente. Há Sintomas que aterram... O tifo que ronda...

‑ Meu Deus!... que lembranças inoportunas... Tu não tens nada... Deixa meter o termómetro.

         - Deito‑me; depois farás as tuas observações.

         Ao introduzir o termómetro notou, aterrado, que o corpo da mulher escaldava.

         Um suor frio orvalhou‑lhe a fronte. Teresa não despregava os olhos dele, ansiosa.

         ‑ Umas décimas ‑ respondeu à muda interrogação ‑, para o que contribui a tua excitação nervosa; mas isto desaparece num instante, vais ver.

         Teresa permanecia aniquilada. Toda a esperança tinha fugido. Notava‑se‑lhe no olhar melancólico a conformação com o destino, irrevogável, que lhe despedira o golpe fatal.

         ‑ Desejo evitar‑te todas as arrelias, meu querido Pedro, mas não posso ocultar‑te que sinto a garra da morte cravada em mim.

         ‑ Que devaneio de péssimo gosto, Teresa.

         ‑ Bem sei, perdoa este mau bocado. Nunca os meus vaticínios falharam... Teria dado uma celebridade no género da Madame Bruilhard ‑ disse, sorrindo tristemente. ‑ Fui sempre optimista, mas infalível nos meus vaticínios. A morte é um fenómeno natural. Não temos que nos surpreender, nem alarmar. E se, de facto, ela tivesse de levar algum de

nós nesta quadra da vida, antes eu do que tu. A nossa filha, a nossa razão especial de existir, não poderia viver sem o amparo do pai. Mil vezes eu.

         ‑ Teresa, Teresa, por amor de Deus, tem piedade de mim. Nem sequer o diagnóstico está feito... Uma dor de cabeça é a coisa mais vulgar que existe.

         ‑ Esqueces‑te da epidemia que grassa e da febre que me tomou de assalto. Morro com certeza, meu amor.

         Pedro apertava‑a de encontro ao peito como que a querer segurar aquela vida, a que queria mais que á sua; a voz sumira‑ se‑lhe na garganta.

         ‑ Desejava despedir‑me da nossa filha... Mas não, não a devo ver... Afasta‑a de mim, salva‑a, isola‑a... Quero que ela viva.

         Pedro, desorientado, caiu de joelhos junto da cama, a soluçar. As mãos dela a arder acariciavam‑lhe a cabeça, onde as ideias se baralhavam e confundiam numa perturbação doentia. De repente, uma reacção inesperada ergueu-o.

         ‑ Isto não pode ser. És uma criança e eu outra, que te escuto. Assiste‑me o direito de te censurar e de tomar medidas enérgicas. É impróprio de ti essa atitude. Teresa, lutemos... Tu não tens o tifo; mas mesmo que o tivesses, não seria um caso fatal. Quantos tifosos escapam... Fica, porém, certa de que, se morresses, eu não resistiria. Perante esta declaração peremptória, vê se reages e se tens ânimo de persistir numa ideia que, sabes bem, me poderia fazer perder a razão.

         Teresa calou‑se, mas adivinhava‑se facilmente que estava preocupadíssima.

         Os sintomas começaram a ser alarmantes. O mal avançava. Veio o amigo querido, tentou tranquilizá‑lo. Tudo inútil.

         Já desalentado, telegrafou a um mestre de Coimbra para vir com urgência. O sábio estava ausente e só dois dias depois apareceu. Constatou tratar‑se de um caso de tifo, agravado pela depressão moral da enferma, dificultando a indispensável luta a travar com o terrível flagelo.

         A doente entrou em delírio. Sempre o fantasma da morte a aterrá‑la, a persegui‑la. A pequena foi para casa do padrinho. Veio uma enfermeira profissional cuidar de Teresa, cujo estado se agravava dia a dia, hora a hora. Já não conhecia ninguém. Tinha hediondas visões da morte, o seu pesadelo constante.

         Pedro não dormia nem comia. A realidade parecia‑lhe absurda... Seria possível que Teresa morresse?

O mal progredia, afugentando a esperança. O terror dominou toda a gente. Os tifosos da terra estavam salvos... Por que estranha fatalidade seria a mulher do médico ‑ do benemérito incansável que nunca se poupara a fadigas, que a todos os tugúrios levava a esmola do seu saber, a consolação da sua palavra sempre animadora ‑ a única vítima do terrível mal que assolara a região?

         A sorte era realmente cruel!

         Toda a gente da povoação fazia romaria contínua para casa do doutor Almeida. Havia grupos à porta, na ânsia de saber notícias. Olhos esgazeados, bocas dolorosas clamando:

"Senhor, salvai‑a, como ele salvou o meu....... "Acudi‑lhe, Deus todo‑poderoso, amparai‑o nesta hora, como ele tem amparado todos os que sofrem"...

         E rezavam alto... Faziam‑se promessas...

O Senhor dos Milagres teve uma lâmpada acesa todas as noites; grupos tristes iam em romagem, à meia‑noite, implorar ao Altíssimo para conceder vida e saúde à mulher do seu médico, do seu benfeitor. Passavam como sombras, penetravam no templo, caiam de borco gritando Padre‑Nossos e Ave‑Marias, como se Deus estivesse surdo.

         Horas angustiosas, dias e noites sem fim. O Todo‑Poderoso não escutou ninguém!

Certa manhã, quando o sol irrompia por detrás das serras, das bandas do Oriente, como uma bola de oiro, quando os passaritos despertavam cantando um hino triunfal á natureza, à vida, Maria Teresa expirou.

         Não teve saudades do mundo, nem sentiu a partida. Tinha, havia muitos dias, perdido a razão. Delirara sempre, numa inquietação que não lograram acalmar. Foi um pânico. Pedro não chorou, foi o seu grande mal. Assistiu a tudo. Não quis abandonar um instante a querida morta, a companheira adorada, a alma da sua alma, a vida da sua vida.

         Levaram‑na. Quis ir até ao cemitério. Não verteu uma lágrima; o seu estado, porém, era confrangedor. Parecia um cadáver que se movia. Não via nem entendia o que lhe diziam. Ninguém lhe ouvira uma lamentação, nem conseguira que ingerisse o mais leve alimento.

         Roberto não o deixou um instante. Todos foram de uma solicitude comovedora. Cuidavam‑lhe de tudo sem que tivesse de intervir. A pequena não soube do tristíssimo acontecimento. Disseram‑lhe, vagamente, que a mãe tinha ido fazer uma grande viagem.

‑ Sem o pai? ‑ interrogou Júlia, com a sua habitual sagacidade, como que certa que os dois eram incapazes de se separar, por pouco tempo que fosse.

 

         Pedro todos os dias fazia uma demorada visita ao túmulo da mulher. Podia asseverar‑se que o golpe profundíssimo que sofrera lhe fizera esquecer a filha. Não falava nela. Mantinha‑se num silêncio doentio e acabrunhador.

         ‑ Isto não pode continuar ‑ disse‑lhe um dia Roberto. - Tens de mostrar que já não és uma criança. A lei da vida... é a morte! Todos temos de seguir o mesmo caminho. Que diabo!... Lá irás ter e é sempre curta a demora, por mais longa que seja a existência. Vamos... coragem'

         Não POSSO... não viverei sem ela...

         ‑ Essa agora! E a tua filha?... Foi culpada de vir ao mundo? Em quem impende a responsabilidade dos seus dias?

         ‑ Não sei. É obra da natureza este estado de espírito e do corpo. Ela era uma parte integrante do meu eu. Desmembrou‑se... Parece‑te fácil alguém poder viver partido ao meio?

‑ Isso são frases que se escrevem nos romances, mas que, praticamente, não têm significação. Vive‑se quando é absolutamente preciso viver e alguma coisa de superior nos impõe essa obrigação. A morte moral deixa o corpo vegetar e resistir aos grandes abalos. Levanta‑te, trabalha e aguenta o fardo da existência, por mais pesado que te pareça.

         ‑ Não posso ‑ respondia Pedro, sucumbido. ‑ Sinto agora, mais que nunca, o poder imenso desse afecto; Teresa era tudo para mim.

         ‑ Exageras. Não és o primeiro viúvo que surgiu no mundo, e não me consta que nenhum se suicidasse pelo facto de perder a respectiva companheira.

         ‑ As sensibilidades não são iguais... Cada indivíduo tem o seu temperamento e o meu é desgraçado, concordo, mas não tenho forças para o modificar, nem encontro remédio para esta dor. Não me domino, nem sei resistir.

         ‑ E a tua filha? Já pensaste a sério nesse problema? No desastre que ocasionaria a tua morte?

         ‑ Só ela tem obstado a que ponha termo à vida, a esta vida que me pesa e que sem a minha adorada morta representa um tormento sem par.

 

Os meses corriam lentos para Pedro. Tinha pressa de acabar aquele triste fadário. A saúde, gravemente abalada pelo tremendo golpe moral, começava a ressentir‑se de uma forma alarmante. O estado de fraqueza a que chegara era espantoso. A neurastenia tomava proporções assustadoras. Com muita dificuldade exercia clínica. Os doentes que podiam arrastar‑se vinham ao consultório, porque o médico, notava‑se claramente, sucumbia.

         Veio um antigo condiscípulo auxiliá‑lo e tentar tratá‑lo. Negou‑se, obstinadamente, a seguir as suas prescrições.

         Todos se sentiam profundamente impressionados com o rumo que os acontecimentos iam tomando. Roberto, mais que ninguém, tentava demovê‑lo.

         ‑ Não é humana a tua atitude. Tens de reagir... de dominar‑te...

         ‑ Não posso ‑ respondia invariavelmente.

         O mal progredia a olhos vistos. Uma manhã, as pernas recusaram‑se ao menor movimento. Ficou de cama. Não se levantou mais. A tísica tomara‑o de assalto e rapidamente o devorou.

         Foi uma desolação geral. Ninguém se conformava com a perda do hábil clínico, um bom, um santo. Não era fácil substitui‑lo. Cada cliente era um amigo dedicado. Alvor estava de luto.

         A morte de Pedro deu ensejo á maior manifestação de pesar que podia imaginar‑se. As pessoas mais gradas da terra e das cercanias incorporaram‑se no imponente cortejo. O povo, em peso, acorreu vestido de dó. Ouviam‑se clamores, vertiam‑se prantos sentidissimos.

         Cada qual alardeava os favores recebidos.

O médico fora, para todos, uma espécie de Deus. Não havia um que, ao seu talento, dedicação e saber, não devesse a vida ou a cura de alguém de família.

         Das azinhagas vinham incorporar‑se no préstito ranchos chorosos. A filarmónica quis prestar ao amigo de todos a última homenagem, acompanhando‑o à eterna jazida.

         Foi um abalo, um estremecimento, quando as primeiras notas de uma marcha fúnebre, das mais emocionantes, ressoaram pelos ares. Viam‑se lágrimas em todos os olhos. A dor unira, num estreito abraço, ricos e pobres. Não havia distinção de classes para aquele intenso sofrer.

         A pequena era a preocupação de todos, mas ninguém sentia coragem para tomar sobre os ombros tão pesado encargo. Era uma responsabilidade... e... uma maçada.

Tristíssima coincidência deixava a orfãzita nas mais penosas circunstâncias. Maria Teresa já não tinha ninguém de família,e Pedro ficou órfão pouco depois de nascer.

         Júlia permanecia, desde a doença da mãe, em casa dos padrinhos, mas era dificil poder continuar ali. Aqueles não eram ricos; tinham filhos e, além disso, Octávia, bastante desabrida, era dotada de um génio irascível, sem nenhuma contemplação pelos desastres alheios.

         Roberto não tinha dúvidas a esse respeito. Depois, era ciumenta, impetuosa e de uma ganância que não conseguia esconder. A hospedagem da afilhada, quando o pai desapareceu, tornou‑se-lhe insuportável. Além da canseira, havia a despesa o que para ela era muito importante.

         - Temos filhos - dizia, de mau humor

- queres prejudicá‑los? Vamos cuidar dos outros, deixando os nossos? Lembra‑te que não possuímos meios para tantas fanfarronadas!... Queres que morramos de fome? Não estou para a aturar; declaro‑te que me Sinto fatigada.

         - É preciso ter um pouco de paciência... Entendes que devo atirar esta pobre criança para a rua?

         - Arranja‑te como quiseres; não sou mãe dela, e os meus filhos chegam bem para me ralar; não tenho nada com os dos outros! Mete‑a num asilo; é lá o lugar dos que não têm pais.

         ‑Octávia... e és tu que assim falas?! Imagina por um instante que acontecia o mesmo aos nossos?!...

         A mulher a nada atendia; tinha fúrias que o marido, a todo o transe, queria evitar.

O desventurado médico passava dias amargurados. A pequena era, para ele, um tormento, apesar do muito que lhe queria...

         Que fazer? Como sustentar aquela luta tremenda com a mulher? Com que direito lhe havia de impor a filha de Pedro? Era um problema complicadíssimo, de dificílima solução.

         Na aldeia não podia resolver nada. Pensou, então, em transferir a residência para uma cidade, onde teria maiores facilidades. Poderia, assim, arranjar qualquer forma de internar a pequena, e ele mesmo auferir de maiores proventos para poder custear as despesas.

         Júlia, com os seus poucos anos, inteligente, adivinhava toda a verdade. Adorava o padrinho, tinha nele uma fé absoluta, mas pressentia que estava em terreno movediço.

         Contaram‑lhe que os pais tinham partido para uma grande viagem; aceitou essa piedosa mentira com a maior calma. Não chorou; entendia que todo o pranto era inútil perante o desastre de que suspeitava.

         Naquela idade é fácil esquecer!

         Ninguém lhe falava nos queridos ausentes, mas via os olhos dos amigos marejados de lágrimas quando a fixavam. Tinha a certeza que os pais não regressariam nunca dessa viagem eterna. Ás vezes desabafava com o padrinho.

         ‑ Eu fico aqui sempre?

         ‑ Creio que sim, meu amor.

         ‑ Não será uma grande despesa?... Eu nada lhe posso...

         Roberto sentia o coração dilacerado. Abraçava a afilhada e mudava de conversa para não trair a comoção.

 

         Júlia ouvia, às criadas, muitos comentários a seu respeito, que a orientavam e lhe davam a noção exacta da sua situação económica, se ela a não tivesse adivinhado há muito.

         Quase todas as visitas que vinham a casa do padrinho não falavam senão na falsa posição que ela ocupava ali e não se coibiam de lamentar a triste sorte de Octávia por ter de aturar aquele pegamasso, sem eira nem beira, aquele fardo realmente pesado. E falavam alto, como se ela fosse surda ou não pudesse ainda entender e sofrer com tão duras observações. Não presumiam que aquela extraordinária precocidade, que os acontecimentos trágicos tinham desenvolvido de uma forma rara, não perdia uma palavra do que diziam, concluindo que já não tinha pais... que estava pobre e Octávia a desejava ver pelas costas.

As cenas desagradáveis entre Octávia e Roberto eram agora frequentes. Júlia, muitas vezes, fingia que dormia, para melhor se orientar sobre a verdade dos factos.

         Uma noite, depois de uma discussão violenta, ouviu o padrinho declarar irado:

         ‑ Pois bem, a pequena não te incomodará muito tempo; hei‑de conseguir colocação no Porto. Iremos, e uma vez ali, interno‑a num colégio.

         ‑ Num colégio... ‑ clamou esbaforida Octávia. - Não faltava mais nada... E os teus? Encafolia‑los num asilo?... Ah! não! a isso me oponho eu.

         ‑ Não te aflijas, que tudo se há‑de arranjar sem te prejudicar nem aos nossos filhos.

         Júlia ouviu tudo. Ficou aterrada... Deus do Céu, onde iriam metê‑la?... Estava condenada a viver sem afectos... Nem o padrinho, o seu grande amigo, lhe queria bem.

Ia fazer dez anos; tinha a noção das coisas. Estava aflitíssima. Nessa noite, se não dormiu, também não pôde chorar.

         Nunca mais a viram divertir‑se, e, como não queria tornar‑se pesada, ia para a cozinha e ajudava as criadas em serviços leves. Queria fazer tudo. Se ela pudesse pagar a hospedagem, pelo menos com o seu trabalho...

         As servas repeliam‑na com mau modo.

         ‑ Tire‑se lá, a menina não presta para nada... Não bastavam os que cá estavam, ainda era preciso esta abantesma. Não faltava mais nada à senhora, senão ter que aturar os

filhos dos outros...

         Júlia sucumbia! Não havia forma de abrandar a fúria da madrinha nem das serviçais, que eram o reflexo da patroa.

         Lembrava‑se, então, dos tempos idos. Tão felizes todos... E ela tão acarinhada, sem lhe faltar coisa alguma. Agora, até as saudades era obrigada a esconder. Não ousava falar dos pais a ninguém.

         A sua índole, alegre, ia‑se transformando com os acontecimentos. Sentia‑se de mais ali e desprezada. Tinha a impressão que até o ar que respirava fazia falta à madrinha.

         Todos os afagos desta eram para os filhos, o que era natural; mas tratava‑a tão mal... Um simples olhar parecia‑lhe que a trespassava como uma seta.

         Só o padrinho tinha, para ela, palavras afáveis, sorrisos bons, mas logo que Octávia entrava mudava imediatamente de expressão. à Júlia não escapavam estes pormenores e sofria profundamente.

         Quando ele chegava, tinha incontidas explosões de alegria. Saltava‑lhe ao pescoço, doida de contente.

         ‑ Querido padrinho... parecia‑me que nunca mais voltava.

         A sua alma, de tão rica sensibilidade afectiva, concentrou nele todo o bem‑querer, toda a ternura do seu temperamento ardente. Roberto compreendia os delicadíssimos sentimentos daquela criança meiga, mas via, também, claro, que estava em jogo a tranquilidade do seu lar. Não podia hesitar. Era forçoso interná‑la, custasse o que custasse. A mudança para o Porto não podia fazer‑se sem ter ali, certa, uma situação.

         Meteu ombros à empresa. Moveu grandes empenhos. Tudo isto porém levava tempo,e a pequena estava a afrontar a mulher. Queria dar‑lhe uma posição para vogar na vida desembaraçadamente, sem estar à espera de um casamento sempre problemático.

         Correram larguíssimos meses. Finalmente partiram, e instalaram‑se modestamente na Invicta. As despesas eram maiores, mas os proventos muito superiores.

         Falar a Octávia em internar a afilhada num colégio era atear o incêndio que lavrava desde que a pequena vivia com eles. Não a convenceria nunca. Conhecia‑lhe sobejamente a índole. Mas, como ela não podia fiscalizar exactamente os lucros que ele auferia, ser‑lhe‑ia fácil pagar a mensalidade sem ela dar por isso.

         Informou‑se do melhor colégio, foi ver a instalação, falou com a directora e combinou que a afilhada viría nas condições em que estavam todas, mas era indispensável dizer‑se que estava de graça. Tinha de ser assim para que Octávia o não flagelasse continuamente.

         Esse facto, à directora, nada importava. Pelo contrário, sabia‑lhe bem a fama de uma boa acção, sem gastar um real. Era de um certo efeito ter educandas de favor.

         Roberto preparou a pequena com mil delicadezas, numa ida ao sapateiro, que a mulher não consentia que fosse o mesmo dos filhos.

         ‑ Tens de te separar de nós.

         Júlia empalideceu, mas não disse uma palavra.

         ‑ Precisas educar‑te, para seres uma mulher independente, para poderes ganhar a tua vida. Bem vês que pouco tenho, e esse pouco, que de boamente repartiria contigo, não o posso fazer; o teu critério já adivinhou porquê e também é tão insignificante que não te garantiria o futuro.

         A pequena olhava‑o estarrecida. Era então inevitável que estava condenada a viver sempre e para sempre afastada daqueles a quem mais queria... Uma profundíssima tristeza ensombrou‑lhe o parecer usualmente alegre.

         ‑ E nunca mais vejo o padrinho?

         ‑ Então não havias de ver? Irei visitar‑te muitas vezes.... Sempre que os meus afazeres o permitam.

         Júlia compreendia perfeitamente que o padrinho era obrigado por Octávia a proceder assim. Era ela, sempre ela, com aquele ódio que não podia e que não sabia explicar, quem manobrava na sombra para a afastar de casa.

         ‑ Tu estás uma senhora no pensar e no sentir, por isso posso falar‑te claramente. Pago as tuas mensalidades, exactamente como pagam todas as educandas, mas... tem de se fingir que estás por favor. Já combinei tudo com a directora. Tu não dizes nada; está entendido, não é verdade? Já se vê que isto tudo é para evitar aborrecimentos.

         Não se explicou mais, nem era preciso. Júlia tinha compreendido de sobra.

         - Não o verei mais... - disse, abraçando‑o a soluçar.

irei visitar-te, está prometido.

         - Tenho saudades de todos... Mas sei e vejo bem que a madrinha não gosta de mim. Porquê!?... Ignoro‑o. Se soubesse o que havia de fazer para lhe agradar! Gostava tanto que ela fosse minha amiga.

         - Ela estima‑te... Tem aquele feitio... Não se faz caso. Não vale a pena ficares apreensiva por isso.

         Ficou combinado que no dia seguinte entraria no colégio. Octávia estava radiante. Livrava‑se daquele empecilho, como ela lhe chamava, e demais a mais sem o marido gastar dinheiro... Estava, como todos, convencida que a pequena entrava por esmola.

         Os filhos de Roberto, João e Maria do Carmo, abraçaram-se à companheira de folguedos a chorar. Júlia estreitou‑os ao peito, comovida. Octávia despediu‑se secamente. Nem no momento da partida logrou esconder a má vontade que tinha à afilhada.

 

Corria o Outono. O dia estava nublado e triste. Saíram de manhã; os passeios estavam húmidos, como se tivesse chovido. A população matinal agitava‑se apressada. Costureiritas, vendilhões, criadas a caminho do mercado cruzavam‑se com eles.

         Júlia observava esse movimento de trabalhadores, que corriam inquietos e febris a moirejar o pão. A vida, afinal, era aquilo: o trabalho e a luta. Era para ganhar também

o seu sustento, que o padrinho a levava para o colégio. Pois bem pensava: "hei‑de mostrar a todos a minha força de vontade".

         Sem dizer uma palavra, ia preocupadíssima com o que via. Roberto olhava‑a enternecido. Sentia que Júlia sofria um grande desgosto em se separar dele. Pobre pequena... tão afável... tão carinhosa... tão boa. Seria mais uma filha, e que importava isso? Tinha a certeza que nunca havia de ser pesada. Mas o génio de Octávia opunha‑se à realização dessa ideia generosa. E em primeiro lugar estava a paz do lar constituído. Tinha que ser.

         Chegaram finalmente ao colégio, situado numa avenida espaçosa, alegre e moderna.

- É aqui - indicou o médico, apontando‑lhe um belo edifício de linhas sóbrias e aspecto grandioso.

A pequena estremeceu como se fosse entrar numa prisão. As lágrimas bailavam‑lhe inquietas nos olhos. Foi preciso um grande esforço para as reter.

         O grande portão estava escancarado. Dava para um vasto átrio, com amplos bancos em toda a volta, onde se sentavam, enquanto esperavam, as pessoas que vinham buscar as alunas externas. Havia grande movimento. Era a hora da entrada.

         Um senhor alto e elegante, com ar distinto, longas barbas já grisalhas, chegou com uma rapariguinha loira e linda. Puxou o cadeado da campainha. As duas pequenas trocaram olhares de Simpatia.

         Apareceu O porteiro, que cumprimentou com a maior deferência o recém‑vindo, anunciando em voz alta, como era costume sempre que aparecia alguma educanda: a menina Berta de Lencastre.

         Roberto fixou‑o. Era, sem dúvida, o grande matemático, glória do Porto e da Nação, que acompanhava a filha.

         Ficou contente. Acabava de ter mais uma prova de que o colégio era frequentado pelas pessoas de mais categoria da cidade. Não lhe mentira a directora, quando afirmara que as "élites" infantis vinham ali receber o pão do espírito.

         Deteve‑se ainda uns instantes para ver aquele formigueiro que acorria apressado. Umas com pessoas de família ou criadas, e ainda muitas aos pares, que se adivinhava facilmente serem irmãs.

         Depois de fazer as suas observações, resolveu‑se a tocar. O porteiro saudou‑o e perguntou:

         - Quem devo anunciar?

         Roberto entregou‑lhe um cartão.

         - Queira entrar; vou comunicar à senhora directora. É uma nova aluna, não é verdade?

         ‑ Sim; ela já sabe.

         Subiram dois lanços de escadas e entraram na sala.

         A pequena escalpelizava tudo, preocupadíssima e curiosa. Como poderia suportar aquela clausura, sem ninguém conhecido? Tremia só de lembrar‑se que alguns minutos depois o padrinho partiria, para voltar, sabia Deus quando... Certamente se iria esquecer dela, e Octávia faria tudo para o desviar daquele afecto, o único que lhe restava na vida.

         Como seria a criatura a quem a iam entregar? Os olhos fixavam insistentemente a porta por onde devia entrar a fera ou santa, a quem iam confiar o seu pobre destino.

         Ouviu‑se um ruído de passos, um frufru de sedas, a porta abriu‑se e a directora entrou. Não era muito alta; um pouco cheia, podia todavia afoitamente dizer‑se uma mulher elegante. Fisionomia inteligente, expressão insinuante, olhos pequenos, perscrutadores, parecendo penetrar até ao mais recôndito da alma de cada um, boca grande abrindo‑se naturalmente num sorriso acolhedor.

         Mas havia no todo da criatura que Júlia tinha na frente, qualquer coisa que a impressionava desagradavelmente. Tinha um todo varonil, mãos grandes, dedos muito compridos e articulações grossas, gestos decididos e enérgicos. Adivinhava‑se‑lhe no semblante uma vontade de ferro, uma índole indomável. No entanto, irradiava simpatia.

         Júlia teve um mau pressentimento. Sentiu um terror indescritível, sem saber explicar porquê. O que a esperaria?

  1. Justina afagou‑a com imenso carinho.

         ‑ Vais gostar de estar no colégio. Estudarás muito, mas terás também ranchos de meninas para brincar. Vou fazer‑te a primeira apresentação.

         Premiu o botão da campainha.

         ‑ A menina Berta Lencastre que venha à sala ‑ disse à criada.

         Daí a pouco, que singular coincidência, apareceu a rapariguinha loira que tinha encontrado à entrada. Vinha sorridente. Os cabelos de oiro, em grandes canudos, emolduravam‑lhe o rosto expressivo.

Júlia sentiu uma viva simpatia pela futura companheira.

         - Anda cá, Berta, quero apresentar‑te Júlia de Almeida. Espero que a guies nos primeiros passos e que sejam muito amigas.

         - Nós já nos conhecemos - respondeu Berta alegremente. Encontrámo‑nos à entrada...

         - Ah! sim? Pois muito estimo. Olha, Júlia, deves seguir sempre o exemplo de Berta, que não irás mal.

         As duas pequenas apertaram‑se as mãos como que a selar um pacto formal que devia ser para toda a vida.

         - Esta menina ‑ disse para o dr. Roberto a directora ‑ é das melhores alunas do colégio. Os seus doze anos desenvoltos são uma promessa, que me parece não falhará. É filha do grande matemático.

         ‑ Sai ao pai ‑ comentou o médico ‑. Filha de peixe...

         ‑ Alunas deste estofo são absolutamente precisas num colégio. Instruem‑se e dão honra à casa onde são educadas. Tenho poucas como esta, mas não sou das mais queixosas.

‑ Pensei que havia pouco interesse pelo estudo no sexo feminino.

- Engana‑se, Doutor; noto, nos últimos tempos, um movimento curioso... Uma grande sede de saber, um acordar, significativo, da mulher para abrir caminhos novos. Uma enorme ânsia de independência, de se instruir, que não existia no meu tempo de menina.

         - Oxalá a minha afilhada dê o resultado que ambiciono. Precisa ganhar a sua vida, de ser alguém. Desejo que tire um curso e nesse sentido tem de ser orientada a sua educação.

         ‑ Tem muito boa pinta ‑ respondeu, envolvendo a orfãzita num olhar de simpatia ‑. Deve ser esperta. Farei tudo para que não perca tempo.

         ‑ Não quero que lhe falte nada. Tinha tenção de a educar em casa, mas... V. Exa. compreende, esta pequena não é minha filha. As mães são sempre ciosas dos seus; tudo lhes parece pouco para eles. Minha mulher é de uma afectividade doentia...

         ‑ São assim quase todas. Conheço bem a psicologia da mulher portuguesa... Lido com dúzias de mães. Confesso‑lhe, porém, que é, ainda, a maior dificuldade desta vida o acertar com a vontade de cada uma... Depois, nem todas as crianças são inteligentes, capazes de fazerem os mesmos progressos, e isto é que os pais não podem tolerar. Para cada um o seu filho é o maior prodígio que existe. Se as crianças avançam... a elas se deve, à sua capacidade intelectual, á sua perseverança. Se estacionam, é porque os professores são incompetentes. não imagina quanto custa suportar tantas exigências... Mas, enfim, é a vida; tem, portanto, de se aguentar tal como é. Sem estes tormentos não se pode levar a cruz ao calvário.

         - Tem razão, minha senhora, é cheio de contrariedades este vale de lágrimas.

         Berta conversava, animadamente, com a futura companheira.

  1. Justina, reparando nelas, comentou:

         - as crianças depressa se familiarizam. Entretenho‑me imenso a observar a infância. É um dos meus raros prazeres. Meninas de hoje... mães de amanhã... Gosto da minha missão: preparar as mulheres do futuro.

         - Estivesse essa importantíssima tarefa sempre confiada a pessoas da competência de V. Exa. e o mundo tomaria uma feição diversa.

         Ao dizer isto, Roberto ergueu‑se para sair.

         Júlia deu por esse movimento, voltou‑se e estremeceu. Sentiu que estava chegado o momento da separação. Correu para ele, aflita.

‑ Padrinho... não me deixe só.. Tenho medo...

         O médico, comovido, estreitou‑a nos braços.

         ‑ Então, Júlia, coragem... Já te não lembras do que combinámos? Ficas muito bem. A sra. D. Justina velará por ti... Não estás com pessoas más... Todos te hão‑de estimar... Vais ter muitas amigas... Anima-te.

         Júlia chorava convulsivamente. Percebia que era precisa aquela separação, mas não podia reter o pranto.

         A directora afagava‑a, e Berta, impressionada, tentava consolá‑la.

         Roberto desprendeu‑se da pequena e saiu precipitadamente. Desceu as escadas comovidíssimo. à porta enxugou as lágrimas, à pressa, mas não sem que o porteiro as visse.

         ‑ Custa muito a gente separar‑se dos filhos ‑ disse, consternado.

         ‑ Esta menina não é minha filha...

O homem arregalou os olhos espantado.

         ‑Não é filha de V. Exa.?

         ‑ Não, mas é como se fosse... Quero‑lhe muito... tanto como aos meus!

         ‑ Bem se vê, - respondeu o porteiro enternecido. - Vejo sair muitos pais com a cara de alivio, como quem alijou pesado fardo.

         ‑ Há crianças rabinas; mas esta é excepcional. Tão novita e tem uma compreensão da vida... Depois... é tão infeliz... é órfã.

         ‑ Coitadinha!... Fica bem entregue... A senhora D. Justina tem mão de ferro. Nunca há reprovações... É casa de ordem e de respeito... Tem muito génio, lá isso é verdade; mas quem há que o não tenha? E é sempre para bem das educandas. Aqui os pais não deitam o dinheiro a perder... Todas aproveitam o tempo... Tem uma grande fama este colégio... É o melhor do Porto...

         ‑ Bem sei, por isso o escolhi.

         O médico detivera‑se, um pouco, sem coragem para sair. Parecia‑lhe ouvir ainda os soluços da afilhada.

         Não se enganava. Júlia, quando viu que o padrinho tinha desaparecido teve um violento ataque de nervos. Foi horrível. Levaram‑na para a camita,e Berta foi fazer‑lhe companhia. Veio outra pequena, que tinha fama de espirituosa, para ver se a distraía.

         Por fim, Júlia adormeceu, num sono sobressaltado, inquieto.

 

         Naquela colmeia, o enxame infantil agitou‑se com a notícia da entrada da orfãzita. Não se falava noutra coisa. Havia no recreio conciliábulos, contavam‑se pormenores, narrava‑se a história de Júlia ao sabor da fantasia de cada aluna.

         ‑ É filha de um médico de aldeia, - dizia uma.

‑ Coitada, ficou sem família.

         - É uma pobretona... não tem eira nem beira...

         ‑ Quem sabe lá se o pai seria médico... Quando Deus quer era barbeiro...

         - Sim, um médico ganha bastante... Não deixaria a filha na miséria... Olha o pai da Isabel... milionário...

         ‑ Não confundas... para a aldeia vão os que não sabem nada... os que passam por antiguidade... O meu pai diz sempre: algum de jeito fica por cá.

         ‑ Então a selvagem pôs‑se a chorar?...

         ‑ É uma palerma... fez‑lhe confusão o meio civilizado...

         ‑ Mas se o pai morreu e não tinha nada, quem paga as mensalidades?

         ‑ É o padrinho, naturalmente.

         - Não é tal... fica de borla...

         ‑ Essa não é má... Pagamos nós caro, para a figurona estar de graça... Já viram o desplante...

         - Tens a certeza de que não paga?

         ‑ A certezíssima.

‑ É escandaloso!... A mim parece‑me que tais espécimes deviam ser tratados de uma maneira diferente.

         - Não comerem à nossa mesa e servirem‑nos a nós. Não acham?

         - Apoiado; esta Laura tem ideias geniais! Pelintras á parte... A mamã diz sempre que não gosta de confusões.

         Neste momento apareceu Berta, de braço dado com Maria Adelaide. Do grupo falador, ao vê‑las, alguém disse:

         ‑ Aí estão as amas‑secas !... A directora destinou um papel bem ridículo a estas meninas‑prodígios.

         ‑ De quem falas e para quem falas? - interrogou Berta, formalizada.

         A graciosa Dulce curvou‑se numa reverência, segurando com as pontas dos dedos a orla do vestido, e, em passo de minuete, respondeu com exagerado ar de troça:

         ‑ Falo com mademoiselle Berta de Lencastre, a inteligente, a exemplar filha do maior matemático do País e talvez do Universo.

         Berta olhou‑a sobranceiramente.

         ‑ Que falta de critério e de... espírito...

‑ disse, desdenhosa.

         - Por Deus, senhora minha, não desprezeis o público banal que não tem pergaminhos de nobreza nem de intelectualidade...

         ‑ Imbecis!... ‑ e voltou‑lhes as costas.

Um coro de gargalhadas respondeu a essa atitude de Berta.

         Pouco depois, a filha do matemático passeava de braço dado com a amiga íntima, Maria Adelaide, comentando o caso:

         ‑ Temos de defendê‑la destas idiotas! Isto não são mulheres, são hienas. Bem diz meu pai que a humanidade é constituída por feras, muito mais temíveis que as dos sertões.

         ‑ Que mal lhes fez a pequena, para, antes de a verem, a tratarem com esta fúria?... Que será amanhã?... Temo por ela, que deve ser tão boa como simpática.

         A história de que a afilhada do dr. Roberto estava no colégio por esmola, lavrou como as labaredas de um incêndio ao encontrarem matérias inflamáveis.

         Júlia despertou depois de horas de um sono profundíssimo, agitado por sonhos pouco tranquilizadores. Estava aparentemente calma, mas medrosa... Olhava para todas, desconfiada. Parecia uma avezita colhida numa armadilha. Os afagos davam‑lhe a impressão de ciladas... Não sabia o que pensar das pessoas que a rodeavam! O mundo afigurava‑se‑lhe hostil. Tinha receio de se dedicar, com a ideia fixa de que o destino lhe arrebatava todos aqueles a quem dava o seu afecto.

A directora veio, carinhosamente, animá‑la. Berta não lhe apareceu. Olhou em volta como se sentisse a falta de alguém. D. Justina compreendeu‑a e mandou chamar a filha do matemático.

         - Tem paciência, filha. É uma obra de caridade... Precisas de amparar esta pequena nos primeiros dias. Possui um temperamento nervoso, sacudido por violentos temporais.

         ‑ Sim, minha senhora; ela é tão agradável, que não é sacrifício, mas um grande prazer.

         E dando o braço a Júlia, foi mostrar‑lhe o colégio. As aulas tinham terminado, mas ensinou‑lhe os lugares onde se sentavam os professores e as bancadas que ela e as companheiras ocupariam.

         ‑ As mais estudiosas e inteligentes, quer dizer, as que sabem mais, ficam nas primeiras filas. A mais distinta está sempre ali, - e apontou a ponta do banco. - É o lugar de honra, disputado à má cara pelas ursas.

         Júlia olhou‑a surpreendida.

         ‑ Então os ursos também vêm aprender aqui?

         Berta riu‑se com vontade.

         ‑Ah! Ah! Ah!... tu não sabes: ursas chamamos nós ás mais sabichonas.

         Júlia desatou a rir.

- Tu és ursa? ‑ interrogou muito interessada.

         Berta corou como se tivesse de confessar uma falta e confirmou:

- Sou; o meu lugar é este.

         Júlia envolveu‑a num olhar de enorme admiração, e, de repente, iluminando‑se‑lhe a fisionomia, perguntou:

         ‑ Olha lá, se eu estudar muito também me deixam ser ursa?

         ‑ Ora essa... isso não depende da vontade de ninguém. Quem trabalha é que vence.

         ‑ Então verás... ‑ respondeu decidida - O padrinho quer que eu saiba ganhar a vida... Mas o que eu não queria era estar aqui muito tempo.

         De novo uma explosão de lágrimas lhe orvalhou as faces pálidas.

         ‑ Não chores, não vale a pena. Tens‑me sempre aqui para te acompanhar.

         Uma criada chamou:

         ‑ Menina Berta, embora...

         ‑Vais sair?

         ‑ Vou, mas volto amanha ás nove horas. Só à noite ficas sem mim, em todo o caso vou recomendar‑te a uma amiga.

         Levou‑a consigo. Encontraram nas escadas Maria Adelaide, que lhe disse:

         ‑ Andava justamente a procurar‑te!

As duas falaram em francês para que Júlia

nada percebesse. Berta pediu‑lhe para proteger a pequena contra os ataques irónicos e as fúrias das companheiras, sempre prontas a atirar chufas às que entravam de novo.

         - Ela é tua conhecida?

         - Não, nem é preciso. É infeliz e isso basta para sentir por ela a mais viva simpatia e interesse. Sem pai nem mãe... nós que temos as nossas famílias, que nos acarinham, nos adivinham as vontades e nos esperam todos os dias, ansiosamente, como se viéssemos de uma longa viagem, quase não podemos perceber o que será viver só no mundo.

         - As vezes são esses os mais felizes. Deles todos têm dó...

         - Maria Adelaide, peço‑te, não faças coro com as outras, não sejas assim.

         ‑ Queres que me derreta em lágrimas pela menina?

         - Não; apenas que a acompanhes um pouco na minha ausência.

         ‑ Está entendido. Arvoraste‑te em protectora e queres uma auxiliar!... Pois seja. Fica descansada que evitarei a troça daquelas que não fazem mais que cascalhar defeitos e catar os podres dos parentes das que entram, até à oitava geração... ascendente...

         Berta despediu‑se de Júlia, afectuosamente.

‑ Amanhã cá estou e hei‑de fazer o possível por vir mais cedo.

         Maria Adelaide substituiu‑a. Não tinha porém as qualidades da filha do grande matemático. Pertencente a uma das famílias mais em evidência no Porto, era frívola, rica, e, vivendo num grande meio, nunca ninguém lhe ensinou a atentar no infortúnio dos outros. Em casa via todos sempre ocupados com afazeres impostos pelas obrigações do bom‑tom, não tendo tempo para meditar nas desgraças do próximo.

         Achava o feitio de Berta uma pieguice, mas, como tinha uma grande admiração pela sua inteligência, sempre pronta a auxiliá‑la em casos apertados e ainda e especialmente pelos pergaminhos que possuía, aturava‑lhe tudo, apoiando sem discutir.

         Não deixaria de aproveitar a incumbência, para se rir um pouco -... A vida é uma maçada quando se não sabe tirar dela o devido partido, pensava.

 

         Júlia dormiu profundamente, ainda que atordoada e medrosa. Estava desconfiada e inquieta! Que rebuliço, que movimento, que perpassar de caras desconhecidas...

         Acordou com o toque da sineta... Que seria aquilo? Algumas companheiras sentaram‑se, precipitadamente, nas camas; outras, porém, continuavam a dormir como se nada se tivesse passado. Júlia olhava sem saber que fazer. A vizinha do lado disse‑lhe asperamente:

         - Não ouviste tocar?

         E mais baixo, para que só ela percebesse:

         - Não sabes que aqui andamos todas a toque de caixa?... Levanta‑te... Anda...

         ‑E para onde vou?

         ‑ Para os lavatórios; pois para onde havia de ser?... Em casa não te lavavas?

         Júlia riu alto.

         ‑ Não faças barulho... é proibido dar essas gargalhadas.

         A orfãzita ficou impressionada e apreensiva... Decididamente andava com má sorte. Em casa do padrinho também era preciso toda a cautela, para não desagradar a Octávia, mas sempre tinha o jardim para se refugiar e os filhos dela com quem podia brincar á vontade. Ali, estava a ver que a vida era mais complicada ainda.

         Levantou‑se e seguiu com as outras para a grande sala dos lavatórios. Uma professora passeava a todo o comprimento do aposento para manter a ordem.

         Olhou Júlia com certa curiosidade. Uma aluna de novo, atraía, sempre, a atenção do pequeno mundo aglomerado no amplo edifício. Aquela, porém, não se sabia bem porquê, era mais falada. Além de órfã, e isso seria o bastante para a recomendar aos temperamentos sensíveis, era pobre... e elas, professoras, eram‑no todas, também!

         Quantas amarguras sofridas para se aguentarem nos respectivos lugares... Até chegar a poder ganhar a vida, o que a pobrezita teria de passar!...

         - Dormiste bem? - interrogou com meiguice.

         - Dormi, sim, minha senhora.

         -Se a não sacudisse nunca mais acordava -... informou a vizinha de dormitório.

         - Esta não tem insónias, senhora D. Laura.

         - Agora é preciso despachares-te, que daqui a pouco toca para a reza da manhã.

         Júlia apressou‑se e com as companheiras seguiu para o dormitório. Vestiram‑se rapidamente. Pouco depois a sineta tocou, de novo, para as primeiras orações.

         Ouviu‑se grande tropel nas escadas; umas desciam do andar superior, outras acorriam dos dormitórios do andar de baixo. As que vinham em correria ou em grande falácia moderavam o andamento e calcavam‑se ao depararem com a figura da directora no pátio que dominava todas as escadarias, mesmo em frente da capela.

         O seu ar severo infundia respeito. As pequenas passavam de orelha murcha, dizendo no tom mais harmonioso que podiam:

‑ Bons dias, senhora D. Justína.

         Júlia passou também, olhando, observando e fixando a directora. Esta fez‑lhe uma festa na cara, que mais se lhe afigurou uma bofetada, e disse‑lhe, com uma voz que não lhe pareceu da mesma pessoa que vira em frente do padrinho:

         ‑ Agora vamos todos rezar, para que Deus nos proteja e ajude.

         A órfã seguiu para a capela. Maria Adelaide não era do mesmo dormitório; quando a viu, foi ao encontro dela e arranjou‑lhe um lugar junto de si.

         ‑ Então, como passaste a noite?

         ‑Dormi... ‑ respondeu em voz baixa.

         Houve um movimento geral, um ajeitar de posições.

         Júlia notou que a directora entrara, ajoelhando na sua almofada com um grande livro nas mãos.

         Relanceou, depois, a vista por toda a assistência; os óculos cintilavam na meia luz como focos; ergueu os olhos para o altar em que crepitavam as velas, a ver se tudo estava em ordem, e persignou‑se. Professoras e educandas imitaram‑na.

         Começaram em voz alta as orações matutinas. D. Justina dizia as primeiras palavras e o coro concluía.

         Terminada a reza, seguiram para a sala de estudo. Cada qual dirigiu‑se para o seu lugar.

Principiou a faina de prepararem as lições do dia. Presidia a esses trabalhos uma professora sentada num estrado alto para bem observar o que se passava na vasta quadra.

         Não foi fácil que todas se acomodassem.

Não havia uma que não tivesse precisão de alguma coisa que servia de pretexto para se levantar. Em vão, a francesa vigilante ordenava:

- "silence"...

         - Posso sair, mademoiselle? - pediu uma pequena.

- Parlez français, s'il vous plait.

- Puis‑je sortir?

- AlIez..

         Não havia forma de acabar o burburinho daquele inquieto grupo. A directora, porém, assomou à porta e, num instante, O movimento paralisou!...

         Inclinou a cabeça altiva e olhou por cima dos óculos, de tal forma, que todas se acomodaram rapidamente, não se ouvindo o menor ruído.

A francesa ruborizou‑se! Sentiu a reprimenda severa, acusação sem palavras, censura à sua falta de força para manter a ordem. Intimamente estava furiosa consigo e com aquela desordeira população miúda, difícil de manter serena. Se mais alguém falasse, pediria imediatamente os cadernos e daria más notas a torto e a direito... Só assim conseguiria que sossegassem.

         Júlia observava abismada e sentia‑se oprimida !... A sua vontade era fugir. Quanto mais via a directora, pior impressão sentia, pois notava que todas as alunas lhe tinham medo.

         às oito horas tocou para o café. Formaram duas a duas, como era costume, e dirigiram‑se para o refeitório.

         As grandes chávenas grossas fumegavam. Em frente de cada uma um pãozito com dois golpes em cruz e uns vestígios de ter passado a faca lambuzada de manteiga, constituía a primeira refeição.

         Postaram‑se, todas, em pé, junto da cadeira onde haviam de sentar‑se, até chegar a directora.

         Um frufru de sedas e uns passos subtis, anunciaram que esta estava perto. Quando chegou dirigiu‑se à cabeceira da mesa, passou a vista, rapidamente, pela assistência e benzeu‑se. Crianças e professoras imitaram‑na.

         E, ainda de pé, todas entoaram: "Mon Dieu, bénissez‑nous la nourriture que nous alions prendre. Au nom du Pêre, du Fils et du Saint‑Esprit, Ainsi soit‑il".

         Ouviu‑se um prolongado arrastar de cadeiras e todas começaram a comer o pãozito.

         Por cima dos óculos, D. Justina fiscalizava tudo. Não lhe escapava um gesto, uma palavra, uma atitude. Não era permitido conversar.

         Júlia não podia desviar os olhos da directora! Tinha medo e curiosidade.

         Depois do almoço dirigiram‑se, todas, aos respectivos dormitó'rios e, ali, cada uma fez a sua cama.

         Júlia, por especial deferência, ficou no dormitório da D. Justina. Para a orfãzita não foi nada simpático esse mimo. Sentia‑se mais coagida e não lhe era agradável estar sempre a ver aquela fisionomia que a apavorava; aquele aspecto rígido, aquelas falas duras, de sílabas batidas como martelo na bigorna, faziam‑lhe doer como se lhe dessem no próprio corpo.

         às nove horas tocou para as aulas. A directora chamou‑a.

         -Agora vou apresentar‑te aos professores; vem comigo.

Entraram numa grande sala repleta de raparigas da idade dela,pouco mais ou menos. Num estrado alto estava um professor, que se levantou para cumprimentar a directora. Era um homem elegante, aprumado, muito pálido, olhos negros e profundos, fisionomia insinuante e imensamente simpático.

  1. Justina disse, sorridente:

         Trago‑lhe uma nova discípula, sr. Teles.

         ‑ E esta menina? Seja bem‑vinda.

         ‑ Entrou ontem; não está ainda famíliarizada com o meio! É órfã, coitada... deixo‑a estar por favor.

         Júlia ouviu e olhou surpreendida.

         ‑ O pai era um médico de aldeia -... Agora apenas tem o padrinho, amigo e colega do falecido, que a protege.

         O mestre fixou a pequena com interesse. As companheiras, muitas externas, espreitavam a nova colegial com mal contida curiosidade.

         - É pobre... ‑ bichanavam umas ás outras, e um ar de desprezo desenhava‑se‑lhes nos rostos juvenis.

         ‑ O sr. Teles, faz‑me o favor de a tomar a seu cuidado; o padrinho quer que ela tire um curso, para ganhar a vida. Tem, pois, de seguir o liceu; por isso lha entrego e recomendo para a apertar. Não sei o que ela sabe nem se será inteligente, mas descanse V. Exa. que farei tudo para que aproveite o tempo e faça exame ainda este ano.

         Muito obrigada. Onde quer que a mande sentar?

         Vai lá para o fundo, até ver. Júlia sentou‑se no último banco, sozinha. A directora saiu; começou a lição. Estavam em instrução primária. Liam, analisavam, e seguiam a matéria do exame. Tinham emprestado um livro a Júlia para acompanhar a leitura a que prestava a maior atenção. Por fim o mestre, dirigiu‑se‑lhe:

         - Como se chama?

         Júlia Almeida ­- respondeu, erguendo‑se.

         Muito bem, a menina Almeida vai ler um pouco para eu avaliar o que sabe. Continue na página seguinte. Sabe onde íamos?

E na folha oitenta respondeu nervosa. Não tenha medo. Aqui todos somos

amigos, e um mestre não é um papão. Leia tranquilamente; se for mal não tem dúvida. Se soubesse muito, não precisava de vir para o colégio.

         Bem, não é preciso mais. Nunca estudou gramática nem tabuada?

O padrinho, ás vezes, ensinava‑me contas quando dava lição á Maria do Carmo e ao Joãozinho.

         Agora tem de estudar tudo isso -... É a última da classe, hoje; reparem bem, meninas, vamos a ver quanto tempo leva a subir de posto. Trata‑se de um grande desafio, veremos quem vence.

         As outras riram‑se de troça e de desdém.

O-Teles não gostou e olhando a órfã viu‑a corada como se tivesse apanhado uma forte bofetada. era muito -... A directora fora cruel, vindo pormenorizar em público a sua situação económica, alardeando que a educava de graça. Era quanto se podia fazer para a amesquinhar perante um auditório vaidoso como o das discípulas, quase todas de famílias ricas.

         Marcou‑lhe lição.

         - Não pode, por enquanto, acompanhar as outras meninas, fará apenas o que puder. Necessita de muita calma, mas creia que vamos ser, todos, muito seus amigos.

         Júlia olhou para ele e as lágrimas soltaram‑se‑lhe... Duvidava já de tudo e de todos. Um desconhecido podia lá ser a favor. Sentia envolvê‑la um meio hostil.

         As grandes amizades, as sinceras, estavam condenadas a fugirem‑lhe: umas, levara‑lhas a morte, como a dos pais; outras, como a do padrinho, era obrigada a viver para sempre longe delas.

         O professor devia ser como todos para quem ela era uma indiferente se não um estorvo. Quando estas reflexões se lhe atropelavam na mente, ergueu os olhos e viu que o mestre tinha os olhos rasos de água.

         ‑Não chore ‑disse‑lhe comovido. ‑Vai ver como vence depressa a barreira que a separa do futuro. Com família ou sem ela, todos têm de trabalhar; é a lei da vida... Quem sabe se virá ainda a ser a primeira da classe?!

         As outras fungaram com ares de dúvida e zombaria. O sr. Teles olhou‑as com sobranceria e não disse nada. Lia‑se‑lhe na fisionomia o que os lábios calavam. Marcou as notas nos cadernos de todas e ergueu‑se.

         ‑ Até amanhã, meninas.

         ‑ Até amanhã, sr. Teles ‑ corresponderam as alunas em coro; e, mal ele saiu, rodearam a órfã.

         ‑ Tu ainda não tens caderno de notas...

         ‑ Para quê? Ela não sabe nada...

         ‑ Mas pode vir a ser a primeira... ‑ disse uma com ênfase.

         ‑ Isso é verdade. Os últimos são os primeiros, prega a D. Justina na lição de religião.

‑ Não querias mais nada... esta palerma de aldeia a ser a primeira...

         ‑ O meu lugar não apanha ela nem que se fine, essa lhe juro eu - declarou a primeira, enfatuada.

         ‑ Querias chegar, ver e vencer, como César...

         ‑ às vezes estas palonças são atrevidas.

         ‑ Não me mete medo.

         ‑Nem a mim.

         ‑ Vocês parecem‑me todas doidas. a pequena ainda não abriua boca. Tu queres ser a primeira da aula?

         ‑ O que queria era ir‑me embora; vejo que todas me querem mal... - e desatou a chorar convulsivamente.

‑ Deixem a rapariga... não a atormentem.

Nesta altura entrou uma senhora nova

ainda. Vinha dar lição de aritmética. Todas se ergueram a cumprimentar. A professora encaminhou‑se para o seu lugar.

         - A sra. D. Elvira tem cá uma discípula nova.

         A recém‑chegada volveu os olhos por toda a assistência tão sua conhecida, e deteve-os em Júlia.

         ‑ Já sabia que vinha; é a menina Júlia Almeida, não?

- Sou, sim, minha senhora ‑ respondeu erguendo‑se.

         - É a órfã... ‑ informaram quase em coro as mais ladinas.

         - Querem que ela seja doutora...

         Um estridente coro de gargalhadas ecoou por toda a sala... Júlia estava sufocada. A mestra fez‑se escarlate ao sentir que o riso se lhe comunicava; quis, porém, manter a ordem.

         ‑ Então, meninas, que tem isso de extraordinário? Com certeza muitas das que aqui estão hão‑de vir a ter um curso. Todos os sábios começam pelo princípio; ninguém nasce ensinado.

         A lição seguiu sem incidente. Júlia dava a maior atenção a tudo. Tinha delineado um plano. Fazer por não ouvir as afrontas e estudar, estudar... Aprender o mais rapidamente possível para se livrar daquele inferno.

         Se assim continuassem, a vida naquela casa seria um martírio. Todas pareciam apostadas em a afrontar. Começava pela directora, dizendo a toda a gente que a educava de graça, quando ela sabia bem que era mentira. Que precisão tinha ela de andar a alardear uma acção generosa que não praticava, quando o padrinho apenas lhe recomendara para guardar segredo perante Octávia?

Berta frequentava outras aulas; só ao recreio a podia ver. Maria Adelaide e Helena eram também das mais adiantadas e essas, não sabia porquê, não lhe inspiravam grande confiança. Faziam‑lhe perguntas constantes que lhe pareciam inconvenientes, mas a que a sua espontânea franqueza, mesmo sabendo que as respostas a poderiam prejudicar, não podia deixar de responder. Dizia sempre, lealmente, o que sentia.

         Tinha ouvido, sem que elas o presumissem, comentar as suas impressões com grande alarido. Ficara desolada e resolvera proceder com maior prudência; retrair‑se, finalmente desconfiar de todas.

         Nesse dia, no recreio, Berta estranhou‑a. Pareceu‑lhe muito mais triste, ainda que sem pranto. Já não tinha o desabafo das lágrimas, que tanto aliviam.

         A amiga observou‑a e não se conteve:

         ‑ Tiveste algum aborrecimento?

         ‑Não!

         ‑Mas... estás muito mais acabrunhada que ontem...

         ‑ Como pode estar contente uma pessoa como eu? Não tenho pai, nem mãe, nem família, nem fortuna... nada... Achas que se pode viver muito alegre assim?

         ‑ Tens razão, mas todos esses motivos de tristeza não apareceram hoje!... Há muito que os conheces!... Parecias já conformada com o destino e creio que nada veio agravar a situação!... Além disso, teu padrinho é como se fosse teu pai... Tão teu amigo...

         ‑ Bem sei; mas tem os filhos que estão em primeiro lugar, como é natural.

         ‑ Não gostas das professoras, nem das companheiras?

         ‑ Gosto; gosto muito de todas ‑ respondeu como quem deseja pôr ponto no assunto.

         ... Não estás a dizer a verdade...

         ‑ Por que razão havia de embirrar com alguém daqui se todas me tratam tão bem?!

         Berta não insistiu. Foi mostrar‑lhe o jardim, dividido em canteiros pequeninos que as internas cultivavam com mais ou menos interesse, conforme as suas aptidões, actividade e gosto. Havia sempre o estímulo de conseguirem as flores mais bonitas.

         ‑ Tu também virás a ser a cultivadora de algum destes pedacitos de terra. São para as mais aplicadas e para as que se portam melhor.

         Júlia não respondeu. Olhou as flores com uma grande tristeza, como quem preferia não ter canteiro, nem ter lugar naquela casa de aparência tão agradável, mas que sentia hostil.

         ‑ Não gostas de flores?

‑ Nem sei... creio que sim; se elas me fizessem esquecer a minha desventura.

         ‑ Não exageres... Olha que todos sofrem neste mundo, mais ou menos.

         Nisto tocou a campainha e a algazarra foi geral. Correrias, um tropel medonho e lá partiram em forma para as respectivas aulas.

         ‑ Vais para os lavores, acompanho‑te. Hei‑de pedir para ficar perto de ti. A professora é bondosa... não ralha...

  1. Justina apareceu a recomendar a nova aluna.

         ‑ Tem mais uma discípula, D. Palmira. Esta pequena tem de aprender a coser, a fazer tudo quanto uma mulher necessita. Mas como se destina a um curso superior, não virá a ser a agulha o seu modo de vida. É pobre, tem de se preparar para a luta... Em todo o caso, o saber não ocupa lugar. Deve prevenir‑se para todas as eventualidades.

         Júlia, intimamente, estava furiosa. Bem sabia que não tinha nada, mas parecia‑lhe dispensável que andassem a badalar por todas as aulas e a toda a gente as suas condições económicas.

         Relanceava o olhar por aquele enxame e pensava: será possível que todas sejam ricas? Não haverá entre tantas, alguma que esteja nas mesmas circunstâncias que eu? Porque será que seguem atrás de mim a gritar aos quatro ventos a minha pobreza? Que lhes importava o que ela tinha ou não tinha, se o facto era que pagava tanto como as outras?!

         Quando teve oportunidade de falar a sós com Berta, perguntou‑lhe muito em segredo:

         ‑ Olha lá, todas as meninas que andam neste colégio são ricas?

         ‑ Porquê?

         ‑ Pergunto se não há ninguém pobre nesta casa?

         ‑ Ora, se há... Eu não me interesso nunca pelo que elas têm; mas creio que a maior parte há‑de ter pouco ou nada... Porque fazes essa pergunta?

         ‑ Porque a directora ainda não entrou numa aula sem dizer, como se isso fosse a recomendação indispensável: esta é pobre -... Ora, para se fazer tanto espanto da minha pobreza, é porque não há senão ricos aqui...

         - Tens muita razão. É de mau gosto repetir‑se a cada hora, como se fora um estribilho, a mesma coisa. Não te importes! Cada um vale por si e não pelos bens que possui... Estuda e deixa falar, que hás‑de vencer.

 

         ‑ Queres aprender piano? - perguntou‑lhe D. Justina.

         ‑ Se o padrinho mandar, aprendo.

         Havia no colégio uma senhora alemã, notavelmente inteligente, que no Porto ensinava toda a mocidade aristocrática. Ali tinha a seu cargo o alemão e a música, somente para as mais adiantadas.

  1. Justina passou com a pequena, justamente quando a alemã entrava.

         ‑ Esta menina é nova na casa?

         - É; vou entregá‑la à D. Felismina para lhe ensinar rudimentos. Como é pobre, não terá nunca piano, mas, enfim, o saber não ocupa lugar...

         A alemã observava Júlia com interesse e curiosidade.

         ‑ Se a D. Justina quer, eu tomo conta dela de graça. Se for esperta, continua; se não for, vai para a D. Felismina. Estou com empenho de ver o que ela dá... Tem uma fisionomia expressiva! Faremos uma experiência.

         ‑ Como a Fraulem quiser. Está da parte dela corresponder à sua amabilidade.

         ‑ Sim, sim, vamos já principiar -... Nunca estudaste piano?

         - A mamã ensinou‑me a conhecer as notas e fazia‑me tocar alguns exercícios... Mas há tanto tempo...

         ‑ Bem, bem... custará menos a desbravar o terreno.

         Levou‑a para a sala do piano e deu‑lhe a primeira lição, dispensando‑lhe todo o carinho. Era visível que a futura discípula tinha conseguido as suas simpatias.

         ‑ Hás‑de estudar muito ‑ recomendou.

         ‑ Sim, minha senhora, tenho o maior empenho em saber.

         ‑ Talvez ainda venhas a ser uma grande pianista!

         Júlia sorriu incrédula. Tinha perdido a confiança nos outros e em si!... Duvidava de tudo.

         Distribuíram‑lhe os livros necessários para todas as matérias.

         Rapidamente conquistou a simpatia dos mestres. Cumpria a rigor as ordens; estudava imenso; compreendia bem e tinha uma excelente memória. Fazia progressos extraordinários. De vez em quando a directora ia informar‑se.

         ‑Que tal vai a pequena?

         ‑ Muito bem, muito bem. Se não mudar... há‑de ir longe.

As companheiras, ao ouvirem a opinião de todos, mordiam‑se de raiva...

         ‑ Já viram a pelintra a dar‑se ares de gente... E parece que caiu em graça a todos. Ah! se a mamã soubesse que ela era a menina bonita, tirava‑me de cá...

         ‑ É um verdadeiro mostrengo.

         ‑ E que fatiota!... Parece que veio agora mesmo do sertão.

         Júlia era o alvo de todas as chacotas, de todas as ironias... A vida ali tornou‑se‑lhe o mais desagradável possível...

         Quinze dias depois, o padrinho veio vê‑la num domingo. Quando lhe deram a notícia, correu alvoroçada pelas escadas, precipitando‑se‑lhe nos braços.

         ‑ Padrinho, padrinho da minha alma. Que saudades eu tinha... Pensei que o não tornava a ver... E Octávia? A Maria do Carmo e o João, porque os não trouxe?

         As perguntas sucediam‑se em catadupas. Parecia ter receio de perder de novo o único afecto que lhe restava na vida.

         ‑ Tu estás óptima ‑ disse o médico, afastando‑a um pouco de si para se afirmar melhor.

         Júlia sorriu tristemente.

         ‑ Não estás contente?

         Não teve tempo de ouvir a resposta. Apareceu a directora com a máscara de receber visitas. Após os cumprimentos do estilo, a primeira pergunta do Dr. Esteves foi:

         ‑ Que tal se tem portado a minha afilhada?

         Muito bem... Se assim continuar dará honra ao colégio e grande gosto ao padrinho, que tanto se empenha pelo futuro dela. Compreendeu a sua situação, o que é muito bom.

         ‑ E que impressão têm os mestres, minha senhora?

         ‑ Granjeou a simpatia de todos. Creio que é inteligente, segundo as informações que tenho!... Possui uma vontade de ferro e isso é meio caminho andado para vencer.

         O médico olhava a afilhada enternecido. Tinha a certeza de não se ter enganado nas suas conjecturas.

         ‑ É cedo, ainda, para deitar foguetes - disse risonho. ‑ Espero, no entanto, que continues dando as mesmas provas para alegria dos que te querem bem e em especial para teu proveito. Vim de fugida... - disse, olhando o relógio. ‑ Tenho o tempo contado. Não quero também tirar o de V. Exa., que é precioso. Voltarei breve e oxalá que sempre tenha as mesmas alentadoras notícias.

         - Não creio que Júlia deixe ficar mal os professores, todos entusiasmados com os seus progressos.

         ‑ É uma esperança e queira Deus que esta luz que começa a cintilar, não perca o brilho num instante!... Não acontecerá assim... não é verdade?

         ‑ Farei tudo para que o padrinho não perca o dinheiro que gasta comigo aqui.

         A directora mordeu os lábios; não lhe tinha passado pela cabeça que a rapariga estivesse ao facto das circunstâncias em que fora internada.

         Roberto saiu, contentíssimo, depois de beijar, com ternura, a afilhada e de ter pedido a

  1. Justina que comprasse o que a pequena precisasse. Ele tudo pagaria com o maior prazer.

         ‑ Especialmente que lhe não falte o que necessitar para se desenvolver intelectualmente. Eu não sou rico, como V. Exa. naturalmente sabe; apesar de ter os meus filhos, não calcula com que prazer multiplico os trabalhos para que esta criança fique educada.

         Júlia não pôde conter as lágrimas ao vê‑lo partir, mas os afazeres escolares absorviam‑na de tal forma que já não dispunha de um segundo para pensar na sua triste vida! Falava pouco. Era preciso que a directora não tivesse motivos para a recriminar, que os mestres se mostrassem satisfeitos e, sobretudo, que o seu querido padrinho a estimasse cada vez mais.

 

Passaram meses!

         Júlia havia muito que abandonara o último banco em que ficara exilada a princípio. Instalara‑se já no quarto lugar, e, se não estava no primeiro, não tardaria a ocupá‑lo.

         Estudava‑se mais desde a sua entrada, porque assustava as companheiras com os seus progressos. Com a maior calma vencia todas as dificuldades. O seu segredo era a perseverança.

         Tinha jurado a si mesma vingar‑se de todas as que a tinham ofendido e continuavam a beliscar, sempre que se oferecia oportunidade. A sua desforra era passar‑lhes à frente. Sem alarido, na sua marcha certa, ia trepando de uma forma que cada vez irritava mais as invejosas. Tinha sempre as primeiras notas, sem favor. A raiva surda lavrava; ela, porém, passava indiferente.

         - Que tal vai a pequena, sr. Teles?

         O professor, entalando o grande nariz entre os dedos, jeito que lhe era peculiar, e sorrindo levemente, respondia contentíssimo:

‑ Esta sim; irá longe, minha senhora. Fez‑me, ontem, um pedido que estou pronto a satisfazer, se V. Exa. estiver de acordo, bem entendido.

  1. Justina olhava simultaneamente o mestre e a discípula, cheia de curiosidade.

         ‑ Quer assistir às aulas de português. Não altera nada; ouve como assistente e aproveitará como pessoa esperta e activa que é.

  1. Justina teve um momento de surpresa e ficou calada, a observar a aluna. Quando voltou a si, apressou‑se a anuir:

         ‑ O sr. Teles manda. O que fizer está muito bem feito.

         ‑ Nesse caso, menina, irá hoje mesmo - disse o mestre radiante.

         Júlia ergueu‑se e agradeceu à directora e ao professor. Sentia‑se feliz.

         - Que vai ela lá fazer? ‑ interrogavam as companheiras em surdina.

         ‑ Há cada maluqueira...

         - E que atrevimento...

         ‑ Se fosse alguma de nós, eram capazes de não nos deixar ir...

         ‑ Aquela é a menina por quem Deus falou...

         ‑ A mim dá‑me a impressão que ela caiu em graça ao sr. Teles... Sempre está um velho tonto...

- O que ele está é incapaz de ensinar em termos... Devia pedir a aposentação...

         Júlia não ouvia estes comentários e, mesmo que os ouvisse, não dava por eles. Havia muito que se afizera a estas e outras apreciações, que eram ditas em voz alta e com um único propósito: de a ofender e magoar. Era como se soprasse um vento forte. Resguardava-se e avançava sem receio.

 

         Nessa tarde, foi como assistente para a aula de português. Quando a viram entrar, houve murmúrios, risinhos mal contidos, olhares de troça que feriam o mais insensível temperamento. Foi recebida com desprezo.

         O Teles não se pronunciou. Esperava que Júlia se desagravasse em pouco tempo. Não valia a pena tomar o caso a sério. A maledicência continuava ali como na aula que acabava de deixar.

         ‑ Que virá o mono cá fazer?

         ‑ Tem cara de estúpida.

         ‑ Por mais que me digam, esta há‑de ser doutora quando as galinhas tiverem dentes.

         ‑ Mas atrevida... Calculem o que se lhe havia de meter na cabeça... Vir assistir às lições de português...

‑ Porque não irá ela também assistir às de literatura e latim?

         ‑ Nunca se viu ninguém como estas provincianas para terem loucas pretensões.

         A fúria era geral contra a órfã. O professor percebia tudo, mas fazia‑se desentendido.

         ‑ Se ela vem com ganas de alcançar o primeiro lugar, está bem enganada... ‑ disse a meia voz uma mais ousada da primeira fila.

         O professor não se conteve.

         ‑ Vamos à lição: os primeiros lugares não são vitalícios: quem os conquista é que os ocupa! É tudo assim na vida, meninas.

         Começaram. Júlia sabia o que a esperava. Estava habituada àquelas recepções, àquelas arremetidas violentas, sem que desse motivo para elas. Sentia‑se já um pouco senhora da situação, mas não se conformava com as injustiças e más vontades das companheiras. Queriam‑lhe mal, sentia‑o; manifestavam‑se tão claramente, que não lhe deixavam dúvidas. E tudo isto, porquê? Porque estudava, cumpria o seu dever e... era pobre... Como se os pobres não pudessem brilhar...

         Mas que lhe importava afinal o que diziam aquelas frívolas criaturas... Não viera ali para se divertir, mas para estudar, para andar para a frente como quem precisa de arranjar o pão. Se alguns instantes esquecesse a sua infelicidade, haveria sempre almas generosas a lembrarem‑lha. Ela, porém, não era esquecida... O privilégio dos que nada têm é o trabalho, e havia de provar que sabia aproveitar o tempo...

         Sentia‑se vítima da ideia que o padrinho tivera de fazer constar que era educada como pobre. Se era necessário um recado, ir buscar alguma coisa, era sempre ela a mandada. E ouvia em voz baixa, mas de forma que ela pudesse escutar: que vá, que se mexa, para isso está de graça. Afinal, nós pagamos para ela... É á nossa custa que esta palerma faz figura...

         Júlia a custo suportava estes ditos agressivos... E... não podia desabafar... Tudo aquilo por causa de Octávia, sempre brava, sempre mal‑humorada, como se ela fosse a culpada de que o destino a atirasse para aquela tristíssima situação... Era preciso a todo o transe evitar sensaborias ao padrinho.

         A amizade com a filha do matemático cada vez era mais profunda, mais sincera, à medida que, reciprocamente, descobriam maiores e melhores predicados morais. Confidências, porém, não as fazia a ninguém.

         Uma noite, no dormitório, quando todos julgavam que ela dormia, ouviu Helena, uma rapariga rica, cujos pais presenteavam largamente a directora, fazer dela tal troça que ficou pasmada. Admirou‑se que a companheira a escolhesse para alvo do seu espírito, sempre pronta a tirar partido de quanto se lhe aproximava, e muito mais, que a directora lhe aguentasse aquelas graças tolas.

         Imitava‑lhe a voz, os gestos, repetia todas as impressões que Júlia lhe tinha confiado ingenuamente... Foi para ela a maior e mais dura das lições. Daí em diante nem uma palavra. Provocavam‑na... em vão... Tudo estava bem, respondia invariavelmente... Gostava de todos os professores e de todas as companheiras, sem excepção.

         Ninguém percebeu nunca a razão daquela mudança súbita, daquela absoluta e rápida concentração. Nem à filha do matemático disse uma palavra.

         Todos os sábados vinham as famílias buscar as alunas, ela não ia nunca... Não tinha casa... não tinha ninguém. Aos domingos, preparava as lições, punha capas novas nos compêndios e, se lhe crescia tempo, lia algum livro que o padrinho lhe trazia de presente.

         às segundas‑feiras, Berta, quando chegava, procurava‑a ansiosamente; uma vez perguntou‑lhe:

- Que fizeste ontem?

         - Estudei...

‑ Queres ir um dia a minha casa?

         Júlia sorriu alegremente.

‑ Quem me dera...

         Mas logo a reflexão judiciosa, entravando os impulsos da mocidade ardente:

         - Não é possível... Tu bem sabes que a minha vida tem de ser diferente da das outras raparigas da minha idade. Tenho de estudar seriamente, não para se dizer que estive tantos anos num colégio de primeira ordem, mas para tirar o proveito devido, para poder ganhar a vida com o produto do meu trabalho. Agradeço‑te muito, mas não aceito, não quero habituar‑me a passeios. Além disso, o que diria a tua família? Não me conhecem... Não tenho probabilidades de poder retribuir‑te a amabilidade, convidando‑te também...

         - Tens umas ideias extraordinárias... Quem pensa em retribuição de convites, nestas alturas... Lá em casa todos gostam imenso de ti.

‑ Como, se nunca me viram?...

         - Conhecem‑te já de tanto me ouvirem falar de ti... Foi a mamã quem lembrou para tu lá ires aos domingos. Só falta a ordem da directora.

         ‑ E o padrinho? Não pode ser. Muito obrigada, mas não vou.

A amiga não desistiu. Sem dar cavaco a Júlia, foi pedir à D. Justina. Esta, um pouco surpresa, deu o desejado consentimento.

         ‑ No entanto tenho de falar, primeiro, com o Dr. Roberto Esteves. Estou certa que vai ficar penhoradíssimo com a tua amabilidade. No próximo domingo vem cá e exponho‑lhe a tua ideia.

         Assim foi. Quando o padrinho de Júlia apareceu, a directora deu‑lhe conta do pedido de Berta. Ficou encantado. Não tinha probabilidades de levar a pequena a casa e também não era fácil ir passear com ela só. A lembrança de Berta caiu,portanto,do Céu.

         Toda a semana, Júlia levou a pensar nesse domingo, o primeiro em que saía e em que ia conhecer a família de Berta. Mas logo se lhe entenebrecia o parecer, com receio de encontrar pessoas como todas as que se lhe tinham deparado no caminho...

         Como seriam? Começava a recear que fossem altivas e soberbas pela sua riqueza, pela sua posição social e ainda pelos pergaminhos. E ela que impressão' lhes faria? Não era crível que gostassem dela. Berta andava sempre tão chique! E ela, com a sua fatiota de chita barata, feita por uma costureira qualquer, sem mesmo ser provada... com as ombreiras a descaírem‑lhe para o braço, toda mal ajeitada como uma menina do asilo... Tinha vergonha de aparecer com aquela indumentária ridícula.

         Berta, mesmo, devia sentir‑se vexada de levar para o seio da família uma criatura tão mal vestida. Se passava de relance os olhos pelo grande espelho da sala ou do gabinete da directora, ficava desolada.

         Mas já não havia nada a fazer... Como desculpar‑se agora, para não ir, depois de ter licença de todos... Não podia, não queria nem devia desgostar Berta, sempre tão boa e tão amável para ela, e a quem devia tantas atenções.

 

Chegou o esperado domingo. Júlia, apesar de toda a sua calma e do domínio que tinha sobre si, estava nervosa.

         às dez horas veio uma criada antiga da família Lencastre buscá‑la. A directora chamou‑a, ajeitou‑lhe o chapéu de palha que o padrinho lhe dera, arrepiou‑lhe mais os cabelos, para domar os caracóis que se escapavam por todos os lados, e disse‑lhe:

         - Vens quando te mandarem. Não podes ter exigências, para não incomodar.

- Bem sei, minha senhora; nada direi, o pior é se chego tarde...

         - Não tem dúvida, vai com Deus.

         Deu‑lhe um beijo, e a pequena saiu. No átrio estava a criada que quase todos os dias acompanhava Berta.

         - É a menina Júlia? - interrogou familiarmente.

         - Sou, sim, Sra. Ludovina; também sabia que me vinha buscar.

         - Já devia ter vindo... Por vontade de todos, aparecia cá logo ao amanhecer... Mas tive de ir ao mercado, primeiro... A menina Júlia é muito falada lá em casa. Estão todos no ar, para a conhecerem. A Bertazinha é muito sua amiga e diz que a menina há‑de ir longe.

         - Quanto eu lhe devo, sra. Ludovina!... É sempre ela que me tem valido em tudo... É tão boa.

         ‑ Isso é, não desfazendo! O que lá irá em casa a esta hora. Os meninos queriam vir todos comigo... Ficaram à porta, á espera, e disseram‑me que não arredavam sem nos verem aparecer. O Luisinho, então, é o pior...

         Júlia,quanto mais ouvia,mais se intimidava de ir entrar num lar que considerava amigo, mas onde conhecia apenas Berta.

         Percorreram a enorme rua do colégio e outras que se lhe seguiam. Meteram por travessas para encurtar caminho e entraram finalmente numa rua silenciosa, em que não aparecia viva -alma.

- Já estamos perto? ‑ perguntou Júlia.

         - Estes muros todos pertencem à quinta. Aquele portão grande é a entrada.

         Júlia fixou o arco brasonado, surpreendida. Não imaginava que a família de Berta tivesse uma moradia tão sumptuosa. Ludovina puxou o cadeado da sineta. Ouviu‑se um tropel medonho e uma gritaria confusa. O portão abriu‑se estrepitosamente e dois rapazotes, quase da mesma idade, apareceram esbaforidos. Um precipitou‑se para Júlia, toda confusa.

         - Fui o primeiro a ver‑te, não é verdade? - Mas, recuando um pouco, fixou‑a embevecido e disse como se falasse consigo e não pudesse reter aquela exclamação: - Ah! ela é linda!... A Berta não nos tinha dito nada...

         A irmã correu solícita, para evitar a catadupa de inconveniências que certamente iriam sair da boca daqueles estouvados.

         - Não faças caso do que eles dizem; eu queria evitar‑te esta sensaboria... mas eles escaparam‑se... São medonhos.

         As duas irmãs mais velhas vieram também ver a amiga de Berta. Todos a rodearam curiosos. Júlia observava, com os seus grandes olhos negros, o grupo acolhedor que a cercava.

         - Não a levas à mamã? - interrogou Raquel

         ‑ É verdade-... Já me ia a esquecer. O Luís e o Álvaro fizeram tamanha algazarra, que me entonteceram...

         ‑ Que pena! - entoaram os dois em ares de troça. ‑ Olhem não quebre o vidrinho de cantareira...

         Dirigiram‑se, todos, à saleta onde D. Helena estava sentada à escrivaninha. Era um autêntico cortejo.

         ‑ Aqui está a nossa hóspede, minha mãe.

  1. Helena levantou a cabeça e olhou a pequena com simpatia.

         ‑ Bem‑vinda sejas a esta casa. A Berta tinha‑nos falado muito de ti. Estávamos com muita vontade de te ver, de te conhecermos.

         ‑ Muito obrigada, minha senhora. A Berta tem sido muito boa para mim. Há lá meninas tão más...

         Os rapazitos, de roda dela, não perdiam uma palavra.

         ‑Bate‑lhes... Tu não tens mãos? Se eu lá estivesse, apanhavam uma carga mestra.

         - Luís, então que feitios são esses -... admoestou a mãe.

E para a filha mais nova:

         - Vai com a Júlia, para tirar o chapéu.

         Os dois rapazes e Raquel puseram‑se em marcha para as acompanharem.

         - Álvaro, não é necessário vocês irem, chegam as vossas irmãs.

         ‑ íamos para as divertir e depois seguiamos todos para a quinta. Quero mostrar‑lhe um ninho.

         ‑ E eu as minhas flores.

         Não foi possível retê‑los. Debalde Berta com a sua costumada seriedade, impunha respeito. Luís, com a maior sem‑cerimónia, enfiou o braço no de Júlia. Álvaro empurrou-o para lhe tirar o lugar.

         ‑ Ela não tem outro braço? Vai para o outro lado.

         Júlia tinha vontade de rir, mas estava atarantada e sem saber que fazer. Quando chegaram ao quarto de Berta, esta atravessou‑se na porta.

         ‑ Aqui não entra ninguém... Esperem‑nos no jardim.

         ‑ Invejosa!... Queres a amizade dela só para ti... Lá fora ajustaremos contas ‑ declarou Luís, ameaçador.

         A irmã fechou a porta e voltando‑se para a amiga:

         ‑ Não faças caso do que eles dizem. São muito bons, mas muito garotos. O Álvaro já devia ter juízo; o Luís não admira, que é mais novo. São grandes estudantes; os melhores alunos do liceu. E nunca tiveram explicador... O pai, às vezes, é que lhes faz exame, para ver o que têm adiantado.

‑São ursos?

         As duas desataram a rir. Sem se explicarem, ambas conheciam a razão. As companheiras do colégio, quando se referiam a Júlia, diziam sempre: a ursa.

         Ela sabia‑o muito bem e ninguém ignorava esse tratamento dado à órfã, na ausência. Todos achavam graça-... É que a frase, à força de querer ser vexante, era lisonjeira. Júlia já não ligava a menor importância a essas brincadeiras. Fingia, sempre, que não ouvia se alguma falava alto, de propósito para ela perceber.

         Depois de Berta ajeitar um pouco os cabelos da amiga, libertando‑os da pressão imposta pela directora, foram juntar‑se ao grupo, que as esperava com impaciência. Raquel pegou na mão da hóspede e informou‑a:

         ‑ Vamos mostrar‑te o jardim. Queres ver o meu cãozinho?

         ‑ Quero. Em casa de meus pais também havia um... - E, pensativa, concluiu: ‑ Que seria feito dele?

 

        Os dois irmãos de Berta eram vivos e inteligentes como os pais, como toda a família. Tratando‑se de uma dinastia de intelectuais, a nova geração não podia degenerar.

         Alvaro, apesar de muito moço, era já uma bela figura. Grandes olhos negros insinuantes e profundos; sendo folgazão, não deixava de adivinhar‑se nele, por certas atitudes, o futuro homem circunspecto, de poucas e assisadas falas, reflectindo, em geral, antes de proceder. Não havia nele aqueles ímpetos espontâneos, que erguem ao heroismo, ou que podem precipitar no caos. Muito calmo, muito sereno! Só o irmão o levava a essas arremetidas, para não ficar atrás.

         Luís, o mais novo, era a antítese dele, física e moralmente; com o decorrer dos anos mais se acentuariam as características que os diferenciavam. E, como duro com duro não faz bom muro, eram inseparáveis.

         Bulhavam de vez em quando, talvez para mais saborearem a alegria das pazes, que nunca se faziam esperar. Luis era de uma alegria comunicativa; loiro e branco como

Berta e Raquel; olhos de um azul expressivo que conquistavam rapidamente os corações, criando um ambiente de simpatia que ele cultivava com grande arte.

         Estavam ainda naquela idade em que, acorrentados um ao outro, por toda a espécie de divertimentos, não se notava a diferença de carácter que pela vida fora os viria a fazer seguir caminhos diferentes.

         Júlia havia muito tempo que não brincava, porque no colégio tudo lhe fazia medo. Era acusada sem culpas. Se aparecia alguma coisa mal feita, as companheiras estavam sempre prontas a atribuir‑lhe a responsabilidade de tudo, numa desforra sórdida pela marcha acelerada que ela levava nos estudos. Era a única vingança que podiam tirar. Tinham‑na feito sofrer grandes dissabores e daí resultou um retraimento instintivo, afastando‑se de todas as distracções, pretextando afazeres para se isolar sempre que podia.

         Esse retraimento tornou‑a tristonha e concentrada. Tinha receio de tudo e de todos. Ali, naquele meio amigo, longe da pressão do colégio, sentia a antiga alegria voltar num instante, como nos bons tempos de Alvor. Podia rir, conversar, esquecer, por momentos, a sua triste sorte. Deixar de ouvir chamar‑lhe ursa a toda a hora, às que lhe queriam mal, sem ela saber porquê; e às outras, até mesmo às criadas, a órfã, como se ela não tivesse nome e fosse esse o seu apelido de família.

         Ali, estava à vontade; e foi, por assim dizer,

o ídolo de todos. A sua expressão doce, amável e franca conquistou, rapidamente, a família que a convidara. Houve jogos no jardim, brincadeiras de toda a espécie. D. Helena e Marta, da janela, seguiam os folguedos.

         ‑ A pequena é muito simpática.

         ‑ Hoje foi, para ela, um dia cheio.

         ‑ A D. Justina não é de molde a deixar ninguém divertir‑se alegremente.

         ‑ Esta vem a dar nome ao colégio, segundo a Berta diz. Educa‑a de graça pelos loiros que ela há‑de colher.

         ‑ É uma forma de pagamento!

         Eram horas de almoço. Júlia não tinha ainda visto o dono da casa. Quando chegou à sala de jantar, estacou de olhos fitos naquela figura imponente, de longas barbas grisalhas, e olhar cintilante por trás dos óculos de aros de oiro.

         ‑ Ora viva -... disse‑lhe afável. ‑ Já sei que é uma grande aluna da D. Justina, que tem feito grandes progressos.

         Júlia olhou para Berta enternecida e grata pelas ausências, que tinham preparado o ambiente para ser tão bem recebida.

         ‑ Tenho de trabalhar ‑ disse muito séria, como se fosse uma mulher. ‑ O padrinho gasta muito comigo... Não posso abusar. É preciso corresponder ao sacrifício que ele faz.

         Todos se entreolharam, pasmados... Júlia percebeu‑os.

         ‑ A cada instante oiço lá no colégio que estou por favor... mas não é verdade. Aqui posso contar tudo. Como a Octávia tem muito mau génio, o padrinho disse‑lhe que não gastava nada comigo; recomendou até à directora para o confirmar, se fosse interrogada nesse sentido... A sra. D. Justina entendeu que devia dizer a toda a gente que não leva nada pela minha educação... às vezes tenho tentações de a desmentir... mas tenho tanto medo dela...

         ‑ Muito bem! ‑ respondeu o matemático, rindo. ‑ Ela tem cara de poucos amigos.

         ‑ Não intimides a pequena... Bem basta já o que ela sente... com a sua sensibilidade apurada.

         ‑ Ora, ora... estuda, não tem que temer; demais a mais, pagando.

         Todos se sentaram. D. Helena quis que a visitante ficasse entre ela e Berta. Luís empurrou a irmã para lhe tirar o lugar. Houve luta em surdina por causa do pai. Um olhar da mãe bastou para manter a ordem, respeitando a disposição que ela ordenara.

Todo o almoço correu animadíssimo. Queriam saber o que ela estudava e se estava adiantada.

         ‑ Isto é um fenómeno... Em três meses aprendeu a falar francês ‑ elucidou Berta.

         ‑ O pior é que o não sabia ler... e a Fraulem a exigir que eu decorasse as fábulas de La Fontaine.

         ‑ E em piano? ‑ interrogou D. Helena.

         ‑ Não tenho habilidade nenhuma, minha senhora; mas estudo tanto que ela julga que tenho algum jeito... Passo todos os momentos disponíveis a martelar, para lhe dar aquela ilusão. É o que mais me custa.

         ‑ Ela é uma fera, - comentou o Luís. - Deus me livre dela... A Berta também a não pode ver.

         Depois do almoço, D. Helena perguntou‑lhe:

         ‑ Queres ir dar um passeio com todo o rancho?

         ‑ Como entender, minha senhora; eu estou bem em toda a parte. Por minha causa não quero que se incomodem!... Gosto tanto de estar aqui...

         Resolveram ficar.

         ‑ Tu só vais amanhã com a nossa Berta, não é verdade? ‑ interrogou Luís.

         ‑ Tenho receio que a D. Justina repare...

- Ela não é boa, bem sei; mas vou acompanhar‑te para te defender...

         Gargalhadas gerais.

         ‑ Que fanfarrão!... Com a D. Justina é que eu te queria ver... Ela não é para graças... engolia‑te.

         ‑ Vocês são umas medricas... Se mostrassem coragem... Havia de ser comigo...

         ‑ És tolo! Sabes lá a força dela...

         ‑ Até hoje só houve uma pessoa que a soubesse levar.

         Júlia interrogava com o olhar.

         ‑És tu!

         ‑Eu? Que ideia!...

         ‑ Outro dia estava a dizer ao Teles, em confidência, não como quem estivesse delirante, mas antes pesarosa com o caso: "Até hoje ainda não tive motivo para lhe fazer a mais leve admoestação"... A Laura ouviu... Não soubeste?

         ‑ Não; a mim dizem‑me apenas as coisas desagradáveis e que possam incomodar‑me. Também já resolvi não ter conversas com ninguém.

         ‑ É um óptimo sistema; continua, que vais por bom caminho ‑ aprovou D. Helena.

         ‑ Preciso ganhar o meu pão. O padrinho diz‑me, às vezes, apreensivo: "Só peço a Deus vida para te garantir o futuro com um curso. Não posso deixar‑te mais nada..." Quantos sacrifícios lhe custa a minha educação... O que eu queria era vir a ganhar dinheiro para lhe pagar esta enorme dívida. Sei que estou a desfalcar, a prejudicar os filhos dele, e isso custa‑me muito. Octávia não gosta de mim, nem tolera que o padrinho me queira bem... Hei‑de, portanto, fazer tudo para que ela não fique lesada...

         ‑ Como? ‑ interrogou Luís, interessado.

         ‑ Já tenho o meu plano. Estudo muito; faço o liceu rapidamente e,quando estiver bem adiantada, começo a leccionar e assim ganharei alguma coisa, aliviando o padrinho. Se a D. Justina quiser que eu ensine lá, muito bem; se não, leccionarei fora.

         ‑ É admirável esta pequena... Que forma de pensar tão sensata.

         ‑ Realmente é uma bela ideia. Não te convém de forma alguma cair no desagrado da directora.

         Berta tinha razão: esta rapariga é um portento; pensa como uma mulher.

         - Se todas assim fossem... o mundo estava direito.

         ‑ Tenho sofrido grandes amarguras... Mas a vida é assim!...

         - Como é a primeira vez que vens a nossa casa e quero que voltes, é bom não contrariar a D.Justina... Mando‑te lá à noite.

         ‑ Muito obrigada, sra. D. Helena. Não ousava pedir‑lhe, mas parece‑me muito melhor.

         ‑ Nós vamos acompanhá‑la, mamã?

         ‑ Se a Marta e a Raquel quiserem ir, está muito bem.

         ‑ Temos muito gosto nisso ‑ repetiram as duas em coro.

         ‑ Para vires outro domingo...

         ‑ Gostaria imenso... Seria o meu maior prazer; mas antes dos exames tenho muito que estudar... Se ficasse mal, atribuiriam o fracasso às minhas saídas... Também não quero incomodar a sra. D. Helena.

         ‑ Não me incomodas absolutamente nada! Bastava seres a maior amiga de Berta, para ter um grande prazer com a tua visita...

         ‑ Em Setembro, se V. Exas. estiverem, virei um dia, se ela me deixar.

         ‑ Mamã, porque não vem ela passar as férias connosco? íamos todos para a quinta...

         Júlia sorriu a tão agradável perspectiva.

         ‑ Era uma grande felicidade... mas não posso aceitar tantos favores que nunca poderia retribuir. Quando for grande...

         ‑ Quando fores grande, já não tens férias.

‑ Só os pequenos é que estudam... - disse Álvaro, todo importante.

         ‑ Essa agora! Então o pai não está sempre agarrado aos livros...

         ‑ Porque é um sábio; mas essa espécie não é vulgar.

 

         Foi um dia em cheio para todos. Ficaram tão amigos como se se conhecessem de sempre. à noitinha o grupo todo acompanhou Júlia, logo após o jantar.

         Mal chegou, foi ter com a directora, que estava no gabinete de trabalho.

         ‑ Muito boa noite, sra. D. Justina.

         ‑ Boa noite... Então, vens satisfeita?

         ‑ Muito, minha senhora. Gostei tanto de todos; são tão bons que deram a impressão de serem da minha família. Tão amigos, tão felizes, tão alegres... Que bom é ter parentes...

‑ disse pensativa.

         ‑ Não te desconsoles... Há muitas pessoas como tu.

         ‑ Queriam que lá ficasse, mas não aceitei... Além de ter receio que a sra. D. Justina não ficasse contente... também perdia os estudos da manhã. A sra. D. Helena desejava que lá fosse no domingo. Agradeci e disse que não podia sair. Quem é pobre não deve andar em passeios. O que preciso é de estudar.

         A directora olhou‑a por cima dos óculos, com aquele olhar arguto e perscrutador a ver se descobria a verdadeira intenção das últimas palavras. A órfã afivelou a máscara de passiva ingenuidade que a ninguém inspirava desconfiança.

         ‑ Tens razão!... Mas a vida não se leva a matar... Também é necessário um pouco de repouso e distracção.

         Júlia foi arrumar as suas coisas para prosseguir na labuta habitual.

 

Chegaram os exames!

         A filha do médico estudava com ardor. Na aula de português, onde começou a ir como assistente, estava agora no segundo lugar.

         ‑ Fora um milagre ‑ dizia o Teles, todo ancho com o triunfo da discípula, à qual vinha, todas as manhãs, às 8 horas, dar lições extraordinárias sem cobrar um real. Júlia tomava o café, à pressa, e corria para a lição. Mestre e discípula entendiam‑se às mil maravilhas. Mais pareciam pai e filha, que dois desconhecidos de há poucos meses.

  1. Justina admirava‑se da paciência com que o professor, sempre tão atarefado com afazeres, estava para tantas madrugadas, pois morando longe, para ali estar àquela hora, tinha, fatalmente, de se levantar muito cedo. Júlia compreendia o sacrificio e o seu reconhecimento traduzia‑se num carinho que não podia esconder.

         Tinha uma sede insaciável de saber. às vezes perguntava‑lhe se queria continuar, ou se já estava cansada.

         ‑ Absolutamente nada. Era o que faltava, que fosse eu a fatigar‑me quando o sr. Teles é que se maça... Demais a mais não lhe posso agradecer estes favores...

         ‑ Não pense nisso; venho sempre com muito gosto. Isto é para mim um divertimento. Eu é que ainda lhe estou muito agradecido, pois se a menina não fosse tão boa estudante não me interessaria por si.

         E a lição continuava até tocar para as aulas. A directora gostava de se informar, de vez em quando, do adiantamento das educandas, fora das classes. Os professores falavam assim mais à vontade e davam pormenores que a ajudavam a corrigir certos temperamentos. Esperava-os na escada, no patamar em frente da sala, pedia‑lhes para entrarem uns instantes, e aí é que, minuciosamente, se certificava da capacidade intelectual das raparigas para exercer maior vigilância se as faltas fossem devidas à preguiça, como acontecia grande parte das vezes.

         Nessa tarde, já próximo dos exames, houve uma dessas conferências. Alguém que passou, e se deteve na escada, ouviu o diálogo. Rosnava‑se que o Teles queria que a pequena fizesse exame. A directora tinha o pavor das raposas. Entendia que expor Júlia a essa prova era uma temeridade. Não desejava pronunciar‑se diante dela, para a não desgostar. Resolveu, pois, esperar o Teles para lhe manifestar sinceramente o seu receio. Não lhe parecia possível que a filha de Pedro Almeida estivesse convenientemente preparada.

         ‑ Que tal vai a órfã? ‑ começou.

         ‑ Muito bem, minha senhora. Não me enganei nas minhas conjecturas, ao primeiro golpe de vista. É, além de excepcionalmente inteligente, muito trabalhadora e tem uma vontade que supera todas as outras qualidades.

         ‑ É boa! Nunca julguei que esta infeliz...

         ‑ Há‑de ir longe, minha senhora, repito‑lhe lealmente, convencido do que afirmo.

- E a respeito de exames?

         ‑ Pode fazer também português, não simplesmente para passar, como as que se querem despachar para seguir a sua carreira seja como for, mas para apanhar, sem favor, uma distinção.

         ‑O que me diz?...

         - Confesso que nunca tive discípula que me desse tanto gosto. É de uma persistência notável.

         ‑ Quanto folgo com a notícia... Decididamente esta garota é um exemplo.

         ‑ Não o duvide; não é fácil encontrar hoje jóias deste quilate. A desventura sacudiu‑lhe os nervos e,em vez de a desalentar, como à maioria, excitou‑a. É um caso psicológico a registar. Em geral, a mulher desfalece na infelicidade e sucumbe em grande parte dos casos.

         ‑ É de rija têmpera!... O que dará na vida este fedelho, sem pais e sem vintém...

         ‑ O futuro é um enigma. Quem viver... verá. Não sou o menos interessado em saber o que será o amanhã desta criança.

         ‑ Está pois assente que pode requerer exame...

         ‑ Sem hesitar e com a certeza de um grande êxito... Só se surgir alguma imprevista fatalidade...

         Estava‑se no fim do ano lectivo. Um Verão escaldante. Todos os dias ia, do Colégio Progresso, um grupo de raparigas ao liceu. Júlia andava nervosa, apeSar de ter confiança em si. Nos interrogatórios dos examinadores, pelo menos aqueles a que tinha assistido, sentia‑se apta a responder sem vacilar.

         Mas... não sabia porquê, tinha receio... Via‑se tão só... Vinham os pais, parentes e amigos de todas, e ela... não tinha ninguém. O padrinho aparecia de fugida e, mesmo assim, quanta boa vontade isso representava.

         Arranjaram‑lhe para essa ocasião um vestido de chita barata, que a directora mandara fazer a uma costureira, mas que, mesmo assim, lhe ficava bem. Escolhera‑o um dia em que saíra com a D. Justina. Este, finalmente, tinha as ombreiras no seu lugar e as mangas não lhe chegavam, como as dos outros, até às pontas dos dedos. O chapéu era o do ano anterior, mas, como estava direitinho, não parecia muito mal. Berta tinha‑lhe dado um jeito em casa e posto uma fita nova.

         - O que quero é ficar bem... O resto pouco importa.

         No dia do exame, os professores apareceram. Ficou admirada. Era a primeira vez que ia prestar provas públicas. No intimo, todos temiam que ela se atrapalhasse. Era tão acanhada!... Com grande surpresa viu, também, os irmãos de Berta. Sentia‑se bem disposta; todos a animavam.

         Quando fizeram a chamada, dirigiu‑se para o seu lugar a passo firme. A directora estava mais nervosa que ela. Nos bancos de trás sentaram‑se os mestres e muitas companheiras. Havia duas examinandas a interrogar antes dela. Chegou finalmente a vez de Júlia. Levantou‑se com segurança. Os conhecidos tremiam.

         Quando a ouviram ler, sem pressa, com voz clara, bem timbrada, ficaram tranquilos. Os examinadores, que a princípio estavam com aquele ar sonolento e fatigado de quem aguenta uma formidável estopada, ao verem a forma como Júlia respondia, ergueram a cabeça, firmaram‑se melhor no seu posto, como quem se prepara para apreciar alguma coisa de interessante. O presidente, visivelmente entusiasmado, quis, também, fazer brilhar a pequena. Júlia a tudo respondeu, senhora de si.

‑ Muito bem, estou satisfeitíssimo.

         Saiu a transpirar. A tensão nervosa em que estava era enorme; tão forte que não conteve as lágrimas. O Teles, a D. Justina e outras professoras rodearam‑na.

‑ Fico mal, fico mal ‑ dizia a soluçar.

         Conhecidos e desconhecidos formavam um grande grupo á volta dela. Nisto, um dos examinadores saiu da mesa e fingiu passar casualmente junto dela.

         ‑ Porque é que ela chora?... Nervos?!...

         E ao Teles, baixinho:

         ‑ Apanha uma distinção...

         ‑ Muito agradecido, sr. Doutor.

         Foi quanto se ouviu deste rápido diálogo. Notou‑se, porém, que a fisionomia do professor se iluminara com um clarão de alegria, como se um grande foco incidisse sobre ele. D. Justina aproximou‑se ansiosa.

         ‑ Que tal? - interrogou.

         ‑ Fica distinta... ‑ respondeu no mesmo tom.

         Nessa altura, a directora teve uma alegria tão grande, que se aproximou da discípula, tão contente, que por um triz a não abraçou ali mesmo. Não houve ninguém que não notasse o seu contentamento.

         ‑ São nervos - diziam uns aos outros...

         ‑ Não admira, é a primeira prova pública... Está excitada pelo esforço que fez para se dominar.

         - O trabalho desta pequena foi excessivo. É um exemplo admirável...

         Os irmãos de Berta estavam mortos por lhe falar... mas a senhora dos óculos intimidava‑os de tal forma, que se mantinham a respeitável distância.

         Berta tentava, por todas as formas, distrair a amiga. Cá fora, pais, mães, mestres e alunos, rodeavam Júlia. Os que não tinham assistido só podiam atribuir aquelas lágrimas a um grande fracasso.

         - Ficou reprovada? Coitadinha!...

         - Não vale desanimar... É bastante nova... Tem muito tempo para se desforrar...

         ‑ Uma raposa é um animal bonito... - disse um espirituoso...

         Os irmãos de Berta responderam‑lhe:

         ‑ Um animal és tu... Ela apanhou mas foi uma distinção...

         - Bravo... Então que significa este pranto?

         ‑ Está nervosa e com medo... enquanto não sabe o resultado.

         ‑ Se todos prestassem provas como ela - disse alguém que tinha assistido ‑ não era necessário fazer batidas às raposas...

  1. Justina ouviu as últimas palavras. O seu chapelinho preto, de fitas a atar sob o queixo, agitou‑se em cortesias amáveis.

         - Muito agradecida!... É aluna do meu colégio; tenho óptimos professores e, graças a Deus, os resultados têm sido magníficos.

         ‑ Os professores nada conseguem, minha senhora ‑ respondeu o desconhecido - quando os discípulos são cábulas ou pouco inteligentes!... Assisti ao exame desta menina; deve ir longe se continuar pelo mesmo caminho.

à volta havia comentários acerca de Júlia.

- É órfã!... Pobre pequena...

         ‑ Dizem que é filha de um médico de aldeia que lhe deixou as estradas livres para passear, bom ar para respirar e... nada mais.

‑        Consta que está a educar por esmola. Deste estofo educava duas ou três pelo mesmo preço - disse a directora de outro colégio. - Estas é que levantam uma casa e lhe dão fama.

         Júlia estava mais calma, mas preocupadíssima. Quando viu o Teles próximo, ergueu OS olhos para ele e interrogou:

         - Já sabe alguma coisa?

         ‑ Não tenha receio; pode estar certa que passou.

         - Quem sabe, sr. Teles!... Estava tão aflita, que nem sei se respondi a tudo.

         - Respondeu e muito bem.

         Nisto passou um empregado com um papel

na mão. Deslizou sem ruído e foi colocá‑lo num quadro onde se iam ler as sentenças. Quando repararam nele, houve um movimento geral. A onda correu para a papeleta afixada. Liam em voz alta. Olhos esbugalhados, por cima de outras cabeças, procuravam, ansiosamente, um nome que lhes interessava; Júlia foi a única que se não moveu. Tremia, sem saber porquê... A dúvida imobilizara‑a.

         ‑ Não houve raposas... ‑ gritou alto um rapazito...

         ...... ‑ exclamou a pobre rapariga, como se lhe tirassem um peso de cima. ‑Desta escapei eu - desabafou sozinha.

         Os olhos não se despregavam do grande quadro, onde estava o resultado dos exames. A primeira a romper a turba, foi a D. Justina. Vinha delirante!... O chapelinho preto agitava‑se ao menor movimento; uma grande alegria abria‑lhe um sorriso, transfigurando‑lhe a fisionomia inteligente.

         Dirigiu‑se à pequena, afagou‑a com aquele gesto duro que mais parecia uma agressão e disse‑lhe entusiasmada:

         Bravo, Júlia, estou muito contente contigo. Fizeste uma brilhante figura.

         O Teles correu a abraçá‑la, contra o protocolo, mas não pudera conter‑se. Nunca tivera uma aluna assim. Luís e Álvaro vieram, sorrateiramente, associar‑se à manifestação.

         ‑ Ficaste distinta... Ora chupa, que é cana‑doce...

         Júlia ergueu os olhos para o mestre, para saber a verdade. O Teles entendeu‑a e sorriu.

         ‑ Sim, menina, uma merecidíssima distinção...

         ‑ Distinta, eu!... Não pode ser... Ai, quem me dera que o meu padrinho aqui estivesse...

         Como se um fenómeno extraordinário de telepatia se desse, Roberto Esteves apareceu de repente. Sabia que a afilhada entrava a exame, vinha numa corrida informar‑se do resultado.

         ‑ Padrinho, padrinho! - gritou Júlia, correndo para ele e caindo‑lhe nos braços a soluçar...

         O médico estreitou‑a para a consolar. Aquelas lágrimas denunciavam catástrofe. Mas em volta todos sorriam, o que lhe não deixou compreender rapidamente a atitude da afilhada.

         ‑ Estamos de parabéns, doutor -... A nossa pequena saiu‑se briosamente... ‑ informou a directora. Apanhou uma bela distinção.

         Roberto olhou a afilhada, enlevado. Estava admirado. Intimamente pedia a Deus que desse aos filhos igual inteligência e perseverança. Seria a maior recompensa para o sacrifício que fazia, pagando a educação à afilhada.

         Se pudesse, levá‑la‑ia a passear, e a jantar com ele. Mas Octávia erguia‑se entre os dois, reclamando para os filhos todo o carinho e todo o dinheiro. Dar‑lhe‑ia uma prenda útil, uns sapatos, um vestido ou um chapéu, à escolha dela. Chamou‑a de parte e disse‑lhe:

         ‑ Gostava muito de te levar comigo hoje, mas tu és inteligente, compreendes a vida e as circunstâncias em que me encontro; por isso vou dar‑te dinheiro para comprares o que mais necessitares.

         ‑ Não aceito, padrinho, desculpe! Basta o que já lhe devo. A minha obrigação é estudar, fazer tudo para rapidamente o aliviar das mensalidades que por força alteram a sua vida.

         ‑ Estás tolinha!... Graças a Deus tudo me tem corrido bem. A Providência não dorme. Haja saúde e a vida há‑de deslizar no melhor dos mundos e pela melhor forma possível.

         Apesar de todos os esforços para recusar o brinde do padrinho, teve de aceitar o que lhe deu.

 

Júlia foi o assunto do dia no colégio.

         ‑ A ursa não podia passar sem distinção...

‑ Aquilo foram pedidos do Teles...

         ‑ E do padrinho que deseja a afilhada doutora à força, e pensa, o palerma, que não o pode ser sem distinções...

         ‑ Aquele também não inventa a pólvora!...

         ‑ Quando for a casa hei‑de contar à minha mãe as injustiças que aqui se fazem.

         ‑ Realmente é um abuso... As distinções são para as pelintras!... As outras não são gente... Isto devia ser proibido.

         ‑ Também tenciono contar tudo em minha casa. É uma grande afronta darem as distinções às que não pagam. Calcula que o meu pai farta‑se de dar presentes para isto...

         Todo este aranzel azedo se passava sob uma tangerineira frondosíssima, cuja ramaria descia até ao chão, formando um lindo recinto ensombrado guarnecido de bancos, delicioso para repousar no Verão. Ali desabafavam em geral as descontentes. Ninguém dava por elas; podiam expandir‑se à vontade. Cá fora passavam grupos galhofeiros, rindo e folgando sem se preocuparem com os sucessos ou insucessos das companheiras, tendo apenas um fito: divertirem‑se...

         Algumas, porém, conheciam o local onde se conspirava. Uma dessas observadoras, passando disfarçadamente, ouviu o conciliábulo; não perdeu uma palavra e ficou indignada. Fez‑se encontrada com a professora de vigilância e disse‑lhe o que se estava passando. Não foi difícil à senhora constatar a verdade do que acabava de ouvir. Surpreendeu‑as em flagrante. Entrou, inesperadamente, no caramanchão e fixou o grupo. Estava rubra de cólera.

         - É espantoso que se revoltem contra o triunfo de quem trabalha sem um instante de repouso. Porque não estudam como ela?... Procurem‑na neste momento e vejam se ela as vê, se se importa com a situação de alguém. As vossas riquezas, os vossos lindos vestidos, todos os regalos que possuem as que têm família, são para ela coisas sem valor. Apenas tem uma aspiração, um desejo, um alvo, o cumprimento das suas obrigações. Creio que esse procedimento não prejudica ninguém. Ela não vos tira o lugar; as meninas é que não sabem ou não querem conquistar a mesma posição. Estudem, trabalhem, e os loiros virão... Lá está, agora, e sempre, agarrada aos livros e ao dever... Quem assim procede é digna de recompensa. Não têm pena de ser invejosas e más?

         ‑ Eu não disse mal nenhum... Além disso não quero ser doutora...

         ‑ O saber não ocupa lugar. A menina tem hoje os seus pais com grande fortuna. Mas o mundo dá muita volta; sabe‑se lá o que será o porvir... O destino é caprichoso!... Têm‑se visto tombar ruidosamente os mais sólidos castelos; em compensação muitas choupanas modestas têm erguido andares onde mora a felicidade... Não há muito que fiar na estabilidade da sorte... Estudem, em vez de serem maldizentes, e o sucesso coroará os vossos esforços.

         - Eu não tenho pretensões a ursa... - disse uma de nariz torcido.

         ‑ Pois melhor fora que tivesse.

         O incidente passou, mas a raiva surda das companheiras de Júlia exacerbou‑se. A órfã, a sem‑ família, a pobretona, com os seus vestidos de chita ordinária, mal amanhados, ia ganhando terreno, conquistando uma situação segura.

         Tudo que se passava em volta lhe desinteressava. Tinha uma ideia fixa que a absorvia: aprender, chegar ao fim o mais depressa possível, para poder ganhar dinheiro. Convinha‑lhe dominar a directora de forma a tê‑la a seu lado sempre. Para isso, sem servilismo, ia conseguindo o que queria. A sua arma era o cumprimento do dever, o estudo aturado que a levava a alcançar as maiores classificações em todas as aulas. Tinha dela agravos que muito lhe doíam, mas fingia não dar por eles. Era esse o melhor caminho. Tudo calava, concentrando‑se cada vez mais.

         Quando era necessário qualquer auxilio, corria a prestar o seu concurso, desempenhando‑se do que a encarregavam, com a maior solicitude. D. Justina era essencialmente fanática. Foi sempre essa uma das suas características mais acentuadas. Júlia não era propensa a exageros. Em casa, a verdadeira religião era a do bem. Ali, cumpria rigorosamente os preceitos estabelecidos. Um dia ofereceu‑se para enfeitar a capela.

  1. Justina ficou maravilhada com o arranjo das flores.

         ‑ Se a senhora directora deseja, encarrego‑me sempre deste serviço.

         ‑ Não terás tempo... ‑ disse, fixando‑a admirada.

         ‑ Ao recreio - respondeu sem hesitar.

         Desde esse dia não se viu mais uma flor murcha nas jarras. Todos os dias lhe dava volta, cortando um bocadinho de pé e renovando a água. Nunca a capela estivera tão cuidada.

         ‑ Em matéria de religião ‑ confidenciava às vezes ‑ é que esta pequena deixa muito a desejar...

         ‑ Não reza? ‑ interrogava uma senhora sua íntima, interna no colégio, e tirando fora um curso superior.

         - mas... não lhe noto o fervor que seria para desejar. Éo dever e nada mais... E ‑ continuava com certo pesar ‑ não lhe posso ralhar...

         ‑ Ora essa!... Havendo motivo...

         ‑ Mas não há! Além disso, tem a capela sempre num alinho como nunca esteve; porque se porta de forma que não há o direito de lhe fazer a mais leve censura... A mais leve... entende, minha amiga?!...

         ‑ Quem sabe se estará ali uma grande vocação religiosa ‑ disse Sílvia Rebelo, para sondar com a sua arguta inteligência, a directora.

         ‑ Ah! não; a esse respeito não me iludo; e bem gostava de lhe dizer duas coisas. Mas o fedelho não se presta a admoestações... Tem uma maneira de se dar ao respeito, que estou a ver qualquer dia os professores terem medo dela.

         Sílvia Rebelo desatou a rir com vontade.

         ‑Essa agora!

         ‑ Não se ria, olhe que isto é um facto constatado. O Teles já há tempos me disse: "Esta menina adivinha‑nos as vontades; se fosse necessário repreendê‑la, o que não é; felizmente, eu não teria coragem de o fazer; sabe impor‑se". Ora veja a minha amiga o que isto significa na boca do Teles...

         ‑ Ele também não é um ralhador profissional...

         ‑ Não, mas às outras vai dizendo por palavras mansas quanto quer e lhe apetece. A Ela, que tem o génio que nós sabemos, com ele fica desarmada.

         ‑ A Júlia tem jeito para a música?

         ‑ Creio que não é uma vocação; pois apesar disso já me soube dizer: ‑ Estou morta por tocar bem para ser a organista da capela...

         ‑ É curioso!... É simpática a rapariguita.

         ‑ E nessa ocasião acrescentou: ‑ Não vou para férias, não farão falta as que saem.

         - A Luisa contou‑me, em segredo, um pedido que ela lhe fez: ‑ Como não tenho dinheiro para dar uma prenda à sra. D. Justina no dia dos anos, gostava muito de tocar uma música nova, na capela, nesse dia.

         ‑ É uma ideia gentil...

         ‑ É por estas e por outras que, às vezes, mesmo que quisesse dizer qualquer coisa... fico calada... sem coragem...

         ‑ Mas tem tido necessidade de a repreender ou castigar?

         ‑ Isso não; mas gostava de lhe dizer que devia pensar mais nas coisas divinas...

- Se ela reza, cuida da capela, e quer ser organista...

         ‑ Tudo isso é por dever e não por devoção.

         ‑ Se a não tiver, também não será ralhando que lha incute... A meu ver, a pequena vai muito bem. Possui um senso prático admirável, não convém perturbar‑lhe a marcha serena e certa. Creio que alguns exemplares destes seriam o suficiente para levantar uma casa.

         ‑ Realmente assim é!... Se fosse mais crente, mais fervorosa cumpridora dos preceitos da Igreja, seria perfeita.

         Sílvia Rebelo sorriu misteriosamente e não disse nada. Sentia que era uma acusação que a D. Justina lhe estava dirigindo indirectamente. Fez‑se desentendida como sempre.

O programa de Júlia era o dela. Havia apenas a diferença de ela ser rica e ter família.

         O procedimento da órfã agradava‑lhe por completo. Aquela ânsia de independência, aquele plano traçado com firmeza, desenhava com a maior nitidez um carácter.

 

Terminou o período dos exames, com o maior brilho. No colégio, apenas uma ficou adiada. Boas classificações. Júlia colheu fartos loiros e obteve duas distinções.

         Começou a debandada para férias. Octávia continuava de mau humor; não queria a afilhada em casa... Não estava para aturar estranhos. Bem lhe bastavam os filhos a fazer tropelias.

         Roberto nem se atrevia a falar em Júlia. Iria ver a pequena uma vez ou outra. Como a directora não saía, não lhe fazia diferença que ela ficasse. Algumas que tinham os pais em áfrica também passavam as férias no colégio.

         Berta queria levá‑la para a quinta, mas ela começava a envergonhar‑se de andar tão mal vestida. Preferia não ir. Prepararia as suas coisas, revendo matérias, estudando piano a valer e lendo.

         Antes de partir para a Beira, os Lencastres exigiram que ela fosse passar com eles uns dias. Estes correram rápidos e felizes. Júlia era tratada como pessoa de casa. Os irmãos de Berta consideravam‑na como irmã. Todos lhe queriam sinceramente. Andavam à volta dela, entusiasmados, a mostrar‑lhe livros, desenhos, tudo, em suma, que podia interessar‑lhe.

         ‑ Queres que te empreste algumas obras para leres nas férias?

‑ É o que mais agradeço. Tenho tido vontade de os pedir à Berta, mas receava que não gostassem...

         - Tu és da família; o que é nosso é teu. Queres tu ser nossa irmã?

         Júlia respondeu sem hesitar:

         ‑ Quero!... Como seria bom ter pai e mãe!...

         ‑ Mas mesmo a valer... Posso casar contigo.

         Júlia olhou‑o espantada e séria. Nunca lhe tinha passado pela cabeça tal modalidade... Por isso corou intensamente.

         - Este Luís é muito atrevido! Que lembrança!... Como se em primeiro lugar não estivesse eu, que sou mais velho. ‑ retorquiu Alvaro, muito importante.

         Berta deu uma gargalhada.

         ‑ Que tolos... Já as formigas têm catarro!... Francamente, para que servem vocês? Júlia não precisa de embaraços na vida!... Casar, para quê? Ela há‑de ser médica ou advogada! Uma mulher notável. Vale muito mais que todos os fedelhos somados.

         A órfã não pôde conter uma gargalhada.

         ‑ Sempre tens cada lembrança, Berta!... Podias ofender os teus irmãos...

         ‑ Não ofende ‑ respondeu Luís, importante. - Hão‑de ver o papel que represento no futuro. Serei alguém. É certo que ainda não resolvi; mas posso ser ministro, embaixador e muitas coisas mais... E Júlia, por mais inteligente que seja, não poderá ser nada disso...

         ‑ Só se ela não quiser!

         ‑ Teria que ver, uma mulher ministra...

         ‑Não tenho grandes aspirações. Quero, apenas, ganhar o pão para não ser pesada a ninguém. O resto não me interessa... Não tenho família com quem possa contar.

         ‑ Conta comigo, incondicionalmente - disse Luís, entusiasmado. ‑ Quando eu for grande a valer caso contigo...

         Ouviu‑se um estridente coro de gargalhadas. Luís embatucou. Faziam pouco dele.

         - Tu sabes se ela estaria para te aturar, meu pateta? ‑ disse Alvaro severamente.

‑ Este Luis tem cada ideia...

         A conversa mudou de rumo. Júlia foi a única que não ligou a menor importância ao dito. Todos os outros, porém, tomaram o caso mais ou menos a sério. Júlia, companheira de todos os dias, era um sonho que sinceramente lhes sorria. Mas a órfã era de uma altivez... dominadora, de uma independência estranha.

         ‑ Eu já estou a ver a Júlia pelo óculo que permite enxergar a muitos anos de distância

‑ disse Berta. ‑ E vejo‑a muito imponente, no seu consultório cheio de doentes, à espera de vez. E ela a observar meticulosamente, a receitar...

         ‑ E a mandá‑los para o outro lado. Também está no painel que lobrigas com a tua vista' de lince?...

         ‑ Não duvido um instante que vai ter um futuro que a engrandecerá aos olhos de todos.

         ‑ Se não falharem os teus cálculos!...

 

Depois de oito dias de convívio delicioso com a família que se habituara a estimar como sua, voltou para o colégio. Mas, facto curioso, todos os mestres se lembravam dela.

         Luisa, a inteligente e severa alemã, que passava por aquele público infantil espalhando o seu vasto saber, sem se deter, sem atentar nele, sem se preocupar mais que com a sua missão profissional, indiferente, fechada no seu egoísmo, engraçou com a órfã, e um domingo apareceu no colégio a pedir para a levar a passear.

         Júlia ficou surpreendidíssima. Nestes casos não a consultavam. Mandaram-na vestir outro fato. Luisa queria que ela fosse... Não se discutia. Tinha que ir sem necessitarem da sua opinião. Para onde a levaria a alemã, perguntava a si mesma. Com toda a franqueza, preferia ficar!...

 

Andaram a pé até à Boavista e ali tomaram o comboio de Matosinhos. Para Júlia tudo aquilo era novo. Só conhecia do Porto o caminho para o liceu e para casa da família Lencastre.

         A paisagem era linda... tanta verdura, tantas casas ajardinadas, tantas flores... Ia absorvida e admirada. A alemã observava‑a contente com a impressão que lia na fisionomia da discípula.

         ‑ Então, gostas?

         ‑ É muito lindo, Fraulein... Estou encantada.

         ‑ Vais ver o mar...

         ‑ Ah! e eu que tinha tanto empenho nisso... Pensei que nunca veria o oceano... O padrinho não poderia vir comigo... e a sra. D. Justina também não tem tempo para aturar as alunas pobres como eu...

         ‑ Não há maior pobreza que a de juízo e de faculdades intelectuais. Nunca digas que és pobre, porque a natureza deu‑te ricos dotes: a saúde e a inteligência... Quando se possuem esses dons, aliados a uma grande força de vontade, como tu tens, o triunfo é certo.

         Quando se apearam, dirigiram‑se à praia e sentaram‑se. O mar estava agitado. As ondas vinham numa cavalgada louca, umas após outras, na ânsia de se agarrarem e aniquilarem. As mais fortes dominavam as outras, que se sumiam embrulhadas num montão de espumas alvas como arminhos

         Depois daquela correria exaustiva, beijavam a areia, preguiçosamente, e lá iam, de novo, deixando, atrás, um tapete alvadio em que apetecia repousar. Voltavam à faina, à luta, ao bailado elegante, sacudindo, airosas, as fartas cabeleiras nevadas. Por momentos tudo serenava. Apenas um rumor longínquo, um murmúrio suavíssimo de alguém que, recatadamente, confiasse às águas um segredo de amor.

         O mar era uma planície enorme; um prado sereno, sobre o qual pairavam gaivotas de asas quietas como minúsculos aeroplanos. Essa calma durava instantes. De novo, ao longe, surgiam a dobrar‑se, envolvendo‑se em arminhos, vagas que vinham, velozmente, quebrar‑se na costa. Outras erguiam‑se a alturas espantosas, espargindo‑se em rendas cristalinas como se uma Salomé fantástica exibisse, ali, as suas danças artísticas. Júlia estava maravilhada. Nunca imaginara que o mar fosse tão belo.

         - Nem todas as vagas chegam à praia...- disse, contemplando o grande quadro da natureza.

         - Sim, é natural. Exactamente como acontece com as pessoas: são raras as que atingem O fim a que aspiram.

         ‑ Quem sabe se me sucederá como àquelas que se somem antes de chegar ao cabo da jornada...

         ‑ A fé, a confiança em nós mesmos, é a maior alavanca que nos pode amparar. Nunca duvides de ti...

         ‑ É tão difícil vencer!...

         ‑ Alcança‑se vitória, sempre, quando temos força de vontade.

         A tarde vinha declinando; o Sol ia esconder‑se num poente rubro; o oceano estava, agora, mais azul e as ondas rumorosas pareciam adormecidas. Uma serenidade tonificante envolvia céu e terra. De um pequeno restaurante saía uma música deliciosa, adequada à hora e ao cenário; qualquer coisa de nostálgico, de inebriante, que parecia fazer paralisar a vida terrena para transportar a regiões de sonho.

A alemã voltou‑se surpreendida.

         ‑ Isto é realmente belo!

         Júlia estava presa, enfeitiçada; nem sequer podia falar.

         O Sol tinha‑se afundado... e elas ficaram, como duas estátuas, no paredão solitário, sugestionadas pela magia da tela. A Fraulein, alta, elegante, no seu fato claro de bom corte, os cabelos de oiro escapando‑se‑lhe por baixo das abas do grande chapéu; Júlia, dando‑lhe pelo ombro, mas bem formada, era uma promessa sorridente. Não podiam desprender‑se daquele encantador panorama.

         ‑ Que lindo para pintar... Quem me dera saber!...

         ‑ Tu gostas de pintura?

         ‑ Imenso.

         ‑ Pois vou ensinar‑te. Claro que tens de aprender, primeiro, desenho.

‑ Naturalmente, não posso!... A pintura é mais um divertimento, não é, Fraulein? Os pobres não devem pensar nisso.

         ‑ Ora essa... Há muito quem se sustente com os pincéis e até com o lápis.

         ‑ O padrinho quer que eu me prepare para ganhar a vida... Como não tenho nada...

         ‑ Os pobres também podem ser artistas! Têm as suas horas livres... Uns desbaratam o tempo!... Outros aproveitam‑no... Pertences à última categoria.

         ‑ Se eu pudesse...

         ‑ Querer é poder. Eu também não sou rica. Meus pais deram‑me educação, foi esse o meu dote -... Desde os dezasseis anos que me governo. Na Academia, em Paris, e no Conservatório, tudo correu, já, por minha conta. Dava lições de alemão e de tudo que sabia, para me sustentar, para pagar matrículas e o que era necessário! E olha que nunca me faltou nada. A minha única riqueza era o tempo; por isso me tornei avara dele-... Não perdia um segundo.

         ‑ A Fraulem é tão inteligente-... Quem assim é, não teme nada.

         ‑ Ai, filha-... Há mil contrariedades na vida... Temos de ser superiores aos pequenos ataques; não reparar nas ofensas, feitas somente com o intuito de nos desgostar e enfraquecer as energias, para nos fazerem sucumbir. Nunca te preocupes com esses nadas que servem, apenas, para nos incomodar!... Estuda que hás‑de vencer.

         ‑ Não tenho outra ideia. Quero aliviar os encargos do padrinho. Sei os sacrifícios que faz para pagar a minha mensalidade...

         ‑Tu pagas?

         ‑ Paga o padrinho... mas como a Octávia não gosta que ele gaste dinheiro comigo, por causa dos filhos... tem de fazer constar que me ensinam por esmola...

         ‑ É boa-... Todos pensam que estás de graça!... ‑ respondeu apreensiva.

         ‑ Isso, afinal, pouco interessa.

         ‑ Sim, mas fazes trabalhos que não devias...

         ‑ Gosto de ser agradável à sra. D. Justina!... Um dia pode deixar‑me ensinar no colégio e então serei independente.

         O que indignou a alemã foi a propaganda que a directora fazia do seu rasgo de bondade! Podia ao menos calar‑se; era mais simpático e honesto. Para cúmulo, vexava a pequena em toda a parte. A sua situação era, realmente, esquisita. Júlia nunca se queixaria, com receio de chegar aos ouvidos da madrinha,e o médico ser forçado a tirar a afilhada do colégio.

         ‑ Tinha por ti uma estima espontânea, mas agora aumentou. Admiro a tua prudência e delicadeza!... Subiste muito no meu conceito!... E, acredita, não perdeste com a confidência.

         ‑ Julgava que a sra. D. Justina tivesse dito à Fraulein... Se assim não fosse...

         ‑ Não tenhas receio. Continuarei, como até aqui, a julgar‑te uma educanda de favor. O mundo prepara‑nos cada surpresa!...

Era noite quando apareceram no colégio. Júlia desfez‑se em agradecimentos.

         ‑ Oxalá, algum dia, possa mostrar‑lhe a minha gratidão.

         A alemã apertou‑lhe a mão comovida. Até ali, a órfã, fora, para ela, uma discípula de quem gostava; agora sentia que era uma amiga com quem podia contar em caso de necessidade.

         A garota fez uma interessante descrição do passeio, à directora.

         ‑ Tens de escrever as tuas impressões e mostrá‑las ao sr. Teles e à Fraulein.

         ‑ Não tenho jeito para esse género de trabalhos.

         ‑ Entendo que deves fazer uma em francês para ela e outra em português para o teu mestre e amigo.

         Assim foi. Nunca a aluna se poupou a canseiras. Durante as férias, Luisa começou a dar‑lhe as prometidas lições de desenho.

         ‑ Que maçada que tem a Fraulein!... Não se incomode tanto!... Mesmo que a pequena tivesse algum talento, não poderia nunca fazer uso dessa prenda. Tem de trabalhar para viver.

‑ Deixe‑a aprender! Ela é tão activa que dá gosto ensiná‑la. Além disso, quem sabe as voltas que o mundo dá?... Pode, ainda, vir a ser rica.

         ‑ Não será fácil!

         Júlia, indiferente ao que diziam, ia aproveitando todos os obséquios dos mestres.

 

Começaram as aulas, e ela, com o mesmo fervor, atirou‑se aos livros. Ninguém já pensava em disputar‑lhe o primeiro lugar, em todas as disciplinas. Continuou a ser a ursa e as invejosas ficaram para trás. Outros grupos apareceram que se habituaram à superioridade de Júlia nas aulas que frequentava. Os mestres consideravam‑na imenso. E ela, sempre modesta, prosseguia na sua marcha, de olhos fitos num futuro que era, ainda, uma interrogação.

         Uma vez ou outra ia passar um domingo a casa de Berta. Queriam‑na sempre lá nas férias. Nunca aceitava mais que uns três ou quatro dias, pretextando afazeres, que tinha, realmente. Era quando não tinha aulas que mais estudava, que preparava as matérias de forma a vencer dificuldades em que outras esbarravam. Era esse o segredo do seu êxito. Perto da Páscoa desse ano, deu‑se um incidente desagradável. Luisa, de repente, faltou às aulas. Como vivia num quarto, isolada, não teve quem mandasse avisar a directora. D. Justina, alarmada, pois nunca, em muitos anos, tal facto se dera, à noitinha disse à Júlia:

         ‑ Veste‑te; tens de sair comigo.

         Estas resoluções eram frequentes, quando se tratava de assuntos importantes. Era sempre a órfã a escolhida para a acompanhar. Só na rua lhe disse que iam saber de Luisa.

         A alemã morava numa ruazita distante. Quando chegaram, viram, pendurada na porta, uma lousa e ao lado um bilhetinho pedindo para escreverem os nomes e o que desejavam.

         ‑ Então, onde estará ela? ‑ interrogou

  1. Justina sobressaltada...

         Na dúvida, resolveu bater com mais força e insistir.

         Tanto fez que a professora teve de abrir a porta. Estava de cama, com febre, havia alguns dias. Como tinha uma grande confiança na sua resistência, não chamara o médico, tendo‑se alimentado, apenas, com chá e bolachas.

         ‑ Isto não pode ser!... A Fraulem não pode ficar aqui, sozinha.

         O olhar de Júlia brilhou num alvoroço.

‑ Se a sra. D. Justina dá licença, eu fico aqui a tratá‑la.

         As duas senhoras olharam‑na surpreendidas.

         ‑Tu?... ‑ disse D. Justina. ‑Mas como? Se não sabes nada de casa...

         ‑ Verá como a trato bem.

         E, mesmo sem obter resposta, tirou o chapéu e pós‑se a arrumar o quarto. A alemã estava boquiaberta. Realmente, aquela pequena era um fenómeno; mas não podia consentir em tanto trabalho.

         ‑ Ainda que a D. Justina o permita, onde havias de dormir?

         ‑ Numa cadeira, - respondeu Júlia prontamente. - Está ali aquele divã; serve muito bem!

         ‑ A Fraulem quer que ela fique?

         A alemã sorriu.

         ‑ Sim, eu gosto muito dela, mas não desejo sujeitá‑la a este sacrifício.

         ‑ É para mim um prazer e... uma obrigação.

         ‑ Bem! Seja; tenho uma grande confiança em ti.... Estou para ver como cumpres esta missão... Tratar de uma doente não é o mesmo que estudar uma disciplina.

         Júlia sorriu, certa de si.

         ‑ A sra. D. Justina verá como me saio bem! Não tardará muito que esteja boa.

As duas ficaram pasmadas com o gesto da pequena. Luisa, intimamente, estava radiante. Atormentava‑a a ideia de ficar só, de noite.

         Foi a primeira vez que Júlia fez o papel de dona de casa; e como estava contente por poder mostrar a sua actividade e o seu reconhecimento a quem tanto devia!

         Era curioso ver a forma desembaraçada como desempenhava o seu papel. A alemã não a perdia de vista.

- Fraulein, é preciso leite; vou buscá‑lo?

- Estás tolinha, filha, não consinto.

         ‑ Então vou ao mercado comprar uma galinha para lhe fazer um caldinho. Está bem assim!... Já estou uma mulher!... Não hei‑de ter préstimo para nada?

         ‑ Bom, então só consinto que desças e peças na leitaria, em frente, para cá trazerem o leite. Tens dinheiro, aqui, na mesa-de‑cabeceira.

         ‑ Posso ir também chamar o médico?

         A alemã sorriu.

         ‑ Aceito que peças o leite e nada mais.

         Júlia desceu, apressadamente. Na leitaria dirigiu‑se a um empregado e perguntou‑lhe:

         ‑ Há algum médico bom aqui perto?

         ‑ Há uns poucos; a menina tem alguém doente? ‑ interrogou, mirando a pequena, que via pela primeira vez.

         ‑ É para a sra. D. Luisa; a senhora que mora ali ‑ disse, apontando o prédio.

         Conhece‑a?

         ‑ Se conheço!... Há muitos anos que é nossa vizinha, e creio que nunca esteve doente!... É caso raro!... A menina é discípula, certamente!

         ‑ Sou, e amiga; está muito doente, precisa ser observada.

         ‑ Aqui há, realmente, muitos médicos, mas o mais sabedor é o sr. Dr. Corte Real!... Descanse, que mando lá. Se estiver em casa não se demora, demais a mais tratando‑se da alemã!... Todos têm muita consideração por ela. É uma sábia, segundo consta. Dizem que é doutora lá na terra dela.

         ‑Ah!... não sabia!...

         ‑ Vá descansada; lá irá o leite fervido, e o médico também não há‑de demorar muito.

         Júlia agradeceu e subiu a escada a correr.

         ‑ Está melhorzinha? ‑ perguntou, aproximando‑se da doente.

         ‑ Basta a tua companhia para me alegrar!... Sinto ainda a cabeça muito pesada...

         Bateram à porta, levemente.

         ‑ É o leite!... Quiseram mandá‑lo fervido.

O portador que o trouxe disse que o médico não demorava. Por felicidade tinha‑o encontrado em casa. Logo que jantasse, viria. Luisa ouviu uma grande conversa, mas não compreendeu de que se tratava.

         Júlia, depois de lhe dar o leite, andava de um lado para o outro, inquieta, de ouvido à escuta. Meia hora depois ouviram‑se umas pancadas discretas na porta. Desta vez Luisa voltou a cabeça.

         ‑Quem será?

         Júlia não respondeu e foi abrir.

         ‑ A menina é que é a enfermeira?

         ‑ Sou, sim, senhor Doutor.

         ‑ Que fizeste, Júlia? ‑ disse Luisa, que ouvira a pergunta do médico.

         ‑ O meu dever ‑ respondeu a discípula, pegando no chapéu do facultativo.

         ‑ Então, minha amiga, o que é isso? Pela primeira vez, doente?

         ‑ Uma febrezita sem importância, doutor; não era caso para o incomodar...

         ‑ Vamos ver ‑ disse, tomando‑lhe o pulso. ‑ Para a Fraulem ficar na cama, não deve ser de tão pouca importância como isso...

         ‑ Preguiça e mimo!... Esqueci‑me que estou longe da pátria e da família...

         ‑ Então não me tem aqui para a tratar!...

‑ Tem uma desvelada enfermeira, ao que vejo ‑ disse o clínico, fixando a rapariguita.

         ‑ É a minha discípula predilecta, e amiga. É filha de um seu colega, mas cedo ficou sem os pais. Está no colégio da D. Justina. É muito estudiosa e inteligente. Deve tirar um curso.

         ‑ Quem sabe, Fraulein?! É tão difícil e eu estou ainda tão longe do fim?

         ‑ Com boa vontade tudo se consegue - respondeu o dr. Corte Real, atentando mais na órfã. ‑ Esta menina deve ser expedita.

         ‑ É, sobretudo, boa e hábil! ‑ informou a alemã.

         ‑ Raras e apreciáveis qualidades. Terá muitas dificuldades a vencer; mas não esmoreça. Quem porfia mata caça...

O doutor observou detidamente a doente.

         ‑ Convinha‑lhe recolher a um quarto particular do hospital. A enfermagem é mais fácil...

‑ Não me posso tratar aqui?

         ‑ Mas esta menina quererá?

         ‑ Se quero, sr. Doutor... Diga‑me o que devo fazer, que executarei as suas ordens.

         ‑ Está entendido ‑ respondeu, sorrindo.

‑ Como estou muito perto, voltarei amiúde. Pode ser que isto passe.

         Receitou.

‑ Vou pela farmácia e mando cá os medicamentos. É preciso poupar as energias desta menina.

         ‑ Eu sou forte, sr. Doutor.

         ‑ Vamos a ver o que esta valente faz.

         ‑ Não falha!... É de uma coragem e força de vontade admiráveis...

         Júlia acompanhou o médico à porta. A alemã observava a distinção com que ela desempenhava as funções de dona de casa.

         ‑ Estou com receio que tu não aguentes esta maçada.

         ‑ Ora essa!... Então não estou já uma mulher!...

         ‑ Sim, sim... Mas talvez o conselho do dr. Corte Real fosse bom. Quem sabe se não faria mal em o não seguir...

         ‑ Vai ver como a trato bem. Também preciso aprender enfermagem!... É mais um favor que fico a dever a quem é credora de tantos...

         ‑ Tu exageras, Júlia!... Quem te fica devedora sou eu.

         Chegaram os remédios. Júlia foi de uma solicitude admirável no rigor e pontualidade com que os ministrou. O efeito foi rápido. O organismo sadio da alemã reagiu com a maior facilidade.

  1. Justina vinha, todos os dias, observar o que a pequena fazia. A professora descrevia‑lhe, entusiasmada, a maneira como ela exercia o seu mister de enfermeira. As duas quedavam‑se em sérias reflexões sobre a forma como Júlia, em tudo que se metia, se saía com brilho. Era admirável.

         O médico convertera‑se num amigo, com quem ela podia contar. Descobriu que o pai tinha sido seu discípulo e isso bastou para servir de pretexto para a cumular de obséquios.

         ‑ Era um belo estudante e, mais do que isso, um carácter.

         Júlia contou‑lhe a morte trágica dos pais e como estava sendo educada a expensas do padrinho, que também não era rico e fazia um sacrifício enorme para a manter numa casa como era a da D. Justina.

         ‑ Roberto Esteves?!... É boa!... Foi meu discípulo, também. Onde está ele agora?

         Faz clínica no Porto. Veio há pouco tempo ‑ respondeu a doente.

         ‑ Preciso vê‑lo... Tens de lhe dizer que me procure, no hospital.

 

         O Dr. Corte Real era uma sulenidade em medicina; além de director do hospital, era lente na escola médica. Só fazia clínica por favor, como no caso que ali o trouxera. Dispunha ainda de uma grande influência, pois era um dos homens de mais prestígio do Porto. Júlia adivinhou que ele iria proteger

o padrinho e ficou tão contente, que por pouco não abraçou o grande vulto portuense.

         A doente depressa melhorou. Enfermeira e médico, de mãos dadas, concorreram para esse admirável resultado. A alemã já dava os seus passeios, graças à sua robusta compleição.

         Antes de Júlia ir para o colégio quis escolher‑lhe um lindo vestido e mandar‑lho fazer. Foram inúteis todos os protestos da discípula.

         ‑ Isto não é para te agradecer; é apenas uma lembrança. Também deves concordar que o padrinho não pode dar‑te tudo. Deixa que eu o auxilie um pouco.

         ‑ Meu Deus! Como todos são bons para mim! Poderei um dia agradecer tudo o que lhes devo?...

         ‑ O que todos querem é a tua felicidade. Que venhas a ter a recompensa do teu enorme esforço.

 

Berta foi algumas vezes visitar a Fraulein.

O gesto da órfã teve uma grande retumbância.

Não se falava noutra coisa em casa da família Lencastre e no colégio.

         Quando Luisa Ey entrou em franca convalescença, Júlia retirou‑se. Tinha escrito ao padrinho para a ir ver, pois estava ansiosa por lhe falar do Dr. Corte Real. No primeiro domingo, Roberto Esteves não faltou.

         ‑ Padrinho, padrinho! ‑ exclamou, logo que o viu, correndo para ele, delirante.

‑        Tenho uma grande novidade a dar‑lhe.

Contou‑lhe, então, pormenorizadamente, o que se tinha passado com o grande mestre.

O médico olhou‑a surpreendido. Seria possível que daquela simpática pequena, a quem queria como filha, lhe viesse a felicidade?

         A directora assistia a esta cena, enlevada. Realmente Júlia era extraordinária.

         ‑ Lá irei ‑ disse, contente. ‑ Não posso atinar com o que o grande sábio me quer.

         ‑ Pode estar certo que não vai ser nada desagradável. O Dr. Corte Real gosta imenso de Júlia!... Já mostraste ao padrinho o presente da Fraulein?

         Júlia voou a buscar o vestido.

         ‑ Cada vez estou mais convencida, doutor, que esta rapariga lhe há‑de dar muito gosto.

         ‑Coitadinha!... A pena que tenho, é de não a poder ter junto de mim!... Creia V. Exa. que não quero mais aos meus filhos.

         ‑ Júlia está infinitamente reconhecida! Depois, a mais pequena coisa que lhe façam, tem, para ela, um grande valor.

‑ Quem sabe, minha senhora, se ainda virei a ser eu o protegido por este fedelho...

  1. Justina riu. Júlia apareceu com a oferta de Luisa.

         ‑ Bravo!... Estás uma janota... Nunca o teu padrinho te poderia brindar dessa maneira ‑ disse tristemente.

         ‑ Oh, meu querido padrinho!... Não diga isso! É a si que devo tudo... Pensa que não sei os sacrifícios que faz por mim? Um dia, quando eu for grande, espero poder mostrar‑lhe a minha imensa gratidão.

         ‑ Não te esqueças dos juros!... Olha que isso é um caso sério.

 

O ano correu normalmente. A ursa não mudou de categoria nem abdicou do seu lugar. Sempre a primeira nas disciplinas que frequentava. A emulação era enorme. As que não podiam acompanhar‑lhe os voos triunfais vingavam‑se troçando‑lhe os fatos modestíssimos.

         De novo vieram as distinções coroar o seu trabalho assíduo. Houve fúrias mal contidas, desprezos, amuos, tudo!... Júlia passava indiferente, pela turba enraivecida, cumprindo, à risca, o seu dever, sem usar bajulações.

Havia o grupo das aduladoras que, para chegarem aos seus fins, lisonjeavam e fingiam seguir as tendências fanáticas da directora, confessando‑se todas as semanas. Esses exageros passavam despercebidos a Júlia, preocupada com os estudos, cada vez mais sérios.

         ‑ Ela não tem crenças...

         ‑ É livre‑pensadora!... ‑ dizia outra.

         ‑ Graças a Deus, na minha família todos são religiosos e do fundo da alma...

         ‑ A D. Justina anda cega!... Vocês não têm reparado? Na capela está sempre distraída. Reza muito alto, mas tem a cabeça na lua!... Ah!... Ah!... Ah!...

         - Não sabem outra?... Esta é das melhores... Um dia destes, quando se estava a rezar o Magnificat, ouvi, distintamente, que ela conjugava os verbos ingleses...

         ‑ Isso é o cúmulo!... Subiu‑lhe a vitória à cabeça e é capaz de dar em doida...

         ‑ Era uma obra de caridade avisarem a directora, que anda, agora, com a menina em charola!... Pensa que tem ali uma grande prenda e ela há‑de mostrar o que é...

         ‑ Sou eu mesma que lho vou dizer. É preciso haver alguém de coragem, e eu, para acusar, nunca hesitei!... Acho que é um bom serviço que se presta...

A conspiração tomou grandes proporções. Júlia era vigiada como uma criminosa.

         Um dia reuniu‑se um grupo e resolveu ir denunciá‑la. A directora estava no gabinete de trabalho. Quando viu entrar o rancho de preguiçosas, olhou por cima dos óculos e interrogou:

         ‑Que temos?

         Avançaram, todas, com cara de caso; uma, mais corajosa, começou:

         ‑ Vimos avisar a sra. D. Justina de que há uma aluna que, na capela, em vez de rezar, está sempre a conjugar os verbos ingleses.

         ‑ A conjugar os verbos?... As meninas não estão boas... Isso é lá possível!... Essa acusação é grave...

         ‑ Todas têm notado.

         ‑ Mas quem é? ‑ interrogou a directora já encolerizada.

         ‑A órfã.

         ‑Júlia!... ‑ exclamou, surpreendida. - Não acredito!...

         ‑ A sra. D. Justina repare; quando se está a meio da reza e ela começa a distrair‑se, em vez de rezar repete as lições.

         ‑ Vão chamá‑la ‑ disse, desesperada.

         Saiu uma a correr.

         ‑ Vocês ficam aqui.

         Júlia não se fez esperar. Entrou sorridente e calma. Não lhe passava pela imaginação que se pudesse urdir semelhante trama, nem estava habituada a ser repreendida. Estranhou o semblante carrancudo da directora, mas ainda assim não desconfiou de nada.

         ‑ Menina Júlia ‑ começou severamente‑, todos sabem que o seu comportamento é exemplar, que cumpre rigorosamente as suas obrigações escolares. Tudo isso é muito de louvar, é certo, mas acima desses deveres temporais, que podem satisfazer as nossas ambições e a nossa vaidade, há um poder supremo: o de Deus!... A religião acima de tudo.

         Júlia estava estupefacta... Não podia compreender aquela atitude.

         ‑ Acabam de me dizer que, durante a reza, em vez de estar com a atenção devida, levantando o pensamento ao Altíssimo, se fica, distraidamente, a conjugar os verbos ingleses.

         Júlia observava a assistência, num assombro, passando do rubro a uma palidez mortal.

Quando a directora terminou, pousou um olhar indignado nas companheiras acusadoras e saiu‑lhe dos lábios um grito de protesto:

‑ É mentira!...

         O abalo fora tremendo; a tensão de nervos, violentíssima. A surpresa quase a aniquilara. Nada mais conseguiu dizer; caiu, como se a fulminasse um raio. As companheiras cercaram‑na, solícitas. D. Justina atirou com os óculos para cima da mesa e correu para ela, desorientada.

         ‑ Tragam água!... Chamem a D. Sílvia Rebelo.

         Uma aluna correu a procurar a estudante de medicina. Esta não tardou e, com toda a calma, fez voltar a si a amiga. Estenderam‑na numa cama e deram‑lhe massagens e ar artificial.

         Quando abriu os olhos e deparou com as companheiras, escapou‑se‑lhe da garganta este grito de horror:

         ‑Monstros!...

         E voltou a cara, enojada. Depois brotaram as lágrimas e os soluços agitavam‑na em convulsões medonhas.

         ‑ Júlia... ‑ segredava‑lhe Sílvia Rebelo.

‑ Então?!... Onde está a rapariga forte que todos admiram?

         A directora mandou retirar as pequenas. Estava apoquentada e arrependida de ter agido tão precipitadamente. Nunca lhe passara pela cabeça que uma simples reprimenda desse aquele resultado. E surpreendia‑se, como pudera fazer fé pelas palavras de duas garotas mandrionas, mal comportadas e invejosas. Agora, o que a preocupava, era o estado de Júlia. A crise tomou proporções assustadoras; não havia calmantes que a tranquilizassem.

         ‑ Que diz, D. Sílvia? Manda‑se chamar um médico?!

         ‑ Entendo que, deixando‑a só, talvez sossegue.

         Júlia, via‑se bem, estava com horror a todos, muito especialmente à directora. Não bastavam anos de comportamento exemplar, de zelo, de dedicação, de respeito, para a tornarem insuspeita, para a garantirem de todas as acusações? Num instante, meia dúzia de maldosas, vinham denegrir‑lhe a reputação, sem encontrar da parte de D. Justina uma dúvida, uma hesitação, um protesto, contra uma acusação sem pés nem cabeça, estupidamente inventada por quem não tinha direito a ser acreditada.

         Era de mais... Apoderou‑se dela uma indignação que não podia ocultar. Apertava a mão de Sílvia Rebelo e sentia‑se compreendida. Era a única pessoa, dentro do colégio, que lhe merecia confiança.

         Os soluços, porém, não paravam, erguendo‑lhe o peito numa ânsia, como se todo o ar do mundo não fosse bastante para lhe encher os pulmões. Os olhos estavam esbugalhados e as faces papudas de tanto chorar.

  1. Justina não podia dizer‑lhe nada. A voz dela irritava‑a tanto, que a crise agravava‑se imediatamente.

         ‑ Diga‑lhe que não acreditei ‑ bichanava à Sílvia, para esta lho repetir.

         ‑ Se não acreditasse, não tomava aquela atitude... Não me diga isso, que eu senti, perfeitamente, que tomou a sério todas as mentiras daquelas idiotas.

         Só noite alta conseguiu dominar os nervos. Quando a viu quase adormecida, Sílvia foi ter com a directora.

         ‑ Que tal? ‑ interrogou esta, ansiosa.

         ‑ Creio que repousará um pouco; está esgotada. Não sei como a sra. D. Justina se fiou nessas lambisgóias.

         ‑ Fiz muito mal; não calcula como estou arrependida. Com esta rapariga não se brinca; tem uma sensibilidade delicadíssima. Toma tudo à letra.

         No dia seguinte, os estragos feitos pelo abalo da véspera não passaram despercebidos a ninguém. Júlia tinha os olhos inchadíssimos e a fisionomia alterada. Não pudera estudar, disse aos professores, pedindo desculpa.

- Está doente, menina Júlia? ‑ interrogou o Teles.

         Foi o suficiente para a torrente de lágrimas voltar impetuosamente.

‑ Foi a Sra. D. Justina que lhe ralhou - informou uma linguaruda. ‑ Foram‑lhe dizer que ela, na capela, em vez de rezar, estava a conjugar os verbos.

         O Teles sorriu.

         ‑ Mesmo que assim fosse, não era um crime. Quem cumpre o seu dever, como a menina Júlia, está sempre preocupado com as lições!... Que admirava que dissesse os verbos?!... Era fácil acontecer‑me o mesmo. Uma distracção não é um pecado!

         ‑ É mentira, sr. Teles! Não sei que mal fiz a esta gente, para me ter um ódio assim...

         ‑ Não é ódio, mas uma coisa muito mais feia: inveja!... Pois bom seria que lhe seguissem o exemplo! As distinções não se compram, granjeiam‑se á custa de muito trabalho.

         A lição correu monótona. Sentia‑se que o Teles estava mal disposto. Ficara indignado com o procedimento das alunas... Júlia sentia‑se completamente alterada. Aquele incidente teve uma influência decisiva na sua vida. Quando conseguiu desabafar com a amiga, tinha os olhos secos. As lágrimas haviam‑se esgotado.

         ‑ Não sei que pense do mundo, nem da humanidade... Sigo por caminho direito, como tu sabes, e fazem‑me uma injustiça destas!... Parece‑me que é melhor marchar por atalhos!... Tu crês que há Deus, Berta?

         ‑ A esse respeito tenho pensado muito...

A D. Justina deu‑me este terço; está benzido e recomendou‑me que o trouxesse sempre comigo.

         Tirou do bolso uma elegante caixinha de madrepérola, que continha as contas finas do rosário.

         ‑ É bonito...

         ‑ Sim, mesmo muito bonito. E, se não fizer grandes milagres, mal também não faz...

         - Isso é verdade! Mas tu crês que isso valha alguma coisa?

         Tomou a caixinha da mão da amiga, concentrando nela toda a atenção, como que a perscrutar um grande mistério.

         ‑ Desde ontem que a vida me parece outra! Sinto uma dúvida enorme e descreio de tudo e de todos, Berta! Não tens a impressão de que Deus não devia consentir nestas tolices e que a humanidade é má?

         ‑ Há de tudo! É preciso ver as pessoas como elas são! Uma coisa, porém, impera sobre todas: a estupidez.

         Júlia abanou a cabeça, incrédula.

         ‑ Não; eu não gosto de viver!... Aborrece‑me a injustiça e a maldade...

         ‑ Gostes ou não, tens de te aguentar no balanço. A perfeição humana não existe.

‑ O disparate de ontem feriu‑me em pleno peito. Sabia que não gostavam de mim, mas sempre esperei que não se importassem comigo, que nada sou e nada valho. O que fizeram revela fúria, entranhado ódio por quem nada se preocupa com elas...

         ‑ Inveja e estupidez, repito; não toleram a tua inteligência.

         ‑ Não confundas!... Onde está a inteligência? Se trabalhassem como eu, os resultados seriam os mesmos, fatalmente. Quem brinca, cabula e passeia, claro que não pode ter notas como as minhas, que passo a vida agarrada aos livros, não pensando senão nas lições, a ponto de ir conjugar os verbos para a capela!... Vingam‑se a intrigar‑me!... Não suportam que a órfã, a pelintra, como elas dizem, fique distinta! Mas enganam‑se comigo; a desforra será outra: cada vez mais persistência, para saber muito, afogando esta ânsia de independência que me devora.

         Hoje mais do que nunca, sinto a ambição de triunfar. E elas, as más, as ricas, as invejosas, que se fiquem a chafurdar na ignorância... e nesse luxo, nessa ostentação que as embriaga. Quem me dera ser já mulher feita, para poder vencer esta campanha! Ai, Berta, Berta, se consigo ganhar a minha vida longe deste inferno e destas feras!...

‑ Em toda a parte aparecem exemplares semelhantes. Não será fácil escapares à garra feroz da maldade humana...

         - Veremos, veremos; devora‑me uma ânsia doida de passar, altiva, por essa turba a quem tanto incomodo. Quiseram aniquilar‑me e afinal só conseguiram aplicar‑me um estimulante, uma espécie de chicotada como as que se dão aos cavalos para lhes acelerar a marcha.

         Eram horas de se separarem. A criada que viera buscar Berta, já estava há muito à espera. Tinham passeado todo o tempo no jardim. Júlia expandia a sua indignação; estava afogueada; os olhos cintilavam‑lhe, febris.

         - Andam por aí espias à escuta!... Podem ir contar o que ouviram.

         ‑ Eu mesmo o repetirei à D. Justina se tiver empenho em saber; de contrário nunca mais falarei no assunto e peço‑te que também o esqueças. A afronta fica de pé, mas o efeito que esperavam, foi, talvez, diferente. O que sinto cá dentro, não se explica, Berta; é a revolta que nasce. Pela primeira vez compreendo como se pode gerar um criminoso.

 

         Berta despediu‑se, impressionada. Queria falar, dizer o que pensava a Júlia, mas estava com receio. A órfã era rigorosamente vigiada e às vezes as paredes tinham ouvidos.

         Observavam‑lhe os movimentos, as atitudes e até a expressão fisionómica. As companheiras ansiavam por fazê‑la cair das boas graças de todos. Procuravam a todo o transe pretexto para a atingir.

 

O final do ano correu como o costume. Júlia mais uma vez colheu os loiros da sua assiduidade, da sua atenção e perseverança. No liceu todos a conheciam.

         A directora, ainda que, intimamente, desejasse que outras apanhassem iguais classificações, não o conseguia. Era a vingança da órfã!

  1. Justina tinha que suportar e ouvir a cada instante, e para mais diante de Júlia, frases como estas:

         - Esta menina dá honra aos mestres e ao colégio!

         - Há poucas desta têmpera.

         - Inteligência e trabalho.

         - Dá gosto encontrar uma rapariga assim.

  1. Justina já achava de mais e dizia consigo: a rapariga é capaz de rebentar como a rã da fábula.

Nessa altura, um rico‑homem, que no Brasil amealhava fortuna avultada, veio fixar‑se, definitivamente, na sua terra. Onde granjeara os bens, perdera a família; vinha, por isso, acabar os dias, longe, para esquecer o muito que trabalhara e sofrera.

         Entretinha‑se a procurar a infelicidade, tentando minorá‑la de todas as formas. Resolveu instituir um prémio para a rapariga que, no liceu, obtivesse mais altas classificações. Era uma maneira de homenagear a memória da filha estremecida, que a morte levara sem compaixão.

         Quando apareceu a notícia nos jornais, D. Justína estremeceu. Que grande reclamo para o colégio que conseguisse tamanha glória... Não lhe passou, porém, pela mente, que pudesse alcançar essa honra.

         Júlia nem soube da existência de tal prémio.

 

Berta obteve do padrinho de Júlia autorização para a levar nas férias para a quinta da Beira. Apesar do prazer imenso que isso lhe dava, Júlia preferia ficar. Estava já uma formosa menina de quinze anos, e sentia‑se vexada, por não ter vestidos em termos e por não poder corresponder, de qualquer modo, a tantas gentilezas das amigas.

         Não foi possível esquivar‑se. A família Lencastre cumulava‑a de atenções; estimavam‑na como se fosse da casa. Tinham seguido os triunfos da pequena e admiravam‑na. O pai Lencastre entusiasmava‑se com ela. Quando lá ia, aos domingos, fazia‑lhe uma espécie de exame, para saber o seu adiantamento, e como tinha entrado nas matérias que estudava. Júlia considerava aquele exame uma obrigação. Dava‑lhe conta de tudo que aprendia.

         Os dois rapazes, já crescidos, cada vez consideravam mais a companheira da irmã. Luís sofrera uma grande transformação. Falava menos e o que dizia era com uma ponderação grave de homem feito. Júlia era para ele um ídolo. Queria‑lhe profunda e seriamente.

         Quando, numa manhã dos princípios de Agosto, Berta apareceu no colégio, toda apressada, para levar a amiga, não a encontrou entusiasmada com a partida.

         ‑ Berta, o teu gesto é generoso, mas não te parece que pode dar mau resultado?

         ‑ Estás louca?

- Não estou. Para que queres que eu saboreie os encantos da família, se estou condenada a viver sempre só?

         - Ora adeus! O mundo dá muitas voltas! Não creias em fantasias!... A experiência tem sido, para mim, a grande mestra!

         - Pareces uma velha...

         - Talvez! Mas acredita que tenho razão.

         - Deixa‑te de filosofias e vamos embora...

         A directora emprestou‑lhe uma malita, em que meteu a resumida fatiota. A criada de Berta levou‑lha e lá foram, de braço dado, tentando a filha do matemático fazer esquecer à órfã a sua desolante situação.

         A família Lencastre esperava‑a com alvoroço. Partiam no dia seguinte. Júlia pôs um avental e foi ter com D. Helena.

- Posso ajudar?

         - Porque não? Contigo não há cerimónias; és da casa.

         Foi, com o seu desembaraço e actividade, um auxílio magnífico. Naquele lidar quase se esquecia de si e da sorte adversa que lhe coubera na luta da vida, e que era quase sempre a sua preocupação.

         - Como esta rapariga é prestável! - notavam todos, abismados.

         Na manhã imediata tudo madrugou. Estava uma temperatura deliciosa. O Douro, ao fundo da quinta, corria mansamente, num despertar preguiçoso, depois de uma noite bem dormida e sem pressa de chegar ao mar...

         A estação era perto. Mandaram as bagagens e toda a família foi a pé. Júlia, apesar da sua serenidade, do seu bom senso, da sua calma, sentiu‑se vibrar de entusiasmo. Tudo era novo para ela. Quando atravessaram a ponte, deslumbrou‑se.

         - Que maravilha!...

         Instintivamente perguntou a Berta:

         - Onde fica o colégio?

         - Além!... Vês a torre dos Clérigos? É na mesma direcção, mas não se enxerga daqui...

         - Ia apostar que estás com saudades da

  1. Justina - disse o matemático, rindo.

         Júlia não respondeu, mas soltou uma estridente gargalhada que noutra parte seria imprudente, mas era bastante significativa para deixar dúvidas.

         - Lembras‑te tanto?

         - Desejaria esquecer muitas coisas, mas as impressões têm sido tão violentas que me parece ficarão gravadas para sempre...

         - Isso é um tormento ‑ comentou Luís.

‑ Eu nunca me lembro das pessoas com quem embirro!... Não me faltava mais nada.

         Júlia calou‑se. A paisagem que se ia desenrolando vertiginosamente, ante os seus olhos ávidos de beleza, absorvia‑a por completo.

         ‑Como isto é lindo!...

O matemático observava‑a.

         ‑ Esta pequena tem uma grande sensibilidade artística.

         ‑ A Luisa diz que ela viria a ser uma notável pintora, se pudesse fazer carreira dessa arte.

         ‑ Mesmo sem carreira pode. Essa é boa! Vítor Hugo era um excelente desenhista e não prejudicou, com isso, a sua obra. João de Deus não desenhava também?

         ‑ Mas com certeza não foi com os desenhos que ganharam dinheiro... E eu tenho de pensar no pão.

         ‑ Um bom pintor está sempre garantido...

         ‑ Leonardo da Vinci possuia o talento que se sabe e andava, constantemente, atrapalhado por dinheiro.

         ‑ Teve até de entrar ao serviço de César Bórgia!... Sofreu grandes faltas...

         ‑ Não! não! Não posso ser pintora; demais a mais, de meia tigela, como seria, fatalmente. Tenho de escolher uma profissão rendosa... Isto, se Deus der saúde ao padrinho para me poder pagar as mensalidades.

         ‑ O teu padrinho, agora, ganha à farta! O doutor Corte Real protege‑o imenso; deu‑lhe sociedade no consultório. É o seu menino‑bonito...

         ‑ Graças à Júlia...

         ‑ Pelo amor de Deus, não digas isso,....... ‑ protestou a órfã, corando. ‑ Uma questão de acaso...

         ‑ O acaso, Júlia, é um factor da maior importância para triunfar. Sem ele nada se consegue. Mas se não fosses tu...

         ‑ Se eu pudesse dar ao padrinho o que ele merece... ‑ disse, iluminando‑se‑lhe a fisionomia. ‑ Como ele é bom, como eu lhe quero e como o admiro!...

         ‑ A mulher dele é uma fera?

         ‑ Não é! Compreendo, perfeitamente, a sua atitude. Tem os filhos, quer‑lhes muito, como é natural. O que me dão, o que gastam comigo, constitui um roubo para aquelas crianças!... Sou uma intrusa que veio perturbar a tranquilidade daquele lar e enfraquecer a sua organização económica. Por isso, preciso, absolutamente, de ganhar dinheiro, de pagar essa dívida que me pesa e que é o meu tormento de todas as horas.

         ‑ Não vale a pena amofinares‑te. Além disso, parece‑me que já contribuíste, e muito, para a abastança daquela casa. Foi importante a protecção do Corte Real. Quantos desejavam aquele lugar e não o conseguiram. Depois do temporal, vem o bom tempo, minha filha; é um velho lugar‑comum. Em seguida à luta, a vitória!

         ‑ Essa é que é problemática!... Ignora‑se, sempre, a quem vai pertencer...

         ‑Ao mais forte!...

         ‑ Ou ao mais destro, não é verdade, pai?

         ‑ Sim, filha; estou mesmo a ver que tens como certo o triunfo da tua amiga...

         ‑ O que me surpreende é a confiança que todos têm em mim, que tão pouco a mereço.

         Chegaram à Pampilhosa. Tinham que esperar algum tempo pela ligação da Beira Alta. As raparigas passeavam na "gare". Era um grupo formoso e que dava na vista. Júlia, de cabelos e olhos negros, destacava‑se no meio das amigas, muito loiras e muito brancas.

         Apareceu, finalmente, o comboio. Escolheram, à pressa, uma carruagem. Os rapazes correram a acomodar os cães. Daí a pouco estavam em marcha.

         ‑ às cinco horas chegamos à quinta... Vais ver como é bonita!...

         Júlia olhava, admirada, a paisagem variada que iam atravessando. Surgiram os contornos do Buçaco. Mais adiante a mancha florida e alegre do Luso. Cada um lhe apontava um pormenor.

‑ Olha aquele chalé, que lindo!...

         - Foi ali que os franceses apanharam para seu tabaco ‑ disse Alvaro, apontando as alturas.

         ‑ Não se vê daqui o lugar da derrota. Foi numa aldeiazita detrás da montanha.

         ‑ Sula, não é?

         ‑ Vejam se descobrem a Memória.

         ‑ Não se pode descortinar ‑ disse o matemático.

         Quando, depois de rápida paragem, o comboio se pós outra vez em movimento, a grande serra mostrou a silhueta imponente. Em baixo, a contrastar com as vistosas construções da famosa estância, povoados muito escuros aninhavam‑se ao fluido das encostas escarpadas. Nem vivalma se avistava, mas, por cima dos casebres negros, filas de abóboras mostravam que ali morava alguém. Grandes cortiças com uma camada de palha já tinham figos a secar.

         ‑ Os telhados estão bem providos... - observou Júlia.

         ‑ Vais ver lá para os nossos sítios o que

é abundância...

        Começaram a aparecer as serranias de

Mortágua; algumas de grandes curvas a encadearem‑se umas nas outras, como gigantes ciclópicos em louca cavalgada pelo infinito; outras, imponentes, grandiosas, vestidas de urzes, como se um manto roxo as embrulhasse. A luz e a vegetação davam‑lhe cambiantes diversos, que realmente surpreendiam.

         Depois, pinhais, pinhais, a grande floresta, a riqueza da Beira, dando ao horizonte aquela melancolia, aquela tristeza, que faz dos crepúsculos beirões os mais nostálgicos de Portugal.

         Apareceu Santa Comba a sorrir lá no alto, no seu trono de verdura, variadíssima, muito alegre, muito fresca, debruçando‑se sobre cômoros, suspensos por milagre, na encosta ingreme, toda bordada de cordões de vinhedos fortes.

         Júlia achou o quadro soberbo.

         - Isto sim, dava uma linda tela; se a Fraulein aqui estivesse, aproveitava, certamente, o assunto.

         ‑ ó mãe, havemos de convidá‑la um dia.

         ‑ Que ideia, - protestaram os dois rapazes! - Com aquela gaforina ruiva parece uma fera.

         ‑ O que ela parece éo demónio...

         ‑ Ah! Eu acho‑a linda!

         ‑ Tens o gosto estragado...

         ‑ A mim, mete‑me medo...

         ‑ Deus do Céu, uma criatura tão boa!

         Paragem, apitos e transbordo rápido, para o comboiozito de via reduzida de Viseu.

A órfâ não perdia um pormenor panorâmico. Tudo para ela tinha novidade e encantos. Quando começaram a aparecer os contornos do Caramulo, não conseguiu esconder a sua admiração... Ao longe, muito azuis; de perto, cobertos de uma vegetação louriantíssima. Casitas brancas sorriam empoleiradas nos cumes. Profundos sulcos rasgavam as montanhas e vinham morrer nas baixas em pinceladas escuras. O céu, muito claro, servia de fluido àquele cenário de maravilha. Júlia olhava embevecida.

         Apearam‑se em Tondela, na graciosa vila tão próximo da serra; tão limpa, tão arrumada, com o seu lindo jardim bem cuidado, os seus solares imponentes, as suas quintas cobertas de pomares e toda a sua riqueza exuberante de vegetação.

         O feitor lá estava com o carro.

         - O sr. Dr. Anibal de Albuquerque veio também esperar V. Exas. com o automóvel.

         ‑ Doutra forma não nos podíamos transportar. Foi uma ideia feliz...

         Apareceu o médico todo prazenteiro. Abraços, exclamações de júbilo e, parando em frente de Júlia:

         ‑ V., este ano, traz mais uma filha?

         Todos riram.

         ‑ Isto não é uma filha, é uma Ursa!...

O médico olhava‑a com incontida curiosidade.

         ‑V. sabe o que é? Uma pessoa que se alambaza com todas as distinções do liceu.

         ‑ Bravo! ‑ disse, fixando‑a com admiração. - Bem‑vinda seja a estas serranias, onde encontrará ar reconfortante para recomeçar as lides escolares.

         Júlia agradeceu, com simplicidade. Tinha, é certo, pouca, ou antes, nenhuma prática da sociedade, mas possuia uma natural distinção que supria todas as faltas.

         ‑ Vamos agora a distribuir esta gente. A senhora D. Helena, V., a Marta, o Alvaro e o Luís, vão comigo; os outros, com o Gabriel.

         Os rapazes protestaram:

         - Nós vamos com as pequenas!... Não podem ir sozinhas.

         Todos acharam graça ao expediente.

         ‑ Boa e delicada forma de nos passarem uma triste certidão de idade...

         ‑ A mocidade é levada da breca! Veja V., Lencastre, como desprezam a nossa companhia. Preferem a ronceirice dos machos, à velocidade da civilização!... Como se nós não os entendêssemos... O que me parece ousado é quererem‑nos comer por tolos...

         - Tu não vais connosco, Alvaro ‑ manifestaram‑se as raparigas ‑. Temos receio das tuas pressas.

         - Não vai, não, que nós não deixamos! Se ele pegasse nas rédeas, chegava lá primeiro que o Dr. Aníbal.

         Foram apenas os quatro com o médico. Alvaro lá as convenceu e encaixou‑se junto do Gabriel sorrateiramente.

         ‑ Quem vai na frente sou eu ‑ disse Berta muito senhora de si - porque tenho mais juízo que vocês todos juntos...

         - Era o que faltava... Onde há galos, não cantam galinhas, quanto mais franganitas como tu...

         E sem cerimónia empurraram‑se, concluindo por se encarrapitarem, ambos, ao pé do Gabriel. A órfã, Raquel e Luís iam atrás.

         - Que tal te parece o aspecto da nossa Beira?

         ‑ Uma maravilha!... Quando se vive entre quatro paredes, e ainda por cima sem tempo nem licença para enfiar o olhar pela fresta de uma janela e sempre absorvida e preocupada com as lições, dificilmente se pode presumir os encantos, as belezas sem fim da natureza.

         ‑ Estás a recitar uma ode? ‑ perguntou Alvaro da frente.

‑ Não; está a improvisar, o que tem muito mais valor...

         O automóvel desapareceu na primeira curva.

         ‑ Agora é que são elas, Gabriel!... Por este andar, amanhã por estas horas devemos estar no Mosteiro...

         - Oh! menino, devagar se vai ao longe...

         ‑ Ora adeus!... Depressa, depressa é que se transpõem distâncias!...

 

        O trajecto era longo. O Mosteiro, antiquíssima moradia dos Crúzios, ficava longe da vila.

         Havia séculos que passara para a família Lencastre, da mais antiga nobreza do Reino. Gerações sucessivas, ali tinham vivido e todos alindando, enriquecendo, sem alterar a primitiva arquitectura. Exterior sóbrio, com a sua longa fila de janelas, alinhadas; ao lado a capela.

         ‑ Lá está o Mosteiro... ‑ exclamaram, quase ao mesmo tempo, os filhos de Joaquim de Lencastre.

         ‑ Que linda e imponente vivenda! ‑ disse Júlia admirada. ‑ Tanto arvoredo!... Que bem se deve estar ali.

- Dentro da quinta até fazemos caçadas! Ali é que nos divertimos a valer...

         ‑ Gabriel, estes machos são umas lesmas. Nem parecem animais folgados...

         ‑ Oh, menino, as pobres bestas não descansam; acarretam o mato, lavram as vinhas. Não sei que mais se há‑de exigir dos bons animais!

         Tens razão!... Coitadinhos. Deixa‑os ir à vontade para se não fatigarem...

         Quando apareceram no Mosteiro, o Dr. Amíbal já ali estava há muito.

         - Honra e proveito não cabem em saco estreito, rapazes... Quiseram vir de galhofa, entenderam que a nossa companhia era sensaborona e aí está o reverso da medalha... Chegaram tarde e a más horas!...

         Júlia estava deslumbrada; tudo aquilo lhe parecia um sonho! Rosas por toda a parte; muros antigos, revestidos de trepadeiras, magnólias colossais, dando ao parque uma sombra deliciosa; uma atmosfera delicadíssima, impregnada de suaves aromas. O chão tapetado de musgo macio, de um verde admirável.

         Para a mesa, para a mesa ‑ gritou o sábio Lencastre. ‑ V., Aníbal, janta connosco, claro; isso nem se discute. A Florência tem cá uma canja... de comer e chorar por mais!

         ‑ Aceito e agradeço.

Florência, cozinheira e governanta, era a mulher do feitor, que também servia de cocheiro e até quando calhava, de criado de mesa.

         Depois de um ligeiro arranjo, vieram todos para o antigo refeitório. Era enorme e em volta estava revestido de azulejos com a vida de Cristo. O tecto, de castanho, primorosamente trabalhado, era ainda o primitivo. A um lado havia uma grande concha de pedra que noutras eras servia para a água benta. Três amplas janelas inundavam de luz a vasta quadra.

         Júlia contemplava tudo com a maior curiosidade. Era, de facto, uma vivenda principesca.

         O jantar correu animadíssimo. Uma alegria comunicativa, ditos espirituosos mantinham, todos, numa belíssima disposição. Pelo caminho, o Lencastre informou pormenorizadamente o médico da vida de Júlia, da sua situação, da grande tragédia que embrulhara aquela existência de tão poucos anos.

         ‑ Já sei que vai ser minha colega ‑ disse o clínico à hóspede dos Lencastres, que o olhou surpreendida, passando, depois, a vista por toda a família da casa.

         Compreendendo, corou e respondeu simplesmente:

- Daqui até lá, quem sabe o que poderá acontecer? Tenho muita vontade de ganhar dinheiro... de auxiliar o padrinho.

         - O meu colega deve ter muito gosto em proteger uma pessoa tão dedicada e tão grata!

         ‑ Sim, o padrinho é muito bom; quero‑lhe tanto como se fosse meu pai, mas como tem família a sustentar...

         Todos a escutavam enternecidos.

         ‑ Estou certo que há‑de vencer! Com essa força de vontade, irá longe...

         ‑ É áspera a caminhada... senhor doutor! Quem sabe se chegarei ao fim?

         ‑ Nós começamos a ter inveja desta papa distinções... Lá no liceu já todos a conhecem.

         ‑ Como conhecem todas as que lá vão - respondeu Júlia modestamente.

         ‑ Outro dia, um rapaz, andou atrás de mim, a perguntar‑me: Conheces a ursa? Dizem que é do colégio da D.Justina!... Pela alcunha deve ser um estafermo! Depois, quando lhe mostrei Júlia, caiu das nuvens e... exclamou entusiasmado: ‑ Ela é formosíssima!...

         ‑ Oh! àlvaro, pelo amor de Deus, não faça troça de mim!...

         ‑ Não me parece que o àlvaro nem o companheiro sejam rapazes de mau gosto...

         Júlia calou‑se, visivelmente contrariada.

O médico mudou de assunto.

         - Vamos elaborar o programa para amanhã?

         ‑ Muito bem, doutor.

         ‑ Não sei se ainda hoje aparecerá por cá a minha gente. E o mais provável!

         ‑ Estamos mortos por ver o seu rancho.

         ‑ Não se farão esperar, sra. D. Helena. Entendem‑se com os seus ás mil maravilhas.

         ‑ Amigos desde pequeninos, o contrário seria para estranhar.

         Terminada a refeição, os filhos do Dr. Lencastre abalaram para a quinta, a fim de mostrarem a Júlia os recantos mais pitorescos da vastíssima propriedade.

         A órfã deixava‑se levar, meio atordoada por todo aquele ambiente acolhedor e grandioso. De vez em quando caía na realidade e arrependia‑se de ter vindo. Para que havia de conhecer a felicidade, quem sempre tinha andado tão longe dela? Então uma grande tristeza, que em vão tentava dominar, tomava‑a de repente.

         Berta compreendia‑a, e Luis entendia‑a, também. Um e outro, sem aludirem à origem daquela melancolia, faziam tudo por lhe desviar a atenção do que a preocupava. Luis, especialmente, era de uma assiduidade, de um carinho, que a todos dava na vista, menos a Júlia.

         Quando organizavam passeios, a órfã propunha, sempre, para ficar a ajudar D. Helena.

         ‑ Berta, repara na minha situação... Não faças com que a tua família me julgue idiota!... É necessário saber interpretar a vida; cada um ocupa o lugar que lhe compete. Tenho tido tantas decepções!... Não queiras que tenha mais uma. Quero sair de tua casa sem me tornar aborrecida, antipática e maçadora. Bem vês que os teus não podem ter por mim a mesma estima que tu tens...

         ‑ Isso chega a ser mania, Júlia!... Todos te estimam, aqui, como pessoa de família.

         ‑ Sim, eu sei quanto devo a todos, mas entendo que não devo abusar.

         O tempo passava na maior intimidade. Os filhos do médico vinham todos os dias para o Mosteiro ou os do Lencastre para casa deles. Combinavam passeios, piqueniques, tudo quanto a fantasia daquele grupo de moços alegres apetecia para passarem as férias o melhor possível.

 

Um dia lembraram‑se de fazer uma excursão á serra da Estrela. O entusiasmo foi enorme, mas o projecto levou alguns dias a elaborar.

         ‑ Vamos a pé, - propuseram os rapazes.

         ‑ Nós também, - concordaram as raparigas.

         ‑ São uns sonhadores! O melhor é irmos, todos, no comboio, até Nelas; depois seguiremos a pé ou de burro, conforme as forças de cada qual.

         A família Albuquerque foi convidada e, assim, a caravana tornou‑se numerosa, sendo preciso levar provisões em abundância.

         O Gabriel era indispensável para auxiliar e para tudo. A mulher dele tinha‑se esmerado em escolher o menu de modo a satisfazer todos e muito particularmente os meninos. Não faltaram: leitões assados, a especialidade do sítio; peru, cabritos, fiambre, pastelaria e doces em abundância. Tudo lhe parecia pouco para tão simpático rancho.

         Rapazes e raparigas iam munidos de grandes chapeleirões de palha, paus ferrados, binóculos uns, outros máquinas fotográficas. D. Helena proibira os filhos de levarem armas. Caçassem quando fossem sós, mas com as pequenas não consentia. A cada passo lia nos jornais desastres com armas de fogo e nunca lhe agradara tal divertimento.

         A excursão era feita a rigor. Quando deixaram o comboio meteram‑se em autos que os levaram até certa altura. Todos julgaram interessante irem a pé o mais possível. Os rapazes conheciam a região a palmos. Tinham feito várias digressões por toda a serra. Arranjaram animais para, quando as raparigas se sentissem fatigadas, seguirem a cavalo. Elas indignaram‑se; tinham muito boas pernas e o que queriam era andar.

         Os ditos esfuziantes, as gargalhadas cristalinas retiniam pelos caminhos de cabras por onde enveredaram para encurtar distâncias e para surpreenderem diferentes aspectos, na ânsia de descobrirem novas belezas por trilhos que ninguém pisara ainda.

         O Gabriel era um bom guia,e os donos dos jericos andavam pela serra como por sua casa. Embrenharam‑se nas dobras das montanhas, a cadeia de serranias não despegava. Subiam uma, e logo outra, na frente, mostrava cordilheiras que lhes pareciam impossíveis de transpor.

         O calor apertava. Levavam barracas de campanha para pernoitarem em plena serra, pois só assim compreendiam uma excursão a valer. Essas dificuldades constituíam, para todos, um divertimento.

         Júlia ia entusiasmada. O contacto com o ar puro das montanhas, com a natureza em festa, era para ela um espectáculo soberbo, pois desde menina nunca mais vivera no campo. Os olhos tomavam‑lhe um brilho de deslumbramento. Sorria contente e esquecida das preocupações constantes que a mortificavam.

         Berta e Luís observavam‑na. Eram os dois que mais se entendiam e que tinham por ela uma ternura muito especial. A perspicácia de Berta não passou despercebida à inclinação de Luís. Pensou, a princípio, que fosse fogo‑de‑vistas, brincadeira; constatou, depois, que, quanto mais se viam, mais a afeição do irmão se arreigava. As impressões de Júlia continuavam um mistério; era impenetrável ou nada sentia, absorvida apenas pela ideia fixa do estudo. ‑ É muito criança pensava.

         E, todavia, a órfã estava uma lindíssima rapariga. Os cabelos muito negros escapavam‑se em fartos anéis, que lhe davam uma graça extraordinária. Notava‑se‑lhe uma alegria que nunca manifestara. Corria despreocupada. Uma flor, o voo de um pássaro, a asa de uma borboleta, eram motivo de fortes explosões de júbilo.

         Luís adorava‑a. Sentia‑se preso àquela existência; era, por assim dizer, a luz que o alumiava. Fazia tudo para lhe ser agradável. Se ao de leve mostrava interesse por alguma coisa, era certo removerem‑se todas as dificuldades para se realizar o que ela apreciava. Júlia protestava sempre, e cada vez se retraía mais.

         - Não quero que se incomode, Luís!... Podem as outras pessoas não gostar.

         ‑ Oh! Júlia, ainda não percebi porque dás excelência a estes patetas dos meus irmãos, quando eles atrevidamente te tratam por tu...

         ‑ Essa é boa! ‑ respondeu corando.

‑ Queres comparar a sua categoria com a minha?

Berta desatou a rir.

         ‑ Por essa não esperavam eles... nem eu.

         Os dois rapazes ficaram atrapalhados. Tinham começado a tratá‑la assim e continuavam, sem repararem que ela não fazia

o mesmo.

         ‑ Tens toda a razão. Júlia está quase uma senhora... É uma vergonha! Isto não pode continuar. Ou nos tratas também por tu, ou, doravante ‑ disse, curvando‑se numa exagerada e cómica reverência ‑ V. Exa. passa a ser a Ex.ma Sra. D. Júlia de Almeida.

         ‑ Porque não havemos de continuar como até aqui? Não me habituo facilmente a mudar.

         ‑ Convence‑te que é um ultimatum.

         Todos rodearam a hóspede.

- Ou dizes tu Alvaro, tu Luís, ou ficamos de mal e... retrocedemos; escolhe!...

         Júlia estava deveras embaraçada.

         ‑ É uma violência!... Comecemos amanhã.

- Deixem‑me habituar a essa ideia... Não tenho jeito!... Mas que lembrança... E não devo...

         ‑ Isso chega a ser mania...

         ‑ Não é!... Vocês compreendem muito bem a vida!... Hoje estamos aqui, todos; amanhã, cada um toma rumo diverso... subindo sempre. O Alvaro será ministro...

o Luís deputado... sábios, celebridades, guindados à suprema altura. Nunca mais se lembrarão de mim e eu ficarei sempre a órfã, sem nome, nem família, que os meus amigos têm em casa por esmola... por compaixão...

         ‑ O Júlia, nós não te merecemos tão ofensivo conceito!

         ‑ Merecem toda a gratidão da minha alma!... Sei bem quanto são generosos! Mas há uma grande diferença de posição!... Se meu pai fosse vivo...

         ‑Pois, minha rica ‑ disse Alvaro risonho ‑, tenho para mim esta verdade dura de roer: tu, a abandonada, com todo o cortejo de fatalidades que tens trazido atrás de ti, irás muito mais longe do que qualquer de nós. Sem contares com ninguém, lutas e vences, com essa febre de saber. Vais triunfar.

         ‑ O Alvaro saiu‑se bem... fala que nem um livro.

         ‑ Parece‑te que não é verdade? Nós temos o calor da família, a certeza de que, se não estudássemos, não nos faltaria o pão de cada dia. Júlia não se fia senão na sua força de vontade, na sua inteligência, na sua perseverança...

         - E isso é pouco?

         - Está bem escudada contra as fúrias do destino.

         ‑ A caminhada da vida é áspera e triste, para se percorrer sozinha.

         ‑ Eu acompanho‑te; queres, Júlia?

         - Não, Alvaro, muito obrigada!... Nunca devemos aceitar o que não podemos retribuir.

         ‑ Mais vale só que mal acompanhada!... Este Alvaro é um toleirão...

         Alvaro embezerrou e corou intensamente. Júlia não deu a menor importância ao caso. Não se perturbava, facilmente, com o que considerava gracejo. Só tomava a sério o que era verdadeiramente digno de tal. E para ela só o era a rota que empreendera com uma vontade firme e um desejo ardente de chegar ao cabo para não ser pesada a ninguém e alijar a obsessão que a esmagava, de alterar a marcha regular em casa do padrinho.

         As duas raparigas seguiam, quase sempre, de braço dado. O cenário majestoso e imenso, aquela serenidade campesma provocava confidências e desenrolava planos que a fantasia precipitadamente elaborava.

         ‑ Tu pensas em casar, Júlia?

         A amiga olhou‑a surpreendida, como quem ouve uma coisa estranha, e não conteve uma estrondosa gargalhada.

         ‑De que te ris?

         ‑Do teu dito.

         ‑ Falo o mais sério possível.

         ‑ Nesse caso vou responder‑te no mesmo tom. Não, não me casarei nunca! Quero seguir, só, o meu caminho, sem acorrentar ninguém à minha existência, à minha infelicidade. Apesar de pouco conhecer do mundo, tenho já uma duríssima experiência!... Sim, irrevogavelmente, seguirei só.

         ‑ Essa resolução não pode ser definitiva. Nem tu sabes o que é o amor, nem eu; mas imagino que deve ser uma coisa deliciosa encontrar a alma gémea da nossa; descobrir uma vida à qual se queira mais que á nossa própria vida e para a qual vivamos exclusivamente.

         ‑ Assim se quiseram meus pais!... E porque muito se amaram, partiram ambos, deixando‑me abandonada neste desconsolador vale de lágrimas! Não; eu penso que não pode haver felicidade completa. Depois, não sou um temperamento amoroso e não quero também pensar numa ventura que nunca pode existir.

         ‑ Que tolice! Não acalentas a ideia de encontrar um companheiro dedicado, que seja o teu ideal?

         ‑ Não, não creio em nada, nem quero desviar a atenção do fim que tenho em vista: trabalhar, trabalhar sempre!

         ‑ Pode‑se trabalhar em conjunto e seguir direito ao mesmo fim.

         ‑ Berta, não esqueças que sou a órfâ, a quem até o triste nome negam, apoucada por todos. Não te lembras do que tenho sofrido no colégio? As hostilidades, os ódios, as más vontades com que arrostei e continuarei a arrostar?

         ‑ Isso não conta; são as imbecis, as invejosas, as que não toleram a superioridade intelectual de ninguém e pensam que o dinheiro vence todas as barreiras. Cá fora há mais justiça, mais serenidade e imparcialidade para apreciar o valor.

         ‑Ora!... A humanidade é tirana. As que hoje vivem no colégio são as mães de amanhã e filhas das que lhe incutiram as teorias que têm na cabeça: a vaidade e o culto pelo vil metal. Já vês que o mundo tem de seguir assim!... No que diz respeito ao dinheiro, acho-que têm razão, pois sem ele nada se faz!... É também para o conseguir que trabalho e luto desesperadamente.

         ‑ É preciso não seres tão severa no teu juízo a propósito do sexo forte. Há homens bons, creio‑o firmemente.

         ‑ Quem o duvida?... Não tenho a prova disso no padrinho, a quem devo tudo!... Pensas que o esqueço um momento?

         ‑ Mas há muitos mais!... Em minha casa são bons: o pai, com aquele génio assomadiço, é um santo; o Alvaro, arrogante como um bravo mosqueteiro de Dumas, com aquelas arremetidas de herói, é a generosidade em pessoa; do Luís, nem quero falar . Estou certa de que não há melhor. Tem todas as qualidades que podem desejar‑se num rapaz!... Talvez julgues exagerada a minha Opinião a seu respeito!... Não receio enganar‑me. Já reparaste no seu carácter?

         ‑ É realmente muito simpático.

         ‑ Deve ser um marido exemplar...

         ‑ Certamente!...

         ‑ Tu embirras com ele?

‑ Eu? Que ideia!... Bastava ser teu irmão para merecer toda a minha estima...

         ‑Só por ser meu irmão?

         ‑ E julgas fraca e de pouco peso a razão?

         ‑ Para o que eu imaginava, é. Gostaria que o Luís casasse contigo...

         ‑Oh Berta!...

         A amiga fixou‑a surpreendida, tentando descobrir o verdadeiro sentido daquela exclamação.

         ‑ Não gostas de meu irmão?

         ‑Muito!... Mas falemos nele sob outro ponto de vista. Tu és uma criança, e eu, embora mais nova que tu um ano, sou já mais velha pela experiência. Não tenhas ilusões como eu as não tenho!... Teus irmãos são os filhos de um notável homem de ciência. Pertencem a uma família rica e fidalga e, além disso, de grande preponderância no País. Serão, amanhã, figuras de destaque no nosso meio. Hão‑de ter posições brilhantes... E eu não sou ninguém!... Sou apenas a filha de um médico de aldeia, morto em plena mocidade. Meu pai era inteligente e podia ter um futuro brilhante se não morresse de amor... O que não é vulgar, mas não leva à imortalidade. Só no mundo, educada por favor, a fatalidade, além dos meus, até o nome de família me levou!... Nunca deixarei de ser a órfã!... Repara nesta monstruosa crueldade do destino.

         ‑ Esqueces‑te que já conquistaste um honrosíssimo apelido.

         ‑Eu?

         ‑Pois não és a Ursa?

         As duas desataram a rir.

         ‑ Oh!... Isso não vale nada na sociedade; por desgraça nem o padrinho me pode apresentar. Tem de fazer a esmola de me educar às escondidas como se fosse um crime.

         ‑ Que tendência especial para denegrir a situação!

         ‑ Não, não; vejo‑a, claramente, à luz do mais sereno raciocínio. Admitindo a hipótese, fantástica, de teu irmão um dia se inclinar para a minha desventura, eu nunca aceitaria!... Não é com uma ingratidão que se retribui o acolhimento que me deram em tua casa. Pensas que não percebo quanto devo à tua influência, à tua bondade e amizade!...

         ‑ A mim? Tu não estás boa, Júlia!... Então eu podia fazer com que os outros gostassem de ti.... Isso chega a ser loucura. Depois, o Luís tem por ti a maior estima; adivinhei‑o antes até de me ter confiado esse segredo da sua alma. Ama‑te, podes ter a certeza disso.

‑ Cala‑te, cala‑te!... É uma brincadeira e vocês não devem zombar de mim...

         ‑ Júlia, que ideia fazes tu de meu irmão?

         ‑ Perdoa‑me, mas não me fales de uma felicidade a que tenho de renunciar, custe o que custar.

         - Porquê?

         ‑ Por tudo. Peço‑te, por Deus, que não aludas mais a isso... E se o Luís te perguntar o que penso... diz‑lhe... diz‑lhe que me é indiferente. Ou, mais ainda... que o detesto.

         As últimas palavras saíram‑lhe num grito de desespero e as lágrimas quatro a quatro, enquanto se esforçava por sorrir. Berta segurou‑lhe as duas mãos, fixando‑a demoradamente:

‑        Mentirosa!

         E em plena serra, na grandiosa decoração que a natureza prepara com tão extraordinários requintes, abraçaram‑se, comovidamente, como o faziam, sempre, nos grandes lances, quando Júlia era ferida por alguma daquelas tremendas injustiças que a amarfanhavam de tal forma que ficava doente.

         ‑ Berta, rogo‑te, nunca mais te refiras a esse assunto

‑        Decididamente, não gostas do Luis?

         - Não me perguntes!... Raramente se pode dizer o que se sente, porque a verdade é dolorosa para nós, ou para os outros.

 

         Duma eminência em que os dois irmãos de Berta se empoleiraram veio um assobio forte.

         ‑ Vocês resolveram ficar para trás?... Não esperamos mais; querem que as vamos rebocar?

         As duas aceleraram o passo. As filhas do médico, Marta e Raquel, estavam já próximas de àlvaro e Luis, que pararam justamente perto de uma descida ingreme que todos duvidavam que as raparigas pudessem descer sem auxílio. Estavam ali, naquela espécie de ratoeira, para se rirem se as vissem atrapalhadas.

         Realmente não foi pequeno o espanto de todas quando deram com o penedo esburgado, sobre o qual tinham fatalmente de deslizar para continuarem o caminho.

         ‑ Creio que não tenho coragem para esta acrobacia ‑ declarou Marta.

         Todas se debruçaram sobre o precipício, aterradas.

         ‑ O problema vai resolver‑se rapidamente. Era uma vergonha que tivessem de voltar para trás.

         ‑ Eu fico aqui ‑ propôs àlvaro ‑ e seguro‑vos; o Luís, lá em baixo, apara‑vos, como se fossem bolas. Está combinado?

As raparigas entreolhavam‑se apavoradas.

         ‑ Não se pode ir por outro sítio?

         ‑ Isso era dar a volta ao mundo...

         ‑ Não sejam patetas!... Seria uma fraqueza confessarem medo.

         Tinham de tomar uma resolução. Era melhor não pensarem e meterem‑se, corajosamente, ao grande feito. Luís agarrou‑se ao tronco forte de uma giesta e deixou‑se deslizar sobre a pedra. Quando se sentiu em terreno firme, bateu as palmas e gritou:

         ‑ Venham as bolas!

         ‑ Que vá o Carlos primeIro.

         ‑ Vamos, desembaraço e ânimo.

         ‑ Queres que te aparem, como às meninas?

         ‑ Não necessito do teu auxílio ‑ disse o filho do médico, saltando agilmente.

         As raparigas, porém, não se resolviam.

         ‑ Atirem‑nas, que eu apanho‑as à mão.

         Todas protestavam e fugiam.

         ‑ ó Berta, parece incrível! Dá tu o exemplo...

         Berta ruborizou‑se, largou o pau, deu o binóculo a Marta e tomando uma resolução enérgica e rápida estendeu os braços a Alvaro para a suspender. Este firmou‑se bem, segurou‑a e deixou‑a escorregar sobre a rocha. Luís, em baixo, colheu‑a num abraço.

‑ Que tal? Foi difícil? Custou‑te muito?

         ‑ Nada; podem descer, que não há perigo.

         Tudo estava muito bem. A manobra, entre irmãos, fez‑se sem cerimónias.

         ‑ Quem segue?

         Ninguém se apressava a responder.

         ‑ Que indecisão!... Ficamos aqui eternamente?

         ‑ Eu vou‑me embora ‑ decidiu uma das filhas do médico. ‑ Não posso meter‑me nesta aventura.

         ‑Oh! Oh!... Não querem lá ver que somos nós as corajosas!... Isto é que são mulheres de campo e serra.

         ‑ Foi uma armadilha; eles trouxeram‑nos por aqui para nos expor ao ridículo...

         ‑ Essa é melhor; nós nunca aqui tínhamos passado.

         ‑ Não pode ser; vocês conhecem isto a palmos.

         ‑ Pouco falatório e vamos à prática deste difícil desporto.

         Amélia olhou para baixo e voltou‑se apavorada:

         ‑ Eu não desço... Tenho medo.

àlvaro, sem cerimónia, tomou‑a, corajosamente, nos braços e passou‑a suavemente ao irmão. Ouviu‑se um grito de protesto e grandes gargalhadas.

‑        Isto não é mulher, é uma pluma ‑ disse Luís alegremente... ‑ Venha outra bola; esta era de sabão.

         ‑ Para o que nós estávamos guardadas! - exclamou a órfã, com ares de vítima.

         ‑ Vá, vá; deixemo‑nos de perder tempo.

         Júlia, como quem se prepara para o maior dos sacrifícios, despojou‑se do pau e do chapéu.

         ‑Tem de ser!...

Alvaro segurou‑a com força e deixou‑a escorregar, lentamente, sobre a pedra. Luís estendeu os braços. àlvaro largou‑a e ela caiu, desamparada, sobre o peito de Luís, que a estreitou com mais ardor do que convinha.

         Os cabelos de Júlia passaram‑lhe pelos olhos e as faces roçaram as dele. Nessa altura os lábios desprenderam um beijo que podia tomar‑se por um sopro. E sem pressa, com aquele corpo delicado muito apertado, pousou‑a na relva.

         ‑ Levou tempo a descarga do último fardo.

         Júlia estava rubra, e Berta, que percebera a manobra, ria perdidamente.

         As impressões da tarde tinham abalado fortemente Júlia. Viu claramente a sua situação. Se acreditasse no que a amiga lhe dissera, no que tão grato era ao seu coração, o que diria D. Helena? O que pensariam todos? E mesmo Luís, quem poderia garantir que ele não mudasse de opinião?... Ela é que não podia nem devia tomar a sério nada do que se passara. Arrependia‑se de ter vindo!... No Colégio estaria muito mais tranquila.

         Caminhavam, agora, aceleradamente. Seguiam aos pares. Alvaro com Amélia, filha do médico, Carlos com Berta, e os outros procurando as companhias que mais lhes agradavam.

         Luís manejou de forma a deixar ir os companheiros bastante à frente. Todos pareciam empenhados em lhe facilitar uma séria conversa com a órfã. Por mais que ela se esforçasse para evitar qualquer palavra que lhe revelasse uma afeição que era já sua conhecida, encontrava‑se sempre só. A caravana, ou se adiantava ou se atrasava. Luís aproximou‑se muito dela.

         ‑ Estás zangada comigo?

         ‑ Porquê?

         - Júlia, aqui ninguém nos ouve e preciso falar‑te.

         ‑ Então não me fala todos os dias?

         ‑ Diante de toda a gente, e o que quero dizer‑te só tu o deves ouvir.

         ‑ Um segredo?

         ‑ Sim, um segredo da minha alma para depor na tua. Amo‑te!... Era só isto que queria dizer‑te.

         ‑ Luís, é melhor não continuar...

         ‑ Não posso, tens de me ouvir até ao fim.... Fiquei preso a ti desde o primeiro dia em que te vi. Tinha uma curiosidade estranha de te conhecer, antes de vires a nossa casa! Lembras‑te daquela distribuição de prémios no colégio?! Tu recitaste um monólogo, e que bem o disseste!... Trazias um vestido de chita clara...

         ‑ Não tinha outro...

         ‑ Quando apareceste no palco, ouvi de todos os lados: É a órfã, a ursa!... Como estavas linda...

         ‑Luís... por Deus!... não diga mais... que me pode fazer muito mal...

         ‑ É verdade!... Depois, Berta veio ter connosco toda entusiasmada e perguntou‑nos:

‑ Gostaram da órfã?

         ‑ Ah!... Ela também me não tratava pelo meu nome?...

         ‑ Se o fizesse, ninguém saberia a quem se referia... Tu, eras tu, o prodígio, a inteligênçia, a ursa. Desde esse dia jurei a mim mesmo unir o meu destino ao teu, se tu quisesses...

         ‑ Foi prematura a decisão, Luís; não pensou, não reflectiu nos embaraços que haviam de aparecer‑lhe pelo caminho!... Criança!... Unir o seu destino ao meu!... Calculou os inconvenientes dessa união? Não reparou de quem era descendente, nos haveres da sua família, na posição social de seu pai? Eu, Luís, não sou já a filha do médico inteligente e honrado, do homem de tão requintada sensibilidade que, ao morrer‑lhe a mulher que adorava, não resistiu...

         Nada disso herdei... fiquei apenas, para todos, a órfã pobre, que morreria à míngua de pão, se um homem de nobres sentimentos não se sacrificasse, gastando o que não podia, para me educar. Uma união nestas circunstâncias, devia ser fatalmente mal recebida pelos seus. E eu, Luis, desculpe este orgulho, não me sujeitava a ser considerada como intrusa, como ingrata... Não posso, portanto, aceitar o seu generoso oferecimento...

         ‑ É uma desculpa, uma maneira delicada de me dizeres que não gostas de min.

         ‑ Luís... não leve as coisas para esse caminho. Compreende, melhor que ninguém, a minha situação melindrosa!... Somos ambos bastante novos; temos, primeiro que tudo, de pensar no futuro. O seu está garantido, mas

o meu é um ponto de interrogação.

         ‑ Porque recusas o meu auxílio? É mais fácil vencer quando nos sentimos moralmente amparados.

         ‑ Meu amigo, aconteça o que acontecer, nada me desviará do plano que tracei. Se um dia for independente, ganhando o bastante para não ser pesada a ninguém, nessa altura, se o Luís não tiver mudado de ideias, falaremos seriamente.

         ‑ Não casarás com outro?

         ‑ Eu? ‑ disse, com uma entoação em que se traduzia uma censura.

         Luís tomou‑lhe a mão entusiasmado, ia beijar‑lha, quando reparou que o grupo, a certa distância, os observava.

         ‑Vêem‑nos... mas não nos podem ouvir!... Tenho a tua palavra.

         ‑ Não casarei. Era essa a minha tenção há muito.

         ‑ E eu só contigo, juro‑te, aqui em plena serra, neste templo imenso em que a natureza pontifica e em que só Deus pode escutar‑nos.

         ‑ Peço‑lhe que não tenha para mim a mais leve manifestação de simpatia. Fiquemos, como até agora, apenas amigos leais e dedicados.

         ‑ Ó meninos, que devaneio é esse? Se não fosse a Júlia que viesse contigo, diria que era...

‑ O quê? Então a Júlia é invulnerável às setas de Cupido?

         ‑ Esta é esfingica... ri‑se... mas nunca o seu misterioso sorriso, como o da Gioconda, há‑de dar guarida ao amor.

         ‑ Sei lá! às vezes, as estátuas animam‑se,e depois é que são elas...

         ‑ Esta não dá de si; é de mánnore de Carrara.

         Júlia sorria aos gracejos dos companheiros.

         ‑ O amor é privilégio dos ricos e dos felizes... Os pobres não têm tempo para idílios...

         ‑ O quê?... Que parvoices são essas? Então o amor é exclusivo dos Crésus?

         ‑ Olha lá, foi o Teles que te meteu isso na cabeça? O demónio do celibatário tem cada uma!

         ‑ Isto devem ser as doutrinas da D. Justina. Aquela fera é que com certeza nunca amou.

         ‑ Livra!... Quem se havia de inclinar para tal bicha!... É, verdadeiramente, o diabo em figura de gente.

         - Quando nós éramos pequenos, também lá andámos e confesso que me inspirava respeitável medo.

         Júlia não se manifestou.

‑ És tu que tens mais razão de queixa e não te expandes.

         ‑ Não posso, nem devo. Tenho de viver naquele meio, Deus sabe até quando, portanto não me assiste o direito de censurar.

         ‑ Essa agora!... A crítica é livre e, a meu ver, a melhor coisa que existe. Não achas que é um desabafo, que faz bem ao corpo e à alma, dizer mal dos professores, especialmente quando eles não nos ouvem?

         ‑ Vocês estão noutras circunstâncias. Podem falar sem receio! Eu... dependo de todos.

         ‑ Eles é que dependem de ti. Dás honra aos mestres, ao colégio e até ao liceu.

         Júlia deu uma gargalhada comunicativa...

         ‑ Quanto apostam em como a Júlia vai ter o prémio Magalhães?

         Desta vez, pareceu, à órfã, sem espírito a frase. Ficou muito séria e disse, com certa gravidade:

         ‑ O que não acho bonito, é que seja eu o alvo da vossa troça... Não sejam assim.

         ‑ ó Júlia, seriamente, tu não tens a consciência do teu valor?

         ‑ Ora adeus!... Deixemo‑nos de falsas modéstias... Vamos para a frente...

         Atravessavam agora um trecho de estrada lindo. De um lado, a montanha altaneira, marcando, no espaço, OS recortes extravagantes de uma arquitectura fantástica; do outro, estendia‑se um vale; lá ao fundo, uma aldeiazita muito negra, agachada junto de uma pequena igreja de pedra sem cal. As casitas dispostas em tortuosos arruamentos; muros de granito vedando quintais e as vielas estreitas alcatifadas de mato e caruma.

         Tudo aquilo tinha um aspecto pitoresco. Os serranos, mal avistaram a caravana, postaram‑se às portas, de boca aberta e ar espantado. A garotada corria em direcção aos passeantes, na ânsia de novidade. Caritas inteligentes, olhos muito abertos, como quem descobre um fenómeno raro, mas todos esfarrapados e bastante sujos.

         ‑ Vamos improvisar corridas, para divertir estas crianças ‑ propôs Alvaro.

         A pequenada olhava, pasmada, para o grupo tão bem trajado que arrostava, a pé, aquelas solidões.

         ‑ Ponham‑se todos em fila, vá...

         A caravana acomodou‑se pelas pedras; era um pretexto para descansarem. Alvaro continuou:

         ‑ Quando eu disser três... partem todos.

O que chegar primeiro àquele pinheiro alto, ganha um tostão.

         Foi lançada a moeda; ao sinal combinado, a turba abalou numa correria louca. A primeira a chegar foi uma rapariguita viva e loira, dos seus dez anos. A saia de baeta às fitas, dava‑lhe largueza para amplos movimentos.

         ‑ Bravo! ‑ clamaram todos, batendo as palmas.

         ‑ Estamos em plena vigência do feminismo.

         As mulheres levam‑nos a palma em tudo.

         A garota, esbaforida, o olhar cintilante, cercava‑os ansiosa. Não dizia uma palavra, mas tinha uma expressão estranha.

         ‑Tens fome?

         A pequena não respondeu, mas o rosto moço contraiu‑se, num pergaminho de precoce velhice.

         ‑ Deixemo‑nos de interrogatórios e vamos à luta...

         Alvaro fez uma prelecção aos garotos.

         ‑ Vocês não têm vergonha de se deixarem vencer por uma mulher?

         ‑ Não que ela é danada! ‑ respondeu um mais desenvolto. ‑ O que se lhe mete na cabeça é que há'-de ser. Não há quem se avenha com este diabo...

         ‑ Vamos atirar outra moeda; em linha, vá.

A serranita, de pé atrás, em atitude enérgica, estava pronta a partir à voz do comando.

Quando Luís contou três, voou como uma seta, levando uma enorme dianteira aos companheiros. Passou o alvo e estatelou‑se na estrada.

         ‑ Foi ela a vencedora, mais uma vez.

         ‑ Palermas! ‑ exclamou àlvaro, desolado, para o grupo de rapazitos esfrangalhados.

‑ Sempre ela!

         ‑ Vamos à derradeira prova. Se a deixarem chegar primeiro, não só perdem a moeda que vou dar ao vencedor, como apanham um puxão de orelhas cada um. A postos!

         A criançada delirava. Os olhitos, muito brilhantes, pareciam querer sair‑lhes das órbitas. Alguns, pequeníssimos, quase nus, punham‑se em guarda para o desafio. Todos riam com a inesperada diversão. Os camponeses acorreram e, apoiados aos sachos, assistiam ao divertimento com o maior interesse.

         ‑ Era melhor fazer dois grupos ‑ alvitrou Júlia. ‑ Os pequenitos não podem competir com os maiores. É preciso fazer justiça.

O magote dos grandes perfilou‑se.

         ‑ Agora é que vamos ver até onde chega o fôlego desta famosa Joana...

         ‑ Ela é levada da breca; ninguém a vence ‑ disse um campónio.

         ‑ É a última prova... Um, dois, três...

Ouviu‑se um tropel desesperado, e o rancho correu numa rajada como se oculta mola os impelisse... Os pés mal tocavam o chão; os frangalhos que cobriam os corpitos tisnados pelas intempéries, esvoaçavam como espantalhos nas figueiras para assustar os pardais.

         Ouviu‑se um oh! de espanto, de admiração, saído de todas as bocas. Novamente a heróica pequena triunfara. Estava esbaforida, os cabelos em desalinho, as faces congestionadas.

         ‑ Ganhou o prémio!... Ganhou o prémio!...

         Júlia, comovida, abraçou‑a.

         ‑ Se fosse rica, dava‑te um vestido; mas sou tão pobre como tu!... Dou‑te este lenço, não vale nada; bordei‑o eu. Guarda‑o e lembra‑te que te apreciei muito... Serás uma mulher para lutar pela vida.

         Os rapazes e as outras raparigas deram‑lhe moedas de prata... Era uma fortuna. Os olhitos da criança brilhavam de uma forma estranha. Ouviram‑lhe as primeiras palavras, pronunciadas como uma oração:

- É para a minha mãe!

         A fisionomia abria‑se‑lhe numa expressão de radiosa felicidade.

         - Bem hajam os fidalgos!... A esmola não pode ser mais bem empregada...

‑ Tem a mãe entrevada há um ano...

Morrem de fome! Aqui, todos somos pobres. Não lhe podemos valer.

         ‑ Devia ser tudo para ela ‑ disse, dirigindo‑se aos pequenos ‑. Para que disputar o que tão preciso é a esta desgraçada?

         ‑ Mas nós não apanhamos nada... - disseram alguns, num tom que bem mostrava o pesar de assim ter acontecido. ‑ Alambazou‑se com o dinheiro todo.

         ‑ Ainda bem ‑ continuou uma pobre mulher andrajosa, mostrando tanta miséria como a pequena.

         ‑ Coitada! ‑ comentou Luís. ‑ Adivinhava‑se no seu aspecto, naquela ânsia de apanhar os cobrezitos, que alguma força im periosa e bem forte a impelia!... Como a desdita empresta aos fracos forças sobrenaturais!

         ‑ Eu que o diga ‑ murmurou Júlia, quase só para si.

         Todos deram à infeliz criança o que puderam. Os camponeses assistiam à cena comovidos.

         ‑ Vamos aqui ficar toda a vida?

         ‑ Certamente que não. Adeus, pequenos.

         A garota, num impulso irresistível, correu para Alvaro, que notara ter tido a ideia das corridas. Segurou‑lhe a mão e beijou‑lha com fervor.

         - O pequena, que é isso?

         Ela não respondeu nada, mas duas lágrimas rolaram‑lhe pelas facesitas emagrecidas.

         Alvaro abraçou‑a.

‑        às meninas é que tu deves agradecer.

         A pobrezita correu para elas para lhes beijar as mãos. Não dizia uma palavra; a sua manifestação era assim. Marta alvitrou, sentenciosa:

         ‑ O que me parece acertado é sabermos o nome dela!... Se conseguíssemos meter a mãe no hospital, podíamos levar a pequena! Era uma infeliz que se arrancava a esta tremenda miséria.

         ‑ Talvez tenhas notícias nossas!... Adeus.

         Ouviu‑se um soluço profundo saído do peito da desventurada vítima do destino.

‑        Coitadinha!

         Depois de andarem um pouco, voltaram‑se. Lá estava o grupo, pasmado e saudoso, olhando‑os enternecidamente. A garota, em cima de uma pedra, numa atitude aflitiva, dizia adeus no desespero de quem vê sumir‑se no horizonte a última esperança.

‑        Que enorme pobreza há por estes sítios! Creio que é a região de menos recursos de Portugal.

O Gabriel aguardava‑os com os guias e os burricos, ajoujados de provisões, numa volta da estrada.

         ‑ O senhor doutor disse‑me que esperasse com as barracas... Deviam chegar cansados, e por isso era melhor pernoitarem no caminho.

         ‑ Foi uma ideia genial, porque nós já estamos a deitar os bofes pela boca...

         ‑ Agora, se os meninos querem, metemos pelo atalho até à primeira aldeia.

         ‑ Tu diriges a caravana; confiamos em ti.

         ‑ Talvez lá se encontrem acomodações para todos, sem ter de se recorrer às barracas.

         ‑ A residência está vazia ‑ informou um guia. ‑ Só dos sábados para os domingos é que o senhor padre Domingos lá dorme.

         ‑ Esplêndida ideia!... Vamos dormir a casa do senhor Prior.

         A tarde vinha caindo lentamente! Uma serenidade completa, um silêncio augusto, como só em plena natureza se surpreende. As serras começavam a esbater os pormenores, para mostrarem os contornos gigantescos, delineados a sépia na palidez do céu. As vertentes, na sombra, apareciam, já, mergulhadas em profunda escuridade. As águas, que se precipitavam das alturas, sussurravam, numa toada melancólica, uma cantilena embaladora que entristecia, que convidava à meditação... Caía sobre a terra uma languidez impressionante, que se comunicava às pessoas e às coisas.

         Avistaram um povoado rústico, agachado ao fundo de um vale; casebres de granito sobreposto, sem o mais leve indício de cal. A igreja, de pedra morena, era a construção mais alta do lugarejo.

         A luz do dia desaparecia rapidamente. Gabriel incitou os machos, a ver se chegavam antes da noite se cerrar de todo. As raparigas, principalmente, sentiam‑se fatigadas e sem alento para as correrias que o Gabriel e os guias estavam dispostos a empreender.

         Quando chegaram ao burgozito, estava escuro. As mulheres, de saias de baeta e olhar espantado, assomavam às portas, com candeias de azeite na mão, para descobrirem a categoria dos noctívagos viajantes... Gabriel e os guias tinham alarmado a povoação... Notava‑se um movimento desusado. Uma mulher corria a buscar a chave da residência.

         ‑ Sejam bem‑vindos!

         ‑ Nosso Senhor os traga em bem.

         ‑ Boas noites ‑ respondiam, todos, em coro.

         ‑ Bendito seja Deus!... Que lindo ranchinho!...

Formou‑se logo um grande cortejo.

         Os pequenos, agarrados às saias das mães, olhavam, com a maior curiosidade, os visitantes estranhos que vinham pernoitar ali.

         Todos quiseram acompanhar os hóspedes.

         Era um espectáculo novo, que talvez não se repetisse na vida dos presentes.

         Os viajantes esperavam uma casa regular para passar aquela noite em plena serra. Qual não foi o seu espanto ao depararem com uma cabana tão modesta ou mais que as outras. Subiram alguns degraus de uma escada exterior e a mulher meteu a chave na porta. Entraram para uma pequena quadra com uma mesa de pinho tosco ao meio; era a sala de jantar do pároco. Não puderam ocultar uma grande surpresa...

         - Mas nós não cabemos todos aqui! - declarou Luís.

         ‑ Têm o quarto do senhor Prior ‑ informou a mulher que trouxera a chave, abrindo uma porta interior.

         Todos entraram, comprimindo‑se...

         Havia um catre, quer dizer, umas tábuas em cima de uns bancos rústicos e, sobre estes, uma enxerga coberta com mantas de lã de ovelha, tecidas na região.

         ‑ Uma só cama para tanta gente! Como há‑de ser isto, Gabriel?...

- As meninas ficam no quarto; os meninos aqui fora, na sala...

         ‑ Não, não! ‑ protestaram as raparigas.

‑ Fiquem vocês na cama do senhor Prior...

‑E os cães?

         Esses dormem convosco ‑ disse Berta...

         ‑ ó Gabriel, vê se compras palha e improvisa‑se, no chão, uma cama para estas excursionistas das dúzias.

         Em frente da casa aglomeravam‑se todos os habitantes do lugarejo. Era um acontecimento raro que tinham de registar nos anais da terra.

         Todos quiseram ser agradáveis, prestar os seus serviços, oferecer do pouco que tinham, para que tão nobres pessoas fossem satisfeitas do sítio.

         A mulher da chave era incansável.

Primeiro, porém, tinham que improvisar o jantar com as provisões que traziam. Nunca a mesa do senhor Prior se viu tão repleta das mais finas iguarias...

         Os do casal quiseram oferecer ovos frescos e mel delicioso.

         Seria ofensa não aceitarem.

         A ceia decorreu alegremente; sentiam‑se todos felicíssimos.

         Aquele episódio imprevisto, que não estava no programa, teve, para todos, um sabor muito especial.

         Terminada a refeição, saíram.

         A Lua tinha‑se erguido preguiçosa, por detrás das montanhas, e estendia uma claridade suavíssima por toda aquela grandiosa imensidade.

         Era qualquer coisa de majestoso, de impressionante. Ninguém ficou insensível à magnificência do quadro.

         ‑ Eis a grande obra da Natureza, a suprema artista! Nunca estas maravilhas se surpreendem nas cidades.

         ‑ Claro! Lá ninguém tem tempo para reparar na Lua. Esses bucolismos, só em plena serra.

         ‑ Eu, sempre que posso, admiro‑a...

         ‑ Só se for por um óculo!... A D. Justina não quer romantismos no colégio, nem os admite. Do que ela, porém, é muito capaz é de te fazer ver as estrelas... ao meio‑dia.

         Os serranos rodearam, familiarmente, no adro, os visitantes.

         Contavam a sua vida; histórias de lobos que, de vez em quando, desciam ao povoado.

         ‑ É dura a vida neste deserto, meninos. Ainda nós podemos dar‑nos por muito felizes: temos perto o cemitério e a igreja! Lá para as Fragas é bem pior!... Vêem além, naquelas dobras das serras, umas choupanas encalhadas nas penedias? Dali, para levarem os defuntos, é um caso sério!... Até já aconteceu um morto matar um vivo...

         - Oquê? Quedizvocê?

         ‑ É verdade ‑ apoiaram todos.

         ‑ Morreu naquelas alturas um fulano que se chamava Manuel das Moitas! Era o que tinha mais alguma coisa lá nas Fragas.

         "o acompanhamento foi luzido e de toda a serra não faltou ninguém!... O cemitério era longe e o caminho de cabras.

         "Quatro indivíduos carregaram com o ataúde, mas quando chegaram ao Penedo dos Abraços é que foram elas... o caixão tinha de seguir a prumo!

         "Dois seguraram de cima, dois passaram para baixo.

         "Tiveram de se servir de cordas; uma estalou e o morto caiu em cima de um dos que estavam ao fundo da barreira... e que ficou como um passarinho."

         ‑ Más terras as nossas!

         ‑ Nem na morte há sossego.

         ‑ Esse caso é, realmente, espantoso!

         ‑ ó Tio Manuel, conte a estes meninos como a cabra do Zé da Azenha matou um lobo.

- O quê?... Matou um lobo?

- Esse também foi um passo de uma pessoa rebentar a rir. Os lobos, no Inverno, chegam‑se ao povoado...

         - É natural!... Vêm ver se repartem com eles alguma coisa.

         - Coitados dos pobres animais, devem ter uma vida triste ‑ disse Júlia, enternecida...

- Diz: "os nossos irmãos lobos", como

São Francisco de Assis.

         ‑ Esta era capaz de se deixar comer para que eles não tivessem fome...

         ‑ Tanto não, mas devem concordar que todos os seres viventes têm direito à vida.

         - Deixem‑se de retórica e vamos à história, Tio Manuel - insistiu Alvaro.

         - Como eu ia dizendo, os lobos metem por aí abaixo e por pouco nos não batem à porta para pernoitarem!... Vai daí, o meu compadre, em dia de nevada, teimou em sair com o gado! Nós avisamo‑lo: "Homem, acautela‑te... Olha que o frio aperta e os bichos não respeitam ninguém!..." Meu dito, meu feito!... Ainda não tinha chegado ao outeiro da Valada quando lhe saem à frente três tunantes de respeito!... O homem ficou atarantado e tanto gritou que até ficou rouco!... Um dos bichos amarrou, pelo cachaço, uma das melhores cabeças e abalou sem respeito pelo dono; outro meteu atrás da cabra russa... Mas esta tem pernas do diabo, e, se um corria, a outra voava.

         "O lobo, então, estendia‑se na neve, parecia

um galgo, para a filar. Ela, ligeira como o vento, passava, pinchava, como se tivesse asas nas patas. Chegou além!... ‑ e o Tio Manuel alongava o braço na direcção que desejava indicar. ‑ Daqui vê‑se bem o lugar onde o caso se deu. O monte tem uma fenda como uma talhada de melancia e lá no fundo são os caldeirões de Pêro Botelho, segundo dizem. Pois a verdade é que a nossa gazela pulou como um pássaro... e estacou do outro lado. O lobo, na fúria da corrida e na ânsia do apetecido petisco, não atentou na brecha, faltou‑lhe o pé e... catrapus!... Mergulhou na cisterna e lá está a contas com Satanás!

         Todos riram, mais uma vez, com a mesma alegria, como se nunca tivessem escutado a história.

         ‑ A cabra foi esperta...

         ‑ Oh! se foi! O meu compadre disse‑me depois que se fartou de rir, apesar de ter a alma de luto por lhe ter levado caminho a melhor borrega do rebanho. Quando enxergou a cabrita encarrapitada num penedo mé, mé, como que a chamar por ele, sentiu tentação de a abraçar, como se fosse uma alma cristã. É que ele, meus meninos, há animais com mais entendimento que muitos que por aí andam a comer o pão que Deus dá! Que eu, cá para mim, tenho como certo que tirando a fala... todos somos iguais!

         - Isso será avançar de mais, Tio Manuel.

         ‑ Deus me perdoe se o ofendo, mas parece‑me que não estou em erro.

         A palestra continuou animadíssima. O Gabriel e a mulher que tinha a chave da residência tratavam dos preparativos para aquela noite memorável. Na sala, estenderam palha. D. Helena e D. Ana, previdentemente, tinham metido na bagagem arranjos indispensáveis, presumindo que fossem obrigados a passar algumas noites nas barracas. Foi o que valeu!

         Havia também que atender aos cães,que os rapazes não queriam ao relento. As raparigas protestavam; não os consentiam a seu lado, que os metessem no quarto deles. Assim foi, com grande algazarra de uns e outros.

         A cama do senhor Prior era estreita e os rapazes, à fina força, queriam encafuar‑se, todos, nela. As tábuas gemiam e as gargalhadas acordavam o silêncio imponente daquele serão para todos cheio de novidade. à luz de uma vela que D. Helena, também prudentemente, metera nas malas, as raparigas aconchegaram‑se na palha, arranjando almofadas como puderam.

Quando se preparavam para um sono reparador, ouviram, junto aos ouvidos, um coro, muitas vozes ao mesmo tempo: boa noite... A taipa que as separava dos rapazes estava de tal forma esburacada que dava a impressão de terem junto das delas as cabeças daqueles.

         A surpresa provocou uma gritaria, seguida de gargalhadas e de um rápido sopro na luz esmorecida da vela. Os rapazes enfiaram pelos buracos as lanternas, iluminando o aposento e especialmente os rostos das companheiras. Não houve forma de sossegarem.

         Quando a Lua desapareceu e a estrela de alva luziu no horizonte, as raparigas ergueram‑se e foram para a única janela que havia na casa, e que lhes mostrava um panorama formidável. As serras desenhavam‑se, a carvão, no espaço que a pálida aurora começava a clarear, como gigantes que avançassem, destemidos, para aniquilar a humanidade.

O firmamento era um mistério; a terra solidão'. Tudo parecia profundamente adormecido na natureza. Era majestosO o quadro.

         Júlia estava perplexa.

         ‑ Vamos ver nascer o Sol?

         Do quarto dos rapazes vieram protestos.

         ‑ Vocês estão doidas?!... A Lua é que vai nascer! Que mania foi essa de acordarem com a estrela de alva?

         Os cães ganiam na ânsia de se escaparem

para a rua.

         - Saltem, todos, cá para fora! - ordenou Berta. - Preguiçosos, não se envergonham de vir para a serra para dormirem a manhã na cama?!

         - Isto não é dia; é noite fechada.

         ‑ Vocês parecem cotovias tresnoitadas!

         As raparigas partiram.

         ‑ Vamos lavar‑nos a um regato.

         ‑ Esperem, esperem; nós queremos assistir à vossa toilette.

Não faltaria mais nada!...

         E desapareceram, a correr, para procurar água antes de eles saírem da residência. Meteram por uma pequena encosta e, entre penedias, encontraram uma abundante nascente.

         Pousaram os utensílios nas pedras e procederam às abluções. A luz era ainda frouxa. Nas alturas passou um bando de patos bravos grasnando. Todas, interessadas, observavam Os viajantes aéreos.

         ‑ Que lindos e como voam em fila indiana!

         ‑ Nunca tinha visto estas aves.

         Estavam em grandes preparativos, quando Júlia exclamou:

‑ Não preciso de espelho, querem ver? As âguas reflectem‑me nitidamente!... Que graça!

         Todas correram para o pequeno lago debruado de verdura, tão calmo como se realmente um espelho estivesse engastado na relva tenra. Quando se miravam, estarrecidas, estrugiram palmas. Os rapazes estavam junto delas sem terem dado por eles.

         ‑ Que narcisos!... Estão enamoradas da própria beleza!... O mundo está perdido.

         ‑ É um abuso entrar dessa forma no nosso quarto de vestir. Feia acção.

         ‑ Então nós não temos licença de nos lavarmos?

         ‑ Podem até tomar banho!... Cabem à vontade...

         ‑ Parecem uns Faunos...

         ‑ E vocês as Deidades...

         Do lado do Oriente, o espaço começava a tingir‑se de um rosa esmaecido, que, pouco a pouco, se ia acentuando como se o clarão de um longínquo incêndio iluminasse o céu... Que maravilha...

         De repente, o fogo levantou labaredas vivas, e o sol rompeu. Foi um deslumbramento!... A terra, como por encanto, vestiu‑se de luz. Pelas serras estendeu‑se um manto opulento de claridade cintilante...

Todos se quedaram boquiabertos perante as magnificências extraordinárias da natureza e o silêncio que se fez traduzia bem a impressão profunda que lhes causara a grandiosidade do cenário, majestoso e imponentíssimo.

         ‑ Só para surpreender este espectáculo, valia a pena a excursão.

         ‑ Tenho fome!... Gabriel, não saio daqui sem me teres consolado com uma chávena de café ‑ exclamou Alvaro.

         ‑Ah! Ah! Ah!... Não querem ver a exigência!...

         ‑ Eis o protótipo do comodista. Tens de renunciar aos hábitos citadinos.

         ‑ Comam fruta e marchemos!... Cedo é que é agradável caminhar.

         Dividiram‑se as opiniões. Os serranos vieram oferecer‑lhes leite acabado de mungir, queijos frescos e requeijões, especialidade do lugar.

         Não resistiram, pois o manjar era tentador. Gabriel improvisou uma mesa em pleno ar livre. O leite, ainda quente, foi engolido com insaciável apetite.

         ‑ Que deliciosa refeição!

         ‑ Não se me dava ficar aqui toda a vida.

         ‑ A comer sopas de leite?

         ‑ Com este ar e esta alimentação, creio que Adão não estaria melhor no Paraiso...

‑ A ti faltava‑te a Eva...

         - E não haveria quem me quisesse acompanhar neste éden? ‑ perguntou Luís, deitando um olhar significativo a Júlia.

         Esta corou ligeiramente, desviou a vista e chamou a atenção de todos para um galo pimpão que, em cima de um muro, batia as asas cantando alegremente.

         ‑ Olá, amigo, bons dias; acordaste tarde!... Pensaste que nos vinhas tirar da cama!?... O colchão de sumaúma é melhor despertador que tu.

         ‑ Este é o nosso relógio, meninos; não falha! Os outros podem adiantar ou atrasar. Ao romper da alva dão sinal como um clarim; ao meio‑dia e à meia‑noite, lá está ele batendo as asas e dando conta das horas.

         ‑ Quando ele canta a primeira vez é que me ergo ‑ disse um velho. ‑ Toda a vida assim foi e nunca tive outro relógio. São fiéis amigos.

         ‑ Meninos, a manhã vai alta!... Era bom fazerem as despedidas...

         ‑ Tens razão, Gabriel!... É forçoso partir.

Distribuíram o que puderam pelos serranos, que os abraçaram comovidos e saudosos. Corria uma aragem puríssima e vivificadora.

         ‑ Como a vida é bela!... ‑ exclamou Alvaro, de uma eminência aonde chegou primeiro.

         ‑ E como são saborosas as sopas de leite neste deserto!

         ‑ Quando não há cuidados, meninos - observou Gabriel sentencioso ‑ não há nada feio, nem mal saboroso.

         ‑ Passa‑se perfeitamente sem comer, quando a paisagem é linda e se tem ao lado a mulher amada.

         ‑Ai, ai, ai!... Em que estado ele está! Já lá vai o tempo do teu amor e uma cabana. O romantismo passou à história. O estômago reclama, furiosamente, os seus direitos!

         Continuavam sempre subindo. Nas baixas estendia‑se uma vegetação luxuriante. Tinham metido por atalhos. Gabriel seguia, a passo, pela estrada com os animais. Os rapazes improvisaram alto‑falantes com tubos de papel e gritavam a plenos pulmões: "ó Gabriel!..." O velho criado não dava sinal de ouvir; continuava a passo, cavaqueando com os guias. A distância era grande e o vento levava a voz em sentido contrário.

         ‑ Ele não se perde; melhor se vem de carro do que a pé.

         ‑ Reboquemos as nossas companheiras! Todos de braço dado.

         - Ora! ‑ protestou Júlia. - Quem fala aqui em fadiga?!... Vamos tão bem assim...

Os rapazes insistiram. Alvaro precipitou‑se

a oferecer o braço à Amélia, a filha mais velha do Dr. Albuquerque; Carlos a Berta; Luís ficou indeciso.

         ‑ Despacha‑te, tolo; tu és o par de Júlia. A Raquel, o porta‑bandeira...

         ‑ Não, não; Luís é o guia; nós vamos bem as duas.

         Luís protestava:

         ‑ Reclamo os meus direitos.

         ‑ Então vá com a Raquel ou com a Marta; eu servirei de arauto!

         ‑Não pode ser!...

         Luís encaminhou‑se para Júlia, decidido.

                   Não queres dar‑me o braço? Júlia corou intensamente.

         ‑Dá‑lhe antes a mão!... É o que ele quer ‑ gritou Alvaro. ‑ Não hesites, que fica bem entregue!

         A órfã não pode esquivar‑se. Sentiu‑se presa pelo afecto forte do amigo. Uma doce pressão levava‑a, arrastava‑a, como se força misteriosa a impelisse para o futuro. Tremia, num nervosismo que não podia explicar. Luís sentia esse estremecimento e mais a cingia.

         ‑ Meu amor! ‑ bichanava‑lhe no momento azado. ‑ Não tens confiança em mim?

‑ Luís, se é meu amigo, não me diga nada.

Deixe‑me viver tranquila!... Bem vê que tenho de seguir o meu destino.

         ‑O teu destino é o meu!... Ninguém me separará de ti, aconteça o que acontecer!... Só a morte!... Tens de estudar? Que importa? Não será mais agradável teres a certeza que, longe ou perto, terás quem te espere, de braços abertos, para seguir contigo, oferecendo‑te a vida, o nome, o seu trabalho, tudo quanto possuir?

         ‑Luís... Como é bom e generoso!... Creia que nunca esquecerei o seu gesto!... A nossa situação, porém, é tão diferente! Amanhã pode mudar de sentir... E eu, meu amigo, não mudo nunca!... O que penso fazer, faço‑o. Domino‑me absolutamente!... A minha energia, a minha força de vontade, são escravas do meu querer e desejava continuar assim.

         ‑ Decididamente não gostas de mim?!...

         ‑ Não me obrigue a confessar o que desejaria esconder de todos.

         ‑ Meu bem! Adoro‑te!... Deixa a vida por minha conta... Serei médico; especializo‑me. Tu serás médica, também. Os nossos consultórios ficarão juntos: tu tratarás as senhoras, eu os homens!... Depois, compramos uma linda casita!... Estou já a vê‑la, toda envolvida em trepadeiras... Um grande jardim à frente... Um cão' da serra a guardar a porta.

         Júlia escutava‑o enlevada, e, chegando a esquecer‑se, por momentos, que tudo aquilo eram sonhos, concluiu num arroubamento:

         ‑ E muitas pombas... Gosto tanto de aves...

         - Tudo que tu quiseres... A felicidade há‑de instalar‑se connosco!... Como será agradável o nosso lar e como será bom viver junto de tão doce companheira!

         Júlia estremeceu violentamente, como se enxergasse na sua frente uma visão horrenda.

         ‑ Que foi? Que viste?

         ‑ A realidade, meu amigo; esse monstro que me apavora e que me tem perseguido sempre!... Tenho medo... Não faça projectos... Lembre‑se que a desventura anda atrás de mim e não consigo desembaraçar‑me dela...

         ‑ Não sejas infantil. Nada neste mundo é eterno... Tudo cansa e tudo passa!... Há muito que o ambiente em que lidas se transformou para ti... Serás feliz; pressinto-o, adivinho‑o!...

         ‑ Não tente iludir‑me...         Não queira amarrar o seu destino ao meu, pois sei que lhe levaria a desgraça!...

         ‑ Que trágicos pressentimentos!... Mas desde já te previno, para teu governo, que não gastes discursos para me fazeres mudar de Opinião!... É tudo inútil.

         Tinham‑se distanciado um pouco... Carlos e Berta, em grande idílio, eram os que iam mais perto. Compreenderam que Luís se declarara e queriam proporcionar-lhe o ensejo para prolongarem aqueles momentos de felicidade. Júlia adivinhava as intenções de Berta. Estava profundamente grata a todos, mas sentia que não devia aceitar o amor de Luís.

         Alvaro, mais uma vez, incitou os companheiros. Era preciso acelerar a marcha, de contrário não chegavam ao sítio combinado.

         ‑ É necessário não abusar, para outra vez nos deixarem vir sós. E vocês sabem como é bom andar à solta!...

         Todos estugaram o passo, o que era fácil quando os caminhos de cabras o permitiam. Os desfiladeiros eram, porém, frequentes, os córregos dificultavam a passagem. Depois, a cada instante, se detinham. Era um pássaro que cortava o espaço, um outro que cantava; uma abelha que zumbia, uma flor que espreitava. Mocidades ardentes, alegres e despreocupadas, não temiam a noite que viria surpreendê‑los, desta vez sem povoado perto, nem provisões.

         Gabriel, sempre previdente, não os perdia de vista. A certa altura apareceu para lhes fornecer uma boa refeição; depois abalou, recomendando:

         ‑ Agora, meninos, só nos veremos lá no alto da serra.

         - Olha lá, isto é um passeio, ou uma marcha forçada? Queres que corramos tanto como os burros?

         ‑ Bem, bem; sempre deixo um .1.... Não topam alma viva senão lá em riba... Para aqui não há residências para os meninos fazerem pouco delas!

         E numa última advertência:

         ‑ O Alvarinho dirige o rancho.

         ‑ Não te dê cuidado; lá estaremos antes do sol‑nado.

         ‑ Vejam lá o que fazem!... O paizinho não é para graças; fazia‑me voltar por aí abaixo, e os animais não aguentavam essa estopada...

         ‑ Descansa, que evitaremos todos os trabalhos a ti e aos machos, a tua maior preocupação.

         ‑ Adeus, adeus, boa viagem; verás como somos capazes de chegar primeiro que tu.

‑ Deus o oiça... ‑ e desapareceu na curva do camínho.

         A caravana prosseguiu alegremente.

         ‑ Devemos chegar cedo lá acima, e que bem nos vai saber, perto do céu, a hospitalidade que nos espera.

         ‑ Vão fazer‑nos festiva recepção.

         ‑ E que deliciosas camas!

         ‑ O conde da Rosa possui, no cume da serra, uma habitação principesca.

         ‑ Vamos passar uns dias esplêndidos, pois o que eles querem são visitas.

         ‑ ó Berta, eu tenho vergonha de ir para casa desses senhores. Não conheço ....... Que hão‑de dizer?!...

         ‑ Ficam radiantes e ainda muito obrigados. Tu pertences à categoria dos que conquistam o público à primeira vista.

         - não queira enfileirar no número daqueles que toda a vida têm feito troça de mim.

         ‑ Que monomania de perseguição! Já não me parece virtude tanta modéstia.

         Parando aqui e além, tagarelando constantemente, chegaram ao ponto mais elevado da Estrela. O horizonte era vastíssimo. Divisavam‑se as serranias de Espanha, e uma orlazinha prateada, lá muito ao longe, dizia o guia que era o mar. Quedaram‑se estáticos!

‑ Como isto é imponente e como eu compreendo, agora, que venha tanta gente aqui procurar a saúde e a vida.

 

A vivenda dos condes da Rosa não era longe. Tinham construído um palacete admirável, onde conseguiram curar os filhos, condenados, desde meninos, a uma morte prematura provocada pela mais nefasta das doenças. Ali se aclimataram todos: os filhos, contentes por terem recuperado a saúde perdida; os pais, receosos de verem voltar o mal que tanto os atormentara.

         Era uma moradia esplêndida, à antiga portuguesa, com todo o conforto moderno. Uma enorme galeria, ao nascente, dominava uma vastidão imensa, abrangendo o máximo de horizonte. Naquele ermo, tal aparato parecia um conto de fadas.

         O Lencastre, o médico, D. Helena e

  1. Ana, já tinham chegado há muito, e a gente moça era esperada ansiosamente. Estavam com grande receio que as raparigas não vencessem a caminhada extenuante por sendas bravias.

         ‑ Isso foi uma prova de resistência e não um passeio de divertimento ‑ disse o sábio ao ver chegar os excursionistas.

         ‑ Vimos frescos como se dormíssemos em colchões de penas!... Faz bem este exercício.

         ‑ Mas não exagerado...

         Depois das expansões alegres da chegada, foi servida uma óptima refeição que, pelo contraste com a falta de comodidades da viagem, teve, para eles, um sabor muito especial.

         Em seguida passaram à sala de música. Nada faltava naquela admirável instalação. Um dos filhos do conde era um pianista exímio; os outros, todos mais ou menos artistas, e assim improvisaram, rapidamente, um concerto.

         Marta possuía uma voz excelente, mas dificilmente se fazia ouvir. Insistências, pedidos, a delicadeza dos donos da casa, tudo concorreu para ceder. Foi um delírio! O filho do conde acompanhou‑a com rara mestria. Houve estrondosas ovações.

         - É um portento!...

         ‑ Não me envaideçam a rapariga; é capaz de se julgar uma celebridade e essas ilusões trazem graves desgostos e amargos desenganos.

         Durou até altas horas o serão. Cada um mostrou as suas habilidades. Recolheram tarde aos respectivos aposentos e dormiram profundamente.

         Só Júlia, preocupadíssima, não conseguiu conciliar o sono. O que se passara nos últimos

dois dias era de grave importância para ela.

Não podia negar que sentia uma inclinação irresistível por Luís; mas a razão, o bom senso, mandavam‑na acautelar. Recebida no seio de uma família nobre, rica e, mais ainda, de uma dinastia de intelectuais, não era bonito introduzir‑se nela, desgostando‑a, porque não há ninguém que aprecie ver casar os filhos pobremente.

         Pela cabeça esvoaçava‑lhe, mais uma vez, a tragédia da sua vida! Se o pai fosse vivo!... Era um médico inteligente... Tinha a sua posição, e a filha um amparo, uma situação!... Assim...

         Arrependia‑se, mais uma vez, de ter aceitado o convite de Berta. Via‑se num papel antipático, que lhe repugnava.. Não; não podia ser; resistiria a tudo!

         Pela manhã, quando Berta despertou, notou que a amiga estava abatida; era evidente que dormira mal!...

         ‑ Já acordaste há muito?

         ‑Já.

         ‑ Querem ver que estás com saudades das rabugices da D. Justina?

‑ Oh! Berta, deves compreender que têm sido estes os dias mais felizes da minha vida... Os únicos em que o meu espírito conseguiu desanuviar‑se, esquecer a triste situação em que estou! No meio de tanto bem‑estar, tenho, porém, receio de me habituar à felicidade; ou por outra, de sentir mais intensamente a desdita quando sair deste agradável ambiente...

         ‑ Podes voltar quando te apetecer... Todos te querem muito!...

         ‑ Não, não! Não devia ter vindo.

         ‑ Deixa‑te de filosofias sem pés nem cabeça e vamos passear...

         O pequeno‑almoço foi servido na galeria envidraçada... Todos conversavam animadamente quando as duas amigas chegaram.

         ‑ Ora vivam as retardatárias!

         ‑ Não julgávamos que fossem tão madrugadores...

         Júlia debruçou‑se na varanda; o quadro era surpreendente: um mar encapelado, só de espumas, agitava‑se em convulsões gigantescas. Ia até ao recorte azulado das montanhas longínquas, que se erguiam alterosas, como se quisessem banhar o céu.

         ‑ Isto é fantástico! ‑ exclamou o matemático, fixando o espectáculo que tinha na frente, maravilhado.

- Nós já não damos por estes fenómenos que a serra oferece com frequência, e que são, de facto, qualquer coisa de impressionante pela beleza e grandiosidade. Tudo isto, com o hábito, nos parece banal, sem motivo para exclamações!... Como estamos longe do oceano, as nuvens querem dar‑nos a ilusão de uma praia... bizarra. O mundo,visto desta altura e deste mirante ‑ disse o conde sorrindo ‑, é totalmente diferente.

         ‑ Estás magnifficamente instalado, amigo; quem me dera poder passar a existência nesta linda barca!

         ‑ Não sei se ela nos levará a porto de salvação.

         ‑ Invejo‑te a calma que gozas, aqui, longe dos homens.

         E das mulheres! - concluiu o conde.

         ‑ Sim, do género humano, sem distinção de sexos; os animais da criação mais insuportáveis e antipáticos que a natureza engendrou.

         ‑ Nada de exageros!... Se te privassem do convívio desses animais que acusas de ferocidade... ardia Tróia!... Adeus, encantos da serra, mar de nuvens, silêncios estáticos, poentes de oiro! Não poderias passar sem o convívio espiritual de todos os dias, sem as afrontas que te ferem e fazem parte, afinal, do teu eu, para te desforrares, para dares largas a essa verve opulenta e desdobrares a tua pujante inteligência em rajadas de talento...

         ‑ Que juízo fazes de mim?...

         ‑ O mais certo que se pode fazer!... Bem vês que isto é infinitamente melancólico. Eu sou, mais ou menos, um misantropo; pois, apesar disso, quando os rapazes abalam para Coimbra, sinto uma nostalgia invencível! Parece que a vida pára em volta de nós!... Ah! nessa altura é que te queria ver aqui...

         ‑ Como se eu não soubesse o que é campo e serra!... Esqueces‑te que nasci na aldeia.

         ‑ E que vens, uma vez no ano, matar saudades, no tempo da boa fruta, dos dias luminosos, das manhãs esplêndidas!... Não, meu amigo; quando a chuva canta dias e noites consecutivas, quando o vento assobia, enfiando, atrevidamente, pelas frinchas e a neve cai, é que eu avaliaria a tua coragem. Nessa ocasião perdes‑te pelos labirintos dos teatros, pelas recepções, jantares e bailes...

         ‑Ah!Ah!Ah!... Bem se vê que ignoras a vida patriarcal que levamos no velho Porto. Naquela casa trabalha‑se, estuda‑se, para se conseguir vencer!... Não reparas que a minha rapaziada frequenta escolas, que o pai não pede nem quer favores dos mestres, e que eles têm de passar! Porque não quero raposas em casa... Não tenho lugar para instalações zoológicas. Exijo altas classificações, e essas, amigo, para se conseguirem, demandam uma enorme canseira!... Felizmente não há cábulas na minha casa!... E eu dou o exemplo trabalhando arduamente todo o dia e grande parte da noite... Quem nos dera a nós todos este dolce farniente...

         - Pensas que sou um preguiçoso?

         ‑ ... Comes, dormes, lês as últimas obras de sensação, ouves boa música, compões, de vez em quando, um trechozinho magnífico, ou alguns sonetos admiráveis!... Já não é pouco. Mas tens de concordar que é o paraíso viver em contacto com a natureza, longe do rebuliço enervante dos grandes centros.

         ‑ Queres trocar?

         - De bom grado!... Nem tu calculas como eu adoro esta simplicidade campestre...

         ‑ O doutor, não se iluda ‑ interveio a condessa. ‑ Esta simplicidade campesina é cheia de complicações. É difícil a vida aqui, especialmente para as donas de casa. Os que habitam nas cidades nem presumem os trabalhos que nós passamos por cá, sem a compensação do mais pequeno divertimento.

         Nesta altura a gente moça tinha improvisado um bailarico. Havia bastantes pares; pelo menos os suficientes para uma grande animação. O grupo entendia‑se às mil maravilhas. Esqueceram a paisagem, o mar de nuvens, todos os motivos por que se encontravam ali e pensaram em distrair‑se.

         Os pais conversavam revendo‑se nos filhos.

         ‑ Esta pequena quem é? ‑ perguntou a condessa.

         ‑ A amiga íntima da Berta; filha de um médico que morreu novo deixando‑a sem meios ‑ respondeu D. Helena. ‑ Um amigo de infância desse médico, padrinho dela, mandou‑a para um dos melhores colégios do Porto; foi lá que Berta a conheceu. Entrou em boa hora!... A rapariga é inteligente; tem feito um sucesso! ....... Sabes como a tratam no colégio e no liceu?

         ‑ Não faço ideia nenhuma ‑ respondeu a condessa.

         ‑Pela Ursa!

         ‑ Ursa?!... Que coisa tão fora de propósito!... A rapariga é linda.

         ‑ Não é pela fealdade, é pela inteligência! Não podes calcular o que ela tem feito... Sempre altas classificações. No liceu já todos os examinadores a conhecem.

         ‑ É curioso!... E sem ter o amparo moral de ninguém?

         ‑ Pelo contrário; perseguida, sempre, por mil invejas. Dá honra ao colégio, e, para se dizer a verdade, a directora não sente por ela a devida estima. Tem lá muitas pequenas ricas e, como é natural, preferia que as melhores classificações fossem para essas.

         ‑ Simpatizei logo com ela; mas agora estou encantada. Gostaria de a obsquiar!... Ela levará a mal se eu lhe der um presente?

         ‑ Não sei!... Tem sido tão vexada, sempre! No colégio, como não tinham mais de que a arguissem, atiravam‑lhe com a pobreza, para a amesquinhar... A rapariga traz no ouvido essa palavra como se fosse vergonha não ter nada. Por isso luta desesperadamente... Em todo o caso, parece‑me fácil dares‑lhe o que quiseres, sem a melindrares. Dizes‑lhe que tiveste imenso gosto em a conhecer e que desejas que ela se lembre de ti. Ora, como aqui não tens possibilidade de lhe comprar uma recordação, pedes‑lhe para aceitar o que quiseres oferecer‑lhe.

         ‑ Excelente ideia; meto‑lhe um dinheirito num sobrescrito...

         ‑ E o jeito que ele lhe pode fazer!... A pobre rapariga não tem um centavo.

         ‑ Há gente muito infeliz! Se os nossos filhos soubessem as privações que os outros passam!

         ‑ Mas vê tu como o destino atende á lei das compensações. Em parte alguma se torna pesada!... Até as próprias criadas a estimam. Geralmente, os servos têm também as suas simpatias pelos hóspedes da casa. Pois esta pobrezinha, que não pode dar cinco réis de gorjeta, é adorada. Quando Berta vem do colégio aos sábados, todas lhe perguntam:

"Então não trouxe a Julinha?" E para se conseguir que ela venha um domingo, são precisos altos empenhos e a directora impor‑lhe que vá. Tem um receio de incomodar e aborrecer!...

         - Parece‑me que não consegue nem uma nem outra coisa. É muito simpática.

         ‑ As minhas filhas fazem todo o possível por lhe tirar da cabeça as ideias obcecantes que a torturam, e, às vezes, conseguem levantar‑lhe o espírito e fazê‑la rir! De repente, porém, torna‑se sisuda, como se uma grande dor a amargurasse e não é possível alegrá‑la mais!... Quando a vejo assim oprimida, chamo‑a para me ajudar, só para a distrair, para a preocupar com algum trabalho material.

         ‑ Pobre criança!... Crê que, se quisesse vir passar algum tempo connosco, tinha, com isso, o maior prazer.

         ‑ Não seria fácil!... Tem horror a sair.

 

         A festa prolongou‑se, pois os filhos dos condes não se conformavam com a partida dos amigos. Tinham que ficar mais uns dias. Dariam grandes passeios, voltando à noite, para animar os serões, de ordinário tão solitários. Teriam assim um parênteses, delicioso, na rotina de todos os dias.

         Só seis dias depois consentiram em deixá‑los abalar... A condessa disse a Júlia:

         ‑ Sabes que tens em mim uma grande amiga?

         ‑ ó senhora condessa, quanto lhe devo! Creia que estava envergonhada por aceitar a hospitalidade de V.!...... Só, sem família, como poderei eu, alguma vez, retribuir tantas atenções?

         ‑ Os agradecidos somos nós!... Tanto e tão espontaneamente simpatizei contigo que, como vês, trato‑te como às filhas dos meus velhos amigos. Queria, porém, demonstrar‑to oferecendo‑te uma recordação; mas aqui não é fácil!... Se não levasses a mal, incumbia‑te dessa missão. Vais tu fazer‑me o favor de me comprar o que desejo oferecer‑te.

         ‑ Senhora condessa!... ‑ disse, com os olhos marejados de lágrimas. ‑ Não aceitar as dádivas dos bons é orgulho e eu não o tenho!... Beijo‑lhe as mãos, pedindo a Deus a felicidade de todos desta casa. Oxalá possa, um dia, mostrar‑lhe o meu sincero reconhecimento.

A condessa entregou‑lhe, delicadamente, um sobrescrito. Quando partiram, a órfã não soube esconder a comoção.

         Resolveram ir todos de carro. Os condes insistiram para que voltassem, ainda, uns dias naquele Verão... A serra estava linda... Iriam buscá‑los, se se resolvessem. Houve promessas formais. Não faltariam, mas primeiro era indispensável os condes irem ao Mosteiro.

 

Na quinta dos Lencastres, começava a faina das colheitas. As vindimas estavam à porta. Não podiam distrair‑se um momento!

O Dr. Lencastre era, além de matemático célebre, um notável agricultor. As suas vinhas, conhecidas e visitadas como escola a seguir; os vinhos do Mosteiro, afamados pelo fabrico especial. Os compradores preferiam‑no a todos.

         O pai Lencastre queria que os filhos estivessem a par de tudo, que não fossem uns inúteis, que soubessem dirigir a sua importante casa quando ele faltasse. De dia, pois, labutavam em coisas práticas; à noite, divertiam‑se... Faziam música e dançavam. Geralmente, a família do médico não faltava a estes serões íntimos tão animados, tão agradáveis. Os pais jogavam o bridge.

         Vinha também o Vigário, tão amigo, tão dedicado, adorando os filhos do fidalgo. Baptizara‑os a todos. O matemático tinha tido o capricho de dar o baptismo aos filhos na mesma pia em que ele e os seus antepassados o tinham também recebido. Ele, com ideias nitidamente avançadas, era, nisso, um conservador ferrenho.

         As férias fugiram por encanto! Júlia, preocupadíssima, evitava Luís a todo o transe. Ele, cada vez mais apaixonado, não perdia o ensejo de lhe mostrar a sua grande afeição. Em casa já todos tinham notado aquela ternura.

         Ao próprio Lencastre não passara despercebida. Intimamente estava radiante, mas não se manifestava. O filho era um criançola, podia mudar de ideias e ele nunca se conformaria se a pobre órfã, tão nova e já tão experimentada pela sorte, viesse a sua casa para ter mais uma decepção. Deixaria, portanto, correr aquela paixão sem a apoiar nem contrariar. Em todo o caso, faria constar ao filho, por intermédio de Berta, que não admitia brincadeiras com quem lhe merecia a maior consideração.

         Júlia conquistara a admiração e a amizade

de todos. Era respeitada como uma pessoa de certa idade. às vezes o pai Lencastre falava com a mulher a este respeito e dizia‑lhe:

         ‑ Realmente esta pequena tem muito merecimento!... Como ela se conduz!... Quem orientou esta criança? A D. Justina não podia incutir‑lhe tanta sensatez, este equilíbrio raro e que surpreende...

         ‑ Vendo como o Luís lhe quer, se é que ele lho não disse já, foge, evita‑o de uma forma tão natural e delicada, que muitas vezes me faz rir.

         - Ela tem razão! Para que servia prender‑se nesta altura? Um e outro precisam de estudar!... Sabes se ele se declarou?

         - Não sei; mas seria extemporâneo!... Um homem sem posição não passa de um estorvo na vida de uma mulher...

         - Queres dizer que só valemos pelo que temos ou ganhamos?

         ‑ Se o homem constitui família, multiplica as dificuldades, não levando nada para o casal! Uma mulher só, vive com pouco; um homem não é a mesma coisa!... Não sabe limitar‑se e além disso o seu organismo é mais exigente...

         ‑ Que mania vocês têm de nos apoucar uma onda de feminismo doentia e dominante!... Assusta‑me esta conspiração universal!

         - Não receies ‑ respondeu, no mesmo tom gracejador ‑. Não podem nunca as mulheres ser inimigas dos homens, nem eles delas!

 

Nos primeiros dias de Outubro a família Lencastre, com grande pesar da mocidade, partiu para o Porto. Júlia ia saudosa dessa temporada esplêndida, a melhor da sua vida. Intimamente, desejava não ter vindo! Sentia uma forte inclinação por Luis e impusera a si mesma esquecê‑lo.

         Depois de tantos passeios e divertimentos, o colégio ia parecer‑lhe uma prisão!... Preferia, pois, não ter visto como se vive bem nos lares em que a família se quer bem, onde há abundância e saúde! Havia, porém, de resistir heroicamente!

         Esteve ainda dois dias em casa de Berta. O sobrescrito que a condessa da Rosa lhe oferecera continha duzentos escudos!... Era uma riqueza; nunca tinha visto tanto dinheiro junto.

‑ Então não compras uma recordação, como a condessa te pediu?

         ‑ Acho preferível guardar este dinheiro para qualquer necessidade urgente!... O padrinho dá‑me tudo... mas compreendo bem que lhe sou pesada!... O meu desejo era aliviá‑lo!... Se um dia ganho dinheiro!... Que desforra!... Sei que se priva do que mais aprecia, dos seus mais íntimos prazeres, como são os livros, para me comprar sapatos e, enfim, todos os trapos indispensáveis. às vezes olho para mim e abomino‑me. Sou um empecilho para todos!... Vim em má hora ao mundo!

         ‑ Não blasfemes!... Deus pode castigar‑te. Tenho a certeza de que vais ser feliz na vida. Se queres que te fale com franqueza, já o és. Tens inteligência e venceste em toda a linha. Não há ninguém que te não estime!... Onde apareces, és adorada. Que mais queres? Chegas a parecer‑me um fenómeno raro

Olha que nem todos se gabam de semelhante triunfo.

         ‑ Tudo por tua causa!... E a tua amizade, a tua influência, a tua obra, que tem conseguido que todos me tolerem...

         ‑ Essa é de primeira ordem!... Então os gostos obedecem a imposições de alguém?

         ‑Certamente... e tu não o ignoras. Sabes perfeitamente o que sofri, o que me vexaram as informações da D. Justina. Para ela não tinha, e creio que não tenho ainda, outra qualidade que a de ser pobre, órfã e sem família. Bem sei que são verdades, mas que vantagem havia em as propalar?

         ‑ Pelo menos uma: a de atrair a atenção de todos para ti. Muitos te estimaram mais por essa série trágica de circunstâncias. Se alguns, por esse facto, te desprezaram, tiveste, pelo menos, o proveito de ficares sabendo com quem podias contar. Não te deixaram ilusões. Dividiram‑se os partidos; puseste de parte uns e aproximaste‑te de outros!... Ficaram os campos bem definidos.

         ‑ Não me convences!... Sei quanto te devo; não posso retribuir‑te senão com muita dedicação e amizade.

 

Dois dias depois, Berta e a mãe foram acompanhar Júlia ao colégio. D. Helena quis ir, para mostrar à directora a consideração que a pequena lhe merecia.

  1. Justina, que sabia cativar quando queria, recebeu‑as com enternecedora cordialidade. Júlia, com a gravidade do costume, contou quanto lhe tinham feito; o bastante para deixar na sua alma uma gratidão sem limites. Não sabia como agradecer... D. Helena, por seu turno, expôs como todos tinham ficado encantados.

         ‑ Parece mal dizê‑lo na frente dela, mas esta aluna, sob todos os pontos de vista, dá honra a quem a educa. O porte de uma verdadeira senhora, onde quer que vá!... Não a envergonha.

  1. Justina envolveu‑a num olhar profundo, daqueles que ela usava quando queria sondar os pensamentos alheios.

         ‑ Quanto estimo que V. Exa. se não fatigasse com esta hóspede...

         ‑ De modo algum; desejaríamos até tê‑la sempre connosco!... A todos deixou profundas saudades.

         ‑ Ainda bem ‑ disse, passando‑lhe a mão viril pelos cabelos, numa carícia dura que mais parecia uma agressão.

         Júlia sorriu.

         ‑ Foram todos tão bons para mim...

         ‑ Não exageres! ‑ disse D. Helena, já de pé. ‑ Esperamos ter, sempre que a Sra. D. Justina der licença, a tua agradável companhia.

         E, depois, para a directora:

         ‑ Minha senhora, quis vir fazer‑lhe entrega da sua discípula, simplesmente para a felicitar. Se continuar assim, estou convencida que irá longe!... É a minha opinião e a do Joaquim, que foi sempre atilado psicólogo.

         Despediu‑se. As duas raparigas abraçaram‑se.

         ‑ No dia quinze, cá te esperamos, Berta. É a abertura oficial do colégio.

         ‑ Conto não faltar, Sra. D. Justina. .

         Depois das amigas saírem, Júlia contou à directora a forma como tinha sido obsequiada. Claro que ocultou o que mais profundamente a tinha impressionado, a declaração de Luís. No intimo estava resolvida a nunca mais aceitar convites de Berta. Para que sujeitar‑se a um aborrecimento, a uma contrariedade, se estava certa que a inclinação de Luís seria mal vista por todos?

 

Entregou‑se com o maior afã ao trabalho. Era um ardor, um entusiasmo que surpreendia. Quando as aulas abriram, já ela tinha manuseado os compêndios com enorme atenção, de forma a facilitar‑lhe o estudo e não perder a sua posição de ursa. Era agora um capricho e a forma de se vingar de tantas arrelias que as companheiras lhe tinham causado.

Uma bela manhã, tinham já começado as aulas, D. Joaquina entrou com aquele ar prazenteiro que nela era indício de boa nova. Depois de cumprimentar o Teles, disse‑lhe sorridente:

         ‑ Temos grande novidade! - e agitava um sobrescrito de formato grande.

         O mestre olhava‑a intrigado.

         - Correspondência para a menina Júlia de Almeida.

         A órfã ergueu os olhos surpreendida e corou intensamente. Quem poderia escrever‑lhe?!... Não conhecia ninguém...

         - Alguma surpresa - disse o Teles, sorrindo satisfeito, sem ainda adivinhar de que se tratava.

         - E não é pequena. O Sr. Reitor do Liceu convida a aluna Júlia de Almeida a comparecer naquele estabelecimento no dia trinta. Certamente não é para a brindar com uma raposa...

         Deve ser a escolhida para o prémio Magalhães.

         Júlia, sufocada por essa ideia, exclamou, sem se poder conter:

         ‑ Não é possível!

         ‑ O que é não se sabe!... Em todo o caso, venho pedir ao Sr. Teles para ir nesse dia. Levarei todas as alunas.

- Com imenso gosto, minha senhora. Não falto!

         Júlia andava preocupadissima. Que seria? Não podia acreditar que fosse para ela o prémio. Tinha tão pouca sorte!

 

         O dia trinta era feriado. O liceu regurgitava. Havia um prémio grande para a estudante mais distinta, para a que tivesse obtido maiores classificações; outros, mais pequenos, para as que não tivessem tantos valores, mas ainda distintas.

         Nos jornais do dia a notícia dessa distribuição de prémios flamejava, ao alto das páginas, como um estandarte de glória. As que tinham tido convites andavam no ar. Mas a grande incógnita subsistia: a quem caberia a taluda? Para a maior parte, porém, não havia dúvidas. Era público e notório que as mais altas classificações tinham sido para a Ursa.

         Apesar disso, todas esperavam. Júlia era a única que não acreditava na possibilidade de ter um prémio. Contava com as injustiças dos homens, sempre tendentes a proteger os ricos, a deixarem‑se vencer pelo empenho.

         Foi para o liceu com a mesma serenidade com que ia para os exames. Quando apareceu na forma, com o colégio, todos a fixaram. Era suficientemente conhecida para passar despercebida áquele público escolar.

         - O prémio gordo vai para a D. Justina. Lá está a Ursa!

         Os rapazes, mais ou menos ciosos daquele

triunfo feminino, andavam indignados.

         - Que tal está a cachopa?!... Alambaza‑se com os prémios e nós ficamos a ver navios. Devíamos fazer greve!

         Os comentários, em voz alta, não deixavam dúvidas a ninguém sobre a pessoa de quem se tratava. As raparigas tinham um riso amarelo de inveja mal disfarçada e muitas mães estavam furiosas.

         Os prémios deviam ser para todas. Era mal feito... Ficavam as crianças descontentes... Até podiam adoecer!

         A sala das sessões onde ia realizar‑se a cerimónia estava ainda fechada. Passavam, rapidamente, vultos de categoria; senhoras da alta sociedade, enfim uma assistência elegante, rica e escolhida, para dar imponência ao acto.

         A sala abriu‑se e o continuo, à porta, recebeu os cartões dos que iam entrando. O recinto estava lindamente ornamentado com flores e plantas. A grande mesa da presidência, coberta de rosas. Em volta, os lugares para as que iam ser contempladas. O corpo docente do liceu compareceu também. Directoras dos colégios e educandas, com os seus melhores fatos. Júlia ficou um pouco embaraçada quando a chamaram para ir ocupar o lugar que lhe competia.

         Organizou‑se a mesa. O reitor presidia; abriu a sessão. Deu a palavra a um dos professores mais categorizados, que disse a razão daquela festa, em que se pretendia estimular a mulher portuguesa a instruir‑se, a bastar‑se a si mesma. O primeiro prémio era destinado à que obtivera mais altas classificações. Outras, porém, seriam brindadas por se haverem distinguido também. Tinha uma grande satisfação em fazer o elogio de uma aluna que conseguira erguer‑se muito acima do que se pode esperar, sobressaindo entre todos os estudantes de ambos os sexos.

         Ninguém sabia o nome que os lábios do douto mestre proferiria, e este, depois de correr com a vista o grupo das que iam ser premiadas, fixou Júlia...

         ‑ Essa menina, a quem tenho a maior honra e orgulho de me dirigir, é Júlia de Almeida.

         Houve um murmúrio geral. A órfã ficou rubra ao sentir‑se alvo de todos os olhares. Por um triz que não rompeu em lágrimas... O orador, porém, continuou fazendo o elogio de tão extraordinário caso. Para o ouvirem melhor, desviaram dela os olhos.

         - Que será o prémio? ‑ diziam baixo as mães, despeitadas.

         ‑ Quando Deus quer é alguma coroa de louros...

         ‑ A Ursa, hoje, rebenta de vaidade...

         ‑ Quem a há‑de aturar daqui para o futuro?

         ‑ Ela já pensa que traz o rei na barriga.

         ‑ O que eu quero é ver a prenda.

         - Alguma camisa!... Deve ter poucas, É uma pelintra.

         ‑ Talvez agora tire o ventre de misérias, com o prémio.

         O orador continuava fazendo a apologia de quem tinha tido a genial ideia de instituir um prémio que seria o maior incentivo para a mocidade. Era um gesto digno da gratidão de todos e especialmente daquele estabelecimento de ensino, o escolhido para honrosamente o inaugurar.

         ‑ É assim que se cultiva a inteligência e criam os grandes vultos. Menina Júlia, felicito‑a e desejo que continue, pela vida fora, com o mesmo êxito, a brilhar e a vencer, de forma a ser, sempre, a glória dos mestres e a honra das escolas onde preste provas.

Estrugiu uma ruidosa salva de palmas. Júlia não sabia o que havia de fazer; naquele momento preferia esconder‑se debaixo da mesa. Os prémios estavam sobre a secretária. O presidente chamou:

- Júlia de Almeida.

  1. Justina, nervosíssima, fazia‑lhe sinais para que se levantasse. Júlia não a podia ver. O assombro tolhia‑lhe os movimentos e prendia‑lhe a voz.

         Um professor que estava perto segredou‑lhe:

         ‑ Tem de ir junto da mesa. Júlia ergueu‑se e, nesse momento, espontaneamente, a sala vibrou de entusiasmo, aclamando‑a com sincera admiração. Quando atravessou, ouviu‑se:

         ‑ É linda!

         ‑ Há‑de ser uma mulher elegantíssima.

         E logo do lado:

         ‑ Então ela veio com um vestido de chita? Parece impossível!

         ‑ Com o prémio já pode arranjar fatiota.

         ‑ Não posso ver estas pobretonas a fazerem figura de gente!... Até parece mal.

         ‑ Os prémios deviam ser só para as ricas.

         ‑ Sou da mesma opinião... Vêm estas maltrapilhas figurar, sem mesmo terem um vestido em termos.

         ‑ Isto desacredita o liceu.

‑ Se fizéssemos uma representação ao reitor?

         Qual reitor?!... Ele está todo babadinho!... Ao ministro, ao ministro é que é. Isto é um abuso. De que serve uma pessoa ter dinheiro se as honrarias são para as outras?

         Júlia parou em frente da mesa da presidência. O reitor entregou‑lhe um embrulho artisticamente atado, apertou‑lhe a mão cordialmente e disse:

         - Continue, continue, que vai por bom caminho. Esta casa não podia deixar de se associar ao gesto nobilíssimo do Sr. Magalhães, e deseja também mostrar‑lhe quanto a aprecia.

         O secretário entregou‑lhe depois um sobrescrito e um lindo ramo de rosas.

         - É uma lembrança do corpo docente do liceu.

         Júlia estava comovidíssima. As lágrimas estavam a bailar‑lhe nos olhos; com um esforço enorme conteve‑as e apertou a mão do reitor, dizendo:

         ‑ Não tenho palavras com que exprima a V. Exa. o meu reconhecimento!... Deus lhe pague!

         Cortejou, graciosamente, e foi para o seu lugar. Era curioso observar a directora do colégio: o chapelinho pequenino poisado sobre os cabelos lisos, muito corada, sorria, mostrando os dentes aguçados e raros. As mãos ossudas agitavam‑se, nervosas, torcendo e retorcendo o cadeado da malinha de mão. Sentia‑se ufana daquele triunfo que, afinal, era obra sua...

         Preferia - não o podia negar a si mesma - que a detentora daqueles louros fosse uma rapariga da primeira sociedade, das que ela tanto se orgulhava de ter. Alguma daquelas cujos pais, em evidência, podiam dar grande retumbância ao caso. Mas como fazer girar para outro lado a roda da fortuna? Quem podia bater‑se com a órfã, naquela perseverança, naquela firmeza, naquela inteligência!...

         Claro que Júlia não era ninguém nem família tinha. Era protegida, apenas, por um médico hábil que estava fazendo carreira, graças, já, à influência da afilhada que tinha a magia de conquistar a simpatia de toda a gente. Fosse porém como fosse, o colégio estava sendo prestigiado por aquela rapariga que lutava, vencia e tinha habilidade de colher todos os louros.

         A cerimónia prosseguiu. As alunas mais classificadas receberam interessantes brindes, mas a "taluda" fora para a Ursa... O dinheiro era o menos; o que as impressionava era o que os jornais haviam de dizer no dia seguinte. Não se enganaram! A festa foi largamente relatada. Os repórteres aludiam à distinção da homenageada, à sua modéstia e beleza. Então é que o público feminino rabiou, dando por paus e por pedras!

         Júlia estava radiante, mas quando, em casa, abriu o embrulho e viu algumas peças de oiro, valiosíssimas, e um rolo, ao lado, contendo igual valor em notas, ficou atónita. Era como que o aviso para nunca se desfazer daquele prémio, daquela recordação.

         Precisava de dinheiro? Pois ele lá estava para poder gastar!... Delirou! Era uma fortuna. Conferenciou com a directora.

         ‑ Creio que devo dar esta importância ao padrinho.

  1. Justina sentiu, mais uma vez, a superioridade moral, a beleza daquela alma, o encanto da pupila do Dr. Roberto Esteves.

         Era certo que aquela rapariga dominava pelas suas acções, pelos seus gestos. Olhou‑a longamente e disse:

         ‑ A tua lembrança é linda!... Estou, porém, convencida que teu padrinho não aceita. Escreve‑lhe a pedir que venha cá.

         A visita do médico não se fez esperar.

  1. Justina recebeu‑o e contou‑lhe o que se passara.

         ‑ Esta pequena é um fenómeno, não lhe parece, minha senhora?

         - Sim; disto surge um exemplar em cada século, como a flor de lótus. Não lhe mostrei os jornais em que tanto se falava dela e todavia acho‑a superior a todas as vaidades deste mundo... A ideia de querer dar‑lhe o prémio e o dinheiro é que me espantou.

         Mandou chamar Júlia. A pequena veio numa corrida vertiginosa e atirou‑se aos braços do padrinho, rindo e chorando.

         - Padrinho, padrinho, chegou o momento de poder dar‑lhe um presente.

         - Mas que é isso?

         - A caixinha trazia um tesouro. É para si!

         ‑ Estás tolinha, Júlia? O que eu queria era ter muito para te dar!... E digo‑te mais: não consinto que mexas nesse dinheiro. Quando um dia fores médica e ganhares muito, talvez olhes com desdém essa quantia; hás‑de lembrar‑te, sempre, que foi o teu esforço que a obteve e que tens de venerar a memória do homem generoso que ta ofereceu. Essa recordação talvez abrande o mau conceito que fazes da humanidade.

         - Aceite‑o, padrinho; vai com ele a minha alma reconhecida. Foi o padrinho quem o mereceu com o seu nobre coração, educando‑me.

         ‑ Posso levar‑to para que não lhe toques. Terás a tua caderneta na Caixa Geral de Depósitos.

         ‑ Assim não quero!... Ao menos posso livrá‑lo, algum tempo, do peso de me vestir.

  1. Justina assistia à cena, enlevada.

         ‑ Que edificante exemplo!... Ah! se assim fossem todos, como o género humano seria feliz!

         ‑ Minha senhora, confesso‑lhe ter julgado que tanta urgência na minha visita era por indisposição da minha afilhada, motivada pela indigestão de elogios que alguns jornais lhe ministraram.

         E para a afilhada:

         ‑ Se soubesse do que se tratava, declaro‑te que não punha cá os péS!... Que tontinha me saíste!

         Deu‑lhe um grande beijo e concluiu:

         ‑ É uma grande consolação na vida topar com a gratidão, pois é bem difícil de encontrar essa dama.

         ‑ Padrinho, para que quero eu tanto dinheiro?

         ‑ É realmente uma fortuna!... Todavia devo dizer‑te que a tua lembrança me comove!... Que grande coração... Abençoada a hora em que me lembrei de te fazer estudar!

         E, depois de a abraçar novamente, o Dr. Roberto Esteves retirou‑se satisfeitíssimo.

 

Júlia prosseguiu na sua carreira triunfal. Não se estranhavam as distinções; tinham‑se como certas, esperavam‑se. De tanto se habituarem a elas, as invejosas transigiram.

         Os anos passaram rápidos. Júlia concluíra

o liceu e ia, finalmente, entrar nas escolas superiores. As despesas eram cada vez maiores; sentia que o padrinho estava demasiadamente sobrecarregado. Tinha pensado muito seriamente na sua situação. Era absolutamente preciso ganhar dinheiro.

         Um dia foi ter com a directora ao gabinete. Já não era a órfã, sempre esmagada, amarfanhada; era a rapariga desenvolta que toma uma resolução enérgica.

         ‑ Há muito que ando para falar com a Sra. D. Justina sobre um assunto que hoje resolvi abordar.

         ‑ Dirás, minha filha.

         A maneira de tratar a Ursa asperamente mudara por completo.

‑ A minha situação, em vez de melhorar, agrava‑se, e eu preciso absolutamente de ganhar dinheiro; não suporto este estado de coisas em que o padrinho tem de pagar tudo. Venho, portanto, propor o seguinte: se a D. Justina concordar, eu lecciono algumas matérias, aqui. Se não quiser, não levará a mal que procure alunas fora. Não posso ficar de braços cruzados, sentindo‑me válida e robusta.

         - Tens toda a razão; és sempre a mesma rapariga sensata!... Sim, poderás ter um bom ordenado nesta casa. Está vago o lugar do Sr. Gaspar; vais substitui‑lo. Tenho nisso o maior prazer.

O assunto ficou logo arrumado.

 

         Júlia estava já senhora das suas acções. Frequentava a Academia com o costumado brilho, respeitada e admirada por todos.

         Luís seguia no seu quinto ano com altíssimas classificações. A sua afeição não esmoreceu; pelo contrário, cada vez era mais viva. Sentia por ela uma admiração que não podia nem queria ocultar. Tinha a certeza de ser correspondido e isso dava‑lhe coragem para obter, em tudo, os melhores resultados.

         Viam‑se todos os dias. Luís não podia deixar de se fazer encontrado com a mulher que adorava e contava desposar logo que as circunstâncias o permitissem. Júlia, porém, nunca o animava.

         ‑ É preciso pensar, reflectir!... Repare que caminha às cegas para um beco sem saída. Creia que me desalenta a ideia de que me tomem por ingrata aqueles a quem quero como se fossem da minha família. Entendo, por isso mesmo, que deve haver, da minha parte, a nobreza bastante para lhes evitar a sensaboria de verem o filho casado com uma pessoa pobre como eu.

         - Júlia, não admito que me fales assim. A minha família considera‑te como tu vês e sabes. Que mais queres?

         - Nada, nada!... Nada mais desejo que a paz de sua casa e dos seus, e que o Luis, mais tarde, passados os ardores da mocidade, não se arrependa de ter feito um casamento desigual.

         ‑ Desigual em quê?

         ‑ Bem sabe como eu O estimo... mas não me iludo. Nunca consentirei em ser um pesado encargo para si. Tenho sido na vida um empecilho para todos. Um curso feito a expensas de uma alma generosa, com responsabilidades de família e que me tem aguentado heroicamente. Creia, Luis, que estou fatigada de ser fardo.

         ‑ Que delicioso fardo, meu amor!... Júlia... adoro‑te!

         Também eu lhe quero muito, e, porque assim é, desejo evitar‑lhe todos os aborrecimentos.

         ‑ Trabalharemos de mãos dadas. Tu já pensaste como será belo entendermo‑nos e marcharmos, serenamente, vida fora?

         ‑ Sim, creio que será o ideal, mas presumo também que esse ideal tombará, ruidosamente, quando não assente em bases sólidas. Sei‑o por experiência própria, e hoje tenho medo de tudo.

         ‑ Não sejas pessimista!... Todos te estimam, todos te admiram, todos têm os olhos postos em ti, deslumbrados. Tens seguido a tua carreira triunfalmente.

         ‑ Mas que luta!... O Luís não pensa nem avalia quanto me tem custado a vitória. Só Berta sabe quanto sofri! O mundo está ainda muito aquém do que se deseja, para se deixar uma mulher singrar, desembaraçadamente. Uns afastam‑nos, com certa delicadeza; outros empurram‑nos à valentona.

         ‑ Não tens razão de queixa! Os mestres no colégio e os examinadores, no liceu, tratavam‑te com enorme deferência.

‑ É necessário observar os bastidores.

         ‑ Bem sei; a Justina era a fera, mas até essa mesmo conseguiste amansar e figura, hoje, entre as tuas amigas dedicadas.

         ‑Amiga?!... Tolera‑me!... Sei a quem ela disse, com uma entoação que denunciava um certo pesar: a Júlia fez o liceu nesta casa e nunca me foi possível ralhar‑lhe. Isto é fortemente significativo. Intimamente estava danada por não ter tido oportunidade de descarregar a bílis sobre o meu dorso frágil.

         ‑ Tu eras o seu padrão de glória!

         ‑ Preferiria que os louros pertencessem a outra. A uma rica que pudesse obsequiá‑la, brindá‑la... Eu fui sempre a órfã...

‑E a Ursa.

         Júlia soltou uma gargalhada feliz.

         ‑ Parece‑me que vou ficar, toda a vida, com esse epíteto e sem proveito.

         ‑ Que mais desejas?

         ‑ Nada, nada; sinto‑me bem...

         ‑ Noto que não correspondes ao meu amor com o mesmo entusiasmo.

         ‑ Gostava que lesse claro na minha alma. Sou, como sabe, um cérebro, e é ele que determina todos os meus passos. Ao coração, quando fala, às vezes bem estouvadamente, faço‑o entrar na ordem. Domino-o!

- Com tantos pensamentos sérios, esqueces‑te que a verdadeira felicidade na vida consiste em duas almas se encontrarem e se identificarem.

         - Sabe também que o maior e mais terrível adversário desse delicioso estado de coisas é a miséria. Quando ela se instala junto de nós, cessa tudo quanto a antiga musa canta.

         - Queres saber o que trago na cabeça?

         Júlia interrogou com o olhar.

         - Logo que conclua o curso, vou para a áfrica.

         - Que ideia tétrica... Por que não se especializa? Montava o seu consultório e aqui, como em toda a parte, ganhará dinheiro...

         - Muito lentamente, e estou vendo que só queres ligar o teu destino ao meu, quando formos ricos.

         - Faz de mim uma triste ideia... Não sou ambiciosa...

         - Bem sei; mas tens sempre na mente a tragédia que ensombrou a tua mocidade; esse quadro que atormenta a tua existência, que teve tão larga repercussão nos teus dias e que queres, a todo o transe, evitar que volte à tua vista. Bem vês que não pode ser!... Os factos não se repetem em duas gerações sucessivas. Concordo que temos de tomar precauções, mas, para isso, preparar‑nos‑emos com fundo de previdência, que nos garanta o amanhã.

         - Não lhe parece cedo para pensarmos nisso?

         - Não; estou a terminar o curso e tenho de tomar um caminho.

         - Com as suas classificações, não podia seguir o professorado?

         - Isso é problemático...

         ‑ Não me parece!... Tem tudo a seu favor. Eu devo tudo ao padrinho e há tempo a esta parte que lhe noto uma grande diferença. Tem tido uma vida exaustiva e complicada!... Confesso‑lhe que ando apreensiva... Não poderei afastar‑me para longe. Depois a D. Justina, com aquele feitio bilioso, também me parece fortemente abalada.

         ‑Ora!... Todos hão‑de viver largos anos. Deixa‑te de ver nuvens negras, quando os dias estão transparentes e de um sol rútilo.

         Separaram‑se felizes, com um aperto de mão enternecedor, como sempre.

 

A situação de Júlia mudara. Não tinha de pagar a estadia no colégio, visto que os proventos excediam em muito a mensalidade. Recebia da casa ainda o bastante para as suas despesas.

         Sílvia Rebelo, amiga de Júlia, havia terminado, há muito, o curso; tinha montado consultório e estava lindamente instalada. Continuou com a sua velha amizade, protegendo‑a, amparando‑a, sem que ela o sentisse. Arranjou‑lhe alunas ricas que a remuneravam largamente.

         Júlia não precisava já do subsídio do padrinho. Era ela, agora, quem oferecia, apesar dos protestos deste, presentes aos filhos dele. Não lhe faltavam discípulas; a vida sorria‑lhe.

         A felicidade, porém, dura pouco. Uma tarde, ao regressar dos seus trabalhos, encontrou um recado, urgente, para ir a casa do Dr. Roberto. Ficou alarmada!... Nunca ia a casa dele. Tratava‑se, portanto, de algum caso muito extraordinário.

         Partiu, sem jantar, com um grande pressentimento de desgraça... Confirmou‑se a suspeita. Encontrou‑o prostrado e num desânimo horrível.

         ‑ Mandei‑te chamar ‑ disse com voz sumida ‑ porque sinto que a minha vida vai acabar. Queria recomendar‑te os pequenos, para os orientares nos estudos. Ficam meia dúzia de vinténs, que, bem administrados, podem dar para os educar e colocar. Mas... não são inteligentes como tu; terão que trabalhar muito para vencer. O teu conselho amigo deve valer‑lhes de muito.

         - Não me parece que o seu estado reclame disposições desse género ‑ disse sorrindo ‑, mas, seja como for, conte com o meu esforço, com tudo que eu puder granjear. O padrinho bem sabe que a minha gratidão não tem limites!... Não pensemos em coisas tristes. Vou telefonar ao Dr. Corte Real.

         Octávia, que nunca pudera tolerar a pupila do marido, estava completamente modificada. Quando desconfiou que ele auxiliava a educação da afilhada, entendeu que era um capital emprestado e que podia dar‑lhe juros compensadores.

         Cedo começou Júlia a pagar a sua dívida, e Octávia, perante tão nobre procedimento, compreendeu com quem lidava.

         Abriu‑lhe O coração de par em par. Os filhos, que, espontaneamente, simpatizavam com a órfã desde pequeninos, não foram nunca desviados desse caminho, apesar da má vontade da mãe contra ela.

         O Dr. Corte Real veio imediatamente e animou o doente como costumava. Depois, conversando com Júlia, disse‑lhe a verdade.

- Não sei se sabes que ele tem um neoplasma no piloro...

         - Que me diz, meu amigo?...

         ‑ Não há nada a fazer... Muito tem ele resistido. Para que não tenha um fim horroroso, a maior felicidade seria acabar o mais depressa possível.

         Ficou sucumbida, mas, junto do enfermo, não deixou transparecer a angústia que a dominava. O que seria daquela família, sem o braço forte que tinha sido o esteio poderoso para os manter da maneira como viviam?

         Não conseguiu conciliar o sono. Teve de estudar as lições para o dia seguinte, que tinha quase todo preso.

         De manhã contou o que se passava a

  1. Justina. A tragédia era fatal!... Certamente teria de perder todas as noites antes do inevitável desenlace...

         - Tens razão!... Podes ser‑lhe prestável... Octávia, que nunca te suportou, vê, agora, quanto vale fazer bem! Como a gente na vida se arrepende de certos erros! Vai, filha, e que Deus te dê forças para aguentares essa generosa tarefa!

         Não se fez esperar o que todos tanto receavam. O médico deixou de se alimentar, as injecções já não faziam o efeito desejado. Houve a ruptura do intestino e, inesperadamente, mais depressa que se supunha, expirou.

         Foi um pânico!

         Octávia, pela primeira vez, caiu nos braços da afilhada num grito de dor, clamando a sua tremenda desventura.

         ‑ Não nos deixes, Júlia, peço‑te! Sem ti não podemos viver.

         A órfã hesitou. Não sabia o que havia de fazer!... Não decidiu logo... Era preciso pensar sobre o caso. Tinha um receio imenso do génio assomadiço da madrinha, de quem recebera as mais graves ofensas. Naquele momento de consternação, sentia‑a branda... mas depois!...

         Precisava consultar Sílvia Rebelo e Berta. A vida em comum não lhe agradava. Temia embates que, afastada, evitaria; mas parecia‑lhe ainda ouvir as últimas palavras do padrinho: "Não os abandones"!

         Quis saber a opinião da família Lencastre. Octávia tinha gerais antipatias, no entanto todos convinham em que a situação era grave.

         ‑ De longe ainda a poderás suportar - disse D. Helena ‑. De perto, com aquele feitio impulsivo e inquieto, não me parece que consigas ter dias tranquilos.

‑ Ora, ora... ‑ interveio o sábio Lencastre. ‑ Quem arrostou com os ímpetos bravios da D. Justina, está à prova de todas as fúrias do mundo.

         ‑ Tens razão; mas esta é de outro género e não sei se será melhor...

         ‑ Dirá ela ‑ e talvez com razão ‑ se o padrinho pagou as mensalidades da afilhada quando ela necessitava, agora que já correm à sua custa, porque não hão‑de ser essas mensalidades para quem de direito as precisa?...

         ‑ Sim, mas a índole áspera da D. Justina talvez reviva, porque lhe convém mais pagar em pensão o trabalho de Júlia, que em dinheiro contado... Convençam‑se; com a rabugenta D. Justina ninguém brinca. Sempre foi diabólica. e burro velho... Por enquanto é prudente não abandonares o teu lugar.

         ‑ Isso de forma alguma! A minha maior fonte de receita é o colégio. Além de cama e mesa, ainda recebo bastante.

         ‑ Pois, minha filha, faz a essa família todo o bem que puderes, mas de largo para te não meteres em maiores trabalhos e complicações; e um dia, se conseguires ser completamente independente, na tua casa, poderás ter quem te convier e aprouver.

 

Júlia seguiu à risca o conselho dos Lencastres. Tinha um receio enorme de não poder aturar a irascibilidade de Octávia, de quem não podia esquecer os agravos. Viria todos os dias; auxiliaria na medida do possível, orientando e tratando‑lhe dos negócios, sem deixar o colégio.

         Alegou, para isso, que perderia as leccionações, que lhe davam o maior rendimento com que podia contar. Apesar do luto e do estado de depressão em que estava, Octávia teve um acesso de fúria, não perdendo a oportunidade de ferir Júlia.

         - Quando precisavas, não te manteve ela de graça; agora já lhe apetece para te pagar tuta‑e‑meia.

         Júlia, pela amostra, constatou que o temperamento da mulher do médico não tinha abrandado com os desgostos. Sentiu‑se feliz com a resolução tomada de não ir viver com ela. Tudo faria para lhe ser agradável... mas continuando separadas.

 

         Daí em diante a vida de Júlia foi exaustiva. Todos os momentos disponíveis tinha de os consagrar a Octávia, cada vez mais exigente e refilona. Nada era bastante para ela! As obrigações de Júlia não tinham limites.

         Os filhos eram dóceis, mas estavam atrofiados pelo despotismo da mãe. Adoravam Júlia; não eram, porém, inteligentes nem enérgicos. O rapaz estava atrasadíssimo e a rapariga não passava da cepa torta. Era bonita e dócil, nada mais! O pai tinha já compreendido que ela nunca poderia ir muito além.

         Júlia, inteligente e prática, resolveu e empreendeu a tarefa de a fazer professora! Se casasse rica, melhor. No entanto queria garanti‑la com um curso que, em todas as circunstâncias da vida, lhe desse o bastante para viver.

         Todos os dias vinha explicar‑lhe as lições,

o que era um trabalho fatigante, pela distância e, especialmente, pelo tempo que perdia. Maria do Carmo ficava reconhecidíssima. Queria‑lhe como a uma irmã muito estimada e respeitava‑a como a um parente velho. João admirava‑a, profundamente.

         Só Octávia, sempre de mau humor, quando os filhos aludiam à bondade de Júlia, respondia azedamente:

         - Ora adeus!... Nunca pagará as obrigações que deve a esta casa.

‑ Oh! minha mãe; não diga isso!... Ela estima‑nos mais do que se fôssemos seus irmãos.

         ‑ Não faz mais que o seu dever.

         E, sempre desabrida, não perdia a oportunidade de hostilizar Júlia. Esta, com uma nobreza e dignidade verdadeiramente senhoris, nunca replicava. E a vida prosseguia sem incidentes e com acentuados progressos dos novos discípulos da órfã.

         Apesar de tudo, tinha uma confiança ilimitada em Júlia e nada fazia sem a consultar.

O dinheiro que havia era administrado pela afilhada e aumentava sempre!... Á perspicácia de Octávia não passava despercebido que ela punha do seu bolso o preciso para que nada faltasse.

         ‑ Se consegues fazer alguma coisa daqueles dois animais, digo‑te que metes uma lança em Mrica ‑ dizia‑lhe Luís, a rir.

         ‑ Pago uma grande dívida, meu amigo, e cumpro, apenas, o meu dever! ‑ era sempre a resposta de Júlia.

 

Correram anos!

         Luís foi tirar uma especialidade a Paris. Montou um consultório e prosseguia com grande êxito na sua marcha. Com esforços inauditos, Júlia conseguira que Maria do Carmo tirasse o seu diploma de professora.

         Para João obtivera uma belíssima colocação numa companhia de seguros, onde lhe davam um magnífico ordenado.

         Mas que canseiras para alcançar o fim tão longamente ambicionado! No dia em que Maria do Carmo teve nas mãos o diploma, exultou. Todas as frases agressivas de Octávia lhe eram indiferentes. Realizara o que desejava, estava satisfeita.

         Júlia possuia o condão de se impor. Seguia, em linha recta, sem se deter com pormenores. Assim fora sempre e deveria continuar até ao fim da vida.

         Estava no seu quarto ano médico. Não lhe tinham faltado louvores pelo curso fora, apesar dos trabalhos. A protecção dada aos filhos do médico constara e influira na corrente de simpatia que, mesmo sem esse acto, havia conquistado já. Todo o corpo docente tinha os olhos nela. Se não fosse a estudante distintíssima que era, teria, mesmo assim, o carinho e boa amizade de todos. O seu carácter, a sua correcção, tornavam‑na querida e admirada.

         Alguém pensou que ela pudesse vir a reger uma cadeira. Seria um caso novo em Portugal, mas alguma havia de ser a primeira. Os retrógrados fizeram objecções. A elas responderam com argumentos fortes e convincentes.

                   ‑ Qual foi a melhor estudante do curso? Quem tem maior soma de conhecimentos e mais altas classificações? Quem despendeu superior actividade e persistência?

                   ‑ Sim, tudo isso é verdade, mas uma mulher lente não tem precedentes!... É um mau exemplo.

                   ‑ Mau exemplo!... Essa é boa! Então o triunfo de quem luta e vence não é justiça?

A mim parece‑me um exemplo edificante.

Que temos nós com o sexo do estudante?

Compete‑nos, apenas, apreciar, imparcialmente, as provas que dá e nada mais.

                   Assim falava o decano dos lentes, o Dr. Corte Real.

                   ‑ Esta mulher, meus amigos, não é vulgar. Além de uma inteligência e um coração digno de elogios pelo que tem feito pela família do nosso colega, é um carácter; nunca um indivíduo desta têmpera pode desempenhar mal o seu lugar.

                   ‑ Parece‑me extemporânea a discussão!... A rapariga está no seu quarto ano e daqui ao fim...

                   ‑ Medeiam apenas uns meses!... Não posso, nem quero ocultar a admiração que tenho por esta pequena!... Quando a conheci tinha doze anos e desde então nunca mais a perdi de vista. Discípula querida de Luisa, foi ela a sua enfermeira numa crise grave.

         ‑ O que se segue é que ela conquistou as multidões.

         ‑ Não é difícil quando se possuem faculdades como as suas e o ambiente não é formado por parvos!... Que sem‑número de obstáculos teve de vencer!... Essa luta titânica com o meio contou‑ma o Lencastre. Imaginem que ele, com aquele génio impetuoso e irascível, não vê outra coisa.

         ‑ Bem sei; é amiga íntima da filha mais nova e costuma ir passar as férias com eles, à Beira. Adoram‑na...

         ‑ O Luís tem até a mania de fazer dela sua esposa.

         ‑ O destino da mulher é casar!... Deixem‑se de lentes. Que dê muitos netos ao Lencastre e está arrumado o assunto.

         ‑ Bem se vê que os meus amigos não conhecem a psicologia desta rapariga. Júlia de Almeida tem a sua personalidade, as suas justíssimas aspirações. Não se faz um curso, como ela tem feito, para ficar reduzida às funções fisiológicas, como qualquer estúpida... ou qualquer irracional... Pelo facto de casar não impede que prossiga na sua carreira, sem embargo de ser uma exemplar esposa e uma dedicada mãe!... Madame Curie foi uma notabilidade e não deixou de cumprir os seus deveres materiais e conjugais. O mesmo sucedeu com Carolina Michae-lis de Vasconcelos. Não há nada que justifique a nossa animosidade contra o talento, pelo simples facto de pertencer a um indivíduo do sexo feminino. Temos de ser imparciais! Esta rapariga tem valor, e, porque lho reconhecemos, sejamos justos.

         ‑ Sim, há muito que não passa por esta Faculdade um exemplar idêntico, nem semelhante!... Temos, portanto, de nos render à evidência dos factos.

 

Estava preparado o terreno. O sábio Corte Real, espirito cultíssimo, livre de peias e preconceitos antiquados, desbravava o caminho por onde deviam seguir os colegas aferrados a velhas tradições.

         Júlia estudava com' entusiasmo e amor; leccionava, e, de vez em quando, para desanuviar o espírito, tocava piano. O maior pesar de Luisa era que ela não pudesse entregar‑se às artes, completamente. Compreendia, no entanto, que, num país como Portugal, não lhe seria fácil ganhar a vida por esse lado.

         Dias felizes para Júlia eram ainda aqueles, agora tão raros, em que metiam a pé, as duas, pelas estradas dos arredores do Porto. Detinham‑se a cada instante a contemplar as telas de maravilha que a natureza lhes estendia na frente. às vezes levavam uma Kodak e fixavam o que mais as interessava.

         Cavaqueavam à vontade e largamente sobre

o passado e futuro. Júlia expunha os seus projectos. A erudita alemã andava, ao tempo, preocupadíssima com a tradução, para a sua língua, de obras notáveis de escritores consagrados. às vezes, sentavam‑se em pleno campo e lia, à discípula, os trechos de Eça de Queirós que mais a interessavam.

         Júlia apreciava imenso essas tardes literárias que eram para ela, por assim dizer, um oásis na aridez das matérias que trazia constantemente diante dos olhos e no cérebro. Sempre embrenhada em compêndios, sair deles representava, para ela, um teatro ou um cinema. Fora das aulas não conhecia nada. Não podia distrair‑se de forma alguma. Muitas vezes, Berta queria levá‑la a um espectáculo, mas Júlia raramente aceitava.

‑ Para que queres tu que me habitue a uma vida que não pode ser a minha?

         - Vai para um convento!... Estás mesmo a calhar para freira.

         ‑ Não era a primeira!... Há pouco ainda uma religiosa francesa tirou o curso de medicina para ir para as colónias.

         ‑ Podes seguir‑lhe os passos.

         Quem sabe?!... Não será mais difícil fazer de uma médica, freira.

         Júlia tinha frequentes convites para festas e jantares em casa de alunas ricas, mas nunca os aceitava. Queria tranquilidade para estudar e, se dispunha de algum tempo, aproveitava-o para respirar o ar livre, que lhe era absolutamente preciso, longe das aulas e das discípulas. Era tudo que ambicionava.

 

O quinto ano chegou finalmente! As provas foram qualquer coisa de notável e o júri não trepidou. Júlia obteve a mais alta classificação do curso. Restava‑lhe apenas defender tese.

         Entregou‑se a um estudo sério e profundo. Absteve‑se de todo o convívio e dedicou‑se à sua tarefa de alma e coração. Todos esperavam um sucesso retumbante! Condiscipulos, amigos e conhecidos, farejavam o dia da defesa com impaciência.

         As bancadas estavam cheias. Júlia apresentou‑se com tanta naturalidade, tão simplesmente, com um ar tão modesto, que impressionou toda a gente.

         A argumentação foi cerrada. Não havia que ter cautelas. Tratava‑se de um espírito superior, cultíssimo e profundamente preparado. A discussão acalorou‑se. Passou a hora regulamentar sem que ninguém o notasse. Todos, à porfia, queriam saber até onde ia o saber daquela extraordinária rapariga. A tensão de nervos era grande.

         Luís veio assistir; estava excitado; tirava

o relógio....... Aquilo era abusar. Não havia o direito de expor, fosse quem fosse, a tão prolongada prova.

         O presidente, ao dar o sinal para concluir, sorriu e disse com entusiasmo:

- Muito bem!

         Júlia saiu corada como uma romã; quando chegou ao corredor sentiu‑se envolvida e abraçada pelos amigos. Berta foi a primeira.

         ‑ Brilhante como sempre!

         Sílvia Rebelo estendeu‑lhe cordialmente a mão:

- Enfim!...

         O resultado devia ser conhecido no dia seguinte. Ninguém, porém, tinha dúvidas a tal respeito. D. Justina, ainda robusta, só um pouco mais curva, espalmou‑lhe nas costas a mão vigorosa, sinal de grande regozijo, e declarou radiante:

         ‑ Já tenho quem me trate... sem gastar dinheiro.

         Luís conservava‑se à distância. Queria desviar de si todas as atenções. Júlia excedera a sua expectativa. Estava maravilhado com tão formidável talento.

         Nunca uma mulher assim seria um empecilho para ninguém! Sozinha, lograra desembaraçar‑se de todas as peias da vida!... Sózinha, tinha passado todas as barreiras!...

  1. Justina, a fera de ontem, inclinava‑se, agora, perante aquele talento fora do vulgar.

O colégio, graças à Júlia, alcançara uma fama retumbante. Era hoje considerado o primeiro. E fora ela, com a sua perseverança, lutando com todas as más vontades, que conseguira esse êxito.

         Havia todas as probabilidades de Júlia vir a ser lente. Foi logo nomeada assistente. Tinha a protecção do Dr. Corte Real e este segurara bem os amigos.

         A família do padrinho continuava a ser uma das suas grandes preocupações. Octávia, sempre azeda, mas não se decidindo a dar um passo sem ouvir a afilhada do marido. Maria do Carmo e João escutavam‑na com tanto respeito como outrora ao pai.

         E a órfã, sempre atenta, pensava mais neles que em si. As suas absorventes ocupações não lhe permitiam, portanto, desperdiçar tempo.

         Dois anos depois, estava lente. Foi preencher a vaga de um professor ainda novo, que a tuberculose vitimara.

         Nessa altura os jornais relataram o facto espaventosamente! Era a primeira mulher portuguesa que assumia tão alto cargo. Não faltaram encómios. O retrato de Júlia foi publicado em grande formato e a sua vida relatada, pormenorizadamente. Entrevistaram‑na; ergueram‑na aos carrapitos da lua.

  1. Justina quis manifestar‑se ruidosamente, oferecendo um banquete para que foram convidadas altas personalidades e amigos íntimos: a família Lencastre, o Dr. Corte Real ‑ o amigo de sempre a quem Júlia dizia dever tudo ‑, Luisa, muitos catedráticos, Octávia, os filhos e, claro, os primeiros professores de Júlia; o Teles, com o seu entusiasmo de sempre pela discípula querida, não podia faltar.

         Houve brindes calorosos. Júlia ergueu a taça, pedindo licença para evocar a memória de Roberto Esteves.

         ‑ "A ele, ao seu esforço, à sua nobilíssima alma, devo o que sou. O meu único pesar, nesta hora feliz da minha vida, é não ver, aqui, esse esteio forte que me impeliu para a frente com um carinho que recordo com lágrimas de profunda gratidão e saudade. A todos, porém, quero manifestar o meu eterno reconhecimento, porque a todos devo favores que jamais se apagarão do meu espírito. Sem o precioso auxílio dos que me rodeiam, nunca chegaria ao fim que desejava alcançar. Ganhar a vida... ganhar o meu pão!"

         ‑ Triunfaste em toda a linha ‑ disse o velho Corte Real. ‑ Deus não me deu filhos, mas, se os tivesse, desejaria que fossem como tu.

         ‑ Pois, meu caro, eu tenho um ranchinho regular, como é notório, e apesar disso estou com um grande empenho em o ver acrescentado. Um pedido de casamento requer etiqueta, formalidades, mas, como não se trata de pessoas vulgares, aproveito o ensejo para manifestar à jovem lente o meu grande desejo e a honra que terei em a poder chamar filha. Escusado será dizer que se trata de Luís... Todos de mais o sabem.

         Júlia, mais bela que nunca e impressionada pelo que acabava de ouvir, com o seu vestido singelíssimo como costumava, mas já de bom corte, ruborizada pela comoção, respondeu serenamente:

         ‑ Sr. Dr. Lencastre, que amigo me habituei a respeitar e admirar desde que o conheço; sensibilizaram‑me profundamente as suas palavras. Hoje, não há necessidade de ocultar que Luís foi o meu primeiro e único afecto. Mentiria se não dissesse que me sinto orgulhosa com a escolha. Luís é um talento, um carácter, um nome e uma fortuna! Eu... tenho apenas o meu braço; é portanto desigual esta união!... A muita, a rara bondáde da família Lencastre aprovou sempre este afecto de Luís... porque o meu ninguém o conhecia. Confesso que nunca consentiria em tal enlace, se não pudesse contribuir com o meu óbolo para o lar a constituir. Portanto, Sr. Dr. Lencastre, meu querido amigo, agradeço‑lhe do fundo da alma as suas generosas palavras e aceito, sem hesitar, a honrosíssima proposta que acaba de fazer‑me.

         Para ninguém era novidade aquela inclinação e todos sentiam uma viva simpatia pelos noivos.

         ‑ Pois, querida ‑ disse o Dr. Corte Real ‑, se entraste na vida tristemente, tens‑te desenvencilhado de todos os atritos com arte e sabedoria. O triunfo foi completo! Entendo que não devem demorar essa união que, sob todos os pontos de vista, oferece garantias de felicidade. Parecia‑me bem e oportuno que, hoje mesmo, se marcasse o dia da solenidade, para que já nos podemos dar por convidados todos. Eu, minha rica, exijo, despoticamente, o papel de padrinho. Nunca se viu tamanho despropósito... hem?... Espero, contudo, que não recuses!... Eu bem sei que um velho ditado diz: prata oferecida perde o valor... Mas não desisto do meu oferecimento.

         ‑ Querido amigo, não teria coragem de lhe fazer esse pedido, de solicitar tamanha honra!... Confunde‑me a sua imensa bondade.

         ‑ Falta a madrinha ‑ disse o notável homem de ciência.

  1. Justina, nervosa, respondeu com calor:

         ‑ Não ouso oferecer‑me... Madrinhas velhas são aborrecidas e a velhice é sempre desprezada...

         ‑ Por quem é, minha amiga!... Sinto uma satisfação imensa em ter por padrinhos duas pessoas que acompanharam a minha vida, passo a passo, e a quem tanto devo!... Não pensava ter tão grande felicidade.

         O grande médico e sábio Corte Real, celibatário e extraordinariamente rico, entendeu que devia oferecer à noiva o enxoval. Depois do jantar, quando todos no salão cavaqueavam, animadissimos, chamou a futura afilhada de parte e disse‑lhe que precisava falar‑lhe. Subiram ao gabinete de estudo de Júlia. O médico sentou‑se com um grande à‑vontade e sem pressa de começar.

         ‑ Quando se exige a honra de ser padrinho de uma pessoa como tu, tem de se ter a noção clara da responsabilidade do acto! Este lugar estaria certamente destinado a outro.

         ‑ Não me atrevia a fazer‑lhe um pedido que, para mim, representava tamanha felicidade, que nem agora a julgo real.

         ‑ Muito bem!... Tu és a rapariga amável de sempre. A minha ideia era encontrar um pretexto para te oferecer o enxoval...

         ‑ Isso não!... Não posso consentir.

         ‑ Onde tens o dinheiro? Pensas que não sei que tudo é pouco para a Octávia?

         ‑ É o meu dever.

         ‑ És bem extraordinária! Entendo‑te... e por isso...

         Pôs os óculos, tirou da carteira um livro de cheques e, perante o espanto de Júlia, assinou um de dez contos.

         Júlia estava aflita com tão espontâneo gesto, com aquela generosidade que ultrapassava tudo que ela pudesse imaginar. Tomou‑lhe as mãos, comovida:

‑ Eu não posso... Não devo aceitar tão grande quantia.

         ‑ Ninguém ainda pediu o teu consentimento... É a minha vontade!... Não se fala mais nisso.

         Lágrimas de comoção foram a resposta. Sem que o velho amigo tivesse tempo de retirá‑las, beijou‑lhe as mãos com o mesmo respeito com que o faria ao pai, se ainda fosse vivo.

         ‑Tolinha!... Para mim sobra o que tenho. Deixa‑me, ao menos, o prazer de poder contribuir para a felicidade de alguém. E agora vamos pensar em escolher casa.

         ‑ Não tenho pressa, meu amigo.

         ‑ Tem que ser!... Precisas constituir a tua família, já que o destino tão cruelmente te roubou a que tinhas.

         ‑ Como tem sido bom! ‑ disse, enlevada. ‑ Só a si devo a minha carreira!... Sem a sua altíssima protecção, o padrinho não poderia pagar‑me as mensalidades. Afinal tem sido tudo para mim... Não o posso esquecer um momento.

         ‑ Ao teu bom coração, à tua inteligência, tens de atribuir o sucesso retumbante da tua vida. E se não fosse a enfermidade de Luisa não te conheceria.

‑ É verdade!... Há males que vêm por bem!

 

         Júlia via, finalmente, coroado de êxito o seu esforço. Luís, cada vez mais enamorado, trabalhava com ardor. Tinha já as suas economias e trazia consigo um grande segredo de que só a família tinha conhecimento: o projecto de comprar uma casita. Seria esse o seu presente de noivado!

         Apareceu‑lhe uma, nas condições que desejava. Não hesitou. Tudo foi feito rapidamente. Uma manhã, o Dr. Corte Real surgiu‑lhe no consultório.

         ‑ Venho para te decidires a escolher casa; tenho uma hora disponível; quero aproveitá‑la...

         ‑ Assim, com tanta pressa?

         ‑ Para que perder tempo?

         ‑ Vamos dar uma volta no meu carro.

         ‑ Não é preciso!... Tenho o meu à porta.

         Luís quis conduzir.

         ‑ Tens, com certeza, qualquer ideia!... Alguma em vista?...

         Dirigiram‑se para as avenidas novas e Luís parou em frente de uma linda vivenda.

O doutor estava surpreendido com o que via e mais ainda quando Luis, metendo a chave na porta, disse:

         ‑ Entremos.

         - É este o ninho que escolheste?

         ‑ Só no dia do meu casamento queria fazer esta surpresa. Comprei‑a.

         O Dr. Corte Real caiu‑lhe nos braços, verdadeiramente entusiasmado.

         - Bravo.... Sois dignos um do outro. às vezes ponho‑me a pensar como ainda é possível aparecerem exemplares como vocês. Agora falta apenas marcar a data do casamento.

         ‑ Não tenho muita pressa... porque preciso mobilá‑la.

         ‑ Isso fica por minha conta. Justamente para tratar do mobiliário, é que tinha pressa de que escolhesses casa.

         ‑ Não pode ser ‑ protestou Luís.

         ‑ Homem, não falemos mais nisso e vamos embora!... Lembra‑te que tens os clientes à espera...

         ‑ Não devo consentir nesta grande desPesa. É o meu presente de noivado! E olha que ainda fico de lucro... Com um pau mato dois coelhos!... É o mesmo para ambos.

         ‑ Júlia também vai ficar impressionada e não consentirá que eu aceite tão valiosa dádiva...

‑ Essa é boa... Era preciso que eu solicitasse o vosso consentimento... Não penses mais nisso e vamos...

 

Alguns meses depois, realizava‑se a cerimónia, modesta no aparato, mas com uma assistência escolhidíssima. Professores e amigos íntimos não faltaram.

         Os Lencastres queriam que o copo‑d'água fosse na sua casa. D. Justína expôs os seus argumentos. Tinha sido no colégio que Júlia aprendera quase as primeiras letras. Ali fizera o curso e continuara a sua carreira... Ali sofrera e trabalhara. Achava, portanto, natural que fosse ali a sua grande festa... e cerimónia civil.

         Luís não quis que ela se preocupasse com a casa.

         ‑ Deixa isso por minha conta ‑ dizia‑lhe amavelmente.

         Berta era a orientadora. De mãos dadas com o Corte Real, numa admirável conspiração, conseguiram instalar tudo primorosamente.

         Luís estava proibido de lá entrar, para a surpresa ser maior. Só na véspera lhe permitiram ver a futura morada. Júlia, com os seus imensos afazeres, nem tempo tinha para pensar nisso.

         chegou o grande dia... Foi nas férias de Páscoa e numa manhã de sol ainda brando mas festivo. Na velha igreja de Cedofeita notava‑se desusado movimento. Todo o bairro que, havia anos, conhecia a órfã, queria ver, agora, a lente que, heroicamente, subira, indo unir‑se, por fim, a uma das famílias mais distintas do Porto.

         às onze horas surgiram os primeiros carros. Júlia não quis vestir‑se de noiva: trazia uma lindíssima toilette de cerimónia. à porta do adro formou‑se o cortejo, que era numeroso, notando‑se as figuras mais em evidência da capital nortenha.

         Assim se fundou um novo lar, uma nova família, que havia de ser, no futuro, um exemplo edificante pelo carácter e pela inteligência.

         E, pela vida fora, Júlia esqueceria todo o seu triste passado, para se lembrar apenas que, Sozinha, conseguira triunfar!

 

                                                                                Sara Beirão  

 

                      

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