Biblio "SEBO"
A 4 de Outubro de 1957, a União Soviética lançou, a partir do Centro Espacial de Baikonour, na República do Cazaquistão, o primeiro satélite artificial do mundo, o Sputnik I. Media 58 centímetros de diâmetro, pesava 83,6 quilos e completou a órbita da Terra em 96 minutos e 12 segundos.
A 3 de Novembro do mesmo ano, o Sputnik foi por sua vez lançado no espaço com êxito. A bordo seguia a cadela Laika, que se tomou a primeira criatura viva a sair da atmosfera da Terra, mas o satélite nunca foi recuperado, e Laika foi assim sacrificada em nome da pesquisa biológica no espaço.
(in The Complete Chronicle of World History)
Na Primavera dos seus vinte e dois anos, Sumire apaixonou-se pela primeira vez na vida. Foi um amor intenso como um tornado abatendo-se sobre uma vasta planície —, capaz de tudo arrasar à sua passagem, atirando com todas as coisas ao ar no seu turbilhão, fazendo-as em pequenos pedaços, esmagando-as por completo. com uma violência que nem por um momento dava sinal de abrandar, o tornado soprou através dos oceanos, arrasando sem misericórdia o templo de Angkor Vat, reduzindo a cinzas a selva indiana, tigres e tudo, para depois, em pleno deserto pérsico, dar lugar a uma tempestade capaz de sepultar sob um mar de areia toda uma exótica cidade fortificada. Em suma, um amor de proporções verdadeiramente monumentais. A pessoa por quem Sumire se apaixonou, além de ser casada, tinha mais dezassete anos do que ela. E, devo acrescentar, era uma mulher. Foi a partir daqui que tudo começou, e foi a partir daqui que (quase) tudo acabou.
Naquela época, Sumire — «Violeta» em japonês — lutava literalmente com unhas e dentes para se tomnar escritora. Fosse qual fosse o destino que a vida lhe reservava, tudo o que queria era ser romancista. A sua determinação era firme como um verdadeiro rochedo. Não havia nada que pudesse meter-se de permeio entre ela e a sua fé na literatura.
Depois de ter acabado os estudos secundários num estabelecimento de ensino público da prefeitura de Kanagawa, inscreveu-se no Departamento de Arte de uma pequena e acolhedora universidade privada da província de Tóquio. Achava a universidade um lugar completamente desfasado da realidade, desenxabido, convencional — e achava os colegas (entre os quais, para dizer a verdade, eu me incluía) de uma mediocridade inconcebível, seres de segunda categoria. Razão pela qual, ainda antes de chegar ao fim do segundo ano, fez o que se impunha: desistiu dos estudos universitários. Chegara à conclusão de que era uma perda de tempo. Estou convencido de que tomou a atitude certa. Mas, vendo bem, e se me é permitido um lugar-comum corriqueiro, não será que até as coisas inúteis têm cabimento neste mundo longe-de-ser-perfeito? Se desta vida imperfeita eliminássemos tudo o que é inútil, a imperfeição deixaria ela própria de fazer sentido.
Sumire era uma incurável romântica, com tanto de obstinada como de cínica — ou, para usarmos um eufemismo, sem grande experiência de vida. Era dar-lhe corda e ela desatava a falar pelos cotovelos, mas, caso estivesse na presença de alguém que não lhe merecesse simpatia — que é como quem diz, a maioria das pessoas —, mal abria a boca. Fumava demasiado e, sempre que andava de comboio, o mais certo era acabar por perder o bilhete. Ficava por vezes de tal maneira absorvida nos seus próprios pensamentos que até de comer se esquecia, razão pela qual estava magra como um órfão de guerra, desses que se vêem nos filmes italianos antigos — um palito de olhos esbugalhados num rosto emaciado. O melhor seria mostrar uma fotografia, mas infelizmente não tenho nem uma.
Detestava tirar fotografias, não manifestando o menor desejo de deixar para a posteridade um «retrato da artista quando jovem».1
1 Alusão ao romance de James Joyce Retrato de Um Artista quando Jovem (Portrait of the Artist as a Voung Artist), publicado em Portugal pela editora Livros do Brasil, numa tradução de Alfredo Margarido. (N. da T.)
Caso houvesse alguma fotografia de Sumire tirada naquela época, tenho a certeza de que serviria às mil maravilhas para ilustrar a existência de um dos mais curiosos exemplares da espécie humana.
Mas estou a baralhar a ordem dos acontecimentos. A mulher por quem Sumire se apaixonou chamava-se Miu, pelo menos era por esse diminutivo carinhoso que toda a gente a tratava. Nunca cheguei a saber qual era o seu verdadeiro nome, o que viria mais tarde a levantar alguns problemas, mas lá estou eu a pôr outra vez a carroça à frente dos bois. Miu era de nacionalidade coreana, mas, até se lhe meter na cabeça aprender coreano, já com os seus vinte e tal anos, nunca falara uma palavra daquele idioma. Nascera e fora criada no Japão e, tendo estudado num conservatório em França, falava correctamente o francês e o inglês, para além do japonês. Andava sempre vestida de forma extremamente requintada, usava com discrição pequenos acessórios que custavam os olhos da cara, e conduzia um Jaguar azul-marinho de doze cilindros.
Logo na primeira vez em que se encontraram, Sumire falou a Miu dos romances de Jack Kerouac, por quem era absolutamente fanática. Todos os meses mudava de ídolo literário e, por aqueles dias, o lugar estava ocupado por um Kerouac um-tanto-fora-de-moda. Andava sempre com um exemplar de On the Road ou de Lonesome Traveler2, com os cantos todos torcidos, no bolso do casaco e passava o tempo a folheá-lo. Quando se lhe deparava uma frase que a tocava particularmente, sublinhava-a a lápis e decorava-a como se fosse uma passagem das Sagradas Escrituras. As suas tiradas favoritas encontravam-se em Lonesome Traveler, no capítulo sobre vigilância de incêndios. Kerouac passou três meses sozinho numa cabana isolada no
1 Pela Estrada Fora, Relógio d’Agua Editores, tradução de Armanda Rodrigues e Margarida Vale de Gato. (N. da T.)
2 Viajante Solitário, Editorial Minerva, tradução — aqui citada — de Fernanda Pinto Rodrigues. (N. da T.)
cimo de uma montanha, a trabalhar como vigia de incêndios. Sumire gostava especialmente deste parágrafo:
Nenhum homem deveria passar a sua vida sem experimentar ao menos uma vez a salutar e até enfadonha solidão de um ermo, exclusivamente dependente de si próprio e assim aprendendo, portanto, a conhecer a sua força verdadeira e oculta.
— Não achas fabuloso? — perguntara-me ela. — Passar os dias no cimo de uma montanha, esquadrinhar a toda a volta, até onde a vista alcança, atento a quaisquer sinais de fogo. E acabou-se. Já chega de trabalho. No resto do dia há tempo de sobra para ler, escrever, fazer o que nos der na gana. À noite, um grande urso façanhudo aparece a rondar a cabana. Isso é que é vida! Em comparação, estudar literatura na universidade é como dar uma dentada num pepino que ainda não esteja maduro.
— O problema — argui eu — é que algum dia vai ser preciso descer da montanha.
Como de costume, as minhas opiniões, com tanto de prático como de trivial, deixaram-na impávida e serena.
Sumire esforçava-se por ser parecida com as personagens dos livros de Kerouac — solitária, fixe, excessiva. Andava de mãos nos bolsos, o cabelo num desalinho que não conhecia pente, fitando o céu com um olhar vago através das lentes dos óculos, com armações de plástico pretas à Dizzy Gillespie, que usava sempre, muito embora não tivesse o mínimo problema de visão. Aparecia invariavelmente enfiada num casaco de tweed largueirão comprado numa loja de roupa em segunda mão e calçava um par de botas de trabalho grosseiras. Se tivesse podido deixar crescer a barba, tenho a certeza de que o teria feito.
Sumire não era propriamente uma beldade no sentido clássico do termo. Tinha as maçãs do rosto encovadas, uma boca um nadinha grande de mais. O nariz era arrebitado e para o pequeno. Era muito expressiva e, apesar de ter um grande sentido de humor, era raro ouvi-la rir à gargalhada. Era baixinha e falava num tom agressivo mesmo quando estava bem-disposta. Nunca a vi usar batom ou lápis de sobrancelhas, e tenho sérias dúvidas de que ela soubesse que existiam diversos tamanhos de sutiãs. Apesar de tudo, Sumire tinha qualquer coisa de especial, qualquer coisa que cativava as pessoas. Definir essa qualidade não é fácil, mas bastava fitá-la para a vislumbrar, sempre bem presente lá no fundo.
Mais vale ganhar coragem e confessar de imediato. Eu estava apaixonado por Sumire. Sentira-me atraído por ela logo na primeira vez em que falámos e rapidamente ela passou a ser a coisa mais importante na minha vida. Para mim, durante muito tempo, só existiu ela. Por mais de uma vez tentei confessar-lhe o que me ia na alma, mas, não sei bem por que razão, via-me e desejava-me para traduzir os meus sentimentos nas palavras adequadas. Vendo bem, talvez tenha sido melhor assim. Se eu tivesse ousado manifestar os meus sentimentos, o mais certo era que ela não me tivesse levado a sério.
Enquanto mantive com Sumire uma relação de amizade, andei com duas ou três raparigas. Não é que não me lembre do número exacto. Duas, três — tudo depende da maneira como as contas são feitas. Se acrescentar as raparigas com quem fui para a cama uma ou duas vezes, a lista torna-se um pouco mais extensa. A verdade é que enquanto eu fazia amor com essas raparigas, Sumire não me saía da ideia. Num cantinho qualquer do meu espírito, a sua imagem estava sempre mais ou menos presente. A ponto de imaginar que era a ela quem tinha nos meus braços. Era um bocado reles, reconheço, mas não conseguia evitá-lo.
Voltando à maneira como Sumire e Miu se conheceram. A Miu não era estranho o nome de Jack Kerouac, e tinha até a vaga impressão de que se tratava de um romancista qualquer. Agora que tipo de romances é que ele escrevia, disso é que não conseguia lembrar-se.
— Kerouac, Kerouac... Vejamos... Não era um Sputnik ou coisa que o valha?
Sumire deu mostras de não ter percebido a que propósito vinha aquilo. Garfo e faca suspensos no ar, ficou durante uns instantes a matutar sobre as palavras de Miu.
— Sputnik? Refere-se ao primeiro satélite artificial que os soviéticos enviaram para o espaço, na década de cinquenta? Jack Kerouac era um escritor americano. Da mesma época, é certo, mas...
— Não era assim que naquela altura chamavam aos escritores? — insistiu Miu e, com a ponta dos dedos, pôs-se a desenhar círculos na mesa, como se andasse a rebuscar algo no fundo de um jarrão especial, repleto de recordações.
— Sputnik...?
— Sim, é o nome de um movimento literário. Como sabe, os escritores estão agrupados em várias escolas literárias. Shiga Naoya, por exemplo, pertenceu à escola do Vidoeiro-Branco.1
Sumire caiu finalmente em si.
— Beatnick!
Miu limpou delicadamente os cantos da boca com o guardanapo.
— Beatnick, Sputnik... Não há maneira de me lembrar nunca desse género de expressões. É como a Restauração Kenmun2 ou o Tratado de Rapai Io3. Já passaram à História.
Caiu sobre elas um silêncio polido, numa alusão à passagem do tempo.
— O Tratado de Rapallo? — repetiu Sumire.
Miu sorriu. Um sorriso nostálgico, interior, como se tivesse encontrado um objecto de estimação antigo no fundo de uma
1 Nome de uma escola literária cujos membros se agrupavam em torno da revista Shirakaba, que começou a ser publicada em 1910. Na sua maioria filhos de famílias nobres, os seus membros interessavam-se mais pela arte que lhes chegava do estrangeiro do que pela cultura japonesa, e acreditavam nos valores do individualismo. (N. da T.)
2 Instaurada pelo imperador Godaigo, em 1933, depois de ter infligido uma derrota ao governo do xogunato da Kamamura. (N. da T.)
3 Assinado entre a Alemanha e a Rússia a 16 de Abril de 1922, no decorrer da Conferência de Génova. (N. da T.)
gaveta. Franziu os olhos de uma maneira absolutamente adorável. Estendeu a mão e, com os seus dedos compridos e esguios, despenteou um pouco mais o cabelo já de si em desalinho de Sumire. Foi um gesto tão espontâneo e natural que esta, quase sem querer, lhe retribuiu o sorriso.
A partir desse dia, Sumire começou a chamar a Miu «Sputnik, meu amor». Sumire adorava o som daquela palavra. Trazia-lhe à memória a cadela Laika. O satélite a atravessar em silêncio a obscuridade do espaço exterior. As pupilas negras, brilhantes, da cadela a espreitarem através da pequena vigia. Que poderia ela estar a ver na solidão infinita do espaço?
A história do Sputnik veio à baila durante o banquete de casamento de uma prima de Sumire, celebrado num hotel de cinco estrelas de Akasaka. Sumire não era particularmente chegada à prima; verdade seja dita, nem sequer se podiam ver. Além disso, assistir a recepções do género representava para Sumire uma tortura, mas daquela vez não conseguiu esquivar-se sob pretexto algum. Ela e Miu ficaram sentadas à mesa ao lado uma da outra. Miu não entrou em grandes detalhes, mas parece que tinha dado lições de piano à noiva — ou qualquer coisa do género — na altura em que esta andava a estudar para os exames de admissão ao conservatório. Não se tratava de um relacionamento de longa data, nem sequer particularmente estreito, mas, pelos vistos, Miu sentira-se na obrigação de estar presente.
No preciso instante em que Miu lhe tocou no cabelo, Sumire apaixonou-se por ela. Foi como se estivesse a atravessar uma vasta planície e, zás!, um raio a atingisse em cheio na cabeça. Deve ter sido algo parecido com a inspiração artística. O que explica que, naquele contexto, não fizesse qualquer diferença a Sumire que a pessoa por quem se havia apaixonado fosse uma mulher.
Que eu saiba, Sumire jamais tivera aquilo a que se pudesse chamar um amante. No liceu, tivera os seus namorados, amigos com quem ia ao cinema, ou até à piscina. Era-me difícil imaginar qualquer dessas relações a tomar-se alguma vez muito profunda. Sumire estava por demais empenhada em tornar-se escritora para se envolver a esse ponto com quem quer que fosse. Se ela tivesse tido alguma experiência sexual — ou andado lá perto — nos tempos do secundário, aposto que teria sido levada a isso por pura curiosidade literária, e não por desejo ou por amor.
— Para ser perfeitamente franca, não entendo o que é isso do desejo — confessou-me Sumire uma vez, pondo uma cara terrivelmente séria. Acho que foi pouco antes de ela abandonar a universidade; emborcara cinco daiquiris de banana e estava razoavelmente embriagada. — Tu bem sabes, como é que essas coisas acontecem... O que é que tens a dizer sobre isso?
— O desejo não é para perceber. — E avancei, como era meu timbre, uma opinião comedida. — Existe, pura e simplesmente.
Sumire ficou a olhar para mim durante um bocado, como se estivesse a observar alguma máquina alimentada por uma fonte de energia até então desconhecida. Depois, perdendo todo o interesse no tema, pôs-se a olhar para o tecto e a conversa morreu. Deve ter achado que comigo não valia a pena falar disso.
Sumire nascera em Chigasaki. A casa ficava perto da praia, e ela crescera a ouvir o barulho seco do vento carregado de areia a bater no vidro das janelas. O seu pai estava à frente de uma clínica dentária em locoama. Era um homem muito bonito, cujo nariz particularmente bem feito fazia lembrar Gregory Peck em A Casa Encantada. Infelizmente — era ela própria quem o dizia —, Sumire não herdara aquele belo nariz e o irmão também não. Sumire achava espantoso como era possível que os genes capazes de produzir semelhante apêndice nasal tivessem desaparecido assim do mapa. Se tivessem ficado enterrados para sempre no fundo de um mar de genes, então era caso para dizer que o mundo ficava mais triste. Só isto já dá para ver como o nariz era realmente espantoso.
O pai de Sumire era praticamente uma figura mítica aos olhos de todas as mulheres que precisavam de ir ao dentista em locoama e arredores. No consultório, usava sempre uma touca cirúrgica e uma grande máscara que só deixavam ver os olhos e as orelhas. Mas nem mesmo assim conseguia esconder até que ponto era um homem atraente. O seu belo e varonil nariz avolumava-se sugestivamente por trás da máscara, fazendo corar as pacientes. E (apesar de o seguro de saúde não cobrir os custos...) elas apaixonavam-se por ele num abrir e fechar de olhos.
A mãe de Sumire, que sofria de uma doença do coração de natureza congénita, morreu jovem, com apenas trinta e um anos. Sumire ainda não tinha feito três anos. A única recordação que guardava da mãe era o ténue perfume da sua pele. Existiam apenas duas ou três fotografias dela — um retrato do dia do casamento e uns instantâneos tirados logo a seguir ao nascimento de Sumire. Esta costumava pegar no velho álbum e ficar ali a olhar para as fotografias. A mãe de Sumire era — para utilizar um eufemismo — uma pessoa completamente apagada. De estatura meã, penteado vulgar, vestida de uma maneira que não dava para acreditar, um sorriso envergonhado nos lábios, parecia estar prestes a recuar e a fundir-se na parede atrás de si. Sumire esforçava-se para gravar o rosto da mãe na sua memória. Talvez assim tivesse alguma hipótese de a encontrar um dia em sonhos. Dar-lhe a mão, falar com ela. Mas as coisas não eram assim tão simples. Por mais que se esforçasse por recordar o rosto de mãe, a imagem não tardava a desvanecer-se. E não só em sonhos — acaso Sumire se tivesse cruzado com a mãe na rua, em pleno dia, não a reconheceria.
O pai de Sumire quase nunca se referia à falecida mulher. Não era por natureza um homem falador, e, como em tudo o mais na sua vida, tinha tendência para calar fundo os sentimentos, como se se tratasse de alguma infecção bucal contagiosa. Pela parte que lhe tocava, Sumire não se lembrava de alguma vez lhe ter feito perguntas sobre a mãe. Só uma vez, quando era pequenina, lhe perguntou, sem saber bem porquê, «como era a mãe». Ela lembrava-se perfeitamente daquela conversa.
Desviando o olhar, o pai reflectira um momento antes de
responder.
— Tinha boa memória — declarou — e uma caligrafia bonita.
Estranha maneira de descrever uma pessoa. com o bloco de notas aberto na primeira página ainda em branco, Sumire esperava ansiosamente pelas palavras reconfortantes que pudessem representar uma fonte de calor — um pilar, um eixo que ajudasse a suportar a sua insegura existência neste terceiro planeta a contar do Sol. Parece-me a mim que o pai deveria ter dito algo que ficasse para sempre gravado no coração da filha pequena. Infelizmente, o atraente pai de Sumire fora incapaz de proferir semelhantes palavras. Precisamente as que ela mais precisava de ouvir.
Quando Sumire tinha seis anos, o pai voltou a casar-se e, dois anos mais tarde, nasceu o seu irmão mais novo. A madrasta também não era bonita. Mais, não era boa a lembrar-se das coisas e a caligrafia não era nada de especial. Era, contudo, uma pessoa carinhosa e justa. A pequena Sumire teve sorte com a sua nova mãe. Não, sorte não é a palavra exacta. No fim de contas, tinha sido o pai a escolher a mulher. Como pai, podia deixar muito a desejar, mas no que tocava a seleccionar companheiras sabia o que estava a fazer.
O amor que a madrasta lhe dedicava nunca esmoreceu durante os longos e difíceis anos da sua adolescência. Quando Sumire manifestou o desejo de abandonar a universidade para escrever romances, a madrasta — apesar de ter uma opinião formada sobre a matéria — respeitou a vontade dela. Sempre se regozijara com o facto de Sumire gostar tanto de ler, e tinha sido a primeira a encorajar as suas ambições literárias.
Fora a madrasta quem conseguira convencer o pai de Sumire a dar-lhe uma pequena mesada até ela fazer vinte e oito anos. Se naquela altura ela ainda não conseguisse afirmar-se e ganhar a vida a escrever, ficaria então por sua conta. Não fora a intervenção da madrasta e Sumire poderia muito bem ter sido atirada — sem um chavo e sem a mínima experiência de vida — para este ermo desprovido de humor a que damos o nome de realidade. No fim de contas, a Terra não se dá ao trabalho de girar à volta do Sol apenas para gáudio dos seres humanos.
Sumire conhecera a sua «querida Sputnik» uns dois anos e picos depois de ter abandonado a universidade.
Alugara um estúdio em Kichijoji, onde vivia com a mínima quantidade de móveis e o máximo número de livros. Levantava-se pouco antes do meio-dia, e à tarde costumava dar um passeio pelo parque de Inogashira, com o fervor de um peregrino abrindo caminho através das montanhas sagradas. Nos dias de sol, sentava-se num banco de jardim, a mordiscar um bocado de pão, a fumar um cigarro atrás do outro, a ler. Nos dias de chuva ou de frio, enfiava-se num café fora de moda onde havia sempre música clássica a tocar com o volume no máximo, afundava-se • num sofá coçado e ficava a ler com uma expressão concentrada enquanto ouvia uma sinfonia de Schubert ou uma cantata de Bach. Ao anoitecer, bebia uma cerveja a acompanhar a refeição pronta-a-comer comprada no supermercado da esquina.
Às dez da noite, sentava-se à secretária. Tinha sempre um termo de café quente, uma caneca (por sinal uma dos Snafkin, que eu lhe tinha oferecido nos anos), um maço de Marlboro e um cinzeiro de vidro. E um processador de texto, claro está. com uma letra inscrita em cada tecla.
Reinava um profundo silêncio. A sua mente estava tão desanuviada como o céu de uma noite de Inverno, com a Ursa Maior e a Estrela Polar no devido lugar, emitindo o brilho do costume. Tinha tantas coisas para dizer, Sumire, tantas histórias para contar. Bastava-lhe encontrar o tom certo, que as ideias e os pensamentos inflamados jorrariam como lava, dando corpo a uma torrente ininterrupta de obras inovadoras como nunca antes o mundo conhecera. Toda a gente ficaria de olhos arregalados face à inesperada entrada em cena desta «prometedora jovem autora de talento excepcional». Na secção cultural dos jornais sairia uma fotografia sua, a sorrir com um ar porreiro, e os editores fariam fila à porta do seu apartamento.
Mas nunca tal chegou a acontecer. Sumire escreveu algumas obras que tinham um princípio e outras que tinham um fim. Contudo, nunca escreveu uma só que tivesse ao mesmo tempo um princípio e um fim. ;
Não se pode dizer que ela tivesse alguma vez experimentado a angústia do escritor perante a página em branco. Para dizer a verdade, escrevia ininterruptamente tudo o que lhe vinha à cabeça. O problema era que escrevia demasiado. Nesse caso, dir-me-ão, é óbvio que bastaria que ela se desse ao trabalho de eliminar tudo o que estava a mais, mas a verdade é que as coisas não eram assim tão simples. No que tocava à sua escrita, Sumire mostrava-se incapaz de distinguir entre o que era relevante e o que não o era. No dia seguinte, ao reler o texto já impresso, parecia-lhe que todas as frases eram imprescindíveis. Ou, pelo contrário, que aquilo era tudo para apagar. Por vezes, em desespero de causa, rasgava o manuscrito inteiro e deitava-o no lixo. No caso de a noite ser de Inverno e de o quarto dispor de uma lareira, o calor teria decerto criado um ambiente acolhedor, à imagem e semelhança de uma cena de La Bohème, mas o apartamento de Sumire, como seria de esperar, não tinha lareira nem telefone. Nem sequer um espelho que se visse.
Ao fim-de-semana, Sumire pegava nos seus romances todos — ou, pelo menos, nas páginas que haviam por sorte escapado ao massacre — e aparecia no meu apartamento. Mesmo assim, devo dizer que ainda faziam uma rima considerável. E eu era a única pessoa no mundo inteiro a quem Sumire deixava ler os seus escritos.
Nos tempos da faculdade eu andava dois anos adiantado e, além disso, éramos de variantes diferentes, o que quer dizer que o normal seria que nunca nos tivéssemos encontrado. Travámos conhecimento por mero acaso. Foi numa segunda-feira de Maio, no dia a seguir a uma «ponte», estava eu especado na paragem de autocarro em frente à entrada principal da faculdade, a ler um romance de Paul Nizan que fora desencantar numa loja de livros em segunda mão, quando uma rapariga baixinha, que se encontrava ao meu lado, esticou o pescoço para dar uma olhadela ao livro e me atirou um «gostava de saber como é que ainda há gente que perde tempo a ler Nizan». Tinha uma maneira de falar extremamente agressiva. Como se sentisse vontade de desatar aos pontapés a qualquer coisa, mas, à falta de melhor, lhe tivesse dado antes para se pôr ali a criticar o meu gosto em matéria de leituras.
Éramos muito parecidos, Sumire e eu. Para nós os dois, devorar livros era tão natural como respirar. Aproveitávamos todos os momentos livres para nos sentarmos sossegados a um canto, a virar interminavelmente as páginas, umas atrás das outras. Romances japoneses, romances estrangeiros, títulos recentes, clássicos, obras de vanguarda ou best-sellers — líamos de tudo um pouco, todos os livros que nos iam parar às mãos, desde que fossem intelectualmente estimulantes. Fazíamos a ronda das bibliotecas, passávamos dias a fio entretidos a vaguear pela Kanda, a meça dos alfarrabistas, que fica em Tóquio. Além de mim, nunca conhecera ninguém que experimentasse tamanha paixão — tão profunda, tão vasta — pela leitura, e tenho a certeza de que o mesmo acontecia com Sumire.
Acabei a minha formação escolar na mesma altura em que Sumire abandonou a universidade, mas, apesar disso, ela continuou a aparecer lá em casa duas ou três vezes por mês. Outras vezes era eu que a visitava, mas no apartamento dela mal cabiam duas pessoas, e quase sempre era ela quem acabava por ir ter a minha casa. Sempre que estávamos juntos, falávamos dos romances que tínhamos lido e trocávamos livros. Quase sempre era eu que fazia o jantar. Não me importava de cozinhar e Sumire fazia parte daquele tipo de pessoas que preferem passar fome a entrar na cozinha. Em jeito de recompensa, trazia-me pequenos presentes dos seus empregos temporários. Uma vez, quando estava a trabalhar no armazém de uma empresa farmacêutica, trouxe-me seis dezenas de preservativos. Ainda devem estar para aí algures no fundo de uma gaveta.
Os romances — ou, melhor dizendo, os fragmentos de romances — que Sumire naquele tempo escrevia não eram assim tão maus como ela pensava. É certo que o seu estilo fazia por vezes lembrar uma manta de retalhos feita à mão por um grupo de velhotas rabugentas, cada uma com os seus gostos e queixumes próprios, trabalhando juntas num silêncio soturno. Esta tendência, dado o temperamento maníaco-depressivo de Sumire, fazia com que as coisas escapassem por vezes ao seu controlo. Ainda por cima, e como se isso não bastasse, a Sumire só lhe interessava criar um «romance total». Uma obra monumental ao melhor estilo do século xix, o género de composição capaz de albergar na sua génese toda a espécie de fenómenos, por forma a captar a essência da alma humana e do destino dos homens.
Apesar do que atrás ficou dito, a escrita de Sumire possuía uma frescura muito particular, naquele seu jeito de retratar com honestidade o que, aos seus olhos, era importante. Além do mais, o seu estilo não procurava imitar o de ninguém, nem tinha a pretensão de forjar pequenas «pérolas» literárias minuciosamente elaboradas. Era isso que eu mais apreciava na sua escrita. Teria sido injusto reduzir aquela força natural presente na sua escrita a uma mera questão formal, preciosismos à parte. Ainda tinha muito tempo para se pôr com rodriguinhos. Mais valia não se precipitar. Tal como reza o ditado: o que se cuida devagar, não tardará a medrar.
— Tenho a cabeça a abarrotar de coisas sobre as quais quero escrever — confidenciou-me Sumire. — Como um celeiro arrumado de qualquer maneira. Imagens, cenas, fragmentos de palavras... São tudo coisas que despontam na minha cabeça como um clarão, com vida própria. Escreve!, gritam-me aos ouvidos. Sinto que está prestes a nascer aquela grande história que me há-de transportar até um lugar inteiramente novo. Mas, chegada a hora, quando me sento à secretária e tento traduzir tudo isso em palavras, dou-me conta de que alguma coisa de vital ficou pelo caminho. O quartzo não cristaliza — sobram apenas seixos. E não chego a parte alguma.
Franzindo o sobrolho, Sumire pegou na duocentésima quinquagésima pedra e lançou-a ao lago.
— Talvez me falte alguma coisa. Algo imprescindível para se ser um verdadeiro escritor.
Caiu num profundo silêncio. Parecia mesmo que estava à espera de que eu avançasse com a minha opinião corriqueira do costume.
— Antigamente, na China, as cidades estavam rodeadas de altas muralhas, onde se abriam portas enormes, imponentes — disse eu, passados momentos. — As portas tinham um significado especial, não serviam apenas para entrar e sair. Os Chineses acreditavam que era nelas que residia a alma da cidade. Ou, pelo menos, que era ali que devia residir. Tal como na Europa medieval, quando as gentes de então consideravam a catedral e a praça como o coração da cidade. Por isso, ainda hoje na China muitas dessas portas maravilhosas estão de pé. Sabes como é que os Chineses construíam essas portas? ?
— Não faço a menor ideia — respondeu Sumire.
— As pessoas iam de carroça até aos antigos campos de batalha e recolhiam as ossadas que haviam sido enterradas ou que se encontravam espalhadas nas imediações. Tem uma longa História, a China, e campos de batalha é coisa que por lá não falta. Depois construíam uma porta enorme à entrada da cidade e deixavam ficar todos aqueles ossos selados lá dentro. Esperavam eles que, honrando desse modo as suas almas, os soldados mortos continuariam sempre a proteger a cidade. Mas há mais. Quando a porta estava construída, levavam até lá alguns cães vivos e cortavam-lhes a goela, aspergindo o portão com o sangue ainda morno. Acreditavam eles que só essa mistura de sangue ainda fresco e ossos ressequidos tornaria, como que por magia, a dar vida às almas dos guerreiros mortos.
Sumire ficou em silêncio à espera de que eu prosseguisse.
— Escrever um romance é mais ou menos a mesma coisa. Por mais ossadas que consigas reunir, por mais maravilhosa que seja a porta que logres construir, só isso não servirá para dar forma a um romance vivo, a uma obra de fôlego. Uma história não é uma coisa deste mundo. Uma verdadeira história requer uma espécie de baptismo mágico capaz de ligar este mundo ao outro.
— Estás a querer dizer que eu preciso de arranjar um cão e ir à luta sozinha?
Assenti com a cabeça.
— E derramar sangue fresco?
Sumire ficou a matutar sobre o assunto enquanto mordia os lábios. Voltou a lançar mais uma mísera pedra ao lago.
— Preferia não ser obrigada a matar nenhum animal.
— É uma metáfora — disse eu. — Não se trata aqui de matar cão algum.
Estávamos sentados, como de costume, ao lado um do outro no parque de Inogashira, no banco preferido de Sumire. À nossa frente estendia-se o lago. Era um dia sem vento. As folhas mortas caídas das árvores pareciam coladas à superfície da água. Um pouco mais longe, alguém tinha acendido uma fogueira. O ar recendia ao perfume de finais de Outono e, ao longe, os sons faziam-se ouvir com dolorosa nitidez.
— Precisas é de tempo e experiência — acrescentei.
— Tempo e experiência — repetiu ela, pensativa, e fitou o céu. — O tempo passa depressa. E a experiência? Não me venhas com essa conversa. Não é que me orgulhe disso, mas a verdade é que não sinto ponta de desejo sexual. E como pode um escritor falar com a voz da experiência, se não sentir a paixão dentro dele? É como um cozinheiro sem apetite.
— Não sei onde é que o teu desejo terá ido parar — retorqui eu. — Talvez esteja apenas escondido para aí nalgum canto ou tenha ido de viagem e se esquecesse de regressar a casa. Vendo bem, o facto de uma pessoa se apaixonar nada tem de racional.
De um momento para o outro, o desejo pode nascer do nada e apanhar-te de surpresa. Talvez até mesmo amanhã, quem sabe?
Sumire desviou os olhos do céu e cravou-os no meu rosto.
— Como um tornado?
— Se tu o dizes.
Por breves momentos, ela pôs-se a imaginar um tornado sobre uma vasta planície.
— Já alguma vez viste um tornado?
— Nunca — respondi. — Em Tóquio, felizmente, os tornados não são o pão nosso de cada dia.
Ainda não eram passados seis meses e, sem que nada o fizesse prever, a minha profecia cumpriu-se e o amor abateu-se sobre Sumire com a violência de um tornado. Apaixonou-se por uma mulher casada, dezassete anos mais velha, e chamava-lhe «Sputnik, meu amor».
Quando se encontraram sentadas, uma ao lado da outra, à mesa do banquete de casamento, Sumire e Miu fizeram o que toda a gente faz em situações semelhantes, que é como quem diz, apresentaram-se. Sumire, que abominava o seu nome, evitava pronunciá-lo sempre que podia, mas quando alguém lho perguntava não tinha outro remédio senão responder.
Segundo o pai contava, fora a mãe quem escolhera o nome. Ela adorava uma lied de Mozart intitulada Violeta e há muito decidira que, se alguma vez tivesse uma filha, seria esse o nome que lhe daria. Na sala de estar lá de casa, arrumada na estante dos discos, havia uma colectânea de lieder de Mozart (sem dúvida a mesma que a sua mãe costumava escutar) e, quando era pequena, Sumire costumava pousar cuidadosamente o pesado LP no prato do gira-discos e escutar aquele tema vezes sem conta. Elizabeth Schwartzkopf era solista, acompanhada ao piano por Walter Gieseking. Sumire não compreendia o texto, mas com base na suave melodia era levada a supor que cantava a beleza das violetas que floresciam nos campos. Sumire adorava essa imagem.
No secundário, porém, descobrira por mero acaso na biblioteca uma tradução japonesa da lied e tivera a surpresa da sua vida. Narrava a história de uma humilde violeta do campo espezinhada pela insensível filha de um pastor. Ainda por cima, a rapariga nem sequer se dava conta da existência da flor, que jazia quase esmagada a seus pés. Era certo que se tratava de um poema de Goethe, mas nem agarrando-se a essa ideia logrou Sumire encontrar consolo ou descortinar a moral da história.
— Como foi a minha mãe capaz de me dar o nome de uma lied tão horrível? — perguntou Sumire, com um ar infeliz.
Miu compôs os cantos do guardanapo que tinha no colo, esboçou um sorriso imparcial e olhou para Sumire. Tinha as pupilas muito escuras. Eram uma mistura de muitas cores, mas perfeitamente nítidas e sem a menor sombra.
— Acha a melodia bonita?
— Sim, a melodia em si é bonita.
— Desde que a música seja do meu agrado, já fico satisfeita. Nem tudo neste mundo pode ser belo, não acha? A sua mãe devia gostar tanto dessa música que não ligou importância alguma aos versos. Além disso, se continua a fazer essa cara, vai ficar cheia de rugas.
Sumire esforçou-se por fazer uma expressão menos carrancuda.
— Pode ser que tenha razão, mas isso não impede que eu tenha ficado desapontada. Afinal de contas, o nome foi praticamente a única coisa palpável que a minha mãe me deixou. Para além de mim mesma, claro está. «.;,.; .-•>
— Pois, na minha opinião, Sumire é um lindo nome. Gosto muito dele — afirmou Miu, inclinando ligeiramente a cabeça como quem faz menção de ver as coisas de um outro ângulo. — A propósito, o seu pai também veio ao casamento?
Sumire olhou à sua volta. O salão era grande, mas o seu pai era alto, e ela deu logo com ele. Sentara-se a duas mesas dali, de perfil, a falar com um velhote baixinho que estava de fraque. Nos seus lábios desenhava-se um sorriso tão afável e confiante que dava para derreter um icebergue. A luz dos candelabros fazia sobressair ligeiramente a perfeição das linhas do seu nariz, como numa daquelas antigas silhuetas recortadas em papel, e até a própria Sumire, que estava habituada a vê-lo, se sentiu tocada por tamanha beleza. O seu pai encaixava-se perfeitamente numa cerimónia formal daquele tipo. A mera presença dele emprestava ao ambiente um toque especial de classe. Como um arranjo de flores acabadas de apanhar numa grande jarra ou uma limusina negra como azeviche.
Ao descortinar o pai de Sumire, Miu ficou por momentos sem fala. Sumire quase podia ouvir o ar a ser inspirado. Era como o som de um cortinado de veludo a ser corrido para deixar entrar a suave luz matinal destinada a acordar uma pessoa que nos é particularmente querida. Devia ter trazido os meus binóculos da ópera, pensou Sumire. Mas já estava habituada à reacção teatral que o físico do pai provocava nas pessoas — especialmente nas mulheres de meia-idade. O que é a beleza? Que valor tem? Sobre tudo isso passava Sumire a vida a interrogar-se, com um espanto sempre renovado. Nunca ninguém lhe soubera responder. Mas a verdade era que aquele mesmo efeito se repetia constantemente.
— Qual é a sensação de ter um pai tão bem-parecido? — perguntou Miu. — Só por curiosidade.
Sumire suspirou — era espantoso como as pessoas podiam ser tão previsíveis.
— Não posso dizer que seja lá muito agradável. No seu íntimo, toda a gente pensa a mesma coisa: «Mas que bonito homem. Um verdadeiro espanto. Em comparação, a filha, bom, não é propriamente uma beleza, pois não? Deve ser aquilo a que chamam atavismo.»
Miu virou-se para Sumire, agarrou-lhe no queixo com extrema delicadeza e olhou-a bem de frente, como se estivesse numa galeria de arte a contemplar um quadro.
— Se é nisso que realmente acredita, está muito enganada. Acho-a muito bonita. Em beleza, não fica a dever nada ao seu pai — disse ela. Depois estendeu a mão e, num gesto perfeitamente natural, tocou ao de leve na mão de Sumire pousada sobre a mesa. — Não imagina até que ponto é encantadora.
Sumire ficou com a cara a arder. O coração a bater dentro do peito fazia tanto barulho como um cavalo à solta, à desfilada numa ponte de madeira.
Depois disso, Sumire e Miu ficaram as duas entretidas a conversar. O banquete estava muito animado, com o habitual sortido de discursos servido à sobremesa (incluindo, sem dúvida, o do pai de Sumire), e o jantar até estava bem servido. Mas nada disso ficou gravado na memória de Sumire. Teria comido carne ou peixe? Teria usado os talheres como mandam as regras de etiqueta ou comera com as mãos e lambera o prato? Sumire não fazia a mínima ideia. Falaram de música. Sumire era uma apaixonada por música clássica e, desde pequena, habituara-se a ouvir a colecção de discos do seu pai. Tanto ela como Miu descobriram que tinham gostos muito parecidos. Gostavam de piano e estavam ambas convencidas de que a Sonata n.° 32 de Beethoven era a obra mais importante em toda a história da música. E que a interpretação, inigualável, de William Backhaus daquela sonata, gravada para a Decca, devia ser considerada uma referência absoluta na matéria. Que obra maravilhosa, aquela, capaz de transmitir tamanha alegria de viver!
E as gravações em «mono» de Chopin por Vladimir Horowitz, particularmente os scherzos, não são verdadeiramente empolgantes? Sem esquecer os prelúdios de Debussy executados por Friedrich Gulda, tão belos e cheios de graça. E o Grieg de Gieseking, delicioso, do primeiro ao último acorde? Vale a pena ouvir Prokofiev por Sviatoslav Richter vezes sem fim — a sua interpretação consegue captar ao pormenor as bruscas modulações dos estados de espírito. E que dizer das sonatas de Mozart interpretadas por Wanda Landowska — de tal forma tocantes que nem dá para acreditar que não tenham sido mais aclamadas?
— O que faz na vida? — perguntou Miu, quando a conversa sobre música chegou ao fim.
Sumire explicou que tinha abandonado a universidade e arranjado uns empregos temporários, e que queria escrever um romance.
Que género de romance?, quis saber Miu. Sumire respondeu que era difícil de explicar numa palavra. bom, nesse caso, insistiu Miu, que género de romances gostava ela mais de ler?
— Se fosse a nomeá-los todos, não saíamos daqui — disse Sumire. — Mas agora ando a ler Jack Kerouac. ,
E foi então que veio à baila o episódio do Sputnik. Além de alguma ficção light que lia mais para passar o tempo, Miu quase nunca tocava em romances.
— Não consigo tirar da cabeça a ideia de que aquilo é tudo inventado — explicou ela — e isso impede-me de me identificar com as personagens. Foi sempre assim.
Essa a razão pela qual as suas leituras se limitavam a obras que retratavam a realidade enquanto tal. Na sua maioria, livros que lhe pudessem ser úteis no seu trabalho.
— O que faz na vida? — perguntou Sumire.
— Tem principalmente a ver com o estrangeiro — respondeu Miu. — Há cerca de treze anos herdei a empresa do meu pai. Andava a estudar para ser pianista, mas o meu pai morreu de cancro, e a minha mãe, além de não saber falar muito bem japonês, não tinha saúde para isso. O meu irmão ainda andava no ensino secundário e, como eu era a filha mais velha, ficou decidido que seria eu a tomar conta da empresa. Dela dependia a subsistência de vários familiares, por isso não me podia dar ao luxo de deixar o negócio ir por água a baixo.
Miu pontuou o seu relato com um suspiro.
— Inicialmente, a empresa do meu pai importava frutos secos e ervas medicinais da Coreia, mas agora dedica-se a comercializar uma enorme variedade de produtos, até mesmo peças de computador. A empresa ainda está em meu nome, mas, na realidade, o meu marido e o meu irmão mais novo é que tratam de tudo, por isso não preciso de ir ao escritório todos os dias. O que quer dizer que fiquei com mais tempo para me dedicar aos meus próprios negócios.
— Que tipo de negócios?
— Importação de vinho, principalmente. De vez em quando, também organizo concertos. Vou muito à Europa, uma vez que este tipo de negócio depende muito dos contactos pessoais. Mesmo trabalhando sozinha, posso competir com algumas firmas comerciais de primeiro plano. Mas para pôr de pé e manter toda esta rede de contactos é preciso tempo e energia. Tem de ser... — Levantou a cabeça, como se tivesse acabado de lhe ocorrer uma ideia. — A propósito, fala inglês?
— O inglês não é o meu forte, mas desenrasco-me. Agora, gosto muito é de ler em inglês.
— Sabe trabalhar com computadores? ; ’
— Não entendo grande coisa de informática, mas estou habituada a utilizar um processador de texto e tenho a certeza de que posso aprender rapidamente mais coisas.
— E conduzir, sabe?
Sumire abanou a cabeça. No ano em que entrara para a universidade tentara enfiar o Volvo do pai de marcha atrás na garagem e metera a traseira para dentro ao bater num pilar. Desde então, não tinha voltado a pegar num carro. ’ -
— Tudo bem. Consegue explicar, em menos de duzentas palavras, a diferença entre signo e símbolo?
Sumire pegou no guardanapo, passou-o delicadamente pelos cantos da boca, e voltou a pô-lo no colo. Não estava a perceber onde é que a mulher queria chegar. ! — Signo e símbolo? • - •!
— Não tem nenhum significado especial. É só um exemplo. Sumire voltou a abanar a cabeça.
— Não faço a mínima ideia. Miu sorriu.
— Se não se importa, gostaria que me falasse da sua experiência profissional. Aquilo que na prática sabe fazer. Para além de devorar romances e ouvir música. - * •Sumire pousou a faca e o garfo devagarinho no prato, fitou o vazio por cima da mesa e pôs-se a matutar sobre a questão.
— Seria mais rápido fazer a lista das coisas que não sei fazer, em vez daquelas em que sou boa. Não sei cozinhar nem arrumar a casa. O meu quarto está uma desgraça e passo a vida a perder tudo. Adoro música, mas desafino imenso. Sou desajeitada e não sei dar um ponto. Não tenho o menor sentido de orientação e metade das vezes não consigo sequer distinguir a esquerda da direita. Quando me irrito, dá-me para começar a partir coisas. Pratos, lápis, despertadores. Geralmente depois arrependo-me, mas na altura é mais forte do que eu. Não tenho conta no banco. Sou tímida, sem ter razão para isso, e os meus amigos contam-se pelos dedos. Sumire fez uma pausa antes de continuar. — Mas, em contrapartida, consigo escrever depressa à máquina sem olhar para as teclas. Não sou lá grande desportista, mas, tirando aquela vez em que tive papeira, nunca fiquei doente em toda a minha vida. Sou muito pontual, nunca chego atrasada aos meus encontros. Como praticamente de tudo um pouco. Nunca vejo televisão. Às vezes dá-me um ataque estúpido de orgulho, mas não sou do género de me andar a queixar pelos cantos por tudo e por nada. Mais ou menos uma vez por mês fico com os ombros tão tensos que não consigo pregar olho, mas fora isso durmo como uma pedra. Os meus períodos menstruais são pouco abundantes. Não tenho uma única cárie. E falo bem espanhol. Miu levantou a cabeça.
— Sabe falar espanhol?
Quando andava no ensino secundário, Sumire havia passado um mês em casa do tio, que trabalhava para uma firma comercial japonesa na Cidade do México. Aproveitando a oportunidade ao máximo, dedicara-se ao estudo intensivo da língua espanhola e continuara depois a ter aulas na universidade.
Miu segurou o copo de vinho pelo pé, segurando-o entre dois dedos para o voltear suavemente, desenhando uma órbita em parafuso.
— Não gostaria de trabalhar comigo durante uns tempos?
— Trabalhar? — Sem saber muito bem que cara pôr, Sumire adoptou a expressão mal-humorada do costume. — Nunca tive um emprego a sério na vida, e nem sequer sei atender o telefone como deve ser. Faço os possíveis por não apanhar o comboio antes das dez da manhã e, como já deve ter reparado, não se pode dizer que a minha maneira de falar seja propriamente requintada.
— Isso não tem qualquer importância — disse simplesmente Miu. — A propósito, está disponível amanhã, por volta do meio-dia?
Sem querer, Sumire disse que sim com a cabeça. Nem sequer foi preciso pensar duas vezes. Afinal de contas, tinha tempo para dar e vender. , .-....-.-.
— Nesse caso, podíamos almoçar juntas. Vou reservar uma mesa sossegada num restaurante que fica perto do escritório — disse Miu.
Observou à contraluz o copo de vinho tinto que o empregado tinha acabado de lhe servir, aspirou o aroma, e só depois bebeu um primeiro trago com todo o vagar. Realizou todos aqueles gestos encadeados com uma elegância natural que fazia pensar numa curta cadenza aperfeiçoada ao longo dos anos por um pianista experiente.
— Amanhã discutiremos os pormenores com calma. Hoje quero é divertir-me. Não sei de onde apareceu este Bordéus, mas não é mau de todo, sabe? .
Sumire abandonou a expressão arisca e perguntou a Miu com toda a franqueza:
— Mas acabámos de nos conhecer, não sabe quase nada de mim.
— Lá isso é verdade — reconheceu Miu.
— Então como sabe que lhe posso ser útil?
Miu fez girar o vinho no interior do copo. :
— Habituei-me a julgar as pessoas pela cara — respondeu ela. — Isto quer dizer que eu gosto da sua cara, das suas expressões.
De repente, Sumire teve a impressão de que o ar à sua volta se tornara mais leve. Sentiu os mamilos ficarem rijos por baixo do vestido. Pegou maquinalmente num copo com água e engoliu-a de um trago. Por trás dela surgiu um empregado de mesa com ar aquilino, que se apressou a encher-lho de novo com água gelada. No espírito perturbado de Sumire, o barulho dos cubos de gelo ressoava como o lamento de um assaltante que se descobre prisioneiro numa caverna.
Devo estar mesmo apaixonada por esta mulher, convenceu-se ela. Sem sombra de dúvida. O gelo é frio e as rosas são vermelhas. Estou apaixonada. E este amor vai decerto arrastar-me para longe. A corrente é demasiado forte, não tenho escolha possível. Pode muito bem levar-me até um sítio especial, a um mundo inteiramente desconhecido. A um lugar povoado de perigos, onde esteja escondida alguma coisa que acabará fatalmente por me ferir. Posso acabar por perder tudo. Mas já não posso voltar atrás. Só posso deixar-me ir com a maré. Mesmo que comece a arder, mesmo que desapareça para sempre.
Sei agora, depois dos factos consumados, que a sua profecia estava certa — cento e vinte por cento certa.
Haviam passado cerca de duas semanas desde o casamento quando Sumire me telefonou, num domingo de madrugada, pouco antes do alvorecer. Como seria de esperar, eu estava a dormir como uma pedra. Tão desligado do mundo como uma velha bigorna. Na semana anterior, calhara ser a minha vez de organizar uma reunião de professores e, a fim de conseguir reunir todos os documentos necessários (leia-se inúteis), vira-me obrigado a roubar umas quantas horas ao sono. Chegado o fim-de-semana, queria era dormir até à exaustão. Como se fosse de propósito, foi precisamente nessa altura que o telefone tocou.
— Estavas a dormir? — perguntou Sumire.
— Hum — resmunguei eu, ao mesmo tempo que lançava instintivamente uma olhadela ao despertador que estava em cima
da mesa-djjrcabeceira.
O relógio tinha uns ponteiros grandes, fosforescentes, mas nem mesmo assim consegui ver as horas. A imagem projectada na minha retina e a zona do cérebro onde se processava a informação não encaixavam lá muito bem. Como uma anciã a tentar enfiar uma agulha sem o conseguir. A única coisa que sabia era que à minha volta era ainda noite cerrada, e que não devia andar muito longe daquilo a que Scott Fitzgerald chamou «a noite escura da alma».
— Está quase a nascer o dia.
— Hum — murmurei sem vontade nenhuma.
— Perto do sítio onde eu moro há um homem que cria galos. Já os tem há anos sem conta. Daqui a meia hora, mais minuto menos minuto, desatam a cantar alto e bom som. Esta é a hora do dia de que eu mais gosto. Quando o céu, escuro como breu, começa a clarear a leste e os galos começam a cantar com todas as suas forças, como se se quisessem vingar de alguém. Tens galos aí perto de casa?
Do outro lado da linha abanei ligeiramente a cabeça.
— Estou a ligar da cabina telefónica que fica ao pé do parque.
— Hum — respondi.
Havia uma cabina telefónica a menos de duzentos metros do apartamento dela. Como Sumire não tinha telefone em casa, era até lá que ia sempre que me queria ligar. Era uma cabina telefónica normalíssima, igual a todas as outras. >.
— Bem sei que não devia estar a ligar-te assim tão tarde. Lamento sinceramente. Para mais, a esta hora, quando ainda nem os galos começaram a cantar. A esta hora, quando a pobre Lua, pendurada a leste num canto do céu, mais parece um rim em mau estado. Mas agora pensa também um bocadinho em mim, que tive de mergulhar na escuridão total para chegar até aqui agarrada a este cartão de telefone que me deram no dia do casamento da minha prima. com uma fotografia do feliz casal de mãos dadas. Consegues imaginar até que ponto estas coisas me deprimem? Tem dó de mim! As meias que trago calçadas são desirmanadas. Uma tem um desenho do Rato Mickey e a outra é de lã, toda lisa. O meu quarto está uma perfeita bagunça, não consigo encontrar nada. O melhor é não dizer isto muito alto, mas não imaginas o estado em que tenho as cuecas. Duvido mesmo de que até um desses tarados que coleccionam roupa interior quisesse ficar com elas. Se um maluco qualquer acabasse comigo, no estado em que eu estou, nunca mais descansaria em paz. Não te estou a pedir que tenhas pena de mim, mas seria simpático da tua parte se, aí desse lado, pudesses dizer-me qualquer coisa com pés e cabeça. Para além dessas tuas frouxas interjeições, dos ohs e dos hums. Que tal uma conjunçãozinha? Uma conjunção já seria bom. Um sim ou um mas, por exemplo.
— Contudo — disse eu, exausto e a sentir-me como se ainda estivesse no meio de um sonho.
— Contudo — repetiu ela. — Tudo bem, já não é mau. Um pequeno passo para o homem. Um pequeníssimo passo, contudo.
— Querias mais alguma coisa?
— Sim, queria fazer-te uma pergunta. Foi por isso que telefonei — disse Sumire. Pigarreou ligeiramente. — Diz lá: qual é a diferença entre signo e símbolo?
Tive uma sensação estranha, como se alguma coisa estivesse a desfilar na minha cabeça em silêncio.
— Podes repetir a pergunta? Ela repetiu. >
— Qual é a diferença entre signo e símbolo? - . Sentei-me na cama, mudei o auscultador da mão esquerda
para a direita.
— Deixa-me ver se percebi bem: estás a telefonar-me porque queres saber a diferença entre signo e símbolo. Num domingo de madrugada, antes do amanhecer. Hum... - . .
— Às quatro e um quarto da manhã, mais precisamente — disse ela. — Não conseguia tirar isso da cabeça. Qual será a diferença entre signo e símbolo? Houve alguém que me perguntou isso há dias, mas depois passou-me. Há bocado, quando estava a despir-me para ir para a cama, lembrei-me de repente. Não consigo adormecer enquanto não souber. Podes explicar-me? A diferença entre signo e símbolo? - ,- -:;~<;
— Deixa-me pensar — disse eu, fitando o tecto. Explicar uma coisa a Sumire recorrendo à lógica, mesmo estando eu na plena posse das minhas faculdades, não era tarefa fácil. — O imperador é o símbolo do Japão. Isso, percebes?
— Mais ou menos — respondeu ela.
— Mais ou menos não chega. É o que diz a Constituição japonesa — retorqui eu, esforçando-me por não perder a paciência. — Aqui não há margem para discussão nem para grandes dúvidas. Tens de aceitar isso como um facto, ou então não conseguimos chegar a lado nenhum.
— Tudo bem. Estou a perceber a ideia.
— Obrigado. Repito: o imperador é o símbolo do Japão. Mas isso não quer dizer que o imperador e o Japão sejam equivalentes. Estás a perceber?
— Não. — bom, vamos lá ver — a seta aponta numa única direcção. O imperador é o símbolo do Japão, mas o Japão não é o símbolo do imperador. E isto, percebes?— Acho que sim.
— Imagina, por exemplo, que na Constituição estava escrito: O imperador é o signo do Japão. Nesse caso, os dois seriam equivalentes. Sempre que falássemos do Japão, estaríamos também a referir-nos ao imperador, e sempre que nomeássemos o imperador, referir-nos-íamos sempre ao Japão. Por outras palavras, os dois teriam o mesmo valor. É a mesma coisa do que dizer que A é igual a B, logo B é igual a A. Um signo é isso.
— Ou seja, o que estás a dizer é que se pode trocar o imperador pelo Japão. Isso é possível?
— Não, não foi isso que quis dizer — disse eu, abanando violentamente a cabeça, do outro lado da linha. — Só estou a tentar explicar-te a diferença entre signo e símbolo de forma a que percebas. Não faço tenção de trocar o imperador pelo Japão. É apenas um exemplo.
— Hum — disse Sumire. —Já estou a perceber. É uma imagem. Como a diferença entre uma rua de sentido único e outra com dois sentidos. ’ ;-
— É uma comparação aceitável, para não irmos mais longe.
— Sempre fiquei espantada com o jeito que tens para explicar as coisas.
— Não faço mais do que a minha obrigação — argumentei. As minhas palavras soavam algo insípidas e desprovidas de significado. — Devias experimentar dar aulas na primária, que logo vias. Fazem-me cada pergunta! Porque é que o mundo não é quadrado? Porque é que as lulas têm dez tentáculos e não oito? Aprendi a ter resposta para quase tudo.
— Deves ser um óptimo professor.
— Isso gostava eu de saber — disse eu, e gostaria realmente.
— A propósito, porque é que as lulas têm de facto dez tentáculos e não oito?
— Já posso ir dormir? Estou de rastos. Só de pegar no auscultador, sinto-me como se estivesse a impedir a derrocada de um muro de pedra sem ajuda de ninguém.
— Ouve — disse Sumire, e fez uma ligeira pausa, como um velho guarda-linha ao fechar com força a passagem de nível antes da chegada do comboio para Sampetersburgo —, pode parecer uma estupidez isto que te Vou dizer, mas a verdade é que estou apaixonada.
— Hum — fiz eu, passando o auscultador outra vez para a mão esquerda. Ouvia a respiração de Sumire do outro lado da linha e não sabia o que lhe havia de dizer. E, como acontece sempre que não sei o que dizer, deixei escapar um comentário totalmente descabido. — Mas não é por mim, presumo?
— Não, não é por ti — declarou Sumire. Ouvi-a acender um cigarro com um isqueiro barato. — Hoje tens que fazer? Podíamos encontrar-nos logo para continuar a conversa. - ? ;
— Sobre o facto de te teres apaixonado por outra pessoa que não eu?
— Exactamente — disse ela. — Sobre o facto de eu me ter apaixonado loucamente por outra pessoa que não tu.
Segurei o auscultador entre a cabeça e o ombro e espreguicei-me.
— Estou livre logo à tarde.
— Estou aí às cinco — disse Sumire. E depois acrescentou, como se tivesse acabado de se lembrar de alguma coisa: — Obrigada.
— Obrigada porquê?
— Por teres feito o favor de responder às minhas perguntas a meio da noite.
Balbuciei uma resposta vaga, desliguei e apaguei a luz. Era ainda noite cerrada. Antes de voltar a adormecer, dei comigo a pensar no agradecimento final e tentei lembrar-me se alguma vez teria ouvido aquela palavra vinda da boca dela. Uma vez sem exemplo, se calhar, mas não tinha ideia alguma de tal ter acontecido.
Sumire chegou ao meu apartamento pouco antes das cinco. À primeira vista nem a reconheci. Mudara completamente de visual. O cabelo tinha um corte moderno e na franja ainda se notava a marca das tesouradas. Vestia um casaco de malha fino por cima de um vestido de manga curta azul-marinho e calçava sapatos de verniz pretos de salto raso. Até calçara meias de vidro. Meias de vidro? Não sou propriamente um especialista em matéria de roupa feminina, mas saltava aos olhos que tudo o que ela envergava devia ter custado os olhos da cara. Assim vestida, parecia mais elegante e mais bonita do que era costume. Para dizer a verdade, ficava-lhe a matar. Mas, apesar de tudo, eu preferia a Sumire de antigamente, vestida de qualquer maneira. É tudo uma questão de gosto.
— Não está mal — lancei eu, inspeccionando-a da cabeça aos pés. — Não sei bem é o que o velho Jack Kerouac pensaria disto.
Sumire esboçou um sorriso ligeiramente mais sofisticado do que era costume.
— Vamos dar uma volta?
Fomos andando, lado a lado, pela alameda da universidade a baixo até à estação, e parámos no nosso café habitual. Como de costume, Sumire mandou vir uma fatia de bolo com o café. Estava-se nos fins de Abril, numa agradável tarde de domingo. À porta das floristas havia açafrão e tulipas em profusão. Soprava uma brisa suave que roçagava ao de leve na bainha das saias das raparigas e libertava a fragância adocicada das árvores em flor.
Cruzei as mãos atrás da cabeça e fiquei a olhar para Sumire enquanto ela saboreava gulosamente o seu bolo. Através das colunas colocadas no tecto do café, chegava até nós um velho samba na voz de Astrud Gilberto. «Aruanda», cantava ela. com os olhos fechados, o ruído das chávenas e dos pratos lembrava o rumor do mar ao longe. Perguntei a mim mesmo qual seria a sensação de estar em Aruanda? . %
— Ainda cheio de sono?
— Já não — respondi, abrindo os olhos.
— Sentes-te bem?
— Estou fino. Como o rio Moldava no princípio da Primavera. Sumire ficou durante uns instantes a fitar o prato de bolo
vazio. Depois olhou para mim.
— Não achas estranho que eu traga estas roupas vestidas?
— Para dizer a verdade, acho.
— Não fui eu que as comprei. Não tenho dinheiro para isso. Há uma explicação para isto.
— Posso tentar adivinhar?
— Força — disse ela.
— Estavas tu com o teu habitual aspecto desmazelado à Jack Kerouac, de cigarro ao canto da boca, a lavar as mãos numa casa de banho pública, quando de repente entrou disparada uma mulher muito bem vestida com um metro e cinquenta e cinco que, completamente esbaforida, te pediu: «Por favor, ajude-me! Não há tempo para grandes explicações, mas estou a ser perseguida por um grupo de malfeitores. Pode dar-me a roupa que tem vestida? Se trocarmos de roupa, talvez eu consiga trocar-lhes as voltas. Por sorte temos a mesma altura. Já vi uma cena parecida numa daquelas fitas de acção produzidas em Hong Kong.»
Sumire desatou a rir.
— E a outra mulher calçava trinta e cinco de sapato e vestia o tamanho trinta e seis. Por mera coincidência.
— E trocaram de roupa ali, até mesmo as cuequinhas com o Rato Mickey.
— As meias é que têm o Rato Mickey, não são as cuecas.
— Tanto faz — disse eu.
— Humm — suspirou Sumire. — Por acaso, até andas lá perto.
— Perto, a que ponto? ; Ela debruçou-se sobre a mesa.
— É uma longa história. Queres ouvi-la?
— Não me parece que a minha vontade seja para aqui chamada, uma vez que vieste até aqui de propósito para me contares a história toda. Vamos, desembucha. Acrescenta um prelúdio, se quiseres. E, já agora, a Dança dos Espíritos Abençoados’. Por mim, tudo bem.
E ela começou a contar. Falou do casamento da prima e do almoço com Miu no restaurante de Ayoama. E era de facto uma longa história.
Dance of the Blessed Spirits, da ópera Orfeu e Euridice, de Gluck. (N. da T.)
No dia a seguir ao casamento, uma segunda-feira, estava a chover. A chuva começou a cair já passava da meia-noite e não parou até de manhãzinha. Uma chuva doce, suave, que tingiu de negro a terra primaveril e despertou em silêncio as criaturas sem nome que se escondem debaixo da sua superfície. A ideia de voltar a ver Miu deixou o coração de Sumire a bater com mais força, e ela teve dificuldade em concentrar-se fosse no que fosse. Sentia-se como se estivesse sozinha de pé no cimo de uma montanha, açoitada pelo vento. Instalou-se à secretária como de costume, acendeu um cigarro e ligou o processador de texto, mas, por mais que olhasse fixamente para o ecrã, nem uma única frase lhe acorria ao espírito. Coisa muito rara nela. Desistiu, desligou a máquina, deitou-se no chão do quartinho e, de cigarro apagado na boca, entregou-se aos mais variados devaneios.
«Se a simples ideia de ver Miu me põe neste estado», pensou ela, «nem quero imaginar como teria sido penoso para mim se nos tivéssemos despedido ontem na festa para nunca mais nos voltarmos a ver. Será apenas uma questão de admiração, por se tratar de uma mulher mais velha, bonita e sofisticada? Não», rejeitou ela a ideia, «não deve ser por isso. Quando estou com ela, tenho desejo de lhe tocar. Isso não tem nada a ver com simples admiração.»
Sumire suspirou, deixou-se ficar uns instantes a fitar o tecto, depois acendeu o cigarro. Pensando bem, tudo aquilo era muito estranho. Aqui estou eu, pensou ela, aos vinte e dois anos, apaixonada pela primeira vez na vida. E logo teve de ser uma mulher.
O restaurante onde Miu reservara mesa ficava a dez minutos a pé da estação de metro de Omotesando. Era difícil dar com ele à primeira; não se tratava propriamente do género de restaurante onde alguém entrasse sem antes lá ter estado. Até o seu nome era difícil de lembrar, se uma pessoa só o tivesse ouvido uma única vez. Sumire deu o nome de Miu à entrada e foi conduzida a uma pequena sala de jantar reservada, no primeiro andar. Miu já lá estava sentada, a beberricar uma água Perrier fresca, em animada conversa, acerca da ementa, com o empregado de mesa.
Por cima da camisa pólo azul-marinho, Miu vestia uma camisola de algodão da mesma cor, e usava um gancho de cabelo fino, todo de prata. As calças eram de ganga, brancas e justas. Pousados de qualquer maneira num canto da mesa estavam uns óculos escuros de um azul-eléctrico e, em cima de uma cadeira, havia uma raqueta de squash e um saco de desporto Missoni. Dava a impressão de que Miu acabara de jogar uma partida antes do almoço. As suas faces mostravam ainda sinais de um ligeiro rubor. Sumire imaginou-a debaixo do chuveiro do ginásio, a esfregar o corpo com um sabonete de exótica fragância.
Quando Sumire entrou na sala, com o seu habitual casaco de tweed, as calças de caqui e o cabelo todo despenteado como uma órfã, Miu levantou os olhos da ementa e cumprimentou-a com um sorriso deslumbrante.
— No outro dia disseste-me que podias comer de tudo, não foi? Espero que não te importes se for eu a escolher a ementa.
— Claro que não — respondeu Sumire.
Miu encomendou o mesmo para as duas. O prato principal foi peixe fresco grelhado com toque de molho verde com cogumelos. As postas estavam cozinhadas na perfeição, apresentando um tostado no ponto que quase se poderia qualificar de artístico. Cnocchi de abóbora e uma salada de endívias apresentada com todo o requinte eram os acompanhamentos. Para sobremesa havia creme brúlée, mas foi Sumire a única que provou, Miu nem lhe tocou. Por último, beberam café. Sumire reparou que Miu tinha muito cuidado com o que comia. O seu pescoço era delgado como o caule de uma planta, o corpo não tinha um grama de gordura a mais. Não parecia ter qualquer necessidade de fazer dieta. Mesmo assim, era por demais evidente que exercia um rigoroso controlo sobre tudo o que comia. Dir-se-ia uma espartana que vivesse enfiada numa fortaleza no cimo de uma montanha. Enquanto comeram não conversaram sobre nada em especial. Miu queria saber mais coisas sobre a vida de Sumire, e esta fez-Lhe a vontade, respondendo às suas perguntas com sinceridade. Contou a Miu tudo sobre o seu pai, a sua mãe, as escolas que frequentara (todas por ela igualmente detestadas), os prémios recebidos num concurso de escrita — uma bicicleta e uma enciclopédia —, as razões que a levaram a abandonar a universidade, a maneira como passava os dias. Não se podia dizer que fosse uma vida particularmente excitante. Mesmo assim, Miu ouvia tudo aquilo com um ar deslumbrado, como se estivesse a ouvir falar dos costumes fascinantes de um país longínquo que jamais tivesse visitado. Também Sumire queria saber montes de coisas sobre Miu. Mas, aparentemente, Miu não gostava de falar de si mesma.
— Não há nada que valha a pena contar — disse ela, toda sorridente. — Conta-me antes mais coisas sobre ti.
Quando acabaram de comer, Sumire não ficara a saber muito mais. A única coisa que conseguira descobrir foi que o pai de Miu havia doado uma avultada soma de dinheiro à pequena cidade na zona norte da Coreia onde nascera, e mandara construir vários edifícios públicos. Em jeito de agradecimento, os habitantes retribuíram erguendo-lhe uma estátua de bronze na praça central da cidade.
— É uma pequena cidade situada no sopé das montanhas — explicou Miu. — O Inverno é pavoroso e uma pessoa fica arrepiada só de olhar para aquela paisagem. As montanhas estão cheias de escarpas avermelhadas e de árvores retorcidas. O meu pai levou-me lá uma vez, era eu pequena. Foi quando inauguraram a estátua. Apareceu uma série de familiares, que se abraçaram a mim a chorar. Não percebia uma palavra do que eles diziam. Lembro-me de ter sentido medo. Para mim, aquela cidade não passava de um lugar estranho que nunca vira na minha vida.
— Como era a estátua? — perguntou Sumire. Entre os seus conhecidos não se contava ninguém a quem tivesse sido alguma vez erguida uma estátua.
f — Era uma estátua de bronze normal. Do género que se encontra em tudo o que é sítio. Mas confesso que causa uma certa impressão ver uma estátua com os traços do nosso próprio pai. Imagina tu que erigiam uma estátua ao teu pai na praça em frente à estação de Chigasaki. Era provável que sentisses uma certa estranheza, não achas? O meu pai era um homem de estatura baixa, mas a verdade é que a estátua fazia com que ele parecesse um gigante imponente. Na altura só tinha cinco anos, mas lembro-me de me ter apercebido pela primeira vez de que aquilo que os nossos olhos vêem nem sempre corresponde à realidade. Se mandassem erguer uma estátua ao meu pai, pensou Sumire para consigo mesma, seria a estátua a ganhar com isso. Porque a verdade era que o seu pai era quase demasiado bonito para uma pessoa de carne e osso. - --
— Voltando à conversa de ontem — lançou Miu, quando já iam na segunda chávena de café. — Que tal, gostarias de trabalharcomigo? Sumire estava doida por fumar um cigarro, mas não havia um único cinzeiro à vista. Contentou-se em beber um gole de Perrier gelada.
Respondeu com toda a franqueza.
— Nesse caso, qual seria concretamente o tipo de trabalho? Como acho que já ontem te disse, tirando uns biscates do-tipo-que-exige-esforço-físico, nunca tive propriamente aquilo a que se pode chamar um emprego a sério na vida. Além disso, não tenho nada de jeito para vestir. A roupa que levava no dia do casamento foi-me emprestada por uma amiga.
Miu assentiu com a cabeça sem mudar de expressão. Já devia estar a contar com uma resposta do género.
— Ao falar contigo, fiquei com uma ideia bastante aproximada do tipo de pessoa que és — disse ela — e tenho a certeza de que estás à altura das funções que pensei confiar-te. O resto é de somenos. O que importa realmente é saber se queres trabalhar comigo ou não. Tão simples quanto isso. É uma questão de responderes «sim» ou «não».
Antes de responder, Sumire escolheu as palavras cuidadosamente.
— Fico muito contente ao ouvir-te dizer isso, mas o mais importante para mim, neste momento, é escrever romances. Afinal de contas, foi por isso que abandonei a universidade.
Miu olhou de frente para Sumire, por cima da mesa, e esta, sentindo na pele a serenidade daquele olhar, ficou com a cara a arder.
— Posso dizer sinceramente aquilo que penso? — perguntou Miu.
— Claro que sim. Desembucha.
— Podes não gostar do que vais ouvir.
Em jeito de resposta, Sumire franziu os lábios e olhou Miu bem nos olhos.
— Nesta fase da tua vida, e mesmo que dediques dia e noite ao teu romance, não creio que consigas escrever alguma coisa de jeito — disse Miu, num tom calmo mas firme. — É óbvio que tens talento e estou certa de que um dia serás uma escritora extraordinária. Não digo isto por dizer, acredito sinceramente nisso, mas ainda não estás preparada. Ainda não reuniste forças para abrir essa porta. Nunca tiveste essa sensação?
— Resumindo, tempo e experiência — disse Sumire. Miu sorriu.
— Em todo o caso, anda trabalhar comigo. É o melhor que tens a fazer e, quando sentires que chegou a hora, não hesites: deixa ficar tudo para trás e escreve os romances que te ditar o coração. À partida, precisas é de mais tempo do que o comum dos mortais para atingir os teus objectivos. Mesmo que chegues aos vinte e oito anos sem teres sido bafejada pela sorte, que os seus pais te cortem a mesada e fiques sem um chavo, e depois? Talvez passes um bocado de fome, mas até pode ser que essa experiência seja boa para um escritor.
Sumire abriu a boca, disposta a responder, mas não saiu um único som. Limitou-se a assentir com a cabeça, em silêncio. Miu esticou a mão direita até ao centro da mesa.
— Dá-me a tua mão — pediu ela.
Sumire estendeu-lhe a sua mão direita e Miu agarrou nela, como se a quisesse envolver. Sentiu a palma da mão morna e macia.
— Não há motivo para grandes preocupações. Não fiques com esse ar tão abatido. Vais ver que acabamos por nos dar lindamente.
Sumire engoliu em seco e lá conseguiu que os músculos da cara ficassem menos crispados. com Miu a olhar fixamente para ela daquela maneira, tinha a sensação de estar a encolher a olhos vistos. Poderia até acabar muito bem por desaparecer, como um bloco de gelo exposto à luz do sol.
— A partir de segunda-feira, passo a contar contigo no escritório três vezes por semana. Às segundas, quartas e sextas. Podes trabalhar das dez da manhã às quatro da tarde. Assim sempre evitas a hora de ponta. Não posso pagar-te muito, mas o trabalho em si não é difícil e podes ler os teus livros quando estiveres sem nada para fazer. Tens é de arranjar tempo para umas aulas particulares de italiano, aí duas vezes por semana. Como já sabes falar espanhol, não deves ter dificuldade em aprender a língua. Também era bom que arranjasses um tempinho para praticares um bocado o teu inglês e pegares no carro. Achas que consegues?
— Acho que sim — respondeu Sumire.
Nem parecia a voz dela, mas sim a de outra pessoa, vinda da sala ao lado. «Seja o que for que ela me peça para fazer, seja o que for que me mande fazer, não tenho outro remédio senão dizer que sim», pensou ela. Miu continuava a olhar fixamente para Sumire, a mão dela ainda presa nas suas. Sumire conseguia distinguir, nítida, a sua própria imagem reflectida no fundo das pupilas escuríssimas de Miu, como se a sua própria alma estivesse a ser sugada para o outro lado do espelho. Adorou a ideia, mas ao mesmo tempo meteu-lhe medo.
Miu sorriu e umas rugas encantadoras formaram-se nos cantos dos olhos.
— Vamos até lá a casa. Tenho uma coisa para te mostrar.
Uma vez, durante as férias grandes do meu primeiro ano na universidade, fui até ao Norte do Japão, e no comboio conheci uma mulher oito anos mais velha do que eu, também ela a viajar sozinha, com quem passei uma noite. Na altura, lembro-me de ter pensado que tudo aquilo parecia tirado das primeiras páginas do Sanshiro.
Ela trabalhava na secção de operações cambiais num banco de Tóquio. Sempre que tinha uns dias de férias, agarrava num punhado de livros e metia-se à estrada por sua conta e risco.
— Viajar sozinha é muito menos cansativo — confidenciou-
-me.
Tinha o seu encanto e ainda hoje estou para perceber como se foi logo interessar por um estudante universitário de dezoito anos, magro e taciturno como eu. E, contudo, parecia sentir-se nas suas sete quintas, ali sentada à minha frente naquela carruagem de comboio, a falar de tudo e mais alguma coisa. Fartava-se de rir à gargalhada. Por uma vez, até eu dei por mim a falar pelos cotovelos. Por mero acaso, saímos ambos na estação de Kanazawa.
— Tens onde ficar? — perguntou-me ela.
Título de um romance do popular escritor japonês Soseki Natsume. (N. da T.)
_ Não — respondi eu, que nunca na vida fizera uma reserva de hotel.
— Tenho um quarto — disse-me. — Se quiseres, podes ficar comigo. Não te preocupes — acrescentou —, o preço é exactamente o mesmo quer esteja ocupado por uma ou por duas pessoa
Estava nervoso na primeira vez que fizemos amor, o que fez com que o meu desempenho deixasse algo a desejar. Apresentei-Lhe as minhas desculpas.
— Mas que bem-educado que tu me saíste! — exclamou ela.
— Não precisas de pedir desculpa por tudo e por nada. Depois de ter saído do duche, vestiu um roupão, tirou duas
cervejas bem frescas do frigorífico e passou-me uma para a mão.
— És um bom condutor? — perguntou-me.
— Não diria tanto, uma vez que acabei de tirar a carta. O normal, acho eu.
Ela sorriu.
— É como eu. Acho que conduzo bastante bem, mas não parece ser essa a opinião dos meus amigos. Por isso, o mais provável é estar classificada a meio da tabela, nem bem nem mal. Mas aposto que conheces algumas pessoas que se acham uns verdadeiros ases do volante, não?
— Conheço algumas, sim.
— E outros que são uns nabos a conduzir.
Assenti com a cabeça. Ela bebeu um gole de cerveja, em silêncio, e pôs-se a matutar sobre o assunto.
— Até certo ponto, deve ser inato. Neste caso, acho que podemos mesmo falar em talento. Algumas pessoas são desenrascadas; outras são desastradas até dizer chega... Há pessoas atentas e outras completamente despistadas. Não achas?
Voltei a fazer que sim com a cabeça.
— Pronto, agora imagina o seguinte. Supõe que vais fazer uma longa viagem de carro com outra pessoa qualquer, e que vão conduzir por turnos. Nesse caso, que tipo de pessoa é que escolherias? Uma que guiasse bem, mas que fosse imprudente, ou uma que não guiasse tão bem, mas que fosse prudente?
— A segunda, provavelmente — respondi eu.
— Também eu — retorquiu ela. — Temos aqui uma situação muito parecida. Ser bom ou mau, ser despachado ou desajeitado, isso são coisas de somenos. Na minha opinião, o que é importante é estar atento. Ficar calmo, estar atento ao que se passa à nossa volta.
— Atento? — repeti eu. Ela não respondeu e limitou-se a sorrir.
Mais tarde, quando fizemos amor pela segunda vez, tudo correu na perfeição. Tive a sensação de que começava finalmente a perceber o significado de «estar atento». Foi também a primeira vez que vi como reage uma mulher quando se abandona a um prazer intenso.
No dia seguinte, depois de tomarmos o pequeno-almoço juntos, foi cada um para o seu lado. Ela seguiu o seu caminho, e eu o meu. À despedida, contou-me que se ia casar daí a dois meses com um colega de trabalho.
— É óptima pessoa — acrescentou, toda sorridente. — Já andamos juntos há cinco anos, e agora vamos finalmente oficializar a situação, o que significa que, uma vez casada, Vou deixar de poder andar a viajar por aí sozinha. Talvez seja esta a última vez.
Eu era ainda muito jovem e pensava que histórias excitantes destas aconteciam com frequência. Mais tarde, acabei por compreender, e de que maneira, que as coisas não eram bem assim.
Um dia contei a Sumire esta história. Não me lembro bem a propósito de quê. Deve ter sido durante uma das nossas conversas acerca do desejo. ., > -
— Então, e qual é a moral da história? — perguntara-me ela.
— Que é preciso estar atento — respondi. — Não ter ideias preconcebidas, ter em atenção o que se passa à nossa volta, manter os ouvidos, bem como o coração e o espírito, bem abertos.
— Humm — retorquiu Sumire. Parecia remoer a minha breve aventura sexual, quem sabe se considerando a possibilidade de a incluir num dos seus romances. — Em todo o caso, deves ter tido imensas experiências, ou estou enganada?
— Imensas não diria — protestei eu com toda a calma. — As coisas acontecem, e pronto.
Ela mergulhou nos seus pensamentos enquanto mordiscava uma unha.— Mas como se faz para estar atento? Chegado o momento crítico, não basta pensar: «bom, agora Vou estar atento e prestar toda a atenção que puder», não basta estalar os dedos para que as coisas aconteçam, não te parece? Não podes ser um pouco mais concreto? Dá-me lá um exemplo.
— bom, primeiro que tudo é preciso manter a calma. Contando, por exemplo.— E que mais?
— Também podes imaginar um pepino dentro do frigorífico numa tarde de Verão. Só a título de exemplo.
— Espera aí — disse ela, fazendo uma pausa significativa. — Estás a querer dizer-me que sempre que fazes amor com uma rapariga te pões a pensar em pepinos frios no frigorífico num dia de Verão?
— O tempo todo, não — reconheci.
— Mas já te aconteceu?
— Uma vez por outra.
Sumire franziu o sobrolho e abanou várias vezes a cabeça.
— És um tipo muito mais estranho do que à primeira vista possa parecer.— Todas as pessoas têm o seu quê de estranho — comentei eu.
— No restaurante, quando Miu me agarrou na mão sem nunca tirar os olhos de mim, passei o tempo todo a pensar em pepinos — confessou-me Sumire. — Disse para comigo mesma: «Tens de manter a calma, tens de estar atenta.»
— Pepinos?
— Não te lembras? Foste tu que me falaste na história dos pepinos frios dentro do frigorífico num dia de Verão. ;
— Agora que o dizes, acho que sim — lembrei-me. — E serviu-te de alguma coisa?
— Mais ou menos.
— Ainda bem. - Sumire retomou o fio da conversa.
— O apartamento de Miu fica a dois passos do restaurante. Não é muito grande, mas é lindíssimo. Tem uma varanda que apanha sol, plantas de interior, um sofá italiano de pele, umas colunas de som Bose, uma colecção de gravuras, um Jaguar na garagem. Ela mora ali sozinha. A casa onde vive com o marido fica em Setagaya. É lá que passa os fins-de-semana. Mas está a maior parte do tempo no apartamento de Aoyama. Fazes ideia do que ela me queria mostrar?
— As sandálias de pele de cobra preferidas de Marc Bolan numa vitrina de vidro — arrisquei eu. — Um dos muitos e valiosos legados sem os quais a história do rock and roll não ficaria completa. Sem uma única escama a menos e com a assinatura dele. É o completo delírio das fãs.
Sumire franziu o sobrolho e soltou um suspiro.
— Se inventassem um carro que funcionasse com piadas parvas, ias longe.
— Nem só de intelectos brilhantes vive a raça humana — respondi eu, fazendo um ar humilde.
— Pronto, agora a sério. O que achas que ela me queria mostrar? Se acertares, pago eu a conta.
Pigarreei ligeiramente.
— Queria mostrar-te a roupa deslumbrante que trazes hoje. E aproveitou para te dizer que devias ir trabalhar assim vestida.
— Acertaste — disse ela. — Ela tem uma amiga ricalhaça, com roupa para dar e vender, e que veste mais ou menos o mesmo tamanho do que eu. Esta vida é uma coisa estranha, não achas? Há pessoas que têm roupa de sobra e que nem sequer conseguem fechar o guarda-vestidos. E depois há outras, como eu, que não têm duas meias iguais. bom, não interessa. A verdade é que Miu foi a casa da tal amiga e voltou de lá com montes dessas sobras. Se vires bem, está um bocadinho fora de moda, mas assim à primeira vista quase nem se dá por nada.
Disse-lhe que mesmo olhando com mais atenção não se dava por nada. Sumire sorriu com um ar satisfeito.
— Parece mentira, mas a roupa assenta-me como uma luva. Vestidos, blusas, saias, tudo. Está-me um bocado larga na cintura, mas é só pôr um cinto, que disfarça. E como, por sorte, calço o mesmo número de sapatos que a Miu, ela deu-me uma série de pares que já não usa. Saltos altos, saltos rasos, sandálias de Verão. Tudo marcas italianas. Malas, a mesma coisa. E até alguns artigos de maquilhagem.
— Uma perfeita Jane Eyre — disse eu.
E foi assim que Sumire começou a ir trabalhar três vezes por semana para o escritório de Miu. Punha um saia-e-casaco ou um vestido, sapatos de saltos altos, um bocadinho de maquilhagem, e lá ia apanhar o comboio que fazia a ligação entre Kichijoji e Harajuku. Por mais que me esforçasse, não a imaginava nada a cumprir aquele ritual.
Para além das instalações da empresa em Akasaka, Miu tinha o seu próprio escritório em Jingumae, com a secretária dela, outra para a assistente (que é como quem diz, Sumire), um armário de arquivo, um fax, um telefone e um computador. E era tudo. Ocupava apenas uma divisão num prédio de apartamentos, equipada com uma cozinha minúscula e uma casa de banho. Havia um leitor de CD, uma miniaparelhagem e uma dúzia de compactos de música clássica. O apartamento ficava no segundo andar, e a janela virada para leste dava para um pequeno parque. O rés-do-chão do edifício estava ocupado por um salão de exposição de mobiliário importado do Norte da Europa. Como o prédio inteiro estava afastado da rua principal, o barulho do trânsito ficava reduzido ao mínimo.
Assim que chegava ao escritório, Sumire mudava a água das plantas e punha a máquina de café a trabalhar. Depois, ouvia as mensagens no atendedor de chamadas e verificava se havia correio electrónico. Mandava imprimir os e-mails e deixava-os ficar em cima da secretária de Miu. A maior parte das vezes tratava-se de mensagens de agentes no estrangeiro, quase sempre em inglês e em francês. Quando havia correio, abria as cartas e deitava o que não interessava para o lixo. Recebia várias chamadas telefónicas por dia, algumas do estrangeiro. Sumire tomava nota do nome da pessoa, do número de telefone e da mensagem, e transmitia tudo isto a Miu pelo telemóvel.
Miu tinha por hábito aparecer entre a uma e as duas da tarde. Ficava por ali durante cerca de uma hora, dava as suas instruções a Sumire, tomava um café, fazia uns quantos telefonemas. As cartas que tinham resposta, ditava-as a Sumire, que as passava depois no computador para serem enviadas por correio electrónico ou por fax — aliás, quase sempre cartas comerciais, curtas e concisas. Era também Sumire quem marcava hora para Miu no cabeleireiro, no restaurante e no court de squash. Uma vez despachados os assuntos de trabalho, Miu deixava-se ficar um bocado à conversa com Sumire e a seguir ia à sua vida.
Sumire ficava muitas vezes sozinha no escritório, sem falar com ninguém durante horas a fio, mas nunca se aborrecia e a solidão não lhe pesava. Aproveitava para rever a matéria dada nas aulas de italiano, que tinha duas vezes por semana, decorando os verbos irregulares e aperfeiçoando a pronúncia com a ajuda de um gravador. Teve aulas de informática e aprendeu a resolver sozinha as pequenas falhas de funcionamento. Acedeu à informação contida no disco rígido e ficou a conhecer em linhas gerais os projectos que Miu tinha em mãos.
O negócio principal era exactamente conforme Miu o descrevera no dia do casamento. Trabalhava com vinicultores estrangeiros, sobretudo franceses, e procedia à importação de vinho a granel, que depois comercializava nos restaurantes e lojas especializadas de Tóquio. De vez em quando, organizava concertos de intérpretes estrangeiros de música clássica no Japão. Os aspectos administrativos mais complexos ficavam entregues aos agentes, cabendo a Miu a tarefa de traçar as grandes linhas da programação e dar os primeiros passos no sentido da contratação. Era especialista em descobrir jovens músicos com talento e depois convidava-os a tocarem no Japão.
Não havia maneira de Sumire ficar a saber qual o lucro obtido
por Miu nos seus «negócios particulares». Toda a informação
sobre a contabilidade estava guardada em disquetes protegidas, às quais era impossível aceder sem a palavra-chave. Em todo
o caso, Sumire andava nas nuvens, com o coração aos pulos,
pelo simples facto de ver Miu, de poder falar com ela. Aquela
é a secretária na qual Miu se senta, pensava ela. Aquela é a
esfferográfica que ela utiliza; a chávena por onde bebe café. Por mais insignificante que fosse a tarefa, Sumire desempenhava-a na perfeição.
De tempos a tempos Miu convidava Sumire para jantar fora. Uma vez que os seus negócios estavam relacionados com vinhos, Miu achava por bem fazer regularmente a ronda pelos mais afamados restaurantes, a fim de se manter a par das novidades. Pedia sempre peixe branco (por vezes galinha, e deixava ficar metade no prato) e nunca comia sobremesa. Estudava ao pormenor a carta dos vinhos antes de escolher uma garrafa, mas nunca bebia mais de um copo.
— Bebe à tua vontade — dizia ela a Sumire, mas a verdade é que esta, com uma garrafa inteira por sua conta, não conseguia dar conta do recado. Acabavam sempre por deixar ficar mais de meia de um daqueles vinhos caríssimos, mas para Miu isso era o menos.
— É um desperdício tão grande mandar vir uma garrafa inteira de vinho só para as duas — comentou Sumire uma vez. — Nem metade conseguimos beber.
— Não te preocupes — replicou Miu com um sorriso. — Quanto mais vinho deixarmos ficar, mais empregados do restaurante o poderão provar. Do sommelier] ao chefe de mesa, sempre por aia baixo até chegar ao empregado que enche os copos de água. E assim toda a gente terá oportunidade de apreciar um bom vinho. E por isso que deixar ficar um vinho caro na garrafa nunca deve ser considerado um desperdício. Miu apreciou a cor do Médoc 1986 e só depois é que o provou com toda a concentração, como se estivesse a saborear uma prosa bem escrita.
— Acontece o mesmo com tudo, uma pessoa tem de aprender por experiência própria, à sua própria custa. É o tipo de coisas que não se aprende nos livros.
Imitando Miu, Sum ire pegou no copo e bebeu um trago com todo o cuidado, saboreou o vinho na boca e só depois deixou que ele deslizasse pela garganta. Um agradável sabor permaneceu na sua boca por um momento, mas não tardou a desvanecer-se sem deixar rasto, como o orvalho se evapora das folhas nas manhãs de Verão. Este ritual preparava o palato para saborear o prato seguinte. Cada vez que jantava com Miu, aprendia algo de novo. Sumire ficava pura e simplesmente espantada com a quantidade de coisas que ainda lhe faltava aprender.
— Até agora nunca sentira vontade de ser outra pessoa — confidenciara Sumire uma vez, provavelmente depois de ter bebido um bocadinho mais de vinho do que era costume. — Mas às vezes dou por mim a pensar que gostaria de ser como tu.
Miu reteve a respiração por um momento. Depois pegou no copo e levou-o aos lábios. Durante uma fracção de segundos, a luz tingiu as suas pupilas do rubi-carregado do vinho. O seu rosto parecia ter perdido a expressão delicada de sempre.
— Talvez não saibas isto — disse ela com toda a calma, voltando a pousar o copo em cima da mesa —, mas a pessoa
Escanção, em francês no original. (N. da T.)
que tens diante de ti não é o meu verdadeiro eu. Nestes últimos catorze anos tornei-me uma sombra do que era. Teria sido maravilhoso se me tivesses podido conhecer quando eu ainda era inteiramente eu. Mas agora não serve de nada pensar nisso.
Sumire ficou tão surpreendida que nem lhe passou pela cabeça perguntar mais nada. E perdeu assim a oportunidade de fazer as perguntas que se impunham. O que teria acontecido a Miu há catorze anos? Porque se tornara ela uma sombra do que era? E o que quereria dizer exactamente com isso? Mas semelhante confissão, de tão enigmática, só serviu para aumentar ainda mais a admiração que Sumire sentia por Miu. «Que mulher tão intrigante», pensou.
Através de fragmentos das conversas quotidianas, Sumire logrou juntar alguns dados sobre a vida de Miu. O marido, cinco anos mais velho, era japonês, mas falava correctamente o coreano, depois de ter passado dois anos a estudar na Faculdade de Economia da Universidade de Seul, ao abrigo de um programa de intercâmbio cultural. Era um homem cordial, competente no seu trabalho, e pode dizer-se que era efectivamente ele quem mantinha a empresa de Miu a funcionar. Apesar de se tratar de um negócio de família, nunca houve ninguém que tivesse o menor reparo a fazer ao seu trabalho.
Desde pequena, Miu sempre mostrara um grande talento para o piano. Nos seus verdes anos, havia conquistado o primeiro prémio em vários concursos para jovens músicos. Entrara para o conservatório, onde tivera como professor um pianista célebre, e fora graças à recomendação dele que conseguira lugar num conservatório em França. O seu repertório ia dos românticos tardios, como Schumann e Mendelssohn, a Poulenc, Ravel, Bartok e Prokofiev. As suas armas consistiam num estilo impetuoso, sensível, aliado a uma técnica vigorosa e depurada. Nos seus tempos de estudante dera uma série de concertos e granjeara uma certa reputação. À sua frente parecia desenhar-se um futuro promissor como pianista. Contudo, enquanto andava lá fora a estudar, o pai adoecera gravemente, e Miu vira-se obrigada a fechar a tampa do piano e a regressar ao Japão. Para nunca mais voltar a tocar num teclado.
— Como foste capaz de abandonar assim o piano do pé para a mão? — perguntou-lhe um dia Sumire, como quem não quer a coisa. — Se não te apetece falar disso, esquece. É só porque me parece, não sei explicar, um bocado estranho. Afinal de contas, deves ter sacrificado muita coisa para ser pianista, não?
— Não sacrifiquei muita coisa por causa do piano — disse Miu, em surdina —, sacrifiquei tudo. O piano exigiu-me que lhe desse cada pedaço da minha carne, cada gota do meu sangue, e eu nunca pude dizer que não. Nem uma única vez.
— E não tiveste pena de abandonar assim o piano? Estavas quase a chegar onde querias...
Miu cravou os olhos nos de Sumire, como se procurasse neles a resposta. Um olhar profundo, imperturbável. No lago estagnado das pupilas de Miu, silenciosas correntes arremessavam-se com violência umas contra as outras. Demorou tempo a serenar a agitação causada por essas torrentes.
— Desculpa estar a meter-me onde não sou chamada — desculpou-se Sumire.
— Não faz mal. Ainda tenho dificuldade em lidar com isso. Nunca mais voltaram a tocar no assunto.
Miu não permitia que se fumasse no escritório e detestava que o fizessem à frente dela, o que levou Sumire, pouco depois de ter começado a trabalhar, a decidir que era chegada a altura de deixar de fumar. Mas como consumia para aí os-seus-dois-maços-de-A4ar/boropor-dia, as coisas não foram assim tão fáceis. Passado um mês, o seu equilíbrio emocional — que já não era à partida muito estável — andava pelas ruas da amargura, como um animal ao qual tivessem cortado o pêlo da cauda. E, como seria de esperar, começaram a chover os telefonemas na calada da noite.
— Só penso em tabaco. Não ando a dormir nada e, quando fecho os olhos, tenho pesadelos horríveis. Sofro de prisão de ventre. Não consigo ler, não sou capaz de escrever uma única linha.
— Isso acontece a toda a gente que deixa de fumar. Depois passa — tranquilizei-a eu.
— Isso dizes tu, que nunca fumaste um cigarro na vida —atirou ela. — É fácil falar quando são os outros que estão na berlinda.
— Se não tivéssemos o direito de exprimir uma opinião a respeito dos outros, o mundo tornar-se-ia um lugar sinistro e perigoso, não achas? Pensa bem no que José Estaline fez.
Do outro lado da linha, Sumire ficou em silêncio durante muito tempo. Um silêncio pesado, como o das almas dos mortos na frente leste.
— Ainda aí estás? — perguntei eu. Por fim acabou por responder.
— Para ser franca, talvez não seja por culpa do tabaco que
não consigo escrever. Pode ser uma das razões, mas não é a única.
Tenho a impressão de que não passa de uma desculpa do género «não consigo escrever porque deixei de fumar», contra isso nada posso fazer— E é por isso que andas tão irritada?
— Acho que sim — reconheceu Sumire, com inesperada docilidade. — Mas não é só pelo facto de não ser capaz de escrever.
O que me deixa completamente fora de mim é verificar que deixei de acreditar nas minhas capacidades literárias. Quando leio o material que escrevi ainda não há muito tempo, acho aquilo tudo uma coisa profundamente desinteressante. Nem sequer atino com o que queria dizer. É como se estivesse a olhar de longe para umas peúgas sujas atiradas para o chão de qualquer maneira.
Só de pensar no tempo e na energia que gastei, fico de rastos.
— Sempre que isso acontecer, basta telefonares a alguém quando forem três da manhã e arrancar esse alguém, simbolicamente falando, claro, do seu tranquilo sono semiótico.
— Diz lá — insistiu Sumire —, tiveste alguma vez dúvidas sobre se aquilo que estás a fazer é correcto ou não?
— São mais as dúvidas do que as certezas — respondi eu.
— A sério?— A sério.
Sumire pôs-se a bater com uma unha nos dentes da frente, um dos seus muitos tiques quando lhe dava para ficar pensativa.
— Para ser franca, nunca me senti assim tão confusa. Não posso dizer que estivesse sempre confiante, segura do meu talento. Não sou convencida a esse ponto, sei muito bem que sou desorganizada e comodista, mas nunca me senti confusa. Posso ter cometido os meus erros ao longo do percurso, só que, de uma forma geral, tinha a certeza de estar no bom caminho.
— Tiveste foi sorte — repliquei eu. — Como acontece quando cai uma grande chuvada na altura de semear o arroz.
— Talvez tenhas razão.
— Mas nos últimos tempos não tem sido assim.
— Exacto. Ultimamente não. Às vezes, só de pensar que até agora fiz tudo mal fico completamente em pânico. Sabes quando uma pessoa tem um daqueles pesadelos que parecem mais verdadeiros do que sei lá o quê e acorda de repente, estremunhada, a meio da noite? E por instantes não consegue distinguir a realidade do sonho... É precisamente a uma sensação desse género que me refiro. Estás a perceber?
— Acho que sim — respondi eu.
— Pode até acontecer que nunca venha a ser escritora. Essa ideia tem-me perseguido muitas vezes nestes últimos tempos. O mundo está cheio de rapariguinhas estúpidas e ingénuas, e eu não passo de mais uma, sempre a olhar para o umbigo e a correr atrás de sonhos que nunca se tornarão realidade. O melhor que tenho a fazer é fechar a tampa do piano e abandonar o palco. Antes que seja demasiado tarde. <->
— Fechar a tampa do piano?
— É uma metáfora.
Passei o auscultador da mão esquerda para a direita.
— De uma coisa tenho a certeza. Pode ser que tu não tenhas, mas eu tenho. Um dia hás-de vir a ser uma escritora extraordinária. Já li o que escreveste e sei o que digo.
— Acreditas mesmo nisso?
— Do fundo do coração — afirmei eu. — Era incapaz de te mentir numa coisa destas. Há passagens verdadeiramente notáveis nas páginas que escreveste até à data. Imaginando que te punhas a escrever sobre a praia no mês de Maio. Seria possível ouvir o sussurro do vento, cheirar a maresia e até mesmo sentir o calor suave do sol nos braços. Se escrevesses sobre um espaço fechado cheio de fumo de tabaco, aposto que os leitores começariam a sentir dificuldade em respirar e os olhos começariam a arder. A maioria dos escritores não pode gabar-se de uma prosa destas. A tua escrita possui a força viva da naturalidade. É como se respirasse. Talvez ainda não tenhas conseguido juntar as peças todas e dar-lhes forma, mas isso não quer dizer que esteja na altura de fechares a tampa do piano. ;
Sumire ficou calada durante uns bons dez ou quinze segundos.
— Não estás a dizer isso só para me consolar, para me animar ou qualquer coisa do género?
— Não, não estou. É uma realidade incontomável, que fala por si mesma.
— Como o rio Moldava?
— Exactamente. Como o rio Moldava.
— Obrigada., — Não tens nada que agradecer.
— Às vezes és mesmo um amor, sabes? Tão bom como o Natal, as férias grandes e um cachorrinho recém-nascido, tudo junto.
Murmurei entre dentes a primeira coisa que me passou pela cabeça, como acontece sempre que alguém me faz um elogio.
— Mas há uma coisa que me preocupa — acrescentou ela. — Um dia destes casas-te com uma miúda simpática e nessa altura esqueces-te de que eu existo. E depois já não te poderei ligar a meio da noite quando me der na gana. Certo?
— Podes sempre telefonar-me durante o dia.
— De dia não é a mesma coisa. Não percebes mesmo nada de nada.
— Tu é que não percebes — protestei eu. — A maioria das pessoas trabalha de dia e à noite apaga a luz e dorme.
Mas estar ali a falar com ela era o mesmo que pôr-me a recitar poemas bucólicos, sozinho, no meio de um campo de abóboras.
— No outro dia li um artigo no jornal — continuou Sumire, completamente a leste. — Dizia que a homossexualidade é de nascença. Parece que as lésbicas têm um osso minúsculo no ouvido interno que é completamente diferente do das outras mulheres, e é aí que reside a diferença. Um ossinho qualquer com um daqueles nomes difíceis de pronunciar. Ou seja, ser lésbica não é uma tendência adquirida, mas sim uma característica genética. Foi um médico norte-americano quem fez essa descoberta. Não faço ideia das razões que terão levado a semelhante investigação, mas a verdade é que, desde que li o artigo, não consigo tirar da cabeça a imagem daquele ossinho que temos dentro do ouvido e que não serve rigorosamente para nada. Gostaria de saber que forma tem o meu.
Fiquei calado, sem saber o que dizer. Durante alguns instantes reinou um silêncio que me fez lembrar o momento em que se deita azeite puro para dentro de uma enorme frigideira.
— Tens mesmo a certeza de que é desejo sexual aquilo que sentes por Miu? — acabei por perguntar.
— A certeza absoluta — afirmou Sumire. — Quando estou ao pé dela, sinto aquele osso do ouvido a dar sinal. Como um daqueles espanta-espíritos feitos de conchas que ondulam ao sabor do vento, estás a ver? E só desejo que ela me aperte com força nos seus braços. Que as coisas sigam o seu curso. Se isso não é desejo sexual, então o que me corre nas veias deve ser sumo de tomate.
— Humm — disse eu, e que mais poderia responder?
— Isso explica tudo. Porque não me apetece ter relações sexuais com homens. Porque não sinto nada. Porque pensei sempre que era diferente das outras pessoas.
— Posso dar a minha opinião? — perguntei.
— Claro.
— Qualquer razão ou raciocínio lógico que sirva para explicar tudo de maneira tão simplista só pode ter uma armadilha escondida. Sei por experiência própria. Tal como alguém disse um dia, se tudo pudesse ser explicado num só livro, então mais valia não explicar nada. O que quero dizer com isto é que o melhor é não tirar conclusões precipitadas.
— Vou ver se não me esqueço disso — disse Sumire, e a nossa conversa acabou aí, de uma maneira um tanto ou quanto abrupta.
Imaginei-a a desligar o telefone, a sair da cabina telefónica. No meu relógio, eram três e meia da manhã. Fui à cozinha, bebi um copo de água, voltei a meter-me na cama e fechei os olhos. Mas o sono não havia maneira de chegar. Corri o cortinado, e apareceu a Lua, a flutuar no céu como o pálido rosto de um órfão, de olhar inteligente. Percebi que não conseguiria voltar a adormecer. Fiz café, puxei uma cadeira para junto da janela e sentei-me, a comer bolachas com queijo. Fiquei ali, a ler, à espera do amanhecer.
Já é tempo de eu falar um bocadinho de mim.
Bem sei que esta é a história de Sumire e não a minha. A verdade, porém, é que a história de Sumire — quem é ela?, o que faz na vida? — surge aqui filtrada através do meu olhar, e parece-me por isso, até certo ponto, necessário explicar quem é o narrador. Que é como quem diz, eu.
De uma maneira geral, devo confessar que tenho dificuldade em falar de mim mesmo. Passo a vida a tropeçar no eterno paradoxo do quem sou eu? Claro está que, no que toca a factos concretos, não há ninguém no mundo que saiba tanto sobre mim como eu. Contudo, quando falo a nível pessoal sobre todo o género de factores, desde valores a padrões, as minhas próprias limitações levam-me, na qualidade de narrador, a escolher e eliminar coisas a meu respeito. Angustia-me pensar que o retrato por mim aqui traçado possa não ser particularmente objectivo. Sempre me angustiou.
Não me parece que a maioria das pessoas partilhe deste tipo de angústias. As pessoas aproveitam todas as oportunidades para falarem de si mesmas com uma sinceridade espantosa. Dizem coisas do género: «Sou de tal maneira franco e honesto que até parece mal», ou então: «Sou demasiado vulnerável e tenho problemas no relacionamento com os outros», ou ainda:
«Tenho muito jeito para compreender os sentimentos dos outros Contudo, houve muitas vezes em que vi pessoas que se diziam «vulneráveis» magoarem outras sem motivo aparente. Vi pessoas com um perfil «franco e honesto» usarem desculpas esfarrapadas para obterem o que desejavam a qualquer preço. Quanto àqueles que têm um jeito especial para compreender os verdadeiros sentimentos dos outros, vi-os deixarem-se enganar pela forma mais grosseira de lisonja. Tudo isto me leva a fazer a seguinte pergunta: que sabemos, na realidade, de nós mesmos?
Quanto mais penso no assunto, mais relutância tenho em abordar o tema do eu. Gostaria, isso sim, de saber mais coisas sobre a realidade objectiva daquilo que está para além de mím. Até que ponto o mundo à minha volta é importante para mim, de que modo é que, ao estabelecer uma ligação com esse mesmo mundo, mantenho o meu sentido de equilíbrio. Só assim poderei ter a percepção objectiva de quem sou.
É este o género de ideias que desde a adolescência me tem passado pela cabeça, ou, dito de uma maneira mais solene, que me tem servido para construir a minha visão do mundo. Tal como um pedreiro assenta um tijolo em cima do outro com a ajuda do fio do prumo, também eu arquitectei no meu interior esta maneira de pensar. De uma forma mais empírica do que lógica, mais prática do que teórica. E, por falar em experiências, devo dizer que transmitir este meu ponto de vista aos demais não se me afigura propriamente a tarefa mais fácil do mundo. Fala quem sofreu na pele as agruras do destino.
Talvez por isso, habituei-me desde muito novo a traçar uma fronteira invisível entre mim e os outros. Fossem eles quem fossem. Comecei desde muito cedo a adoptar uma distância razoável e a mantê-la, sem nunca deixar ao mesmo tempo de estudar cuidadosamente a atitude dos meus interlocutores. Aprendi a não engolir todas as histórias que as pessoas me contavam. Os livros e a música têm sido a minha única paixão e, como devem calcular, levo uma vida solitária.
Nasci e cresci no seio de uma família normalíssima. Tão normal que nem sei por onde começar. O meu pai, licenciado em Ciências por uma universidade pública de província, trabalhava no laboratório de investigação de uma grande empresa do ramo alimentar. Gostava de jogar golfe e levava os domingos caído no campo de golfe. A minha mãe era uma apaixonada por poesia tanka1 e passava a vida em sessões de poesia. Sempre que o seu nome aparecia no suplemento literário do jornal, andava feliz como um passarinho dias a fio. Gostava de fazer limpezas, mas detestava cozinhar. A minha irmã, cinco anos mais velha do que eu, tanto detestava as limpezas como os cozinhados. Achava que eram tudo coisas que os outros, e não ela, é que deviam fazer. De modo que, a partir da altura em que tive idade para entrar na cozinha, passei a ser eu a preparar as minhas refeições. Comprei alguns livros de culinária e aprendi a cozinhar de tudo um pouco. Que eu saiba, devo ter sido o único miúdo a levar uma vida assim. Nasci em Suginami, mas quando era pequeno mudámo-nos para Tsudanuma, na prefeitura de Chiba, e foi lá que cresci. A vizinhança era, na sua maioria, composta de famílias de funcionários públicos como a nossa. A minha irmã tirava notas excelentes na escola — só ficava satisfeita se fosse a melhor da turma — mas não se afastava um milímetro que fosse do seu leque de interesses. Basta dizer que nunca foi capaz de levar o cão à rua. Licenciou-se em Direito pela Universidade de Tóquio e, no ano seguinte, fez o exame de admissão à Ordem com uma perna às costas. Casou-se com um consultor financeiro sem escrúpulos. Compraram uma casa de quatro divisões num elegante edifício, para os lados do parque de Yoyogi. Por dentro, contudo, a casa mais parece uma pocilga.
Ao contrário da minha irmã, nunca demonstrei grande interesse nos estudos nem em ter grandes notas. Como não queria dar nenhum desgosto aos meus pais, ia às aulas por obrigação e
1 Poema japonês de trinta e uma sílabas. (N. da T.)
estudava o mínimo possível. Passava o resto do tempo a jogar futebol e, mal chegava a casa, estendia-me na cama a devorar romance atrás de romance. Não frequentava nenhum curso fora daescola nem tinha explicações. Apesar disso, as minhas notas não eram más de todo. Por aquele andar, calculei que conseguiria entrar numa universidade decente sem que fosse preciso matar-me a estudar para o exame de admissão. E foi isso exactamentl o que aconteceu.
Ao chegar à universidade aluguei um pequeno apartamento e fui viver sozinho. Não me lembro de ter tido uma conversa íntima que fosse com alguém da minha família nos tempos em que morei em Tsudanuma. Apesar de vivermos debaixo do mesmo tecto, tanto os meus pais como a minha irmã eram, para mím, uns perfeitos estranhos, e eu não fazia a mínima ideia do que queriam da vida. Da mesma forma, não creio que tão-pouco eles fizessem ideia do tipo de pessoa que eu era nem das aspirações que alimentava. Não que eu soubesse o que queria da vida. Gostava de ler romances para passar o tempo, mas não escrevia suficientemente bem para acalentar a esperança de vir um dia a ser escritor; quanto a tornar-me editor ou crítico literário, também estava fora de questão, em virtude dos meus gostos pouco eclécticos. A literatura, aos meus olhos, era um prazer puramente pessoal e, como tal, devia ser mantida à parte do estudo e do trabalho. Foi por isso que, na universidade, não me especializei em Literatura, mas sim em História. Não estava particularmente interessado no seu estudo, mas, a partir do momento em que comecei a aprofundar os meus conhecimentos, passei a achar o tema fascinante. Isso não queria dizer que estivesse nos meus planos tirar um doutoramento ou consagrar-me ao estudo da História com H maiúsculo, como me aconselhava o meu tutor. É certo que gostava de ler e de pensar, mas não tinha perfil de investigador. Como disse Púchkin, e bem:
Não sentia o menor desejo de procurar a glória No monte de poeira que o tempo deixara acumular.
No entanto, a verdade é que também não estava propriamente à espera de arranjar emprego numa empresa vulgar, abrindo caminho à força no meio de uma competição feroz, na mira de ir escalando, passo a passo, as paredes escorregadias da pirâmide capitalista.
Dadas as circunstâncias, foi, por assim dizer, através de um processo de selecção que abracei a carreira de professor. A escola ficava a poucas estações de comboio do meu apartamento. O meu tio fazia parte do Comité de Educação daquela cidade e perguntou-me se gostaria de ser professor primário. Como ainda me faltavam uns cursos de aptidão pedagógica, comecei por ser contratado como professor auxiliar, mas, após um breve período de formação, acabei por reunir os requisitos necessários para passar a efectivo. Não estava propriamente a pensar seguir tal carreira, mas, depois de ter passado a fazer parte do grupo, comecei a sentir pela profissão um respeito e um amor mais profundos do que alguma vez teria imaginado. bom, para ser mais exacto, devo confessar que me descobri a mim mesmo.
De pé no estrado, à frente da turma inteira, explicava aos meus alunos os ensinamentos básicos sobre a língua, a vida e o mundo, e ao mesmo tempo sentia que também eu estava a redescobrir esses mesmos ensinamentos básicos — filtrados através dos olhos e da mente daquelas crianças. Encarado da maneira certa, o ensino pode revelar-se uma experiência tão refrescante quanto enriquecedora. Ainda por cima, dava-me bem com os meus alunos, as mães dos meus alunos, os meus colegas.
E contudo, uma dúvida fundamental subsistia: quem sou eu? Que espero da vida? Para onde Vou?
O mais perto que estive de obter resposta a estas perguntas foi durante as conversas com Sumire. Mais do que falar, ouvia com atenção tudo o que ela tinha para dizer, cada uma das palavras que lhe brotavam dos lábios. Ela colocava-me toda a espécie de perguntas e, caso eu não conseguisse dar resposta, ou a minha resposta não fizesse sentido, ficava danada. Ao contrário das outras pessoas, estava interessada em saber sinceramente a minha opinião.
Por isso, esforcei-me sempre por lhe responder de maneira honesta e precisa, e, através dessas trocas de opinião, comecei a revelar-lhe a ela — e a mim mesmo também — mais coisas sobre mim.
Costumávamos falar horas a fio. Nunca nos fartávamos de conversar. Assuntos não faltavam — falávamos de romances, do mundo, da paisagem, do sentido das palavras. Tínhamos conversas mais francas e mais íntimas do que muitos amantes.
Imaginava como seria maravilhoso se pudéssemos ser amantes. Desejava sentir o calor da sua pele na minha. Sonhava ver-nos casados, a viver juntos, mas não tive outro remédio senão aceitar o facto de que Sumire não nutria por mim qualquer espécie de sentimento romântico, nem tão-pouco eu despertava nela o mínimo interesse sexual. Às vezes, quando a conversa durava até muito tarde, ela ficava a dormir lá em casa, mas a situação nunca deu azo ao menor equívoco. Por volta das duas ou três da manhã, começava a abrir a boca, metia-se debaixo dos lençóis, afundava a cabeça na minha almofada e caía num sono profundo. Eu estendia um cobertor no chão e ficava ali deitado sem conseguir conciliar o sono, com a cabeça povoada de fantasmas, de pensamentos conturbados, de um sentimento de repug nância por mim próprio. Não raro, as irreprimíveis reacções físicas provocavam-me um sofrimento atroz, e ficava naquela agonia, acordado até de manhã.
Não me era fácil aceitar o facto de ela não ter praticamente qualquer, para não dizer mesmo nenhum, interesse por mim na qualidade de representante do sexo masculino. Por vezes, o sofrimento era de tal forma intenso que dir-se-ia que estava alguém a arrancar-me as entranhas com uma faca. Apesar isso, os momentos passados na sua companhia eram os mais preciosos da minha vida. Ao seu lado esquecia o meu eterno sentimento de solidão. Sumire expandia as fronteiras do meu mundo, ajudava-me a respirar fundo. Era a única pessoa capaz de o fazer.
Foi assim que, apostado em apaziguar o sofrimento e, esperava eu, eliminar qualquer risco de tensão sexual que pudesse existir entre nós os dois, comecei a ir para a cama com outras mulheres. Não quero com isto dizer que fosse particularmente popular junto delas, até porque não o era. Não me podia considerar propriamente um sedutor nato, e tão-pouco me podia vangloriar de possuir qualquer talento em especial. E, contudo, fosse por que razão fosse, mulheres havia que se sentiam atraídas por mim. A certa altura, vim mesmo a descobrir que, se deixasse as coisas seguirem o seu curso natural, nem sequer era muito difícil convencê-las a dormir comigo. Não que esses momentos de arroubo despertassem em mim qualquer centelha de paixão, funcionavam, quando muito, à laia de compensação.
Nunca escondi de Sumire os casos amorosos que tinha. Não entrava em grandes pormenores, mas ela ficava normalmente a par das coisas por alto. Aquilo não parecia incomodá-la. Se algo de perturbador havia nos meus casos, era o facto de as mulheres serem todas mais velhas e de não haver uma única que não fosse casada ou que não tivesse noivo ou namorado fixo. A minha conquista mais recente era a mãe de um dos meus alunos. Dormíamos juntos umas duas vezes por mês.
— Isso ainda vai acabar mal — avisou-me Sumire uma vez, e tinha razão, mas não havia nada a fazer.
Num sábado, em princípios de Julho, fui fazer uma excursão com a minha classe. Levei os meus trinta e cinco alunos a praticarem montanhismo na região de Okutama. O dia começou num ambiente de excitação febril, para vir depois a terminar num verdadeiro caos. Quando chegámos lá acima, dois dos miúdos descobriram que se tinham esquecido de guardar o piquenique na mochila. Como não havia nenhuma loja ali nas redondezas, não tive outro remédio senão repartir entre ambos os norimakr que a escola tinha mandado para o meu almoço. Fiquei sem
mas, tirando /sso, não comi mais nada durante todo o dia. Como
’ Uma espécie de sushi: rolinhos de algas marinhas com arroz. (N. da T.)
se não bastasse, uma das miúdas anunciou que não conseguia dar nem mais um passo, e eu tive de carregar com ela às cavalitas pela montanha a baixo. Por brincadeira, dois rapazes começaram a lutar, e um deles caiu e bateu com a cabeça numa pedra Perdeu os sentidos por alguns instantes e fartou-se de deitar sangue do nariz. Não foi nada de grave, mas a camisa dele ficou tão empapada de sangue que até parecia que tinha sobrevivido a um massacre. Um verdadeiro caos, tal como eu disse.
Cheguei a casa mais cansado do que se um comboio me tivesse passado por cima. Tomei um banho, engoli uma bebida fresca, meti-me debaixo dos lençóis sem pensar em nada, apaguei a luz e mergulhei num sono retemperador. Foi então que o telefone tocou: era Sumire. Olhei para o relógio que estava na mesa-de-cabeceira: não devia ter dormido mais de uma hora. Mas nem sequer protestei. A verdade é que estava demasiado cansado para me queixar. Há dias assim.
— Podemos falar amanhã à tarde? — perguntou-me ela. Combinara encontrar-me lá em casa com uma amiga às seis
da tarde. Ela ficara de estacionar o Toyota Célica encarnado um bocado mais abaixo na rua.
— Estou livre até às quatro — respondi.
Sumire apareceu de blusa branca sem mangas, minissaia azul-marinho e óculos escuros minúsculos. O único acessório que trazia era um gancho de plástico no cabelo. A sobriedade em pessoa. Quase não usava maquilhagem, expondo-se aos olhos do mundo com o seu aspecto natural. A princípio não a reconheci. Nem sequer haviam passado três semanas desde a última vez que nos víramos, mas a rapariga ali sentada à minha frente dava a impressão de fazer parte de um mundo completamente diferente daquele a que pertencia a Sumire de antigamente. Sem exagero, direi que ela estava lindíssima. Algo desabrochara nela.
Mandei vir uma imperial, e ela um sumo de uva.
— Nos tempos que correm, mal te reconheço quando te vejo — disse-lhe eu.
— É uma fase — replicou ela como quem não quer a coisa, sorvendo o sumo pela palhinha.
— Que fase? — perguntei.
— Uma espécie de adolescência tardia, acho eu. Quando me levanto de manhã e me vejo ao espelho, parece que estou a olhar para outra pessoa. Se não me ponho a pau, arrisco-me a ficar para trás.
— Nesse caso, não será melhor deixares andar as coisas? — perguntei eu.— Mas para onde hei-de ir, quando me sentir perdida?
— Podes ficar cá em casa, desde que seja apenas por dois ou três dias. Caso te percas, e porque se trata de ti, serás sempre bem-vinda.
Sumire riu-se.
— Fora de brincadeiras — disse ela —, qual é o caminho que devo tomar?
— Isso não sei dizer-te. Tenta ver as coisas pelo lado positivo: deixaste de fumar, andas bem vestida, agora até calças meias a condizer, e sabes falar italiano. Aprendeste a escolher o vinho, a utilizar o computador, e pelo menos dormes de noite e levantas-te de manhã. Para algum lado deves estar a ir.
— Mas continuo sem escrever uma linha.
— Tudo tem o seu lado bom e o seu lado mau. .. Sumire torceu a boca num esgar.
— Não te parece que é uma espécie de deserção?
— Deserção? — Por momentos não percebi a que se estava a referir.
— Sim, deserção. Trair os ideais e as convicções.
— Referes-te a arranjares emprego, andares bem vestida e deixares de escrever?
— Isso mesmo.
Abanei a cabeça.
— Sempre escreveste romances porque era isso que querias. Se já não te apetece escrever mais, o que hás-de fazer? O mundo não vai acabar por causa disso. Não é por deixares de escrever que uma aldeia será devastada pelo fogo. Nenhum barco se afundará. O ritmo das marés não se alterará, nem a revolução demorara cinco anos a rebentar. E não, não me parece que se possa chamar a isso deserção. m
— Então que nome lhe dás? Voltei a abanar a cabeça.
— Já ninguém usa a palavra deserção. Está ultrapassada. Talvez encontres alguém que utilize esse termo numa comuna que ainda exista por aí. Não é matéria que eu domine. Mas, se nãofl te apetece escrever, isso é lá contigo.
— Uma comuna? Estás a referir-te àqueles lugares que havia no tempo de Lenine?
— Isso são os kolkhozes Desses é que já não deve existir
— Não é que eu não queira escrever — acrescentou Sumire, e ficou por momentos mergulhada nos seus pensamentos.
— O que acontece é que quero escrever e não consigo. Sento-me à secretária e não acontece nada, nem uma ideia, nem uma palavra, nem uma cena. Zero. Ainda não há muito tempo tinha montes de coisas para contar. Que diabo se estará a passar comigo?
— Estás a perguntar-me isso a mim? Sumire assentiu com a cabeça.
Bebi um trago de cerveja fresca e pus as ideias em ordem.
— O que acontece é que andas à procura do teu lugar no quadro da novíssima ficção. Estás de tal maneira preocupada com isso que nem tens necessidade de expor os teus sentimentos por escrito. Além disso, não tens sequer tempo para isso.
— Não percebi nada. E tu, também tens o teu lugar no quadro da ficção?
— Acho que a maioria das pessoas vive fora da realidade. Eu não sou excepção. Basta pensares na transmissão de um carro.
1 Forma de exploração agrícola colectiva, tipo cooperativa, na antiga URSS. As terras, pertencentes ao Estado, eram entregues para cultivo a grupos de famílias, que aí trabalhavam com direito a habitação, um pequeno terreno, animais de criação e material agrícola.
É como se existisse uma transmissão que nos liga à crua realidade da vida, capaz de utilizar a energia do exterior através da embraiagem para que as mudanças engrenem na perfeição. É assim que mantemos o nosso frágil corpinho intacto. Isto faz algum sentido para ti?
Sumire fez um ligeiro movimento afirmativo com a cabeça. — Mais ou menos. Ou seja, ainda não estou bem adaptada ao novo quadro da ficção. É isso que queres dizer?
— O teu grande problema, neste momento, é não saberes de que tipo de ficção se trata. desconheces o enredo e o estilo ainda está por definir. A única coisa que sabes é o nome da personagem principal. E, contudo, esta nova ficção está a fazer com que te reinventes. Se tiveres um pouco mais de paciência, ela acabará por servir para tua própria protecção, e pode muito bem ser que acabes por vislumbrar todo um mundo novo. Mas por enquanto ainda é cedo. Ainda te encontras numa situação precária.
— Estás a querer dizer que já deitei fora a antiga correia da transmissão, mas ainda não acabei de montar a nova? E que, mesmo assim, o motor continua a trabalhar. É isso?
— É uma maneira de ver as coisas.
Sumire pôs a cara sorumbática do costume e ficou um grande bocado a fustigar com a ponta da palhinha as pobres pedras de gelo meio derretidas no fundo do copo. Depois levantou a cabeça e olhou para mim.
— Que estou numa situação precária também eu sei. Como é que hei-de explicar? Às vezes sinto-me sozinha. É como se ficasse completamente desamparada, depois de ter sido despojada de tudo aquilo que estava habituada a ter à minha volta. Como se a gravidade tivesse deixado de existir, e eu me sentisse a flutuar no espaço exterior, à deriva, sem saber para onde estou a ir.
— Como um pequeno Sputnik que andasse perdido?
— Acho que sim.
— Mas tens a Miu — disse eu.
— Por enquanto.
Durante algum tempo ficámos em silêncio.
— Achas que também é esse o desejo de Miu? — acabei por perguntar.
Sumire assentiu com a cabeça.
— Acho. Provavelmente deseja tanto isso como eu.
— Incluindo a parte física?
— É difícil de dizer. Ainda não consegui perceber bem, quer dizer, que sentimentos são os dela, e isso é uma coisa que m deixa perdida e confusa.— O eterno dilema — disse eu.
Em vez de responder, Sumire franziu ainda mais os lábios.
— E tu, pela parte que te toca — acrescentei —, estás pronta para o que der e vier?
Sumire disse que sim com a cabeça uma única vez, de forma peremptória. Não podia falar mais a sério. Voltei a recostar-me na cadeira e cruzei as mãos atrás da cabeça.
— Não deixes de gostar de mím por causa disso, está bem? — disse Sumire.
A voz dela, que parecia chegar até mim filtrada pelas profundezas da minha consciência, soava como uma frase tirada de um antigo filme a preto e branco de Jean-Luc Godard.
— Não é por causa disso que Vou deixar de gostar de ti.
Só voltei a ver Sumire duas semanas mais tarde, num domingo, quando a ajudei a mudar-se. Decidiu fazer a mudança de um dia para o outro, e fui eu o único a aparecer para dar uma mãozinha. Tirando os livros, poucos outros bens possuía, e despachámo-nos enquanto o diabo esfrega um olho. Ser pobre também tem o seu lado bom.
Pedi um Toyota Hiace emprestado a um amigo e transportei as coisas de Sumire para a casa nova, que ficava em Yoyogi-Uehara. O apartamento não era particularmente novo nem tinha um aspecto por aí além, mas, comparado com a velha construção de madeira de Kichijoji — um sítio que merecia fazer parte da lista dos monumentos históricos a visitar —, representava um progresso considerável. Tinha sido por intermédio de um agente imobiliário amigo de Miu que Sumire arranjara a casa; não só estava bem situada, como era de renda barata e oferecia uma bonita vista. Além disso, tinha duas vezes mais espaço do que o velho apartamento. Decididamente, a mudança valera a pena. O parque de Yoyogi ficava perto e Sumire até podia ir a pé para o trabalho, desde que estivesse para aí virada.
— A partir do mês que vem passo a trabalhar cinco dias por semana — anunciou ela. — Três dias não é carne nem é peixe, além de que fica mais barato tirar o passe quando se anda de transportes públicos todos os dias. É preciso não esquecer que agora tenho uma renda mais alta para pagar e, na opinião de Miu, há todas as vantagens em estar empregada a tempo inteiro. De qualquer maneira, mesmo que fique em casa não consigo escrever...
— Parece-me boa ideia — admiti.
— Indo trabalhar todos os dias, serei obrigada a levar uma vida mais organizada, e passa a ser pouco provável que continue a telefonar-te às três e meia da manhã. Aí tens outra vantagem.
— Uma grande vantagem — acrescentei. — Mas, ao mesmo tempo, tenho imensa pena que vás morar para tão longe de mim.
— Estás a falar a sério?
— Claro que estou. Queres que eu arranque o imaculado coração do peito para to provar?
Estava sentado no chão despido do novo apartamento, de costas contra a parede. Dada a quase total ausência de mobiliário, a casa mais parecia desabitada. Não havia cortinas nas janelas e os livros que não cabiam na estante empilhavam-se no chão como um grupo de intelectuais refugiados. A única coisa que dava nas vistas era um espelho de corpo inteiro, uma simpática oferta de Miu, por ocasião da mudança. Vindo dos lados do parque, o crocitar dos corvos chegava até nós, transportado pela brisa da tarde. Sumire sentou-se ao meu lado.
— Diz-me uma coisa — pediu ela.
— O quê?
— Continuavas a ser meu amigo, mesmo que eu fosse uma inútil duma lésbica?
— O que me interessa que sejas lésbica ou não? Sem ti, a minha vida seria como Os Grandes Êxitos de Bobby Darin sem Mack the Knife.
Sumire olhou para mim com os olhos semicerrados.
— Escapa-me o sentido da metáfora, mas presumo que estejas a querer dizer que serias um infeliz sem mim, é isso?
— Sim, mais coisa, menos coisa — disse eu.
Sumire encostou a cabeça no meu ombro. Tinha o cabelo para trás, preso por um gancho, deixando a descoberto umas orelhas pequenas e bem feitas. Umas orelhas tão perfeitas que pareciam acabadas de sair do molde. Suaves e delicadas. Podia sentir a sua respiração sobre a minha pele. Vestia uns calções cor-de-rosa e uma simples T-shirt azul-marinho toda desbotada, que deixava perceber o contorno dos seios pequenos. Umligeiro odor a suor pairava no ar. Era o odor da transpiração dela, subtilmente misturado com a minha.
Tive uma vontade louca de a abraçar. Assaltou-me o desejo violento de a atirar ao chão ali mesmo. Mas sabia que isso de nada serviria, que o desejo não nos levaria a parte alguma. Comecei a sentir dificuldade em respirar e pareceu-me que o meu campo de visão diminuíra abruptamente. O tempo como que parou e começou a dar voltas e mais voltas. O desejo irrompeu através das minhas calças, duro como uma pedra. Sentia-me confuso, perturbado e tentei dominar-me. Enchi os pulmões de ar fresco, fechei os olhos e, no meio daquela inescrutável escuridão, comecei a contar devagarinho. Estava de tal maneira excitado que até me vieram as lágrimas aos olhos.
— Também gosto muito de ti — disse Sumire. — Mais do que de qualquer outra pessoa no mundo.
— Depois de Miu, claro — disse eu. — com Miu é diferente.
— Diferente, como?
— O que sinto por ela não tem nada a ver com os sentimentos que tenho por ti. com ela, quer dizer... Como hei-de explicar-te?
— Nós, vulgares heterossexuais, temos uma expressão para isso — disse eu. — Ficar com tesão.
Sumire riu-se.
— Nunca na minha vida desejei nada de forma assim tão intensa, tirando querer ser romancista Sempre me contentei com aquilo que tinha, sem precisar de mais nada. Mas agora, agora desejo Miu. com todas as minhas forças. Quero possuí-la. Quero que ela seja minha. Tem mesmo de ser. Não há alternativa possível. Como é que as coisas chegaram a este ponto, nem eu mesma sei. Será que isto... faz sentido para ti?
Assenti com a cabeça. O meu pénis ainda mantinha a prodigiosa erecção, e eu rezei para que Sumire não percebesse.
— Groucho Marx tem uma frase genial — disse eu. — «Ela está tão apaixonada por mim que não quer saber de mais nada. É por isso que está apaixonada por mim.»
Sumire riu-se.
— Espero que corra tudo como desejas — acrescentei. — Mas é melhor ires com calma. Lembra-te de que ainda estás vulnerável.
Sem uma palavra, Sumire pegou na minha mão e apertou-a docemente. A sua mão pequena, suave, estava coberta por uma fina camada de suor. Imaginei aquela mão a tocar no meu pénis erecto, acariciando-o. Tentei não pensar nisso, mas era mais forte do que eu. Tal como Sumire tinha dito, não havia alternativa possível. Imaginei as minhas mãos a despirem-lhe a T-shirt, os calções, as cuecas. Imaginei como seria sentir os seus mamilos duros e rijos na ponta da minha língua. Como seria bom abrir-lhe bem as coxas e penetrar no seu interior húmido. Devagarinho, até ao mais fundo da negrura. Como ela me convidava, me engolia e depois me expulsava... Os fantasmas apoderaram-se dos meus sentidos e não desapareciam por nada deste mundo. Voltei a fechar os olhos com força e deixei passar aquele pedaço de tempo granuloso. Baixei a cabeça e esperei pacientemente que aquela vaga de calores passasse por cima de mim e desaparecesse de vez.
— Porque não jantamos juntos? — perguntou ela. Mas eu ainda tinha de deslocar-me a Hino até ao fim do dia para devolver o Toyota emprestado. Acima de tudo, porém, o que eu queria era ficar o mais depressa possível a sós com o meu violento desejo sexual. Não queria que Sumire se envolvesse mais do que já estava. Receava não ser capaz de me controlar, com ela ; mesmo ali ao lado. Receava não ser capaz de me controlar, passado um certo ponto.
— bom, nesse caso deixa-me convidar-te para jantar um dia destes. Num bom restaurante, com toalha de pano, vinho. Tudo à maneira. Talvez na próxima semana — prometeu Sumire quando nos despedimos. — Vê se arranjas um tempinho para mim na semana que vem.— Por mim, pode ser — disse eu.
Ao passar diante do espelho, olhei sem querer e vi o meu rosto lá reflectido. Tinha uma expressão estranha. Era a minha cara, sem margem de dúvida, mas aquele olhar não era o meu. Não tive coragem para voltar atrás e tirar a questão a limpo.
De pé, à entrada da sua nova casa, Sumire despediu-se de mim. Disse-me adeus com a mão, coisa que raramente fazia.
Afinal de contas, como acontece com tantas outras promessas bonitas que fazemos nesta vida, o nosso jantar nunca chegou a realizar-se. Em princípios de Agosto, recebi uma longa carta dela.
No sobrescrito destacava-se um selo italiano, grande e vistoso. O carimbo era de Roma, mas não consegui ler a data em que tinha sido enviado.
No dia em que a carta chegou, voltara a Shinjuku pela primeira vez desde há muito tempo, comprara alguns livros recentes na livraria Kinokuniya, e tinha ido ao cinema ver um filme de Luc Besson. Depois entrara numa cervejaria e pedira uma piza de anchovas e uma caneca de cerveja preta. Mesmo a tempo de fugir à hora de ponta, apanhara o comboio da linha de Chuo, aproveitando a viagem até Kunitachi para ler um dos livros acabados de comprar. Tencionava preparar qualquer coisa simples para o jantar e ver um jogo de futebol na televisão. A maneira ideal de passar as férias grandes. Fazia calor, estava sozinho, era um homem livre e ninguém me incomodava — e eu também não incomodava ninguém.
Ao chegar a casa, encontrei uma carta no tapete da entrada. O nome do remetente não figurava no sobrescrito, mas bastou-me ver a letra para saber que era de Sumire. Uma letra hieroglífica, compacta, difícil de ler, descomprometida. Uma letra que me fazia lembrar os escaravelhos encontrados no interior das pirâmides do Egipto. Parecia a todo o momento que iam começar a mexer-se e desaparecer nas trevas da História. Roma?
Guardei no frigorífico a comida que tinha comprado no supermercado e servi-me de um grande copo de chá gelado. Sentei-me numa cadeira da cozinha, abri o sobrescrito com uma faca para a fruta que guardava ali à mão e comecei a ler a carta. Cinco páginas de papel de carta do Hotel Excelsior, de Roma, escritas a tinta azul de uma ponta à outra com uma letra miudinha. Devia ter demorado o seu tempo a redigir aquele testamento. A um canto da última página, via-se uma espécie de mancha — de café, possivelmente.
Como estás?
Posso imaginar a tua surpresa ao receberes, assim do pé para a mão, uma carta minha enviada de Roma. Mas é bem possível que seja preciso mais do que uma carta de Roma para te desconcertar, a ti, que és por natureza um tipo porreiro. Roma é um destino demasiado turístico. Para isso, era preciso que fosse um lugar como a Gronelândia, Timbuctu ou o estreito de Magalhães. Embora deva confessar-te que até eu tenho dificuldade em acreditar que me encontro aqui.
Seja como for, tenho pena de não ter podido levar-te a jantar conforme prometido. A hipótese de fazer esta viagem pela Europa surgiu de repente, logo a seguir a ter mudado de casa. Escusado será dizer que até à partida foi a loucura perfeita — e eu andei sempre a correr de um lado para o outro para conseguir tratar do passaporte, comprar uma mala de viagem, acabar uns trabalhos que tinha em mãos. Não tenho uma memória por aí além — e «tu» sabes isso melhor do que ninguém —„ mas, em compensação, esforço-me por cumprir as minhas promessas. Aquelas de que me lembro, claro está. É por isso que, antes de mais, quero pedir-te desculpa por não termos ido jantar.
Gosto imenso do meu novo apartamento. Mudar de casa é sempre uma seca (bem sei que foste tu quem teve a maior parte do trabalho, e aproveito para te agradecer uma vez mais, mas não é por isso que deixa de ser uma seca), mas, agora que estou instalada, sinto-me nas minhas sete quintas. Não há galos na vizinhança, como em Kichijoji, mas, à falta disso, existem montes de corvos que fazem mais barulho do que um grupo de velhas carpideiras. Ao alvorecer, aterram em bandos no parque de Yoyogi e fazem uma chinfrineira tal que até parece que o mundo está prestes a acabar. Nem preciso de despertador para acordar. Cracas a eles, agora sou como tu, e levo uma vida em que me deito com as galinhas, como qualquer agricultor que se preze. Começo agora a perceber qual é a sensação de ter alguém a telefonar para nossa casa às três e meia da manhã. «Começo» a perceber, vê se me entendes.
Estou a escrever-te esta carta sentada numa esplanada, numa ruela de Roma, diante de um café expresso, espesso como o suor do diabo, mas, como hei-de dizer?... Tenho uma sensação estranha, como se tivesse deixado de ser eu mesma. Não consigo explicar muito bem, mas é uma sensação de estar ferrada no sono, e depois aparece alguém que me desmonta peça a peça, para logo a seguir voltar a juntar as peças todas à pressa com medo de que eu acorde. Percebes o que quero dizer?
Os meus olhos dizem-me que eu sou a mesma, mas há qualquer coisa diferente do costume, isto apesar de eu não me conseguir lembrar muito bem do que era «costume». Desde que saído avião, não consigo afastar de mim esta ilusão desconstrutiva, ao mesmo tempo tão real. «Ilusão»? Espero bem que não passe disso...
Sentada a esta mesa, pergunto a mim mesma: «O que estou, aqui e agora, a fazer em Roma?», e não consigo deixar de sentir a estranheza de tudo aquilo que me rodeia. Claro que, se me der ao trabalho de reconstituir o percurso que me trouxe até aqui, acabo por encontrar uma explicação, mas, no fundo, continuo sem ficar lá muito convencida. A Sumire aqui sentada e a imagem que tenho de mim não encaixam uma na outra. Dito de outro modo: eu poderia muito bem não estar aqui, mas, apesar disso, aqui estou eu. Tenho a noção de que sou um bocado vaga, mas tu percebes o que eu quero dizer, não percebes?
De uma coisa podes ter a certeza: quem me dera que viesses para junto de mim. Apesar de ter a Miu comigo, a verdade é que fico cheia de saudades quando te encontras longe. Uma coisa é certa: quanto mais longe estamos, mais sozinha me sinto. Oxalá tu também sintas o mesmo.
Em todo o caso, aqui estou eu, a fazer uma viagem pela Europa na companhia de Miu. Por motivos de trabalho, Miu tinha pensado ir sozinha durante quinze dias dar uma volta por terras de Itália e França, mas acabou por me pedir que viesse com ela na qualidade de sua secretária particular. Uma bela manhã saiu-se com essa, para minha grande surpresa. Pela parte que me toca, podem chamar-me «secretária particular» à vontade, apesar de não me parecer que a possa ajudar por aí além; por outro lado, reconheço que esta experiência pode ser boa para mim e, além disso, Miu disse-me que a viagem era o meu presente por ter deixado de fumar. Afinal, valeu a pena o martírio todo que passei.
Aterrámos primeiro em Milão, fomos visitar a cidade, depois alugámos um Alfa Romeo azul e metemo-nos na auto-estrada a caminho do Sul. De caminho, parámos nalgumas propriedades vitivinícolas na Toscana para tratar de negócios, passámos algumas noites num hotelzinho encantador e só depois chegámos a Roma. Os negócios foram tratados em inglês ou francês, por isso fiquei quase sempre nos bastidores, isto apesar de o meu italiano ter dado muito jeito no dia-a-dia. Se tivéssemos ido a Espanha (o que, infelizmente, não acontecerá durante esta viagem), acho que a minha presença poderia ter sido ainda mais útil a Miu.
O Alfa Romeo que alugámos tem mudanças manuais, o que acabou por não ajudar nada. Miu não teve outro remédio senão ser ela a conduzir. Mas aguenta horas seguidas ao volante e nunca dá parte de fraca. Na Toscana há colinas e curvas por tudo o que é sítio, uma vez que aquilo é sempre tudo a subir e a descer, e até fazia impressão a facilidade com que ela metia constantemente as mudanças; só de a olhar, caía-me o coração aos pés (e não estou a brincar). Estar sentada e quieta ao lado dela, e ao mesmo tempo longe do Japão, chega e sobra para me fazer feliz. Quem me dera que pudéssemos ficar assim para sempre.
Se começasse a falar-te das refeições e dos vinhos magníficos que há em Itália, a carta nunca mais acabava, por isso fica para a próxima. Em Milão, corremos as lojas todas. Vestidos, sapatos, roupa interior, esse género de coisas. A não ser um pijama (esqueci-me de trazer o meu), não comprei mais nada. Para além de estar «tesa», são tantas as coisas bonitas que nem saberia por onde começar. É daquelas situações em que fico sem qualquer capacidade dediscernimento, como se tivesse rebentado um fusível. Mas só o simples facto de ter acompanhado Miu nas compras foi suficiente.
Ela é, por assim dizer, perita na matéria. Escolhe apenas o que há de bom e de melhor, e pouco de cada. Como quem dá uma dentada no bocado mais saboroso de um manjar. Só de a ver escolher um par de meias e algumas peças de roupa interior de seda fiquei quase sem poder respirar. Até a testa se cobriu de suor. O que, pensando bem, não deixa de ser estranho. No fim de contas, sou uma rapariga. Mas por hoje já chega de compras — se me alargasse também sobre este capítulo, a carta nunca mais chegaria ao fim.
Nos hotéis dormimos em quartos separados. Miu tem feito questão nisso. Só uma vez, em Florença, quando houve uma confusão qualquer com a nossa reserva, fomos obrigadas a partilhar o mesmo. Tinha camas separadas, mas só pelo facto de dormir com ela no mesmo quarto fiquei com o coração aos pulos. Via-a uma vez de relance a sair da casa de banho, embrulhada numa toalha, e outra vez a mudar de roupa. Como não podia deixar de ser, fingi que estava absorvida no meu livro, mas lá consegui dar uma olhadela, como quem não quer a coisa. Miu tem uma figura verdadeiramente espantosa. Não estava completamente nua, vestia um conjunto de roupa interior muito reduzido, mas tem um corpo de cortar a respiração. Muito esguia, nádegas firmes, uma verdadeira obra de arte. Gostava que a tivesses visto — embora possa parecer um bocado estranho da minha parte dizer isto.
Imaginei que aquele corpo liso, esguio, me abraçava. Deitada na cama, no mesmo quarto que ela, vieram-me a cabeça toda a espécie de imagens obscenas, e tive a sensação de que esses pensamentos me arrastavam aos poucos para outro lugar. Talvez devido à excitação, apareceu-me o período nessa mesma noite, muito antes da data prevista. Mas que grande azar! bom! Não sei porque estou para aqui a contar-te tudo isto, uma vez que nada adianta. De qualquer modo, faço tenção de continuar — para que fique tudo passado para o papel.
A noite passada, em Roma, fomos a um concerto. Não estava à espera de grande coisa, até porque a temporada musical já acabou, mas tivemos a sorte de assistir a uma interpretação inesquecível. Martha Argerich a executar o Concerto para Piano e Orquestra n.° 1, de Liszt. Adoro aquela peça. A orquestra era dirigida pelo maestro Giuseppe Sinopoli. Que obra maravilhosa! É impossível uma pessoa sentir-se enfastiada ao ouvir música assim. Foi rigorosamente a interpretação mais fiel, mais fantástica, a que alguma vez me foi dado assistir. Pensando bem, talvez até um bocadinho perfeita de mais para meu gosto. Liszt precisa de ser abordado de uma forma menos nobre, quase furtiva — como se estivesse a ser tocado por uma orquestra local numa festa de aldeia. Do que eu gosto é de sentir a emoção que a música suscita. Miu e eu estamos de acordo neste ponto. Em Veneza há um festival de Vivaldi, e estamos a pensar ir até lá. Tal como acontece contigo quando começamos os dois a falar de literatura, Miu e eu podíamos ficar eternamente a falar de música.
Vai longa a carta, não te parece? Pelos vistos, a partir do momento em que pego numa caneta e começo a escrever não consigo parar. Fui sempre assim. Dizem que uma menina prendada não deve demorar-se mais do que o suficiente num lugar público se estiver sozinha, mas, no que toca à escrita (e, quem sabe, não apenas à escrita...), as minhas boas maneiras são para esquecer. O empregado, com o seu casaco branco, olha para mim de vez em quando com uma cara de enjoo, mas a verdade é que já tenho a mão cansada de tanto escrever. Além disso, acabou-se o papel de carta.
Miu foi visitar um velho amigo que tem em Roma, e eu pus-me a vaguear pelas ruas ao pé do hotel, depois vim até este café, parei para descansar um bocado, e aqui estou eu a escrever-te esta carta que nunca mais acaba. Como se estivesse numa ilha deserta, a preparar-me para deitar ao mar uma mensagem dentro de uma garrafa. É estranho, mas quando fico sozinha, sem a Miu, não me apetece ir a lado algum. Fiz esta viagem toda até Roma (e provavelmente nunca mais cá voltarei), mas não sinto a mínima vontade de me levantar daqui e ir visitar aquelas ruínas que tu sabes ou a famigerada fonte. Nem sequer me apetece ir às compras. Estar sentada no café, a farejar os odores da cidade como um cão, a escutar os ruídos e as vozes, a fitar o rosto das pessoas que por aqui passam, é quanto basta para me sentir feliz da vida.
De repente, acabo de me dar conta de que aquela estranha sensação de ficar toda aos bocados, de que te falei no princípio, começou a desvanecer-se enquanto escrevia esta carta. Pelo menos agora já não me faz tanta impressão. Tenho a mesma sensação que ao sair da cabina telefónica, quando costumava ligar para ti no meio da noite. Será que exerces algum efeito curativo sobre mim?
Qual é a tua opinião? Seja como for, reza para que eu seja feliz e tenha sorte. Bem preciso. Até à próxima.
P.S. Devo regressar a casa por volta do dia 15 de Agosto. Ainda havemos de ir os dois jantar antes do fim do Verão, aqui fica a promessa!
Cinco dias mais tarde chegou uma segunda carta, enviada de uma aldeia francesa qualquer de que eu nunca ouvira falar, mais curta do que a primeira. Depois de terem deixado ali o carro alugado em Roma, Miu e Sumire apanharam o comboio para Veneza. Passaram dois dias a fio a ouvir Vivaldi. A maior parte dos concertos realizou-se na igreja onde o compositor havia sido celebrante. «A dose de Vivaldi foi tão grande que nos próximos seis meses não quero voltar a ouvir uma só nota», escrevera Sumire. Contava ainda como era delicioso o marisco grelhado servido nos restaurantes de Veneza. A descrição era de tal maneira vívida que só me dera vontade de apanhar o próximo avião e ir até lá regalar-me com semelhante iguaria.
Depois de Veneza, regressaram a Milão e, dali, apanharam o avião até Paris. Aproveitaram para descansar (e ir outra vez às compras), depois meteram-se no comboio rumo à Borgonha. Miu tinha um grande amigo que era dono de um casa enorme, melhor dizendo, uma verdadeira mansão, onde ficaram alojadas. Tal como em Itália, Miu aproveitara para visitar várias propriedades vitivinícolas, sempre em negócios. Quando tinham uma tarde livre, iam fazer um piquenique e dar um passeio pelos bosques ali à volta. com duas ou três garrafas de vinho para complementar o repasto, como não podia deixar de ser. «Aqui o vinho é um verdadeiro néctar dos deuses», escrevia Sumire.
A propósito, parece que os nossos planos de regressar ao Japão no dia 15 de Agosto vão sofrer uma alteração. Depois de termos tratado de tudo em França, é provável que façamos umas curtas férias numa ilha grega. Por mero acaso, travámos conhecimento com um cavalheiro inglês — um autêntico cavalheiro, nada de confusões — que é dono de uma villa na tal ilha, e ele convidou-nos para ficarmos lá em casa o tempo que quiséssemos. Nada mau! A ideia também parece agradar a Miu. Precisamos de umas férias a sério, de papo para o ar, sem ouvir falar em trabalho. As duas deitadas nas praias alvíssimas do mar Egeu, dois belos pares de seios ao sol, a contemplar as nuvens a serem arrastadas pelo vento e a beber vinho com um travo de resina de pinheiro. Um cenário paradisíaco, não te parece?
Se parece, pensei eu.
Nessa mesma tarde, fui até à piscina municipal, nadei um bocado e, no regresso, fiquei a ler durante uma hora num café que tinha ar condicionado. De novo em casa, pus a tocar um velho LP dos Ten Years After dos dois lados, enquanto aproveitava para passar três camisas a ferro. Guardei o ferro de engomar, bebi, misturado com Perrier, um vinho branco barato que tinha cornprado em promoção, e vi um jogo de futebol que tinha gravado. Cada vez que via um passe daqueles que nem eu seria capaz de fazer, punha-me para ali a abanar a cabeça e a suspirar. Criticar os erros dos outros é fácil — e dá um gozo tremendo.
Depois do jogo, afundei-me na poltrona, a fitar o tecto e a imaginar Sumire na sua vivenda de férias em terras de França. Naquela altura, era provável que já estivesse na tal ilha grega, deitada na praia, a ver as nuvens passar. Em todo o caso, estava longe, muito longe. Roma, Grécia, Timbuctu, Aruanda — pouca diferença fazia. E, num futuro próximo, talvez viesse a distanciar-se ainda mais. Fiquei angustiado. Senti-me como um insecto insignificante agarrado, numa noite de ventania, a um enorme muro de pedra, sem planos, sem crenças. Sumire dizia que sentia saudades minhas, mas estava Miu ao seu lado, e eu não tinha ninguém. A não ser a mim mesmo. A velha história do costume.
Sumire não regressou no dia 15 de Agosto. No seu telefone continuava a lacónica mensagem fui-de-viagem-e-estou-fora. Assim que mudara de casa, fora a correr comprar um telefone com atendedor de chamadas. Para não ter de ir nas noites
chuvosas, debaixo do guarda-chuva, até à cabina mais próxima. Uma excelente ideia, sob todos os aspectos. Não deixei mensagem. No dia 18 voltei, a telefonar-lhe, mas apanhei outra vez a mensagem. Depois do bip cortante, deixei ficar o meu nome e um recado muito simples, para ela me telefonar quando voltasse. Nunca recebi qualquer chamada. O mais provável era que Sumire e Miu estivessem a divertir-se de tal maneira na ilha grega que nem quisessem pensar em voltar ao Japão.
Entre as duas chamadas telefónicas, passei um dia a treinar uma equipa de futebol da minha escola e fui para a cama uma vez com a minha namorada. Acabada de chegar de umas férias no Bali com o marido e os seus dois filhos, estava com um «bronze» espectacular. Enquanto a abraçava, não pude deixar de pensar em Sumire, na sua ilha grega. Enquanto a penetrava, não pude deixar de imaginar o corpo de Sumire.
Se não fosse Sumire, podia facilmente ter-me apaixonado por aquela mulher, sete anos mais velha do que eu (e cujo filho era um dos meus alunos). Era uma mulher bonita, enérgica, doce. Usava demasiada maquilhagem para meu gosto, mas vestia-se bem. Preocupava-se com o peso, mas não tinha nem um grama a mais. Pela parte que me tocava, não tinha razão de queixa do seu corpo desejável. Adivinhava todos os meus desejos, sabia exactamente o que eu queria e o que eu não queria, até onde é que podia ir e onde é que devia parar. Na cama e fora dela. Fazia-me sentir como se estivesse a voar em primeira classe.
- Não faço amor com o meu marido há quase um ano confidenciou-me ela uma vez, nos meus braços. - Só contigo.
Mas não havia maneira de conseguir amá-la. Entre nós não existia aquela intimidade espontânea, quase incondicional, que partilhava amiúde com Sumire. Entre nós interpunha-se um véu fino, transparente. Visível ou não, erguia-se entre nós uma barreira. Por causa disso, não sabia o que lhe havia de dizer quando estávamos juntos — sobretudo quando chegava a hora da despedida, coisa que nunca me acontecera com Sumire. Cada vez que estava com a minha amante, limitava-me a confirmar uma realidade incontornável: precisava, mais do que nunca, de Sumire.
Depois de ela se ter ido embora, fui dar um passeio sozinho. Vagueei sem destino durante algum tempo, entrei num bar que ficava perto da estação e pedi um Canadian Club com gelo. Como sempre nestas alturas, sentia-me a pessoa mais infeliz do mundo. Emborquei de um só trago o primeiro copo e pedi outro, fechei os olhos e pus-me a pensar em Sumire a apanhar sol nas brancas praias das ilhas gregas, de peito desnudado. Na mesa ao lado, quatro jovens universitários bebiam cerveja e discutiam alegremente em ambiente de grande galhofa. Estava a tocar uma velha canção de Huey Lewis and the News. Cheirava a piza acabada de sair do forno.
Dei por mim a recordar tempos passados. Quando é que a minha juventude me escapara das mãos? E será que já tinha chegado ao fim? Parecia que ainda ontem era um adolescente a caminho da idade madura. Na altura, Huey Lewis and the News tinham duas ou três canções nos lugares cimeiros das tabelas discográficas. Não podia ser assim há tantos anos como isso. E agora ali estava eu, no meio de um circuito fechado, dando voltas e mais voltas e sem poder deixar de o fazer, apesar de estar farto de saber que não ia a parte alguma. Não podia parar. Se parasse, não conseguiria sobreviver.
Nessa noite, recebi uma chamada da Grécia. Às duas da manhã.
Mas não era Sumire que estava ao telefone, era Miu.
Primeiro ouvi uma grossa voz masculina pronunciar o meu nome e berrar depois num inglês com forte sotaque:
— Estou a falar com a pessoa certa?
Escusado será dizer que eu dormia profundamente. A minha mente estava vazia como um campo de arroz debaixo de chuva torrencial, e não havia meio de perceber o que se passava. Nos lençóis persistia a ténue recordação daquela tarde de sexo, e a realidade afigurava-se ligeiramente desfasada, como um casaco de malha abotoado ao contrário. O homem repetiu o meu nome.
— Diga-me uma coisa, estou a falar com a pessoa certa?
— Está, sim — respondi.
Não parecia o meu nome, mas era. Durante uns instantes só se ouviu a forte interferência da estática, que soava como se duas massas de ar tivessem colidido uma com a outra. Deve ser Sumire que pediu uma chamada internacional a partir da Grécia, pensei eu. Afastei um bocado o auscultador do ouvido e fiquei à espera de ouvir a voz dela, só que a que chegou até mim não era a de Sumire, mas sim a de Miu.
— Presumo que Sumire lhe tenha falado de mim?
— Sim, falou — respondi. Ao voz ao telefone parecia que provinha dos confins do mundo, distorcida por alguma substância inorgânica, mas, ainda assim, dava claramente para perceber uma certa tensão. Algo duro e rígido, como uma nuvem de gelo seco, penetrou no quarto através do telefone, despertando-me de uma vez por todas. Sentei-me direito na cama e agarrei melhor no auscultador.
— Não tenho tempo para grandes explicações — disse Miu, de uma assentada. — Estou a ligar de uma ilha na Grécia, é praticamente impossível estabelecer ligação com Tóquio e, mesmo quando se consegue, logo a seguir a chamada é cortada. Tentei uma série de vezes. Por isso, Vou deixar de lado as formalidades e passo a ir direita ao assunto, de acordo?
— De acordo — disse eu.
— Pode vir até cá?
— À Grécia, é isso que quer dizer?
: — Sim. O mais depressa possível.
Deixei escapar a primeira coisa que me veio à cabeça. — Aconteceu alguma coisa a Sumire? Miu fez uma pausa, o tempo de recuperar o fôlego.
— Não sei ainda, mas penso que ela gostaria de que você aqui estivesse. Tenho a certeza.
— Pensa que ela gostaria?
— Não é conversa para se ter pelo telefone. A chamada pode cair a qualquer momento e, além do mais, trata-se de um problema delicado. Preferia falar consigo pessoalmente. As despesas de viagem ficam por minha conta. Venha até cá quanto antes. Quanto mais cedo melhor. Compre um bilhete de avião, em primeira classe, o que for preciso. Daí a dez dias começava o novo período escolar. Teria de regressar nessa altura, mas nada me impedia de ir até à Grécia, desde que estivesse disposto a isso. Tinha duas reuniões na escola marcadas durante as férias, para tratar de assuntos vários, mas não era nada que não pudesse resolver. — Sou capaz de poder ir — disse eu. — Acho que não há problema. Diga-me só onde devo dirigir-me.
Ela deu-me o nome de uma ilha. Apontei-o na capa do livro que tinha na mesa-de-cabeceira. Já ouvira aquele nome em qualquer lado.
— Vai de avião de Atenas para Rodes, e depois apanha o ferry. Só há dois por dia que fazem a ligação com a ilha, um de manhã e outro ao fim da tarde. Vou fazer os possíveis por estar no porto sempre que o barco estiver para chegar. Então, sempre vem?
— Acho que arranjo maneira de ir. O que acontece é que — comecei eu a dizer, mas a chamada foi cortada bruscamente, com violência, como se alguém tivesse deixado cair um machado sobre uma corda, e voltou a ouvir-se a mesma horrível interferência que a princípio.
Pensando que talvez a ligação voltasse a ser restabelecida, mantive o auscultador encostado ao ouvido durante mais uns minutos, mas só me chegavam aqueles ruídos extremamente irritantes. Desisti, desliguei o telefone e saltei da cama. Bebi um copo de chá de cevada frio na cozinha e encostei-me ao frigorífico, a tentar pôr ordem nas minhas ideias.
Estaria realmente disposto a apanhar o avião e a viajar até à Grécia? A resposta era sim. Não tinha escolha possível.
Fui à estante buscar um atlas enorme para localizar a ilha que Miu me indicara. Sabia que ficava perto de Rodes, mas não foi tarefa fácil descobri-la no meio daquela miríade de ilhas, entre pequenas e grandes, disseminadas pelo mar Egeu. Por fim, lá consegui descortinar, numa letrinha minúscula, o nome do lugar de que andava à procura. Uma pequena ilha perto da fronteira turca. Tão pequena que nem dava para perceber que forma era a sua.
Tirei o passaporte da gaveta e certifiquei-me de que ainda era válido. A seguir, peguei em todo o dinheiro que tinha em casa e meti-o na carteira. Não era nenhuma fortuna, mas de manhã podia ir ao banco levantar mais. Pusera algum de parte, numa conta-poupança, e mal tocara no subsídio de férias. Somando tudo isso e usando o cartão de crédito, tinha dinheiro que chegasse para comprar um bilhete de ida e volta para a Grécia. Enfiei a trouxe-mouxe algumas peças de roupa num saco de desporto de plástico que usava para ir ao ginásio e atirei lá para dentro o estojo com artigos de higiene. E juntei também dois romances de Joseph Conrad que andava para reler há um certo tempo. Hesitei em levar os calções de banho, mas acabei por guardá-los no saco. Podia ser que à minha chegada o problema, fosse ele qual fosse, já estivesse resolvido, que toda a gente estivesse feliz e de saúde, que no céu azul o sol brilhasse e que eu pudesse tomar um ou dois banhos tranquilos antes de regressar ao Japão. Escusado será dizer que seria este o desenlace mais auspicioso para toda a gente.
Feitos os preparativos, apaguei a luz, voltei para a cama e tentei adormecer. Passava pouco das três e podia dormir ainda um bocado até de manhã. Mas não consegui conciliar o sono. A recordação daquela irritante estática bulia-me nas veias. No meu cérebro ressoava ainda a voz do homem, a berrar o meu nome. Acendi a luz, voltei a sair da cama, fui à cozinha, preparei um chá gelado e bebi-o. Depois rebobinei, de ponta a ponta, palavra por palavra, a conversa que tivera com Miu. As palavras dela eram vagas e abstractas, estavam cheias de enigmas de duplo sentido. No meio de tudo aquilo, havia apenas dois factos concretos a ter em conta. Escrevi-os num bloco de notas.
1) Aconteceu alguma coisa a Sumire, mas nem Miu sabe exactamente o quê.
2) Tenho de ir até lá o mais depressa possível. É isso que Sumire quer (pelo menos é o que Miu pensa).
Pus-me a olhar fixamente para o bloco de notas e sublinhei duas frases.
1) Aconteceu alguma coisa a Sumire, mas nem Miu sabe
exactamente o quê.
2) Tenho de ir até lá o mais depressa possível. É isso que Sumire quer (pelo menos é o que Miu pensa)
Não conseguia imaginar o que poderia ter acontecido a Sumire naquela pequena ilha grega, mas tinha a certeza de que não podia ser nada de bom. A questão era saber quão mau. Até de manhã nada podia fazer. Sentei-me numa cadeira, pus os pés em cima da mesa e fiquei ali a ler um livro, à espera de que nascesse o dia. Pareceu-me uma eternidade.
Às primeiras luzes da manhã, apanhei a Linha Chuo para Shinjuku, mudei para o Narita Express e cheguei ao aeroporto. Às nove comecei a fazer a ronda pelos balcões das companhias aéreas, e fiquei a saber que de Narita não safam voos directos para Atenas. Depois de várias tentativas falhadas, lá consegui um lugar em executiva no voo da KLM para Amesterdão. Ali poderia apanhar o voo de ligação para Atenas. Depois, seguiria num voo doméstico da Olympic Airways para Rodes. O pessoal da KLM tratou das reservas todas. Se não houvesse nenhum percalço, tinha tempo mais do que suficiente para apanhar as ligações. Pelo menos, era esta a maneira mais rápida de chegar ao destino. O regresso ficava em aberto e podia voltar em qualquer altura no espaço de três meses. Paguei com cartão de crédito. Perguntaram-me se tinha malas para despachar, ao que respondi negativamente.
Como ainda dispunha de tempo antes de embarcar, tomei o pequeno-almoço no restaurante do aeroporto. Levantei dinheiro na caixa multibanco e adquiri dólares em traveller’s cheques. Na livraria do aeroporto comprei um pequeno guia turístico da Grécia. O nome da ilha mencionada por Miu nem sequer aparecia, mas, em contrapartida, havia outras informações úteis — a moeda, o clima e outras coisas elementares sobre o país. Tirando algumas noções básicas sobre a História da Grécia antiga e o título de algumas tragédias gregas, a verdade é que não sabia grande coisa sobre o país. Da mesma maneira que apenas tinha um conhecimento vago da geografia de Júpiter ou do sistema de arrefecimento de um Ferrari. Jamais pusera a hipótese de ir à Grécia, pelo menos até às duas da manhã daquele dia.
Ainda de manhã telefonei a uma professora minha colega. Contei-lhe que surgira um problema com uma pessoa dafamília, que ia estar fora de Tóquio cerca de uma semana, e perguntei-lhe se ela se importava de se encarregar por mim de alguns assuntos lá na escola até ao meu regresso. Não havia problema respondeu, já que nos ajudáramos um ao outro muitas vezes.
— Para onde vais? — quis ela saber.
— Shikoku — respondi. Não podia dizer-lhe que ia a caminho da Grécia.
— Lamento muito — disse ela. — Vê lá se estás de volta quando as aulas começarem. E não te esqueças de me trazer uma lembrança.
— Claro — retorqui. Pensaria nesse pormenor quando chegasse a altura.
Fui até à sala de espera VIP, refastelei-me num sofá e passei pelas brasas. Um sono agitado. O mundo tinha perdido todo» o sentido de realidade. As cores eram artificiais, os pormenores grosseiros. O fundo era de papelão, as estrelas feitas de folha. Notavam-se a olho nu os resquícios de cola e as cabeças dos pregos. Os anúncios transmitidos pelos altifalantes buliam dentro e fora da minha consciência. «Pede-se a todos os passageiros do voo 275 da Air France com destino a Paris que se dirijam à porta de embarque número...» No meio daquele sonho incoerente — ou, porventura, daquela vigília incerta —, às tantas dei comigo a pensar em Sumire. Como antigas imagens de arquivo alinhavadas num documentário de época, desfilaram pela minha cabeça momentos e lugares que havíamos partilhado. No meio do bulício que reinava no aeroporto, com uma multidão de passageiros sempre de um lado para o outro, o mundo em que vivíamos, Sumire e eu, afigurava-se um lugar miserável, desprotegido, improvável. Nenhum de nós possuía quaisquer conhecimentos verdadeiramente importantes, tão-pouco um talento especial que pudesse compensar semelhante lacuna. Nada tínhamos de consistente a que nos pudéssemos agarrar. Era como se fôssemos uns zeros à esquerda, não passando as nossas de duas existências insignificantes, condenadas a arrastarem-se de um estádio do nada para outro.
Acordei encharcado em suor, a camisa colada ao peito. Sentia o corpo pesado, as pernas inchadas. Parecia que tinha engolido um pedaço de céu cheio de nuvens. Devia estar pálido. Uma das hospedeiras de terra perguntou, com ar preocupado, se eu me estava a sentir bem.
— Estou bem — respondi —, é do calor.
— Quer alguma coisa fresca para beber? — perguntou-me ela. Pensei durante alguns segundos e pedi uma cerveja. Trouxe-me
uma toalha humedecida, uma Heineken e um pacote de amendoins salgados. Depois de ter enxugado o suor da cara e bebido meia cerveja, senti-me melhor. E consegui dormir mais um bocado.
O voo saiu de Narita à hora prevista, atravessou o Pólo Norte e aterrou em Amesterdão. Tomei dois ou três uísques para continuar a dormir e, quando acordei, comi qualquer coisa. Não tinha grande apetite e nem sequer me apeteceu tomar o pequeno-almoço. Para não pensar em mais nada, uma vez acordado embrenhei-me na leitura de Conrad.
Em Amesterdão apanhei outro avião com destino a Atenas. Quando lá cheguei, dirigi-me ao terminal de voos domésticos, e, quase de imediato, apanhei o Boeing que fazia a ligação para Rodes. O avião ia cheio com um animado grupo de malta nova vinda de todos os cantos do mundo. Estavam muito bronzeados, vestidos com T-shirts, tops e calças de ganga rasgadas. Quase todos os homens tinham, por esquecimento ou de propósito, uma barba de três dias e usavam o cabelo apanhado num rabo-de-cavalo. com as minhas calças beges, uma camisa pólo de manga curta e casaco de algodão azul-marinho, estava nitidamente deslocado. Até dos óculos escuros me esquecera. Mas quem me poderia censurar? Ainda não há muitas horas estava em casa, mais interessado em saber o que havia de fazer com o lixo.
No aeroporto de Rodes, dirigi-me ao balcão das informações para saber onde podia apanhar o ferry para a ilha. Era num embarcadouro que não ficava longe dali. Se me despachasse, ainda chegaria a tempo de apanhar o barco da tarde.
— Há sempre lugares? — perguntei eu no balcão das informações, jogando pelo seguro.
— Para mais um, arranja-se sempre espaço — respondeu-me H uma mulher de nariz comprido e idade indefinida, franzindo o sobrolho e despachando-me a grande velocidade com as mãos. — Aquilo não é propriamente um elevador. Fiz sinal a um táxi e mandei seguir para o porto.
— Tenho pressa — disse eu ao motorista, mas ele não deu mostras de ter percebido a mensagem.
O táxi não tinha ar condicionado e pelo vidro aberto entrava um vento quente, carregado de poeira. No seu inglês tosco, o motorista passou a viagem toda a arengar uma longa e sombria diatribe contra a moeda única europeia. Limitei-me a dar a entemder que estava a seguir a conversa, mas a verdade é que nem sequer o ouvia. com os olhos semicerrados, via desfilar as ilhas de Rodes debaixo de um sol escaldante. No céu não havia uma única nuvem, nada que fizesse prever chuva. O sol calcinava paredes de pedra das casas. Uma camada de pó cobria uma enfiada de árvores nodosas na beira da estrada, e à sua sombra, ou sentadas debaixo de toldos, aquelas gentes fitavam o mundo em silêncio. Seguindo-as com o olhar, comecei a perguntar-me se teria vindo parar ao sítio certo. No entanto, os chamativos anúncios a marcas de cigarros e a ouzo espalhados ao longo da estrada que ia do aeroporto à cidade encarregaram-se de me dizer, em grandes letras gregas e sem margem de erro, que me encontrava na Grécia.
O ferry da tarde ainda não tinha zarpado. Era muito maior do que eu imaginara. Na popa havia espaço para o transporte de automóveis e a bordo, à espera de que o barco abandonasse o porto, encontravam-se já dois camiões de tamanho médio carregados de alimentos e outras mercadorias e uma carrinha Peugeot a cair aos pedaços. Comprei um bilhete e embarquei, e mal acabara de me sentar na coberta o barco soltou as amarras que o prendiam ao cais e os motores começaram a trabalhar com um profundo rumor. Soltei um suspiro e levantei os olhos para o céu. Agora só me restava esperar que o navio me conduzisse ao meu destino.
Despi o casaco todo transpirado e coberto de pó, dobrei-o e enfiei-o no saco. Eram cinco da tarde, mas o Sol ainda estava alto e os seus raios queimavam. Abandonei-me à brisa que vinha da proa e passava através da lona do toldo, e aos poucos comecei a ficar mais calmo. Os pensamentos sombrios que se haviam apoderado de mim na sala de espera do aeroporto de Narita desapareceram. Tinham-me deixado ficar apenas um travo ligeiramente amargo na boca.
Não havia mais de meia dúzia de turistas a bordo, o que me levou a pensar que a ilha talvez não fosse um destino turístico muito concorrido. A maioria dos passageiros era gente da terra, quase tudo anciãos que estavam de regresso a casa depois de uma ida a Rodes para tratar de algum assunto. A seus pés, pousados com extremo cuidado, como se se tratasse de um animal delicado, levavam os sacos com as compras. Os seus rostos, de olhar ausente, estavam sulcados de rugas profundas, como se o sol abrasador e uma vida inteira de trabalho árduo lhes tivessem roubado toda e qualquer expressão.
A bordo seguiam também alguns soldados jovens. Havia dois viajantes com aspecto de hippies sentados no chão, com pesadas mochilas às costas. Tinham ambos pernas altas e escanzeladas e cara de poucos amigos.
Havia ainda uma adolescente grega, que usava uma saia cornprida. Os seus olhos, de um negro profundo, conferiam-lhe uma espécie de beleza fatal. com os seus longos cabelos ao vento, conversava animadamente com a amiga que estava ao lado. Nos seus lábios desenhava-se um sorriso doce, como se algo de maravilhoso estivesse para acontecer, e os seus brincos de ouro cintilavam ao sol. Os soldados iam na coberta, encostados à amurada, a fumar com ar displicente, lançando de tempos a tempos um olhar furtivo na direcção da rapariga.
Enquanto bebia um refrigerante de limão que comprara nobar de bordo, deixei-me ficar ali a contemplar o mar de um azul profundo e a miríade de pequenas ilhas. A maior parte maisnão eram do que ilhotas rochosas, onde não vivia ninguém.Sem água, sem vegetação, não passavam de simples penhascosonde só as brancas aves marinhas que perscrutavam o mar àprocura de peixe pousavam, sem ligar à passagem do barco.As ondas fustigavam a borda das rochas, formando uma orilhade espuma tão branca que cegava. De vez em quando, apareciauma ilha habitada. com árvores de grande porte aqui e ali e asparedes brancas das casas disseminadas pela encosta. Nas enseadas amenas baloiçavam barcos pintados de cores vivas, descrevendo no ar, com os seus altos mastros, um arco ao sabor das ondas.
Um velhote todo enrugado que estava sentado ao meu lado ofereceu-me um cigarro. Sorrindo, fiz sinal com a mão que lhe agradecia, mas que não fumava. Ele ofereceu-me antes uma tirinha de pastilha elástica de hortelã-pimenta. Aceitei-a de bom grado e continuei a fitar o mar enquanto mastigava.
O ferry chegou à ilha já passava das sete. Os raios de sol haviam perdido a força, mas o céu continuava tão claro como antes, e a luz estival parecia ter até aumentado de intensidade. Inscrito em letras garrafais na parede branca de um edifício do porto, o nome da ilha mais parecia um enorme cartaz. O ferry acostou ao cais e os passageiros, com a bagagem na mão, atravessaram, um a um, a prancha de embarque. Frente ao cais ficava um café com esplanada, onde estavam sentadas as pessoas que tinham ido esperar alguém.
Assim que desembarquei, procurei Miu com o olhar, mas não vi ninguém que pudesse ser ela. Fui, isso sim, cercado pelos donos de algumas pensões, querendo insistentemente saber se eu estava à procura de um sítio para passar a noite. Não, não estou, disse eu, abanando a cabeça de cada vez que me perguntavam. Mesmo assim, cada um deles fez questão de me entregar um cartão-de-visita antes de se ir embora.
Os passageiros que desembarcaram ao mesmo tempo do que eu espalharam-se nas mais variadas direcções. Os que tinham ido às compras puseram-se a caminho de casa, os turistas partiram na direcção dos hotéis e pensões. As pessoas que esperavam algum amigo, trocaram um abraço forte ou um aperto de mãos mal deram com ele e logo foram à sua vida. Também os dois camiões e a Peugeot foram sendo descarregados, afastando-se depois com um estrépito de motores. Pouco a pouco até os gatos e cães que se tinham aproximado, movidos pela curiosidade, desapareceram. Ficou apenas um grupo de velhotes tisnados do sol, com todo o tempo do mundo. E eu, agarrado ao meu saco de ginástica, totalmente deslocado.
Sentei-me na esplanada e mandei vir um chá gelado, sem ideia alguma do próximo passo a dar. Não havia muita coisa que pudesse fazer. A noite caía rapidamente e eu não sabia nada da ilha nem da sua geografia. Não tinha outro remédio senão esperar um pouco mais e, caso ninguém aparecesse, o que devia fazer era arranjar alojamento em qualquer parte e voltar ao cais na manhã seguinte, à hora do barco. Não acreditava que Miu me tivesse deixado pendurado. No dizer de Sumire, Miu era uma pessoa metódica e organizada. Se não pudera estar presente, por alguma razão seria. Ou então nunca lhe passara pela cabeça que eu pudesse chegar tão depressa.
Estava com uma fome de lobo. Sentia um vazio tão grande no estômago que me dava a impressão de que o meu corpo deixava ver tudo à transparência. O ar forte do mar devia ter lembrado ao meu organismo que não ingerira alimento algum desde essa manhã. Apesar disso, e como não queria correr o risco de Miu e eu nos desencontrarmos, decidi ficar na esplanada à espera mais um bocado. De vez em quando, passava um habitante lá do burgo e deitava-me um olhar cheio de curiosidade.
No quiosque ao lado da esplanada comprei uma pequena brochura em inglês sobre a história e a geografia da ilha. Passei os olhos pelo livrinho enquanto bebia um chá gelado que não sabia rigorosamente a nada. A população da ilha oscilava, conforme a estação, entre os três mil e os seis mil habitantes. Aumentava durante o Verão, com a chegada dos turistas, diminuía quando chegava o Inverno e muitos dos seus habitantes iam pro-curar trabalho noutras paragens. Na ilha nada havia a que se pudesse chamar indústria, e a agricultura limitava-se à apanha» da azeitona e de mais duas ou três espécies de frutos, isto sem esquecer a pesca e o mergulho para capturar esponjas. O que explica que, no princípio do século XX, um bom número de habitantes da ilha tenha emigrado para a América. A maioria partiu com destino à Florida, onde podia pôr em prática a experiência adquirida na pesca e na apanha de esponjas. Parece que até existia, naquele estado americano, uma cidade que tinha o nome da ilha.
No ponto mais alto da ilha, o exército tinha uma instalação de radar. Nas imediações do porto havia outro, mais pequeno, onde estavam fundeados os barcos que faziam o patrulhamento da zona. Como a fronteira turca ficava perto, os gregos acantonavam-se ali para impedir a entrada ilegal de imigrantes e de contrabando. Assim se explicava a presença de soldados na cidade. Em caso de incidentes com a Turquia — e, de facto, rebentavam amiúde pequenas escaramuças —, o movimento dos barcos no porto militar tornava-se mais intenso.
No princípio da era cristã, quando do apogeu da civilização grega, a ilha, localizada em plena rota do comércio com a Ásia, era um próspero enclave comercial. Naquela época, as árvores verdes cobriam as montanhas da ilha e permitiam o florescimento da construção naval. No entanto, com o declínio da civilização grega, as árvores foram derrubadas (a ilha jamais voltaria a recuperar o seu verde frondoso) e a economia começou rapidamente a afundar-se. Depois, chegaram os turcos. Segundo rezava a brochura, o seu domínio havia sido por demais cruel. Se as coisas lhes não corressem de feição, desatavam a cortar narizes e orelhas como se estivessem a podar árvores. Em finais do século xix, depois de uma série de sangrentas batalhas, a ilha libertou-se finalmente do jugo turco e a bandeira azul e branca da Grécia voltou a ser hasteada no porto. Chegou então o exército de Hitler. Foram os alemães que instalaram o radar e a estação meteorológica no cume da colina mais alta, para vigiar o mar, uma vez que era dali que se alcançava melhor vista. Foi então que, vindos de Malta, os bombardeiros ingleses sobrevoaram a zona com a intenção de destruir o radar. Não só bombardearam a base, no alto da colina, como também o porto, afundando um número considerável de inofensivos barcos de pesca e causando a morte de alguns pescadores. Na sequência dos bombardeamentos morreram mais gregos do que alemães. Entre os habitantes da ilha ainda há quem lhes guarde rancor por isso. .
Como acontece na maior parte das ilhas gregas, zonas planas era coisa que ali não abundava, sendo a quase totalidade da superfície da ilha composta de colinas abruptas e escarpadas. O único lugar habitado ficava na costa sul, não muito longe do porto. Existia uma bela praia tranquila, mas para lá chegar era preciso descer uma encosta bastante íngreme. Nos locais de fácil acesso, as praias não tinham graça nenhuma, o que explicava em parte o facto de o número de turistas não ser maior. Havia vários mosteiros ortodoxos gregos disseminados pelas colinas, mas os monges observavam regras de vida rigorosamente estritas, e aos turistas acidentais não eram permitidas quaisquer visitas.
Pelo menos daquilo que me foi dado ler no guia, tratava-se de uma ilha grega perfeitamente vulgar. E contudo, por qualquer razão, os ingleses viam nela um local especialmente aprazível (aliás, sempre foram um tanto excêntricos) e, imbuídos de um assinalável zelo, mandaram construir uma série de vivendas de férias num planalto perto do porto. No final da década de sessenta havia já um número considerável de escritores ingleses que ali viviam e escreviam os seus romances, fitando o mar azul e as brancas nuvens. Algumas destas obras mereceram o elogio da crítica, e foi graças a isso que a ilha granjeou junto dos círculos literários britânicos uma certa aura de romantismo. Por esta notável faceta cultural da sua própria ilha não demonstravam os locais, contudo, o mínimo sinal de interesse.
Li tudo isto para enganar a fome. Fechei o livrinho e voltei a dar uma vista de olhos à minha volta. Os velhos sentados no café fitavam incansavelmente o mar, como se estivessem a participar num concurso para ver quem aguentava mais tempo assim. Já eram quase oito da noite e, no estômago, o vazio convertera-se em algo parecido com dor física. Vindos não sei de onde, os odores da carne assada e do peixe grelhado chegaram-me ao nariz, atingindo-me em cheio nas entranhas como se de um carrasco amigo se tratasse. Sem conseguir aguentar mais, levantei-me da cadeira. No momento em que peguei no saco com a intenção de ir à procura de um restaurante, uma mulher surgiu em silêncio no meu campo de visão.
O Sol estava finalmente a pôr-se e dava de frente para a mulher que descia em passo rápido uma escadaria íngreme, fazendo esvoaçar ligeiramente a saia branca que lhe dava pelo joelho. Tinha umas pernas de rapariga e calçava uns sapatos de ténis que mais pareciam de criança. Vestia uma blusa verde-clara sem mangas, um chapéu de aba estreita e trazia um pequeno saco de tecido ao ombro. Caminhava de uma maneira tão natural, tão familiar, que parecia fazer parte da paisagem, e a princípio confundi-a com uma pessoa da terra. Mas ela encaminhou-se na minha direcção e, ao aproximar-se, reparei nos seus traços asiáticos. Sentei-me quase sem dar por isso, depois levantei-me de novo. A mulher tirou os óculos escuros e disse o meu nome.
— Peço desculpa por chegar tão tarde — desculpou-se ela. — Tive de ir à esquadra da polícia e a papelada nunca mais acabava. Além de que nunca pensei que você conseguisse cá chegar hoje. Quando muito, só o esperava amanhã à hora do almoço.
— Consegui apanhar os voos de ligação todos — disse eu. A esquadra da polícia ?
Miu olhou-me de frente e esboçou um sorriso pálido.
— Se achar bem, podemos falar enquanto comemos qualquer coisa noutro sítio. Hoje ainda só tomei pequeno-almoço. E você? Também deve ter fome?
— Se tenho — respondi.
Ela levou-me a uma taverna que ficava atrás do porto. À entrada havia um grelhador de carvão com peixe fresco e marisco de todas as qualidades e feitios.
— Gosta de peixe? — perguntou-me Miu, e eu respondi que sim.
Ela dirigiu-se ao empregado e fez o pedido num grego macarrónico. Primeiro trouxeram-nos uma garrafa de vinho branco, pão e azeitonas. Servimo-nos de vinho e começámos logo a beber, sem perder tempo com brindes nem outras formalidades. Para acalmar as dores de estômago provocadas pela fome, meti na boca um bocado daquele pão caseiro e um punhado de azeitonas. Miu era um mulher muito bela e esse facto simples e evidente atingiu-me desde o primeiro momento. Não, vendo bem, talvez não tenha sido assim tão simples nem tão evidente. Quem sabe se eu não teria sido vítima de uma terrível confusão. Quem sabe se, por qualquer razão, eu não teria ido parar ao sonho recorrente de outra pessoa qualquer? Agora que penso nisso, chego à conclusão de que não é de excluir essa hipótese. A única coisa que posso garantir é que, naquele momento, ela me pareceu uma mulher extremamente bela.
Usava vários anéis nos seus finos dedos, um deles uma vulgar aliança de ouro. Enquanto eu tentava pôr rapidamente em ordem as primeiras impressões que ela me causara, Miu olhou para mim com os seus olhos meigos, levando de vez em quando o copo de vinho aos lábios.
— Tenho a impressão de já o ter encontrado — disse ela. — Talvez por ouvir falar tanto de si.
— Sumire também me falou muito de si — retorqui eu.
Miu deu mostras de satisfação. Quando sorria, e só então, umas encantadoras rugas de expressão desenhavam-se nos cantos dos olhos.
— Nesse caso, podemos passar sem as apresentações da praxe. Assenti com a cabeça.
Do que mais gostei em Miu foi o facto de não tentar esconder a idade. Segundo Sumire, devia ter trinta e oito ou trinta e nove anos e, para dizer a verdade, era essa a idade que aparentava. com a sua figura esguia e ginasticada, e a maquilhagem adequada, passaria facilmente por uma mulher de vinte e tal anos, mas não fazia por isso. Ela deixava transparecer os anos naturalmente e parecia viver muito bem com isso.
Miu meteu uma azeitona na boca, agarrou no caroço com os dedos e, como um poeta colocando a pontuação no sítio certo, pousou-o com jeitinho no cinzeiro.
— Lamento muito ter sido obrigada a telefonar-lhe assim, a meio da noite — disse ela. — Gostaria de ter podido explicar melhor as coisas logo na altura, mas estava extremamente enervada e não sabia muito bem por onde começar. Ainda não me recompus totalmente, mas pelo menos agora já estou mais calma.
— Afinal de contas, o que aconteceu?
Miu cruzou os dedos de ambas mãos em cima da mesa, descruzou-os, voltou a cruzá-los.
— Sumire desapareceu.
— Desapareceu?
— Evaporou-se como fumo — disse Miu e bebeu um trago de vinho.
Prosseguiu.— É uma longa história, por isso o melhor é contá-la como deve ser e começar pelo princípio. Caso contrário, poderiam escapar certos matizes. A história em si é extremamente delicada. Mas vamos jantar primeiro, mais minuto menos minuto, não é isso que vai adiantar alguma coisa e, com estômago vazio, a cabeça não funciona bem. Além disso, está demasiado barulho aqui para podermos conversar.
O restaurante estava apinhado de gregos que gesticulavam muito e falavam alto. Para ouvir e não ter de falar aos berros, Miu e eu fomos obrigados a inclinar-nos por cima da mesa e a juntar as cabeças. Passado pouco tempo, o empregado de mesa apareceu com uma travessa de salada grega e duas grandes postas de pescada grelhadas. Miu temperou o peixe com sal, espremeu metade de um limão e regou-o com azeite. Eu fiz o mesmo. Concentrámo-nos na comida. Tal como ela tinha dito, cada coisa a seu tempo. Primeiro do que tudo precisávamos de matar a fome.
Ela quis saber quanto tempo é que eu podia ficar.
— Daqui a uma semana começam as aulas — respondi —, por isso nessa altura tenho de estar de volta. Senão, posso arranjar problemas.
Miu deu mostras de ter percebido. Franziu os lábios, ao mesmo tempo que parecia magicar na resposta. Poderia ter dito algo de previsível, do género: Não se preocupe, vai chegar lá a tempo, ou não sei se as coisas ficarão resolvidas tão cedo. Mas não. Formou a sua opinião, guardou-a para si mesma e continuou a refeição em silêncio.
Depois do jantar, quando estávamos a tomar café, trouxe à baila o assunto do preço do bilhete de avião.
Importa-se de receber a importância em traveller’s cheques? — perguntou ela. — Ou então posso mandar transferir o dinheiro em ienes para a sua conta depois de você regressar a Tóquio. O que prefere? Respondi que não tinha problemas de dinheiro e que podia arcar com o meu bilhete. Porém, Miu insistiu em ser ela a pagar. — Fui eu que lhe pedi que viesse — disse ela.
Abanei a cabeça.
— Não estou a querer ser simpático nem nada que se pareça. Mais algum tempo e o mais provável era eu ter vindo até cá por minha própria iniciativa. E isso que estou a tentar dizer.
Miu ficou a matutar sobre aquilo e assentiu.
— Estou-lhe muito agradecida por ter vindo até cá. Nem sabe até que ponto.
Quando saímos do restaurante, o crepúsculo tingia a paisagem de cores flamejantes. Dava a impressão de que, se respirássemos fundo, os pulmões ficariam tingidos com aqueles quentes tons de azul. No céu, começavam a vislumbrar-se, pequenas e brilhantes, as estrelas. Depois do jantar, mal podendo esperar que o longo dia de Verão chegasse ao fim, os habitantes da ilha saíam de casa e davam um passeio pelas imediações do porto. Havia famílias, casais, grupos de amigos. O suave aroma da maresia inundava as ruas. Miu e eu percorremos a cidade. No lado direito da rua principal ficavam as lojas, os pequenos hotéis e os restaurantes com as mesas postas no passeio. Nas janelas com gelosias de madeira brilhavam acolhedoras luzes amareladas e um posto de rádio transmitia música grega. À esquerda estendia-se o mar, as águas negras batendo placidamente no molhe.
— A estrada começa a subir não tarda nada — avançou Miu. — Podemos ir pelas escadas íngremes ou subir a encosta, que é menos pronunciada. Pelas escadinhas é mais rápido. Importa-se?
— Não — respondi.
Os estreitos degraus de pedra acompanhavam o declive da colina. Eram estreitos e altos, mas os pés de Miu encarregavam-se de marcar o ritmo sem dar sinais de cansaço, e nem por um momento ela estugou o passo. À minha frente, a fímbria da sua saia ondulava suavemente para cá e para lá, revelando a barriga das pernas bem torneadas, bronzeadas pelo sol, à luz da Lua quase cheia. Fui o primeiro a ficar sem fôlego e fui obrigado a parar de tempos a tempos para respirar fundo. À medida que subíamos, as luzes do porto iam ficando mais pequenas e distantes. Os afazeres das pessoas que até há pouco me rodeavam haviam sido como que absorvidos por aquela fiada de luzes anónimas. A vista era tão impressionante que dava vontade de a recortar com uma tesoura e de a pregar na parede da memória.
A casa onde Miu e Sumire estavam a morar era uma pequena vivenda com um terraço que dava para o mar. Paredes brancas e telhas vermelhas, a porta pintada de verde-escuro. No muro baixo de pedra que a rodeava floriam buganvílias vermelhas em profusão. Ela abriu a porta, que não estava fechada à chave, e convidou-me a entrar.
No interior, estava fresco e agradável. Havia uma sala, uma casa de jantar nem muito grande nem muito pequena e uma cozinha. Nas paredes estucadas viam-se dois ou três quadros com pinturas abstractas. Na sala existia um sofá, uma estante e uma aparelhagem de música. Dois quartos e uma casa de banho toda de azulejos, pequena mas com aspecto limpo, ocupavam o resto do espaço. O mobiliário não era particularmente bonito, mas criava um ambiente discreto e sóbrio.
Miu tirou o chapéu e pousou o saco na bancada da cozinha.
— Quer beber alguma coisa? — perguntou. — Ou prefere tomar um duche primeiro?
— Acho que Vou primeiro tomar um duche — disse eu. Lavei a cabeça e fiz a barba. Sequei o cabelo com o secador
de mão e vesti uma T-shirte uns calções lavados. Comecei a sentir-me outro. Na casa de banho, por baixo do espelho, havia duas escovas de dentes, uma azul, a outra encarnada. Perguntei-me qual seria a de Sumire.
Regressei à sala e dei com Miu instalada numa poltrona, com um copo de brande na mão. Ofereceu-me um, mas o que me apetecia mesmo era uma cerveja fresca. Tirei uma Amstel do frigorífico e deitei-a num copo alto. Afundada na poltrona, Miu permaneceu durante muito tempo calada. Mais do que à procura das palavras certas, parecia perdida no labirinto infinito das suas próprias recordações.
— Há quanto tempo cá está? — atrevi-me a perguntar.
— Faz hoje oito dias — respondeu Miu, depois de pensar um instante.
— E foi daqui que Sumire desapareceu?
— Exactamente. Tal como lhe disse antes, evaporou-se como fumo.
— Quando?
— Há quatro dias, durante a noite — disse ela, varrendo a sala com o olhar como se estivesse à procura de um indício.
— Não sei por onde começar.
— Nas cartas Sumire falou-me na viagem de Milão para Paris
— disse eu. — Contou também que depois foram de comboio até à Borgonha e que ficaram na propriedade de um dos seus amigos. ’.-. --
— Bem, então Vou começar por aí— anunciou ela.
— Há muito tempo que conheço os vitivinicultores daquela região, e os vinhos que produzem, tão bem como a planta da minha própria casa. Sei que vinho dá cada uma das encostas de cada vinhedo. Sei a influência que o clima tem na colheita do ano, quem produz mais, quem conta com a ajuda do filho. Quem tem dívidas e a quanto montam, quem comprou um Citroen novo. Esse tipo de coisas. O vinho é como um puro-sangue, é preciso conhecer bem a casta e, ao mesmo tempo, estar na posse das informações mais actualizadas. Não é pelo facto de o vinho ter ou não um bom sabor que se faz negócio.
Aqui Miu interrompeu por momentos o seu discurso para recuperar o fôlego. Parecia não saber muito bem se havia de prosseguir ou não. Prosseguiu.
— Há um ou dois produtores na Europa onde me abasteço, mas é na região da Borgonha que tenho o meu principal fornecedor. Daí que, pelo menos uma vez por ano, faça os possíveis por passar lá uma boa temporada, a fim de rever velhos amigos e ficar a par das novidades. Geralmente costumo ir sozinha, mas desta vez tinha de passar primeiro por Itália e, como viajar sem companhia durante tanto tempo é muito aborrecido e Sumire andava a ter aulas de italiano, decidi levá-la comigo. Tencionava arranjar um pretexto qualquer para a mandar regressar a casa antes de partir para França. Estou, desde muito nova, habituada a viajar sozinha, e a verdade é que, por mais chegada que uma pessoa nos seja, não é fácil conviver com ela todos os dias, de manhã à noite.
«Mas Sumire revelou-se muito mais competente do que eu alguma vez teria imaginado e encarregou-se de uma série de coisas por mim. Comprava os bilhetes, fazia as reservas nos hotéis, negociava os preços, tomava nota das despesas, descobria os bons restaurantes, esse tipo de coisas. Tinha feito grandes progressos no seu italiano e foi graças a ela, e àquela dose de proverbial curiosidade que é seu apanágio, que fiz uma série de coisas em que não pensava caso viajasse sozinha. Nunca julguei que pudesse ser tão agradável passar tanto tempo na companhia de outra pessoa. Em parte, acho que isso se ficou a dever ao elo afectivo muito especial que se criou entre Sumire e eu.
«Lembro-me perfeitamente da conversa que tivemos sobre o Sputnik da primeira vez que nos encontrámos. Ela estava a referir-se aos escritores beatnick e eu fiz confusão com o Sputnik. Desatámos a rir e isso ajudou a quebrar o gelo. Sabe o que quer dizer Sputnik em russo? Companheiro de viagem. Fui ver no dicionário aqui há dias. Pensando bem, não deixa de ser uma estranha coincidência. Gostava de saber onde foram os russos foram buscar um nome tão curioso para dar ao seu satélite. Afinal de contas, aquilo não passava de uma porcaria de um pedaço de metal que andava para ali a girar à volta da Terra.
Miu calou-se por instantes, depois retomou o fio à meada.
— De qualquer modo, acabei por levar Sumire comigo para a Borgonha. Enquanto eu andava ocupada a rever velhos amigos e a fechar alguns negócios, Sumire pediu-me o carro emprestado e foi dar uma volta pela região. Apesar de não falar uma palavra de francês, travou conhecimento com uma senhora espanhola, muito rica e já de certa idade, começaram as duas a conversar em espanhol e ficaram amigas. Por seu turno, a senhora apresentou Sumire a um inglês que estava hospedado no mesmo hotel do que ela. Tratava-se de um escritor qualquer dos seus cinquenta anos, por sinal um homem muito interessante, muito bem-educado. Palpita-me que era homossexual. Andava sempre com um secretário atrás que tinha todo o ar de ser seu amante.
«Convidaram-nos para jantar. Eram pessoas muito simpáticas e, a páginas tantas, chegámos à conclusão de que afinal conhecíamos as mesmas pessoas, o que só veio reforçar o clima de cumplicidade. Foi então que o inglês nos disse que tinha uma pequena casa numa ilha grega e que teria muito gosto se quiséssemos utilizá-la durante uns tempos. Contou-nos que costumava ir lá passar um mês todos os anos, mas que este Verão estava assoberbado com trabalho e não podia ir. As casas devem ter gente, senão os caseiros ficam sem nada que fazer, disse ele, convidando-nos a ir até lá, se não víssemos inconveniente nisso. E foi assim que acabámos por vir parar a esta casa.
Miu lançou um olhar de relance à sua volta.
— Já tinha estado uma vez na Grécia, quando andava a estudar. Foi numa daquelas viagens-relâmpago em que se passa a vida a saltitar de ilha em ilha, mas, mesmo assim, fiquei encantada com o país. Foi por isso que a ideia de ter casa à disposição numa ilha grega, e ainda por cima podendo nós utilizá-la durante o tempo que quiséssemos, me pareceu uma oferta particularmente tentadora. Escusado será dizer que Sumire também estava cheia de vontade de vir. Ofereci-me para pagar renda, mas o inglês recusou categoricamente, respondendo que não trabalhava no ramo imobiliário. Depois de muita insistência da minha parte, ficou então combinado que, como forma de agradecimento, eu ficaria de lhe enviar uma caixa de vinho tinto para a casa dele, em Londres.
«Passámos uns dias de sonho na ilha. Pela primeira vez há muito tempo, dei-me ao luxo de ter umas férias a sério, sem horários a cumprir nem obrigações de espécie alguma. Ainda por cima as comunicações são um bocado lentas por estas paragens, como já deve ter reparado, e quer o fax quer a Internet são coisas que não existem. Só o facto de regressar a Tóquio mais tarde do que o inicialmente previsto poderia causar um certo transtorno a algumas pessoas, mas, assim que cá cheguei, até isso deixou de ter importância.
«De manhã, Sumire e eu acordávamos cedo, metíamos as toalhas de banho no saco, uma garrafa de água, creme de protecção solar e íamos a pé até à praia que fica do outro lado da montanha. A zona ao longo da costa é linda de morrer. A areia é de uma brancura imaculada e quase não há ondas. Mas, como fica um bocado fora de mão, contam-se pelos dedos as pessoas que vão até lá, sobretudo de manhã cedo. Homens e mulheres, ali toda a gente toma banho nua e foi isso mesmo que nós fizemos. Não imagina a sensação extraordinária que é nadar logo pela manhã naquele mar de um azul puríssimo, nus como viemos ao mundo. Até parece que estamos noutra dimensão.
«Quando nos fartávamos de nadar, Sumire e eu deitávamo-nos na areia e ficávamos ali a apanhar sol. A princípio sentíamo-nos um tanto envergonhadas por nos despirmos à frente uma da outra, mas depois habituámo-nos e não pensámos mais nisso. A magia daquele lugar deve ter tido algum coisa a ver com isso. Espalhávamos creme nas costas uma da outra, ficávamos deitadas ao sol, a ler, a dormitar, a falar disto e daquilo, e pouco mais. Aquilo dava-me uma sensação de liberdade única.
«Para voltar para casa atravessávamos a montanha, a seguir tomávamos duche e comíamos qualquer coisa, descíamos as escadinhas e estávamos na cidade. íamos até ao café do porto tomar chá, líamos os jornais ingleses, fazíamos compras na mercearia, depois regressávamos a casa e cada uma fazia o que muito bem lhe apetecia até à noite — ficar a ler no terraço ou na sala a ouvir música. Às vezes Sumire enfiava-se no quarto, pelos vistos a escrever. Eu ouvia-a abrir a tampa do portátil e martelar as teclas. À noitinha íamos até ao porto assistir à chegada do barco. Tomávamos uma bebida fresca e ficávamos entretidas a ver os passageiros a desembarcarem.
«Parecia que estávamos nos confins do mundo, ali sentadas, nas calmas, sem que ninguém desse por nós. Era esta a sensação que tinha, como se Sumire e eu fôssemos as únicas pessoas ali. Não tínhamos mais nada em que pensar. Pela minha parte, não me apetecia mexer uma palha, não me apetecia ir a lado algum. Queria era ficar assim para sempre. Sabia, claro está, que isso era impossível — a vida que então levávamos não passava de uma ilusão passageira, e um dia a realidade encarregar-se-ia de nos arrancar daquele torpor e de nos devolver ao mundo de onde viéramos. Mas até esse dia chegar, tudo o que pretendia era desfrutar ao máximo cada momento, sem pensar em mais nada. Sim, adorávamos a vida que aqui levávamos. Isto até há quatro dias.
Na manhã do quarto dia, as duas foram à praia como de costume, tomaram banho nuas, voltaram para casa e tomaram logo a sair para ir até ao porto. O empregado do café lembrava-se bem delas — para alguma coisa serviam as generosas gorjetas que Miu lhe dava sempre — e cumprimentou-as amavelmente. Chegou mesmo a dirigir-lhes alguns piropos. Sumire foi ao quiosque comprar um exemplar do jornal em inglês que se publicava em Atenas, era o único elo de ligação que tinham com o mundo exterior. Ler o jornal fazia parte das obrigações de Sumire. Verificava a taxa de câmbio e lia em voz alta a Miu, fazendo a tradução para japonês, uma ou outra notícia mais destacada ou algum artigo interessante que lhe despertasse a atenção.
O artigo que Sumire achou por bem ler naquele dia falava de uma senhora de setenta anos que fora devorada pelos seus gatos. A história passara-se num lugarejo qualquer nos arredores de Atenas. A falecida perdera o marido, um homem de negócios, onze anos antes e, desde então, vivia tranquilamente num apartamento de duas divisões tendo apenas os gatos por companhia. Um dia, a mulher tivera um ataque cardíaco, caíra redonda no sofá e morrera. Não se sabia bem quanto tempo durara a agonia. Em todo o caso, a sua alma, depois de passar pelos estádios da ordem, acabara por abandonar o corpo que durante setenta anos fora a sua morada. Como a mulher não tinha familiares nem amigos que a visitassem regularmente, o seu corpo só fora descoberto uma semana mais tarde. A porta estava fechada, as janelas corridas, e os gatos não puderam sair depois de a dona ter morrido. Não havia comida em casa — era possível que houvesse alguma coisa no frigorífico, mas os gatos não possuem a destreza necessária para o abrir. Cheios de fome, devoraram a carne da sua dona morta. ’ c
Sumire traduziu o artigo, parágrafo após parágrafo, interrompendo a leitura para beber de vez em quando um gole de café. As abelhas zumbiam à volta da mesa, regalando-se com um pedacinho de doce que algum cliente anterior deixara cair. Miu fitava o mar através dos óculos escuros, sem deixar de prestar a Sumire toda a atenção. .
— E depois, o que aconteceu? — perguntou Miu.
— É tudo — respondeu Sumire, dobrando o tablóide e pousando-o na mesa. — O jornal não diz mais nada.
— O que terá acontecido aos gatos?
— Sei lá... — disse Sumire, torcendo a boca num trejeito de dúvida. — Os jornais são todos iguais, nunca nos dizem aquilo que realmente queremos saber.
Como se estivessem a perceber alguma coisa, as abelhas voaram mais para cima e, com um zumbido cerimonioso, ficaram uns instantes a revolutear antes de voltarem ao festim que o doce lhes proporcionava.
— Gostava de saber o que terá acontecido aos gatos — insistiu Sumire, enquanto alisava maquinalmente a gola da sua T-shirt largueirona, para lhe tirar os vincos. Vestira também uns calções e por baixo, Miu descobrira isso por acaso, não usava roupa interior. — Talvez tenham acabado com eles, partindo do princípio de que os gatos que já provaram carne humana corriam o risco de se transformar em gatos antropófagos. Ou então pode ser que alguém na esquadra tenha dito: «bom, estes já sofreram o que tinham a sofrer», e então deixaram-nos sair em liberdade.
— Se estivesses no lugar do presidente da câmara ou do chefe da polícia da cidade onde tudo aconteceu, o que terias feito?
Sumire pôs-se a matutar sobre o assunto.
— Que tal colocá-los num reformatório e dar-lhes o devido correctivo? Transformá-los em vegetarianos.
— Não é má ideia. — Miu riu-se com gosto. Tirou os óculos escuros e virou-se de frente para Sumire. — Essa história iembra-me a minha primeira aula de catequese. Alguma vez cheguei a contar-te que andei durante seis anos num colégio de freiras? Primeiro estudei numa escola pública, mas no ensino secundário fui transferida para esse colégio. Logo a seguir à cerimónia de abertura do ano escolar, uma velha freira decrépita pegou em todas nós, as novas alunas, levou-nos para o auditório e pregou-nos um sermão sobre a moral católica. Era uma religiosa francesa mas falava bem japonês. Deve ter contado um sem-número de histórias, mas a única que me vem à memória é a do gato e da ilha deserta.
— Parece interessante — comentou Sumire.
— Imagina que naufragaste e que foste parar a uma ilha deserta. Tu e um gato foram os únicos seres vivos que conseguiram safar-se num bote salva-vidas. Andam à deriva durante algum tempo e acabam por ir ter a esta tal ilha, que não passa de um amontoado de rochedos desabitado e sem nada que se possa comer. Nem água para beber há. No bote existe uma provisão de bolachas e água potável que chega para uma pessoa durante dez dias, e mais nada. A história era mais ou menos assim. Lembro-me de a freira ter perscrutado a audiência e dito o seguinte num tom de voz forte, penetrante: «Fechem os olhos e imaginem a cena. Foram ter a uma ilha deserta juntamente com um gato. Estou a falar de uma ilha perdida no meio do mar. É altamente improvável que nos próximos dez dias apareça alguém para vos salvar. Quando se vos acabarem a comida e a água, o mais provável é que morram. O que fariam numa situação destas? Compartilhariam as magra reservas com o gato, uma vez que se encontram os dois no mesmo barco?» Neste ponto, a freira calou-se e voltou a perscrutar os nossos rostos. «Não. Isso seria um erro», prosseguiu ela. «Quero que percebam que não estaria certo dividir a comida com o gato. Isto devido à vossa qualidade de criaturas sagradas, escolhidas por Deus, o que não é o caso de um gato. Por isso só vós é que deveis comer tudo.» A religiosa expressou-se com um ar terrivelmente sério. Primeiro, pensei que se tratava de uma brincadeira qualquer e fiquei à espera da piada final. Mas não havia nenhuma. A freira mudou de conversa e passou ao tema da dignidade e dos valores humanos, e nunca mais voltei a pensar no assunto. Mas já na altura fiquei sem saber que necessidade tinha ela de contar uma história daquelas a um grupo de meninas acabadas de entrar para a escola. Ainda hoje não consigo perceber.
— Continuas sem saber se seria correcto acabar por comer o gato, é isso? — perguntou Miu depois de uns momentos de reflexão.
— Não sei bem.
— Nunca se pôs essa questão.
— És católica?
Miu abanou a cabeça.
— Não. Só lá andei a estudar porque a escola ficava perto da minha casa. Além disso, também gostava dos uniformes. Era a única aluna estrangeira no colégio inteiro.
— Tiveste alguma experiência desagradável?
— Por ser coreana?
— Sim.
Miu voltou a abanar a cabeça.
— Até era uma escola muito liberal. Tinha normas bastante rígidas e algumas das irmãs eram um bocado limitadas, mas de uma forma geral o ambiente era progressista, e não posso dizer que alguma vez tenha sido alvo de discriminação. Fiz grandes amigas e, no fundo, posso dizer que gostei de andar no colégio. Posso, isso sim, ter passado por uma ou outra experiência menos agradável, mas só mais tarde, já depois de ter dado o salto para o mundo real. Nada do outro mundo, isso acontece à grande maioria das pessoas quando passam a viver em sociedade.
— Ouvi dizer que na Coreia comem os gatos. É verdade?
— Também já ouvi dizer isso. Mas não conheço ninguém que o tenha feito. . .
Era a altura mais quente do dia e a praça estava quase deserta naquele começo de tarde. Quase toda a gente fechara-se em casa, à sombra, a fazer a sesta. Àquela hora, os únicos que se aventuravam a pôr um pé na rua eram os estrangeiros.
Na praça erguia-se a estátua de um herói local. Lutara contra o exército turco que ocupava a ilha ao mesmo tempo que encabeçara uma revolta na península grega, mas fora capturado e condenado à morte por empalação. Os turcos colocaram uma estaca afiladíssima no meio da praça e sobre ela fizeram descer o corpo do infeliz herói, completamente nu. com o peso do corpo, a estaca penetrara no ânus e abrira lentamente caminho através do corpo, até chegar à boca do herói, que levou horas a morrer. Segundo parece, a estátua fora mandada erguer no local exacto onde tudo se passara. Na altura em que fora construída, devia ser imponente, mas com o passar dos anos, e devido à acção conjunta da brisa marinha, da poeira e dos excrementos das gaivotas, agora não dava sequer para reconhecer as feições do homem. Os habitantes da ilha quase nem prestavam atenção à pobre estátua, e até mesmo ela parecia estar de costas viradas para o mundo.
— A propósito de gatos — disse Sumire, de repente —, veio-me à memória uma história bizarra. Quando andava no sétimo ano, lá em casa tínhamos um gatinho malhado muito bonito que devia ter para aí uns seis meses. Uma tarde eu estava na varanda a ler um livro, e eis senão quando o gato, terrivelmente excitado, desatou a dar voltas a um pinheiro enorme que havia no jardim. Coisas de gatos. Está uma pessoa muito sossegada, e de repente começam a ficar assanhados, arqueiam o dorso, ficam com o pêlo todo em pé e a cauda espetada, em posição de ataque.
Sumire bebeu água e coçou a orelha ao de leve.
— Quanto mais assistia à cena, mais assustada ficava. O gato deve ter visto alguma coisa que eu não conseguia ver, e o que quer que fosse punha-o naquela excitação tremenda. Pouco depois desatou a correr à volta da árvore a uma velocidade estonteante, como o tigre que se transforma em manteiga na históriapara crianças. Por fim, depois de ter corrido tudo, trepou pelaárvore. Do sítio onde me encontrava, conseguia ver o pequenofocinho a espreitar por entre os galhos, muito lá em cima. Da varanda, chamei por ele, alto e bom som, mas não deu sinal de me ter ouvido. Por fim, o Sol pôs-se e começou a soprar aquele ventofrio dos finais de Outono. Era um bicho muito meigo e penseique ele talvez descesse da árvore se eu me deixasse ficar ali sentada. Mas não desceu, nem sequer o ouvia miar. Foi escurecendo cada vez mais, fiquei com medo e fui para dentro, contar ao resto da família o que acontecera. «Não te preocupes», disseram eles, «deixa-o sossegado e vais ver que ele desce não tarda nada.» Mas * o gato nunca mais apareceu.
— O que queres dizer com isso, nunca mais apareceu?, perguntou Miu.
— Evaporou-se, pura e simplesmente. Como fumo. Toda a gente me disse que o gato devia ter descido da árvore durante a noite para ir para outro sítio qualquer. Que os gatos, quando ficam excitados, sobem às árvores mais altas, mas depois assustam-se ao dar conta da altura e não querem descer. Passa o tempo todo a acontecer. Disseram-me que, se o gatinho ainda ali estivesse, não teria parado de miar para nos avisar da sua presença. Mas eu não engoli a história. Pensava que o gato devia era estar ainda agarrado a um galho da árvore, de tal forma aterrorizado que nem conseguia miar. Por isso, quando regressava das aulas, costumava sentar-me na varanda, deixava-me ficar ali a olhar para o pinheiro e de vez em quando chamava por ele. Mas o gato nunca respondeu. Ao fim de uma semana, desisti. Adorava aquele gatinho e o que aconteceu deixou-me profundamente entristecida. Cada vez que olhava para a árvore imaginava o pobrezinho, já sem vida, ainda agarrado ao galho. O meu querido gato, que nunca mais poderia ir a parte alguma, condenado a morrer de fome, o corpo inteiriçado.
Sumire olhou para Miu.
— Depois daquele dia, nunca mais quis ter um gato. Ainda gosto deles, mas na altura decidi que aquele pobre gatinho que subira à árvore para nunca mais voltar seria o meu primeiro e último. Jamais poderia esquecê-lo e voltar a gostar de outro qualquer.
— Foi disso que falámos naquela tarde, enquanto estivemos no café — disse Miu. — Na altura pensei que eram apenas recordações inofensivas, mas agora tudo parece ter outro significado. Ou então talvez seja apenas imaginação minha. Miu virou-se de costas e olhou pela janela. A brisa que soprava do mar fazia ondular as dobras dos cortinados plissados. com ela ali de olhar perdido nas trevas, a sala parecia mergulhada num silêncio ainda mais profundo. .
— Posso fazer-lhe uma pergunta? — disse eu. — Desculpe se não tem nada a ver com o assunto, mas há uma coisa que tem estado a moer-me o juízo. Disse que Sumire se evaporara. Como fumo, foi a sua expressão. Isto há quatro dias. E comunicou o caso à polícia, se não estou em erro?
Miu assentiu com a cabeça.
— Nesse caso porque me pediu a mim para vir até cá, em vez de avisar a família de Sumire?
— Não tinha a mínima ideia do que lhe poderia ter acontecido. Fiquei na dúvida se havia de telefonar ao pai dela e deixá-lo preocupado sem razão. Hesitei durante muito tempo, até que tomei a decisão de esperar mais um tempo, até ver no que iam parar as coisas.
Imaginei o pai de Sumire, todo bem-parecido, a apanhar o ferry para ir ter à ilha. Será que a madrasta, naturalmente impressionada com o evoluir dos acontecimentos, faria questão de o acompanhar? Se assim fosse, a situação ficava ainda mais cornplicada. E contudo, pela minha parte, as coisas já eram confusas por natureza. Como se explica que um estrangeiro pudesse ter desaparecido há quatro dias numa ilha tão pequena sem deixar rasto?
— Mas porque me chamou concretamente a mim?
Miu voltou a cruzar as pernas nuas, pegou na bainha da saia com os dedos e puxou-a para baixo.
— Era a única pessoa com quem podia contar.
— Mas não me conhecia de parte alguma.
— Sumire confiava mais em si do que em qualquer outra pessoa. Ela dizia que você era capaz de ir ao fundo das questões, independentemente do assunto.
— Não me parece que haja muita gente que partilhe da mesma opinião.
com os olhos semicerrados, Miu sorriu, fazendo aparecer aquelas pequeninas rugas de expressão à volta dos olhos.
Levantei-me e aproximei-me dela, para ir buscar o copo que estava vazio. Fui à cozinha, deitei uma quantidade razoável de Courvoisier no copo, depois voltei para a sala. Ela agradeceu-me e engoliu o brande. O tempo passava, a cortina esvoaçava ao sabor do vento sem fazer barulho. A brisa arrastava consigo o odor de um outro lugar.
— Quer saber realmente a verdade? — perguntou Miu. A sua voz era seca, como se tivesse acabado de tomar uma decisão difícil.
Levantei a cabeça e olhei-a nos olhos.
— Só há uma coisa que lhe posso garantir — disse eu. — Não estaria aqui se não quisesse saber a verdade.
Miu olhou para as cortinas sem as ver. Por fim disse o que tinha a dizer, numa voz pausada.
— Aconteceu naquela noite, depois de termos estado no café a falar de gatos.
Depois de, no café, terem conversado tudo o que havia a conversar acerca de gatos, Miu e Sumire foram comprar comida e regressaram a casa. Depois, cada uma à sua maneira, aproveitaram para descansar até à hora do jantar. Sumire meteu-se no quarto, a escrever no portátil. Miu deixou-se ficar deitada no sofá da sala, mãos cruzadas atrás da cabeça, olhos fechados, a ouvir a gravação das baladas de Brahms interpretadas por Julius Katchen. Tratava-se de um LP antigo, mas a interpretação, absolutamente memorável, estava carregada de virtuosismo e emoção. Sem ser pretensiosa, era sobremaneira expressiva.
— A música incomoda-te? — perguntou Miu, deitando uma olhadela ao quarto de Sumire, cuja porta estava toda aberta.
— Brahms nunca me incomoda — disse Sumire, voltando-se. Era a primeira vez que Miu via Sumire a escrever assim tão
concentrada. O seu rosto deixava transparecer uma tensão inusitada. com os lábios cerrados, parecia um animal à espera da presa, o olhar mais intenso do que nunca.
— O que estás a escrever? — quis saber Miu. — Um novo romance sputnik?
A tensão em torno da boca de Sumire desvaneceu-se.
— Nada de especial. Coisas que me passam pela cabeça e que talvez um dia me possam vir a ser úteis.
Miu voltou a afundar-se no sofá e mergulhou de novo no pequeno mundo que a música traçava na luz da tarde; como seria maravilhoso, deu consigo a pensar, tocar Brahms assim. Tivera sempre dificuldade com as peças pequenas de Brahms, especialmen- te as baladas. Nunca conseguira penetrar naquele mundo tão cheio de fugazes matizes e suspiros. Quem sabe se agora não conseguiria tocar Brahms melhor do que nunca. Mas, no fundo, Miu ’ sabia muito bem: jamais poderia voltar a tocar fosse o que fosse. ,
Às seis e meia prepararam juntas o jantar na cozinha e foram comer para o terraço. Uma sopa de peixe temperada com ervas aromáticas, salada e pão. Abriram uma garrafa de vinho brano e, depois da refeição, beberam café acabado de fazer. Ficaram ali a ver um barco de pesca que apareceu por trás da ilha e navegou rumo ao porto, descrevendo atrás de si um pequeno arco de espuma branca. Por certo os pescadores teriam à espera, em suas casas, uma refeição quente.
— A propósito, quando vamos embora? — perguntou Sumire enquanto lavava a loiça na cozinha.
— Gostaria de passar cá outra semana, mais tempo é que não pode ser — respondeu Miu, consultando o calendário pendurado na parede. — Se dependesse de mim, ficaria aqui para sempre.
— E eu a mesma coisa, claro está — disse Sumire, feliz da vida. — Mas o que se há-de fazer? Não há bem que sempre dure.
Como de costume, foi cada uma para o seu quarto ainda não eram dez da noite. Miu enfiou um pijama de algodão branco com mangas compridas e adormeceu assim que deitou a cabeça na almofada, mas não tardou a acordar, sobressaltada pelo bater do seu próprio coração. Viu as horas no relógio de viagem que estava na mesinha-de-cabeceira: passava da meia-noite e meia. O quarto estava mergulhado nas trevas, reinava um silêncio absoluto, mas ela pressentia que estava alguém ali escondido, a conter a respiração. Puxou a roupa de cama até ao pescoço e ficou à escuta. O bater desenfreado do seu coração não a deixava ouvir mais nada. Não, aquilo não era a continuação de um pesadelo, prolongando-se pelo estado de vigília — estava outra pessoa no quarto. com cuidado para não fazer barulho, ergueu a mão e afastou a cortina para o lado uns poucos centímetros. A luz pálida, esbranquiçada, da Lua penetrou e, sem se mexer, Miu varreu o quarto com o olhar.
Quando os seus olhos se habituaram ao escuro, conseguiu aos poucos ir distinguindo os contomos de qualquer coisa que parecia ganhar forma num dos cantos. Mesmo ao lado da porta, na sombra do roupeiro, onde a escuridão era maior. O que quer que aquilo fosse era baixo, de formas arredondadas, como um grande saco de correio que ali tivesse ficado esquecido. Se calhar era um animal. Um canzarrão? Mas a verdade é que a porta da frente estava fechada à chave e a do seu quarto também. Não havia maneira de um cão ali poder ter entrado.
Miu continuou a respirar sem fazer barulho e a olhar fixamente o vazio à sua frente. Sentia a boca seca, e o ligeiro odor do brande que bebera antes de ir para a cama impregnava ainda o seu hálito. Voltou a erguer a mão e a puxar a cortina um nadinha mais para o lado, de maneira a deixar a luz da Lua penetrar no quarto. Pouco a pouco, como se estivesse a desembaraçar os cabelos de uma madeixa, Miu logrou distinguir os contornos daquela massa negra enroscada a um canto. Parecia um ser humano: o cabelo caído para a testa, as pernas magras dobradas pelo joelho num ângulo agudo. Estava alguém sentado no chão, feito um novelo, a cabeça entre os joelhos. O corpo ligeiramente encolhido, como fazendo menção de se proteger de algo que pudesse cair do céu.
Era Sumire. Vestida com o pijama azul do costume, assemelhava-se a um insecto, ali prostrada entre a porta e o roupeiro. Não se mexia. Parecia nem sequer respirar, pelo que a Miu era dado ver.
Miu soltou um suspiro de alívio. Mas que diabo estaria Sumire a fazer ali? Sentou-se na cama sem fazer barulho e acendeu o candeeiro da mesa-de-cabeceira. Uma luz amarelada invadiu todos os recantos do quarto, mas Sumire não se mexeu. Pareceu nem sequer se dar conta de que a luz estava acesa.
— O que tens? — perguntou Miu, primeiro em voz baixa, depois mais alto.
Não obteve resposta. A pergunta de Miu parecia não telhj chegado aos ouvidos de Sumire. Miu levantou-se da cama e aproximou-se dela. Debaixo dos pés descalços, a alcatifa parecia-lhe mais rugosa do que nunca.
— Sentes-te mal? — perguntou Miu, ajoelhando-se aos pés de Sumire.
Continuou a não obter resposta.
Foi então que Miu reparou que Sumire tinha uma coisa qualquer na boca, uma toalha cor-de-rosa que costumava estar pendurada na casa de banho. Tentou tirar-lha, mas não conseguiu tal era a força que Sumire fazia com os dentes. Tinha os olhos abertos, mas parecia não ver nada. Miu acabou por desistir e pousou-lhe a mão no ombro. O pijama de Sumire estava encharcado de suor.
— É melhor despires o pijama — disse Miu. — Estás a suar de tal maneira que ainda apanhas uma constipação.
Sumire parecia meio aparvalhada, sem ouvir nada, sem ver nada. Miu achou por bem despir-lhe o pijama, caso contrário, acabaria 1 por ficar enregelada. Era Verão, o mês de Agosto, mas as noites na ilha podiam ser frescas. Como costumavam as duas ir nadar nuas todos os dias e estavam habituadas a ver o corpo uma da outra, Miu achou que Sumire não se importaria que ela a despisse.
Sem nunca largar Sumire, Miu desabotoou o casaco do pijama e, passado um bocado, conseguiu despir-lho. Depois, foi a vez das calças. Ao princípio, o corpo de Sumire estava hirto, mas, pouco a pouco, foi-se descontraindo até ficar lasso. Miu tirou-Lhe a toalha da boca. Estava ensopada de saliva e tinha a marca dos dentes, bem nítida.
Sumire não trazia cuecas debaixo do pijama. Miu agarrou numa toalha e começou a limpar-lhe o suor do corpo. Primeiro as costas, depois as axilas, a seguir o peito. Enxugou-lhe a barriga, depois percorreu rapidamente a zona da cintura até às coxas. Sumire deixava-a fazer, incapaz de reagir. Parecia continuar inconsciente, mas, no fundo dos seus olhos, Miu julgou distinguir um lampejo de compreensão.
Miu nunca antes tocara no corpo nu de Sumire. Tinha a pele lisa, suave como a de uma criança de tenra idade. Ao levantada, Miu constatou que a amiga era mais pesada do que imaginara, e cheirava a suor. Ao limpá-la, voltou a sentir o coração dela a bater-lhe desenfreadamente no peito. A boca encheu-se de saliva e viu-se obrigada a engolir por mais de uma vez.
Banhado pela Lua, o corpo de Sumire refulgia como uma peça de cerâmica antiga. Tinha seios pequenos, bem modelados, e mamilos escuros. Os pêlos púbicos, pretos, estavam molhados de suor e brilhavam como a relva coberta de orvalho matinal. Aquele corpo liso, nu, era completamente diferente do que Miu tantas vezes vira na praia sob o sol escaldante, guardava ainda restos da infância, embora já mostrasse sinais de uma recente maturidade, cegamente forjada pela inexorável passagem do tempo.
Miu teve a impressão de estar a desvendar segredos alheios que ninguém era suposto conhecer. Evitou olhar para a pele de Sumire, assim desnuda, à medida que continuou a limpar o suor do corpo dela, enquanto reproduzia em silêncio na sua mente uma peça de Bach que aprendera de cor em criança. Limpou o suor da franja de Sumire, que estava colada à testa. Até no interior das suas pequeninas orelhas havia traços de suor.
Miu sentiu o braço de Sumire enlaçar em silêncio o seu próprio corpo e a respiração da amiga no pescoço.
— Está tudo bem contigo? — perguntou.
Sumire não respondeu, mas o seu braço apertou-a com um bocadinho mais de força. Pegando na jovem como pôde, Miu ajudou-a a ir até aos pés da cama. Deitou-a, puxou a roupa para cima e ela ficou deitada, sem se mexer, e fechou os olhos.
Miu deixou-se ficar um bocadinho junto de Sumire, que nem se mexeu. Parecia ter adormecido. Miu foi até à cozinha e bebeu, um atrás de outro, vários copos de água mineral. Respirou fundo» umas tantas vezes e por fim lá conseguiu acalmar-se. O coração parara de bater desenfreadamente, mas o peito ainda lhe doía tal fora a tensão dos últimos minutos. Reinava um silêncio tocante. Não se ouvia uma única voz, nem o latido de um cão,« nem o marulhar das ondas, nem o rumor do vento. Porque será, estranhou Miu, que reina esta calma de morte?
Miu foi à casa de banho e pegou no pijama suado de Sumire e na toalha que usara para a limpar na toalha com a marca dos dentes, e atirou tudo para dentro do cesto da roupa suja. Lavou a cara e ficou a olhar para o seu reflexo no espelho. Desde que chegara à ilha não voltara a pintar o cabelo, agora completamente branco, como flocos de neve acabados de cair.
Quando Miu regressou ao quarto, Sumire tinha os olhos abertos. Pareciam cobertos por um véu fino, translúcido, mas neles era já visível uma centelha de consciência. Sumire continuava deitada, com a roupa da cama a tapar-lhe os ombros.
— Desculpa — disse ela, com voz rouca. — Às vezes ficoneste estado.
Miu sentou-se na beira da cama, sorriu e estendeu a mão parao cabelo de Sumire, ainda húmido.
— O melhor é tomares um bom duche. Fartaste-te de transpirar.
— Obrigada — disse Sumire. — Prefiro ficar aqui deitada. Miu assentiu com a cabeça e entregou a Sumire um toalhão
de banho lavado, tirou um pijama seu da cómoda e deixou-o ficar ao alcance de Sumire.
— Podes vestir o meu. Acho que não tens mais nenhum, pois não?
— Posso ficar a dormir aqui hoje? — perguntou Sumire.
— Claro que sim. Vê mas é se dormes. Eu fico na tua cama.
— A minha cama deve estar encharcada — disse Sumire. — Os lençóis, tudo. Além disso, não quero ficar sozinha. Não me deixes aqui. Ficas a dormir ao pé de mim? Só esta noite? Não quero voltar a ter aqueles pesadelos.
— Mas primeiro veste o pijama. Acho que não me sentiria à vontade deitada com uma pessoa nua ao lado, sobretudo numa cama tão estreita.
Sumire levantou-se devagarinho e afastou a roupa. De pé, nua, pegou no pijama de Miu. Inclinou-se para a frente e primeiro vestiu rapidamente as calças, depois a parte de cima. Demorou algum tempo a apertar os botões, parecia que os dedos não lhe queriam obedecer. Miu não fez um gesto para a ajudar, limitou-se a ficar sentada, a observar a cena. Sumire abotoou o pijama de uma maneira tão meticulosa que Miu quase tinha a sensação de assistir a uma espécie de cerimónia religiosa. A luz da Lua conferia aos seus mamilos uma estranha firmeza.
Ela ainda deve ser virgem, pensou Miu de repente. !
Depois de vestir o pijama de seda, Sumire voltou a enfiar-se no lado contrário da cama. Por seu turno, Miu deitou-se também, precisamente no lado onde o cheiro a suor persistia.
— Ouve — começou Sumire a dizer —, posso ficar abraçada a ti só um bocadinho?
— Abraçar-me?
— Sim.
Enquanto Miu pensava na resposta, Sumire chegou-se mais e agarrou-lhe na mão. A palma da sua mão, ainda húmida, estava quente e macia. com os braços rodeou o corpo de Miu. Os seios de Sumire ficaram encostados um pouco acima do estômago de Miu. O rosto de Sumire repousava entre os seios de Miu. Ficaram assim as duas naquela posição durante muito tempo. Sumire começou a tremer, ainda que ligeiramente e Miu pensou que a jovem devia estar a chorar. Parecia nunca mais acabar. Miu rodeou-lhe os ombros e puxou-a para si. «Não passa de uma criança», pensou. «Sente-se sozinha e assustada, precisa de sentir o calor de uma presença humana. Como aquele gatinho que se agarrou ao galho do pinheiro.»
Sumire chegou o corpo um bocado mais para cima, até ficalh com a ponta do nariz a roçar no pescoço de Miu. Os seios delas tocaram-se. Miu engoliu em seco, sentindo a mão de Sumire a afagar-lhe as costas.
— Gosto de ti, sabes — disse Sumire em voz baixa.
— Também eu gosto de ti — respondeu Miu. Não podia dizer outra coisa e, além do mais, era verdade Os dedos de Sumire começaram a desabotoar a parte da frente
do pijama de Miu. Esta tentou impedi-la, mas a jovem não fez menção de parar.— Só um bocadinho — disse ela. — Só um bocadinho, por favor.
Miu deixou-se ficar deitada, incapaz de resistir. Os dedos de Sumire traçaram lentamente o contorno dos seios de Miu. A ponta do seu nariz oscilava para a frente e para trás no pescoço deMiu. Sumire tocou-lhe nos mamilos, acariciou-os com delicadeza.Ao princípio timidamente, depois com crescente ousadia.
Miu parou de falar. Levantou a cabeça e lançou um olharpenetrante na minha direcção, como se estivesse à procura de alguma coisa. Tinha as faces levemente coradas.
— Há uma coisa que tenho de lhe dizer. Há uns tempos acon-teceu-me uma coisa extremamente bizarra e, por causa disso, fiquei com o cabelo branco. Completamente branco, da noite para o dia. A partir de então, comecei a pintá-lo de preto. Sumire sabia que eu costumava fazer isso, mas quando chegámos a esta ilha, como dava muito trabalho, desisti. Aqui ninguém me conhece, por isso não tem importância. Mas ao saber que você vinha a caminho, voltei a pintá-lo. Não queria causar-lhe uma sensação estranha logo nas primeiras impressões.
O tempo escoou-se no silêncio.
— Nunca tivera uma experiência homossexual, nem jamais pensara que pudesse ter essa tendência, mas se era isso que Sumire realmente desejava, achei que podia muito bem aceder aos seus desejos. Pelo menos, a ideia não me causou repulsa, isto é, desde que fosse com Sumire. Por isso não opus resistência quando ela começou a acariciar-me o corpo todo, nem quando enfiou a língua na minha boca. Era uma sensação estranha, mas fiz os possíveis por habituar-me à ideia. Deixei-a fazer o que ela queria. Gosto muito de Sumire e, se era isso que a fazia feliz, por mim tudo bem.
«Mas o meu corpo e a minha mente são coisas distintas. Parte de mim estava contente por Sumire me acariciar com tanto amor, mas, por mais satisfeita que estivesse, o meu corpo continuava a resistir. Não se entregava por nada. A excitação propagava-se ao meu coração e à minha mente, mas o resto estava seco, duro como uma pedra. É triste reconhecer, mas não podia fazer nada. Como era natural, Sumire deu por isso. O seu corpo ardia e estava docemente húmido, mas eu sentia-me incapaz de corresponder à sua paixão. Partilhei com ela os meus sentimentos. «Não é que esteja a rejeitar-te», disse-lhe, «mas não posso fazer isto. Desde que me aconteceu aquilo, há catorze anos, nunca mais consegui entregar-me a ninguém neste mundo. E uma coisa que não está nas minhas mãos, que depende de outra vontade que não a minha.» Perguntei-lhe ainda se havia alguma coisa que eu pudesse fazer. Quer dizer, com os dedos ou com a boca. Mas não era isso que ela esperava de mim. Isso já eu sabia.
— Sumire beijou-me na testa e pediu-me desculpa. «O que acontece é que gosto de ti», disse ela. «Hesitei durante muito tempo, mas tinha de tentar.» — «Também eu gosto de ti», respondi-lhe, «por isso não fiques preocupada. Continuo a querer que estejas ao meu lado.» Sumire ficou a soluçar com a cara enterrada na almofada durante imenso tempo, como se dentro dela uma barragem tivesse transbordado. Enquanto ela chorava, fui-Lhe fazendo festas nas costas, sentindo cada um dos seus ossos, do pescoço até à cintura. Também eu gostaria de chorar, mas não era capaz.
— E foi então que compreendi que éramos de facto excelentes companheiras de viagem, mas que no fundo não passavamos de dois solitários pedaços de metal, traçando cada um a sua órbita. Ao longe, parecem belos como estrelas cadentes, mas, na realidade, cada uma de nós navega sozinha sem destino certo, prisioneira na sua própria cápsula. Caso as órbitas desses dois satélites se cruzassem, poderíamos então encontrar-nos. Talvez! até abríssemos os nossos corações, mas apenas por um brevíssimo instante. No momento seguinte, voltaríamos a mergulhar na mais absoluta solidão. Até começarmos a arder e ficarmos redu-zidas a nada. Depois de ter chorado desalmadamente, Sumire levantou-se, apanhou o pijama que estava caído no chão e vestiu-o lentamente. — Disse que queria estar sozinha e que ia voltar para o seu quarto. «Não penses demasiado nas coisas», ! pedi-lhe eu. «Amanhã é outro dia, e tudo continuará a ser como dantes. Vais ver.» Sumire retorquiu que talvez assim fosse, inclinou-se na minha direcção e encostou a sua cara à minha. Tinha a face molhada e quente. Creio que me murmurou qualquer coisa ao ouvido, mas numa voz tão baixa que não consegui perceber o que era. Quando ia para lhe perguntar o que havia dito, já ela me virara as costas.
«Sumire limpou as lágrimas com a toalha e saiu do quarto. A porta fechou-se, eu voltei a aconchegar-me debaixo da roupa e fechei os olhos. Depois de uma experiência como aquela, pensei que iria ter dificuldade em dormir, mas, por estranho que pareça, adormeci logo a seguir.
«Quando acordei eram sete da manhã e Sumire não estava em parte alguma da casa. Pensei que tivesse acordado cedo, ou que, em vez de voltar para a cama, se lembrasse de ir até à praia. Ela dissera-me que queria ficar um bocado sozinha. Estranhei que nem sequer tivesse deixado ficar um recado, mas, levando em conta os acontecimentos da noite anterior, imaginei que estivesse ainda extremamente abalada e confusa. Lavei-me, pus a roupa de cama dela a secar e sentei-me na varanda a ler, à espera de que regressasse. Passou uma manhã inteira e Sumire continuava a não dar sinal de vida. Como começava a ficar preocupada, passei revista ao seu quarto, apesar de saber que não devia fazer isso. Estava com medo de que ela tivesse decidido abandonar a ilha. Mas a sua mala ainda lá continuava, aberta, bem como a mala de mão com o passaporte dentro, e o fato de banho e as meias secavam num canto do quarto. Moedas, papel de carta e um molho de chaves, estava tudo espalhado em cima da secretária e, entre estas, a da porta da frente da vivenda.
«Achei tudo muito estranho. Aquilo que eu quero dizer é que usávamos sempre sapatos de corrida e T-shirts por cima do fato de banho para atravessar a montanha. E levávamos sempre um saco de lona com as nossas toalhas e uma garrafa de água mineral lá dentro. Mas ela deixara ficar tudo — saco, sapatos e fato de banho. A única coisa que faltava era um par de sandálias baratas que ela tinha comprado numa lojinha da terra e o pijama que eu lhe emprestara. Mesmo que a ideia fosse só ir dar uma volta pelas redondezas, não havia ninguém que ficasse muito tempo lá fora assim vestido, pois não?
«Passei a tarde toda a esquadrinhar esta zona à procura dela. Dei a volta à casa por mais de uma vez, fui até à praia, calcorreei as ruas da cidade para trás e para diante, e finalmente voltei para casa. Mas não havia maneira de Sumire aparecer. O Sol começou a pôr-se e depois fez-se noite. Levantara-se vento. Durante toda a noite, fez-se ouvir o rumor das ondas. Qualquer pequeno barulho me acordava. Deixara a porta da frente no trinco. Amanheceu e de Sumire nem sombra. A cama dela estava tal qual como a deixara. Foi então que me dirigi à esquadra da polícia, que fica nas imediações do porto.
«Expliquei tudo a um polícia que falava inglês. «A rapariga que viajava comigo desapareceu», disse-lhe eu, «e há duas noites que não aparece.» Ele não me levou a sério. «Vai ver que a sua amiga aparece», retorquiu. «Isto passa a vida a acontecer. Aqui está toda a gente habituada a andar à vontade. Estamos no Verão, são jovens, o que seria de esperar?» Voltei lá no dia a seguir e dessa vez prestaram-me um pouco mais de atenção, embora não que se mostrassem propriamente dispostos a tratar do assunto. Telefonei para a Embaixada japonesa em Atenas e expliquei a situação. Felizmente a pessoa que me atendeu era muito solícita. Falou com o chefe da esquadra em grego, e em termosnada meigos, e graças a isso a polícia começou finalmente aavançar com a investigação.
«Não descobriram a mais pequena pista. Interrogaram aspessoas no porto e nas imediações da casa, mas ninguém tinhaposto a vista em cima de Sumire. Tanto o comandante do barcocomo o homem que vendia os bilhetes não se lembravam de ter „ visto nenhuma rapariga japonesa a apanhar o barco nos últimosdias. Sumire ainda devia estar na ilha. Para começar, não levara dinheiro com ela para pagar a passagem, e depois, numa ilha pequena como esta, era impossível uma japonesa andar a deambular por aí em pijama sem despertar a atenção das pessoas. A polícia interrogou um casal de alemães que passara aquela manhã na praia a tomar banho. Afirmaram não ter visto nenhuma rapariga japonesa, nem na praia nem no caminho que lá ia dar. A polícia prometeu envidar todos os esforços para resolver a situação, e a verdade é que se mexeram, mas o tempo continuou a passar e não apareceu uma única pista.
Miu respirou fundo e tapou metade da cara com as mãos.
— A única coisa a fazer era ligar para Tóquio e pedir-lhe que viesse. Chegara a um ponto em que já não sabia o que havia de fazer.
Imaginei Sumire, sozinha, a deambular pelas encostas escarpadas em pijama de seda e sandálias de praia.
— De que cor era o pijama? — perguntei.
— De que cor? — respondeu Miu, com uma expressão de estranheza estampada no rosto.
— Sim, o pijama que Sumire vestia quando desapareceu.
— De que cor era? Não tenho a certeza. Comprei-o em Milão e ainda não o usara. Tinha uma cor clara. Verde-pálido, talvez? Sei que era fininho, sem bolsos.
— Gostava que voltasse a contactar a Embaixada em Atenas e que lhes pedisse para enviarem cá alguém. Insista nesse ponto.
Depois peça que entrem em contacto com os pais de Sumire. Compreendo que para si possa ser penoso, mas não é possível continuar a esconder-lhes a verdade durante mais tempo. Miu assentiu com a cabeça.
— Como sabe, às vezes Sumire comporta-se de uma maneira um bocadinho excêntrica — disse eu — e é capaz dos maiores disparates, mas não a vejo a desaparecer assim de repente durante quatro dias sem dizer nada a ninguém. Não é irresponsável a esse ponto. Não desapareceria sem ter uma boa razão. Agora que razão, isso é que não sei, mas deve tratar-se de uma coisa séria. Pode ter caído num poço e estar à espera de que apareça alguém para a salvar. Talvez a tenham raptado. Tanto quanto sabemos, até pode estar morta e enterrada algures por aí. Uma jovem a deambular à noite em pijama, tudo pode ter acontecido. Em todo o caso, temos de tomar medidas urgentemente, mas o melhor é deixarmos as decisões para mais tarde. Amanhã vai ser um longo dia.
— Acha que é provável que... a Sumire... se tenha suicidado? perguntou Miu. . ;
— Não podemos excluir essa hipótese. Mas, nesse caso, acho que escreveria um bilhete, que não teria deixado ficar as pontas soltas, obrigando-a a si a ter de resolver as coisas. Ela gostava de si e tenho a certeza de que levaria em consideração os seus sentimentos.
De braços cruzados, Miu fitou-me durante algum tempo.
— Acha mesmo?
Assenti com a cabeça. ;
— Tenho a certeza. Era assim que ela pensava.
— Obrigada. Era isso mesmo que eu precisava de ouvir.
Miu conduziu-me ao quarto de Sumire. Despojado de elementos decorativos, aquela divisão quadrada fazia-me lembrar um enorme cubo. Havia uma cama individual de madeira, uma secretária, um roupeiro e uma pequena cómoda. Aos pés da secretária estava uma mala vermelha de tamanho médio.
A janela da frente, que dava para as colinas, ficara aberta. Em cima da secretária, um computador portátil Macintosh, novinho em folha.
— Arrumei as coisas dela para você poder ficar aqui a dormir. ” Uma vez sozinho, senti-me de repente cheio de sono. Era quase meia-noite. Despi-me e meti-me debaixo da roupa, mas não consegui conciliar o sono. Até há bem pouco tempo, pensava eu comigo mesmo, Sumire dormia nesta cama. A excitação ’ provocada pela longa viagem reflectia-se no meu corpo. A convicção de ter embarcado numa viagem sem fim apoderara-se dos meus sentidos.
Na cama, rememorei tudo o que Miu me contara, ao mesmo tempo que fazia mentalmente uma lista dos pontos essenciais, mas a minha cabeça não estava em condições de funcionar. Era incapaz de pensar de forma sistemática. Cheguei à conclusão de que o melhor era deixar isso para mais tarde. De repente, imaginei Sumire a introduzir a língua na boca de Miu. O melhor era deixar também isso para amanhã, embora as perspectivas de o dia seguinte ser melhor do que o anterior fossem, infelizmente, escassas. De qualquer maneira, de nada me serviria alimentar pensamentos sombrios. Fechei os olhos e não tardei a cair num sono profundo.
Quando acordei, Miu estava a pôr a mesa do pequeno-almoço lá fora no terraço. Eram oito e meia da manhã e um novo sol inundava de luz o mundo. Miu e eu sentámo-nos à mesa no terraço e tomámos o pequeno-almoço sem tirar os olhos do mar, que de tão brilhante quase cegava. Comemos ovos e torradas, bebemos café. Dois pássaros brancos planaram ao longo da encosta em direcção à beira-mar. Alguém tinha a rádio ligada ali perto e um locutor lia as notícias em grego a grande velocidade.
Invadiu-me uma estranha sensação de torpor provocada pela diferença horária. Tinha dificuldade em distinguir o real do que apenas parecia real. Encontrava-me numa pequena ilha grega, a tomar o pequeno-almoço na companhia de uma mulher mais velha e interessante que acabara de conhecer na véspera. Aquela mulher amava Sumire, mas não sentia por ela desejo sexual. Sumire amava aquela mulher e, mais, desejava-a. Eu amava Sumire e desejava-a. Sumire gostava de mim, mas não me amava nem tão-pouco sentia desejo sexual por mim. Pela minha parte, podia sentir desejo por outras mulheres anónimas, mas não amor. Era tudo muito complicado. Mais parecia o enredo de uma peça de teatro existencialista. A história acabava ali, num impasse. Não havia alternativa possível e Sumire tinha abandonado o palco sozinha.
Miu encheu-me de café a chávena vazia. Agradeci-lhe.
— Gosta de Sumire, não gosta? — perguntou-me Miu. — Como mulher, quero dizer.
Limitei-me a assentir com a cabeça enquanto barrava o pão com manteiga. A manteiga estava fria e dura, e custava a espalhar por cima do pão. Quando acabei, levantei a cabeça e acrescentei;
— Não é propriamente uma coisa que se possa escolher. Acontece.
Continuámos a tomar o pequeno-almoço em silêncio. Na rádio, chegaram ao fim as notícias e começou a passar música grega. Levantara-se vento, que fazia estremecer as buganvílias.Olhando com atenção, vislumbravam-se pequenas ondas brancas encrespadas ao longe no mar.
— Tenho estado aqui a dar voltas à cabeça e acho que devopartir para Atenas hoje mesmo — anunciou Miu, descascandouma peça de fruta. — Pelo telefone não chegamos a lado nenhum,por isso o melhor é ir direita à Embaixada e falar com eles pes-soalmente. Pode ser que haja lá alguém disposto a acompanhar--me até cá, ou então posso ficar em Atenas à espera de que o pai e a madrasta de Sumire cheguem e volto depois com eles. Em todo o caso, gostaria que você permanecesse o mais tempo possível na ilha. A polícia pode querer entrar em contacto, e há sempre a hipótese de Sumire regressar. É capaz de me fazer esse favor?
— Claro — respondi eu.
— Agora Vou outra vez à esquadra da polícia para saber como está a correr a investigação, e depois sigo para o porto e alugo um barco que me leve até Rodes. Ir e vir ainda demora o seu tempo, por isso o mais provável é eu arranjar um quarto de hotel em Atenas e ficar por lá dois ou três dias.
Assenti com a cabeça.
Miu acabou de descascar a laranja e limpou cuidadosamente a faca com um guardanapo. , — Alguma vez viu o pai de Sumire?
— Nunca — respondi.
Miu soltou um suspiro, profundo como o vento que sopra nos confins do mundo.
— Não sei como lhes hei-de explicar tudo isto. Compreendia perfeitamente o embaraço dela. Como explicar o inexplicável?
Acompanhei Miu até ao porto. Levava consigo uma mala pequena com uma muda de roupa e uma carteira Mila Schòn, e calçava sapatos de salto alto. Parámos primeiro na esquadra da polícia. Tínhamos combinado que Miu me apresentaria como sendo um familiar seu que andava a viajar por aquelas paragens. Continuava a não haver uma única pista. «Mas está tudo bem», disseram-nos, francamente animados. «Não se preocupem. É só olharem em volta. Isto é uma ilha pacata. Também temos a nossa dose de casos, é certo — brigas de casais ou de bêbados, desavenças políticas, coisas que acontecem um pouco por todo o lado, ou não estivéssemos a lidar com a raça humana. Mas são tudo questões domésticas. Nos últimos quinze anos, não houve um único estrangeiro que tivesse sido vítima de um crime nesta ilha.»
Até podia muito bem ser verdade, mas, no que dizia respeito ao desaparecimento de Sumire, já não pareciam ter justificação de espécie alguma.
— No Norte da ilha existem umas grutas muito profundas — observou um dos polícias. — Talvez ela se aventurasse para aquelas bandas e depois não encontrasse a saída. Aquilo é um verdadeiro labirinto lá por dentro. Mas ainda fica longe, muito longe. Não estou a ver uma jovem como ela a conseguir chegar até lá pelo seu próprio pé.
Quis saber se havia alguma hipótese de ela se ter afogado.
Os polícias abanaram a cabeça. Para aqueles lados não havia correntes fortes, disseram eles. Além disso, durante a última semana o tempo estivera bom e o mar calmo. Eram muitos os pescadores que todos os dias se faziam ao mar. Se a jovem se tivesse afogado, algum deles certamente encontraria o corpo.
— E um poço? — perguntei eu. — Não é possível que tenha caído no fundo de um poço quando andava a passear?
O chefe da polícia abanou a cabeça.
— Não há poços nesta ilha. Temos muitas nascentes naturais, por isso não precisamos de poços para nada. Além disso, o solo é muito rochoso, e abrir um daria um trabalhão dos diabos.
À saída da esquadra disse a Miu que tencionava dar um salto à praia onde elas costumavam ir, se possível ainda de manhã. Ela comprou, no quiosque, um pequeno mapa da ilha e indicou-me o caminho, avisando-me de que demoraria uns quarenta* e cinco minutos a lá chegar e recomendando-me que calçasseuns sapatos apropriados. Em seguida, dirigiu-se ao porto e, meioem francês, meio em inglês, não tardou a chegar a acordo com o piloto de um pequeno barco-táxi sobre a tarifa do transporteaté Rodes.
— Se ao menos tudo acabasse bem — disse Miu, quando nosdespedimos.
Os seus olhos, porém, diziam outra coisa. Ela sabia que as coisas não eram assim tão fáceis. E eu também. O motor do barco começou a trabalhar e ela e disse-me adeus com a mão direita, enquanto, com a esquerda, segurava o chapéu. Quando o barco desapareceu ao largo, senti como se me tivessem arrancado parte das entranhas. Andei durante um bocado a vaguear sem destino pelas imediações do porto e comprei uns óculos escuros numa loja de souvenirs. Depois subi as íngremes escadinhas que iam ter a casa.
À medida que o Sol subia no céu, o calor apertava. Vesti uma camisola de algodão de manga curta por cima dos calções de banho, pus os óculos escuros, calcei umas sapatilhas de corrida, e segui pela vereda escarpada que ia dar à praia. Não tardei a arrepender-me de não ter trazido chapéu, mas lá decidi continuar. A meio da subida comecei a ficar com sede. Parei para beber água e aproveitei para esfregar na cara e nos braços o creme solar que Miu me emprestara. O caminho estava coberto de uma poeira esbranquiçada, que revoluteava no ar ao sabor do vento. De vez em quando, cruzava-me com um ou outro aldeão que conduzia o seu burro. Saudavam-me todos invariavelmente em voz alta: kalimera! Eu respondia-lhes a mesmíssima coisa, na esperança de estar a agir da maneira correcta.
As árvores que cobriam a encosta eram achaparradas, de formas retorcidas. Ovelhas e cabras de bizarros focinhos seguiam obstinadamente o seu caminho pelas ladeiras escarpadas. Os badalos que traziam à volta do pescoço produziam um pequeno tinido corriqueiro. Quem conduzia os rebanhos eram, na sua maioria, crianças ou anciãos. Ao passarem por mim, olhavam-me pelo canto do olho, e só então levantavam a mão ligeiramente, como se estivessem a fazer uma espécie de sinal. Eu imitava o gesto, à laia de saudação. Sumire não teria sido capaz de fazer este caminho sem ser vista. Não havia um único lugar que servisse de esconderijo e decerto alguém daria por ela.
A praia estava deserta. Despi a camisola e os calções e tomei banho nu. Soube-me maravilhosamente. A água, límpida, dava para ver até os pequenos seixos lá no fundo. À entrada da baía estava ancorado um iate, e o mastro grande com as velas recolhidas baloiçava para trás e para diante como um enorme metrónomo. Não se vislumbrava ninguém no convés. A única coisa que se ouvia era o eco lânguido das pedrinhas ao serem arrastadas pelas ondas. Depois de nadar um bocado voltei para a praia, estendi-me todo nu em cima da toalha e ali me deixei ficar, de olhos postos naquele céu completamente azul. As aves marinhas sobrevoavam a baía à procura de peixe. Não se via uma única nuvem no céu. Fiquei ali a dormitar durante uma meia hora, e durante esse tempo mais ninguém pôs os pés na praia. Não tardei a sentir-me invadido por uma estranha sensação de quietude. Era uma praia demasiado tranquila, demasiado bonita para se estar sozinho, e levou-me a pensar numa certa maneira de morrer. Vesti-me e regressei a casa pelo mesmo caminho. O calor tinha-se tornado ainda mais intenso. Colocando maquinalmente um pé à frente do outro, tentei imaginar as conversas entre Sumire e Miu enquanto percorriam juntas este mesmo caminho.
Era provável que Sumire reflectisse no desejo sexual que sentia, do mesmo modo que eu próprio só pensava no meu desejo quando estava com ela. Não tinha dificuldade em perceber como ela se devia sentir. Ao imaginar Miu, nua, ao seu lado, Sumire desejava abraçá-la. O sentimento era de esperança, misturado comuma série de outras emoções — excitação, resignação, confusão, medo —, e tanto irrompia de repente como acabava por esmorecer. Como quando somos arrebatados por um súbito optimismo, para logo a seguir termos a certeza de que tudo irá acabar mal. E é quase sempre o que acaba por acontecer.
Subi até ao cimo de tudo, parei para descansar e beber água, depois comecei a descer a colina. Assim que o telhado da casa ficou à vista, lembrei-me do que Miu tinha dito acerca de Sumi-re ficar fechada no quarto a escrevinhar febrilmente desde o !- chegara à ilha. Que diabo andaria ela a escrever? Miu ficara ^ por aí e eu, pela minha parte, também não insistira. Mas quemsabe se entre os escritos não estaria escondido algum indício do seudesaparecimento. Porque não me teria eu lembrado disso antes?
Ao chegar a casa fui direito ao quarto de Sumire, liguei o computador e abri o disco rígido. Não encontrei nada que despertasse a minha atenção. Havia uma lista de despesas da viagem pela Europa, moradas, uma agenda. Eram tudo coisas de negócios relacionadas com o trabalho de Miu. Não existia nenhum ficheiro pessoal. Abri o menu «Documentos recentes». Estava vazio, o mais provável era Sumire ter apagado tudo para que ninguém pudesse ler o que escrevera. Em todo o caso, devia ter copiado os ficheiros pessoais para uma disquete, guardando-a num sítio qualquer. Era pouco provável que a tivesse levado consigo — o pijama não tinha bolsos.
Remexi a gaveta da secretária. Encontrei duas ou três disquetes, mas eram cópias dos documentos guardados no disco rígido e de outros documentos de trabalho. Não havia nada que despertasse a minha atenção. Sentei-me à secretária e puxei pela cabeça: se eu estivesse no lugar de Sumire, onde esconderia a disquete?
O quarto era pequeno; não havia muitos sítios onde ocultar alguma coisa. Sumire era muito esquisita em relação a quem podia ler o que ela escrevia.
A mala vermelha, claro. No quarto nada mais podia fechar-se à chave.
De tão levezinha, a mala nova dela quase parecia vazia; quando a abanei, não produziu o menor som, mas estava trancada com um código de quatro dígitos. Experimentei várias cornbinações de números que poderiam ter passado pela cabeça de Sumire — o dia dos seus anos, a sua morada, o seu número de telefone, o seu código postal —, mas nenhum deu resultado. Não era de admirar. Um número que qualquer pessoa pudesse facilmente deduzir não serviria de nada enquanto combinação secreta. Tinha de ser um que ela soubesse de cor, mas que não lhe dissesse directamente respeito. Fiquei a matutar sobre aquilo uma data de tempo, até que se fez luz. Tentei o código postal de Kunitachi — que é como quem diz, o meu código postal — e a fechadura abriu-se com um estalido.
Dentro da mala havia uma pequena bolsa de tecido preto. Puxei o fecho de correr e descobri no interior um pequeno diário de capa verde e uma disquete. Comecei por abrir o diário. Era a letra dela. A uma primeira leitura, não oferecia nada de importante, apenas umas quantas informações sobre os locais que visitara na companhia de Miu. As pessoas com quem se tinham encontrado. Nomes de hotéis. O preço da gasolina. A ementa do jantar. Marcas de vinho e notas sobre o seu sabor. Parecia mais uma lista do que um caderno de viagem. Havia uma porção de páginas em branco. Saltava aos olhos que escrever um diário não era propriamente a especialidade de Sumire.
A disquete não tinha título. Na etiqueta lia-se apenas a data, na letra inconfundível de Sumire: Agosto de 19**. Inseri-a no computador e abri-a. No menu apareceram dois documentos, ambos sem título. Estavam indicados apenas como o Documento 1 e o Documento 2.
Antes de os abrir, percorri lentamente o quarto com o olhar, Pendurado no armário estava o casaco de Sumire. Vi os seus óculos de natação, o dicionário de italiano, o seu passaporte,» Dentro da gaveta da secretária estavam a sua esferográfica e a sua lapiseira. Do lado de lá da janela que ficava por cima da secretária, estendia-se a suave encosta escarpada. Um gato preto passeava por cima do muro da casa ao lado. Naquele cubículo! despido, o silêncio do fim de tarde envolveu-me. Mesmo de olhos fechados, conseguia ouvir o barulho das ondas que naquela manhã varriam a praia deserta. Voltei a abri-los e desta vez] apurei os sentidos, atento ao mundo real. Não se ouvia rigorosamente nada. ’
Pus o cursor sobre o Documento 1, fiz duplo dique e abri-o.
Documento 1
Viram alguma vez alguém levar um tiro e não deitar sangue?
Quis o destino que chegasse a uma conclusão — uma conclusão provisória (mas será que existem conclusões que o não sejam? Aí está uma questão interessante, sem dúvida alguma, mas deixemo-la por agora de parte) — e foi assim que vim parar a esta ilha grega. Uma pequena ilha de que, até há bem pouco tempo, nunca ouvira falar. Neste momento... passam poucos minutos das quatro da manhã. Como seria de esperar, fez ainda escuro lá fora. As inocentes cabras estão mergulhadas num tranquilo sono colectivo. Nos campos, fiadas de oliveiras absorvem lentamente o seu alimento da profundeza das trevas. Sobre os telhados, qual monge melancólico, a nossa amiga Lua estende os seus braços para o mar deserto.
Onde quer que me encontre, é esta a altura do dia que prefiro. É uma hora que só a mim pertence. E aqui estou eu, sentada à mesa, a escrever. Não tardará a amanhecer. Como Buda nascendo do flanco da sua mãe (o direito ou o esquerdo, já não me lembro), um novo sol assomará sorrateiramente por cima das montanhas. Não tardará que a sempre discreta Miu se levante sem fazer barulho. Às seis tomaremos juntas um pequeno-almoço frugal e a seguir demandaremos a nossa praia de sempre, que fica do outro lado da montanha. Antes que a nossa jornada quotidiana se inicie, proponho-me, pois, arregaçar as mangas e concluir primeiro este trabalho.
Tirando meia dúzia de cartas, há muito que não escrevo nada de puramente pessoal, pelo que não tenho a certeza de consegui» expressar-me como gostaria. Não que alguma vez na vida tenha tido semelhante certeza. De certo modo, sempre escrevi porque sempre me senti impelida a escrever.
Porquê? Por uma simples razão. Para pensar sobre o que querque seja, preciso primeiro de passar as ideias para o papel.
Tem sido sempre assim, desde miúda. Quando havia umacoisa que não percebia, agarrava, umas atrás das outras, nas palavras espalhadas a meus pés e alinhava-as por forma a com elasconstruir frases. Quando não conseguia, voltava a espalhá-las, a arrumá-las segundo outra ordem. À força de repetir esse gesto vezes sem conta, tornei-me capaz de pensar sobre as coisas como o comum dos mortais. Para mim, escrever nunca foi difícil. Enquanto as outras crianças se divertiam a apanhar bonitas pedras ou bolotas, eu escrevia. Tão naturalmente como respirava, escrevinhava frases umas atrás das outras. E pensava.
Pode haver quem julgue, ao ver como eu era obrigada a dar todos aqueles passos sempre que me propunha pensar em algo, que se tratava de um processo demasiado moroso para chegar a uma conclusão. Ou então, se calhar, ninguém pensa isso. Mas, verdade seja dita, a coisa demorava o seu tempo. A ponto de, quando entrei para a escola primária, as pessoas se terem interrogado se porventura eu não teria um ligeiro atraso mental. Na prática, não conseguia acompanhar as outras crianças.
Quando acabei a primária, o sentimento de inadaptação provocado por esse desfasamento diminuíra consideravelmente. Mas nessa altura encontrara, até certo ponto, uma maneira de acertar o passo com o mundo à minha volta. Esse abismo, todavia, continuou a fazer-se sentir dentro de mim — como uma serpente a deslizar por entre o mato sem fazer barulho — até chegar a hora de abandonar a universidade e cortar relações com a sociedade. Eis o meu mote provisório: através da escrita, tomo todos os dias consciência da minha identidade.
Certo? Certíssimo!
Escrevi uma enorme quantidade de textos até à data. Escrevia quase todos os dias. Era como se estivesse sozinha, no meio de uma imensa pradaria, a cortar a relva e esta voltasse a crescer quase ao mesmo ritmo. Hoje cortava um bocado aqui, amanhã cortava outro bocado ali... Assim que conseguia dar uma volta completa, a relva, no ponto de partida, voltara a ficar tão crescida como no princípio.
A verdade, porém, é que mal consegui alinhavar duas linhas desde que conheci Miu. Porque será? A teoria da ficção = transmissão de que K. me falou faz sentido. Está correcta, até certo ponto, mas não explica tudo. Tenho de fazer os possíveis por simplificar as minhas ideias neste ponto.
Simplificar, simplificar.
O que aconteceu foi que, ao conhecer Miu, deixei de pensar. (É óbvio que estou aqui a usar a minha própria definição de pensar.) Miu e eu passámos a estar sempre juntas, como duas colheres sobrepostas, e ao seu lado deixava-me transportar para longe — para um lugar cuja existência me era totalmente estranha — e limitava-me a pensar: tudo bem, deixa-te ir com a maré.
Por outras palavras, para seguir Miu tive de me libertar ao máximo da bagagem. Até o próprio acto de pensar se tornou um fardo demasiado pesado. Julgo que isso explica tudo. Por mais que a relva crescesse, não me fazia diferença. Ficava deitada de costas, a ver passar as nuvens brancas, confiando-lhes o meu destino, entregando-me ao perfume pungente da relva, ao sussurro do vento. com o passar do tempo, deixei de me importar com a diferença entre o que sabia e o que não sabia.
Não, não é verdade. Desde o princípio que isso me é perfeitamente indiferente. Tenho de ser um nadinha mais precisa neste meu relato.
Precisão, precisão.
Vendo bem, apercebo-me agora de que a minha primeira regra no que à escrita diz respeito tem sido sempre escrever sobre as coisas como se as não soubesse — e isso mesmo no caso daquelas coisas que eu sabia, ou pensava que sabia. Se eu partir do princípio: isso já eu sei, não preciso de perder o meu tempo precioso tempo a escrever sobre isso, então a minha escrita nunca ganhará asas. Para dar um exemplo concreto. Se eu disser, a propósito de alguém: ora, aquele tipo conheço eu bem, nem sequer Vou perder tempo a pensar nele, não há problema, corro o risco de ser enganada (e esta regra aplica-se a toda a gente),
A percepção não passa da soma dos nossos mal-entendidos.
Aqui entre nós, é esta a minha maneira de conceber o mundo.
No mundo em que vivemos, o que sabemos e o que não sabemos coexistem, num estado de perfeita confusão, fatalmente ligados, como gémeos siameses.
Confusão, confusão.
Quem diabo consegue, de facto, distinguir entre o mar e o que nele se reflecte? Ou dizer qual a diferença entre a chuva que cai e a solidão?
Foi assim que, sem grandes problemas de consciência, deixei de me preocupar com a diferença entre saber e não saber. Passou a ser esse o meu ponto de partida. Um terrível lugar para o início, porventura, mas a verdade é que as pessoas precisam de começar nalgum lado, não acham? Tudo isto para explicar como comecei a considerar todos os dualismos, do género tema e estilo, objecto e sujeito, causa e efeito, as articulações das minhas mãos e o resto do meu corpo, como elementos indissociáveis que, enquanto tal, não podem ser distinguidos uns dos outros. Tudo misturado e espalhado no chão da cozinha — o sal, a pimenta, a farinha, a fécula. Formando uma grande mancha indistinta.
As articulações das minhas mãos e o resto do meu corpo... Aqui sentada, à frente do computador, reparoaro agora que voltei ao velho hábito de fazer estalar os nós dos dedos. Este péssimo costume regressou em força assim que deixei de fumar. Primeiro faço estalar as articulações dos cinco dedos da mão direita — crack, crack — depois as da mão esquerda. Não é para me gabar, mas consigo fazer um barulho tão sinistro que até parece que estou a partir o pescoço a alguém. Na escola primária, não havia quem me ganhasse. Punha os rapazes a um canto.
Quando estava na universidade, K. deu-me a entender muito claramente que não me devia propriamente orgulhar de semelhante proeza. É bom de ver que quando uma rapariga atinge uma certa idade não deve andar para aí a fazer estalar os nós dos dedos. Sobretudo à frente das outras pessoas. Caso contrário, corre o risco de acabar como Lotte Lenya no filme Da Rússia com Amor. Porque carga de água nunca ninguém me disse isto antes? bom, não tive outro remédio senão cortar o mal pela raiz. Quer dizer, eu adoro a Lotte Lenya, mas não a ponto de querer ser como ela. Quando deixei de fumar, porém, dei-me conta de que mal me sentava a escrever recomeçava a fazer estalar os nós dos dedos involuntariamente. Crack, crack, crack.
O nome é Bond. James Bond.
Voltando ao que estava a dizer. O tempo urge — não há margem para desvios. Deixemos a Lotte Lenya. Desculpem lá, metáforas — mas têm de ir à vida. Tal como já disse, coexistem em nós, fatalmente ligados, o que sabemos e o que não sabemos, Por uma questão de conveniência, a maioria das pessoas ergue uma barreira entre os dois. Convenhamos que torna a vida mais fácil, mas eu resolvi deitar a baixo essa barreira. Não vejo remédio. Detesto barreiras. É assim que eu sou.
Se me é permitido voltar a usar a imagem dos gémeos siameses, acontece que eles nem sempre se dão bem. Nem sempre fazem os possíveis por se compreender um ao outro. De facto, o contrário até é mais frequente. A mão direita ignora o que faz a mão esquerda
— e vice-versa. Instala-se a confusão, perdemo-nos por completo — e chocamos com a primeira coisa que nos aparece à frente. Bum
Quero com isto dizer que as pessoas têm de engendrar mentalmente uma estratégia inteligente se quiserem que «aquilo quesabem» e «aquilo que não sabem» coexistam em paz. E essa estratégia — sim, adivinharam! — consiste em pensar. É preciso encontrar um ponto de apoio. De outra forma, e não tenham ilusões, entraremos em plena rota de colisão.
Uma pergunta.
Então o que deve fazer uma pessoa se quiser evitar a colisão (pum!, bum!), mas ainda estiver deitada no meio da pradaria, a ver tranquilamente as nuvens a passar, a ouvir a erva a crescer
— por outras palavras, sem pensar? É difícil? Não, nada disso. De um ponto de vista puramente lógico, é fácil. C’est simple? A resposta está nos sonhos. Em sonhar e voltar a sonhar. Penetrar no mundo dos sonhos, para nunca mais de lá sair. Passar o resto da vida a sonhar.
Nos sonhos não é preciso estabelecer grandes distinções entre as coisas. Nada disso. Não existem barreiras. É por isso que
Em francês no original. (N. da T.)
raramente existem colisões nos sonhos. E, quando as há, não fazem mossa. A realidade é diferente. A realidade é a doer.
Realidade, realidade.
Há muito tempo, quando se estreou o filme A Quadrilha Selvagem, de Sam Peckinpah, houve uma jornalista que levantou a mão na conferência de imprensa e perguntou num tom francamente indignado: «Por que razão insiste em mostrar tanto sangue nos seus filmes?» Ernest Borgnine, um dos actores presentes, encarregou-se de responder, com um ar perplexo. «Minha senhora, alguma vez viu alguém levar um tiro e não deitar sangue?» É preciso não esquecer que filme foi realizado em plena guerra do Vietname.
Viram alguma vez alguém levar um tiro e não deitar sangue?
Foi justamente por isso que comecei a escrever. Porque penso — no sentido habitual do termo, e chamo a atenção para este ponto — num reino ainda sem nome, concebo um sonho, um feto cego chamado percepção, que flutua no líquido amniótico universal e opressivo da incompreensão. Deve ser por isso que os meus romances são absurdamente longos e, pelo menos até à data, nunca chegaram ao seu termo. Porque ainda não consegui forjar os meios que me permitam alimentar uma linha de produção a essa escala. Nem técnica, nem moralmente.
Mas isto que agora aqui escrevo não é nenhum romance. Não sei que nome lhe hei-de dar. Escrita, apenas. De momento, limito-me a pensar alto, por isso não há necessidade de embelezar a coisa. Não tenho nenhuma obrigação moral. Estou apenas — humm — a pensar. Há séculos que não penso a sério e, provavelmente, não voltarei a fazê-lo nos tempos mais próximos. Mas agora, neste preciso momento, estou a pensar. E é isso que Vou continuar a fazer até ao amanhecer. Pensar.
E contudo, dito isto, não me consigo libertar das minha» velhas e obscuras dúvidas. Será que não estou a desperdiçar! o meu tempo e a minha energia numa actividade inútil? A arrastar penosamente um balde de água para um lugar que está quase a transbordar, depois de uma enorme chuvada? Não deveria! evitar esforços vãos e deixar-me simplesmente ir com a maré!
Colisão? O que é isso?
Dito de outro modo.
Tudo bem — então de que modo?
Ah, sim, já me lembro — então é assim.
Se faço tenção de continuar a escrever, talvez deva aconchegar-me debaixo dos cobertores quentinhos, pôr-me a pensar emMiu e masturbar-me. Era só isto que eu queria dizer.
Adoro a curva do traseiro de Miu. O contraste perfeito entre osseus pêlos púbicos, negros como azeviche, e o cabelo imaculado como a neve, o rabo moldado numas cuequinhas pretas. Por falarem sexy. Não consigo deixar de pensar nos seus pêlos púbicos, rapados em forma de T, tão pretos como as cuecas que os cobrem. Tenho de deixar de pensar nestas coisas. Desligar o circuito das fantasias sexuais que não levam a parte nenhuma (click) e concentrar-me na escrita. Não posso desperdiçar estes preciosos momentos que antecedem o amanhecer. Deixarei que seja outra pessoa, noutro lugar, a decidir o que é útil e o que não é. Neste : preciso momento não trocaria um copo de chá de cevada por aquilo que essa pessoa possa dizer.
Certo?
Certíssimo!
Assim sendo, prossigo.
Dizem que incluir sonhos (quer tenham sido sonhados ou inventados) num romance é uma opção arriscada. Que tão-só um.
Para dizer a verdade, tenho tido várias vezes sonhos parecidos. Mudam os detalhes (e muda também o cenário), mas todos eles apresentam o mesmo padrão. E também é sempre a mesma a aflição que sinto ao acordar. Há um tema que se repete, como um comboio que apita na mesma curva perigosa, noite atrás de noite.
O sonho de Sumire (Escrevi isto na terceira pessoa. Assim, soa mais autêntico.)
Sumire vai a subir uma comprida escada em caracol para ir ter com a mãe, que morreu há muitos anos. A mãe está à espera dela no cimo da escada. Tem qualquer coisa para dizer a Sumire, uma informação importantíssima que esta precisa absolutamente de saber para continuar a viver. Sumire nunca viu um morto, e tem medo. Ignora que tipo de pessoa é a mãe. Talvez esta — por alguma razão que Sumire desconhece — a deteste. Mas é imperioso que a encontre. Esta é a sua primeira e última oportunidade.
Os degraus nunca mais acabam. Ela sobe, sobe sempre, e nunca mais consegue lá chegar. Sumire corre pela escada a cima, quase sem fôlego. O tempo começa a escassear. Sabe que a mãe não vai ficar eternamente à espera dela no cimo daquele edifício. A testa de Sumire está perlada de suor. Até que os degraus chegam ao fim.
No cimo da escada espera-a um vasto patamar com uma espessa parede ao fundo. À altura dos seus olhos, vê-se um buraco redondo, uma espécie de respiradouro. Um buraco estreito, con cerca de cinquenta centímetros de diâmetro, e é no interior da quele buraco que a mãe de Sumire se encontra, ali enfiada como se tivesse sido empurrada à força, com os pés. Sumire apercebe -se de que o tempo está prestes a esgotar-se.
Naquele espaço esconso, a mãe tem o rosto virado para ela.Olha de frente para Sumire como que a suplicar algo. Basta um olhar para Sumire ter a certeza de que aquela mulher é a sua mãe. É a pessoa que lhe deu a vida e a carne, apercebe-se ela.Mas, de certo modo, é como se a mulher ali presente não fosse a mesma pessoa que aparecia no álbum de família. «A minha verdadeira mãe é mais bonita, mais jovem. Isso quer dizer que ] aquela que aparecia no álbum não era a minha verdadeira mãe», pensa Sumire. «O meu pai enganou-me.»
«Mãe!», grita Sumire, enchendo-se de coragem. Ela sente como se um tabique tivesse caído dentro de si. Assim que profere esta palavra, a sua mãe vê-se arrastada para dentro daquele buraco, como se estivesse a ser sugada do lado de lá por um vazio gigantesco. A mãe abre a boca e grita qualquer coisa a Sumire, mas o som oco do vento que penetra nos interstícios do buraco engole as suas palavras. No instante seguinte, a sua mãe desaparece, engolida por um poço de trevas.
Sumire olha para trás e vê que a escada desapareceu. Está rodeada de paredes de pedra. Onde havia a escada, existe agora uma porta de madeira. Ela faz girar a maçaneta e abre a porta, e do outro lado está o céu. Encontra-se agora no cimo de uma alta torre, tão alta que fica tonta só de olhar lá para baixo. No céu paira um sem-número de minúsculas máquinas voadoras. Simples aviõezinhos, daqueles que qualquer pessoa pode construir, feitos de bambu e de peças leves de madeira. Na traseira de cada avião existe uma hélice, bem como um motor do tamanho de um punho. Aos gritos, Sumire pede aos pilotos que a venham salvar, mas nenhum lhe dá ouvidos.
Deve ser por estar assim vestida, conclui Sumire. Ninguém me consegue ver. Envergou uma anónima bata de hospital, larga e branca. Despe-a e fica nua — não tem nada por baixo. Deixa cair a bata no vazio, através da porta, e fica a vê-la esvoaçar para longe, como uma alma libertada, nas asas do vento. O mesmo vento que acaricia o corpo de Sumire e agita os seus pêlos púbicos. com um arrepio, apercebe-se de que todos os aviõezinhos que andavam ali à volta se transformaram em libelinhas. O céu está cheio de libelinhas de todas as cores. Os seus enormes olhos bolbosos brilham, olhando em todas as direcções, e o bater das suas asas intensifica-se mais e mais, como um aparelho de rádio a que aumentaram o volume. Por fim, transforma-se num ruído insuportável. Sumire agacha-se, fecha os olhos e tapa os ouvidos.
E é então que acorda.
Sumire lembrava-se do sonho nos seus ínfimos pormenores. Se quisesse, podia tê-lo reproduzido num quadro. A única coisa de que não se recordava era do rosto da mãe a desaparecer, sugado por aquele buraco negro. Também as importantíssimas palavras que aquela pronunciara antes de desaparecer tinham ficado perdidas para sempre no vazio mais absoluto. Na cama, Sumire mordeu violentamente a almofada e fartou-se de chorar.
O barbeiro já não faz mais buracos
Depois deste sonho, tomei uma importante decisão. A ponta da minha vagamente industriosa picareta servirá para começar finalmente a golpear rocha sólida. Tchack. Decidi dar claramente a entender a Miu o que desejo. Não posso ficar para sempre assim, nesta indecisão. Não posso comportar-me como um barbeíro indeciso, que passa a vida a abrir buracos no jardim das traseiras, não posso continuar sem confessar a ninguém que amo Miu. A ser assim, acabarei, lenta mas inexoravelmente, por ir perder. Todas as manhãs do mundo, todos os crepúsculos, acabarão por me despojar, pedaço atrás de pedaço, da minha identidade, e não tardará que a minha própria existência se dilua na corrente do tempo — e que eu acabe por ficar reduzida a nada.
Certo?
Certfssimo
Documento 2
São duas e meia da tarde. Lá fora está tão quente e chamejante como no inferno. Os penhascos, o céu e o mar resplandecem com um fulgor branco. Basta olhar para eles durante algum tempo e os contornos não tardam a dissipar-se, fundindo-se num caos indistinto, sem fronteiras definidas. A consciência mergulha na sombra propícia ao sono para evitar a luz crua do Sol. Até mesmo os pássaros deixaram de voar. Dentro de casa, porém, reina uma agradável frescura. Miu encontra-se na sala a ouvir Brahms. Tem um vestido de Verão azul de alças finas, o cabelo todo branco simplesmente apanhado atrás. Eu estou sentada à secretária, a escrever estas palavras.
— A música incomoda-te? — pergunta-me Miu.
Respondo que Brahms nunca me incomoda.
Tenho andado a puxar pelo fio da memória, tentando reproduzir a história que Miu me contou há alguns dias, numa aldeia da Borgonha. Não é tarefa fácil. Ela contou-ma a conta-gotas, com a cronologia dos acontecimentos toda trocada. Alturas houve em que não consegui descortinar o que aconteceu primeiro, e o que aconteceu depois, qual era ali a causa e qual a consequência. Mas é óbvio que não a posso censurar. A cruel navalha da conspiração enterrada na memória rasga a sua carne e,à medida que no céu por cima dos vinhedos as estrelas foram empalidecendo às primeiras luzes da manhã, também a cor da vida se foi apagando do seu rosto enquanto me contava a sua saga. Miu só me contou a sua história depois de muita insistência da minha parte. Tive de recorrer a uma série de estratagemas para convencê-la a falar. Encorajei-a, ameacei-a, elogiei-a, seduzi-a. Ficámos a beber vinho tinto e a falar até ao amanhecer. De mãos dadas, seguimos o rasto das suas recordações, dando-lhes forma, reconstruindo-as. Mesmo assim, houve terrenos perdidos na sua memória onde Miu não logrou aventurar-se. Mal chegava lá perto, ficava num estado de perturbação surda, e bebia (mais) vinho. Era terreno minado. Sempre que nos acercávamos, éramos forçadas a abandonar as buscas e recuávamos com cuidado para avançarmos depois em direcção a território mais seguro.
Convenci Miu a contar-me a história depois de ter ficado a saber que ela pintava o cabelo. Miu é de tal forma reservada que se contam pelos dedos as pessoas que à sua volta sabem que ela o faz. Mas eu dei por isso. Viajarmos juntas durante tanto tempo,passarmos juntas dias atrás de dias, leva-nos a reparar nesse tipo de coisas. Ou talvez Miu nem sequer estivesse a tentar escondê-lo. Se quisesse, poderia ter sido bem mais discreta. Talvez pensasse que eu acabaria inevitavelmente por descobrir, ou então talvez quisesse mesmo que eu descobrisse. (Humm — tudo isto não passa de puras conjecturas da minha parte.)
Fiz-lhe a pergunta de chofre. É uma questão de feitio — nunca me ponho com rodeios.
— Tens muitos cabelos brancos — quis eu saber. — Há quanto tempo o pintas?
— Catorze anos — respondeu-me ela. — Há catorze anos o meu cabelo ficou todo branco, não se salvou uma madeixa.
— Alguma doença?
— Não, não foi nada disso — respondeu Miu. — Aconteceu-me uma coisa e o meu cabelo ficou assim da noite para o dia.
— Gostava de ouvir essa história — disse eu, quase a pedir por favor. — Quero ficar a saber tudo acerca de ti. Sabes que eu não seria capaz de esconder nada de ti.
Miu, porém, abanou a cabeça em silêncio. Nunca contara a história a ninguém, nem sequer o marido sabia a verdade. Durante catorze anos, guardara aquele segredo só para si.
Acabámos por ficar a falar durante a noite inteira. Convenci-a de que todas as histórias devem ser contadas quando chega a hora. Senão, acaba-se por ficar prisioneiro do segredo que se quer guardar.
Miu olhou para mim como se estivesse a observar uma cena muito ao longe. Nas suas pupilas transpareceu qualquer coisa, para desaparecer logo em seguida.
— Não sou eu que tenho de me justificar — afirmou ela. — São eles que têm contas a prestar, e não eu.
Sinceramente, não estava a ver onde queria ela chegar.
— Se eu te contar — disse Miu —, ficaremos para sempre as duas ligadas por esta história e não sei se é essa a atitude certa a tomar. Se eu abrir a tampa da caixa agora, tu ficas envolvida nesta história. É isso que me estás a pedir? Queres mesmo ficar a saber uma coisa que tentei esquecer a todo o custo, fazendo tantos sacrifícios?
— Sim — respondi eu. — Seja o que for, quero partilhá-lo contigo. Não quero que me escondas nada.
Miu bebeu um trago de vinho e fechou os olhos. Até o próprio tempo pareceu resignar-se com o silêncio que se seguiu. Parecia nitidamente confusa.
Por fim, começou a contar a história. Pouco a pouco, cada fragmento de sua vez. Algumas partes ganharam vida própria, outras nunca chegaram a desenvolver-se. Do relato faziam parte os inevitáveis saltos e lacunas, alguns deles eivados de um significado muito especial. No papel de narradora, a minha tarefa consiste agora em ir reunindo — aos poucos — esses elementos! num todo coerente.
A história de Miu e da grande roda.
Um certo Verão, Miu viu-se sozinha numa pequena cidade da Suíça, perto da fronteira com a França. Tinha vinte e cinco anos e vivia em Paris, onde se encontrava a estudar piano. Viajara até à pequena cidade a pedido do pai, a fim de tratar de negócios.! A sua missão, nada complicada, consistia em ir jantar com uml representante da outra parte e convencê-lo a assinar contrato.! Miu gostara daquela cidadezinha mal lhe pusera a vista em cima. Era, de facto, um lugar cheio de beleza e encanto, com o seul castelo medieval, à beira de um lago. Apeteceu-lhe passar ali uns dias. Além do mais, decorria um festival de música numa povoa ção ali perto. Alugando um carro, podia ir e vir todos os dias.
Num prédio sossegado teve a sorte de encontrar um aparta-mento mobilado que podia alugar à semana. Era pequeno, limpo e ficava no cimo de uma colina, no extremo da cidade. A vista era magnífica. Não muito longe, havia um lugar onde ela podia praticar piano. A renda não era barata, mas, caso se visse aflita de dinheiro, podia contar sempre com a ajuda do pai.
E foi assim que Miu iniciou a sua provisória mas plácida vida na cidade. Ia aos concertos integrados no festival de música, dava os seus passeios pelas redondezas e não tardou a fazer algumas amizades. Encontrou um restaurantezinho e um café simpático que lhe agradaram. Da janela do seu apartamento avistava-se um parque de diversões que já ficava fora da cidade, onde existia uma grande roda. Viam-se as cabinas com as suas portas de várias cores, para sempre ligadas à gigantesca roda num perpétuo movimento rotativo que se recortava lentamente no céu. Chegando lá a cima, começava a descer, como não podia deixar de ser. As rodas não vão a parte alguma. As cabinas sobem e descem, numa viagem sempre igual que, por estranho que pareça, a maioria das pessoas parece achar agradável.
À noitinha acendem-se na roda um sem-número de luzes. Mesmo depois de estar parada e de o parque ter fechado, as luzes não se apagam e a roda continua a brilhar pela noite dentro, como que a rivalizar com as estrelas no céu. Miu costumava sentar-se à janela, a ouvir música na telefonia e a olhar, fascinada por aquele movimento de sobe e desce da roda. Ou, quando esta estava parada, por aquela quietude própria de um monumento.
Travou conhecimento com um homem que vivia na cidade. Um homem de tipo latino, atraente, na casa dos cinquenta. Era alto, tinha um nariz extremamente bem feito e cabelo liso muito escuro. Fora ele a apresentar-se no café. «De onde é?», quisera ele saber. «Do Japão», respondera ela. Foi assim que os dois começaram a conversar. Chamava-se Fernando, era de Barcelona e mudara-se para ali há cinco anos, para trabalhar como desenhador de mobiliário. Falava num tom descontraído, dizendo piadas a torto e a direito. Trocaram algumas frases banais, depois despediram-se. Dois dias mais tarde voltaram a encontrar-se no mesmo café. Ela ficou a saber que ele vivia sozinho e era divorciado, dissera-lhe que saíra de Espanha para começar uma nova vida. Miu não ficou com uma impressão lá muito boa do homem. Palpitava-lhe que ele estava a atirar-se a ela. Cheirava-lhe vagamente a desejo sexual e isso deixava-a assustada. Decidiu não voltar a aproximar-se do café.
Mesmo assim, cruzou-se frequentemente com Fernando nas ruas da cidade — tantas vezes isso aconteceu que teve a impressão de que ele andava a segui-la. Talvez tudo não passasse de um pressentimento estúpido da sua parte. Afinal, tratava-se de uma cidade pequena, onde encontrar a mesma pessoa na rua não era assim tão estranho. Ainda assim, Miu começou aos poucos a sentir-se irritada e inquieta e a encarar Fernando como uma ameaça à vida tranquila que levava. E, como um acorde dissonante no início de um movimento musical, uma nuvem ameaçadora principiou a ensombrar o seu aprazível Verão.
Mas, ao fim e ao cabo, Fernando não representava senão uma parte da sombra. Ao fim de dez dias, ela começou a sentir uma espécie de inibição que passou a reflectir-se no seu dia-a-dia. A cidade, até aí encantadora e limpa em tudo quanto era sítio, parecia agora, aos seus olhos, altaneira, imbuída de um espírito tacanho. As pessoas eram simpáticas e bastante afáveis, mas ela pressentia uma espécie de preconceito velado contra si, por ser asiática. O vinho que lhe serviam nos restaurantes passou a ter um gosto desagradável. Encontrava toda a espécie de bicho nas verduras que comprava. Os concertos a que assistia no festival de música não lhe despertavam interesse, não conseguia concentrar-se. Até mesmo o apartamento, que costumava achar tão confortável, parecia-lhe agora um sítio esquálido, decorado com mau gosto. Tudo perdera o brilho inicial. A sombra ameaçadora espalhava-se e ela não lograva fugir a isso.
De noite, o telefone tocava e ela atendia. «Estou?», perguntava. Mas do lado de lá ninguém respondia. Isto aconteceu umas quantas vezes. Só podia ser Fernando, pensava, mas não tinha uma única prova. Como podia ele saber o número? O aparelho era um modelo antigo, e ela não tinha maneira de o desligar da tomada. Como tinha dificuldade em adormecer, começou a tomar comprimidos para dormir. Perdeu o apetite.
Decidiu que o melhor a fazer era ir-se embora. Mas, por uma qualquer razão que não lograva descortinar, não conseguia deixar a cidade. Arranjou uma série de desculpas plausíveis. Já pagara um mês de renda, comprara a assinatura para o festival de música e alugara o seu apartamento de Paris durante o Verão. Não podia levantar-se e ir-se embora assim sem mais nem menos, dizia para consigo mesma. E, além disso, ainda não acontecera nada. Não sofrera nenhum dano concreto, pois não? Ninguém a tratara mal. Provavelmente não passava de um excesso de susceptibilidade da sua parte, convenceu-se ela.
Uma noite, cerca de duas semanas depois de ter começado a viver naquela cidade, foi jantar como de costume a um pequeno restaurante de bairro. Depois, para variar, decidiu apanhar ar e deu um grande passeio. Perdida nos seus pensamentos, deambulou ao acaso pelas ruas da cidade. Sem se dar conta, foi ter à entrada do parque de diversões, aquele onde havia a grande roda. O ar estava cheio de música barulhenta, de vozes de feirantes convidando as pessoas a entrar, de gritos de alegria infantis. Quase todos os visitantes eram famílias, ou casais que moravam na zona. Miu lembrou-se de que o seu pai costumava levá-la a um parque de diversões quando era pequena. Ainda se lembrava do cheiro do casaco de tweed dele quando andavam os dois nas chávenas de café gigantes que giravam sobre si próprias a grande velocidade. E ela sempre agarrada à manga do pai, o tempo todo que a viagem durava. Para a pequena Miu, aquele cheiro representava o mundo remoto dos adultos, era um símbolo de segurança. De repente, sentiu saudades do pai.
Por brincadeira, comprou um bilhete e entrou no parque. O local estava repleto das mais variadas lojinhas e stands— uma barraquinha de tiro ao alvo, um espectáculo com serpentes, a cabina da mulher que lia a sina. Uma mulheraça com uma bola de cristal à sua frente fez sinal a Miu: ; ’ , v
— Entre, mademoiselle,^ vá. É muito importante. A sua sorte vai mudar.
Miu limitou-se a sorrir e continuou a andar.
Comprou um gelado e sentou-se num banco a comê-lo e a ver a multidão passar. Sentia-se a milhares de quilómetros do bulício que a rodeava. Um homem aproximou-se e começou a falar com
1 Em francês no original. (N. da T.)
ela em alemão. Devia andar na casa dos trinta, era baixo, tinha cabelo louro e bigode. O tipo de homem que fica bem de uniforme,
- Ela abanou a cabeça e sorriu, a apontar para o relógio. — Estou à espera de uma pessoa — disse em francês. A frase saiu-lhe quase aos berros, como se não fosse a sua voz. O homem não acrescentou mais nada, esboçou um sorriso tímido, disse-lhe adeus com a mão e foi-se embora.
Miu levantou-se e começou a vaguear sem rumo. Alguém lançava dardos, ali perto ouviu-se um balão a rebentar. Havia umurso às voltas, a tentar dançar pesadamente. Um órgão tocava O Danúbio Azul. Ela levantou a cabeça e viu a grande roda a girar lentamente no ar. Deve ser engraçado ver o meu apartamento da roda, ao contrário do que é costume, lembrou-se ela. Felizmente tinha consigo uns binóculos, deixara-os ficar na mala da última vez que fora ao festival de música. Davam jeito para conseguir ver o palco do lugar na relva onde costumava ficar sentada. Eram leves e ao mesmo tempo resistentes. com eles poderia muito bem ver o interior do seu quarto.
Comprou a sua entrada na bilheteira que ficava em frente da ; roda.
— Estamos quase a fechar não tarda nada, menina — disse-lhe o velhote que vendia os bilhetes. Disse aquilo de cabeça baixa, como se estivesse a falar sozinho, e abanou a cabeça. — Por hoje já chega. Esta é a ultima viagem. Só mais uma vez e acabou-se.
Uma barba hirsuta cobria-lhe o queixo, tinha o bigode manchado de nicotina. Tossiu e as suas faces ficaram mais vermelhas do que se tivesse andado a apanhar com o vento norte na cara, durante anos a fio.
— Não faz mal. Uma vez é suficiente — respondeu Miu. Comprou o bilhete e subiu para a plataforma. Parecia que era a única pessoa a embarcar e, tanto quanto lhe era dado ver, as restantes cabinas estavam vazias e revoluteavam ociosamente no ar, como se o próprio mundo se aproximasse do fim.
Ela entrou numa cabina encarnada, sentou-se no banco, ao mesmo tempo que o homem se aproximou para fechar a porta, trancando-a do lado de fora, decerto por uma questão de segurança. Como um animal cansado, a roda fez uma espécie de rangido e começou a elevar-se. Lá em baixo, a fiada de barraquinhas e demais atracções começou a ficar mais pequena, enquanto as luzes da cidade emergiam da obscuridade da noite. À esquerda ficava o lago, e Miu conseguia ver as luzes dos barcos reflectidas ao de leve na superfície da água. Ao longe, as luzes acesas nas aldeias traçavam o contorno da montanha. Perante a beleza de tudo aquilo, sentiu um aperto no coração.
Começou a aparecer a zona da cidade onde vivia, mesmo no alto da colina. Miu focou os binóculos e procurou com os olhos o seu apartamento, mas não foi fácil dar com ele. A sua cabina aproximava-se cada vez mais do cimo da roda. Tinha de se despachar e, frenética, varreu o horizonte com os binóculos, da esquerda para a direita e de cima para baixo, mas a cidade estava cheia de prédios muito parecidos. A roda chegou ao cimo e iniciou fatalmente a descida. Por fim, ela descortinou o edifício de que andava à procura. Lá estava ele! Mas, por estranho que pareça, tinha mais janelas do que ela pensava e muita gente deixara-as abertas para deixar entrar a brisa estival. Apontou os binóculos para cada uma das janelas e, finalmente, conseguiu dar com o segundo apartamento a contar da direita no terceiro andar, mas, nessa altura, já a roda estava quase a chegar ao solo. As paredes dos outros prédios taparam a vista. Que pena! Mais alguns segundos e teria conseguido ver o interior do seu apartamento.
A roda aproximou-se do solo, muito lentamente. Ela tentou sair, mas a porta nem se mexia. Pudera — estava trancada do lado de fora. Olhou em volta, à procura do velhote que vendia os bilhetes, mas ele não aparecia em parte alguma. A luz da cabina já se apagara. Ainda pensou em gritar a pedir ajuda, mas não havia vivalma. A roda começou outra vez a subir. Mas que chatice, pensou ela. Como podia uma coisa daquelas acontecer-Lhe? Suspirou. Talvez o velhote tivesse ido à casa de banho e perdido a noção do tempo. Lá teria de dar mais uma volta.
Não faz mal, pensou. Graças ao esquecimento do velhote acabava de ganhar uma segunda volta de graça. Desta vez é que conseguiria ver o seu apartamento. Agarrou nos binóculos com firmeza e pôs a cabeça à janela. Já lograra localizar o prédio, agora era só uma questão de encontrar o seu quarto. A janela estava aberta, as luzes acesas. Detestava entrar num sítio sem luz, e fizera tenção de regressar a casa logo a seguir ao jantar.
Sentiu-se culpada só por estar ali, a olhar de tão longe pelos binóculos para dentro do quarto onde vivia, era quase como se se espiasse a si própria. Mas não se encontrava lá, afiançou a si mesma. Claro que não. O telefone estava sobre a mesa. Se pudesse, fazia uma chamada para aquele número. Em cima da mesa via-se uma carta. Quem me dera poder lê-la daqui, pensou Miu, mas, como era evidente, não conseguia ver mais nada ao pormenor.
Por fim, a roda chegou ao cimo e começou a descer. Ainda não tinha chegado nem a meio quando, de repente, se imobilizou com estrépito. Miu foi atirada contra a parte lateral da cabina, batendo com o ombro e quase deixando cair os binóculos ao chão. O motor que fazia trabalhar a roda parou, e um silêncio sepulcral caiu sobre os arredores. A animada música de fundo deixara por completo de se ouvir. A maior parte das barracas lá em baixo tinha as luzes apagadas. Silêncio absoluto. Apenas o sussurro do vento, nada de vozes de feirantes a apregoarem diversões mil, nem de gritos de alegria infantis. A princípio custou-lhe a perceber o que acontecera, mas a brutal revelação não tardou: deixaram-me sozinha, fechada aqui dentro.
Debruçando-se na janela entreaberta, olhou de novo lá para baixo. Deu-se conta da altura a que se encontrava. Miu ainda pensou em gritar a pedir ajuda, mas sabia que ninguém a ouviria, estava demasiado alto, demasiado longe do solo, a sua voz era demasiado fraca.
Onde se teria enfiado o velhote? Devia andar nos copos. com a cara daquela cor, o hálito, a voz de bagaço — não havia que duvidar. Deve ter-se esquecido completamente da minha existência e desligou a máquina. A esta hora deve estar para aí a embebedar-se num bar qualquer, a emborcar cerveja ou gim, a ficar cada vez mais bêbado e sem ter noção do que fez. Miu mordeu os lábios. «Posso muito bem ter de ficar aqui até amanhã à tarde», pensou ela para consigo. «Ou se calhar mesmo até à noitinha.» A que horas abriria o parque ao público? Não fazia ideia.
Miu envergava apenas uma blusa fina e uma saia curta de algodão. Apesar de se estar em pleno Verão, as noites na Suíça eram frescas. Começou a levantar-se vento. Voltou a debruçar-se na janela para ver o que se passava lá em baixo. Havia ainda menos luzes acesas do que antes. Os funcionários do parque tinham acabado o dia de trabalho e regressado a casa, o que não queria dizer que não houvesse um guarda, algures. Respirou fundo, gritou a plenos pulmões por socorro e pôs-se à escuta. Depois voltou a gritar. Uma e outra vez. Nada.
Tirou um caderninho de notas da carteira e escreveu em francês: «Fiquei fechada na roda, no parque de diversões. Ajudem-me, por favor.» Atirou o bilhete pela janela e, como o vento soprava na direcção da cidade, por isso, com um bocado de sorte, talvez acabasse por ir lá parar. Mas mesmo que alguém apanhasse o bilhete e o lesse, será que acreditaria no que estava a ler? Numa outra folha, acrescentou o seu nome e morada à mensagem, sempre ajudaria a torná-la mais credível. Dessa forma, as pessoas veriam que não era uma brincadeira e teriam a certeza de que ela estava realmente em apuros. Arrancou metade das folhas do caderninho e, uma atrás de outra, lançou-
-as ao vento.
De repente teve uma ideia. Tirou tudo da carteira, à excepção de uma nota de dez francos, e pôs um bilhete lá dentro: «Está uma mulher fechada dentro da roda, mesmo por cima da sua cabeça. Ajude-me.» Atirou a carteira pela janela, que foi ter direitinha ao solo. Porém, não conseguiu ver exactamente onde caíra, e muito menos ouvir o ruído que fez ao bater no solo. Colocou um bilhete do mesmo género dentro do porta-moedas e atirou-o também lá para baixo.
Miu viu as horas no relógio de pulso. Eram dez e meia da noite. Vasculhou o conteúdo da mala para ver o que mais podia encontrar. Alguns artigos de maquilhagem e um espelho. O seu passaporte. Os óculos escuros. As chaves do carro alugado e dof apartamento. Um canivete suíço para descascar fruta. Uma emba-” lagem de celofane com três bolachas de água e sal. Um livro de bolso em francês. Jantar, tinha jantado, por isso podia passar sem comer até de manhã. Assim exposta ao ar fresco da noite, era pouco provável que ficasse com sede. E felizmente ainda não estava com vontade de ir à casa de banho.
Sentou-se no banco de plástico e encostou a cabeça à parede. Abandonou-se a censuras perfeitamente inúteis. Porque carga de água se lembrara de entrar no parque de diversões e decidira andar na roda? Oxalá tivesse ido logo para casa depois de sair do restaurante. Se assim fosse, estaria agora a tomar um belo banho quente, confortavelmente enfiada na cama com um bom livro, como era costume fazer. Porque não fizera antes isso? E porque diabo teria aquela gente do parque contratado um bebedolas irresponsável como aquele velho?
O vento fazia ranger a cabina. Para não deixar o vento entrar, Miu tentou fechar a janela, mas não tinha força. Desistiu e sentou-se no chão. Bem lhe parecia que devia ter trazido uma camisola, pensou ela. À saída do apartamento parara, sem saber se havia de levar um casaco de malha pelos ombros. Mas a noite de Verão estava particularmente agradável e o restaurante ficava apenas a três quarteirões da sua casa. Naquele momento, ir até ao parque de diversões e andar na roda era a última coisa que lhe passaria pela cabeça. Tinha dado tudo para o torto.
Para se descontrair, tirou o relógio do pulso, a pulseira de prata fininha e os brincos em forma de concha, e guardou tudo na mala. Enroscou-se num canto. Só queria era dormir até de manhã. Mas, como seria de esperar, não conseguiu pregar olho. Tinha frio, sentia-se desconfortável. Uma súbita rajada de vento fez estremecer a cabina. Fechou os olhos e pôs-se a interpretar mentalmente uma sonata de Mozart, movendo levemente os dedos sobre um teclado imaginário. Sem nenhuma razão especial, decorara aquela peça, que tocava quando era pequena. A meio do segundo andamento, porém, a sua mente começou a ficar nebulosa e deixou-se adormecer.
Nunca chegou a saber quanto tempo dormiu, mas muito não deveria ter sido. Acordou, sobressaltada, e por breves momentos não soube onde se encontrava. Pouco a pouco, veio-lhe tudo de novo à memória. «Já me lembro», pensou, «fiquei fechada na grande roda em pleno parque de diversões.» Tirou o relógio da mala: passava da meia-noite. Miu levantou-se devagarinho. Adormecera naquela posição, toda torta, e doíam-lhe as articulações. Bocejou várias vezes seguidas, espreguiçou-se e esfregou os pulsos.
Sabendo que tão cedo não iria conseguir adormecer outra vez, pegou no livrinho de capa mole para desanuviar as ideias e retomou a leitura no sítio onde ficara. Era um novo romance policial que comprara numa livraria da cidade. Por sorte, as luzes da roda ficavam acesas toda a noite. No entanto, depois de ter lido umas quantas páginas, deu conta de que não prestava atenção à intriga. Os seus olhos acompanhavam as linhas, é certo, mas o seu espírito estava muito longe dali.
Miu desistiu e fechou o livro. Levantou a cabeça e deixou-se ficar ali a olhar para o firmamento. Não se via nem uma única estrela, o céu devia estar coberto de uma fina camada de nuvens. Da Lua, em quarto crescente, recortava-se apenas uma pálida imagem. Devido à iluminação, o seu rosto reflectia-se com extrema nitidez nos vidros da cabina. Ficou ali durante tempos infinitos a olhar para o reflexo do seu rosto. «Quando acabará isto?», perguntava a si mesma. «Anima-te. Depois de tudo ter passado, ficas com uma história divertida para contar às outras pessoas. Imaginem, eu, toda a noite fechada no alto da roda, num parque de diversões em plena Suíça!
Mas, decididamente, esta não é uma história divertida. A verdadeira história ainda está para vir.
Pouco depois, pegou nos binóculos e olhou na direcção da janela do seu apartamento. Estava tudo na mesma. Também, o que esperava?, perguntou a si mesma, com um sorriso.
Pôs-se então a olhar para as outras janelas do prédio. Já passava da meia-noite e quase toda a gente dormia. A maioria das luzes estavam apagadas. Havia, no entanto, pessoas ainda acordadas, com as luzes acesas. Os inquilinos dos andares mais baixos tinham tido o cuidado de correr as cortinas, mas os que moravam nos mais altos, libertos da preocupação de serem vistos, haviam-nas deixado abertas para permitir a entrada do ar fresco da noite. A vida que se desenrolava dentro desses lares estava completa e silenciosamente à vista de toda gente. (Quem teria imaginado que se encontrava alguém, munido de binóculos, oculto na cabina da grande roda, em plena noite?) Miu, porém, não se mostrava nada interessada em espiolhar a vida privada dos outros. Achava muito mais interessante olhar para dentro do quarto vazio que era o seu.
Ao dar a volta completa às janelas e ao dirigir de novo o olhar para o seu apartamento, apanhou um susto. Estava um homem nu no seu quarto. A princípio, pensou que se enganara no andar. Movimentou os binóculos para cima e para baixo, para a esquerda e para a direita, mas não havia engano, era mesmo o seu quarto, sem margem para dúvidas. com a sua mobília, as flores na jarra, os seus quadros pendurados na parede. O homem era Fernando, também sem margem para dúvidas. Estava sentado na cama, completamente nu. Tinha o peito e a barriga cheios de pêlos, e o pénis enorme pendia, flácido, como um animal adormecido.
Que diabo fazia ele no seu quarto? A testa de Miu ficou coberta de suor. Como conseguira entrar? Isso é que ela não percebia. A princípio ficou irritada, depois confusa. Logo a seguir, apareceu uma mulher à janela. Envergava uma blusa branca de manga curta e uma saia de algodão azul. Uma mulher? Miu agarrou nos binóculos com mais força e cravou os olhos na cena.
Estava a ver-se a si própria.
A mente de Miu ficou em branco. «Aqui estou eu, a olhar para o meu quarto pelos binóculos. E naquele quarto, também sou eu que lá estou.» Miu focou e voltou a focar os binóculos, mas, por mais vezes que olhasse, era sempre ela, vestida exactamente da mesma maneira. Fernando abraçou-a com força e levou-a para a cama. Sem deixar de a beijar, despiu com jeitinho a Miu que estava no quarto. Tirou-lhe a blusa, desapertou-lhe o sutiã, despiu-Lhe a saia, beijou-lhe a nuca ao mesmo tempo que lhe acariciava demoradamente os seios com as mãos. Depois tirou-lhe as cuecas com uma mão, uma cuecas exactamente iguais às que ela trazia vestidas naquele momento. Miu mal conseguia respirar. Que diabo estaria a acontecer?
Quando deu por isso, o pénis de Fernando estava erecto, duro como uma viga. Ela nunca vira um daquele tamanho. Ele pegou na mão de Miu e colocou-a sobre o pénis. Depois acariciou cada centímetro do seu corpo e lambeu-a da cabeça aos pés. Demorou todo o tempo do mundo. Ela — a Miu do apartamento — abandonou-se às carícias dele, deixou-o fazer o que bem quis, gozando todos os momento de intensa paixão carnal. De vez em quando, estendia a mão e acariciava o pénis e os testículos de Fernando, oferecendo-lhe o seu corpo sem reservas.
Miu não conseguia tirar os seus olhos de tão inusitada cena. Sentia-se agoniada. Tinha a garganta tão seca que mal conseguia engolir. Estava quase a vomitar. Tudo lhe parecia exagerado de uma maneira grotesca, ameaçador, como numa pintura alegórica medieval. Foi então que Miu pensou que eles lhe mostravam deliberadamente aquela cena, e que sabiam que ela estava a ver. Mas nem mesmo assim conseguiu desviar os olhos.
Em branco.
E a seguir, o que aconteceu?
Miu não se lembrava. As suas recordações interrompiam-se bruscamente neste ponto.
— Não me lembro — dizia ela, tapando a cara com as mãos. — Só sei que foi uma experiência horrível — acrescentou calmamente. — Eu encontrava-me aqui e havia um outro eu que estava ali. E aquele homem, Fernando, também lá estava e fazia-me todo o tipo de coisas.
— O que queres dizer com «todo o tipo de coisas»?
— Não me lembro. Todo o tipo de coisas. Comigo ali fechada na grande roda, ele fez de mim o que quis, a mim, que lá estava. Não que o sexo me meta medo, tempos houve em que até gostava muito de fazer sexo por fazer, mas aquilo era diferente. Tratava-se de uma série de actos desprovidos de sentimento, a roçar o obsceno, com um único objectivo em mente: fazer-me sentir completamente conspurcada. Fernando usou toda a sua destreza, serviu-se dos dedos grossos e do pénis enorme para me aviltar, embora o eu que ali estava não se sentisse aviltado. E, no fim, já nem sequer era o Fernando.
Não era o Fernando? Fiquei espantada a olhar para Miu. Se não era Fernando, então de quem se tratava?
Não sei, não me lembro. Mas, no fim, já não era o Fernando, ou talvez nunca tivesse sido, logo de início.
Quando deu por si, Miu estava numa cama de hospital. Uma bata branca cobria-lhe o corpo desnudado e doíam-lhe todas as articulações. O médico explicou-lhe o que acontecera. De manhã, um dos funcionários do parque de diversões encontrara o porta-moedas que ela atirara lá para baixo e apercebera-se do que tinha acontecido. Fizera descer a roda e chamara uma ambulância. Dentro da cabina, estava Miu, inconsciente, dobrada sobre si mesma. Parecia em estado de choque, as pupilas não reagiam normalmente. Tinha o rosto e os braços cheios de escoriações, a blusa coberta de sangue. Levaram-na para o hospital para receber tratamento e ninguém conseguia perceber como arranjara os ferimentos. Felizmente nenhum era suficientemente profundo para deixar cicatriz. A polícia prendeu o velhote que tomava conta da roda para ser interrogado, mas ele não se lembrava sequer de ter deixado Miu entrar na cabina pouco antes de o parque encerrar as portas.
No dia seguinte, apareceram no hospital vários agentes da polícia local para fazerem algumas perguntas a Miu. Ela teve dificuldade em responder. Ao compararem a cara dela com a fotografia do passaporte, franziram o sobrolho, e pelos seus rostos passou uma expressão de estranheza, como se tivessem acabado de engolir algo desagradável. com visível hesitação, perguntaram-lhe:
— Menina, desculpe, mas tem realmente vinte e cinco anos?
— Tenho — respondeu ela —, tal como vem no meu passaporte. Porque me fazem semelhante pergunta?
Pouco depois, contudo, quando foi à casa de banho lavar a cara, percebeu tudo. Tinha o cabelo todo branco, de um branco imaculado, como a neve acabada de cair. A princípio, pensou que a imagem reflectida no espelho era a de outra pessoa. Virou-se, mas estava sozinha. Voltou a ver-se ao espelho e a realidade abateu-se sobre ela naquele preciso instante. A mulher de cabelos brancos que a olhava era ela mesma. Desmaiou e caiu redonda no chão.
E foi então que Miu se perdeu.
— Ainda me encontrava aqui, deste lado, mas um outro eu, melhor dizendo, metade de mim, passara para o outro lado, levando com ele o meu cabelo negro, o meu desejo sexual, a minha menstruação, a minha ovulação e, quem sabe, o meu desejo de viver. E a metade de mim que ficou é a pessoa que está aqui à tua frente. É assim que me sinto desde essa altura. Numa pequena cidade suíça, fechado dentro de uma roda, por alguma razão desconhecida, o meu ser ficou para sempre dividido em dois. Talvez tenha sido uma espécie de transacção. Não que me sinta espoliada de algo, porque sei que essa parte de mim continua a existir, do outro lado, e existe apenas um espelho a separar-nos. Mas jamais poderei atravessar essa parede de vidro. Jamais.
Miu mordiscou as unhas.
— Talvez jamais seja uma palavra demasiado forte. Talvez um dia, algures, nos encontremos de novo e voltemos a fundir-nos as duas numa só. Ainda há, no entanto, uma pergunta muito importante que continua sem resposta. Qual é o verdadeiro eu, e de que lado do espelho está? Não faço ideia. Será o meu verdadeiro eu aquele que cedeu aos avanços de Fernando? Ou o que o detestava? Não tenho a frieza de espírito necessária para me pôr agora a pensar nisso.
Depois das férias de Verão, Miu não voltou para o conservatório. Abandonou os estudos no estrangeiro, regressou ao Japão e nunca mais voltou a abrir um piano. A vontade de tocar música abandonara-a por completo. No ano seguinte, o pai morreu, e ela tomou o destino da empresa nas suas mãos.
— Não poder voltar nunca mais a tocar piano foi, decididamente, um grande choque, mas não me arrependi. Sempre pensei que, mais cedo ou mais tarde, era isso que ia acontecer. Mais dia menos dia... — Miu sorriu. — O mundo está cheio de pianistas. Vinte de primeira categoria no activo chegam e sobram. Basta ir a uma loja de discos e ver quantas versões existem da Waldstein ou da Kreisleriana, para o caso é indiferente. O repertório clássico é limitado e o espaço que existe nas prateleiras de discos compactos também. No que toca à indústria discográfica, vinte pianistas de excepção são suficientes. Era perfeitamente indiferente que eu fizesse ou não parte do grupo dos eleitos.
Miu abriu os dedos à frente dos meus olhos e fez girar as mãos uma e outra vez, como se estivesse a pôr à prova a sua memória.
— Já estava em França há mais de um ano quando reparei numa coisa esquisita. Os pianistas cuja técnica era inferior à
minha, e que se esforçavam menos, eram mais capazes do que eu de emocionar a audiência. Nos concursos, ganhavam-me sempre na última fase. A princípio, pensei que se tratava de um erro qualquer, mas a história repetiu-se tantas e tantas vezes que acabei por perder a paciência. «Não é justo!», pensava. Mas depois, pouco a pouco, acabei por perceber que me faltava algo.
O quê, concretamente, ignorava, mas sabia, isso sim, que era imprescindível. Talvez a profundidade necessária, como pessoa, para ser capaz de tocar música capaz de emocionar os outros. Não dera por isso enquanto vivia no Japão. Ali sempre fora a melhor e, além disso, estava demasiado ocupada para duvidar das minhas próprias capacidades. Mas, em Paris, rodeada de tantos pianistas talentosos, acabei por compreender. Tornou-se por demais evidente, como quando o Sol começa a subir no céu ea névoa se dissipa.
Miu suspirou, levantou a cabeça e sorriu. — Desde pequena que gosto de estabelecer as minhas próprias normas e viver de acordo com elas. Sempre fui uma rapariga muito independente, muito conscienciosa. Nasci no Japão, andei em escolas japonesas, cresci no meio de amigos japoneses. Sempre me senti o mais japonesa possível, mas, apesar disso, sempre fui considerada estrangeira. No plano administrativo, o Japão era, ao fim e ao cabo, um país estrangeiro. Os meus pais não eram particularmente intransigentes, mas houve uma coisa que me meteram na cabeça desde pequena: «Aqui, tu não passas de uma estrangeira.» E eu decidi que, para sobreviver neste
mundo, precisava de me tornar mais forte.
Miu continuou a falar numa voz calma. — Ser forte não é, em si mesmo, uma coisa má, mas, quando olho para trás, vejo que estava demasiado habituada a ser forte e que nunca me esforçava por entender os mais fracos; demasiado habituada a que as coisas me corressem de feição e que não procurava compreender os menos afortunados; demasiado habituada a gozar de perfeita saúde e que não me esforçava por entender o sofrimento dos que nem sempre a tinham. Sempre que via pessoas em apuros, paralisadas pelo medo, achava que a culpa era única e exclusivamente delas, que não lutavam o suficiente. Aos meus olhos, aqueles que se queixavam não passavam de uns mandriões. A minha concepção da vida era irredutível e eminentemente prática, mas destituída de calorjB humano, e não houve uma única pessoa que me chamasse a atenção para isso.
«Perdi a virgindade aos dezassete anos e comecei a ir para a cama com este e com aquele. Namorados não me faltavam e, se estivesse para aí virada, não me importava nada de dormir uma noite com um e a seguinte com outro. Mas, verdadeiramente, nuncaamei ninguém do fundo do coração. Para dizer a verdade, não tinha tempo para isso. Só pensava em tornar-me uma pianista de nome, reconhecida como tal em todo o mundo, e nem sequer me passava pela cabeça a hipótese de me desviar um centímetro do caminho traçado. Faltava-me qualquer coisa, mas quando me dei conta da existência desse vazio já era demasiado tarde.
Voltou a esticar os dedos de ambas as mãos à frente dos meus olhos, e deixou-se ficar ali a pensar durante uns instantes.
— Neste sentido, aquilo que aconteceu na Suíça há catorze anos pode muito bem ter sido algo que eu mesma ajudei a provocar. Às vezes penso isso.
Miu casara-se aos vinte e nove anos. Frígida desde o incidente ocorrido na Suíça, não era capaz de ter relações físicas com ninguém. Dentro dela, algo desaparecera para sempre. Partilhara este facto — e apenas este facto — com o homem que viria a ser seu marido. «É por isso que não posso casar-me com ninguém», explicou ela. Mas ele amava Miu e estava disposto a partilhar com ela o resto da sua vida, mesmo que isso significasse ter uma relação puramente platónica. Miu não lograra arranjar uma razão válida para recusar a proposta. Conhecia-o desde miúda e sempre gostara dele. Independentemente da forma como a relação pudesse evoluir, era a única pessoa com quem ela se imaginava a partilhar a sua vida. Além disso, de um ponto de
vista prático, estar casada era importante no que dizia respeito à ser eficaz na gestão dos negócios de família. E Miu prosseguiu.
— O meu marido e eu só nos vemos aos fins-de-semana e, de uma forma geral, entendemo-nos bem. É como se fôssemos bons amigos, companheiros de vida empenhados em passar bons momentos juntos. Falamos de toda a espécie de coisas e confiamos cegamente um no outro. Como e onde encontra ele satisfação para as suas necessidades sexuais, não sei nem me interessa. Em todo o caso, não temos relações físicas, nem sequer nos tocamos. Sinto-me mal por causa disso, mas não tenho o mínimo desejo de lhe tocar. Sinceramente.
Cansada de tanto falar, Miu tapou o rosto com as mãos em silêncio. Lá fora, o céu começara a clarear.
— Antigamente sentia-me viva, agora continuo a sentir-me viva, aqui sentada a conversar contigo, mas, ao mesmo tempo, aquela que tens à tua frente não é o meu verdadeiro eu, é apenas uma sombra daquela que eu fui. Tu é que estás realmente viva e não eu.
Até mesmo as palavras que neste momento pronuncio parecem desprovidas de significado, como se não passassem de um eco.
Sem dizer nada, passei o braço à volta dos ombros de Miu.
Como não encontrava as palavras certas, limitei-me a abraçá-la, e mais nada.
Estou apaixonada por Miu, pela que está deste lado, escusado será dizer, mas também amo a Miu que está do outro lado. Quando penso nisso, é como se sentisse um barulho — um estalo perfeitamente audível — dentro de mim, como se ficasse partida em duas, como se a divisão interior da própria Miu se tivesse apoderado de mim. Estou na presença de um sentimento esmagador, e sei que nada posso fazer para o contrariar.
E, contudo, existe ainda uma questão em aberto. Se este lado, onde Miu agora se encontra, não for o mundo real — isto é, se for, na verdade, o outro lado — qual é o meu lugar, eu que existo no mesmo plano espacial e temporal que ela? Quem sou eu, afinal?
Li os dois documentos por duas vezes. Primeiro, dei uma vista de olhos, depois reli-os mais devagar, prestando atenção ao mínimo detalhe, gravando tudo na minha memória. Os documentos haviam sido escritos por Sumire, disso não restavam dúvidas; a escrita estava impregnada de palavras e expressões muito suas. E, no entanto, havia algo de diferente, algo que eu não conseguia definir com precisão, incluindo o tom. Notava-se uma certa contenção, um distanciamento, que outros textos não possuíam. Mesmo assim, não existia margem para dúvidas — tinha sido Sumire a escrevê-los.
Após um momento de hesitação, guardei a disquete no meu saco. Caso Sumire aparecesse sã e salva, voltaria a pô-lo no mesmo sítio. O problema era se ela não regressasse. Se alguém andasse a mexer nas coisas dela e encontrasse a disquete. Não tolerava a ideia de expor o material que acabara de ler aos olhos de outra pessoa qualquer.
Depois de ter lido os documentos, não consegui ficar fechado em casa. Mudei de camisa, saí para a rua e desci as escadinhas que iam dar à cidade. Troquei travellers^ cheques no valor de cem dólares, comprei um tablóide inglês no quiosque e sentei-me debaixo do chapéu de sol num café, a ler. Pedi a um empregado com ar ensonado que me trouxesse uma limonada e uma tosta de queijo com todo o vagar, ele tomou nota do pedido com um lápis. O suor tinha passado para as costas da camisa, formando uma mancha enorme, a qual parecia ter um significado, mas não consegui decifrar qual.
Passei mecanicamente os olhos por metade do jornal e depois deixei-me ficar ali, olhando com um ar ausente o que acontecia no porto. Vindo não sei donde, apareceu um cão preto escanzelado, pôs-se a cheirar as minhas pernas, mas depois, desinteressado, afastou-se por onde tinha vindo. As pessoas deixavam passar aquela lânguida tarde de Verão sem sair do sítio. Os únicos que davam sinais de possuir uma centelha de energia eram o empregado e o cão, apesar de eu não saber quanto tempo aquilo iria durar. O velhote do quiosque onde eu compara o jornal estava a dormir debaixo de um chapéu de sol, com as pernas afastadas. No centro da praça, como de costume, erguia-se a estátua do herói, impassível, de costas para o fortíssimo sol da tarde.
Refresquei a testa e as palmas das mãos com o copo de limonada gelada, dando voltas e mais voltas à imaginação para descortinar qualquer ligação que pudesse eventualmente existir entre os textos de Sumire e o seu desaparecimento.
Durante muito tempo, ela não escrevera uma linha. Ao conhecer Miu, no casamento, deixara de ter vontade de escrever. Mesmo assim, aqui, nesta pequena ilha grega, dera-se a trabalho de escrevinhar aqueles dois pedaços de prosa quase ao mesmo tempo. Não tinha sido nada mau, em tão pouco tempo. Por alguma razão Sumire decidira sentar-se à secretária e escrever. O que a teria levado a isso?
Muito concretamente, qual seria o tema que servia de elo de ligação entre aqueles dois pedaços de prosa? Olhei para as aves marinhas alinhadas junto ao paredão e deixei-me ficar ali a matutar sobre aquilo.
Estava demasiado calor para pensar em coisas complicadas e era óbvio que me sentia confuso e cansado. Mesmo assim, lá consegui invocar a minha capacidade de concentração, como se estivesse — sem tambores nem cornetas — a tentar reagrupar o que restava de um exército derrotado. com a cabeça no lugar, comecei a colocar cada peça no seu sítio.
— O que importa aqui — murmurei para mim mesmo — não são as grandes ideias que os outros tiveram, mas as pequenas coisas que só a ti te ocorrem.
Era a regra de ouro que passava a vida a ensinar aos meus alunos. Mas seria mesmo assim? É mais fácil de dizer do que de fazer. Já é difícil descobrir as pequeninas coisas, quanto mais enquadrá-las. Ou então, quanto mais simples a ideia, mais difícil se torna descobri-la, sobretudo quando se está longe de casa.
O sonho de Sumire. A divisão de Miu.
Cheguei à conclusão de que estava perante dois mundos diferentes. Era aquele o elemento comum entre os dois «documentos» que Sumire escrevera. Documento 1: Relata um sonho que Sumire teve uma noite. Vai a subir uma escada muito alta para ir ter com a falecida mãe, mas quando lá chega a mãe já está de regresso ao outro lado. Ela nada pode fazer para evitar que isso aconteça. E fica ali especada, no alto da torre, rodeada de objectos que não pertencem àquele mundo. Sumire teve muitos sonhos parecidos.
Documento 2: Narra a estranha experiência que Miu viveu há catorze anos. Ficou toda a noite fechada numa das cabinas de uma roda num parque de diversões de uma pequena cidade suíça. Ao olhar pelos binóculos, viu o seu segundo eu dentro do seu quarto. Uma Doppelgànger. Esta experiência deu cabo de Miu enquanto pessoa — ou, pelo menos, revelou uma destruição já latente. Como a própria diz, ficou dividida em duas, com um espelho a separá-las. Sumire persuadiu-a a contar a história e passou-a para o papel o melhor que soube.
Dupla, sósia. Em alemão no original. (N. da T.)
Este lado — o outro lado. Era este o tema comum às duas histórias. A correspondência entre um e outro. Foi este o tema que despertou o interesse de Sumire e a incitou a escrever durante horas a fio. Para usar as suas próprias palavras, passar tudo isto para o papel ajudou-a a pensar.
O empregado apareceu para levantar os restos da minha tosta e eu pedi-lhe outra limonada.
— com muitas pedras de gelo — insisti.
Quando ele voltou, bebi um trago e aproveitei outra vez o copo para refrescar a testa.
«E que farei, se Miu não me aceitar?», escrevera Sumire quase no fim do primeiro texto. «Pensarei nisso quando chegar a altura. Viram alguma vez alguém levar um tiro e não ficar cheio de sangue? Vou afiar a minha faca, preparar-me para degolar um cão, algures.»
Que estaria ela a tentar dizer? A insinuar que se suicidaria? Não me parecia. Das suas palavras não se desprendia o cheiro a morte. Pressentia nelas, isso sim, a vontade de seguir em frente, a firme determinação de começar de novo. Os cães e o sangue, tal como eu lhe explicara naquele banco de jardim no Parque Inogashira, não passavam de metáforas. Referiam-se ao dom da vida, num sentido mágico. Falara-lhe das portas da China enquanto metáfora do processo que permite transpor essa magia para uma história
Preparada para degolar um cão, algures.
Algures?
Os meus pensamentos foram embater numa parede dura. Um autêntico beco sem saída.
Onde diabo se teria metido Sumire? Haveria, naquela ilha, algum lugar onde ela se tivesse sentido tentada a ir?
Não conseguia afastar do meu espírito a imagem de Sumire a cair num poço, nalgum lugar recôndito da ilha, e a ficar ali, sozinha, à espera de que a viessem resgatar. Ferida, dominada pelo abandono, condenada a morrer de fome e de sede. Só de pensar nisso ficava desesperado.
A polícia deixara bem claro que não havia um único poço
na ilha. Nunca tinham sequer ouvido falar de quaisquer buracos
nas redondezas. A ilha era muito pequena e, caso houvesse
algum poço, seriam eles os primeiros a sabê-lo. Isto era o que
diziam. Parti do princípio de que eles sabiam do que estavama falar. Decidi avançar com uma hipótese: Sumire passara para o outro lado.
Isso explicaria muitas coisas. Sumire atravessara o espelho e passara para o outro lado. Para ir ao encontro da outra Miu que estava do lado de lá. Uma vez que fora rejeitada pela Miu deste lado, não seria esse o caminho lógico a seguir?
Veio-me à memória uma coisa que ela deixara escrito: «Então o que deve fazer uma pessoa se quiser evitar a colisão? É difícil? Não, nada disso. Se encararmos a questão de um ponto de vista puramente lógico, é fácil. A resposta está nos sonhos. Em sonhar e voltar a sonhar. Penetrar no mundo dos sonhos, para de lá nunca mais sair. Passar o resto da vida a sonhar.
Mas ainda faltava responder a uma questão, e crucial. Que era preciso fazer para chegar ao outro lado?
De um simples ponto de vista lógico, é fácil. Explicar concretamente é que é difícil. Voltara ao ponto de partida.
Lembrei-me de Tóquio. Do meu apartamento, da escola onde dava aulas, do saco com restos de comida que deitara sub-repticiamente dentro de um caixote de lixo, na estação. Saíra do Japão há apenas dois dias e já parecia que me encontrava noutro mundo. O novo período de aulas começava daí a uma semana. Imaginei-me de pé, virado de frente para os trinta e cinco alunos da minha turma. Vista de longe, a imagem de mim próprio a exercer o ofício de professor parecia estranha, absurda. Mesmo tratando-se de rapazes de dez anos.
Tirei os óculos escuros, limpei o suor da testa com um lenço, voltei a pô-los e ali fiquei a olhar para as aves marinhas.
Pensava em Sumire e na monumental erecção que tivera no dia da mudança, quando estava sentado ao seu lado. Uma erecção tremenda, violenta, como nunca antes experimentara. Como se todo o meu corpo estivesse quase a explodir. Naquela altura, fizera amor com ela na minha imaginação — ou, como Sumire dizia, no mundo dos sonhos. E a sensação era bem mais vívida na minha memória do que o sexo com outras mulheres na vida real.
Engoli o resto da limonada para limpar a garganta.
Voltei à minha hipótese, mas tentando desta vez ir mais longe. Partindo do princípio de que Sumire encontrara, algures, uma saída. Que tipo de saída, ou como dera com ela, isso é que eu já não sabia. Deixei ficar essa questão para mais tarde. Supondo que se trata de uma porta, fechei os olhos e tracei mentalmente uma imagem — a imagem de uma porta concreta, normal, parte de uma parede normal. Sumire descobrira-a algures, rodara a maçaneta e passara — deste lado para o outro. Vestida apenas com um pijama de seda fininho e um par de sandálias de praia.
O que ficaria para além daquela porta? Isso já escapava à minha imaginação, mas a porta fechara-se e Sumire não podia voltar.
Regressei a casa e preparei um jantar ligeiro com o que encontrei no frigorífico. Massa com tomate e manjericão, salada e uma cerveja Amstel. Depois fui sentar-me no terraço, perdido nos meus pensamentos. Ou talvez não estivesse a pensar em nada. Ninguém telefonou. Em Atenas, Miu talvez tentasse ligar-me, mas era escusado contar com os telefones naquela ilha.
Tal como no dia anterior, o azul do céu tornara-se mais escuro de um momento para o outro, a Lua, enorme e redonda, erguera-se do mar e uma miríade de estrelas trespassava o céu. O vento que soprava do lado da montanha fazia estremecer os hibiscos. Na ponta do molhe, o farol abandonado acendia-se e apagava-se, emitindo uma luz enfraquecida pela passagem do tempo. Pessoas desciam lentamente a encosta, com burros atrás. Chegavam-me aos ouvidos pedaços de frases gritadas, que não tardavam a perder-se na distância. Enlevado, assistia a esta exótica cena em silêncio, como se fosse a coisa mais natural do mundo.
Nessa noite, o telefone não tocou e Sumire não apareceu. Em silêncio, o tempo passou com todo o vagar, a noite caiu. Fui ao quarto dela buscar duas ou três cassetes e escutei-as na aparelhagem da sala. Uma delas era a colectânea das lieder de Mozart. Elisabeth Schwarzkopf e Walter Gieseking (p), podia ler-se na etiqueta. Não sou grande entendido em música clássica, mas bastou-me ouvir um bocadinho para ficar rendido à beleza daquela música. A interpretação era um tudo-nada datada, mas teve o sortilégio de me fazer sentir como se estivesse a ler um pedaço de prosa magnífico, inesquecível, que me obrigava a endireitar-me na cadeira e a apurar os sentidos.
O movimento alternado do fraseado delicado a aumentar e depois a diminuir soava de forma tão viva que era como se a cantora e o pianista estivessem mesmo ali à minha frente. Sumire devia ser uma das canções da colectânea. Recostei-me na cadeira, fechei os olhos e partilhei este momento musical com a minha amiga ausente.
Fui acordado pela música, um eco longínquo, que mal se ouvia. O som fraco despertou de vez os meus sentidos, como um marinheiro sem rosto a recolher com gestos seguros uma âncora do fundo do mar. Sentei-me na cama e inclinei-me em direcção à janela para ouvir melhor. Era música, sem dúvida. Na mesa-de-cabeceira, o meu relógio de pulso indicava que já passava da uma da manhã. Música? A esta hora da noite?
Vesti umas calças e uma camisa, calcei os sapatos e fui lá para fora. As luzes das casas ali à volta estavam todas apagadas, as ruas desertas. Não corria vento, não se ouvia sequer o marulhar das ondas. Apenas a luz da Lua banhando a superfície da Terra. Fiquei ali de pé, atento ao menor som. A música parecia vir do cimo da colina. Era estranho, uma vez que não existia ali povoação alguma. Os únicos que lá viviam eram os monges ascetas do mosteiro e um punhado de pastores. Era difícil imaginar uns e outros reunidos numa qualquer espécie de celebração àquela hora da noite.
Lá fora, ouvia-se melhor a música. Não conseguia identificar a melodia, mas, pelo ritmo, devia ser grega. Possuía a ressonância aguda, irregular, própria da música tocada ao vivo, e não de uma gravação transmitida através de altifalantes.
Por essa altura já acordara completamente. Estava uma noite de Verão agradável, imbuída de uma profundidade quase religiosa. Se não estivesse tão preocupado com o desaparecimento de Sumire, quem sabe se não sentiria até vontade de festejar. De mãos nas ancas, espreguicei-me, levantei os olhos e respirei fundo. O ar fresco da noite lavou-me a alma por dentro. Quem sabe se naquele preciso momento Sumire não estaria a ouvir aquela mesma música. De repente, passou-me tal ideia pela cabeça.
Decidi caminhar um bocado na direcção dos sons. Estava apostado em descobrir donde vinha a música e quem estava a tocá-la. A estrada que conduzia ao cimo da colina era a mesma por onde fora dar à praia naquela manhã, não corria o risco de me perder. Logo via até onde podia ir.
A Lua iluminava tudo em meu redor, facilitando a caminhada, e a luz viva desenhava sombras de formas estranhas entre os rochedos, tingindo a terra de tons disformes. Cada vez que pisava uma pedrinha, a sola dos meus sapatos de corrida produzia um ruído excessivo, que soava como que amplificado. À medida que ia subindo a encosta, o som da música aumentava progressivamente de volume. Vinha lá de cima, tal como eu pensara. Distinguia as notas de um instrumento de percussão que não consegui identificar, assim como de um bouzouki de um acordeão e de
Instrumento de corda grego. (N. da T.)
uma flauta. E talvez também de uma guitarra. Para além disso, não se ouvia mais nada. Nem pessoas a cantar, nem gritos de aplauso. Apenas a música prosseguia sem parar, a um ritmo cadenciado, a roçar o monocórdico.
Queria ver o que se passava no cimo da colina, mas, ao mesmo tempo, algo me dizia que devia manter uma certa distância. Sentia-me dividido entre uma irreprimível curiosidade e um medo instintivo. Apesar de tudo, avancei. Sentia-me como num sonho. O princípio que tornava possível fazer outras escolhas possíveis não estava ao meu alcance. Ou seria que a escolha que tornava esse princípio possível não me havia sido facultada? E se uns dias antes Sumire tivesse, também ela, sido acordada por aquela mesma música e, quem sabe, porventura impelida pela curiosidade, começasse a subir a encosta, de pijama.
Parei e virei-me para olhar para trás. A encosta descia, serpenteando palidamente, até à cidade, deixando na sua esteira como que o rasto de um insecto gigante. Levantei os olhos para o céu, e, à luz da Lua, olhei para a palma da minha mão. Tive a súbita impressão de que aquela já não era a minha mão. Não consigo explicar. Um olhar bastou para saber o que estava a acontecer. A minha mão já não era a minha mão, as minhas pernas já não eram as minhas pernas.
Banhado pela pálida luz da Lua, o meu corpo perdera todo o sopro de vida, como uma figurinha de barro. Como se alguém me tivesse lançado um feitiço, como fazem os feiticeiros das ilhas das índias Ocidentais, e insuflado de vida — a minha efémera existência — aquele pedaço de barro. A centelha vital extinguira-se. A minha verdadeira vida estava algures, adormecida, e uma pessoa sem rosto enfiara-a numa mala e preparava-se para fugir com ela.
Senti um calafrio tão violento que me deixou quase sem respiração. Algures, num local desconhecido, alguém trocara a ordem das minhas células, soltando os fios que mantinham a minha mente a funcionar. Não conseguia raciocinar. A única coisa a fazer era regressar o mais depressa possível ao meu refúgio habitual. Enchi os pulmões de ar e mergulhei no mar da minha consciência. Afastando as pesadas águas com a força das mãos, fui até ao fundo e agarrei-me com ambos os braços a uma pedra enorme. A água fazia uma pressão violentíssima sobre os meus tímpanos. Fechei os olhos, semicerrei as pálpebras com toda a força, sustive a respiração, tentando a todo o custo resistir. Uma vez tomada a decisão, não foi assim tão difícil. Aclimatei-me aos repetidos sinais de caos — à pressão da água, à falta de ar, à escuridão gelada. Era algo que eu me habituara a dominar, vezes sem conta, desde criança.
O tempo invertia-se, andava para trás, desaparecia, reorganizava-se. O mundo expandiu-se infinitamente — sem por um momento deixar de estar definido e limitado. Imagens nítidas — apenas imagens — passavam sem fazer barulho por corredores escuros, como medusas, almas à deriva. Evitei olhar para elas. Se desse sinal de tê-las reconhecido, nem que fosse por um breve instante, começariam de imediato a fazer sentido. O sentido estava ligado à temporalidade, e a temporalidade obrigava-me a regressar à superfície das águas. Fechei a mente o mais possível, até a procissão acabar de passar.
Não sei ao certo quanto tempo fiquei assim, mas quando voltei à superfície e abri os olhos, ao mesmo tempo que respirava sem fazer barulho, a música havia acabado. O misterioso concerto chegara ao fim. Fiquei à escuta. Não se ouvia nada, rigorosamente nada. Nem música, nem vozes, nem o sussurro do vento.
Quis ver as horas, mas não tinha o relógio posto. Deixara-o ficar na mesa-de-cabeceira.
Ao olhar para o céu, pareceu-me que as estrelas eram em maior número. Ou seria fruto da minha imaginação? O próprio céu parecia ter-se transformado numa coisa diferente. Aquela estranha sensação de alienação desvanecera-se. Espreguicei-me, estiquei os braços, os dedos das mãos. Não me sentia minimamente deslocado. Debaixo dos braços tinha apenas a camisa ensopada em suor, mais nada.
Levantei-me da relva e retomei a escalada. Já que havia subido até aqui, bem podia continuar até lá a cima. Teria sido mesmo música o que me chegara aos ouvidos? Queria ver com os meus próprios olhos, por mais ténues que fossem os indícios. Pus-me lá em cima em cinco minutos. Para sul, ao fundo da encosta, via-se o mar, o porto e a cidade adormecida. A luz dispersa dos candeeiros públicos alumiava a estrada que passava junto à costa. O outro lado da montanha estava envolto em trevas, sem uma única luz à vista. À força de tanto fixar os olhos na escuridão, acabei por vislumbrar uma fiada de colinas que pareciam flutuar à luz da Lua. Ao longe, as trevas eram ainda mais profundas. No sítio onde me encontrava, nem um indício de que festejos de alguma espécie ali pudessem ter ocorrido até há bem pouco tempo.
Já não estava certo de ter ouvido realmente aquela música. O seu eco, porém, vibrava ainda nos meus ouvidos. À medida que o tempo passava, tinha cada vez menos certezas. Talvez tudo não passasse de uma ilusão, talvez os meus ouvidos tivessem captado por engano sinais provenientes de um outro tempo, de um outro espaço. Fazia algum sentido. Vendo bem, a ideia de que alguém pudesse estar à uma da manhã no cimo de uma colina escarpada a tocar música era francamente disparatada. Quando olhei para cima, parecia que a superfície rugosa da Lua estava extraordinariamente perto. Uma sólida bola de pedra com a pele carcomida pela implacável passagem do tempo. As sombras ameaçadoras disseminadas pela sua superfície eram como cegas células cancerígenas que estendiam os seus tentáculos em direcção ao calor da vida. A luz da Lua distorcera todos os sons, tirara o sentido a todas as coisas, despojara as mentes de toda a razão. Levara Miu a ver um segundo eu, fizera desaparecer o gato de Sumire e, a mim, conduzira-me até aqui, atraído por uma música que — muito provavelmente — jamais existira. Diante de mim estendia-se o insondável abismo das trevas; nas minhas costas, um mundo de pálida claridade. Ali estava eu no cimo de uma montanha, num país estranho, banhado pela luz da Lua. Perguntei a mim mesmo se tudo isto não teria sido meticulosamente planeado desde o princípio.
Voltei para casa e bebi um pouco do brande de Miu. Tentei, em vão, adormecer outra vez. Não consegui pregar olho. Até o céu começar a clarear a leste, fiquei prisioneiro da Lua e da gravidade e da desordem do mundo.
Pus-me a imaginar gatos fechados num apartamento, deixados morrer à fome. Pequenos carnívoros, de pêlo macio. Eu — o verdadeiro eu — estava morto e eles vivos. Vi como devoravam a minha carne, trincavam o meu coração, chupavam o meu sangue. Prestando muita atenção, conseguia ouvir lá muito ao longe os gatos a lamber os miolos do meu cérebro. Três gatos ágeis, de volta do meu crânio partido, a sorver os restos da espessa sopa cinzenta que ainda lá estava dentro. A ponta das suas línguas vermelhas, ásperas, lambia com deleite cada prega da minha consciência. E a cada lambidela, a minha mente — como uma nuvem de ar quente — vacilava e ia-se desvanecendo.
Acabámos por nunca descobrir o que acontecera a Sumire. Como dizia Miu, evaporara-se como fumo.
Dois dias mais tarde Miu regressou à ilha no ferry da manhã. Vinha acompanhada de um representante da Embaixada japonesa e de um oficial da polícia encarregado dos assuntos turísticos. Tiveram um encontro com a polícia local e lançaram uma investigação em grande escala, que envolveu a população da ilha. A polícia lançou publicamente um apelo a solicitar a cooperação de todos e apareceu uma grande fotografia de Sumire, igual à que ela tinha no passaporte, publicada num jornal grego. Houve muitas pessoas que responderam ao apelo, mas as informações recolhidas não conduziram a nada. Diziam sempre respeito a outra pessoa qualquer.
O pai e a madrasta de Sumire também apareceram na ilha. Quando eles chegaram, porém, já eu me tinha ido embora. As aulas estavam prestes a começar, mas, acima de tudo, não me apetecia encontrar-me com eles. Além disso, os órgãos de comunicação social japoneses haviam tomado conhecimento do que estava a acontecer através da imprensa grega e puseram-se em contacto com o Consulado japonês e a polícia local. Anunciei a Miu que era altura de regressar a Tóquio. Mesmo que ficasse mais tempo na ilha, isso em nada iria ajudar a encontrar Sumire.
Ela assentiu com a cabeça.
— Já ajudaste tanto — disse. — A sério. Se não tivesses vindo, há muito que me teria deixado ir a baixo. Agora já passou. Vou tentar explicar o que se passou aos pais de Sumire e encarrego-me também dos jornalistas. Não te preocupes que eu trato de tudo. De qualquer modo, não tens nada a ver com o que aconteceu. Para além de estar habituada a tratar de assuntos de natureza prática, quando é preciso faço das tripas coração.
Acompanhou-me ao porto. Ia apanhar o barco da tarde para Rodes. Fazia exactamente dez dias que Sumire havia desaparecido. Na hora da despedida, Miu abraçou-me. Foi um abraço espontâneo. Ficou ali durante muito tempo, a fazer-me festas nas costas, sem dizer uma palavra. O sol queimava, mas, por estranho que pareça, a pele dela estava fria. Era como se tentasse dizer-me algo através das palmas das mãos. Fechei os olhos e esforcei-me por perceber a mensagem, mas não era coisa que pudesse traduzir-se em palavras. No mais profundo silêncio, conseguimos estabelecer diálogo.
— Tem cuidado contigo — disse Miu.
— E tu também — retorqui eu. Ficámos ainda durante algum tempo em silêncio em frente do embarcadouro.
— Ouve, quero que me respondas sinceramente — disse Miu num tom solene, quando eu me preparava para entrar no barco. — Achas que Sumire já não está viva?
Abanei a cabeça.
— Não tenho qualquer prova concreta, mas tenho a sensação de que ela ainda está em qualquer parte, viva. Mesmo passado tanto tempo, não me parece que esteja morta. : -
Miu cruzou os seus braços bronzeados e olhou-me bem nos olhos.
— É exactamente isso que eu penso — concordou ela. — Também não me parece que Sumire morresse, mas, ao mesmo tempo, tenho o pressentimento de que não voltarei a vê-la nunca mais. Apesar de também não ter quaisquer provas concretas.
Não disse nada. Uma vez mais o silêncio encheu os interstícios vazios à nossa volta, por mais recônditos que fossem. Ouviam-se os gritos das aves marinhas que cruzavam o céu sem nuvens, e na esplanada do café o empregado estava ocupado a servir bebidas com a cara de sono do costume.
Perdida nos seus pensamentos, Miu apertou os lábios com força.
— Odeias-me? — acabou por perguntar.
— Por causa de Sumire ter desaparecido?
— Sim.
— Porque haveria de te odiar?
— Não sei. — A voz dela deixava transparecer um cansaço reprimido durante demasiado tempo. — Tenho a sensação de que também não voltarei a ver-te, nunca mais. Foi por isso que te fiz aquela pergunta.
— Claro que não te odeio — disse eu.
— Talvez isso venha a acontecer no futuro, sabes lá.
— Não sou do género de odiar pessoas.
Miu tirou o chapéu, endireitou a franja e voltou a pô-lo na cabeça. Olhou-me com um ar travesso.
— Isso é porque não esperas nada de ninguém — ripostou ela. Os seus olhos eram profundos e límpidos, como as trevas ao anoitecer no dia em que nos encontráramos pela primeira vez. — Não é o meu caso — acrescentou. — Só quero que saibas que gosto de ti. Muito. E assim nos despedimos. O barco deu meia volta e abandonou lentamente o cais, com as hélices a deixarem atrás um longo rasto de espuma. Durante todo esse tempo, Miu permaneceu no cais, a ver-me partir. Envergava um vestido branco que lhe moldava o corpo e de vez em quando deitava a mão ao chapéu para impedir que fosse levado pelo vento. Ali de pé, no cais daquela pequena ilha grega, a sua figura, cheia de graça e beleza, parecia quase irreal. Encostei-me à amurada e fiquei ali durante muito tempo, sem conseguir tirar os olhos dela. O tempo parecia ter parado. A cena, essa, ficou para sempre gravada na minha memória.
O tempo, porém, retomou a sua marcha inexorável e a imagem de Miu foi ficando cada vez mais pequena, convertendo-se num pontinho esborratado até desaparecer de vez, engolida pela nuvem de calor. A cidade foi ficando mais longe, o contorno das montanhas indefinido, até que, por fim, a ilha desapareceu de vez, como que dissolvida num halo difuso de luz. Em seu lugar apareceram outras ilhas, para, também elas, logo desaparecerem no horizonte. À medida que o tempo passava, tive a sensação de que todas as coisas que deixava ficar para trás nunca haviam existido.
Talvez devesse ter ficado com Miu, pensei para comigo mesmo. Que importância tinha que o novo período de aulas estivesse prestes a começar! Tinha o dever de a apoiar, de fazer tudo ao meu alcance para a ajudar a encontrar Sumire e, caso o pior acontecesse, era a seu lado que deveria estar para a abraçar e consolar na medida do possível. Creio que Miu precisava de mim e eu, em certa medida, também precisava dela.
Ela conquistara o meu coração com uma força desmedida.
De pé na coberta, ao ver a sua silhueta desaparecer ao longe, apercebi-me de tudo isto pela primeira vez. Apoderou-se de mim uma sensação estranha, como se o meu corpo se enredasse em inúmeras linhas. Talvez não se pudesse chamar amor àquilo, mas devia andar lá perto. Sentei-me num banco da coberta, coloquei o saco de ginástica em cima dos joelhos e fiquei ali a fitar indefinidamente o rasto branco que o barco ia deixando. As aves marinhas seguiam na esteira do ferry, como se estivessem aferradas a ele. A impressão causada pela pequena palma da mão de Miu nas minhas costas ainda não me abandonara, como se a sombra da sua alma me fizesse companhia.
Tencionava seguir directamente para Tóquio, mas, por qualquer razão, a reserva feita no dia anterior fora cancelada e acabei por ter de passar uma noite em Atenas. Apanhei o pequeno autocarro que a companhia aérea colocou à disposição para nos levar até um hotel na cidade. Um hotelzinho simpático, perto de Plaka, mas ocupado, para mal dos meus pecados, por um grupo de turistas alemães terrivelmente barulhento. Como não tinha mais nada que fazer, deambulei pela cidade, comprei alguns souvenirs que não eram destinados a ninguém em particular e, à noitinha, subi ao cimo da Acrópole. Deitei-me em cima de uma pedra lisa, deixando que a brisa da tarde me acariciasse o corpo enquanto contemplava o templo branco que se desenhava na penumbra, à luz dos holofotes. Um espectáculo belíssimo, de sonho.
Mas tudo o que sentia era uma solidão incomensurável. Sem me dar conta, o mundo que me rodeava perdera para sempre as suas cores. Do alto daquela colina árida, palco de ruínas despojadas de sentimentos, pude vislumbrar a minha própria vida estendendo-se até um futuro remoto. Lembrava a superfície desolada de um planeta desabitado que aparecia nas ilustrações de um romance de ficção científica que lera em criança. Não havia sinal de vida. Cada dia durava uma eternidade, a temperatura do ar ou era tórrida ou gelada. A nave espacial que me transportara até ali tinha-se evaporado. Não existia mais nenhum sítio para onde ir. A única coisa que podia fazer era tentar sobreviver de uma maneira ou de outra, valendo-me das minhas próprias forças.
Compreendi uma vez mais o papel importante que Sumire tivera na minha vida e até que ponto ela era insubstituível. À sua maneira, ajudara-me a ficar ligado ao mundo. Quando falava com ela, quando lia o que ela escrevia, os horizontes do meu espírito alargavam-se em silêncio, e eu lograva vislumbrar coisas que jamais vira. Sem que nos déssemos conta, o meu espírito e o dela tinham-se aproximado desmesuradamente. Como qualquer jovem casal de amantes que se despe em conjunto, Sumire e eu abríramos os nossos corações um ao outro. Uma experiência impossível de imaginar com qualquer outra pessoa, em qualquer outro lugar. Apesar de nunca o termos confessado, ambos soubéramos estimar o que entre nós havia.
Entristecia-me, como é óbvio, a ausência, entre nós, de prazer a nível físico. Se tal tivesse sido possível, ambos teríamos certamente sido mais felizes. Mas isso era uma coisa que não estava nas nossas mãos, uma espécie de destino inadiável, como o movimento das marés ou a passagem das estações. Por mais que Sumire e eu resguardássemos os nossos sentimentos com cuidado e inteligência, a nossa terna relação de amizade não podia durar eternamente. Era como se aquilo que existia entre nós estivesse condenado a ir dar a num beco sem saída. E nós estávamos dolorosamente conscientes disso.
Eu amava Sumire mais do que a qualquer outra pessoa e desejava-a mais do que a qualquer coisa neste mundo. Por mais que quisesse, não podia adiar os meus sentimentos, pois só eles ocupavam um lugar verdadeiramente importante na minha existência.
Sonhava com o dia em que se verificasse uma transformação súbita, definitiva. Por mais remotas que fossem as hipóteses de isso se tornar realidade, tinha todo o direito do mundo a sonhar. Mas, no fundo, sabia que tal nunca viria a acontecer.
Ao perder Sumire, muitas coisas morreram dentro de mim, como acontece quando a maré recua, levando com ela tudo o que estava depositado na areia. Ficara sozinho num mundo deformado, vazio, um mundo frio e tenebroso. Aquilo que se passara entre Sumire e eu nunca poderia voltar a acontecer nesse novo mundo, tinha plena consciência disso.
Cada um de nós possui qualquer coisa de especial, que se revela numa determinada altura da nossa vida, e só uma vez, como uma pequenina chama. As pessoas precavidas, abençoados pela fortuna, conservam religiosamente essa chama, fazemna crescer, usam-na como uma tocha que ilumina as suas vidas. Mas uma vez apagada, ela não voltará nunca mais a acender-se. Eu não me limitara a perder Sumire. Juntamente com ela, perdera também essa preciosa chama.
Gostava de saber como se passam as coisas no outro lado. Era lá que Sumire devia estar, assim como a parte perdida de
Miu. Uma Miu de cabelos pretos e salutar apetite sexual. Talvez se encontrassem por lá, talvez se amassem, se dessem prazer uma à outra. «Por vezes fazemos coisas que não se podem traduzir em palavras», diria porventura Sumire, acabando por fazê-lo.
Haveria ali lugar para mim? Poderia estar lá com elas? Enquanto se amassem com paixão, eu ficaria sentado a um canto, matando o tempo a ler as obras completas de Balzac. Depois de Sumire ter tomado duche, daríamos um longo passeio com ela e conversaríamos sobre mil e uma coisas — com ela a falar pelos cotovelos, como de costume. Mas seria possível manter eternamente uma relação como esta? Seria natural que isso viesse a acontecer? «Claro», exclamaria Sumire. «Isso nem se pergunta. Pois se tu és o único amigo verdadeiro que tenho!»
Mas eu não fazia a mínima ideia de como aceder àquele mundo. Acariciei a superfície dura e lisa da Acrópole e pensei na História que aquelas pedras absorviam e encerravam. Estava involuntariamente prisioneiro daquele fluxo descontínuo de tempo, não havia maneira de escapar a isso. Não — não é inteiramente verdade, na realidade, não queria escapar.
Amanhã meto-me no avião e regresso a Tóquio. As férias de Verão estão quase a acabar e voltarei a calcorrear os intermináveis caminhos do costume. É lá o meu lugar, é lá que estão o meu apartamento, a minha mesa de trabalho, a minha sala de aulas, os meus alunos. Esperam-me dias tranquilos, romances por ler. Uma ou outra ligação esporádica.
Uma coisa é certa: não voltarei a ser o mesmo. A partir de amanhã, serei outra pessoa. Os que me rodeiam não se darão conta de que voltei ao Japão completamente diferente. Por fora, nada terá mudado, mas algo dentro de mim ficou reduzido a cinzas e deixou de existir. Houve sangue derramado e, dentro de mim, algo morreu. Desapareceu de vez, de cabeça baixa, sem uma palavra. Há uma porta que se abre e uma que se fecha. Apaga-se a luz. Para mim, tal como sou agora, hoje é o último dia. Este é o meu último entardecer. Quando o novo dia nascer, eu, tal como sou agora, já não estarei aqui. Outra pessoa diferente habitará o meu corpo.
Porque será que estamos condenados a ser assim tão solitários? Qual a razão de tudo isto? Há tanta, tanta gente neste mundo, todos à espera de qualquer coisa uns dos outros, e, contudo, todos irremediavelmente afastados. Porquê? Continuará a Terra a girar unicamente para alimentar a solidão dos homens?
Virei-me de costas sobre a laje de pedra, fitei o céu por cima de mim e pus-me a pensar na quantidade imensa de satélites que naquele preciso momento deviam girar à volta da Terra. No fio do horizonte era ainda possível distinguir uma réstia de luz, e as estrelas começavam a brilhar no céu de um profundo tom púrpura. Procurei com o olhar a luz de um satélite, mas havia demasiada claridade para distinguir fosse o que fosse a olho nu. As estrelas que estavam à vista permaneciam imóveis, cada uma no seu sítio, como se cravadas no céu. Fechei os olhos e prestei atenção para ver se conseguia ouvir os descendentes do Sputnik que continuavam a dar voltas à Terra, tendo como único elo de ligação ao planeta a gravidade. Solitários pedaços de metal que se encontram de repente nas trevas do espaço, cruzam-se no seu caminho e depois separam-se para sempre. Sem trocarem uma palavra, sem fazerem uma promessa.
Num domingo à tarde tocou o telefone. Era o segundo domingo depois de as aulas terem começado, em meados de Setembro. Estava precisamente naquela altura a preparar um almoço fora de horas e lembro-me de só ter tido tempo de fechar o gás antes de atender. O toque do telefone deixava transparecer uma certa urgência — ou, pelo menos, foi isso que me pareceu. Tinha a certeza de que era Miu quem estava do outro lado da linha, com notícias sobre o paradeiro de Sumire. A chamada, porém, não era de Miu, mas sim da minha «namorada».
— Aconteceu uma coisa — disse ela, sem perder tempo com as habituais saudações, coisa que nem parecia dela. — Podes vir já para cá?
Pelo tom de voz, percebi que devia ter sucedido algo de grave. Teria o marido descoberto a nossa relação? Respirei fundo. Se as pessoas viessem a saber que eu andava a dormir com a mãe de um dos meus alunos, era caso para dizer que, no mínimo, estava metido em sarilhos. No pior dos casos, poderia, inclusivamente, perder o emprego. Ao mesmo tempo, porém, encarei a hipótese com alguma resignação. Conhecia bem os riscos que corria desde o princípio.
— Onde estás? — perguntei.
— No supermercado — respondeu ela.
Apanhei o metro até Tachikawa e cheguei à estação mais próxima do supermercado às duas e meia. Estava um calor tão insuportável que mais parecia uma tarde de Verão, mas, obedecendo às instruções da minha amiga, vestira uma camisa branca, gravata e um fato cinzento-claro.
— Assim ficas com ar de professor — dissera ela — e sempre causas melhor impressão. É que às vezes ainda pareces um estudante — acrescentara ainda.
À entrada do supermercado perguntei a um jovem funcionário que andava a arrumar os carrinhos de compras onde ficava o escritório do segurança. Ele indicou-me o último andar de um anexo que ficava do outro lado da rua. Era um edifício de três andares, de aspecto degradado, que nem sequer tinha elevador. As rachas que percorriam as paredes de cimento pareciam dizer: «Não se preocupem com a nossa presença, que um dia destes o prédio vai a baixo.» Subi por uma escadinha estreita a cair de podre e bati devagarinho a uma porta que tinha uma tabuleta a dizer «Segurança». Lá de dentro respondeu-me uma voz grossa de homem. Abri a porta e vi a minha namorada e o filho sentados, separados, pela secretária, de um segurança uniformizado, de meia-idade. Só lá estavam os três. Não se podia dizer que a divisão fosse muito grande, mas também não era muito pequena. Havia três secretárias em fila, junto da janela, e um armário metálico de arquivo na parede oposta. Numa parede lateral estava afixado um quadro com a escala dos turnos e, numa prateleira metálica, três bonés alinhados. Ao fundo, por trás de uma porta de vidro fumado, havia uma outra divisão, que os guardas talvez usassem para passar pelas brasas. Aquela onde nos encontrávamos era totalmente desprovida de elementos decorativos. Nem flores, nem quadros, nem sequer um calendário. Apenas um relógio de parede redondo, desmesuradamente grande. A divisão parecia abandonada, um recanto do velho mundo esquecido pelo tempo. No ar flutuava uma estranha mistura de tabaco, mofo e suor, um odor acumulado ao longo dos anos.
O responsável pela segurança era um homem atarracado, dos seus cinquenta e muitos anos. Tinha braços rechonchudos, uma cabeça grande e uma abundante cabeleira hirsuta, sal-e-pimenta, que tentava em vão domar com uma loção capilar que tresandava a produto barato. O cinzeiro pousado à sua frente estava a deitar por fora de beatas de Seven Stars. Quando entrei, tirou os óculos de armações pretas, limpou-os com um pano e voltou a pô-los. Talvez fosse a maneira que tinha de cumprimentar as pessoas que não conhecia. Sem os óculos, os olhos eram frios como rochas lunares. com os óculos postos, sempre dava para disfarçar a frieza, e o olhar parecia como que envolto por uma espécie de intensidade embaciada. De uma maneira ou de outra, não era de molde a deixar uma pessoa propriamente à vontade.
Fazia um calor sufocante. Apesar de as janelas estarem abertas de par em par, não corria uma aragem. Da rua só chegava barulho. Um camião pesado parou no sinal vermelho com um ruído brusco de travões que me fez lembrar o Ben Webster dos derradeiros anos a tocar o seu sax-tenor. Estávamos todos a suar abundantemente. Dirigi-me à secretária, apresentei-me ao segurança e entreguei-lhe o meu cartão-de-visita. O homem pegou nele sem uma palavra, franziu os lábios e ficou a olhá-lo durante um momento. Depois colocou-o em cima da mesa, levantou a cara e olhou para mim.
— É muito novo para ser professor — constatou. — Há quanto tempo é que dá aulas?
Fingi que estava a fazer contas de cabeça antes de responder.
— Três anos.
— Hum — disse ele, e não acrescentou mais nada, mas o seu silêncio dizia quase tudo. Voltou a pegar no cartão e a ler o meu nome, como se quisesse confirmar alguma coisa outra vez.
— O meu nome é Nakamura. Sou o responsável pela segurança — apresentou-se, mas não me deu nenhum cartão. — Puxe uma cadeira e sente-se. Lamento que esteja tanto calor aqui dentro. O aparelho de ar condicionado está avariado e ao domingo não há quem conserte nada. Nem sequer tiveram a gentileza de me arranjar uma ventoinha, por isso é aguentar e cara alegre. Tire o casaco, se quiser. Isto deve ser coisa para demorar e só de olhar para si fico ainda com mais calor.
Tal como ele sugerira, puxei uma cadeira e despi o casaco. Tinha a camisa completamente colada ao corpo.
— Sabe, sempre tive inveja dos professores — continuou o segurança.
Nos seus lábios transparecia um ligeiro sorriso, mas, por trás dos óculos, os seus olhos mergulhavam a fundo no meu íntimo, como um predador das profundezas do mar atento ao menor movimento. Tinha uma maneira de falar polida, mas via-se que não passava de uma máscara. Na sua boca, a palavra professor soava quase como um insulto.
— Têm um mês de férias no Verão, não trabalham aos domingos, à noite também não, e passam a vida a receber presentes. Rica vida, se quer saber a minha opinião. Às vezes penso que, se tivesse estudado mais, hoje podia ser professor. Mas houve aí mão do destino e aqui estou eu a trabalhar como segurança neste supermercado. Não era suficientemente inteligente, suponho. Mas digo muitas vezes aos meus filhos que devem estudar para serem professores. Digam o que disserem, eles é que se safam bem.
A minha namorada trazia um vestido azul muito simples, de manga curta. Tinha o cabelo apanhado ao alto e uns brincos pequenos nas orelhas. Calçava sandálias de salto e pousara no colo uma malinha branca e um lenço creme. Era a primeira vez que eu a via desde que voltara da Grécia. Os seus olhos, inchados de tanto chorar, iam alternadamente de mim para o segurança e do segurança para mim. Era por demais evidente que estava a passar um mau bocado.
Trocámos um breve olhar e depois concentrei a minha atenção no filho dela. O seu verdadeiro nome era Shin’ichi Nimura, mas os colegas de turma chamavam-lhe Cenoura. Como tinha |Io rosto afilado magro e uma trunfa toda aos caracóis, o nome assentava-lhe que nem uma luva. Até eu costumava chamar-lhe » assim. Era um rapazinho sossegado, que não dizia senão o que era preciso. As suas notas não eram más de todo, raramente se esquecia de fazer os trabalhos de casa e nunca tentava escapar às suas responsabilidades quando calhava a vez de ser ele a arrumar a sala de aulas. Era um aluno que não dava problemas, mas demonstrava falta de iniciativa e durante as aulas nunca punha a mão no ar. Os companheiros de turma do Cenoura não embirravam propriamente com ele, mas também não se pode dizer que fosse muito popular. Tudo isto eram coisas que não agradavam muito à mãe dele, mas, da minha perspectiva, enquanto professor, achava que ele era bom rapazinho.
— Parto do princípio de que a mãe do rapaz já lhe terá dito o que se passou — avançou o segurança.
— Sim — respondi eu. — Foi apanhado a roubar.
— Exactamente — anuiu o guarda.
Agarrou numa caixa de cartão que estava a seus pés e colocou-a em cima da mesa. Depois empurrou-a na minha direcção. Lá dentro estavam oito agrafadores pequenos, todos iguais, ainda dentro da embalagem de plástico. Peguei num e examinei-o. A etiqueta com o preço marcava oitocentos e cinquenta ienes.
— Oito agrafadores? — foi o comentário que fiz. — Só isso?
— Sim, foi só isso.
Voltei a meter o agrafador dentro da caixa.
— Então o valor total é de seis mil e oitocentos ienes?
— Exacto. Seis mil e oitocentos ienes. Provavelmente deve estar a pensar: «bom, ele praticou um roubo, é verdade. E roubar é um crime, nem sequer é preciso dizer. Mas, ao mesmo tempo, porquê tanto barulho por causa de oito miseráveis agrafadores? É preciso ver que se trata apenas de um miúdo da primária.» Estou enganado?
Não lhe dei resposta.
— Tem todo o direito de pensar isso, até porque é verdade. Neste mundo há crimes piores do que roubar oito agrafadores. Eu próprio, antes de trabalhar aqui, fui polícia durante muitos anos e sei do que estou a falar.
O segurança olhava-me fixamente nos olhos enquanto falava. Aguentei o olhar, procurando ao mesmo tempo não ostentar o ar de quem estava a provocá-lo.
— Se esta fosse a primeira ofensa do jovem, o estabelecimento não daria tanta importância a um furto tão pequeno. Afinal de contas, estamos num estabelecimento público e fazemos o possível por complicar as coisas o menos possível. Normalmente, o que eu faria era trazer o jovem para este gabinete, dar-lhe uma ensinadela e ficava o assunto resolvido. Nos casos extremos, limitamo-nos a falar com os pais e a pedir-lhes que sejam eles próprios a chamar a atenção dos filhos. Nunca entramos em contacto com a escola. Preferimos resolver as coisas a bem, é essa a política deste estabelecimento no que toca a furtos cometidos por menores.
«O problema é que não foi a primeira vez que este jovem praticou um roubo. Só neste estabelecimento já foram três as vezes em que foi apanhado. Três! Está a compreender? E, ainda por cima, acontece que das outras vezes recusou-se sempre a dizer o nome dele ou da escola. Lembro-me bem isso, porque até fui eu que tratei do assunto. Por mais perguntas que lhe fizéssemos, foi impossível arrancar-lhe uma palavra. A estratégia do mutismo, como nós, polícias, dizemos na gíria. Nem uma desculpa, nem um sinal de arrependimento, enfim, uma atitude de obstrução declarada. Disse-lhe que, se desta vez não me dissesse o nome, chamaria a polícia, mas nem mesmo assim abriu a boca. Por isso não tive outro remédio senão tirar-lhe o passe de autocarro à força, e foi assim que fiquei a saber o nome dele.
Fez uma pausa, à espera de que eu digerisse os pormenores todos. Continuava sem tirar os olhos de mim, e eu também não desviava os olhos dele.
— Mas há outra coisa. O tipo de objectos que rouba. Nada de particularmente sugestivo. Da primeira vez, foram quinze lapiseiras, no valor total de nove mil setecentos e cinquenta ienes; da segunda, oito compassos, ao todo oito mil ienes. Quer dizer, escolhe sempre o mesmo tipo de artigos. Logo, não se trata de coisas para uso próprio. Das duas uma: ou rouba só pelo prazer de roubar, ou então é para vender aos colegas da escola.
Tentei imaginar o Cenoura a vender agrafadores aos amigos durante o recreio da hora de almoço. Era uma cena altamente improvável.
— Só há uma coisa que eu não percebo — declarei. — Por que razão faz questão de roubar sempre a mesma loja? Isso só serve para fazer com que desconfiem dele e aumenta as hipóteses de ser apanhado em flagrante delito, com a agravante de o castigo ser mais severo. Se ele quisesse safar-se, não acha que seria normal que tivesse ido a outras lojas?
— Não me pergunte isso a mim. Quem lhe disse que ele não roubou noutra loja qualquer? Ou então, se calhar, gosta mais da nossa. Pode ser que não vá com a minha cara. Sou apenas um modesto segurança de supermercado, não me Vou pôr para aqui a dar voltas à cabeça para ver se deslindo o caso. Não me pagam para isso. Se quer uma resposta, porque não lhe pergunta directamente a ele? Há três horas que aqui estamos metidos e ainda não abriu a boca. Vê-se que o rapaz é calado, mas a este ponto, isso é que me espanta. Foi por isso que lhe pedi que viesse até cá. Lamento muito tê-lo incomodado num domingo... A propósito, há uma coisa que estou para lhe perguntar desde que chegou. Não pude deixar de reparar que tem um belo bronzeado. Não é que seja relevante para o caso, mas já agora, diga-me lá, por acaso foi passar as férias de Verão a algum sítio em especial?
— Não, a nenhum sítio em especial — disse. Mesmo assim, continuou a perscrutar-me a cara, como se porventura eu fosse um elemento essencial na resolução do caso.
Voltei a pegar num agrafador e examinei-o de todos os ângulos. Era pequeno e vulgar, daqueles que se encontram em qualquer casa, em qualquer escritório. Um artigo do mais barato que há. O segurança pôs um Seven Star na boca e acendeu-o com um isqueiro Bic. Depois virou a cara de lado e deu uma passa.
Voltei-me para o rapaz e perguntei-lhe num tom calmo:
— Porque roubaste os agrafadores?
O Cenoura, que passara o tempo todo de olhos postos no chão, levantou a cara em silêncio e encarou-me, mas não disse nada. Naquele momento, reparei pela primeira vez que a sua expressão mudara por completo. Estranhamente inexpressiva, olhar escancarado e vazio. Parecia que estava a olhar para ontem.
— Alguém te obrigou a fazer isso?
O Cenoura continuou sem responder. Nem sequer tinha a certeza de ele estar a ouvir o que eu dizia. Desisti. Não ganhava nada em pôr-me para ali a fazer perguntas, armado em polícia, naquela altura. O miúdo tinha a porta trancada, as janelas fechadas.
— bom, então o que propõe o senhor professor que se faça? — quis saber o segurança. — A mim, pagam-me para fazer as rondas no interior do estabelecimento, para estar de olho nos monitores e para trazer aqui para esta sala toda a gente que for apanhada a roubar. Já não tenho nada a ver com aquilo que acontece a seguir, sobretudo quando mete uma criança ao barulho, o que só vem tornar as coisas ainda mais complicadas. Tem ideia de como vamos resolver isto, senhor professor? De certeza que saberá melhor do que eu o que é preciso fazer. Devemos entregar o caso à polícia e lavar daí as mãos? Para mim, devo confessar que seria o mais cómodo. Escusávamos de andar aqui a perder o nosso rico tempo sem chegar a parte nenhuma.
Para dizer a verdade, naquele momento eu estava muito longe dali. Aquele escritório deprimente de supermercado lembrava-me a esquadra da polícia da ilha grega. Tudo aquilo me fazia pensar em Sumire e no facto de ela ter desaparecido.
Demorei um bocado a perceber o que aquele homem que tinha ali à minha frente me queria dizer.
— Eu encarrego-me de contar ao pai — disse a mãe do Cenoura numa voz sem inflexão — e faremos os possíveis para que o nosso filho perceba de uma vez por todas que roubar nas lojas é um delito grave. Prometo que ele não voltará a incomodá-lo.
— Por outras palavras, o que a senhora quer é que o caso não chegue a tribunal. Já o deu a entender por mais de uma vez — frisou o chefe dos seguranças num tom que deixava transparecer todo o seu descontentamento. Bateu com o cigarro na borda do cinzeiro, para deixar cair a cinza. Depois virou-se para mim e disse: — Quer parecer-me que três vezes é de mais. Alguém tem de pôr travão a isto. O que tem o senhor professor a dizer sobre o assunto?
Respirei fundo, fazendo os possíveis por trazer a minha consciência de volta ao mundo real, a essa tarde de um domingo de Setembro e à história dos oito agrafadores.
— Não posso dizer-lhe nada sem falar com ele — respondi. — Até agora nunca deu problemas. Não é parvo nenhum. Não sei o que o terá levado a fazer uma coisa tão estúpida, mas faço tenção de demorar o tempo que for preciso até encontrar uma explicação para aquilo que aconteceu. Peço imensa desculpa por todas as maçadas que o rapaz lhes deu.
— Oiça, há aqui qualquer coisa que não bate certo — disse o segurança, semicerrando os olhos por trás dos óculos. — Este rapaz, o Shin’ichi Nimura, anda na sua turma, não é? Logo, o senhor está com ele todos os dias?
— Exactamente.
— Ele está no quarto ano, o que quer dizer que na sua aula há um ano e quatro meses, certo?
— Sim. Está comigo desde o terceiro ano.
— E quantos alunos tem na sua turma?
— Trinta e cinco.
— Nesse caso, é sua obrigação conhecê-los bem a todos. Está a dizer-me que nunca lhe passou pela cabeça que este aluno viesse a causar problemas? Nunca deu por nada?
— Nunca.
— Espere aí! Pelas nossas contas, este miúdo já assaltou três vezes o nosso estabelecimento no espaço de seis meses, sempre sozinho. Ninguém o obrigou a nada. E não se trata aqui de um impulso do momento. Tão-pouco o faz pelo dinheiro. Segundo diz a mãe, ele tem uma mesada que chega e sobra para as suas despesas. O que significa que tem perfeita consciência do que faz e que rouba por roubar. Resumindo, é óbvio que este miúdo tem problemas. E diz o senhor professor que nunca deu por nada?
— Na minha qualidade de professor — retorqui — o que lhe posso dizer é que os roubos praticados em estabelecimentos comerciais, especialmente tratando-se de crianças, mais do que um delito são geralmente produto de um ligeiro desequilíbrio emocional. Se tivesse prestado mais atenção, talvez me pudesse ter apercebido de alguma coisa. Reconheço que falhei na minha missão, mas quando se trata de crianças emocionalmente perturbadas, a verdade é que os sinais nem sempre estão à vista. Mais, se cairmos no erro de isolar o acto sem olhar ao contexto e castigarmos a criança, o caso não ficará resolvido. É preciso ir à raiz e tratá-la devidamente. Se não, mais lá para diante, o mesmíssimo problema pode voltar a manifestar-se de outra forma qualquer. Na maior parte das vezes, o que acontece é as crianças que andam a roubar nas lojas tentarem apenas chamar a atenção, e a única maneira eficaz de resolver o problema consiste em perder o tempo que for preciso e ter uma conversa a sério com elas.
O segurança apagou o cigarro e ficou ali durante um bom bocado a olhar para mim, de boca meio aberta, como se eu fosse algum bicho raro. Os dedos pousados sobre a mesa eram extraordinariamente grossos, mais pareciam dez pequenas criaturas rechonchudas cobertas de pêlo negro. Só de olhar para eles, eu mal conseguia respirar.
— Foi isso que lhe ensinaram na universidade, nas aulas de formação de professores ou lá como isso se chama?
— Não necessariamente. Trata-se da mais elementar psicologia. Vem em qualquer livro.
— Vem em qualquer livro — disse ele, repetindo, sem tirar nem pôr, as minhas palavras, totalmente desprovidas de expressão. Pegou na toalha de mãos e enxugou o pescoço de touro, encharcado de suor. — Um ligeiro distúrbio emocional, que diabo significa isso? Quando era polícia passava os dias, de manhã à noite, a lidar com pessoas vítimas de desequilíbrios que pouco ou nada tinham de ligeiros. O mundo está cheio de gente assim. Há exemplos para dar e vender. Se me desse ao trabalho de escutar cada uma das histórias dessa gente toda e me pusesse para aqui a pensar na mensagem que tentavam passar, então nem dez cérebros me chegavam.
Suspirou e guardou a caixa com os agrafadores debaixo da mesa.
— Claro que o senhor é que tem toda a razão. As crianças têm um coração puro. Não se deve infligir castigos corporais. Os homens são todos iguais. Não se deve julgar um aluno pelas notas que tem. Os problemas resolvem-se pela via do diálogo. Até aí, tudo bem. Mas acredita mesmo que é assim que o mundo vai melhorar? Nem pense nisso. Pelo contrário, fica é cada vez pior. Como podem as pessoas ser todas iguais? Nunca ouvi semelhante disparate. Ora veja bem, só num país tão pequeno como o Japão existem cento e dez milhões de pessoas que se atropelam umas às outras todos os dias. Experimente fazer com que todas elas sejam iguais. Experimente. Ia ser um inferno.
«Dizer frases bonitas é fácil. Basta fechar os olhos, fingir que não se está a ver nada e os outros que resolvam os problemas. O que interessa é não fazer ondas, dar o canudo aos jovens e despachá-los com uma canção de despedida, e viveremos todos felizes para sempre. Andar a roubar lojas não passa de uma mensagem enviada por uma criança. Depois logo se vê. Assim não é difícil. Mas depois apaga os fogos? Pessoas como eu, é bom de ver! E acha que fazemos isso por gosto? Vocês têm todos estampada na cara aquela expressão de enjoo de quem pensa afinal-foram-só-seis-mil-e-oitocentos-ienes, mas agora ponham-se no lugar de quem foi roubado. Trabalham aqui umas cem pessoas, e pode crer que para elas a diferença de um ou dois ienes conta. Quando a caixa fecha, se houver uma falta de cem ienes, pode crer que são obrigados a fazer horas extraordinárias até as contas baterem certas. Sabe quanto ganham à hora as funcionárias que trabalham na caixa? Porque não ensina isso aos seus alunos?
Eu não disse rigorosamente nada. A mãe do Cenoura ficou muda e o rapaz também. Até o segurança ficou calado, cansado de ter proferido tamanho discurso. O telefone tocou na sala ao lado, e alguém atendeu ao primeiro toque.— Então, o que sugere que se faça? — perguntou ele. Eu disse:
— Que tal se lhe atássemos os pés com uma corda e o pendurássemos de cabeça para baixo até ele pedir desculpa?
— A ideia não me desagrada! Mas bem sabe que, se fizéssemos isso, íamos os dois para o olho da rua.
— bom, nesse caso só nos resta conversar calmamente com o rapaz para ver se chegamos a algum lado. É tudo o que lhe posso dizer.
Apareceu alguém vindo da sala ao lado que entrou sem bater à porta.
— Senhor Nakamura, preciso da chave do armazém — pediu ele. O «senhor Nakamura» vasculhou a gaveta durante alguns instantes, mas não a encontrou.
— Desapareceu — comentou ele. — Que estranho! Guardo-a sempre aqui.
— Veja lá se a encontra — insistiu o outro. — Preciso dela agora. Pela maneira como os dois homens falavam, parecia tratar-se
de uma chave muito importante, que à partida nunca deveria ter ficado guardada numa gaveta. Viraram as gavetas todas de pernas para o ar, mas a chave continuava sem aparecer.
Enquanto tudo isto acontecia, ficámos os três ali sentados em silêncio. De quando em quando, a mãe do Cenoura lançava-me um olhar angustiado. Quanto ao rapaz, esse continuava com a mesma expressão vazia, de olhos postos no chão. Fui assaltado por todo o género de pensamentos, qual deles o mais disparatado. Continuava a fazer um calor insuportável na sala.
O homem que precisava da chave desistiu e foi-se embora a resmungar.— bom, ficamos por aqui — disse, numa voz mecânica e inexpressiva, o chefe da segurança Nakamura, virando-se para nós: —Obrigado por terem vindo. Por agora é tudo. Deixo o assunto nas mãos do senhor professor e da mãe do rapaz. Mas é bom que fique claro: se ele volta a repetir a graça, não se safará assim tão facilmente. Faço-me entender? Não quero problemas, mas tenho o meu trabalho para fazer.
Ela assentiu com a cabeça, eu também. O Cenoura, esse, parecia não ter ouvido nada. Levantei-me e os dois fizeram o mesmo, com ar de caso.
— Só mais uma coisa — disse o homem da segurança, continuando sentado, mas levantando a cabeça na minha direcção. — Pode parecer indelicado da minha parte, mas aqui vai. Há qualquer coisa em si que não me convence, sinto isso desde que o vi entrar por aquela porta. É um homem novo, bem constituído, com um belo bronze, causa boa impressão, faz um discurso lógico. Tudo o que diz faz sentido. Tenho a certeza de que os pais dos seus alunos o têm em boa conta. Não consigo explicar muito bem, mas, logo que o vi, pareceu-me que há qualquer coisa em si que não bate certo. Algo que me faz ficar com um nó na garganta. Pessoalmente nada tenho contra si, por isso não se zangue. Mas é uma coisa que me deixa apreensivo. O que poderá ser?
— Importa-se que lhe faça uma pergunta pessoal? — atirei eu.
— Diga.
— Se é verdade que os homens não são todos iguais, onde se encaixa o senhor?
Nakamura deu uma passa no cigarro, inalou o fumo até ao fundo dos pulmões, abanou a cabeça e depois exalou o fumo muito devagar, como se estivesse a obrigar alguém a fazer alguma coisa.
— Não sei — voltou ele a dizer. — Mas que isso não constitua motivo de preocupação para si. Não estarei certamente ao seu nível.
Ela deixara o Toyota Célica vermelho no parque de estacionamento do supermercado. Chamei-a à parte e disse-lhe que fosse andando sozinha para casa.
— Preciso de ter uma pequena conversa a sós com o teu filho — expliquei. — Depois levo-o a casa.
Ela assentiu com a cabeça. Pareceu que ia dizer alguma coisa, mas depois desistiu, meteu-se no carro, tirou os óculos escuros da mala e arrancou.
Depois de ela se ter ido embora, peguei no Cenoura e levei-o até um pequeno café com ar arejado que vira quando ali chegara. Suspirei de alívio ao sentir o ar condicionado, mandei vir um chá gelado para mim e um gelado para o Cenoura. Desapertei o botão de cima da camisa, tirei a gravata e guardei-a no bolso do casaco. O rapaz continuava a cumprir voto de silêncio. Nem a sua expressão nem o seu olhar haviam sofrido a menor alteração desde que saíramos do gabinete do segurança. Estava cornpletamente absorto e o mais provável era continuar refugiado naquele mutismo. com as mãos pequenas pousadas no colo, como um menino bem-comportado, tinha os olhos postos no chão, como se quisesse ocultar o rosto. Bebi o meu chá, mas o Cenoura não tocou no gelado, que acabou por se derreter lentamente na taça, sem que ele parecesse dar por isso. Ficámos os dois ali sentados um em frente do outro, como marido e mulher que nada têm para dizer um ao outro. De cada vez que passava pela nossa mesa, a empregada deixava transparecer uma certa apreensão.
— Estas coisas acontecem — disse eu, ao fim de algum tempo. Não era que estivesse propriamente a querer meter conversa,
foram as palavras que espontaneamente me saíram da boca.
O Cenoura levantou a cabeça devagar e virou-se para mim. Fechei os olhos, suspirei e fiquei calado durante um bocado.
— Ainda não contei isto a ninguém — disse —, mas estive na Grécia este Verão. Sabes onde fica a Grécia, não sabes? Lembras-te daquele vídeo que vimos na aula de estudos sociais? Fica na Europa, ao pé do Mediterrâneo. Tem imensas ilhas e cultivam azeitona. Foi uma civilização que conheceu o seu apogeu no ano 500 a. C. Atenas é considerada o berço da democracia e foi lá que Sócrates tomou veneno e morreu. Foi lá que estive. É um lugar lindíssimo. Mas não fui até lá de férias. Fui à procura de uma amiga minha que desapareceu numa daquelas pequenas ilhas gregas. Mas não chegámos a encontrá-la. A minha amiga desapareceu sem deixar rasto. Evaporou-se como fumo.
O Cenoura estava a olhar para mim, a boca entreaberta. A expressão mantinha-se distante, mas entrevi um brilhozinho nos olhos. Lograra finalmente captar a atenção dele.
— Gostava muito da minha amiga. Muito, mesmo muito. Era a pessoa mais importante do mundo para mim. Foi isso que me levou a apanhar o avião para aquela ilha grega, mas a minha ajuda não serviu de nada. Não conseguimos encontrá-la. Ao perder essa minha amiga, fiquei sem ninguém a quem possa chamar amigo. Ninguém.
Não estava a falar com o Cenoura, mas comigo mesmo. A pensar em voz alta.— Sabes o que me apetecia fazer agora mesmo? Era subir ao cimo de um sítio tão alto como as pirâmides. O lugar mais alto que eu conseguisse encontrar, donde pudesse ver o mais longe possível. Subir lá a cima, observar o mundo todo à minha volta, ver todas as paisagens ao alcance do meu olhar, descobrir com os meus próprios olhos tudo o que estivesse desaparecido à face da Terra. E daí, não sei... Talvez na realidade eu não queira ver isso. Talvez já não queira ver nada de nada.
A empregada aproximou-se, levantou a taça com o gelado derretido e deixou ficar a conta em cima da mesa.
— Desde pequeno que me sinto sozinho. Vivia em casa dos meus pais e tinha uma irmã mais velha, mas não me dava bem com eles. Não me entendia com ninguém da minha família. Chegava muitas vezes a perguntar a mim mesmo se não teria sido adoptado. Podia ser que, por qualquer razão desconhecida, uns parentes afastados me deixassem ao cuidado da minha actual família. Ou então imaginava que talvez me tivessem ido buscar a um orfanato. Só agora me dou conta do disparate pegado que tudo aquilo era. Os meus pais não são propriamente do tipo de pessoas que adoptam órfãos desamparados. Em todo o caso, a verdade é que não conseguia aceitar a ideia de estar ligado àquelas pessoas por laços de sangue. Era mais fácil pensar que elas me eram completamente estranhas.
«Imaginava uma cidade distante, onde havia uma casa onde vivia a minha verdadeira família, uma casa pequena e modesta, mas acolhedora. Ali toda a gente se entendia, toda a gente dizia o que muito bem lhe apetecia. À noitinha, ouvia-se a minha mãe na cozinha a preparar o jantar, e o delicioso cheiro a comida acabada de fazer espalhava-se pela casa toda. Era ali que eu pertencia. Passava a vida a imaginar esta cena, comigo a fazer parte integrante do retrato de grupo.
«Na vida real tínhamos um cão, e era só dele que eu gostava a sério. Era um rafeiro, mas muito inteligente, quando lhe ensinavam alguma coisa, nunca mais se esquecia. Nos nossos passeios diários, costumava levá-lo até ao parque, sentava-me num banco e punha-me ali a falar de tudo e mais alguma coisa. Compreendíamo-nos um ao outro. Foram esses os momentos mais felizes da minha infância. Quando eu andava no quinto ano, o cão morreu, atropelado por um camião, ao pé de casa. Os meus pais não me deixaram ter outro. Faziam muito barulho, sujavam tudo e davam demasiado trabalho, diziam eles.
«Depois da morte do cão comecei a passar cada vez mais tempo fechado no meu quarto, entretido com os livros. O mundo que me era dado conhecer através deles parecia-me muito mais real do que aquele que me rodeava. Perante os meus olhos desfilavam paisagens que jamais imaginara ver. Os livros e a música passaram a ser os meus melhores amigos. Na escola tinha dois ou três bons amigos, mas nunca encontrara alguém a quem pudesse abrir o coração. Conversar e jogar futebol era tudo o que fazíamos quando estávamos juntos. Se surgia algum problema, não tinha com quem desabafar. Ficava no meu canto, entregue aos meus pensamentos, tirava as minhas conclusões e ia à luta sozinho, mas não posso dizer que me sentisse só. Pensava que isso era normal. Enfim, pensava que os seres humanos deviam trilhar o seu caminho sozinhos.
«No entanto, quando cheguei à universidade, encontrei esta amiga, aquela de quem já te falei, e comecei a ver as coisas de outra maneira. Percebi que, à força de pensar nas coisas por minha conta durante tanto tempo, acabara por ficar limitado à minha perspectiva, e comecei a dar-me conta de que estar sempre sozinho pode tornar-se uma coisa terrivelmente depressiva.
«A solidão é como estar de pé na desembocadura de um rio numa noite de chuva a ver aquela água toda a correr em direcção ao mar. Já alguma vez experimentaste fazer isso?
O Cenoura não respondeu.
— Eu já — declarei eu.
Espantado, o Cenoura não tirava os olhos de mim.
— Não sei dizer ao certo porque ficar assim a ver as águas do rio que se misturam com a do mar me provoca um sentimento de abandono tão grande. Mas a verdade é que provoca. Devias experimentar, um dia.
Peguei no casaco e na conta e levantei-me devagar. Pousei a mão no ombro de Cenoura e ele também se levantou. Saímos do café.
A casa dele ficava a meia hora dali. Fomos todo o caminho juntos, sem trocar uma palavra. Perto corria um pequeno rio, atravessado por uma ponte de cimento. Dizer que aquilo era um rio era um eufemismo. Não passava de um canal de escoamento das águas que alargara o seu caudal com o tempo. Não merecia sequer que lhe chamassem rio. Em tempos, os agricultores que ainda por ali havia deviam ter-se servido dele para irrigar os campos, mas agora, nos tempos que corriam, as águas mostravam-se turvas e largavam um ligeiro odor a detergente. No leito infestado de vegetação de toda a espécie que aparecia aos primeiros sinais de Verão, um livro de banda desenhada, aberto ao meio, deslizava ao sabor da corrente. O Cenoura parou no meio da ponte e debruçou-se no parapeito, a olhar para baixo. Eu fiquei ali ao lado dele, de pé, e fiz a mesma coisa. Ficámos os dois assim, imóveis, durante muito tempo. Era provável que ele não tivesse vontade de voltar para casa e eu entendia-o perfeitamente.
O Cenoura meteu a mão no bolso de trás das calças, tirou uma chave e estendeu-ma. Era vulgaríssima, com uma grande etiqueta de plástico vermelho, onde estava escrito «Armazém n.° 3» — era a do armazém, a que o chefe da segurança Nakamura procurara por tudo o que era sítio. Por qualquer razão, deviam ter deixado o Cenoura sozinho no gabinete durante uns minutos e ele aproveitara para tirar a chave da gaveta e escondê-la no bolso. Decididamente, a mente daquele rapaz constituía um enigma maior do que eu alguma vez imaginara. Era uma criança deveras estranha.
Aceitei a chave, guardei-a na palma da mão e foi como se através dela sentisse o peso de todas as pessoas que nela antes de mim tivessem tocado. Aos meus olhos, não passava de um objecto conspurcado, insignificante. Perturbado, acabei poratirá-la ao rio. O gesto provocou alguns salpicos. O riacho não era muito fundo, mas a água estava turva, e a chave desapareceu rapidamente de vista. Ao lado um do outro, eu e o Cenoura deixámo-nos ficar durante mais um bocado em cima da ponte, a fitar a superfície das águas. Ter-me livrado da chave fez-me sentir mais leve, de corpo e alma.
— Agora é tarde para pensar em devolvê-la — disse eu, quase como se estivesse a falar sozinho. — Devem ter um duplicado em qualquer lado. É preciso não esquecer que estamos a falar do precioso armazém.
Estendi a mão e o Cenoura agarrou nela suavemente. Senti os seus dedos magros, pequenos, a envolverem os meus. Uma sensação que havia experimentado noutro lugar — onde teria sido? —, há muito, muito tempo. De mãos dadas, continuámos a nossa caminhada até à casa dele.
Quando lá chegámos, a mãe do Cenoura estava à nossa espera. Mudara de roupa e vestia agora uma elegante blusa branca sem mangas e uma saia plissada. Tinha os olhos vermelhos e inchados. Devia ter estado a chorar sozinha o tempo todo desde que chegara a casa. O marido dirigia uma agência imobiliária na cidade e os domingos passava-os a trabalhar ou a jogar golfe. Depois de mandar o Cenoura para o quarto dele, que ficava no primeiro andar, levou-me não para a sala de estar, mas sim para a cozinha. Talvez fosse mais fácil para ela falar comigo ali. Havia um enorme frigorífico verde-abacate, uma verdadeira ilha no meio da cozinha, e uma janela cheia de luz virada a leste.
— Ele parece com melhor cara do que antes — disse ela numa voz sumida. — Quando cheguei ao escritório, fiquei sem saber o que fazer. Nunca o tinha visto assim. Parecia que estava num outro mundo.
— Não te preocupes. Dá-lhe tempo e ele voltará ao seu estado normal. Por enquanto, é melhor não lhe dizeres nada. Deixa-o estar sozinho.— O que andaram vocês os dois a fazer depois de eu me ter vindo embora?
— Estivemos a conversar — respondi. :
— Acerca de quê?
— De nada de especial. Melhor dizendo, fui eu que falei o tempo todo. Disto e daquilo.
— Queres beber alguma coisa fresca? Abanei a cabeça.
— Já não sei como hei-de falar com ele — confessou ela. — E essa sensação não pára de aumentar.
— Não é obrigatório que fales com ele. Os miúdos daquela idade têm o seu próprio mundo. Ele acabará por vir ter contigo quando sentir necessidade disso.
— Mas este mal abre a boca.
Estávamos sentados frente a frente, à mesa da cozinha, tendo o cuidado de evitar qualquer contacto físico. Pairava no ar um certo constrangimento, como seria de esperar numa conversa entre um professor e a mãe de uma criança com problemas. Enquanto falava, brincava com as mãos, cruzava e descruzava nervosamente os dedos, esticava-os, sem nunca parar de brincar com as mãos. Não consegui deixar de pensar nas coisas que aquelas mãos me tinham feito quando estávamos juntos na cama.
— Não Vou contar na escola nada do que aconteceu — tranquilizei-a. — Voltarei depois a falar com ele e, se houver problemas, estou cá eu para os resolver. Por isso, não te preocupes. É um miúdo inteligente, bom rapazinho e, com o tempo, acabará por entrar nos eixos. Está a atravessar uma fase, mais nada. Agora, o mais importante é que tu não percas a calma. Repeti as mesmas palavras vezes sem conta, numa voz lenta e pausada, para ver se ela ficava com aquilo metido na cabeça. Ao ouvir-me, pareceu recobrar o ânimo.
Ofereceu-se para me levar de carro até ao meu apartamento de Kunitachi.
— Achas que o meu filho desconfia de alguma coisa? — perguntou-me quando ficámos parados num sinal vermelho. Estava a referir-se, claro está, à relação que havia entre nós.
Abanei a cabeça.
— Porque dizes isso?
— Há bocado, quando estava sozinha em casa à espera de que chegassem, passou-me essa ideia pela cabeça. É apenas um palpite, sem nenhuma espécie de fundamento. Ele é um rapaz muito intuitivo e já se deve por certo ter dado conta de que as coisas entre o pai e eu não correm bem.
Fiquei calado. Por seu turno, ela também não disse mais nada.
Arrumou o carro no parque de estacionamento que ficava a duas ruas do meu prédio. Puxou o travão de mão e desligou a ignição. O motor emudeceu e, ao deixar de se ouvir o barulho do ar condicionado, fez-se sentir dentro do carro um silêncio incómodo. Sabia que ela queria que eu a abraçasse, ali, naquele preciso momento. Ao imaginar o seu corpo macio debaixo da blusa, comecei a ficar com a boca seca.
— Acho que o melhor é não nos encontrarmos mais — enchi-me de coragem e fui direito ao assunto.
Ela nada disse. As mãos pousadas no volante, olhava fixamente na direcção do indicador do nível do óleo. Do seu rosto desaparecera quase toda a expressão.
— Tenho pensado muito no assunto — disse eu. — Não quero ter responsabilidades nesta história. Não posso ser ao mesmo tempo parte do problema e parte da solução. Acho que assim é melhor para todos.
— Para todos?
— Especialmente para o teu filho.
— E para ti também?
— Sim, para mim também. É claro que sim.
— E eu? Também faço parte de «todos»?
Apeteceu-me responder que sim, mas a palavra não me saiu. Ela tirou os Rayban verde-escuros, depois mudou de ideias e voltou a pô-los.
— Não é fácil para mim dizer isto — confessou —, mas, se deixarmos de nos ver, vai ser muito difícil para mim.
— Também para mim será difícil. Quem me dera que pudéssemos continuar assim como estamos. Mas não está certo.
— E o que está certo, não me queres dizer? Porque eu, sinceramente, não sei. Sei o que não está. Mas o que significa estar certo?
Não lhe soube responder.
Parecia à beira de um ataque de choro, ou de começar a gritar, mas depois lá conseguiu dominar-se. Limitou-se a cravar os dedos no volante até as costas das mãos ficarem ligeiramente vermelhas.
— Quando eu era mais nova, as pessoas costumavam vir falar comigo — continuou ela — e contavam-me todo o tipo de coisas. Histórias fascinantes, lindíssimas, bizarras, mas passado um certo tempo nunca mais apareceu ninguém para falar comigo. Nem o meu marido, nem o meu filho, nem os meus amigos... ninguém. Como se no mundo não houvesse nada que valesse a pena ser contado. Às vezes tenho a sensação de que o meu corpo está prestes a tornar-se invisível, de que me tornei completamente transparente.
Tirou as mãos do volante e ficou com elas abertas à sua frente.
— Mas não me parece que estejas a perceber alguma coisa do que te estou a tentar dizer.
Procurei dentro de mim as palavras certas, mas não as encontrei.
— Obrigada por tudo — agradeceu ela, recuperando a presença de espírito. A sua voz quase recuperara o tom calmo do costume. — Não creio que tivesse conseguido tratar do caso sozinha. Está a ser demasiado difícil para mim. Ter-te ao meu lado foi uma grande ajuda. Estou-te profundamente reconhecida. Tenho a certeza de que vais ser um excelente professor. Aliás, já o és.
Terei notado uma ponta de sarcasmo nas suas palavras? Provavelmente. Não, definitivamente não.
— Ainda não — disse eu.
Ela esboçou um sorriso e assim acabou a nossa conversa.
Abri a porta e saí do carro. A luz daquela tarde estival de domingo perdera grande parte da sua intensidade. Tinha dificuldade em respirar e uma sensação estranha nas pernas, quando me punha de pé. O motor do Célica rugiu, e ela saiu da minha vida para sempre. Antes, porém, baixou o vidro da janela e fez-me um ligeiro adeus. Também eu levantei a mão, em jeito de resposta.
Uma vez em casa, despi a camisa toda suada e atirei-a para dentro da máquina de lavar, tomei um duche e lavei a cabeça. Fui até à cozinha, acabei de preparar o almoço que deixara a meio, e comi sozinho. Depois, afundei-me no sofá e peguei num livro que começara a ler há pouco. Mas não consegui passar da quinta página. Desisti, fechei-o e, por momentos, pensei em Sumire e na chave do armazém que atirara para o fundo das sujas águas do riacho. E nas mãos da minha amiga, agarradas ao volante. Aquele dia que parecia nunca mais acabar chegara ao fim, deixando atrás de si recordações desencontradas. Tomara um longo duche, mas o meu corpo ainda estava impregnado do odor de tabaco. E na minha mão permanecia uma sensação aguda — como se tivesse esmagado à força qualquer coisa com vida.
Teria feito o que estava certo?
Tinha a impressão de que não, fizera apenas aquilo que para mim era necessário. Há uma grande diferença. Todos, perguntara-me ela. Será que eu me incluía naquele «todos»?
Para dizer a verdade, naquela altura não estava a pensar em todos, mas apenas em Sumire. E não em todos aqueles que ali se encontravam, nem em todos os que por aqui andamos.
Apenas em Sumire, ausente em parte incerta.
Nunca mais soubera nada de Miu desde o dia em que nos despedíramos no porto da pequena ilha grega. Era estranho, uma vez que ela prometera manter-se em contacto comigo, independentemente de ter (ou não) notícias de Sumire. Não queria acreditar que se tivesse esquecido de mim, não era o tipo de pessoa que faz promessas e depois não as cumpre. Devia ter acontecido alguma coisa que a impedira de entrar em contacto comigo. Ainda pensei em telefonar-lhe, mas nem sequer sabia qual era o seu verdadeiro nome, nem tão-pouco o da empresa ou o sítio onde ficava. No que dizia respeito a Miu, Sumire não me deixara ficar nenhuma pista concreta.
No atendedor de chamadas de Sumire, a mensagem continuou a ser a mesma, até o aparelho ter sido desligado. Ainda pensei em telefonar ao pai dela. Não sabia o número, mas não deveria ser difícil encontrar a sua clínica dentária nas Páginas Amarelas de locoama. Mas não cheguei a fazê-lo. Em vez disso, fui à biblioteca e consultei os jornais do mês de Agosto. Saíra uma pequena notícia sobre ela, sobre o desaparecimento de uma turista japonesa de vinte e dois anos durante uma viagem pelas ilhas gregas. «As autoridades locais estão a investigar o caso, mas até à data continua a não haver pistas.» E era tudo. Nada que eu já não
soubesse. Segundo parecia, havia muita gente que desaparecia do mapa no decorrer de viagens ao estrangeiro, e ela não passava de mais uma. Desisti de ler as notícias. Fosse qual fosse o motivo do seu desaparecimento, ou por mais adiantadas que as investigações estivessem, uma coisa era certa: caso Sumire regressasse, não deixaria certamente de dar notícias. Era só isso que me interessava saber.
Setembro chegou ao fim, o Outono passou a correr e veio o Inverno. A 7 de Novembro, Sumire ia fazer vinte e três anos; eu fazia vinte e cinco a 9 de Dezembro. Começou o ano novo e chegou ao fim o ano escolar. O Cenoura não voltou a dar problemas e passou para o quinto ano, para a outra classe da primária. Desde aquele dia nunca mais voltara a falar com ele sobre a história dos roubos. Bastava-me olhar a cara dele para ficar a saber que não era preciso.
Uma vez que o professor dele era agora outro, deixei de ter ocasião de me encontrar tantas vezes com a minha antiga namorada. Foi melhor assim, tanto para ela como para mim. E, contudo, por vezes tocava-me fundo a recordação nostálgica do calor e suavidade que emanavam da sua pele, e senti-me por mais de uma vez tentado a pegar no telefone. O que me impedia sempre de o fazer era o facto de voltar a sentir a impressão deixada pela chave do armazém, naquela tarde de Verão, e o contacto da pequena mão do Cenoura na minha.
Era frequente cruzar-me com o rapaz lá na escola. Que criança tão estranha, dizia para comigo mesmo. Que pensamentos se esconderiam por trás daquele rosto magro, calmo? Era impossível adivinhar. Mas que eram muitos os que lhe passavam pela cabeça, disso não tinha a mínima dúvida. Assim como tinha a certeza de que ele era perfeitamente capaz de passar dos pensamentos aos actos, se a ocasião se
1 No Japão, o ano escolar termina em Março. (N. da T.)
proporcionasse. Pressentia a profundidade que se escondia dentro dele. Acreditava que fizera bem em ter dito tudo o que me ia na alma, naquela tarde em que estivéramos juntos no café. Fora bom para ele, mas também para mim. Mais até para mim do que para ele. Não deixa de ser estranho dizer isto, mas a verdade é que, na altura, ele compreendeu-me e aceitou-me. Talvez até me tenha perdoado. Pelo menos até certo ponto.
Interrogo-me como serão os dias — esses dias da mocidade que parecem nunca mais chegar ao fim — que um rapazinho como Cenoura terá de percorrer até chegar à idade maior? Momentos fáceis não deverão ser. com mais tempos difíceis do que dias tranquilos. com base na minha experiência, posso muito bem fazer uma ideia aproximada das agruras que o esperam. Apaixonar-se-á por alguém? E corresponderá essa pessoa aos seus sentimentos? Escusado será dizer que aquilo que penso sobre o assunto pouco ou nada vem ao caso. Assim que ele fizer a primária, dirá adeus à escola e nunca mais lhe porei a vista em cima. E, para além disso, já tenho problemas de sobra com que me entreter.
Fui a uma loja de discos, comprei um CD com as lieder de Mozart interpretadas por Elizabeth Schwarzkopf e ouvi-o vezes sem conta. Adorava a beleza tranquila daquelas canções. Bastava fechar os olhos e a música transportava-me invariavelmente àquela noite na ilha grega.
Tirando certas recordações sobremaneira vívidas, incluindo a do violento desejo sexual que senti por ela no dia da mudança, de Sumire não me ficou mais nada a não ser algumas longas cartas e uma disquete. Foram tantas as vezes que li as cartas e os dois documentos que já quase os sabia de cor. Sempre que voltava a relê-los, era como se Sumire e eu estivéssemos de novo juntos, e os nossos corações fossem um só. Isso reconfortava-me mais do que tudo neste mundo. Como acontece quando se vai à janela de um comboio que atravessa uma vasta planície deserta no meio da noite e se vislumbra ao longe um pontinho de luz numa herdade perdida. Num instante fica para trás, desaparece envolto em trevas, mas, fechando os olhos, esse pontinho de luz permanece, ainda que fugazmente, no nosso olhar.
Acordo a meio da noite e levanto-me da cama (de qualquer modo, já não ia conseguir dormir mais), deito-me no sofá e entretenho-me a rememorar as minhas recordações da pequena ilha grega, enquanto escuto Elizabeth Schwarzkopf. Recordo-me de todos os momentos, um a um, como se estivesse a folhear demoradamente as páginas da minha memória. A lindíssima praia deserta, a esplanada ao ar livre em frente do porto. A camisa manchada de suor do empregado. O perfil elegante de Miu e o resplendor do Mediterrâneo quando visto da varanda. A estátua do desditoso herói empalado, no meio da praça. E o som da música grega que chegava até mim, em plena noite, vinda do cimo do monte. Recordo de forma vívida a luz mágica da Lua, o misterioso eco da música. A sensação de abandono que experimentei quando fui por ela arrancado ao sono. Aquela dor informe que me atingiu ao bater da meia-noite, como se também o meu corpo tivesse sido trespassado, silenciosamente, cruelmente, por um objecto aguçado.
Ali deitado no sofá, mantenho durante um tempo os olhos fechados, depois volto a abri-los. No meu espírito começa a ganhar forma um pensamento, mas acabo por não pensar em nada de concreto. Não que haja grande diferença entre as duas coisas, entre pensar e não pensar. Já não consigo distinguir uma coisa da outra, algo que existe de algo que não existe. Espreito lá para fora, pela janela, até o céu ficar branco, as nuvens serem arrastadas, os pássaros começarem a chilrear e um novo dia nascer, agitando as consciências adormecidas de todos os que habitam este planeta.
Uma vez, em Tóquio, voltei a ver Miu de relance. Foi num domingo quente de Março, seis meses depois de Sumire ter desaparecido. O céu estava coberto de nuvens e desde manhã que ameaçava chover. Andava toda a gente de guarda-chuva na mão.
Eu ia visitar umas pessoas de família que viviam no centro da cidade e estava parado no sinal vermelho em Hiroo, no cruzamento ao pé das lojas Meiji-ya, quando vi um Jaguar azul-marinho que avançava lentamente no meio do tráfego congestionado. A magnífica cabeleira branca da mulher que ia ao volante chamou a minha a atenção. Mesmo ao longe, o azul fulgurante do carro e o branco dos cabelos produziam um vivo contraste. Como só vira Miu com o cabelo preto, demorei algum tempo a relacionar esta Miu com a que eu conhecia. Mas era ela, sem margem para dúvidas. Tão bonita como a imagem que dela guardava, com aquela sua encantadora sofisticação que marcava a diferença. A cabeleira branca, de cortar a respiração, formava à sua volta uma espécie de aura, que, a um tempo, lhe conferia um ar quase mítico e impunha um certo respeito.
Porém, a Miu que tinha ali à minha frente não era a mulher de quem me despedira no porto daquela ilha grega. Passara apenas meio ano, mas ela transformara-se numa outra mulher. Era evidente que a cor do cabelo era diferente, mas isso não era tudo.
Uma concha vazia. Foi essa a primeira impressão que a sua imagem causou no meu espirito. Miu lembrou-me um quarto que fica vazio depois de toda a gente se ter ido embora. Algo de extraordinariamente importante — precisamente aquilo que, com a força devastadora de um tornado, exercera sobre Sumire uma atracção fatal, aquilo que me provocara um abalo no coração quando me despedia dela no ferry — desaparecera para sempre, deixando para trás não a existência, mas a sua ausência, não o calor da vida, mas o silêncio da memória. Sem apelo nem agravo, os seus cabelos do mais puro branco faziam-me pensar na cor das ossadas humanas, embranquecidas pela passagem dos anos. Por momentos, não consegui exalar o ar que havia inspirado.
Volta e meia, o Jaguar que Miu conduzia adiantava-se ao táxi em que eu seguia, outras vezes ficava para trás, mas nem por uma vez ela se deu conta de que eu estava ali tão perto, à mercê do seu olhar. Não tentei sequer chamá-la. Não saberia o que dizer e, além do mais, as janelas do Jaguar estavam todas fechadas. Miu, sentada com as costas direitas, ambas as mãos no volante, mantinha-se atenta ao que se passava à sua frente. Talvez estivesse absorta, a pensar em algo, ou talvez a escutar A Arte da Fuga na aparelhagem do carro. Nem por um momento a sua expressão gelada, severa, se alterou, e quase nem pestanejou. Finalmente, quando o sinal ficou verde, o Jaguar acelerou em direcção a Aoyama, e o táxi em que eu seguia ficou para trás, à espera de que abrisse o sinal para virar à direita.
E assim prosseguimos com as nossas vidas, cada um para o seu lado. Por mais profunda e fatal que seja a perda, por mais importante que seja aquilo que a vida nos roubou — arrebatando-o das nossas mãos —, e ainda que nos tenhamos convertido em pessoas completamente diferentes, conservando apenas a mesma fina camada exterior de pele, apesar de tudo isso continuamos a viver as nossas vidas, assim, em silêncio, estendendo a mão para chegar ao fio dos dias que nos coube em sorte, para logo o deixarmos irremediavelmente para trás. Repetindo, muitas vezes, de forma particularmente hábil, o trabalho de todos os dias, deixando na nossa esteira um sentimento de um incomensurável vazio.
Pode muito bem ter acontecido que, de regresso ao Japão, Miu não tenha conseguido entrar em contacto comigo por qualquer razão. Dadas as circunstâncias, optou pelo silêncio, preferindo perder-se num qualquer lugar remoto, sem nome, agarrada às suas recordações. Pelo menos foi isso que eu imaginei. Não podia censurar Miu, e muito menos odiá-la.
Naquele momento, a imagem que me veio à cabeça foi a da estátua de bronze do pai dela erguendo-se naquela pequena aldeia perdida nas montanhas da Coreia do Norte. Imaginei a pequena praça, as casas baixas dispersas e a estátua de bronze coberta de poeira. Naquelas paragens, é costume o vento soprar com força, retorcendo as árvores até estas ficarem com formas irreais. Não sei porquê, mas, no meu espírito, a imagem dessa estátua foi-se sobrepondo à de Miu, com as mãos no volante do seu Jaguar, acabando por formar uma só.
Talvez tudo já esteja secretamente perdido de antemão, num qualquer lugar remoto. Ou então existe um sítio onde todas as coisas desaparecem, fundindo-se umas nas outras, até formar uma única imagem. E, à medida que vamos vivendo, mais não fazemos do que descobrir — puxando-as para nós, umas atrás das outras, como quem desenrola um fio muito fino — tudo o que ficou para trás. Fechei os olhos e esforcei-me por me lembrar do maior número possível de coisas belas que tinham desaparecido da minha vida. Esforcei-me por chamá-las a mim, retê-las entre as mãos, mesmo sabendo que a sua existência seria efémera.
Sonho. Às vezes penso que é a única coisa que vale a pena. Sonhar, viver no mundo dos sonhos — tal como Sumire dizia. Mas nunca dura muito tempo, a vigília acaba sempre por me trazer de novo à realidade.
Acordo às três da manhã, acendo a luz, sento-me na cama e fico a olhar para o telefone na mesa-de-cabeceira. Imagino Sumire numa cabina, a acender um cigarro e a marcar o meu número. Tem o cabelo despenteado, veste um casaco de tweed que lhe está demasiado grande, peúgas desirmanadas. Franze o sobrolho, engasga-se com o fumo do cigarro. Demora imenso tempo a discar correctamente o número. Tem a cabeça cheia de coisas que me quer dizer. Pode muito bem acontecer que fique a conversar comigo até de manhãzinha. Sobre a diferença entre signo e símbolo, por exemplo. O telefone parece que vai tocar a todo o momento, mas continua mudo. E ali fico eu, deitado na cama, sem tirar os olhos do aparelho, que teima em não tocar.
Até que finalmente tocou. Ali, à frente dos meus olhos, tocou mesmo. Fazendo tremer e vacilar o ar do mundo real. Agarrei logo no auscultador.
— Estou?
— Olá, estou de volta — exclamou Sumire de um modo muito natural, muito real. — Aconteceu-me tudo e mais alguma coisa, mas lá consegui regressar a casa. Foi um bocado como a Odisseia de Homero, mas na versão abreviada, em menos de cinquenta palavras.
— Que bom — disse eu.
Ainda mal podia acreditar que era a sua voz que eu ouvia, tudo aquilo estava realmente a acontecer.
— Que bom? — indignou-se Sumire, e quase jurava que ela franzira o sobrolho. — Mas que raio de conversa é essa? A minha vida tem sido um inferno, deixa-me que te diga. Querem lá ver que passei por toda a espécie de obstáculos, e, se me pusesse agora para aqui a contá-los, um a um, nunca mais acabava, para chegar aqui e ouvir-te dizer que bom7. Não arranjas nada melhor? Até me dá vontade de chorar. Se o facto de eu ter voltado não fosse bom, então não sei o que seria de mim. Que bom. Não dá para acreditar! Guarda mas é esse tipo de comentários reconfortantes e espirituosos para os teus alunos, para quando eles souberem a tabuada.
— Onde estás?
— Onde estou? Onde achas que podia estar? Na nossa boa e velha cabina telefónica. Nesta apertada caixa quadrada com as paredes de dentro forradas de anúncios a falsas empresas de financiamentos e serviços de acompanhantes. Do céu está pendurada uma meia lua em tons bolorentos e o chão está pejado de beatas. Para onde quer que me vire, não vejo nada que me anime. Uma cabina telefónica igual a tantas outras, totalmente semiótica. Agora onde fica? Isso agora já não sei dizer. É tudo demasiado semiótico por estas bandas, e tu já me conheces, não é? Metade do tempo nem sei de que terra sou. Os taxistas passam a vida a embirrar comigo: «Mas, afinal de contas, para onde deseja ir a senhora?» Não devo estar muito longe. Provavelmente até estou perto. = ,
— Nesse caso, Vou aí buscar-te.
— Agradeço-te. Vou descobrir onde é e volto a ligar para aí. De qualquer forma, já não tenho moedas. Espera só um bocadinho.
— Estou cheio de vontade de te ver — disse eu.
— E eu também estou cheia de vontade de te ver — repetiu ela. — Dei-me conta disso quando nunca mais te pus a vista em cima. Para mim foi tão claro como se de repente todos os planetas tivessem ficado alinhados à minha frente. Preciso mesmo de ti. Fazes parte de mim e eu faço parte de ti. Sabes uma coisa, acho que houve um sítio qualquer, não faço a menor ideia onde, em que cortei o pescoço a um animal qualquer. com uma faca afiada e o coração de pedra. Simbolicamente, como acontecia na história dos portões da China. Estás a perceber o que te digo?
— Acho que sim.
— Então anda lá buscar-me.
De repente, a chamada caiu. Ainda com o auscultador na mão, deixo-me ficar ali a olhar fixamente para ele, como se o telefone fosse, em si mesmo, uma mensagem primordial, como se a sua cor ou a sua forma tivessem algum significado especial. Depois, pensando melhor, desligo. Sento-me na cama e fico à espera de que volte a tocar. Estou encostado à parede, os olhos fixos num ponto do espaço à minha frente, e respiro devagar, sem fazer barulho, certificando-me de que ao tempo sucede o tempo. O telefone não toca. No ar reina um silêncio incondicional, mas eu não tenho pressa. Não há razão para me apressar. Estou preparado. Posso ir seja onde for.
Certo? Certíssimo!
Salto da cama. Corro as velhas cortinas desbotadas e abro a janela. Ponho a cabeça de fora e ergo os olhos para o céu. Lá está ela, uma meia lua em tons bolorentos, pendurada no céu. Que bom. Estamos ambos a olhar para a mesma Lua do mesmo mundo. Estamos ligados à realidade através do mesmo fio. Só preciso de o ir puxando devagarinho para mim.
Estico os dedos e ponho-me a olhar fixamente para a palma das mãos, à procura de sinais de sangue. Não encontro nada. Nem o cheiro a sangue, nem resquícios de sangue coagulado. Silenciosamente, sem ninguém dar por isso, deve ter sido absorvido.
Haruki Murakami
O melhor da literatura para todos os gostos e idades