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Series & Trilogias Literarias
Nada de espetacular acontecia com Stephanie, uma menina inteligente, filha única de pais atenciosos e ligeiramente sem graça. Mas ela sempre se perguntou se havia algo mais...
De fato tudo muda depois da morte de seu tio. Gordon Edgley era um excêntrico autor de horripilantes livros de terror, mas também um sujeito engraçado e brincalhão. Todos sabiam que Stephanie era sua sobrinha favorita, mas ninguém esperava que ela se tornasse a herdeira de grande parte de seus bens; entre eles, os direitos autorais de seus livros e sua casa, uma enorme mansão com mais mistérios que Stephanie poderia imaginar.
A menina não demora a descobrir que o terror das histórias do tio estava longe de ser ficção. Depois de sua primeira noite no casarão, pessoas estranhas e perigosas começam a aparecer em busca de uma chave que ela desconhece. Mas Stephanie não está sozinha. O Sr. Ardiloso Cortês, um detetive esperto, irônico e bem-humorado, está pronto para defendê-la. Além do mais, é um esqueleto vivo que anda, fala, faz magia e solta fogo — e isso é algo que Stephanie não pode ignorar.
Juntos terão que enfrentar um antigo mal que está prestes a destruir a humanidade. Será o fim do mundo?
Em seu livro de estréia, Derek Landy constrói uma trama repleta de magia e mistérios, espantosas cenas de luta, personagens cheios de estilo (e com nomes incríveis) e vilões perigosos e vingativos. Várias dessas idéias vieram de seus roteiros para filmes de zumbis e assassinos em série, mas ele fez questão de tornar seu herói mais bem vestido, mesmo morto. Landy vive em uma cidadezinha perto de Dublin, Irlanda, e a razão pela qual ele escreve sua própria biografia é que assim ele finalmente pode falar de si mesmo na terceira pessoa sem parecer metido ou maluco.
1
STEPHANIE
A súbita morte de Gordon Edgley foi um choque para todos, especialmente para ele mesmo. Em um momento ele estava no escritório, digitando a sétima palavra da 25a frase do capítulo final de seu novo livro E as trevas choveram sobre eles e, no momento seguinte, estava morto. “Uma perda trágica”, o pensamento ecoou na mente entorpecida de Gordon enquanto ele deslizava para o esquecimento.
O velório contou com a presença da família e de alguns conhecidos, mas de poucos amigos. Gordon não era uma figura querida no mundo editorial, pois mesmo que os livros que ele escrevia (contos de horror, magia e imaginação) aparecessem regularmente nas listas de mais vendidos, ele tinha o hábito constrangedor de insultar as pessoas sem perceber e depois rir da reação delas. Foi no enterro de Gordon, porém, que Stephanie Edgley viu o cavalheiro de sobretudo bege pela primeira vez.
Ele estava de pé, sob a sombra de uma grande árvore, longe do resto das pessoas, e mantinha o sobretudo abotoado até a gola, apesar do calor da tarde. Um cachecol estava enrolado sobre a metade inferior do rosto e, mesmo estando no lado oposto do túmulo, Stephanie percebeu o cabelo ondulado e selvagem que escapava por baixo do chapéu de aba larga que ele usava sobre os gigantescos óculos escuros. Stephanie olhou atentamente para o homem misterioso, intrigada com a aparência dele. Foi então que, como se soubesse que estava sendo observado, ele se virou e saiu caminhando pelas fileiras de lápides, desaparecendo entre elas.
Depois do enterro, Stephanie foi com os pais até a casa do tio recém-falecido, atravessando uma ponte corcunda e seguindo por uma estrada estreita, que abria caminho em meio às densas florestas. Os portões eram pesados, grandiosos e estavam abertos, saudando os parentes que chegavam à propriedade. Os jardins eram enormes, e a velha casa era ridiculamente grande.
Havia uma porta extra na sala de estar, disfarçada de estante de livros e, quando era mais nova, Stephanie gostava de acreditar que ninguém mais sabia dessa porta, nem mesmo Gordon. Era uma passagem secreta, como nas histórias que ela lia, e Stephanie inventava aventuras sobre casas mal-assombradas e tesouros escondidos. Esta passagem era sempre sua rota de fuga, e os vilões imaginários dessas aventuras sempre ficavam confusos com seu desaparecimento súbito e misterioso. Mas agora essa porta estava aberta, havia um fluxo constante de pessoas passando por ela, e Stephanie ficou triste quando esse pedaço de mágica lhe foi tirado.
O chá foi servido, drinques foram distribuídos e pequenos sanduíches circularam em bandejas de prata, e Stephanie observou os visitantes enquanto eles avaliavam casualmente o ambiente. O principal assunto das conversas sussurradas era o testamento. Gordon não era um homem dado a demonstrações de afeto, então ninguém poderia prever quem herdaria a considerável fortuna. Stephanie podia ver a ganância se infiltrando nos olhos úmidos do outro tio, um homenzinho horrível chamado Fergus, enquanto ele balançava a cabeça tristemente, falava de maneira sombria e colocava a prataria no bolso, quando achava que ninguém estava olhando.
A esposa de Fergus era uma mulher completamente desagradável, de feições angulosas, chamada Beryl. Vagava por entre a multidão, envolta num ar pouco convincente de tristeza e luto, buscando fofocas e procurando escândalos. As filhas deles faziam o possível para ignorar Stephanie. Carol e Cristal eram gêmeas, tinham 15 anos de idade e eram azedas e vingativas como os pais. Eram loiras falsas, atarracadas, e se vestiam com roupas que marcavam todas as gordurinhas excedentes, enquanto Stephanie tinha cabelos escuros, era alta, esbelta e forte. Tirando os olhos castanhos que todas compartilhavam, ninguém poderia adivinhar que as gêmeas eram parentes de Stephanie. Ela gostava disso. Era a única coisa de que ela gostava nas primas. Stephanie deixou as duas com seus olhares venenosos e sussurros maldosos e foi dar uma caminhada.
Os corredores da casa do tio eram longos e decorados com quadros. O piso sob os pés dela era de madeira, polido até brilhar, e a casa tinha cheiro de velha. Não era bem um cheiro de mofo, mas de uma vida experiente. Estas paredes e pisos tinham visto muitas coisas ao longo dos anos, e Stephanie não era nada mais que um leve suspiro para eles. Aqui num instante, desaparecida no próximo.
Gordon havia sido um bom tio. Arrogante e irresponsável, sim, mas também infantil e enormemente divertido, com um brilho de travessura nos olhos. Quando todos o levavam a sério, Stephanie tinha o privilégio de receber as piscadelas, acenos e sorrisos sorrateiros que ele dava para ela quando os outros não estavam olhando. Mesmo quando era criança, ela sentia que o entendia melhor que a maioria das pessoas. Ela gostava de sua inteligência, perspicácia e de como não ligava para o que as pessoas pensavam dele. Gordon tinha sido um bom tio, tinha ensinado muito a ela.
Stephanie sabia que sua mãe e Gordon tinham namorado brevemente (“cortejado”, a mãe dela havia dito), mas quando Gordon apresentou a namorada para o irmão mais novo, foi amor à primeira vista. Gordon gostava de resmungar que nunca ganhou nada mais que um beijo no rosto, mas deu a vez para o irmão graciosamente e foi feliz vivendo romances tórridos com várias mulheres bonitas. Costumava dizer que quase tinha sido uma troca justa, mas que ele havia sido prejudicado.
Stephanie subiu as escadas, empurrou a porta do escritório de Gordon e entrou. As paredes estavam cobertas de capas e molduradas dos best-sellers dele, que dividiam o espaço com todo o tipo de prêmio. Uma parede inteira era ocupada com prateleiras entulhadas de livros. Havia biografias, romances históricos, textos científicos e tratados de psicologia, além de inúmeras brochuras gastas enfiadas no meio. Uma prateleira mais baixa continha periódicos, publicações literárias e revistas trimestrais. Stephanie passou pela prateleira onde ficavam as primeiras edições dos romances de Gordon e se aproximou da escrivaninha.
Olhou para a cadeira na qual ele havia morrido, tentando imaginá-lo ali, como tinha caído para frente. E então ouviu-se uma voz tão macia que parecia de veludo.
— Pelo menos ele morreu fazendo o que amava.
Stephanie virou, surpresa, e viu o homem do funeral, de sobretudo e chapéu, de pé no vão de entrada. Ainda estava usando o cachecol e os óculos escuros que encobriam seu rosto, e o cabelo crespo ainda escapava por debaixo do chapéu. As mãos estavam cobertas por luvas.
— Sim — respondeu ela, pois não conseguiu pensar em mais nada. — Pelo menos isso.
— Você é uma das sobrinhas dele, então? — indagou o homem. — Não está roubando nem quebrando nada, então deve ser Stephanie.
Ela assentiu e aproveitou a oportunidade para olhá-lo mais de perto. Não era possível ver nem um mínimo pedaço do rosto dele por baixo do cachecol e dos óculos de sol.
— Você é amigo dele? — perguntou Stephanie. Ele era alto, o homem, alto e magro, apesar de o sobretudo tornar a avaliação difícil.
— Eu era — corrigiu ele, com um aceno da cabeça. Este mínimo movimento fez com que Stephanie percebesse que o resto do corpo dele estava estranhamente imóvel. — Nós éramos amigos havia anos, eu o conheci na frente de um bar em Nova York, na época em que eu estava por lá, quando ele tinha acabado de publicar o primeiro livro.
Stephanie não conseguia ver nada por trás dos óculos escuros, que eram negros como piche.
— Você também é escritor?
— Eu? Não, não saberia por onde começar. Mas pude viver minhas fantasias de escritor através de Gordon.
— Você tem fantasias de escritor?
— Achei que todo mundo tinha.
— Não sei, acho que não.
— Ah. Então isso me faz parecer meio esquisito, não é?
— Bem — respondeu Stephanie. — Ajuda um pouco.
— Gordon costumava falar em você o tempo todo, contava vantagem da sobrinhazinha dele. Era uma pessoa de caráter, seu tio. Parece que você também é.
— Você fala como se me conhecesse.
— Possui muita força de vontade, é inteligente, tem uma língua afiada, e nenhuma paciência para os tolos... Essa descrição faz você pensar em alguém?
— Sim, meu tio.
— Interessante — retrucou ele. — Essas foram as exatas palavras que ele usou para descrevê-la.
Os dedos enluvados do homem mergulharam no colete dele e puxaram um enfeitado relógio de bolso, com uma delicada corrente de ouro.
— Ah — exclamou —, tenho de ir embora. Foi bom conhecer você, Stephanie, que você tenha boa sorte em tudo aquilo que decidir fazer na vida.
— Obrigada — respondeu Stephanie, um pouco confusa. — Para você também.
Sentiu que o homem sorria, mesmo que não pudesse ver sua boca, e ele se foi, deixando Stephanie sozinha. Notou que não conseguia tirar os olhos do lugar que ele havia ocupado. Quem era ele? Ela nem sabia seu nome.
Stephanie atravessou o escritório e saiu se perguntando como ele havia sumido de vista tão rapidamente. Correu escada abaixo e chegou ao enorme átrio sem encontrá-lo. A menina abriu a porta da frente no momento em que um grande e negro carro antigo pegava a estrada. Ela observou o carro indo embora, ficou ali por mais alguns instantes, e então se reuniu com relutância ao resto da família na sala de estar, na hora certa de flagrar Fergus escondendo um cinzeiro de prata no bolso do paletó.
2
O TESTAMENTO
A vida na casa da família Edgley era bem comum. A mãe de Stephanie trabalhava num banco, o pai era dono de uma empresa de construção, e ela não tinha irmãos, portanto a rotina que tinham estabelecido era baseada na conveniência cordial. Mas, mesmo assim, havia sempre uma voz na cabeça de Stephanie que insistia que a vida tinha de ser mais que isto, a vida tinha de ser mais que a pequena cidade litorânea de Haggard. Ela simplesmente não conseguia descobrir exatamente o que estava faltando.
O ano letivo havia terminado, e ela estava feliz com a chegada das férias de verão. Stephanie não gostava da escola. Achava difícil se dar bem com os colegas; não porque não fossem boas pessoas, mas porque ela não tinha nada em comum com eles. E não gostava dos professores, não gostava de como exigiam um respeito que não haviam conquistado. Stephanie não tinha problemas em obedecer a ordens, desde que lhe fossem dados bons motivos para fazê-lo.
Stephanie passou os primeiros dias do verão ajudando o pai, atendendo ao telefone e arrumando os arquivos do escritório. Gladys, que tinha sido a secretária da empresa durante sete anos, havia decidido que já estava cheia de trabalhar no ramo de construção e resolveu tentar a sorte como artista performática. Stephanie tinha uma vaga sensação de constrangimento sempre que passava por ela na rua, aquela mulher de 43 anos de idade reinterpretando Fausto numa coreografia de dança moderna. Gladys tinha feito uma fantasia para usar durante as apresentações, uma fantasia que, segundo ela, simbolizava o conflito interno que Fausto estava vivendo. Aparentemente, Gladys se negava a aparecer em público sem a tal fantasia. Stephanie fazia o possível para evitar contato visual com ela.
Quando Stephanie não estava ajudando no escritório, estava nadando na praia ou trancada no quarto, ouvindo música.
Naquele dia, estava no quarto, tentando achar o carregador do celular, quando a mãe bateu à porta e entrou. Ainda estava vestindo as roupas sombrias que havia usado no funeral, apesar de Stephanie ter prendido os longos cabelos escuros e vestido a calça jeans de todos os dias dois minutos depois de chegar em casa.
— Recebemos um telefonema do advogado de Gordon — disse a mãe, parecendo um pouco surpresa. — Eles querem que a gente esteja presente na leitura do testamento.
— Ah — respondeu Stephanie. — O que acha que ele deixou para você?
— Bem, vamos descobrir amanhã. Você também, porque vai conosco.
— Eu vou? — indagou Stephanie, com um leve franzir do cenho.
— Seu nome está na lista, é tudo que sei. Saímos às 10h, certo?
— Eu tinha que ajudar o papai de manhã.
— Ele ligou para Gladys, pediu para ela ficar no escritório por algumas horas, como um favor. Ela disse que sim, desde que pudesse vestir a fantasia de amendoim.
A família Edgley saiu de casa no dia seguinte às 10h15, quinze minutos depois do planejado, graças ao desprezo casual do pai de Stephanie pela pontualidade. Ele vagava pela casa, aparentando ter esquecido alguma coisa, e dava a impressão de que estava apenas esperando que a lembrança surgisse outra vez. Ele assentia e sorria todas as vezes que a mulher dizia para ele se apressar, respondendo:
— Sim, é claro. — E, logo antes de se juntar à mulher e à filha no carro, ele saiu vagando de novo, olhando em volta com uma expressão confusa.
— Ele faz isso de propósito — disse a mãe de Stephanie, enquanto as duas esperavam no carro, com os cintos de segurança atados, prontas para partir. Elas assistiram enquanto ele apareceu na porta da frente, vestiu o casaco, botou a camisa para dentro da calça, deu um passo para fora e parou.
— Acho que ele vai espirrar — comentou Stephanie.
— Não — respondeu a mãe. — Ele está só pensando. — Ela colocou a cabeça para fora da janela do carro. — Desmond, qual é o problema, desta vez?
Ele olhou para ela, confuso, e disse:
— Acho que esqueci alguma coisa.
Stephanie se esticou para frente, do banco de trás, deu uma boa olhada no pai e falou com a mãe, que assentiu e colocou a cabeça para fora novamente.
— Onde estão seus sapatos, querido?
Ele olhou para baixo, para as meias: um pé marrom e o outro azul-marinho; e sua expressão estupefata se desanuviou. Desmond fez um sinal de “positivo” com o polegar erguido e voltou para dentro de casa.
— Esse homem... — disse a mãe de Stephanie, balançando a cabeça. — Você sabia que uma vez ele perdeu um shopping center?
— Ele o quê?
— Eu nunca contei essa história? Foi o primeiro grande contrato que ele fechou. A companhia fez um ótimo trabalho, e ele estava levando os clientes de carro para ver o resultado, e esqueceu onde ficava o shopping. Dirigiu por quase uma hora até encontrar algo que ele reconhecesse. Seu pai pode ser um engenheiro muito talentoso, mas juro que ele tem a memória de um peixinho dourado. Tão diferente de Gordon...
— Eles não eram muito parecidos, não é?
A mãe sorriu.
— Nem sempre foi assim. Eles costumavam fazer tudo juntos, os três eram inseparáveis.
— Como assim, até mesmo Fergus?
— Até mesmo Fergus. Mas, quando sua avó morreu, eles se distanciaram. Gordon começou a se misturar com pessoas estranhas.
— Estranhas como?
— Ah, provavelmente eles só pareciam estranhos para nós — respondeu a mãe com uma risadinha. — Seu pai estava começando a trabalhar como engenheiro civil, e eu estava na faculdade, nós éramos o que você poderia chamar de “normais”. Gordon resistia à normalidade, e os amigos dele, bem, eles nos assustavam. Nunca chegamos a saber no que eles estavam metidos, mas sabíamos que não era nada...
— Normal.
— Exatamente. Acima de tudo, eles assustavam seu pai.
— Por quê?
O pai de Stephanie saiu de casa, calçado, e fechou a porta da frente.
— Acho que ele era mais parecido com Gordon do que gostava de demonstrar — disse a mãe de Stephanie em voz baixa, e Desmond entrou no carro.
— Certo — disse ele, orgulhoso. — Estou pronto!
Elas ficaram olhando para ele, enquanto ele acenava com a cabeça, cheio de si. Ele colocou o cinto de segurança e girou a chave do carro. O motor ganhou vida com um ronronar. Stephanie acenou para Jasper, um orelhudo garoto de 8 anos de idade, enquanto o pai deu ré até a rua, passou a primeira marcha e partiu, tirando um fino da lata de lixo.
A viagem até o escritório do advogado na cidade levou pouco menos de uma hora, e eles chegaram 20 minutos atrasados. Foram levados por uma escadaria que rangia até um pequeno escritório, quente demais para ser confortável, com uma grande janela que oferecia uma vista maravilhosa da parede de tijolos do outro lado da rua. Fergus e Beryl já estavam lá e demonstraram seu desagrado com a espera forçada olhando para os relógios e fazendo cara de zangados. Os pais de Stephanie ocuparam as cadeiras restantes e ela ficou de pé atrás deles, enquanto o advogado olhava para eles através dos óculos rachados.
— Podemos começar? — reclamou Beryl. O advogado, um homem baixinho chamado Sr. Fedgewick, que tinha o diâmetro e a aparência de uma bola de boliche suada, tentou sorrir.
— Ainda estamos esperando mais uma pessoa — disse ele, ao que Fergus esbugalhou os olhos.
— Quem? — inquiriu ele. — Não pode haver mais ninguém, somos os únicos irmãos de Gordon. Quem poderia ser? Não é uma instituição de caridade, é? Nunca confiei nelas, sempre querendo alguma coisa da gente.
— Não é caridade — respondeu o Sr. Fedgewick. — Ele avisou, porém, que ia se atrasar um pouco.
— Quem avisou? — perguntou o pai de Stephanie, e o advogado olhou para o arquivo aberto sobre a mesa.
— Um nome muito estranho, este — comentou. — Parece que estamos esperando um tal de Sr. Ardiloso Cortês.
— Mas o que raios é isso? — perguntou Beryl, irritada. — Parece um, parece um... Fergus, o que ele parece?
— Parece um esquisitão — afirmou Fergus, olhando furioso para Fedgewick. — Ele não é um esquisitão, é?
— Não tenho como saber — respondeu Fedgewick, enquanto sua pobre imitação de sorriso se desmanchava miseravelmente sob os olhares que recebia de Fergus e Beryl. — Mas tenho certeza de que ele chegará muito em breve.
Fergus franziu o cenho, estreitando os olhos redondos o máximo que pôde.
— Como pode ter certeza?
Fedgewick hesitou, incapaz de oferecer um motivo, e foi aí que a porta se abriu e o homem de sobretudo bege entrou no recinto.
— Peço desculpas pelo atraso — disse, fechando a porta atrás de si. — Temo que tenha sido inevitável.
Todos os presentes olharam fixamente para ele, para o cachecol, as luvas, os óculos escuros e o selvagem cabelo crespo. Fazia um dia gloriosamente belo do lado de fora, e certamente não era o clima apropriado para se embrulhar tanto. Stephanie observou a cabeleira, que, de perto, nem parecia real.
O advogado pigarreou.
— O senhor é Ardiloso Cortês?
— Ao seu dispor — respondeu o homem. Stephanie poderia escutar aquela voz o dia inteiro. A mãe dela, indecisa como era, dirigiu a ele um sorriso de boas-vindas, mas Desmond olhava para Ardiloso com uma expressão de cautela que Stephanie jamais tinha visto antes. Depois de algum tempo, tal expressão deixou seu rosto, e ele acenou polidamente com a cabeça e virou-se novamente para o Sr. Fedgewick. Fergus e Beryl continuavam encarando.
— Você tem algum problema no rosto? — inquiriu Beryl.
Fedgewick pigarreou de novo.
— Muito bem, vamos ao que interessa, já que estão todos aqui. Excelente. Bom. Este, obviamente, é o testamento de Gordon Edgley, revisado pela última vez há quase um ano. Gordon foi meu cliente pelos últimos vinte anos, e durante esse período pude conhecê-lo bem, então gostaria de comunicar a vocês, a família e o amigo dele, os meus mais profundos...
— Certo, certo, certo — interrompeu Fergus, balançando a mão. — Poderíamos pular essa parte? Já estamos atrasados. Vamos para a parte na qual eu ganho coisas. Quem ficou com a mansão? E com a casa de campo?
— Quem ficou com a fortuna? — indagou Beryl, inclinando-se para frente.
— Os direitos autorais, quem ficou com os direitos dos livros? — perguntou Fergus.
Stephanie espiou Ardiloso com o canto do olho. Ele estava encostado na parede, com as mãos nos bolsos, olhando para o advogado, Bem, ele parecia estar olhando para o advogado; com aqueles óculos escuros, poderia estar olhando para qualquer lado. Ela voltou a prestar atenção no advogado, enquanto ele pegou uma folha de papel da escrivaninha e começou a ler.
— Para meu irmão Fergus e sua linda esposa Beryl — disse ele, e Stephanie se esforçou para esconder o sorriso. — Deixo meu carro, meu barco e um presente.
Fergus e Beryl piscaram os olhos.
— O carro? — exclamou Fergus. — O barco? Por que ele me deixaria o barco?
— Você odeia o mar — rosnou Beryl, com a raiva crescendo na voz. — Você fica enjoado.
— Eu realmente fico enjoado — exclamou Fergus. — E ele sabia disso!
— E nós já temos um carro! — acrescentou Beryl.
— E nós já temos um carro! — repetiu Fergus.
Beryl estava sentada tão na ponta da cadeira que já estava quase em cima da mesa.
— O presente — disse ela, com a voz grave e ameaçadora — é a fortuna?
O Sr. Fedgewick tossiu nervosamente, retirou uma pequena caixa da gaveta da escrivaninha e empurrou-a na direção de Fergus e Beryl. Eles olharam para a caixa. E olharam mais um pouco. Os dois tentaram pegar a caixa ao mesmo tempo, e Stephanie assistiu aos dois estapeando as mãos um do outro, até que Beryl arrancou a caixa da mesa e abriu a tampa com violência.
— O que é o presente? — perguntou Fergus em voz baixa. — A chave de um cofre no banco? O número de uma conta corrente? É isso, o que é? Mulher, o que é o presente?
O rosto de Beryl estava completamente pálido, como um fantasma, e suas mãos tremiam. Ela piscava com força para evitar as lágrimas, e virou a caixa para que todos pudessem ver, e todos viram o broche, do tamanho de um descanso de copo, aninhado na almofada de veludo. Fergus olhava fixamente para o objeto.
— Ele nem é incrustado de pedras preciosas! — exclamou Beryl com uma voz apertada. Fergus abriu a boca como um peixe espantado e virou para Fedgewick.
— O que mais nós ganhamos? — perguntou ele, em pânico.
O Sr. Fedgewick tentou sorrir novamente.
— O, ahn, o amor do seu irmão?
Stephanie ouviu um uivo agudo de lamentação, e levou um momento até que ela percebesse que vinha de Beryl. Fedgewick voltou a atenção ao testamento, tentando ignorar os olhares horrorizados que recebia de Fergus e da esposa.
— Para meu bom amigo e guia Ardiloso Cortês, deixo o seguinte conselho. Seu caminho é só seu, mas, às vezes, o maior inimigo que podemos enfrentar somos nós mesmos, e nossa maior batalha é contra as trevas que vêm de dentro. Uma tempestade se aproxima, e às vezes a chave para o porto seguro está oculta e, outras vezes, está diante de nossos olhos.
Stephanie se juntou a todos os outros presentes e ficou olhando para o Sr. Cortês. Ela soube que havia algo de diferente nele no momento em que o viu pela primeira vez; havia algo exótico, algo misterioso, algo perigoso. O enigmático visitante abaixou a cabeça, e essa foi sua única reação aparente. Não deu qualquer explicação para a mensagem de Gordon.
Fergus pôs a mão no joelho da esposa.
— Viu, Beryl? Um carro, um barco e um broche não são tão ruins. Ele poderia ter nos dado apenas um conselho idiota.
— Ah, cale a boca, Fergus — rosnou Beryl, e Fergus se encolheu na cadeira.
O Sr. Fedgewick continuou lendo.
— Para meu outro irmão, Desmond, o sortudo da família, deixo a sua mulher. Acho que você poderá gostar dela. — Stephanie viu que os pais se deram as mãos e sorriram melancolicamente. — Agora que você teve sucesso em roubar minha namorada, talvez possa querer levá-la para minha casa de campo na França, que também estou deixando para você.
— Eles ficaram com a casa de campo? — gritou Beryl, ficando de pé num pulo.
— Beryl — disse Fergus. — Por favor...
— Você faz idéia de quanto vale aquela casa de campo? — continuou Beryl, parecendo a ponto de pular nos pescoços dos pais de Stephanie. — Nós ficamos com um broche, e eles com a casa de campo? Eles são só três, nós temos Carol e Cristal! Nós somos mais! Precisamos do espaço extra! Por que eles merecem a casa de campo? — Ela empurrou a caixa com o broche na direção dos pais de Stephanie. — Vamos trocar!
— Sra. Edgley, por favor, volte ao seu lugar, ou não será possível continuar — pediu o Sr. Fedgewick, e, no fim, depois de muitos olhares esbugalhados, Beryl se sentou novamente.
— Obrigado — agradeceu o Sr. Fedgewick, que parecia já ter passado por emoções demais num dia só. Ele lambeu os lábios, ajustou os óculos e voltou a ler o testamento. — Se tenho um único arrependimento na vida, é o fato de nunca ter tido filhos. Há momentos em que olho para as crianças que Fergus e Beryl produziram e me considero afortunado, mas também há momentos nos quais isso parte meu coração. E assim, finalmente, chegamos à minha sobrinha Stephanie.
Stephanie arregalou os olhos. O quê? Ela ia herdar alguma coisa? Deixar a casa de campo para os pais dela não tinha sido o suficiente para Gordon?
Fedgewick continuou lendo.
— O mundo é maior do que você sabe e mais assustador do que você poderia imaginar. O único bem que vale alguma coisa é ser honesto consigo mesmo, e o único objetivo que vale a pena ser seguido é descobrir quem você realmente é.
Ela podia sentir os olhares maldosos de Fergus e Beryl, e fez de tudo para ignorá-los.
— Deixe seus pais orgulhosos, e faça com que eles fiquem felizes em tê-la sob o teto deles, porque deixo para você minhas propriedades e posses, meus bens e direitos autorais para serem herdados no dia em que completar 18 anos. Gostaria de aproveitar esta oportunidade para dizer que, da minha maneira particular, eu amo todos vocês, mesmo aqueles de quem não gosto muito. Estou falando de você, Beryl.
Fedgewick tirou os óculos e ergueu os olhos.
Stephanie percebeu que todo mundo estava olhando para ela e não tinha a menor idéia do que deveria dizer. Fergus estava imitando um peixe espantado de novo, e Beryl estava apontando um dedo ossudo para Stephanie, tentando inutilmente falar alguma coisa. Os pais de Stephanie olhavam para a filha estupefatos. Apenas Ardiloso Cortês se moveu, indo até ela e tocando gentilmente seu braço.
— Parabéns — disse ele, e caminhou em direção à porta. Assim que ela se fechou atrás dele, Beryl recuperou a voz.
— ELA? — gritou Beryl. — ELA?
3
GAROTINHA SOZINHA
Naquela tarde, Stephanie e a mãe fizeram o percurso de 15 minutos de Haggard até a propriedade de Gordon. A mãe abriu a porta e deu um passo atrás.
— A dona da casa primeiro — disse ela, com um sorriso e uma mesura, e Stephanie entrou. Não estava pensando na casa como propriedade dela; era um conceito grande demais, parecia bobagem. Mesmo que os pais dela fossem, tecnicamente, os administradores até que ela completasse 18 anos, como era possível que ela tivesse uma casa? Quantas outras meninas de 12 anos possuíam casas?
Não, era uma idéia tola, absurda demais. Maluca demais. Exatamente o tipo de coisa que Gordon teria considerado perfeitamente lógica.
Ao andar pela casa, Stephanie achou que era grande, silenciosa e vazia. Tudo parecia novidade para ela, e Stephanie percebeu que reagia de maneira diferente aos móveis, tapetes e pinturas. Ela gostava deles? Concordava com a escolha da cor daquele estofamento? Uma coisa ela tinha de admitir: Gordon tinha bom gosto. A mãe de Stephanie disse que mudaria pouca coisa na casa, se fosse obrigada a fazê-lo. Algumas das pinturas eram perturbadoras demais para o gosto dela, talvez, mas, no geral, a mobília era elegante e discreta, emanando um ar de distinção que fazia jus a uma casa dessa categoria.
Os Edgley ainda não tinham decidido o que fazer com a casa. A decisão final seria de Stephanie, mas os pais ainda tinham a casa de campo para considerar. Uma família de três pessoas com três casas diferentes era um certo exagero. Desmond sugeriu que eles vendessem a casa de campo, mas a mãe de Stephanie odiou a idéia de se desfazer de um lugar tão paradisíaco.
Também falaram sobre a educação de Stephanie, e ela sabia que aquela conversa estava longe de terminar. Assim que deixaram o escritório do Sr. Fedgewick, o casal avisou a Stephanie que ela não deveria deixar que as novidades lhe subissem à cabeça. Os eventos recentes, disseram eles, não significavam que ela poderia parar de estudar, de fazer planos para a faculdade. Ela precisava ser independente, disseram, precisava vencer por mérito próprio.
Stephanie deixou que eles falassem, assentiu ocasionalmente e resmungou um “sim” nos momentos apropriados. Não se deu ao trabalho de explicar que ela precisava ir à faculdade, que precisava encontrar o próprio caminho no mundo, porque, caso contrário, sabia que jamais escaparia de Haggard. Stephanie não ia jogar seu futuro pela janela só porque algum dinheiro havia caído em seu colo.
Stephanie e a mãe passaram tanto tempo andando pelo térreo que, quando finalmente chegaram no pé da escada, já eram 17h. Tendo encerrado a exploração da casa por aquele dia, elas trancaram a porta e foram para o carro. As primeiras gotas de chuva atingiram o pára-brisa assim que elas entraram no veículo. Stephanie travou o cinto de segurança, e a mãe dela virou a chave na ignição.
O carro gaguejou um pouco, gemeu por alguns instantes e então ficou completamente calado. A mãe de Stephanie olhou para a filha.
— Oh, oh. — As duas saíram e abriram o capô.
— Bem — disse a mãe, olhando para o motor. — Pelo menos ele ainda está aí.
— Você sabe alguma coisa sobre motores? — perguntou Stephanie.
— É para isso que tenho um marido, para que eu não precise entender dessas coisas. Motores e prateleiras, para isso o homem foi inventado. — Stephanie decidiu que ia aprender a mexer em motores antes dos 18 anos. Mas não se empolgou muito com as prateleiras.
A mãe procurou o celular na bolsa e ligou para o pai de Stephanie, mas ele estava ocupado numa obra e não teria como se encontrar com elas antes de escurecer. Elas voltaram para dentro da casa, e a mãe ligou para um mecânico. Esperaram por 45 minutos até que ele chegasse.
O céu estava cinzento e irritado, e a chuva caía com força no momento em que o caminhão surgiu, virando uma curva. Passou por várias poças d’água na longa estrada que ia da entrada da propriedade até a casa. A mãe de Stephanie puxou o casaco sobre a cabeça e correu até o caminhão. Stephanie podia ver um grande cachorro dentro da cabine do veículo, que observava o mecânico enquanto ele examinava o carro. Depois de alguns minutos, a mãe correu de volta para a casa, completamente encharcada.
— Ele não vai conseguir consertá-lo aqui — disse ela, torcendo o casaco na varanda. — Vai rebocar o carro até a oficina. Não deve demorar muito para resolver o problema por lá.
— Tem lugar para nós duas dentro do caminhão?
— Você pode ir sentada no meu joelho.
— Mãe!
— Ou eu sento no seu, o que você preferir.
— Posso ficar aqui?
A mãe olhou para a filha.
— Sozinha?
— Por favor? Você disse que não ia demorar, e eu queria olhar a casa mais um pouco, sozinha.
— Não sei, Steph...
— Por favor? Eu já fiquei sozinha antes. Não vou quebrar nada, eu juro.
A mãe riu.
— Certo, está bem. Não devo demorar mais que uma hora, está bem? Uma hora e meia, no máximo. — A mãe deu um rápido beijo na bochecha da filha. — Ligue para mim, se precisar de alguma coisa.
A mãe de Stephanie correu pela chuva e pulou para dentro da cabine, sentando ao lado do cachorro, que se pôs a babar na cara dela. Stephanie observou enquanto o carro era rebocado, até os veículos desaparecerem ao longe.
Ela explorou mais um pouco, agora que estava sozinha. Stephanie subiu as escadas e foi direto para o escritório de Gordon.
O editor dele, Seamus T. Steepe, da Editora Arco Voltaico, tinha telefonado mais cedo naquele mesmo dia, transmitindo os pêsames e perguntando sobre o livro mais recente. A mãe de Stephanie disse que elas iam verificar se Gordon tinha terminado de escrever o livro, e, caso isso tivesse acontecido, elas enviariam o manuscrito para ele. O Sr. Steepe estava muito interessado em colocar o livro nas livrarias, pois tinha certeza de que iria direto para as listas de mais vendidos, ficando nelas por um longo tempo.
— Escritores mortos são um sucesso de vendas — disse ele, como se estivesse aprovando uma esperta jogada de marketing da parte de Gordon.
Stephanie abriu a gaveta da escrivaninha e encontrou o manuscrito empilhado de forma organizada. Retirou-o da gaveta cautelosamente, e colocou-o em cima da mesa, tomando cuidado para não manchar o papel. A primeira página continha o título, e mais nada, em letras garrafais:
E as trevas choveram sobre eles
O manuscrito era grosso e pesado, como todos os livros de Gordon. Ela havia lido a maioria deles e, fora a pitada ocasional de pretensão, tinha gostado muito do trabalho do tio. As histórias dele geralmente eram sobre pessoas que podiam fazer coisas incríveis e maravilhosas, e os estranhos e terríveis eventos que invariavelmente levavam às suas mortes bizarras e horríveis. Ela percebeu a maneira como ele desenvolvia um herói forte e nobre, e ao longo do livro sistematicamente submetia o herói a castigos brutais, num esforço para despi-lo de toda a arrogância e certeza, de modo que no final o protagonista tinha ficado mais humilde e aprendido uma importante lição. E então Gordon o matava, geralmente da forma mais humilhante possível. Stephanie praticamente podia ouvir Gordon rindo com uma alegria maliciosa, enquanto ela lia.
Ergueu a página de rosto e colocou-a com cuidado na mesa, ao lado do manuscrito. E começou a ler. Não pretendia gastar muito tempo nisso, mas logo passou a devorar cada palavra, ignorando os rangidos da velha casa e o barulho da chuva lá fora.
O celular de Stephanie tocou, assustando-a. Ela estava lendo havia duas horas. Stephanie apertou o botão para atender e levou o aparelho à orelha.
— Alô, querida — era a voz da mãe dela. — Tudo bem?
— Sim — respondeu Stephanie. — Estava lendo.
— Não era um dos livros do Gordon, era? Steph, ele escreve sobre monstros horríveis, coisas assustadoras e pessoas ruins fazendo coisas piores. Você terá pesadelos.
— Não, mãe, eu... eu estou lendo o dicionário.
Nem mesmo o breve silêncio do outro lado da linha parecia ter acreditado nessa.
— O dicionário — comentou a mãe dela. — Sério?
— Sim — insistiu Stephanie. — Você sabia que zuruó é uma palavra?
— Você é mais estranha do que seu pai, sabia disso?
— Eu já desconfiava que isso fosse verdade... O carro já ficou pronto?
— Não, por isso liguei. Eles não conseguiram consertar, e a estrada que leva até aí está inundada. Vou pegar um táxi até onde der e vou tentar andar o resto do caminho. Vou demorar pelo menos mais duas horas.
Stephanie percebeu uma oportunidade. Desde a mais tenra infância, preferia ficar sozinha a estar com outras pessoas, e lembrou que jamais tinha passado uma noite sem os pais por perto. A menina estava experimentando o gostinho de liberdade, que quase formigava na ponta da língua.
— Mãe, está tudo bem, não precisa vir. Estou bem aqui.
— Não há a menor chance de eu deixá-la sozinha numa casa estranha.
— Não é uma casa estranha, é a casa do Gordon, e está tudo bem por aqui. Não há motivo para você tentar chegar aqui ainda hoje, a chuva está forte demais.
— Querida, não vou demorar muito.
— Vai levar um tempão! Onde é a inundação?
A mãe dela hesitou.
— Na ponte.
— Na ponte? E você quer andar da ponte até aqui?
— Se eu andar bem rápido...
— Mãe, não seja boba. Peça para o papai buscar você.
— Querida, você tem certeza disso?
— Eu gosto de ficar aqui, sério. Posso?
— Certo, está bem — disse a mãe de Stephanie, relutante. — Estarei aí amanhã bem cedo para buscá-la, está bem? Vi que tinha comida na cozinha; se tiver fome, prepare alguma coisa.
— Combinado. Vejo você amanhã.
— Ligue se precisar de qualquer coisa ou se você se sentir sozinha.
— Pode deixar. Boa noite, mãe.
— Eu te amo.
— Eu sei.
Stephanie desligou e sorriu. Guardou o telefone no bolso do casaco, colocou os pés na escrivaninha, relaxando na cadeira, e voltou a ler.
Quando finalmente ergueu os olhos do livro outra vez, Stephanie se surpreendeu ao ver que era quase meia-noite, e que a chuva tinha parado. Se estivesse em casa naquele momento, estaria na cama. Piscou os olhos cansados, levantou-se e desceu até a cozinha. Considerando toda a riqueza, sucesso e gostos extravagantes de Gordon, felizmente para Stephanie ele era bem convencional em assuntos gastronômicos. O pão estava duro e as frutas tinham passado do ponto, mas havia biscoitos e cereal, e o prazo de validade do leite na geladeira ia até o dia seguinte. Stephanie fez um lanche e vagou até a sala de estar, onde ligou a TV. Sentou no sofá e estava se acomodando quando o telefone da casa tocou.
Ela olhou para o aparelho, localizado na mesinha próxima a seu cotovelo. Quem estaria ligando? Qualquer pessoa que soubesse que Gordon tinha morrido não ligaria, e Stephanie não queria ter de dar a notícia para alguém que não soubesse. Talvez fossem os pais dela, mas porquê não ligaram para o celular?
Concluindo que, como nova dona da casa, ela tinha a responsabilidade de atender ao próprio telefone, Stephanie ergueu o fone e levou-o até a orelha.
— Alô.
Silêncio.
— Alô — repetiu Stephanie.
— Quem está falando? — inquiriu uma voz masculina.
— Desculpe — respondeu Stephanie. — Com quem deseja falar?
— Quem está falando? — perguntou novamente a voz, mais irritada desta vez.
— Se quer falar com Gordon Edgley, sinto informar que ele...
— Eu sei que Edgley morreu — cortou o homem. — Quem é você? Qual é o seu nome?
Stephanie hesitou.
— Por que quer saber? — perguntou ela.
— O que está fazendo nessa casa? Por que você está nessa casa?
— Se quiser ligar de novo amanhã...
— Eu não quero, entendeu? Escute bem, garotinha, se você atrapalhar os planos do meu mestre, ele vai ficar muito insatisfeito, e ele não é o tipo de cara que você quer que fique insatisfeito, deu para entender? Agora me diga quem é você!
Stephanie percebeu que suas mãos estavam tremendo. Esforçou-se para ficar calma e rapidamente transformou o nervosismo em raiva.
— Meu nome não é problema seu — exclamou ela. — Se quiser falar com alguém, ligue amanhã numa hora normal.
— Não fale assim comigo — sibilou o homem.
— Boa noite — disse Stephanie, com firmeza.
— Você não fale assim co...
Mas Stephanie já estava colocando o fone no gancho. Subitamente, a idéia de passar a noite inteira ali sozinha não pareceu mais tão boa assim. Considerou a hipótese de ligar para os pais, mas se censurou por ser tão infantil. Não é necessário preocupá-los, pensou. Não há necessidade de incomodá-los com algo tão...
Alguém bateu à porta da frente.
— Abra já — era a voz do homem entre as pancadas. Stephanie ficou de pé, olhando através do átrio além da sala de estar. Podia ver uma silhueta escura atrás do vidro jateado que cercava a entrada. — Abra a maldita porta!
Stephanie recuou até a lareira, o coração batendo forte. Ele sabia que ela estava na casa, não adiantava fingir que não, mas, talvez, se ela ficasse bem quieta, ele poderia desistir e ir embora. Ouviu o homem xingando, e as batidas ficaram tão fortes que a porta chacoalhava com cada pancada.
— Me deixe em paz! — gritou Stephanie.
— Abra a porta!
— Não! — berrou ela em resposta. Stephanie gostava de gritar, pois assim escondia o medo. — Estou chamando a polícia! Estou chamando a polícia agora mesmo!
As batidas cessaram imediatamente, e Stephanie viu a silhueta saindo de perto da porta. O que foi aquilo? Será que tinha assustado o homem? Ela se lembrou da porta de trás; será que estava fechada? Claro que estava fechada... Tinha de estar fechada. Mas não tinha certeza, ela não lembrava. Stephanie pegou um atiçador da lareira e ia pegar o telefone quando ouviu uma batida na janela ao lado dela.
Deu um grito e pulou para trás. As cortinas estavam abertas, e só havia escuridão completa do lado de fora da janela. Stephanie não conseguiu ver nada.
— Está sozinha aí? — indagou a voz. Soava provocadora agora, com se estivesse zombando da menina.
— Vá embora — disse Stephanie bem alto, segurando o atiçador para que o estranho pudesse vê-lo. Ela ouviu o homem rindo.
— O que vai fazer com isso? — perguntou ele.
— Vou usá-lo para rachar sua cabeça! — gritou Stephanie em resposta, enquanto o medo e a fúria borbulhavam dentro dela. Ouviu o homem rindo de novo.
— Eu só quero entrar — afirmou ele. — Abra a porta para mim, garotinha, me deixe entrar.
— A polícia já está a caminho — blefou Stephanie.
— Você está mentindo.
Ela ainda não conseguia ver nada além do vidro, e ele podia ver tudo. Andou até o telefone, tirando-o do gancho.
— Não faça isso — disse a voz.
— Vou chamar a polícia.
— A estrada está fechada, garotinha. Se você chamá-los, eu arrebento aquela porta e mato você horas antes de eles conseguirem chegar aqui.
O medo se transformou em terror, e Stephanie ficou paralisada. Estava a ponto de começar a chorar. Conseguia sentir as lágrimas se acumulando dentro dela. Stephanie não chorava havia anos.
— O que você quer? — perguntou ela à escuridão. — Por que quer entrar?
— Isso não tem nada a ver comigo, garotinha. Eu apenas fui enviado para buscar uma coisa. Me deixe entrar. Vou dar uma procurada, pegar o que preciso e vou embora. Não vou machucar um único fio de cabelo da sua linda cabecinha, eu prometo. Agora abra aquela porta imediatamente.
Stephanie segurou o atiçador com as duas mãos e balançou a cabeça. Ela estava chorando, as lágrimas escorriam pelas bochechas.
— Não — respondeu ela.
A menina gritou quando um punho atravessou a janela, espalhando vidro quebrado no carpete. Tropeçou para trás enquanto o homem começou a pular a janela para o lado de dentro, encarando Stephanie com olhos flamejantes, alheio ao vidro que havia ficado preso nele. No momento em que o primeiro pé tocou o piso da casa, Stephanie disparou para fora da sala, até a porta da frente, onde tentou manejar a tranca.
Mãos fortes agarraram Stephanie por trás. Ela gritou novamente, enquanto era erguida do chão e carregada para trás. Ela chutou desesperadamente, acertando o calcanhar na canela do invasor. O homem grunhiu e soltou Stephanie, que girou, tentando acertar o atiçador no rosto do inimigo, mas ele segurou o objeto e arrancou-o das mãos da menina. Uma das mãos do invasor saltou para a garganta de Stephanie, que engasgou, incapaz de respirar enquanto era empurrada de volta para a sala de estar.
O invasor jogou a menina numa poltrona e se inclinou sobre ela. Não importava quanto se esforçasse, Stephanie não conseguia se soltar.
— Agora — disse o homem, enquanto sua boca se contorcia num sorriso de escárnio. — Por que não me dá a chave, garotinha?
E foi então que a porta da frente voou das dobradiças e Ardiloso Cortês pulou para dentro da casa.
O homem praguejou, soltou Stephanie e balançou o atiçador, mas Ardiloso foi direto até ele e o socou com tanta força que Stephanie achou que sua cabeça fosse se separar do corpo. O invasor caiu para trás, mas ficou de pé com um giro, enquanto Ardiloso avançava novamente.
O invasor se atirou para frente. Os dois colidiram, voaram por sobre o sofá e Ardiloso perdeu o chapéu. Stephanie percebeu que havia algo branco acima do cachecol.
Os dois se levantaram, agarrando-se como lutadores de judô, e o homem deu um soco que atirou os óculos de Ardiloso para o outro lado do aposento. Ardiloso contra-atacou se abaixando, agarrando o homem pela cintura e jogando-o para trás. O invasor caiu de costas no chão, com força.
Ele praguejou mais ainda, então se lembrou de Stephanie e correu até ela. Stephanie saltou da poltrona, mas, antes que ele a alcançasse, Ardiloso estava lá, dando uma rasteira no homem. Ao cair, ele atingiu uma mesinha de centro com o queixo e uivou de dor.
— Você acha que pode me impedir? — gritou enquanto se levantava. Seus joelhos pareciam tremer. — Você sabe quem eu sou?
— Não faço a mínima idéia — retrucou Ardiloso.
O invasor cuspiu sangue e sorriu desafiadoramente.
— Bem, eu sei quem você é — revelou ele. — Meu mestre me contou tudo sobre você, detetive, e terá de fazer muito mais do que isso para me impedir.
Ardiloso deu de ombros e Stephanie assistiu, impressionada, quando uma bola de fogo surgiu na mão dele e quando ele atirou a bola de fogo no homem, que ficou subitamente coberto de chamas. Mas, em vez de gritar, o invasor inclinou a cabeça para trás e gargalhou num rugido. O fogo engolfou o homem estranho, mas ele não estava se queimando.
— Mais! — Ele riu. — Me dê mais!
— Já que você insiste...
E Ardiloso puxou um revólver antiquado do casaco e disparou, recebendo um tranco da arma. A bala acertou o homem no ombro, ele gritou e em seguida, ao tentar correr, tropeçou. O invasor fugiu em direção à porta, se abaixando e fazendo movimentos evasivos para não levar outro tiro, enquanto o fogo obstruía sua visão, fazendo-o se chocar com a parede ao sair.
E assim ele se foi.
Stephanie olhou fixamente para a porta, tentando entender o impossível.
— Bem — disse Ardiloso. — Isso não é algo que você vê todos os dias.
Ela virou para olhar para ele. Quando o chapéu dele voou, o cabelo voou junto. Em meio à confusão, tudo que ela pode ver foi uma cabeça branca como giz, e por isso esperava que ele fosse um albino careca, talvez. Mas, não. Sem os óculos e com o cachecol abaixado, não havia como negar que ele não tinha carne, não tinha pele, nem olhos, nem rosto.
Tudo que tinha como cabeça era uma caveira.
4
A GUERRA SECRETA
Ardiloso guardou a arma e andou até o átrio. Olhou para a escuridão da noite. Convencido de que não havia mais bolas de fogo humanas se esgueirando por perto, voltou para dentro e levantou a porta, grunhindo com o esforço. Colocou-a de novo no lugar, deixando-a encostada no batente, então deu de ombros e voltou para a sala de estar, onde Stephanie ainda estava de pé, olhando para ele.
— Desculpe pela porta — disse ele.
Stephanie continuou olhando.
— Eu pagarei pelo conserto.
Stephanie continuou olhando.
— Ainda é uma porta muito boa, sabe. Resistente.
Ao perceber que Stephanie não estava em condições de fazer mais nada além de olhar, ele deu de ombros novamente e tirou o sobretudo, dobrando-o de maneira caprichosa e pendurando-o sobre o espaldar de uma cadeira. Ardiloso foi até a janela quebrada e começou a catar os pedaços de vidro do chão.
Agora que estava sem o sobretudo, Stephanie pode perceber quanto ele era realmente magro. O terno, mesmo sendo de ótimo feitio, vestia Ardiloso como se ele fosse um cabide, fazendo com que parecesse amorfo. Ela observou enquanto ele recolhia o vidro quebrado e teve um vislumbre de osso entre a luva e a manga da camisa. Ele ficou de pé, olhando para ela.
— Onde coloco esse vidro todo?
— Não sei — respondeu Stephanie em voz baixa. — Você é um esqueleto.
— Sou, de fato — concordou ele. — Gordon mantinha um latão de lixo ao lado da porta dos fundos. Devo colocar os cacos nele?
Stephanie assentiu.
— Sim, está bem — disse ela, simplesmente, e assistiu enquanto Ardiloso carregava uma braçada de estilhaços de vidro para fora da sala. Durante sua vida inteira, Stephanie sonhou com algo mais, algo que a levasse embora do mundo enfadonho que conhecia; e agora que parecia que isso realmente ia acontecer, não tinha a menor idéia do que fazer. As perguntas se atropelavam na cabeça dela, cada uma tentando ser a que ela faria primeiro. Tantas perguntas...
Ardiloso voltou, e ela fez a primeira pergunta,
— Você encontrou o latão de lixo direitinho?
— Encontrei, sim. Estava no lugar de sempre.
— Tudo bem, então. — Se as perguntas fossem pessoas, elas estariam encarando Stephanie boquiabertas, sem poder acreditar. Ela lutou para formar pensamentos coerentes.
— Você disse seu nome para ele? — indagou Ardiloso.
— O quê?
— Seu nome. Você disse a ele?
— Ah, não...
— Ótimo. Quando você sabe o nome verdadeiro de alguma coisa, você tem poder sobre ela. Mas mesmo um nome dado, como Stephanie, teria sido o suficiente para fazê-lo.
— Fazer o quê?
— Para dar a ele alguma influência sobre você, para obrigá-la a fazer o que ele mandasse. Se ele tivesse seu nome e soubesse o que fazer com ele, já seria o bastante. É um pensamento assustador, não é?
— O que está acontecendo? — indagou Stephanie. — Quem era ele? O que ele queria? Quem diabos é você?
— Eu sou eu — respondeu Ardiloso, pegando o chapéu e a peruca e colocando os dois numa mesinha próxima. — Quanto a ele, não sei quem é, nunca o vi antes em minha vida.
— Você atirou nele.
— Isso mesmo.
— E você jogou fogo nele.
— Sim, joguei.
As pernas de Stephanie ficaram fracas, e ela se sentiu tonta.
— Senhor Cortês, você é um esqueleto.
— Ah, sim, voltamos ao X da questão. Sim, eu sou, como você diz, um esqueleto. Tenho sido um esqueleto há alguns anos.
— Estou ficando maluca?
— Espero que não.
— Então você é real? Você existe mesmo?
— Presumo que sim.
— Quer dizer que não tem certeza se existe ou não?
— Tenho bastante certeza. Quero dizer, eu poderia estar errado. Poderia ser uma alucinação medonha, uma ficção da minha imaginação.
— Você poderia ser uma ficção da sua própria imaginação?
— Coisas mais estranhas já aconteceram. E acontecem com uma regularidade alarmante.
— Isso é esquisito demais.
Ardiloso colocou as mãos enluvadas nos bolsos e ergueu a cabeça. Não tinha globos oculares, então era difícil saber se ele estava olhando para ela ou não.
— Sabe, conheci seu tio em circunstâncias semelhantes. Bem, mais ou menos semelhantes. Mas ele estava bêbado. E nós estávamos num bar. Ele vomitou nos meus sapatos. Então suponho que as circunstâncias reais não eram lá bem semelhantes, mas os dois eventos envolvem pessoas se conhecendo, então... O ponto em que quero chegar é que ele estava com problemas, e eu estava lá para dar uma mão, e nos tornamos bons amigos depois disso. Bons, bons amigos. — Ele inclinou a cabeça. — Você parece estar a ponto de desmaiar.
Stephanie assentiu lentamente.
— Eu nunca desmaiei antes, mas acho que você pode estar certo.
— Quer que eu pegue você se cair ou...?
— Se você não se importar.
— Não seria problema algum.
— Obrigada.
Stephanie sorriu fragilmente para Ardiloso e, no momento seguinte, tudo ficou escuro e ela sentiu que estava caindo. A última coisa que viu foi Ardiloso Cortês correndo em sua direção.
Stephanie acordou no sofá, com um cobertor sobre ela. O aposento estava escuro, iluminado apenas por dois abajures em cantos opostos. Olhou para a janela quebrada e viu que havia uma tábua cobrindo o buraco. Stephanie ouviu o som de alguém martelando no átrio e, quando se sentiu forte o suficiente para ficar de pé, levantou-se lentamente e saiu da sala de estar.
Ardiloso Cortês estava tentando colocar a porta de volta nas dobradiças. Tinha enrolado a manga da camisa, expondo o antebraço esquerdo. Ulna, Stephanie se corrigiu, provando que o primeiro ano de aulas de biologia não tinha sido desperdiçado. Ou seria rádio? Ou ambos? Ouviu Ardiloso resmungar, e ele notou que ela eslava ali e balançou a cabeça animadamente.
— Ah, você acordou.
— Você consertou a janela.
— Bem, eu cobri o estrago. Gordon tinha alguns pedaços de madeira guardados no quintal, então fiz o que pude. Mas não estou tendo a mesma sorte com a porta. Acho muito mais fácil arrebentá-las que botá-las de volta no lugar. Como está se sentindo?
— Estou bem — respondeu Stephanie.
— Uma xícara de chá, é disso que você precisa. Com muito açúcar.
O detetive abandonou a porta e guiou a menina até a cozinha. Stephanie sentou-se à mesa enquanto Ardiloso botou a chaleira no fogo.
— Com fome? — perguntou ele, quando a água ferveu, mas ela balançou a cabeça negativamente. — Leite? — Ela assentiu. Ardiloso acrescentou leite e colheradas de açúcar, deu uma rápida mexida no chá e pôs a xícara na mesa diante de Stephanie. Ela deu um golinho; estava quente, mas gostoso.
— Obrigada — disse Stephanie, e ele respondeu dando de ombros. Era difícil decifrar alguns dos gestos dele, considerando que ele não tinha um rosto, mas ela interpretou que este dizia “não há de quê”.
— Aquilo era mágica? Aquele negócio da bola de fogo, e explodir a porta?
— Sim, era.
Ela o olhou mais de perto.
— Como você consegue falar?
— Perdão?
— Como consegue falar? Você mexe a boca quando fala, mas não tem língua nem lábios, não tem cordas vocais. Quero dizer, sei como são os esqueletos, já vi diagramas e maquetes e coisas assim, e a única coisa que os mantém inteiros são carne, pele e ligamentos, então por que você não desmonta?
Ele deu de ombros mais uma vez, com os dois ombros.
— Bem, é mágica também.
Ela olhou para ele.
— Mágica é uma coisa muito útil.
— Sim, é.
— E quanto às terminações nervosas, sabe? Você é capaz de sentir dor?
— Sou, mas não é uma coisa ruim. A dor nos faz saber que estamos vivos, afinal de contas.
— E você está vivo?
— Bem, tecnicamente não, mas...
Stephanie encarou as órbitas oculares vazias.
— Você tem um cérebro?
Ardiloso riu.
— Eu não tenho cérebro nem órgãos, mas tenho consciência. — Ele começou a guardar o açúcar e o leite. — Para ser bem sincero com você, esta nem é a minha cabeça.
— O quê?
— Não é. Eles fugiram com a minha caveira. Eu ganhei esta aqui num jogo de pôquer.
— Então ela nem é sua? Como é a sensação?
— Ela serve. Vai ter de servir até que eu finalmente consiga recuperar a minha. Você parece estar um pouco enojada.
— É que... não é estranho para você? Como vestir as meias de outra pessoa.
— Você se acostuma.
— O que aconteceu a você? — inquiriu Stephanie. — Você nasceu assim?
— Não, eu nasci perfeitamente normal. Pele, órgãos, equipamento completo. Eu tinha até mesmo um rosto que não era ruim de se olhar, modéstia à parte.
— E o que aconteceu, então?
Ardiloso se encostou no balcão e cruzou os braços.
— Eu me meti com magia. Naquele tempo, no tempo em que eu ainda estava, por falta de uma palavra melhor, vivo, havia alguns sujeitos bem ruins por perto. O mundo estava diante de uma escuridão da qual poderia nunca ter se recuperado. Era uma guerra, entende.
“Uma guerra secreta, mas uma guerra mesmo assim. Havia um feiticeiro, Malevolente, pior do que qualquer outro, ele tinha um exército, e aqueles de nós que se recusaram a segui-lo nos vimos lutando contra ele.
E nós estávamos vencendo. No fim, depois de anos lutando essa nossa guerrinha, estávamos vencendo de verdade. Os exércitos de Malevolente estavam desmoronando, a influência dele enfraquecendo, e ele estava prestes a encarar a derrota final. Foi aí que ele ordenou um último e desesperado golpe contra todos os líderes do nosso lado.”
Stephanie encarava Ardiloso, perdida nas palavras dele.
— Eu fui o alvo do braço direito de Malevolente, um homem que preparou uma armadilha maldosamente requintada. Não suspeitei de nada até que fosse tarde demais.
“Então morri. Ele me matou. Foi em 23 de outubro que meu coração parou de bater. Uma vez que eu estava morto, eles espetaram meu corpo numa lança e o queimaram, para que todos vissem. Eles me usaram como um aviso. Usaram os corpos de todos os líderes que tinham sido assassinados como avisos e, para meu horror absoluto, funcionou.”
— O que você quer dizer?
— A maré mudou. Nosso lado começou a perder terreno. Malevolente ficou mais forte. Era mais do que eu podia suportar, então eu voltei.
— Você simplesmente... voltou?
— É... complicado. Quando morri, eu não segui adiante. Alguma coisa me segurava aqui, fazia que eu ficasse assistindo. Eu não soube disso jamais ter acontecido antes, e não soube disso jamais ter acontecido depois, mas aconteceu comigo. Assim sendo, quando a situação ficou insuportável, eu acordei, um saco de ossos. Literalmente. Eles haviam juntado meus ossos e os colocado num saco, e jogaram o saco num rio. E essa foi uma experiência incrível, pode acreditar.
— E o que aconteceu depois?
— Eu me montei novamente, o que foi bem doloroso, e voltei à luta, e, no fim, nós vencemos. Finalmente vencemos. Assim, com Malevolente derrotado, eu me desliguei daquele pessoal todo e resolvi me virar sozinho pela primeira vez em algumas centenas de anos.
Stephanie piscou os olhos.
— Algumas centenas?
— Foi uma guerra bem longa.
— Aquele homem chamou você de detetive.
— Ele obviamente conhece minha reputação — comentou Ardiloso, endireitando a postura. — Eu soluciono mistérios, hoje em dia.
— É mesmo?
— E sou bom nisso, também.
— E agora, você está rastreando sua cabeça?
Ardiloso olhou para Stephanie. Se tivesse pálpebras, provavelmente estaria piscando.
— Seria bom tê-la de volta, com certeza, mas...
— Então você não precisa dela para, tipo, descansar em paz?
— Não. Na realidade, não.
— Por que eles a levaram? Foi mais um aviso?
— Ah, não — respondeu Ardiloso, com uma risadinha. — Não, eles não a levaram. Eu estava dormindo, há uns dez ou quinze anos, e uns duendezinhos correram até mim e arrancaram minha caveira da minha coluna vertebral. Eu não percebi até acordar na manhã seguinte.
Stephanie franziu o cenho.
— E você não sentiu que eles estavam arrancando?
— Bem, como eu disse, eu estava dormindo. Meditando, suponho que você poderia chamar assim. Eu não vejo, ouço ou sinto nada enquanto estou meditando. Você já experimentou?
— Não.
— É bem relaxante, acho que você ia gostar.
— Lamento, mas estou mais interessada na sua cabeça perdida.
— Eu não a perdi — retrucou ele, na defensiva. — Ela foi roubada. Stephanie estava se sentindo mais forte agora. Não podia acreditar que havia desmaiado. Desmaiado. Isso era o tipo de coisa que uma velhinha faria. Stephanie ergueu os olhos e encarou Ardiloso.
— Você teve uma vida bem incomum, não é?
— Suponho que sim. Mas ainda não acabou. Bem, tecnicamente acabou, mas...
— Você sente falta de alguma coisa?
— Que tipo de coisa?
— Da vida.
— Comparado ao tempo que já passei neste estado, eu só estive tecnicamente vivo por um piscar de olhos. Não consigo lembrar como era ter um coração batendo no meu peito a ponto de sentir falta dele.
— Então não sente saudade de nada?
— Eu... acho que sinto saudade do meu cabelo. Tenho saudade de como ele... era. E como estava lá, em cima da minha cabeça. Acho que tenho saudade do meu cabelo. — Ele tirou o relógio do bolso e jogou a cabeça para trás. — Caramba, veja só que horas são. Preciso ir, Stephanie.
— Ir? Para onde?
— Tenho muito a fazer, infelizmente. A primeira coisa é descobrir por que aquele cavalheiro foi mandado para cá, a segunda é descobrir quem o mandou.
— Você não pode me deixar aqui sozinha — exclamou ela, seguindo Ardiloso até a sala de estar.
— Sim — corrigiu ele —, eu posso. Você ficará perfeitamente segura.
— A porta da frente está quebrada!
— Bem, é verdade. Você ficará perfeitamente segura desde que eles não venham pela porta da frente.
Ele pegou o sobretudo, mas ela capturou o chapéu.
— Vai usar meu chapéu como refém? — perguntou ele, duvidoso.
— Ou você fica aqui comigo para me proteger de outros ataques ou me leva para onde estiver indo.
Ardiloso ficou paralisado.
— Isso — disse ele, afinal — não seria muito seguro para você.
— Tanto quanto ficar aqui sozinha.
— Mas você pode se esconder — disse ele, indicando a sala com um gesto. — Há tantos lugares para se esconder. Tenho certeza de que há muitos guarda-roupas do seu tamanho. Ou mesmo debaixo da cama. Você ficaria impressionada com quantas pessoas não olham mais embaixo das camas hoje em dia.
— Sr. Cortês...
— Ardiloso, por favor.
— Ardiloso, você salvou minha vida hoje. Vai mesmo deixar todo esse esforço ser desperdiçado ao me deixar aqui, de forma que outra pessoa possa aparecer e simplesmente me matar?
— Essa sua atitude é muito derrotista. Uma vez conheci um rapaz, um pouco mais velho que você. Queria se juntar a mim nas minhas aventuras, resolver mistérios que desafiavam a realidade. Ele ficava pedindo, insistia comigo. Ele finalmente provou que era merecedor, depois de um longo tempo, e nós nos tornamos parceiros.
— E vocês encararam juntos várias aventuras emocionantes?
— Eu encarei. Ele não. Morreu no nosso primeiro caso juntos. Uma morte horrível. Bem desagradável, também. Ele se debateu muito.
— Bom, não planejo morrer tão cedo, e tenho algo que ele não tinha.
— E o que seria isso...?
— Seu chapéu. Leve-me com você ou eu piso nele.
Ardiloso olhou para Stephanie com as grandes e ocas órbitas, e então esticou a mão para receber o chapéu.
— Depois não diga que eu não avisei.
5
APRESENTANDO PORCELANA TRISTEZA
O carro de Ardiloso era um Bentley R-Type Continental ano 1954, um dos 208 que foram fabricados, com um motor 4.5 de seis cilindros, que tinha sido equipado posteriormente com trancas elétricas, ar-condicionado e aquecimento, sistema de GPS e mais uma porção de outras conveniências modernas. Ardiloso contou isso tudo a Stephanie quando ela perguntou. Teria ficado satisfeita com um simples “é um Bentley”.
Para evitar o alagamento, eles deixaram a propriedade de Gordon por uma estrada secundária na parte de trás do terreno, uma estrada que Stephanie nem sabia que existia. Ardiloso contou que era um visitante freqüente e conhecia todos os esconderijos e segredos da casa. Passaram por uma placa que indicava Haggard, e ela pensou em pedir a ele que a deixasse em casa, mas rapidamente tirou a idéia da cabeça. Se fosse para casa naquele momento, estaria dando as costas para tudo que tinha acabado de ver. Ela precisava saber mais. Precisava ver mais.
— Para onde vamos? — perguntou ela enquanto ele dirigia.
— Para Dublin. Tenho um encontro com uma velha amiga. Talvez ela consiga esclarecer alguns dos eventos recentes.
— Por que você estava na casa?
— Perdão?
— Ontem à noite. Não que eu não esteja grata, mas por que você apareceu por lá?
— Ah — disse ele, com um aceno da cabeça. — Sim, entendo por que você fez essa pergunta.
— Então, você vai respondê-la?
— Acho pouco provável.
— Ué, por que não?
Ele olhou para ela ou, pelo menos, virou um pouco a cabeça.
— Quanto menos você souber disso tudo, melhor. Você é uma jovem perfeitamente normal e, depois de hoje à noite, vai voltar à sua vida perfeitamente normal. Não é bom para você se envolver nisso.
— Mas eu já estou envolvida.
— Mas podemos limitar esse envolvimento.
— Mas eu não quero limitar o envolvimento.
— Mas é melhor para você!
— Mas eu não quero!
— Mas isso pode...
— Não comece mais nenhuma frase com “mas”.
— Certo, desculpe.
— Você não pode esperar que eu esqueça tudo isso. Eu vi magia, fogo e você, e aprendi sobre guerras que eles não mencionam na escola. Eu vi um mundo que eu nem sabia que existia.
— Você não quer voltar para o seu mundo? É mais seguro que este.
— Não é o meu lugar.
Ardiloso virou completamente a cabeça na direção de Stephanie, e depois inclinou-a para o lado.
— Curioso. Quando conheci seu tio, foi isso que ele me disse também.
— As coisas que ele escreveu — disse Stephanie, no momento em que a idéia passou pela sua cabeça. — Elas são verdadeiras?
— Os livros? Não, nenhum deles.
— Ah.
— Eles são inspirados em histórias reais, na verdade. Ele simplesmente mudou-as o suficiente para não insultar ninguém que depois pudesse ir atrás dele para matá-lo. Seu tio era um bom homem, de verdade. Solucionamos muitos mistérios juntos.
— É mesmo?
— Ah, sim, você deveria estar orgulhosa de ter tido um tio como ele. É claro, ele me meteu em centenas de brigas porque eu costumava levá-lo a alguns lugares estranhos, e, chegando lá, ele não parava de perturbar as pessoas, mas... eram bons tempos. Bons tempos.
Eles seguiram a estrada até que viram as luzes da cidade de Dublin adiante. Logo a escuridão que cercava o carro foi substituída por uma neblina alaranjada, fruto dos reflexos luminosos no asfalto molhado. A cidade estava silenciosa e imóvel, as ruas quase vazias. Eles pararam num pequeno estacionamento ao ar livre, e foi então que Ardiloso desligou o motor e olhou para Stephanie.
— Certo, então, você espera aqui.
— Certo.
Ele saiu do carro. Dois segundos se passaram, mas Stephanie não tinha ido atrás de Ardiloso para ficar de fora; precisava ver que surpresas o mundo havia reservado para ela. Stephanie saiu do carro, e Ardiloso olhou para ela novamente.
— Stephanie, estou desconfiado de que você não está respeitando minha autoridade.
— Não, não estou.
— Entendo. Tudo bem, então. — Ele colocou o chapéu e embrulhou a parte inferior do rosto com o cachecol, mas dispensou a peruca e os óculos escuros. Ardiloso então pressionou um botão na chave do carro, que prontamente bipou duas vezes, enquanto as portas se trancaram.
— É só isso?
Ele virou para ela.
— Perdão?
— Não tem medo que ele seja roubado? Não estamos numa parte muito segura da cidade.
— Ele tem alarme.
— Você não, tipo assim, lança um feitiço ou coisa assim? Para manter o carro seguro?
— Não. O alarme é bem eficiente.
Ardiloso começou a andar. Stephanie correu para alcançá-lo.
— Você lança algum feitiço?
— Às vezes. Tento não depender da magia, atualmente. Tento me virar com o que tenho aqui em cima. — Tocou a cabeça com o dedo.
— Você só tem espaço vazio aí em cima.
— Bem, sim — retrucou ele, irritado —, mas você entendeu o que eu quis dizer.
— O que mais você consegue fazer?
— Perdão?
— Com mágica. Me mostre alguma coisa.
Se Ardiloso tivesse sobrancelhas, elas muito provavelmente estariam levantadas.
— O quê, um esqueleto vivo não é suficiente para você? Você quer mais?
— Sim — foi a resposta de Stephanie. — Quero uma aula introdutória.
Ele deu de ombros.
— Bem, imagino que não possa fazer mal. Há dois tipos de magos, ou feiticeiros. Os Adeptos praticam um ramo de magia, enquanto os Elementais praticam outro. Adeptos são mais agressivos, suas técnicas têm mais poder imediato. Em contraste, um Elemental, como eu, escolhe o caminho mais calmo e busca aperfeiçoar seu controle sobre os elementos.
— Controle sobre os elementos?
— Talvez eu tenha exagerado um pouco. Nós não controlamos realmente os elementos, nós os manipulamos. Influenciamos.
— Tipo o quê? Terra, ar...
— Água e fogo, sim.
— Então mostre.
Ardiloso inclinou a cabeça para o lado direito, e Stephanie pode perceber o bom humor na voz dele.
— Muito bem — disse ele, e ergueu a mão aberta diante dela. Stephanie franziu o cenho, sentindo um pouco de frio, e então percebeu que uma gota de água escorria pelo seu rosto. Num instante, o cabelo dela estava encharcado, como se ela tivesse emergido de um mergulho.
— Como fez isso? — indagou ela, balançando a cabeça e espalhando gotas de água para todos os lados.
— Diga-me você — respondeu ele.
— Não sei. Você fez alguma coisa com a umidade do ar?
Ele olhou para ela.
— Muito bem — disse Ardiloso, impressionado. — O primeiro elemento, água. Não podemos dividir o mar Vermelho ou nada dessa magnitude, mas temos alguma influência sobre ela.
— Mostre-me o fogo de novo — pediu Stephanie, empolgada.
Ardiloso estalou os dedos enluvados e fagulhas voaram, depois fechou a mão, então as fagulhas viraram uma bola de fogo e ele segurou a bola de fogo enquanto eles andavam. A chama se intensificou e Stephanie pôde sentir que o cabelo estava ficando seco.
— Uau — exclamou ela.
— Uau mesmo — comentou Ardiloso e esticou o braço subitamente, lançando a bola de fogo no ar. Ela foi se apagando enquanto voava pelo ar noturno, desaparecendo completamente.
— E quanto à terra? — perguntou Stephanie, mas Ardiloso balançou a cabeça.
— Você não vai querer ver isso, e espero que você jamais tenha de presenciar o uso desse elemento. O poder da terra é puramente defensivo, e deve ser usado apenas como um último recurso.
— Então, qual é o mais poderoso? O fogo?
— Ele é o mais impressionante, que fica com todos os “uaus”, mas você ficaria surpresa com o que um pouco de ar poder fazer, se você deslocá-lo corretamente. O ar deslocado não desaparece, simplesmente, ele precisa ocupar algum lugar ao ser deslocado.
— Posso ver?
Eles chegaram ao final do estacionamento e passaram pelo muro baixo que o cercava. Ardiloso dobrou os dedos e, subitamente, abriu a mão completamente, esticando a palma na direção do muro. O ar ondulou e os tijolos explodiram para fora. Stephanie olhou espantada para o novo buraco na parede.
— Isso — conseguiu dizer — é tão legal.
Eles continuaram andando, e Stephanie olhava para trás, para a parede, de vez em quando.
— E quanto aos Adeptos? O que eles podem fazer?
— Eu conheci um sujeito, há alguns anos, que podia ler mentes. Também conheci uma mulher que podia mudar de forma, tornar-se qualquer outra pessoa, diante dos seus olhos.
— Então, quem é mais forte? — perguntou Stephanie. — Um Elemental ou um Adepto?
— Depende do mago. Um Adepto poderia ter tantos truques diferentes na manga que se provaria mais forte até que o mais poderoso Elemental. Há registros de algo assim.
— O feiticeiro, o tal pior de todos, ele era um Adepto?
— Na verdade, não. Malevolente era um Elemental. É raro um Elemental ir tão longe nos caminhos das trevas, mas acontece.
Havia uma pergunta que Stephanie estava louca para fazer, mas não queria parecer ansiosa demais. Tão casualmente quanto foi possível, com os polegares metidos nas passadeiras de cinto da calça jeans, ela perguntou, como se tivesse acabado de pensar no assunto:
— Então, como você sabe que pode fazer mágica? Qualquer um pode usar magia?
— Não é para qualquer um. Relativamente poucos, na realidade. Aqueles que podem usá-la geralmente se congregam numa mesma área, então há pequenos bolsões de comunidades pelo mundo todo. Só na Irlanda e no Reino Unido, há 18 bairros diferentes habitados exclusivamente por magos.
— Você pode ser um mago sem perceber?
— Ah, sim. Algumas pessoas andam por aí todos os dias, entediadas com suas vidas, sem fazer a menor idéia de que têm um mundo de maravilhas na ponta dos dedos. E eles vão viver suas vidas completamente alheios e morrerão sem saber o quão incríveis poderiam ter sido.
— Isso é bem triste.
— Na verdade, é bem engraçado.
— Não, não é, é triste. Como você se sentiria se nunca tivesse descoberto do que é capaz?
— Eu não ia fazer idéia — respondeu Ardiloso e parou de andar. — Chegamos.
Stephanie olhou para cima. Tinham chegado ao lado de fora de um velho e maltratado prédio de apartamentos, com paredes cobertas de pichações e janelas quebradas e sujas. Stephanie seguiu Ardiloso pelos degraus de concreto e pelo saguão adentro, e juntos subiram a frágil escadaria.
O primeiro andar estava em silêncio e cheirava a umidade. No segundo andar, fachos fragmentados de luz escapavam pelas ranhuras entre a porta e o batente, e eram a única fonte de luz no corredor escuro. Eles podiam ouvir o barulho de uma TV, vindo de um dos apartamentos.
Quando subiram até o terceiro andar, Stephanie percebeu que haviam chegado. Este andar era limpo, não fedia e era bem iluminado. Era como um prédio completamente diferente. Stephanie seguiu Ardiloso até o meio do corredor e percebeu que nenhuma das portas tinha números. Olhou para a porta na qual Ardiloso bateu, aquela que tinha uma plaqueta inscrita com a palavra “Biblioteca”.
Enquanto esperavam, Ardiloso aproveitou para dar uma última instrução:
— Mais uma coisa. Não importa quanto você deseje, não diga seu nome a ela.
A porta se abriu antes que Stephanie pudesse fazer mais perguntas, e um homem magro com grandes óculos redondos olhou pela fresta. O nariz era adunco, e o cabelo ouriçado já começava a rarear. Vestia um terno xadrez com uma gravata-borboleta. O homenzinho olhou para Stephanie, acenou com a cabeça para Ardiloso e abriu a porta para que eles entrassem.
Stephanie entendeu por que nenhuma das portas tinha números: todas levavam para o mesmo aposento. As paredes entre os apartamentos haviam sido removidas, de modo a acomodar a vasta quantidade de estantes de livros. Pilhas e pilhas de livros, um labirinto de estantes que se estendia de um lado ao outro do edifício. Enquanto seguia o homem de óculos pelo labirinto, Stephanie viu mais pessoas, concentradas no que estavam lendo, pessoas semi-ocultas nas sombras, pessoas que não pareciam normais...
No meio da biblioteca, havia um espaço aberto, como uma clareira numa floresta, e ali estava a mulher mais bonita que Stephanie já havia visto. Os cabelos eram negros como as asas de um corvo, e os olhos eram do azul mais pálido. O rosto da mulher era tão delicado que Stephanie temia que pudesse se partir se ela sorrisse, e então a dama sorriu, e Stephanie sentiu tamanha ternura, que, por um instante, a menina não quis nunca mais estar longe dela.
— Pare com isso — grunhiu Ardiloso.
A dama dirigiu o olhar para ele, e o sorriso adquiriu um ar brincalhão. Stephanie continuava olhando fixamente para ela, arrebatada. Seu próprio corpo lhe parecia tão pesado, tão desajeitado; tudo que queria fazer na vida era ficar ali, de pé, naquele exato lugar, admirando a pura e verdadeira beleza.
— Pare com isso — repetiu Ardiloso, e Stephanie sentiu-se como se um nevoeiro tivesse se dissipado de sua mente. Sentiu-se tonta e cambaleante, mas Ardiloso estava lá, com a mão nas costas dela, para apoiá-la.
— Peço desculpas — disse a dama, fazendo uma pequena mesura. — Eu esqueço o efeito que tenho nas pessoas. Você sabe como é, a primeira impressão é a que fica.
— Parece que, sempre que conhece uma nova pessoa, você se esquece desse pequeno detalhe — retrucou Ardiloso.
— Sou uma desmiolada, o que posso dizer? Ardiloso grunhiu e virou para Stephanie.
— Não se sinta mal. Todo mundo se apaixona por Porcelana quando a vê pela primeira vez. Acredite, você gostará dela cada vez menos, quanto mais a conhecer.
— Gostará menos — disse a mulher chamada Porcelana —, mas jamais deixará de gostar, não é, Ardiloso?
O detetive tirou o chapéu e olhou para Porcelana, mas ignorou sua pergunta. Porcelana sorriu para Stephanie e entregou o cartão de visitas à menina. Era branco-casca-de-ovo e listava um único número de telefone, impresso com uma elegância delicada.
— Sinta-se à vontade para me ligar se algum dia se deparar com algum livro ou item que você ache que possa me interessar. Ardiloso costumava fazê-lo, mas não faz mais. As águas já moveram demais o proverbial moinho, lamentavelmente. Ah, mas onde está minha educação? Meu nome é Porcelana Tristeza, querida. E você é...?
Stephanie estava a ponto de dizer o nome para Porcelana, quando Ardiloso virou a cabeça para ela, e Stephanie lembrou-se do que ele havia dito. Ela franziu o cenho. A compulsão de dizer o nome para aquela mulher era quase incontrolável.
— Não precisa dizer seu nome a ela — afirmou Ardiloso. — Tudo que você precisa saber, Porcelana, é que ela viu alguém invadindo a casa de Gordon Edgley. O invasor estava à procura de algo. O que Gordon poderia ter que seria do interesse de alguém?
— Você não sabe quem ele era?
— Não era ninguém. Estou atrás do mestre dele.
— Então, quem você acha que é o mestre dele?
Ardiloso não respondeu e Porcelana riu.
— Serpênteo de novo? Meu querido, você acha que Serpênteo é o mentor por trás de praticamente todos os crimes!
— Sim, porque ele é.
— Então, por que me procurou?
— Você ouve coisas.
— Será que ouço?
— As pessoas falam com você.
— Eu sou muito acessível.
— Estava me perguntando se você não ficou sabendo de nada: rumores, sussurros, qualquer coisa.
— Nada que lhe seja útil.
— Mas você ouviu alguma coisa?
— Ouvi coisas absurdas. Ouvi coisas que não merecem ser chamadas de rumores. Aparentemente, Serpênteo está pesquisando informações sobre o Cetro dos Antigos.
— Que tipo de informação?
— Ele está procurando o Cetro.
— Como assim? O Cetro é um conto de fadas.
— Como eu disse, é absurdo.
Ardiloso ficou calado por um momento, como se estivesse registrando aquela informação para estudá-la melhor mais tarde. Quando ele falou de novo, seguiu uma nova linha de investigação.
— Então, o que Gordon poderia ter que Serpênteo ou qualquer outra pessoa pudesse querer?
— Provavelmente muita coisa — respondeu Porcelana. — O querido Gordon era como eu: um colecionador. Mas acho que não é essa pergunta que você deveria fazer.
Ardiloso pensou por um momento.
— Ah.
Stephanie olhou para os dois.
— O quê? O quê?
Ardiloso explicou:
— A pergunta não é o que Gordon tinha que alguém pudesse querer roubar, e sim o que Gordon tinha que alguém teve de esperar que ele morresse para poder roubar?
Stephanie olhou para Ardiloso.
— Existe uma diferença?
Porcelana respondeu:
— Há certos itens que não podem ser tomados, posses que não podem ser roubadas. Neste caso, o dono precisa morrer antes que qualquer outro possa usar os poderes de tal item.
— Se você souber de qualquer coisa que possa ser útil — comentou Ardiloso —, vai me dizer?
— E o que eu levarei em troca? — Porcelana respondeu, com aquele sorriso brincando nos lábios de novo.
— Minha gratidão?
— Tentador. Isso é tentador.
— E que tal isto — propôs ele. — Faça como um favor, para um amigo.
— Um amigo? — exclamou Porcelana. — Depois de todos esses anos, depois de tudo que aconteceu, você está dizendo que é meu amigo outra vez?
— Eu estava falando de Gordon.
Porcelana riu, e Stephanie seguiu Ardiloso enquanto ele caminhava por entre as pilhas de livros. Deixaram a biblioteca e foram embora pelo mesmo caminho que tinham vindo.
Quando chegaram na rua, Stephanie finalmente falou.
— Então aquela era Porcelana Tristeza — foi o que ela disse.
— Sim, era — respondeu Ardiloso. — Uma mulher em quem não se pode confiar.
— O nome é bonito, porém.
— Como eu disse, nomes são poderosos. Todo mundo tem três nomes. O nome com o qual você nasce, o nome que lhe é dado e o nome que você escolhe. Todo mundo, não importa quem seja, nasce com um nome. Você nasceu com um nome. Sabe qual é?
— Essa pergunta é uma pegadinha?
— Você sabe qual é o seu nome?
— Sim, Stephanie Edgley.
— Não.
— Não?
— Esse é o nome que lhe foi dado. Aquele que outras pessoas lhe entregaram. Se um mago com um pouco de conhecimento assim quisesse, poderia usar esse nome para influenciá-la, para obter um pequeno grau de controle e fazer você ficar de pé, sentar, falar, coisas assim.
— Como um cachorro.
— Suponho que sim.
— Você está me igualando a um cachorro?
— Não — respondeu ele, mas fez uma pausa. — Bem, estou.
— Ah, legal.
— Mas você tem um outro nome, um nome real, um nome verdadeiro. Um nome que é unicamente seu, e só seu.
— Qual é esse nome?
— Não sei. Você não sabe, também, pelo menos não conscientemente. Esse nome lhe dá poder, mas também dá às outras pessoas poder absoluto sobre você. Se alguém o conhecesse, teria controle sobre sua lealdade, seu amor, tudo em você. Seu livre-arbítrio seria completamente erradicado. E é por isso que mantemos nossos nomes verdadeiros ocultos.
— E qual é o terceiro nome?
— O nome que você escolhe. Ele não pode ser usado contra você, não pode ser usado para influenciá-la e é a primeira defesa contra o ataque de um feiticeiro. Seu nome escolhido sela seu nome dado, protege-o, e é por isso que é tão importante escolhê-lo bem.
— Então Ardiloso é o nome que você escolheu?
— É.
— E quanto a mim? Eu deveria ter um terceiro nome?
Ele hesitou por apenas um instante.
— Se vai me acompanhar nisto, então sim, você provavelmente deveria.
— E eu vou acompanhar você?
— Isso depende. Você precisa da permissão dos seus pais?
Os pais de Stephanie queriam que ela escolhesse o próprio caminho na vida. Haviam falado isso para ela inúmeras vezes no passado. É claro, eles estavam se referindo às matérias escolares, à escolha da universidade, às decisões sobre a carreira profissional. Presumivelmente, em nenhum momento eles consideraram esqueletos vivos e submundos mágicos. Se tivessem pensado nisso, seus conselhos provavelmente teriam sido bem diferentes.
Stephanie deu de ombros.
— Na realidade, não.
— Bem, isso é bom o suficiente para mim.
Chegaram no carro e entraram. Quando pegaram a estrada, Stephanie olhou para Ardiloso.
— Então, quem é esse Serpênteo de quem vocês estavam falando?
— Nefasto Serpênteo é um dos vilões. Bem, suponho que, agora que Malevolente já era, Serpênteo seja considerado o vilão.
— O que ele tem de tão mau?
O ronronar do motor foi o único som ouvido dentro do carro por alguns momentos.
— Serpênteo é um Adepto — disse Ardiloso finalmente. — Era o subordinado em quem Malevolente mais confiava. Você ouviu o que Porcelana disse, que ela é uma colecionadora, assim como Gordon? Serpênteo também é um colecionador. Coleciona magia. Serpênteo torturou, aleijou e matou para poder aprender os segredos dos outros. Cometeu incontáveis atrocidades com o objetivo de descobrir rituais obscuros, em busca de um determinado ritual que ele e outros fanáticos religiosos como ele já estão procurando há várias gerações. Na época em que a guerra começou, ele tinha uma... arma. Hoje em dia ele é cheio de surpresas, mas ainda usa a arma, pois, francamente, não há defesa contra ela.
— E o que é a arma?
— Basicamente, morte em agonia.
— Morte em agonia... por si só? E não, por exemplo, disparada de uma arma ou coisa assim?
— Ele precisa apenas apontar a mão direita, que é vermelha, para você e... bem, como eu disse, morte em agonia. É uma técnica de necromancia.
— Necromancia?
— Magia da morte, uma disciplina particularmente perigosa dos Adeptos. Não sei como ele a aprendeu, mas de fato aprendeu.
— E o que o Cetro tem a ver com isso tudo?
— Nada. Não tem nada a ver com coisa alguma.
— Bem, e o que é o Cetro?
— É uma arma de um poder destruidor contra o qual não há defesa. Ou seria, se realmente existisse. É um bastão, mais ou menos do comprimento do seu fêmur... Na verdade, acho que tenho uma ilustração dele...
Ardiloso parou o carro e saiu para abrir o porta-malas do Bentley. Stephanie nunca havia passado por esta parte da cidade antes. As ruas estavam silenciosas e vazias. Ela podia ver a ponte sobre o canal ao longe. Momentos depois, Ardiloso estava de volta ao volante, dirigindo outra vez, e Stephanie tinha um livro encapado em couro no colo.
— O que temos aqui? — perguntou ela, abrindo o fecho e folheando o livro.
— Nossos mitos e lendas mais populares — respondeu Ardiloso. — Você acabou de passar pelo Cetro.
Stephanie voltou uma página e se deparou com a reprodução de uma pintura que mostrava um homem de olhos esbugalhados esticando o braço para um cajado dourado com um cristal negro engatado no cabo. O Cetro brilhava, e o homem estava protegendo os olhos da luz. Na página oposta havia outra ilustração, desta vez de um homem segurando o Cetro, cercado por figuras encolhidas de medo, com os rostos virados para o outro lado.
— Quem é esse cara?
— Ele é um dos Antigos. Segundo as lendas, eles foram os primeiros feiticeiros, os primeiros a brandir o poder dos elementos, os primeiros a usar a magia. Viviam separados do mundo dos mortais, não tinham interesse algum nele. Os Antigos tinham suas próprias maneiras, seus próprios costumes, seus próprios deuses. No fim, eles decidiram que queriam ter seus próprios destinos também, e se rebelaram contra os próprios deuses, que eram criaturas bem malvadas, chamadas de Sem Rosto, e lutaram contra eles na terra, nos céus e nos oceanos. Os Sem Rosto, por serem imortais, venceram todas as batalhas, até que os Antigos construíram uma arma forte o suficiente para fazê-los recuar: o Cetro.
— Você parece conhecer bem a história.
— Contar histórias ao redor da fogueira pode ser algo pitoresco hoje em dia, mas era tudo que tínhamos antes de o cinema ser inventado. Os Sem Rosto foram banidos, enviados de volta para o lugar de onde vieram.
— Então, o que está acontecendo aqui? Ele está matando os deuses?
— Sim. O Cetro tirava seu poder do desejo dos Antigos de se tornarem livres. Era a força mais potente que eles tinham à disposição.
— Então o Cetro é uma força pela liberdade?
— Originalmente. Entretanto, uma vez que os Antigos não tinham mais os Sem Rosto para lhes dizer o que fazer, eles começaram a lutar entre si, e usaram o Cetro um contra o outro, abastecendo a arma com ódio.
Os feixes de luz dos postes iluminavam o crânio de Ardiloso de forma intermitente enquanto o carro entrava e saía das trevas, criando clarões brancos cor-de-osso num ritmo hipnótico.
— O último Antigo — continuou ele —, depois de expulsar os próprios deuses, depois de matar todos os amigos e parentes, percebeu o que havia feito e atirou o Cetro nas profundezas da Terra, onde o próprio solo o engoliu.
— O que ele fez depois?
— Provavelmente tirou uma soneca. Eu não sei, é uma lenda. É uma alegoria, não aconteceu de verdade.
— Então, por que Serpênteo acha que é real?
— É, isso é algo muito estranho. Assim como o mestre dele, Serpênteo acredita em alguns dos nossos mitos mais sombrios, e em algumas das nossas lendas mais perturbadoras. Ele crê que o mundo era um lugar melhor quando os Sem Rosto estavam no comando. Eles não eram lá muito favoráveis à raça humana, veja bem, e exigiam ser adorados.
— Esse ritual que Serpênteo está procurando serve para trazê-los de volta?
— É isso mesmo.
— Então ele pode estar achando que o Cetro, que os mandou para longe, poderia de alguma forma chamá-los de volta, certo?
— As pessoas acham as coisas mais estranhas, quando se trata de religião.
— Você acredita em alguma dessas lendas? Os Antigos, os Sem Rosto?
— Eu acredito em mim, Stephanie, e isso é o suficiente, por enquanto.
— Então o Cetro poderia ser real?
— Pouquíssimo provável.
— E o que essas coisas todas têm a ver com o meu tio?
— Não sei — admitiu Ardiloso. — Por isso que chamamos de “mistério”.
O carro se encheu de luz, e subitamente o mundo estava girando. Os únicos sons que se ouviam eram um estrondo aterrorizante e o guinchar de metal contra metal. Stephanie foi jogada contra o cinto de segurança e bateu com a cabeça na janela. A rua do lado de fora se inclinou violentamente, e Stephanie percebeu que o Bentley estava capotando. Ela ouviu Ardiloso praguejando ao lado dela, e, por um instante, a menina sentiu-se como se não tivesse peso. Por fim, o Bentley bateu no chão novamente, e Stephanie se chocou contra o painel.
O carro balançou novamente sobre os quatro pneus. Stephanie olhou para os próprios joelhos com os olhos bem abertos, mas com o cérebro atordoado demais para pensar. Erga os olhos, disse uma voz fraca na cabeça dela. Erga os olhos e veja o que está acontecendo. O Bentley estava parado, desligado, mas havia outro motor fazendo barulho. Uma porta de carro se abrindo e fechando. Erga os olhos. Passos, passos correndo. Erga os olhos agora. Ardiloso ao lado dela, imóvel. Erga os olhos, tem alguém vindo até você. Erga os olhos AGORA.
Foi a segunda janela que explodiu ao lado de Stephanie naquela noite, e o mesmo homem que havia invadido a casa estava agarrando a menina e puxando-a para fora do carro.
6
UM HOMEM À PARTE
Apesar das roupas esfarrapadas e queimadas, a pele do homem que atacou Stephanie na casa de Gordon não havia sido tocada pela bola de fogo que o engolira. Enquanto era arrastada, Stephanie viu o rosto dele de relance na luz amarela dos faróis do Bentley, e o rosto estava contorcido de raiva e ódio. Ela foi erguida e atirada em cima do capô do carro que tinha se chocado contra eles. O homem segurava o colarinho da menina, e seus punhos pressionavam a garganta dela.
— Você vai morrer — sibilou ele — aqui e agora, se não me der a maldita chave.
As mãos de Stephanie agarraram as mãos do homem, numa tentativa de se libertar. Ela sentiu a cabeça leve e o sangue pulsando nas têmporas.
— Por favor — sussurrou ela, tentando respirar.
— Você vai estragar minha reputação — grunhiu o homem. — Meu mestre vai achar que sou um idiota se não conseguir tirar uma chave estúpida de uma garotinha estúpida!
A rua estava vazia ao redor deles. Lojas e empresas, todos fechados durante a madrugada. Ninguém iria ouvi-la. Ninguém iria ajudá-la. Onde estava Ardiloso?
O homem ergueu Stephanie do capô e jogou-a de volta. Ela gritou de dor, e o homem se inclinou para frente, com o antebraço direito pressionando o queixo dela.
— Vou quebrar seu pescoço magrelo! — sibilou ele novamente.
— Não sei nada sobre chave nenhuma! — conseguiu dizer Stephanie.
— Se você não sabe nada, não tem utilidade para mim, e matarei você aqui mesmo.
Ela olhou para aquele rosto horrivelmente retorcido e tentou soltar as mãos dele. Em vez disso, Stephanie acabou enfiando o polegar na ferida de bala em seu ombro. O homem gritou, soltou a menina e cambaleou para trás, praguejando, e Stephanie aproveitou para rolar de cima do capô e correr para o Bentley. Ardiloso estava batendo na porta, mas esta havia se entortado com o impacto, prendendo a perna dele.
— Corra! — gritou ele para Stephanie através da janela quebrada. — Fuja daqui!
Stephanie olhou para trás, viu um vulto se aproximando e correu para longe do carro. Escorregou no asfalto molhado, mas conseguiu se levantar e fugiu, com o homem logo atrás dela, agarrando o próprio ombro ferido.
Ele deu um bote e ela se abaixou, agarrou um poste e girou, mudando de curso. O homem a ultrapassou e se esparramou no chão. Ela disparou na direção contrária, passando pelos dois carros e seguindo em frente. A rua era muito longa, muito larga, e não havia como despistá-lo. Assim, entrou numa viela estreita e correu para dentro das sombras.
Stephanie ouviu o homem atrás dela e os passos dele, que pareciam ser muito mais velozes. Não ousou olhar para trás — não queria que o medo que lhe dava velocidade acabasse sabotando sua fuga. Estava escuro demais para discernir o que havia à frente: ela não conseguia ver nada a um braço de distância. Poderia estar a ponto de dar de cara com um muro e não teria...
Muro.
Stephanie girou no último instante, levantou as mãos, se chocou contra a parede e empurrou com força, fazendo a curva sem perder muito impulso. O homem não podia ver no escuro melhor que ela, e Stephanie ouviu quando ele acertou a parede e gritou um palavrão. Adiante havia uma pausa na escuridão. Stephanie viu um táxi passar. O homem tropeçava e escorregava atrás dela — ela estava escapando. Tudo que precisava fazer era correr para a primeira pessoa que ela visse, e o homem não ousaria segui-la.
Stephanie emergiu das trevas e gritou por ajuda, mas o táxi tinha ido embora e a rua estava vazia. Gritou de novo, desta vez de puro desespero. As luzes dos postes tingiam tudo de um tom alaranjado e esticavam a sombra de Stephanie diante dela. Então outra sombra surgiu, movendo-se atrás dela, e Stephanie se atirou para um dos lados enquanto o homem passou, quase acertando a menina.
O canal que atravessava a cidade ficava logo adiante. Stephanie correu na direção dele, consciente de que o homem estava novamente atrás dela, se aproximando cada vez mais. A menina sentiu os dedos do perseguidor no ombro. O primeiro toque foi fugaz, mas o segundo foi sólido. Assim que Stephanie alcançou a borda do canal, a mão do homem se cravou no ombro dela e segurou com força cada vez maior, e a menina conseguiu se jogar para frente antes que ele pudesse arrastá-la. Ouviu um berro de pânico e percebeu que havia puxado o homem junto com ela. Então a água gelada os envolveu.
O frio paralisou Stephanie por um momento, mas a menina resistiu e voltou à ação. Ela “agarrava” a água e a puxava para baixo, como tinha feito incontáveis vezes na praia de Haggard. Agora estava se movendo para cima, em direção às luzes.
Stephanie emergiu, inspirando profundamente o ar. Virou a cabeça e viu o homem lutando, agitando os braços, tomado de terror. Por um instante, achou que ele não sabia nadar, mas era algo mais sério que isso. A água o feria, corroendo sua carne como se fosse ácido, arrancando pedaços do corpo dele. Seus gritos tornaram-se meros ruídos guturais, e Stephanie assistiu enquanto ele se desfez até ficar em silêncio e completamente morto.
Stephanie virou na direção oposta dos pedaços dele que flutuavam até ela e nadou. Suas mãos e pés já estavam insensíveis com o frio, mas ela continuou avançando até que a ponte estivesse bem longe.
Tremendo de frio, Stephanie alcançou a borda do canal e conseguiu se erguer para fora. Com os braços cruzados sobre o peito, os tênis esguichando a cada passo e o cabelo colado à cabeça, ela se apressou em voltar ao Bentley.
Quando chegou, o Bentley estava vazio. Stephanie ficou esperando escondida, fora da luz. Um caminhão passou, reduzindo a velocidade ao se aproximar do acidente. O motorista, não vendo ninguém, seguiu em frente. Stephanie não saiu do lugar.
Alguns minutos depois, Ardiloso emergiu da viela por onde ela tinha sido perseguida. Andava apressado, olhando para os dois lados da rua enquanto voltava para o carro. Stephanie saiu das sombras.
— Ei — chamou ela.
— Stephanie! — exclamou Ardiloso, correndo até ela. — Você está bem!
— Fui nadar — disse ela, tentando fazer os dentes pararem de bater.
— O que aconteceu? — perguntou Ardiloso. — Onde está ele?
— Aqui e ali. — A brisa suave atravessava as roupas molhadas dela. — A água meio que... o desfez em pedaços.
Ardiloso assentiu.
— Acontece.
Ele estendeu a mão e ela sentiu que estava secando. Stephanie viu a água saindo das roupas e do próprio corpo formando uma névoa sobre a cabeça dela.
— Você não está surpreso? — indagou ela.
Ele moveu a nuvem para longe e a liberou. Uma leve chuva caiu no chão.
— Certos tipos de magia de Adepto não são baratos. Como vimos na casa do Gordon, seu inimigo tinha se tornado completamente à prova de fogo, e provavelmente estava muito orgulhoso disso. Infelizmente para ele, o preço desse pequeno feitiço era que uma grande quantidade de água seria mortal. Todo grande feitiço tem um custo.
Ele estalou os dedos e conjurou uma chama, e Stephanie começou a se sentir quente de novo.
— Truque legal — comentou ela. — Você terá de me ensinar um dia.
Depois de muito esforço, Stephanie conseguiu abrir a porta do Bentley. Limpou os pedaços de vidro do banco e entrou, colocando o cinto de segurança. Ardiloso deu a volta no carro e entrou pela janela quebrada do lado do motorista. Ele virou a chave, e o motor rateou, reclamou e ganhou vida.
O corpo de Stephanie estava cansado, assim como sua mente. Os braços e pernas estavam pesados e os olhos queriam se fechar. Ela tirou o celular do bolso — milagrosamente, a água do canal não o havia danificado. Stephanie apertou um botão e a hora surgiu na tela. Ela grunhiu e olhou para fora, no momento em que a primeira luz da manhã começou a surgir no céu.
— O que houve? — perguntou Ardiloso. — Você está ferida?
— Não — respondeu ela —, mas vou ficar, se não voltar à casa de Gordon. Minha mãe irá me buscar em breve.
— Você não parece muito feliz.
— Bem, não quero voltar àquele mundo; uma velha e tediosa cidade com vizinhos intrometidos e tias malvadas.
— Você prefere ficar num mundo onde foi atacada duas vezes na mesma noite?
— Eu sei que parece loucura, mas sim. As coisas acontecem aqui.
— Vou me encontrar com um amigo mais tarde, alguém que poderá nos ajudar. Você pode ir junto, se quiser.
— Sério?
— Acho que você leva jeito para este tipo de trabalho.
Stephanie assentiu e deu de ombros e, ao responder, teve de se esforçar muito para disfarçar a alegria.
— E quanto à magia?
— O quê?
— Você vai me ensinar?
— Você nem sabe se é capaz de fazer mágica.
— Como posso descobrir? Há um teste, ou coisa do gênero?
— Sim, nós cortamos sua cabeça. Se ela crescer de novo, então você pode fazer mágica.
— Você está sendo engraçado de novo, não é?
— Que bom que percebeu.
— Então vai me ensinar?
— Não sou professor. Sou detetive. Já tenho uma profissão.
— Ah, certo. É só que eu realmente gostaria de aprender, e você já sabe tudo.
— Sua bajulação é sutil.
— Mas, tudo bem, se não quiser me ensinar, tudo bem. Acho que posso pedir a Porcelana.
Ardiloso olhou para Stephanie.
— Porcelana não vai lhe ensinar nada. Não vai, porque ela não faz absolutamente nada que não seja para o ganho pessoal dela. Você pode até não perceber no começo, pode até achar que ela está sendo legal com você, mas jamais poderá confiar nela.
— Tudo bem, então.
— Tudo bem? Estamos de acordo?
— Estamos de acordo. Nada de confiar em Porcelana.
— Ótimo. Fico feliz que isso esteja claro.
— Então vai me ensinar a fazer mágica?
Ardiloso suspirou.
— Lidar com você vai ser um desafio, não é?
— É o que dizem meus professores na escola.
— Isso vai ser divertido — comentou Ardiloso, secamente. — Eu sei que vai.
Ardiloso deixou Stephanie na casa de Gordon e, meia hora depois, o carro da mãe da menina atravessou as enormes poças, e Stephanie saiu para se encontrar com ela. A menina conseguiu distrair a atenção da mãe do estado da casa, de modo que ela não percebeu que a porta da frente estava apenas encostada no batente.
— Bom dia — disse a mãe para Stephanie quando ela entrou no carro. — Tudo bem?
Stephanie assentiu.
— Sim, está tudo bem.
— Você está parecendo meio cansada.
— Ah, obrigada, mãe.
A mãe riu enquanto dirigia até o portão.
— Desculpe. Então, me conte, como foi sua noite?
Stephanie hesitou, e então deu de ombros.
— Não aconteceu nada demais.
7
SERPÊNTEO
Nefasto Serpênteo tinha um visitante.
Os Homens Ocos curvavam-se profundamente enquanto o mestre caminhava pelos corredores do seu castelo. Eles pareciam verdadeiros, de longe, mas de perto não eram nada mais que imitações baratas de vida. A pele deles era de papel, uma mera casca sem expressão, inflada por dentro com os gases mais vis. Apenas as mãos e os pés deles eram sólidos — os pés faziam ruídos altos quando andavam, e as mãos eram pesadas demais para os braços, então eles ficam de pé eternamente inclinados para frente.
Eles aumentavam em número conforme Serpênteo se aproximava do salão principal. Os Homens Ocos eram criaturas simples, mas cumpriam ordens e não sabiam o que fazer com este visitante. Serpênteo entrou no salão principal e a multidão de Homens-Ocos se abriu. Um homem de terno escuro virou-se para vê-lo.
— Senhor Êxtase — saudou Serpênteo, educadamente. —Achei que estivesse morto.
— Eu ouvi a mesma coisa — respondeu Êxtase. Era um homem grande e musculoso, muito elegante, da mesma altura de Serpênteo, mas, enquanto Serpênteo tinha cabelos negros e olhos verde-esmeralda faiscantes, Êxtase era careca, com olhos de um azul pálido. — De fato, foi um rumor que espalhei. Achei que faria as pessoas me deixarem em paz na minha aposentadoria.
— E funcionou?
— Infelizmente, não.
Serpênteo ordenou com um gesto que os Homens Ocos saíssem, e então guiou o visitante até a sala de visitas.
— Gostaria de um drinque? — perguntou Serpênteo, enquanto ia até o bar. — Ou ainda é muito cedo para beber?
— Estou aqui a negócios — respondeu Êxtase. — Negócios dos Anciãos.
Serpênteo virou e sorriu para o visitante.
— E como vão os Anciãos?
— Preocupados.
— E quando é que eles não estão preocupados?
Serpênteo foi até a poltrona perto da janela, observou o sol enquanto ele lutava para se erguer, sentou na cadeira, cruzou as pernas e esperou que Êxtase continuasse. Na última vez em que os dois estiveram juntos no mesmo cômodo, estavam tentando matar um ao outro, enquanto um furacão destruía tudo ao redor deles. O simples fato de que Êxtase permanecia de pé naquele momento dizia a Serpênteo que ele estava pensando na mesma coisa. Êxtase estava sendo cauteloso com ele.
— Os Anciãos me chamaram porque, há cinco dias, dois deles desapareceram; Tempestade Clemente e Alexandre Extintor.
— Que lamentável, mas não creio que eu tenha tido o prazer de conhecer qualquer um dos dois.
— Eles tinham sido designados para... observar você, de vez em quando.
— Espiões?
— De forma alguma. Meros observadores. Os Anciãos acharam prudente ficar de olho em alguns dos seguidores de Malevolente, para garantir que nenhum deles quebraria os termos da Trégua. Você sempre esteve no topo dessa lista.
Serpênteo sorriu.
— E você acha que tive alguma coisa a ver com o desaparecimento deles? Sou um homem de paz hoje em dia, não de guerra. Busco apenas o conhecimento.
— Você busca segredos.
— Você faz isso parecer sinistro, Sr. Êxtase. Quanto aos “observadores” desaparecidos, talvez eles acabem reaparecendo sãos e salvos, e os Anciãos terão de pedir desculpas por tirar você da sua aposentadoria.
— Eles apareceram ontem.
— É?
— Mortos.
— Que terrível para eles.
— Nenhuma marca nos corpos. Absolutamente nenhuma indicação de como morreram. Soa familiar?
Serpênteo pensou por um momento e então arqueou uma sobrancelha e ergueu a mão direita enluvada.
— Você acha que isto os matou? Você acha que eu matei aqueles homens? Eu não uso o poder há anos. Quando aprendi a usá-lo, achei que era uma coisa maravilhosa, mas hoje o considero uma maldição, algo que me faz lembrar dos meus muitos erros e transgressões cometidos durante o período em que servi a Malevolente. Não me importo em dizer a você, Sr. Êxtase, que estou profundamente envergonhado de tudo que fiz com a minha vida.
Êxtase permaneceu de pé, e Serpênteo quase estragou tudo com uma risada, mas conseguiu manter a aparência de inocência fingida.
— Obrigado pela sua cooperação — disse Êxtase, virando para ir embora. — Entrarei em contato novamente, se tiver mais perguntas a fazer.
Serpênteo esperou até que Êxtase estivesse na porta antes de falar novamente.
— Eles devem estar assustados.
Êxtase parou.
— Por que diz isso?
— Eles o mandaram aqui, não foi? Por que não mandaram o detetive, eu me pergunto?
— Ardiloso Cortês está ocupado com outra investigação.
— É mesmo? Ou talvez tenham achado que eu ficaria intimidado com você.
— Eles acharam que você me ouviria. Esta Trégua vai durar apenas enquanto os dois lados a desejarem. Os Anciãos desejam que ela dure.
— Isso é muito bom para eles.
O Sr. Êxtase olhou para Serpênteo como se tentasse ler seus pensamentos.
— Cuidado, Nefasto. Você pode não gostar daquilo que o espera no fim dessa estrada que está seguindo.
Serpenteo sorriu novamente.
— Tem certeza de que não quer se juntar a mim num drinque?
— Tenho de pegar um avião.
— Vai a algum lugar agradável?
— Tenho uma reunião em Londres.
— Espero que tudo corra bem para você. Vamos tomar o drinque numa outra ocasião, então.
— Talvez.
O Sr. Êxtase inclinou a cabeça levemente numa saudação e saiu.
8
MEDONHO
Stephanie foi para a cama assim que chegou em casa, e acordou alguns minutos depois das 14h. Foi até o banheiro e entrou no chuveiro, e seu corpo doía enquanto a água caía sobre ela. Os joelhos estavam ralados e cortados, graças a ela ter sido arrastada pelo asfalto. A pele de Stephanie estava coberta de hematomas bem escuros e o pescoço estava duro.
Fechou a torneira e saiu do chuveiro, se secou e vestiu uma calça jeans e uma camiseta limpa. Descalça, Stephanie levou as roupas sujas para o andar de baixo e jogou-as na máquina de lavar, acrescentou o sabão em pó e ligou. Somente depois de comer alguma coisa ela se permitiu pensar na noite anterior.
Bem, disse para si mesma, então aquilo aconteceu. Stephanie se calçou e saiu de casa, sentido a cálida luz do sol no rosto ao chegar na calçada. No fim da rua, passou pelo velho píer e seguiu em direção à rua principal. Tudo estava normal. Garotos jogando futebol, andando de bicicleta e rindo, cachorros correndo por aí com as caudas abanando, vizinhos conversando, o velho mundo de sempre, como sempre tinha sido. Nada de esqueletos vivos. Nada de magia. Nenhum homem tentando matá-la.
Uma risada ensandecida escapou dos lábios de Stephanie quando ela refletiu como sua vida tinha mudado durante um único dia. Tinha deixado de ser uma garota perfeitamente comum num mundo perfeitamente comum, para se tornar alvo de um esquisitão solúvel em água e parceira de um detetive esqueleto na investigação do assassinato do tio dela.
Stephanie hesitou. Assassinato do tio dela? De onde tinha tirado isso? Gordon havia morrido de causas naturais, segundo os médicos. Ela franziu o cenho. Mas aqueles eram médicos que viviam num mundo sem esqueletos que falam e andam. Ainda assim, por que achar que ele havia sido assassinado? Por qual motivo tinha chegado a essa conclusão?
— Há certos itens que não podem ser tomados — havia dito Porcelana —, posses que não podem ser roubadas. Neste caso, o dono precisa morrer antes que qualquer outro possa usar os poderes de tal item.
O homem que a atacou e quem quer que o tenha enviado queriam alguma coisa. Queriam tal coisa o suficiente para matar Stephanie. E se a queriam tanto, teriam mesmo esperado que Gordon morresse de causas naturais antes de ir buscá-la?
Stephanie sentiu um calafrio. Gordon tinha sido assassinado. Alguém havia matado o tio dela, e ninguém estava fazendo nada quanto a isso. Ninguém estava fazendo perguntas, ninguém estava tentando descobrir o assassino.
Exceto Ardiloso.
Ela estreitou os olhos. Ardiloso devia saber que Gordon havia sido assassinado. Se não suspeitava disso quando conheceu a menina, deve ter chegado a essa conclusão na biblioteca. Porcelana provavelmente também sabia, mas nenhum dos dois havia contado a Stephanie. Talvez tenham achado que ela não agüentaria a notícia. Ou talvez tinham pensado que não era problema dela. Tinha a ver com o mundo deles, afinal, e não com o dela. Mas, ainda assim, Gordon era seu tio.
Um carro parou atrás dela. As pessoas olharam. Ela olhou para trás e viu o Bentley.
O lado do motorista ainda estava bem amassado onde o outro carro tinha batido, e o pára-brisa estava rachado. Três das janelas estavam sem vidro, e o capô tinha uma série de mossas bem feias no lado esquerdo. O ronronar costumeiro do motor tinha sido substituído por um chacoalhar preocupante, que parou abruptamente quando o motor foi desligado. Ardiloso — de chapéu, cachecol e óculos — tentou sair, mas a porta não se abria.
— Ai, caramba — murmurou Stephanie.
Observou enquanto ele se afastou da porta e ergueu o joelho, e então chutou a porta com força e saiu, arrumando o casaco enquanto se aproximava da menina.
— Boa tarde — saudou ele, bem-humorado. — Que dia lindo está fazendo hoje, não é?
— As pessoas estão olhando — sussurrou Stephanie quando ele chegou perto.
— Estão? Ah, é, estão mesmo. Bom para elas. Então, está pronta para ir?
— Isso depende — respondeu ela, falando baixo e mantendo um sorriso no rosto. — Quando pretendia me contar que meu tio foi assassinado?
Houve uma breve hesitação.
—Ah. Você deduziu isso, então?
Stephanie entrou num beco estreito entre dois prédios, fugindo dos olhares bisbilhoteiros dos fofoqueiros de Haggard. Ardiloso hesitou por um momento, e então foi atrás dela, andando rápido.
— Eu tinha um motivo muito bom para não lhe contar.
— Eu não ligo. — Agora que ninguém mais podia vê-la, Stephanie parou de sorrir. — Gordon foi assassinado, Ardiloso. Como pôde me esconder isso?
— Este é um ramo de negócios muito perigoso. É um mundo perigoso do qual faço parte.
Stephanie parou subitamente. Ardiloso continuou andando até perceber que ela não estava mais ao lado dele, e deu meia-volta. Ela cruzou os braços.
— Se você acha que não vou agüentar a barra...
— Não, você definitivamente provou que é capaz. — Stephanie percebeu uma leve mudança no tom de voz dele. — Eu soube, no momento em que nos conhecemos, que você era do tipo de pessoa que nunca daria as costas ao perigo, por pura teimosia. Queria mantê-la fora disso tudo por quanto tempo fosse possível. Você precisa entender: Gordon era meu amigo. Achei que manter a sobrinha favorita dele fora de perigo era algo que eu devia a ele.
— Bem, eu já estou em perigo, então essa decisão não é mais sua.
— Não, aparentemente não é mais minha.
— Então não esconderá mais nada de mim?
Ardiloso pôs a mão no peito.
— Prometo pelo meu coração e pela minha vida.
— Está bem.
Ele assentiu e começou a andar de volta para o carro.
— Mas você não tem um coração de verdade — comentou Stephanie.
— Eu sei.
— E, tecnicamente, já está morto.
— Eu sei disso também.
— Só para esclarecer.
— Como ele é? — perguntou Stephanie enquanto Ardiloso dirigia.
— Como quem é?
— Esse cara que vamos ver. Qual é o nome dele?
— Medonho Reservado.
Stephanie olhou para Ardiloso, para ter certeza de que não era uma piada, e percebeu que não tinha como decifrar o rosto dele.
— Por que alguém se chamaria de Medonho?
— Todos os tipos de nomes servem para todos os tipos de pessoas. Medonho é meu alfaiate e, além disso, também é um dos meus melhores amigos. Ele me ensinou a lutar boxe.
— Então, como ele é?
— Decente. Honrado. Honesto. Mas mais divertido do que eu o faço parecer, juro. Além disso, não é um grande fã de magia.
— Ele não gosta de magia? Como é que ele pode não gostar de magia?
— Ele simplesmente não acha interessante. Prefere o mundo sobre o qual lê nos livros e vê na TV, o mundo com tiras, bandidos, novelas e esportes. Se tivesse de escolher, acredito que ele viveria num mundo sem magia. Assim ele poderia ter ido à escola, arranjado um emprego e teria sido... normal. É claro, ele nunca teve como escolher. Imagino que, para ele, jamais houve uma escolha. Não mesmo.
— Por que não?
Ardiloso hesitou por apenas um instante, como se estivesse decidindo qual seria a melhor maneira de dizê-lo, então disse a Stephanie que Medonho tinha nascido feio.
— Não apenas pouco atraente — explicou ele. — Não apenas desagradável, mas realmente, honestamente feio. A mãe dele foi amaldiçoada quando estava grávida, e agora o rosto de Medonho é coberto de cicatrizes. Tentaram de tudo para curar isso: feitiços, poções, amuletos, simpatias, vários e exóticos ungüentos, mas nada funcionou.
Ardiloso explicou que, quando Medonho era criança, ele sempre dizia aos amigos que seu amor pelo boxe vinha do pai e o amor pela costura vinha da mãe. Mas, na verdade, o pai dele era quem ficava constantemente fazendo bainhas de calças e coisas assim, e a mãe dele era campeã de boxe sem luvas, com 22 vitórias consecutivas. Ardiloso tinha visto ela lutando, uma vez. Tinha um gancho direito que era capaz de arrancar uma cabeça. E, de acordo com as lendas, realmente fez isso uma vez.
De qualquer maneira, Medonho tinha sido educado nas duas disciplinas e, concluindo que já era feio demais, decidiu seguir a carreira de alfaiate, em vez de boxeador.
— E fico feliz que ele o tenha feito — comentou Ardiloso. — Ele faz ternos extraordinários.
— Então nós vamos vê-lo porque você precisa de um terno novo?
— Não é bem isso. Veja bem, a família dele reuniu uma coleção única de ilustrações, pinturas e livros sobre os Antigos, com itens de todas as partes do mundo. Nessa coleção há uns dois volumes que poderão ser muito úteis mesmo. Tudo que se sabe sobre o Cetro é baseado em mitos semi-esquecidos. Aqueles livros, e o que mais houver na coleção de Medonho, terão descrições muito mais detalhadas das lendas, sobre o que o Cetro pode fazer e, em teoria, como alguém poderia se defender dele.
Eles estacionaram e saíram do carro. A vizinhança era suja e mal conservada, e as pessoas se apressavam em sair dali, sem mesmo dar uma olhada no Bentley amassado. Uma velhinha passou rapidamente e acenou para Ardiloso.
— Esta é uma das comunidades secretas das quais você me falou? — indagou Stephanie.
— De fato, é isso mesmo. Tentamos manter as ruas com a aparência menos convidativa possível, para que nenhum transeunte pare e dê uma olhada.
— Bem, vocês conseguiram.
— Você já deveria ter percebido que as aparências, com muita freqüência, enganam. Uma vizinhança como esta, com pichações, lixo e miséria, é a vizinhança mais segura que você poderia visitar. Abra a porta de qualquer uma dessas casas ao nosso redor e você entrará num verdadeiro palácio. O superficial não é nada, Stephanie.
— Tentarei me lembrar disso — respondeu ela, enquanto seguia Ardiloso até uma lojinha empoleirada na esquina. Ela procurou por um letreiro — O alfaiate é aqui?
— A Alfaiataria Reservado, sim.
— Mas não há um letreiro. Nenhuma roupa na vitrine. Como alguém poderia saber que a loja está aberta?
— Medonho não precisa de publicidade. Tem uma clientela muito específica e não pode realmente deixar gente comum entrar enquanto ele estiver tomando as medidas de um homem-polvo de oito braços.
— Isso é sério? Existe um homem-polvo de oito braços?
— Há uma colônia inteira de pessoas-polvo — afirmou Ardiloso enquanto eles se aproximavam da porta.
— É mesmo?
— Meu Deus, Stephanie, é claro que não. Isso seria ridículo demais.
Ele seguiu em frente antes que ela pudesse tentar acertá-lo com um soco. A porta da loja estava destrancada e Ardiloso tomou adianteira. Stephanie se surpriendeu com o quão limpa, clara e comum ela era. A menina não havia sabido o que esperar; talvez manequins que ganhassem vida e tentassem comê-la. Além disso, o lugar cheirava bem. Reconfortante.
Medonho Reservado veio da parte de trás da loja e sorriu ao ver os visitantes. Apertou calorosamente a mão de Ardiloso. Medonho tinha ombros largos e cicatrizes cobriam toda a sua cabeça. Quando Ardiloso virou para apresentar Stephanie e viu que ela estava olhando Medonho fixamente, ele deu de ombros.
— Não ligue para ela — pediu Ardiloso. — Ela fica olhando. É isso que ela faz quando conhece alguém.
— Estou bem acostumado — respondeu Medonho, ainda sorrindo. — Quer apertar minha mão, senhorita, ou começar com algo fácil, como um aceno?
Stephanie sentiu que estava enrubescendo e esticou a mão rapidamente. A mão de Medonho era normal, sem cicatrizes, mas dura e forte.
— Você tem um nome? — indagou ele.
— Ainda não — admitiu ela.
— Melhor ter certeza de que você quer mesmo ter um nome, antes de pensar mais no assunto. Esta vida não é para qualquer um.
Stephanie assentiu lentamente, sem ter certeza do que ele queria dizer. Ele levou algum tempo olhando Stephanie de cima a baixo.
— Tiveram problemas?
— Alguns — admitiu Ardiloso.
— Então o traje apropriado será necessário. — Medonho pegou um bloco de notas e começou a escrever. — Você tem uma cor favorita? — perguntou a Stephanie.
— Perdão?
— Para vestir. Alguma preferência?
— Acho que não entendi...
— Nem todas as roupas que eu faço são simples exemplares de excelente alfaiataria. Algumas vezes, se as circunstâncias assim ditarem, exigências especiais devem ser atendidas.
— Tais como manter você viva até que esta confusão esteja encerrada — explicou Ardiloso. — Medonho pode fazer uma roupa, nada muito formal, que poderia muito bem salvar sua vida.
— Moda — comentou Medonho, dando de ombros. — Pode ser um assunto de vida ou morte. — A caneta estava a postos. — Então, mais uma vez, você tem uma cor favorita para roupas?
— Eu... não sei se poderei pagar...
Medonho deu de ombros.
— Vou colocar na conta de Ardiloso. Fique à vontade.
Stephanie piscou os olhos. Passar das roupas que a mãe comprava para ela para isso era um passo que ela não tinha esperado.
— Não sei, não tenho certeza... Preto?
Medonho assentiu e anotou no bloco.
— Não dá para errar com preto. — ele olhou para Ardiloso. — Deixe-me fechar a loja — disse — e poderemos conversar à vontade.
Enquanto esperavam por Medonho, Ardiloso e Stephanie foram até os fundos da loja. Materiais e tecidos de todos os tipos e texturas estavam muito bem organizados em enormes estantes que cobriam as paredes. Havia uma mesa de trabalho solitária no centro do aposento e outra porta, que levava ainda mais para os fundos.
— Ele vai fazer roupas para mim? — sussurrou Stephanie.
— Vai.
— Ele não precisa tirar minhas medidas, ou coisa assim?
— Uma olhada é tudo de que ele precisa.
A dupla passou para uma saleta de estar e, momentos depois, Medonho juntou-se a eles. Stephanie e Ardiloso sentaram-se num sofá estreito e Medonho escolheu uma poltrona diante deles, com os dois pés plantados no chão e os dedos úmidos.
— Então, o que está acontecendo?
— Estamos investigando o assassinato de Gordon Edgley — respondeu Ardiloso.
— Assassinato? — indagou Medonho, depois de uma pausa.
— De fato.
— Quem iria querer matar Gordon?
— Achamos que foi Serpênteo. Achamos que ele estava procurando alguma coisa.
— Ardiloso — disse Medonho, franzindo o cenho. — Geralmente, quando quer minha ajuda, você simplesmente me chama e me leva para alguma briga. Você nunca me explicou nada antes, então por que está fazendo isso agora?
— Eu preciso de um tipo diferente de ajuda.
— Então não terei de bater em ninguém?
— Precisamos do seu auxílio somente para descobrir o que Serpênteo está procurando.
— Entendi — respondeu Medonho, assentindo com a cabeça.
— Você não entendeu nada, não é?
— Não — disse Medonho imediatamente. — Não tenho a menor idéia do que você quer que eu faça.
— Achamos que Serpênteo está atrás do Cetro dos Antigos — explicou Stephanie, e sentiu que Ardiloso tinha se afundado mais nas almofadas ao lado dela.
— Atrás do quê? — exclamou Medonho, o sorriso novamente nos lábios. — Você não está falando sério, está? Ouça, não sei o que meu caro amigo aqui andou dizendo, mas o Cetro não é real.
— Serpênteo pensa que é. Achamos que isso tem alguma relação com o assassinato do meu tio.
— Meus pêsames pela sua perda — disse Medonho. — De verdade. Eu respeitava Gordon. Ele sabia que havia mágica no mundo e não foi seduzido por ela. Ele queria apenas observar e escrever sobre magia. Para isso, é preciso uma força que eu espero que você tenha herdado.
Stephanie não respondeu. Ardiloso não olhou para ela.
— Porém — continuou Medonho —, afirmar que a morte dele tem alguma coisa a ver com uma lenda que tem sido passada de geração em geração e que foi mudada a cada vez que foi contada, isso é tolice. Ele teve um ataque cardíaco. Ele era um mortal. Ele morreu. É isso que os mortais fazem. Deixe-o morrer.
— Acredito que meu tio sabia onde está o Cetro, ou ele o tinha e Serpênteo o matou por isso, e agora Serpênteo sabe onde está o Cetro e é por isso que ele quer a chave.
— Que chave?
— A chave para chegar ao Cetro, talvez. Não temos certeza. O que sabemos é que ele tentou me matar duas vezes para consegui-la.
Medonho balançou a cabeça.
— Este não é seu mundo.
— Sou parte dele, agora.
— Você apenas entrou nele. Você viu magia e feiticeiros e um esqueleto vivo, e aposto que está se divertindo muito; mas não faz a menor idéia do que está em risco.
Ardiloso continuou calado. Stephanie se levantou.
— Quer saber de uma coisa? — retrucou ela. — Para mim, isto é uma aventura. É isso que está dizendo, não é? Bem, você está certo. Eu realmente vejo isso tudo como uma grande aventura, e estou fascinada e empolgada com tudo. Vi pessoas fantásticas fazendo coisas fantásticas, e estou maravilhada. — Os olhos dela se endureceram. — Mas não ouse, nem por um segundo, pensar que isto é só uma brincadeira para mim. Meu tio me deixou uma fortuna: ele me deixou tudo que eu jamais poderia querer. Ele fez isso tudo por mim, mas agora está morto. Então agora preciso fazer algo para ele. Vou descobrir quem o matou, e vou fazer tudo que puder para garantir que essa pessoa não saia livre dessa história. Meu tio precisa de alguém do lado dele.
— Isso é loucura! — exclamou Medonho, se inclinando para frente na poltrona. — O Cetro é um conto de fadas!
— Eu acredito que ele existe.
— É claro que você acredita que ele existe! Você foi arrastada para um mundo no qual pensa que tudo pode acontecer, mas não é assim que a coisa funciona. Seu tio se envolveu nisso e, se o que você disse é verdade, morreu por isso. Está com tanta vontade de fazer o mesmo? Você está brincando com fogo.
— Todo mundo brinca com fogo por aqui.
— Isso não está correndo da maneira que eu esperava — comentou Ardiloso.
— Há regras para esse tipo de coisa — continuou Medonho, ignorando Stephanie e falando com Ardiloso. — Há uma razão pela qual não contamos para todo mundo que estamos aqui. Ela é um ótimo exemplo desse motivo.
A raiva de Stephanie aumentou, e ela sabia que não poderia falar agora sem que sua voz ficasse aguda, então passou correndo por Medonho. Atravessou a loja e saiu para a rua. Sentia a raiva se revirando nas entranhas, fazendo seus punhos se fecharem. Odiava não ser tratada como igual, odiava receber um tratamento condescendente e odiava a sensação de ser protegida. Também não gostava muito de ser ignorada.
Ardiloso saiu da alfaiataria alguns minutos depois, com o chapéu de novo na cabeça. Ele andou até a menina, que esperava encostada no Bentley, com os braços cruzados enquanto observava uma rachadura na calçada.
— Então correu tudo muito bem — disse ele, afinal. Como ela não respondeu, ele balançou a cabeça e perguntou. — Eu já lhe contei como eu e Medonho nos conhecemos?
— Não quero saber.
— Ah, tudo bem, então. — O silêncio se estabeleceu entre eles como uma neblina. — Não é uma história muito interessante, de qualquer maneira. Mas envolve piratas.
— Não estou nem aí — retrucou Stephanie. — Ele vai nos ajudar ou não?
— Bem, ele acha que não é boa idéia eu levar você comigo nessa investigação.
— É mesmo? — respondeu Stephanie, azeda.
— Ele parece achar que estou sendo irresponsável.
— E o que você acha?
— Eu já fui irresponsável no passado. É inteiramente plausível que eu o seja novamente.
— Você acha que eu estou correndo perigo?
— Ah, sim. Serpênteo ainda acredita que você tem seja lá qual for a chave que ele está procurando. Assim que ele descobrir quem você é ou onde você está, mandará mais alguém. Você corre realmente um pergigo grave, e não estou exagerando.
— Então vamos ser bem claros, está bem? Eu não posso abandonar isso tudo. Não posso voltar para minha vida sem graça, tediosa, ordinária,, mesmo que eu queira. Eu vi demais. Estou envolvida nisso. O meu tio foi assassinado, a minha vida está em perigo e eu não vou simplesmente dar as costas para tudo. É isso.
— Bem, você me convenceu.
— Então por que estamos parados aqui?
— Ia fazer a mesma pergunta — disse Ardiloso, enquanto abria o carro. Eles entraram e o Bentley chacoalhou e acordou quando a chave foi girada na ignição. Ardiloso conferiu o retrovisor e os espelhos laterais, e então lembrou que não tinha mais espelhos laterais, e saiu da vaga.
— Então não poderemos examinar a coleção da família dele? — perguntou Stephanie enquanto Ardiloso dirigia.
— Medonho é um bom homem e um bom amigo, precisamente o tipo de pessoa que você quer ter a seu lado, mas também é um dos caras mais teimosos que já conheci. Daqui a quatro dias, depois que pensar um pouco, vai mudar de idéia e ficar feliz em nos deixar ver o que precisamos. Mas, até lá, não temos nenhuma esperança.
— Esses livros não poderiam estar na biblioteca de Porcelana também?
Ardiloso fez um barulho que era metade risada e metade grunhido.
— Porcelana está atrás desses livros há anos, mas eles estão trancafiados num lugar onde nem ela poderia alcançá-los.
— Você sabe onde estão?
— No Cofre.
— Num cofre? E daí?
— Não num cofre, no Cofre. É uma série de câmaras situadas sob a Galeria de Arte Municipal de Dublin, muito bem protegidas, onde eles não gostam muito de intrusos.
Stephanie pensou por um momento e falou:
— Medonho vai mudar de idéia em quatro dias?
— É o tempo que ele geralmente leva, sim.
— Mas nós não temos quatro dias, temos?
— Não, não temos.
— Então você sabe o que precisamos fazer, certo?
— Infelizmente, sim.
— Nós temos de olhar aquela coleção.
Ardiloso olhou para ela.
— Eu sabia que você seria boa nisso. No momento em que a vi, soube que você tinha o instinto para esse trabalho.
— Então vamos arrombar o Cofre?
Ardiloso assentiu com relutância.
— Vamos arrombar o Cofre.
A Galeria de Arte Municipal de Dublin ficava numa das regiões mais opulentas da cidade. Um cintilante triunfo de aço e vidro, ela se erguia solitária e orgulhosa, e seus luxuriantes jardins mantinham os outros os prédios a uma distância respeitável.
Stephanie e Ardiloso estacionaram do outro lado da rua, como parte daquilo que Ardiloso chamava de tocaia preliminar. Não iam invadir o Cofre ainda, ele garantiu a Stephanie; iam apenas avaliar o que teriam de enfrentar. A dupla tinha acabado de ver os funcionários da galeria e meia dúzia de guardas deixando o prédio, pois o turno deles tinha acabado. Duas pessoas, um homem e uma mulher, passaram pelos trabalhadores na escadaria e entraram na galeria, trancando as portas.
— Ah — resmungou Ardiloso por detrás do cachecol. — Creio que temos um problema.
— Que problema? — inquiriu Stephanie. — Eles? Quem são eles?
— O turno da noite.
— Duas pessoas? É só isso?
— Não são exatamente pessoas.
— Então quem são eles?
— Não é bem uma questão de quem, mas sim do quê.
— Eu juro por Deus, Ardiloso, que se você não me der uma resposta direta agora mesmo, eu vou catar o maior cachorro que você já viu e vou fazer que ele cave um buraco e enterre você.
— Ah, que idéia mais charmosa, de fato — disse Ardiloso, e pigarreou como se estivesse limpando a garganta, mesmo que não houvesse pigarro algum, ou garganta para se limpar. — Percebeu a forma como eles se moviam?
— Sim, muito... não sei... graciosa. O que tem de mais? São dançarinos? Os guardas do Cofre são bailarinas?
— São vampiros — respondeu Ardiloso. — Os guardas do Cofre são vampiros.
Stephanie fez questão de colocar a cabeça para fora da janela e olhar para o céu.
— O Sol ainda está brilhando, Ardiloso. Ainda é dia.
— Não faz diferença para eles.
Ela franziu o cenho.
— A luz do Sol não os mata? Não os transforma em pó, ou os faz pegar fogo, ou coisa do gênero?
— Não. Os vampiros se bronzeiam, assim como eu e você. Bem, assim como você. Eu tenho tendência a branquear.
— Então a luz do Sol não os afeta?
— Ela os limita. Abafa os poderes deles. Durante o dia, eles são, para todos os efeitos, mortais, mas quando o Sol se põe, os poderes deles acendem.
— Não sabia disso.
— E o Cofre emprega dois deles como guardas noturnos. Os cães de guarda perfeitos.
— Se a luz do Sol não os machuca, suponho que cruzes não vão assustá-los?
— A melhor maneira de parar um vampiro é com um monte de tiros e, como não queremos machucar ninguém, esse é o problema do qual eu estava falando.
— Deve haver alguma forma de passar por eles. Poderíamos nos disfarçar de faxineiros, ou algo assim?
— Ninguém trabalha quando os vampiros estão por perto; eles não fazem distinção entre aliados e presas. Não conseguem resistir à sede de sangue, tanto quanto uma mariposa não pode resistir a uma lâmpada grande e brilhante. Eles são assassinos: os mais eficientes e letais assassinos na face da Terra.
— Assustador.
— Sim, bem, os vampiros não são conhecidos por serem fofos.
— Então vamos ter de inventar algo muito, muito inteligente.
Ardiloso fez uma breve pausa e deu de ombros.
— Acho que sou bom nisso.
9
O TROLL SOB A PONTE DE WESTMINSTER
Ardiloso deixou Stephanie na casa dela e, quando a menina já estava na cama, finalmente caindo no sono, uma jovem mulher em Londres estava de cócoras, espiando a escuridão.
— Olá? — chamou ela. — Tem alguém aí embaixo?
O Tâmisa corria escuro e veloz abaixo dela, mas ninguém respondeu. Olhou para o relógio e depois ao redor. Faltavam sete minutos para a meia-noite e a ponte de Westminster estava completamente vazia, exceto por ela. Perfeito.
— Olá? — chamou novamente. — Preciso falar com você.
Uma voz respondeu:
— Não tem ninguém aqui embaixo.
— Eu acho que tem — respondeu ela.
— Não — retrucou a voz. — Ninguém.
— Eu acho que tem um troll aí embaixo — afirmou a jovem mulher. — E preciso falar com ele.
Um rosto emergiu das sombras, pequeno e enrugado, com grandes orelhas e um monte de cabelos pretos espetados. Enormes olhos piscavam para ela.
— O que você quer? — inquiriu o troll.
— Quero falar com você — respondeu a jovem mulher. — Sou Tanith Low. Qual é o seu nome?
O troll balançou a cabeça negativamente.
— Não, não, não digo. Não digo isso.
— Ah, sim — disse Tanith —, trolls só têm um nome, não é mesmo?
— Sim, sim, um nome. Não digo.
— Mas eu posso adivinhá-lo, não é assim que funciona? Se eu adivinhar seu nome, o que acontecerá?
O troll sorriu, mostrando muitos dentes amarelos e afiados.
— Você continua viva — foi a resposta.
— E se eu errar?
O troll deu uma risadinha.
— Você é comida!
— Parece uma brincadeira divertida — comentou Tanith com um sorriso. —A que horas você geralmente brinca?
— Meia-noite, na batida da meia-noite, sim, sim, sim. Quando estou forte.
— E você pula daí debaixo para assustar quem estiver passando, não é?
— Três chances — disse o troll, assentindo. — Três chances é o que eles têm. Adivinhe o nome, não seja comido; adivinhe errado, venha comigo.
— Quer brincar comigo?
O sorriso sumiu do rosto do troll.
— Não tô forte ainda. Precisa esperar, sim, sim. Batida da meia-noite.
— Nós não precisamos esperar, não é? — disse Tanith, fazendo bico. — Quero brincar agora. Aposto que consigo adivinhar seu nome.
— Não, não consegue.
— Aposto que consigo.
— Não, não consegue! — disse o troll, de novo dando uma risadinha.
— Suba aqui para fora e veremos.
— Sim, sim, vamos brincar.
Tanith olhou para o relógio e deu um passo para trás enquanto o troll subia de quatro. Dois minutos para a meia-noite. Ele era pequeno, batia na cintura dela, com braços e pernas finas e uma barriga inchada. As unhas eram pontudas e duras, e ele sorria com a expectativa, apesar de manter distância.
Ela deixou o casaco abrir um pouco e sorriu para a criatura.
— Você é um carinha bonito, não é? É o único troll em Londres?
— Único troll — disse ele, orgulhoso. — Agora brincamos! Adivinha o nome, não seja comido; adivinhe errado, venha comigo. Adivinha, adivinha, adivinha.
— Vamos ver — disse ela, dando um passo à frente. O troll estreitou os olhos e deu um passo atrás, em direção à beira da ponte. Ela parou de se mover. — Seu nome é Bolo-Oco?
O troll explodiu numa gargalhada.
— Não, não, não é Bolo-Oco! Duas chances ainda, só duas.
— É mais difícil do que eu pensava — comentou Tanith. — Você é mesmo muito bom nisso, não é?
— Melhor! Melhor mesmo!
— Poucas pessoas já adivinharam seu nome, hein?
— Nenhuma — cacarejou o troll. — Adivinha, adivinha!
— É... Fernalupis Branguíno?
O troll piou, gritou e dançou, e Tanith chegou um pouco mais perto.
— Não é Fernalupis! —Ele riu. —Não Branguíno!
— Uau — disse Tanith, parecendo preocupada. — Não estou indo muito bem, não é?
— Vai ser comida!
— Você come muitos transeuntes?
— Sim, nham, nham!
— Você abocanha todos eles, não é? Eles gritam e choram e correm...
— Mas eu pego eles! — O troll riu. — Bateu meia-noite eu fico grande e forte e rápido, abocanho eles, abocanho todos eles! Eles lutam e se remexem, faz cócegas na minha barriga.
— É melhor eu acertar a última tentativa, hein? — disse Tanith. — Seu nome é... Rumplestilskin?
O troll riu tanto que caiu de costas.
— Não, não! — conseguiu dizer por entre as lufadas de gargalhadas. — Eles sempre dizem isso! Sempre erram!
Tanith deu mais um passo e parou de sorrir. A espada saiu debaixo do casaco num piscar de olhos, mas o troll viu a lâmina em tempo, deu um gritinho e rolou para longe.
Tanith praguejou e golpeou novamente, mas o troll se esquivou por baixo dela, que girou e chutou, atirando a criatura para longe. Ele se levantou rapidamente, sibilando e cuspindo enquanto a mulher avançava, e então, naquela morna noite londrina, soou o Big Ben. Meia-noite.
Tanith estocou com a espada, mas era tarde. O troll pulou para trás enquanto os próprios ombros se curvavam para frente. A criatura grunhiu e começou a crescer.
— Droga — sussurrou Tanith para si mesma.
Os músculos incharam nos braços e pernas dele, esticando tanto a pele que parecia que ela ia se romper. Ela avançou novamente, mas ele deu um salto mortal para trás e, ao aterrissar, já estava da altura dela. O peitoral dele ficou mais largo, o pescoço engrossou e ele continuou crescendo e rosnando. Os ossos dele estalaram e o troll completou o processo. Ele agora era duas vezes maior que Tanith.
Encarar um troll completamente crescido não estava nos planos dela. Tanith apontou a espada para baixo, paralela à perna, e rodeou a criatura.
— Você trapaceou —disse ele, agora com uma voz grave e gutural.
— Você tem sido um menino muito mau — retrucou ela.
— Abocanhar você. Abocanhar você toda, sim, sim.
Tanith sorriu para ele.
— Pode tentar, se você acha que é durão o suficiente...
O troll rugiu e atacou, movendo-se muito rapidamente apesar do tamanho, mas Tanith estava pronta. Ela deslizou para o lado e depois para trás dele, enquanto a espada cortava fundo a coxa da criatura. Ele sibilou de dor e golpeou com um enorme punho que atingiu as costas da mulher. Ela atingiu o chão com força. Ele tentou pisar nela, mas ela rolou, se ergueu sobre um joelho e, ao erguer a espada até a altura do ombro, a lâmina atingiu o braço dele.
O troll cambaleou para trás, e Tanith ficou de pé.
— Vou morder você — grunhiu o troll. — Vou mastigar você em pedacinhos, sim, sim.
— A brincadeira não é tão divertida quando você brinca com alguém que pode revidar, não é?
— Minha ponte — rosnou ele. — Minha brincadeira.
Ela sorriu de novo.
— Minhas regras.
Depois de mais um rugido, ele saltou na direção de Tanith, que não se moveu um centímetro. Um movimento da espada decepou os dedos da mão esquerda do troll, que urrou de dor e cambaleou para trás. Tanith pulou, plantou os pés no peito dele e deu um golpe horizontal. A lâmina brilhou com o reflexo das luzes da ponte ao cortar fora a cabeça do troll. O corpo da criatura caiu para trás e Tanith pulou. O corpo se chocou contra a murada da ponte e caiu de costas no rio.
Tanith se abaixou para pegar a cabeça e foi até a murada. Quando virou de volta, um homem se aproximou. Nunca o encontrara antes, mas sabia quem ele era. O homem era alto e careca, com o rosto coberto de rugas e olhos de um azul impressionante, os mais pálidos que ela já tinha visto. O nome dele era Sr. Êxtase.
O Sr. Êxtase assentiu, indicando a cabeça na mão dela.
— Arriscado.
— Já enfrentei trolls antes — respondeu ela, respeitosamente.
— Eu me referia ao risco de alguém ver você.
— Isso precisava ser feito. O troll matou muitas pessoas inocentes.
— Mas é isso que os trolls fazem. Você não pode culpá-lo por fazer o que a natureza dele exigia. — Tanith não sabia o que responder. O Sr. Êxtase sorriu. — Não estou lhe dando uma bronca — explicou ele. — Você fez uma coisa muito nobre e generosa. Merece admiração.
— Obrigada.
— Você me deixa confuso, entretanto. Estive de olho em seu progresso nos últimos anos. É muito incomum que um mago, mesmo uma Adepta como você, se concentre tanto no conflito físico, como tem feito. Porém você não busca o poder.
— Quero apenas ajudar as pessoas.
— E é isso que me confunde.
— Minha mãe costumava me contar histórias da guerra — respondeu Tanith. —Você deve estar se esquecendo de alguns dos seus próprios atos generosos.
O Sr. Êxtase sorriu de leve.
— Não há heroísmo na guerra; apenas coisas que precisam ser feitas. Os heróis vêm depois. Mas não estou aqui para discutir filosofia.
Olhou para Tanith com os incríveis olhos azuis.
— Uma tempestade está se formando, Srta. Low. Eventos iminentes ameaçam virar a maré do poder deste mundo, portanto deixei meu local de repouso e solidão e vim para cá, à sua procura. Preciso de alguém com suas habilidades e seu ponto de vista.
— Não sei se compreendo.
— O feiticeiro Serpênteo vai quebrar a Trégua. Se eu fracassar em minhas empreitadas, vamos entrar em guerra novamente. Preciso de você do nosso lado.
— Seria uma honra — aceitou Tanith.
— Temos muito a aprender um com o outro — respondeu o Sr. Êxtase, com uma mesura. — Vá para a Irlanda — instruiu ele. — Entrarei em contato com você em breve.
Ela concordou e ele foi embora. Tanith jogou a cabeça do troll no Tâmisa e, escondendo a espada dentro do casaco, caminhou na direção oposta.
10
A GAROTA DE PRETO
Stephanie acordou no dia seguinte com o aparelho de som, que tocava realmente muito alto. O pai dela estava tentando sintonizar numa estação de notícias quando o botão de volume quebrou na mão dele, então, ao invés de um boletim de trânsito quase silencioso, eles foram presenteados com “A cavalgada das valquírias”, de Wagner, no volume máximo. Ele tinha perdido o controle remoto entre as almofadas do sofá, e não tinha a menor idéia de como desligar o aparelho de som. A música reverberava através do chão e nas paredes. Não havia como escapar do seu poder intenso. No momento em que a mãe arrancou a tomada da parede, Stephanie já estava muito bem acordada.
A mãe pôs a cabeça dentro do quarto para se despedir, e assim que os pais foram trabalhar, Stephanie vestiu calça jeans e uma camiseta. Enquanto esperava a chegada de Ardiloso, começou a pensar num bom nome que pudesse usar. Ardiloso havia explicado como a escolha de um novo nome lançava um selo sobre o antigo; então, se Stephanie escolhesse o nome “Martelo de Cristal” (não estava nos planos dela), o nome Stephanie Edgley ficaria instantaneamente imune a qualquer feitiço de controle. Mas, enquanto ela tivesse apenas o nome dado, ela estava vulnerável.
Se ia ter um novo nome, teria de ser um que não a envergonhasse no futuro. Algo com classe, e com o qual ela se sentisse confortável. Ardiloso tinha mencionado pessoas que haviam escolhido nomes como Navalha ou Fênix, e como ele não aconselhava a escolha de um nome que parecesse legal. Uma vez, ele tinha sido apresentado a uma mulher que havia engordado com a passagem dos anos, o cabelo estava desgrenhado e tinha um pedaço de espinafre preso no dente, e disse a ele que se chamava Veloz. “Veloz” não servia para aquela mulher, assim como “Navalha” não servia para o homem baixo e gorducho que tinha escolhido tal nome.
Stephanie levantou o olhar da escrivaninha quando Ardiloso bateu de leve na janela, que ela abriu prontamente.
— Achei que as meninas eram organizadas — comentou ele, ao olhar para dentro.
Stephanie chutou algumas calcinhas para baixo da cama e ignorou o comentário.
— Tudo bem aí fora?
— Já me empoleirei em telhados piores, acredite.
— Meus pais já foram trabalhar, sabia? Você poderia ter usado a porta.
— Portas são para pessoas sem imaginação.
— Tem certeza de que não foi visto? A última coisa de que preciso é um vizinho passando e vendo você escalando a lateral da casa.
— Eu fui cuidadoso, não se preocupe. E tenho uma coisa para você. — Entregou um pedaço de giz a ela.
— Ah, obrigada — agradeceu ela, lentamente.
— Vá até o espelho.
— Perdão?
— Vá até o espelho e desenhe este símbolo nele. — Entregou um pequeno cartão que mostrava um olho em um círculo, cortado por uma linha ondulada.
— Para que serve isto?
— Para ajudá-la. Vá em frente.
Ela franziu o cenho e foi até o espelho.
— Não — disse Ardiloso. — Um espelho de corpo inteiro. Você tem um?
— Sim — respondeu Stephanie. Ainda sem fazer idéia do que estava fazendo, ela abriu o guarda-roupa e usou o giz para copiar o símbolo no espelho que ficava do lado de dentro da porta. Depois de terminar, devolveu o cartão e o giz a Ardiloso. Ele agradeceu, guardou os dois itens e olhou para o espelho.
— Superfície fale, superfície sinta, superfície pense, superfície viva. — Ele olhou novamente para ela. — Você poderia apagar o símbolo agora, por favor?
— O que está acontecendo? O que está fazendo? Você lançou um feitiço no meu espelho?
— Sim. Você poderia apagar o símbolo?
— Bem, o que o feitiço faz? — indagou ela, enquanto usava a manga para apagar o giz.
— Você verá — foi a resposta. — Está usando um relógio?
— Meu relógio quebrou. Eu o usei quando fui nadar. Achei que era à prova d’agua.
— E era?
— Como acabei descobrindo, não. Por que precisa saber a hora?
— Ah, não preciso. Toque o espelho.
Ela estreitou os olhos.
— Por quê?
— Toque.
Stephanie hesitou, cumpriu a instrução e esticou o braço, tocando o espelho de leve com os dedos. Mas, quando retraiu a mão, o reflexo não imitou o gesto. A menina observou, maravilhada, o reflexo dela piscar os olhos, como se estivesse acordando de um transe, e deixar os braços caírem para os lados do corpo, enquanto olhava ao redor. Então, muito lentamente, ela pisou do lado de fora do espelho.
— Ah, meu Deus... — disse Stephanie, recuando enquanto o reflexo se juntava a ela no quarto. — Ah, meu Deus — repetiu, porque não conseguia pensar em outra coisa que pudesse dizer.
Ardiloso olhava para fora da janela.
— Ela vai tocar sua vida enquanto você estiver fora, e assim ninguém sentirá sua falta.
Stephanie encarava o reflexo.
— Ela sou eu.
— Não é ela, é isso. E não é você, é uma cópia superficial. Isso anda como você, fala como você, se comporta como você, e deverá ser suficiente para enganar seus pais e qualquer outra pessoa que estiver em contato com ela. Quando você voltar, isso entra de novo no espelho, e as memórias que isso tiver são transferidas para você.
— Então... poderei estar em dois lugares ao mesmo tempo?
— Precisamente. Isso não pode passar muito tempo na companhia de outras pessoas, ou elas começarão a perceber que as coisas não estão muito certas, e isso jamais enganaria um mago, mas é ideal para suas necessidades.
— Uau. — Stephanie olhou o reflexo mais de perto. — Diga alguma coisa.
O reflexo olhou de volta para Stephanie.
— O que quer que eu diga?
Stephanie riu de repente, e colocou a mão sobre a boca.
— Você tem a mesma voz que eu — disse, por entre os dedos.
— Eu sei.
— Você tem um nome?
— Meu nome é Stephanie.
— Não, um nome só seu.
Ardiloso balançou a cabeça.
— Lembre-se, isso não é uma pessoa real. Não tem pensamentos, ou sentimentos próprios: são todos imitações dos seus. É o seu reflexo; e só isso. As instruções de uso são as seguintes: isso não pode trocar as roupas que você estiver usando quando lançar o feitiço, então tome cuidado para não usar nada com um logotipo ou insígnia. Eles ficarão invertidos. Tome cuidado para não usar um relógio ou anel; eles aparecerão na mão oposta. Fora isso, é bem simples.
— Uau.
— Temos de ir.
Stephanie olhou para Ardiloso, franzindo o cenho.
— Tem certeza que não vão descobrir que não sou eu?
— Isso ficará fora do caminho das pessoas na maior parte do tempo e tentará evitar qualquer conversa mais longa. Mesmo que seus pais encurralem isso num canto e o bombardeiem com perguntas, vão achar apenas que você está agindo de forma estranha.
Stephanie mordeu o lábio e deu de ombros.
— Acho que é pouco provável que meus pais concluam que isso é meu reflexo que ganhou vida.
— Você ficaria surpresa com a quantidade de coisas estranhas que conseguimos fazer e que estão na categoria “pouco provável”. Está pronta?
— Acredito que sim.
— Quer sair pela porta ou pela janela?
— Portas são para pessoas sem imaginação. — Stephanie sorriu e se juntou a Ardiloso no parapeito da janela. Ela olhou para trás, O reflexo estava de pé no meio do quarto, perfeitamente imóvel.
— Tchau — disse Stephanie.
— Tchau — respondeu o reflexo, que tentou sorrir pela primeira vez. Era meio assustador.
Stephanie saiu e se segurou em Ardiloso quando ele pulou, deslocando o ar sob eles para que agisse como um colchão. Eles aterrissaram suavemente e chegaram ao fim da rua sem serem vistos por nenhum dos vizinhos, mas, quando alcançaram o píer, o queixo de Stephanie caiu. Ela olhou apavorada enquanto Ardiloso seguia em frente.
— Que diabos é aquilo? — inquiriu ela.
— É o meu carro — respondeu Ardiloso, encostado no carro com os braços cruzados. A brisa marinha agitou a peruca sob o chapéu.
Stephanie olhou para Ardiloso, depois para o carro, e de novo para Ardiloso.
— O que houve com o Bentley? — indagou ela.
Ardiloso inclinou a cabeça.
— Não sei se você percebeu, mas ele estava um pouquinho amassado.
— E onde está agora?
— No conserto.
— Certo, essa é uma boa resposta. Consertar é uma coisa boa Mas eu não sei, me sinto atraída de volta à pergunta original. Que diabos é aquilo?
Ardiloso estava encostado num carro amarelo-canário, com acentos forrados de verde-limão.
— É o meu carro reserva — disse ele, orgulhoso.
— É horrível!
— Eu não ligo, na verdade.
— Bem, você está usando um disfarce, então ninguém vai reconhecê-lo, mesmo.
— Isso pode ter a ver com o motivo.
— Quando o Bentley ficará pronto?
— Essa é uma das coisas legais de se viver num mundo de magia e outras maravilhas: mesmo os consertos de carro mais complexos levam menos de uma semana.
Stephanie dirigiu um olhar raivoso para ele.
— Uma semana?
— Não uma semana — disse ele, rapidamente. — Seis dias. Às vezes cinco. Definitivamente quatro. Vou ligar para ele e dizer que pagarei mais. — Ela continuava olhando com raiva.
— Depois de amanhã — disse ele baixinho.
Os ombros dela caíram.
— Nós realmente vamos ter de andar por aí nessa coisa?
— Pense nisso como uma aventura! — disse ele, animado.
— Por que eu faria isso?
— Porque senão você vai ficar muito, muito deprimida. Confie em mim. Agora pule para dentro!
Ardiloso pulou para dentro. Stephanie arrastou os pés, dando a volta até o outro lado, e meio que caiu dentro. Escorregou no assento verde-limão até ficar o mais baixo possível, enquanto o carro andava por Haggard. Havia um pacote no banco de trás, um embrulho de papel pardo amarrado com barbante. Ao lado dele, uma bolsa preta.
— Esse é o equipamento para invadir o Cofre? — perguntou ela. — É para lá que nós vamos?
— Bem, respondendo à sua primeira pergunta, sim. Aquela bolsa contém todo o equipamento necessário para um lindo arrombamento. Respondendo à sua segunda pergunta, não, não é para lá que nós vamos. Antes que eu a apresente a uma vida de crimes, preciso apresentá-la aos Magos Anciãos.
— Os crimes parecem mais divertidos.
— E realmente são, mesmo que eu jamais apóie os crimes de qualquer tipo. Menos quando sou eu que os cometo, naturalmente.
— Naturalmente. Então, por que estamos adiando a diversão? O que esses Magos Anciãos querem?
— Eles souberam que eu tenho arrastado uma bela senhorita para todo tipo de problema e querem me advertir quanto a isso.
— Diga a eles que não é problema deles.
— Ainda que eu admire suas bravatas...
— O que são “bravatas”?
— Temo que elas não vão funcionar bem com esses senhores. Uma coisa que você precisa lembrar sobre os Magos Anciãos é que eles são...
— Feiticeiros muito velhos?
— Bem, sim.
— Descobri isso sozinha!
— Você deve estar tão orgulhosa...
— Por que precisa dar satisfações a eles? Você trabalha para eles?
— De certa forma. Os Anciãos fazem as leis, e têm pessoas que defendem as leis, mas apenas alguns de nós realmente investigam a quebra dessas leis: assassinatos, roubos, alguns sequestros, o de sempre. E mesmo que eu seja freelancer, a maior parte do meu trabalho e do meu dinheiro vem dos Anciãos.
— Então se eles quiserem balançar o dedo na sua cara...
— Eu tenho de ficar lá, parado, com o dedo sendo balançado na minha cara.
— E por que eles me querem lá? Eu não sou a garota inocente que está sendo corrompida?
— Olhe, eu realmente não quero que eles vejam você como uma garotinha inocente. Quero que eles a vejam como a fugitiva rebelde, insubordinada e problemática que decidiu ser minha parceira. Então talvez eles tenham pena de mim.
— Espere, eles pelo menos sabem que eu vou com você?
— Não, mas eles gostam de surpresas. Quase sempre.
— Talvez eu devesse esperar no carro.
— Neste carro?
— Ah, sim, bom argumento.
— Stephanie, nós dois sabemos que alguma coisa séria está acontecendo, mas os Anciãos se negaram a considerar que a preciosa Trégua deles pode estar em risco.
— E por que eles acreditariam em mim e não em você?
— Porque eu vou até eles com muita bagagem. Tenho um histórico e, segundo alguns, um objetivo. Além disso, histórias de horror são sempre mais eficientes quando saem da boca de uma dama.
— Não sou uma dama.
Ele deu de ombros.
— Você é a coisa mais perto disso que eu tenho.
Ardiloso tinha outra surpresa para ela no carro. Ele parou numa lanchonete e indicou, com um gesto da cabeça, um pacote no banco de trás.
— O que é isso? — indagou ela.
— O que você acha que é?
— Parece um pacote.
— Então é isso que é.
— Mas o que há dentro dele?
— Se eu disser, terei roubado do pacote a sua razão de ser.
Stephanie suspirou.
— E qual é a razão de ser dele?
— Ser aberto, é claro, e revelar seu conteúdo.
— Você é tão irritante — resmungou Stephanie enquanto pegava o pacote no banco de trás. Era macio ao toque. A menina olhou para Ardiloso. — São as roupas?
— Não vou dizer nada.
— Medonho já fez as roupas? Achei que ele não ia mais fazê-las mesmo, depois de, você sabe... a discussão.
Ardiloso deu de ombros e começou a cantarolar de boca fechada. Stephanie suspirou e pegou o pacote de novo. Ela saiu do carro amarelo, caminhou até a lanchonete e foi direto aos toaletes nos fundos. Uma vez dentro de um cubículo, puxou o nó do barbante e o pacole se desdobrou diante dela. Eram as roupas. Eram do negro mais profundo, feitas de um material que ela jamais tinha visto.
Stephanie se trocou rapidamente, percebendo como todas as peças serviam perfeitamente, e saiu do cubículo para se admirar no espelho. As calças e a túnica, um traje sem mangas com fechos prateados, já eram muito bons sozinhos, e as botas serviam como se ela as tivesse usado por anos. Mas era o casaco que completava o visual. Com três quartos de altura de comprimento, modelado especialmente para ela, feito de um material tão preto que quase cintilava. Stephanie resistiu à tentação de deixar as roupas velhas no banheiro, e em vez disso embrulhou-as no papel marrom e deixou a lanchonete.
— Surpresa! — disse Ardiloso quando ela entrou novamente no Carro Canário. — São as roupas!
Stephanie olhou para ele.
— Você é muito esquisito.
Vinte minutos depois, eles estavam entrando no Museu de Cera. O prédio era velho e estava precisando urgentemente de reparos, assim como a rua diante dele. Stephanie nada disse enquanto eles pagaram e começaram a vagar pelos corredores escuros, cercados dos dois lados por imitações de celebridades e personagens fictícios. Tinha visitado o museu duas ou três vezes em excursões da escola, quando era mais jovem, mas não conseguia entender o que estavam fazendo ali agora. A dupla se afastou de um pequeno grupo de turistas, até ter certeza de que estavam sozinhos, e só então Stephanie disse algo.
— O que viemos fazer aqui?
— Viemos visitar o Santuário dos Anciãos — foi a resposta de Ardiloso.
— E os Anciãos são feitos de cera?
— Gosto de vir aqui — disse ele, tirando os óculos escuros e ignorando a pergunta. — É tão libertador.
Ele tirou o chapéu, a peruca e puxou o cachecol do pescoço. Stephanie olhou em volta, nervosa.
— Você não tem medo de que alguém o veja?
— Nem um pouquinho.
— Bem, talvez devêssemos ir falar com os Anciãos, então.
— Boa idéia.
Ardiloso foi até uma das laterais do corredor e passou a mão na parede.
— Onde está? — murmurou ele. — Malditos idiotas, ficam mudando de lugar...
Os turistas voltaram, virando a esquina, e Stephanie pensou em arrastar Ardiloso para longe deles, mas era tarde demais; eles já o tinham visto. Um garotinho americano saiu do lado dos pais e andou até Ardiloso, que estava paralisado.
— Quem é esse aqui? — perguntou o garoto, franzindo a testa.
Stephanie hesitou. Agora o grupo inteiro estava olhando para ela, incluindo o guia.
— Este é — disse ela, queimando a cabeça em busca de uma explicação plausível. — Este é Sammy Esqueleto, o pior detetive do mundo.
— Nunca ouvi falar — comentou o garoto, cutucando o braço de Ardiloso. Então deu de ombros e perdeu o interesse, e Stephanie observou enquanto os turistas seguiram em frente. Quando eles tinham sumido de vista, Ardiloso inclinou a cabeça para a menina.
— “O pior detetive do mundo”? — indagou ele.
Ela deu de ombros e escondeu o sorriso matreiro, então Ardiloso produziu um som de pigarro bonachão e voltou a passar a mão na parede. Encontrou o que estava procurando e pressionou para dentro. Uma seção da parede se abriu, revelando uma passagem secreta.
— Uau — exclamou Stephanie. — O Santuário é aqui? Eu visitava este lugar quando era pequena...
— Sem jamais desconfiar que sob seus pés havia um mundo da magia e maravilhas?
— Exato.
Ele inclinou um pouco a cabeça.
— Melhor se acostumar a essa sensação.
Stephanie seguiu Ardiloso e a parede se fechou atrás deles. A escada para baixo era iluminada por tochas que tremeluziam nos suportes, mas, conforme eles se aproximavam do destino, mais brilhantes elas ficavam.
A dupla emergiu na reluzente recepção do Santuário. Ela teria lembrado a Stephanie a entrada de um prédio comercial de alta tecnologia — coberto de mármore e painéis de madeira envernizada —, não fosse pela falta de janelas. Dois homens montavam guarda diante da parede mais distante, com as mãos unidas nas costas. Eles se vestiam de cinza da cabeça aos pés, com longos casacos e um tipo de capacete com um visor que cobria completamente o rosto. Cada um tinha uma foice, uma lâmina de aparência malévola num cajado com um metro e meio de comprimento, amarrada nas costas. Um pequeno homem de terno saiu para receber Stephanie e Ardiloso.
— Detetive — disse ele —, você está adiantado. O Conselho não está pronto para se reunir. Posso levá-lo até a área de espera, se assim desejar.
— Na verdade, devo aproveitar a oportunidade para levar nossa convidada num passeio, se não for problema.
O homem piscou.
— Temo que o acesso seja estritamente limitado, como você bem sabe.
— Eu ia apenas mostrar o Repositório a ela — retrucou Ardiloso. — O Livro, na verdade.
— Percebo. Bem, como Administrador do Santuário, terei de acompanhá-los, naturalmente.
— Não poderia ser diferente.
O Administrador fez uma mesura, virou-se e guiou-os por um corredor adjacente. No caminho, passaram por mais pessoas de uniforme cinzento. Stephanie estava se acostumando a lidar com gente sem olhos ou expressões faciais, mas havia algo neles que a deixava nervosa. Ardiloso, mesmo sendo um esqueleto vivo, ainda era fundamentalmente humano. Por outro lado, essas pessoas, que meramente usavam capacetes para esconder os rostos, lhe pareciam muito mais sinistras.
— Quem são eles? — sussurrou Stephanie enquanto eles andavam.
— Talhadores — respondeu Ardiloso em voz baixa. — Seguranças, policiais e soldados, tudo junto. Indivíduos perigosos. Fique feliz por eles estarem do nosso lado.
Stephanie se esforçou para não olhar para eles enquanto passavam.
— Para onde vamos? — perguntou, tentando mudar de assunto.
— Estou levando você para ver o Livro dos Nomes — explicou Ardiloso. — Alguns dizem que ele foi criado pelos Antigos, mas a verdade é que ninguém sabe realmente quem o criou ou como foi feito. O Livro lista os nomes de todas as pessoas vivas no mundo: o nome dado, o nome escolhido — quando e se um nome for escolhido — e o nome verdadeiro. Toda vez que um bebê nasce, um novo nome surge nas páginas. Toda vez que alguém morre, seu nome desaparece.
Stephanie olhou para ele.
— Então meu nome verdadeiro está nesse Livro?
— Assim como o meu. Assim como o de todo mundo.
— Isso não é perigoso? Se alguém botar as mãos nele, poderá dominar o mundo. — Ela esperou alguns momentos. — E eu me senti ridícula só de dizer isso.
O Administrador olhou por sobre o ombro enquanto andava.
— Nem mesmo os Anciãos abrem o Livro. Ele é poderoso demais; pode corromper muito facilmente. Mas eles não conseguem descobrir um jeito de destruí-lo; o Livro não pode ser rasgado, não pode ser queimado, não pode ser danificado por nenhum dos métodos à nossa disposição. Se as lendas forem verdadeiras e o Livro realmente foi criado pelos Antigos, então, logicamente, apenas os Antigos conseguiriam destruí-lo. Os Anciãos consideram que têm a responsabilidade de proteger o Livro, mantê-lo longe de olhos curiosos.
Chegaram a uma porta dupla. O Administrador acenou e as pesadas portas se abriram lentamente. O trio entrou no Repositório — um grande aposento com colunas de mármore — que, como explicou Ardiloso, continha alguns dos artefatos mágicos mais incomuns e raros que existiam. Eles passaram por fileiras e mais fileiras de mesas e estantes, nas quais se viam itens tão bizarros que desafiavam qualquer descrição. O Administrador indicou um dos mais estranhos de todos: uma caixa bidimensional que continha maravilhas que saciariam o mais exigente dos apetites, mas que só existiam se você se aproximasse pelo ângulo certo. Contrastando com toda essa tranqueira, entretanto, o centro da sala estava completamente vazio, a não ser por um pedestal e, nesse pedestal, um livro.
— Aquele é o Livro dos Nomes? — perguntou Stephanie.
— Sim, é ele — respondeu o Administrador.
— Achei que fosse maior.
— Ele é tão grande quanto precisa ser, nem mais, nem menos.
— E não tem problema deixá-lo assim, no meio da sala?
— Ele não está tão vulnerável quanto você pensa. Quando foi colocado aqui, os Anciãos ficaram preocupados com a segurança. Como ele poderia ser protegido? Guardas podem ser derrotados. Uma porta pode ser arrombada. Paredes podem ser derrubadas. Um escudo pode ser perfurado.
— E daí? Eles acharam melhor não se chatear com isso?
— Na verdade, eles desenvolveram uma defesa muito engenhosa. Força de vontade.
— Perdão?
— O Livro é protegido pela Vontade dos Anciãos. — Stephanie não conseguia saber se ele estava brincando ou não.
— Veja por si mesma — disse o Administrador. — Pegue o Livro.
— Eu?
— Você. Você não se machucará.
Stephanie olhou para Ardiloso, que não deu nenhuma dica de como ela deveria proceder. No fim, ela simplesmente virou e começou a andar até o Livro.
Os olhos da menina dardejavam de um lado da sala para o outro. Pensou em alçapões e imediatamente começou a examinar o chão o qual estava andando. Que forma teria a força de vontade?
Stephanie torceu para que não fossem balas de revólver ou qualquer coisa dolorosa assim. Estava um tanto aborrecida de estar fazendo isso, caminhando de boa vontade para qualquer que fosse a armadilha que os Anciãos tinham preparado. Para quê? Para provar um argumento que nem era seu? Ela nem queria pegar o Livro. Essa situação era ridícula.
Stephanie olhou para trás e viu o Administrador parado no mesmo lugar, com uma expressão plácida no rosto, obviamente antecipando o que quer que fosse pular na frente dela, para impedi-la de levar o precioso Livro deles. Ela parou de andar. Se ele quisesse o livro, que fosse buscá-lo. Stephanie virou e voltou para junto de Ardiloso. O Administrador olhou para ela.
— Você não pegou o Livro — observou ele.
Stephanie fez um esforço para continuar educada.
— Não, não peguei. Mas aceito sua palavra de que ele está bem protegido.
— Quando você começou a andar, você queria pegar o livro, não é?
— Acho que sim.
— E por que não o fez?
— Porque mudei de idéia.
— Porque você não queria mais pegá-lo.
— Bem, sim, e daí?
— Isso foi a Vontade dos Anciãos. Não importa o quanto você quisesse ter o Livro em suas mãos, quanto mais perto você chegasse, menos ia querer. Não faz diferença se você o quer para si mesma, porque recebeu ordens para pegá-lo ou se sua própria vida depende do ato. A cada passo seu, sua indiferença em relação ao Livro aumenta, não importando quem você é ou quais poderes tem. Nem mesmo Meritório em pessoa conseguiu chegar perto.
Stephanie olhou para o Administrador, enquanto absorvia as informações. No fim, teve de dizer, não havia como evitar:
— Isso é muito impressionante.
— É mesmo, não é? — O Administrador virou a cabeça um pouco, como se estivesse ouvindo algo. — O Conselho está pronto para recebê-los. Por favor, venham por aqui.
Eles entraram numa sala oval e ficaram de frente para uma grande porta. Havia apenas uma fonte de luz, em algum lugar no alto, e as paredes da sala permaneciam na escuridão.
— Os Anciãos logo chegarão — disse o Administrador, antes de sair silenciosamente.
— Eles sempre fazem isso — reclamou Ardiloso. — Fazem as pessoas esperar.
— O diretor da minha escola faz a mesma coisa sempre que alguém é chamado à sala dele. Acha que isso faz com que pareça importante.
— E funciona?
— Faz com que ele pareça atrasado.
A porta diante deles se abriu, e um homem idoso entrou. Tinha cabelos brancos e curtos, uma barba bem aparada e era alto, mais alto que Ardiloso. O homem vestia um terno da cor do granito, e, enquanto ele andava, Stephanie percebeu as sombras à direita dele. Pareciam se distorcer e se esticar ao seu lado, e a menina observou enquanto mais sombras se estendiam das bordas da sala para se juntar à massa. As sombras se ergueram subitamente e se transformaram nuna velha senhora vestida de preto. Ela continuou caminhando ao lado do homem alto no mesmo passo, que era reduzido conforme eles se aproximavam. Uma terceira pessoa se materializou do nada, do outro lado do homem alto. Parecia um pouco mais jovem que os outros e usava um terno azul-celeste, cujo paletó lutava para conter a grande pança.
Stephanie olhou para os Magos Anciãos e os Magos Anciãos olharam para Stephanie.
— Ardiloso — disse o homem alto por fim, e a voz era grave e ressoante. — Os problemas sempre seguem seus rastros, não é?
— Eu não diria tanto que eles me seguem — respondeu Ardiloso. — É mais um caso de eles ficarem sentados, esperando que eu chegue lá.
O homem balançou a cabeça.
— Essa é sua nova parceira, então?
— De fato, é ela — confirmou Ardiloso.
— Ela ainda não tem um nome escolhido?
— Não.
— Já é alguma coisa, ao menos. — O homem transferiu sua atenção para Stephanie. — Sou Équus Meritório, Grande-Mago deste Conselho. Ao meu lado temos Morvena Corvo e Tomo Sagaz. Posso presumir então que, como você ainda não escolheu um nome, não pretende se envolver nos nossos assuntos por muito mais tempo?
A garganta de Stephanie estava seca.
— Não tenho certeza.
— Viu? — comentou Ardiloso. — Insubordinada.
— Você foi colocada em situações perigosas — continuou Meritório. — Certamente prefere voltar para a segurança de sua vida normal?
— O que há de tão seguro nela?
— Ah — intrometeu-se Ardiloso. — Rebelde.
— O que quero dizer — continuou Stephanie — é que eu poderia bater as botas atravessando a rua amanhã. Poderia ser assaltada hoje à noite. Poderia ficar doente semana que vem. Não há segurança em lugar algum.
Meritório ergueu uma sobrancelha.
— Mesmo que isso seja verdade, na sua vida normal você não teria de lidar com feiticeiros e tentativas de assassinato.
Os Anciãos examinavam Stephanie com interesse.
— Talvez — admitiu ela. — Mas não acredito que possa simplesmente esquecer isso tudo.
Ardiloso balançou a cabeça.
— Problemática.
A mulher, Morvena Corvo, assumiu o comando.
— Detetive, você repetidas vezes dirigiu petições ao Conselho relacionadas a uma suposta ameaça à Trégua.
— Eu dirigi.
— E, até o presente, você fracassou em nos trazer provas.
— Esta garota a meu lado é minha prova — afirmou Ardiloso. — Duas vezes ela foi atacada, e nas duas vezes o agressor estava em busca de uma chave.
— Que chave? — inquiriu Tomo Sagaz.
Ardiloso hesitou.
— Sr. Cortês?
— Acredito que o mestre do atacante era Serpênteo.
— Que chave, detetive?
— Se Serpênteo está ordenando ataques a civis, isso é uma violação clara da Trégua, e o Conselho não tem opção alem de...
— A chave, Sr. Cortês, o que ela abre?
Stephanie olhou para o rosto inescrutável de Ardiloso e achou que podia detectar indícios de frustração em seus pequenos movimentos.
— Acredito que a chave levará Serpênteo à recuperação do Cetro dos Antigos.
— Eu nunca sei quando você está brincando, Ardiloso — comentou Meritório, começando a sorrir.
— Eu ouço isso com freqüência.
— Você sabe que o Cetro é uma fábula?
— Eu sei que é considerado uma fábula, sim. Mas também sei que Serpênteo tem trabalhado em determinar a localização do Cetro, e acredito que o item pode ter estado na posse de Gordon Edgley.
— Nefasto Serpênteo é um aliado, atualmente — afirmou Tomo Sagaz — Vivemos em tempos de paz.
— Vivemos em tempos de medo — retrucou Ardiloso — e nosso medo de desestabilizar o status quo nos impede de fazer as perguntas que precisam ser feitas.
— Ardiloso — disse Meritório —, todos nós sabemos o que Serpênteo fez; sabemos das atrocidades que cometeu em nome do mestre dele, Malevolente, e para ganhos pessoais. Mas, enquanto a Trégua existir, não podemos agir contra ele sem uma boa causa.
— Ele ordenou os ataques contra minha parceira.
— Você não tem provas.
— Ele assassinou Gordon Edgley!
— Mas você não tem provas.
— Ele está atrás do Cetro!
— Que nem existe. — Meritório balançou a cabeça melancolicamente. — Lamento, Ardiloso. Não há nada que possamos fazer.
— Quanto à menina — disse Morvena —, esperamos que o envolvimento dela em tudo isso seja mínimo.
— Ela não vai contar a ninguém — respondeu Ardiloso em voz baixa.
— Talvez não, mas se ela der mais um passo para dentro do nosso mundo, talvez seja impossível voltar atrás. Queremos que você considere isso com muito cuidado, detetive. Considere o que isso significa.
Ardiloso assentiu sua compreensão, mas não disse nada.
— Obrigado por concordar em nos encontrar — agradeceu Meritório. — Vocês podem sair. — Ardiloso virou e foi embora, com Stephanie logo atrás. O Administrador se apressou em segui-los.
— Eu sei o caminho da saída — grunhiu Ardiloso e o Administrador recuou. Eles passaram por Talhadores, que permaneceram imóveis como as estátuas de cera no andar de cima, e subiram as escadas, que levavam para fora do Santuário. Ardiloso vestiu o disfarce e os dois caminharam até o Carro Canário em silêncio. Tinham quase chegado no carro quando Ardiloso parou e olhou em volta.
— O que houve? — perguntou Stephanie.
Ardiloso não respondeu. A menina não conseguia ver nada sob o disfarce dele. Stephanie olhou em volta, paranóica. A rua parecia normal, freqüentada por pessoas normais que faziam coisas normais. Tudo bem que o asfalto tinha alguns buracos e as pessoas tinham uma aparência abatida, mas não havia nada fora do normal. E então Stephanie o viu: um homem alto, forte e careca, de idade impossível de determinar. O homem caminhava até eles como se tivesse todo o tempo do mundo, e Stephanie esperou, parada ao lado de Ardiloso.
— Sr. Cortês — disse o homem ao alcançá-los.
— Sr. Êxtase — foi a resposta de Ardiloso.
Stephanie olhou para o homem. Ele irradiava poder. Os pálidos olhos azuis foram apontados para ela.
— E você deve ser a menina que atrai todo tipo de atenção.
Stephanie não conseguia falar. Não sabia o que iria dizer, mas sabia que sua voz teria soado aguda, se houvesse tentado. Havia algo no Sr. Êxtase que fez Stephanie querer se encolher em um canto e chorar.
— Faz tempo que não o vejo — comentou Ardiloso. — Soube que tinha se aposentado.
Havia algo de pacífico nos olhos do Sr. Êxtase, mas não era o tipo de paz que acalmava. Não era o tipo de paz que confortava você, que fazia você se sentir seguro. Era outro tipo de paz, aquele que prometia que você não sentiria mais dor, mais prazer, mais nada. Olhar para ele era como olhar para um vazio sem começo ou fim. Esquecimento total.
— Os Anciãos me pediram que eu voltasse — explicou o Sr. Êxtase. — Vivemos em tempos turbulentos, afinal.
— É mesmo?
— Os dois homens que vigiavam Serpênteo foram encontrados mortos há alguns dias. Ele está armando alguma coisa, e não quer que os Anciãos saibam.
Ardiloso pensou antes de dizer.
— Por que Meritório não me falou nada disso?
— A Trégua é um castelo de cartas, Sr. Cortês. Se for perturbada, ela desmoronará. E você é famoso pelas perturbações que causa. Os Anciãos esperavam que meu envolvimento fosse suficiente para desestimular Serpênteo, mas temo que tenham subestimado a ambição dele. Eles se recusam a acreditar que alguém se beneficiaria com uma guerra. E, é claro, ainda pensam que o Cetro dos Antigos é um conto de fadas.
A voz de Ardiloso se alterou, mas apenas um pouco.
— Você acha que o Cetro é real?
— Ah, eu sei que é. Se ele pode fazer tudo que as lendas afirmam, isso eu não sei, mas o Cetro, o objeto em si, é bem real. Foi descoberto numa escavação arqueológica recente. Pelo que sei, Gordon Edgley já estava procurando o Cetro havia algum tempo, como parte da pesquisa para um livro sobre os Sem Rosto, e ele pagou uma quantia substancial para tê-lo. Imagino que ele tenha se esforçado para verificar a autenticidade do Cetro e, uma vez que isso foi feito, Gordon percebeu que não poderia ficar com ele. Nem passá-lo adiante. Gordon Edgley, mesmo com todos os defeitos, era um bom homem, e se havia alguma chance de o Cetro ter a capacidade de destruição da qual ouvimos falar, Gordon teria decidido que o Cetro era poderoso demais para ficar com qualquer um.
— Você sabe o que Gordon fez com o Cetro? — indagou Stephanie, depois de reencontrar a própria voz.
— Não sei.
— Mas você acha que Serpênteo está disposto a arriscar uma guerra? — perguntou Ardiloso.
O Sr. Êxtase assentiu.
— Creio que ele pensa que a duração da Trégua já ultrapassou sua utilidade. Imagino que ele estava esperando por esse momento há muito tempo, o momento de tomar todo o poder e saquear todos os segredos, e finalmente convidar os Sem Rosto de volta a este mundo.
— Você acredita nos Sem Rosto? — inquiriu Stephanie.
— Acredito. Eu cresci com esses ensinamentos e mantenho minha fé até hoje. Algumas pessoas não admitem que eles existiram, outras acham que são parábolas moralizantes, outras ainda pensam que são apenas histórias para assustar crianças. Mas eu acredito. Acredito que houve um tempo no qual éramos governados por seres tão maléficos que até suas próprias sombras os evitavam. E acredito que estão esperando para voltar, para nos punir por nossas transgressões.
Ardiloso inclinou a cabeça.
— Os Anciãos ouviriam o que você tem a dizer.
— Eles são limitados pelas próprias regras. Descobri o que pude e transmiti tudo à única pessoa que saberia o que fazer com tais informações. O que fazer a seguir é com você.
— Com você ao nosso lado — comentou Ardiloso — tudo seria muito mais fácil.
Um pequeno sorriso surgiu no rosto do Sr. Êxtase.
— Se eu tiver de agir, eu o farei.
Sem mesmo um “tenham um bom dia”, o Sr. Êxtase deu meia-volta e foi embora. Eles ficaram parados no mesmo lugar por alguns minutos e então entraram no Carro Canário, e Ardiloso tirou o carro da vaga. Rodaram por algum tempo, antes que Stephanie falasse.
— Ele é meio assustador.
— Isso acontece quando você quase nunca sorri. O Sr. Êxtase é, fisicamente, o indivíduo mais poderoso na face da Terra. A força dele é mais que lendária.
— Então ele é assustador?
— Ah, sim, muito assustador mesmo.
Ele continuou dirigindo em silêncio. Stephanie deixou que alguns momentos se passassem.
— No que está pensando?
Ardiloso deu de ombros.
— Num monte de coisinhas inteligentes.
— Então você acredita que o Cetro é real?
— Tudo indica que sim.
— Acho que isso é uma grande coisa para você, não é? Descobrir que seus deuses realmente existiram.
— Ah, mas não sabemos isso. Se o Cetro é real, a verdadeira história dele pode ter se misturado com as lendas. A existência do Cetro não prova que ele foi usado para derrotar os Sem Rosto.
— Engraçado. Não tinha imaginado que um esqueleto vivo seria tão cético. Então, qual é o próximo passo?
Ardiloso ficou calado por alguns instantes.
— Certo, bem, temos de determinar do que precisamos. Temos de determinar do que precisamos, como consegui-lo e o que precisamos pegar para pegar o que precisamos.
— Acho que entendi — comentou Stephanie lentamente. O carro passou sobre um calombo no asfalto. — Não, perdi de novo.
— Precisamos que os Anciãos entrem em ação, portanto precisamos de provas de que Serpênteo quebrou a Trégua. Precisamos achar o Cetro e descobrir como destruí-lo.
— Certo, e como fazemos a primeira coisa?
— Teremos a prova quando encontrarmos o Cetro.
— E como vamos encontrar o Cetro?
— Achando a chave.
— E como vamos destruir o Cetro?
— Ah — concluiu Ardiloso. — Para isso servirá o pequeno ato criminoso que teremos de cometer.
— Ato criminoso — repetiu Stephanie com um sorriso. — Finalmente.
11
O PEQUENO ATO CRIMINOSO
De tocaia, estacionados do outro fado da rua, Stephanie e Ardiloso observaram os vampiros, novamente vestidos com macacões azuis, ao subirem os degraus e entrarem na reluzente galeria de arte. Eles estavam batendo papo e não pareciam nem um pouco ameaçadores. Alguns minutos depois, os funcionários e seguranças do turno do dia começaram a deixar o prédio. Quando todos tinham saído, Ardiloso inclinou-se para o banco de trás e pegou a bola preta.
— Já vamos entrar? — perguntou Stephanie, olhando para o céu do entardecer. — Mas ainda está claro.
— E é precisamente por isso que vamos entrar agora — respondeu ele. — Daqui a vinte minutos, haverá dois vampiros com força total rondando lá dentro. Quero entrar, descobrir como destruir o Cetro e sair antes que isso aconteça.
— Ah, parece uma boa idéia.
— Muito boa.
Eles saíram do horrível Carro Canário e atravessaram a rua, se afastaram da calçada e cruzaram o jardim até uma alta árvore que ficava atrás da galeria. Depois de se assegurar de que não estavam sendo observados, Ardiloso colocou a bolsa sobre o ombro e começou a escalar. Stephanie pulou no galho mais baixo e subiu na árvore atrás de Ardiloso. Ela não fazia nada assim havia anos, mas subir numa árvore era como cair de uma árvore — fácil. Os galhos eram longos e fortes, e os dois logo chegaram perto do telhado da galeria, onde se viam várias clarabóias. Stephanie escalou um galho e sentou, observando com curiosidade o grande espaço entre o prédio e a árvore. Parecia longe demais para pular.
— Tem certeza de que não posso ir junto? — perguntou Stephanie.
— Preciso de você aqui, para o caso de alguma coisa dar terrívelmente errado.
— Tipo o quê?
— Ah, qualquer uma de muitas coisas.
— Isso me deixou muito confiante — resmungou ela.
Ardiloso subiu no galho mais longo e andou sobre ele, meio agachado. O equilíbrio dele era sobrenatural. Mas ainda havia o espaço até o telhado. Sem fazer uma pausa, ele saltou do galho. Ardiloso ergueu os braços para frente, e uma forte lufada de vento o jogou no topo do telhado.
Stephanie prometeu a si mesma que, um dia, exigiria que Ardiloso lhe ensinasse a fazer aquilo.
Ardiloso olhou para trás.
— A galeria está equipada com os sistemas de segurança mais elaborados — disse ele enquanto abria a bolsa. — Mas, por causa dos vampiros, os alarmes dos corredores mais próximos do exterior ficam sempre desligados, então uma vez que eu estiver no salão principal, deve ser tranqüilo como mar de almirante, como eles dizem.
— Como quem dizem?
— Não sei. Provavelmente os almirantes. — Ardiloso tirou um arnês da bolsa e começou a vesti-lo. Ele olhou para Stephanie. — Onde eu estava?
— Não faço idéia.
— Ah, sim, meu plano astucioso. Preciso ter acesso a um painel de controle na parede leste. Dali poderei desligar tudo. O piso é sensível à pressão, portanto terei de ficar fora dele, mas isso não deve ser problema para alguém com minha graça e agilidade naturais.
— Você é muito confiante mesmo, não é?
— Excessivamente. — Ele amarrou um cabo fino num duto de ventilação, prendeu-o no arnês e levou o resto até uma das clarabóias.
Stephanie franziu o cenho.
— Você vai descer por aí?
— Sim, essa é a parte divertida,
— Certo. Mas você terá de abrir a clarabóia, não é? E isso não vai disparar um alarme?
— Só um pequenininho — respondeu Ardiloso, confiante.
Stephanie encarou o parceiro.
— E não é o suficiente?
— É só uma coisinha silenciosa, que está conectada a uma delegacia de polícia nas proximidades. Ou estava conectada. Eu passei pelo transformador deles antes de buscar você hoje de manhã. Estranhamente, o transformador sofreu um curto exatamente naquele mesmo instante. Deve ter relação com o fato de que uma enorme quantidade de água se manifestou dentro dele. Acho que eles estão confusos.. Eles pareciam estar confusos...
— E todo seu plano depende da esperança de que não tenham restaurado a eletricidade ainda?
— Bem, sim — retrucou ele, depois de uma rápida hesitação. — Mas, de qualquer maneira... — Ele olhou para o pôr-do-sol e de novo para Stephanie.
— Se ouvir alguém gritando — avisou ele —, serei eu.
Ardiloso passou a mão sobre a fechadura, que imediatamente se partiu. Abriu uma das metades da clarabóia e entrou nela pela lateral. Stephanie assistiu Ardiloso desaparecendo dentro da abertura, e então ouviu um leve zumbido, quando ele usou o controle remoto para ser baixado no arnês.
Stephanie sentou-se no galho, recostada no tronco da árvore, e ficou de olho em... seja lá o que fosse que tinha de ficar de olho. Qualquer coisa anormal. Ela franziu o rosto, sem saber mais o que seria algo “anormal”, e então ouviu um ruído perturbador. Olhou para cima.
O cabo que Ardiloso tinha atado ao duto de ventilação estava escorregando.
Stephanie assistiu aterrorizada quando o cabo deslizou de novo, se aproximando da borda, quase se soltando completamente. Ela pensou no piso sensível à pressão, pensou em Ardiloso se estatelando no chão e disparando todos os alarmes do prédio, e nos vampiros correndo para atacá-lo. Mesmo que Ardiloso não tivesse sangue que eles pudessem beber, ela tinha certeza de que eles encontrariam outras formas de puni-lo pela invasão.
O cabo escorregou mais uma vez, e Stephanie teve certeza de que não tinha escolha. Engatinhou pelo mesmo galho do qual Ardiloso tinha pulado, e o galho rangeu com o peso da menina. Ardiloso era só osso, ela se lembrou, tentando não se sentir gorda.
Stephanie encarou o espaço que separava o galho do telhado. Havia uma vaziez. Era um vazio... vazio.
A menina balançou a cabeça — não ia conseguir. Não havia como saltar tão longe. Com uma corrida decente, ela poderia ter uma chance, mas agachada na ponta de um galho instável? Stephanie fechou os olhos, obrigando as dúvidas a saírem de sua mente. Não havia escolha, lembrou a si mesma. Não era uma questão de se ela poderia pular, ou iria pular. Ardiloso precisava da ajuda dela, e precisava agora, então era uma questão de quando ela pulasse, o que ia acontecer?
Então ela pulou.
Stephanie esticou os braços e o solo se moveu bem abaixo dela e a borda do prédio chegou cada vez mais perto e ela começou a cair. A mão direita atingiu a borda e os dedos a seguraram. O resto do corpo se chocou contra a lateral do edifício e Stephanie quase caiu, mas levantou a mão esquerda, para que se juntasse à direita, e conseguiu se segurar. Ela se puxou para cima, bem lentamente, até que pudesse colocar um braço sobre a borda, e logo estava em segurança. Stephanie conseguiu. O cabo deslizou novamente. Estava quase se soltando do duto, e então tudo estaria acabado. Stephanie correu até o cabo, segurou-o e tentou puxá-lo, mas não adiantou. Ficou de pé, pôs a sola da bota sobre o cabo e usou todo o peso do próprio corpo para empurrá-lo para baixo, mas não fez a menor diferença. Stephanie olhou ao redor, procurando algo que pudesse usar, viu a bolsa e pegou-a do chão. Não havia nada dentro dela além de mais cabo.
Stephanie pegou o cabo de dentro da bolsa e caiu de joelhos, atando-o ao cabo que estava amarrado ao arnês. O pai tinha ensinado a ela tudo sobre nós quando ela era pequena, e mesmo que não pudesse lembrar o nome da maioria deles, ela sabia qual nó era adequado a esta situação.
Depois de atar o novo pedaço de cabo, Stephanie procurou por alguma coisa na qual pudesse prendê-lo. Havia outra clarabóia bem na frente dela. Correu até lá, deu várias voltas com o cabo e conseguiu terminar de amarrá-lo no momento em que o cabo original se soltou do duto. Houve um estalo súbito quando o cabo se retesou novamente, mas ele permaneceu amarrado.
Stephanie correu até a clarabóia que estava aberta e olhou para baixo. Ardiloso estava pendurado um pouco acima do piso, tentando permanecer horizontal depois da queda súbita. O controle do arnês ainda estava na mão do detetive, mas os dois braços estavam esticados para obter o máximo de equilíbrio, então ele não podia usar o controle para subir novamente.
Havia um segundo controle no telhado ao lado de Stephanie, conectado ao arnês por um fio que serpenteava para baixo, pela clarabóia, em volta do cabo. Stephanie pegou o controle, apertou o botão “PARA CIMA” e Ardiloso começou a subir.
Ao ficar seguro, Ardiloso levantou a cabeça, viu a menina e mostrou um polegar erguido para ela. Usou o controle para se posicionar perto da parede, em frente ao painel cuja portinhola ele já havia aberto. Stephanie assistiu enquanto ele acionou alguns interruptores e girou suavemente. Os pés do detetive tocaram o solo. Nenhum alarme soou.
Ardiloso desafivelou e tirou o arnês, e olhou para cima. Em seguida, indicou com um gesto que Stephanie deveria descer. Sorrindo, ela fez o arnês subir novamente, vestiu-o, entrou pela clarabóia e desceu. Ardiloso ajudou-a a se soltar.
— Acho que alguma ajuda não faz mal — sussurrou ele, e ela sorriu.
A galeria era grande, espaçosa e branca. Havia enormes seções de vidro nas paredes. O salão principal estava cheio de pinturas e esculturas, arrumadas de maneira engenhosa, de forma a não ficar nem amontoada nem esparsa.
Eles se dirigiram até as portas duplas e ouviram com cuidado. Ardiloso abriu uma das portas, verificou se era seguro e fez um sinal para Stephanie. A dupla saiu do salão, fechando a porta atrás deles. Stephanie seguiu Ardiloso pelos corredores brancos, pelas curvas e sob os arcos. Percebeu que ele olhava para fora quando eles passavam por janelas. A noite estava chegando.
Entraram numa pequena alcova, fora da área central da galeria. Nesta alcova ficava uma pesada porta de madeira, entremeada por uma grade de aço. Com um sussurro, Ardiloso pediu a Stephanie que ficasse de guarda e correu até a porta, tirando algo do bolso.
Stephanie ficou agachada, vigiando a escuridão, que não parava de aumentar. Ela olhou para Ardiloso, que estava tentando arrombar a fechadura. Havia uma janela ao lado dela. O sol havia se posto.
Stephanie ouviu passos e se encolheu. O homem de macacão azul virou a esquina na ponta oposta do corredor. Ele andava lentamente, como qualquer segurança que ela já havia visto num shopping. Tranqüilo, desinteressado, entediado. Percebeu que Ardiloso tinha se esgueirado até ela, mas ele não disse nada.
O homem levou a mão até a barriga e se dobrou de dor. Stephanie desejou poder ver mais de perto. Se as presas dele crescessem, ela mal poderia vê-las àquela distância. O homem se endireitou e arqueou a espinha e os sons dos ossos dele estalando ecoaram pelo corredor. Então ele esticou o braço para cima, segurou o próprio cabelo e arrancou a pele.
Stephanie sufocou um grito. Em um único movimento fluido, ele arrancou tudo — cabelo, pele, roupas —, era pálido e careca, por baixo, e os olhos eram grandes e negros. Ele se movia como um gato, chutando os restos da forma humana. A menina não precisou chegar mais perto para ver os caninos, que eram grandes, serrilhados e horrendos, e agora ela estava bem contente de estar vendo de longe. Aquilo não era o tipo de vampiro que Stephanie tinha visto na TV; não era uma pessoa sexy com um longo casaco e óculos de sol. Aquilo era um animal.
Stephanie sentiu a mão de Ardiloso no ombro e ele a puxou para trás um pouquinho, muito suavemente, pouco antes que o vampiro olhasse naquela direção. A criatura se moveu na direção contrária, para o fim do corredor, procurando presas.
Stephanie seguiu Ardiloso até a porta, fechando-a depois de passar. Ardiloso não estava mais andando na ponta dos pés, mas Stepnanie não ousava fazer um ruído. Ele guiou o caminho na descida para o subsolo da galeria, com uma chama em sua mão iluminando os degraus. Estava frio lá embaixo. Estavam num velho corredor com pesadas portas de cada lado e andaram até uma porta com um brasão — um escudo e um urso. Ardiloso ergueu as duas mãos e abaixou a cabeça, ficando imóvel por quase um minuto. Então a porta fez um clique e a dupla entrou.
12
VAMPIROS
Ardiloso estalou os dedos e velas se acenderam por toda a câmara. Havia livros empilhados sobre outros livros, artefatos e estátuas, pinturas e gravações em madeira e até uma armadura completa num canto.
— Isso tudo tem a ver com o Cetro? — indagou Stephanie num sussurro.
— Isso tudo tem a ver com os Antigos — respondeu Ardiloso. — Então tenho certeza de que deve haver algo sobre o Cetro aí no meio. Eu honestamente não esperava que houvesse tanta coisa. Aliás, você não precisa sussurrar.
— Há vampiros acima da gente.
— Estas câmaras são seladas. Eu quebrei o selo-fechadura, mas o selo sonoro ainda está intacto. Sabia que os selos-fechadura precisam ser desmantelados sempre que você precisa passar, e depois refeitos quando você sair? Não vejo o que há de errado com uma boa e velha chave. Ela certamente manteria alguém como eu do lado de fora, bem, pelo menos até que eu derrubasse a porta.
— O que é um selo sonoro? — sussurrou Stephanie.
— Anh? Ah. Mesmo se eles estivessem ali do lado de fora da porta e você estivesse gritando a plenos pulmões, eles não ouviriam você.
— Ah — disse ela. — Tudo bem, então — mas continuou falando baixo.
A dupla de detetives começou a procurar. Alguns dos livros eram sobre lendas relacionadas aos Antigos, outros tinham uma abordagem mais prática e analítica, e alguns eram escritos numa língua que Stephanie não reconheceu. Uns poucos livros não continham nada além de páginas em branco, mas mesmo assim Ardiloso parecia ser capaz de lê-los. Disse que não tinham nada que fosse do interesse deles, entretanto.
Stephanie começou a examinar uma coleção de pinturas emolduradas, empilhadas verticalmente e encostadas na parede. Muitas delas mostravam pessoas segurando o Cetro com aparências heróicas. As pinturas caíram para frente e Stephanie se abaixou para empurrá-las de volta. Ela olhou para o quadro que estava à sua frente e reconheceu-o como a ilustração do livro que havia visto no carro de Ardiloso — um homem protegendo os olhos de um Cetro brilhante enquanto tentava pegá-lo. Aquela era a pintura inteira, não apenas o pequeno retângulo truncado numa página. Ardiloso deu uma olhada enquanto Stephanie colocava os quadros de volta onde os encontrara. A menina se aproximou da armadura, notando o escudo e o urso gravados na couraça peitoral.
— É o brasão da família? — indagou ela.
— Perdão? — respondeu Ardiloso, olhando para cima. — Ah, sim. Não podemos usar nossos sobrenomes de família, então os brasões servem como a única ligação que temos com nossos ancestrais
— Você tem um brasão?
Ele hesitou.
— Eu costumava ter. Não tenho mais.
Ela se virou.
— Por que não?
— Eu o abandonei, na verdade.
— Por quê?
— Você faz uma quantidade terrível de perguntas.
— Quando eu crescer, quero ser detetive, que nem você.
Ardiloso olhou para Stephanie e viu que a menina estava sorrindo. Ele riu.
— Acredito que você tenha a mesma tendência de semear o caos que eu.
— “Semear o caos”? Como assim?
— É uma velha expressão. Significa criar problemas.
— Bem, então por que você não disse “criar problemas”? Por que precisa usar sempre essas palavras que eu não conheço?
— Você deveria ler mais.
— Eu leio bastante. Eu deveria sair mais de casa.
Ardiloso segurou uma pequena caixa contra a luz, girando o objeto com as mãos e examinando-o de todos os ângulos.
— O que é isso? — inquiriu Stephanie.
— É uma caixa-quebra-cabeça.
— Você não pode brincar com ela mais tarde?
— O propósito de uma caixa-quebra-cabeça, a raison d’être dela, é ser resolvida.
— Rezou pra quem?
— Raison d’être. É francês, significa “razão de ser”.
— Lá vem você de novo. Por que não disse apenas “razão de ser”? Por que precisa complicar as coisas?
— Eu quis dizer que deixar uma caixa-quebra-cabeça sem solução é como deixar uma canção sem ser cantada. É como se ela nem existisse.
— Os jornais que meu pai recebe todos os dias têm palavras cruzadas. Ele começa a fazê-las, acaba inventando palavras para preencher os quadradinhos e depois desiste. Eu lhe darei todos os jornais que temos espalhados em casa se você largar esse troço e voltar a procurar.
— Eu desisti de procurar.
Stephanie encarou o detetive.
— E depois dizem que a minha geração tem déficit de atenção.
— Aquela pintura que você estava olhando, percebeu alguma coisa estranha nela?
— Havia muitas pinturas.
— A que tinha o homem tentando pegar o Cetro.
— O que há nela?
— Percebeu alguma coisa estranha nela?
Stephanie foi até a parede e moveu os quadros um por um, até chegar à pintura da qual ele estava falando.
— Certo, como assim estranho?
— Descreva-a para mim.
Ela tirou os outros quadros da frente, para ver melhor.
— Tem um homem, ele quer pegar o Cetro, que está brilhando... é só isso.
— Não há nada de estranho nele?
— Não, não tem... — Ela franziu o cenho. — Bem...
— Sim?
— O Cetro está brilhando muito, e ele usa uma das mãos para proteger os olhos, mas os dois olhos estão bem abertos.
— E daí?
— E daí que, se o brilho é muito forte, seria de se esperar que ele estivesse com os olhos um pouquinho fechados, pelo menos. Mesmo numa pintura.
— Alguma outra coisa que chama sua atenção?
Ela examinou a pintura.
— As sombras.
— O que as sombras têm demais?
— Ele tem duas.
— E daí? O Cetro é mágico, lembre-se disso. O homem poderia ter tanto duas quanto uma sombra, por qualquer motivo mágico bizarro que fosse.
— Mas o Cetro não está lançando essas sombras, os ângulos estão errados.
— Então o que está provocando isso?
— Duas fontes luminosas diferentes.
— E qual é a fonte de luz primária?
— O Sol?
— Se for o Sol, que horas são, então?
— Bem, a sombra aos pés dele indica o meio-dia, quando o sol está diretamente sobre nós, mas a sombra atrás dele indica manhã ou tarde.
— Qual dos dois?
— Como eu poderia saber? Está atrás dele, então deve ser de manhã.
— Então estamos olhando para uma pintura de um homem tentando pegar o Cetro, vendo tudo e num momento em que é tanto passado quanto presente?
— Acho que sim. O que isso tem a ver com a caixa?
— Quem pintou o quadro?
Stephanie olhou no canto inferior.
— Não há um nome, só um brasão. Um leopardo e espadas cruzadas.
Ardiloso ergueu a caixa para que Stephanie visse o que estava gravado embaixo dela: um leopardo e espadas cruzadas.
— Certo — disse ela. —Acabaram as brincadeiras de adivinhação.
— A pintura nos diz que o pintor, ou a família dele, pode nos proporcionar uma espiada no passado, e isso é algo que nós profissionais chamamos de pista. Uma pista é parte de um mistério, um mistério é um quebra-cabeça. Eu tenho uma caixa-quebra-cabeça em minhas mãos.
Os dedos de Ardiloso brincaram sobre a superfície da caixa, e Stephanie percebeu que ele tinha inclinado a cabeça. Ele pressionou as mãos nos lados opostos da caixa, fazendo rotações sutis até que algo clicou. Houve um ruído, como o zumbido de uma peça motorizada, e a parte superior da caixa se abriu, revelando uma pedra preciosa azul.
— Ah! —exclamou Ardiloso.
Stephanie olhou mais de perto. A gema era um pouco maior que uma bola de golfe.
— O que foi? O que é isso?
— É uma Pedra Eco — revelou ele. — Muito rara. Geralmente é usada por pessoas que estão morrendo. Elas dormem com a Pedra por perto durante três noites, e assim gravam sua personalidade e memórias nela. A Pedra é dada aos entes queridos para ajudá-los a superar a tristeza da perda ou para responder a qualquer pergunta que tenha restado. Coisas assim.
— Como funciona?
— Não tenho muita certeza — admitiu ele. — Nunca vi uma delas assim tão de perto. — Ardiloso tocou a Pedra com a ponta do dedo e o objeto imediatamente começou a brilhar. Ele inclinou a cabeça novamente e soou muito satisfeito consigo mesmo. — Veja só isso! Eu sou tão genial!
— Você apenas tocou nela.
— Mesmo assim, um gênio, Stephanie. — A menina suspirou.
Mais um momento se passou e um homem idoso se materializou do nada diante deles. Stephanie deu um passo para trás.
— Não fique alarmada — disse o homem idoso, sorrindo. Ele vestia um manto e tinha olhos bondosos. — Não vou machucá-la, jovem senhorita. Estou aqui para responder às suas perguntas e fornecer quaisquer informações que eu possa para ajudar na sua... — a voz dele morreu. Estava olhando para Ardiloso. — Pelos Céus, você é um esqueleto.
— Eu sou.
— Pela minha vida! Figurativamente falando, é claro, pois não estou mais vivo. Mas um esqueleto, e um esqueleto falante, ainda por cima!
— Eu sou muito impressionante — concordou Ardiloso. — Quem é você?
— Meu nome é Oisin e estou aqui para responder a quaisquer perguntas que vocês tenham.
— Bem, isso é uma boa notícia, pois estamos procurando respostas.
— Como você conseguiu, afinal? — indagou Oisin.
— Perdão?
— Tornar-se um esqueleto. Essa, para mim, é nova.
— Bem, é uma longa história.
Oisin fez um gesto com a mão.
— Melhor não me contar, então. Esta Pedra funcionará apenas por um curto tempo antes de precisar de recarga. Não tenho muito tempo para lhes dar as respostas que procuram.
— Então é melhor começarmos.
— Sim, é melhor. Foi dolorido, porém? Perder a própria carne?
— Eu, hum, não quero ser grosseiro, Oisin, mas não é você o responsável por responder às perguntas, e não por fazê-las?
Oisin riu.
— Eu admito: sou curioso demais para o meu próprio bem. Por outro lado, tenho profundos conhecimentos sobre as Histórias dos Antigos, então, de certa forma, sou o melhor candidato. Muito mais adequado que meus colegas, acredite. Antes de começarmos, em que século estamos?
— No século XXI — respondeu Stephanie.
— Vinte e um? — repetiu ele, rindo prazerosamente. — Ah, céus! Então é assim que o futuro é, hein? Meio... sombrio e entulhado. Eu sempre achei que seria mais claro, sabe? Então, o que tem acontecido no mundo?
— Você... quer que contemos tudo que você perdeu?
— Bem, não tudo. Apenas os destaques. Que língua estou falando, aliás?
Stephanie franziu o cenho.
— Inglês.
— Inglês, é? Maravilhoso. Nunca falei inglês antes. Como estou soando?
— Ah, bem, eu acho. A Pedra traduz tudo que você diz?
— Sim, ela traduz. Eu queria ter tido algo assim nas minhas viagens, digo isso a vocês. Eu teria impressionado muito as damas! Ele começou a rir, mas então parou. — Não que eu tenha viajado muito. Ou um pouco. Eu não confio em barcos, entende? Se a natureza quisesse que viajássemos pela água, nós teríamos barbatanas.
— Podemos fazer uma pergunta? — Ardiloso aproveitou a chance. —Novamente, não quero parecer grosseiro, mas se a Pedra ficar sem energia antes de descobrirmos o que precisamos...
O velho bateu as mãos e esfregou uma na outra.
— É claro, meu garoto! Não diga mais nada! Faça a primeira pergunta!
— Você é um especialista nos Antigos?
— Sim, eu sou. Fui encarregado da tarefa de documentar a existência deles. É uma grande honra, mesmo que me deixe quase sem tempo para viajar. Não que eu fosse viajar, mesmo que eu pudesse. Mas seria legal ter opções, sabe?
— Sim... De qualquer maneira, precisamos de informações sobre o Cetro. Precisamos conhecer o poder dele.
Oisin assentiu.
— O Cetro dos Antigos foi criado para destruir, e ele destrói mesmo. Não há nada que não seja transformado em cinzas diante de seu clarão.
— Existe algum tipo de defesa contra ele?
Oisin balançou a cabeça negativamente.
— Nenhum escudo, nenhum feitiço, nenhuma barreira. Ele não pode ser impedido e não pode ser destruído.
— E quanto à fonte de poder dele? — indagou Stephanie.
— Um único cristal, um cristal negro, engatado no punho, capaz de canalizar a energia que é derramada nele.
— E o cristal poderia ser destruído?
Oisin franziu o cenho.
— Eu já havia pensado nisso, na verdade. Sei mais sobre o Cetro do que qualquer outra pessoa desde o tempo dos Antigos, certamente mais que qualquer um dos meus colegas, e, embora não haja qualquer registro de uma fraqueza, temos traduções de textos que sugerem que o cristal pode ser destruído por dentro.
— Como? — inquiriu Stephanie.
— Eu, hum, eu não sei, na verdade.
— Quem criou o Cetro? — Foi a vez de Ardiloso.
Oisin encheu os pulmões.
— O Cetro foi criado pelos Antigos como uma arma para ser usada contra os deuses deles. Por um ano eles trabalharam, fora das vistas e na escuridão, para que os deuses não vissem o que estavam criando.
O peito dele se esvaziou e ele sorriu.
— Essa foi uma citação direta de um dos primeiros textos que encontramos. Eu o encontrei, na verdade. Os outros ficaram com tanta inveja... Deve ter sido por isso que não queriam que eu fosse o escolhido para responder às suas perguntas.
Stephanie franziu a testa.
— Você não deveria estar aqui?
— Nós fizemos uma votação. Eu votei em mim. Ninguém mais o fez. Eles estavam era com inveja. Disseram que eu ia desperdiçar tempo, falar demais. Então roubei a Pedra e fugi por alguns dias, para gravar minha consciência nela. Eles não podem mais gravar nada sobre ela, sabe? E agora aqui estou. — Ele sorriu e o corpo inteiro dele se esvaeceu, ficando subitamente transparente, e o sorriso desapareceu. — Ah, o tempo parece estar acabando. Se tiverem mais perguntas...
— Quem criou o cristal? — perguntou Ardiloso rapidamente.
— Bem, se permitir que eu cite o texto que encontrei: “Os Sem Rosto criaram o cristal, e o cristal cantava para os Sem Rosto quando um inimigo se aproximava. Mas, quando os Antigos se aproximaram, o cristal permaneceu em silêncio e não cantou para os Sem Rosto, e os Sem Rosto não souberam que ele foi levado.”
— Então o sistema de segurança deles tinha um ponto cego — concluiu Stephanie.
— Parece que sim — disse Oisin, assentindo. A imagem ficou ainda mais transparente, ele levantou uma mão e olhou através dela — Isso é meio perturbador.
— O Cetro retornou — afirmou Ardiloso.
Oisin olhou para ele.
— O quê?
— Ele foi descoberto recentemente e ocultado novamente. Precisamos descobrir como encontrá-lo.
— Ah, Céus — disse Oisin. — Se o tipo errado de pessoa se apoderar do Cetro...
— Será muito ruim, nós sabemos. Oisin, como podemos encontrar o Cetro?
O velho sumiu por um momento e depois surgiu novamente.
— Eu não sei, caro garoto. Quem o escondeu?
— Meu tio — revelou Stephanie. — Ele percebeu que o Cetro era poderoso demais para ficar com qualquer um.
— Um homem sábio, ao que parece. É claro que um homem sábio devolveria o Cetro ao lugar onde ele foi encontrado ou, se isso não fosse possível, o levaria a algum lugar parecido.
Ardiloso se endireitou.
— É claro.
Um sorriso surgiu no rosto de Oisin.
— Eu ajudei você?
— Ajudou. Sei onde o Cetro está. Obrigado, Oisin.
Oisin assentiu orgulhoso.
— Eu sabia que poderia fazer isso. Sabia que poderia responder as perguntas sem falar demais. Foi isso que eu disse a eles, pouco antes deles convocarem uma votação. Eu disse: “escutem, eu posso...”
E aí ele desapareceu e a Pedra Eco parou de brilhar.
Stephanie olhou para Ardiloso.
— Então?
— Gordon seguiu o exemplo do Último dos Antigos e enterrou o Cetro nas profundezas da Terra. Ele está nas cavernas.
— Que cavernas?
— Sob a terra de Gordon existe uma rede de cavernas e túneis que se espalha por quilômetros para todos os lados. É uma armadilha mortal, mesmo para o feiticeiro mais poderoso.
— Por quê?
— Há criaturas naquelas cavernas que se alimentam de magia. É o lugar mais seguro para se esconder o Cetro. Eu deveria ter pensado nisso antes.
Sob a casa do Gordon havia um mundo de magia e maravilhas, e Stephanie nunca soube da existência dele. Aos poucos, a menina começou a perceber como a magia estava próxima enquanto ela estava crescendo, e bastava saber onde procurar. Era uma sensação tão estranha — mas o que Ardiloso tinha dito quando estavam prestes a entrar no Santuário? Melhor se acostumar a essa sensação.
Ardiloso fechou a mão sobre a caixa-quebra-cabeça e a parte de cima dela deslizou, ocultando a Pedra Eco novamente.
— Talvez Oisin tenha mais informações — comentou Stephanie — Quanto tempo demora para a pedra se recarregar?
— Por volta de um ano.
Stephanie piscou os olhos.
— Ah, bem... Certo, então, isso provavelmente é tempo demais. Mesmo assim, quem sabe no que mais ele poderia ajudar as pessoas? Tenho certeza de que ele seria valioso para, você sabe, pessoas que se interessam em História. Tipo, historiadores.
— Na verdade, não podemos contar a ninguém que estivemos aqui.
— Você poderia contar a Medonho. Estou certa de que ele perdoaria essa pequena transgressão se contasse a ele o que descobrimos.
— Na verdade, não. Veja bem, esta é a câmara da família dele. É algo sagrado. Nossa presença aqui é indesculpável.
— O quê? Você disse que isso era apenas algo como um depósito. Você não me falou nada sobre este lugar ser sagrado!
— Agora você sabe por que tenho dificuldade em manter as amizades.
Ardiloso recolocou a caixa no lugar onde a encontrara. Stephanie ainda estava olhando fixamente para ele.
— Isto é uma falta de respeito? — inquiriu ela. — Isto é como dançar no túmulo de alguém?
— Um pouco pior que isso — admitiu ele. — É como cavar o tal túmulo, exumar o cadáver, revistar os bolsos dele e depois dançar na coisa toda. É um pouco mais que falta de respeito.
— Então, sim — concluiu Stephanie enquanto Ardiloso andava até ela. — Consigo entender por que você tem dificuldades em manter as amizades.
Ardiloso fez um gesto com a mão e todas as velas na câmara se apagaram. Eles estavam imersos nas trevas. Stephanie abriu a porta e espiou o lado de fora. O longo corredor estava silencioso e vazio. Ela saiu e Ardiloso a seguiu, fechando a porta depois de passar.
Eles se esgueiraram pelo corredor, pelas escadas e até o lado de fora da porta de ferro e madeira. Moveram-se rapidamente pela galeria. As esquinas eram a pior parte, pois a dupla sempre esperava que delas surgisse um vampiro, quando os dois se aproximavam. Estavam quase no salão principal quando Ardiloso ergueu a mão.
Mais adiante, agachado no meio do corredor, havia um vampiro.
Stephanie parou de respirar. A criatura estava de costas para eles, então a dupla recuou cautelosamente, sem fazer ruídos. Estavam a ponto de virar a última esquina quando Stephanie viu algo com o canto olho. Ela segurou o braço de Ardiloso.
O outro vampiro estava se aproximando pelo lado oposto.
A menina e o detetive se encolheram atrás de um pilar de mármore, sem escapatória. Diante deles havia um arco que levava para outra seção da galeria, mas Stephanie tinha certeza de que, mesmo que conseguissem chegar lá sem serem vistos, ficariam num beco sem saída. O único caminho para fora era pelo salão principal, usando os arneses, mas as chances de chegarem lá sem serem fatiados estavam diminuindo a cada segundo. Ardiloso tinha seus poderes e tinha uma arma, mas ela sabia que ele não tinha muita esperança de ser capaz de segurar uma das criaturas, que dirá duas.
Ardiloso virou para Stephanie com a mão levantada. Um dedo apontou para ela e depois para o chão. Fique aqui. O mesmo dedo apontou para o próprio Ardiloso e depois para o arco. Vou para lá.
Stephanie arregalou os olhos e balançou a cabeça, mas o mesmo dedo estava pressionado contra a boca de Ardiloso. A menina sabia que, se ele tivesse lábios, o dedo estaria sobre eles. Ela não queria, não queria concordar com aquilo, mas sabia que não tinha escolha.
Ardiloso tirou a arma do paletó, entregou-a a Stephanie e assentiu com a cabeça, e imediatamente saltou e correu para o arco.
O vampiro que estava chegando por detrás deles viu o detetive e começou a correr. O vampiro que estava agachado adiante virou e disparou e Stephanie se encolheu quando ele passou pelo pilar e entrou pelo arco, se juntando à caça ao intruso.
A arma parecia surpreendentemente pesada nas mãos de Stephanie enquanto ela se esgueirou para fora do esconderijo e começou a correr para o salão principal. Os passos da menina ecoavam alto nos corredores escuros, mas ela não se importava — a única coisa que passava pela cabeça dela era o fato de que precisava sair dali. Virou cada esquina velozmente, pois sabia que o perigo estava atrás dela e, a cada curva que fazia, se permitia olhar para trás.
Corredor vazio. Nada vindo atrás dela. Por enquanto.
Stephanie estava se aproximando do salão principal. Mais algumas curvas e ela estaria lá. A menina guardou a arma no casaco — precisava das duas mãos para se atar ao arnês. Stephanie virou a esquina seguinte e derrapou até parar.
Não. Não, isto não poderia estar certo.
Olhou para a parede vazia com os olhos arregalados. Isto não poderia estar certo, esta parede não poderia estar aqui.
Stephanie tinha virado no corredor errado. Tinha virado no corredor errado desta galeria idiota e agora não sabia mais onde estava. Ela estava perdida.
Deu as costas ao beco sem saída, com vontade de gritar consigo mesma de tanta frustração. Stephanie correu de volta pelo caminho que havia feito, olhando para cada arco e porta pelos quais tinha passado, procurando algo que reconhecesse. Tudo parecia igual na penumbra. Por que não havia nenhuma sinalização? Onde estavam as placas de sinalização?
Havia um corredor transversal logo adiante. Poderia ser o caminho certo? Stephanie tentou se lembrar do caminho do salão até a porta de ferro, e então invertê-lo mentalmente. Eles tinham feito uma curva num corredor transversal? Ela se amaldiçoou por não ter prestado atenção, se amaldiçoou por ter dependido de Ardiloso para encontrar o caminho. Os dois tinham de ter vindo dali. Cada curva atrás dela parecia levar a um beco sem saída, então eles tinham de ter vindo dali.
Stephanie estava a dez passos do corredor transversal quando o vampiro surgiu de um pequeno salão adiante. A criatura viu a menina imediatamente. Stephanie não teve nem tempo de se abaixar.
O corredor estava a dez passos. O vampiro estava trinta passos além disso. Stephanie não podia recuar. Se recuasse, ficaria encurralada. Tinha de ir para frente. Não havia escolha.
Stephanie disparou. O vampiro deu a largada e foi na direção dela. Ele ia cobrir os trinta passos mais rapidamente que ela poderia cobrir os dez. Eles estavam correndo direto um para o outro, e o vampiro saltou. Stephanie se deixou cair e deslizou por baixo da criatura, e pôde sentir a lufada de ar causada pela passagem do vampiro acima dela. A menina ficou de pé após deslizar, girou o corpo e disparou pelo corredor transversal. Era o corredor certo.
Stephanie reconheceu a estátua. Só faltavam mais algumas curvas.
Ela ouviu o vampiro atrás dela. Cada esquina custava segundos preciosos a Stephanie, mas o vampiro simplesmente pulava na parede externa da curva e saltava diagonalmente para a parede interna. Ele estava chegando cada vez mais perto.
Stephanie irrompeu pelas portas do salão principal e lá estava Ardiloso, se atirando sobre o vampiro no momento em que a criatura ia alcançar a menina. Eles caíram para trás e rolaram.
— Saia já daqui! — gritou Ardiloso, chutando o vampiro para longe enquanto se levantava.
Stephanie agarrou o arnês e apertou o botão. Os braços dela quase foram arrancados quando ele se moveu. Ela subiu rápido demais em direção à clarabóia e, quando o arnês chegou ao topo, Stephanie o largou. A menina conseguiu se agarrar com uma das mãos à borda da clarabóia enquanto o corpo balançava violentamente.
A outra mão alcançou a borda. Stephanie cerrou os dentes enquanto se puxava para cima. A cabeça e os ombros emergiram no ar noturno, e ela ergueu o resto do corpo e se deixou cair no telhado. Fazendo um esforço para recuperar o fôlego, Stephanie imediatamente voltou para a clarabóia e olhou para baixo, a tempo de ver o vampiro saltar.
Stephanie gritou e caiu para trás quando o vampiro atravessou a parte fechada da clarabóia, despejando pedaços de vidro sobre a menina. A criatura aterrissou de cócoras no telhado. Stephanie não teve tempo nem de se levantar antes que o vampiro atacasse.
Ela virou e as garras do vampiro arranharam seu casaco, sem rasgar o tecido, mas mesmo assim o impacto fez com que ela caísse novamente. O vampiro ultrapassou Stephanie, mas girou assim que tocou o chão. As presas da criatura pingavam saliva, e os olhos dele encontraram os dela.
Por um momento, nenhum dos dois se moveu, e então, lentamente, Stephanie ficou de quatro. O vampiro sibilou, mas ela não tirou os olhos dos dele. Stephanie ajeitou os pés, ficando agachada. O vampiro estava esperando por algum movimento brusco da parte dela. A arma estava no bolso de Stephanie, mas a menina não tentou pegá-la. Stephanie se moveu lentamente. Manteve os olhos abertos, sem piscar, e não fez nada que pudesse dar ao vampiro uma desculpa para continuar com o ataque. A menina esticou os joelhos, mas continuou abaixada para frente. Ela deu o primeiro passo, para a esquerda. O vampiro fez a mesma coisa.
Os olhos dele ardiam com pura ferocidade animal. Tudo que ele queria era despedaçar Stephanie. Tudo que ele queria era a total e completa aniquilação dela. Stephanie se esforçou para permanecer calma.
— Calminha, garoto — disse ela baixinho, e o vampiro mordeu o ar.
As garras dele estalavam umas contra as outras. Mesmo que as guarras não tivessem cortado o casaco, as costas de Stephanie estavam doendo bastante. A menina sabia que, se não fosse o misterioso material do qual o casaco era feito, ela agora estaria morta, com aquele único ataque.
O vampiro começou a se mover em direção a ela. Stephanie tentou recuar, mas, no instante em que pôs o pé para trás, o monstro eriçou os pêlos das costas. A menina ficou paralisada. Se a criatura pulasse daquela distância, estaria tudo acabado para Stephanie antes mesmo de perceber o que estava acontecendo. O vampiro continuou avançando, movendo-se lentamente, espreitando a presa.
A segunda clarabóia explodiu, e a partir daí, tudo aconteceu rápido demais.
O vampiro quebrou o contato visual e deu o bote, mas Stephanie já estava em movimento, torcendo-se para o lado no instante em que as guarras rasgaram o espaço que ela acabara de ocupar. O outro vampiro estava no telhado, cada vez mais perto, e Stephanie correu até a borda do prédio e pulou.
As pernas dela se chocaram contra os galhos e Stephanie girou, acertando a árvore de cabeça para baixo enquanto caía. Ela quicou de um galho para o outro, cada impacto fazendo-a girar e gritar. Stephanie foi atingida por um galho nas costelas e ficou sem fôlego enquanto continuava caindo, e então não havia mais galhos e existia apenas Stephanie e o som do vento, quando finalmente o chão se chocou contra as costas da menina.
Stephanie ficou deitada na grama, tentando respirar. Conseguia ver a árvore, conseguia ver a galeria, conseguia ver o céu. Alguma coisa estava caindo em sua direção. Duas coisas, duas silhuetas, saltando da borda do prédio. Os vampiros tocaram o solo e foram atrás dela.
A janela à esquerda de Stephanie explodiu e o alarme de segurança invadiu a noite. Ardiloso aterrissou diante dela. Estendeu os dois braços para frente, fazendo tremer o ar, e atingiu um dos vampiros, que foi atirado para trás. O segundo continuou avançando e Ardiloso jogou fogo nele, mas o monstro saltou, escapando das chamas e caindo com os dois pés sobre o peito do detetive. Eles caíram no chão no momento em que o corpo de Stephanie começou a obedecê-la novamente. A menina se levantou, ainda com dificuldade para respirar. A criatura atacou com as garras, rasgando a camisa do detetive, que gritou de dor.
Stephanie se atracou ao pescoço do monstro com os dois braços e puxou-o para trás. Ele sibilou e golpeou o ar, e Stephanie cambaleou para trás, tentando evitar as garras afiadas. Ardiloso se sentou e pressionou a mão contra o vampiro, que foi atirado para trás, como se fosse uma bala disparada de um canhão. O monstro atingiu a parede do prédio com um ruído assustador e caiu no chão, para não mais se levantar. Stephanie agarrou o braço de Ardiloso, ajudou-o a se levantar e a dupla correu para o carro.
13
A RUBRA MÃO DIREITA
— Como você está?
Stephanie deu de ombros, se esforçando para não se contrair de dor. Seu corpo todo doía.
— Estou bem — mentiu.
Ardiloso olhou para a menina enquanto dirigia.
— Você está machucada? Está ferida?
— Não, estou só com alguns hematomas. Estou bem, sério. Não se preocupe comigo.
— Stephanie, você pulou de um prédio.
— Sim, mas os galhos apararam a queda. Cada um deles.
— E como eram esses galhos?
— Nem um pouco parecidos com travesseiros.
— Você poderia estar morta.
— Mas não estou.
— Mas poderia estar.
— Mas não estou.
— Não posso negar que seu argumento é muito bom, mas o fato é que você poderia ter morrido. Já perdi um amigo querido nessa história e não quero que isso aconteça de novo.
Stephanie olhou para Ardiloso.
— Você está dizendo que ficaria muito chateado se eu morresse?
— “Muito” é uma palavra forte demais.
— Bem, se me ensinar a fazer magia, talvez eu não me machuquei tanto da próxima vez.
— Você acabou de falar que não tinha se machucado.
— Está brincando? Eu pulei de um prédio, é claro que estou machucada.
— Stephanie...
— Sim, Ardiloso?
— Você consegue ser muito chata, às vezes.
— Eu sei. Aonde vamos?
— Vamos pelo menos encontrar a entrada para as cavernas. Então vamos nos concentrar em descobrir a chave para abri-la.
Meia hora depois, eles estavam estacionando diante da casa de Gordon.
Stephanie saiu do Carro Canário sentindo-se bem dolorida, e seguiu Ardiloso até a casa.
O porão era frio e escuro, e a solitária lâmpada dependurada entre as teias de aranha não estava fazendo um bom trabalho. Tralhas acumuladas ao longo de incontáveis anos estavam acumulando poeira lá embaixo, e era possível ouvir uma algazarra ocasional de ratos vindo de algum canto escuro. Stephanie não era de ter medo de ratos, mas também não era lá muito fã deles, portanto ficou longe dos cantos.
Ardiloso, por outro lado, não tinha esses problemas. Ele examinou as paredes, analisando a superfície enquanto se movia de lado ao longo delas. De vez em quando o detetive dava tapinhas em algum ponto, murmurava consigo mesmo e seguia adiante.
Isso é a mesma coisa que a entrada do Santuário? — perguntou Stephanie. —Você está procurando uma passagem secreta?
— Você vê filmes de casas mal-assombradas demais — resmungou ele.
— Mas você está procurando uma passagem secreta?
— Sim — admitiu Ardiloso. — Mas isso é só uma coincidência.
Ela levantou a manga do casaco, revelando um feio hematoma no braço, e cobriu-o novamente antes que Ardiloso pudesse vê-lo.
— Foi Gordon quem construiu a passagem? — indagou ela.
— Não, ela já existia no projeto original. Há algumas centenas de anos, esta era a casa de um feiticeiro.
— E ele construiu uma passagem secreta para as cavernas? Achei que você tinha dito que as cavernas eram uma armadilha mortal para os feiticeiros.
— Eu disse isso, sim.
— Então, por que ele construiu um atalho para ele mesmo? Era um feiticeiro burro?
— Não, só que não era um feiticeiro legal também. Ele costumava arrastar os inimigos aqui para baixo e deixá-los de presente para a criatura que estivesse mais esfomeada.
— Que linda história. Entendo por que meu tio comprou esta casa.
— Ahá!
Stephanie se aproximou. A mão de Ardiloso estava espalmada na parede. Ele mexeu a mão e Stephanie pode ver uma leve depressão na superfície, quase invisível a olho nu.
— Essa é a fechadura?
— Sim, é uma daquelas boas e antiquadas fechaduras-que-precisam-de-chave; do tipo que os feitiços não abrem. Raios.
— Você pode quebrá-la?
— Eu poderia quebrá-la, mas aí ela não ia mais funcionar e não poderíamos abrir a porta.
— Eu quis dizer arrombá-la.
— Isso ia funcionar se a porta estivesse no mesmo lugar da fechadura, mas essas coisas raramente são tão simples.
— Então precisamos da chave.
— Precisamos da chave.
— Acho que não vamos achá-la nos chaveiros de Gordon, não é?
— De fato. Não estamos procurando uma chave comum.
— Não vamos precisar resolver um quebra-cabeças para chegar até ela, vamos?
— É possível.
Stephanie grunhiu.
— Por que diabos nada é simples?
— Toda solução para todo problema é simples. É na distância entre os dois que jaz o mistério.
Eles apagaram a luz e subiram as escadas para fora daquele porão úmido e mofado. A dupla entrou na sala de estar, e um homem de terno, que parecia quase vitoriano, virou para eles.
Tinha cabelos negros e lábios finos, e a mão direita, que não tinha pele, brilhava com sangue e músculos molhados, e, antes que Stephanie pudesse demonstrar surpresa, Ardiloso já estava puxando a arma do paletó. O homem se moveu quando o som dos tiros encheu a sala, dando um passo para o lado e acenando com a mão direita.
Stephanie não sabia o que o homem havia feito, mas deu certo, e nenhuma bala o acertou.
— Corra! — gritou Ardiloso, empurrando a menina para fora da sala.
Ela tropeçou e algo se moveu ao lado dela, e Stephanie virou e viu outro homem avançando. Havia algo errado com ele — algo errado com a pele e com o rosto dele — não pareciam ser reais: pareciam ser feitos de papel. Stephanie tentou bater nele, mas era como bater num saco cheio de ar. Um punho voou na direção dela, mas, ao contrário do corpo, o punho era sólido e pesado, e fez a cabeça de Stephanie ser jogada para trás. Stephanie cambaleou e a criatura tentou agarrá-la, mas Ardiloso estava lá para jogar o monstro para longe.
Mais três deles surgiram pela porta da frente. Stephanie correu para as escadas, enquanto Ardiloso cobria a fuga. Na metade da subida, a menina olhou para trás e viu o homem de terno surgindo no hall de entrada. Ela gritou para Ardiloso, que virou e encarou o homem, mas foi tarde demais. Um vapor púrpura se acumulou na palma esquerda do homem. A estranha fumaça fluiu numa torrente até Ardiloso, saindo das costas dele e formando um arco por cima do detetive e voltando até a mão direita do homem, formando um círculo. Ardiloso caiu de joelhos e tentou erguer a arma, mas não conseguiu segurá-la, e ela caiu no chão.
— Peguem-no — ordenou o homem, cortando o círculo púrpura. Ardiloso caiu e três dos homens de papel o seguraram e começaram a arrastá-lo para fora da casa. O homem comandou o quarto monstro com um gesto. —Você, mate a menina.
E então ele saiu.
Stephanie correu até o segundo andar, com a coisa de papel subindo as escadas atrás dela. A menina correu para o escuro escritório de Gordon, bateu a porta e empurrou uma das estantes. O móvel inclinou-se e tombou, derramando os livros pelo chão.
A porta abriu um pouco e bateu na estante. Punhos pesados começaram a socá-la do lado de fora.
Stephanie foi até a janela, abriu-a e olhou para baixo. Mesmo se conseguisse aterrissar sem quebrar as pernas, estaria diante do homem com a mão vermelha. A menina recuou e olhou em volta, procurando uma arma.
A estante raspou o chão lentamente. A porta abriu mais um pouco, Stephanie virou, foi para trás da escrivaninha e se escondeu. Os socos continuaram. Stephanie espiou. Podia ver um braço de papel tateando o lado de dentro. Depois um ombro, e uma cabeça. A menina voltou ao esconderijo.
Mais um tranco e a porta estava aberta o suficiente para que a criatura passasse por cima da estante caída. Stephanie parou de respirar. Espiou novamente. A criatura tinha ido até a janela e se inclinado para fora, com as mãos no parapeito.
Stephanie se levantou e se atirou para frente. O monstro ouviu a menina e tentou virar, mas Stephanie se chocou contra ele. As mãos pesadas escorregaram do parapeito e puxaram o monstro para baixo. Stephanie se abaixou, agarrou a pernas do monstro e levantou-as. A criatura tentou se segurar na janela, mas era tarde demais, e ela se foi com um leve farfalhar de papel.
O monstro transformou-se numa pilha de papel ao aterrissar, e Stephanie viu que o homem de terno olhava para a menina com raiva. Ele fez um gesto, e ela rapidamente se afastou da janela, e logo o ar tornou-se púrpura e a janela explodiu. Cacos de vidro choveram nas costas dela, mas não rasgaram o casaco.
Stephanie permaneceu deitada no mesmo lugar, com as mãos sobre a cabeça, até ouvir o som de um motor sendo ligado. Então se levantou, derramando vidro e estilhaços de madeira, e chegou à janela em tempo de ver o carro prateado deixar a propriedade. Eles a deixaram para trás, tendo obviamente decidido que o esforço de verificar se ela estava morta não valeria a pena.
Stephanie puxou um cartão de visitas amassado do bolso, pegou o celular e discou um número. A chamada foi atendida quase imediatamente. A menina falou com urgência.
— Preciso de ajuda. Eles levaram Ardiloso.
— Diga-me onde está — respondeu Porcelana Tristeza. — Mandarei alguém buscá-la.
14
MAGIA ELEMENTAR
Porcelana Tristeza estava completamente imóvel. Estava sentada com as pernas cruzadas e as mãos pousadas sobre os braços da poltrona. Os sons noturnos da cidade não penetravam no interior do apartamento dela — as duas estavam sozinhas ali, as duas únicas pessoas que restavam na face da Terra. Stephanie observou e esperou.
O apartamento era amplo e ocupava o espaço do outro lado do corredor em relação à biblioteca. Stephanie havia pulado para fora do carro que Porcelana enviara, corrido escada acima e sido direcionada para aquele aposento pelo homem de gravata-borboleta. Nenhum tempo havia sido perdido. Ardiloso estava em perigo e elas precisavam resgatá-lo agora.
Porcelana finalmente falou:
— Como pode ter certeza que era Serpênteo?
— O quê? — retrucou Stephanie, exasperada. — É claro que era Serpênteo! Quem mais poderia ser?
Porcelana deu de ombros, um gesto delicado de um corpo delicado.
— Temos de ter certeza, só isso.
— Eu tenho certeza, está bem?
Porcelana olhou para Stephanie, que se sentiu envergonhada de sua impaciência. A menina baixou os olhos e fechou a boca. Estava tão dolorida, o corpo dela estava tão dolorido, mas estava tudo bem agora, pois estava segura, e Porcelana saberia o que fazer. Tudo ia ficar bem. Stephanie ia esperar que Porcelana tomasse uma decisão, não importando quanto tempo ela passasse deliberando, e Stephanie tinha certeza que Ardiloso estaria seguro e bem. Mesmo se ele não estivesse, o que isso importava? Porcelana sabia o que era melhor, e se ela queria esperar, Stephanie ficaria feliz em esperar com ela.
Não, disse a si mesma, isso é o feitiço, é o feitiço de Porcelana funcionando em mim. Obrigou-se a erguer os olhos e encarar o olhar de Porcelana, e achou ter percebido um brilho de surpresa.
— O que você vai fazer? — indagou Stephanie.
Porcelana se levantou da poltrona num movimento gracioso.
— Vou cuidar do problema — respondeu ela.
— Você deveria ir para casa, querida: sua aparência está péssima.
Stephanie sentiu que estava corando de vergonha.
— Prefiro ficar — retrucou.
— Pode demorar algum tempo até os planos estarem prontos. Você não ficaria mais confortável num lugar mais familiar?
Stephanie não gostava de discordar de Porcelana, mas ela não podia ir para casa, não enquanto Ardiloso estivesse em apuros.
— Eu prefiro ficar — repetiu baixinho.
— Muito bem — aceitou Porcelana com um leve sorriso. — Preciso sair, mas voltarei quando tiver notícias.
— Posso ir com você?
— Temo que não, criança. — Stephanie assentiu, escondendo o desapontamento.
Porcelana saiu do prédio, acompanhada do homem de gravata-borboleta. Stephanie ficou no apartamento por algum tempo, mas, apesar de serem quase três horas da manhã, ela não conseguia relaxar. Não havia TV e o único livro escrito numa língua que ela podia ler era um caderno de endereços encapado em couro numa mesinha de canto.
Stephanie atravessou o corredor e entrou na biblioteca. Passou por um homem que usava uma máscara de porcelana, concentrado demais na leitura para perceber a menina. Stephanie andava devagar, lendo os títulos nas lombadas dos livros, tentando manter a cabeça ocupada. Se pudesse achar alguma coisa ali, um livro que tivesse o que ela precisava, então talvez não ficasse tão indefesa na próxima vez que enfrentasse Serpênteo ou qualquer outro inimigo. Se tivesse possuído algum poderzinho, qualquer que fosse, talvez tivesse sido capaz de ajudar Ardiloso.
Stephanie seguiu uma das prateleiras até o final e então escolheu outra, penetrando cada vez mais no labirinto. Não conseguia decifrar o sistema — os livros não estavam organizados alfabeticamente, nem por autor ou tópico. Tudo parecia completamente aleatório.
— Você parece perdida.
Stephanie virou. A jovem mulher que falou com ela recolocou um livro no lugar. Tinha cabelos louros e despenteados e era bonita, mas seus olhos eram duros e ela vestia uma túnica sem mangas que mostrava seus braços fortes. Falava com um sotaque inglês.
— Estou procurando um livro — disse Stephanie, insegura.
— Este parece ser o lugar certo para isso.
— Há algum livro sobre mágica por aqui?
— Todos são livros sobre mágica — foi a resposta da jovem mulher.
— Quero dizer algo que me ensine mágica. Eu só preciso de alguma coisa. Qualquer coisa.
— Você não tem um professor?
— Ainda não. Não sei como encontrar nada por aqui.
Por um momento, Stephanie sentiu como se estivesse sendo estudada. Finalmente, a jovem mulher falou novamente.
— Meu nome é Tanith Low.
— Ah, oi. Temo que não possa lhe dizer meu nome. Sem querer ofender.
— Não fiquei ofendida. Os livros estão organizados por nível de experiência. Estes são avançados demais para alguém sem instrução. A duas fileiras daqui você poderá encontrar aquilo de que precisa.
Stephanie agradeceu e Tanith foi embora, desaparecendo no labirinto de estantes. Stephanie encontrou a seção à qual Tanith se referiu e começou a ler os títulos. Um guia introdutório à caça aos monstros, As doutrinas da feitiçaria, A história até agora, Três nomes...
Stephanie tirou o livro Três nomes da prateleira e o folheou. Chegou à parte dos Nomes Escolhidos, um trecho do tomo que tinha mais ou menos 200 páginas, e leu os cabeçalhos em negrito. A menina virou as páginas e fez uma leitura dinâmica dos parágrafos, procurando algo que se destacasse. O melhor conselho que o livro tinha para quem fosse escolher um nome era este: “O nome que você escolher deve servir em você, definir você e já ser conhecido por você.”
Stephanie pôs o livro de volta, nem um pouco impressionada, e leu mais alguns títulos antes de encontrá-lo: Magia elementar. Pegou o livro e começou a ler. Era isso. Era isso que ela estava procurando. Encontrou uma velha poltrona num canto e se sentou com as pernas cruzadas sobre o assento.
O celular de Stephanie estava pousado no braço da poltrona. A menina mantinha uma das mãos fechada, tentando pensar no espaço entre a mão dela e o telefone como uma série de objetos interligados. Mover um deles moveria o objeto seguinte, que por sua vez moveria outro objeto, que então moveria o telefone. Ela se concentrou, abriu a mão lentamente e fez um gesto parecido com aquele que tinha visto Ardiloso fazer.
Não aconteceu nada.
Fechou a mão e tentou de novo. O telefone permaneceu imóvel.
Assim como tinha acontecido nas cinqüenta tentativas anteriores.
— Como está indo? — Stephanie viu que Tanith estava chegando.
— Você está começando com uma coisa muito grande — comentou Tanith. — Um celular é pesado demais. Um clipe de papel seria suficiente.
— Eu não tenho um clipe — explicou Stephanie.
Tinith pegou o livro das mãos de Stephanie, abriu-o e equilibrou-o no braço da poltrona.
— Use isso — disse ela.
Stephanie franziu o cenho.
— Mas o livro é ainda mais pesado que o telefone.
— Não o livro, somente a página.
— Ah — respondeu Stephanie. Ela se concentrou novamente, flexionou os dedos e depois os estendeu. A página não virou. Nem se levantou.
— É necessário tempo — esclareceu Tanith. — E paciência.
— Eu não tenho tempo — disse Stephanie, azeda. — E nunca tive paciência.
Tinith deu de ombros.
— Existe sempre a possibilidade de você simplesmente não poder fazer mágica. Uma coisa é saber que ela existe; outra muito diferente é poder fazê-la.
— Imagino que sim — respondeu Stephanie.
— Esse é um belo hematoma que você arranjou.
Stephanie olhou para o próprio braço, cuja manga estava dobrada.
— Tive alguns problemas — disse ela.
— Estou vendo que sim. Você bateu tanto quanto apanhou?
— Na verdade, não — admitiu Stephanie. — Mas a maioria dos machucados foi provocada por uma árvore, então...
— Eu já lutei com praticamente todo tipo de oponente conhecido — disse Tanith —, mas nunca fui atacada por uma árvore. Parabéns.
— Obrigada.
Tanith revirou os bolsos e tirou um pedaço de pedra porosa amarela.
— Encha uma banheira e deixe isso dissolver. Depois de alguns minutos, os hematomas sumirão.
Stephanie pegou a pedra.
— Obrigada — agradeceu, e Tanith deu de ombros.
— Não quero assustá-la, mas esta pode não ser a melhor época para alguém começar a aprender mágica. Coisas ruins estão acontecendo.
Stephanie não disse nada em resposta. Não sabia nada sobre Tanith, e não sabia quantos lados havia no conflito que se aproximava. Não ia começar a confiar em completos estranhos.
— Obrigada pela pedra — acabou dizendo.
— Não há de quê — respondeu Tanith. — Nós, guerreiras, temos de tomar conta umas das outras.
Stephanie percebeu um movimento por entre as pilhas de livros — o homem de gravata-borboleta tinha voltado. O que significava que Porcelana estava de volta.
— Preciso ir — disse a menina imediatamente, enquanto se levantava da poltrona.
Stephanie encontrou Porcelana no apartamento, de costas para porta.
— Falou com os Anciãos? — inquiriu Stephanie.
— Mandei um recado — disse Porcelana, sem se virar.
— Mandou um recado? Só isso?
— Não se atreva a me interrogar, criança.
Stephanie olhou irritada para Porcelana.
— Eu queria muito que você não me chamasse de criança.
Porcelana virou para a menina.
— E eu queria muito que você escolhesse um nome, de modo que eu não tivesse de chamá-la assim.
— Por que não vamos resgatá-lo?
— Resgatá-lo? — repetiu Porcelana com uma risada. — Montadas nos nossos cavalos, não é? Ao som das cornetas e com as bandeiras ao vento? Você acha que é assim que funciona?
— Ardiloso veio me resgatar.
— Bem, não se fazem mais pessoas como ele, não é?
— Mandar um recado não é suficiente. Meritório precisa ser informado. Diga a ele que precisamos de Ardiloso para conseguir o Cetro; diga a ele que, sem Ardiloso, Serpênteo destruirá tudo. Diga a ele o que você quiser, mas temos de fazer os Anciãos agirem!
— E depois, o que acontecerá? Eles mandarão os Talhadores agirem, eles convocarão os aliados e todos iremos felizes para a guerra? Criança, você nada sabe sobre a guerra. Pode achar que ela é grande e barulhenta, o bem contra o mal. Mas não é. A guerra é uma coisa delicada: requer precisão. Requer tempo.
— Não temos tempo.
— Não é bem assim. O tempo é pouco, mas ainda o temos.
— Então você está ganhando tempo? Por quê?
— Não admito que o caos irrompa a meu redor até que eu esteja preparada para ele. Sou uma colecionadora. Sou uma observadora. Eu não participo. Meus recursos e meu status precisam estar a salvo antes que eu permita que as incertezas da guerra nos atinjam.
— E quanto a Ardiloso? Enquanto você espera pelo momento certo de contar a todos que Serpênteo é o vilão, Ardiloso pode ser assassinado!
A hesitação que tremeluziu no rosto de Porcelana foi quase imperceptível.
— Todo conflito provoca baixas.
Stephanie odiou Porcelana. Ela virou e foi furiosa em direção à porta aberta.
— Aonde você vai?— chamou Porcelana.
— Vou fazer aquilo que você está assustada demais para fazer.
— Não, você não vai.
A porta bateu antes que Stephanie a tivesse alcançado e a menina deu meia-volta. Porcelana estava andando até ela, com o lindo rosto perfeitamente calmo.
— Você não tem o direito — disse a mulher suavemente — de mergulhar todos nós numa guerra. Quem é você para decidir quando devemos lutar? Por que você deveria decidir quando vamos morrer?
— Eu só quero ajudar meu amigo — disse Stephanie, dando um passo para trás.
— Ardiloso não é seu amigo.
Stephanie estreitou os olhos.
— Você não sabe o que está falando.
— E você não o conhece, criança. Ele tem uma raiva dentro de si como você jamais viu. Tem um ódio dentro de si com o qual você jamais sonhou. Não há um lugar do planeta onde ele gostaria de estar mais do que onde está agora.
— Você é maluca.
— Ele contou a você como morreu, então?
— Sim — retrucou Stephanie. — Ele foi assassinado por um dos homens de Malevolente.
— Ele foi assassinado por Nefasto Serpênteo— revelou Porcelana. — Serpênteo começou torturando Ardiloso, puramente para se divertir. Ridicularizou Ardiloso e retirou todos os poderes dele. E então Serpênteo apontou o dedo para Ardiloso. Você sabia que isso é o bastante, com aquela mão vermelha dele? Basta que ele aponte e está tudo acabado.
Morte em agonia, Ardiloso tinha dito. Stephanie não havia percebido que o detetive tinha sentido aquilo pessoalmente. A menina balançou a cabeça desafiadoramente.
— Isso não muda nada.
— Quando Ardiloso voltou, ele lutou contra as forças de Malevolente com uma determinação insana; não para derrotar o mal, mas para se vingar do capanga de Malevolente. O próprio Malevolente foi derrotado, mas quando Ardiloso estava prestes a conseguir sua vingança...
— A Trégua aconteceu — disse Stephanie lentamente.
— E, subitamente, o inimigo dele passou a ser um cidadão protegido. Ardiloso está esperando há muito tempo por uma chance de se vingar e vai arriscar qualquer um e qualquer coisa para consegui-la.
Stephanie se endireitou.
— Mesmo que você esteja certa, isso não muda o fato de que ele foi a única pessoa a investigar o assassinato de meu tio, ou que ele parece ser o único que se importa com o que está acontecendo, ou que ele salvou minha vida.
— E a colocou em risco. Todas as coisas boas que ele fez por você foram canceladas pelas coisas ruins que ele fez a você. Você não deve nada a ele.
— Não vou abandoná-lo.
— Como se isso fosse escolha sua.
— O que você vai fazer? — Stephanie desafiou Porcelana.
— Vou simplesmente pedir que você faça o que eu peço.
— Então, a resposta é não.
— Minha cara Stephanie...
A menina ficou paralisada. Porcelana olhou para ela.
— Eu já sabia seu nome antes de conhecê-la, criança. Seu tio falava muito de você.
Stephanie se atirou em direção à porta, mas não adiantou.
— Stephanie — disse Porcelana com suavidade. As mãos de Stephanie caíram para os lados do corpo e a menina virou. — Não fale disso para ninguém.
Stepnanie sentiu dentro de si mesma e soube que ia obedecer, soube que não importava o quanto se revoltasse com aquilo, ela ia obedecer. Não tinha escolha. Então assentiu enquanto as lágrimas ardiam em seus olhos, e Porcelana sorriu aquele lindo sorriso.
15
A SALA DE TORTURA
A lua brilhava no céu e as estrelas cintilavam e era uma linda noite para a dor. Serpênteo desceu até as profundezas frias e úmidas do castelo e passeou pelos corredores de pedra. Já tinha começado a sorrir. Chegou à pesada porta de madeira e fez uma pausa, com a mão na tranca, saboreando aquele momento delicioso.
A tranca foi levantada e Serpênteo entrou.
— Aqui estamos novamente — disse ele.
Ardiloso Cortês levantou a cabeça, que era praticamente a única parte do corpo que ele poderia mover. Serpênteo havia colocado um feitiço selador nos grilhões que prendiam o prisioneiro à cadeira e, assim, incapaz de usar magia, o detetive podia apenas assistir enquanto Serpênteo fechava a porta às suas costas.
— A vida é um ciclo, não é. Ardiloso? Estamos todos destinados a nos repetir, várias vezes. Você, à minha mercê. Eu, sem a menor misericórdia.
— Suas palavras — retrucou o detetive. — Pensei que tinha superado essa coisa toda de vilania a essas alturas, Nefasto.
Serpênteo sorriu enquanto se sentava na cadeira de madeira diante do prisioneiro. A sala era pequena, com paredes de pedra e uma única lâmpada dependurada do teto.
— Ser um cidadão respeitável não era para mim, mas você sempre soube disso, não é? Você os advertiu contra mim, mas eles não ouviram. Isso deve ter sido irritante, pois os Anciãos não o respeitam o suficiente nem para levá-lo a sério.
— Acho que é porque estou sempre sorrindo.
— Talvez você tenha razão. Ah, Ardiloso, o que vou fazer com você.
— Me desamarrar?
Serpênteo riu.
— Talvez mais tarde. Nós parecemos estar sempre pulando na garganta um do outro, não é?
— Deixe-me fazer uma pergunta. Vamos fingir, só por um momento, que vivemos no seu mundo, onde as coisas são loucas e os Sem Rosto são reais. Quando você invocá-los, o que espera ganhar? Um cafuné na cabeça?
— Como os meus mestres e senhores vão me recompensar pela minha servidão é assunto deles. Eu jamais me atreveria a adivinhar.
— A porta está fechada, Nefasto. Estamos só nós dois aqui dentro, batendo um papo. O que você vai ganhar?
Serpênteo se inclinou para frente.
— Ganharei o privilégio de estar ao lado deles quando arrasarem este mundo, quando exterminarem a imunda humanidade. E quando tudo estiver acabado, terei o privilégio de ser iluminado pela terrível glória deles.
Ardiloso assentiu.
— É, eu não entendi bulhufas do que você acabou de dizer.
Serpênteo riu.
— Você vai cair — continuou Ardiloso.
— É mesmo?
— Você vai cair feio, e eu estarei lá. Serei aquele que vai empurrar você.
— Palavras fortes para um homem amarrado a uma cadeira. Aliás, você é mesmo um homem? É uma coisa, talvez? Uma aberração?
— Eles virão pegar você.
— Quem virá? Os Anciãos? Meritório e a turma dele? Por favor. Eles estão ocupados demais se preocupando em não serem rudes comigo.
— Não depois disto. Eles provavelmente estão chegando na sua porta enquanto conversamos.
Serpênteo se levantou e caminhou até ficar atrás do prisioneiro.
— Por algum motivo, acho que eles não teriam sido capazes de reunir forças tão rapidamente. Ou de maneira tão eficiente. Não, meu velho inimigo, eu acho que, por algum tempo, pelo menos, nós ficaremos completamente sozinhos. E você tem algo que eu quero.
— Um incrível senso de estilo?
— A chave — revelou Serpênteo enquanto voltava ao campo de visão do detetive.
— Não sei do que está falando.
Serpênteo estava movimentando levemente a mão esquerda, como se estivesse regendo uma música.
— Obviamente, você não vai simplesmente me presentear com a informação, então acredito que um pouco de tortura seja necessário.
— Ah — disse o detetive. — Os velhos tempos.
— Eu me lembro daqueles dias sombrios de outono que eu passava cortando você e fazendo você gritar.
— Diversão para toda a família.
— Você pode até achar que minhas opções estão limitadas, em termos de tortura, especialmente agora que você não tem mais pele para cortar. Mas aprendi alguns truques novos que acho que vai gostar.
Serpênteo fez um movimento de onda com os dedos, direcionando-os para a cadeira em que havia se sentado. A madeira rangia e gemia enquanto a cadeira se expandia e contraía, como se estivesse respirando. O detetive não conseguia parar de olhar.
— Se posso fazer isso com a cadeira — provocou o vilão, se deliciando com o momento —, imagine o que posso fazer com ossos. — Ouviu-se um alto estalo e a cadeira se estilhaçou.
Serpênteo se abaixou diante do prisioneiro.
— Então, Ardiloso? Onde está aquele velho e cansado espírito de desafio; as provocações, as instigações? Onde estão os infinitos clichês heróicos? Não vai me olhar nos olhos e dizer: “Faça o seu pior”?
— Na verdade, eu ia lhe pedir que pegasse leve comigo. Estou meio sensível hoje.
Serpênteo se levantou e abriu a mão esquerda diante do detetive.
— Esta é sua única chance. Diga-me onde está a chave.
— Está bem.
Serpênteo levantou uma sobrancelha.
— É mesmo?
— Não, eu estava só brincando. Faça o seu pior.
Serpênteo riu, seus dedos começaram a se mover e o detetive começou a gritar.
16
O QUE HÁ NUM NOME?
Stephanie mergulhou o cotovelo na água da pia. Havia tirado um pedaço da pedra que Tanith lhe havia dado e o dissolvera na água, enchendo a pia de bolhas e o banheiro da Biblioteca com um odor forte. Seja lá o que a pedra fosse, estava funcionando. Os hematomas no braço de Stephanie estavam sumindo.
Ela se secou com uma tolha branca imaculada, deixou a água descer ralo abaixo e encostou-se na parede.
O corpo de Stephanie podia estar cansado, mas a mente estava alerta e ativa, sobrecarregada de raiva. Ainda estava furiosa consigo mesma por não ter sido capaz de desobedecer às ordens de Porcelana. Como Porcelana pôde fazer aquilo a Stephanie, a Ardiloso? Depois que ele tinha confiado nela?
Não, Stephanie se lembrou. Ele não tinha confiado em Porcelana. Aquele havia sido o erro de Stephanie, não de Ardiloso. E como ela procurou Porcelana antes de ir aos Anciãos ou até mesmo a Medonho, agora poderia ser tarde demais para fazer qualquer coisa. E era tudo culpa dela.
Do que Tanith Low tinha chamado Stephanie? Guerreira? Isso tinha sido uma piada. Não importa o que Tanith achara que tinha visto em Stephanie, ela estava enganada. Não havia nada de guerreira na menina. Ela havia corrido direto para o perigo, sem pensar, sem um único momento de hesitação. Não porque fosse corajosa ou heróica, mas porque era burra. Porque não queria ficar de fora, porque não queria esperar. Ela não tinha um plano, não tinha uma tática, tudo que tinha era uma tendência a semear o caos.
Foi aí que ela percebeu. Os olhos de Stephanie se arregalaram e ela ficou de pé, com uma nova força correndo pelo corpo.
E, num piscar de olhos, o controle de Porcelana sobre a menina não existia mais.
Stephanie precisava de Medonho. Não sabia bem onde ele morava, então ia precisar do endereço, e só conseguiu pensar em uma maneira de consegui-lo. A menina saiu do banheiro e, ao passar pela janela, percebeu que já era de manhã. Atravessou o corredor até o apartamento de Porcelana e bateu à porta. Ninguém respondeu. Bateu novamente.
Porcelana não estava em casa. Stephanie olhou para a porta. Nada de especial ali. Não tinha percebido nada de especial do outro lado também, nada de correntes ou trancas extras. Poderia haver um feitiço de tranca na porta, e, se isso fosse verdade, Stephanie estaria perdendo tempo, mas ela achava que não havia nada. Ardiloso havia dito que um feitiço de tranca tinha de ser desmantelado todas as vezes que a porta fosse aberta, e então lançado novamente. Stephanie duvidava que Porcelana tivesse paciência de fazê-lo todos os dias.
Stephanie deu um passo para trás. Uma porta ordinária. Uma porta ordinária e frágil. Era possível; ela sabia que era possível. Ela era alta e forte. Aquela porta era tudo que se interpunha entre Stephanie e o resgate de Ardiloso. Ela tinha pernas fortes. Eram musculosas, pernas de nadadora. A porta era fraca. Ela podia fazê-lo Tinha de fazê-lo. Tinha de salvar o amigo.
A bota acertou a porta. Ela chutou de novo... e de novo... e de novo... As pernas dela eram fortes. Ela não podia fracassar. O desespero fortaleceu Stephanie. A porta era fraca e se abriu.
Stephanie correu para dentro, indo direto para onde tinha visto o caderno de endereços. Não estava lá. Não estava na mesinha. Onde estava?
Stephanie olhou em volta. Porcelana tinha mudado o caderno de lugar. Para onde? Por quê? Ela sabia que Stephanie iria procurá-lo?
Não havia como Porcelana ter previsto isso. Então tinha mudado o caderno de lugar por outro motivo, algum motivo ordinário e comum. Ela o tinha guardado; colocado no lugar. Sim, tinha recolocado o caderno no lugar de sempre.
Onde Porcelana guardaria um caderno de endereços?
Stephanie foi até a escrivaninha, abrindo e revirando as gavetas. Papéis, cartas, mas nada de caderno de endereços. Ela virou, com os olhos varrendo a sala, consciente de que Porcelana poderia entrar pela porta quebrada a qualquer momento. Stephanie foi até as estantes: nenhum caderno de endereços. Onde?
Stephanie foi até o quarto. Lá, na mesinha-de-cabeceira, estava o caderno de endereços. A menina o pegou, encontrou a letra “R” e moveu o dedo indicador pela página. Reservado, Alfaiataria. Stephanie decorou o endereço, largou o livro na cama e se virou para ir embora.
— Olá, querida — disse Porcelana. A mulher entrou no quarto e Stephanie recuou, desconfiada.
— Vi o resultado do seu trabalho na entrada — continuou Porcelana. — o que a minha pobre porta fez de mal a você? Quebrou mais alguma coisa enquanto estava aqui? Um vaso? Uma xícara, talvez?
— Só a porta.
— Ah, bem, acho que eu deveria ser grata por sua bondade. Encontrou aquilo que procurava, criança?
Stephanie cerrou o punho.
— Não me chame assim.
Porcelana riu.
— Seu olhar está quase assustador.
— Fez alguma coisa para ajudar Ardiloso ou ainda está ocupada demais ajudando a si mesma? — inquiriu Stephanie.
— Ele inspira lealdade, não é? — comentou Porcelana, com uma sobrancelha erguida. — Não é possível ficar perto do nosso Sr. Cortês sem gostar dele, sem ter vontade de lutar ao lado dele. Você deveria ter estado lá durante a guerra, sabe. Deveria tê-lo visto então.
— Eu só não entendo como você poderia traí-lo assim.
Pela primeira vez desde que Stephanie conheceu Porcelana, os olhos da mulher ficaram frios.
— Eu não o traí, criança. Posso ter deixado Ardiloso na mão, mas não o traí. Trair é agir contra. Eu simplesmente não agi.
— Tanto faz — foi a resposta de Stephanie.
— Não está interessada em semântica? — perguntou Porcelana, sorrindo outra vez. — Mas é claro que não. Você é uma menina tipo que vai direto ao ponto, não é?
— Estou saindo agora — anunciou Stephanie enquanto se dirigia para a porta.
— Direto ao ponto — continuou Porcelana —, mas não muito inteligente. Stephanie, você poderia me fazer o favor de parar? — Stephanie parou.
— Admiro sua coragem, criança, realmente admiro. Mas reunir a cavalaria para ir atrás de Ardiloso é arriscado demais. Muitas coisas poderiam dar errado. Agora, sente-se ali no canto, como uma boa menina. — Stephanie assentiu e andou para a porta.
— Pare — ordenou Porcelana. — Eu disse para ir para o canto.
Stephanie chegou à porta e olhou para trás. Porcelana tinha trazido a testa.
— Eu não entendo. Como você é capaz de fazer isso? Stephanie, responda!
— Não sou Stephanie — respondeu Stephanie. — E se quiser me manter aqui, é melhor estar preparada para me matar.
A testa de Porcelana voltou ao normal.
— Não quero matá-la, minha querida — disse ela, com um leve sorriso surgindo no rosto. — Então você finalmente escolheu um nome.
— Sim, e estou saindo. Agora mesmo.
— Talvez você tenha alguma chance, afinal. Antes de ir, você me daria a honra de se apresentar?
— É claro — respondeu Stephanie pouco antes de sair do apartamento — Meu nome é Valquíria Caos.
Medonho abriu a porta, viu Stephanie e acenou com a cabeça.
— Lamento se aborreci você ontem — ele começou a falar. — Entendo que não tenho o direito de lhe dizer o que você pode e não pode fazer, mas, por favor, acredite que eu estava agindo para seu próprio...
— Eles estão com Ardiloso — interrompeu Stephanie.
— O quê?
— Serpênteo capturou Ardiloso. Ontem à noite ele apareceu com os homens de papel e atacaram Ardiloso e levaram ele. Precisamos falar com os Anciãos.
Medonho tentou sorrir, para ver se ela sorriria de volta, para ver se ela admitiria a piada. Stephanie não sorriu.
— Você acha que eu não deveria me envolver nisso tudo — continuou ela. — Tudo bem. Essa é sua opinião, e está tudo bem. Mas vamos esquecer as opiniões. Vamos encarar os fatos. Serpênteo está com Ardiloso. Ele quebrou a Trégua. Ele acredita que o Cetro é real e já demonstrou que está disposto a matar para consegui-lo. Ele tem que ser impedido, e preciso de sua ajuda para fazer isso.
— Você viu isso? Você realmente viu Serpênteo fazer isso?
— Eu estava lá.
Ele olhou para ela e assentiu.
— Então acho que é muito bom que você tenha decidido ficar por perto.
Medonho trouxe o carro até a frente da loja e Stephanie contou a ele exatamente o que havia acontecido enquanto eles disparavam pelas ruas até o Santuário. As janelas do carro eram de um vidro bem escuro, mas, mesmo assim, ele usava um cachecol enrolado no rosto e um chapéu enfiado até os olhos.
O Museu de Cera ainda não estava aberto, então eles deram um jeito de entrar pelos fundos e se apressaram na escuridão. Medonho procurou o botão na parede escura, encontrou-o e a entrada surgiu. Stephanie foi a primeira a chegar ao fim das escadas e entrar no Santuário. O Administrador se apressou a encontrá-la, com o cenho franzido.
— Lamento — começou ele. — Mas você não tem hora marcada.
— Estamos aqui para ver Meritório.
— Os Anciãos não podem ser incomodados — insistiu o Administrador. — Tenho de pedir que vocês deixem o recinto imediatamente.
— É uma emergência — disse Medonho ao se juntar a Stephanie, mas o Administrador continuou balançando a cabeça negativamente.
— Todos os pedidos de visita aos Anciãos devem ser conduzidos pelos canais apropriados — disse ele, mas Stephanie já havia ouvido o bastante. Seguiu em frente sem permissão, em direção ao corredor. Subitamente, com um borrão acinzentado, um Talhador estava diante dela, tocando o pescoço da menina com a lâmina da foice.
Stephanie ficou paralisada. Havia movimento por todos os lados, ao redor dela, e as únicas coisas imóveis no mundo eram ela e o Talhador. Stephanie podia ouvir Medonho ameaçando o Administrador, ameaçando os Talhadores, e o Administrador protestando e insistindo que eles fossem embora. A voz de Medonho estava ficando mais alta, mais furiosa, dizendo ao Talhador que baixasse a arma, mas o Talhador estava imóvel e silencioso, uma estátua. Stephanie podia ver o próprio reflexo no visor lustroso. Não ousava se mover.
Antes que a situação pudesse ficar fora de controle, antes que a cabeça de Stephanie fosse separada do corpo, o Administrador cedeu e concordou em perguntar a Meritório se ele receberia os visitantes.
Com aceno de cabeça do Administrador, o Talhador recuou e girou a foice para baixo, para o lado dele e depois para suas costas, tornando o mero embainhar da arma uma arte.
Stephanie recuou, movendo-se lentamente, mas o Talhador estava de volta ao posto, como se nada tivesse acontecido.
Stephanie e Medonho permaneceram no foyer enquanto o Administrador saiu apressadamente, e algum tempo depois eles ouviram passos se aproximando. Équus Meritório surgiu e pareceu um tanto surpreso ao ver Medonho.
— Senhor Reservado — disse ele, se aproximando. — As surpresas jamais acabarão?
— Grão-Mago — respondeu Medonho enquanto eles apertavam as mãos. — Acho que já conheceu Valquíria Caos.
— Então você escolheu um nome, afinal — comentou Meritório com um olhar levemente desaprovador. — Espero que o seu Sr. Cortês saiba o que está fazendo.
— Ardiloso foi capturado — disse Stephanie sem pensar — Serpênteo está com ele.
— Essa história de novo.
— É verdade — declarou Medonho.
Meritório olhou para ele.
— Você viu isso pessoalmente?
— Bem — Medonho hesitou —, não, mas...
Meritório fez um gesto com a mão, como se o estivesse dispensando.
— Ardiloso Cortês é um excelente detetive, e nós valorizamos seu auxílio e seus conhecimentos em muitos casos difíceis. Mas, quando se trata de Nefasto Serpênteo, ele não usa sua perspectiva normalmente tão ponderada.
— Serpênteo capturou Ardiloso! — insistiu Stephanie.
— Minha cara, eu gosto de você. E posso ver por que Ardiloso gosta de você. É uma pessoa assustadoramente franca, e essa é uma qualidade a ser admirada. Entretanto, você está apenas começando a conhecer nossa cultura e nossos costumes, e você ouviu uma versão decididamente tendenciosa de nossa história. Serpênteo não é mais o vilão que foi um dia.
— Eu estava lá — continuou ela, se esforçando para permanecer calma. — Serpênteo apareceu com suas criaturas de papel e eles levaram Ardiloso.
Isso fez Meritório hesitar.
— Criaturas de papel?
— Bem, eles pareciam ser feitos de papel.
Meritório assentiu lentamente.
— Homens Ocos. Servos de Serpênteo. Coisas terríveis, inchadas de mau cheiro e maldade.
— Agora você acredita em mim? Temos de trazer Ardiloso de volta.
— Grão-Mago — disse Medonho —, meu amigo está em perigo. Sei que você não quer que isso seja verdade, mas a Trégua foi quebrada. Serpênteo e os feiticeiros que se aliaram a ele não perderão tempo em tomar o poder. Os Anciãos têm de agir agora.
— Baseados em quê? — indagou Meritório. — Na palavra de uma menina que eu mal conheço?
— Não estou mentindo — exclamou Stephanie.
— Mas pode estar enganada.
— Não estou. Serpênteo quer o Cetro e acredita que Ardiloso pode ser o meio de consegui-lo.
— O Cetro é um conto de fadas...
— O Cetro é real — Stephanie interrompeu o mago. — É tão real que Serpênteo está atrás dele e já matou os dois homens que você mandou para espioná-lo, para que você não soubesse de nada até que fosse tarde demais.
Meritório hesitou por um momento.
— Senhorita Caos, se você estiver errada, e nós manobrarmos contra Serpênteo agora, estaremos começando uma guerra para qual não estamos prontos.
— Eu lamento — disse ela suavemente, percebendo o temor nos olhos do Ancião. — Mas a guerra já começou.
O clipe de papel que estava no tampo da mesa não se moveu. Stephanie concentrou, flexionou os dedos e estendeu a palma na direção do clipe, tentando acreditar de verdade que o ar era nada mais que uma série de objetos interligados. O clipe de papel continuou imóvel. Ela o moveu com o dedo, para ter certeza que não estava preso ou coisa assim. Medonho entrou no aposento.
— Estamos prontos para ir — informou ele. — Você está certa de que quer fazer isso?
— Muito certa. — Ela colocou o clipe no bolso e indicou a porta atrás de Medenho com um aceno da cabeça. — Tem um exército lá fora?
— Ah, não é bem um exército.
— Quantos?
Ele hesitou.
— Dois.
— Dois? Ele tem um exército de Tàlhadores e nos deu dois?
— Mandar mais do que isso levantaria suspeitas — explicou Medonho. — Meritório precisa de algum tempo para falar com Morvena Corvo e Tomo Sagaz e convencê-los de que é necessário agir. Até lá, essa missão de resgate é estritamente não-oficial.
— Por favor, me diga que eles são tão bons quanto Ardiloso disse que são.
— Os uniformes e foices são capazes de repelir a maioria dos ataques mágicos, e existem poucos seres mais perigosos do que eles no combate corpo a corpo.
— Combate corpo a corpo? — perguntou Stephanie, franzindo a testa. — E quanto a jogar bolas de fogo e coisas assim? Eles são Elementais ou Adeptos?
Medonho limpou a garganta.
— Nenhum dos dois, na verdade. A magia corrompe certas pessoas, e os Talhadores precisam ser vistos como completamente imparciais, então...
— Então eles não são mágicos? Nem um pouco?
— Eles têm alguma magia, mas ela só amplifica as habilidades de combate deles. Eles são muito fortes e muito rápidos.
— Então o que eles vão fazer? Correr em volta de Serpênteo até que ele fique tonto e caia no chão?
— Se tudo correr de acordo com o plano, Serpênteo nem saberá que estivemos lá.
— E quais são as chances de isso acontecer?
Medonho olhou para ela e, por um momento, continuou olhando. Então desviou o olhar.
— Não muito grandes — admitiu ele.
— Exatamente.
Ele olhou para ela de novo.
— Mas o Sr. Êxtase nos ofereceu ajuda.
— Ele vai junto? — perguntou Stephanie, nervosa. Ela não gostava da idéia de ir com o Sr. Êxtase a qualquer lugar que fosse.
— Não — explicou ele. — Mas vai mandar alguém. Cinco é um bom número de pessoas, podemos nos esgueirar para entrar, pegar Ardiloso e nos esgueirar para sair. Simples.
A porta se abriu atrás deles e Meritório surgiu.
— Providenciei transporte para vocês — foi o que ele disse.
Eles seguiram o Ancião até sair do Santuário e deixaram o Museu de Cera pelos fundos, onde uma grande van estava estacionada. Assim que Meritório surgiu na luz do sol, dois Talhadores avançaram.
Eles desembainharam as foices antes de entrar na van. Stephanie torceu para que o veículo não passasse sobre nenhum buraco nas ruas, ou ela seria fatiada antes mesmo de chegar ao castelo de Serpênteo.
Outra pessoa foi até a van, uma pessoa que ela reconheceu ter visto na biblioteca.
— Tanith Low — apresentou Meritório. — Estes são Medonho Reservado e Valquíria Caos.
— Já nos vimos antes — respondeu Tanith, com um aceno de cabeça educado para Stephanie. Ela levava uma espada numa bainha negra, cuja superfície laqueada era coberta de lascados e marcas.
— O Sr. Êxtase enviou você? — indagou Medonho.
— Sim, ele me enviou. Achou que eu poderia ser útil.
— É uma bela recomendação.
— Ele quer apenas que este assunto seja encerrado o mais rápido possível — revelou Tanith. — Estou à disposição pelo tempo necessário.
— Então vamos.
Tanith entrou na van e Medonho assumiu o posto de motorista.
— Boa sorte — desejou Meritório quando Stephanie estava se juntando a eles.
— Obrigada.
O Ancião deu de ombros.
— Vocês vão precisar.
17
UM RESGATE FABULOSO, DE FATO
A equipe de resgate estava parada ao lado da estrada, olhando para o muro que cercava as terras de Serpênteo. Era mais ou menos três vezes mais alto que Stephanie. Além dele, um bosque e, além do bosque, o castelo.
Stephanie tinha concluído que, se não conseguissem salvar Ardiloso, estaria tudo acabado. Serpênteo conseguiria o Cetro e os Sem Rosto voltariam. O destino do planeta inteiro pesava nos ombros de um esqueleto e das cinco pessoas enviadas para resgatá-lo.
— E se nós tivermos de encarar Serpênteo? — indagou Stephanie, lutando para manter o medo fora da própria voz. Ela precisava continuar forte. Não podia deixar que eles percebessem que era apenas uma menina comum de 12 anos. — E se não conseguirmos simplesmente entrar e sair com Ardiloso sem sermos vistos? Temos algum plano para o caso de termos de enfrentá-lo?
— Ah — respondeu Medonho, pensando no assunto. — Não, na verdade, não.
— Vou tentar cortá-lo com minha espada — disse Tanith, tentando ajudar.
— Certo — comentou Stephanie. — Excelente. E quanto aos guardas? Vocês acham que eles estarão nos esperando?
— Serpênteo está acostumado com os Anciãos, que levam uma eternidade para tomar decisões calmas e ponderadas — contou Tanith. — Então ele não vai esperar algo tão incrivelmente impulsivo e precipitado como este resgate.
Medonho assentiu.
— Isso o ensinará a não subestimar as pessoas burras.
— Muito bem, então — concluiu Stephanie. — Só queria garantir que pensamos em tudo. Vamos lá.
Sem dizer uma palavra, os Talhadores correram adiante e saltaram, com as pernas encolhidas e dobradas sob o corpo, e passaram por sobre o topo do muro, desaparecendo de vista.
— Exibidos — resmungou Medonho, batendo os dois braços para baixo, ao longo do corpo. Uma rajada de vento o ergueu e o levou na direção do muro. Ele se segurou na beirada e se puxou para o topo. Tanith virou para Stephanie.
— Quer um impulso?
— Se você não se incomodar.
Tanith se agachou, entrelaçando os dedos, e Stephanie pôs um dos pés nas mãos dela. Contando até três, Stephanie foi jogada para cima. Tanith era forte, mais forte do que aparentava, porque Stephanie não teve dificuldade em alcançar o topo do muro. Medonho ajudou a menina a subir e então desceu pelo outro lado e ficou esperando Stephanie. Ela se pendurou e se soltou, e suas botas esmagaram folhas secas e gravetos. Um momento depois, Tanith aterrissou ao lado da menina.
O bosque era cerrado e, conforme eles o penetravam, ficava cada vez mais escuro. O sol da tarde tinha dificuldade em se infiltrar por entre as altas árvores, e fazia frio o suficiente para que Stephanie ficasse grata pelo casaco. Os Talhadores pareciam não fazer barulho algum enquanto andavam. O bosque era silencioso, mais silencioso do que tinha direito de ser. Nenhum pássaro cantava. Nada farfalhava por entre a vegetação rasteira. Era uma sensação assustadora.
Chegaram à borda do bosque atrás do castelo e se abaixaram. Um pequeno exército de Homens Ocos patrulhava o terreno.
— Ah, que ótimo — comentou Medonho, sombrio. — Como vamos passar por eles?
— Precisamos de uma distração — respondeu Tanith.
— Alguma sugestão? — Tanith ficou quieta, mas um instante depois olhou para os Talhadores. Medonho compreendeu imediatamente.
Mas são muitos deles — protestou.
O tom de Tanith era sem emoção, mas firme.
— Não temos escolha. Os Talhadores inclinaram as cabeças para Tanith, e depois de um momento assentiram. Voltaram para o meio das árvores e sumiram.
Stephanie esperou com Tanith e Medonho.
— Eles não vão conseguir manter os Homens Ocos ocupados por muito tempo — comentou Medonho.
— Será tempo suficiente para que a gente possa se esgueirar para dentro — respondeu Tanith.
— Não foi isso que eu quis dizer. Você acabou de mandá-los para a morte.
Ela não olhou para ele.
— Eles farão o trabalho deles. Nós faremos o nosso. Você quer seu amigo de volta ou não? — Medonho não respondeu.
— Vejam — avisou Stephanie.
Os Homens Ocos estavam se movendo rapidamente, saindo do campo de visão do trio.
— Vamos — convocou Tanith.
Eles dispararam das árvores, correndo através do amplo espaço aberto em direção ao castelo. Stephanie deu uma olhada para a direita e viu os Talhadores recuando, ao longe, enquanto os Homens Ocos se aproximavam.
O trio chegou ao castelo. Tanith pôs a mão espalmada na fechadura e girou o pulso. Stephanie ouviu o mecanismo se quebrando por dentro e Tanith empurrou a porta lentamente. Eles entraram silenciosamente e fecharam a porta.
O trio se manteve nos corredores externos, ficando longe do frio coração do castelo. Encontraram uma escadaria que levava para baixo e Tanith desceu na frente, empunhando a espada na mão direita e a bainha na esquerda. Stephanie a seguia a alguns passos de distância e Medonho fechava a fila.
Chegaram ao porão, que Stephanie achou que parecia mais uma masmorra. Tanith ergueu a mão, e o trio parou e observou um grupo de Homens Ocos adiante sair de vista.
O trio continuou avançando. Tanith se aproximou da primeira porta pesada de ferro e encostou a orelha nela. Depois de um momento, a mulher empurrou a porta, que se abriu. As dobradiças rangeram em protesto, mas a sala estava vazia.
Medonho foi até a porta seguinte, ouviu e abriu-a. Novamente, uma sala vazia.
Tanith olhou para Medonho e os dois trocaram olhares, e Stephanie entendeu o que estavam pensando.
— Deveríamos nos separar — sussurrou Stephanie,
— Não — respondeu Tanith.
— Sem chance — recusou Medonho.
— Se perdermos tempo, os Homens Ocos voltarão a seus postos e não vamos poder escapar.
— Então você fica comigo — sussurrou Medonho.
Stephanie balançou a cabeça.
— Eu ficarei bem. Vou escutar as portas, se ouvir alguma coisa, chamarei você. Se eu encontrar algum cara mau, pode ter certeza de que ficará sabendo. Não temos escolha.
Eles olharam para ela, mas não discutiram. Tanith foi até a porta seguinte; Medonho correu pelo corredor e Stephanie deu meia-volta e virou a esquina. Chegou a outra fileira de portas de ferro e escutou cuidadosamente cada uma delas. A menina seguiu o labirinto de corredores para onde ele a levasse. Stephanie percebeu que estava respirando pela boca e sentiu o gosto do ar podre na garganta. Havia poças ali, poças de água parada no piso irregular de pedra. As portas não eram mais feitas de ferro, mas de madeira apodrecida. O tremeluzir das tochas presas às paredes fazia as sombras dançarem nas paredes.
Stephanie viu algo se movendo adiante e estava quase se escondendo quando reconheceu Medonho. Ele acenou para ela e ela acenou de volta, e começou a conferir as portas mais próximas. Estavam se aproximando lentamente quando Stephanie chegou a uma porta de onde vinha um assovio. Ela franziu o cenho. Poderia Ardiloso assoviar? Ele podia falar sem lábios ou pulmões, então ela não conseguia encontrar um motivo pelo qual ele não poderia assoviar. Stephanie não reconheceu a melodia, entretanto. A menina acenou para que Medonho se aproximasse. Depois de ouvir por um momento, ele assentiu.
— É “Garota de Ipanema” — sussurrou Medonho. — É Ardiloso.
Ele mostrou três dedos, depois dois, depois um e eles invadiram a cela. Ardiloso olhou para eles e parou de assoviar.
— Ah, olá — saudou-os. — Eu sei onde está a chave para as cavernas.
Stephanie fechou a porta enquanto Medonho se apressava para contornar Ardiloso, se abaixando para examinar os grilhões.
— Trabalho de qualidade — comentou.
— Achei que você ia gostar. Há um feitiço de atamento entremeado no metal.
— Legal. Vai demorar um pouco.
— Não vou a lugar algum.
— Está tudo bem? — perguntou Stephanie.
— Fui bem tratado — respondeu ele com um aceno da cabeça. — Fora toda a tortura. Tive tempo de pensar, na verdade. Sei onde está a chave.
— É, você já disse.
Medonho se levantou e os grilhões caíram. Ardiloso ficou de pé.
— Meritório está aqui? — indagou o detetive.
— Ele está contando aos outros Anciãos o que está acontecendo — contou Medonho.
— Ah! — Ardiloso entendeu. — Então vocês estão fazendo isso por conta própria?
— Tanith Low está aqui também, mas, basicamente, sim.
Ardiloso deu de ombros.
— Tenho de admitir, tudo correu fabulosamente até agora.
— A chave — disse Stephanie. — Você não contou a Serpênteo onde está, não é?
— Não poderia ter contado, nem se quisesse. Acabei de descobrir há alguns minutos. É simples, na verdade. Estava bem diante de nós.
— Podemos falar nisso mais tarde — alertou Medonho. — Temos de ir.
— Vai haver luta?
— Espero que não.
— Estou a fim de uma luta.
— Se houver — comentou Stephanie, entregando o revólver a Ardiloso —, aqui está algo que poderá ser útil.
— Ah, abençoada seja. Senti falta dela. Você tem balas?
— Hum, não.
Ardiloso fez uma pausa.
— Excelente — disse ele, e guardou a arma.
— Vamos — chamou Medonho e saiu pela porta.
Stephanie e Ardiloso foram atrás. Correram pelo corredor e viraram uma curva. Um grupo de Homens Ocos ficou paralisado no meio do passo e olhou para o trio. O tempo parou.
— Sim — comemorou Ardiloso. — Este é um resgate fabuloso mesmo.
Os Homens Ocos avançaram, e Ardiloso e Medonho entraram em ação. Ardiloso usava os cotovelos e joelhos, chaves de pulso e de braço. Medonho se desviava agilmente dos ataques, disparando socos em quem se aproximasse.
Do outro lado dos silenciosos Homens Ocos, Stephanie viu Tanith correndo, e ela correu pelas paredes e pelo teto, e continuou correndo de cabeça para baixo. Stephanie olhou espantada. Não sabia que Tanith podia fazer aquilo.
Do teto, Tanith se juntou ao combate, golpeando com a espada e cortando o topo das cabeças. Depois de alguns instantes, os Homens Ocos estavam reduzidos a tiras de papel e um cheiro horrível.
Tinith pulou para baixo, girando para aterrissar de pé.
— Tem mais deles vindo — informou ela, e acrescentou, tentando ajudar: — Provavelmente, seria melhor se a gente fosse embora.
Eles chegaram às escadas sem encontrar mais obstáculos, mas, quando estavam correndo para a saída, duas enormes portas foram abertas e os reforços dos Homens Ocos chegaram.
Ardiloso e Medonho se adiantaram, estalando os dedos e atirando bolas de fogo no chão. Stephanie observou os movimentos das mãos deles, que manipularam as chamas até haver uma parede de fogo mantendo os Homens Ocos longe.
Tanith olhou para Stephanie.
— Casaco.
— O quê?
Sem explicar nada, Tanith agarrou o colarinho de Stephanie e tirou o casaco da menina. Então correu para a janela, cobriu a cabeça com o casaco e pulou, Tanith atravessou a janela numa explosão de vidro.
— Ah — murmurou Stephanie.
Ela correu e desceu pela janela no momento em que Tanith se levantava.
— Obrigada — agradeceu Tanith, devolvendo o casaco.
— Cuidado! — gritou Medonho.
Stephanie se esquivou para um lado quando Medonho e Ardiloso mergulharam pela janela — Medonho por baixo, Ardiloso por cima dele — como dois acrobatas lunáticos. Eles caíram na grama e rolaram, ficando de pé simultaneamente.
— Fujam — sugeriu Ardiloso.
Enquanto o grupo corria para as árvores, Stephanie viu um dos Talhadores que os havia acompanhado. Julgando pelo papel rasgado espalhado ao redor dele, os Talhadores tinham obviamente resistido bravamente, mas o número esmagador de Homens Ocos tinha sido demais. Ele jazia morto no gramado. Stephanie não viu sinal do outro Talhador.
E então eles estavam no bosque, sem reduzir a velocidade, e os Homens Ocos corriam por entre o mato rasteiro atrás deles.
Medonho foi o primeiro a chegar no muro, e, com o bater dos braços, deixou o ar elevá-lo por sobre o obstáculo.
Tanith simplesmente continuou correndo. Pouco antes de ela se chocar contra a parede, deu um pulinho e estava correndo muro acima.
Antes que Stephanie pudesse pedir um impulso a Ardiloso, ele enlaçou sua cintura com um dos braços, e ela se viu voando, com o vento nos ouvidos e o alto do muro passando por baixo de seus pés. Eles pousaram do outro lado com tanto conforto e suavidade que Stephanie quase riu, apesar da situação.
Eles entraram na van, Medonho girou a chave e pegou a estrada, e o grupo deixou o castelo para trás.
18
NO TELHADO, À NOITE
Uma risada fez-se ouvir ao longe, e Ardiloso olhou na direção dela. Eles estavam de pé no telhado da loja de Medonho. A cidade de Dublin cintilava enquanto se preparava para dormir. Stephanie podia ver sobre telhados, ruas e alamedas. Podia ver os carros passando e, aqui e ali, pessoas andando. Quando Ardiloso virou novamente para ela, disse:
— Então, Valquíria Caos, hein?
— Você não acha que é bobo, acha?
— Pelo contrário, acho que é perfeito. Valquíria. Guerreira que guia as almas dos mortos para fora do campo de batalha. Um tanto mórbido, mas quem sou eu para julgar? Estou tecnicamente morto.
Stephanie olhou para o detetive e esperou um momento antes de falar de novo.
— Então, foi ruim? A tortura?
— Não foi divertida — admitiu ele. — Acho que, depois das primeiras horas, ele sabia que eu não tinha idéia de onde a chave estava. Depois disso, ele estava me torturando apenas pelo prazer de me torturar. Aliás, eu já agradeci a você por ter ido me resgatar?
— Não se preocupe com isso.
— Bobagem. Obrigado.
Ela sorriu.
— De nada.
— Sua amiga Tanith ficou meio quieta na viagem de volta.
— Acho que ela se arrependeu de usar os Talhadores como distração.
— Eu teria tomado a mesma decisão — disse Ardiloso. — Os Talhadores têm um trabalho a fazer; deixe que eles o façam.
— Foi isso que ela disse.
— Ah, mas uma coisa é entender isso e outra completamente diferente é aceitá-lo. Até que isso aconteça, ela terá um ou dois pesadelos. Mas ela é uma guerreira. Vai superar.
— Ela é uma boa lutadora.
— É mesmo.
— Se eu começasse a treinar agora, seria capaz de lutar como ela quando tiver a mesma idade?
— Não vejo por que não. Sessenta anos de treinamento bom e sólido são suficientes para transformar qualquer um num belo combatente.
— O quê?
— O que o quê?
— Sessenta anos!? Quantos anos ela tem?
— Eu diria algo por volta de 70.
Stephanie arregalou os olhos.
— Certo — disse ela com firmeza. — Está na hora de me contar como vocês vivem tanto tempo.
— Dieta balanceada e exercícios regulares.
— Ardiloso...
— Um estilo de vida limpo e saudável.
— Eu juro que...
— Mágica, então.
A menina olhou para o detetive.
— Todos os feiticeiros vivem para sempre?
— Não, para sempre, não. Nem mesmo perto de “para sempre”. Nós envelhecemos, só que o fazemos mais lentamente que o resto da humanidade. O uso regular de determinada quantidade de magia rejuvenesce o corpo, o mantém jovem.
— Então, se eu começasse a aprender magia agora, ficaria com 12 anos?
— Levaria alguns anos até que você atingisse o nível no qual o envelhecimento desacelera, mas, sim, depois disso, você permaneceria jovem por muito mais tempo do que seria estritamente justo. Sei que é falta de educação discutir a idade de uma dama, mas Porcelana tem a mesma idade que eu, e até eu tenho de admitir que ela está mais bem conservada! — Ardiloso riu, depois parou e olhou para Stephanie. — Porque eu sou um esqueleto — explicou a piada.
— Sim, eu entendi.
— Mas você não riu.
— Não achei engraçado.
— Ah.
— Então, o que vai fazer quanto a ela?
— Porcelana? Não há nada a ser feito. Ela se comportou exatamente como eu esperava que ela fizesse. O escorpião ferroa a raposa porque essa é a natureza dele. Você não pode negar sua natureza.
— E qual é a sua natureza?
Ardiloso inclinou a cabeça.
— Pergunta estranha.
— Porcelana me contou algumas coisas sobre você. E Serpênteo. Disse que vingança é tudo que você quer.
— E você está se perguntando até onde eu iria para conseguir tal vingança, não é mesmo? Está se perguntando o quanto eu sacrificaria para fazê-lo pagar por ter me matado há tantos anos.
— Sim.
Ardiloso ficou quieto por algum tempo, daí colocou as mãos nos bolsos e falou:
— O que Porcelana não contou a você, o que eu não contei a você, é que eu não fui o único a ser pego pela armadilha de Serpênteo. — Stephanie não disse nada. Esperou que ele continuasse. — A armadilha foi primorosa. Uma obra de arte, realmente. Você vê, Valquíria, uma armadilha bem-sucedida precisa de uma qualidade importante, a mesma qualidade da qual qualquer truque ou ilusão precisa. Distração. Quando sua atenção estiver concentrada em uma coisa, outra coisa estará acontecendo pelas suas costas.
— Eu nem mesmo percebi que era uma armadilha até ser ativada. Serpênteo me conhecia, veja bem, e sabia como eu ia reagir a determinados estímulos. Ele sabia, por exemplo, que, se assassinasse minha mulher e meu filho na minha frente, eu jamais chegaria a desconfiar que o cabo da adaga que eu peguei estava coberto de veneno.
Stephanie olhava atenta para ele, mas Ardiloso apenas observava a cidade.
— Eu não usei magia, veja bem, e ele sabia que eu não o faria. Sabia que eu estaria com raiva demais, sabia que minha raiva provocaria um ataque físico, que eu sentiria a necessidade de matá-lo de perto, pessoalmente. E no momento em que minha mão se fechou no cabo daquela adaga, percebi meu erro. É claro, aí já era um pouco tarde demais. Eu estava indefeso.
— Ele levou mais alguns dias para finalmente me matar. Eu morri odiando Serpênteo e, quando voltei, o ódio voltou comigo. — Ardiloso virou a cabeça para Stephanie. — Você me perguntou qual é minha natureza? É uma coisa sombria e distorcida.
— Eu não sei o que dizer — disse Stephanie baixinho.
— Não há muito que possa ser dito após uma história como essa, não é?
— Não mesmo.
— É, eu sempre saio vencedor do velho concurso de histórias dramáticas. — Eles ficaram algum tempo em silêncio. Apesar de a noite estar morna, fazia frio lá em cima, mas Stephanie não se importava.
— O que acontece agora? — indagou ela.
— Os Anciãos vão à guerra. Encontrarão o castelo vazio, Serpênteo não ficaria lá depois disso, então irão à procura dele. Também irão atrás dos velhos aliados dele, para ter certeza de que os vilões não terão oportunidade de se organizar.
— E o que nós faremos?
— Vamos conseguir o Cetro antes de Serpênteo.
— A chave — exclamou Stephanie. — Onde ela está?
O detetive virou para a menina.
— Gordon a escondeu. Um homem inteligente, seu tio. Ele acreditava que, ninguém deveria ter acesso a tal arma, porém escondeu a chave num lugar que, se realmente necessitássemos encontrá-la, se a situação ficasse tão terrível que nós verdadeiramente precisássemos do Cetro, bastaria empregar algum esforço de detetive para descobri-lo.
— Então, onde está a chave?
— O conselho que ele me deu, no escritório do advogado, consegue se lembrar qual foi?
— Ele disse que uma tempestade estava se aproximando.
— E também disse que às vezes a chave para o porto seguro está oculta e, às vezes, está diante de nossos olhos.
— Ele eslava falando da chave, literalmente? Ela está bem diante dos nossos olhos?
— Ela estava, no momento em que essas palavras foram ditas pela primeira vez, no escritório do advogado.
— Fedgewick tem a chave?
— Não. Ele a entregou a alguém.
Stephanie franziu o cenho, recordando-se da leitura do testamento e da fechadura no porão, que não era maior que a palma de Ardiloso. A menina olhou para o esqueleto.
— Não pode ser o broche?
— O broche.
— Gordon deu a chave, a chave para a arma mais poderosa que existe, para Fergus e Beryl? — comentou Stephanie, incrédula. — Por que ele faria isso?
— Algum dia você pensaria em procurar a chave com eles?
Ela ruminou a idéia por mais alguns instantes e começou a sorrir.
— Eles ficaram com o bem mais valioso que Gordon jamais possuiu e nem têm como saber.
— Na verdade, é bem engraçado.
— Na verdade, é sim.
— Então, agora tudo que precisamos fazer é pegar o broche.
Stephanie sorriu novamente e assentiu, e seu sorriso sumiu e ela balançou a cabeça negativamente com força.
— Eu não vou buscá-lo.
— Você terá de ir.
— Não, não terei.
— Apenas faça uma visita...
— Por que você não pode arrombar a casa deles? Você arrombou o Cofre.
— Aquilo foi diferente.
— Sim, tinha alarmes e vampiros; isso será muito mais fácil.
— Há momentos em que medidas extremas são desnecessárias.
— Medidas extremas são muito necessárias aqui!
— Valquíria...
— Você não pode me pedir para visitá-los!
— Não temos escolha.
— Mas eu nunca vou visitá-los! Eles vão desconfiar de alguma coisa!
— Ser um detetive não se resume a tortura, assassinatos e monstros. Às vezes as coisas ficam verdadeiramente desagradáveis.
— Mas eu não gosto deles! — reclamou ela.
— O destino do mundo pode depender de sua capacidade de visitar seus parentes.
Stephanie virou a cabeça, olhando para Ardiloso com o canto do olho.
— Pode depender?
— Valquíria...
— Está bem, eu vou.
— Boa menina. — Stephanie cruzou os braços e não respondeu.
— Você está emburrada, agora? — indagou ele.
— Sim — foi a resposta seca.
— Tudo bem.
19
A EXPERIÊNCIA
O Talhador jazia amarrado à mesa. Fluidos corriam por tubos de borracha transparente que perfuravam a pele do guerreiro, sendo levados até uma máquina silenciosa que ficava atrás dele. Tudo que era desnecessário tinha sido removido e substituído por escuridão líquida, poções que misturavam ciência e feitiçaria. O rosto do Talbador era comum e estava sem expressão alguma. Ele parara de lutar havia mais de uma hora. Estava começando a fazer efeito.
Serpênteo moveu-se até a luz e os olhos do Talhador viraram para ele. Estavam vítreos e sem brilho, vazios da ferocidade que tinha aparecido quando os Homens Ocos trouxeram-no até Serpênteo e removeram o elmo. Naquele momento, mesmo enquanto Ardiloso Cortês conseguia escapar com sucesso, Serpênteo havia recebido um novo prisioneiro, e sabia o que ia fazer com ele.
A hora havia chegado. Serpênteo ergueu a adaga que tinha na mão e deixou que o Talhador visse a lâmina. Nenhuma reação. Nenhuma atenção, nenhum medo, nenhum reconhecimento. Este homem, este soldado que havia vivido a vida inteira numa obediência cega aos outros, estava a ponto de entrar na morte, igualmente cega. Uma existência patética. Serpênteo segurou a adaga com as duas mãos, ergueu-a sobre a própria cabeça e golpeou, e a lâmina perfurou o peito do Talhador, que morreu.
Serpênteo removeu a adaga, limpou a lâmina e deixou-a de lado. Se isso funcionasse, algumas mudanças seriam obviamente necessárias, algumas alterações, algumas melhorias. O Talhador era uma cobaia, afinal, nada mais que um experimento. Se funcionasse, seria preciso um certo refinamento. Não demoraria muito. Uma hora, no máximo.
Serpênteo esperou ao lado do cadáver do Talhador. O armazém estava em silêncio. Serpênteo fora obrigado a abandonar o castelo, mas estava bem preparado para tal eventualidade. Além disso, não seria por muito tempo. Em alguns dias, os inimigos de Serpênteo estariam mortos, não haveria mais ninguém para enfrentá-lo, e ele teria tudo que era necessário para invocar os Sem Rosto — um feito que seu velho mestre Malevolente jamais havia conseguido realizar.
Serpênteo franziu o cenho. Teria sido uma ilusão de ótica, ou o Talhador havia se mexido? O feiticeiro olhou mais de perto, para ver se o peito do soldado estava subindo e descendo, procurando um sinal de vida. Mas não, nenhum sinal de vida. Serpênteo conferiu o pulso, e não havia nada.
E então o Talhador abriu os olhos.
20
A MALDIÇÃO DA FAMÍLIA
Stephanie entrou no próprio quarto pela janela e encontrou seu reflexo sentado na cama, no escuro, esperando por ela. — Está pronta para retomar sua vida? — perguntou aquilo. Stephanie, que estava achando o ato de conversar consigo mesma muito desconcertante, apenas assentiu. O reflexo foi até o espelho e entrou nele, e então virou e esperou. Stephanie tocou o vidro e as memórias de um dia inteiro inundaram sua mente. Ela observou o reflexo se transformar, e as roupas que Stephanie estava usando surgiram nela. E então ela não era nada além de uma imagem refletida num espelho.
Stephanie acordou no dia seguinte nem um pouco feliz com a tarefa que tinha pela frente. Vestindo jeans e camiseta, pensou em chamar o reflexo para imitá-la novamente, mas mudou de idéia. O reflexo realmente deixava a menina nervosa.
Percebendo que não poderia adiar a visita por nem mais um minuto, Stephanie caminhou penosamente até a casa da tia e bateu à porta. O sol brilhava, os pássaros cantavam e Stephanie se obrigou a sorrir, mas não foi um sorriso que ela viu quando a porta se abriu e Cristal olhou para ela.
— O que você quer? — perguntou a prima, desconfiada.
— Pensei em fazer uma visitinha — respondeu Stephanie animada. — Ver como vocês todos estão.
— Estamos bem — retrucou Cristal. — Ganhamos um carro idiota e um barco idiota. Como vai a sua casa?
— Cristal — respondeu Stephanie. — Sei que você provavelmente está brava com a herança e tudo mais, mas eu também não sei por que herdei tudo aquilo.
— Foi porque você ficou puxando o saco dele — zombou Cristal. — Se soubéssemos que bastava ficar sorrindo e ter conversinhas com ele, teríamos feito essas coisas também.
— Mas eu não sabia...
— Você trapaceou.
— Eu não trapaceei.
— Você tinha uma vantagem injusta.
— Como? Como eu poderia saber que ele ia morrer?
— Você sabia que, mais cedo ou mais tarde, ele ia morrer, mas começou tão cedo que o resto de nós não teve chance.
— Você pelo menos gostava dele?
Cristal usou o tom de zombaria novamente.
— Você não precisa gostar de uma pessoa para tirar alguma coisa dela.
Stephanie resistiu ao impulso de socar a cara sorridente de Cristal por tempo suficiente para que Beryl passasse pela porta. Ela viu Stephanie e seus olhos se arregalaram de surpresa.
— Stephanie — indagou ela. —, o que está fazendo aqui?
— Ela pensou em fazer uma visitinha — explicou Cristal —, para ver como nós estamos.
— Ah, que simpático da sua parte, querida.
Cristal aproveitou a oportunidade para ir embora sem se despedir. Stephanie prestou atenção em Beryl.
— Você não está usando o broche que Gordon deixou para você?
— Aquela coisa horrível? Não, não estou, e acho que jamais usarei. Ele nem reluz, por Deus. As pessoas sabem se algo é barato quando não reluz.
— Que pena. Ele parecia ser muito bonito, de onde eu estava; achei que ficaria bonito em um dos seus casacos de lã...
— Vimos você ontem — interrompeu Beryl.
— Perdão?
— Num carro amarelo horrível, com aquele horroroso Ardiloso Cortês.
Stephanie sentiu instantaneamente os tremores de pânico na barriga, mas se obrigou a franzir a testa e dar uma risada confusa.
— Hum, acho que vocês devem estar enganados. Passei o dia inteiro em casa ontem.
— Bobagem. Você passou ao nosso lado. Vimos você muito bem. E ele, também, todo coberto, como da outra vez.
— Não, não era eu.
Beryl sorriu piamente.
— Mentir é pecado, você sabia?
— Ouvi um boato...
— Fergus! — gritou Beryl, olhando para dentro da casa, e alguns minutos depois o marido dela surgiu, vindo da sala de estar. Ele passava todos os dias em casa, agora, depois de sofrer uma “séria queda” no trabalho. Fergus estava processando os patrões, alegando que a negligência deles havia sido a causa de seus ferimentos debilitantes. Não pareceu muito debilitado enquanto chegava à porta.
— Fergus, Stephanie está dizendo que não estava no carro com aquele horrível Sr. Cortês.
Fergus fez cara de bravo.
— Ela está nos chamando de mentirosos?
— Não — disse Stephanie, rindo. — Apenas que devia ser outra pessoa no carro.
— Stephanie — Beryl se intrometeu —, vamos parar com as brincadeiras. Sabemos que era você. É uma coisa tão triste de se ver, uma criança querida e inocente como você caindo nas garras das más companhias.
— Más companhias?
— Esquisitões — disse Fergus, torcendo o nariz. — Já vi esse tipos antes. Gordon costumava se cercar de gente assim, gente com segredos.
— E por que ele esconde o rosto, afinal? — inquiriu Beryl — Ele é deformado?
— Eu não teria como saber — mentiu Stephanie, tentando controlar a voz.
— Você não pode confiar em gente como essa — continuou Fergus — Eu estive perto deles a minha vida inteira, assistindo enquanto eles iam e vinham. Nunca quis ter nada a ver com eles. Você nunca sabe com quem está lidando ou que coisinhas sórdidas andaram fazendo.
— Ele pareceu legal, para mim — disse Stephanie tão casualmente quanto pôde. — Ele me pareceu ser muito legal, na verdade.
Beryl balançou a cabeça tristemente.
— Eu não esperava que você compreendesse. É apenas uma criança.
Stephanie ficou indignada.
— Vocês nem falaram com ele.
— Adultos não precisam falar com outros adultos para saber se eles são pessoas ruins ou não. Uma olhada é tudo de que precisamos.
— Então, qualquer pessoa que seja diferente de vocês é uma pessoa ruim?
— Qualquer pessoa diferente de nós, querida.
— Meus pais sempre me disseram para nunca julgar alguém pela aparência.
— Sim, bem — disse Beryl com ar afetado. — Se eles acham que podem pagar o preço de viver na ignorância, isso é problema deles.
— Meus pais não são ignorantes.
— Eu nunca disse que eles eram ignorantes, querida. Apenas que vivem na ignorância.
Stephanie não agüentava mais aquilo.
— Preciso fazer xixi — disse subitamente.
Beryl piscou os olhos.
— Perdão?
— Xixi. Preciso fazer xixi. Posso usar seu banheiro?
— Eu... eu acho...
— Obrigada.
Stephanie entrou na casa, passando pelos tios, e se apressou em subir as escadas. Entrou no banheiro e, quando teve certeza de que Beryl não iria segui-la, esgueirou-se até o quarto do casal e foi direto até o porta-jóias na penteadeira. Era um troço gigantesco, e cada um dos compartimentos transbordava com quinquilharias cafonas que cintilavam, faiscavam e resplandeciam. Stephanie encontrou o broche numa gavetinha na base da caixa, junto com um brinco de argola sem o par e uma pinça. Enfiou o broche no bolso da calça, fechou o porta-jóias e saiu do quarto. A menina então deu a descarga no banheiro e desceu as escadas correndo.
— Obrigada — disse ela animada. Beryl abriu a boca para continuar a conversa, mas Stephanie já estava na metade do caminho no jardim até a calçada.
*
Stephanie sentou-se numa das grandes pedras que marcavam os limites da ponta norte da praia, esperando por Ardiloso. Os meteorologistas tinham previsto o fim do período de seca, mas o céu matinal estava azul e livre de nuvens. Havia uma concha ao lado da menina, uma concha bonita, uma concha que Stephanie subitamente passou a amar.
A concha se moveu. O ar não fez aquelas ondas de choque legais ao redor da mão de Stephanie, mas a concha havia se movido, e não foi por causa da brisa. O coração de Stephanie acelerou, mas ela não se permitiu comemorar. Ainda não. Poderia ter sido sorte de principiante. Se conseguisse fazê-lo uma segunda vez, então ia comemorar..
Stephanie se concentrou na concha. Levantou a mão, vendo o espaço entre a mão e a concha como uma série de objetos interconectados, esperando para serem movidos. Os dedos da menina se desdobraram um pouco e ela sentiu, sentiu o ar contra a palma, sólido de alguma forma. Ela o empurrou e a concha foi atirada para longe da pedra.
— Sim! — exclamou ela, levantando os dois braços para o alto. Mágica! Tinha feito mágica! Stephanie riu de alegria.
— Você parece feliz.
Stephanie virou tão rapidamente que quase caiu da pedra, e o pai dela sorriu enquanto se aproximava. Ela ficou profundamente ruborizada, tirou o celular do bolso sem que o pai visse e levantou o aparelho.
— Recebi uma mensagem de texto legal — explicou ela. — Só isso.
— Ah — disse ele enquanto se sentava. — É sobre alguma coisa que eu deveria saber?
— Provavelmente não — Stephanie olhou em volta o mais casualmente que pôde, rezando para não ver o Carro Canário estacionando de repente. — Por que você não está no trabalho?
O pai dela deu de ombros.
— Tenho uma reunião importante hoje à tarde, mas saí de casa sem alguma coisa importante, então pensei em dar uma passadinha na hora do almoço.
— O que você esqueceu? Plantas-baixas ou algo assim?
— Algo assim — disse ele, assentindo. — Na verdade, não é nada assim. Eu esqueci minha cueca.
Stephanie olhou para o pai.
— O quê?
— Quando eu estava me vestindo, estava com a cabeça em outras coisas. Acontece, às vezes. Geralmente eu não ligo, mas essas calças coçam muito...
— Pai, eca, não quero saber!
— Ah, é verdade, desculpa. De qualquer maneira, vi você andando aqui embaixo, então pensei em dizer oi. Você costumava vir aqui o tempo todo quando era mais nova, sentar aqui nas pedras e olhar para o horizonte, e eu sempre me perguntei o que se passava pela sua cabeça...
— Um monte de coisinhas inteligentes — respondeu ela automaticamente, e ele sorriu.
— Sua mãe está preocupada com você — disse ele depois de algum tempo.
Stephanie olhou para o pai, espantada.
— O quê? Por quê?
Ele deu de ombros.
— Você não tem... não tem sido você, ultimamente. — Então a mãe de Stephanie tinha percebido a diferença entre ela e o reflexo.
— Estou bem, pai, mesmo. Eu simplesmente, você sabe, estou passando por algumas fases.
— Sim, sim, eu entendo isso, e sua mãe explicou a coisa toda para mim, sobre jovens garotas e suas fases... Mas eu ainda me preocupo. Desde que que Gordon morreu...
Stephanie ocultou a cara feia. Então isso não era só por causa do reflexo.
— Sei que vocês eram próximos — continuou ele. — E eu sei que vocês se davam muito bem, e sei que, quando ele morreu, você perdeu um bom amigo.
— Acho que perdi — disse ela baixinho.
— Não queremos impedir que você cresça, mesmo que isso fosse possível. Você está se tornando uma bela jovem, uma mulher da qual nos orgulhamos muito.
Stephanie sorriu desajeitada e evitou olhar nos olhos do pai. A morte de Gordon havia mudado Stephanie, mas a mudança era mais drástica do que seus pais poderiam conceber. Aquele acontecimento tinha colocado a menina no caminho em que ela estava agora, o caminho que a tinha levado a se tornar Valquíria Caos, o caminho que a levaria a qualquer que fosse o destino que a aguardava. O acontecimento havia mudado a vida de Stephanie; ela agora tinha um rumo e um propósito. Ele também havia colocado a menina em um perigo maior do que ela poderia ter imaginado.
— Nós simplesmente nos preocupamos com você, é só isso.
— Vocês não precisam se preocupar.
— É uma obrigação dos pais. Quando você estiver com 40 anos e nós estivermos num asilo de idosos, ainda vamos nos preocupar com você. É uma responsabilidade que nunca termina.
— Por isso me pergunto por que alguém tem filhos.
O pai de Stephanie deu uma risada.
— Você pode pensar assim, é verdade. Mas não há nada mais maravilhoso do que ver seu filho crescer, não há nada que lhe deixe mais realizado. É claro, você sempre quer que eles não passem de uma certa idade, mas não há muito que se possa fazer quanto a isso.
A não ser que você tenha a magia a seu lado, pensou Stephanie com seus botões.
— Beryl ligou — disse o pai de Stephanie. — Ela me contou que você acabou de visitá-la.
Stephanie concordou. Beryl não poderia já ter percebido que o broche havia sumido, poderia?
— Senti vontade de dar uma volta, ver como todos estavam. Eu acho, sabe, que a morte de Gordon me fez dar mais valor ao resto da família, ou algo assim. Acho que é importante que a gente continue próximo.
Ele olhou para a filha, um pouco espantado.
— Bem, isso é... algo muito bonito de se dizer, Steph, realmente é. É um sentimento bonito — ele fez uma breve pausa. — Eu não preciso resolver nada, preciso?
— Não.
— Ah, graças a Deus.
Stephanie não gostava de mentir para o pai. Tinha feito questão, há anos, de ser o mais honesta possível quando os pais dela estivessem envolvidos. Mas as coisas eram diferentes agora. Ela tinha segredos.
— Então, o que mais Beryl disse?
— Bem, ela acha que viu você com Ardiloso Cortês ontem.
— É — respondeu Stephanie, o mais casualmente que pôde. — Ela me disse. Isso é estranho.
— Ela acha que você está andando com más companhias.
— Você devia ter ouvido o que ela disse, pai, a maneira como ela fala dele, e nem mesmo o conhece. Ela provavelmente acha que faço parte de um culto ou coisa assim...
— E você faz?
Stephanei olhou para o pai, chocada.
— O quê?
O pai suspirou.
— Beryl tem bons motivos para pensar assim.
— Mas isso é loucura!
— Bem, a loucura corre na nossa família. — Ela podia ver algo no olhar dele, um toque de relutância, mas também de resignação. — Meu avô — começou ele —, seu bisavô, era um homem maravilhoso. Nós, garotos, o amávamos. Eu, Fergus, Gordon, todos nós nos sentávamos e ele contava várias histórias fantásticas. Meu pai, entretanto, não tinha muito tempo para ele. Todas as histórias que ele nos contava, ele já havia contado para o meu pai quando era criança. E quando meu pai cresceu, percebeu que era tudo bobagem, mas meu avô se recusava a percebê-lo. Meu avô acreditava... Ele acreditava que nós éramos mágicos.
Stephanie olhava fixamente para o pai.
— O quê?
— Ele dizia que ela havia sido transmitida, essa magia, de geração em geração. Dizia que éramos descendentes de um grande feiticeiro chamado o Último dos Antigos.
O volume do som do mar foi reduzido até sumir, a luz do sol perdeu intensidade e a praia desapareceu, e a única coisa que existia no mundo era o pai de Stephanie, e os únicos sons eram as palavras que ele dizia.
— Essas histórias e essa crença estão na família há séculos. Não sei como isso começou nem quando, mas, aparentemente, sempre fizeram parte de nós. E, ocasionalmente, sempre houve um membro da família que decidiu acreditar nisso.
“Gordon acreditava. Um homem racional, um homem inteligênte, e mesmo assim acreditava em magia, feitiçaria e gente que nunca envelhecia. E as coisas que ele escrevia, ele provavelmente acreditava em quase tudo, ou mesmo em tudo aquilo.
E, por isso, ele se envolveu em coisas que eram... pouco saudáveis. As pessoas com quem ele se meteu eram pessoas que alimentaram as ilusões dele, que compartilhavam a loucura dele. Pessoas perigosas. É uma doença, Steph. Meu avô a teve, Gordon a teve... e não quero que você a tenha.”
— Eu não sou louca.
— Não estou dizendo que seja. Mas sei como é fácil ser enlevado pelas histórias, por coisas que você deseja que sejam reais. Quando eu era mais jovem, acreditei. Acreditei ainda mais que Gordon. Mas parei. Tomei a decisão de viver no mundo real, de parar de me perder naquilo, naquela maldição que nos assolava. Gordon me apresentou à sua mãe e eu me apaixonei. Deixei tudo aquilo para trás.
— Então você acha que Gordon fazia parte de um culto?
— Por falta de uma palavra melhor, sim.
Stephanie se lembrou da expressão no rosto do pai na primeira vez que ele se encontrou com Ardiloso, no escritório do Sr. Fedgewick. Aquela havia sido uma expressão que ela nunca tinha visto antes — suspeita, desconfiança, hostilidade — e que tinha passado rapidamente quanto tinha surgido. Agora Stephanie entendia por quê.
— E você pensa o quê, que faço parte de um culto, agora?
Ele deu uma risada suave.
— Não, acho que não. Não de verdade. Mas o que Beryl me disse me fez pensar. Nos últimos dias, às vezes há uma distância no seu olhar que eu nunca havia percebido antes. Não sei o que isso quer dizer. Olho para você agora, e você é a minha garotinha. Mas ando com a sensação de que... não sei. Recentemente, parece que você é outra pessoa.
Stephanie não ousou responder.
— Eu simplesmente queria que você falasse com alguém. Não precisa falar comigo, pois sabe o quanto eu matraqueio, mas sua mãe... Pode contar a ela, pode contar a nós qualquer coisa. E, desde que você seja honesta conosco, saiba que vamos ajudá-la de qualquer maneira possível.
— Eu sei, pai.
Ele olhou para a filha e, por um momento, ela achou que ele ia derramar uma lágrima, mas então ele pôs o braço sobre os ombros da menina e deu um beijo na testa dela.
— Você é a minha doce garotinha, sabia disso?
— Eu sei.
— Boa menina. — Ele saiu da pedra. — Melhor eu voltar para o trabalho.
— Vejo você mais tarde. — Ele olhou para Stephanie, sorriu e foi embora da praia.
Stephanie ficou onde estava. Se aquilo fosse verdade, se a lenda da família fosse verdadeira, então isso era, isso era... Na verdade, ela não sabia o que isso era. Parecia ser importante, porém. Parecia ser algo grande. Ela saiu da praia e esperou junto à rua, e quando Ardiloso chegou com aquele horrível Carro Canário, a menina contou a ele tudo o que o pai havia dito.
O Sr. Êxtase examinava o broche, virando-o nas mãos.
— Tem certeza de que é isso?
O Sr. Êxtase estava vestido de preto, e Ardiloso vestia um terno azul-escuro de risca de giz que Medonho havia terminado naquela manhã, além de uma camisa branca nova em folha e uma gravata azul. Os dois estavam à sombra da Torre Martello, uma ruína secular que ficava no topo de um penhasco coberto de grama na costa de Haggard. Bem abaixo deles, o mar castigava as pedras pontiagudas.
— Tenho certeza — garantiu Ardiloso. — Veja como o alfinete se dobra para trás, virando um cabo improvisado? Esta é a nossa chave.
Stephanie se esforçou muito para não se intimidar com a presença do Sr. Êxtase, mas sempre que ele olhava para a menina, ela desviava o olhar. Stephanie não tinha feito objeções quando Ardiloso contou a ela que o Sr. Êxtase iria acompanhá-los às cavernas, mas também não deu pulos de felicidade.
— Obrigado por me chamar — agradeceu o Sr. Êxtase, devolvendo o broche a Stephanie.
— Precisamos de toda a ajuda que pudermos conseguir — admitiu Ardiloso —, mesmo que eu tenha ficado surpreso quando você se dispôs a vir.
— Serpênteo tornou-se extremamente poderoso, muito mais do que poderíamos conceber.
— Você soa quase como se estivesse com medo dele. O Sr. Êxtase fez uma pausa, por um momento.
— Eu não sinto medo — acabou dizendo. — Quando você não tem mais esperança, o medo evapora. Mas respeito o poder dele. Respeito o que ele é capaz de fazer.
— Se ele conseguir pegar o Cetro antes de nós, vamos ver ao vivo o que ele é capaz de fazer.
— Eu ainda não consigo entender — comentou Stephanie. — Se ele puser as mãos no Cetro, tudo bem, será invencível, mas como ele poderá usá-lo para trazer de volta os Sem Rosto?
— Não sei — respondeu Ardiloso. — Teoricamente, o ritual só é conhecido por no máximo duas pessoas no mundo; eu nem saberia por quem começaria as ameaças.
O Sr. Êxtase balançou a cabeça.
— Ele não planeja ameaçar ninguém. Pelo que ele disse, creio que o Cetro dos Antigos é meramente um degrau, um brinquedo do qual ele precisa para conseguir o que realmente quer.
— E o que seria isso? — O Sr. Êxtase olhou para o mar, mas não respondeu a pergunta.
— Eu não entendo — continuou Ardiloso. — Você esteve conversando com ele?
— Hoje de manhã — revelou o Sr. Êxtase. Ele usou um tom de voz resignado, e Stephanie estreitou os olhos. Havia algo errado. Havia algo muito errado. Ela recuou, mas Ardiloso estava envolvido demais na conversa para perceber.
— Você esteve com ele? — indagou Ardiloso, se aproximando de Êxtase. — Você esteve com ele e não o destruiu?
— A profundidade do poder dele me era desconhecida, e eu não inicio batalhas que não posso vencer. Era perigoso demais.
— Onde ele está? Os Anciãos estão procurando por ele!
— Eles não precisam fazê-lo. Serpênteo irá até eles quando for a hora certa.
— Por que você se encontrou com ele?
— Serpênteo tinha algo a dizer. Eu ouvi.
— Do que você está falando?
— Ele já sabia das cavernas. A única coisa que o atrasou foi a busca pela chave.
Ardiloso olhou para o Sr. Êxtase. O Sr. Êxtase olhou para Ardiloso. Stephanie percebeu que o detetive estava de pé bem na borda do penhasco.
O Sr. Êxtase pôs a mão no peito de Ardiloso e, antes mesmo que Stephanie pudesse gritar, ele empurrou, e Ardiloso foi atirado por sobre a borda, desaparecendo da vista. E então o Sr. Êxtase virou para ela.
21
A CAVERNA
Stephanie correu.
Deu uma olhada para trás, mas Êxtase não estava lá, então uma sombra encobriu a menina e ele caiu do céu. Stephanie se chocou contra ele e cambaleou para trás. A mão de Êxtase moveu-se como uma cobra dando um bote, tomando o broche da menina. Ela aterrissou de traseiro no chão.
Stephanie olhou para a borda do precipício, na esperança de ver Ardiloso flutuando para o resgate. Ele não o fez. O Sr. Êxtase guardou o broche no bolso do paletó.
— Você vai entregá-lo a Serpênteo — acusou Stephanie.
— Vou.
— Por quê?
— Ele é poderoso demais para ser enfrentado.
— Mas você é mais forte do que todo mundo! Se todos vocês forem atrás dele...
— Eu não faço apostas, Srta. Caos. Se fôssemos atrás dele, poderíamos derrotá-lo, ou então ele poderia escapar e contra-atacar quando menos esperássemos. É uma situação imprevisível demais para o meu gosto. A guerra deveria ser algo delicado. Ela requer precisão.
Stephanie franziu o cenho. Aquelas palavras. Aqueles olhos, do tom mais pálido de azul...
— Porcelana também nos traiu — contou ela, compreendendo a conexão. — Deve ser tradição da família.
— Os negócios e as motivações de minha irmã são dela e apenas dela.
— Ela também está se aliando a Serpênteo?
— Não que eu saiba — respondeu o Sr. Êxtase. — Mas, de qualquer forma, posso estar mentindo. Esse é o problema com aliado e inimigos: você nunca pode ter certeza de quem é quem até que o golpe final seja dado.
Stephanie se levantou, incapaz de recuperar o broche, enquanto Sr. Êxtase caminhava até o próprio carro.
— Nós vamos derrotar Serpênteo — gritou ela.
— Façam o que tiverem de fazer — respondeu o Sr. Êxtase, sem olhar para trás. Ele entrou no carro e, sem um único olhar para a menina, deixou a Torre Martello pela estrada de terra, indo em direção à cidade. Stephanie viu a nuvem de poeira levantada pela passagem do carro e correu de volta, pela trilha estreita, até a base do penhasco.
Por favor, esteja bem, repetiu ela em pensamento. Por favor, esteja bem, por favor, esteja bem.
Quando finalmente chegou ao final da trilha, Stephanie olhou para as pedras, aterrorizada com o que poderia ver lá. Uma queda daquelas teria esmigalhado os ossos de Ardiloso. Ele não estava nas pedras, entretanto, então ela passou a olhar para o mar, no exato momento em que a cabeça de Ardiloso emergiu na superfície da água.
— Ardiloso? — gritou ela, inundada pela sensação de alívio. — Está tudo bem com você? — Ele não respondeu imediatamente. Em vez disso, continuou subindo, subindo diretamente para fora do mar até que estava em pé nas ondas.
— Estou bem — respondeu Ardiloso secamente, andando até ela. Stephanie tinha visto tantos acontecimentos peculiares nos últimos dias que ficava um tanto surpresa quando alguma coisa ainda lhe parecia estranha. Ele subia e descia com as ondas, mas mantinha o equilíbrio perfeitamente, e quando o detetive saiu da água e passou a caminhar na trilha, um vapor se soltou das roupas dele e caiu de volta no mar. As roupas de Ardiloso, Stephanie notou, estavam intocadas pela queda.
— Então foi por isso que Serpênteo não mandou ninguém atrás da gente — comentou ele, azedamente. — Ele nos deixou fugir para que pegássemos a chave, sabendo que tinha alguém do nosso lado para pegar a chave da gente. Isso é pura... é pura trapaça.
— Você sabe de alguém que não trairia você? — indagou Stephanie enquanto eles começavam a subir a trilha.
— Fique quieta.
— E, aliás, obrigada por me contar que o Sr. Êxtase e Porcelana eram irmãos.
— De nada.
— Se eu soubesse disso, poderia ter lhe avisado para não confiar nele.
— Tenho de admitir: a traição de Porcelana não me surpreendeu, mas o Sr. Êxtase... Ele nunca faz nada sem antes pensar muito bem no assunto.
— Suponho que ele pense que Serpênteo seja o lado vencedor.
— Talvez.
— Então, o que faremos agora? Não podemos deixar Serpênteo encontrar o Cetro; ele ficará invencível.
— O que você sugere?
— Sugiro que eu vá buscar minhas roupas de trabalho, deixar meu reflexo sair do armário e nós o seguiremos pelas cavernas e pegaremos o Cetro antes que ele o faça.
— É um ótimo plano. Vamos fazer isso, então.
Eles chegaram à mansão de Gordon e se depararam com um reluzente carro prateado estacionado do lado de fora, e a porta da frente novamente caída no hall de entrada. Ardiloso entrou na casa primeiro, com o revólver na mão. Stephanie seguiu logo atrás, vestida toda de preto. Eles examinaram superficialmente o andar térreo da casa antes de descerem as escadas até o porão.
A chave estava na fechadura e a porta secreta tinha sido revelada. Uma seção do piso estava aberta, expondo degraus de pedra que desciam para as profundezas da Terra. Eles desceram pelos degraus, afundando cada vez mais nas sombras. A dupla andou na penumbra por vários minutos até chegar ao fundo, e então caminharam por um túnel estreito escavado na pedra. Estava mais claro lá embaixo, e o caminho era iluminado por dúzias de pequenos buracos criados para capturar a luz do sol na superfície e trazê-la até as profundezas.
Ardiloso e Stephanie saíram do túnel numa caverna que se bifurcava em duas direções.
— Para qual lado? — sussurrou Stephanie.
Ardiloso estendeu o braço e abriu a mão. Depois de um momento, ele assentiu.
— Um grupo deles está seguindo para o norte.
— Você está lendo o ar? — perguntou Stephanie, franzindo a testa.
— Lendo perturbações no ar, sim.
— Então vamos atrás deles?
Ardiloso considerou essa opção.
— Eles ignoram a localização exata do Cetro tanto quanto nós. Escolheram aquele caminho simplesmente como ponto de partida da busca.
— Então devemos ir pelo outro lado, torcendo para encontrar o Cerro antes?
— Se pudermos pegá-lo sem que Serpênteo saiba que estamos aqui, poderemos selar o túnel atrás de nós, aprisionando-o aqui enquanto alertamos os Anciãos.
— Então, por que estamos parados aqui, pensando na vida?
Seguiram pelo caminho da esquerda, movendo-se rápida mas silenciosamente. O complexo de cavernas logo demonstrou ser enorme, mas Ardiloso garantiu a Stephanie que era capaz de encontrar o caminho de volta sem dificuldades. Aqui e ali, os furinhos de luz se abriam em fachos maiores, que eram refletidos nas paredes de pedra e penetravam a escuridão. Plantas e cogumelos estranhos cresciam, e Ardiloso avisou a Stephanie que ela deveria ficar longe deles. Até os fungos eram perigosos aqui embaixo.
Estavam andando há dez minutos quando Stephanie percebeu que algo se movia diante deles. Ela tocou o braço de Ardiloso e apontou, e eles recuaram para as sombras, para observar.
A coisa que surgiu na luz, movendo-se com dificuldade, era de uma horripilância monstruosa. Com mais de dois metros de altura, a coisa tinha um peito largo e longos braços, cujos antebraços eram enormes e deformados pelos músculos inchados. As mãos eram do tamanho de pratos de jantar e terminavam em garras criadas para rasgar. O rosto tinha uma aparência canina, como um doberman, e ele tinha uma juba de um marrom sujo que descia pelo pescoço, a partir da nuca, e se juntava aos longos pêlos emaranhados nos ombros.
— O que é aquilo? — murmurou Stephanie.
— Aquilo, minha cara Valquiria, é o que chamamos de monstro.
Stephanie olhou para Ardiloso.
— Você não sabe o que aquilo é, sabe?
— Eu já lhe disse o que é aquilo, um monstro horrível. Agora cale a boca antes que ele venha até aqui e nos coma. — Eles assistiram enquanto o monstro sumia numa caverna adjacente.
— Não vamos por ali — afirmou Stephanie.
— Bom plano — concordou Ardiloso e eles se apressaram em seguir em frente.
O caminho que eles tomaram os levou até o local de um desabamento, então deram meia-volta e seguiram outra rota, por um longo túnel. Coisas corriam pelas sombras das laterais, e outras coisas esvoaçavam nas sombras acima, mas enquanto todas essas coisas não pulassem e os mordessem, Stephanie não se incomodaria com elas. Ardiloso se agachou, pegando algo no chão. Uma embalagem empoeirada de barra de chocolate ou, como ele disse:
— Uma pista.
Stephanie olhou para o detetive.
— Gordon?
— Estamos no caminho certo.
Recomeçaram a andar, examinando o chão em busca de outras provas de que Gordon havia passado por ali. Infelizmente, menos de cinco minutos depois, Ardiloso parou e virou, com a mão estendida lendo o ar.
— Estamos sendo seguidos — sussurrou ele.
Precisamente as palavras que Stephanie não queria ouvir. Ela olhou para trás, para o caminho de onde tinham vindo. O túnel era longo e reto e, apesar da penumbra, ela podia ver por uma boa distância. A menina não viu ninguém atrás deles.
— Tem certeza? — indagou ela, rapidamente.
Ardiloso não respondeu. Estava com os dois braços esticados para frente; a mão esquerda estava lendo o ar, e a direita segura o revólver.
— Nós deveríamos recuar agora — disse ele. Eles começaram a andar de costas. Stephanie estava ouvindo algo, agora, um eco que chegava até eles.
— Deveríamos recuar um pouco mais rápido — comentou ele.
Eles aceleraram o passo. Stephanie tinha de olhar constantemente para os pés para não tropeçar em algum obstáculo, mas Ardiloso parecia ser capaz de se mover para trás ou para frente com a mesma facilidade.
Stephanie percebeu que o som que ouvia era de alguém correndo aos saltos. Percebeu isso porque o som vinha da criatura com cara de cachorro que agora estava galopando em direção a eles numa velocidade terrível.
— Certo — admitiu Ardiloso. — Agora eu acho que deveríamos correr.
Eles viraram e correram. Ardiloso disparou seis tiros em rápida sucessão, cada um deles atingindo o alvo, cada um deles acertando a criatura, mas fracassando em reduzir sua velocidade. Ardiloso recarregou a arma sem parar de correr, largando as cápsulas vazias, colocando projéteis novos nas câmaras e fechando a arma com um movimento do pulso. O túnel ficou mais largo e terminava logo adiante..
— Continue correndo — ordenou Ardiloso.
— O que você vai fazer?
— Não sei — admitiu ele, olhando para trás. — Provavelmente alguma coisa muito corajosa.
Ele parou de repente e Stephanie o ultrapassou num instante, alcançando o fim do túnel e saindo numa ampla caverna. Trepadeiras cascateavam da escuridão acima da menina, penduradas sobre o abismo escancarado diante dela.
Stephanie olhou para trás no momento em que o monstro se chocou contra Ardiloso. A arma voou da mão dele e o detetive foi atirado ao chão com força. A criatura cerrou as garras em volta do tornozelo dele. Ela deu um passo para trás, ergueu Ardiloso pela perna como se fosse um taco e o golpeou contra a parede do túnel. Ardiloso caiu de ombro no chão, mas a criatura ainda não tinha acabado de balançá-lo, e Stephanie assistiu enquanto Ardiloso era atirado na outra parede. A criatura rugiu e deu um puxão, e Ardiloso foi jogado para trás, para dentro do túnel, e a criatura ficou segurando uma perna esqueletal.
O monstro rosnou, confuso, e então levantou a cabeça, captando o cheiro de Stephanie no ar.
— Corra! — gritou Ardiloso do túnel enquanto a criatura largava a perna e ia direto para Stephanie. A menina se virou, mas não tinha para onde fugir, então disparou para a borda e pulou para cima.
As mãos de Stephanie se enfiaram nos cipós escorregadios, tentando desesperadamente se segurar enquanto ela começou a cair. Os dedos da menina se fecharam numa planta mais grossa e ela parou de cair, com o impulso que a levava para frente. Stephanie deu uma olhada na ampla escuridão abaixo e sentiu o ar gélido e viciado que soprava daquele vazio. Ela girou ao balançar de volta, no momento exato de erguer as pernas para escapar das garras da besta. O monstro rugiu para demonstrar o desagrado com sua presa trapaceira, arranhando o ar com as garras afiadas na beira do abismo. O balanço do cipó levou a menina para longe novamente.
Stephanie viu Ardiloso se arrastando pelo chão do túnel e catando a perna, cujo sapato e a meia ainda estavam no pé. O detetive se sentou, passando o fêmur pela perna da calça até que o osso se encontrou com a bacia, e então o torceu e testou dobrando-o contra o próprio corpo. Ardiloso pegou o revólver do chão ao lado dele e se levantou, deixando o túnel e se aproximando da criatura por trás, enquanto ela continuava rosnando e golpeando o ar. Stephanie agora estava simplesmente pendurada, balançando levemente no cipó, com o coração batendo numa velocidade mais normal.
A menina manteve contato visual com a criatura, tentando manter a atenção do monstro nela, mas, quanto mais Ardiloso se aproximava, mais difícil a tarefa ficava, até que ele chutou uma pedrinha, fazendo a criatura virar para ele.
Ardiloso abriu os dedos, mas nada aconteceu, e Stephanie lembrou-se de quando o Sr. Êxtase disse que havia criaturas nestas cavernas que se alimentavam de mágica. Parecia que eles tinham encontrado uma dessas criaturas.
— Raios — foi tudo que Ardiloso disse e então disparou, atirando no peito do monstro à queima-roupa e se chocando contra ele, forçando-o a recuar um passo.
Mais um passo e a criatura cairia no abismo.
O monstro bateu com o enorme punho nos ombros de Ardiloso, que se ajoelhou mas logo se ergueu novamente, dando um soco o mais alto possível, e o punho do detetive mal tocou o queixo do monstro. Ardiloso se abaixou para evitar outro golpe, movendo-se como um boxeador e batendo com a coronha da arma nas costelas do monstro, sem maiores conseqüências.
Stephanie franziu o cenho e olhou para o cipó no qual se segurava. Ela estava se movendo? A menina olhou de volta para a luta no momento em que Ardiloso agarrou a juba com a mão esquerda e pulou direto para cima, acertando a coronha do revólver no meio do focinho do monstro.
A criatura urrou e deu um passo para trás, e sua pata não encontrou nada além de vazio. Ardiloso se empurrou para longe enquanto ela ficou equilibrada por um único momento, mas não havia nada que ela pudesse fazer para se salvar. Ardiloso cambaleou para trás e o monstro caiu no abismo com um uivo apavorado.
— Certo, então — disse Ardiloso enquanto batia a poeira da roupa. — Isso está resolvido.
— Acho que estou me movendo — disse Stephanie ao sentir que havia sido puxada para cima delicadamente. Ardiloso foi até a borda, com a cabeça um pouco esticada sobre o vazio, curioso, quando...
— Stephanie — disse ele —, isso não é um cipó.
— O quê? — exclamou Stephanie, olhando para a coisa na qual se segurava. — Então, o que é?
— Stephanie, balance na minha direção — disse ele, com um tom de urgência na voz. — Venha agora, balance para mim. Rápido!
Stephanie chutou o ar e começou a balançar, para frente e para trás, cada arco mais longo que o anterior, o tempo todo sendo puxada suavemente para cima.
— Solte! — gritou Ardiloso, estendendo os braços para pegá-la. Stephanie espiou o vazio abaixo dela enquanto se balançava, lembrando do uivo da besta enquanto caía, imaginando se o monstro já tinha atingido o fundo. Quando estava no ponto mais alto do arco seguinte, a menina soltou as mãos e voou pelo ar, caindo para frente, na direção de Ardiloso.
Mas o cipó se estirou como um chicote, enrolando-se no pulso de Stephanie e puxando-a de volta dolorosamente. Ardiloso tentou agarrar a menina mas errou, e Stephanie estava subindo rapidamente.
— Me ajude! — gritou Stephanie, sentindo como se o braço fosse ser arrancado do ombro. A menina ouviu Ardiloso praguejar, mas estava movendo-se rápido demais e não havia nada que ela pudesse fazer para parar de ser puxada para cima, e Ardiloso podia apenas assistir enquanto ela sumia na escuridão.
22
O CETRO DOS ANTIGOS
Stephanie foi erguida até um platô e então puxada por sobre a borda. Tentou soltar o tentáculo do pulso, mas outros tentáculos serpentearam da penumbra, se enrolando com força no seu braço. A menina esticou a mão livre para trás e agarrou a borda do platô, mas foi inútil. Os dedos dela não conseguiram agüentar a pressão Stephanie teve de se soltar, e começou a ser arrastada pela pedra gosmenta.
Havia algo adiante, uma massa cinzenta de carne, um tumor que se espalhou livre e desimpedido no seu cantinho escuro. Os tentáculos puxavam Stephanie para o centro da massa, onde uma enorme boca escancarava faminta, com dentes afiados que pingavam saliva viscosa.
A mão livre de Stephanie encontrou uma pedra grande que a menina agarrou, segurando com a borda cortante para fora, como se fosse uma adaga, e golpeou com força. A pedra cortou os tentáculos e Stephanie soltou o braço, se levantou e correu, mas outros tentáculos se contraíram e se estenderam. Eles capturaram as pernas de Stephanie, que caiu no chão. Ela tentou chutá-los, mas eles apertaram mais forte.
Havia tentáculos por todos os lados.
A coisa, o que quer que fosse, pulsava num ritmo nojento enquanto arrastava Stephanie para mais perto. Stephanie não viu olhos. Tudo que tinha eram tentáculos e aquela boca... O que queria dizer que ela funcionava com o sentido de tato.
Stephanie se obrigou a parar de lutar. Lutando contra todos os instintos dentro de si, a menina relaxou o corpo e, apesar de continuar sendo arrastada na mesma velocidade, sentiu que o aperto em suas pernas diminuiu um pouco. Os outros tentáculos pararam de si aproximar, mas ainda estavam perto demais. Estariam nela num instante se ela tentasse se soltar.
Stephanie jogou a pedra, e ela acertou um tentáculo e quicou para longe. Sentindo a presença de outra vítima, os tentáculos restantes serpentearam atrás dela, procurando cegamente pelas sombras. Stephanie respirou fundo, estendeu os braços para os tornozelos, esperou que o aperto diminuísse ainda mais, e aí agarrou os tentáculos e os arrancou fora.
A menina se levantou, mas ao invés de correr para longe, correu para frente, na direção da coisa com a boca. Stephanie saltou na coisa, por sobre a bocarra escancarada, e a bota dela quase escorregou na carne trêmula e úmida. Stephanie pulou e suas mãos alcançaram a borda acima. Ela se ergueu para o outro platô e abaixo dela os tentáculos estalavam e se enrolavam, com movimentos cada vez mais frenéticos enquanto a coisa procurava pela presa perdida.
Stephanie não parou para descansar. Ela se levantou e se apressou em sair de perto da borda, penetrando na penumbra do túnel diante dela. A menina combateu o medo súbito de ficar perdida para sempre naquelas cavernas. Não será para sempre, ralhou consigo mesma. Se nenhum dos monstros me achar e me matar, morrerei de sede, de qualquer maneira, em alguns dias.
Stephanie não podia acreditar que tinha acabado de pensar aquilo.
Empurrando todos os medos e dúvidas e pensamentos pessimistas — mas provavelmente realistas — para o canto mais fundo da mente, a menina diminuiu o passo e se concentrou em encontrar um caminho de volta para Ardiloso. E então viu uma luz.
Ela se esgueirou adiante até chegar a uma sacada de pedra, com vista para uma pequena caverna. Stephanie espiou para baixo e viu meia dúzia de Homens Ocos, um deles segurando um lampião. O Sr. Êxtase não parecia ter acompanhado essa pequena expedição. Serpênteo estava lá, entretanto, de pé diante de um pequeno rochedo, cuja superfície era plana como a de uma mesa. Neste rochedo estava um baú de madeira com uma enorme fechadura. O coração de Stephanie tremeu. Ele o havia encontrado.
Stephanie olhou para baixo. Não estava tão longe do piso da caverna. Uns dois metros. Não tinha escolha. Tinha de tentar.
Os Homens Ocos estavam de costas para ela, então Stephanie se pendurou na borda sem ser percebida e se deixou cair no chão da caverna. A luz do lampião não chegava tão longe, e as sombras envolviam a menina, de modo que, quando um dos Homens Ocos virou, o olhar vazio passou inofensivamente pelo lugar onde a menina estava agachada. Ela esperou até ele virar para a frente novamente antes de se mover outra vez.
A escuridão que encobria as paredes da caverna era tão absoluta e as roupas de Stephanie tão negras que ela poderia se esgueirar até bem perto dos inimigos sem ser vista. Ela se movimentou de forma dolorosamente lenta, respirando o mais levemente possível. Stephanie tinha certeza que Serpênteo ouviria o coração dela martelando as costelas, mas ele estava interessado demais no baú.
Serpênteo tocou a fechadura com o dedo sem pele da rubra mão direita, e o mecanismo enferrujou e se quebrou num instante. Ele sorriu ao vestir a luva, abriu o baú e tirou o Cetro dos Antigos de dentro.
Era real. A arma final, a arma com a qual os Antigos derrotaram seus deuses, era real. Os anos não haviam maculado sua beleza dourada, e ela pareceu zumbir por um instante, enquanto se acostumava com o novo dono. A arma final nas mãos de Serpênteo.
— Finalmente — Stephanie ouviu Serpênteo sussurrar.
Uma estranha cantoria preencheu a câmara, e Stephanie percebeu que ela vinha do cristal negro no Cetro. Serpênteo virou quando Ardiloso Cortês invadiu a caverna.
Ardiloso fez um gesto com a mão e os Homens Ocos voaram para trás. Ele se chocou contra Serpênteo e o Cetro caiu no chão, Serpênteo deu um soco, mas Ardiloso se esquivou por baixo do golpe e se aproximou. As mãos do detetive deram um bote e Ardiloso girou o corpo, dando um golpe de judô em Serpênteo, que atingiu o chão com força.
Stephanie se esgueirou pelas trevas, em direção ao Cetro. Os Homens Ocos começaram a se levantar e caminhar até a luta no centro da caverna.
Ardiloso estalou os dedos e Serpênteo estava perto demais para se esquivar da bola de fogo. Ele foi atingido direto no peito e o fogo o envolveu completamente. Os Homens Ocos ficaram paralisado enquanto o mestre deles girava pela caverna, envolto em chamas. O pé de Serpênteo acertou o Cetro, que deslizou até o fim da luz...
...ficando mais perto de Stephanie.
Ardiloso estendeu os dedos e Serpênteo foi atirado contra a parede oposta, caindo no chão em seguida. Ardiloso apagou o fogo com um gesto casual. Serpênteo jazia onde havia caído, com as roupas queimando lentamente e a carne carbonizada com horríveis queimaduras.
— Acabou — afirmou Ardiloso. — É aqui que seu passado o alcança. É aqui que você morre.
E então, o impossível aconteceu: uma risada, e Serpênteo se sentou no chão.
— Isso — disse ele — doeu.
E enquanto Stephanie assistia, a carne queimada começou a se curar sozinha, e os cabelos voltaram a crescer no couro cabeludo, sem deixar nem uma cicatriz.
Serpênteo acumulou o vapor púrpura na palma da mão e jogou em Ardiloso, que caiu para trás. O vapor tornou-se um fino apêndice serpenteante que disparou para as sombras, se enrolando no Cetro e puxando-o para a mão de Serpênteo no momento em que Stephanie tentou pegá-lo. Ardiloso se recuperou, mas era tarde demais para fazer qualquer coisa. O feiticeiro se levantou, segurando o Cetro, e sorriu.
— Estou em dúvida — disse Serpênteo enquanto Stephanie se movia, oculta, atrás dele. — Eu deveria usar isto para destruir você, para reduzir seus ossos inúteis a cinzas, ou deveria simplesmente deixar você aqui embaixo, na escuridão? Deixá-lo aqui embaixo seria mais satisfatório no longo prazo, admito, mas o que posso dizer? Eu busco satisfação imediata, sou superficial assim.
Stephanie atacou, acertando as costas de Serpênteo com o ombro no instante em que o cristal do Cetro brilhou. Um relâmpago negro ziguezagueou pelo ar, errando Ardiloso por uma questão de centímetros, e vaporizando uma pedra que estava atrás do detetive. Serpênteo virou e agarrou a menina. Stephanie o socou com toda a sua força, mas ele apenas rosnou, e então Ardiloso estava lá e o ar ondulou. Serpênteo deslizou pelo chão da caverna com o impacto, mas ainda estava segurando o Cetro.
Ardiloso fez um gesto na direção dos Homens Ocos, que foram atirados para trás, e então Stephanie sentiu uma mão enluvada fechando-se no pulso dela, e logo a menina estava sendo arrastada para fora da caverna. Ardiloso correu tão rápido que Stephanie se deixou ser carregada no rastro dele.
Ele sabia exatamente para onde estava indo, e minutos depois estava nos degraus de pedra, correndo para fora das cavernas. Eles chegaram ao porão e a chave voou da fechadura para a mão do detetive. O chão gemeu e ribombou, e a abertura se fechou.
— Isso vai segurá-lo? — indagou Stephanie.
— Ele tem o Cetro — foi a resposta de Ardiloso. — Nada vai segurá-lo. — Como se quisesse provar o que Ardiloso tinha dito, o chão começou a rachar.
— Corra! — gritou Ardiloso. Eles dispararam escada acima e Stephanie olhou para trás em tempo de ver o piso desaparecendo com uma suave nuvem de poeira.
Os dois mergulharam para fora da casa, saindo para a brilhante luz do dia, com os Homens Ocos na cola deles. Stephanie estava a três passos do Carro Canário quando um dos Homens Ocos a agarrou.
Stephanie reagiu e golpeou. Os dedos dela perfuraram o rosto do Homem Oco e ela o rasgou para baixo, liberando uma lufada de ar podre. O Homem Oco cambaleou para trás, segurando a própria cabeça. O corpo inteiro se esvaziou, até que não passava de pele de papel sendo pisoteada pelos irmãos.
Outro Homem Oco pulou em Stephanie, e Ardiloso se jogou contra ele, acertando um cotovelo no lado do pescoço da criatura e jogando-a por sobre o ombro. Algo se moveu à direita da dupla e Tanith Low correu em direção a eles, enquanto tirava a espada da bainha. Ela chegou com velocidade, com a lâmina girando e faiscando na luz do sol, mandando pedaços de Homens Ocos para o ar como uma chuva de confetes.
Um relâmpago negro surgiu da porta da casa e o Carro Canário desapareceu num instante. Serpênteo saiu da casa. Stephanie sentiu uma onda de calor no rosto quando Ardiloso começou a jogar bolas de fogo. Serpênteo desviou a primeira com um gesto e recuou para evitar as outras.
Stephanie só foi perceber o outro carro quando ele cantou os pneus ao frear atrás dela. A porta se abriu e Tanith embainhou a espada, empurrou Stephanie para dentro do carro e pulou atrás dela, e então o carro estava andando novamente.
Stephanie se endireitou no banco do carro a tempo de ver Ardiloso jogar uma última bola de fogo e mergulhar direto pela janela aberta do veículo. Ele aterrissou em cima da menina quando o carro dava uma guinada súbita e ela sentiu o cotovelo dele na própria cabeça. O carro fez mais um desvio brusco e eles se separaram. As árvores passavam rapidamente do lado de fora, e Stephanie soube que eles estavam fora da linha de fogo de Serpênteo.
O carro passou pelos enormes portões que marcavam o fim das terras de Gordon e Ardiloso se ajeitou.
— Bem — comentou ele — isso foi estimulante.
Uma voz familiar veio do banco da frente.
— Um dia desses eu não vou estar por perto para salvá-lo dos apuros, sabia?
Stephanie virou a cabeça, viu o homem de gravata-borboleta ao volante e, ao lado dele, no assento do carona, Porcelana Tristeza, aprumada e perfeita.
— Não sei o que seria de você sem mim, Ardiloso — disse Porcelana. — Realmente não sei.
23
PENSAMENTOS SOBRE UMA MORTE HORRÍVEL
Os Anciãos não estavam felizes.
Équus Meritório e Tomo Sagaz conversavam em voz baixa no lado oposto da sala de reuniões do Santuário. Meritório estava calmo, mas solene. Tomo estava lívido e em pânico.
Stephanie estava sentada ao lado de Ardiloso. Do outro lado da mesa, Tanith limpava a espada. Tinha algo no cabelo.
— Tanith — sussurrou Stephanie. Tanith ergueu os olhos. — Você tem algo... — Ela apontou para a própria cabeça, tentando indicar o lugar. — É uma folha, ou coisa assim.
— Ah, obrigada — disse Tanith enquanto punha a mão no cabelo. Tateou até encontrar o objeto e tirou-o dos cabelos. Ela examinou a coisa, franziu o cenho, olhou mais de perto e aí o rosto da espadachim se contorceu de nojo, enquanto ela largava aquilo na mesa. — Ah, meu Deus.
— O que é?
— É um pedaço de pele de Homem Oco.
Stephanie empalideceu.
— Ah, isso é nojento.
— E estava no meu cabelo — gemeu Tanith, dando um peteleco no pedaço de pele.
Stephanie se encolheu e devolveu a pele com outro peteleco e Tanith começou a rir, mas a mão de Ardiloso bateu na mesa, prendendo o pedaço de pele. Ele olhou para as duas.
— Quatro anos de idade — lamentou ele. — Estamos encarando uma crise inimaginável e eu tenho de lidar com crianças de quatro anos de idade.
— Desculpe — disse Stephanie.
— Desculpe — disse Tanith.
Morvena Corvo e Porcelana Tristeza entraram no aposento, seguidas, segundos depois, de Medonho Reservado.
— Eles acharam alguma coisa? — perguntou Ardiloso enquanto se levantava.
Morvena respondeu.
— Os Talhadores invadiram todos os esconderijos e covis que conhecemos e não encontraram um único traço sequer de Serpêntio.
— As notícias sobre Serpênteo estão se espalhando — informou Porcelana. — Os rumores indicam que ele está tirando os velhos aliados da geladeira.
Meritório e Tomo se juntaram ao grupo.
— Se um único exilado voltar — avisou Meritório —, a balança de poder ficará desequilibrada demais. Seremos sufocados.
— Precisamos tirar o Cetro dele — disse Tanith. — Dar a ele um gostinho do próprio remédio.
— Não ia dar certo — retrucou Porcelana. — Mesmo se conseguíssemos chegar perto dele sem que o cristal do Cetro avisasse que estávamos na área, Serpênteo possui o Cetro agora, e ninguém poderá usá-lo enquanto ele estiver vivo.
— Então nós o matamos — disse Tomo.
Meritório olhou para Ardiloso, que assentiu e começou a falar.
— Infelizmente, matar Serpênteo não é tão fácil quanto pode parecer. Ele deveria estar morto neste momento. Não quero dizer ferido, não quero dizer morrendo, quero dizer morto. Mas ele se curou.
Stephanie franziu a testa.
— Ele não pode ser morto?
— Todos podem ser mortos — explicou Ardiloso, virando a cabeça para a menina. — Esse é um grande consolo. Não encontrei uma única coisa neste planeta que eu não tenha sido capaz de matar, e não vou deixar que ele seja a exceção à regra.
— Precisamos atacar agora — opinou Morvena —, antes que ele possa consolidar seu poder.
— Mas como podemos atacá-lo se nem sabemos onde ele está? — indagou Tomo Sagaz, impaciente.
— Mas é possível que a gente saiba onde ele esteve — replicou Ardiloso. — Na noite passada recebi um telefonema de um cavalheiro que me fornece informações, de vez em quando. Um carro prateado muito característico foi visto na rua Denholm, perto das docas. Fiz uma ou duas ligações e fiquei sabendo que quase todos os prédios daquela rua estão em nome de empresas de boa reputação. A única exceção é um armazém alugado para um indivíduo, o Sr. Howard L. Craft.
Tomo franziu o cenho.
— E daí?
— L. Craft. Lovecraft. Howard Philip Lovecraft escreveu uma série histórias geralmente chamadas de “Mitos de Cthulhu”, sobre deuses sombrios que queriam governar a Terra. Alguns historiadores afirmam que o Sr. Lovecraft baseou suas criações parcialmente nas lendas que tinha ouvido sobre os Sem Rosto.
Tomo fez uma careta.
— Então essa é sua única pista? Um pseudônimo espertinho que Serpênteo pode ter usado? Não temos tempo a perder com esses pedaços de pistas vagas, temos de agir com base naquilo que realmente sabemos!
— Bem, e o que exatamente nós sabemos? — indagou Morvena, — Sabemos que ele tem um plano lunático para trazer os Sem Rosto de volta, mas não sabemos como ele pretende fazer isso.
— O Sr. Êxtase disse que o Cetro não era nada além de um degrau — contribuiu Stephanie.
— Esta é uma conversa para adultos — respondeu Tomo, exasperado. — Não precisamos de seus palpites, criança.
Tanith e Porcelana falaram em uníssono.
— Não a chame de criança.
Claramente não acostumado a receber broncas de quem não fosse um Ancião, Tomo gaguejou um pouco e seu rosto ficou ainda mais vermelho. Stephanie fez o que pode para esconder seu sorriso atrás de uma máscara de serena indiferença. Tanith olhou para ela e piscou.
— Se o Cetro é um degrau — continuou Ardiloso, ignorando a indignação de Tomo —, então ele vai usá-o para, de alguma forma, descobrir o ritual necessário.
— Então é nossa obrigação garantir que isso não aconteça — afirmou Meritório. — Ardiloso, em nome do Conselho de Anciãos eu peço desculpas por não envolver você neste assunto quando descobrimos que a equipe encarregada de vigiar Serpênteo estava morta. Também peço desculpas por não ouvir seus avisos.
— Serpênteo provavelmente teria um plano de reserva — disse Ardiloso. — É isso que o torna tão perigoso.
— Talvez isso seja verdade. Acho que dependemos de você e da Srta. Caos, e de quem mais você possa precisar, para tentar descobrir qual será o próximo passo de Serpênteo. Lamento por colocar tal responsabilidade nos seus ombros, mas eu e meus colegas Anciãos ficaremos ocupados com as preparações para uma guerra total.
Ardiloso se curvou levemente.
— Nesse caso, vamos cuidar disso imediatamente.
— Obrigado.
Ardiloso enrolou o cachecol no rosto e colocou o chapéu na cabeça, e então olhou para todas as caras sérias ao redor dele.
— Ânimo, pessoal — disse ele, com uma nova alegria na voz. — Já que todos nós vamos morrer horrivelmente mesmo, por que se preocupar?
Stephanie teve realmente muito medo de estar ficando louca, pois percebeu que tinha concordado de coração com o esqueleto vivo que ela agora estava seguindo ao sair da sala.
O Bentley estava esperando pela dupla quando eles saíram do Santuário. Reluzia como se estivesse feliz de ter recuperado sua beleza perdida. Stephanie entrou no carro e afundou no assento. O Bentley cheirava bem. Cheirava como os carros bonitos deveriam cheirar. O Carro Canário não cheirava bem. Simplesmente cheirava a amarelo.
— É bom tê-lo de volta — disse Stephanie a Ardiloso, referindo-se ao carro. — Eles fizeram milagres aqui, de verdade. Foram só dois dias e o carro parece novo em folha.
Ardiloso assentiu.
— Custou uma fortuna.
— Valeu a pena.
— Fico feliz que você pense assim. Também fico feliz com o fato de que não terei de comprar comida tão cedo. Ou nunca. — A menina sorriu e olhou para ele. O detetive estava olhando para fora pelo pára-brisa. Nenhum deles falou nada por alguns segundos.
— O que foi? — indagou Stephanie.
— Perdão?
— Você está pensando em alguma coisa.
— Estou sempre pensando em alguma coisa. Pensar é o que eu faço. Sou muito bom nisso.
— Mas você acabou de descobrir alguma coisa.
— E como você percebeu isso?
— Você inclina a cabeça de um certo jeito quando acaba de descobrir alguma coisa. Então, o que foi?
— Acabei de me tocar de uma coisa — disse Ardiloso. — Na caverna, o cristal do Cetro avisou a Serpênteo que eu estava por perto; mas não avisou que você estava bem ao lado dele.
Stephanie deu de ombros.
— Talvez ele não tenha me visto como uma ameaça. Não tenho condições de ferir Serpênteo.
— Isso não tem nada a ver — disse Ardiloso. — Nós podemos ter encontrado uma fraqueza na arma.
Stephanie franziu a testa.
— O quê?
— Você se lembra do que disse Oisin, o cara legal na Pedra Eco? — indagou Ardiloso. — O cristal negro cantava para os deuses sempre que um inimigo estava por perto, mas ficava em silêncio quando os Antigos o pegavam.
— Então, o quê, ele acha que sou uma Antiga?
— Tecnicamente, de acordo com o seu pai, pelo menos, você pode ser.
— Isso significa que você está começando a acreditar que eles foram mais que simples lendas e mitos?
— Eu estou... mantendo a mente aberta quanto a isso. O que não entendo, porém, é por que Gordon não me falou da história da sua família? Fomos amigos por anos, tínhamos conversas sobre os Antigos e os Sem Rosto que duravam dias, então por que ele não me contou?
— Quer dizer alguma coisa? Ser descendente dos Antigos, quero dizer. O que isso, o que...
— O que isso significa?
— Isso.
— Significa que você é especial. Significa que nasceu para fazer isto; você nasceu para se envolver com este mundo, com esta vida.
— Eu nasci para isto?
— Você nasceu para isto.
— Então talvez tenha sido por isso que ele não lhe contou. Ele queria escrever sobre isto do lado de fora, e não ficar metido no meio da confusão.
Ardiloso inclinou a cabeça.
— Você é muito mais sábia do que seria normal para sua idade, Valquíria.
— Sim — respondeu ela. — Eu sou.
24
PLANEJANDO UM ASSASSINATO
O Sr. Êxtase estava de pé na palma da Pedra Agarradora e observou enquanto Serpênteo se aproximou. A Pedra Agarradora tinha a forma de uma gigantesca mão com a palma para cima, que emergia do pico da montanha com os dedos curvados, como se estivesse tentando pegar o sol no céu vermelho-sangue.
Serpênteo escalou a palma com facilidade e Êxtase se curvou levemente. Serpênteo, por sua vez, apenas sorriu.
— Você está com o Cetro? — perguntou Êxtase.
— Sorte sua que estou, sim.
— Sorte minha?
— Meu caro Sr. Êxtase, se eu tivesse descido naquelas cavernas e emergido sem o Cetro, como você teria ficado? Estaria numa daquelas celas da prisão do Santuário, sem poder, esperando o julgamento. Em vez disso, você está aqui, conversando comigo, às vésperas da chegada de um novo mundo. Fique grato.
— Você parece esquecer que, se tivesse emergido daquelas cavernas sem nada, você estaria na cela ao lado da minha...
Serpênteo olhou para ele. Há pouco tempo atrás, os níveis de poder de ambos teriam sido equivalentes. Mas não agora.
— ...meu mestre — Êxtase terminou a frase, respeitosamente, inclinando a cabeça.
Serpênteo sorriu novamente e deu as costas para Êxtase, olhando pelos dedos da pedra para o vale abaixo deles.
— É tão poderoso quanto os estudiosos imaginavam? — indagou Êxtase.
— O que os estudiosos imaginavam não é nada perto da realidade. Ninguém poderá nos impedir agora.
— Os Anciãos — disse Êxtase.
Serpênteo virou-se para ele.
— Tenho um plano para lidar com os Anciãos. Eles são completamente previsíveis, e morrerão por isso. Até mesmo Meritorio será reduzido a pó. Nada poderá ficar em nosso caminho.
— Os Anciãos podem ser previsíveis — retrucou Êxtase —, mas esta não é uma característica que Ardiloso compartilha com eles. Ele é astucioso, poderoso e muito, muito perigoso.
— Não se preocupe com o detetive. Também tenho um plano para lidar com ele.
— Ah?
— Ardiloso Cortês sempre teve uma fraqueza: ele cria laços com pessoas muito fáceis de matar. No passado, foram sua mulher e filho. Agora, é essa garota que anda com ele, essa Valquíria Caos. Ele só será uma ameaça contra nós enquanto estiver pensando com clareza. Você sabe tanto quanto eu que, depois que ele fica com raiva, seu discernimento fica prejudicado.
— Então, o que vamos fazer?
— Eu já o fiz, Êxtase. Mandei alguém para... prejudicar o discernimento dele. Em menos de uma hora, Valquíria Caos, estará morta e Ardiloso Cortês não nos incomodará mais.
25
O TALHADOR BRANCO
O dia já estava batendo em retirada quando eles chegaram à rua Denholm, e a noite estava se esparramando pela cidade. Era uma longa rua, suja e silenciosa. O Bentley parou diante do armazém. Medonho e Tanith estavam esperando por eles quando saíram do carro.
— Alguém aí dentro? — indagou Ardiloso, enquanto verificava se a arma estava carregada.
— Não, até onde pudemos ver — respondeu Medonho. — Mas eles poderiam estar mascarando a própria presença. Se Serpênteo ou Êxtase estiverem lá dentro, vamos precisar de reforços.
— Eles não estão aqui — revelou Ardiloso.
— Como você sabe? — inquiriu Stephanie.
— Serpênteo usou este lugar para alguma coisa, alguma coisa grande e estranha o suficiente para chamar atenção. Ele saberia que isso ia acontecer e saberia que eu ia ouvir falar nisso, então já foi para outro lugar.
— Então por que nós estamos aqui?
— Você só pode antecipar o que alguém irá fazer se souber exatamente o que esse alguém acabou de fazer.
Eles se aproximaram da única porta, na qual Tanith encostou a orelha e ouviu. Depois de um momento, colocou a mão sobre a fechadura, mas, em vez de esta se quebrar, desta vez Stephanie ouviu um clique.
— Porque você não consegue fazer isso? — sussurrou Stephanie para Ardiloso. — É mais rápido que arrombar a fechadura manualmente e mais silencioso que estourar a porta.
O detetive balançou a cabeça, entristecido.
— Um esqueleto vivo não é o suficiente para você, é? O que mais é necessário para impressionar os jovens hoje em dia?
Stephanie sorriu. Tanith empurrou a porta e o grupo entrou. A porta levava direto para o escritório do armazém, um aposento escuro e apertado, com uma escrivaninha e uma quadro de cortiça vazio. Era óbvio que o lugar não havia sido usado por nenhuma empresa de boa reputação há um bom tempo. O escritório tinha uma porta que se abria para o armazém propriamente dito, e também tinha uma janela coberta de fuligem pela qual Stephanie espiou.
— Parece bem quieto — comentou ela.
Ardiloso apertou alguns interruptores na parede e as luzes piscaram e se acenderam. Eles saíram do escritório para o armazém. Havia pombos nas vigas do teto, bem acima do grupo, que arrulhavam e piavam e esvoaçavam de um poleiro ao outro, assustados pela luz súbita. O grupo andou até o meio do armazém, onde uma porção de aparelhos, que pareciam ser equipamentos médicos, estavam arrumados ao redor de uma mesa de operações. Stephanie olhou para Ardiloso.
— Alguma idéia? — indagou.
O detetive hesitou.
— Vamos começar eliminando o óbvio. Muitas dessas máquinas sugerem que algum tipo de transfusão aconteceu aqui.
Tanith levantou um tubo, examinando os resíduos dentro dele.
— Não sou médica, mas não acho que isso seja o resultado de pesquisas de medicina.
— Mágica, então — concluiu Medonho.
— É possível injetar mágica? — inquiriu Stephanie, franzindo a testa.
— É possível injetar fluidos com propriedades mágicas — explicou Ardiloso, pegando o tubo das mãos de Tanith. — Antes de termos máquinas maravilhosas como estas, era um processo bem mais sujo, mas o resultado era o mesmo.
— E qual era o resultado?
— O paciente saía da operação um homem transformado. Ou mulher. Ou... coisa. A questão aqui é: qual era o objetivo da brincadeira? Que mudanças Serpênteo estava buscando?
— E quem era o paciente?
— Pacientes, na verdade.
— Perdão?
— Há dois conjuntos de agulhas, duas bolsas de soro, dois de tudo; é suficiente para dar conta de duas operações separadas. Vamos levar uma amostra de volta para o Santuário, analisá-la e tentar descobrir o que ela faz. Mas, no momento atual, quero que todos dêem uma olhada no armazém.
— O que estamos procurando? — perguntou Stephanie.
— Pistas.
Stephanie olhou para Tanith, viu que ela levantou uma sobrancelha, cética, e conseguiu esconder o sorriso.
Ardiloso e Medonho andavam lentamente, passando o olhar em cada superfície, examinando cada centímetro das máquinas, da mesa e da área imediatamente em volta. Stephanie e Tanith estavam uma do lado da outra, olhando direto para baixo, para o chão.
— Como é a aparência de uma pista? — sussurrou Tanith.
Stephanie lutou contra uma risada e respondeu num sussurro.
— Não tenho certeza. Estou procurando uma pegada ou coisa assim.
— Você já achou alguma coisa?
— Não. Mas deve ser porque ainda não saí deste ponto.
— Talvez nós devêssemos nos mover, fingir que sabemos o que estamos fazendo.
— Essa é uma boa idéia.
Elas começaram a andar, bem devagar, ainda olhando direto para baixo.
— Como vai a mágica? — perguntou Tanith, mantendo a voz baixa.
— Eu movi uma concha.
— Ei, parabéns!
Stephanie deu de ombros, modestamente.
— Era só uma concha.
— Não faz diferença. Muito bem.
— Obrigada. Com que idade você começou a fazer mágica?
— Eu nasci na magia — respondeu Tanith. — Família de feiticeiros; meu irmão estava sempre fazendo alguma coisa. Eu cresci fazendo mágica.
— Não sabia que você tinha um irmão.
— Ah, é, um irmão mais velho e coisa e tal. Você tem irmãos?
— Sou filha única.
Tanith deu de ombros.
— Eu sempre quis ter uma irmãzinha. Meu irmão é ótimo, eu o amo até morrer, mas sempre quis uma irmãzinha para poder conversar com ela, alguém para compartilhar meus segredos, sabe?
— Eu também não acharia ruim ter uma irmã.
— Alguma chance de isso acontecer?
— Não sei o que meus pais ganhariam com isso. Quero dizer, eles já tem a filha perfeita, o que mais poderiam querer?
Tanith riu, e então tentou ocultar a risada com uma tosse falsa.
— Achou alguma coisa? — perguntou Ardiloso, detrás delas.
Tanith virou, com uma expressão séria.
— Não, desculpa. Pensei que tinha achado, mas não, acabou sendo, ah... mais chão.
Stephanie se abraçou, tentando fazer os próprios ombros pararem de balançar com o riso.
— Certo — disse Ardiloso. — Bem, continuem procurando.
Tanith assentiu, deu meia-volta e cutucou Stephanie para que a menina ficasse quieta. Stephanie cobriu a própria boca com uma das mãos e teve de olhar para o outro lado ao ver o rosto de Tanith, que se esforçava para manter a compostura.
— Vaca — murmurou Tanith e isso foi a gota d’água, as comportas se abriram e Stephanie se dobrou ao meio com as risadas que ecoaram pelo armazém. Tanith apontou para Stephanie e recuou. — Ardiloso, ela não está sendo profissional!
O riso de Stephanie demonstrou ser contagioso e Tanith logo estava de joelhos. Ardiloso e Medonho apenas olhavam para as duas.
— O que está acontecendo? — inquiriu Medonho.
— Não tenho muita certeza — foi a resposta de Ardiloso.
Olharam para Stephanie e Tanith e balançaram as cabeças.
— Mulheres — disseram ao mesmo tempo.
Stephanie enxugou as lágrimas e olhou ao redor, procurando Ardiloso. Neste momento, algo caiu do teto e aterrissou atrás do detetive sem fazer barulho. A risada da menina sumiu enquanto se levantava.
— Atrás de você! — berrou ela.
Ardiloso girou, com a arma na mão, e todos ficaram paralisados. O grupo olhou para o homem. O uniforme era idêntico ao dos Talhadores, a não ser pela cor: um branco surpreendente.
— Alto! — disse Medonho enquanto Stephanie e Tanith correram para se juntar a ele e Ardiloso. — Estamos trabalhando para o Conselho dos Anciãos. Fique tranqüilo.
O Talhador Branco não se moveu.
— O que você quer? — inquiriu Ardiloso.
O momento seguinte se arrastou em câmera lenta, e então o Talhador Branco ergueu o braço e apontou direto para Stephanie.
— Isso é tudo que precisamos saber — disse Ardiloso e disparou quatro tiros no peito e dois na cabeça. O Talhador Branco estremeceu com cada impacto, mas ficou claro que as balas não penetraram o uniforme, e os dois projéteis mirados na cabeça ricochetearam no elmo, deixando dois arranhões escuros na superfície branca.
— Raios — murmurou Ardiloso.
Stephanie permaneceu na retaguarda enquanto Ardiloso, Tanith e Medonho avançaram no novo adversário. O elmo eliminava qualquer chance de eles saberem para onde ele estava olhando, mas Stephanie sabia que ele olhava direto nos olhos dela.
Tanith atacou primeiro, fingindo um chute baixo e então transformando-o em um chute alto. O Talhador não caiu no truque e desviou o ataque com um tapa enquanto Medonho o atacava por trás. O Talhador girou e deu um chute que acertou Tanith na barriga, e depois se abaixou para se esquivar do soco que Medonho disparou contra ele. Os punhos de Medonho ficaram borrados com a velocidade dos socos, mas o Talhador absorveu os impactos e sua mão disparou, acertando Medonho na lateral do pescoço. Medonho cambaleou e Ardiloso estendeu a palma, fazendo o ar ondular.
Mas, em vez de ser empurrado para trás, o Talhador moveu através das ondas sem ser afetado. O uniforme, pensou Stephanie. Sem se perturbar com o fato, Ardiloso deu um soco que foi interceptado pelo Talhador.
Ardiloso foi atirado por cima do Talhador, mas ao aterrissar ele havia invertido a pegada. O pé do detetive atacou, acertando o joelho do Talhador, e agora era Ardiloso quem dava o golpe e o Talhador que estava sendo jogado.
Enquanto estava no ar, porém, o Talhador tocou a mão livre no chão e deu uma estrela, ficando novamente de pé. Uma pausa se seguiu enquanto os três amigos de Stephanie reavaliavam o oponente.
Tanith puxou a espada de detrás do casaco e removeu-a da bainha. Medonho deixou o paletó cair e Ardiloso guardou a pistola, liberando as mãos.
— Você não precisa fazer isso — disse ele ao Talhador. — Diga-nos onde Serpênteo está; diga-nos quais são seus planos. Podemos ajudar você. Não tocará um dedo em Valquíria Caos, mas nós vamos ajudá-lo.
A resposta do Talhador foi levar o braço às costas e puxar a foice. Ardiloso grunhiu de insatisfação.
O Talhador disparou até eles antes que qualquer um deles pudesse esboçar uma reação, usando a foice para dar um “salto com vara” e chutar Ardiloso e Medonho no peito ao mesmo tempo.
Os dois cambalearam para trás e Tanith avançou, com a espada em ação. O Talhador se esquivou para trás, girando a foice para aparar a lâmina.
Faíscas voaram quando os metais se chocaram, espada contra foice, e tamanha foi a ferocidade do assalto de Tanith que o Talhador não percebeu Medonho até que fosse tarde demais. Os fortes braços de Medonho envolveram o agressor, prendendo os braços dele do lado do corpo e fazendo ele soltar a foice.
Tanith avançou para finalizá-lo e a perna do Talhador voou num crescente, acertando o calcanhar da bota no pulso de Tanith quando ela se aproximou. Ela sibilou de dor e largou a espada, segurando o pulso.
O Talhador bateu com o calcanhar na canela de Medonho e deu uma cabeçada com o elmo no nariz do alfaiate. Em seguida, jogou as duas pernas para cima e para trás, sobre a própria cabeça, escorregando para fora e para baixo dos braços de Medonho. As mãos do guerreiro tocaram o chão e ele continuou o movimento das pernas acertando as duas botas no rosto de Medonho.
O alfaiate pugilista caiu para trás e o Talhador se manteve na posição de bananeira por um momento, e então voltou ao normal quando do Ardiloso avançou para atacá-lo.
Ardiloso invocou fogo e atirou duas bolas flamejantes nos Talhador. As chamas não o engolfaram, mas fizeram-no recuar, e Ardiloso deu o bote com um jab veloz como um raio, que foi seguido de um gancho de direita. Ardiloso não parecia se incomodar com o fato de estar socando um elmo, e Stephanie percebeu, com satisfação, a forma como o oponente estava cambaleando para trás.
O Talhador se recuperou rapidamente, porém, e eles começaram a trocar socos e chutes, cotoveladas e joelhadas, e Stephanie assistiu enquanto eles bloqueavam, davam chaves e contra-chaves, enquanto se movimentavam ao redor um do outro, numa dança elaborada e brutal.
— Stephanie! — gritou Ardiloso, enquanto lutava. — Saia daqui!
— Não vou deixá-lo!
— Você tem de fugir! Não sei como pará-lo!
Tanith pegou a espada no chão e agarrou o braço de Stephanie.
— Temos de ir — disse ela com firmeza e Stephanie assentiu.
Elas correram de volta pelo caminho por onde entraram. Ao passar pelo escritório, Stephanie olhou para trás e viu o Talhador girar com um chute que jogou Ardiloso no chão. Em um movimento fluído, ele pôs a ponta do pé sob a haste da foice, jogou-a para cima e a pegou, e então estava correndo atrás da menina.
Stephanie emergiu no beco escuro e Tanith amassou a mão na porta ao fechá-la; Stephanie ouviu a guerreira murmurar “Resista”; e um lustro reluzente se espalhou pela superfície.
— Isso vai segurá-lo por um minuto.
Elas correram para o Bentley. O Talhador batia na porta atrás delas, mas a porta não se abria nem se quebrava. As batidas cessaram.
Elas alcançaram o Bentley e Tanith olhou para Stephanie.
— Você está com as chaves?
Uma janela explodiu no alto, perto do teto do armazém, e o Talhador Branco caiu, aterrissando de cócoras no meio do beco junto com uma chuva de cacos de vidro. Ele se endireitou, descruzou os braços e levantou a cabeça.
Tanith se posicionou entre o Talhador e Stephanie, segurando a espada na mão esquerda. Ela mantinha o braço direito ferido junto ao lado do corpo. O Talhador girava a foice lentamente.
Ardiloso e Medonho saltaram pela janela quebrada. O Talhador virou e Medonho se chocou contra ele.
— Ligue o carro! — gritou Medonho.
Ardiloso apertou o botão no chaveiro e as trancas se abriram com um “bip”, e todos os três pularam para dentro. O motor rugiu ao ganhar vida.
— Medonho! — chamou Ardiloso. — Vamos!
Medonho acertou um soco no Talhador e se levantou com um rolamento, mas o Talhador deu um chute e Medonho tropeçou. A foice reluziu e a haste acertou a mandíbula de Medonho, que caiu de joelhos.
— Medonho! — gritou Stephanie. Ardiloso abriu a porta e começou a sair, mas Medonho ergueu os olhos e balançou a cabeça.
— Não vamos deixá-lo! — afirmou Ardiloso.
O Talhador foi até Medonho, pronto para golpear com a foice.
— Vocês precisam ir — disse Medonho, de forma muito suave.
Ele abaixou a cabeça e cerrou os punhos, com os olhos fechados Quando o Talhador finalmente golpeou, o chão pareceu se fechar sobre os joelhos de Medonho. Ele se espalhou instantaneamente, transformando as pernas em concreto, depois o torso, os braços, a cabeça, o corpo inteiro no tempo que a foice levou para cruzar o espaço entre eles, e quando o Talhador tentou cortar a cabeça de Medonho, pôde apenas lascar o pescoço. Stephanie soube instintivamente o que Medonho havia feito — este era o último poder Elemental, terra, o poder que Ardiloso tinha descrito como sendo puramente defensivo, e para ser usado exclusivamente como último recurso.
O Talhador Branco olhou diretamente para Stephanie enquanto Ardiloso engrenava a marcha do carro. O trio os deixou ali — o Talhador Branco e Medonho — e correu pelas ruas da cidade.
26
A BATALHA FINAL DE...
Équus Meritório esperava nas sombras da Catedral da Igreja de Cristo de Dublin, observando o mundo tocar seus negócios de sempre. Havia momentos em que se sentia culpado em esconder a magia das massas, em que tinha certeza que eles abraçariam a maravilha e a beleza se ao menos tivessem a oportunidade. Mas então voltava a si e percebia que a humanidade já tinha problemas suficientes para ter de se preocupar com uma subcultura que poderia ser vista como uma ameaça a seu próprio valor. Como Ancião, o trabalho dele era proteger o mundo exterior de verdades para as quais ainda não estavam preparados.
Morvena Corvo caminhou até ele, com o manto escuro fluindo sobre a grama. Estava tão limpa e elegante quanto no dia em que haviam se conhecido.
— Ardiloso Cortês não costuma se atrasar — comentou ela.
— Sagaz disse que ele tinha um tom de urgência na voz — respondeu Meritório. — Ele pode ter encontrado dificuldades.
Morvena olhou ao redor da esquina da catedral, para a rua movimentada além da grade. As luzes brilhantes, de cor âmbar e amarela, emolduravam seu rosto. Ela parecia quase angelical.
— Não gosto de encontros ao ar livre, assim. Estamos muito expostos. Ele deveria saber disso.
— Ardiloso escolheu este lugar por um motivo — disse Meritório, gentilmente. — Confio em seu discernimento. Ele conquistou isso, pelo menos.
Eles viraram quando Tomo Sagaz surgiu ao lado deles, se materializando do nada.
— Sagaz — começou Morvena —, Ardiloso chegou a dizer por que queria nos encontrar aqui?
Sagaz parecia estar nervoso quando a materialização se completou e ele se tornou sólido.
— Lamento, Morvena, ele simplesmente me disse para garantir que vocês dois estariam do lado de fora da catedral.
— É bom que isso valha a pena — disse ela. — Não temos muito tempo para desperdiçar hoje em dia. Serpênteo poderia atacar em qualquer lugar e a qualquer hora.
Meritório observou Sagaz sorrir tristemente.
— Isso é muito verdadeiro — disse Sagaz. — E, se me permitirem, eu gostaria de aproveitar esta oportunidade para deixar que vocês dois saibam que os tempos em que fomos amigos foram tempos muito bons mesmo.
Morvena riu.
— Não estamos mortos ainda, Sagaz. Então ele olhou para ela e o sorriso transformou-se em outra coisa.
— Na verdade, Morvena, vocês estão.
Os Homens Ocos convergiram e Sagaz desapareceu. Meritório não teve nem tempo de registrar a traição antes de ver Serpênteo caminhando a passos largos em direção a eles, segurando o Cetro. O Ancião instintivamente conjurou um escudo protetor que fez o ar cintilar, mas, quando o cristal brilhou, o relâmpago negro atravessou o escudo como se ele nem estivesse lá e houve...
Nada.
*
O Administrador disparou em meio à multidão diante do Teatro Olympia, provocando um coro de gritos raivosos e xingamentos. Ele tropeçou, mas conseguiu se manter de pé, conseguiu se manter correndo. Olhou para trás.
Não viu nenhum perseguidor. Achava que não tinha sido visto, mas não podia ter certeza. O Administrador estava esperando ao lado do carro quando Nefasto Serpênteo apareceu. Ele tinha visto Meritório explodir em poeira e cinzas e tinha visto o relâmpago negro atingir Morvena Corvo quando ela tentou atacar os inimigos.
Ele tinha se abaixado, aterrorizado. Tomo os havia traído. Tomo havia traído todos eles. O Administrador tinha abandonado o carro e começou a correr.
Precisava chegar ao Santuário. Ele tinha de avisar aos outros.
27
NADA DE CALMA ANTES DA TEMPESTADE
Ardiloso tinha dado dinheiro a ela e Stephanie entrou na lojinha para pagar pelo combustível enquanto ele enchia o tanque do Bentley. Enquanto esperava o troco, Stephanie olhou para as barras de chocolate expostas e tentou se lembrar da última vez em que tinha comido chocolate. Ela sempre comia chocolate quando coisas ruins aconteciam, mas, naqueles dias, chocolate simplesmente não era o suficiente.
Tudo tinha dado errado. Tanith estava ferida, Medonho não passava de uma estátua e agora eles tinham de se preocupar com o Talhador Branco. Estavam chegando num ponto em que Stephanie não sabia mais por que eles se incomodavam em continuar lutando, apesar de Stephanie jamais dizer isso a Ardiloso. Ele parecia acreditar que ela era como ele — nunca desistindo, nunca se rendendo. Mas não era. A única razão de não ter contado isso a Ardiloso era que ela gostava da maneira como ele pensava nela, e não queria desapontá-lo. Mas a verdade era que a Valquíria Caos que ele achava que conhecia era muito mais forte do que Stephanie Edgley jamais poderia ser.
Ela voltou para o lado de fora. Ardiloso estava colocando o bocal da mangueira de volta na bomba. Tanith tinha ido mergulhar a mão na mesma mistura curativa que tinha dado a Stephanie.
Agora que eles estavam sozinhos, Stephanie não sabia muito bem o que dizer. Ardiloso atarraxou a tampa do tanque no lugar e ficou ali, perfeitamente imóvel. Com o chapéu na cabeça e o cachecol escondendo a mandíbula, ele poderia ter sido apenas um manequim, ali de pé, no que dependesse das diferenças.
— Me desculpe — disse Stephanie. Ele olhou para ela. — Se não fosse por mim, Medonho estaria... estaria conosco. É culpa minha que ele teve de usar o poder da terra. — Ela se esforçava para evitar que a voz vacilasse. — Quanto tempo acha que ele ficará daquele jeito?
Ardiloso levou um momento para falar.
— Eu sinceramente não sei, Valquíria. Aquele é o poder mais imprevisível que possuímos. Ele poderia ficar na forma de uma estátua por um dia, uma semana ou um século. Não há como saber.
— Eu estraguei tudo.
— Não...
— Aquele Talhador estava atrás de mim. Medonho foi forçado a...
— Medonho não foi forçado a nada — interrompeu Ardiloso. — Foi uma escolha dele. E não foi culpa sua. Serpênteo mandou aquele assassino atrás de você para me ferir. É isso que ele faz.
— Ele o mandou atrás de mim porque sabia que eu não seria capaz de me defender sozinha. Ele sabe que você está cuidando de mim, sabe que sou seu ponto fraco.
Ardiloso inclinou a cabeça para o lado.
— Cuidando de você? É assim que você vê esta situação? Você acha que sou sua babá?
— Bem, você não é? Eu não tenho magia, não sei lutar, não posso jogar fogo ou correr no teto. Qual é minha utilidade para você? Eu sou fraca.
Ardiloso balançou a cabeça.
— Não, você não é. Você não foi treinada em magia ou combate, mas não é fraca. Serpênteo a subestima. Todo mundo a subestima. Você é mais forte do que eles poderiam saber. É mais forte do que você pode saber.
— Eu queria você estivesse certo.
— É claro que estou certo. Eu sou eu.
Stephanie ouviu um telefone tocar quando Tanith chegou à luz do pátio. Tinha envolvido o pulso com uma bandagem. As propriedades mágicas da mistura curativa já estavam trabalhando para reduzir o inchaço e consertar o dano. Tanith atendeu ao telefonema. Stephanie não gostou do jeito como o rosto de Tanith pareceu apagar enquanto ela ouvia o que quer que estivessem dizendo.
Ela desligou sem responder.
— Ardiloso — chamou ela, baixinho. — Seu telefone está ligado?
— Sem bateria — explicou ele.
— Eles estavam tentando entrar em contato com você. O Administrador, o Santuário.
— Qual é o problema? — perguntou Stephanie.
— Os Anciãos — disse Tanith, com uma voz vazia. — Tomo Sagaz os traiu. Os Anciãos estão mortos.
Stephanie levou a mão à boca.
— Ah, Deus.
— Tomo estava trabalhando para Serpênteo o tempo todo. Ele é um traidor. Como o Sr. Êxtase. São todos traidores. Ardiloso, o que vamos fazer?
Stephanie olhou para ele, rezando para que o detetive criasse um ótimo plano novo, um esquema para garantir a vitória e um final feliz. Ele não respondeu.
— Você me ouviu? — continuou Tanith, o vazio na voz dando lugar a uma raiva súbita. — Você ao menos está me ouvindo? Você ao menos se importa? Talvez não se importe. Talvez você queira morrer de novo; talvez queira se juntar à sua mulher e ao seu filho, mas ei! Nós não queremos morrer, está bem? Eu não quero. Valquíria não quer.
Ardiloso ficou ali, parado. Um manequim. Em silêncio.
— Acha que temos alguma chance contra Serpênteo? — questionou Tanith. — Tomo? Êxtase? Aquele Talhador? Você realmente acha que temos uma chance contra todos eles?
— O que sugere que a gente faça? — retrucou Ardiloso, com a voz baixa e firme. — Recuar e deixar Serpênteo ficar mais forte? Recuar e deixá-lo recrutar mais aliados, deixá-lo abrir a porta para que os Sem Rosto entrem?
— Ele está vencendo, entendeu? Serpênteo está vencendo esta guerra!
— Isso não existe.
— O quê?
— Não existe essa coisa de “estar vencendo” ou “estar perdendo”. Existe vencedor e existe perdedor; existe vitória e derrota. São coisas absolutas. Tudo que existir entre essas coisas está em aberto para se conquistar. Serpênteo só terá vencido quando não restar mais ninguém para se opor a ele. Até lá, existe apenas a luta, porque as marés fazem o que as marés fazem: elas viram.
— Isso é loucura...
Ele virou a cabeça para ela tão decididamente que Stephanie achou que Ardiloso ia bater em Tanith.
— Eu acabei de ver um amigo muito querido se transformar numa estátua, Tanith. Meritório e Corvo, duas das poucas pessoas neste mundo que eu respeito, foram assassinadas. Então, sim, você tem razão quando diz que nossos aliados estão caindo como moscas, mas esta batalha jamais prometeu ser uma luta fácil. É de se esperar que as baixas aconteçam. E você sabe o que nós fazemos? Passamos por cima delas e seguimos em frente, pois não temos escolha. Agora, eu vou acabar com Serpênteo de uma vez por todas. Qualquer um que quiser ir comigo será bem-vindo. Qualquer um que não quiser, não fará a menor diferença. Serpênteo será derrotado e isso é tudo que precisamos saber.
Ele entrou no Bentley e ligou o motor. Stephanie hesitou, e então abriu a porta do carona e sentou. A menina olhou para Ardiloso enquanto colocava o cinto de segurança, mas ele olhava fixamente para frente. Ele esperou três segundos, então passou a primeira marcha e estava a ponto de arrancar quando Tanith entrou, sentando-se no banco detrás.
— Não precisa ficar todo dramático, também — murmurou ela e Stephanie conseguiu sorrir. Ardiloso pegou a estrada e dirigiu velozmente.
— Para onde estamos indo? — indagou Stephanie.
— Você não estava ouvindo? — respondeu o detetive, soando de novo como o bom e velho Ardiloso. — Vamos derrotar Serpênteo. Eu acabei de fazer um discurso sobre isso. Foi muito bom.
Tanith se inclinou para frente.
— Você sabe onde ele está?
— Sim, eu sei. Pensei nisso bem ali, quando estava enchendo o tanque.
— No que você pensou?
— No Cetro. Por que Serpênteo foi atrás do Cetro?
Stephanie franziu o cenho.
— Porque ele é a arma final.
— E por que ele queria a arma final?
— Para, você sabe, conseguir o ritual que ele precisa para trazer os Sem Rosto de volta, para forçar quem quer que seja que conhece o ritual a contar a ele.
— Não.
— Ele não vai usá-lo para conseguir o ritual?
— O Cetro é muito desajeitado, muito difícil de controlar. Ele poderá ameaçar de morte a única pessoa do mundo que sabe como realizar o ritual; e se essa pessoa preferir morrer a entregar o ritual? O que ele fará, então? Não. Ele usou o Cetro para matar os Anciãos. Essa era a única razão para ele querer o Cetro. Ele sabia que não seria poderoso suficiente para enfrentá-los sem o Cetro.
— Então, como isso o ajuda a descobrir o ritual?
— Isso não se trata só do ritual. O que se consegue ao matar os Anciãos?
— Isso parece uma piada.
— Valquíria...
— Não sei.
— Sim, você sabe. Agora pense. No que resultaria o ato de matar os Anciãos?
— Pânico? Medo? Três vagas vazias no estacionamento do Santuário?
Ardiloso olhou para ela e a confusão na mente de Stephanie se desfez.
— Ah, Deus — exclamou ela.
— Ele está atrás do Livro — revelou Ardiloso. — Ele precisava do Cetro para matar Meritório e Morvena Corvo de forma a desmantelar o feitiço que protege o Livro. Ele não precisará forçar ninguém a fazer coisa alguma; tudo que ele terá de fazer é pedir. Ele estava atrás do Livro dos Nomes o tempo todo.
28
MASSACRE
A cidade de Dublin estava silenciosa quando eles chegaram ao Museu de Cera, como se ela estivesse prendendo a respiração. As estrelas estavam obscurecidas por um véu de nuvens sombrias, e enquanto eles saíam do Bentley e se aproximavam da entrada dos fundos, a chuva caía sem parar. Na rua além dos portões, carros espirravam água ao passarem pelas poças no asfalto, e o pedestre ocasional andava apressado, com a cabeça abaixada. Ardiloso moveu-se rápida mas cautelosamente até a porta aberta, e Stephanie e Tanith o seguiram.
Stephanie tinha esperado chegar em meio a uma batalha sangrenta, esperava ouvir os sons de luta. Mas o Museu de Cera estava silencioso. Ao caminhar por entre as estátuas de cera, Ardiloso diminuiu o passo e acabou parando completamente.
— Qual é o problema? — sussurrou Stephanie.
Ele virou a cabeça lentamente, espiando as trevas.
— Não quero alarmar ninguém, mas não estamos sozinhos.
Foi aí que eles apareceram, os Homens Ocos, surgindo das sombras, e o único aviso foi um leve ruído de algo se arrastando. Em um instante, eles estavam rodeados pelas coisas sem mente, coração ou alma.
Tanith se atirou no meio deles, com golpes de espada violentos e devastadores, e cada movimento clamava mais uma não-vida. Ardiloso estalou os dedos e um grupo de Homens Ocos estava subitamente em chamas. Stephanie recuou enquanto eles corriam cegamente pelo museu. O fogo consumiu a pele deles e provocou a queima do gás pútrido que eles tinham por dentro e, com uma explosão flamejante de calor, os Homens Ocos caíram.
Um deles evitou as chamas e deu o bote em Stephanie, que acertou um soco direto no rosto da criatura. O punho da menina afundou um pouco na cabeça de papel. O punho da criatura tentou acertar a menina, que se abaixou e então se moveu como tinha visto Ardiloso fazer, se chocando de quadril contra o monstro e girando, e o Homem Oco caiu no chão. Não foi um golpe gracioso e não foi um golpe bonito, mas funcionou. Enquanto o Homem Oco estava no chão, Stephanie agarrou seu pulso, pisou no peito da criatura e, com um barulho alto de algo se rasgando, arrancou o braço dele.
Enquanto o Homem Oco se esvaziava aos pés dela, Stephanie percebeu que tudo estava silencioso novamente. Olhou para Ardiloso e Tanith e percebeu que eles haviam observado enquanto ela lutava.
— Nada mau — disse Tanith, com uma sobrancelha levantada.
— Esse foi o último deles — avisou Ardiloso. — Agora vamos para o evento principal.
A porta secreta para o Santuário estava escancarada como uma ferida aberta. Um Talhador morto jazia logo depois da entrada. Stephanie hesitou por um momento, e então passou por cima do corpo e eles desceram pelos degraus.
A recepção do Santuário tinha testemunhado a maior parte do massacre. O chão estava coberto pelos mortos. Não havia ninguém ferido ali, não havia nenhum moribundo — havia apenas cadáveres. Alguns haviam sido retalhados, outros não tinham nenhuma marca e havia alguns lugares, espalhados pelo chão, onde restara apenas a poeira daqueles que tinham sido atingidos pelo Cetro. Stephanie tentou andar sem tocar os restos mortais, mas eles formavam pilhas tão grandes que era impossível evitá-los.
Ela passou pelo Administrador. O corpo estava curvado, os dedos estavam contraídos e congelados na morte. O rosto era uma máscara de agonia. Uma vítima da mão direita vermelha de Serpênteo.
Ardiloso foi até a porta à esquerda e espiou, para garantir que o corredor estava vazio. Tanith passou, encostada de costas na parede e fazendo um aceno de cabeça para ele. O detetive avançou, fez o mesmo aceno para ela, e assim eles continuaram se esgueirando enquanto penetravam o Santuário.
Sem chance de sermos surpreendidos novamente, pensou Stephanie com seus botões. Aquele era o único sinal que eles deram de que podiam realmente estar com medo.
Stephanie os seguiu, um pouco mais atrás. As palmas de suas mãos estavam escorregadias de suor e a boca estava seca. Tinha a sensação de que as próprias pernas não seriam capazes de sustentá-la por muito tempo. A menina começou a pensar nos pais, nos pais que a amavam tanto. Se ela morresse aqui, se morresse naquela noite, eles iriam perceber? O reflexo de Stephanie seguiria adiante, tocando sua farsa vazia, e eles gradualmente perceberiam que aquela coisa, aquela coisa que pensavam ser a filha deles, o afeto dela não era nem verdadeiro. Iam perceber que era tudo fingimento, mas ainda acreditariam que era ela. E teriam de viver o resto dos dias acreditando que a própria filha não os amava.
Stephanie não queria fazê-los passar por isso. Ela ia morrer, sabia que ia. Deveria dar meia-volta agora e correr, correr para longe. Aquilo não era assunto dela. Aquele não era o mundo dela. Era como Medonho tinha dito, quando eles se conheceram — Gordon já havia perdido a vida por causa daquelas bobagens. Por que ela estava tão empolgada em se juntar a ele?
Stephanie não o ouviu. Não ouviu os passos dele, nem quando ele estava tão perto que poderia ter esticado o braço e acariciado os cabelos dela. Não captou um leve movimento com o canto do olho e não percebeu a sombra ou o reflexo dele, porque, se ele não quisesse ser visto, não seria. Mas, quando ele se moveu atrás dela, ela sentiu a sua presença, sentiu o ar mover-se levemente e tocar a pele de suas mãos e ela não teve nem de virar a cabeça — ela simplesmente sabia.
Stephanie se atirou para frente e Ardiloso e Tanith olharam para trás enquanto a menina fazia um rolamento e se levantava.
O Talhador Branco estava ali, silencioso como um fantasma, mortal como uma praga.
Tanith virou para ver Valquíria completar o rolamento e viu o Talhador Branco de pé atrás dela.
— Valquíria — disse Tanith, mantendo a voz baixa e firme. — Fique atrás de mim.
Stephanie andou de costas e o Talhador tentou impedi-la.
— Vou segurá-lo — disse Tanith, sem tirar os olhos do adversário. — Vocês cuidam de Serpênteo.
Tanith desembainhou a espada e ouviu Stephanie e Ardiloso indo embora. O Talhador Branco puxou a foice que tinha presa às costas. Tanith deu um passo na direção dele.
— Eu ordenei que você distraísse os Homens Ocos, não foi? — disse ela. — Você era um dos Talhadores designados para nos ajudar.
Ele não respondeu. Nem se mexeu.
— Se servir de consolo — continuou Tanith —, lamento o que aconteceu com você. Mas era necessário. E, se isso servir de consolo, lamento o que vai acontecer com você. Mas isso também é necessário — Ele começou a girar a foice e ela levantou uma sobrancelha. — Venha encarar se você acha que é durão o suficiente.
Ele atacou e ela bloqueou e devolveu o ataque, com a espada cortando o ar. Ele se abaixou, recuando e bloqueando, girando enquanto a foice assoviou ao passar acima da cabeça de Tanith. A espada se chocou contra a lâmina do Talhador e depois contra o cabo da foice, e a lâmina dele se chocou contra a espada de Tanith e em seguida com a bainha laqueada que ela ainda levava na mão esquerda.
Tanith se abaixou sob a guarda dele, mantendo-se perto do Talhador, onde ela levava vantagem, pois ele não poderia manobrar a foice.
Os bloqueios dele eram rápidos como relâmpagos, mas ele estava na defensiva, e um dos ataques dela acabaria funcionando. A espada cortou o flanco do Talhador e ele cambaleou para trás, fora do alcance de Tanith. A guerreira olhou o sangue no uniforme branco dele e sorriu. Foi aí que o sangue começou a escurecer, e uma mancha negra encobriu a mancha vermelha.
O sorriso sumiu do rosto de Tanith e o sangramento do Talhador parou completamente.
Ela recuou. Havia uma porta atrás dela, e Tanith abriu-a com um movimento enquanto o Talhador avançou.
A sala para a qual Tanith recuou estava cheia de jaulas, e nessas jaulas, homens e mulheres estavam de pé ou sentados. Percebeu instantaneamente onde estava: na Prisão do Santuário. Aquelas pessoas nas jaulas eram os piores dos piores, criminosos tão doentios e grotescos que era preciso prendê-los ali, dentro do próprio Santuário. As jaulas neutralizavam seus poderes ao mesmo tempo que davam sustento aos seus corpos, mantendo-os nutridos e saudáveis. Isso significava que nem os Anciãos nem os Talhadores precisavam levar água e comida para os prisioneiros — logo, os criminosos tinham apenas uns aos outros como companhia. E quando a pessoa na jaula ao lado era tão maníaca e egoísta assim, isso era o próprio inferno.
O Talhador perseguiu Tanith pelos degraus que desciam para a prisão, e fagulhas voavam quando as lâminas se entrechocavam.
Os prisioneiros assistiam e, nos primeiros momentos, ficaram confusos. Os Talhadores eram os carcereiros deles, porém este Talhador vestia branco, e eles também reconheceram algo dentro dele, algo que o identificava como sendo um deles. Os prisioneiros começaram a gritar e torcer enquanto Tanith era forçada a recuar, com inimigos por todos os lados.
A espadachim bloqueou um ataque e o pulso ferido não resistiu. O Talhador aproveitou a chance, e sua lâmina riscou a barriga de Tanith, tirando sangue. Ela fez uma careta de dor e se retirou sob a onda de ataques absurdamente rápida do Talhador, mal conseguindo manter a própria defesa.
Os prisioneiros riam e zombavam, esticando os braços por entre as barras para tocar Tanith, puxando o cabelo dela e tentando arranhá-la. Um deles agarrou o casaco da guerreira, e ela girou para sair dele, jogando a espada e a bainha para o ar para liberar os braços, e recuperando os dois objetos antes que o Talhador pudesse aproveitar a chance.
Ele golpeou e ela bloqueou com a bainha e moveu a espada para cima, mas ele estava girando a foice, desviando o ataque e respondendo com outro ataque.
Tanith esquivou-se, se desequilibrou e caiu rolando para trás, enquanto o Talhador golpeava para baixo. A ponta da foice acertou o chão onde ela estava segundos antes.
Os prisioneiros uivaram com risadas quando Tanith virou e correu para a parede, com o Talhador logo atrás. Ela pulou na parede e continuou correndo até ficar de cabeça para baixo, e então cruzou o teto, trocando golpes com o Talhador abaixo dela. Ele foi forçado a andar de costas, a se defender e atacar sobre a própria cabeça.
O Talhador golpeou e errou, e Tanith percebeu a chance e aproveitou-a. Bateu na mão esquerda dele com a bainha e os dedos do guerreiro se abriram. Tanith se deixou cair do teto e deu um mortal, aterrissando de pé antes que ele pudesse se recuperar e arrancou a foice da mão dele. Ela chutou, o Talhador cambaleou para trás e ela o atravessou com a espada.
Os prisioneiros pararam de zombar. O Talhador deu um passo para trás.
Tanith golpeou com a foice, cravando a lâmina no peito dele. O soldado caiu de joelhos, e o sangue negro pingava no chão.
Tanith olhou para o Talhador e sentiu os olhos dele através do visor, encarando-a de volta. Então o peso dele se deslocou para os calcanhares, os ombros caíram e a cabeça se inclinou para a frente.
Os prisioneiros estavam murmurando agora, privados da chance de vê-la morrer. Tanith segurou o cabo da espada e puxou-a do corpo do Talhador, pegou a bainha do chão e correu para os degraus.
Ouviu um estrondo vindo de outra parte do Santuário, o Repositório, e uma sensação de urgência lhe emprestou mais velocidade. Assim que Tanith se aproximou do último degrau, entretanto, um dos prisioneiros riu.
Tanith deu meia-volta e, para seu horror, viu o Talhador Branco de pé, arrancando a foice do peito. Ele não pode ser derrotado, disse ela para si mesma. Assim como Serpênteo, ele não pode ser derrotado. Correu pelos últimos degraus até a porta e, assim que a alcançou, Tanith ficou sem ar.
Ela parou, franzindo o cenho, tentando se mover, mas o corpo não respondia. Olhou para baixo, para a ponta da foice que estava saindo do peito dela.
Tanith virou, xingando a si mesma, e viu o Talhador subindo os degraus até ela. Tinha sido um belo arremesso. Ela quase riu. O braço direito da guerreira estava dormente e ela deixou a espada cair por entre os dedos. O Talhador parou ao lado dela e segurou a foice. Ele a contornou, fazendo Tanith girar, olhando para ela como se estivesse observando sua dor, lembrando-se de como era senti-la.
Com uma torção das mãos do Talhador, Tanith foi forçada a se ajoelhar. Ela engasgou quando ele removeu a arma, e viu o próprio sangue, de um vermelho profundo, misturado com o sangue negro que já estava na lâmina. O corpo de Tanith estava se desligando. Ela não seria capaz de se defender.
O Talhador ergueu a foice. Tanith olhou para cima, pronta para morrer, e então percebeu que, quando ele a contornara, passara pela porta, e estava agora de pé no corredor.
Tanith se jogou para a frente, batendo a porta no rosto encoberto dele. Pressionou a mão contra a porta e sussurrou “Resistir”. O brilho se espalhou sobre a superfície quando o Talhador começou a bater na porta pelo outro lado.
Ela havia fracassado. Tanith tinha atrasado o Talhador, mas não o havia derrotado, e agora Serpênteo tinha seu cão de briga de volta.
Tanith tentou ficar de pé, mas seu corpo não agüentava mais. Ela se deixou cair no chão. Os prisioneiros assistiram de dentro das jaulas com olhos deliciados, e quando o sangue dela se espalhou pela túnica, eles começaram a sussurrar.
29
NO CORAÇÃO DE DUBLIN,
A MORTE
O Talhador Branco estava ali, silencioso como um fantasma, mortal como uma praga. — Valquíria — disse Tanith. — Fique atrás de mim. — Stephanie recuou até estar ao lado de Ardiloso.
— Vou segurá-lo — disse Tanith. — Vocês cuidam de Serpênteo. — Ela puxou a espada. O Talhador puxou a foice.
Stephanie sentiu Ardiloso tocar o braço dela e eles foram embora.
— Você terá de ir atrás do Cetro — sussurrou Ardiloso enquanto eles corriam pelo corredor. — Você pode chegar perto dele, eu não. Não é lá um grande plano, mas às vezes a simplicidade é a melhor opção.
O Repositório estava logo adiante. Eles reduziram o passo e Ardiloso segurou os dois braços de Stephanie e virou para ela.
— Stephanie, ouça o que vou lhe dizer. Se alguma coisa der errado, se perdermos o elemento surpresa, quero que você saia de lá. Não importa o que acontecer comigo, quero que você corra, entendeu?
Stephanie engoliu em seco.
— Entendi.
Ele hesitou.
— Serpênteo usou minha mulher e meu filho como arma contra mim. Para isso, ele teve de matá-los. Ele tomou a morte da minha família e a transformou em algo centralizado em mim. Valquíria, quando você morrer, será a sua morte, e somente sua. Deixe que ela venha até você nos seus próprios termos. — Stephanie assentiu. — Valquíria Caos — disse Ardiloso. — Conhecer você foi um prazer tremendo.
Ela olhou de volta para ele.
— E você também. — A menina sabia que, se ele tivesse lábio, estaria sorrindo.
Eles se esgueiraram até as portas. Elas já estavam abertas e Stephanie pôde ver Serpênteo, com o Cetro na mão, de costas para eles, dando passos lentos e deliberados em direção ao Livro dos Nomes. Tomo Sagaz estava assistindo, mas também estava de costas para a porta.
— Não estou vendo o Sr. Êxtase — sussurrou Stephanie e Ardiloso balançou a cabeça; ele também não o tinha visto.
Stephanie hesitou, mas entrou no Repositório em seguida e se esgueirou para a esquerda. Chegou a uma mesa carregada de artefatos e espiou a área em volta. Serpênteo havia parado de andar e, durante um momento, a menina achou que o feiticeiro sabia que ela estava ali, mas enquanto ela o observava, Serpênteo virou e caminhou de volta, balançando a cabeça.
— Ainda está forte demais — disse ele.
— E não ficará mais fraco que isso — revelou Tomo Sagaz. — Pensei que, com a morte de Meritório e Morvena, a barreira não seria um problema. Mas não posso retirar minha contribuição ao feitiço, não sem que os outros Anciãos se juntem a mim na cerimônia.
Serpênteo aproximou-se de Tomo, arqueando a sobrancelha.
— Então talvez não devêssemos tê-los matado.
— Eu não os matei — retrucou Tomo, na defensiva. — Você o fez.
Stephanie permaneceu abaixada ao se esgueirar de detrás da mesa. Serpênteo riu.
— Posso ter sido aquele que os transformou em pó, mas você preparou a armadilha, Sagaz, você os atraiu. Você os traiu.
Tomo virou na direção de Serpênteo, cutucando o ar entre eles com o indicador em riste.
— Não, eu não traí! A própria fraqueza e as próprias limitações deles os levaram à queda. Eles tinham todo esse poder e estavam satisfeitos em apenas ficar sentados ali e desperdiçá-lo.
— Até recentemente, eu nunca havia pensado em você como sendo ambicioso...
— Ninguém pensou. Tomo Sagaz, diziam eles, é um zero à esquerda. Ele não é o mais forte, não é o mais sábio... não é nada. É isso que eles diziam. Eu sei disso. Durante anos as pessoas me subestimaram. Chegou a hora de elas reconhecerem meu poder.
Stephanie ficou de quatro e começou a engatinhar. Estava nas sombras e eles não estavam olhando na direção dela, mas se qualquer um deles virasse, havia o risco de a verem. Stephanie não estava a fim de correr nenhum risco.
— Vou fazê-los pagar — estava dizendo Tomo. — Todos que me questionaram. As ruas ficarão vermelhas com o sangue deles.
— Que dramático — disse Serpênteo e levantou a mão. Stephanie viu o Livro se erguer do pedestal e flutuar por um momento, e em seguida o feiticeiro grunhiu impacientemente e o deixou cair de novo.
— Eu já lhe disse, isso não vai funcionar! — exclamou Tomo. — O que conta é o quão próximo de conseguí-lo você está. Não precisa ser uma proximidade física, não é uma barreira física. É uma barreira mental.
Stephanie prendeu a respiração. Estava atrás da coluna que ficava ao lado deles. A voz de Serpênteo estava tão perto que ele parecia estar falando ao pé do ouvido da menina.
— Então com você, o último Ancião, ainda vivo, a barreira não foi enfraquecida o suficiente para me deixar passar, estou correto?
— Sim, está, mas isso não é culpa minha! Eu fiz o que pude!
— Sim, você fez, você fez. E agora há mais uma coisa que você pode fazer para ajudar a solucionar este probleminha.
— Do que você está falando? — indagou Tomo e seu tom de voz mudou de repente, tornando-se assustado. — O que você está fazendo? Aponte essa coisa para outro lado, Serpênteo. Estou avisando, aponte essa...
Houve um clarão negro e silêncio.
Depois de um momento, Stephanie ouviu os passos de Serpênteo se distanciando novamente e deu uma olhada. Ele estava andando lentamente, concentrando-se no Livro, de costas para ela. Esta era a única chance que ela teria.
Stephanie se esgueirou de detrás da coluna, ignorando a nova pilha de pó que estava a seus pés. Não havia como se aproximar mais sem se denunciar. Serpênteo poderia ouvi-la, senti-la, seja lá o que fosse. Mas ele estava segurando o Cetro de uma maneira tão frouxa...
Stephanie estreitou os olhos e seguiu adiante.
Serpênteo tinha ouvido a menina e estava virando, mas ela não se importou. O Cetro estava subindo, o cristal negro começando a brilhar. A menina flexionou os dedos e em seguida estendeu a mão, expondo a palma da mão e empurrando o ar, e o espaço ao redor da mão dela ondulou e o Cetro voou da mão de Serpênteo, voou para longe dos dois e acertou a parede oposta.
Serpênteo sibilou de raiva e virou. Eles ouviram o Cetro começar a cantar quando Ardiloso entrou correndo. O detetive mergulhou no ar, e o espaço ao redor dele tremulou brilhante enquanto ele disparava para frente. Ardiloso cruzou a distância num piscar de olhos, se chocando com Serpênteo, que foi carregado pelo ar.
Eles se chocaram contra o pedestal, que virou, e o Livro caiu enquanto os dois inimigos se esparramaram no chão. Ardiloso foi o primeiro a se levantar, e ele puxou Serpênteo para cima, jogou-o contra uma coluna e acertou um soco que jogou a cabeça do feiticeiro para trás.
Serpênteo acatou, mas Ardiloso agarrou o pulso dele e passou por debaixo do braço. O detetive virou e se torceu e Serpênteo gritou de dor quando o alto som de algo se quebrando ecoou pela câmara.
Serpênteo tentou coletar o vapor púrpura na mão, mas Ardiloso usou a própria mão para golpear o pescoço do feiticeiro. Serpênteo se engasgou e cambaleou para trás, e Ardiloso lhe deu uma rasteira.
— Você nunca lutou porcaria nenhuma — comentou Ardiloso, de pé sobre o inimigo. — Mas também, nunca precisou disso, não é? Não enquanto teve capangas para lutar por você. Onde estão seus capangas agora, Nefasto?
— Não preciso deles — murmurou Serpênteo. — Não preciso de ninguém. Vou esmagá-lo sozinho. Moer seus ossos até eles virarem pó.
Ardiloso inclinou a cabeça para o lado.
— A não ser que você tenha um exército escondido nesse seu casaco chique, eu, sinceramente, duvido muito disso.
Serpênteo se levantou e atacou, mas Ardiloso acertou-lhe um chute e bateu nas costas dele com a mão fechada, e Serpênteo caiu de joelhos.
Stephanie tinha de chegar ao Cetro antes que Serpênteo se recuperasse. Ela estava se levantando do chão quando percebeu que o Livro dos Nomes estava caído e aberto bem ao lado dela. A menina deu uma olhada nas páginas e as colunas de nomes começaram a se reorganizar diante dos olhos dela. Stephanie viu o próprio nome escrito ali, mas ergueu os olhos ao ouvir Ardiloso grunhir.
Serpênteo estava de joelhos, mas seus lábios estavam se movendo, e a parede atrás de Ardiloso ganhou vida com mãos que se estenderam até Ardiloso e o agarraram. Ardiloso foi puxado para trás e Serpênteo se levantou. Houve uma série de estalos surdos enquanto os ossos quebrados de Serpênteo se consertavam e se realinhavam.
— Onde estão seus comentários inteligentes agora, detetive?
Ardiloso lutou contra a força de uma dúzia de mãos.
— Você tem orelhas grandes — conseguiu dizer, antes de ser ainda mais puxado, para dentro da parede, e então desapareceu.
Serpênteo olhou para o Cetro e viu como Stephanie estava perto de alcançá-lo.
Ele abriu a mão e um fino tentáculo púrpura disparou na direção do Cetro. O feiticeiro puxou o braço para trás e o Cetro voou do chão, mas Stephanie deu o bote e conseguiu agarrá-lo.
A menina foi arrancada do chão, mas segurou com força e o tentáculo se partiu, virando vapor, e Stephanie caiu no chão. Ela ouviu um estrondo e, ao olhar ao redor, viu uma mesa voando direto na sua direção. Stephanie tentou sair do caminho do móvel, mas não foi rápida suficiente.
A mesa atingiu Stephanie e ela gritou, soltou o Cetro e agarrou a perna quebrada. A menina fechou os olhos para conter as lágrimas de dor, e quando os abriu novamente, o Sr. Êxtase estava entrando na sala.
— Por onde você andou? — vociferou Serpênteo.
— Encontrei contratempos — desconversou o Sr. Êxtase. — Mas você parece ter ido muito bem sem mim.
Serpênteo estreitou os olhos.
— De fato. Ainda assim, há mais um adversário a ser eliminado.
O Sr. Êxtase olhou para Stephanie.
— Você vai matá-la?
— Eu? Não. Você vai.
— Perdão?
— Se quiser colher as recompensas desta noite, terá de sujar as mãos com um pouco de sangue.
— Você quer que eu mate uma criança desarmada? — perguntou o Sr. Êxtase, em dúvida.
— Considere isso um teste do seu comprometimento para com nossos mestres e senhores. Você não tem um problema com isso, tem?
O Sr. Êxtase olhou para Serpênteo friamente.
— Você tem uma arma que eu possa usar, ou simplesmente quer que eu a espanque até a morte com um pedaço de madeira?
Serpênteo tirou uma adaga do paletó e jogou-a para o comparsa. O Sr. Êxtase apanhou a adaga no ar e segurou-a, verificando o peso. Stephanie sentiu a própria garganta ficar seca.
O Sr. Êxtase olhou para a menina, mas não disse nada. Simplesmente suspirou e atirou a adaga, e Stephanie fez uma careta e virou o rosto...
...e ouviu Serpênteo rindo.
Ela olhou para trás. A adaga não havia tocado a menina. Não tinha nem chegado perto dela. A adaga estava na mão de Serpênteo. Ele a pegou antes que pudesse ter perfurado seu cintilante olho esquerdo.
— Imaginei que isso fosse acontecer — comentou Serpênteo.
O Sr. Êxtase se atirou sobre Serpênteo, mas o feiticeiro arrancou fora a luva e ergueu a mão direita vermelha, e o Sr. Êxtase desabou. Serpênteo ficou ouvindo o homem gritar por alguns instantes antes de abaixar a mão, e o Sr. Êxtase ofegou.
— Sem dúvida, você quer me matar — disse Serpênteo enquanto se aproximava. — Sem dúvida, você quer arrancar minhas pernas e meus braços e, com a sua força lendária, sei que você poderia fazê-lo sem sequer começar a suar. Mas, me responda uma coisa, Sr. Êxtase, para que serve uma força lendária quando não se pode chegar perto suficiente para usá-la?
O Sr. Êxtase tentou se levantar, mas os joelhos não agüentaram e ele caiu no chão novamente.
— Estou curioso — continuou Serpênteo. — Por que o fingimento? Por que ter tanto trabalho, por que se colocar nesta posição? Por que você simplesmente não ficou com o detetive?
O Sr. Êxtase conseguiu balançar a cabeça.
— Talvez não tivéssemos conseguido impedi-lo — explicou ele. — Conheço você, Serpênteo... sempre tem planos de reserva, para o caso de algo dar errado. Você era muito... perigoso... muito imprevisível. Era necessário que você adquirisse o Cetro.
Serpênteo sorriu.
— E por quê?
O Sr. Êxtase refletiu aquele sorriso com um sorriso próprio, porém pálido e enfraquecido.
— Porque, uma vez que você estivesse com o Cetro, eu poderia prever suas ações.
— Então você previu a minha invulnerabilidade? — Serpênteo riu. — Ah, parabéns.
— Ninguém é invulnerável — sussurrou o Sr. Êxtase
— Sim, bem — retrucou Serpênteo, dando de ombros. — Você certamente não é.
Stephanie assistiu horrorizada quando Serpênteo novamente apontou a mão direita para o Sr. Êxtase, que se contorceu em agonia. Os gritos dele alcançaram novos extremos, e bem quando parecia que ele não poderia agüentar mais, Serpênteo o levantou e, com as mãos encostadas no grande homem, materializou o vapor púrpura nos punhos. O Sr. Êxtase foi atirado para trás pelo ar, se chocando contra um grupo de estantes no lado oposto da câmara. Ele não se levantou.
Serpênteo virou de volta para Stephanie.
— Peço desculpas pela interrupção — disse ele enquanto levantava a menina. As mãos dele seguravam as lapelas do casaco e ele a ergueu até que os pés dela não estavam mais tocando o chão. A perna direita de Stephanie pendia inútil, e aquela dor era tudo que ela sentia. — Como você fez isso? Como conseguiu chegar tão perto sem que o Cetro me alertasse? Algum feitiço que não conheço?
Stephanie não respondeu.
— Srta. Caos, eu sei que está tentando esconder, mas posso ver o medo nos seus olhos. Você não quer morrer hoje, quer? Claro que não quer. Você tem a vida inteira pela frente. Se ao menos tivesse se mantido longe disso tudo, se tivesse deixado a morte do seu tio em paz, não estaria aqui agora.
“Seu tio era um homem muito teimoso. Se ele simplesmente tivesse me dado a chave quando pedi, você não estaria nesta situação desagradável. Ele atrasou meus planos, veja bem, provocando muitos inconvenientes e aborrecimentos desnecessários. Muita gente está morta agora por causa dele.”
O rosto de Stephanie se contorceu.
— Não ouse culpar meu tio pelas pessoas que você matou!
— Eu não queria isto. Eu não queria um conflito. Só queria eliminar os Anciãos e levar o Livro. Você percebe o quão simples isso teria sido? Em vez disso, tive de atravessar um rio de cadáveres. Todas essas mortes são responsabilidade do seu tio. — O ódio de Stephanie tornou-se uma coisa fria em sua alma.
— Mas você não precisa se juntar a eles, Srta. Caos. Pode sobreviver a isto. Você pode viver. Vejo algo em você. Acho que você gostaria do novo mundo que está para chegar.
— Eu não apostaria nisso — disse Stephanie em voz baixa.
Serpênteo sorriu pacientemente e se inclinou, ficando com o rosto perto do dela.
— Você poderá sobreviver... se me disser como chegou tão perto sem que o Cetro me alertasse.
Sem ter mais nenhuma arma, Stephanie cuspiu nele. Serpênteo suspirou e jogou-a contra uma coluna. Stephanie atingiu o obstáculo, o corpo dela se torceu, e a menina caiu de costas no chão.
Stephanie não conseguia focar os olhos. A dor estava distante. Ela ouvia a voz de Serpênteo como se houvesse uma parede entre eles.
— Não importa. Estou prestes a transformar a população inteira deste planeta em escravos, então não haverá mais segredos. Não haverá mais magia escondida de mim. E quando os Sem Rosto retornarem, este mundo será refeito numa terra de trevas esplêndidas.
Serpênteo passou por Stephanie, uma vaga forma no campo de visão periférico da menina. Ela precisava se levantar. Tinha de sair daquele torpor. A dor. A dor da perna quebrada, Stephanie precisava senti-la. Não era nada mais que uma sensação, agora — tinha de deixar a dor inundá-la.
Stephanie se concentrou na perna. Estava latejando, com pontadas de dor, e a cada pico de sensação, a mente de Stephanie acordava um pouco mais. Então a dor veio até ela, invadiu a menina com força total, e ela teve de morder o lábio para não gritar.
Stephanie ergueu os olhos. Serpênteo estava se aproximando do Livro. A menina segurou a borda de uma mesa e se levantou, se apoiando na perna boa. Pegou a primeira coisa que viu — um frasco de vidro que continha um líquido verde — e jogou em Serpênteo. O vidro acertou as costas do feiticeiro, e o líquido transformou-se em vapor e se dissipou no ar. Ele deu meia-volta, irritado.
— Você, minha cara, provou ser encrenqueira demais para o seu próprio bem. — Serpênteo ergueu a mão direita vermelha.
Ele ergueu a mão direita vermelha e, de algum lugar atrás dela, Stephanie ouviu o Cetro cantar novamente. Foi então que Ardiloso caiu através do teto, aterrissando numa pilha de objetos ao lado de Serpênteo. O detetive olhou em volta.
— Ah — disse ele. — Voltei.
— Você voltou — retrucou Serpênteo.
Ardiloso ergueu os olhos e viu o feiticeiro.
Serpênteo acertou um chute no flanco de Ardiloso, que grunhiu em resposta. Ele tentou se levantar, mas Serpênteo agarrou o crânio do detetive e deu uma joelhada no lado da cabeça de Ardiloso, que se esparramou de costas no chão.
Serpênteo olhou para Stephanie e em seguida para o chão atrás dela. A menina virou e viu o Cetro. Ela mergulhou para ele, mas um tentáculo púrpura se enrolou na cintura dela e, ao ser puxada para trás, Stephanie se apoiou na perna quebrada. Ela gritou com a dor dilacerante.
Serpênteo chicoteou o tentáculo, capturando o Cetro, que veio parar em sua mão esquerda com um puxão. Ele girou a arma final na mão, e o cristal disparou um relâmpago negro na direção de Ardiloso. O detetive mergulhou enquanto uma seção inteira da parede atrás dele se transformou em pó. Ardiloso sacou a arma e atirou, acertando Serpênteo no peito.
— Ainda insistindo nesse seu brinquedo — comentou Serpênteo, divertido e ileso. — Que pitoresco.
Ardiloso circulava o feiticeiro. Serpênteo segurava o Cetro abaixado, ao lado do corpo.
— Você será derrotado — afirmou Ardiloso. — Você sempre foi derrotado.
— Ah, meu velho inimigo, mas desta vez será diferente. Aqueles dias acabaram. Quem ainda pode se erguer contra mim? Quem ainda resta? Você se lembra de quando ainda era um homem? Um homem de verdade, quero dizer, não essa zombaria que vejo diante de mim. Você se lembra de como era? Você tinha um exército a seu lado, tinha pessoas dispostas a lutar e morrer pela sua causa. Nós queríamos trazer os Sem Rosto de volta, para idolatrá-los como os deuses que realmente são. Você queria mantê-los longe, para que esta infestação de humanidade, esta celebração do mundano pudesse viver e prosperar. Bem, eles viveram e prosperaram, e agora o tempo deles acabou.
O dedo de Ardiloso apertou o gatilho. O sangue negro jorrou do peito de Serpênteo, e a ferida se curou instantaneamente. O feiticeiro riu.
— Você me causou tantos problemas ao longo dos anos, detetive, é quase uma pena que eu tenha de acabar com isso.
Ardiloso inclinou a cabeça para o lado.
— Você está se rendendo?
— Vou sentir falta disto — afirmou Serpênteo. — Se for mais fácil para você, pode pensar no seu falecimento iminente como uma coisa boa. Não acredito que você vá gostar muito do mundo depois que meus amos e senhores o recriarem.
— Então, como vai me matar? — indagou Ardiloso, largando a arma e estendendo os braços. — Com seu brinquedo? Ou com um desses truques novos que você aprendeu?
Serpênteo sorriu.
— Eu andei expandindo meu repertório. Que gentil da sua parte notar.
— E vejo que andou brincando com necromancia novamente.
— De fato. Meu próprio Talhador de estimação. Todos os lares deveriam ter um.
— É um camarada difícil de derrubar — comentou Ardiloso. — Tentei tudo que sei; ele simplesmente se levantava de novo.
Serpênteo riu mais uma vez.
— Há um velho ditado entre os necromantes: não se pode matar aquilo que já está morto.
Ardiloso inclinou a cabeça para o lado novamente.
— Ele é um zumbi?
— Ah, não, eu não me associaria com aquelas coisas desprezíveis. Ele pode reparar-se, reabastecer-se, curar-se. Um processo difícil de dominar, mas sou um sujeito muito habilidoso.
— É claro — disse Ardiloso, com um tom diferente na voz. — O equipamento médico no armazém. O Talhador foi uma cobaia, para ver se o processo funcionaria. Então você o fez em si mesmo.
— Ah, o grande detetive finalmente descobre alguma coisa.
— Deixando os penduricalhos e frescuras de lado, Nefasto, ele não é nada além de um zumbi. Assim como você.
Serpênteo balançou a cabeça.
— Suas últimas palavras são insultos patéticos? Estava esperando algo melhor. Algo profundo, talvez. Quem sabe um poema? — O feiticeiro ergueu o Cetro. — O mundo será um lugar um pouco menos estranho sem você, eu queria apenas que soubesse disso.
Stephanie gritou o nome do detetive enquanto Ardiloso mergulhou. Serpênteo riu e o Cetro emitiu o relâmpago negro, mas Ardiloso tinha agarrado o Livro dos Nomes e o usou como escudo.
O raio de trevas atingiu o Livro, que desapareceu numa nuvem de pó.
— NÃO! — berrou Serpênteo. — NÃO!
Stephanie olhou o Livro que os Anciãos não conseguiram destruir escorrer por entre os dedos de Ardiloso. O detetive disparou pela nuvem e se chocou contra Serpênteo. O Cetro caiu e rolou para longe. As mãos do feiticeiro se fecharam ao redor do pescoço de Ardiloso, forçando a cabeça do detetive para trás.
— Você arruinou tudo! — sibilou Serpênteo. — Você arruinou tudo, sua criatura patética!
Ardiloso acertou um soco na cara de Serpênteo e em seguida afastou as mãos do feiticeiro com golpes rápidos. Então o detetive avançou com um jab que balançou a cabeça do inimigo. Serpênteo contra-atacou com o vapor púrpura e Ardiloso foi jogado para trás.
O detetive caiu de lado e rolou, ficando de joelhos enquanto Serpênteo usava um tentáculo púrpura para recuperar o Cetro. O tentáculo se moveu velozmente com o Cetro, mas Ardiloso empurrou o ar, quebrando o tentáculo, e derrubou a arma novamente.
Ardiloso formou uma bola de fogo na mão e jogou-a em Serpênteo, que mal teve tempo de desviá-la. As chamas explodiram na parede atrás do feiticeiro, que sibilou novamente, cambaleando para frente antes de ser atirado para trás por uma ondulação do ar ao redor dele. Serpênteo se chocou contra a parede e ficou lá, bem acima do chão, preso pela mão estendida de Ardiloso, que estava no lado oposto do aposento.
— Vou destruir você — rosnou o feiticeiro, com os olhos cor de esmeralda faiscando de ódio. — Já destruí você uma vez, e vou destruir novamente!
Ele lutou para erguer o braço direito. Ardiloso pressionou com mais força, utilizando as últimas reservas de força. Mas Serpênteo se recusou a ser derrotado. Os dedos de sua mão vermelha apontaram para Ardiloso.
— Morra — sussurrou Serpênteo.
Ardiloso inclinou a cabeça um pouco para a direita e não caiu. O rosto de Serpênteo se contorceu de raiva.
— Morra! — gritou ele.
Ardiloso permaneceu de pé.
— Parece que existe algo que essa sua mão não pode matar, afinal de contas.
Um vulto entrou pela porta. Serpênteo deu uma risada por entre cuspe e dentes trincados quando o Talhador Branco surgiu.
— Então você é imune ao meu poder... Não importa. Aquela foice dele vai fatiar seus ossos. Não será nada além de lixo quando ele terminar com você. Talhador, ataque!
Mas o Talhador permaneceu parado onde estava, e a confiança de Serpênteo começou a se esvair.
— O que está fazendo? Mate-o!
O Talhador Branco esperou mais um momento, e então foi embora. Serpênteo berrou de raiva.
— Você perdeu, Nefasto — afirmou Ardiloso. — Até o seu capanga o abandonou. Até ele reconheceu a sua derrota. Você está preso por assassinato, tentativa de assassinato, conspiração para cometer assassinato e, eu não sei, possivelmente por jogar lixo no chão.
Serpênteo cuspiu.
— Você jamais vai me derrotar. Eu sempre encontrarei uma maneira de fazer você sofrer. — E então os olhos verdes se dirigiram para Stephanie, ainda deitada no chão.
— Não faça isso — avisou Ardiloso, mas Serpênteo já estava movendo a mão direita na direção da menina. — Serpênteo, não!
Stephanie gritou quando uma dor mais intensa que qualquer coisa que já havia sentido flagelou seu corpo. Serpênteo torceu os dedos e a dor se intensificou, transformando o grito de Stephanie num urro, transformando o urro em agonia silenciosa. Ela se curvou numa bola, sentindo algo frio que se espalhava a partir da barriga, uma dormência bem-vinda que cancelava a dor, que se moveu pelos braços e pernas e então envolveu seu coração e vazou para a mente. E agora não havia nada, agora tudo eram apenas imagens vagas, de Serpênteo e Ardiloso, uma voz distante, Ardiloso chamando a menina de volta, mas essas coisas também estavam desaparecendo. A dor não existia mais. Nem os sons. As pálpebras de Stephanie piscaram. Serpênteo sempre sorrindo. Ardiloso, estendendo a mão livre para o outro lado, e algo se movendo pelo ar, tudo se movendo tão, tão lentamente.
O Cetro, era o Cetro, e então ele estava na mão enluvada de Ardiloso, e os dedos dele estavam se fechando ao redor da arma final com força. Ele estava erguendo o braço e apontando, apontando o Cetro para Serpênteo, e o pequeno cristal começou a brilhar. Ele emitiu uma escuridão, uma escuridão tão bela, e então o ar estalou.
O frio tinha envolvido Stephanie quase completamente, a dormência tinha se espalhado pelo corpo inteiro, e os últimos pedaços que faziam da menina quem ela era estavam gradualmente se desfazendo. Ela não se importava. Não se importava nem um pouco. Deixe-os ir. Ela não tinha nenhum problema no mundo.
O rosto sorridente de Serpênteo. Os olhos dele. O sorriso. Todos aqueles dentes. A pele dele, enrugada pelo prazer selvagem. E agora aquela pele estava mudando, estava secando, rachando e o sorriso estava desaparecendo, e os olhos cor de esmeralda estavam perdendo o brilho, se enevoando, e Serpênteo se transformou em pó, que caiu para o chão.
E então houve um tilintar, um repicar de sinos nos ouvidos dela, e os dedos de Stephanie começaram a formigar e o calor voltou a preenchê-la e o coração estava batendo de novo e os pulmões da menina sugaram ar e Stephanie ofegou.
Ardiloso correu até onde a menina estava caída e se ajoelhou ao lado dela.
— Você está bem? — perguntou ele, mas tudo que ela podia fazer era tremer de frio. A perna de Stephanie estava torcida e ela sibilou de dor, mas aquela era uma dor suportável, era uma dor boa.
— Venha — disse Ardiloso, tomando o braço dela gentilmente. — Vamos tirar você daqui.
Stephanie se apoiou no detetive e ele carregou-a para fora da câmara, para o corredor. Passaram pela Prisão no momento em que a porta se abriu e Tanith caiu para fora. Ela acertou o chão e grunhiu. Stephanie olhou para baixo, para todo aquele sangue.
— Tanith?
Tanith levantou a cabeça.
— Ah, ótimo — murmurou ela. — Você está viva.
Ardiloso ajudou Tanith a se levantar, puxando-a cuidadosamente e, com um braço segurando cada uma das duas, guiou ambas até a entrada. O trio subiu as escadas lentamente e atravessou o Museu de Cera. A chuva tinha parado e o chão estava molhado quando eles saíram no ar noturno.
Porcelana Tristeza estava de pé ao lado do próprio carro, esperando por eles. Quando eles estavam próximos o suficiente para que Stephanie pudesse ver os delicados brincos que Porcelana estava usando, a mulher falou:
— Vocês todos já tiveram dias melhores.
— Sua ajuda teria sido muito útil — resmungou Ardiloso quando eles pararam.
Porcelana encolheu os ombros esguios.
— Eu sabia que você ia conseguir sem mim. Tive fé em você. E Serpênteo?
— Virou pó — respondeu Ardiloso. — Ele fazia planos demais, maquinações demais. Mais cedo ou mais tarde, eles iriam se cancelar mutuamente. Esse sempre foi o problema dele.
— Como conseguiu?
— Ele queria a imortalidade, então escolheu a morte nos próprios termos; uma morte viva.
Porcelana sorriu.
— Ahá. E como o Cetro só pode ser brandido quando o dono anterior está morto, ou, nesse caso, quando o dono é um morto-vivo...
— Eu tomei o Cetro e o usei nele. — Ardiloso ergueu o Cetro. — Alguma coisa aconteceu, porém. Não há mais poder algum nele.
Porcelana pegou o Cetro da mão de Ardiloso, examinando o objeto por todos os lados.
— Isto era movido pelo ódio de Serpênteo. Obviamente, usar o Cetro contra o próprio Serpênteo fez que ele se alimentasse de si mesmo. Parabéns, Ardiloso, você conseguiu quebrar a arma final. Não é nada além de um enfeite, agora.
— Um enfeite que eu gostaria de ter de volta — comentou ele, estendendo a mão. Ela sorriu, virando a cabeça levemente, de modo a olhar para Ardiloso com o canto do olho.
— Eu o comprarei de você — propôs ela.
— Para que o quer? — questionou ele. — Não vale mais nada.
— Razões sentimentais. Alem do mais, você sabe bem que sou uma colecionadora ávida.
Ardiloso suspirou.
— Está bem, fique com ele.
Ela deu aquele sorriso de novo.
— Obrigada. Ah, e o Livro?
— Foi destruído.
— Mas isso é típico de você: destruir o indestrutível. Você tem uma bela fome de destruição, não é?
— Porcelana, estes ossos estão cansados...
— Então vou deixá-los.
— Êxtase ainda está lá dentro — avisou Stephanie. — Acho que ele estava trabalhando contra Serpênteo o tempo todo. Não sei se ainda está vivo, porém.
— Aquele meu irmão é bem resistente. Já tentei matá-lo três vezes e ele simplesmente não morre. — Porcelana entrou no carro e olhou para eles, pela janela aberta. — Ah, aliás, para vocês três: parabéns por salvar o mundo.
Deu um lindo sorriso para o trio, que ficou olhando enquanto ela foi embora. Os três permaneceram ali por algum tempo. O céu estava começando a clarear, os primeiros raios do sol da manhã invadindo as trevas.
— Sabem de uma coisa — disse Tanith, muito fraca —, eu ainda estou com um buraco gigantesco nas minhas costas.
— Me desculpe — disse Ardiloso e ajudou as duas a entrarem no Bentley.
30
UM FINAL, UM COMEÇO
Em algum lugar de Haggard, um cachorro estava latindo. Em algum lugar um motorista tocou a buzina e em algum lugar as pessoas riam. Era uma noite de sexta-feira e a música entrava pela janela aberta de Stephanie, vinda dos bares e pubs da Main Street, pedaços de canções pegando carona na brisa noturna.
Stephanie estava sentada numa cadeira giratória, com os pés na cama. Ardiloso tinha levado a menina até um amigo dele, um velho muito mal-humorado que consertou a perna quebrada da menina em menos de uma hora. A perna ainda estava enrijecida e ela não poderia andar se apoiando nela, mas os hematomas tinham sumido, e depois de mais alguns dias, ficaria como se jamais tivesse sido quebrada.
Ela não se aborreceu com o período de recuperação que a aconselharam a respeitar. Depois da semana que acabara de ter, uma semana na qual Stephanie viu maravilhas e magia, morte e destruição, a menina realmente precisava de um descanso.
Ardiloso Cortês sentou-se no parapeito da janela e contou a Stephanie o que estava acontecendo no mundo que existia fora do quarto dela. O Talhador Branco havia desaparecido, e eles ainda não sabiam por quê, ou mesmo como ele havia ignorado o comando final do mestre. Ardiloso suspeitava que ele estava obedecendo a ordens de outra pessoa, mas ainda não tinha idéia de quem poderia ser esse mestre misterioso. Os aliados de Serpênteo haviam ressurgido e atacado, e então desapareceram novamente quando as notícias da morte do feiticeiro chegaram até eles. O grande plano de Serpênteo pode ter falhado, mas, por causa dele, muitos dos Talhadores haviam sido dizimados, e os poucos que restaram se esforçavam para cumprir todas as funções necessárias.
— Como está Tanith? — indagou Stephanie. — Ela vai ficar bem?
— Ela tem sorte de estar viva. O ferimento que recebeu era muito sério, mas ela é forte. Vai sobreviver. Vou levar você para vê-la quando estiver mais descansada.
— E Medonho? Alguma mudança?
— Temo que não. Eles estão mantendo Medonho em segurança, mas... não sabemos por quanto tempo ainda ficará daquele jeito. Felizmente, para ele o tempo passará num piscar de olhos. O resto de nós terá de esperar. A boa notícia é que agora o Santuário terá uma nova e interessante adição para o Salão de Estátuas deles.
— Eles têm mesmo um Salão de Estátuas?
— Bem, não. Mas agora que têm uma estátua, talvez eles criem um.
— O que vão fazer quanto ao Conselho dos Anciãos?
— Meritório era um bom homem e o Grão-Mago mais poderoso de que se teve notícia em muito tempo. Os outros Conselhos da Europa estão preocupados com quem preencherá o vácuo agora que ele se foi. Os americanos estão oferecendo apoio, os japoneses estão enviando representantes para nos ajudar a recuperar o controle, mas...
— Parece que um monte de gente está entrando em pânico.
— E eles têm esse direito. Nossos sistemas de poder, nossos sistemas de autogoverno são delicados. Se nós cairmos, outros seguirão. Precisamos de um líder forte.
— Por que você não se candidata?
Ardiloso riu.
— Porque não sou muito popular, não sou muito confiável e já tenho um emprego. Sou detetive, lembra?
Stephanie deu de ombros, da maneira particular dela.
— Vagamente.
Outro trecho de música do pub vagou janela adentro, e Stephanie pensou no mundo em que havia crescido, e como era diferente do mundo ao qual tinha sido apresentada e, ao mesmo tempo, como era semelhante. Havia alegria e felicidade em ambos, assim como havia tristeza e horror. Havia bem e mal e tudo que existia no meio, e essas qualidades pareciam ser igualmente compartilhadas nos mundos da magia e do mundano. Aquela era a vida dela, agora. Stephanie não poderia imaginar viver sem um dos dois.
— Como você está? — perguntou Ardiloso, com um tom de voz gentil.
— Eu? Estou bem.
— É mesmo? Nenhum pesadelo?
— Talvez um ou dois — admitiu ela.
— Eles sempre estarão lá, nos lembrando de onde cometemos erros. Se prestar atenção nos seus sonhos ruins, eles poderão ajudá-la.
— Vou me esforçar para lembrar disso da próxima vez que eu dormir.
— Ótimo — disse Ardiloso. — De qualquer maneira, fique bem logo. Temos mistérios a resolver, aventuras a empreender e vou precisar da minha parceira e aluna ao meu lado.
— Aluna?
Ele deu de ombros.
— As coisas vão ficar muito mais difíceis daqui para frente, e preciso de alguém que possa lutar ao meu lado. Há algo em você, Valquíria. Não sei bem o que é. Eu olho para você e...
— E se lembra de si mesmo quando tinha minha idade?
— Hum? Ah, não, o que eu ia dizer era que há algo em você que é realmente irritante, e você nunca faz o que eu mando, e às vezes eu questiono sua inteligência, mas mesmo assim vou treiná-la, porque gosto de ter alguém me seguindo por aí como se fosse um cachorrinho. Faz com que eu me sinta bem comigo mesmo.
Stephanie virou os olhos.
— Você é tão idiota.
— Não fique com ciúmes da minha genialidade.
— Você poderia ser um pouco menos apaixonado por si mesmo?
— Se ao menos isso fosse possível.
— Para um cara sem órgãos internos, você tem um ego bem grande.
— E para uma garota que não pode nem ficar de pé sem cair, você é bem crítica.
— Minha perna vai ficar boa.
— E o meu ego vai florescer. Que dupla nós formamos.
Ela teve de rir.
— Vamos, vá embora. Minha mãe logo vai subir para ver como estou.
— Antes que eu me vá...
— Sim?
— Não vai me mostrar aquilo que andou praticando? Você está morrendo de vontade de se mostrar desde que eu bati naquela janela.
Stephanie olhou para ele com uma sobrancelha arqueada, mas ele estava certo e sabia disso. A outra coisa boa nesse período de recuperação foi que ela teve todo o tempo no mundo para desenvolver os poderes e não desperdiçou nenhum dos dias que já haviam se passado.
A menina estalou os dedos, invocando uma pequena chama à palma da mão. Observou o fogo tremeluzir e dançar, e então olhou para Ardiloso e sorriu.
— Mágica — disse ele.
Derek Landy
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