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O condutor do trenó tentou mais uma vez levantar o cavalo caído na neve, à beira da estrada. Puxava violentamente a coleira e ao mesmo tempo encorajava-o com a voz.
Por momentos, supôs que os seus esforços seriam coroados de êxito. O cavalo, meio erguido, retesou os músculos, deu tremendo puxão e depois quando os:
Hi!... oh!... ih!» se intensificaram, se tornaram quase triunfantes, recaiu, relinchando. Então, o condutor voltou-se para os dois viajantes, que o haviam auxiliado em todas as tentativas, e declarou com a requintada delicadeza dos suíços que conquista imediatamente os turistas estrangeiros:
- Meus senhores, sinto-me desolado, mas com certeza têm de prosseguir a pé.
Um dos viajantes esboçou um gesto de mau humor. Depois deu alguns passos e, com a testa franzida, examinou atentamente o trenó, como se procurasse solução prática para a desagradável situação.
Era bastante alto, mas tão admiravelmente proporcionado que, à primeira vista, não se notava essa altura pouco vulgar. Emanava dele uma impressão de força e de energia, realçando ainda mais a sua distinção. As feições firmes, acentuadas, não só eram de excepcional beleza, como iluminadas por uma espécie de chama que também brilhava nos olhos escuros. A testa alta e a boca voluntariosa completavam o conjunto de incomparável sedução. Naquele momento, porém, a fisionomia do rapaz traduzia profunda contrariedade, que ainda mais se acentuou quando do firmamento escuro começaram a cair grandes flocos de neve. com um gesto impaciente ergueu a gola da elegante peliça, meteu as mãos nas algibeiras e, voltando-se para o segundo viajante, disse:
- Meu caro, se não queremos morrer enterrados na neve ou apanhar uma congestão, o melhor será tentarmos alcançar o hotel a pé. Que dizes ?
O interpelado não parecia muito inquieto. Deu alguns passos e, como se desejasse examinar melhor os campos que os rodeavam, aproximou-se da beira da estrada.
O seu aspecto nada tinha de especial, excepto, talvez, a extrema placidez. Mais baixo do que o companheiro, também trajava com elegância. As feições regulares reflectiam inteligência viva e subtil; os gestos calmos, reflectidos, a visível ponderação, davam-lhe uma aparência de mais idade do que realmente devia ter.
Durante alguns momentos, o olhar do viajante aflorou os vales profundos cavados a seus pés, os altos cumes, perdidos nas nuvens cinzentas, as florestas dessiminadas pelos flancos da montanha, para depois se voltarem mais uma vez para a estrada deserta. Alcançar a pé o grandioso hotel, aninhado entre pinheiros, lá no alto, não se lhe afigurava tarefa fácil e divertida. No entanto, como não vislumbrava qualquer possibilidade de socorro, não havia outro recurso. Curvando a cabeça, respondeu :
- Tens razão, Miguel. Â caminho. E quando nos encontrarmos a salvo, no hotel, enviaremos socorros a este bom homem.
Aproximou-se do condutor, disposto a comunicar-lhe a sensata decisão. Este, porém, abandonara o cavalo e parecia escutar com atenção. E, muito antes de que os dois rapazes pudessem ouvir o mais pequeno ruído, exclamou:
- Vem aí um trenó!
com efeito, decorridos alguns minutos, o chocalhar dos guisos tornou-se bem audível e um trenó apareceu na volta da estrada. Aproximava-se lentamente, ao trote tranquilo do cavalo, com a capota caída e já coberta de neve.
O condutor avançou para o meio da estrada e, com um gesto, pediu para pararem. Depois aproximou-se do trenó e começou a falar com os seus invisíveis ocupantes. Pouco depois, voltou para junto dos dois viajantes.
- O trenó vai justamente para o hotel, mas não está livre - explicou-Viaja nele uma senhora que...
- ... não está disposta a travar relações e a socorrer turistas desconhecidos, não é assim ? atalhou, sorrindo ironicamente, o rapaz a quem o companheiro havia chamado Miguel.
- Não importa. Nós podemos dar-lhe referências.
E, sem dar tempo ao condutor para terminar a frase interrompida, destacou-se do grupo e avançou para o trenó.
- Madame - disse, tirando o chapéu e curvando-se - o trenó em que viajavam o violinista Miguel Marsac e o seu secretário e amigo, sofreu um desastre. Ficar-lhe-íamos ambos infinitamente reconhecidos se permitisse que nos utilizássemos do seu.
Uma voz fresca respondeu do fundo do carro:
- Já disse ao seu guia que se lhes pudesse ser útil...
A resposta chegou aos ouvidos do «secretário e amigo» que a custo dissimulou um sorriso; Miguel, com a sua habitual impaciência, não tinha deixado o condutor transmitir a amável resposta dada ao seu pedido.
O violinista, junto do trenó, agradecia à viajante, cujas feições distinguia pela primeira vez. Abrigado pelo capuz de peles, Miguel entreviu um rosto fresco, grandes olhos azuis encimados por negras sobrancelhas, boca pequena, séria, quase triste. Na sombra da capota, viu ainda uma silhueta delgada e duas pequeninas mãos bem enluvadas, poisadas sobre a manta. Como ela se afastasse um pouco para o canto do carro a fim de dar lugar aos dois inesperados companheiros, o capuz descaiu pondo a descoberto os cabelos de um castanho luminoso com reflexos doirados.
Não havia bagagens a transportar de um trenó para o outro. Estas deviam ser levadas, directamente, da estação para o hotel pelo funicular que os dois rapazes não tinham querido utilizar, uma hora antes. O amigo de Miguel limitou-se a trazer riquíssimo estojo de violino, com iniciais em prata, que colocou em cima dos joelhos, depois de se sentar. Imediatamente, o sobrecarregado trenó se pôs a caminho.
A subida era difícil. Apesar do desejo de voltar depressa para trazer socorro ao trenó em dificuldades, o condutor do veículo não podia exigir mais ao robusto animal que o puxava. A neve continuava a cair e a estrada, de minuto para minuto, se tornava mais escorregadia. Conforme as curvas acentuadas, os precipícios tão depressa se abriam à esquerda como à direita dos viajantes.
A noite aproximava-se e na brancura uniforme a forma dos objectos tornava-se imprecisa.
Os viajantes, docemente embalados pelo chocalhar dos guisos pendentes da coleira do animal, abandonavam-se com evidente satisfação a agradável sonolência. Bem abrigados pela capota de pano, cada um deles visionava o que seria aquela subida sem o providencial encontro. E, com essas reflexões, a sensação de bem-estar mais se acentuava.
Depois, o secretário traduziu estes pensamentos em palavras. Fê-lo com frases espirituosas e simples, às quais a rapariga respondeu sem dificuldade. Miguel não tomou parte na conversa. O olhar distraído errava ao acaso pela paisagem e foi preciso o amigo interpelá-lo directamente para que a sua atenção se voltasse para dentro do trenó.
Havia alguns instantes que a estrada talhada através da floresta tinha alargado. Aproximavam-se da estância à qual o hotel estava ligado. Apareceram os primeiros estabelecimentos - de acessórios para esqui, casas de chá e pastelarias - quase todas as montras estavam já iluminadas. Ao passarem diante de uma delas, com bastante luz, a viajante consultou o minúsculo relógio de pulso. Depois bateu ligeiramente no ombro do condutor:
- Pare, por favor. Desço aqui.
E, antes que o secretário tivesse tempo para lhe oferecer a mão, saltou para o chão com ligeireza, compôs o capuz, cumprimentou os dois rapazes e desapareceu por uma das ruas vizinhas.
- Então, Beltrão, decidiste ficar aqui toda a noite? O sítio parece-me mal escolhido.
O secretário voltou-se sorrindo alegremente e, sem utilizar o estribo, voltou a sentar-se ao lado de Miguel. Ficara durante alguns instantes parado ao lado do carro, seguindo a rapariga com a vista. Não estranhou, portanto, que o companheiro se impacientasse.
- Se o ficar aqui me proporcionasse muitos encontros como este - respondeu - tenho a impressão de que te deixaria dormir sozinho no Grande-Hotel, esta noite.
O violinista encolheu os ombros, mas não respondeu à observação do amigo. Acomodando-se num canto do trenó, que a saída da viajante tornara mais espaçoso, estendeu as pernas, cruzou os braços e, cerrando as pálpebras, não voltou a mexer-se.
Extensa subida, mais alguns metros de caminho e diante dos olhos dos dois rapazes avultou o luxuoso edifício do Grande-Hotel, ornamentado com belas esculturas. A fachada, rasgada por inúmeras aberturas: janelas, terraços, solário e varandas, era iluminada por quatro enormes tocheiros de bronze. Erguido no extremo de grande rochedo, o hotel dominava montes e vales.
O trenó parou diante da porta principal da qual jorravam torrentes de luz. Beltrão du Breuil foi o primeiro a descer e, aproximando-se do condutor, dispôs-se a pagar-lhe o transporte, mas este recusou-se a aceitar dinheiro. Como o secretário insistisse, explicou:
- Não me devem coisa alguma, meus senhores. Fui contratado por um mês, para prestar serviço à senhora condessa Olga Pavlovitch, com quem vive a menina que encontraram há pouco. Todas as minhas saídas foram pagas de antemão e não posso aceitar que o sejam duas vezes. Adeus, meus senhores - concluiu, tirando o chapéu enfeitado com uma pena - não posso demorar-me. Tenho de ir socorrer o meu camarada.
O trenó descreveu uma curva e afastou-se, enquanto os dois viajantes subiam a monumental escadaria sem trocar uma palavra. Atingiam os últimos degraus quando o secretário parou e poisou a mão no braço de Marsac.
- Miguel...
O violinista parou por sua vez e voltou-se para o amigo, deixando ver um rosto perfeitamente calmo. Envolvia-os a brilhante claridade que saía do hall pelas portas envidraçadas. Se as feições de Miguel revelassem a mais pequena comoção, o amigo tê-lo-ia notado. Mais uma vez, Beltrão admirou o domínio próprio de Miguel, domínio que ninguém mais devia possuir como ele.
- Miguel - repetiu após ligeira hesitação - talvez tivéssemos ouvido mal.
- Não me parece, meu caro. Aquele excelente homem falou com uma clareza que não dá margem a dúvidas. A condessa Pavlovitch, minha tia, encontra-se na Suíça, como nós.
O tom queria ser despreocupado, irónico, mas du Breuil não se iludiu com ele. Demais sabia como a ferida incurável do coração de Miguel sangrava à mais pequena referência ao passado, para acreditar naquela indiferença. A condessa Olga, embora não tivesse desempenhado qualquer papel particular na vida do violinista, não deixava de pertencer à família de quem se afastara para sempre.
Marsac prosseguiu o seu caminho e Beltrão, adivinhando a sua repugnância em continuar a conversa, não insistiu e seguiu-o.
No hall, o gerente do hotel veio ao encontro dos dois viajantes, cuja importância conhecia. Os aposentos reservados, havia muitos dias, estavam prontos e ele mesmo os conduziu até lá.
Quando ficou sozinho no luxuoso quarto, atapetado de claro, com móveis de sicômoro branco, cadeiras em estilo veneziano, Miguel Marsac, tendo atirado, de passagem, com o abafo para cima da cama coberta com uma colcha de seda de um tom doirado, foi direito à janela e abriu-a. Depois respirou num hausto profundo, prolongado, como se o ar lhe faltasse naquele aposento fechado.
Sem a peliça, aparecia em toda a sua elegância e robustez. Num gesto violento, cruzou os braços e ficou imóvel, com a cabeça descoberta, sem se preocupar com o vento glacial que o envolvia.
- Pelo amor de Deus, fecha essa janela, Miguel! - protestou Beltrão du Breuil quando entrou no quarto - Lembra-te de que sou responsável pela saúde do grande mestre! O teu público lapidar-me-ia se não se realizasse o anunciado concerto!
Miguel obedeceu, esboçando leve sorriso. Aproximou-se do amigo, sentou-se no braço de uma poltrona e, tendo tirado da algibeira uma cigarreira de oiro lavrado, apresentou-lha aberta.
D u Breuil, antes de tirar um cigarro, entregou-lhe um sobrescrito.
- Já me esquecia, Miguel. Acabam de me entregar esta carta que, segundo parece, já aqui estava há alguns dias. Mais uma admiradora, homem feliz!
O violinista atirou para o tecto comprida espiral de fumo azulado, antes de relancear a vista pelo sobrescrito.
- Erraste, Beltrão. Estes graciosos rabiscos não podem ser senão do porteiro do meu hotel, única pessoa, em Paris, que conhece o itinerário da nossa viagem e a quem eu encarreguei de me mandar toda a correspondência que chegasse para mim.
Enquanto falava, ia rasgando o primeiro sobrescrito e depois o segundo, mais pequeno, que este continha, e depois começou a ler. De súbito, soltou surda exclamação. O secretário, cuja atenção se desviara, por momentos, olhou para Miguel e surpreendido, pôs-se de pé, quase assustado.
Um segundo bastara para que o violinista sofresse extraordinária transformação. O rosto moreno estava lívido, os lábios apertados um contra o outro, com tal força que os músculos dos maxilares sobressaíam e, sob as sobrancelhas negras, as pupilas escuras cintilavam.
- Lê isto, Beltrão! - exclamou numa voz que procurava ser irónica, mas na qual rugia ameaçadora tempestade -Lê! É muito mais para espantar do que a presença da condessa Olga.
Ao mesmo tempo, estendia ao amigo a folha de papel timbrada com uma coroa.
Enquanto du Breuil lia a carta que tanto perturbara Marsac, este começara a passear no quarto. Conseguira dominar-se um pouco, mas continuava com a testa franzida e as vibrações da voz indicavam a persistência da profunda comoção:
- O meu perdão, Beltrão! - proferiu, soltando amarga risada -Leste bem, não leste? É o meu perdão. Depois de oito anos decorridos, o exilado pode regressar à pátria. Como o meu primo é generoso, não achas? Recordou-se de que um homem do seu sangue e da sua família, um homem cuja honra permanece intacta, anda vagueando pelo mundo, porque, injustamente, o baniram da sua terra!
Calou-se um instante para prosseguir com mais intensa amargura:
- com incomparável magnanimidade, convidam-me a ir ajoelhar-me nos degraus do trono, curvar a cabeça e bater no peito, confessando: «Majestade, reconheço as minhas culpas, deploro os erros da mocidade e humilho-me a vossos pés! Sim, fui culpado, infinitamente culpado, o meu crime não tem desculpa. Gostava de uma mulher. Ela também me queria, mas, mais ainda do que ao meu amor, ela aspirava ao poder. E esse poder, vós podíeis dar-lho e com ele o direito de afastar a testemunha incómoda dos juramentos traídos, das promessas violadas. A minha culpa, portanto, não tem perdão e só uma clemência sem limites poderia esquecê-la!» E dito isto, Beltrão, poderia levantar-me para o abraço fraternal. Segundo todas as probabilidades, eu teria, em seguida, de beijar a mão feminina e.... Não, mil vezes não! - protestou Miguel, erguendo orgulhosamente a cabeça-Nunca pagarei por semelhante preço o direito de pisar a terra slovitana!
Calou-se e, aproximando-se da janela, absorveu-se na contemplação da paisagem.
Beltrão du Breuil não se moveu. Antes de fazer ouvir a Miguel a voz da razão, queria dar tempo a que a sua revolta acalmasse. Havia muitos anos que, por amizade, Beltrão partilhava a vida opulenta, mas vagabunda, de Marsac e não se lembrava de o ver tão agitado. Como, no entanto, o silêncio se prolongasse, aproximou-se do amigo, hesitou um momento e acabou por perguntar-lhe:
- Que resposta vais dar a essa carta, Miguel ? O violinista estremeceu e, sem se voltar, declarou em tom violento:
- Nenhuma!
Beltrão não se mostrou impressionado.
- Reflectiste bem, presumo. No entanto, as resoluções precipitadas são sempre lamentáveis. Amanhã voltarei a fazer-te a mesma pergunta.
Dispunha-se a sair do quarto. Miguel, porém, deu uma reviravolta e reteve-o por um braço.
- Vês outra alternativa além desta ou de humilhar-me e representar a infame comédia de arrependimento ?
- Talvez.
Miguel fitou demoradamente o amigo que, sem pestanejar, sustentou o exame. Conhecia demasiado du Breuil para saber que nunca falava ao acaso; muitas vezes apreciara as sensatas sugestões dadas por aquele cérebro equilibrado. Por fim, foi sentar-se na poltrona e disse simplesmente:
- Estou a ouvir-te.
Beltrão sorriu. A confiança do indomável Miguel lisonjeava-o. Previa o acolhimento feito à sua ideia, mas não hesitou.
- Não queres, e tens razão, dar a... digamos, a uma soberana o espectáculo da tua humilhação, a alegria de um triunfo com que já conta. Mas talvez os papéis pudessem ser invertidos.
- Não compreendo.
- vou explicar-te. Regressa ao teu país, Miguel, volta à Slovitânia. Instala-te no teu palácio de Kroukoya, nos teus domínios de Vrorina, de Kirsova, no castelo de Pakovatz, recomeça as tuas caçadas em Zogoravine. Mas não voltes sozinho. Que diante do trono onde pretendem humilhar-te, uma fronte se incline ao lado da tua, que uns belos olhos sejam o reflexo da tua felicidade, que alguém, ao subires esses degraus, aperte a tua mão e te guie.
Calou-se por fim. Miguel levantou-se e, esmagando, no cinzeiro que estava ao seu alcance, o cigarro acabado de acender, exclamou:
- Que tolice, Beltrão! Esperava que me desses um conselho sensato e, se bem compreendi, falas-me de idílio... e talvez de casamento!
- O meu conselho é muito sensato, meu amigo. Aparecerias diante de Milena como um homem feliz, liberto de todas as recordações, de todas as saudades... Vejamos - desculpa-me se tento desvendar os teus sentimentos - não existe em qualquer ponto por onde tenhamos passado alguém que o teu pensamento recorde com prazer, só porque «ela» é loira ou morena? Se ajuizar pelas inúmeras flores que recebes no fim dos teus concertos, terei de afirmar que, por esse mundo fora, muitos corações vibraram e ficaram presos à magia do teu arco.
Precisamente, quando proferia a última palavra, alguém bateu à porta. Aborrecido, Miguel gritou: «Entre, voltando-se para o ponto onde devia surgir o importuno. A porta abriu-se e apareceu uma senhora de idade, com os cabelos brancos, mas um rosto rosado, exuberante e ligeira como se tivesse vinte anos.
- Meu amigo! - exclamou, precipitando-se para o violinista - Perdoe-me por aparecer assim, sem me fazer anunciar; mas, na verdade, não consegui demorar por mais tempo o prazer de lhe falar.
Às primeiras palavras, Marsac mal ocultou um franzir de testa. Contudo, a forma como se curvou sobre a mão feminina foi impecável. Sem conseguir habituar-se, não podia deixar de reconhecer que a perpétua intervenção do público na sua vida privada representava o inevitável tributo à glória. Além disso, madame Bertin, cuja idade canónica deixava em repouso a sua vaidade masculina, era uma das suas mais fieis auditoras.
Em consequência, sem se mostrar muito aborrecido, abriu diante da visitante a porta do pequeno salão, ricamente decorado.
- Pois é verdade, meu filho - consinta que o trate assim. Chamo-lhe filho porque poderia ser sua avó - Sabe que fiz a viagem de Paris à Suíça de propósito para o ouvir ?
O violinista inclinou-se e dispunha-se a agradecer. Mas madame Bertin, cuja prolixidade era espantosa, nem reparou nisso e continuou :
- Disseram-me que esteve condenado a ficar na estrada. Sim, porque não pode haver dúvida. Ainda lá estariam se a France não tivesse passado naquela ocasião.
- France? - repetiu du Breuil, que pela primeira vez tomava parte na conversa.
- Sim, a minha amiguinha Francisca de Chancel, cujo trenó, se der crédito ao que me contaram, salvou as duas pobres vítimas da montanha.
Os dois rapazes evocaram a mesma imagem ou, pelo menos, aquilo que mais os impressionara: o capuz de pele cobrindo os cabelos doirados, um rosto fresco e grave e o vulto airoso, logo desaparecido.
- Queira transmitir a mademoiselle de Chancel todos os nossos agradecimentos - pediu Miguel Nem sequer nos deu tempo a fazê-lo.
- Transmitir-lhos-ei, Marsac, pode ficar tranquilo.
- Diga-lhe também quanto deplorámos não satisfazer o preço do nosso transporte, mas nunca encontrei condutor mais teimoso.
- Isso não tem importância e diz apenas respeito á condessa Pavlovitch.. A, condessa é uma das minhas amigas - explicou aos dois amigos - Meu marido foi durante muito tempo adido à embaixada francesa de Kroukoyae, conquanto Olga Pavlovitch, já viúva, saísse pouco e quase não recebesse. as minhas relações com ela foram bastante íntimas. Neste momento anda em viagem e, depois de ter permanecido algum tempo na Suiça, partiu com os filhos para Itália. Francisca-ficou comigo para passar uns dias de férias.
- Mademoiselle de Chancel é parente da condessa Pavlovitch ? - perguntou Beltrão com grande interesse.
- Ela! Pobre pequena! Órfã há muitos anos, não tem família. O pai, advogado de talento, foi fulminado por uma embolia, em pleno tribunal; a mãe morreu com uma septicemia alguns anos depois. Ficou quase pobre, a cargo da avó que também não tinha coisa alguma de seu. Quando, por sua vez, esta morreu, acolhi Francisca em minha casa. Uniam-nos estreitos laços de amizade e, quando madame de Chancel morreu, considerei como um dever auxiliar a neta até ela encontrar um emprego compatível com a sua inteligência, os seus hábitos e educação. E creio que o consegui. Francisca, há três anos já, desempenha o cargo de professora, preceptora e amiga da filha da condessa. Na Slovitânia -continuou madame Bertin, entusiasmada com a conversa - é muito querida. Encontrou o melhor, o mais acolhedor dos lares. No entanto, sei que a sua vida nem sempre é isenta de amargura.
Hesitou um instante e continuou:
- Olga Pavlovitch vive em Kroukoya, no palácio do príncipe reinante de quem é tia. Ora a princesa Milena não gosta de ver perto de si uma rapariga tão bonita como a France, a quem faz sentir bem o seu desagrado. Começou por «abrir os olhos» à condessa, sobre o perigo que representava para a filha ter uma preceptora daquelas. Depois, como estas insinuações fossem acolhidas com indiferença por Olga, que é uma senhora muitíssimo virtuosa e sensata, decidiu pedir a intervenção do rei. O resultado, porém, não foi melhor. Sua Majestade declarou com firmeza que não tinha o direito de interferir na educação da sobrinha Natália que, de resto, era muito bem dirigida pela condessa, nem tão pouco lhe competia escolher ou regeitar as pessoas por ela empregadas. E tudo ficou como estava. Francisca não me fez confidências. É muito digna, muito altiva e coloca-se muito acima de todas estas mesquinharias. Mas não posso deixar de pensar que um dia, mais tarde ou mais cedo, ela será vencida e terá de voltar para minha casa. As armas dos poderosos são sempre eficazes e a vaidade feminina tem uma força de que ninguém pode suspeitar.
Madame Bertin falou por muito tempo sobre a sua protegida. Os dois rapazes escutavam-na em silêncio e Beltrão não pôde deixar de notar a estranha expressão do amigo. Conhecia bem Marsac para saber que a cada uma das evoluções do seu espírito correspondia uma atitude fisionómica diferente. E naquele momento, a máscara, impenetrável para os outros, mas não para ele, revestia-se de uma expressão, misto de reflexão concentrada, resolução determinada e até de dureza, o que muito o inquietava.
Ficou satisfeito quando madame Bertin se levantou para se despedir. com Miguel acompanhou-a até à porta da saleta, que abria directamente para o corredor. E só então compreendeu.
O violinista agradecia a visita à sua velha amiga. E, de repente, quando esta ia a transpor a porta, disse:
- Visto que mademoiselle de Chancel se encontra, momentaneamente, debaixo da sua protecção, autoriza-me a confessar-lhe quanto foi profunda a impressão que me produziu?
Du Breuil não ouviu a resposta dada por madame Bertin. Só quando a porta se fechou depois da saída da visitante conseguiu recuperar a calma.
- Miguel - começou - Miguel...
O violinista, que ia a entrar no quarto, parou. O semblante, perfeitamente calmo, não oferecia mesmo ao observador mais perspicaz motivo para reparos.
Olhou para Beltrão e comentou com ironia:
- Vais agora acusar-me pela minha demasiada docilidade, Beltrão ? Os teus conselhos não podiam ser mais sensatos e eu aceitei-os. Vamos, meu amigo, muda de atitude. A sorte está lançada. vou inscrever a Marcha Nupcial no programa das minhas audições.
O secretário, porém, não se deu por vencido. Aproximou-se de Marsac, pôs-lhe a mão no ombro e, com desusada seriedade, perguntou:
- Por que escolheste, justamente, a pobre pequena, Miguel? Uma rapariga a quem nem sequer viste, que não conheces ?
O violinista voltou-se lentamente e du Breuil notou-lhe o estranho brilho das negras pupilas.
- Porquê? - repetiu, e a voz tomou inflexões duras e violentas - Pois não adivinhaste, Beltrão ? Porque Milena a odeia.
- Trago-te uma novidade inesperada e surpreendente... uma novidade maravilhosa!
Francisca de Chancel ergueu os olhos para madame Bertin que, sentada na sua frente, dava indícios da mais viva agitação.
- A Natália apressou a data do regresso à Suiça ? - perguntou Francisca, cujo rosto se iluminou.
Leve sorriso entreabriu os lábios de madame Bertin. Queria lá saber de Natália!
Já pronta para se dirigir ao salão onde nessa noite se realizava o concerto de Marsac, a excelente criatura viera bater à porta do quarto de Francisca. Esta pediu-lhe para se sentar por um momento. Acabava, precisamente, de abotoar o corpo, muito justo, do vestido de seda cinzento prata, cuja saia bordada com rosas chá, muito ampla, abria como a corola de uma flor, quando madame Bertin decidiu queimar os últimos cartuchos.
- Minha querida France, Miguel Marsac acaba de te pedir em casamento!
Depois desta declaração, profundo silêncio reinou no aposento. Francisca não fez um gesto, fixando na sua interlocutora um olhar de espanto. Por fim, como se as palavras proferidas pelos seus lábios concretizassem melhor a realidade, repetiu:
- Miguel Marsac!
E, logo a seguir, num protesto involuntário:
- Conhece-me tão pouco, madame!
Madame Bertin voltou a sorrir. Sem uma palavra, admirava a rapariga, de pé, na sua frente, com o rosto encantador ruborizado pela comoção, os olhos de um azul profundo largamente abertos, a cabeça um pouco inclinada, e pensou que muitas outras, no seu lugar, não seriam tão modestas.
- Contava com essa objecção, minha filha disse por fim - Tratando-se de qualquer outro que não fosse Miguel, seria muito justa. Mas não sabes como os verdadeiros artistas são diferentes do comum dos mortais?
E sem esperar pela resposta que, de resto, a sua protegida não pensava em dar, prosseguiu:
- Há oito dias, Francisca, que Marsac se encontra aqui; oito dias durante os quais se isolou para procurar a minha, ou antes, a tua companhia. As naturezas excepcionais como a dele penetram os caracteres, descobrem inteligências, adivinham as almas, com uma sensibilidade muito mais penetrante e, portanto, muito mais rápida do que a dos outros mortais.
Calou-se um instante para avaliar o efeito produzido por estas palavras. Aquela mulher, apesar da idade, possuía um fundo romântico que o decorrer dos anos não tinha conseguido desvanecer nem mesmo diminuir. Desempenhar papel activo numa aventura sentimental, causava-lhe intenso prazer, tanto mais, tratando-se da felicidade de dois entes a quem muito estimava. com redobrado entusiasmo, continuou:
- Minha querida Francisca, consente que te fale um pouco daquele que esta tarde me encarregou de advogar a sua causa... Não ignoras o seu nome. Há muitos anos que brilha em todas as capitais do Mundo. Marsac, porém, é mais e melhor do que um simples violinista. É um homem de honra cuja vida particular, embora, resolutamente, defendida contra a curiosidade pública, nunca deu margem à maledicência, nem mesmo à crítica. É órfão. Da sua fortuna pessoal não sei falar-te, mas suponho-a considerável, dada a forma como vive. Rodeia-se de conforto e está - adivinha-se – livre de todas as preocupações materiais. Não se sabe bem porquê, rodeia-se de um certo mistério, mas isso não costuma desagradar a uma mulher. Que mais poderei dizer-te, minha filha, para te levar a acolher, favoravelmente, o seu pedido ? És razoável, sensata, e com certeza apreciarás em todo o seu valor a oportunidade que se te oferece.
Calou-se um instante para observar Francisca, espreitando no lindo rosto o reflexo dos seus ocultos pensamentos. Para entusiasmar a sua juvenil amiga empregara os mais convincentes argumentos, de cujo bom resultado não duvidava.
Ficaria por certo muito admirada se lhe dissessem que a sua intervenção, naquela circunstância, havia sido muito imprudente. Conhecia Francisca desde pequenina e, tendo assistido a todos os acontecimentos que tinham perturbado a sua ainda tão curta vida, podia responder pela excepcional têmpêra daquela alma de eleição. Mas, em compensação, que garantias podia oferecer a Francisca aquele Marsac cujo passado a própria madame Bertin confessava ignorar?
Em toda a evidência, pela cabeça da excelente senhora nem sequer passava a ideia de que pudessem acusá-la de não conhecer o violinista. Miguel era um belo rapaz, rico e célebre; não seria o suficiente para a obscura Francisca ? Poderia esta exigir mais garantias para a sua felicidade ?
Precisamente nessa altura, Francisca erguia os olhos que, durante toda a conversa, conservara pregados no chão. Falou, mas as suas palavras não foram bem aquelas com que a sua velha amiga contava.
- Agradeça em meu nome ao senhor Marsac, diga-lhe quanto lhe fico reconhecida... e lisonjeada... mas tão surpreendida que não posso, neste momento...
- Pois com certeza, minha filha. O Miguel compreenderá que uma resolução dessas não pode ser tomada assim, precipitadamente. Além disso, deseja falar contigo quando acabar o concerto. Depois da nossa conversa, vou dar-lhe as melhores esperanças.
- Não, madame, não diga isso ao senhor Marsac. Sinto não poder tomar uma resolução da qual dependerá toda a minha vida, em tão pouco tempo. É muito cedo para lhe dar uma resposta. Transmita-lhe estas palavras, peço-lhe.
Madame Bertin levantou-se com o desembaraço habitual e o roçagar do vestido de seda pesada acompanhou estas palavras:
- Isso é insensato, France!
Mas, quase logo, prosseguiu com voz mais branda:
- Miguel tem os seus concertos, as viagens, os ensaios, e não pode esperar, indefinidamente, pela resposta de uma rapariga caprichosa.
Pálido sorriso entreabriu os lábios de France.
- com efeito, talvez tenha merecido, sem o saber, essa classificação de caprichosa.
A expressão, levemente irritada, de madame Bertin desvaneceu-se. Aproximou-se de France e, poisando-lhe as duas mãos nos ombros, desculpou-se:
- Perdoa-me, minha filha. Tenho tanto medo que passes ao lado da felicidade sem a agarrar!
France ergueu a cabeça.
- Mas... eu sou feliz.
- Não, France. Tens uma vida sossegada, o que é diferente. E, mesmo essa vida, há-de modificar-se. Mais tarde ou mais cedo, a Natália casará e as tuas funções terminarão nesse dia... isto supondo que até lá continues a viver na Slovitânia.
Francisca empalideceu. A sua viva inteligência adivinhou logo o pensamento da sua velha amiga, sem que ela o exteriorisasse.
- Nunca esperei que a minha vida decorresse com absoluta tranquilidade - declarou - Mesmo assim, encaro o futuro sem receio, porque Deus nunca deixa de amparar aqueles que imploram o seu auxilio.
Madame Bertin estava impaciente. Desde que entrara no quarto de Francisca ainda não tinha alcançado qualquer progresso e a sua missão estava longe de obter um bom resultado. Examinou France, cujas feições, se acusavam vestígios de emoção, estavam longe de marcar qualquer indecisão. Pensou que toda a insistência, mesmo amigável, seria inútil. Francisca, forte com a experiência adquirida nas duras lições da vida, seguiria o caminho que a sua sensatez lhe indicasse como melhor.
Esquecia-se de que a sensatez e o raciocínio, num coração de vinte anos, criam fracas raízes e que não existe resistência que certos assaltantes não consigam vencer.
Soltou um suspiro de aborrecimento - tinha tanto empenho em levar a Miguel uma resposta agradável - e dirigiu-se para a porta.
- vou deixar-te. O tempo corre e o concerto deve começar às nove horas precisas. Não seria correcto se chegasses atrasada - acrescentou com um sorriso.
Abriu a porta e, prestes a transpô-la, voltou-se para trás.
- vou exortar o Miguel a ter paciência. É tudo quanto me é permitido, não é assim ?
A embaixatriz de Miguel contava talvez com a vitória no último minuto, porque na voz, que pretendia ser despreocupada, palpitava ligeira esperança. Por única resposta, France, silenciosamente, inclinou a cabeça. Então, com um gesto de despedida, madame Bertin desapareceu.
France não podia dizer quanto tempo permaneceu imóvel no mesmo lugar. Por fim, voltou para junto do toucador, iluminado por duas lâmpadas e, pegando numa escova, começou a escovar o cabelo. Mas em breve a mão se imobilizou e dos lábios entreabertos um nome fugiu:
«Miguel!»
No cérebro, os pensamentos rodopiavam como folhas de Outono, arrebatadas pela tempestade. E aquele nome era como um exorcismo, palavra mágica cuja doçura apaziguava por momentos o tumulto do seu coração.
«Miguel!»
com as pálpebras semi-cerradas, recordava as impressões recebidas no primeiro encontro: a expressão orgulhosa, o olhar dominador, a boca na qual as palavras de súplica tomavam tão imperiosa inflexão. Mais tarde, France soube que aquela boca podia sorrir, a máscara dura suavizar-se e as negras pupilas brilharem. Mas sempre que se encontrava junto de Miguel tinha a impressão estranha de estar em presença de uma alma cerrada, irremediavelmente fechada, cujo acesso ninguém poderia forçar.
Perturbada, levantou-se, dirigindo-se à janela, abriu-a e apoiou-se ao parapeito.
Um céu maravilhoso, de um azul profundo, picado de estrelas doiradas estendia-se por cima do hotel. Dominando as extensões cobertas de neve, os enormes tocheiros de bronze, no alto do terraço, irradiavam feéricas cintilações. Em volta, os pinheiros pareciam de cristal e os montes de prata. Debaixo do arvoredo, os atalhos alvejavam como vias lácteas no céu profundo.
De súbito, abanou a cabeça num gesto de impaciência. Já não seria senhora dos seus pensamentos ? Tinha mandado pedir a Marsac um período de espera para lhe dar tempo a resolver o problema do seu destino. Naquele momento, porém, não lhe seria possível encará-lo. Mais tarde, saberia escolher o caminho.
Em baixo, na esplanada, reinava desusada animação. Diante da porta do hotel perpassavam vultos e o ruído de passos de mistura com o deslizar surdo dos trenós chegava até ao quarto de France. Pouco a pouco, todos esses ruídos foram acalmando e a agitação cessou. Compreendeu não ser possível demorar-se mais tempo.
Abandonou a janela e dirigiu-se para a porta. De passagem, pegou num abrigo leve de gaze cor de rosa e num saco de pérolas nacaradas. Vagarosamente, apagou as luzes e saiu do quarto.
A meio do corredor, larga escadaria, com corrimão de ferro forjado, conduzia ao hall. Antes de começar a descer, France abraçou-o com o olhar. As luzes dos inúmeros lustres de cristal eram cem vezes multiplicadas pelos espelhos das colunas que sustentavam o tecto. Os tabiques móveis, que separavam os salões, haviam sido retirados, a fim de os transformar num só. E, a avaliar pela multidão de auditores já instalados, compreendia-se bem semelhante precaução.
O concerto dado por Marsac enchera o hotel até à porta. Encontravam-se ali não só todos os hóspedes, como também os que passavam o Inverno nas vilas e nas vivendas dos arredores. Se France tivesse posto em dúvida as afirmações de madame Bertin sobre a celebridade de Miguel, bastaria aquele hall apinhado de auditores para a convencer. Começou a descer a escada atapetada com linda alcatifa persa. Chegava atrasada, porque a hora marcada para o início do concerto já havia sido ultrapassada. Em consequência, numerosos olhares a fixaram.
Apressada e constrangida - pois lhe parecia que todos notavam a sua perturbação e adivinhavam a causa - procurou com a vista madame Bertin que, felizmente, não se sentara muito longe da escada. Desta forma, pôde instalar-se logo no lugar reservado pela sua velha amiga e, no mesmo instante, todas as vozes se calaram. France ergueu a cabeça e viu Miguel.
Como se aguardasse unicamente a chegada da rapariga, o violinista, mal a viu, destacou-se do grupo em que se encontrava e dirigiu-se ao piano para dar as últimas instruções ao seu acompanhador. O instrumento estava colocado numa espécie de estrado um pouco elevado e coberto com esplêndida colcha. Ao lado, à altura do lambrim, um lampadário de mármore branco translúcido, colocado num nicho, iluminava suavemente o artista. Marsac voltou-se. Envergava casaca, o que mais realçava a sua elegância. O rosto levemente afinado, de cútis morena, nariz direito e boca bem desenhada, revestira-se de expressão impassível.
Por segundos, o olhar de France cruzou com o olhar ardente e dominador que lhe provocava, sempre que a fitava, inexplicável ansiedade. Nesse instante, porém, a seu lado, alguém proferiu o seu nome em voz baixa. Voltou-se e viu Beltrão du Breuil que a cumprimentou e, sem parecer notar o seu espanto, lhe entregou a delgada folha de papel branco, dobrada em quatro, que trazia na mão. Depois afastou-se sem mais explicações.
Vagarosamente, France desdobrou o papel uma folha arrancada a uma agenda - e leu estas palavras, traçadas numa caligrafia firme:
«Esta noite vou tocar só para si...»
Os primeiros compassos da Sonata a Kreutzer evolaram-se pela sala. O auditório, como uma só pessoa, escutava, apaixonadamente, preso à magia do génio imortal. As notas vibravam e cada uma delas era para Francisca como que uma maravilhosa revelação. Do seu lugar via perfeitamente o estrado, no extremo do qual se perfilava o vulto elegante para o qual, invencivelmente, o seu olhar era atraído.
Para Miguel, naquele momento, era como se o mundo tivesse desaparecido. O semblante irradiava numa chama ardente, que iluminava as negras pupilas semi-veladas pelas pálpebras. A mão fina movia o arco num gesto prestigioso que dava asas à maravilhosa melodia.
Presa de estranha opressão, Francisca não podia desviar os olhos dessa mão poderosa que, indiferentemente, conduzia a partitura e os destinos. A divina harmonia envolveu-a, penetrou-a, insinuou-se-lhe na alma, banhando-a em ondas vibrantes, erguendo entre ela e a sala como que mágica muralha. Era uma espécie de encantamento do qual tinha perfeita consciência.
Vagamente, nos breves intervalos que entremeavam a audição, a voz de madame Bertin murmurava-lhe ao ouvido o nome dos trechos que iam seguir-se: sonatas de César Frank, de Claude Débussy e, por fim, a Sonata Patética de Beethoven.
E os dedos do mestre souberam traduzir toda a majestade de uma alma, uma alma com os seus tormentos, lágrimas e tristezas. Aos queixumes apaixonados sucediam-se os lamentos dilacerantes, as frases vibrantes de ternura, os protestos surdos de um coração magoado.
Quando Marsac poisou o violino, imensa ovação reboou e subiu até à abóbada. Toda a assistência se pôs de pé, aclamando o artista com entusiasmo e exaltação.
Abafada pelo clamor dos aplausos, a voz de madame Bertin elevou-se junto de France:
- Esperemos aqui, minha filha. O Miguel está muito rodeado e, por agora, não podemos pensar em nos aproximar dele.
Francisca aquiesceu com a cabeça. Era o único gesto que a profunda emoção lhe consentia. com a última nota devia ter-se dissipado o misterioso sortilégio. Contudo, sentia-se mais do que nunca dominada por ele.
O violinista desceu do estrado. Calmo, com expressão grave, por instantes iluminada por leve sorriso, agradecia os cumprimentos com que o esmagavam.
- Esta noite, Marsac excedeu-se - afirmou madame Bertin, após breve silêncio.
E France, embora nunca o tivesse ouvido tocar, acolheu estas palavras como a expressão exacta da verdade.
Depois de ter guardado no saco o breve bilhete, tentava interessar-se pelo movimento da sala, pela multidão que ia e vinha. Mas coisa alguma conseguia prender-lhe a atenção. Pela primeira vez na sua vida, a sua vontade não dominava o espírito, proporcionando-lhe a calma ambicionada.
Os minutos corriam, minutos que France, com pueril ansiedade, desejaria poder prolongar. E, de súbito, madáme Bertin assestou o lorgnon de tartaruga doirada para o extremo da sala.
- Vamos, minha filha. Tenho a impressão de que Miguel está à nossa espera.
Mais uma vez, France olhou para Miguel que, de cabeça erguida, dir-se-ia procurar alguém com a vista, com mal contida impaciência.
Madáme Bertin, seguida pela sua protegida, começou a atravessar o hall, dirigindo-se para o ponto onde se encontrava o violinista. com o seu inconfundível aprumo e elegância, este recebeu o tributo de fervorosa admiração da sua velha amiga. Depois voltou-se para France:
- Então, mademoiselle, não me diz nada ?
A voz surda tomou inflexões vibrantes e o olhar envolvia o rosto de Francisca com ardente atenção.
Estavam sós os dois. Os mais teimosos admiradores, desanimados com a ligeira altivez adoptada por Marsac para acolher os importunos, dispersaram pelas salas. A poucos passos, madame Bertin conversava com o secretário; lá fora, ouvia-se o deslizar dos trenós, encomendados para o fim do concerto.
À pergunta de Miguel, Francisca levantou a cabeça. Mas quando ia formular a resposta, ele deteve-a bruscamente:
- Não! Espere!
Depois, perante o espanto da sua interlocutora, explicou:
- Escutei tantas palavras banais esta noite que, mesmo nos seus lábios, não conseguiria encontrar-lhes novas ressonâncias. Além disso, não são essas que solicito e desejo ouvir.
France conchegou nos ombros o ligeiro abrigo de gaze, pois, apesar do ambiente aquecido da sala, tremia. Marsac observou-a com uma espécie de espanto. Talvez, pela primeira vez, notasse como era bonita. Em tom mais brando, prosseguiu:
- Madame Bertin, há pouco, deu-me ligeiras esperanças, das quais não me sinto digno. Mas, apesar desta certeza, a natureza humana é tão contraditória que aspiro à sua imediata realização.
Como tinha consciência do seu poder, aquele cujo magnífico talento, naquela noite, subjugara uma sala inteira e fizera palpitar um coração hesitante ! Como sabia destruir resistências, varrer hesitações e, com a magia da sua arte, ganhar as mais difíceis partidas!
Curvado para Francisca, parecia interrogar com o olhar ardente, o rosto puro, um pouco contraído. E, desde esse instante, France teve a certeza de ser vencida.
Mais tarde, quando recordava a estranha cena, tudo era vago, excepto as inflexões harmoniosas da voz grave e quente, à qual a sua própria voz acabara por dizer: «Sim».
Nunca, com certeza, os santos dos antigos vitrais da velha igreja haviam assistido a tão estranho casamento.
Na nave, brilhantemente iluminada, ajoelhavam duas pessoas. Duas outras, os noivos, estavam diante do altar onde o padre, auxiliado pelo sacristão, dizia a missa resada.
A noite estava límpida e clara. No relógio do campanário, abrigado sob o dossel de neve, acabava de bater a meia-noite. Nas badaladas graves e surdas consistia toda a música que acompanhava a cerimónia nupcial do violinista Miguel Marsac.
Alto, aprumado, sob a peliça escura, o violinista fixava o altar. A chama das numerosas velas iluminava com fugazes clarões o seu rosto grave e impassível, mas não conseguia animar a palidez de Francisca, rosar o tom lívido da fronte inclinada.
O frio, como manto gelado, pesava nos ombros da noiva que, por vezes, apesar dos quentes abafos de pele, estremecia. Como muito bem dissera ao secretário, madame Bertin classificava aquele casamento à meia noite, com uma temperatura de vinte graus abaixo de zero, como uma verdadeira loucura.
com o rosto oculto nas mãos, Francisca de Chancel orava com fervor. Os dias febris que acabava de viver, nos preparativos de um enlace que Marsac precipitara, tinham-na deixado atordoada, desorientada! Vivera num ambiente de irrealidade que não era um sonho, mas cujo despertar temia. O homem que se encontrava a seu lado, dominando-a com a alta estatura, demonstrara cortezia perfeita e generosidade digna de nota. Mas naquele instante, sozinha perante Deus, descendo ao mais íntimo do seu pensamento, France perguntava a si mesma se não tinha sonhado outra coisa!
Fora para Miguel numa espécie de deslumbramento, provocado pelo seu génio, pelo seu talento, pela chama ardente dos seus olhos negros, pela atracção da alma maravilhosa que entrevira. Mas fora também para Miguel com timidez, consciente da sua insignificância, perguntando a si mesma qual o motivo inexplicável que o levara a escolhê-la. Dera-lhe a sua vida, rendida de reconhecimento, com o coração cheio de sentimentos profundos que ele devia sempre ignorar. Agora tudo estava consumado. De futuro, «para o melhor e para o pior», Francisca e Miguel estavam irremediavelmente unidos.
Curvou ainda mais a cabeça e depois os seus pensamentos voltaram-se para as pessoas a quem estimava e cuja presença teria considerado tão reconfortante. A condessa Olga, Stanko e Natália nem sequer sonhavam como o seu destino havia mudado.
Uma dor aguda como o remorso trespassou-lhe o coração e à incerteza, aos receios, mais essa amargura vinha juntar-se.
Todavia, fizera o possível por participar o casamento à sua aluna! Não havia um ponto, de Roma a Nice, que a condessa devesse percorrer, para onde não tivesse enviado uma carta. Mas os projectos feitos pela viajante haviam-se modificadO e, com eles, o itinerário. Sendo assim, como saber onde se encontrava e avisá-la? France nunca poderia supor que seria obrigada a tomar uma decisão de tão grande importância para o seu futuro, sem consultar a condessa Olga Pavlovitch, sem obter o seu consentimento. A afectuosa deferência que lhe tributara inibia-a de comprometer a sua vida sem a aprovação daquela que sempre a tratara com carinhosa ternura.
Os dias passaram a correr. A data, que Miguel Marsac indicara como extremo limite concedido «aos escrúpulos de Francisca», aproximava-se ràpi damente. Graças às poderosas influências na embaixada, influências que France desconhecia, bem entendido, Miguel conseguiu obter, além dos documentos necessários, a licença para casar na Suiça, apesar dos poucos dias de permanência naquele país, que precediam a cerimónia. Solicitado por compromissos anteriores, o violinista, não podia demorar-se muito tempo, e madame Bertin, maternalmente, mas com insistência, demonstrou-o à sua protegida. Por fim, certa noite, o próprio Miguel o disse. Foi ter com Francisca ao terraço onde, encostada à balaustrada, esta se distraía vendo os patinadores e declarou-lhe:
- Francisca, não lhe revelei que conhecia a condessa Olga Pavlovitch. Eu... queria fazer-lhe uma surpresa. Mas o tempo passa e um... contrato no estrangeiro obriga-me a abandonar este país. Como sabe, o nosso casamento deve ser realizado aqui. Acreditar-me-á se lhe der a minha palavra de honra que, depois do casamento, a condessa lhe demonstrará o mesmo afecto?
France consentiu que Miguel procedesse aos preparativos necessários. Alimentava oculta esperança. Natália e a mãe, de quem recebera apenas três breves postais, escritos de pontos muito afastados uns dos outros, não chegariam antes da data fixada ?
Mas esse dia, ou antes, essa noite chegou. A aliança brilhava-lhe no dedo e o sacerdote rezava. Miguel inclinou-se para sua mulher e murmurou:
- Acabou, Francisca. Vamos. O regresso foi rápido. O trenó, que pouco antes transportara para a igreja os dois noivos e as testemunhas, deixou-os diante da escadaria do Grande-Hotel.
Madame Bertin foi a primeira a entrar na saleta que precedia o quarto de Miguel. Uma temperatura suave, mais agradável ainda pelo contraste com o frio glacial do exterior, acolheu os recém-chegados. Por trás dos arabescos de ferro forjado, os radiadores espalhavam o seu benéfico calor e no fogão de mármore ardia belo lume.
Enquanto o violinista ajudava a sua velha amiga a despir o casaco, France, antecipando-se a Beltrão, libertou-se do abafo de pele e foi oferecer as mãos ao calor das chamas. Depois, o seu olhar errou pelo aposento com as paredes claras, cómodas poltronas estofadas de branco, pesados cortinados de seda e alcatifa de imaculada brancura. Cravos, camélias, lírios, enfeitavam a pedra do fogão e transbordavam do vão da janela. Pequena mesa de laca, cujo tampo era formado por uma placa de cristal azulado, guarnecida de prata, suportava uma jarra de lalique com grandes jarros, enquanto as rosas brancas desabrochavam junto de uma coluna luminosa, feita de alabastro.
Miguel mandou embora os dois criados, que se conservavam de pé junto da mesa servida, colocada diante do fogão. Depois tirou do balde de gelo a garrafa de champanhe e pediu aos seus convidados para se sentarem.
Lá fora, a madrugada começava a despontar por trás dos altos cumes gelados, embora não se distinguissem ainda os primeiros alvores; adivinhava-se pelas ligeiras e misteriosas vibrações da noite. As chamas das velas, colocadas em dois candelabros de prata, começavam a vacilar. No fogão, os últimos troncos de lenha consumiam-se em cinza. Madame Bertin levantou-se.
- Desejo-lhes muito boa noite, meus filhos. Depois aproximou-se de Francisca e beijou-a, afectuosamente, na testa.
- Até amanhã, gentil noivazinha.
Noivazinha! Uma angústia profunda perturbou-a. Onde estava o vestido branco, o véu vaporoso, as rendas delicadas com que sonhara adornar-se no dia do casamento ? Em vez disso, envergara um vestido de fazenda escura, cujo decote era alegrado por um escaravelho de oiro. Os cabelos espessos e brilhantes, que à luz artificial pareciam fulvos, emolduravam o rosto alterado. Eram eles o mais sumptuoso adorno de France. Mas, quando não eram iluminados pelo reflexo das chamas, France mais podia comparar-se a uma freira do que a uma noiva.
Beltrão, por sua vez, despediu-se e saiu. Francisca, sentada numa poltrona diante do fogão, ouviu a porta fechar-se e os passos de Miguel, que fora acompanhar o amigo.
- Tens frio ? - perguntou com cortezia, notando que sua mulher não abandonava o calor do fogão.
Como ela aquiescesse com a cabeça, pegou em duas achas de lenha e atirou-as para o lume.
Ao voltar-se, reparou na caixa do violino que estava colocada em cima de pequeno banco estofado. Pegou-lhe e ia arrumá-lo quando Francisca o deteve.
- Miguel, gostava imenso que... Sem compreender, Miguel atalhou :
- Gostavas de quê?
France não lhe respondeu, mas com o olhar designou o estojo preto com as iniciais de prata. Miguel não conseguiu reprimir uma exclamação de espanto:
- O violino ?... É isso ? Queres que toque ? France limitou-se a responder com um sorriso.
Acudira-lhe, de súbito, ao pensamento, que as notas melodiosas do violino ressuscitariam a alma maravilhosa que a conquistara. Miguel franziu a testa. Visivelmente, o pedido aborrecia-o. Objectou:
- Dada a hora tardia, receio que o concerto não desperta unânime aprovação.
E voltou as costas ao instrumento. Mas, ao notar o profundo desapontamento reflectido no semblante de sua mulher, deteve-se. Um lampejo de contrariedade fulgurou-lhe nas pupilas escuras; mas, dominando-se, comentou com imperceptível ironia:
- Seja. As paredes e tectos são grossos e as portas duplas... Far-te-ei a vontade. vou tocar em surdina.
Pegou no violino, afinou-o baixinho e depois aproximou-se de France e começou a tocar.
A melodia era estranha. Marsac não interpretava qualquer compositor; desde os primeiros compassos, France adivinhou-o. Mas ficou espantada quando os dedos de Miguel ressuscitaram a livre e bravia Slovitânia... Como seria possível ele evocá-la daquela forma? Não poderia dizê-lo. Contudo, sem hesitar, reconheceu a própria alma daquele país...
Era a imensa estepa, varrida pelo vento e pelos uivos dos lobos; a floresta sacudida pelas rajadas, o galope dos fogosos cavalos magiares, percorrendo os prados vastíssimos; a voz ameaçadora das torrentes, rugindo no fundo dos despenhadeiros,.. Eram as danças da ressurreição que, pela Páscoa, serpenteiam por entre os túmulos; a possante águia, cujo pesado voo atinge as alturas; os loureiros-rosa, descendo pelas encostas; a tartana, deslizando suavemente ao som das canções dos marinheiros,
Mas em breve a melodia se modificou e outra se elevou mais dolorosa, amarga e selvática.
France escutava esse canto de triunfo sem fazer um gesto. Dir-se-ia que um coração atormentado ia buscar à própria dor forças para realizar a sua vingança. E, de repente, teve a certeza de que não lhe seria possível escutar aqueles lamentos, um minuto mais que fosse. Dispunha-se a estender as mãos para mudo protesto quando, precisamente no momento em que esboçava o gesto, ressoaram leves pancadas na porta do quarto.
Brutalmente chamado à realidade, Miguel poisou o violino e, tirando da algibeira o fino lenço de seda, passou-o pela testa. Depois, interrogou com olhar vago:
- Enganei-me?... Alguém bateu?
E, sem esperar pela resposta, atravessou a sala com o seu passo ágil e dirigiu-se para a porta. Um biombo de seda bordada com gaselas e folhas de Outono ocultou-o por momentos aos olhos de sua mulher que, no entanto, não perdeu uma palavra do diálogo travado.
- Que deseja? -perguntou, imperiosamente, o violinista ao abrir a porta.
Uma voz surda, que France reconheceu como sendo a do guarda da noite, chegou-lhe aos ouvidos, primeiro desculpando-se e depois dando explicações.
- Trata-se de uma mensagem que acabamos de receber num telefonema, com ordem de a transmitir imediatamente ao senhor Marsac.
- Está bem, obrigado... Espere um instante! O ligeiro ruído de papel a ser rasgado, pesado
silêncio e depois a voz de Miguel, transtornada, trémula, a despeito da banalidade das palavras:
- A que horas passa o próximo comboio para a fronteira ?
- O rápido pára na estação às quatro e trinta.
- Quatro e trinta ? - repetiu o violinista, consultando o relógio de pulso - Tenho pouco tempo, mas posso apanhá-lo.
Reflectiu durante alguns momentos e depois concluiu com decisão:
- Vá avisar o trenó do hotel para que esteja diante da porta daqui a um quarto de hora, com o melhor cavalo, bem entendido. Pagarei o dobro da tabela. Vá depressa.
Os agradecimentos que se seguiram a esta ordem deram a entender a France que também o guarda havia participado da liberalidade de Marsac.
A porta fechou-se e France viu Miguel reaparecer, Miguel cujo rosto contraído traduzia uma espécie de triunfo. Aproximou-se devagar. Dir-se-ia ter esquecido por completo sua mulher e estremeceu quando tropeçou na ponta do casaco de peles que arrastava pelo tapete. Parou então e, com um olhar distante, fixou France que se levantara. O rosto, porém, reflectiu os mais contraditórios sentimentos que terminaram numa expressão resoluta. Durante algum tempo ainda, ficou calado, como par,a dominar as últimas hesitações e depois aproximou-se dela com passo firme.
- Ouviste, não é verdade? Sou obrigado a partir.
France ergueu para ele um olhar de espanto e, corajosamente, tentou sorrir.
- Tanto mistério, Miguel! Para onde vamos ? O violinista fez um gesto de impaciência logo reprimido.
- O meu procedimento, nestas circunstâncias, é estranho, concordo. No entanto, apelo para a tua confiança e peço-te para não me fazeres perguntas.
Calou-se um instante e o seu olhar mergulhou nas pupilas azuis que, calmas, pareciam interrogá-lo. Deu mais alguns passos e pegou nas mãos de sua mulher.
- É preciso que me compreendas. Francisca. Um dever imperioso obriga-me a partir... sozinho. Se me acompanhasses, comprometerias todo o nosso futuro. Regressarei em breve. Ficarás aqui. Sei que és suficientemente sensata para aceitar, momentaneamente, uma situação que não está na minha mão modificar.
France, vagarosamente, libertou as mãos, mas. não respondeu a Miguel, que por certo interpretou este silêncio como aquiescência, porque, afastando-se, começou a fazer os seus preparativos. Entrou no quarto e, à pressa, meteu na maleta diversos objectos e alguma roupa. France ouvia o seu passo apressado e, na meia obscuridade, via o vulto do marido andar de um lado para o outro.
Levantou-se e foi encostar-se ao fogão onde o lume se extinguia lentamente. Muito calma na aparência, aguardava.
Marsac reapareceu. Trazia a maleta na mão e a peliça no braço. Dirigiu-se para pequena secretária colocada num dos ângulos do aposento e traçou algumas linhas numa folha de papel de carta. Meteu-a num sobrescrito, colocou-a bem em evidência, dizendo a France:
- Esta carta é para o Beltrão.
Relanceou um olhar em volta, consultou o relógio, vestiu a peliça e dirigiu-se para o ponto onde se encontrava sua mulher. Poisou-lhe as mãos nos ombros, inclinou-se um pouco, dominando-a com a alta estatura, e murmurou.
- Até breve, Francisca.
Não obteve resposta. France conservava-se de olhos baixos, apertando entre os dedos um cravo que caira da jarra muito sobrecarregada. Por fim, murmurou a meia-voz, sem amargura:
- Miguel, qual a razão por que casaste comigo ? O violinista aprumou-se, num movimento brusco.
O semblante reflectia-lhe espanto e aborrecimento.
- Já vejo que fiz mal em contar com a tua confiança absoluta-comentou com frieza - Arvoras-te em juiz sem teres ao menos os mais rudimentares elementos de apreciação.
France abanou a cabeça.
- Não quero ser juiz, tento somente compreender... Antes de partires, auxilia-me a fazê-lo, Miguel, peço-te.
Marsac esboçou novo gesto de impaciência. Decididamente, France não era tão fácil de moldar como supunha. Dominar-se, naquelas circunstâncias, devia exigir-lhe muita força de vontade, tanto mais para um carácter como o seu. Conseguiu-o com esforço que sua mulher não adivinhou.
- Estás fatigada, Francisca - observou em tom indulgente - Deves descansar. Algumas horas de repouso bastarão para te restituir a calma e o equilíbrio dos nervos. Além disso, o tempo foge e, ainda que o desejasse, não podia satisfazer-te a curiosidade.
Como para evitar nova tentativa, puxou-a para si e quis beijá-la na testa. France repeliu-o quase com horror e Miguel mal podia acreditar que o rosto meigo que tão bem conhecia, pudesse revestir-se de expressão tão dura e hostil.
Durante alguns momentos ficaram um diante do outro, calados, vibrantes, como dois inimigos. Por fim, Miguel encolheu os ombros e com um sorriso irónico, murmurou:
- Como queiras.
Vibrava-lhe na voz uma nota supremamente trocista, que provocou a indignação de Francisca.
Pegou na maleta, pôs o chapéu e dirigiu-se para a porta. Antes de a transpor, voltou-se e repetiu:
- Até breve, Francisca.
- Não - protestou ela-Se transpões essa porta sem me dares as explicações a que tenho direito, será «adeus» e não «até breve».
Surda irritação contraiu as másculas feições. Logo a seguir, porém, essa expressão foi substituída por outra de implacável ironia.
- Um adeus definitivo ? Se eu te pegasse na palavra, arrepender-te-ias, suponho. Mas tranquiliza-te, não o farei... Boa noite. Um pobre viajante vai partir sem ouvir da tua boca uma palavra afectuosa.
A presença invisível de Miguel prolongou-se ainda por alguns segundos para lá da porta. Depois, esta fechou-se e Francisca de Chancel encontrou-se sozinha na sala.
Quando pensou em abandonar o seu lugar, os guisos do trenó, que transportava Marsac, já se haviam desvanecido. Na sala, as flores brancas pendiam das jarras e esse pronuncio de morte mais lhes exacerbava o perfume... A coluna luminosa de alabastro projectava fantásticas sombras nos cortinados e Francisca teve a sensação de não ser também mais do que uma sombra naquele estranho cenário.
Antes de regressar ao seu antigo quarto, reuniu à pressa os objectos que lhe pertenciam: boné de pele, casaco, luvas e um lenço de pescoço. Depois, em passo firme, encaminhou-se para a porta.
Em cima da secretária, a carta que Miguel deixara para Beltrão, podia constituir uma tentação, visto não estar fechada. Francisca, porém, passou sem um olhar. Tudo quanto dissesse respeito ao violinista Miguel Marsac deixara de a interessar. No seu orgulho, acabava de decidir que nunca mais o veria!
Desde Trieste que a chuva não deixava de açoitar o rápido que se dirigia para Kroukoya.
Pesadas gotas esmagavam-se no vidro da janela da carruagem, formando pequeninos regueiros que se confundiam com monótona regularidade. Através desta cortina de água, a paisagem invernosa era de uma tristeza mortal. A própria Natália o sentiu porque, voltando, resolutamente, as costas para a janela, tentou dormir.
Tentou, não. Adormeceu de verdade. Um solavanco fez escorregar a almofada que colocara debaixo da loira cabeça, sem que ela abrisse os olhos. com leve sorriso, Francisca inclinou-se para a gentil condessinha. Apanhou o livro que lhe escorregara da mão, puxou a manta para cima dos joelhos da adormecida e depois, cerrando por sua vez as pálpebras, entregou-se aos seus pensamentos.
Considerava verdadeiro milagre encontrar-se ali junto de Natália, como no passado, facto que ainda lhe causava maior alegria por ter hesitado em aceitá-lo.
No dia seguinte ao casamento, quando, depois de uma noite de insónia, acabava de se levantar, Francisca encontrou uma carta da condessa, chamando-a a Paris. Por muito tempo vacilou. Se, por um lado, desejava abandonar o hotel e fugir de todas as testemunhas daquele triste episódio da sua vida, por outro, repugnava-lhe voltar para junto de Natália como se coisa alguma se tivesse passado. Classificava esse gesto como um abuso de confiança, censurável e feio.
De joelhos, na solidão do quarto, pediu Àquele cujas inspirações nunca enganam, para a guiar. Por fim, levantou-se. Tomara uma resolução e, mais calma já, preparou-se para a partida.
Fechou as malas, traçou algumas palavras de despedida para a sua velha amiga. Por ser muito cedo, madame Bertin ainda estava recolhida e, além disso, France não se sentia com coragem para a ver.
«Du Breuil explicar-lhe-á tudo... se puder» pensou com rancorosa amargura, englobando nela todos os que se relacionavam com Miguel.
Como fora grande a sua alegria quando, ao empurrar a porta do quarto de Natália, esta se lhe precipitou nos braços! O acolhimento desvaneceu, por instantes, todas as apreensões causadas pela perspectiva da confissão. Sim, France havia decidido confessar à condessa Olga toda a sua triste aventura para obter dela o seu perdão... ou ser despedida.
A condessinha, porém, arrastou-a para um divã e a viajante compreendeu logo que a confissão teria de ser deixada para mais tarde.
Terrível notícia obrigara a condessa Olga a partir para a Slovitânia: o rei Nicolau, vitimado por um desastre de automóvel, encontrava-se na agonia. A condessa partira imediatamente para Kroukoya, acompanhada pelo filho Stanko, e Natália, a quem a mãe desejava poupar as fadigas de uma viagem precipitada, ficara com a dedicada criada de quarto, aguardando a chegada de France, que deveria acompanhá-la até à capital...
Todavia, a viagem foi mais uma vez adiada. Pouco depois da chegada de France, nova carta da condessa Olga comunicava a morte do rei e exprimia o desejo de que as duas raparigas não partissem para Kroukoya, enquanto se realizassem as cerimónias fúnebres.
Esta decisão não surpreendeu a dama de companhia. Natália, apesar da sua aparência robusta, não podia suportar emoções ou fadiga e a mãe procedia com sensatez evitando-lhas.
Ligeiro movimento no banco solicitou a atenção de France. A condessinha abriu os olhos e, endireitando-se rapidamente, exclamou com espanto:
- Adormeci!
Passou a mão pelos loiros cabelos, compôs as madeixas um tanto desgrenhadas e depois voltou-se para a companheira.
Não era bonita, mas o rosto de contornos ainda infantis era encantador. Os olhos muito azuis, os cabelos loiros, os lábios sorridentes, formavam um conjunto que, se não realizava o ideal que formamos de uma Oriental, reflectia, contudo, uma alma ingénua em toda a sua pureza. O trajo de luto revestia-a de um cunho de seriedade pouco nos seus hábitos, facto que a preceptora não pôde deixar de notar em voz alta.
Natália soltou um suspiro.
- Pobre Nicolas!... Não gostava muito dele, mas, no entanto, a sua morte entristeceu-me.
Francisca não fez comentários. Sabia que entre Nicolau da Slovitânia, completamente dominado por sua mulher, e a família, deixara de existir a mais pequena intimidade.
A condessinha, muito calada também, traçava, com a unha, fantásticos desenhos no casaco de peles. De repente, ergueu a cabeça e observou:
- Em tudo isto, existe um facto que me dá alegria. Sabe qual é, Francisca? Milena tem de abandonar o trono da Slovitânia!
Na voz vibrava-lhe uma nota de triunfante regosijo, que provocou o sorriso de France.
- Que sentimentos tão pouco generosos! - ralhou, tentando adoptar um ar severo-De resto, não sei por que a sua prima...
- Perdeu tudo, France, perdeu tudo - interrompeu a rapariga, sem fazer caso da repreensão e esboçando, ao mesmo tempo, um gesto com a mão, um gesto largo, como se varresse o espaço.
- Entre nós, as mulheres não podem reinar prosseguiu - e Milena perde também o título de rainha. Ficará sendo apenas uma princesa da Casa Real. Depois de Nicolas, subirá ao trono o príncipe Kersto, nosso primo, e, se ele não existisse, o rei seria o Stanko.
Calou-se, enquanto a preceptora murmurava:
- Kersto ? O príncipe Kersto ?
O nome não lhe era estranho, porém, não lhe despertava qualquer recordação, mas, simplesmente, a vaga impressão de já o ter ouvido.
Natália, que não podia adivinhar os pensamentos da companheira, continuou:
- É ele quem, de futuro, governará a Slovitânia. Que brilhante desforra o destino lhe proporcionou !
E, notando a expressão admirada de France, explicou:
- Trata-se de um facto ignorado. Eu própria quase esqueci aquele cujo nome não devia ser pronunciado na corte.
Recostou-se no banco e, com o olhar perdido para além da vidraça batida pela chuva, prosseguiu:
- Eu era ainda pequena quando meu primo abandonou a Slovitânia para sempre. Como é natural, ninguém me revelou a causa do exílio. Notei que coincidia com o casamento do Nicolas, mas não estabeleci entre os dois acontecimentos qualquer relação. Mais tarde, graças a indiscreções e à minha experiência...
Uma gargalhada soou na carruagem. A tal experiência de que se gabava a juvenil condessa despertou o riso de Francísca, riso que havia perdido naqueles últimos dias.
- Não zombe de mim, minha querida France protestou Natália com fingida indignação - ofendeu-me e vou abreviar a minha narrativa. O príncipe Kersto e Milena gostavam um do outro e iam casar. Nicolas, porém, ao regresssar de prolongada viagem, pelas capitais da Europa, viu aquela que ia ser sua prima e apaixonou-se por ela. O avô tinha morrido e ele, sendo o mais velho dos netos, subiu ao trono, mas não o ocupou sozinho. Milena, preferindo o poder ao amor, atraiçoou o noivo e casou com ele.
Calou-se um instante e concluiu com vingativa satisfação:
- Em face disto, não tenho razões para afirmar que os oito anos de exílio não deviam ter abrandado o rancor do príncipe contra Milena ? Salvo se ainda gosta dela, o que seria muito pouco merecido, não acha ?
Francisca respondeu com um movimento da cabeça, o que Natália deveria ter tomado por aprovação, porque, voltando-se, de novo se absorveu na contemplação da tristonha paisagem.
A chuva continuava a cair, mas não com tanta violência. Não açoitava, mas escorria através do arvoredo, pelas paredes das casas e pela neve do caminho. O Inverno, que na Slovitânia é sempre rigoroso, naquele ano ainda parecia mais rude. Natália fê-lo notar à companheira, apontando-lhe os enormes pedaços de gelo, arrastados pelo rio que passava debaixo da ponte metálica por onde o comboio corria naquele momento.
A condessinha começava a mostrar-se impaciente. Aquela última hora de viagem - a mais comprida, segundo afirmava - custava a suportar.
De súbito, quando o comboio parou na última estação antes de Kroukoya, a porta do compartimento abriu-se e, com grande surpresa das duas raparigas, entrou um rapaz, que ambas reconheceram como sendo o preceptor de Stanko.
Era esbelto, infinitamente distinto. Pouco mais deveria ter do que trinta anos, mas parecia mais novo, apesar de alguns fios prateados entremeados nos cabelos loiros. O rosto simpático tinha uma expressão um tanto romântica. A sua erudição, que fazia dele um companheiro agradável, e a comum nacionalidade, constituiam as bases da sincera amizade que se estabelecera entre ele e France. Depois de ter cumprimentado Natália e a preceptora, João Lignères declarou-lhes que estava ali para as acompanhar ao castelo de Pakovatz, moradia que pertencia ao príncipe Kersto e ficava a cem quilómetros da capital. Por sua ordem, a corte residia ali enquanto durasse o luto.
A viagem prosseguiu. Ultrapassados Kroukoya e os seus arredores, a paisagem tornou-se mais agreste. Olhando para fora, Francisca viu que atravessavam uma região montanhosa na qual se misturavam, na mais desconcertante desordem, montes escarpados, desfiladeiros, florestas, planaltos, vales e ravinas. Não conhecia aquele ponto da Siovitânia e o seu extraordinário, mas pitoresco aspecto, trouxe-lhe à memória a lenda montenegrina:
«Quando Deus criou o Mundo, percorria o espaço com o saco onde guardava as montanhas, para as atirar aos punhados, quando entendesse. Infelizmente, o fundo do saco rompeu-se, deixando cair no mesmo ponto tremenda massa de serras e montanhas.
Esta lenda corria em Tsernagora, mas podia muito bem aplicar-se à região de Pakovatz.
A tarde estava no fim quando as viajantes desceram do rápido na pequena estação onde eram aguardadas por dois potentes carros. No primeiro, de linhas elegantes e com as portinholas brasonadas, instalaram-se Natália, France e Lignères. A criada de quarto, que parecia meio adormecida, subiu para o outro onde também foram colocadas as bagagens.
A aproximação da noite diluía os contornos da paisagem. No entanto, quando o automóvel se encontrou em pleno campo, France teve a impressão de que as trevas se esbatiam. A estrada, os campos, os prados e a floresta, tudo estava coberto de neve, que, recentemente caída, parecia ainda conservar a pureza luminosa adquirida nas alturas.
Sem olhar para o cenário maravilhoso, a condessinha, com evidente satisfação, encostou os pés calçados com elegantes sapatinhos, à botija eléctrica. Parecia apreciar bem o conforto do carro, cujo aspecto lhe arrancara discreto, mas prolongado assobio de admiração:
- Que é isto? O mais luxuoso carro da corte para nós! Decididamente, os tempos mudaram !
Sorridente, Lignères informou que a ordem para enviarem aquele carro à estação devia ter sido do príncipe Kersto, pois fora ele quem, tendo chegado na véspera ao castelo onde já se encontravam a condessa Olga, Stanko e Milena, escolhera o carro para ir buscar as duas viajantes.
O automóvel atravessava imensa floresta, cujas árvores se assemelhavam, na sua rigidez e brancura, às colunas de um templo colossal. Pouco a pouco, porém, estas tornaram-se menos densas como se a mão do homem as tivesse disciplinado e, sem transição, passaram da floresta ao parque do castelo.
Percorreram mais vinte metros, contornaram imenso lago e o carro foi parar diante do palácio, cujas janelas estavam todas iluminadas. O criado abriu a porta e as duas raparigas saltaram para o chão, seguidas por Lignères, que as acompanhou quando subiram a escadaria.
O trajecto foi curto. No entanto, Francisca teve tempo para notar, de passagem, o aspecto do edifício, severo, mas imponente. Ao longo da fachada do primeiro dos quatro andares, corria uma varanda sustentada por cariátides de pedra. A escadaria conduzia ao monumental vestíbulo onde as viajantes entraram.
Depois da obscuridade do exterior, a brilhante claridade que o inundava deslumbrou Francisca. Semicerrou as pálpebras, enquanto a condessinha, com a costumada autoridade, se dirigia ao intendente que acorrera para as receber.
- Indique-nos os nossos quartos, por favor. Mas... és tu, Nikitza? - perguntou com evidente alegria.
O velhote inclinou-se quase até ao chão e depois ergueu para Natália o olhar radiante e balbuciou :
- A condessinha ainda se lembra?
- Se me lembro! - exclamou ela com um riso trémulo.
Voltando-se para a preceptora, explicou:
- O Nikitza, aqui presente, trouxe-me ao colo quando eu era pequena. Durante as férias que passávamos em Pakovatz, atrelava-me o pónei, tratava dos meus cães e confeccionava-me as mais perfeitas linhas para eu pescar no lago! Continuou, fielmente, no seu posto, apesar... dos anos que passaram. Agora reintegraram-no nas suas funções e muito feliz se sente, a avaliar pela sua aparência.
O rosto radiante do intendente bastava como resposta, sem precisar de palavras. Em seguida, curvou-se novamente e dispôs-se a acompanhar as duas raparigas até aos seus aposentos.
Quando abriram a porta e Francisca entrou naqueles que lhe haviam designado como sendo os seus, supôs haver engano. O quarto, que o seu olhar maravilhado abrangia, não podia ser o da preceptora de Natália.
As paredes, forradas de cetim azul com rosas bordadas, sustentavam o tecto magnífico, com embutidos de pórfiro. Duas grandes janelas, que formavam vãos profundos, velados por riquíssimos cortinados de renda, deitavam para o parque. O espelho de Veneza em moldura de cristal, com grinaldas, flores e finas volutas, delicadamente coloridas, constituía uma obra de arte; todos os móveis, desde a cama, réplica da cama de Luís XVI do museu Borely, até à graciosa mesa, eram esculpidos, trabalhados, cinzelados como jóias preciosas. Por fim, a alcatifa fofa e a tapeçaria rara da Hungria que adornava a parede do fundo, completavam o sumptuoso conjunto.
O primeiro impulso de France foi para chamar o intendente responsável pelo engano. Mas o braço que estendera para abrir a porta recaiu. Que importância tinha aquela instalação... temporária? Que importava aquele luxo que gozaria por tão pouco tempo?
Daí a pouco, iria ter com a condessa e contar-lhe-ia tudo. Se a condenasse, tanto pior. Abandonaria Pakovatz nesse mesmo dia. Sendo assim, para que chamar as atenções sobre si ?
Como as malas ainda não haviam sido transportadas para o quarto, a viajante foi obrigada a conservar o vestido de fazenda escura. Tirou o casaco e, passando à sala de banho, limitou-se a fazer a ligeira toillete que se impunha depois de viagem tão demorada.
Acabava de regressar quando, depois de ter batido, entrou uma rapariguita. Vestia o trajo slovitano, mas adaptado ao luto que todo o pessoal da corte devia usar. Um lenço colorido enrolava-se em volta da cabeça expressiva de cigana. A camisa fina, de mangas tufadas, bordada com galões de prata, era apertada com um cinto de cornalinas. A saia branca, ampla e curta, estava em parte coberta por um avental de seda cor de violeta vivo.
com desembaraço, aproximou-se de Francisca e, depois de ter feito uma reverência, disse-lhe chamar-se Maritza, que fora escolhida para sua criada e vinha avisá-la de que a esperavam.
Leve sorriso perpassou pelos lábios de Francisca. No castelo, donde pouco depois, talvez, seria expulsa, recebiam-na com todas as atenções. Começou por agradecer a Maritza, cujo aspecto lhe agradou. Durante alguns momentos conversou com ela e soube com prazer que, educada na escola francesa de Pakovatz, fundada pela falecida princesa Kersto, mãe de Sua Alteza, a criadita falava o francês quase correctamente.
Pouco depois, acompanhada pela graciosa Slovitana, encaminhou-se para os aposentos da condessa Olga Pavlovitch.
Situados no rez-do-chão, estes aposentos dispunham de duas portas. Uma delas abria para o vestíbulo imenso, com grandes colunas de mármore, que pouco antes haviam atravessado. Para lá da segunda porta, toda envidraçada, avistavam-se plantas exóticas, folhagem, fetos e flores. As dimensões da sala, um jogo de mesas e confortáveis cadeiras, davam-lhe um ar de intimidade que devia faltar aos outros aposentos do castelo, muito mais vastos e solenes. No entanto, reinava ali a mesma magnificência que se encontrava em toda aquela principesca moradia.
Maritza saiu e France aproximou-se da condessa, que a recebeu afectuosamente. Era uma senhora alta, forte, aspecto nobre e, ao mesmo tempo, severo, rosto desprovido de beleza, emoldurado por cabelos grisalhos, simplesmente penteados. A precoce viuvez obrigara-a a abandonar a corte para se consagrar, completamente, à educação dos filhos. A encantadora índole meiga, dedicada e espontânea, de Natália era obra sua. Quanto ao conde Stanko, maravilhosamente dotado pela Natureza, devia à influência de sua mãe, a sensatez, a perfeita rectidão e, acima de tudo, o gosto pelo trabalho.
O rapaz, cuja alma pudera ser assim modelada por sua mãe, aproximou-se de France, estendendo-lhe a mão e informando-se da forma como haviam feito a viagem. Era alto, sumamente distinto, o rosto de feições correctas como as de uma medalha romana.
- Seria inútil interrogar a Nat - comentou designando a condessinha que, curiosa, percorria o aposento - Desde que chegou ainda não parou um instante e com certeza não teria tempo para me responder.
- Encontro aqui tantas recordações ! - comentou Natália, sorrindo para o irmão - Por exemplo, neste canto, há dez anos, parti um lindo jarrão antigo.
E com o dedo aflorava riquíssima consola que o seu olhar parecia afagar com enternecimento. A condessa suspirou. A total indiferença dos filhos pela morte do real primo afigurava-se-lhe inconveniente, embora, no seu bom senso, a considerasse natural. Indicou a Francisca uma cadeira perto da sua e começou a conversar com ela sobre os acontecimentos ocorridos em Kroukoya durante aqueles últimos dias. Depois, em poucas palavras, esboçou o plano do que seria a vida no palácio durante os dez meses de luto.
Quando concluiu, um relógio de timbre sonoro deu uma badalada. A condessa levantou-se.
- Sete e meia - disse - Natália, Stanko, temos de nos vestir para o jantar. Bem sabem como o seu primo gosta de pontualidade.
Os dois sairam imediatamente e Olga Pavlovitch designou à preceptora uma pilha de jornais colocada em cima da mesa e pediu:
- Enquanto espera, podia ir classificando essas revistas, sim? Foram atiradas para aí sem cuidado e receio que se perca algum dos exemplares. Aquele móvel baixo poderia servir de estante.
France aquiesceu com a cabeça, mas, em vez de começar imediatamente a tarefa indicada, deu alguns passos para Olga Pavlovitch.
- Esta tarde ou amanhã de manhã poderia conceder-me alguns momentos de atenção, madame ?
A condessa, que já ia perto da porta, voltou-se:
- Pois com certeza, Francisca - respondeu com a habitual benevolência - Vá amanhã de manhã ao meu quarto. De resto, temos muitas disposições a tomar a respeito de Natália e...
A frase ficou por concluir porque, nesse instante, a porta, que Stanko deixara entreaberta, se abriu por completo.
Num movimento brusco, France tapou a boca com a mão, talvez para reprimir a exclamação prestes a soltar. Recuou alguns passos e, lívida, foi encostar-se a uma das mesas. Teve a impressão de que, pela porta, acabava de se engolfar na sala uma força ciclónica pronta a derrubá-la.
- Sempre pontual, meu filho!-exclamou a condessa - Desculpa-me, mas esqueci a hora, entretida a conversar com mademoiselle de Chancel.
A frase equivalia a uma apresentação, porque o gesto que designou Francisca a completou. Olga Pavlovitch encaminhou-se para a porta, enquanto o príncipe Kersto se inclinava diante da preceptora. Depois foi abrir a porta para a tia passar, dizendo ao mesmo tempo:
- Não se preocupe com isso, tia. Atravessei esta sala que supunha erma, para me dirigir à estufa onde Nikitza me espera. Tenho de falar com ele e não estarei livre antes da hora do jantar.
Logo que a condessa Olga Pavlovitch desapareceu, o príncipe fechou a porta e caminhou para Francisca com as mãos estendidas.
- Boa-noite, Francisca.
France não fez um gesto e Miguel deixou cair os braços. No entanto, provou que tinha ouvido a saudação, inclinando a cabeça e murmurando uma só palavra:
- Alteza !
As pupilas de Miguel tornaram-se ainda mais escuras, talvez com o espanto e também descontentamento. Mas, em breve, perpassou por elas sarcástico lampejo.
- Ainda não me perdoaste a brusca partida observou-Desculpa-me. Sempre supus que, quando conhecesses a razão...
E muito sério, acrescentou:
- Não devemos fazer esperar um moribundo, Francisca.
E como ela o interrogasse com o olhar, prosseguiu:
- Quando li o telegrama que me comunicava o desastre, não pensei senão em correr para a Slovitânia! Eu e o Nicolas estávamos separados por... certos agravos; meu primo, no entanto, desejou reconciliar-se comigo e eu supus chegar a tempo. Mas...
Pelo gesto desolador que terminou a frase, France compreendeu que essa esperança não se realizara.
Todavia, dando propositadamente outra interpretação às palavras de Miguel, comentou com amargura:
- Mas não podia apresentar-se junto do leito de morte do príncipe Nicolas com sua mulher... com a dama de companhia das condessas de Pavlovitch !
O príncipe hesitou dois ou três segundos, mas acabou por concordar: - com efeito, momentaneamente, o facto tornava-se impossível.
Voltou-se para a mesa e, distraídamente, começou a folhear uma das revistas. France via-lhe a alta estatura inclinada, a mão fina e o belo perfil que o trajo escuro acentuava e tornava mais duro. Pouco depois, sem abandonar o seu lugar, o príncipe ergueu os olhos.
- France, quero pedir-te uma coisa.
Sem uma palavra, ela aguardou a revelação.
- Durante alguns meses, ainda o nosso casamento tem de ser um segredo.
France não lhe respondeu logo. Dir-se-ia que as palavras lhe chegavam com dificuldade ao cérebro, impedindo-a de coordenar os pensamentos. Por fim, em voz baixa, articulou:
- Miguel, isto não é verdade, pois não ? Não sou, de facto, sua mulher. O nosso casamento não tem valor. Não, não! - continuou como se falasse consigo mesma - Casei com Miguel Marsac e não com o príncipe Kersto!
- Casaste com Miguel Marsac. Os dois nomes pertencem-me. O primeiro, o de minha mãe, que era francesa, escolhi-o para os meus concertos. Quanto aos títulos não mencionados, em nada alteram a legalidade do acto.
Falava com frieza, com uma indiferença, que não seria maior se o assunto dissesse respeito a outra pessoa e não a ele. Durante alguns segundos, Francisca lutou contra a revolta que, pouco a pouco, a ia dominando. Depois, impotente para a reprimir por mais tempo, declarou em voz trémula:
- Proceda como entender! Quanto a mim, vou ter com a condessa Olga Pavlovitch. Os príncipes Kersto têm talvez um código de honra muito especial, mas os Chancel nunca se prestaram a uma indelicadeza!
E deu alguns passos para a porta.
Mas, antes que pudesse transpô-la, o príncipe alcançou-a com poucos passos e prendeu-a pelo braço.
- Não farás semelhante coisa! - protestou em tom imperioso - Não revelarás coisa alguma. Proibo-te!
France ergueu a cabeça num gesto de desafio.
- Daqui a pouco confessarei tudo à condessa - teimou - e depois abandonarei o castelo.
Corajosamente, sustentou o olhar colérico que a fitava; mas não conseguiu reprimir um estremecimento quando os lábios desdenhosos se entreabriram para deixar passar estas palavras, mais fustigantes do que uma chicotada:
- Temos chantagem, Francisca?
Intenso rubor coloriu as faces da preceptora.
Ele tinha razão. Agora qualquer confissão teria aparência de cálculo.
Por que não teria contado a sua aventura à condessa antes dela ter saído da sala ? Por que não lhe revelara a sua inconsequência e loucura de um coração iludido, antes de conhecer a identidade de Miguel ?
Num gesto de desânimo, deixou cair os braços que, maquinalmente, erguera num protesto. compreendia que já não tinha possibilidade de revelar o pesado segredo. O minuto, o único, em que a confissão se justificaria, tinha passado com a entrada do príncipe na sala. De futuro, revelar os laços que a uniam ao príncipe, aos olhos de todos seria considerado como uma manobra para alcançar vantagens, honrarias, reivindicar tudo quanto poderia obter com aquele casamento.
Sem custo, Miguel leu-lhe no rosto todas as hesitações, escrúpulos e, por fim, a capitulação do orgulho ferido. Quando a vitória lhe pareceu assegurada, inclinou-se para ela e comentou:
- Alegra-me que reconheças a necessidade de ser mais razoável, Francisca.
Calou-se um instante e concluiu:
- Assinemos um pacto. .. amigos?
Pela segunda vez, France recusou a mão que se lhe estendia.
com uma espécie de violência, ocultou a sua, recuou para a porta que dava para o vestíbulo, pavimentado de mármore, cintilante de luzes, onde perpassavam os lacaios com a libré de luto e, antes de a abrir disse, martelando as palavras:
- Desprezo-o, Alteza.
O castelo de Pakovatz, situado numa das regiões mais agrestes da Slovitânia, estava rodeado por espessas florestas. Os príncipes Kersto, que o preferiam a todos os outros domínios, nunca tinham consentido que se fizesse naquela imponente tapada o mais pequeno desbaste. De tal forma que, num raio de muitos quilómetros, os arredores da principesca moradia, com as moitas impenetráveis, espessos bosques, planaltos elevados e pouco acessíveis, ravinas arborizadas, constituíam ainda a mais bela reserva de lobos, javalis, ursos, cabritos monteses e veados, que existia em todo o reino.
De manhã, muito cedo, Miguel embrenhava-se pela floresta, em cuja solidão voltava a encontrar a vida livre do passado. Sozinho umas vezes, outras acompanhado por um criado, seguia no trenó para caçar os lobos. Pela estrada que atravessava a floresta, arrebatado pelo galope impetuoso do cavalo, já habituado àquelas perigosas excursões, partia à desfilada. Veloz, o carro voava por entre os troncos dos pinheiros e bétulas, numa paisagem cada vez mais selvática e deserta.. . Deserta ?... Não, porque na berma da estrada algumas sombras passavam. Algumas dessas sombras tão depressa apareciam como desapareciam, outras aproximavam-se ameaçadoras: orelhas espetadas, cabeça levantada, beiços arreganhados, deixando ver os dentes...
Embrulhado na peliça, o príncipe, de pé na retaguarda do trenó, erguia lentamente a espingarda. E o eco da detonação, que se repercutia pelas alcantiladas gargantas, confundia-se com o uivo da fera.
Por alguns meses ainda, Miguel estava afastado das preocupações do poder. O príncipe Nicolas não deixara filhos legítimos. Contudo, antes da proclamação do novo soberano, convinha aguardar, dar tempo a que se afastasse toda a possibilidade do nascimento de um herdeiro póstumo.
Essa cláusula da Constituição, portanto, entregava, durante dez meses, toda a autoridade ao conselho do defunto soberano, que permanecia em Kroukoya. Miguel, naquele período, era considerado apenas como um regente temporário, com funções pouco absorventes, dada a calma da Slovitânia.
Consciente desta liberdade e para aproveitar as últimas neves, decidira passar esses meses no castelo. Saindo de madrugada, só voltava à noite. Extenuado, quase sempre apresentava desculpas à condessa Olga e não comparecia ao jantar.
Todos os membros da família reinante possuíam, na imensa residência, os seus aposentos particulares. Milena, com o seu pessoal, ocupava a ala esquerda, o príncipe Kersto instalara-se no lado oposto, enquanto que os aposentos da frente pertenciam à condessa. Miguel, ao instalar-se no castelo, não tinha querido privar a tia das atenções que lhe eram devidas durante o período que passasse em Kroukoya.
Era isto o que Olga Pavlovitch pensava enquanto fixava, para lá dos cortinados de renda, as árvores do parque que as sombras da noite começavam a envolver.
- Ainda não é hoje que Miguel janta connosco - comentou, consultando o relógio cravejado de brilhantes que trazia pregado no peito - France, quer fazer o favor de servir o chá?
A dama de companhia levantou-se, enquanto Milena dobrava, calmamente, o trabalho e, pondo-se de pé, sacudia as pontas de seda que haviam ficado presas no vestido de luto. Depois, voltou a sentar-se e, apoiando o cotovelo no bastidor, encostou o queixo à palma da mão.
A sua beleza era admirável e recordava aquela que Praxiteles e Fídias imortalizaram nas suas estátuas. Testa alta, nariz direito, olhos imensos, com as pálpebras franjadas de compridas pestanas negras; no tom mate do rosto de oriental, os lábios punham um traço vermelho.
A viuvez transformara-a noutra mulher. Não fingia um desgosto inconsolável, pois todos sabiam e havia muito tempo, como os soberanos se entendiam mal, mas, na perspectiva de ter de abandonar o poder, todo o seu orgulho se desvanecera.
Desta forma, abandonando a ala esquerda do castelo, vinha muitas vezes fazer companhia a Olga Pavlovitch, ocupando-se em qualquer trabalho de agulha. Outras vezes, vencendo a indolência, acompanhava a dama de companhia e Natália nos seus passeios, caminhando durante muitas horas, sem aparente aborrecimento.
Natália tinha certas dúvidas sobre a sinceridade destas novas disposições. E a própria France ressentia sempre estranho mal-estar quando encontrava o olhar das negras pupilas, que cintilavam no rosto encantador de cútis de seda.
Quando acabou de dispor a bandeja, trazida por um criado, em cima da mesa volante e regulado a luz da sala, France pediu a Olga Pavlovitch licença para se retirar. Natália dava lição de harmonia com um professor vindo de Kroukoya e, dessa forma, a preceptora tinha a tarde livre.
Recebendo uma resposta afirmativa da condessa, France subiu ao quarto e vestiu um casaco com capuz. Depois, pela escada de serviço e por uma porta lateral, saiu do castelo. Quando atravessava a espécie de esplanada que se estendia entre este e o parque, Lignères alcançou-a. Trazia o álbum de desenhos debaixo do braço e explicou a sua saída, dizendo que os efeitos da neve na floresta haviam encantado o aluno e que ia tentar desenhá-los para ilustrar a obra sobre a Slovitânia, que os dois haviam começado a escrever.
France sorriu e confessou que outro projecto a obrigara a sair do castelo. Tinha prometido a Maritza, a criada de quarto, presa por causa do seu serviço, ir a casa dos pais saber notícias de uma irmã doente.
Os dois preceptores fizeram juntos parte do trajecto. Depois, Lignères abandonou a alameda principal para se embrenhar por um atalho que conduzia, directamente, ao ponto escolhido para o desenho. Francisca continuou sozinha, apressando o passo porque a noite se aproximava.
Pouco depois de ter passado do parque à floresta ouviu ao longe um ruído. Escutou com atenção e logo reconheceu ser o galope de um cavalo, que martelava o solo endurecido com fogosa regularidade e tão rápido que France nem sequer teve tempo para se admirar. Um trenó desembocou numa curva do caminho e em dois ou três segundos alcançou-a.
France afastou-se para o lado, contando passar despercebida na obscuridade crescente. Mas a ilusão de o ter conseguido pouco durou. Mal a ultrapassara, o cavalo, violentamente puxado, parou, com as patas vibrantes e as narinas fumegantes.
- Perdeu o juízo? - exclamou o condutor do trenó, pondo-se de pé - Ou ignora que, mal anoitece, ninguém pode aventurar-se pela floresta por causa dos lobos ?
Sem responder, Francisca abandonou a berma da estrada, mas Miguel só a reconheceu quando ela deu alguns passos para o trenó. Mordeu os lábios. Era a primeira vez que dirigia a palavra a sua mulher depois do cruel insulto com que o ferira. Todavia, saltou para o chão e, com severidade, ralhou:
- A tua imprudência não tem desculpa, Francisca; os limites do parque ficam já muito para trás.
- No entanto, vou ainda mais longe - declarou ela com tranquilidade.
- Mais longe? Queres dizer que vais à aldeia?
- Exactamente.
- E minha tia não se opôs a esse perigoso projecto ?
- Considerei inútil pedir-lhe licença para uma coisa tão simples... Além disso - concluiu com impaciência - ainda há pouco Lignères me acompanhava.
Miguel não lhe respondeu e Francisca, supondo que esse silêncio marcava o final da conversa, afastou-se um pouco, disposta a continuar o seu caminho. Mas a voz imperiosa fez-se ouvir:
- Sobe para o trenó - ordenou Miguel.
A rapariga parou e replicou com calma, designando a equipagem que estava voltada na direcção de Pakovatz:
- Lamento, mas não posso regressar já ao castelo.
com violência mal contida, o príncipe tomou as rédeas e, como a estrada era larga, fez o trenó dar meia volta. Depois dirigindo-se de novo a Francisca, declarou:
- Pronto! Como vês, agora posso conduzir-te onde desejares.
A dama de companhia sentiu desejos de recusar e a custo dissimulou o aborrecimento que lhe causava a insistência. Mas como Miguel já tivesse ocupado o seu lugar, após ligeira hesitação, instalou-se a seu lado sem que ele pensasse em auxiliar.
Pelos caminhos da floresta, o trenó deslizava com rapidez. Rígidas, as grandes árvores dir-se-iam correr ao encontro dos dois e, por vezes, um dos ramos, sacudido pelo chicote de Miguel, deixava cair sobre o trenó uma poeira fina e gelada. Nos outros ramos, formando abóbada por cima da alameda, a neve fulgia com as cores do arco-iris, na claridade amortecida do crepúsculo. O galope do cavalo no solo endurecido mal interrompia o profundo silêncio dos bosques.
Francisca e o companheiro seguiam calados. A semelhança do cenário talvez conduzisse o pensamento de ambos para a Suíça, mas essas recordações não podiam ser evocadas entre eles.
Todavia, Miguel foi o primeiro a falar. com o olhar fixo no caminho, perguntou com ar indiferente, como se prosseguisse uma conversa interrompida:
- Surgiu algum obstáculo que impedisse Lignères de te acompanhar à aldeia?
- Lignères ? - repetiu Francisca.
Mas, recordando de súbito a amável companhia do preceptor, quando saira do castelo, limitou-se a elucidar com laconismo:
- Lignères seguiu noutra direcção, eis tudo.
O príncipe não lhe respondeu e com a ponta do chicote fustigou as ancas do cavalo, apesar deste não ter abrandado o passo. O animal teve um sobressalto e, com maior ardor ainda, precipitou-se pelo caminho tapetado de neve.
Mal atingiram as primeiras casas da aldeia, Miguel, a pedido de Francisca, imobilizou o trenó. Mas não abandonou o seu lugar nem esboçou um gesto para auxiliar a preceptora que, de resto, saltou para o chão logo que o animal parou. Transpôs, imediatamente, a porta de uma das casas e entrou num aposento vasto, com as vigas do tecto a descoberto e o chão lageado. Na sombra, adivinhavam-se as largas camas, bancos, arcas pintadas, comuns a todas as casas de Oriente e, no lugar de honra, os ícones nimbados de prata, junto dos quais ardia uma lamparina.
Solícita, a mãe de Maritza aproximou-se para, segundo o uso do país, beijar as mãos da recém-chegada, fazendo ligeira genuflexão. Depois deu-lhe notícias tranquilizadoras sobre o estado de Stephana, a quem a febre já havia abandonado. Graças ao Céu» estava quase restabelecida e poderia comparecer na feira das raparigas solteiras, que se realizaria na Primavera.
Depois de ter recusado o café que fumegava num jarro de faiança antiga e o queijo fresco, disposto num bocado de casca de pinheiro, com os quais a boa mulher lhe manifestava a sua hospitalidade, Francisca despediu-se e voltou para o trenó. Miguel pegou nas rédeas e este partiu, internando-se com os seus ocupantes na floresta já envolta em sombras.
Depois de alguns minutos de uma corrida silenciosa, Francisca, examinando a paisagem, voltou-se para o companheiro e observou com espanto:
- O nosso caminho não é este. - com efeito, não é o mesmo de há pouco declarou Miguel, que logo a seguir explicou - Antes de regressar ao castelo, devo encontrar-me com o guarda florestal. Espera-me todas as noites no pavilhão de caça, erguido na margem do Zagora.
Francisca não manifestou a sua opinião sobre esta mudança de itinerário, embora o semblante exprimisse evidente descontentamento.
O trenó percorria um caminho ainda mais agreste onde, de vez em quando, chegava o rugido surdo de uma torrente. Por uma ponte de madeira bastante primitiva, transpôs o Zagora, impetuoso ribeiro cujo nome significa «na base da montanha», porque, com efeito, este ribeiro, desde o início do seu curso, acompanhava o sopé de uma cadeia de montanhas, como se não conseguisse afastar-se delas.
Ainda alguns metros de estrada e, de repente, inesperada naquele ermo local, uma casa apareceu. Era um pavilhão, situado no centro de vasta clareira, tendo como fundo alta parede rochosa. Solidamente construído, dispunha de um só piso, ao qual se chegava por uma escadaria. Uma galeria coberta, espécie de varanda, corria em volta da casa e, ao chegar à escadaria, a sua balaustrada de ferro forjado seguia, servindo de corrimão. Â direita e à esquerda desta, como para lhe defender o acesso, dois veados de pedra, em tamanho natural, pareciam escutar, nas profundezas dos bosques, o toque de misterioso halali.
O príncipe subiu a escadaria e abriu de par em par a porta do pavilhão. Depois afastou-se para o lado para deixar entrar sua mulher. Junto do monumental fogão estava um homem, activando as altas labaredas do lume que nele ardia. Ao vê-los entrar, afastou-se para um dos ângulos do aposento onde o príncipe foi reunir-se-lhe.
Francisca aproximou-se do fogão. Enquanto estendia para o fogo as mãos desenluvadas, o olhar curioso vagueava pela sala.
Estranho pavilhão de caça, aquele! Construído no coração da floresta, na mais completa solidão, o aspecto não correspondia a rusticidade do seu destino.
Pendurados nas paredes, trofeus de caça: cabeças embalsamadas de javalis, de gamos e de ursos; mas também preciosos desenhos de Calott, alternando com pistolas de coronha de prata, espingardas albanesas, uma cimitarra e, colocadas em armeiros, outras belas armas de toda a espécie.
O chão estava coberto por espessos tapetes e, sobre o divã, duas magníficas peles de urso. Cadeiras baixas, almofadas diversas, mesas pequenas carregadas com caixas de cigarros, revistas e livros e, colocado diante de uma janela, a inesperada silhueta de um piano de cauda.
De repente, estranha emoção dominou o coração de Francisca. Aquele aposento, animado pelas visitas cotodianas, não indicava quanto o príncipe, no meio da sua grandeza, se sentia só? Os livros abertos, o lume no fogão e todos os objectos dispostos ao alcance da mão de Miguel, não davam a entender que, no seu abandono, ele vinha procurar refúgio ali e não no castelo ?
Por fim, o olhar de Francisca fixou-se numa moldura de prata que, em cima do piano, constituía o único ornamento da sala. Admirada, aproximou-se para examinar o trabalho de ourivesaria que lhe pareceu maravilhoso e que, sem dúvida, devia encerrar uma bela pintura de Callot. Para melhor o examinar, voltou o retrato para si e, no mesmo instante, largou-o. Recuou e, lentamente, afastou-se da moldura preciosa na qual sorria o rosto de Milena.
Entretanto, o guarda terminava o relatório que Miguel escutara sem o interromper. Encostado a um contador, ocultando parte do rosto com a mão, poder-se-ia supor muito atento. Quando o homem se calou, deu, rapidamente, algumas instruções, despediu-o e quando ele saiu aproximou-se de Francisca.
- Estavas a examinar o retrato ? - inquiriu, provando assim que não perdera um só dos gestos de sua mulher - Representa a princesa Milena aos dezassete anos.
- Reconheci-a - retorquiu Francisca com indiferença.
E, pousando sobre Miguel o olhar inexpressivo, acrescentou:
- Sua alteza é hoje tão linda como nesse tempo. O príncipe não lhe respondeu. Abrindo uma
caixa, escolheu um cigarro, depois de a ter, inutilmente, apresentado a Francisca. Durante algum tempo, calado, expeliu para o tecto finas espirais de fumo azulado. Por fim, como ela voltasse a pôr o capuz, indicando assim que se preparava para a partida, estendeu a mão:
- Sabes o que venho procurar aqui, Francisca? Em seguida, sem lhe dar tempo a responder nem a manifestar espanto, murmurou em voz surda:
- Um fantasma! O inacessível fantasma do meu passado! Sim - acrescentou após breves instantes de silêncio, durante os quais o seu olhar duro fixava o vago - de princípio, evoquei-o com receio de o ver surgir e, agora, pergunto a mim mesmo se não teria sido preferível encontrá-lo entre estas paredes.
Num gesto nervoso, sacudiu a cinza do cigarro para o fogão. Depois, voltou-se para Francisca e prosseguiu em tom diferente:
- Desculpa-me. Deves professar pelas minhas confidências o mesmo... desprezo que professas por mim...
Sem lhe responder, Francisca aproximou-se da janela e, através da vidraça, designou com o dedo a floresta mergulhada em sombras.
Miguel estremeceu com o golpe directo. Contava talvez com um protesto ou, pelo menos, com algumas palavras que atenuassem aquelas com que Francisca o fustigara no salão da condessa. Mas aquele silêncio voluntário, o desdém pelas desculpas, não significariam, por si só, maior insulto ?
Aprumou-se e, esmagando o cigarro numa taça de onix, encaminhou-se para a porta sem acrescentar palavra. Porém, no momento em que se dispunha a abri-la, pareceu recordar-se de qualquer coisa. Bruscamente, voltou-se para Francisca e, enquanto uma chama lhe iluminava o olhar duro, exclamou:
- Sou um estouvado. Esquecia-me do mais importante.
Ao mesmo tempo, desabotoou o sobretudo e tirou da algibeira interior elegante carteira, que estendeu a sua mulher.
Uma onda de sangue tingiu as faces de Francisca. Imóvel, com os dentes cerrados, fixava Miguel que continuou:
- A princesa Kersto deve, seja quando for, poder fazer face, largamente, às suas despesas pessoais. O conteúdo desta carteira será renovado todos os trimestres. No caso de achares a quantia insuficiente, peço-te para mo dizeres francamente.
Profundo silêncio acolheu a declaração. Muito pálida, Francisca lutava contra a indignação que lhe paralizava a voz.
- Eu não sou princesa Kersto - pôde por fim dizer com surda violência.
Miguel não se mostrou impressionado.
- Seria difícil contestá-lo. Em todo o caso, só eu sou juiz no assunto e decidi...
- Decidiu o quê?
Defrontava-o, finalmente, trémula de indignação. Naquele instante onde estava a rapariguita com quem casara na Suíça e cujo carácter supusera submisso e moldável ?
- Decidiu - continuou ela - comprar o silêncio e a... humilhação de uma mulher? E, segundo todas as aparências, fez o preço. Mas enganou-se, Alteza. Francisca de Chancel não recebe esmolas e, por outro lado, não cometeria a indelicadeza de aceitar uma pensão à qual não se julga com direito.
A despeito da sua firmeza, Miguel, pela primeira vez, perturbou-se. Deixou tombar a mão que segurava a carteira e, numa voz hesitante, murmurou :
- Não me compreendes, Francisca.
- Não - replicou com súbito desânimo - não o compreendo, mas isso não tem importância. Regressemos ao castelo, peço-lhe.
com a testa franzida e expressão dura, Miguel seguiu com a vista sua mulher, que, passando-lhe à frente, abriu a porta e saiu para a varanda do pavilhão. Um vento gelado engolfou-se nos cortinados e fustigou as faces do príncipe. Então, como se despertasse, encolheu os ombros, abandonou o seu lugar e, seguindo Francisca, desceu a escadaria.
O trenó aguardava-os num dos lados da clareira e a neve cavada junto das patas do cavalo indicava a sua impaciência. Rapidamente, Miguel desprendeu-o. Depois, tendo coberto os joelhos de Francisca com quente manta, atirou para o ar um tiro de espingarda, talvez para anunciar ao guarda a sua partida, e instalou-se no seu lugar.
Pouco depois, através da floresta, povoada por inquietantes estalidos, estranhos apelos e ruidos hostis, os dois, sem trocarem uma palavra, corriam para o castelo com a máxima velocidade.
A estufa do castelo estabelecia comunicação entre os aposentos da condessa e os do príncipe. Era uma galeria envidraçada onde cresciam em profusão plantas exóticas, arbustos raros e flores, um tanque de água murmurante, colunas de mármore nas quais se enroscavam roseiras, estátuas emergindo de maciços de verdura, formavam um recanto poético e confortável no meio do duro Inverno slovitano.
O príncipe apreciava mais este ponto do castelo do que nenhum outro e estava grato a Nikitza por não ter descurado a sue conservação durante os anos que passara no exílio. Instalara-se em vasto aposento, contíguo à estufa, fazendo dele o seu gabinete de trabalho, e ali passava o tempo, quando não saía.
De resto, os passeios haviam sido interrompidos. O temporal soprava com tal violência que, com os seus assaltos furiosos, o castelo parecia ir desmoronar-se. Durante a noite, o vento uivava como uma alcateia de lobos, galopando pela floresta vizinha e, durante os dias escuros e tempestuosos, não deixava de soprar.
O salão de Olga Pavlovitch ressentia-se do ambiente exterior. Stanko e Lignères raramente apareciam, completamente absorvidos pela obra que ambos escreviam, uma história da Slovitânia. O riso de Natália ouvia-se com menos frequência, e a própria condessa Olga parecia preocupada. Milena era a única que não se modificara, conservando a mesma aparência que, depois da morte do rei, havia adoptado.
Francisca experimentava singular mal-estar em face desta calma. A sua sensibilidade não podia deixar de notar estranha discordância entre a voz musical e cantante e o rugir da tempestade.
Muitas vezes, embora logo se arrependesse, não podia deixar de prestar ouvido atento aos ruídos vindos de fora para conseguir descobrir, através dos gemidos das árvores açoitadas pelas rajadas, o galope de um cavalo... Mas não, o príncipe Kersto não cometeria semelhante imprudência. Instalado no seu gabinete, com o secretário e, por vezes, com algum dos membros do Conselho da Coroa, trabalhava.
A um sinal de Olga Pavlovitch, France levantou-se e estava a correr os cortinados de damasco bordados, quando a porta do salão se abriu. Alegre exclamação de Natália acolheu a entrada de Stanko e do preceptor.
- Finalmente, decidiram-se a abandonar os seus horríveis manuscritos!
- O conde Stanko resolveu suspender o trabalho mais cedo do que o costume - respondeu, friamente, Lignères, sem se voltar para Natália, cujo rosto radioso se ensombrou.
com um sorriso feliz, a condessa estendeu a mão ao filho. Reflectiu durante alguns minutos e depois chamou a dama de companhia.
- Francisca - disse - como sua alteza não saiu hoje, quer ir pedir-lhe da minha parte para vir tomar o chá connosco ?
Sem uma palavra, France largou o trabalho, levantou-se, abandonou o salão e atravessou a estufa para ir bater à porta de Miguel.
- Entre! -proferiu este com impaciência. Quando Francisca assomou à porta, Miguel, de pé, ao lado do secretário, tomava conhecimento de um relatório. Estava encostado ao fogão, sobre cuja pedra ardiam dois candelabros toscanos. A fraca iluminação deixava na sombra parte do gabinete. Mesmo assim, Francisca entreviu belas arcas Renascença, imensa secretária cujos pés esculpidos figuravam quatro grifos, uma estante, repousando sobre uma águia de madeira doirada, e tapetes orientais de cores vivas. Numa das paredes corriam largas prateleiras. As outras estavam revestidas com ricas tapeçarias, representando episódios das Escrituras, embora - estranho anacronismo - os heróis usassem armaduras do século XVI e as damas trajos de corte.
Largando em cima da mesa o relatório que o ocupava, Miguel despediu o secretário e só depois da porta se fechar se aproximou de sua mulher:
- Sê bem-vinda, Francisca.
Como se não o tivesse ouvido, ela disse, friamente :
- Alteza, a condessa Olga sentir-se-ia muito feliz se quisesse terminar esta tarde em sua companhia.
O príncipe observava a fisionomia de France e não lhe respondeu logo. Poucos minutos depois, meio-irónico, meio-pensativo, comentou:
- Como deve ter-te custado vir aqui, Francisca !
Tinha razão. O esforço violento que fizera para se constranger dava-lhe um cunho de extrema dureza ao semblante.
- vou acompanhar-te - concluiu Miguel.
Deixou-a passar à frente, fechou a porta do gabinete de trabalho e, atravessando a estufa pavimentada de mármore rosado, alcançaram ambos os aposentos da condessa Olga.
Como habitualmente, France serviu o chá. Depois foi refugiar-se no vão de uma janela onde já se encontrava Lignères, com quem começou a conversar.
Junto da mesa do chá, Milena voltava para o príncipe o lindo rosto, como se não quisesse perder uma só das palavras que ele proferia. O peso da cabeleira ondulada e esplêndida dir-se-ia obrigá-la a curvar a cabeça; por entre as compridas e sedosas pestanas, o olhar tinha a doçura de uma carícia e a ardência do sol.
«Como é linda!» - pensou Francisca - E como Miguel devia tê-la amado apaixonadamente!
Amá-la-ia ainda? Ninguém poderia adivinhar e talvez nem o próprio príncipe conseguisse decifrar o estado do seu coração. Tempo viria, porém, em que esse amor, cujo ardor Natália afirmara, triunfando de todos os agravos, de novo lhe iluminasse a vida.
E com que orgulho Miguel levantaria aquela linda fronte que, diante dele, se inclinava com tanta humildade; com que indulgência perdoaria; e como se sentiria feliz ao poder fazer de novo, de Milena, uma rainha!
Francisca curvou a cabeça para o álbum de esboços que João Lignères acabava de abrir e folheava, dando-lhe explicações. Parecia atenta às palavras do preceptor, mas o seu espírito, dominado por súbito desalento, não lhe permitia distinguir as paisagens dos povoados, a das montanhas, das ruínas, as estepes da floresta.
De súbito, como Lignères, de pé junto da sua cadeira se curvasse para lhe chamar a atenção para um pormenor, uma voz com inflexões impacientes chamou:
- Mademoiselle de Chancel, quer auxiliar-me a refutar uma acusação injusta? Sua Alteza afirma que eu não conheço o culto das recordações.
Sem mudar de atitude, Francisca ergueu para ele um olhar interrogador. Não tinha seguido a conversa e, por consequência, ignorava a razão que levava o príncipe a defender-se.
- Não é verdade - prosseguiu Miguel, sempre no mesmo tom irónico e duro - poder afirmar, sob palavra de honra, que a fotografia de Sua Alteza se encontra ainda no pavilhão de caça?
- Entrou no pavilhão, Francisca ? - inquiriu Natália, animada e surpreendida ao mesmo tempo
- O pavilhão com cabeças de urso e de lobo que me metem tanto medo?... Por que não mo disse, minha amiguinha?
Os lábios de France tremeram ligeiramente. Odiava a dissimulação, mas não tinha tido coragem para contar à sua aluna o incidente. Além disso, o príncipe não lhe deu tempo para responder a Natália.
- Ontem à tarde encontrei mademoiselle de Chancel e ofereci-lhe lugar no trenó, impondo-lhe, porém, a passagem pelo pavilhão.
Um lampejo, cintilante como a lâmina de uma espada batida pelo sol, perpassou por entre as pálpebras semi-cerradas de Milena.
No entanto, com voz suave e calma, a princesa voltou-se para o preceptor e inquiriu:
- Então abandonou mademoiselle de Chancel, senhor Lignères ? Não nos inquietámos com a sua ausência, pois supúnhamos estivesse sob a sua protecção.
Francisca estremeceu. Nesse caso, a princesa espreitara-a na véspera quando saira.
Assim interrogado, o preceptor dispunha-se a elucidar que se limitara a acompanhar Francisca por pouco tempo, quando o príncipe se levantou.
- Que tem aí, Lignères ? - perguntou designando o álbum de desenhos - A calcular pela atenção com que mademoiselle de Chancel o examina, deve ser muito interessante.
Sem uma palavra, France entregou-o ao príncipe, que começou a folheá-lo com ar distraído. Visivelmente, tinha o espírito muito longe, porque nem sequer respondeu às explicações dadas pelo preceptor. Por fim, depôs o álbum em cima de uma das mesas, recusou a segunda chávena de chá que lhe ofereceu Natália e, antes de sair, foi beijar a mão da tia.
- Retira-se já, Miguel ? - perguntou a princesa. Miguel sorriu.
- Desculpe, mas tenho muito que fazer, prima. Sorriu de novo e, indicando os seus aposentos, acrescentou :
- Aqueles senhores esperam-me para jogarmos uma partida de bilhar.
Não se podia levar mais longe a impertinência. No entanto, o semblante de Milena manteve a expressão calma e graciosa.
- É para lamentar - comentou com suavidade, E como se lhe custasse desistir de uma ideia - acrescentou:
- Contava consigo para nos fazer esquecer o temporal.
O príncipe, que já se encaminhava para a porta, parou bruscamente e, erguendo a cabeça, inquiriu:
- Que pretende dizer com isso ?
- Nada de extraordinário. Recordo as tardes semelhantes em que o seu violino fazia milagres, e hoje contava com ele para nos transportar para longe do presente ou, pelo menos, para espalhar a tristeza.
Amargo sorriso entreabriu os lábios do príncipe, acentuando a ironia da resposta imediata:
-O presente também tem coisas boas, prima!
E, depois de ligeira pausa, continuando a dirigir-se a Milena, continuou:
- Além disso, existem duas razões de peso que não me deixam satisfazer o seu desejo. A primeira diz-me particularmente respeito e não poderia interessá-la. A segunda é esta: o meu Stradivarius está muito longe daqui.
E, voltando-se para o irmão de Natália, acrescentou :
- Queres vir comigo, Stanko ?
O rapaz levantou-se logo e acompanhou o príncipe. Lignères saiu ao mesmo tempo. Milena não tardou a retirar-se e Natália saiu para a estufa.
Quando a filha desapareceu por trás de um maciço de plantas exóticas, que se avistava através da porta envidraçada, Olga Pavlovitch soltou um suspiro. com surpresa, Francisca examinou o rosto da condessa, que traduzia funda preocupação. Discreta, dispunha-se a afastar-se por sua vez, quando esta falou.
- Posso fazer-lhe algumas perguntas, Francisca? - com certeza.
A condessa ergueu-se da poltrona, foi sentar-se num divã e indicou a France o lugar a seu lado. Logo a seguir interpelou:
- A Natália não lhe esconde coisa alguma, pois não ?
- Assim o julgo, madame. Creio ter toda a sua confiança e conhecer os seus mais íntimos pensamentos.
- Muito bem... Mas admitamos que na sua vida entra... um elemento sentimental, por exemplo. Tem dezoito anos e pode começar a gostar de alguém. Julga que lho diria se tal acontecesse ?
O olhar de Francisca traduziu sincero espanto. Um idílio em Pakovatz!... Quando além de Lignères e de Miguel, o elemento masculino estava representado pelo velho médico da corte, o secretário, muito feio, e os encanecidos ministros que por vezes visitavam o principe. Mas o sorriso que esta evocação trouxe aos lábios de France logo se apagou. Pequenos pormenores, muito vagos, por certo, impressões fugitivas das quais só naquele instante se recordava, deram novo sentido às palavras da condessa Olga.
A súbita mudança de expressão da dama de companhia confirmou as suposições da mãe de Natália.
- Bem! – murmurou com a mão abandonada no braço do divã, ficou absorvida em fundas reflexões. Por fim, deixou ver o rosto iluminado por um sorriso:
- Trata-se do príncipe... Já o tinha adivinhado, não é verdade, Francisca?
Violento rubor tingiu as faces de France. Não, não! Nunca adivinhara que a condessinha gostasse de Miguel.
Sem notar coisa alguma, Olga Pavlovitch continuou :
- Sei que diante de si posso falar, minha filha. Esse casamento representa o mais belo sonho da minha vida, mas não tenho ilusões. Ainda não se realizou.
Calou-se um instante como se hesitasse e, por fim, continuou:
- Gostaria que a Francisca fizesse o possível por consolidar esse amor no coração de minha filha. Natália tem em si absoluta confiança, é muito sua amiga. se lhe testemunhar a sua afectuosa aprovação, não tentará lutar contra o afecto que sente por Miguel.
Imóvel, com as mãos cruzadas no regaço, os olhos no chão, France escutava estas palavras com doloroso assombro. Seria, de facto, a ela a quem a condessa pedia para empurrar Natália para os braços de seu marido ?
Marido! Título irrisório!... No entanto, perante Deus e perante os homens, Miguel era, indiscutivelmente, seu marido e ninguém poderia destruir os laços sagrados que os uniam.
«Porquê?... -repetia de si para si com desespero- Por que desejou ele isto?
Naquele momento, mais do que nos precedentes, não encontrava explicação para a atitude do príncipe. Quando recordava os dias vividos na Suiça, os seus pensamentos como que se baralhavam e o cérebro parecia estalar-lhe. Muitas vezes, aquele período da sua vida aparecia-lhe como se fosse vivido numa existência anterior, perdida na consumação dos séculos.
A condessa levantou-se e poisou a mão na cabeça de Francisca.
- Acabaram as confidências. Existem neste Mundo raras pessoas a quem eu abrisse o meu coração como acabo de fazer consigo. Vamos, não me diga que não saberá mostrar-se digna desta confiança- concluiu, estendendo a mão como se quisesse deter as palavras nos lábios trémulos de France - Seria uma afirmação inútil. Se não tivesse a certeza disso, não falaria.
Olga Pavlovitch encaminhou-se para a porta, dirigindo amigável gesto de despedida à preceptora da filha. Antes de sair disse ainda:
- Natália esqueceu-se do tempo na contemplação das novas plantas. Seria bom que fosse chamá-la.
Maquinalmente, France empurrou a porta envidraçada que conduzia à estufa e enveredou por uma ruazinha pavimentada de mármore rosado, por entre o qual corriam filetes de relva verdejante. O imenso jardim de inverno estava, como sempre, brilhantemente iluminado, mas parecia deserto. Em vão chamou a condessinha; o ruído surdo, causado pelas árvores exteriores, cujos ramos gemiam, açoitados pelo vento e batiam nos vidros da estufa, foi a única resposta aos seus apelos.
Decorridos alguns instantes, parou, apertando a cabeça nas mãos. Esmagou-a súbito desalento. Ainda tentou reconquistar a calma naquele ambiente sossegado, mas, infelizmente, a tranquilidade do espírito não depende da nossa vontade.
Natália gostava do primo! Santo Deus! Se aquela afirmação não passasse de uma ilusão da condessa! Mas, muito no íntimo, Francisca experimentava uma dor demasiado pungente para conseguir suavizá-la com essa esperança.
«Só me faltava isto! -murmurou baixinho ser eu o obstáculo à felicidade da pobre pequena!»
Mais uma vez se arrependeu, profundamente, por ter cedido a Miguel e guardado segredo da aventura. Onde a conduziria o caminho por onde tinham enveredado? A que dissimulações os obrigaria ? A que cálculos ?
Como teria sido preferível sufocar o orgulho ferido e contrariá-lo! A palavra «chantagem», aquela palavra que tanto a ferira, poderia ter servido para desmascarar a impostura e restituir-lhe a liberdade, se tivesse renunciado desde logo a todos os seus direitos. Mas não. Naquela altura só tinha pensado na injúria; mais calma agora, jurava defender-se contra a infamante acusação.
Quando voltaria a encontrar-se com Miguel? Todos os dias se veriam nos aposentos da condessa, com certeza, mas não era esse o lugar mais indicado para uma explicação definitiva. E, no entanto, ele devia desejar com ardor, ambicionar, tanto como ela, a liberdade preciosa, indispensável ao futuro soberano. Quando, decorrido o prazo legal, ele subisse ao trono, teria - assim o exigia a Constituição- de escolher uma princesa real para se sentar nele a seu lado.
Nesse caso, para que prolongar uma situação equívoca? Aqueles laços incómodos que a ambos pesavam deviam ser desatados quanto antes. Uma aliança tão desigual poderia ser anulada sem custo e o príncipe Kersto remediaria alegremente os erros de Miguel Marsac !
«Partir! - murmurou Francisca, unindo as mãos num gesto inconsciente e apaixonado-Partir para muito longe e o mais breve possível!»
Mas para onde iria ? Ainda não o sabia. com certeza para França e talvez para junto da sua velha amiga.
France não lhe guardava rancor; uma carta recebida pouco depois da sua chegada à Slovitânia conseguira essa obra de apaziguamento. Em oito páginas, manifestando-lhe verdadeira ternura, madame Bertin, a quem du Breuil pusera ao facto do que se passara, afirmava o seu arrependimento pelo papel que, por solicitude, desempenhara naquele casamento e, tomando sobre os ombros toda a responsabilidade, incitava Francisca a abandonar Pakovatz.
Em Paris, na vasta casa que ocupava, estava-lhe reservado um lugar, o lugar de filha muito querida.
Poderia demorar-se aí todo o tempo que entendesse até encontrar nova situação, ou então para sempre, se assim o desejasse.
Francisca sabia que essa oferta era sincera e sabia também que, mais cedo ou mais tarde, teria de aceitá-la. Pois bem, esse dia chegara. Depois de tantas provações, se pudesse, enfim, recuperar a tranquilidade de espírito e a estima de si mesma, que uma cumplicidade detestada lhe havia roubado!
Febrilmente, continuou a caminhar. Atingiu por fim uma espécie de rotunda, que marcava o centro da estufa, e aproximou-se do tanque.
Era larga concha de mármore cheia de água límpida na qual se reflectia o roseiral. Peixes raros, que pareciam envoltos em véus nacarados, com as caudas de prata e corpos metálicos, nadavam nessa transparência. Quando alguém se debruçava sobre o tanque, tinha a impressão de que uma fauna e uma flora maravilhosas o habitavam, estreitamente unidas na sua existência como uma ilha de coral.
Por cima da bacia de mármore, três conchas sobrepostas recebiam, mercê de engenhoso dispositivo, um filete líquido que caía de uma para a outra, antes de tombar no tanque.
Foi para estes reservatórios em miniatura que se dirigiu. Sempre considerara a canção da água como a mais bela música, a mais suave, a mais apaziguadora também.
Mas quando ela começava a fazer-se ouvir, outro ruído muito leve a fez estremecer. Ergueu os olhos e não conseguiu reprimir um movimento de susto ao ver Miguel a seu lado.
O príncipe estava encostado a um dos pilares que formavam uma pérgola em torno do tanque, pilar cuja espessura o tinha ocultado aos olhos de Francisca.
- Já viste coisa mais bela do que uma rosa, Francisca? - perguntou com toda a placidez.
Abandonou a coluna e aproximou-se de sua mulher, tendo na mão um botão colhido de passagem.
- Este velho mundo - prosseguiu - perdeu há muito tempo a candura e o amor pelas lendas. Mas, graças a Deus, a antiguidade oferece-nos poesia bastante para podermos suavizar o nosso materialismo sem grandeza. Poderão dizer-te que as primeiras rosas desabrocharam no Cáucaso oriental, no Curdistão ou no Faristão. Não acredites. Existem outras opiniões muito mais sedutoras que nos oferecem menos botânica e mais ideal!
Chegando junto de Francisca, Miguel parou, acariciou com o dedo a flor ainda mal desabrochada e prosseguiu:
- Seria Vénus que, ao tocar o chão com o pé ferido, fez nascer esta maravilha? Devemo-la a Adónis quando expirou sobre a relva ou, mais prosaicamente, como afirmam os árabes, será devida a uma gota de sangue de Maomé?... Segundo dizem os católicos, foi o sangue de Cristo que, tombando da cruz, deu origem a esta flor... Como vês, entre tantas ficções, só temos dificuldades na escolha.
Calou-se, aguardando que Francisca lhe desse réplica ou, pelo menos, explicasse o motivo da sua presença no jardim de inverno.
Ela hesitou durante alguns momentos. A emoção que, durante algum tempo, lhe causou a aparição de Miguel, perturbou-a. Mas logo recuperou a serenidade, contente por ter sido satisfeito o seu desejo de ter uma entrevista com ele.
- A condessa receava que Natália se demorasse - explicou.
- Encontra-se nos meus aposentos, ocupando, na mesa de bilhar, o lugar que, voluntariamente, lhe cedi. A sua educação é muito completa - concluiu sorrindo - Felicito-te.
Mais do que nunca, seria difícil dizer se estas palavras eram sinceras ou irónicas; Francisca, no entanto, sempre mal disposta a seu favor, julgou descobrir nelas uma intenção ofensiva.
- Queira desculpar a minha presença nesta estufa, Alteza. Deve ter-lhe desagraaddo não encontrar aqui a solidão que procurava, mas...
- Bem sei - atalhou Miguel com impaciência - sei que, se soubesses que me encontravas, não terias vindo.
A voz perdera o tom de amável despreocupação com que primeiro lhe falara e, ao notá-lo, Francisca ficou perturbada. Mesmo assim, levantou a cabeça e retorquiu com calma:
- Engana-se, Alteza. Não teria dado um passo para evitar este encontro e agradeço o acaso que mo proporcionou.
Miguel inclinou-se, ligeiramente, sem pronunciar palavra e manteve-se numa atitude de espectativa. Então, chamando a si toda a sua coragem, ela murmurou.
- Alteza, eu...
- Não achas essa cerimónia um pouco ridícula entre nós, Francisca? Trata-me simplesmente pelo nome, peço-te.
Francisca fitou-o demoradamente e esse olhar, melhor do que as palavras, soube exprimir todos os seus sentimentos.
- Perdoe-me, Alteza - respondeu por fim - Não tenho habilidade para representar papéis duplos e receio vir a cometer qualquer erro que possa ser tomado por falta de respeito devido a vossa Alteza.
A chama ardente que, por vezes, passava pelo rosto de Miguel, abrasou-o por completo. Foi como uma explosão, misto de arrebatamento, cólera e impaciência.
com firmeza, Francisca sustentou o olhar cintilante do príncipe, que acabou por encolher os ombros e dar alguns passos para se afastar dela.
- Está bem. Será como quiseres.
Num movimento brusco, atirou para a água o pobre botão de rosa que acabava de esmagar entre os dedos; depois, como se este gesto o acalmasse um pouco, voltou-se para sua mulher.
- Como explicar - murmurou - que sejas, na realidade, tão diferente daquilo que eu supunha seres «tu», quando nos encontrámos na Suíça?
com uma expressão de terror, France olhou para os maciços mais próximos. Miguel notou-o e um sorriso irónico lhe entreabriu os lábios.
- Não tenhas medo. Estamos absolutamente sós, Francisca. Esta imprudente conversa não prejudicará a tua reputação.
Ela ergueu a cabeça num gesto altivo e replicou :
- Não temo coisa alguma por minha causa, Alteza.
O príncipe não lhe respondeu. Parecia completamente absorvido pela tarefa de acender o cigarro.
- Dizias então - perguntou metendo o acendedor numa das algibeiras do casaco - que agradecias ao acaso ter-te proporcionado este encontro ?
Encostado ao pedestal de uma estátua, falava despreocupado, fixando-a com um olhar interrogativo.
Francisca hesitou por momentos. Chegara a altura de travar a luta que lhe restituiria a liberdade e, por singular fraqueza, sentia-se tremer. Febril, no cérebro subitamente vazio, procurava as palavras próprias para forçar o Destino. Mas o tempo faltava-lhe para grandes preâmbulos e aquelas que os lábios iam proferir não estavam preparadas.
- Miguel... vou-me embora.
Apesar do auto domínio, o príncipe estremeceu imperceptívelmente.
- Vais-te embora? Para onde?
- Para Paris.
- Muito bem. Esse desejo de repouso parece-me legítimo. A Natália pode muito bem passar sem ti em Pakovatz, e a condessa, sem dúvida, não te recusará...
A vaga de alegria que, por instantes, inundara France, retirou-se para o mar largo das esperanças perdidas.
- Não se trata disso - murmurou em voz trémula.
- Já o sabia, mas queria evitar uma discussão dolorosa e inútil.
Falava com calma sem desviar a vista da ponta incandescente do cigarro.
Aquela aparência de serenidade restituiu um pouco de confiança a Francisca. Deu um passo para seu marido e, com súbita decisão, perguntou:
- Porque temes uma explicação que se torna necessária? Para que adiá-la, sabendo que só ela nos ajudará a reconquistar esse bem precioso a que ambos aspiramos: a nossa liberdade ?
Um lampejo de cólera perpassou pelas pupilas escuras. No entanto, com os braços cruzados no peito, o príncipe não fez um gesto. Iludida com esta calma, Francisca prosseguiu:
- O violinista Miguel Marsac já não existe e tudo quanto participou da sua vida deve desaparecer.
Profundo silêncio pesou após estas palavras. Miguel fixava sua mulher que, em voz baixa, continuou : - vou partir, Alteza... Não vejo outra solução, e assim terá facilidade de obter a separação das nossas vidas da forma como entender. A minha presença no castelo representa um constrangimento constante. Peço-lhe, portanto, neste momento, que consinta na inevitável e definitiva separação.
Calou-se um instante, com o rosto afogueado pelo que teria de dizer ainda. Mas, conseguindo dominar-se, prosseguiu com tranquila altivez:
- Rejeito desde já todas as generosas disposições que se proponha tomar em minha intenção. Graças a Deus, sou corajosa e forte e, além disso, o amor de independência torna-me odiosa a ideia de contrair uma dívida com um estranho. Em Paris, para onde vou, conto ganhar a minha vida.
Comunicar-lhe-ei a minha morada, que por certo será necessária para as formalidades da anulação.
Calou-se, sustentando com firmeza o olhar cintilante que cruzava com o seu.
- Muito bem! - exclamou Miguel numa voz que tremia de cólera - Muito bem! Eis o que um espírito bem organizado, frio e realista imaginou. O plano é perfeito. Para a sua boa execução só lhe falta uma coisa... uma só, mas de extrema importância e com a qual fizeste mal em não contar. É o meu consentimento e eu não to dou.
Afastou-se da estátua e começou a passear em volta do tanque. Francisca recuou alguns passos e, lívida, fixou em seu marido as pupilas que o ressentimento escurecera.
- Recusa ? - perguntou em voz surda.
- Recuso.
- Porquê ?
Miguel deteve-se um instante.
- Permite-me que te responda como há pouco respondi à princesa Milena quando me pediu para tocar. A razão diz-me respeito e não pode interessar-te.
Uma onda impetuosa de revolta dominou Francisca. Aquele egoísmo que, desde o primeiro encontro, dispunha da sua vida, inspirava-lhe intensa aversão.
- Não tem o direito... - começou.
O príncipe voltou-se e soltou ligeira gargalhada.
- Direito ? Tenho todos os direitos, Francisca, todos! E o mais pequeno é o de te guardar. Ninguém te obrigou, ninguém influiu na tua decisão, não foste violentada a tomá-la... Não és a prisioneira que um guerreiro mouro arrebatasse no seu cavalo, a escrava comprada num mercado do Oriente, ou a presa que um Mauprat levasse para o seu antro!
Calou-se um instante, talvez para que Francisca pudesse responder-lhe, ou para acalmar a sua agitação.
- Falaste como uma criança - prosseguiu Miguel- e isso surpreende quem conhece o teu claro e frio raciocínio. As palavras separação e partida esmaltaram o teu discurso como se representassem uma eventualidade sem importância... Por outro lado, aquelas que deviam referir-se à «tua» responsabilidade não foram proferidas.
France fitou-o com indignação, o que não o comoveu.
- A tua obstinação merece que a verdade seja dita, Francisca. Faço-o, recordando-te que vieste para mim livremente!
Calou-se e foi então Francisca quem soltou uma risada amarga:
- Livremente! Pode proceder-se livremente quando se é vítima do mais infame dos logros?
Miguel empalideceu e ergueu a mão como para deter a palavra justa e cruel que o fustigava. Porém, no mesmo instante, retomou a atitude impassível.
- Seja. Aceito as culpas de Marsac, assumo a minha responsabilidade e, por ele, peço perdão. Mas, em troca, exijo-te uma promessa: Não abandonar Pakovatz sem minha licença.
Francisca olhou-o com espanto. Imaginaria Miguel que o seu imperioso desejo bastaria para a prender?
Sem desfitar seu marido, abanou a cabeça, mas, no mesmo instante, recuou aterrada. O príncipe prendera-a pelos ombros e, curvando-se para ela, murmurou :
- Menina teimosa! Pois não compreendes que acima das tuas preferências está o destino de um povo ?
- Nada valho, ninguém me conhece e, portanto, posso amanhã desaparecer... -murmurou France.
Miguel encolheu os ombros e deixou-a.
- Infantilidades, repito. Faz-me a justiça de compreender que não procedo por capricho quando te peço para ficar.
O tom era outro. Talvez arrependido pela atitude antes tomada, Miguel voltava a mostrar-se príncipe altivo e condescendente, cujos desejos não deviam ser contrariados.
Francisca revoltou-se. Aquela vontade fria, que caminhava direita ao fim sem respeito pela independência dos outros ou simplesmente pelas suas aspirações, indignava-a.
- Lamento, Alteza - proferiu com voz firme mas não posso comprometer-me. A livre disposição da minha pessoa é um dos raros bens de que disponho. Permita-me que o conserve.
Miguel não lhe respondeu. Curvado para o tanque de mármore rosado, dir-se-ia muito interessado nas evoluções dos peixes prateados.
Quando se voltou, o rosto calmo não exprimia qualquer sentimento, mas o leve vinco nas comissuras dos lábios revelava quanto era precária aquela impassibilidade.
- Muito bem - declarou tranquilamente - A partir de hoje, ninguém poderá passar a fronteira sem um passaporte especial, medida que vai proporcionar-me um acréscimo de trabalho.
Inclinou-se diante de sua mulher e dispôs-se a retirar-se. Estendendo o braço num movimento impulsivo, France deteve-o.
- Não pode fazer uma coisa dessas, Alteza! exclamou em voz sufocada.
O príncipe parou e as suas pupilas negras mergulharam nas de Francisca, que o fixavam.
- Juro por S. Miguel que o farei, France! Afastou-se. Mas, como se súbito pensamento o detivesse, voltou a aproximar-se de sua mulher. Numa voz isenta da habitual ironia, acrescentou:
- Mais tarde voltaremos a falar no assunto, Francisca. Estarei então disposto a escutar os teus agravos contra mim, as tuas queixas e acusações, e espero poder refutá-las. Mas esse momento ainda não chegou. Peço-te que, entretanto, aceites uma situação que é tão dolorosa para ti como para mim.
Desta vez, encaminhou-se para os seus aposentos. Ligeira, France alcançou-o.
- Um momento!
Miguel parou, surpreendido com o tom imperioso e breve. Quando se voltou, não pôde deixar de notar a atitude altiva e resoluta de Francisca.
- Penso, Alteza - começou ela em voz pausada - que a constante vigilância que se propõe exercer e a suspeita que a todo o instante pesará sobre mim, não são dignas de qualquer de nós. A fim de nos poupar inútil humilhação, dou-lhe a minha palavra de que não sairei de Pakovatz.
Para um príncipe como Kersto, a lição era rude. No entanto, Miguel recebeu-a sem que um músculo da face estremecesse. Nem o espanto que poderia causar-lhe a reviravolta de sua mulher modificou a sua atitude. Não acusou a mais leve reacção. Limitou-se a inclinar-se de novo diante dela e agradeceu :
- Obrigado, Francisca.
Trémula, ela encostou-se a uma das conchas rosadas donde a água gotejava num ruído cristalino. Enquanto os passos de Miguel se afastavam e se desvaneciam para lá da porta fechada, a dor, a indignação e uma espécie de humilhação pela sua derrota, esmagaram-na.
Que soberba, que convicção no seu poder absoluto, que implacável egoísmo, Miguel demonstrara ao repelir o seu pedido, opondo a mais categórica negação ao seu legítimo desejo de liberdade! No entanto, essa solução era inevitável e o príncipe bem o sabia. Sabia também, no entanto, que tinha a faculdade de escolher o momento que mais lhe agradasse.
Parada junto do tanque onde o botão de rosa baloiçava numa leve ondulação, Francisca tentava descobrir o enigma daquela categórica recusa. A contradição entre o procedimento de Miguel e os profundos sentimentos que deviam levá-lo a afastar France da sua vida, tinha, sem dúvida, causas muito subtis para poderem ser adivinhadas.
Por momentos, supôs que os destinos do país, que Miguel se dispunha a dirigir, impunham ao príncipe uma espécie de pudor pela sua vida particular, Não devia ser isso, porém, porque a separação era inevitável e não teria menos importância se ocorresse depois da coroação de Miguel.
Na sua desorientação, uma única consolação lhe restava e tornava menos dura a derrota: a forma como se revoltara, repelindo a odiosa vigilância, e se comprometera voluntariamente. Triste lenitivo, na verdade, mas que não deixava de lhe dar certa satisfação, pois, de futuro, dependeria da própria vontade e não da caprichosa fantasia do príncipe Kersto.
«Meu Deus ! - murmurou, sentindo que no seu íntimo crescia a vaga de sentimentos hostis-defendei-me do ódio!»
O som da sua própria voz chamou-a à realidade. Viu o local onde se encontrava e pensou na hora que já devia ir adiantada. Abandonou o tanque e ia retirar-se, quando um ruído abafado lhe chegou aos ouvidos. Dir-se-ia que a porta do jardim de inverno, a que abria para o parque, acabava de ser aberta pelo vento, mas, caso estranho, com suavidade.
France não deu grande importância ao incidente. Abandonando a pérgola, percorreu uma rua orlada de laranjeiras e voltou ao salão de Olga Pavlovitch.
Lá fora, na noite sombria e sem estrelas, o temporal continuava a desencadear-se e a contorcer os ramos das árvores; a pobre rapariga não lhe deu atenção. Dominando todos os clamores da tempestade, continuavam a soar-lhe aos ouvidos as imperiosas frases de Miguel.
Não lhe ocorreu que uma delas, pelo menos: «Francisca, tenho o direito de te guardar. podia ter sido inspirada por um sentimento que não era orgulho nem despotismo e, ainda menos, uma manifestação de força.
Aquele Inverno era um dos mais rigorosos que a Slovitânia havia suportado nos últimos anos. Os rios gelados, os caminhos cobertos de neve, as estradas intransitáveis, mergulharam Pakovatz no silêncio e no isolamento.
Em volta do castelo, a floresta vivia a sua vida misteriosa e triste. Nas noites tempestuosas, a sua massa escura parecia mover-se e mostrava-se tão temível como o navio gigante de Edgar Poe, navegando ao acaso, disposto a cair sobre o pobre barco que as ondas arrastavam e ele ia despedaçar.
Todavia, o velho intendente, Nikitza, afirmava que em breve a neve desapareceria, transformada em asas de borboleta; que uma brisa suave passaria pelos vales para fazer desabrochar, como para a procissão do Corpo de Deus, as airelas vermelhas, as urzes, os rododendros e os amarilis. Então, os estábulos adormecidos desde a última transumância, abrir-se-iam, os pequenos cavalos eslavos, de crina solta e olhar de fogo, aspirariam à porta da estrebaria o ar fresco, relinchando de prazer, antes de se lançarem para as pastagens da serra, cuja nostalgia os havia entristecido todo o Inverno. O Zagora cantaria de novo, embalando as tartanas que o percorriam, e as raparigas da Slovitânia entrelaçariam as tranças com fitas, antes de envergar as casaquinhas bordadas, as saias de mil pregas, os aventais e lenços multicores que lhes permitiriam, durante as festas da Páscoa, apresentarem-se na feira das raparigas, a fim de arranjarem marido.
Sim, essa época aproximava-se, mas só o calendário a indicava. Em Pakovatz ainda não se ouvia a canção dos ninhos, mas apenas a do uivar dos lobos, muito mais lúgubre.
Impelidos pela fome, estes mostravam-se de extraordinária audácia. Os arredores da aldeia não eram os únicos a gozar o privilégio da sua visita nocturna. Já se atreviam a penetrar no parque. Certa manhã, encontraram arrombada a porta de uma arrecadação onde haviam metido um cavalo para esquartejar, que na véspera havia sido morto pela matilha do príncipe. Como prova de convicção, restava o esqueleto do animal.
A casinha que o guarda florestal habitava, não longe do pavilhão de caça, também atraía os carnívoros; e, durante aquele rude período, aconteceu muitas vezes o guarda ouvir as garras das feras arranharem-lhe a porta. Porém, como vivia sozinho, pouco se preocupava com a vizinhança. A fim de evitar o concerto de uivos que lhe perturbava o sono, passou a acender, quando anoitecia, uma lanterna de azeite que pendurava fora da porta e cuja claridade mantinha os lobos em respeito. As suas previsões realizaram-se. Se com esta medida não conseguiu que as feras acabassem por completo com o concerto nocturno, pelo menos afastou-as o suficiente para poder dormir sossegado.
O clamor dos bichos esfomeados ainda não chegara ao castelo. No entanto, certa tarde, Natália, julgou ouvi-los por entre o desencadear da tempestade; aterrada, foi refugiar-se no quarto da amiga. No dia seguinte de manhã, Miguel, a quem a condessinha contou os seus terrores, sorriu com indulgência. com a usual ironia, persuadiu-a de que só o vento devastador, que arranca das rochas os ninhos das águias e galopa na estepa com frenética algazarra, havia percorrido a floresta.
- Além disso, também estou impaciente por afastar de Pakovatz tão incómoda vizinhança. Uma batida bastará. Mas impõe-se que o tempo me permita dá-la.
O príncipe não parecia muito aborrecido com a inactividade forçada. Interrompidos, pela força das circunstâncias, as cavalgadas e os passeios de trenó, dedicava grande parte dos dias ao trabalho e, muitas vezes, brilhando até alta noite, viam-se as luzes acesas no seu gabinete para prolongado serão. Todavia, fosse qual fosse a natureza do trabalho e a importância dos documentos que tinha de consultar, nunca deixava de comparecer ao chá da condessa Olga Pavlovitch.
Quando o dia começava a declinar, percorria a ruazinha pavimentada de mármore rosado, empurrava a porta envidraçada e, por segundos, o seu vulto imponente desenhava-se no fundo verdejante da estufa. Então, a despeito da neve que se colava aos vidros da janela, da tempestade e das sombras que se avolumavam, com ele parecia penetrar no salão uma grande força vitoriosa e deslumbrante.
Habitualmente, o fato era escuro, o que mais lhe fazia ressaltar a elegância e a alta estatura e acentuava as linhas do perfil correcto. A seu lado, a beleza de Stanko, que ninguém poderia negar, parecia apagar-se, perder-se na órbita da de Miguel.
Devemos dizer que o jovem conde não se ofuscava com essa superioridade. Profundamente inteligente, de uma sensibilidade requintada, soubera conquistar a confiança e a amizade do príncipe, amizade que, durante os oito anos de exílio, havia sido como que suspensa e cuja readaptação oferecia facetas muito delicadas.
Contudo, o êxito havia sido completo. Aqueles dois seres, tão diferentes, encontravam, no recíproco conhecimento dos respectivos caracteres, mais de uma razão para se apreciarem mutuamente e adaptarem-se.
Quanto à condessa, não ocultava o prazer que as visitas cotidianas de Miguel lhe causavam. Acolhia-o com afectuosa solicitude e empregava todos os esforços por tornar agradável a hora que o príncipe passava nos seus aposentos.
Por vezes, Francisca perguntava a si mesma quais os sentimentos que Miguel experimentava no seio daquela família a quem tinham exigido que, durante oito anos, esquecesse a sua existência. Instalava-se em confortável poltrona ou então ficava de pé, com os braços cruzados, encostado a qualquer móvel. Conversava, tranquilamente, com Lignères e com Stanko, respondia às perguntas de Olga Pavlovitch ou de Milena, ou contava qualquer aventura a Natália. Todavia, a despeito desta aparência calma, France, quando o observava, não podia acreditar que o seu espírito estivesse em paz.
Em geral, o príncipe trocava poucas palavras com sua mulher. Logo que ele entrava, France levantava-se, dirigia-se à mesa rolante e começava a preparar o chá. Acendia, debaixo do samovar, a pequena lâmpada de chama rosada, preparava as chávenas, punha manteiga nas torradas. E quando, por fim, a perfumada bebida, cautelosamente doseada, fumegava diante de cada um dos convivas, retomava o seu lugar e pegava no trabalho de costura que havia largado.
O príncipe mostrava-se contrariado com este retraimento e, muitas vezes, ao dirigir-se a sua mulher, a sua voz tomava inflexões duras e irritadas. Este facto, porém, não comovia France. Respondia-lhe com calma e depois voltava a calar-se, como se o seu espírito andasse muito longe daquele salão.
Naquela tarde, as tentativas do príncipe para que ela tomasse parte na conversa não deram resultado. com a testa franzida, o olhar carregado, Miguel instalara-se numa poltrona perto da mesa de chá e, com a chávena na mão, escutava Milena que lhe contava qualquer coisa.
Mais corajosa do que os outros habitantes do castelo, a princesa regressava de um passeio a cavalo. Como chegasse atrasada, não mudara de vestido e apresentou-se no salão de Olga Pavlovitch com o seu trajo escuro de amazona, rosada, os cabelos um pouco despenteados pelo vento, empunhando um chicote cujo punho, adornado com pedras preciosas, despedia fulgurantes cintilações. com encantadora confusão, pedira desculpa à condessa e depois, sentando-se ao lado de Miguel, fez todo o possível para conseguir a sua absolvição.
A voz cantante vibrava com a duçura de uma harpa e os ardentes olhos negros não se desviavam um instante do complacente auditor. Este, por seu turno, voltado para sua prima, prestava-lhe tão absoluta atenção que, para ele, o resto do mundo dir-se-ia não existir. No entanto, quando, pela segunda vez, Natália dirigiu uma pergunta a Francisca, levantou a cabeça.
- Deixa em paz mademoiselle de Chancel, Nat - proferiu em voz dura - Fez voto de silêncio até à conclusão daquele precioso trabalho.
Natália soltou ligeira gargalhada que ressoou no salão como um trinado de ave.
- Voto de silêncio! A Francisca ? É tão pouco próprio dela...
Afectuosamente, levantou-se, aproximou-se da preceptora e poisou-lhe a mão sobre o ombro, curvando-se um pouco para ela.
- Mas é verdade! Está triste, Francisca!-notou. E, abandonando o tom de gracejo, exclamou, espantada com a descoberta:
- Santo Deus! Mas o que foi feito da sua alegria, Francisca ? Por muito que procure, não a encontro nem nos seus olhos nem nos seus lábios. Terá o ambiente de Pakovatz qualquer malefício que, só de respirá-lo, tenha perdido o seu sorriso ? Não tornei a encontrá-lo desde que viemos de França.
Todos os olhares se voltaram para Francisca cujas faces se cobriram de violento rubor. Mas, nesse instante, um ruido seco, característico, ecoou pelo salão; e France, apesar da sua perturbação, viu que o príncipe acabava de quebrar entre os dedos a chávena de finíssima porcelana.
com calma, Miguel desculpou-se, colocou em cima da mesa o pires e os fragmentos da chávena, limpou o casaco, levemente salpicado, e atirou para a bandeja com o guardanapo.
- Penso - observou em voz natural, dirigindo-se a Natália, que voltara para o seu lugar - que mademoiselle de Chancel anseia, como nós, por exercício e por ar livre. Apesar dos teus temores, creio que já não há perigo em sair, Nat. Pelo contrário, este encerramento forçado torna-se deprimente e dá-nos a impressão de que o Inverno nunca mais acaba.
Ao mesmo tempo, dirigia-se para a janela em cujo vão Francisca se refugiara. Imobilizou-se junto dela e, erguendo um pouco a cortina, olhou distraidamente para fora.
- O vento amainou já há dias - disse, após breve exame, dirigindo-se a France - Os caminhos já devem estar transitáveis. Penso que poderá sair amanhã.
Ela não lhe respondeu, tentando dominar a comoção que a esmagava; e não conseguia desviar a vista da mão do príncipe, levemente manchada de sangue. Devia ter-se ferido ao de leve e o arranhão, por certo, não fora grande, mas recordava a Francisca o esplêndido rubi que Miguel usava quando a conhecera.
- É uma jóia de família - explicara quando lho metera no dedo - Receio que, não tendo as mesmas razões que eu tenho para o estimar, lhe pareça um tanto pesado. Considere-o como um anel de noivado provisório. Em breve o trocarei por outro mais em harmonia com os seus gostos.
Francisca não se recordava das palavras que empregara para lhe agradecer, mas não esquecia a promessa feita a si mesma de nunca mais se separar de magnífica jóia. Mas, pobre dela! O rubi dormia agora no seu estojo branco, guardado no fundo da mala. Quando ele voltasse para o dedo de Miguel, a esposa repudiada abandonaria Pakovatz.
com o vagar habitual, o príncipe dispunha-se a deixar cair o cortinado de tule quando o ruído de guizos, vindo do parque, deteve o gesto. Francisca também ouvira e, abandonando o trabalho que tinha entre mãos, olhou para fora e seguiu com a vista o trenó que se aproximava.
Este descreveu grande círculo em volta do lago, percorreu o pátio de honra e, sempre com grande velocidade, foi parar junto da escadaria.
Mal o cavalo parou, o viajante saltou, calmamente para o chão. Estava envolto em quente sobretudo, cuja gola levantada lhe cobria o rosto quase por completo. No entanto, a sua placidez e gestos calmos, bastaram para o denunciar.
Ao vê-lo, Miguel sobressaltou-se e, por um reflexo instintivo, voltou-se para sua mulher que, muito perturbada, não desviava a vista do recém- chegado.
- Francisca--murmurou o príncipe-não te avisei da chegada de Beltrão, pois não o esperava já.
Falava a meia-voz, mas a precaução era desnecessária. Ninguém, no salão, onde todos conversavam animadamente, parecia preocupar-se com os dois.
com os lábios violentamente apertados, Francisca voltou-se, finalmente. com mão trémula, reuniu os novelos de lã e levantou-se.
O príncipe continuava com as costas voltadas para o salão, obstruindo com o corpo a entrada do vão em que se encontrava sua mulher.
Como esta se levantasse num movimento rápido, prendeu-a pelo pulso.
- Francisca, suplico-te. Não me atribuas intenções ofensivas.
A voz surda traduzia uma espécie de súplica. Sem uma palavra, contudo, Francisca soltou o braço e, passando diante de Miguel, dirigiu-se para a poltrona em que se encontrava a condessa.
- Consente que me retire ? - pediu.
Antes que Olga Pavlovitch pudesse responder, Miguel interveio.
- Mademoiselle de Chancel é de uma discreção admirável, tia - observou com a sua voz mais sarcástica - Acabo de lhe anunciar a chegada de um amigo, que já esperava, e ela quer afastar-se do círculo de família. Peça-lhe para ficar - acrescentou, inclinando-se para beijar a mão da condessa-Vou receber o recém-chegado nos meus aposentos.
com estas palavras de despedida, saiu do salão, precisamente no momento em que Nikitza atravessava o hall para ir comunicar-lhe a chegada imprevista do amigo.
Quando a porta se fechou, Olga Pavlovitch relanceou em volta um olhar de interrogação.
- Que significa isto ? O Miguel nunca mais deixará de nos intrigar?
O conde Stanko começou a rir.
- Pois claro, minha mãe. O Miguel não mudou e continua a ser o homem menos banal deste Mundo. Além disso, nada mais natural do que desejar receber sozinho o amigo.
- Admito tudo isso, meu filho. Mas não vejo onde está a culpa de Francisca e a razão pela qual ele se mostrou tão desagradável com ela?
De princípio ninguém lhe respondeu. Depois, a voz doce de Milena elevou-se:
- Meu Deus, Olga! A simpatia ou a aversão não podem explicar-se. A eclosão de uma torna-se tão inexplicável como a de outra e seria inútil procurarmos encontrar as razões pelas quais, desde o primeiro dia, Miguel se mostra... hostil com mademoiselle de Chancel.
Profundo silêncio acolheu as palavras da princesa. Natália uniu as delicadas sobrancelhas e, num gesto espontâneo, aproximou-se de Francisca e apertou-lhe a mão.
Esta agradeceu-lhe com um sorriso, enquanto a condessa, depois de ter relanceado para o lado de Milena um olhar de descontentamento, prosseguiu, dirigindo-se a Francisca:
- Quer retirar para o seu quarto, France ? O senhor Lignères, meu filho e Natália vão fazer um pouco de música e gostariam que ficasse. Mas, talvez se sinta doente ?
- Exactamente, madame - balbuciou Francisca, que não mentia, e cujas faces se cobriram de rubor- tenho um começo de enxaqueca. No entanto, se deseja...
- Deus me livre de a obrigar a ficar connosco. Está livre até à hora do jantar.
com a mão, fez-lhe amistoso gesto de despedida, e France, depois de algumas palavras de agradecimento, abandonou o aposento.
Em passo rápido, subiu a monumental escadaria, já brilhantemente iluminada, e alcançou o seu quarto. Depois, mal fechou a porta, deixou-se cair numa poltrona e apertou a cabeça nas mãos.
Como sofria com o novo insulto! Como Miguel escarnecia e fustigava a sua dignidade! A carteira cheia de dinheiro oferecida à sua pobreza, a brutal recusa ao seu pedido de liberdade tão ambicionada, tudo isso se lhe afigurava sem importância agora! O príncipe Kersto podia gabar-se de saber humilhar!
Du Breuil, em Pakovatz, representava - visto estar ao facto de tudo - a mentira sancionada, a confirmação do logro! Era como a exibição impudente da impostura! Representava um compromisso, a submissão interessada, o silêncio repreensível... Era, enfim, dado a um terceiro, o espectáculo da degradante comédia.
Miguel, Miguel! Por teres planeado uma coisa dessas, como Francisca de Chancel te odiava naquele instante!
Num impulso de revolta, France ergueu a cabeça e o olhar doloroso errou, por instantes, em volta do aposento, como se procurasse fugaz lenitivo à sua dor. Mas o quarto forrado de cetim, com espessos tapetes e móveis raros, devido à generosidade do príncipe, tomava para ela um aspecto hostil.
Nem uma recordação agradável se encontrava entre aquelas paredes que, apesar do seu aspecto opulento, davam a Francisca a ideia de uma prisão.
Fugir! Fugir, embora por algumas horas, daquela opressiva morada! Andar... respirar... pensar livremente! Na floresta imensa, depor, por momentos, o fardo daquela vida!
Minutos depois, Francisca, saindo por uma das portas do castelo, atravessava o parque. Envergara à pressa o casaco de peles, calçara botas e, antes de Sair, avisou Maritza da sua ausência momentânea.
Mais tarde teria de retomar o jugo, mais pesado ainda depois da chegada de Beltrão, mais duro de suportar por causa das aparências. E, embora fosse muito limitado o tempo de que dispunha para o passeio, France experimentava um anseio imperioso por esses instantes de libertação.
Nas alamedas do parque, limpas pelos cuidados dos jardineiros, Francisca caminhou apressada, com um sentimento de bem-estar e de liberdade.
Os dias, um pouco maiores já, permitiam o passeio tardio. No entanto, a prudência aconselhava a não se afastar muito.
De principio, ora avançando ora voltando para trás, conforme o seu capricho, France não perdeu de vista as luzes do castelo, que brilhavam por entre a renda prateada da ramaria. Depois, como se elas bastassem para lhe recordar a situação que desejava esquecer por instantes, desviou o olhar triste e, curvando a cabeça, começou a caminhar ao acaso.
Não poderia dizer quanto tempo andou assim, sob a abóbada de verdura, silenciosa como uma catedral. Às alamedas largas, ao parque, sucederam-se os atalhos ainda cobertos de neve. O arvoredo tornava-se mais espesso. Das árvores muito unidas saíam ramos baixos que, de passagem, afloravam o rosto da passeante com a folhagem húmida. Mas ela não dava pelos obstáculos cada vez maiores que iam surgindo no seu caminho.
No entanto, ao atingir a volta de um atalho, do qual se avistava vasta clareira onde iam dar diversos caminhos, não pôde deixar de estremecer.
A poucos passos, imóvel como uma estátua no meio da clareira, viu a princesa Milena a cavalo.
Devia ter saído do castelo pouco depois da dama de companhia, a fim de prosseguir o passeio, interrompido pelo cuidado de não faltar à hora do chá. Mas, caso estranho, estava sozinha. O groom Branko, que habitualmente a acompanhava, não estava com ela.
- Assustei-a, mademoiselle de Chancel ? - inquiriu, dirigindo o cavalo para o lado de France que, indecisa, parara.
- Um pouco, Alteza, confesso. Não contava vê-la.. .
- A neve abafa todos os ruídos - interrompeu a princesa.
E, após breve silêncio, durante o qual brincou com o chicote, acrescentou :
- Dispunha-se a regressar ao castelo, não é verdade ?
- Calculo que seja tarde já-respondeu France, iludindo a resposta.
- Não, nem por isso - afirmou Milena, consultando o relógio de pulso.
Hesitou um instante e, com voz hesitante, observou :
- Está muito longe de Pakovatz. Estes caminhos são-lhe familiares ?
Antes de responder, a interpelada relanceou um olhar pelos arredores. Depois voltou-se para a sua interlocutora e afirmou, sorrindo :
- Fora dos limites do parque, não sei muito bem orientar-me; se Vossa Alteza conhece bem estas paragens, ficar-lhe-ia muito reconhecida se...
Na sombra cada vez mais profunda, Francisca viu ensombrar-se o semblante de Milena.
- Outrora percorri a floresta em todos os sentidos com o príncipe Miguel. Conheço todos os atalhos de olhos fechados - declarou em tom de desafio.
E, com voz dura, acrescentou:
- Está no bom caminho, não se desvie dele. Daqui a dez minutos verá as luzes do castelo de Pakovatz - concluiu, indicando a direcção com a ponta do chicote.
Em seguida, tocou com ele as ancas do cavalo que partiu à desfilada e em breve desapareceu, levando a princesa a quem Francisca não teve tempo para agradecer.
Ficou um instante imóvel e surpreendida, mas logo, apertando o casaco contra si, enveredou pelo atalho indicado pela princesa.
A noite caía e aquela luta da sombra com a claridade envolvia a floresta em sombria tristeza. Já não era esta que iluminava a terra, mas sim a brancura luminosa da neve que punha fugazes clarões na fuga do crepúsculo.
A solidão pesava sobre Francisca numa sensação brutal. Caminhava depressa, com os olhos fixos no arvoredo que, entreabrindo-se mais adiante, devia mostrar-lhe a entrada do castelo. Os dez minutos indicados pela princesa deviam ter sido ultrapassados havia muito e coisa alguma assinalava a aproximação de Pakovatz.
Por momentos, receou ter-se afastado do caminho que o imperioso chicote de Milena lhe apontara. Mas não... Em volta não se viam outros. O castelo devia estar perto. Impunha-se prosseguir.
Mas a floresta parecia animar-se com ruidos estranhos. Pouca coisa: um roçar leve... fugas imperceptíveis nas moitas... queda da neve presa nos ramos, sacudidos de passagem... tudo quanto dava a certeza de presenças invisíveis, povoando a escuridão.
E, de repente, Francisca tremeu de medo. Ao longe, na floresta, soou prolongado uivo.
Parada a meio do caminho, a pobre rapariga passou pela testa a mão trémula. Os lobos! Santo Deus! Teria tempo de alcançar o palácio?
A lua acabava de nascer e iluminava o atalho, estreita fita de prata, desenrolada na sombra. Dos lados, as árvores desenhavam silhuetas fantásticas : raízes salientes, troncos nodosos e despidos de
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folhas, ramos desgrenhados, confundiam-se na livre expansão, própria de locais tão selváticos.
E então, Francisca compreendeu: desde o seu encontro com a princesa que se embrenhava mais e mais nas profundezas da floresta.
Outro uivo, prolongado e sinistro, soou desta vez mais próximo. Outros lhe responderam. Depois, de novo reinou um silêncio opressivo.
«Deus te perdoe, Miguel!- murmurou -Ficarás livre!»
France proferiu estas palavras com sinceridade. Todavia, o eco, que produziram sob a abóbada fria e erma do arvoredo, como que lhe galvanizou a coragem prestes a desfalecer. Descobrindo pequena luz, que lhe pareceu uma estrela anichada entre os ramos mais baixos das árvores, mas que, na verdade, não era mais do que a trémula claridade de uma lanterna, precipitou-se para ela, palpitante de esperança, mas com receio de que não fosse mais do que uma miragem.
Numa sala contígua aos aposentos do príncipe, este e du Breuil acabavam de jantar. Enorme lustre oriental, com placas de cristal curiosamente pintadas, iluminava as paredes, o fogão monumental e o grande armário envidraçado, cheio de preciosidades chinesas, marfins arrendados e jades, que Miguel, em rapaz, coleccionara.
Ao longo do aposento corria uma espécie de galeria, apoiada em colunas de mármore e, em frente, rasgavam-se as janelas com profundos vãos, protegidas por cortinados vermelhos, cuidadosamente cerrados. O conjunto podia parecer severo, mas um quadro da escola primitiva, flamenga, magnífica cabeça de homem, assinada por Van Eyck, colocado num cavalete num dos ângulos da sala, bastava para dar uma nota de vida naquela sóbria decoração.
Pouco antes, Miguel mandara pedir à condessa que o desculpasse, pois tencionava jantar nos seus aposentos e passar o resto da noite com o amigo.
Sentado na frente de Beltrão, num dos lados da mesa coberta com a toalha de renda, sobre a qual Nikitza acabava de dispor a fruta, Miguel, afastando o prato, acendeu o cigarro. Depois dirigiu-se ao intendente, que não entregava a mais ninguém o serviço particular do príncipe, e disse-lhe:
- Podes retirar-te, Nikitza. Antes, porém, prepara o lume para demorado serão.
O velho criado aproximou-se do fogão e, com habilidade, juntou as brasas meio consumidas e, tendo amontoado ao lado lenha suficiente, dirigiu-se para a porta.
Depois dele sair, Miguel foi encostar-se ao fogão, enquanto Beltrão, abandonando também o seu lugar, se instalava numa poltrona. Até ali, os dois amigos só haviam trocado palavras banais. Depois, como Beltrão procurasse em vão, nas algibeiras, o príncipe estendeu o braço para a caixa de cigarros que estava ao seu alcance e ofereceu-a, aberta, ao amigo.
- Cigarros turcos, Beltrão... Queres acreditar que Nikitza, mais fiel do que uma mulher, não esqueceu a mais simples das minhas preferências? Todas as caixas de cigarros existentes nos meus aposentos estão fornecidas deste tabaco.
Interrompeu-se para accionar o isqueiro de tartaruga e ofereceu-o ao secretário. Depois continuou:
- De resto, nada mudou aqui... nada! Quase podemos acreditar que recomeçámos a viver as nossas vidas, suspensas durante oito anos, no princípio da Primavera anterior ao meu exílio!
Uma nota triunfante e cruel vibrava-lhe na voz.
Soprou a pequena chama e, numa das reviravoltas habituais no seu carácter, retomou a expressão calma e a voz natural.
- Ainda não me disseste o que te levou a precipitar a tua vinda, Beltrão ?
O amigo sorriu.
A frase podia fazer acreditar em má vontade de seu lado, quando, afinal, havia muito que ansiava por falar.
- De facto, a minha última carta não podia fazer-te prever uma aparição tão inesperada. Além disso, aguardava ordem tua para me pôr a caminho. ..
Ao mesmo tempo que falava, ia abrindo a carteira da qual tirou algumas cartas, que entregou ao príncipe:
- Falemos, em primeiro lugar, da enorme indemnização que nos exigem de Nova-Iorque pela anulação dos contratos.
Sem ler uma linha sequer, Miguel atirou com as cartas para cima da mesa.
- Pagá-la-emos - afirmou - Que mais ?
- A segunda razão diz-me respeito...
- Qual é?
- A tua desaparição deixou-me em embaraços. Um exército de admiradoras, lançado contra mim, pedidos, ameaças, ciladas, ofertas magníficas, constituíram o pão nosso de cada dia. Mas só resolvi abandonar a França quando a mais exaltada das admiradoras do violinista Miguel Marsac me chamou assassino!
O príncipe soltou uma gargalhada. Pela primeira vez, desde que chegara, Beltrão viu desvanecer-se o ritos de amargura que lhe vincava a boca, e os olhos profundos brilharem num lampejo de alegria.
Afastando-se do fogão, Miguel aproximou-se da mesa sobre a qual Nikitza preparara os licores, e encheu dois cálices. Ofereceu um a Beltrão e citou:
- Bebe, suposto criminoso! Quanto à tua vitima, mal se atreve a exprimir o reconhecimento que te deve.
Beltrão levou o cálice de cristal aos lábios, bebeu um golo e prosseguiu :
- Passemos agora à terceira e última causa da minha chegada à Slovitânia.
- Nesse caso, existe uma terceira razão?
- Existe... Mas, antes de a revelar, posso fazer-te uma pergunta?
- com certeza.
Beltrão depôs o cálice sobre o braço da poltrona, sacudiu a cinza do cigarro no cinzeiro de prata e, erguendo os olhos para o amigo, perguntou:
- Que funções desempenha mademoiselle de Chancel no castelo de Pakovatz? Quero dizer... O seu papel no castelo mudou depois do teu regresso ?
Um sobressalto logo reprimido revelou o espanto do príncipe.
- Mademoiselle de Chancel continua a ser a amiga de minha prima Natália. É um lugar que satisfaz, plenamente, a sua dignidade; e, não tenhas apreensões, ninguém suspeita de que tenha direito a reivindicar qualquer outro.
Beltrão observou-o atentamente. O exame devia tê-lo sossegado quanto à sinceridade do amigo; com calma, afirmou:
- Desola-me ter de perturbar a tua tranquilidade. Alguém, no castelo, está ao facto do teu casamento com Francisca de Chancel.
E, como o príncipe o interrompesse com surda exclamação, fez ligeira pausa e concluiu:
- E esse alguém é a princesa Milena.
Num gesto brusco, Miguel atirou para o fogão o cigarro meio consumido. Conhecia bem a ponderação de Beltrão para saber que as suas afirmações tinham bases, provas irrefutáveis e não assentavam sobre simples suposições.
Deu alguns passos pela sala e depois, parando diante do amigo, disse simplesmente:
- Fala.
- Serei breve. A tua prima conhece a nova princesa de Kersto, como se deduz pelas suas cartas a madame Bertin.
- Madame Bertin ?
- Exactamente, mas não suponhas que a indescrição foi dela. Aquela cabeça fútil, por vezes, tem ideias sensatas. De regresso a Paris, dei-me um pouco com ela. De princípio, as nossas relações foram tempestuosas, porque, segundo afirmava, não podia perdoar-me o que chamava a minha cumplicidade. Depois humanizou-se e apressou-se a avisar-me quando descobriu nas cartas da princesa Milena claras alusões à insólita situação da sua protegida.
Calou-se um instante e prosseguiu:
- Não esqueças que Bertin foi embaixador na corte da Slovitânia. Sua mulher despertou aqui grandes simpatias e a própria princesa lhe escreve algumas vezes. Das simples cartas passou a correspondência mais íntima e, estando ao facto do teu casamento, não sabemos como, escreve-lhe, assiduamente, com o único fim, parece-me, de provocar confidências referentes a esse episódio secreto da tua vida.
Estava tudo dito. Raramente falava tanto e, em qualquer outra circunstância, o príncipe não teria deixado de se admirar. Mas, enquanto passeava de um lado para o outro no aposento, nem sequer pensava nisso. Não falava, mas a testa franzida, o brilho dos olhos negros e a contracção dos maxilares revelavam a cólera a custo dominada pela profunda reflexão.
Durante algum tempo, só o martelar dos seus passos sobre a alcatifa interrompia o silêncio. Por fim parou e, cruzando os braços, murmurou em voz surda:
- Como pôde saber, como ? Quem lho disse ? repetiu com crescente irritação.
Se pudesse interrogar Francisca, talvez esta se recordasse da tarde em que, na estufa, pedira a Miguel para lhe restituir a liberdade, quando o bater da porta lhe fizera recear a presença de uma terceira pessoa. Mas, àquela hora, France estava longe e ninguém poderia dar ao príncipe a resposta que a sua irritação solicitava.
Como du Breuil esboçasse um gesto de ignorância, o príncipe voltou-se, bruscamente, para a porta. Alguém batia com precipitação. Impaciente, dirigiu-se para ela e abriu-a, afastando-se para o lado a fim de deixar Natália entrar.
- Desculpa, Miguel - pediu a condessinha com voz trémula - Mas precisava, absolutamente, de te falar.
Dominando a sua impaciência, o príncipe inclinou-se. Depois, voltando-se para du Breuil, apresentou-os um ao outro. Só então reparou no rosto alterado de Natália.
- Que tens, Nat?
Natália fixou-o com olhar desolado e os lábios trémulos entreabriram-se para dizer:
- A Francisca ainda não regressou ao castelo.
- Ainda não regressou?... Mademoiselle de Chancel saiu ?
Natália confirmou com um gesto da cabeça.
- Supúnhamos que estivesse no quarto, para onde se retirou pouco depois de teres saido. Como afirmara sentir-se indisposta, minha mãe não quis que a fossem chamar à hora do jantar. Há pouco, porém, Maritza, alarmada, veio avisar-nos de que Francisca, tendo saído ao cair da noite, ainda não regressara.
Calou-se um instante e concluiu:
- O Stanko e Lignères já estão a organizar uma batida. Não queriam avisar-te, mas eu tomei sobre mim a responsabilidade de o fazer.
O príncipe escutava Natália com ardente atenção. Quando ela se calou, aprumou a alta estatura, caminhou para a janela, afastou os cortinados e prescrutou, através das persianas, a escura e temível noite invernosa.
- Insensata! - murmurou - Insensata! Respondeu-lhe um soluço. Então, voltou-se para a condessinha e afirmou com uma doçura que não estava nos seus hábitos:
- Fizeste bem em avisar-me, Natália. Vamos, imediatamente, tentar o impossível para a encontrar.
Depois, como se a própria afirmação lhe desse uma alma nova, o seu aspecto modificou-se e a máscara orgulhosa exprimiu indomável energia.
Em passo rápido, dirigiu-se para a campainha e tocou-a repetidas vezes. Nikitza acorreu logo. Recebidas as ordens do príncipe, o intendente dispunha-se a sair quando parou hesitante.
- Tens alguma coisa a dizer-me ? - interrogou Miguel a quem nada passava despercebido.
- Se Vossa Alteza o permite... Como Miguel fizesse um gesto de assentimento, declarou:
- A princesa Milena regressou tarde de um passeio a cavalo. Talvez tivesse encontrado mademoiselle de Chancel e, nesse caso, as suas indicações facilitariam as pesquisas.
Miguel concordou.
- Vai pedir a Sua Alteza, da minha parte, para vir aqui falar-me. Quanto ao resto, confio no conde Stanko. O pessoal que se reuna todo na escadaria, sob as suas ordens. Depois de ter falado com Sua Alteza e talvez munido com preciosas informações, irei reunir-me a eles na floresta.
O intendente inclinou-se e desapareceu. Então, a condessinha aproximou-se de Miguel e, poisando-lhe a mão no braço, pediu:
- Miguel, deixa-me acompanhar-te. com brandura, ele recusou:
- Não, Natália, é impossível. Daqui a pouco, o pessoal do castelo, com archotes e bem armado, percorrerá todos os recantos da floresta. Para bom desempenho desta tarefa, servir-nos-ias mais de estorvo do que de auxílio... Fica nos teus aposentos e espera-nos, suplico-te.
Triste, a condessinha curvou a cabeça. Encaminhou-se para a porta, mas, prestes a abri-la, voltou-se :
- E se fosse demasiado tarde, Miguel?
O príncipe empalideceu e com voz alterada pediu:
- Tem confiança em mim, Natália. Confio que não será tarde, não pode ser.
Quando a porta se fechou nas costas de Natália, Miguel, em passo lento, voltou para junto do amigo.
- Que esperas para me felicitar, Beltrão ? perguntou, quebrando o silêncio com amarga risada - Para me vingar de uma mulher sacrifiquei outra, inocente, que talvez pague com a vida a demasiada confiança que em mim depositou. Que belo título de glória, não achas ?
Du Breuil fez um gesto vago. Desde que chegara a Pakovatz pressentira muita coisa estranha; mas a mais inesperada não seria aquela máscara dura e lívida que exprimia mortal ansiedade ?
- Acontecimentos independentes da tua vontade...-murmurou-Não podes ser responsável. ..
Calou-se, porque Miguel, com a cabeça baixa, dava a impressão de nem sequer ter escutado as suas palavras. No mesmo instante, porém, aprumou-se e pediu:
- Desculpa-me, Beltrão, mas desejava receber a princesa sem testemunhas.
Encaminhando-se para a extremidade da comprida sala, abriu uma porta que estabelecia comunicação com o seu quarto de dormir e acrescentou:
- Queres fazer-me o favor de me esperar aqui ?
Depois, quando o secretário desapareceu, voltou a encostar-se ao fogão, aguardando a chegada da princesa Milena.
Surpreendida com a mensagem do intendente, a princesa nem pensou em mudar de toilette. Apareceu com um roupão de rendas brancas, chinelinhas de veludo e os esplêndidos cabelos negros presos com travessas adornadas com pérolas.
Mal entrou no aposento, parou e, a meia voz, como se lhe faltassem as forças, murmurou com a sua voz suave e melodiosa, que era um dos seus maiores encantos:
- Mandou-me chamar, Miguel... Seja pelo que for, obrigada!
O olhar ardente fixava o rosto do príncipe, enquanto as mãos unidas pareciam exprimir uma súplica.
Em qualquer outra altura, o príncipe teria sido sacudido por um impulso de orgulho de má casta. Aquela mulher, a sua noiva de outrora, que, numa louca ambição, não hesitara em sacrificar as vidas de ambos, estava ali, na sua frente, humilde e submissa, mais encantadora do que nunca.
No entanto, aquele triunfo tão desejado, não lhe causou a mais pequena emoção. Mais ainda, repugnou-lhe prolongar o equívoco.
Aproximou-se de Milena e, friamente, pediu-lhe desculpa por a ter mandado chamar.
Depois, sem se dar ao trabalho de lhe oferecer uma cadeira, perguntou bruscamente:
- Saiu esta tarde, não é verdade ? Por acaso, encontrou mademoiselle de Chancel?
A despeito do domínio próprio, a princesa perturbou-se. Ficou calada, sem desfitar o príncipe, com o ouvido apurado para o burburinho que subia do pátio de honra. Cedendo, por fim, a repentino impulso, tal como Miguel o havia feito momentos antes, aproximou-se da janela e colou a testa à vidraça. Depois, num tom de insultante zombaria, exclamou:
- Mobiliza um exército por causa da professora de Natália!... Acautele-se, poderão dizer que está apaixonado por ela...
Miguel contraiu os maxilares, dominando a custo a cólera. Lignères e Stanko, já prontos, iam iniciar as pesquisas, enquanto ele, na esperança de obter problemática informação, era obrigado a ficar ali, junto de Milena! Por fim, conseguiu dominar-se e como a princesa se voltasse para ele com um ar de desafio, respondeu gravemente :
- Não estou apenas apaixonado, Milena; France é minha mulher.
Uma exclamação sufocada acolheu esta confissão. Imóvel, fixava-o com os olhos muito abertos.
- É então verdade! - exclamou por fim, acompanhando estas palavras com estridente gargalhada
- Eu sabia-o e, no entanto, recusava-me a acreditar na mais espantosa, na mais extravagante das loucuras cometidas pelo príncipe de Kersto!
Deu alguns passos e comentou com voz sibilante :
- Como os seus súbditos vão ficar contentes, príncipe Miguel! E orgulhosos por verem sentada no trono, nobilitado pelos herdeiros de tantos reis poderosos, uma dama de companhia da condessa!... Mas isso é impossível! Ela não pode reinar. A constituição proibe-o e eu vou gritar ao povo...
Não concluiu. A mão de Miguel pesou-lhe no ombro como se fosse de ferro, enquanto a voz que vibrava com inflexões desconhecidas, ordenava:
- Não gritará coisa alguma, Milena! Sou eu agora quem exerce o direito de exílio e, por S. Miguel, juro exercê-lo, se me obriga a isso.
A princesa soltou débil gemido, todo o seu orgulho de rainha aniquilado pelo amor da mulher, e, apertando as duas mãos contra o peito como se tivesse recebido um golpe mortal, murmurou:
- Pena de talião, não é verdade, Miguel ? Mas posso afirmar-lhe que, dos dois, fui eu quem mais sofreu! Muito mais, sim ! - repetiu, reparando no irónico sorriso que adejava nos lábios do príncipe
- Tinha apenas dezassete anos e só mais tarde compreendi... Por que não soube guardar-me à força, por que não soube amar-me o bastante para me defender?
Calou-se. Falara numa voz entrecortada, arquejante, num impulso de paixão que se lhe reflectia no rosto.
Passou a mão trémula pela testa, recuou alguns passos e, encostando-se ao espaldar de uma poltrona, ergueu para Miguel o olhar ardente.
Naquele minuto era sincera. Torna-se impossível fingir certas inflexões. No entanto, o único sentimento que Miguel experimentou foi o da impaciência muito próxima da cólera por aquela que, sem lhe dar nada em troca, o prendia ali.
Conteve-se e, com uma indiferença altiva, encolheu os ombros.
- Deixemos dormir essas histórias do passado, Alteza. Nenhum de nós encontrará nelas qualquer interesse.
Tanta frieza, mais insultante do que desprezo, atingiu Milena como uma chicotada em pleno rosto. com um movimento brusco aprumou-se. Depois, erguendo orgulhosamente a cabeça, com o olhar cintilante e a boca vincada num trejeito desdenhoso, fitou Miguel, soltando pela segunda vez irónica gargalhada.
- Pobre Slovitânia!-exclamou num tom feroz e duro - Pobre Slovitânia, eis o rei que terás de suportar! Vão, batam a floresta, revistem todos os atalhos e clareiras à procura daquela que surge como obstáculo entre si e o trono! Procurem-na! E, para que eu tome parte no salvamento, escute. Miguel. Sim, encontrei mademoiselle de Chancel... na rotunda, ao sair do parque. Daí, embrenhou-se no coração da floresta.
Miguel quase não ouviu o final da frase. Precipitou-se para o quarto onde Nikitza o aguardava. Da boca deste soube que Beltrão também partira. com receio de que Miguel recusasse a sua colaboração, unira-se ao primeiro grupo.
com o auxílio do intendente, Miguel calçou as botas e embrulhou-se na peliça. Depois, sem se preocupar com Milena, precipitou-se para a escadaria. Tirando das mãos do criado o archote que lhe estava destinado, embrenhou-se no parque, já deserto e silencioso.
Durante alguns instantes, não conseguiu encontrar uma pista. O solo estava marcado com os passos daqueles que, antes dele, haviam passado por ali. Mas, contornando a rotunda, esses passos afastavam-se. Era evidente que os pesquisadores se dirigiam para outro lado do bosque.
Curvado para o chão, Miguel examinava o caminho. A chama do archote, batida pelo vento, lançava fugazes clarões. Ao longe, o ruído de vozes acompanhava a dança das luzes, que ora se aproximavam ora se afastavam.
Soou um tiro. Depois seguiu-se o silêncio, como se a floresta ficasse suspensa em angustiosa espectativa.
Depois, a pesada opressão dissipou-se. A procissão das luzes recomeçou a mover-se por entre as árvores. O príncipe, que naqueles minutos vivera uma eternidade, antes de recomeçar também a procurar, passou a mão trémula pela testa húmida de suor.
Reconheceu, por fim, no atalho, a pista de France, indicando recente passagem. Percorreu-o com rapidez, sabendo que ia ter à casa do guarda florestal, não ousando, no entanto, alimentar a esperança de que sua mulher tivesse conseguido alcançar o providencial abrigo. Naquela noite, com efeito, a casa estava desabitada. O guarda havia avisado Nikitza de que ia à aldeia visitar um parente doente. No entanto, quando no meio das trevas avistou a lanterna que baloiçava diante da casa, apressou o passo e em breve parou diante da porta. Bateu com força, mas, como única resposta, ouviu ladrar os cães que se encontravam no canil próximo. Recuou alguns passos e viu um fio de luz passando por baixo da porta.
- Está aí alguém? - perguntou com voz forte.
Novo ladrar dos cães, mas nenhum indício que lhe permitisse a esperança de que dentro de casa estivesse um ser humano.
O ferrolho exterior não estava corrido. Miguel tentou abrir a porta, que não cedeu. A resistência, portanto, vinha de dentro.
O príncipe teve a certeza de que sua mulher se encontrava ali, ferida talvez, mas, em todo o caso, perto dele... separada apenas por algumas tábuas.
com decisão, pôs o archote no degrau e depois, reunindo todas as suas forças, atirou-se contra a porta.
Repetiu a tentativa com força e por várias vezes. Era dotado de vigor pouco comum e a cada empurrão a madeira, um pouco carcomida pelo tempo, cedia um pouco. Por fim, algumas pranchas quebraram-se. O príncipe afastou-as e conseguiu penetrar na casa.
Por instantes, encostou-se arquejante à parede, sustentando o olhar carregado que o acolhia. Depois, sem dar um passo, interrogou em voz baixa:
- Se eu não tivesse conseguido arrombar a porta, ter-me-ias deixado ir embora sem uma palavra que acalmasse a minha ansiedade, não é assim ?
Os lábios de France não se abriram, não tiveram o mais leve estremecimento, mas este silêncio equivalia à mais eloquente resposta. De pé, perto da lareira, havia muito extinta, mantinha-se numa rigidez hostil.
- Quanta hostilidade! - comentou o príncipe, depois de ter esperado em vão a resposta.
Aproximou-se de France, cujo vulto, mal iluminado pela única e fraca lanterna, não conseguia distinguir.
- Temos de regressar ao castelo, Francisca.
O gesto sobressaltado de France fez com que a luz incidisse em cheio no rosto contraído.
- Ao castelo ? - repetiu como se falasse consigo mesma - O castelo - prosseguiu com súbita e inesperada violência - Meu Deus! Diga antes a detestada prisão, chame-lhe o cárcere do qual todo o meu ser aspira a fugir...
Como para deter estas palavras, Miguel levantou a mão. Mas no coração de France estava acumulado demasiado ressentimento para que, com este simples gesto, Miguel conseguisse o seu silêncio. com febril animação, ela prosseguiu:
- Alteza, a sua boa estrela abandonou-o desta vez... e, no entanto, esta noite a minha vida esteve por um fio... Bastava que a lanterna que pende lá fora estivesse apagada, que a porta, fechada com um ferrolho exterior, não tivesse cedido, e ficaria livre... Foi com isso que a princesa contou!
Francisca calou-se. Sem lhe responder, Miguel limitou-se a olhá-la fixamente.
- A princesa? - murmurou, por fim - A princesa ? Que pretendes dizer com isso ?
Amargo sorriso entreabriu os lábios de France. Como ele, ignorando tudo, a defendia! Depois, demasiado tarde, reconheceu quanto as suas palavras haviam sido imprudentes.
- Segundo creio, encontraste Sua Alteza. Por que não regressaste com ela ao castelo ?
- Não quis.
E, no desejo de ilibar a responsabilidade de Milena, após uns instantes de luta, concluiu:
- Todavia, Sua Alteza teve a bondade de me indicar o caminho...
- Sendo assim, o teu erro foi inadmissível. Para chegar aqui, voltavas as costas a Pakovatz.
Falava com autoridade e firmeza; e Francisca, como se tivesse sido a autora da criminosa tentativa e não a vítima, perturbou-se.
- Conheço mal a região e com a neve tornava-se fácil perder-me - murmurou.
- Não!
Nesta única palavra vibrava uma cólera imensa que o semblante também exprimia.
Deu um passo e, prendendo os pulsos de France, pediu:
- Responde, France. A minha prima indicou-te «de verdade» o bom caminho ? Ou...
Não concluiu. E ela que, para desvanecer as suspeitas, tentava rir, não conseguiu sustentar o olhar cintilante que a examinava.
Miguel já sabia o bastante. Largou as mãos prisioneiras, afastou-se bruscamente e, imóvel, com a cabeça baixa, absorveu-se em profundas reflexões. Segundos depois, aproximou-se de sua mulher e, numa voz cujas inflexões vibrantes tentava em vão dominar, murmurou:
- Tens razão, Francisca. Protelar o desenlace inevitável, é cobardia. Deploro hoje ter demorado tanto em tomar resoluções que nos libertariam aos dois.
Francisca não conseguiu reprimir um brado de alegria.
- Então consente ? Posso abandonar a Slovitânia ?
O príncipe voltou-se. Profunda, contração alterava o belo semblante. No entanto, foi com calma que respondeu: - com certeza. Depois de cumpridas certas formalidades.
Sem parecer notar o gesto espontâneo de reconhecimento com que sua mulher lhe estendia a mão, encaminhou-se para a porta.
- Bonito trabalho! - exclamou em voz surda, examinando as tábuas desconjuntadas.
Depois, dirigindo-se a France:
- Estás pronta, podemos partir? Apressada, ela vestiu o casaco de peles do qual levantou a gola e foi ter com Miguel.
O príncipe já tinha aberto a porta arrombada que, meio arrancada, dificilmente girava nos gonzos. Deu alguns passos para fora, tirou a espingarda que trazia pendurada ao ombro e descarregou-a por três vezes, com intervalos regulares.
- É um sinal para a batida acabar-explicou.
O archote, caído na neve, estava apagado. Desprendeu a lanterna do guarda, voltou a pôr a espingarda ao ombro e, relanceando um olhar à porta escancarada, concluiu:
- Os meus homens virão aqui amanhã para consertar isto... A caminho.
France acompanhou-o e os dois, guiados pela chama vacilante da lanterna, percorreram em sentido inverso o atalho pelo qual haviam seguido pouco antes, uma perseguida pelos lobos, o outro nas garras da ansiedade.
Durante o trajecto não falaram. Quando atingiram o pátio de honra, onde brilhavam já alguns archotes, Miguel designou a France a condessinha que, dominada pela angústia, não tinha conseguido permanecer dentro do castelo. Enquanto Natália, soluçando de alegria, apertava Francisca nos braços, Miguel atravessou a zona iluminada pela claridade do hall e atingiu a escadaria.
Antes de a subir, parou, olhou em volta como se procurasse alguém e, chamando o intendente, inquiriu:
- O conde Stanko já voltou ?
- Ainda não, Alteza.
- Espera por ele e, quando chegar, dize-lhe que desejo falar-lhe esta noite.
Deu ainda algumas ordens em voz breve, entregou a lanterna e a espingarda a Nikitza e subiu para os seus aposentos onde, pouco depois, o irmão de Natália foi ter com ele.
A conferência dos dois prolongou-se até de madrugada. Quando, por fim, o conde Stanko saiu dos aposentos de Miguel, parecia comovido e grave. Pesado fardo acabava de lhe cair sobre os ombros, fardo que tentaria sustentar com dignidade.
A família soberana da Slovitânia era não ortodoxa, mas católica, e o castelo de Pakovatz dispunha de uma capela que Francisca e Natália cuidavam.
Graças às duas raparigas, as belas jarras antigas que guarneciam o altar nunca estavam despidas. Durante o Inverno, a estufa fornecera o seu contingente de flores raras; e agora, a floresta oferecia-lhes a flora silvestre, diversa e perfumada.
Na Slovitânia reinava a Primavera. Todo o castelo despertava. O sol luminoso brilhava e, atravessando os vitrais vermelhos, alastrava como chuva de oiro de púrpura e azul, pelo pavimento de mármore branco.
De pé, diante de uma imagem da Virgem, cuja auréola, iluminada pelo sol, dir-se-ia sobrenatural, Francisca dispunha um ramo de amarilis. Perto, os cristais que adornavam os candelabros do altar, reflectiam todas as cores do prisma solar: a gama luminosa atingia também a fina toalha bordada.
Por momentos distraída com estes jogos de luz, France absorveu-se de novo na sua artística tarefa. com um gosto delicado, dispôs as corolas perfumadas, e depois, para melhor apreciar o efeito da sua obra, recuou alguns passos.
Envergava um vestido primaveril, género alfaiate, cujo tom azul escuro harmonizava, admiravelmente, com o doirado da cútis. Os cabelos penteados ao alto, deixavam a descoberto o rosto perfeito cuja beleza, naquela altura, não era empanada pela mais pequena nuvem.
Atrás dela, a condessinha, com um simples vestido, coberto com uma peliça bordada com flores e botões de prata, um dos mais graciosos trajos nacionais, que costumava usar para passear, aguardava que a tarefa estivesse concluída.
- Vem, France ? - perguntou a meia-voz. Como resposta, a preceptora inclinou a cabeça.
Oraram uns momentos antes de saírem da capela onde, no dia seguinte, devia ser celebrada a solene festa da Páscoa.
- Gostava tanto de ficar consigo, querida France! - suspirou Natália quando se ergueu do genuflexório de veludo.
com efeito, o uso exigia que a família real da Slovitânia, interrompendo o luto, fizesse na capital e em público, as devoções exigidas pela Páscoa.
E Natália protestava contra a partida que devia realizar-se nessa mesma tarde.
Nem a dama de companhia nem Lignères tomavam parte na viagem. Mas, enquanto uma ficava em Pakovatz, o outro decidira ir explorar rica biblioteca, situada numa cidade afastada, que possuía missais antigos, alguns impressos em 1490, o que provava que muito antes da severa interdição de Francisco I, já a imprensa existia.
- Não se demora mais de oito dias em Kroukoya - observou France que, sendo a última a sair, fechava a porta da capela.
A condessinha abanou a cabeça.
- É muito tempo para o meu gosto. Calou-se um instante e prosseguiu logo:
- Julgo que poderíamos regressar mais cedo, mas o Miguel não quer. Na segunda-feira realiza-se uma sessão solene do Conselho, à qual ele deve presidir e pretende que, depois dessa sessão, serão tomadas decisões para as quais a nossa presença se impõe. Quanto a levá-la connosco, meu primo declarou, secamente, quando minha mãe lhe falou nisso, que não era preciso porque «felizmente» a France não tinha certos deveres a cumprir! Isto começa bem! Semelhante tirania ainda antes de começar a reinar!
Depois destas palavras, proferidas num tom de amuo, Natália calou-se. As duas raparigas continuaram a caminhar em silêncio, cada uma delas absorvida por pensamentos muito diferentes.
Para a galeria que percorriam abriam-se alguns dos mais belos aposentos do castelo. Francisca só conhecia aqueles onde o seu cargo junto da condessa a obrigava a entrar. Os outros, onde cada móvel constituía uma peça de museu, fogões monumentais, lustres de cristal precioso, espelhos, tapeçarias, brocados de seda e magníficos coiros de Córdova, gravados a oiro, ignorava-os ainda. Por essa razão, parou indecisa no limiar da porta que a condessinha acabava de transpor.
- Natália...
- Estamos na biblioteca, France - elucidou Quero dizer, o santuário onde se prepara a futura glória do conde Stanko e do professor Lignères, colaboradores na história do nosso país.
Sorria, com um sorriso sem alegria, com qualquer coisa de terno, que a tornava encantadora e desarmava sempre a preceptora.
com efeito, era ali, entre aquelas paredes guarnecidas com estantes de carvalho carregadas de livros, que Stanko e o professor Lignères trabalhavam. A biblioteca de Pakovatz fornecera-lhes elementos valiosos. Desde o livro muito antigo, encadernado em marroquim, em pergaminho ou carneira, até aos manuscritos orientais, embrulhados i em seda bordada a oiro, com capas de marfim e por vezes adornadas com pedras preciosas, as mais raras edições estavam ali ao seu alcance. Desta forma, a obra a que aludia Natália estava quase acabado. Representava dias e dias de trabalho e também muitas noites. No meio erudito aguardavam-no com impaciência, explicada pela popularidade do conde Stanko e pela profunda cultura do professor Lignères.
Naquela altura, a sala imensa iluminada pelo sol que entrava pelas altas janelas, estava erma. No dia seguinte à batida na floresta, o conde Stanko, acompanhado por du Brueil, partira para Kroukoya. Essa ausência durava havia uma semana e, segundo todas as aparências, devia durar ainda algum tempo, visto a condessa Olga, Natália e Milena, nessa mesma noite irem reunir-se aos ausentes.
Ficando sozinho com o apaixonante trabalho, Lignères consagrara-lhe todas as suas horas. E se, naquele momento, o professor não ocupava o seu lugar habitual, a desordem que reinava na biblioteca indicava não ter saido dali havia muito tempo.
com curiosidade, Natália examinou os documentos esparsos, os livros abertos, os manuscritos. Mexeu em diversos objectos e, por fim, pegou numa ficha em branco.
com o sorriso nos lábios, reflectiu uns instantes e depois, decidida, pegou no estilo do preceptor e começou a escrever. Pouco depois, no rectângulo branco, cuja forma recordava a de um cartão de visita, viam-se estas palavras, traçadas numa caligrafia ligeira:
Professor João Lignères da Academia
Divertida e ao mesmo tempo receosa com a audácia, colocou o cartão bem em evidência no meio da pasta. Concluía a tarefa quando Lignères entrou.
Pareceu ficar surpreendido com a presença das duas raparigas e France notou que ligeira contracção alterava o semblante delicado e inteligente.
Depois de trocar algumas palavras com as inesperadas visitantes, o preceptor aproximou-se da secretária. Tinha reparado no movimento de Natália, quando ele entrara. Assim, o cartão branco despertou-lhe logo a atenção.
Pegou-lhe, leu-o e inclinou-se diante da condessinha, sem olhar para ela.
- Obrigado, mademoiselle - disse - mas a distinção é prematura.
A perturbação causada pela entrada do professor já se dissipara, e o olhar com que Natália o fixava era grave e sério.
- Prematura ? - replicou - Não por muito tempo. Todos sabem que este trabalho será a sua glória.
O rapaz esboçou um gesto vago, no qual havia um pouco de desalento.
- Para que me servirá ela ?
Por sua vez, Francisca aproximou-se da secretária. O gesto de Natália representava uma infantilidade e pretendia fazer-lho notar. A condessinha, porém, com súbita animação, prosseguiu:
- Para que lhe serve? com ela poderá realizar tudo quanto ambiciona, senhor Lignères. A celebridade, quando tem por base o mérito, é superior à fortuna, ao nascimento e mesmo aos dois reunidos. Convença-se disso e alegre-se com o êxito que espera o seu livro... Salvo se - acrescentou com tímido sorriso - é um homem satisfeito, sem ambições.
O preceptor estava de cabeça baixa, fixando um papel no qual traçava, com a faca de marfim que tinha na mão, imaginários rabiscos.
- com efeito - afirmou - não tenho ambições pessoais. E isso explica a minha indiferença perante a perspectiva de incerta celebridade.
Natália aprumou-se. com voz quase dura, replicou:
-Desculpe-me, senhor Lignères. Esqueci-me de que os espíritos superiores se bastam a si mesmos e repelem com desdém todas as alegrias que não dizem respeito aos estudos, à ciência árida e à concepção exagerada do dever.
Ao mesmo tempo encaminhou-se para a porta, seguida por Francisca que, de passagem, dirigira a Lignères, imobilizado e rígido, um gesto ao mesmo tempo de espanto e amistoso.
Quando se encontraram de novo na galeria, a preceptora agarrou o braço de Natália.
- Não compreendo, Natália. Acaba de ofender o professor e sem razão!...
Calou-se de repente, ao notar que os olhos de Natália estavam cheios de lágrimas. Ao mesmo tempo, esta agarrava-lhe nas mãos.
- France, não me diga nada, suplico-lhe.
E como, surpreendida ao máximo, Francisca ficasse calada, febril, Natália propôs:
- Vamos dar uma volta, sim ? Temos tempo antes de hora marcada para a partida. Vamos até ao Zagora; se tivermos sorte, talvez possamos ver passar uma tartana.
De passagem, agarraram duas capelines de palha que se encontravam penduradas no vestíbulo e atravessavam o hall quando encontraram Nikitza. O intendente saía dos aposentos de Olga Pavlovitch a quem acabavam de anunciar o regresso inesperado do príncipe. E, antes que Natália voltasse a si do espanto causado pela notícia, Nitikza acrescentou, indicando a porta entreaberta do parque:
- Sua Alteza, a princesa Milena, também já está avisada.
France e Natália seguiram com a vista a direcção indicada e mal tiveram tempo de ver passar uma amazona cujo cavalo se embrenhava pela floresta.
Como de tácito acordo, desceram, lentamente, a escadaria. Não tinham grande empenho em encontrar a princesa que, àquela hora, costumava dar o seu passeio a cavalo.
Logo que o sol da Primavera derreteu a neve e afugentou os lobos para a montanha, quando os atalhos se tornaram mais transitáveis, Milena retomou um dos seus antigos hábitos. Aquelas saídas, ordenadas pelo médico da corte, preocupado com os efeitos de prolongada reclusão, não podiam considerar-se divertimento. Ninguém poderia censurá-la por causa delas, nem pôr em dúvida a estrita observância de um luto rigoroso.
De resto, o trajo da amazona era severo e o rapazito que a seguia, trajando de negro também, parecia-se, como irrespeitosamente comentava Natália, com um pajem de madame de Malborought.
Natália observava também que o conjunto austero fazia sobressair a beleza de Milena. Nunca a cútis da princesa apresentara tão deslumbrante alvura, tão bela como agora, sombreada pelo pequeno chapéu negro poisado sobre a cabeleira deslumbrante. Na garupa sedosa do cavalo, quando a galope, a cauda da saia esvoaçava como se fossem as asas desdobradas de um anjo da noite. E o animal, fogoso, com movimentos impetuosos, mais fazia sobressair o domínio e perfeita calma, a graça de quem o montava.
Quando o ruído dos passos dos cavalos se extinguiu, Natália e France embrenharam-se por sua vez no parque. Naquela altura, pelo menos, a condessinha não estava disposta a fazer irónicos comentários sobre a princesa. Caminhava em silêncio ao lado da preceptora e no semblante anuviado podia ler-se funda preocupação. Ao observá-la, France esquecia os seus próprios problemas. Como a condessa Olga Pavlovitch havia sido perspicaz! A gentil rapariga, de reacções apaixonadas, cuja dor dera lugar à cólera, sim, devia amar alguém. Por momentos, esteve quase resolvida a confessar-lhe o seu segredo, mas nem uma só palavra conseguiu proferir. Não podia destruir assim a preciosa afeição da sua aluna.
Mais tarde, Natália conheceria o papel doloroso que a sua preceptora desempenhara e como era indulgente e boa, perdoaria, sem dúvida.
O tempo passaria e o Destino arrastaria France para muito longe da Slovitânia. Miguel, livre enfim, poderia reinar. Permitisse Deus que a sua mão se estendesse para a meiga Natália e não para a soberana viúva, cuja ambição fora a causa do seu exílio.
Como se a força do pensamento bastasse para materializar a princesa, France supôs ouvir a voz de Milena. Estremeceu, mas dispunha-se a prosseguir, quando Natália, surpreendida também, parou.
Acabavam de transpor o Zagora e preparavam-se para seguir ao longo da margem : a condessinha, porém, mudando de direcção, meteu pela alameda que conduzia ao pavilhão de caça.
com efeito, uma voz dominava o murmúrio do rio. Era uma voz grave e cantava com estranhas inflexões a «Canção Eslava», de Chaminade, acompanhando-se com breves acordes do piano.
- Que bela recepção está preparada ao Miguel!
- comentou a condessinha, num misto de irritação e ironia.
Durante algum tempo, France olhou com dolorosa acuidade para as paredes de granito, para os veados de pedra e para a clareira cheia de sol. Coisa alguma mudara desde que ali estivera, numa tarde de neve; nem a própria Primavera conseguia suavizar o aspecto selvático daquele local. Lá no alto, uma águia negra evoluia e France teve a impressão de que o seu voo pesado no céu luminoso representava funesto presságio.
De resto, além da ave de rapina, não havia sinais de vida naquele local ermo. A floresta e a clareira dir-se-iam mortas. Possivelmente, para se isolar, Milena mandara embora o criadito com os cavalos.
- Não esqueceu o passado, temos de lhe fazer justiça - murmurou Natália - Quando regressava ao castelo depois de qualquer ausência, o Miguel passava sempre pelo pavilhão onde ela o aguardava.
Calou-se, escutando com Francisca, as estrofes ardentes e apaixonadas:
No meu belo país Tinha um amigo Ele partiu E eu fiquei só Há quantas noites Não consigo dormir
A minha dor é profunda
O deserto é grande
O vento sopra com força
Uma serpente enroscou-se
No meu coração
E morde-me
Bruscamente, a condessinha pegou na mão da preceptora:
- Vamos embora, France - murmurou - Será o que o Destino quiser, mas Deus proteja o Miguel, se ainda a ama!
Voltaram para trás, mas, por muito tempo ainda, a voz suave as perseguiu. Depois, o Zagora, com o murmúrio doce das suas águas, abafou os últimos acordes e as duas raparigas respiraram com maior desafogo. Daí a pouco, chegavam a uma espécie de pequena península e Natália deixou-se cair sobre a relva.
Encontravam-se num recanto cheio de harmonia e paz, que os génios da floresta deviam frequentar com prazer. No meio, elevava-se um desses rudes Ícones, protegido por um alpendre de madeira, formando uma espécie de capela, muito frequentes nos campos balcânicos, diante dos quais, na noite de Natal, a devoção popular acende lanternas e lampeões. Em volta, a relva tomava tonalidades macias e a sombra era tão acolhedora que os veados e cabritos monteses do domínio, depois de beberem, à noite, vinham para ali deitar-se.
Uma vez por ano, algumas tartanas desciam o rio e perturbavam este silêncio. Mas os jovens músicos que, no pitoresco e tradicional trajo, iam à vila mais próxima oferecer o seu concurso para as festas da Páscoa, depressa passavam, deixando atrás de si uma esteira de prata que em breve se desvanecia. A música amortecia, os acordes dos violinos e tímbales sumiam-se, pouco a pouco, debaixo do arvoredo.
France aproximara-se da margem e, debruçada para a água transparente, admirava o bailado das manchas doiradas do sol.
- Como está calmo, que ondulação tão suave! - murmurou.
- Como a minha querida France se engana! replicou Natália rindo - Fique sabendo que o Zagora tem cóleras terríveis - explicou, perante o espanto da amiga - Basta o degelo brusco ou abundância de chuva, para o rio, frenético e furioso, sair do leito. Uma vez, no Verão, o pavilhão também pagou o seu tributo a esses arrebatamentos. A cheia já tinha atingido os veados de pedra e chegara ao último degrau, quando a barragem rebentou. Uns minutos mais e, assaltada pela água que entraria por todas as janelas, a casa não resistiria. Reforçaram-na depois disso, mas, mesmo assim, não me parece que suportasse outro assalto semelhante.
Francisca voltou-se para a condessinha e repetiu:
- A barragem ?
- Exactamente. Um pouco mais abaixo, o Zagora fertiliza os vales onde se encontram os melhores prados da Slovitânia. Uma barragem, que pode ser destruída num instante em caso de perigo iminente, canaliza as águas. Mas não tenha medo, Francisca. Raramente se dá esse caso.
A preceptora sorriu e foi sentar-se-lhe ao lado. Gostava de ver a condessinha outra vez animada e alegre. De resto, aquele ambiente calmo e sossegado também a influenciava.
Desenrolou o trabalho, uma manta de lã em malha para alguma criança pobre, e começou a mover as agulhas, enquanto Natália, com olhar vago, devaneava.
Os minutos corriam, formando horas na sua ronda constante. O sol, doirava o cimo das bétulas quando, de súbito, Natália se voltou e inquiriu:
- Não ouve, France?
- Creio que sim. Parece-me que não deixa de ter a sua tartana.
A condessa já estava em pé. France poisou o trabalho. com o olhar fixo na curva que o rio fazia um pouco mais acima, as duas aguardavam.
Surgiu o pequeno barco com cinco músicos, cinco com o chapéu enfeitado com fitas, a jaqueta vermelha e azul, a calça terminada em franja, faixa de seda, capa branca bordada com flores e botas brilhantes, cinco que traziam àquele recanto animação e vida. Por forma alguma envergonhados com a presença das duas raparigas, os músicos, quando chegaram à sua altura, pararam o barco. Depois, como Natália lhes falasse no seu idioma, ao mesmo tempo harmonioso e áspero, um dos cinco pegou no violino.
Encostada ao icone, cujo alpendre a envolvia em sombra, Francisca cerrara as pálpebras. Em parte encoberta por Natália que, um pouco mais à frente, não podia vê-la, abandonou-se à emoção causada pela música; uma melodia estranha, bravia e apaixonada elevava-se do rio, acariciava a verdura da margem, como que fazia vibrar as bétulas. Era a alma altiva, livre e selvática da Slovitânia que se lhe oferecia... Uma vez essa alma também se lhe revelara, mas muito mais rude ainda!
Rude? Sim. Mas, acima de tudo, vibrante de ressentimento, de dor e de cólera, tão trágica que, ao recordá-la, France sentia-se estremecer. Deus do Céu! Quem odiaria Miguel naquele instante, com tanta violência? Não podia ser a gentil recém-casada, dócil e cega, a rapariguita a quem tão cruelmente ferira na sua confiança e dignidade...
Quando ergueu a cabeça, a tartana recomeçara a descer o rio. Junto da margem, Natália seguia-a com a vista, mas voltou-se surpreendida quando de terra alguém atirou uma bolsa.
- Estavas aí, Miguel? Ouviste?
Enquanto o som das czardas, executadas pelos músicos, se ia desvanecendo, pouco a pouco, Miguel aproximou-se. Segurava na mão uma capeline de palha que deu a sua prima, dizendo:
- Encontrei isto aqui perto e logo pensei procurar a sua proprietária para lho restituir. É teu, não é, Nat? Está aqui também, mademoiselle de Chancel ?
Falava sem se voltar e quase se poderia supor que não tinha visto Francisca.
- Devia ter perdido o chapéu na clareira explicou a condessinha - Parámos um instante para...
- Para escutar Sua Alteza - concluiu Miguel com calma.
E como Natália olhasse para ele, sorrindo, acrescentou :
- Eu também parei... cá fora.
Uma expressão alegre, tocada de ironia, animou o semblante encantador. O príncipe não entrara no pavilhão onde Milena o esperava.
Miguel voltou-se e, devagar, aproximou-se de Francisca.
- Gosta da nossa música, mademoiselle ?
Francisca estremeceu ao som da voz clara e vibrante, tão mudada que mal a reconheceu. Espantada, ergueu os olhos para o marido.
Depois de se terem separado na escadaria, iluminada pelos clarões vermelhos dos archotes, na noite da batida, nunca mais o vira e, naquela altura, afigurou-se-lhe ter na sua frente um homem diferente.
Trajava um fato claro, o que o tornava ainda mais moreno. Os abundantes cabelos negros, deitados para trás, deixavam a descoberto a fronte lisa, sem a mais pequena ruga de preocupação. O aspecto era radiante. Poder-se-ia afirmar, ao observar o semblante calmo, que o príncipe estava contente por se encontrar de novo em Pakovatz.
Sem lhe dar tempo para responder, Miguel prosseguiu no mesmo tom:
- A minha pergunta é supérflua. Há pouco observava-a e adivinhei o estranho poder que sobre si exerce a música. Estava perturbada, vibrante, e a sua fisionomia tão depressa se iluminava como ensombrava, conforme o sentido que a frase musical traduzia. Enganei-me? - concluiu, notando o gesto de France.
Por momentos ela ficou calada. Depois, erguendo os olhos para o príncipe, que parecia aguardar a resposta, afirmou com calma:
- Não, Alteza, não se enganou. Esta sensibilidade... excessiva, é má. Certos actos da minha vida, cujo erro desejaria resgatar com o meu próprio sangue, foram inspirados pela magistral execução de algumas melodias, num violino.
com este golpe directo o príncipe empalideceu.
- Só por isso, Francisca ? - murmurou.
- Unicamente, Alteza.
Miguel aprumou-se e, passando a mão pela testa, comentou:
- Se lhe desse crédito, os oito dias que acabo de passar em Kroukoya teriam sido os mais inúteis da minha vida.
Desta frase enigmática, France notou apenas a recusa em acreditá-la. No entanto, não protestou, porque Natália, muito afastada para poder ouvir a conversa, se aproximava deles.
Quando a condessinha chegou, já Miguel havia recuperado a sua atitude calma.
- Será melhor regressarmos ao castelo - observou - O Stanko já deve ter concluído os preparativos para a partida. Quanto a mim, regresso ao automóvel que deixei à entrada do castelo.
Enquanto Natália ia buscar a peliça que deixara pendurada num ramo, Miguel, pensativo, passeava pela península. Acabava de parar junto do Ícone que o ocultava aos olhos dos companheiros, quando a voz de Milena se fez ouvir. com a cabeça descoberta, a cauda do vestido deitada para o braço, o chapéu, as luvas e o chicote na mão, a princesa desembocou do atalho e marcou ligeira hesitação quando viu as duas raparigas. Depois aproximou-se de Natália e perguntou com a sua voz musical:
- Não viu o Branko? Ordenei-lhe que esperasse aqui por mim com os cavalos.
Esta afirmação teria causado o maior espanto ao criadito, se a ouvisse, porque, pouco antes, havia indicado a Milena o caminho seguido pelo príncipe Kersto.
Natália abanou a cabeça, enquanto Milena dava alguns passos para se aproximar dela e explicou ainda:
- Apeteceu-me passear na floresta sozinha. E agora, o Branko não aparece no sítio que lhe indiquei. Só a chicote - concluiu numa voz áspera Eis um hábito dos tempos antigos que devíamos adoptar de novo.
Estranho sorriso perpassou pelos lábios de Natália. A alusão de Milena ao «passeio pela floresta» divertia-a.
- Peça essa reforma ao Miguel - sugeriu.
E, acentuando, intencionalmente, as palavras, acrescentou:
- Agora é ele o senhor e sem a sua autorização coisa alguma se poderá fazer. No entanto, estou certa de que ele não lha recusará.
Os lindos lábios vermelhos entreabriram-se para soltar uma gargalhada forçada.
- O Miguel tem outras preocupações mais graves ! Além disso, evito manifestar-lhe qualquer desejo, sabendo que se apressaria a satisfazê-lo.
Estas últimas palavras foram proferidas num
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tom de desafio, como se não fossem dirigidas à condessinha. Depois deu alguns passos e, voltando-se para France, exclamou:
- Ainda bem que está aqui, mademoiselle de Chancel! Faça-me o favor de ir, imediatamente, procurar o meu cavalo.
Oculto com o icone, o príncipe Kersto cerrou os dentes e contraiu os punhos. Terrível expressão de cólera lhe transtornou as feições. No entanto, conseguiu recuperar a calma. France, antes de obedecer à intimação da princesa, apanhou o chapéu que estava caído no chão, pô-lo na cabeça, e dispunha-se a afastar-se quando uma voz com ásperas inflexões a fez estremecer:
- É inútil incomodar mademoiselle de Chancel, prima. Branko encontra-se atrás do pavilhão com os animais. Detive-me ali, há instantes, a fim de conhecer o motivo por que estava aberto na minha ausência, facto que em extremo me desagradou.
A lição era dura e, ao recebê-la, Milena corou e empalideceu, alternadamente. Apesar da pouca simpatia que lhe inspirava a prima, Natália considerou ser oportuno intervir:
- Se não se importa, eu acompanho-a, Milena. Apetece-me andar a cavalo. O Branko emprestar-me-á o seu e assim chegarei mais depressa ao castelo. Minha mãe já deve estar aborrecida com o meu atraso.
E, com a peliça pelas costas, cabelos ao vento, sem se preocupar se o trajo era ou não insólito para uma cavalgada, tomou o braço da princesa, que esboçava um sorriso de forçada indulgência.
France e Miguel meteram pelo atalho. Mas o príncipe, que precedia sua mulher, caminhava tão devagar que em breve as duas primas desapareceram como que absorvidas pela floresta.
- Francisca - disse o príncipe - ainda esta manhã estava em Kroukoya. Volto para lá agora e talvez a minha ausência se prolongue. Todavia, as festas da Redenção, que se aproxima, não permitem que continuemos encimesmados na hostilidade, orgulho e ressentimento. E, por considerar esta situação indigna de ti e de mim, vim hoje ao castelo. Francisca, estamos na Páscoa, na época do perdão. Perdoas-me ?
Antes de lhe responder, Francisca apertou as mãos contra o peito, num gesto de aflição. Quanto lhe custava conceder esse perdão! Fazia-o, não pelo príncipe Kersto, mas por Aquele que viera ao Mundo para resgatar os homens. Todavia, naquele minuto, oprimia-a uma angústia tão profunda, talvez, como a que experimentaria se estivesse aos pés da Cruz. Lentamente, deixou cair os braços e murmurou:
- Recordando a sua promessa de liberdade, Alteza, perdoo-lhe.
Triste sorriso entreabriu os lábios do príncipe.
- O meu perdão é então concedido sob condições ? Quando concedeste a tua confiança a um simples artista, foste mais generosa, Francisca.
- É cruel evocar essa recordação, Alteza - replicou ela em voz surda.
Miguel não protestou e guardou silêncio, como se esperasse outras palavras. Mas como não as ouvisse, murmurou:
- Eis-me obrigado a regressar a Kroukoya com um perdão muito incompleto. Mas não importa. Por agora, esse me basta. Dá-me a tua mão, Francisca.
com a estranha docilidade que em tempos demonstrara ao violinista Miguel Marsac, France obedeceu. Depois regressaram os dois ao castelo, sem trocarem palavra.
Os automóveis que deviam levar a família real para Kroukoya já se encontravam diante da escadaria. Quando os viu, France apressou o passo e, intimamente, ficou satisfeita ao notar que o marido a imitava.
Quando estavam perto da escadaria, o príncipe inclinou-se e murmurou:
- Até breve, France.
Depois atravessou o hall, enquanto Francisca se dirigia aos aposentos da condessa, para se despedir.
No salão onde entrou viu Lignères que devia ter chegado também minutos antes, pois ainda apertava afectuosamente a mão do conde.
com trajo de viagem - pois também abandonava Pakovatz naquela tarde - conversava com Stanko, enquanto France pedia a Olga Pavlovitch as instruções indispensáveis para uma ausência de oito dias.
A condessa, porém, que tinha falado demoradamente com o filho, contra os seus hábitos, mostrava-se muito agitada e comovida, uma emoção alegre que lhe abrasava o rosto impregnava todos os seus gestos e lhe vibrava na voz. Dir-se-ia que, em contraste com Natália, que se mostrava apática e indiferente, por um fenómeno estranho, as duas haviam trocado o seu modo de ser.
Depois de bater discretamente à porta, Nikitza entrou para avisar que o príncipe os aguardava para se porem a caminho.
Nervosa, Natália, em substituição da peliça branca, vestiu um casaco. Olga Pavlovitch, que envergava severo vestido preto, género alfaiate, vestiu o casaco de peles. Depois, aproximando-se de Francisca, apertou-a nos braços com ternura.
- Rese por nós, minha filha. Quando regressarmos haverá grandes mudanças em Pakovatz!
Stanko sorriu e Lignères, para quem, por acaso, Francisca olhou naquele momento, tornou-se lívido. como se tivesse sido atingido por inesperado golpe.
Quanto a Natália, na sua imobilidade, não se manifestou e Francisca não pôde ver o olhar que ela relanceava ao professor do irmão.
Alguns minutos passaram e France, parada no meio do seu quarto, repetia a meia voz, para melhor se convencer, a transparente alusão da condessa ao próximo noivado de Miguel com Natália.
O rolar dos automóveis, que levavam a família real, desvanecera-se ao longe, na floresta, e France, sozinha, saboreava uma paz dolorosa, mas necessária, abençoada!
Pouco antes, Natália, tendo, talvez, esquecido qualquer coisa, subira apressada ao quarto onde se demorou dois ou três minutos. E, no momento em que a condessinha passava no corredor, France, instintivamente, levara as mãos à cabeça e apertara-a.
«Que ela não entre, meu Deus, que ela não entre!»
Natália não entrou, mas France, agora arrependia-se por esse gesto violento. Desejaria pedir perdão a Natália e, na ânsia de prolongar a presença que, por momentos, odiara, dirigiu-se ao quarto da condessinha, agora deserto.
Como se demorasse ali, a criada de quarto que também ficara no castelo, entrou. Enquanto ia compondo a desordem que reinava no aposento, Darinka anunciou a France que o preceptor também tinha abandonado Pakovatz.
- O senhor Lignères parecia muito preocupado
- comentou - - Fui obrigada a bater três vezes à porta do quarto para que me respondesse. E, coisa estranha, não me agradeceu quando lhe entreguei um bilhete da condessa Natália.
As solenidades da Páscoa realizaram-se numa atmosfera quente de Primavera, na irradiação doirada do sol, com o repicar festivo dos sinos.
Segundo o uso adoptado mesmo nas mais pequenas aldeias, todos envergavam os seus mais belos trajos e abandonavam as suas casas para tomarem parte nos festejos públicos. Os que passavam saudavam-se e muitas vezes beijavam-se, gritando : «Christos Voskrese!» (*). Os rapazes depunham às portas das namoradas um cordeirinho enfeitado com fitas e um cesto com dulceas, bolos, rebuçados e outras guloseimas das mais apreciadas. Em banquetes dos quais se reservava uma parte para os pobres, toda a família se reunia em torno do leitão, assado no espeto, nos páteos das herdades. E, quando caía a noite, rapazes e raparigas dançavam uma farândola, a dança simbólica da ressurreição.
Pakovatz estava fora da alegria geral. Alguns músicos, ignorando a ausência dos senhores do castelo, tinham ido fazer uma serenata no pátio de honra. Depois, chamados por Nikitza, foram sentar-se em volta da grande mesa da copa e o castelo de novo mergulhou no silêncio e isolamento.
Naqueles dois dias, tinham sido eles os únicos companheiros de Francisca. A própria Maritza fora passar uns dias com a família e não devia aparecer no castelo senão depois da «feira dos namorados» onde devia acompanhar uma das irmãs. France tinha dado, com prazer, a sua autorização para esta cerimónia que, todas as segundas feiras de Páscoa,
(* ) - Cristo ressuscitou
reúne numa das cidades montanhosas da Slovitânia, todos os rapazes e raparigas em idade de fundar o seu lar.
Envergando o pitoresco trajo nacional, as jovens Slovitanas, quando chegam ao local da feira, sentam-se em cima da arca pintada que encerra o seu enxoval. Estão rodeadas pelos parentes cujos conselhos as guiam na escolha, enquanto que, atrás de cada grupo, relincha, muge ou solta balidos, o rebanho levado em dote ao futuro marido.
Mais longe, instalado à sombra de uma árvore, o notário, com dois escreventes, aguarda.o momento de fazer os contratos. E, dominando todos os ruidos, os músicos tziganos, de rosto bronzeado, pupilas brilhantes e dentes muito brancos, tocam sem cessar nos seus violinos.
A criada de quarto explicara a Francisca todos estes pormenores. A preceptora recusara, delicadamente, a oferta de hospitalidade feita pelos pais de Maritza que lhe pediram para assistir à partida dos carros para a feira. Ficando sozinha, passou toda a tarde a arrumar diversas coisas.
Nas malas que tinham trazido a sua roupa, na viagem para a Slovitânia, meteu recordações, alguma roupa e os seus livros, evitando os objectos cuja desaparição podia ser notada por Natália. Guardá-los-ia mais tarde quando, já perto da partida, tivesse de a revelar à condessinha. Até esse dia, ninguém devia suspeitar das suas intenções.
A partida! Depois que recebera a promessa de Miguel, pensava nela com ansiedade febril, uma febre que lhe acelerava as palpitações do coração. Aquele desejo louco de fugir, de esquecer, só poderia ser provocado pela alegria, com certeza. Mas como essa alegria lhe fazia mal, Deus do Céu!
Vagarosamente, largou um espelho com moldura de prata, presente de Natália, que se dispunha a meter na mala e, endireitando-se, passou a mão pela testa. O sol brilhante da véspera havia sido substituído por um calor anormal e nem mesmo a aproximação da noite refrescava a atmosfera pesada. A trovoada estava cada vez mais perto. A massa de nuvens acinzentadas, com contornos bizarros, formava uma espécie de abóbada sufocante e de desesperadora continuidade. Pakovatz e o seu parque, a floresta e a aldeia, pouco a pouco, eram envolvidos em escuridão.
Afastando a mesa sobre a qual a bandeja do jantar se conserva intacta, Francisca foi encostar-se à janela onde, quase logo, a surpreenderam as primeiras gotas de chuva.
Com extraordinária rapidez, a trovoada desencadeou-se com extrema violência. Trovões, assobios do vento, rajadas, sacudiam os telhados, dos beirais despenhavam-se cataratas de chuva e, ao longe, ouvia-se o surdo rugir do Zagora. De momento a momento, as nuvens entreabriam-se e, pela fulgurante abertura, dir-se-ia que o olhar penetrava até ao mais fundo da abóbada celeste.
Para não ter o quarto inundado, teve de fechar a janela. No entanto, deixou-se ficar com a testa colada aos vidros, estremecendo a cada relâmpago, mas não conseguindo arrancar-se à trágica grandeza do espectáculo. E, de repente, ocorreu-lhe que da estufa esse espectáculo seria muito mais belo. Encerrada na imensa galeria envidraçada, não teria a sensação de se encontrar no seio da tempestade? Minutos depois, tendo fechado a porta do quarto, desceu para se dirigir a esse lado do castelo, quase deserto depois da partida da família real para Kroukoya.
Atravessou o salão, mergulhado na penumbra por ter as portas das janelas todas fechadas e alcançou a estufa onde, àquela hora, os jardineiros não entravam.
Dali, a impressão dada pela trovoada era, de facto, impressionante. Graças ao tecto e às paredes de vidro, Francisca tinha a sensação de se encontrar em pleno campo e, a cada relâmpago, a cada rajada violenta, não podia deixar de estremecer. Encostada a um dos pilares de mármore, deixava o olhar vaguear pelos maciços mais próximos e pelas árvores do exterior, batidas pelo vento.
Em Kroukoya sentir-se-ia a trovoada com tanta violência? Era possível. Mas Miguel que, naquele momento, devia estar a presidir ao Conselho e pela primeira vez usava a sua autoridade de rei, provavelmente, nem dava por ela.
Vagarosamente, Francisca deixou tombar as mãos que levara às faces ardentes. A passageira excitação provocada pela trovoada, ao abandoná-la, deixava atrás de si uma lassidão imensa. Os perfumes intensos, exalados pelo roseiral, entorpeciam-na.
E, de súbito, viu acender-se a luz do salão. A sua claridade atravessava a porta envidraçada e vinha morrer aos pés de Francisca.
Viu Lignères - pois era ele-que se despojava da gabardine e do chapéu que escorriam para o chão. Devia ter vindo a pé, da estação, debaixo de chuva. O preceptor, de pé, parecia lutar contra si mesmo, numa ansiedade trágica. Por fim, sentou-se numa atitude acabrunhada, apoiou os cotovelos nos joelhos e apertou a cabeça nas mãos.
O ruído surdo de um motor, perceptível no meio do temporal, fê-lo estremecer com tal violência que Francisca, cujo espanto se transformava em verdadeiro assombro, deu alguns passos para entrar no salão. Mas não teve tempo para o fazer. Pela segunda vez, a porta abriu-se e no limiar apareceu... Natália!
Lignères pôs-se de pé. Estava de costas para France que não podia ver-lhe o rosto. Em compensação, o da condessinha, meigo e ardente, transfigurado por forma estranha, parecia irradiar. Estendia as mãos para Lignères, que não se mexeu. Então, Natália deu alguns passos para ele e Francisca compreendeu que não tinha o direito de se conservar na sombra, o direito de violar um segredo que pertencia aos dois.
Rapidamente, antes que a condessinha alcançasse Lignères, avançou e, sem hesitar, abriu a porta envidraçada que ligava a estufa à sala.
O preceptor voltou-se com um gesto de terror, enquanto Natália, reconhecendo a amiga, parou, mas logo correu a lançar-se-lhe nos braços.
com suavidade, Francisca ergueu a cabecita apoiada no seu peito e, afagando com ternura a fronte branca e lisa, declarou:
- Não me diga coisa alguma, Nat querida.
Um sorriso iluminou o semblante de Natália. Libertou-se dos braços de France e, voltando-se para Lignères, declarou:
- É muito simples, France. Amo-o!
A esposa de Miguel baixou os olhos e uma fervorosa acção de graças lhe subiu aos lábios: «Ela ama Lignères! Graças, meu Deus!» Dispunha-se a falar quando, por sua vez, o preceptor protestou:
- Mademoiselle de Chancel - suplicou com voz alterada - é sensata e ajuizada. Diga-lhe, por favor, que isto é uma loucura impossível e censurável!
Infinita compaixão esmagou o coração de France. Como eles lutavam com o seu amor! Todavia, voltou-se para o rapaz e, com firmeza onde se adivinhava uma censura, perguntou:
- Se pensa dessa forma, para que veio ?
O rosto de Lignères contraiu-se, mas, antes que ele respondesse, Natália protestou:
- Francisca, fui eu quem assim o quis, só eu! Nervosa, apertava a mão da amiga, como para
confirmar esta declaração.
Em seguida, com ternura, murmurou:
- Não me quer mal por lhe ter ocultado isto, France querida ?
Como resposta, Francisca apertou os deditos gelados que se entrelaçavam nos seus. Então, Natália afastou-se um pouco dela e, numa voz apaixonada e surda, que France desconhecia, continuou:
- Amo-o, Francisca, Desde quando, não sei. Há muito tempo, com certeza. Não o condene nem o acuse. Se soubesse quanto tive de lutar para conhecer o seu amor por mim!
Calou-se um instante e logo continuou:
- Estes últimos dias que passei em Pakovatz, receando que os projectos de minha mãe se realizassem! Casar com Miguel! Estava indicado, sim, e a Francisca, sem me falar no assunto, involuntariamente talvez, também me impelia para isso.
Com espanto, que a cada palavra de Natália mais aumentava, Francisca escutava esta ardente confissão. Supunha conhecer todos os segredos da amiga e não adivinhara este belo amor!
De súbito, recordou o incidente da biblioteca: as lágrimas de Natália, o constrangimento de Lignères, a perturbação de ambos à qual ela não soubera dar o verdadeiro nome.
A condessinha prosseguiu:
- Recorde-se da nossa partida para a capital. Nesta mesma sala, minha mãe afirmou que, quando regressássemos, haveria grandes mudanças no castelo... Referir-se-ia a mim? Não sei. Mas «ele» supô-lo. E, nesse momento, deixou adivinhar o seu espanto desolado, a sua dor! Mas nós partimos... abandonámos Pakovatz nesse mesmo instante! Não pude resignar-me a deixá-lo sofrer durante oito dias, longe de mim. E, voltando ao quarto, escrevi-lhe um bilhete, pedindo-lhe para me esperar aqui, esta noite.
Calou-se um instante e concluiu com um suspiro de alegria:
-Deus seja louvado! Ele veio, afrontando o temporal!
Afastou-se de France e aproximou-se de Lignères, que parecia uma estátua, e, poisando-lhe as mãos nos ombros, murmurou com infinita doçura:
- João, é verdade. Amo-o. Digo-o pela primeira vez, mas já o sabia há muito tempo, não é verdade ?
Sem lhe responder, o preceptor apoderou-se-lhe das mãos e beijou-as uma após outra. Depois, sem as largar, voltou-se para Francisca.
- Devo-lhe explicações - disse em voz firme A minha presença no castelo...
Ela interrompeu-o com um gesto.
- São inúteis, senhor Lignères. Devia ter partido ante-ontem e não partiu. É esse o mistério, não é verdade?
- Sim - confessou ele com esforço - Durante estes dois dias, aluguei um quarto na vila. Tentei cem vezes fugir, mas fiquei, demasiado fraco para cumprir o meu dever.
Calou-se, porque não conseguia falar ao recordar a luta travada consigo mesmo. Francisca voltou-se para a condessinha:
- Como conseguiu chegar até aqui, Natália ?
Não tinha coragem nem talvez desejo de a censurar; e a amiga, por certo, o adivinhou porque, com um sorriso calmo e meigo, explicou:
- Foi muito simples, France. Como sabe, minha mãe e Milena tomam parte, esta tarde, no Conselho perante o qual, pela primeira vez, Miguel vai. .. como direi, apresentar, oficialmente, a sua candidatura como futuro rei. Em geral, estas cerimónias demoram muito tempo. Certa de que, durante muitas horas, ninguém se preocupará comigo, aluguei um carro e aqui estou.
Esta tranquila confiança restituiu a Francisca a sua energia e a noção da sua pesada responsabilidade.
- O automóvel veio até ao pátio de honra ? perguntou.
- Não. Arrumei-o na ala direita do palácio diante da estufa. Ninguém dará por ele, tanto mais que este lado está desabitado.
Não bastava para tranquilizar France. Impunha-se uma partida rápida.
- Muito bem! - decidiu - Deve regressar imediatamente a Kroukoya. Desde o primeiro minuto que pisou o solo de Pakovatz, sinto-me culpada perante sua mãe, Natália.
A condessinha não respondeu. Ao mesmo tempo que France e Lignères, estremeceu com o fulgurante relâmpago que rasgou as nuvens. Seguiu-se o trovão, terrível, prolongado, tão profundo que deu a impressão de que o castelo se desmoronava.
De pé, junto da porta que conduzia à estufa, presenciavam os três a trovoada e as suas terríveis convulsões. Quando o surdo ribombar do trovão se extinguiu, Lignères declarou:
- Mademoiselle de Chancel, sou eu quem vai partir e não a condessa Natália.
Francisca desviou os olhos do céu tenebroso e voltou-os para o preceptor.
- É preciso que sejam os dois - afirmou com gravidade.
E, dissimulando a angustia que sentia, por ser obrigada a lançar Natália para o meio da tempestade, acrescentou:
- A Natália deve regressar ao palácio sem perder um instante.
O professor ficou calado. Foi a condessinha quem, com o seu calmo sorriso, interveio:
- A Francisca tem razão. Além disso, estas trovoadas da Primavera são tão terríveis como pouco demoradas. Quando regressar ao carro, que está parado atrás do castelo, a chuva já deve ter parado.
Calou-se, escutando o surdo ruído cada vez mais próximo que sobressaia no meio do temporal.
- Um automóvel, Francisca! - murmurou. com efeito, pela segunda vez naquela tarde,
um carro parava diante de Pakovatz. Todo o ruído cessou e pouco depois, um passo firme e rápido subia a escadaria, atravessava o hall e dirigia-se para a sala.
Francisca pegou na mão da amiga. Rapidamente, mas com uma calma de que nunca se julgaria capaz, abriu a porta da estufa e, atalhando toda a hesitação, obrigou Natália a sair.
- Pelo amor de Deus, parta depressa, Natália! Mal teve tempo para regressar ao salão. Dois segundos depois a porta abria-se e o príncipe Kersto entrava.
com o olhar abrangeu o aposento, enquanto dos seus lábios saia uma só palavra:
- Francisca!
Deu alguns passos para ela, mas logo descobriu Lignères a quem ainda não tinha visto.
- Francisca! - repetiu noutro tom.
E, com mal reprimida violência, acrescentou:
- Poderei saber o que faz aqui o senhor Lignères?
O semblante, radiante quando assomara à porta, sofrera aterradora modificação. Deu alguns passos e, arrancando dos ombros a capa azul que o envolvia, atirou-a para uma cadeira.
com certeza abandonara Kroukoya mal terminara o Conselho, porque ainda envergava o uniforme da guarda slovitana, com o qual havia presidido à sessão: dólman e calção branco, bota alta, charlateiras, cinto com fecho de oiro e, no peito, em esmalte e rubis, a grã-cruz da Ordem de S. Miguel.
- Como lamento ter interrompido esta entrevista ! - exclamou com voz irónica e fustigante Mas não, não lamento coisa alguma...
O olhar sombrio ia do preceptor a Francisca, em cujo rosto se deteve, desdenhoso, glacial e hostil.
- Foi então para isto-murmurou, lentamente, como se falasse consigo mesmo - que vim de Kroukoya a toda a pressa.
Um assomo de indignação despertou Francisca. Até ali, o espanto, o terror e, principalmente, a terrível certeza de que, aos olhos de Miguel, todas as aparências eram contra ela, tudo isso a aniquilara e lhe roubara a energia para reagir. Afastou-se da porta da estufa, cuja maçaneta ainda não abandonara e, em voz surda, mas nítida, pediu:
- Peço à generosidade de Vossa Alteza que não condene pelas aparências.
Respondeu-lhe uma gargalhada, uma gargalhada ínsultante, que soou com a estridência do estilhaçar de um espelho de cristal.
- Admirável, mademoiselle de Chancel!
Verdadeiramente admirável! O professor Lignères veio aqui para lhe falar das descobertas que nestes dias fez na biblioteca de Zirmana?
O professor conservara-se imobilizado pelo espanto, desde a entrada de Miguel. Mas, quando escutou estas palavras que, directamente o visavam, voltou a cabeça.
- Não estive em Zirmana, Alteza. Francisca esboçou um gesto de terror. Iria ele denunciar Natália?
Avançou para ele e, numa súplica ardente, cujo sentido só Lignères podia compreender, murmurou :
- Pelo amor de Deus, senhor Lignères!
O professor fitou-a hesitante, num olhar que revelava a luta travada no seu íntimo. Então, persuasiva, France continuou:
- Pensa em mim, não é verdade ? Mas não deve fazê-lo. Eu nada valho e o seu dever está acima de tudo!
Miguel observava a cena com olhar cintilante. Deu um passo para Lignères e, com brutal autoridade, protestou:
- Ignoro o que lhe pedem para ocultar. Mas só eu, aqui, posso dar ordens e exijo uma explicação sobre a sua presença em Pakovatz.
Lignères já recuperara o sangue frio. A certeza da partida de Natália, cujo automóvel àquela hora devia ir a caminho de Kroukoya, restituira-lhe o domínio próprio.
- Lamento, Alteza, mas pertenço ao serviço do conde Stanko.
Miguel recuou um passo. Tornara-se lívido. com violência, descalçou a luva da mão esquerda e dispunha-se a atirá-la à cara de Lignères, quando sua mulher, soltando um grito de terror, lhe agarrou no braço.
- Que vai fazer, Alteza?
O príncipe olhou-a e ficou imóvel. Depois, libertando-se dos dedos febris que o prendiam, encaminhou-se para a janela, que abriu, aspirando o ar fresco em profundos haustos.
Decorreram alguns minutos de profundo silêncio que só os gemidos do vento interrompiam. O temporal amainara, embora violentas rajadas curvassem ainda as árvores, arrancando os ramos, devastando o parque e a floresta. Por fim, o príncipe falou:
- Retire-se, senhor Lignères, retire-se! Creio que, desta vez, pode obedecer-me.
Continuava de costas voltadas para a sala e não correspondeu à saudação do professor. Este agarrou na gabardine e no chapéu que, ao entrar, atirara para cima de uma cadeira e, voltando-se para Francisca, afirmou, inclinando-se:
- A partir de hoje a minha vida pertence-lhe, mademoiselle.
France respondeu um «obrigada», tentando sorrir; mas quando a porta se fechou e os passos do professor se afastaram, toda a sua coragem a abandonou.
Miguel voltou-se e aproximou-se lentamente de sua mulher. Fixando o lindo rosto com olhar sombrio, perguntou:
- Por que não me disseste que gostavas do professor de Stanko?
France não lhe respondeu, porque da garganta contraída não saía o mais pequeno som. Miguel aguardou alguns instantes e depois insistiu:
- Porquê ? Fala, Francisca. Tenho o direito de saber.
Aparentava uma calma mais temível do que uma explosão de cólera. Aprumado, quase rígido diante de sua mulher, com o uniforme branco, parecia ainda mais alto do que realmente era. O semblante contraído, numa expressão dura, revestia-se de uma palidez estranha, acentuada pelas fulgurações da cruz de rubis.
Em voz baixa, mas firme, France afirmou:
- Não amo o senhor Lignères.
Miguel ficou calado um instante e depois, pela segunda vez, soltou uma gargalhada estridente.
- Na verdade ? - perguntou com ironia, apertando as costas de uma cadeira como se pretendesse quebrá-las.
Fixou-a com olhar cintilante e prosseguiu :
- Não amas o senhor Lignères, mas encontro-te sozinha com ele, à noite, num aposento desabitado do castelo... Não amas o senhor Lignères, mas este, simulando uma viagem que lhe permitiria ficar perto de Pakovatz, abandona a sua missão para voltar às escondidas ao castelo... Não, não amas Lignères, mas... Basta! - exclamou de súbito- Para quê mais provas? Bastava a tua expressão de terror quando entrei nesta sala. Sim, tu tiveste medo, um medo terrível!
Cruel sorriso distendia os lábios de expressão implacável que France, de facto, contemplava com terror.
com desespero, ocultou o rosto nas mãos. Não podia suportar mais, nunca acreditara poder sofrer assim.
- Por piedade... Alteza - murmurou. Quebrando o silêncio, este apelo foi tão dilacerante, tão comovente, que Miguel ficou perturbado.
O olhar suavizou-se, as feições distenderam-se; dominando, porém, este principio de fraqueza, esforçou-se por continuar a mostrar-se cruel.
- Defende-te - ordenou em voz dura. Francisca encolheu os ombros, num gesto de fadiga, de impotência e de dolorosa resignação, mas que não comoveu o marido.
- Compreendo. É difícil, muito mais do que desempenhar o duplo papel contra o qual tanto protestaste.
Deu alguns passos para sua mulher e fixou-a; depois, exasperado com o seu mutismo, agarrou-a pelos ombros e insistiu:
- Confessa, Francisca, e não voltaremos a falar no assunto.
France estremeceu e, recuando para fugir ao imperioso contacto, exclamou com desespero:
- Confessar!... Sim, confesso! Confesso-me culpada, mas por não ter abandonado o castelo no dia em que tive conhecimento de quem eras. Sim, sinto-me, infinitamente culpada, em primeiro lugar pela minha confiança, depois pelo meu silêncio, dissimulação e cumplicidade...
Passou a mão pela testa, num gesto de desorientação e concluiu:
- Mas quanto a Lignères, Miguel, nunca, nunca!
Neste grito vibrava a mais absoluta sinceridade.
Mas, ferido no seu orgulho, o príncipe não o ouviu. Bruscamente, curvou-se, prendeu o rosto de sua
mulher entre as mãos ardentes e mergulhou nos lindos olhos o clarão cintilante do seu olhar cruel.
- France, só uma coisa me pode provar que falas verdade... a tua docilidade, o dom de ti mesma. És minha mulher... minha mulher, e eu durmo esta noite no castelo!
Calou-se um instante e concluiu com voz surda:
- Ouvir-te-ei nos meus aposentos e talvez então te acredite.
Aterrada, France recuou, tapando a boca com a mão, para não soltar um grito. Imperioso, Miguel agarrou-lhas e apertou-as nas suas, como se desejasse transmitir-lhe a força da sua ardente vontade.
- Irás?
- Não... não.
- Vais - murmurou imperioso - Esperar-te-ei. Largou-a, voltou-se e, agarrando na capa azul
que deixara caída nas costas de uma cadeira, atravessou rapidamente a sala, cuja porta, segundos depois, se fechava atrás dele.
Francisca nunca compreendeu como conseguiu arranjar forças para regressar ao quarto. Encontrou-se, sem saber como, no meio do vasto aposento, cuja porta, instintivamente, fechou à chave. Ardia em febre, tremia com constantes calafrios. A escuridão oprimia-a. Num gesto maquinal, acendeu a lâmpada da mesa de cabeceira. Depois, hesitante, com medo, aproximou-se do espelho e examinou-se, como se o ultrage recebido lhe tivesse deixado vestígios no rosto.
Por muito tempo, com os olhos dilatados, fixou a imagem afinada que lhe pareceu a de uma desconhecida e depois, soltando surdo gemido, deixou-se cair numa poltrona e ocultou o rosto nas mãos. Que tinha feito para merecer a vergonha, a humilhação daquela hora!
Em volta dela, no quarto luxuoso, digno de uma princesa de Kersto, tudo estava calmo. Os ramos dos cortinados desabrochavam no fundo de cetim, como se fossem rosas vivas, flores viçosas; o tecto, com incrustações de pórfiro, tinha a doçura de um céu amigo e, pendendo das janelas, os cortinados de renda pareciam isolá-la da noite exterior. Para atenuar, com o movimento, a angústia que a esmagava, France pôs-se de pé e, de um extremo ao outro do quarto, passeou o seu veemente desespero. Depois, extenuada, aproximou-se da janela, afastou as cortinas para se refugiar no vasto vão, como se o considerasse um oásis de paz.
A tempestade afastara-se e ninguém, na ausência de Maritza, tivera o cuidado de fechar as portas interiores. com espanto, France viu o firmamento cintilante de estrelas, calmo, sereno, um verdadeiro céu de primavera. As trovoadas da Slovitânia eram a verdadeira imagem daquele país, todas feitas de contrastes, violentas, aterradores, mas breves. Naquele minuto, senão fosse o leve ruído das goteiras, os ramos das árvores caídos pelo chão, como sombras estranhas, coisa alguma revelaria que o temporal se desencadeara havia tão pouco tempo. Sim, havia alguma coisa ainda. Lá ao longe, como um
cavalo selvagem percorrendo a estepa, o Zagora revolvia-se no seu leito pedregoso. Durante alguns instantes, France deixou-se embalar por esse rumor confuso e distante que só ela parecia ouvir, porque no castelo todos deviam dormir já. Todos Na vasta moradia, outra pessoa, com certeza, aguardava, num misto de impaciência, esperança ou talvez apenas com imperiosa » obstinação.
A medo, relanceou um olhar para a porta fechada, mas logo o desviou para o parque. Mentira! Mentira! Continuaria a tentar enganar-se a si mesma? Que representava aquela porta fechada e todas as fechaduras, contra o próprio desejo de as abrir!
Deus do Céu! Poder correr para ele, para o seu marido, que representava para ela a imagem da maior, da mais deslumbrante felicidade! Correr para ele, refugiar-se nos seus braços, nesse abrigo tão desejado, tanto que chegava a fazer-lhe mal... Correr para ele... porque Miguel o tinha pedido, porque chegara finalmente a hora, a sua» hora, única talvez e cuja plenitude talvez nunca mais se repetisse.
Rouco soluço despedaçou-lhe o peito. Fraco, fraco coração, como a tua agonia era cruel e como demorava a romper o dia!
O dia! A frescura da madrugada e a sua débil claridade, com efeito, ainda deviam estar muito longe. Seria possível que a mulher de Miguel tivesse que sustentar, sem revolta, aquela luta tremenda, o peso da sua dor até que no firmamento infinito empalidecessem as estrelas?
Deixou-se cair de joelhos, com a cabeça apoiada na parede, o rosto oculto nas mãos e murmurou as orações fervorosas que, quase sempre, costumavam restituir-lhe a paz. Naquela noite, porém, apesar do seu impulso para o Alto, não a encontrou. Nem mesmo a certeza de ter, com o seu gesto, salvo Natália, nem mesmo isso lhe suavizava a amargura e o sofrimento.
Por muito tempo se manteve naquela posição, não acabrunhada, mas vibrante, trémula, como arbusto sacudido pela tempestade. De súbito, um ruído inesperado, que vinha de fora, sobressaltou-a. Levantou-se. Na noite calma, chegou-lhe aos ouvidos o martelar de passos firmes, atravessando o pátio de honra. com a testa colada aos vidros, France avistou, com intensa emoção, a alta silhueta de Miguel que saía do castelo.
com passo rápido, o príncipe percorreu a zona descoberta que se estendia em volta do lago. Depois meteu pela alameda da direita e desapareceu por entre o arvoredo do parque.
France deixou cair as mãos que seguravam as cortinas de renda. Sentia-se mais calma. Miguel abandonava o castelo. Estava acabada a dilacerante luta. Tê-la-ia Miguel pressentido, para pôr entre eles tão grande distância ?
Cerrou os olhos e deixou-se ficar, encostada aos vidros, sem forças, como se a mola real da sua vida se tivesse quebrado, e assim permaneceu por muito tempo.
Um rumor surdo, mas violento, obrigou-a a abrir os olhos. Na sua frente estendia-se a mesma paisagem calma, banhada pelo luar. Mas, lá ao longe, qualquer coisa de insólito se passava.
Ò Zagora! - exclamou em voz alta - Para fazer este barulho infernal, com certeza está prestes a sair do leito!»
E o seu pensamento voou logo para o príncipe que, minutos antes, se dirigira para os lados do rio.
com certeza, daria pelo perigo e voltaria para trás. Pakovatz, situado em terreno mais elevado do que as margens do rio, era, no caso de uma cheia, o refúgio mais seguro. com o pavilhão era diferente, segundo afirmara Natália.
O pavilhão! Mesmo antes de que no seu espírito a imagem evocada por esta palavra se precisasse, France sentiu-se dominada pelo terror... O pavilhão!
Teria sido para ali que se dirigira Miguel ? Onde iria refugiar-se com a sua cólera e agravos ? Seria no pavilhão que contava passar a noite?
Correu para fora do quarto. Já não se tratava de luta, de dignidade, nem mesmo de amor. Uma força invencível e poderosa impelia-a para Miguel a quem se impunha salvar.
Mal tivera tempo de pôr um casaco pelas costas e, quando transpôs a porta do hall, encostada, mas não fechada pelo marido, o frio da noite trespassou-a.
Estremeceu e apertou mais contra si o casaco de peles, mas, sem abrandar a corrida, desceu a escadaria e dirigiu-se para o parque.
Não viu o carro do príncipe no pátio. com certeza, ele mesmo o tinha ido meter na garagem, atrás do castelo, antes de subir para os seus aposentos. Desta forma, ninguém poderia suspeitar de que o príncipe Kersto se ausentara da capital.
Correndo, percorreu as alamedas, juncadas de ramos quebrados, de folhas e flores destroçadas, e tomou a direcção da floresta. O chão ensopado, por vezes, abatia-lhe debaixo dos pés, outras, um tronco gigantesco, arrancado da árvore pela violência do vento, impedia-lhe o caminho, obrigando-a a atravessar os canteiros quase cobertos de água. Por fim, chegou à floresta. Naquela época do ano não oferecia perigo. No entanto, Francisca teria preferido mil vezes o uivar de um lobo ao rugir do Zagora, cada vez mais nítido.
A correr, percorreu o atalho em declive que conduzia à margem do rio. Mas, antes de a alcançar, imobilizou-se, aterrada, perante o espectáculo das águas revoltas que, batidas pelo luar, se precipitavam enfurecidas.
Poucas horas haviam bastado para transformar numa torrente impetuosa o calmo e manso rio. Os montes, cujo sopé percorria no seu curso, com a trovoada, tinham perdido o seu manto de neve e estas, derretendo-se, lançavam-se, em dezenas de regatos, para o curso de água mais profundo que, naquela altura se agitava febril e revolto!
France aproximou-se da ponte rústica, batida pelo remoinho da água lamacenta. Nas tábuas unidas já se amontoavam molhos de ervas e de troncos que o Zagora arrastava consigo.
De súbito, uma delas, assaltada pela corrente, deixou passar um jacto de água. Rápida e brutal, esta alastrou pela ponte, cobrindo-a totalmente. Só o parapeito ficou à vista.
Sem reflectir, France percorreu-a, sentindo as tábuas gemerem debaixo dos pés, e alcançou a margem, precisamente no instante em que o Zagora, em vagas curtas, mas rápidas, abandonava o leito.
Depois, a correr como uma louca, tomou o atalho que conduzia ao pavilhão. Em breve avistou a cazita branca sobre o fundo de rochas negras, que os dois veados de pedra pareciam guardar. O raio de luz que filtrava pelas janelas semi-cerradas, denunciava a presença de Miguel. France, porém, não precisava desta prova para saber que estava ali.
com o coração palpitante, subiu a escada e, parando na varanda, sem poder respirar, voltou-se e olhou para o caminho percorrido. Por segundos, quase desfalecida, ficou imóvel, com os dedos crispados na balaustrada. Depois, chamando a si todas as suas forças, empurrou a porta e entrou.
No aposento pouco iluminado viu o príncipe Kersto, de pé, encostado ao fogão, com o cigarro apagado entre os dedos. Trocara a farda por um fato à paisana. Imóvel, com o olhar perdido no espaço, os dedos contraídos no cigarro, que não pensava em acender de novo, parecia absorto em pensamentos dolorosos.
Quando France entrou, ergueu a cabeça, mas não fez um gesto, partilhado entre o espanto e a incredulidade.
Depois, lentamente, aprumou-se. Como borboletas dispersas, as dúvidas voaram e o semblante iluminou-se-lhe.
- Vieste, Francisca! - murmurou em voz surda e apaixonada.
Ela não lhe respondeu. Então, atirando com o cigarro para longe, Miguel correu para sua mulher que, aniquilada, se encostara à parede e, sem uma palavra, puxou-a para si.
- E agora, minha adorada - murmurou após breves minutos de silêncio, apenas interrompido pelo bater dos seus corações - tens de partir. Sim, volta para Pakovatz, para o castelo, suplico-te! Deste-me a alegria imensa de vir aqui e eu peço-te para te retirares.
Calou-se. Continuava a apertar sua mulher nos braços, com a face encostada aos cabelos loiros, os olhos cerrados.
- Minha adorada! Meu amor, corajoso e forte, que afrontou a floresta hostil, o frio e a escuridão!
Depois, afastando-a de si quase com violência, pediu com voz trémula:
- Vai-te embora, France. Esta noite ainda não tenho o direito de te pedir que fiques nem que me concedas o teu perdão.
Como se estas palavras não lhe fossem dirigidas, France não se moveu. Continuava a apertar contra si o casaco de peles e tinha as feições tão transtornadas, que Miguel se assustou. com infinita ternura, pegou-lhe nas mãos geladas e, apertando-as, perguntou:
- Que tens, Francisca?
Sem lhe responder, ela olhou-o com dolorosa fixidez. Depois, bruscamente, libertou as mãos que apertou uma contra a outra, num gesto de desespero.
- Vim demasiado tarde, Miguel! Muito tarde! Perdoa-me!
De princípio, Miguel não a compreendeu. Mas o estranho rumor que lhe chegou aos ouvidos despertou-lhe a atenção. Era como que um embate surdo e preciso, cada vez mais forte, um murmúrio feito de mil pancadas, o choque repetido do poderoso assalto das águas contra os degraus de pedra.
Durante breves momentos, o príncipe esteve à escuta. Depois, num gesto brusco, abriu a janela e saiu para a varanda.
France seguiu-o. com terror, contemplou as águas do Zagora que embatiam contra os degraus. Tinha-as pressentido, acompanhando a sua corrida para o pavilhão e, desde esse momento, ficou convencida de que toda a esperança de retirada era impossível. O olhar que relanceara do alto da escada revelara-lhe uma força temível e poderosa, mas não cega, que ameaçava a vida de ambos.
Miguel voltou para sua mulher o rosto lívido.
- Sabias ? - perguntou com brandura. Ela confirmou com a cabeça.
- E, apesar disso, vieste?
Pelos lábios de France perpassou terno sorriso.
- Vim, «por causa» disso, Miguel.
O marido envolveu-a num olhar apaixonado e depois voltou-se de novo para a clareira.
- E nada - murmurou surdamente - nada que possa revelar que estamos aqui e permita o nosso salvamento! Ninguém me viu no castelo. Quando há pouco te deixei, fui eu próprio meter o carro na garagem. Quanto a ti, quem poderia adivinhar que estás aqui?
Calou-se um instante e como se procurasse agarrar-se como à última esperança, perguntou:
- Talvez tivessem dado alarme antes de saires do castelo ?
- Não. No castelo todos dormiam e na aldeia, sem dúvida, acontecia o mesmo. Só eu poderia dar alarme, mas, ao pensar no perigo, na esperança de chegar a tempo para te avisar, corri logo para aqui.
- E... Lignères ? - perguntou o príncipe após ligeira hesitação.
- Não sei, nunca mais o vi.
Terrível contracção transformou o semblante de Miguel numa máscara de dureza, com os maxilares cerrados.
- Temos de ficar aqui até que no castelo dêm pela cheia e façam saltar a barragem. Levarão muito tempo para isso. O terreno eleva-se para os lados de Pakovatz; o Zagora não deve atingir o parque antes de amanhecer.
E, entre dentes, concluiu :
- Até lá, nesta maldita bacia, a água chegará ao telhado... admitindo que as paredes resistam tanto tempo.
Num gesto de impotência, deixou cair os braços. Depois olhou para France que se conservava calada, a seu lado, simulou despreocupação, no desejo de iludir sua mulher:
- Cinco ou seis horas de aborrecimento, nada mais!-afirmou em voz alta - Será melhor entrarmos, sim ?
Fê-la passar adiante de si, entrou na sala e fechou a porta envidraçada.
Hesitante, France deu alguns passos no aposento. Carinhosamente, o príncipe libertou-a do casaco e, designando o fogão no qual se amontoavam alguns troncos, decidiu:
- Vamos acendê-los, France. Aproximou-se do fogão, accionou o isqueiro e
em breve as alegres labaredas subiram da lenha muito seca. Depois, conduziu-a até ao divã coberto com peles de urso e que, perto do lume, recebia deste todo o calor. Por último, foi encostar-se a uma das colunas, acendeu um cigarro e voltou-se para sua mulher:
- Calculo que teremos de passar aqui a noite, Francisca. Não podemos estar com cerimónias. Queres deitar-te?
Falava num tom calmo, com a evidente preocupação de desvanecer todo o constrangimento provocado pela situação ; e France ficou-lhe muito reconhecida pela delicadeza.
À pergunta de Miguel, respondeu com um sorriso e com um gesto negativo da cabeça. Enterrada no divã macio, acariciada pelo calor do fogão, com as mãos unidas nos joelhos e a cabeça recostada no espaldar forrado de peles, sentia-se invadida por delicioso torpor. Depois da tempestuosa cena do castelo e da louca corrida pela floresta, o acolhimento de Miguel e aqueles momentos de calma, fora do mundo e do tempo, breves sem dúvida, representavam para ela um delicioso oásis de paz.
O tempo corria. Pendurada do tecto, uma lâmpada em cobre, delicadamente trabalhada, derramava a sua fraca claridade pelos tapetes macios, de tonalidades alegres, e pelos móveis, escurecidos pelo tempo. Deixava na sombra as paredes, com todas as suas riquezas, armas preciosas e exóticas, quadros de mestre.
O olhar de Francisca, que seguia o bailado das chamas no fogão, desviou-se um momento para o grande piano, colocado junto do vão da janela. Esse olhar foi rápido, mas bastou para notar que a moldura de prata lavrada que encerrara o retrato de Milena, desaparecera de cima do tampo polido.
Imóvel e silencioso, Miguel também fixava o lume. Mas a atenção que lhe dedicava devia ser mais aparente do que real, porque o olhar de France não lhe passou despercebido. Esmagou com o pé o cigarro que caira no chão e, com súbita dureza, afirmou:
- Há muitos meses que o retrato da princesa abandonou o seu lugar aqui e há muitos mais ainda que saiu da minha vida.
Para evitar proferir as palavras que lhe subiam aos lábios, abandonou o seu lugar e dirigiu-se para a porta do pavilhão, que abriu. Um rolar surdo invadiu o aposento com a sua ameaçadora voz. Foi tão inesperado, tão súbito, tão assustador, que Miguel, com aterrada precipitação, apressou-se a fechá-la de novo e olhou para sua mulher na esperança de que ela não tivesse ouvido; mas viu-a de pé e muito pálida. Então, simulando despreocupação, afirmou, acompanhando as palavras tranquilizadoras com um sorriso:
- Nada de grave, France. A água atingiu os rochedos nos quais embate, produzindo este ruído mais impressionante do que perigoso.
France não lhe respondeu, mas, aproximando-se, por sua vez, abriu a porta antes que o marido pudesse impedi-lo. Quase brutalmente, Miguel agarrou-lhe o braço, a fim de evitar que ela saisse para a varanda. Porém, não havia necessidade de sair da sala para avaliar a extensão da catástrofe e a iminência do perigo que os ameaçava.
Pelo terreno em declive que conduzia ao pavilhão, o Zagora, abandonando o seu leito pedregoso, precipitara-se com fúria. A espécie de taça, ao centro da qual se erguia o pequeno edifício, formava uma bacia natural onde as águas se espalharam, primeiro com um marulhar triunfante, depois com violência, brutais, à medida que aumentavam de volume. Naquela altura, tremendas, furiosas, formavam turbilhões, redemoinhos que embatiam contra os rochedos, e depois, recuando, vinham quebrar-se uns contra os outros, com tremendo fragor.
Em silêncio, France contemplou, durante alguns momentos, o aterrador espectáculo. O luar magnífico, brilhando num céu sereno, onde coisa alguma recordava a recente trovoada, permitia-lhe avaliar os rápidos progressos da cheia.
France reparou que os dois veados de pedra, já envoltos na água lamacenta, iam sendo pouco a pouco cobertos pela inexorável maré.
Não resistiu mais ao marido que a puxava para dentro. Quando pela segunda vez fechou a porta, o príncipe voltou-se para sua mulher e exclamou com desespero:
- Para que vieste, minha adorada?
Em voz surda, mas que não tremia, France perguntou ou antes, afirmou com inabalável convicção :
- Vamos morrer, Miguel ? O príncipe fixou-a com expressão aterrada. Dir-se-ia que só naquele momento tinha consciência do perigo mortal que ambos corriam. E em voz baixa, protestou:
- Tu não, France, tu não! - repetiu com energia.
Aprumou-se, com as feições transtornadas, mas com os punhos cerrados, como se chamasse em seu auxílio todas as suas forças para lutar contra a morte. Depois, dirigiu-se para uma das janelas e, afastando a cortina, interrogou, ansiosamente, a escuridão.
Por instantes, bem trágicos e longos, todos os projectos de salvação e de fuga, todas as possibilidades de socorro lhe ocorreram para logo serem postos de lado.
- Nada! - acabou por murmurar com desespero - Nada podemos tentar e, sem dúvida, nada podemos esperar!
Abandonou o vão da janela e, com desalento, deixou-se cair no divã, apoiando os cotovelos nos joelhos e apertando a cabeça nas mãos.
No fogão, as labaredas entrelaçavam-se, com alegres estalidos. Os clarões avermelhados reflectiam-se no mármore polido com tons de marfim e afagavam os objectos mais próximos com as suas tonalidades suaves e brandas. Se não fosse o surdo rumor que, de momento a momento, se tornava mais distinto, tudo ali respirava calma, paz e segurança.
De pé, a pouca distância do divã onde Miguel permanecia como que aniquilado, France fixava-o com dolorosa expressão. Sem um protesto, presenciara o arrebatamento do marido, menos impressionada com ele do que com o seu abatimento.
De súbito, no silêncio trágico, as paredes do pavilhão pareceram oscilar. Um objecto duro e pesado - uma árvore, talvez - acabava de embater com ele, impelida pela força da água.
Miguel estremeceu e ergueu a cabeça. Depois, como o perigo passasse, recaiu na sua atitude acabrunhada. Então, com súbita resolução, France aproximou-se do marido, que não deu por ela, e ajoelhou-se-lhe ao lado.
- Miguel -murmurou docemente, poisando a mão na do marido - Miguel, não tenho medo.
Bruscamente, ele ergueu a cabeça e observou-a com espanto. Ela não desviou a vista e sorriu-lhe, com um sorriso trémulo e corajoso.
com mal contida violência, Miguel prendeu entre as mãos o rosto tão próximo do seu e, curvando-se um pouco, interrogou com dolorosa inflexão:
- Para não teres medo da morte, minha adorada, é preciso que a vida tenha sido muito dura para ti.
Tanto quanto lho permitia a forte e carinhosa pressão, France abanou a cabeça.
- Tudo está esquecido, Miguel. Só me lembro de que te amo.
Um suspiro de alegria fugiu dos lábios do príncipe. Naquele instante, perante a inefável doçura da confissão, chegava a esquecer a ameaça da morte inevitável.
Pôs-se de pé e, ao mesmo tempo, levantou France. Depois, prendendo-a pelos cotovelos, afastou-a de si, para melhor observar o lindo rosto, ligeiramente alterado.
- Eis onde o meu estúpido orgulho te conduziu - exclamou em voz surda, após demorada contemplação.
com desespero, deixou cair os braços, curvando a cabeça, de belo perfil, cujas linhas a angústia parecia ter acentuado. France aproximou-se e afirmou com infinita doçura:
- Não tenho pena, Miguel. Encarava a vida que ia separar-nos com horror, com tristeza e revolta... Todavia, bendigo-a, visto ter-me concedido ainda a felicidade de poder dizer-te que te amo!
Miguel viu-a diante de si, vibrante de coragem e espírito de sacrifício, como que transfigurada, e murmurou em voz surda:
- Pois eu deixo a vida com dilacerante pesar, por saber ser possível a mais maravilhosa das felicidades.
Calou-se um instante mas, após ligeira hesitação, continuou:
- France, hoje, na sessão solene que devia proceder a minha subida ao trono, informei o Conselho da Coroa de que tencionava abdicar.
France olhou para o marido, não compreendendo bem ainda e repetiu, inconscientemente:
- Abdicar...
- Sim. E logo que terminou a sessão, corri a Pakovatz para te anunciar que renunciava ao trono da Slovitânia quando. ..
Não acabou. Mas, perante os seus olhos como perante os de France, reviveu a cena de que a sala de Olga Pavlovitch havia sido teatro.
Num impulso arrebatado, France agarrou as mãos do marido.
- Lignères não representa coisa alguma para mim. Em face da morte, to juro.
O príncipe esboçou leve sorriso que lhe suavizou as feições e iluminou o olhar. Como sua mulher se preparasse para falar, atalhou:
- Não quero saber, não te faço perguntas, France. A tua presença aqui constitui uma prova superior a tudo quanto pudesses dizer-me.
Calou-se, porque a presença de France no pavilhão, evocada por ele, chamou-os à realidade do trágico presente. Miguel voltou a cabeça para escutar o rumor da água que continuava a subir. Hesitou e depois, afastando-se de sua mulher, dirigiu-se para a porta envidraçada e, com ardente ansiedade, interrogou as trevas.
O céu começava a clarear. Os milhares de estrelas dir-se-iam vacilar, como se estivessem prestes a cair no infinito. Vagos indícios, mais impressão do que realidade, anunciavam a alvorada. E a sua aproximação como que restituiu a Miguel a esperança e a vida.
No entanto, a água continuava a subir. Como enraivecida, turbilhonava em volta do pavilhão, obstinada em destruí-lo. De princípio, Miguel teve a impressão de que o nível da água não havia subido. Mas logo que os seus olhos, já habituados às trevas, puderam captar certos pormenores, notou que os veados de pedra haviam desaparecido e coisa alguma indicava o seu lugar.
Não conseguiu reprimir surda exclamação que sobressaltou France. E, como esta se aproximasse imediatamente, num gesto quase brusco apertou-a nos braços e, para não a deixar ver o medonho espectáculo, obrigou-a a esconder a cara no seu peito.
- France, meu amor! Por que não permitiu Deus que eu estivesse sozinho nesta hora!
A voz sumiu-se-lhe num soluço sufocado e terrível. Continuava a apertá-la contra si e, através da fazenda do casaco, France podia ouvir as desordenadas palpitações do seu coração, que batia como se fosse despedaçar-se.
Num movimento rápido, sem que o marido o notasse, voltou a cabeça. Foi o bastante para ver na varanda uma franja húmida, as primeiras vagas do Zagora que a invadiam. com as pupilas dilatadas pelo terror, France aceitou, sem estremecer, este primeiro aviso da morte próxima. Em breve a água atingiria a sala e viria molhar-lhes os pés. Então, com desesperada veemência, ergueu a cabeça para o marido e protestou:
- Miguel... Miguel... meu adorado marido, amo-te! Amo-te e ansiava com todas as minhas forças por este instante, que me atiraria para os teus braços!
O príncipe apertou-a contra si com infinita ternura. Santo Deus! O abismo em breve os arrastaria e ele nada podia fazer para salvá-la!
Mas, de súbito, um ruído surdo, prolongado e longínquo dominou o rugir das águas. Parou, depois repetiu-se com intervalos regulares. Palpitante de esperança, o príncipe ergueu a cabeça e pôs-se à escuta. Depois fugiu-lhe dos lábios um brado de alegria.
- Francisca, a barragem! Destruíram a barragem!
Viu-se obrigado a ampará-la, tão brusca foi a transição do perigo mortal para a certeza da salvação que, cada vez mais próxima, os rochedos repercutiam. Em seguida, abriu a porta envidraçada e saiu para a varanda.
Debruçado na balaustrada, fixou, avidamente, as águas sombrias, partilhado entre a felicidade da libertação e o receio de que, muito abalado, o pavilhão não pudesse resistir por mais tempo.
Estabelecera-se uma corrente contrária. Não só a água deixara de afluir para a clareira, mas, recuando pelo caminho que a corrente impetuosa havia tomado, retirava-se, como que aspirada por uma voragem.
Em breve, viu emergir os grandes veados de pedra. Alguns objectos à deriva, arrastados pela corrente, deviam ter embatido contra eles e foi nos seus corpos mutilados que Miguel seguiu a descida da cheia.
Quando teve a certeza de que o perigo estava afastado, abandonou a varanda e entrou na sala.
Francisca estava de pé, junto do fogão, com olhar vago e as mãos apoiadas no tampo de mármore. No primeiro impulso, dominara-a uma alegria sem nome e elevou para Aquele que havia realizado o milagre fervorosa acção de graças. Depois, todos os seus escrúpulos despertaram e teve a clara visão da luta que teria de sustentar. Miguel tinha abdicado! Não, «queria» abdicar. A intenção manifestada durante a sessão do Conselho não tinha sido mais do que um prelúdio. A renúncia decisiva ainda não estava feita. E era preciso que Miguel não persistisse nessa louca resolução. Talvez que naquela altura, a noção da sua responsabilidade, o desejo de compensar France e também o amor cuja confissão a deslumbrara, bastassem para o levar ao irrevogável abandono do poder. Mas mais tarde ? Mais tarde, quando desvanecido o entusiasmo, se visse na situação de um soberano sem reino, rei sem coroa, príncipe sem súbditos, majestade decaída do trono da Slovitânia!
Para reprimir as lágrimas de desespero, semi-cerrou as pálpebras. Todas as fibras do seu ser vibravam de dor e, no entanto, chamava a si todas as suas forças, para a luta. Miguel seria rei. Mas, para isso, teria de sacrificar o seu amor.
Os passos de Miguel aproximavam-se e o rosto ardente, transfigurado pela alegria, aproximou-se do dela.
- France, é a vida... a vida! Deus foi misericordioso por ter permitido o nosso amor!
Apoderou-se das mãos de sua mulher e, apertando-as entre as suas, perguntou:
- Que tens, meu amor? Estás gelada e trémula!
France continuava calada. Então, tentando sorrir, o príncipe continuou:
- Todas estas emoções te deixaram extenuada, não é verdade? No entanto, como a tua coragem foi maravilhosa! Não tenhas medo. O dia desponta. Daqui a poucas horas a minha adorada mulherzinha voltará a Pakovatz.
Largou-lhe as mãos para prender entre as suas o rosto pálido, quase exangue.
France recuou e Miguel sentiu fugir-lhe entre os dedos as têmporas marteladas pela febre.
- Que tens, Francisca? Explica-me...
Como ela persistisse no silêncio, inclinou-se, interrogando ansioso as feições transtornadas pela angústia.
- Deixa-me ver os teus olhos - pediu com infinita doçura.
France não obedeceu. Então, em voz surda, Miguel murmurou:
- Terei sonhado?
Na voz vibrava tão profunda ansiedade, que France estremeceu. Não podia evitar as explicações por mais tempo e então, temendo ceder aos impulsos do coração, decidiu-se:
- Tive tanto medo, Miguel!... Tanto medo da morte que se aproximava que...
O príncipe afastara-se um pouco de sua mulher. com uma expressão de profundo espanto examinava-a, E como o silêncio se prolongasse, repetiu:
- Que?...
- Não sei! Já não sei! - exclamou ela com desorientação - Se é possível, deixemos o pavilhão, peço-te. Não compreendes que já não posso mais?
Breve sorriso distendeu os lábios de Miguel. Mas quase logo se desvaneceu.
- Tranquiliza-te, já não corremos perigo; mas até que nasça o dia torna-se impossível regressar ao castelo. O Zagora, embora já tenha retomado o seu leito, deixou na clareira uma espécie de lago que nos impede a passagem.
Calou-se um instante, como se concentrasse toda a sua atenção no lume que começava a esmorecer. Depois, com voz diferente, murmurou:
- Então, foi apenas o medo que te atirou para os meus braços? Era isto o que pretendias dizer, não é verdade?
Ansioso, aguardou que ela protestasse. Pelo contrário, numa silenciosa confirmação, France curvou a cabeça.
Em seguida, sem erguer os olhos para o marido que, com as mãos apoiadas no espaldar de uma cadeira, a observava com atenção, afirmou com uma espécie de desespero:
- Pois bem, é verdade. Tive medo. Maior ainda, porque tentava ocultá-lo, porque lutava contra ele e me esforçava por ser corajosa! O amor que me confessaste, considerei-o como um auxílio para transpor os umbrais do Além, um apoio, uma esperança à qual me agarrava na minha angústia. Nos teus braços temia menos a morte, porque não estava sozinha para a afrontar, porque contava ainda com um milagre da tua força.
Dispunha-se a falar ainda por muito tempo quando foi interrompida por surda gargalhada:
- Estás a mentir, Francisca.
Largando a cadeira, deu alguns passos para sua mulher. A contracção do semblante revelava os esforços feitos para conservar a calma.
- Estás a mentir! - repetiu, atalhando a resposta de France-Desconheço as razões que te impelem a falar dessa maneira. Mas tenho a certeza de que neste momento e não há pouco, atraiçoas o teu coração.
Calou-se, contando talvez com uma reacção da parte dela; e, durante os breves segundos que durou a espectativa, o rosto ensombrou-se-lhe mais.
Quando teve a certeza de que France, obstinada no seu mutismo, não diria uma palavra, respirou profundamente. Depois, ergueu a mão e tocou-lhe na testa.
- Daria anos de vida para saber o que se passa dentro dessa cabecinha! - exclamou com dolorosa acentuação.
France voltou a recuar e o braço de Miguel recaiu. Como se não tivesse dado pelo recuo, não desfitava o rosto lívido. A contemplação muda durou alguns instantes. Depois insistiu em voz surda e como um homem que tenta provar a si mesmo que está em seu juízo:
- Vejamos, France. Não correste para mim, desprezando a tua própria segurança?
- Não supunha o perigo tão próximo e contava que pudéssemos regressar ao castelo.
- Mas - eu não sonhei - apertei-te nos braços, palpitante de amor, e só o medo da morte não conseguiria encontrar inflexões apaixonadas como as que tiveste. Qual a razão dessa reviravolta? Que fiz eu para te perder?
Um soluço despedaçou o peito de Francisca. Conseguiria ir até ao fim da renúncia?
- Não me atormentes, suplico-te - pediu com voz quase extinta - Entrego-me à tua generosidade. Esta luta é dilacerante.
Miguel soltou uma risada amarga.
- Dilacerante?.... Dilacerante, principalmente para mim, que vejo morrer todas as minhas esperanças. Teria sido cem vezes preferível que as águas nos arrastassem os dois. Mas Deus não o permitiu...
com um grito de protesto, France tapou-lhe a boca com a mão.
- Deus é bom em tudo quanto faz, Miguel!
O príncipe agarrou essa mão com um gesto violento. Prendeu-a entre as suas e só conseguiu murmurar :
- Nesse caso, France...
Ela libertou-se com esforço e, num protesto vibrante de desespero, afirmou:
- Não te amo, Miguel, não te amo!
Ele prendeu-a pelos pulsos e manteve-a sob o seu olhar. Por momentos, conservaram-se assim, face a face, como dois inimigos. Depois, Miguel largou as mãos geladas, teve um gesto de desalento e começou a passear de um lado para o outro no aposento. Por fim, parou diante do fogão e contemplou a agonia das chamas, durante alguns minutos, que para France tiveram a duração de séculos. Por último, voltou-se para sua mulher, sem contudo dar um passo para se aproximar dela.
- France - murmurou com voz alterada - estás à minha mercê. Estamos sozinhos, o dia ainda vem longe e, até lá, ninguém virá procurar-nos aqui... Sei que me amas, sei que, se voltasse a apertar-te nos braços, não terias coragem nem forças para negar aquilo que o teu coração sente. Sei que esta hora roubada à morte poderia ser magnífica! Mas descansa. Não me contento com beijos de escrava.
Calou-se um instante e logo prosseguiu:
- Adeus, France. Fujo da tua fraqueza, não cedo à tua vontade.
E antes que, imobilizada pelo espanto, sua mulher conseguisse fazer um gesto para o deter, atravessou a sala, saiu para a varanda, despiu o casaco e desceu os degraus que a água já havia deixado a descoberto. Ouviu-se um choque, seguido pelo leve murmúrio da água agitada pelo nadador.
Quando, conseguindo dominar o terror que a fazia tremer, France correu para a varanda, esse mesmo ruído havia cessado.
- Miguel! - gritou com desespero - Miguel! Não obteve resposta. Debruçada no corrimão,
não viu mais do que a água negra, perfeitamente calma, na qual as estrelas se reflectiam.
Em qualquer ponto do castelo, um relógio de timbre sonoro bateu as dez horas. Como se essa voz familiar a assustasse, France estremeceu e, apoiando-se nos braços da poltrona, levantou-se.
Dez horas... a manhã estava quase no fim. De madrugada, regressara a Pakovatz e desde então ninguém, salvo Maritza, se preocupara com ela.
com tristeza, de novo se recostou na poltrona. Repelira a solicitude da criada de quarto que lhe pedira para se deitar. Limitara-se a consentir que esta, depois de a ter auxiliado a trocar por outras as roupas húmidas, arrastasse para junto da janela aquela cadeira de repouso.
As emoções daquela noite haviam-na deixado aniquilada, mas lutava contra a fraqueza que a impediria de correr para junto de Miguel, se ele o solicitasse. Miguel! Desde a sua insensata saída do pavilhão, que a ansiedade esmagava o coração de Francisca. Sabia que estava salvo, mas ferido, ferimento do qual os criados a quem interrogara, Nikitza e o próprio Lignères, ignoravam a gravidade.
E não podia ir para junto dele! Desde o instante em que a barca de salvamento, enviada ao pavilhão para a socorrer, a deixara num ponto do parque, não submerso, Francisca ficara de novo prisioneira do seu papel. Como no passado, todos deviam considerá-la como a professora de Natália, nada mais.
Todavia, tinha a impressão de que alguém adivinhava a sua cruel ansiedade: Lignères, a quem a cena desenrolada na véspera devia ter aberto os olhos, embora muito incompletamente, sem dúvida.
No instante em que evocava o preceptor, recordou o semblante grave tal como lhe aparecera algumas horas antes e, pela primeira vez, sentiu-se admirada. Havia sido ele quem dirigira a barca que fora buscá-la ao pavilhão. Auxiliara-a a instalar-se na frágil embarcação, tripulada também pelo couteiro do príncipe que manejava os remos e, durante todo o caminho, silencioso, atento, embora numa atitude reservada, velara por ela. Quando chegaram por fim a terra firme, Lignères, com autoridade, tomou-lhe o braço e guiou-a até ao palácio que começava a animar-se.
Vendo Nikitza, pediu notícias do príncipe, mas as informações recebidas foram muito vagas. Estavam à espera do médico de Pakovatz, que tinha sido chamado com urgência. Enquanto não chegava, o príncipe, não querendo ninguém junto de si, senão o fiel du Breuil, repousava na saleta contígua aos seus aposentos.
Sempre amparada por Lignères, France conseguira chegar até ao quarto. Junto da porta entreaberta por Maritza que, avisada, espreitava a chegada da patroa, deixou-a, solicitando para essa mesma tarde uma entrevista que, segundo afirmara, se tornava «indispensável», facto do qual só mais tarde se admirou.
Há quanto tempo se encontrava ali estendida na cadeira de repouso, junto da janela da qual se avistava grande parte do parque e do pátio de honra? Não saberia dizê-lo. Tinha visto dispersar os camponeses que, no meio da noite, tinham vindo dar alarme ao castelo. Tranquilizados pelas medidas de segurança tomadas por Lignères, que de tudo assumira a responsabilidade, na certeza de que a cheia baixava e as suas herdades já não estavam em perigo, resolveram voltar para casa e, depois da sua partida, o pátio ficou silencioso.
Mais tarde, o automóvel do médico deu a volta ao lago e parou diante da escadaria; e, pouco depois, chegaram outros carros de Kroukoya, transportando a família real. Quando os viu, Francisca estremeceu de alegria. Finalmente, Natália voltava! E com este pensamento reconfortante, as lágrimas, tanto tempo reprimidas, rolaram-lhe pelas faces.
Mas o tempo foi passando. Mais de vinte vezes, depois da chegada dos automóveis, France voltara os olhos para a porta, na esperança, sempre renovada e sempre desiludida, de que os passos que percorriam o corredor parassem e Natália aparecesse. Mas ninguém transpôs a porta do quarto onde, voluntariamente, se refugiara com a sua dor. Ninguém se preocupava em saber se as emoções sofridas tinham ultrapassado as suas forças. £ este abandono total aniquilava-a.
Pouco a pouco, o castelo animou-se. Francisca, com a cabeça martelada pela febre, teve a impressão de que em todos estes ruídos palpitava surda hostilidade contra ela. Para sofrer sem testemunhas, mandara Maritza embora e, com as pálpebras cerradas, as mãos contraídas no peito, ficou imóvel, aparentemente privada de vida e, todavia, torturada pela dor.
Nos aposentos vizinhos, que pertenciam à condessa, reinava desusada animação. Por momentos, distinguiu nitidamente, respondendo à voz suave da condessa Pavlovitch, o timbre grave de Lignères. Mais tarde teve a impressão de que Milena falava a sua prima, interrompida, asperamente, por Natália.
Intensa amargura, pungente desgosto, aniquilaram France. A condessinha estava ali, tão próximo dela e nem pensava em visitá-la!
«Nat - soluçou a meia voz - que fiz eu para merecer o teu desprezo ?»
Sim, que tinha feito senão, ainda na, véspera, sacrificar a sua honra para salvar a de uma ingrata ?
Rouco soluço lhe subiu aos lábios.
«Meu Deus! - murmurou ainda - O meu procedimento foi inspirado pelo amor, e Vós, que sois todo amor, auxiliai-me!»
O sol brilhante inundava o quarto. France, não conseguindo suportar por mais tempo a sua ardente carícia, abandonou a cadeira de repouso. Quando se pôs de pé sentiu-se mais forte. Tencionava correr os cortinados para mergulhar o aposento numa penumbra onde se refugiaria com a sua dor, mas naquele momento envergonhou-se pela sua fraqueza. Visto recusarem-lhe a mais pequena manifestação de interesse e a reprovação geral a atingia, Francisca de Chancel era muito orgulhosa para se conformar com a situação.
Parou diante do espelho de Veneza que ocupava uma das paredes do quarto. As horas de ansiedade e aflição que vivera na noite anterior haviam deixado vestígios. Teve a impressão de estar a ver uma estranha, com as feições contraídas, lívida, os olhos pisados, cercados por um halo azulado.
Decidida a cumprir as suas obrigações como de costume, alisou com a mão a saia do vestido azul escuro, com gola branca, o que lhe dava a aparência de uma colegial, e compôs o penteado. Depois saiu do quarto e dirigiu-se para a escada.
O vestíbulo estava silencioso. Apenas, de vez em quando, era animado pelo passo leve de um criado que se dirigia para a estufa. Quase todos os dias, àquela hora, Francisca costumava ir ali apanhar flores para guarnecer as jarras dos aposentos da condessa. Olga Pavlovitch afirmava que ninguém possuía o talento da preceptora para compor os ramos e harmonizar os tons.
Percorreu, lentamente, as alamedas bordadas de luxuriante verdura. Como, depois da noite de insónia, tudo lhe parecia calmo, sossegado, tranquilizador ! Avistou o jacto de água cristalina, despenhando-se no tanque de mármore, as colunas da rotunda, o pavimento sulcado pela relva fina e o roseiral. Mas, de súbito, o olhar que vagueava ao acaso fixou-se num ponto, na porta do gabinete de trabalho de Miguel onde este costumava passar os dias, preferindo-o aos aposentos do primeiro andar. Por inexplicável negligência, conquanto o príncipe não entrasse ali havia muito, essa porta conservava-se aberta.
France estremeceu quando viu aquele buraco de sombra. Dir-se-ia, tal era a impressão de abandono que dele emanava, que aquele que costumava animar o aposento nunca mais ali voltaria.
Um pavor imenso esmagou-lhe o coração. Miguel tinha morrido... Miguel, o seu marido, morrera sem a tornar a ver!
Como louca, como se o seu gesto pudesse conjurar a sorte funesta, correu para a porta. Mas quando a transpôs ficou parada no limiar, encostada à ombreira, dominada por violenta emoção.
A sala, mergulhada na penumbra, não estava erma. Na imensa poltrona Luís XVIII, junto do fogão, alguém estava sentado, voltado para a estufa, e coisa alguma do que nela se passasse poderia passar-lhe despercebido. Os braços repousavam nos encostos estofados da cadeira a cujo alto espaldar apoiava a cabeça. E France, emocionada, só conseguiu ver, destacando no fundo vermelho, a ligadura que envolvia a cabeça do marido.
Por momentos, as suas pupilas confundiram-se. Depois, o príncipe estendeu a mão e murmurou:
- Francisca!
E como Francisca continuasse encostada à ombreira da porta e não parecesse tê-lo ouvido, repetiu docemente:
- Não me dizes nada, Francisca ?
Sem lhe responder, France deu alguns passos para se aproximar e pegou-lhe na mão. Lentamente, ele apertou-a e, levantando-a, encostou a cabeça dolorida aos dedos prisioneiros.
- Tive tanto medo, France! Tanto medo de morrer sem voltar a ver-te!
A despeito do perigo já estar longe, Francisca não pôde deixar de estremecer. Como a evocação do terrível momento e do que poderia ter acontecido a fazia tremer ainda!
Miguel não fazia um gesto. Cerrara as pálpebras e France sentia contra a mão o palpitar precipitado das artérias das fontes. Aqueles minutos de paz afiguraram-se-lhe séculos de felicidade. Teve de fazer um esforço para murmurar:
- Estás ferido, Miguel?
- Quase nada. Um tronco de árvore, arrastado pela corrente, que me bateu de passagem.
De novo caiu o silêncio entre eles.
- Sabia que virias aqui esta manhã, minha adorada, cuja coragem nunca esmorece, que nunca deserta e descura os seus deveres, tanto os maiores como os mais pequenos.
France tentou libertar a mão, mas Miguel não lho consentiu.
- Não quis chamar-te - prosseguiu - nem pedir-te para ires aos meus aposentos, receando uma
recusa e não queria forçar-te. Aqui, pode considerar-se um terreno neutro e talvez consintas em me escutar.
Largou a mão de sua mulher e, como para concentrar em si as forças que lhe fugiam, passou repetidas vezes a mão pela testa coberta com a ligadura. Depois, deixou recair o braço, recostou a cabeça no espaldar da poltrona e cerrou os olhos. Decorrido um instante, abriu-os e voltou-os para Francisca.
- Sou obrigado a pedir-te licença para me conservar sentado, France.
Ela esboçou vago gesto de assentimento e Miguel murmurou simplesmente:
- Obrigado.
Quase logo perguntou:
- Recordas-te do nosso primeiro encontro ? France curvou a cabeça. Fugitivo rubor tingiu-lhe as faces e, ao mesmo tempo, saía da sua imobilidade.
- Recordo-me de ter socorrido o violinista Miguel Marsac, uma pessoa sem nada de comum com
o príncipe Kersto-respondeu com amargura, exteriorisando enfim a sua dor.
O príncipe contemplou-a com dolorosa surpresa ; com doçura, replicou:
- com efeito, nessa altura, o príncipe Kersto não existia.
Calou-se, aguardando talvez uma interrogação de sua mulher. Mas, perante o seu mutismo, continuou:
- Uma mulher a quem amava - ou supunha amar - depois de odiosa traição, exigira que ele abandonasse a sua pátria, como um malfeitor.
Calou-se um instante, para prosseguir logo,
com expressão sombria:
- Não tentarei descrever-te o que foram para mim esses oito anos de exilio. Um amigo sincero e leal partilhava a minha sorte e só ele conhecia o ódio que me torturava o coração. Oito anos! Oito anos durante os quais o violinista Marsac, apesar das ovações, dos êxitos, dos triunfos, nem uma só noite esqueceu o injusto ultrage e não desejou vingar-se. E esse instante por fim chegou quando, ao chegar ao hotel, na Suíça, onde devia dar um concerto, recebi uma carta de meu primo Nicolas. Teria ele o pressentimento da morte próxima ? Não posso afirmá-lo nem acredito nessas coisas. É mais admissível que, após alguns anos de cegueira,
conhecendo por fim o carácter egoísta e duro de sua mulher, lamentasse, profundamente, o seu procedimento e quisesse reparar o erro. Foi então que Beltrão me sugeriu uma ideia que eu perfilhei imediatamente.
Voltar à Slovitânia, sim, mas tendo a meu lado uma esposa, jovem e bela, cuja presença faria sofrer Milena. Sim, porque eu pressentia que aquela mulher orgulhosa, apesar de ver todas as suas ambições satisfeitas, não deixara de gostar de mim.
Calou-se durante alguns momentos. Dir-se-ia que ao abordar o ponto mais difícil da confissão, se consentrava para chamar a si toda a sua coragem. Mais baixo, prosseguiu :
- Naquele mesmo dia, uma linda rapariga atravessara o meu caminho. Desconhecia tudo a seu respeito, sabia apenas que era linda. Mas em breve tive conhecimento de que, por estranha coincidência, a rainha Milena não gostava dela. E creio que foi isso que me decidiu.
Levantou a cabeça e o olhar perturbado pareceu interrogar Francisca, mas esta, de pé, diante dele, imóvel e silenciosa, não deixava adivinhar os seus sentimentos.
- Não a amava e, no entanto, senti-me feliz quando ela veio para mim, para o violinista Marsac e não para o príncipe Kersto, cuja identidade desejava ocultar-lhe até que o casamento se realizasse. Graças aos conhecimentos que tinha na embaixada, consegui apressar a cerimónia que, se tudo seguisse o caminho legal, teria de demorar muito mais tempo. E Francisca de Chancel foi minha mulher perante o altar.
Ao proferir as últimas palavras, a voz desfaleceu-lhe com a profunda emoção. Endireitou-se e estendeu a mão a sua mulher. Esta, porém, como se não tivesse dado pelo gesto, manteve a atitude da indiferença.
com profundo suspiro, o príncipe recostou a cabeça no espaldar da poltrona. O rosto, que a ligadura parecia tornar ainda mais pálido, contraiu-se numa expressão de sofrimento.
- É justo - murmurou com amargura - Devo beber a taça de fel até ao fim.
Empregando toda a sua energia para firmar a voz, prosseguiu:
- No entanto, naquele dia talvez começasse uma vida nova para mim. No amor sincero e profundo que se lhe oferecia, o violinista Miguel Marsac talvez conseguisse esquecer! Mas a fatalidade perseguia-me, France. Mal entrámos nos nossos aposentos, depois de casados, recebi um telegrama da corte de Slovitânia, chamando-me para junto de Nicolas, cujas horas estavam contadas ! E eu parti sem te dar uma explicação, não avaliando o teu carácter intransigente e altivo. Parti, não querendo revelar-te ainda o meu segredo, nem levar-te comigo para um país onde se preparavam graves acontecimentos; estava certo, de resto, porque, repito, desconhecia o teu carácter, de que perdoarias ao príncipe Kersto. Quando cheguei à capital, tudo tinha acabado e aqueles que durante anos se haviam esquecido do meu nome, acolheram-me como rei!
Um trejeito, misto de ironia, desprezo e repulsa perpassou pelos lábios do príncipe que logo prosseguiu :
- Reinar ? Não! Não queria, ou antes, não podia. Tinha abandonado a Slovitânia havia muitos anos. O que representava eu para o povo ? Não era mais do que um príncipe exilado a quem não podiam estimar, de quem não podiam esperar benefícios e talvez até temessem. Stanko, pelo contrário, era adorado. De longe, acompanhei os seus êxitos, os seus estudos. Conhecia a sua lealdade e não duvidava de que a Slovitânia poderia ser feliz se o tivesse como rei. Além disso, existias tu, France. O nosso casamento interditava-me a subida ao trono, pois só poderia casar com uma princesa real. Mas Deus é testemunha de que nem um instante pensei em sacrificar-te ou lamentei a tua intromissão na minha vida. O meu grande erro consistiu em obrigar-te a desempenhar a inútil comédia, associar-te a uma vingança que o Destino me proporcionou. Queria-a total, essa vingança que se me oferecia com um requinte tal como nunca havia sonhado. Aquela que outrora me sacrificara a Nicolas, estava viúva e, por falta de um herdeiro, afastada do trono. Teria de abandonar o palácio e, por uma reviravolta justa, era eu quem a substituía, eu quem a expulsava daqui!
Baixou a voz, talvez com receio de manifestar demasiado a alegria, a satisfação do orgulho ferido que tal perspectiva lhe havia proporcionado. Esforçando-se por recuperar a calma, continuou:
- Falar imediatamente a Stanko, revelar-lhe o meu desejo de abdicar, teria sido o mesmo que renunciar por minhas mãos à vingança tão desejada. Impunha-se que, durante algumas semanas e até ao termo fixado pela Constituição, Milena visse em mim o futuro rei.. . e também o homem livre que, sem dúvida, tentaria reconquistar. Foi então que me atrevi a pedir-te para guardares segredo do nosso casamento, meu amor! Nunca mais poderei esquecer o teu assombro, a revolta e a dignidade da atitude que desde esse instante adoptaste.
Para dominar a emoção que o fazia vibrar, calou-se um instante.
- Por que não renunciei nesse momento à louca intenção de prosseguir uma vingança baixa e vil? Por que não compreendi logo onde se encontravam a alegria, a paz e a doçura de viver? E os dias foram passando, trazendo-me como castigo o amor que desejava expulsar da minha vida, um amor imenso, total, radioso, comparado com o qual, o outro, o da mocidade, era como se nunca tivesse existido. Decidi pôr termo à odiosa comédia, France, e a tentativa criminosa de que foste vítima na tarde em que chegou o Beltrão não fez mais do que antecipar uns dias a minha resolução. Tinhas de ser protegida, protegida contra tudo e contra todos e sem perda de tempo. Foi então que, tendo conseguido salvar-te, graças a Deus, eu participei a Stanko o meu desejo de renunciar ao trono. O resto já o sabes. Corria a anunciar-te que o príncipe Kersto abdicara, quando o meu entusiasmo esbarrou com Lignères. Não quero conhecer o motivo pelo qual o professor se encontrava ali, France. Não te pergunto coisa alguma. Estou certo da pureza do teu coração. Mas, depois desta confissão sincera de todas as minhas culpas, depois da afirmação total, absoluta, da minha confiança, não acederás a dar-me a tua mão como prova de perdão ?
Ao proferir estas últimas palavras, pôs-se de pé. Estava tão perto de Francisca, que pequeno movimento bastaria para esta repousar a cabeça no peito de seu marido.
-France - murmurou ele, nessa voz profunda que sua mulher não podia ouvir sem que todas as fibras do seu ser estremecessem - France, minha mulher, meu amor, perdoas-me tudo o que eu fiz?... Perdoas-me ?
com leve movimento, France libertou-se das mãos ardentes que lhe prendiam os ombros. Na confissão do príncipe, só uma coisa lhe importava: a certeza de ser ela, Francisca de Chancel, o obstáculo ao destino real de Miguel. Como o príncipe a fixasse com olhar ardente, como se aguardasse a resposta, murmurou com tristeza:
- Agradeço-te a confiança, Miguel, mas prolongar esta conversa tornar-se-ia doloroso para os dois. Consente que me afaste. Daqui a alguns dias, já mais calmos, poderemos encarar com lucidez e eficácia, a inevitável separação.
Como se as palavras pronunciadas por sua mulher ultrapassassem a sua compreensão, Miguel pareceu ficar indeciso, hesitante. Depois, o semblante transtornou-se-lhe numa expressão aterrada.
- France! - bradou - Isso é mentira, queres experimentar-me, não é verdade ?
Francisca abanou a cabeça.
O príncipe soltou uma exclamação abafada, que exprimia a sua impotência e ao mesmo tempo a sua dor.
- Então é bem verdade que não amavas Miguel Marsac ?
com os olhos rasos de lágrimas que, devido à escuridão, o príncipe não podia ver, ela ficou impassível.
Lentamente, Miguel afastou-se e, tendo dado alguns passos ao acaso, foi encostar-se à pedra do fogão.
O ruído de passos na estufa interrompeu a conversa. O príncipe encaminhou-se para a porta e foi ele quem recebeu Maritza.
A criada de quarto procurava Francisca para lhe dizer que a condessa Pavlovitch lhe pedia para ir aos seus aposentos daí a uma hora.
France dirigiu-se a seu marido.
- Posso retirar-me, Alteza ?
Não obteve resposta. O príncipe, encostado à secretária, examinava os papéis esparsos e voltava as costas às duas raparigas. E quando estas, depois de terem aguardado em vão uma resposta, saíram, não correspondeu à sua saudação.
Quando regressou ao quarto, France recusou o auxílio de Maritza que, inquieta com a sua palidez, se ofereceu para ficar junto dela. Uma hora! Restava-lhe apenas uma hora até à entrevista fixada pela condessa! Uma hora para preparar tudo para a partida definitiva!
Num esforço que ultrapassou o próprio sofrimento, atravessou o quarto. Encerrados nos grandes armários da sala de banho, encontravam-se as malas que já começara a preparar, preparativos que devia terminar quanto antes. Quantas coisas abandonava naquele castelo, a sua prisão, cujas grades desejara quebrar! Que valor poderiam ter os objectos de uso, as recordações, em comparação com o que ficava encerrado entre aquelas paredes: o seu pobre coração!
Por instantes, recordou a promessa feita a Miguel de não abandonar Pakovatz sem a sua licença. Não hesitou, porém, nem revogou a resolução de quebrar essa promessa. Ficara por causa dele, pela mesma razão partia agora!
Febrilmente, despojou o quarto de tudo quanto podia dar-lhe uma nota íntima: fotografias, livros, bugigangas. Guardou tudo na mala com os vestidos. Quando se levantou, depois de ter apertado as correias, estava pronta para abandonar Pakovatz. Podia deixar o castelo para não mais voltar.
Nunca mais! Torturou-a uma dor profunda. Como era cruel aquela renúncia voluntária!
Durante alguns instantes, todo o seu ser se revoltou contra o injusto sacrifício.
«Miguel! Miguel! - soluçou baixinho.
E depois, quase num murmúrio, acrescentou:
«Não posso ficar. Tens de ser rei!»
E deixou-se cair numa cadeira, com o cérebro vazio de pensamentos, com a sensação de uma dor insuportável que a passagem do tempo não atenuava.
De repente, como que despertou. Durante os preparativos e na breve paragem que concedera à dor, o tempo implacável prosseguira a sua marcha e a hora marcada para a entrevista com a condessa chegara. Breve olhar para o relógio de pulso bastou para lhe mostrar que estava, ligeiramente, atrasada. Rapidamente, levantou-se, saiu do quarto e fechou a porta cuja chave guardou. Depois subiu aos aposentos da condessa.
A sala onde Francisca entrou estava mergulhada na sombra. A condessa, cuja vista fatigada não podia suportar a claridade muito forte, cerrava as portas interiores, durante certas horas do dia, impondo aos que a rodeavam aquela obscuridade, pouco agradável para quem não tinha razões para evitar a luz.
À entrada da professora, ouviu-se arrastar uma cadeira. A condessa, abandonando o lugar que ocupava, foi ao seu encontro. Mas esse gesto não podia ser tomado por afectuosa solicitude, porque o tom era frio quando lhe perguntou:
- Como se sente, minha filha ?
Françe instalou-se no lugar que Olga Pavlovitch lhe designava a seu lado e respondeu:
- Muito obrigada, madame. Tratava-se de ligeira fadiga, sem importância.
Seguiu-se breve silêncio, durante o qual a mãe de Natália pareceu reflectir, observando Francisca com olhar penetrante. E, de súbito, talvez na esperança de que, por efeito da surpresa, esta deixasse adivinhar os seus sentimentos, sem preâmbulos, declarou:
- O professor João Lignères encarregou-me de lhe pedir a sua mão, Francisca.
Por espaço de alguns segundos, Francisca, com os olhos muito abertos, imóvel, ficou por tal forma paralizada pelo espanto, que não conseguiu articular palavra. Por fim, como se receasse ter ouvido mal, repetiu maquinalmente:
- O professor Lignères ?
Agitava-a um turbilhão de emoções e de pensamentos contraditórios. Em primeiro lugar, a recordação do dia em que no lugar da condessa Olga Pavlovitch se encontrava madame Bertin, a sua velha amiga:
«France, o violinista Miguel Marsac ama-te e pede-te para seres sua mulher».
A condessa aguardou alguns minutos, respeitando a evidente comoção da sua interlocutora. Por fim, insistiu:
- Então, Francisca?
Esta estremeceu e, num gesto inconsciente, apertou as mãos contra o peito.
- Agradeça por mim ao senhor Lignères, madame. Mas... não posso aceitar. Fiquei muito reconhecida, muito sensibilizada...
As palavras dançavam-lhe no cérebro numa roda louca, mas não conseguiu encontrar uma que exprimisse a sua incompreensão e espanto.
com penetrante atenção, Olga Pavlovitch examinava o rosto perturbado. A expressão benevolente que, na falta de beleza, dava tanto encanto ao semblante austero, desvanecera-se para dar lugar a uma atitude severa que France verificou dolorosamente.
A mãe de Natália guardou silêncio durante alguns momentos, como se aguardasse declaração mais decisiva. Mas, como o mutismo de Francisca se prolongasse, prosseguiu:
- Deseja reflectir? Nada mais natural. Explicarei ao senhor Lignères...
Estas palavras, que poderiam prolongar a situação equívoca, restituíram a calma a Francisca. Ergueu a cabeça e declarou com firmeza:
- Seria inútil iludir o senhor Lignères, não lhe dando,imediatamente, uma resposta definitiva. O seu pedido sensibiliza-me, mas só posso responder-lhe com uma recusa.
Sem baixar a vista, sustentou o olhar severo com que Olga Pavlovitch a fixava. De resto, na sombra, mal distinguia o rosto da condessa, o seu busto rígido, as manchas claras que as suas mãos punham no regaço do vestido preto.
Decorreram alguns segundos. Depois, como se tomasse brusca resolução, a condessa inclinou-se para a preceptora.
- Não seria melhor abreviar esta conversa, Francisca ?
- Desejo, acima de tudo, ser-lhe agradável. A sua bondade por mim foi sempre tão grande, tão perfeita, que seria ingratidão da minha parte esquecê-la.
Breve lampejo de emoção animou o semblante da condessa que, espontaneamente, estendeu as duas mãos.
- Então aceite Lignères, minha filha. Francisca teve uma espécie de recuo.
- Não compreendo, madame.
Olga Pavlovitch fez um gesto irritado.
- Louca! - exclamou - Louca! Será preciso dizer-lhe tudo?
E como France não baixasse o olhar sereno, concluiu, friamente:
- Todos sabem onde e com quem passou esta noite.
Um sobressalto agitou a preceptora. A brutal acusação, com que, no entanto, já devia contar, deixava-a aniquilada, como a mais injusta, a mais dolorosa provação infligida pelo Destino. Num gesto de desalento, deixou cair a cabeça para trás e, com os olhos fechados, conservou-se calada durante alguns momentos, esmagada pela certeza da sua impotência para se justificar.
Depois, com infinita gratidão, pensou em Lignères, cujo reconhecimento pelo sacrifício, voluntariamente feito na véspera por Natália, se manifestava por forma tão generosa. Adivinhou que, supondo-a irremediavelmente comprometida, Lignères não hesitava em lhe pedir para ser sua mulher. E experimentou profunda sensação de conforto com a certeza de que tinha a seu lado um carácter suficientemente nobre para tudo sacrificar ao pagamento de uma dívida.
Vagarosamente, ergueu a cabeça. À medida que o espanto inicial se dissipava, mais imperioso se tornava o desejo de pôr termo à desagradável conversa. O seu prolongamento não poderia trazer desculpas para ela ou modificação na atitude da mãe de Natália. Portanto, não podia considerar-se cobardia terminá-la.
Pôs-se de pé, na frente de Olga Pavlovitch, cujo olhar severo não deixava de a observar.
- Nada posso dizer-lhe para me justificar, madame. Não me esmague com o seu desprezo e consinta que abandone esta casa onde, de futuro, já não terei lugar.
- É então verdade ?
Estas palavras foram proferidas num tom incisivo, quase rude, mas no qual, no entanto, vibrava ligeira decepção. Aprumada, apoiada nos braços do sofá estofado de seda verde, a condessa deixava ver o semblante no qual todos os vestígios de benevolência haviam desaparecido.
- É verdade ! - repetiu - Todos estes preâmbulos não foram mais do que uma experiência, Francisca. Sabia que não podia aceitar Lignères, porque já não é livre. Mas esperava de si uma confissão que me levaria a perdoar-lhe.
Impulsivamente, France levou as mãos à face ruborisada. Mas Olga Pavlovitch prosseguiu:
- Por que motivo Sua Alteza Milena não me preveniu mais cedo desta aventura? Não sei. Talvez por bondade. Mas o seu inconsequente procedimento desta noite, Francisca, impeliu-a a falar. Era demais; e, delicadamente, sem citar nomes nem revelar a forma como tinha conseguido revelações tão pormenorisadas, revelou-me a sua dupla personalidade. Verifico agora que tudo quanto me contou era verdade, visto a Francisca nem sequer se defender.
A despeito da dolorosa situação em que se encontrava e, acima de tudo, o espanto ao verificar que Milena «sabia», France não conseguiu evitar um sorriso de desprezo. com diabólica habilidade, a princesa tinha conseguido ocultar o nome do príncipe Kersto.
A condessa guardava silêncio e, nervosa, passou repetidas vezes pelos lábios o lenço guarnecido com delicadas rendas.
Tornava-se evidente que, a despeito das aparências, sofria por ter de se convencer da verdade. Mas, conseguindo dominar a emoção, prosseguiu:
- É então verdade! France de Chancel, cuja ponderação, sensatez e juízo nós admirávamos, a quem confiei a minha filha e dei a minha afeição, deixou-se conquistar por um aventureiro!
Até ali, France mantivera-se na atitude respeitosa e deferente a que a mãe de Natália tinha direito, apesar da sua severidade. Mas as últimas palavras provocaram um movimento de indignação, revolta e quase violência:
- Meu marido não é um aventureiro !
- Não?... Então o que é? Um companheiro de quem se envergonha, visto ter-me ocultado a sua existência.
Francisca não lhe respondeu logo. Depois, com infinita doçura, talvez mais para si mesma do que para a condessa Olga Pavlovitch, declarou:
- Meu marido é um carácter nobre, uma alma de eleição que eu não soube compreender e guardar.
No silêncio profundo soou como que um suspiro abafado, de profunda alegria. Admirada, France olhou para a condessa, cuja expressão fria não se modificara. No entanto, a voz era mais branda quando lhe perguntou:
- Quer-lhe muito ?
- Deus meu! Amo meu marido, quero-lhe com todas as forças do meu coração. Amo-o com fervor, com humildade, com admiração e desespero! Amo-o para sempre, com toda a minha alma... É o meu pensamento, a minha vida, o meu cérebro, este amor vibra em todas as fibras do meu ser.
A condessa interrompeu-a, erguendo a mão. Aquela France tão diferente, que de repente se manifestava, assustava-a um pouco.
- Então, minha filha, por que... - começou.
- Por que não lhe pedi conselho antes de comprometer toda a minha vida, não era isso o que ia dizer? Não pode censurar-me mais severamente do que eu o fiz a mim própria e, no entanto.. - No entanto ?
- Tudo tentei para conseguir a sua aprovação. Não existe um hotel, nas principais cidades de Itália, para o qual eu não tivesse enviado uma carta, nos dias que antecederam o meu casamento. Essas cartas foram-me devolvidas. Depois de ter abandonado a Suíça, os seus projectos modificaram-se e, em vez de se ter demorado na Itália, instalou-se em França. Mas, se soubesse como desejei a sua aprovação...
Um sorriso de incredulidade perpassou pelos lábios da condessa. A vibrante sinceridade de Francisca não conseguia abrandá-la.
- Sendo assim, devia ter esperado. Essa precipitação
que a levou a passar sem o consentimento que afirma ter desejado, não tem desculpa.
Um soluço sufocado morreu nos lábios de Francisca.
Esperar! Sim, devia ter aguardado mais algum tempo! Mas tudo se conjugara contra ela, principalmente, a imperiosa vontade de Miguel.
Incapaz de acrescentar mais uma palavra em sua defesa, para se justificar ou, pelo menos, conseguir o perdão, France ficou calada.
Depois de ter em vão aguardado a resposta, a condessa prosseguiu :
- Essa falta de confiança, de respeito e de afeição não é, ainda assim, a sua maior culpa, Francisca. Tudo isso teria sido perdoado, se mo tivesse confessado.. . Mas, como classificar o seu silêncio, a sua dissimulação? Como pôde retomar o seu lugar junto de nós, tendo na consciência tão doloroso segredo ?
Pela segunda vez, Francisca mordeu, violentamente, os lábios. As aparências de ingratidão para com a condessa Olga Pavlovitch esmagavam-na.
Se estivesse só em causa não hesitaria em se lançar aos pés da condessa e com sinceridade, por entre lágrimas, confessar-lhe-ia tudo! Mas essa solução estava-lhe interdita. Aos olhos da condessa Olga, Miguel da Slovitânia não podia figurar como réu. France não tinha outro recurso senão calar-se e sofrer.
Aquele silêncio magoou, profundamente, a mãe de Natália. Soltou um suspiro e, desviando a vista de France, fixou a esteira de claridade, filtrada por entre as portas de madeira semi-cerradas. Depois, tendo, sem dúvida, com aqueles instantes de silêncio, conseguido recuperar a calma, de novo se lhe dirigiu:
- Respeito a sua liberdade, minha filha, e não tentarei arrancar-lhe uma parcela do seu segredo. Mas, pelo menos, como eu desejava que esse casamento lhe desse a felicidade!
- Felicidade! - repetiu France com indiscritível amargura.
Quase logo, prosseguiu:
- Não posso ser feliz. Meu marido supôs, Deus me perdoe, que pobre e sem família, me deslumbraria com a sua situação e eu, agarrada ao meu louco orgulho, não dei um passo para o atrair. Desta forma, afastou-se sem hesitar e depois...
Calou-se, olhando para a condessa com expressão quase alucinada. Não prosseguiu nas confidências e a condessa não quis ouvir mais.
Pesado silêncio caiu entre as duas. Calma e atenta, a condessa deu tempo para que a emoção de Francisca se dissipasse. Mas, perante o obstinado mutismo desta, foi ela quem primeiro falou:
- Pois bem, minha filha, vá ter com seu marido. Auxiliá-la-ei com todo o coração nesse caminho. Creia que está aí a felicidade e não na orgulhosa obstinação de um mal entendido.
France não lhe respondeu, mas um sorriso de amarga ironia lhe entreabriu os lábios. Chegara ali com a tenção de anunciar a sua partida e afinal expulsavam-na!
Num gesto de altivez, deitou a cabeça para trás. Mas o peso das torturas morais sofridas esmagou-a com tal força, que teve uma vertigem e supôs ir desfalecer. A condessa notou-o e fugitiva emoção lhe suavizou a expressão severa.
- Vá descansar, minha filha. Amanhã voltaremos a conversar e, se quiser demonstrar-me um pouco mais de confiança, não lhe faltará o meu incondicional auxílio.
A garganta estrangulada de Francisca não deixava passar um som. Limitou-se a inclinar a cabeça. Só ela sabia que o «amanhã» nunca mais chegaria e que era aquela a última vez que se encontrava na presença da condessa Olga Pavlovitch.
Esta certeza levou-a a pensar quanto seriam dilacerantes as despedidas a Natália. De si para si, jurou que a condessinha não saberia que se ia embora. Sim, porque decidira abandonar o castelo logo que saisse dos aposentos da condessa. Simplesmente - e não seria natural que, depois de tantos dias de separação, desejasse ver Natália ? quando se dispunha a abandonar os aposentos da condessa, pediu:
- Posso ir ver a Natália ?
A condessa não lhe respondeu logo, mas, no semblante severo, France leu uma resolução inflexível. Olga Pavlovitch podia perdoar à preceptora da filha; mas, como mãe prudente e escrupulosa, não podia consentir que, de futuro, houvesse qualquer contacto entre ambas.
De cabeça baixa, alisando com a mão as pregas da saia, declarou com calma:
- Não quero ocultar-lhe que a Natália está ao facto de tudo. E, desde que o soube, fechou-se no quarto a chorar. Será preferível deixá-la sossegada.
E, com um gesto decisivo, significou a Francisca que o encontro se tornava impossível, pelo menos no momento presente. France não esboçou um protesto. A nova afronta deixou-a quase insensível, porque o seu sofrimento atingira tal limite, que coisa alguma poderia ultrapassá-lo. Sem uma palavra, inclinou-se, respeitosamente e, em passo rápido, abandonou o aposento antes que a condessa pudesse, como prova de benevolência, estender-lhe a mão.
Logo que a porta se fechou, Olga Pavlovitch voltou-se para o recanto mais obscuro da sala e, com a vista, procurou o vulto que logo saiu da sombra.
- Então, Miguel ? Estás edificado ? Garantiste-me que não tinha havido nada de censurável no acaso que levou Francisca ao pavilhão, a noite passada; com efeito, não mostrou dar importância ao facto. Mas que dizes da sua duplicidade, que ela não negou ?
Miguel estava agora em plena luz, parado no meio da sala. O semblante másculo parecia irradiar.
- Digo que devo ir pedir-lhe perdão de joelhos por todo o mal que lhe fizemos, minha tia!
Ardente, embora abafada por profunda emoção, a voz de Miguel tinha estranhas ressonâncias. Por momentos, Olga Pavlovitch ficou imóvel, como que petrificada. Mas como o príncipe se encaminhasse para a porta, alcançou-o.
- Explica-te, Miguel, em nome do céu !
O principe parou e fixou o rosto que exprimia ansiosa interrogação.
- Amanhã - respondeu, esforçando-se por aparentar calma.
E, de novo, agarrou a maçaneta da porta. A condessa, porém, pegou-lhe na mão.
- Elucida-me, mais uma vez te peço - suplicou Olga - Não podes deixar-me nesta indecisão, neste mistério. Há pouco, pediste-me para interrogar Francisca de Chancel na tua presença. Acedi. Mas o que pressinto, desorienta-me. Peço-te que me concedas alguns minutos para me dares as explicações a que tenho direito.
Pelas pupilas escuras perpassou um lampejo de impaciência. Pouco antes, quando todo o amor que lhe palpitava no coração o impelia para Francisca, conseguira não atraiçoar a sua presença, na esperança, não desiludida, de conseguir uma confissão. Mas quanto lhe havia custado essa passividade! Depois, persistira em se ocultar, reconhecendo a impossibilidade de uma troca de explicações na presença da condessa. Agora, porém, um só desejo, um só anseio o animava: ir ter com sua mulher e, na certeza do amor partilhado, obter enfim o seu perdão.
No entanto, conseguiu dominar-se e, perante a desorientação e ansiedade expressas no semblante da condessa, cedeu. com um olhar de pesar para a porta, lutou durante alguns momentos contra os seus próprios desejos e depois, conseguida a dificil vitória, decidiu-se:
- Seja. Vai saber tudo, minha tia. Mas, por amor de Deus, não me interrompa, por muito surpreendida que fique com as minhas palavras.
Quando, mais tarde, Miguel abandonou os aposentos da condessa, havia muito que soara pelo castelo a campainha eléctrica que anunciava as refeições.
com passo rápido, o príncipe atravessou a galeria, ornamentada com tapeçarias, para onde deitavam todos os aposentos daquela ala do palácio e foi bater à porta do quarto de France.
Mas só a voz de Maritza respondeu às repetidas pancadas.
Empurrou o batente. com uma das mãos apoiada na colcha bordada, a outra apertando o lenço húmido, a gentil Slovitana relanceava para as malas que a rodeavam um olhar desolado e triste.
- Onde está mademoiselle de Chancel ? - interrogou o príncipe quase com violência.
Maritza não conseguiu responder-lhe. A entrada de Miguel e a pergunta áspera, perturbaram-na por tal forma que levou tempo a recuperar a calma.
Como Miguel repetisse a pergunta com evidente ansiedade, para responder à interrogação e ao gesto que designava a desordem do aposento, a criada deu alguns passos. Em cima da pequena mesa estava um estojo branco que ela agarrou e, timidamente, lhe entregou. Depois, em voz baixa e trémula, comunicoulhe que Francisca de Chancel, deixando-lhe o encargo de lhe enviar mais tarde as bagagens, havia abandonado Pakovatz havia mais de uma hora, levando consigo apenas ligeiro saco de viagem.
Na calma da tarde, os guisos presos à coleira do cavalo tilintavam alegremente. Essa melodia suave e harmoniosa, adaptava-se bem à suavidade daquele crepúsculo de Primavera e embalava Francisca, desde que haviam deixado a estação.
Envergava um casaco escuro de viagem, poisara no regaço o chapéu de feltro e, vencida pela agradável sensação de bem-estar que lhe proporcionava a brisa fresca, recostara no banco do trenó a cabeça fatigada.
com o braço passado pela correia do saco e as mãos cruzadas, deixava o olhar vaguear ao acaso por aquela terra suíça onde entrava pela segunda vez.
Como era diferente o aspecto actual daquele que lhe oferecera seis meses antes!.. A neve tinha derretido e só os altos cumes conservavam o seu toucado alvinitente, que o sol no ocaso fazia cintilar como diamantes. Prados imensos, esmaltados pelas flores brancas e lilazes, ribeiros de águas cristalinas, pequenos bosques de folhagem rendilhada, florestas espessas, que o sol inundava com uma chuva de oiro, eis a paisagem que se estendia a seus olhos.
Amargo sorriso lhe perpassou pelos lábios. Conhecera essa paisagem gelada pelo Inverno quando, no seu próprio coração, uma primavera maravilhosa despertava... E agora cabia-lhe a vez de se sentir como morta, mas que, no entanto, sofria, enquanto por todos os lados soava o hino universal da ressurreição.
Pela primeira vez desde que abandonara Pakovatz, France teve de reprimir as lágrimas, num esforço de toda a sua vontade. Mais tarde, mais tarde, sim, no aposento que, percorrendo milhares e milhares de quilómetros, viera procurar para saborear a amarga doçura das recordações. Só então deixaria correr lágrimas. Agora era cedo ainda.
Cerrando as pálpebras, revivia os dois dias anteriores : a derradeira entrevista com Miguel no gabinete de trabalho, a conversa com Olga Pavlovitch e, logo a seguir, a sua própria partida, ou antes, a fuga daquele Pakovatz donde a expulsavam como uma aventureira.
A pé -por coisa alguma teria querido utilizar um dos carros da corte - transportando a modesta bagagem, fora bater à porta dos pais de Maritza e pedira ao bom do camponez que atrelasse a carriola para a conduzir à estação, bastante afastada. Não chegara a uma hora depois, já se encontrava no rápido e, nessa mesma noite, graças ao passaporte permanente concedido aos principais membros da casa real, transpôs pela última vez as fronteiras da Slovitânia.
Dois dias depois, ou antes, dia e meio de percurso através de países desconhecidos, de solavancos e paragens, chegou ao fim da viagem. Precisamente ao fim, não, visto o seu destino definitivo ser Paris. Porém, aquela breve demora na Suíça representava a única concessão feita ao seu amor.
E não conseguiu reprimir um soluço abafado. Que fraqueza a sua não ter podido voltar àquela página da sua vida sem procurar reconstruir as horas mais belas, as do seu noivado, as que haviam assistido ao nascimento do seu belo sonho de amor!
Quando, na estação de Pakovatz, chegara o instante de comprar o bilhete, sentiu-se esmagada por uma angústia maior, mais intensa e dolorosa de todas as que havia sofrido até ali. Não se arrependia pelo dilacerante sacrifício; mas aquele gesto insignificante e simples com o qual rompia, definitivamente, com o passado, afigurou-se-lhe, de súbito, muito difícil de realizar. E, enquanto se dirigia para a bilheteira, hesitante e trémula, assaltou-a o veemente desejo de voltar à Suíça. Instalar-se no luxuoso hotel, ver de novo a moldura onde se desenrolara o seu breve romance e - talvez lho consentissem - recostar mais uma vez a cabeça no espaldar das fundas poltronas estofadas de branco da salinha nupcial, tudo isso representava dolorosa satisfação pela qual anelava, loucamente, e que ficaria sempre ignorada do seu adorado Miguel. A sobre-humana energia empregada para fugir dele enfraquecia, agora que já não era obrigada a lutar. De futuro, seria senhora do seu próprio destino, poderia sofrer com a certeza de que esse sofrimento não atingiria também o marido, sem remorsos de o ferir.
E, poucos minutos depois, tendo recebido das mãos do pai de Maritza o saco de viagem, instalava-se num compartimento que a conduziria à Suíça, teatro da sua breve felicidade, tão duramente paga.
Vagarosamente, o cavalo branco, cujo passo lento e igual tanto agradara a France a primeira vez que ali estivera, e logo reconhecera, subia a íngreme encosta. Um carro baixo substituira o trenó que, durante o Inverno, assegurava os transportes, cuja capota levantada permitia à viajante respirar o ar fresco e perfumado das alturas.
Reabriu os olhos, cercados por um halo arroxeado que se estendia pelas faces lívidas, halo provocado pela fadiga da viagem e por todos os desgostos suportados naqueles últimos dias.
O sol ainda brilhava numa quebrada entre duas montanhas e, no céu cor de ametista, ligeiras nuvens rosadas dissolviam-se pouco a pouco. As sombras desciam, esbatendo os contornos, mas a fita prateada da estrada desenrolava-se, nitidamente, através dos campos verdejantes.
De súbito, France estremeceu. Apesar do aspecto diferente, assumido por aquelas paragens, com os rigores de Inverno, reconhecia certos pontos da estrada. Tinha sido ali, exactamente, que, alguns meses atrás, um viajante parado a meio do caminho lhe pedira em tom imperioso:
«Madame, o violinista Miguel Marsac e o seu secretário, ficar-lhe-iam muito gratos se lhes permitisse que se utilizassem do seu carro».
Os lábios tremeram-lhe, convulsivamente.
«Meu bem amado - murmurou com ternura Meu bem amado...»
Um sofrimento súbito e violento aniquilou-a. Perante tantas recordações, que, loucamente, desejara reviver, a sua coragem enfraquecia, deixando indefeso o coração torturado.
No entanto, nem por um instante lamentou e se arrependeu pela decisão tomada, por essa breve paragem naquele país de sonho. No limiar da vida triste, da vida que, segundo lhe parecia, se encaminhava para um túnel de sombra, abençoava a dor, visto ela ser a consequência do seu amor por Miguel.
No dia seguinte voltaria a partir, iria ter com madame Bertin que, sem dúvida, não se recusaria a acolhê-la, provisoriamente. Então começaria para ela a luta feita de incerteza material, de desorientação moral e de vãs tentativas de esquecimento. Naquela tarde, porém, ainda não dera o primeiro passo para esse futuro de tristeza. Pertencia ainda, com toda a sua alma, ao passado que o amor iluminava com maravilhosa doçura.
O carro deixara já a aldeia muito para trás. Mais uma subida e o cavalo parou diante da escadaria do hotel. O crepúsculo transformara-se em noite e, para procurar na bolsa a importância devida pelo transporte, Francisca teve de se aproximar de um dos grandes lampadários de bronze que, à direita e à esquerda, flanqueavam a porta principal. Depois, tendo respondido com a habitual amabilidade à saudação do cocheiro, subiu a escadaria e entrou no hall.
Na recepção, conquanto não tivesse anunciado a chegada, não levantaram obstáculos em lhe dar os aposentos que pretendia. Tinha receado que não estivessem livres, a sala de paredes claras com alcatifas imaculadas, o quarto entrevisto de relance pela porta entreaberta, quando Miguel, à pressa, arrumava, rapidamente, a maleta para regressar a Kroukoya. Desvanecido esse receio, dirigiu-se para o ascensor, seguida pelo criado que lhe levava o saco, nem sequer reparando que ele não se prevenira com as chaves dos aposentos.
com o coração palpitante, percorreu o corredor atapetado com espessa alcatifa, que lhe abafava os passos. com intensa emoção, ia reconhecendo tudo: as enormes rosas chá dos tapetes, o tom claro das paredes, os candelabros de ferro forjado que, de longe em longe, iluminavam, generosamente, aquele andar.
Por fim, parou diante da porta encimada pelo número de metal reluzente. O criado empurrou-a e, afastando-se para o lado, deixou-a entrar no pequeno vestíbulo que precedia a sala.
Parou, aguardando que ele abrisse a segunda porta. O coração palpitava-lhe com tanta força que abafava todos os outros ruídos e, dessa forma, ficou muito admirada quando, após breves segundos, notou que o rapaz se havia retirado, limitando-se a poisar o saco em cima de uma mesa antes de a deixar sozinha. France esboçou pálido sorriso. Decididamente, faziam dela fraco conceito. Uma cliente de ocasião, sem importância, com a qual não havia necessidade de ter atenções, nem mesmo a mais elementar delicadeza.
com mão trémula deu volta ao puxador da porta que tinha na sua frente. Mas, mal esta se entreabriu, retirou a mão e recuou. Perfumes embriagadores e delicados, de cravos, rosas e lírios, envolveram-na. Foi tão súbito, tão inesperado e tão violento, que foi obrigada a encostar-se à parede para não cair. E assim se deixou ficar, desfalecida, incapaz de fazer um gesto, fixando a porta com uma espécie de terror.
A salinha, tantas vezes evocada em pensamento, era como enorme ramo de flores. Os cravos, pesados de perfume, guarneciam o vão da janela. Nos móveis de sicómoro, nos nichos cavados na parede, na mesa de laca com tampo de espelho e na pedra do fogão, jarras de cristal transbordantes de jarros. E, para completar o cenário, em tudo semelhante ao que a havia acolhido na noite do casamento, a coluna luminosa de alabastro iluminava docemente um ramo de rosas brancas do qual emergia.
Perturbada, France tapou os olhos com as mãos e, convulsivamente, conservou-os fechados para a visão que atribuía a súbita loucura. Depois, com corajoso impulso e para que ela se dissipasse, deixou tombar os braços, ergueu a cabeça e olhou. No mesmo instante, porém, as pernas vergaram-lhe, as paredes da sala oscilaram, todos os objectos se confundiram e soçobrou na inconsciência. Miguel, que tinha avançado até à porta, mal teve tempo para a receber nos braços.
Quando, momentos depois, recuperou os sentidos, encontrou-se, já sem casaco, estendida numa das poltronas da sala. Um tamborete baixo, encostado a ela, transformara-a na mais confortável cadeira de repouso.
O seu primeiro olhar, ainda incerto e vago, foi para o violino do príncipe, colocado em cima de uma cadeira. Depois para o vulto que, atento, se debruçava para ela. Voltou a cabeça e com custo endireitou-se.
- Miguel... Miguel!
Já não lutava. Lágrimas de alegria, benéficas e suaves, inundavam-lhe as faces; e os dois braços, estendidos para o príncipe num apelo apaixonado, revelavam o amor infinito que sempre lhe dedicara.
De joelhos, com a cabeça encostada ao peito de sua mulher, Miguel, a meia voz, revelava-lhe o milagre da sua presença no hotel naquela noite. Contou-lhe como, ao saber da sua partida, se dirigira como louco para a estação, para saber ali que o rápido já havia passado. O bilhete para a Suíça revelava o seu destino. Descreveu-lhe o regresso a Pakovatz e depois a ida a Kroukoya onde, perante o Conselho da Coroa, reunido à pressa, assinara a abdicação.
A partir daquele minuto, nada mais, nem escrúpulos nem hesitações, o separavam de sua mulher. Estava consumado o irreparável. Podia correr para ela, seguro de uma afeição que o sacrifício havia sublimado. No dia seguinte, de madrugada, o avião particular do príncipe voava para a Suíça, pois adivinhara que, antes da renúncia definitiva, France quisera dizer o último adeus às suas recordações.
Quando se calou, France ficou durante alguns momentos calada também. A transição da desventura para a felicidade fora tão súbita e profunda, que lhe roubava o uso da palavra. Hesitava em quebrar o maravilhoso silêncio. O príncipe continuava de joelhos a seu lado e como o seu mutismo se prolongasse, France adivinhou na atitude de Miguel leve ansiedade.
- Miguel - murmurou - agora creio ser possível dizer-te que Lignères não foi a Pakovatz por minha causa.
O marido ergueu a cabeça e fitou-a com olhar radioso.
- Não o ignoro, Francisca. Natália confessou-me tudo antes de eu partir.
- Pobre pequena! Quantas tristezas a esperam!
- Não tenhas receio. Natália casará com Lignères. Antes de assinar a minha abdicação a favor de Stanko, impus essa condição.
Seguiu-se breve silêncio e depois, quase num sopro, France interrogou:
- E Milena?
Miguel, num amplexo carinhoso, estreitou sua mulher.
- A princesa irá viver afastada de nós. Possui muitos domínios. Não poderia ficar em Pakovatz onde, se quiseres, passaremos a viver.
E, como se o nome daquela que tanto os havia feito sofrer, despertasse de novo os remorsos de Miguel, este murmurou:
- Perdão... meu amor!
Como única resposta, France passou os braços em torno dos ombros de seu marido e encostou a face à fronte ainda mal cicatrizada.
- Minha adorada-continuou Miguel, quebrando o silêncio apenas interrompido pelo bater precipitado dos seus corações - quis que tudo aqui te recordasse a noite em que, ingenuamente confiante, palpitante de ternura, entregaste a tua vida ao violinista Miguel Marsac. Fiz mal talvez em despertar essas recordações? - concluiu em voz baixa.
France levantou a cabeça e, com um sorriso encantado, percorreu com a vista o aposento confortável e perfumado, docemente iluminado pela coluna de alabastro. O olhar deteve-se um instante no stradivarius de Miguel e depois voltou-se para o rosto querido que tomou entre as mãos e beijou.
- Meu amor - disse - todos estes dias foram como se não existissem. A vida recomeça. Supõe que há pouco, na capelinha, Deus me concedeu a infinita felicidade de ser tua mulher. Acabamos de regressar aos nossos aposentos e como as palavras não chegam para exprimir o encantamento dos nossos corações, peço-te: «Miguel, queres tocar um pouco em surdina, só para a tua mulher?»
Devagar, o príncipe levantou-se. Deu alguns passos, pegou no violino e depois, com o rosto iluminado por ardente chama, aproximou-se de Francisca.
E, na sala bem fechada, batel isolado, navegando no oceano da felicidade, um cântico se elevou, hino apaixonado de plenitude e de esperança, maravilhoso impulso de um ser para outro ser, força gloriosa e triunfante do amor.
Alix André
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