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Monte Érebo, Antártida
O gelo azul revestia o continente de horizonte a horizonte, polido num brilho cru pelos ventos tempestuosos que arrastavam estilhaços pela paisagem gelada. Nada vivia na superfície, com exceção das áreas de tom ferruginoso onde cresciam líquenes amarelos, muito mais velhos do que qualquer um dos homens destacados na Base de McMurdo.
Três quilómetros abaixo do monte Érebo, sob o glaciar, o pergelissolo e o granito, o soldado Peter Wombley limpava o suor dos olhos. Sonhava com o frigorífico do seu quarto no bunker, onde o aguardava uma caixa de Coors.
— Este sítio é de loucos. Uma tempestade de neve dos diabos lá em cima e mais quente do que a rata de uma prostituta cá em baixo.
— Se parares de pensar nisso, não será tão mau — respondeu-lhe o tenente Brian Flattery. Libertou a lanterna da motorizada de transporte. — Vamos. Ainda precisamos de calibrar mais três retransmissores antes do final deste turno.
Peter agarrou na sua própria lanterna e acendeu-a, varando a caverna com um feixe de luz, e seguiu o tenente.
— Olha, cuidado ali — disse Brian, apontando a luz para uma fenda no chão da caverna.
Deslizando para lá da fenda negra, Peter olhou para ela, desconfiado. Desde que ali chegara, há três meses, desenvolvera um respeito saudável por aquelas grutas em forma de favos. Debruçou-se na beira e apontou a luz para a base da fenda. Parecia descer diretamente até ao fundo do mundo. Estremeceu, perguntando-se se o Inferno teria uma entrada.
— Espera!
— Vou seguir até ao retransmissor — disse Brian, colocando em posição um trenó de transporte, que aguardava na boca do túnel. — Podes fazer uma pausa de cinco minutos até eu regressar.
Peter suspirou secretamente de alívio. Odiava aqueles wormholes como todos chamavam às passagens lisas e sinuosas que ligavam cada caverna à seguinte, passagens de diâmetro tão pequeno, que um homem quase não conseguia rastejar ao longo delas. Apenas os trenós motorizados tornavam possível o transporte através dos wormholes.
Como um rapazinho num tobogã, Brian deitou-se sobre o trenó, a cabeça virada na direção da boca do túnel. Carregou no acelerador e o motor despertou com um ronco, fazendo eco nas paredes, que duplicavam e triplicavam o nível de decibéis. Erguendo o polegar num derradeiro sinal, Brian rodou o acelerador para a frente. O trenó lançou-se veloz pela passagem estreita.
Peter agachou-se vendo Brian partir. As luzes desapareceram quando o trenó, rugindo, contornou uma curva distante. Passados mais alguns instantes, o som do trenó enfraqueceu até desaparecer. Peter encontrava-se sozinho na caverna.
Usando a lanterna, verificou as horas. Brian devia regressar dentro de cinco minutos. Sorriu. Talvez vinte se precisasse de desmontar o retransmissor e substituir algumas partes. Isso dava-lhe tempo mais do que suficiente. Fez deslizar um charro do bolso do colete.
Peter pousou a lanterna e rodou-a para obter uma dispersão mais alargada do seu feixe e assim iluminar a área. Depois relaxou, encostando-se à parede da caverna, pescou um fósforo do bolso e acendeu-o. Inalou profundamente o charro fino, sentindo os lábios colar-se ao papel. Ah! Inclinando a cabeça para trás, saboreou o fumo que inalara profundamente.
De súbito, o som de algo a raspar na rocha ecoou pela caverna.
— Merda! — Peter engasgou-se com o fumo e agarrou na lanterna. Procurou pelo espaço aberto, movendo a lanterna de um lado para o outro. Ninguém. Nada mais do que uma caverna vazia. Ficou quieto, tenso, mas não ouviu mais nada. As sombras saltavam constantemente sob a luz da lanterna.
De repente, pareceu-lhe estar muito mais frio e muito mais escuro.
Olhou de relance para o relógio. Tinham passado quatro minutos. Brian devia estar de regresso. Apagou o charro. Ia ser uma longa espera.
Brian Flattery fechou o painel lateral da estação de comunicações. Estava tudo bem com a unidade. Já só faltava verificar outros dois retransmissores. A equipa de apoio podia levar a cabo os testes de rotina, mas aquele era o seu bebé. Aquelas falhas eram uma afronta pessoal à sua perícia. Bastaria uma pequena afinação e tudo ficaria perfeito.
Aproximou-se do trenó que o aguardava e fê-lo deslizar para a posição certa. Rodou o acelerador para arrancar e baixou um pouco a cabeça ao avançar pelo túnel. Era como ser engolido por uma serpente, pensou. As paredes lisas voaram para lá dele, o farol dianteiro guiava-o para a frente. Passado um minuto, o trenó deslizou do túnel para a caverna onde deixara Peter.
Brian desligou o motor. Olhou à sua volta. A caverna estava vazia, mas pairava no ar um cheiro familiar. Marijuana.
— Maldição! — Afastou-se do trenó e ergueu a voz: — Soldado Wombley! Volte aqui, imediatamente!
A sua voz ecoou nas paredes. Não obteve qualquer resposta de Peter. Vasculhando a câmara com a lanterna, Brian não conseguiu encontrar nada. As duas motorizadas que tinham usado para se deslocar até ali continuavam no mesmo lugar, do outro lado da gruta. Por onde andaria o desgraçado?
Avançou na direção das motorizadas. A bota esquerda escorregou numa área húmida; agitou os braços, tentando encontrar um ponto de apoio na parede — não conseguiu. Com um grito rouco, caiu com força sobre o rabo. A lanterna deslizou pelo chão, acabando por parar, com a luz a apontar na sua direção. Um líquido quente impregnava-lhe a parte de trás das calças de caqui. Rangeu os dentes com força e praguejou.
De novo em pé, Brian limpou os fundilhos das calças com uma careta. Havia um certo soldado prestes a descobrir um pé enfiado num certo sítio. Preparava-se para entalar a camisa quando se apercebeu de que tinha as mãos a pingar. Arquejou e saltou para trás, como se lhe fosse possível escapar às suas próprias mãos.
Sangue quente cobria as palmas das suas mãos.
Livro Um
Trabalho de Equipa
CAPÍTULO 1
Chaco Canyon, Novo México
Malditas cascavéis.
Ashley Carter sacudiu a terra das botas antes de subir para a carrinha enferrujada de caixa aberta Chevy. Atirou o chapéu de cowboy empoeirado para o banco ao seu lado e passou pela testa um lenço já coberto de sujidade. Inclinando-se sobre a caixa de velocidades, abriu o porta-luvas e retirou do interior o kit para mordidelas de cobra.
Com o nó de um dedo, bateu no rádio. O som da estática saiu, arranhado, do recetor manual. Cantarolando, ela abriu o invólucro da seringa e retirou do frasco a dose normal de soro antiofídico. Por aquela altura, já a conseguia calcular a olho nu. Abanou o frasco. Quase vazio. Estava na hora de ir a Albuquerque buscar mais.
Depois de limpar a pele com um algodão embebido em álcool, espetou a agulha no braço e estremeceu enquanto administrava o fluido cor de âmbar. Soltando ligeiramente o torniquete, limpou os dois pequenos furos no antebraço com tintura de iodo e aplicou um penso.
Apertando um pouco mais o torniquete, olhou de relance para o relógio no painel de instrumentos. Vejamos, dez minutos, e teria de soltar de novo o torniquete.
Pegou no microfone e carregou no botão de lado.
— Randy, por favor, atende. Escuto. — Estática ao soltar o botão.
— Randy, por favor, atende. Escuto. — O vizinho, Randy, continuava de baixa depois de ter sofrido uma lesão nas costas na mina. Durante as últimas dez semanas, ganhara alguns trocos extra, por baixo da mesa, fazendo as vezes de ama do filho de Ashley, Jason.
Ela ligou o motor e avançou para os sulcos paralelos que formavam a estrada. O rádio vomitou uma explosão confusa de ruído, depois ouviu-o.
— ... Ashley, que se passa? Estamos à tua espera há uma hora.
Ela ergueu o microfone.
— Desculpa, Randy. Encontrei um novo aposento na escavação de Anasazi. Escondido por um deslizamento de pedras. Tinha de o ver antes que a luz ficasse demasiado fraca. Mas uma cascavel-do-texas teve outras ideias. Por isso, tenho de passar primeiro pelo doutor Marshall. Volto dentro de uma hora. Podes meter a lasanha no forno? Escuto. — Voltou a pôr o microfone no suporte.
O som lamacento da estática.
— Uma mordidela! Outra vez! É a quarta vez desde o Natal. Estás a abusar da sorte, Ash. Estas tuas aventuras a solo ainda te vão matar um dia destes. Mas, ouve, depois de passares pelo doutor Marshall, apressa-te a regressar a casa. Estão aqui uns tipos da Marinha à tua espera.
Ela franziu o sobrolho. Que teria feito agora? Resmungou e voltou a pegar no microfone.
— Que se passa? Escuto.
— Não sei. Estão a fazer-se de parvos — disse, acrescentando em voz mais baixa —, e são muito bons a fazê-lo. Parecem verdadeiros G.I. Joes. Vais odiá-los.
— Era mesmo disso que eu precisava. Como está o Jason a lidar com isso? Escuto.
— Está ótimo. A adorar. A azucrinar o juízo a um cabo qualquer. Acho que já quase conseguiu convencer o tipo a dar-lhe a arma.
Ashley bateu no volante com a palma da mão.
— Como se atrevem esses sacanas a levar armas para minha casa? Raios, vou diretamente para aí. Aguenta firme! Terminado.
Nunca andava armada. Nem mesmo nas extensões desertas do Novo México. Maldita fosse se ia deixar que uns rapazes imaturos levassem armas para sua casa. Meteu a mudança na carrinha com os pneus a tentarem agarrar as pedras soltas.
Ashley saltou da carrinha com o braço ao peito numa ligadura azul e atravessou o jardim de catos, apressando-se na direção de um grupo de homens de uniforme amontoados debaixo do pequeno toldo verde por cima do alpendre, que oferecia a única sombra numa centena de metros.
Enquanto subia ruidosamente os degraus de madeira, os homens mais à frente recuaram. Com exceção de um, que exibia ramos de bronze em ambos os ombros e se manteve firme.
Avançou de imediato na sua direção.
— Quem diabo pensam que são para entrarem na minha casa com um arsenal suficiente para mandarem pelo ar uma pequena aldeia vietnamita? Tenho um rapazinho ali dentro.
A boca do oficial desenhou uma linha fina. Inclinou-se para trás para tirar os óculos, revelando um olhar azul gelado, desprovido de qualquer emoção.
— Major Michaelson, minha senhora. Fomos enviados para escoltar o doutor Blakely.
Ashley lançou-lhe um olhar fulminante.
— Não conheço nenhum doutor Blakely.
— Ele conhece-a, minha senhora. Diz que é uma das melhores paleoantropólogas do país. Ou pelo menos foi o que o ouvi dizer ao presidente.
— Ao presidente de quê?
Ele fitou-a, inexpressivo.
— Ao presidente dos Estados Unidos.
Uma força da natureza de cabelo cor de areia, abrindo caminho por entre os homens de uniforme, escondeu a sua surpresa.
— Mãe! Estás em casa! Tens de vir ver. — O filho fitou a ligadura do braço, depois agarrou a manga do outro braço. — Anda. — Embora ficasse pouco acima dos seus cintos, fazia afastar os militares.
Fitando-os furiosa, deixou-se arrastar. Quando a porta de tela se fechou atrás de si, avançou para a sala de estar e apercebeu-se da presença de uma pasta de cabedal pousada sobre a mesa. Não lhe pertencia.
O cheiro a alho da lasanha a cozinhar flutuou pelo ar na sua direção, vindo da cozinha. O estômago respondeu, roncando. Não comia desde o pequeno-almoço. Randy, armado com as luvas de forno manchadas, estava a tentar extrair a lasanha borbulhante sem a entornar. A imagem de um homem tão corpulento, de avental, a lutar com a forma da lasanha fez nascer um sorriso nos lábios dela. Ele revirou os olhos.
Enquanto abria a boca para o cumprimentar, sentiu um súbito puxão urgente no braço.
— Anda, mãe, vem ver o que o doutor Blakely tem. É uma cena marada.
— Cuidado com a língua, rapaz — avisou. — Sabes que não permito esse tipo de linguagem aqui. Agora mostra-me o que se passa. — Acenou a Randy, enquanto era arrastada para a sala de estar.
O filho apontou para a pasta e sussurrou:
— Está ali.
O som de água a correr, vindo da casa de banho do corredor, chamou-lhe a atenção. A porta abriu-se e um homem negro, alto, magro como um espeto e envergando um fato de três peças, saiu para o corredor. Era mais velho que ela, com cabelo curto ligeiramente grisalho. Empurrou os óculos de armação de arame fazendo-os subir um pouco mais na cana do nariz. Vendo Ashley, dirigiu-lhe um súbito sorriso de reconhecimento.
— Professora Ashley Carter. A fotografia da revista Archaeology do ano passado não lhe faz justiça.
Sabia reconhecer uma tentativa de dar graxa quando a ouvia. Coberta de pó, com o braço ao peito e as calças de ganga manchadas de lama, não era nenhuma rainha de beleza.
— Deixe-se de tretas, doutor. Que veio fazer aqui?
Ele baixou a mão. Os olhos abriram-se um pouco mais, durante um instante, e depois o sorriso cresceu ainda mais. O tipo tinha mais dentes do que um tubarão.
— Gosto da sua atitude pragmática — disse. — É refrescante. Tenho uma proposta para...
— Não estou interessada. — Ashley apontou para a porta. — O senhor e o seu grupinho podem fazer-se à estrada. Mas obrigada na mesma.
— Se ao menos ouv...
— Não me obrigue a correr consigo daqui. — Estendeu o braço na direção da porta de tela.
— São cem mil por dois meses de trabalho.
— Ponha-se a... — Baixou o braço ao lado do corpo. Pigarreando, olhou fixamente para o doutor Blakely. Depois ergueu uma sobrancelha. — Agora estou a ouvir.
Desde o divórcio que sentia dificuldades em pôr comida na mesa e manter um teto sobre as suas cabeças. O salário de uma professora assistente quase não cobria as suas despesas correntes, e muito menos os seus projetos de investigação.
— Espere — exclamou ela. — Espere um minuto. É legal? Não pode ser legal.
— Garanto-lhe, doutora Carter, a oferta é legítima. E isso é apenas o início — continuou o doutor Blakely. — Autoria exclusiva da investigação realizada. Lugar garantido nos quadros de uma universidade à sua escolha.
Tinha sonhos assim depois de comer demasiada piza de salsicha e alho.
— Como pode ser? Existem estatutos nas universidades... regras... antiguidade... como?
— Este projeto é defendido por pessoas nas posições mais elevadas. Deram-me carta-branca para contratar quem eu quisesse, pagando o salário que entendesse. — Sentou-se no sofá e cruzou as pernas, abrindo os braços ao longo das costas do sofá. — E quero-a a si.
— Porquê? — perguntou Ashley hesitantemente, ainda desconfiada.
Inclinando-se para a frente, ele ergueu uma mão, pedindo-lhe paciência. Agarrou na pasta e abriu-a com um clique. Usando as duas mãos, ergueu cuidadosamente uma estatueta de cristal do seu interior. Colocou-a na vertical, virada para Ashley.
Tratava-se de uma figura humana — tendo em conta os seios pendulares e o ventre grávido, uma figura feminina. A luz ténue era captada pela estrutura cristalina e refletia-se em lampejos radiantes.
O doutor Blakely fez-lhe sinal com a cabeça para que lhe pegasse.
— Que acha?
Ela hesitou, temendo tocar naquela beleza tão frágil.
— Sem dúvida primitiva... Parece ser um qualquer tipo de ícone de fertilidade.
O doutor Blakely acenou vigorosamente com a cabeça.
— Certo, certo... veja mais de perto. — Ergueu a estátua pesada com os braços a tremer do esforço. — Por favor, examine-a.
Ashley estendeu as mãos para pegar na estatueta.
— Foi esculpida num único diamante — disse ele. — Sem qualquer imperfeição.
Agora compreendia a escolta armada. Afastou as mãos de um objeto tão precioso, enquanto considerava as implicações.
— Marado — sussurrou.
Do outro lado da mesa da cozinha, Ashley Carter observava enquanto o doutor Blakely fechava o telemóvel e o recolocava no bolso do peito.
— Agora, professora Carter, onde é que nós íamos?
— Há algum problema? — perguntou Ashley, apanhando um pedaço de molho de tomate do prato com um bocado de tosta de alho. Os dois estavam sentados à grande mesa de cozinha de metal verde.
Blakely abanou a cabeça.
— De todo. Estou apenas a confirmar a aquisição de um dos seus potenciais companheiros de equipa. Um australiano especialista em espeleologia. — Sorriu, de forma reconfortante. — Agora, onde íamos?
Ela fitou-o, desconfiada.
— Quem mais se irá juntar à expedição?
— Temo que esses nomes sejam confidenciais. Mas posso dizer-lhe que estamos a falar com um biólogo de topo do Canadá e um geólogo do Egito. E mais... alguns.
Ashley apercebeu-se de que seria fútil prosseguir naquela linha de interrogatório.
— Muito bem. Regressemos à estátua de diamante. Não me chegou a dizer onde foi descoberto o artefacto.
Ele franziu os lábios.
— Essa informação também é confidencial. Reservada apenas aos que se envolverem neste trabalho. — Dobrou o guardanapo de guingão sobre o colo.
— Doutor, pensei que isto seria uma conversa. Tem-se mostrado bastante parco nas suas respostas.
— Talvez. Mas também ainda não me deu uma resposta concreta. Está disposta a juntar-se à minha equipa exploratória?
— Preciso de mais pormenores. E de mais tempo para reorganizar o meu horário de trabalho.
— Nós trataríamos dessas preocupações menores.
Pensou em Jason, que comia o jantar sobre um tabuleiro vacilante, em frente à televisão.
— Tenho o meu filho. Não posso só ir-me embora. E ele não é uma preocupação menor.
— Tem um ex-marido. Um Scott Vandercleve, creio eu.
— O Jason não vai ficar com ele. Esqueça.
Blakely suspirou alto.
— Nesse caso, temos de facto um problema.
Aquela questão iria revelar-se fundamental. Jason tinha tido dificuldades na escola e Ashley prometera passar tempo com ele no verão.
— Não está aberto a debate — disse, com tanta convicção quanto a que conseguiu reunir. — O Jason acompanha-me ou não terei outra escolha senão recusar.
Blakely estudou-a silenciosamente.
Ela prosseguiu.
— Já participou noutras escavações comigo. Sei que é capaz de lidar com isto.
— Não creio que isso fosse prudente. — Blakely sorriu, como um homem que tenta suprimir uma gargalhada, tenso.
— Já participou noutras escavações comigo. É um miúdo duro e cheio de recursos.
Blakely fez uma careta.
— Se eu concordar com isto, juntar-se-á à equipa? — Fez uma pausa, retirando os óculos e esfregando as marcas na cana do nariz. Parecia estar a pensar em voz alta. — Suponho que pudesse ficar na zona Alfa. É segura. — Recolocando os óculos, inclinou-se sobre a mesa e estendeu uma mão aberta. — Concordo.
Aliviada, soltou a respiração que estivera a suster e apertou-lhe a mão seca.
— Então, porquê tanto esforço para me integrar na sua equipa?
— A sua especialidade. A antropologia dos primitivos habitantes de penhascos. O seu trabalho sobre as habitações de Gila é brilhante.
— Ainda assim, porquê eu? Há outros paleoantropólogos.
— Várias razões. Uma — foi assinalando os argumentos com os dedos —, já demonstrou, noutras escavações, que é capaz de liderar equipas. Duas, tem um faro soberbo para o pormenor. Três, a sua perseverança na resolução de mistérios é francamente imbatível. Quatro, está em excelente forma física. Cinco, ganhou o meu respeito. Mais alguma pergunta?
Satisfeita, por ora, abanou a cabeça, ligeiramente envergonhada. Tentou não corar. Raramente se ouviam elogios como aqueles no seu campo. Desconfortável, desviou o rumo da conversa.
— Agora que somos parceiros, talvez me possa dizer onde descobriu este artefacto único. — Ashley levantou-se para tratar da louça. — Algures em África, suponho.
Blakely sorriu.
— Não, na realidade foi na Antártida.
Ashley olhou de relance por cima do ombro, tentando perceber se ele a estaria a pôr à prova.
— Não há culturas primitivas sobre esse continente. É um deserto gelado.
Blakely encolheu os ombros.
— Quem disse que tinha sido «sobre»?
Ela chocalhou um prato no lava-louça.
— Então onde? — Ashley virou-se para Blakely, apoiou-se no lava-louça e secou as mãos a um pano da louça húmido.
Ele limitou-se a apontar com um dedo para o chão.
Por baixo.
CAPÍTULO 2
Black Rock, Austrália
Benjamin Brust observou uma barata castanha que corria apressada sobre a bacia branca do lavatório. Aproximou-se das grades, deslizando a mão pela barba rala que lhe cobria o rosto desde que fora encarcerado. O fedor a urina velha na cela era menos intenso junto à porta. O guarda de uniforme cor de caqui ergueu os olhos de relance, afastando-os da revista GQ pousada no colo. Ben acenou ao guarda que, sem responder ao cumprimento, regressou à leitura.
Pelo menos o cliente de Ben, Hans Biederman, estava a recuperar bem. Graças a Deus por isso. Era certo e sabido que não precisava de uma acusação de homicídio negligente, para além de tudo o resto. O senhor Biederman devia voar de regresso à Alemanha naquele dia, não tendo o cliente recebido mais do que uma repreensão pela pequena escapadela. Ao passo que Ben, enquanto organizador da expedição, tinha pela frente uma longa estadia numa prisão militar.
Durante os últimos cinco anos, Ben tinha-se especializado no acompanhamento de indivíduos com o dinheiro certo para poderem visitar locais exóticos e contemplarem paisagens raras. Viagens que exigiam contornar, por vezes até violar, algumas regras. Especializara-se em aventuras subterrâneas: minas de diamantes abandonadas na África do Sul, ruínas monásticas soterradas sob os Himalaias, túneis subaquáticos junto à costa das Caraíbas — e agora, ali na Austrália, um conjunto de grutas espantosas que os militares mantinham escondidas de olhares humanos.
As grutas estavam situadas numa secção remota das instalações militares de Black Rock. Estas cavernas encantadoras tinham sido descobertas e mapeadas pelo próprio Ben, quatro anos antes, quando ali estivera destacado.
Tudo estava a correr na perfeição até Herr Biederman, o seu cliente alemão de rosto redondo, ter escorregado e partido a perna. Ben devia tê-lo abandonado à sua sorte por ter ignorado os avisos, mas, em vez disso, tentou carregar o sacana até ao exterior das grutas. Os uivos de dor de Herr Biederman atraíram a polícia militar, e Ben fora apanhado devido aos seus esforços.
Afastou-se das grades e deixou-se cair na enxerga comida pelas traças, depois recostou-se, estudando as manchas no teto. Ouviu o som forte de botas militares a percorrerem o corredor e de algo a ser balbuciado ao guarda.
A pesada revista caiu no chão.
— Ali, senhor. O quarto a contar da ponta. — Ben ouviu medo na resposta do guarda.
O som dos tacões aproximou-se, depois parou. Ergueu-se sobre os cotovelos para ver quem estava à frente da cela. Reconheceu o rosto do seu antigo comandante. Cabeça careca, nariz adunco, olhos cinzentos que perfuravam.
— Coronel Matson?
— De alguma forma, já desconfiava que acabasses aqui. Foste sempre um desordeiro. — Mas o sorriso que brincava nos cantos dos seus lábios suavizava a brusquidão. — Como te têm tratado?
— Como se estivesse no Hilton, senhor. Mas o serviço de quartos é um bocadinho lento.
— É sempre. — O coronel fez sinal ao guarda para que abrisse a cela. — Segue-me, sargento Brust.
— Agora sou senhor Brust, senhor.
— Como queiras — disse com um franzir de sobrolho, virando-lhe as costas. — Temos de falar.
O guarda interrompeu-o.
— Devo algemá-lo, senhor?
Ben dirigiu ao coronel Matson o seu olhar mais inocente.
— Sim — disse Matson. — É melhor. Não podemos confiar em civis.
— Está bem — disse Ben, pondo-se em sentido com uma expressão trocista. — Ganhou. Sargento Brust, a apresentar-se ao serviço.
Assentindo, o coronel Matson acenou ao guarda para que se afastasse.
— Então venha, sargento. Vamos ao meu gabinete.
Ben seguiu-o para o exterior da prisão e, depois de um breve percurso de carro, chegaram ao edifício da administração. O gabinete do coronel não tinha mudado. A mesma secretária de nogueira com manchas circulares deixadas pelas canecas de café; paredes com estandartes da Velha Guarda; troféus alinhados na parede lateral. Durante o percurso até ali, Ben percebeu, pela hesitação num homem normalmente exuberante, que este lhe estava a esconder algo de importante.
O coronel Matson fez sinal a Ben para que se sentasse, depois apoiou-se na beira da secretária e estudou Ben. O rosto do coronel parecia feito de pedra. Ben tentou não estremecer sob o seu olhar. Por fim, o seu velho comandante falou, a voz cansada com um toque de ansiedade:
— Que raio te aconteceu? O melhor dos melhores, e simplesmente desapareces?
— Tive uma oferta melhor.
— Qual? Guiar yuppies na crise de meia-idade em excursõezinhas emocionantes?
— Prefiro chamar-lhes «Férias de Aventura». Além disso, ganho o suficiente para manter a criação de ovelhas do meu pai à tona.
— E alcançaste uma merecida reputação. Um verdadeiro entusiasta das cavernas. Li sobre aquele salvamento nas grutas dos Estados Unidos. O grande herói, hã?
Ben encolheu os ombros.
— Mas não foi por isso que partiste, pois não? Foi o Jack, não foi?
O rosto de Ben ficou gelado ao ouvir a referência ao nome do amigo.
— Eu acreditava na Guarda. E na honra. Acreditava em si.
O coronel Matson fez uma careta.
— Por vezes a pressão política leva a contornar as regras. Distorce a honra.
— Tretas! — Ben abanou a cabeça. — O filho do primeiro-ministro mereceu cada golpe que recebeu do Jack depois da merda que tentou fazer com a miúda dele.
— Um primeiro-ministro tem amigos poderosos. Não podia passar em branco.
— Que diabo! — Ben bateu com o punho cerrado no braço da cadeira. — Eu teria feito o mesmo. O julgamento dele em tribunal marcial foi uma palhaçada. — Ben parou, engoliu em seco, depois prosseguiu em voz mais baixa. — O Jack foi privado de tudo o que fazia dele um homem. E ainda se pergunta por que razão me fui embora?
Matson suspirou, aparentemente satisfeito.
— Agora, os pratos da balança do destino deslocaram-se a teu favor. Agora está a ser exercida pressão política para te ajudar.
Ben franziu o sobrolho.
— Como assim?
— Devia fingir que nunca recebi esta carta. Causaste tanta confusão que merecias, sem dúvida, uns aninhos atrás das grades.
— Que carta?
— Uma ordem da Segurança Interna. Vais ser libertado.
Que piada era aquela? Iam deixá-lo sair? Ben apercebeu-se da expressão preocupada estampada no rosto de Matson.
— Que se passa, coronel?
— Há um senão.
Claro, pensou Ben. Havia sempre.
— Tens de te juntar a uma expedição internacional. Um professor, algures nas Américas, solicitou os teus conhecimentos na exploração de grutas. Uma operação qualquer secreta. Sem outros pormenores. As acusações serão arquivadas e os teus serviços serão remunerados. — Deslizou uma folha de papel na direção de Ben. — Vê.
Ben leu rapidamente a carta, e os seus olhos fixaram-se no valor no fundo da página. Ficou a olhar para todos aqueles zeros, desafiando-os a mudar. Aquilo não podia estar certo. Depois daquela missão poderia comprar a sua própria exploração de ovelhas. Acabar-se-iam as viagens a destinos duvidosos.
— Quase demasiado bom para ser verdade? — Matson inclinou-se para a frente, as mãos pousadas nos ombros de Ben. — Mas impossível de ignorar.
Ele acenou com a cabeça, espantado.
— Algo me diz que é melhor teres cuidado, Ben. — Matson avançou a passo largo para a cadeira atrás da secretária e sentou-se. — Os grandes homens estão a brincar contigo e têm tendência para passar por cima da arraia-miúda. Lembra-te do teu amigo Jack.
Ben fitou o número no fundo da página, inspirando fundo. Bom demais para ser verdade.
De volta à sua cela, com um braço a cobrir-lhe os olhos, Ben deslizou para um leve dormitar. Teve um pesadelo que não tinha desde a infância. Viu-se de novo criança a penetrar numa caverna enorme. Colunas de pedra húmida, com um metro de diâmetro, pareciam suster o teto. Conhecia aquela caverna. O avô levara-o lá, certa vez, para lhe mostrar os petróglifos aborígenes.
Era a mesma caverna, mas ali, das colunas de rocha projetavam-se ramos carregados de frutos. Curioso, tentou apanhar um dos frutos vermelhos e carnudos com a forma de abóbora, mas não o conseguiu alcançar. Ao afastar o braço, sentiu olhos fixos na parte de trás do seu pescoço. Virou-se repentinamente mas não estava lá ninguém. No entanto, sentia aqueles olhos a toda a volta. Quase fora do seu campo de visão, viu um movimento atrás de um enorme cilindro de pedra.
— Quem está aí? — chamou, correndo a espreitar para trás da coluna. Nada mais além de espaço vazio. — Que queres?
A palavra «fantasmas» invadiu-lhe a mente sem ser convidada.
Começou a correr...
Sentiu que algo o seguia, o chamava. Ignorou a voz e correu em busca de uma saída. Os pilares fecharam-se à sua volta. O seu progresso abrandou. Sentiu que os seus perseguidores se aproximavam. Depois, o toque suave na parte de trás do pescoço e palavras truncadas sussurradas ao ouvido, como uma estação de rádio mal sintonizada.
— És um de nós.
Ele gritou, fugindo do sonho.
Acordou na sua enxerga, o coração ainda a bater veloz, e esfregou as fontes. Que diabo. Que teria trazido de volta aquele velho pesadelo? Fechou os olhos, recordando a altura em que os pesadelos tinham começado. Fora depois de uma discussão com o avô.
«Não, não é verdade», gritara, com as lágrimas a acumularem-se perante a revelação.
«Sim, é, meu jovem. E não gosto que me chamem mentiroso.» O rosto enrugado e seco do avô fitara-o, de sobrolho franzido. «Este foi outrora o lar ancestral da minha avó», repetiu, depois espetou-lhe o dedo no peito. «Uma parente tua.»
A ideia de que pudesse ter sangue aborígene a correr-lhe nas veias horrorizara-o. Ele e os amigos sempre tinham troçado dos miúdos aborígenes, de pele escura, da sua escola. E agora, num abrir e fechar de olhos, tinha sido atirado para o meio deles. Abanou a cabeça. «Eu não sou um maldito escurinho!»
O ardor de uma bofetada no rosto. «Respeita os mais velhos.»
Mesmo agora, estremecia perante a recordação. Quando era mais novo, a sua herança envergonhara-o. Os aborígenes, na altura, eram considerados cidadãos de segunda, pouco mais do que animais. Felizmente, diluída por gerações de sangue europeu, a sua herança perniciosa era um segredo fácil de manter. Exceto de si mesmo. Foi então que os pesadelos começaram.
Durante inúmeras noites, acordara com os lençóis colados ao corpo suado, as lágrimas a correrem-lhe pelo rosto. Agarrando o lençol com as duas mãos, rezava para que ninguém descobrisse o seu segredo.
Mas com o passar do tempo tornara-se mais maduro, chegando até a respeitar e valorizar a sua herança única, e os sonhos tinham acabado por desaparecer, como velhos brinquedos colocados em caixas de cartão. Esquecidos e não mais necessários.
Abanou a cabeça. Então porquê agora? Por que razão teria ele desencantado aquele velho terror de infância?
Devia ser aquela cela maldita, concluiu, e enfiou-se ainda mais por baixo do cobertor velho. Bem, graças àquela carta oportuna, em breve se veria livre daquele lugar maldito.
Trinta dias depois, o seu benfeitor misterioso enviou um telegrama para Black Rock e, passadas vinte horas, Ben viu-se transferido de uma cela apertada na Austrália para uma suíte no Sheraton Buenos Aires, na Argentina.
Ben experimentou a água do banho com o pé. Encolheu-se com o calor, depois sorriu. Ah, perfeito. Depois de um mês na prisão de Black Rock, um mês de duches tépidos que mal tocavam na camada de sujidade que lhe cobria os poros, um banho bem quente talvez fosse, inclusive, orgástico. Entrou na banheira e instalou-se na água fumegante. Tocou no botão para ligar os jatos. Borrifos leves massajaram-no de todos os lados, criando um ligeiro redemoinho. Orgástico, sem dúvida.
Suspirou, recostando-se na banheira e permitindo que o seu corpo relaxasse e flutuasse sob os jatos de água.
Bateram à porta.
Ignorando o som, Ben deslizou ainda mais por entre os jatos.
Voltaram a bater. De forma mais persistente.
Usando os cotovelos, ergueu-se na banheira.
— Quem é?
Uma voz abafada:
— Desculpe, senhor. Mas o doutor Blakely solicita a sua presença na sala Pampas, no rés do chão. Os outros hóspedes também estão a chegar.
Ben esfregou os olhos vermelhos.
— Dê-me cinco minutos. — Levantou-se da banheira, o ar frio arrepiou-lhe as pernas nuas. Depois de ter vestido o velho fato de tweed castanho, Ben dirigiu-se à sala de conferências.
Para seu alívio, na antecâmara para o auditório fora colocado um bar móvel. Um barman a impingir bebidas alcoólicas andava de um lado para o outro atrás de uma prateleira de garrafas. Um bom número de homens e mulheres dividia-se já em pequenos grupos.
Olhou de relance à sua volta. Ninguém olhava na sua direção. Podia esquecer a receção calorosa. Depois de analisar a sala mais uma vez, conclui que um whisky o ajudaria a encarar melhor aquela «festa». Aproximou-se do bar, onde um barman ruivo o abordou de imediato.
— Que vai ser?
— Um whisky e uma cerveja para empurrar. — Apoiou o cotovelo no almofadado forrado a couro artificial que protegia a aresta do bar e observou a sala. Aquele grupo não fazia o seu género. Sem gargalhadas, sem bebidas derramadas, sem bêbedos furiosos. Entediante. Depois de ter despejado o whisky diretamente para o estômago, pousou ruidosamente o copo de shot, apertando-o enquanto sentia o ardor, depois instalou-se com a cerveja. Era uma daquelas malditas importações alemãs... mas a cavalo dado... Levou a garrafa aos lábios.
Atrás de si, ouviu uma voz de mulher junto ao bar.
— Whisky. Puro, por favor.
Virou-se para ver quem teria um gosto semelhante no que dizia respeito a bebidas. Mulheres que bebam whisky eram tão raras como galinhas com dentes. Não ficou desapontado.
Ela deslizou o dedo pela bebida, dedos compridos, unhas curtas. Sem anéis. Sem aliança — boa. Erguia-se tão alta quanto ele, algo surpreendente para uma mulher. Tinha a pele bronzeada, e não era com aquela tonalidade doentia, amarelo-acastanhada, de um salão de beleza caro, mas um tom rico e acobreado que traía dias a trabalhar debaixo de sol. Mas o que o deixou sem fôlego foi o cabelo preto, que caía em caracóis até à cintura.
Ele contraiu os músculos abdominais, para manter a barriga sob controlo, e voltou a abotoar o casaco.
— Posso pagar-te outra? — perguntou, realçando o seu sotaque australiano. Este atraía sempre a atenção de uma senhora.
Ela ergueu uma sobrancelha.
— São à borla — disse. — É um bar aberto.
O sorriso atrevido dele cresceu ainda mais.
— Nesse caso, que tal duas?
Ela limitou-se a fitá-lo com uns olhos verdes.
Ele estendeu a mão.
— Ben Brust. De Sydney.
— Podia tê-lo adivinhado devido à pronúncia — disse ela com o fantasma de um sorriso. — Mas o arrastar parece-me mais da Austrália Ocidental do que do território da Nova Gales do Sul.
— Bem — disse ele, baixando o braço e procurando proteção —, na verdade fui educado na produção de ovelhas do meu pai às portas de Perth. Austrália Ocidental. Mas a maioria das pessoas é incapaz de distinguir Sidney de...
— Bem me parecia. — Agarrando no copo, ela começou a afastar-se. — A reunião deve estar quase a começar.
Antes que ela se afastasse, ele suplicou pelo menos por uma aberta.
— E tu és?
— Ashley Carter. — Deslizou, passando por ele. — Mas para ti sou a professora Carter.
Ben observou-a a afastar-se. Nenhuma professora andava assim. Engoliu os restos da cerveja, enquanto contemplava a saída dela. Se ao menos tivesse tido professoras assim na escola...
CAPÍTULO 3
Buenos Aires, Argentina
Ashley odiava saltos altos. Cravavam-se-lhe no tendão de Aquiles como um pitbull teimoso e andar com eles era como tentar equilibrar-se na corda bamba. Ansiava pelas botas gastas que deixara no quarto de hotel.
Avançou para o jovem hispânico, que verificou a sua identificação. Com um aceno de cabeça, abriu-lhe a porta. A sala tinha cerca de cinquenta lugares, dos quais apenas um quarto estava ocupado. Um arrumador conduziu-a ao lugar que lhe estava reservado, na fila da frente, depois desapareceu. Ashley estremeceu no fato saia-casaco leve que envergara, apertando a mala sobre o colo. Desejou que aumentassem a temperatura.
Agora que estava sentada, a sua mente começou a percorrer os eventos das últimas semanas; as suas velhas ansiedades arrastaram-se até à superfície. Uma em especial.
Jason.
Odiara ter de deixar o filho sozinho no quarto de hotel. Parecera tão calado naquela tarde, longe da sua natural personalidade exuberante. Os seus dedos apertaram a mala com mais força.
E aquela missão. Recebera pelo correio uma carta com bilhetes de avião e as instruções a seguir. «Tudo o resto foi tratado», afirmava a carta. Sem quaisquer outros pormenores.
Um homem sentou-se no lugar ao seu lado.
— Bem, olá.
Ashley olhou de relance. Era outra vez o australiano. Maldição. Será que não conseguia ter um momento de paz? As ravinas desertas da sua terra natal, no Novo México, nunca lhe tinham parecido tão apelativas.
— Deixa-me tentar outra vez... — Ele estendeu-lhe a mão. — Benjamin Brust.
Não o querendo insultar, apertou-lhe a mão. Agora vai-te embora, pensou.
Ele sorriu-lhe, dentes brancos contra um pano de fundo corado, as maçãs do rosto duras, rugas do sol a marcar os cantos dos olhos. Lábios cheios.
— Então, o que pensas de tudo isto? — perguntou.
Ashley encolheu os ombros, tentando desencorajar a conversa, e virou a cara. Depois do ex-marido, o seu coração vira-se rodeado por uma certa desconfiança em relação às atenções dos homens.
— Tantos segredos — balbuciou Ben.
Ela acenou com a cabeça.
— Talvez em breve tenhamos algumas respostas.
Ben permaneceu em silêncio. No entanto, Ashley continuava a sentir a presença dele junto ao seu ombro. A água-de-colónia almiscarada e forte. A respiração profunda e constante. O restolhar do casaco de tweed quando ele se moveu na cadeira.
Ashley mudou de posição. O auditório estava quase cheio. Agora estava a ficar calor. Desejou que eles arranjassem o termóstato.
— Confias nele? — perguntou Ben num sussurro.
— Não — respondeu ela, os olhos fixos em frente. Sabia de quem ele estava a falar. — Absolutamente nada.
Da porta, Blakely observava o auditório que se enchia. A sua equipa ocupara já os lugares das cinco primeiras filas. Fez sinal ao seu assistente, Roland, do outro lado da sala.
Roland acenou e ergueu o microfone até aos lábios.
— Senhoras e senhores, por favor ocupem os vossos lugares. Estamos prontos para começar.
Depois de mais alguns instantes de agitação e de chegadas de última hora, as portas do auditório fecharam-se e as luzes desceram ligeiramente. Blakely avançou da porta para subir para o palco e ficou de pé atrás do pódio iluminado. Limpou a testa com um lenço. Conhecia de cor o discurso, as palavras cuidadosamente escolhidas.
Blakely tocou no microfone para o testar. O toque serviu igualmente de sinal à multidão que murmurava para que ficasse em silêncio.
— Em primeiro lugar, obrigado a todos por se juntarem a nós. — Fez uma pausa. — Sei que foi difícil deixarem as vossas vidas para trás de forma tão abrupta. Mas dentro de momentos estou certo de que ficarão convencidos de que a perturbação sentida valeu bem a pena.
Pegou no controlo remoto do projetor de slides e carregou num botão. A imagem de uma montanha, de cujo cume coberto de neve se erguia um fiapo de fumo escuro, surgiu no ecrã.
— Monte Érebo na ilha de Ross, junto à costa da Antártida. Um dos três cones vulcânicos deste continente. Na base deste vulcão está a estação de investigação dos EUA, McMurdo. A minha casa durante os últimos cinco anos.
Clicou no botão para centrar a imagem num grupo de edifícios de metal baixos que se agarravam à superfície de um glaciar cinzento. Um conjunto de antenas de satélite projetava-se dos telhados como uma bizarra teia de aranha.
— Durante os últimos dez anos, tenho realizado estudos geotérmicos em alguns dos riftes quentes ainda ativos nas profundezas do cone e debaixo do vizinho mar de Ross. A NASA tem ajudado neste estudo. O seu terceiro shuttle, há seis anos, realizou alguns scans rádio da crosta terrestre, em busca de campos de petróleo e outras bolsas semelhantes. Pedi um scan do monte Érebo e descobri algumas coisas espantosas.
Premindo o botão, fez surgir no ecrã um diagrama transversal da crosta por baixo do cone vulcânico. Um murmúrio ergueu-se da multidão.
— Como podem ver, foi descoberto um intrincado sistema de grutas por baixo do Érebo, um sistema complexo que se estende por centenas de quilómetros.
Clicou para avançar para o slide seguinte.
— Leituras mais próximas obtidas por sondas sónicas revelaram uma caverna enorme separada do rifte mais fundo por uns meros seiscentos metros de pedra. — Utilizou um ponteiro para indicar a rede de riftes que conduzia à bolsa gigantesca. — Chamámos a esta gruta Caverna Alfa. Com quase oito quilómetros de diâmetro, calculou-se, de acordo com as sondas, que o piso da caverna estivesse situado três quilómetros abaixo da superfície do continente. Quase três vezes mais fundo do que algum homem pisou.
A imagem seguinte apresentava um grupo de homens sorridentes, de rostos cobertos de terra e pó, a posar em frente de um grande buraco de bordos irregulares.
— Após três anos de trabalho, conseguimos abrir caminho com explosivos e brocas até esta câmara. Foi necessário mais um ano para levar os cabos e montar um acampamento no piso da câmara. — Um grupo de tendas e barracões Quonset, iluminados por um holofote, surgiu em seguida no ecrã. No centro erguia-se um edifício de madeira de três pisos. Um segundo edifício, um mero esqueleto composto por uma armação de madeira e pelos andaimes, estava em construção. — A Base Alfa — comentou. — Trabalhámos em segredo. Acesso restrito apenas aos que têm a autorização adequada.
O slide seguinte deixou o seu público de boca aberta. Blakely sorriu ligeiramente.
— Minhas senhoras e meus senhores, apresento-vos um mistério.
Ashley, que tinha estado a esfregar os olhos e a bocejar, perguntando-se que teria aquela conversa de atividade vulcânica e escavação a ver com ela, saltou do lugar. Blakely olhou de relance para ela. Tinha de ser um embuste. O que estava a ver ali abriria um buraco gigantesco na teoria antropológica convencional.
A fotografia projetada no ecrã revelava uma secção da parede da caverna iluminada pelos holofotes. Escavada na parede estava uma rede de habitações, que se erguiam várias centenas de metros pela parede acima. Ao contrário das organizadas habitações dos Anasazi que estudara no Novo México, habitações com terraços definidos e conformações geométricas, as habitações que via na cavidade eram mais rudimentares, toscas, uma série aleatória de cavernas irregulares.
Blakely prosseguiu, quando a reação do público esmoreceu até um murmúrio baixo.
— Infelizmente, não estava ninguém em casa. — Um riso nervoso percorreu a sala. — Mas encontrámos muitos artefactos. — Avançou pela série de slides seguintes. Um deles apresentava a figura da fertilidade de diamante.
Ashley sentia-se atordoada quando se voltou a recostar no seu lugar. Ergueu a mão.
— Desculpe, doutor Blakely.
Ele fez-lhe sinal com um aceno, depois parou para beber água.
— O local já foi datado? — perguntou ela.
Ele engoliu, ao mesmo tempo que acenava com a cabeça.
— Fizemos uma datação por carbono inicial. Tanto quanto pudemos avaliar, cerca de 5,2 milhões de anos.
— O quê? — Ashley saltou do lugar pela segunda vez. — Isso é impossível.
— Foi repetida por vários laboratórios — respondeu ele com um sorriso condescendente.
Todos os olhos no auditório estavam agora fixos nela. Um técnico de luz até a destacou com um pequeno holofote. Ela protegeu os olhos com a mão.
— Mas os primeiros hominídeos, os mais antigos antepassados do homem moderno, só surgiram no planeta há quatro milhões de anos. E esses primeiros hominídeos não tinham nem as ferramentas, nem a estrutura social para construir algo assim.
Blakely encolheu os ombros.
— É por isso que aqui estamos. — Clicou para o slide seguinte. Uma fotografia de um túnel na base da parede, como um olho negro aberto de surpresa. — Estas galerias partem desta câmara colossal em muitas direções diferentes, ligando outras cavernas e túneis. Acreditamos que numa destas passagens estão as respostas às perguntas feitas pela professora Carter. Quem construiu as habitações? Quem fez as esculturas? Onde estão agora?
O público permanecia atónito, silencioso. Ashley voltou a sentar-se, ainda em choque.
— Reuni uma pequena equipa para iniciar a exploração. O grupo será liderado pela professora Ashley Carter, especialista em antropologia e arqueologia. Os restantes membros da equipa destacam-se nos respetivos campos.
Blakely apontou para uma mulher loura, sentada a várias cadeiras de distância de Ashley.
— A acompanhar a equipa estará a professora Linda Furstenburg, professora de biologia da Universidade de Vancouver, para estudar a biosfera única que descobrimos ali em baixo. Um geólogo, Khalid Najmon — disse, com um aceno de cabeça na direção de um árabe, sentado de pernas cruzadas do lado esquerdo de Linda. — Ele, como muitos sabem, irá ajudar-nos a mapear as riquezas por baixo do gelo antártico. As suas descobertas poderão mudar a maneira como olhamos para este continente.
Blakely terminou destacando outros dois homens sentados na primeira fila.
— Da longínqua Austrália, Benjamin Brust, o famoso espeleólogo irá mapear os pormenores intrincados deste sistema de grutas único. E o cavalheiro bem vestido de uniforme é o major Michaelson dos Marines dos EUA que, com outros dois militares bem treinados, irá acompanhar a equipa para os ajudar com a logística e fornecer proteção.
Acenou com um braço de modo a abarcar o grupo à sua frente.
— Senhoras e senhores, eis a vossa equipa. — Um murmúrio de aprovação crepitou entre a multidão.
Ashley tentou afundar-se ainda mais no seu lugar.
Depois de terem sido explicados mais alguns pormenores e respondida uma mão-cheia de perguntas, a reunião terminou. Satisfeito, Blakely desceu do palco.
Na sala adjacente, suspirou e desapertou a gravata. A primeira parte chegara ao fim. Roland, que já era seu assistente há quinze anos, entrou na sala com a caixa dos slides. Blakely acenou-lhe com a cabeça.
— Correu muito bem — disse Roland, ao mesmo tempo que colocava os slides nas caixas. — Os representantes do governo e os restantes investidores financeiros pareceram muito satisfeitos.
— Sim — disse Blakely com um sorriso cansado. — Também me pareceu. — Tirou o casaco e deixou-o cair numa cadeira próxima. Sentou-se noutra.
Roland pousou a caixa dos slides noutra caixa de cartão.
— Ninguém desconfiou sequer que já houve outra equipa exploradora.
Blakely encolheu os ombros.
— Não precisam dessa informação para já.
— Mas e se...
— Desta vez estamos muito mais bem preparados. Não te preocupes. Não vamos perder esta equipa.
CAPÍTULO 4
Pela segunda vez noutros tantos meses, Ashley colocou-se à frente do major Michaelson. Mesmo agora, envergando o uniforme azul, reconheceu o mesmo soldado de plástico, de olhos azuis, que tinha acompanhado o doutor Blakely a sua casa dois meses antes.
— Não me importo que o senhor e os seus dois capangas se juntem à minha equipa — disse ela, apanhando-o à saída do auditório. — Quero deixar perfeitamente claro desde já. Esta equipa é minha.
Ele endireitou-se, sem se afastar um centímetro que fosse.
— Minha senhora, cumpro ordens.
Ashley odiava aquele tipo de surpresas. Blakely devia tê-la avisado de que a sua equipa seria acompanhada por homens armados.
— Trata-se de uma missão científica. Não militar.
— Como o doutor Blakely explicou, iremos acompanhá-los apenas por motivos defensivos. Por segurança.
— Está bem — disse ela, fitando-o olhos nos olhos. — Mas lembre-se, embora vocês tenham as armas, sou eu quem dá as ordens. Percebido?
O major Michaelson não pestanejou, dirigiu-lhe apenas um ligeiro aceno.
— Cumpro ordens, minha senhora.
Ela cerrou os dentes, refreando uma explosão mais rude. Que poderia ela fazer? Recuou.
— Desde que estejamos entendidos.
— Há algum problema, meninas? — Ben surgiu ao lado dela. Sorriu, mas havia alguma tensão nos seus lábios quando olhou para o major.
Ashley sentiu o desconforto de Ben, nada que se assemelhasse à sua anterior atitude despreocupada. Provavelmente também não lhe agradava muito a ideia de estarem rodeados de armas.
— Não — disse ela. — Estávamos apenas a esclarecer algumas questões.
— Ótimo. Vamos passar o verão juntos enterrados num buraco a três quilómetros de profundidade. Comecemos todos amigos. — Ben estendeu a mão na direção do oficial.
O major Michaelson ignorou a mão de Ben.
— Façam o vosso trabalho, e eu farei o meu. — Com um aceno na direção de Ashley, o major deu meia-volta e afastou-se.
— Um tipo porreiro — disse Ben. — Muito amigável. — Era difícil deixar de notar o sarcasmo na sua voz.
— Eu não precisava de ser salva.
— Desculpa?
— Conseguia lidar com o major Michaelson sem a tua intervenção.
— Eu percebi isso. — Ben pareceu magoado. Sinceramente magoado. — Mas não foi por isso que me aproximei. Estive a falar com a professora Furstenburg e o senhor Najmon. Vamos até ao bar do hotel. Só te queria convidar.
Ashley baixou os olhos, envergonhada pelo seu comentário rude. Não era Ben o alvo da sua raiva. Estava apenas a precisar de alguém sobre quem descarregar as suas frustrações e, infelizmente, ele estava por perto.
— Ouve, desculpa. Eu não queria...
— Não penses mais nisso. — O sorriso regressou aos lábios dele. — Os australianos têm o couro resistente. Então e quanto a vires connosco?
— Tenho de voltar para o meu quarto. O meu filho. Está lá em cima.
Ben ergueu as sobrancelhas.
— Trouxeste o teu filho? Que idade tem?
— Onze — disse ela, em tom defensivo. — Já me acompanhou noutras escavações.
— Fixe. Não há nada como deixar que os filhos se envolvam no trabalho dos pais. — Apontou para um telefone branco na parede. — Porque não ligas para saber como está? Se estiver bem, junta-te a nós.
Estando à espera de uma crítica feroz por ter arrastado o filho para meio mundo de distância, a resposta dele acalmou um pouco a tensão que sentia. Talvez tivesse feito bem em levar Jason consigo naquela aventura única.
— Tens razão. Vou ligar-lhe.
Uma rápida chamada pelo telefone do lobby permitiu-lhe saber que Jason continuava agarrado ao gameboy da Nintendo como um viciado. Conseguia ouvir os bipes do videojogo portátil em pano de fundo.
— Não posso falar, mãe. Estou quase a chegar ao nível vinte e três. Nunca cheguei tão longe. E ainda tenho três vidas.
— Parece-me excelente, querido. Olha, subo daqui a uma hora. Pode ser?
— Claro, claro. Quando quiseres. Tenho de ir.
— Então diverte-te. — A chamada foi desligada. Ashley suspirou e dirigiu-se ao bar.
Afinal de contas, Ben tinha razão; era uma boa ideia conhecer melhor os colegas de equipa antes da viagem do dia seguinte.
Maxi’s, o bar do hotel, era o ponto de encontro de eleição. O bar seguia a temática parisiense, com pequenas mesas de café e alguns reservados mais íntimos. Por cima do bar estava pendurada uma bandeira francesa. As mesas estavam ocupadas pela multidão saída dos teatros. Expressos, lattes e bebidas exóticas enchiam-nas. Contrastando com os aparatos europeus, a música latina era ruidosa, com um ritmo pulsante.
Um dos reservados, num canto distante, tinha sido já tomado pela sua equipa. Viu Ben a transportar as bebidas vindo do bar. Equilibrando uma cerveja e três cocktails nas duas mãos, ia avançando entre o labirinto de cotovelos e pés, conseguindo chegar com a maior parte das bebidas ainda nos respetivos copos. Ashley deslizou para o reservado imediatamente antes dele.
Sentando-se ao seu lado, Ben passou-lhe um copo.
— Se bem me lembro, a senhora gosta de whisky.
Ela sorriu.
— Obrigada.
— Parece que vocês os dois já se conhecem — disse o geólogo egípcio, Khalid Najmon. A pronúncia aflorava-lhe as palavras, mas só ao de leve. Estava sentado do outro lado do reservado, ao lado de Linda Furstenburg. O seu sorriso brilhava contra o bronzeado do deserto, elegante de um modo sombrio. Deu um gole no seu vinho. — Já se conhecem há muito?
— Não. Ficámos um ao lado do outro na reunião — explicou Ashley. — De resto, somos completos desconhecidos.
Ben fingiu ficar magoado.
— Desconhecidos é uma palavra tão obscena.
— Bem — disse Khalid —, enquanto o senhor Brust foi buscar as bebidas, eu tenho estado a conhecer melhor a professora Furstenburg.
— Por favor, chamem-me Linda. — Ela corou um pouco e tentou, repetidamente, prender uma madeira de cabelo louro atrás de uma orelha. Os seus gestos pareciam relaxados, mas os seus olhos gelados não paravam de percorrer a sala.
Khalid acenou com a cabeça.
— A Linda acaba de me falar da sua investigação de doutoramento. Biologia evolutiva. Tem estado a estudar o desenvolvimento das algas fosforescentes nos sistemas de grutas. Fascinante.
— Já vi algumas dessas algas brilhantes — disse Ben. — Numa caverna em Madagáscar. Há grutas de tal modo cobertas por essa coisa que quase gostaríamos de ter levado os óculos de sol.
Linda acenou com a cabeça.
— Rinchari luminarus. Uma espécie linda. E existe em várias cores. — Falou um pouco sobre as diferenças entre as várias espécies.
A atenção de Ashley vagueou para longe da conversa. Estudou Linda, enquanto esta falava. Os seus olhos eram tão azuis que Ashley se perguntou se seria a sua cor verdadeira. Tinha um corpo cheio, flexível, com mãos pequenas, os dedos delicados de uma criança. Contrastava fortemente com o corpo rijo e esguio de Ashley. Seria impossível alguém descrever Ashley como flexível.
Khalid nunca afastou os olhos de Linda, acenando de quando em vez enquanto ela prosseguia com a sua descrição. Obviamente enfeitiçado por algo mais do que as variações genéticas do lodo brilhante. Até Ben exibia um sorriso fixo nos lábios enquanto escutava.
Ashley sentia-se como um pedaço de granito ao lado de uma rosa. Engoliu o whisky.
— ... e foi assim que fiz o meu doutoramento.
— Percebo o porquê de o doutor Blakely querer a tua presença — disse Ashley. Os dois homens pareceram emergir de um transe. — O teu conhecimento de vias evolutivas únicas irá ser útil na documentação da nossa exploração.
Ben pigarreou.
— Sem dúvida uma mais-valia.
Khalid acenou com a cabeça.
— De facto.
Ben afastou por fim os olhos do rosto de Linda.
— Então, Khalid, qual é o teu campo? Um geólogo, hã?
Ele deu um gole na sua bebida, depois falou:
— O Tratado Antártico de 1959.
— Como disseste? — perguntou Ben.
— A Antártida não pertence a ninguém. O tratado de 1959 declarou que o continente só poderia ser usado para fins pacíficos, científicos. Um parque natural mundial.
— Sim, eu sei. A Austrália tem lá algumas bases.
— Sim, mas também sabias que devido à proibição que o tratado impõe à exploração mineral, a extensão da riqueza mineral da Antártida é ainda desconhecida? Trata-se de uma grande folha em branco.
Khalid deixou que a informação assentasse antes de continuar.
— Bem, o tratado cessou a sua vigência em 1991. O continente está agora aberto à exploração mineira, mas com uma condição: o solo tem de ser protegido de quaisquer danos.
Ashley percebeu, então. As implicações eram enormes.
— Estes túneis subterrâneos permitirão que se explore a riqueza mineral do continente sem causar danos à superfície.
— Sim. — Khalid acenou com a cabeça. — E quaisquer depósitos descobertos serão propriedade do governo que os descobrir.
— Não é de admirar que nos possam pagar tão bem — disse ela. — Qual te parece a probabilidade de fazermos uma descoberta significativa?
— Tendo em conta que um investigador descobriu que a pluma vulcânica do monte Érebo lança pó de ouro, sendo a única pluma do planeta a fazê-lo, creio que o salário desta equipa exploradora ficará mais do que adequadamente coberto.
— Ouro no fumo de um vulcão — disse Ben. — Soa um bocado rocambolesco.
Khalid franziu o sobrolho por breves instantes, devido à interrupção.
— Foi amplamente documentado.
Os outros membros da equipa permaneceram em silêncio. Chocados. Ashley eriçou-se. Uma vez mais, Blakely não tinha revelado a verdadeira dimensão daquela missão. Primeiro a escolta armada e agora aquilo.
— Não sei se gosto disto — disse ela. — Violar um continente.
Linda acenou com a cabeça.
Todos ficaram em silêncio, ponderando as graves notícias.
Depois Ben, numa explosão súbita, destruiu o devaneio sombrio.
— Que se lixe. Vamos dançar! Foi aqui que nasceu o raio do tango. Vamos, Buenos Aires ainda agora está a acordar.
Ashley franziu o sobrolho. Aquele pastor de ovelhas australiano nunca parava.
— Dispenso. Tenho um filho para meter na cama.
Khalid também abanou a cabeça.
— No meu país não dançamos o tango.
Linda alegrou-se.
— Eu vou. Gostava de sair deste hotel abafado.
— Fantástico! — disse Ben. — Conheço um bar no bairro de San Telmo. Pitoresco e autêntico.
Ben deslizou para fora do reservado e estendeu a mão a Linda.
— A noite e as estrelas esperam-nos — declarou com uma ligeira vénia.
Timidamente, Linda sorriu perante a encenação de Ben.
Enquanto os dois se afastavam, Ashley reparou que as sobrancelhas de Khalid desciam. Balbuciou algo em arábico, depois despediu-se dela e saiu igualmente do reservado.
Ashley ficou a observar enquanto Ben acompanhava Linda através do bar. Uma pequena explosão do riso cristalino dela fez-se ouvir quando os dois saíram para a rua.
Deixou-se ficar, apreciando o fim da sua bebida. Como que a pedido, os acordes vibrantes de um tango começaram a jorrar das colunas do bar. A música sensual fê-la sentir-se ainda mais só.
Livro Dois
Debaixo do Gelo
CAPÍTULO 5
De novo num avião, pensou amargamente Ashley, o nariz encostado à janela. Lá em baixo, o glaciar lutava contra o granito de horizonte a horizonte.
Esta era a última parte da viagem de dois dias. No dia anterior, tinham voado os mil e duzentos quilómetros de Buenos Aires a Esperanza, a base do exército argentino na península antártica. Ali, Ashley teve o primeiro contacto com o ar antártico — como água gelada despejada para os pulmões. A equipa passou a noite nas casernas militares e, na manhã seguinte, foram colocados de novo a bordo de um transporte argentino. Ao meio dia, prometera Blakely, alcançariam o seu derradeiro destino, a base naval dos EUA em McMurdo.
Ashley perguntou-se se voltaria a passar mais de vinte e quatro horas no exterior de uma cabine de avião. Ergueu-se ligeiramente para ver se Jason se estava a portar bem. Encontrava-se sentado do outro lado da ruidosa cabine junto de Ben, falando animadamente e com as mãos a pontuar a história. Os dois tinham-se tornado rapidamente amigos desde que haviam pernoitado juntos no dormitório masculino das casernas de Esperanza.
Ben apercebeu-se de que ela os fitava e sorriu-lhe por cima da cabeça de Jason. O australiano estava a revelar uma paciência admirável. As histórias de Jason podiam ser extenuantes.
— Ele está bem — disse o major Michaelson, sentado ao seu lado.
Sobressaltada, ripostou.
— Não lhe pedi a opinião.
— Eu só queria... — O major abanou a cabeça, franzindo o sobrolho. — Esqueça.
Ashley mordeu o lábio inferior. Ele estava claramente a tentar reconfortá-la.
— Desculpe. Esta explosão não lhe era dirigida. Estou apenas com dúvidas persistentes quanto a ter trazido o Jason.
A tensão nos ombros dele pareceu diminuir.
— O seu filho tem muita energia. Ele vai ficar bem.
— Obrigada. Mas e o Ben? Ele não está nesta missão para trabalhar como ama-seca.
O major sorriu.
— Talvez seja contagiado por alguma da maturidade do Jason.
Ashley fungou.
— O tipo é um exibicionista.
— Pelo menos sabe o que faz. — O major apontou com a cabeça na direção de Ben. — Li o ficheiro dele. É famoso pela sua participação em missões de resgate, sendo especialista no reconhecimento de grutas. Há dois anos salvou uma equipa de exploradores experientes na caverna de Lechuguilla. Os exploradores estiveram desaparecidos oito dias e ninguém os conseguia encontrar. Mas o Ben entrou sozinho e saiu com uma perna partida e os quatro elementos da equipa. Ele percebe de grutas. É quase como se tivesse um sexto sentido.
— Não me tinha apercebido... — Olhou de relance para Ben, que jogava às cartas com Jason. Ficou em silêncio, considerando a revelação.
— O seu ficheiro era igualmente impressionante — disse o major.
— O meu ficheiro?
— Parece ter uma capacidade extraordinária para arrancar novas descobertas em locais já fortemente explorados.
Ashley limitou-se a encolher os ombros face ao elogio. O major parecia extraordinariamente conversador. Normalmente era muito sério e estoico. Virou-se para ele.
— O senhor sabe muito sobre nós. Mas eu nem sequer sei o seu primeiro nome.
— É Dennis.
Major Dennis Michaelson, pensou. Um primeiro nome bastara para tornar o major quase humano.
— De onde és, Dennis?
— Do Nebrasca. A quinta da nossa família fica às portas de North Platte.
— Então porque te juntaste aos Marines?
— Eu e o meu irmão, Harry, alistámo-nos juntos. Ele adora veículos motorizados: carros, motas, drag racing, esse tipo de coisas. Alistou-se para poder meter as mãos em motores ainda maiores. O tipo nunca estava contente a menos que tivesse as mãos sujas de óleo. Precisava de estar sempre a mexer em qualquer coisa. — Um sorriso afetuoso surgira no rosto de Michaelson, enquanto descrevia o irmão.
— Então e tu? Que te levou para longe da quinta?
— Por um lado, manter o meu irmão debaixo de olho. Mas além disso, como disse, a quinta da nossa família fica às portas de North Platte. E North Platte fica às portas de lado nenhum.
— Então, alistaste-te para ver o mundo. E agora aqui estás. A servir no fim do mundo.
— Sim — disse ele com um tom quase apaixonado. — E, neste momento, North Platte nunca me pareceu tão bom.
— Então porque não desistir e regressar à quinta?
O rosto dele ensombrou-se de súbito, as sobrancelhas negras aproximando-se uma da outra. Manteve o silêncio.
Ashley tentou extrair mais algumas informações.
— Como é que foste arrastado para esta entediante missão? Guardar um monte de cientistas.
— Voluntariei-me — balbuciou.
Ela torceu o nariz. Não é propriamente a decisão esperada de um militar de carreira. Sem prestígio, sem glória, destacado no fim do mundo.
— Porquê?
Ele encolheu os ombros.
— Tenho as minhas razões. — Desapertou o cinto de segurança e saiu do seu lugar, resmungando qualquer coisa acerca de usar a casa de banho.
Sozinha, regressou ao estudo da paisagem que deslizava por baixo dos esquis do avião. O reflexo do sol no gelo era ofuscante. Parecia que quanto mais descobria acerca dos seus colegas de equipa, menos os compreendia. Mas seria isso novidade? Nunca compreendera as pessoas. Bastava olhar para o seu casamento. Uma lua de mel que durara oito anos, até ao dia em que regressara a casa mais cedo, vinda de uma escavação — vítima dos enjoos matinais — e descobrira o marido na cama com a secretária. Sem quaisquer sinais de aviso. Sem batom no colarinho. Sem cabelos louros no casaco. Nada. Um mistério para ela.
Ashley pousou a mão na barriga. A infidelidade de Scott não fora o pior. Lembrou-se da dor lancinante e do jorro de sangue. A sobrecarga emocional provocada pela traição dele desencadeara um aborto. Perder o bebé quase a destruíra. Apenas Jason, então com sete anos, a mantivera sã.
Embora já se tivessem passado vários anos, uma parte de si ainda doía ao recordar quanto tinha perdido. Não apenas o bebé, mas a fé nas pessoas. Recusava-se a voltar a ser tão crédula, tão vulnerável.
Recostando-se no assento, olhou pela janela coberta de gelo. No limite do horizonte, uma coluna de fumo erguia-se no ar, uma assinatura escura contra o céu azul. Sentou-se mais direita. À medida que o avião avançava, a origem da pluma cinzenta tornou-se visível, erguendo-se da superfície plana como um gigante que desperta. O monte Érebo.
O interior da carrinha Dodge tresandava a tabaco e oscilava numa sintonia grosseira com o ritmo do baixo de uma cassete dos Pearl Jam. O sol fraco do meio-dia erguia-se tristemente sobre o cume do monte Érebo. O condutor, um jovem da Marinha, abanava a cabeça ao som da música.
— Estamos quase em casa — disse por cima do ombro. — Basta passarmos a próxima crista de gelo. — A estrada do aeródromo de Williams até à Base de McMurdo era uma extensão grosseiramente desbastada de gelo escavado. Com um último salto de fazer bater os molares ao passarem pela crista, Ashley viu o seu destino.
Passou uma luva pela janela embaciada do lado do passageiro. Os restantes membros da equipa estavam a fazer o mesmo. Ao lado da concha de gelo azul que envolvia o mar de Ross, a Base de McMurdo era uma mancha negra. Um complexo industrial de edifícios cinzentos tornado pequeno por um enorme ferro-velho a sul. A carrinha contornou uma lixeira em chamas que lançava para o céu azul um fumo negro, oleoso.
Um helicóptero da Marinha passou ruidosamente por cima da carrinha, a pressão e o som a fazerem vibrar as janelas. Jason tapou os ouvidos. A base zumbia com outros helicópteros. Ashley tocou no ombro do condutor.
— Isto aqui é sempre tão movimentado?
O condutor ergueu o polegar.
— Hoje está a ser um dia calmo — gritou.
Ashley recostou-se no banco. Ótimo.
Blakely sorriu.
— Só vamos parar aqui durante algumas horas, em seguida prosseguimos diretamente para a Base Alfa. É muito mais calmo lá em baixo. — Olhou pela janela, melancolicamente. — Na realidade, ao fim de um ano, habituamo-nos ao movimento e ao cheiro aqui em cima. Quase sinto a sua falta.
— Parece-me demasiada poluição para uma estação científica — disse Linda com uma careta. — As biocomunidades vizinhas são frágeis.
Blakely encolheu os ombros.
— Foi-nos atribuído um fundo de limpeza no valor de dez milhões de dólares. Vai ficar melhor.
— Espero bem que sim — disse Linda.
Foram deixados nas proximidades de um bloco de edifícios em betão. Ashley apertou a parka à sua volta; o vento queimava, chicoteando-lhe as faces. Na ausência de proteção, uma queimadura de gelo necessitava apenas de uns poucos minutos. Os colegas de equipa correram para a entrada. Ashley assegurou-se de que Jason avançava à sua frente. Não queria que ele se afastasse e perdesse.
Calor. O interior era aquecido, mas parecia húmido e pegajoso, o cheiro a suor era pungente. Torcendo o nariz, apercebeu-se de que o corredor estava coberto por um arco-íris de parkas coloridas penduradas em cabides.
Blakely fez-lhes sinal para que pendurassem as suas parkas.
— Não temam que possam ser roubadas. Roubar o casaco de alguém aqui é uma ofensa merecedora da pena capital.
Ashley ajudou Jason a tirar a parka e pendurou-a ao lado da sua.
— Vamos só parar para almoçar e depois seguimos diretamente para a Base Alfa. A messe E fica ao fundo do corredor. Sirvam-se e descontraiam. Voltamos a encontrar-nos aqui dentro de duas horas. Há uma sala de convívio com mesas de pingue-pongue e snooker ao virar da esquina da messe E. Divirtam-se.
— Não vem connosco? — perguntou Ashley.
— Não, vou reunir-me com o capitão da base para rever alguns pormenores.
Depois de Blakely se afastar, seguiram para o salão da messe. Alguns elementos da Marinha ergueram uma sobrancelha, ou as duas, ao vê-los passar. Um jovem fitou Ashley durante mais tempo do que ela gostaria, até um olhar firme o fazer desistir. No geral, contudo, a equipa da Marinha não parecia perturbada com a presença dos recém-chegados. Ashley calculou que, sendo uma base de operações da National Science Foundation, estivessem habituados a um afluxo de caras novas.
Ashley equilibrava uma bandeja com duas maçãs, uma sandes de carnes frias e um pacote pequeno de leite. Jason tinha tentado encher o seu próprio tabuleiro com sobremesas e biscoitos, até ela lhe ter feito sinal para que devolvesse os doces.
— Primeiro o almoço. Depois podes comer a mousse de chocolate e um biscoito.
Jason arrastou-se até à mesa, com a sandes mais pequena que conseguiu encontrar e os olhos a deslizarem continuamente para o bar das sobremesas.
Ben juntou-se a eles na mesma mesa. O major Michaelson, Khalid e Linda ocuparam uma mesa vizinha.
— Estamos quase lá — sussurrou Ben ao ouvido dela, enquanto se sentava. — No limiar de um novo mundo. Como te estás a aguentar, capitã?
Fosse das palavras dele ou das cócegas provocadas pela sua respiração, um arrepio percorreu-lhe as costas.
— Bem — disse ela. — Estou apenas tensa. Ansiosa por avançar para as grutas.
— Também eu. — Com um grande sorriso, estendeu uma mão, os dedos a tremer. — Fico cheio de tremores até começar.
Ashley não conseguiu perceber se ele estaria a gozar com ela. Era tão difícil lê-lo.
— Estar tão perto... — Encolheu os ombros. — Dá cabo dos nervos.
— Sei como te sentes — disse Ben com um aceno de cabeça. — Há duas décadas que faço espeleologia. Esta é a minha primeira oportunidade para reclamar um novo sistema.
— Reclamar? Que é isso?
— Credo, mãe! — disse Jason, sentando-se ao lado dela, chocado. Estava a falar com a boca cheia de pão. — É um termo usado pelos espeleólogos. Significa que é o primeiro a descobrir uma coisa nova.
— Oh... estou a ver — disse ela, sorrindo perante a tentativa do filho de impressioná-la.
— O Ben e eu conversámos. Ele falou-me acerca das... como é que lhes chamaste? Oh, sim, as passagens virgens.
— O quê? — Ashley virou-se para Ben. — Que raio tens andado a ensinar ao meu filho?
— Passagens virgens — disse Ben, tentando refrear uma gargalhada. — Passagens nunca percorridas pelo homem. Esse tipo de coisas.
— Oh — disse ela, subitamente mortificada. — Pensei...
Ele interrompeu-a com um sorriso descontraído.
— Eu sei o que pensaste.
Ashley eriçou-se.
— Então achas que és o próximo Neil Armstrong?
— Quem?
Ela abanou a cabeça perante tamanha ignorância.
— O primeiro homem a pisar a Lua. «Um passo gigantesco para a Humanidade.»
Os olhos de Ben iluminaram-se.
— Exatamente! Ser o primeiro ser humano a ver algo novo. Não há emoção igual.
Ashley lembrou-se do túmulo Anasazi que tinha descoberto. Com a pulsação acelerada, a respiração entrecortada, enquanto retirava a última pedra e revelava o santuário interior do sumo sacerdote. O cheiro almiscarado da antiga câmara. O sol no seu pescoço. Ser a primeira a ver os segredos escondidos durante séculos. E agora fazer o mesmo com um segredo escondido durante milénios. Que poderia encontrar ali? Os seus ouvidos latejavam com o bater do seu coração. Sim, compreendia o entusiasmo de Ben.
— Então tu estás pronta para reclamar alguma coisa? — perguntou ele.
Ashley sorriu para os olhos radiantes que a fitavam.
— Podes crer que sim. Espero que ainda hoje tenhamos tempo para explorar aquelas habitações escavadas nos penhascos. Até dispensava o almoço se isso me permitisse percorrê-las ainda hoje. — Dando uma dentada na sandes, achou o pão húmido e as carnes frias pareciam borracha. — Especialmente este almoço.
Ben continuava a sorrir-lhe.
— Não gostas da comida militar?
Ela sorriu-lhe.
— Vou buscar uma mousse e um biscoito.
— Mãe! — gritou Jason. — Isso não é justo!
Jason apanhou com o dedo cada migalhinha de biscoito do prato de sobremesa. Depois chupou o dedo, saboreando o sabor a chocolate.
— Não posso comer mais um biscoito? — implorou à mãe.
— Já comeste dois. Chega. Porque não vais à casa de banho e lavas as mãos?
Jason resmungou qualquer coisa baixinho e empurrou a cadeira para trás.
— Está bem.
A voz de Ben fez-se ouvir quando Jason ia a passar:
— E se fôssemos jogar uma partida de snooker quando estiveres despachado?
As feições tensas de Jason suavizaram-se. Os olhos fixaram-se na mãe.
— Posso?
— Claro. Agora mexe-te. Partimos em breve.
Com um sorriso, Jason correu do salão da messe para a casa de banho do outro lado do corredor. A casa de banho estava vazia. Jason entrou no cubículo do meio e debateu-se com o cinto.
Quando se estava a sentar, ouviu a porta a abrir-se e o ruído vindo do corredor invadiu o espaço até a porta se voltar a fechar. Alguém assobiou uma melodia sem ritmo, enquanto se aproximava dos cubículos e entrava no que estava situado à direita de Jason. Continuando a assobiar, o homem deixou cair a mochila no chão do cubículo. Mesmo ao lado de Jason.
Apurando o ouvido, Jason observou de olhos muito abertos, enquanto uma mão com pelos pretos se estendia e abria o fecho da mochila, depois vasculhava o seu interior. Jason ouviu o acender de um fósforo... seguido de perto por uma longa exalação. Sentiu o cheiro de um cigarro a arder. Em seguida, ouviu um cinto a ser desapertado e os assobios prosseguiram. Enquanto o homem se sentava, bateu com o calcanhar na mochila, fazendo-a virar-se. Uma pequena pilha de cubos, do que parecia plasticina cinzenta, embrulhados em plástico caiu para o cubículo de Jason.
Um chorrilho de palavrões em língua estrangeira jorrou do cubículo vizinho. Jason observou enquanto o homem passava a mão por baixo da parede que dividia os cubículos para apanhar a mochila e a endireitar. Jason ergueu os pés mesmo a tempo de evitar um braço que passou pelo seu cubículo e arrebanhou os cubos. Mais palavras furiosas. Conseguiu ver a ponta de um nariz, quando o homem se baixou para confirmar que tinha todos os cubos.
Nesse preciso momento, a porta da casa de banho dos homens voltou a abrir-se. Um outro homem avançou até aos urinóis. Jason ouviu um fecho-éclair a deslizar, seguido pelo chapinhar característico. O homem no urinol suspirou. Jason pôs-se à escuta, enquanto o vizinho apertava as calças e voltava a fechar a mochila caída.
O seu vizinho emergiu do cubículo.
O homem no urinol falou, ao mesmo tempo que fechava as calças. Jason reconheceu o sotaque de Ben.
— Khalid, não devias fumar aqui, amigo.
— Ah, esses americanos têm demasiadas regras. Quem sabe quais seguir e quais ignorar? Queres um cigarro?
— Obrigado pela oferta — respondeu Ben. — Mas neste momento tenho um encontro marcado para uma partida de snooker
A porta da casa de banho abriu-se e Khalid saiu.
Jason voltou a pousar os pés no chão e levantou-se. Enquanto apertava o cinto, baixou os olhos. O egípcio tinha deixado ficar um daqueles cubos envoltos em plástico. Rebolara para o lado mais distante do cubículo. Jason baixou-se e apanhou-o, perguntando-se o que deveria fazer. Tinha a consistência do barro firme. Sabia que o devia devolver a Khalid, mas assim todos saberiam que se tinha escondido à escuta. Começou a enfiá-lo no bolso quando a porta do cubículo se abriu.
— Aí estás tu! — Ben erguia-se à sua frente. — A tua mãe receou que te tivesses sentido mal.
Jason sorriu. Enfiou melhor o cubo no bolso.
— Que tens aí, amigo? Foste roubar um terceiro biscoito? — O sorriso de Ben aligeirava a acusação.
— Não — disse Jason, com um soluço de riso. — Não é nada. Só uma coisa que encontrei.
— Então está bem. Vamos bater umas bolas.
Blakely inclinou-se contra as rajadas de vento enquanto atravessava a base. O gabinete do comandante estava situado na extremidade mais distante do campo, longe da lixeira. Se não precisasse tanto daquele maldito equipamento, teria seguido diretamente para a Base Alfa. Mas os comunicados e os pedidos feitos por Roland não tinham convencido o obstinado comandante. Precisava daquelas malditas placas de circuitos; eram essenciais para a rede de comunicações.
Subiu os degraus para o quartel-general da base onde um guarda verificou a sua identificação. Blakely lançou-lhe um olhar amargo enquanto esperava. Um helicóptero vermelho da Marinha dos EUA zumbiu ao passar por eles, projetando gelo e detritos para o cubículo do guarda. Franzindo o sobrolho, o guarda olhou para cima.
— Pode seguir, doutor Blakely.
— Obrigado. — Blakely entrou. Malditas regras. Prosseguiu ao longo do corredor, depois de ter pendurado a sua parka. O gabinete do comandante estava situado no primeiro andar no canto. Avançou a passos largos para o secretário, um ordenança de óculos de aros negros e fraca postura.
— Vim falar com o comandante Sung — disse Blakely, antes que o secretário pudesse abrir a boca.
— Tem marcação?
— Diga-lhe apenas que é o Blakely. Ele vai receber-me.
— Está muito ocupado, de momento.
Blakely abanou a cabeça, reconhecendo à légua uma desculpa esfarrapada.
— Diga-lhe que estou aqui.
— Só um momento. — O secretário carregou num dos botões de um quadro de luzes amarelas. Virou-lhe as costas enquanto falava, mas Blakely conseguiu discernir as palavras.
— Desculpe, comandante, mas está aqui um doutor Blakely para falar consigo. — Uma pausa enquanto escutava ao telefone, depois numa voz ainda mais baixa — Já tentei isso, comandante. Ele está a ser beligerante. — Mais uma pausa, o rosto a corar. Não era preciso muito para perceber que o secretário estava a receber uma valente reprimenda. Tudo terminou com um derradeiro: — Sim, comandante.
O secretário, com pérolas de suor na testa, virou-se de novo para Blakely.
— O comandante vai recebê-lo. Obrigado pela sua paciência.
Blakely sentiu pena do ordenança. Inclinou-se ao contornar a secretária e sussurrou:
— Não te apoquentes, filho, todos sabem que o Sung é um sacana.
O secretário fez uma careta.
— Boa sorte.
Cada um faz a sua sorte, pensou Blakely, enquanto empurrava a porta para o gabinete interior.
O comandante Sung estava sentado atrás de uma ampla secretária de mogno, com uma camada tão espessa de lacado que parecia molhada. Espalhados à sua frente, estavam vários ficheiros abertos. Empurrou um dos ficheiros na direção de Blakely, só com um dedo, como se sentisse repulsa a tocar-lhe.
— Li o teu pedido, Andrew.
Blakely odiava quando alguém o tratava pelo seu primeiro nome. Em especial um burocrata hipócrita como Sung. Aquela não era a primeira vez que os dois homens batiam de frente. Enquanto investigador-chefe da National Science Foundation, via-se frequentemente num impasse com Sung, o oficial da Marinha mais graduado. Muitas vezes, cientistas e militares tinham opiniões diferentes em relação a certos temas... em especial no que dizia respeito aos escassos bens armazenados naquela base remota.
A animosidade tinha-se intensificado quando Blakely fizera a sua descoberta. Viu Sung ficar verde, cobiçando toda a atenção e dinheiro que fluía na direção de Blakely. Desde então, qualquer cooperação com os militares da base assemelhava-se a arrancar um dente cariado.
Sung prosseguiu, com um ligeiro esgar no canto da boca.
— Pensei que tinha sido muito claro. Essas placas de circuitos são as últimas em armazém. Não posso autorizar a sua saída enquanto não chegar um fornecimento de substituição.
— Isso é uma treta e tu sabe-lo. Preciso delas para reparar uma placa de comunicações crítica.
Sung encolheu os ombros.
— Foi uma infelicidade dos diabos que as tuas placas tenham feito curto-circuito.
— Isso não teria acontecido se me tivesses dado placas novas em vez daquelas placas antiquadas que foste buscar a equipamentos velhos. — Apoiou os punhos na secretária. — Quero as placas novas. Não vou permitir que ponhas em risco esta equipa.
— Então espera pelo próximo carregamento. Chegará dentro de três semanas.
— Já adiámos mais do que o suficiente.
— Enquanto comandante deste campo, a minha decisão é final. — Sung recostou-se na cadeira.
Blakely estava farto daquele sacana. Inclinou-se sobre a secretária. Sung deslizou para longe com uma expressão de choque estampada no rosto. Blakely refreou um sorriso. O sacana achava que estava a ser atacado. Que pateta! Agarrou no telefone sobre a secretária e puxou-o para si. O que lhe ia fazer era muito pior.
Ignorando as objeções de Sung, marcou um número e deu uma palavra-chave. Escutou enquanto a sua chamada ia passando por uma série de operadoras. Por fim, uma voz familiar. Blakely respondeu:
— Estou a ter problemas com o comandante da base, senhor. — Fez uma pausa. — Sim, senhor. É isso mesmo. Ele está aqui, senhor.
Blakely sorriu e passou o telefone a Sung.
— O teu patrão.
Sung estendeu lentamente o braço e agarrou no telefone.
— Estou, daqui fala o comandante Sung.
Blakely observou o rosto do comandante perder toda a cor, depois voltar a recuperá-la num tom vermelho brilhante. Uma vez mais Blakely percebeu que alguém estava a levar um raspanete.
— Sim, fá-lo-ei — disse Sung, a voz aguda. — Imediatamente, senhor secretário. Compreendo os desejos do presidente.
CAPÍTULO 6
Só mais um minuto. Depois tudo estaria terminado.
Embora Ashley estivesse presa com segurança ao banco do helicóptero da Marinha, apertava com força a pega por cima da sua cabeça. Um salto e uma mudança de direção abruptas do helicóptero levaram-na a fechar ainda mais a mão, deixando os nós dos dedos brancos. Um latejar embotado atrás dos olhos anunciava a chegada iminente de uma dor de cabeça. Aterrem esta maldita gerigonça de uma vez, pensou. Como que em resposta, o helicóptero mergulhou.
Jason gritou de entusiasmo quando o helicóptero se inclinou na direção da parede de rocha gelada. As encostas do monte Érebo, que ocupavam todo o seu campo visual a estibordo, apresentavam-se como um conjunto infindável de penhascos cobertos de neve e abismos negros que subiam até aos céus.
Ashley fechou os olhos, sentindo o estômago na garganta.
Jason puxou-lhe pela manga.
— Tens de ver isto, mãe!
Ela afastou-lhe a mão.
— Agora não, querido.
— Mas dá para ver o buraco! É esquisito como um raio.
Ashley resmungou, abrindo um olho. O mundo era um prato inclinado, a base do Érebo oscilava sob eles enquanto o contornavam para fazer a descida. A área por baixo estava engalanada com tendas cor de laranja, como furúnculos num rabo branco. Uma estrada escavada na lama e na neve derretida ligava as tendas a uma boca negra na face do penhasco do Érebo, grande o suficiente para passar por ela um autocarro de dois andares. A neve voava pela abertura como se aquela boca escancarada estivesse a soprar.
O helicóptero endireitou-se e desceu, como um elevador, para o local de aterragem, provocando um redemoinho de gelo e neve à sua volta ao pousar.
Blakely gritou por cima do ruído dos rotores, dentro do helicóptero de transporte.
— Muito bem, malta! Há dois snowcats junto à entrada para nos transportarem até à fissura.
Ben, sentado à frente dela, sorriu.
— A partir de agora, é sempre a descer.
Com o filho a implorar que o deixassem ir do lado da janela no apertado compartimento do snowcat de lagartas largas, Ashley deu por si entalada entre Jason e Ben. Linda, livre de filhos, tinha ocupado o lugar ao lado do condutor. Os restantes elementos seguiam num segundo veículo.
A abertura da galeria agigantava-se à sua frente. Tratava-se, originalmente, de uma fissura natural que penetrava profundamente num dos lados do monte Érebo. Os explosivos e o equipamento de mineração tinham alargado a fissura e alisado uma passagem para o interior da montanha vulcânica. Susteve a respiração quando o veículo saltou ao penetrar na galeria cavernosa, suficientemente larga para passarem dois camiões. Uma autoestrada vulgar com dois sentidos, pensou Ashley, para o coração de um vulcão.
As paredes, grosseiramente cortadas pelas explosões e pelas brocas, eram iluminadas por lâmpadas de halogéneo penduradas ao longo do teto. Quando o snowcat avançou, fazendo uma curva, a luz do dia desapareceu; as lâmpadas eram agora a única iluminação. O condutor ligou os máximos, varando a escuridão à sua frente.
Embora parecesse que se deslocavam a direito, fora informada de que estavam a descer; a galeria, com seis quilómetros de comprimento, desceria um pouco mais de um quilómetro.
Mas o progresso era lento. Mesmo deslocando-se a passo de caracol, o piso irregular lançava-a constantemente contra Ben.
— Desculpa — disse ela, afastando-se do ombro dele.
— Não te preocupes, até estava a gostar.
Ela sorriu-lhe. Será que ele nunca parava?
Linda virou-se para eles.
— Importam-se que abra a minha janela um bocadinho? Gostava de... bem... Está um bocado abafado.
As sobrancelhas de Ashley uniram-se. Linda parecia enjoada, estava pálida, com os lábios secos e gretados. Talvez também não tivesse gostado da viagem de helicóptero. Podia, sem dúvida, compreendê-la. Mas estava um frio dos diabos no exterior.
— Não sei. Não quero que o Jason apanhe frio. Talvez...
— Um pouco de ar fresco parece-me bem — disse Ben. Estendeu o braço e apertou a mão de Ashley. — Jason, importas-te?
Ashley baixou os olhos para a mão de Ben. Este continuava a apertá-la como se estivesse a tentar comunicar com ela. Conteve-se para evitar uma reposta.
O filho com os olhos fixos na galeria à sua frente, a boca aberta, acenou-lhes com uma mão.
— Eu não me importo.
— Está bem — disse Ashley. — Força, Linda. Mas, Jason, ficas com o casaco vestido.
Linda sorriu tenuemente e voltou a virar-se para a frente. Uma rajada de vento gelado redemoinhou para o interior do compartimente quando ela desceu a janela alguns centímetros. Com o nariz colado à janela, Linda inspirou profundamente, relaxando de forma visível.
Ben soltou a mão de Ashley. Esta enterrou-se ainda mais na sua parka, apertando o capuz em redor do rosto. Virou-se para interrogar Ben, mas este continuava a estudar Linda, o sobrolho franzido de preocupação.
Resignada, Ashley recostou-se e observou as lâmpadas sobre as suas cabeças, que pareciam piscar à medida que iam passando por baixo delas.
E Alice desceu pela toca do coelho branco.
Blakely estava sentado ao lado do condutor, fitando as luzes traseiras do snowcat que seguia à sua frente. Tinha estado a estudar as paredes da galeria enquanto avançavam, com os olhos fixos nos cabos elétricos e de comunicação. Estava tudo em ordem. Desde que o comandante da base não tentasse qualquer sabotagem de última hora, estava tudo preparado.
Khalid inclinou-se para a frente no seu lugar na parte de trás do snowcat.
— Ainda falta muito? — perguntou.
Blakely olhou de relance por cima do ombro para o rosto do geólogo.
— Chegaremos aos elevadores do poço em cerca de dez minutos. Estaremos na Base Alfa a horas do jantar. Por isso relaxe. Aprecie a viagem.
Khalid acenou com a cabeça, e Blakely observou o egípcio que voltava a estudar as luzes e cabos por que iam passando com os seus olhos escuros a assimilarem todos os pormenores.
Voltando-se de novo no seu lugar, Blakely compreendia o nervosismo do geólogo. Aquela espera dava cabo dos nervos.
Ashley esticou os músculos entorpecidos pela viagem. Olhou de relance quando o segundo snowcat avançou para a grande caverna, dirigindo em seguida a atenção para o elevador gigantesco — uma gaiola com barras de ferro.
Jason estava a explorar caixas enormes que enchiam a metade posterior da sala. Parecia um rato a correr entre os blocos de construção espalhados de uma criança.
— Jason! — chamou. — Mantém-te por perto, querido.
O filho anuiu com a cabeça.
Blakely, solicitando a ajuda de Ben, acenou na direção dos elevadores.
— Ajude-me com estas portas.
Ben e o major Michaelson afastaram as portas para que a equipa pudesse entrar. Jason tinha-se aproximado. Ben despenteou-o com a mão.
— Pronto para isto, amigo?
Ele sorriu ao entrar no elevador do tamanho de uma garagem, suficientemente grande para estacionar no seu interior os dois snowcats.
— Oh, sim. Isto é tão fixe.
Ashley observou o interior do elevador. O teto e o chão eram folhas sólidas de ferro vermelho, mas as paredes eram constituídas apenas por barras de ferro de dois centímetros e meio. Como uma gaiola gigantesca.
— Vamos descer o equivalente a cerca de duzentos andares — disse Blakely enquanto as portas se fechavam. — Foram precisos três anos só para abrir este poço de seiscentos metros que separa o piso deste rifte da caverna em baixo. — Puxou uma alavanca e Ashley sentiu o solavanco familiar quando o elevador iniciou a sua descida com um ronco.
Segurava a mão de Jason. Quão segura seria aquela geringonça? Deu voz às suas preocupações; Linda acenou igualmente com a cabeça.
Blakely sorriu.
— Já transportámos maquinaria pesada com este elevador. Até vários camiões. Vai aguentar o nosso grupo sem problemas. — Bateu na parede metálica da jaula. — Esta é a linha vital da Base Alfa. É mantida como um dispendioso relógio suíço e guardada como as joias da coroa.
Ashley apercebeu-se do sorriso de Khalid. Divertido com aqueles receios femininos, pensou. Mais um machão destemido perante a razão. Observou-o a fitar a jaula, estudando-a.
Um silêncio desconfortável apoderou-se da equipa enquanto prosseguiam a descida. A única iluminação provinha de uma lâmpada solitária, no teto da jaula. Era como se estivessem suspensos no espaço.
Sentindo a necessidade de quebrar o silêncio, Ashley virou-se para Blakely.
— Sabe — disse ela —, há algo que me tem estado a incomodar. E imagino que também incomode alguns dos outros.
— Hum? — Ele parecia perdido nos seus pensamentos.
Ben endireitou-se, afastando-se da parede à qual se encostara. Também os outros os fitavam com interesse.
— Sejamos sinceros — disse ela. — Estamos aqui para investigar este continente ou para o violar?
Blakely arqueou as sobrancelhas.
— Todos sabemos que a ciência não paga... — acenou para a jaula de aço — ... assim tão bem. Há aqui algo mais em jogo do que a mera investigação arqueológica.
— É verdade — disse Blakely, tirando os óculos e esfregando a cana do nariz —, mas deixe-me descansá-la. Antes de mais nada, sou um cientista. Para mim, a missão é e será sempre científica. Essa foi uma das razões por que a escolhi a si para liderar esta equipa, professora Carter. Quero que esta missão permaneça um empreendimento científico. Mas não vivemos num vazio. Esta missão tem algumas ramificações económicas e políticas significativas.
Parecendo aperceber-se do desconforto dela, Blakely acrescentou:
— Não seja tão rápida a julgar-me. Paga as contas. Garante-me o equipamento. — Apontou para os outros, depois para ela. — E traz até aqui uma equipa de topo.
— Ainda assim — disse ela —, qual será o derradeiro preço desta exploração? Se acabarmos com um continente crivado de minas e esburacado... é um preço demasiado elevado. Consigo viver com a ausência de respostas quanto aos mistérios destas grutas.
Ele fitou-a com uma expressão triste estampada no rosto.
— Consegue mesmo, professora Carter?
Ela abriu a boca para declarar as suas convicções, mas a mentira recusava-se a sair. Pedira a Blakely que fosse sincero. Poderia ela ser menos do que isso? Lembrou-se da estatueta de diamante, brilhando sob os últimos raios do Sol que se punha. Fechou a boca. Maldição.
Blakely acenou e apontou para baixo.
— Aqui vem ela.
Nesse preciso momento, uma brisa soprou sobre a gaiola, fazendo cair para trás o capuz da parka de Ashley. Uma brisa quente! Ao mesmo tempo, houve uma explosão de luz vinda de baixo. O elevador acabara de entrar na caverna.
O teto da gruta, iluminado de baixo, exibia estalactites húmidas, enormes montanhas penduradas de cabeça para baixo. Várias estendiam-se até ao chão, formando colunas gigantescas. Uma colunata natural. O elevador descia ao lado de uma coluna com o dobro do diâmetro daquela jaula. Ashley apercebeu-se de que alguém fizera um graffiti na coluna. Uma seta a apontar para baixo com as palavras apressadamente escritas: «Inferno... um quilómetro e meio!»
Ben franziu o sobrolho.
— Vandalizar uma gruta. Para além de ser de mau gosto, os espeleólogos pensam que dá azar.
Blakely franziu o sobrolho para o assistente, Roland.
— Vamos remover aquilo... hoje.
Ashley abanou a cabeça, gotículas voaram-lhe da ponta do nariz. Limpou a testa. Molhada. A humidade devia estar perto dos cem por cento. Mas o ar! Inspirou fundo. Era tão puro.
Semicerrou os olhos, mas a parede mais distante estava bloqueada por uma coluna gigantesca. Raios. Tinha alimentado a esperança de dar uma espreitadela às habitações.
— Mãe! Olha! — Jason apontava para o chão da caverna.
Suspirando de exasperação, ela pôs-se em bicos de pés, encostando a testa às barras frias. Lá em baixo, edifícios e tendas pontuavam o solo, iluminados por holofotes e engalanados com lâmpadas. Uma falha funda, como uma ferida negra, cortava a base em duas. Uma pequena ponte atravessava a falha, unindo as duas metades. Era o seu destino.
A Base Alfa.
— Olhem para ali — exclamou Linda. — Conseguimos ver peixes!
Ashley deslizou para trás de Linda, pousando a mão no ombro dela e espreitando para cima e para baixo.
No limite da Base Alfa, refletindo as luzes do acampamento, estava um lago gigantesco, com vários hectares de comprimento, que ondulava suavemente. A partir de cima, era possível ver alguns dos seus brilhantes residentes a deslizar e a dardejar sob a superfície vítrea. Estranhamente poético.
— Fixe — exclamou Jason.
— E de que maneira, amigo. — Ben tocou em Ashley com um cotovelo. — Impressionante, não é?
Ashley acenou com a cabeça, a mente atordoada. Ansiosa por explorar, os seus escrúpulos de há instantes não eram mais que uma ténue memória.
— Qual é a largura da caverna?
Blakely respondeu com um sorriso a brincar-lhe nos lábios.
— Cerca de oito quilómetros.
Ben assobiou.
Passados alguns minutos, a gaiola pousava no chão da caverna, na segurança do seu ancoradouro. Uma escolta de uniforme aguardava para os conduzir aos seus aposentos. Blakely virou-se para o grupo.
— Chegámos a casa!
CAPÍTULO 7
Base Alfa, Antártida
Ashley assistia com um sorriso, enquanto Jason corria pelo quarto. O seu próprio quarto na suíte de duas divisões era igualmente impressionante. Era difícil acreditar que cada membro da equipa tinha a sua própria suíte no dormitório principal da base. As regalias de trabalhar naquela missão estavam a ficar cada vez melhores. Cortinados de renda, secretárias de nogueira, confortáveis cadeiras estofadas, papel de parede elegante. Quem podiam pensar que estavam a mais de três quilómetros de profundidade?
— Olha, mãe. — Jason apontou para uma secretária no canto do quarto. — Um Pentium II a sério. Não é um daqueles clones lentos.
Ashley odiava acabar com a felicidade dele. Mas Jason tinha de ficar a saber uma coisa.
— Isso é para fazeres os trabalhos de casa.
Jason virou-se para ela, de queixo caído.
— Estamos no início do verão, mãe!
— São só umas horinhas por dia. Enquanto eu estiver ausente, quero que apliques bem esse tempo. Há uma biblioteca na base. Quero que escolhas dois livros enquanto eu estiver fora e escrevas um resumo sobre cada um deles.
Os seus olhos revelaram o choque sentido.
— Mas que verão!
— Vai ser divertido. O Roland vai — não se atreveu a dizer «tomar conta de ti» ou Jason jamais lhe perdoaria — ficar aqui enquanto eu estiver ausente. Espero que lhe dês ouvidos.
Jason fez uma careta, irritado.
— Se tiveres bons modos e fizeres os trabalhos de casa... sem amuar, tenho algumas surpresas reservadas para ti.
— Pois — disse ele, a voz carregada de ceticismo. — Como por exemplo?
— Primeiro, encontrei um especialista em artes marciais que pode continuar as tuas lições aqui. Se quiseres ser cinturão amarelo até ao fim do ano, vais precisar de praticar enquanto eu estiver fora.
A nuvem negra que lhe ensombrava o rosto dissipou-se ligeiramente,
— Além disso, têm motas elétricas e jet skis disponíveis, para além de ter planeado pescarias e jogos de basquetebol. Há muito que podes fazer para te entreteres. E se te saíres bem com os estudos, o doutor Blakely prometeu deixar que te juntes a ele na sala de controlo para ajudar a monitorizar o nosso progresso. Conseguirás até falar comigo.
— Isso soa bem — disse Jason, que continuava a fazer beicinho.
— Por último — disse ela, apontando de novo para a sala principal da suíte. — Têm televisão por cabo. Cento e cinquenta canais, todos descodificados.
— Uau, tenho de ver isso.
Ashley agarrou-o pela manga, quando ele tentou passar apressadamente por ela.
— Espera lá, rapaz. Primeiro, vamos jantar daqui a meia hora. Vai-te arranjar.
— Credo, mãe. Será que um miúdo não se pode divertir um pouco? — Jason dirigiu-se à casa de banho a passos largos.
Ela fungou, divertida. Tal como em casa. Só que a mais de três quilómetros abaixo da superfície da Terra.
— Então o que achas, miúda? — perguntou Ben, ao aproximar-se das costas de Linda.
Ela estava de pé à beira da massa de água, que os soldados tinham alcunhado de «Poço Sem Fundo». A trinta centímetros deles, as águas negras lambiam a rocha, as ondas geradas por uma barcaça da Marinha que ali passava.
Ben coçou a barba que despontava.
Linda olhou de relance para ele com a luz do acampamento a dançar nos seus olhos.
— É maravilhoso. — Linda apontou para o teto, várias centenas de metros mais acima. — É como estar lá fora.
Ele acenou, depois encolheu os ombros na direção da água.
— Estás a pensar em dar um mergulho nua?
Ela sorriu.
— Não, mas tu podias.
— Oh, não, roubavas-me a roupa interior e punhas toda a base a rir-se de mim.
O sorriso de Linda tornou-se mais rasgado, mostrando que estava mais relaxada.
— Não era isso que estava a dizer. O que estava a dizer era que podias de facto nadar ali. Ouvi dizer que alguns dos Marines o fazem. A água é bastante quente. Vinte e oito graus Celsius. Medi-a. Aquecida por chaminés vulcânicas.
— Parece estranho — disse Ben. — Lá em cima, há gelo e ventos gelados. Aqui, temos água tépida e ventos tropicais.
— Não é assim tão estranho. Ouvi dizer que os mares em redor da ilha Deceção, ao largo da costa da Antártida, por vezes aquecem até atingir temperaturas de spa. A atividade vulcânica é tão pronunciada que, frequentemente, a água chega a ferver. A poucos metros de distância de um glaciar.
— Hum-hum — respondeu Ben, arqueando as sobrancelhas, como se duvidasse dela.
Linda deu-lhe uma cotovelada.
— É verdade.
Ben sorriu.
— Na realidade, acredito em ti. Já vi outras grutas aquecidas por riftes subterrâneos. Não é assim tão raro. Só te estava a pôr à prova.
— Pois, está bem — disse ela, revirando os olhos.
Um brilhante olho-de-boi saltou a cerca de um metro da costa, levando Linda a sobressaltar-se. As sobrancelhas de Ben estreitaram-se.
— Ouve, miúda, há algo de que te queria falar.
Linda afastou do rosto algumas madeixas de cabelo húmidas.
— Que foi?
— Tenho estado a observar-te e eu... bem, eu...
Ela ergueu uma mão.
— Lamento, Ben. Eu sei que fomos dançar em Buenos Aires, mas foi só para libertar um pouco a tensão. Quero manter esta experiência puramente profissional.
Ben sorriu, apercebendo-se de que Linda pensara que ele se estava a atirar a ela. Tendo em conta o seu aspeto, devia acontecer-lhe muitas vezes.
— Calma, miúda. Não é por isso que aqui estou.
— Então é porquê?
— Ao longo dos anos, conduzi carradas de turistas através de grutas e... bem, consigo perceber quando vou ter problemas. Desde a noite em que saímos para dançar que te tenho observado. Tanto naquele bar apinhado, como agora nestas grutas, tens estado muitíssimo nervosa. Respiração entrecortada, palmas das mãos suadas, rosto pálido. — Ben viu os olhos dela fixarem-se no chão de pedra ao ouvir as suas palavras. — Foi por isso que vim falar contigo. Pensei que talvez quisesses tirar algum peso de cima de ti.
Linda ergueu o rosto para ele, os olhos molhados de lágrimas.
— Tens razão, Ben. Tenho um problema com espaços apertados.
— Claustrofobia?
Linda esfregou a testa, baixando de novo os olhos, e acenou com a cabeça.
— Durante a viagem que nos espera, vamos depararmo-nos com muitos espaços apertados. Um membro de equipa em pânico pode pôr todos em perigo.
— Eu sei. Mas estou medicada e passei por anos de terapia. Consigo lidar com isto.
— Até aquele bar de tango em Buenos Aires te abalou.
— Porque não tomei os comprimidos. Não pensei que fosse precisar deles. O bar, com a multidão compacta e a música alta, apanhou-me desprevenida. Eu consigo lidar com esta missão.
Ben estendeu os braços e agarrou-a pelos ombros.
— Tens a certeza?
Ela olhou para ele.
— Eu vou ficar bem. Eu consigo fazer isto.
Outro peixe saltou na água. Desta feita o ruído não sobressaltou Linda. Esta continuava a fitar Ben, olhos nos olhos.
Ele avaliou a determinação de Linda, mantendo o silêncio durante vários segundos.
— Trouxeste uma cana de pesca? — acabou por perguntar.
— Porquê?
— Vais precisar dela se quiseres recolher espécimes durante a viagem.
— Então não vais falar disto a ninguém? — Linda limpou os olhos.
Ben soltou-a e pegou numa pedra lisa. Lançou-a, fazendo-a saltar sobre a superfície lisa do lago.
— Falar de quê?
Quanto mais a vida muda, mais permanece igual, pensou Ashley, fitando o prato. À sua frente, o queijo borbulhava e a massa branca flutuava num fumegante molho marinara. Ondas de alho chegaram-lhe ao nariz. Lasanha outra vez. Ashley sorriu, recordando o último jantar de lasanha no dia em que Blakely lhe propusera aquela missão. O prato era o mesmo, mas não o lugar. Linho, porcelana, candelabro de cristal, mesa de jantar de mogno. Não a sua kitchenette de caravana. Espetou o garfo na massa.
— Professora Carter — disse Blakely. — Pedi a um dos meus associados na investigação, o doutor Harold Symski, para a guiar numa visita à parede norte. Irá ter consigo amanhã de manhã, por volta das oito horas.
Mantendo uma mão erguida, ela engoliu a comida que colocara na boca.
— Dado que só tenho um dia, preferia começar mais cedo. Digamos às seis da manhã.
Blakely sorriu.
— Vou informar o doutor Symski.
Ben pigarreou e limpou um fio de queijo do queixo.
— Também gostava de as ver.
— Por mim tudo bem — disse Blakely. — Está bem para si, professora Carter?
Ashley imaginou Ben a rastejar ao seu lado numa caverna apertada, o corpo dele contra o seu.
— Desde que não se atravesse no meu caminho.
Ben ergueu as mãos num gesto de inocência fingida.
— Quem, eu?
Blakely dirigiu-se o resto do grupo.
— Mais alguém?
Jason ergueu uma mão hesitante.
— Eu gostava de ir.
— Não creio que seja sensato — disse Blakely em tom firme. — Há muitos deslizamentos e falhas naquela zona. É mais seguro aqui.
Jason virou-se para Ashley.
— Mas, mãe, eu...
Linda interrompeu-o.
— Ele pode vir comigo. Vou estudar o lago. A secção que vou analisar fica dentro dos limites do campo. — Ela virou-se para o rapaz. — Gostarias de me ajudar, Jason?
Ashley baixou os olhos para o filho que corava.
— Pode ser assim, querido?
Jason acenou com a cabeça com a voz um pouco esganiçada.
— Claro. Eu ia gostar.
Linda sorriu.
— Então está combinado. Eu e o Jason vamos fazer uma pesquisa.
Ben, sentado do outro lado de Jason, tocou-lhe com o cotovelo.
— Assim é que é, campeão — sussurrou, fazendo-o, contudo, alto o suficiente para que Ashley o ouvisse. — Agora nós os dois temos encontros marcados.
Jason disfarçou um sorriso com a mão pequena.
Ashley revirou os olhos. Homens.
Apagar das luzes. Da sua janela, Khalid observou as lâmpadas a piscar, enquanto o acampamento se aquietava para dormir, um pôr do sol falso na sala escura. A importância dos ritmos circadianos num ambiente escuro tinha-lhes sido anteriormente explicada por Blakely. O melhor desempenho exigia que o ambiente fosse afinado de acordo com um padrão diário regular de escuridão e luz.
Aquilo adequava-se bem aos seus planos. As sombras teciam um belo manto.
Em breve, só estavam acesas algumas lâmpadas espalhadas pelo acampamento. Com exceção do holofote junto ao elevador. O seu feixe de luz apunhalava o teto, traçando ovais lentamente em redor das estalactites, quais dedos negros a apontar para baixo.
Khalid olhou de relance para o relógio. Dez horas. Era tempo de se pôr ao trabalho. Deixou o seu quarto e esgueirou-se pela entrada do dormitório. A «noite» ainda estava quente, quase agradável, com uma humidade pesada no ar. Nada que se assemelhasse às noites secas da sua terra natal. As areias do deserto permaneciam quentes bem depois do cair da noite fria. As estrelas dispersas pelo céu como os fogos da jihad de Alá.
Passando pela metade residencial do acampamento, avançando por entre meio hectare de tendas cor de caqui, Khalid raramente se afastava das sombras. No entanto, mantinha o passo casual, para o caso de alguns olhos o verem. No lado mais distante do acampamento, do outro lado de uma profunda ravina, estavam situados os laboratórios de investigação e o quartel-general militar. O seu destino, o elevador, estava situado nesse acampamento distante.
O único obstáculo: a ponte sobre o abismo. Ao sair do elevador, algumas horas antes, apercebera-se de que esta estava guardada. Contudo, um guarda não seria um obstáculo demasiado grande.
Khalid continuou a percorrer o campo adormecido. Depois de ter contornado sub-repticiamente um último barracão Quonset, viu a ponte, feita de madeira e metal, iluminada por lâmpadas nos cantos. A luz de um dos cantos estava fundida. Um só homem de uniforme apoiava-se num dos postes de iluminação, uma espingarda ao ombro. Uma rápida análise indicou que a área estava livre.
Verificando os bolsos, Khalid avançou para a ilha de luz junto à ponte e dirigiu-se calmamente para a ravina negra. O guarda apercebeu-se da sua aproximação, desencostou-se do poste e tirou a espingarda do ombro. Khalid avançou até à beira da ravina, a cerca de um metro da ponte. Inclinando-se para a frente, espreitou para a escuridão, o fundo do abismo permanecia um mistério negro.
O guarda, um jovem de cabelo cor de trigo do campo, chamou-o.
— Tenha cuidado aí. A terra na beira esboroa-se facilmente.
— Terei cuidado. Só queria espreitar. — Khalid levou a mão ao bolso do peito do casaco, tomando nota de que o guarda nem sequer erguera uma sobrancelha perante um movimento tão ameaçador.
Ótimo.
Retirou um maço de Winston e bateu com ele, para fazer sair um cigarro. Metendo-o na boca, voltou a guardar o maço no bolso e retirou deste um isqueiro Bic vermelho. Observou o guarda pelo canto do olho enquanto o acendia; a atenção do guarda estava fixa na chama.
Khalid apagou o isqueiro e deixou-o deslizar pelo bolso, ao lado da faca.
— Quer um? — perguntou ao guarda.
O guarda encolheu os ombros.
— Obrigado, meu. — Deixou o seu posto e avançou para o local onde Khalid se erguia no limite do abismo.
Khalid tirou do bolso o maço de cigarros e abanou-o para que saíssem alguns cigarros para o guarda.
— Tire dois.
O guarda prendeu um nos lábios e colocou o outro no bolso do uniforme.
— Tem lume?
— Claro. — Khalid levou a mão ao bolso e envolveu a faca com os dedos. Tossiu, para abafar o estalido da lâmina a ser libertada do cabo quando carregou no botão. — Alguma vez desceram ao fundo do abismo?
— Nah. — O guarda olhou de relance para a falha negra. — Demasiado fundo.
— Ótimo. — Tendo desviado a atenção do guarda, Khalid sacou da faca e cortou profundamente o pescoço do Marine, assegurando-se de que cortava abaixo da laringe para garantir uma morte silenciosa. Sem gritos, apenas com o gorgolejar do sangue.
Recuando para evitar o jorro de sangue arterial, empurrou o guarda para a ravina. Por um momento, o guarda vacilou, agitando os braços, enquanto tentava recuperar o equilíbrio. Os olhos muito abertos numa expressão de terror, o sangue a correr-lhe pelo peito. Depois tombou para a escuridão.
Khalid ficou à escuta. Passados uns segundos, ouviu um baque distante.
Satisfeito, atravessou a ponte e deslizou para as sombras. A partir dali teria de se mover rápida e silenciosamente. Avançou através da base, na direção do elevador, evitando as zonas de luz. Felizmente, eram poucas e espaçadas.
Ao fim de quatro minutos, estava no elevador. A área, bem iluminada mas sem olhos, não estava guardada. Os militares, isolados do mundo, estavam demasiado confiantes na segurança da sua periferia.
Depois de um minuto a estudar o local, Khalid agachou-se e apressou-se para a enorme caixa de metal que abrigava o motor do elevador. Fez deslizar um cubo de plástico do bolso interior do casaco e prendeu-o ao motor num canto escuro. Parou por um momento. Não era hora de ser frugal. Tirou um segundo cubo e colocou-o ao lado do primeiro. Assim estava melhor. Mais do que suficiente para deixar uma cratera no local onde agora se encontrava o motor. Armadilhou-os cuidadosamente, de modo a poder ativá-los com um sinal do seu transmissor. Fitou o seu trabalho com um sorriso de lábios comprimidos.
Uma medida de segurança. Quando chegasse a hora, aquilo dissimularia a sua fuga, garantindo que ninguém subiria atrás dele.
Depois de uma última verificação, embrenhou-se de novo na escuridão.
CAPÍTULO 8
Sete da manhã? Dir-se-ia antes meia-noite.
Ashley abanou a cabeça, olhando pelo para-brisas enquanto o veículo elétrico avançava aos solavancos. Dado o espaço apertado das grutas e o risco de carregar o ar de monóxido de carbono, os motores de combustão interna tinham sido proibidos, com exceção de algumas embarcações.
Por isso, os veículos de transporte semelhantes a carrinhos de golfe, a que o pessoal da Marinha chamara «Mulas», eram o único verdadeiro meio de transporte na Caverna Alfa.
Ashley esfregou o vidro embaciado da Mula. Só os faróis rompiam a escuridão à sua frente. Ao seu lado, com as duas mãos a agarrar firmemente o volante, seguia o doutor Symski, um jovem investigador sardento que só há pouco terminara os estudos.
Do banco de trás, sobre o zumbido do motor elétrico, os roncos de Ben irrompiam como tiros de caçadeira. Olhou de relance por cima do ombro. Como conseguiria ele adormecer assim? A viagem consistia numa excursão de uma hora por terreno acidentado. Um salto particularmente grande fê-la virar-se de novo para a frente.
O doutor Symski olhou-a de lado.
— Nem acredito que estou sentado ao lado da professora Carter — disse ele. — Já li a sua tese acerca dos penhascos de Gila. Um trabalho espantoso. E agora está aqui.
— Obrigada — disse ela. O jovem investigador tinha entusiasmo a mais para aquela hora da manhã. O café da manhã ainda não fizera efeito e o cheiro do ozono libertado pelas baterias do motor estava a deixá-la enjoada.
— Quem me dera que estivesse connosco desde o início. Temo que já não haja nada para explorar. Já percorremos, catalogámos, esquematizámos e explorámos cada centímetro quadrado. Está tudo nos documentos que lhe enviei a noite passada.
Ashley esfregou os olhos vermelhos. Estivera acordada até às quatro da manhã, para ler as resmas de dados. Duas horas de sono não prenunciavam uma manhã agradável.
— Quem me dera que mos tivessem enviado mais cedo por fax. Teria gostado de os ler de forma mais minuciosa antes de visitar o local.
— Lamento, mas tudo tem o selo confidencial. Recebemos ordem para restringir o acesso até à vossa chegada.
Ashley observou a estrada em frente, enquanto a Mula avançava lentamente pelas sombras.
— Maldito secretismo — resmungou.
— Vou mostrar-lhe as áreas principais quando chegarmos. Uma visita guiada, por assim dizer.
Para o diabo com aquilo, pensou.
— Ouça, doutor Symski, tenho a certeza de que a sua equipa foi muito precisa. Mas eu preferia explorar sozinha. Sentir o espaço. O estudo de um local envolve muito mais do que numerar e catalogar.
— Como assim?
Ashley inspirou fundo. Como explicar por palavras? Quanto mais se trabalha numa escavação, mais o local revela o seu próprio carácter — ou alma. Por exemplo, as habitações de Gila transmitiam uma «sensação» diferente das de Chaco Canyon. Parecia-lhe que aquela perspetiva acrescentava um nível único de conhecimento em relação a pessoas e costumes.
— Esqueça — disse ela. — É apenas o que eu faço.
O doutor Symski encolheu os ombros.
— Nesse caso, deixá-la-ei em paz. De qualquer modo, queria confirmar algumas medições.
Ashley acenou com a cabeça. Ótimo. Ele começava a dar-lhe cabo dos nervos.
Recostando-se no assento, permitiu que a estrada a embalasse. Precisamente quando já tinha os olhos meio fechados, o doutor Symski parou a Mula com uma travagem abrupta.
— Aqui estamos nós — disse.
Ashley olhou para o exterior. Não havia nada além de escuridão para lá do alcance dos faróis.
— Onde?
— Primeiro tenho de ligar o gerador.
Abriu a porta do seu lado e as luzes interiores do veículo acenderam-se. Ben despertou com um gemido sobressaltado.
— Já chegámos? — perguntou com a voz rouca, passando a mão pelo cabelo.
— Sim — disse ela, tentando carregar a voz com tanto desdém quanto possível. — Sabes, podias recuperar o sono no acampamento.
— E perder isto? Nem penses.
Ashley observou o jovem cientista de lanterna na mão a dirigir-se à parede oposta, onde se encontrava o gerador. Curvou-se e começou a mexer na unidade. Franzindo o sobrolho, Ashley desceu do veículo, na esperança de que os desajeitados investigadores militares não tivessem adulterado a escavação. Tinham sido tantas as vezes em que, no passado, pistas essenciais para a história das sociedades antigas foram espezinhadas por incompetentes.
Passados alguns instantes, o gerador tossiu, cuspiu, depois aquietou-se num ronco constante. Os projetores acenderam-se, ofuscantes depois da viagem na escuridão. A parede norte iluminou-se como um palco enorme.
— Uau — disse Ben enquanto descia, colocando-se ao lado dela.
Um andaime de estruturas metálicas e tábuas empenadas cobria a parede repleta de cavernas. As habitações subiam pela parede, em cinco níveis distintos; estimou que atingissem cerca de trinta e cinco metros de altura. Os níveis estavam ligados uns aos outros por uma série de apoios para as mãos ou degraus toscos. Esforçou a vista, olhando para a esquerda; as habitações escavadas na parede estendiam-se inclusivamente sobre o lago, com placas de pedra que se projetavam sobre as águas como alpendres.
— Que te parece, Ashley? — Ben estava de pé à sua esquerda.
— Podia passar anos aqui.
Ben acenou com a cabeça.
— Quem achas que construiu isto?
Ashley apontou para a parede.
— Uma coisa eu sei. Isto não foi construído pelo Homo sapiens.
— Quem?
— Por nós. Pelo homem moderno. Isto foi construído por uma espécie de homem anterior. Quer dizer, olha para o tamanho das cavernas. Nenhuma delas tem mais de um metro e vinte de altura. São demasiado pequenas para o homem moderno. Talvez o Homo erectus, mas mesmo assim duvido. — Deu por si a pensar em voz alta. — Uma tribo neandertal? Não sei. Nunca vi uma tribo neandertal construir tanto. E como é que aqui chegaram? — Encolheu os ombros. — Tenho de ver mais de perto.
— Não devíamos esperar pelo doutor Symski?
— Não creio que seja necessário. — Avançou em direção à parede, colocando na cabeça um capacete de mineiro.
Ouviu o som das botas de Ben quando este a seguiu.
O doutro Symski chamou-a.
— Tenham cuidado onde põem os pés. Há várias fendas, algumas bastante fundas.
Ashley acenou-lhe para que soubesse que o tinha ouvido, mas abanou a cabeça. Que pensaria ele? Que ela era uma estreante? Avançou mais depressa.
De súbito, algo a agarrou por trás. Instintivamente, projetou o cotovelo para trás de si.
— Ai! — disse Ben, libertando-a e recuando. — Só estava a tentar impedir-te de caíres num buraco. — Apontou para a frente dela, esfregando o plexo solar. — Que costumas fazer a essa coisa? Afiá-la?
Ashley cobriu o cotovelo com a mão, como se estivesse a tentar escondê-lo.
— Desculpa. — Mesmo depois de lhe terem chamado a atenção para ele, o buraco negro era quase impossível de distinguir da pedra preta. Contornou-o. — Não o vi.
— Podias ter torcido um tornozelo.
— Obrigada.
— Não tens de quê. Mas quando te voltar a tocar, tenta não me matar.
Ashley sentiu o rosto aquecer. Pigarreou, sentindo-se grata pela escuridão.
— Vamos ver as habitações mais em baixo — sugeriu, afastando-se dele. Não conseguia perceber se se sentia mais envergonhada pela sua gafe ou furiosa com a sua reação... ou outra coisa. Ele era tão diferente do seu ex-marido. Enquanto Scott, que nunca despia a sua pele de contabilista, era calmo e muitas vezes solene, raramente partilhando os seus pensamentos íntimos, os modos descontraídos e o bom humor de Ben eram perturbadores.
Chegaram a uma das entradas.
— Primeiro as senhoras — disse Ben.
Ashley evitou olhar para ele e agachou-se, iluminando o interior com a lâmpada do seu capacete. A câmara estendia-se por cerca de quatro metros e meio. As paredes sem quaisquer adornos tinham sido claramente escavadas na pedra e polidas. Passou a mão pela superfície interior lisa, impressionada com o engenho e a tenacidade dos primeiros homens. Com ferramentas rudimentares, teriam sido precisos anos para escavar cada uma das câmaras.
O interior, que não apresentava quaisquer pistas acerca dos seus ocupantes, estava vazio. Inclinando-se, entrou. Não custava nada dar uma vista de olhos.
O capacete raspou no teto enquanto ela avançava pela pequena abertura. Apercebeu-se de uma pequena cova no chão perto da entrada. Provavelmente uma fogueira antiga. Avançou até ao fundo da câmara. Nada. Sentou-se por um momento, pensando em quem teria construído aquelas casas.
— Encontraste alguma coisa?
Ashley ergueu os olhos para Ben, de capacete e agachado sobre um joelho junto à entrada. A sua figura bloqueava toda a abertura.
— É estranho — disse ela.
— O quê?
— Para onde foram todos?
Ben encolheu os ombros.
— Provavelmente morreram. Extinguiram-se. Como os dinossauros.
Ashley abanou a cabeça.
— Não. Isso não faz sentido, tendo em conta o estado do local.
— Como assim?
— Os primeiros exploradores só descobriram uma mão-cheia de ferramentas partidas e tigelas de pedra rudimentares. Normalmente estas povoações primitivas estão repletas de artefactos. Mas aqui... nada.
— Devem ter-se mudado, levando com eles as suas coisas.
— Precisamente! — Acenou com a cabeça, impressionada pela intuição de Ben. — Mas porquê partir? Porquê passar décadas a escavar este habitat para o abandonar em seguida? Então e a estatueta de diamante? Porquê deixá-la para trás?
Ben permaneceu em silêncio.
— Se ao menos pudesse passar mais tempo aqui. — Bateu com a mão aberta na pedra.
— Porquê? Parece que eles já passaram tudo a pente fino.
Ashley abanou a cabeça.
— Não. Com demasiada frequência deixam-se escapar pistas. Mesmo depois de anos de estudo. Preciso de mais tempo.
— Mas porquê dares-te a esse trabalho? Podemos encontrar muito mais respostas durante a nossa exploração.
— Espero que sim. — Ashley gatinhou até à entrada. Ben ofereceu-lhe a mão para a ajudar a sair. Ela aceitou, a mão dele era quente contra a palma fria da sua. Ben puxou-a para si. Surpreendida pela força dele, o pé esquerdo de Ashley deslizou na cova húmida da fogueira e caiu para trás, aterrando no buraco e arrastando Ben para cima de si.
O nariz de Ben ficou a poucos centímetros dos seus seios. Ele ergueu os olhos para ela.
— Não me vais voltar a bater, pois não?
— Desculpa. Escorreguei. — Ashley corou violentamente, o corpo dele pesado sobre o dela.
Ben pigarreou.
— Não são precisas desculpas — disse, sorrindo-lhe. — Mais alguns deslizes assim e podemos ser obrigados a casar.
Ela fitou-o com uma careta.
— Sai mas é de cima de mim. — Ashley pretendia ser firme, mas não conseguiu fazê-lo na perfeição.
De súbito, sem qualquer controlo, começou a rir. Não conseguia evitá-lo. E não conseguiu parar.
— Estou a falar a sério... — disse entre gargalhadas. — ... Sai de cima!
Olhando para ela com uma expressão estranha, Ben saiu de cima dela.
— É bom ouvir-te rir.
Ashley limpou uma lágrima dos olhos, ainda agitada por ocasionais ondas de gargalhadas. Pousou a cabeça no chão, tentando recuperar o fôlego. Fitou o teto. E viu-a. Ali, no teto, por cima da entrada.
— Raios!
Semicerrou os olhos, fitando o teto de novo. Não era imaginação sua.
— Raios!
Sentou-se.
— Que foi? — perguntou Ben com uma expressão de preocupação estampada no rosto.
— Aqueles idiotas disseram que tinham vasculhado cada centímetro quadrado deste local. Não há obras de arte. Não há pinturas rupestres. — Apontou para o teto. — Então que raio é aquilo?
Ben inclinou-se e virou a cabeça.
— O que é o quê?
— Tens de te deitar. Acho que foi por isso que ninguém a viu. — Afastou-se para o lado, para que ele se pudesse deitar ao lado dela. Apontou com a luz do capacete. — Ali mesmo! Olha!
A gravura rudimentar destacava-se no círculo de luz. Apenas com a dimensão de uma mão, estava cinzelada no teto uma oval cortada por uma linha irregular, como um relâmpago.
Ben estendeu o braço e, com um assobio prolongado, deslizou o dedo por ela. As suas palavras seguintes foram um sussurro.
— Sabes, isto parece-me familiar.
— Como assim? — Ashley estava à espera de ouvir uma piada.
— Já vi algo assim. Foi o meu avô que me mostrou.
— Estás a brincar?
— Não, estou a falar a sério. — A sua voz soava genuína. Quase espantada. — A minha bisavó era gagudja, uma tribo aborígene da região de Djuwarr. Já to tinha dito?
— Não.
Ben sorriu a centímetros do nariz dela.
— Juro por Deus, minha dama.
O homem parecia ter mais lados do que o Pentágono. Isso ou estava a contar-lhe uma bela história da carochinha. Ashley estudou-o e apercebeu-se de que os seus olhos azuis estavam muito sérios. Engoliu em seco e virou-se de novo para o desenho no teto.
— Lembra-te alguma coisa em específico?
Ele encolheu os ombros, tocando num dos dela.
— Não é bem o mesmo. Mas dá uns ares do símbolo gagudja para um dos seus povos-espíritos. Um dos mais antigos, chamados mimi.
Ashley analisou a informação. Poderia haver ali alguma ligação? Talvez uma tribo aborígene perdida? Mas aquelas habitações datavam de há cinco milhões de anos. Eões antes do surgimento dos aborígenes no continente australiano.
Franziu o sobrolho perante o desenho oval. Provavelmente não passava de uma coincidência. Já testemunhara a universalidade de alguns símbolos entre outras culturas. Seria esse o caso? Raios, o símbolo era bastante básico.
— Estes espíritos mimi — perguntou. — Que tipo de espíritos eram?
— Não passam de disparates. Histórias.
— Não, continua. Os mitos têm frequentemente uma ponta de verdade. Diz-me.
Ben tocou nas paredes da gruta.
— Os mimi eram espíritos que viviam nas rochas.
Ashley sentiu um arrepio percorrer-lhe a coluna, ao notar que estavam rodeados de pedra.
— Os mimi ensinaram os primeiros bosquímanos a caçar e a pintar. Eram muitíssimo reverenciados. E...
Nesse preciso momento, o doutor Symski regressou, erguendo-se aos seus pés.
— Que estão a fazer? — A sua voz era simultaneamente crítica e embaraçada.
Consciente da sua estranha posição, Ashley saiu apressadamente.
— Pensei que já tinham analisado esta área.
— Analisámos. Porquê?
Ashley apontou para o espaço ao lado de Ben.
— Vá ver. No teto.
O cientista gatinhou para junto do australiano.
— Meu Deus! — exclamou ao olhar para o local indicado por Ben. — É espantoso. Credo, o que acha que significa?
— Não faço ideia — respondeu Ashley de mãos nas ancas —, mas tenciono descobrir.
Sentada num cobertor, Linda observava a água do lago cristalino a bater nas rochas ao longo da margem a cerca de um metro de distância. As águas, transparentes como vidro, fervilhavam com peixes pequenos e outras espécies marinhas. Um cesto de piquenique, preparado pelo cozinheiro da messe, estava aberto ao seu lado. Duas sandes meio comidas repousavam num prato de papel. Mortadela e queijo.
— Parecem pequenos monstros — disse Jason.
Sorrindo, Linda olhou de relance para o rapaz que se debruçava sobre o microscópio portátil Nikon que ela levara, observando uma amostra de água retirada do lago.
— As figuras cónicas chamam-se ciliados tintinídeos — disse. — As mais quadradas são diatomáceas.
— Que são? Algum tipo de inseto?
— Na realidade não. Assemelham-se mais a plantas. Trata-se de uma família de organismos chamados fitoplâncton. Absorvem a luz solar e convertem-na em energia, como as plantas.
— Mas se precisam de luz solar... como as plantas... — Jason voltou-se para olhar para ela, o rosto cerrado numa máscara de concentração. — Como é que conseguem sobreviver aqui em baixo, no escuro?
Linda despenteou-lhe o cabelo.
— Essa é uma pergunta muito boa. Não tenho a certeza. Mas acredito que exista uma corrente subterrânea que transporta o plâncton das águas da superfície para este lago subterrâneo. A água é muito salgada. Como se fosse água do mar diluída.
— Que têm de tão importante... estes... — Jason apontou para o microscópio — ... insetos?
Enquanto considerava as implicações, Linda permitiu que o seu olhar deslizasse pelo acampamento. Apercebeu-se de um aumento de atividade entre o pessoal militar junto à ravina que dividia a base. Provavelmente um exercício de treino.
— Então? — perguntou Jason, voltando a chamar-lhe a atenção.
Linda virou-se de novo para o rapaz.
— Queres uma aula de ciências?
— Claro! — respondeu ele, entusiasmado.
— Está bem, tu é que pediste. — Ela sorriu-lhe, gostando daquele carácter inquisitivo. — Este plâncton é o componente básico da vida. Em terra firme, a erva converte a luz solar em energia. Depois a vaca come a erva. Depois nós comemos a vaca. É assim que a energia do Sol chega até nós. No mar, é o fitoplâncton que transforma a luz solar em energia. O fitoplâncton é comido por criaturas pequenas, como as alforrecas, as esponjas e os corais... — Linda apontou para os vairões que nadavam junto à costa — ... que, por sua vez, são comidos por aqueles peixinhos. Depois peixes maiores comem os peixinhos. E por aí em diante. De tal maneira que, mesmo no mar, a energia da luz solar é passada de uns para os outros. Compreendes?
— Então esta coisa do plâncton é como a nossa relva.
— Exatamente. São os campos relvados onde germina este ecossistema.
Jason acenou com a cabeça.
— Fixe.
— Portanto, demos o primeiro passo e determinámos que a água está viva. Em seguida, depois de terminarmos as nossas sandes, temos de apanhar algumas das criaturas que vivem na água. Vi algumas estrelas-do-mar perto da margem, ali ao fundo, bem como algumas esponjas. Queres ajudar-me a apanhar umas quantas?
— Pode crer!
— Mais tarde, um dos Marines prometeu que nos apanharia também um daqueles peixes brilhantes. — Linda estava curiosa em relação às propriedades fosforescentes daqueles grandes peixes. Nunca tendo visto nada assim, sentia-se entusiasmada com a perspetiva de classificar uma nova espécie de peixes.
— Porque não começamos já? — Jason começou a erguer-se. — Eu vi algumas...
— Espera lá, meu jovem. — Linda apontou para o prato. — Primeiro, tens de terminar o teu almoço. És responsabilidade minha até ao regresso da tua mãe.
Jason fez um trejeito com os lábios e voltou a sentar-se no cobertor.
— Oh, está bem.
Entregando a Jason a sandes dele, Linda deu uma dentada na sua.
— Mas vamos despachar-nos. Temos peixes para apanhar!
— Dos grandes — acrescentou ele com um ligeiro sorriso.
— Os maiores. Podíamos comê-los ao jantar.
— Peixes que brilham? Blah!
— Então, rapaz, não desdenhes. Se as luzes se apagarem, pelo menos consegues ver o que estás a comer.
Aquilo fê-lo rir. Linda sorriu, quase esquecendo os quilómetros de pedra que se estendiam sobre a sua cabeça.
Ben observou Ashley curvar-se e estudar o local do altar. Aquela mulher tinha umas curvas diabolicamente bonitas. Tirou o capacete e limpou a testa húmida com um lenço vermelho. Estava a fazer-se tarde. O estômago já roncava. Felizmente, aquela era a última câmara que faltava investigar.
Suspirou ao ver Ashley sacar da fita métrica.
— Outra vez, não — praguejou num sussurro. Desde a descoberta daquela manhã que sentia que estava a mais, arrastando-se atrás de Ashley e do doutor Symski enquanto estes exploravam. Parando em cada câmara para medir, raspar, recolher amostras. Entediante. Esperara conseguir passar mais algum tempo a sós com Ashley. Mas depois da descoberta da gravura, os dois cientistas eram como cães de caça atrás de um rasto. Nada os conseguia distrair. Nem uma piada, nem uma tirada sarcástica. Ele era praticamente invisível.
— Então foi aqui que descobriram a estatueta de diamante? — Ashley ajoelhou-se ao lado do altar de pedra. Erguia-se como um cogumelo do piso de uma das câmaras. — O pedestal foi esculpido na pedra do local. O que sugere que os seus construtores criaram esta câmara com um propósito em mente. Todas as outras câmaras têm neste lugar as covas das fogueiras. — Ashley apontou para o teto. — Além disso esta é a única que não tem um símbolo oval por cima da porta.
Ben erguia-se na pequena protuberância na rocha que funcionava como degrau para a câmara. Olhou de relance para as águas bem abaixo. A câmara ficava no nível mais elevado e localizada na secção do penhasco que se erguia sobre o lago. Sem os andaimes, teria sido uma subida difícil, mesmo para ele.
Ashley virou-se para o doutor Symski agachado no fundo da caverna.
— Quando os seus investigadores encontraram a estátua — perguntou —, ela estava virada para fora ou para dentro?
— Bem. — Ele arrastou os pés. — Sabe, houve um acidente. O primeiro homem a entrar aqui fê-la cair. Não sabemos para que lado estava virada.
Ashley bateu com a mão no altar de pedra.
— Que outros pormenores essenciais é que estragaram?
O doutor Symski corou.
Ben, sentindo-se irritado com tanta picuinhice, interveio.
— Que diferença faz? Se estava virada para dentro ou para fora, ou se estava deitada de costas?
Ashley, de olhos semicerrados, virou-se para ele.
— Faz toda a diferença do mundo. Este é o único artefacto significativo da escavação. Deve ter sido de grande importância para a cultura que aqui habitava. Se estava virado para fora, provavelmente era um amuleto protetor, usado para manter à distância os espíritos maus. Se estava virado para dentro, provavelmente era um objeto de adoração, usado em rituais.
Ben coçou atrás da orelha, um fio de suor a escorrer-lhe de baixo do capacete.
— No grande esquema das coisas, que diferença faz se era um amuleto ou um ídolo? Como é que isso vai resolver o mistério maior do desaparecimento de todos?
Ashley abriu a boca para responder, depois fechou-a de forma abrupta e quase audível.
— Desisto — foi tudo o que balbuciou, enquanto passava por ele e iniciava a descida.
Ben arrependeu-se imediatamente do seu comentário.
— Espera — chamou, descendo atrás dela. O doutor Symski seguiu-os.
— Para o diabo com os dois! — gritou ela sem sequer olhar para trás.
Foi uma viagem silenciosa de volta à Base Alfa.
Ben afundou-se no seu lugar. O início do dia tinha corrido tão bem. Ashley parecia mesmo ter começado a engraçar com ele. Até a conseguira fazer rir. Ali, por um momento, ela parecera realmente interessada naquelas velhas histórias do seu avô. Realmente interessada nele.
Fitando o seu perfil, ligeiramente inclinado na direção da janela, franziu o sobrolho, cerrando um punho. Raios, depois de ter enfiado os pés pelas mãos, tinha arruinado as suas hipóteses. Por completo. Olhou para fora, enquanto a Mula atravessava a escuridão em direção às luzes distantes da base, o ambiente tão negro dentro do veículo como fora.
CAPÍTULO 9
— Mãe, devias ter visto o peixe que nós apanhámos. — Jason abriu os braços tanto quanto lhe foi possível, quase batendo em Linda, que estava sentada ao seu lado à mesa de jantar. — Era maior do que isto.
— Isso é um peixe e tanto — disse Ashley.
— Era fosforescente! Isso quer dizer que brilhava.
Ashley reparou que ele escolhera sentar-se ao lado de Linda ao jantar. Os dois deviam ter tido um dia espantoso juntos.
— Era azul. Com uns dentes enormes.
— Parece muito esquisito, amigo — disse Ben ao entrar na sala de jantar, o cabelo ainda húmido do banho. — Um verdadeiro gambozino.
— Olá, Ben! — disse Jason, saudando-o com um sorriso gigantesco. — Devias ter estado lá.
— Desculpa, campeão — disse Ben. — Tive de ajudar a tua mãe. — Sentou-se, deixando algumas cadeiras de intervalo entre ele e Ashley.
Ela percebia porque escolhera sentar-se tão longe. Brincou com as ervilhas que tinha no prato, sabendo que tinha sido uma verdadeira cabra à tarde.
Talvez devesse pedir desculpas pela sua explosão anterior. Abriu a boca para falar quando a porta da sala de jantar se abriu e Khalid entrou.
— Boa noite a todos — disse, avançando para se sentar do outro lado de Linda. — Desculpem o atraso, mas cruzei-me com o doutor Blakely e ele pediu-me que vos dissesse que ia tratar de algumas questões de última hora e não se juntaria a nós para jantar.
Ashley apercebeu-se de que faltava outra pessoa.
— Alguém sabe do Michaelson?
— Sim — disse Linda, erguendo uma mão. — Bem, não diretamente. Um Marine que nos ajudou a pescar hoje disse-me que o major Michaelson estava alojado na secção militar da base. Do outro lado da ravina.
— Por que razão? — perguntou Ashley. — Temos bastante espaço aqui. O edifício está praticamente vazio.
— Suponho que esteja a preparar os outros dois homens para a viagem — disse Linda. — Os nossos guardas.
Que bom, pensou Ashley, mais dois homens armados a acompanhá-los na excursão, mas aquela não era a melhor altura para protestar. Era a véspera da sua aventura. Além disso, enquanto líder, devia dizer qualquer coisa. Algo dramático. Algo inspirador. Mas a sua mente era um vazio. Pousou o garfo. Tinha de dizer alguma coisa.
Observou os outros a terminarem o jantar e lutou para encontrar as palavras certas enquanto os colegas de equipa jantavam e conversavam descontraidamente. Depois de Ben ter limpo o molho do prato com uma fatia de pão e ter dado uma palmadinha na barriga com um suspiro, Ashley continuava sem fazer ideia do que dizer. Para o diabo com as palavras «certas».
Ashley pigarreou.
— Eu... gostaria de... fazer um brinde. — Ergueu o copo de água e levantou-se. Os outros fitaram-na expectantes. — Nos últimos dias, tivemos de lidar com muitas coisas inesperadas. E acho que todos nos sentimos algo espezinhados, mas amanhã embarcamos numa viagem durante a qual o sucesso da nossa missão dependerá da nossa capacidade de trabalharmos como uma equipa. E, por muito que o Blakely me irrite pessoalmente, acho que reuniu uma equipa dos diabos. Por isso — disse, erguendo um pouco mais o copo — um brinde a nós. À equipa.
— À equipa! — ecoou o grupo, erguendo as respetivas bebidas.
— Sim, a vocês, rapazes! — disse Jason, bebendo da sua cola.
Linda despenteou-lhe o cabelo.
— Então e as raparigas?
Jason corou.
— Sabes o que eu quis dizer.
— Eu sei. — Linda inclinou-se e deu-lhe um beijo no rosto. — Obrigada.
Jason tinha, entretanto, ficado com um desconfortável tom púrpura.
Enquanto Ashley sorria perante a confusão do filho, sentiu uma mão no ombro. Ben estava atrás dela. Inclinou-se e sussurrou-lhe ao ouvido.
— Queria falar contigo. Podes dar um pequeno passeio depois de jantar?
— Hum... — Ashley hesitou, tendo sido apanhada desprevenida. Aquela era a última coisa que esperara. — Tenho de deitar o Jason.
— Bem, e se for depois disso? Preciso apenas de alguns minutos.
— É importante? Não pode esperar por amanhã de manhã?
— Bem, eu preferia tirar este peso de cima de mim esta noite.
— Claro — disse ela, relutantemente —, acho que posso ir ter contigo daqui a um bocadinho. Que tal meia hora?
— Ótimo. Encontramo-nos à porta. Vou buscar um casaco.
Ashley acenou e viu-o afastar-se.
— Jason, vamos subir para o quarto.
O filho, cuja cor se aproximava mais do normal agora que a atenção de Linda se virara para Khalid, afastou a cadeira com um ruído agudo.
— Posso ver televisão?
— Claro, mas só meia hora, depois, cama. — Envolveu-o com o braço, apertando-o contra si, e acenou aos outros dois. — Vemo-nos pela manhã.
Linda acenou-lhe com uma mão e Khalid com a cabeça.
Depois de ter instalado Jason em frente de uma repetição de Gilligan’s Island, Ashley vestiu uma camisola amarela.
— Volto num instante.
Jason acenou-lhe enquanto ela saía, os olhos nunca deixando o ecrã da televisão.
Ashley empurrou a porta e saiu para o exterior, tendo visto Ben a falar com um guarda. O australiano acenou ao Marine e avançou para ela.
— Obrigado por teres vindo.
Ashley envolveu o peito com os braços.
— Então?
— E se fôssemos até àquela ravina? — Ben apontou na direção da extremidade oposta do campo. — Ouvi dizer que aquele sítio é do melhor para namorar.
Ashley pôs as mãos nas ancas.
— Se pensas... não foi para isso que vim até aqui.
Ben sorriu-lhe.
— Só estava a brincar.
— Então querias falar de quê?
— Vá lá. Vamos andar. Quero mesmo ver aquele abismo. Quase não o consegui ver quando o atravessámos ontem. — Ofereceu-lhe o braço. — Vá lá.
Ashley ignorou o braço e arrancou à sua frente.
— Não posso ficar fora muito tempo. O Jason ficou acordado à minha espera.
Ben alcançou-a e estugou o passo para se colocar ao seu lado.
— Em relação a esta tarde...
Ashley ergueu uma mão.
— Eu sei, eu sei. A minha reação foi exagerada.
— Não, de todo, eu estava a ser um idiota.
Ashley virou-se para ele.
— É isso que pensas?
— Sem dúvida. Estava a meter o meu grande nariz onde não era chamado.
Ela estudou os olhos sérios e a linha determinada do seu maxilar iluminada pela luz da lanterna.
— Estás a ver — disse ela com um aperto na garganta a dificultar as suas palavras. — É isso que me incomoda mesmo.
— O quê? — Ele tocou ao de leve na mão dela, mas ela afastou-se.
— Era suposto eu ser a grande líder. Guiar e motivar a equipa. Mas uma simples pergunta faz-me explodir. Mas que líder que eu sou. — A voz dela falhou ligeiramente.
— Então, não te censures. — Ben estendeu ainda mais o braço e agarrou a mão dela. O toque incendiou-a como um choque elétrico. Ashley fez uma débil tentativa para se libertar, mas ele segurava-a com demasiada força. — Ouve, Ash, tinhas pouco tempo. Raios, só tinhas um dia para explorar as ruínas, e eu tinha de te distrair com perguntas parvas.
— As tuas perguntas não eram parvas. A minha resposta é que foi. — Tentou libertar a mão, mas, quando a puxou, ele aproximou-se mais. — Eu... — Como brilhavam os olhos dele à luz da lanterna. — Eu... acho que seria melhor continuarmos o nosso passeio. — Por fim, libertou a mão.
— Sim. — Ele afastou os olhos dela. — Tens razão.
Continuaram a atravessar o acampamento em silêncio.
O silêncio depressa se tornou doloroso.
— Sabes — disse Ashley —, agora que tive tempo para pensar nisso... o que mais me irritou esta tarde foi o facto de teres razão.
— Sobre o quê?
— A estátua. A verdade é que não fazia diferença o lado para que a estátua estava virada. Por vezes, fico de tal forma presa aos pormenores que perco de vista o quadro geral. E, quando me chamaste a atenção para isso, explodi. Desculpa.
— Ei, estavas sob muita pressão. Além disso, gosto de pessoas que dizem o que pensam. — Ela sorriu. — Pessoas como tu — acrescentou ele num sussurro.
— Obrigada, Ben. — Contornaram um barracão Quonset e viram a falha negra que se abria no chão mais à frente. À sua esquerda, uma ponte iluminada atravessava a ravina.
Mal avançaram para a zona iluminada, um guarda gritou-lhes a partir da ponte.
— Parem, imediatamente. — A arma virada na sua direção reforçava o aviso. — Esta é uma área de acesso restrito.
— Ora, ora — sussurrou Ben num aparte para ela, quando um segundo guarda se aproximou. — Já percebi por que razão todos pensam que este é um lugar romântico.
O guarda de rosto duro verificou a identificação de ambos.
— Podem passar. — Virou-se para o outro guarda na ponte e fez-lhe sinal com o polegar espetado. — Desculpem pelo susto, mas estamos a reforçar a segurança.
— Porquê? — perguntou ela.
— Lamento, minha senhora. Mas essa informação é classificada. — Virou-lhes costas e regressou à ponte.
Ashley virou-se para Ben.
— Que pensas disto?
Ele encolheu os ombros.
— Vá-se lá perceber os militares. Bando de palhaços.
— Eu sei. Não me importava nada de os empurrar todos para aquele maldito abismo.
— Ena, quem diria? Temos algo em comum. — Ben girou sobre os calcanhares de um modo muito militar para regressar ao dormitório. Ofereceu-lhe o braço.
Desta vez, Ashley aceitou a oferta.
Blakely espreguiçou-se, inclinando-se para longe da consola. Olhou de relance para o relógio na parede. Passavam poucos minutos da meia-noite. Aquilo é que era trabalhar até à última. A equipa partiria dentro de nove horas.
— Todas as luzes estão verdes — disse uma voz atrás de si. — Finalmente.
Virou-se para o diretor de comunicações, o tenente Brian Flattery.
— Eu sabia que aquelas placas de circuito iam resolver o problema — disse. — Com a rede de comunicações intacta, seremos capazes de comunicar com a minha equipa em qualquer parte do planeta.
— Isso é bom — disse Flattery. — Ainda assim...
— Não te preocupes. Desta vez será diferente.
Flattery olhou de relance para o chão.
— Nunca encontrámos o corpo do Wombley. Só aquela poça de sangue.
— Eu sei, eu sei.
— E continuamos sem notícias da outra equipa. Já lá vão três meses. E o que dizer dos outros desaparecimentos?
Blakely ergueu uma mão. Tinha ouvido murmúrios semelhantes por todo o acampamento.
— Desta vez estamos preparados. Manteremos uma comunicação regular.
— Não acha que eles deviam conhecer o risco que vão correr?
Blakely encolheu os ombros.
— O major Michaelson e os seus dois homens sabem. Isso é o mais importante. Suponho que vá ter de partilhar alguns pormenores com o resto da equipa, mas eles não precisam de saber tudo. Desta vez, vamos avançar com conhecimento prévio dos riscos. Estamos adequadamente armados.
— Não o sabemos com toda a certeza.
Blakely semicerrou os olhos, fitando a fila de luzes verdes na consola de comunicações. Bateu numa luz que piscava. Esta estabilizou no verde.
— Não temos nada com que nos preocupar.
Livro Três
Serpentes e Escadas
CAPÍTULO 10
A mochila era pesada, as alças almofadadas cortavam os ombros de Ashley. Ela encolheu os ombros para a retirar e pousou-a aos seus pés. Pesada, mas suportável. Viu Linda fazer uma careta enquanto tentava ajustar a sua nos ombros. Ashley aproximou-se dela e empurrou a mochila mais para cima sobre as costas de Linda.
— Leva-a assim, não será tão mau.
Linda sorriu, mas rugas de preocupação continuavam a marcar-lhe a testa.
— Obrigada. Só tenho de me habituar.
Ashley acenou com a cabeça. Temos todos, pensou.
Ashley conduziu Linda na direção do grupo que se reunira junto do rádio da equipa. Blakely estava a explicar o seu funcionamento a Ben, a Khalid e ao major Michaelson.
— Esta rede de recetores e transmissores opera numa frequência ultrabaixa. Enterrados e dispersos, seremos capazes de comunicar através de quilómetros de rocha.
O major Michaelson pegou no rádio, calculando o seu peso.
— É do género dos transmissores enterrados que guiam os nossos submarinos.
— Exatamente o mesmo princípio. Baixo nível de reverberações. O sistema foi testado e saiu-se bem.
— Com que frequência estabelecemos contacto? — perguntou Ashley ao aproximar-se.
— Três vezes por dia. A horas marcadas — respondeu Blakely. Apontou para o rádio. — Este é o equipamento mais importante que vão levar convosco.
O major Michaelson tocou na pistola presa à cintura.
— Este é o meu equipamento mais importante.
Ben fungou.
— Estão ambos errados. O que mostra a vossa falta de experiência espeleológica. — Apontou para o cinto com o seu anel de pilhas. — Este é o equipamento mais importante. Sem pilhas, não há luz. Sem luz, não conseguimos ver para onde estamos a disparar, e não há rádio no mundo que nos consiga guiar para fora de um buraco. — Agarrou no cinto de pilhas. — Esta é a nossa linha vital.
Agora, todos olhavam agora para Ben.
— Claro que — disse este, retirando um rolo de papel higiénico da mala — isto aqui também é muitíssimo importante.
Ashley sorriu e Linda suprimiu uma pequena gargalhada. Ben tinha os seus momentos; não o podia negar.
— Então e a água? — perguntou Khalid, erguendo-se da posição agachada que assumira junto ao rádio. — A desidratação é um grande perigo, não é?
— Mais ou menos. Mas a maioria dos sistemas de grutas têm água potável com abundância. Basta que conserves o cantil entre as fontes de água.
Ashley cerrou os dentes. Rádio, armas, pilhas, água. A falta de qualquer um desses elementos poderia pôr fim à missão. Eram demasiadas variáveis para o seu gosto.
Os restantes elementos guardados nas suas mochilas foram explicados em seguida. Alimentos desidratados em embalagens de alumínio, fluido de substituição de eletrólitos, um colchão de ar comprimido para dormirem, um kit de primeiros socorros, uma pequena bolsa com produtos de higiene e, em cima disso tudo, um rolo de corda grossa. Além da mochila, cada elemento tinha um arnês leve de escalada com um saco de giz para secar as mãos e um capacete com uma lanterna de carboneto.
A mochila de Ben continha algum equipamento de escalada adicional: mosquetões, fita expresso de escalada e ancoragens. A necessidade desse equipamento era óbvia para Ashley. A mochila do major Michaelson, contudo, assustava-a. Continha mais quatro pistolas, uma espingarda retrátil e caixas e mais caixas de munições envoltas em tecido encerado.
Como se isso não bastasse, a equipa tinha sido apresentada aos outros dois elementos da expedição — o major Skip Halloway e o major Pedro Villanueva. A insígnia de uma águia a agarrar um tridente que traziam ao ombro anunciava a sua especialização. Navy Seals, a elite. Também eles levavam armas à cintura e transportavam duas mochilas. Uma carga pesada, mas pareciam máquinas musculadas, cavalos de tiro com armas.
Ben deu-lhe uma cotovelada.
— Que raio de poder de fogo levamos connosco.
Ashley acenou com a cabeça.
— Não gosto disso.
— Já ouvi falar desses Seals. Nunca vão a lado nenhum sem um arsenal do outro mundo.
Ashley mordeu o lábio inferior.
— Porque achas...?
Blakely interrompeu-os.
— A partir daqui, a professora Carter assumirá a liderança. A palavra dela valerá tanto quanto a minha.
Ashley apercebeu-se de um sorriso trocista do Seal ruivo, Skip Halloway. Este deu uma cotovelada ao amigo, cuja expressão se manteve impassível. De cabelo e olhos negros, Pedro Villanueva era tão difícil de ler quanto uma laje de mármore.
Ela suspirou. Que maravilha, mais dois machões que teria de manter sob controlo. Apercebeu-se de que não era a única a observar os recém-chegados. O rosto de Khalid estava ensombrado por uma expressão particularmente severa enquanto estudava os Seals. Depois os seus lábios reviraram-se nos cantos de um modo desagradável. Virou-se para sussurrar algo ao ouvido de Linda. Ela sorriu, disfarçando uma gargalhada com a mão.
— Então — disse Ben — estás pronta para conduzir este grupo de aventureiros desgarrados até ao coração do mundo?
— Neste momento, só espero que não haja um motim.
Ashley avançou para a pequena abertura na parede sul da caverna. Fitou o túnel minúsculo. Designado como wormhole, parecia-se mais com um túnel de esgoto. A entrada negra tinha apenas setenta e cinco centímetros de altura. Agachou-se e apontou a lanterna para lá. Com a mochila às costas, calculou ela, seria quase impossível gatinhar através daqueles buracos.
Para responder a este enigma, foi apresentada a derradeira peça de equipamento. Blakely entregou-lhe uma prancha de plástico com rodas.
— Um skate? — Ashley fez girar uma roda com a palma da mão.
— Prefiro chamar-lhes trenó de transporte — disse Blakely. — Especificamente concebido para estes túneis inclinados. Espere, deixe-me mostrar-lhe. — Pegou noutra das sete pranchas fluorescentes. Bateu na superfície da prancha com a mão aberta. — Plástico de alto impacto, tanto a prancha como as rodas. Os rolamentos são feitos de titânio, resistente à corrosão. Perfeitos para o terreno e a humidade. Basta soltar este fecho. Assim. E a prancha estica de modo a ficar do comprimento do tronco, o que permite que se desloquem de barriga para baixo, usando aos mãos enluvadas e os pés para obterem propulsão e travarem.
— Uma espécie de prancha de surf — disse Ben —, mas em terra.
— Bem, sim, suponho que essa analogia esteja correta. Uma vez percorrido o túnel, a prancha pode ser fechada, para voltar ao tamanho original, e guardada numa mochila. Cada prancha foi feita à medida do seu utilizador. Os nomes foram gravados na parte de trás de cada uma delas. E são todas de cores diferentes para facilitar a identificação.
Ashley experimentou soltar e fechar a prancha. Fácil e, felizmente, leve. Toda aquela tecnologia só para deslizar através daqueles túneis inclinados.
— Doutor Blakely — perguntou Linda —, como apareceram estes wormholes? São tubos de lava?
— Sim e não — disse Blakely. — É verdade que esta área está cheia de tubos de lava, uns não são maiores do que um punho e outros são tão largos como um homem. Mas os tubos de lava são, por norma, rugosos e irregulares, como acontece com grande parte dos tubos aqui à volta. No entanto, os tubos com este diâmetro — e apontou para o wormhole — são exceções. São de tamanho uniforme e foram polidos até ficarem notavelmente lisos. Como e porquê? — Encolheu os ombros. — Mais um mistério para resolver.
— Até onde foram na exploração? — perguntou Ashley. Claramente já tinham estudado muitos outros túneis.
— Estes wormholes estendem-se desde a sala central, como raios de uma roda. Alguns não passam de becos sem saída. Mas a maioria, como este, vão dar a uma série de cavernas interligadas que se estendem cada vez mais profundamente por baixo da superfície. As leituras sísmicas sugerem que este sistema se possa estender por várias centenas de quilómetros.
Blakely fitou-a durante vários segundos, tirando os óculos. Apertou a cana do nariz. Os outros pararam o que estavam a fazer e viraram-se para eles, atraídos pelo silêncio.
Ben pousou um dos skates que tinha estado a examinar e avançou para o lado de Ashley.
Michaelson aproximou-se.
— Diga-lhes — disse, com os olhos fixos em Blakely. — Garantiu que lhes contava antes de partirmos.
Blakely ergueu a mão, virando a palma desta para o major.
— Estava mesmo a chegar lá.
Ashley sentiu um súbito vazio no estômago.
— Professora Carter — disse Blakely —, não me orgulho do que estou prestes a revelar. Mas determinados interesses ditaram este curso de ação. Tivemos de manter certos segredos.
— A sério? — disse Ben.
Ashley fê-lo calar-se com um olhar, depois virou um olhar ainda mais duro para Blakely.
— Continue. Que segredo?
— Perguntou-nos se tínhamos explorado mais. Bem, explorámos. — Apontou para o wormhole. — Não são a primeira equipa a explorar esta via. Uma equipa conjunta composta por cinco cientistas e um Marine entrou por este túnel há mais de quatro meses.
Ashley abanou a cabeça.
— Então por que raio nos arrastou para aqui? Se já foi explorado?
— A outra equipa ainda não regressou.
— Como? — exclamou Ben, aproximando-se mais. — Quer dizer que ainda estão ali em baixo?
— Sem rádios, não tínhamos modo de seguir o progresso da equipa. Deviam ter regressado após duas semanas de exploração. Passaram-se três semanas sem notícias deles, por isso enviámos uma expedição de socorro. Uma busca preliminar revelou um labirinto gigantesco de túneis, poços e salas. Não foi possível encontrar o rasto dos homens.
— Por que raio não alargaram a busca? — Por aquela altura, o rosto de Ben já estava vermelho.
— Sem os meios adequados para manter contacto via rádio, as expedições de socorro estariam em risco. Poderiam deparar-se com o mesmo destino da equipa original. Por isso as buscas foram canceladas. A equipa foi declarada perdida.
— Excelente — disse Ashley. — E se nós tivermos problemas? Também nos irá virar as costas?
— Isto é uma treta — acrescentou Ben. — Uma verdadeira cobardia.
Blakely cerrou os punhos, as suas pálpebras fecharam-se um pouco, tensas.
— Aquela equipa estava sob a minha supervisão. Encarei a sua perda como algo pessoal. Não podia arriscar-me a perder mais ninguém. Perdemos a primeira equipa porque estávamos entusiasmados e avançámos sem as devidas cautelas. Recusei-me a permitir que alguém continuasse as buscas até poder ser instalado um sistema de comunicações adequado. — Espetou um dedo na direção do rádio. — Agora foi!
Ben não recuou.
— Desculpem, mas continuo a achar que uma pequena equipa...
Michaelson interrompeu.
— Também participei na decisão.
Ashley virou-se para o major que estava de pé junto às mochilas.
— Bem, então por que raio não fizeste alguma coisa?
Michaelson susteve o olhar de Ashley com firmeza.
— Como líder do contingente de Marines aqui estacionados, cabia-me a mim decidir se devíamos prosseguir às cegas ou aceitar o conselho do doutor Blakely e esperar até a rede de comunicações estar terminada. Optei por avançar com cautela.
— É mesmo próprio dos militares — disse Ben amargamente, um esgar fixo nos lábios. — As pessoas não passam de peões que podem ser dispensadas conforme as necessidades. Quem é que quer saber que a outra equipa fosse composta por homens a sério com vidas a sério? Limitem-se a descartá-los.
Michaelson, os músculos do maxilar projetados como pilares, girou sobre os calcanhares. Ben tinha um sorriso furioso nos lábios. Uma expressão que lhe ficava mal, pensou Ashley.
Ashley avançou atrás do major, determinada a prosseguir com o confronto, mas Blakely estendeu o braço e tocou-lhe no cotovelo quando ela tentou passar. Sussurrou-lhe ao ouvido:
— O irmão do major fazia parte da outra equipa.
Ashley estacou e observou Michaelson a inventariar o conteúdo da mochila com movimentos bruscos.
— Harry? — disse baixinho, lembrando-se do sorriso caloroso do major ao falar do fascínio do irmão mais novo pelos motores. Talvez devesse dizer alguma coisa...
Ben foi mais rápido do que ela. Gritou para as costas de Michaelson:
— Bela camaradagem. Deixar aqueles homens a apodrecer. Se fosse a ti...
Ashley ergueu uma mão na direção de Ben.
— Já chega. Está feito. Deixa-o. — Observou Michaelson a guardar o equipamento na mochila e a afastar-se. Virou-se para Blakely. — Então e agora?
Blakely pigarreou.
— As decisões do passado são discutíveis. O que temos de decidir agora é para onde seguimos. Independentemente do que possam decidir, os dois Seals e o major Michaelson vão avançar em busca de pistas acerca do destino da equipa anterior. A restante equipa terá de tomar uma decisão. Sabendo do outro grupo, quantos de vocês querem continuar?
Ben foi o primeiro a falar.
— Se não fosse pelos homens encurraladas, acabava já com isto. Mas já esperaram o suficiente. Eu vou.
Os olhares viraram-se para Ashley.
— Isto muda tudo. Preciso de tempo para pensar nisto — disse. — Somos agora uma missão de resgate.
— Não — disse Blakely. — Considero isto uma missão conjunta. O primeiro objetivo permanece o mesmo da equipa anterior: explorar este sistema em busca de pistas quanto à origem dos habitantes destas grutas. Mas dado que a vossa equipa irá seguir os passos da primeira, espero que ambos os objetivos possam ser alcançados em simultâneo.
Blakely apontou um dedo a Ashley.
— Foi por isso que a escolhi como líder. Ainda quer comandar esta equipa?
Ashley franziu o sobrolho.
— Devia ter-nos avisado antes. Não gosto que me mintam.
— Nunca lhe menti. Foi apenas um pecado de omissão. Também eu não tive escolha. Obedeci a ordens. O destino da equipa original continua em segredo. As famílias ainda não foram informadas.
Ben fungou e resmungou baixinho.
Blakely ignorou-o.
— Professora Carter?
Os seus pensamentos voaram para Jason, que estava em segurança na base sob os cuidados do assistente de Blakely, Roland. Devia correr o risco? Tinha outras responsabilidades para além da carreira. Manteve o silêncio.
— Irei mesmo assim — disse Khalid. — Isto é demasiado importante.
— Também eu — disse Linda. — Poderemos precisar dos conhecimentos de todos para encontrar a outra equipa.
Ashley também não suportava a ideia de abandonar a outra equipa. Virou-se para Blakely.
— Está bem. Ainda tem uma equipa! Mas se não nos tratarem com toda a sinceridade daqui em...
Blakely acenou com a cabeça, a voz séria.
— Têm a minha palavra. — Ele recuou e fez-lhe sinal para que avançasse. — Lembre-se, manteremos um contacto regular para mapear o vosso progresso, caso haja algum acidente. Em tudo o mais, a partir daqui as decisões são suas. Tudo, desde a frequência com que montam o acampamento, até ao número de dias que escolherem explorar antes de regressar. A sua palavra é lei.
Os olhos dos outros fixaram-se nela. A magnitude da busca ameaçava esmagá-la.
— Bem — disse Ashley —, nunca vamos chegar a lado nenhum aqui sentados. Avancemos. Halloway, vá à frente. Os restantes sigam-no e reencontramo-nos na próxima caverna.
A equipa verificou o equipamento e agarrou nas mochilas, pondo-as aos ombros. Ashley observou os outros debaterem-se com os trenós de transporte.
Halloway não ficou à espera de novas discussões. Ajustou o capacete e mergulhou pelo túnel na sua prancha. Os restantes aguardavam em fila para o seguir.
Satisfeita por estarem finalmente em movimento, Ashley calçou as luvas e apertou as tiras de velcro. Levou a mão à mochila e passou-a para o ombro. Quando Blakely se colocou ao seu lado, fitou o cientista enquanto os restantes deslizavam pelo wormhole. Com uma voz gelada, disse:
— Tome bem conta do meu filho.
— Claro. O Roland vai assegurar-se de que o rapaz está junto ao rádio todas as manhãs para poder ver por si mesma.
Ashley acenou com a cabeça, apercebendo-se de que os outros já tinham entrado no wormhole. Ajoelhando-se, posicionou o skate por baixo do corpo. Alguns movimentos laterais permitiam colocar a prancha numa posição mais confortável. Não era propriamente a forma mais digna de partir. Acendeu a luz do capacete e agarrou as paredes de ambos os lados para se lançar para o túnel. Rapidamente, entrou nele.
A maldita passagem continuava a parecer-se com um esgoto.
CAPÍTULO 11
Ashley enfiou a prancha na mochila e dirigiu-se ao grupo que se reunira junto das estalagmites. Feixes de luz das lanternas de mão e dos capacetes trespassavam a escuridão como pirilampos num frasco. A caverna era mais ou menos do tamanho de uma estádio de futebol, infinitamente mais pequena do que a escala grandiosa da Caverna Alfa.
Uma brisa constante soprava através dela, balsâmica e húmida. Linda ergueu um lenço que se agitou como uma bandeira na brisa.
— As grutas inspiram e expiram — estava Ben a explicar a Linda quando Ashley se aproximou. — Uma resposta às alterações na pressão barométrica. Cheguei a fazer voar um papagaio de papel numa gruta do Belize.
Linda baixou o braço.
— Adoro este vento. É tão... tão refrescante.
— Muito bem, equipa — disse Ashley, colocando-se ao lado de Ben. — O próximo quilómetro deste sistema já foi mapeado, pelo que podemos avançar a bom ritmo.
Ben ergueu uma mão.
— Gostaria de fazer uma sugestão.
Ashley acenou com a cabeça.
— À vontade, quero que todos se sintam livres para dar as suas opiniões e sugestões. Somos uma equipa.
— Antes de chegarmos às áreas inexploradas, creio que devíamos definir pares. A espeleologia envolve mais escalada e descida do que avanços em superfícies planas. Aos pares, podemos ajudar-nos mutuamente nas zonas mais difíceis.
— Parece-me bem — disse Ashley. — Acho eu...
Ben prosseguiu:
— Além disso, seguindo aos pares, podemos preservar as pilhas, levando apenas uma lâmpada acesa por cada par. Nesta escuridão, até uma lâmpada solitária lança uma grande luz. — Ben sorriu a Ashley. — Depois de um dia aqui em baixo, demasiada luz fere a vista. Acreditem.
Ashley acenou com a cabeça. Virando-se para o resto da equipa, apontou com um polegar para Ben.
— Vamos a isso. Escolham os vossos parceiros.
Ben avançou imediatamente para ela.
— Olá, parceira.
— Calma — disse Ashley. — Será que não reparaste que a nossa equipa é composta por um número ímpar de elementos? Sendo a líder, juntar-me-ei a outros pares de acordo com as necessidades.
Por essa altura, Linda e Khalid já estavam emparelhados, e os dois Seals tinham as cabeças baixas, sussurrando entre si. Os dois elementos da equipa que restavam, Michaelson e Ben, fitavam-se mutuamente.
— Merda — resmungou o major.
— Eu e as minhas ideias parvas — disse Ben, abanando a cabeça.
Ashley disfarçou um sorriso enquanto ajustava a mochila.
— Com isto resolvido, avancemos. Temos muito terreno a cobrir.
Ashley acenou para os homens que resmungavam.
— Ben e Michaelson assumirão a liderança. Vamos prestar muita atenção ao Ben durante os próximos quilómetros. Ele é o mais experiente na exploração deste tipo de terreno, e quero que todos aprendam as adequadas aptidões espeleológicas e precauções de segurança. Tentemos não acabar como a outra equipa.
O grupo colocou as mochilas aos ombros e as lanternas redundantes foram desligadas. O nível de luz, apercebeu-se Ashley, não diminuiu de forma significativa. Seguiu atrás de Ben e Michaelson. Enquanto andava, movia a lanterna de um lado para o outro, a escuridão sugando a luz.
A sua mente concentrou-se na missão — nas suas duas missões. Imaginou-se presa naquela escuridão estígia, observando o que restava das pilhas a esgotar-se enquanto a escuridão a envolvia num frio abraço. Estremeceu. E os construtores do penhasco, esses antepassados do homem há muito perdidos, como teriam sobrevivido naquela escuridão eterna?
Obrigou-se a despertar daquela divagação inútil quando a equipa chegou à entrada do wormhole seguinte. Avançou para a frente.
Ben tinha a sua bússola do tamanho de um pequeno bloco de notas aberta, uma ferramenta geoposicional sintonizada com um transmissor de rádio na base, permitia a Ben calibrar não só a sua posição precisa em relação aos pontos da bússola, mas também a profundidade a que a equipa se encontrava.
— Chamam a isto um mapa? — exclamou Ben. Enquanto guia, era o protetor do diagrama impreciso desenhado pelos exploradores anteriores. — É uma porcaria. Olha — agitou o papel na direção dela —, sem coordenadas, sem um esboço específico da gruta, sem marcadores de profundidade... Não é de admirar que a outra equipa se tenha perdido!
— É por isso que aqui estás — disse Ashley. — É bom que mapeies o nosso caminho de regresso a casa. Estamos a contar contigo.
— Bem... — disse ele, em busca de palavras, tendo sido apanhado desprevenido. — Uma criança teria sido capaz de fazer um trabalho melhor.
— Nesse caso, és a pessoa certa para o trabalho.
Ben dirigiu-lhe um olhar duro, e ela fez a sua melhor expressão inocente. Aparentemente satisfeito, ele virou-lhe as costas, de bússola na mão.
Ashley abanou a cabeça. Por vezes, ele e Jason eram assustadoramente parecidos.
— Se estiverem todos prontos — disse ela —, vamos prosseguir. Quero estar no novo território quando montarmos o acampamento esta noite.
Ashley hesitou.
— Só um pouco mais — disse Ben mais abaixo.
Mordendo o lábio inferior, ela fitou a encosta íngreme à sua frente. Parecia mais quilómetro e meio. Coberto de lama, o penhasco era escorregadio como gelo. Os olhos dela serpentearam para cima, seguindo a sua corda. Michaelson tinha-se enfiado numa fenda, vários metros acima, e prendera-se com uma corda de segurança. Por cima dele, na beira do penhasco, estava pendurado Villanueva, que se agarrava a uma protuberância na rocha e estava igualmente preso com uma corda de segurança. Cabia àqueles dois homens garantir uma descida em segurança aos outros membros da equipa.
Ashley inspirou fundo e afastou-se da parede, tal como lhe tinham indicado, permitindo que a corda travasse nos mosquetões para interromper a descida. Desceu atabalhoadamente, a biqueira da bota esquerda mantendo o seu equilíbrio numa saliência na rocha. Só um pouco mais.
A pedra que a sustentava soltou-se subitamente e caiu para o abismo. Ela mergulhou em seguida, a corda correndo pelas suas mãos enluvadas. Ben dissera-lhes que deviam gritar «Queda» caso acontecesse algo assim. Mas com a respiração presa nas garras do medo, tudo o que conseguiu fazer foi emitir um gemido agudo.
Passado um segundo, a corda sibilante prendeu-se no mosquetão e a descida foi interrompida de forma súbita. Um gemido de protesto ecoou sobre ela, quando Michaelson susteve o seu peso.
— Então, cuidado aí em cima — gritou Ben. — Quase me fazias um peeling à pedrada.
— Desculpa — disse ela, a parede enlameada a centímetros do seu nariz. As duas mãos apertavam a corda.
— Vamos, relaxa, miúda — disse Ben. — Volta a apoiar os pés na parede e termina a descida. Já estás quase em solo firme.
Era a firmeza desse solo que a preocupava. Tinha imaginado a sua cabeça a bater no solo «sólido» ao cair, mas não ia ficar ali pendurada. Só havia uma saída daquele aperto. Colocando-se em posição agachada, apoiou as botas na parede e endireitou as pernas, afastando-se da parede. Com um salto desceu em rappel quase dois metros e voltou a apoiar as botas na parede. Desta feita, sem hesitar, voltou a projetar o corpo para longe da parede e desceu mais um par de metros. Depois de mais dois saltos, sentiu os braços de Ben em redor da sua cintura.
— Já está — disse-lhe ele ao ouvido. — Foi canja.
Ashley pousou os pés no chão de pedra, sentindo os joelhos vacilarem ligeiramente.
— Sim, sem problemas.
— É bom para praticar. Felizmente deparámo-nos com esta inclinaçãozinha no primeiro dia. Estou certo de que encontraremos pela frente penhascos bem mais cabeludos.
Ashley inclinou a cabeça para trás. Villanueva não passava de uma mancha de luz à beira do penhasco acima. Suprimiu um gemido, apoiando-se numa estalagmite. E aquele era apenas o primeiro dia.
Ashley esfregou as costas, deixando-se cair lentamente no colchão insuflável. Conseguia ouvir Michaelson a falar baixinho para o rádio a vários metros de distância, apresentando o último relatório do dia.
Deixou escapar um longo suspiro, espreguiçando-se. Uma forte pontada na região lombar protestou contra o movimento. Ben tinha razão. O seu progresso parecera mais uma batalha. A lama escorregadia agarrava-se a todo o seu corpo, como areia na praia, mais abrasiva a cada passo; encostas íngremes e inclinações abruptas impediam o seu avanço, forçando-os a um passo de caracol.
Pior do que isso, contudo, era o calor. Um manto húmido omnipresente que se tornava mais pesado à medida que o dia ia avançado. Retirou a faixa que lhe envolvia a cabeça e espremeu-a, libertando um jorro de suor. Compreendia agora o risco que a desidratação representava na espeleologia. Abriu a tampa do cantil, agora quase vazio. Inclinando-se para trás, engoliu as últimas gotas quentes.
— Vais ter de prestar atenção à água — avisou Ben. — Não podes confiar que encontraremos uma nascente todos os dias. — Acenou na direção do pequeno lago na metade de trás da gruta, meio escondido por um afloramento de pedra.
— Eu sabia desta nascente — disse ela. — Está no mapa.
— É verdade, mas esta é a última caverna marcada no mapa. A partir daqui é o desconhecido.
— Eu sei. Amanhã serei mais poupada. Temos de o lembrar a todos pela manhã. Em especial a Linda. Ficou sem água à hora de almoço e tem estado a beber do meu cantil.
— Do teu também, hã? — disse Ben com um sorriso. — Terminou o meu há uma hora.
— Miúda esperta — disse Ashley. — Já agora, onde é que ela está?
— Junto ao lago... a beber água.
Ashley abanou a cabeça.
— Amanhã teremos de ser mais exigentes com o racionamento.
— Oh, deixa-a estar. Eu estava só a brincar. Ela está a analisar a água. Além disso, está a passar por um mau bocado.
— Estamos todos.
Ben apontou para os dois Seals, que montavam um fogão de campismo a alguns metros. A luz formava uma poça à sua volta, graças às lanternas.
— Eles quase nem suaram.
Ashley observou enquanto Villanueva despia a t-shirt cor de caqui e limpava o rosto e as axilas antes de vestir um colete verde. Com um pequeno estalido, Halloway acendeu o gás butano do fogão de campismo. Ambos pareciam absolutamente frescos como se a viagem daquele dia não tivesse sido mais do que um passeio de domingo, enquanto os restantes se comportavam como se tivessem acabado de completar a marcha da morte de Bataan, de rastos, cansados até aos ossos. A barriga dela roncou audivelmente.
Ben ergueu uma sobrancelha.
— Também tenho fome. Mas só há feijão congelado e salsichas.
— Neste momento, isso serve.
Ben sorriu.
— Mas com uma cerveja para empurrar... isso é que era o paraíso. — Enquanto se sentava no seu próprio colchão, bateu subitamente no braço. — Ei, acabei de ser picado por alguma coisa!
— O quê?
Apontou a luz para o braço.
Ashley inclinou-se e olhou para lá.
— Parece um mosquito.
— Um mosquito grande como o raio. Quase me arrancava um pedaço ao braço.
— Estás a exagerar.
Ben apontou um dedo.
— Espera até seres trespassada. Depois não venhas a chorar ter comigo.
— Isso é estranho — disse ela, coçando atrás de uma orelha. — O que está um mosquito a fazer aqui na Antártida? E para mais nas profundezas?
A expressão de Ben tornou-se séria.
— Boa pergunta. Não é frequente encontrarmos insetos cá por baixo: grilos, algumas aranhas, centopeias. Esse tipo de coisas. Acho que nunca tinha visto um mosquito.
Ashley perguntou-se o que significaria tal descoberta.
— Talvez fosse melhor perguntar à nossa bióloga.
— Obrigada por hoje teres partilhado comigo a tua água, Khalid — disse Linda. — Não teria conseguido sem a tua ajuda.
— Sempre que precisares — disse ele, inspirando o ar húmido. Estava sentado numa pedra a observar Linda, que recolhia água em pequenos frasquinhos de vidro. Observou o sulco de suor que descia pelo meio das costas dela, colando-lhe a t-shirt de algodão ao corpo. O fecho do soutien era visível através do tecido fino. Mordeu a língua para controlar o desejo crescente.
Sorrindo-lhe, Linda levantou-se e foi sentar-se no pedregulho ao seu lado, abanando o frasquinho que tinha na mão.
— A última descida foi brutal. Ainda bem que terminámos por hoje.
Khalid conseguia sentir o calor do corpo dela a pulsar através do espaço exíguo que os separava. Permaneceram em silêncio, Linda a estudar a superfície cristalina do lago, Khalid a estudá-la a ela.
— Meu Deus! — exclamou ela de súbito, saltando para a beira da água negra. — Khalid, olha para aqui. — Ajoelhou-se, acenando com a mão, para que ele se lhe juntasse.
Ele avançou até Linda, inalando o seu odor, um perfume hipnótico no ar húmido.
— Que é?
Ela ergueu uma concha em espiral, a pingar e luminescente sob o brilho da lanterna, que estivera parcialmente escondida por uma pedra nos baixios. Khalid inclinou a cabeça para o lado. Parecia semelhante à concha de um caracol, mas era enorme! Quase do tamanho de uma melancia.
Voltou a perguntar:
— Que é?
Linda rodou o corpo para se sentar, segurando no colo a grande concha.
— Se for aquilo que penso... — Abanou a cabeça e pousou a mão no joelho dele. — Se não fosse pela tua insistência para que ficássemos um pouco mais, talvez não a tivesse visto.
A mão dela era uma brasa escaldante no seu joelho. Debateu-se contra o desejo de a puxar para um beijo violento. A tensão contra a braguilha do fato-macaco protestou a sua contenção.
— Que há de tão especial numa concha vazia? — perguntou com a voz tensa.
Antes que Linda conseguisse responder, foram interrompidos por outras vozes.
— Estou-te a dizer, a picada do maldito mosquito foi pior do que a dentada de uma cobra com as presas partidas.
Ben viu Khalid e Linda agachados junto à margem do lago. Tendo reparado em Linda a tirar a mão do joelho do geólogo quando contornaram a escarpa rochosa, ergueu uma sobrancelha.
Ashley pigarreou, anunciando a sua presença.
— Linda — disse, enquanto se aproximava —, o Ben acaba de ser mordido por um inseto que se parede muito com um mosquito. Queríamos a tua opinião.
— Oh, claro, sem problemas. Apanhaste algum?
— Bem, mais ou menos — disse ele, apontando para o inseto esborrachado que ainda lhe sujava o antebraço.
Linda sorriu e agarrou no antebraço de Ben, rodando-o sob a luz.
— Não me deixaste grande coisa. — Linda inclinou-se um pouco mais. — Não posso dizer com toda a certeza. Existem centenas de espécies de mosquitos, moscas e melgas sedentas de sangue. Pode ser qualquer coisa. — Soltou-lhe o braço.
— Estava curiosa — disse Ashley. — O Ben disse-me que raramente existem insetos que piquem nas cavernas.
Linda franziu as sobrancelhas.
— Isso faz sentido. De que se alimentariam? Não existem aqui espécies de sangue quente. — Linda abanou a cabeça. — Devem estar a obter alimento de outra forma, mas este indivíduo estava a aproveitar uma nova fonte para o almoço. — Encolheu os ombros. — Estas grutas estão cada vez mais misteriosas.
Passou um braço em redor de uma grande concha.
— Vejam isto, por exemplo. — Ergueu a concha para que Ashley e Ben a examinassem. — Reconhecem isto?
Ashley tirou-lha da mão e ergueu-a, rodando-a para a ver de todos os ângulos e deslizando a mão ao longo da sua espiral.
— Parece a concha de um molusco, mas não conheço a espécie. Além disso, a bióloga és tu.
— E tu és a arqueóloga. Não fora pelo facto de estudar biologia evolutiva, jamais a teria reconhecido.
— Bem, o que achas que é? — perguntou Ben, erguendo a concha nas mãos, curioso com a origem de tanta confusão.
— É uma amonite, uma lula predatória — disse Linda. — Espécie Maorites densicostatus.
— O quê? — Ashley arrancou a concha de novo das mãos de Ben. Voltou a examiná-la com interesse, segurando-a agora como se fosse feita da porcelana mais fina. — Isso é impossível. Isto é uma concha. Não é um fóssil.
Ben fitou as mãos vazias.
— Que tem de tão especial? Que há de tão entusiasmante?
As duas mulheres ignoraram-no.
— Tens a certeza? — perguntou Ashley. — A paleobiologia não é uma especialidade minha.
— Sim — disse Linda. — Olha aqui, para estas estrias. Nenhum molusco moderno tem esta configuração. E olha as câmaras no interior. Só uma espécie tem esta concha única. É, sem dúvida, uma amonite.
Ashley inclinou-se mais.
— Mas o que está a fazer aqui? As amonites desapareceram com os dinossauros no final do Cretáceo. Esta concha é velha, mas não me parece que remonte há 65 milhões de anos.
— Deixem-me ver — disse Ben, erguendo a concha. — Muitas grutas têm fósseis preservados, protegidos do clima. Talvez esta concha esteja apenas bem preservada.
Linda acenou com a cabeça.
— Talvez. Mas antes da expedição, enquanto me preparava para a viagem, li um pouco acerca da vida selvagem da Antártida. Na ilha de Seymour, não muito longe daqui, os cientistas descobriram muitos fósseis de amonites. Restos que datavam de um período posterior à extinção do Cretáceo.
— Extinção do Cretáceo? — perguntou Ben. — De que estão a falar?
Ashley respondeu:
— Há cerca de 65 milhões de anos, no final do Cretáceo, um grande cataclismo dizimou um número enorme de espécies, incluindo os dinossauros. De acordo com a teoria de alguns investigadores, um asteroide gigantesco atingiu a Terra nessa altura, fazendo erguer nuvens de pó que bloquearam a luz do Sol e gelaram o planeta.
— Certo — acrescentou Linda. — E os paleontólogos que estudam a Antártida acreditam agora que o vórtice polar da Antártida pode ter levantado ventos suficientemente fortes para manter as partículas do asteroide que escureceram o Sol longe desta zona, poupando este continente à grande extinção.
Ben interrompeu-a.
— Isso são águas passadas. Portanto, estes caracóis sobreviveram mais tempo do que se pensava. E depois? Quer dizer...
— Linda! — chamou Khalid. Afastou-se e ajoelhou-se junto à margem do lago. — Está aqui outra concha. — Enfiou o braço na água, mergulhando-o quase até ao ombro. — Não lhe consigo chegar... espera, não... pronto... consegui. — Puxou o braço encharcado, a mão a segurar uma concha ainda maior do que a primeira. Endireitou-se, erguendo a concha por cima da cabeça como um troféu.
Ben abanou a cabeça. Que exibicionista, pensou. Abriu a boca para tecer um comentário quando, de súbito, emergiu da concha um conjunto de tentáculos que se agitavam. Linda arquejou.
Os tentáculos agarraram o braço de Khalid.
Este tentou afastar a lula do braço, mas esta agarrou-se tenazmente. As lágrimas acumularam-se nos seus olhos e ele fez uma careta de dor.
— Esta maldita coisa está a morder-me. — Era possível ver os fios de sangue a escorrerem-lhe pelo braço. Gemendo, Khalid abanou o braço, partindo a concha contra a pedra ao seu lado... em vão.
Ben tirou uma faca do cinto.
— Fica quieto!
Khalid estacou, depois um espasmo de agonia contorceu-lhe o rosto.
— Tira-me esta coisa de uma vez — disse com os dentes cerrados.
Ben fez deslizar a lâmina entre os tentáculos e a pele. O espaço era apertado. Os apêndices da criatura comprimiam profundamente a carne do braço de Khalid. Ben cortou um tentáculo, e um líquido espesso, de um preto-esverdeado, jorrou da ponta amputada. A criatura apertou ainda mais os outros apêndices, levando Khalid a soltar um gemido.
A força do monstro era terrível. Se conseguisse apertar muito mais, pensou Ben, esmagar-lhe-ia o osso. Deslizou cautelosamente a faca sob um segundo tentáculo e cortou. Desta feita, a criatura contorceu-se e aliviou a pressão. Depois de lhe terem sido cortados mais dois apêndices, a criatura soltou o braço de Khalid, caiu no chão da gruta, estremeceu e recolheu os tentáculos restantes para o interior da concha.
Khalid caiu de joelhos com um gemido baixo, uma mão a apertar a ferida, o sangue a escorrer por entre os dedos.
Ben manteve o olhar fixo na concha, com o líquido preto a pingar da sua abertura. Com um franzir de sobrolho, moveu a perna e pontapeou a concha, fazendo-a desenhar um arco sobre o lago. Com um splash, a criatura afundou-se e desapareceu.
— Por que raio fizeste isso? — gritou-lhe Ashley. — Podíamos tê-la estudado. Meu Deus, é uma espécie extinta.
Ben apontou para o braço de Khalid.
— Extinta, o tanas.
— Ele vai sobreviver — disse o major Villanueva.
Ashley aproximou-se para aplicar o penso no braço de Khalid com um pedaço de fita adesiva à prova de água. O major, com o seu treino avançado como médico militar, assumira o controlo mal regressara ao acampamento. Depois de limpa a ferida, tratou Khalid com antibióticos tópicos e sistémicos.
— Ele pode prosseguir connosco? — perguntou ela.
Villanueva encolheu os ombros.
— Não passa de uma perfuração profunda do músculo do antebraço e algumas nódoas negras. Ele vai ficar bem.
Ashley acenou com a cabeça e virou-lhe as costas. Ainda bem, detestaria perder um membro da equipa antes mesmo de terem entrado em território não mapeado. Ao passar pelo fogão de campismo, Halloway ofereceu-lhe uma tigela de chili com feijão morno numa panela de lata. Aceitou-a com um curto aceno de agradecimento e instalou-se no seu colchão insuflável com a tigela equilibrada no colo.
Ben já tinha terminado a sua e olhava, faminto, para o prato dela.
— Como está o braço do Khalid? — perguntou.
— Ótimo. Deram-lhe um monte de antibióticos e analgésicos.
Ben pousou o prato.
— Aquilo era uma criatura muito estranha.
Ela encolheu os ombros e falou com a boca cheia de feijões.
— Estava a falar com a Linda. Ela disse que o seu principal alimento era uma espécie de lagosta pré-histórica e estas águas estão repletas de crustáceos de diversas espécies. Portanto, suponho que, neste ambiente isolado, a lula tenha sobrevivido graças a alimentos semelhantes.
— Faz-nos pensar.
— Em quê?
Acenou com a cabeça para o outro lado do campo, onde Michaelson desmontava a espingarda nas suas diversas partes metálicas, as inspecionava e limpava cada uma.
— No que mais terá sobrevivido aqui em baixo?
Nessa noite, Ben voltou a ter o sonho. Percorria a gruta dos seus pesadelos de juventude, repleta de colunas de onde emergiam ramos que davam frutos. A luz penetrava vinda de todas as direções e, enquanto ele percorria o pomar, algo parecia atraí-lo, chamá-lo.
— Olá — gritou para a gruta vazia. — Quem está aí?
Atraído para o lado norte da gruta, tentou seguir a canção das sereias invisíveis, mas as árvores aproximaram-se mais, bloqueando o seu caminho. Já não se conseguia esgueirar por entre as colunas — tudo o que podia fazer era espreitar por entre os troncos.
O lado norte da caverna brilhava com uma luz suave, à exceção de um solitário buraco negro na parede. Uma pequena caverna como as habitações que tinham encontrado perto da Base Alfa.
— Está aí alguém? — chamou, o rosto comprimido entre dois troncos.
Não obteve resposta. Esperou, fazendo força contra os troncos, como se conseguisse mover as colunas rochosas. Enquanto observava, alguém emergiu da pequena caverna, avançando sobre as mãos enrugadas e os joelhos deformados. O velho ficou sob a luz, o rosto escuro pintado com riscas amarelas e vermelhas, envergando apenas um pano a cingir-lhe os rins. A figura acenou-lhe para que avançasse.
Ben esticou um braço, lutando por passar entre os troncos de pedra.
— Avô!
Com um sobressalto, Ben despertou repentinamente, banhado em suor. Sentou-se no seu colchão insuflável. A luz de uma lanterna solitária iluminava o acampamento adormecido. Villanueva, que estava sentado numa pedra, lançou um olhar na sua direção. Os Seals tinham insistido em colocar vigias; depois do incidente com a lula, ninguém se opôs.
Voltando a recostar-se, Ben rebolou sobre si mesmo, as costas voltadas para a luz. O sonho ecoava na sua mente, como se fizesse ricochete nas paredes de pedra à sua volta. Ainda sentia uma vaga atração, um impulso para penetrar ainda mais fundo no labirinto. Fechou as pálpebras com força.
CAPÍTULO 12
— Chega aqui — disse Ben a Ashley. — Olha para isto.
Limpando as mãos à parte de trás das calças, ela avançou até Ben.
— Que encontraste? — Depois de três dias num caminho que os levava através de território não mapeado, começava a habituar-se às conversas constantes de Ben. Estava sempre a apontar formações rochosas inusitadas: dentes de cão, reticulados, pérolas das cavernas, amuando frequentemente quando ela não respondia com o grau de espanto certo. Aproximando-se por trás dele, inclinou-se sobre a sua forma agachada.
Ele segurava uma caneca de estanho, amolgada de um lado, a pega arrancada. Parecia-se com uma das canecas que transportavam juntamente com os cantis.
— Sim, e depois? — perguntou ela.
— Não é das nossas.
Ashley ajoelhou-se ao lado dele, pegando na caneca.
— Tens a certeza? Talvez alguém a tenha deixado...
— Não — disse Ben. — Está coberta de sujidade antiga. Meio enterrada. Só pode ser da primeira equipa. Acho que acamparam aqui para passar a noite. Esta área tem água potável. — Apontou para um riacho que corria pelo centro da pequena caverna. — E vê como esta lama foi pisada. Aposto que, se procurássemos com afinco, encontraríamos outros objetos do acampamento deles.
— Acho que tens razão. — Ashley suspirou. Desde a última curva de 180 graus que não havia sinais dos exploradores anteriores. — Devíamos dizer ao Michaelson. Está nervoso como uma égua com o cio desde que perdemos o rasto da outra equipa.
Ben fungou o seu assentimento.
— Isto deve pô-lo a mexer.
Atravessaram a pequena caverna, saltando sobre o pequeno riacho que abrira caminho pelo centro e contornava as muitas estalagmites agrupadas no chão. Ben seguia à frente, com a luz do capacete de Ashley a iluminar-lhe as costas. Ela observou enquanto ele trepava um pequeno afloramento, os músculos fletindo e relaxando, o fato-macaco húmido e enlameado agarrando-se-lhe ao corpo. Engoliu em seco e apontou o candeeiro para a esquerda, para longe de Ben. Limpou a testa com a mão. Aquelas malditas grutas eram infernalmente quentes.
À sua esquerda algo se moveu. Sobressaltada, quase escorregou numa rocha enlameada. Virando a luz na direção do movimento, procurou, mas viu apenas as habituais estalagmites retorcidas. Não estava lá nada.
Ben, apercebendo-se de que ela tinha parado, virou-se para ela.
— Precisas de ajuda?
— Não, pareceu-me apenas ver algo ali. — Acenou com a cabeça para a esquerda. — Mas não foi nada. Suponho que tenham sido as sombras a mover-se sob a minha lanterna.
Ben fingiu medo, os olhos saltando rapidamente para a esquerda e para a direita.
— Ou talvez seja aquele caracol predatório em busca de mais sangue do Khalid. Já o estou a imaginar: «Lesmas vampiras da Antártida.»
Ashley empurrou-o para a frente.
— Põe-te a andar.
Passados alguns momentos, chegaram ao wormhole seguinte, onde estavam os membros da outra equipa, encostados às pedras. Linda examinava o braço de Khalid. Todos pareciam exaustos, exceto, claro, os dois Seals. Talvez a equipa devesse parar mais cedo, pensou, e acampar ali naquela noite.
Procurando Michaelson, apercebeu-se de que este desaparecera. Excelente, será que já tinha iniciado a sua busca pessoal? Não partilhara com ninguém o que soubera acerca de o irmão de Michaelson fazer parte da equipa perdida. Pensou que, se ele o queria manter em segredo, era lá com ele. Mas tinha estado a observá-lo, à medida que as rugas de preocupação na sua testa se tornavam mais fundas e mais numerosas. Se ele desaparecesse...? Chamou Villanueva:
— Onde está o Michaelson?
Villanueva apontou para o túnel à sua frente.
— Reconhecimento.
Maldito fosse, pensou ela. Não conseguia ficar quieto. Tinha sempre de correr à frente em busca de pistas sobre o irmão.
— Não autorizei ninguém a avançar sozinho.
Halloway encolheu os ombros.
— Não estavas por perto.
— Bem, agora estou. E espero que ele volte depressa.
Uma vez mais, viu um sorriso condescendente no rosto do soldado.
— Vou dizer-lhe que volte.
Ashley espetou um dedo com força no peito de Halloway.
— Encontra-o agora.
Uma nuvem negra desceu sobre o rosto do Seal. Halloway erguia-se sobre ela como um leão perante um rato.
Ashley interrompeu-o antes mesmo de ele conseguir abrir a boca.
— Tens as tuas ordens, soldado. — Cravou nele um olhar furioso.
Halloway cerrou os dentes, depois sorriu friamente.
— Pronto ou não, major Michaelson, aqui vou eu. — Girou sobre os calcanhares e, num abrir e fechar de olhos, desapareceu pelo buraco.
Ashley soltou a respiração que mantivera presa.
Linda e Khalid fitavam-na. Villanueva, claramente pouco impressionado com o diálogo, encolheu os ombros e voltou a afiar a faca.
Ben deu-lhe uma palmadinha nos ombros, levando-a a saltar.
— Bom trabalho, capitã. É um tipo um bocado assustador, não é?
Ashley não conseguiu impedir-se de recorrer ao conforto dos braços dele, tremendo ligeiramente devido à adrenalina libertada durante a altercação. Ele apertou-a com mais força, depois conduziu-a para alguns metros de distância dos outros. Em voz baixa, disse:
— Estiveste bem. Mas não fizeste um amigo.
Ashley acenou com a cabeça, depois libertou-se suavemente do abraço dele.
— Já tenho amigos que cheguem. Mas obrigada, Ben.
— Sempre que precisares, Ash.
Ela afastou o olhar, resistindo ao impulso de cair de novo nos braços dele, apenas para gozar um conforto momentâneo.
Depois Linda chamou-os.
— Vejam, é o major Michaelson.
Ashley olhou de relance para o wormhole e viu o major a levantar-se junto à entrada. Tendo em conta a expressão amarga, era óbvio que se sentia desiludido.
— Michaelson — disse ela —, pensei que tínhamos combinado que nos reuniríamos aqui para fazermos uma pausa e descansarmos.
— Eu sei, mas tinha de descobrir se a outra equipa veio para este lado.
— Se não estivesses com tanta pressa de correr à nossa frente e em vez disso, como o Ben, tivesses analisado com mais cuidado esta sala, terias encontrado aquilo que procuras.
— Como assim? — Havia esperança na sua voz. — Encontraram alguma coisa?
Ben avançou.
— Apenas isto. — Estendeu-lhe a caneca amolgada. Não era um grande troféu, mas quem visse a reação do major Michaelson (os olhos a iluminarem-se como as luzes na árvore de Natal, os ombros caídos a endireitarem-se) pensaria que se podia tratar do Santo Graal.
Como sempre, contudo, ele conteve as emoções.
— Tens a certeza de que não é um dos nossos? — perguntou num tom sério.
Ben abanou a cabeça.
— Ótimo. — Virou-se para pousar a mochila numa pedra. — Então sabemos que estamos no caminho certo. Depois desta pausa para descansar, devíamos prosseguir. Ainda é cedo.
— Uau! — disse Ashley. — Foi um longo dia. E com esta descoberta, talvez fosse melhor começarmos mais frescos pela manhã.
Michaelson fez uma careta.
— Odeio discordar. Mas o meu reconhecimento da caverna seguinte revelou um obstáculo que talvez fosse preferível atravessar hoje e não amanhã.
— E que obstáculo é esse? — perguntou Ashley, pensando se ele estaria apenas a tentar convencer a equipa a avançar para os manter a correr atrás do irmão.
— Um rio com cerca de nove metros de largura, bastante rápido, passa pela caverna seguinte. Vamos ter de o atravessar. Calculei que seria melhor fazê-lo hoje. Despachá-lo. Em vez de nos molharmos amanhã e passarmos o dia todo ensopados.
Linda resmungou, deslizando por Khalid para se juntar a eles.
— Hoje não. Preferia lidar com ele pela manhã. Raios, já passámos o dia todo molhados. Que vai mudar um mergulho matinal?
Khalid, claro, concordou.
— É tarde. Sugiro que acampemos aqui.
Ashley observou as rugas na testa de Michaelson a vincarem-se mais. Aparentemente, a caneca amolgada deixara-o ainda mais ansioso por encontrar o irmão. Percebeu que ele precisava de avançar.
— Tens razão. Depois de atravessarmos, podemos secar as roupas durante a noite. Bom plano, major.
Com muitos lamentos, todos reuniram os seus equipamentos e pegaram nos skates. Ashley chamou Michaelson.
— O Halloway está à espera lá em baixo?
— O Halloway? — Michaelson ergueu uma sobrancelha e olhou de relance à sua volta.
O coração de Ashley acelerou.
— Mandei-o atrás de ti. Pensei que tivesse sido ele e mandar-te voltar.
A expressão de Michaelson gelou.
— Não vi ninguém.
CAPÍTULO 13
Logo que chegou à saída do wormhole, Ashley ergueu-se rapidamente e deu um passo para o lado, de modo a permitir que Villanueva deslizasse para fora dele. Ótimo. Ele era o último membro da equipa. Os restantes percorriam a nova câmara com as suas lanternas. Ben gritou o nome de Halloway. Ashley avançou para junto de Michaelson.
— Algum sinal?
O major abanou a cabeça.
— Não, e com todos estes malditos obstáculos, vai ser uma busca demorada.
Ashley fez uma careta. O tempo era valioso. Se Halloway estivesse ferido, qualquer atraso poderia significar a sua morte. Moveu a lanterna à sua frente e gemeu perante o que viu. Aquilo poderia demorar horas.
Enormes rochas esféricas, de uma tonalidade ocre-amarelada, pontuavam o chão, algumas tão grandes como elefantes, outras do tamanho de cabanas. Várias estavam aglomeradas em ninhos, como enormes ovos fossilizados. Outras erguiam-se isoladas como monstros solitários e contemplativos. Os pedregulhos erguiam-se sobre a equipa.
Ashley abanou a cabeça. As grandes pedras impediam uma boa visão do espaço, tornando a busca com as lanternas difícil. Um Halloway ferido podia estar caído atrás de qualquer um daqueles pedregulhos.
— Vamos dividir-nos em três equipas — disse Ashley, esforçando-se por ser ouvida sobre o murmurar do rio que corria numa depressão profunda pelo meio da caverna. Apontou para a sua frente. — Vamos ter de procurar atrás de cada um destes pedregulhos.
Ben deslizou uma unha pela superfície de uma das rochas.
— Que diabo! São pérolas das cavernas! — Recuou e coçou a cabeça. — Nunca tinha visto nenhuma tão grande. Normalmente não são maiores do que toranjas.
— Ben, não temos tempo para isso — disse Ashley. — Há problemas mais importantes. Precisamos de...
Ben ergueu a palma da mão.
— Não, isto é importante.
— Porquê? — Ashley suspirou, rezando para que ele fosse breve.
— Sabes, as pérolas das cavernas são acumulações de calcário dissolvido em redor de uma pedrinha ou grão de areia. Formam-se apenas de redemoinhos de água corrente, o que sugere que, a dada altura, esta câmara esteve inundada até ao teto.
— Excelente — disse Ashley. — Então o que estás a dizer? Achas que esta câmara se pode voltar a encher de água? Impedir o nosso regresso?
Ele abanou a cabeça.
— Não. Estas pérolas estão secas há milénios. Os canais devem ter-se alterado.
Ashley suspirou.
— Ben, agradeço o folclore espeleológico, mas neste momento precisamos de nos concentrar em encontrar o Halloway.
— Eu sei. É isso mesmo. Ainda que estivesse atrás de um destes pedregulhos, sabê-lo-íamos. — Ben acendeu a lanterna e encostou-a à superfície do pedregulho. De súbito este iluminou-se como um enorme candeeiro, cintilando num amarelo transparente. — São translúcidos. Embora pareçam opacos, a luz brilha através destas malditas coisas. Se o Halloway estiver aqui, está sem luz.
Ashley suspirou. Qualquer hipótese de encontrar rapidamente Halloway estava a desvanecer-se rapidamente.
— Portanto, ou está ferido ou está propositadamente escondido.
Ben acenou com a cabeça.
Linda, que se aproximara do pedregulho, exclamou de súbito:
— Meu Deus! Olhem para o centro da pedra!
Ben foi o próximo a vê-lo. Emitiu um longo assobio.
Ashley espreitou para o interior da pedra.
— Não é uma pedra o que está no centro da pérola.
Ben encostou a palma da mão aberta à pedra.
— Qualquer coisa pode dar origem a uma pérola das cavernas. — Acenou a Ashley para que se aproximasse dele. — Precisamos de mais luz para ter a certeza.
Ashley agachou-se ao lado dele e acendeu a lanterna, concentrando-se no coração da pedra. A pedra cintilava agora numa límpida luz branca. Apesar da distorção provocada pelas camadas cristalinas, não havia como confundir o objeto no seu centro.
— É um crânio. Um crânio humano.
Linda falou a um metro de distância com a voz a vacilar.
— Esta também tem um crânio. Não achas que possa ser a equipa perdida, pois não?
Ashley abanou a cabeça, afastando a cabeça da pedra.
— Não. Tendo em conta a dimensão das pedras, devem ter começado a formar-se há milhões de anos. Eu diria que são os nossos habitantes das cavernas. — Afastou-se da pedra. Adoraria passar horas a estudar aquela descoberta, mas era um mistério que teria de esperar. Maldição! Depois de três dias extenuantes, tinham, por fim, encontrado uma pista. Mas a segurança de Halloway dependia de um avanço rápido. Levantou a voz. — Juntem-se todos! Temos de seguir caminho.
Os restantes membros da equipa regressaram de um exame rápido das pérolas próximas. Michaelson foi o primeiro a chegar.
— Acho que devíamos prosseguir com uma análise sistemática deste lado do rio. O Halloway pode estar ferido ou ter caído numa falha.
Ashley acenou, enquanto Khalid e Villanueva avançavam de novo para junto deles.
— Talvez já tenha atravessado o rio — disse Linda, pouco segura de si, olhando de relance para o Seal que restara.
Villanueva abanou a cabeça, passando a espingarda de assalto CAR-1 de cano curto de uma mão para a outra.
— Ele não teria abandonado a equipa! — disse ferozmente.
Ashley virou-se para o grupo.
— Então procuramos deste lado. Linda e Khalid permanecerão junto ao wormhole para o caso de Halloway regressar na nossa ausência. Ben e Villanueva irão para norte, e Michaelson e eu viraremos a sul. Isso deverá permitir-nos analisar toda a área.
Ben interrompeu:
— Acho que devia ir contigo.
— Não. Quero um elemento armado com cada equipa de busca. Também teremos de deixar uma arma com o Khalid. — Virou as costas a Ben.
Dado que não foram levantadas mais objeções, as equipas partiram. Ashley gritou quando ela e Michaelson se afastaram.
— Tenham cuidado por aí. Mantenham os olhos abertos e quero as luzes acesas. Agora não é o momento de poupar pilhas.
Observou enquanto as outras luzes floresciam na escuridão. Ótimo, com todas aquelas pedras malditas, não queria que mais ninguém desaparecesse no escuro.
Michaelson ajudou-a a saltar sobre um buraco grande, mais um obstáculo. Até ali, o seu progresso fora dificultado pela necessidade de contornar pedregulhos, voltar atrás em becos sem saída e evitar falhas perigosas. Não era de admirar que Halloway se tivesse perdido.
— Isto teria sido muito mais fácil — disse Ashley enquanto se desviava de mais uma falha —, se tivessem dado walkie-talkies à equipa. Bastava comunicarmos com o Halloway.
Michaelson resmungou.
— Demasiada pedra. Não era praticável.
Ashley suspirou e permaneceu em silêncio durante vários metros, depois perguntou pela terceira vez.
— Então não viste nem ouviste nada quando aqui estivestes?
— Espera até chegarmos ao rio. O seu rugido é ensurdecedor. Uma manada de búfalos podia ter passado por aqui, e eu não a teria ouvido. — Soava exasperado. — Odeio estes atrasos. Já devíamos ter atravessado o rio e seguido caminho por esta altura. Maldito Halloway!
Ashley saltou ligeiramente perante a veemência da sua explosão.
— A culpa não é dele.
— Como assim?
— Tinhas instruções. Ficar junto ao wormhole. Decidiste aventurar-te sozinho. Por causa disso, tive de mandar alguém atrás de ti. Agora o Halloway está perdido.
Michaelson abanou a cabeça.
— Estava a fazer reconhecimento. Em busca de formas de apressar a nossa passagem, de evitar atrasos desnecessários.
— Isso são tretas, Dennis.
O major estacou ao ouvir as palavras dela, as costas hirtas e tensas.
— Dennis — disse ela. — Eu sei porque estás aqui. Sei o que aconteceu ao teu irmão.
— Quem te disse?
— Não importa. O que importa é que o teu desejo de encontrares o teu irmão está a prejudicar esta missão.
Ele ficou ainda mais tenso.
— Não o vejo assim.
— Eu sei. É por isso que estou a abordar o assunto. Alguém precisa de to dizer. Estás a pensar com o coração, não com a cabeça. Estás a correr para lá das pistas, como aquela caneca amolgada, por exemplo. Estás a voar à frente do resto da equipa. Sozinho. O que já é arriscado o suficiente para ti, mas agora puseste outro membro da equipa em perigo.
Os ombros de Michaelson ficaram tensos e a sua voz tornou-se mais baixa.
— Mas eu tenho de encontrar o meu irmão.
Ashley pousou a mão no ombro dele, num gesto de consolo; Michaelson estremeceu.
— Vamos encontrá-lo. Mas fá-lo-emos em equipa ou não o faremos de todo.
O major manteve o silêncio durante vários segundos, depois deu um desajeitado passo em frente, quebrando o silêncio, pigarreando.
— Estamos quase no rio. É mesmo à frente.
Abanando a cabeça, Ashley seguiu Michaelson, contornando o pedregulho seguinte. O caminho foi-se tornando mais difícil à medida que se aproximavam do rio ensurdecedor. Os últimos metros até ao rio estavam bloqueados por uma parede sólida de pérolas das cavernas que os obrigou a gatinhar.
Cobertos de lama, alcançaram por fim a margem do rio. Em baixo, as águas negras batiam contra as margens íngremes. Os borrifos que lançavam, ricos em sal, ardiam nos olhos.
Ashley limpou a lama da testa com um lenço húmido e inclinou-se para Michaelson, gritando-lhe diretamente ao ouvido, tentando sobrepor-se ao rio em baixo.
— Ele não tentaria atravessar este rio sozinho.
Michaelson acenou com a cabeça.
— Talvez o Ben e o Villanueva tenham melhor sorte — vociferou. — Porque não...
Um grito penetrou o rumorejar do rio, ecoando através da câmara.
Chocados, Michaelson e Ashley olharam um para o outro.
— Mas que raio? — gritou ela. — O som parecia vir do outro lado do rio!
Michaelson tentou varar a neblina que cobria o rio com a luz da lanterna.
— Pode ter sido só um eco.
— Não gosto disto. Vamos voltar a juntar toda a gente. — Virou-se para percorrer de novo o caminho que tinham trilhado quando ouviram um segundo grito. Este terminou de forma abrupta. — É melhor apressarmo-nos.
Michaelson fitava a escuridão do outro lado do rio, como se estivesse enfeitiçado.
Ashley cerrou os dentes. Puxou-lhe o braço.
— Agora, soldado. Vamos pôr-nos a andar daqui.
Ben coçou atrás da orelha esquerda. Que teria levado a equipa de Ashley a demorar tanto tempo? Ele e Villanueva já tinham terminado a sua parte da busca há quinze minutos. O Seal mantivera um passo enérgico. Ben sempre pensara estar em boa forma. Mas enquanto se debatia para acompanhar Villanueva, sentiu-se uma espécie de avozinha com artrite. O seu contributo para a busca consistiu acima de tudo em gritar ao Seal para que abrandasse. Ainda assim, apesar de todos os esforços, não encontraram sequer sinal de Halloway, tendo regressado ao wormhole sem novas informações para Linda e Khalid.
Ben olhou de relance para Villanueva. O Seal andava para trás e para a frente, uma mão na pistola que mantinha no coldre. O tipo estava tenso como um canguru no cio. Era óbvio que ter de esperar pelo regresso dos outros era uma tortura para ele.
Também Ben estava a ficar preocupado. Já deviam ter regressado. Bateu na pedra que tinha estado a examinar com a lanterna. Devia ter ido com ela. Sabia mais de grutas do que Michaelson. E se ela desaparecesse como Halloway?
Linda chamou-o para que se juntasse a ela no local onde se agachara junto a uma versão minúscula das gigantescas pérolas das cavernas.
— Ben, podes ver isto?
Ben aproximou-se dela, agachando-se sobre os calcanhares ao seu lado.
— Que foi?
— Aponta a tua luz para o interior. Os pormenores são mais claros nesta pedra mais pequena.
— Linda, será o momento certo para isto? — resmungou, embora fazendo o que ela pedia.
Encostando o nariz à pedra, a onda crescente de entusiasmo fê-la atropelar as palavras.
— Olha para o arco supraciliar. Projetam-se demasiado densamente. E os orifícios auditivos. Estão num ponto demasiado baixo do crânio. — Linda virou-se para Ben, os olhos brilhantes. — Não é humano. Ou, devo dizer, não é o homem moderno. A dimensão da caixa craniana sugere um hominídeo avançado. Mas há demasiada distorção para que consiga reconhecer a espécie. A Ashley tem de ver isto. Ela saberá.
Linda olhou de súbito à sua volta, dando voz à preocupação de Ben.
— Porque estão a demorar tanto?
Um grito súbito ecoou pela câmara. Tanto Ben como Linda se ergueram de um salto. Linda deslizou para perto dele. O coração de Ben subiu-lhe à garganta e ficou aí preso. Ashley!
Villanueva já tinha erguido a pistola e permanecia imóvel, o feixe da sua lanterna a funcionar como uma mira. Khalid aproximou-se de Linda e, como uma pequena lua puxada para uma órbita diferente, Linda afastou-se de Ben e colocou-se sob a sombra de Khalid.
Um segundo grito. Ben aproximou-se de Villanueva.
— Temos de ir à procura deles — disse Ben. — Estão em apuros.
— Não — disse Villanueva. — Ficamos aqui.
— Estás louco? Estão a ser atacados!
O rosto do Seal parecia feito de pedra.
— Não. O grito foi mais distante. Do outro lado do rio.
— Como podes ter tanta certeza? A acústica numa gruta é enganadora.
Villanueva continuou a estudar a escuridão à sua frente.
— Tenho a certeza.
— Não quero saber. Vou à procura deles.
— Se tentares afastar-te, dou-te um tiro numa perna. — O tom casual com que disse aquelas palavras sugeria que não estava a brincar.
— Quem raio pensas que és?
— Sou o oficial de patente mais elevada. O que eu digo, vale.
— Mas...
— Este é o ponto de encontro estabelecido. Se estiverem em apuros, virão para aqui. Vamos dar-lhes dez minutos.
— E depois? Vamos à procura deles?
— Não. Voltamos para cima.
— E deixamo-los cá em baixo? O diabo é que faço isso!
— O Michaelson tem o rádio. Sem ele, não temos como comunicar com o exterior. Se ele não regressar dentro de dez minutos, evacuamos.
Ben fitou a cortina escura, para lá da qual imaginava o desenrolar de atos horríveis. Ashley a correr, escondendo-se, perseguida por criaturas salivantes. Ashley atacada e a sangrar. Susteve a respiração durante quase todos os dez minutos. Para o diabo com aquele Seal maldito, se ela não regressasse... sabia cuidar de si mesmo em grutas.
Villanueva baixou o braço. A escuridão encheu rapidamente o vazio da sua lanterna, reclamando avidamente o território perdido.
— Façam as malas — disse por cima do ombro. — Vamos sair daqui.
Ben saltou de um pé para o outro, esforçando-se por ver através da escuridão.
— Vamos, senhor Brust. — O Seal apontou-lhe a arma. — Não torne isto mais difícil.
Ben teve uma ideia.
— Espere. Desliguem as vossas luzes.
— O quê? — disse Linda, com um tremor na voz. — Estás doido?
— Fá-lo. Se não houver sinal das luzes deles, então pomo-nos a andar.
Villanueva estudou-o, semicerrando os olhos, desconfiado.
— Um minuto.
Linda aproximou-se mais de Khalid, ao mesmo tempo que apagavam as lanternas.
O acampamento foi engolido pela escuridão.
Foram precisos alguns segundos para que os olhos de Ben se ajustassem à escuridão, as luzes do acampamento enviavam ainda à sua retina clarões embotados. À medida que esses últimos vestígios se desvaneciam, uma área persistiu, à sua esquerda. As suas pupilas tentaram focar esse ponto. Uma pérola das cavernas a brilhar. Depois o brilho deslocou-se para outra pérola das cavernas. Mais próxima. As luzes estavam a aproximar-se.
— Vem lá alguém — disse Ben, a voz a irradiar alívio. — Eles estão de volta.
— Sim, também estou a ver! — disse Linda.
Villanueva disse-lhes que acendessem as luzes. A escuridão de novo rechaçada pelo brilho das lanternas. Passados alguns minutos, era possível ver o movimento saltitante das lanternas que se aproximavam através da escuridão. O Seal mantinha a arma apontada para a frente. Quando as luzes se aproximaram o suficiente, gritou:
— Parem! Identifiquem-se!
A voz de Ashley soou furiosa.
— Quem raio achas que é?
Depois a voz de Michaelson.
— Somos só nós, major. Relaxe.
Villanueva baixou a arma.
Ashley avançou pelo acampamento, seguida por Michaelson, que não parava de olhar de relance para o rio atrás de si.
— De quem foi a ideia brilhante de apagar as luzes do acampamento daquela maneira? Estávamos a usá-las como um farol para regressar. Pensámos que vos tinha acontecido alguma coisa e começámos a correr para cá. Quase caí de um penhasco.
Linda apontou com o polegar para Ben.
— Estava só à vossa procura — disse, apontando com a cabeça para o Seal. — Depois de termos ouvido o grito, o nosso amigo aqui estava a planear fugir de rabo entre as pernas se vocês não aparecessem.
Ashley enfureceu-se.
— Mas que raio?
Mas Michaelson interrompeu-a, erguendo uma mão no ar.
— Estava correto. Nós tínhamos o rádio. Vocês não.
Ben engoliu em seco.
— Mas deixar-vos...
Ashley esfregou as têmporas pensativamente, depois acenou com a cabeça.
— Ele tem razão. Para a próxima, dá-lhe ouvidos, Ben. — Passou por ele, fitando o acampamento. — Muito bem, dadas as circunstâncias, precisamos de decidir se prosseguimos ou se voltamos para trás.
Michaelson deu um passo em frente.
— Sugiro que eu e o Villanueva atravessemos o rio para observarmos de perto, enquanto os restantes permanecem no acampamento.
Ashley abanou a cabeça.
— Não. Permanecemos juntos. Já vimos o que acontece quando nos separamos.
— Nesse caso, evacuamos — disse Michaelson, secamente. — Não vou arriscar a vida de mais nenhum civil. O Halloway conhecia os riscos.
Ashley franziu o sobrolho.
— E se fosse um de nós a gritar? Seria igualmente rápido a partir?
Michaelson permaneceu em silêncio.
— Bem me parecia — disse ela. — Acho que o Halloway merece o mesmo apoio que qualquer um de nós.
Linda falou.
— Além disso, ele pode estar ferido ou inconsciente. Tem permanecido em silêncio depois dos primeiros gritos. Não podemos partir sem pelo menos o procurarmos meticulosamente.
Michaelson preparava-se para objetar, mas Ashley ergueu a mão.
— Dado que são os nossos couros civis que estão em risco, acho que a decisão de prosseguir ou não deve ser nossa.
Ben e Linda acenaram com a cabeça. Khalid limitou-se a olhar.
— Eu digo que continuamos — disse Ashley. — Alguma objeção?
Os outros mantiveram-se em silêncio.
— Ótimo — disse ela. — Quero atravessar o rio dentro de trinta minutos.
Ashley percorria a beira do rio. Villanueva despira-se até ficar de roupa interior e avançava cautelosamente pelas águas negras como petróleo. Uma corda atada em redor da cintura ligava-o à equipa na margem do rio. Michaelson tinha ancorado a corda à volta de uma estalagmite próxima.
— Já podíamos ter nadado todos até ao outro lado — disse Ashley. — Todo este aparato está a fazer-nos perder tempo.
— Não — disse Michaelson, dando um nó na corda. — A corrente é demasiado forte. Se tentássemos nadar, alguém podia ser arrastado.
— Então prendemo-nos uns aos outros com cordas. — Ashley não compreendia o porquê de ele estar a ser tão obstinado. Não se aperceberia ele de que cada segundo perdido podia significar a morte de Halloway?
Ben abanou a cabeça e tentou acalmá-la com um sorriso.
— Seria demasiado fácil enredarmo-nos, querida. Era uma boa maneira de afogarmos alguém.
Um chapinhar sonoro atraiu de novo a sua atenção para o rio, ao mesmo tempo que Villanueva mergulhava sob as águas revoltas, atravessando quase meio rio antes de regressar à superfície. Os seus braços fortes cortavam as águas em amplas braçadas, ainda assim a corrente impulsionava o Seal rio abaixo. Em breve, Villanueva ficou quase fora do alcance da luz da lanterna.
Linda agarrou no braço de Ashley, beliscando-o com força com o pânico.
— Olha!
Ashley seguiu o braço esticado da bióloga para um ponto mais acima do rio. Uma barbatana dorsal com um metro de altura, de um branco albino, atravessou as águas revoltas, desaparecendo em seguida da sua vista.
Ben, de boca aberta, também a vira.
— Jesus Cristo!
Michaelson, com uma mão presa na corda que segurava o Seal, lutou por se libertar, mas a corda estava presa em redor do seu tronco. Libertou a espingarda e atirou-a a Ben, que se encontrava em melhor posição para disparar.
— Usa-a. Antes que chegue a Villanueva.
Esforçando-se por encostar a espingarda ao ombro, Ben procurou o seu alvo nas águas. Depois, logo abaixo deles, uma ponta branca quebrou a superfície, e ouviu-se o estrondo do tiro. Um pequeno géiser de água irrompeu quando a bala bateu na água, a cerca de um metro da barbatana. Ben falhara.
— Merda — disse Ben, preparando uma segunda bala. Voltou a falhar.
Villanueva, tendo ouvido os tiros sobre o ruído das águas, tinha parado e virara-se para olhar para eles, demorando-se nas águas. Linda e Ashley acenavam em direção à margem oposta.
— Vai! Põe-te a andar daí! — gritou Ashley.
A barbatana dorsal voltou a emergir em todo o seu metro de altura, cortando agora a água a meio caminho entre a equipa e o Seal. Mesmo dali, Ashley conseguia ver os olhos de Villanueva abrir-se. Num arco de tronco exposto, o Seal lançou o corpo na direção da margem oposta, a água agitando-se branca com os movimentos dos braços e das pernas. Mas a corrente resistiu ao seu progresso; parecia preso no lugar, como uma mosca em âmbar. Não vai conseguir chegar à margem, pensou Ashley, cerrando os punhos, tentando transmitir-lhe forças.
A barbatana virou calmamente na direção do Seal que se agitava.
Ben tinha levantado a arma uma vez mais, depois baixou-a.
— Raios. Não tenho um tiro limpo. Deste ângulo, se falhar posso atingir o Villanueva.
Ashley arrancou-lhe a espingarda das mãos e levou-a ao ombro. O seu primeiro tiro arrancou um pedaço à barbatana. Apontou mais para baixo, no segundo tiro, abaixo da barbatana. Puxou o gatilho, o coice lançando a arma contra o seu ombro. Desta feita, o géiser de água do impacto da bala jorrou vermelho.
A barbatana tombou para o lado e afundou-se nas águas.
Ashley cerrou os dentes, esperando que a criatura ferida surgisse de súbito à superfície e apanhasse o Seal. Observou com a coronha da espingarda encostada com força ao ombro, enquanto Villanueva alcançava a margem e se esforçava por trepar pela rocha escorregadia. Respondeu aos gritos de apoio da equipa com um aceno.
Ben colocou-se ao lado dela, tirando a arma das suas mãos trémulas.
— Pensava que odiavas armas!
Ela esfregou as mãos.
— Tens de conhecer as coisas para as odiares.
Ben limitou-se a acenar com a cabeça, parecendo sentir que ela não queria prosseguir com aquela conversa.
Olhou para o outro lado do rio. Villanueva tinha desprendido a corda da cintura e atava a sua extremidade a uma grossa estalagmite. Michaelson puxou a corda para a esticar e prendeu-a a outra do seu lado, criando uma ponte de corda esticada entre duas estalagmites. Os dois trabalhavam como se nada tivesse acontecido. Como se uma criatura saída de um pesadelo não tivesse tentado engolir um dos seus companheiros.
O major testou a segurança da ponte puxando por ela. Satisfeito, virou-se para a equipa.
— Agora podemos atravessar.
Inspirando fundo, Ashley aquietou o seu coração que batia loucamente. Era preciso seguir em frente. Ainda tinha uma equipa para liderar e um companheiro de equipa para encontrar.
Usando os mosquetões para prender os arneses de escalada à corda, a equipa avançou apoiando-se nas mãos e nos joelhos até ao outro lado da ponte. Ashley teve o cuidado de não olhar para baixo. A queda não era grande, mas a ideia de que se encontrasse algo à espreita sob o reflexo negro das águas era paralisante.
Villanueva, de novo envergando o seu fato-macaco, ajudou-a a libertar-se da ponte. A sua mão tremia um pouco quando a içou. Se isso se devia às águas geladas ou ao choque de ter escapado por pouco, não sabia dizer.
— Obrigado — disse ele rapidamente, os olhos envergonhados. — Devo-te uma.
Ashley tentou responder, mas ele virou-lhe as costas e voltou a atenção para Michaelson, o último da fila, que atravessava o desfiladeiro.
Mal o major pousou as botas na margem de pedra, Ashley chamou-os a todos.
— Esta secção da caverna é muito mais pequena, por isso vamos explorar esta área todos juntos. Vamos. Mantenham os olhos e os ouvidos abertos. O que quer que tenha provocado aqueles gritos pode ainda andar por aí.
Esta busca é fútil, pensou Khalid. Usou uma pequena lâmina para retirar a lama negra de baixo das unhas. Halloway já devia estar morto. Quando é que aqueles malditos idiotas vão perceber para podermos seguir caminho?
Viu o Seal a examinar o wormhole que haviam descoberto. Não tinham encontrado qualquer vestígio do companheiro de equipa. Tinham procurado atrás de todos os seixos e no fundo de todas as fendas negras. Nada. Só mais um daqueles malditos wormholes a sair da caverna.
— Isto não serve de nada — disse Villanueva apontando a lanterna para o wormhole. — Há anos que ninguém passa por este buraco. Vejam a camada de lama na entrada. Não há pegadas ou outras marcas.
Ashley agachou-se ao seu lado e enfiou o dedo até ao nó na lama.
— Tens razão. Se alguém tivesse passado por aqui, haveria algum sinal. — Afastou-se e fitou a equipa. — Tem de haver outra saída que não tenhamos visto.
— Talvez — disse Khalid, tentando acordar a equipa, para que pudessem regressar à missão. Tinha um objetivo e era-lhe indiferente se Halloway nunca mais fosse encontrado. — Talvez tenha ficado preso no rio e sido levado para longe.
Michaelson abanou a cabeça.
— Não. O grito teve a sua origem bem para lá da margem do rio. Concordo com a Ashley. Deve haver outra saída.
Khalid disfarçou um franzir de sobrolho.
— Antes de seguirmos — disse Ashley —, acho que devíamos enviar alguém por este wormhole. Só para ter a certeza. Voluntários?
Villanueva tirou o skate da mochila.
— Eu vou.
Ashley acenou com a cabeça.
— Tem cuidado. Vê só onde é que isto sai e depois volta. Nada de aventuras a solo.
Villanueva acenou afirmativamente e deslizou pelo buraco. Ashley olhou para o relógio.
Revirando os olhos perante mais um atraso, Khalid avançou até ao local onde Linda se sentara numa pedra. Com os braços apertava com força o tronco, vendo-o sentar-se ao seu lado.
— Achas que o vamos encontrar? — perguntou, a voz fraca.
— Não. Independentemente do que o major possa pensar, acho que foi levado pela corrente.
Linda estremeceu. Khalid sabia o que ela estava a pensar. A barbatana era branca como a barriga de uma larva. Como um tubarão fantasma determinado a reclamar as suas almas. Com homens e pedras, ele sabia lidar. Mas as criaturas que ali encontrava... primeiro a lula que tentara arrancar-lhe o braço e agora aquele monstro. A imagem da barbatana provocara-lhe arrepios. Como se a natureza lhes mostrasse quão pequenos eram.
Lembrou-se de, quando era um rapazito, ter ouvido falar da tempestade de areia que tinha enterrado o acampamento da mãe, na Síria, matando toda a gente. A mão negra de Alá, tinham-lhe chamado, mas ele sabia que não era assim. Fora apenas a natureza, um deus indiferente que não quer saber dos planos do homem. Todos eram vulneráveis à sua selvajaria. E Khalid odiava sentir-se vulnerável.
Linda abraçou-se e continuou a fitar o rio.
— Aquele tubarão albino. Era enorme. Para sustentar um tal predador, este ecossistema aquático tem de ser mais extenso do que alguém pensou inicialmente. Se não fosse por Halloway, não me importava de parar para fazer alguns testes.
Khalid franziu o sobrolho, esfregando o braço onde a amonite se cravara.
— Eu prefiro evitar esse ecossistema. E manter-me em terra firme.
— Encontrei algo! — gritou Ben a vários metros de distância.
Khalid esticou o pescoço e olhou na direção de Ben. Erguia-se junto à parede da caverna com um fósforo na mão.
Ashley respondeu-lhe.
— Que foi, Ben?
— Encontrei outra saída daqui.
Quem estaria ele a tentar enganar, pensou Ashley, fitando a fenda estreita enterrada na prega da face rochosa mergulhada nas sombras? Estendia-se do chão ao teto, mas não tinha senão trinta centímetros de largura. Era fácil não a ver.
— Ninguém conseguiria passar por aí — disse. — É demasiado estreita.
— Não, eu medi-a — disse Ben.
— Com o quê?
— A minha bota.
Ashley fitou-o, inexpressivamente.
— É uma regra de ouro da espeleologia. Se mais largo do que a tua bota se revelar, por lá poderás passar.
— Não me parece. Em especial o Halloway. Ele é um tipo grande.
— Será apertado, mas eu sei que ele teria passado.
— Além disso, quem sabe se haverá alguma coisa do outro lado?
Em resposta, Ben ergueu um fósforo aceso junto à fenda. A chama curvou-se no sentido oposto ao da abertura.
— Vento — disse ele. — Há uma brisa que sopra vinda de lá.
Ashley viu a chama agitar-se. Talvez...
Um arranhar atrás de Ashley atraiu a sua atenção. Provinha do wormhole. Um par de pernas deslizou, recuando, pela abertura. Era Villanueva. Ergueu-se limpando as mãos aos joelhos.
— Está bloqueada — disse, arfando um pouco. — Houve um desabamento de pedra que bloqueou a passagem a cerca de trinta metros. Tive uma dificuldade tremenda em recuar até aqui.
Ashley praguejou. Se estava bloqueada, só havia uma maneira de seguirem em frente.
Linda avançou e espreitou para a fenda estreita.
— Mas teria o Halloway seguido nesta direção? — Parecia fitar a fenda com receio. — Quer dizer, porque havia sequer de atravessar o rio?
Villanueva respondeu-lhe:
— Se algo o atacou. Algo com que não conseguia lidar. Tentaria afastar a criatura. Impedir que fôssemos surpreendidos como ele foi.
— Que te leva a pensar isso? — perguntou Ashley.
Os olhos de Villanueva fixaram-se nos dela.
— Porque é o que eu teria feito.
Ashley mordeu o lábio.
— Ele está a tentar dar-nos tempo para fugir. Eu digo que o usemos.
Ashley fechou os olhos, odiando a ideia de o abandonar.
Ben chamou-a do ponto na fenda por onde se enfiara para explorar a passagem.
— Vem ver isto!
Quando Ashley se aproximou de Ben, ele estendeu a mão da fenda estreita na direção dela. A palma da sua mão estava coberta de sangue. Sangue fresco.
— Ele passou por aqui — murmurou Ashley. — Ainda agora. — Voltou-se de novo para Villanueva. — Ainda assim achas que devemos regressar?
Os músculos do maxilar dele ficaram tensos.
— A líder és tu.
Ben emergiu da fenda.
— Então, quem vai primeiro? Devíamos apressar-nos.
Ashley suspirou, obviamente Ben não tinha ouvido a discussão entre ela e Villanueva.
— É mais complicado do que isso.
— O quê? Estamos mesmo atrás dele.
— O Villanueva acha que o Halloway poderá estar a tentar atrair algo para longe de nós.
A voz de Ben ergueu-se furiosa.
— Ou talvez esteja ferido! A procurar abrigo. — Ele agarrou-a pelo ombro. — Ash, juro-te que ele está mesmo à nossa frente. Não o podemos deixar.
Ashley esfregou os olhos cansados, depois acenou com a cabeça.
— Está bem. Vamos.
Linda estava parada de roupa interior, a tremer junto à parede. Tinha tirado a mochila e até o fato-macaco. Menos para a atrapalhar e se prender, dissera Ben. Reduz o perfil. Linda estremeceu. Como podia passar o corpo por aquela fenda? As paredes espremiam o ar do seu peito.
Esperaram que Ben relatasse o seu reconhecimento da falha. Tinha-se enfiado na pedra preta há mais de três minutos. Ashley e Michaelson erguiam-se como sentinelas de ambos os lados, enquanto ele ia relatando o seu progresso.
— Já passei — disse, a voz ecoando até à câmara onde estavam. — A passagem só tem dois metros de comprimento, depois alarga de forma abrupta, dando lugar a um túnel de tamanho decente. É canja. Só há um pequeno ponto mais complicado quase no fim.
Ashley fitou o grupo.
— Vou mandar o Villanueva a seguir. Ele é o mais largo de todos nós. Se ele conseguir passar, todos conseguiremos.
Ninguém argumentou.
Linda susteve a respiração, na esperança de que o Seal falhasse; assim não teria de enfrentar o esmagamento daquelas paredes. O seu coração afundou-se no peito quando ouviu os gritos animados de Ben.
— Já passou! Arranhou um bocadinho o peito, mas está bem.
Ashley esfregou as mãos uma na outra.
— Muito bem! Vamos embora!
Khalid foi em seguida. Antes de sair de junto de Linda, apertou-lhe a mão. Ela quase não o sentiu. Linda observou enquanto ele desaparecia, com uma corda pendurada na cintura. Quando tivesse passado, a corda seria usada para puxar as mochilas através da fenda.
— Já está! — disse Ben. — Mandem as mochilas em seguida!
Foram necessários dez longos minutos para prender e arrastar as mochilas com mantimentos e armas para o lado oposto.
— É a última — gritou Ashley. Virou-se para Linda. — A seguir és tu.
Linda não se moveu, fitando a fenda negra. Tentou forçar as pernas a andar, mas estas recusaram-se. Estava a tornar-se difícil ouvir os outros por cima do bater do seu coração, a sua respiração tornara-se rapidamente asmática.
— Linda?
— Eu... eu... não consigo.
— Claro que consegues. O Villanueva tem o dobro do teu tamanho.
Linda abanou a cabeça, engolindo em seco, forçando as palavras a passar pelo aperto que sentia na garganta.
Ashley aproximou-se e envolveu-a com o braço. Linda tremia descontroladamente.
— Não podemos deixar-te para trás. — Ashley apertou o braço em redor do ombro de Linda. — Façamos assim. Eu vou contigo. Vou estar logo atrás de ti. Tu consegues, Linda.
Ashley avançou, obrigando-a a segui-la.
— Eu... eu vou tentar — disse Linda, os pés pesados como chumbo. — Mas, por favor, segura-me a mão. Não a largues. — A voz dela falhou no final.
— Não largo. Faremos isto juntas.
Linda tentou sorrir, mas falhou miseravelmente. Levada pela mão, foi incitada a prosseguir. Sentia a boca como se alguém lhe tivesse despejado um balde de areia pela garganta.
— Mantém a luz do teu capacete a apontar para a frente — disse Ashley. — Apoia as costas na parede esquerda. De acordo com o Ben, é a mais macia. Depois desliza.
Linda passou o ombro esquerdo pela fenda, os dedos dos pés a apontar para a frente e para trás. Deslizando lentamente pela fenda, tentou impedir o agitar de pânico do seu coração. Concentrar-se apenas em avançar. Mais à frente, a luz espalhava-se para lá da curva da passagem estreita. A poucos passos, os outros esperavam por ela.
A fenda engoliu-a. As paredes apertavam-na, demasiado próximas para que conseguisse sequer virar a cabeça para ver Ashley atrás de si. Tudo o que podia fazer era avançar uma perna e puxar o corpo atrás dela. Contou os passos, tentando distrair a mente. Um truque que aprendera na terapia.
— Estás a ir bem — disse Ashley atrás dela, apertando-lhe a mão. — Só mais um bocadinho.
... Cinco... Seis... Sete... A respiração dela tinha assumido um ritmo regular. Respirando a cada passo. Conseguia ver o fim da passagem, um rosto que a fitava.
— Assim mesmo — disse Ben. — És uma obra de arte espantosa. Mais três passos e já passaste.
O vestígio de um sorriso brincou-lhe nos lábios. Estava a conseguir!
— Oito... Nove... De... — O pé esquerdo avançou, mas, quando tentou forçar o corpo a segui-lo, o peito ficou preso na falha. Um gemido escapou-lhe da garganta. Em pânico, tentou forçar-se a avançar, ficando ainda mais presa. Moveu-se para trás, tentando libertar-se, mas não conseguiu.
Por favor, assim não! Não permitam que morra assim. Naquele momento, começou a hiperventilar, pontinhos de luz redemoinhavam à frente dos seus olhos, os joelhos começavam a ceder.
— Linda — chamou Ashley. — Não pares agora. Já quase passaste.
— Estou presa — gritou ela, com uma ponta de pânico na voz.
— Ben — gritou para a frente. — A Linda está presa.
— Que diabo — disse ele. — Deem-me mais luz!
Num instante a fenda encheu-se de luz.
— Estou a ver — disse Ben. — Escuta-me, Linda. Estende a mão para a frente. Estica-a para mim. Pronto. Já tenho a tua mão. Agora, vou contar até três e quero que expires todo o ar dos pulmões e encolhas o peito. Eu puxo-te para aqui.
— Não — sussurrou ela, fechando os olhos. Quase não conseguia expandir o peito. — Vou ficar presa outra vez. Depois não conseguirei respirar de todo.
Silêncio. Um impasse. Depois Linda sentiu Ben libertar-lhe a mão e outra pessoa pegar nela. Reconheceu o toque. Tinha-a apoiado através de muitos obstáculos. Khalid, o seu parceiro de espeleologia.
O egípcio falou com uma voz calmante, reconfortante, quase como se tentasse hipnotizá-la.
— Linda, sabes que não te vou falhar. Conheces a força dos meus braços. Faz o que o Ben diz. Vou puxar-te para mim. Confia em mim.
O coração de Linda batia violentamente. Voltou a abrir os olhos; os pontinhos de luz tinham-se multiplicado em pequenas constelações. Ela sabia que estava perto de desmaiar. Acenou com a cabeça.
— Eu confio em ti.
— Vou contar até três — disse Ben, atrás de Khalid. — Um... dois... três!
Linda expeliu todo o ar do peito, com os pulmões a emitirem um protesto. O seu braço foi puxado para a frente, arrastando o seu corpo mais vinte e cinco centímetros até ficar de novo preso. As lágrimas corriam-lhe pelo rosto. Era assim que ia morrer.
Uma dor súbita trespassou-lhe o ombro. O braço foi puxado de novo, sendo quase deslocado pela articulação. Gritou, libertando o pouco ar que lhe restava nos pulmões. Foi suficiente. Saiu da fenda como a rolha de uma garrafa de champanhe. Livre.
— Ela está bem? — perguntou Ashley ao deslizar pela fenda traiçoeira, vendo Linda nos braços de Khalid.
Ben acenou com a cabeça.
— Acho que sim. Está sobretudo abalada. O ombro vai doer-lhe imenso. Mas ela vai ficar bem.
Ashley acenou com a cabeça.
— Só falta o Michaelson. Quero todos prontos para prosseguir quando ele chegar.
Villanueva, que estava agachado vários metros mais à frente, no túnel, gritou-lhes.
— O Halloway passou por aqui. — O Seal apontou a luz para o dedo erguido. Estava vermelho com sangue. Em seguida virou a luz para a passagem. — O rasto segue por ali.
Ashley não disse uma palavra. Halloway ainda estava em fuga.
— Quero toda a gente armada — disse em voz baixa. — Agora!
Um raspar atrás dela. Virou-se e viu Michaelson a emergir da falha, a t-shirt rasgada. Ashley fez sinal ao grupo para que se juntassem.
— Equipem-se todos. Partimos em dois minutos. Quero uma pistola ou espingarda na mão de cada um.
— Talvez devêssemos simplesmente ir embora — disse Linda, o rosto ainda molhado das lágrimas, a voz trémula.
Ashley pousou a mão no ombro de Linda.
— Já avançámos demasiado. Temos de nos manter juntos.
Linda inspirou fundo, parecendo recompor-se. Quando voltou a falar, a voz era mais firme.
— Tens razão.
Ashley apertou o ombro de Linda, depois fitou a equipa.
— Vamos pôr-nos a andar.
Mais ninguém se opôs. Passados alguns instantes, o grupo descia pelo túnel. Villanueva e Ben assumiram a liderança, avançando vários metros à frente.
— Mantenham-se onde vos consigamos ver — disse Ashley quando Ben se afastou demasiado. — Vamos manter-nos todos próximos.
A certa altura, o túnel bifurcava-se. Para que lado? Ashley fitava inquisitivamente os seus batedores. Villanueva apontou com a luz.
— O rasto de sangue segue por aqui — disse.
Ashley acenou com a pistola para que continuassem, esperando descobrir o corpo caído de Halloway a cada curva do túnel. À medida que cada passo os fazia avançar no túnel, o seu ritmo tornava-se mais rápido. O grupo de Ashley aproximava-se cada vez mais dos cautelosos homens da frente.
— Estás em cima de mim, mulher! — silvou Ben a Ashley. — Não ajudaremos o Halloway se cairmos por um penhasco.
— Desculpa, mas há tanto sangue.
— Estamos a avançar tão depressa quanto a segurança nos permite.
Villanueva interrompeu a discussão com um movimento firme do braço. Apontou para a esquina seguinte. Ashley aproximou-se dele e espreitou para lá da curva. Mais à frente, o túnel abria-se numa caverna de grandes dimensões.
— Acho que devo prosseguir sozinho — disse o Seal. — Verificar a área.
— Não. Desta vez, não. Quero a equipa junta. Mais olhos para observar as costas uns dos outros e mais dedos nos gatilhos para proteger essas costas.
Villanueva encolheu os ombros.
A equipa prosseguiu em conjunto para a caverna, as lanternas a brilhar como os raios de uma roda. A câmara era semelhante a outras que já tinham atravessado. Estalagmites erguiam-se do chão; estalactites furavam o ar vindas do teto. Só que havia algo novo. Ashley esfregou um floco de neve das pestanas.
— Raios. Está a nevar aqui.
Uma pequena espiral de flocos flutuava sob os feixes de luz das lanternas.
Linda esticou a mão e deixou que os flocos pousassem na sua palma aberta.
— Não são frios, nem molhados.
Ben avançou até ao lado de Ashley, abrindo caminho por entre os outros elementos da equipa, franzindo o sobrolho aos flocos que caíam.
— Isto é mau.
— Porquê?
— Isto não é neve. São cristais de gipsita. — Apontou a lanterna para os ramos de cristais de gipsita que enfeitavam o teto da câmara, como lustres brancos de seis metros. — São estruturas frágeis e delicadas. O calor do corpo pode enfraquecê-las e fazê-las cair em flocos.
Ashley sacudiu os flocos dos ombros, como se fosse caspa.
— Continuo sem ver o perigo.
— Para que esta queda de neve ocorra agora, teve de passar por aqui muito calor corporal. Mais do que o libertado por um Seal ferido.
Os olhos de Ashley arregalaram-se perante as implicações de tal afirmação.
— Não estamos sozinhos aqui em baixo.
A queda de cristais de gipsita tornou-se mais densa à medida que a equipa atravessava a caverna. As luzes tremeluziam em todas as direções, as sombras saltavam e mergulhavam. Ashley ajustou o lenço sobre o nariz e a boca. Era a única maneira de se impedir de inalar os flocos. Olhou de relance para os outros, mascarados como um bando de bandidos a aproximar-se de uma vítima desavisada.
Villanueva continuava a seguir à frente, mantendo-se baixo e correndo de abrigo em abrigo, acenando-lhes para que prosseguissem com um sinal de que tudo estava bem. Ninguém falou muito, temendo aquilo que os pudesse esperar na sombra seguinte.
Ben avançava ao lado dela, a arma a apontar para a frente. Baixou a luz para o chão da gruta.
— O rasto de sangue está a ficar mais fraco — sussurrou.
O relatório do fim de dia para a Base Alfa já devia ter sido realizado há uma hora. Mas o tempo era demasiado importante para que interrompessem o seu avanço; seria necessária meia hora para desembrulhar os componentes do rádio da sua bolsa à prova de água, reunir as partes e fazer o relatório. O tempo, tal como o rasto de sangue do Seal, estava a esgotar-se.
Um assobio frenético de Villanueva afastou a atenção de Ashley do rasto vermelho. Os restantes estacaram nas suas posições agachadas. Ela era a única que continuava de pé. Ben puxou-a para o seu lado. Continuou a segurar-lhe a mão.
O Seal, agachado na base de um pedregulho enorme, levou um dedo aos lábios e apontou para que avançasse... em silêncio. Ashley esgueirou-se até à posição da frente.
Villanueva encostou os lábios ao ouvido dela. Falou apressadamente.
— Chegámos ao outro lado da gruta. Há dois pontos de saída. Um grande túnel e um pequeno wormhole.
— E? Vamos. Para que lado segue o rasto de sangue?
Ele abanou a cabeça.
— Não consigo dizer com toda a certeza. A lama está demasiado pisada para conseguir identificar um rasto claro.
— Então verificamos os dois — disse ela, inclinando-se para longe.
— Espera. Não foi por isso que te chamei. — Apontou para trás do pedregulho. — Espreita para ali e escuta.
Erguendo uma sobrancelha, Ashley esticou o pescoço para lá do pedregulho. Na face rochosa à sua frente, identificou outro túnel de paredes irregulares, como o que os tinha conduzido àquela câmara. A princípio não ouviu nada; apenas a sua respiração ofegante que tentava controlar. Talvez a sua audição não fosse tão apurada quanto a do Seal. Quando se estava a virar para pedir explicações a Villanueva, também ouviu. Um estalar e um esmagar, como paus secos debaixo dos pés. E um sorver gutural. Um arrepio percorreu-a. Vinha do túnel à sua frente.
Ergueu a luz para a apontar para o coração do túnel, quando Villanueva lhe baixou de novo o braço.
— Não — silvou. — O que quer que seja não sabe que estamos aqui.
— Talvez seja Halloway — disse, em tom sincero, mas nem mesmo ela acreditava nas suas próprias palavras.
— Tretas — disse o Seal.
— Bem, o que fazemos? Ficamos aqui à espera?
Um forte espirro ecoou atrás deles. Ashley rodou sobre si mesma. Khalid encolheu os ombros, pedindo desculpas, e apontou para os flocos que deslizavam no ar, com a outra mão a conter uma segunda explosão.
Virando-se de novo para Villanueva, Ashley susteve a respiração.
— Já não o consigo ouvir — sussurrou.
O Seal acenou com a cabeça. Tinha fechado os olhos.
— Nem eu.
Merda! O que quer que estivesse naquele túnel sabia agora que eles estavam ali. Já não valia a pena continuarem a esconder-se. Ashley levantou-se, segurando a pistola com as duas mãos.
— Ben, Villanueva. Vocês os dois venham comigo. Michaelson, tu ficas escondido atrás do pedregulho com os outros.
Michaelson avançou.
— Isto é um assunto militar. Devias permanecer aqui. É mais seguro. Eu vou com o Ben e o Villanueva.
— Não — disse ela, verificando a arma. — Quero-te aqui. A proteger a nossa retaguarda. E a proteger os outros. Podemos precisar de retirar rapidamente.
Observou enquanto o major revia a decisão dela. Aparentemente incapaz de encontrar uma falha no seu raciocínio, ele acenou com a cabeça.
— Tenham cuidado.
Ashley puxou o cão da pistola.
— Vamos.
O grupo avançou para a frente do pedregulho, os canos das armas virados para a abertura do túnel.
— Eu digo para abrirmos fogo — disse baixinho o Seal. — Varremos o túnel e fazemos perguntas mais tarde.
— Não — silvou Ashley. — Ainda há uma possibilidade de o Halloway estar ali.
Villanueva ergueu a sua espingarda de assalto.
— Aproveitemos a vantagem enquanto a temos.
Ashley passou a arma para o ombro e avançou.
— Halloway! — chamou. — Se estás aí, dá-nos um sinal!
O túnel fitou-os em silêncio.
— Satisfeita? — O despeito do Seal pingava de cada palavra, enquanto assumia uma nova posição. Baixou a cabeça, aproximando-a da mira da espingarda. A câmara explodiu com o fogo da sua arma, enquanto ele disparava cegamente para o olho negro do túnel. As reverberações abalavam a caverna.
Os ouvidos dela continuaram a zumbir depois de o Seal parar de disparar. Uma nuvem de pó de pedra e fumo saía da abertura atacada.
Ben estreitou o feixe de luz da sua lanterna, tentando varar mais fundo a escuridão opaca, mas não foi capaz.
— Raios.
Depois algo pequeno saltitou para a câmara principal.
— Jesuscristofilhoda... — Villanueva lançou um chorrilho, recuando um passo.
Era Halloway. A sua cabeça. A cabeça decapitada do antigo Seal parou a cerca de um metro de distância, os olhos virados para cima, os flocos de neve pousando suavemente nas suas pestanas.
A partir da boca do túnel irrompeu um grito ululante, como o grito de um falcão, mas mais gutural e rouco. Ashley estremeceu com o som. Uma parte primordial de si respondeu, desejando acobardar-se e fugir, mas pousou um joelho no chão e ergueu ainda mais a pistola.
CAPÍTULO 14
Jason deixou-se cair na cadeira do escritório, soltando um suspiro suficientemente sonoro para chamar a atenção da sua «babysitter». Já estava à espera há cinco minutos. Cinco minutos! Ia chegar atrasado à aula de karaté.
Roland ergueu os olhos dos seus documentos; os óculos deslizaram até à ponta do comprido nariz.
— Oh, Jason. Ainda aqui estás? Pensei que já tinhas ido para o ginásio.
— Sabes que não posso — respondeu Jason, destacando cada sílaba.
— Porquê?
Jason revirou os olhos.
— O doutor Blakely disse que não posso deixar nenhum dos edifícios sem o raio de uma babysitter. — Fez uma careta e imitou a voz nasalada de Blakely. — É para a minha própria proteção.
— Bem, isso é uma parvoíce. O ginásio fica logo aqui ao lado. Sê um bom rapazinho e põe-te a andar para lá. Ainda tenho uma pilha enorme de relatórios para registar e arquivar.
O rosto de Jason iluminou-se. Boa! Empurrou a cadeira para trás com um arrastar sonoro e saiu disparado. Correu pelo corredor e saiu porta fora, o saco de desporto a bater contra a perna. Acelerou pelos nove metros que o separavam do edifício vizinho. Provavelmente o tenente Brusserman já estava à espera. Uma vez passada a porta, Jason foi assaltado pelos cheiros familiares de um ginásio. Camisolas de algodão suadas, o verniz do campo de basquetebol e o cheiro penetrante do desinfetante.
Procurou o tenente Brusserman na área da ginástica aeróbica, mas não viu sinal dele. Jason atravessou o ginásio, dirigindo-se ao balneário. Parou para assistir a um jogo de um contra um que estava a ser disputado no campo de basquetebol. Jason reconheceu o major Chan, com quem saíra para pescar no dia anterior.
Fazendo o sinal de pausa, o major Chan aproximou-se do local onde Jason se encontrava. Estava sem fôlego e falava de modo entrecortado.
— Olá, miúdo. Ouve, o tenente ligou. Não vai conseguir vir hoje, mas pede desculpa. Ficam combinados para amanhã. — O major fingiu um murro brincalhão e depois regressou ao jogo.
O coração de Jason afundou-se no seu peito.
— Mas o que devo... — O major já estava de novo a jogar, a defender um ataque ao cesto.
Maldição! Então e agora? Não queria voltar para o gabinete de Roland. Ficaria preso a folhear aquelas aborrecidas revistas sobre a vida na Marinha.
Abriu uma frincha da porta e esgueirou-se para o exterior. Um grupo de investigadores vestidos de branco passou calmamente por ele, dirigindo-se aos dormitórios, trocando piadas e rindo.
Jason sentou-se nos degraus e procurou no saco de desporto algo para fazer. O gameboy da Nintendo? Torceu o nariz. Não, aborrecido. A sua mão fechou-se à volta de uma revista de banda desenhada do Homem-Aranha, mas já a tinha lido.
Suspirando, agitou o conteúdo do saco. Ouviu o tilintar de algumas moedas e um pacote de pastilhas elásticas caiu dele. Franzindo o sobrolho, pegou no pacote de Juicy Fruit e enfiou-o no compartimento lateral do saco. Enquanto o fazia, a mão tocou num objeto duro e redondo.
Retirou-o da mala. Oh, boa! Deslizou o dedo pela velha bombinha vermelha. Uma cereja explosiva. Sorriu, lembrando-se de a ter trocado com Billy Sanderson por uma revista de banda desenhada dos X-Men. Já quase se tinha esquecido dela. Olhando à sua volta com um brilho matreiro nos olhos, considerou a hipótese de se afastar e de a experimentar.
Precisamente nessa altura um cientista de casaco branco dobrou uma esquina próxima e avançou na sua direção. Guardou rapidamente a bombinha no seu esconderijo. Talvez devesse esperar até regressar aos Estados Unidos. Se a mãe descobrisse aquele seu pequeno tesouro... não, era melhor ir com calma.
Fechou o saco, ainda sem saber o que fazer com o seu tempo livre.
Levantando-se, afastou-se dos degraus, passando o saco de desporto para a outra mão. Nesse preciso momento, contornando a esquina do barracão, um grupo de oficiais passou por Jason, um deles tinha o peito coberto de medalhas suficientes para engasgar um elefante.
O homem condecorado tirou o boné e limpou o sobrolho.
— Está sempre assim tão diabolicamente quente cá em baixo?
Um dos companheiros falou.
— Não é o calor, é a humidade.
— É o calor, tenente — disse o homem com autoridade.
— Sim, senhor, sim, almirante.
Jason, impressionado com o receio que aquele homem conseguia gerar, ficou enfeitiçado.
— Agora, onde está esse Blakely? — perguntou o almirante, voltando a colocar o boné.
— Por aqui, senhor. — O tenente virou desajeitadamente a esquina seguinte.
Uau! Devia estar a acontecer alguma coisa importante. Jason espreitou pela esquina. Os homens desapareceram num dos edifícios de betão.
Jason conhecia aquele edifício. Era o centro de comunicações. Já lá tinha estado três vezes quando lhe era permitido conversar dois minutos com a mãe, logo pela manhã. Normalmente a conversa consistia na mãe a perguntar-lhe se estava a obedecer às «babysitters». Ainda assim, suspirou, fora bom ouvir a voz da mãe sobre a estática.
Coçando atrás de uma orelha, Jason perguntou-se o que quereria o tipo com o doutor Blakely. Cerrou os lábios. Talvez pudesse descobrir. Sabia que a mãe odiava quando se punha a ouvir as conversas dos outros, mas não conseguia resistir a um bom furo. Além disso, podia obter informações acerca da mãe.
Deslizou pela esquina e entrou sorrateiro pela porta. Não havia ninguém por perto. A secretária, Sandy, não estava na sua mesa. Que sorte! Deslizou para o interior. Quando levou a mão à porta do corredor principal, a maçaneta girou e a porta abriu-se.
Sandy estava à sua frente com uma cafeteira meio vazia na mão.
— Oh, Jason! — disse ela com um grande sorriso, afastando uma madeixa de cabelo louro para trás da orelha. — Não sabia que ias passar por aqui.
Jason mordeu o lábio e recuou um passo, pronto para sair a correr. Limpou a garganta.
— Eu... eu só queria dizer uma coisa ao doutor Blakely.
Ela pousou a cafeteira e tirou um novo filtro.
— Desculpa, querido, mas o doutor Blakely está ocupado. Porque não me dizes o que queres e depois transmito-lhe?
— Não!... Sabe — gaguejou de olhos muito abertos —, é algo pessoal... privado.
Ela cerrou os lábios, depois sorriu.
— Estou a ver. Bem, então porque não te sentas e esperamos até o doutor Blakely ficar livre?
Jason acenou com a cabeça. Aquilo não o estava a levar a lado nenhum. Talvez devesse ir-se embora e dizer que falaria mais tarde com Blakely. Essa seria a coisa mais inteligente a fazer. A sua boca teve outras ideias.
— Tenho de ir à casa de banho.
— Está bem, querido. É logo depois daquela porta, à esquerda.
Claro que ele já o sabia. Mais importante, também ficava ao lado da sala de comunicações. Avançou até à porta.
— Obrigado.
Sandy sorriu, erguendo os olhos do teclado, e piscou-lhe o olho.
Sustendo a respiração, Jason avançou para o corredor. Os ténis gemiam no chão de linóleo encerado. Não havia ninguém no corredor, mas conseguia ouvir o zumbido das vozes nos diversos gabinetes. Erguendo-se em bicos dos pés, avançou pelo corredor, tentando avançar tão silenciosamente quanto possível. Chegou à porta que dava acesso à principal sala de comunicações.
Estacando a meio de um passo, ficou à escuta. A voz de Blakely era clara e seca.
— Por que raio acha que queríamos esta rede de comunicações? Sabe muito bem, graças aos meus relatórios, que está lá em baixo algo perigoso que desconhecemos. Precisamos de...
A voz do almirante interrompeu-o.
— Seja como for, o relatório da sua equipa só está uma hora atrasado. Acho que declarar um alerta vermelho foi prematuro.
— Se pudesse, o Michaelson não se atrasaria um segundo que fosse com os seus relatórios.
— O major tem demasiados interesses nesta missão. É demasiado pessoal. Nunca deveria ter permitido que ele participasse.
— Já tivemos esta discussão antes. Está feito. Agora quero saber o que vai fazer em relação a isto.
— Nada.
Um grande estrondo.
— Ouça lá, tenho os sensores de movimento a enlouquecer. Ainda ontem perdemos mais um homem no Sector Quatro. E agora a minha equipa está atrasada no seu relatório. E vai fazer o quê? Ficar sentado à espera que desapareçam mais dos meus homens?
As palavras seguintes foram tão geladas que Jason estremeceu.
— Não. Washington enviou-me para fazer apenas uma coisa. De acordo com o meu bom senso, decidir se está apto a manter o comando. Tornou a minha decisão fácil. A partir deste momento, considere-se exonerado do cargo.
Silêncio, as palavras seguintes cuspidas com veemência:
— Vocês planearam isto desde o início, não foi? Nunca tiveram qualquer intenção de manter este projeto civil. Quando é que os chefes decidiram arrancar-me as instalações? Foi quando se perdeu a equipa anterior? Ou logo no início?
Seguiu-se um silêncio de morte.
Antes que Jason pudesse reagir, a porta escancarou-se. Blakely, de olhos arregalados, chocou contra o rapaz, atirando-o ao chão.
— Jason!
— Eu... eu... eu...
— Que estás a fazer aqui?
— Eu ia... quer dizer...
— Esquece. — Blakely curvou-se, ajudando Jason a levantar-se. — Anda.
Empurrado em direção à porta, Jason avançou aos tropeções.
— Que se passa? A minha mãe está bem?
O velho ignorou-o.
— Preciso de te levar para um lugar seguro. Nunca devia ter permitido que viesses cá para baixo.
O almirante saiu para o corredor.
— Se esse é o Jason Carter, deixe-o ficar. Agora é responsabilidade minha.
— Vá para o inferno! — gritou Blakely, empurrando Jason pela porta do corredor.
Meio empurrado, Jason tropeçou para a área da receção. Demasiado assustado para pensar, tentando apenas manter-se um passo à frente do médico furioso, chocou contra a porta.
Sandy, com a boca aberta de surpresa, ergueu-se, parando de escrever.
— Que se passa?
Sem responder, Jason passou pela porta, com o braço de Blakely em redor do ombro. Por aquela altura, as lágrimas começavam já a correr pelo rosto de Jason, que apertava o saco de desporto contra o peito.
No exterior, Blakely pareceu acalmar-se.
— Desculpa, Jason. Não queria assustar-te. Mas devias saber...
Uma sirene ecoou pela câmara. O som foi de tal forma penetrante que Jason estremeceu, cobrindo os ouvidos.
— Que foi? — gritou.
— Os sensores periféricos. A base está a ser atacada. Depressa. — Blakely puxou o braço de Jason.
CAPÍTULO 15
Fez-se silêncio. Tinham passado dez longos segundos desde que o grito se fizera ouvir no túnel. Na entrada escura, o fumo do ataque de Villanueva começava a dissipar-se. Teria sido morto? Engolindo em seco, Ashley olhou para lá do cano da sua pistola. Pelo canto do olho, conseguia ver a cabeça de Halloway; jazia ainda a um metro dos seus pés, fitando-a, como se lhe perguntasse porque permitira que aquilo acontecesse.
Arriscou lançar um olhar de relance na direção de Ben, à sua direita. Ele viu o seu olhar e encolheu os ombros. Talvez o que quer que tivesse matado o Seal tivesse morrido. Talvez tivessem tido sorte...
Com um uivo, emergiu do túnel.
Um vislumbre de dentes cortantes, afiados como agulhas e serrilhados.
— Credo! — gritou Ashley. Em choque, cambaleou para trás, falhando o tiro.
Ben empurrou-a para o lado, para fora do alcance das mandíbulas que se lançavam sobre ela, depois puxou-a para trás de um monte de pedregulhos.
Algures ao longe, ouviu Linda gritar.
— Mas que raio...? — começou Ashley, mas Ben silenciou-a, tapando-lhe a boca com a mão.
Um desagradável cheiro a carne putrefacta inundou o seu esconderijo quando uma cabeça gigantesca de focinho comprido, reptiliano, como o de um crocodilo, surgiu sobre a beira de um pedregulho, oscilante sobre um pescoço coberto de escamas; as suas narinas, muito abertas, farejavam o ar, à sua procura. A pele negra e oleosa esticava-se sobre os ossos e as mandíbulas. Depois o focinho virou-se, acompanhado por um olho negro, sem pálpebras, como um pedaço de obsidiana polida, na direção deles.
Ao lado dela, Ben lutou para libertar a espingarda e virá-la, mas o espaço estreito atrás do pedregulho era demasiado pequeno.
Ashley tentou erguer a pistola, mas a sua mão estava vazia, a arma perdera-se na queda. Merda!
Villanueva manteve-se onde estava, em silêncio, temendo que o movimento distraísse a besta e arruinasse o tiro. Estudou o alvo, em busca de um ponto fraco.
Que diabo seria?
Villanueva semicerrou os olhos, fitando a criatura através da mira da espingarda. Erguia-se com três metros de altura, preta como piche, apoiando-se nos membros traseiros fortemente musculados, mantendo o equilíbrio com a cauda grossa. Os braços, finos quando comparados com os musculosos membros traseiros, terminavam em garras articuladas, como uma espécie de gato feroz. Conseguia ver as garras, afiadas como lâminas, que se estendiam e retraiam, enquanto trepava pela superfície do pedregulho.
Villanueva continuou a observar enquanto a criatura se movia para trás e para a frente, a cabeça escondida pelo pedregulho. As cimitarras em gancho dos membros traseiros escavavam o chão da gruta.
Como matá-la? A criatura tinha um peito espesso, coberto de lama e escamas duras como ferro. Poderia um tiro da espingarda que a atingisse no peito penetrar até ao coração? Talvez. Mas era arriscado. Só conseguiria um tiro. Moveu a mira da espingarda para a frente. Teria de a atingir na cabeça.
A criatura continuava a espreitar para trás da pilha de pedregulhos para onde Ben e Ashley tinham fugido, mantendo o alvo fora do seu alcance. De súbito o corpo ficou tenso; a cauda parou de se mover. Tinha descoberto algo por trás daquele pedregulho... e Villanueva calculava o que seria: Ben ou Ashley.
Emitiu um silvo sonoro. Como um cão raivoso que levanta o pelo das costas, uma crista de cerdas afiadas ergueu-se na parte de trás do pescoço serpenteante, descendo ao longo de todo o seu corpo.
Mostra-me a tua cabeça, monstro de merda. Dá-me um tiro limpo.
Cerrou os dentes. Um tiro que não fosse fatal limitar-se-ia a enfurecer a besta, tornando o segundo tiro impossível. Tentou usar a força de vontade para mover o monstro. Impotente, viu os músculos da besta retesarem-se quando esta se preparou para saltar sobre a sua presa.
Tinha de a distrair!
Os nós dos dedos de Villanueva ficaram brancos, enquanto ele apertava a espingarda.
Retirar, pensou Michaelson. Linda e Khalid eram responsabilidade sua.
Regressou para o abrigo do pedregulho. Odiava abandonar os outros, mas não estava em posição de oferecer uma ajuda verdadeira. Olhou de relance para o local onde Linda continuava a tremer nos braços de Khalid. Precisavam de recuar para uma posição mais defensável.
Afastou-se do pedregulho e apressou-se para junto deles.
— Agarrem nas mochilas. Vamos sair.
Linda ergueu o rosto pálido do ombro de Khalid.
— Mas e os outros...?
— Agora! — disse com a voz rouca, empurrando a mochila na direção dela.
Khalid atirou a mochila por cima do ombro e ajudou Linda a pôr a sua às costas.
— Ele tem razão. Não os podemos ajudar.
Michaelson, de espingarda na mão, levou os outros dois. Quando contornaram o primeiro pedregulho, uma vista panorâmica da câmara em forma de bacia abriu-se à sua frente. Ali, na beira, Michaelson tinha uma vista desafogada do vale inclinado que tinham atravessado apenas há uma hora.
— Merda! — disse, parando.
Khalid erguia-se junto ao seu cotovelo.
— Que foi?
— Ali. Logo a seguir à próxima crista de pedra.
Khalid olhou para onde o major apontava, depois disse algo feio na sua língua nativa. Linda encostou o rosto ao ombro dele.
Michaelson estudou a paisagem. Quatro cabeças reptilianas moviam-se sobre o chão repleto de pedregulhos, longos pescoços que se esticavam para cima, olhando na sua direção. Como cães da pradaria diabólicos. Enquanto observava, uma das cabeças baixou-se, desaparecendo do seu campo visual.
Não havia como saber quantas estariam por ali, mas uma coisa era certa. Qualquer tentativa de atravessar seria um suicídio. A sua retirada fora cortada. De maxilar tenso, apertou com mais força a alça da espingarda.
Pelo canto do olho apercebeu-se de um movimento súbito.
Virou a luz para a esquerda. A nove metros de si erguia-se uma estalagmite atarracada, como milhares das que tinham contornado para ali chegar. Nada se movia, agora. Cerrou os maxilares, apertando com mais força a espingarda. Haveria algo atrás dela? De súbito, da estalagmite emergiu uma cauda serpenteante e uma cabeça de focinho comprido, perfeitamente camuflada contra a pedra escura. Mesmo iluminada era difícil perceber onde começava a pedra e terminava a besta.
Os olhos negros moveram-se na sua direção. A boca abriu-se, revelando fila após fila de dentes.
Ashley encolheu-se ainda mais quando o focinho se virou na sua direção. Silvou e o seu hálito tresandava a carne podre. Tentando cegamente encontrar uma arma qualquer, a sua mão pousou na lanterna presa ao cinto. Talvez lhe pudesse bater até a afastar. Agarrando no cabo grosso, moveu a lanterna para a frente.
Ben interrompeu os seus esforços para libertar a espingarda.
— Liga-a! — gritou. — Feixe forte!
Reagindo instintivamente à ordem, ligou a lanterna e colocou-a no máximo. Uma lança de luz projetou-se do seu esconderijo, atingindo a besta diretamente nos olhos.
Rugindo, a criatura atirou a cabeça para trás.
Ao retirar-se para lá do limite do pedregulho, ouviu-se a explosão de uma espingarda. Villanueva, pensou. Ele ainda ali estava. Ashley pôs-se de joelhos. Um segundo tiro de espingarda; desta vez atrás deles. Ashley virou para Ben um olhar inquisitivo.
— Vai! — gritou ele.
Ela ergueu-se rapidamente, saltando para vários metros de distância, dando espaço a Ben, no preciso instante em que, à sua frente, explodia um novo tiro de espingarda.
Um silvo de raiva ecoou na câmara, seguido por um forte estrondo nos pedregulhos.
— Cuidado! — Ben empurrou-a pelas costas.
Caindo para a frente, rolou de lado e viu a cascata de pedregulhos a desabar entre si e Ben, atingindo o espaço onde há pouco estivera.
— Ben!
— Estou bem! — ouviu do outro lado de uma pedra. — Mas não vejo forma de chegar junto de ti!
— Então tenta chegar ao Michaelson!
— O diabo, não te vou deixar!
— Vai!
Não querendo esperar mais, temendo por Villanueva, avançou cautelosamente para a frente dos pedregulhos e espreitou para lá do seu limite.
Os seus olhos abriram-se, aterrorizados.
O terceiro tiro de Villanueva falhou o alvo, não acertando na cabeça e deslizando inofensivamente pelo pescoço da besta, mas foi o suficiente para lhe chamar a atenção.
A criatura atacou como uma cobra em fúria.
A boca fechou-se no espaço onde o Seal se erguera, mas este já tinha recuado vários metros. A criatura abriu a boca e rugiu, os olhos vermelhos. Ele recuou de novo, hesitante. A cabeça da criatura aproximou-se do chão, seguida pela massa do seu corpo, tensa com músculos trementes.
Ia saltar.
Villanueva apertou o gatilho, apontando a partir da cintura, quando a besta saltou na sua direção. O tiro atingiu o alvo, acertando no ombro da criatura, fazendo jorrar um fio de sangue.
Impávida, a criatura continuou em frente.
Villanueva desviou-se para a direita.
Desta vez foi demasiado lento.
Quando tentou virar-se, o braço foi puxado para trás, fazendo-o cair contra a pedra dura. De súbito todo o seu corpo foi agitado no ar, pendurado por um braço, nas mandíbulas da besta. Uma dor lancinante ameaçava mergulhá-lo na escuridão.
Cerrando os dentes, tentou agarrar a espingarda; tinha a alça de cabedal ainda presa em redor do antebraço. Mas esta pendia fora do seu alcance. Puxou-a contra o peito, tentando agarrá-la com uma só mão.
Precisamente quando os dedos conseguiram agarrá-la, a besta abanou-o como um cão que agita um boneco de trapos. O ombro saiu do seu encaixe.
Um osso estalou.
Uma onda de escuridão inundou-o, submergindo-o.
A espingarda deslizou dos seus dedos inertes.
Michaelson empurrou Linda para trás de si.
— Recua. — Esquivou-se para trás de um outro pedregulho, erguendo de novo a espingarda para cobrir a retirada. A criatura estava a segui-los. Fazendo-os recuar em direção à parede, onde, tendo em conta as detonações, os outros continuavam a lutar contra o primeiro monstro.
Uma decisão inteligente, pensou. Estava a tentar cercá-lo para que caísse nas mandíbulas da outra besta.
— Khalid, vem cá para a frente — gritou. — Quero que lhe apontes a arma. Preciso de recarregar.
Não obteve resposta.
— Khalid!
Olhou de relance por cima do ombro.
Nem Khalid. Nem Linda. Onde estariam?
Virou-se de novo para o caminho. A dois metros de distância, uma cabeça do tamanho da de um touro contornava um pedregulho. Pequenas narinas, abertas como leques chineses, testavam o ar enquanto caçava. Desviou-se da sua luz, depois tornou-se visível. Avançava ereta sobre as patas traseiras fortemente musculadas. A boca estava aberta, quase como se sorrisse. Baixou a cabeça para perto do chão da gruta, procurando um cheiro. Michaelson apercebeu-se da crista de penas que corria ao longo das costas curvadas da criatura.
Que monstro de merda. Ergueu a espingarda e apontou a mira ao rosto horrendo. Sorrindo ameaçadoramente, puxou o gatilho.
Tique.
O percutor bateu numa câmara vazia.
Ashley gatinhou para a frente. Por favor... espero que estejas vivo.
Villanueva pendia flácido nas mandíbulas da besta. A criatura agitou o corpo do Seal para trás e para a frente uma última vez, depois deixou-o cair para o chão rochoso.
Estremecendo, Ashley susteve a respiração. O sangue ensopava todo o tronco dele. Merda! Estava imóvel.
A besta inclinou a cabeça para um lado e para o outro, estudando a sua presa, como um pássaro com uma minhoca. Concentrada na presa, não se apercebeu da presença dela.
Com cuidado, pensou Ashley. Não lhe chames a atenção. Agachou-se e deu cada passo com enorme cautela. A pistola estava a cerca de três metros de distância. Engoliu em seco e deu mais um passo em frente.
Estava quase lá.
Cerrando os dentes, deslizou até à arma.
A besta ainda brincava com Villanueva. Usando uma garra em forma de punhal, virou o corpo tombado do Seal. Ashley conseguia ouvi-la cheirar o sangue dele.
Ashley levou a mão à pistola. Quando os dedos envolveram a arma, estacou.
Vozes erguiam-se atrás de si.
— É logo ali. — Reconheceu o sotaque carregado de Khalid.
— Tens a certeza? — A voz tensa de Linda.
A besta virou a cabeça, precisamente na direção de Ashley. Esta estacou, temendo mover-se, rezando para que a criatura tivesse uma fraca visão.
— Estaremos em segurança no wormhole. É demasiado estreito para que consigam chegar até nós. — As vozes aproximavam-se do local onde se encontrava. — Vamos ter de correr para lá.
A besta esticou o pescoço para a frente, inclinando a cabeça. Imóvel como uma pedra, escutava as vozes e os sons do movimento que se aproximava. Talvez...
Ergueu a arma, movendo-se com uma lentidão agonizante. Sem movimentos rápidos que distraíssem a criatura.
Concentrando-se no cano, tentou apontar para o olho de obsidiana. Mas uma enorme ponte de osso protegia-o. Não ia conseguir acertar. A criatura precisava de inclinar a cabeça ligeiramente.
Atrás de si, Linda gritou:
— É a Ashley!
Cala-te, ordenou em silêncio à mulher. Linda claramente ainda não contornara o pedregulho o suficiente para ver o que mais estava ali.
Ashley ouviu o salto da bota de Linda deslizar no xisto solto.
— Khalid, a Ashley deve ter alguma ideia quanto... Oh! Deus!
A besta girou a cabeça na direção de Linda, um olho tornando-se visível. Ignorando o grito de Linda, Ashley puxou o gatilho duas vezes em rápida sucessão, o coice da arma fazendo-a cair de costas.
Sem saber ao certo se tinha acertado no alvo, lutou por se colocar de novo numa posição agachada, esperando ver os dentes a descerem sobre si.
Encolheu-se quando a cabeça da besta, que fora atirada para trás pelo impacto das balas, se voltou de novo na sua direção. Um dos olhos era agora uma cratera destruída.
Deu um passo na sua direção, silvando uma nota penetrante. Ashley recuou, chocando contra Linda.
— Para trás! — gritou Ashley, esforçando-se por erguer de novo a arma. Mas antes que conseguisse apontar, a criatura mergulhou na sua direção. Ashley desviou-se para o lado.
Linda, contudo, não o fez.
A criatura agarrou a mochila da bióloga, quando esta se virou para fugir. Arrastou-a para lá de Ashley, um grito fixo nas suas feições.
Ashley apontou a pistola, mas o corpo de Linda bloqueava o alvo.
Khalid correu em frente.
— Faz qualquer coisa!
Ashley segurava a arma à sua frente com as duas mãos. Não tinha um tiro limpo. Os olhos de Linda cruzavam-se com os seus, suplicantes e aterrorizados. Continuava sem poder disparar.
Uma ruidosa explosão agitou o ar. Todos estacaram. Depois, como uma marionete a quem haviam cortado os fios, a besta caiu ao chão. Ashley, tremendo, continuava a apontar a arma ao monstro. Este jazia imóvel.
Para lá da massa da besta, viu Villanueva, terrivelmente ensanguentado, sentado com a espingarda segura no seu braço bom. O fumo erguia-se da boca da arma. O Seal caiu para trás com um gemido.
Ashley correu para onde o Seal estava caído. Ele tentou levantar-se, mas Ashley manteve-o preso ao chão.
— Não te mexas — disse ela, estremecendo. Era difícil olhar para ele. Um fragmento de osso espreitava da parte de cima do braço. O sangue corria, espesso, das feridas irregulares.
— Ele salvou-me a vida — sussurrou Linda, que se aproximara de Ashley por trás, ajoelhando-se ao lado dele, tomando a mão arranhada dele nas suas.
Villanueva tentou sorrir. Dois fios de sangue corriam do nariz partido.
— Sinto que fui atingido de frente por uma locomotiva. — Os olhos dele estavam vidrados devido ao choque iminente. Tossiu roucamente.
— Não tentes falar — disse Ashley, depois virou-se para Khalid. — Vai buscar as mochilas. Preciso do kit médico.
Khalid, que se mantinha a um metro de distância, olhou de relance para a abertura do wormhole, depois para ela.
— Não temos tempo...
Linda levantou-se.
— Não podemos deixá-lo aqui, Khalid. Se não fores buscar as mochilas, vou eu. — Ela afastou-se.
Franzindo o sobrolho, Khalid seguiu-a.
Ashley voltou de novo a atenção para Villanueva, quando uma nova série de detonações irrompeu do outro lado da câmara. Os olhos do Seal fecharam-se.
— Vêm lá mais — balbuciou. — O Khalid tem razão. Têm de sair daqui. Deixem-me a espingarda.
— Cala-te, vamos sair todos desta gruta de merda. Todos nós. — Virou-se de novo para observar a câmara escura.
Ouviste, Ben? Isso significa que tu também.
Michaelson puxou de novo o gatilho. Mais uma câmara vazia. Não tinha tempo de colocar um novo carregador.
Com um silvo furioso, a criatura tipo lagarto saltou sobre ele.
Usando a espingarda como se fosse um taco de basebol, ele bateu com a coronha de madeira no tecido mole do nariz quando o focinho o tentou abocanhar. A criatura gemeu, recuando um passo. Tocou no focinho com um antebraço minúsculo.
Sem esperar, Michaelson fugiu. Agradecendo aos deuses pelos anos passados na Little League, no Nebrasca.
Enquanto corria pelo trilho, Michaelson procurou o carregador extra no bolso do peito. Distraído, escorregou num buraco. Cambaleou e conseguiu manter-se direito, mas o tornozelo lançou um relâmpago de dor pela sua perna. Saltou alguns passos. Não sabia se estaria torcido ou partido.
Cambaleou mais um pouco. Passados vários metros dolorosos, apercebeu-se de que perderia aquela corrida. Parou e olhou para trás de relance. Ainda estava a salvo. Teria de lhe fazer frente. Mantendo os olhos fixos no trilho, lutou por obrigar o carregador a entrar na espingarda, mas tinha-o posto de pernas para o ar. Maldição.
Virando de imediato o carregador, enfiou-o por completo ao mesmo tempo que contornava um pedregulho, apoiando-se num ombro, e apontava para o trilho por onde viera. Agora, vem ter comigo, sacana feioso.
Ouviu algo que se aproximava, cautelosamente.
Uma sombra surgiu de súbito entre dois pedregulhos a apenas um metro dele. Sobressaltado, Michaelson moveu o dedo sobre o gatilho. A bala passou pelo vulto.
— Que raio pensas que estás a fazer? — disse Ben, levando a mão ao ouvido chamuscado.
— Desculpa. Pensei...
— Para a próxima basta um simples «por favor, afasta-te».
Um metro atrás do ombro direito de Ben, Michaelson viu um focinho ferido que lhe era familiar a contornar uma das curvas do trilho. Ergueu de novo a espingarda.
— Afasta-te!
Sem hesitar, Ben saltou para o lado de Michaelson, dando meia-volta e apontando a sua própria espingarda.
Quando a cabeça se tornou completamente visível, Michaelson apontou e carregou no gatilho. A cabeça foi projetada para trás e o sangue jorrou-lhe da boca. O corpo caiu no trilho, a cauda batendo convulsivamente várias vezes antes de, por fim, se imobilizar.
— Jesus! Quantos é que são? — disse Ben, sem fôlego.
— Vi pelo menos quatro.
— Temos de nos apressar — incitou Ben. — Ashley e Villanueva continuam a lutar com o outro.
Como se o tivesse ouvido, a detonação de uma pistola ecoou com a clareza de um sino, seguido de um segundo tiro.
— Vamos — disse Ben. Os olhos a brilhar de preocupação.
— Dei cabo do tornozelo. Não consigo andar muito depressa.
Ben mordeu o lábio inferior.
— Então vai tu primeiro. Eu cubro o trilho atrás de nós. Faremos o caminho de volta o melhor que pudermos.
— Não, vai sozinho. Chegarei quando conseguir.
— Esquece — disse Ben. — Não te vou deixar aqui ferido. Agora mexe-te. Estamos a perder tempo.
A rigidez teimosa dos ombros do australiano disse a Michaelson que não valia a pena discutir. Afastou-se da rocha e estremeceu quando o tornozelo tocou no chão. Saltou dois passos com a perna boa por cada um com a má.
As palavras seguintes de Ben fizeram-no apressar os saltos.
— Temos companhia.
Deitada sobre o trenó e a espreitar da abertura do wormhole, Ashley estremeceu com cada tiro. Durante os quinze minutos seguintes, as detonações fizeram-se ouvir esporadicamente. Cinco tiros seguidos, depois nada durante um minuto, depois uma nova explosão. Mas, nos últimos dois minutos, a câmara estivera em silêncio. Nem um som. O silêncio era uma agonia.
Vá lá, Ben, volta para aqui.
Do fundo distante do wormhole ouviu Villanueva balbuciar qualquer coisa. A morfina tinha-o deixado incoerente. O braço fora ligado e preso ao peito. Fora necessária uma boa dose de analgésicos e um forte puxão no braço para pôr o ombro no sítio. Depois, ele deslizou para um sono agitado. Raios, o homem era um filho da mãe forte.
Ainda assim, precisava de mais ajuda do que a que um kit de primeiros socorros poderia garantir. Mal estivessem em segurança, iriam usar o rádio em busca de apoio sob a forma de armas enormes. De preferência bazucas.
Linda e Khalid tinham levado as mochilas e ajudado a carregar o Seal para uma parte mais profunda do túnel. Ashley esperava na entrada, observando a câmara. Onde estás tu, Ben? Esforçou os olhos, numa tentativa de penetrar a parede de escuridão.
Aproximando-se dela por trás, ouviu o raspar de rodas na rocha.
— Vês... alguma coisa? — perguntou Linda.
Ashley olhou de relance por cima do ombro. Por baixo do capacete, o rosto de Linda estava pálido, a sua respiração era ofegante.
— Não — respondeu —, e está demasiado silencioso por aqui.
— Ashley, preciso de sair daqui.
— É mais seguro no wormhole.
— Não... não consigo respirar. Preciso de ar.
Ashley percebeu, finalmente. Raios, já tinham surgido sinais suficientes.
— És claustrofóbica, não és?
Linda permaneceu em silêncio, depois ouviu-se um tímido «Por favor».
— Está bem. Vou contigo.
Ashley deslizou primeiro para fora do túnel, empunhando uma lanterna de mão e iluminando a área mais próxima. Virou-se para fazer sinal a Linda para sair, mas a bióloga já estava de pé, ligeiramente instável nas suas pernas.
Linda deu alguns passos, inspirando profundamente.
Ashley estudou a câmara. Ainda não havia sinal de nada nem ninguém.
Linda falou atrás dela. A voz tremendo ligeiramente.
— Então... o que pensas desta... criatura?
Ashley virou-se para ela. A frágil mulher erguia-se junto ao corpo caído da besta, a parte de trás da cabeça era uma massa ensanguentada. A bióloga tocou-lhe com um pé.
Ashley encolheu os ombros, sem vontade de falar, não com Ben ainda lá fora.
— Não sei.
Linda ajoelhou-se ao lado da criatura enorme, torcendo o nariz de nojo perante o cheiro. Deslizou o dedo pela crista por cima do olho bom.
— A órbita do olho é estranha para um réptil. O arco zigomático está errado. É mais mamífero. E a estrutura pélvica é estranha. Lembra-te como se movia. Ereto, com articulações e pernas que lembravam uma árvore. — Falava como se estivesse num sonho, meio consciente do que estava a dizer. — Nunca vi nada assim.
Ashley encolheu os ombros, varrendo com a luz a superfície do pedregulho.
— Raios, tem estado aqui isolada há séculos. Não há como saber que pressões evolutivas geraram essa monstruosidade — balbuciou distraída. Só um pensamento lhe ocupava toda a atenção: onde estás, Ben?
Linda continuava a examinar a carcaça da criatura, avançando ao longo do seu comprimento caído.
— ... Hum, vem ver isto.
Ashley virou-se para Linda, apontando a luz.
A bióloga estava a erguer e a baixar alguns dos espinhos eriçados que compunham a crista da criatura.
— Isto não são escamas. É cabelo compacto.
Intrigada, Ashley aproximou-se mais.
— Cuidado — avisou Linda. — Acho que as cerdas podem estar envenenadas. Vê o brilho cintilante na ponta de cada uma e a glândula bulbosa na base das cerdas. Tem cuidado. — Linda afastou-se, continuando o seu exame ao longo da carcaça. Ashley ajoelhou-se ao lado do crânio lesionado e ergueu cuidadosamente uma das cerdas com o dedo enluvado. Depois sentou-se sobre os calcanhares.
— Talvez seja alguma espécie desconhecida de dinossauro. Vejo diversos traços reptilianos primitivos. Até as escamas são semelhantes às do plesiossauro, uma espécie de dinossauro, mas então e o resto? A articulação temporomandibular está num ponto demasiado baixo no crânio, prendendo o maxilar como o de uma cobra, o que lhe permitiria abrir a boca o suficiente para engolir um pequeno porco de uma assentada. E não conheço nenhum dinossauro com cabelo.
— Vem ver isto — disse Linda.
Ashley agachou-se ao lado da bióloga.
— Que encontraste?
— Não é um dinossauro. Ou um réptil. Ou um mamífero. — Linda estendeu o braço para a barriga exposta da besta. Puxando uma aba de pele, revelou uma bolsa no abdómen. — É um monotrémato.
Com a mente toldada e distraída, Ashley reconheceu o termo, mas não conseguia identificar exatamente o seu significado.
— Um quê?
— Um marsupial que põe ovos. Como o ornitorrinco australiano. A espécie partilha características tanto com os répteis como com os mamíferos. Supostamente tratar-se-ia de um beco sem saída evolutivo.
O Seal ferido gemeu letargicamente no túnel atrás de Ashley.
— Um beco sem saída infernal — disse Ashley.
A Grande Bertha ainda vinha atrás dele. A vários metros de distância, Ben observou a maior das três bestas que avançavam pelo seu trilho. Esta baixou-se, estendeu uma garra e pegou num dos cartuchos da sua espingarda. Farejou-o, depois deitou-o fora. Os outros dois colocaram-se atrás dela, até ela os afastar com um silvo.
Ben voltou a rolar para trás do pedregulho. Três contra um. Não era bom. Talvez não devesse ter sido tão rápido a enviar Michaelson à frente. O seu plano de atrair o trio de modo a dar ao major algum tempo parecia agora bastante idiota.
O fogo da sua espingarda atraíra o grupo atrás de si, mas os sacanas estavam a ficar espertos, escondendo-se atrás dos pedregulhos, tornando-se alvos difíceis. E, por muito depressa que corresse, eles igualavam o seu ritmo. Há poucos minutos, um deles quase o flanqueara, apanhando-o de surpresa. Um tiro de sorte que fizera ricochete numa pedra e o atingira na cauda atrasara-o o suficiente para que Ben conseguisse escapar.
Afastou-se da rocha e correu. Precisava de algo para os distrair, ganhar algum tempo para si mesmo, de modo a conseguir escapar. Ouviu o fungar característicos enquanto os predadores o perseguiam.
Pensa, raios! És mais esperto do que um maldito monstro das cavernas.
Depois ocorreu-lhe repentinamente. Talvez, só talvez...
Acelerou em busca de um local perfeito. Daquela vez, a sorte estava do seu lado. Aproximou-se de uma clareira no meio de um aglomerado de pedregulhos. Mapeou o plano na sua cabeça.
Se se erguesse ali, escondido por aquela derrocada... raios, aquilo poderia funcionar.
Levou a mão ao cinto para montar a armadilha.
Uma vez terminada, enfiou o corpo no espaço estreito entre duas lajes denteadas de pedra partida, tendo o cuidado de não prender o braço da espingarda. A partir daquele ponto tinha uma boa visão de toda a área aberta. A lanterna de mão repousava numa fenda próxima, iluminando a área à sua frente, mas deixando-o nas sombras.
Ergueu a espingarda e esperou, contando cada batimento do seu coração. A câmara estava silenciosa como um túmulo. Depois um suave fungar, seguido por uma explosão de silvos furiosos. A Grande Bertha avançou para o círculo de luz, cautelosamente, de cabeça baixa. Correu em frente. Raios, movia-se depressa. Num simples piscar de olhos, saltara para o centro da clareira, atraída pelo objeto brilhante. Os outros dois, aparentemente mais jovens, lançaram-se atrás dela. Pegou no feixe de cartuxos de espingarda que Ben prendera uns aos outros.
Ben encostou a face ao cabo da espingarda, fitando os alvos. Permitiu que um pequeno sorriso lhe aflorasse os lábios. A curiosidade mata.
Bertha levou os cartuxos ao nariz, cheirando-os. Ben apontou para o feixe e puxou o gatilho. O impacto gerou uma explosão portentosa que abanou a caverna.
Onde estivera outrora o braço direito de Bertha, agora havia apenas um toco ensanguentado, jorrando sangue negro. O focinho era um caos de osso e cartilagem. A besta vacilou, depois caiu ao chão, agitada pelo estertor da morte.
Em pânico, os outros dois saltaram para longe, um subindo para cima de um pedregulho alto. Gritaram um com o outro, agitando furiosamente as caudas. Aproveitando-se da sua confusão, Ben deslizou do seu esconderijo, agarrou na lanterna e correu.
Aquilo devia mantê-los ocupados durante algum tempo... esperava. Avançava rapidamente, num sprint mortal. Precisava de cinco minutos. Depois teria avanço suficiente. Passados nove metros, deu-se ao luxo de olhar por cima do ombro. Duas cabeças reptilianas olhavam na sua direção. Já não silvavam um ao outro. Tinham percebido o ardil e sabiam quem culpar.
Virando-se para a frente, obrigou as pernas a acelerar ainda mais. Um rápido olhar para trás, mostrou que as cabeças tinham desaparecido.
A perseguição começara.
Ashley fitava a bolsa da besta.
— Então é uma espécie de marsupial? Como pode isso ser?
Linda encolheu os ombros.
— Existiram todos os tipos de espécies marsupiais. A certa altura, preencheram todos os nichos ambientais: predador, presa, etc. Eu diria que se trata de um protótipo primitivo. Algo que acabou por desaparecer na árvore evolutiva. Ainda que...
De súbito, o som de algo que se aproximava interrompeu-as.
Ashley virou a cabeça. A vários metros de distância, uma lanterna solitária movendo-se erraticamente saiu de trás de um pedregulho. Ashley virou a luz na sua direção.
Michaelson, coxeando com uma expressão de dor, aproximou-se delas.
Ashley não parava de olhar por cima do seu ombro.
— Onde está o Ben?
— Vinha logo atrás de mim, a cobrir a retaguarda. — Michaelson virou o olhar preocupado para a caverna negra. — Mas já não o vejo nem ouço os tiros da sua espingarda há algum tempo. Só aquela forte explosão.
— Então deixaste-o lá? Sozinho?
— Ele insistiu que...
Ashley impediu-o de continuar, com a palma da mão erguida.
— Mais tarde. Neste momento, quero-vos aos dois naquele wormhole. Estamos demasiado expostos aqui fora.
Michaelson abanou a cabeça.
— Eu fico e cubro a entrada até o Ben chegar.
— Não — disse Ashley, fitando o tornozelo dele. — Com o teu ferimento... eu ficarei de guarda.
Franzindo o sobrolho, ele obedeceu às ordens.
Pouco depois, Ashley erguia-se sozinha com uma pistola numa mão e uma lanterna na outra, o bater do seu coração tão ruidoso que tinha a certeza de que poderia ser ouvido do outro lado da caverna. Vá lá, Ben. Não me deixes pendurada.
A alguma distância, no wormhole, Michaelson gritou.
— Algum sinal do Ben?
Ashley ergueu-se junto à entrada.
— Não. Continua a avançar. Eu digo-te quando houver. — Por aquela altura, as palmas das suas mãos estavam suadas, a pistola escorregadia. Já se tinham passado dez minutos desde a chegada de Michaelson. Decerto Ben já devia ter voltado. A sua mente imaginava Ben vítima de todo o tipo de horrores. Volta de uma vez, desejou.
Depois, do outro lado do espaço aberto, surgiu outra lanterna, saltitando loucamente. Graças a Deus, pensou, erguendo a sua própria lanterna. Ben corria a toda a velocidade na sua direção. Lançou a espingarda por cima do ombro e acenou-lhe para que fugisse.
— Corre! — gritou ele.
Atrás de si, dois enormes corpos avançavam para o espaço aberto, os pescoços torcendo-se para trás e para a frente, enquanto fitavam a presa que lhes escapava.
— Para dentro! — gritou-lhe.
Em pânico, virou-se para obedecer, depois parou. Como iria Ben...? Virando-se de novo, enfiou a pistola no cinto, pegou na prancha de skate dele e gritou-lhe:
— Apanha!
Lançou o skate na sua direção e observou quando ele o apanhou no ar. Em seguida fez a coisa mais difícil da sua vida. Virou as costas a Ben e mergulhou de cabeça no wormhole.
Sustendo a respiração desceu pelo túnel. Quando se encontrava a uma distância segura, travou e olhou por cima do ombro. Daquele ângulo, conseguia ver Ben a correr em direção à entrada, um focinho reptiliano logo por cima do seu ombro. Depressa!
Ben saltou para o buraco, o skate contra o peito. Ela estremeceu. Ele ia falhar a entrada e bater contra a parede.
Mas em vez disso aterrou com um sonoro «auf» e mergulhou sem problemas pelo túnel.
Ben conseguira! Descerrando os punhos, deixou escapar um longo suspiro.
Chocando contra ela, Ben sorriu, a sua expressão simultaneamente tensa e aliviada.
— Ora, isto é aconchegante.
As suas mãos ásperas seguravam-lhe as pernas. Desejou que aquelas mãos a envolvessem, abraçassem. Estendendo um braço para trás, apertou-lhe a mão.
De súbito o túnel foi invadido por um grito de raiva. Um dos seus perseguidores enfiara a cabeça no buraco na direção deles, as mandíbulas bem abertas.
Ben empurrou-a para a frente.
— Está na hora de ir!
Ashley começou a mover as mãos para a frente, afastando-se, quando ouviu um grito de Ben. Contorceu-se.
Ele deslizava para longe dela, em direção à entrada. A criatura tinha-o agarrado por uma bota e puxava-o para trás. Ben ia pontapeando o focinho com o outro calcanhar.
Ela virou-se de costas, sacrificando o skate, ouvindo-o deslizar pelo túnel para longe dela, depois agarrou na pistola.
— Deita-te por completo, Ben! Para baixo!
Fitando o cano da pistola, Ben encostou-se ao chão, tapando a cabeça.
As mãos de Ashley agarravam a arma, firmes como pedra. Sobre as costas de Ben viu um olho na sua mira, depois puxou o gatilho, a explosão ensurdecedora dentro do túnel.
Um guincho de dor seguiu-se de imediato. Passado um instante, Ben rolava na direção dela. Antes que conseguisse reagir a boca dele estava sobre a sua. Os lábios comprimidos. De súbito, ele afastou-se como se estivesse, também ele, espantado. Ashley pestanejou, a boca ainda ligeiramente entreaberta.
— Raios — disse ele.
— Ai! — Ben moveu as ancas por baixo dela. — Estás a esmagar-me.
Montada nas costas de Ben, sentia os músculos dele a fletirem enquanto fazia avançar o trenó de transporte. Dentro dela, as suas emoções guerreavam: um alívio inebriante devido à fuga à justa, a excitação perante o que os aguardava e um crescente desejo pelo homem por baixo dela.
— Desculpa — disse, deslizando mais para trás, repousando a cabeça no ombro esquerdo dele, as mãos na sua cintura. O calor do corpo dele era como o de uma fornalha, constante e escaldante. Fechou os olhos, deixando que o seu rosto tocasse na curva do pescoço dele.
— Vejo luzes à frente — disse Ben.
Ashley ergueu o queixo para olhar em frente.
— São os outros. Disse-lhes que esperassem no túnel.
Deslizaram para a frente. Michaelson era o último da fila. Contorceu o tronco forte no túnel para olhar para eles. Tinha estampado no rosto uma expressão de alívio genuíno, que era estranhamente tocante.
— Credo — disse Michaelson. — Deixaram-nos preocupados. Primeiro aquele grito e o tiro, depois o teu trenó apareceu vazio.
— Decidimos partilhar o transporte. — Ben sorriu. — Poupa combustível e é bom para o ambiente.
Ashley deu-lhe um beliscão na cintura, suscitando um esgar de dor. Esticou o pescoço para espreitar por cima da cabeça de Michaelson.
— Como está o Villanueva?
— Ainda grogue, mas estável. A sua respiração está mais regular. O pulso forte.
— Ótimo. Então vamos fazer uma pausa e tentar contactar a Base Alfa. Consegues chegar ao rádio?
Michaelson acenou com a cabeça.
— Já tentei.
— E?
— Apenas estática.
Ergueu a sobrancelha. Se não conseguissem contactar alguém, obter ajuda...
— Talvez estejamos demasiado confinados aqui. Toda esta pedra.
— Não, não devia fazer qualquer diferença. Aqui em baixo, estamos sempre rodeados por pedra.
— Então o que se passa? O rádio está estragado?
— Não, verifiquei e está bom, e o centro de comunicações da base tem pessoal vinte e quatro sobre vinte e quatro horas. Para não responderem... — As palavras dele interromperam-se de súbito.
— Que foi?
— Algo de muito sério deve estar a passar-se.
CAPÍTULO 16
— Corre — disse Blakely, empurrando Jason pelas costas. — Para o meu gabinete.
— Mas...?
— Depressa!
Blakely correu para o seu gabinete, ultrapassando o rapaz e arrastando-o por um braço. Felizmente, Jason, chocado com a confusão, deixou-se rebocar.
As sirenes baliam aos ouvidos de Blakely, tornando difícil pensar. Homens e mulheres corriam à sua volta. Mil holofotes oscilavam em arcos loucos pelo telhado. Tendo em conta o som dos tiros, o ataque fora lançado sobre a periferia da base, por todos os lados.
Blakely subiu velozmente os degraus do edifício administrativo. Jason avançava aos tropeções atrás dele com a alça do saco de desporto a enrolar-se nos pés. Passaram a porta e percorreram o corredor, entrando de rompante no gabinete de Blakely.
Roland estava a enfiar papéis numa pasta às mãos-cheias. Não ergueu os olhos ao falar.
— Eu ouvi. Estou quase pronto.
— Ótimo. Assegura-te de que levas também os papéis da investigação que estão na gaveta da secretária. Aqueles idiotas das forças armadas podem ficar com a minha base, mas maldito seja se vão ficar com o meu trabalho.
— Qual a razão dos alarmes? — perguntou Roland. — Que se está a passar?
Blakely deslizou a mão pelo cabelo fino.
— Não sei. O alerta foi dado em toda a base. Tenho um pressentimento...
Uma explosão enorme abalou o edifício. Jason apertou o saco de desporto contra o peito com mais forças. As lágrimas começavam a acumular-se nos seus olhos.
Roland continuou a enfiar os papéis na pasta ainda mais depressa.
— Aquilo parecia o depósito de munições do lado sul.
Blakely acenou com a cabeça.
— Deixa o resto. Evacuamos agora.
Abriu uma gaveta e retirou um Colt .45 automático. Confirmou se estava carregado e entregou-o a Roland com um carregador extra.
— Toma.
Roland parecia alguém a quem acabara de ser oferecida uma cobra venenosa. Abanou a cabeça.
Uma nova explosão fez abanar o edifício e cair pó do teto.
Roland agarrou no revólver.
Com uma chave minúscula, Blakely abriu uma gaveta trancada e retirou do seu interior uma caçadeira de canos serrados. Abriu-a com um estalido; dois cartuchos vermelhos aguardavam na câmara. Voltou a fechá-la.
Virando-se, tropeçou em Jason. A colisão levou o rapaz a perder o controlo que mantinha a custo.
— A minha... mãe... — disse entre soluços.
Blakely ajoelhou-se e segurou os ombros do rapaz.
— Jason, preciso que sejas forte. Vamos correr até ao elevador. Tentar chegar lá acima.
O som de uma metralhadora fez-se ouvir a alguns metros.
— Está na hora de irmos — disse Roland, segurando a pasta numa mão e o Colt na outra. — Vamos pelas traseiras. Teremos de percorrer um caminho mais curto até ao elevador.
— Ótimo — disse Blakely, levantando-se e mantendo uma mão no ombro do rapaz. — Vai à frente. Eu cubro a retaguarda.
Roland deu meia-volta e dirigiu-se à porta. Blakely e Jason seguiram-no de perto, o cientista a segurar a caçadeira com as duas mãos.
No exterior as sirenes tinham-se silenciado, mas à sua volta surgiam ilhas de detonações. Homens armados corriam em todas as direções. Dois homens com uma maca passaram por eles velozes, seguindo na direção do pequeno hospital, com uma figura coberta contorcendo-se sobre a lona. Um braço ensanguentado libertou-se do lençol, e os dedos arrastaram pelo chão.
Blakely olhou à sua volta. Precisava de informação. Um soldado de olhar tresloucado recuou numa esquina, chocando contra eles. O capacete desaparecera e a arma tremia-lhe nas mãos. Blakely reconheceu o cabelo ruivo e as sardas.
— Soldado Johnson — disse Blakely, dando à sua voz tanta autoridade quanto lhe foi possível. — Faça-me um relatório.
Johnson deu meia-volta com uma expressão de pânico estampada no rosto. O sangue pingava de uma ferida na testa. Tentou a custo assumir algum decoro militar, batendo uma continência trémula.
— A base foi invadida. Vieram de todo o lado. Saltaram dos buracos, jorraram dos túneis. O meu... o meu pelotão foi dizimado. Aniquilado. — Enquanto ia apresentando o seu relatório, os olhos foram-se abrindo mais, ficando mais vidrados, os seus tremores tornaram-se piores.
— Quem, soldado? Quem está a atacar?
Com olhos enlouquecidos, Johnson acrescentou:
— Eles... eles vêm para aqui. Temos de sair daqui.
— Quem? — Blakely tentou agarrar o ombro do homem, mas o soldado escapou do seu alcance, temendo ser tocado, depois correu para longe.
Roland avançou para o lado de Blakely.
— O elevador fica para sul. Se foi perdido, então...
— É a única saída daqui — balbuciou Blakely. — Vamos ter de tentar evitar o pior dos combates.
Roland acenou com a cabeça. Jason mantinha-se perto do assistente.
Avançaram cautelosamente, ziguezagueando para longe das áreas sob fogo. Contornando um Quonset, Blakely chocou contra Roland que parara de súbito. Blakely seguiu os gestos de Roland e espreitou cuidadosamente pelo canto.
No espaço entre os dois edifícios seguintes, jaziam quatro corpos dilacerados, os membros arrancados dos troncos, os intestinos espalhados como serpentinas. De súbito um dos troncos estremeceu, puxado para a viela escura para além dele, arrastado por algo que se escondia nas sombras.
Blakely suprimiu um grito quando também ele foi puxado para trás. Mas era apenas a mão do seu assistente que o puxava para onde não pudesse ser visto. Um uivo irrompeu a poucos metros de distância, algo selvagem, não humano. Um grito de resposta ergueu-se atrás deles. Perto.
Roland experimentou a porta do barracão Quonset; as dobradiças guincharam com a ferrugem quando a porta se abriu. Correram para o interior, temerosos do que o ruído poderia atrair. Blakely fechou a porta tão silenciosamente quanto as dobradiças lhe permitiam, depois fechou o ferrolho. A escuridão engoliu o grupo.
Blakely ligou uma pequena lanterna presa a um porta-chaves; não lançava senão um brilho fraco. Na semiobscuridade, filas de caixas empilhadas estendiam-se a todo o comprimento do longo edifício. As colunas compactas subiam do chão ao teto. Não havia tralha, não havia cobertura atrás da qual se pudessem esconder. Mas devia haver uma saída na ponta oposta do Quonset.
Blakely apontou com a lanterna.
— Seguimos pelo meio! Até à outra porta...
Um estrondo ribombou quando algo pesado bateu na porta. Seguiu-se um uivo de protesto. Uma vez mais, algo bateu contra a porta. Desta feita a moldura deformou-se, o metal gemeu, mas o ferrolho aguentou.
— Não vai aguentar novo embate! — gritou Blakely sobre o ruído. — Corram!
Roland correu em frente. Blakely agarrou na mão de Jason e arrastou consigo o rapaz, correndo entre as paredes de caixas.
Um terceiro embate ecoou através do barracão de armazenamento. Um guincho metálico, depois a luz inundou a divisão. A respiração de Blakely ficou presa no seu peito quando algo de grandes dimensões entrou no edifício, bloqueando por um momento a luz dos candeeiros exteriores, mergulhando o espaço na escuridão.
O que Blakely sentiu primeiro foi o cheiro. A podridão de um ossário. Depois o som. Raspar e arranhar. Não soavam decerto como quaisquer passos que alguma vez tivesse ouvido. Num instante, avançou pela fila vizinha, silvando ao mesmo tempo que avançava paralelamente a eles pelo edifício.
Quase em pânico, Blakely puxou Jason para a frente, fazendo o rapaz gritar e tropeçar. Antes que caísse ao chão, Blakely agarrou-o pela t-shirt e puxou de novo a criança para cima. Mas era tarde demais...
A pilha de caixas logo atrás deles caiu, ao mesmo tempo que se ouvia um grito de raiva. As caixas estavam a ser atiradas para o lado, como blocos de brincar. Dentro de instantes, estaria em cima deles. Olhando para a frente, viu Roland que se aproximava da porta. Pegando em Jason ao colo, Blakely tentou correr em frente, mas os seus joelhos velhos não conseguiam suportar o peso do rapaz. A respiração ardia-lhe no peito.
Jason pareceu senti-lo e contorceu-se.
— Ponha-me no chão. Eu posso correr.
Sem fôlego para discutir, Blakely largou o rapaz e desejou que ganhasse velocidade. O rapaz parecia um coelho, partindo a correr mal os ténis tocaram no chão.
Blakely deu um passo em frente para o seguir, quando uma caixa em queda o projetou para a frente, prendendo-lhe as pernas. Blakely gritou ao cair no chão. Ajudando com os braços, puxava freneticamente pelas pernas. Jason tinha parado vários metros mais à frente e virara-se. O rapaz deu um passo na sua direção.
— Não! — gritou. — Corre! Eu apanho-vos!
Com o estrondo da madeira a partir, um focinho reptiliano surgiu na fila à sua frente, abocanhando o espaço vazio entre Jason e Blakely. Silvou e inclinou o pescoço na direção da lanterna de Blakely; com ombros gigantescos, tentou avançar ainda mais através da parede de caixas. Blakely tentou agarrar a caçadeira, mas esta deslizara para fora do alcance dos seus dedos. Quando a criatura se lançou contra ele, torceu-se para o lado, tanto quanto as suas pernas presas lhe permitiam. Felizmente, foi o suficiente.
O focinho raspou-lhe no ombro, não lhe acertando. A cabeça colidiu com a caixa sobre as suas pernas, deslocando-a de cima de Blakely. Sem esperar, este rolou para longe. O seu instinto foi enfiar-se entre as caixas, mas estas recusaram mover-se. Encurralado, preparou-se para iniciar uma corrida desesperada atrás dos outros.
A besta rosnou e silvou, recuando para um segundo ataque. Quando o seu pescoço ficou tenso, preparando-se para atacar, Jason saltou à sua frente, fazendo girar o saco de desporto em círculos.
Sobressaltada, a besta estacou.
O rapaz usou todo o seu tronco para lançar o saco para a frente, acertando em cheio no focinho da criatura. A sua cabeça voou para trás sob a força do impacto.
Blakely não ficou à espera.
— Corre! — A adrenalina incendiava-lhe o coração, alimentando um pânico ardente. Correu em frente, agarrando a caçadeira com uma mão. Correu pesadamente pelo corredor. Jason, ágil como um macaco, corria à sua frente. A criatura agitava-se atrás dele, tentando libertar-se da pilha de caixas. Blakely continuou a correr, ignorando o esforço. Os olhos fixos em frente.
Uma luz brilhante explodiu à sua frente.
Roland tinha alcançado a outra saída. Erguia-se recortado contra o seu brilho, acenando-lhes para que continuassem.
— Depressa! — gritou Roland. — Vem aí!
Blakely tentou aumentar a velocidade, mas as pernas começaram a ceder. Caiu de joelhos. O som de caixas a tombar tornou-se mais próximo. Blakely ergueu-se com esforço, sentindo-se zonzo e instável. Depois uma dor forte, que ardia como bílis, cresceu no seu peito e disparou pelo braço esquerdo. O coração.
A divisão inclinou-se... a escuridão tentou engoli-lo...
De súbito, Roland estava ali, a apoiá-lo. Deixou-se arrastar, sabendo que devia protestar, insistir que o deixassem. Mas estava demasiado fraco para emitir qualquer som. Passaram todos pela saída.
Jason fechou a porta atrás deles com um pontapé.
Enquanto cambaleavam para longe, um uivo de raiva irrompeu no interior do barracão Quonset. Garras raspavam o metal enquanto a criatura tentava abrir caminho para os perseguir.
Blakely, com a mão a tremer, apontou em frente.
— O ruído vai atrair mais criaturas.
Correram em direção ao centro do acampamento, abandonando qualquer esperança de alcançar o elevador. Rajadas de tiros soavam esporadicamente à sua volta. Nuvens de fumo ondulavam na brisa da caverna. Perto do extremo norte do acampamento, um fogo ardia, as chamas tremeluzindo até meio caminho do teto. Cambalearam através do acampamento, escondendo-se de todos os sons.
Repousando ao abrigo de uma porta, Roland foi o primeiro a falar depois do momento difícil.
— Para onde vamos? Estão a atacar de todas as direções.
— Não. — Blakely respirava roucamente. — Só estão a atacar a partir de terra. — Com a respiração sibilante, apontou para o lago.
O seu assistente acenou com a cabeça.
— Pode ser mais seguro ali. Se conseguíssemos um barco, saíssemos para a água...
— E se eles conseguirem nadar? — perguntou Jason.
Blakely tentou brincar.
— Então é melhor escolhermos uma lancha. Vamos. — Afastou-se dos degraus. O ritmo lento com que tinham atravessado a base permitira-lhe recuperar o suficiente para prosseguir sozinho. Com Roland a guiá-los, seguia com o rapaz. A sua respiração soava arranhada por entre os dentes cerrados. Com um pouco de sorte...
Depois, vindo de outro lado, um dos répteis mais pequenos, musculado e repleto de cicatrizes como um rufia de rua, surgiu no seu caminho — a uns meros dois metros de distância. Agachou-se e silvou-lhe, com os pelos das costas erguidos.
Blakely ergueu a caçadeira e disparou loucamente. A criatura uivou e recuou um passo, um pedaço ensanguentado arrancado ao seu flanco direito. Roland disparou, dilacerando-lhe o braço, fazendo-o girar.
— Mexam-se! — gritou Roland, agarrando o ombro de Blakely e o braço de Jason. Empurrou-os para a viela estreita entre a sala da messe e um dormitório de madeira. — Corram!
Afastando-se desajeitadamente, Blakely ouviu as rápidas explosões dos tiros do revólver de Roland e um forte estrondo, acompanhado pelo som de madeira a estalar. Depois silêncio.
Num instante, Roland estava de novo ao lado dele, passando um braço pela cintura de Blakely para que este pudesse correr mais depressa.
— Derrubei-o, mas ele está a levantar-se...
Ouviram um rugido de raiva vindo de trás.
— Por aqui — disse Blakely arquejando e apontando para o dormitório.
— Ele pode forçar a entrada. Ficaríamos encurralados outra vez.
— Não, sigam-me. — Blakely conduziu-os ao dormitório vazio e silencioso, com exceção de um rádio que tocava uma canção de um velho musical. — Por aqui. — Cambaleando através da sala de convívio, acenou-lhes para que o seguissem.
Uma mesa de snooker com o feltro verde rasgado aguardava vazia, um taco repousava encostado a ela, como se o seu jogador tivesse saído para fumar. Uma máquina de pinball tocava e piscava num canto.
— Para onde vamos? — perguntou Roland.
— Garagem... arranjar transporte. — Acenou na direção do corredor que partia daquela divisão, na esperança de que Roland compreendesse.
O seu assistente acenou com a cabeça.
— Vamos.
Atrás deles explodia uma janela, pedaços de vidro voavam em todas as direções. A besta que os perseguia, sangrando de diversas feridas, aterrou com um baque. A mesa de snooker gasta bloqueava-lhe o caminho, desviando-lhe a atenção, garantindo-lhes os segundos necessários para escaparem para o corredor. A criatura atacou a mesa como se fosse uma presa ferida, destruindo-a por completo com os dentes e as garras.
— Por aqui — sussurrou Blakely, abrindo uma porta lateral. A garagem fedia a óleo queimado e gasolina derramada. A sua minúscula lanterna não encontrou nada senão espaço vazio. Depois viu um Ford Bronco solitário na última divisória. Um dos poucos jipes que ainda restava depois da chegada das Mulas elétricas. Graças a Deus. Talvez ainda tivessem uma oportunidade.
Roland fê-los apressarem-se através da escuridão.
Baixando os olhos, Blakely sentiu uma pontada de medo. Faltava um pneu! A jante da frente do lado esquerdo estava vazia. Não era de admirar que ainda ali estivesse. Tentou protestar com Roland, mas o seu assistente atirou-o praticamente para o veículo. Resignado, recostou-se no assento, ao mesmo tempo que Jason voava para o banco de trás. As chaves, felizmente, ainda estavam na ignição.
— Vai ser uma viagem atribulada — disse Roland, ao mesmo tempo que usava o controlo da porta. — Apertem os cintos. — O painel metálico da porta da garagem subiu... com demasiada lentidão. Todos sustiveram a respiração, enquanto as portas iam subindo, revelando os candeeiros no exterior. O caminho em frente parecia livre.
— O ruído do motor — disse Roland, ao acelerar — vai atraí-los como gatos atrás de um rato. — Engatando a primeira, o assistente carregou no acelerador, lançando o Bronco em frente. A jante vazia cuspia centelhas azuis, com o metal a roer a pedra.
No preciso instante em que deixaram o dormitório, a besta atravessou a porta e, com um grito penetrante, saltou na direção do jipe. Mesmo ferida, voava atrás deles.
Jason afastou-se da janela quando uns dentes serrilhados tentaram abocanhá-lo. As garras arrancavam a tinta das portas.
— Depressa! — gritou o rapaz.
Roland meteu a segunda e carregou a fundo no acelerador. O Bronco pareceu parar a meio da mudança, permitindo que a criatura atacasse a janela, gerando uma teia de fraturas minúsculas. Como se tivesse sido esporeada pelos estragos, o jipe saltou em frente e afastou-se.
Um uivo de raiva ergueu-se acima do ruído do motor, mas depressa se desvaneceu atrás deles.
O Bronco saltitava entre edifícios, tendas e barracões. Aqui e ali, ao longe, avistavam um qualquer rosto pálido, um soldado isolado, em pânico, que os fitava, espreitando a partir de um esconderijo.
Roland remexia no rádio, tentando falar com alguém. Mas a sua única resposta era a estática. Precisamente quando atravessavam a porta para o lado norte, uma barragem de granadas fez-se ouvir ainda mais para norte, perto da periferia da base. Um recrudescimento das detonações irrompeu na mesma zona.
— Parece que as tropas se reagruparam — disse Roland, com um toque de esperança na voz. — Estão a levar a cabo um esforço concertado. Talvez consigam recuperar a base.
— Talvez — disse Blakely, com o peito apertado. — Mas não podemos arriscar. A água continua a ser a nossa aposta mais segura.
Roland apontou em frente.
— Vamos passar muito perto daquele combate. Talvez devêssemos manter-nos baixados no jipe. Este oferece alguma segur...
O Bronco dobrou uma esquina com um ronco, quase varrendo um veículo que estava caído de lado na estrada. As portas tinham sido arrancadas e o tejadilho cortado em tiras. Um braço decepado jazia no chão, ao lado do veículo, a pistola ainda na mão.
— Esqueçam — disse Roland.
Blakely cerrou o maxilar enquanto passavam lentamente pelos destroços. Como um acidente de trânsito sangrento, do qual não conseguia afastar os olhos. Através do metal rasgado, era possível ver o interior salpicado com pedaços de tecidos. Virou a cabeça para a frente, para longe da carnificina, os dentes doridos.
Quando se voltou a concentrar nos faróis, a criatura saltou diretamente para a sua frente, cortando-lhes a passagem. Enorme, tão grande quanto um elefante macho. Com o dobro do tamanho de qualquer um dos que tinham visto até ali, pernas como troncos de árvore, que terminavam em garras com a forma de foices, mandíbulas capazes de engolir um bezerro de uma só vez.
Roland torceu o pescoço, observando atrás de si, enquanto procurava engatar a marcha-atrás.
Jason estava sentado no banco de trás, os olhos fixos em frente.
— Vai, vai, vai... — balbuciava.
Com um rangido de fazer arrepiar os ossos, a marcha-atrás do Bronco entrou, mas uma outra criatura monstruosa avançava na sua direção, bloqueando-os, prendendo-os. As duas criaturas baixaram os focinhos e uivaram ao Bronco, agitando as caudas, prontas a atacar.
— Maldição! — praguejou Roland, ao mesmo tempo que voltava a engatar a primeira. Ambas as criaturas pareciam capazes de pegar no jipe e lançá-lo ao ar como uma réplica de brincar. Roland bateu com um punho no volante.
A respiração aterrorizada de Blakely dilacerava-lhe o peito.
De súbito o Bronco saltou em frente. Parecia que Roland estava a tentar passar pelo monstro à sua frente, mas Blakely sabia que isso não funcionaria. Aquelas criaturas malditas eram demasiado rápidas e demasiado grandes.
Jason soltou um grito, enquanto Roland apontava para o monstro. Mas imediatamente antes do impacto guinou o volante para a direita, passando a jante vazia pelos dedos da besta, esmagando-lhe a carne entre o metal afiado e a pedra dura.
A criatura endireitou-se, o pescoço esticado e tenso como a corda de um arco, uivando para o teto. Puxou a garra ferida de debaixo do jipe, quase virando o Bronco. Este vacilou sobre duas rodas por um segundo, depois voltou à sua posição.
Roland não esperou e contornou a besta ferida. A dor dos dedos esmagados tinha acicatado a raiva da criatura. Esta atacou acertando no Bronco com um golpe em cheio, lançando-o perto de um metro para a direita, quase os atirando contra um barracão Quonset.
Roland lutou com o volante, tentando mantê-lo a direito. Depois de um momento de luta, o Bronco passou pelo monstro furioso. A criatura uivou de raiva, mas os seus ferimentos impediram-na de continuar. Em breve o seu rugido de dor desvaneceu-se atrás deles.
À medida que se aproximavam do rio, perto dos confrontos, Roland foi obrigado a abrandar. O fumo dos fogos e das explosões era de tal modo cerrado que mesmo as luzes do Bronco não penetravam mais do que dois metros na escuridão.
— Estamos a seguir na direção certa? — perguntou Roland.
— Acho que sim. — Blakely inclinou-se para a frente, o nariz quase a tocar no vidro. Entre a sua visão turva e o fumo, era difícil saber. — Se mantivermos o grande inferno à nossa esquerda, devemos seguir na direção do lago.
Blakely olhou de relance pelo retrovisor. Jason continuava imóvel, com o cinto de segurança apertado.
— Como te estás a aguentar, Jason?
O rapaz permaneceu em silêncio, não movendo senão os olhos, estabelecendo contacto com os de Blakely no retrovisor.
— Este verão é uma treta — disse, mexendo no saco de desporto que tinha ao colo.
Isso era verdade, pensou Blakely. Acenou com a cabeça ao rapaz e voltou a concentrar-se na estrada à sua frente.
Uma súbita rajada de ar limpou o túnel estreito do fumo. Blakely sentou-se mais direito. Imediatamente antes de o túnel desaparecer de novo sob o fumo, viu-o.
Água agitada. O lago! Tinham conseguido.
Roland também o vira. Um grande buraco fê-los saltar trinta centímetros nos seus assentos.
— Espero que consigas conduzir um barco melhor do que este Bronco — disse Blakely sem grande convicção.
De súbito, o Bronco foi lançado para a esquerda. O volante girou debaixo das mãos de Roland.
— Agarrem-se! — conseguiu Roland gritar, imediatamente antes de a carrinha deslizar contra a lateral de um edifício, derrubando um poste de iluminação.
O cinto de Blakely cortou-lhe o ombro ao mesmo tempo que o impulso o atirou para o lado. Bateu com a cabeça na porta. Gemeu, tocando no galo que lhe surgia na cabeça.
Roland soltou o cinto e estendeu os braços para ele.
— Estás bem?
— O que atropelaste tu? — perguntou Blakely.
Jason gritou atrás deles.
— Cuidado! — Já tinha soltado o cinto e trepava para se juntar a eles no banco da frente.
O vidro traseiro do Bronco estilhaçou-se, curvando para dentro quando uma cabeça de crocodilo o abalroou. A película de segurança manteve a forma aproximada do vidro, cobrindo o focinho da besta. Esta abanava a cabeça, tentando libertar-se.
— Saiam! — ordenou Roland. — Corram para a água.
Roland puxou Jason atrás de si. Blakely passou para o lugar do condutor e saiu do Bronco.
O fumo envolveu-os enquanto corriam para a água. Blakely desejou desesperadamente estar certo e que a doca estivesse perto. Olhando de relance para trás, Blakely viu a besta a lutar para libertar a cabeça do Bronco, guinchando de frustração. Uma vez livre, alcançá-los-ia em segundos.
Blakely parou.
Roland virou-se para ele.
— Que estás a fazer?
— Continua. Leva o rapaz. Eu atraso-o.
— Estás louco? Não estás em condições de o fazer. — Empurrou o rapaz na direção dele. — Leva o Jason. Eu consigo alcançar-vos. Deixem-me a caçadeira.
Blakely hesitou. Podia dar-lhe uma ordem.
Roland arrancou a caçadeira das mãos de Blakely e apontou-lha.
— Mexam-se!
Blakely sabia que ele não dispararia, mas estavam a perder tempo com discussões. O timbre dos balidos da besta mudara. Estava livre.
— Vamos ligar o motor.
Blakely correu aos tropeções atrás de Jason. Um tiro de caçadeira atravessou o ar. Blakely rezou pelo seu amigo.
Jason corria alguns passos mais à frente.
— Já a vejo!
As luzes da doca floresceram por entre o ar carregado de fumo. Graças a Deus. Passados alguns instantes, corriam pesadamente sobre as tábuas de madeira do cais.
Ao longe ouviam-se tiros.
À esquerda, estava preso um Zodiac de fundo chato, ancorado com duas cordas.
— Salta lá para dentro — disse Blakely sem fôlego, mas o rapaz já tinha entrado. — Vou ligar o motor. Quero-te perto da corda. Quando eu disser «puxa», puxas a ponta da corda para nos libertar.
— Eu sei — disse Jason, olhando fixamente para a doca.
Blakely virou-se para a corda da ignição e puxou-a. O motor cuspiu mas não arrancou. Voltou a puxá-la. O mesmo. Merda.
— Vem lá o Roland!
Blakely ergueu os olhos. O seu assistente corria para eles, quase invisível através do fumo. Voltou a puxar a corda. Desta feita quase arrancou, cuspindo mais tempo antes de morrer. Blakely rezou enquanto observava Roland que corria veloz em direção à doca.
Do manto de fumo, avançou uma cabeça reptiliana, agarrando Roland pelo ombro. O seu corpo foi lançado ao ar e o impulso fê-lo percorrer a doca. Aterrou ao lado do barco, o estalar dos ossos audível quando chocou contra as tábuas. O sangue corria do seu ombro em golfadas.
Blakely tentou chegar a ele, determinado a puxá-lo para dentro do barco.
A criatura tinha parado no limite da doca, desconfiada da água.
Com o sangue a escorrer-lhe dos lábios, Roland tentou levantar-se, mas voltou a cair. Olhou para Blakely e abanou a cabeça. Com o braço bom, puxou a última corda de ancoragem. O barco deslizou para longe da doca.
— Vão — cuspiu. Lutou por arrancar um anel da mão esquerda. Atirou-o na direção do barco.
Blakely apanhou-o, reconhecendo o anel que o parceiro de Roland, ainda em Seattle, lhe dera.
— Diz ao Eric... que o amo. — Roland tirou a pistola do cinto, enquanto a criatura pousava uma garra hesitante na doca.
Blakely puxou a corda e o motor pegou com um gemido metálico. Torcendo o alimentador de gasolina, a proa do barco ergueu-se, ao mesmo tempo que a embarcação acelerava para longe da doca. Observou enquanto o monstro deslizava pela doca, silvando na direção do seu amigo.
Roland tentava manter a pistola firme, mas estava a enfraquecer rapidamente. O primeiro tiro falhou o alvo. A criatura estava agora em cima dele. Roland levou a pistola à sua própria testa.
Blakely desviou o olhar.
O tiro fez-se ouvir, ecoando sobre as águas.
Quando Blakely voltou a olhar, o fumo tinha fechado uma cortina entre ele e a doca. Apenas um brilho fraco assinalava a sua localização por entre a fuligem.
Um súbito uivo de frustração correu sobre as águas. A criatura vira-se privada da sua presa.
CAPÍTULO 17
— Como assim, a Linda desapareceu? — perguntou Ashley, erguendo o nariz do rádio. Também não estava a ser capaz de contactar com ninguém. — Porque não ficam as pessoas quietas? Eu disse a toda a gente para ficar dentro do túnel.
Michaelson apontou o rádio e apontou para trás de si.
— Desculpa, virei as costas por um segundo, e ela e o Khalid desapareceram. O túnel termina uns cem metros mais à frente.
Ben falou atrás dela.
— É por causa da claustrofobia. É demasiado apertado aqui.
— Bem, é ainda mais apertado na barriga de um daqueles predadores.
— O Khalid já fez o reconhecimento da próxima câmara — disse Michaelson. — Eu não a vi, mas ele disse-me que era segura. Há apenas um segundo wormhole que entra na câmara. Demasiado pequeno para uma dessas criaturas.
— Pois — disse Ashley —, mas então e outros predadores? Coisas que possam deslocar-se através desses wormholes.
Michaelson encolheu os ombros.
— Está bem. Vamos continuar. Quero que a equipa fique junta. — Ashley ajudou Michaelson com um Villanueva adormecido; este gemeu enquanto era transportado. Ela levou a mão à testa dele. Estava húmida, mas não febril. Precisaria de ajuda em breve. Raios partissem aquela porcaria de rádio.
Michaelson recuou pelo túnel, puxando o Seal consigo. Ashley empurrava por trás, os joelhos doridos quando o brilho da saída se tornou visível. Ben fechava o cortejo, arrastando as mochilas. Com um último esforço, o Seal foi extraído do túnel. Ashley caiu atrás dele — num país das maravilhas natural.
— Meu Deus! — disse Ben ao gatinhar para fora do túnel. — Morri e fui para o céu.
Ashley estava espantada. À sua frente abria-se uma câmara do tamanho de um pequeno salão de baile. Quase acolhedora. Cristais iridescentes, alguns tão pequenos quanto unhas, outros do tamanho de melancias maduras, cobriam as paredes e o chão, refletindo a luz das lanternas com centelhas cintilantes. Havia arco-íris refletidos por todo o lado. Avançando hesitantemente pelo piso irregular, Ashley atravessou o centro da câmara, a boca ainda aberta.
— Sabes o que é isto? — perguntou Ben dando-lhe a mão.
Ashley limitou-se a abanar a cabeça. Linda e Khalid estavam agachados a alguns metros deles, os narizes juntos, examinando um dos cristais maiores.
— Estamos num geode gigantesco — disse Ben.
— Que é isso? — perguntou, só meio interessada, incapaz de afastar os olhos daquele esplendor natural.
— Já os viste. Pedras ocas vendidas nas lojas naturalistas, abertas à mão para revelar o revestimento interior de cristais de quartzo límpido ou ametista roxa. São formados em vulcões e normalmente cuspidos durante uma erupção.
— Sim, já os vi, mas raramente são maiores do que bolas de praia.
— Eu sei. — Ben acenou com a mão de modo a abarcar toda a câmara. — Nunca nada assim foi descoberto. Mas raios, estamos vários quilómetros abaixo de um vulcão ativo.
Ashley olhou para o rosto dele, rosado sob a luz refletida, o queixo forte erguido enquanto fitava o teto. O seu entusiasmo era contagioso. Ela apertou-lhe a mão.
Michaelson interrompeu-os, colocando-se entre eles.
— Se isto for quartzo, talvez a carga esteja, de alguma maneira, a afetar o rádio. Mas duvido.
Não tinha pensando naquilo. A esperança inundou-a. Talvez...
Khalid virou-se para eles.
— Não é quartzo.
— O quê? — perguntou Ashley, surpreendida por ouvi-lo juntar-se à conversa. Mantinha-se sempre tão calado. — Então o que é?
— É diamante.
Ben deu uma gargalhada.
— Claro que é.
— Quem é o geólogo aqui? Olha para o ângulo de fratura do cristal. É diamante.
Todos olharam de novo para a massa de pedra que os rodeava. Uma vez mais em choque. Khalid sorriu da sua surpresa.
Linda ergueu um pedaço de diamante do tamanho de uma bola de softball.
— Meu Deus!
Ashley pensou na estátua de diamante. Quantas câmaras como aquela haveria ali em baixo? Toda aquela riqueza...
O gume afiado da sua excitação ficou embotado pela preocupação. Abanou a cabeça e soltou a mão de Ben.
— Antes de começarem todos a contar tostões, precisamos de sair daqui. Michaelson, tenta o rádio mais uma vez. Todos os outros, podem montar o acampamento para a noite.
Ao dar a ordem, sentiu-se por fim atingida pela exaustão. Todos os seus músculos ardiam. Cada centímetro quadrado da sua pele parecia ferido. Era como se estivessem a correr há vários dias. Olhou de relance para o relógio. Já passava da meia-noite.
— Continuamos sem resposta — disse Michaelson, desligando o rádio.
Ben interveio do local onde tinha colocado o seu colchão de ar. Abrira a sua bússola geoposicional.
— Isto também não está a funcionar. Talvez o Michaelson tenha razão. Talvez haja algum tipo de interferência. A minha bússola usa um sinal de rádio na base como ponto de referência estacionário para se centrar. — Fechou a bússola num gesto repentino. — Esta porcaria não para de procurar, mas não consegue encontrar o sinal.
Ashley acenou com a cabeça, demasiado cansada para pensar com clareza e demasiado preocupada com Jason.
— Talvez seja alguma falha de energia na base. Voltamos a tentar de manhã — disse, esfregando os olhos. A sua mente não parava de pôr a imagem de Jason à sua frente. Se pensasse demasiado nele, começaria a chorar. De qualquer maneira, o que podiam eles fazer? Tinham de esperar pelo dia seguinte.
Ben aproximou-se; tinha acabado de encher o colchão de ar dela.
— A tua cama espera-te. — Fez um gesto amplo.
Ashley aceitou o colchão com um sorriso cansado.
— Obrigada, Ben.
— Encontrei ali uma área relativamente plana. Com o tamanho certo para duas pessoas. — Um sorriso aflorava-lhe o canto dos lábios, o convite claro.
Em resposta, ela avançou para o local indicado e pousou o colchão. O sorriso dele crescia a cada passo dela.
— Quem fica com o primeiro turno?
— Primeiro turno? — perguntou Ben.
Ashley acenou com a cabeça.
— Estamos em território desconhecido aqui em baixo. Caracóis carnívoros, tubarões do tamanho de baleias e agora predadores marsupiais. Não sabemos o que mais poderá estar à espreita. Não vá o diabo tecê-las, alguém tem de ficar de guarda... Vamos alternando os turnos.
Michaelson foi o primeiro a responder.
— Eu fico com o primeiro turno, mas com duas entradas na caverna, recomendo duas pessoas por turno.
— Boa ideia. Algum voluntário para se juntar a Michaelson no primeiro turno? — Fitava diretamente os olhos de Ben.
Ben resistiu durante alguns segundos, depois suspirou e levantou a mão.
— Céus, sinto um segundo fôlego que se aproxima.
Com os turnos definidos, todos se retiraram para as respetivas camas. Ashley afundou-se no colchão como no abraço de um amante. Em breve todos desligaram as suas luzes deixando apenas uma pequena lanterna. Esperando ser engolida pela escuridão, as pálpebras dela fecharam-se. Mas que...? Sentou-se. A câmara não tinha escurecido; continuava a brilhar.
Ben levantou-se.
— Mas que raio, isto vai poupar nas pilhas.
Linda sentou-se.
— Vem das paredes — disse a bióloga olhando à sua volta. — Reflete-se nos diamantes. — Levantou-se e dirigiu-se a uma parte da parede onde uma secção de diamante tinha caído. Raspando com a ponta de uma lâmina, estudou a pedra, depois virou-se para eles com a lâmina erguida. Esta brilhava com um amarelo suave. — É um fungo.
Excelente, pensou Ashley. Com a sorte deles, provavelmente estava a emitir algum tipo de radiação tóxica.
— Que descoberta! — Linda instalou-se no seu colchão e limpou a lâmina num saco de amostras. Tinha nos lábios um sorriso enorme, falando rapidamente enquanto trabalhava. — Esta é a quinta espécie fosforescentes que encontro até aqui. Até o peixe na Base Alfa brilhava devido a uma acumulação de um tipo de fungo nas suas escamas. Mas isto... — Ela acenou com o braço. — Por isto quase vale a pena ser perseguida por monstros.
Michaelson recostou-se de novo e pousou a espingarda nos joelhos.
— É algo por que valha a pena morrer?
O sorriso de Linda desvaneceu-se e ela selou o saco.
As palavras do major ensombraram o estado de espírito da equipa e a exaustão suplantou o espanto. Todos se voltaram a instalar nas suas camas.
Ashley esticou-se e enrolou o cobertor de lã nos pés descalços, em seguida enroscou-se num casulo. Espreitou para o colchão vazio de Ben. Conseguia ouvir os dois homens a murmurar baixinho enquanto se mantinham de guarda. Fechou os olhos, tocando no lábio inferior ferido com a ponta da língua, recordando o beijo, e caiu num sono sem sonhos.
Uma mão no ombro de Ashley fê-la acordar demasiado cedo. Rolou para longe da luz da lanterna.
— Acorda, Bela Adormecida. É o teu turno. — Os lábios de Ben tocavam ao de leve na sua orelha. — Fiz café.
Ela gemeu e endireitou-se, esfregando os olhos secos. Parecia-lhe que os músculos pesavam toneladas.
— Obrigada, Ben... café parece maravilhoso.
Ele ajudou-a a pôr-se de pé.
— Sabe a lama, mas vai ajudar a levantar essas lindas pálpebras.
Ela dirigiu-lhe um sorriso fraco. Apercebeu-se de que Michaelson já se aninhava no seu cobertor.
— É melhor dormires enquanto podes. Faltam poucas horas até de manhã.
Ben acenou com a cabeça, tirando as botas enquanto se sentava no colchão.
— Vou apagar mal a minha cabeça aterre na almofada.
Invejou-o. O seu cobertor amarrotado nunca lhe parecera tão convidativo. Bocejando, avançou até ao posto de vigia improvisado, junto ao fogão de campismo. Foi com surpresa que viu Linda sentada ao lado de Khalid.
— Que estás a fazer a pé? — perguntou enquanto se aproximava. — É suposto este turno ser meu e do Khalid.
— Eu sei — disse Linda, deslizando para lhe dar espaço sobre o pedregulho. — Mas não conseguia dormir. Estava demasiado entusiasmada. Queria fazer alguns testes. Além disso, dormir uma pequena sesta é, normalmente, tudo aquilo de que preciso.
Ashley reparou no kit de testes da bióloga espalhado numa pedra relativamente lisa. Linda ergueu um pequeno frasco à frente da luz da lanterna e agitou-o. O brilho fosforescente dentro do frasquinho aumentou.
— Impressionante — disse, tomando nota no seu caderno.
Ashley olhou de relance para Khalid. Segurando a pistola na mão esquerda, ele ergueu cuidadosamente a cafeteira do fogão de campismo. Despejou um pouco da bebida espessa numa caneca de estanho.
Sem pensar, Linda estendeu a sua caneca para que lha voltasse a encher, sem sequer olhar na sua direção. Quase como um casal há muito unido, ao pequeno-almoço.
Uma vez cheia, Linda bebeu um gole da sua caneca e fez uma careta.
— Isto é horrível. — Mas bebeu mais um gole, depois suspirou. Voltou a sentar-se e olhou de relance para Ashley. — Sabes, como já estou acordada, porque não voltas para a cama?
Aquela opção nem lhe ocorrera, mas fazia sentido e era muitíssimo atraente.
— Suponho que se achas mesmo que...
Linda acenou com a cabeça.
— Precisas de dormir. Devias ver os teus olhos. Estão raiados de sangue.
E também os sentia assim. Ashley olhou de relance para o local onde Ben roncava. Linda não precisou de fazer a oferta duas vezes.
— Vemo-nos pela manhã.
— Mas antes de ires — disse Linda atrás dela —, há uma pergunta que me tem estado a chatear.
Ashley voltou para trás, relutante, o chamamento do colchão forte.
— O quê?
— Aquelas criaturas marsupiais. São obviamente predadores. Como é que algo assim obtém comida suficiente?
Ashley encolheu os ombros.
— Não sei.
— Quer dizer, eles estão, decerto, no topo da cadeia alimentar. Mas quem está por baixo? Pensa nos leões em África. Para sustentar até um pequeno bando de leões, é necessário um enorme reservatório de herbívoros: antílopes, búfalos, zebras. De um ponto de vista biológico, estas bestas necessitariam de um fornecimento de presas enorme.
Ashley esfregou os olhos cansados.
— Sim, suponho que sim.
— Então, onde estão? — Linda bebeu mais um gole de café. — Onde está a sua cadeia alimentar?
Khalid fungou.
— Bem, tudo o que sei é que não quero que sejamos nós.
Ashley acenou com a cabeça. A pergunta era intrigante. Que caçariam eles? Pelo trabalho de equipa demonstrado na outra câmara, tinham uma inteligência rudimentar. Quase astúcia.
— Não tenho a certeza. É um mistério que terá de ser respondido por uma equipa futura.
Linda acenou com a cabeça. Ergueu um segundo frasquinho de fosforescência amarela.
— Tantos mistérios aqui em baixo... — Confirmou uma nota no seu caderno, depois cerrou os lábios.
Ashley despediu-se e retirou-se para o seu colchão. Enroscou-se nos cobertores, ainda quentes do seu sono recente. Suspirando fechou os olhos, mas a pergunta da bióloga não parava de a importunar. O que comeriam?
Ben debateu-se no sono, sabendo que estava a sonhar, mas incapaz de o impedir. Estava de novo naquela maldita caverna. Caminhava por entre as árvores carregadas de frutos, cabaças vermelhas e carnudas que pendiam obscenamente.
— Olá — chamou para o pomar.
Não houve resposta.
Tinha visto uma imagem do avô da última vez que ali estivera. Numa caverna. Onde tinha sido, exatamente? Avançou numa direção que lhe pareceu familiar. Passou por uma zona de folhagem baixa, com pequeníssimas flores azuis. Não tinha já passado por um arbusto semelhante? Era como regressar à sua cidade natal depois de décadas de ausência. Os seus pés pareciam recordar os passos antigos.
À medida que se aproximava da parede mais distante, soube que ia no caminho certo. Até conseguia ver o buraco negro na parede brilhante. Brilhante? Era o mesmo fungo que crescia no geode. Estranho.
Continuou em direção à parede, esperando que as árvores bloqueassem o seu avanço, como na visita anterior. Mas desta vez nenhuma árvore o impediu. Dando alguns passos, viu-se a erguer-se à frente da parede, envolto num suave odor almiscarado. O fungo estava a libertar pequenas vagens do tamanho de cabeças de alfinete. Deslizou a mão pela parede. Com o movimento da mão, o odor tornou-se avassalador. A sua mente começou a andar à roda. Explosões de cores brilhavam perante os seus olhos. Cambaleou até ficar de joelhos, lutando por manter a consciência, mas a sua visão redemoinhava com torrentes de cores e texturas fantásticas. Deslizou para o chão, sentindo a nuca explodir ao bater no chão.
Uma voz ergueu-se ao seu lado.
— Benny, meu rapaz, já chega de tretas.
Conhecia a voz da sua infância. Era o avô.
— Ei, acorda, amigo.
A visão clareou, ao mesmo tempo que o avô agitava uma folha retorcida debaixo do seu nariz. Cheirava a menta com um toque a cereja. Com cada onda, os redemoinhos de cores eram levados para longe, como se a passagem da folha os apagasse.
— Assim é que é, Benny, meu rapaz. Já era tempo de chegares cá abaixo.
Claro, estava a sonhar — mas parecia tão real. Conseguia ver a teia de vasos sanguíneos na ponta do nariz do avô. Os tufos de pelos brancos no rebordo das orelhas, o riso omnipresente nos seus olhos.
— Avô?
— Quem achavas que era?
— Bem, tendo em conta que te enterrei sete palmos debaixo da terra, em solo australiano, não estava a contar ver-te nos tempos mais próximos. — Tentou erguer-se, o odor almiscarado ainda forte, ameaçando subjugá-lo de novo. — Porque estás aqui?
— Fui enviado para te avisar.
— Já sabemos acerca daquelas criaturas pretas. ‘Tás um bocadinho atrasado.
— Aqueles idiotas? Não deixes que essas pestes te apanhem.
— Pestes? Aquelas pestes quase comiam a nossa equipa toda.
O avô sentou-se ao lado dele, cruzando as pernas.
— Benny, meu rapaz, tens de continuar a descer. Não subas.
— Mas...?
— Descer, Benny, meu rapaz. Descer.
O odor almiscarado voltou a intrometer-se, desfocando a imagem do avô com largas pinceladas de roxo e laranja.
— Não compreendo... — Sentiu-se de novo a cair.
Só as palavras do avô o seguiam enquanto ele desaparecia:
— ... descer... descer...
— Acorda, Ben. — Ashley bateu-lhe no ombro, surpreendida pela profundidade do seu sono. Os outros estavam prontos e acordados. Ele continuava deitado no seu saco-cama. Até Villanueva estava sentado, parecendo muito melhor, o braço suspenso num apoio improvisado.
Ashley abanou o ombro de Ben.
— Vamos, o pequeno-almoço está quase pronto. — Olhou de relance para o local onde Michaelson se curvava sobre o fogão de campismo. Como conseguiria ele transformar ovos desidratados em algo bastante próximo de uma omelete Denver era um mistério que deixaria qualquer um espantado. O estômago dela roncou em resposta ao cheiro tentador das cebolas fritas e do fiambre de lata.
Ben gemeu, rolando até ficar de costas, os olhos ligeiramente abertos.
— Diabos, que fedor é esse?
— É o pequeno-almoço e, se não te despachares, vais comer cereais frios.
Ben ergueu-se num cotovelo, o cabelo espetado em todas as direções. Coçou-se debaixo do cobertor.
— Raios, a minha cabeça dói-me como se estivesse prestes a explodir. Não é justo que fique com uma ressaca, sem ter gozado uma agradável noite no pub.
Preocupada, Ashley pousou uma mão na testa dele. Felizmente, Ben não tinha febre.
— É apenas uma dor de cabeça. Vou buscar-te uma aspirina.
— Que tal uma mão-cheia? — perguntou Ben com um sorriso cansado.
Ashley dirigiu-se à mala onde se encontrava o kit de primeiros socorros, retirando três aspirinas de um pequeno frasquinho de plástico.
Villanueva estava sentado ao lado do kit.
— Ele não parece muito bem.
Ashley não pôde deixar de sorrir perante tal observação, vinda de um homem cuja t-shirt estava ensopada no seu próprio sangue seco e cujo braço fora praticamente arrancado.
— Estou certa de que o Ben vai ficar bem. Tu, por outro lado, precisas de descansar. Não devias estar sequer sentado.
Ele fitou-a com o rosto impassível, como se ela estivesse a falar uma língua estrangeira.
Michaelson aproximou-se por trás dela e entregou ao Seal uma tigela fumegante.
— Caldo de galinha — disse quando Villanueva ergueu as sobrancelhas. — Perdeste muito sangue. Precisas de substituir os fluidos. Bebe.
Ashley avançou para Ben com um ligeiro sorriso nos lábios. O major Michaelson estava a revelar-se uma verdadeira Florence Nightingale.
— Obrigado — disse Ben, quando ela lhe ofereceu a aspirina —, mas já me estou a sentir melhor. Uma vez em pé e em movimento, estarei mais animado que o canguru de bolsa cheia.
— Toma a aspirina, mesmo assim. — Ashley enfiou-lhe os comprimidos na mão e passou-lhe um copo de água. — Temos um dia comprido pela frente.
Ben fez beicinho mas tomou os comprimidos.
— Não estavas a dizer qualquer coisa acerca do pequeno-almoço, ainda agora? Sempre quis que me servissem o pequeno-almoço na cama.
— Se te sentes com fome, tens força suficiente para ir buscar a tua própria refeição. Além disso, precisamos de estar todos juntos ao pequeno-almoço para debatermos as nossas opções, e eu quero a tua opinião.
— Oh, está bem. Mas essa é uma boa maneira de dar a todos um forte caso de indigestão.
Ashley ajudou-o a levantar.
— Para de brincar.
Com um franzir de sobrolho fingido, acompanhou-a até ao fogão de campismo onde Michaelson estava já a servir pratos cheios de omelete com batatas fritas.
— Mas que bela refeição — reconheceu Ben, aceitando um prato de estanho das mãos do major.
— Dado que já não comemos nada desde o pequeno-almoço de ontem, achei que precisávamos todos de uma grande refeição. — Michaelson encheu o prato de Ben sacudindo a concha.
Ashley recebeu uma dose ligeiramente mais pequena e sentou-se num pedregulho plano. Khalid e Linda já estavam sentados junto ao fogão de campismo, consumindo avidamente a sua refeição em garfadas cheias. Villanueva ia bebendo o seu caldo, lançando olhares famintos à refeição dos outros.
Quando Michaelson se sentou junto deles, Ashley começou a falar.
— Precisamos de decidir um curso de ação. Só temos mantimentos para mais oito dias.
A única resposta foram acenos de cabeça e o som de mastigar; os restantes esperaram que prosseguisse.
— As nossas opções são voltar para trás e tentar passar pelos monstros ali atrás. Ficar aqui e esperar que, por fim, a falta de contacto por rádio leve a que enviem uma equipa de resgate. Ou podemos prosseguir e tentar encontrar um caminho alternativo, sabendo que poderá haver outras coisas más à espreita.
Linda pousou o garfo.
— Eu acho que devíamos ficar aqui. Alguém há de vir à nossa procura.
— Talvez — disse Michaelson —, mas lembrem-se da equipa anterior. Nós fomos enviados três meses depois da primeira. Poderá ser uma longa espera.
— Isso é verdade — disse Ben — e aquelas criaturas também vão estar à espera deles. Não é justo pedir a alguém que avance para a boca do leão sem um aviso. Eu digo para prosseguirmos.
Ashley acenou com a cabeça. Sentia o mesmo, mas era preciso ter em consideração outras preocupações. Apontou para Villanueva.
— Temos um colega de equipa ferido e, se prosseguir com a viagem, poderá arriscar ainda mais ferimentos.
Villanueva baixou a tigela dos lábios.
— Eu ficarei bem. Sei até onde posso ir.
Ashley olhou para ele.
— Estou certa de que sabes. Mas o que acontece se nos depararmos com mais problemas? Os teus ferimentos são um sério entrave à mobilidade da equipa.
— Se isso acontecer, deixem-me para trás. Não arrisquem a equipa por causa de mim.
— Nobres palavras, mas seríamos nós a abandonar-te. Eu, pelo menos, não farei tal coisa.
— Nem eu, pá. Se nos virmos num aperto, vamos todos ou não vai ninguém.
Villanueva abanou a cabeça e levou o caldo aos lábios.
— Civis... — balbuciou por cima da tigela fumegante.
Khalid falou em seguida.
— Então o que fazemos? Avançamos ou não? Parece-me que estamos condenados se o fizermos e condenados se não o fizermos.
— Tenho uma sugestão — disse Ashley. — Dividimo-nos. Linda e Khalid ficam aqui com o Villanueva, em segurança. Os restantes avançam. Tentaremos encontrar uma forma de sair daqui e regressaremos com uma equipa de resgate.
Todos ficaram em silêncio, enquanto consideravam o plano, depois Michaelson acenou com a cabeça,
— Parece-me que temos um plano. Uma equipa eficiente tem uma boa probabilidade de regressar lá acima. Mas, Ashley, não há razão nenhuma para vires também. O Ben e eu...
Ben interrompeu-o.
— O major tem razão. Dois poderão avançar mais depressa do que três.
— Tretas. Consigo avançar tão depressa quanto vocês e tenho pontaria mais certeira. Além disso, quanto mais olhos no caminho, melhor. Eu vou.
Os dois homens tentaram demovê-la com olhares determinados, mas ela não mudou de ideias. Por fim, Ben virou-se para Michaelson.
— É uma causa perdida, amigo. Vamos ter uma companhia feminina. Teremos de ficar atentos à linguagem e ver para onde cuspimos.
— Está bem — disse Michaelson. — Nesse caso, vamos dividir os mantimentos e pôr-nos a caminho. Teremos de viajar com pouco peso. Apenas o básico: armas, rádio, cantis, cordas.
Ashley pegou na pistola que guardara no coldre.
— E muitas munições.
Khalid manteve-se afastado, enquanto os outros se preparavam para a viagem. Com um semblante sério, fitava Ben e Michaelson que embalavam mantimentos. Villanueva esforçava-se por ser útil, desmontando o rádio e embrulhando os componentes-chave em sacos à prova de água. Estudou o Seal, calculando a força que restava a Villanueva.
Linda avançou para o seu lado.
— Olha para isto!
Khalid virou-se para ela.
— Há uma espécie de bolor fosforescente a crescer dentro deste diamante. — Tomou o pedaço vítreo nas mãos em concha e inclinou-se na direção dele, bloqueando a luz envolvente, o seu cabelo deslizando pelo rosto dele. — Vê!
O cristal, do tamanho de uma bola de golfe, lançava uma suave luz amarela entre as palmas das mãos dela.
— Porque não o juntas aos teus espécimes?
Espécimes? Demorou um momento a compreendê-la. Depois apercebeu-se de que se referia à coleção de diamantes do tamanho de punhos cerrados que guardara na sua mochila. Dissera-lhe que eram amostras geológicas, investigação científica.
— Assim farei — disse, aceitando o presente. Abriu atabalhoadamente a sua mochila e colocou o diamante cuidadosamente entre os restantes. Deslizou um dedo pelos outros diamantes. Doze deles.
Independentemente do desejo do seu patrão, não ia deixar aquela gruta de mãos vazias.
Linda observou os outros a partirem através do wormhole com sentimentos contraditórios. Saltava entre o nervosismo pela separação da equipa e o alívio por ficar escondida em segurança numa caverna a salvo de predadores.
Apercebeu-se de que Khalid regressara já ao estudo dos diamantes; parecia obcecado pela riqueza à sua volta, constantemente impelido a recolher fragmentos caídos. Villanueva dormitava por perto no seu colchão.
Só ela estava a olhar enquanto a luz de Ben se desvanecia na curva do wormhole. Perguntou-se que novas descobertas fariam, que maravilhas perderia ao ficar para trás. Uma pequena centelha de ciúme tentou transformar-se numa chama, mas os horrores que também os poderiam esperar diminuíam o seu arrependimento.
Olhando de relance para a pequena caverna, iridescente sob a luz das lanternas, sorriu ao pensar que ela, Linda Furstenburg, famosa claustrofóbica, se sentia feliz por ficar presa numa pequena câmara, vários quilómetros abaixo da superfície da Terra. Os outros que descobrissem novas maravilhas. Pelo menos ali não seria o jantar de ninguém.
Avançou até ao laboratório miniatura que tinha montado. Além disso, tinha muito para investigar ali mesmo. Sentou-se e confirmou duas vezes os seus números, depois analisou um novo crescimento de hifa sob o microscópio. Foi buscar uma lamela do fungo mais antigo e estudou-o também.
— Meu Deus, não é que se trata de cloroplastos? — murmurou.
Villanueva, que estava a dormitar por perto, abriu um olho.
— Está a falar comigo?
Linda corou.
— Não, desculpa. É que este bolor é fascinante.
Villanueva sentou-se, sendo óbvio que ainda estava grogue, mas sentindo-se igualmente aborrecido.
— O que descobriu?
— Inicialmente pensei que se tratasse de uma espécie dimórfica, duas formas do mesmo fungo. Mas agora não creio. Acho que são duas espécies únicas que sobrevivem simbioticamente. Cada uma sustentando a outra.
— Perdi-me, doutora.
— Um tipo de bolor, aquele com as hifas brilhantes, recebe a sua energia de sulfeto de hidrogénio nos gases vulcânicos residuais, mas o seu ritmo de crescimento é demasiado rápido para ser atribuído à dose de gás presente. Além disso, gasta muita energia a produzir o brilho.
— Então como é que consegue?
— É precisamente isso, existe uma segunda espécie de fungo entretecida na primeira. Este segundo fungo é um tipo de cloroplastos! — Apontou para a lamela do microscópio como prova.
O Seal encolheu os ombros.
— E então?
— Então, o segundo fungo usa a energia que o primeiro liberta sob a forma de brilho, como uma planta usa a luz do Sol. Alimenta-se da sua energia e, para além de crescer, produz sulfeto de hidrogénio para alimentar o seu parceiro brilhante.
— Então cada um dos bolores alimenta o outro.
— Exatamente! Mas, como é óbvio, deve haver mais. É necessária mais energia para sustentar esta relação. Seja do calor termal ou de algo existente na rocha, da decomposição ou de algo mais. Não sei. Há tanto para aprender. Podia passar anos só a estudar esta relação.
Villanueva parecia estar a perder o interesse pela sua revelação.
— Hum, ainda assim, eu preferia simplesmente sair daqui.
— Também eu, mas o fungo explica muita coisa.
— Como por exemplo? — Villanueva bocejou.
— Como o facto de os predadores que encontrámos ainda terem olhos. O porquê de se camuflarem tão bem nas rochas. Era estranho que criaturas isoladas há milénios na escuridão perpétua ainda tivessem olhos e necessitassem de se fundir com o meio envolvente. A maioria das espécies isoladas em grutas são cegas e albinas devido à escuridão.
— Hum, então o que está a dizer é que estas criaturas têm vivido sobretudo em áreas iluminadas.
— Ou pelo menos nas suas proximidades.
— É bom saber isso. Então onde quer que exista o fungo, também podem existir predadores.
— Exatamente!
Ashley apercebeu-se de duas coisas mal saíram do mais recente wormhole. Estava a ficar diabolicamente mais quente e o fungo crescia mais espesso e brilhante à medida que iam descendo.
Estavam a andar há já meio dia. Parando apenas periodicamente para experimentar o rádio. Nunca ninguém atendia a chamada.
— É melhor pouparmos pilhas enquanto podemos — disse Ben. — O brilho deve ser suficiente para vermos.
Tinha razão. Mesmo depois de todas as luzes apagadas, Ashley conseguia ver bem. Limpou a testa. A gruta à sua frente estava salpicada por piscinas borbulhantes de água fumegante, a sala tão quente quanto uma sauna. Fedia a ovos podres.
Ben ofereceu a Ashley um gole do seu cantil.
— Devemos estar a aproximar-nos de uma chaminé quente do vulcão.
Ashley acenou com a cabeça.
— Precisamos de um caminho ascendente. Depressa!
Michaelson chamou-os a vários metros.
— O teu desejo foi-te concedido, Ashley. Há aqui uma falha. Podemos escalá-la e parece subir pelo menos uns cem metros. Pode ser a oportunidade que procurávamos.
Ashley apressou-se até junto dele. Estava capaz de trepar por um penhasco liso, se isso a afastasse daquele calor sulfuroso. Voltou a acender a lanterna e observou a subida. A fenda era irregular, com muitos locais onde apoiar mãos e pés. O cimo estendia-se para lá da luz da sua lanterna. Excelente.
Ben aproximou-se dela pelo lado.
— Há um outro wormhole na parede sul. Volta a descer.
— E depois? Vamos por este lado.
Ben espreitou para cima.
— Não sei — balbuciou.
— Como assim? — Ashley dirigiu-lhe um olhar perturbado. — Isto é perfeito.
— Não conseguimos ver onde termina. Quem diz que termina numa câmara? Pode simplesmente afunilar.
— Ben, sente a brisa. Quase que te puxa pela fenda acima. Não disseste que isso significava a existência de passagens contínuas?
— Suponho que si. — A sua voz era um sussurro.
Ashley olhou de relance para ele, perguntando-se porque hesitaria. Decerto não seria por causa da subida. Parecia-lhe fácil.
— Ben?
Ben abanou a cabeça como se estivesse a libertá-la de teias de aranha.
— Claro, tens razão. Prendam todos os vossos ganchos rápidos e arneses antiqueda. Vamos subir.
Ashley fitou o australiano. Conhecia-o há pouco tempo, mas já conseguia ler os seus estados de espírito. Algo o estava a incomodar.
— Ben, tu és o especialista, se achas...?
Ele apertou a corda no lugar e aproximou-se da face da rocha.
— Não tenho nenhum problema com isto. Senti apenas um impulso para... — Abanou a cabeça outra vez. — Raios, não interessa. Vamos.
Ashley apercebeu-se de que a mão esquerda de Ben tremia quando agarrou o primeiro apoio.
Linda despertou subitamente, a cabeça a latejar. Khalid estava deitado num colchão próximo, ressonando ruidosamente. Fora um dos seus roncos que a sobressaltara. Olhou de relance para o relógio. Haviam passado quatro horas desde que os dois se tinham deitado para uma sesta depois do almoço. Olhou de relance para Villanueva. Também este dormia profundamente.
Estranho, nunca fora de dormir sestas, muito menos de permitir que as horas passassem assim. Sentou-se e espreguiçou-se. Claro que as presentes circunstâncias eram incomuns. Depois de ter passado o dia anterior a fugir dos monstros, o seu corpo merecia um descanso.
Levantou-se, e a câmara girou à sua volta; pequenos pontos de luz explodiram na sua retina. Quase caiu de joelhos, prestes a perder os sentidos. Depois de alguns segundos oscilantes, a câmara parou de andar à roda. Devia ter-se levantado demasiado depressa, pensou, abanando a cabeça. O coração batia com força nos seus ouvidos, cada batimento fazia latejar as suas fontes. Levou a mão ao cantil e bebeu um grande gole.
Respirando pesadamente, viu algo que quase a fez deixar cair o cantil. As paredes! Os fungos lisos que cobriam a parede estavam agora engalanados com bolas protuberantes. Enquanto observava, várias centenas dessas vagens rebentaram libertando um pó esvoaçante. Esporos! À luz da lanterna, nuvens ondulantes de esporos deslizaram pela câmara. Viu Khalid inalar uma golfada de ar poluído.
Aquilo não podia ser saudável. Ajoelhou-se ao lado de Khalid e abanou-lhe os ombros. Ele não acordou. Abanou-o com mais força. Nada. Ergueu-lhe as pálpebras; as pupilas estavam dilatadas sob a luz forte, sem resposta. Maldição, os esporos estavam a atuar como um droga! Anestesiando-os! Apercebeu-se de que, se continuassem a inalar a droga, os esperava uma overdose.
O fungo estava a tentar matá-los!
Agitada, a sua respiração tornou-se entrecortada. Botões de cor explodiam na sua visão. Os esporos! Tinha de permanecer calma. Tinha de respirar mais devagar. Inspirar uma dose menor da droga. Susteve a respiração. Ainda assim, a câmara voltou a girar. Pensa, raios!
Ocorreu-lhe uma ideia. Agarrou num lenço e despejou água sobre ele, ensopando-o. Tapou a boca e o nariz com o tecido a pingar. O pano húmido deveria filtrar os esporos. Pelo menos esperava que assim fosse.
Apressando-se, aplicou um pano igual ao rosto de Khalid, tentando impedi-lo de inspirar mais pó de esporos. Não morras.
Arrastou-se até junto de Villanueva. Por um instante, pensou que este tinha parado de respirar. Mas, analisando com maior cuidado, viu que o peito ainda subia e descia. No entanto, a sua pele adquirira uma tonalidade azulada. Cianótico. Preparou um terceiro lenço e envolveu com ele o rosto do Seal.
Cerrando os punhos, estudou-o. A respiração do Seal era rouca e superficial. Dado o seu estado mais debilitado depois do ataque do dia anterior, era mais suscetível à droga.
Olhou de relance à sua volta. Que fazer? O fungo brilhante tinha diminuído ao de leve o seu brilho ao lançar os esporos. Provavelmente por precisar de conservar energia para a produção do pó de esporos. Mas o que o havia desencadeado? O calor dos seus corpos? Uma alteração no nível de dióxido de carbono provocada pela sua respiração?
Não tinha tempo para procurar respostas. Naquele momento, tinha de os tirar daqui. Mas para onde? Não havia como saber que monstros os esperavam na outra câmara. E quem saberia o que os esperava se seguissem os passos da outra equipa.
Só uma coisa era certa. Se ficassem ali, morreriam.
Avançou até ao wormhole por onde Ashley e os outros tinham descido há várias horas. Uma ligeira brisa soprava através dele, agitando algumas madeixas louras do seu cabelo.
O ar era mais fresco, livre de esporos.
Tomou uma decisão. Teria de arrastar os outros dois homens através daquele wormhole. Se algo os ameaçasse do outro lado, poderiam sempre ficar na passagem. Mas, mais importante, a direção da brisa deveria impedir que os esporos entrassem no wormhole.
A ideia de se esconder durante dias no túnel estreito fê-la sentir uma pontada de ansiedade, mas Linda ignorou-a. Virou-se para os dois homens. Seria difícil arrastá-los ao longo do terreno irregular que constituía o solo. O caos de diamantes tornava os skates inúteis, mas uma vez no wormhole poderia usar as pranchas para os levar com facilidade dali para fora.
Avançou até às duas formas sedadas. Agarrando os braços do Seal carregou-o até ao wormhole, gemendo com o esforço. Depois de quinze árduos minutos, conseguiu levar os dois homens para o wormhole, deitados sobre os seus skates. A sua cabeça latejava e o suor fazia-lhe arder os olhos. Por aquela altura, já vacilava, ébria sobre as suas pernas, sem saber ao certo se isso se devia ao esforço ou aos esporos.
Salpicou o rosto com mais água, preparando-se. Sustendo a respiração, mergulhou no wormhole, tentando ignorar as paredes que se erguiam, apertadas, à sua volta, concentrando-se em manobrar os homens que seguiam à sua frente. Empurrou o corpo flácido de Khalid para a frente, batendo com a sua cabeça no trenó de Villanueva, fazendo o Seal avançar vários metros antes de abrandar e parar.
Avançar aos encontrões significava um progresso lento. Mas quanto mais se afastavam da câmara, mais desanuviada ficava a sua cabeça. Parou por um instante para descansar, apoiando o rosto no braço. Tinha conseguido! O ar era mais limpo, ali.
Um gemido ergueu-se de Khalid. Estava a acordar. Linda permitiu-se um sorriso cansado. Apenas uma vaga sensação de desconforto provocada pela rocha envolvente se intrometia na sua satisfação. Mas era como a provocada por um mosquito irritante, não o normal rugido de pânico. Não, o aperto cerrado do túnel perdera a sua força. Ela tinha-os salvado.
Ashley seguiu o exemplo de Ben, colocando as mãos e os pés onde ele tinha posto os seus. Os dedos dela ardiam e as coxas gritavam. Os fungos que cresciam nas paredes tornavam-nas escorregadias, mas pelo menos, quanto mais subiam, menos fungos havia. Ao progredir, acabaram por ter de ligar as lanternas dos seus capacetes. Com o desaparecimento do bolor, a escuridão perpétua avançara para os engolir.
Michaelson seguia atrás, empurrando-a nalgumas zonas mais difíceis.
Ashley observou Ben a fixar a fita expresso de escalada numa fenda mais acima e prender-lhe a corda. Ia trauteando roucamente num sussurro enquanto trabalhava. Passadas duas horas a escalar, já estava farta da música.
— Ben — chamou Michaelson mais abaixo. — Ainda falta muito?
— Cerca de uma hora.
Ashley gemeu, encostando o rosto à pedra.
— Mas parece haver um grande parapeito, cerca de nove metros mais acima —continuou Ben. — Devemos poder fazer uma pausa para almoço antes de avançarmos para a última secção da subida.
Agarrando-se a essa pequena esperança, Ashley agradeceu aos deuses da escalada.
— Então vamos lá para cima, Ben. Estou farta de estar para aqui pendurada.
Observou enquanto Ben levava a mão a um apoio e se içava.
— Tu é que quiseste vir por aqui — disse ele, bem-humorado. — Eu queria seguir pelo caminho mais fácil. Por isso, para de te lamentar.
Pelo menos, a sua hesitação inicial parecera ter-se desvanecido à medida que subiam. A primeira hora de escalada fora fácil, mas não passara de aquecimento para a escalada quase vertical com que se debatiam ao longo da última hora.
Ashley esticou-se para colocar a mão onde Ben tivera anteriormente um pé. Não lhe conseguia chegar. Procurou um ponto alternativo para se agarrar na face lisa. Tudo o que a fitava era uma parede nua. Maldição.
— Ben, não consigo passar deste ponto — gritou, tentando dissimular o pânico crescente.
Ben olhou de relance para ela.
— Não faz mal, Ash. Larga a parede. Eu iço-te com a corda até ao nível do próximo gancho rápido. Depois podes voltar a agarrar a parede. Aqui tenho um bom apoio.
Ashley engoliu em seco. O bom senso mantinha-a agarrada à parede.
Ben piscou-lhe o olho, parecendo ler a sua mente.
— Não te vou deixar cair.
Envergonhada pelas suas dúvidas, forçou as mãos a largarem a parede. Os mosquetões de travagem mantiveram-na no mesmo local, pendurada na corda. De súbito foi içada, enquanto os braços de Ben puxavam a corda através da fita expresso, os músculos tensos como cordas.
Com dois puxões, encontrou-se junto dele, balançando ainda a um metro da parede. Ben estendeu a mão para ela. Ashley estendeu o braço. Os dedos dele deslizaram pela palma da sua mão, antes de a agarrar. Os olhos de Ben nunca deixaram os seus, puxando-a para si. Segurou-a com firmeza pela cintura, a palma da mão quente através da t-shirt húmida de Ashley, enquanto ela colocava os pés em posição e agarrava a parede.
— Obrigada, Ben.
— Sempre às ordens, querida — sussurrou-lhe ele ao ouvido, tocando em seguida ao de leve com os lábios no rosto dela.
Ashley corou e afastou o olhar.
— É... hum... melhor continuarmos. O Michaelson está à espera.
Ben virou-se para a parede e prosseguiu. Ashley observou-o a subir com a facilidade de uma cabra montês, as pernas bem abertas. Teve de se obrigar a afastar os olhos antes de poder continuar, o rosto ainda corado.
Passados dez minutos, estavam os três num parapeito a beber água morna e a comer carne e queijo secos.
Ben estava sentado ao lado de Ashley, a sua perna a tocar na dela. Comeram em silêncio, todos eles exaustos. Michaelson parecia perdido nos seus próprios pensamentos.
Por fim, Ashley sacudiu as migalhas do colo e ergueu-se, sentindo os músculos das pernas vacilar. Pousando os punhos cerrados nas ancas, olhou de relance para a vertente esburacada. Felizmente, era curta e de nível fácil. Se tivesse de trepar mais uma parede vertical, precisaria de pelo menos um dia de descanso.
Ben ergueu-se ao seu lado.
— Pronta?
Ashley acenou com a cabeça.
— Muito bem — disse Ben —, então vamos apertar os cintos e pôr-nos a andar. — Agarrou no rolo de corda e prendeu-a a si. Manteve-se perto dela, enquanto a atava, depois inclinou-se para ela. — Um dia vamos ter de experimentar isto, quando não estivermos no meio de uma escalada — disse com um sorriso malicioso.
Revirando os olhos, Ashley abanou a cabeça.
— Vamos pôr-nos a andar.
Assobiando de novo aquela maldita música, Ben lançou-se à encosta. Ashley seguiu-o. Durante uma boa parte da subida, pôde simplesmente andar, necessitando apenas de gatinhar sobre secções mais pequenas da subida. Perto do topo, contudo, a subida voltou a tornar-se difícil. Era necessário procurar com muito cuidado os melhores apoios para as mãos e os pés, cada metro conquistado com planeamento e músculo. Suspirando, Ashley olhou de relance para cima, perguntando-se se haveria como escapar daquela maldita fenda. Observou Ben que, de súbito, se içou e rolou para fora do seu campo visual. Tinha chegado ao cimo do penhasco! Com energia renovada, seguiu-o, esforçando-se por ir de apoio em apoio.
De súbito, o rosto de Ben surgiu na beira do penhasco, a poucos metros dela. Tinha um sorriso enorme.
— Então. Qual a razão de tanta demora?
— Sai mas é do meu caminho — disse Ashley com um sorriso a condizer.
Ben estendeu o braço e agarrou-lhe o arnês com a mão.
— Eu consigo subir sozinha. Só...
Ben puxou-a para si, beijando-a nos lábios, depois rolou para trás, puxando-a sobre o limite do penhasco e para cima de si.
Ashley riu convulsivamente, deitada em cima do peito dele. O alívio por, finalmente, ter suplantado o penhasco inundou-a. O nariz de Ben estava a poucos centímetros do dela. Mas ele não ria — limitava-se a fitá-la. A sua seriedade contagiou-a.
Havia fome no seu olhar, um desejo que ela nunca vira ser tão abertamente oferecido. E uma pergunta nos olhos dele. Enquanto o fitava, o riso dela morreu-lhe na garganta. Refreando-se apenas por um segundo, respondeu à pergunta inclinando-se e devolvendo-lhe o beijo, primeiro suavemente, depois com uma paixão há demasiado tempo reprimida.
Em resposta, Ben envolveu-a com os seus braços, absorvendo-a, envolvendo-a ainda mais contra si, os seus corpos apertados um contra o outro tão febrilmente quanto os lábios.
Foram interrompidos por palavras.
— Se os dois pombinhos já acabaram, fazia-me jeito uma mãozinha.
Corando furiosamente, Ashley rolou de cima de Ben e sentou-se.
Michaelson, com a mochila maior, lutava para passar por cima da beira. Ben aproximou-se e puxando pela mochila conseguiu içar o major.
Michaelson ergueu-se apressadamente.
— Bem, já cá estamos em cima. Mas onde raio estamos?
Tossindo para limpar a garganta, Ashley lançou a Ben um olhar culpado. Deviam ter estado a analisar o espaço. Libertou a lanterna de mão e acendeu-a. Os dois homens seguiram o seu exemplo.
— Vamos descobrir — disse.
Ben tirou da mochila a bússola geoposicional.
— Continua sem funcionar. — Fechou-a e vasculhou o interior da mochila. — Esqueçam todas essas modernices dos computadores. Por vezes temos de recorrer a métodos mais antiquados. — Retirou da mochila um caixa prateada e riscada, do tamanho da palma da sua mão, e deu-lhe um beijo. — Ah! Aqui está a minha querida. Uma simples bússola magnética com um barómetro integrado para medir a pressão. Excelente para um cálculo aproximado da profundidade. — Estudou as medições da ferramenta minúscula. — Estimo que acabámos de subir duzentos metros. O que nos deixa muito mais perto de casa. — Apontou para a frente com a bússola. Devíamos seguir por aqui.
Ashley tomou a liderança, com Michaelson a coxear atrás de si.
À sua frente abria-se uma caverna espaçosa, um pequeno declive impedia-os de ver a câmara principal. Avançando, Ashley foi a primeira a chegar à elevação. Estacou quando a luz deslizou pelo piso da câmara à sua frente.
Ben estacou ao seu lado.
— Merda! — disse ao olhar para baixo.
— Maldição — sussurrou Michaelson.
Ashley alargou o feixe da sua lanterna. À sua frente, espalhados pelo solo da caverna, estavam milhares de ovos brancos do tamanho de melancias maduras. A maioria agrupados em grupos distintos. Ninhos. Várias zonas de cascas partidas, vazias, pontuavam o campo. A meio da caverna, três criaturas marsupiais imaturas, mais ou menos do tamanho de pequenos póneis, aninhavam-se umas contra as outras, os pescoços entrelaçados. Quando o feixe de luz de Ashley parou sobre elas, começaram a vagir estridentemente.
Linda tinha razão, pensou Ashley. Ovíparos, como os ornitorrincos.
— Isto não é bom — disse Ashley. — Não é nada bom.
Havia apenas mais uma passagem para fora da câmara. Um túnel suficientemente largo para deixar passar um comboio. Os gritos dos bebés prosseguiram, dissonantes como o som de uma unha num quadro de ardósia. O trio calou-se, encolhendo-se no seu ninho, depois um brado irrompeu do túnel à sua frente.
Algo grande e zangado avançava velozmente naquela direção.
CAPÍTULO 18
Inclinando-se sobre a proa verde do barco insuflável, Jason observou o rasto triangular que os seus dedos marcavam na água. Desejou que a mãe estivesse com ele. Não que estivesse assustado. Na realidade, o terror inicial da sua fuga no dia anterior dera lugar a uma mera preocupação. Sentia apenas a sua falta.
Atrás dele, Blakely ressonava, afundado no seu assento. Há quase um dia que ali estavam ancorados, a cerca de noventa metros da costa. Sem nada para fazer, nada para ver. Uma nuvem de fumo obscurecia a linha da costa. No dia anterior, breves explosões de fogo tinham iluminado os limites da água. Hoje, contudo, não restava mais do que fumo oleoso e escuridão. Era difícil perceber, sequer, em que direção se erguia a base. Nada mais do que paredes de vazio, como se estivessem a vaguear no espaço.
Jason rolou de costas. Um dos fechos do seu colete salva-vidas amarelo espetou-se-lhe no flanco. Contorceu-se para uma posição mais confortável, estudando o mundo por cima de si. A lanterna solitária lançava uma mancha de luz na direção do teto. Espreitando através da neblina negra, as estalactites apontavam para o barco. Como se estivessem a apontar para ele. Embora se afastassem, as lanças rochosas pareciam curvar-se e continuar a acusá-lo, antes de desaparecerem por fim no fumo.
Jason sentou-se repentinamente, agitando o barco. Esperem um minuto. Estavam ancorados. O barco não devia deslizar pelas estalactites. Estavam em movimento! À deriva!
— Doutor Blakely! — Jason arrastou-se através do fundo oscilante do barco, em direção ao cientista. — Há algo errado.
Blakely resmungou e ergueu-se no seu assento.
— Que foi agora, Jason? Viste outro peixe? — Endireitou os óculos, uma das lentes desaparecida algures durante o dia anterior. Estava constantemente a semicerrar o olho desprotegido, quase como se estivesse a piscar o olho.
— Olhe para cima, doutor Blakely! Estamos em movimento.
Suspirando, Blakely inclinou o pescoço para trás, os lábios fixos num trejeito desaprovador. Depois a sua expressão mudou, os dois olhos arregalados.
— Raios, estamos em movimento.
Blakely esticou a mão e começou a puxar o cabo da âncora, lançando a corda a pingar para os pés de Jason.
Jason tocou na corda coberta de limos e malcheirosa com um franzir de sobrolho. Blah!
— Maldição! — Blakely ergueu a ponta esfarrapada da corda. Sem âncora. — Parece que alguma coisa a roeu. — Largou a ponta da corda e sentou-se junto ao leme. — A corrente é forte aqui. Estamos a avançar rapidamente.
— Que vamos fazer?
Blakely avançou para o motor.
— Primeiro temos de descobrir para onde vamos. Jason, vai até lá à frente e liga o holofote.
Jason deslizou até à proa do barco, agarrou no holofote, ligou-o com o polegar e apontou o feixe frente. Uma larga lâmina de luz cortou a escuridão. Mas o fumo travou-a. Uma mortalha infindável de neblina oleosa bloqueava a luz a poucos metros da proa.
— Jason, porque não soltas estes remos? Podemos precisar de remar.
— Porquê? Não podemos usar simplesmente o motor?
Blakely abanou a cabeça.
— Já não há muito combustível no motor. E com um fumo tão espesso, seria um suicídio ir demasiado depressa. Podemos abalroar algo ou chocar contra a costa. Além disso, se estivermos perto da costa, e quem raio consegue dizê-lo no meio desta sopa de ervilhas, não quero chamar a atenção. Por isso, vamos remar.
Acenando com a cabeça, Jason fixou a luz e deslizou para o local onde se encontravam guardados os dois remos de plástico. Estava a erguer um do seu apoio quando Blakely praguejou subitamente. Jason ergueu os olhos.
Uma parede de rocha irregular corria na direção deles, estendendo-se em todas as direções. Punhais negros projetavam-se das paredes e das águas. A corrente estava a arrastar o barco diretamente para o aglomerado mais cerrado de pedras afiadas. De súbito, flutuar em grandes balões de borracha pareceu uma forma idiota de viajar.
Blakely gritou ao mesmo tempo que apoiava todo o seu peso no leme.
— Rapaz, vai para o lado direito e rema como um louco!
Jason compreendia o perigo e voou para o lado direito, inclinando-se sobre a borda do barco para mergulhar o remo. Remou como a mãe lhe ensinara quando faziam canoagem no rio Colorado. Afundou profundamente a pá do remo, com movimentos longos e rápidos.
— Não vamos conseguir — gritou Blakely, cada palavra mais alta do que a anterior.
A nota de pânico na sua voz era contagiante. O cuidadoso remar de Jason tornou-se frenético. Concentrou-se na água. Ainda assim, continuava à escuta, o sangue a martelar-lhe nos ouvidos, esperando ouvir a qualquer momento o som do barco a rasgar.
Os ombros ardiam-lhe com o esforço, mas continuava a mergulhar o remo.
— Estamos a virar! — A voz de Blakely tinha um laivo de esperança.
Jason olhou de relance por cima do ombro. O barco desenhava agora um arco em direção à parede, em vez de seguir a direito. Continuou a mover o remo.
— Ligue o motor! — gritou Jason.
— Não temos tempo. Não me atrevo a largar o leme.
Jason já tinha feito excursões de canoa suficientes para saber que não iam conseguir. Ainda assim lutava com o remo. Depois, através do fumo à sua frente, surgiu uma abertura na parede no preciso momento em que o barco se inclinava para o lado. Uma ampla boca negra. Se conseguissem apontar para ela, talvez pudessem evitar a parede irregular.
Blakely também a viu.
— É a nossa única oportunidade.
Jason mergulhou o remo com força. Felizmente, a corrente também os levava para aquele buraco. À medida que usava o remo, a proa do barco afundava-se mais na corrente.
— Cuidado com a cabeça! — gritou Blakely.
Jason baixou-se no preciso instante em que uma saliência rochosa passou sobre o barco. Estavam prestes a bater na parede! Agachou-se, antecipando a colisão. A força da corrente agarrou de súbito o barco e puxou a proa, levando-o a fazer a curva e a entrar no túnel negro.
— Conseguimos — disse Jason.
Deslizaram suavemente para o túnel. Jason gatinhou para a frente, até à luz da proa. Fê-la girar, examinando as paredes. Já não havia protuberâncias rochosas à espera para os apunhalar. Em vez disso as paredes eram vítreas e lisas.
— Parece seguro — disse Blakely. — Estamos no rio que drena o lago. Felizmente para nós, os anos de água a correr poliram essas paredes. — As suas palavras ecoaram, transmitindo uma sensação de vazio.
O rio transportava o barco para o fundo do túnel. A luz penetrou no túnel até uma curva mais à frente.
— Para onde vai? — perguntou Jason.
— Não sei, e não me parece que seja uma boa altura para explorar. Vejamos se conseguimos virar o barco, e nessa altura ponho o motor a trabalhar.
Jason passou um remo a Blakely e cada um deles ficou num dos lados. Jason remava em frente, enquanto Blakely remava para trás. O barco começou a girar sobre o seu eixo, precisamente quando a corrente os levava para lá da curva o túnel. O rio mais além descia subitamente numa inclinação íngreme. A crescente velocidade da corrente puxou de novo a proa do barco.
— Segura-te, Jason! — disse Blakely, ao mesmo tempo que o barco era arrastado para águas mais velozes.
Jason engoliu em seco, enrolando uma mão na corda do remo. O barco mergulhou na corrente, acelerando rapidamente. A luz da proa balançava nas águas revoltas. O que viu mais à frente levou Jason a prender também a outra mão na corda.
O túnel fazia uma curva apertada. O rio traçava um arco pelo lado da parede ao avançar para a curva, inclinando-se num ângulo impossível.
— Merda! — vociferou Blakely, limpando rapidamente os borrifos de água dos óculos com o punho da camisa, agarrando-se em seguida ao remo, freneticamente.
O barco lançou-se em frente, subindo pela parede ao fazer a curva. Como andar num escorrega de água através de um túnel de esgoto, pensou Jason. Observou, enquanto o lado do barco de Blakely se erguia acima da sua cabeça. O cientista esforçou-se por permanecer no assento, com as pernas a escorregarem no piso de borracha lisa. Jason estremeceu, rezando para que o barco não se virasse.
Depois o barco voltou a cair quando passaram a curva, atirando Jason para o chão.
— Mais uma curva! — gritou Blakely.
Jason preparou-se. Desta feita foi o seu lado do barco que se ergueu. Viu a área careca no topo da cabeça de Blakely. Depois o barco voltou a nivelar-se.
— Como é que paramos...?
Blakely semicerrou os olhos, fitando o túnel mais à frente enquanto o barco acelerava por entre as paredes.
— Não sei. Só espero que acabe por se nivelar para que possamos abrandar. Aguenta-te! Aí vem mais uma curva!
Depois de mais cinco curvas, Jason começou a sentir o estômago revolto. As rações secas que tinha comido ao pequeno-almoço eram como um caroço no estômago.
— Vou ficar maldisposto — balbuciou.
— Chiu! — disse Blakely. — Escuta. — O barco tinha abrandado um pouco, o rio nivelara-se, mas a corrente ainda era forte.
Refreando um gemido, inclinou a cabeça. Que fora agora? Depois também o ouviu. Parecia o som de alguém a gargarejar. Foi crescendo e crescendo até se tornar ribombante.
Blakely disse as palavras seguintes como se lhe ferissem a boca.
— Queda de água. — Agarrou no remo. — Temos de virar o barco e ligar o motor!
Jason olhou para a galeria rochosa que se apertava à sua volta. Não tinham espaço para virar, mesmo que ignorassem a torrente de água. Depois lembrou-se de algo que a mãe lhe tinha ensinado.
— Gire na próxima curva! — gritou por cima do som ribombante.
— O quê? — Blakely olhou para ele como se ele estivesse louco.
— Quando estivermos a fazer a curva, a força da água pode ajudar-nos a girar.
— É demasiado perigoso.
Jason apontou para a frente.
— Sim, mas então e aquilo!?
— Bem visto. Como viramos?
Jason gesticulou freneticamente, enquanto tentava explicar:
— Incline o remo na direção oposta na próxima curva. Obrigue a proa a subir a parede. A corrente fará girar a popa. Fazendo-nos virar. Eu e a minha mãe tentámos fazê-lo certa vez.
— Funcionou?
— Bem, não. Virámos o barco.
— Ótimo.
— É suposto funcionar. Só o fizemos mal.
— Bem, só temos uma oportunidade para o fazer bem. Aí vem a próxima curva! — Blakely teve de gritar para ser ouvido por cima do rugido das águas.
Jason deslizou para junto de Blakely, pronto a acrescentar o seu peso ao leme.
— Empurre quando eu disser! — gritou.
Blakely acenou com a cabeça.
Jason esperou até a ponta do barco entrar na curva.
— Agora!
Blakely empurrou o leme, apoiando-se nele. Jason fez igualmente força. A proa subiu pela parede, inclinando o barco na vertical.
— Não largue! — gritou Jason, sentindo que Blakely começava a soltar o leme. — Não enquanto não nos tivermos virado!
O barco estremeceu por um instante, depois a proa do barco deu a volta, o holofote apontando para onde tinham vindo.
— Meu Deus! — disse Blakely de olhos muito abertos. — Conseguimos.
Jason virou-se para ver para onde a corrente os continuava a arrastar. Quase cem metros mais à frente, o rio entrava numa ampla caverna. Semicerrou os olhos, fitando o espaço que se aproximava. Que estranho. Esfregou os olhos, olhando de relance para as paredes do túnel à sua volta. Não desapareceu.
— Olhe, parece que as paredes emitem uma espécie de luz.
Blakely inclinou o pescoço para ver.
— Uma espécie de bolor brilhante. — Puxou a corda para ligar o motor. Este rugiu, mas morreu.
— Oh-oh! — exclamou Jason. — Olhe!
Blakely já o tinha visto e puxava freneticamente pela corda.
Mais abaixo na corrente, o brilho revelava um remoinho de águas brancas, como tubarões agitados num frenesi de sangue. O rugido exercia agora pressão contra os seus tímpanos, chocalhando dentro do crânio. O rio desaparecia para lá das águas agitadas. Sobre um penhasco!
Jason virou-se para Blakely, ao mesmo tempo que o barco avançava para a queda a pique.
— Depressa!
Com um sacão violento, o motor gaguejou — depois arrancou! Blakely rodou completamente o acelerador. O motor lutou contra a corrente. A princípio, não aconteceu nada. A corrente continuava a puxar o barco em direção à queda de água. Mas por fim, a pouco metros das águas brancas, o motor começou a gemer. O barco estava agora imóvel no rio. O motor a lutar contra a corrente.
— Vá lá, vá lá, vá lá... — Jason tentava incitar o barco a avançar.
Como se o tivesse ouvido o barco começou a mover-se, primeiro devagar, depois mais e mais depressa.
Jason gritou de alegria. Blakely exibia um sorriso rasgado.
Até o motor morrer.
CAPÍTULO 19
Outro grito penetrante. Estava quase na caverna.
Ashley procurou outra saída do ninho. Até mesmo uma pequena fenda onde se pudessem esconder. Uma análise rápida com a lanterna não revelou senão rocha.
— Temos de descer outra vez! — disse Ben, apontando de novo a lanterna para o penhasco.
Michaelson já tinha na mão a caçadeira de canos cerrados.
— Não, ficamos e matamo-la.
Ashley abanou a cabeça.
— Pode haver mais. O som dos tiros pode atrair todo um bando dessas malditas criaturas. Só disparamos se estivermos encurralados.
Ben olhou de novo para o penhasco.
— Eu diria que estamos encurralados.
— Só precisamos de um sítio para nos escondermos — disse Ashley. — Com sorte, se a mamã vir a caverna vazia, perderá o interesse e irá embora.
— Mas onde? — perguntou Michaelson. Verificou a espingarda, para ter a certeza de que o carregador estava bem inserido.
Ben agarrou no rolo de corda que levava ao ombro.
— Podemos ficar pendurados no penhasco. Esperar que se vá embora. Se nos vir, descemos em rappel pela face do penhasco.
Os braços de Ashley pareciam ainda esparguete mole, mas que escolha tinham eles?
— Boa ideia. Vamos.
Ashley deslizou do cume, seguindo Ben até ao limite do penhasco. No cume, Michaelson protegia a retaguarda, observando o túnel, atento à chegada da «mamã».
— Prende a corda naquela estalagmite — indicou Ben. — Assim.
Ashley seguiu o exemplo de Ben, puxando pelo nó ainda com mais força do que ele. Deu-lhe um terceiro puxão.
— Já está apertado o suficiente, Ash.
— Só queria ter a certeza. — Observava Ben a preparar a corda do major numa terceira protuberância rochosa. Ben lançou a corda enrolada sobre a beira do penhasco, deixando-a cair.
Um grito de raiva ribombou através da caverna. Ela olhou de relance para o ninho.
Michaelson corria pela encosta na direção dela, agarrando a caçadeira com uma mão.
— Aqui vem ela!
— Ash! Põe-te a andar. Vou garantir que o Michaelson está bem preso.
Ashley acenou com a cabeça, passando a corda pelo mosquetão.
— Não corras riscos.
— Quem, eu? — Ben piscou-lhe o olho, fazendo-a avançar em direção à beira do penhasco. Ouviu-se um novo grito. — Depressa!
Ashley passou a corda sobre a beira do penhasco e desceu alguns metros, depois parou usando o travão. O limite do penhasco impedia-a de ver Ben enquanto descia. Maldição, não conseguia ver o que se passava no topo, mas conseguia ouvir.
— Não esperes, Ben! Põe-te a andar para o penhasco! — A voz de Michaelson era quase histérica. — Está logo atrás de mim!
— Põe-te mas é a andar para aqui, amigo.
Uma chuva de pedra de xisto solta caiu para lá da beira do penhasco quando o major deslizou e estacou.
— Ela está a ver-nos! Lá vem ela!
O som de garras a raspar na pedra lançou uma catarata de arrepios pelas costas de Ashley. Um grito de raiva explodiu vindo de cima, soando como se proviesse da beira do penhasco.
Michaelson saltou de súbito sobre o penhasco, com a corda a zumbir através do mosquetão. As suas botas bateram contra a rocha alguns metros à esquerda dela. O rosto dele estava vermelho como uma beterraba sob o brilho da luz do capacete de Ashley.
— O Ben? — perguntou, fitando o limite do penhasco.
Entre golfadas de ar, Michaelson abanou a cabeça.
— Ele... ele... apagou a luz... escondeu-se atrás de um pedregulho. Acho que a criatura não o viu. Estava concentrada em mim.
Ashley desejou que estivesse em segurança, fitando a corda vazia que pendia à sua esquerda. Conseguia ouvir algo a fungar por cima das suas cabeças. Caíram mais pedras de xisto, acertando em Michaelson.
Uma cabeça reptiliana surgiu sobre o limite do penhasco, observando com um olho negro e depois com o outro. Estava logo acima do major. A sua busca cessou, um olho a apontar na direção de Michaelson. Abrindo as mandíbulas, gritou-lhe.
Michaelson desceu mais um metro, agora bem para lá do alcance do comprido pescoço da criatura. O predador silvou à presa que lhe escapava, em seguida inclinou a cabeça uma última vez antes de serpentear para lá do rebordo do penhasco. Ashley libertou o ar que prendera no peito, enquanto Michaelson lhe mostrava um polegar erguido. Estavam em segurança. Então e Ben? Fitou o rebordo do penhasco. Um arquejo à sua direita atraiu de novo a sua atenção para Michaelson. Tinha perdido o equilíbrio, batendo contra a parede, quando a sua corda foi puxada para cima. Observou, de olhos muito abertos, enquanto a sua figura agitada era arrastada mais um metro. Bateu violentamente contra a parede com o ombro.
— Meu Deus! Está a puxar a minha corda! — Foi içado mais um metro, ficando a apenas dois do topo.
Uma vez mais a criatura espreitou sobre o limite do penhasco, o olho inclinado na direção de Michaelson, a corda apertada entre os dentes! Recuou, arrastando Michaelson pelo ar, deixando-o pendurado nas suas mandíbulas.
Ashley tentou soltar a pistola com uma mão, ao mesmo tempo que agarrava a corda com a outra. Os seus dedos lutavam com o fecho que prendia a arma. Maldição! Lutou com o coldre, depois imobilizou-se ao ouvir Ben.
— Olá, grandalhona. Isso é maneira de tratar um convidado? — Fez seguir as suas palavras de um assobio sonoro.
Ashley observou enquanto a criatura se contorcia na direção da voz, fazendo agitar loucamente Michaelson. A criatura abriu a boca para silvar ao novo intruso, largando a corda.
Michaelson mergulhou para lá de Ashley, agitando os braços e as pernas. A folga da corda chegou ao fim e esta ficou tensa com um esticão. O major chocou contra a parede. O som de um osso a estalar acompanhou a colisão.
Ashley baixou os olhos para ele. Gemia, os olhos semicerrados com a dor, enquanto lutava para se colocar em posição de rappel, usando apenas uma perna. Satisfeita por constatar que o major sobrevivera à queda, virou-se de novo para o rebordo do penhasco.
O monstro tinha desaparecido para lá do horizonte do seu campo visual. Conseguia ouvi-lo a fungar e a cheirar lá em cima, as garras raspando hesitantemente a pedra, procurando. Vá lá, Ben, vem para baixo. Pôs-se à escuta, tentando captar algum sinal do que se estava a passar lá em cima. Silêncio. Olhou de relance para a esquerda. A corda de Ben não estava lá! Quando é que tinha desaparecido?
Um sonoro fungar de satisfação voltou a atrair a sua atenção. A caçadora tinha encontrado a sua presa. Seguiu-se um raspar e correr frenético.
— Olha, «mamã»! — A voz de Ben era feroz. — Fiz-te um cachecol novo.
Um uivo de raiva.
De súbito Ben saltou do penhasco, lançando-se para o espaço vazio, a corda atrás de si. Ao chegar ao fim da folga, deu uma volta no ar de modo a ficar virado para a parede e mergulhou na sua direção. Usando as pernas, absorveu a maior parte do impacto. Apenas um «Uf» explosivo indicava que a colisão tivera algum efeito sobre ele.
— Ben...? — disse Ashley, aliviada e confusa. — Então e a...?
Ben apontou para cima.
Ashley virou os olhos de novo para a beira do penhasco. A cabeça do marsupial pendia dele, a língua como borracha pendurada na boca aberta. A corda de Ben estava presa em redor do seu pescoço, abrindo um sulco na sua carne.
Ben fitou a criatura, fazendo beicinho.
— Ora, mas que falta de gratidão. Acho que não gostou do meu presente.
Enquanto o Seal gemia e abria os olhos, Linda verificava a sua pulsação.
— Está a despertar — disse. Temia que, no seu estado enfraquecido, os esporos dos fungos tivessem sido demasiado fortes para ele.
— Isso é bom — disse Khalid. Tendo em conta o semblante enjoado, ainda estava sob o efeito dos esporos. Fechou os olhos e pressionou as fontes com os dedos.
— Toma. Experimenta isto. — Linda passou-lhe uma toalha húmida. — Recosta-te e põe isto sobre os olhos.
Khalid sorriu tenuemente, mas aceitou a oferta.
Enquanto se recostava, Linda virou-se para Villanueva. Limpou a testa do Seal. Com a ajuda de Khalid tinha sido capaz de o transportar para uma câmara relativamente livre de fungos. Um riacho de água fresca deslizava pela caverna, o seu cheiro ligeiramente ácido devido aos minerais dissolvidos. A única entrada para aquela câmara era um buraco estreito, demasiado pequeno para predadores de grandes dimensões. Ainda assim, pousara uma pistola numa pedra ao alcance da mão.
Villanueva esforçava-se por falar por entre os lábios pegajosos.
— Á-á-água...
Linda ajudou-o a sentar-se e levou uma caneca aos seus lábios. Com as mãos trémulas, Villanueva agarrou na caneca e bebeu sozinho.
— Que aconteceu? — perguntou, olhando para Khalid, que agora ressonava baixinho sob o pano molhado.
Linda explicou a história dos esporos de fungos tóxicos enquanto ele terminava a sua água.
Villanueva devolveu-lhe a caneca.
— Será que há alguma coisa aqui em baixo que não nos queira comer?
Linda sorriu-lhe.
— É um ambiente hostil. Acho que, para se sobreviver aqui em baixo, é preciso aprender a usar em pleno todos os recursos. Isso significa uma concorrência intensa e diversos modos de ataque.
— Ótimo. Que se seguirá? Borboletas carnívoras?
Linda encolheu os ombros.
Villanueva abanou a cabeça.
— Raios, fazia-me falta um cigarro.
— Não creio que isso seja bom para ti.
Villanueva ergueu as sobrancelhas.
— Quase me arrancaram um braço, fui abanado como um boneco por um monstro e agora o raio do bolor tentou envenenar-me. Acho que consigo sobreviver a um cigarro.
Linda acenou com a cabeça.
— Posso ver nas coisas do Khalid. Ele tem alguns maços a mais. De certeza que não se importa de te dar um. — Puxou a mochila para si, surpreendida com o seu peso, depois abriu as bolsas. Vasculhou por entre a roupa extra e o equipamento de escalada. — Deve estar por aqui algures.
— Não faz mal. Eu posso...
— Cá está, acho que encontrei um. Enrolado em celofane. — Com o braço enterrado até ao cotovelo, sentiu o plástico a restolhar sob as pontas dos dedos. — Apanhei-o! — Libertou o braço, agarrando a sua descoberta. Envergonhada, apercebeu-se de que não era um maço de tabaco. Curiosa ergueu o objeto para a luz para o ver melhor.
Os olhos de Villanueva abriram-se repentinamente quando viu o que ela tinha na mão.
— Cuidado com isso.
— Que é?
— Explosivos plásticos. Deixa-me ver.
— Explosivos? — Entregou-lhe o bloco de barro enrolado em celofane.
Ele virou o embrulho.
— Esta insígnia aqui estampada. Fabrico alemão.
— Porque havia...? — Olhou de relance para o homem adormecido. — Sendo geólogo talvez tenha pensado que poderia precisar de explodir algumas secções para obter amostras.
O Seal abanou a cabeça.
— Eu fui informado de tudo. Ter-me-iam dito se alguém tivesse trazido explosivos. É obviamente contrabando. Passa-me a mochila dele.
Sustendo a respiração, mil pensamentos assaltavam-lhe a mente enquanto lhe entregava a mochila de Khalid. Recordava-se agora de quão reservado ele fora sempre que alguém lhe tocara na mochila. De quão estranhas eram as suas expressões quando alguém fazia perguntas acerca do seu passado. Mas também recordou a força com que a puxava pelas encostas mais íngremes e as simpáticas palavras de encorajamento.
Villanueva fechou a mochila.
— Estão aqui doze pacotes. O suficiente para fazer desabar todo este vulcão em cima de nós. — Levou a mão à pistola dela, mas os seus ferimentos impediram-no de a alcançar. — Dá-me a tua arma.
Instintivamente, Linda começou a obedecer, mas imobilizou-se com a mão no punho da pistola. Subitamente, insegura quanto ao que fazer.
Com um sonoro ronco, Khalid tossiu e acordou. Afastou o pano do rosto e sentou-se.
— Que estão...? — Os olhos saltaram de Villanueva com a mochila, para Linda com a arma. As sobrancelhas uniram-se, descendo sobre os seus olhos. A sua pronúncia tornou-se mais forte. — Que raio estão a fazer com a minha mochila?
As palavras dele eram dirigidas ao Seal, mas o calor da sua raiva também a queimou. Envergonhada, as palavras saíram de rompante.
— Estávamos à procura de um cigarro e...
Villanueva interrompeu-a.
— Qual é o teu objetivo, Khalid? Quem te enviou?
— Não sei do que falas. Devolve-me a mochila.
O Seal abanou a cabeça.
— Vai para o inferno.
Linda recuou um passo dos dois adversários. A arma pendia flacidamente dos seus dedos. Os seus olhos continuavam fixos em Khalid. Era o mesmo homem que tinha partilhado o seu cantil com ela. O mesmo homem que a libertara quando ficara presa na fenda estreita.
O seu movimento atraiu o olhar de Khalid. Falou com ela, apontando com o polegar para Villanueva.
— Está febril? É o veneno dos fungos? Por que razão está a agir assim? — Acenou para que ela se afastasse do Seal. — Tem cuidado. Pode ser perigoso.
Entorpecida, viu os seus próprios pés começarem a avançar na direção de Khalid.
— Ele está bem. Só não compreende por que razão tens explosivos.
— Afasta-te dele! — Villanueva lutou por se levantar, mas estava demasiado fraco e instável. Voltou a cair. — Não confies nele. Dá-me a arma.
Khalid virou-se para ela.
— Não. Ele vai matar-me.
Linda olhou de relance para o Seal.
Os lábios de Villanueva desenhavam uma linha cruel.
— E que tinhas tu planeado para nós com todos estes explosivos?
Khalid baixou a cabeça.
— Linda, deixa-me explicar. Ele está a distorcer tudo. Não sou um terrorista árabe. Está a deixar que o seu preconceito o iluda.
— Khalid...? — Linda deu um só passo na direção dele, não deixando senão um metro entre ambos.
— Cuidado!
As palavras de Villanueva foram demasiado lentas. Muito mais lentas do que a velocidade do salto de Khalid. Este estava sobre ela antes mesmo que Linda conseguisse respirar. Tomou-a num forte abraço. Uma das mãos deslizou pelo braço dela e retirou-lhe a arma da mão.
— Lamento — sussurrou-lhe ao ouvido. — Não era suposto ser assim. — Com a arma na mão, soltou-a.
Linda recuou alguns passos, cambaleante, as lágrimas acumulando-se nos seus olhos.
Apontou a arma a Villanueva.
— Então e agora, Khalid? — disse o Seal com um esgar. — Como é que achas que vais sair daqui?
— Aligeirando a carga. — Puxou duas vezes o gatilho. A cabeça de Villanueva foi projetada para trás, dois pequenos furos surgiram na sua testa. O corpo deslizou para o chão.
Linda gritou. Tapando o rosto, caiu de joelhos, soluçando, à espera de sentir a qualquer momento as balas a trespassá-la também.
Uma mão tocou-lhe no ombro. Sem palavras.
Linda encolheu-se para fugir ao toque e continuou a chorar. A mão não voltou a tentar tocar-lhe. Por fim, os soluços que a agitavam dissiparam-se num simples correr das lágrimas. Ergueu os olhos.
Khalid estava sentado sobre os calcanhares, de cabeça inclinada. Mantinha a arma nas mãos com o conforto e a facilidade de quem segura uma caneta. Ele deve ter-se apercebido do olhar dela.
Linda fungou.
— Porquê?
As palavras dele eram secas, destituídas de emoção.
— Foi-me atribuída uma missão. — Khalid virou-se para olhar para ela. — O Blakely foi ingénuo. A notícia da sua descoberta de uma enorme estátua de diamante chegou a muitos ouvidos. Um cartel de diamantes sul-africano abordou o meu empregador. Se a fonte destes diamantes enormes fosse descoberta arruinaria o mercado de diamantes. Os preços cairiam em flecha. Fui incumbido de descobrir a fonte dos diamantes e sabotar o local. Fazer explodir todo o sistema.
Ela baixou a cabeça.
— Tantas mortes só por dinheiro.
Khalid estendeu a mão e voltou a cabeça dela para si, as pontas dos dedos quentes do contacto com a arma.
— Não — disse ele. — Aceitei esta missão dos sul-africanos por mais uma razão. Uma que me é mais querida. Da mesma forma que com o mercado dos diamantes, se este continente se apresentar como um importante concorrente no mercado da extração petrolífera, poderá devastar a economia do Médio Oriente. O petróleo é o sangue do meu país. Antes de haver petróleo o meu país era pobre. Sem educação, sem cuidados de saúde, sem forma de escapar à areia. Não permitirei que isso volte a acontecer. Não depois de alcançado tanto progresso. — Um relampejo de dor brilhou nos seus olhos. — Preocupo-me com o meu país tanto quanto tu te preocupas com o teu. Matarias para salvar o teu país?
Sentindo-se insegura, Linda não respondeu, limitando-se a virar o rosto.
Soltando o queixo dela, Khalid levantou-se.
— Preciso de voltar para a superfície. Terminar a minha missão. — Aproximou-se do corpo de Villanueva. — Ele tinha de ser morto. Aquilo que descobriu representava uma ameaça à minha missão. Mas... de ti... preciso. Mais um par de olhos, mais um par de mãos. É um longo caminho até ao topo.
Linda permitiu-se um momento de esperança.
— Tenho a minha missão e não irei falhar — disse ele. — Podes ficar aqui... ou podes vir comigo. Mas tens de compreender. Se vieres comigo e traíres o meu segredo, serei obrigado a matar outra vez. — Khalid estendeu a mão para ela. — Posso confiar em ti?
Linda fitou a palma da mão calejada. Se fosse com Khalid, este poderia virar-se contra ela tão depressa quanto se virara contra Villanueva. Mas ficar ali sozinha, desarmada, significava morte certa.
Envolvendo o corpo com os braços, Linda ignorou a mão dele e tomou uma decisão.
— Vou contigo.
Graças a Deus, pensou Michaelson quando Ben parou à sua frente. Equilibrou-se com uma mão no ombro do australiano. A tala improvisada em torno do tornozelo mordia-lhe a canela. A engenhoca mal-amanhada tinha sido apressadamente aplicada na perna depois de terem voltado a subir para a zona do ninho. Andar era possível, mas o seu passo era lento e incerto. Michaelson estremeceu quando viu o que ainda tinham de andar até alcançarem a saída do ninho.
— Ouviram alguma coisa? — perguntou Ben, com a cabeça inclinada para o lado.
Ashley abanou a cabeça. Michaelson pôs-se à escuta.
Vários metros atrás deles, os pequenos predadores marsupiais silvaram ao grupo, com as suas pequenas cristas a subir e descer. Os seus protestos tinham-se tornado mais estridentes à medida que se apercebiam de que o grupo ia deixar o ninho. Ainda assim, o túnel permanecia a alguma distância, um golpe negro na parede.
— Não — disse Michaelson. — Nada. Parece vazio.
Ben acenou com a cabeça, usando um dedo para limpar um ouvido.
— Podia jurar... — Continuou em frente.
Michaelson seguiu-o, os passos atabalhoados devido ao tornozelo ferido.
Ashley colocou-se ao seu lado.
— Como te estás a aguentar?
— Bem, mas continuo a achar que deviam continuar sem mim. Estou a atrasar-vos.
Ashley franziu o sobrolho.
— De qualquer maneira, é melhor avançar devagar. Não temos como saber o que nos espera mais à frente.
Resignado, avançou cambaleante atrás de Ben, mantendo um olho na entrada do túnel. Um objetivo. Começou a contar os passos, os números ímpares dolorosos quando apoiava o seu peso na perna dorida.
Ao trigésimo terceiro passo, chegou por fim à abertura. Encostou-se à parede do túnel, o suor a ensopar a sua testa. Uma pontada de dor começara a latejar do seu lado direito. Maldição, devia ter estalado uma costela, pensou, passando a mão desse lado.
Ben aproximou-se dele. Tinha feito o reconhecimento da passagem enquanto esperava que Michaelson chegasse até ali. Olhou de relance para o local que Michaelson massajava e ergueu uma sobrancelha, mas felizmente não fez perguntas. Já fora suficientemente embaraçoso precisar que o australiano lhe salvasse o couro quando aquela criatura zangada o apanhara. Não fora pela proeza temerária de Ben, estaria morto.
Baixou a mão ao lado do corpo.
— Que descobriste?
— É um verdadeiro labirinto aqui em baixo. Há passagens que se cruzam por todo o lado. Algumas estão iluminadas por fungos. Outras estão vazias. Precisamos de ter cuidado.
— Pelo menos temos muitas vias de fuga.
— Sim, mas qual das passagens nos permitirá sair daqui?
— Só há uma maneira de descobrir. — Suprimindo um estremecimento, apontou para o túnel. — Depois de ti.
Ben apontou a luz para a frente e entrou no túnel. Depois de vários metros de cuidadosos progressos, Michaelson apercebeu-se de que a descrição que Ben fizera das passagens que os esperavam era um eufemismo. No primeiro cruzamento depararam-se com cinco passagens rochosas que partiam em todas as direções.
— Agora vamos por onde? — perguntou Ben, dirigindo a sua pergunta a Ashley.
Michaelson saltitou para a frente, irritado por Ben o ter excluído do processo de tomada de decisão. Mesmo que estivesse ferido, não deixava de ser o militar de maior patente ali presente. A segurança deles ainda era a sua principal responsabilidade.
Ashley apontou para cada um dos túneis com um feixe de luz. Pousou a luz numa das passagens.
— Esta passagem parece subir. E tem algum daquele bolor brilhante na parede.
Michaelson espreitou para o túnel escolhido. Emitiu um ruído reservado.
Ashley olhou para ele.
— O bolor vai permitir-nos conservar pilhas. Ainda não sabemos quanto temos de andar antes de encontrarmos uma saída deste buraco infernal, por isso é melhor pensarmos em poupar. Tentemos manter-nos pelas passagens iluminadas dentro do possível. Além disso, quanto mais luz tivermos à nossa volta, mais segura me sinto.
Michaelson acenou com a cabeça. Por muito que lhe custasse, a avaliação da situação era boa. Não podia tê-lo planeado melhor.
— Então vamos — disse.
Ben voltou a assumir a dianteira. Baixou a intensidade da lanterna para emitir apenas uma luz fraca e difusa, apenas o suficiente para iluminar alguns nichos e recantos mais escuros. Quanto ao resto, o bolor cada vez mais espesso tinha brilho suficiente para que pudessem ver. Ben acenou para que apagassem as luzes, incluindo as dos capacetes.
Michaelson seguiu Ben. Ashley cobria a retaguarda, de pistola na mão. Michaelson cerrava os maxilares, tanto devido à luz quanto à frustração com a sua forma física. Devia ser ele a proteger a retaguarda ou a avançar à frente, mantendo-se atento aos perigos. Não devia seguir ensanduichado como um menino da mamã superprotegido.
No entanto, não podia discutir com a ordem por que avançavam. Ben já se distanciara vários metros enquanto ele se esforçava por acompanhar. Olhando de relance para trás, equilibrando-se no pé bom, observou Ashley a verificar a passagem atrás de si. Ela virou-se para a frente e viu-o a olhá-la fixamente. Sorriu-lhe debilmente, quase como se estivesse a tentar reconfortá-lo.
Franzindo o sobrolho, aumentou o ritmo dos seus saltos. As passagens laterais e os cruzamentos voaram por eles. Nem sequer tentou memorizar o caminho, mantendo os olhos fixos nas costas de Ben, esforçando-se por acompanhar o seu ritmo. Por muito que o seu sangue quente o fizesse avançar para lá da dor, para lá da incapacidade que sentia, o seu passo febril acabou por abrandar de novo até um arrastar patético. Ben desapareceu numa curva no túnel. Arquejando agora, centelhas de luz dançavam à frente dos seus olhos, a dor a subir do tornozelo como faíscas.
Parou apoiando-se na parede, o seu flanco a arder, agora, como uma chama escaldante.
Ashley avançou até junto dele, a sua voz era uma mescla de preocupação e raiva.
— Não te esforces demasiado. Não estamos numa corrida. O progresso cauteloso permitir-nos-á sair daqui.
— Estou a abrandar-vos. — Falava por entre os dentes cerrados com a dor.
O rosto de Ben surgiu de súbito à sua frente. Maldição, aquele australiano avançava em silêncio quando queria. Ben apresentava uma expressão preocupada.
Michaelson fitou Ben, irado.
— Estou bem. — O seu olhar desafiava-o a discordar.
— Isso é bom — disse Ben, a voz um sussurro urgente —, porque acho que estamos a ser seguidos.
Ashley avançou para junto de Ben.
— Como assim?
— Estou constantemente a ouvir algo a raspar e restolhar nas passagens vizinhas. A manter o mesmo ritmo que nós.
— Talvez seja apenas o eco dos nossos próprios passos — disse Ashley, mas os seus olhos dardejaram para trás dela. — Não ouvi nada. — Olhou de relance para Michaelson. — E tu?
Michaelson abanou a cabeça, mas não estava em posição de dizer o que quer que fosse. Tudo o que conseguia ouvir enquanto avançava eram os seus arquejos ofegantes e o coração a bater nos ouvidos. Raios, nem sequer ouvira Ben a aproximar-se até este estar mesmo em cima dele.
Ben silvou as suas palavras.
— Têm de saber o que ouvir. Conheço os sons que são naturais numa gruta. E estes não são normais.
— Que fazemos? — perguntou Ashley.
— Precisamos de o despistar, mas o que quer que seja conhece estas passagens melhor do que nós. A nossa única esperança é a velocidade. Temos de ser mais rápidos.
Michaelson estava consciente de que Ben não olhara de relance para ele. Ashley também não o fez, mas um silêncio desconfortável abateu-se como um peso sobre eles. Sabia o que estavam a pensar. Precisavam de avançar depressa, mas recusavam-se a deixá-lo para trás.
Revirando os olhos, ia falar quando também ele ouviu. Todos ouviram. Seis olhos viraram-se ao mesmo tempo para trás. Algo raspou a pedra atrás deles, fora do seu campo visual, seguido pelo som de uma só pedrinha a ser desalojada, tombando, saltitando. Estava algo ali atrás.
— Deixem-me — disse Michaelson. Sacou da pistola e apontou-a. Não para o caminho que tinham percorrido, mas para Ashley e Ben. — Agora.
— Para com essa merda — disse Ben. — Não estamos num filme do Rambo. Sabemos que não vais disparar contra nós.
— Não vou permitir que os meus ferimentos nos matem a todos. — Ergueu o cano da pistola para a sua própria fonte, pressionando o bocal frio contra a pele quente. — Vão ou disparo.
— Michaelson... — A voz de Ashley estava tensa de medo. — Somos uma equipa.
— Vão. Cobrirei a retaguarda durante tanto tempo quanto possível.
— Não! — disse Ashley. — Vens connosco.
— Vão. — Puxou o cão com o polegar. — Agora, ou dentro de três segundos não terão ninguém para cobrir a retaguarda.
Viu Ashley engolir em seco e olhar de relance para Ben em busca de ajuda. Se algum deles o tentasse agarrar, dispararia. Sabia que teria de os obrigar a deixá-lo para trás. Uma segunda pedrinha deslizou algures atrás deles.
Ben virou-se para Ashley, a tensão obstinada dos seus ombros perdida.
— Ele tem razão. Temos de pensar nos outros. Se não encontrarmos ajuda, também eles morrerão.
Os punhos de Ashley cerraram-se até os nós dos dedos ficarem brancos.
— Odeio isto.
Ben pousou uma mão no ombro dela. Virou os olhos para Michaelson.
— Sei que estás determinado em fazer disto uma missão suicida. Estilo kamikaze e isso tudo. Mas cerca de cinco metros mais à frente há uma pequena alcova com uma minúscula poça de água. É suficientemente grande para esconder três Marines. Sugiro que te aboletes. Será um lugar seguro para te esconderes e oferecer-te-á boa cobertura caso precises de disparar.
Michaelson acenou com a cabeça, desconfiado.
— Vão. Vou vê-la depois.
Ben puxou Ashley consigo.
— Anda. Talvez consigamos levar os nossos perseguidores para longe dele.
Ashley deixou-se levar, mas não antes de os seus olhos se fixarem nos do major uma última vez, as lágrimas nos cantos das pálpebras.
— Dennis, tem cuidado. Não faças nada parvo.
Michaelson acenou-lhe com o cano da arma. Viu-a virar-se e partir com o braço de Ben à sua volta. Desapareceram para lá da curva seguinte sem olharem para trás. Escutou enquanto o som dos seus passos se desvanecia ao longo do túnel até nada restar senão o silêncio. Escutou cuidadosamente, forçando a audição, assegurando-se de que tinham partido sem dúvida, além de tentar escutar o som revelador dos seus perseguidores.
Nada ouviu para além do latejar da pulsação nas fontes. Continuou à espera. No entanto, passada quase uma hora, não viu nem ouviu nada. Talvez Ben tivesse entrado em pânico por nada, mas não se conseguia convencer. Ben conhecia demasiado bem as grutas para ser enganado por um eco ou por ruídos naturais.
Lambeu os lábios secos, cobertos de pó e suor seco. Agitou o cantil que trazia no cinto. Quase vazio. Era melhor seguir o conselho de Ben e procurar a tal alcova. Encher o cantil e aboletar-se aí.
Estremecendo, cambaleou tão silenciosamente quanto possível ao longo do túnel, em busca da passagem lateral. O raspar da sua bota no chão rochoso soava explosivamente alto no túnel vazio. Felizmente, poucos passos depois da curva na passagem, viu uma pequena abertura negra do lado direito da parede do túnel. Acendeu a sua lanterna e iluminou a abertura com a luz. Era escuro lá dentro, sem fungos brilhantes, apenas vazio. O teto era baixo. Demasiado baixo para ficar de pé, mas se se mantivesse agachado poderia entrar e mover-se de um lado para o outro. No canto, um pequeno fio de água escorria pela parede e acumulava-se numa poça.
Testou-a com um dedo. Tinha um forte sabor mineral, mas devia ser potável. Depois de ter bebido os últimos goles do seu cantil, posicionou-o contra o fio de água e encheu-o de água fresca.
Satisfeito, instalou-se junto à abertura, escondido nas sombras; o brilho da passagem coberta de bolor permitia-lhe ver em ambas as direções sem ser visto. Era uma posição segura. Esperou com a arma a apontar em frente.
Cobardes, pensou, era isso que eram: cobardes, todos eles. Por muito lógica que fosse a decisão de abandonar Michaelson, sentia-se como um cão a fugir com o rabo entre as pernas.
Seguiu as costas de Ben através do labirinto serpenteante. Tinham passado quase cinco horas e durante as breves pausas para beber água quente do seu cantil continuou a ouvir sons atrás de si, por vezes a uma longa distância, outras logo ao virar de uma curva cega.
Ben parou à frente dela, a testa ensopada de suor, e abriu a tampa do cantil. Levou-o aos lábios e bebeu um gole curto. Limpando a boca com o punho da camisa, disse:
— Não faz o mínimo sentido. — Abanou o cantil e franziu o sobrolho.
O dela também estava quase vazio.
— Como assim?
— Por esta altura, já devíamos tê-los despistado ou sido apanhados. Este impasse é muito estranho.
— Talvez estejamos apenas com sorte.
O som de pedras soltas num túnel à direita fê-los saltar a ambos.
Ben torceu o nariz, como se sentisse o cheiro de algo desagradável.
— Não confio na sorte, tal como não confio nestas grutas.
Ashley tapou o seu próprio cantil depois de ter bebido o suficiente para limpar o pó de pedra da boca.
— Vamos.
Ben avançou a um ritmo mais rápido, os músculos dos seus ombros tensos, a arma apertada na mão.
Aquela espera constante também começava a afetá-la. Que raio os perseguia? E por que razão não atacava? Sentiu o ácido escaldante revolver-lhe o estômago. Quase desejava que os seus perseguidores atacassem. Pelo menos, assim poderia lutar... fazer algo mais do que fugir de medo.
Durante a hora seguinte, percorreram inúmeros túneis, uns que subiam, outros que desciam, alguns com pisos lisos, outros repletos de pedregulhos, uns iluminados por fungos, outros negros como breu.
Ben segurava a bússola de prata na mão livre.
— Estamos a avançar na direção errada. Para longe da base.
— Que escolha nos resta? — A fome e as passagens serpenteantes estavam a deixar Ashley tonta. Ia mordiscando as rações secas enquanto avançavam, mas precisava de uma refeição. Deu por si a sonhar com um cheeseburger com uma dose extra de batatas fritas. E, claro, uma Coca-Cola. Aquele líquido quente no seu cantil quase nem lhe humedecia a boca.
Tropeçou numa pedra, os reflexos embotados fizeram-na cair de joelhos. Tentou erguer-se, mas as pernas objetaram, os músculos cansados e esgotados. Voltou a cair com um suspiro.
Ben voltou para junto dela e agachou-se.
— Não podemos parar agora.
— Eu sei — disse ela, pesadamente. — Só preciso de um minuto, mais nada.
Ben sentou-se ao lado dela, repousando uma mão no seu joelho, apertando-lhe a perna num gesto de conforto.
— Havemos de sair daqui.
— Havemos? — sussurrou ela. E se não conseguissem sair dali? Pensou no filho, protegido pela segurança da Base Alfa, e deixou cair a cabeça. Pelo menos Jason estava seguro. Se algo lhe acontecesse...
Cerrou os dentes. Para o diabo com aquele tipo de pensamentos! Ela ia ver o filho em breve. Imaginou o sorriso tolo dele quando algo o surpreendia, a maneira como o seu cabelo se acachapava teimosamente à frente, mas se espetava atrás de uma orelha. Afastou a mão de Ben do joelho e levantou-se. Nem que tivesse de lutar contra todos os malditos predadores daquele buraco infernal, voltaria a ver o filho.
— Vamos — disse, oferecendo uma mão para ajudar Ben a levantar-se. — Temos de encontrar o caminho para casa.
— A mim parece-me muito bem. — Ben dirigiu-lhe um dos seus sorrisos rasgados, mostrando todos os dentes, depois partiu pela passagem.
Ashley avançou atrás dele, determinada, pronta a correr quilómetros se necessário. Mas passados apenas cem metros, Ben parou. Ergueu uma mão no ar, inclinando a cabeça.
Ela permaneceu em silêncio, esforçando-se por ouvir. Mas não ouviu nada de incomum.
— Ben...? Que foi?
— Uma brisa. — Ben apontou para um túnel lateral.
Ashley avançou para o seu lado. Agora que ele falava nisso, conseguia sentir uma ligeira brisa vinda da passagem, erguendo alguns fios do seu cabelo preto.
— Que significa isso?
— Eu acho... que é o fim do labirinto.
— Então vamos. — Ashley avançou, assumindo a liderança.
Enquanto avançavam, a passagem estreitou-se em curvas apertadas, a brisa tornando-se cada vez mais forte. Os fungos que cobriam as paredes tinham diminuído à medida que seguiam as suas curvas, até serem obrigados a acender as lanternas de mão e dos capacetes.
Depois de quase um quilómetro e meio a andar, Ben vociferou:
— Raios.
— Que foi?
— Ainda nos falta atravessar uma passagem lateral nesta galeria. Seria fácil ficarmos presos aqui. Não temos por onde fugir.
Ashley franziu o sobrolho e continuou. Ótimo. Mais uma coisa com que nos preocuparmos. Mas estavam determinados, e só havia um caminho: sempre em frente.
Enquanto contornava a curva apertada seguinte, o teto tornou-se mais baixo. Agachando-se, prosseguiu. A brisa transformara-se num vento, soprando madeixas do seu cabelo contra o rosto, agitando-o atrás de si como se apontasse para que voltassem atrás. Os ouvidos silvavam com a passagem do vento.
Ben tocou-lhe nas costas.
— Ouviste aquilo?
Ela contorceu-se para olhar para trás.
— O quê?
— Estão atrás de nós... e aproximam-se depressa.
Ashley virou-se para a frente, os lábios apertados em linhas tensas. Aumentou o ritmo, mantendo-se agachada e correndo contra o vento. O vento soprava a partir de um wormhole no final do túnel. O primeiro que viam desde que tinham entrado no labirinto.
Correu para a frente, rezando para que aquele túnel os levasse para cima, em direção a casa. Ajoelhou-se junto à abertura e apontou a lanterna. O que viu forçou um gemido por entre os seus lábios. Não só descia, como o fazia com uma inclinação assustadoramente íngreme, levando-os para as profundezas do continente.
Ben inclinou-se ao seu lado. Já tinha sacado do skate e soltava o fecho para o esticar.
— É melhor que te apresses, Ash. Estão cerca de cem metros atrás de nós.
Apontou sombriamente para o wormhole.
— Desce. E bastante, diria eu.
— Não podemos voltar para trás. — Ajudou-a a soltar a prancha. — Tenho a crescente desconfiança de que fomos conduzidos a este local.
— Como? — Soltou o fecho para esticar a prancha.
O raspar da pedra ecoou atrás deles.
— Não há tempo — disse Ben. Apontou para o buraco. — Primeiro as senhoras. — Apontou a arma para o caminho que tinham percorrido.
Ashley olhou de relance para o túnel atrás deles, depois para Ben. Inspirou fundo e enfiou-se pelo wormhole na sua prancha. A inclinação da descida depressa fez acelerar o seu mergulho. Travou com as mãos enluvadas e a biqueira das botas, mas não conseguiu mais do que abrandar ligeiramente a velocidade.
Ouviu Ben no wormhole atrás de si, as rodas a correrem velozes na sua direção.
— Diabos! — gritou-lhe. — Parece um trenó. Vejamos se aqueles sacanas nos apanham agora!
Por aquela altura, a velocidade da sua descida era tal que tentar travar lhe queimava as mãos, mesmo através das luvas de escalada. E à medida que voavam ao longo do túnel, os omnipresentes fungos começaram a surgir a espaços nas paredes.
— Estamos num enorme saca-rolhas! — gritou Ben. — Consegues sentir a força centrífuga?
Conseguia. A prancha subia cada vez mais alto nas paredes, à medida que a velocidade aumentava e as curvas do túnel se tornavam mais apertadas. Tentar travar agora era impossível. Durante a sua veloz descida, o fungo tornara-se mais e mais espesso, o seu brilho quase ofuscante. O bolor também tornava as paredes escorregadias, de tal modo que nem fincar as botas no chão oferecia uma travagem significativa.
Ashley esperava que o túnel nivelasse antes de terminar. Que lhes desse uma oportunidade para abrandar. Àquela velocidade, odiaria ser cuspida do túnel na direção de uma estalagmite. Observou o túnel à sua frente, rezando por um abrandar da inclinação.
Sem sorte. A saída do túnel surgiu depois da curva seguinte. Sem tempo para travar. Sem tempo para abrandar. Não teve senão tempo para cobrir a cabeça com os braços e encolher-se.
Saiu disparada do túnel, projetada para a caverna seguinte. Momentaneamente cega devido à luz forte, guinou e saltou através do piso ligeiramente irregular. Quando os olhos se ajustaram viu-se a avançar na direção de uma parede sólida de vegetação amarela. A colisão fê-la tombar da prancha, mas a vegetação amparou a sua queda, embora tivesse rebolado durante vários metros.
Quando parou, ergueu-se de joelhos. Já estava quase de pé, quando Ben chocou contra ela com um grito sonoro. Ashley caiu num emaranhado de braços e pernas.
— Bem, isto foi diferente — disse Ben, falando com o joelho esquerdo dela.
Ashley libertou-se e levantou-se com um gemido. Com todo o corpo dorido, olhou à sua volta, enquanto Ben se levantava. O campo de vegetação amarela, como trigo, erguia-se à altura do peito e estendia-se por vários quilómetros ao longo do chão da caverna. Quilómetros! Inclinou o pescoço, olhando à sua volta. Aquela câmara era monstruosa, tornando até a Caverna Alfa diminuta por comparação. Quase como o Grand Canyon — mas com tampa. As paredes estendiam-se por centenas de metros de altura. O teto, longínquo, brilhava com fungos espessos, que nalgumas zonas brilhavam com a força do sol. Olhou de relance para os suaves campos amarelos que ondulavam pela ampla planície, quebrados apenas por pomares minúsculos de árvores finas, como ilhas num mar.
— Acho que deixámos o Kansas — disse Ashley de boca aberta.
Um restolhar na vegetação desviou-lhe a atenção do panorama à sua volta. A vários metros de distância, algo avançava pelo campo na direção deles, contornando os aglomerados de árvores. Demasiado baixo para ser visto, não fora pelo rasto dos caules dobrados, como um tubarão dentro de água.
Olhou de relance para Ben, ao mesmo tempo que recuava. Apontou para a esquerda. Outras duas ondas avançavam na sua direção. Estudou o campo com maior atenção, apercebendo-se agora de outros três rastos que avançavam para eles. Seis ao todo.
Recuou, puxando a manga de Ben. Este não resistiu.
Quase tropeçando, saiu do campo para a rocha nua e tropeçou até ficar junto à abertura do wormhole. As pranchas tinham-se perdido algures no campo. Levando a mão à pistola, tocou no coldre vazio. Raios, devia ter perdido a arma durante a queda.
Virou-se para Ben. Felizmente, ele tinha a pistola a postos, apertada na mão direita.
— Perdi a minha pistola — disse por entre os lábios cerrados.
— Não faz mal. Eu perdi os carregadores extra. E já só me restam três tiros neste.
Ashley fitou os seis rastos que avançavam lentamente na sua direção. Aquilo não era bom. O mais próximo estava a uns meros nove metros. Tinha parado e mantinha a posição. Aguardando. Em breve os outros alcançaram-no.
— Para o wormhole? — perguntou.
— A mim parece-me bem. Vai.
As palavras deles pareceram despertar as criaturas no campo. Correram à velocidade da luz. O movimento súbito fez Ashley estacar agachada junto ao wormhole, como um veado ofuscado pelos faróis. As seis criaturas emergiram repentinamente da parede de vegetação, depois estacaram em conjunto, apoiadas nas quatro patas, de quartos traseiros erguidos, prontas a saltar, agitando as caudas.
Pareciam um cruzamento entre um lobo e um leão. Pelo cor de âmbar, uma juba espessa em redor dos pescoços, olhos enormes, pupilas rasgadas, longos maxilares repletos de dentes ferozes. Um rosnar constante ergueu-se da matilha.
— Para — sussurrou Ben. — Nada de movimentos súbitos.
Ashley não estava a pensar em mexer-se, permanecendo imóvel e agachada, os olhos colados aos seis pares de olhos que não pestanejavam enquanto a fitavam. E estava disposta a permanecer assim durante tanto tempo quando possível, até algo ter saído disparado do wormhole e a ter agarrado pelo tornozelo. Um grito agudo explodiu-lhe da garganta.
CAPÍTULO 20
— Experimenta os remos! — Blakely gritava sobre o rugido da queda de água cada vez mais próxima. Deu um último sacão à corda do motor. Este cuspiu e morreu. Observou enquanto a corrente arrastava o barco na direção do precipício. Era impossível determinar a partir dali quão grande seria a queda. Mas o som! O crescendo de águas revoltas e pedras sugeria uma queda mortal. Agarrou no remo e apressou-se para a parte lateral do barco. Apercebeu-se de que Jason mergulhava o remo do outro lado.
— Com mais força, Jason, com mais força! — gritou ao rapaz, juntando a sua força para lutar contra a corrente, os ombros a arder do esforço.
— Estou a tentar! Não está a resultar! Não estamos a abrandar!
Blakely lançou um olhar para trás deles. A popa do barco estava no limite da queda de água. Observou enquanto a corrente puxava o barco para lá do seu limite.
— Agarra-te! Com força! — gritou, e agarrou nas alças do barco, enquanto Jason fazia o mesmo.
O barco pareceu pairar no limite da queda de água, hesitante. Blakely susteve a respiração quando o barco mergulhou. Por um momento, as paredes de água envolveram o barco enquanto este caía. Observou o barco a tentar virar-se para cima dele. Abriu a boca para gritar quando o barco se despenhou, lançando-os aos dois contra o fundo da embarcação, com jorros de água a erguerem-se em jatos à sua volta. Por sorte, não se tinha virado.
Blakely ergueu a cabeça. A queda de água não tinha mais de quatro metros e meio.
— Nem acredito. Nós...
O barco caiu numa segunda queda de água. Blakely quase o largava tal foi a surpresa quando a embarcação deslizou pela beira da catarata, caindo. Mesmo por cima do trovejar das águas, o som do barco a rasgar era assustadoramente claro. Maldição! O Zodiac bateu contra o fundo da catarata e encheu-se rapidamente de água, o pouco ar que permanecia preso no barco rasgado quase não o conseguindo manter à tona.
Blakely puxou Jason para longe do lado que se afundava, para que o rapaz pudesse agarrar as alças do lado incólume do barco.
Jason olhou para trás, por cima do ombro.
— Vem aí mais uma!
Antes que conseguisse sequer olhar para trás para confirmar a afirmação aterrorizada do rapaz, o barco dobrou-se sobre o limite de mais uma queda de água. O lado que se afundava agia como lastro, fazendo girar o Zodiac . O movimento desequilibrado fê-lo tombar para lá da queda de água, virando-o contra as águas revoltas.
Imediatamente antes de Blakely se afundar, viu Jason voar do barco, as mãos tentado agarrar-se de novo, ao mesmo tempo que era lançado do seu assento. Depois a água salgada envolveu-o, enchendo-lhe o nariz, desencadeando um ataque de tosse, que serviu apenas para esvaziar os pulmões do ar que lhe dava vida. Fechou a boca com força, o peito a gritar em sinal de protesto. Lutou contra a corrente para se libertar do barco que afundava. Com um último empurrão na parte intacta, afastou-se deste para águas mais calmas. Com a ajuda do colete salva-vidas, subiu até à superfície das ondas revoltas.
Arquejando para respirar, percorreu as águas com o olhar. À sua frente rebentavam as três quedas de água pelas quais tinham caído. Torceu o corpo para ver se outras quedas de água o ameaçariam, ao mesmo tempo que sentia a corrente puxá-lo para longe daquelas. Felizmente, fora a última. Tinham chegado ao fundo daquela caverna profunda. A corrente puxava-o para um refluxo do tamanho de um lago, onde as águas redemoinhavam indolentemente.
Avançando na água, olhou à sua volta. A caverna brilhava com as manchas amplas de fungos fosforescentes. Na ténue luz, identificou um objeto cor de laranja que balouçava perto da costa oposta. Jason. Blakely deu vigorosamente às pernas, as botas pesadas com a água. Jason estava imóvel, limitando-se a boiar no refluxo. A corrente ameaçava puxar o rapaz para longe da costa e de novo para o fluxo principal.
Estava a demorar demasiado tempo a chegar junto de Jason. Quando conseguiu nadar para mais perto, viu o sangue que corria de um corte no couro cabeludo do rapaz, mas pelo menos o colete tinha-o mantido à tona.
— Aguenta, filho! — Aumentou os seus esforços e passado um minuto tinha conseguido agarrar o casaco do rapaz. Permitiu-se um instante de alívio quando ouviu a respiração de Jason, rouca, mas forte. Bateu com os pés em direção à costa, puxando Jason atrás de si, tendo o cuidado de manter o nariz e os lábios do rapaz acima da água.
Bateu com o ombro numa pedra. Tinha chegado a terra. Largando Jason por um instante, trepou para a margem escorregadia. Uma vez lá em cima, deitou-se de barriga para baixo e esticou-se para Jason que boiava por perto. Agarrou o colete com as pontas dos dedos e puxou-o para perto o suficiente para o segurar.
Precisamente quando o estava a puxar, as pálpebras do rapaz abriram-se. Confuso e atordoado, o rapaz entrou em pânico, agitando loucamente os braços, protestos incompreensíveis borbulhando dos seus lábios.
Uma mão descontrolada acertou na têmpora de Blakely quase o fazendo largar o rapaz. Ergueu a voz, tentado soar firme e reconfortante ao mesmo tempo.
— Jason, calma! Sou eu. Estás em segurança.
As palavras pareceram penetrar a névoa que toldava o discernimento do rapaz. Os seus movimentos agitados aquietaram-se num estremecer fraco.
— Isso mesmo — disse Blakely num tom tranquilizante, ao mesmo tempo que o içava para a margem. Arrastou-o para longe da beira, depois deixou-se cair ao seu lado. Jason tentou endireitar-se, mas Blakely, com a respiração entrecortada, manteve-o deitado. — Não te mexas. Descansa — arquejou.
A torrente de adrenalina que Blakely sentira durante a queda pelas cataratas esvaiu-se na rocha lisa, os seus membros subitamente empapados e pesados. Deixou que a cabeça pendesse por um momento, inspirando fundo. Que iriam fazer agora?
A tosse de Jason ao seu lado chamou uma vez mais a atenção de Blakely. Estendeu o braço e desabotoou o colete salva-vidas do rapaz, verificando em seguida se teria mais ferimentos. Não encontrou ossos partidos. Nem outras lacerações. Apalpou suavemente a ferida no couro cabeludo do rapaz, provavelmente provocada pelo embate contra uma rocha. Com uma careta concluiu que parecia pior do que era, mas ainda assim precisava do kit de primeiros socorros do barco para obter antibióticos e um penso seco.
Olhou para o local onde o barco danificado ficara a boiar a poucos metros da costa. Antes que este se afastasse de novo, decidiu que era melhor tentar salvar o que pudesse — rações, lanternas, kit de primeiros socorros. Não havia como saber durante quanto tempo permaneceriam ali.
Olhou de relance para Jason. O rapaz fitava-o agora. Uma lucidez clara regressara ao seu olhar. Jason lambeu os lábios.
— Dói-me a cabeça — disse, a voz um sussurro rouco.
— Eu sei, meu rapaz. Levaste uma forte pancada.
Jason ergueu a mão e tocou na ferida. Depois fitou os dedos ensanguentados, com os olhos muito abertos.
Blakely deu-lhe uma palmadinha no ombro.
— Vais ficar bem. É só um ligeiro corte. Vou nadar até ao barco para trazer um penso.
— Mas...
— Não te preocupes, volto já. — Blakely levantou-se com um gemido, o peito lançando ondas de dor em sinal de aviso. Não queria entrar na água outra vez, mas não tinha escolha.
Jason ergueu-se sobre um cotovelo, observando silenciosamente.
Deslizando para a água, Blakely avançou para o Zodiac. Felizmente tinha-se aproximado ainda mais da margem enquanto consolava Jason. Bastaram algumas braçadas para chegar ao barco meio submerso. Embora estivesse tudo preso com nós e presilhas, algumas coisas tinham desaparecido. Pelo menos as rações e o kit de primeiros socorros ainda lá estavam.
Vasculhou o que restava do barco. Maldição, a caixa de plástico onde estavam as lanternas e as pilhas extras tinha-se soltado. Apoiando-se no que restava do Zodiac, descansou por um momento. Naquela caverna, não era um problema, o fungo oferecia iluminação suficiente, mas se tivessem de sair dali...?
Abanando a cabeça explorou o que restava do barco, descobriu o saco de desporto de Jason. Tocou no saco. Feito de material à prova de água. Aquela descoberta traria algum consolo ao rapaz. Soltou o nó e juntou o saco à sua carga de mantimentos. Com um último exame rápido, afastou-se da embarcação e avançou para a margem. Felizmente a costa rochosa estava próxima; ainda assim, quando lá chegou, os pulmões ardiam-lhe e sentia uma dor no braço esquerdo.
Lançou os artigos que reunira para a margem, depois seguiu-os, escorregando algumas vezes enquanto tentava subir. Por fim, depois de ter arranhado consideravelmente um joelho, conseguiu trepar para terra e levantar-se.
Estacou, fitando o colete salva-vidas vazio.
— Jason?
O rapaz desaparecera.
Linda esticou o braço e agarrou a mão que Khalid lhe oferecia, lutando contra uma onda de repulsa. Quando lhe tocou, quase puxou a mão, mas a mão dele seca e quente contra a sua segurou-a com firmeza. Com relutância deixou que ele a içasse sobre o último metro do desabamento. Arriscou olhar para trás, para a cascata de pedregulhos que tinham acabado de subir. Iluminada pelos omnipresentes fungos, o piso da caverna estava centenas de metros mais abaixo.
— Eu tinha razão — disse Khalid apontando para a falha na parede no topo do desabamento. Olha. É uma falha geológica. E sobe. — Ele virou-se para ela com um enorme sorriso. — Sente-lo? O vento?
Linda sentiu o suave roçar do ar sobre o rosto quando a falha puxou a brisa pela sua garganta escura, quase como se estivesse a tentar engoli-los, a corrente de ar assobiando pela passagem para longe deles.
— Parece promissor. — Ela obrigou os cantos dos lábios a erguerem-se.
Em resposta, o sorriso dele cresceu ainda mais. Linda ergueu os olhos para os dele, dois buracos negros sob aquela luz. Quando ele se virou, sentiu-se tentada a torcer a mão para se libertar e correr pela face rochosa abaixo. Mas os seus pés seguiram Khalid pela falha em forma de V que se abria na rocha.
Passados alguns metros, Khalid acendeu a luz do capacete. Naquelas paredes inclinadas não crescia fungo algum. O feixe de luz projetava-se para a frente, cortando a escuridão virgem. Linda soltou a sua própria lanterna do arnês, rodando-a até esta emitir uma luz difusa que banhava amplamente a rocha.
As paredes estendiam-se para ambos os lados, como asas de pedra. O teto bem acima das suas cabeças parecia feito de uma só pedra, inclinado e repousando precariamente no seu lugar. Tão frágil, parecia que até um ruído sonoro o poderia soltar, esmagando-os sob quilómetros de rocha.
— Acho que esta é uma formação relativamente nova — disse Khalid. — De um ponto de vista geológico, quero eu dizer. Talvez tenha cerca de mil anos. A rocha aqui — bateu na parede à sua direita — não está tão gasta pela água como a da caverna anterior. Repara como é afiada, como se tivesse sido cortada com uma faca. Esta fenda deve ter sido criada por um evento sísmico.
— Também não há fungos — balbuciou Linda.
— O quê?
Linda acenou com a luz para as paredes.
— Também não há fungos aqui. Acho que se fosse uma falha com um milhão de anos, o fungo também a teria invadido.
Khalid acenou com a cabeça.
— É verdade. — Ele tossiu, ainda ligeiramente congestionado devido ao ataque dos esporos.
— Temos de ter a certeza de que, onde quer que acampemos esta noite, não há fungos por perto. Ou, a existirem, tenho de os verificar primeiro — disse Linda. Tinha descoberto que falar parecia afastar o terror que lhe envolvia com força o coração. — Durante as pausas que fizemos para descansar, analisei várias amostras do fungo. Nem todas são iguais. Estou certa de que a maior parte deste fungo brilhante é seguro. A espécie predatória, contudo, tem hifas com uma estrutura distinta. Por isso temos de ter cuidado com ela.
— Claro. Temos de ser mais cautelosos. — Khalid virou-se para a frente.
Linda queria continuar a falar, manter-se distraída da ideia de que estava a seguir um assassino implacável.
— Como sabes tanto sobre geologia? Pensei que fosses um... — Quase disse «terrorista», mas deixou que a palavra lhe morresse na garganta.
— Esta missão foi-me atribuída há dois anos. Era importante que soubesse tanto de geologia quanto possível. Não só para me poder fazer passar pelo Khalid, mas também para compreender melhor o que pudesse descobrir aqui. Além disso, tive bastante tempo para estudar enquanto recuperava da cirurgia plástica.
— Cirurgia plástica?
Khalid ajudou-a a ultrapassar uma pedra caída.
— Já me parecia bastante com o Khalid original. Foi por isso que me escolheram. Mas os meus superiores são minuciosos. Queriam uma semelhança mais exata.
Linda fixou o olhar nas costas de Khalid enquanto este trepava à sua frente, começando a compreender a profundidade da sua motivação, do seu fanatismo.
— Qual é o teu nome verdadeiro?
— Há luz ali à frente — respondeu ele, ignorando a pergunta.
Linda colocou-se ao lado dele para poder olhar em frente, sentindo-se de súbito esperançosa. Talvez fosse uma saída? O túnel abria-se, tomando as dimensões de uma pequena caverna. O brilho emanava de uma curva para lá do túnel. A luz verde característica não deixava dúvidas do que os esperava.
— Fungos — disse ela, cansada.
Khalid acenou com a cabeça.
— Mas escuta.
Agora que ele o referia, também Linda conseguia ouvir. Um ribombar baixo. Reconheceu o som das visitas a casa do avô nos arredores da cidade do Quebeque.
— Parece uma queda de água.
— Sim, também acho. Mas está a fazer-se tarde. E com fungos mais à frente, devíamos acampar aqui. Podemos avançar pela manhã em direção à queda de água.
Linda acenou com a cabeça. Também ela não tinha qualquer desejo de rechaçar mais um ataque do bolor predatório, mas também temia aquele momento. Acampar. Passar a primeira noite com um homem que agora sabia ser um assassino. De súbito, um grito ecoou vindo do túnel à sua frente. Sobressaltada, Linda aproximou-se involuntariamente de Khalid. Alguém que chamava. Provinha de um ponto muito distante, mas era humano!
— Jason! Onde raio estás tu?
Bolas, pensou Jason, será que um rapaz já não pode ter um pouco de privacidade? Ajeitou a roupa e fechou as calças. Voltou a contornar a estalagmite, tornando-se visível.
— Só precisava de fazer xixi — disse ao doutor Blakely. — Tenho estado a aguentar o dia todo.
O cientista correu para junto dele, ainda a pingar da sua excursão no rio, as sobrancelhas unidas pela raiva.
— Nunca mais faças isso!
— O quê?
— Fugir assim.
— Eu só estava... — Jason apontou para o local onde se fora aliviar.
— Não quero saber. Há por aqui todo o tipo de perigos. — O rosto de Blakely relaxou, mas a sua respiração ainda estava entrecortada. — Escuta, Jason, precisamos de ter cuidado. Temos de nos manter juntos.
— Está bem. Eu não queria...
— Não faz mal. Agora deixa-me ver esse alto na tua cabeça.
Arrastando os pés, Jason aproximou-se do pequeno pedregulho e sentou-se. Com uma careta, deixou que Blakely lhe limpasse a ferida. Não foi muito mau quando ele lavou a ferida. Raios, até sabia bem. Relaxou, fechando os olhos. De súbito, a testa doeu-lhe como se estivesse a arder.
— Au!
— Oh, para de te mexer. É só um bocadinho de tintura de iodo.
— Arde.
— Isso é bom. Quer dizer que está a funcionar. — Blakely pôs um penso rápido sobre o corte. Depois recostou-se, parecendo admirar o seu trabalho. — Vamos ter de o mudar duas vezes por dia.
Jason revirou os olhos. Que bom.
Blakely avançou para vasculhar por entre as coisas que recuperara do barco.
— Tens fome?
— Não. Estou bem. A menos que haja uma daquelas tabletes de chocolate.
Blakely içou a caixa onde guardara a comida e abriu-a. Estendeu o braço e retirou do seu interior uma tablete envolta em papel de alumínio.
Os olhos de Jason abriram-se. Estendeu a mão.
Blakely partiu a tablete em quartos, depois entregou-lhe apenas uma secção.
— Vamos ter de racionar cautelosamente as nossas rações.
Jason aceitou a sua parte com um franzir de sobrolho. Meu, que porcaria.
— Então, como é que voltamos lá para cima?
— Não voltamos. Não temos lanternas.
— Então o que fazemos?
— Esperamos. Um dia ou assim. Alguém nos há de encontrar.
Jason sabia reconhecer uma mentira quando a ouvia, mas manteve a boca fechada. Blakely já tinha muito em que pensar, e Jason não queria ser um incómodo.
Recostando-se contra a pedra, reparou num saco vermelho familiar.
— Olha, o meu saco de desporto! Salvou-o! Obrigado! — Aproximando-se do saco, abriu-o e tateou o seu interior. Ainda lá estava!
Sacou da sua Nintendo e sentou-se sobre os calcanhares com um suspiro. Tocou no botão para o ligar e, em poucos segundos, a música familiar anunciou o jogo.
— Fixe!
Jason recostou-se contra a estalagmite e dedicou a sua atenção ao jogo. Pelo menos teria algo para fazer enquanto esperavam. Imerso no mundo da Nintendo, era quase como se estivesse de volta a casa. Por aquela altura, a mãe já costumava estar a queixar-se do barulho do gameboy. Suspirando, lançou a sua personagem para o Nível Doze.
— Jason, podes desligar isso? — disse Blakely, levantando-se. — O ruído.
Jason fez uma careta. Tal como a mãe. Afinal qual era o problema dos adultos?
— Por favor, Jason, depressa. — Havia na sua voz uma nota de urgência.
Jason desligou o jogo e levantou-se, aproximando-se mais de Blakely.
— O que...?
— Chiu! Pareceu-me ouvir alguma coisa.
Jason susteve a respiração, imaginando outra daquelas criaturas a aproximar-se deles. Colocou-se ainda mais atrás de Blakely. Esperaram durante vários segundos tensos. Era difícil ouvir com o som da queda de água a bater tão perto. Esforçar-se por apurar a audição com as águas revoltas tão perto começava a fazer-lhe zumbir os ouvidos. Engoliu, sentindo a boca seca. Era como uma daquelas miragens do deserto, mas com som. Esperava sinceramente que assim fosse.
Blakely abanou a cabeça.
— Não sei...
— Oláááá! — O chamamento ecoou pela câmara, fazendo-os saltar.
Blakely olhou para Jason.
— Anda aqui alguém! Nem acredito!
Jason ficou a observar enquanto Blakely trepava um pedregulho. Já com alguma idade, precisou de algumas tentativas para se içar. De um salto, Jason colocou-se ao seu lado.
— Quem lhe parece que é?
— Não sei, mas vamos descobrir. — Blakely colocou as mãos em concha à volta da boca e gritou. — Estamos aqui! Junto à queda de água!
Jason ficou à escuta de uma resposta. Nada durante vários segundos, depois uma resposta:
— Vamos a caminho! Não saiam daí!
— Eu disse-te que alguém nos iria encontrar. Eu disse-te. — A voz de Blakely soava subitamente exausta e ofegante, enquanto deslizava do pedregulho.
Jason observou o cientista deixar-se cair de joelhos ao lado da pedra. Havia algo de errado.
— Doutor Blakely! — Jason puxou-lhe pelo braço. O homem não respondeu.
O coração de Jason ficou preso na garganta. Olhou à sua volta, desesperado, com as mãos a tremer. Jason correu para o cimo do pedregulho e gritou para as sombras:
— Socorro!
Linda apressou-se a alcançar Khalid, a mochila pendurada num ombro. Começou a avançar pela câmara.
— Parecia o filho da Ashley.
Khalid resmungou e continuou a avançar pela câmara, apontando para o fundo da queda de água. Segurava a pistola na mão esquerda.
— Se é o Jason — acabou por dizer —, então devemos estar perto da base. Blakely não permitiria que o rapaz de afastasse muito da segurança do campo.
Linda fitou a arma.
— Que vais fazer?
— Completar a minha missão.
— Que quer isso dizer?
— Depende de ti.
Linda engoliu em seco.
— Escuta, Khalid, não quero que mates mais ninguém.
Os olhos dele ficaram ensombrados sob as sobrancelhas pesadas.
— Então mantém a boca fechada. Desde que nada saibam da missão, poupá-los-ei.
Lembrou-se do homicídio de Villanueva, de forma tão súbita e desnecessária.
— Não direi uma palavra.
Khalid acenou e estugou de novo o passo. Depois de percorrer alguns metros, apontou para a frente.
— Ali. Em cima daquela rocha. Consigo vê-lo. É o rapaz.
Linda semicerrou os olhos. Havia pedregulhos por todo o lado. Depois viu a figura minúscula a agitar os braços. Gritou-lhe:
— Aguenta, Jason! Vamos a caminho!
Jason viu-os. Duas pessoas de capacete; as suas lanternas cintilavam na câmara iluminada pelos fungos. Tinham-no visto. Alguém gritara, falando consigo, mas a som da queda de água afogou as palavras. Contudo, isso não era importante. O importante é que estavam a caminho.
Desceu de cima da pedra para ver como estava Blakely. A cor fugira-lhe, os lábios estavam roxos. Continuava a respirar, mas cada inalação restolhava, como se tivesse o peito cheio de pedrinhas.
Jason pôs os braços à volta do corpo, saltando de um pé para o outro.
— Vá lá, doutor, não morra. A ajuda vem a caminho. — Virou-se na direção dos seus salvadores. Depressa, rezou.
Sentou-se ao lado de Blakely, pegando numa das suas mãos. Tão fria, pensou. Esfregou a mão, qual Aladino com a lâmpada mágica, desejando que o cientista ficasse melhor. Como que em resposta ao seu desejo, um gemido escapou dos lábios do homem. Jason esfregou com mais força, depois saltou para o outro lado e esfregou o punho e a mão esquerdos.
— Vá lá, doutor, vá lá.
As pálpebras de Blakely bateram, abrindo-se, as pupilas tortas, depois os olhos recuperaram o foco. Emitiu mais um ruído sonoro, depois limitou-se a respirar com dificuldade. Por fim, falou:
— J-jason?
— Está bem?
Os lábios de Blakely estavam tensos de dor, enquanto sussurrava.
— O m-meu r-remédio. Nitro... nitroglicerina.
Jason olhou à sua volta.
— Onde?
Blakely levantou a mão, mas deixou-a cair, flacidamente.
— N-no m-meu bolso. Dentro... do casaco.
Jason apalpou as roupas de Blakely e descobriu um alto revelador no bolso interior do peito. Pescou um pequeno frasquinho vermelho.
— É isto?
— S-sim.
— Que faço?
— Um... não, dois comprimidos.
Demorou um minuto a conseguir tirar a tampa do frasco com segurança para crianças. Pôs dois comprimidos na palma a mão e depois inclinou-se sobre o peito de Blakely.
Os olhos do cientista voltaram a abrir-se.
— Belo rapaz. — A voz soava fantasmagórica. Quase como um boneco de ventríloquo, cuja voz se encontrasse a quilómetros de distância. — D-debaixo da língua.
Jason esticou o braço e deixou cair os dois comprimidos para a boca de Blakely. Observou enquanto este movia os comprimidos de um lado para o outro. Depois fechou os olhos e respirou fundo várias vezes.
Deixando cair a cabeça de alívio, Jason agradeceu a quem quer que os estivesse a guardar.
Nesse preciso instante, uma voz soou diretamente por cima dele, levando-o a saltar de susto.
— Jason? Meu Deus, que aconteceu?
Jason girou sobre si mesmo e fitou um rosto familiar. Tinha o cabelo pegajoso da lama e círculos negros à volta dos olhos, mas ainda assim era uma visão encantadora.
— Linda! — Levantou-se com um salto e correu para os seus braços.
Ela abraçou-o com força e as lágrimas começaram a correr dos olhos dele. O rapaz chorou contra a camisa dela toda a dor e terror daqueles dois dias, libertados numa só torrente.
— Oh, Jason. — Linda embalou-o nos seus braços. — Estás bem.
Ele continuou a chorar, sabendo que devia parar, mas descobrindo-se incapaz de o fazer. Deixou que ela o abraçasse e embalasse. O corpo agitado por soluços. Nunca mais queria deixar os seus braços.
Uma voz com sotaque interrompeu-os.
Jason abriu um olho e viu uma pistola de aço azul nas mãos do egípcio. Ficou hirto nos braços de Linda.
— Então que raio aconteceu aqui? — perguntou Khalid.
Livro Quatro
Tambores e Morte
CAPÍTULO 21
Face ao grito de pânico de Ashley, a pressão peluda sobre o seu tornozelo aumentou, como um torno que se aperta. Mas que diabo! Saltou para o lado, puxando a perna, e libertou-se do seu atacante. Chocou contra Ben, fazendo-o deixar cair, acidentalmente, a arma. Um tiro ressoou quando a pistola disparou, lançando o projétil na direção do teto distante, um desperdício de uma bala preciosa.
— Credo, mulher! — vociferou Ben, empurrando-a para trás de si, os olhos ainda colados à matilha de criaturas semelhantes a lobos, que se babavam ao mesmo tempo que raspavam o chão.
— Está qualquer coisa no wormhole. Agarrou-me.
Ben lançou um olhar rápido para o buraco. Não estava lá nada.
— Não vejo nada... Deus me livre! — Foi a vez de Ben saltar para longe do wormhole quando algo gatinhou para o exterior da passagem. — Merda!
Ashley pensou, inicialmente, que se tratava de uma criança pequena e suja, nua e coberta de imundice. Mas quando se endireitou e virou para ela, soube que estava muito enganada. Recuou mais um passo.
Tinha cerca de um metro e vinte de altura, atarracado e nu e, pelos genitais expostos, era óbvio que se tratava de um macho. O cabelo preto e enlameado estava afastado do rosto, preso com uma fita de pele, e o peito e as pernas cobertos de pelo sujo e áspero.
A primeira ideia de Ashley foi que estariam perante um hominídeo ou um proto-humano. Talvez um qualquer tipo de neandertal anão. Vários aspetos apoiavam a sua suposição: o espesso sobrolho ósseo que se projetava sobre os olhos enormes, o nariz largo e forte, que farejava na sua direção, o maxilar protuberante e os ossos dos maxilares que criavam um semblante embotado, parecido com um focinho.
Ashley, contudo, tinha estudado o registo fóssil de todas as espécies de hominídeos e proto-humanos. E aquele espécime vivo (e malcheiroso) não era conforme a nenhuma delas. O mais próximo seria a espécie australopitecínea, mas aquela criatura era muito diferente. O corpo, embora muito musculados, não era tão atarracado como o dos primeiros hominídeos, e o pescoço era demasiado comprido e esguio. Também as orelhas eram espantosas: ligeiramente peludas e pontiagudas, rodavam para trás e para a frente, desconfiadas. Nenhum daqueles aspetos correspondia ao registo fóssil de quaisquer proto-humanos antigos!
De súbito a criatura avançou na sua direção.
Ben ergueu a arma.
Fitando a pistola, a criatura abriu a boca, expondo as curtas presas, depois virou costas e acenou com um braço musculado na direção da matilha de animais e grunhiu na sua direção «unkh! unkh!». Como uma equipa treinada com precisão, giraram todos sobre uma pata e desapareceram de novo no campo. Ele virou-se para Ben, cruzando os braços.
Ben baixou a arma. Falou pelo canto da boca:
— Que pensas disto, Ash?
— Não tenho a certeza — disse ela com espanto na voz. — Mas acho que acabámos de conhecer um dos nossos habitantes das grutas.
Uma das orelhas da criatura rodou para longe deles. Parecia estar à escuta, fechando ao de leve as pálpebras. Depois de vários segundos, as pálpebras abriram-se de repente. Deu meia-volta e começou a afastar-se com um andar bamboleante.
Ashley observou-o, mortinha por deslizar uma mão pela sua estrutura pélvica. Também esta não parecia estar certa, não correspondendo a nenhuma das espécies de hominídeos. Quem era aquela criatura? O que era?
A criatura afastou-se vários metros, depois parou e virou-se para eles. Voltou a cruzar os braços. À espera.
— Acho que quer que o sigamos — disse Ashley, dando um passo em frente.
Ben tocou-lhe no cotovelo, impedindo-a de continuar.
— Não sabemos para onde diabo nos está a levar — sussurrou. — Tanto quanto sabemos, podemos fazer parte do menu do jantar desta noite. — Ben ergueu a voz, chamando a figura que os esperava. — Espera aí, meu amigo peludo. Para onde vamos?
A criatura olhou de relance para Ben, depois voltou-se e afastou-se.
Ashley fitou a figura que se afastava. Tinha de descobrir mais acerca daquelas criaturas. Decidindo que nada tinha a perder, começou a segui-lo, chamando por cima do ombro:
— Acho que é seguro, Ben. Ele podia ter deixado que aquelas criaturas parecidas com lobos nos atacassem, se nos quisesse fazer mal.
Ben abanou a cabeça, mas seguiu-a cautelosamente.
Mantendo-se vários metros atrás do seu guia, foram conduzidos para um caminho estreito no campo de vegetação amarela. Antes de avançar pelo caminho, a criatura retirou de um cinto, a única peça que tinha sobre ele, um punhal comprido, cuja lâmina era um comprido pedaço de cristal. Era diamante!
Ben pôs um braço protetor à frente do peito de Ashley, claramente preocupado com a possibilidade de que o guia estivesse prestes a atacá-los.
— Dogaomarubi — disse o guia, como se se explicasse, erguendo a faca.
Ben acenou com a cabeça.
— Pois, pois. Como queiras, pequenote. Guarda só essa coisinha que espeta nas calças.
— Meu Deus — disse Ashley —, está a tentar falar connosco. Comunicação verbal! É incrível.
A criatura deu meia-volta e conduziu-os para os campos amarelos. As sementes, semelhantes a grãos de cereais, na ponta da vegetação de caule resistente agitavam-se por cima da cabeça do seu guia, ao passo que chegavam apenas a meio do peito de Ashley. Ela teve de abrir caminho pelo trilho estreito, os seus ombros forçando a barreira de vegetação de ambos os lados, ao mesmo tempo que o guia parecia deslizar pelo caminho sem perturbar um só caule. Ashley sentia-se como um elefante pesado. Passada uma hora, tropeçava mais do que abria caminho ao longo do campo.
Ben seguia-a, gemendo com o esforço de avançar pela vegetação densa.
— Como gostaria de ter aqui um machete — disse, bufando.
— Ou um quatro por quatro — acrescentou Ashley. — Preciso de descansar.
Como em resposta às suas preces, surgiu uma clareira no campo à frente. Um pequeno riacho cruzava o caminho, vadeável por meio de uma ponte de pedra. O guia esperou na base da ponte, sentado numa pedra, de punhal na mão.
— Dogaomarubi — repetiu. Apontou para duas pedras lisas.
Ashley olhou para Ben, confusa. Ben olhou para o guia.
Ela observou enquanto o guia, por meio de gestos, lhes dizia que se sentassem.
— Dogaomarubi — disse em tom mais assertivo.
— Ele quer que nos sentemos — disse, avançando para uma pedra e tirando a mochila das costas. — Dogaomarubi deve significar pausa para repousar.
Ben sentou-se numa pedra próxima, largando a mochila com um suspiro.
— Já não era sem tempo.
A criatura avançou para Ben e ofereceu-lhe o punhal.
Ben aceitou-o.
— Obrigado... acho eu. — Virou-se para Ashley. — Então, isto é um presente? Tenho de lhe dar algo em troca?
— Não sei. As culturas variam. Por vezes, é um insulto oferecer um presente em troca de outro.
— Então o que faço? Ele quer que eu faça alguma coisa com isto? Corte a palma da mão? Nos torne irmãos de sangue?
Ashley encolheu os ombros.
O guia fitou-os enquanto conversavam com as orelhas a moverem-se para trás e para a frente enquanto falavam. Por fim, resmungou ruidosamente e avançou, arrancando a faca das mãos de Ben. Ajoelhou-se ao lado de Ben e puxou-lhe para cima a perna das calças.
Ben começou por afastar a perna — depois estacou.
Ashley viu o mesmo e arquejou.
— Que é isso? — Avançou para examinar mais de perto, curvando-se ao lado de Ben. Uma lesma preta do tamanho da palma da sua mão estava presa à coxa. Enquanto observava, o seu corpo estremeceu numa onda de carne ondulante; cresceu mais alguns milímetros.
O guia avançou com a faca e retirou habilmente a criatura da perna de Ben. As suas ventosas mantiveram-se teimosamente presas na pele de Ben, depois soltaram-se. Dois pequenos círculos cor-de-rosa, com furos do tamanho de alfinetes no centro, marcavam a perna de Ben no local onde a criatura estivera presa. Duas gotas de sangue deslizaram-lhe das punções.
— Malditas sanguessugas! — exclamou Ben, sentindo um arrepio a percorrê-lo. Levantou-se e tirou as calças, o rosto contorcido num esgar de nojo. Tinha mais cinco parasitas parecidos com sanguessugas presos ao corpo.
Com uma careta, Ashley apercebeu-se de que um deles tinha subido até à nádega direita de Ben. Olhou de relance para as próprias calças. De súbito sentia milhares de criaturas escamosas a trepar-lhe pelas pernas. Sabendo que era apenas imaginação sua, não deixou de desapertar rapidamente o cinto e deixar cair as calças.
Sustendo a respiração, baixou os olhos. Tinha duas manchas pretas na sua coxa esquerda e uma na direita. Merda! Não havia como saber que tipo de doenças aquelas lesmas poderiam transmitir.
Ben, que se erguia nu da cintura para baixo, parecia verde quando o último parasita foi extraído. Tendo terminado, o guia aproximou-se dela com a faca.
— Eu posso fazer isso sozinha — disse ela, estendendo a mão para receber a faca.
O guia olhou de relance para a mão dela, depois para o rosto. Ashley esticou ainda mais a mão, num gesto insistente. Ele fez uma pausa e pareceu compreender... até acenou com a cabeça! Pousou o cabo da faca na mão dela.
Malditas sanguessugas! Ashley usou a ponta da faca para soltar a ventosa posterior, depois ergueu o tronco do parasita com a faca, até chegar à ventosa anterior. Foi preciso um esforço maior para soltar a última ventosa. Transportando a sanguessuga sobre a faca de diamante, lançou-a ao riacho como o guia fizera. Em seguida, tratou das outras duas.
Uma vez raspada a última, o seu corpo negro equilibrado ainda na faca, o guia pegou cuidadosamente na sanguessuga. Apontou para ela.
— Dogaomarubi! — disse, depois lançou o parasita ao riacho.
Ben apertou as calças.
— Não me parece que dogaomarubi signifique «pausa para descansar». Acho que significa «maldita sanguessuga de terra».
Voltando a colocar a mochila aos ombros, Ashley acenou com a cabeça.
— Reparaste que não destruiu os parasitas. Teve cuidado ao soltá-los. E cuidado ao libertá-los. Vi um deles na água. Inchou com a água, depois regressou aos campos.
— Sim e depois?
— Acho que são usados na manutenção dos campos. Como os agricultores usam as abelhas. Usam as sanguessugas como uma qualquer forma de irrigação. Uma ferramenta biológica.
Ben estremeceu.
— Pois, mas as abelhas não bebem o nosso sangue — resmungou.
Ashley revirou os olhos e seguiu o guia para o outro lado da ponte e de novo para os campos. Passada uma hora, uma manada de criaturas pesadas tornou-se visível ao longe, aparentemente a pastar. Erguiam as cabeças quadradas sobre pescoços curtos para os fitarem enquanto passavam.
— Parecem-se um pouco com cangurus sob o efeito de esteroides — disse Ben.
— Turituri — disse o guia, apontando para os animais.
Ashley acenou com a cabeça, impressionada com a evolução do ecossistema naquele local. O fitoplâncton e os gases vulcânicos como fonte de energia base haviam desencadeado uma cadeia alimentar baseada em fungos e micro-organismos. O sistema era, sem dúvida, incrivelmente frágil, exigindo uma manipulação constante para se manter. Como aquelas sanguessugas, cada organismo desempenhava um papel na fortificação e proteção do ambiente.
Fitou as costas do guia. Que nível de inteligência exigiria aquele ecossistema para se autossustentar? O mero acaso não permitiria que um ambiente tão rico e variado florescesse.
Enquanto prosseguiam, um bando de pássaros ergueu-se no ar não muito longe. Rápido como um relâmpago, o guia agarrou numa fisga e lançou uma pedra aos pássaros, fazendo um deles cair dos céus. Correu através do campo para recuperar a sua presa, regressando pouco depois com o pássaro preso ao cinto. Ashley fitou a presa. Sem penas. O que lhe parecera um pássaro era um lagarto alado.
Ben também fitava o «pássaro».
— Espero que esse não seja o nosso jantar.
— Provavelmente sabe a galinha — disse, puxando-o atrás de si.
O guia parou poucos metros à sua frente e agachou-se. Ashley seguiu o seu exemplo e baixou-se, temendo que um predador pudesse estar próximo. Analisou cautelosamente a savana.
— Que foi? — perguntou Ben, aproximando-se dela e agachando-se também. Ashley olhou de relance na direção do guia. Este agachara-se a um metro de distância e defecava ao lado do trilho. Ashley estava sem palavras.
Ben, não.
— Não são propriamente uns tipos reservados, pois não?
O seu guia terminou e limpou-se com uma folha apanhada no campo. Depois deu meia-volta e usou a mesma folha para apanhar as fezes e guardá-las numa pequena bolsa que trazia presa ao cinto.
— E asseadinhos — disse Ben.
Ashley abanou a cabeça.
— Conservação.
— O quê?
— A energia deste ecossistema é limitada. Tudo tem de ser usado. Para que este sistema frágil sobreviva, nada pode ser desperdiçado.
— Ainda assim... lembra-me para não lhe apertar a mão.
O guia prosseguiu caminho, quase sem olhar para trás. Ashley seguiu-o.
Depois de mais duas horas de viagem e mais duas paragens para remover as sanguessugas, Ashley arrastava-se a passo de caracol, encharcada em suor, toda a sua anatomia arranhada e picada.
O guia virou-se para ela.
— Daga mond carofi — disse, os olhos de pupilas rasgadas semicerrados de preocupação.
Ashley abanou a cabeça sem compreender. Desapertou o cantil e bebeu.
Ele apontou para a parede distante; o caminho virava agora nessa direção.
— Carofi!
Ashley limpou a testa e semicerrou os olhos, virando-se para onde ele apontava. Quase indiscerníveis das sombras na parede mais distante, estava um padrão de pontos negros, organizados em filas e níveis. Reconheceu o padrão, semelhante ao agrupamento de casas na Caverna Alfa. Mesmo de tão longe, conseguia ver bastante movimento. Pequenas figuras que se moviam por entre as habitações.
— Meu Deus, Ben. Olha! Uma aldeia! — disse Ashley, virando-se para ele.
Puxando pela orelha direita, Ben exibia uma expressão estranha, uma mistura de surpresa e medo.
— Ouves...? Um zumbido...? — Os olhos dele reviraram-se, revelando a parte branca dos olhos.
— Ben?
Ele começou a vacilar um pouco, balançando, depois caiu no campo.
Ben lutava com a escuridão. Conseguia ouvir Ashley chamá-lo, mas era como se estivesse no fundo de um poço profundo, tão longe, a desaparecer. A escuridão engoliu-o ainda mais.
Sentiu que lhe abanavam o ombro, primeiro ternamente, depois com mais urgência. Os olhos de Ben abriram-se. O avô voltou a abaná-lo.
— Benny, meu rapaz, não há tempo para sestas. Precisamos de ti de pé e a andar de um lado para o outro.
Outra vez, não, pensou, enquanto olhava à sua volta para a caverna familiar. Os troncos de pedra, que ofereciam frutos vermelhos e carnudos, rodeavam-no. Estava a sonhar. Mas como? O avô estava nu, com exceção de um pano de linho, e o peito estava pintado com as cores primárias.
— Que queres? — perguntou.
— Vem. Segue-me. — O avô levantou-se e apontou para uma abertura na caverna com uma estrela desenhada por cima da porta. — Por aqui. — O falecido avô avançou para a abertura e trepou para o interior.
Ben tentou segui-lo, mas constatou que não conseguia sentar-se. Estava paralisado.
— Não me consigo mexer! — gritou.
Só uma voz na caverna lhe respondeu.
— Vem quando conseguires. És uno connosco!
A escuridão voltou a engoli-lo de novo. Tentou afastá-la, conseguindo-o desta vez. A luz explodia à sua volta, e deu por si a fitar o rosto preocupado de Ashley.
— Ben? — perguntou ela. — Que aconteceu?
— Não sei. — Sentou-se direito. — Não sei.
Enquanto se aproximavam do acampamento, Ashley ergueu os olhos, de boca aberta. Tentou contar o número de habitações abertas na parede, mas perdeu a concentração depois das cem. O aglomerado de casas apertava-se num declive rendilhado com cerca de um quilómetro de comprimento, formando um anfiteatro natural. Os vários níveis de casas subiam uns vinte andares, com escadas esculpidas na pedra unindo cada patamar ao seguinte, espessas cordas e roldanas rudimentares estendidas em frente ao penhasco em várias localizações.
Aquelas habitações escavadas na rocha, embora semelhantes às que tinham sido encontradas na Caverna Alfa, não correspondiam às habitações austeras e espartanas que aí tinham encontrado. Pelo contrário, haviam sido transformadas em casas de aspeto confortável. As paredes estavam enfeitadas com tecelagens de várias cores; as entradas cobertas com cobertores de desenhos intrincados; estandartes urdidos pendiam de vários níveis, retratando animais estranhos e caçadas complexas. Louça de pedra, pintada de amarelo, vermelho e azul pontilhava muitos dos patamares.
Ben estendeu o braço e pegou na mão dela, ao mesmo tempo que emergiam dos campos amarelos e avançavam para o anfiteatro das casas. Apertando a mão de Ben, Ashley apercebeu-se de que o chão de pedra tinha sido polido até a sua superfície ficar quase lisa; se tal se devia a anos de trabalho árduo ou, simplesmente, a séculos de passagem constante, não sabia ao certo.
Seguiu o guia através de uma multidão cada vez maior. Alguns mantinham-se afastados, fitando-os com um espanto que lhes arregalava os olhos, outros aproximavam-se para lhe tocar ao de leve num braço ou puxar pela roupa. Ashley fitou os penhascos que os rodeavam. Pequenas mãos afastavam os cobertores para poderem espreitar. As escadas talhadas na pedra, entre patamares, estavam apinhadas com milhares de rostos curiosos que fitavam de cima. Um pequeno número de crianças corria por entre as pernas dos pais.
Estavam todos nus, como o seu guia. Embora alguns se adornassem com diversos colares rudimentares e alguns envergassem chapéus de junco entretecidos. Um grupo do sexo masculino, todos com cabelo negro como carvão, tinha uma espécie de osso afiado a atravessar-lhe o nariz.
O guia parou e ajoelhou-se na pedra, de cabeça baixa, à espera.
Ashley e Ben erguiam-se atrás dele. Uma adulta do sexo feminino captou a atenção de Ashley. Embora a diferença na quantidade de pelo em relação ao guia fosse pouca, os seus seios pendulares estavam nus, com amplos mamilos bronzeados, que desciam até à barriga proeminente.
Exibia todos os sinais da gravidez. Ashley estava prestes a virar o rosto quando um movimento súbito lhe chamou a atenção. Uma mão minúscula emergiu da elevação na barriga da fêmea; esticou-se e agarrou uma mão cheia de pelo por baixo de um seio. Usando aquele apoio, uma criança pequena, cor-de-rosa e sem pelo, içou-se da barriga e começou a mamar. A mãe parecia não se aperceber de nada, continuando a fitar Ashley. Esta semicerrou os olhos, fascinada. A criança, nervosa com a confusão à sua volta, desceu mais uma vez para o seu esconderijo. Para uma bolsa!
— Olha, Ben! — disse Ashley. As palavras levaram os espectadores a recuar um passo. — Aquela mãe ali. Transporta uma criança num bolsa.
— Sim, e depois? Viste aqueles guardas à entrada armados de lanças e com aquelas criaturas que parecem lobos pela trela? Se queremos sair daqui, não vai ser fácil.
— Não quero saber. Não vou sair daqui enquanto não me levarem a espernear e a gritar. Há demasiado para estudar. Fazes ideia do que isto significa? — disse, apontando na direção da fêmea.
— O quê?
— Só os marsupiais transportam os filhos nas bolsas. Estas criaturas devem ter evoluído tendo por origem marsupiais!
— Excelente, fomos capturados por um bando de cangurus.
Ashley ignorou o comentário, continuando a pensar em voz alta.
— Os predadores enormes que nos atacaram também eram uma espécie marsupial primitiva. É como se todos os nichos ambientais deste ecossistema tivessem sido preenchidos com diversas espécies de marsupiais. Mas como? Como é que aqui chegaram? Como é que sobreviveram?
Ben encolheu os ombros.
— Quer dizer, pensa nisso, Ben. Desenvolveu-se aqui todo um ecossistema de marsupiais, separado da concorrência e da intromissão dos mamíferos. Nestas grutas, a evolução seguiu um caminho completamente diferente.
Nesse preciso instante, o silêncio abateu-se sobre a multidão sussurrante. Silêncio absoluto. Ben tocou-lhe ao de leve e apontou com a cabeça para a frente.
Uma criatura enorme emergiu da entrada da residência maior. Tinha o cabelo preto, mas a sua barba estava já salpicada de cinzento, os olhos eram de um amarelo tão rico que quase cintilavam. A criatura era mais alta do que o guia, os seus ombros largos e musculosos. Transportava na mão direita um cajado mais alto do que ele, encimado por um rubi do tamanho de uma toranja.
O guia ergueu a cabeça pela primeira vez e começou a falar rapidamente. O outro, claramente o líder da comunidade, emitia uma palavra aqui e ali. Ashley observou o diálogo, curiosa com o que poderia estar a ser dito. O guia emitiu um último rugido e baixou a testa até ao chão de pedra à sua frente.
O líder virou-se finalmente para eles, fitando primeiro Ashley e depois Ben. Pareceu estudá-los, coçando distraidamente a barriga. Vociferou-lhes qualquer coisa. Embora ininteligíveis para Ashley, as suas palavras levaram a multidão a arquejar e a afastar-se deles. Alguns até correram para longe, escondendo-se atrás de panos.
Ashley virou-se para Ben.
Este encolheu os ombros, depois sussurrou.
— Não creio que isto seja bom.
O líder bateu com o pau na pedra e virou-se.
Nesse preciso momento, uma figura vacilante, de cabelo cinzento áspero, emergiu de uma caverna vizinha. Movia-se com tal lentidão e cuidado, que Ashley se sentia segura de que ouvia ranger os seus ossos. Como o líder, também ele transportava consigo um cajado, mas, ao contrário do líder, precisava dele, apoiando-se pesadamente no bordão a cada passo. Além disso, em vez de um rubi, o seu cajado era encimado por um diamante em forma de pera.
Ashley reparou, quando se aproximou, que o seu peito estava pintado com um desenho de vermelhos e amarelos.
Ben começou a remexer-se ao seu lado.
— Devo estar a enlouquecer.
— Chiu! — disse ela. — Não me parece que seja boa educação falar.
O ancião olhou para ela. Embora o seu corpo fosse obviamente velho e decrépito, os seus olhos mostravam uma inteligência arguta, revelando uma mente ágil. Virou-se para Ben e acenou para ele, depois começou a falar com o líder.
Ben recuou um passo.
— Ash, já vi aquele desenho antes. Aquela pintura no peito do velhote.
— O quê? Onde? — sussurrou ela.
Ele engoliu em seco. Uma ponta de medo gelava-lhe a voz.
— Num... sonho. Pintado... no meu falecido avô.
Ashley pegou na mão dele.
— Escuta, haveremos de deslindar isso mais tarde. Agora, precisamos de descobrir o que tencionam fazer connosco.
Embora estivessem a sussurrar, a discussão entre o ancião e o líder tornara-se veemente. As suas vozes erguiam-se agora, pontuadas pelo bater dos seus cajados. Por fim, o líder expôs os dentes e bateu com o cajado no joelho, partindo-o ao meio, e saiu de rompante.
— Então e agora? — perguntou Ben.
O ancião virou-se para os fitar e apontou com o cajado na sua direção. Pronunciou apenas uma palavra:
— Morte.
CAPÍTULO 22
A exaustão afastou Michaelson da sua vigilância do túnel no exterior do seu minúsculo refúgio. Tinham passado horas desde a partida de Ashley e Ben, deixando-o sozinho. Esforçou-se por ouvir um qualquer sinal dos seus perseguidores. Nada. O silêncio exercia pressão como um peso físico contra os tímpanos.
Suspirou. Pelo menos o latejar do tornozelo diminuíra para um protesto difuso. Mais cedo ou mais tarde, teria de ajustar a tala do tornozelo, mas estava demasiado cansado para o fazer naquele momento. Fechou os olhos para se poder concentrar com menos distrações. Ainda assim, não ouvia senão silêncio e mais silêncio.
Deixou escapar um bocejo, e a cabeça tombou sobre o peito. Abanou a cabeça, sabendo que tinha de permanecer alerta.
Olhou para o corredor. Continuava vazio. Passados vários minutos, como sóis que se afundavam, as suas pálpebras começaram a descer de novo. A respiração tornou-se mais profunda. Estava suspenso numa neblina difusa entre o sonho e a realidade.
Foi então que algo lhe tocou na mão.
As suas pálpebras abriram-se de repente e lançou a cabeça para trás, quase partindo o crânio contra a parede. Lançou a mão à arma, desajeitadamente e apontou-a a um homem que envergava um andrajoso uniforme de Marine, as mangas rasgadas pelos ombros. Era impossível. Pestanejou algumas vezes. Ainda devia estar a sonhar, pensou. Mas a figura persistia, sorrindo-lhe.
Michaelson fitou os olhos do irmão há tanto perdido.
— Harry? Meu Deus! Estás vivo!
O irmão afastou o cano da arma de Michaelson com a ponta do dedo.
— Não se puxares esse gatilho — disse Harry, um sorriso cansado estampado no rosto.
Michaelson atirou a arma para o lado e, ignorando o protesto do tornozelo, ergueu-se de um salto e agarrou o irmão num abraço apertado. Refreou as lágrimas, rezando para que não se tratasse de uma alucinação, mas as gargalhadas divertidas do irmão não eram as de uma invenção. Ele era real.
— Graças a Deus, graças a Deus, graças a Deus — entoou Michaelson contra o ombro de Harry.
— Irmão, fizeste-nos correr bastante — disse Harry quebrando o abraço e deslizando a mão pelo cabelo preto num tique familiar.
Sorrindo, Michaelson apercebeu-se de que há anos que não via aquele gesto. Há décadas que o cabelo de Harry não era mais comprido do que corte militar à escovinha. Os meses que ali passara tinham permitido que o cabelo de Harry voltasse a crescer, e o gesto, como um velho amigo, regressara.
A voz de Michaelson prendia-se-lhe na garganta. Quase tomou de novo o irmão nos braços, mas depois apercebeu-se da cicatriz que lhe corria a todo o comprimento do braço direito. Ainda estava rosada e saliente, era algo recente. Esticou o braço e tocou-lhe.
— Que aconteceu?
O rosto de Harry ficou sério. Michaelson apercebia-se agora dos círculos sob os olhos azuis do irmão. Um olhar atormentado. Estudou mais atentamente o irmão. Tinha perdido peso; o que restava do seu uniforme pendia, largo.
— É uma longa história — disse Harry.
— Bem, acho que temos tempo.
— Não, na verdade não temos. Precisamos de nos apressar. Os crak’an estão perto.
— Os quem?
— Aqueles monstros. — Harry acenou-lhe para que o seguisse. — Junta o teu equipamento, soldado, vamos pôr-nos a andar.
Michaelson atirou-lhe a arma e subiu para a alcova para recolher a mochila e o cantil. Quando voltou a sair, reparou que o irmão verificava a arma com um sorriso de apreço.
Harry devolveu-lhe a arma com relutância.
— Bela ferramenta. Tinha-me dado jeito este tipo de poder de fogo quando estava a escoltar os cientistas. Talvez assim... — Parou de falar, uma expressão feroz a marcar-lhe os lábios.
Michaelson aproximou-se das costas do irmão, pousando-lhe uma mão no ombro, esperando ainda que ele se desvanecesse numa nuvem de fumo, como um espírito brincalhão que o provocasse com a imagem do irmão. Apercebeu-se de que as mãos do irmão estavam vazias. Como teria ele sobrevivido ali em baixo sem uma arma?
— Tenho outra arma na mochila... — começou a dizer.
— Não preciso. Tenho amigos.
Amigos? Michaelson fitou a passagem vazia, mudando a mochila de ombro. De quem estaria Harry a falar?
O irmão rosnou algo que lhe enviou um arrepio pelas costas, meio uivo, meio gemido, inumano. Baixo, mas penetrante.
Michaelson fitou as costas do irmão enquanto este uivava. Teria o irmão enlouquecido durante o seu isolamento?
Harry virou-se para ele, a sua expressão séria.
— Não dispares contra eles.
— De quem estás tu a falar...? — As paredes mais ao fundo da passagem moveram-se. Pequenas figuras camufladas contra a rocha avançaram, as facas e as lanças cintilavam sob a luz esverdeada do bolor.
Michaelson ouviu uma pedrinha mover-se atrás dele. Olhando de relance à sua volta, viu mais figuras que se aproximavam da retaguarda.
— Harry?
— São amigos. Salvaram-me a vida.
Uma das criaturas separou-se das restantes e aproximou-se. Os olhos estavam fixos em Michaelson à medida que se aproximava de Harry. Michaelson apertou a arma com força. A criatura, nua, tinha apenas um metro e vinte de altura, mas os seus músculos eram fortes, como os de um cão de corrida. O cabelo desgrenhado, cor de areia, estava preso com uma faixa vermelho-sangue. Os seus olhos grandes observavam Michaelson da cabeça aos pés, enquanto as orelhas proeminentes giravam em todas as direções como os pratos de um radar.
Enquanto a pequena figura se aproximava, Michaelson avaliou o calibre do armamento. Uma comprida faca com uma lâmina grosseira e cristalina estava presa em redor da cintura nua, e na mão, com quatro dedos, segurava uma lança comprida.
Enquanto Michaelson observava, a criatura aproximou-se de Harry e entregou-lhe a lança. Depois recuou.
— Quem são...? Não, o que são eles?
— Chamam a si mesmos mimi’swee.
Um deles passou a correr por trás de Michaelson, sobressaltando-o, e avançou até Harry. Apontou para trás deles.
— Doda fer’ago — disse. — Doda crak’an!
Harry olhou de relance para Michaelson.
— Ele diz que temos companhia. Apanharam o nosso cheiro e estão a aproximar-se. Está na hora de nos pormos a andar.
Um rugido irrompeu atrás deles. Um segundo e um terceiro responderam-lhe, vindos de todo o lado. Estavam a ser encurralados.
Michaelson pensou em Ashley e Ben, perdidos no labirinto de túneis. Avançou para junto de Harry.
— Escuta, tenho amigos, e...
— Eu sei. Uma pequena equipa dos meus amigos foi enviada atrás deles. — Apontou para a frente com o polegar. — Os teus amigos foram conduzidos para um lugar seguro.
— Onde?
Uma segunda vaga de rugidos ecoou através dos túneis.
— Vou mostrar-te. Anda antes que nos tornemos o jantar de alguém.
Michaelson manteve-se perto do irmão. As figuras minúsculas corriam à sua volta, algumas delas ultrapassaram-no e correram à frente, enquanto outras se apressavam em sentido oposto para verificar o caminho. O major esforçou-se por acompanhá-los, mordendo o lábio inferior, mas o tornozelo dorido em breve começou a latejar em sinal de protesto. O fosso entre ele e o irmão começou a crescer.
Harry abrandou e agarrou no braço de Michaelson e passou-o sobre o seu próprio ombro, apoiando o seu lado lesionado. Por aquela altura, apenas duas ou três daquelas pequenas criaturas se mantinham atrás deles, protegendo a retaguarda.
— Não te vou deixar para trás, Dennis.
— Estou a abrandar-te. Não vim até aqui para fazer com que morras.
— Cala-te, irmão. Ninguém vai ser morto hoje. — Apertou o ombro de Michaelson. — Além disso, assim agarrados, é como a corrida de três pernas em Kearney, quando ganhámos a fita azul na feira.
Com um esgar de dor, Michaelson cuspiu.
— Porque fizeste batota!
— Não te vi devolver a fita.
Houve uma súbita agitação atrás deles. Um dos caçadores corria na direção deles e rosnava algo a Harry. O rosto de Harry ficou sério. Respondeu com algo ininteligível. A figura acenou com o queixo e continuou a correr em frente. Agora, só uma pequena figura permanecia atrás deles.
— Que disse ele?
— Que um dos crak’an se está a aproximar. Não vamos conseguir chegar a um lugar seguro.
Michaelson cerrou os molares. Agora tinha colocado o irmão num novo perigo.
— Eu disse-te...
— Sim, sim, tens sempre razão. — O irmão interrompeu o avanço arrastado. O último caçador, de pelo preto, com uma cicatriz que lhe corria pelo lado direito do rosto, parou ao lado de Harry. — Dennis, segue caminho, tenta acompanhar o melhor que conseguires. Eu e o Nob’cobi vamos tentar abrandá-lo. Conseguir algum tempo para os outros.
— Para o diabo com isso! Eu tenho a arma.
— Sim, e eu tenho a experiência. Agora mexe-te!
Reconheceu a expressão obstinada nos olhos do irmão. Não havia espaço para discussões.
— Bem, pelo menos fica com arma.
Harry abanou a cabeça.
— Podes precisar dela. — O irmão passou o braço em redor do outro caçador e ergueu a lança comprida que ainda segurava na mão direita. — Além disso, a utilização de armas não tradicionais diminui as nossas oportunidades para obter il’jann com a morte.
— O quê?
Harry acenou-o para que seguisse.
— É uma espécie de «golpe de audácia». Uma medida de honra. — O arranhar de garras na pedra fazia-se agora ouvir do fundo do túnel. — Agora põe-te a andar!
Michaelson acenou e afastou-se pelo túnel. Não havia qualquer hipótese de deixar o seu irmão a lutar apenas com uma lança. Mal chegou a um túnel lateral, enfiou-se nele e olhou para trás. O irmão e o outro caçador tinham as cabeças próximas. A pequena figura apontava com as mãos e acenava.
Largando a mochila, soltou a arma e deitou-se de barriga para baixo no túnel, fitando a passagem. Esperou, escutando o ruído crescente do predador que se aproximava.
De súbito o irmão ficou tenso e projetou a lança para a frente, aparentemente vendo algo que Michaelson não conseguia ver de onde estava. O caçador minúsculo encostou o corpo à parede da passagem. Harry prendeu o cabo da lança num pequeno buraco no chão e manteve-a fixa com o pé, inclinando o cabo para a frente, a lâmina a apontar para o fundo do túnel. Agachou-se, mantendo a lança firme.
Um rugido de raiva ecoou pelo túnel; depois tornou-se visível, enchendo todo o túnel, gigantesco, maior do que qualquer dos monstros que Michaelson vira antes. Negro, como se tivesse sido coberto de pez, movia a cabeça para um lado e para o outro, fungando explosivamente. Quando viu Harry, estacou, retesando as duas patas traseiras fortemente musculadas. Recuou um passo, depois esticou o pescoço para a frente, abriu a boca e gritou.
Harry manteve a posição, mas respondeu ao monstro com o seu próprio grito:
— Vai-te foder!
Michaelson deixou que um pequeno sorriso lhe aflorasse os lábios. Nada intimidava aquele sacana. Deitado de barriga no chão, Michaelson semicerrou os olhos, erguendo a coronha da arma contra o ombro, olhando através da mira. O irmão estava na linha de tiro. Merda.
Com um uivo de raiva, a besta lançou-se na direção do irmão, projetando-se pelo espaço que os separava. Tudo aconteceu demasiado depressa para Michaelson reagir. Harry baixou-se quando a cabeça mergulhou na sua direção, depois retesou o corpo, ao mesmo tempo que a besta chocava contra a lança que prendera ao chão, empalando-se através do peito. O cabo partiu-se ao meio, ao mesmo tempo que Harry rolava para longe.
Nesse preciso momento, o minúsculo caçador saltou da parede lateral e aterrou montado sobre o pescoço do monstro, uma faca comprida apertada na mão. Mergulhou a lâmina nos olhos da besta, cortando violentamente.
A besta recuou com um rugido de agonia, lançando a cabeça para trás e desalojando o caçador. A faca comprida, contudo, permanecia presa no olho esquerdo do monstro.
O minúsculo caçador aterrou com força no local para onde foi projetado, mas depressa se ergueu e se afastou da besta que se agitava, gatinhando na direção de Harry.
O predador viu-o com o olho bom, a cabeça inclinada, e tentou abocanhar o seu atormentador peludo. Harry tentou alcançar o seu companheiro de caça primeiro e puxá-lo para longe do alcance da besta, mas a mão ficou a poucos centímetros de o alcançar. O pequeno homem foi apanhado pelas mandíbulas do monstro. Ainda assim o irmão avançou, com o cabo partido da lança, aparentemente determinado a usar os restos afiados como arma para libertar o amigo.
Michaelson cerrou os dentes. O irmão ainda impedia parcialmente o seu tiro, mas era óbvio que não ia deixar o caçador minúsculo nas mandíbulas da besta. Maldição! Sustendo a respiração, Michaelson semicerrou os olhos e puxou o gatilho, a explosão da espingarda foi ensurdecedora no espaço apertado.
O ruído súbito fê-los estacar a todos. Harry interrompeu a sua aproximação para atacar a criatura, o coto da lança ainda preso na mão. A besta imobilizou-se.
— Harry! — chamou Michaelson. A voz estilhaçou o quadro. A besta caiu ao chão, morta, com uma bala no cérebro. Ao cair, libertou a sua presa e o caçador tombou das suas mandíbulas. Harry correu para a frente na direção do amigo.
Michaelson arrastou-se do espaço onde se escondera e aproximou-se do irmão, fitando o corpo da besta que bloqueava a passagem.
— Como é que ele está?
Harry ajudou o minúsculo caçador a levantar-se.
— Vai sobreviver. São tipos de pele grossa. Alguns furos no ombro. Mas não há ferimentos graves.
— Ótimo. — Michaelson ajoelhou-se ao lado do caçador mimi’swee e pousou uma mão no seu ombro bom.
Harry sentou-se sobre os calcanhares.
— Dennis, pensei que te tinha dito para saíres daqui.
Michaelson franziu o sobrolho.
— Para além de ser o teu irmão mais velho, também sou teu superior.
— De repente, sinto-me feliz por teres subido mais depressa do que eu de posto. Caso contrário, podias ter-me dado ouvidos. — Harry virou-se para ele, os olhos sérios. — Obrigado, Dennis.
O caçador minúsculo começou a dizer algo incompreensível, com uma expressão de dor estampada no rosto. Harry acenou com seriedade. A figura minúscula levou a mão ao ombro ferido e mergulhou o dedo no sangue que corria dele, depois virou-se para Michaelson.
— Nob’cobi quer partilhar contigo o seu il’jann — explicou Harry. — É uma honra entre o seu povo. O equivalente a irmãos de sangue.
O caçador peludo esticou o braço e pousou o dedo ensanguentado na testa de Michaelson.
— Ir... irmão — disse num meio grunhido.
CAPÍTULO 23
Khalid observou Linda que abraçava o rapaz assustado, o rosto pousado sobre o cabelo de Jason. Sussurrava-lhe palavras de consolo ao ouvido. Khalid avançou para a figura de Blakely, encostado à rocha. Os olhos do cientista estavam abertos e fitavam-no, a respiração ainda entrecortada e sibilada. O velho tinha informações de que precisava, dados necessários para concluir a missão. Ajoelhou-se ao lado de Blakely e ofereceu-lhe o seu cantil, despejando uma pequena dose de água para a boca do homem.
Blakely fechou os olhos e engoliu avidamente, depois afastou o cantil, lançando água sobre o peito.
— Obrigado — murmurou.
— Que aconteceu? — perguntou Khalid. — Como vieram parar aqui?
Blakely falou com os olhos fechados, como se se recordasse.
— O campo... foi atacado... destruído. — A sua respiração era laboriosa, procurando recuperar o fôlego.
A primeira ideia de Khalid foi a de que alguém tivesse agido mais depressa do que ele. Um segundo agente? Mas as palavras seguintes de Blakely afastaram tal ideia.
— Criaturas enormes... centenas delas... assaltaram o campo. Fugimos no barco. Acabámos aqui encalhados.
Khalid franziu o sobrolho perante as más notícias. Maldição, então eles eram mais. Tivera a esperança de que se tivessem deparado com os únicos existentes. Ergueu os olhos para o conjunto de quedas de água. Se conseguissem encontrar o caminho de volta, teriam à sua espera uma manada daqueles predadores. Sentou-se nos calcanhares e guardou a pistola no coldre.
— E agora? — balbuciou para si mesmo.
Blakely ouviu-o e respondeu, a voz ainda rouca, mas mais firme.
— Esperamos. Deixamos tudo nas mãos das forças armadas. Quando se aperceberem do que aconteceu, virão em grande número. Eles que nos encontrem.
Khalid esfregou a barba que crescia espessa no pescoço. Blakely tinha razão. As forças armadas seriam mobilizadas em breve, restabelecendo a segurança da base. E com toda a marinha dos Estados Unidos ali em baixo, a passar o local a pente fino, a sua missão seria muito mais difícil, senão mesmo impossível.
Esfregou os olhos vermelhos e cansados, sentindo areia debaixo das pálpebras. Teria de alcançar a Base Alfa antes das forças armadas. E com tempo de sobra para terminar a colocação das cargas explosivas e se pôr a andar. Um objetivo difícil, mesmo para ele.
Talvez aquele fosse um teste de Alá. As forças da natureza eram viradas contra ele, pondo-o à prova. De que outra forma poderia explicar que aqueles vis monstros os tivessem bloqueado, os inúmeros obstáculos, os horrores a cada curva? Só podia ser um teste de Deus.
Fechou os olhos e pousou as palmas das mãos contra o rosto, rezando pela força que lhe permitisse alcançar o sucesso e por um sinal, uma qualquer indicação de que estava certo na sua missão. Rezou durante cinco minutos, o coração a bater-lhe nos ouvidos. No entanto, não recebeu qualquer sinal. Por fim, recostou-se com um suspiro, pousando as mãos nos joelhos. Nada.
Então, quando ergueu os olhos, viu-a. Uma nuvem de fumo espesso que se erguia de uma abertura a meio da parede da gruta. Khalid sentou-se mais direito.
— Doutor, o campo estava a arder? Havia muito fumo?
O cientista limpou a garganta seca.
— Sim, coberto de fumo. Porquê?
Khalid apontou para a parede mais distante, com um sorriso encantado nas suas feições.
— Veja, ali! O fumo! Deve ser uma saída! — Continuou a fitar o fumo que se erguia, como se este fosse o dedo de Deus.
Continuando a segurar Jason pelo braço, Linda fitou a abertura do túnel repleto de fumo. Emoções guerreavam dentro dela: alívio por ter encontrado uma saída e receio em relação aos eventos que poderiam ocorrer. Que iria Khalid fazer? Não podia deixar que Blakely e Jason descobrissem os seus planos ou teria de os matar.
Virou-se para olhar para Khalid. A expressão deste ao olhar para o penhasco era de uma estranha exaltação, os seus olhos estavam muito abertos, vítreos. Quando esses olhos cruzaram os seus, Linda sentiu um arrepio. Khalid sorriu-lhe.
— Está quase terminado — disse.
Linda acenou com a cabeça. Tinha acontecido tudo tão depressa. Contara com dias de busca antes da descoberta do caminho para casa, o que lhe daria tempo para formular um plano, horas extra para decidir se devia tentar detê-lo ou limitar-se a salvar a própria pele e deixá-lo fazer o que queria.
Um puxão no braço distraiu-a. Baixou os olhos para Jason.
— Linda, então e a minha mãe? Achas que está bem?
Apertou o ombro do rapaz que a fitava. Devia mentir, dizer-lhe que ia ficar tudo bem, mas Jason era um miúdo esperto, até os olhos que a fitavam estavam secos e sérios. Ele queria uma resposta sincera.
— Jason, não sei mesmo. Mas o Ben e o major Michaelson estão com ela. Irão assegurar-se de que regressa em segurança.
Jason acenou com a cabeça.
Khalid tocou-lhe no ombro, sobressaltando-a. Acenou para que ela o seguisse durante alguns passos, para que pudessem falar em privado. O coração de Linda batia-lhe na garganta enquanto o seguia.
Ele olhou por cima do ombro para se assegurar de que estavam sozinhos.
— Escuta, quero que partamos esta noite.
A boca dela estava seca. Aquilo estava a acontecer demasiado depressa, como um comboio de mercadorias que acelera em direção a uma ponte demolida.
— Mas o Blakely ainda não pode ser movido.
Khalid nem pestanejou.
— Não estava a pensar levá-lo. Ou ao rapaz.
As palavras dele eram um sussurro.
— Prometeste-me que não matarias mais ninguém se eu permanecesse em silêncio.
— Não os vou matar. Só os vou deixar.
— Há alguma diferença?
Khalid encolheu os ombros.
— Eu disse-te, se descobrirem o meu plano, serei obrigado a matá-los. Pelo menos, ao deixá-los, terão oportunidade de se defenderem.
Fitando Khalid, imaginou Jason a morrer à fome e Blakely a ser devorado por uma besta. Com que facilidade ele condenava Blakely e Jason a uma morte lenta. Onde estaria o coração daquele monstro? Engoliu em seco.
— Odeio isto.
— Partiremos depois de eles adormecerem — sussurrou-lhe Khalid ao ouvido, como um amante que transmite um segredo. — Não terás de os enfrentar.
Como parasitas, as palavras dele devoravam-lhe o cérebro, ameaçando destruir a sua sanidade. Como podia ele planear as suas mortes com tamanha casualidade? Afastar-se deles a meio da noite? Como podia...?
Depois uma ideia formou-se na sua mente.
E se...? Remoeu a ideia, mas não tinha muito tempo e o risco era grande. Mordeu o lábio inferior, insegura. Observou Jason que sorria a algo que Blakely dizia. Vistos dali, os olhos dele brilhavam fortemente sob a luz dos fungos. Cintilavam de vida jovem, da muita vida que ainda tinham para explorar.
Linda fechou os olhos, firmando os seus planos. Ela podia fazer aquilo. Não, ela ia fazer aquilo.
— Muito bem, partimos esta noite — disse com determinação.
Enquanto Linda fingia dormir, Blakely e Jason dormiam envoltos nos cobertores extra. Blakely roncava, um gorgolejar assobiado que se sobrepunha à corrente da queda de água. Mas os olhos entreabertos de Linda mantinham-se fixos no perfil de Khalid, que se sentara, meio dentro do saco cama, encostado a um pedregulho. Esperava. Observava a sua cabeça a deslizar e a endireitar-se de novo, enquanto o sono quase se apoderava dele. Quase.
Linda conseguira convencer Khalid a descansar um pouco, fingindo-se exausta ela mesma. Nada mais que uma sesta de duas horas, implorara, o suficiente para recarregar as baterias para a fase seguinte da viagem. Ele concordara. Dissolvera secretamente vários dos seus ansiolíticos na água de Khalid e assegurara-se de que este bebia uma boa dose. O forte sabor mineral da água local disfarçava o gosto dos comprimidos. Estes deviam adormecê-lo. Tinham um efeito sedativo ligeiro, mas, naquela quantidade, o medicamento devia deixá-lo de tal forma sonolento, que poderia adormecer acidentalmente durante a vigia. Era tudo de que precisava.
Viu o queixo dele repousar contra o peito. Desta feita, a cabeça ficou caída.
Com o coração a bater nos ouvidos, escutou, tensa no seu saco-cama, suficientemente perto de Khalid para perceber quando a sua respiração se aprofundasse num ritmo regular. Sabia que não teria muito tempo.
Com uma lentidão agonizante, deslizou do saco-cama. Felizmente, o rugido da queda de água próxima abafava os movimentos.
Deslizou para junto dele e recolheu a lanterna e o capacete de uma rocha próxima. Originalmente, planeara tirar a pistola a Khalid, mas este adormecera com ela enfiada dentro do saco-cama. Tentar ir buscá-la agora era demasiado arriscado.
Por isso, recorreu ao plano de recurso. Tirou as pilhas da lanterna e do capacete. Ele podia ficar com a arma, pensou, mas vejamos se consegue deslocar-se às cegas.
Quando terminou, virou a sua atenção para o cientista adormecido. Linda pousou a mão nos lábios de Blakely, pressionando com força quando ele acordou de repente. Inclinou-se sobre ele e levou um dedo aos seus próprios lábios, pedindo silêncio. Uma vez recuperado do choque, ela afastou a mão e acenou-lhe, pedindo que a seguisse... em silêncio. Conduziu-o para vários metros de distância.
Tendo-se afastado o suficiente, encostou os lábios aos ouvidos dele, esperando que o rugido da queda de água impedisse que as suas palavras alcançassem as figuras adormecidas.
— Temos de fugir. Agora. Consegue deslocar-se?
Blakely fitou-a, de olhos semicerrados.
— Sim, mas porquê? Que se passa?
Linda ofereceu-lhe uma versão abreviada dos eventos reais que a haviam levado até aqui. Quando por fim terminou, a sua voz estava marcada pelas lágrimas.
As sobrancelhas de Blakely foram-se erguendo cada vez mais, enquanto ela contava a sua história.
— O sacana! Nunca pensei... Raios, a culpa é minha. Devia ter verificado de forma mais minuciosa. Fui demasiado ingénuo. Em relação a tudo!
Blakely parecia décadas mais velho do que há uma semana. Os olhos encovados, os ombros caídos, até o cabelo parecia mais encanecido. Linda pousou a mão no braço dele.
— Temos de ir buscar o Jason e fugir, agora.
Blakely abanou a cabeça.
— Porque não o atacamos e lhe roubamos a arma? Ou lhe batemos na cabeça com uma grande pedra.
— Ele é um assassino treinado. Uma máquina. — Linda não conseguia esconder o medo na voz. — Não somos um adversário à altura. Se ele for atacado e só o conseguirmos ferir, estamos mortos. É mais seguro se nos limitarmos a fugir. Se tentarmos entrar nos túneis mais escuros onde, sem luz, não nos conseguirá alcançar.
— Então e os ouros perigos? — Apontou para a parede mais distante. — Não sobreviveremos muito tempo sem uma arma.
Linda abraçou o corpo com as mãos.
— Eu sei. Mas prefiro correr riscos com o desconhecido do que com ele.
— Está bem. Mas teremos de ir com pouca carga. Apenas cantis e rações.
Linda acenou com a cabeça.
— Vamos buscar o Jason.
Jason entrou em pânico quando o abanaram para o acordar. Não conseguia respirar! Lutou violentamente durante vários segundos, até se aperceber de que a sua aflição para respirar se devia ao facto de Linda lhe estar a tapar a boca com a mão.
Ela pediu-lhe silêncio, encostando os lábios aos ouvidos dele.
— Silêncio, Jason. — As palavras dela pouco mais eram do que ar.
Jason parou de lutar, mas o seu coração ainda batia acelerado e doía-lhe a cabeça. Que fora agora? Mais monstros? Sentou-se e viu que Blakely reunia as caixas de rações secas, movendo-se como um ladrão na noite, cuidadoso com o sítio onde punha os pés.
Khalid dormia no seu saco-cama. Tanto Blakely quanto Linda iam lançando olhares na direção do homem que ressonava. Jason virou-se para Linda com uma pergunta nos lábios. Ela encostou um dedo aos seus. Não sabia porque tinha de manter tanto silêncio. As águas tumultuosas eram suficientemente ruidosas. No entanto, fez o que lhe diziam e ficou sentado em silêncio.
Passado menos de um minuto, Linda e Blakely tinham empilhado três cantis, lanternas e um saco de rações perto dele. Blakely mostrou a Linda uma pistola de cano largo que tinha encontrado junto das coisas que trouxera do barco. Uma pistola de sinalização, reparou Jason.
Blakely agachou-se junto dele e sussurrou:
— Ouve, rapaz, temos de ir embora. Deixar o Khalid para trás. Temos de nos mover depressa. Achas que consegues fazer isso?
Jason acenou com a cabeça, confuso, mas pelo rosto pálido e o olhar nervoso de Linda, havia algo a temer. Fitou Khalid, curvado como um ogre.
Linda e Blakely dividiram entre si a pequena pilha de mantimentos e acenaram-lhe para que os seguisse. Jason levantou-se e pegou no saco de desporto. Blakely fitou o saco e abanou a cabeça.
— Deixa-o — disse, silenciosamente.
Nem pensar! Conseguia transportá-lo. Não era nenhum bebé. Abanou a cabeça e apertou o saco com mais força.
Blakely abriu a boca, mas Linda tocou-lhe no braço e silenciou-o. Acenou aos dois para que a seguissem. Jason ia logo atrás dele, e Blakely seguia em último.
Ninguém falou enquanto avançavam, mesmo depois de o campo abandonado estar oculto por estalagmites e pedregulhos. O silêncio envolvia Jason, ainda mais assustador do que os gritos dos monstros e as detonações das armas. Todos os ruídos o faziam saltar, todos os passos pareciam gritar através da gruta. Felizmente, passada meia hora, alcançaram por fim as rochas e os pedregulhos caídos que lhes permitiriam aceder ao túnel fumegante.
— Olhem — disse Linda. Apontou para a abertura bem acima. — O fumo já diminuiu. Será mais fácil para nós respirar.
— Sim — disse Blakely —, mas poderá tornar mais difícil encontrar o caminho até lá acima. — A expressão dele era sombria enquanto fitava a subida.
— Consegue? — perguntou Linda.
— Tenho outra escolha?
Linda apertou o ombro de Blakely, depois virou-se para Jason.
— Jason, e tu? Consegues trepar por estes pedregulhos?
— É canja — disse ele com um risinho.
— Então é melhor despacharmo-nos. Não sei quanto tempo os comprimidos manterão o Khalid a dormir.
Khalid sonhava que agarrava a túnica da mãe enquanto a tempestade negra descia sobre o acampamento no deserto. Tentou avisá-la de que o vendaval se aproximava, mas ela continuava a falar com as outras figuras envoltas em túnicas sem se aperceber do rugido da areia e dos ventos que se aproximavam. Puxou-lhe pela túnica, tentando chamar-lhe a atenção, mas ela empurrou-o com a anca. Correu para a abertura da tenda, espreitando para o turbilhão revolto que varria a linha do horizonte. Virou-se para o grupo de figuras envoltas em túnicas, a mãe entre elas. Gritou-lhes, a sua voz um junco ao vento. Mas desta vez ouviram-no e viraram-se. Os rostos cobertos pelos véus voltaram-se na sua direção. Abriu a boca para repetir o seu aviso, quando viu os rostos que espreitavam sobre os véus. Não eram rostos! Eram caveiras. Amarelas, ossos limpos pela areia, que espreitavam por cima dos véus negros. Mãos esqueléticas que tentavam alcançá-lo por entre as pregas das túnicas. Recuou para a tempestade ribombante. Um grito preso na garganta.
Quando a tempestade os atingiu, Khalid acordou em sobressalto, confuso por o rugido o ter seguido para fora do sonho. Estremeceu com o som até se ter apercebido que era produzido pela queda de água próxima. Engolindo em seco, quase imaginando que a sua garganta estava coberta de areia, libertou-se do saco-cama. Levou a mão ao cantil. Tinha desaparecido. Levantou-se velozmente.
Bastou-lhe um olhar para os sacos-cama vazios, como peles de cobra descartadas, para perceber que fora enganado. Maldita. Ergueu a pistola como se esperasse um ataque. Olhou à sua volta. Não havia sinal deles. Olhou de relance para o túnel fumegante, ao longe, nada mais que uma pequena nuvem emergia ainda da abertura. Pelo menos sabia para onde tinham ido.
Pontapeou a tralha abandonada, tomando nota mental do que ficara. Todas as lanternas tinham desaparecido. As pilhas também. Não havia fonte de luz.
Levou a mão ao bolso e retirou o isqueiro. Abriu-o com um movimento do pulso. Uma chama ergueu-se. Seria um fogo a iluminar o seu caminho.
Um sorriso de determinação alisou-lhe os lábios. Ia ensinar-lhe uma lição. Em breve conheceria a sua raiva e imploraria o seu perdão.
Ele seria como a tempestade negra do seu sonho. Sem misericórdia e imparável.
CAPÍTULO 24
Ashley deu um passo atrás, perguntando-se se os seus ouvidos lhe estariam a pregar partidas. Como podia aquela criatura falar a sua língua? Teria sido apenas uma coincidência, uma série de sons que, por acaso, eram iguais a uma palavra na sua língua?
— Morte — repetiu a criatura de cabelo grisalho, apontando com o cajado e abanando-o como se quisesse obrigá-la a compreender. Depois pousou o bordão e apoiou-se pesadamente sobre ele, os ombros tristemente caídos. — Dobori dobi! — disse, por fim, numa voz cansada.
Perante as suas palavras, um arquejar ergueu-se à volta dela, despoletando uma confusão apressada. Os poucos curiosos que ainda permaneciam junto dela correram para longe, desaparecendo nas aberturas das cavernas, descendo os panos sobre as entradas e prendendo-os. Nem um rosto espreitava de uma qualquer esquina.
Apenas um pequeno grupo de criaturas ali permanecia: as que estavam armadas com lanças de diamante. E mesmo estes guerreiros saltitavam, nervosos.
Ben falou ao lado dela:
— Ash, vamos ter problemas.
Ashley olhou para ele de relance, vendo os seus olhos muito abertos.
— Ben? — sussurrou, sentindo-se exposta sob os olhos da criatura. — Que fazemos?
— O diabo se sei. A antropóloga és tu.
— Talvez devêssemos... — Ashley foi interrompida pelo firme bater do bordão da criatura na pedra, exigindo a sua atenção.
— Dobori dobi! — trovejou a criatura, apontando para Ben com um longo dedo curvo, depois virou-se e afastou-se.
— Espera! — chamou Ben.
A criatura virou-se para ele, mas o esforço necessário era demasiado. Estava claramente exausto, tossindo roucamente e apoiando-se pesadamente no bordão. Ashley apercebeu-se da magreza da sua figura, nada mais que pele e osso, a curvatura da coluna saliente, um mapa dos seus muitos anos.
Com olhos grandes, húmidos, fitava Ben. Ergueu um dedo e levou a ponta à orelha, depois baixou o dedo até ao centro do desenho pintado no peito, logo acima do coração, em seguida virou-se e avançou pela rocha nua, desaparecendo na abertura de uma caverna.
— Ash, o que pensas daquilo?
— Não sei ao certo. Estava a tentar dizer-nos alguma coisa. Mas quem sabe o que será? — Engoliu em seco, tentando desalojar o caroço que ficara preso na sua garganta. Girou para olhar para trás de si. Nada. Ela e Ben erguiam-se sozinhos no limite dos campos amarelos. As paredes do penhasco que continha a aldeia envolviam-nos.
Voltando-se de novo, contou dez guardas no exterior, colocados nas rampas que conduziam ao segundo nível das habitações. Guarda algum os impedia de saírem para os campos.
Quando estava prestes a sugerir que talvez se devessem ir embora, e tentar encontrar o caminho de volta através dos campos, um profundo ribombar irrompeu da face do penhasco, ritmado e lento. Bum... bum... bum. O bater baixo e ressonante atravessava-lhe o diafragma, vibrando através dela, como se fosse uma corda a ser dedilhada. Sabia que, mesmo que enfiasse os dedos nos ouvidos, continuaria a sentir a batida sonora.
— Tambores — explicou Ben, desnecessariamente.
Ashley acenou com a cabeça.
— As culturas usam os tambores para marcar rituais. — Virou-se para olhar de novo para os campos amarelos. Em especial rituais de morte, mas omitiu essa parte.
Ben, contudo, conhecia o significado dos tambores. Raios, tinha assistido a filmes do Tarzan suficientes para perceber que os nativos estavam inquietos. Ainda assim sentiu uma estranha calma envolvê-lo. Sabia que devia ter o coração acelerado, que as palmas das mãos deviam estar húmidas de medo. Mas, não, em vez disso sentia desprendimento, como se assistisse àqueles eventos pelos olhos de outra pessoa. Desde que o velho levara o dedo ao peito que uma sensação de paz descera sobre si.
A cada novo bater do tambor, estranhos pensamentos foram-no invadindo, quase como se os tambores falassem consigo. Bum... A morte aproxima-se. Bum... Sobrevive e viverás. Bum... Só há uma saída. Bum... Prova o teu sangue.
— Ben? — O rosto de Ashley surgiu à sua frente, vindo do nada, a sua voz tão fraca quando comparada com o chamamento dos tambores. Acenava com uma mão à frente dele. — Estás bem?
— Estou ótimo. — Abanou a cabeça. — Só estava a tentar pensar.
— Estavas a balbuciar qualquer coisa. Algo acerca de sangue.
— Não é nada.
— Tens a certeza de que estás bem?
— Tendo em conta a situação em que nos encontramos, estou ótimo. — Dirigiu-lhe um sorriso fraco, na esperança de que ela engolisse a sua mentira, ao mesmo tempo que se perguntava o que haveria de errado consigo. — Estou ótimo — repetiu.
No entanto, Ashley tinha ainda uma expressão de preocupação estampada no rosto.
— Alguma ideia acerca do que podem estar a planear? — perguntou ela, enquanto perscrutava o penhasco.
Ben encolheu os ombros. Podia haver toda uma série de maneiras de os assassinarem: atacá-los com lanças, lançar pedregulhos sobre eles, acicatar aquelas criaturas parecidas com lobos para que os atacassem, deixar que as malditas sanguessugas os deixassem exangues. Quem poderia dizê-lo? Esfregou as fontes. Estranhamente, ele podia. Seriam atacados pelo ar. A morte aproxima-se. Mas como raio saberia ele aquilo?
Virou-se e olhou para os céus por cima dos campos, tentando ver se algo se aproximava. Nada para além dos fungos brilhantes cobria o mundo. Mas tinha a certeza. Até sabia de onde viriam. Semicerrou os olhos para a sua esquerda. Depois viu-os, pontos negros contra o brilho esverdeado do teto, a aproximar-se rapidamente, crescendo cada vez mais em tamanho, à medida que a distância que os separava desaparecia. Apontou.
— Ali, Ash. Estás a vê-los?
— O quê? Onde?
Ben inclinou o queixo dela para que olhasse na direção certa.
— Os tambores deviam estar a chamá-los — disse. — Calculo que funcionem como o sino para o almoço.
— Que são? — perguntou ela.
— Algo faminto. Porque estão a vir muito depressa!
Ashley apontou para a arma na cintura dele.
— Quantas balas disseste que te restavam?
— Apenas duas. — Deslizou os olhos pelo horizonte, contando as figuras negras e esvoaçantes. Agora maiores do que pontos, as grandes asas visíveis a bater no ar. — Eu diria que são um bando de pelo menos quinze a voar na nossa direção.
— Então não podemos abrir caminho a tiro. Precisamos de encontrar abrigo. — Ben virou-se para a aldeia, os tambores tinham aumentado em fúria, martelando loucamente, tornando mais difícil pensar com clareza. Fitou a aldeia. Todas as aberturas das residências estavam agora fechadas com panos grossos. Os guardas nervosos, postados nas rampas, observavam-no de olhos semicerrados, apertando com força as lanças. Nenhum guarda se erguia entre ele e uma mão-cheia de aberturas ao nível do solo. Empurrou Ashley e acenou para as seis aberturas negras. — E se nos abrigássemos numa daquelas?
— Será que os guardas o vão permitir? Aquelas lanças não parecem muito convidativas.
— Repara que só estão a proteger as subidas. Aquelas residências — disse, movendo o braço de modo a abarcar as seis aberturas negras — estão descobertas e desprotegidas.
— Então é melhor arriscarmos. Olha!
Ben virou-se.
— Que raio é aquilo? — O bando aproximara-se o suficiente para permitir que se distinguissem alguns pormenores. Asas de pele curtida estendiam-se por vários metros, tinham bicos negros em forma de gancho e garras de ébano mais compridas do que o seu antebraço. E os olhos! Orbes negras e baças, que não pestanejavam, como as do grande tubarão branco.
— Um predador voador! Um descendente do pterodáctilo, talvez — disse Ashley, puxando-o pelo braço. — Vamos. Estão quase em cima de nós. Temos de nos abrigar.
Afastou os olhos do bando que se aproximava, agora a uns meros cinquenta metros de distância.
— Corre! — uivou, enquanto a empurrava para a frente. Os guardas não fizeram qualquer tentativa para os impedir.
Os tambores pararam subitamente, o frenético bater interrompeu-se, deixando atrás de si um pesado silêncio. Ben estugou o passo, lutando por acompanhar Ashley.
Atrás dele, ouviu um forte baque, seguido de muitos outros, como pedregulhos a cair ao chão. O bando aterrara com gritos a irromper de várias gargantas.
À frente, Ashley já quase chegara à primeira abertura, os outros cinco buracos negros estendiam-se ao longo da parede. De repente, Ben lembrou-se da mensagem dos tambores, quase como se as palavras ardessem em frente ao olho da sua mente: Só há uma saída! Voltou a estudar as seis aberturas. Seis! E só há uma saída! Reparou numa pequena gravura por cima da entrada para onde Ashley corria: um círculo com um triângulo no seu interior. Não era o símbolo correto. Caminho errado!
Acelerou e placou Ashley quando esta se tentou enfiar pela abertura. Rolou para o chão, batendo com o ombro, enquanto a protegia da queda.
Ashley lutou para se libertar.
— Que estás a fazer?
— Não há tempo! — Ben levantou-se, puxando-a consigo. — Segue-me.
— Ben! Atrás de ti!
Voltou-se, sacando da pistola, sabendo o que iria encontrar. A criatura erguia-se mais alta do que uma avestruz, mas, ao contrário desse pássaro de pescoço fino, este era só músculo e bico. Mergulhou sobre ele, apontando para baixo, tentando esventrá-lo com o seu bico em gancho.
Que diabo! Estava a ficar cansado de coisas que o tentavam comer. Disparou dois tiros para o crânio, o último quase à queima roupa.
— Põe-te a andar! — gritou, desviando-se, puxando Ashley para o lado.
Com Ashley a reboque, correu pela base do penhasco, procurando o símbolo correto. Atrás de si, a carcaça da besta foi atacada pelos outros. O sangue quente salpicou-lhe a parte de trás das pernas enquanto corria. Rezou para que o corpo lhes desse o tempo de que precisavam.
Continuou a sua busca. A abertura seguinte tinha uma linha contorcida com um círculo por cima, depois uma seta torta, em seguia um círculo dentro de outro círculo, como um donut. Errado, errado, errado! Correu para lá daquelas aberturas!
Depois viu-a! Gravada por cima do túnel seguinte estava uma estrela grosseira. Como uma explosão no seu cérebro, imaginou o avô na gruta dos seus sonhos, chamando-o para o interior de uma abertura com uma estrela idêntica. Aquela era a única saída!
Voou para lá, arrastando Ashley consigo. Ao tombar para o buraco, quase chocava contra uma figura que se erguia a poucos metros da abertura. Havia apenas luz suficiente para distinguir o desenho pintado no peito da figura apoiada no bordão. Vacilando, o velho ergueu uma mão minúscula e pousou-a no ombro de Ben. Grunhiu roucamente, mas as palavras eram compreensíveis: «És um de nós.»
Ashley libertou a mão da de Ben. Que se estaria a passar? Afastou-se quando o homem de idade acenou com o bordão para que saíssem da divisão. Usando o bordão como uma bengala, avançou entre eles até à beira da entrada. Acenou-lhes para que espreitassem.
— Ben? — Ashley dirigiu-lhe um olhar inquisitivo. Ele encolheu os ombros e juntou-se ao velho. Franzindo o sobrolho, Ashley avançou para junto deles, tendo de se agachar para conseguir ver melhor.
No exterior, o bando de pequenos predadores tinha acabado de canibalizar o companheiro morto, deixando espalhados pelo chão rochoso o sangue e os ossos. Um par de monstruosidades aladas tentava passar pelos guardas e subir a rampa até às habitações, mas as lanças cortantes mantinham-nos ao longe.
Um assobio fez-se ouvir à sua esquerda e das outras cinco aberturas avançou um pequeno cortejo de criaturas unguladas, que mugiam, empurradas por lanças empunhadas por outros elementos da tribo. As criaturas eram semelhantes em tamanho a um bezerro, mas mais parecidas com cavalos, com exceção das presas afiadas que se projetavam, curvas, de ambos os lados do focinho. Recuavam e batiam com as patas na pedra, o branco visível nos olhos que se reviravam de terror. Uma vez livres das lanças que os espetavam, dispersaram-se, correndo em todas as direções. Os seus movimentos captaram a atenção dos predadores, e as criaturas de bicos córneos lançaram-se sobre a manada de animais ungulados.
— Se tivéssemos escolhido um qualquer outro túnel que não este — murmurou-lhe Ben —, teríamos sido empurrados juntamente com aqueles animais para a morte. Era um teste.
Ashley começou a virar o rosto à carnificina, mas não antes de ver um pequeno animal afastar-se dos restantes e estacar ao vê-la, de olhos enlouquecidos, no exterior da caverna. Estremeceu ao ver um predador que se aproximava por trás, movendo o bico curvo para a frente, determinado a empalar a pequena criatura. O animal mugia suplicante, os olhos muito abertos de medo. Sem pensar, Ashley saiu a correr da caverna, agarrando o animal aterrorizado pela parte de trás do pescoço e arrastando-o para o interior.
— Nesse caso, este pequenino também receberá santuário — disse, arquejando e puxando o animal para uma zona mais profunda do túnel.
O velho virou-se para ela, de olhos muito abertos em sinal de choque. Com as costas viradas para a entrada, não viu o bico aberto que mergulhou na sua direção. O caçador ludibriado não ia desistir assim tão facilmente da sua presa.
Ashley abriu a boca para o avisar, erguendo um braço.
Mas, antes que conseguisse emitir um som, o velho, sem sequer olhar por cima do ombro, moveu para trás o seu bordão. O estalar deste contra o bico ecoou pelo túnel; havia uma força surpreendente naqueles braços magros e velhos. Continuando a olhar para ela, balbuciou para si mesmo e avançou, pousando-lhe a mão no ombro. O seu toque era quente sobre a t-shirt fina. Acenou-lhe e continuou a avançar pelo túnel, parando apenas para lhes fazer sinal de que o seguissem.
Um forte clangor irrompeu no exterior, como tachos e panelas a bater. Ben afastou-se da entrada e avançou para ela.
— Agora que se alimentaram, o ruído está a afugentar aqueles malditos.
— Como periquitos treinados — disse ela. Levantou-se e seguiu o velho; o pequeno animal avançou atrás dela, mugindo baixinho.
Ben fitou a criatura ungulada.
— Podias ter sido morta.
— Foi um impulso — disse, embaraçada. — Estava a pensar que, se não tivesses escolhido corretamente, seríamos nós a gritar por ajuda. Não consegui abandoná-lo à morte. — O animal chocou com ela, tocando-lhe na bota com o focinho enquanto andavam.
Ben envolveu-lhe os ombros com um braço e apertou.
— Acho que fizeste um amigo.
Ashley aninhou-se nos braços de Ben.
— O Jason sempre quis um animal de estimação.
Juntos avançaram pelo túnel escuro, iluminado apenas por manchas ocasionais de fungos brilhantes. Passados alguns minutos, ela disse:
— Já agora, como é que sabias qual era a abertura certa?
Ashley sentiu-o ficar tenso ao seu lado.
— Ash, vais pensar que estou doido.
— Depois desta viagem, acho que consigo acreditar em quase tudo. — Fitou as costas da criatura idosa que os conduzia para o coração da aldeia, uma criatura que falava inglês e cuja tribo era mais antiga do que o homem em vários milhões de anos. Sim, naquele momento, sentia-se com bastante abertura de espírito.
— Está bem. — Ben inspirou fundo. — Lembras-te de te ter dito que já tinha visto o desenho do velhote antes?
— Algo relacionado com um sonho com o teu avô.
— Certo, bem, nesse sonho, o meu avô conduziu-me para uma abertura com o mesmo símbolo gravado por cima da entrada. Disse-me que era seguro.
Ashley parou e fitou-o.
— Estás a falar a sério?
Ben riu debilmente, puxando-a para a frente.
— Estamos vivos, não estamos?
— Já alguma vez tinhas tido experiências de clarividência?
— Nem penses. Se tivesse, não estava metido neste sarilho. Estava a gozar o sol de Las Vegas, à espera do meu próximo espetáculo como Sr. Clarividente.
— Então, porquê agora?
Ben deu uma gargalhada nervosa, deslizando para a frente dela, enquanto seguiam o velho.
— Tenho uma ideia. Mas é bastante bizarra.
— Qual é?
— Estes sonhos com este lugar. Tenho-os tido desde que soube desta viagem. Tornaram-se mais claros e mais frequentes desde que chegámos.
— Então achas que tem algo a ver com a gruta.
— Não, com ele. — Apontou para as costas nuas do homem. — Acho que ele tem estado a comunicar comigo. Quando os tambores começaram a tocar há bocado, senti que estranhos pensamentos e palavras se intrometiam. Pareciam estranhas.
— Telepatia? — perguntou ela, considerando as implicações. — Mas porquê só tu?
Ben encolheu os ombros.
— Não sei. O meu sangue aborígene, talvez?
Ashley fitou os olhos azuis e o cabelo louro.
— Tendo em conta a tua aparência, esse sangue é muito rarefeito.
— Bem, deve ser suficiente.
— Porque achas que está relacionado com os teus antepassados?
— As imagens nos meus sonhos — disse, contando pelos dedos os argumentos. — Primeiro, o meu avô apareceu envergando as roupas tradicionais dos aborígenes. Depois, a recente recorrência do meu antigo pesadelo de infância na gruta. Até as palavras dos tambores: «prova o teu sangue». Tudo parece apontar para uma qualquer capacidade inerente ao meu sangue ancestral.
Ashley inspirou fundo. O bom senso e a lógica levavam-na a ridicularizar tal alegação. Tinha de ser banha da cobra. Ainda assim, Ben dera provas ao escolher a abertura certa. Lembrou-se de um colega cuja tese de doutoramento era sobre as tribos aborígenes.
— Há muito misticismo no folclore aborígene. Caminhos espirituais. Anciãos capazes de comunicar através de grandes distâncias, usando piscinas de sonhos. Esse tipo de coisas.
— Certo — disse Ben. — Eu sempre pensei que eram tretas. Um amigo aborígene com quem costumava praticar espeleologia jurava que tinha visto algumas coisas bastante esquisitas, mas nunca acreditei nele.
Distraída, Ashley afastou a pequena criatura ungulada para o lado, quando esta se tentou enfiar no meio das suas pernas. Esta baliu e meteu-se por uma passagem lateral.
— Qual é a ligação entre uma tribo nunca antes descoberta de marsupiais evoluídos na Antártida e os aborígenes na Austrália?
— O diabo se sei. Mas aquele desenho que descobriste nas habitações no penhasco da Caverna Alfa, a oval com o relâmpago a atravessá-la, faz-me pensar.
— Em quê?
— Lembras-te de te ter dito que já a tinha visto? Nas pinturas rupestres aborígenes.
Ashley acenou com a cabeça.
— Uma espécie de guias espirituais dos aborígenes.
— Certo, aqueles que, supostamente, ensinaram os primeiros aborígenes a caçar. Os mimi.
O velho olhou de relance para eles. Balbuciou qualquer coisa.
— Gota trif’luca mimi’swee.
Ben e Ashley olharam um para o outro.
— Tu é que és telepático — disse Ashley. — Que disse ele?
Ben encolheu os ombros e abanou a cabeça.
O velho pareceu compreender a sua confusão e suspirou pesadamente. Apontou para o peito.
— Mimi’swee. — Depois moveu o braço para abarcar toda a aldeia. — Mimi’swee.
— Continuo sem perceber — disse Ben.
Ashley ergueu uma mão.
— Mee... mee... swee — gaguejou, tentando imitar a pronúncia correta. Apontou com o dedo para o velho.
O seu velho pescoço moveu-se de cima para baixo; depois virou-se.
Ben olhou de relance para ela com uma pergunta nos olhos.
— Que foi?
Ashley sentia dificuldade em mover o maxilar. Aquilo era impossível.
— Ele estava a dizer-nos o nome da sua tribo. Os mimi’swee.
— E...?
Ashley revirou os olhos.
— Ben, a que soa esse nome?
Ele encolheu os ombros.
— Mimi’swee. Os mimi — disse ela. — São a mesma coisa.
Os olhos de Ben abriram-se quando subitamente compreendeu. Antes que pudesse dizer mais alguma coisa, o túnel desembocou numa grande caverna iluminada por fungos nas paredes e no teto. Ashley fitou espantada as colunas que apoiavam o teto distante. Mas não foram as colunatas rochosas que lhe chamaram a atenção. Foram as plantas espessas que envolviam as colunas, das quais se projetavam ramos brancos carregados de um fruto vermelho e carnudo, que pendia como candeeiros japoneses.
— Raios — disse Ben atrás dela. — Aqui outra vez, não.
Ben hesitou antes de seguir Ashley e o velho guia até à câmara. Estudou o espaço, esperando ouvir as vozes dos fantasmas ou ver o avô mover-se entre as sombras. Mas, claro, nada disso aconteceu. Quando analisou mais de perto, as plantas com frutos eram a única semelhança entre aquela câmara e a gruta dos seus sonhos. As formações estavam erradas e as plantas não eram tão espessas nem tinham tantas folhas quanto no seu sonho. Inspirando fundo, seguiu as costas esguias de Ashley.
Ashley estacou, levando a mão a um dos frutos vermelhos.
— Acho que são uma espécie de cogumelo — disse, sem fôlego, acenando para as plantas. — Repara na falta de estrutura da folha. O sistema de raízes interligado. Como hifas. A Linda ia dar em doida se visse uma coisa destas.
— Por falar na Linda — disse Ben —, tudo isto é fascinante, mas temos amigos que dependem de nós.
— Eu sei, Ben. Eu sei. Não me esqueci. Talvez com à compreensão rudimentar da nossa linguagem, eles nos possam indicar uma saída daqui.
— Bem, vamos perguntar.
Ashley abanou a cabeça e continuou a avançar atrás do velho.
— Primeiro temos de ganhar a sua confiança. A tua proeza na fuga aos predadores ajudou, mas ainda parecem desconfiar de nós. Reservados. Temos de avançar com cautela ou ainda damos por nós a caminho do cadafalso.
Por aquela altura tinham chegado ao centro da câmara. Ali, o piso estava livre de colunas rochosas e das plantas bulbosas que nelas cresciam. Um fosso pouco profundo fora aberto no centro, com a profundidade aproximada de um palmo. Perto da inclinação, a pedra fora polida, adquirindo um brilho vítreo, e desenhos cor de sangue rodeavam o fosso central.
O velho apoiou-se no seu bordão no lado oposto.
— Meu Deus! Olha para o pormenor! — disse Ashley, saindo de junto de Ben para estudar um desenho mais de perto. Ajoelhou-se para ver melhor uma imagem de uma criatura a ser atacada por um grupo de guerreiros minúsculos. — Olha, a tinta vermelha tem a mesma cor daqueles frutos esquisitos. As cabaças são, provavelmente, uma espécie de tinta caseira.
— Excelente — disse Ben em tom sarcástico. — O covil de um artista qualquer.
— Não, acho que é um espaço religioso. As culturas primitivas atribuíam grande importância às imagens enterradas. Ídolos, estátuas, pinturas, esse tipo de coisas. Dá-me alguns minutos para as estudar. Talvez consiga aprender alguma coisa. — Ashley deslizou para o lado, de modo a examinar a pintura seguinte, sem se dar ao trabalho de olhar para ele.
Ben sentiu o olhar fixo de outros olhos, como no seu sonho, que lhe perfuravam a parte de trás do crânio. Virou-se.
O velho erguia-se do lado oposto, dirigindo apenas um rápido olhar de relance a Ashley antes de voltar a pousar nele os olhos cinzentos. O ancião acenou e sentou-se de pernas cruzadas no chão, o bordão equilibrado sobre os joelhos. Fez sinal a Ben para que o imitasse.
Baixando-se, Ben apercebeu-se, por fim, de quão cansadas estavam as suas pernas. Por aquela altura já devia ser tarde. Muito tarde. Com um suspiro sonoro, instalou-se no chão duro. Distendendo um nó nas costas, permitiu que o seu corpo se afundasse numa posição mais relaxada. Sonhou com uma grande garrafa de cerveja morna.
Erguendo os olhos de relance, apercebeu-se de que o velho o fitava sem emitir qualquer som, apenas aqueles intensos olhos cinzentos perscrutando-o. Parecia querer alguma coisa, mas o quê?
Ben sorriu-lhe, um dos seus «encantos» de marca, famoso por transformar um crocodilo num gatinho. Mas o ancião limitou-se a franzir o sobrolho, o olhar ainda expectante. Bem, que se lixasse, pensou Ben, deixando que as pálpebras se fechassem enquanto relaxava ainda mais. Tinha resolvido mistérios suficientes para um dia. Agora não queria senão encontrar um sítio para dormir. O seu queixo desceu lentamente até ao peito. Talvez uma sesta.
Deslizou para uma terra turva, apenas meio consciente dos pequenos sons que Ashley fazia ao avançar de desenho em desenho, ignorando os pequenos «ah» e «oh» das suas descobertas. Sabia tão bem libertar-se das pressões do dia, permitir que se afundassem na pedra. A sua respiração tornou-se mais profunda e um ligeiro saiu do seu nariz. Se ao menos pudesse...
— Ben! Benny, meu rapaz. Acorda, filho!
Os olhos de Ben abriram-se. Que raio? Ainda estava na mesma gruta, o anel de colunas e os frutos carnudos à sua volta. Mas, em vez da velha criatura, era o avô quem se sentava de pernas cruzadas do outro lado do fosso. O avô moveu a mão, cheia de manchas de idade, na sua direção. Ben olhou à volta. O local estava, em tudo o mais, vazio. Nem Ashley ali se encontrava. Esticou o pescoço, espreitando. É estranho, ainda a conseguia ouvir, afastando-se para a esquerda, até a ouvia balbuciar algo para si mesma, mas estava invisível.
— Benny, o que procuras?
— Onde estou?
O avô ergueu um dedo retorcido pela artrite e apontou para o seu crânio.
— Aqui dentro, meu rapaz.
Ben inspirou fundo, com o coração a bater mais depressa. Aquilo era uma loucura. O avô e a câmara começaram a desaparecer na escuridão.
— Uau. Então, rapaz. Tens de te acalmar. Não podes ficar tão enervado ou isto não vai funcionar.
Engolindo em seco, Ben começou a ter uma ideia do que se estava a passar. Concentrou-se em permitir que o seu corpo relaxasse, começando pelos dedos dos pés e subindo gradualmente. As imagens à sua volta intensificaram-se, ganhando nitidez.
— Assim mesmo, Benny. Assim está melhor.
Concentrou-se em respirar de forma constante e profunda enquanto falava.
— Não és o meu avô.
— Não, não sou. — O avô sorriu-lhe brevemente, depois a imagem diminuiu lentamente e redemoinhou, o sobrolho tornou-se mais carregado, os olhos afastaram-se mais; sobre os seus joelhos surgiu um bordão. O turbilhão cessou, assumindo a figura da velha criatura tolhida. — Esta, claro, é a minha verdadeira imagem. Chamo-me Mo’amba.
A voz do ancião era ainda como a do seu avô. Era desconcertante ouvi-la num rosto que lhe era tão estranho.
— Como? Porquê? — As perguntas agitavam-se na sua mente.
— Benny, nenhum de nós fala a língua do outro. Por isso falo-te na linguagem da mente. Os meus pensamentos são traduzidos pela tua mente em imagens e palavras que compreendes.
— Então roubou a memória do meu avô para se representar a si.
— Não fui eu. Foste tu. Foi a tua mente que recorreu à imagem do teu avô para representar os heri’huti.
Ben imaginou o rosto firme e sóbrio do avô.
— E que diabo é um heri’huti?
— Sou eu. És tu. Alguém com capacidade para estabelecer uma ligação no plano onírico. Para ver mais além, nos escuros caminhos do desconhecido.
— Mas porquê eu?
— Consigo ler a história do teu sangue. Um heri’huti forte desliza na tua linhagem desde o passado distante. Muito forte. Ainda não foste ensinado, mas com o tempo as tuas capacidades poderão suplantar as minhas. Isto é algo de que a minha aldeia necessita para sobreviver.
— Como assim, sobreviver?
— Sou o último do meu povo com esta capacidade — disse Mo’amba, a expressão subitamente infeliz. — Com o passar do tempo, fui vendo os outros heri’huti partir deste mundo e só eu fiquei. Agora, nem mesmo eu posso conduzir os caçadores para alimentarem o nosso povo e proteger as fronteiras dos crak’an. Os caçadores saem sozinhos. Às cegas. Sem a orientação de um heri’huti que veja para lá da curva seguinte, é muito perigoso, e já perdemos muitos caçadores. Todas as noites as viúvas choram. Não poderemos sobreviver muito mais tempo sem um novo heri’huti para guiar o nosso povo. — Apontou um dedo a Ben. — És tu quem procuro.
— Eu?
— Há muitos anos que chamo, tentando atrair outros como eu até à nossa aldeia. Mas tu foste o único a responder.
— Que raio, deve haver outros. Outros como... bem, como tu. Talvez outra aldeia partilhe os seus heri’huti com esta.
Mo’amba abanou a cabeça.
— Depois da Dispersão, as outras aldeias ficaram perdidas. Nos sonhos profundos, ouço por vezes sinais dos Perdidos, mas talvez sejam apenas sonhos esperançosos, mais do que sonhos verdadeiros.
— Ainda assim, não podes esperar que eu...
A forma de Mo’amba voltou a transformar-se na do avô, com rugas de raiva à volta dos olhos.
— O sangue corre verdadeiro! És um de nós!
Ben abriu a boca para objetar, quando a voz de Ashley se intrometeu subitamente:
— Ben, tens de ver isto!
Com as palavras dela, as imagens à sua volta dele desvaneceram-se, o rosto do avô foi engolido pela escuridão. Abriu os olhos e abanou a cabeça, limpando as persistentes teias de aranha do seu sonho.
Ashley fitava-o com uma sobrancelha erguida.
— Credo, como consegues dormir num momento destes?
— Como? — Atordoado, esfregou as fontes, um vago latejar ainda presente.
— Vem ver isto — disse Ashley, ignorando o que acabara de acontecer. Avançou alguns metros e ajoelhou-se junto de uma pintura, acenando para que ele se aproximasse.
Ben olhou de relance para o velho, do outro lado do espaço vazio. Continuava a fitá-lo.
Com um arrepio, Ben ergueu-se e deslizou para junto de Ashley, sem saber ao certo o que lhe dizer.
— Que descobriste, Ash?
— Olha para este petróglifo pintado. É um tríptico.
— Um trip... quê?
— Três imagens. Vê esta última. — Ashley agachou-se perante três círculos pintados a vermelho e apontou para o terceiro.
Ben ajoelhou-se mais perto, sem acreditar no que estava a ver. O terceiro círculo incluía um mapa rudimentar das massas terrestres do hemisfério sul.
— Meu Deus, é a Austrália.
— Eu sei. É grosseiro, mas bastante exato. Agora olha para os outros dois.
Ben estudou os outros dois círculos. O primeiro mostrava o continente australiano ainda ligado ao continente antártico através de uma larga ponte terrestre O segundo mostrava a mesma massa de terra enorme a afastar-se.
— Então e eles?
— É a ligação! Isto explica como os mimi da Austrália, pelo menos alguns deles, acabaram aqui.
— Continuo sem perceber.
Ashley suspirou como se já tivesse explicado adequadamente.
— Há vários milénios, pontes terrestres ligavam os diversos continentes. Com a movimentação das placas continentais e as alterações dramáticas nos níveis dos oceanos, as pontes terrestres surgiam e desapareciam com frequência. Algumas desapareciam em poucos meses. O registo fóssil também corrobora a existência de uma dessas pontes. Foram encontrados os restos fossilizados de muitas espécies de marsupiais extintos na Antártida.
Ben encolheu os ombros.
— Então, achas...?
— Sim! Olha para o primeiro mapa. — Apontou para a ligação entre os continentes. — Aquela é a ponte terrestre. A segunda imagem mostra a quebra da ponte. A terceira mostra como os continentes acabaram por ficar isolados.
— Mas como podem estas pessoas sabê-lo? Tê-lo mapeado?
Ashley sentou-se sobre os calcanhares.
— Claramente viveram-no. E mapearam-no, como os índios americanos com as linhas de costa. E através de uma história oral ou pictórica, mantiveram a recordação viva. — Apontou para a Austrália e a Antártida no terceiro mapa. — Outrora estiveram ligados. Depois algo levou estes povos a abandonar a Austrália, pelo menos parte deles. Ficaram presos aqui quando a ponte terrestre se afundou.
Ben estudou os desenhos, imaginando um povo obrigado a fugir para o continente gelado através de uma ponte terrestre. Pousou o dedo na Antártida. Duas tribos separadas.
— Meu Deus, a Dispersão — balbuciou. — Talvez fosse sobre isto que Mo’amba estava a falar.
— Quem? — perguntou Ashley, virando o nariz da imagem do meio.
— Ash, é melhor sentares-te para isto. — Ben fitou-a enquanto ela lhe dedicava toda a sua atenção, as sobrancelhas tensas e juntas. Mas enquanto explicava o que acabara de ocorrer entre ele e o velho, as sobrancelhas dela afastaram-se e subiram bem alto na sua testa.
— Quer dizer que ele consegue falar contigo! — exclamou quando ele terminou. — Eles usam uma qualquer forma de telepatia. — Olhou de relance na direção da criatura sentada de pernas cruzadas. — Ele está a ouvir-nos neste momento? A ler as nossas mentes?
— Não creio. Temos de estar ambos num estado de transe. Como os aborígenes fazem nas suas piscinas de sonhos quando comunicam.
— E ele é o último do seu povo com esta capacidade?
Ben acenou com a cabeça.
— Para além de mim.
A expressão de Ashley tornou-se pensativa.
— Do ponto de vista da genética populacional, a perda deste traço entre a tribo faz sentido. Esta comunidade está isolada há milhares de gerações. A consanguinidade neste grupo fechado, sem a infusão de matéria-prima genética nova, enfraqueceria a complexa cadeia de genes que cria esta capacidade, acabando por destruí-la. — Voltou-se para ele com os olhos muito abertos e inexpressivos. — Podia passar uma vida só a estudar o efeito deste traço sobre a população. Iria virar o campo da antropologia de cabeça para o ar. Quer dizer...
Ben ergueu uma mão.
— Ash, isso é tudo muito bonito, mas ainda precisamos de sair daqui. Ou, pelo menos, encontrar Michaelson e os outros.
O rosto de Ashley ficou sério com aquelas palavras.
— Tens razão — disse, acenando com a cabeça. — Há tempo mais do que suficiente para iniciar uma investigação depois de regressarmos à Base Alfa. — Apontou para a figura sentada. — Perguntaste a Mo’amba como sair daqui?
— Não. E não me parece que ele vá ser muito cooperante. Quer que eu fique. Que ocupe o seu lugar na tribo.
— Isso poderá ser um problema. — Ashley começou a bater com a ponta do dedo no queixo. — Há algo que não faz sentido. Se és tão diabolicamente importante para a tribo, por que razão te querem matar?
— Não sei.
— Aparentemente nem todos partilham o ponto de vista de Mo’amba. Aquele jovem com o bordão de rubi que talvez seja o líder da aldeia não queria ver-nos por perto, isso é certo. Talvez pudéssemos...
Uma súbita confusão irrompeu atrás deles. Ben virou-se e viu uma figura familiar a coxear na sua direção por entre as colunas cobertas. Um pequeno grupo de criaturas armadas seguiam-no, com as lanças a bater nas cabaças vermelhas e a fazê-las balançar.
Ashley levantou-se de um salto.
— É o Michaelson!
Os olhos de Ben deslizaram pela legião de espadas que seguia o major. Estudou o número de guerreiros armados. Ainda que a maioria segurasse as lanças casualmente, sobre os ombros, alguns mantinham as mãos desconfiadas nas facas embainhadas.
Avançando para Michaelson, Ben deu-lhe uma palmada no ombro. Apercebeu-se das manchas de sangue no seu rosto.
— Que aconteceu? — perguntou. — Parece que passaste um mau bocado.
Ashley juntou-se a eles, com uma expressão preocupada no rosto enquanto procurava ferimentos.
Michaelson evitou os seus olhos com uma expressão envergonhada.
— Não é nada. A maior parte do sangue nem sequer é meu. Além disso, não é importante. Escutem, não temos muito tempo.
A multidão de guerreiros agitou-se atrás deles. Michaelson olhou de relance para trás. Uma figura alta, envergando uma farda militar, usava os cotovelos para abrir caminho entre os guerreiros. Quando avançou para Michaelson, Ben reconheceu a semelhança de família. O mesmo cabelo negro e olhos azuis. O mesmo nariz aquilino.
— O meu irmão, Harry — declarou Michaelson.
— Só podes estar a brincar — disse Ashley. — Encontraste-o.
— Na realidade, foi ele que me encontrou. Tem estado a viver com estes... estas criaturas nos últimos três meses.
Ben reparou que os olhos de Harry vagueavam pelo corpo de Ashley com uma expressão apreciativa.
— Disseste-lhes? — perguntou Harry ao irmão.
— Não. Estava prestes a fazê-lo.
Acenando com a cabeça, Harry virou-se para Ben e Ashley.
— Desculpem. Pensei que eram todos refugiados.
— Como assim? — perguntou Ben.
Harry engoliu em seco.
— Pensei que já soubessem. Ou teria tentado alcançar-vos mais cedo.
— O quê? — perguntou Ashley em tom nervoso, tentando que Harry dissesse de uma vez o que estava a evitar.
Michaelson pigarreou.
— A Base Alfa. Foi destruída.
Ashley estacou, a boca entreaberta numa pergunta por fazer, depois virou-se lentamente para Ben, o medo a brilhar-lhe nos olhos.
— Não pode ser — sussurrou. — Então e o Jason?
Ben tomou-a nos braços, apertando-a contra si.
— Chiu — sussurrou. — Estou certo de que ao primeiro sinal de problemas, Blakely o levou para longe do perigo.
As palavras dele pareceram acalmá-la, dando-lhe uma âncora à qual prender as suas esperanças. O seu tremor abrandou, depois parou. Libertou-se dos braços dele, o maxilar numa expressão feroz.
— Temos de ir lá acima. Preciso de saber o que aconteceu.
Ben conseguia ouvir as lágrimas logo atrás das palavras.
— Eu sei. Partiremos imediatamente.
Harry avançou.
— Escutem, não podemos simplesmente... — Saltou quando um estalido se fez ouvir atrás deles.
Ben virou-se e viu o chefe da aldeia a avançar na direção deles. Bateu uma vez mais com o seu novo bordão no chão fazendo um som ensurdecedor na câmara.
— Uh, oh — disse Ben, num sussurro. — Parece que alguém está muito chateado.
Mo’amba esforçou-se por se erguer perante o súbito aparecimento do líder da aldeia, apoiando-se no seu bordão. Avançou com dificuldade para intervir. Foram trocadas palavras acaloradas entre eles. O rosto do chefe passou de vermelho a negro enquanto discutiam. Por fim, numa explosão de grunhidos, o chefe varreu o chão com o seu bordão, retirando o bordão de Mo’amba de debaixo dele. Sem esse apoio, o velho caiu.
Um arquejo ergueu-se entre os guerreiros que rodeavam o grupo, vários viraram as costas. O chefe fitou os outros cautelosamente, o peito a subir e a descer. Por fim, pareceu acalmar-se um pouco e ajudou Mo’amba a levantar-se. Foram então trocadas palavras mais calmas, seguidas por um momento de silêncio confrangedor, enquanto se fitavam mutuamente. O chefe rosnou, bateu com o bordão no chão rematando o assunto, e afastou-se com passos pesados.
Michaelson virou-se para Harry.
— Conseguiste perceber alguma coisa?
Harry acenou com a cabeça, o rosto privado de cor.
— Problemas.
CAPÍTULO 25
Jason soube que estavam em apuros quando os dois adultos começaram a falar em tom baixo. Imediatamente à sua frente, a passagem do túnel estava bloqueada por um antigo desabamento. Apenas um pequeno buraco, do tamanho de uma abóbora, atravessava as pedras caídas. Através desse minúsculo buraco, o ar carregado de fumo corria veloz na sua direção soprando contra os seus rostos. Jason fitou os dois adultos agachados junto ao desabamento.
— Não podemos voltar para trás — disse Linda. — Ele vai estar à nossa espera.
— Bem, então talvez possamos encontrar outro caminho de regresso à Base Alfa. Por um dos túneis laterais — disse Blakely, a voz sibilante no ar carregado de fumo, os olhos vermelhos e lacrimejantes.
Jason olhou para o caminho por onde tinham vindo. Apertando o nariz contra o mau cheiro, observou as espirais de fumo negro que voavam para longe de si, um fumo que fedia como a borracha queimada dos pneus. Até conseguir sentir o seu cheiro desagradável na parte de trás da língua, como algo espesso e oleoso. Por muito que cuspisse, não conseguia libertar-se desse gosto desagradável. Até mesmo o pano húmido com que envolvera o rosto pouco fazia para impedir o mau cheiro.
Ainda assim, ninguém se queixara muito dado que o fumo era também o seu guia invisível. Durante aquele dia, sempre que alcançavam uma interceção nos túneis, quando era necessário decidir para qual virar, o fumo que deslizava pelos túneis a partir da base em chamas indicava o caminho certo.
— Dar meia-volta? Não sei — disse Linda atrás dele. — Nenhuma das outras passagens tinha qualquer brisa. O ar parecia estagnado.
— Que outra hipótese nos resta? Não podemos avançar. — O cientista tossiu roucamente. — E, pelo menos, ficaríamos longe deste maldito fumo.
Jason avançou para o lado de Linda.
— Talvez eu consiga passar pelo buraco.
Linda dirigiu-lhe um sorriso débil.
— Não, querido, é demasiado pequeno.
— Deixa-me ver — disse Jason espremendo-se entre Linda e Blakely. Tossiu quando sentiu o cheiro do fumo espesso que passava pela abertura.
Blakely envolveu-o com um braço.
— Espera, Jason. Não sabemos se é estável. Além disso, a Linda tem razão. É demasiado pequeno.
Mas Jason insistiu.
— Deixem-me só ver! — Afastou a mão de Blakely e agachou-se. A coluna de fumo parecia um pilar sólido que se projetava na sua direção vinda da abertura. Colocando um punho cerrado à sua frente, sentiu-se impressionado com a pressão do vento, como quem estica um braço pela janela de um carro a acelerar. Mas o seu espanto transformou-se rapidamente em náuseas quando perturbou o fluxo do fumo, lançando-o diretamente contra o rosto. Engasgado, afastou a mão. As luzes redemoinharam à frente dos seus olhos, enquanto tentava respirar ar puro. Blakely pousou-lhe a mão no ombro, com um sorriso meio divertido estampado nos lábios.
— Tem cuidado, rapaz, é suficientemente forte para te matar.
Com o rosto corado, Jason afastou a mão de Blakely, agora ainda mais determinado em investigar o buraco. Antes que alguém o conseguisse impedir, encheu os pulmões de ar e fechou os olhos e os lábios com força. Depois mergulhou para a frente na direção do vento repleto de fumo.
Viu-se quase de imediato repelido pela pressão, mas fincou os dedos dos pés por baixo de si. Passando um braço e o ombro através do buraco, remexeu-se, procurando uma forma de avançar.
Se conseguisse virar a cabeça e torcer-se noutra direção... mas a rocha bloqueava-o a cada instante. Em poucos segundos apercebeu-se de que era demasiado para que conseguisse passar. Desiludido, recuou e rolou para o lado, soltando a respiração sustida num longo suspiro.
Viu Blakely acenar com a mão à frente do nariz, enquanto o fumo perturbado o rodeava.
— De muito te serviu. Quase nos gaseavas aos dois com a tua tolice.
— Mas eu estava só...
— Já chega destes disparates, temos simplesmente de aceitar esta contrariedade e encontrar um caminho alternativo. Este túnel é um beco sem saída para nós,.
Jason fungou, tentando salvar a face.
— Mas descobri que o buraco só tem cerca de sessenta centímetros de profundidade. Depois disso volta a abrir. Acredito que o túnel esteja intacto para lá desta secção. Se conseguirmos encontrar forma de passar...
— A menos que, por acaso, tragas uma picareta escondida debaixo da t-shirt, temo que não seja de grade ajuda.
Jason, finalmente derrotado, deixou pender a cabeça.
Linda pousou a mão no joelho dele num gesto de consolo.
— Bem, pelo menos tentaste. Além disso não fizeste mal algum. Raios, se eu fosse um pouco mais esperta teria roubado um cubo daqueles explosivos plásticos do Khalid. Teríamos podido abrir caminho. — Ergueu o queixo dele com um dedo. — Estou muito orgulhosa de ti.
Jason tentou suprimir um sorriso mas não conseguiu.
— Obrigado.
Linda despenteou-lhe o cabelo, depois voltou-se de novo para Blakely.
— Creio que não temos outra hipótese senão procurar um caminho alternativo.
Blakely balbuciou algo em resposta, mas Jason tinha deixado de ouvir. Em vez disso, as palavras de Linda repetiam-se na sua mente: Cubos? Explosivos? Levantou-se. Poderia ser?
Avançou até onde Linda estava mergulhada numa conversa com Blakely e puxou-lhe pela manga. Linda olhou de relance para ele, e Blakely franziu o sobrolho, os olhos semicerrados de irritação perante a intrusão.
— Que foi agora, Jason? — disse ela, afastando uma madeixa de cabelo louro.
Jason saltava de um pé para o outro.
— Hum, Linda, aquele explosivo de que falaste. Acho que sou capaz de ter um pouco disso.
Blakely avançou.
— O quê? Como?
Linda pousou a mão no braço de Blakely, contendo-o.
— Jason, porque achas que podes ter algum explosivo?
Raspando com a biqueira do ténis no piso rochoso, sem olhar para o rosto de qualquer um dos adultos, Jason narrou o incidente na casa de banho quando o saco de Khalid se virou no cubículo.
— Tenho-o no meu saco de desporto — terminou, apontando para o saco vermelho da Nike aos seus pés. — Vou mostrar-vos.
Abriu o saco e vasculhou. Devia ter dito a alguém. Agora ia ver-se em apuros. Arrastou o conteúdo do saco de um lado para o outro. Era difícil procurar, repleto de roupa, uma toalha cor de laranja, um baralho de cartas que tinham caído da sua caixa e estavam espalhadas pelo interior, trocos para a máquina de jogos. Onde estaria?
Passado um minuto, Blakely exclamou exasperado:
— Despeja tudo para o chão. — Tentou tirar o saco a Jason.
— Espere! — Jason tirou o gameboy da Nintendo do saco. — Vai partir-se. — Enfiou o gameboy no bolso do casaco.
O cientista virou o saco e abanou-o. Todas as suas coisas caíram para o chão. Os três procuraram, então, por entre os despojos.
Jason afastou cuidadosamente um par de cuecas dos olhos de Linda, envergonhado com a possibilidade de que esta pudesse ver os seus boxers. Enquanto os estava a esconder debaixo da toalha, viu o material cinzento familiar.
Pegando no barro, estendeu-o a Linda.
— Aqui está.
Com um ligeiro sorriso nos lábios, ela aceitou o barro esculpido, fitando o seu trabalho.
— Belo avião.
Jason encolheu os ombros.
— Pensei que era algum tipo de plasticina dura.
Blakely olhava com uma expressão de incredulidade nos olhos.
— Tens a certeza de que é o explosivo?
Linda pescou um pedaço de celofane amarrotado dos pertences de Jason.
— Sim, é o mesmo celofane que envolvia os outros cubos.
Blakely pegou no avião como se lidasse com uma peça de arte cara e frágil.
— Muito bem, temos um explosivo, mas nada com que detoná-lo. Precisamos de um detonador.
— Que é isso? — perguntou Jason.
Blakely limitou-se a franzir o sobrolho, mas Linda respondeu:
— São pequenos explosivos que despoletam o pedaço de explosivo plástico.
— Como as bombinhas?
— Isso poderia servir — responde Blakely —, mas não vamos encontrar bancas de bombinhas por aqui.
Vasculhando a bolsa interior do seu saco, Jason retirou a pequena bombinha com a forma de uma cereja vermelha que escondera de olhos mais curiosos.
— Isto funcionará?
Linda fitou-a.
— Acha...? Será que funciona?
Blakely acenou com a cabeça, sorrindo.
— Acredito que sim.
Linda devolveu-lhe o sorriso, depois virou-se e abraçou Jason.
— Estás cheio de surpresas, homenzinho.
Jason corou.
— Mas não contem à minha mãe da bombinha. Ela matava-me.
Khalid agachou-se junto à bifurcação dos túneis, inclinando-se primeiro para um e depois para o outro. Cheirou o ar, como um rafeiro que segue um rasto. O túnel esquerdo tinha um odor subtil no ar que lhe fazia arder ligeiramente o nariz. Fumo. Seguiu para a esquerda segurando o isqueiro. Tinha tido o cuidado de definir a chama para o mais baixo possível, criando apenas um fraco tremeluzir, o que conservava o butano no seu isqueiro. Caso se esgotasse, ficaria cego, incapaz de prosseguir com a sua missão. Tinha de mimar aquela minúscula chama.
Na escuridão estígia, até a sua pequena chama era suficiente para iluminar o caminho durante vários metros. Seguiu em frente com firmeza, não perdendo tempo para descansar. Não havia como saber que avanço Linda e o seu grupo poderiam ter. Mas havia pistas de que avançavam na direção certa: pegadas na lama, o papel de uma barra de rações. Uma mancha num local onde alguém parara para urinar, o odor do amoníaco ainda pungente. Estava perto.
A sua mente vagueava enquanto acelerava pelos túneis monótonos, permitindo que o seu corpo treinado se mantivesse em perseguição, contornando os abismos, saltando sobre as falhas, trepando pelas obstruções provocadas pelos pedregulhos, determinado a encurtar a distância.
Linda empurrou Jason mais para trás, contornando uma curva do túnel, rezando para que Blakely soubesse o que raio estava a fazer. De nada lhes serviria fazer desabar todo o sistema de túneis em cima deles. Ainda assim, sabia que tinham de arriscar. Voltar para trás era convidar o desastre. Para a frente era o único caminho possível.
— Quero ver — disse Jason.
— Não, querido, é perigoso. Toma, tapa os ouvidos. — Ela entregou-lhe duas bolas de algodão retiradas do kit de primeiros socorros. Quando eu te disser, tapa os ouvidos e abre a boca.
— Porquê?
— A explosão será perigosamente ruidosa. Pode danificar os teus tímpanos.
Jason remexeu-se.
— Ainda assim quero ver.
Blakely apareceu de repente à sua frente, ligeiramente sem fôlego.
— Tudo pronto. Dei forma à carga para que rebente na direção oposta a nós. Estão prontos?
Linda acenou com a cabeça.
— Como está a sua pontaria?
— Não é má, mas com esta pressão... — Encolheu os ombros.
— Só tem uma oportunidade. — Blakely ergueu a pistola de sinalização.
— Eu sei. — A bombinha tinha sido envolta no explosivo plástico, e o plano era acioná-la utilizando a pistola de sinalização de uma distância segura. Acenou para que recuassem mais.
Linda puxou o rapaz para trás de si.
— Boa sorte.
Blakely limpou a testa molhada com a manga e, depois, deu alguns passos na direção do túnel para conseguir um tiro mais certeiro. Linda apercebeu-se de que os lábios dele estavam manchados de roxo. A tensão e o stresse estavam a piorar os seus problemas cardíacos. Precisava de duas semanas na cama, não a trepar por túneis repletos de fumo a fugir de um louco. Observou enquanto ele tapava as orelhas com algodão. Em seguida fez um sinal com um polegar erguido e apontou a pistola de sinalização.
Usando mímica, Linda disse a Jason para tapar os ouvidos e abrir a boca. Ele fez como ela dizia, mas não parou de tentar espreitar à volta dela para ver onde se erguia Blakely.
De orelhas tapadas, ouviu o estalido da pistola de sinalização, que mais parecia um brinquedo, depois viu Blakely baixar a arma. Nada aconteceu.
Blakely virou-se para ela, encolhendo os ombros, e abriu a boca para falar quando ocorreu a explosão. O vento pareceu preceder o som. Ela observou quando Blakely foi subitamente projetado para trás pela onda de choque, erguendo os pés do chão, colidindo contra a parede.
Antes que conseguisse avançar para ajudar, também ela foi lançada para o túnel, caindo em cima de Jason. O forte rugido varreu-a, como um comboio de carga invisível a acelerar para lá dela, o ruído tão forte que a sua mente tentou desligar. Primeiro a explosão, depois nada mais que um tinido monótono. Pó e fumo deslizaram pelo túnel, engasgando-a, deixando-a a ela e a Jason isolados numa esfera gerada pela luz do seu capacete. Paredes de pó redemoinhante engoliram-nos.
Linda ajudou Jason a levantar-se. Este segurava no cotovelo e tremia, mas em tudo o resto parecia incólume. Atordoada, nem sequer tinha a certeza da direção que os levaria de novo para junto de Blakely. Ele podia estar ferido. Libertou a pequena lanterna, na esperança de que a luz adicional penetrasse a escuridão melhor do que a do seu capacete. Moveu-a para trás e para a frente. Nada.
Jason apontou com uma mão, ao mesmo tempo que retirava o algodão dos ouvidos.
— Ali. Acho que estou a ver uma luz.
Também Linda a via agora, um brilho de luz que avançava saltitante na sua direção. Deu um suspiro de alívio. Apressou-se a ir ter com Blakely na esperança de que o caminho estivesse agora desimpedido.
— Espera! — gritou de súbito Jason, puxando-a por um braço para a impedir de continuar.
Linda baixou os olhos de relance para ele.
— O que...? — Em seguida voltou a olhar para a frente, quando a figura penetrou no fumo, mergulhando na sua esfera de luz. Não era Blakely. Ela recuou um passo. Não!
Ele erguia um isqueiro numa mão e uma pistola na outra, o sangue a escorrer-lhe pela face direita devido a um corte na têmpora.
— Que adequado que o ribombar de um trovão preceda a minha tempestade — disse Khalid, depois apontou a pistola ao peito de Linda.
Blakely gemeu, com a dor a pulsar violentamente no seu peito. O seu primeiro pensamento foi que se trataria de novo do coração, mas reparou que a dor piorava quando inalava, mas diminuía quando exalava. Uma costela partida, pensou. Deslizou a mão pelo lado direito. Logo abaixo da axila, um caroço de agonia confirmou as suas suspeitas. Sem dúvida partida, mas apenas uma delas. Raios, como se não tivesse já problemas que chegassem. Inclinou a cabeça para trás contra a parede, fechou os olhos e puxou o lenço húmido de novo para cima do nariz. Embora fedesse a muco e suor, era melhor do que inalar o ar agitado pela explosão.
Iria esperar que o pó assentasse, depois permitiria que Linda o ajudasse a envolver o peito antes de seguirem em frente. Suspirou, pretendendo relaxar, mas um receio súbito fê-lo abrir de novo os olhos. E se a explosão não tivesse afastado pedras suficientes ou, pior ainda, tivesse feito abater ainda mais o túnel? E se tivesse partido uma costela para nada? Tinha de saber.
Com um esgar, cerrando os dentes de dor, levou a mão à cintura em busca da lanterna. Libertou-a do cinto com um estremecimento. Todo e qualquer movimento era como se alguém o espetasse com uma lança embotada e a torcesse sem misericórdia! Lutando contra a dor, ergueu a lanterna e ligou-a. O feixe lançou-se em frente, mas foi bloqueado pelo pó de pedra e pelo fumo que pairava no ar. Não conseguia ver mais do que três metros.
Talvez se conseguisse avançar mais alguns metros fosse capaz de examinar o local da explosão. E se tivesse dado a forma errada à carga? Não, não o podia ter feito. Tinha feito tal como Hans, o especialista em demolições alemão da Base Alfa, lhe mostrara.
Só havia uma maneira de descobrir. Ergueu-se cuidadosamente; a dor piorou, mas apenas a ponto de lhe levar as lágrimas aos olhos. Conseguiria aguentá-la por um breve período. Inspirou fundo, preparando-se para a dolorosa viagem em frente. Imediatamente antes de conseguir dar o seu primeiro passo, ouviu uma voz que falava alto a ecoar atrás de si. Era Linda. Ótimo, pelo menos estava bem. Virou a luz na direção das vozes. A lanterna revelou apenas fumo negro e o zumbido nos ouvidos bloqueava todos os sons à exceção dos mais altos. Abanou a cabeça, virando de novo a luz na direção do local onde aplicara o explosivo. Em breve se juntariam a ele.
Deu um passo em frente, pretendendo verificar o local da explosão antes do seu regresso. O movimento enterrou ainda mais a lança de dor no seu flanco. Com cautela, respirou superficialmente, sabendo que um estilhaço do osso da costela lhe podia dilacerar os pulmões transformando-os em confetes.
Depois de outros dois passos, parou para descansar, a testa a pingar de suor. Aquilo também não era bom para o seu coração. Mas o desespero fazia-o prosseguir. Além disso, se tivesse feito asneira na colocação da carga explosiva, queria ser o primeiro a saber.
Seguindo o rasto de destroços com a sua lanterna, viu a parede de rocha que tinha bloqueado o caminho em frente e sorriu. Um buraco suficientemente grande para permitir a passagem a um elefante bebé expunha agora o caminho em frente.
Atrás de si, o tiro de uma pistola ecoou subitamente pelo túnel. Sem pensar, Blakely saltou e virou-se para trás na direção do som. Uma chibatada de fogo dilacerante trespassou-lhe o peito quando se virou. O feixe da sua lanterna diminuiu para um tremeluzir ao mesmo tempo que a dor lhe escurecia o campo de visão, ameaçando derrubá-lo.
Deu um passo em frente, envolvendo o peito com os braços, tentando contar a dor. Tossiu para o lenço que lhe cobria o rosto, desencadeando uma pontada e agonia que o fez cair de joelhos. Sentindo o cheiro do seu próprio sangue na expetoração, arrancou o lenço do rosto, enojado. Pequenos alfinetes de luz giravam à frente dos seus olhos enquanto lutava para não desmaiar.
Um segundo tiro fez-se ouvir.
Linda estremeceu quando a bala fez ricochete na rocha sobre a sua cabeça e passou ao lado do seu ouvido. Khalid erguia-se friamente à sua frente, pontuando as suas palavras com tiros de pistola, perfurando as paredes com tiros de raspão. Linda pousou a mão na cabeça de Jason que sentia atrás de si, tentando reconfortá-lo.
Khalid falava lentamente:
— Tinha esperança de que reconhecesses a importância da minha missão.
— Khalid — disse Linda, as palavras prendendo-se-lhe na garganta, mas tinha de tentar trazê-lo à razão —, não podia permitir que os abandonasses, deixando-os para morrer.
Mais depressa do que ela poderia reagir, Khalid lançou-se contra ela, empurrando-a para o lado, e agarrou no braço de Jason, libertando-o dela. Desequilibrada, Linda escorregou e caiu no chão, aterrando com força sobre o joelho.
— Não faças isso, Khalid! — suplicou, as lágrimas a encher-lhe os olhos. — Por favor. Farei o que quiseres.
Por um instante, ele pareceu hesitar, a pistola vacilando. Depois apertou Jason com força contra o peito, encostando a boca da pistola à têmpora do rapaz. Os olhos deste muito abertos de medo, mas secos, os lábios pálidos. Contorceu-se, mas Khalid sabia como segurar um refém; mesmo com os movimentos frenéticos de Jason, a boca da pistola nunca se afastou da sua têmpora. Linda apercebeu-se de que não havia esperança.
De repente...
— Deixa o rapaz em paz! — Blakely cambaleou até ao seu campo visual, sobressaltando Linda. Até Khalid saltou ligeiramente, recuando um passo.
Blakely apoiava-se com um braço na parede do túnel, segurando com a outra mão a pistola de sinalização apontada a Khalid. Linda sabia que era uma ameaça vazia, a arma já tinha sido utilizada, mas Khalid não o sabia. Permitiu-se uma pequena esperança. Viu o sangue que pingava dos lábios do cientista, a sua respiração difícil. O ricochete da explosão devia tê-lo ferido com gravidade.
— Eu disse — silvou — para deixares o rapaz em paz... Solta-o. — A pistola de sinalização movia-se em círculos na sua mão cada vez mais fraca.
Blakely colocou-se entre Linda e Khalid.
— Agora!
Khalid pareceu recuar perante a arma. Depois, como uma cobra a atacar, lançou-se em frente, tirando a arma da mão de Blakely com um movimento.
— As ameaças vazias são perigosas, doutor. Vi-o utilizar o foguete para fazer explodir a abertura. — Khalid acenou na direção do túnel aberto. — Já agora, obrigado.
Blakely tossiu e encostou-se à parede, os lábios apertados e azuis devido à dor e à exaustão. Virou-se para Linda, enquanto sangue fresco corria dos seus lábios.
— Lamento — sussurrou.
Linda avançou para Blakely ao mesmo tempo que Khalid recuava, agarrando Jason de novo com a pistola encostada à sua cabeça. Linda verificou a pulsação de Blakely, fraca e quase impercetível. Precisava de cuidados médicos imediatos. Virou-se para Khalid que recuara cerca de um metro.
— Por favor, para com isto — implorou. — Podemos ir todos juntos. Não há razão nenhuma para que alguém tenha de morrer. Deixa ir o rapaz.
Fitando-a, Khalid fez a coisa mais impressionante: inclinou-se para a frente e pousou a arma no chão. Por um momento, Linda sentiu o coração mais leve. Quando se ergueu, contudo, Khalid retirou uma pequena arma de um coldre escondido por cima da bota. Encostou esta nova arma a Jason, que continuava preso contra o seu peito, os braços do rapaz apertados no círculo formado pelo braço de Khalid.
— Queres que o rapaz viva? — disse Khalid, os olhos semicerrados. Pontapeou a arma na direção de Linda. — Mata o doutor.
Ela fitava a arma como se fosse algo tóxico, temendo tocar-lhe.
— De que estás a falar? — disse ela, virando os olhos para Khalid.
— Estamos a carregar demasiado peso morto. Ou levo o rapaz ou levo o cientista connosco. Tu escolhes. Só resta uma bala. Quero que mates o Blakely ou eu mato o rapaz.
— Não! — gritou ela, afastando-se da arma.
— Nesse caso o rapaz morre. A escolha é tua. Eu sou apenas o instrumento.
— Khalid... por favor — disse ela, com as lágrimas a correr —, não me obrigues a fazer isto.
A voz de Blakely ergueu-se.
— Pega na arma. — As suas palavras eram simples e calmas, de tal modo que Linda deu por si a estender para ela o braço sem que disso se apercebesse. Estacou. A mão a pairar sobre o punho.
— Fá-lo!
Linda agarrou na arma. Ainda estava quente ao toque devido às balas já disparadas. Segurou-a entre as duas mãos, temendo confiar apenas numa.
Como se lhe lesse a mente, Khalid avisou:
— Só tens uma bala, minha querida. Mesmo que me consigas atingir, o rapaz estará morto antes que consigas puxar o gatilho.
Linda tinha os ombros caídos.
— Porquê? — perguntou com a voz fraca. — Porque me fazes isto?
— Preciso de ajuda. Preciso de obediência. Vou ensinar-te a obedecer.
— Não posso — disse ela. — Não posso simplesmente matar alguém assim.
— Escuta — disse Blakely, a sua voz rouca e pastosa. — Tens de fazer isto. — Depois acrescentou num sussurro. — Tens de conseguir algum tempo. Ele vai matar-nos a todos, de qualquer maneira.
— Mas...
Blakely tossiu, as lágrimas acumulando-se-lhe nos olhos, rugas de dor marcando-lhe as feições.
— Fá-lo. De qualquer forma, não conseguirei safar-me.
— Eu... mesmo assim não consigo — sussurrou ela, a cabeça tombando-lhe para o peito.
Blakely estendeu para ela o braço, pousando a mão na cabeça dela, sussurrando-lhe ao ouvido.
— A minha esposa faleceu há quatro anos. Os meus filhos estão crescidos. Já fiz saltar sete netos no meu joelho. Tive uma vida plena. Mas o Jason está apenas a começar. — Blakely ergueu a cabeça, depois segurou-lhe nas mãos que apertavam a arma. Colocou a arma contra a palma de uma das mãos dela e ergueu-a, posicionando a boca contra a testa. — Sê forte, Linda.
— Não, por favor, não — chorou ela, as lágrimas a correrem pelo seu rosto.
Blakely fechou os olhos, continuando a segurar a mão dela com a sua. Oculto dos olhos de Khalid, Linda sentiu que o dedo dele afastava o dela do gatilho.
— Eu sei — sussurrou —, não permitirei que o sacana ganhe. — O dedo dele substituiu o dela no gatilho. Ela sentiu o dedo dele estremecer e a explosão e o coice que se seguiram fizeram saltar a arma das mãos dela. Esta caiu ao chão ruidosamente, o fumo a erguer-se do cano.
Em choque, permaneceu imóvel, as mãos ainda erguidas como se continuasse a segurar a arma. Blakely tombara para o lado, fitando de olhos vazios a parede oposta, um buraco do tamanho de uma moeda na testa. A ferida parecia tão pequena, como se um simples penso a pudesse tratar.
— Não — gemeu ela, balançando para trás e para a frente —, não, não, não...
De súbito Jason correu para o seu lado, abraçando-a por trás. Khalid tinha libertado o rapaz. Jason abraçou-a em silêncio, fitando a forma imóvel de Blakely de olhos muito abertos.
Linda virou-se para Khalid; este continuava a apontar a arma na sua direção.
— Prometeste que não farias mal ao rapaz.
— Não farei — disse ele. As suas palavras eram frias, sem qualquer preocupação pelo homem morto caído no túnel. — Ao contrário de ti, sou um homem de palavra. Mas agora é tempo da tua próxima lição.
— Não me podes manter amarrada o tempo todo — protestou Linda. As suas tentativas para soltar os nós que a prendiam não fizeram mais do que apertá-los.
— És esperta, Linda — disse Khalid, sorrindo perante os esforços para se libertar. — E ainda temos um longo caminho a percorrer antes de alcançarmos a Base Alfa. Não te vou perder de novo. — Agarrou em Jason pela parte de cima do braço e empurrou-o ao longo do túnel. — Podes ter a certeza disso.
Temendo que ele tencionasse magoar Jason, gritou-lhe:
— O que vais...? Prometeste não o magoar.
— Não te preocupes. Manterei a minha palavra. — Ele desapareceu para lá de uma curva.
Ela fitou o túnel à sua volta, com o coração a bater com tanta força na sua garganta que quase não conseguia respirar. Que teria ele em mente agora? Deu um último puxão às cordas que a prendiam.
Olhou à sua volta, a luz do capacete lançando apenas um ténue dedo de luz. Pelo menos o fumo diminuíra, o que lhe permitia respirar sem máscara. Ainda assim, havia fumo suficiente para fazer arder os olhos e o nariz.
Virando o capacete para o outro lado, tentou ver algum sinal do que Khalid estaria a planear. Ouviu uma palavra ou ruído ocasional provenientes do local por onde ele e Jason tinham desaparecido. Que estaria ele a tramar?
Passaram-se quase duas horas antes de, por fim, ouvir o raspar das botas na rocha, assinalando o regresso de Khalid e Jason. Exausta, quase adormecera. Já se tinham passado pelo menos quarenta horas desde a última vez que dormira.
— Estás bem, Jason? — perguntou.
Ele acenou, mas tinha uma expressão estranha estampada no rosto.
Khalid avançou até ela e soltou a corda, libertando-lhe as mãos.
— Montei acampamento. Ficaremos aqui durante seis horas, depois prosseguiremos.
Esfregando os pulsos vermelhos, apercebeu-se de que Khalid não tinha a arma. Estranho, não o vira sem a pequena pistola prateada nas mãos desde a morte de Blakely. Ele virou-lhe as costas e afastou-se, deixando-a a sós com Jason. A falta de preocupação dele perturbou-a. Ela podia agarrar em Jason e fugir, mas sabia que não devia tentar; ele limitar-se-ia a localizá-los de novo. Ainda assim, aquela súbita falta de preocupação deixava-a baralhada.
Ajoelhou-se junto de Jason.
— Ele magoou-te?
— Não, mas... Não o consegui impedir — Jason começou subitamente a chorar.
Linda abraçou-o com força.
— Que foi, Jason? Conta-me.
Os soluços de Jason deram lugar a espasmos trémulos.
—Ele... ele... eu não quero morrer! — Os seus soluços tornaram-se ainda mais aflitivos.
Ela abraçou-o com mais força, permitindo-lhe acalmar-se por si. Depois de vários minutos, ele fungou as suas últimas lágrimas.
— Hei de conseguir tirar-te daqui. Prometo. — Secretamente esperava que fosse uma promessa que conseguisse manter. — Agora inspira fundo e diz-me o que aconteceu.
Jason deixou pender a cabeça, depois ergueu a t-shirt. Ela estremeceu, esperando que ele revelasse alguma forma de agressão física perpetrada por Khalid. Mas o que Jason revelou foi muito pior.
— Meu Deus! — disse Linda, arquejando. — O que é que ele te fez?
Jason tocou cautelosamente com o dedo num cinto de nylon preto que lhe envolvia a cintura, bem apertado contra a sua barriga branca. Maços de explosivo plástico cinzento projetavam-se do cinto, ligados uns aos outros por fios de várias cores. Ela fitou com mais atenção a grande fivela do cinto. Um painel LED iluminado com um pequeno teclado do tamanho de um cartão de visita estava preso ao fecho. Um molho retorcido de fios de várias cores convergia para o aparelho. Minúsculos números vermelhos iam assinalando a contagem decrescente no visor.
— Porquê? — balbuciou Linda para si mesma.
— Ele disse que era uma lição de obediência — respondeu Jason. — A cada duas horas, Khalid tem de inserir um código secreto ou a bomba irá explodir. E se eu tentar tirar o cinto, também explodirá.
Os ombros de Linda afundaram-se.
— O sacana. Portanto, estamos dependentes dele. Se partirmos ou se algo acontecer ao Khalid, então... — Ela parou.
— Então explodirei — terminou Jason. — Ele disse que não ia doer.
— Ele explicou-te tudo isto! Que tipo de monstro é ele?
Jason respondeu com a voz fraca:
— Um inteligente.
CAPÍTULO 26
Ashley puxou a manga de Harry, apercebendo-se de quão parecido este era com o major Michaelson, em especial quando exibia uma expressão firme. Como agora, os mesmos lábios cerrados, a mesma ruga profunda entre as sobrancelhas.
— Sobre que raio estão a discutir? — perguntou.
Mo’amba já tinha seguido o chefe para o exterior da câmara, apoiando-se pesadamente no seu bordão. Uma boa parte dos guerreiros tinha igualmente desaparecido em diferentes direções. Ashley olhou de relance à sua volta. Um pequeno grupo de elementos da tribo, empunhando lanças, continuava à sua volta, as expressões desconfiadas.
— Em que tipo de problemas nos metemos agora? — perguntou, virando de novo a atenção para Harry.
Este fitou os guardas por entre as pálpebras semicerradas, depois falou:
— Problemas é uma palavra demasiado fraca. Decidiram que vocês dois terão de morrer, na mesma.
Os olhos de Ashley abriram-se mais.
— Mas porquê? E quanto a ti e ao Michaelson?
— Fomos adotados pela seita dos guerreiros. O grupo tem um código de honra rigoroso, chamam-lhe il’jann. Nem mesmo os anciãos se atrevem a contrariá-lo. Vocês os dois, por outro lado, são estrangeiros. Bodes expiatórios.
Ashley olhou de relance para Ben. Devia sentir-se aterrorizada perante a possibilidade de perder a vida, mas era o destino do filho que mais lhe apertava o peito e tornava difícil a respiração. Não podia morrer... não enquanto não soubesse que Jason estava em segurança.
Ben não parava de olhar para os guerreiros nus à sua volta, mas Ashley conseguiu captar-lhe a atenção. Ele estendeu a mão e apertou-lhe o braço.
— Eu sei, eu sei — disse, como se lhe lesse a mente. — Vamos conseguir escapar e encontraremos o Jason.
Ashley inspirou fundo e virou-se para Harry.
— Então e Mo’amba?
Harry abanou a cabeça.
— O líder, Bo’rada, convenceu o resto da tribo a ficar contra vocês. Mas têm de dar os parabéns ao velhote, o Mo’amba conseguiu uma audiência perante o conselho, antes de levar a cabo a sentença, mas foi por pouco. Está marcada para amanhã de manhã.
Ben avançou.
— E se tentássemos fugir esta noite?
Abanando a cabeça, Harry suspirou.
— Não irão conseguir. Há demasiadas armadilhas e bestas por aqui. Mesmo que conseguissem escapar ilesos, estes pequenos conhecem bem este território. Cortar-vos-iam a garganta antes mesmo de os ouvirem chegar.
Ben esfregou as fontes.
— Bem, para o diabo se acham que vão ficar com a minha cabeça sem luta. Eu...
Ashley interrompeu-o.
— Harry, ser-nos-á dada oportunidade para falar nesta audiência do conselho?
— Suponho que sim.
— Podes traduzir por mim?
— Sim, claro. Pode ser um pouco rude, mas darei o meu melhor.
— Ótimo. Têm estado a agir com hostilidade em relação a nós, mas pelo que vi nos petróglifos parecem ser, normalmente, uma sociedade protetora. Comunal. Todos partilham, os fracos e doentes são apoiados, quase como uma grande família.
— Eles acolheram-me como um dos seus — concordou Harry.
Ashley acenou com a cabeça.
— Houve algo que os abalou e deixou enervados. Se conseguirmos descobrir o que foi, talvez possamos salvar o couro.
— E se não conseguirmos? — murmurou Ben.
A voz de Ashley tornou-se gelada.
— Nesse caso, lutamos.
Um gongo soou subitamente algures nas profundezas da aldeia, quase fazendo vibrar a rocha que a compunha. Como se tivessem sido chamados, os guardas armados empurraram o grupo através de um labirinto de túneis até uma câmara grande. Ben e Ashley foram conduzidos para o seu interior, e vários guardas colocaram-se junto à porta, garantindo que não voltavam a sair.
Harry falou com ela da porta.
— O Dennis e eu temos de passar a noite no covil dos guerreiros, mas assegurar-me-ei de que estou aqui logo pela manhã. Talvez possamos meter algum bom senso nas suas cabeças.
— Assegura-te de que vens — disse Ben. — Nunca fui muito bom com charadas.
Ashley observou os irmãos a saírem. Depois virou-se para analisar a divisão. Espalhadas pela câmara estavam almofadas com um metro de largura, sobre as quais repousavam cobertores dobrados, cada um deles num padrão de tecelagem e cor diferente. Nos cantos da sala, bacias de pedra com água cobriam o chão.
— Suponho que seja a nossa cela — disse Ben, tocando numa das almofadas com um pé.
Ashley acenou com a cabeça, os braços cruzados sobre o peito. Depois de toda a emoção daquele dia, sentia-se entorpecida.
Ben envolveu-a com o braço.
— Vamos ficar bem — disse, as palavras pronunciadas tão baixo e ditas com tal lentidão que ela ergueu para ele os olhos, como se esperasse encontrar outra pessoa que não Ben de pé ao seu lado. Onde estava a sua bravata habitual? Ben apertou-lhe o ombro e deixou-se ficar em silêncio, apoiando-a.
— Estou tão preocupada com o Jason — disse ela, aninhando-se nos braços dele. — O facto de não saber é uma agonia. Será que está bem? E se...
Ben encostou um dedo aos lábios dela.
— Chiu. O teu rapaz está bem. — Uma vez mais as palavras dele eram tão firmes e simples que se descobriu a acreditar nelas. Ashley fitou os sérios olhos azuis dele, não mais os olhos sorridentes de um bobo. Teria sido tão simples perder-se nele, deixar que aqueles ombros largos transportassem os seus fardos e preocupações durante algum tempo. Confiar nele.
Velhas feridas emocionais tentaram objetar com veemência, levando-a a abrir a boca para discutir. Mas, antes que conseguisse pronunciar uma palavra, Ben inclinou-se sobre ela e substituiu o dedo que lhe tocava ainda nos lábios pela sua própria boca, os lábios dele pressionando com firmeza, recusando permitir que ela desse voz às suas desconfianças. Apenas um pequeno gemido lhe escapou.
Depois os lábios dele deslizaram pela garganta dela, o rosto coberto de pequenos pelos, tocando-lhe nas maçãs do rosto enquanto procurava o ponto sensível na base do pescoço. Perdendo-se na força suave do abraço de Ben, Ashley inclinou a cabeça para trás, oferecendo ainda mais do seu pescoço.
Por um momento, ele parou, erguendo os olhos para fitar os dela, o rosto enrubescido pela paixão. Ashley sabia que aquela era a sua última oportunidade. Podia pará-lo agora, diziam os seus olhos. Por um momento assustador, gelou, temendo entregar-se a ele tão completamente, abrir-se uma vez mais à possibilidade da dor e do abandono.
Parecendo pressentir aquele receio, ele puxou-a ao de leve para trás, o fogo nos seus olhos diminuindo numa preocupação quente. Nunca tinha encontrado um homem tão apaixonado... e, ao mesmo tempo, tão compassivo. Observou a sua própria mão erguer-se e mergulhar no espesso cabelo dele. Puxou-o para si, como uma mulher que se afoga, esforçando-se por chegar à superfície.
Enlaçada nos braços dele, permitiu-se ser erguida e, suavemente, deitada no chão coberto de almofadas.
Ben fitava o teto rochoso, o sono continuava a iludi-lo. Ashley estava enroscada ao seu lado, um braço sobre o seu peito, uma perna sobre a sua barriga. Enquanto se agitava num qualquer sonho, os seus pequenos movimentos despertaram um calor crescente. Teve de resistir a rolar sobre ela e procurar, uma vez mais, explorar a profundidade da paixão de ambos. Sabia que ela precisava de dormir. O dia seguinte reservava-lhes muitos desafios. Ainda assim... não conseguiu resistir a estender a mão e deslizar um dedo pela curva do seu seio direito. Ashley gemeu suavemente no seu sono.
Precisamente quando se virou para depositar um beijo suave na sua têmpora, a escuridão deslizou sobre ele, de súbito, como um pesado cobertor. Deixou-se cair na escuridão, para longe da luz e de Ashley.
Depois uma voz sobressaltou-o:
— Já não era sem tempo, Benny, meu rapaz!
A escuridão tomou a forma do avô sentado de pernas cruzadas, numa almofada a um metro de distância. Resmungando, Ben sentou-se. Enquanto tentava concentrar-se no avô, a figura transformou-se na imagem de Mo’amba.
O velho acenou-lhe.
— Estou à espera há imenso tempo que ouças o meu chamamento.
Limpando a garganta, Ben baixou os olhos para a sua figura nua, o corpo alardeando ainda a sua paixão. Cobriu-se com as mãos.
— Tenho estado ocupado.
Mo’amba pigarreou.
— Acho que três vezes são mais do que suficientes. É tempo de falarmos.
Ben puxou um cobertor para cima do colo.
— Tens razão. Tenho muitas perguntas para ti. Como por que diabo é que o vosso líder quer as nossas cabeças?
— Ele e a aldeia estão assustados. Morreram muitos. Os crak’an aumentaram as incursões no nosso território, aniquilando manadas inteiras dos animais que nos servem de alimento, surpreendendo as nossas sentinelas ao irromperem nas profundezas do nosso território, matando muitas delas.
— E o que temos nós a ver com isso?
— Ao longo de gerações, o nosso povo e os crak’an têm lutado. Depois da Dispersão do nosso povo, ficaram aqui presos connosco. Quando procurámos abrigo aqui, no submundo, para lhes escapar e ao frio, seguiram-nos cá para baixo. A determinada altura, um grande cataclismo fechou o acesso ao mundo superior, encurralando-nos juntos aqui em baixo.
— Como sobreviveram?
— Adaptámo-nos. Enquanto vocês concebiam máquinas e utensílios de ferro para ajudar na vossa vida, nós concebíamos ferramentas vivas: plantas e animais para nos ajudar. Ao longo da história aprendemos a escolher os aspetos de ambos que melhor se adequam às nossas necessidades e depois a propagá-los. Aprendemos a criar alimento. — Apontou para as paredes. — Até a cultivar a luz que nos guia. Adaptámo-nos. Mas os crak’an, não. Têm caçado na periferia, vivendo dos restos do nosso trabalho. Mas não me entendas mal, são astutos. Estão constantemente a testar as nossas defesas, tentando encontrar uma falha que os traga até nós.
— Com toda a vossa inteligência porque não realizaram um esforço concertado e os arrasaram? Acabaram com eles?
Mo’amba abanou a cabeça.
— Não podemos. Tal como eles precisam de nós para sobreviver, nós precisamos deles. As suas fezes contêm uma substância de que necessitamos para cultivar o nosso alimento. Sem ele, as plantas morreriam. E depois nós morreríamos. Chegamos a levar os nossos animais leiteiros já velhos, que já não produzem, para o território dos crak’an para os alimentar.
— Vocês alimentam aqueles monstros? Não é de admirar que sejam tantos.
— Necessitamos de manter o seu número elevado para que produzam fezes suficientes. O principal objetivo dos nossos caçadores é recolherem fezes e trazerem-nas para aqui.
— Coletores de merda — disse Ben. — Que negação da imagem do nobre caçador.
— Eles são nobres. Arriscam muito para se aventurarem no reino do crak’an. Em especial agora, sem a ajuda da visão de um heri’huti. — O velho fitou-o com um olhar carregado de significado.
— Não vamos a falar desse assunto — disse Ben, temendo que Mo’amba voltasse a exigir que ele ficasse e ajudasse a sua aldeia, uma aldeia que, naquele momento, o queria morto. — Bem, ainda não me disse por que razão paira sobre as nossas cabeças esta sentença de morte.
— Estava quase a chegar lá. Sabes, há gerações que afinamos as nossas ferramentas para manter os crak’an sob controlo, longe do centro das nossas vidas. Uma das nossas principais defesas é o tin’ai’fori. Este...
Ben acenou com a mão.
— Espere um segundo. Que é isso?
Mo’amba cerrou os lábios pensativos, semicerrando os olhos.
— Não tens uma palavra para ele. — Estendeu o braço para trás e raspou uma amostra do fungo brilhante da parede. — É um tipo especial disto. Mas mata. Rodeámos a câmara central com um espesso perímetro de tin’ai’fori. Protege a nossa aldeia.
— Então como é que esses monstros... hum, os crak’an, são agora capazes de passar e atacar-vos?
— A resposta é um segredo conhecido apenas pela seita dos guerreiros e pelos líderes. — Mo’amba pigarreou, a voz ligeiramente mais baixa, como se alguém os pudesse ouvir. — O tin’ai’fori está a morrer. Lentamente, os limites das nossas defesas foram enegrecendo e morrendo, enfraquecendo a barreira entre nós e os crak’an. Com o tempo, esta barreira irá cair.
Ben imaginou bandos de animais a varrer o vale abrigado. Embora aquelas pessoas o tivessem condenado à morte, não deixava de estremecer perante a perspetiva de uma tal carnificina.
— Então, o que tem tudo isso a ver connosco?
— O tin’ai’fori começou a morrer pouco depois da chegada do teu povo.
— O quê! Como?
— Não sei. Eu e alguns dos guerreiros acreditamos que é um sinal. Um sinal de que é tempo para regressarmos ao mundo superior, mas muitos outros acreditam que vocês são demónios determinados a destruir-nos.
— E suponho que o teu chefe seja um dos que acreditam nisso?
Mo’amba acenou com a cabeça.
— Tal como a maioria dos outros.
— Então como é que o vamos convencer do contrário? Suponho que a palavra de um demónio não tenha para ele grande significado.
— Não, não terá. Por isso, amanhã tens de seguir o meu exemplo. O teu companheiro, Harry, irá ajudar. Sem que ele saiba, tenho estado a ensinar-lhe os rudimentos da nossa língua enquanto dorme. Tenho-o ajudado a aprender a nossa linguagem. Ouve-o.
— Mas o que está a planear?
A figura de Mo’amba desvaneceu-se, ao mesmo tempo que o contacto era quebrado, uma mão erguida em sinal de despedida.
— Amanhã.
CAPÍTULO 27
Na manhã seguinte, Ashley percorria a divisão para trás e para a frente, debatendo-se com a informação que Ben recebera de Mo’amba, o seu único aliado entre aquelas pessoas. Como podiam combater a superstição? Como tantos missionários que foram mortos pelos nativos supersticiosos nos recantos perdidos do mundo, deu por si a perguntar-se como poderia aquilo estar a acontecer.
Ben avançou e abraçou-a por trás, pousando o queixo ao lado do dela.
— Vais abrir um rasto no chão se continuares assim — disse.
Ashley suspirou. Ele tinha razão; não havia nada que pudesse fazer agora senão esperar. A sua mente agitou-se com outra preocupação.
— Ouve, em relação à noite passada.
— Hum? — Ben apertou-a ainda mais contra si.
— Eu estava... bem, quer dizer... só porque nós... não estou à espera de que devas... tu sabes... foi só um momento.
— Ouve, minha senhora, não tentes escapar disto. Não sou nenhum caso de uma noite. Achas que me podes usar e deitar fora?
Ashley sorriu levemente e afastou-se do abraço dele, subitamente desconfortável com a intimidade. Estaria ele a ser tão sincero quanto parecia? Quantos outros homens tinham jurado um compromisso perpétuo apenas para fugir da sua cama e desaparecer na noite? E o ex-marido? Scott jurara devoção e amor com a mesma sinceridade e veja-se no que resultara. Pousou a mão na barriga, recordando a dor e a perda.
Afastou-se de Ben, tentando ignorar os seus olhos feridos.
— Temos de fazer um plano. Para o caso de não conseguirmos convencê-los pelo diálogo. O Michaelson ainda tem a mochila das armas. Devíamos...
Uma confusão na entrada para a câmara interrompeu-a. Contorcendo-se, viu Harry abrir caminho por entre os guardas. Michaelson coxeava atrás dele, usando uma das lanças como bengala improvisada. Ashley suspirou secretamente de alívio perante a interrupção, feliz por ter outros por perto para diluir a intimidade do espaço.
Pigarreou.
— Então, Harry, ouviste alguma coisa?
Este acenou afirmativamente com a cabeça.
— Passei a noite toda acordado a recolher informação junto de alguns dos elementos mais faladores. Eles têm uma espécie de zurrapa feita de um tipo de bolor... sabe a pasta de dentes quente. Mas raios, uma bebedeira é uma bebedeira.
— Continua — insistiu Ben, rudemente. — Não temos a porcaria do dia todo.
Ashley olhou de relance para ele. Não era normal Ben falar daquela maneira com as pessoas.
Harry pestanejou algumas vezes, obviamente cansado ou talvez um pouco zonzo.
— De qualquer maneira, esta pequena libação soltou algumas línguas. Parece que todos acham que vocês estão a matar os seus preciosos fungos.
Ashley acenou com a cabeça.
— Já sabemos tudo sobre isso.
As sobrancelhas de Harry ergueram-se.
— Como raio...?
— Esquece isso, agora. Que ouviste acerca do encontro do conselho? Ser-nos-á dada oportunidade para nos defendermos?
Harry olhou para ela, inquisitivamente.
— Corre o rumor de que Mo’amba irá defender o vosso caso. Embora já seja velho, é alguém que muitos não querem irritar. Por isso poderemos ter uma oportunidade do tamanho de uma ervilha de os dissuadir.
— Continuamos a precisar de um plano de apoio. — Ashley olhou para Michaelson apercebendo-se de que este levava a sua pistola no coldre. — Como estamos de armamento?
Michaelson bateu no coldre.
— Isto, uma AK-47 de canos cortados e a espingarda desmontável que deixei no quarto do Harry.
— Quais são as nossas hipóteses de sairmos daqui a tiro?
— Eu não apostaria um níquel furado. Já vi a câmara do conselho. Fica nas profundezas da aldeia. Duvido que chegássemos ao exterior. E, mesmo que conseguíssemos, ainda teríamos de encontrar o caminho para cima.
Ashley franziu o sobrolho.
— Nesse caso, é melhor que consigamos ser terrivelmente persuasivos.
Algures, ao longe, os tambores começaram a bater numa cadência lenta. Os guardas agitaram-se junto à porta. Um deles vociferou uma ordem.
Harry virou-se para ela.
— Está na hora do espetáculo.
A primeira coisa em que Ashley reparou na sala do conselho foi no chão. A pedra fora polida até brilhar, refletindo parte do brilho dos fungos no teto. Quase parecia escorregadio, como gelo negro. O piso inclinava-se até um pequeno fosso com a forma de uma bacia no centro da câmara. Posicionados em círculo em redor da câmara, como guardas, estavam pilares de pedras, polidos até alcançarem a mesma suavidade sedosa. Cordas de fungos, algumas delas brilhando vermelhas, outras verdes, desciam em círculos e espirais pelos pilares em padrões delicados. Desenhos semelhantes em linhas fosforescentes marcavam as paredes.
Oito almofadas fofas, cada uma de sua cor, rodeavam o fosso central. Ashley ergueu uma sobrancelha perante a depressão entalhada. Era a única área não polida de toda a câmara, parecendo ter sido grosseiramente cortada na rocha. A sua mente, embora estivesse num turbilhão com os receios por Jason e a ansiedade em relação a si mesma e a Ben, continuava a ser a de um antropólogo. Estava constantemente a pensar sobre os muitos mistérios daquelas pessoas. Como qual seria o significado cultural daqueles fossos? Quase todas as câmaras, mesmo as da Base Alfa, tinham um daqueles fossos cavados. Considerara-os, inicialmente, meros fossos para lareira, mas depois de ter visto como viviam aquelas pessoas, já não acreditava nisso. Ainda não vira qualquer lareira flamejante. Com as muitas nascentes borbulhantes, o calor vulcânico e a escassez de madeira, não compreendia a necessidade natural de tantas lareiras. Por isso, que raio seriam?
Uma mão, de um dos guardas, empurrou-a pelas costas. Ashley cambaleou para o interior da câmara.
Ben tocou-lhe.
— Parece que somos os primeiros a chegar.
Ashley desviou-se para o lado, de modo a permitir a entrada de Harry. Michaelson, com o seu tornozelo ferido, fizera um desvio até ao enclave dos caçadores para ir buscar as armas e as preparar. A pistola do major enterrava-se-lhe na zona lombar, onde a prendera no cinto, escondida pela t-shirt que caía larga. Para o caso de as coisas correrem mal e terem de usar a arma para chegar à zona dos caçadores e juntar-se a Michaelson... e ao arsenal deste.
Um dos elementos da tribo entrou por outra porta, transportando um bordão de ametista. Os seus seios pendulares indicavam que era uma fêmea e pela dimensão da barriga, muito provavelmente grávida. Avançou para se ajoelhar numa das almofadas, com os guardas junto dela, um de cada lado. Ignorou Ashley e o seu grupo, evitando o contacto visual, enquanto se sentava na almofada.
Contudo, reconheceu com um pequeno aceno a criatura que entrou na câmara em seguida. Era difícil olhar para ele: faltava-lhe uma mão, uma cicatriz irregular marcava-lhe o rosto, repuxando um pedaço de pele, semelhante ao da barriga dos peixes, sobre o olho. A perna esquerda arrastava-se ligeiramente, enquanto avançava para uma almofada roxa e se deixava cair com um forte suspiro.
Harry agitou-se junto de Ashley.
— Este é Tru’gula. É o líder do clã dos guerreiros. Pode parecer uma desgraça, mas é astuto.
As palavras de Harry, ainda que não fossem mais do que um sussurro ao ouvido dela, aparentemente chegaram a Tru’gula. Este dirigiu-lhes um olhar severo de sobrolho carregado. Harry afastou-se de Ashley, permanecendo em silêncio enquanto a procissão de figuras portadoras de bastão foi avançando até às almofadas vazias. Em breve, eram muitos os guardas armados que se alinhavam ao longo das paredes à sua volta. Ashley mudou de posição, tentando pôr a arma escondida num lugar onde não a incomodasse. Pese embora se enterrasse nas suas costas, sentia alguma segurança na sua pressão.
Mo’amba passou perto de Ashley, cambaleando em direção à sua almofada de xadrez vermelho e amarelo. Também ele ignorou a sua presença.
O último a chegar foi o líder da aldeia. Bo’rada. Harry disse-lhe que Bo’rada era o filho do último chefe. Tinha recebido a honra de os liderar por respeito ao seu falecido pai. A maioria dos anciãos tolerava-o, mas não era respeitado. Demasiado volátil, demasiado rápido a tomar decisões. O conselho gostava de pensar as suas decisões, por vezes demorando anos a decidir, mesmo no que dizia respeito às questões mais simples. O jovem chefe, com a sua inquietação e acessos de raiva súbitos, era um embaraço para os membros mais velhos.
Ainda assim, tinha os seus seguidores. Harry apontou para um membro da tribo excecionalmente magro, cujos olhos e ouvidos não paravam de dardejar em todas as direções. As suas mãos estavam constantemente a puxar pela almofada que tinha debaixo de si, como se se esforçasse por encontrar uma posição confortável para o seu traseiro magro.
— Sin’jari — disse Harry. — Um untuoso sicofanta de Bo’rada. Tenham cuidado com ele. É tão traiçoeiro como nervoso.
— Pelo seu aspeto, dir-se-ia que um vento mais forte o poderia partir ao meio — disse Ben.
— Não subestimem o sacana. Foi ele quem convenceu o líder de que deviam ser mortos. É um tipo adulador. Sabe como usar o medo das pessoas. Deixá-las num frenesi.
O líder bateu com o bordão três vezes no chão, depois sentou-se.
Harry colocou-se entre Ben e Ashley, traduzindo à medida que se iniciava a reunião.
Ashley pensara que o seu destino seria o primeiro ponto na agenda, mas estava muitíssimo enganada. O primeiro ponto da agenda parecia ser a colheita dos campos. Uma demorada disputa pareceu centrar-se no momento de a iniciar, se agora ou depois de permitirem aos animais ungulados mais um mês de pasto. Depois de muito debaterem, altura em que Mo’amba pareceu dormitar, optaram pela colheita imediata.
Ashley endireitou-se, na expectativa de que o seu destino fosse debatido em seguida. Estava enganada. O único membro feminino do conselho, Jus’siri, levantou-se em seguida, auxiliada por um dos guardas devido à preponderância da sua barriga de grávida.
Ashley mudou o peso sobre os pés. Então e agora? Aquela espera interminável começava a afetá-la. Até Ben começava a resmungar.
Observou enquanto Jus’siri avançava até ao pequeno fosso no centro da câmara. Os restantes anciãos rodeavam, muitos sorrindo de prazer.
Ashley ficou de queixo caído com o que aconteceu a seguir.
Ben fez uma careta.
— Isso é nojento.
Jus’siri introduziu as mãos na sua bolsa abdominal. As duas mãos desapareceram na sua prega. Com alguma tensão no rosto, mas com os olhos a brilhar de orgulho, retirou da barriga um ovo de manchas castanhas, mais ou menos do tamanho de um ovo de avestruz. Ergueu-o, a barriga pendendo agora vazia. Os outros anciãos começaram a bater com os bordões e a dar vivas. Jus’siri colocou em seguida o ovo com cuidado no pequeno fosso — que não era um fosso, percebeu Ashley por fim, mas um ninho! A mãe orgulhosa recuou.
— Meu Deus — balbuciou Ashley, chocada. — Eles também são monotrématos.
— O quê? — perguntou Ben, os lábios ainda revirados num esgar de nojo.
— Eu e a Linda debatemos a questão. Monotrématos. Como os crak’an. Mamíferos que põem ovos. Considerados uma ligação evolutiva entre os répteis e os mamíferos, partilhando traços de ambos: põem ovos como os répteis, mas têm com pelo e produzem leite como os mamíferos. Devia tratar-se de um beco sem saída evolutivo.
— Parece que este grupo fez um desvio — disse Ben.
Ashley virou-se para Harry.
— Que estão a fazer?
— É uma cerimónia da escolha do nome. Jus’siri está a oferecer o seu filho à tribo.
Ashley observou Mo’amba a erguer-se com esforço da almofada e a avançar até ao ovo. Ajoelhando-se, pousou as duas mãos suavemente no ovo.
— Que está ele a fazer? — perguntou Ashley.
A pergunta era dirigida a Harry, mas foi Ben quem respondeu.
— Está a ler o ovo e a criança no seu interior.
Ashley ergueu uma sobrancelha na direção de Ben, mas este limitou-se a abanar a cabeça, como se ele próprio não estivesse certo de como sabia tal coisa.
Mo’amba ergueu a cabeça para a mãe, continuando a segurar o ovo.
Sorrindo, balbuciou-lhe qualquer coisa.
— É saudável — traduziu Harry.
Depois Mo’amba saltou subitamente para trás, quase fazendo o ovo cair acidentalmente do ninho.
Ben saltou ao seu lado.
— Eu também o senti — disse. — Como um bebé a dar pontapés.
— Sentiste o quê? — perguntou Ashley.
Ben limitou-se a abanar outra vez a cabeça.
Ashley observou Mo’amba a pousar de novo as mãos no ovo, com uma ternura ainda maior, as mãos a tremer devido a mais do que a sua provecta idade. Voltou-se uma vez mais para Jus’siri, que tinha agora uma expressão preocupada no rosto. Com lágrimas nos olhos, Mo’amba falou-lhe.
A multidão irrompeu em vivas, com os bordões a baterem no chão, rejubilantes.
Ashley virou-se para Harry, impaciente por receber a tradução.
— Então?
Uma vez mais, foi Ben a responder:
— A criança é heri’huti. Tem o traço que lhe permite ver e falar com a mente. — Virou-se para Ashley, maravilhado. — Eu senti, de facto, a criança a mexer.
Mo’amba levantou-se, a sua alegria de tal modo forte que nem precisou de usar o seu cajado. Bateu com o bordão para acalmar a multidão. Quando o alarido deu lugar a um burburinho, voltou a falar, pontuando a sua afirmação ao bater duas vezes com o bordão.
— Chamo a esta criança Tu’shama, Aquele que Vê o Futuro.
A multidão gritou de entusiasmo, o nome Tu’shama entoado por muitas gargantas.
— Pelo menos, — disse Ben —, estarão de bom humor quando chegar o momento de decidirem o nosso destino.
Ashley acenou com a cabeça.
— Espero que não se limitem a adiar a decisão. Não quero perder outro dia.
Como se o homem com as cicatrizes Tru’gula tivesse compreendido as suas palavras, bateu com o bordão para que lhe dessem atenção e propôs que a decisão sobre o futuro de Ashley e Ben fosse adiada. Em resposta muitas cabeças acenaram, incluindo a de Bo’rada.
Depois o esquelético Sin’jari bateu com o bordão para que o ouvissem. Com Harry a traduzir, as palavras dele deixaram-nos gelados.
— É, sem dúvida, um momento de alegria, mas não podemos esquecer que a alegria é acompanhada de tristeza. Quantas viúvas choram agora?
As palavras deixaram os presentes mais sérios.
— Aqui se erguem os demónios que pretendem destruir-nos. — Apontou um dedo comprido com nós fortes na direção deles. — Desde que chegaram e conspurcaram o nosso mundo, que começámos a morrer. Tentámos tornar-nos seus amigos — prosseguiu, acenando com a cabeça em direção a Harry —, mas continuamos a morrer. Acho que mais é mais do que um mero acaso que, quando por fim decidimos destruir os demónios, um novo heri’huti apareça de súbito. Eu digo que é um sinal dos deuses. Um sinal de que temos de expulsar os demónios do nosso mundo. Sem demora!
Várias cabeças acenavam o seu acordo com as palavras de Sin’jari.
Ashley levou a mão atrás das costas e enterrou a pistola ainda mais no cinto, prendendo-a. Começou a analisar os obstáculos que a separavam da porta.
Mo’amba bateu com o bordão para chamar a atenção.
Os movimentos nervosos de Ben aquietaram-se quando viu que Mo’amba ia falar em sua defesa. Estendeu o braço e apertou a mão de Ashley.
— Ele fá-los-á ver a razão — disse.
Mo’amba esperou que o ruído se desvanecesse antes de falar. Os olhos de Sin’jari piscaram, e as mãos apertaram o bordão, claramente preocupado. Mas quando Mo’amba começou a falar, o seu sorriso acentuou-se cada vez mais no rosto descarnado de Sin’jari, revelando demasiados dentes.
Harry traduziu:
— O Sin’jari tem razão ao afirmar que muitas das nossas barreiras protetoras caíram. Que muitos elementos do nosso povo pereceram. Tenho pensado muito sobre esta questão, passei muitas horas a rezar e a procurar a orientação dos nossos antepassados. E cheguei apenas a uma resposta. — Apontou com o bordão na direção de Ben e Ashley. — Sin’jari tem razão. Eles são os culpados!
CAPÍTULO 28
Michaelson agachou-se junto do seu arsenal, inventariando as armas: uma espingarda desdobrável, uma AK-47 de canos cerrados, duas pistolas e quatro caixas de balas calibre .34. Porque não pedira ele um lança-granadas para aquela missão? Abanou a cabeça
Franzindo a testa, apercebeu-se de que não tinham a mínima hipótese de sair dali vivos se fosse necessário combater. Sentou-se sobre os calcanhares, estremecendo perante o protesto do tornozelo magoado.
Atrás de si um casal copulava à vista dos restantes caçadores, com os seus gemidos a interromperem o silêncio da câmara. Tendo passado ali a última noite com Harry, quase se habituara à sua liberalidade.
Durante a noite, a mesma paixão aberta tinha sido abundantemente exibida. Ainda assim, mantinha-se de costas para eles e estudava um dos guerreiros que trabalhava num canto.
A criatura parecia idosa, com o cabelo encanecido nas fontes, magra, mas de olhos penetrantes. Agarrava na mão uma ponta de seta de diamante ainda grosseira e espalhava uma pasta cinzenta sobre a sua superfície. Mesmo sob a luz ténue dos fungos, conseguiu ver um brilho avermelhado aparecer na ponta da lança. Estalando a língua de satisfação, espalhou uma camada mais espessa da pasta no limite da arma grosseira. Os seus limites brilhavam agora com um vermelho-fogo ainda mais profundo.
Fascinado, Michaelson observou enquanto o artífice utilizava outra ferramenta para trabalhar a ponta da lança de diamante, afiando o gume do agora suave diamante. A pasta parecia ter enfraquecido a superfície do cristal, dando-lhe uma consistência maleável, embora, tendo em consideração os músculos tensos dos antebraços da criatura, permanecesse duro, resistente, quase como chumbo amolecido. Michaelson observou enquanto o homem trabalhava o diamante e o transformava numa lâmina afiada.
Então era assim que os sacanas o faziam, pensou. Esculpiam pedaços de diamante com a ajuda de um bolor que amolecia o cristal. Como último passo, a criatura idosa mergulhou a sua obra numa bacia de água. Removendo a lança que pingava, bateu-lhe com um utensílio de osso. Emitiu um som semelhante ao de uma taça. Uma vez mais sólida.
Espantado, Michaelson ergueu-se e esticou as pernas. O casal apaixonado tinha terminado a sua brincadeira sexual e ficara deitado, dormitando nos braços um do outro. Conseguiu esticar as pernas, mas o teto baixo impedia-o de endireitar as costas.
Uma súbita explosão de vozes perto da entrada do labirinto de cavernas pertencentes aos caçadores chamou-lhe a atenção. O discurso truncado estava imbuído de um toque de pânico. Pensando que a confusão poderia ter a sua origem numa tentativa de fuga apressada do grupo de Ashley, Michaelson agarrou na pistola carregada. Abriu caminho através da pequena multidão até ao centro da confusão. Passando pelo último mirone, estacou quando se apercebeu da fonte de tal agitação.
Quatro caçadores transportavam um corpo numa maca rudimentar. Repousaram a forma flácida aos seus pés, o uniforme rasgado do Seal ainda mais ensanguentado do que da última vez que tinha sido visto. Tendo em conta a palidez cianótica e os olhos fixos e vidrados, soube que não valia a pena verificar a pulsação.
— Villanueva — disse. — Maldição. — Michaelson colocou a arma no coldre e ajoelhou-se. Pegou na mão flácida do amigo. — Foda-se — cuspiu. Fitou os dois buracos de bala na testa do Seal. Dois. Aquilo, claramente, não fora um suicídio. Alguém o assassinara. Mas quem?
Ashley conteve um grito de frustração. Já fora mau o suficiente que tivessem desperdiçado um dia naquela reunião do conselho. Agora Mo’amba, o seu único aliado, traíra-os. Apertando os punhos, os seus ombros tremiam. Jason podia estar em perigo naquele momento. Fechou os olhos. Ele tinha de estar bem...
Ben falou ao seu lado, espetando um dedo no peito de Harry.
— Não podes ter ouvido Mo’amba como deve ser. Ele disse que ajudaria.
— Chiu! — disse Harry, acenando com uma mão para Ben. — Estou a tentar ouvir.
Mo’amba recomeçara a falar depois da sua acusação. Provavelmente apertando ainda mais o nó em redor dos seus pescoços, pensou Ashley. Estudou a câmara do conselho, fitando as saídas e contando os guardas.
Harry recomeçou a traduzir de forma hesitante, mas com uma confiança crescente à medida que se concentrava. Mo’amba falava calmamente:
— Estes recém-chegados ao nosso mundo provocaram a morte do tin’ai’fori. Foi isto que li nas palavras sussurradas dos nossos antepassados.
O grupo de lacaios de Bo’rada bateu os seus bastões com força, o som ecoando dolorosamente através da câmara. Ashley reparou, contudo, que Sin’jari, o braço-direito do líder não batia o seu bordão em aprovação, exibindo apenas um frágil sorriso de triunfo.
Mo’amba ergueu uma mão pedindo silêncio antes de continuar.
— Mas estes recém-chegados não são demónios. São de carne e sangue, tendões e osso. Como nós. Não é a sua maldade que nos prejudica. Apenas a sua ignorância.
Sin’jari, cujo sorriso dera lugar a um esgar desconfiado, falou.
— Não importa. Os homens da nossa tribo estão a morrer e a lei é clara. Os responsáveis têm de morrer. E até tu concordaste que eles são responsáveis. Eu digo para votarmos.
Harry parou a tradução, lambendo os lábios secos. Olhou de relance para Ashley.
— Eu disse que aquele tipo é um sacana.
Ashley acenou com a cabeça sem afastar os olhos de Mo’amba. O heri’huti exibia a sombra de um sorriso. Ergueu a mão.
— O nosso estimado Sin’jari afirma que as nossas leis são claras em relação a este assunto. E, uma vez mais, tenho de me curvar perante o conhecimento do nosso colega. Ele tem razão. Os responsáveis pela morte de outros têm de morrer. É a lei. — Mo’amba fez uma pausa. Quando Sin’jari tentou de novo falar, Mo’amba franziu-lhe o sobrolho, silenciando a sua intervenção.
Em seguida Mo‘amba inclinou-se pesadamente sobre o seu bordão, como se aquela reunião o deixasse exaurido. Falou lentamente, dando a Harry bastante tempo para traduzir:
— A palavra-chave na nossa lei é responsável. Eu não disse que estes recém-chegados eram responsáveis. Disse que eram culpados. Foi a sua ignorância em relação a nós e aos nossos costumes que os levou a errar e a, inadvertidamente, nos fazer mal. Não podemos responsabilizar alguém por ações de que não estava consciente.
Foi a vez de Bo’rada falar.
— Isso são apenas palavras. O resultado é o mesmo.
— Palavras? — respondeu Mo’amba, fixando os seus olhos no líder da tribo. — Foram estas palavras que mantiveram a tua mão direita presa ao pulso. Pareço lembrar-me de um rapazinho que conduziu uma manada de trefer’oshi para longe dos seus redis. E depois destruiu quase um décimo da colheita desse ano. A lei determina que uma mão que prejudique o bem-estar da tribo deve ser cortada.
— Eu era só um rapaz na altura — balbuciou Bo’rada. — Eu não sabia o que estava a fazer. Não podiam responsabilizar-me por...
Sin’jari estendeu o braço e agarrou o joelho do líder, impedindo-o de continuar a falar, tentando limitar os danos.
Mo’amba virou-se para os outros anciãos da aldeia, apoiando-se com força no bordão, as suas costas curvadas.
— Sou um homem velho. De longe mais velho do que qualquer um de vocês. Testemunhei todos os vossos erros ao crescer. E, no entanto, todos vocês têm ainda as mãos, os pés — apontou com um dedo para Sin’jari — e os narizes. Errar é um processo de aprendizagem. Estes recém-chegados também estão a aprender. Temos de os ensinar, não de os destruir.
Um murmúrio espalhou-se pela câmara. Sin’jari moveu-se no seu assento, um dos seus sequazes inclinou-se e sussurrou-lhe algo ao ouvido. Sin’jari acenou com a cabeça, depois pigarreou.
Harry dirigiu a Ashley um olhar que parecia dizer «cá vamos nós outra vez». Harry traduziu as palavras de Sin’jari como se lhe deixassem um gosto amargo na boca:
— Mo’amba é sábio como sempre e deu-nos muito em que pensar. Mas como sabe que o mal feito ao nosso tin’ai’fori protetor foi acidental? Como provocaram os recém-chegados estes danos? Como?
Excelente, pensou Ashley, como devia o velho responder àquilo?
Mo’amba falou.
— Há vários dias que rezo por esclarecimento para esse assunto e ocorreu-me uma resposta. Através dos seus erros, criaram um desequilíbrio entre ohna, o espírito feminino, e umbo, o espírito masculino. Um desequilíbrio que está a destruir o tecido do nosso mundo. O nosso mundo está a desfiar-se.
Um murmúrio abafado espalhou-se pela câmara. Até Sin’jari permaneceu em silêncio.
Jus’siri ergueu-se para falar.
— Como pode isto ser impedido?
— Tenho de vos mostrar — disse Mo’amba. — Então tudo ficará claro. Saberão o porquê de ter protegido estes estrangeiros. Se matarmos estes recém-chegados, destruiremos a única maneira de revertermos estes danos.
Sin’jari fungou.
— Isto é ridículo. Ele só está a tentar adiar a votação. Eu digo que votemos já. Que os destruamos antes que nos destruam a nós.
Bo’rada pousou uma mão firme no ombro de Sin’jari, silenciando-o.
— Já antes fui acusado de ser demasiado intempestivo. Mas desta vez farei a vontade ao conselho. Digo que ouçamos Mo’amba. A questão é demasiado séria.
Sin’jari pareceu encolher-se sob as palavras do líder.
— Mostra-nos, Mo’amba — continuou Bo’rada. — Mostra-nos como ocorreu isto e como pará-lo.
Mo’amba acenou e abriu caminho até à saída da câmara do conselho, com os outros membros a avançarem em fila atrás dele. Ashley e o seu grupo foram conduzidos pelos guardas atrás dos anciãos da tribo.
— Eu sabia que o velhote não nos ia trair — disse Ben a Ashley.
— Ainda não saímos daqui — respondeu ela. Mas pela primeira vez sentia esperança. Com a cooperação da tribo e o seu conhecimento do labirinto de grutas, podiam regressar à Base Alfa num par de dias. Estugou o passo para acompanhar os anciãos da aldeia, contendo o desejo de os empurrar para que se apressassem.
Depois de percorrerem vários túneis e subirem um serpenteante lanço de escadas gravadas na rocha, o conselho entrou em fila indiana numa câmara no interior da qual o grupo mal cabia. Ashley teve de se apertar entre Tru’gula, cujo pelo fedia como um cão molhado, e a parede de pedra para conseguir ver o que se passava.
Sussurrou a Harry:
— Onde estamos?
Harry encolheu os ombros, empurrando Tru’gula. O líder dos caçadores resmungou algo, furioso. Estremecendo, Harry inclinou-se na direção de Ashley.
— Não me peças que traduza aquilo.
— Nunca estiveste nesta câmara antes? — perguntou Ashley.
— Não, esta secção da aldeia pertence à seita religiosa. Uns tipos cheios de segredos. Normalmente, mantenho-me junto do grupo dos caçadores.
Ashley remexeu-se, tentando ver melhor o local onde se encontrava Mo’amba. Todos os olhos estavam fixos nele.
Algo brilhava fortemente aos pés do velho, mas ela não conseguia ver o quê. Acenou a Ben.
— Dá-me uma ajuda.
Ben ajudou-a a colocar um pé sobre o seu joelho fletido, segurando-a com firmeza. Ela ergueu-se, equilibrando-se sobre um pé, utilizando uma mão no ombro de Ben e outra na parede para se manter no seu precário poleiro. A sua cabeça estava agora bem acima da multidão, permitindo-lhe ver Mo’amba.
Este começou a falar enquanto Harry traduzia.
— Trouxe-vos até aqui porque conhecem o significado desta câmara. Este é o lar do umbo, o espírito masculino. — Em seguida afastou-se e apontou com o seu bordão.
Ali, num pedestal de pedra, Ashley viu um objeto familiar a brilhar intensamente sob a luz fraca. Parecia recolher a luz existente na câmara e irradiá-la em explosões de dardos cintilantes. Uma figura de cristal com cerca de quarenta centímetros de altura. Diamante. Tal como aquela que Blakely lhe mostrara há vários meses. Mas quando observou com mais atenção a figura, Ashley apercebeu-se do seu erro. Não, não eram iguais. Enquanto aquela que Blakely lhe mostrara tinha seios pendentes e uma barriga de grávida, esta tinha uma proeminente protuberância abaixo da cintura nua. Masculina. Aquela figura era o gémeo masculino da outra.
— Aqui se ergue umbo — declarou Mo’amba. — Como deve ser a proteger o nosso mundo. Mas não o pode proteger sozinho. Ele é apenas metade do todo. A sua outra metade, ohna, o espírito feminino, desapareceu.
— Sim — disse Sin’jari. — Os recém-chegados roubaram-na.
— Não foi roubada. A nossa aldeia original estava vazia. Eles não podiam saber que ela era a ligação ao nosso passado distante, que fora deixada para ajudar a guiar os nossos antepassados até nós na nossa nova aldeia. Agora desapareceu. O equilíbrio de umbo e ohna foi destruído por aqueles que desconhecem o nosso mundo. Foi este desequilíbrio que perturbou a urdidura e a tecedura que mantêm unido o tecido do nosso mundo. Isso tem de ser corrigido.
— Poderá ser — afirmou Sin’jari. — Destruindo os invasores! — Olhou à sua volta, mas deparou-se apenas com murmúrios preocupados.
— Não — disse Mo’amba. — O equilíbrio só pode ser alcançado devolvendo ohna ao seu devido lugar.
A lógica do velho parecia irrepreensível, mesmo para Ashley, que não acreditava numa só palavra. Os anciãos à sua volta, até o líder, acenavam com as cabeças a sua concordância. Exceto um.
Sin’jari avançou até ao centro da câmara, com os seus membros magros a estremecerem de agitação.
— Mo’amba provou a sua sabedoria. — Virou-se para enfrentar a multidão. — É óbvio que temos de matar os indivíduos que restaram depois do ataque dos crak’an e reclamar a ohna para nós. Repô-la no seu devido lugar!
Um murmúrio de concordância ligeiramente mais firme seguiu as suas palavras, mas ninguém bateu com os bordões. Aquilo pareceu perturbá-lo. Bateu com o bordão no chão de rocha, quase suplicando a alguém que começasse a bater com o seu próprio bordão.
Mo’amba, contudo, não permitiu que o murmúrio da multidão crescesse. Harry continuou a traduzir as suas palavras:
— A raiva do nosso estimado Sin’jari parece tê-lo cegado a uma importante lei da tribo. — Mo’amba virou-se para o líder de peito largo. — Bo’rada, diz-nos o que aconteceu depois de teres libertado os trefer’oshi dos seus redis, gerando o caos nas nossas colheitas.
— O meu pai e eu reconstruímos o redil e replantámos os campos pisados. Foram precisos três dias sem dormir para o conseguir.
— Exatamente. Foi-te dada a oportunidade de corrigires o erro. Os recém-chegados merecem essa mesma oportunidade. Eles que corrijam o seu próprio erro.
Uma vez mais a multidão murmurou o seu assentimento. Até Tru’gula bateu com o bordão, concordando.
Sin’jari, contudo, não estava disposto a desistir da sua batalha.
— Os recém-chegados não são da nossa tribo. As nossas leis não se aplicam a eles. O que os impede de fugir com a ohna e deixar o nosso mundo morrer?
— Eles são diferentes — concordou Mo’amba. — Basta olhar para eles para o ver. Mas as diferenças são menores. — Mo’amba apontou com o seu bordão para Ashley, Harry e Ben. — Venham até aqui. Juntem-se a mim.
Então e agora?, pensou Ashley. Se as coisas corressem mal — e com a persistência de pitbull de Sin’jari era uma boa possibilidade — teriam todo o conselho e a respetiva comitiva entre eles e a única saída.
Ben ajudou Ashley a descer do seu joelho, esfregando a coxa depois de ela ter saído.
— Pelo menos não estavas de saltos altos — queixou-se ele.
— Ben, vamos ficar de costas contra a parede se formos até ali.
— Confia nele — disse Ben. — Ele vai tirar-nos desta confusão. — Ben avançou através da estreita abertura que a multidão lhe concedeu, parando apenas para esticar o braço e puxar Ashley atrás de si. Harry avançou atrás deles.
Uma vez reunidos perante a parede de olhos que os fitavam, Mo’amba colocou-se entre ela e Ben, depois prosseguiu com Harry a traduzir:
— Estes recém-chegados podem parecer estranhos e até ligeiramente ofensivos para alguns, mas um outro aldeão poderá achar Tru’gula com as suas cicatrizes estranho e até perturbador, e não deixa de ser um de nós. O que importa é o espírito. — Bateu no peito com o seu bordão. — Aqui não somos assim tão diferentes.
Fez uma pausa para apontar com o bordão para Harry.
— Aqui, temos um recém-chegado que provou a bravura do seu povo, que provou ser merecedor de il’jann, como qualquer outro elemento da tribo. — Em seguida virou o bordão na direção de Ben. — Aqui está um recém-chegado com os poderes de um heri’huti, uma dádiva dos deuses. Porque haviam os nossos espíritos de lhe conceder um tal dom a menos que o considerassem merecedor?
Por fim, apontou com o bordão para Ashley.
— Os deuses deram-nos mais uma pista quanto ao seu valor. O heri’huti recém-chegado plantou a sua semente nela durante o último ciclo do sono. — Pousou a mão na barriga de Ashley. — Enraizou-se, e os deuses abençoaram-na com uma criança. Uma criança concebida aqui na nossa aldeia. Uma nova criança para a tribo.
Ashley pestanejou algumas vezes, fitando a mão sobre a sua barriga. Só podia estar a brincar! Ergueu os olhos para Ben. Este fitava-a de boca aberta.
— Se os deuses os abençoaram com uma criança, os espíritos julgaram-nos merecedores. Quem somos nós para julgar que são menos do que isso?
Sin’jari bateu na rocha com o seu bordão.
— Eu fá-lo-ei — cuspiu. — Não temos senão a tua palavra de que este... este... este invasor é um heri’huti.
Mo’amba, de olhos semicerrados de raiva, abriu a boca para falar, mas foi interrompido pelo som de uma lança a bater no chão. Todos os olhos se viraram para Bo’rada, que bateu uma última vez com a sua lança.
Bo’rada falou.
— Basta, Sin’jari. Acusar Mo’amba, que serviu a nossa tribo durante gerações, de falsidade é uma grosseira que não pode ser tolerada. Bano-te de continuares a debater este assunto. — Bo’rada acenou com a ponta de rubi do seu bordão sobre os lábios.
A multidão arquejou. Ashley fitou Harry com um olhar inquisitivo. Este inclinou-se para mais perto dela.
— Trata-se de um ato raro. Esta sociedade é muito aberta à liberdade de expressão. Ser banido assim é um castigo importante.
— Desde que isso mantenha Sin’jari calado — murmurou ela, remexendo-se no seu lugar. Para que lado se inclinaria agora o conselho?, perguntou-se. Morte ou salvação? Tê-los-ia Mo’amba convencido? Olhou de relance para a barriga, engolindo em seco. Ele podia ser muito convincente.
Bo’rada ainda não acabara de falar.
— Acredito em Mo’amba. Os recém-chegados merecem a oportunidade de corrigir o seu erro. — Em seguida apontou com o bordão para Ben. Harry traduzia. — Sabes onde guardam a ohna?
Ben acenou com a cabeça.
— Devolvê-la-ás?
— Tentarei o melhor que puder — disse Ben. — Isso é tudo o que posso prometer.
— Então voto que adiemos a execução dependendo do seu sucesso no cumprimento da missão. Mas, dado que tenho reservas semelhantes às expressadas por Sin’jari, exigirei uma garantia... A fêmea fica até a missão estar terminada. Se não for concluída no espaço de um dia, ela morrerá. — Bateu com o seu bordão.
As suas palavras levaram os restantes anciãos a baterem com os bordões mostrando o seu acordo. Com exceção de dois: Sin’jari, que fora proibido de emitir uma opinião e Mo’amba. O velho heri’huti limitou-se a fitar Ben primeiro e depois Ashley. Ela conseguia ver a tristeza nos seus olhos quando ele por fim ergueu o bordão e bateu com ele três vezes no chão — concordância.
CAPÍTULO 29
— Não a posso deixar — disse Ben a Mo’amba. Os outros anciãos já tinham abandonado a câmara do umbo, deixando à sua volta apenas um aglomerado de guardas armados. Ben fitou Ashley que se inclinava sobre a imagem tumescente de umbo, estudando a figura. Sempre a antropóloga, pensou, sempre no comando. Ainda assim, apercebeu-se de que a mão dela tremia quando deslizou um dedo pela figura.
— Lamento. — As palavras de Mo’amba foram traduzidas por Harry. — Foi o melhor que consegui. Tens o dia de hoje para te preparares e à tua equipa de caçadores. Depois terão um dia para devolver ohna, ou Bo’rada irá matar Ashley... e o teu filho por nascer.
Ben esfregou as fontes com as pontas dos dedos.
— Queres... queres dizer ... que ela está mesmo grávida?
O velho acenou com a cabeça.
— Pai — balbuciou para si mesmo, abanando a cabeça. As coisas estavam a acontecer demasiado depressa. Havia ventos a soprar de demasiadas direções. Sentiu-se agitado por forças para lá do seu controlo.
O velho inclinou-se para mais perto de Ben e sussurrou algo gutural, demasiado baixo para que Harry pudesse traduzir, depois tocou no centro da testa de Ben. Com o toque, uma sensação de paz e calma impregnou Ben, como um banho frio depois de um dia quente sob o sol australiano. Ben suspirou. Como é que o sacana fazia aquilo? Mo’amba afastou-se.
Agora mais calmo, Ben conseguia pensar de uma forma mais racional, não se limitando a reagir. Precisava de um plano. Pelo menos os anciãos da aldeia tinham-lhe dado um dia para encontrar uma estratégia. Ainda assim... Lembrou-se da longa viagem que tinha pela frente. Ainda que lhes dessem um mapa, demorariam mais do que um dia a alcançar a Base Alfa.
Exasperado, Ben virou-se para Harry.
— Tens a certeza de que traduziste corretamente? Vão-nos dar um dia? Vinte e quatro horas?
Harry acenou com a cabeça.
— Quase. O seu ciclo diário, a que chamam cucuru, tem na realidade vinte e seis horas.
— Isso ajuda muito. Mais duas horas. Suponho que não conheças um caminho mais rápido para a Base Alfa?
— Conheço um caminho, mas ainda assim demorará, pelo menos, um dia e meio. E isso é se nos apressarmos e não formos emboscados pelos crak’an. Estava a pensar realizar a viagem quando o meu braço partido tivesse sarado e estivesse forte o suficiente, mas Dennis chegou aqui primeiro.
— Merda.
Mo’amba bateu subitamente com o bordão, parecendo frustrado. Fez um gesto em direção à parede. Esforçou-se por pronunciar algumas palavras na língua dos estrangeiros:
— Eu mostrar... Rápido. Para cima. — Parecia ter compreendido o fundamental da discussão.
Mo’amba avançou para a parede oposta e encostou a base do bordão a uma protuberância rochosa. Ao exercer pressão, a protuberância penetrou na parede e uma secção do que parecia pedra sólida girou para dentro.
— É uma porta secreta! — Ben baixou-se e fitou o túnel que revelava. — Que conduz a mais um daqueles malditos wormholes. — Acenou a Ashley para que se aproximasse.
Mo’amba aproximou-se lentamente com Harry atrás de si, os dois a conversarem animadamente.
Ashley ajoelhou-se ao lado de Ben.
— Já devia ter desconfiado — sussurrou com uma ponta de tensão na sua voz. — Os locais sagrados de muitas culturas têm câmaras e passagens secretas. — Ashley sentou-se sobre os calcanhares, aparentemente arrasada por não se ter apercebido de uma ligação antropológica fundamental. Depois, subitamente, saltou. — Raios, tenho sido tão parva.
— Que foi?
— Este... este túnel. Posso calcular onde vai dar.
Baralhado, Ben ergueu uma sobrancelha inquisitiva.
— Esta é a câmara do espírito masculino. Aposto que a câmara do espírito feminino, na Caverna Alfa, tem uma passagem secreta semelhante de que não nos apercebemos. Aposto a minha vida que este túnel tem ligação a essa câmara. Um canal vaginal simbólico que une os espíritos masculino e feminino.
— Queres dizer...
— É uma ligação direta e segura ao topo.
Ben permitiu-se uma centelha de esperança.
— Mas tens a certeza? Se estiveres certa — sussurrou-lhe —, talvez possamos tentar fugir. Utilizar este túnel para que todos nós possamos escapar.
Ashley voltou a ajoelhar-se.
— Não, com as suas estaturas pequenas estariam em cima de nós numa questão de segundos. Não teríamos a mínima hipótese. Além disso, Mo’amba e a sua tribo estão a tentar aceitar-nos. Este é um teste crucial entre os nossos povos. Não vou trair a sua confiança. Sendo antropóloga, não posso destruir este laço ténue que estão a tentar estabelecer connosco.
— Mas e se...?
— Não — disse ela, mas Ben conseguia ver a agonia nos seus olhos. Tinha de recorrer a toda a sua força de vontade para não correr para o túnel e correr em busca do filho.
A alguns passos de distância, Harry e Mo’amba tinham terminado o seu animado debate.
— Bem, maldito seja — declarou Harry em voz alta, chamando a sua atenção. Virou-se para eles. — Não vão acreditar nisto. Este wormhole...
— ... conduz à Base Alfa — terminou Ashley por ele, levantando-se.
A testa de Harry encheu-se de rugas.
— Como é que soubeste?
— Lembrei-me por fim de que sou antropóloga — disse Ashley amargamente. — Que mais ficaste a saber com Mo’amba?
— Se o estou a compreender corretamente, o túnel tem perto de cinquenta quilómetros.
Ben fitou o túnel. E subia cerca de três, calculou.
— Vai ser uma viagem muito longa. E provavelmente ocupará grande parte do dia.
— Talvez não — disse Harry cripticamente. — Vamos sair daqui. Juntemo-nos a Dennis. Planeemos a nossa estratégia.
Ben virou-se para Mo’amba, querendo agradecer-lhe.
— Harry, pede-lhe que se junte a nós. Podemos necessitar de mais ajuda dele.
Acenando com a cabeça. Harry balbuciou algumas palavras a Mo’amba, gesticulando com os braços. O velho respondeu, abanando a cabeça.
Harry traduziu:
— Ele diz que tem muito que preparar e que falará contigo mais tarde, mas não sei se estou a traduzir corretamente. É uma tradução livre. É quase como se ele tivesse dito que ia «sonhar» contigo mais tarde.
Ben acenou com um suspiro.
— Vamos embora. Temos muito que fazer antes de amanhã. — Quando se virou para sair, fitou de novo Mo’amba, e os olhos do idoso penetraram-no. Devia ser uma noite de sonhos interessante, pensou ele enquanto seguia Ashley em direção à saída.
De novo no enclave dos caçadores, Ashley fitou a forma imóvel de Villanueva aos seus pés, demasiado chocada para falar. Quase se tinha esquecido que tinham deixado os outros na sala dos diamantes pensando que ali estariam mais seguros. Fitando os ferimentos de bala na testa do Seal, apercebeu-se de que existiam ali mais perigos do que as câmaras e os seus habitantes.
— Deve ter sido Khalid — disse Michaelson.
— Então e a Linda? — perguntou Ashley. — Os caçadores viram-na?
— Não sei — respondeu o major. — Não tinha tradutor. — Apontou para o irmão que estava embrenhado numa conversa com um caçador de seu nome Tomar’su. — Com alguma sorte, Harry conseguirá uma resposta quanto ao que aconteceu.
Ashley não conseguia continuar a olhar para o rosto azul de Villanueva. Quando se virou, algo lhe chamou a atenção — numa pilha irregular de objetos recolhidos era visível um de plástico verde fluorescente familiar. O seu skate. Pensara-o perdido depois de ela e Ben terem tido o acidente. Reparou que o trenó vermelho de Ben também tinha sido recuperado.
Eram bastante eficientes na sua recolha, pensou ela, mas isso fazia todo o sentido tendo em conta os parcos recursos à sua disposição.
De súbito, a conversa entre Harry e Tomar’su subiu de tom. Ashley olhou de relance na sua direção. Harry erguia os dedos, aparentemente contando os argumentos. Por fim, exasperado, Harry cerrou o punho e afastou-se, pondo fim à conversa.
— Que aconteceu? — perguntou Ashley quando ele se voltou a juntar ao grupo.
— Ele não está a fazer sentido — disse Harry. — Descreveu o que parecia um tiro. O som atraiu os seus caçadores para a caverna de diamantes. Quando lá chegaram, só encontraram este... este soldado morto.
— Villanueva — corrigiu Ashley. — Era um amigo.
Harry acenou com a cabeça, o sobrolho franzido de preocupação.
— Quando lhe perguntei acerca dos outros dois, disse que a equipa seguiu o seu rasto até uma câmara com uma queda de água e os viu acampar.
— Então a Linda está viva?
— Bem, isso é a parte estranha. Quando lhe perguntei quantos eram, disse que eram quatro.
— Quatro? — perguntou Ben.
— Eu sei. — Harry levou a mão ao cabelo. — Perguntei-lho repetidamente. Ele foi inflexível. Quatro. — Harry ergueu quatro dedos.
— Parece que, mal resolvemos um mistério, outro surge — disse Ben.
A notícia perturbou Ashley. Mesmo com os eventos recentes, tinha de saber...
— Esses quatro onde estão agora?
— Tomar’su diz que entraram num túnel que cheirava a morte e que os seus caçadores se recusaram a segui-los.
— Cheirava a morte?
Harry encolheu os ombros.
— Foi o que ele disse.
Permaneceram em silêncio durante um longo momento. Por fim, Ashley falou.
— Para o diabo. Não vamos resolver isto agora. Concentremo-nos a situação que temos em mãos. Harry, referiste que podias ter uma forma mais rápida de atravessar o wormhole.
Harry animou-se visivelmente com as suas palavras.
— Sim, talvez. Se conseguir que funcione. Venham ver. — Conduziu-a e aos outros à câmara vizinha, quase um cubículo. — Não é grande coisa — disse ele, fazendo-lhes sinal para que entrassem —, mas é a minha casa.
Num canto, espessas almofadas verdes apinhavam-se por baixo de um cobertor amarrotado. O resto do cubículo de Harry era composto por uma série de ferramentas rudimentares, pontas de lança e um comprido objeto envolto numa lona. Ashley torceu o nariz perante o cheiro forte a gasolina. Gasolina?
Harry seguiu-os para o interior, passando por ela.
— Todos os outros na Base Alfa são elétricos, coisinhas lentas que gemem, mas eu alterei o meu com um motor de combustão. Queria potência. — Curvou-se e agarrou na ponta da lona. — Depois de ter sido atacado, os meus companheiros de caça recuperaram-mo do nosso último acampamento. Estava bastante maltratado, mas, enquanto o meu braço sarava, tenho estado a trabalhar nele. — Puxou a lona, revelando um trenó de transporte. Um dos grandes.
— Construí-o em alumínio para ser leve. O Blakely deixou que o trouxesse porque não pensámos que fossem necessárias munições para as nossas explorações. — Fungou em autocensura. — Tudo o que trouxe comigo foi uma merda de uma pistola. Estúpido!
— O trenó ainda funciona? — perguntou Ashley, tentando manter a conversa no rumo certo.
— Praticamente. Costumava encolher, assumindo um tamanho mais compacto para ser transportado, mas agora está sempre aberto. No entanto, é uma viagem sempre a subir. Por isso não deverá representar um problema. — Harry deu uma palmada no trenó. — O motor está bom, mas só tenho um tanque de combustível, por isso tenho evitado ligar o motor durante muito tempo. O mais certo é que ainda necessite de alguma afinação.
— Tem combustível suficiente para nos levar até ao topo? — Ben ajoelhou-se e inclinou a cabeça de um lado para o outro estudando-o.
— Deve ser suficiente.
— O Harry costumava fazer corridas de motocrosse — disse Michaelson. — Se ele diz que funciona, vai funcionar.
Ben acenou com a cabeça, aparentemente satisfeito.
— Isto vai poupar-me várias horas.
— Só há um problema — disse Harry. — O eixo da frente está dobrado. Ainda que eu consiga arranjá-lo, demorarei a noite toda. Por isso é melhor que tenhas um plano B... não vá o diabo tecê-las.
— Certo — disse Ashley —, então vamos resolver algumas coisas. Dado que sou a única que será mantida refém, sugiro que todos acompanhem Ben na sua missão. Devemos deixar tão poucos em risco aqui em baixo quanto possível.
— Não, minha senhora! — argumentou Ben. — Vou sozinho. Uma missão a solo.
— Vais necessitar de poder de fogo — disse Ashley. — Não há como saber quantos daqueles crak’an ainda permanecem perto da Base Alfa.
— Ela tem razão — disse Harry. — O conselho permitiu que uma pequena equipa de caçadores te acompanhasse. Dado que, oficialmente, somos caçadores unidos pelo sangue, o meu irmão e eu podemos acompanhar-te. Acredita em mim, vais precisar do apoio. Posso prender aqueles trenós de plástico baratos que vocês trouxeram ao meu e formar um comboio para arrastar todos rapidamente até ao topo.
O rosto de Ben ficou vermelho de determinação.
— Não vou deixar a Ashley aqui sozinha. Ela...
— Eu fico com a Ashley — interrompeu Michaelson. — O meu tornozelo está uma miséria. Não faria mais do que abrandar-vos. Talvez eu e a Ashley consigamos encontrar um plano de contingência... caso seja necessário.
Ben parecia pronto a discutir um pouco mais, mas os seus argumentos pareciam ter-se eclipsado.
— Está bem! O Harry pode vir. Mas, Michaelson, aconteça o que acontecer, espero voltar a ver a mãe do meu filho.
— Irás ver, Ben.
Ben acenou com a cabeça, mas a mente de Ashley estava já num turbilhão. Mãe? Tinha conseguido afastar esse facto da sua mente, mas as palavras de Ben haviam-no trazido de novo à tona. Pousou a mão na barriga. Mãe? Nem sequer sabia como se sentir em relação a essa revelação, mas havia uma parte de ser mãe em relação à qual estava francamente segura...
— Ben, tens de encontrar o Jason. Mesmo que isso signifique falhar besta missão. Promete-me.
— Vou tentar — disse Ben. — Sabes que vou.
— Não te limites a tentar. Fá-lo.
Ben aproximou-se e tomou-a nos seus braços. No seu abraço, as lágrimas que ela tinha estado a conter fluíram finalmente. Ashley afundou-se mais nos braços dele.
CAPÍTULO 30
Ben estava acordado na sua cela. Sabia que precisava de descansar. Mas depois de um dia a planear, maquinar, dividir as armas, escolher os caçadores mimi’swee que os acompanhariam, a sua mente continuava presa aos pormenores da missão. E se não tivesse sucesso? E se...? Rolou para o lado esquerdo, enfiando-se na sua pilha de almofadas e torcendo o cobertor fino, apertando-o em redor dos pés. O rosto de Ashley surgia constantemente perante o olho da sua mente.
Mais cedo, tinha sido conduzida a uma outra cela para passar a noite. Guardada. Uma refém. Nem sequer lhes fora permitido uma última noite juntos.
Virou-se de costas e suspirou ruidosamente. Aquela preocupação não o estava a levar a lado nenhum. Talvez se esticasse um pouco as pernas. Além disso, devia ver como se estava Harry a sair com o trenó de transporte. Talvez tivesse boas notícias. Deslizando das almofadas, avançou até à saída.
Passados alguns minutos, tinha percorrido o caminho até às câmaras reservadas aos caçadores. Harry estava dobrado sobre o trenó desmontado, as peças espalhadas pelo chão rochoso. Michaelson inclinou-se por cima do seu ombro. Um estalo sonoro fez-se ouvir pela câmara.
— Merda! — Harry recuou com um salto do trenó.
— Que se passa? — perguntou Ben, aproximando-se dele por trás.
Harry segurava duas peças de um tubo de alumínio.
— Não é bom. Fiz demasiada força e parti o eixo.
O coração de Ben apertou-se-lhe no peito.
— Consegues arranjá-lo?
— Não creio. Estava a amolecer o alumínio com calor e a tentar endireitar a dobra quando partiu. Devia ter esperado até ficar mais macio, mas tive medo de enfraquecer o metal. — Harry atirou as peças para o chão. — Desculpa, Ben. Fiz asneira.
Michaelson pousou a mão no ombro de Harry.
— Deste o teu melhor.
— Para o diabo com isso. Fiz asneira. — Harry agitou o ombro para afastar a mão do irmão.
— Não te martirizes — disse Ben. — Gatinhamos como o raio. Vai abrandar-nos um pouco mas conseguiremos. — Pelo menos rezava que assim fosse. E se aquele atraso representasse a diferença entre o sucesso e o falhanço na sua missão?
— Ouve — disse Michaelson a Harry. — Sou capaz de ter uma ideia.
— O quê? — perguntou Ben.
Michaelson, de olhos cansados e irritado, olhou por cima o ombro e apontou para a saída.
— Ben, vai para a cama. Deixa que eu e o meu irmão resolvamos isto. De qualquer maneira é um tiro no escuro. Por isso, vai descansar um pouco.
Ben limitou-se a fitá-lo, de olhos vidrados. Sabia que o major tinha razão.
— Vemo-nos de manhã — disse Michaelson, virando a sua atenção de novo para Harry e para o trenó e ignorando-o.
Durante a viagem de Ben de volta para a cama, a sua mente mergulhou num turbilhão face às ramificações das más notícias de Harry. Ainda que demorassem oito horas a subir os quase cinquenta quilómetros, decerto o que restava do dia permitir-lhes-ia tempo suficiente para cumprirem o seu objetivo. Teria de ser assim, pensou determinado.
De súbito, apercebeu-se que as curvas e contracurvas dos túneis não lhe pareciam familiares. Virou-se e olhou para o caminho que percorrera. Deveria ter virado para o outro lado na última curva... ou talvez seguido pela esquerda no grande pedregulho.
Um raspar atrás de si chamou-lhe a atenção. Na luz fraca, viu a aparição magra como um esqueleto que avançava pelo túnel na sua direção. Estacou, sobressaltado pela aparência sobrenatural da figura, banhada pelo brilho esverdeado do fungo, como um fantasma do submundo. Mas, à medida que esta se aproximava, reconheceu o semblante nodoso e ossudo. Sin’jari a criatura que insistira tão teimosamente na sua morte e de Ashley.
Enquanto o ancião da tribo percorria o espaço que os separava, Ben apercebeu-se dos dois guardas de aspeto violento que seguiam Sin’jari. Tipos feios como a noite. A maioria dos mimi’swee eram pequenos e duros, mas aqueles dois pareciam dois bulldogs cheios de cicatrizes, curvados e ameaçadores. Sin’jari colocou-se à frente de Ben, erguendo o cajado para impedir o seu avanço, depois vociferou algo furioso aos guardas que o flanqueavam.
As duas criaturas entroncadas avançaram na sua direção.
Embora estivesse fisicamente esgotada, o sono continuava a iludir Ashley. A cabeça latejava e uma nódoa negra na sua anca pulsava. Deu por si a recordar os braços de Ben à sua volta, o cheiro do seu cabelo, os dedos a deslizar pelas suas costas e pelo seu pescoço. Tinha ido longe demais na noite anterior, num momento de terrível fraqueza, e enganara-o quanto aos seus verdadeiros sentimentos. Apertou o cobertor em redor dos ombros, temendo uma realidade ainda mais assustadora. Tê-lo-ia realmente enganado?
Olhou de relance para o mostrador brilhante do seu relógio. Faltavam duas horas para que o relógio iniciasse a sua contagem decrescente até à aplicação da sua sentença de morte. Demasiadas preocupações guerreavam dentro de si, encerradas no seu peito: Que teria acontecido a Jason? E a Linda, já agora? E Ben? Morreria a tentar salvá-la? Poderia salvá-la? E pior de tudo, caso ele falhasse, iria ela morrer sem saber o que acontecera ao seu filho?
Apertou o cobertor contra o rosto, as lágrimas escapando, por fim ao seu controlo. Estavam a ficar sem tempo.
Ben deu um passo atrás, para se afastar das criaturas pesadas, que agora o fitavam de modo ameaçador. Um deles apresentava uma forte ereção, aparentemente excitado pela perspetiva de sangue. Não estavam armados, mas de algum modo Ben soube que isso lhe serviria de fraco conforto. Recuou mais um passo, debatendo o que fazer. Podia tentar fugir, mas saltariam sobre ele como dingos sobre um pequeno canguru. O melhor era enfrentá-los ali mesmo.
— Muito bem, sacanas — resmungou, mais para se concentrar do que para intimidar os seus adversários. — Vejamos com que facilidade se partem esses vossos pescoços compridos.
Ben fincou um calcanhar num sulco no chão para conseguir alguma alavancagem para um murro. Estava a preparar-se quando algo lhe agarrou de súbito o ombro, por trás. Tenso, girou para aplicar instintivamente um murro no atacante invisível. Interrompeu o seu murro mesmo a tempo.
Era Mo’amba.
O velho largou o ombro de Ben, fitando por um instante o punho erguido. Depois, afastou o olhar para fitar os dois guardas, que tinham estacado. Vociferou algo que fez os cãezinhos de Sin’jari curvarem as cabeças e recuarem.
O seu mestre, contudo, manteve-se firme, o bordão erguido ainda a cortar a passagem, impedindo-os de avançar. Sin’jari silvou algo a Mo’amba. O velho limitou-se a encolher os ombros, o que levou Sin’jari a chocalhar o seu bordão e estremecer de raiva.
Mo’amba tocou no ombro de Ben e fez-lhe sinal para que o seguisse. Agindo como um guia, Mo’amba conduziu-o de volta, para longe de Sin’jari. Mas os uivos do ancião ecoavam atrás deles, enquanto Ben seguia Mo’amba.
Depois de muitas voltas e reviravoltas, Ben viu-se de novo numa câmara familiar. Olhou de relance com um suspiro para as cabaças vermelhas que pendiam dos pilares. Por que será que acabo sempre aqui?
Enquanto seguia Mo’amba para um ponto mais fundo da câmara, avançando por entre as cabaças, apercebeu-se de algo estranho em relação aos pilares de pedra. Da primeira vez que ali estivera, com Ashley, estava de tal modo concentrado nos frutos vermelhos que presumira que os pilares eram colunas de rocha natural, mas vendo melhor apercebeu-se de que estava errado. Deslizou o dedo pela superfície áspera, sulcada, de um dos pilares. Que diabo, era um tronco de árvore petrificado. Olhou de relance à sua volta, a boca escancarada. Toda aquela câmara continha um pomar de árvores petrificadas.
Um som de impaciência chamou a sua atenção de novo para Mo’amba. Este acenava, pedindo a Ben que se sentasse no limite do círculo de glifos pintados. Ben encontrou um ponto mais confortável no chão rochoso, e o velho sentou-se lentamente à sua frente. Uma vez instalado, Ben soube o que Mo’amba queria. Fechou os olhos e deixou o corpo relaxar, começando pelos pés e avançando a partir daí. No entanto, a sua mente era agitada por tantos pensamentos e preocupações. Não se conseguia concentrar. Tentou relaxar mais uma vez, mas a miríade de preocupações mantinha-o alerta.
Precisamente quando estava prestes a desistir, uma sensação calmante de tranquilidade desceu sobre si. Soube que era uma espécie de dádiva de Mo’amba e permitiu-lhe uma sensação de paz que lhe silenciou os pensamentos preocupados.
A escuridão por trás das suas pálpebras floresceu em plena cor. Uma vez mais, apenas por um instante, a imagem do avô falecido sobrepôs-se ao rosto de Mo’amba. As feições familiares acalmaram ainda mais o seu coração, como se escutasse uma antiga canção favorita em pano de fundo.
A imagem de Mo’amba ganhou consistência.
— Tens de ser mais cuidadoso, Ben ... — admoestou. — Vagueares sozinho pela aldeia. Ainda há aqui fações que prefeririam ver-te falhar ou morrer. Sin’jari não é de desistir facilmente.
— Como soube que eu estava em apuros?
— Esse é o trabalho de um heri’huti. Ver o que mais ninguém vê.
— Obrigado. Devo-lhe uma. Estava prestes a levar uma tareia.
— Não. Estavas prestes a ser morto. Aqueles dois fazem parte da tribo de Sin’jari. São silaris, os venenosos. Uma dentada deles mata.
Um estremecimento atravessou Ben, perturbando a sua ligação mental, como uma pedrinha lançada num lago imóvel.
— E a Ashley? Quando eu partir, amanhã, ficará em segurança?
— Sim. Está a ser protegida pelos homens de Tru’gula. Ele protegê-la-á. Ninguém, nem mesmo Sin’jari, incomodará o seu círculo.
— Tem a certeza?
— Eu mesmo a guardarei. Confia em nós. Protegeremos a tua companheira até ao teu regresso.
— Ela não é a minha... oh, esqueça, nem sequer sei o que é. Por favor... mantenha-a em segurança até ao meu regresso. E eu vou regressar.
— Irás falhar, Ben.
Ben, chocado, sentiu-se certo de que o tinha ouvido mal.
— Como?
— Consigo ver através dos estreitos caminhos do tempo. Se fores como estás agora, vais falhar.
— Que significa isso?
— Tu és heri’huti, mas não acreditas nisso aqui. — Mo’amba apontou para o peito nu. — Tens de aceitar a tua herança ou tu e muitos outros irão perecer.
— Mas não vejo como...?
A imagem de Mo’amba redemoinhou voltando a transformar-se na do avô falecido.
— O olho da tua mente escolheu esta memória para me representar quando te visitei pela primeira vez. No entanto, rejeitaste a herança do teu avô. Envergonhava-te. Para que tenhas sucesso, tens de aprender a abraçar o teu sangue, a estimar a sua memória tanto quando estimas a sua imagem. Só então terás uma hipótese.
— Então como poderei ter sucesso?
O velho levou os dois punhos contra o peito dele.
— Escuta o teu sangue.
— Mas o que queres dizer com...? — As imagens dissolveram-se, redemoinhando e disseminando-se na escuridão. Apenas as palavras ecoavam de volta a Ben: «Escuta o teu sangue.»
Pestanejou e fitou a figura muda de Mo’amba, tantas perguntas ainda na ponta da língua. Mas Mo’amba ergueu-se com a ajuda do seu bordão.
— Espera! — Ben avançou até Mo’amba. — Preciso de saber o que querias dizer.
— T-tu — balbuciou, guturalmente, a Ben — tu dormir. — Virou as costas a Ben, acreditando claramente que já tinha dito o suficiente.
Dormir, perguntou-se Ben? Como se isso fosse provável.
Ashley acordou sobressaltada, surpreendida por ter adormecido de verdade. Um membro feminino da tribo entrou na sua câmara, curvada, carregada com travessas tilintantes de frutos coloridos e um qualquer tipo de carne fumegante. Arrastou-se até uma pedra plana que lhe chegava ao joelho e dispôs a refeição.
O coração de Ashley afundou-se quando se apercebeu de onde estava. Queria regressar à sua terra de sonhos. Tinha sonhado que estava de volta à sua roulotte minúscula no deserto do Novo México. Jason e Ben estavam a jogar à apanhada no pátio poeirento, os pés esmagando a sua débil tentativa de cultivar um jardim de suculentas. Já devia saber que estava num sonho, porque tudo o que conseguia cultivar no seu jardim eram aquelas bizarras cabaças vermelhas. A parte mais estranha, contudo, era a facilidade com que aceitava Ben como figura paterna. Olhou de relance para a barriga. Ben pai?
Um suave ronco chamou-lhe a atenção para o monte de almofadas ao seu lado. Sentou-se mais direita e reconheceu o emaranhado de cabelos louros que espreitava de debaixo de um cobertor próximo. Ben! Que estava ele a fazer ali?
Quando estendeu a mão para lhe tocar, os seus roncos redundaram num fungar sonoro. Despertou com um salto, sobressaltando-a. Esfregou os olhos.
— Que horas são?
Ashley ignorou a pergunta.
— Como conseguiste passar pelos guardas?
Ben ergueu-se sobre um cotovelo, os olhos raiados de sangue e uma sombra ruiva no rosto.
— Mesmo aqui, o importante é quem se conhece. Mo’amba obrigou os guardas a deixarem-me passar. Só precisava de saber que estavam bem.
— Porque não me acordaste?
— E arruinar o teu sono de beleza? Nem pensar! — Ben torceu o nariz. — Que cheiro é esse?
A carne que crepitava na bandeja enchia a câmara com cheiros que lhe provocavam a língua. O estômago dela rosnou de antecipação.
— O pequeno-almoço — disse, faminta.
Ben sentou-se contra as almofadas, apercebendo-se, por fim, da criada nua.
— Não são propriamente um grupo modesto, pois não? — Ben deslizou dos cobertores e, de costas viradas para a criada, num gesto envergonhado, vestiu as calças.
Ashley também aproveitou o momento para se vestir.
Ambos se lançaram à refeição como gafanhotos, parando apenas para oferecer um pedaço de algum dos alimentos ao outro, insistindo para que provasse. Ben ergueu um pedaço de carne quente entre os dedos, dado que não havia talheres disponíveis.
— Tem um sabor parecido com a carne de crocodilo.
— Crocodilo? — perguntou, mastigando a boca cheia de um qualquer tubérculo que sabia a batata doce.
Ben acenou com a cabeça.
— Só que um pouco mais tenro. A carne de crocodilo é bastante dura.
Ashley afastou de si a travessa de pedra.
— Bolas, acho que já comi o suficiente. Para uma última refeição não foi mau.
As palavras dela tiveram um efeito devastador sobre Ben. O seu sorriso desapareceu e as feições ensombraram-se.
— Esta não será a tua última refeição, Ash. Prometo-te. Nós vamos sair daqui!
Ashley sorriu-lhe, apercebendo-se de que Ben interpretara mal as suas palavras.
— Eu queria dizer que esta é a tua última refeição antes de partires. Não a minha.
— Oh. — O rosto de Ben ficou carregado.
Ashley riu-se da expressão séria dele.
— Eu pensei que...
— Eu sei. — Ashley inspirou fundo, ficando também ela séria. Estendeu a mão e tomou os dedos dele nos seus. — Eu sei, Ben. É simpático.
— Simpático? — A palavra que ela escolheu pareceu magoá-lo. Ben olhou de relance para os dedos dela entrelaçados no seus. Falou sem erguer os olhos. — Ash tens de saber o que sinto por ti. Quero ser mais do que algo simpático.
Ashley tentou afastar a mão, mas ele prendeu-a com firmeza.
— Ben... — Não sabia o que dizer. Uma parte de si queria gritar que o amava, mas outra parte temia ceder. Depois de Scott, do aborto, essa parte recusava-se a ser magoada de novo. Recusava-se a confiar outra vez. Por pouco não sobrevivera da última vez, só as necessidades de Jason a fizeram prosseguir. E agora o filho estava desaparecido. Demasiadas emoções guerreavam dentro de si, para conseguir pensar com clareza. Como poderia ela colocar tudo aquilo por palavras?
Não teve de o fazer. Ben largou-lhe a mão e afastou-se. As suas palavras um sussurro tenso.
— Suponho que seja melhor pormo-nos a caminho. Tenho a certeza de que o Harry e os outros estão à nossa espera.
Virou-se, de ombros caídos. Ashley abriu a boca para dizer qualquer coisa, o que quer que fosse, para o consolar. Para lhe dizer que não devia desistir dela. Mas seria isso justo? Fechou a boca.
Ao entrar na câmara do umbo, Ashley viu Harry reunido com os outros três caçadores que se iam juntar à equipa de Ben. Parecia espantosamente alegre e animado para alguém que tinha estado a trabalhar a noite toda. A divisão estava repleta de elementos da tribo. Mo’amba erguia-se à conversa com Tru’gula. Não estavam presentes quaisquer outros anciãos, nem mesmo Sin’jari. Pelo menos não teriam de aturar disparates de última hora vindos dele.
— Conseguimos! — disse Harry, sorrindo ao mesmo tempo que avançava para eles.
— Conseguiste reparar o eixo? — perguntou Ben, o entusiasmo fazendo-se ouvir na sua voz.
— Venham ver. Nem vão acreditar. — Acenou-lhes para que se dirigissem ao local onde Michaelson se encontrava, agachado ao lado de um dos skates de plástico.
Ashley apercebeu-se da presença de quatro pranchas fluorescentes presas ao transporte de alumínio. Os recoletores tinham recuperado todas as pranchas perdidas, até a de Villanueva. Fitou a prancha amarela do amigo falecido, e sentiu-se atravessar por um arrepio. Parecia um mau presságio.
Estudou o trabalho de Michaelson. Com um último puxão de uma corda, prendeu a última das pranchas no lugar. Como se de um pequeno comboio se tratasse.
— A ideia foi do Dennis — disse Harry. — Ergueu o grande trenó, tendo cuidado com o motor. — Vejam. Esta pequena alteração faz deste veículo o mais valioso do planeta.
Ben assobiou o seu apreço.
— Bela obra de arte.
Ashley encolheu-se para passar. Olhou de relance para o eixo da frente. Cintilava na luz ténue.
— Isso é aquilo que penso?
— Podes crer — disse Harry. — Um eixo de diamante puro.
— Vai aguentar? — perguntou Ben, fitando-o desconfiado.
Harry encolheu os ombros.
— Submeti o eixo a alguns testes de esforço. Pareceu-me bem. Além disso, que outra escolha temos? Ou o usamos, ou gatinhamos.
Ben deslizou o dedo pelo diamante.
— Muito bem, amigo, viajamos com estilo.
Ashley recuou, enquanto Harry baixava o trenó.
— Então... já estão todos prontos para ir. — Por alguma razão, isso incomodava-a. Tinha antecipado aquele momento, mas de repente, ficara cara a cara com a realidade de que Ben a iria deixar, talvez para morrer. As lágrimas ameaçavam acumular-se.
Parecendo sentir a ansiedade dela, Ben avançou e apertou-a contra si.
— Suponho que não devamos esperar. Todos os minutos podem ser importantes.
Ashley limitou-se a acenar com a cabeça, temendo falar, temendo ir-se abaixo.
Harry chamou a si os outros elementos da tribo e vociferou as suas últimas ordens, acenando com as mãos e apontando para as várias pranchas. Aparentemente, seria ele a tomar a dianteira, sendo o mais familiarizado com o trenó motorizado. Ben seguiria com os três nervosos caçadores, para os ajudar a equilibrar-se, pois não estavam habituados a viajar naqueles trenós traiçoeiros.
Ashley saiu do caminho, tentando não se meter por baixo dos pés de ninguém, enquanto eram colocadas mochilas às costas e explicadas as instruções. Mo’amba colocou-se ao lado dela e pousou uma mão no seu ombro. Olhou de relance para ele, e o ancião apertou-lhe o ombro num gesto de conforto.
Uma vez tudo pronto, Ben virou-se para ela. Parecia rejuvenescido pela atividade, mas havia ainda uma tristeza nos seus olhos azuis.
— Prometo que vou descobrir o que aconteceu ao Jason. E vou voltar.
Com a mão de Mo’amba no seu ombro, a dar-lhe força, sentiu-se capaz de falar.
— Eu sei que vais, Ben. Confio em ti. — E, pela primeira vez, apercebeu-se de que confiava. Confiava-lhe a própria vida. Confiava-lhe a segurança do filho. As lágrimas acumularam-se e rolaram-lhe pelo rosto.
Ben inclinou-se e beijou-lhe a face, depois virou-se e avançou para o seu trenó.
Ashley deu um passo em frente. Não podia deixá-lo partir sem saber o que ela sentia verdadeiramente por ele. Chamou-o, as palavras ficando-lhe presas na garganta:
— Ben! Eu... eu...
As suas palavras foram abafadas pelo rugido dos motores do trenó a serem ligados. Harry acelerou e o trenó deslizou sem problemas para o wormhole, arrastando o comboio de pranchas atrás de si.
Observou enquanto Ben desaparecia no túnel, montado no trenó amarelo de Villanueva. Apertou os braços em redor do peito, sentindo um frio invadir-lhe o estômago.
— Amo-te, Ben — sussurrou.
Livro Cinco
Regresso a Alfa
CAPÍTULO 31
Linda gatinhou pelo espaço entre o pedregulho e o chão, demasiado cansada, sequer, para reconhecer a sua persistente inquietação claustrofóbica num espaço tão apertado. Os quilómetros de pedra por cima dela eram, naquele momento, menos preocupantes do que os olhos a arder e os músculos doridos.
Aquele era o segundo dia, desde que fora capturada por Khalid e o ritmo que este estabelecera era extenuante: pausas para descansar mínimas, sem pausa para almoço, nada mais que um parco pequeno-almoço e um jantar frio de barras de ração. Restava-lhes, a ela e a Jason, acompanhar o ritmo. Khalid avisara-a de que não iria parar e esperar que ela o alcançasse. Se queria que introduzisse o código no cinto de explosivos de Jason a cada duas horas, era melhor que o acompanhasse. Como tal, o dia foi passado a tentar acompanhar Khalid.
Com um último puxão, Linda passou o pedregulho e ergueu-se, respirando pesadamente. O túnel era mais largo ali. Por aquela altura, o fumo sufocante tinha começado, a transformar-se numa pequena irritação, o que lhe permitia respirar com mais facilidade. No entanto, era esta contínua dispersão do fumo que impelia o ritmo frenético de Khalid. Se o fumo se dissipasse por completo antes de conseguirem percorrer o caminho até à base, ficariam verdadeiramente perdidos.
Havia mais uma razão para correr contra o fumo. Até ali, nem um predador bloqueara a sua ascensão. Linda dera voz à sua opinião de que o fumo acre estava, provavelmente, a atuar como repelente. Khalid limitara-se a acenar com a cabeça perante a avaliação dela e, com uma expressão estranhamente preocupada, estabelecera um ritmo ainda mais veloz.
Quando Lisa esticou as costas e ajeitou o lenço sobre o nariz, a luz do seu capacete dispersou a escuridão à sua frente. Khalid tinha parado vários metros mais abaixo, no túnel, inclinado sobre algo no chão. Continuava a agarrar o braço de Jason. Que era agora?
Jason virou-se para ela.
— Vem ver.
Esgueirando-se ao lado de Jason, viu o que atraíra Khalid. Uma lata metálica com cerca de meio metro de altura erguia-se no centro do túnel; dela saíam grossos cabos que se perdiam na escuridão. Um disco de rede metálica, como um recetor de satélite em miniatura, encimava a lata.
— Que é? — perguntou.
— É um daqueles rádios especiais do doutor... do doutor Blakely. — Jason gaguejou ao pronunciar o nome do falecido. — Os cabos devem conduzir-nos de volta à base.
— Então é isso — disse Linda. — Conseguimos.
Khalid continuou pelo túnel, seguindo os cabos.
Jason agarrou na mão dela.
— Vamos.
A mente de Linda corria, enquanto os seus pés se arrastavam. Estavam quase lá, mas ainda longe de encontrar um lugar seguro. Que mais teria Khalid reservado para si e para Jason? Quase não dissera uma palavra durante os dois dias de viagem, apenas um ronco aqui ou uma ordem seca ali. Que estaria ele a planear?
— Linda — disse Jason ao seu lado —, acho que ele não me vai libertar.
A bióloga apertou-lhe a mão.
— Vai, Jason. Quando já não fores preciso como refém, ele irá libertar-te.
O rapaz ficou em silêncio por um momento, depois falou:
— Quando alcançarmos a base, quando lá chegarmos... — A sua voz perdeu-se.
— Que foi, Jason?
— Se vires uma oportunidade para fugir, usa-a. Deixa-me para trás.
Linda parou, fazendo-o estacar.
— Não te vou deixar com ele. Havemos de descobrir uma saída desta confusão.
— Ele vai matar-me de qualquer maneira. Consigo percebê-lo.
— Jason... querido, não vou deixar...
— Está nos seus olhos — disse ele, interrompendo-a. — Ele olha... olha para mim como se eu não estivesse lá de verdade. Como se já estivesse morto.
Linda ajoelhou-se e tomou o rosto dele nas mãos.
— Prometo-te. Vamos conseguir ultrapassar isto. Juntos.
Jason abanou a cabeça, libertando-se das mãos dela.
— Ele vai deixar-me morrer. — Em seguida virou-se e seguiu pelo túnel.
Linda observou as costas pequenas de Jason a desaparecerem numa cuva. O tanas, pensou. Erguendo-se, seguiu-o, determinada a impedir aquele animal de magoar Jason. Alcançou o rapaz e passou um braço em redor dos seus ombros. Ambos permaneceram em silêncio enquanto avançavam através do túnel, seguindo o cabo serpenteante e as costas de Khalid.
Depois de uma caminhada de trinta minutos, o túnel parecia iluminar-se à sua volta. Jason ergueu os olhos para ela. Linda desligou a luz do capacete, já não precisando da iluminação. Quando dobraram uma esquina do túnel, viram lâmpadas presas às paredes.
Ainda estavam acesas! Isso significava que os geradores se encontravam ativos. De acordo com o relato de Jason, calculara que a base devia ter sido destruída e mergulhada na escuridão. Talvez houvesse uma possibilidade de que a base já tivesse sido recuperada. Talvez os reforços já tivessem chegado.
Enquanto percorria o túnel iluminado, ia vendo Khalid mais à frente. Este parara na boca do túnel.
— A Base Alfa — disse sem olhar para trás.
Apressou-se a alcançá-lo, sustendo a respiração, esperançosa. Olhou de relance e o seu coração afundou-se. O túnel desembocava na parede oeste da caverna, num ponto ligeiramente erguido. A Caverna Alfa estendia-se em baixo, com a base a um mero quilómetro de distância.
Ou o que restava da base. O local estava em ruínas. As luzes ainda tremeluziam aqui e ali, mas quase todos os postes tinham caído. Todos os edifícios ainda de pé tinham marcas de incêndios ou explosões, e vários focos vermelhos fumegantes sugeriam que ainda havia alguns fogos ativos. Uma neblina de nuvens escuras pairava sobre a base, como se tentasse mascarar os danos. Mas mesmo dali era possível ver corpos, que se assemelhavam a bonecas de trapos atiradas em todas as direções, nas vielas vazias, entre os edifícios caídos. Mas, pior de tudo, nada, absolutamente nada, se mexia. A base estava morta.
Linda tentou impedir que Jason visse, mas este libertou-se e fitou em silêncio a carnificina mais abaixo.
— O elevador ainda está intacto — disse Khalid. — Podemos prosseguir.
Jason puxou pelo braço de Linda. Esta baixou os olhos para ele, de relance, arrancando-os à devastação. A criança erguera a t-shirt e apontava para o monitor LED no cinto. O número trinta brilhava agora no painel. Trinta minutos até o plástico explodir.
Linda acenou com a cabeça.
— Khalid, está na hora de reiniciar o cronómetro de Jason.
Khalid olhou de relance para ela, os olhos gelados.
— Mais tarde.
Linda olhou para Jason. Este limitou-se a devolver-lhe o olhar com resignação.
Fechando a retaguarda atrás do ruidoso trenó de transporte, tudo o que Ben conseguia ver era o traseiro peludo do caçador mimi’swee no skate seguinte.
O caçador nu dava pelo nome de Nob’cobi. Harry tinha apresentado o minúsculo guerreiro como irmão de sangue de Dennis. O caçador insistira em acompanhar o grupo, dado que Dennis não podia ir. Nob’cobi perderia uma boa quantidade de pontos il’jann se lhe fosse negado um lugar no grupo. Era uma obrigação dos irmãos de sangue.
Ainda assim, tendo em conta a maneira como Nob’cobi agarrava o skate e tremia com cada salto do trenó de transporte, provavelmente desejava, com ou sem il’jann, ter ficado para trás. Os outros dois caçadores à sua frente não pareciam estar a sair-se melhor.
Ben estendeu a mão e tocou na perna de Nob’cobi num gesto de conforto. Contudo, o seu toque fez o caçador guinchar de pânico e quase perder o controlo.
— Calma, rapaz — gritou por cima do ruído do motor. Tentava parecer tão calmo quanto possível, algo difícil quando se está a gritar. — Estás a sair-te bem. Só mais um bocadinho.
Ben olhou de relance para o relógio. Estavam a viajar há quase uma hora. Se tivesse estimado corretamente a sua velocidade, faltavam mais três horas. Deviam chegar ao cimo pelo meio-dia. Não estava mau.
Ben pousou a testa no braço, fechando os olhos, deixando que o movimento embalador e o roncar persistente do motor o adormecessem. Se ao menos os caçadores mimi’swee conseguissem relaxar... Pensou em Nob’cobi. O pobre desgraçado tinha sido arrastado para aquela operação brutal.
Sem sequer abrir os olhos, Ben conseguia imaginar o caçador a agarrar-se à tábua como um homem prestes a afogar-se. O Nob’cobi que imaginou virou-se para ele e falou:
— Consigo ir igualmente depressa sozinho. Isto... isto é... uma loucura.
— Bem, nós não conseguimos — pensou em resposta. — Não temos um formato compacto como vocês.
— Odeio isto!
— Oh, para de te lamentar — pensou Ben.
De súbito, os olhos de Nob’cobi abriram-se tanto que pareciam quase inteiramente brancos.
— És mesmo um heri’huti.
Uma outra voz intrometeu-se de súbito na conversa. Uma voz familiar.
— Muito bem, Benny, meu rapaz. Estás a aprender. — A voz de Mo’amba desvaneceu-se.
— Espera... o que...? — Ben abriu os olhos e viu Nob’cobi a olhar para trás, na sua direção, de olhos muito aberto.
— Heri’huti — disse, depois virou-se para a frente.
Ben considerou as implicações. Tinha conseguido. Tal como Mo’amba o havia contactado, ele contactara Nob’cobi. Até a sua cabeça latejava com a dor familiar de uma conversa mental. Mas como teria conseguido fazer aquilo tão facilmente? Nunca fora capaz de fazer algo assim.
A voz sem corpo de Mo’amba voltou a falar com ele.
— Os caçadores estão habituados às sugestões dos heri’huti. As suas mentes são treinadas para aceitar o nosso contacto. As do teu povo não estão. — A voz de Mo’amba desvaneceu-se de novo.
Que diabo, pensou Ben. Já bastava daquela treta. Aquela treta da manipulação mental ao estilo Vulcano não o ia ajudar a recuperar a estátua do cofre de Blakely.
Nesse preciso instante, o ritmo do trenó mudou outra vez. Harry estava a abrandar.
— Que se passa? — gritou.
Harry respondeu:
— Estamos a chegar a meio.
Ben olhou para o relógio. Tinha passado mais uma hora.
— Porque paramos?
— O motor precisa de arrefecer. Está a escaldar. Construí este pequeno para ser veloz, não para transportar carga. É como puxar um camião de carga com um carro de corrida.
De súbito, o comboio deixou o wormhole e entrou numa câmara do tamanho de uma garagem para dois carros. Na parede oposta abria-se um segundo wormhole.
— Que é isto? — perguntou Ben, rolando para fora da sua prancha. Resmungou enquanto se libertava, retirando a mochila das costas.
Harry erguia-se a poucos metros de distância, movendo o pescoço para trás e para a frente.
— Mo’amba disse-me que havia um local de descanso a meio caminho para viajantes religiosos. Pensei que seria um bom ponto para esticar as pernas, esvaziar os nossos lagartos e deixar arrefecer o motor.
Nob’cobi e os outros dois caçadores já estavam a descer das pranchas e mantinham-se tão longe do comboio de plástico quando possível. Os três estavam mergulhados numa conversa animada. Os gestos que realizavam na direção da engenhoca, mesmo sem tradução, eram claramente desagradáveis.
Ben avançou para Harry.
— Como está o nível de combustível?
— Está ótimo. Para de te preocupar.
— Quanto tempo até o motor arrefecer?
Harry encolheu os ombros.
— Não sei. Meia hora. Uma hora.
Ben acenou com a cabeça, mas as suas mãos não paravam de se abrir e fechar. Percorria o espaço exíguo. Desde que estivessem em movimento, não era muito mau. Aquela paragem era agonizante.
— Relaxa! — acabou por dizer Harry. — Estamos a avançar a bom ritmo. E ainda te queixavas tu por eu estar com uma pressa dos diabos.
— Eu sei, eu sei. — Ben procurou algo que o distraísse, mas a câmara era um espaço monótono e uniforme. Fitou o trio de caçadores.
— De que falam eles?
— Acima de tudo, queixam-se. — Harry retirou uma faca de diamante de uma bainha de couro presa à cintura e começou a tirar a sujidade das unhas. — Também estão a contar histórias populares acerca do grande êxodo das suas moradas originais, mais acima, para a aldeia onde vivem agora.
— Sim, porque partiram?
— Pelo que consigo perceber, houve uma espécie de terramoto e a caverna ficou inundada. Muitos deles morreram. Parece que há um local sagrado mais acima que Nob’cobi quer visitar. Algo acerca dos guerreiros antigos que morreram numa grande inundação. As suas cabeças estão enterradas em pedras transparentes. Não compreendo essa parte.
— Eu acho que percebo. — Ben imaginou a câmara das pérolas que a sua equipa descobrira com os crânios embutidos no centro.
Harry olhou para Ben como se este fosse louco.
— Sim, como queiras. De qualquer maneira, depois de terem partido, os crak’an apoderaram-se da caverna. Os sacanas usam-na como uma espécie de local de acasalamento. Ao que parece, há vários grupos destas criaturas. Uma vez a cada década, convergem para a grande caverna e procuram companheiro.
— Algo me diz que este foi o décimo ano. — Ben tentou imaginar bandos daqueles monstros sanguinários, carregados de agressividade territorial e sexual. A Base Alfa nunca tivera a menor hipótese.
Harry acenou, com o rosto ensombrado.
— É melhor ir ver o trenó.
Por fim, depois de ter trabalhado no motor durante vinte minutos agonizantes, Harry fez-lhe um sinal de polegar erguido. Depois de muita hesitação, o grupo de mimi’swee trepou para as suas pranchas e partiram.
O que restava da viagem não teve nada merecedor de registo. Nem demoras, nem problemas. Ainda assim, pareceu uma eternidade. Durante a viagem, Ben verificou o relógio pelo menos sessenta vezes.
Por fim, Harry desligou o motor.
— Fim da linha, malta.
Um dos caçadores trepou por cima de Harry para alcançar a porta de pedra mais à frente. Mexeu em algo do lado direito da porta e a parede de rocha abriu-se para a câmara da ohna. Harry seguiu o caçador até à pequena gruta, puxando o comboio atrás de si.
Uma vez na câmara, Ben rolou de cima da sua prancha e avançou agachado até à entrada. Avaliou rapidamente o espaço, esperando encontrar manadas de animais a acasalar. Mas não havia lá nada, apenas o lago calmo a lamber suavemente a margem rochosa por baixo deles.
Olhou de relance para o outro lado da caverna. A quilómetros de distância, conseguia ver as luzes que tremeluziam no acampamento distante. A Base Alfa. A partir dali parecia bem, mas, quando olhou com mais atenção, percebeu que não havia luzes suficientes. A base estava parcialmente apagada.
O ar, outrora tão limpo, fazia-lhe agora arder as narinas. Fedia a fumo queimado e a combustível, cheirava a problemas.
CAPÍTULO 32
A primeira coisa em que Jason reparou quando se aproximaram da base foi no cheiro. O fedor sobrepunha-se ao cheiro persistente da fuligem oleosa. Jason apertou o nariz e concentrou-se em respirar pela boca, embora ainda se sentisse prestes a vomitar.
Linda deu-lhe uma palmadinha nas costas, mas exibia uma expressão igualmente enjoada.
— Khalid — chamou. — Já estamos perto o suficiente da base e o cronómetro do Jason marca apenas sete minutos.
— Então aumenta o ritmo. Reiniciá-lo-ei quando chegarmos ao acampamento.
— Não é seguro avançar com esta velocidade. Ainda podem estar mais monstros por perto. Devíamos avançar lentamente.
— Por esta altura, o mais certo é que o ar carregado de fumo os tenha expulsado da caverna, mas isso não vai durar para sempre. Temos de atacar agora, antes que o fumo se dissipe.
Linda estugou o passo.
— Jason, é melhor apressarmo-nos.
Jason olhou de relance para o cinto de explosivos. Viu o número descer de seis para cinco. A sério.
À medida que se aproximavam do limite da base, a origem do cheiro tornou-se clara, e todos abrandaram.
— Não olhes, Jason — disse Linda, tentando protegê-lo.
Ignorando o aviso, Jason observou enquanto Khalid contornava a besta morta, deixando uma boa distância entre si e a carcaça. Linda seguiu-o, puxando Jason consigo. Enquanto contornavam o seu corpo, a causa de morte tornou-se visível. O seu estômago fora rebentado por uma granada ou outro explosivo. Pedaços de metal e intestinos estavam espalhados pelo chão em várias direções. Jason engoliu em seco, lutando com o desejo de vomitar. Não sabia o que era pior, se a imagem se o cheiro.
Enquanto se apressavam a contornar a besta malcheirosa, Linda arquejou e virou o rosto de Jason contra o peito. Mas não antes de ele ter tido um vislumbre do tronco decapitado de um dos elementos da base, ainda preso nas suas mandíbulas mortais. Desta feita, não tentou lutar para se libertar.
Depois de terem passado os restos mortais, Linda libertou-o, dando-lhe uma palmadinha nas costas. Viu que Khalid parara mais à frente, visivelmente abalado, o rosto pálido.
Linda avançou para ele.
— Não quero que o Jason veja mais disto.
Khalid até acenou com a cabeça.
— Estamos quase onde preciso de ir. É por aqui. — Virou-se e guiou-os. — Avancem em silêncio.
Indicando o caminho, Khalid avançou entre dois edifícios de madeira caídos. Enquanto o seguiam, Jason reparou nas pernas de um soldado, cujas botas emergiam de baixo de uma pilha de traves de madeira e vidro. Afastou o olhar.
A base estava silenciosa à volta deles, os seus passos o único som.
Khalid parou por um momento, olhando de relance à sua volta, como que para se orientar, depois avançou para norte pelo limite da base. Em menos de um minuto tinham alcançado um dos pilares naturais com um metro de espessura que ligavam o teto distante ao chão.
Khalid tirou a mochila das costas e abriu-a. Retirou o rolo de corda de escalada e atirou-a a Linda.
— Prende o rapaz aqui.
— O quê? — Linda largou a corda, recusando-se.
— Ele tem três minutos no seu cronómetro. Reiniciá-lo-ei depois de estar preso.
— Mas porque...?
— Estás a ficar sem tempo. Fá-lo!
Linda olhou de relance para o cronómetro de Jason, depois curvou-se e pegou na corda.
— Lamento — disse, enquanto encostava as costas dele à coluna de pedra.
— Prende-lhe as mãos atrás das costas primeiro.
Jason viu a expressão preocupada nos olhos de Linda enquanto esta envolvia os seus pulsos com a corda. Percebeu que estava prestes a chorar. Aquilo incomodava mais Jason do que o facto de estar preso.
— Está tudo bem — sussurrou-lhe.
Linda prendeu a cintura dele à coluna com a corda.
— Deixa-o bem preso. Perderás segundos preciosos se tiveres de refazer tudo.
Linda puxou a corda e deu um nó rápido.
— Acabei. — Linda sentou-se, de cabeça caída. — Pronto — disse, a raiva aguçando-lhe a voz. — Agora reinicia o cronómetro!
Khalid verificou os nós e a firmeza das cordas. Depois curvou-se e introduziu o código no teclado do tamanho de um cartão de crédito por baixo do ecrã LED. O número indicava agora 120. Jason tinha mais duas horas.
— Porque estás a fazer isto? — perguntou Linda.
— Por duas razões. Primeiro, o rapaz está a abrandar-nos. E ainda tenho quinze cargas para colocar. Com a tua ajuda, posso terminar em menos de duas horas. A segunda razão é a motivação. Não voltarei para reiniciar o cronómetro enquanto as quinze cargas não estiverem colocadas. Assim serás encorajada a cooperar com toda a velocidade.
— Eu ajudo-te. Disse-te que ajudaria. Isto não é preciso.
As palavras seguintes foram ácidas.
— A tua palavra vale merda.
Linda permaneceu em silêncio.
Jason viu Khalid agarrar em dois lenços e aproximar-se dele. Tentou desviar-se, mas as cordas prendiam-no com força. Khalid pôs a palma da mão na testa de Jason, prendendo-lhe o crânio contra a coluna de pedra. Em seguida fez uma bola com um dos lenços e enfiou-lho à força na boca. Antes que este o pudesse tentar cuspir, prendeu a mordaça com o segundo lenço.
Por aquela altura, Linda já agarrava o braço de Khalid.
— Deixa-o em paz!
Khalid afastou-a com uma cotovelada, terminando o nó.
— Não quero que este fedelho comece a gritar mal nos afastemos. Poderá atrair as criaturas de volta. — Apontou para o cinto de Jason. Indicava agora 116. — Estamos a perder tempo.
Linda ajoelhou-se junto de Jason. Este tentava permanecer estoico e calmo. Ela tocou-lhe no rosto.
— Eu volto. Prometo.
Ela abraçou-o com força, até Khalid a puxar pelo ombro.
— Agora!
Linda levantou-se e, apertando uma última vez o ombro de Jason, virou-se e seguiu Khalid. Jason viu-os desaparecer atrás de si, depois ouviu os seus passos a desvanecer-se na escuridão. Estava sozinho.
Com a luz do capacete a cortar o caminho em frente na escuridão, Ben guiava-os através da caverna vazia, avançando para as luzes da Base Alfa. Teve o cuidado de parar frequentemente para ouvir. Embora não os conseguisse ver, sabia que os caçadores mimi’swee, armados com facas e lanças, se tinham espalhado para ambos os lados, atentos a quaisquer sinais da presença dos crak’an. Avançavam sem luzes e eram silenciosos como fantasmas. A única coisa que Ben conseguia ouvir era o arrastar das botas de Harry na rocha atrás de si.
Ben passou a pistola para a outra mão e limpou a palma da mão à perna das calças. Os incêndios tinham aquecido a caverna e o manto de fumo tornava difícil respirar. Passou a língua pelos lábios gretados e pegou no cantil, abrindo a tampa com o polegar. Tendo o cuidado de não fazer mais do que molhar a boca, deu um gole rápido, depois sussurrou a Harry:
— Pensei que tinhas dito que haveria muitos daqueles monstros por aqui.
— Talvez o calor e o fumo os estejam a manter ao longe.
— Não gosto disto. Está a ser demasiado fácil. Se houve coisa que aprendi foi que quando as coisas parecem muito bem... acontecem desgraças!
Harry encolheu os ombros.
— Tem cuidado com o que desejas, pá.
Um ruído à sua direita atraiu-lhes a atenção.
— É o Nob’cobi — disse Harry. — Vem. Ele descobriu qualquer coisa.
Ben seguiu o balouçar da lanterna de Harry através do solo irregular. Nob’cobi estava agachado junto de uma pilha de fezes fumegantes. Segurava uma mão cheia em frente do nariz. Virou-se para Harry e falou em voz baixa.
Harry traduziu.
— Ele diz que é fresco.
— Bem, isso é bom. — Ben torceu o nariz ao cheiro. — Odiaria pensar que se tinha estragado.
— Ele estima que tenha menos de uma hora. Há mais fezes, calcula que seja um grupo de pelo menos cinco. Dois deles machos.
— Ele consegue perceber isso tudo só por cheirar as fezes?
— É a função deles.
— Que devemos fazer, então? Contorná-los?
Harry ajoelhou-se e falou com Nob’cobi baixinho. Os outros dois caçadores erguiam-se a vários metros de distância, os seus olhos percorrendo a periferia, virando as orelhas para trás e para a frente. Por fim, Harry levantou-se e virou-se para Ben.
— O plano é seguir o grupo. Parecem estar a caminho da base. Os crak’an viajam em grupos compactos. Enquanto avançam, quaisquer outras criaturas que encontrem juntar-se-ão a eles ou serão mortos por eles. Por isso, a traseira deste bando deverá estar relativamente livre de criaturas solitárias.
— Pois — balbuciou Ben, pontapeando a pilha de fezes húmidas —, mas se virarem para aqui, tornar-nos-emos merda de crak’an.
Khalid observou Linda atentamente, assegurando-se de que esta colocava corretamente os fios. Boa. Estava a aprender. Aquela era a nona carga. Ela tinha colocado as últimas três, depois de ele ter demonstrado com as primeiras duas. Desta feita, as suas mãos quase não tremiam.
Enquanto ele terminava a sua própria carga, viu-a olhar furtivamente para o relógio. Sabia que ainda faltava mais uma hora até o tempo de Jason se esgotar e, com apenas seis cargas para montar, estavam a avançar a bom ritmo.
— Agora carrega no botão amarelo do transcetor — disse-lhe, apontando por cima do ombro dela. — Ótimo, agora está ativada e aguarda o meu sinal.
Por aquela altura, Linda estava ensopada em suor. A t-shirt húmida e as alças da mochila que a seguravam realçavam os seus seios de forma atraente. Não podia deixar de olhar para ela. Podia ensinar-lhe mais uma lição antes de a despachar. Imaginou os seios dela nas suas mãos. Uma lição que ele apreciaria muito mais do que ela.
À medida que se aproximavam da base, Ben viu o bando de crak’an através da escuridão, as suas cabeças triangulares e cristas eriçadas desenhadas contra a luz do acampamento agora a poucos metros de distância.
O bando incluía agora sete elementos — dois deles tinham-se juntado ao grupo durante a hora de viagem até à base. Conduzido pelo maior dos dois machos, o bando de fêmeas viajava numa formação solta, ou «harém», como Harry o descrevia. O macho mais pequeno, alcunhado «Tiny Tim», seguia por último. Parecia estar a proteger a retaguarda do bando e virava-se, demorando-se frequentemente vários metros atrás do bando. Parecia sentir que havia algo errado, recuando com frequência, sentindo o cheiro atrás do grupo.
— Filho da mãe nervoso — sussurrou Harry ao ouvido de Ben, enquanto este se agachava atrás do pedregulho ao seu lado.
Acenou com a cabeça, temendo sequer falar, receando atrair a atenção da criatura. A viagem fora tensa. Durante o caminho, o bando encontrara um macho solitário e beligerante. Foi atacado pelo grupo num frenesi semelhante ao dos tubarões e dilacerado.
Recordando-se dessa visão, Ben estremeceu. Ali, no meio da caverna, tinham pouca margem para se esconderem. Caso atraíssem a atenção do bando... abanou a cabeça, forçando a imagem a deixar a sua mente.
Espreitou por trás do pedregulho. Viu que o bando entrava agora na periferia da base, desaparecendo nas sombras dos edifícios restantes.
— Está livre — disse Harry baixinho, acenando para o trio de caçadores mimi’swee. — Vamos.
Ben ergueu-se da posição agachada e avançou atrás de Harry. Ao contornar o pedregulho, torceu o pé num buraco de que não se apercebera e caiu. Quando a pistola atingiu o chão rochoso, viu o clarão do tiro a emergir no cano e a detonação ressoou pela câmara.
Credo, pensou Ben, lá se ia a entrada silenciosa.
Observou quando o focinho reptiliano reemergiu das sombras da base, mais à frente, movendo-se para trás e para a frente, procurando. Tiny voltou a surgir.
Jason contorcia-se contra as cordas quando o tiro ecoou pela caverna. Mastigou a mordaça, mas não conseguia mover a língua e respirar pela boca era praticamente impossível. Inspirou com força pelo nariz, em pânico com a possibilidade de não conseguir ar suficiente. À sua volta, as sombras dançavam à luz tremeluzente.
O seu primeiro pensamento foi que Khalid dera um tiro a Linda, e o seu coração dispersou no peito. Depois uma rajada de tiros de uma arma automática ecoou pela caverna. Não era Khalid! Era outra pessoa. Lutou de novo contra a mordaça. Talvez se se conseguisse libertar dela. Gritar por ajuda.
Ouviu mais tiros.
Estariam a aproximar-se? Escutou. O sangue ribombava-lhe nos ouvidos, tornando difícil ouvir.
Mais explosões.
Sim! Lutou de forma mais frenética. Depois ocorreu-lhe um pensamento e estacou.
Qual seria o alvo dos seus tiros?
Ben entrou de rompante pela porta de um dos poucos edifícios de betão que ainda se erguia. Nob’cobi entrou atrás dele, respirando com dificuldade. Uma análise rápida do edifício revelou tratar-se de um dormitório — com beliches alinhados contra ambas as paredes, mas Ben ignorou a divisão e espreitou pela entrada. Viu a cauda de um dos crak’an desaparecer na esquina oposta.
Ótimo. Por sorte, fora uma das fêmeas mais lentas a persegui-los. Com alguns movimentos rápidos tinham-na despistado. Mas e o Harry? Teria ele chegado à base?
Rajadas de fogo automático fizeram-se ouvir a sul.
Ben cerrou o punho. Muito bem, pelo menos ainda estava vivo e a combater. Considerou as suas opções esfregando a testa. Podia tentar correr para Harry, mas seria muito difícil encontrá-lo. Ou podia tentar alcançar o gabinete de Blakely e recuperar a estátua. Esse era o plano mais sábio, mas odiava deixar Harry sozinho.
Ainda assim, o que poderia fazer? A sua pistola solitária serviria de pouca ajuda. Não, tinha de esperar que Harry e os outros se conseguissem defender sozinhos. Além disso, Harry conhecia bem a base e sabia para onde Ben se dirigia.
Abriu a porta do edifício, inclinou-se para o exterior e fez uma pausa para estudar o espaço envolvente. Vendo o túnel do elevador à sua esquerda e o lago a seguir a um conjunto de tendas espezinhadas, concentrou-se. Muito bem. Sabia mais ou menos onde estava. O gabinete de Blakely ficava a menos de meio quilómetro de distância. Isso se a ponte que permitia atravessar a ravina que dividia o campo ainda estivesse intacta. Se tivesse de contornar a falha enorme, seriam uns dois quilómetros. E, com os malditos crak’an por perto, queria o caminho mais curto possível.
Inspirando fundo, acenou a Nob’cobi para que este o seguisse. O pequeno caçador, apertando a lança contra o seu próprio corpo, seguiu-o. Ben avançou à frente, mantendo-se perto das sombras e correndo de esconderijo em esconderijo.
À medida que Ben se aproximava da base, foi ouvindo rajadas de tiros periódicas. Levantou-se e escutou, mordendo o lábio inferior. Os tiros estavam a afastar-se cada vez mais. Com tantos esconderijos disponíveis, Harry já devia ter sido capaz de despistar os sacanas.
Olhou de relance para Nob’cobi. O caçador estava descontraidamente apoiado na sua lança, as pálpebras meio fechadas, enquanto coçava o traseiro nu. Porque estaria ele tão bizarramente calmo?
Uma vez mais ouviram-se cinco tiros — ainda mais distantes.
Depois ocorreu a Ben. Harry estava a disparar aquelas rajadas propositadamente, chamando para longe as bestas, deixando o caminho livre para Ben chegar ao gabinete.
Olhou para Nob’cobi. Tocou no caçador mimi’swee.
— Sabias disso, não sabias, pá? Vamos. — Aumentou o ritmo, confiando em Harry para atrair os crak’an para longe.
Avançando agora mais depressa, Ben alcançou o desfiladeiro em dois minutos mas parou quando viu a ponte. Ou pelo menos o local onde a ponte costumava estar.
— Maldição — murmurou. — Será que nada corre bem? — Tudo o que restava da ponte eram algumas traves partidas que se projetavam alguns metros sobre o desfiladeiro, deixando um buraco negro de espaço vazio. Fitou esse espaço. Pelo menos dez metros. Demasiado para saltar. Teriam de contor...
Saltou quando ouviu um forte estrondo atrás de si. Girando sobre si mesmo, virou-se e viu um dos crak’an emergir do meio de dois edifícios para a área aberta em frente ao desfiladeiro. Era o Tiny Tim e bloqueava o único acesso ao labirinto de edifícios e tendas. A criatura silvou e avançou.
— Então, sacaninha — disse Ben, recuando ao mesmo tempo que erguia a arma —, não foste enganado pelo Harry. — Apontou a arma e disparou.
A criatura encolheu-se ao ouvir o som e tocou ao de leve no pescoço. Ben viu o rasto de sangue que corria da ferida. Tinha atingido o alvo, mas a bala não parecia perturbar o animal de pele espessa. Avançou na sua direção.
Nob’cobi correu atrás de Ben quando este disparou. O tiro perdeu-se, mas o som fê-lo parar. O crak’an estacou, desconfiado, fitando a sua presa.
Maldição, quase conseguia ver o sacana a traçar o seu plano. Ben recuou mais um passo. O limite do desfiladeiro estava agora apenas um metro atrás dele. Virou-se para dizer a Nob’cobi que fugisse enquanto distraía a besta, mas não estava ninguém atrás de si. Nob’cobi já tinha partido. Para onde...? Depois viu o pequeno caçador a equilibrar-se na trave da ponte, a poucos metros de distância, prendendo uma corda ao que restava de um candeeiro. Que estava ele a fazer?
Ben voltou a sua atenção para o seu adversário. O animal inclinou a cabeça para trás e para a frente, fitando a pistola, como se avaliasse o perigo.
O pé de Ben deslizou na rocha escorregadia, quando recuou mais um passo. Arriscou um rápido olhar de relance por cima do ombro. Nob’cobi recuara da ponte e erguia-se a um braço de distância de Ben.
— O que é que vais...?
Antes que Ben conseguisse terminar, Nob’cobi correu para a ponte caída. Meu Deus, pensou Ben, ele vai tentar saltá-la. Aquilo era suicídio. Observou enquanto Nob’cobi corria pela trave estreita, como se corresse em piso sólido. No último momento, o pequeno caçador pôs a lança à frente e bateu com a base desta na trave, saltando, voando pelo ar. Aterrou, rebolando, do lado oposto do desfiladeiro.
Ben apercebeu-se pela primeira vez de um laço de corda preso em redor da cintura de Nob’cobi. A corda de trepar estendia-se agora sobre o desfiladeiro até ao candeeiro a que o pequeno caçador prendera.
Um rugido chamou a sua atenção de novo para trás de si. Tiny Tim olhava para o outro lado do desfiladeiro, para a presa que lhe escapara, claramente furioso com a sua perda. Os olhos negros fixaram-se então de novo em Ben. Quase conseguia ver o sorriso invadir-lhe os lábios, expondo todo comprimento dos seus dentes amarelados. Avançou para ele.
Ben, cuja arma ainda estava vagamente apontada à cabeça da besta, apercebeu-se de que as suas hipóteses de lhe atingir a cabeça eram escassas. Um tiro mortal exigia uma mestria maior do que a sua. Baixou a arma, apontando para um alvo mais fácil, a barriga. Se tinha adivinhado bem as intenções de Nob’cobi, Ben precisava de mais alguns segundos de liberdade.
Puxou o gatilho. A bala enterrou-se no flanco de Tiny Tim, fazendo o animal recuar alguns passos.
Ben não esperou. Deu meia-volta e correu para a ponte caída. Tal como previra, Nob’cobi tinha puxado a corda e prendera-a a um poste do lado oposto. Ben tinha agora uma ponte de corda sobre o desfiladeiro.
Atrás de si, ouviu um rugido. Vinha lá! Os seus pés quase escorregaram quando o piso mudou de rocha para madeira ao alcançar a ponte partida. Os braços esticados em busca de equilíbrio, correu pela trave e saltou no final.
Mergulhou para a corda, afastando os braços tanto quanto possível.
Com um esgar agarrou a corda com uma mão, sentindo um sacão no ombro quando o seu peso o puxou para baixo. Agitou-se por um momento, sentindo que a mão escorregava ligeiramente. Depois agarrou a corda com a outra mão. Ficou pendurado por um segundo, respirando pesadamente, abalado.
A corda agitou-se nas mãos de Ben. Mas que raio? Inclinou o pescoço para olhar à sua volta. Tiny Tim lançava-se contra o candeeiro a que Nob’cobi prendera a corda. Se o candeeiro caísse, o mesmo aconteceria com aquela ponta da ponte de corda.
Ben olhou de relance para o fosso negro por baixo de si. Apressou-se, avançando com uma mão após outra pela ponte, mas o agitar da corda tornava o seu avanço hesitante e lento.
Não ia conseguir.
E quando a corda ficou flácida nas suas mãos, percebeu que, uma vez na vida, estava certo.
CAPÍTULO 33
Linda apercebeu-se de duas coisas enquanto se agachava na latrina parcialmente destruída. Primeiro, que seria impossível que ela e Khalid pudessem colocar todas as cargas explosivas antes de o tempo de Jason acabar. Restando-lhe apenas vinte minutos, ainda tinha mais três cargas para colocar. Segundo, chegara à conclusão de que Khalid nunca tencionara libertar Jason.
Fitou a figura fria de Khalid enquanto este espreitava pela porta partida do edifício. O fedor a desinfetante de pinho era carregado no espaço exíguo. Desde o início dos tiros que ele não fizera qualquer tentativa para acabar de colocar as cargas; em vez disso, procurara o abrigo mais próximo e decidira manter-se discreto.
Ela deslizou para junto de Khalid.
— O cronómetro de Jason está a chegar ao fim.
Ele acenou com a cabeça.
— Eu sei, mas o combate está entre nós e o rapaz. Uma pequena bolsa de resistência, claramente, sobreviveu ao ataque inicial. E preferia evitar o que quer que seja que esteja na mira dos seus tiros.
Certo, sacana. Uma desculpa conveniente. O idiota nunca tinha pensado voltar atrás para ir buscar Jason. Por aquela altura, já se tinha apercebido do padrão nas cargas de Khalid. Estava a avançar em torno do campo, colocando cargas na base das colunas maiores que iam do chão ao teto. Pretendia destruir a maior parte delas e fazer abater o teto. Fazer abater o vulcão sobre as grutas.
Também se apercebeu de que o seu caminho era sinuoso, terminando perto do elevador. Pretendia, claramente, acabar de colocar as cargas e depois saltar para o elevador e escapar. Deixando Jason como bomba humana.
Claro que os tiros tinham prejudicado os seus planos cuidadosamente delineados.
De súbito, um rugido de raiva irrompeu do outro lado da base. Uma daquelas criaturas. Parecia irritada. Apercebeu-se de que Khalid estremecia a cada rugido. Estas coisas pareciam gerar nele mais do que simples medo. Mesmo naquele momento, balbuciou algo em arábico. Parecia uma oração.
Embora gostasse de ver o frio Khalid finalmente abalado, esse medo deixara-o paralisado, temendo abandonar aquele esconderijo. E o tempo estava a chegar ao fim.
— Temos de continuar — disse Linda com firmeza. Khalid virou-se para ela, os olhos escuros. Antes que ele pudesse dizer alguma coisa, ela prosseguiu: — Os tiros vêm nesta direção, Khalid. Ouve. — Apontou para a porta. — Quem quer que seja o alvo dos tiros está a vir para aqui. Nesta direção.
Ele apertou os punhos, não de raiva, mas de medo e frustração.
— Temos de continuar a avançar. — O medo quebrava a sua voz normalmente firme.
— Então vamos!
Um estalido ecoou pelo desfiladeiro quando Tiny Tim soltou a ponte de corda. Enquanto mergulhava, Ben, segurou com mais força a corda. Rezou para que Nob’cobi tivesse prendido com segurança a outra ponta. Estremecendo, observou a parede oposta aproximar-se dele. Aquilo ia doer, mas tinha de continuar agarrado. Se a colisão lhe arrancasse a corda das mãos, não seria mais do que uma mancha ensanguentada no fundo do desfiladeiro.
Virou-se para receber o grosso do choque nas pernas, mas de pouco serviu. Quando bateu, sentiu-se como se tivesse saltado de um prédio de dez andares. A anca esquerda bateu contra a parede, quase o cegando de dor, mas ele ignorou-a, concentrando-se apenas numa coisa — continuar a agarrar a corda, obrigando os dez dedos a apertá-la com força. Fez ricochete contra a parede e voltou. Desta feita, as pernas sustiveram a maior parte do impacto e parou, pendurado quinze metros abaixo da beira do penhasco.
Do outro lado do fosso, Tiny Tim rugia de raiva. Andava para trás e para a frente junto à ponte danificada, procurando uma maneira de atravessar.
Ben estremeceu face aos penetrantes gritos de raiva.
— Cala-te! — gritou-lhe.
Tiny Tim ficou tenso com a sua explosão e agachou-se do outro lado do desfiladeiro. Ben sabia que a criatura o conseguia ver. Por um momento, pensou que o crak’an poderia saltar num gesto suicida, mas em vez disso silvou uma última vez e correu na direção do labirinto de edifícios. Boa viagem.
Suspirando de alívio, Ben ficou pendurado, a descansar. Conseguia sentir o sangue a correr pelas pernas das calças, ao mesmo tempo que se agarrava à corda. Precisava de subir antes de ficar ainda mais fraco.
Prendendo uma perna à corda, arriscou-se a libertar uma mão para atar a corda ao arnês de rappel à volta da sua cintura. Com uma ligeiríssima rede de segurança, subiu de forma mais constante até ao cimo do desfiladeiro.
Uma vez ali, Nob’cobi ajudou-o a içar-se para terreno plano. Ben rolou, ficando de costas sobre o solo duro, a respiração áspera. O caçador tocou com um dedo na perna das calças ensopadas em sangue. Disse algo numa linguagem gutural e a sua voz soou preocupada.
— É só um corte. Sobreviverei. — Levantou-se. — Já agora, amigo, obrigado pelo salvamento. Eu tinha a certeza de que ia ser paparoca de monstro.
Nob’cobi ergueu uma sobrancelha numa expressão confusa.
— Oh, esquece. — Ben tentou levantar-se, mas a sua anca ferida protestou. Não estava partida, mas doía como o diabo. Saltitando, afastou-se do desfiladeiro. — Vamos. Ainda temos de chegar ao cofre.
Nob’cobi seguiu-o, mas, passados alguns metros, agarrou no braço de Ben e apontou para as gotas de sangue que pingava enquanto ele andava.
— Eu disse-te que não era nada. Blakely tem um kit de primeiros socorros no gabinete. — Ben virou-se para continuar, mas o pequeno caçador persistiu, puxando-o para trás. Recorrendo à mímica, fingiu cheirar o rasto ensanguentado, depois emitiu com bastante exatidão o rosnar rouco de um crak’an.
— Achas que estou a deixar um rasto? — Ben olhou para a fiada de gotas. — Tens razão. Acho que seria melhor se não deixássemos um convite tão óbvio.
Ben tirou as calças ensanguentadas e torceu-as. Só de calções, examinou a ferida. Um corte irregular na parte de cima da coxa. Ia deixar uma cicatriz feia, mas nada mais. Franzindo o sobrolho, usou as últimas gotas do seu cantil para lavar a ferida, depois prendeu um lenço em volta da coxa para estancar o fluxo de sangue.
— Pronto — disse Ben, enfiando de novo as calças. — Satisfeito?
O caçador tinha de novo uma expressão de tédio estampada no rosto, aparentemente satisfeito.
— Ótimo. Vamos. — Ben avançou à frente, deslizando de sombra em sombra. Já estava farto daqueles malditos crak’an e não queria dar de caras com qualquer outro.
O caminho estava livre. Passados cinco minutos, estava à porta do gabinete de Blakely. A porta de vidro para o gabinete da administração tinha sido destruída, mas de resto o edifício de betão estava intacto. Avançando de forma hesitante através da entrada, tendo cuidado com os vidros, Ben entrou na área da receção. Algo grande tinha destruído a divisão. Uma espessa substância amarela que tresandava a amoníaco cobria as paredes.
— Parece que um maldito gato de rua veio marcar território — murmurou Ben, enquanto examinava o que restava da secretária e dos ficheiros. Abrindo caminho por entre os destroços, chegou à porta de metal incólume que dava acesso aos gabinetes. Tentou a maçaneta. Trancada.
— Maldição! — Deu um murro na porta, magoando o punho. Tentou girar a maçaneta.
Uma voz chamou-o do outro lado da porta:
— Olá! Está aí alguém?
Deus do céu, alguém estava vivo! Bateu à porta.
— Abra. É o Ben Brust da equipa de exploradores.
Uma pausa, depois debilmente:
— É seguro?
— Por enquanto. Agora abra.
Ouviu o ferrolho a ser corrido. A porta abriu-se. Uma mulher pequena e loura de cabelo desgrenhado erguia-se à sua frente. O fato elegante em farrapos sobre o corpo magro.
— Sandy? — Ben reconheceu a secretária de Blakely. — Está bem?
Ela correu para o abraçar.
— Graças a Deus que está aqui!
Nob’cobi avançou para junto de Ben e balbuciou algo, apontando para a porta.
Sandy fitou o pequeno caçador nu, de olhos muito abertos, os dedos cravados no braço de Ben. Soltou um pequeno gemido e recuou.
Ben acenou a Nob’cobi para que saísse de modo a não a assustar mais. Empurrou Sandy para o corredor na direção do gabinete de Blakely.
Uma vez lá dentro, avançou para o cofre onde Blakely guardava a estátua de diamante, o ídolo ohna dos mimi’swee. Não sabia a combinação, mas havia explosivos e detonadores suficientes na base para que não fosse difícil abri-lo. Harry sabia onde estava esse equipamento e como usá-lo. Mas onde estava Harry?
Sandy aninhou-se num sofá.
— O que... que é aquela... criatura?
— É um amigo. Um dos habitantes das habitações dos penhascos.
— Como... quer dizer... quando...?
Sentou-se ao lado dela.
— É uma longa história, mas confie em mim, é um amigo. Não a magoará.
Sandy envolveu o peito com os seus próprios braços e estremeceu.
— Porque ficou para trás? — perguntou Ben. — Porque não foi evacuada com os outros?
Ela fitou-o como se ele fosse louco.
— Não houve evacuação. Atacaram repentinamente. Não houve tempo. Estão todos mortos.
— O quê? Mas e os reforços vindos lá de cima? Já passaram quatro dias!
— Perdemos a capacidade de comunicar por rádio quase de imediato. No dia a seguir ao ataque, ouvi o motor do elevador e decidi correr o risco e correr para ver. — O seu rosto empalideceu enquanto relatava a história. — O elevador estava cheio de soldados. Mas eles não sabiam. — Virou-se para Ben, os olhos repletos de lágrimas. — Eles não sabiam. O ruído atraiu as criaturas. Dezenas delas. Quando o elevador se abriu, os homens foram atacados, feitos em pedaços. — Pôs o rosto entre as mãos. — Desde esse momento, mais ninguém tentou descer.
Ben acenou com a cabeça.
— Sendo McMurdo no fim do mundo, não é de admirar. Provavelmente precisarão de uma semana para lançar um ataque em grande escala. Até lá, estamos por nossa conta.
Os soluços de Sandy aumentaram.
Ben tocou-lhe na mão.
— Esperaremos até lá.
Com o rosto lavado em lágrimas, ela prosseguiu:
— Fugiram todos. Fiquei completamente só. Não pude fazer nada.
— Então e o Blakely?
Ela abanou a cabeça.
— A última vez que o vi, estava a fugir daqui com aquele rapaz, o Jason.
O coração de Ben saltou um batimento.
— Sabe se chegaram a um lugar seguro?
— Não sei o que aconteceu. Fechei-me aqui dentro. Mas os gritos... os gritos prolongaram-se por vários dias. Depois nada. Absolutamente nada. Isso foi o pior. O silêncio. — Ergueu os olhos para ele, tremendo. — Pensei que era a única sobrevivente.
— Bem, não é. — Levantou-se. Que raio havia de dizer a Ashley? Começou a andar para trás e para a frente e olhou de relance para o relógio. Tinham passado catorze horas. Ainda tinha de explodir o cofre e regressar à aldeia dos mimi’swee. Isso não lhe dava tempo para uma busca minuciosa da base, com tantas daquelas criaturas por perto. Parou à frente do cofre e cerrou os punhos. Onde raio estava Harry? Virou-se para Sandy. — Suponho que não saiba qual é a combinação do cofre de Blakely?
Ela acenou com a cabeça e disse-lha.
Por fim, talvez a sua sorte estivesse a mudar. Rodou o disco como ela lhe indicou e abriu a pesada porta. Por um momento, não pensou que lá estivesse, até ter percebido que a estátua fora embrulhada em papel pardo e cordel. Pegou nela e rasgou o papel, segurando-a contra a luz filtrada. Ben deslizou um dedo pela barriga proeminente da estátua. Esperava que ela lhe trouxesse sorte.
Nesse preciso momento, Nob’cobi entrou a correr, com uma expressão de pânico estampada no rosto.
Ben soube que tinha ficado de novo sem sorte.
Lágrimas de frustração corriam pelo rosto de Jason. Continuava a não conseguir acreditar. Primeiro pensou que tinha imaginado, mas o sotaque era claro. Ben! Tinha-o ouvido a falar com alguém, seguido de um estrondo. A pouca distância! Não conseguia distinguir as palavras, mas só podia ser Ben. Jason tentou chamá-lo, mas a mordaça abafava o som, não deixando escapar senão um suave gemido que mal chegava aos seus próprios ouvidos.
Por fim, ouviu uma porta fechar-se, seguida de silêncio. Esforçou-se por ouvir qualquer indicação de que Ben ainda estivesse por perto. Nada, devia ter entrado no edifício.
Jason lutou com as cordas. Se ao menos pudesse libertar uma mão e arrancar a mordaça. Tinha de encontrar uma forma de chamar Ben quando este saísse do edifício. Se falhasse... Olhou de relance para o ecrã LED no cinto. O número onze brilhava no ecrã e, enquanto olhava, transformou-se num dez.
Precisava de ajuda... depressa. Lutou com as cordas uma vez mais, mas era inútil. Deixou-se cair sobre si mesmo. Precisava de outro plano.
Preso ao pilar, ocorreu-lhe de súbito outra ideia. Talvez...
Moveu as ancas. Se conseguisse levar a mão esquerda ao bolso do casaco... Fechou os olhos com força enquanto esticava e contorcia o corpo, lutando com as amarras. Sentiu os dedos fecharem-se sobre a familiar caixa de plástico. Tendo o cuidado de não a deixar cair, lutou por libertá-la do bolso, mas ficou presa no tecido. Parou e inspirou fundo. Sem pressas! Com mais concentração, lutou lentamente para a libertar do casaco, suspirando de alívio. Tinha sido a única coisa que Khalid o deixara guardar do seu saco de desporto.
Rezou para que as pilhas ainda funcionassem e ligou a sua Nintendo. A música familiar ergueu-se do brinquedo. Girou o controlo do volume para o nível mais alto. A música não estava particularmente alta, mas, com sorte, a estranheza do som atrairia Ben quando este deixasse o edifício.
Esperou. Por favor, Ben, depressa. E se ficasse sem pilhas demasiado cedo? E se estivesse enganado e Ben já tivesse partido? E se o cronómetro no seu cinto chegasse a zero antes de Ben o ouvir? A sua mente era um turbilhão de terríveis receios.
Mas não lhe tinha ocorrido um até ver o focinho negro a contornar a curva à sua direita. E se o som atraísse outra coisa que não Ben? Jason observou a criatura enquanto ela silvava baixinho, as narinas a abrir e a fechar. Desligou a Nintendo com o polegar e imobilizou-se. A criatura avançou, ficando plenamente visível. Viam-se feridas ensanguentadas na barriga e no pescoço, mas não parecia afetada pelos ferimentos, avançando lentamente na sua direção.
CAPÍTULO 34
Ashley tinha a certeza de que o filho estava bem. Tinha de estar. Pousou a caneta. Passara todo o dia a trabalhar na câmara do umbo, a tentar manter as mãos ocupadas e a mente distraída. Catalogando, medindo, registando notas no seu caderno.
Olhou de relance para o relógio. Já era tarde. Ben devia estar de regresso. E se não tivesse sabido nada acerca de Jason? Ou, pior, se não regressasse? Quanto tempo mais poderia ela esperar antes que a tensão a levasse à loucura?
Suspirando, recostou-se e fitou o outro lado da câmara e a figura adormecida de Mo’amba, sentado de olhos fechados. Ele era o seu único guarda. Os restantes tinham sido mandados embora. A sua ordem fora obedecida sem perguntas.
Fitou o wormhole negro por onde Ben desaparecera. Podia tentar fugir. Se Mo’amba estivesse realmente a dormir, então talvez... abanou a cabeça. Era um longo caminho. Decerto a conseguiriam alcançar. Além disso, não podia abandonar Michaelson. Ainda que por um qualquer milagre Ashley conseguisse escapar, ele seria morto no seu lugar.
De súbito, os olhos de Mo’amba abriram-se, e ele fitou-a. Lutou por se erguer, mas as horas que passara sentado dificultavam-lhe os movimentos. Ashley avançou para o ajudar a levantar-se.
Mo’amba fitava a abertura da câmara que conduzia à aldeia.
— Que se passa? — perguntou.
O ancião tapou-lhe a boca para obter silêncio, depois fez-lhe sinal para que o seguisse. Usando o bordão como uma bengala, avançou com passos incertos até à entrada e puxou-a para uma alcova mergulhada nas sombras, do outro lado do túnel.
Que se estaria a passar? Contudo, não precisou de esperar muito. Em breve ouviu o suave raspar do cabedal na pedra, que se aproximava pelo túnel. Vinha lá alguém. Mas quem?
Semicerrou os olhos fitando o túnel fracamente iluminado, até Mo’amba a puxar de novo para as sombras. Esperou, sustendo a respiração. Pelo som crescente dos passos, aproximava-se mais do que uma pessoa.
Encostando-se ainda mais ao fundo da alcova escura, ouviu o grupo passar pelo esconderijo dela e penetrar na câmara umbo. Refreou um assobio ao reconhecer a figura esquelética de um deles. Era Sin’jari.
Os outros dois eram o oposto de Sin’jari. Este era alto e magro, mas eles tinham as costas curvadas e eram musculosos. Mas não havia qualquer dúvida de quem mandava. Um mero franzir de sobrolho de Sin’jari seria suficiente para fazer estremecer os outros. E havia muito franzir de sobrolho. Tendo em conta os gestos e as ordens ríspidas, era claro que Sin’jari dava ordens que só com relutância eram obedecidas.
Por fim, com um vociferar do chefe, os dois brutos de pescoço largo baixaram as cabeças e enfiaram-se no wormhole que conduzia à Caverna Alfa.
Que se estaria a passar? Ashley não conseguia compreender uma palavra do que estava a ser dito, mas Mo’amba, aparentemente, conseguia. Ashley sentia-o ficar tenso ao seu lado, estremecendo para controlar as emoções. A tensão dele era contagiante. Deu por si a cerrar os punhos. Sin’jari estava a preparar algo funesto, algo destinado a prejudicar o grupo dela.
De súbito, Mo’amba emergiu da alcova, sobressaltando-a. Correu atrás do ancião que avançava com passos precários para a câmara do umbo. Sin’jari virou-se de boca aberta, chocado e de olhos muito abertos.
Mo’amba avançou até ficar frente a frente com Sin’jari. Bateu com o bordão com tamanha força que lançou lascas da sua ponta. Sin’jari deu um passo atrás, claramente estupefacto com o aparecimento da sua némesis.
Ashley permaneceu afastada enquanto palavras acaloradas fluíam de Mo’amba. Agora era a vez de Sin’jari estremecer. Pareceu encolher-se quando as palavras de Mo’amba o atingiam. Mas se o olhar dos lacaios de Sin’jari revelavam medo, as pupilas de Sin’jari eram uma fenda ameaçadora. Do local onde se encontrava, Ashley conseguiu ver a mão dele deslizar em direção à faca que trazia no cinto.
Abriu a boca para avisar Mo’amba, mas as palavras ficaram presas na sua garganta. Como podia avisá-lo? Não sabia dizer uma só palavra na língua deles. Observou enquanto os dedos de Sin’jari se fechavam sobre a faca. Mo’amba era um líder proeminente, decerto, Sin’jari não se atreveria...
Sem aviso, Sin’jari atacou, mergulhando o comprido punhal de diamante no peito de Mo’amba. A faca interrompeu o monólogo furioso de Mo’amba com se cortasse as palavras do ar. Mo’amba baixou os olhos para o cabo que se projetava do seu peito, como se analisasse um inseto intrigante. Tossiu uma vez, gotas de sangue assomaram-lhe aos lábios.
Ashley, imobilizada pelo choque, gritou por fim, quando Sin’jari puxou o punhal, mergulhando-o uma segunda vez no peito de Mo’amba. O ancião cambaleou para trás, afastando-se da lâmina.
Sin’jari ergueu de novo o punhal, determinado a cortar a garganta a Mo’amba, mas Ashley saltou para cima dele. Bateu com o calcanhar da bota nas costelas do atacante, atirando-o para o lado. Enquanto ele cambaleava para recuperar o equilíbrio, Ashley colocou-se à frente de Mo’amba. O velho tinha, por aquela altura, caído ao chão. O sangue deslizava por entre os dedos que agarravam o peito.
Sin’jari virou-se para Ashley.
— Põe-te a andar daqui, sacana! — gritou ela.
Sin’jari esfregou a costela ferida com uma mão, enquanto a outra brincava com o punhal. O seu sorriso mostrava todos os seus dentes e era frio. Ele tinha a faca, ela não.
Ashley fitou o bordão que Mo’amba largara.
Sin’jari não lhe deu tempo para formular um plano. Mergulhou na direção dela. Mas anos de treino de karaté e quatro irmãos mais velhos tinham apurado os seus reflexos. Girou para o lado, agarrando o pulso de Sin’jari quando o seu golpe falhou o alvo. Girando sobre um pé, usou a anca e o impulso de Sin’jari para o lançar ao chão. O estalar do osso trouxe-lhe um sorriso aos lábios. A faca dele deslizou inútil pelo chão rochoso.
Em dois passos, ela tinha o punhal na mão. Agora vamos ver o que acha o sacana de ver a situação invertida. Sin’jari já se afastara, segurando o braço esquerdo. Recuou para longe dela, até ao outro lado da câmara, claramente desistindo da luta.
Enquanto mantinha um olhar desconfiado sobre Sin’jari, ela avançou para Mo’amba que jazia caído de costas, o peito a subir e a descer, com a respiração gorgolejante. Parecia estar a olhar cegamente para o teto. Em choque.
Precisava de ajuda imediata. Mas como?
Ashley saltou quando Sin’jari se levantou de súbito. Ela apontou a faca para ele, mas ele não se aproximou. Pelo contrário, deslizou em direção ao wormhole. Com um último esgar na direção dela, enfiou-se na conduta e desapareceu.
Precisamente quando ele desaparecia, ouviu o som de muitos pés que se aproximavam pelo túnel. Graças a Deus, a ajuda vinha a caminho.
Virou-se precisamente quando o primeiro guerreiros entrou na câmara, a lança apontada em frente. Um lamento penetrante elevou-se dele, quando viram a figura ensanguentada de Mo’amba estendida no chão. Quase como um só, os olhos furiosos e acusadores dos caçadores viraram-se para ela.
Ashley baixou os olhos para o punhal ensanguentado na mão. Maldição.
— Calma — disse Ben, agarrando as mãos agitadas de Nob’cobi. Estivera a tentar dar algum sentido aos gestos frenéticos e às palavras guturais, mas não conseguia avançar. Os seus esforços não tinham servido senão para os enfurecer a ambos.
Ben olhou de relance para Sandy. Esta recuara para o canto oposto do gabinete de Blakely, encolhida. Ali não encontraria ajuda.
Ben largou as mãos de Nob’cobi. Se ao menos Harry regressasse... ele conhecia a linguagem.
De súbito, Nob’cobi estendeu o braço e tocou na testa de Ben com um dedo, depois na sua. Ben fitou-o sem compreender. O pequeno caçador repetiu o gesto, a irritação a começar a franzir-lhe os olhos.
De repente, Ben compreendeu. Nob’cobi queria que ele comunicasse recorrendo às suas capacidades heri’huti. O caçador não podia iniciar pessoalmente o contacto, dado que não era da linhagem certa, mas Ben podia. Como fizera no wormhole.
Ben acenou, mostrando-lhe que compreendia e fez um gesto a Nob’cobi para que se sentasse no sofá. Nob’cobi fitou o sofá de pele com desconfiança e, em vez disso, sentou-se de pernas cruzadas no chão. Ben encolheu os ombros e fez o mesmo, fitando o caçador mimi’swee.
Fechando os olhos, Ben obrigou a respiração a abrandar, procurando acalmar a mente agitada. Imaginou-se a relaxar no alpendre da quinta de criação de ovelhas do pai, com uma cerveja morna e um dia de ócio pela frente.
De súbito, Sandy gritou:
— Que estão a fazer?
Franzindo o sobrolho, Ben ergueu a mão, mas manteve os olhos fechados.
— Está tudo bem, Sandy. Preciso que mantenhas o silêncio por um minuto.
— Mas...
— Chiu. Relaxa. — As palavras de Ben, sonhadoras, eram dirigidas tanto a ela quanto a si mesmo. Relaxa.
Conseguia ouvi-la resmungar baixinho, mas ignorou-a e bebeu a sua Foster tépida de uma garrafa poeirenta, ao mesmo tempo que inclinava a cadeira para trás, contra a esquina do alpendre. Pensou em Nob’cobi, imaginando o rosto de nariz achatado e o pescoço fino da pequena criatura. De súbito, o caçador apareceu ao lado de Ben, sentado noutra cadeira.
Nob’cobi olhava de queixo caído à sua volta. Levantou-se e apoiou-se no parapeito do alpendre, fitando de boca aberta o céu vasto, sem uma nuvem de ponta a ponta. Pareceu encolher-se um pouco, depois virou as costas à paisagem para olhar para Ben.
— É... é tão grande. — Estremeceu.
Ben sentiu alguma pena por ter atirado o pobre homem para aquela paisagem estranha, mas Mo’amba tinha-lhe feito o mesmo. Além disso, sentia falta do rancho.
— Não te preocupes, Nob’cobi. O importante não é o tamanho.
— O quê?
— Esquece. É uma piada de mau gosto. — Ben bebeu mais um gole da sua cerveja. Raios, se não sabia mesmo como a verdadeira? — Agora, o que me estavas a tentar dizer?
Nob’cobi engoliu em seco, nervoso, um olho a viajar para trás de si.
— Ouvi um ruído estranho na gruta. Diferente de tudo o que alguma vez ouvi.
— Como era esse som?
Nob’cobi fez uma careta e repetiu o som que ouvira. Parecia uma canção ou algo assim. E parecia familiar.
— Faz outra vez? — Ben concentrou-se enquanto ouvia, de olhos fechados. Onde é que tinha ouvido aquilo...? Os olhos de Ben abriram-se de repente e ele endireitou-se. Credo, era a maldita música do jogo da Nintendo de Jason! Ouvira aquela coisa irritante um milhão de vezes no caminho até ali.
— Onde é que ouviste isso? — perguntou Ben de rompante.
— Fui ver. Para tentar saber o que estava a emitir o som. Mas quase dei de caras com aquele crak’an que nos tem estado a seguir. O esperto. Também estava a seguir o som.
— Raios! — Ben afastou-se do sonho, dissipando-o em estilhaços de cor, até estar de novo cara a cara com Nob’cobi no gabinete de Blakely. Ergueu-se. Nob’cobi seguiu-o. — Sandy, fique aqui — disse Ben, enquanto enfiava mais um carregador na sua arma. — Tranque a porta. Se nós batermos, abra depressa.
Ela acenou e seguiu-o ao longo do corredor.
— Que se passa?
— Não tenho tempo para explicar. — Avançou pela porta até à receção. — Tranque-a e fique em silêncio.
Ouviu a porta bater atrás de si e o correr do ferrolho. Virou-se para Nob’cobi.
— Agora mostra-me de onde vinha o som.
O caçador fitou-o, inexpressivo. Raios, aquela não era a altura para mais um fosso de comunicação. Ben imitou a música e fingiu olhar à volta, depois encolheu os ombros.
Nob’cobi acenou com a cabeça e apontou para a porta, assumindo a liderança.
Ben apertou a pistola até ficar com os nós dos dedos brancos e seguiu-o. Se fosse demasiado tarde...? Abanou a cabeça. Não seria.
Seguiu Nob’cobi até ao exterior. Precisamente quando dobravam a esquina, Harry apareceu à sua frente. Assustado, Ben ficou a milímetros de lhe dar um tiro.
— Conseguiram — disse Harry, sem fôlego e a suar através da farda esfarrapada. — Vamos buscar a estátua e pôr-nos a andar daqui. Os outros caçadores ainda estão a levar aquele bando de crak’an numa caça aos gambozinos, mas não o conseguirão fazer durante muito mais tempo. Temos de...
Ben ergueu uma mão.
— Já a tenho.
— Ótimo!
— Mas temos um novo problema. Precisamos de nos apressar. — Ben fez sinal a Nob’cobi para avançar, ao mesmo tempo que fazia a Harry um relato abreviado da situação.
Harry seguiu-o.
— Então achas que é o miúdo da Ashley?
Ben acenou com a cabeça.
— Merda. Que má hora para se dedicar ao jogo de vídeo.
Nob’cobi fez-lhes sinal para que se calassem e acenou a Harry para que se juntasse a ele. Sussurrou-lhe algo ao ouvido. Harry fez uma careta e recuou para junto de Ben. Numa voz sussurrada, traduziu. — Foi aqui que Nob’cobi viu o Tiny Tim. A música vinha do outro lado do edifício caído.
Ben acenou com a cabeça. Desta feita assegurou-se de que colocava cada pé sobre rocha sólida antes de prosseguir. Não queria repetir o deslize anterior que atraíra a atenção do bando. O grupo esgueirou-se em silêncio durante mais cinquenta metros, passando para lá de uma tenda da messe demolida, os seus tachos e panelas espalhados pelo chão de pedra.
Depois de um minuto a avançar sorrateiramente, era possível ouvir o agora familiar som das garras na rocha e o farejar de algo grande. Nob’cobi, que seguia alguns metros à frente de Ben e Harry, espreitou junto de uma pilha de madeira destruída para a clareira em frente. De súbito, voltou para trás, encostando-se por completo à esquina. Fez-lhes sinal para que não se mexessem.
Ben observou enquanto a grossa cauda da criatura se tornava visível mais à frente, varrendo alguns tachos perdidos. O seu tilintar foi dolorosamente ruidoso no silêncio do acampamento morto. Em seguida, a cauda desapareceu do seu campo visual.
Nob’cobi fez-lhes sinal para que avançassem lentamente. Ben aproximou-se primeiro e deixou o abrigo da esquina apenas o suficiente para perscrutar a clareira à sua frente.
Estava de costas viradas, a cauda a agitar-se para trás e para a frente. Conseguia ver a cabeça a inclinar-se para um lado e para o outro, ao mesmo tempo que examinava algo à sua frente, resfolegando ruidosamente. Depois deslizou para o lado, para examinar melhor a sua presa.
Ben suprimiu um arquejo. Quando a grande criatura se afastou, revelou o seu alvo. Jason estava amarrado a uma das colunas, os olhos do rapaz muito abertos de terror. Mas o crak’an limitou-se a contornar a coluna, resfolegando e farejando, claramente baralhado com o facto de a sua presa não estar a correr. Como um gato, pensou Ben, não estava habituado a que a refeição ficasse simplesmente quieta.
Bem, teria de lhe dar outra. Ben deslizou para trás e permitiu a Harry espreitar antes de falar. Sussurrou ao ouvido de Harry.
— Preciso que atraias o sacana para longe. Como fizeste com os outros. Dá-me uma oportunidade para libertar o Jason e para o levar para um lugar seguro. Voltamos a encontrar-nos lá atrás.
Harry acenou com a cabeça.
— Mas tem cuidado — avisou Ben. — Este sacana é manhoso.
Harry falou um instante com Nob’cobi. Depois os dois afastaram-se, traçando um círculo para leste, de modo a chamar a atenção da criatura para longe do esconderijo de Ben.
Este esperou enquanto eles se colocavam em posição, sustendo a respiração, rezando para que não ouvisse, de súbito, um grito de Jason. A criatura não podia esperar para sempre. Por fim, a novidade perder-se-ia e atacaria.
Tenso, os músculos a estremecer de ansiedade, Ben saltou perante a súbita explosão de tachos e panelas a bater logo a leste da sua posição. Harry e Nob’cobi. Já não era sem tempo. Arriscou-se a espreitar à esquina, para ver se a confusão tivera algum efeito sobre o crak’an.
Este mantinha-se imóvel, as orelhas para trás, à escuta, depois virou lentamente a cabeça na direção do ruído. Deu alguns passos na direção do som, depois parou e olhou de relance para Jason preso ao pilar. Não ia morder o isco. Ou pelo menos não antes de apanhar a presa fácil. Deu de novo um passo na direção de Jason.
Maldito! Ben ergueu a pistola. Antes que pudesse disparar, contudo, Harry saltou para a clareira com dois tachos amolgados na mão.
Harry gritou-lhe:
— Então, grandalhão, que tal um pouco de ação! — Para realçar a ideia, bateu com os tachos um no outro.
A voz e o barulho chamaram a atenção do animal. Com um rugido, voltou-se na direção de Harry. A rapidez do animal pareceu apanhar Harry desprevenido. Deu um passo cambaleante para trás, quase caindo. Ben cerrou os dentes. Mexe-te, soldado! Harry pareceu ouvir a sua ordem silenciosa e correu de novo para a viela.
O homem em fuga era uma tentação demasiado grande para o monstro. Correu atrás de Harry, desaparecendo na viela.
Ben não ficou à espera. Mal a ponta da cauda desapareceu, correu para a clareira. Em direção ao rapaz.
As lágrimas corriam pelas feições sujas de fuligem de Jason. O rapaz continuava a olhar na direção do animal que desaparecia. Graças a Deus, parecia não estar ferido.
Ben correu para ele. O som das botas de Ben contra a rocha chamou a atenção de Jason. Um fugaz olhar de terror perpassou-lhe pelas feições antes de ter, aparentemente, reconhecido Ben. Depois novas lágrimas começaram a cair.
Ben alcançou-o em segundos. Abraçou-o com força apesar das cordas, puxando a mordaça para o libertar, perguntando-se quem diabo poderia ter atado e amordaçado o rapaz. Mas aquele não era o momento para perguntas. Jason tremia com os soluços:
— Agora estás bem, filho. Estás em segurança.
Mas Jason não parava de soluçar, tentando pronunciar as palavras por entre os soluços que o sufocavam.
— Eu... tentei... tentei chamar-te... com o meu jogo. — Largou o brinquedo que ainda tinha nas mãos e este caiu sobre a rocha.
— Fizeste bem. — Ben agachou-se, puxou de uma faca e atacou as cordas.
— A minha... a minha mãe... Ela está bem?
— Está ótima. Está num lugar seguro.
De súbito, Jason libertou-se das cordas largas. Ben quase não conseguia soltar as mãos do rapaz, com tanto que ele estremecia. Por fim, conseguiu.
— Fica quieto por um segundo. Deixa-me tirar este último pedaço de corda.
— Preciso de ver! — Jason parecia frenético.
— O quê?
Jason ergueu a t-shirt solta. Pela primeira vez, Ben apercebeu-se do ecrã de LED brilhante no cinto de Jason. O número seis brilhava.
Jason baixou os olhos, depois gemeu.
— Que é isso?
— É uma bomba — disse com uma expressão desesperada nos olhos.
— De que raio estás tu a falar?
Jason apontou para os quadrados de plástico cinzento presos ao cinto.
— O Khalid pôs-me uma. Para controlar a Linda. Está programado para explodir dentro de seis minutos.
— Então vamos tirar-te isso. — Avançou para o rapaz com a faca.
Jason recuou.
— Se for removido, explode. Só o código secreto permite abri-lo.
— Quem sabe o código?
— Khalid... e anda por aí algures a colocar mais bombas.
O maldito sacana. Se lhe deito as mãos...
— Bem, tem de haver uma maneira de o desarmar. Talvez o Harry... ele é um especialista em demolições. — Ben cobriu o rosto com as mãos. Que diabo. Como é que ia conseguir trazê-lo até ali a tempo? Só deviam reencontrar-se no gabinete de Blakely daí a meia hora. Cerrou os punhos e encostou-os às fontes. Maldição, homem, pensa!
Ben olhava fixamente enquanto o número de LED se transformava num cinco.
Ashley deixou-se cair sobre a almofada na sua pequena câmara. Uma vez mais confinada a uma cela. Três guardas erguiam-se no limitar, as lâminas de diamante a cintilar sob o brilho dos fungos. Tinha tentado, recorrendo à pantomima e à repetição do nome de Sin’jari, comunicar a sua inocência no ataque a Mo’amba, mas era inútil. A sua única testemunha, Mo’amba, estava às portas da morte.
Uma confusão à entrada da cela chamou-lhe a atenção. Observou enquanto Michaelson era empurrado para lá dos guardas. Tropeçou, devido ao tornozelo fraco, mas recuperou o equilíbrio.
— Os filhos da mãe ficaram com as minhas armas — disse, enquanto avançava para junto dela. — Todas elas. Que se passa?
— Desculpa, a culpa foi minha — disse Ashley, levantando-se, os músculos ainda tensos de frustração. — Estava no sítio errado à hora errada. — Ashley contou-lhe a história do ataque de Sin’jari a Mo’amba e o resultado da sua interferência. — Fui apanhada com a boca na botija, por assim dizer. Mo’amba foi encontrado apunhalado no peito, comigo de pé ao seu lado, com a arma na minha mão. Podes culpá-los?
— Que vai acontecer?
Ashley encolheu os ombros.
— Não sei. Acho que neste momento estão todos mais preocupados com Mo’amba.
— Achas que o velhote tem alguma hipótese de sobreviver?
Ashley abanou a cabeça.
— Duvido. Perdeu muito sangue. E com as suas capacidades mentais, se disso fosse capaz, ele mesmo teria entregado Sin’jari: telepaticamente, por todos os comprimentos de onda. Para permanecer em tão grande silêncio, tem de estar praticamente em morte cerebral. E, se morrer, não creio que qualquer um de nós tenha alguma hipótese de sobreviver, independentemente de o Ben conseguir ou não cumprir o prazo.
Michaelson olhou de relance para o relógio.
— O Ben tem menos de oito horas.
— Agora, começo a desejar que não volte — disse Ashley, suspirando. — Furiosos como estão acho que, mesmo que regresse com a estátua, se limitarão a executá-lo connosco. Seria melhor se ficasse longe.
— Não ficará.
— Eu sei. — Ashley sentou-se na almofada e acenou a Michaelson para que fizesse o mesmo. — Se ao menos houvesse uma forma de o avisar. De dizer a Harry e Ben para não regressarem.
— Não temos como. Aconteça o que acontecer, Ben virá atrás de ti.
Ashley bateu com o punho no joelho.
— Então tenho de encontrar uma maneira de contar à aldeia o que aconteceu com Sin’jari. Encontrar uma forma de comunicar. Mas eles nem sequer tentam ouvir. O seu discernimento está demasiado toldado pela raiva.
— Talvez o Harry regresse com o Ben antes de o Mo’amba morrer. Podia traduzir a tua história.
— Mesmo que o fizesse, achas que acreditariam em nós? O Sin’jari é um dos anciãos. Seria a sua palavra contra a minha.
— Nesse caso, precisamos de provas. Que achas que o sacana estava a tramar?
— Nada de bom, isso é certo. Acho que pretende interferir com a missão de Ben. Prejudicá-la de alguma forma.
— Se o conseguíssemos provar, isso faria muito para apoiar a tua alegação.
— Mas como? — perguntou exasperada.
— Apanhando-o em flagrante quando regressar. O único caminho de regresso seguro a partir da Caverna Alfa é através daquele wormhole. Se saiu por aquele caminho, esgueirar-se-á também por ele.
— E como esperas conseguir apanhá-lo, estando preso nesta cela?
Michaelson encolheu os ombros.
— Ei, não tenho as respostas todas.
Ashley abanou a cabeça face à inutilidade dos seus sonhos.
— Ainda assim, tudo depende de Mo’amba sobreviver até ao regresso de Ben e Harry. Se ele...
Um uivo penetrante irrompeu dos guardas à porta. Um grito que ecoava também na aldeia à sua volta, penetrando as paredes de pedra como se fossem de papel, o timbre de tal forma agudo que arrepiou os pelos nos braços de Ashley.
Michaelson tapou os ouvidos, os olhos semicerrados perante o som.
Com a mesma brusquidão com que começara, o choro cessou. O silêncio súbito parecia enorme e vazio, como se algo vital tivesse sido retirado do ar.
Ashley viu um dos guardas olhar na sua direção. Sob o sobrolho saliente, tinha os olhos marejados de lágrimas e algo mais: ódio.
— Que foi aquilo? — perguntou Michaelson.
— Acabámos de ficar sem tempo. Mo’amba morreu.
Ben começava a erguer-se quando foi atingido. Como uma explosão entre os ouvidos. Voltou a deixar-se cair de joelhos. A princípio pensou que alguma bomba tinha explodido, como a que estava presa à cintura de Jason, mas, quando se obrigou a abrir os olhos, Jason fitava-o com uma expressão inquisitiva.
— Estás bem? — perguntou o rapaz, aparentemente sem saber o que acabara de acontecer.
Ben acenou com a cabeça.
— Acho que sim... — Depois o mundo ficou negro.
Mas que raio? Lutou, mas parecia estar a flutuar num espaço sem estrelas, nada a afastar, nada com que lutar. Ben não estava inconsciente, apenas rodeado por uma escuridão infindável. Depois surgiu uma brasa solitária que cintilava na escuridão à sua frente. Enquanto se concentrava naquele marco, como um farol distante, o brilho intensificou-se até se tornar uma chama forte. Falou, vibrando a cada palavra, com a voz do seu avô.
— Ben... Ben... tu tens... de te apressar.
Por aquela altura, Ben já reconhecia um dos chamamentos de Mo’amba. Mas aquele não era o melhor momento.
— Que foi? Que se passa? A Ashley está bem?
— ... fraco... cansado... — A chama esmoreceu, não sendo mais do que um débil tremeluzir. — ... Tens de te apressar... — Brilhou mais forte por um segundo. — Perigo... — Depois desvaneceu-se, primeiro não restando mais do que um brilho baço, depois nada. E, na escuridão, Ben sentiu-se vazio. De algum modo soube que Mo’amba não se tinha limitado a quebrar o contacto, mas que partira. Partira definitivamente. Enquanto o mundo reaparecia à sua volta, descobriu que as lágrimas lhe corriam pelo rosto.
— Ben, que se passa? — Jason abanava-lhe o ombro.
Ben ergueu-se do chão de pedra sobre o qual caíra. Mo’amba estava morto. Sabia-o com a mesma certeza com que sabia o nome do pai.
— Estou bem — disse, respondendo ao rapaz.
— Desmaiaste.
— Não te preocupes, estou bem. — Tocou ao de leve no joelho do rapaz, ao mesmo tempo que refletia sobre o significado da última e urgente mensagem de Mo’amba. Tinha desejado que Ben regressasse de imediato. Que não perdesse mais tempo. Mas qual era a pressa? Ben ainda tinha sete horas antes do final do prazo. Decerto se estava a passar alguma coisa. Um novo perigo.
Jason fitava-o com preocupação, mas não disse nada.
Ben olhou de relance para o cinto do rapaz. O número cinco ainda brilhava no painel. Depressa, incitara Mo’amba. Realmente. Precisava de um plano. E de uma maneira de contactar Harry. De o chamar de volta para desarmadilhar a bomba.
Depois ocorreu-lhe... raios, porque não pensara naquilo mais cedo?
Ele tinha uma maneira de contactar Harry. Bem, pelo menos, Nob’cobi, que podia dizer a Harry para se pôr a andar até ali. O chamamento de Mo’amba recordara-lho. Podia fazer o mesmo. Nunca tentara a tão grande distância... e era pouco provável que Nob’cobi estivesse num estado de transe relaxado, capaz de ouvir o seu chamamento, mas era possível. Mo’amba tinha-o feito antes. Tinha de tentar.
— Jason, sei que isto vai parecer de doidos, mas preciso de me concentrar, tens de ficar em silêncio.
— Está bem, mas o que...?
— Chiu. Depois. — Ben sentou-se no chão, de pernas cruzadas, fechando os olhos e respirando profundamente. Voltou a imaginar a sua casa de infância às portas de Perth. O pó cor de laranja. Os cangurus ao longe. A sua casa.
Estava sentado de novo no alpendre, numa cadeira que rangia, negligenciando a presença de uma cerveja, desta vez. Concentrou-se ferozmente na imagem de Nob’cobi, visualizando o caçador sentado ao seu lado. Imaginou as feições do caçador com todos os pormenores. A cicatriz no rosto, o cabelo que começava a encanecer no topo da sua cabeça. Enquanto se concentrava, a imagem tremeluziu ganhando consistência por um segundo. O rosto surpreendido de Nob’cobi fitou-o, depois desapareceu.
Maldição! Ben voltou a concentrar-se. Vamos, Nob’cobi, tu viste-me lá por um segundo. Sabes o que quero. Voltou a insistir. Vamos, escuta-me. Nada. Persistiu durante o que lhe pareceram vários minutos. Minutos que não tinha.
Precisamente quando estava prestes a gritar de frustração e a desistir, Nob’cobi apareceu. Parecia sem fôlego.
— Que queres? — rosnou a Ben. — Quase tropecei e caí com o teu primeiro chamamento. Tu devias...
— Basta! Preciso do Harry aqui. Já!
— Bem, nós já estamos de regresso. Aquele crak’an de merda deve estar apaixonado por ti. Porque desistiu de nos perseguir e voltou de novo para aí. Já conseguiram sair daí?
— Não. Temos um problema. Preciso que tu e o Harry esqueçam o Tiny Tim e se encontrem comigo no gabinete. Corram o mais depressa que puderem.
— É melhor que faças o mesmo, porque o sacana vai na tua direção e depressa.
— Rápido. — Mas Nob’cobi já tinha desaparecido.
Ben afastou-se daquele estado onírico e viu Jason a olhar para ele.
— Que estás a fazer?
— É uma longa história — disse, levantando-se. — Temos companhia a caminho. — Com um suspiro de alívio, reparou que o LED de Jason indicava quatro. O tempo movia-se de forma estranha no espaço dos sonhos. Parecera-lhe ter lá estado muito mais do que um minuto. — Consegues correr?
Jason saltou de um pé para o outro, claramente cheio de energia nervosa.
— Oh, sim.
— Então vamos. — Ben agarrou-lhe a mão e começou a correr, ao mesmo tempo que ouvia o som de Tiny Tim a aproximar-se deles, vindo da outra direção. Aumentou o passo para uma corrida vigorosa. O gabinete ficava a menos de cem metros. Alcançou-o, levando Jason a reboque, em menos de um minuto. O mostrador do cinto passou de quatro para três precisamente quando entrava na receção destruída. Agora corre, Harry.
Ben avançou até à porta que dava acesso aos gabinetes e bateu.
— Sou o Ben — chamou. Ouviu o ferrolho a ser corrido; a porta abriu-se por completo.
O rosto preocupado de Sandy espreitou para o exterior. Viu Jason e os seus olhos abriram-se.
— Encontrou o rapaz! — Saiu a correr e tomou-o num abraço como se fosse uma espécie de salva-vidas.
Depois ouviu uma voz atrás de si.
— Qual é a pressa? — Harry entrou de rompante na receção. Nob’cobi avançou cautelosamente atrás dele.
Ben apercebeu-se de que os olhos de Jason se abriram de surpresa quando teve o primeiro vislumbre do mimi’swee.
Ben agarrou no ombro de Harry e puxou-o para a frente.
— O Jason está armadilhado com explosivos. Só temos dois minutos antes de explodir. Preciso que os desarmadilhes.
— Mas que raio? — disse Harry avançando para Jason. — Deixa-me ver.
Ao ouvir as palavras de Ben, Sandy largou Jason, como se este tivesse peste, e recuou para o corredor.
Jason apontou para o cinto, mas não parou de olhar por cima do ombro de Harry, para Nob’cobi, enquanto Harry se ajoelhava ao seu lado. O número dois brilhava vermelho. De forma hesitante, Harry tocou no aparelho, fazendo Jason girar de modo a poder examinar todo o cinto.
— Hum — foi tudo o que disse.
— Então? — perguntou Ben.
— Já vi este trabalho antes. Tudo pré-preparado. O aparelho recetor está guardado nesta pequena caixa. Mesmo com tempo e ferramentas, não consigo chegar até ele sem um risco significativo. Sem o código, esta coisa vai explodir.
— Maldição! — exclamou Ben. — Então estamos lixados.
Harry encolheu os ombros e levou a mão ao fecho do cinto, desencadeando um «Não!» alarmado de Jason. Harry ignorou-o e puxou-o. O cinto abriu-se e caiu da cintura dele. Harry ergueu-se, segurando o cinto longe de si como se fosse uma cobra.
Jason caiu para trás.
— Devia explodir se fosse removido.
— Quem te disse isso? — perguntou Harry.
— O Khalid.
— Estava a mentir. Não há qualquer circuito em redor do cinto.
Jason estava a tremer.
— Então eu... eu podia tê-lo tirado... em qualquer altura. — Ben apercebeu-se de que o rapaz parecia mais perturbado com esse facto do que com o facto de ter estado prestes a ir pelos ares.
Harry acenou com a cabeça.
— Sim. Agora, se não se importam — apontou para o número um que brilhava no cinto — esta coisa vai explodir ainda assim.
Ben arrancou o cinto a Harry.
— Todos para a parte de trás do edifício. Vou lançar esta coisa para o mais longe que puder. Depois correr como um louco.
Harry conduziu toda a gente para o corredor, enquanto Ben avançava para a porta. Atrás de si, Harry gritou:
— Não atires como uma rapariga. Há uma carga do caraças de plástico presa a esse cinto.
— Limita-te a levá-los a todos para o lado oposto do edifício! — Ben saiu a correr pela porta. Correu alguns metros para longe do edifício até encontrar um espaço aberto para onde lançar o cinto. Ao mesmo tempo que erguia o braço, o animal saltou para a sua frente.
A uns meros três metros de distância, o crak’an ferido saltou para a sua frente, a cabeça baixa, silvando uma ameaça fria. Bloqueava todo o caminho em frente.
Ben tentou alcançar a pistola, mas a mão regressou vazia. Tinha deixado a arma no edifício. Ben recuou alguns passos.
Tiny Tim abriu as mandíbulas e uivou de triunfo.
— Vai à merda! — Ben lançou o cinto para a bocarra aberta, depois deu meia-volta e correu para a segurança do edifício. Arriscou um olhar de relance por cima do ombro e viu a criatura mexer na boca com a pata, tentando libertar-se do cinto.
Sacana, acabas de morder um pouco mais do que consegues comer.
Ben voou através da porta da frente demolida e mergulhou para o corredor. No preciso instante em que chegava à porta, a explosão dilacerou o mundo atrás dele. A força da explosão apanhou-o e lançou-o contra a parede.
Esforçou-se por se enrolar no momento do impacto, mas algo estalou quando colidiu com o chão do corredor. Os destroços caíram sobre ele, enquanto jazia, deitado, no corredor. O fumo sufocante seguiu-se rapidamente.
Jason apareceu ao seu lado.
— Ben, estás bem?
Em resposta, este limitou-se a gemer.
Harry ajoelhou-se.
— Deixem-me olhar para ele.
Ben pôs-se de joelhos e mãos no chão, tossindo, para expelir o fumo da garganta. Sentiu uma dor que começava na base do pescoço. Ombro. Deslocado. Mas sobreviveria.
Ben ergueu os olhos de relance para o rosto preocupado de Jason.
— Quando sairmos daqui, vou comprar-te um par de suspensórios. Acabaram-se os cintos.
Quando a explosão ocorreu, Khalid viu o espírito de Lisa morrer. Via-se nos seus olhos. Tinha estado a lutar com o último cronómetro, claramente a tentar não estar sempre a olhar para o relógio à medida que o tempo de Jason desaparecia. Na sua pressa, cruzara mal dois fios e, por engano, quase ativara o detonador. Khalid tinha acabado de corrigir o seu erro quando a explosão se fez sentir do outro lado da base.
Enquanto o eco residual se desvanecia à sua volta, Linda limitou-se a olhar para Khalid.
— Não houve tempo suficiente — disse Khalid, embora, a bem da verdade, nunca tivesse tencionado salvar o rapaz. Khalid estudou Linda, esperando que se revoltasse, chorasse e gritasse. Mas não. Limitou-se a fitá-lo com uma indiferença fria nos olhos. Uma mulher que desistira.
Ótimo, Khalid não precisava que ela se desmoronasse naquele momento. Linda estava a aprender. Conveniência. O sol do deserto queimava todos os que se moviam demasiado devagar. Abanou a cabeça.
— Vamos acabar isto.
Linda virou-se e olhou através da base para a nuvem de fumo da explosão.
— Não funcionou — disse com um tom de voz inexpressivo.
Ele pousou a pequena chave de fendas.
— O quê?
Linda apontou, sentindo o braço pesado.
— A coluna... à qual o Jason estava preso. Permanece intacta.
Khalid endireitou-se e observou. Linda tinha razão. Parecia absolutamente incólume. Como era possível?
Estudou o fumo que se erguia. Havia algo de errado. A explosão ocorrera ligeiramente a oeste da coluna.
— O rapaz deve ter-se libertado das cordas. Afastado da coluna.
As suas palavras pareceram dar esperança a Linda, mas depois deixou-se abater de novo, parecendo aperceber-se de que, livre da coluna ou não, a explosão ocorrera.
— Vamos embora — ordenou Khalid.
Ela não discutiu enquanto era conduzida para outro local.
CAPÍTULO 35
Ben estava sentado no sofá de cabedal no gabinete de Blakely, segurando o ombro dorido. Precisava de continuar em movimento. Estar ali sentado fazia latejar o seu ombro. Harry tinha-o dolorosamente voltado a colocar no sítio há algum tempo. Jason estava sentado ao seu lado, batendo com os calcanhares no sofá, ainda tenso. O rapaz tinha passado por muito. Relatara, por fim, os eventos que haviam conduzido à sua descoberta por Ben.
Sandy estava sentada na cadeira atrás da secretária de Blakely, torcendo uma madeixa de cabelo entre os dedos. Escuros círculos marcavam a parte de baixo dos seus olhos.
— Pobre doutor Blakely — balbuciou.
Ben acenou com a cabeça. Arrependia-se de todos os maus pensamentos que tinha tido em relação ao líder daquela maldita missão. Ele não merecia morrer assim.
Harry ressurgiu, finalmente, na porta do gabinete.
— Tenho tudo pronto, Ben. Vamos pôr-nos a andar.
Já não era sem tempo. A mensagem de perigo de Mo’amba ainda ardia com violência na mente de Ben. Aquela espera era agonizante, mas Harry insistira que Ben precisava de descansar durante alguns minutos enquanto ele organizava uma forma mais rápida para Ben regressar para junto de Ashley. Erguendo-se do sofá, Ben sentiu um toque de protesto do seu ombro.
— Deixa-me ver — disse Ben, estremecendo.
— Está logo à porta do gabinete. Vamos. — Harry seguiu à frente.
Depois de ter dito a Jason que ficasse onde estava, Ben seguiu Harry ao longo do átrio incendiado. A entrada estava em ruínas, a porta pendurada nas dobradiças.
Harry acenou aos dois caçadores mimi’swee que haviam conduzido os crak’an numa louca caça aos gambozinos. Tinham regressado, não parecendo sequer cansados depois de horas a jogar ao gato e ao rato. Harry deu uma palmada nos ombros dos seus amigos caçadores, depois prosseguiu para o exterior.
— Partirei com o rapaz logo depois de ti — disse Harry. — Seguiremos o elevador para um local seguro, mas tens de te apressar.
— Eu sei. Mas tem cuidado contigo e protege o rapaz. Ainda há um louco por aí algures a colocar outras bombas, e não quero que o Jason volte a cair nas suas garras. — Ben viu, pela primeira vez, a cratera da explosão. Tinha perto de um metro e oitenta de diâmetro. A superfície da rocha parecia queimada. Apercebeu-se de que não se encontrava ali a carcaça de Tiny Tim. Ben sorriu maliciosamente. O mais certo era que a besta tivesse sido feita em pequenos pedaços. Virou-se para Harry.
— Onde está aquela tua mota?
Harry exibia um sorriso «mete nojo».
— Vem ver. — Harry conduziu-o até à parede lateral do edifício. Apontou orgulhosamente. — A minha obra-prima.
Apoiada na parede estava uma motorizada preta e cromada. Ben assobiou de admiração.
— Fui buscá-la ao meu dormitório depois de ter reconhecido área. Calculei que seria uma forma mais rápida de regressar ao wormhole. Esta pequena irá ganhar a qualquer maldito crak’an.
— Uma ideia excelente. — Ben bateu no assento. — Tem combustível e está pronta?
— Sim.
— Então vamos pôr-nos a mexer. Não sei por onde anda aquele maldito Khalid, ou o que está a planear, mas acho que não devíamos esperar.
— Eu também não. Quanto mais depressa sairmos todos daqui, melhor. Vamos pôr-nos a andar.
Em minutos, Harry tinha tudo pronto. Ben estava montado na mota, uma espingarda surripiada presa à sua coxa esquerda. A mochila tinha sido esvaziada de tudo com exceção da estátua da ohna envolta em papel pardo.
Um dos caçadores mimi’swee — Ben não conseguia recordar-se do seu nome — subiu relutantemente para trás de si na mota.
Suspirando, Ben chamou Harry, tentando mais uma vez.
— Posso devolver a estátua sozinho.
— Não é seguro viajar sozinho. Decerto existirão outros bandos. Agora vai!
Jason estava ao lado da mota, obviamente nervoso em relação à partida de Ben.
Ben piscou-lhe um olho.
— Vou voltar. E vou trazer a tua mãe na parte de trás desta mota da próxima vez que me vires.
Aquela afirmação provocou um breve sorriso, mas os olhos de Jason ainda exibiam uma expressão preocupada.
— Tem cuidado, Ben.
— Sempre. — Ben acelerou e a mota rugiu, suscitando um sorriso involuntário nos seus lábios. O sorriso transformou-se num esgar quando os braços do seu passageiro se apertaram à sua volta a ponto de cortar a circulação da sua metade inferior. Ben deu uma palmadinha no braço que o apertava. — Calma, rapaz. Quero que os meus rins continuem a funcionar depois desta viagem. — O caçador soltou ligeiramente os braços... mas só ligeiramente.
Com um último aceno, Ben fez avançar a mota, deslocando-se a um ritmo hesitante. Havia demasiados destroços espalhados para que pudesse ir mais depressa do que a velocidade de corrida de um homem. Mas ao fim de alguns minutos, tendo-se habituado à condução da mota, aumentou a velocidade, com um grande sorriso no rosto. Voou para lá de um campo de tendas caídas, dirigindo-se para leste de modo a contornar o abismo, dado que a ponte havia desaparecido. Tentou o seu melhor para ignorar alguns dos restos humanos no caminho. Como animais atropelados, pensou amargamente. O seu sorriso morreu numa linha sombria.
Felizmente, passados alguns minutos tinham abandonado a base e aceleravam em direção à parede norte. Inspirava profundamente o ar mais limpo, apreciando a diminuição do fedor do fumo e da carne putrefacta.
Enquanto acelerava em direção às habitações distantes, seguindo a pista grosseira feita pelo homem, foi procurando quaisquer sinais da existência de crak’an à sua frente. Nada. Mas a escuridão para lá da luz do seu capacete podia esconder dezenas daqueles monstros.
Susteve a respiração enquanto acelerava, as palmas das mãos suadas nos punhos da mota. Procurava continuamente, esforçando-se por perscrutar a coluna negra em redor da mota. Algo uivou ao longe, mas para além disso não houve qualquer outro sinal das bestas. Felizmente, alcançou a parede norte sem se ter deparado com um único crak’an. Quase fora fácil demais.
Desligou o motor.
O pequeno caçador saltou da mota rapidamente, recuando como se esta fosse uma qualquer criatura vil. Utilizando a lanterna, Ben agarrou na espingarda e seguiu o seu ágil parceiro ao longo dos vários níveis de habitações até à câmara da ohna. O pequeno caçador foi o primeiro a chegar à câmara, praticamente voando para a sua segurança. Ben seguiu-o de perto.
Ao atingir a entrada da habitação, o caçador, que avançava poucos passos à sua frente, caiu de súbito para trás nos braços de Ben. Mas que raio? O cabo de um punhal projetava-se do seu peito pequeno. O caçador ficou rígido nos seus braços, depois agitou-se numa convulsão violenta. Ben não conseguia continuar a segurá-lo e deixou-o cair no chão.
Veneno.
Ben projetou a luz da lanterna para a frente. Dois homens da tribo dos mimi’swee curvados erguiam-se à sua frente, compactos, musculosos e muito familiares. Os silaris, os venenosos.
Ben recuou um passo do limiar da porta, dando espaço a si mesmo para erguer a espingarda. Precisamente quando erguia a arma, algo lhe bateu na parte de trás da cabeça. Caiu de joelhos, uma miríade de luzes a dançar à frente dos seus olhos. Caiu na entrada, deixando a espingarda escapar dos seus dedos inertes.
A dor reduziu a sua visão até um minúsculo ponto. Mas foi o suficiente para ver o físico esgalgado de Sin’jari passar por cima de si. Limpou do cajado o sangue de Ben, inclinou-se para a frente e fitou-o nos olhos. Sorria triunfante enquanto o mundo de Ben escurecia.
— É como te digo — disse Ashley, andando para trás e para a frente nas parcas dimensões da sala —, aquele maldito Sin’jari queria que tudo acontecesse como aconteceu. Planeou tudo.
Michaelson estudou os guardas no limiar da sua cela de prisão.
— Tendo em conta a forma como estes tipos não param de olhar para nós, não creio que estejam com vontade de dar ouvidos à razão, mesmo que soubéssemos falar a sua língua.
Ashley olhou de relance para os quatro guardas mimi’swee.
— Sabes o que é pior nesta situação? É que estas pessoas nos verão sempre como assassinos. E a culpa é minha. Há perto de uma década que sou antropóloga, e foi assim que agi no meu primeiro contacto com uma nova tribo.
— Ashley, para de te censurar. A situação é extraordinária. E foi Sin’jari quem a estragou. Não tu.
Ashley falava por entre os dentes cerrados.
— Se ao menos houvesse alguma forma de o corrigir. Se pudéssemos...
O súbito murmúrio entre os guardas interrompeu as palavras de Ashley. Deu um passo em frente para ver a quem se dirigiam os guardas e reconheceu o rosto cheio de cicatrizes de Tru’gula. O líder dos caçadores. E um bom amigo de Mo’amba. Aquilo não era bom presságio.
Tru’gula gritou com os guardas, os seus companheiros caçadores. Estes afastaram-se do seu ancião. Avançou para a câmara, com os nós dos dedos brancos em redor do bastão. Parou à frente de Ashley e Michaelson. Limitou-se a fitá-la, os olhos feridos. Parecia estar a avaliá-la, a julgá-la.
Ashley soube que não devia desperdiçar o momento. Talvez Tru’gula a escutasse. Virou-se para Michaelson e agarrou-lhe os ombros.
— Mas que... — começou Michaelson.
— Chiu — disse-lhe ela. — Vou tentar fazê-lo compreender. Esta poderá ser a nossa última oportunidade de conquistar um aliado. — Virou Michaelson de frente para ela. Depois inclinou a cabeça na direção de Tru’gula. Apontou para o major. — Mo’amba. — Agarrou de novo nos ombros de Michaelson e repetiu: — Mo’amba.
Depois deu um passo atrás e apontou para si mesma.
— Sin’jari. — Imitou o seu andar pretensioso e apontou de novo para si mesma. — Sin’jari.
Tru’gula limitou-se a fitá-la com o olhar vazio.
Ashley revirou os olhos. Depois imitou Sin’jari. Colocou-se à frente de Michaelson e fingiu retirar uma faca de uma bainha imaginária e imitou, em seguida, o mergulhar da faca no peito de Michaelson duas vezes. Depois recuou e tocou com o dedo no peito.
— Sin’jari! — repetiu ferozmente.
Os olhos de Tru’gula semicerraram-se, o seu rosto tenso de raiva.
Ashley afastou-se. Teria ele compreendido? Se compreendia, acreditaria nela? Tinha acabado de acusar um dos outros anciãos.
— Sin’jari — silvou Tru’gula. — Sin’jari! — Avançou para Ashley.
Ela resistiu ao impulso de se afastar. Precisava de se manter firme. De lhe demonstrar que dizia a verdade. Manter-se firme. Fitou-o nos olhos sem estremecer, enquanto ele se colocava à frente dela.
Tru’gula fitou-a durante o que lhe pareceram vários minutos, depois falou, claramente lutando com as palavras. Apontou para a sua cabeça.
— Mo’amba... sábio. — Agarrou o ombro de Ashley. — Mo’amba... confiar... tu.
Ela acenou, encorajando-o.
— É óbvio que Harry tem estado a trabalhar com ele — balbuciou Michaelson.
O líder dos caçadores virou-se para o major.
— Irmão de sangue. — Apertou os braços em redor do peito. — Confiar. — Depois virou-se para Ashley. — Tru’gula... Tru’gula... confiar... tu.
Teria ela ouvido bem? Compreendido corretamente? Ele acreditava nela! No seu alívio, estendeu os braços e abraçou Tru’gula, as lágrimas a encherem-lhe os olhos.
Tru’gula libertou-se do seu abraço.
— Peri... go. Aqui. Ir! Agora! — Tru’gula procurou empurrá-la para a entrada.
— Espera. — Ashley resistiu, libertando o braço das mãos dele. — Se confias em nós, então podes dizer aos outros. Não é preciso fugir.
Tru’gula fitou-a, confuso. Ele não compreendia. Olhou de relance para a porta, depois para ela. Suspirou de frustração.
— Tru’gula... confiar tu. — Agitou os braços como se envolvesse toda a aldeia à sua volta. — Não confiar.
Ashley apercebeu-se de que ele pretendia ajudá-los a escapar. A fugir dos seus acusadores. Não acreditava que a sua inocência fosse aceite pelo seu povo. Os aldeãos eram demasiado desconfiados em relação aos estranhos.
— Ir. Agora — repetiu Tru’gula.
Ashley manteve-se imóvel.
— Não.
Michaelson colocou-se ao seu lado.
— Acho que é melhor aceitarmos a sua ajuda.
— Se eu fugir, será como se estivesse a admitir a minha culpa. Não posso deixar este povo pensar que não passamos de assassinos a sangue-frio.
— Mas, Ashley. Estamos em risco.
Ela abanou a cabeça.
— Referiste um plano, anteriormente. Uma maneira de provar a minha inocência. Pensei que não passava de um sonho irreal. Mas com a ajuda de Tru’gula poderá funcionar.
— Poderá? Esse é um grande risco quando estás a jogar com as nossas vidas.
Ashley fitou-o nos olhos.
— Tenho de tentar.
As pernas de Linda estavam pesadas. Avançava atrás de Khalid em piloto automático, um pé a seguir ao outro. Fitava as costas de Khalid enquanto este avançava em direção ao elevador distante. Sabia que o devia odiar, desprezar.
Mas estava atordoada.
Tinha falhado com Jason. Prometera-lhe que regressaria. Recordou os seus olhos enquanto o prendia à coluna. Ele sabia que ia morrer. De alguma forma deveria ter sido capaz de o impedir, mas o seu receio tinha-a quebrado. O medo que sentia de Khalid. O medo da morte. Através da sua inação, tinha selado o seu destino.
Uma lágrima solitária rolou-lhe pelo rosto.
O medo sempre dominara a sua vida. Fosse a sua desprezível claustrofobia ou qualquer outra ansiedade, o medo guiara sempre os seus passos na vida. Um companheiro constante. Por fim, a sua fraqueza castradora tinha resultado na morte de um rapazinho.
Com a morte de Jason, o medo tinha, por fim, desaparecido. Agora tudo aquilo que restava era culpa. Não queria saber se vivia ou morria. O medo tinha sido vencido... mas a que preço?
Khalid parara à sua frente.
— Escuta. Ouves alguma coisa?
Linda não ouvia nada. Não lhe respondeu, as palavras eram demasiado difíceis.
Khalid apontou.
— Ali!
Linda olhou para onde ele apontava. À distância de um campo de futebol, os holofotes continuavam a apontar para a escuridão acima, realçando o poço imenso do elevador. Algo se movia lá em cima. Era a jaula do elevador que descia em direção ao chão. Vinha lá alguém.
Enquanto observava, tornou-se claro quem era. Espingardas e outras armas, incluindo lança-chamas, eram visíveis por entre as barras da jaula, como um porco-espinho armado. Os reforços vinham a caminho.
Os olhos de Khalid reduziram-se a duas fendas negras.
— Tão perto. Só mais alguns minutos.
Linda permitiu que um sorriso lhe assomasse aos lábios, apreciando a consternação de Khalid.
— Parece que não vamos sair por ali.
Khalid fitou-a de olhos muito abertos, retirou a mochila e começou a vasculhar o seu interior. Retirou um transmissor da mochila. Era diferente daquele que controlava as bombas que ela tinha ajudado a colocar.
— Que estás a fazer?
— Baixa-te. — Ergueu o transmissor e carregou no botão. Uma luz verde surgiu no aparelho. Khalid agarrou-lhe no braço e saltou para cima de um edifício parcialmente destruído. Uma explosão ergueu-se mais à frente, lançando destroços e fumo no seu caminho.
Depois de grande parte do fumo se ter dissipado, Khalid saiu de cima dela e verificou o seu trabalho. Seguiu-o para ver o que tinha ele feito.
Uma cratera fumegante abria-se agora onde outrora se tinham erguido os suportes do elevador. Ela ergueu os olhos. Apenas um dos holofotes se mantinha intacto, iluminando a cena atroz. Em câmara lenta viu o que restava da torre começar a colapsar. A jaula lançada ao solo da câmara, descontrolada. Mesmo com os ouvidos a zumbir da explosão, conseguia ouvir os gritos.
Ela lançou-se para trás da parede danificada, fechando os olhos. Durante o que pareceram anos, esperou. Depois ouviu-o. O estrondo ribombante da jaula a cair ao chão. Ficou à escuta. Os gritos tinham cessado.
Khalid colocou-se ao seu lado. Acendeu um cigarro, a mão a tremer ligeiramente.
— Ainda bem que montei aqueles explosivos na noite antes de a equipa ter partido. Eu sabia desde o início que esta missão podia terminar assim. Mas pensei que com planeamento... — Encolheu os ombros.
— Que vamos fazer agora? Não podemos partir.
Khalid soprou uma nuvem de fumo em direção ao teto distante.
— Tenho de tentar contactar os meus superiores, informá-los da situação. Podemos experimentar o centro de comunicações de Blakely. Ver se consigo falar com alguém.
— Então e depois?
Ele encolheu os ombros.
— Depois morremos.
CAPÍTULO 36
O mundo recuperou a nitidez numa explosão. Ben levantou-se, confuso. Demorou alguns segundos a situar-se. Tudo voltou à sua mente como uma torrente. Aquele maldito Sin’jari! Ben ergueu-se, estremecendo. A sua nuca latejava a cada movimento. Os ecos da explosão que o haviam despertado reverberavam ainda pela caverna.
Gemendo, Ben ergueu-se, trémulo. Espreitou na direção da base que brilhava ao longe. Que teria acontecido? Mas ele sabia a resposta: Khalid.
Ben não se mexeu, indeciso. Devia regressar à base? Harry e os outros poderiam estar em apuros. Tocando na zona ferida na parte de trás da cabeça, olhou de relance para o relógio. Estava a ficar sem tempo. Tinha estado inconsciente durante quase uma hora. Precisava de chegar junto de Ashley. Libertá-la.
Primeiro, contudo, tinha de saber o que se estava a passar. Sentou-se no chão da gruta e fechou os olhos, deixando a mente vaguear. Imaginou Nob’cobi e chamou-o.
A resposta foi quase imediata. A imagem de Nob’cobi surgiu da escuridão. Os pelos do seu rosto estavam queimados.
— Que aconteceu? — perguntou Ben. — O Jason está bem?
Nob’cobi acenou, sem fôlego.
— Coisa jaula destruída. Sem forma de subir. Harry e o outro caçador foram em busca do homem mau. Para tentar impedi-lo. Eu levei o rapaz e a mulher para o gabinete. Ali ficam seguros. Eu protejo-os. O Harry diz que tens de te despachar.
— Eu sei.
— Traz ajuda!
Ben quebrou o contacto e levantou-se. Precisava de devolver aquela estátua antes que... Raios! Apercebeu-se de que faltava algo. A espingarda jazia no chão onde ele a deixara cair. Tocou nas costas e vasculhou a câmara minúscula. A mochila tinha desaparecido. Tal como a estátua que continha.
Sin’jari!
O sacana não tinha acabado com ele porque descobrira aquilo de que precisava para frustrar a missão. Sem a estátua, Ashley morreria.
Sacana matreiro. Ben olhou em volta e os seus olhos pararam sobre o trenó de alumínio com o eixo de diamante. Agarrou na faca que retirou do cinto e cortou o comboio de skates de plástico que continuavam presos ao trenó maior. Talvez...?
Ashley apercebeu-se de que Tru’gula estava perturbado com as suas exigências, mas tinha por fim aquiescido e concordado em levá-la à câmara de umbo. Para alcançar a câmara, Tru’gula teve de empurrar os outros caçadores do seu caminho, vários deles lançando ao líder um olhar que indicava que o julgavam louco. Conseguiu, pela força e pelo que soava como ameaças, lá chegar.
Michaelson andava na divisão, para trás e para a frente, fitando a estátua masculina do umbo com um ténue olhar de desagrado nas suas feições.
— É só uma suposição — disse ele. — Não gosto que arrisques a vida com base numa suposição.
— O teu raciocínio está certo. Sin’jari irá, sem dúvida, tentar regressar à aldeia por aqui. Precisamos apenas de esperar por ele. De o confrontar.
— E se ele já tiver regressado?
Ashley suspirou.
— Não creio. Ter-se-ia dado a conhecer. A sua voz ter-se-ia erguido ruidosamente contra nós. — Ashley olhou de relance para a pequena câmara. Parecia apinhada com os seis guardas mimi’swee e Tru’gula. Outros caçadores guardavam o caminho até ali, mas mais tarde ou mais cedo a notícia espalhar-se-ia e outros viriam investigar. Esperava apenas que conseguissem capturar Sin’jari antes do início do circo. Uma multidão podia tornar as coisas complicadas antes de ser capaz de provar a sua inocência.
Como que em resposta aos seus pensamentos, a confusões que começava a fervilhar no túnel tornou-se audível. Havia vozes que se erguiam. De súbito uma explosão de corpos entrou na câmara. Várias figuras, que continuavam a lutar, rebolaram pelo chão.
Michaelson puxou-a para trás de si. Até Tru’gula avançou para a frente dela, bloqueando o caminho até ela.
Ashley observou enquanto os caçadores se batiam com outros mimi’swee com ar de pugs, mas os poucos caçadores foram rapidamente subjugados pelo grupo de atacantes. E, para piorar as coisas, uma só estocada da lança ou do punhal de um dos atacantes provocava convulsões no caçador, por pouco ferido que estivesse.
Em breve, apenas ela, Michaelson e Tru’gula permaneciam de pé. Pelo menos dez daqueles atacantes baixos e musculosos rodeavam-nos.
— Silaris! — disse Tru’gula e cuspiu na sua direção.
Os atacantes não tentaram avançar sobre eles, aparentemente nervosos com a ideia de atacarem um dos anciãos.
Um som atrás deles chamou a atenção de todos para o wormhole. Enquanto observava, Sin’jari deslizou do túnel, seguido por dois feios mimi’swee. Ashley reconheceu-os como os dois que estavam com Sin’jari antes. Também reconheceu a semelhança entre eles e os atacantes que bloqueavam a saída. Eram os homens de Sin’jari, o seu clã.
Sin’jari sorriu, mostrando todos os dentes. Não teve de dizer uma palavra. Limitou-se a tocar num punhal e a avançar na direção de Ashley.
Gemendo, Ashley apercebeu-se de que os havia conduzido a todos para uma armadilha.
Ben desejou que o trenó de Harry conseguisse atingir velocidades ainda maiores, as paredes rochosas eram um borrão à sua volta. Descer com o acelerador ao máximo tinha aumentado a velocidade do trenó para oitenta quilómetros por hora. Nas curvas deslizava até ao teto.
Semicerrou ou olhos, precisando de prestar atenção. Pronto para travar mal visse a saída. Um voo para o exterior do wormhole seria morte certa. Desviou a espingarda de baixo da sua anca onde o magoava.
Vamos, a saída não devia estar muito longe. Talvez se se concentrasse e utilizasse os seus poderes heri’huti, conseguisse perceber a distância que ainda tinha de percorrer.
Relaxou os olhos e forçou o seu coração a abrandar. Mesmo antes de ter conseguido atingir o devido estado, alguém falou com ele. Alguém o estava a chamar. Uma imagem surgiu à sua frente, sobrepondo-se ao que se encontrava no caminho como um fantasma etéreo. Um rosto marcado por uma cicatriz. Tru’gula.
A figura pestanejou algumas vezes, depois falou.
— Depressa!
— Eu sei. Já recebi a mensagem — disse Ben.
— Então vê com os meus olhos.
Durante alguns segundos, o túnel desapareceu e ele estava na câmara do umbo. Ele viu. Arquejando, sentiu um aperto no coração e a ligação estilhaçou-se.
Ben rezou por mais velocidade, a raiva impelindo-o em frente.
Michaelson tentou impedir Sin’jari de se aproximarem-se de Ashley, mas, depois de um movimento rápido do pulso do ancião, cinco silaris arrastaram-no para trás.
Ashley olhou de relance para Tru’gula. Ele debatia-se inutilmente nas garras de dois dos seus atacantes. Dali também não obteria ajuda.
Sin’jari avançou para ela.
— Ele não ajuda. Ele fraco.
Ashley ficou estupefacta perante as suas palavras.
— Tu falas a minha língua.
Ele acenou com a cabeça.
— Eu aprender o meu inimigo. Melhor maneira... — Uniu as sobrancelhas, pensando nas palavras seguintes.
— De o conhecer — tentou ela.
Ele sorriu como se ela fosse uma criança pequena.
— Não. De o matar.
Erguendo o punhal para o peito dela, sorriu-lhe.
— Veneno. Essa palavra certa? — Apontou para os caçadores mortos.
Ela acenou com a cabeça.
Ele espetou o seu próprio dedo. Depois agitou-o como se não fosse nada.
— Eu lidero os silaris. O veneno não nos matar. Nós fortes. Nós liderar.
— Então e Bo’rada? Pensei que ele era o vosso líder.
— Bo’rada? — Emitiu um som de desagrado com a boca. — Nada esperto. Eu liderar Bo’rada.
Ashley apercebeu-se de que aquele golpe já estava a ser pensado muito antes de a sua equipa ter aparecido. A sua chegada quase destruíra o plano de Sin’jari, mas ele tinha conseguido virá-lo a seu favor.
— Agora eu liderar. Eu dizer matar-vos todos. E quaisquer outros que aqui apareçam.
Ashley abanou a cabeça.
— Não vais ganhar. Os caçadores de Tru’gula não o permitirão.
Um olhar astuto ensombrou-lhe os olhos. Apontou para Tru’gula.
— Mau. Ele ajudar os outros a matar Mo’amba. — Depois bateu no próprio peito com o punhal. — Eu descobrir. — Fez um gesto de corte através do ar. — Eu parar.
Então Tru’gula ia ser acusado de cumplicidade no crime, de ser um coconspirador. E os homens mortos não contam histórias. Ashley olhou para ele, mas Tru’gula tinha os olhos meio fechados.
Sin’jari também se apercebeu. Tocou no caçador ferido com um dedo, chamando-lhe a atenção. Falaram durante alguns minutos. Palavras furiosas. Por fim, Sin’jari virou-lhe as costas e enfrentou Ashley de novo. Apontou com o polegar para Tru’gula.
— Nada esperto. Ele pedir ajuda. Mas não estar lá ninguém. Mo’amba morto. — Sorriu-lhe. — Agora tu.
Ergueu o punhal envenenado e avançou na direção dela. Ashley tentou recuar, mas foi impedida pelos silaris atrás de si.
Precisamente quando Sin’jari agarrava a garganta de Ashley com uma mão esquelética, um ruído saiu do wormhole. Sin’jari voltou o pescoço para olhar.
Ashley saltou quando o trenó de transporte saiu disparado pelo wormhole e voou através da câmara, colidindo com vários dos silaris e fazendo-os cair.
A distração foi o suficiente para permitir que Ben emergisse do wormhole. Já estava de pé antes que alguém se apercebesse do que tinha acontecido. Levou a espingarda ao ombro e apontou-a a Sin’jari.
— Amigo, sugiro que largues a senhora.
Sin’jari silvou-lhe e mergulhou o punhal na direção do peito dela.
Ben disparou.
Ashley viu o lado esquerdo da cabeça de Sin’jari voar. O seu corpo permaneceu de pé durante meio segundo, o punhal ainda apontado, depois caiu no chão.
Um par de silaris correu na direção de Ben. Este girou a espingarda e, com dois tiros, dois corpos caíram ao chão.
— Mais algum?
De súbito, por trás do grupo de silaris, como por magia, surgiu um grupo de caçadores, empunhando longas lanças.
— Eis alguns dos meus amigos — disse Ben com um sorriso. — Fiz uma chamada rápida antes de chegar. Este meio de comunicação heri’huti poderia acabar com o negócio das companhias telefónicas.
Os silaris, sem o seu líder, deram pouca luta e foram violentamente afastados.
Ashley correu para Ben e envolveu-o com os seus braços.
— Estás bem. Eu não sabia... não sabia o que Sin’jari tinha feito lá em cima. — Ela apertou-o e, abafadas contra o seu peito, ele disse as palavras que há tanto tempo guardava no peito. — Eu amo-te.
— Hã? Que foi isso? — disse ele, afastando-a para a olhar nos olhos.
— Eu... eu amo-te.
Ben deslizou de novo para os braços dela.
— Oh, isso. Eu sabia que sim. Só me estava a perguntar quando ias descobrir.
— Cala-te. — Ela ergueu-se e beijou-o.
Ben deslizou, em seguida, os seus lábios para o ouvido dela.
— Sabes, há alguém lá em cima que também está à espera de um grande abraço e de um beijo.
Ashley afastou-se dele, as mãos a apertar-lhe os ombros.
— Queres dizer...?
— O Jason está bem. Só um pouco abalado, como todos nós.
As lágrimas toldaram-lhe a visão enquanto Ben lhe sorria. Em seguida ele puxou-a para um forte abraço. Nos seus braços, ela sentia a força da família que nunca antes experimentara.
Ainda nos seus braços, Ashley viu Bo’rada avançar para a câmara, a confusão evidente nas suas feições. Avançando para a figura de rosto marcado por cicatrizes, falou acaloradamente com Tru’gula, que lhe respondeu com gestos veementes. Os olhos de Bo’rada abriram-se muito.
— Deixo-te por um segundo — sussurrou Ben — e vê os problemas em que te metes.
Quando Tru’gula acabou, o líder fitou com desagrado o corpo de Sin’jari, depois virou-se para Ashley e Ben. Curvou solenemente a cabeça na sua direção. Um pedido de desculpas ou um agradecimento, ela não tinha a certeza.
Ben libertou-se do abraço dela.
— Já me esquecia. — Avançou até ao corpo de Sin’jari e abriu a bolsa no cinto do homem morto. Levou a mão ao interior e retirou a estátua de diamante.
— Ohna! — Ben ergueu a figura para que todos a vissem, depois avançou e colocou a estátua feminina ao lado da masculina. — Fazem um belo casal, não achas?
CAPÍTULO 37
Jason estava sentado numa cadeira suja na receção em ruínas do gabinete de Blakely. Tinha o gameboy estalado da Nintendo em cima do colo e tentava repará-lo com fita-cola. Harry e as outras criaturas estavam no exterior, algures, a patrulhar, mantendo tudo debaixo de olho. Desde a explosão do elevador, Harry queria a área vigiada de perto.
Jason sabia que devia ficar com Sandy no gabinete de Blakely, mas ela estava a deixá-lo nervoso. Tudo o que fazia era fitar o vazio, mexendo no cabelo. Nem sequer disse uma palavra quando ele se levantou.
Pensou em como Ben o tinha salvado e desejou desesperadamente que regressasse em breve com a mãe.
Depois, um suave raspar vindo do exterior fê-lo parar ainda na cadeira. Provavelmente era Harry ou um dos outros. Não era? O som outra vez. Parecia algo a desviar um monte de tábuas.
Levantou-se calmamente e deu um passo em direção ao corredor, à segurança. O som outra vez. Que era aquilo? A curiosidade levou a melhor sobre si. Deu um passo em direção à entrada devastada do edifício.
Só ia espreitar. Podia ser importante ou não ser nada. Mas precisava de saber.
Sustendo a respiração, temendo que até respirar pudesse trair a sua posição, agachou-se atrás de uma secretária tombada de modo a obter uma visão mais clara para o exterior do edifício.
Ficou a olhar, esperando que o ruído se repetisse para que pudesse perceber de onde vinha, temendo até pestanejar não fosse perder alguma coisa.
Não havia nada lá fora a não ser a cratera provocada pela explosão e montes de destroços acumulados no limite desta. Nada se movia.
Começou a endireitar-se da sua posição agachada. Provavelmente era apenas...
Depois ouviu e viu ao mesmo tempo. Um focinho que emergia de baixo de um monte de tábuas e tijolos caídos, a cerca de dezoito metros de distância. Era fácil não o ver, bem camuflado pela rocha preta e pelos destroços carbonizados. Se não se tivesse mexido, tê-lo-ia ignorado.
Mexeu-se de novo, desviando os destroços até um olho negro se mostrar visível. Parecia estar a fitá-lo diretamente. Jason sabia que era a besta que o tinha cheirado quando estava preso. Aquela a quem Ben chamara Tiny Tim. Jason estacou, temendo chamar ainda mais a sua atenção.
Observou-o enquanto pousava de novo a cabeça no chão, provavelmente atordoado, grogue, tendo acabado de acordar da explosão. Tinha ficado sem sentidos, não fora morto pela bomba. Jason tinha de avisar alguém.
Um novo som intrometeu-se.
Uma voz. Uma voz familiar. Feminina. Que chorava.
Observou enquanto Linda corria para o seu campo visual, os olhos cravados na cratera. O seu rosto estava sujo, o cabelo pegajoso e emaranhado. As lágrimas acumulavam-se-lhe nos olhos.
Khalid avançava atrás dela, a fumar um cigarro.
— Está feito — ouviu Khalid dizer. — O rapaz morreu.
Linda cambaleou até ao lado mais distante da cratera e começou a percorrê-la. Jason apercebeu-se de que ela ia passar a menos de um metro do monstro enterrado.
Jason correu do edifício até ao limite da cratera. Chamou para o outro lado do buraco.
— Linda! Para trás! Foge!
Linda saltou quando o viu, erguendo as mãos ao rosto como pássaros assustados.
— Jason? — As suas palavras e aparição súbita pareceram chocá-la. Torceu um pé e tombou para a cratera.
— Cuidado!
Com um rugido, a besta reagiu. Irrompeu da pilha de destroços como uma caixa de surpresas ensanguentada. Recuou. Tinha perdido um braço, nada mais do que um osso branco projetando-se de um dos lados. Todo o seu flanco tinha sido queimado, não sendo mais do que uma superfície carbonizada.
— Não! — gritou Jason.
Khalid foi o primeiro a reagir, em pânico, disparando loucamente para a besta. A criatura virou-se para Khalid, atraída pelo som da arma. Gritando, Khalid bateu com as mãos no bolso, os olhos tão abertos que pareciam sair das órbitas. Quase não pareceu reagir quando o monstro o apanhou. Apenas um fraco gemido lhe escapou dos lábios ao ser puxado para cima, a cintura presa nas mandíbulas da besta.
O peso do homem, contudo, revelou-se demasiado para o animal seu estado enfraquecido. Caiu de novo contra o monte de escombros com fragor, agarrando ainda Khalid nas suas mandíbulas. Começou a afastar-se, arrastando o egípcio consigo.
Khalid agitava-se nos seus dentes, os braços ainda livres. Tinha a pistola na mão, mas não a estava a usar. Em vez disso tentava tirar algo do bolso.
Com um forte sacão e um grito triunfante, o sangue a correr-lhe da boca, libertou a mão do bolso. Jason reconheceu o objeto. Khalid tinha-lho mostrado antes. Um transmissor rádio para despoletar as bombas.
Linda também o viu.
— Não! — gritou ela.
Khalid dirigiu-lhe um sorriso doloroso. O sangue fluía livremente dos seus lábios. Ergueu a mão.
— Não! — gritou Linda.
Antes que Khalid conseguisse carregar no detonador, o monstro teve um espasmo, apertando Khalid e fazendo-o deixar cair o transmissor. Este saltitou alguns metros.
Khalid esforçou-se por alcançar o aparelho; estava fora do seu alcance. Jason observou enquanto a criatura, enfraquecida, ficou inerte. Os olhos de Khalid semicerraram-se em agonia enquanto ele lutava por se libertar ligeiramente das mandíbulas cerradas, tentando alcançar o transmissor. Os seus dedos tocaram na ponta do aparelho na sua segunda tentativa.
Jason não esperou. Correu para a frente.
— Jason! — gritou Linda. — Para trás!
Ele ignorou-a e agarrou o transmissor segundos antes de a mão de Khalid chegar ao aparelho. Khalid praguejou, a saliva ensanguentada a voar-lhe da boca. Jason recuou, esquivando-se.
— Dá-mo, rapaz!
— Não. — Jason recuou mais um passo, para longe do alcance de Khalid.
— Então morre. — Khalid ergueu a outra mão. Segurava ainda a pistola. Estava quase à queima-roupa.
A última coisa que Jason viu foi o relâmpago a sair do cano.
Ashley levantou-se e esticou as pernas na câmara da ohna. Deu um pontapé ao transporte de alumínio de Harry. Quatro horas a viajar em cima de Ben desde a aldeia mimi’swee! Massajou a zona lombar com os dedos. Raios!
— Vamos — chamou Ben do exterior. — A costa está livre. Vamos embora.
Ashley gatinhou para o exterior da pequena câmara emergindo na Caverna Alfa. Perguntara-se se alguma vez voltaria a ver aquele local. Cansada até aos ossos, sorriu. Finalmente!
Porém, quando viu o meio de transporte que os aguardava, o seu sorriso diminuiu.
— Uma motorizada? — Ashley desceu do penhasco até junto de Ben.
— Tenho de dar a mão à palmatória — disse ele. — O Harry constrói máquinas diabólicas.
Ashley acenou com a cabeça, trepando para trás de Ben na mota. Era uma pena que o irmão de Harry, Dennis, tivesse de ficar para trás com os mimi’swee, mas o tornozelo ferido comprometia a sua velocidade. Viria a pé com o grupo de caçadores mimi’swee.
— Não quero saber se lá chego de mula — disse ela. — Tenho de ver o Jason.
— Eu sei. Está a perturbar-me o facto de não conseguir falar com Nob’cobi. Segura-te. — Ben carregou no pedal da ignição e o motor roncou. Girou o acelerador e a mota saltou por baixo dela. Passados alguns instantes passavam rapidamente através da escuridão, na direção do brilho distante da base.
Ashley encostava-se às costas de Ben, apoiando a face no seu ombro. Quase conseguia ouvir o bater do seu coração. Apertou-o com mais força.
— Mantém-te atenta à presença daqueles crak’an — gritou Ben por cima do barulho do motor. — Esses malandros andam a passear pelas cavernas todas.
— Mantém a mota apontada à base. Não quero saber o que é que se atravessa no caminho. Atropela-o.
Foi observando o espaço envolvente em busca de qualquer sinal de movimento enquanto viajavam. Nada senão escuridão. Em breve a escuridão desvaneceu-se num crepúsculo sombrio quando se aproximaram da base. Enquanto a noite era rechaçada pelas luzes do acampamento, um fedor crescente enchia o ar.
Ashley torceu o nariz.
— Meu Deus.
— Acabas por te habituar.
Ashley rezou para que nunca se habituasse. Passados segundos, a mota mergulhou na própria base. Ben teve de abrandar para evitar os obstáculos, mas quando Ashley se apercebeu da devastação e destruição, desejou que Ben acelerasse, que avançasse mais depressa por entre a carnificina. Como tinha Jason sobrevivido àquilo?
Fechou os olhos. Como?
— Estamos quase lá — gritou Ben.
A mota deu um súbito solavanco quando Ben atingiu alguns destroços. Ashley abriu os olhos a tempo de ver um crânio humano voar de baixo do pneu. Estremeceu. Ben já tinha descrito o estado da base, mas vê-la, cheirá-la, era pior do que tinha imaginado.
De súbito, à direita, uma cabeça reptiliana ergueu-se de trás de um carro virado, o seu focinho ensanguentado. Ben também a viu e acelerou a mota. Esta disparou para a frente, deixando a criatura a gemer bem para trás.
Passados mais alguns minutos, Ben apontou finalmente.
— Ali.
Tinha-o reconhecido. Apesar do fogo, o gabinete de Blakely permanecia intacto. Ben abrandou a mota para um ritmo mais lento e contornou o edifício.
Aquilo que viu fez parar o coração de Ashley.
Não! Voou da mota. A carcaça enorme de um dos predadores jazia estendida a poucos metros do edifício. Khalid encontrava-se entre as suas mandíbulas, de uma palidez azul, os olhos olhando, cegos, para cima.
Mas não fora aquela a imagem que a deixara em pânico. Harry estava curvado sobre uma pequena figura que jazia encolhida nas rochas.
Não, rezou, não depois de tanto.
Ben alcançou-a, puxando-a para trás.
— Espera — disse ele.
Ashley resistiu às suas mãos, afastando-lhe o braço. Avançou para Harry. Erguendo-se, ele afastou-se para que ela passasse. Ben estava ao seu lado.
— Não é o Jason, Ash — disse Ben, pousado a mão no ombro dela. — Era isso que eu estava a tentar dizer-te. Percebi pelo teu rosto o que estavas a pensar.
Ashley baixou os olhos para o caçador mimi’swee morto, o buraco de uma bala no peito.
— Quem é?
Ben ajoelhou-se ao lado do homem morto, pousando-lhe a mão no ombro.
— Não é de admirar que não conseguisse falar com ele. É Nob’cobi. — Ben ergueu os olhos para Harry. — Que aconteceu?
Sentindo as lágrimas chegarem, Harry explicou:
— Eu tinha ido verificar se havia sobreviventes da explosão do elevador. Os mimi’swee ficaram para trás para proteger o edifício. Enquanto eu estava fora, Khalid e Linda regressaram. — Continuou a relatar como o crak’an tinha atacado e como Khalid tentara fazer explodir todo aquele espaço num derradeiro ato antes da morte. — Os caçadores estavam a observar, esperando pelo melhor momento para intervir. Quando Jason deitou a mão ao transmissor, Khalid tentou matá-lo. Mas Nob’cobi atirou o rapaz para o lado e apanhou ele com a bala.
Ashley ajoelhou-se ao lado de Ben.
— Ele salvou a vida do meu filho.
— Sim — disse Harry. — Jason levou uma boa pancada na cabeça. Ficou inconsciente durante alguns segundos, mas está bem. A Linda levou...
— Mãe!
Ashley virou-se para o edifício. Jason erguia-se na abertura destruída com uma ligadura a envolver-lhe a testa.
— Jason!
Ashley levantou-se e correu na sua direção. Jason correu para ela. Caíram nos braços um do outro.
— Oh, querido, lamento muito. — Ela abraçou-o com força contra o peito.
— Amo-te, mãe.
Ashley limitou-se a abraçá-lo, embalando-o nos seus braços.
Ben apontou para a grande carcaça.
— Pensei que tinha morto essa criatura maldita.
— Aparentemente, tinha um couro tão duro quanto o teu — disse Harry.
Linda avançou para a porta com um sorriso no rosto. Jason viu-a e libertou-se dos braços de Ashley. Limpou o nariz e endireitou o penso, claramente envergonhado pela sua necessidade infantil de atenção maternal.
Ashley sorriu. Já seria assim tão crescido?
Harry gritou subitamente.
— Olhem! — Apontou um dedo na direção do teto.
Ashley ergueu-se e juntou-se aos outros, olhando para onde Harry apontava.
Luzes que desciam em espirais.
Sob o brilho ténue dos poucos holofotes restantes, paraquedas abertos desciam. Enquanto ia observando, cada vez mais paraquedas se abriam, lançando-se através do poço do elevador entretanto destruído. Cada paraquedista segurava uma luz de halogéneo, que movia para trás e para afrente enquanto descia. Poucos minutos depois pareciam centenas deles, deslizando em todas as direções para cobrir toda a base.
Como pirilampos numa tarde quente de primavera.
— Quem são? — perguntou Jason.
— Acredito que seja a cavalaria a chegar ao monte — disse Harry.
Ben encolheu os ombros.
— Mais vale tarde do que nunca.
EPÍLOGO
Monte Érebo, Antártida
Ben enfiou-se na cama com um suspiro. Mas que dia! Enroscou-se ao lado de Ashley. Esta gemeu enquanto dormia e virou-se de lado. Ele pousou a mão na barriga dela. Começava já a notar-se. Quatro meses. Em breve, teria de interromper o seu estudo cultural dos mimi’swee. Conhecendo-a, decerto esperaria até rebentar as águas para pousar a caneta e o papel. Ben tentara convencê-la a aliviar o horário, mas sem sucesso. Até Jason pairava à sua volta como um pai devoto, censurando a mãe quando esta tentava erguer algo demasiado pesado.
Ben sorriu na escuridão e deitou-se com um braço a apoiar a cabeça, fitando o teto. A Base Alfa já estava quase reconstruída. Os repelentes sónicos que Linda tinha desenvolvido revelaram um forte sucesso em manter os crak’an à distância. A sua equipa de biólogos tinha também feito outra descoberta: a erosão do anel de fungos protetores dos mimi’swee não se devera ao desequilíbrio do umbo e ohna, como Mo’amba alegara, mas devia-se antes à introdução e concorrência de um fungo moderno, para ali transportado pelos seres humanos. E, portanto, Sin’jari afinal sempre tinha razão — os seres humanos tinham a culpa. Pelo menos indiretamente.
Ben emitiu um suspiro ruidoso e espreguiçou-se, cansado até aos ossos. Enquanto heri’huti, as suas responsabilidades junto da tribo pareciam infindáveis. Não era de admirar que Mo’amba lhe quisesse passar o bastão. Ainda assim, em memória do velho, sentia-se na obrigação de ocupar a posição. Pelo menos até a cria de mimi’swee dotada com o sangue heri’huti atingir a maturidade. Ben tinha supervisionado o nascimento da criança, mais um dos seus deveres. A criança, a quem Mo’amba chamara Tu’shama antes da sua morte, era uma rapariga, a primeira heri’huti feminina da tribo. O seu género tinha chocado a comunidade, mas Ben não queria saber. Macho ou fêmea, era o seu substituto!
Ben enfiou-se ainda mais profundamente debaixo dos cobertores. A verdade é que não podia queixar-se. A posição tinha os seus privilégios. No tempo livre, podia explorar as vastas galerias. Os caçadores que viajavam pelos caminhos mais escuros tinham-lhe mostrado imagens de tal forma maravilhosas que, por vezes, pensava estar a sonhar.
Mesmo que fosse enquanto recolhiam fezes de crak’an.
Ben fechou os olhos. A manhã chegaria em breve. Virou-se de lado e envolveu a cintura de Ashley com um braço.
Enquanto deslizava para o sono, algo lhe tocou os sonhos. Fraco e hesitante. Alguém que o chamava.
Abriu-se, convidativo, mas o contacto desvaneceu-se. Apenas uma ligação de passagem, como uma brisa quente que desliza pelo rosto frio.
Depois nada.
Quem seria?
Sob a sua mão, sentiu o bebé mexer-se na barriga de Ashley. E Ben lembrou-se das palavras de Mo’amba: «O sangue corre verdadeiro.»
James Rollins
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