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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


SUSHI - P.2 / Marian Keyes
SUSHI - P.2 / Marian Keyes

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

Mãos fofinhas e rechonchudas alisando seu rosto... Entre o sono e a vigília, Clodagh fruía, sonhadora, do calor das mãos de Molly tocando a pele sensível e molinha de seu rosto. Deitada sem cerimônia sobre o peito de Clodagh, Molly respirava com força, enquanto seus dedos tenros e pegajosos avançavam pelo queixo de Clodagh, suas faces, contornavam o nariz, a testa e... AI! Aiii!!! Clodagh viu estrelas.

 

 

 

 

— Você me deu um soco no olho, Molly! — gritou, chocada com o violento despertar. — Mamãe acordou — disse Molly, fingindo-se surpresa. — É claro que mamãe acordou. — Clodagh levou a mão em concha ao olho cego, de onde jorrava água como de uma represa cujas comportas tivessem rebentado. — Geralmente é o que acontece quando a pessoa leva uma porrada no olho. Desvencilhando-se de Molly, cambaleou até o espelho para avaliar a extensão do dano. Precisava estar nos trinques aquele dia, porque tinha uma entrevista numa agência de empregos. Um olho estava normal, o outro lacrimejante e injetado. Droga. De repente, ela percebeu a pilha de roupas na poltrona e entrou no frenesi pré-Flor habitual, arrumando o quarto e pendurando as roupas. — Se veste, Craig — ordenou-lhe a distância. — Molly, anda, veste suas roupas, Flor vem aí. Desembestando pelas escadas abaixo, o café da manhã foi a guerra de sempre. — Não quero o All-Bran — Craig gritava e chorava. — Quero os Coco Pops. — Você não pode comer os Coco Pops até comer todo o All-Bran — disse Clodagh, fingindo por um momento que havia a possibilidade de ser obedecida.

Sua compra semanal incluía um kit de seis caixas sortidas de cereais, das quais os Sugar Puffs e os Coco Pops não esquentavam na prateleira, enquanto as marcas tediosas, como o All-Bran, iam se amontoando numa pilha abandonada. Até serem consumidos, ela procurava resistir às tentativas das crianças de forçá-la a abrir uma caixa de outra marca. E sempre fracassava. Ainda mais hoje, em que o tempo era precioso. Rasgando o celofane de um novo kit, chapou os Coco Pops diante de Craig. Em seguida, ainda de camisola, correu para o carro, resgatando várias sacolas de compras de seu esconderijo no porta-malas. Sempre fazia isso quando comprava alguma roupa nova. Embora Dylan nunca se queixasse por ela gastar dinheiro com roupas, isso não a impedia de se sentir culpada. Mas dessa vez era diferente. Enquanto Dylan trabalhara no feriadão, ela jogara as crianças nas costas da mãe artrítica e embarcara numa miniorgia de compras. As sacolas que trouxe estabanadamente para dentro de casa continham roupas de noite, jovens e descoladas, roupas que ela ainda não tinha muita certeza de onde usaria. Também comprara um tailleur em homenagem à sua visita a uma agência de empregos — sobre a qual Dylan nada ficara sabendo. Ela ignorava a razão por que não lhe contara, mas tinha uma vaga e inexplicável suspeita de que ele não a aprovaria. De volta ao quarto, arrancou freneticamente as etiquetas e tarjas de preços da saia e do paletó cinza e se vestiu. O tailleur fora caro. Carésimo, mas ela argumentara consigo mesma que o bateria muito, quando conseguisse um emprego. A meia-calça de seda finíssima, o par de sapatos pretos de salto alto e a camisa branca vieram era seguida. Depois de passar batom e prender os cabelos num coque bem-feito, achou que estava com boa aparência. Isto é, fora o olho injetado. Mas não teve tempo de escapar de Flor essa manhã. Ela vinha se arrastando pelo portão justamente quando Clodagh tocava Craig e Molly porta afora. — Como vai, Flor?

— Estive no Frawley sexta-feira — retrucou Flor. Frawley era seu médico. Embora Clodagh nunca o tivesse visto na vida, sentia-se como se o conhecesse intimamente. — E o que ele disse? — Que tem que sair. — O que é que tem que sair? — Meu útero, que mais haveria de ser? — Flor elevou a voz, surpresa. — Droga, que notícia horrível. — Clodagh cobrou forças para lhe prestar solidariedade e compreensão de mulher para mulher — Não é, não! — Você não ficou chateada? — E por que ficaria? — Você não tem medo de se sentir... — Clodagh se interrompeu. Estava prestes a dizer “menos mulher”, mas isso seria uma tremenda falta de tato. Assim sendo, optou por perguntar: — Não tem medo de se ressentir da perda? — Nem um pouco — disse Flor, toda pimpona. — Tem mais é que tirar logo. Claro, é um peso morto. Nunca saiu nada de bom dele. O que você quer que eu faça hoje? — Ah. — Clodagh estava morta de vergonha. — Passar umas roupinhas, se você estiver em condições. E lavar o banheiro, de repente. Só o que você realmente estiver em condições de fazer... Ao empurrar a porta da agência de empregos no centro da cidade, as mãos trêmulas de Clodagh traíam seu medo e excitação. Deteve-se diante de uma garota com um coque louro, cuja pele viçosa como um botão de flor de damasco estava soterrada de pancake. — Tenho hora marcada com Yvonne Hughes. A garota se levantou. — Oi — disse, tranqüila, com uma segurança surpreendente. — Eu sou Yvonne Hughes. — Ah. — Clodagh esperara uma pessoa muito mais velha. Ato contínuo, Yvonne brindou-a com o aperto de mão mais firme da História, como se estivesse treinando para ser um político homem. — Sente-se. Clodagh entregou-lhe seu currículo, que havia se amassado um pouco na bolsa.

— Vamos dar uma olhada. — Yvonne tinha gestos delicados e muito calculados. Não parava de alisar o currículo de Clodagh com as pontas dos dedos infantis espraiados, esticando-o, endireitando-o, realinhando-o com a ponta da régua. Antes de virar a página, demorou-se um momento para segurar a pontinha entre o polegar e o indicador, num breve frenesi para desamassá-la, apenas para ter certeza de que não havia pego duas folhas de uma vez. Por algum motivo, isso deixou Clodagh extremamente irritada. — Você está fora do mercado de trabalho há muito tempo? — começou Yvonne. — Faz... quantos... mais de cinco anos. — É que eu tive dois filhos. Não tinha a menor intenção de ficar afastada durante tanto tempo, mas a oportunidade só apareceu agora — Clodagh se defendeu de um jorro. — Seeeeeei... — Yvonne continuou a brincar com os nervos de Clodagh, enquanto estudava seus pormenores curriculares. — Desde que você concluiu os estudos, já trabalhou como encarregada de reservas num hotel, recepcionista num estúdio de gravação, caixa num restaurante, arquivista num escritório de advocacia, fiscal de mercadorias numa confecção de roupas, bilheteira no Zoológico de Dublin, recepcionista numa firma de arquitetura e encarregada de reservas numa agência de viagens? — Clodagh fizera Ashling colocar tudo que ela já fizera, apenas para mostrar o quanto era versátil. — Você ficou... três dias no Zoológico de Dublin? — Foi o cheiro — confessou Clodagh. — Para onde quer que eu fosse, sentia o cheiro da casa dos elefantes. Nunca vou me esquecer. Até meus sanduíches ficavam com o gosto... — Sua experiência mais longa foi na agência de viagens — interrompeu-a Yvonne. — Você ficou lá durante dois anos? — Exatamente — disse Clodagh, ansiosa. Sem sentir, avançara na cadeira até se sentar na beirinha. — Você foi promovida durante esse espaço de tempo?

— Para ser franca, não. — Clodagh ficou desconcertada. Como poderia lhe explicar que o máximo a que alguém podia ser promovido lá dentro era ao cargo de supervisor, e que todo mundo sentia pena e desprezo pelos supervisores? — Você fez as provas de habilitação para agente de viagens? Clodagh quase riu. Que idéia! É para isso que a pessoa sai da escola, não é? Para não ter mais que fazer provas? Yvonne entrelaçou as mãos e ficou girando os polegares ao redor um do outro, até que os separou e abaixou, para alisar a página outra vez, com gestos conscientes, hipnóticos. — Que editor de textos você usava lá? — Era... — Clodagh não se lembrava. — Você sabe digitar e taquigrafar? — Sei. — Quantas palavras por minuto? — Ah, isso eu não sei. Só digito com os dois indicadores, mas sou muito rápida — tratou de acrescentar. — Tão rápida quanto algumas pessoas que fizeram curso. Yvonne franziu seus olhos de criança. Estava entediada, mas não tanto quanto queria que Clodagh pensasse. Só estava se divertindo, brincando com o poder que tinha. — Devo entender então que na realidade você não sabe taquigrafar? — Bom, acho que deve, mas eu poderia... Não, não sei — confessou Clodagh, já sem forças. — Tem noções básicas de editoração de textos? — Hum, não. E, mesmo já sabendo a resposta, Yvonne perguntou: — E não é formada? — Não — admitiu Clodagh, encarando Yvonne com um olho normal e outro injetado. — Tudo bem. — Yvonne soltou um suspiro resignado, lambeu o dedo e alisou um cantinho rasgado do currículo com ele. — Me diga o que você lê. — Como assim? Houve uma pausa tão minúscula que quase não existiu, mas Yvonne criou-a para mostrar a perfeita idiota que Clodagh era. — FT? Time? — sugeriu. Não chegou propriamente a suspirar, mas não fez diferença. — Bella? Hello!?

Clodagh não lia mais nada além de revistas de decoração. E os livros da coleção Gato no Chapéu. E, uma vez ou outra, best-sellers sobre mulheres que montavam suas próprias empresas e não tinham que aturar entrevistas humilhantes como essa quando queriam um emprego. — E estou vendo aqui que você incluiu o tênis entre os seus interesses. Onde você joga? — Ah, eu não jogo. — Clodagh deu uma risadinha de pré-adolescente. — Eu quis dizer que gosto de assistir. Wimbledon estava prestes a começar, a tevê anunciava toda hora a transmissão dos jogos. — E você freqüenta uma academia — Yvonne leu. — Ou será que também só gosta de assistir? — Não, eu freqüento, mesmo — disse Clodagh, pisando em terreno muito mais firme. — Se bem que isso não pode ser contado como hobby, pode? — perguntou Yvonne. — É o mesmo que dizer que dormir é um hobby. Ou comer. Esse comentário enfureceu Clodagh. — E você costuma ir ao teatro? Clodagh hesitou, mas terminou por admitir: — Não, não costumo. Mas a gente tem que botar alguma coisa, não tem? — (Quando Clodagh e Ashling finalmente pararam de inventar hobbies cômicos, como ralis e demonolatria, e tentaram organizar uma lista de hobbies de verdade, não conseguiram encontrar praticamente nada.) — Então quais são de fato seus interesses? —Hummm... — Quais eram de fato seus interesses? —Hobbies, paixões, esse tipo de coisa — disse Yvonne, impaciente A mente de Clodagh tinha sofrido uma pane. A única coisa de que conseguiu se lembrar foi que gostava de brincar com suas pontas duplas, puxando-as por todo o comprimento do fio, para ver até onde iriam. Podia passar horas se divertindo assim. Mas algo a impediu de contar isso a Yvonne. — Sabe, eu tenho dois filhos — disse, sem forças. — Eles tomam todo o meu tempo. Yvonne lançou-lhe um olhar do gênero “Se você diz...”. — O quanto você é ambiciosa? Clodagh estremeceu. Não era nada ambiciosa. As pessoas ambiciosas eram esquisitas.

— Quando você trabalhava na agência de viagens, o que lhe dava maior satisfação profissional? Chegar ao fim do dia, até onde Clodagh se lembrava. O trabalho consistia basicamente (e isso valia para todas as garotas com quem trabalhava) em entrar, suspender a vida real durante oito horas e dedicar todas as suas forças a agüentar a espera. — Lidar com o público? — sugeriu Yvonne. — Resolver problemas técnicos? Fechar uma venda? — Receber meu salário — disse Clodagh, e logo se deu conta de que não devia. O problema era que fazia muito tempo que não tinha qualquer tipo de entrevista. Já se esquecera de quais eram os lugares-comuns corretos. E, até onde se lembrava, sempre fora entrevistada por homens, que eram muito mais agradáveis de se olhar do que aquela mocreiazinha. — Não tenho o menor interesse em voltar a trabalhar numa agência de viagens — disse Clodagh. — O que eu gostaria mesmo é que você me arranjasse um emprego numa... revista. — Você gostaria de trabalhar numa revista? — Yvonne fingiu estar tendo dificuldade para conter um sorriso. Clodagh assentiu, ressabiada. — E quem não gostaria, querida? — tornou Yvonne, com uma vozinha cantarolada. Clodagh chegou à conclusão de que odiava essa criança poderosa e inclemente. Chamando-a de “querida”, quando tinha metade da sua idade. — Qual era o salário que você tinha em mente? — perguntou Yvonne, dando outra volta no parafuso. — Eu não... hum... eu não tinha pensado... O que você acha? — Clodagh rendeu de uma vez a Yvonne os últimos vestígios de poder que lhe restavam. — É difícil dizer. Não tenho muito em que me basear. Se você estiver disposta a fazer novamente um curso de treinamento...

— Talvez — mentiu Clodagh. — Se surgir alguma coisa, eu lhe telefono. As duas sabiam que não telefonaria. Yvonne acompanhou-a até a porta. Clodagh sentiu um prazer brutal ao ver que suas pernas eram ligeiramente tortas. Já na rua, em seu tailleur odioso, ridículo, caro, caminhou lentamente em direção ao carro. Sua autoconfiança fora estilhaçada. Essa manhã fora uma lição aterradora de como era velha e inútil. Depositara todas as suas esperanças num emprego, mas era inegável que o mercado de trabalho era um mundo rápido demais, ao qual ela não tinha mais qualificações para pertencer. E agora, o que iria fazer? Na terça-feira de manhã, Lisa raspava o sapato no chão, como um cavalo indócil, diante do prédio da Randolph Media, desesperada para entrar. Nunca mais agüentaria um fim de semana como o que acabara de passar. Na segunda-feira feriado, seu tédio chegara a um tal ponto que ela fora ao cinema sozinha. Mas os ingressos para o filme que queria ver estavam esgotados, de modo que acabou sendo obrigada a assistir a uma porcaria intitulada Rugrats Dois, dividindo o cinema com algo em torno de um bilhão de crianças hiperexcitadas de menos de sete anos de idade. Até então não se dera conta de que havia tantas crianças no mundo. E que irônico que as pessoas com quem passasse boa parte de seu tempo ultimamente fossem justamente crianças... Lançou um olhar furibundo para Bill, o porteiro, ao que ele tilintava as chaves por trás da porta de vidro, para deixá-la entrar. A culpa era toda dele, daquele filho-da-mãe velho, preguiçoso, vagabundo. Se a tivesse deixado vir trabalhar no fim de semana, ela jamais teria descoberto o quanto sua vida era vazia. — Nossa, você chegou cedo — murmurou ele, alarmado. — Teve um bom fim de semana? — perguntou Lisa, ácida. — Demais da conta — disse Bill, expansivo, e soltou o verbo sobre as visitas que recebera dos netos, as visitas que fizera aos netos... — Sim, porque eu não tive — interrompeu-o Lisa.

— Que pena — disse ele, em tom de comiseração, perguntando-se o que isso tinha a ver com ele. Mas, por outro lado, pensou Lisa, enquanto subia no elevador, tomara algumas decisões. Já que iria continuar presa naquela merda de país horroroso, construiria uma vasta rede de amigos. Bem, talvez não de amigos ao pé da letra, mas de gente que pudesse chamar de “meu bem” e com quem pudesse falar mal dos outros. E iria fazer sexo com alguém. Um homem, apressou-se em especificar. Que se danasse a Nova Bissexualidade, cujo perfil ela traçara na edição de março da Femme — não conseguira ir além de trocar, morta de vergonha, alguns amassos com uma modelo no Met Bar. Assim como a tribo das Sensible Chic, transar com mulheres simplesmente não era a sua praia. Aquele ímpeto terrível de ligar para Oliver no fim de semana fora um sinal claro de que precisava de um homem. Jack, se possível. Mas, redobrando sua determinação, decidira que, já que Jack queria brincar de Burton e Taylor com Mai, ela trataria de encontrar outro homem. Talvez isso o chamasse à razão. De uma maneira ou de outra, as coisas não podiam continuar como estavam. Claro, talvez ela não conseguisse encontrar um namorado adequado imediatamente. Mas jurou para si mesma que no mínimo até o fim da semana iria dormir com alguém. Quem, por exemplo? Havia Jasper Ffrench, o célebre chef, que sem dúvida se mostrara disposto. Mas era chato demais. Havia Dylan, que ela vira com Ashling. Era um gato. Mas um gato casado, infelizmente, o que tornava bastante improvável que esbarrasse com ele numa boate. Talvez se passasse o fim de semana flanando em alguma loja de conveniência, suas chances de encontrá-lo fossem maiores.

— Meu Deus do Céu — disse ela, em voz alta, detendo-se ao entrar na redação. Havia garrafas de champanhe, canecas, pedaços de papel laminado e arame espalhados por toda parte, e o lugar fedia como um bar. Obviamente, a faxineira não achara que fazia parte de suas atribuições limpar os restos da folia de sexta-feira. Bom, Lisa é que não iria lavar nada, pois, afinal, tinha unhas a zelar. Ashling que se encarregasse disso. Para inveja e desprezo de Lisa, todos os outros membros da equipe chegaram tarde, sem exceção. Todos haviam chupado os três dias até o bagaço. Até a Sra. Morley, que, depois de algumas canecas na sexta, passara o fim de semana enchendo a caveira. Pois era chegada a hora do ajuste de contas: todo mundo gemendo, deprimido, principalmente Kelvin, que furara sua mochila inflável laranja com o anel do polegar num trágico acidente, na noite de domingo, à procura de uma caneta. Enquanto todos os olhares evitavam conscientemente as canecas sujas, choviam comparações entre as bebedeiras. — Sempre mexe mais como meu estômago do que com a minha cabeça — confidenciou Dervla O’Donnell para o grande público. — E não tem nada que corte o enjôo, só dois sanduíches de salame. — Que nada, é a paranóia que acaba comigo — disse Kelvin, estremecendo ao lhe lançar um olhar furtivo, para ato contínuo tornar a abaixar a cabeça. Até a Sra. Morley confessou, envergonhada: — Já eu fico com a sensação de que tem alguém apunhalando meu olho direito sem parar. Lisa sentia vontade de participar, mas não podia. A gota d’água que fez sua raiva transbordar foi a entrada altiva de Mercedes na redação, carregada de sacolas cobertas de adesivos de uma companhia de aviação. Pelo visto, fora passar o fim de semana em Nova York, logo onde! Filha-da-puta mimada, pensou Lisa, amarga. Filha-da-puta de sorte. E como é que todo mundo ali parecia estar sabendo disso, menos ela?

Mercedes recebera várias encomendas: calças Levi’s brancas para Ashling — constava que fossem a metade do preço por lá; um chapéu Stussy para Kelvin, que não estava à venda na Europa; e um carregamento de barras de chocolate Babe Ruth para a Sra. Morley, que estivera em Chicago na década de sessenta e nunca mais se conformara com as da Cadbury’s. Os felizes destinatários caíram em cima de suas encomendas com gritos de alegria, e o dinheiro trocou de mãos em questão de segundos. — Eu estava pensando em me matar — disse Kelvin, exibindo seu novo chapéu, animado —, mas acho que agora não vou mais fazer isso. Lisa a tudo assistia, azeda. Poderia ter pedido a Mercedes para lhe trazer um pote de manteiga corporal da Kiehl’s. Não teria pedido, é claro. Mas teria gostado de se recusar a lhe pedir. Além dos itens solicitados, Mercedes trouxera generosos presentes para a redação — quarenta sabores de jelly beans, sacos de bombons da Hershey’S e braçadas de forminhas de chocolate da Reece’s. Mas, quando ofereceu a Lisa um saco de bombons da Hershey’s, ela estremeceu. — Ah, não. Sempre achei que o chocolate americano tem um gostinho de vômito. A Sra. Morley — cuja boca estava cheia de Babe Ruth — soltou uma exclamação ao ouvir tal sacrilégio e, por um momento, os olhos de Mercedes, negros como os de um tubarão, se cravaram nos de Lisa, profundos e penetrantes. E Lisa viu neles desprezo, talvez até divertimento. — Você é quem sabe — disse, impassível. E Lisa quase explodiu. Mercedes passara dois dias em Nova York — dois dias! —, e já estava com sotaque de lá! A última pessoa de fora da diretoria a chegar foi Trix, dando uma considerável contribuição para a forte mistura aromática. — Truta que pariu — exclamou a Sra. Moley, demonstrando uma insólita tendência a representar para o público. — Será que é isso que chamam de guelra química? — Ha, ha — fez Trix, desdenhosa. Foi o bastante para detonar um dilúvio de trocadilhos de peixe.

— Você precisa dar uma pas-sardinha em casa para tomar banho, Trix! — exclamou Kelvin. — Que falta de edu-cação — censurou-o Ashling. — Ora, poraquê? — Mercedes surpreendeu a todos. — Esse fedor deixa mesmo a gente um peixe de nervos. Kelvin provou ter um verdadeiro talento para trocadilhos. — “Sob a carpa da inocência, ela esconde um pescado mortal...” — cantou ele, com os braços abertos. — Mais uma para vocês! — Para variar, Bernard, o Xarope, conseguira pegar o espírito da coisa. Ignorando a camiseta vermelha sem mangas e a calça de terno, levantou o colarinho da camisa e arriscou uma imitação de Elvis Presley. — Oh, peixe-me, Trix, peixe-me, Trix! Nesse momento Jack entrou, com passos largos e mãos nos bolsos. Era todo sorrisos. — Bom-dia, pessoal — disse, no melhor dos humores. — Caramba, este lugar está uma bagunça! Trix se voltou para ele. — Jack — tá, já sei, para mim é Sr. Devine —, está todo mundo zoando de mim porque estou com cheiro de peixe. Estão cantando um monte de músicas. — Que tipo? — Vai nessa — ordenou Trix ao desconcertado Kelvin. — Canta para o nosso glorioso líder. Muito a contragosto, Kelvin obedeceu. Jack sorriu. — Você também — disse Trix a Bernard. Bernard fez uma reprise bastante desanimada do show de minutos antes. — Não está muito bom, não — disse Jack. Trix assentiu, toda prosa. — Tenho uma melhor — disse Jack, para surpresa de todos. Em seguida, com ar vaidoso, dirigiu-se ao escritório com graça surpreendente, cantando alto: — “Sou um MERO homem. Bobabopbabop. Sou um MERO homeeeem.” E, mesmo depois de fechar a porta do escritório, ainda se podia ouvir sua voz abafada imitando sons de trompete do lado de dentro. — Que piaba! — Trix mal conseguia falar. — Ele estava cantando...? — Interrompeu-se, assustada. — Merda, agora até eu estou fazendo. O ânimo abandonara o rosto de Ashling. Acabara de se lembrar dos conselhos que dera a Jack sobre seu namoro, quando estava bêbada na tarde de sexta. — Ah, meu Deus — gemeu, cobrindo com as mãos as faces afogueadas.

— Estou fedendo tanto assim? — Trix fez um ar magoado. Já esperava pelo deboche de quase todos, mas não pelo de Ashling. Ashling sacudiu a cabeça. Já não estava sentindo mais cheiro de nada, fora totalmente levado pela onda de vergonha. Tinha que se desculpar. — Essa redação está uma coisa. — Lisa, a desmancha-prazeres, começou a pôr ordem na casa. — Kelvin, será que dava para recolher as garrafas vazias? E você, Ashling, será que podia lavar as xícaras? — E por que eu deveria fazer isso? Sou sempre eu que lavo — rebateu Ashling, fora do ar, horrorizada com o que dissera a Jack Devi... Santo Deus, ela até o chamara de JD! Essa resposta deixou Lisa muda e apatetada. Fuzilou Ashling com um olhar ameaçador, mas ela estava a quilômetros dali, de modo que Lisa caiu em cima de Trix, venenosa: — Tá certo, peixeira, lava você as xícaras. Assombrada ao ouvir Lisa se dirigindo a ela daquele jeito, justamente Lisa, que até então a tratara como se fosse sua favorita, Trix chapou com estardalhaço as canecas na bandeja, birrenta e ressentida, deu um banho de meio segundo em cada uma debaixo da torneira do banheiro feminino e decretou-as lavadas. Ashling esperou que todo mundo voltasse a trabalhar, antes de atravessar a redação a passos trêmulos em direção ao escritório de Jack Devine, os nervos de seus joelhos contraindo-se involuntariamente. — Bom-dia, Senhorita Quebra-Galho. — Jack ficou quase nervoso ao cumprimentá-la, quando ela entrou. — O que você quer, cigarros? Porque aquele pacote da semana passada era para ser o primeiro e último. Mas, se fizer muita questão... — Não, não! Não é por isso que estou aqui. — Então ela se calou, subitamente perplexa com sua gravata. Era estampada com Bart Simpsons de um amarelo berrante. Ele não costumava usar aquelas gravatas frívolas, costumava?

— Então por que está aqui? — Seus olhos escuros piscaram para ela, alegres. Engraçado. Seu escritório já não estava mais imerso na atmosfera deprimente e soturna de sempre. — Eu queria pedir mil desculpas por ter dado aqueles conselhos sobre seu namoro, na sexta. Eu tinha, hum... — Arriscou um sorriso despreocupado, mas o que apareceu em seu rosto foi um ricto sem vida. — ...eu tinha bebido com o pessoal. — Não tem problema — disse Jack. — Bom, se o senhor diz... — Você tinha razão, sabia? Mai é uma mulher maravilhosa. Eu não devia brigar com ela. — Bom, hum, que ótimo. Por incrível que pareça, Ashling saiu de lá se sentindo quase pior do que quando entrara. Quando apareceu, Lisa lhe lançou um olhar duro. Pouco depois chegou um courier trazendo as fotos das roupas de Frieda Kiely. Mercedes tentou se apoderar delas, mas Lisa as interceptou. Rasgou o envelope acolchoado, de cujo interior caiu uma pilha mole e pesada de fotos em papel brilhoso das modelos com manchas de terra no rosto e chumaços de palha nos cabelos, tendo o pântano ao fundo. Lisa vistoriou-as em meio a um silêncio sinistro, separando-as em duas pilhas desiguais. A pilha menor continha uma foto de uma mulher suja e desgrenhada usando um vestido de noite justo, em contraponto com um par de botas de borracha enlameadas, suas pernas nuas zebradas de lama. A mesma garota envergando um tailleur de corte impecável, sentada num balde virado ao contrário, fingindo ordenhar uma vaca. E outra modelo num vestido prateado curto e colante, pretensamente dirigindo um trator. A pilha maior continha fotos etéreas e feéricas de mulheres etéreas e feéricas com vestidos etéreos e feéricos dançando numa paisagem etérea e feérica. Lisa segurou a pilha muito menor. — Estas aqui talvez dê para usar — disse em tom gélido a Mercedes. — As outras são uó. Pensei que você fosse uma jornalista de moda. — Que é que há de errado com elas? — perguntou Mercedes, num tom de calma ameaçadora.

— Não têm ironia. Não têm contraste. Estas... — indicou as fotos dos vestidos vaporosos — ...deveriam ter sido feitas num cenário urbano. As mesmas mulheres com as mesmas caras sujas e vestidos loucos, mas dessa vez subindo num ônibus, tirando dinheiro de um caixa eletrônico ou usando um computador. Telefona para a assessoria de imprensa de Frieda Kiely. Vamos refazer estas fotos. — Mas... — Mercedes estava tinindo de ódio. — Anda — disse Lisa, impaciente. De repente, todos na redação tinham passado a achar as pontas de seus sapatos muito, muito interessantes. Ninguém conseguia assistir ao episódio de humilhação, era horrível demais. — Mas... — Mercedes tornou a tentar. — Anda! Mercedes a encarou, em seguida agarrou as fotos e saiu pisando duro em direção à sua mesa. Ao passar, Ashling ouviu-a soltar um “filha-da-puta” entre os dentes. Ashling foi obrigada a concordar. Afinal, Lisa era o quê? A atmosfera estava envenenada de tensão. Ashling teve que abrir uma janela, embora o dia não estivesse quente. Precisava de um pouco de ar fresco para aliviar a barra-pesada. A única pessoa de bom humor era Jack. Por acaso, saiu do escritório, na mais completa e feliz ignorância da tensão vigente, fez o que tinha de fazer, distribuiu sorrisos a torto e a direito e tornou a desaparecer. Lentamente o veneno se dissipou, até que todos, com exceção de Mercedes, já tinham praticamente voltado ao normal. Ao meio-dia e meia, Mai chegou. Deu um cumprimento geral para todos e pediu para ver Jack. — Pode entrar. — A Sra. Morley assentiu como uma autômata. Todo mundo se empertigou, animado, quando a porta se fechou atrás de Mai. — Isso vai tirar aquele sorriso do rosto dele — observou Kelvin. Trix estava quase saindo pela redação afora para vender cachorros-quentes, tão festivo e circense era o clima. Mas não saiu nenhuma briga, e os dois deixaram o escritório tranqüilamente, juntinhos, Mai sorrindo ao lado da alta figura de Jack, enquanto deixavam a redação. Todos trocaram olhares sobressaltados:

— Que foi isso? Lisa, já prestes a sair para avaliar a “sexydade” dos quartos do Hotel Morrison, foi subitamente tomada por uma sensação de perda. Teve que se sentar e engolir em seco para tentar se livrar daquela fria e dura sensação de vazio. Mas qual era o problema? Sabia que ele tinha uma namorada. A questão era que, depois daquele bate-papo que haviam tido na cozinha, ela nunca mais levara esse fato totalmente a sério. Ashling também estava um pouco desconcertada. Que foi que eu fiz? Quando Lisa reservou um táxi para levá-la ao Morrison, pedira — um pouco constrangida — que mandassem Liam. Dera para fazer isso ultimamente. Só podia supor que gostasse de Liam, apesar de toda aquela sua tagarelice sal-da-terra de Dublin. Até chegar ao hotel, já conseguira reduzir o aborrecimento causado por Jack e Mai a proporções suportáveis. Afinal, não prometera a si mesma naquela manhã que iria fisgar um cara? E que esse cara não tinha que ser Jack? Ainda não, pelo menos. — Onde você quer que eu te deixe, Lisa? — Liam interrompeu seus pensamentos. — Aqui está bom, diante do edifício com janelas pretas. Havia um jovem flanando diante da portaria do hotel, envergando um belo terno cinza estruturado. — Ah, olha lá, Lisa. — A voz de Liam se abrandou. — Seu namorado está te esperando. Todo paramentado, de apito e gravata. É seu aniversário? Que esta data se repita por muitos e muitos anos. Ou é aniversário de namoro? — Aquele é o porteiro — murmurou Lisa. — Ah, é? — A decepção deixou a voz de Liam muito estridente. — Pensei que fosse seu namorado. Bom...! Quer que eu fique te esperando? — Quero, por favor. Só vou demorar uns quinze minutos.

Sem maiores delongas, Lisa verificou a elasticidade do colchão do Morrison, a limpeza dos lençóis, o tamanho da banheira — era grande o bastante para dois —, a quantidade de champanhe no frigobar, os pratos afrodisíacos no cardápio do serviço de quarto, os CDs disponíveis e, finalmente, as oportunidades para se usar algemas. E concluiu que, no cômputo geral, podiam-se passar ótimas horas ali. A única coisa que estava faltando era o homem certo. Na volta para o trabalho, um enorme outdoor anunciando um novo sorvete chamado Truffle chamou sua atenção. Ela ia ao lançamento naquela mesma noite. Nesse momento, notou o homem magnífico no cartaz, sua boca deslumbrante envolvendo um Truffle, seus olhos vidrados com o que pretendia se passar por luxúria, mas também podia muito bem ter sido obtido com dois comprimidos de Mogadon. Eu adoraria ir para a cama com ele. Santo Deus, caiu em si, estou me tornando uma solteirona velha e triste. Tendo fantasias com uma foto. Quanto antes transar, melhor. A festa de lançamento do novo sorvete Truffle começou às seis da tarde. Por se tratar basicamente de um sorvete de chocolate, não teria nenhum ponto-de-venda exclusivo, num mercado saturado por produtos que alardeiam pontos-de-venda exclusivos. Por essa razão, os fabricantes haviam gasto os tubos com o lançamento, dando a festa no Clarence e atraindo os jornalistas com promessas de champanhe. Prometia ser um evento um tanto glamouroso. — Quer vir? — Lisa perguntara a Ashling. Ashling, ainda pouco à vontade pela maneira como Lisa tratara Mercedes, esteve a pique de recusar, quando então decidiu matar uma horinha antes da aula de salsa. — Tudo bem — disse, de pé atrás.

Antes de saírem, Lisa foi ao banheiro para a vistoria que fazia de hora em hora na sua aparência. Com um olhar cruelmente crítico, percorreu sua imagem esguia e bronzeada num vestido branco da Ghost e aprovou o que viu. Não se tratava de arrogância injustificada: até mesmo sua pior inimiga (e a competição pelo posto era acirrada) teria reconhecido que ela estava linda. E ela não negaria que era o que desejava. Esforçava-se ao máximo para isso. Era sua própria obra-prima, a obra de toda uma vida. Não que alguma vez fosse complacente em relação à sua aparência; também era sua crítica mais impiedosa. Sabia quando precisava retocar as raízes dos cabelos muito antes de se tornarem visíveis a olho nu. Podia sentir seus cabelos crescendo. E sempre sabia — mesmo quando a balança e a fita métrica discordavam — quando engordava um grama que fosse, chegando ao cúmulo de fantasiar que ouvia a pele se distendendo para acomodá-lo. Interrompeu-se, franzindo os olhos. O que era aquilo na sua testa, uma ruga? A menor sombra do esboço do indício de uma ruga? Era! Hora de aplicar mais uma injeção de Botox. Era adepta da escola de cosmiatria A-defesa-é-o-melhor-ataque: pegue o inimigo antes que ele pegue você. Retocando o gloss já perfeito, Lisa se considerou finalmente pronta. Se não transasse essa noite, não seria por sua culpa. Por acaso, tanto Kelvin quanto Jack também iriam ao agito. Como o Truffle estava patrocinando a nova minissérie do Canal 9, Jack, muito a contragosto, estava fazendo o jogo corporativista. — E qual é a sua desculpa? — Lisa perguntou a Kelvin, sarcástica. — Nenhuma. Mas estou a fim de molhar o bico, e fiquei duro depois do feriadão. Lisa estremeceu à menção daquele feriadão medonho e interminável. Nunca mais!

Assim que chegaram, Lisa desapareceu em meio ao burburinho da turba bem-vestida, Kelvin rumou direto para o bar e Ashling se pôs a circular pelo salão, ressabiada. Não conhecia ninguém e não podia ficar bêbada demais, por causa da aula de salsa. E tinha que ir à aula de salsa, era apenas a segunda, ainda estava muito cedo para começar a matá-las. Por acaso, localizou Jack Devine em meio à multidão, pouco à vontade, tentando uma jovialidade forçada com tapinhas nos ombros de uns e outros e fracassando retumbantemente. Falta de prática, deduziu ela. — Oi — disse ela, nervosa. — Como vai? — Com dor de cabeça de tanto sorrir — soltou ele, mal-humorado. — Odeio esses troços. — E mais não disse. — Eu também vou muito bem — tornou Ashling, irônica. — Obrigada por perguntar. Jack fez uma expressão surpresa, logo se voltando para uma garçonete que passava: — Enfermeira — agitou seu copo vazio —, alguma coisa para a dor. A garçonete, uma jovem atraente, entregou-lhe uma flûte de champanhe: — Uma dessas de meia em meia hora deve resolver o problema. Abriu um simpático sorriso de covinhas para Jack, que ele retribuiu. Azeda, Ashling observou a troca. Assim que a “enfermeira” se foi, Ashling tentou pensar em algo para dizer a Jack, qualquer coisa que servisse para entabular uma conversa, mas não conseguiu. E Jack não se saiu melhor do que ela. Continuou lá, calado, pulando de um pé para o outro, tomando seu champanhe depressa demais.

Outra garçonete passou, dessa vez carregando uma bandeja contendo uma pilha alta de Truffles, que Ashling aceitou com avidez. Não tanto por adorar sorvete — embora fosse o caso —, mas porque daria à sua boca outra coisa para fazer além de conversar com Jack Devine. Dedicou-se à tarefa com prazer, contornando a ponta do sorvete com a língua. De repente, sentiu que estava sendo observada, ergueu os olhos e viu Jack Devine com um ar divertido e malicioso. Um rubor pruriginoso se alastrou por seu pescoço acima. Ainda sustentando o olhar dele, cravou uma dentada violenta na ponta do sorvete, arrancando-a com um Crau!. Jack estremeceu, e ela riu com um olhar cruel, como quem diz “Bem feito”. — Já vou indo — arrematou. — Você não pode me abandonar assim — queixou-se ele. — Com quem vou conversar? — Bom, até agora, comigo é que não foi! — exclamou ela, apanhando a bolsa. — Ei! Senhorita Quebra-Galho, aonde é que você vai? — Sua voz era de pânico. — Para minha aula de salsa. — Ah, seu dirty dancing. Qualquer hora dessas você tem que me levar lá — provocou ele. — Vai, me abandona aqui em favor dos proletários. Depois que passou Dan “Novidade é Comigo Mesmo” Heigel, que fazia sua própria versão de vaca-preta enfiando bocados de sorvete na flûte de champanhe, Ashling foi embora. Mal acabara de sair, Kelvin se chegou até Jack, carregando duas flûtes de champanhe, ambas para si mesmo. — Dá uma olhada na Lisa. Ela está de calcinha ou não? — perguntou Kelvin, estudando a bunda arrebitada de Lisa através do vestido branco. — Não estou vendo nenhuma linha, mas... Jack não lhe deu corda. — Sei o que você está pensando — disse Kelvin. — Duvido. — Está pensando que talvez ela esteja usando um fio-dental. Pode até ser, é claro — admitiu Kelvin, a contragosto —, mas eu gostaria de acreditar que não. Lisa circulava sistematicamente pelo salão à procura do homem mais bonito no recinto, mas já perfizera o mesmo circuito duas vezes e nada.

Primeiro encontrara um homem misterioso, quase mudo, vestindo azul. Parecia bastante descolado e tinha uma boca maravilhosa, esperta, um sorriso malicioso, cabelos lindos e roupas fantásticas. Até tirar os óculos. Lisa ficou horripilada. De repente, ele se metamorfoseara num homem horrendo. Seus olhos eram minúsculos, quase juntos, e tinham um ar aturdido e perplexo. Pertenciam a outra pessoa totalmente diferente, uma pessoa com dificuldades de aprendizado. Ao recuar, esbarrou em Fionn O’Malley, um solteirão muito cobiçado, segundo ele próprio. Considerava-se um dos homens mais sexy da Irlanda por causa de suas sobrancelhas pontudas de Jack Nicholson. — Olá. — Sorriu para Lisa, maligno, levantando as sobrancelhas com intenções demoníacas. — Você está mais sedutora do que nunca esta noite. — O elogio foi acompanhado por outro sobe-e-desce de sobrancelhas, cujo objetivo era deixar Lisa morta de vergonha e desejo. Entediada, ela lhe deu as costas. Foi então que o viu. O modelo que estava nos outdoors espalhados pela Irlanda de norte a sul. Era de uma beleza estereotípica: lábios carnudos, mandíbula larga e forte, pele sedosa, uma mecha do brilhantes cabelos negro-azulados caindo-lhe sobre a testa bronzeada. Um rosto tão perfeito, que ficava a um centímetro de ser tedioso. Bingo! Ela encontrara o homem certo. Mais baixo do que considerava o ideal, mas, quanto a isso, não se podia fazer nada. O bom dos modelos era que, pela sua experiência, eram galinhas em último grau. Como seu emprego pressupunha uma seqüência quase ininterrupta de viagens, sempre encaravam o sexo com aquela atitude de “férias”. Se por um lado isso indicava que ele provavelmente cairia numa cantada, por outro tinha o inconveniente de não permitir que jamais chegasse a ser mais do que um Homem Milky Way, mero objeto sexual para uma noitada. Não havia problema, decidiu Lisa, analisando de alto a baixo o longo contorno da sua coxa e a depressão musculosa na lateral de sua bunda. Só sexo já estava de bom tamanho.

Já fazia um bom tempo que não convidava um homem para ir para a cama. E só havia uma única maneira de fazer isso. Não adiantava nada ficar de rodeios, bancando a tímida, na esperança de que ele a notasse. Não mesmo: a mulher precisava se dirigir resoluta para o homem que queria e deslumbrá-lo com sua autoconfiança. Era como estar entre cachorros — não se pode demonstrar medo. Respirando fundo e relembrando a si mesma que era fabulosa, alargou sua boca brilhante com um sorriso cegante e avançou em direção a ele. — Oi, sou Lisa Edwards, diretora da revista Garota. Ele apertou sua mão. — Wayne Baker, o rosto do Truffle. — Disse isso com a maior seriedade. Ah, meu Deus, ironia deficitária! Mas tudo bem, ela não precisava gostar do cara. Na realidade, provavelmente era até melhor que não gostasse. O objetivo de sua missão era sexo, e muitas vezes gostar da pessoa só atrapalhava. Ela se muniu de cada reserva de autoconfiança de que dispunha, pois as próximas palavras que diria precisavam ser pronunciadas com convicção. Nunca se deve deixar o homem pensar que tem qualquer poder de decisão sobre o assunto. Ele não podia rejeitá-la. Essa hipótese simplesmente estava fora de cogitação. Fixando os olhos nele, disse, com voz sensual: — Quero o meu bem grande. — O que você vai beber? — Ele inclinou a cabeça em direção ao bar. — Não estou falando de bebida — disse ela, com um tom altamente sugestivo. Músculo por músculo, uma expressão de compreensão se instalou no rosto dele. — Ah. — Engoliu em seco. — Entendi. O q...? — Jantar. Primeiro. — Tudo bem — disse ele, obediente. — Agora? — Agora. Ela se permitiu soltar um pequeno suspiro de alívio. Ele caíra. Ela achara provável que caísse, mas nunca se sabe... Quando saíram, ela procurou Jack com o olhar. Ele estava olhando para ela, com a cara fechada. “Até mais”, disse-lhe ela, por mímica labial, ao que ele respondeu com um pequeno e forçado aceno de cabeça. Ótimo.

 

No restaurante do Clarence, Lisa e Wayne competiam para ver quem comia menos. De olho um no outro, cautelosos, deslizavam a comida de um lado para o outro do prato. Por um excitante momento de suspense, Wayne fez menção de pôr um pedaço de peixe na boca e, se isso acontecesse, Lisa se permitiria comer uma pontinha de sua alcachofra. Mas, na última hora, ele mudou de idéia e, muito a contragosto, Lisa também recolocou seu garfo no prato. Wayne Baker nascera em Hastings e era jovem — embora provavelmente não tão jovem quanto alegava. Dizia ter vinte anos, mas Lisa calculou que era mais provável que tivesse vinte e dois ou vinte e três. Levava sua carreira de modelo muito, muito a sério. — Mas está longe de ser engenharia espacial, não é, querido? — Lisa o provocou. Ele fez uma expressão magoada. — Para seu governo, não pretendo ser modelo a vida inteira. — Me deixa adivinhar — disse Lisa. — Mais tarde, você quer seguir a carreira de ator. A surpresa se estampou em seu rosto quase risivelmente perfeito: — Como é que você sabe? Lisa conteve um suspiro. Embora achasse um tédio engolir clichês, o fato de ele não ser nenhum gênio amenizava a contundência de sua aturdente beleza. Ela não tinha nada contra gente com baixa ou mesmo nenhuma escolaridade — pois se mal sabia escrever seu nome na areia com um graveto quando saíra da escola! Mas não havia nenhum motivo para não se saber com quem Meg Matthews era casada. — Onde é que você mora, lindo? — perguntou Lisa, dando uma entonação pejorativa ao “lindo”, como se ele fosse um pedaço de carne. Que engraçado, pensou Wayne. Em geral, era assim que ele falava com as mulheres. — Tenho um apartamento em Londres, mas quase nunca estou lá. — Não conseguiu esconder o orgulho que sentia disso. — E quanto tempo vai ficar em Dublin? — Vou embora amanhã. — Onde você está hospedado? — Aqui, no Clarence.

— Maravilha. — Lisa não queria levá-lo para o Chalé dos Pinhos. Tinha medo de que todo aquele pinheiral o levasse a perder o tesão por ela. Mas o fato é que havia uma chance ainda maior de ela perder o tesão por ele até o fim do trajeto de táxi. Assim que o garçom levou os pratos superficialmente remexidos, Lisa decidiu que já adiara seu prazer por tempo bastante. Com uma cara safada, disse a Wayne: — Pra caminha. — Caraca. — Ele se sobressaltou com seu descaramento e se levantou, obediente. Subindo no elevador do hotel, Lisa fervilhava de expectativa. Sentia-se devassa e sibarítica — às vezes, tudo de que uma mulher realmente precisa é sexo sísmico e sazonal com um completo desconhecido. E de que adianta ter um corpo fabuloso, esculpido a fome, se não houver ninguém a quem mostrá-lo de vez em quando? A mão lisa e bronzeada de Wayne tremeu um pouco ao pôr a chave na fechadura e, embora Lisa estivesse apenas desempenhando um papel, sentia-se fascinada com seu próprio poder. Já no quarto, sua efervescente expectativa aumentou ainda mais. Era como estar num set de filmagens: o quarto moderno e estiloso, o homem jovem, sarado, definido e forte. Não havia como negar — ele era lindo. — Fecha a porta e tira a roupa — disse Lisa, entrando cada vez mais no seu papel de dominatrix. Wayne estava ansioso por sua admiração. — Você vai adorar isso. — Sorriu, desabotoando lentamente a camisa. — Faço duzentos abdominais por dia. Seu abdômen era uma maravilha rija de seis montículos enxutos, cercado pelas costelas e encimado por um peito definido e bronzeado. Era tão perfeito que a segurança de Lisa balançou. Ele devia estar acostumado a dormir com mulheres lindas e esguias. Ainda bem que ela nunca comia. — Agora você — disse ele. Com um sorriso seguro e sugestivo — a atitude era importante —, ela puxou o vestido branco pela cabeça num só gesto fluido. Kelvin tinha razão — não estava usando calcinha.

— Segura essa! — Wayne riu, puxando o zíper das calças estruturadas e justas. Sua ereção se projetou para fora, já semitumescente. Não estava usando cueca. Lisa sentiu um frêmito percorrer seu corpo. Estava mais do que pronta para isso. Ele não era a primeira pessoa com quem ela dormia depois de Oliver. Pouco depois de ele ir embora, ela levara um homem para casa, numa tentativa de tirá-lo da cabeça. Mas não fora um grande sucesso — provavelmente, tentara cedo demais. Isso era muito melhor. — Você é linda — comentou Wayne, tocando um de seus mamilos com interesse profissional. — Eu sei. Você também. — Eu sei. Riram às gargalhadas da beleza um do outro, após o que ele a beijou, não sem sensualidade. — Vem. — Ele tentou levá-la para a cama. — Não. No chão. — Ela queria uma coisa selvagem, pesada, intensa. — Pervertidinha — disse ele. — Que nada. — O tom dela foi desdenhoso. — Você é que levou uma vida superprotegida. Ele não era dos piores. Também não era dos melhores. Esse era o problema dos homens muito bonitos. Achavam que bastava ficarem lá, deitados, para detonar uma onda de orgasmos. Felizmente, Lisa estava muito segura do que queria. Ela o enxotou quando ele tentou ficar por cima. A festa era dela. — Mais devagar — advertiu, quando ele começou a ficar arisco demais embaixo dela. Era um tédio ter que comandar os acontecimentos, mas, pelo menos, ele era dócil. Algum tempo depois, ela enfiou as mãos por baixo de sua bunda. — Mais depressa, mais depressa! — Pensei que você gostasse devagar. — Bom, agora gosto depressa — ela arquejou, e Wayne fez o que lhe fora ordenado, obediente. No auge do prazer, ela mordeu seu ombro. — Não! — gritou ele. — Vou fotografar moda praia daqui a dois dias, não posso ficar com marcas de mordidas. — Ai, meu Deus! — exclamou ela. — Mais fundo! Wayne ganhou força e velocidade, projetando as coxas musculosas contra as dela. — Acho que vou... — ele arquejou.

— Não se atreva! — disparou ela, ríspida. E ele ficou com tanto medo que seu iminente orgasmo recuou, obediente. Por fim, ficaram deitados no chão, ofegantes, sem fôlego. Por ora saciada, Lisa contemplou as pernas de faia da cadeira diante de seus olhos. Fora maravilhoso, pensou. Exatamente do que estava precisando. Continuaram deitados no carpete azul-acinzentado até sua respiração voltar ao normal e, em seguida, Wayne começou a dar sinais de vida. Acariciou meigamente os cabelos dela e refletiu, em tom sonhador: — Nunca conheci ninguém como você. Você é tão... forte. — Tem um frigobar? — tornou ela, curta e grossa. — Pega uma bebida para mim enquanto vou ao banheiro. — Tá falado. Tá falado! Mal conseguiu se espremer para dentro do banheiro, tão atulhado estava de produtos para a pele, xampus, musses, loções fixadoras, colônias. Isso não granjeou para Wayne a estima de Lisa. Que mulherzinha, pensou ela, com um beicinho de desdém. Na bancada da pia havia algumas amostras maravilhosas de gel para banho e loção corporal, que ela prometeu a si mesma afanar antes de ir embora. Quando saiu do banheiro, ele a levou para a cama e pôs uma flûte de champanhe gelado na sua mão. Subindo ao seu lado entre os lençóis fresquinhos de algodão, ele disse: — Posso te perguntar uma coisa? Seu tom sério e baixo fez com que ela ficasse na expectativa de uma dessas perguntas que os amantes se fazem: Você acredita em amor à primeira vista? Em que está pensando? Você me seria fiel? — Manda — disse ela, brusca. Ele se recostou sobre o cotovelo, apontou para a testa e disse: — Você acha que isso é uma espinha? Não havia nada na sua testa. Estava lisa como o bumbum de um bebê, como a pele de um pêssego, como as águas de um lago... — Ah, acho, sim — respondeu ela, franzindo o cenho. — E é bem feia, hein? Acho que está infeccionada. Ele soltou um gritinho de aflição e sacou do espelho com que obviamente andara se inspecionando, enquanto ela estava no banheiro. Lisa gargalhou, esbaldando-se horrores.

— Que é que tem para ver no cine privê? — perguntou. Não queria ter que conversar com ele enquanto esperava que tornasse a erguer o florete. Entre uma sessão e outra de sexo alucinado, viram filmes e beberam champanhe do frigobar. Por fim, exaustos e saciados, adormeceram. Lisa dormiu como uma pedra e acordou com um humor maravilhoso, insistindo em mais uma transa antes de se aprontar para ir embora. Mas, no banheiro, enquanto escovava os dentes com o dedo coberto de pasta, deparou-se com algo que não notara na noite anterior. Rímel e lápis de sobrancelha. Bem que achara suas pestanas suspeitamente pontudas. E seria capaz de apostar que, além disso, ele provavelmente tingia o cabelo, passando de algum tom comum de castanho para o ébano atual. De repente, perdeu totalmente o tesão por ele. Wayne, no entanto, estava bastante entusiasmado com Lisa. Era criativa na cama e não estava louca por ele. — Vou ver você de novo? — perguntou ele, enquanto ela punha seu vestido branco. — Estou toda hora em Dublin. — Onde foi que deixei minha bolsa? — Ali. Vou ver você de novo? — Claro. — Lisa enfiou na bolsa uma touca de banho, quatro sabonetes, duas garrafinhas de gel para banho e três de loção corporal. — Quando? — No fim de agosto. Minha foto vai estar acima da carta da diretora na Garota. Cobrindo modestamente o peito com o lençol, Wayne pareceu tão vulnerável e confuso que Lisa capitulou. — Eu te ligo. — Liga? — perguntou ele, esperançoso. — Vou providenciar para que você receba seus honorários. E não vou lhe perder o respeito por levar essa vida. — Lisa sorriu, passando um pente nos cabelos e inspecionando seu reflexo no espelho. — Não, é claro que não vou ligar.

— Mas... mas por que você disse que ligaria, se não pretendia fazer isso? — E eu é que vou saber? — Ela revirou os olhos, gaiata. — Você é homem, foram vocês que inventaram a regra. Tchau! Saltitando pelas escadas e ganhando a rua, com uma deliciosa ardência nos cotovelos e joelhos do atrito com o carpete, Lisa fez sinal para um táxi. Era o tempo exato de correr em casa e trocar de roupa antes de ir para o trabalho. Estava se sentindo ótima. Radiante! Quem dizia que uma noitada com um completo desconhecido deixava a mulher se sentindo desvalorizada e deprimida, enganava-se redondamente. Ela não se sentia tão bem assim há séculos!

Lisa entrou na redação depois de sua noite de sexo num estado de espírito dinâmico. — Bom-dia, Jack — disse, jovial. — Bom-dia, Lisa. Ela fitou o rosto dele. Os olhos ainda opacos, a mesma expressão de sempre. Nenhum sinal óbvio de que se importara com o fato de ela sair da festa com Wayne Baker, mas ela vira sua cara na hora — ele ficara picado. Ela sabia. Mãos à obra! Lisa estava a mil e decidiu que queria cada detalhe da Garota em ordem já — para tanto, começou por encomendar uma prova da revista, que chamou de “boneco”. Pelo jeito, seria uma semana bastante tumultuada. — Quero todas as seções fixas — filmes, vídeos, horóscopo, saúde, as colunas — passadas para o computador. Em seguida a gente dá uma olhada e vê o que ainda falta. Exemplares de livros que deveriam sair em setembro chegavam aos magotes à redação para serem resenhados, e o mesmo acontecia com os vídeos e CDs. Em teoria, tudo que cai na rede é peixe, mas, na prática, de nada adiantava a rede estar cheia, se não era do tipo de coisa de que a pessoa em geral gostava. Houve uma breve porém acirrada disputa entre três pretendentes a um CD afrocelta, mas ninguém se interessou por nenhum dos outros. — Gary Barlow, acho que não — bufou Trix, atirando-o de volta, o plástico duro da caixa chocando-se com o do alto da pilha. — Enya, nem em mil anos. — Pleft. — David Bowie, não. — Pleft. — E quem diabos são os “Woebegone”? É, até que não são feios, o vocalista é bonito. VOU FICAR COM ESTE — berrou para o resto da redação. — Alguém se importa se eu ficar com este? — Ashling levantou um best-seller do gênero Os-matutos-também-amam. — Nem um pouco — Lisa soltou uma risada desdenhosa. Mas não era para Ashling, e sim para Boo, que vivia tão entediado, que lia qualquer coisa. A encarniçada Guerra dos Tipos se prolongou por toda a semana. Lisa e Gerry estavam presos num impasse furioso a propósito do visual da seção literária.

— É tudo tipo, não tem nenhum conteúdo — argumentava Gerry, exaltado. — Ninguém lê livros, porra! — gritava Lisa com ele. — É por isso que a gente tem que dar um visual sexy à seção! As coisas continuaram dando errado. Lisa detestou a ilustração encomendada para a coluna de Trix sobre uma garota comum, alegando que não era “sexy” o bastante. Gerry deletou um documento por engano e perdeu o trabalho de uma manhã inteira. E uma matéria que Mercedes escrevera sobre uma esteticista foi para a cesta de lixo de uma hora para a outra, porque alguém no salão da mulher afinara demais as sobrancelhas de Lisa durante seu horário de almoço na quarta. — Mas eu dei um duro louco nessa matéria — reclamou Mercedes. — Você não pode cortar ela assim. — Não vou cortar — rebateu Lisa, agressiva. — Vou derrubar. Já que quer trabalhar numa revista, será que não pode pelo menos aprender o jargão? A atmosfera estava tensa e o trabalho não parava de aumentar. Nenhum dos membros da equipe tinha menos de três projetos esperando sua atenção, a qualquer hora. Ashling estava digitando o Horóscopo Esotérico quando Lisa chapou uma braçada de produtos para os cabelos na sua mesa, dizendo: — Mil palavras. Faz uma coisa... — Já sei, sexy.

Procurando um tema para a matéria, Ashling vistoriou os produtos amontoados sobre a mesa. Havia uma musse para dar volume, um spray que prometia “levantar” as raízes e um xampu “encorpante” — a parafernália para as mulheres que querem cabelos cheios. Mas havia também uma máscara antifrizz, um complexo alisador e um condicionador leave-in — todos para as mulheres que querem o cabelo colado na cabeça. Como iria conciliar os dois grupos? Como sua matéria poderia ter um mínimo de coerência? Repassava mentalmente o assunto uma vez atrás da outra. Seria possível ter cabelo cheio e cabelo liso? Ou será que ela deveria tentar fingir que o cabelo precisa ser liso antes de poder ser cheio, assim inventando um novo conjunto de preocupações para as mulheres de cabelos cheios? Suspirou, partindo outro pedaço de seu muffin de chocolate branco. Nesse momento — talvez em conseqüência do pico de glicose —, teve uma idéia genial que, após o impasse, revestiu-se da grandiosidade da descoberta da lei da gravidade. — Eureca! — exclamou, zonza de alívio. — O que foi? — perguntou Jack Devine, que estava ao lado da copiadora. — Eu estava tão aflita! — Ashling fez um gesto indicando os tubos e latas. — Todos esses produtos, sem nenhum vínculo entre si. Mas todas as peças se encaixaram quando me dei conta de que mulheres diferentes querem coisas diferentes do cabelo. — Mulheres diferentes querem coisas diferentes do cabelo — repetiu Jack, bem-humorado. — Profundo. Isso deve ficar pau a pau com a teoria da relatividade de Einstein... O tempo não é um absoluto — debochou —, pois depende do brilho do cabelo do observador no espaço. E o espaço não é um absoluto, pois depende do brilho do cabelo do observador no tempo. Que trabalho mais louvável, este que realizamos aqui! Ashling hesitou, sem saber se devia se ofender ou não, mas Jack foi mais rápido: — Desculpe — pediu, humilde. — Só estava brincando.

— É isso que é preocupante — Trix soprou no ouvido de Ashling. — Já terminou de digitar a matéria de Jasper Ffrench? — perguntou Lisa a Trix, brusca. — Já. Lisa se aproximou e deu uma olhada por cima do ombro de Trix. — “Afrodisíaco” não se escreve com z, “ostra” só tem um s e é “aspargo”, não “asparguio”. Passa a usar o corretor ortográfico. — Nunca precisei usar o corretor ortográfico. — As coisas mudaram. A Garota é uma revista de classe. — Pensei que a gente fosse sexy — rebateu Trix, birrenta. — Dá para ser as duas coisas. Ei, Mercedes! Em que pé está sua matéria sobre aqueles sapatos Chanel “Uau”? Não era propriamente um trabalho instigante, mas necessário. E exaustivo. Ashling estava podre de cansada. Além dos dias longos e estressantes, roía-a também uma preocupação incessante em relação à maneira abrupta como as coisas haviam terminado na noite de segunda. Por que ela não fora para a cama com ele? Não era exatamente uma virgem se resguardando para a noite de núpcias, admitiu, abatida. Mas sempre resistira às mudanças, e já fazia muito tempo que dormira com outro homem que não Phelim. Soltando um sonoro “ai, ai!”, aceitou o fato de que a vida era difícil para as mulheres modernas. Antigamente, a regra era evitar dormir com o homem o máximo possível. Mas hoje a regra parecia ser a de que, se a mulher queria segurá-lo, o melhor era entregar a mercadoria o quanto antes. Marcus não ligou nem na noite de terça nem na de quarta e, apesar de Joy encher os ouvidos de Ashling com sua “regra dos três dias”, Ashling disse: — Mas e se ele nunca mais ligar?

— Vamos ser realistas: a hipótese existe, sim — os desígnios dos homens são insondáveis. Mas você com certeza não vai ter notícias dele hoje à noite. Faz alguma outra coisa, usa seu tempo de maneira construtiva — precisa lavar alguma coisa? Precisa ficar de olho na tinta de alguma coisa que pintou? Porque hoje é a grande noite. Ashling prometeu a si mesma que, se Marcus tornasse a ligar, dormiria com ele de qualquer maneira. Durante sua pausa no trabalho para comer o muffin de chocolate, ao folhear o jornal, sem muito ânimo, o nome dele subitamente saltara da folha, mencionado a propósito do sucesso dos humoristas irlandeses no Reino Unido. As letras dançavam vertiginosas diante de seus olhos — MaRcUs. Ele é meu namorado. Ashling olhava fixamente as pequenas letras negras, arrebatada por um portentoso e inefável ímpeto de orgulho. Que desapareceu um segundo depois. Ou não?

A súbita aceleração no ritmo de Lisa teve como conseqüência o fato de que por volta da quinta-feira já estava todo mundo com o pavio muito curto. Lisa estava brigando com a Sra. Morley quando Jack, parecendo transtornado, saiu como um bólido do escritório. — Sra. Morley, será que a senhora se importaria de reservar para mim hoje uma mesa em algum restaurante? Para duas pessoas. — No de sempre? — Toda vez que vinham contadores do escritório de Londres, Jack os levava, muito a contragosto, para comer carne malpassada e beber vinho tinto vermelho-sangue num clube com paredes forradas em carvalho e poltronas estofadas em couro. — Não, pelo amor de Deus! Em algum lugar decente, de que uma mulher gostaria. — Seu ar desamparado era encantador. Cheio de timidez, admitiu: — Mai e eu estamos completando seis meses de namoro.

Lisa não conseguiu ocultar sua decepção. Por que ele estava tratando Mai tão bem? Por que não haviam tido uma briga quando Mai aparecera na redação no começo da semana? Horrorizada, compreendeu que talvez esses episódios estivessem se tornando sistemáticos, e toda a despreocupação e confiança que a vinham sustentando desde que dormira com Wayne se evaporaram sem deixar vestígios. — Graças a Deus me lembrei do aniversário! — Jack sorriu. — Como foi que conseguiu? — perguntou a Sra. Morley. — Para ser franco, ela praticamente me disse — respondeu Jack, distraído. — Ah...! Como é mesmo o nome daquele restaurante a que você me levou, Lisa? Provavelmente ela gostaria de lá. — Halo — disse Lisa, mas sua voz saiu tão estrangulada que Jack disse: — Como? Diz de novo. — Halo — repetiu ela, quase imperceptivelmente mais alto. — Exatamente! — Jack exultou. — Cheio de babacas! Comida metida a besta por preços exorbitantes, ela vai adorar. Será que você pode me dar o número de lá, para eu reservar uma mesa? — Não, senhor — A Sra. Morley se tornou mais buldoguesca do que nunca: — Esse é o meu trabalho. Literalmente trêmula de ódio, Lisa se retirou, torcendo para que estivesse muito em cima da hora para arranjar uma mesa. Meia hora depois Mai chegou, parecendo a Barbie Asiática. Quando Lisa a viu, sua raiva se transformou em profunda depressão. — Tailleur bonito. — Trix puxou o saco de Mai. — Obrigada. — Dunnes? — Hum, é. Mal passara a guardar uma reserva que não demonstrara na tarde da champanhota. Por algum motivo, a dedicação de Jack mudara as coisas. Comportava-se de maneira gentil e simpática, mas deixando muito claro que era a namorada do chefe.

A Sra. Morley fez o aceno de sempre com a cabeça para Mai e ela rebolou seus quadris inexistentes em direção ao escritório de Jack. A porta se fechou com firmeza às suas costas e todos na redação suspenderam suas atividades, espichando as orelhas na esperança, no desejo, na ânsia de um bate-boca. Porém, segundos depois Jack e Mai saíram de mãos dadas, com ar vaidoso e, sob o cemicírculo de olhares ávidos, rumaram para a porta e saíram. Mesmo depois que ficou claro que nada iria acontecer, reinou o silêncio. — Eu gostava mais de como era antes — lamuriou-se Trix, expressando os sentimentos de todos os presentes. Lisa, já de saída para seu almoço de adulação com Marcus Valentine, tentou engolir o ciúme, a mágoa e... a confusão. Tinha certeza de que não imaginara o interesse de Jack por ela. Então, qual era a dele? Não podia compreender. Uma hora era uma série ininterrupta de discussões aos berros com Mai, outra hora os pombinhos estavam no Céu. Por quê? Por quê? As perguntas vãs e irrespondíveis deram voltas em sua cabeça durante todo o percurso até o Mao. Apenas dez minutos depois, Marcus chegou. Alto, de corpo bem-feito, mas... ugh, não! Como é que Ashling conseguia? Lisa sapecou um sorriso acolhedor no rosto, mas, ao contrário do que sempre acontecia, achou extremamente difícil esbanjar seu charme. — Só almoço, tá legal? — disse Marcus, quase agressivo, ao se jogar no assento em frente a ela. — Ou seja, vamos aproveitar a comida, sem você ficar no meu pé para fazer a coluna. — Tudo bem. — Lisa tratou rapidamente de curvar os lábios para cima, mas, de repente, sentiu seu moral se arrastar pelo fundo do mar. Esse emprego podia ser muito humilhante. A pessoa tinha que ser de uma agressividade indigna e ter um couro de rinoceronte.

De repente, deixou de se importar que ele não fizesse a coluna. Que diferença isso fazia? Era só para uma revista feminina burra. Com exceção de um ou outro comentário superficial sobre seu gosto por temperos fortes, deixou um hiato soturno se abrir na conversa. Ironicamente, quão mais apática se mostrava, mais ele ia ficando comunicativo e, no meio do prato principal, a ficha finalmente caiu. A partir daí, ela começou a explorar sua reticência. — E aí, que tipo de artigo você tem em mente para mim? — perguntou Marcus. Ela sacudiu a cabeça, agitando o garfo: — Aproveita o seu almoço. — Tudo bem. — Mas ele voltou ao assunto momentos depois: — Quantas palavras você tem em mente? — Por volta de mil, mas esquece. — E você apurou sobre as chances de ser publicado em outras revistas do grupo? — Uma de nossas publicações na Austrália adoraria publicá-lo, e também a Cara, nossa revista masculina na Inglaterra. — E, desfechando o golpe final: — Mas, se você não quer fazer a coluna, Marcus, então não quer e acabou-se. — Sorriu com ar de lástima para ele. — Nós arranjamos outra pessoa. Não vai chegar nem aos seus pés, mas... — Me diz o quanto eu sou fantástico e eu faço — pediu ele, com um sorriso. Sem pestanejar, Lisa soltou: — Você é o cara mais engraçado que eu vi nesses últimos três anos. Seu humor é uma mescla única de inocência e consciência. Seu vínculo com a platéia é firme como uma rocha e seu timing é impecável. Assina aqui. — Puxou um contrato da bolsa e o empurrou pela mesa para ele. — Mais um pouco — pediu ele. — Embora seu número tenha traços de Tony Hancock e... — Droga! Não conseguia se lembrar de mais ninguém. — Woody Allen? — ajudou ele. — Peter Cook? — Woody Allen, Peter Cook e Groucho Marx — deu um sorriso cúmplice para ele. Era capaz de apostar que ele sabia de cor todas as resenhas que haviam escrito sobre seu número —, seu estilo é inegavelmente vanguardista.

E esperou que fosse o bastante. Porque, se ele pedisse mais uma justificativa para sua graça, a única que ela seria capaz de dar era “Você tem cara de pateta”. Ao voltar, correu para a mesa de Ashling e disse, com euforia cruel: — Adivinha! Marcus Valentine concordou em escrever uma coluna mensal. — É mesmo? — gaguejou Ashling. Ele parecera tão contrário à idéia na noite de segunda. — É — disse Lisa, cheia de si. — Concordou. Quarenta minutos depois, fumegando, Ashling finalmente atinou qual deveria ter sido sua resposta para Lisa. Deveria ter dito tranqüilamente: “Marcus vai fazer a coluna? Só pode ser por causa da chupada celestial que eu dei nele ontem à noite.” Por que nunca conseguia pensar nessas coisas na hora? Por que sempre tinha que ser séculos depois?

Para euforia e alívio de Ashling, Marcus lhe ligou na quinta-feira, e já abriu a conversa perguntando: — Vai estar ocupada sábado à noite? Ela sabia que devia provocá-lo, torturá-lo, enrolá-lo durante séculos, bancar a difícil, fazê-lo suar a camisa. — Não — respondeu. — Está certo, então, vou te levar para jantar fora. Jantar. Numa noite de sábado — que combinação expressiva. Significava que ele não estava puto da vida por ela não ter dormido com ele. E também, é claro, que dessa vez era melhor mesmo dormir com ele. Estava louca de expectativa. E um pouco de nervosismo, também, mas nesse ela daria um basta em dois tempos. Cautelosa, Ashling reconhecia que as coisas estavam indo bem. Marcus a tratava bem e, embora ela fosse atormentada pelo medo, como não poderia deixar de ser, não era por causa de nada que ele houvesse feito. Desde que pela primeira vez vira Marcus atuando, um lento processo de regeneração começara a modificar a paisagem interior de Ashling. Depois de Phelim, ela se tornara avessa aos romances, mais interessada em se recuperar dele do que em substituí-lo. Mas sempre pretendera voltar à ativa assim que se sentisse pronta. E o telefonema de Marcus fizera aflorarem pequenos brotos de esperança que lhe diziam que talvez a hora houvesse chegado. Finalmente ela despertava de seu estado de hibernação. O curioso era que a hibernação tinha suas vantagens. Uma vez desperta, Ashling fora subitamente tomada pela urgência inspirada por sua idade, o tiquetaque de seu relógio biológico e toda a indefectível angústia das mulheres solteiras de trinta e tantos anos. A síndrome do Merda!-tenho-trinta-e-um-anos-e-ainda-não-me-casei!. Quando Joy lhe perguntou o que iria fazer no sábado à noite, Ashling decidiu dar uma experimentadinha na sua nova vida, para ver se cabia. — Meu namorado vai me levar para jantar fora.

— Seu namorado? Ah, você quer dizer Marcus Valentine? E ele vai te levar para jantar fora? — Joy parecia ter ficado com inveja. — A única coisa que os homens querem é ficar bêbados comigo. Nunca me levam para comer fora. — Calou-se, e Ashling soube que vinha baixaria por aí. Não deu outra: — No único lugar para onde meu namorado me leva quem me come é ele, e a única coisa que entra na minha boca é o pinto dele — disse, sombria. — Você não entende que se Marcus vai te levar para jantar fora num sábado à noite é porque as intenções dele são sérias? Sérias — repetiu, enfática. — Chega de desculpas como da última vez, dizendo que tinha que trabalhar no dia seguinte. — Eu sei. E os pêlos já começaram a crescer nas minhas pernas. Ashling já sabia exatamente o que iria vestir. Cada detalhe, até sua melhor lingerie. Estava tudo inteiramente sob controle. De repente, tomou um ódio mortal de seu batom. Sentia-se como se usasse a mesma cor há anos, comprando a mesma quando o batom acabava. E tudo porque ficava bem nela! Que cretinice! Uma jornalista de revista feminina que se prezasse trocava de batom como quem troca de homem — rápido. Precisava de um novo batom para redefini-la. Era imperioso que encontrasse o batom certo e, enquanto isso não aconteceu, teve a sensação de que estava tudo fora dos eixos. Passou a manhã de sábado numa busca obsessiva, mas nada lhe ficava bem. Ou o batom era rosa-choque demais, ou laranja demais, ou glacé demais, ou brilhante demais, ou escuro demais, ou claro demais, ou cintilante demais. Tentando fingir que era outra pessoa, experimentou um vermelho-escuro vamp e se olhou no espelho. Não! Ficou parecendo alguém que tivesse passado dezesseis horas na gandaia, bebendo vinho tinto, que se congelara nos lábios. Arriscou um sorriso e ficou parecida com Drácula. A vendedora voltou correndo: — Esse ficou fabuloso em você!

Ashling conseguiu se esquivar, e a busca prosseguiu. As costas de sua mão, todas riscadas de listras vermelhas, pareciam uma ferida aberta. E então, justamente quando começava a perder as esperanças, ela o encontrou. O batom perfeito. Foi amor à primeira vista e Ashling soube, com uma convicção profunda e exultante, que agora tudo ficaria bem. Como Marcus a apanharia às oito, ela se serviu de um copo de vinho e deu início aos preparativos. Fazia muito tempo que não jantava com um homem. Ela e Phelim tinham uma rotina preguiçosa, acomodada de comer comida pronta, e só iam a restaurantes quando se cansavam de pizzas e curries em domicílio. Comer fora era um exercício estritamente utilitário de nutrição, não de sedução — quando um queria levar o outro para a cama, os métodos empregados eram outros. Quando Phelim estava a fim, dizia: “Tchaca-tchaca na butchaca, alguém está servido?” E, quando era a vez de Ashling instigá-lo, ela ordenava: “Violenta-me!” E como seria o sexo com Marcus? Um frêmito de terror e excitação acendeu seus terminais nervosos, e ela tateou às cegas seu maço de cigarros. Joy não poderia ter escolhido melhor hora para chegar. Elogiou as roupas de Ashling, puxou o cós de sua calça jeans, admirou o fio-dental que escolhera e perguntou: — Lembrou de passar condicionador nos pêlos pubianos? Ashling estremeceu e Joy fez uma expressão magoada. — Essas coisas importam! E aí, lembrou? Ashling fez que sim. — Boa menina. Há quanto tempo você não transa? Desde que Phelim foi para Oz? — Desde que voltou para o casamento do irmão. — E você vai mesmo para a cama com o Sr. Marcus Valentine? — Por que outro motivo eu passaria condicionador nos pêlos pubianos? — A expectativa deixava Ashling irascível. — Excelente! Quer dizer então que gosta dele? Ashling refletiu.

— Existe uma grande probabilidade de eu vir a gostar dele. Nós nos damos bem e ele é boa-pinta, mas não boa-pinta demais. Gente como eu nunca pesca modelos, atores ou o tipo de homem de quem as pessoas dizem “Caramba, aquele cara é muito bonito”, sabe como? — Você está me assustando. Que mais? — Nós gostamos dos mesmos filmes. — Que são...? — Os falados em inglês. Phelim demonstrava uma irritante tendência a se considerar um intelectual, e vivia falando em ir ver filmes estrangeiros legendados. Nunca chegava de fato a ir, mas aborrecia Ashling lendo resenhas em voz alta e sugerindo a hipótese de irem. — Marcus é só um cara comum — explicou Ashling. — Ele não pratica bungee jumping, nem protesta contra as rodovias ou qualquer coisa doida desse tipo. Não tem nenhum hábito insano, e eu gosto disso num homem. — Que mais? — Eu gosto... — De repente, Ashling se voltou para Joy e disse, feroz: — Se algum dia você contar isso para alguém, eu te mato. — Juro que não conto — mentiu Joy. — Eu gosto do fato de ele ser meio famoso. De ser mencionado nos jornais e de as pessoas conhecerem ele. Tá, já sei, isso faz de mim uma pessoa superficial, mas estou sendo honesta com você. — Como vão as sardas dele? — Sardentas. — Seguiu-se uma pausa. — Olha, eu mesma tenho uma ou duas — defendeu-se Ashling. — Não é nenhuma vergonha ter sardas. — Só perguntei... — Olha o Ted na porta. Abre lá para mim, tá? Ted entrou no quarto, obviamente empolgado. — Olhem só para isso — gritou, desenrolando um pôster. — É você! — declarou Ashling. Era uma foto do rosto de Ted montada no corpo de uma coruja, com as palavras “Ted Mullins, o Encorujado” atravessadas no alto. — Uau, ficou fantástico! — Vou mandar imprimir, mas o que vocês acham... — Desenrolou outro pôster e exibiu os dois suspensos entre os dedos: — Fundo vermelho ou fundo azul? — Vermelho! — disse Joy. — Azul! — disse Ashling. — Não sei — cismou Ted. — Clodagh disse...

— Que Clodagh? — atalhou-o Ashling, brusca. — Clodagh de quê? Minha amiga Clodagh? — É, dei um pulo na casa dela... — Para quê? — Para apanhar meu paletó — defendeu-se Ted. — Por que o drama? Esqueci meu paletó lá quando a gente ficou com as crianças, isso não é nenhum crime. Ashling não sabia explicar seu ressentimento. Não teve opção senão murmurar: — Tá. Desculpe. Fez-se um silêncio tenso. — Me passa meu batom novo, por favor — pediu Ashling, brusca. Retirou-o da caixa e torceu-lhe a base, projetando para fora seu dedo ceroso, brilhante e novo. Lindo! Mas, enquanto o admirava, foi subitamente atingida por uma consciência muito desagradável. — Não acredito — arquejou. Correu a inspecionar a base do batom, pôs-se a revirar atabalhoadamente a nécessaire de maquiagem, desencavou outro batom e verificou sua base também. — Porra, não acredito! — exclamou, desesperada. — O quê?! — Comprei o mesmo batom. Passei a manhã inteira procurando um batom novo e acabei comprando exatamente o que já tinha. Num rompante exaltado de Sou um fracasso completo, já estava pronta para se atirar na cama, quando a campainha tocou. O despertador na penteadeira marcava oito e meia — o que significava que eram oito e vinte. — Acho bom não ser Marcus Valentine — disse, em tom ameaçador. — Que tipo de homem chega cedo? — perguntou Joy. — Um cavalheiro — rebateu Ashling, sem a menor convicção. — Um maluco — disse Joy, mais alto do que pretendera. — Já para fora, os dois. — Não deixa de usar preservativo — sussurrou Joy, para em seguida sair com Ted. Segundos depois Marcus apareceu no alto da escada, todo sorrisos. — Oi — disse Ashling. — Estou quase pronta. Quer tomar uma cerveja ou alguma outra coisa? — Uma xícara de chá. Mas eu mesmo faço, não se preocupa comigo. Enquanto ela terminava de se arrumar, apressada, ouviu-o abrindo armários e gavetas na cozinha. — Apartamento bonitinho — disse-lhe ele, de longe.

Ashling teria preferido que ficasse quieto. Dar respostas espirituosas enquanto passava batom não era seu forte. — Pequeno, mas perfeito. — Como a dona. Estava longe de ser verdade, pensou Ashling, mas fora muita gentileza da parte dele dizer aquilo. E o galanteio levantou seu astral. Animou-se, perdeu a vergonha do batom, escovou os cabelos e foi em frente para receber a admiração dele. Antes de saírem, Marcus fez questão de lavar sua xícara. — Deixa aí — disse Ashling, quando ele a enfiou debaixo da água corrente. — Ah, não. — Pôs a xícara no escorredor de pratos e se virou para ela com um sorriso: — Minha mãe me treinou bem. E ela voltou a experimentar a mesma sensação. Mais brotos pondo suas cabecinhas de fora. O lugar aonde ele a levou era aconchegante, imerso numa penumbra rosada. Sentados a uma mesa de canto, com os joelhos se encostando de vez em quando, beberam um vinho branco tão seco que ficaram com a sensação de estarem com ventosas nos dentes, enquanto admiravam um ao outro, sua pele viçosa e perfeita à luz de velas. — Taí, gostei da sua... — Ele fez um gesto indicando sua regata. — Nunca sei os nomes certos das roupas das mulheres. Camiseta? Algo me diz que seria um delito grave chamar essa peça de camiseta. Como é que se deve chamar? De top? De blusa? De camisa? Seja lá qual for o nome, eu gostei. — O nome é regata. — Então o que é uma blusa? Ashling o apresentou às várias opções. — Você nunca, jamais, em tempo algum deve dizer “blusa” para qualquer mulher com menos de sessenta anos — disse, séria. — Até pode dizer a uma mulher que a camiseta dela é bonita, mas só se estiver se referindo a um top de malha, não se for uma camisa-de-meia, daquelas de estivador. Para ser franca, se for uma camisa-de-meia de estivador, aconselho você a ir embora imediatamente. — Entendi. — Marcus assentiu. — Caramba, é um campo minado. — Espera aí. — A idéia acabara de lhe ocorrer. — Você estava colhendo material para o seu número? — Eu faria isso? — Ele sorriu.

A comida era boa, a conversa rolava espontânea, mas Ashling tinha a sensação de que tudo não passava de uma espécie de prelúdio. Um trailer. Com a atração principal ainda por vir. Quando a conta chegou, ela fez menção, sem muito ânimo, de rachá-la com ele. — Não — insistiu Marcus. — Não aceito. Porque pretende aceitar outra coisa mais tarde? Já na rua, ele perguntou: —E agora? Ashling deu de ombros, sem conseguir conter uma risadinha. Estava na cara, não estava? — No meu apartamento? — ele sugeriu, baixinho. Beijou Ashling no táxi. E de novo no vestíbulo de seu apartamento. Foi muito bom, mas, quando se separaram, ela não pôde deixar de olhar ao redor, vistoriando o lugar. Sentia-se atraída por ele, mas também estava interessada em ver onde ele morava, em descobrir mais sobre ele. Era um quarto-e-sala situado numa quadra moderna, e o fator grunge era surpreendentemente baixo. — Ué, seu apartamento não tem um cheiro esquisito! — Já te disse, minha mãe me treinou bem. Ela se voltou em direção à sala. — Olha só quantos vídeos você tem! — exclamou, admirada. Parecia haver centenas deles nas estantes que recobriam as paredes. — A gente pode assistir a alguma coisa, se você quiser — propôs ele. Ela quis. Dividida entre a atração por ele e o nervosismo infantil, ficou feliz pelo adiamento. — Escolhe um — ele a deixou à vontade. Porém, quando ela se pôs a vistoriar as estantes, aos poucos foi se dando conta de algo estranho: Monty Python, Blackadder, Lenny Bruce, o Gordo e o Magro, Padre Ted, Mr. Bean, os Irmãos Marx, Eddie Murphy — todos os vídeos eram de comédias.

Ficou confusa. No seu primeiro encontro, haviam tido uma animada discussão sobre seus filmes favoritos. Ele alegara apreciar uma grande variedade de gêneros, mas ninguém diria, olhando para suas estantes. Por fim, ela se decidiu por A Vida de Brian. — Uma excelente escolha, madame, se me permite dizê-lo! — Buscou na cozinha uma garrafa de vinho branco para ela e uma lata de cerveja para si mesmo, e arriscaram aconchegar-se um contra o outro em frente à tevê. Dez minutos depois de começado o filme, Marcus encostou o indicador no ombro nu de Ashling, pondo-se a alisá-lo lentamente. — Asssh-liiing — entoou, com uma intensidade que fez o estômago dela dar um salto. Quase com medo, olhou depressa para ele. Ele tinha os olhos fixos na tela. — Presta atenção agora — pediu, no mesmo tom de voz baixo. — Está chegando uma das melhores cenas de comédia de todos os tempos. Obediente, embora um pouco decepcionada, ela prestou atenção e, quando Marcus se acabou de rir, ela não pôde deixar de rir também. Em seguida ele girou o corpo em direção a ela e perguntou, com voz de menininho: — Você se importa, Ashling? — De quê?! — De dormir com você? — Se a gente vir essa cena de novo. — Ah! Claro que não. Quando seu pulso voltou ao normal, ela percebeu que ficara comovida por ele querer repartir com ela as coisas que considerava importantes. — E aí, eles ficaram satisfeitos por eu fazer a coluna? — perguntou ele, algum tempo depois. — Ah, eufóricos! — Aquela Lisa é dura na queda, hein? — Muito persuasiva. — Ashling não sabia até que ponto seria inteligente começar a baixar o pau em Lisa. — Mas o mérito por isso é todo seu. — Mas eu não fiz nada... Marcus lançou-lhe um olhar sugestivo: — Você pode dizer a eles que me convenceu quando a gente estava na cama. A intenção explícita no olhar dele fez com que ela sentisse um aperto na garganta. Engoliu em seco, como se estivesse deglutindo uma ostra. — Mas isso não seria verdade — disse, por fim.

Seguiu-se uma longa pausa, sem que ele tirasse um segundo os olhos dela. — A gente poderia fazer com que se tornasse verdade. O alto astral de Ashling arrefecera. Desaparecera, na verdade. Parecia cedo demais para ir para a cama com ele, mas, por outro lado, resistir pareceria antiquado. Simplesmente não conseguia entender a timidez ridícula que a paralisava — afinal, tinha trinta e um anos de idade, já dormira com um monte de homens. — Vem. — Ele se levantou e puxou-a pela mão com delicadeza. Algo dizia a Ashling que ele não aceitaria um não como resposta. — Mas o filme... — Já vi antes. Não brinca. A timidez lutava com a curiosidade, a atração duelava com o medo da intimidade. Queria e não queria dormir com ele, mas a necessidade urgente dele era instigante. Quando viu, já estava de pé. O beijo que se seguiu ajudou a convencê-la e, pouco depois, estava no quarto dele. Não foi uma dança fluida, em que a falta de jeito desaparece e as roupas vão caindo como se os amantes houvessem ensaiado. Ele não conseguira decifrar o segredo do fecho de seu sutiã e, quando ela viu como sua ereção parecia enorme em meio à estreiteza dos quadris, foi obrigada a desviar os olhos. Tremia como uma virgem aterrorizada. — Que foi? — Estou com vergonha. — Então não é por minha causa? — Ah, não. — A vulnerabilidade dele impeliu-a a se empenhar mais. Puxou-o contra si, o que surtiu o duplo efeito de agradar a ele e de permitir que ela não tivesse mais de ver a ereção brotando-lhe do ninho de pêlos.

Os lençóis eram limpos, as velas um toque romântico inesperado, ele se mostrou solícito e atencioso, sem fazer qualquer menção à sua ausência de cintura, mas ela foi obrigada a admitir que não, não se sentira inteiramente transportada. No entanto, ele foi pródigo em elogios, o que agradou a ela. Certamente não fora a pior experiência sexual que já tivera. E o melhor sexo sempre fora algo levemente irreal, geralmente acontecendo nas ocasiões em que fazia as pazes com Phelim, quando a felicidade da reconciliação acrescentava um tempero extra a uma experiência já harmoniosa. Ela já estava bem crescidinha para dar corda à expectativa fantasiosa de que a Terra tremeria. De mais a mais, da primeira vez que fizera sexo com Phelim, o mundo também não pegara fogo.

Na manhã de domingo, Clodagh acordou precariamente empoleirada nos vinte centímetros da beira da cama. Fora Craig quem a empurrara para o confim do móvel, mas também poderia muito bem ter sido Molly, ou os dois. Já nem se lembrava da última vez em que ela e Dylan haviam dormido sem companhia, e a essa altura já adquirira tanta prática em dormir encarapitada naquela borda que estava convicta de que poderia passar uma ótima noite de sono à beira de um precipício. Algo lhe dizia que ainda era muito cedo. Cedo tipo cinco da manhã. O sol já nascera, e a fresta entre as cortinas de linho cru brilhava, formando uma linha de luz num tom cítrico de branco, mas ela sabia que era cedo demais para estar acordada. As gaivotas invisíveis do lado de lá da janela soltavam seus gritos agudos e chorosos, parecendo bebês de um filme de terror. Ao lado de Craig, Dylan dormia a sono solto, seus braços e pernas espalhados por toda a cama numa barafunda aleatória, seu nariz silvando ritmicamente ao que o ar entrava e saía, cada hausto soprando em pé os cabelos da testa. Ela estava profundamente abatida. Tivera uma semana ruim. Depois do desastre na agência de empregos, Ashling a incentivara a ouvir uma segunda opinião. Ela tornou a vestir seu tailleur caro e fez outra tentativa. E foi tratada na segunda agência de empregos quase com o mesmo desprezo com que fora tratada na primeira. No entanto, para sua enorme surpresa, a terceira se propôs a enviá-la para um teste de dois dias, fazendo chá e atendendo o telefone numa revenda de radiadores. — O salário é... modesto — admitira o agenciador —, mas, para alguém como você, que está fora do mercado há tanto tempo, é um bom começo. Tenho certeza de que eles vão gostar de você, portanto, vai nessa. Boa sorte!

— Ah. Obrigada. — Assim que Clodagh viu que poderia ter um emprego, deixou de querê-lo. Que graça tinha fazer chá e atender o telefone? Fazia isso em casa o tempo todo. E numa revenda de radiadores? A coisa tinha um ar tão sacal. Por algum estranho motivo, conseguir um emprego e então descobrir que não o queria era quase pior do que ouvir que não estava à altura de nenhum. Embora não fosse muito dada a momentos de introspecção, teve a vaga consciência de que não estava de fato à procura de um emprego — certamente não precisava do dinheiro —, e sim de glamour e excitação. E a realidade era que não iria encontrá-los numa revenda de radiadores. Assim sendo, ligou para o Sr. Agenciador e inventou que não poderia começar, porque Craig estava com sarampo. As crianças tinham suas utilidades, refletiu. Quando surgia alguma coisa que a mãe não quisesse fazer, podia dizer que estavam com febre e que ela tinha medo de que fosse meningite. Isso já a eximira de ter que comparecer à festa de Natal na firma de Dylan no ano passado. E no ano retrasado. E tinha a séria intenção de usar a mesma desculpa neste ano também. Remexeu-se, desconfortável. Alguma coisa pontuda espetava suas costas. Uma investigação revelou tratar-se do boneco Buzz Lightyear. Do lado de lá da janela as gaivotas voltaram a ulular, seus feios gritos de abandono ecoando dentro dela. Sentia-se presa, encurralada, bloqueada. Como se estivesse trancada dentro de uma pequena caixa escura, sem ar, que se tornava cada vez mais estreita — algo que não conseguia entender. Sempre fora feliz com o que tinha. Sua vida se desenrolara exatamente como deveria e seu progresso sempre fora positivo. Então, sem aviso, parecera ter se detido. Não ia mais a parte alguma, não havia mais nada pelo que ansiar. Uma idéia horrível se insinuou em sua mente: será que iria ser assim para sempre?

De repente, percebeu que os silvos de Dylan haviam se tornado muito altos. Sucumbindo a um ímpeto de intolerância, explodiu: — Pára de ressonar! — Deu um tranco na cabeça do marido, mudando o ângulo de sua traquéia. — Desculpe — murmurou ele, ainda dormindo. Ela invejava seu sono descomplicado. Prostrada no colchão, ficou entreouvindo o som das gaivotas, até Molly subir na cama ao seu lado e lhe dar uma bifa na cara. Hora de acordar. Uma apendicectomia de emergência, pensou, sonhadora. Ou um pequeno derrame. Nada sério demais, mas que implicasse uma longa estada num hospital com um horário de visitas muito restrito. Depois do banho de chuveiro, enxugou-se e se dirigiu bruscamente a Dylan, que se sentava, bocejando, na beira da cama: — Não dá Frosties para o Craig, não, que ele passou a semana inteira pedindo e agora não quer nem olhar para eles. Hoje vão inaugurar um novo grupo de atividades no fim da rua, fomos todos convidados. Não sei se devo ou não traumatizar a Molly com uma mudança, mas a popularidade dela com a bruxa velha do atual anda tão em baixa, que talvez fosse uma boa idéia... — Antigamente a gente falava de outras coisas, além das crianças — disse Dylan, com um tom de voz estranho. — Que tipo? — perguntou Clodagh, na defensiva. — Sei lá. Nada... qualquer coisa. Músicas, filmes, gente... — E o que é que você queria? — rebateu ela, zangada. — As crianças são as únicas pessoas que vejo, não tenho escolha. Mas, já que estamos falando em interesses paralelos, andei pensando em fazer uma reforma. — Uma reforma onde? — perguntou ele, tenso. — Aqui, no quarto. — Jogou na pele um pouco de loção corporal e massageou-a, apressada. — Mas só tem um ano que a gente reformou este quarto. — Tem no mínimo um ano e meio. — Mas... Clodagh se pôs a vestir sua lingerie. — Você esqueceu de passar aqui. — Dylan estendeu a mão para massagear uma bolota de creme na parte de trás de sua coxa.

— Tira a mão! — ordenou ela, feroz, dando um safanão em seu braço. O toque da mão de Dylan em sua pele a enfurecera. — Quer se acalmar? — gritou ele. — Que é que há com você? Tarde demais, a reação dele a assustou. Não devia ter feito o que fizera. A expressão de Dylan a assustou mais ainda — raiva e transtorno mesclados com mágoa. — Desculpe, só estou cansada — ela conseguiu dizer. — Desculpe. Será que dá para começar a vestir a Molly? Tentar vestir Molly quando ela não queria ser vestida era o mesmo que enfiar um polvo se debatendo numa bolsa de malha-arrastão. — Não! — gritava, contorcendo-se de raiva. — Clodagh, dá uma mão aqui para a gente — chamou Dylan, tentando agarrar um braço que se agitava, para enfiá-lo dentro da respectiva manga. — Mamãe, nããããããão! Enquanto Clodagh imobilizava Molly, Dylan se dirigia a ela com uma vozinha cantada e paciente. Bobagens paliativas sobre como Molly ficaria linda quando vestisse seu short e sua camiseta e como as cores eram bonitas. Quando o último sapato foi calçado no pé que distribuía chutes a esmo, Dylan deu um sorriso vitorioso para Clodagh: — Missão cumprida. Obrigado. Quando Dylan lhe dissera que eles só conversavam sobre as crianças, ela entrara em pânico. Mas, se fosse ser honesta, teria de admitir que, em parte, era verdade. Serviam juntos como dois soldados, lado a lado, operários em prol do bem-estar infantil — quase colegas. E o que havia de errado nisso?, pensou, tentando justificar a situação. Tinham dois filhos, o que mais se poderia esperar que fizessem? A inauguração do grupo de atividades foi bastante concorrida. Assim que Clodagh empurrou — não sem um leve frêmito de desagrado — as portas de vaivém com um polichinelo pintado em cores berrantes, a primeira pessoa com quem topou foi Deirdre Bullock, que era faixa-preta em Maternidade. Sua filha, Solas Bullock, era a maior criança prodígio do mundo. — Você não vai acreditar! — exclamou Deirdre. — Solas agora está falando em frases completas. — Fez uma pequena pausa nefasta antes de indagar: — Molly também? — Solas era três meses mais nova do que Molly. — Não — respondeu Clodagh, para em seguida acrescentar, displicente: — Molly prefere se comunicar conosco por escrito. Provavelmente nunca mais seria convidada para uma festa beneficente, mas valera a pena, pela cara horrorizada de Deirdre. Na segunda-feira, Clodagh teve uma ótima idéia para fugir da depressão: sair à noite com Ashling. Encheriam a cara como nos velhos tempos, talvez até mesmo fossem a um clube, e ela teria uma oportunidade de usar algumas de suas roupas novas maravilhosas. Talvez as pantalonas e a túnica — mas com que sapatos se usava esse tipo de conjunto?, perguntou-se. Desconfiava que talvez o complemento obrigatório fossem os saltos plataforma pesados, mas será que conseguiria usá-los sem se sentir uma perfeita idiota? Era difícil saber. Fazia muito tempo que não usava as roupas da moda. Telefonou para Ashling no trabalho, toda excitada. — Aqui é Ashling Kennedy. — Sou eu, Clodagh. Ah... — Acabara de se lembrar: — ...o Ted apareceu aqui na sexta, para apanhar o paletó. — Ele falou. — Ele é legal, não é? Sempre achei que fosse meio bobo, mas depois que a gente conhece ele melhor, até que não é tão mau assim, não é mesmo? — Hum. — Ele me contou que é humorista. Me mostrou os pôsteres do show. — Ah. — Eu adoraria ver o show dele. Ele disse que me avisaria da próxima vez que desse um, mas será que você podia me dar um toque? — Hum, tudo bem.

— Mas e aí, que tal a gente sair hoje à noite e tomar uns drinques? Encher a cara, ir dançar, de repente. Dylan pode ficar com as crianças. — Não posso — escusou-se Ashling. — Vou sair com Marcus. Meu novo namorado — explicou. — Seu o quê? — Namorado. — A vaidade na voz de Ashling sobressaltou Clodagh. — A gente só se viu duas vezes, mas ontem passou o dia inteiro na cama, e ele quer me ver de novo hoje à noite. Abriu-se uma lacuna no tempo, lançando uma onda de nostalgia sobre Clodagh. Reviveu a euforia vertiginosa do primeiro amor com uma nitidez surpreendente. Então, da mesma maneira súbita como viera, a sensação se foi, deixando no seu rastro uma ânsia inexplicável. — Não dá para cancelar? — tentou. — Não — disse Ashling, constrangida. — Eu prometi que daria uma mão no seu número. Ele é humorista, entende... — Outro! — E precisa de mim para testar umas piadas novas. — E que tal amanhã à noite? — Tenho aula de salsa. — E quarta à noite? — Tenho que ir à inauguração de um novo restaurante. — Você é que tem sorte. — O contraste entre Clodagh comparecendo à inauguração de um novo grupo de atividades e Ashling comparecendo à inauguração de um novo restaurante não lhe passou despercebido. — Como é que vai Dylan? Clodagh soltou um muxoxo de desdém: — Trabalhando dia e noite. Vai viajar quinta à noite. De novo! Para ir a mais uma merda de reunião. Não quer dar um pulo aqui? A gente podia tomar um vinhozinho e comer alguma coisa, que tal? — Claro. Uma noite em casa, tipo Clube da Luluzinha. — Pelo visto, é o único tipo de noite que eu tenho. Mas, e aí, não vai se esquecer de me avisar do show do Ted?

Uma semana se passou. E outra, e mais outra. O ritmo de trabalho continuava frenético. Embora todos estivessem trabalhando furiosamente na edição de setembro, Lisa já tinha começado a traçar as diretrizes para as edições de outubro, novembro e até mesmo dezembro. — Mas ainda é junho — reclamou Trix. — Três de junho, e no mundo real as revistas têm um prazo de seis meses para fechar a edição — tornou Lisa, altiva. Havia uma montanha de obstáculos. Embora tivesse dado literalmente centenas de telefonemas para dezenas de agentes, Lisa não conseguira fisgar uma só celebridade para dar o depoimento que tinha em mente. Era enlouquecedor de tão frustrante. Tinha a amarga consciência de que isso não aconteceria se ainda trabalhasse na Femme. E, como se já não fosse o bastante, um hotel em Galway ficara sabendo que seu nome seria incluído na matéria sobre quartos sexy e ameaçara entrar na justiça. Seu moral levantou brevemente quando a colaboradora Corina conseguiu uma longa entrevista com Conal Devlin, o belo ator irlandês, com suas marcantes maçãs do rosto e barba por fazer. Em seguida seu moral tornou a despencar quando ele apareceu na edição de julho da Irish Tatler abrindo o jogo sobre os abusos que sofrera na infância — uma informação que deveria ter dado a Corina em caráter exclusivo. — Perdemos esse furo! — Lisa ficou uma fera. — Aquele cachorro! Ninguém trata minha revista como se fosse uma qualquer! — Não apenas teria que derrubar a matéria, como mandar reescrever a seção de cinema, pois trazia uma resenha altamente elogiosa sobre seu novo filme. — O negócio é arrasar com ele — decretou Lisa. — Dizer para todo mundo que é uó. Você, Ashling, reescreve você a resenha. — Mas eu nem vi o filme! — E daí?

Tudo era conseguido a duras penas. Havia uma coisa — provavelmente a única — em relação à qual todos concordavam: trabalhar com Lisa era um verdadeiro pesadelo. Tinha sempre certeza absoluta do que queria. De repente, três horas depois, quando metade da matéria já estava escrita, decretava, com a mesma certeza absoluta, que não a queria mais. Até um dia depois, quando então insistia, irredutível, que a queria de novo. Os artigos eram feitos com todo o capricho, jogados na lata de lixo, regados a lágrimas pelos autores, aprovados, derrubados outra vez, cortados pela metade e restituídos ao seu formato original. O excelente artigo de Ashling, “Não importa o que você quer do seu cabelo”, fora derrubado, editado, reescrito e aprovado tantas vezes, que ela chegou a chorar quando Lisa o derrubou de novo. — Quer reescrever para mim? — pediu a Mercedes, soluçando. — Se eu tiver que olhar para ele mais uma vez, vou atear fogo às vestes. — Claro. Se você ligar para aquela demente da Frieda Kiely para combinar a sessão de sábado. Lisa estava decidida a cumprir a ameaça de refazer a maioria das fotos da matéria sobre Frieda Kiely. — Ashling, Trix e Mercedes, cancelem todos os compromissos que tiverem para sexta à noite, vamos todas trabalhar no sábado — anunciou Lisa. — Preciso de braços para carregar as roupas, comprar café, essas coisas. No ato irrompeu um coro chocado de queixas, mas de nada adiantou. — Ela é uma filha-da-puta escravocrata — lamuriou-se Ashling aquela noite durante seu jantar com Marcus no Mao. — A maior déspota que já conheci na minha vida. — Não prende a raiva, não — incentivou-a Marcus, enchendo seu copo de vinho. — Vai, bota para fora. — Ah, não. — Ashling passou a mão estressada pelos cabelos em neurótico desalinho. — É que ela é uma filha-da-puta prepotente, parece não se importar se alguma de nós tem uma vida fora da sua preciosa revista. Quando é que a gente vai dormir? Ou comer? Ou lavar a roupa?

Quando Ashling finalmente terminou de falar, já havia bebido quase toda a garrafa de vinho e estava se sentindo muito melhor. — Olha só eu falando, pareço uma doida! — exclamou, as faces rosadas. — Não, não, já bebi bastante! — Tentou impedir Marcus de despejar o resto do vinho no seu copo. — Vai nessa — insistiu ele. — Bota esse vinho para dentro, você precisa manter suas forças. — Obrigada. Meu Deus, como estou me sentindo melhor — gemeu, recostando-se com alívio no encosto do banco. — Surto psicótico superado, de volta à programação normal. Depois do café, demoraram-se algum tempo fazendo especulações sobre os outros fregueses. Era um jogo que costumavam fazer, atribuindo histórias ou, mais exatamente, vidas inteiras às pessoas ao seu redor — E aquele? — Marcus indicou um homem de idade, com o rosto curtido, calçando sandálias sobre meias, que havia acabado de entrar. Ashling refletiu longamente. — Um padre recém-chegado das missões passando as férias no seu país natal — desfechou, por fim. Marcus achou muita graça. — Hummm, você é uma garota engraçada, não? — A admiração tornara sua voz suave. Fez um sinal com a cabeça indicando dois jovens do outro lado do restaurante, tomando chocolate quente e comendo torta de queijo. — E aquela dupla? Ashling hesitou em dar sua opinião. Talvez não devesse dá-la, mas o vinho falou mais alto e ela terminou por dizer: — Tudo bem, talvez não seja politicamente correto dizer isso, mas acho que são gays. — Por quê? — Porque... bom, por vários motivos. Heteros não saem juntos para comer, saem juntos para tomar cerveja. E não se sentam de frente um para o outro, e sim lado a lado, evitando se olhar nos olhos. E, quanto a comer torta, os machões morrem de medo de que pareça frescura. Os gays são muito mais desencanados.

Marcus franziu os olhos, pensativo. — Mas olha lá, Ashling, eles estão usando roupas de couro e têm capacetes, que puseram no chão ao lado da mesa. E se eu te dissesse: “Turistas holandeses ou alemães excursionando pela Irlanda?” — É claro! — Na hora ficou tudo muito claro para ela. — São estrangeiros. Os homens estrangeiros comem torta sem medo do que os outros possam pensar. — Alguns anos atrás ela tivera um caso de uma semana com um rapaz suíço que comera em público uma minitorta de amora com a mais encantadora naturalidade. — É meio triste para os homens irlandeses — comentou Marcus. — É mesmo. — Ambos riram, a quentura no plexo solar de Ashling rimando com o calor nos olhos de Marcus. Neste exato momento, até que a vida não é tão má assim, reconheceu Ashling.

Às oito e meia da manhã de sábado Ashling apareceu no estúdio, arrastando duas enormes malas de roupas que apanhara na assessoria de imprensa de Frieda Kiely na noite anterior. Nunca assistira a uma sessão de fotos na vida, de modo que, apesar do ressentimento, mal cabia em si de entusiasmo e curiosidade. Niall, o fotógrafo, e seu assistente já haviam chegado. A maquiadora também. Até Dani, a modelo, já estava lá. O que levou o rosto de Lisa a se contrair numa expressão de desprezo — modelos que se prezassem sempre se atrasavam no mínimo doze horas. — Quem vai fazer a produção? — perguntou Niall. — Eu — disse Lisa. Mercedes teve vontade de matar Lisa. Era ela a editora de moda, e portanto era ela quem deveria produzir a sessão. Lisa, Niall e a maquiadora rodearam Dani, enquanto Lisa expunha por alto suas idéias. Embora Niall tivesse declarado que eram “geniais”, Ashling e Trix trocaram olhares perplexos quando Dani finalmente ficou pronta. Vestia uma das criações loucas e vaporosas de Frieda, estava maquiada com manchas de lama no rosto e penteada com chumaços de palha nos longos cabelos negros, jogada num sofá de cromo e couro branco, com um pedaço de pizza meio comida ao seu lado e um controle remoto cromado que alguém pusera em sua mão. Pelo visto, a idéia a ser transmitida era a de que estava vendo tevê. Falava-se muito em “ironia” e “contraste”. — Parece uma puta babaquice — cochichou Trix para Ashling. — É, também não entendi nada. Os preparativos demoraram uma eternidade — o equipamento, a iluminação, o ângulo em que Dani devia ficar jogada no sofá, o caimento das dobras do vestido. — Dani, querida, o controle remoto está tapando os detalhes do corpete. Abaixa um pouco. Não, mais um pouco. Não, um pouquinho mais alto... Finalmente, finalmente ficaram prontos. — Faz uma cara chateada — ordenou Niall a Dani. — Eu estou chateada. Ashling e Trix também. Não faziam a menor idéia do quanto isso seria tedioso.

Depois de verificar algo chamado “o nível” outras tantas vezes, Niall finalmente declarou a cena satisfatória. Mas, quando estava prestes a começar, Mercedes correu em direção a Dani e torceu um beliscão na sua saia. — Estava um pouco embolada — mentiu. Estava tão ressentida por Lisa lhe ter roubado a sessão, que não parava de inventar o que fazer para fingir interesse. Niall demorou mais quinze minutos para se aprontar e, justo quando todos pensaram que iria apertar o botão da câmera e finalmente fazer uma foto, ele se deteve e saiu de trás do tripé para afastar um fio de cabelo invisível do rosto de Dani. Ashling conteve um grito. Será que algum dia, qualquer dia, faria aquela porcaria de foto? — Estou pouco a pouco perdendo a vontade de viver — disse Trix, entre os dentes. Por fim, Niall fez uma foto. Em seguida trocou as tentes e fez mais algumas. Ato contínuo trocou o filme por outro em preto-e-branco. Logo depois resolveu mudar de câmera. E então a produção inteira se transferiu de armas e bagagens para um supermercado, a fim de fazer mais fotos. Onde os fregueses empurrando seus carrinhos cheios de mercadorias tinham frouxos de riso ao ver aquela varapau com a cara suja de lama sendo fotografada debruçada sobre os frangos congelados. Ashling estava extremamente constrangida — e preocupada. Essas fotos vão ficar ridículas, nunca vamos poder usá-las. Já eram quatro da tarde quando Niall e Lisa resolveram se dar por satisfeitos com as fotos do supermercado. — Fizemos algumas fotos boas — admitiu Niall. — Tremenda justaposição, tremenda ironia. — Por favor, será que agora podemos ir para casa? — murmurou Trix, desesperada. Ashling concordava. Seus braços doíam de carregar as roupas hediondas de Kiely, estava cansada de atender o celular de Dani, que não parava de tocar, e cheia de ser tratada como uma criadinha: “Corre lá e compra umas baterias para o flash do Niall, vai buscar uns cafés para o pessoa!, procura a mala com a palha.”

— A cena de rua — Lisa relembrou Niall. — Acho que ainda não é agora que a gente vai para casa — sibilou Ashling, furiosa. Abatidos, despencaram-se em peso para South William Street, onde, na calçada em frente a um restaurante indiano, Niall montou sua parafernália pelo que parecia ser a milionésima vez aquele dia. — Que tal se a gente pusesse Dani revirando uma lata de lixo como uma sem-teto? — sugeriu Lisa. Niall adorou a idéia. — Não! — Dani ficou à beira das lágrimas. — Nem morta! — Mas é urbano — insistiu Lisa. — Precisamos de imagens urbanas fortes para contrastar com essas roupas. — Não estou nem aí, não faço e pronto. Pode me despedir, se quiser. Lisa cravou um olhar duro nela. O clima ficou tenso. Se Boo não tivesse resolvido passar por ali naquele exato momento, Ashling não queria nem pensar o que poderia ter acontecido. — Oi, Ashling! — ele a cumprimentou, alegre. — Hum, oi. — Ela ficou um pouco sem graça. Boo, com seu cobertor laranja sujo em volta dos ombros e Dave Cabelão a tiracolo, era um inequívoco sem-teto. — Acabei de ler A Mulher do Ferreiro — disse ele a Ashling. — É desses que a gente não consegue largar, mas o final é meio frustrante. Não acreditei em nenhum momento que aquele cara fosse irmão dela. — Que ótimo! — disse Ashling, tensa, na esperança de que os rapazes seguissem caminho. Foi quando, para sua grande surpresa, percebeu que Lisa estudava Boo com enorme interesse. — Lisa Edwards. — Com um largo sorriso, estendeu a mão e — ponto para ela — mal estremeceu quando, um após outro, Boo e Dave Cabelão a apertaram. Lisa correu os olhos pelo semicírculo de gente esperando ao seu redor. — Tudo bem — disse, com um sorriso reptíleo. — Esqueçam a cena da lata de lixo, tenho uma idéia melhor. — E, voltando-se para Boo e Dave Cabelão: — O que acham de serem fotografados com essa linda mulher, rapazes? — Empurrou a mal-humorada Dani para a frente. O choque petrificou Ashling. Isso não estava certo, cheirava a... cheirava a exploração.

Abriu a boca para objetar, mas Boo parecia quase incrédulo de encanto: — É uma sessão de fotos de moda? E você quer que a gente apareça? Animal! — Mas... — tentou Dani. — É isso ou a lata de lixo — disse Lisa, com voz de aço. Dani hesitou por um segundo de raiva. Em seguida, postou-se entre Boo e Dave Cabelão. — Genial! — declarou Niall. — Amei! Não precisa sorrir, hã, Dave, seja você mesmo. E você, hum, Boo, será que poderia emprestar seu, eh, cobertor para Dani? Fantástico! Dani, meu bem, dá para enrolar o cobertor nos ombros? Finge que é uma pashmina, amor, se isso torna a coisa mais fácil. Precisamos de um copo de isopor! Trix, corre lá no McDonald’s e pega uns copos... Ashling se voltou para Mercedes e perguntou, atônita: — Essas fotos vão para o lixo, não vão? — Não — admitiu Mercedes, os olhos escuros cheios de mágoa. — São inspiradas. Provavelmente vão ganhar uma merda de prêmio! Eram oito da noite quando terminaram. Ashling voou para casa a fim de se aprontar e, quando atravessou ventando a porta, o telefone estava tocando — era Clodagh, que passara o dia inteiro cortando e tingindo o cabelo, reformando seu look de um modo tão radical que agora Dylan se recusava a lhe dirigir a palavra. Em seguida comprara um par de shorts brancos e apertados, no exíguo manequim trinta e oito — um número que não vestia desde antes de engravidar de Craig. O problema dos sapatos fora finalmente resolvido (mules de saltinhos baixos), e ela estava louca para sair. Mas, antes que conseguisse contar tudo isso, Ashling sussurrou: — Nunca me senti tão cansada na vida. Passei o dia inteiro numa sessão de fotos. Clodagh fez uma pausa, toda a exuberância morrendo em seus lábios, e sentiu-se invadir pelo mais negro rancor. Ashling era uma filha-da-puta de sorte. Uma glamourosa filha-da-puta de sorte. Estava dizendo aquilo de propósito, só para lembrar a Clodagh o quanto sua vida era tediosa.

— Não posso mesmo falar agora — desculpou-se Ashling. — Preciso me aprontar, já era para eu ter chegado à casa de Marcus cinco minutos atrás. Clodagh estava arrasada. Teria que passar a noite em casa, sentada, com seu novo corte de cabelo e roupas, e ver televisão. Sentiu-se tão idiota que demorou vários segundos até conseguir dizer: — Como é que vão as coisas com ele? Ashling não percebera a amarga decepção de Clodagh. Só pensava em Marcus, em dúvida se devia desafiar o destino. — Ótimas — respondeu. — Fantásticas, na verdade. — A coisa parece séria — alfinetou-a Clodagh. Ashling tornou a hesitar. — Talvez. — Sentiu-se impelida a acrescentar: — Mas nosso namoro ainda está muito no começo. Só que não se parecia com um namoro muito no começo. Os dois se viam pelo menos três vezes por semana e se tratavam com a sem-cerimônia e a intimidade características dos relacionamentos mais antigos. E o sexo melhorara muito... Agora, ela já não consultava suas cartas de tarô, e o Buda caíra no mais triste ostracismo. — Ah, Ted ligou. Vai se apresentar sábado que vem — disse Clodagh. Ashling manteve-se calada, tentando conter a erupção de emoções negativas. Não queria incentivar Clodagh a ficar amiga demais de Ted. — Pois é. — Tentou dar à voz um tom casual. — Vai abrir o show para Marcus. — Me liga durante a semana para a gente combinar o horário, essas coisas. — Pode deixar. Tenho que ir. Assim que chegou à casa de Marcus, soube que algo acontecera. Em vez de beijá-la, como geralmente fazia, ele estava sério e mal-humorado. — O que foi? — perguntou ela. — Me desculpe pelo atraso, eu estava trabalhando... — Dá uma olhada nisso. — Atirou o jornal para ela.

Ela leu, ansiosa. E ficou sabendo que Billy Bicicleta assinara contrato com uma editora. Descrito como “Um dos maiores humoristas da Irlanda”, iria publicar dois livros, pelos quais recebera um “adiantamento de seis dígitos”. Um porta-voz da editora descrevia o primeiro como sendo “Muito sombrio, muito sério, totalmente diferente de seu trabalho humorístico”. — Mas você não escreveu nenhum livro — argumentou Ashling, tentando pôr água na fervura. — Ele é descrito como um dos maiores humoristas da Irlanda. — Mas você é muito melhor do que ele. É, sim — insistiu ela. — Todo mundo sabe disso. — Então por que não está no jornal? — Porque você não escreveu um livro. — Vai, me espicaça — disse ele, frio. — Mas... — Ela não sabia mais o que dizer. Já tivera vislumbres de sua insegurança antes, mas nada nessas dimensões. Não compreendia o motivo, mas estava ansiosa para contornar a situação. — Você deve saber disso. Por que outro motivo Lisa iria querer que você fizesse a coluna? Ela nem chegou a mencionar qualquer outro humorista. Olha só como as pessoas te adoram. Ele deu de ombros, emburrado, e Ashling soube que estava conseguindo dobrá-lo. — Nunca vi devoção igual nos shows de nenhum outro humorista — prosseguiu. — A Lisa estava mesmo com medo de que eu não fizesse a coluna? — perguntou ele, rabugento. — Fora de si! Ele não disse nada. — Ela disse que você estava prestes a se tornar uma estrela. Ele então segurou sua mão e a beijou. — Desculpe. A culpa não é sua. É que esse ramo é um pega-pra-capar — você vale o quanto pesa seu último show. Às vezes me bate um medo... A sessão de fotos deu uma superturbinada no moral de Lisa. Sua intuição — sempre confiável — estava lhe dizendo que essas fotos eram muito especiais, e que provavelmente causariam sensação.

Conseguira se manter sobre-humanamente ocupada durante o último mês, e os insólitos surtos depressivos que a haviam atormentado durante suas semanas iniciais em Dublin pareciam ter passado. Toda vez que o desalento começava insidiosamente a querer se instalar, ela pensava em algum novo artigo para a revista, ou em mais alguém para entrevistar, ou em outro produto para promover. Não tinha tempo para ficar deprimida, e experimentara pequenos períodos de satisfação com o fato de a Garota estar criando corpo. Ainda não haviam chegado lá em termos de publicidade, mas ela desconfiava que as fotos de hoje dobrariam as últimas empresas de cosméticos que ainda estavam fazendo jogo duro. Jack ficaria satisfeito. De repente, seu alto-astral se anuviou. Jack e Mai continuavam a se comportar como o casal perfeito. Não tinham uma briga em público há um mês e, da noite para o dia, as centelhas de tensão sexual entre Jack e Lisa haviam desaparecido totalmente. Pelo menos, da parte dele. Não que houvesse muita tensão sexual, admitiu Lisa, sempre realista. Mas havia o bastante para lhe dar esperanças. Quando tentara recuperar o terreno perdido com algumas pitadas de flerte, estas não provocaram nenhuma reação por parte de Jack. Ele continuava se comportando com educação e profissionalismo, e Lisa compreendeu que tinha de permitir que o caso com Mai seguisse seu curso. E, se Deus quisesse, seguiria o seu curso — direto para o beleléu. Nesse meio tempo, estava à procura de um homem razoável. Aquela noite iria tomar uns drinques com Nick Searight, um artista mais famoso por sua beleza do que pelo mérito artístico de suas telas. Lisa desconfiava que fazia mais o gênero homem Milky Way do que homem com H, mas sexo é sexo e, naquele exato momento, teria que bastar. Quando Lisa chegou em casa, Kathy acabava de sair. Seu cabelo estava tão eriçado, que parecia ter sido frito em azeite.

— Oi, Lisa, está tudo pronto, as roupas passadas e tudo o mais. Hum, e obrigada pelo esmalte de unha. — Não havia muito lugar na vida de Kathy para esmalte de unha amarelo com glitter, mas Francine gostaria dele. — Quer que eu venha semana que vem, como sempre? — Quero, por favor. Por volta do sábado seguinte já estaria tudo imundo de novo, pensou Francine, voltando para casa. Cascas de maçã apodrecendo embaixo da cama, o banheiro todo respingado de todos os tipos de gelecas, a pia atravancada com a louça suja de uma semana. Verdadeiramente incrível. Para uma mulher tão bem-sucedida, a casa de Lisa era muito suja. Numa casa situada numa zona deserta de Ringsend, de frente para o mar, diante de embalagens metalizadas contendo restos de comida indiana, Mai se voltou para Jack e finalmente disse o indizível: — Você não gosta mais de mim o bastante para brigar comigo. Jack fixou nela seus olhos sombrios, e esperou um bom tempo antes de dizer a inegável verdade: — Mas, quando as pessoas se gostam, não devem viver apertando o pescoço uma da outra. — Conversa fiada — disse Mai, veemente. — Se as pessoas não brigam, não fazem as pazes. Todos aqueles gritos e portas batidas mantêm a nossa paixão acesa. Jack escolheu com todo o cuidado as palavras que diria em seguida. Com uma delicadeza insuportável, aventou: — Ou talvez apenas disfarcem o fato de que o sentimento não é tão grande assim. Os olhos de Mai se encheram de lágrimas de raiva. — Vai à merda, Jack... Vai à merda. — Mas era da boca para fora. Ele a envolveu nos braços e ela soluçou um pouco em seu peito, mas descobriu que não conseguia de fato ficar transtornada. — Seu filho-da-mãe — disse, sem fôlego. — Sou, sim — concordou ele, triste. — Acabou? — perguntou ela, por fim. Ele se afastou para poder fitá-la. Esboçou um meneio afirmativo. — Você sabe que sim. Ela soluçou mais um pouco. — Acho que sim — admitiu. — Nunca tive tantos quebra-paus com ninguém — disse, dando à frase uma entonação elogiosa.

— E nós tivemos mais voltas do que Frank Sinatra — concordou ele, embora jamais tivesse gostado das discussões. Trocaram risos trêmulos, suas cabeças encostadas. — Você é uma mulher extraordinária, Mai — disse ele, seus olhos escuros cheios de carinho. — Você também não é tão mau assim — ela soluçou. — Ainda vai fazer alguma boa moça muito infeliz. A Lisa, talvez. — Lisa? — A que é dura e brilhante, conhece? — Desandou a soltar risadas inconvenientes. — Desse jeito, quem ouve pensa que a mulher é uma barra de M&M. Ela deve servir para você. Ou, se não a Lisa, a outra. — Que outra? — A guria latina. — Ah, Mercedes. Para começo de conversa, ela é casada. — Hum. — Mai ocultava seu abalo sob a máscara da rabugice. — Você é tão espírito-de-porco, que provavelmente vai escolher a própria. Quer me levar para casa? — Ah, fica mais um pouco. — Não. Já perdi tempo demais com você. — Deu-lhe um lacrimoso sorriso de consolação. Sem se falarem, fizeram o trajeto de carro pelas ruas noturnas, Mai reduzindo as dimensões de sua perda até transformá-la em algo suportável. Jack era um homem especial: alto, durão, inteligente e instigante. No começo, ela adorara o jogo. Mas terminara por se apaixonar perdidamente por ele, e desconfiava que Jack teria passado sebo nas canelas se soubesse disso. Sua única maneira de se sentir no controle da situação era mantendo-o num estado de perpétua insegurança. Nunca se sentira à vontade, com exceção do curto período que se seguira ao dia em que ele lhe pedira desculpas por qualquer coisa e passara a se comportar com uma devoção servil. Mas era tudo muito trabalhoso — e estava se tornando ainda mais trabalhoso. Já que ele não queria mais discutir, o único curinga que restara a Mai era sua mística exótica. E estava exausta de ser exótica e misteriosa.

Chegaram depressa demais ao apartamento dela. Jack parou o carro diante do prédio e desligou o motor, em vez de mantê-lo em ponto morto. Mas Mai não queria continuar em sua companhia. — Tchau — disse ela, engolindo em seco e girando as pernas para fora do carro. — Eu te ligo — prometeu ele. — Não ligue. Sentindo seu estômago doer, Jack a viu se afastar dele, aquela pequena e durona menina-mulher, em seus saltos ridiculamente altos. Enfiando desajeitadamente a chave na fechadura da portaria, ela entrou. Sem olhar para trás.

Quando Lisa saiu do elevador, de volta do almoço, passou por Trix, que se dirigia ao banheiro para aplicar mais uma camada de maquiagem. — Oi — saudou-a Trix. — Tem um cara aí esperando para ver você. Um cara aí, pensou Lisa, irritada. Será que não podia ter apurado quem era e o que queria? Natasha, sua AP na Femme, teria feito questão de saber o nome de solteira da avó de qualquer visita antes de permitir que Lisa a recebesse. E foi então que aconteceu. Ela se virou para atravessar a recepção rumo à redação, quando encontrou, sentado no sofá, o último ser humano no mundo que esperava ver. Oliver. Deu com o nariz numa parede invisível. O choque virou sua mente ao avesso e um zumbido ensurdeceu seus ouvidos. A última vez que o vira fora no reveillon — e agora estavam em treze de julho. Todos aqueles meses separados sofreram um efeito-sanfona, que os condensou em menos de um segundo. — Oi, paixão. — Ele levantou o rosto para ela, muito tranqüilo, muito à vontade. Lisa começou a tremer. Várias idéias lhe ocorreram ao mesmo tempo. O que estava vestindo? Estava bonita? Magra? Por que ele tinha que aparecer no seu trabalho? Será que tinha consciência do projetinho de meia-tigela que ela estava encabeçando? — Que é que você está fazendo aqui? — ouviu sua própria voz indagar. Não conseguia deixar de encará-lo, incapaz de decifrar a razão pela qual ele lhe parecia a um tempo conhecido e estranho. Sua linguagem corporal era de uma pessoa assustada e sem jeito, todo o seu corpo congelado no passo que ia dando quando o vira. Tarde demais, juntou as pernas e jogou os ombros para trás — o que não foi sem esforço. — Precisamos conversar. — Ele sorriu, e tudo em si cintilou: os dentes, o brinco, a pesada pulseira de prata do relógio de pulso. Tirou o calcanhar que até então equilibrara no joelho oposto e se endireitou. Cada movimento sublinhava com graça sua força física. — Sobre o quê? — murmurou ela.

Ele riu. Uma de suas gargalhadas homéricas, cuja sonoridade quase estilhaçava as vidraças. — “Sobre o quê”? — exclamou, sorrindo sem achar graça. — O que você acha? D-I-V-Ó-R-C-I-O... — Estou ocupada, Oliver. — Ainda se matando de trabalhar, garota? — Estou no meu trabalho, Oliver. Se quiser conversar comigo, me procura em casa. — Um número seria bem-vindo. — Eu te encontro depois do expediente. — Era melhor acabar com isso de uma vez. — Que bondade, a sua... Estou hospedado no Clarence. — É um pouco ostentoso. — Estou aqui a trabalho. Por algum motivo, essas palavras magoaram Lisa. — Quer dizer então que não veio para me ver? — Digamos apenas que tenho senso de oportunidade. Trêmula, Lisa tentou trabalhar, mas era-lhe quase impossível se concentrar. Tinha esquecido o efeito que Oliver surtia sobre ela. — Encomenda para você! Lisa levou um susto quando Trix atirou um envelope acolchoado em sua mesa. Eram as fotos da sessão de sábado, e a intuição de Lisa fora na mosca: haviam ficado fantásticas, mas ela mal conseguiu lhes prestar atenção. Era como se as laterais de sua visão estivessem embaçadas e cinzentas. Não conseguia pensar em mais nada além de Oliver. Haviam se separado de forma tão violenta, com tanta amargura. Ele fora tão cruel. Dissera coisas tão terríveis. — Ashling! — chamou, esforçando-se por recobrar o autocontrole. — Leva esta foto aqui... não, esta aqui... — Escolheu a melhor fotografia, uma em estilo jornalístico, com a beleza carrancuda de Dani ladeada por Boo e Dave Cabelão. — Pede vinte cópias ao Niall e despacha para todas as grifes principais. Cola uma etiqueta nelas dizendo “Coleção de outono de Frieda Kiely. Edição de setembro da Garota”... Isso deve causar furor — murmurou, sem se dar a menor conta da expressão horrorizada de Ashling. Segundos depois, percebeu que Ashling ainda se postava diante de sua mesa. — Que é?! — Será que nós podemos... Andei pensando... Boo e Dave Cabelão... — Quem?!

— Os caras sem-teto. Da foto — prosseguiu, quando ficou claro que Lisa não fazia a menor idéia do que ela estava falando. — Será que nós podemos dar alguma coisa para eles? — Que tipo? — Um presente, ou... alguma outra coisa. Por aparecerem na foto, fazendo com que ficasse tão boa. Sob circunstâncias normais, Lisa teria simplesmente dito a Ashling para ir à merda e cair na real, mas estava transtornada demais. — Pede ao Jack — tornou, ríspida. — Estou ocupada. Crispando a fotografia entre os dedos, Ashling bateu nervosamente à porta de Jack Devine. Quando ele berrou “Entra!”, ela obedeceu, relutante, para em seguida lhe explicar sua missão, morta de vergonha. — Eles fizeram o trabalho sem uma reclamação e sem pedir nada, e eu achei que nós devíamos demonstrar nosso agradecimento de alguma maneira... — Ótimo — interrompeu-a Jack. — Sério? — perguntou ela, de pé atrás. Pensara que ele zombaria de seu pedido. — Seriíssimo. São eles que fazem a foto. Do que você acha que eles gostariam? — De um lugar para morar — disse ela, meio brincando. — Não tenho o orçamento — retrucou Jack. A julgar por seu tom de voz, parecia lamentar o fato. — Alguma outra idéia? Ashling refletiu. — Dinheiro, provavelmente. — Trinta paus para cada um? Lamento muito, mas é o máximo que posso dar. — Hum, fantástico. — Não era muito, mas era mais do que ela esperara. Pelo menos Boo e Dave Cabelão poderiam pagar algumas refeições com essa quantia. — Toma aqui. — Jack assinou um vale de dinheiro trocado. — Entrega isso para o Bernard. — Obrigada. Ele permitiu que seus olhos escuros se demorassem no rosto de Ashling durante dois ou três longos segundos. — Não há de quê. Às sete da noite, conforme combinado, Lisa foi para o bar do Clarence. Oliver se levantou ao vê-la. — O que você vai beber? Vinho branco? Vinho branco era a bebida de Lisa, ou pelo menos costumava ser, quando eles estavam juntos. Ele se lembrara. — Não — disse ela, na esperança de feri-lo. — Um Cosmopolitan. — Eu já devia saber.

Ela o observou, alto e corpulento, extrovertido e direto, trocando piadas animadamente com os empregados do bar. Por que será que o espaço que ocupava sempre parecia muito maior do que seu corpo? Sentiu um nó na cabeça — ele lhe era tão familiar, que era quase como se não o conhecesse. Após voltar com o drinque de Lisa, ele foi direto ao ponto: — Você tem um advogado, paixão? — Olha só... — Nós dois precisamos de advogados — explicou ele, paciente. — Para o divórcio? — Ela tentou dar à voz um tom blasé, mas essa era a primeira vez que de fato articulava a palavra como se fosse uma hipótese real. — Exatamente. — Seu tom era seco, prático, profissional. — Bom, você sabe como a coisa funciona. Não, para ser sincera, ela não sabia. — Nosso casamento está irreversivelmente desfeito, mas isso não basta para nós conseguirmos o divórcio. Precisamos dar uma razão. Se já estivéssemos separados há dois anos, não seria necessário. Mas, antes desse prazo, um de nós tem que processar o outro. Por abandono do lar, comportamento desarrazoado ou adultério. — Adultério! — Lisa se encrespou. Fora totalmente fiel a ele durante o tempo em que haviam vivido juntos. — Eu nunca... — E nem eu. — Oliver foi igualmente enfático. — Quanto ao abandono do lar... — É, você me abandonou. — Estava louca para acusá-lo. — Você não me deixou escolha, paixão. Mas pode me processar por isso. O único porém é que teríamos que já estar separados há dois anos antes de podermos usar o abandono de lar como justificativa, e queremos resolver esse assunto logo, não é? — Lançou-lhe um olhar interrogativo, esperando seu assentimento. — É — disse ela, ríspida. — Quanto antes, melhor. — O que só nos deixa o comportamento desarrazoado. Precisamos de cinco exemplos. — Comportamento desarrazoado? O que é isso? — Ela estava quase aos risos, esquecendo-se por um momento de que tinha algo a ver com ela. — Alguma coisa do tipo passar o aspirador de pó na casa às três da madrugada?

— Ou trabalhar todos os fins de semana e feriados. — O tom dele era amargurado. — Ou fingir que quer engravidar, enquanto continua a tomar a pílula. — Chega, já entendi. — Ela fez uma expressão hostil. — Temos uma escolha. Ou eu processo você, ou você me processa. — Quer dizer que você reconhece que também se comportava de maneira desarrazoada? Ele soltou um longo suspiro. — É só uma formalidade, Lees, não um ajuste de contas. A parte processada não recebe qualquer tipo de punição. E aí, o que vai ser? Você me processa? — Decide você, já que entende tanto do assunto — disse Lisa, antipática. Ele a fitou longamente, como que tentando compreendê-la, e em seguida se remexeu. — Se prefere assim... Bom, quanto às custas. Cada um paga o próprio advogado, mas rachamos as custas do processo, está bem? — Por que precisamos de advogados? Se voamos para Las Vegas para fazer um casamento relâmpago, será que não podemos voar para Reno para fazer um divórcio relâmpago? — Não é tão simples assim, paixão. Pensa bem: nós temos um imóvel. — Sim, mas tanto eu quanto você sabemos o quanto cada um contribuiu para... Tudo bem, vou arranjar um advogado. — Como não agüentaria mais um segundo daquela conversa, trocou de posição na cadeira e perguntou, com falsa jovialidade: — Como tem ido de trabalho? — Coisa de louco. Acabei de voltar da França, e antes estive em Bali. Filho-da-mãe de sorte. — Depois das fotos aqui, vou ter um pouco de sossego até os desfiles. — Indicou com um meneio de cabeça o tailleur estruturado de Lisa. — Nunca tinha visto esse tailleur. Ela se inspecionou. — Nicole Fahri. — Afanado de uma sessão de fotos em janeiro passado, e depois ela tentara jogar a culpa em Kate Moss. — Não gostei — disse Oliver. — Que é que há de errado com ele? — Ela sempre valorizara a opinião dele sobre suas roupas e cabelos. — Nada. Quis dizer que não gostei do fato de nunca ter visto antes.

Ela sabia o que isso significava. Sentiu-se dolorosamente afrontada pelo fato de os cabelos dele estarem mais compridos, de seu relógio ser novo, de ele ter viajado meio mundo desde a última vez em que se viram, sem que ela ficasse sabendo absolutamente nada a respeito. — Você está diferente — disse ele. — Estou? — Não. — Ele sacudiu a cabeça e soltou uma risada ofegante, estranha. — Sei lá, porra. Ela sabia exatamente o que isso significava. A familiaridade extrema e o vazio da distância postos lado a lado, numa estranha coexistência. Como ambos estavam igualmente presentes, a sensação era a de que duas realidades diferentes haviam sido fatiadas e remontadas errado. — Com licença! — Ele se interrompeu para segurar o pulso de Lisa e, com a mão livre, voltar seus dedos em direção a si. Havia algo que queria ver. Ele foi bruto, virando sua mão em um ângulo doloroso. — Você não usa mais sua aliança? — acusou-a, seus olhos castanhos cheios de desprezo. Ela arrancou a mão, com um olhar fulminante. Esfregando o pulso dolorido, acusou-o: — Você me machucou! — E você me magoou. — E daí que eu não uso a aliança? — Seu rosto estava vermelho e feroz. — É você quem está falando em divórcio! — Mas foi você quem teve a idéia! — Só porque você me abandonou! — Só porque você não me deixou escolha! Encararam-se, ferozes, ofegantes, após a emoção transbordar. — Quer subir para o meu quarto? — perguntou ele, com uma expressão exaltada, os olhos sem deixarem um segundo os de Lisa. — Vamos. — Ela já estava de pé. O primeiro beijo foi frenético, um choque de dentes contra dentes. Tentando fazer coisas demais de uma só vez, ele puxou os cabelos dela, puxou seu spencer, beijou-a com força excessiva e, logo em seguida, arrancou a própria camisa. — Peraí, peraí, peraí. — Parecendo exausto, encostou as costas nuas na porta. — Que foi? — murmurou ela, embotada à vista de seu peito musculoso e brunido.

— Vamos começar de novo. — Ele a puxou contra si com toda a delicadeza. Ela escondeu o rosto em seu peito. O cheiro especial de Oliver. Até então esquecido, mas logo relembrado por seu olfato com um impacto estupidificante, imperioso. Apimentado, a um tempo doce e picante, algo único e indescritível que não vinha de nenhum sabonete, colônia ou roupa. Um cheiro que era simplesmente ele. A sensação de familiaridade trouxe-lhe lágrimas aos olhos. Com uma fragilidade intolerável, ele depôs um beijo no canto de sua boca. Como se fosse pela primeira vez. Em seguida, outro beijo, enquanto roçava o nariz em sua face. E mais outro. Avançando lentamente para o centro, criando um prazer que era quase indistinguível de dor. Sem se mover, quase sem respirar, ela o deixava aplicar seus beijos. Os momentos em que fazia sexo com Oliver eram os únicos na vida de Lisa em que ela fazia o papel passivo. Quando não estava no controle, quando não era uma ave de rapina, hiperativa ou voraz. Sempre deixava que ele assumisse o comando, e ele adorava isso. — Olho nos seus olhos e você nem está neles — ele costumava observar. — É só uma menininha frágil e indefesa. Ela sabia que o excitava o contraste entre sua rebeldia habitual e tamanha passividade sexual, mas não era esse o motivo que a levava a adotar tal postura. Com Oliver, não era preciso assumir o comando da situação. Ele sabia exatamente o que fazer. E ninguém fazia melhor. Os beijos passaram da boca para o pescoço e a raiz dos cabelos. Com os olhos fechados, ela gemia de prazer. Poderia morrer agora — sim, poderia, sem a menor dúvida. Ela o ouviu sussurrar, o hálito quente em seu ouvido: — Já não é mais você, paixão.

Como uma sonâmbula, deixou-se conduzir para a cama. Estendeu os braços obedientemente para que ele despisse seu spencer, em seguida alteou os quadris para que puxasse sua saia. Os lençóis lisos e frescos estenderam-se sob a pele nua de suas costas. Todo o seu corpo tremia, mas ela se manteve como estava, deitada, imóvel. Quando ele roçou seu mamilo com a boca, ela teve um sobressalto, como se levasse um choque elétrico. Como podia ter esquecido o quanto era sensacional? Os beijos foram descendo cada vez mais. Ele depôs um beijo levíssimo sobre seu ventre, tão suave que mal arrepiou a penugem, mas que a deixou à beira de um orgasmo. — Oliver, acho que vou... — Peraí! O preservativo foi a nota destoante da noite, o único detalhe a relembrá-la de que as coisas não eram mais como antigamente. Mas recusou-se a pensar nisso. Com que então, ele provavelmente andava dormindo com outras mulheres? Pois bem, ela também andava dormindo com outros homens. Quando ele a penetrou, ela experimentou uma grande sensação de paz. Soltou um longo e sincero suspiro, toda a tensão abandonando seu corpo. Por um momento fruiu a ausência de agitação, até que ele se pôs a avançar dentro dela com golpes compridos e lentos. Ela pretendia desfrutar isso. E sabia que iria. Quando terminaram, ela chorou. — Por que você está chorando, meu amor? — Ele a aconchegou em seus braços. — É só uma reação fisiológica — disse ela, já recobrando o controle de quem realmente era. Bastava de passividade. — É comum as pessoas chorarem depois do orgasmo.

A raiva e o constrangimento iniciais haviam sido incinerados pela paixão. Agora jaziam na cama, conversando sem pressa, aninhados nos braços um do outro, com um afeto estranhamente confortável. Era como se jamais houvessem se separado, jamais houvessem discutido ferozmente, jamais houvessem se lembrado um do outro com ressentimento. Não que qualquer um dos dois tivesse a ingenuidade de achar que o sexo indicava uma iminente reconciliação. Mesmo nos piores momentos de sua crise, haviam feito sexo. Sexo fantástico. Parecera proporcionar-lhes uma válvula de escape para todo aquele excesso de emoção. Alheia, ela passou as mãos pela ondulação de seu bíceps. — Ainda malha, pelo visto. Quantos peitorais faz hoje em dia? — Cento e trinta. — Caramba! A conversa ainda se prolongou por horas depois da meia-noite, até que, por fim, ele bocejou. — Vamos dormir, paixão. — Tá — disse ela, sonolenta. Não havia dúvidas de que ela iria embora, ambos sabiam disso. — Vou só dar um pulo no banheiro. Depois de lavar o rosto, usou a escova de dentes dele. Foi algo que fez sem pensar, e foi só quando terminou que se deu conta disso. Quando voltou do banheiro, enfiou os pés frios entre as coxas dele para aquecê-los, como sempre fizera. Então dormiram como haviam dormido quase todas as noites durante quatro anos, aconchegados na posição das colherinhas: ela enroscada num C, e ele enroscado num C ainda maior por trás dela, envolvendo-a dos pés à cabeça, a palma da mão quente pousada sobre sua barriga. — Boa-noite. — Boa-noite. Na escuridão, Oliver comentou: — Que coisa mais esquisita. — Ela sentiu o sofrimento e a confusão em sua voz. — Estou tendo um caso com a minha própria mulher. Ela fechou os olhos, comprimindo a coluna contra a barriga dele. A tensão que mantinha seus dentes permanentemente trincados foi cedendo aos poucos, até finalmente passar. Ela dormiu melhor do que dormia há muito, muito tempo.

Pela manhã, retomaram com naturalidade quase chocante a antiga rotina. O padrão de vida doméstica que haviam partilhado todas as manhãs durante quatro anos. Oliver se levantou primeiro e foi providenciar o café. Em seguida Lisa acampou no banheiro, enquanto ele fumegava do lado de fora, tentando apressá-la. Quando esmurrou a porta, aos berros de “Anda, paixão, ou eu vou me atrasar!”, a sensação de déjà vu foi tão intensa que, por um longo segundo de atordoamento, ela não conseguiu se lembrar de quem era. Não estava em casa, mas... Quando finalmente saiu, envolta em toalhas, abriu um sorriso, pedindo-lhe desculpas. — Acho bom você ter deixado algumas toalhas secas para mim — disse ele, em tom de advertência. — Claro que deixei. — Ela atravessou o quarto correndo para tomar um gole de café. E ficou esperando. Ouviu o chuveiro sendo ligado e, algum tempo depois, a súbita interrupção do jato d’água. A qualquer momento... — Ah, Lisa! — A queixa de Oliver ecoou entre as paredes do banheiro, como já era de esperar. — Paixão! Você só deixou para mim uma porcaria de uma toalhinha de rosto! Você sempre faz isso. — Não é uma toalha de rosto. — Dobrando-se em duas de tanto rir, Lisa entrou no banheiro. — É muito maior. Oliver desprezou a toalha de mão que Lisa exibia: — Isso não dá para secar nem o meu pau! — Desculpe — ela o provocou, carinhosa, desenrolando uma de suas próprias toalhas. — Está vendo só? Vou te dar a roupa do corpo! — Sua meretriz — resmungou ele. — Eu sei — ela assentiu. — Você é mesmo in-super-crível. — Ah, eu sei — ela concordou, com toda a sinceridade. Entre brincalhona e conciliadora, Lisa enxugou seu corpo musculoso e reluzente. Era uma atividade que ela sempre adorara, embora algumas partes de seu corpo recebessem mais atenção do que outras. — Ei, Lees — chamou ele, por fim. — Hunmm? — Acho que a esta altura minhas coxas já devem estar secas. — Ah... tá. — Trocaram um olhar malicioso.

Enquanto se vestiam, de repente ela percebeu do outro lado do quarto algo que lhe era tão familiar quanto sua própria pessoa. Antes que pudesse se conter, já havia exclamado: — Ei, aquela é a minha sacola Louis Vuitton! E era, mesmo. Ele a usara para guardar alguns de seus pertences no dia em que fora embora. No ato a atmosfera do quarto ficou carregada das emoções negativas daquele dia. Oliver furioso — de novo. Lisa zangada e na defensiva — de novo. Oliver argumentando que o casamento dos dois já não era mais um casamento. Lisa sugerindo a ele, sarcástica, que se divorciasse dela. — Eu te devolvo. — Oliver estendeu-lhe a sacola, esperançoso, mas de nada adiantou. O clima era sombrio e, em silêncio, terminaram de se vestir para ir trabalhar. Quando Lisa não agüentou mais ficar calada, disse: — Bom, até mais. — Até mais — respondeu ele. Ela ficou surpresa ao sentir lágrimas nos olhos. — Ah, não chora. — Ele a aninhou nos braços. — Que é isso, Dona Diretora, assim a senhora vai borrar a maquiagem. Ela conseguiu rir por entre as lágrimas, mas sua garganta doía como se estivesse entalada com um pedregulho. — Me desculpe pelo fato de as coisas não terem dado certo para nós — pediu, em voz baixa. — Ora... — Ele deu de ombros. — São coisas da vida. Sabia que... — ...dois em três casamentos terminam em divórcio? — disseram em uníssono. Com esforço, conseguiram rir. Em seguida, se separaram. — E, pelo menos, agora a coisa é amigável — disse ele, pouco à vontade. — Quer dizer, nós estamos, sabe como é, falando um com o outro. — Exatamente — ela concordou, jovial. Estava transtornada com o brilho de sua camisa lilás de linho contrastando com a sedosa pele cor de chocolate do pescoço. Caramba, aquele cara sabia se vestir bem! Quando ela fechou a porta, ele disse: — Ei, paixão, não vai se esquecer! Cheia de esperança, ela tornou a abrir a porta. Esquecer o quê? Que eu te amo? — Arranja um advogado! — Ele brandiu o dedo, sorrindo.

Fazia uma linda manhã de sol. Ela caminhou pelas ruas banhadas de luz em direção ao trabalho. Sentindo-se uma merda.

De repente, Lisa se deu conta de que ninguém dera uma palavra sobre os desfiles. Ou, para ser mais exata, os Desfiles!!! Jamais conseguia pensar neles sem ver seu nome brilhando aceso em néon. Esse era o ponto alto na vida da diretora de uma revista: duas vezes por ano, voar para Milão ou Paris, as duas mecas da moda. (Para os outros lugares ela viajava de avião, mesmo, mas os desfiles eram tão glamourosos que, naturalmente, todo mundo “voava” para eles.) E se hospedar no George V ou no Príncipe di Savoia, ser tratada como um membro da realeza, conseguir lugares na primeira fila para assistir aos desfiles de Versace, Dior, Dolce & Gabbana, Chanel, ganhar flores e presentes simplesmente por dar o ar de sua graça. O circo de quatro dias pululando de estilistas egomaníacos, modelos neuróticas, astros do rock, ídolos do cinema, milionárias sinistras com suas jóias de ouro maciço e, é claro, diretoras de revistas — fulminando umas às outras com olhares de ódio mortal, conferindo milímetro por milímetro sua estatura na hierarquia vigente. Uma festa atrás da outra em galerias de arte, armazéns, abatedouros (alguns estilistas da vanguarda mais radical não tinham a menor noção de limite)... Enfim, uma circunstância em que você não poderia estar mais no centro do universo nem que tentasse, queridinha.

E, é claro, não podiam faltar as sessões de cobras e lagartos sobre as roupas, uns disparates que ninguém jamais usaria desenhados por palhaços misóginos, os presentes ganhos depois dos desfiles, que não haviam sido tão generosos quanto os dos anos anteriores, o fato de o melhor quarto do hotel ser sempre abiscoitado por Lily Headley-Smythe e a grande chatice que era ter de viajar para um lugarzinho a quase dois quilômetros do centro da cidade para ver algum garoto prodígio exibindo sua coleção revolucionária numa fábrica abandonada de latas de feijão, mas, ainda assim, não ir era impensável. E a consciência de que ninguém sequer mencionara os desfiles na Garota atingiu Lisa como uma avalanche de mocassins de Kurt Gieger. Provavelmente já tinha sido tudo providenciado, ela pensou, procurando se acalmar. Era provável que houvesse uma verba para que ela e Mercedes fossem. Mas e se não houvesse? A verba para os colaboradores posta à sua disposição não cobriria as despesas. Não chegaria nem perto disso. Mal pagaria um croissant no George V. Com pânico crescente, Lisa bateu à porta de Jack e não esperou que ele respondesse antes de entrar. — Os desfiles — disse, fungando, sem sentir. Surpreso, Jack levantou o rosto, petrificando-se na posição em que se encontrava, curvado sobre o que parecia ser uma tonelada de documentos. — Que desfiles? — Os desfiles de moda. Em Milão. E Paris. Em setembro. Eu vou? — Seu coração palpitava, grande demais para o peito. — Senta, Lisa — convidou Jack, com delicadeza, e no ato ela soube que suas palavras prenunciavam uma má notícia. — Eu sempre ia, quando era diretora da Femme. É importante para o perfil da revista que marquemos presença lá. Publicidade, enfim... — soltou, num jorro confuso. — Nunca vamos ser levados a sério se não formos vistos... Jack a fitava, esperando que terminasse. A simpatia em seus olhos dizia a Lisa que estava perdendo tempo, mas a esperança é a última que morre. Soltou um profundo suspiro, recompondo-se. — Eu vou?

— Desculpe — disse ele, fino como papel de seda. — Não dispomos da verba. Pelo menos, não este ano. Talvez, quando a revista já tiver se aprumado, quando tivermos mais anunciantes... — Mas é claro que eu...? Ele sacudiu a cabeça, triste: — Não temos dinheiro. Foi a conjunção da piedade de seu olhar com suas palavras que finalmente a fez cair em si. A medonha realidade esmagou sua consciência. Todo mundo estaria lá. Todo mundo, dos quatro cantos da Terra. E notariam sua ausência, ela seria a bola da vez. Nesse momento, uma idéia ainda mais horrível lhe ocorreu. Talvez não notassem. Jack pôs água na fervura feito um louco, prometendo comprar fotos de várias agências de notícias e argumentando que a Garota poderia fazer uma matéria fantástica com elas, as leitoras nunca saberiam que sua diretora não chegara a ir... Foi então que Lisa se deu conta de que estava chorando. Não lágrimas de ódio ou chilique, mas de mágoa pura, sincera, que ela se sentia impotente para conter. Cada soluço arrancava de seu peito convulso uma tristeza infinita. São só alguns desfilezinhos de moda bobos, dizia sua cabeça. Mas não conseguia parar de chorar e, do nada, a lembrança voltou, sem a menor relação com coisa alguma. De si mesma, por volta dos quinze anos, fumando e batendo pernas pelo centro da cidade, em Hemel, com duas outras garotas, reclamando da merda que aquele fim de mundo era. — Cheia de escrotos. — A boca estilosa de Carol se contorceu num esgar de nojo e tédio, ao inspecionar a rua principal. — E babacas com roupas de merda e vidas de merda — Lisa concordou, antipática. — Olha lá, aquela é sua mãe, não é? — Os olhos de Andrea, com seus cílios cobertos de rímel azul, ficaram ferinos e divertidos, e ela meneou a cabeça, com seus cabelos penteados para trás, indicando uma mulher que atravessava a rua. Com um sobressalto desagradável, Lisa viu sua mãe, brega, ridícula, envergando seu “melhor” sobretudo.

— Aquela? — debochou, soltando uma longa baforada de fumaça. — Aquela não é minha mãe. Quando se viu de volta ao escritório de Jack, estava falando alguma coisa. A mesma coisa, uma vez atrás da outra, com voz abafada. — Dei muito duro — insistia, o rosto escondido nas mãos. — Dei muito duro. Mal tinha consciência da presença de Jack, que tateava os bolsos. Seguiram-se os ruídos do maço sendo compulsado, o risco da pedra do isqueiro, o cheiro acre da nicotina. — Posso fumar um? — Ela ergueu brevemente o rosto lavado de lágrimas. — É para você. — Ele lhe passou o cigarro aceso, que ela aceitou mansamente e tragou como se fosse salvar sua vida. Deu cabo dele em seis tragadas ávidas. Jack continuava a tatear os bolsos. Entre a passividade e o desinteresse, ela o observou retirar uma raspadinha de um bolso, um recibo de outro. Por fim, na gaveta da mesa, encontrou o que procurava — uma maçaroca de guardanapos de papel com o logotipo da Supermac, que empurrou na mão de Lisa. — Gostaria de ser um daqueles homens que carregam um lenço branco grande para esse tipo de eventualidade — disse, com brandura. — Não tem problema. — Ela esfregou o papel lustroso nas faces molhadas. A cada tragada de nicotina seu choro diminuía, até que o único som que produzia era uma ou outra fungada esporádica. — Desculpe — disse, por fim. Tudo nela se tornara lento: seu pulso, suas reações, seu raciocínio. Poderia ficar sentada naquele escritório para sempre, estuporada demais para se constranger, sonolenta demais para indagar o que estava acontecendo consigo. — Aceita outro? — perguntou Jack, ao vê-la apagar a guimba. Ela assentiu. — Você sabe que eles só te escolheram para esse emprego porque você é a melhor — disse ele, passando-lhe um cigarro aceso, em seguida acendendo outro para si mesmo. — Ninguém mais conseguiria criar uma revista do nada. — Que maneira mais estranha de me recompensar — disse ela, ao que outro soluço escapou de seu peito.

— Você é fantástica — disse ele, com toda a sinceridade. — Sua energia, sua visão, sua capacidade de motivar a equipe. Você não perde uma. Gostaria que entendesse o quanto te valorizamos. Você vai aos desfiles. Talvez não este ano, mas em breve. — Não é só pelo emprego ou pelos desfiles. — As palavras se derramaram de sua boca. — Ah, não...? — Os olhos escuros de Jack pareceram interessados. — Eu vi meu marido... — Seu... hum? — O espetáculo à parte das emoções estampadas no rosto de Jack a interessou. Ele ficara aborrecido. Embora ela ainda não pudesse sentir isso, sabia que era uma boa coisa. — Não sabia que você era casada — ele optou por dizer. — E não sou. Bom, sou, mas nós nos separamos. — Magoada, acrescentou: — Vamos nos divorciar. Jack pareceu profundamente constrangido. — Meu Deus! Nunca passei por isso, de modo que não vou bancar o paternal e encher você de conselhos... Quer dizer, já tive alguns rompimentos, e é brabo, mas não a mesma coisa, imagino. Mas, enfim, bom, parece... — Procurou a palavra apropriada e não conseguiu encontrar nenhuma que fosse dramática o suficiente. — ...brabo, parece brabo. Ela assentiu. — É, sim. Nem sei por que estou te contando isso. — Numa súbita mostra de autocontrole e eficiência, assoou o nariz, vasculhou a bolsa e abriu um espelhinho. — Estou um espanto — disse, em tom prático. — Eu acho que está ótima... Depois de rápidos retoques com Beauty Flash e All About Eyes, disse: — É melhor eu voltar. Ashlings para escrachar, Gerrys com quem discutir... — Não precisa... Detendo-se, ela despiu por um momento sua persona profissional. — Você foi muito bom comigo — admitiu. — Obrigada.

— Aquele cara alto ali. — Ashling apontou por entre a multidão no River Club. — Aquele é seu namorado? — perguntou Clodagh, incrédula. — Ele é maravilhoso, lembra um pouco Dennis Leary. — Ah, que nada — protestou Ashling, eletrizada. Subitamente, quase se sentiu à altura de Clodagh. Está certo, Clodagh precisava de óculos, mas e daí? E quando visse Marcus atuando, então...! Era noite de sábado, e um elenco multiestelar iria se apresentar no River Club. Além de Marcus e Ted, Billy Bicicleta, Mark Dignam e Jimmy Bond também estavam no programa. — Depressa, usa a bolsa e o blazer para reservar o maior número possível de assentos. — Ashling se precipitou em direção a uma mesa vaga. Os humoristas iriam lhes dar a grande honra de se sentar à sua mesa, e Joy e Lisa também viriam. Até mesmo Jack Devine dissera que seria capaz de aparecer. Do outro lado do salão, Ted localizou Clodagh e se aproximou correndo. — Oi! — exclamou, com uma euforia patética. — Obrigado por vir. — Estou ansiosa para ver seu show — disse Clodagh, gentil. Ted puxou uma cadeira e sentou-se ao lado de Clodagh, de uma maneira que deixava bem claro que os dois eram amigos “especiais”. Ashling observou o gesto, ansiosa. A humanidade inteira sabia que Ted se sentia atraído por Clodagh. Mas e quanto a Clodagh? Ela fizera questão de vir sem Dylan. Ted falou pelos cotovelos, no auge da animação, até subitamente se dar conta de que iria vomitar. Seu nervosismo habitual fora altamente exacerbado pela presença de Clodagh. Pálido como um susto, deu uma desculpa e saiu a passos trôpegos para o banheiro. Ashling a tudo observara. O olhar de Clodagh não seguira o ziguezague de Ted. Tratou de brecar sua ansiedade ridícula. Clodagh e Ted, imagina! — Oi. — Joy chegou, cumprimentando Clodagh com um aceno de cabeça desconfiado.

— Oi. — Nervosa, Clodagh arriscou um sorriso. Joy fazia com que se sentisse ainda mais inferiorizada do que o habitual. Mas, segundo Ashling, Joy levara um fora do namorado há pouco tempo, devendo, portando, ser tratada com delicadeza. Em seguida, o olhar de Clodagh foi atraído por alguém que se aproximava da mesa. Uma mulher tão linda e reluzente, com um visual tão estiloso e transado, que Clodagh se sentiu mais inepta do que nunca. Torturara-se durante horas em relação às roupas que usaria aquela noite, uma noite pela qual ansiara desesperadamente, e ficara bastante satisfeita com o resultado, mas bastou um único olhar em direção às roupas fabulosas e acessórios transadíssimos da criatura para fazer com que Clodagh se sentisse patética, como se sua produção fosse simplória e equivocada. Pelo visto, a mulher iria se sentar à sua mesa — estava tirando o blazer e cumprimentando Ashling... Merda! Devia ser... — Lisa, minha chefe — apresentou-a Ashling. O máximo que Clodagh conseguiu fazer foi acenar com a cabeça, calada. Em seguida, enciumada, observou Lisa cumprimentar Joy, como se fosse uma velha amiga. — Michael Winner, o príncipe Edward e Andrew Lloyd Weber, e você tem que dormir com um deles! — Acho que o príncipe Edward. — Joy estava um tanto apática. — David Copperfield, Robin Cook ou Wurzel Gummidge? — Eca. — Lisa franziu o cenho. — Wurzel Gummidge — por favor! Robin Co... não. David Copperf... não, não dá. Acho que vai ter que ser Wurzel Gummidge. Ugh! Louca para participar, Clodagh se voltou para Ashling e a desafiou em voz alta: — Brad Pitt, Joseph Fiennes e Tom Cruise, e você tem que dormir com um deles! Lisa e Joy se entreolharam. Clodagh não tinha pego o espírito da coisa, tinha? Tarde demais, Clodagh compreendeu que dissera algo errado. — Ah — fez ela, morta de vergonha com a própria burrice. — É para eles serem feios, não é? Quem quer uma bebida?

— Clodagh, deixa eu te apresentar ao... — começou Ashling. Marcus acabara de chegar à mesa. — Marcus, essa é Clodagh, minha melhor amiga. Quando Marcus trocou um aperto de mão com Clodagh, ela se sentiu um pouquinho melhor. Era simpático e gentil, ao contrário daquelas duas filhas-da-puta, Joy e Lisa. — Vou pedir uma rodada — disse Clodagh, sorrindo para Marcus. — Quer beber alguma coisa? — Só um Red Bull. Não bebo antes de me apresentar — explicou ele, educado. — Tudo bem, depois eu peço um drinque decente para você. — Cerimoniosa, perguntou a Joy: — O que você vai beber? — Um Red Square. — Um Red... o quê? — Clodagh jamais ouvira falar em tal drinque. — É vodca com Red Bull — explicou Ashling. — Também vou querer um. — Eu também — secundou-a Lisa. E eu também, decidiu Clodagh. Em Roma, faça como os romanos... Opa! Quem era aquele? Chegara um homem alto e despenteado, que se postara no canto do grupo, com ar constrangido. Lindo! Não fazia bem o tipo de Clodagh — um pouco mal-ajambrado demais —, mas, mesmo assim... Foi quando ela notou que Lisa grudara no sujeito como se tivesse ventosas. — Será que, hum, o namorado da Lisa gostaria de beber alguma coisa? — perguntou Clodagh a Ashling. — Quem? Ah, Jack. Ele não é namorado da Lisa, é nosso chefe. — Bom, será que seu chefe gostaria de beber alguma coisa? Ashling conteve um suspiro e perguntou a Jack, de má vontade: — Sr. Devine, essa é minha amiga Clodagh, ela vai dar um pulo no bar. Jack sorriu para Clodagh, apertando sua mão. — Pode me chamar de Jack. — E fez questão de pagar a rodada.

Ashling não conseguiu controlar uma crise de ciúmes. Por que ele não podia ser amável com ela? Decidiu, então, concentrar-se em Marcus, e imediatamente se sentiu melhor. Antes de o show começar, ele foi assediado por uma fila interminável de fãs. Do sexo feminino, na maioria. Observando as mulheres a abordá-lo, Ashling se encheu de orgulho pelo fato de ele ser seu namorado. Não conseguiu deixar de se sentir valorizada por ter ganho Marcus. Ele poderia ter tido qualquer uma, pensou, mas escolheu a mim. Era a noite de Clodagh, não restava a menor dúvida. Os humoristas — intimidados por Lisa, cheios da cara de Joy e respeitosos com Ashling, pelo fato de ser a namorada de Marcus — aglomeravam-se ao redor de Clodagh, com seu novo corte de cabelo cheio de balanço, seu lindo rosto e suas calças brancas. O rostinho moreno de Ted era o retrato da infelicidade, mas ele não tinha como sobrepujar a vantagem numérica dos rivais. Clodagh se esbaldava, virando um Red Square atrás do outro. Durante um dos intervalos, Ashling a ouviu dizer a um bando de homens: “Eu era virgem antes de me casar.” Piscando o olho, acrescentou: “Quer dizer, muito antes.” Os homens se acabaram de rir, e Ashling não pôde conter um pensamentozinho vergonhoso: Não é tão engraçado assim. Mas tratou de reprimi-lo — Clodagh não tinha culpa por ser linda. E era realmente muito bom vê-la se divertindo tanto. Quando Clodagh cruzou as pernas, todos os olhos brilharam, acompanhando o movimento. Totalmente distraída, deixou que a mule bordada lhe escorregasse até a ponta do pé, e ficou a balançá-la suspensa do dedão. Ashling viu vários pares de olhos — todos masculinos — movendo-se para cima e para baixo, em sincronia com o balanço, parecendo levemente hipnotizados. O número de Ted bombou e, quando ele voltou para a mesa, na euforia do triunfo, Ashling observou Clodagh esfregar seu ombro e dizer: “Você estava genial!”

Passado algum tempo, Ashling viu Clodagh sorrir para Jack Devine, a ponta da língua projetando-se safadamente por entre os dentes. Em seguida foi a vez de Billy Bicicleta receber o mesmo tratamento. Ah, não! Era seu sorriso Sou-linda-e-sei-disso — ou, pelo menos, era o que ela pensava. Na verdade, como dizia Phelim a esse respeito, era seu sorriso de bode velho safado, ao estilo de Benny Hill. Da próxima vez que Ashling olhou, o comportamento de Clodagh se deteriorara acentuadamente. Com o jeito dengoso de um gatinho meigo, esfregava o rosto nos ombros de todos os homens e lhes explicava, com a encantadora cara de sono dos bêbados: “Eu tenho dois fígios, de modo que quage não chaio de casa.” Abraçou Lisa e disse, com toda a sinceridade: “Tô bebinha, bebinha! Eu quage não chaio de caja, entenge?” Nesse momento viu Ashling olhando para ela e exclamou “Ah, Ashling, tô bebinha, bebinha! Tá jangada comigo?” Mas, antes que Ashling pudesse dizer que não, Clodagh já lhe dera as costas e, com voz enrolada, explicava a Mark Dignam: “Tenho dois fígios, de modo que quage não chaio de caja.” Marcus foi o último do programa e, quando subiu ao palco, Clodagh estava aos risinhos e cochichos com Jack Devine. Ashling ficou aborrecida, pois esperara ansiosamente por esse momento para mostrar a todo mundo o quanto seu namorado era talentoso. — Shhhh! — Deu um cutucão em Clodagh, indicando o palco. — Gisculpe! — pediu Clodagh em voz alta — alta demais. Depois disso passou a soltar as gargalhadas mais escandalosas toda vez que Marcus dizia algo. Quando, em meio a uma clamorosa salva de palmas, ele voltou para a mesa, Clodagh se atirou nos seus braços, dizendo com a máxima ênfase: “Vochê tava HILÁRIO!” Marcus desvencilhou-se delicadamente dela e a conduziu de volta à sua cadeira, ao lado de Ashling. Ao se sentar, apertou a mão de Ashling e lhe deu um sorriso cúmplice. — Ela tem razão — murmurou Ashling. — Você estava mesmo hilário.

— Obrigado — disse ele, por mímica labial, e os dois compartilharam um momento de apreciação recíproca e intensa que durou muito mais do que manda a decência. — Quer diger então que acabou? — perguntou Clodagh. — Não tem mais piadas? A gente tem que ir pra caja? — Não, imagina! — Jimmy Bond fez um ar horrorizado. — O bar fica aberto até as duas. — Genial! — exclamou Clodagh, logo se encarregando de derrubar a bebida de alguém. O copo chocou-se com estrépito na mesa e um rio de cerveja correu pela superfície, indo despencar nas coxas de Billy Bicicleta. — Gisculpegisculpegisculpegisculpegisculpe — pediu Clodagh, atordoada. — Putchz, giscuuuuulpe meshmo. Mark Dignam voltara para a companhia do grupo em tempo de assistir à cena, Billy Bicicleta esfregando as coxas ensopadas com a manga do paletó e Clodagh se desculpando, confusa. Antes que qualquer um se pusesse a recriminá-la, Mark contou-lhes a novidade, em tom de confidência, franzindo o cenho para granjear compaixão: — Ela tem dois filhos, de modo que quase não sai de casa! Ato contínuo, Clodagh entabulou um longo tête-a-tête com uma mulher sentada a outra mesa. As duas pareciam estar resolvendo os problemas do mundo, mas, quando Ashling ouviu um trecho da conversa, tudo que pareciam estar dizendo uma para a outra era: — Quando a pechoa não tem fígios, não entenge echas coijas. — É icho aí. Quando a pechoa não tem fígios, não entenge echas coijas.

Em seguida Clodagh foi ao banheiro e, como ainda não tivesse voltado dez minutos depois, Ashling se pôs a perscrutar nervosamente o salão, até localizá-la tendo uma conversa íntima com um trio de mulheres. Quando tornou a olhar, Clodagh estava às gargalhadas em companhia de um homem. Pouco depois Ashling a viu batendo papo com dois rapazes, fazendo gestos complicados, que, ao que tudo indicava, ilustravam o processo de extração do leite materno. Mas, como parecesse alegre — e os dois rapazes também —, Ashling decidiu deixá-la em paz. Não muito tempo depois, Ashling foi ao bar e, mal fez o pedido, viu Clodagh trocando as pernas por entre as mesas, para logo esbarrar numa delas, fazendo doze copos cambalearem. — Opa! — exclamou em voz alta. Dois homens encostados no bar também observavam Clodagh. — Essa foi por pouco — comentou um deles, ao que os copos conseguiram recuperar seu equilíbrio após o bamboleio. — É mesmo — respondeu o outro. — Mas é que ela tem dois filhos, de modo que quase não sai de casa. — Desculpe, será que dava para você trocar um desses Red Squares por um Red Bull? — pediu Ashling, num impulso, ao barman. Clodagh já bebera demais. Mas, por incrível que pareça, embora bêbada, Clodagh percebeu que a haviam engrupido com uma bebida não-alcoólica, e ficou um pouco azeda. — Devem eshtar achando que chou alguma imbechil — reclamou. — Chó poge chêr, eshtão achando que chou uma grangechíchima imbechil. — Você acha que a gente devia levar ela para a casa? — murmurou Marcus. Ashling assentiu, extremamente agradecida. — Não chaio até me chervirem um drinque dechente — teimou Clodagh, agressiva. Marcus foi compreensivo e paciente, como se explicasse a situação a uma criança: — É que a Ashling e eu queremos ir para casa, entende, e seria uma boa idéia a gente te deixar em casa antes. — Então vão pra caja, ué — ordenou Clodagh. — Mas nós gostaríamos muito que você viesse no táxi com a gente. — É... Até poge chêr — disse Clodagh, emburrada. — Mas icho é chó porque eu goshto de vochês.

— Precisam de ajuda? — perguntou Ted, esperançoso. — Não — disse Ashling, firme. — A gente vai só levar ela de volta para o marido. Clodagh envolveu Ted num grande abraço, franziu os lábios num biquinho — Ashling quase pôs um ovo — e deu-lhe um beijo na testa. — Vochê é uma gracha — disse, carinhosa. — Não esqueche de vir me vigitar. — Não esqueço! — Vamos indo. — Ashling a segurou pelo braço, mas Clodagh girou o tronco, tentando ir atrás de alguma outra pessoa. — Tchau, Jack — disse, com vozinha cantada. — Tchau, Clodagh, foi um prazer te conhecer — disse ele, sorrindo. — O prager foi todo meu. — A voz de Clodagh estava pastosa como creme. — Eshpero que a gente che reveja em breve. Ai, Ashling! Chê tá arrancando meu bracho! Com a cara fechada, Ashling a rebocou até a saída. No banco traseiro do táxi, Clodagh desfechou uma longa e amarga queixa sobre como Ashling e Marcus eram dois desmancha-prazeres, como ela não queria voltar para casa, como estava se divertindo, como tinha dois filhos e quase não saia de casa... Então, bruscamente, no meio do ramerrão, fez-se silêncio. Com o queixo descaído sobre o peito, ela emborcou tranqüilamente. Quando Dylan abriu a porta da sala, Marcus disse, bem-humorado: — Encomenda de uma mulher bêbada para você. Assina aqui. Aos trancos e barrancos, Marcus e Ashling ajudaram Clodagh a entrar em casa. Em seguida, voltaram ao táxi, a fim de ir para casa. — Tem uma caneta? — perguntou Marcus a Ashling, enquanto o carro voava pelas ruas, rumo ao apartamento de Ashling. — Tenho. — E um papel? Ashling já revirava a bolsa. Com o canto do olho, viu Marcus anotar alguma coisa. Podia jurar que era “Encomenda de uma mulher bêbada para você. Assina aqui”. Mas, antes que pudesse ter certeza, ele já dobrara e guardara o papel. No dia seguinte, o telefone de Ashling tocou às oito e meia da manhã. Pelo adiantado da hora, devia ser Clodagh, de ressaca. E era a própria.

— Estou acordada desde as seis horas — disse, humilde. — Só queria me desculpar por ontem à noite. Me desculpe, me desculpe de coração. Eu fiz um papelão muito grande? Acho que o problema é que tenho dois filhos e quase não saio de casa. — Você se portou muito bem — disse Ashling, sonolenta. — Todo mundo achou você o máximo. É Clodagh?, Marcus perguntou a Ashling por mímica labial. Ela assentiu. — Você estava maravilhosa — ele elevou a voz, de seu travesseiro. — Uma gracinha. — Quem é? É Marcus? É muita gentileza da parte dele. Diz a ele que achei o show dele genial. — Ela achou o seu show genial — Ashling transmitiu o recado, voltando-se para Marcus. Mas o alívio de Clodagh não durou mais do que um momento. — Não posso te dar uma idéia do quanto estava louca para sair e de como me diverti, mas agora você nunca mais vai me deixar sair com vocês de novo. Foi a melhor noite que tive em anos, e estraguei tudo. — Deixa de ser boba, você pode sair com a gente quando quiser! — Hum, Ashling, você tem idéia de como cheguei em casa? — Marcus e eu te levamos de táxi. — Ah, sim — disse Clodagh, segura. — Eu me lembro... Para ser franca, não me lembro, não — fraquejou. — Lembro dos humoristas durante o show, mas de quase nada depois disso. Fiquei com a sensação horrível de ter derrubado a cerveja de alguém, mas acho que deve ser minha imaginação. — Hum, deve ser. — Mas é muito desagradável não lembrar como cheguei em casa — Clodagh recomeçou a se martirizar. — Ah, meu bom Deus — sua voz despencou várias oitavas, até se tornar um gemido incrédulo. Subitamente se lembrara de algo horrível demais. — Estou com uma sensação horrível... Ah, não, não posso ter feito isso. — O quê? — Uma daquelas mulheres com quem eu estava conversando no banheiro estava grávida. Acho que me ofereci para mostrar a ela como os pontos da minha episiotomia cicatrizaram bem. Ah, que droga, diz que eu não fiz isso — gemeu baixinho. — É minha imaginação. Só pode ser.

— Só pode — mentiu Ashling, categórica. — Bom, mesmo que não seja minha imaginação, vou fingir que é. A culpa é daquele Red Bull! — exclamou. — Nunca mais quero ver um copo daquilo na minha frente! Quando Clodagh desligou, Marcus beijou Ashling e perguntou baixinho: — Fui bem ontem à noite? — Bom... não. — Ashling ficou surpresa. Eles não tinham feito amor ao chegar em casa. — Não? — A voz dele ficou aguda de angústia. Ah, meu Deus! Tarde demais, Ashling compreendeu do que ele estava falando. — No show? Pensei que você estivesse querendo dizer na cama. Você foi fantástico no show, eu te disse isso ontem. — Melhor do que Billy Bicicleta, “um dos maiores humoristas da Irlanda”? — Você sabe que sim. — Se soubesse, não teria que perguntar. — Melhor do que Billy, melhor do que Ted, melhor do que Mark, melhor do que Jimmy, melhor do que todo mundo. — Ashling queria voltar a dormir. — Tem certeza? — Absoluta. — Mas aquela piada do Jimmy sobre os torcedores de futebol foi ótima. — Foi razoável — disse Ashling, cautelosa. — Quão razoável? — Marcus caiu em cima dela. — Numa escala de um a dez? — Um — bocejou Ashling. — Foi uma merda. Agora vamos voltar a dormir.

A visita de Oliver estilhaçara o frágil equilíbrio emocional de Lisa. No trabalho, sua cabeça estava nas nuvens, e seu estoque de comentários venenosos, bastante desfalcado. Para piorar ainda mais as coisas, ele não lhe telefonara. Ela tinha a esperança de que o fizesse, pelo menos para deixar alguma piada na secretária-eletrônica, do tipo “Muito grato pela trepada”. Ainda mais agora, que tinha o número de seu telefone. Mas os dias foram passando e, com eles, suas esperanças. No quinto dia, a ansiedade tornou-se insuportável e ela lhe telefonou, mas caiu direto na caixa-postal. Ele estava viajando, deduziu ela, se divertindo, levando a vida que ela um dia levara. Entre a desolação e o exaspero, desligou, ferida demais para deixar um recado. Já devia saber que ele não manteria contato com ela. Estava tudo acabado, ambos sabiam disso e, no momento em que ele tomava uma decisão, era incapaz de voltar atrás. Apática e aérea, não conseguia deixar de repassar as questões sobre as quais devia ter refletido seis meses, nove meses, um ano antes. O que acontecera com seu casamento? O que dera errado? Como acontece com tantos outros relacionamentos, o seu afundara por causa de filhos. Mas, no caso dos dois, os papéis estavam invertidos: era ele quem queria tê-los, não ela. Ela pensara que queria tê-los. Tinha havido uma temporada em que todo mundo que era alguém estava esperando a visita da cegonha: várias Spice Girls; uma pletora de modelos; diversas atrizes. Um barrigão era uma declaração de estilo, tanto quanto uma pashmina ou uma bolsa de Gucci; a gravidez passava por um apogeu fashion. Ela chegara a incluí-la numa lista — Gravidez era “Uau” e Gargantilha era “Uó”. Pouco depois, o quente era a mulher ser vista empurrando um pimpolho num carrinho preto — não saia de casa sem um! Lisa, com seu olho de verruma, que registrava as variações infinitesimais no gráfico da Ascensão & Queda das bossas, não deixou passar esse movimento.

— Quero ter um filho — disse a Oliver. Oliver não mostrou o mesmo entusiasmo. Gostava da vida social intensa e estilosa que levavam, e sabia que um bebê poria um freio nela. Seria o fim das festas varando a madrugada, o fim dos sofás brancos, o fim das viagens de última hora para Milão. Ou Las Vegas. Ou mesmo Brighton. Suas noites de insônia não mais o seriam por cortesia de cocaína de alta qualidade, e sim de uma criança aos berros. Toda a renda disponível seria desviada dos jeans Dolce & Gabbana e aplicada em montanhas de fraldas descartáveis. Mas Lisa pôs-se a minar sua resistência e, de grão em grão, terminou por convencê-lo. Chegou até a apelar para seu orgulho de macho: — Você não quer passar seus genes adiante? — Não. Até que um dia, deitados na cama, ele disse: — Tá. — Ta o quê? — Tá, vamos ter um filho. — E, antes mesmo que Lisa tivesse tempo de soltar uma exclamação de prazer, ele já pegara sua cartela de pílulas na mesa-de-cabeceira e as jogara no vaso, arrematando o cerimonial com uma descarga. — Agora é sem rede de proteção, paixão. Em suas fantasias, Lisa já se via exibindo um delicioso bebezinho cor de café ao quadril esguio. — Bebês não são bonecos — observou Fifi. — São seres humanos e dão uma trabalheira danada. — Eu sei disso — soltou Lisa, ríspida. Mas a verdade era que não sabia. Até que uma colega na revista engravidou — Arabella, uma mulher atilada e um pouco perigosa, rápida, ferina e sempre impecavelmente bem-vestida. Pois da noite para o dia passou a ser vítima de náuseas atrozes. Uma vez chegou mesmo a vomitar na cesta de lixo. Quando não estava no banheiro urinando ou vomitando, estava sentada à mesa, com o tronco arriado, morta de enjôo, roendo raiz de gengibre, exausta demais para trabalhar. E a comida? Apesar da náusea onipresente, comia horrores.

— A única coisa que acalma meu estômago é comida — murmurava, enfiando outra empada de carne pela goela abaixo. Em pouco tempo parecia alguém que foi enterrado até o pescoço num buraco na areia. Seu cabelo, outrora brilhante, ficou crespo e feio, e, do nada, ela se tornou propensa a surtos de herpes labial. Sua pele tornou-se flácida e escamosa nas zonas tomadas pela psoríase, e suas unhas lascavam e se quebravam. Aos olhos supercríticos de Lisa, ela se parecia mais com a vítima de alguma peste do que com uma grávida. O mais chocante de tudo foi a perda total de sua capacidade de concentração. No meio de uma entrevista com Nicole Kidman, esqueceu-se do nome da atriz, e só o que lhe ocorria era o apelido pelo qual a chamavam na redação, Encolhe Kidman. Não conseguia se lembrar se sua saia traspassada de velcro John Rocha era da última estação ou da penúltima. E essas coisas eram elementares, notou Lisa, com inquietação crescente. Finalmente, um belo dia, Arabella viu-se incapaz sequer de se decidir entre um Magnum Branco e um Magnum Clássico. — O Bran... Não, o Clássi... Não, não, espera aí. O Branco. O Branco e não se fala mais nisso. Não, o Clássico... — Ela poderia representar a Inglaterra num campeonato mundial de indecisão. — Meu cérebro virou uma gelatina de limão — lamuriou-se. Totalmente apavorada, Lisa foi visitar outra mulher que tivera um bebê — Eloïse, editora de variedades da Chiquésima. — Como vai indo? — perguntou Lisa. — Psicótica das noites passadas em claro — respondeu Eloïse. Era pior do que isso. Embora já fizesse seis meses que Eloïse tivera seu bebê, ainda estava parecendo alguém que foi enterrado até o pescoço num buraco na areia. E havia outra coisa. Tornara-se uma pessoa passiva, perdera toda a dureza. Essa era a editora que um dia fora conhecida como Átila. Demitia sem pestanejar — no passado, pelo menos. Agora, era uma mulher marcada por um vago porém inequívoco ar sentimental.

Lisa engatou uma marcha a ré desesperada. Não queria mais saber de bebês, eles destruíam a vida da mulher. Era fácil para as modelos e Spice Girls, que tinham equipes de babás para garantir seu sono, personal trainers para ficar no seu pé até recuperarem a silhueta e cabeleireiros particulares para pentear seus cabelos quando não tinham forças. A essa altura, porém, Oliver lá estava entusiasmado com a idéia. E o problema de Oliver era que, no momento em que tomava uma decisão, era muito difícil fazê-lo mudar de idéia. Em segredo, ela recomeçou a tomar a pílula. Nem morta iria destruir sua preciosa carreira! Ah, sim, a carreira de Lisa. Oliver também fazia objeções a ela, não? — Você é uma workaholic — vivia a acusá-la, com frustração e raiva crescentes. — Os homens sempre dizem isso das mulheres bem-sucedidas. — Não, não estou só querendo dizer que você trabalha demais, embora seja o caso. Paixão, você é obsessiva. Não fala em outra coisa além da política da empresa, dos números de circulação, do pé em que está a competição entre as revistas... “Pelo menos nós ganhamos mais com a publicidade... Fizemos esse artigo há seis meses... Ally Ben quer me ver pelas costas.” — E quer, mesmo. — Não quer, não. Louca de irritação por não ser compreendida, Lisa lhe lançou um olhar feroz: — Você não tem noção de como é, todas elas querem ser eu, todas aquelas garotas de vinte anos de idade. Elas me trairiam e apunhalariam pelas costas na primeira oportunidade. — Só porque você pensa assim, não quer dizer que todo mundo pense. Você está paranóica. — Não estou, não, estou te dizendo como a coisa é. Elas só são leais consigo mesmas. — Exatamente como você, paixão. Você se tornou uma pessoa tão dura, despediu tanta gente. Não devia ter despedido Kelly, era um amor de garota e apoiava você. A vergonha tremeluziu por um átimo de segundo.

— Ela não agüentou o rojão, não era dura bastante. Preciso de uma redatora de variedades que não tenha medo de disparar sua metralhadora-giratória. Pessoas legais como Kelly empatam a revista. — Voltando-se contra Oliver: — Não senti nenhum prazer em despedir Kelly, se é isso que você pensa. Achava que ela era uma boa pessoa, mas não tive escolha. — Lisa, acho você o máximo, sempre achei. Eu... — Calou-se, à procura da palavra certa. — ...admiro você, respeito você... — Mas? —desafiou Lisa, ríspida. — Mas existem outras coisas na vida além de ser a melhor. Uma risada de deboche: — Não existem, não. — Mas você é a melhor. Tão jovem, tão bem-sucedida, por que isso não basta? — Esse é o problema do sucesso — murmurou Lisa. — Você tem que estar sempre se superando. Como podia lhe explicar que, quanto mais conseguia, mais queria? Cada cartada brilhante trazia na sua esteira uma sensação de vazio, e ela se atirava à busca da próxima cartada, na esperança de que então, sim, teria a sensação de que chegara aonde queria. A satisfação era fugaz e esquiva, e o sucesso simplesmente a deixava com fome de mais, mais, mais. — Por que importa tanto? — perguntou Oliver, em desespero. — É só um emprego. Lisa se horrorizou ao ouvir isso. Ah, o quanto ele estava enganado...! — Não é, não. É... tudo. — Você vai mudar de idéia quando engravidar. No ato, o terror lhe deu um banho de suor. Ela não iria engravidar. Tinha de dizer isso a ele. Mas tentara, e ele não quisera ouvi-la. — Vamos viajar este fim de semana, paixão — sugeriu ele, com uma animação que não estava sentindo. — Só você e eu, juntinhos, como no passado. — Tenho que dar um pulo no escritório, no sábado. Devo ficar umas duas horas por lá. Preciso checar o layout antes de ir para a gráfica... — Ally poderia fazer isso. — Nem pensar! Ela ferraria tudo de propósito para me expor.

— Está vendo o que quero dizer? — tornou ele, ressentido. — Você é obsessiva e quase nunca tem tempo para mim, só em lançamentos e inaugurações... E sua companhia já não é mais o que era antigamente. E por aí foi a infindável e amarga sucessão de frustrações e desilusões, uma litania crescente de ressentimentos e acusações, de separação e isolamento um do outro. Duas pessoas que gradualmente haviam se fundido numa só, novamente voltavam a ser duas, nitidamente definidas e distintas. No dia do ano-novo, Oliver encontrou uma cartela de pílulas na bolsa de Lisa. Depois de uma longa e violenta discussão, não trocaram mais uma palavra. Oliver fez suas sacolas (inclusive uma de Lisa) e foi embora. — Quem vai comprar o almoço hoje? — perguntou Lisa. — Eu — Trix respondeu depressa. Depressa demais. Trix adorava ir buscar as encomendas do almoço, não porque desejasse ser útil aos colegas, mas porque isso lhe garantia duas horas de almoço. Levava quatro minutos para caminhar até a lanchonete e mais seis para encomendar, pagar e receber os sanduíches, o que lhe deixava quarenta e cinco minutos para bater pernas e olhar vitrines em Temple Bar, antes de voltar para a redação e acusar aos brados a multidão de indecisos à sua frente na fila dos sanduíches, os babacas que trabalhavam lá e eram incapazes de distinguir uma galinha de um abacate, o sujeito que sofrera um ataque do coração, e ela ainda tivera que afrouxar suas roupas e esperar com ele a chegada da ambulância... Embora estivessem todos até aqui de trabalho, a pouco mais de um mês do lançamento da Garota, ainda assim mal podiam esperar pelas desculpas de Trix, cada vez mais descaradas. Em seguida, ela se sentava e levava quinze minutos para comer seu sanduíche, antes de olhar para o relógio e anunciar: — Uma e cinqüenta e sete, vou buscar as encomendas do almoço, vejo vocês às duas e cinqüenta e sete. — Hoje vou querer uma coisa um pouquinho diferente para o almoço — disse Lisa a Trix.

— Ah, hambúrguer — compreendeu Trix. — Não. — Não? — Nem só de sanduíches e hambúrgueres se faz um almoço. Trix fez uma expressão perplexa. — É alguma fruta que você quer? — Sua testa carregada de maquiagem franziu-se, confusa. Ela sabia que Lisa às vezes comia maçãs, uvas, esse tipo de coisas. Trix jamais comia frutas. Nunca, jamais, em tempo algum. E se orgulhava muito disso. — Gostaria de comer sushi. A sugestão era tão repugnante que deixou Trix sem fala. — Sushi? — disparou, por fim, horrorizada. — Quer dizer, peixe cru? Lisa lera no fim de semana que um empório de sushi havia aberto uma filial em Dublin, e tinha a esperança de que, experimentando seus produtos, conseguisse sair da depressão provocada por Oliver. Mas também tivera a mesma esperança em relação ao show humorístico de sábado à noite, e dera em nada, apesar de Jack ter de fato aparecido e conversado com ela durante boa parte da noite — isto é, quando não estava conversando com aquela chata de galochas da Clodagh. — Alguns dos seus melhores amigos são peixes — argumentou Lisa, com ar entediado. — Quantas vezes vou ter que dizer a vocês que nunca tem peixe na van quando ando nela?! — Toma aqui, desenhei um mapinha para você — disse Lisa. — Basta pedir uma caixa bento. — Uma caixa bento? Você está inventando isso? — rosnou Trix, horrorizada à hipótese de bancar a palhaça. — Não, é assim que embalam o sushi para viagem. Na loja eles vão saber do que você está falando. — Uma caixa bento — repetiu Trix, desconfiada. — Quem é que encomendou uma caixa bento? — Jack aparecera na redação. — Ela — lamuriou-se Trix, ao mesmo tempo que Lisa dizia “Eu”. Trix encetou uma acusação em voz alta contra Lisa, queixando-se de estar sendo obrigada a comprar e transportar pela cidade afora um asqueroso peixe cru, e como a simples idéia já a deixava com vontade de vomitar... — Outra pessoa pode ir buscar as encomendas do almoço, se você preferir — sugeriu Jack, mansamente. — Não, tudo bem — disse Trix, emburrada, mas depressa.

Então, para surpresa de todos, Jack disse: — Toma aqui, traz uma para mim também. Boquiaberta, Lisa o viu vasculhar o bolso da calça atrás de dinheiro, o ombro encostando no queixo enquanto a mão trabalhava. Por algum motivo, acreditara que Jack fizesse o tipo feijão-com-arroz, aquele sujeito que diz: “Se não consigo dizer o nome, não como.” Mas ele havia vivido nos Estados Unidos... A mão de Jack saiu do bolso segurando um tíquete de estacionamento, para o qual ele lançou um olhar de tristeza: “Assim não dá.” Recomeçou a busca, dessa vez localizando uma nota de cinco que já vira dias melhores, e entregando-a a Trix. — É capaz de não aceitarem — reclamou Trix. — Que foi que você fez com ela? Parece que saiu da boca de um cachorro. — Deve ser a que foi para a tinturaria — disse Jack. — Esqueci no bolso da camisa. Trix ficou indignada. Como alguém podia esquecer dinheiro num bolso? Sabia exatamente de quanto dinheiro vivo dispunha em qualquer momento de sua vida, até a última moedinha de dez pence. Era precioso demais para ser esquecido no bolso de uma camisa. Jack voltou para seu escritório, e Kelvin chegou, pela primeira vez naquele dia. Acabava de voltar de uma conferência de imprensa. — Adivinhem o que aconteceu — perguntou, sem fôlego. — Que foi? — Está tudo acabado entre Jack e Mai. — Não brinca, Sherlock — disse Trix, num tom de desprezo corrosivo. — Não, é sério. Acabaram mesmo, no duro. Não foi um rompimento do gênero Quem Tem Medo de Virginia Woolf. Acabaram para valer, de não brigarem mais e não se verem há mais de uma semana. — Como é que você sabe? — Eu, hum, encontrei a Mai no fim de semana. No Globe. Podem Crer — correu um meneio de cabeça enfático pela redação —, está tudo acabado entre os dois. — Meu Deus, você é patético — debochou Trix. — Tentando dar a entender que dormiu com ela. — Não, eu... Tá, confesso, estava, sim. Mas, mesmo assim, os dois acabaram. — Por quê? — perguntou Ashling. — Chegou ao fim — disse Kelvin, dando de ombros.

Lisa ficou surpresa com a transformação que a novidade operou nela. De repente, as coisas já não pareciam mais tão negras. Jack estava disponível, e ela sabia que tinha uma chance. Ele sempre se sentira fisicamente atraído por ela, mas algo mudara naquele dia da semana passada em que ela chorara no seu escritório: a vulnerabilidade dela e a brandura dele os haviam aproximado. E se deu conta de uma coisa. Gostava dele. Não da mesma maneira de quando chegara a Dublin, naquele estilo duro, agressivo, Sempre-consigo-o-que-quero. Na época, sentira-se atraída por sua aparência e por seu emprego, e persegui-lo fora apenas um projeto para esquecer a infelicidade que estava sentindo. Quando ele saiu do escritório para usar a copiadora, ela se chegou até ele e comentou: — Quem diria... — Quem diria o quê? — Você, um sushialista — provocou, balançando os cabelos. As pupilas dele se dilataram, imediatamente tornando seus olhos quase negros, e uma centelha brilhou nos olhares dos dois. Cinqüenta minutos depois, Trix entrou pisando duro no escritório, balançando o saco de sushi suspenso do dedo mindinho, mantendo-o o mais longe possível do corpo. — Que foi que aconteceu com você hoje? — perguntou Jack. — Foi tomada como refém durante um assalto a um banco? Raptada por alienígenas? — Não — reclamou Trix. — Tive que parar no O’Neill’s para vomitar as tripas. Toma aqui. — Praticamente atirou a sacola em Lisa, logo tratando de tomar o máximo de distância possível dela. — Ugh! — Estremeceu com exagero.

Lisa nutria a esperança de que Jack sugerisse que eles comessem o sushi a portas fechadas, no seu escritório. Tinha visões ambiciosas dos dois dando sushi na boca um do outro, e também fazendo algo mais do que almoçar. Em vez disso, porém, ele arrastou uma cadeira até a mesa de Lisa, e ela observou suas mãos grandes e seguras retirarem os pauzinhos, guardanapos e embalagens de plástico do interior do saco de papel. Colocando uma caixa bento diante de Lisa, ele abriu a tampa de plástico, apresentando-lhe as fileiras de belos sushis com um gesto elegante. — O almoço de madame — disse, bem-humorado. — Cuidado para não vomitar! Ela não conseguia identificar exatamente as emoções provocadas por seus atos, pois lhe escapuliam assim que tentava classificá-las. Mas eram boas: sentia-se segura, especial, num círculo de intimidade. Sob os olhares da redação em peso, Lisa e Jack comeram seu sushi como gente grande. Ashling, em particular, estava horrorizada, mas não conseguia tirar os dois da cabeça. Passava o tempo todo a espiá-los furtivamente, do jeito como fazem os transeuntes com os acidentes de trânsito graves, e estremecia toda vez que via algo que preferia não ter visto. Pelo que pôde constatar, não se tratava apenas de peixe cru. Havia pequenas trouxinhas de arroz com o peixe cru no centro, cuja ingestão era acompanhada por um ritual sofisticado: dissolvia-se uma pasta verde em algo que devia ser molho de soja, para em seguida molhar nela o lado de baixo do sushi. Fascinada, Ashling contemplou Jack levantando delicadamente com os dois pauzinhos uma fatia rosada e transparente e depositando-a com destreza sobre a trouxinha de arroz com peixe. As palavras saíram antes que ela se desse conta: — O que é isso? — Gengibre em conserva. — Por quê? — Porque é gostoso. Ashling assistiu durante mais alguns segundos, intrigada, antes de disparar: — Qual é o gosto? Do conjunto?

— Delicioso. Você tem o sabor picante do gengibre, o gostinho ardido da raiz-forte, este negócio verde aqui, e a doçura do peixe — explicou Jack. — É um gosto sem igual, e vicia. Ashling estava louca de curiosidade. Uma parte de si ansiava por sentir aquele gosto, experimentá-lo, mas, vamos combinar, peixe cru... Não, fala sério: peixe! E cru, ainda por cima! — Dá uma provadinha. — Jack estendeu os pauzinhos em sua direção, equilibrando entre eles o sushi que preparara. Ashling desviou o corpo imediatamente, uma onda quente de rubor espalhando-se por seu rosto: — Hum, não. Não, obrigada. — Por que não? — Os olhos escuros de Jack estavam rindo dela. De novo. — Porque é peixe cru. — Você não come salmão defumado? — perguntou ele, incapaz de esconder seu divertimento. — Eu não — intrometeu-se Trix, emburrada, sentindo-se segura no outro extremo da redação. — Prefiro enfiar agulhas nos olhos. — Última chamada! Tem certeza de que não quer experimentar um pouquinho? — Jack mansamente analisava Ashling, seus olhos recusando-se a abandonar os dela. Empertigada e cerimoniosa, Ashling sacudiu a cabeça e voltou ao seu misto-quente, com alívio, mas também com uma curiosa sensação de perda. Lisa adorou que Ashling saísse de campo. Estava simplesmente adorando esse momento de intimidade com Jack, além de impressionada com a maneira como ele manipulava os pauzinhos. Um misto de habilidade e estilo, como se tivesse nascido para isso. Se algum amigo o levasse a Nobu, não o envergonharia, pedindo garfo e faca. Ela também era bastante desenvolta no manuseio dos pauzinhos. Tinha que ser. Passara noites e noites treinando na privacidade de seu apartamento, sob as gargalhadas de Oliver: “Quem é que você está tentando impressionar, paixão?”

A lembrança de Oliver provocou-lhe uma dor profunda, mas haveria de passar. Jack ajudaria. — Troco meu sushi de enguia por um maki da Califórnia — propôs ela. — As enguias são heavy metal demais para você? — perguntou Jack. Lisa já ia protestar, mas admitiu, com um sorriso: — São, sim. Conforme previsto, Jack ficou muito satisfeito em comer a pa te de enguia crua de seu sushi. Enguia crua já era ir um pouco longe demais, até para uma apreciadora da boa mesa como ela. Os homens, no entanto, comem qualquer coisa, quanto mais nojenta, melhor: coelho, emu, jacaré, canguru... — Precisamos repetir a dose — sugeriu Lisa. — Hum-hum. — Jack recostou-se em sua cadeira e assentiu, pensativo. — Precisamos mesmo.

— Você não vai acreditar! Era noite de quinta e Marcus acabara de chegar ao apartamento de Ashling, com uma fita de vídeo debaixo do braço e os olhos acesos de excitação. — Vou abrir o show para Eddie lzzard sábado à noite! — C-como? — Estava combinado que seria Steve Brennan, mas ele foi hospitalizado com suspeita de doença de Creutzfeldt-Jakobi. Quem imaginaria? Vai ser um megashow. O rosto de Ashling ficou abatido de decepção. — Não vou poder ir. — Quê? — soltou Marcus, ríspido. — Não lembra que eu te disse que tenho que visitar minha família em Cork este fim de semana? — Desmarca. — Não posso — protestou ela. — Já adiei essa visita tantas vezes, que agora não dá mais para desmarcar. Os pais dela haviam ficado tão entusiasmados quando ela confirmara que finalmente os visitaria, que a simples idéia de dizer-lhes que não iria mais fez com que suasse frio. — Vai no outro fim de semana. — Não posso. Tenho que trabalhar. Mais uma sessão de fotos. — Sua presença é muito importante para mim — disse Marcus, sem alterar a voz. — É um grande show e vou apresentar um número novo, preciso de você lá. Ashling se contorcia, presa entre emoções conflitantes. — Desculpe. Mas é que eu me preparei psicologicamente para visitar meus pais, e faz tanto tempo... Até já comprei a passagem de trem — acrescentou. A medida que a expressão dele se tornava magoada e fechada, ela sentia as entranhas darem um nó cego. Tinha ódio de si mesma por deixá-lo na mão, mas alguém necessariamente teria que se decepcionar, ele ou seus pais. Gostava de fazer a vontade das pessoas, e essa era a pior situação em que podia se encontrar — um beco sem saída em que, não importa para que lado fosse, desagradaria a alguém. — Me desculpe mesmo — disse, com toda a sinceridade. — Mas as coisas com meus pais estão para lá de complicadas. Se eu não for, vou prejudicar ainda mais nosso relacionamento.

Esperou que ele perguntasse exatamente em que sentido as coisas estavam complicadas com seus pais, decidida a lhe contar tudo. Mas ele se limitou a encará-la com um olhar ferido. — Me desculpe — repetiu ela. — Tudo bem. Mas nada estava bem. Embora tivessem aberto uma garrafa de vinho e se acomodado para assistir à fita de vídeo que ele trouxera, o clima estava pesado. Era como se o vinho não contivesse uma molécula de álcool, e Ardal O’Hanlon vivesse o momento mais infeliz de sua carreira. Subjugada pelo sentimento de culpa, Ashling não conseguia pensar em um único assunto para entabular uma conversa. Pela primeira vez desde que começara a namorar Marcus, não lhe ocorria nada para dizer. Depois de duas horas arrastadas, quando deu dez da noite, ele se levantou, fingindo se espreguiçar. — É melhor eu ir para casa. O terror fez com que um pedregulho despencasse no estômago de Ashling. Ele sempre passava a noite no apartamento dela. Uma perspectiva nova e aterradora descortinou-se aos seus olhos: talvez não fosse apenas um desentendimento, talvez fosse O Fim. Ao ver Marcus avançando em direção à porta numa velocidade apavorante, sucumbiu ao instinto e reavaliou freneticamente suas opções. Talvez pudesse marcar uma nova visita a Cork. Que diferença fariam mais algumas semanas? Seu namoro com Marcus era infinitamente mais importante. — Marcus, me deixa pensar um pouco. — Sua voz estava trêmula de pânico. — De repente, posso até visitar meus pais daqui a mais algumas semanas... — Ah, não tem problema. — Ele esboçou uma sombra de sorriso. — Eu me viro. Mas vou sentir sua falta. O alívio só durou um instante. Talvez ainda não estivesse tudo acabado, mas, mesmo assim, ele estava prestes a ir embora de seu apartamento. — A gente poderia se ver amanhã à noite — sugeriu ela, ansiosa por uma chance de remediar as coisas. — Só vou viajar no sábado de manhã. — Ah, não. — Ele deu de ombros. — Vamos deixar para quando você voltar.

— Tudo bem — cedeu ela, a contragosto, com medo de insistir e acabar provocando uma ruptura maior ainda. — Volto no domingo à noite. — Me liga, quando chegar. — Pode deixar. O trem deve chegar por volta das oito, quer dizer, se não quebrar, e também tem sempre a fila do táxi, de modo que não sei a que horas vou chegar em casa, mas, assim que chegar, ligo para você. — Sua vontade de agradar fazia dela uma pessoa volúvel. Após um beijo rápido — nem longo nem apaixonado o bastante para acalmá-la —, ele foi embora. Como um alcoólatra que volta a beber assim que sua vida entra numa fase turbulenta, a primeira coisa que Ashling fez foi passar a mão no tarô. Deixara-o às traças nos últimos tempos, e, não fosse pelas consultas constantes de Joy, na esteira da partida de Metade-homem-metade-texugo, estaria coberto de poeira. Mas o evasivo conjunto de cartas que tirou não lhe proporcionou nenhum conforto. Nervosa e agitada, Ashling sentiu-se dominar pelo velho ressentimento contra sua família. Se pelo menos tivesse uma família normal, isso não teria acontecido. Pensou em Marcus por um momento. Não o culpava por se sentir inseguro. Como ele subia num palco e fazia o que fazia, era um mistério para ela. O rancor e o remorso geraram a insônia. Precisava falar com alguém. Mas Joy não era a pessoa indicada, e não apenas porque seu único assunto atualmente fosse “Todos os metade-homens-metade-texugos são iguais”. Teria que ser Clodagh ou Phelim, porque ambos sabiam tudo a respeito da família de Ashling. Eles a compreenderiam e lhe ofereceriam a solidariedade de que ela necessitava. No entanto, sua ligação para Phelim em Sydney foi atendida pela secretária-eletrônica, de modo que, apesar de já ser tarde da noite, Ashling não teve escolha, a não ser ligar para Clodagh. Depois de se desculpar por acordá-la, soltou o verbo sobre a triste história e concluiu exclamando:

— ... e eu não me importaria, mas tenho horror à idéia de visitar meus pais. Clodagh, porém, não pronunciou as devidas palavras de conforto. Em vez disso, falou, sonolenta: — Eu assisto ao show do Marcus, se você quiser. — Não, não foi isso que... — Posso ir com Ted! — A voz de Clodagh adquiriu um tom animado, quando a idéia se tornou uma possibilidade. — Ted e eu vamos no seu lugar, e damos apoio moral para Marcus. Isso fez com que Ashling se sentisse muito pior. Não queria saber de Ted e Clodagh ficando amiguinhos. — Mas e Dylan? — Alguém tem que ficar com as crianças. — Eu nem mesmo quero visitar meus pais — repetiu Ashling, esperando receber seu quinhão de solidariedade. — Mas sua mãe está muito melhor agora. Vai ser ótimo! Estamos à deriva, compreendeu Ashling um dia, aos nove anos de idade, antes do fim daquele terrível e estranho verão. Passou a se postar na esquina, no fim da rua, nas tardinhas de sexta, perscrutando a distância à procura do carro do pai, com uma sensação nauseante de sobe-e-desce no estômago. Enquanto esperava, entregava-se a vários jogos, para abafar o terror da idéia de que ele talvez jamais chegasse. Se o próximo carro for vermelho, vai ficar tudo bem. Se a placa do segundo terminar com um algarismo par, vai dar tudo certo. Por fim, certa manhã de segunda-feira, ela pediu a seu pai para não sair. — Eu tenho que ir — respondeu ele, seco. — Se perder meu emprego, não sei como vamos sobreviver. Faça uma força para ficar de olho nela. Ashling assentiu, séria, enquanto pensava consigo mesma: Ele não devia ter dito isso pra mim, sou só uma menina. — ...pois é, Ashling é muito responsável. Só tem nove anos, mas é muito madura para a idade.

Os adultos murmuravam coisas. Vinham pessoas à sua casa, conversavam em voz baixa e se calavam toda vez que Ashling se aproximava. “...os pais já têm uma certa idade, não conseguiram dar conta de três crianças cheias de energia...” Palavras novas e estranhas passaram a ser mencionadas. Depressão. Nervosismo. Colapso. Falavam de sua mãe “ir para algum lugar”. Por fim, sua mãe “foi” para o tal lugar, e seu pai passou a ter que levar os filhos consigo em suas viagens a trabalho. Percorriam longas distâncias, cheios de tédio e náusea do sacolejo do automóvel, Janet e Owen juntos no banco traseiro, entre vários modelos de aspirador de pó. Ashling sentava-se na frente como um adulto, enquanto atravessavam o país de ponta a ponta, parando em pequenas revendas de peças de reposição, em cidadezinhas do interior. Desde a primeira visita, ela absorveu a ansiedade de Mike. — Me deseje sorte — disse ele, apanhando a pasta de brochuras. — Esse sujeito tinha que resolver viajar logo no Natal...! E não mexa em nada. Pela janela do carro, Ashling observou seu pai cumprimentar o cliente no pátio em frente à garagem da casa, e o viu passar de irascível e preocupado a descontraído e tagarelante. De uma hora para a outra, ele dispunha de todo o tempo do mundo para um bate-papo. Não se importava nem um pouco com o fato de ainda ter mais oito visitas a fazer e estar atrasadíssimo, por ter saído de casa tarde: lá foi ele admirar o carro novo do sujeito. Tronco inclinado para trás, inspecionando o carro de todos os ângulos possíveis, distribuindo tapinhas de parabéns no ombro do outro. Enquanto conversava com o cliente, animado, todo sorrisos e piadinhas bem-humoradas, Ashling foi assaltada pela consciência de algo que era pequena demais para compreender: Isso é difícil para ele. Assim que Mike voltou para o carro, o sorriso se desfez, e ele retomou a brusquidão de antes. — Ele encomendou um aspirador pai?

— Não — respondeu ele, com os lábios apertados, apressando-se em dar marcha a ré, o carro cantando pneu enquanto era manobrado novamente em direção à estrada, rumo à próxima visita. Às vezes as pessoas encomendavam aspiradores, mas nunca na quantidade em que ele esperava, e, cada vez que tornava a entrar no carro e dava a partida, ele parecia mais humilhado. Quando a semana chegava ao fim, Janet e Owen já choravam e vociferavam praticamente o tempo todo, querendo voltar para casa. E Ashling ainda por cima arranjara uma otite — um mal que continuaria a acometê-la durante toda a sua vida, em épocas de tensão. Depois de três semanas de encarceramento, Monica voltou para casa sem dar quaisquer sinais óbvios de melhora. Como os antidepressivos que lhe receitaram surtiram o irritante efeito extrapiramidal de deixá-la sonolenta e lerda, o médico os substituiu por drogas de outro tipo, que tampouco lhe fizeram bem. E, apesar da entrada dos medicamentos em sua vida e dos rituais cada vez mais complexos de Ashling, as coisas jamais chegaram de fato a melhorar. A tristeza de Monica podia ser deflagrada por qualquer coisa, de algum desastre natural a um pequeno ato de crueldade aleatório. Um colegial truculento extorquindo o dinheiro de um colega mais fraco podia deflagrar a mesma torrente de lágrimas que um terremoto no Irã com milhares de mortos. Mas os dias de pranto silencioso, quase todos passados na cama, eram pontuados por episódios de gritaria e ódio violento, dirigidos contra o marido, os filhos e, principalmente, ela própria. — Não quero me sentir assim! — gritava. — Quem haveria de querer se sentir assim? Você tem sorte, Ashling, nunca vai sofrer como eu, porque não tem imaginação. Ashling aferrou-se a esse fato como se fosse um escudo. A falta de imaginação era um grande trunfo, pois impedia que a pessoa enlouquecesse. Monica era tão volúvel, que Ashling passou longos períodos de sua adolescência praticamente morando na casa de Clodagh.

Ocasionalmente, em meio ao torpor e à histeria, havia momentos de normalidade. Que, no fundo, nada tinham de normais. A cada camisa que Monica passava à perfeição, a cada refeição que servia pontualmente às seis da tarde, os nervos de Ashling esticavam-se um pouco mais, à espera do momento em que tudo descambaria novamente. E, quando acontecia, era quase um alívio. Aos dezessete anos, Ashling saiu de casa e foi morar num apartamento. Três anos depois, Mike arranjou um emprego a quase duzentos quilômetros de distância, em Cork, e, com a decorrente mudança dos pais, Ashling passou a vê-los muito raramente. Durante os últimos sete anos, o estado de Monica se estabilizara: a depressão e a fúria passaram tão inesperadamente quanto haviam chegado. Seu médico disse que estavam relacionadas com o fim da menopausa.

— Agora ela não está mais tão mal assim. — A voz de Clodagh trouxe-a de volta ao presente. — Eu sei. — Ashling soltou um suspiro cansado. — Mas, mesmo assim, não tenho nenhuma vontade de me aproximar dela. Sei que é uma coisa horrível de se dizer. Amo minha mãe, mas não me sinto bem na companhia dela.

Ashling deveria chegar a Cork no sábado por volta da hora do almoço, e voltaria na tarde de domingo, no trem das cinco. Ou, por outra, o “fim de semana” duraria apenas vinte e oito horas. E, dessas vinte e oito, ela passaria oito dormindo. O que deixava um total de apenas vinte horas para conversar com seus pais. Dava para tirar de letra. Vinte horas! Numa súbita crise de pânico, perguntou-se se trouxera cigarros bastantes. E revistas? E seu celular? Devia estar fora de si no momento em que dissera que viria. Enquanto contemplava a paisagem rural que ia passando na sacolejante janela, torceu para que o trem fizesse a gentileza de quebrar. Mas, não. É claro que não. É o tipo de coisa que só acontece quando a pessoa está morta de pressa. Aí, sim, o trem sem mais nem menos toma várias horas suas, parando de meia em meia hora nos ramais da linha ferroviária. Aí, sim, todos os passageiros têm que trocar de trem, aí, sim, têm que descer desse segundo trem e embarcar num ônibus estacionado em cujo interior faz um frio de rachar, e a viagem originalmente prevista para levar três horas termina levando oito. Em vez disso, o trem de Ashling chegou a Cork dez minutos adiantado — dez mortificantes minutos. Naturalmente, seus pais já estavam lá, à sua espera, se esforçando ao máximo para parecerem normais. Sua mãe poderia ter se passado por qualquer mãe irlandesa de certa idade: a permanente malfeita, o sorriso nervoso de boas-vindas, o cardigã de lã acrílica jogado sobre os ombros. — Que alegria ver você. — Monica estava prestes a romper em lágrimas de orgulho. — Para mim também. — Ashling não conseguiu deixar de se sentir culpada. Em seguida foi a vez do abraço de Monica. Seu inseguro cruzamento entre o breve toque dos dois beijinhos femininos e a trombada de corpo inteiro terminou saindo parecido com um corpo-a-corpo. — Oi, pai.

— Hum, bem-vinda, bem-vinda, bem-vinda! — Mike parecia desconfortável — afinal, também não fazia parte do roteiro que ele externasse seu afeto? Felizmente, ele tratou de apanhar a sacola de Ashling, com isso ocupando todas as mãos disponíveis. O trajeto rumo à casa de seus pais, a discussão sobre o que ela comera no trem e o debate sobre o que preferia, uma xícara de chá com um sanduíche ou só uma xícara de chá, durou bem uns quarenta minutos. — Só uma xícara de chá está ótimo. — Tenho bombons — tentou-a Monica. — E borboletinhas. Fui eu mesma que fiz. — Não, eu... ah... — A menção aos biscoitos em feitio de borboleta deixou Ashling num abatimento mortal. Monica abriu uma lata de biscoitos, exibindo pequeninos biscoitos deformados, cada um com duas “asinhas” porosas, terminando com um pingo de chantilly no alto. O chantilly fora todo polvilhado de confeitos e, ao engolir um pedaço de biscoito — uma asinha, para ser mais específica —, Ashling se deu conta de que também engolia o nó em sua garganta. — Tenho que ir à cidade — anunciou Mike. — Vou com você. — Ashling se levantou como se arremessada por uma catapulta. — Ah, vai? — Monica pareceu decepcionada. — Bom, mas não se atrasem para o jantar. — O que vamos comer? — Costeletas de porco. Costeletas de porco! Ashling quase soltou uma risada de deboche — não sabia que esse tipo de prato ainda existia. — Por que estamos indo à cidade? — perguntou ela ao pai, enquanto ele dava marcha a ré no carro em direção à rua. — Para comprar um cobertor elétrico. — Em julho? — Logo, logo, vamos estar no inverno. — E um homem prevenido vale por dois. Trocaram um sorriso. No momento seguinte, Mike pisou no tomate: — Nós não vemos você com muita freqüência, Ashling. Puta merda. — Sua mãe está eufórica de ver você. Como a afirmação exigisse uma resposta, Ashling optou por perguntar: — Como, hum, ela está? — Maravilhosa. Você devia vir nos visitar mais vezes. Ela voltou a ser a mulher com quem me casei.

Outro silêncio. Em seguida, quase sem sentir, Ashling fez uma pergunta que não se lembrava de jamais ter feito antes: — Qual foi a razão de ser daquilo tudo, daquela época horrível? O que fez com que acontecesse? Mike desviou os olhos da rua para fitá-la, sua expressão um misto feroz de defesa, determinação e inocência — ele não fora um mau pai. — Não aconteceu nada. — A jovialidade com que ele respondeu foi mais comovente do que teria sido sua tristeza. — A depressão é uma doença, você sabe disso. Em pequenos, Ashling e os irmãos ouviram a explicação de que não tinham culpa pelo fato de sua mãe ser um caso perdido. Naturalmente, nenhum deles acreditou. — Sim, mas como a pessoa cai em depressão? — Ela lutava por compreender. — Às vezes o processo é deflagrado por alguma perda, ou um... como é mesmo que chamam aquele negócio... trauma — murmurou ele, a atmosfera no interior do automóvel carregada de constrangimento. — Mas não necessariamente — prosseguiu. — Dizem que pode ser hereditário. Essa animadora perspectiva deixou Ashling completamente muda. Vasculhou a bolsa atrás de seu celular. — Para quem você está ligando? — Para ninguém. Ele observou que Ashling continuava a apertar teclas no aparelho. — Pensa que eu sou cego? — indagou, afrontado. — Não estou ligando para ninguém, estou só colhendo meus recados. Marcus não ligara para ela desde que saíra de seu apartamento na noite de quinta. Nesses dois meses de namoro (não que ela os estivesse contando), a rotina dos dois era a de se telefonarem todos os dias. Ela estava se ressentindo agudamente da falta de contato. Prendendo o fôlego, desejou desesperadamente que houvesse algum recado dele, porém, mais uma vez, não havia nenhum. Decepcionada, fechou o aparelho e tornou a guardá-lo na bolsa.

Naquela noite, após o jantar saudosista — costeletas de porco, purê de batatas e ervilhas em lata —, decidiu ligar para ele. Tinha um bom pretexto: desejar-lhe boa sorte no show de Eddie Izzard. Mas caiu na secretária-eletrônica — outra vez. Teve uma visão horrível de Marcus em seu apartamento, escutando o recado, mas recusando-se a atender o telefone. Incapaz de se conter, tentou seu celular — e caiu direto na caixa-postal. Mercúrio está em retrógrado, pensou ela. Para logo em seguida admitir, a contragosto: Ou talvez meu namorado apenas esteja puto comigo. Obviamente, ele estava magoado por ela ter ido visitar os pais, mas qual seria a extensão do dano? Por um momento considerou a possibilidade de ser irreparável, e a sensação de terror que acompanhou essa admissão deixou-a fraca. Gostava muito, muito, muito de Marcus. Fazia séculos que não conhecia ninguém que se aproximasse tanto de seu ideal de homem. Estava louca para que a noite de domingo chegasse logo, porque ele lhe pedira para telefonar. Mas e se nem então atendesse o telefone...? Ai, meu Deus! — Em geral nós assistimos a algum vídeo na noite de sábado — informou-lhe sua mãe. A um Passo da Eternidade. Muito apropriado, pensou Ashling, enquanto a noite se esticava como um chiclete. Sofrendo por sentir-se excluída da vida em Dublin, desejava desesperadamente estar lá, com seu namorado. Enquanto Burt Lancaster saçaricava com Deborah Kerr, Ashling se perguntava como Marcus estaria se saindo no show, e se Clodagh e Ted haviam ido. Sentia vergonha por desejar que não, pois admitir o desejo faria com que se sentisse ainda mais excluída. Seus pais fizeram o possível e o impossível para lhe agradar. Apareceram com um saco de doces sortidos, escolhidos especialmente para ela no supermercado, experimentaram oferecer-lhe um “drinque” enquanto tomavam chá e, quando ela foi se deitar — imperdoavelmente cedo, às dez da noite —, sua mãe fez questão de preparar um saco de água quente para ela.

— Mas estamos em julho, vou torrar de calor! — Ah, mas as noites às vezes são frias. E daqui a dois dias vamos entrar em agosto, que é o início oficial do outono. — Ah, não, já estamos quase em agosto! — Ashling fechou os olhos, apertando-os com força, o fôlego curto de medo. O lançamento da Garota estava previsto para o último dia de agosto, e ainda havia uma quantidade titânica de trabalho a ser realizado — tanto em relação à merda da festa de lançamento quanto à revista propriamente dita. Enquanto estavam em julho, ela conseguira manter a serenidade, repetindo para si mesma que ainda havia tempo bastante. Agora, no entanto, agosto parecia perto demais para que esse argumento fosse válido. Retirou da estante um volume gasto de Agatha Christie, leu-o durante quinze minutos e, em seguida, apagou o abajur de cúpula cor de pêssego. Dormiu tão bem quanto se podia esperar sob um edredom cor de pêssego e, pela manhã, a primeira coisa que fez foi ligar seu celular, rezando para que houvesse algum recado de Marcus. Não havia — esse foi o momento mais difícil para ela. E o papel de parede listrado em branco e pêssego, que parecia fechar o cerco ao seu redor, não a ajudou em nada a superá-lo. Ao apanhar o maço de cigarros, derrubou uma tigelinha de pétalas secas aromáticas. O aroma era de pêssego. Quem teria adivinhado? Não podia ligar para Marcus de novo — ele acharia que ela estava desesperada. E estava desesperada, é claro, mas não queria que ele soubesse que estava. Em vez disso, ligou para Clodagh, na vaga expectativa de obter alguma informação, mas também na vaga esperança de que Clodagh não estivesse em condições de oferecê-las. — Você foi ver Marcus? — Fechou a mão livre num punho, desejando que a resposta fosse “Não”. — Fui... — Foi com o Ted? — Ora, se fui! — A confirmação fez com que o pavor de Ashling aumentasse ainda mais. Não achava que houvesse a mais remota hipótese de Clodagh dar bola para Ted; a questão era que...

Clodagh continuou falando pelos cotovelos: — ...nos divertimos horrores. Marcus estava fantástico. Contou uma piada hilária sobre roupas de mulher — a diferença entre uma blusa, um top, uma camisa-de-meia, uma camiseta... — Ele o quê? — Quem queria saber de Ted e Clodagh?! Ashling agora estava preocupada consigo mesma. — Ele até sabia o que é uma regata! — exclamou Clodagh. — Não duvido nada. — Ashling sabia que devia se sentir lisonjeada, mas, em vez disso, sentia-se como se tivesse sido usada. Marcus nem ao menos lhe dissera que estava pensando em incluir a conversa dos dois no seu número. — Não faço a menor idéia de como ele bola essas coisas — confessou Clodagh. E quem disse que bola? — E depois? — perguntou Ashling, enciumada, sem saber se agüentaria ouvir mais alguma novidade desagradável. — Vocês foram para casa? — Não, imagina! Fomos para os bastidores, conhecemos Eddie lzzard, tomamos um porre federal. Foi fantástico! A despedida de seus pais, estressante mesmo nas melhores circunstâncias, foi pior do que de costume. — Você não tem namorado? — perguntou Mike, jovial, involuntariamente pondo o dedo na ferida aberta de Ashling. — Traz ele aqui, da próxima vez. Ai, não faz isso comigo. Todos os vagões estavam lotados, e ela exausta, sob o efeito da típica depressão da noite de domingo, quando, três horas depois, o trem chegou a Dublin. Estava abrindo caminho aos empurrões em direção ao ponto de táxi, na esperança de que as filas não estivessem quilométricas, quando, por entre a multidão que circulava na esplanada, avistou alguém que conhecia... — Marcus! — Sua pele se iluminou de alegria à vista dele próximo à saída, com um sorriso sem graça. — O que você está fazendo aqui?! — Vim buscar minha namorada. Ouvi dizer que a fila do táxi costuma ser comprida. Uma risada de encanto escapou dela. De repente, sentia-se louca de felicidade. Ele apanhou sua sacola com uma das mãos e enlaçou sua cintura com o braço livre. — Olha, desculpe pelo... — Não, eu é que peço!

Nossa primeira discussão, pensou ela, sonhadora, ao que ele a conduzia até seu carro. Nossa primeira briga de verdade. Agora, somos mesmo um casal. A pilha de roupas jogadas sobre a cama de Clodagh continuava a crescer. O vestido preto justo? Sexy demais. As pantalonas com a túnica? Sofisticados demais. O vestido transparente? Transparente demais. E que tal as calças brancas? Mas ele já a vira com elas. O jogging com os tênis? Não, ela se sentia uma idiota com eles. De todas as roupas da moda que comprara nos últimos dois meses, haviam sido seu pior erro. Por um momento, a nuvem de ansiedade indumentária se dissipou, para em seu lugar se impor uma súbita e desagradável consciência. O que estou fazendo? Nada, pensou, na defensiva. Não estava fazendo nada. Ia apenas se encontrar com uma pessoa para tomar um café. Uma pessoa amiga. Uma pessoa amiga que, por acaso, vinha a ser um homem. Qual era o problema? Não estava em nenhum país muçulmano onde seria apedrejada por ser vista em companhia de um homem que não era seu marido ou irmão. De mais a mais, ele nem mesmo fazia o seu tipo. Ela só iria se distrair um pouco. E a distração era inofensiva. Sacudiu os cabelos sedosos, experimentando uma sensação de euforia, excitação, nervosismo. Por fim, decidiu-se por um par de calças pretas e uma camiseta rosa-choque. Olhou-se no espelho como se fosse ele quem a olhasse. A óbvia admiração dele foi lisonjeira, e ela se sentiu linda, poderosa. Café, relembrou a si mesma, enquanto punha os pés na rua. E só. Que mal havia nisso? E chutou para escanteio o sentimento de culpa e a expectativa que davam voltas nauseantes no seu estômago. Ashling entrou correndo no bar. Estava atrasada. De novo.

— Marcus — disse, sem fôlego. — Me desculpe. A filha-da-puta da Lisa decidiu na última hora que eu tinha que digitar minha matéria sobre as aulas de equitação. Queria “tirar a temperatura” da edição de novembro. — Revirou os olhos em sinal de desprezo e, felizmente, Marcus a imitou. Era um sinal de que ele não podia estar tão furioso assim por ser deixado esperando no Thomas Reid por quase meia hora. — Vou só tomar uma vodca-tônica quádrupla e depois a gente almoça, pode ser? Está pronto para outra cerveja? Marcus se levantou. — Senta aí, A Mais Trabalhadora de Todas as Jornalistas, que eu busco os drinques. Vai querer mesmo uma quádrupla? Ashling se jogou numa cadeira, aliviada. — Obrigada. Basta uma dupla. Quando Marcus voltou com a bebida, tornou a se sentar e disse: — Olha, eu queria te lembrar que vou para Edimburgo no dia dezesseis. Para o festival. — Dezesseis de agosto? — Ashling ficou horrorizada. Tinha uma vaga lembrança de ele ter mencionado a viagem séculos atrás. — Mas é daqui a duas semanas... Olha — disse, frenética, morta de medo —, me desculpe mesmo, Marcus, mas não vou poder te acompanhar. Juro, você não acreditaria como as coisas estão lá na redação. Estamos a mil por hora, e só em relação à festa de lançamento ainda falta fazer um mundo de coisas, quanto à revista, então, nem se fala... Marcus adquiriu uma expressão magoada. — Eu poderia tentar descolar um fim de semana — propôs Ashling, sem fôlego. — Embora Lisa diga que vamos trabalhar todos os fins de semana, se eu pedir com jeitinho, é capaz de ela dizer... — Não precisa. Ela detestava quando ele ficava assim. Era ótimo a maior parte do tempo, mas, toda vez que se sentia inseguro ou desprezado, ficava frio e agressivo, e ela não suportava confrontos. — Vou tentar — disse, desesperada. — Juro que vou. — Não precisa.

— Olha só — sua voz tremia —, assim que agosto acabar, meu ritmo de trabalho vai ficar tranqüilíssimo. De repente nós poderíamos viajar juntos, dar a sorte de arranjar passagens na alta temporada e passar uma semana na Grécia, ou algo assim. Ânimo! — tentou com brandura reavivar sua fisionomia de pedra. Não houve nenhuma reação. — Ah, vamos lá, Seu Hilário — bajulou-o. — Um dos maiores humoristas da Irlanda, conta uma piada para mim! Marcus pulou de pé, quase como se tivesse sido catapultado da cadeira: — Contar uma piada para você?! — indagou, com uma fúria tão mais chocante por ser inesperada. — É minha noite de folga, porra! Por acaso eu te peço para escrever um artigo sobre como fingir orgasmos nas suas noites de folga? Ashling ficou petrificada. Marcus apoiou a testa na mão. — Putz, foi mal — disse, em tom cansado. — Foi mal mesmo.

— Entendo — disse Lisa, com fria educação. — Está bem, eu torno a ligar. — Bateu com o telefone e gritou: — Putos, putos, putos! Bernard soltou um muxoxo e reclamou “Olha o linguajar”, mas ninguém mais sequer pestanejou. — O agente de Ronan Keating — berrou Lisa, para a desinteressada redação — está numa porra duma reunião. Pela zilionésima vez. Estamos a quase três semanas do Dia D e ainda não temos a coluna da celebridade! Desesperada, cruzou os braços e deitou-se por cima do telefone, mas logo notou que Jack a estava observando. Ele levantou as sobrancelhas, numa expressão preocupada, do tipo “Você esta bem?”. Sempre fazia isso. Desde que ela chorara no seu escritório, sentia que ele lhe transmitia um apoio firme e silencioso — uma espécie de intimidade exclusiva de Lisa, que não dispensava a mais ninguém. Mas, na prática, que proveito ela tirava daquelas sobrancelhas levantadas?, pensou, irritada. Era outra parte do corpo dele que queria que se levantasse para ela, muitíssimo obrigada! Bem, justiça fosse feita, ele acabara de sair de um relacionamento, e talvez precisasse de tempo para se recuperar. Mas, ora bolas, já havia tido pelo menos duas semanas! De quanto tempo mais iria precisar? Sorriu para si mesma, triste. Também não andava se sentindo lá essas coisas, depois do episódio com Oliver. Tivera ímpetos de voltar voando para Londres e se enfiar na cama com ele, para nunca mais voltar. Ele ainda não lhe ligara, nem iria, obviamente, mas a vida precisava continuar... — O excesso de trabalho está te deixando nervosa? — Jack se aproximou e sentou-se na beira de sua mesa. Ela ficou mortalmente ofendida. — Não, hum, é que... — Suspirou. — São essas celebridades filhas-da-puta, entende? — Você nunca entrega os pontos. — A admiração estampada no rosto dele era digna de um retrato. — Está precisando dar um tempo? Que tal se comêssemos sushi no almoço? Comer bem ainda é uma das boas compensações da vida, não é?

— Prefiro ser bem comi... — Quando viu, as palavras já tinham saído de sua boca, provocadas pela visão de si mesma numa lauta transa com Jack. — Hum, que foi que disse? — Ele soltou uma risada simpática, maliciosa. — Nada. — Ela o encarou, mas sem conseguir conter um sorriso conivente. Os dois sustentaram um olhar demorado, para logo em seguida a tensão do flerte se desfazer simultaneamente em hilaridade. — Você está me convidando para almoçar fora? — perguntou ela. — Ah, não, me desculpe, não tenho tempo. Mas que tal um sushi para viagem, como da última vez? — Pode ir arranjando outra pessoa para fazer o serviço sujo — foi logo disparando Trix. — Eu vou — disse Jack, para surpresa geral da redação. — Alguém quer sushi? Quer, Ashling? — Não, obrigada — disse Ashling, rabugenta, desconfiada de que ele estivesse apenas sendo condescendente com ela. — Tem certeza? — Absoluta. — Nem se eu trouxer alguns dos mais mansinhos, e te apresentar pessoalmente a todos eles? — Não. — Está bem, então, já vou indo — anunciou Jack. — E fica calma — disse a Lisa. — Está tudo entrando nos eixos. Embora ela dissesse a todos que seu trabalho era um cocô e que a revista estava “uma bela merda”, Lisa não podia negar que estavam fazendo progresso. As seções de livros, filmes, música e Internet já estavam prontas, bem como a coluna de Trix sobre a vida de uma garota comum, o artigo sobre os quartos sexy de hotel, a matéria de Ashling sobre o clube de salsa, uma coluna espetacular de Jasper Ffrench, um perfil de uma atriz irlandesa que estrelara uma controvertida peça teatral erótica, uma coluna intimista da autora de best-sellers e o artigo “O Mundo É dos Homens”, de Marcus, que todo mundo havia adorado. Além, é claro, daquela famigerada matéria de moda.

Oito páginas no começo da revista eram dedicadas a entrevistas com quatro astros irlandeses em início de carreira, todos na crista da onda — um designer de bolsas, um DJ, um personal trainer e um ecoguerreiro sexy e articulado que era o rei dos slogans. A coluna “O que é Uau e o que é Uó” de Lisa já estava quase pronta. Lisa fizera a maior parte em cinco minutos, e a passara a Ashling, para que a terminasse. De acordo com a lista de Lisa, saltos em altura eram “Uau” e saltos em acrílico eram “Uó”. — Os saltos em altura estão mesmo na moda? — indagou Ashling, surpresa. — Não faço a menor idéia. — Lisa deu de ombros. — Mas combinou bem com os saltos em acrílico. Além do conteúdo, o visual da revista estava um escândalo. As cores, as imagens e a diagramação eram um pouco diferentes das de outras revistas femininas, fazendo com que a Garota parecesse mais atual, mais descolada. Lisa infernizara Gerry ao limite da sua paciência, até encontrar um look que a satisfizesse. — Onde você passeia de barco? — perguntou Lisa a Jack, enquanto ele arrumava o sushi sobre a mesa dela. — Na marina de Dun Laoghaire. — Dun Laoghaire — refletiu ela, com ar insinuante. — Nunca estive lá. — Você gostaria. — Preciso ir lá um dia desses. — Precisa mesmo. Pelo amor de Deus! Quantas deixas a mulher tem que dar neste país? Talvez ele se sentisse intimidado diante de sua combinação de dinamismo e beleza, compreendeu ela. Não seria a primeira vez. E havia a complicação extra de trabalharem juntos. E de ela ser casada. E de ele estar saindo de um relacionamento... Tudo bem! Ela compreendeu que não tinha escolha a não ser abrir a boca e dizer: — Bem que você poderia me levar lá da próxima vez que for.

— Você gostaria de ir? — A avidez dele foi tão... bem... ávida, que Lisa soube na mesma hora que fizera bem em assumir o controle da situação. — Que tal sexta à noite? A gente pode dar uma caminhada pelo píer, e eu te mostro os barcos. É agradável, depois de um dia inteiro preso no escritório. Hummmm. Dar uma caminhada pelo píer. Dar uma caminhada pelo píer. Lisa estava longe de ser uma mulher de caminhadas. — Eu adoraria! Clodagh cravou os saltos dos sapatos nas nádegas dele, empurrando-o ainda mais fundo dentro de si. Cada vez que ele investia contra ela, duas palavras eram arrancadas de seu peito num sussurro rouco: — Meu Deus! Ele tornou a investir contra ela. — Mais forte! Outra investida. O espaldar da cama batia ritmadamente na parede, e seus cabelos estavam desgrenhados, ensopados de suor. Estreitava-o cada vez mais contra si, enquanto as ondas de prazer cresciam e cresciam, elevando-a numa espiral até o vórtice. A cada espasmo, ela pensava que havia chegado ao fim, até que outro, ainda mais maravilhoso, vibrava dentro de si, espraiando-se por todo o seu corpo. E ela estremecia nesse paroxismo, sentindo-o nas pontas dos dedos, nos folículos pilosos, nas solas dos pés. — Meu Deus — arquejou. Provavelmente ele gozou também, porque, ofegante e encharcado de suor, ficou deitado em cima dela, seu peso imobilizando-a contra a cama. Ficaram imóveis, arfando, exaustos, até ela sentir o suor em seus corpos começar a perder o calor. Remexeu-se sob ele e o empurrou para o lado, brusca. — Anda, se veste — ordenou. — Depressa, tenho que buscar Molly no grupo de atividades. Esse era o terceiro encontro dos dois, e ela sempre se comportava com ele de maneira ríspida, quase fria, depois do sexo. — Você se importa se eu tomar um banho? — Não, mas não demora — respondeu ela, curta e grossa. Quando ele saiu do banheiro, ela já estava vestida e se recusava a olhá-lo nos olhos. De repente ficou imóvel, farejou o ar e exclamou, incrédula:

— Esse cheiro é da loção pós-barba de Dylan? — É — murmurou ele, furioso com o engano. — Já não basta transar com a mulher dele na cama dele? Será que você não tem um pingo de respeito? — Desculpe. Com um silêncio contrito, vestiu as roupas que ela arrancara de seu corpo apenas uma hora antes. — Quando posso ver você de novo? — Ficou com ódio de si mesmo por perguntar, mas não tinha escolha. Estava apaixonado. — Eu te ligo. — Posso faltar ao trabalho a hora que você quiser. — Eu tenho vizinhos! — Ela estava irritada. — Eles vão acabar notando. — Bom, você pode ir ao meu apartamento. — Acho que não. — Você age como se me odiasse — acusou ele. — Sou casada! — ela levantou a voz. — Tenho filhos! Você está destruindo minha vida! Na porta da frente, quando ele se inclinou para beijá-la, ela disse, furiosa: — Pelo amor de Deus, alguém pode ver! — Desculpe — ele murmurou. Mas, quando já se virava para ir embora, ela o agarrou pela frente da camisa e o puxou de volta para si. Beijaram-se com uma avidez desesperada. Quando se separaram, a mão dele estava dentro da camisa dela, massageando um seio. Seus mamilos estavam inchados e firmes como cerejas, e ele novamente ereto. — Anda logo — ela ordenou, as mãos desajeitadas na sua braguilha, puxando para fora e segurando na mão o pênis sedoso e ereto. Arriou-se no chão do vestíbulo, arrancando a calça jeans e puxando-o para cima de si. — Depressa, a gente não tem muito tempo. Flexionou as coxas, alteando os quadris ao seu encontro, desesperada por ele. Ele a penetrou, movendo-se em punhaladas curtas, intensas. Na hora as ondas começaram a inundá-la, crescendo em intensidade e espalhando-se por dentro e por fora de seu corpo, atingindo um patamar de prazer quase insuportável. Depois de gozar, ele afundou o rosto nos cabelos louros dela e chorou.

Na noite de sexta, vestindo tênis, calças cargo de seda e sua regata Prada em viscose, Lisa esperava diante da porta de casa. Tinha um encontro marcado com Jack, e experimentava uma sensação agradável e desconhecida vibrando dentro de si. Um carro chegou, o homem em seu interior inclinou-se a fim de abrir a porta para ela e, sentindo-se um pouco como uma prostituta de rua sendo apanhada por um freguês motorizado, Lisa entrou. Fazendo-se de surda para o corinho de gritos de Francine e das outras garotas — “Uaaaaaaaau!”, “Seck-zee!” e “Lisa arrumou um namorado!”, ela deixou a rua para trás, ao lado de Jack. — Ora, ora, não é que você veio? — Jack abriu um sorriso. — Ao que tudo indica. — Ela espiou pela janela, mordendo os lábios para prender o riso. Ele estava nervoso. E, para dizer a verdade, talvez ela não lhe ficasse muito atrás. Durante o percurso, o céu, até então claríssimo na cidade, adquiriu uma carregada coloração azul-acinzentada, típica de tempestade. Quando saíram do carro no píer de Dun Laoghaire, Jack apurou o olfato, inconvicto: — É capaz de chover. Quer deixar o passeio para outro dia? Mas Lisa resolvera ser otimista, por puro capricho. Não ousaria chover. — Não, vamos lá. — E puseram-se a caminhar. Os raios de sol excessivamente brilhantes filtrados por entre as nuvens túmidas conferiam a tudo uma aparência quase supra-real. O verde das moitas esparsas de relva brilhava como se estivesse aceso, num efeito quase alucinatório. A pedra cinzenta do píer emanava um tom roxo aos olhos de Lisa. Qualquer idiota veria que estava prestes a desabar um toró daqueles, mas Lisa pusera na cabeça que não. Então era isso que era caminhar, pensou ela, ao que avançavam. Até que não era tão mau assim. Mas o ar bem que tinha um cheirinho diferente... — Cheiro de frescor. — Jack matou a charada para ela. — Está vendo aquele barco ali? — apontou, orgulhoso. — É o meu.

— Aquele? — Excitadíssima, Lisa fez um gesto em direção a um verdadeiro palacete, reluzente de tão branco, de design elegante. — Não, aquele outro. — Ah. — Foi só então que Lisa notou ao lado o barquinho caqueirado. Pensara que fosse um pedaço de pau à deriva. — Fabuloso! — encontrou forças para dizer. Afinal, se ele gostava do cacareco, por que não fingir? Caramba, pensou ela, eu devo mesmo gostar deste cara. Antes de chegarem à metade do píer, a chuva começou a cair em pingos delicados. Lisa se vestira para muitas eventualidades, mas um pé-d’água não estava entre elas. Arrepios repuxaram a pele de seus braços nus. — Toma aqui, veste isto. — Jack já estava despindo sua jaqueta de couro. — Não, não posso aceitar. — É claro que podia (e iria), mas um pouco de cu-doce não faz mal a ninguém. — Pode, sim. — Ele já ajeitava a jaqueta ao redor dos ombros dela, o calor de seu corpo a envolvê-la. Ela deslizou os braços pelas mangas ainda quentes, os punhos cobrindo suas mãos, os ombros a afogá-la. A jaqueta estava enorme nela, e a sensação era deliciosa. — É melhor a gente voltar — disse ele. No momento em que a chuva apertou, puseram-se a correr. Pareceu-lhes a coisa mais natural do mundo fazê-lo de mãos dadas. — Você nunca mais vai voltar aqui comigo — disse ele, ofegante, durante a carreira. Quando chegaram ao carro, Jack estava ensopado. Seu cabelo estava negro, brilhante, colado ao couro cabeludo, e sua camisa encharcada, semitransparente e colada ao corpo, deixando entrever, para tormento de Lisa, os pêlos que lhe recobriam o peito. Ela não estava muito mais seca do que ele. — Minha nossa! — Com uma estridente gargalhada de ultraje, ele vistoriou sua própria figura. — Abre o carro, depressa! — ordenou Lisa, resfolegante, sentindo-se no melhor dos humores.

Mais tarde, ao relembrar aquele momento, não saberia dizer qual dos dois tomara a iniciativa. Ele? Ou ela? Só sabia que, subitamente, os dois se atiraram nos braços um do outro, o corpo dela sentindo a dureza muscular do dele, suas coxas molhadas contra as dela. O rosto dele estava pontilhado de gotas de chuva e seus cabelos divididos em pontas semelhantes a calhas, por onde a chuva escorria, indo pingar sobre seus olhos escuros. Então, ele abaixou a boca em direção à dela. Lisa estava consciente de várias coisas: do cheiro salgado do mar fustigado pela tempestade, das frias gotas de chuva escorrendo por seu rosto, do calor da boca de Jack e da alta taxa de umidade em sua calcinha. Era tudo de uma sensualidade extrema. Ela se sentiu saída direto de um anúncio de Calvin Klein. O beijo não foi longo, chegando ao fim antes mesmo de engrenar. Mais qualidade do que quantidade. Delicadamente descolando os lábios dos dela, Jack a conduziu ao carro e sussurrou: “Entra aí.” Voltaram para a cidade e foram para um café-bar, onde ela secou os cabelos sob o secador de mãos do banheiro. Em seguida refez sua maquiagem e voltou para o bar, com um largo sorriso. — E aí, Marcus Valentine está mesmo namorando a nossa Ashling? — perguntou Jack. — Hum-hum. E o que você acha de Kelvin e Trix? — Não vai me dizer que os dois estão de caso! — Jack pareceu chocado à idéia. — Pensei que ela estivesse namorando o tal de... como é mesmo que ela chama o sujeito?... Arraia-Miúda. — E está, mas algo me diz que ela e Kelvin são capazes de acabar juntos. — Mas eles não são meio inimigos um do outro?... Ah, já entendi. — Jack assentiu. — Um daqueles casos. — Você fala como se não aprovasse — comentou Lisa, extremamente curiosa. Jack ficou constrangido. — Gosto não se discute. Mas... — Estava se referindo a seus quebra-paus em público com Mai, e agora estava muito constrangido. — ...não faz nem um pouco o meu gênero essa rotina de brigas entre namorados. Embora saiba que deva ser difícil de acreditar.

— Então por que você e Mai...? Jack se remexeu. — Não sei. Sinceramente. Por hábito, de repente. Era legal no começo, e, além disso, acho que nenhum de nós conhecia qualquer outro tipo de relacionamento. Enfim! — Não queria dissecar mais seu caso, pois ainda se sentia atado a Mai por uma espécie de lealdade, de modo que se voltou para Lisa com um sorriso: — Quer outro drinque? — Não, acho que não... Mas, quando ela estava prestes a pousar a mão significativamente sobre a coxa dele e perguntar “Quer voltar para tomar um café?”, Jack disse “Muito bem, vou te levar para casa”, e ela soube que essa era a sua única intenção. Mas, otimista como sempre, pensou: tudo bem — ele gostava dela. Devia gostar — afinal, a beijara. Não podia ter sido melhor com ela. E ela fechou a mente à vozinha que rebateu: Ele podia ter sido melhor, sim, podia ter comido você. Com ar sonhador, Clodagh se deslocava pela cozinha afora, pensando no sexo que fizera horas antes. Fora inacreditável, o melhor que... Enquanto punha o açúcar no microondas e o leite na máquina de lavar, Dylan a observava. E pensava. Pensamentos horríveis. Pensamentos indizíveis. — Não quero meu jantar. — Craig atirou a colher na mesa com estrépito. — Quero CHOCOLATE. — Chocolate — disse Clodagh, com uma vozinha cantada, vasculhando o armário e retirando um saco de bombons. — O senhor é quem manda. Parecia dançar ao som de uma música que só ela ouvia. — Também quero chocolate — rosnou Molly. — Também quero chocolate — Clodagh cantarolou com vozinha fina, localizando outro saco. Dylan a tudo assistia, horrorizado. Com um rapapé brincalhão, abriu o saco de bombons de Molly, extraindo um entre o polegar e o indicador.

— Para você? — perguntou a Molly, com ar radiante. — Não, para mim. — Ignorando os histéricos protestos de Molly, encostou o bombom nos lábios fechados, chupando-o de leve, e então aspirou-o lentamente para o interior da boca, onde o revirou com a língua de um lado para o outro de um modo que lhe proporcionava óbvio e imenso prazer. — Clodagh? — A voz de Dylan falhou. — Hummm? — Clodagh? No ato ela voltou a si, dando cabo do bombom com uma dentada brutal. — Que é? — Você está bem? — Estou ótima. — Você parece meio distraída. — Pareço? — No que estava pensando? — perguntou Dylan, sem sentir. Rápida como um raio, ela respondeu: — Estava pensando no quanto te amo. — É mesmo? — tornou Dylan, desconfiado. Sentia-se dividido. Suspeitava que não devia acreditar nela, mas, por outro lado, queria tanto... — É, eu te amo muito, muito. — Ela se forçou a passar os braços por ele. — Sinceramente? — Ele conseguiu fazer com que seus olhos se encontrassem. Ela enfrentou o olhar dele com toda a calma: — Sinceramente.

À medida que o mês de agosto ia passando, a carga de trabalho aumentava. Ainda havia lacunas na primeira edição, e todas as tentativas de preenchê-las foram inúteis. Tiveram que cancelar uma entrevista com Ben Affleck quando ele foi vítima de uma intoxicação alimentar, uma resenha sobre uma sapataria teve que ser derrubada depois de a loja fechar de uma hora para a outra, e uma matéria sobre freiras sexualmente ativas foi considerada arriscada demais do ponto de vista legal. Houve um dia, especificamente, em que os obstáculos se acumularam de maneira tão frustrante, que Ashling e Mercedes choraram. Até Trix estava com um brilho suspeito nos olhos. (Saiu do escritório, enfiou-se numa lojinha ali por perto, roubou um par de brincos e voltou se sentindo muito melhor.) O que aumentava a tristeza de todos era o fato de não poderem se dar ao luxo de dedicar seu tempo e atenção integrais à primeira edição. Porque também estavam trabalhando nas edições de outubro e novembro. Em meio ao pandemônio, Lisa convocou uma reunião para tratar da edição de dezembro. Mas, apesar da amarga resistência, não estava sendo uma “filha-da-puta escravocrata”. As resenhas dos filmes de dezembro eram feitas em agosto. Se o ator principal de um filme estivesse na cidade, a entrevista teria que ser feita lá, naquele exato momento, e não duas semanas depois, quando a carga de trabalho da Garota tivesse diminuído e o ator já tivesse se mandado há muito tempo para outro país. E também havia a festa de lançamento, é claro, com a qual Lisa estava obcecada. — Tem que passar alguma mensagem forte, causar sensação. Quero que as pessoas chorem se não forem convidadas. Quero uma lista de convidados espetacular, presentes deslumbrantes, drinques geniais e uma comida maravilhosa. Vamos ver — tamborilou com os dedos na mesa. — Que comida a gente deve servir? — Que tal sushi? — sugeriu Trix, sarcástica.

— Perfeito! — Lisa suspirou, com os olhos brilhantes. — Claro, que outra coisa poderia ser? Ashling ficou encarregada de organizar uma lista de mil bambambãs da imprensa irlandesa. — Não sei se a Irlanda tem tanto bambambã assim, não — disse, em tom de dúvida. — E você ainda quer dar presentes para todos eles... Onde vai conseguir a verba? — A gente arranja algum patrocinador, de repente uma empresa de cosméticos — soltou Lisa, ríspida. Lisa estava ainda mais azeda do que de costume. Três dias depois do minibeijo, Jack fora para New Orleans participar da conferência mundial da Randolph Communications. E iria passar dez dias lá! Desculpara-se por abandonar a equipe numa época tão atribulada, mas Lisa ficou muito mais puta da vida com o fato de sua ausência quebrar o embalo do romance dos dois. — Dêem só uma olhada no convite da festa. — Lisa atirou um cartão prateado e liso diante de Ashling e Mercedes. — Hum, lindo — disse Ashling. — Umas palavrinhas cairiam bem. — Mercedes sorriu, com ar debochado. Lisa suspirou, irritada: — Estão aí. — Então que tal torná-las visíveis a olho nu? Ashling e Mercedes se inclinaram e viraram o cartão até a luz incidir sobre ele de um determinado ângulo, finalmente revelando as palavras — também prateadas, minúsculas e espremidas num canto. — Isso vai deixar todo mundo intrigado — disse Lisa, séria. Ashling ficou preocupada. Tinha a impressão de que o golpe tropeçava na própria esperteza. Se encontrasse aquele cartão na sua caixa de correio, não hesitaria em jogá-lo fora. Lisa viajou para Londres, onde passaria o resto do dia discutindo os drinques da festa com um “mixologista”. — O que é um mixologista? — perguntou Ashling. — Um barman — disse Mercedes, irônica. — Uma coisa que nunca falta nesse país.

Mercedes ouvira por alto um telefonema de Lisa, e suspeitava que fosse para marcar hora com um médico a fim de aplicar uma injeção de Botox enquanto estivesse em Londres, e que essa era a verdadeira razão pela qual viajara para lá. Com efeito, quando Lisa voltou, no dia seguinte, sua testa estava tão dura que parecia blindada. Mas também trazia uma lista de drinques Descolados-é-Apelido: os convidados seriam recebidos com um coquetel de champanhe, seguido por martínis de limão, após o que os garçons serviriam cosmopolitans, manhattans, go-gos de rum e, finalmente, expressos de vodca. — Ah, sim, e também já escolhi os presentes — disse Lisa, em tom de acusação. Será que era a única por ali que trabalhava? — Quando cada convidado for embora, vamos presenteá-lo com um vidro de cocô. — Um o quê? — Ashling fez um ar entre cansado e perplexo — se essa era a idéia que Lisa fazia de uma piada, era da mais extrema pobreza. — Cocô. Um vidro de cocô. — Você vai dar um vidro de cocô para mil bambambãs da imprensa irlandesa? — Não tinha forças para rir. — Mas é cocô que não acaba mais. Onde é que vai conseguir? Será que todos vamos ter que dar nossa contribuição? Boquiaberta, Lisa encarava Ashling. — Na Chanel, é claro. Imediatamente Ashling projetou uma imagem mental de centenas de funcionários da Chanel evacuando ao mesmo tempo, especialmente para Lisa. — É muita gentileza da parte deles. — Do que é que Lisa estava falando? — É só o vidrinho de 50 ml — insistia Lisa, ainda falando de seu universo paralelo. — Mas acho que está de bom tamanho, não? — Levantou um vidrinho de Coco. — Ah — suspirou Ashling, finalmente compreendendo. — Você quer dizer Coco! — É, cocô. Ora, o que você pensou que eu tivesse dito? Preciso de um tempo, compreendeu Ashling. Ligou para Marcus, que saudou-a dizendo: “Oi, estranha.” — Hum, tá certo, ha, ha, ha. Me encontra na hora do almoço? — Vai dar para reservar um tempinho? Quanta honra.

— Meio-dia e meia no Neary’s. — Ela não podia suportar isso. — Vem cá que eu quero te contar uma coisa hilária. — Ashling estava pronta para soltar sua história da confusão cocô/Coco, quando Marcus retorquiu: — Olha, o engraçado aqui sou eu, tá legal? Ashling ficou atônita. Olhou para ele, boquiaberta. — Que é que há com você? — Nada. — Marcus ficou subitamente humilde. — Poxa, foi mal. — É porque eu estou trabalhando demais, não é? — Ashling resolveu pegar o touro pelos chifres. Andavam tendo algumas rusgas nos últimos tempos, pelo fato de ele se sentir abandonado. — Marcus, se isso te serve de consolo, você é a única pessoa que eu vejo. Não vejo Clodagh, Ted, Joy ou quem quer que seja, e não vou às aulas de salsa há séculos. Mas, daqui a duas semanas, essa revista vai ser lançada, e a vida vai voltar ao normal. — Tudo bem — disse ele, em voz baixa. — Vai lá em casa hoje à noite — pediu. — Por favor. Daqui a alguns dias você vai para Edimburgo e vou ficar uma semana sem te ver. Prometo não pegar no sono. Ele se dignou brindá-la com um meio sorriso: — Alguma hora você vai ter que dormir. — Mas vou ficar acordada tempo o bastante para, hum... vou ficar acordada tempo o bastante — prometeu, em tom sugestivo. Ela andara mesmo deixando Marcus em segundo plano. Não conseguia se lembrar da última vez que haviam feito amor. Provavelmente há apenas uma semana, mas era tempo demais. No entanto, não podia fazer nada; estava estressadíssima, caindo pelas tabelas. Na verdade, era um alívio que ele fosse viajar. — Se você estiver se sentindo cansada demais, não quero te cansar mais ainda. — Ele lhe lançou um olhar preocupado. — Não estou cansada demais. — Dava para agüentar as pontas por uma noite, não dava? Como desejava que o dia trinta e um de agosto chegasse logo! Depois disso, tudo voltaria ao normal.

Agitada e com os olhos vermelhos, Clodagh inspecionou a mesa da cozinha. Não havia mais nada para passar a ferro. Passara tudo: as camisetas de Dylan, suas calças, suas cuecas, até mesmo suas meias. A culpa, a culpa, a culpa horrível, corrosiva. Mal podia se suportar, tinha vontade de arrancar a própria pele, tamanho era o ódio que sentia de si mesma. Pagaria a todos pelo que fizera. Seria a esposa e mãe mais devotada que jamais existira. Craig e Molly iriam comer tudo nos seus pratos. Gemeu baixinho: que tipo de mãe se tornara? Dando-lhes biscoitos assim que pediam, deixando-os ficarem acordados até a hora que queriam. Mas passaria a ser muito rigorosa. Quase perigosa, na verdade. E o coitado do Dylan. O coitado do Dylan, tão devotado e trabalhador, não merecia uma coisa dessas. A traição, a crueldade terrível, o frio corte de seu amor: não conseguira mais deixar que ele a tocasse desde que começara a ter aquele caso. Caso. Ela estava tendo um caso. Cambaleou numa vertigem diante da magnitude de seu ato. E se fosse apanhada? E se Dylan descobrisse? A idéia quase fez seu coração parar de bater. Pois trataria de acabar logo com aquilo. Já! Sentia ódio de si mesma e do que estava fazendo e, se acabasse com tudo antes que alguém descobrisse, poderia remediar a situação, quase como se nunca tivesse acontecido. Inflamada por essa determinação, tirou o fone do gancho. — Sou eu. — Oi, sou eu. — Quero acabar com tudo. Ele suspirou: — De novo? — Estou falando sério, não vou mais ver você. Não me telefone mais nem apareça na minha casa. Amo meus filhos e meu marido. Depois de uma pausa cheia de chiados, ele disse: — Tudo bem. — Tudo bem? — Tudo bem, eu entendo. Adeus. — Adeus? — Que mais eu posso dizer?

Ela tornou a repor o fone no gancho. De repente, sentiu-se ludibriada. Onde estava a doce recompensa por ter feito o que era certo? Em vez de recebê-la, sentiu-se insatisfeita, vazia... e profundamente ferida. Ele praticamente não protestara. Era assim que demonstrava o quanto era louco por ela. Filho-da-mãe. Horas antes, chegara a acalentar a tresloucada idéia de cerzir os buracos nas meias de Dylan, em mais uma tentativa desesperada de demonstrar seu amor por ele. Mas, ao voltar para a cozinha, morta de desânimo, toda a sua determinação de amélia se esfacelou. Foda-se, pensou, apática. Dylan podia comprar meias novas. Quase a contragosto, correu de volta para o vestíbulo, agarrou o fone e apertou a tecla “redial”. — Alô? — disse ele. — Vem para cá agora. — Sua voz de choro estava carregada de raiva. — As crianças não estão, temos até as quatro da tarde. — Já estou indo. Eram oito e meia da noite quando Ashling saiu do escritório. Nauseada de exaustão, não conseguiu encarar a caminhada de dez minutos até sua casa, de modo que tomou um táxi. Atirando-se no banco traseiro, verificou os recados em seu celular. Só havia um. De Marcus. Não iria aparecer aquela noite — qualquer coisa a ver com um show. Graças a Deus, Ashling suspirou. Agora poderia ligar para Clodagh, e depois ir direto para a cama. E, dentro de duas semanas, quando tudo isso terminasse, daria uma atenção especial a Marcus... Ao sair do táxi encontrou Boo, que estava com um olho roxo. — Que foi que aconteceu com você?! — Saturday night is all right for fíghting* — citou. — Foi umas noites atrás. Um cara bêbado, a fim de encrenca. Ah, as alegrias da vida nas ruas! — Que horror! As palavras saíram antes que Ashling pudesse se conter. — Você se importaria se eu perguntasse por que você é, hum, sem-teto?

* “Sábado à noite é bom para brigar”. Título de um hit de Elton John.

 

— É interessante do ponto de vista profissional — tornou ele, impassível. — Faturo duzentos paus por dia mendigando, aliás, todos nós, sem-teto, faturamos, você não leu sobre isso nos jornais? — É mesmo? — Não — debochou ele, sarcástico. — Tenho sorte quando faturo dois paus. É a velha história: sem emprego você não arranja casa, sem casa você não arranja emprego. Ashling conhecia esse conceito, mas nunca acreditara que de fato descrevesse uma realidade. — Mas você não tem uma, bem, hum, família para te ajudar? Pais, por exemplo? — Sim e não. — Com um leve riso, ele disse: — A coitada da minha mãe não tem uma saúde de ferro. Mentalmente falando. E meu pai fez uma imitação muito boa do Homem Invisível quando eu tinha cinco anos. Fui criado em lares adotivos. — Ah, meu Deus. — Ashling estava arrependida de ter aberto a discussão. — É, eu sou um clichê ambulante — lamentou-se Boo. — É muito constrangedor. E eu não conseguia me adaptar a nenhum dos lares adotivos porque queria ficar com minha mãe, daí consegui chegar até o último ano da escola pública sem passar numa única prova. Ou seja, mesmo que eu arranjasse uma casa, provavelmente não arranjaria um emprego. — Por que o governo não abriga você? — Mulheres e crianças primeiro. Se eu pudesse engravidar, teria mais chances. Mas os homens sem filhos têm que ser capazes de tomar conta de si mesmos, de modo que somos a última prioridade do governo. — E os albergues? — Ashling ouvira falar na existência desses lugares. — Não têm vaga. Sem-teto é o que não falta nesta cidade. — Ah. Ah, isso é terrível. Tudo isso. — Desculpe, Ashling. Estraguei seu dia, não estraguei? — Não — ela suspirou. — Já não estava indo muito bem, mesmo. — Ah, terminei de ler Dias Sinistros — disse ele, às suas costas. — Aqueles serial killers são mesmo mestres em mutilar os outros. E já estou na metade de Entrando nos Eixos!, e cheguei a contar a palavra “trepada” treze vezes numa só página. — Imagina só. — Ela estava sem forças para as “resenhas literárias” de Boo.

Ashling subiu com grande esforço a escada, serviu-se um copo de vinho, apertou uma tecla na secretária-eletrônica e ficou à espera dos recados. Depois de uma longa ausência, os recados de Cormac estavam de volta. Pelo visto, os bulbos de jacinto seriam entregues no próximo fim de semana, mas as tulipas ainda demorariam mais um pouco. Em seguida, encabulada, Ashling ligou para Clodagh. Fazia duas semanas que não falava com ela, desde o fim de semana que passara em Cork. — Me desculpe, me desculpe mesmo — humilhou-se Ashling. — E provavelmente também não vou poder ver você até depois do lançamento dessa joça de revista. Fico na redação até as nove quase todos os dias, e estou tão cansada que já nem sei meu próprio nome. — Tudo bem, eu vou viajar, mesmo... — De férias? — Vou viajar sozinha na semana que vem. Passar uns dias num spa em Wicklow... Porque estou estressada de tanto trabalhar — arrematou Clodagh, num tom subitamente feroz e defensivo. De repente, Ashling se lembrou com chocante clareza da preocupação de Dylan em relação a Clodagh, da conversa que haviam tido alguns meses atrás, naquele verão. De súbito, foi assaltada por uma sensação muito, muito ruim. O pressentimento de uma desgraça. Clodagh estava em apuros, e sua situação se encontrava à beira de um grande desfecho. O sentimento de culpa e o medo tomaram conta de Ashling. — Clodagh, alguma coisa está acontecendo, não está? Eu lamento tanto, mas tanto, por não ter estado ao seu lado. Me deixa ajudar, por favor, me deixa ajudar, é bom falar sobre essas coisas. Clodagh começou a chorar baixinho, e nesse momento o medo verdadeiramente se apoderou de Ashling. Algo inequivocamente estava errado. — Me conta — insistiu Ashling. Clodagh se limitou a soluçar. — Não, não posso, sou uma pessoa horrível. — Não é, não, você é fantástica! — Você não sabe, sou tão má, você não faz idéia, e você é tão boa... — Chorava tanto que suas palavras se tornaram incoerentes. — Vou dar um pulo aí — ofereceu-se Ashling, desarvorada.

— Não! Não, por favor, não faz isso! — Depois de soluçar mais um pouco, Clodagh fungou, anunciando: — Está tudo bem. Estou bem, agora. Juro. — Eu sei que não está. — Ashling sentiu que ela estava lhe escapulindo. — Estou, sim. — Sua voz saiu quase firme. Assim que desligou o telefone, Ashling começou a tremer. Ted. O puto do Ted. Tinha um pressentimento... Com os dedos trêmulos, digitou seu número e disse, em tom acusador: — Não tenho visto muito você ultimamente! — E de quem é a culpa? — rebateu ele, magoado. Ou defensivo? — Tem razão, desculpe, é o trabalho. Que tal a gente sair para tomar umas e outras? — Maravilha! Hoje à noite? — Hum, que tal semana que vem? — Não, não posso. — Por que não? Não diz, não diz... — Vou viajar uns dias. Ah, meu Deus. Ela ficou sem fôlego como se tivesse levado um murro no estômago. — Com quem? — Com ninguém. Vou participar do Festival de Edimburgo. — É mesmo? — É, é mesmo. — A linha telefônica estava envenenada de hostilidade. — Bom, boa sorte na sua viagem a Edimburgo com ninguém — disse Ashling, sarcástica, desligando em seguida. Pediria a Marcas para ficar de olho em Ted e lhe contar se visse Ted com Clodagh, ou — o que seria ainda mais sintomático — se não visse nem sinal de Ted.

Numa sucessão vertiginosa de dias histéricos e noites insones, chegou o dia do lançamento da Garota, trinta e um de agosto. Cedo demais, cedo demais. Ashling foi acordada por sua velha conhecida, a dor que lhe apunhalava o ouvido esquerdo seguidamente, como um alfinete de chapéu. Já devia saber. Com o senso de oportunidade que lhe era peculiar, seu ouvido infalivelmente escolhia as ocasiões mais inconvenientes para dar sinal de vida — a primeira prova do certificado de conclusão do Ensino Médio, o primeiro dia num novo emprego. Se a tivesse deixado na mão hoje — “O dia mais importante de sua vida profissional”, segundo Lisa —, ela teria ficado quase decepcionada. Quase, mas não totalmente, pensou, engolindo quatro comprimidos de paracetamol e enfiando uma bola de algodão na orelha. Isso estragaria tudo. Não poderia lavar o cabelo imundo porque correria o risco de respingar água no ouvido, teria que ir ao médico antes de ir trabalhar e ainda seria obrigada a encaixar no horário de almoço uma visita ao cabeleireiro que não estava no programa. Teve de suplicar à recepcionista do Dr. McDevitt para que lhe arranjasse uma hora bem cedo, e depois implorar ao médico para que lhe receitasse um analgésico decente. — Os antibióticos demoram alguns dias para fazer efeito — argumentou, em tom de súplica. — Não estou conseguindo nem pensar direito com essa dor. — E nem deveria estar pensando — censurou ele. — Deveria estar em casa, de cama. Enlouqueceste, meu bem?! Assim que ela passou a mão na receita, teve que comparecer à estréia de um filme, onde todo mundo que conheceu passou o tempo inteiro conversando com seu cabelo sujo. O filme durou três infindáveis horas, que ela passou se remexendo, inquieta, pensando em todo o trabalho que poderia estar adiantando no escritório. E pensar que um dia achara esse tipo de trabalho glamouroso!

Assim que os créditos começaram a subir, agarrou o release da mão da moça que os distribuía e picou a mula. Dez minutos depois, um novo recorde, irrompeu na redação quase deserta da Garota, tropeçando em sandálias de festa e esbarrando em vestidos pendurados nas portas e arquivos. O telefone de Lisa estava tocando, mas, quando o atendeu, já haviam desligado. Avançou para seu próprio telefone, apenas para descobrir que não havia a menor esperança de arranjar uma hora numa terça-feira durante o horário de almoço. Nem mesmo quando tentou os salões que tinham uma eterna dívida de gratidão com a Garota. — Uma emergência? — disse o primeiro. — É, estamos sabendo do lançamento hoje à noite. Lisa está aqui. Bom, aquele era carta fora do baralho. Lisa ia receber um serviço de luxo, com isso gastando a quota inteira de favores devidos. Em seus telefonemas para outros salões, Ashling apurou que Mercedes, Trix, Dervla, até mesmo a Sra. Morley e Shauna Honey Monster haviam usado o nome da Garota para descolar uma hora. Não é por nada não, mas que tipo de tolinha você é? Mas não podia perder tempo se repreendendo — já começava a entrar em pânico. Seu cabelo estava rançoso. Teria que lavá-lo ali mesmo. Felizmente, a redação vivia atulhada de produtos de beleza para cabelos — a variedade era tamanha que podiam se encontrar até mesmo itens básicos, como xampu. Mas ela precisaria de ajuda, e a única pessoa presente na redação era Bernard, todo produzido com sua melhor camisa-de-meia estampada de losangos, em homenagem à ocasião. — Bernard, você seria meu adorável assistente e me ajudaria a lavar o cabelo? Ele fez uma expressão horrorizada. — Estou com uma infecção no ouvido — explicou ela, com toda a paciência. — Preciso de ajuda, para a água não entrar no meu ouvido. Ele se contorceu todo, aflito. — Pede para uma das meninas te ajudar. — Dá só uma olhada, não tem ninguém aqui. E eu tenho que entrevistar Niamh Cusack em menos de uma hora. Tem que ser agora.

— E quando você voltar? — Tenho que ir direto para o hotel para ajudar a organizar tudo. Por favor, Bernard! — Ah, não — ele se contorceu. — Não posso, não seria certo. Pelo amor de Deus! Que dia dos infernos! Mas, também, o que ela podia esperar? Bernard tinha quarenta e cinco anos e ainda morava com a mãe. — De mais a mais, tenho que ir ao banco — mentiu ele. E foi logo tratando de dar o fora. Ashling sentou, descaindo o tronco sobre a mesa, as lágrimas já à beira de saírem para confortá-la. Seu ouvido doía, estava exausta, teria que ir à festa com o cabelo duro, imundo, oleoso, quando todas as outras pessoas estariam maravilhosas. Cobriu o ouvido latejante com a mão em concha e permitiu que algumas lágrimas arriscassem escorrer pelo rosto abaixo. — Que foi que houve? Ela levou um susto. Era Jack Devine, que a analisava com uma expressão quase preocupada. — Nada — murmurou ela. — Que foi que houve? — A festa de hoje à noite — disse ela, ressentida. — Meu cabelo está sujo, não consigo arranjar uma hora no cabeleireiro por nada no mundo, não posso lavar a cabeça sozinha porque estou com uma infecção no ouvido e ninguém quer me ajudar a lavar aqui mesmo. — Quem é ninguém? Bernard? Então foi por isso que ele deu no pé daquele jeito? Quase me derrubou quando saiu do elevador. — Ele foi ao banco. — Não foi, não. Ele só vai ao banco na sexta. Caramba, você deve ter dado um susto e tanto nele. Jack riu gostosamente, sob o olhar mal-humorado de Ashling. Em seguida colocou em cima de uma mesa sua pilha de documentos e bruscamente entrou em ação. — Muito bem, vamos lá! — Lá aonde? — Ao banheiro, lavar seu cabelo. Ela voltou o rosto para ele. — O senhor está ocupado — relembrou-o. Ele sempre estava ocupado. — Não vai demorar muito lavar seu cabelo. Vamos lá! — Qual banheiro? — perguntou ela, por fim. — O dos hom... — ele começou, mas logo se interrompeu. Entreolharam-se, indecisos. — Mas... — O dos homens não — disse ela, o mais categórica que pôde. — Mas...

— Não. — Se já era bastante ruim deixar Jack Devine lavar seu cabelo, de quebra ter que encarar uma fileira de urinóis na parede era impensável. — Tudo bem — suspirou ele, vencido.

— Não se parece nem um pouco com o nosso. — Jack se postava no umbral, olhando para o inócuo banheiro como se fosse uma coisa notável, quase apavorante. — Entra aí — ordenou Ashling, ríspida, tentando disfarçar seu constrangimento. Sacou do chuveirinho de borracha que uma fábrica de xampus mandara de brinde para a redação e tentou prendê-lo à torneira várias vezes, mas ele sempre se enroscava de novo, como uma sanfona. — Merda imprestável — disse, trincando as mandíbulas. Será que esse dia ainda podia ficar pior? — Dá aqui. — Ele se inclinou sobre ela, que tratou imediatamente de sair da sua frente. Com um único tranco vertical, prendeu o chuveirinho na torneira. — Obrigada — resmungou ela. — E agora? — Ele a observou molhar apressada as mãos sob os finos filetes d’água, ajustando a torneira até atingir a temperatura certa. Abaixando a cabeça para a frente, inclinou-se sobre a pia de porcelana branca. — Primeiro, molha o cabelo. E cuidado com o meu ouvido. — Meu Deus, ninguém merecia isso! Meio sem jeito, ele apanhou o chuveirinho sibilante e, a título de experiência, arriscou passar um jato sobre a cabeça de Ashling. Seu cabelo castanho tornou-se no ato uma massa negra. — Tem que molhar todo ele — disse ela, a voz abafada por estar de cabeça para baixo. — Eu sei! — Ela sentiu quando ele se deteve assustado diante de seu ouvido esquerdo — o ouvido bom — e levantou o cabelo, separando-o sistematicamente em mechas e ensopando-o todo até a raiz, depois até o pescoço. Pinicava, e não era uma sensação desagradável.

Como ele se esticava para alcançar toda a cabeça, seu corpo se curvava sobre as costas maleáveis de Ashling, sua coxa encostando no quadril dela. Ao mesmo tempo que ela se dava conta de que podia sentir o calor dele, atingia-a a aguda consciência de que a porta estava fechada. Estavam a sós. Começou a suar. Quando uma pinicante trilha de água começou a rastejar em direção ao seu ouvido direito, o medo a distraiu: — Cuidado! — Tá bem! — Jack ficou decepcionado. Achava que estava se saindo muito bem para um homem que nunca lavara o cabelo de mais ninguém além do próprio. — Desculpe. — A voz dela saiu abafada. —É que se entrar água, o tímpano pode se perfurar. Já aconteceu duas vezes. — Tudo bem, já entendi o drama. — Ele tornou os gestos mais lentos e, com os dedos, abriu sulcos suavemente para desviar a água da zona de perigo. Para sua surpresa, havia algo no arco de pele da parte de trás de sua orelha que o comoveu da maneira mais insólita. Aquela linhazinha de inocente maciez, anterior à parte de onde o cabelo brotava, pujante. Parecia tão patética, encantadora, inexplicavelmente corajosa. E aquelas bolas de algodão enormes, idiotas, brotando de cada uma das orelhas... Ele engoliu em seco. — Xampu — ela o interrompeu. — Põe um pouco no cabelo, e depois esfrega até fazer espuma... — Ashling, eu sei como xampu funciona. — Ah. É claro. Seus dedos lentamente se puseram a massagear o couro cabeludo dela em círculos, espalhando o xampu por toda a cabeça. Foi inesperadamente prazeroso. Ela fechou os olhos e se permitiu apenas fruir essa sensação, deixando para trás o exaustivo mês que passara, com sua enorme carga de trabalho. — Como estou indo? — perguntou ele. — Muito bem. — Sempre quis ser jeitoso com as mãos — confessou ele, com um tom de voz que parecia melancólico. — Cabeleireiro é que não poderia ser — murmurou ela, lamentando um pouco ter que falar, de tanto que estava gostando daquilo. — Não é fresco o bastante.

Seu couro cabeludo pinicava, em êxtase, ao que ele passava as mãos fortes e seguras por ele. Ela iria se atrasar horrores para a entrevista com Niamh Cusack, mas, francamente, estava cagando e andando. Pequenos calafrios percorriam a raiz de seus cabelos, a tensão abandonara o corpo superestressado e o único som na penumbra do aposento era o da respiração de Jack. Curvada sobre a pia, aninhava-se sonolenta no calor do corpo dele. Era o paraíso... Nesse momento, ao sentir uma dor abrindo caminho dentro de si rumo ao baixo-ventre, apavorou-se. Ele não estava lavando sua cabeça de maneira normal. Ela sabia disso. Ele também devia saber disso. Estava tudo íntimo demais. E havia outra coisa. Uma presença. Uma rigidez vertical perto de seu rim, na altura da virilha de Jack. Ou seria sua imaginação? — Pode enxaguar agora, por favor? — pediu, num fio de voz. — E passar um pouco de condicionador? Mas depressa, senão vou me atrasar. Esse era Jack Devine. O chefe de sua chefe. Ela não sabia o que estava acontecendo, mas, fosse o que fosse, era para lá de esquisito. No exato segundo em que ele terminou, ela espremeu o excesso de água, e então o viu se aproximando com a toalha. — Pode deixar que eu mesma seco, obrigada — disse, sem fôlego. Os olhos dos dois se encontraram no espelho. Na mesma hora ela desviou os seus dos dele, negros como azeviche. Sentia-se constrangida, confusa... enfim, da maneira como sempre se sentia perto dele, mas dez vezes mais. — Obrigada — conseguiu dizer, bem-educada. — O senhor me ajudou muito. — O Senhor está no céu. Pode me chamar de Jack. E não há de quê, estou sempre às ordens. — Então ele sorriu e o clima mudou totalmente, de tal maneira que mais tarde ela pensaria se não imaginara aquela vibração tácita entre os dois. — Não sou o bicho-papão que todos vocês pensam que sou. — Não, nós não... — Sou só um cara com um emprego difícil. — Hum, claro! — Quanto é que você quer apostar que Trix vai me apanhar saindo daqui? Ashling demorou um segundo para responder: — Uma libra.

Quando Jack chegou ao Hotel Herbert Park, a festa já começara há bastante tempo. O local estava apinhado de gente, havia mesas com pilhas altas e lustrosas de exemplares da Garota e as mulheres da redação se organizavam numa esteira rolante humana altamente eficiente, para receber os bambambãs esperados. A primeira parada era Lisa, que, laqueada, lustrosa e cintilante, provavelmente nunca estivera tão linda na vida. Em seguida Ashling, que, desengonçada em um vestido e um par de saltos-agulha, conferia os convites com os nomes numa lista. Mercedes, parecendo magra como uma cobra em seu modelito negro de neoprene, prendia crachás nas roupas dos recém-chegados, e Trix, com um vestido praticamente simbólico, conduzia os convidados ao vestiário. Rapazes e moças bonitas circulavam com bandejas de coquetéis que, pelo visto, eram bebida de gente grande — nem um guarda-chuvinha à vista. — Senhora diretora! — Jack parou diante de Lisa. — Oi — ela sorriu. — Mas sou eu que estou recebendo as pessoas! — Então me receba, ué. Ela lhe deu um beijo no rosto e, numa paródia de diretora boçal, exclamou: — Meu amor, que prazer inenarravelmente inenarrável ver você! Hum, você é quem, mesmo? Jack riu e se dirigiu para Ashling, que levantou os olhos da lista. — Ah, oi — exclamou ela, subitamente nervosa. — Devine, Jack. Não estou achando seu nome na lista. Você é o quê, um bam ou um bamba? — Nem uma coisa nem a outra. — Ele apreciou seu vestido preto, solto. — Está bonita. — Mas o que realmente queria dizer é “Está diferente”. — Quase nunca uso vestidos — confidenciou Ashling. — E já desfiei uma meia-calça. — E que tal ficou o cabelo? — Me diz você. — Sacudiu a cabeça, feliz. Em outras mulheres, um meneio cheio de balanço faz o cabelo parecer felino e sofisticado; nela, tinha uma feiúra simpática que ele achou um tanto comovente. — E seu ouvido?

— Que ouvido? — perguntou ela, alegre. E, levantando sua taça de coquetel de champanhe: — Tintim! Não está doendo. Agora, circulando, por favor. Lisa passou a noite toda recebendo parabéns. A festa foi um sucesso: todos compareceram. Depois de uma busca completa, apuraram apenas seiscentos e quatorze bambambãs irlandeses, mas, pelo visto, todos eles haviam comparecido. Os elogios e a admiração circulavam pelo salão em altas e gratificantes doses. Era maravilhoso! E, apesar das falhas, até mesmo de tipografia, a Garota era um feito deslumbrante. Sua modernidade só faltava saltar de dentro das páginas lustrosas. Lisa conseguira até mesmo, na última hora, arranjar um depoimento de uma celebridade. A nova banda de garotos, Laddz, acabava de despontar, e Shane Dockery, o vocalista, aquele jovem nervoso que ela conhecera tantos meses atrás na inauguração da Morocco, conseguira se transformar num verdadeiro ídolo, com direito a centenas de adolescentes subindo pelos muros de sua casa feito macacos. Shane se lembrou de Lisa. Como poderia se esquecer da única pessoa que o tratara bem durante os meses que passara à margem do cenário musical? Se conseguisse despejar as adolescentes da gaveta de sua escrivaninha onde guardava lápis e papel, escreveria o depoimento com o maior prazer. E todos concordaram que seu artigo tinha uma originalidade atraente e uma exuberância que os velhos dinossauros do rock não teriam conseguido simular. Lisa não conseguia parar de sorrir — sorrisos autênticos, de orelha a orelha. Quem teria dito, quatro meses atrás, que ela chegaria lá? E que isso lhe proporcionaria tanta satisfação?

Até a situação da publicidade fora resolvida — impulsionada pelos sem-teto nas fotos da coleção de Frieda Kiely. Os assessores de imprensa de todas as grandes grifes compreenderam que a Garota não era nenhum jornaleco provinciano de distribuição gratuita, e sim uma força digna de respeito. Depois disso, não apenas puseram anúncios grandes e caros, como chegaram mesmo a pedir que suas coleções fossem incluídas nos próximos números. — Oi, Lisa! — Lisa se virou e viu Kathy, sua vizinha, carregando uma bandeja de sushi. — Ah, oi, Kathy. — Obrigada por me conseguir esse bico. — Imagina. — Só que tem um pessoalzinho aí perguntando cadê os rolinhos de salsicha. Lisa riu. — Se é o que querem, não deveriam estar aqui. — Eu dei uma provadinha nesse tal de sushi — confidenciou Kathy. — E, quer saber de uma coisa? Não é nada mau. Nesse momento, Marcus Valentine, em quem já se faziam notar os sinais de uma camoeca dramática, passou, trocando as pernas. Automaticamente Lisa o brindou com um sorriso cegante. E Jasper Ffrench, em quem já se faziam notar os sinais de uma camoeca ainda mais dramática, seguiu atrás dele, trôpego. Pouco depois chegou Calvin Carter, que voara de Nova York especialmente para a ocasião. Calvin distribuía a torto e a direito apertos de mão esmagadores e chamava todo mundo pelo primeiro nome. — Fantástico, Lisa. — Passou os olhos pela multidão de gente bonita. — Fantástico. Muito bem, chegou a hora, Lisa, vamos discursar! Trepou de um pulo num tabladinho e lascou um dito irlandês que fizera Ashling transcrever foneticamente para ele. — Kade Meela Fall-che*! — berrou, e a citação pareceu cair muito bem, a julgar pelo escandaloso coro de gargalhadas que irrompeu. Embora, é claro, Calvin sempre tivesse dificuldade para distinguir quando riam com ele de quando riam dele.

* “Sejam cem mil vezes bem-vindos!”

 

Em seguida proferiu um discurso sobre Dublin, revistas e como a Garota era fabulosa. — E a mulher que tornou tudo isso possível... — estendeu o braço para Lisa. — Senhoras e senhores, com vocês, a diretora das diretoras, Lisa Edwards! Sob a salva de palmas bêbadas do salão, Lisa subiu no pódio. — Bate palmas — ordenou Ashling entre os dentes para Mercedes —, se não quiser perder o emprego. Mercedes soltou uma risada sinistra e continuou de braços cruzados. Ashling lhe deu um olhar ansioso, mas não pôde se deter por mais tempo: estava incumbida de carregar o buquê de flores. Também estava bêbada feito uma gambá — uma combinação de exaustão, analgésicos e álcool, é claro —, e torcia para conseguir se agüentar nas pernas pelo menos até a hora de subir o curto lance de escadas com o buquê. Em algum momento de seu belo discurso, o olhar de Lisa recaiu sobre Jack — ou, para usar o apelido secreto que ela lhe dera, O Fecho de Ouro desta Noite. Estava recostado numa parede, de braços cruzados, seu sutil sorriso a envolvê-la numa aura de grande carinho e admiração. Se Lisa já estava com o moral nas nuvens, com o sorriso de Jack ele foi às estrelas. Aquela era a grande noite. Desde que Jack voltara de New Orleans, os dois tinham estado ocupados demais para se divertir, e ela praticamente não tivera tempo para flertar com ele. Mas, depois dessa noite, ela poderia se deitar nos louros da vitória, e pretendia tê-lo como companheiro de horizontal. Esquadrinhou a platéia com um sorriso transcendental. Onde diabos se enfiara Ashling? Ah, lá estava ela. Lisa meneou a cabeça — era hora de entregar o buquê. Depois dos discursos, a festa engrenou uma terceira, uma quarta e, logo, logo, já engrenava uma décima. Calvin parecia totalmente alarmado — não se bebia tanto assim em Nova York. E onde é que Jack se metera?

Jack, cansado de trocar apertos de mão, descobrira uma cadeira discreta dando sopa num canto e se arriara nela, aliviado. Sobre a mesa, alguns sushis abandonados — que, obviamente, alguém se sentira perplexo demais para comer. Nesse momento, acabando com sua paz de espírito, as portas de vaivém perto dali se abriram violentamente, em perfeita sincronia com a música que tocavam, e Ashling entrou dançando, com um cigarro e um copo. Dançava surpreendentemente bem, cada parte de seu corpo requebrando como um saco semovente de filhotes de cachorro. Talvez porque estivesse muito, muito bêbada, percebeu Jack. Ela avançou em direção a ele e atirou sua bolsa no chão com a força dos ébrios, para logo em seguida notar algo no próprio joelho. — Alerta Fio Corrido! — anunciou. — Me passa minha bolsa. — Com o cigarro enfiado na boca, os olhos franzidos a se proteger da fumaça, ela pescou em seu interior uma lata de laquê e vaporizou a perna do meio da canela até a coxa, num jato curto e eficiente. Jack a contemplava, hipnotizado. — Por que você passou laquê na perna? — Para o fio não correr mais. — Seus lábios franziam-se numa espécie de peristaltismo, mantendo a guimba firmemente presa num canto, enquanto ela falava e soltava a fumaça ao mesmo tempo. Enquanto a observava recolocar a lata de laquê na bolsa, ele formou a convicção inabalável de que Ashling era alguém em cujas mãos podia-se pôr a própria vida. Ela soltou uma exclamação estridente, como se tivesse acabado de lhe ocorrer algo fantástico. Ato contínuo, meteu a cara novamente em sua bolsa e, presa de um frouxo de riso, retirou um vidrinho de perfume. Em meio a um grande quiriquiqui, vaporizou-o no pulso, estendendo-o a Jack em seguida. — Adivinha? Estou com cheiro de cocô. E se dobrou em duas, indicando que achava a piada engraçadérrima. Jack se pegou rindo também, mesmo sem entender. Ela exibiu o vidro de Coco.

— Coco, cocô, sacou? O brinde de hoje à noite. Que pena que não vão distribuir os vidros para o pessoal antes do fim da festa, porque a gente poderia sair por aí dizendo para todo mundo: “Você está com cheiro de cocô...” Ih, olha só! — exclamou, ao perceber algo. — Você rói as unhas! — Tomou a mão dele e a examinou. — Hum, pois é — admitiu ele. — Por quê? — Sei lá. — Ele tentou encontrar uma razão, mas não lhe ocorreu nenhuma. — Você se preocupa demais. — Com um ar abobalhado de comiseração, ela deu tapinhas nos sabugos macios de seus dedos estropiados. — Escuta... — Olhou para ele com súbito ar de urgência. — ... será que você tem um cigarro? Jasper Ffrench afanou os meus. — Pensei que você sempre tivesse um maço sobressalente. — Tentou dar um tom de piada à constatação, mas sua boca parecia dormente, como se ele tivesse estado no dentista. — E tinha, mas ele afanou o sobressalente também. Jack notou Lisa do outro lado do salão, erguendo sua flûte para ele. Cada detalhe de sua linguagem corporal era um convite. Enquanto tateava os bolsos atrás do maço de cigarros, sentiu-se como se a cabeça estivesse cheia de algodão, e não conseguiu pensar direito. Lisa era linda, inteligente, arrojada, e ele sentia uma imensa admiração por seu talento e energia. Mais do que isso, gostava sinceramente dela. Devia gostar — afinal, não a beijara? Mesmo que ainda não estivesse cem por cento certo de como aquilo acontecera. Lisa tinha planos para Jack aquela noite, mas, com uma súbita e fria convicção, ele soube que não desejava fazer parte deles. Por que não? Seria porque Lisa era casada? Porque trabalhavam juntos? Porque ele ainda não esquecera Mai? Ou talvez porque ainda não esquecera Dee? Mas não era por nenhum desses motivos. Era por causa de Ashling — a mulher antes conhecida como Senhorita Quebra-Galho.

O que diabos estava acontecendo com ele? Estaria confuso por causa da diferença de fuso horário?, perguntou-se, atordoado. Mas já fazia doze dias que voltara, não podia ser esse o problema. Bem, só havia uma outra conclusão possível. Uma única e inevitável conclusão. Estava tendo um colapso nervoso.

Ashling acordou se sentindo como se tivesse sido atropelada por uma jamanta. Seus ouvidos latejavam, seus ossos doíam e a exaustão tomara conta de todo o seu corpo, mas que importância isso tinha? A noite passada fora maravilhosa. A festa não apenas fora um grande sucesso, como também extremamente divertida. Durante um momento, ficou em dúvida se estava ou não sozinha na cama. Então lembrou que se desencontrara de Marcus em algum momento, e que voltara para casa sozinha. Não tinha problema. Agora que a revista estava indo de vento em popa, a vida poderia voltar ao normal. Toda dolorida, arrastou-se para o sofá, onde assistiu à programação matinal da tevê, entre um cigarro e outro. Sua cabeça doía. Estava atrasadíssima para o trabalho, mas não se importava. O consenso tácito era o de que cada um aparecesse à hora que bem entendesse. Por fim, a contragosto, tomou um banho e se vestiu. Já eram onze horas quando pôs o pé na rua. Estava chovendo. As nuvens escuras e baixas de setembro pairavam sobre a cidade, dando-lhe uma luminosidade cinza-esverdeada. A poucos metros da portaria de Ashling estava Boo, sentado na calçada molhada. Todo encolhido, o cabelo colado no crânio, com filetes de chuva a escorrerem-lhe pelo rosto. Quando Ashling se aproximou, no entanto, percebeu, com uma pontada de dor, que não era a chuva que molhava seu rosto, mas suas lágrimas. — Boo, que foi que houve? Aconteceu alguma coisa? Ele ergueu o rosto para ela e escancarou a boca, avassalado por um urro silencioso. — Olha só para mim. — Cobrindo os olhos com uma das mãos, usou a outra para indicar a si mesmo, suas roupas imundas e encharcadas, a falta de um teto sobre sua cabeça. — É tão degradante — disse, tremendo. Ashling ficou petrificada. Boo era sempre tão alegre.

— Estou com fome, com frio, encharcado, imundo, entediado, sozinho e morto de medo! — Seu rosto se contorcia de choro. — Estou cansado de ser perseguido pela policia, cansado de ser tratado como se fosse um cocô. Não me deixam nem entrar naquela lanchonete do outro lado da rua para comprar um café. E olha que é um takeaway! * Ashling nunca chegara a pensar que Boo gostasse de ser um sem-teto, mas não se dera conta de o quanto ele odiava sua condição. — Sofro todos os tipos de abusos. As pessoas dizem que sou um filho-da-mãe preguiçoso, que devia arranjar um emprego. Eu adoraria arranjar um emprego, porra. Odeio mendigar, é tão humilhante! — Aconteceu alguma coisa? — perguntou Ashling. — Que deflagrou tudo isso? — Não — disse ele, com a voz embargada. — Só estou tendo um dia ruim. Enquanto ela pensava no que fazer, a chuva gotejava das varetas de seu guarda-chuva, pontilhando-lhe as costas do blazer com manchinhas frias e molhadas. Ashling sentiu um rompante de frustração. Boo não deveria ser responsabilidade sua. Ela pagava seus impostos; o governo é que devia tomar conta dessas pessoas. E se o deixasse se abrigar na portaria de seu prédio? Mas não podia: fizera isso durante uma tempestade violenta naquele mesmo verão, meses antes, e alguns dos moradores puseram a boca no trombone. Sendo assim, será que devia deixá-lo entrar em seu apartamento? Dever, devia, mas, apesar de seu carinho por ele, resistia à idéia. Por outro lado, ele estava tão infeliz... Ela desistiu. — Vem para o meu apartamento. Toma um banho e come alguma coisa. E pode pôr suas roupas para lavar na máquina. Tinha a esperança de que ele recusasse a oferta e ela pudesse seguir caminho com a consciência tranqüila, mas ele a fitou com triste gratidão:

* Lanchonete que vende exclusivamente comida para viagem.

 

— Obrigado — disse, engolindo em seco, para logo em seguida tornar a romper em lágrimas. — Não vou fazer disso um hábito — prometeu, ao que ela o conduzia pelas escadas Assim que Ashling o viu em contraste com seu apartamento relativamente limpo, deu-se conta do quanto ele estava imundo. Suas calças jeans imundas eram largas demais para alguém com sua compleição patética e esquálida, seu pálido rostinho de criança endiabrada estava coberto de manchas de sujeira, e os nós de seus dedos, cheios de crostas. — Estou fedendo — admitiu ele, envergonhado. — Me desculpe. Algo rompeu no coração de Ashling. Uma tristeza, uma revolta. — Toalhas. — Seus dentes estavam trincados quando pôs uma pilha macia nos braços de Boo. — Xampu, escova de dentes nova. Aqui ficam a máquina de lavar e o sabão em pó. Aqui, a chaleira, o chá e o café. Se encontrar alguma coisa para comer na geladeira, pode se servir à vontade. — Pôs uma nota de cinco libras na mão dele. — Tenho que ir trabalhar, Boo. Até mais tarde. — Nunca vou me esquecer disso. Ashling fechou a porta, deixando-o no vestíbulo, os joelhos de suas calças sujas de terra largos como os de Carlitos, a pilha fofa de toalhas ofuscantes de tão brancas e macias como marshmallow. — Tem uma pessoa esperando por você — avisou Jack Devine, assim que Ashling chegou à redação. E indicou o homem bêbado feito uma gambá sentado diante de sua mesa. No momento em que viu Dylan, ela soube que alguma coisa horrível acontecera. Alguma coisa verdadeiramente horrível. Suas feições estavam tão alteradas pelo choque que ela quase não o reconheceu, a esse homem que conhecia há onze anos. Parecia apagado, sua pele, cabelos e olhos totalmente sem vida. Ele fixou nela o olhar aturdido e magoado e anunciou, para quem quisesse ouvir: — Clodagh está tendo um caso. A consciência atingiu Ashling com força total. Acreditou nele. Uma idéia passou por sua cabeça: Que coisas terríveis as pessoas fazem com aqueles a quem amam.

A honra exigia que ela cumprisse as formalidades adequadas à circunstância. Não havia maneira humanamente possível de dizer a Dylan: “Bem que eu achei que ela era capaz de estar pulando a cerca.” Em vez disso, tinha de fingir que havia uma possibilidade de ele estar enganado. Por esse motivo, perguntou: — O que leva você a achar isso? — Eu flagrei os dois. — Quando? Onde? — Cheguei em casa do trabalho às dez da manhã de hoje. Estava preocupado com ela — justificou-se. Era mais provável que estivesse suspeitando dela. Mas Ashling o compreendeu. — E peguei os dois na cama. — A voz de Dylan tornou-se fina como a de um soprano e, pela segunda vez aquela manhã, Ashling presenciou um marmanjo chorando como uma criança. — Eu conheço ele — confessou Dylan. — E você também. O pavor e a consciência se intensificaram. Ashling sabia o nome que Dylan ia pronunciar. — É aquele puto daquele humorista. Eu sei. — Aquele amigo seu. Ted! — Marcus babacão — disse Dylan, com um soluço. — Seja lá qual for a porra do nome dele. Valentine, ou coisa parecida... Marcus Valentine. — Não, você está falando de Ted, o moreno baixinho, Ted. — Não estou, não, estou falando daquele seu amigo de merda, Marcus Valentine. O pesadelo de Ashling subitamente tomou uma direção inesperada. — Ele não é meu amigo — disse sua voz, como se viesse de algum aposento muito longe dali. — Ele é meu namorado. As poucas pessoas que estavam presentes — Jack, a Sra. Morley e Bernard — ficaram imóveis de estupefação. O único som que se ouvia eram os soluços de Dylan. — Acho que não chega a ser tão surpreendente assim — disse ele, com a voz embargada. — Não é a primeira vez que ela rouba um namorado seu. E olhou para ela longa e fixamente, antes de dizer; — Eu devia ter ficado com você, Ashling... É melhor eu ir andando. — Apanhou uma sacola. — O que é isso? — murmurou Ashling. — Roupas, objetos de uso pessoal. — Você deixou Clodagh? — Pode crer que sim. — Mas para onde você vai?

— Para a casa de minha mãe, por um tempo. Embotada, ela o viu ir embora. Sentiu um peso sobre os ombros. Um braço. Pertencente a Jack Devine. — Vamos para o meu escritório. Lisa acordou acometida pela sensação de vazio que se segue a uma grande alegria. Todo o brilho da noite anterior se perdera. Tudo bem, a revista era o máximo, tudo bem, a festa fora um sucesso, mas era só uma revista de uma cidade onde o vento faz a curva, com uma circulação de trinta mil exemplares. Onde é que estava a importância disso? A esse anticlímax juntava-se outra decepção ainda maior. Era Jack. Estava crente que ele viria para casa com ela. Sentia que fizera por merecer isso, que seria sua recompensa por trabalhar tanto e fazer as coisas acontecerem. Embora não tivessem mais saído juntos desde que ele voltara de New Orleans, presumira que havia um acordo tácito entre os dois, no sentido de que esperariam até a época do lançamento. Mas, na noite passada, quando ela fora reclamar seu prêmio, ele desaparecera. Ao meio-dia, com o moral no chão, chegou para trabalhar. Encaminhou-se diretamente para o escritório de Jack, em parte para discutir com ele a repercussão do lançamento, em parte para se certificar do interesse dele. Abriu a porta... E viu uma cena das mais estarrecedoras. Num instante, uma consciência primeva a atingiu e fez com que compreendesse exatamente o que acontecia. Não era o fato de Jack e Ashling estarem sozinhos no escritório dele, nem de Jack aninhar Ashling nos braços como se fosse a mais preciosa boneca de porcelana do mundo. Era a fisionomia de Jack. Lisa jamais vira uma expressão de tamanha meiguice. Recuou, sua incredulidade transformando a redação da revista num cenário onírico. Trix se aproximou com um pedaço de papel: — Ligou uma pessoa para você... — Agora não. Passados alguns minutos, Ashling saiu do escritório com cara de condenada, evitando olhar nos olhos de todos. Foi embora da redação. Em seguida saiu Jack, parecendo exausto.

— Lisa! — exclamou. — Ashling sofreu um abalo horrível, mandei ela para casa. Lisa teve que fazer um grande esforço para falar com ele. — Que foi que houve com ela? — Ela, hum, descobriu que o namorado está tendo um caso com sua melhor amiga. — Quê? Marcus Valentine e a tal de Clodagh? — Pois é. Lisa sentiu uma vontade histérica de rir. — Pode dar um pulo no meu escritório? — pediu Jack. — Preciso falar com você sobre uma coisa. Será que ele iria se desculpar? Explicar que estava apenas confortando Ashling e que era de Lisa que realmente gostava? Mas ele só queria falar de trabalho. — Em primeiro lugar, quero te dar os parabéns por ontem à noite e pela primeira edição. Você foi muito além do que nós esperávamos, e toda a diretoria manda seus parabéns. Lisa assentiu, consciente de que começava a perdê-lo. Toda a intimidade dos dois fugia, sendo puxada de baixo de seus pés. Jack sentia-se claramente constrangido em sua presença. — Me desculpe por dizer isso numa hora em que você deveria estar saboreando o seu sucesso — prosseguiu ele —, mas tenho uma má notícia. Você está apaixonado por Ashling? — Mercedes se demitiu hoje de manhã. — Ah... Ah... Por quê? — Ela vai embora da Irlanda. Filha-da-puta, pensou Lisa, venenosa. Não tivera nem sequer a delicadeza de dizer que era porque Lisa era uma tirana com complexo de poder para quem ela não queria mais trabalhar. — Ela arranjou um emprego em Nova York — prosseguiu Jack. — Consta que o marido dela foi transferido para lá. — Nova York? — Lisa relembrou a viagem que Mercedes fizera em junho. E a pior idéia do mundo lhe ocorreu. — Esse emprego novo dela não é... não é... na Manhattan, é? — Não sei em que revista é, ela não disse. — Onde é que ela está? — rosnou Lisa, subitamente feroz. — Foi embora. Ela tinha direito a uma semana de férias, que tirou, em vez de nos notificar. Lisa escondeu o rosto nas mãos. — Você se importa se eu for para casa?

Chamou um táxi e, ainda se sentindo como se estivesse sonhando, quando deu por si estava em casa, quinze minutos depois. Enfiou a chave na fechadura da porta e entrou. A correspondência chegara; havia um grande envelope manilhado no chão do vestíbulo. Apanhou-o, distraída e, enquanto descalçava os sapatos de qualquer jeito, rasgou-o. Desdobrou o papel grosso enquanto jogava a bolsa na bancada da cozinha. Por fim, concentrou sua atenção nas folhas que tinha em mão. Bastou-lhe um olhar de um segundo. Arriou-se no chão, o corpo dobrado em dois de incredulidade. Era um pedido de divórcio. Clodagh abriu a porta e se encolheu com o grito de “Filha-da-puta!” soltado na sua cara. — Ashling! — Não estava me esperando? Não, não estava. Só conseguia pensar em Dylan, no fato de ter descoberto tudo e a deixado. Em algum canto de seu inconsciente sabia que teria de falar com Ashling, mas ainda não conseguira parar para pensar nisso. — E aí, minha melhor amiga? — começou Ashling, avançando pela cozinha adentro. — Pensou em mim quando estava trepando com o meu namorado? Clodagh estava sofrendo muito. Como podia lhe explicar o sentimento de culpa, a tortura? — Pensei em você, sim, Ashling — disse, humilde. — Pensei, e foi muito difícil. A gente acha que só os personagens de novela têm casos. Mas as pessoas de carne e osso também têm, essas coisas acontecem. — Mas comigo? Como é que você pôde fazer isso comigo? — Não sei. Mas você não estava com ele há muito tempo, não era como se fossem casados nem nada, e eu estava me sentindo tão infeliz, tão presa, como se estivesse enlouquecendo... — Não tenta me fazer ficar com pena de você. Você tem tudo, porra! — disse Ashling, feroz. — Por que tinha que roubar ele de mim? Você tem tudo! — Às vezes, tudo não é o bastante — foi só o que Clodagh conseguiu dizer. — Quando foi que essa história com Marcus começou? — Quando você estava em Cork — respondeu Clodagh, fria. — Ele me deu um bilhete com o número de telefone dele...

— “Bellez-moi”. — Ashling exultou ao ver a expressão de surpresa estampada no rosto de Clodagh. — Você e quase todas as mulheres de Dublin ganharam um bilhete desses. Mas então por que ele foi me buscar na estação aquele fim de semana? Clodagh deu de ombros, triste: — Talvez estivesse se sentindo culpado. — E depois? — Ele apareceu aqui em casa na segunda-feira seguinte. Não aconteceu nada. Só tomou uma xícara de chá e, quando já estava de saída, lavou a xícara. Sei que é uma bobagem, mas... — Ele disse: “Minha mãe me treinou bem” — Ashling a interrompeu. — Pois é, eu também fiquei encantada quando ouvi isso. — Ele me ama — disse Clodagh, na defensiva. É provável que ame, Ashling caiu em si, os cacos da dor furando o escudo protetor do ódio. — E depois? — Depois... apareceu aqui de novo no dia seguinte. — E aí fez mais do que lavar a xícara. — Não estamos tendo esta conversa. Estou alucinando. Clodagh assentiu, evitando olhá-la nos olhos. — Eu nunca adivinharia que ele faz seu tipo — acusou Ashling, consciente de que seu rosto estava contraído e feio de dor. Como desejaria exibir uma máscara impassível e digna! — Nem eu mesma teria adivinhado que ele faz meu tipo — admitiu Clodagh. — Mas desde a primeira noite, naquele show humorístico, gostei muito dele. Não queria, mas não pude evitar. — E Dylan? Clodagh abaixou a cabeça. — Não sei, não sei mesmo... Olha, eu traí você, nossa amizade, e isso deve doer mais do que o fim do seu, hum, romance. — Aí é que você se engana — Ashling a corrigiu, cruel: — Eu me importo muito mais de perder meu namorado. Clodagh olhou para o rosto pálido e feroz de Ashling e disse, insegura: — Nunca vi você desse leito. — De que jeito? Furiosa? Bom, já não era sem tempo. — Como assim? — Você já fez isso comigo antes — disse Ashling, em voz baixa. — Dylan foi meu namorado primeiro. — Sim, mas... ele se apaixonou por mim. — Você roubou ele de mim.

— E por que você nunca disse nada? — tornou Clodagh, subitamente feroz. — Sempre no papel de vítima! — E a culpa é minha, por acaso? — rebateu Ashling, antipática. — Vamos deixar uma coisa bem clara. Eu te perdoei por Dylan. Mas nunca vou te perdoar por Marcus. — Droga — pensou ela, ao se dar conta. — Acho que estou tendo um colapso nervoso. Correu o olhar pela cama onde estava jogada. Seu corpo há muito necessitado de um banho espalhava-se letargicamente sobre o lençol há muito necessitado de uma troca. Lenços-de-papel encharcados e amassados atulhavam o edredom. A poeira se acumulava sobre um arsenal intacto de chocolates em cima da cômoda. A televisão no canto bombardeava sua cama sem trégua com a programação da manhã. Opa, colapso nervoso, não tinha nem talvez. Mas algo estava errado. O que seria? — Sempre achei... — ela arriscou. — A verdade é que sempre esperei... Do nada, ela soube. — Sempre achei que seria melhor do que isso... Clodagh tinha a convicção de que estava a pique de desmoronar. Mas precisava se vestir e apanhar Molly no grupo de atividades. Assim que voltou, enfiou-se novamente na cama e tentou retomar seu sono do ponto em que o interrompera, mas Molly começou a gritar que queria porque queria macarrão instantâneo. Resignada, Clodagh tornou a se levantar. Já não estava mesmo gostando de ficar prostrada — o que foi uma grande surpresa para ela. Em criança, observava a mãe de Ashling recolhendo-se ao leito e achava seu abandono glorioso. Na prática, porém, ficar deitada, sentindo-se incapaz de enfrentar a realidade, atormentada pelo ódio de si mesma e a confusão mental, não tinha a metade da graça que ela esperara. Desde as dez daquela manhã — teria sido mesmo apenas naquela manhã? —, sua vida inteira se tornara uma experiência extracorpórea. Desde o momento em que ouvira a chave de Dylan na porta, ela soubera. O show estava prestes a começar.

Interrompera seus revoluteios frenéticos sob o corpo de Marcus e pusera a mão em concha à orelha, prestando atenção. “Ssshhh!” Num só gesto fluido, ele rolou para o lado, e os dois ficaram ouvindo, imóveis, de olhos arregalados, os passos de Dylan na escada. Ela tivera todas as oportunidades de pular da cama, vestir um penhoar às pressas e empurrar Marcus para dentro do guarda-roupa. Com efeito, Marcus tentara se esgueirar da cama, mas ela o retivera, agarrando seu pulso com força. Em seguida ela se pôs à espera com uma calma horrível, o cenário pronto para mudar sua vida. Durante as últimas cinco semanas amargara noites e noites de insônia, perguntando-se onde iria dar seu caso com Marcus. Vacilara entre a hipótese de romper com ele e a de retomar sua vida com Dylan, por vezes fantasiando uma situação em que Dylan encontrava-se magicamente ausente, sem ela ser obrigada a lhe dizer que estava tudo acabado. Porém, à medida que ouvia os passos de Dylan se aproximando cada vez mais, compreendeu que a decisão já fora tomada por ela. Subitamente, não teve tanta certeza assim de estar pronta. A porta do quarto se abriu e, muito embora ela soubesse que era Dylan, sua presença a chocou de tal modo que ela foi vítima de uma espécie de estupor. Seu rosto. A expressão em seu rosto era infinitamente pior do que ela imaginara que poderia ser. Estava quase surpresa com a intensidade do sofrimento ali estampado. E a voz, quando ele falou, não era a sua.Tinha um tom pungente e abafado de dor, como se tivesse levado um murro no estômago. — Mesmo ao risco de parecer uma letra de música — ele se esforçou para recobrar o fôlego, com patética dignidade —, há quanto tempo isso vem acontecendo? * — Dylan... — Há quanto tempo? — Um mês. Dylan voltou-se para Marcus, que se agarrava ao lençol, cobrindo o peito.

* Referência à canção “How long has this been going on?”, do grupo Lipps Inc.

 

— Será que você se importa de ir embora? Eu gostaria de dar uma palavra com a minha mulher. Com as mãos em concha encobrindo pudicamente a genitália, Marcus esgueirou-se da cama de lado, como um caranguejo, recolheu algumas roupas e murmurou para Clodagh: “Te ligo mais tarde.” Dylan observou-o ir embora, logo em seguida voltando-se para Clodagh e perguntando em voz baixa: — Por quê? — E havia centenas de milhares de perguntas contidas nessas únicas duas palavras. Ela refletiu, buscando as palavras exatas. — Sinceramente, não sei. — Por favor, me diz por quê. Me diz o que está errado. Nós podemos resolver isso, eu faço qualquer coisa. O que ela poderia dizer? Com súbita convicção, soube que não queria que ele resolvesse nada. Mas lhe devia honestidade. — Acho que foi porque eu estava me sentindo sozinha... — Sozinha? Como assim? — Não sei, não consigo descrever a sensação. Mas o fato é que me sentia sozinha e entediada. — Entediada? Comigo? Ela hesitou. Não podia chegar a esse ponto de crueldade. — Com tudo. — Você quer resolver isso? — Não sei. Ele a estudou durante um longo e sofrido silêncio. — Isso quer dizer que não. Você ama esse... cara? Um meneio de cabeça infeliz: — Acho que sim. — Tudo bem. — Tudo bem? Mas Dylan não respondeu. Em vez disso, puxou uma sacola do alto do guarda-roupa, jogou-a em cima da cama e, abrindo e batendo gavetas com brutalidade, pôs-se a atirar cuecas e camisas no seu interior. Nada preparara Clodagh para o choque desse momento. — Mas... — tentou, os olhos acompanhando sua movimentação, vendo gravatas, seu kit de barbear, e, por último, algumas meias serem enfiadas dentro da sacola. Tudo estava acontecendo muito depressa. De repente, a sacola estava estufada de tão cheia. No momento seguinte, Dylan puxava o zíper com um silvo estridente. — Volto para buscar o resto depois. E saiu do quarto. Após um segundo de pânico, Clodagh vestiu às pressas um penhoar e desceu correndo a escada atrás dele.

— Dylan, eu ainda te amo — disse, em tom de súplica. — Então, o que foi isso que aconteceu? — Ele inclinou a cabeça para ela, ainda na escada. — Eu ainda te amo — repetiu ela, a voz mais apática —, mas... — Mas não está mais apaixonada por mim? — Dylan concluiu a frase por ela, ríspido. Ela hesitou. Mas tinha que ser honesta. — Acho que não... Ele fechou a cara. — Volto hoje à noite para explicar as coisas aos meus filhos. Você pode ficar morando aqui, por enquanto. — Por enquanto? — A casa vai ter que ser vendida. — Vai? — Não tenho dinheiro para pagar as parcelas da hipoteca desta casa e de mais outra. E se você pensa que vai continuar morando aqui enquanto eu vivo em algum cochicholo fedorento em Rathmines, pode ir tirando o cavalinho da chuva. Dito isso, foi embora. Ela ainda estava desestabilizada do choque, da velocidade em que tudo acontecera. Tivera fantasias em que Dylan simplesmente se retirava de sua vida, mas, agora que de fato acontecera, fora medonho. Onze anos apagados em uma hora, e Dylan sofrendo tanto. E falando em vender a casa! Sim, ela estava louca por Marcus, mas as coisas não eram tão simples assim. Atônita demais para chorar, apavorada demais para sofrer, ficou sentada na cozinha durante um bom tempo. A campainha da porta da frente tocou, trazendo-a de um tranco para o mundo real. Podia ser Marcus. Não era. Era Ashling. Clodagh não a esperava. E certamente não estava preparada para ela. A hostilidade incomum de Ashling terminou de compor o terrível desastre. Clodagh sempre vivera cercada de amor, mas, subitamente, todos a odiavam, inclusive ela mesma. Era uma pária, uma ordinária, infringira todas as regras do mundo e não seria perdoada. Quando Ashling saiu, então, sim, ela chorou. Arrastou-se de volta para a cama, enfiando-se entre os lençóis, com seu cheiro de sexo abandonado. Nunca lavara tanta roupa de cama como nas últimas cinco semanas. Bem, hoje não seria preciso, não havia mais nada a esconder.

Pegou o telefone e ligou para Marcus, para que ele lhe relembrasse que não haviam feito nada de errado, que estavam loucos um pelo outro, que fora mais forte do que eles, que o que viviam era um nobre romance. Mas ele não estava no trabalho, e tampouco atendeu o celular, de modo que ela foi obrigada a suportar sua angústia sozinha. A culpa não é minha, repetia à exaustão, como um mantra. Foi mais forte do que eu. Mas, como por uma fenda que se abrisse e revelasse o inferno, ela tinha vislumbres fugazes da atrocidade que perpetrara. O que fizera com Dylan era imperdoável. Inacreditável. Com a mão trêmula, apressou-se em apanhar a revista mais próxima e tentou se esquecer de si mesma, lendo um artigo sobre a arte de fazer gravuras com estêncil. Mas a fenda tornou a se abrir — e, dessa vez, foi maior. Não fora apenas com Dylan que ela se comportara como uma perfeita calhorda. Fora com seus filhos, também. E com Ashling. Seu coração se acelerou e, com a mão escorregadia de suor, ela apertou algumas teclas do controle remoto até encontrar o programa de Jerry Springer. Mas não foi o suficiente para distraí-la de si mesma. Normalmente, as pessoas que o apresentador recebia pareciam personagens de histórias em quadrinhos, com suas vidas privadas ridiculamente rocambolescas, mas hoje ela não se sentia nem um pouco diferente delas. Passou para o canal de Emmerdale, depois para o de Home and Away. Tremia do choque e da incredulidade que lhe inspiravam seus próprios atos, da devastação que provocara. Então se lembrou de que precisava buscar Molly no grupo de atividades, e foi acometida de uma crise de pânico paralisante. Não podia sair. Não podia, realmente. Era impossível.

Não podia ficar sozinha, mas também não podia ficar com mais ninguém. Por um momento horrível, imaginou se estaria tendo um colapso nervoso. A hipótese insuportável dominou-a durante um longo lapso de tempo, como um pesadelo. Em seguida, ela lutou por se desvencilhar do abraço da cama. Ter um colapso nervoso era ainda mais desagradável do que ter de encarar o mundo lá fora. Marcus ligou à tarde e, apesar dos pesares, cada célula do corpo de Clodagh vibrou assim que ela ouviu sua voz. Estava louca por ele, de um jeito como não se sentia por Dylan há anos — se é que se sentira algum dia. O amor triunfaria sobre todos os obstáculos. — Como vai? — perguntou ele, a voz cheia de preocupação e interesse. — Uma merda! — respondeu ela, meio rindo, meio chorando. — Dylan foi embora, todo mundo está com ódio de mim, um desastre completo. — Tudo vai ficar bem — ele a acalmou. — Promete? — Prometo. — Ah, eu te liguei horas atrás e seu celular estava desligado. — Estou tentando passar despercebido. — Ashling sabe. Dylan contou para ela, — Eu imaginei que ele podia ter feito isso. — Você vai falar com ela? — Não vejo nenhum sentido em fazer isso — disse ele, tentando ocultar sua vergonha. — Quero ficar com você. O que posso dizer a Ashling que ela já não saiba? Marcus passara as últimas cinco semanas usando o fato de Ashling o ter relegado ao segundo plano como argumento para justificar seu envolvimento com Clodagh. Mas, na realidade, seus sentimentos eram mais complexos do que isso. Não conseguira acreditar na sorte que tivera com Clodagh. Mesmo assim, tinha muito carinho por Ashling, e a calhordagem de seu ato o incomodava. A última coisa que queria fazer era enfrentar as conseqüências de seu imbróglio masculino, submetendo-se a um interrogatório de Ashling. Era bem melhor se concentrar no lado positivo da coisa. Com a voz intensa de desejo, perguntou a Clodagh: — Posso ver você? — Dylan vem aqui hoje, depois do trabalho. Para falar com as crianças. Meu Deus, é difícil de acreditar...

— Mas e depois que ele for embora? Posso passar a noite com você. Afinal, não há mais nada de que ter medo agora, não é? O ânimo de Clodagh foi às nuvens. — Eu te ligo assim que ele sair. — Tudo bem, liga aqui para casa. Deixa tocar três vezes, desliga e depois liga de novo. Assim, vou saber que é você. Dylan chegou depois do trabalho. Estava diferente. Não mais sofrendo abertamente, e sim furioso. — Você queria ser apanhada, não queria? — Não! Ou queria? — Queria, sim. Há tempos que você vem se comportando de uma maneira muito estranha. Talvez viesse, mesmo, ela reconheceu. — Meus filhos viram você na cama com aquele merdinha? — Não, é claro que não! — É melhor que não tenham visto, mesmo, se você quiser ter acesso a eles. — Como assim? — Vou conseguir a custódia deles. Você não tem a menor chance. Nessas circunstâncias — acrescentou ele, antipático. Suas palavras e fisionomia dura subitamente fizeram com que Clodagh se compenetrasse da extrema gravidade da situação. Era uma faceta de Dylan que ela não conhecia. — Pelo amor de Deus, Dylan — explodiu —, por que você está sendo tão...! — Parou a um triz de chamá-lo de “sacana”. Tudo considerado, por que ele não haveria de ser sacana com ela? A frustração dela pareceu diverti-lo — se é que era possível alguém rir por graça e por escárnio ao mesmo tempo. Lembrou-se de que Dylan era um homem de negócios. Um homem de negócios muito bem-sucedido. Um homem implacável. Que talvez não fosse rolar e se fingir de morto como um cachorrinho, só para fazer a vontade dela. Dylan sempre a tratara com carinho e amor, e ela estava achando muito difícil lidar com essa mudança abrupta, mesmo sendo responsável por ela. — Vou conseguir a custódia deles — repetiu. — Tudo bem — disse ela, humilde. Mas, embora exibisse uma expressão mansa, sua cabeça zumbia. Aqui que ele vai ficar com os meus filhos!

— Muito bem, vou falar com eles. — Dylan entrou na sala onde Craig e Molly estavam vendo televisão. Era óbvio que intuíam algo de errado, pois haviam passado a tarde inteira numa quietude incomum. Quando Dylan voltou, dirigiu-se a Clodagh friamente: — Acabei de dizer a eles que vou passar uma temporada fora. Preciso de tempo para pensar na melhor maneira de lidar com essa situação a longo prazo. — Esfregou a boca e, de repente, pareceu exausto. Mas a dolorosa compaixão de Clodagh por ele se evaporou no momento em que ele acrescentou: — Eu poderia ter dito aos dois que a mãe deles é uma filha-da-puta adúltera que estragou tudo, mas dizem os entendidos que isso faz mais mal do que bem. Certo, já vou indo. Estou na casa de meus pais. Me liga... — Ligo, sim... — ...se houver algum problema com os meus filhos. Ela o viu abraçá-los com força, os olhos bem fechados. Tudo isso era medonho. Nessa mesma hora, no dia anterior, as coisas não poderiam estar mais normais. Ela fizera um refogado para o jantar, Craig cuspira sua porção de volta no prato, ela assistira a Coronation Street, torrara a paciência de Dylan para trocar uma lâmpa a, Molly lambuzara uma parede de seu quarto com manteiga de amendoim... Em comparação com o dia de hoje, parecia uma época áurea, intocada pela dor ou pela preocupação. Quem teria imaginado que de uma hora para a outra suas vidas seriam jogadas para o alto como um quebra-cabeça, e suas peças passariam a montar um desenho totalmente novo, na lama da amargura? — Tchau. — Dylan fechou a porta da sala atrás de si. Clodagh o vira arrumar sua sacola, ele lhe dissera que estava indo embora, mas ela não fora capaz de imaginar sua partida até se apresentar a ela como um fato consumado. Isso não está acontecendo, ela pensou, parada no vestíbulo. Isso não está acontecendo.

Virou-se para dentro de casa e se viu diante de Craig e Molly, que a encaravam, em silêncio. Envergonhada, deu as costas para seus olhares de interrogação e alcançou o telefone. Ficou ouvindo o telefone de Marcus tocar e tocar, para em seguida, após um dique, cair na secretária-eletrônica. Onde ele estaria? Foi quando se lembrou de que ele lhe pedira para ligar, desligar e em seguida ligar de novo. E foi o que ela fez, a contragosto, sentindo-se como uma foragida da justiça. Da segunda vez que ligou, Marcus atendeu e, no ato, o sofrimento de Clodagh se atenuou, sendo substituído por uma sensação de euforia e atordoamento. — Dylan já foi embora? — Já... — Tá, estou indo para aí. — Não, espera! — Que foi? — A voz dele subitamente adquiriu um tom hostil. — Eu adoraria ver você — explicou ela —, mas não hoje. Ainda é cedo demais. Não quero confundir a cabecinha das crianças. Dylan falou um monte de coisas horríveis, do tipo conseguir na justiça a custódia delas, entende? Fez-se silêncio. Em seguida, Marcus perguntou, em voz baixa: — Você não quer me ver? — Marcus, eu daria tudo para te ver! Você sabe disso, mas acho melhor a gente esperar até amanhã. Acho que você deve estar arrependido por ter se envolvido nessa confusão! — Ela fungou, dando um risinho. — Não seja louca — disse ele, categórico, como ela já sabia que faria. — Vem aqui amanhã à tarde — convidou ela, tímida. — Tem duas pessoas que quero apresentar a você. Na tarde do dia seguinte, Marcus chegou com uma Barbie para Molly e um grande caminhão vermelho para Craig. Apesar dos presentes, no entanto, as crianças o receberam com desconfiança. Ambas sentiam que seu mundo estava totalmente fora de prumo, e ficaram ainda mais desorientadas com a chegada do estranho. Tentando minar sua resistência, Marcus brincou pacientemente com os dois, escovando solenemente os cabelos da Barbie e deslizando o caminhão no tapete para a frente e para trás, para a frente e para trás.

Foram precisos uma hora de dedicação integral e um saco de bombons para que Molly e Craig finalmente se comportassem com naturalidade em sua presença. Louca de esperança, Clodagh contemplava o trio, mal se atrevendo a respirar. Talvez as coisas melhorassem. Talvez tudo desse certo. Sua cabeça deu uma guinada em direção ao futuro. Talvez Marcus pudesse se mudar para lá e pagar a hipoteca, talvez ela conseguisse a custódia das crianças, talvez Dylan fosse desmascarado como pedófilo ou traficante de drogas, e então todos o odiariam e a perdoariam... Aproveitando um momento de distração de Craig e Molly, Marcus tocou suavemente em Clodagh. — Como vai? — perguntou, baixinho. — Agüentando as pontas? — Todo mundo está com ódio de nós. — Ela riu por entre as lágrimas. — Mas, pelo menos, temos um ao outro. — É isso aí. Quando é que posso te levar para a cama? — murmurou ele, enfiando a mão furtivamente dentro de sua blusa e aninhando um seio na mão, longe da vista das crianças. Beliscou seu mamilo, e a boca de Clodagh ficou mole de desejo. — Maaaanhêêê! — Craig armou um berreiro, pôs-se de pé e tentou empurrar Marcus para longe de sua mãe. Bracejando feito um louco com o caminhão vermelho novo, conseguiu acertar Marcus na zona sul de seu testículo esquerdo. Não foi perto o bastante para causar nenhum dano concreto, mas fez com que torvelinhos de náusea lhe subissem pelo abdômen. — Querido, você vai ter que aprender a dividir o meu amor — disse Clodagh, branda. — Não quero! Após uma pausa constrangida, Clodagh disse: — Marcus, eu estava falando com o Craig.

Lisa continuava de cócoras no chão, segurando seu pedido de divórcio. A onda de depressão que avançara e recuara, avançara e recuara desde que chegara a Dublin, finalmente quebrava sobre sua cabeça. Sou um fracasso, ela admitiu. Sou um grande, um redondo fracasso. Meu casamento acabou. Tivera a insensatez de achar que jamais aconteceria. Era o que enxergava agora, com dolorosa clareza. Fora por essa razão que jamais chegara a contratar um advogado. Durante todo o processo de ruptura com Oliver, comportara-se de maneira atípica, sempre ativa e dinâmica. Resolvera todas as questões, e rápido. Mas, fosse qual fosse a razão, não esta. Mas, se ela se recusara a tanto, o mesmo se poderia dizer de Oliver, teimava ela, louca para deixar de se sentir tão... tão... idiota. Ele a abandonara em janeiro e se mudara para um apartamento alugado, mas continuara a pagar sua parte na hipoteca. Não era assim que se comportava um homem que desejava romper laços. Ela vislumbrou a si mesma de cócoras no chão, vivendo aquele momento patético. Sentindo-se tola, pôs-se de pé — e, no instante seguinte, perdeu toda a vitalidade. Só conseguiu chegar até o quarto, cair na cama e puxar o edredom por cima do corpo.

Qualquer coisa na maneira como o edredom ondulou no ar e a envolveu suavemente fez com que suas emoções exacerbadas rebentassem, e ela chorou lágrimas de perda, de fracasso e — sim! — de autopiedade. Tinha todo o direito de sentir pena de si mesma, que diabo. Bastava pensar nas coisas horríveis que haviam acontecido. Ser rejeitada por Jack — embora isso não chegasse aos pés da dor de perder Oliver — só contribuíra para esquentar seu inferno. E se Mercedes tiver arranjado um emprego na Manhattan, eu vou... eu vou... Bem, o que ela poderia fazer? Absolutamente nada. Nunca tivera uma consciência tão aguda de sua impotência. E, embora tivesse feito Trix dar mil telefonemas para a loja, sua persiana de madeira ainda não ficara pronta. E, pelo andar da carruagem, provavelmente nunca ficaria. Esse era o vomitório de que estava precisando. O pranto de moça de fino trato foi num crescendo, até se transformar num berreiro de bebê. ...na saúde e na doença... ...Ashling sofreu um abalo horrível... ...pode beijar a noooooiva... ...ela arranjou um emprego em Nova York... ...a fábrica fecha durante as férias de verão... Aos uivos, estendeu a mão para a mesa-de-cabeceira e derrubou em cima da cama uma caixa de lenços-de-papel. À medida que as horas passavam, a luminosidade para além de seu quarto ia se enfraquecendo e adquirindo um tom rosado. O aposento estava envolto em sombras azul-petróleo, logo substituídas pelo negror da noite, matizado com o lilás da cidade. Ela ainda estava se permitindo mais uma enxurrada de lágrimas, quando o quarto foi sendo pouco a pouco invadido pelo baço cinza-perolado da madrugada. Que, por fim, se dispersou e converteu num céu de setembro intensamente azul. Os ruídos começavam lá fora, à medida que o dia avançava, mas Lisa preferiu ficar onde estava, muitíssimo obrigada.

Em algum ponto do dia, que pode ter sido à tarde, houve um episódio de intrusão em sua acolchoada realidade. Um barulho no vestíbulo, seguido por passos e, em seguida, ela deu um grito ao ver Kathy enfiar sua cabeleira de trigo debulhado pela porta do quarto. — O que está fazendo aí? — Lisa a encarou com os olhos inchados e vermelhos. — Hoje é sábado — disse Kathy. — Eu sempre venho arrumar a casa para você no sábado. As bolinhas de lenços-de-papel espalhadas por todo o edredom, o inconfundível miasma de desalento e o fato de Lisa se encontrar na cama, parecendo ainda estar vestida, deixaram Kathy muito alarmada. — Você está bem? —Hum-hum. Estava claro que Kathy não acreditava nela. Lisa, então, teve uma pequena inspiração, nascida do cansaço: — Estou doente, peguei uma gripe. Na mesma hora, Kathy foi toda simpatia: será que ela não gostaria de tomar um pouco de 7-Up choco, um Lemsip, um uísque quente? Lisa sacudiu a cabeça, voltando a fixar os olhos no nada — uma ocupação em tempo integral. Gripe?, duvidava Kathy. Não ouvira falar de mais ninguém ficando de cama com gripe. Mas será que era de espantar que Lisa pegasse alguma doença, vivendo nessa imundície? Começou a Operação Limpeza pela cozinha, esfregando superfícies meladas — como é que Lisa fazia isso? —, logo empurrando um documento para o lado. Naturalmente, deu uma olhadinha nele — era alguma santa, por acaso? — e, num instante, tudo fez sentido. Gripe? Lisa não estava com gripe. Coitadinha, uma gripe seria mil vezes melhor. Passado algum tempo, Kathy voltou ao quarto. — Vou dar uma arrumadinha aqui. — Não, por favor. — Mas esses lençóis estão imundos, Lisa. — Não tem problema. Kathy se retirou e, pouco depois, Lisa ouviu a porta da frente sendo batida. Ótimo. Novamente sozinha. Porém, poucos minutos depois, a porta da frente tornou a se abrir, e Kathy reapareceu com uma sacola plástica de loja:

— Cigarros, chocolates, uma raspadinha e o RTE Guide. Se quiser alguma coisa da rua, é só dar um berro. Se eu não estiver em casa, Francine vai no meu lugar, e diz ela que de graça. Normalmente, Francine cobrava uma libra por hora toda vez que ia comprar alguma coisa para Lisa. — Estou indo para o trabalho, agora — avisou Kathy. — Antes de eu sair, quer tomar uma xícara de chá? Lisa sacudiu a cabeça. Kathy fez o chá, assim mesmo. — Chá forte, doce — disse, em tom significativo, colocando a xícara na mesa-de-cabeceira. Lisa se pegou olhando para os tênis de Kathy. Eram gastos, em plástico branco-acinzentado, cheios de rachaduras no peito do pé. Rapidamente arrancou da caixa outro punhado de lenços-de-papel e os comprimiu contra os olhos. Depois de arrematar a cena jogando na cara de Clodagh que jamais a perdoaria, Ashling foi embora, ainda ardendo de ódio no fogo dos injustiçados. Próxima parada: Marcus. Com uma expressão decidida, caminhava às pressas, quase tropeçando, em direção à cidade e ao escritório onde Marcus trabalhava. Passando como um bólido por entre a multidão de Leeson Street, um homem que seguia na direção contrária deu um encontrão em Ashling, seu ombro chocando-se com força contra o dela. Ele já se fora, mas, em câmera lenta, Ashling recuou, trôpega, sentindo o tranco vibrar incessantemente dentro de si. Subitamente fragmentado, todo o ódio se estilhaçou como um ornamento barato de vidro, insignificante e inútil. O burburinho da cidade a atingiu como um fragor. Carros buzinando; rostos ferozes, rosnantes. De súbito, nenhum lugar era seguro. Com o corpo tremendo no ritmo do medo, esqueceu o confronto com Marcus. Não podia confrontar ninguém de dentro de um marshmallow.

E, afinal, por que estava com ódio? Sentir ódio nunca fora do seu feitio. Só fazia vinte minutos que confrontara Clodagh, e, nesse exato momento, era-lhe impossível acreditar que fora mesmo ela quem o fizera. Apressou-se de volta para casa, acalentando sua fragilidade. O mundo se convertera numa pintura de Hieronymus Bosch: crianças sujas transitando, cantando canções cujas letras não sabiam; casais trocando rosnados, por serem incapazes de preencher o vazio um do outro; uma mulher alcoólatra desdentada imprecando contra inimigos invisíveis; homens sem-teto diante de portarias, suas bocas como fauces de desespero. Homens sem-teto. Por favor, façai com que Boo tenha ido embora. E, por favor, não deixeis que ele tenha feito uma limpa no meu apartamento. Não chegava a acreditar que fosse o caso, mas, depois do dia que tivera, estava preparada para tudo. Mas ele não fizera isso. O lugar estava exatamente como Ashling o deixara, salvo por um bilhete de agradecimento em cima da mesa. Ela subiu na cama, a fim de descansar um pouco para se recuperar do choque. E ainda estava lá quando, em algum ponto da noite de sexta, Joy entrou no apartamento com a cópia de sua chave. Irrompeu quarto adentro, o rosto tomado de preocupação. — Liguei para o seu trabalho e falei com Jack Divino. Ele me contou o que aconteceu. Lamento de todo o coração. Joy tomou-a nos braços, mas Ashling se manteve inerte como um tapete enrolado. Meia hora depois, Ted apareceu, de pé atrás. Ele e Ashling não se falavam há mais de três semanas, desde que Ashling o interpelara sobre sua viagem a Edimburgo. — Ted, me perdoe — disse Ashling, cansada. — Pensei que você estivesse tendo um caso com Clodagh. — Pensou? — Seu rosto fino e moreno se iluminou de encanto. Encanto esse que ele logo se apressou em apagar, assumindo uma expressão de gravidade. — Trouxe uns lenços-de-papel para você — ofertou-os. — Tem escrito “Brotinho Bacana” neles. — Deixa ali. Ao lado dos que Joy trouxe.

Ao ouvir o som da chave na porta, Lisa saiu um pouco de seu torpor. Kathy outra vez. Mas não era Kathy, era Francine. — Oi. — Francine enfiou seu corpo gorducho pela porta. — Mamãe disse que é pra eu te fazer companhia. — Não quero companhia. — Lisa mal conseguia levantar a cabeça do travesseiro. — Posso experimentar? — Francine pusera o olho num boá de plumas rosa-choque. — Não. Ela enrolou o boá nos ombros assim mesmo, admirando-se ao espelho de corpo inteiro, uma figurinha gorducha de leggings floridas e camiseta amarela. — Você não deveria estar na escola? — perguntou Lisa, cansada. — Que nada. — Francine tentou um tom fanfarrão. — Hoje é domingo. Caramba, pensou Lisa, assombrada. Perdi a conta dos dias. — Mas, mesmo que não fosse domingo, se eu não quisesse ir à escola, não iria — gabou-se Francine. — Mas assim você não vai se formar e não vai conseguir um bom emprego. — Lisa não se importava se Francine iria se formar ou não, mas queria chateá-la, para que fosse embora. — Não preciso me formar. Vou entrar numa banda de garotas, e papai diz que todas elas têm QI de ameba. Ouve só, posso te mostrar meu número de dança? — Não. Cai fora e me deixa em paz. — Você tem um som? — Francine ignorou completamente a hostilidade de Lisa. — Não? Tudo bem, eu cantarolo. Certo, você tem que imaginar que eu estou no meio e que tem duas garotas aqui deste lado e mais duas deste. Espera só um segundo. — Enrolou a camiseta, improvisando um top que deixava à mostra sua rotunda barriga de criança. — O que é essa marca dourada na sua barriga? — perguntou Lisa, interessada, apesar de tudo. — Meu piercing de umbigo — disse Francine, defensiva. — Não é, não. — Olha, eu tive que desenhar ele — explicou. — Mamãe diz que posso pôr um de verdade quando tiver treze anos. Só que, até lá, já vou ter morrido — acrescentou, sombria.

Em seguida, se recompôs. Bateu o pé no chão, marcando sua entrada — dois, três, quatro! —, e deu início à apresentação do número. Cotovelo direito batido nas costelas duas vezes, como a asa de uma galinha, em seguida, cotovelo esquerdo. Dois pinotes com o pé direito, mais dois pinotes com o esquerdo, então uma palmada forte no traseiro rechonchudo e os quadris bamboleando, ao que abaixava o corpo até o chão. Nem uma stripper teria sido mais explícita. Ondulou o corpo até ficar de pé outra vez e virou-se de frente com um salto desajeitado, seu rosto contraído numa expressão de séria concentração. — Agora vem a melhor parte — garantiu. — Shimmmmmeeee! Esticando ambos os braços ao seu limite, agitou os ombros, brindando Lisa com um shimmy, embora não tivesse peitos para exibir. — Tchan-tchan! — concluiu, tentando fazer um spaccata que não chegou nem perto do chão. — Incrível — disse Lisa. E fora, sem a menor sombra de dúvida. — Obrigada. — Francine estava ofegante e corada de prazer. — É claro que eu também vou cantar. Vou ser a vocalista da banda. A gente ganha mais dinheiro por isso. E também vou escrever as canções. A gente ganha ainda mais dinheiro por isso. Lisa assentiu, aprovando seu espírito empreendedor. — E também vou me encarregar da publicidade — garantiu Francine. — É isso que dá uma nota preta. — Lançou um olhar penetrante para Lisa. — Como é que tá a sua gripe agora? Melhorou? — Não. Vai embora. — Você vai comer aquele chocolate? — Não. — Posso ficar com ele?

Foi só quando Lisa não conseguiu sair da cama para ir trabalhar na segunda-feira que subitamente se deu conta de que estava perdendo a sanidade. Com exceção da sexta, quando saíra mais cedo do trabalho, não conseguia se lembrar da última vez que faltara ao trabalho. Será que alguma vez chegara a faltar? Fora trabalhar com cólicas menstruais, resfriados, ressacas, até mesmo em dias em que seu cabelo estava hediondo. Fora trabalhar nas suas férias. Fora trabalhar quando seu marido a deixara. Então, o que estava acontecendo com ela agora? E por que não era bom? Seu complexo de poder sempre fora tão portentoso, que jamais conseguira compreender as pessoas que entregam os pontos e ficam soluçando sentadas diante de suas mesas até serem levadas embora por alguém, para nunca mais voltar. Mas sempre acalentara uma curiosidade perversa sobre a hipótese de perder a sanidade, desconfiando que proporcionasse alguma espécie de conforto. Não seria um alívio poder ficar totalmente incapacitada, sem nenhuma escolha, a não ser permitir que os outros assumissem o comando? Bem, pelo visto, não. Sentia-se incapaz de funcionar e estava achando isso odioso. Devia ir trabalhar. Era necessária lá. A equipe da Garota era pequena demais para comportar quaisquer episódios de absenteísmo, principalmente agora que Mercedes fora embora e Ashling estava fora de circulação. Mas Lisa não se importava. Não podia se importar. Seu corpo estava pesado demais, sua mente cansada demais. Por fim, sentiu vontade de fazer xixi. Resistiu ao máximo, fingindo que não estava acontecendo, mas, finalmente, o desconforto se tornou tamanho que ela foi obrigada a ir ao banheiro. Ao passar pela cozinha, na volta, notou o pedido de divórcio jogado em cima da bancada. Não punha os olhos nele desde a noite de sexta e nem queria voltar a pô-los, mas sabia que não tinha escolha.

Levou-o consigo para a cama e se obrigou a estudá-lo. Devia odiar Oliver. O puta atrevimento dele, divorciando-se dela! Mas o que podia esperar? Seu casamento estava acabado, “irreversivelmente desfeito”, para quem preferisse o termo legal — e, sejamos realistas, Oliver preferia. A linguagem da petição era pomposa e impenetrável. Novamente se deu conta do quão desesperadamente precisava de um advogado, do quão terrível era sua ignorância sobre o assunto. Folheou as páginas de papel grosso, tentando compreendê-las, e a primeira coisa que realmente fez sentido foi que Oliver pedia o divórcio baseado no “comportamento desarrazoado” de Lisa. As palavras saltaram da folha, enfurecendo-a. O fracasso do casamento não fora culpa sua, fumegou. Os dois queriam coisas diferentes, só isso. Que grandessíssimo filho-da-puta. Ela também podia fazer acusações de comportamento desarrazoado da parte dele, se pensasse um pouco. Querer vê-la descalça, grávida e algemada à pia da cozinha — isso era para lá de desarrazoado. Mas a raiva amainou, quando ela se lembrou de que a acusação de comportamento desarrazoado era uma mera formalidade. Ele lhe explicara tudo isso quando viera a Dublin: os dois precisavam apresentar uma razão ao tribunal, e poderia igualmente ter sido ela a processá-lo. Mais adiante, ela encontrou os cinco exemplos, exatamente como ele lhe dissera que teria de haver Trabalhar nove fins de semana seguidos. Faltar ao trigésimo aniversário de casamento dos pais dele devido a um compromisso profissional. Cancelar suas férias em Santa Lucia na última hora por ter que trabalhar Fingir que queria engravidar. Ter roupas demais. Cada instância a varava como uma facada. Com exceção da acusação de ter roupas demais. Ela presumiu que, ao chegar ao quinto exemplo, ele já esgotara todas as suas queixas autênticas. As custas seriam divididas, e nenhum dos dois pleiteava pensão.

Pelo que compreendeu, ela teria que assinar um documento denominado Aviso de Citação e devolvê-lo para o advogado de Oliver. Mas não iria assinar coisa alguma. E não apenas porque não tinha forças para apanhar uma caneta. Seu instinto de autoproteção estava muito exacerbado. Alguém bateu à porta. Ela deu uma risada silenciosa. A idéia de sair da cama para atender era tão absurda que chegava a ser engraçada. Outra batida. Ela não se incomodou nem um pouco. Não havia a mais remota possibilidade de atender Vozes do lado de fora. Outra batida — mais exatamente um murro, dessa vez. Em seguida, um rangido, ao que abriam a tampa da caixa de correio. — Lisa? — chamou uma voz. Ela mal se deu conta. — Lisa — a voz tornou a chamar. Era tão fácil ignorá-la. — LEEEEEESSSSAAAA! — a voz urrou. Ela percebeu que a reconhecia. Era de Beck. Bem, esse não era seu verdadeiro nome, mas ele era um dos garotinhos apaixonados pelo Manchester United que moravam na rua. — Eu SEI que você tá aí. Também tô MATANDO AULA. Tem um buquê ENORME aqui, você quer? — Não — respondeu ela, fracamente. — O QUÊ? — Não. — Não tô te ouvindo. Você disse que sim? Furiosa, Lisa se arrastou da cama. Puta que pariu! Fora tão forte a vida inteira. Nunca cedera à TPM, a mal-estares sortidos, a nada. E, justamente na única ocasião em que resolvera ter um colapso nervoso, as pessoas não paravam de interrompê-lo. Escancarou a porta da frente e berrou na cara de Beck: — EU DISSE QUE NÃO! — Você é quem manda. — Ele enfiou um imenso buquê de celofane em seus braços e passou por ela, em direção ao vestíbulo. — Depressa, antes que alguém me veja. Eu deveria estar na escola. Lisa contemplou as flores com um olhar mortiço. Eram flores caras. Não cravos ou qualquer uma dessas mixarias sem a menor criatividade que os pães-duros compram, mas uma grande braçada de flores exóticas — cardos roxos e orquídeas que pareciam vindos de outro planeta. De quem eram? Subitamente, com mãos trêmulas, ela estava rasgando o envelope. Seriam de Oliver?

Eram de Jack. Tudo que o bilhete dizia era: “Achamos você fantástica. Por favor, volte ao trabalho.” Mas, num clarão de lucidez, Lisa identificou nessas palavras um pedido de desculpas. Jack sabia que ela estava interessada nele, mas ele não estava. Ele sabia que ela sabia. E ela sabia que ele sabia que ela sabia e, de repente, nada tinha a menor importância. Embora bonito de rosto e de corpo, Jack a teria deixado louca. Ele não dava muita bola para as coisas que eram vitais para ela. Ela apenas se distraíra tendo fantasias com ele; Oliver, sim, era o homem por quem realmente estava sofrendo. Beck tentava de todos os modos chamar sua atenção. — Quero te pedir uma coisa! — Que é? — A palavra lhe foi arrancada dos dedos dos pés. — Me ajuda a passar isso no CABELO? — Tirou uma caixa do bolso das calças de ginástica. Era um spray clareador. — Deixa eu adivinhar: você quer entrar para uma banda de garotos. O rosto de Beck era digno de uma fotografia, enquanto ele procurava as palavras certas. Por fim, localizou-as. — Ora, vai à MERDA! — exclamou. — Eu vou ser lateral do Man U. — E para isso precisa de reflexos louros? — Dãããã! — fez ele, debochando de sua burrice. — É claro que preciso! — Agora não, Beck, estou gripada. — Não está, não. — Já a caminho do banheiro, voltou-se para lhe dar uma piscadela conivente, de um gazeteiro para outro. — Mas, se você não me dedurar, eu também não deduro você. Ela se recostou na parede, acalentando a idéia de gritar, mas logo em seguida se rendeu ao destino. Uma hora depois, Beck ia embora, seu cabelo listrado de mechas louras. — Valeu, Lisa, você é uma garota LEGAL. Depois de sua saída, ela se sentou à mesa da cozinha, fumando. Sentia frio e passava o tempo todo na intenção de apanhar uma blusa, mas, toda vez que terminava um cigarro, acendia outro.

O telefone tocou no aposento silencioso, e seu coração deu um pulo tal que quase saiu do peito — seus terminais nervosos estavam simplesmente esfrangalhados! A secretária-eletrônica atendeu — ela a deixava ligada o tempo todo, mais para fugir dos telefonemas do que para selecioná-los. Mas cada célula de seu corpo entrou em estado de alerta vermelho quando a voz de Oliver encheu o aposento. — Paixão, sou eu. Hum, quer dizer, Oliver. Pensei em te dar uma ligada para falar sobre o... Ela agarrou o fone: — Sou eu. Estou aqui. — Oi — disse ele, carinhoso. — Achei que talvez estivesse. Liguei para você na redação e me disseram que você estava em casa. Recebeu o, hum...? — Recebi. — Tentei falar com você na redação quinta e sexta, para avisar que devia estar estourando por aí, mas não consegui. Deixei um recado com a sua AP, pedindo para você me ligar, você não recebeu? — Não. — Ou talvez tivesse recebido. Tinha uma vaga lembrança de Trix tentando enfiar na sua mão um papel com um recado, na manhã de sexta. — E eu queria ter ligado no fim de semana, mas estava trabalhando. Uma sessão em Glasgow com modelos psicóticas, coisa de louco. Jornadas de vinte horas. — Não tem problema. — Enfim, hum... embora nós soubéssemos que isso ia acontecer, a sensação é das mais agradáveis, não é mesmo? — Não. — Ela engoliu em seco. — Mas um de nós tinha que fazer isso. — Ele parecia muito constrangido. — Para ser honesto, paixão, pensei que fosse ser você. Estava imaginando por que você estava demorando tanto a responder. — Andei ocupada. — Ela tornou a engolir em seco. — Revista nova, sabe como é.

— Tudo bem! Mas, presta atenção, eu me senti a última das criaturas quando dei aqueles cinco exemplos. Não tive a menor intenção de te esculhambar, você sabe disso, não sabe? Quer dizer, na hora eu estava puto da vida, mas agora não estou mais, entende o que quero dizer? Mas lei é lei. Como ainda não estamos separados há dois anos e o adultério não foi a razão pela qual nos separamos, tínhamos que apresentar algum outro motivo para o tribunal. Lisa ainda não se sentia pronta para falar. Estava à espera de que a tempestade de lágrimas trancada em algum recesso dentro de si passasse. Se abrisse a boca agora, sairia toda. — Lees — ele a instigou, parecendo preocupado. — Eu... — ela conseguiu dizer. — Paixããão...! — fez ele, carinhoso. — É tudo muito triste — disse ela, trêmula. — Eu sei. Eu sei. E como sei! — Depois de uma pausa, Oliver disse, como se pensasse em voz alta: — Que tal se eu te fizesse uma visita? A gente pode destrinchar a coisa toda. — Você está doido. — Não estou, não. Pensa nisso: nós dois podemos economizar uma nota em custas de advogados, se resolvermos por nossa conta questões como a do apartamento. Tem alguma idéia do quanto vai pesar no nosso bolso cada vez que o meu advogado escrever uma carta para o seu? Uma fortuna, Lees, estou te dizendo. Ah, vamos lá, paixão — bajulou-a. — Podemos fazer isso de modo totalmente, digamos, amigável. Cara a cara. Mano a mano. — Como ela não respondesse, ele a chaleirou mais: — Hombre a hombre. Com o mais débil dos risos, ela conseguiu dizer: — Tá. — Tá mesmo? No duro? Quando? — Que tal este fim de semana? — Você não vai trabalhar? — Não. — Ora, ora — disse ele, num tom que a deixou insegura. Mas ele logo voltou a se animar: — Vou tentar arranjar um vôo no sábado e levar a papelada para você. — Eu te apanho no aeroporto. Só uma noite, ela prometeu a si mesma. Uma noite colada ao corpo dele, e em seguida o esqueceria.

Desligou o telefone, indecisa quanto ao que fazer em seguida. Podia voltar para a cama, mas, em vez disso, num capricho inesperado, decidiu ligar para Jack. — Obrigada pelas flores. — Imagina. Eram só para dizer que nós... que eu... tenho o maior respeito por você, e que... — Jack, desculpas aceitas — ela o atalhou. — Rã-rã, do que você está falan... — Jack se interrompeu e suspirou. — Tudo bem, obrigado. — E aí, o que está acontecendo? — Ela quase conseguiu parecer interessada. O tom de Jack se animou: — Um monte de coisas boas. A revista foi para a segunda tiragem. Não sei se você viu, mas as fotos da festa apareceram em cinco jornais no fim de semana, e recebemos pedidos para você falar na rádio em cadeia nacional durante a semana. Mesmo sem pormos anúncios nos jornais, recebemos quatro currículos de pretendentes ao cargo de Mercedes. Dublin é uma cidade muito pequena. E descobri para qual revista ela foi. Não é a Manhattan, é uma revista para adolescentes chamada Lero. Pode ter sido porque Oliver vinha aí, pode ter sido por causa das boas notícias sobre a Garota, certamente pode ter sido por causa da novidade sobre Mercedes, mas o fato é que algo em Lisa mudou, pois, quando Jack perguntou: “Tem alguma hipótese de você voltar a trabalhar?”, ela conseguiu responder: “Acho que sim.” — Que bom — disse ele. — Isso quer dizer que posso parar de escrever o artigo sobre produtos masculinos para a pele. — ??? — Trix me obrigou. Com você e Ashling ausentes e a demissão de Mercedes, ela é o membro mais velho da equipe da Garota que está trabalhando. O poder lhe subiu à cabeça. Está falando em mandar Bernard fazer uma limpeza de pele, para ver se consegue fazê-lo chorar. — Em uma hora estou aí.

 

A caminho do banheiro para tomar um banho de que há muito estava precisada, Lisa passou por seu quarto e ficou chocada ao ver o estado em que se encontrava. No que estava pensando? Simplesmente não era do tipo de pessoa que perdia a sanidade. Os outros, sim, e boa sorte para eles. Mas não Lisa. Gostasse disso ou não, era uma sobrevivente. Não que estivesse se sentindo magoada e infeliz. Mas os colapsos nervosos eram como as lentes de contato coloridas: podiam ficar muito bem nos outros, mas não combinavam em nada com ela. Ashling trocou de posição na cama e retirou o telefone de sob o corpo. Fazia quatro dias que dormia com ele. Pela milionésima vez, digitou o número da casa de Marcus. Secretária-eletrônica. Em seguida, o número de seu trabalho. Caixa-postal. Por fim, seu celular. — Nada ainda? — perguntou Joy, compreensiva, acampada com Ted em sua cama fedorenta. — Não. Ah, meu Deus, eu queria tanto que ele atendesse. Gostaria de ter algumas respostas. — Ele é um mau-caráter covarde. Vai até o trabalho dele. Inferniza ele nos shows. Taí, isso seria ótimo, sabia? — disse Joy, feroz. — A pretexto de fazer um aparte, você poderia deixar ele doido. Gritando para ele que ele é o fim da picada na cama e que o pinto dele... — ...é minúsculo — completou Ashling para Joy, em tom cansado. — ...cheio de sardas, é o que eu ia dizer. Mas aceito “minúsculo”. — Não. Nem pensar. Nem uma coisa nem a outra. — Tá, esquece os apartes. Mas por que você não vai atrás dele? Se quer o cara de volta, tem que lutar por ele. — Não sei se quero Marcus de volta. De mais a mais, não tenho a menor chance. Não contra Clodagh. — Ela não é tão linda assim — disse Joy, feroz. Automaticamente as duas olharam para Ted, que corou. — Não é mesmo — mentiu descaradamente. — Viu só? — Ashling jogou na cara de Joy. — Ele acha que é.

Durante o silêncio constrangido que baixou entre eles, Ashling lançou um olhar desapaixonado ao seu redor. Estava nesse quarto desde a tarde de sexta. Já era noite de segunda, e ela só saíra da cama para breves visitas ao banheiro. Sua intenção inicial fora dormir para superar o choque e, então, encontrar Marcus para ver o que se podia salvar da situação. No entanto, por algum motivo, não conseguira mais sair da cama. Estava gostando de ficar ali, e achava que poderia continuar. Seu olhar vazio pousou sobre uma pilha de lenços-de-papel. Todos intactos. Por que não estava chorando? Com o peso da tristeza que carregava, achava que deveria estar dando vazão a um dilúvio de lágrimas ininterrupto. No entanto, seus olhos permaneciam resolutamente secos. Não havia sequer o mais sutil indício de choro — nenhum tremor na voz, nenhum inchaço doloroso na garganta. Não que estivesse embotada. Ah, quem lhe dera... Falou lentamente, mais para si mesma do que para os dois: — Não paro de me perguntar o que fiz de errado, e não acho que a culpa seja minha. Eu deixava que ele testasse suas piadas novas comigo o tempo todo. Ia a todos os seus shows. Bom, quase todos. — Bastava ver o que acontecera da única vez em que não fora: ele traçara a sua melhor amiga. — Concordava com ele dez vezes por dia que ele era o melhor e que todos os outros humoristas eram umas merdas. — Até eu? — perguntou Ted, inseguro. — Ele me achava uma merda?

— Não — mentiu Ashling. Na noite em que conhecera Marcus, ele elogiara Ted até dizer chega, mas apenas — e só agora da se dava conta disso — porque não o levava a sério. Quando ficou claro que Ted granjeara um fã-clube pequeno porém fiel, Marcus começou sutilmente a alfinetá-lo. Como era inteligente o bastante para saber que Ashling não permitiria insultos explícitos, contentava-se em soltar comentários do tipo: “Ted Mullins é ótimo. O mundo do humor precisa mesmo de um ou outro peso-leve.” Quando Ashling finalmente percebeu que, na realidade, ele estava depreciando Ted, já estava acomodada demais no papel de esposa abnegada para fazer qualquer objeção. — O problema era exclusivamente Marcus Valentine — observou Joy. — Ele tem toda a pinta de ser um filho-da-puta egoísta. — Não era assim. Eu me divertia ajudando Marcus. Éramos íntimos, éramos amigos. — Era isso que doía muito. Mas ele conhecera alguém de quem gostara mais e ponto final, acontece nas melhores famílias. Era doloroso pensar no passado recente à luz de suas descobertas, mas Ashling foi obrigada a admitir: — Nessas últimas semanas, enquanto estive muito ocupada, ele ficou todo espetado. E eu pensando que era só porque sentia minha falta. Imagina! — E ele continuou... hum... — Joy fez uma tentativa chocha de abordar a questão com delicadeza, mas percebeu que não conseguiria. — ...ele continuou a te comer normalmente? Ted pôs as mãos nos ouvidos. — Não — confessou Ashling, com um suspiro. — A freqüência caiu muito. Mais uma vez, achei que a culpa era minha. Mas nós transamos, sim, depois que estive em Cork. Ou seja, durante algum tempo, ele enganou a nós duas. — Por que será que Clodagh tolerou isso? — perguntou-se, como se estivesse se referindo a uma personagem de novela.

— Talvez não soubesse — especulou Joy. — Ele pode ter mentido para ela. Ou talvez estivesse usando você para fazer com que ela deixasse Dylan. — Tarde demais, Joy se deu conta do quanto isso soava cruel. — Desculpe — pediu, humilde. — Falei sem pensar... Mas e a Clodagh, hein? Se eu pudesse escolher entre Marcus e Dylan, sei muito bem quem escolheria! Ah, meu Deus. Desculpe de novo. E aí, quer umas batatinhas? Ashling sacudiu a cabeça. — Não quer comer nada? Chocolate? Pipoca? Alguma outra coisa? — Joy exibiu o vasto sortimento de petiscos sobre a cômoda de Ashling. — Não, e nem me traz mais nada. — Você pretende sair da cama algum dia? — Não — disse Ashling. — Estou me sentindo tão... humilhada. — Não dê essa satisfação a eles — disse Joy, enfática. — Eu sinto que todo mundo me odeia. — Por quê? Você não fez nada de errado! — Sinto que o mundo inteiro está contra mim, que nenhum lugar é seguro. E estou muito triste — acrescentou. — É natural. — Não, estou triste pelos motivos errados. Não consigo parar de pensar em Boo e no quanto sua condição é triste. E em todos os outros sem-teto, passando frio e fome. A perda de dignidade... É tudo tão degradante... Interrompeu-se ao perceber o olhar de Ela-pirou-de-vez trocado por Joy e Ted. Achavam que o choque tirara algum parafuso seu do lugar. Como podia se importar com os sem-teto, gente que nem sequer conhecia, quando estava vivendo um drama pessoal, palpável, real? Eles não compreendiam. Mas havia uma pessoa que compreenderia. Se não estivesse tão catatônica, estremeceria de horror. Era assim que minha mãe se sentia. E foi então que a chocante ficha caiu: Droga, acho que estou tendo um colapso nervoso. Com flores ou sem flores, quando Lisa chegou à redação e viu Jack, não pôde conter um ímpeto de ódio por ele a ter rejeitado. — Como você está? — Ele a observou, cauteloso. — Ótima — disse ela, à flor da pele.

— Sentimos sua falta. — O olhar dele era bondoso, sem ser de pena, e sua ira se evaporou. Ela estava apenas sendo infantil. — Quer ver minha matéria sobre os produtos para a pele? — Apresentou-lhe uma cópia, que declarava que os produtos da Aveda eram “legais”, os produtos da Kiehl’s eram “legais” e os produtos de Issey Miyake eram “legais”. Lisa atirou a página de volta à sua mesa, com uma piscadela de entendida: — Não desista. Eles deviam realmente ter entrado em pânico em relação à equipe da Garota, para um chefão como Jack ter se aventurado a escrever uma matéria. — E Ashling, ainda não voltou? — Não conseguiu conter a vaidade. Afinal, estava se divorciando, e mesmo assim fora trabalhar. E só agora, ao voltar, tomou conhecimento do auê que estavam fazendo em torno da revista, e de como todos os seus esforços para torná-la famosa haviam dado frutos. Enquanto ficara deitada na cama, convencida de que era o maior fracasso de todos os tempos,tornara-se, guardadas as devidas proporções, uma estrela — apenas na Irlanda, é claro, mas e daí? Já houvera uma oferta de emprego de uma revista irlandesa rival, e vários jornalistas telefonaram, alguns interessados em fazer um sério perfil seu, outros — a maioria — em usá-la para calhaus,* do tipo “Minhas Férias Favoritas” e “Meu Encontro Ideal”. Permitiu-se sentir um certo prazer, porém, mais importante do que o sucesso da revista era o próximo fim de semana com Oliver. Tinha que estar simplesmente espetacular — precisava arranjar uma batelada de roupas fabulosas e fazer o cabelo. E as unhas. E depilar as pernas. Não comeria nada, é claro, para poder comer normalmente quando estivesse com ele...

* Gíria jornalística referente a anúncios ou, no caso, textos curtos usados para se preencherem espaços que estejam sobrando no jornal ou na revista.

 

— É o Sunday Times — Trix acenou com o telefone para ela. — Querem saber qual é a cor da calcinha que você está usando. — Branca — respondeu ela, distraída, e Kelvin quase gozou. — Eu estava brincando — queixou-se Trix. — Eles só querem perguntar sobre os produtos que você usa no cabelo... Mas Lisa não estava escutando. Estava ao telefone, falando com a assessoria de imprensa londrina da DKNY. — Queremos fazer uma matéria para nossa edição de Natal, mas precisamos das roupas até sexta. — Lisa, podemos conversar sobre a substituta de Mercedes? — perguntou Jack. O fato de Mercedes tê-los abandonado com o pepino na mão provocou outro arroubo de ódio em Lisa, que ela teve de se esforçar muito para dissipar. — Trix, liga para a Ghost, a Fendi, a Prada, a Paul Smith e a Gucci. Diz a eles que vamos fazer algumas páginas com eles para a edição de dezembro, mas só se nos mandarem as peças até sexta. Vamos lá. Chegou ao escritório de Jack antes dele. — Ela está tramando alguma — observou Trix... para as paredes. Sentia falta de Ashling e Mercedes. Era chato não ter ninguém com quem brincar. Gíria jornalística referente a anúncios ou, no caso, textos curtos usados para se preencherem espaços que estejam sobrando no jornal ou na revista. Jack e Lisa olharam para os quatro currículos não solicitados das candidatas ao cargo de Mercedes e decidiram entrevistar todas elas. — E se forem uó, pomos um anúncio — disse Lisa. — Posso te perguntar uma coisa? Como é que eu arranjo um advogado? Jack pensou por um momento. — Temos uma firma que nos presta assessoria jurídica. Por que não vai lá e fala com eles? Se não puderem tratar do seu, hum, assunto, vão recomendar alguém que possa. — Obrigada. — E eu vou fazer tudo que puder para ajudá-la — prometeu Jack.

Lisa o encarou, desconfiada. Não havia como negar, gostava dele. Ele continuava a tratá-la com o mesmo carinho e apoio que vinha lhe dispensando desde o dia em que chorara no seu escritório por não ir aos desfiles. Se ela resolvera enxergar nessa atitude mais do que havia, a culpa não era dele. Na tarde de terça, o telefone de Ashling tocou. Ela o agarrou. Que seja Marcus, rezou. Que seja Marcus. Sentiu um desânimo mortal ao ouvir uma voz de mulher. Sua mãe. — Ashling, querida, estávamos curiosos para saber como foi o lançamento de sua revista, então liguei para a redação. Disseram que você não estava trabalhando. Qual é o problema, está doente? — Não. — Então o que é? — Estou... — Ashling hesitou quanto a pronunciar a palavra-tabu, mas terminou por ceder, e sentiu um misto de medo e alívio ao fazê-lo: — Estou deprimida. Monica soube imediatamente que esse não era simplesmente um caso de “Estou deprimida porque esqueci de gravar o episódio de Friends de ontem à noite”. Ashling sempre tivera o cuidado de nunca, jamais, usar a palavra “depressão” em relação a si mesma. A coisa devia ser séria. A história se repetindo. — Meu namorado se envolveu com Clodagh — explicou Ashling, fraca. — Clodagh Nugent? — Monica pareceu furiosa. — Há dez anos que ela é Clodagh Kelly. Mas não é só por isso. Monica refletiu, ansiosa. — O quanto você está mal? — Não saio da cama há cinco dias. Nem tenho planos de sair em breve. — Está se alimentando? — Não. — Tomando banho? — Não. — Tem tido fantasias suicidas? — Ainda não. — Oba, ainda restava alguma coisa por que esperar ansiosamente! — Vou tomar o trem amanhã de manhã, querida, e cuidar de você durante um tempo. Monica esperou que Ashling a mandasse à merda, como de costume. Mas, em vez disso, a única coisa que ouviu foi um indiferente “Tudo bem”. Sentiu seu coração se apertar de medo. Ashling devia estar mesmo muito mal.

— Não se preocupe, querida, vamos conseguir ajuda para você. Não vou deixar que você passe pelo que passei — prometeu Monica, veemente. — Hoje em dia as coisas são diferentes. — Já não é mais tanto um estigma — disse Ashling, apática. — Os medicamentos são melhores — retorquiu Monica. Joy e Ted tentavam seduzir Ashling com uma nova remessa de chocolates e revistas na noite de terça, quando a campainha tocou. Os três ficaram petrificados. Pela primeira vez em dias, o rosto apático de Ashling se iluminou. — Pode ser Marcus! — Vou lá mandar ele à merda. — Joy já se encaminhava para a porta. — Não! — disse Ashling, firme. — Não. Quero falar com ele. Segundos depois, Joy voltou. — Não é Marcus... — sibilou. Ashling imediatamente tornou a despencar no fundo do poço. — ...é Jack Divino. Essa insólita visita fez com que Ashling saísse um pouco de seu torpor. O que ele queria? Despedi-la por faltar ao trabalho? — Vai se lavar, pelo amor de Deus! — exortou-a Joy. — Você está fedendo. — Não posso — disse Ashling, sem forças. Tão sem forças que Joy compreendeu que era perda de tempo. Em respeito ao seu estado, insistiu apenas para que vestisse um pijama limpo, penteasse o cabelo e escovasse os dentes. Em seguida, hesitou entre dois vidros de perfume. — Happy ou Coco? Happy — decidiu. — Vamos experimentar o poder da sugestão. Encharcou Ashling numa nuvem de Happy e a empurrou como se fosse um brinquedo de corda em direção à sala: — Vai lá! Jack estava sentado no sofá azul, suas mãos pendendo entre os joelhos. Era a cena mais estranha do mundo. Embora deprimida, a constatação conseguiu penetrar seu estupor: ele pertencia ao mundo do trabalho, mas, mesmo assim, lá estava, fazendo com que seu apartamento parecesse ainda menor do que já era.

Seu terno escuro, cabelo desgrenhado e gravata torta davam-lhe o aspecto de um homem transtornado, cheio de preocupações. Ela se postou no umbral da porta, observando-o trocar pensamentos com suas tábuas corridas em madeira de bordo sintecada. Nesse momento ele inclinou a cabeça, viu-a e sorriu. A luz no aposento mudou quando ele se levantou. — Oi — disse Ashling. — Desculpe por ter faltado ontem e hoje. — Só vim para ver como você está, não para te apressar a voltar para o trabalho. Foi quando Ashling se lembrou de que Jack passara a tratá-la com inesperada gentileza e brandura desde que Dylan lhe dera a terrível notícia. — Vou ver se dou um jeito de ir amanhã — disse ela. As probabilidades eram as mesmas de vir a escalar o Kilimanjaro. — Por que não tira a semana toda de folga? — ele sugeriu. — E tenta voltar na segunda? — Tudo bem. Obrigada. — O alívio por não ser obrigada a tentar enfrentar o mundo foi tão grande que ela nem protestou. — Minha mãe vem passar alguns dias comigo. Se há alguma coisa no mundo que possa me fazer voltar a trabalhar, é isso, tenho certeza. — Ah, é? —Jack sorriu, compreensivo. — Qualquer hora dessas você tem que me contar tudo a respeito. — Tá. — Ela não conseguia se imaginar com forças sequer para dar as horas a alguém. — E como você está agora? — perguntou ele. Ela hesitou. Não era exatamente o tipo de coisa que uma pessoa discuta com o próprio chefe, mas foda-se, que importância tinha? Que importância qualquer coisa tinha? — Estou me sentindo muito triste. — Já era de esperar O fim de um relacionamento, a perda de uma amizade... — Mas não é só isso. — Ela se esforçava por compreender sua dor avassaladora. — Eu me sinto triste em relação ao mundo inteiro. Observou Jack. Será que ele a achava uma doida varrida? — Continua — incitou ele, brando. — Só consigo enxergar as coisas tristes. E estão em toda parte. Somos como os sobreviventes de uma guerra, nós, a raça humana inteira. — Weltschmerz — disse ele. — Saúde — disse ela, distraída.

— Não — ele riu baixinho — Weltschmerz. Significa “tristeza do mundo” em alemão. — Existe uma palavra para isso? Ela sabia que não era a única pessoa a se sentir assim. Sabia que sua mãe também se sentira. Mas, se haviam chegado a criar uma palavra para descrever esse sentimento, muitas outras pessoas deviam tê-lo conhecido Era um consolo saber disso. Em seguida, Jack lhe entregou uma sacola branca de papel. — Eu, hum, trouxe uma coisa para você. — O que é? Lenços-de-papel? Eu poderia abrir uma loja. Uvas? Não estou doente. Só, só... me sentindo humilhada. — Não, é... Bom, para ser franco, é sushi. Ela se calou por alguns momentos, irritada. — Você está brincando comigo? — Não! É que você pareceu interessada, quando nós almoçamos sushi no escritório. — Como Ashling permanecesse muda, ele prosseguiu: — Achei que você poderia gostar. Não trouxe nada de exótico demais, nem mesmo peixe cru. São quase todos vegetarianos: pepino, abacate, um ou dois de caranguejo. Um kit de sushi para iniciantes. Posso ensinar a você... Mas, diante da expressão desconfiada de Ashling, ele voltou atrás. — Hum, tudo bem, já vou indo, então. Espero que se sinta melhor. Até segunda. Assim que ele saiu, Ted e Joy apareceram na sala. — Que é que tem nessa sacola? — Sushi. — Sushi! Que coisa mais esquisita para se trazer. Rodearam a sacola branca de papel, ressabiados, como se fosse radioativa. — Vamos dar uma olhada? — perguntou Ted, por fim. Quando Ashling respondeu “Se quiser”, ele retirou da sacola uma caixa preta laqueada e fitou, fascinado, os rolinhos de arroz dispostos em belas fileiras. — Não pensei que tivesse essa aparência — comentou Joy. — E o que são essas outras coisas? — Ted cutucou um sachê prateado. — Molho de soja — disse Ashling, desinteressada. — E isso? — Ted descolou a tampa de uma pequena embalagem de isopor. — Gengibre em conserva. — E isso? — Apontou um montinho de massa de modelar verde. — Esqueci o nome — confessou Ashling, mal-humorada —, mas é picante.

Depois de mais algum tempo de cautelosa exploração, Ted resolveu pegar o touro pelos chifres: — Vou experimentar. Ashling deu de ombros. — Esse aqui tem cara de ser de pepino. — Enfiou-o na boca. — Agora vou limpar meu palato com uma fatia de gengibre, depois vou... — Não é assim que se faz — disse Ashling, irritada. — Bom, então me mostra como é. A batida discreta na janela fez com que Clodagh pulasse de pé. Sentiu-se louca de felicidade. Lá estava ele. Voou para a porta da frente e a abriu sem fazer barulho. — O galo canta ao amanhecer — disse ele, com forte sotaque russo. — Sssshhh. — Ela pôs o dedo sobre os lábios num gesto exagerado, mas ambos estavam transbordando de alegria e encanto. — Eles estão dormindo? — cochichou Marcus. — Estão. — Aleluia! — Ele quase se esqueceu da necessidade de silêncio. — Agora posso pintar o sete com você. — Entrou no vestíbulo, tomou-a nos braços e, enquanto os dois riam por esbarrar no porta-casacos, ele começou a despir as roupas dela. — Vem para a sala — convidou ela. — Quero transar aqui — disse ele, com ar safado. — Em cima das galochas e das mochilas escolares. — Aí não pode, sinto muito! — Ela teve um quiriquiqui quando ele fez uma carinha contrariada. — Você está igual ao Craig. Ele esticou ainda mais o lábio inferior e ela chorou de rir. — Mas, falando sério — ela sussurrou —, e se um deles se levantar para ir ao banheiro e vir a gente numa boa no chão do vestíbulo? Passa para a sala, já! Obediente, ele apanhou sua camisa e a seguiu. — Essa clandestinidade toda me lembra meus tempos de adolescente. Não deixa de ser sexy.

Como Dylan aterrorizara Clodagh com ameaças de lhe tirar a custódia das crianças, ela estava determinada a evitar que Molly e Craig a vissem transando com Marcus. Mas, aquela semana, Marcus estivera muito ocupado no escritório, de modo que a hipótese de sexo à luz do dia fora descartada. A única ocasião em que podiam ter esperanças de transar era enquanto Molly e Craig dormiam — um período diário de aproximadamente vinte minutos. No sofá, arrancaram as roupas um do outro e, durante uma breve pausa para se olharem nos olhos, Clodagh disse, suspirando: — Estou tão feliz de ver você. Aqueles últimos cinco dias que se seguiram à partida de Dylan foram marcados pelo clima de estranheza de um pesadelo. O sentimento de culpa a dilacerava, principalmente porque as crianças não paravam de perguntar quando o papai iria voltar para casa. Seu isolamento se tornava cada vez maior: até mesmo sua própria mãe estava furiosa com ela. E ela experimentava a sensação apavorante de ter perdido o controle da situação — o horror de constatar a onda de destruição que deflagrara. A única hora em que o horror lhe dava uma trégua era quando estava com Marcus. Ele era um diamante no lixão da sua vida. Ela lera essa frase em algum lugar — no romance em que a heroína abre um brechó de roupas de grife —, e acabara de relembrá-la. — Não tão feliz quanto eu de ver você. — Marcus contemplou seu corpo nu, em seguida passou as mãos por baixo dela e a virou, deitando-a de bruços. Antes de penetrá-la, sempre esperava um momento, quase reverente. Já fazia quase uma semana que eles não faziam sexo. Não houvera a menor possibilidade na tarde de sábado. Depois que Craig atingia Marcus com o caminhão vermelho, não o deixara mais chegar a um metro de Clodagh. — Vem — implorou Clodagh, a voz abafada.

Marcus se preparou uma, duas vezes com a mão, em seguida se posicionou com precisão diante da entrada de Clodagh. Nada se igualava à primeira estocada dentro dela. Como o tempo que passavam juntos era sempre curto, havia uma violência redobrada no seu sexo: ele gostava de penetrá-la inteiramente, até o fundo, de primeira, avançando por aquela abertura semiflexível, direto ao cerne do êxtase enlouquecedor. E, quando conseguia arrancar de Clodagh um grito abafado que ficava em algum ponto entre o prazer e a dor, isso o excitava ainda mais. Mas, dessa vez, seu golpe comprido e perfeito foi interrompido na metade quando Clodagh se retesou, recostou-se e sussurrou: “Ssshh.” Inclinou a cabeça para o teto e ficou imóvel. — Achei que tinha ouvido... Não — tornou a relaxar. — Deve ter sido minha imaginação. Ele a penetrou até o fundo da segunda vez, mas não conseguiu evitar a sensação de ter perdido alguma coisa. Depois de uma transa afoita e furiosa, partiram para outra, um pouco menos frenética, com Clodagh por cima. Pingando de suor, deitada em cima dele, ela murmurou: — Você me faz feliz. — Você também — tornou ele. — Mas sabe o que me faria mais feliz ainda? Ir para o seu quarto. Este sofá está acabando com as minhas costas. — Não, não devemos. E se eles virem você? — Você pode trancar a porta do quarto. Vamos lá — disse ele, abrindo um sorriso. — Ainda não acabei com você por hoje. — Sim, mas... Ah, tá bem, mas não pode ficar a noite toda! Combinado? — Combinado. O Dr. McDevitt ficou alarmado ao ver uma mulher marchando pelo seu consultório adentro e exigindo Prozac com ameaças: — ... e não vamos sair daqui sem ele! — Sra. ... — Ele consultou sua lista de pacientes. — ah, Kennedy. Não posso sair por aí distribuindo receitas... — Pode me chamar de Monica, e não é para mim, é para minha filha. — Monica gesticulou em direção a Ashling. —Ah, Ashling. Não tinha visto você aí. Que é que está havendo? Ele gostava de Ashling.

Ela se remexeu, com ar impotente e, incentivada pelo cotovelo materno, terminou por responder: — Estou me sentindo péssima. — O namorado dela a trocou por sua melhor amiga — completou Monica, quando ficou claro que Ashling não o faria. O Dr. McDevitt suspirou. Levar um fora do namorado, ora, são coisas da vida, não são? Mas as pessoas queriam Prozac para tudo — quando perdiam um brinco, quando se ajoelhavam numa peça de Lego. — Não é só o namorado — Monica insistiu com veemência. — Ela tem problemas familiares. O Dr. McDevitt não duvidava nada disso. Uma mãe dominadora, talvez? — Sofri de depressão durante quinze anos. Fui hospitalizada várias vezes... — Não precisa se gabar — murmurou ele. — ...e Ashling está se comportando como eu me comportava. Fica jogada na cama e se recusa a comer, obcecada com os sem-teto. O Dr. McDevitt se empertigou. Agora, sim, a coisa começava a ficar interessante. — O que é que tem os sem-teto? Outro cutucão e um Conta pra ele! entre os dentes de Monica antes de Ashling erguer o rosto pálido e hirto e murmurar: — Conheço um rapaz sem-teto. Sempre me preocupava com ele, mas agora me sinto triste em relação a todos os outros sem-teto. Até os que não conheço. Isso bastou para convencer o Dr. McDevitt. — Por que me sinto assim? — perguntou Ashling. — Será que estou enlouquecendo? — Não, não está, mas, rã-rã!, a depressão é um problema sui generis — enrolou ele. Em outras palavras: não fazia a menor idéia. — Mas, se eu fosse arriscar um palpite, diria, pelo, hum, testemunho da sua mãe, que você pode ter herdado uma tendência à depressão, e que o trauma de ter perdido o seu brin... digo, namorado, deflagrou este surto. E lhe prescreveu a dose mínima. — Sob uma condição — disse, anotando algo num bloco: — Que você também faça terapia. Ele aprovava a psicoterapia. Se as pessoas queriam ser felizes, que suassem um pouquinho a camisa neste sentido. Ao sair do consultório, Ashling perguntou: — Posso ir para casa agora?

Monica só conseguira arrancá-la de casa para ir ao médico porque chamara um táxi. — Vamos só até a farmácia, depois voltamos para casa. Desconsolada, Ashling permitiu que Monica passasse seu braço pelo dela. Vivia sendo obrigada a fazer coisas que não queria, e estava apática demais para resistir. O problema era que Monica fizera da felicidade de Ashling um projeto pessoal, pois estava eufórica pela oportunidade de compensá-la pelos anos de inevitável abandono. Era uma tarde de começo de outono e, enquanto caminhavam lentamente sob o sol ameno, Ashling apoiou-se no cotovelo da mãe, grosso e macio das várias camadas de roupas. Depois da farmácia, Ashling foi levada a passear por Stephen’s Green, onde Monica a obrigou a se sentar num banco e contemplar as aves chapinhando no lago à luz dos raios de sol oblíquos. Ashling se perguntou quando poderia ir para casa. — Logo — prometeu Monica. — Logo? Que bom. — E voltaram a contemplar as aves. — Patos — observou ela, como uma autômata. — Isso mesmo! Patos! — Monica ficou tão animada como se Ashling tivesse dois anos e meio. — Se preparando para voar para o sul no inverno... rumo ao clima quente — acrescentou. — Eu sei. — Pondo na mala os biquínis e a loção bronzeadora. Voltaram a ficar em silêncio. — Providenciando os seus traveller’s cheques — prosseguiu Monica. Ashling continuou a olhar para a frente. — Pintando as unhas dos pés — sugeriu Monica. — Comprando óculos escuros e chapéus de palha. Os óculos escuros foram a gota d’água. A imagem de um pato usando óculos escuros como um mafioso foi cômica o bastante para arrancar um meio sorriso de Ashling. Só então Monica permitiu que fosse para casa.

Na manhã de sábado, quando Liam apanhou Lisa em seu táxi para levá-la ao aeroporto, sua admiração foi escancarada. — Santo Deus, Lisa — exclamou, em tom paternal —, você está espetacular! O termo certo era espetacular. — Tenho que estar, Liam. Comecei a me arrumar às sete. Ela era obrigada a reconhecer que se superara. Tudo estava perfeito: seus cabelos, pele, sobrancelhas, unhas. E roupas. Na quarta e quinta, couriers haviam entregue na redação algumas das peças de vestuário mais magníficas do planeta, ela escolhera a dedo la crème de la creme e era essa nata que agora estava vestindo. Durante o trajeto, Lisa explicou a Liam em linhas gerais o que estava acontecendo, e ele ficou consternado. — Se divorciando — murmurou ele. — Seu marido deve ser louco. E cego. Para se aproximar da porta, Liam estacionou o carro num local não apenas proibido, como também perigoso. — Vou ficar aqui esperando você. Lisa já estava sem fôlego mesmo antes de atravessar correndo o setor de desembarque. Embora o monitor informasse que o vôo de Oliver já aterrissara, não havia nenhum sinal dele, de modo que ela se postou no ponto de encontro, fixou os olhos nas portas duplas de vidro e esperou. Seu coração palpitava e sua língua não parava de se colar ao céu da boca. Ela esperou mais um pouco. As pessoas apareciam em levas regulares, passando com aquela expressão de quem sabe que é observado por entre os que esperavam, mas nem sinal de Oliver. Depois de algum tempo, ela ligou para casa, nervosa, para verificar se ele não lhe deixara algum recado avisando que estava atrasado, mas não havia nenhum.

Estava quase convencida de que ele não vinha mais, quando finalmente o viu atravessar as portas de vidro com a graça que lhe era peculiar. Sua cabeça ficou leve e o chão oscilou levemente. Ele estava todo de preto. Uma jaqueta de couro preta por cima de uma camisa pólo preta e calças pretas justas. Nesse momento, ele a viu e abriu seu sorriso quilométrico. A única coisa feita pelo homem que podia ser vista do espaço, ela costumava dizer, num remoto passado. Ela se apressou em sua direção. — Já estava quase desistindo de te esperar. — Desculpe, paixão — seus lábios se curvaram ao redor dos dentes chocantemente brancos —, mas é que fui detido pelo pessoal da Imigração. A única pessoa no avião inteiro com quem isso aconteceu. — Pôs a mão no quadril e disse, com curiosidade exagerada: — Por que será, hein? — Filhos-da-mãe! — Pois é, eu não conseguia convencê-los de que sou um cidadão britânico. Embora tenha um passaporte britânico. — Tsc-tsc — fez ela, compreensiva. — Ficou chateado? — Que nada, estou acostumado. Aconteceu a mesma coisa da última vez que vim aqui. Você está linda, paixão. — Você também. Kathy acabara de encerrar uma portentosa faxina quando Liam os deixou em casa. Ela ainda tentou sair de fininho, mas Lisa a deteve. — Oliver, esta é Kathy, ela mora aqui em frente. E, Kathy, este é Oliver, meu mari... amigo. — Como vai? — cumprimentou-o Kathy, perguntando-se o que seria um mariamigo. Talvez fosse o mesmo que uma amiga mulher. Quando Kathy saiu, os dois puseram-se a trocar amabilidades, num clima constrangido, de excessiva gentileza e jovialidade. Embora estivessem de bem um com o outro, não restava dúvida de que essa era uma situação muito estranha, sem um código de comportamento definido. Oliver admirou sua casa com entusiasmo exagerado e Lisa esboçou seus planos com grandiloqüência, fazendo uma menção específica à persiana de madeira. Por fim, os dois se acalmaram e passaram a se comportar com mais naturalidade.

— É melhor a gente pôr mãos à obra, paixão — disse Oliver, retirando de sua mala algo que, por um segundo, Lisa supôs tratar-se de um presente para ela, até compreender que era uma caixa cheia de documentos — extratos bancários, extratos de cartão de crédito, papelada de hipoteca. Ele pôs um par de óculos de armação de prata e, embora com isso adquirisse um ar deliciosamente profissional, toda a expectativa nervosa e infantil de Lisa bruscamente desapareceu. O que estava pensando? Isso não era um encontro, era uma reunião para discutirem seu divórcio. Subitamente, seu moral despencou. Sentou-se pesadamente à mesa da cozinha e pôs-se a trabalhar na cisão de suas vidas financeiras, para revertê-las, saudáveis e íntegras, à sua individualidade original. Era um processo tão delicado quanto o da separação de gêmeos siameses. Como se brincassem de paperchase* com extratos bancários de até cinco anos atrás, tentaram organizar uma lista de todas as diversas despesas que haviam tido com o apartamento. Em meio ao caos de depósitos, hipotecas e honorários de advogados, as duas vertentes distintas se confundiam o tempo todo. Volta e meia os ânimos se exaltavam, como sempre acontece quando o assunto é dinheiro. Lisa insistia com a máxima veemência que pagara o valor integral dos honorários do advogado, mas Oliver estava convicto de que também contribuíra. — Olha aqui — ele remexeu os papéis até localizar a fatura do advogado dos dois, um documento impresso em papel grosso —, uma conta de quinhentas e doze libras e dezesseis pence. E aqui — bateu com o dedo num extrato bancário seu —, um cheque de quinhentas e doze libras e dezesseis pence, emitido três semanas depois. Coincidência? Acho que não!

* Corrida em que os participantes devem seguir os papéis deixados ao longo do caminho pelos demais participantes.

 

— Me mostra! — Ela examinou ambos os papéis e, por fim, murmurou: — Desculpe. Nesse momento, a campainha tocou e Francine entrou, sem a menor cerimônia. — Oi, Leeeeesa. Hum, oi — cumprimentou Oliver com um aceno de cabeça, a timidez eclipsando sua autoconfiança. Voltou-se para Lisa: — A gente vai dar uma slumber party* hoje à noite, eu, Chloe, Trudie e Phoebe. Quer vir? — Obrigada, mas já tenho um compromisso. — Tá. Hum, será que você não tem umas máscaras de beleza sobrando que a gente possa usar? Lisa conteve a irritação. — Desculpe, Oliver, só um segundo. Dá um pulo aqui no meu quarto, Francine. — Graças a Deus! — exclamou Oliver, quando Francine foi embora com uma sacola plástica cheia de máscaras faciais, vidros de esmalte de unha, exfoliantes e demais itens que compõem a parafernália de uma slumber party. Lisa se remexeu, agitada: — Ela só veio aqui para dar uma olhada em você. Voltaram à paperchase,o tempo todo tropeçando em lembranças. — Que diabo nós compramos na Aero que custou tanto? — Nossa cama — desfechou Oliver, curto e rasteiro. Fez-se um silêncio carregado de sentimentos reprimidos. — Um cheque para a Discovery Travel? — perguntou Lisa, algum tempo depois. — Chipre. Aquela única palavra detonou uma bomba de emoções dentro dela. Um calor maravilhoso, os corpos entrelaçados enquanto os raios de sol oblíquos do fim de tarde estampavam os lençóis de sombras. Estava perdidamente apaixonada, vivendo suas primeiras férias de “casada”, sentindo-se incapaz de imaginar um só dia de sua vida sem Oliver. E haviam de topar com esse cheque justamente agora, quando se preparavam para se divorciar. A vida não era estranha? Algumas horas depois, a campainha tocou de novo. Dessa vez, era Beck. — Lisa, quer BRINCAR? A gente tá batendo uma BOLA. — Estou ocupada, Beck.

* Festa de meninas em que as convidadas passam a noite na casa da anfitriã.

 

— Oi. — Beck arriscou um aceno de cabeça para Oliver, de homem para homem, mas não conseguiu ocultar seu assombro. — E você? — Ele também está ocupado. — Lisa estava ficando cada vez mais irritada. Estavam tratando Oliver como se fosse uma aberração de circo. — Para ser franco — Oliver depôs a caneta e tirou os óculos —, bem que estou precisando dar um tempo. Essa papelada está fundindo a minha cuca. Meia hora? — Desdobrou-se com fluidez e Lisa observou sua graça musculosa. — Você vem, LISA? — De repente. — No começo, ela catimbava à beça — confidenciou Beck para Oliver —, mas agora parou. — Ela joga futebol com vocês? — Oliver ficou atônito. — É claro que joga. — Foi a vez de Beck ficar atônito. — Até que ela não é má. Pra uma mulher. Boquiaberto, Oliver disse, quase em tom de acusação: — Você mudou. — Não mudei — disse Lisa, sem alterar a voz. A meia hora passada às carreiras e escorregões atrás da bola no beco sem saída se revelou uma boa idéia. Estavam ofegantes e eufóricos quando voltaram para a mesa da cozinha, coberta de documentos. — Ai, ai, ai — Oliver estremeceu ao vê-la. — Eu tinha me esquecido. — Ah, vamos deixar isso para hoje à noite... — É melhor não, paixão. Ainda falta muita coisa. Sem dar quaisquer mostras de sua exaustão, Lisa pediu duas pizzas por telefone e retomaram o trabalho. Já passava da meia-noite quando terminaram. — Quanto tempo vai levar o processo todo? — perguntou Lisa. — Assim que chegarmos a um acordo sobre as finanças, nós o apresentamos à corte e a sentença provisória sai num prazo de dois a três meses. A sentença definitiva sai um mês e meio depois disso. — Ah. Rápido assim. — E Lisa não conseguiu pensar em mais nada para dizer. O dia a deixara exausta, ferida, infeliz. Seu pescoço estava dolorido, seu coração cheio de mágoa, era hora de dormir e ela não tinha a menor vontade de fazer sexo. Nem ele. Ambos estavam muito tristes.

Ele se despiu maquinalmente, cansado, deixando as roupas onde caíam, para em seguida subir na cama de Lisa como se já tivesse estado ali um milhão de vezes. Abriu os braços para ela, que se chegou até ele. Pele contra pele, ficaram nas posições em que sempre dormiam — enroscados um no outro, as costas dela apertadas com força contra o peito de Oliver, os pés entre as coxas dele. Mais íntimo e mais terno do que sexo. No escuro, ela chorou. Ele a ouviu, mas não conseguiu encontrar nada para dizer que pudesse confortá-la. No dia seguinte, retomaram seus lugares à mesa mais uma vez e trabalharam até as três da tarde, quando foi hora de Oliver ir embora. Ela tomou um táxi com ele para o aeroporto e, ao voltar para sua casa vazia, ampla e escura, a cama acenou para ela, tentadora. Lisa estava profundamente deprimida. Mas resistiu à tentação de voltar para lá e fugir da realidade novamente. A vida precisava continuar.

Na manhã de segunda-feira, Monica acompanhou Ashling em sua caminhada até o trabalho. “Boa menina, vai lá!” Foi como seu primeiro dia na escola. Ashling atravessou as portas de vidro e fez menção de se virar, mas Monica gesticulou do outro lado do vidro: “Vai!” A contragosto, ela se dirigiu para o elevador. Quando ocupou seu lugar à mesa na redação, todos lhe lançaram um olhar estranho, e subitamente passaram a tratá-la com uma gentileza excessiva, humilhante. — Quer uma xícara de café? — ofereceu-lhe Trix, sem graça. — Trix, você está me assustando — respondeu Ashling, tentando dar uma olhada nas coisas sobre sua mesa. Quando, um segundo depois, ergueu os olhos, Trix estava sacudindo a cabeça e informando à Sra. Morley por mímica labial: Ela não quer café. Jack chegou ventando, com um calhamaço de documentos debaixo do braço. Parecia estressado e irritado, mas, quando percebeu Ashling, afrouxou o passo e sua expressão se iluminou. — Como vai? — perguntou, com brandura. — Bom, saí da cama — disse ela. Mas seu rosto rígido como se fosse de gesso era um indício de que não chegava a estar tudo azul. — Olha, aquele dia em que você foi ao meu apartamento... eu estava um pouco, hum, sensível. Obrigada pelo sushi. — Imagine. Como vai a Weltschmerz? — Forte e saudável. Ele assentiu num silêncio encorajador, mas impotente. — É melhor eu tratar de trabalhar um pouco — disse ela. — Essa tristeza que você sente — disse Jack, lentamente — é indefinida ou assume alguma forma particular? Ashling refletiu e, pouco depois, respondeu: — Acho que assume uma forma particular. Conheço um rapaz sem-teto, Boo, o das fotos, lembra? Ele tornou o drama dos sem-teto real para mim, e isso me mata de tristeza. Após alguns segundos em silêncio, Jack disse, pensativo: — Sabe de uma coisa? Nós poderíamos dar um emprego para ele. Alguma função simples, para começar, como, por exemplo, de courier na emissora de televisão.

— Mas você não pode oferecer um emprego para alguém que nem conhece. — Eu conheço Boo. — Como? — Topei com ele na rua um dia desses. Reconheci seu rosto das fotos, e batemos um papo. Eu queria agradecer a ele, porque, afinal, essas fotos contribuíram imensamente para definir o perfil da Garota. Achei Boo muito inteligente, muito atilado. — Ah, é, sim, e se interessa por tud... Espera aí, você está falando sério? — É claro. Por que não estaria? Deus sabe o quanto devemos a ele. Basta pensar no volume de publicidade que aquelas fotos renderam. Ashling se animou por um momento, mas logo em seguida voltou para o fundo do poço. — Mas e os outros sem-teto? Os que não apareceram nas fotos? Jack riu, triste: — Não posso arranjar emprego para todos eles. Com uma pancada forte, a porta se abriu e um jovenzinho garboso correu um sorriso radiante pela redação: — Bom-dia, hicharada! Quem será?, perguntou-se Ashling, analisando as mechas em seu cabelo, as calças magenta estruturadas, a camiseta transparente e a minúscula jaqueta de couro, que ele já despia com dedos cuidadosos. — Robbie, nosso novo funcionário, substituto de Mercedes — disse Jack. — Ele começou na qujnta-feira. Robbie! Dá um pulo aqui para conhecer a Ashling. Robbie levou a munheca ao peito quase nu com um gesto delicado, afetando surpresa: — Quem, moi? — Acho que ele é gay — cochichou Kelvin. — Não brinca, Sherlock — disse Trix, transbordando de sarcasmo. Robbie trocou um solene aperto de mão com Ashling e, em seguida, com uma exclamação, tomou-se de amores por sua bolsa: — Muito Gucci! Acho que estou vivendo um momento fashion. Ashling conseguiu, de fato, trabalhar — o que muito a surpreendeu. Na verdade, não lhe deram nenhuma tarefa minimamente cansativa. E, se houve uma única coisa que não deu as caras em sua mesa para ela editar, revisar ou digitar, foi o artigo mensal de Marcus Valentine. No fim do dia, sua mãe foi apanhá-la no trabalho e permitiu que ela fosse direto para a cama, assim que chegou em casa.

Na manhã de terça, com uma profusão de cutucões, empurrões e incentivos maternos, ela conseguiu se levantar e ir trabalhar novamente. E o mesmo aconteceu na manhã de quarta. E na de quinta. Na sexta, Monica voltou para Cork. — É melhor eu ir. Seu pai provavelmente tocou fogo na casa durante minha ausência. Agora, continue tomando os comprimidos — não ligue se causarem tonteiras ou ânsias de vômito —, procure um terapeuta e tudo vai ficar azul de novo. — Está certo. — Ashling foi trabalhar e sentiu que estava indo bem — até o meio-dia, quando Dylan entrou na redação. Imediatamente, a náusea, até então branda, se intensificou. Ele tinha notícias. Notícias que ela estava louca para saber, mas que inevitavelmente a fariam sofrer. — Está livre na hora do almoço? — perguntou ele. Sua chegada deixou a redação em polvorosa. Excitados, os que nunca haviam visto Marcus Valentine perguntaram aos que já haviam, por mímica labial: Esse é ele? Será que iriam testemunhar uma reunião romântica apaixonada? E ficaram muito decepcionados quando os que estavam por dentro responderam, também por mímica labial: Não, esse é o marido da amiga. Enquanto Ashling apanhava sua bolsa, os olhos de Dylan e Lisa se encontraram e trocaram aquela fagulha de interesse típica das pessoas bonitas quando se vêem. — Acho que ele é gay — cochichou Ke — Não brinca, Sher — disse Trix, transbordando de sar soas bonitas quando se vêem. Dylan parecia diferente. Sempre fora bonito, embora um pouco apagado. Mas, da noite para o dia, adquirira uma dureza carismática, um magnetismo dissipado. Com a mão na cintura de Ashling, conduziu-a para fora, os olhos da redação inteira queimando as costas dos dois cornos. Foram para o bar ao lado e encontraram uma mesa num canto. Embora Ashling só quisesse uma Coca Diet, Dylan pediu uma garrafa de cerveja. — Para rebater — explicou ele, com um suspiro. — Como diz o outro: “Dentada de cão, pêlo do dito.” Tomei um porre federal ontem à noite.

— Ainda está morando na casa de sua mãe? — perguntou Ashling. — Ainda. — Um risinho amargurado. O que significava que Clodagh e Marcus ainda estavam juntos. A coisa não acabara, revelando-se apenas uma loucura breve. Ela sentiu uma vontade autêntica e visceral de vomitar. — Quais são as novidades? — Não muitas, ainda, salvo pelo fato de termos combinado que vou ver as crianças nos fins de semana e ficar com a casa nas noites de sábado. — Com uma expressão envergonhada, confessou: — Eu disse a Clodagh que vou esperar por ela, de modo que, se Deus quiser, ela vai romper com ele. Embora tenha me dito que ama aquele babaca. Deus sabe por quê. — Uma pausa em que caiu em si. — Desculpe. — Tudo bem. — E você, como vai? — Ele voltou sua atenção para ela e, por um momento, voltou a ser o velho Dylan. Ela hesitou, O que iria dizer? Odeio o mundo, odeio estar viva, estou tomando antidepressivos, minha mãe tem que pôr pasta de dentes na minha escova todos os dias de manhã e, agora que voltou para Cork, não sei como é que vou fazer para escovar os dentes. — Muito bem — disse, por fim. Como ele não parecesse totalmente convencido, ela lhe garantiu: — Estou, sim. Vai, me conta mais. Dylan soltou um suspiro, infeliz. — É com as crianças que estou realmente preocupado. Estão tão confusas, é horrível. Mas são pequenas demais para compreender o caso todo. E não devo jogá-las contra a mãe, mesmo que tenha ódio dela. — Você não tem ódio dela. — Ah, pode crer, Ashling, tenho, sim. Ashling achou a sua ferocidade patética. Ele só tinha ódio de Clodagh porque a amava muito. — A coisa ainda pode acabar — disse Ashling, tão esperançosa por si quanto por Dylan. — É. Vamos dar tempo ao tempo. Você falou com algum dos dois? — Hoje faz duas semanas que vi Clodagh no... naquela sexta. Mas não consegui encontrar... — Hesitou. Pronunciar seu nome era doloroso. — ...Marcus. Tentei ligar para ele, mas ele não atende mais o telefone. — Você poderia ir até a casa dele. — Não.

— É isso aí. Preserve a sua dignidade. Ashling se remexeu, triste. Não se tratava disso. Simplesmente não tinha coragem. Quando Oliver voltou para Londres, não ligou para Lisa, nem ela para ele. Não havia nada a dizer. Ambos iriam obter a aprovação de seus advogados sobre suas respectivas situações financeiras e, depois disso, a sentença provisória sairia em questão de meses. Lisa conseguiu trabalhar até o fim da semana, mas, embora estivesse segurando as pontas, não chegava nem perto de se sentir bem. Conseguira finalizar a edição de outubro, mas fora como empurrar um caminhão quebrado montanha acima. Ainda mais com Ashling se comportando como um zumbi. No entanto, Robbie era ótimo. Cheio de idéias para as futuras edições. Muitas delas extravagantes demais, mas pelo menos uma — para uma matéria de moda caracterizada como uma sessão de sadomasoquismo — era simplesmente genial. Quando todo o material já fora para a gráfica no fim da tarde de sexta, vários colegas a convidaram para tomar um drinque depois do expediente: Trix, Robbie e até Jack sugeriram que fossem a algum lugar para comemorar o “fechamento de outubro”. Mas ela já estava cansada de todos eles, e foi direto para casa. Mal acabara de chegar, Kathy apareceu à porta. Kathy agora dava as caras toda hora. E, quando não era Kathy, era Francine. Ou alguma outra das inúmeras mulheres da rua. — Vai jantar lá em casa hoje à noite — convidou-a Kathy. Lisa quase riu da idéia, mas, quando Kathy disse “Vai ter frango assado”, do nada concordou. Por que não?, pensou, tentando justificar a aceitação. Podia começar a Dieta Scarsdale, não a fazia há séculos, e frango assado se encaixava perfeitamente. Dez minutos depois ela entrava na cozinha de Kathy e era atingida pela fumaceira das panelas, o barulho da televisão e a gritaria das crianças brigando. Kathy parecia estar caindo pelas tabelas.

— Está quase pronto. Mexe o molho na panela, seu idiota imprestável! — A ordem foi dirigida a John, o tumor benigno com quem era casada. — Quer beber alguma coisa, Lisa? Lisa estava a pique de lhe pedir um copo de vinho branco seco, quando Kathy prosseguiu: — Ribena? Chá? Leite? — Hum, ah, acho que leite. — Pega um pouco de leite para a Lisa. — Kathy deu um pontapé em Jessica, que rolava no chão com Francine. — Num copo bom. Todo mundo para a mesa! Lisa notou que Kathy lhe serviu três vezes mais comida do que aos outros. E chapara pelo menos quatro batatas assadas no seu prato, antes que ela pudesse protestar que não as comia. Tentou fingir que não estavam ali, mas tinham uma cara e um cheiro tão deliciosos... Relutou mais um pouco, mas terminou por ceder e, pela primeira vez em dez anos, um pedaço de batata assada teve acesso à sua boca. Amanhã eu começo a dieta. — Pára de chutar a perna da mesa! — Kathy gritou com Lauren, a caçula. Lauren fez uma careta, parou e recomeçou três segundos depois. — Seu cotovelo tá esbarrando em mim — reclamou Francine com Lisa. — Desculpe. — Não pede desculpas. — Francine no ato fez um ar contrito. — Você deve dizer que pelo menos não faz barulho quando come. — Tá, entendi. — Ou que não é você que é uma baleia glutona — sugeriu Jessica, solícita. — Ou que não sou eu que vivo peidando — disse Lisa. — Isso mesmo! Apinhados em volta da pequena mesa da cozinha, com a tevê aos berros, todos com bigodes de leite, provavelmente até ela própria, Lisa teve um lampejo de déjà vu. De quê? De que essa cena a lembrava? E uma consciência terrível a atingiu. Era exatamente como sua própria casa em Hemel Hempstead. A promiscuidade, o barulho, o bate-boca bem-humorado, o clima era exatamente o mesmo. Como foi que eu vim parar aqui?

— Você está bem, Lisa? — perguntou Kathy. Lisa fez que sim. Mas estava lutando contra o desejo de dar um salto vertical digno de uma catapulta e correr para casa. Era uma mulher da classe trabalhadora que passara a vida inteira tentando ser outra pessoa. E, apesar dos anos dedicados à extenuante rotina de fazer mil e um contatos, puxar sacos sortidos, depreciar gente a esmo, viver sempre atenta, sem nunca relaxar, fora inexoravelmente levada de volta ao ponto de partida. Isso a deixou completamente muda. Nunca refletira seriamente sobre o que estava sacrificando ao subir como um foguete, deixando suas raízes para trás. As recompensas sempre haviam valido a pena. Mas ali, sentada na cozinha de Kathy, não viu nenhum indício da vida glamourosa que construíra para si mesma. Pelo contrário, levara uma surra daqueles que sacrificara — seus amigos, sua família, Oliver (a perda que mais lhe doera), e tudo isso por nada. Era meia-noite e Jack Devine estava exausto e desanimado. Passara duas horas andando pelas ruas de Dublin à procura de Boo, sem sucesso. Sentia-se um detetive particular de quinta categoria. Além das portarias nas ruas adjacentes à de Ashling, não tinha nenhuma outra idéia de onde procurá-lo. Onde ficariam os redutos dos sem-teto? Aqueles a quem perguntara negaram ter qualquer conhecimento de Boo. Talvez não o conhecessem, mesmo, mas Jack desconfiava que, mais provavelmente, estavam tentando protegê-lo. Será que devia ter lhes passado uma nota de dez libras, soprando fumaça nos seus olhos e dizendo “Talvez isto refresque a sua memória”? Não era o que acontecia nos livros de Raymond Chandler? Amaldiçoando sua ignorância da vida nas ruas, continuou caminhando. Desviou-se das ruas principais, seguiu por becos escuros, foi dar com os costados nas docas... Talvez fosse aquele! Um feixe de membros descarnados que se enroscava sob um casacão, deitado num caixote de papelão desmontado.

— Com licença. — Jack se pôs de cócoras ao seu lado, e um rostinho magro e muito jovem se ergueu em sua direção. Defensivo e assustado. Não era Boo. — Desculpe. — Jack recuou. — Desculpe o incômodo. Voltou para a rua principal, totalmente desanimado. Já bastava por uma noite, tentaria de novo no dia seguinte. Ao se encaminhar para seu carro, subitamente ouviu alguém chamá-lo: — Jack! Aqui! Sentado no degrau da porta de um salão de beleza, lendo um livro, estava ninguém mais, ninguém menos do que Boo. — Voltando da farra? — indagou Boo, com seu sorriso banguela. — Hum, não. — Jack estava atônito por ter sido Boo quem o encontrara. — Estou há duas horas à sua procura. — Então era você. — JohnJohn o avisara que havia um sujeito perguntando por ele. Desconfiara que se tratasse de um civil — afinal, o que mais poderia ser? —, mas não tinha certeza absoluta. — É, era eu. — Jack pôs-se de cócoras ao lado de Boo e, de repente, como se transpusesse uma linha divisória invisível, a inhaca o atingiu como uma martelada. Com enorme força de vontade, proibiu seu rosto de manifestar qualquer reação. — E aí, o que aconteceu? — Boo estava de pé atrás. Tinha gostado de Jack naquela vez em que parara e conversara com ele sobre as fotos de moda. Mas, em geral, as pessoas não o procuravam, a menos que ele estivesse metido em alguma encrenca. Ignorando a inhaca, Jack procurava as palavras certas, pois não queria parecer condescendente. Queria que Boo saísse dessa situação com um mínimo de dignidade. — Estou com um problema — começou Jack. Músculo por músculo, a expressão de Boo começou a se fechar. — Há uma vaga na emissora de tevê em que trabalho e estou procurando a pessoa certa para preenchê-la. Seu nome me foi sugerido por uma colega. — Como assim? — Os olhos de Boo se estreitaram de desconfiança. — Estou te oferecendo um emprego. Se você quiser — apressou-se em acrescentar. O rosto de Boo era o retrato da incompreensão. Um convite daqueles estava fora da sua esfera de experiência.

— Por quê? — finalmente conseguiu perguntar. Pessoas tratando-o bem eram uma raridade, e ele não estava inclinado a confiar em Jack. — Ashling achou que você seria o indicado e eu respeito a opinião dela. — Ashling... — Se ela tinha algo a ver com isso, talvez não fosse uma encenação. Mas o que mais poderia ser? Ríspido, perguntou: — Você está tirando um sarro com a minha cara? — Não, longe disso. Por que não vem nos ver na emissora? Talvez assim você acredite em mim. — Vocês me deixariam entrar? Ao ouvir isso, Jack sentiu que não conseguiria mais conter a emoção. — É claro que deixaríamos. De que outra maneira você poderia trabalhar lá? Foi então que Boo, contrariando todos os seus instintos, começou a acreditar em Jack. — Mas por quê...? — Seus olhos brilhavam e ele parecia mais jovem do que nunca, quase uma criança. Jack sentiu a emoção se estampar em seu próprio rosto. — Nunca tive um emprego antes. — Boo engoliu em seco. — Bom, já está na hora de ter, não? — Não posso ser um vagabundo a vida inteira! — Hum, pois é. — Jack ficou em dúvida se ria ou não. — Ah, levanta esse astral! — Boo lhe deu uma cotovelada, sorrindo por entre as lágrimas. — E vão ser só resenhas que eu vou fazer, ou vocês vão precisar que eu faça outras coisas também? — Hum... — Jack fora totalmente pego de surpresa. — Eu diria que outras coisas também. Na manhã seguinte, na redação, Jack ofereceu a novidade a Ashling como se fosse um presente: — Encontrei Boo e falei com ele sobre o emprego na emissora. Ele pareceu interessado. — Que ótimo! — Seu tom de voz entusiasmado não combinava em nada com a palidez do rosto. — Como ele não tem roupas, eu lhe disse para vir aqui falar com o Kelvin. Tem um monte de roupas masculinas no “departamento de moda” que ninguém quer, dá e sobra para ele se vestir. Ashling ficou imóvel. Ainda não derramara uma só lágrima, mas isso quase bastou para derrubá-la. — É muita bondade sua — disse, com a cara enfiada no peito.

— A questão — Jack parecia confuso — é que, no começo, Boo pareceu pensar que queríamos que ele fizesse resenhas literárias para a Garota. Por que será? Ela levantou e soltou os ombros: — Agora você me pegou. De súbito, desejou não ter dito aquilo. As palavras fizeram com que algo passasse como um raio pelo rosto de Jack, e ela se petrificou em meio ao seu dar de ombros. O que quer que fosse, fez com que se sentisse viva. E com medo. — Resenhas? — Tentou se concentrar e, por fim, se lembrou. — Eu andei dando a ele exemplares para a imprensa de romances. Romances que ninguém quis — apressou-se em acrescentar. — E ele sempre me dava a sua opinião. — Ah, sim. Bom, ele começa segunda-feira como courier na emissora. As resenhas literárias da Garota são departamento da Lisa. Mas sempre podemos pedir a ela — concluiu, animado. Debulhando-se em lágrimas, Clodagh abriu a porta da rua. — Que foi que houve? — Marcus prendeu o fôlego. — É Dylan. Aquele filho-da-mãe. — Que foi que ele fez? — indagou Marcus, seguindo-a até a cozinha, a fúria estampada no rosto. — Ah, eu mereço! — Clodagh sentou-se à mesa e secou os olhos que pingavam. — Não estou dizendo que não. Mas é tão difícil. Sempre que me encontro com ele, ele tem mais uma má notícia e me faz sentir horrível. — Mas, afinal, o que ele fez? — tornou a perguntar Marcus. — Me obrigou a devolver todos os cartões de crédito e fechou nossa conta conjunta. Em vez disso, vai passar a me dar uma mesada. Adivinha de quanto? Voltando a soluçar, citou uma cifra tão mesquinha, que Marcus exclamou: — Mesada? Isso é uma cadeirada! Ela recompensou o gracejo com um sorriso trêmulo. — Bom, fui uma má menina, que é que podia esperar? — Mas ele tem o dever de cuidar de você, você é a mulher dele! — A veemência de Marcus não correspondia aos seus atos. Estava procurando alguma coisa nos recipientes enfileirados no peitoril da janela. — Mas acho que ele não se sente na obrigação de cuidar de mim... — Ela se calou por um momento. — O que você está fazendo?

— Procurando um lápis. — Toma aqui. — Encontrou um no estojo de lápis de Craig. — O que você está fazendo? — Só... — Anotou algo num pedaço de papel. — ...uma coisa. Vamos namorar — murmurou, o rosto enfiado em seu pescoço. — Pensei que você nunca fosse pedir. — Conseguiu abrir um sorriso menos triste, e o levou para a sala. Mas Marcus hesitou, sem fazer menção de entrar. A novidade do sexo adolescente no sofá começara a perder a graça. — Vamos lá para cima. — Não dá. — Quanto tempo a gente vai continuar nesse filme de capa-e-espada? Ah, vamos lá, Clodagh — bajulou-a. — Eles são muito pequenos, não entendem nada. — Seu pirralho — ela soltou uma risadinha. — Mas acho bom você não fazer barulho. — Nesse caso, acho bom você não ser tão sexy. — Vou tentar — disse ela, com um largo sorriso. O sexo foi fantástico, como sempre. Ela conseguiu se soltar totalmente, perdendo todo o pudor e esquecendo seu recém-estado de penúria com cada golpe que Marcus desferia dentro dela. Até sentir seu ritmo diminuir. — Mais depressa! — sussurrou. Mas ele foi indo cada vez mais devagar, até parar de uma vez. — Que foi? — Cloooodaaaagh. — Seu tom era de grave advertência e seus olhos estavam fixos em outra parte. Ela já se apressava em sair de baixo dele. Esqueci de trancar a porta. Foi e não foi um choque ver Craig emoldurado pelo umbral da porta, encarando Marcus. — Papai? — perguntou, trêmulo e confuso.

 

— Mãe, é Lisa. — Oi, querida — disse Pauline, carinhosa. — Que bom ouvir sua voz. — Também é bom ouvir a sua voz. — A garganta de Lisa doía do amor que sentia na voz de sua mãe. — Escuta, eu estava pensando em ir visitar você e papai no fim de semana. Se for conveniente para vocês — apressou-se em acrescentar. — Sabe de uma coisa? — Pauline refletiu. — Não existe absolutamente nada no mundo que nos deixasse mais felizes. Adoraríamos ver você.

Ao sair da casa de Kathy na noite de sexta, Lisa se sentira em carne viva, nua e exposta, como se houvesse sido despojada de tudo aquilo que a fazia ser quem era. E, do nada, sentira necessidade de ver sua mãe. Era uma reação inesperada, como também o que ocorreu em seguida — depois que o primeiro choque de conscientização passou, já não parecia mais tão medonho assim. Pode-se tirar a garota da casa popular, mas não se pode tirar a casa popular da garota, ela pensou, esboçando um sorriso. Se a descoberta não chegou a deixá-la exatamente feliz, também não a deixou infeliz. Imediatamente depois, foi engolfada pela vontade de fugir. Mas a vontade a abandonara, dando lugar ao desejo de voltar às suas origens. — Estou tão ansiosa para ver você, Lisa. Só de saber que você vem, já fiquei animada. — O encanto e o carinho de Pauline eram tamanhos, que Lisa se perguntava até que ponto não imaginara a reverência constrangida que inspirava em seus pais. Teria sido apenas uma projeção sua? Ashling tinha a sensação de que os dias se empilhavam. O mundo continuava sendo uma paisagem desolada e, toda manhã, ao acordar, ela se sentia como se tivesse bebido muito na noite anterior. Mesmo nas noites em que não tinha. Mas, depois de algumas semanas, deu-se conta de que as tarefas prosaicas, como escovar os dentes e tomar banho, já não pareciam mais ridiculamente trabalhosas. — Deve ser o antidepressivo fazendo efeito — disse Monica, em um de seus muitos telefonemas. — Esses Inibidores Seletivos da Reabsorção da Serotonina são uma verdadeira bênção. Muito melhores do que aqueles sei-lá-o-quê tricíclicos, totalmente ultrapassados. Ashling estava surpresa. Não esperara que o antidepressivo surtisse efeito, e se deu conta de que não levara fé em nada. Afinal das contas, sua mãe não ficara curada. Pelo menos, não durante muito tempo.

Além de cuidar de sua higiene pessoal, conseguia trabalhar, desde que não se tratasse de nada muito difícil. A aplicação com que desempenhava cada tarefa não deixara um segundo de constrangê-la, mas agora ela reconhecia vagamente que, provavelmente, fora sua salvação. — Chegou o horóscopo de novembro! — Trix acenou com as folhas. — Vem cá, todo mundo, que eu leio em voz alta. No ato, a redação inteira parou de trabalhar. Qualquer desculpa servia. Até mesmo Jack foi, embora consciente de que deveria lhes dar uma bronca. E era exatamente o que pretendia fazer, assim que Trix lesse o horóscopo de Libra. — Lê o de Escorpião — Ashling pediu a Tríx. — Mas você é de Peixes. — Anda. Escorpião. Depois, Capricórnio. Clodagh era de Escorpião e Marcus de Capricórnio, e Ashling queria saber como seria o mês de novembro para eles. Jack Devine chamou sua atenção e lhe lançou um olhar astuto — um misto de censura e tristeza. Sabia o que ela estava fazendo. Altiva, ela virou a cabeça. Podia ler o horóscopo de quem bem entendesse. De mais a mais, havia coisas infinitamente piores que poderia estar fazendo nesse momento. Afinal, Joy sugerira que ela rogasse uma praga para Marcus e Clodagh. De acordo com o horóscopo, o mês de Clodagh e Marcus seria de altos e baixos. Ashling não duvidava nada disso. — Qual é o seu, JD? — perguntou Trix. — Sr. Devine para você... — Libra — desistiu, com um suspiro, quando ficou claro que ela ainda estava esperando. — Mas não acredito em nada desse negócio de estrelas. Os librianos nunca acreditam.

Ashling achou isso um tanto engraçado. Espiou-o por trás dos cabelos. Ele já estava olhando para ela. Trocaram um sorrisinho. Em seguida, ela enfiou depressa o tronco embaixo da mesa. Tornou a aparecer, já com sua bolsa, mas, confusa, não teve certeza se precisava de alguma coisa dela. Será que só a apanhara com o intuito de parar de olhar para Jack Devine? Foi então que se deu conta de que já estava quase na hora do almoço e de sua consulta com o Dr. McDevitt. Ashling fez a caminhada de dez minutos até o consultório como se estivesse sob os disparos de um franco-atirador. Tinha medo de estar na rua e ver algo que pudesse fazê-la sofrer. Mantinha os olhos baixos o máximo possível, e não via quase nada das pessoas acima dos joelhos. Isso lhe garantiu uma trajetória segura, até um refugiado bósnio tentar lhe vender um exemplar antigo da Big Issues. Imediatamente ela foi tomada por uma avassaladora sensação de desamparo. E havia coisa ainda pior à sua espera — do próprio Dr. McDevitt. — Como está reagindo ao Prozac? — perguntou ele. — Muito bem. — Com um sorriso débil, pediu: — Por favor, doutor, pode me receitar mais? — Efeitos colaterais? — Só um pouco de enjôo e tremor. — Perda de apetite? — Eu já estava sem apetite antes. — E você sabe que não deve misturar esse medicamento com álcool? — Hum, sei. — Pedir a ela para não beber já era ir longe demais. — Como vai indo a terapia? — Hum, eu não fui. — Mas eu lhe dei um número de telefone para ligar. — Eu sei, mas não posso fazer isso. Estou deprimida demais. — Ora, pílulas! — parecendo aborrecido, ele tirou o fone do gancho, fez uma ligação e, em seguida, outra. Tapou com a mão o bocal e perguntou: — A que horas você sai do trabalho na terça? — Depende... — Às cinco? — tornou ele, irritado. — Às seis? — Às seis. — Quando estava com sorte.

Ele desligou e lhe entregou uma folha. — Todas as terças, às seis. Se não for, não tem mais Prozac. Cachorro! Voltando para casa por Temple Bar, apática, ouviu um grito de “Ei, Ashling!”. Um rapaz fashion-vitimado calçando um par de sapatos absolutamente grotescos avançava desajeitado em sua direção, e ela demorou um segundo até reconhecê-lo como sendo Boo. Seu cabelo estava brilhante, seu rosto, corado e, inesperadamente, ela riu. — Olha só para você! — disse, encantada. — Estou indo para o trabalho, meu turno é o das duas às dez. — Imediatamente, caiu na gargalhada. — Dá para acreditar que eu disse isso?! Em seguida, encetou um agradecimento sem fôlego, de tão efusivo. — Está tudo indo às mil maravilhas na emissora de revê. Até me deram um adiantamento, para eu poder me hospedar num albergue! — E o trabalho não é muito difícil? — Ashling tinha a vaga preocupação de que, após toda uma vida sem limites, Boo não fosse capaz de se adaptar ao trabalho, com sua disciplina e responsabilidades. Boo riu: — Trabalhar como courier? Mamão com açúcar! Mesmo com estes sapatos. — Roupas transadas — comentou Ashling, analisando o paletó excessivamente estruturado, a camisa frenética e os sapatos para lá de esquisitos. Pareciam duas miniaturas da nave Enterprise, de Jornada nas Estrelas. — Estou uma figuraça. — Boo se pôs a rir novamente. — O pior de tudo são os sapatos. Kelvin, lá da sua redação, me deu todas as roupas doidas que não queria, mas pelo menos são limpas, e posso comprar roupas normais quando receber o meu salário. Um momento! Vou repetir essas palavras. — Lambeu os lábios e repetiu com prazer: — Quando receber o meu salário. Sua alegria era contagiante. — Estou muito feliz por estar tudo dando certo com você — disse Ashling, sincera.

— E a quem eu devo agradecer por isso? Só a você. — Boo abriu seu sorriso banguela. Pelo visto, Kelvin não conseguira convencê-lo a produzir a boca também. — E não deixa de agradecer ao Jack. Ele é gente finíssima! O rosto de Boo ficou aceso de expectativa, à espera de que Ashling concordasse. — Finíssima — Mas ela estava confusa. Quando, exatamente, Jack Devine se tornara um cara tão legal? — Ele te contou que eu pensei que ia resenhar livros para ele? — perguntou Boo. — Bom... — Eu não tinha entendido bulhufas. Mas também não quero mais resenhar livros, mesmo... — Hum... — Quero ser cameraman. Ou técnico de som. Ou apresentador de telejornal! Ao voltar para a redação, Ashling teve que se preparar para enfrentar Lisa com o pedido para sair mais cedo nas tardes de terça. — O médico não vai mais me receitar Prozac, a menos que eu faça terapia. Lisa não escondeu seu desagrado. — Vou ter que pedir permissão ao Jack, e acho bom você passar a chegar mais cedo para compensar as horas de trabalho perdidas — disse, irritada. Mas a irritação logo passou. Ashling era uma ótima moça. E Lisa podia se dar ao luxo de ser caridosa. Pelo menos, não tenho que fazer terapia, pensou, vaidosa. Nem tomar Prozac.

Numa noite de sábado, aproximadamente um mês após o dramático desfecho do triângulo amoroso, Ted deu um show. Marcus também estava em cartaz. — Espero que você não se importe — disse Ashling, com excessiva jovialidade —, mas não vou acompanhar você. — Não tem problema, não esquenta, quem poderia esperar que você fosse? — Mas você vai ter que voltar a sair qualquer hora dessas — disse Joy. Ashling estremeceu à simples idéia. — Não existem estranhos — bajulou-a Ted —, apenas amigos que você ainda não conheceu. — Melhor ainda — aproveitou Joy. — Não existem estranhos, apenas namorados que você ainda não conheceu. Sem mais nem menos, Ashling soltou: — Não existem estranhos, apenas ex-namorados que ainda não conheci. E continuou em estado de alta-tensão até tornar a se encontrar com Ted na tarde de domingo. Esforçou-se ao máximo para não perguntar; mas terminou cedendo: — Desculpe, Ted, mas ele estava lá? Quando Ted assentiu, Ashling perguntou, com uma voz ainda mais apática: — Ele perguntou por mim? — Eu não falei com ele — disse Ted, depressa. Por que se sentia como se estivesse pisando num campo minado? Ashling ficou aborrecida. Ted devia ter falado com ele, para que Marcus pudesse perguntar por ela. Só que, se tivesse falado com ele, ela teria se sentido traída. Com uma voz ainda mais humilhada, obrigou-se a perguntar: — E ela estava lá? Sentindo um inexplicável sentimento de culpa, Ted fez que sim. Ashling caiu num mutismo taciturno. Embora tivesse esperanças de que Clodagh não estivesse no show, sabia que estaria, pois Dylan passava as noites de sábado com as crianças, de modo que Clodagh contava com uma babá fixa. Ashling maldisse sua memória, que conseguira guardar nos mínimos detalhes tudo que Dylan lhe contara sobre os pombinhos. Teria sido muito melhor se não tivesse tomado conhecimento de nada. Mas fora irresistível, como puxar a casca de uma ferida.

Calada e triste, imaginou Clodagh olhando com ar de adoração para Marcus e Marcus olhando com ar de adoração para Clodagh. O silêncio se prolongou por tanto tempo, que Ted achou que estava liberado e não haveria mais perguntas. Pouco a pouco, permitiu-se relaxar... cedo demais! Com voz embargada, Ashling perguntou: — Eles pareciam loucos um pelo outro? — Ah, nem um pouco — disse Ted, em tom desdenhoso, preferindo não mencionar que, no começo do show, Marcus dissera: “Dedico este número a Clodagh.” Depois de terem sido pegos na cama por Craig, Marcus convencera Clodagh de que não fazia mais sentido se esconderem. Agora passava quase todas as noites lá, e as coisas saíram melhor do que o esperado: as crianças pareciam tê-lo aceito, e havia momentos, como agora, em que Clodagh sentia que tudo estava em paz. Os quatro estavam reunidos ao redor da mesa da cozinha, Molly desenhando flores (na mesa), Craig fazendo o dever de casa, assistido por Clodagh, e Marcus trabalhando em algumas piadas. A atmosfera era de união e empenho conjunto. — Clodagh, posso te mostrar uma piada? — perguntou Marcus. — Me dá dez minutos. Deixa eu só terminar de ajudar o Craig. Passado algum tempo, Marcus interrompeu Clodagh, que, pela enésima vez, demonstrava a Craig como fazer um Q maiúsculo: — Posso te mostrar agora, Clodagh? — Mais dez minutinhos, querido, e aí vou poder te dar toda a atenção. Seguiu-se o estrondo da porta da cozinha sendo batida. Clodagh ergueu a cabeça de um golpe. O que acontecera? Uma rápida vistoria nos que haviam permanecido na cozinha indicava que Marcus saíra pela porta afora! Eram sete e meia de uma noite de quinta, em fins de outubro, e Ashling e Jack eram as únicas pessoas que haviam permanecido na redação. Jack apagou a luz de seu escritório, fechou a porta e se deteve diante da mesa de Ashling. — Como vão indo as coisas? — arriscou.

— Muito bem. Estou acabando o artigo sobre as prostitutas. — Não, eu quis dizer... de um modo geral. Como vai indo a terapia? Está ajudando? — Não sei. Talvez. — Como diz minha mãe, o tempo é o melhor remédio — ele procurou tranqüilizá-la. — Lembro que, quando estive na fossa, achei que nunca iria sair... — Você já esteve na fossa? — atalhou-o Ashling. — E você que pensava que eu não tinha sentimentos...! — Não, mas... — Confessa, vai. Pensava, sim. — Não pensava, não. — Mas foi obrigada a desviar o rosto afogueado, ao que um sorriso curvou seus lábios. — Foi por causa da Mai? — perguntou, curiosa. — Da mulher antes da Mai. Dee. Ficamos muito tempo juntos e ela me deixou, mas acabei superando. Você vai superar, também. — Sim, mas Jennifer — é a minha terapeuta — diz que não é só por causa da ruptura que estou na fossa. — Então é por causa de quê? — Ele fez a pergunta com tanta brandura e meiguice que, quando Ashling viu, estava lhe contando tudo sobre a depressão de sua mãe e os mecanismos que desenvolvera para tentar enfrentar a situação. — ...Senhorita Quebra-Galho — arrematou ela. Jack fez um ar mortalmente arrependido. — Me perdoe — apressou-se em dizer. — Me perdoe por ter apelidado você... — Não se perdoe. É a mais pura verdade. — É? A razão pela qual você carrega todas essas coisas na bolsa e é sempre tão prestativa? — Jennifer parece achar que sim. — E você, o que acha? — Acho que concordo — disse, com um suspiro. O que não disse foi que Jennifer sugerira ser essa também a razão pela qual Ashling sempre escolhera homens cujas vidas pudesse organizar. E que, depois do rompante inicial de raiva e negação, Ashling concordara com ela: fora útil à maioria de seus namorados, desde os anteriores a Phelim, o doce pateta, até Marcus, o humorista carente, e gostara disso. — E o que a tal de Jennifer diz sobre a sua Weltschmerz?

— Que está melhor do que estava, mesmo que eu não consiga enxergar isso. E que talvez eu venha a ter outros surtos no futuro, mas que posso tomar algumas providências para mantê-la sob controle. Como, por exemplo, fazer trabalho voluntário para ajudar todos os outros Boos... Os que não tiveram a sorte de encontrar um Jack Devine! — acrescentou, brincalhona. — Imagina. — Jack bancou o tímido, arriscando um olhar para Ashling por baixo das pestanas. Em seguida, os dois trocaram um longo olhar. O clima de euforia se esvaiu bruscamente, deixando risos defasados em suas bocas confusas. Jack se recompôs primeiro. — Caramba, Ashling — declarou, com excessiva jovialidade —, estou tão comovido! Boo está indo muito bem na emissora, sabia? — Foi muita bondade sua fazer o que fez por ele. — Ela se deu conta de que andara tão embotada nos últimos dois meses, que não lhe agradecera como devia. — Não há de quê! — Estavam correndo o risco de trocar outro olhar íntimo. Na dúvida, fale sobre o tempo. — Está caindo um pé-d’água daqueles. Quer uma carona para casa? — Ele pousou as palmas das mãos na mesa de Ashling e, de súbito, ela se lembrou da tarde em que lavara seu cabelo. O toque das mãos dele na sua pele, as sensações deliciosas administradas por aquelas mãos, o calor daquele corpo musculoso comprimido contra o seu... Hummmmm. — Hum, não — apressou-se em se recompor. — É melhor eu terminar o artigo. Para sua surpresa, ele perguntou: — Você ainda vai às aulas de salsa? Ela sacudiu a cabeça. Não sentia a menor disposição. — Talvez volte a ir, quando as coisas estiverem... entende? — Será que poderia me ensinar o bê-á-bá, qualquer dia desses? Com toda a honestidade, ela não conseguia imaginar nada menos provável. — Vamos ter uma noite Salsa & Sushi — ela brincou. — Vou cobrar, hein? Quando Jack já ia saindo, Ashling perguntou: — Como vai indo a Mai? — Ótima. Nós nos vemos de vez em quando. — Diz a ela que mandei um beijo. Acho Mai uma graça de pessoa. — Pode deixar. Ela agora está namorando um paisagista.

— Chamado Cormac? — perguntou Ashling, em cima do laço. A expressão de Jack se encheu de assombro e horror: — Como é que você sabe?! Nas altas da madrugada, o telefone de Lisa tocou. Ela acordou com um sobressalto, o coração disparando. Será que acontecera alguma coisa com seu pai ou sua mãe? Antes que chegasse ao telefone, a secretária-eletrônica já atendera e alguém começara a deixar um recado. Oliver. E falando ainda mais alto do que de costume. — Sinto muito, Lisa Edwards — disse, insolente —, mas você mudou, sim. Ela apanhou o fone: — O quê? — E, a propósito, olá. Aquele dia, em Dublin, quando você ia jogar futebol com os garotos, eu disse que você tinha mudado e você disse que não. Você mentiu para mim, paixão. — Oliver, são vinte para as cinco. Da manhã. — Eu sabia que tinha alguma coisa que não se encaixava, e fiquei bolado desde então. Até que a ficha caiu. Você está diferente, paixão — trabalhando menos, sendo tão carinhosa com aqueles garotos —, por que disse que não? Ela sabia por quê, soubera desde o dia em que acontecera, mas será que devia contar a ele? Ah, por que não, que diferença poderia fazer? — Porque é tarde demais. — Como Oliver continuasse calado, ela completou: — Para nós. Digamos que ainda sofro do mesmo complexo de poder. Sempre sofri, não é mesmo? Oliver tentou assimilar essa estranha lógica. — É a sua última palavra? — É. — Tudo bem, paixão. Você é quem sabe. Ted e Joy estavam na videolocadora. — De Caso com o Acaso? — sugeriu Ted. — Não, olha só o título! — E que tal O Casamento do meu Melhor Amigo? — Só o nome já é procurar encrenca — observou Joy. Finalmente optaram por Pulp Fiction. — Boa escolha — aprovou Joy. — Não! Má escolha. Péssima escolha. Alguém é infiel! Uma Thurman?

— Tem toda razão — disse Ted, assustado. Fora por pouco. — Talvez a gente devesse pegar O Melhor dos Teletubbies e acabar logo com isso de uma vez. — Não, esse aqui é o ideal! — Joy deu um gritinho de prazer, pegando a caixa de O Exorcista. — Esse não vai aborrecer ninguém. — Acho bom — disse Ted. — Eu não agüentaria uma reprise daquele último episódio. Joy era obrigada a admitir que fora um erro fazer Ashling assistir a Perdas e Danos. Embora já tivessem se passado dois meses desde que ela descobrira que Marcus a estava traindo com Clodagh, personagens tendo casos ainda não eram exatamente a sua praia. De volta ao apartamento de Ashling, os três se reuniram diante da tevê, cercados por garrafas de vinho, saca-rolhas, sacos de pipocas e barras de chocolate quilométricas. Para alívio geral, Ashling pareceu ficar totalmente absorta no filme — até a campainha tocar. Imediatamente seu rosto se acendeu de expectativa involuntária: ainda tinha a esperança de que Marcus desse o ar de sua tardia graça. — Deixa que eu vou. — Pôs-se de pé e foi abrir a porta. Para sua surpresa, a pessoa que entrou foi Dylan. Ela almoçara com ele uma vez por semana nos últimos dois meses, mas era a primeira vez que ele aparecia em sua casa. — Espero que você não se importe por eu aparecer sem avisar — Ele sorriu, mas algo no volume de sua voz e na sonolência de seu olhar fez com que ela compreendesse que estava bêbado. — Olha só para você, garota maravilhosa. — Passou a mão pelo cabelo de Ashling, deixando uma trilha de calor que ia do cocuruto ao cangote. — Bonito — disse, com voz arrastada. — Obrigada. Entra, Joy e Ted estão aqui. Ele se serviu um copo de vinho e Ashling observou o fascínio que exercia sobre Joy, sem fazer o menor esforço. Sua aura de dissipação e abandono não o tornava menos atraente, apenas diferente. Quando o vídeo terminou, Dylan zapeou os canais até encontrar algo de seu agrado. — Que espetáculo! Casablanca.

— Não vou assistir a essa merda romântica — disse Ashling, firme, e Dylan riu. — Ela não é uma graça? — disse, carinhoso. — Tá, mas não adianta, não vou assistir. — Uma graça — repetiu ele. Sempre fora pródigo nos elogios, mas Ashling tinha consciência de que a atmosfera dessa noite estava levemente carregada. — Não adianta, não vou assistir. — A questão é que o controle remoto está comigo! — Essa sopa vai acabar, meu amigo. Na breve escaramuça que se seguiu pela posse do controle remoto, terminaram por entornar uma garrafa de vinho tinto. — Desculpe. Vou pegar um pano — disse Dylan. Mas, pouco depois, veio sua voz da cozinha: — Não estou vendo nenhum. — Tem umas toalhas velhas no banheiro. — Ashling saiu da sala e já estava vasculhando o armário do banheiro, quando a voz de Dylan bem atrás dela lhe deu um susto. Sobressaltada, ela se virou. — Ashling — chamou ele. — O que é? — Mas já sabia que vinha coisa por aí. O olhar dele, o tom de voz, a extrema proximidade, tudo estava carregado de tensão sexual. — Doce Ashling — disse ele, quase num sussurro. — Eu devia ter ficado com você. — Suas palavras não tinham o menor vestígio do jeito paternal com que ele a tratara nos últimos onze anos. Ele encostou o indicador na sua bochecha. Eu poderia ter Dylan agora, ela compreendeu. Onze anos depois, ele poderia ser meu. E por que não? Ele a fazia sentir-se linda. Sempre fizera, mesmo enquanto era casado com sua então melhor amiga. E ela o achava maravilhoso. Sentia uma enorme curiosidade por ele, sobre como seria dormir com ele. Um apetite que fora aberto muito tempo atrás e nunca satisfeito. Fez algumas ponderações. Depilara as pernas. Estava magra de infelicidade. Adoraria ter um pouco de carinho. E um sexozinho amigo também seria bem-vindo. De repente, sem mais nem menos, perdeu o interesse. — Vai lá secar o chão — disse, enfiando uma toalha nas mãos dele.

Os olhos por trás dos macios cabelos louros se encheram de surpresa, mas ele fez o que lhe era ordenado. Depois sentou-se ao lado de Joy e passou o tempo todo lhe dizendo o que iria acontecer em seguida no filme. — Cala essa boca — dizia ela, aos risos. Quando o filme acabou, voltou-se para ele e disse: — Estou indo para casa me deitar. Se quiser me acompanhar, é muito bem-vindo. Os olhos cor de mel dele relancearam Joy e, com um sorriso um pouco cerimonioso, ele se levantou: — Com todo o prazer. Ted e Ashling assistiram à cena, incrédulos. Ashling quase chegou a pensar que fosse alguma piada. Mas, como eles não tornaram a aparecer à porta depois de alguns minutos, compreendeu que não era. Na manhã seguinte, Ashling ligou para Joy no seu trabalho. — Você dormiu com Dylan? — Achou que fizera a pergunta em voz baixa, mas todas as cabeças na redação imediatamente se levantaram. — Pode crer! — O que eu quero saber é se você transou com ele. — É claro que transei! Ashling engoliu com força. — E que tal foi? — Genial. Ele é maravilho. Azedo feito um limão em relação às mulheres, e não vai me ligar nem em mil anos... — Joy bruscamente mudou de discurso. Parecia horrorizada. — Meu Deus do Céu, você não liga, não é? Não pensei nem por um segundo... Achei que você estava louca por Marcus, e, como odeio Clodagh de morte... — Não me importo — afirmou Ashling. Ou me importo? Ou se importa?, perguntou-se a maior parte da redação. Para ser franca, acho que não. No começo de dezembro, Lisa e Oliver encontraram um comprador para seu apartamento em Londres. Como a mobília estava incluída na venda, Lisa só teve que retirar seus objetos de uso pessoal. Oliver estava viajando a trabalho no fim de semana que ela escolheu para se desincumbir da tarefa. Poderia ter esperado até que ele voltasse, mas decidira não fazê-lo. Precisava tirá-lo da cabeça.

Fazer uma triagem dos restos de toda uma vida em comum foi um processo doloroso. Mas seus pais vieram de Hemel Hempstead para ajudá-la. Na realidade, isso não lhe valeu de grande coisa, mas a atmosfera de carinho e atabalhoamento em que a envolveram fez com que ela se sentisse melhor. Quando terminaram, puseram Lisa e seus pertences na Rover de vinte e um anos e tocaram para Hemel. Aquela noite, como luxo especial, reservaram uma mesa no Harvester local. Metade de Lisa teria preferido morrer a ir lá, mas a outra metade não se importou nem um pouco. Quando Ashling chegou ao bar, Ted já estava lá. — Oi, Ashling. Ele estava lá. Ela estava lá. Não pareciam loucos um pelo outro. — Ted estivera num show humorístico na noite anterior e, como Ashling sempre perguntava por Marcus e Clodagh, resolvera poupar sua dignidade fornecendo-lhe um boletim de notícias. — Ele contou umas piadas novas sobre crianças. Acho que está de caso com Clodagh só para conseguir material — mentiu. E a mentira era tão deslavada, que Ashling ficou profundamente comovida. — E, pelo visto — Ted se entusiasmou com o assunto, pois Ashling parecia estar gostando do que ouvia —, acho que Dylan quase não está dando dinheiro para Clodagh, porque Marcus contou uma piada sobre o fato de o ex-marido da namorada... desculpe. — Calou-se, esperando que Ashling estremecesse primeiro. — ... sobre o fato de o ex-marido da namorada estar dando a ela uma mesada que é uma verdadeira cadeirada. Joy chegou. — Do que é que estamos falando? — Do show de Marcus ontem à noite. — Que babaca. — Joy esticou o lábio inferior e fez uma vozinha boba: — “Quero dedicar este número a Craig e Molly.” Pode ser mais boçal do que isso? O rosto de Ashling adquiriu uma tonalidade verde-clara. — Ele agora está dedicando números aos filhos dela? Confusa, Joy olhou para Ted. — Pensei que você estivesse contando... ah, que merda! Não dou uma dentro. Ashling voltou a se sentir tão humilhada quanto antes. — Famílias felizes — comentou, tentando parecer irônica.

— Isso não pode durar — disse Joy, categórica. — Não, eles vão ficar juntos — afirmou Ashling. — Os homens sempre ficam com Clodagh. Então, Joy lhe fez uma pergunta inusitada: — Você sente falta de Marcus? Ashling refletiu. Sentia várias emoções, todas desagradáveis, mas, entre elas, não mais se encontrava a ânsia de estar com Marcus. Raiva, sim. Tristeza, humilhação, o vazio causado pela perda. Mas não sentia falta dele, na acepção da palavra, de sua companhia, de sua presença física, como sentira no passado. — É claro que eu gosto dos seus filhos! — insistia Marcus. — Não dediquei meu número aos dois ontem à noite? — Bom, então por que não lê uma historinha para a Molly pegar no sono? — Porque sou um homem ocupado. Tenho dois empregos em tempo integral. — Mas eu estou exausta. É impossível dar conta de duas crianças totalmente sozinha. — Mas você dizia que Dylan nunca estava aqui, que estava sempre trabalhando... — Ele não estava sempre trabalhando — disse Clodagh, azeda. — Ele estava quase sempre aqui. Entregou a Marcus um exemplar ilustrado de Chapeuzinho Vermelho, que ele se recusou a pegar. — Desculpe, mas tenho que dedicar uma hora de trabalho ao meu romance. Ela lhe lançou um olhar sério: — Meu casamento acabou por sua causa. — E meu namoro com Ashling acabou por sua causa. Estamos quites. Clodagh ficou furiosa. Nem mesmo acreditava que Marcus tivesse gostado de Ashling tanto assim, mas, se ele insistia que sim, o que ela podia fazer?

E então, pegando todo mundo de surpresa, como fazia todos os anos, o Natal chegou. Todos, sem exceção, passaram a maior parte do mês molhando o bico e, no dia vinte e três de dezembro, a redação da Garota fechou por onze dias. “Licença de misericórdia”, como Kelvin chamou o intervalo. Phelim veio da Austrália e manifestou uma certa surpresa quando Ashling se recusou a dormir com ele. Não obstante, aceitou sua negativa sem ressentimentos, e ainda lhe deu a flauta de bambu aborígine que comprara para ela. Ashling foi passar o Natal com seus pais — um acontecimento digno de registro, já que o passara em Dublin nos últimos cinco anos, com a família de Phelim. O irmão de Ashling, Owen, veio da bacia Amazônica e deu à sua mãe o melhor presente de Natal que ela poderia desejar: não estava usando um prato no lábio inferior A irmã de Ashling, Janet, veio da Califórnia. Era mais alta, mais magra e mais loura do que Ashling se lembrava. Consumia frutas frescas em quantidade e se recusava a ir a pé aonde quer que fosse. Clodagh passou o dia de Natal sozinha. Dylan levou as crianças para a casa de seus pais, e ela boicotou os dela, pois disseram que Marcus não poderia acompanhá-la. Mas, na última hora, Marcus decidiu passar o dia com os pais dele. Lisa foi para Hemel e ficou encantada com a euforia de seus pais ao vê-la. Assinara e pusera no correio os documentos finais de seu divórcio algumas semanas antes do Natal, e ainda se sentia ridiculamente frágil. A próxima parte do processo seria a sentença provisória. Na noite em que Ashling voltara de Cork, descobrira que tinha um novo vizinho — um rapaz louro, magro mas musculoso, encolhido diante de sua portaria, atacando um sanduíche e uma lata de Budweiser. — Oi — disse ela. — Meu nome é Ashling. — O meu é George. — Ele notou que ela olhava para a lata de cerveja. — É véspera de Ano-Novo — defendeu-se. — Estou tomando um traguinho como todo mundo. — Tudo bem — disse ela, mansa.

— Só porque moro na rua, isso não quer dizer que seja um pé-de-cana — explicou ele, um pouco mais brando. — Só bebo socialmente. Ela lhe deu uma libra e entrou no prédio, onde o desespero ameaçou subjugá-la. O problema dos sem-teto era um monstro de muitas cabeças — corta-se uma e nascem duas no seu lugar. Boo fora salvo, tinha um emprego, um apartamento e até mesmo uma namorada, mas fazia parte de uma minoria de sorte: era inteligente, apresentável e ainda jovem o bastante para se adaptar à vida em sociedade. Havia muitos outros que nada tinham, e nunca viriam a ter — massacrados pela vida que os atirara às ruas, e ainda mais massacrados pela fome, o desespero, o medo, o tédio e o ódio dos outros. Sua campainha tocou. Era Ted, exibindo com orgulho uma moça baixinha e bem-arrumada. — Você voltou! — disse ele, virando-se em seguida para indicar a moça ao seu lado: — Esta é Sinéad. Sinéad estendeu a mão pequena e delicada para Ashling. — Muito prazer — cumprimentou-a, em tom cerimonioso e seguro de si. — Entrem. — Ashling estava surpresa. Sinéad não parecia uma típica freqüentadora de camas de humoristas. Ted entrou, todo prosa, logo tratando de alisar as almofadas do sofá antes de convidar galantemente Sinéad a sentar-se. Ela se acomodou com toda a fineza no sofá, os joelhos e tornozelos alinhados, e aceitou o copo de vinho que Ashling lhe ofereceu. Ted não tirava os olhos dela um segundo, com ar embevecido. — Você, hum, conheceu Ted num show? — Ashling tentou puxar conversa, enquanto vasculhava o chão atrás do saca-rolhas. Tinha certeza de que fora ali que o deixara, na véspera de sua viagem a Cork... — Num show? — Ela parecia nunca ter ouvido a palavra na vida. — Num show humorístico. — Ah, não! — Sinéad piscou os olhos. Ashling ficou sabendo que os dois eram colegas de trabalho, mourejavam ombro a ombro no Ministério da Agricultura. Na festa de Natal da repartição, quando dançavam, bêbados, ao som de “Rock Around the Clock”, seus olhos se encontraram e foi amor à primeira vista.

Ashling nutria a estranha suspeita de que o advento de Sinéad assinalava o fim da carreira humorística de Ted. Mas, como ele só se tornara humorista para arranjar uma namorada, talvez não estivesse se importando. Chateado é que não parecia mesmo. — Você quer sair de novo hoje à noite? — perguntou Clodagh. — Mas você saiu ontem, anteontem e na quarta! Marcus explicou com toda a paciência: — Tenho que ficar de olho nos novos humoristas que aparecem. É a minha carreira. Preciso ir. — O que é mais importante para você? Eu ou a sua carreira? — Os dois são importantes. Resposta errada. — Bom, não vou ter como arranjar uma babá assim, em cima da hora. — Tudo bem. E com essa Clodagh pensou que a questão estivesse encerrada. Até às nove da noite, quando Marcus se levantou e disse: — Já vou indo. O show vai acabar tarde, de modo que vou para casa, em vez de voltar para cá. Clodagh ficou atônita. — Você vai? — Eu disse que ia. — Não. Quando eu disse que não tinha como arranjar uma babá, você disse “Tudo bem”. Achei que você queria dizer que não iria sem mim. — Não, eu quis dizer que iria sem você. — Ashling, tenho uma coisa para te contar — disse Ted. — O que é? — Era uma noite gelada de janeiro e Ted e Joy haviam aparecido em caráter de delegação, com gelo nas lapelas dos sobretudos. — É melhor se sentar — avisou Joy. — Eu estou sentada. — Ashling levantou a bunda e soltou-a com força no sofá. — Acho bom. Não sei se você vai ficar mal com a notícia — disse Ted. — O que foi? — Conhece Marcus Valentine? — Talvez já tenha ouvido falar nele. Dããããã, Ted! Por favor. — Tá, desculpe. Bom, eu vi Marcus. Num bar. Com uma garota. Que não era Clodagh. Ficaram em silêncio e, por fim, Ashling disse: — E daí? Ele tem todo o direito de ser visto na companhia de outra mulher. — Não discordo. Não discordo. Mas será que também tem todo o direito de enfiar a língua na garganta dela?

Uma estranha expressão iluminou o rosto de Ashling. Choque — e alguma outra emoção. Joy a relanceou, ansiosa. — Você conhece a garota — prosseguiu Ted. — É Suzie. Eu estava conversando com ela naquela festa em Rathmines, e depois vim embora com você, lembra? Ashling assentiu. Lembrava-se da ruivinha bonita, bem-arrumada. Ted dissera que ela dormia com todos os humoristas. — Então, eu, hum, resolvi fazer umas perguntas por aí — continuou ele. — E...? — E descobri que ele anda enfiando nela mais do que a língua, se é que você me entende. — Ah, meu bom Deus. — Para um filho-da-mãe sardento, ele faz mesmo um baita sucesso com as garotas — observou Joy, cáustica. — Ah, meu bom Deus — repetiu Ashling. — Não vai ficar de coração mole e começar a ter peninha da Clodagh — implorou Joy. — Por favor, não vai sair correndo para a casa da princesa e passar a mão na cabeça dela! — Deixa de ser burra, Joy — disse Ashling. — Eu estou de alma lavada! — Estou indo aí para apanhar minhas coisas — disse Marcus. — Vão estar à sua espera — confirmou Clodagh, esquentada. Fumegando, saiu às cegas pela casa afora, jogando com estrépito seus objetos de uso pessoal num saco preto de lixo. Não conseguia acreditar em como tudo desmoronara tão depressa. Haviam passado da obsessão mútua para o quase-ódio em questão de semanas, rolando ladeira abaixo desde o momento em que o relacionamento saíra da esfera do sexo para entrar na da vida real. Ela pensara que o amava, mas se enganara. Ele era um filho-da-mãe chato. O mais chato de todos os filhos-da-mãe chatos. Só queria falar de seus números, de como nenhum outro humorista chegava aos seus pés. E precisava de tanta atenção. Ela achava ridícula a maneira como ele se ressentia toda vez que ela dava atenção a Craig e Molly. À vezes, era como se tivesse três filhos.

Para não falar na porcaria de romance que começara a escrever. Um lixo. Incrivelmente deprimente. Ele levava a mal qualquer crítica, até mesmo as sugestões construtivas. Bastara ela dizer que talvez a heroína devesse abrir seu próprio negócio, fazendo doces ou cerâmica, para ele ficar louco da vida. E, nos últimos tempos, dera para querer sair toda noite. Simplesmente se recusava a compreender que ela não podia deixar os filhos toda hora. Era difícil arranjar uma babá. Era ainda mais difícil pagar uma babá, com o que Dylan lhe dava. E, principalmente, ela não queria sair toda noite. Sentia falta de Craig e Molly, quando se afastava deles. Era gostoso ficar em casa. Não havia nenhuma vergonha em assistir a Coronation Street, tomando um copo de vinho. E o sexo. Ela não queria mais transar três vezes por noite. Nem ele devia esperar que quisesse. Ninguém quer, depois de passada a loucura inicial da paixão. Mas ele continuava muito a fim, e era exaustivo. Mas tudo isso era café pequeno perto da bomba que ele acabara de soltar — a de que “conhecera outra pessoa”. Ela estava se sentindo furiosa e profundamente humilhada. Ainda mais porque, em algum canto remoto de seu inconsciente, sempre suspeitara que estava prestando um favor a Marcus, que ele tirara a sorte grande no dia em que ela saíra de um casamento sufocante direto para seus braços. Estava desesperada por ter levado um fora. Era algo que não acontecia desde que Greg, o americano, perdera todo o interesse por ela apenas um mês antes de voltar para os Estados Unidos. Estava enfiando a última cueca no saco quando a campainha tocou. Dirigiu-se com passos decididos para fora, abriu a porta e enfiou o saco nas mãos de Marcus: — Toma. — Meu romance está aí? — Ah, sim, Urubu em dia de chuva está aí, sim, pode crer. Um saco de lixo é o lugar certo para ele — disse, numa voz baixa que de baixa não tinha nada.

A expressão furibunda dele indicou que ouvira o comentário, e já se preparava para retaliar. — Ah, a propósito — disse por sobre o ombro, ao se virar para ir embora —, ela tem vinte e dois anos e nunca teve filhos. — A informação foi acompanhada de uma piscadela. Ele sabia que Clodagh era complexada em relação a suas estrias. Escaldada, ela entrou em casa pisando duro. Quando o primeiro jato de ódio finalmente passou, ela tentou se convencer a olhar para o lado positivo da questão. Pelo menos estava livre de Marcus, de suas piadas, de seu romance e de seus pitis — já era alguma coisa. E foi então que se deu conta de que sua situação estava longe de ser das melhores. Não tinha marido, não tinha namorado... Que merda.

O fã-clube de Jack Devine estava a toda. Robbie, Shauna Griffin e a Sra. Morley se aglomeravam, competindo para ver quem enchia mais sua bola. Jack atravessara a redação há pouco, mais bem-arrumado do que de costume. Coisa que, segundo Trix, não era nada difícil. — Será — sempre se perguntava — que alguém já chegou para ele na rua e lhe deu dez pence, dizendo para ele ir tomar uma xícara de chá? Mas, nessa manhã, ele estava todo bonitinho, o terno escuro passado a ferro, a camisa de algodão branca como a neve. Até o cabelo desgrenhado não estava nos seus piores dias — às vezes ele vinha trabalhar só com os lados do cabelo penteados, enquanto a parte de trás continuava um verdadeiro ninho de ratos. Ele se produzira ao máximo, não restava a menor dúvida. Mas, quando se deteve para apanhar seus recados com a Sra. Morley, a camisa se escancarou no meio do peito, onde faltava um botão. Isso inflamou ainda mais o fã-clube. — Um homem atormentado que pode salvar o mundo, mas precisa de uma boa mulher para tomar conta dele — declarou Shauna Honey Monster. Pelo visto, andara se excedendo de novo nos romances água-com-açúcar. — É, ele tem um charme Boêmio Chic — concluiu Robbie. — Ah, sim, com certeza — concordou a Sra. Morley, que não saberia dizer a diferença entre “boêmio chic” e “bolchevique”. — Você não preferiria transar com ele a olhar para ele, Ashling? — perguntou Robbie. Seguiu-se uma sessão frenética de mímica labial: Não pergunta isso para ela. Mas era tarde demais. A obediente Ashling já se imaginava transando com Jack Devine, e diversas emoções atravessaram seu rosto a galope, nenhuma das quais serviu para tranqüilizar seus ansiosos colegas. — Ela teve uma desilusão amorosa terrível — cochichou a Sra. Morley. — Eu diria que perdeu o interesse pelos homens.

— Pra que fui abrir minha boquinha! — exclamou Robbie. — Sinto um momento Valium a caminho. — A qualquer pretexto, Robbie tomava um Valium, um Librium ou um betabloqueador — para seus “nervos”. — Quer um? — perguntou à Sra. Morley. — Já tomei três hoje. Os olhos dela brilharam. — Acho que mal não pode fazer. E passou o resto do dia trocando as pernas de um lado para o outro feito um zumbi, esbarrando nas mesas e prendendo os dedos no teclado do computador. Já, Robbie, desenvolvera tal tolerância aos ingredientes de seu coquetel, que estava acima de todo e qualquer efeito colateral. Ashling estava quase tão aparvalhada quanto a Sra. Morley. A pergunta de Robbie a deixara fora do ar, e ela não conseguia parar de pensar em Jack Devine. Seu coração se inflava como um balão, ao que ela pensava em seu gênio forte e sua bondade, suas camisas amassadas e sua inteligência rápida, seus acordos intransigentes e seu coração de manteiga, o alto cargo que ocupava e o botão faltando em sua camisa. Ele lavara seu cabelo mesmo estando sem tempo. Tratara Boo, um detrito humano, como a pessoa que era. Recusara-se a despedir Shauna Griffin, quando ela, por engano, acrescentara um zero a uma receita da Tricô Gaélico, levando as leitoras a tricotarem xales de batizado de sete metros de comprimento, em vez de três. Robbie tem razão, deu-se conta. Prefiro transar com Jack Devine a olhar para ele. — Ashling! — Lisa interrompeu seu devaneio, irritada. — Pela quinta vez, essa introdução está comprida demais! Que é que há com você? Agora deu para tomar Valium também? Ambas automaticamente olharam para a Sra. Morley, que se escarrapachava numa cadeira, sonhadora, pintando a unha do polegar com líquido corretivo. — Não. Lisa suspirou. Deveria ser mais branda. Ashling já não se comportava assim há séculos, desde as primeiras semanas depois que Marcus a deixara. Talvez tivesse apenas descoberto alguma coisa desagradável — que Clodagh estava grávida, por exemplo.

— Aconteceu alguma coisa com Marcus e a amiguinha? Ashling se obrigou a tirar Jack Devine da cabeça e pensar em outra coisa. — Para dizer a verdade, aconteceu. Ele agora está de caso com outra mulher. — Isso não tem nada de surpreendente — disse Lisa, desdenhosa. — Você conhece esse tipo de homem. Lisa tinha o dom de fazer com que Ashling se sentisse muito gauche. — Que tipo de homem? — Você sabe... nenhum mau-caráter, mas inseguro. Viciado em ser amado, mas apenas medianamente bonito. — Nossa, isso é que era ser gentil! — De uma hora para a outra, as mulheres passam a gostar dele porque ficou famoso, e aí ele se comporta como uma criança solta numa loja de doces. Mas essas sábias palavras de pouco valeram para deixar Ashling esperta. Se alguma propriedade tiveram, foi a de surtir o efeito oposto. Parecendo se alienar ainda mais do mundo, ela murmurou “Ah, meu bom Deus”, com ar sobressaltado. Então, seu rosto se desanuviou. — As revelações são como os ônibus, não são? — perguntou, maravilhada. — Não passa nenhuma durante horas e, de repente, passam três de uma vez. Lisa abafou uma gargalhada e se afastou. Ashling continuou em sua cadeira, remexendo-se sem parar até a hora de sair do trabalho para se encontrar com Joy. Queria dividir com alguém suas descobertas alucinantes. Bem, pelo menos uma delas. A outra teria de esperar até que ela a decifrasse. No minuto em que Joy chegou ao bar do Hotel Morrison, foi metralhada por uma rajada de palavras de Ashling: — ...mesmo que Marcus não tivesse conhecido Clodagh, ainda assim teria dado o fora, mais cedo ou mais tarde. Ele é inseguro e carente demais, eu devia ter enxergado os sinais. — Ah. E quais foram? — Joy retirava seu casaco, esforçando-se ao máximo por se concentrar no que Ashling dizia.

— Eu sabia que ele tinha dado um bilhete Bellez-moi para outra mulher. Me diz, que tipo de homem sai por aí distribuindo seu número de telefone? Se ele está interessado em você, ele pede o seu número, não é mesmo? Em vez de ficar esperando uma... uma... como direi? Uma reação positiva, dando seu número para ver quem morde a isca. — Mais alguma coisa? — Hum-hum. Dei a ele meu número duas vezes e ele não ligou da primeira. Agora está claro que ele estava jogando, tentando descobrir se eu gostava dele o bastante para lhe dar meu número. Ele não estava realmente interessado em mim — estava interessado no que eu pensava dele. Foi só quando fui ao seu show que ele se dignou de me telefonar. “E quando eu não quis dormir com ele na primeira noite? Armou uma tromba! Parecia um garotinho mimado. E todo aquele papo de ‘Eu sou o melhor? Quem é o mais engraçado de todos?’. E quer saber de uma coisa, Joy? Eu também não sou completamente inocente nessa história. Até certo ponto, a razão pela qual saí com ele foi o fato de ele ser famoso. Ou seja, se o tiro saiu pela culatra, a culpa é toda minha. — Mas você fala como se tivesse sido um desastre total — objetou Joy. — Vocês dois se davam muito bem. Sei que você gostava dele, e dava para ver o quanto ele gostava de você. — Ele gostava de mim, sim — admitiu Ashling. — Sei disso. Mas gostava mais de si mesmo. E eu gostava dele, mas, em parte, pelas razões erradas. — Em voz baixa, confessou: — Clodagh disse que eu era uma vítima. — Filha-da-puta! — Não, eu sou, sim. Ou melhor, era — corrigiu-se. — Não sou mais. — Mas só porque a culpa foi da insegurança de Marcus, isso não quer dizer que você vai voltar a ser amiga dela, quer? — perguntou Joy, ansiosa. — Você ainda odeia ela, não odeia? Ashling teve de permitir que uma curta e intensa pontada de mágoa pela perda da amizade atingisse seu paroxismo e passasse, antes de conseguir dar de ombros e dizer: — É claro.

No Dia dos Namorados, um envelope grande e vistoso deslizou pela abertura da caixa de correio e foi cair no chão do vestíbulo de Lisa. Um cartão? De quem? Com o pulso disparado de excitação, ela rasgou o envelope, hesitou... Ah. Era a notificação da sentença provisória. Sentiu vontade de rir, mas não conseguiu. A velocidade com que fora despachada pelo tribunal para seu advogado apanhou-a totalmente de surpresa. Só demorara dois meses e, em seu inconsciente, ela estava convicta de que seriam pelo menos três. Em pânico, percebeu com toda a clareza que ela e Oliver estavam na reta final. O caminho estava desimpedido e, do fundo da pista, avistou o fim de seu casamento galopando em sua direção. Só faltavam seis curtas semanas para a sentença definitiva sair. Só então se sentiria melhor. Uma pedra seria posta de uma vez por todas sobre o passado. Naquela noite, saiu com Dylan. Fazia dois meses que ele a vinha convidando para sair — toda vez que passava na redação para ver Ashling —, e ela achou que isso poderia animá-la. Ainda mais porque não ouvira uma sílaba sequer de Oliver. Dylan a apanhou após o expediente e a levou de carro até um bar nas montanhas de Dublin, de onde se viam as luzes da cidade abaixo, cintilando como jóias. Ela lhe deu nota máxima pela locação. Deu-lhe sete pelo cabelo bem cortado e oito pela beleza. E, tecnicamente falando, ele era encantador e pródigo em elogios observadores, de modo que, nesse quesito, ela achou que ele merecia um sete ou um oito. Mas não conseguiu se entusiasmar por ele, achou-o insincero e frio e, por baixo de seu discurso galante, detectou um cinismo que dava de dez no dela. Ou talvez o problema fosse com ela. Não conseguia se livrar dos restos da sensação de perda que a envolvera durante todo o dia.

Ela bebeu muito, mas não conseguiu se embriagar, e o encontro, longe de levantar seu moral, só serviu para deprimi-la. E, quando Dylan deixou bastante claro o quanto queria dormir com ela, isso a deprimiu mais ainda. Ela murmurou algo sobre não ser “esse tipo de mulher”. — Ah, é mesmo? — Dylan curvou os lábios, a um tempo lamentando e desprezando seu argumento, e, de repente, ela desejou estar em casa. Em silêncio, Dylan a levou de volta para a cidade, seu carro em alta velocidade cantando pneu pelas estradas estreitas da montanha. Diante de casa, ela lhe agradeceu educadamente, mas não conseguiu sair do carro em tempo de evitar uma prensa. Já no refúgio de sua cozinha, comendo um saco de jujubas (estava fazendo a Dieta do J e encontrara uma brecha), perguntou-se onde o mundo iria parar, quando até uma noitada já não exercia o menor poder de atração sobre ela. Clodagh cruzou as pernas e se pôs a bater com o pé no chão, agitada. Dylan fora passar a tarde fora com as crianças, estava para chegar a qualquer momento e, embora ainda não soubesse disso, ele e Clodagh iriam conversar. Toda vez que se encontravam, tratavam-se com civilidade, mas antipatia — ele se mostrava amargo e ela, defensiva. Mas tudo isso estava prestes a mudar. Como ela pudera ter chegado a achar que daria certo com Marcus? Dylan, sim, era maravilhoso: paciente, amável, generoso, dedicado, trabalhador, muito mais bonito. Ela queria sua antiga vida de volta. Mas esperava uma certa dose de rancor e resistência da parte de Dylan, e não estava muito animada ante a perspectiva de ter que se humilhar para reconquistá-lo. Uma algaravia de vozes infantis na porta da frente indicou que eles estavam de volta. Ela se apressou para abrir a porta, e deu a Dylan um sorriso afetuoso, que teve a mais gélida acolhida possível.

— Posso ter uma conversa rápida com você? — Ela forçou sua voz a permanecer jovial. Quando ele deu de ombros, soltando um “Tudo bem” frio como uma pedra de gelo, ela pôs Craig e Molly para assistirem a um vídeo, fechou a porta e foi para a cozinha, onde Dylan a estava esperando. Engoliu em seco. — Dylan, nesses últimos meses... eu estava errada, me perdoe de coração. Ainda te amo e quero que você... — Com a voz entrecortada, concluiu: — ...volte para mim. Observou seu rosto, à espera de que a luz dourada da felicidade o iluminasse, apagando todo e qualquer vestígio da dureza que ali fizera morada desde que tudo começara. Mas ele se limitou a fitá-la, incrédulo. — Sei que vai demorar algum tempo até as coisas voltarem ao normal e você confiar em mim outra vez, mas podemos fazer sessões de aconselhamento conjugal e o que mais for necessário — prometeu ela. — Eu estava fora de mim quando fiz o que fiz, mas podemos salvar nosso casamento... — Como ele não dissesse nada, ela acrescentou: — ...não podemos? Por fim, ele falou, e disse uma única palavra: — Não. — Não... o quê? — Não, não vou voltar. Ela não previra isso. Em nenhuma de suas fantasias. — Mas por quê? — Não acreditava nele. — Porque não quero e ponto final. — Mas você ficou arrasado com o que eu... hum... fiz. — É, pensei que fosse morrer — concordou, pensativo. — Mas acho que já devo ter superado, porque, agora que paro para pensar no assunto, percebo que não quero continuar casado com você. Ela começou a tremer. Isso não estava acontecendo. — E as crianças? A menção a elas o tocou. — Eu amo meus filhos. Ótimo. — Mas não vou voltar para você por causa deles. Não posso. Ela estava perdendo. Todo o poder que pensara possuir, revelava-se uma mera ilusão. Foi quando lhe ocorreu uma idéia tão absurda que chegava a ser ridícula. — Você... você não... conheceu outra pessoa, conheceu? Ele soltou uma gargalhada antipática. Fui eu, pensou ela, subitamente envergonhada. Fui eu que fiz Dylan ficar assim.

— Conheci várias pessoas — disse ele. — Então... você está dizendo... que dormiu com outras mulheres? — Bom, dormir, propriamente, não. Ela levou um choque brutal. Sentiu-se traída, enciumada, enganada. E o tom de voz dele, malicioso e provocante, dava margem a uma suspeita horrível. — Eu conheço alguma delas? Ele deu um sorriso cruel: — Conhece. Ela levou outro choque. — Quem? — Que pergunta para se fazer a um cavalheiro — debochou ele. — Você disse que esperaria por mim — disse ela, em voz baixa. — Disse? Bom, então eu menti. Quando Lisa recebeu ofertas de emprego das maiores rivais da Randolph Media, começou a pensar em seu futuro. Durante seus dez meses na Garota, conseguira fazer com que ela alcançasse a posição pretendida no mercado. Era hora de ir embora. Já sabia que voltaria para Londres — era seu lugar, e ela queria ficar perto dos pais. Mas, quando estudou suas opções, deu-se conta de que não estava bem certa se tinha estômago para continuar dirigindo uma revista mensal de alto nível. Viver subindo num pau-de-sebo, humilhando os outros e recebendo o crédito por seu trabalho não mais a atraía como no passado. Nem a impiedosa rivalidade entre as revistas. Ou as encarniçadas disputas intestinas entre os vários escalões de uma mesma publicação. No passado, um ambiente competitivo era algo que a excitava, até mesmo estimulava. Mas não agora, e, ao tomar consciência disso, experimentou uma sensação de pânico — será que se tornara alguma débil, alguma incapaz, alguma perdedora? Mas não se sentia fraca. Só porque não desejava mais fazer algumas coisas, isso não significava que houvesse se tornado uma fraca, apenas uma pessoa diferente. Não muito diferente, obviamente, ela reconheceu, irônica: ainda adorava a frivolidade das revistas. As roupas, a maquiagem, os conselhos sobre a vida amorosa. Assim sendo, a decisão profissional óbvia a tomar era procurar um emprego de consultora.

Ashling percebeu que alguma coisa estranha estava acontecendo. No começo não se dera conta, limitando-se a supor que se tratasse de um episódio isolado. Seguido por outro episódio isolado. E mais outro. Mas em que momento um conjunto de episódios isolados deixa de ser um conjunto de episódios isolados para se transformar numa série? Tivera medo de dar excessiva importância ao que vinha acontecendo, pois desejava desesperadamente que significasse alguma coisa. Era Jack Devine. Ele a levara para tomar um drinque, a fim de comemorar sua “alta” do Prozac. Em seguida, uma semana depois, quando ficou claro que ela não iria enlouquecer de novo, ele a levara para tomar um drinque seguido de uma pizza para comemorar sua volta às aulas de salsa. Depois, levara-a para jantar no Cookes, e o motivo da comemoração foi a mudança de Boo para seu primeiro apartamento. Mas, quando Ashling sugeriu que o certo seria que Boo se juntasse a eles, Jack não pareceu nem um pouco entusiasmado com a idéia. — Vou sair para tomar umas cervejas com ele e os outros rapazes da emissora amanhã à noite — explicou. E agora se chegava até a mesa dela e sugeria que saíssem de novo. — O que a gente vai comemorar dessa vez? — perguntou ela, desconfiada. Ele hesitou. — Bom... o fato de ser quinta-feira? — Tá — disse ela. Porque era realmente uma quinta-feira. Mas estava confusa. Por que ele a estava tratando tão bem? Será que ainda sentia pena dela, por causa de todo o drama que vivera? Mas isso já era passado. E todos os outros motivos que poderiam justificar suas atenções eram grotescos. Foi Lisa quem abriu seus olhos. — Quer dizer então que você e Jack finalmente se acertaram? — perguntou, com o ar mais distraído que conseguiu fazer. Ainda não se sentia inteiramente zen em relação ao fato de ter sido rejeitada — era algo que não fazia seu gênero e, provavelmente, jamais faria. — Como disse? — Você e Jack. Você gosta dele, não gosta? — provocou-a. — Quero dizer, Gosta com G maiúsculo.

O rubor ardente que se espalhou pelo rosto de Ashling foi sua resposta. — E ele gosta de você — observou Lisa. — Não gosta, não. — Gosta, sim. — Não gosta, não. — Ah, deixa de ser ingênua, Ashling! — soltou Lisa, brusca. Ashling a encarou, alarmada, e, após alguns momentos em silêncio, disse, num fio de voz: — Tá, vou deixar. Aquela noite, no restaurante, Ashling tentou encarar a situação. Não sentia a menor vontade de fazê-lo, mas achava que era preciso. Para criar coragem, acendeu um cigarro, que Jack a observou fumar como se ela estivesse fazendo alguma coisa notável. Pára de me olhar assim. Não consigo pensar direito. — Jack, posso te perguntar uma coisa? Nós estamos aqui, jantando fora... Isto é um... — Calou-se. Talvez não devesse perguntar — e se estivesse errada? — Isto é um...? — ele incentivou, ansioso por lhe agradar. Ela soltou uma baforada com força. Foda-se, ou vai ou racha. — Isto é um encontro? Ele a analisou com toda a atenção. — Você quer que seja? Ela fingiu refletir um pouco. — Quero. — Então, é um encontro. Os olhos dos dois puseram-se a vagar pelo restaurante. — Quer ter outro? — perguntou Jack, com excessiva casualidade. — Quero. — Sábado à noite? Opa. Primeira saída num fim de semana. Progresso à vista. — Hum-hum. Novamente seus olhares se puseram a passear pelo salão, fixando-se em tudo, menos um no outro. Ashling ouviu sua própria voz mais uma vez: — Jack, posso te perguntar por que você quer ter um... você sabe... comigo? Ela levantou os olhos para ele no mesmo momento em que os dele voltavam para ela, e os dois olhares se chocaram com força. Ela ficou sem fôlego e sentiu uma onda de excitação, como se minúsculos peixinhos subcutâneos mordiscassem sua pele. — Porque, Ashling — disse ele, suave —, você está interferindo nos meus planos de dominar o mundo. Mas o que isso queria dizer? — Não consigo pensar em mais nada além de você — disse ele, com a máxima naturalidade. — Está afetando tudo.

A cabeça dela foi se enchendo, enchendo, enchendo de ar até ela não conseguir mais falar. Não foi capaz de encontrar uma única sílaba adequada. Já suspeitava que ele gostasse dela, mas agora que ele dizia com todas as letras... — Diz alguma coisa — pediu ele, ansioso. Ela murmurou: — Há quanto tempo você sente isso? — Pareço até o Dr. McDevitt falando. — Há séculos — ele suspirou. — Desde a noite do lançamento. — Tanto tempo assim? — Pois é. — Outro suspiro. — Mas faz meses! — Seis, para ser mais exato. — Todo esse tempo... — Sua memória retrocedeu seis meses, e a versão de Ashling para sua própria vida sofreu uma reavaliação radical. Será que ele estava falando sério? Bem, ele se declarara, mas ela estava com medo de acreditar nele. Ainda. — Não admira que você estivesse me tratando tão bem — ela conseguiu dizer. — Eu teria te tratado bem de um jeito ou de outro. — Teria? — Claro — ele sorriu, sem graça. — Bom, talvez. Provavelmente... E você? — Eu? — O que você, hum, sente? Nem então as palavras saíram, e o máximo que ela conseguiu dizer foi: — Vontade de me encontrar com você no sábado à noite. — Tudo bem — ele assentiu, lendo nas entrelinhas. — Que tal ir à minha casa? Você disse que me ensinaria a dançar. Ela nunca dissera tal coisa, mas deixou passar. — E eu ainda acho que você gostaria de sushi, se me desse um voto de confiança — acrescentou ele, melancólico. — Todos os votos de confiança que você quiser. No dia seguinte, quando Lisa entregou seu aviso de demissão e anunciou sua intenção de voltar a Londres dentro de um mês, Jack teve a educação de dizer: “Tivemos sorte de ter você durante todo esse tempo.” Mas Lisa foi perspicaz o bastante para perceber que ele não lhe prestara muita atenção. — E você poderia pôr Trix no meu lugar — sugeriu, com ar inocente. — Ah, sim, sem dúvida, vamos pensar no assun... Ah, ah, ah, ah, essa é boa! — riu, nervoso.

Numa casa situada em uma zona deserta de Ringsend, de frente para o mar, um homem e uma mulher se cumprimentaram nervosamente. Pelas janelas sem cortinas, o mar imóvel e negro viu-o conduzi-la até um aposento que ele passara horas a fio arrumando, naquele mesmo dia. O mar conhecia Jack Devine há muito tempo, e nunca vira frenesi igual. Ele bem que poderia ter aproveitado o embalo para passar a ferro a camisa de flanela e vestir um par de jeans que não estivesse rasgado. A mulher sentou-se num sofá que horas antes levara uma surra do aspirador de pó e deu um toque nos cabelos, em que fizera uma escova especialmente para a ocasião. Mudou ligeiramente de posição, sentindo a renda e o algodão novinhos em folha de sua lingerie a relembrá-la de sua presença. — Está com fome? — Jack perguntou, entregando-lhe um copo de vinho. — Muita — mentiu ela. Sobre uma pequena mesa, ele dispusera os pauzinhos, o molho de soja, o gengibre e os demais apetrechos e ingredientes, e então, com um capricho exasperante, pôs-se a preparar os rolinhos de arroz para Ashling. — Não é nada exótico demais — assegurou ele. — É sushi para... — ...iniciantes, já sei. — E ela se sentiu profundamente comovida, de uma maneira que teria sido impossível seis meses antes, quando sua alma estava com defeito. — E se eu não comesse raiz-forte com o primeiro? Para me iniciar mais devagar? — sugeriu ela. — Tudo bem. — Mas ela viu um raio de decepção cruzar o rosto dele, e se entristeceu. Ele estava se esforçando tanto. — Vou arriscar — emendou ela. — É melhor provar tudo junto, não é mesmo? Os sabores diferentes se complementam. — Só se tiver certeza — disse ele. — Não quero assustar você. Com toda a delicadeza, depositou uma fatia minúscula e transparente de gengibre no centro exato de um rolinho de arroz. Com os pauzinhos, corrigiu caprichosamente os cantos irregulares, e ela se maravilhou por ver que ele estava tendo todo esse trabalho só por causa dela.

— Está pronta? — perguntou ele, erguendo o sushi em sua direção. Por um momento, ela se sentiu em pânico. Não tinha certeza se estava pronta ou não. Sentindo-se como se abrisse mais do que a boca, permitiu que ele depositasse a trouxinha sobre sua língua. Ansioso, ele observou sua reação. — Gostoso — disse ela, por fim, com um sorriso. — Assustador, mas gostoso. — Como você. Experimentou um de pepino, um de tofu, um de caranguejo e um de abacate. Em seguida, resolveu jogar tudo para o alto e experimentar um de salmão. — Você é fantástica — elogiou-a Jack, como se ela tivesse acabado de fazer algo digno de nota, como passar no teste de direção. — Você é simplesmente maravilhosa. E, quando estiver pronta para a salsa... Ah, não. — Bom, vai ser meio difícil mostrar a você — ela se apressou a dizer—, porque é o homem quem guia. — Tenta assim mesmo — pediu ele. — Mas... — Só uma idéia por alto. — Ele abriu um sorriso. — Mas nós não temos a música certa. — Do que precisamos? Música cubana? — Ééééééé... — disse ela lentamente, dando-se conta do erro que cometera. Achara que não haveria a menor possibilidade de ele ter em casa um tipo de música tão pouco conhecido, mas se esquecera de que ele era homem. Agora iria ter que agüentar o rojão. — Tudo bem, esquece a música. O que está tocando no rádio serve. Muito bem, nós dois nos levantamos. Imediatamente ele se pôs de pé e ela se sentiu ameaçada por sua alta figura diante dela. — E ficamos de frente um para o outro. Voltaram-se um para o outro. Embora estivessem a três metros de distância. — Quem sabe um pouquinho mais perto — sugeriu Ashling. Ele deu um passo à frente, ela também. Por fim, ela chegou até ele, relutando em se aproximar demais. Mas estava perto o bastante para sentir seu cheiro.

— Você passa o seu braço por mim. Se quiser — ela se apressou em acrescentar. Ele passou o braço pelas costas dela e, por um breve momento, a mão dela pairou sobre o ombro dele, para finalmente abaixá-la. Podia sentir o calor do corpo dele varando a camisa. — E essa mão? — Ele exibiu a mão livre. — Segura a minha. — Tá. — Ele se comportava com tanta naturalidade que, quando sua mão grande e seca tomou a dela, ela decidiu relaxar. Estava lhe ensinando a dançar, era perfeitamente aceitável que encostassem um no outro. — Quando minha perna for para trás, a sua segue, entendeu? — Me mostra. — Tá. — Ela deslizou a perna para trás e a dele avançou em seguida. — Agora, ao contrário — disse Ashling. — Você recua a perna e eu sigo. E depois, de novo. Praticaram várias vezes, com velocidade e graça crescentes, até que, em meio à seqüência, Jack se deteve, Ashling foi em frente e, de súbito, viu-se comprimindo a coxa com força contra a dele. De um tranco, parou, mas sem se afastar. Estavam perfeitamente imóveis, petrificados em meio à dança. Com os olhos na altura do queixo dele, ela pensou, distraída: Ele precisa fazer a barba. Era importante pensar em coisas normais num momento desses. Porque, em outro canto de sua consciência, rolava outro tipo de pensamento. — Ashling, quer por favor olhar para mim? — A voz de Jack em seus cabelos era cheia de angústia. Não posso. Então, subitamente, pôde. Levantou o rosto, os olhos dele negros como o azeviche se abaixaram ardentes até os dela e suas bocas se encontraram num beijo sôfrego. Muitos meses de espera estavam contidos naquele beijo. Os primeiros acordes do desejo se fizeram ouvir dentro de Ashling. A excitação costumava crescer gradualmente dentro dela, mas, dessa vez, chegara como uma onda abrupta de desejo. Ele segurou o rosto dela entre as mãos, e os dois se beijaram até se machucarem. Ávidos, desesperados, insaciáveis. — Desculpe — sussurrou Jack.

— Tudo bem — ela murmurou. Pouco a pouco os beijos foram se acalmando, tornando-se mais sonhadores e suaves, até que por fim os lábios dele eram como plumas colando-se à boca tenra dela. A música ainda tocava no rádio e eles pareciam circular lentamente. O mar olhou e pensou com seus botões: Dançando agarradinho na sala, essa é inédita. Ashling deslizou as mãos por baixo da camisa de Jack e percorreu a deliciosa pele desconhecida de suas costas. Seus corpos estavam apertados com força, as palmas das mãos dele na bunda dela trazendo-a para ainda mais perto, e ela se sentia lânguida, flutuante, extática. Não saberia dizer quanto tempo ficaram assim. Podem ter sido dez minutos ou duas horas, mas, subitamente, Ashling tinha tirado a camisa de Jack. Bem, só precisou abrir um botão. — Sua abusada — disse ele. — Sua camisa e mais o par de botas. — Tá. — O coração dela palpitava. — O que isso quer dizer, exatamente? Que eu tiro minhas botas? — E a camisa. Já vi que você não joga pôquer. Vou ter que te ensinar as regras. Tira a camisa. — Ele já a ajudava a fazer isso. — Agora você diz: “Seu par de jeans”. — Seu par de jeans. — Ela engoliu em seco de nervosismo e excitação, enquanto Jack lentamente abria os botões da braguilha. Com as mãos trêmulas, ela esperou por um momento torturante antes de puxar o zíper de suas calças pretas e se contorcer para tirá-las. — Meias! — ordenou ele, mas os olhos não espelhavam o tom brincalhão de sua voz. Ela sentia um bolo na garganta e doía de desejo, ao que os dois se postavam um diante do outro, Jack de cueca branca, Ashling em seu novo body cavado (com efeito cintura). — Aprendeu as regras? — perguntou ele, com a voz embargada. Ela assentiu lentamente, fitando as pernas perfeitas dele, os braços esculturais, a área plana de pêlos negros em seu peito, que serpenteavam em direção ao estômago. — Acho que sim. E qual vai ser o cacife? — Que tal você?

Ela se surpreendeu rindo. Com ou sem cintura, sentia-se mais confiante do que jamais se sentira sem roupas. Ela estendeu a mão, tocando a grossa coluna de pêlos que se comprimia dentro da camisa de algodão branco, e foi recompensada com um frêmito dele. Então enfiou um dedo no cós de sua calça e o puxou. Suas intenções eram perfeitamente claras. Ele pôs a mão dentro da calça e libertou o pênis. Desfez-se da cueca, revelando os pêlos pubianos negros, enquanto segurava a ereção. Ashling ficou transfixada pela carga erótica do gesto. Já no andar de cima, sobre os lençóis recém-lavados da cama, ele despiu sua lingerie em câmera lenta. Puxava-a para baixo milímetro por milímetro e a retirava com gestos tão ínfimos e lânguidos, que ela teve vontade de gritar. Por fim, não restou mais nenhum obstáculo. — Tem certeza de que quer fazer isso? — perguntou Jack, ansioso. — O que você acha? — Ela deu um sorriso mole para ele. — Você poderia estar agindo por despeito. — Não estou agindo por despeito — disse ela, suave. — Honestamente. De repente, ele teve uma idéia. — Você não fez nenhuma aposta, fez? Ela soltou uma gargalhada, sinceramente divertida. — Não? Tive uma visão de Trix passando um livro com nossos nomes. Deslizaram lado a lado pelos lençóis, e cada toque, cada gesto era cheio de curiosidade e delicadeza. O fôlego dos dois foi ficando mais curto e, com velocidade e desejo crescentes, deixaram a gentileza de lado e se tornaram intensos, despudorados, violentos. Ela cravou as unhas na bunda dele e ele mordeu seu seio. Rolaram juntos, encaixados, ao que ele a penetrava, e então ela deslizou por baixo dele, colada ao seu corpo.

Quando tudo terminou, ficaram deitados, os corpos entrelaçados, unidos em sua paz. Mas, de repente, Ashling foi tomada pela insegurança. E se ele mudasse de idéia? E se agora, que dormira com ela, perdesse todo o interesse? Foi quando ele disse, carinhoso: “Ashling, você é a melhor coisa que já aconteceu comigo”, e todas as suas dúvidas se dissiparam. — Minha única dúvida — falou Jack, na escuridão — é se você vai me respeitar amanhã de manhã. Sonolenta, ela respondeu: — Não precisa se preocupar. Eu nunca te respeitei, mesmo. Ele lhe deu um beliscão. — É claro que vou te respeitar amanhã de manhã — garantiu ela. — Talvez te despreze um pouco à tarde — acrescentou. — Mas posso te garantir meu respeito incondicional na parte da manhã.

Na primeira segunda-feira de abril, uma semana antes de voltar para Londres, Lisa recebeu em sua correspondência a notificação da sentença definitiva. Antes mesmo de abrir o envelope, soube o que continha — por mais insensato que isso fosse, teve a convicção de que emanava um ar ligeiramente desagradável. Seu instinto foi fugir, enfiá-lo embaixo do telefone, fingindo que jamais chegara. Então, com um suspiro, abriu-o rapidamente. Já fora obrigada a fazer muitas coisas desagradáveis na vida. Se não as enfrentasse com a cara e com a coragem, jamais realizaria nada. Mas era preciso agir depressa, como quando se puxa um Band-Aid. Sentia-se incrivelmente lúcida. Notou como seus dedos tremiam ao puxar as folhas. Viu as frases impressas avançarem como os créditos de um filme, rápidas demais para serem lidas. Quando as palavras diminuíram de velocidade e pararam, ela se obrigou a estudar as duras letras pretas impressas na folha branca. Uma de cada vez, até que a mensagem que já conhecia de antemão finalmente se revelou — estava tudo acabado. Não viveria mais com um pé dentro e outro fora do casamento; tudo fora arrumado e posto em ordem. The end. Fin. Fim. Em seu momentâneo clarão de lucidez, observou que não saíra pelo vestíbulo dando pulinhos, na euforia da libertação. Pelo contrário, notou que sua temperatura disparara — não é que estava suando? —, e que não se sentia livre e feliz. Durante todo o processo do divórcio, esperara que a parte seguinte seria aquela que a faria sentir-se magicamente curada. Mas agora haviam chegado ao fim da linha, e ela ainda não recuperara sua antiga felicidade. Na verdade, sentia-se pior. Talvez a tristeza causada por um divórcio não desapareça, deu-se conta. Em vez disso, a pessoa precisa assimilá-la, aprender a conviver com ela — o que se lhe afigurou como um sacrifício tamanho, que ela teve vontade de voltar para a cama.

Fifi dera uma festa quando seu divórcio se consumara. Por que Lisa não sentia vontade de fazer o mesmo? A diferença, admitiu, a contragosto, era que ela não odiava Oliver. Que pena, debochou de si mesma. A acrimônia tinha lá suas vantagens. Dobrou o documento e se obrigou a sentir esperança. Tudo ficaria bem. Algum dia. Londres era o lugar certo. Ela conheceria outro homem lá. Mesmo que às vezes a deprimisse profundamente constatar o lixo que eram os outros homens. Por comparação, reconheceu. Talvez ajudasse se parasse de usar Oliver como parâmetro. Quando voltasse a Londres, faria o possível para evitá-lo. Seus caminhos poderiam se cruzar ocasionalmente, no desempenho de suas profissões, e eles trocariam um sorriso civilizado. Até que, um belo dia, poderiam se encontrar e trabalhar, sem pensar no que poderia ter sido e não fora, na outra vida que poderiam ter levado. O tempo passaria e, um dia, algum dia, não faria mais diferença. Mas eu falhei, ela admitiu, num rompante de honestidade auto-incriminatória. Falhei e a culpa é minha. Não posso solucionar as coisas, não posso fazer com que passem e vou ter que viver com isso pelo resto da minha vida. Ela sempre fora o somatório de seus triunfos. Um sucesso empilhado em cima do outro, era o que havia feito de Lisa quem ela era. Sendo assim, onde esse fracasso se encaixava? Teria que se encaixar em algum lugar, pois ela agora compreendia que nossas vidas são uma sucessão de experiências, e que as frustradas contam tanto quanto as bem-sucedidas. Essa dor me mudou, admitiu ela. Essa dor que não vai passar durante muito tempo me tornou uma pessoa melhor. Mesmo que eu não queira, reconheceu, irônica. Mesmo que considere essa mudança pior do que a morte, estou mais mansa, mais generosa, melhor. E me sinto feliz por ter sido casada com Oliver, pensou, desafiadora. Estou arrependida, triste e puta da vida por ter ferrado com tudo, mas aprendi a lição e não vou deixar que aconteça novamente. Era o máximo que podia fazer.

Soltou um suspiro profundo, apanhou sua bolsa e saiu para trabalhar, como a sobrevivente que era. Quando chegou, a redação estava a mil por hora — com os preparativos para o seu bota-fora na sexta-feira. A operação era quase tão complexa quanto fora a da festa de lançamento. Lisa pretendia sair de Dublin por cima. Já dissera a Trix que a considerava pessoalmente responsável pela escolha do presente de despedida e que, se lhe desse um vale da Next, ela a mutilaria. — Lisa — Trix estendeu-lhe o telefone. — É o Tomsey, do departamento de cortinas da Hensards. Sua persiana de madeira finalmente ficou pronta! Aquele dia, no fim do expediente, Lisa abordou Ashling, ao tomarem o elevador para a portaria. Estava ansiosa para esclarecer uma questão com ela. — Quero que você saiba — disse, enfática — que propus seu nome como diretora, e que entoei loas ao seu trabalho para a diretoria. Lamento que você não tenha ganho o cargo. — Não tem problema. Eu detestaria ser diretora — disse Ashling. — Nasci para ser o braço direito de alguém, e os braços direitos são tão importantes quanto os líderes. Lisa riu da serenidade de Ashling. — A mulher que escolheram parece legal. Poderia ter sido pior, poderia ter sido Trix! Lisa não tinha nenhuma dúvida de que algum dia Trix dirigiria uma revista — e tão implacavelmente, que faria Lisa parecer Madre Teresa de Calcutá. Mas, no momento, Trix tinha outras preocupações. O Arraia-Miúda fora chutado para escanteio, dando lugar a Kelvin, e um apaixonado romance estava a caminho. Ainda era um “segredo”. Quando as portas do elevador se abriram, Lisa deu uma cotovelada forte em Ashling, soltando um riso debochado: — Ih, olha só quem está aí. Era ninguém mais, ninguém menos do que Clodagh. — O que ela quer? — perguntou Lisa, agressiva. — Tentar roubar Jack de você? Vaca! Quer que eu diga a ela que o marido dela tentou me passar na cara?

— É uma oferta maravilhosa — Ashling ouviu sua voz vir de muito longe —, mas não precisa, obrigada. — Tem certeza? Até amanhã, então, Quando Lisa foi embora, Clodagh se aproximou. — Pode me mandar para o inferno, se quiser, mas será que a gente poderia conversar? Impotente devido ao choque, Ashling demorou algum tempo para encontrar as palavras. — Vamos para o bar aqui do lado. Lá chegando, arranjaram uma mesa e pediram as bebidas. Ashling não conseguia parar de encarar Clodagh um segundo. Estava bem de aparência, cortara o cabelo muito mais curto, um corte que ficava bem nela. — Vim pedir perdão — disse Clodagh, constrangida. — Cresci muito, muito mesmo, nesses últimos meses. Estou diferente agora. Ashling assentiu, cerimoniosa. — E enxergo o quanto fui egoísta e cruel — desabafou Clodagh. — Meu castigo é ser obrigada a conviver com todos os estragos que causei. Você está com ódio de mim e não sei se tem visto Dylan ultimamente, mas ele está destroçado. Tão feroz e... insensível. Ashling concordou. Não se sentia mais à vontade na companhia de Dylan. — Sabia que eu pedi a ele para voltar para casa e ele não quis? Ashling assentiu. Dylan quase pusera um comercial em todas as emissoras de televisão, anunciando o fato. — Foi bem feito para mim, não foi? — Clodagh conseguiu dar um débil sorriso. Ashling não respondeu. — Nós vendemos a casa em Donnybrook, e agora estou vivendo com as crianças em Greystones. É onde o vento faz a curva, mas foi só o que pude pagar. Virei mãe solteira, desde que Dylan chegou à conclusão de que não tinha condições de arcar com a custódia das crianças. — Por que você fez o que fez? — Ashling a interrompeu, ríspida. Clodagh se remexeu, ansiosa com a raiva na voz de Ashling. — É uma coisa que tenho me perguntado muito. — E aí? Chegou a alguma conclusão? Seu casamento estava atravessando uma fase difícil? Acontece com todos os casamentos, sabia? Clodagh engoliu em seco, nervosa.

— Não acho que tenha sido só isso. Eu nunca deveria ter me casado com Dylan. Deve ser difícil de acreditar, mas não acho que algum dia eu tenha chegado realmente a me sentir atraída por ele. Apenas achava que era do tipo de homem com quem a gente se casa — tão bonito, simpático, bem empregado, responsável... — Ansiosa, relanceou Ashling, cuja expressão fechada e imutável não era propriamente encorajadora. — Eu tinha vinte anos, era egoísta, não sabia nada de nada da vida. — Clodagh desejava ardentemente ser compreendida. — E Marcus? — Eu estava desesperada por um pouco de diversão, de excitação. — Podia ter começado a praticar bungee-jumping. Clodagh assentiu, infeliz. — Ou canoagem em águas rápidas. — Mas Ashling não riu. Ela honestamente achara que riria. — Eu me sentia entediada e frustrada — tentou ainda. — Às vezes, me sentia como se estivesse sufocando... — Muitas mães se sentem entediadas e frustradas — soltou Ashling, brusca. — Muitas pessoas, na verdade. Mas nem por isso têm casos. Muito menos com o namorado da melhor amiga. — Eu sei, eu sei, eu sei! Agora enxergo isso, mas, na época, não tinha noção. Me perdoe, apenas achei que deveria ter qualquer coisa que quisesse, porque estava me sentindo profundamente infeliz. — Mas por que Marcus? Por que meu namorado? Clodagh corou, abaixando os olhos para o próprio colo. Corria um grande risco ao admitir o que estava prestes a admitir. — Provavelmente, qualquer homem serviria. — Mas foi o meu namorado que você escolheu. Porque não tinha o menor respeito por mim — desfechou Ashling, indo ao cerne da questão. Morta de vergonha, Clodagh admitiu: — Não muito. E sinto ódio de mim mesma por isso. Passei os últimos meses me sentindo culpada e infeliz pelo que fiz. Daria meu seio esquerdo para você me perdoar. Depois de uma longa e tensa pausa, Ashling soltou um suspiro profundo. — Eu perdôo você. Quer dizer, quem sou eu para julgar? Estou longe de ter levado uma vida perfeita. Como você bem observou, eu era uma vítima completa.

— Ah, me perdoe! — Não, não se perdoe, você tinha razão. A expressão de Clodagh se iluminou: — Quer dizer então que podemos voltar a ser amigas? Outra longa pausa, enquanto Ashling refletia. Ela e Clodagh haviam sido amigas desde os cinco anos de idade. A melhor amiga uma da outra. Haviam atravessado juntas a infância, a adolescência e os primeiros anos de sua vida adulta. Tinham uma história em comum, e ninguém jamais conheceria Ashling como Clodagh a conhecia. Esse tipo de amizade é raro. Mas... — Não. — Ashling rompeu o silêncio tenso. — Eu perdôo você, mas não confio em você. Perder um namorado para uma amiga é falta de sorte, perder dois é falta de cuidado. — Mas eu mudei, mudei de verdade. — Mesmo assim — disse Ashling, triste. — Mas... — objetou Clodagh. — Não! Clodagh compreendeu que era inútil. — Tudo bem — sussurrou. — Já vou indo. Lamento muito, só queria que você soubesse disso... Até mais. Ao sair, percebeu que estava tremendo. A coisa não saíra conforme o esperado. Os últimos meses haviam sido sumamente desagradáveis para Clodagh. Estava chocada e muito surpresa com o quanto achava sua vida dolorosa. Não apenas sua nova e triste condição de mãe solteira, mas a lucidez que adquirira em relação a seu próprio egocentrismo. O remorso era uma emoção nova para ela, e esperara que, explicando a compreensão que adquirira de seu egoísmo e enfatizando o quanto estava arrependida, seria perdoada. E que, no mesmo instante, tudo voltaria a ser perfeito. Mas subestimara Ashling, com isso aprendendo outra lição: só porque estava arrependida, isso não queria dizer que os outros estavam prontos para perdoá-la, e, só por a perdoarem, isso não significava que ela se sentiria melhor. Infeliz, solitária e massacrada sob o peso das conseqüências de seus atos, perguntou-se se algum dia seria capaz de consertar tudo que destruíra. Será que algum dia as coisas ainda voltariam ao normal?

Ao passar pela Hogan’s, uma multidão de garotos a notou e se pôs a brindá-la com assobios, gritos e galanteios. No começo ela os ignorou, mas, então, num capricho, jogou os cabelos para trás e lhes deu um sorriso ofuscante por sobre o ombro, arrancando sua platéia vivas histéricos de apreciação. De repente, ela criou novo ânimo. A vida continua, ora. Depois que Lisa deixou Ashling e Clodagh na portaria, obrigou-se a voltar a pé para casa. Era algo que passara a fazer regularmente, para contrabalançar todos os jantares que Kathy a obrigava a comer. Enquanto caminhava, obrigou-se a manter a tristeza a distância. Sou fabulosa. Tenho pais fabulosos. Tenho um novo emprego fabuloso como consultora de mídia. Tenho sapatos fabulosos. Quando dobrou a esquina de sua rua, viu que alguém da vizinhança se sentava no degrau da porta, à sua espera. O que a surpreendia era que não pegassem as chaves com Kathy e entrassem sem a menor cerimônia, pensou, irônica. Sentiria falta de todos eles quando voltasse para Londres. Embora Francine vivesse lhe dizendo que não era o caso, pois Lisa receberia tantas visitas, que seria quase como se não tivesse chegado a ir embora. Mas, afinal, quem estava no seu degrau? Francine? Beck? Mas a pessoa era do sexo errado para ser Francine, alta demais para ser Beck, e... Lisa sustou o passo, ao perceber que era da cor errada para ser qualquer um dos dois. Era Oliver. — O que você está fazendo aqui? — perguntou, atônita. — Vim ver você — respondeu ele. Ela alcançou a porta e ele se levantou com um largo sorriso branco. — Vim reconquistar você, paixão. — Por quê? — Ela enfiou a chave na fechadura e ele entrou atrás dela no vestíbulo. Sentia-se confusa — e estranhamente ressentida. Passara o dia inteiro se esforçando para “tocar a bola para a frente”, e ele lhe dera uma rasteira. — Porque você é a melhor — disse ele, com toda a simplicidade. E outro sorriso ofuscante. Ela atirou as chaves na mesa da cozinha.

— Pois chegou um pouquinho atrasado — tornou ela, irritada. — Nós acabamos de nos divorciar. — Sabe — disse ele, pensativo —, eu me sinto uma merda com esse divórcio. Deu um nó na minha cabeça que você não faz uma idéia! Mas, enfim, não há nada que impeça a gente de se casar de novo — disse, sorrindo. E, quando ela lhe deu um olhar cuja legenda era “Seu filho-da-mãe maluco”, ele insistiu: — Estou falando sério! Ela lhe lançou outro olhar da mesma família do primeiro, mas, de repente, seus pensamentos ficaram um pouco irrequietos e difíceis de dominar. A idéia de se casar com Oliver de novo era ridícula, mas tentadora. Extremamente tentadora — durante mais ou menos um nanossegundo. Em seguida, ela caiu na real. E perguntou, brusca: — Não se lembra de como era horrível? No fim, a gente discutia o tempo todo, era um inferno. Você tinha ódio de mim e do meu emprego. — Tem razão — admitiu ele. — Mas, em parte, a culpa foi minha. Quando você desistiu de ter um bebê, eu devia ter te dado atenção. Sei que você tentou me contar, paixão, mas eu não queria saber. Foi por isso que fiquei louco da vida quando descobri que você ainda estava tomando a pílula. Mas, se tivesse te dado atenção... Enfim... E você está tão diferente, não é mais tão dura quanto era. Sinto muito, paixão — disse ele, ao ver que ela se encrespara —, mas é a verdade. — E isso é bom? — Claro. Diante de sua expressão cética, ele disse, com brandura: — Lisa, nós estamos separados há mais de um ano, e a barra ainda não aliviou para mim. Não conheci ninguém que chegas aos seus pés. Sua expressão era ansiosa, como que à espera do encorajamento ou aquiescência dela, mas ela não lhe deu nenhum dos dois. Toda a despreocupação que ele sentia ao chegar se esvaíra, e estava subitamente ansioso. — A menos que você tenha conhecido alguém. Se for o caso, eu tiro meu time de campo — disse, gentil. — E desisto de tentar reconquistar você.

Com uma fisionomia inescrutável, Lisa o encarava, considerando a hipótese de lhe dar um sorrisinho maroto, do tipo talvez-sim-talvez-não. Isso daria um basta naquela situação absurda, perigosa. Do nada, porém, mudou de idéia. Jamais jogara com Oliver, por que haveria de começar agora? — Não, Oliver, não conheci ninguém. — Tudo bem — ele assentiu lenta e cautelosamente. — Bom, já posso parar de me roer por dentro. — Após uma pausa nervosa, continuou: — Ainda te amo. Agora que estamos mais velhos e mais maduros — deu um risinho inseguro —, acho que tem tudo para dar certo. — Acha? — A pergunta foi feita com toda a calma. — Acho — afirmou ele, categórico. — E, se você estiver interessada, posso me mudar para Dublin. — Não seria necessário, vou voltar para Londres no fim da semana — murmurou ela. — Então, Lisa — disse Oliver, com uma expressão extremamente séria —, só resta saber se você está interessada. Seguiu-se um longo e tenso silêncio. Por fim, Lisa disse: — Acho que sim. — De repente, sentia-se encabulada. — Tem certeza? — Tenho. — Deixou escapar um risinho nervoso. — Paixão! — exclamou ele, fingindo-se indignado: — Se é assim, por que é que você está me torturando desse leito?! Ainda encabulada, ela confessou: — Eu estava com medo. Eu estou com medo. — De quê? — De ter esperança, acho — disse ela, dando de ombros. — Não queria ter nenhuma, porque havia a hipótese de você estar agindo por impulso. Eu tinha que ter certeza da sua certeza antes mesmo de poder pensar no assunto. Porque — confessou, tímida — eu te amo. — Então não precisa ter medo — prometeu ele. — Quando foi que você ficou tão ajuizado? — resmungou ela.

Ele soltou uma gargalhada forte e alta, uma gargalhada tipicamente sua, e, de repente, os pensamentos de Lisa simplesmente dispararam, como cães soltos de suas coleiras. Quanta sorte ela tinha de ganhar outra chance? A extensão integral de sua suprema boa fortuna revelou-se para ela, e ela se sentia no sétimo céu, quase imponderável de felicidade. Nem todo mundo tem uma chance dessas, compreendeu, degustando, pela primeira vez na vida, o valor do momento presente. Vou fazer tudo diferente dessa vez, jurou de pés juntos. Os dois fariam. E, mais uma coisa, o fecho de ouro, por assim dizer: se dois casamentos entre as mesmas pessoas eram bons o bastante para Burton e Taylor, então também eram bons o bastante para ela. Incapaz de frear sua cabeça eufórica, já planejava um segundo casamento, um festival de plumas e paetês, pompa e circunstância. Nada de fugir para Las Vegas dessa vez — não, fariam tudo como mandava o figurino. Sua mãe ficaria deslumbrada. E eles chamariam a revista Hello! para fotografar a cerimônia... Como se pudesse ler os pensamentos de Lisa, Oliver exclamou, ansioso: — Calma, tigresa!

Jack e Ashling passeavam pelo píer. Era uma tardinha de maio, e o dia ainda estava claro. De braços dados, caminhavam sem pressa. — Quer um caramelo? — ofereceu-lhe Ashling. — E eu que pensava que as coisas não podiam ficar melhores — disse Jack. Ashling tateou às cegas o interior da bolsa. — Onde é que eles estão? — Retirou uma cartela de Anadin e o vidro de seu elixir de emergência antes de encontrar os caramelos. — Você ainda carrega todas essas tralhas aí dentro? —Jack pareceu triste. — Os Band-Aids e tudo o mais? — Acho que é a força do hábito. — Mas, pela primeira vez, sentiu-se um pouco boba por carregar toda aquela parafernália profilática. — Que tal considerar a hipótese de jogar tudo fora? Agora você não precisa mais de nada disso. As coisas mudaram. Ashling o contemplou longamente. Ele tinha razão, as coisas tinham mudado. — Tá, vou jogar tudo fora quando chegar em casa. — Por que não agora? Vai nessa, joga sua bolsa no mar. — Jogar minha bolsa no mar? Tá certo... — Estou falando sério. Se livra de tudo isso. — Você ficou louco? E os meus cartões de crédito? E a bolsa propriamente dita? — Tira os cartões de crédito. E eu compro uma bolsa nova para você. Prometo. — Ah, meu Deus, você está falando sério. — Ashling lhe deu um olhar que mesclava medo e excitação. Sentia-se estranhamente tentada pela idéia, ainda que lhe desse náuseas. — Se livra de tudo isso — repetiu ele, com uma expressão animada. — Não posso. — Pode, sim. Será que posso?

— Se fosse minha bolsa de couro de píton, eu nem levaria a hipótese em consideração. — Mas essa está velha e imunda — Jack voltou à carga. — E a alça está se soltando. Eu compro outra para você. Ah, manda ver! O simbolismo do gesto era atraente. Mas, por outro lado, como poderia jogar fora uma bolsa cheia de coisas de que precisava? Mas será que precisava mesmo de alguma daquelas coisas...? Talvez não... A imagem se intensificou, tornando-se possível, provável, exeqüível. — Tudo bem. Vou jogar! Vou jogar! Segura aqui. — Passou-lhe a carteira, o celular, o maço de cigarros e o tubo de caramelos. — Não consigo acreditar que vou fazer isso. Com um grito de euforia, rodou a bolsa acima da cabeça uma vez. Duas vezes. Em seguida, entre o terror e a exultação, simplesmente a lançou. A bolsa descreveu um arco radiante no céu do anoitecer, aquele pequeno e compacto carregamento de alfinetes de segurança, Band-Aids e esferográficas, para então encetar sua graciosa trajetória descendente, e por fim, com o menor dos impactos, ser recebida pelo mar. 

 

                                                                                Marian Keyes

 

 

                      

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