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UM SEDÃ ESCURO SAIU DA Pacic Coast Highway e entrou no acesso para carros de uma casa de praia em Malibu que devia valer, fácil, uns 7 ou 8 milhões. O motorista baixou o vidro e passou uma chave eletrônica pela leitora. O alto portão duplo de ferro forjado se abriu e o sedã avançou até a garagem. O portão se fechou atrás dele sem ruído. O motorista saltou do carro e olhou em volta. Era um homem branco de 30 e poucos anos, estatura mediana e cabelos castanhos curtos. Usava uma jaqueta jeans, calça cáqui, sapatos de sola de borracha e luvas de látex. Viu que a casa moderna e elegante cava inteiramente protegida por arbustos e cercas que a escondiam da estrada e das casas vizinhas. Foi até o nicho onde cava a porta da frente e reparou na câmera de segurança virada em sua direção e no teclado biométrico. Voltou para o carro, abriu uma das portas de trás e disse:
– Parada final, mocinha. Inclinando-se para o banco traseiro, puxou uma moça magra de cabelos escuros e compridos. Ela estava desacordada, inconsciente. Cheirava a rosas e sabonete. Com um grunhido, o homem jogou o corpo inerte sobre o ombro. Ao chegar à porta, pressionou o dedo da mulher na leitora e a fechadura se abriu. Eles entraram. O homem não acendeu a luz. O sol entrava pelas paredes de vidro, reetia nas lajotas do chão e tornava tudo claro o suficiente para possibilitar uma boa visão. O hall conduzia a uma grande área de estar encimada por uma claraboia, com paredes arredondadas e janelas curvas com vista para o mar. À esquerda, um corredor levava à suíte principal. O homem abriu a porta do quarto com o pé e, ao chegar junto à cama, tirou a mulher do ombro e a acomodou sobre a colcha riscada de azul e branco. Arrumou um travesseiro sob a cabeça dela e então foi até o banco que cava debaixo da janela. Sob a tampa com dobradiça havia uma caixa de metal e, dentro da caixa, uma pistola Kimber calibre 45 customizada. O homem de jaqueta jeans removeu o pente da pistola, verificou-o e tornou a inseri-lo com a mão enluvava. A arma estava carregada. Nesse momento voltou para junto da cama e, mirando com cuidado, acertou a mulher no peito, à queima-roupa. O corpo se moveu num espasmo. Quando ele desferiu o segundo e o terceiro tiros, contudo, ela não se mexeu. O homem recolheu as três cápsulas das balas usadas e as guardou no bolso. Pegou o telefone ao lado da cama. Digitou um número enquanto tava o mar pela janela. Desligou sem dizer nada. Então saiu do quarto e encontrou o equipamento de segurança na sala de estar. Abriu as portas de todos os armários e vasculhou os compartimentos até localizar, no fundo de um deles, o disco rígido que armazenava os dados. Desconectou o disco, colocou-o debaixo do braço e saiu da casa pela porta da frente. Do lado de fora, afastou um pouco as lascas de madeira que protegiam o solo ao pé de uma buganvília densa que trepava pela cerca. Enterrou a pistola no buraco raso e a cobriu com as lascas. Voltou para o carro, deu a partida e tornou a passar a chave eletrônica na leitora do portão pelo lado de dentro. Depois de sair, deu ré devagar até o acostamento. Logo entrou na autoestrada e seguiu na direção norte. Já estava pensando no Bophy Bros, um restaurante de frutos do mar em Santa Barbara. Adorava aquele lugar. O bar de crustáceos tinha mariscos, caranguejos e ostras na concha. Ele pediria uma garrafa de algo que zesse jus àquele seu dia de trabalho de primeira categoria. O atirador pôs um CD do Van Halen para tocar e sorriu enquanto o sedã escuro se misturava ao fluxo do tráfego.
A. J. ROMANO DIRIGIA A van branca pela interestadual I-15 na direção oeste, pouco menos de 250 quilômetros a leste de Las Vegas. O carro era um modelo novo da Ford. Nas laterais e na traseira estavam colados adesivos com as palavras “Direto do produtor” acima de um cesto com legumes e verduras vermelhos, verdes e amarelos. Benny Falacci, conhecido como Banger, estava afundado no banco do carona, com as botas de pele de enguia, estilo caubói, sobre o painel. No fundo, Rudy Gee aproveitava sua vez no compartimento refrigerado para cochilar dentro de um saco de dormir entre as caixas de papelão. A. J. gostava de dirigir à noite qualquer que fosse o tempo, mas principalmente naquelas noites muito claras das áreas de grande altitude ali no oeste. As estrelas brilhavam no céu. Nenhum tráfego; só uma faixa de estrada que cortava quilômetros e quilômetros de pastos e desertos, sobre um fundo de montanhas que se erguiam a distância como papel de embrulho amassado. – Aí eu z uma carne ensopada, sabe? – disse ele para Banger. – Resolvi cozinhar para ela, para variar um pouco. Banger arrancou o ltro de um Marlboro, acendeu o cigarro com seu isqueiro da sorte e abriu a janela. – Putz – reclamou Romano, abrindo também a sua janela. – Já ouviu falar em fumante passivo? Você está fumando por dois aqui dentro. – Já se passaram 510 quilômetros – respondeu Banger. – Foi esse o combinado: um cigarro a cada 500 quilômetros. – Então… – prosseguiu A. J., agora falando alto por causa do barulho do vento. – Fiz um macarrão e um bolinho de chocolate. Ficou bom. – Fascinante, A. J. Todos os grandes grupos alimentares incluídos. – Comi bem, mas não enchi a pança. Aí a gente foi para a cama e mais ou menos às duas e meia eu acordei. Estava praticamente congelado. Banger tirou um pedaço de fumo da língua. A van não tinha CD player e naquele m de mundo o rádio não pegava. Dali a poucas horas estaria sentado diante de uma mesa de vinte e um. E à noite dormiria em uma cama espaçosa. Poderia ligar para Suzette. Estava pensando nisso e em como ela iria encher seu ouvido antes de ele conseguir tirar a calcinha dela. Ou então poderia ir ao Sands e arrumar alguma nova. Sentia-se com sorte. – Aí eu aumentei a potência do cobertor elétrico. Mesmo assim, meus mamilos continuaram duros feito pedra.
– Nossa – comentou Banger. – Dá para mudar de assunto? – Coloquei o cobertor no 9. Nove é um maçarico – disse A. J. – Mesmo assim continuei gelado. Quando acordei de novo, estava suando como se tivesse corrido 3 quilômetros… – Que diabo é isso? – indagou Banger. – É justamente o que estou perguntando. Será que meu coração está ruim? – Que diabo é aquilo ali – corrigiu-se Banger, apontando pelo para-brisa para as luzes vermelhas à frente. – Aquele carro, você quer dizer? – Está diminuindo. – Que imbecil. Ele devia ter enchido o tanque em Kanarraville. – Ultrapasse – disse Banger. Mas A. J. já estava diminuindo a velocidade e dizendo: – Ficar sem gasolina nesta estrada? O cara vai ser comido por um urso. Mas o carro não estava cando sem gasolina. Seguiu bem devagar até que um Chevrolet na pista da esquerda com o farol apagado emparelhasse com a van. – Que porra é essa agora? – perguntou A. J., olhando para o Chevrolet a 15 centímetros da sua porta. – O que esse outro babaca está fazendo? – Freia. Freia! – gritou Banger. – Desvia! A. J. Romano largou a mão na buzina, mas não adiantou. Encurralada, a van foi obrigada a pegar a saída para Pintura. Ou batia no carro ao seu lado, ou descia a toda pela rampa. A. J. deu uma guinada com o volante para a direita, fazendo a van descer pela saída, enquanto Banger procurava sua arma debaixo do banco. Quando deu por si, ouviu um barulho de metal arranhando sua porta e a van saiu da rodovia, forçada a entrar em uma espécie de estradinha secundária. – Seu filho da... – gritava Banger, enquanto A. J. pisava firme no freio. A van derrapou no chão de terra batida e arrancou uma cerca de arame até parar no meio do nada. A poeira impedia a visão e inundava a cabine. Ouviram portas de carros baterem à frente e atrás da van. Banger segurou sua arma com uma das mãos e soltou o cinto de segurança com a outra, pronto para saltar com um pulo, mas então o rosto de um homem surgiu na janela, um cara que ele nunca tinha visto, e começou a gritar: – Mãos no teto! – Banger, faça o que eles estão mandando! – gritou A. J. de mãos levantadas. Mas Banger puxou a arma de baixo do vão da janela. Um clarão intenso brilhou, seguido por uma explosão. Banger afundou no banco, expirou e não tornou a se mexer. Dentro de sua cabeça, A. J. gritava: Ai, meu Deus! Eles mataram o Banger! Uma pistola calibre 45 estava apontada para sua orelha esquerda. – Escutem – disse A. J. – Eu não conheço vocês. Não vi nada. Podem levar tudo o que quiserem. Eu tenho seiscentas pratas… Ele nem sequer ouviu a arma disparar. Seu corpo estremeceu, mas foi só.
A PORTA TRASEIRA DA VAN SE abriu e Rudy Giordino pulou para fora. Sua perna direita fraquejou, mas ele jogara futebol americano no ensino médio e tinha bom equilíbrio. Ficou ereto depois de cambalear e começou a correr o mais rápido que podia. Apesar de meio tonto por causa dos sacolejos na traseira da van, seus instintos estavam intactos. Foi correndo sob o céu negro em direção ao terreno plano, paralelo à estrada. O sangue latejava em seus tímpanos e ele ainda podia sentir a reverberação dos tiros. Meu Deus. Alguém havia atirado para dentro da van. Eles tinham sido assaltados. Rudy Gee seguiu correndo e pensou em sua arma, perdida sob o amontoado de caixas na traseira da van. Pensou em Marisa e Sparky e em como ainda não estava na hora de morrer, quanto mais abatido ali, no meio do nada. Ele tinha tantos planos. Ainda era um garoto.
Correr era bom. Ele estava ganhando distância, quase podia escutar os aplausos nas arquibancadas. Atrás dele, apoiado na lateral da van, um sujeito chamado Victor Spano mirou cuidadosamente sua pistola calibre 45. O cara estava facilitando demais as coisas correndo em linha reta daquele jeito. Victor apertou o gatilho e sentiu o coice da pistola quando o tiro acertou o alvo. O sujeito parou de correr como se alguém tivesse chamado o seu nome. Então caiu de joelhos e desabou de cara no chão. Victor foi até o morto e lhe deu um tiro na parte de trás da cabeça, para garantir. Quando você dispara uma arma e ninguém ouve, será que disparou mesmo? Sim. Sem sombra de dúvida. – Ele morreu? – perguntou Mark. – Está dizendo que quer comer pizza com a gente – respondeu Victor. – Volte para cá, pode ser? A gente precisa de ajuda com estes dois. Victor ajudou a pôr os caras que foram mortos primeiro dentro do Chevrolet. Mark deu ré com o carro, e Victor e Sammy enaram o terceiro cadáver lá dentro junto com os outros dois. Então, conforme planejado, Victor assumiu o volante da van e os três veículos deixaram a estrada de terra batida e voltaram à rodovia. À frente, o Chevrolet ganhou velocidade, disparando em direção à Highway 56 e à cidade de Panaca, em Nevada. Victor Spano, um cara de futuro, tomou o rumo de Los Angeles, enquanto Mark, ao volante do Acura, pegou o caminho de Cedar City. De lá, Mark daria meia-volta e retornaria a Chicago. A noite tinha sido boa. A interceptação levara exatos nove minutos, incluindo a limpeza. Até então, Victor Spano se mantivera concentrado no serviço. Agora, enquanto a van seguia em boa velocidade para Los Angeles, ele começou a pensar em seu pagamento. Estava milionário, com a vida ganha. Aquele tinha sido o dia mais incrível de sua vida.
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PARTE UM NÃO FUI EU
capítulo 1 O CARRO ESTAVA À MINHA ESPERA no aeroporto de Los Angeles. Aldo tinha descido e estava em pé junto ao meio-fio, segurando um cartaz que dizia: “Bem-vindo ao lar, Sr. Morgan.” Apertei a mão dele, joguei minha bagagem no porta-malas e me acomodei no acolhedor assento de couro do banco de trás. Tinha visitado seis cidades em três dias e a viagem de volta de Estocolmo havia se transformado em um périplo de 25 horas pelo inferno da aviação comercial até chegar em casa. Eu estava um caco. – Seu pacote, Jack – disse Aldo, estendendo uma pasta por cima da divisória. Na frente estava escrito “Private” , nome da minha empresa de investigação particular. Nossa sede cava em Los Angeles e tínhamos liais em seis países, com clientes espalhados pelo mundo todo. Nossa clientela era exigente e pagava bem por serviços que não estavam disponíveis nas instituições públicas de segurança.
Ultimamente, eu andava preocupado, achando que crescíamos depressa demais e que, se ser grande era inimigo de ser bom, então estava muito longe de ser incrível. E eu queria acima de tudo que a Private fosse incrível. Guardei os documentos da contabilidade dentro da minha própria pasta e, enquanto o carro entrava na pista de alta velocidade, saquei meu BlackBerry. O número de mensagens não lidas chegava aos três dígitos, então fui seletivo ao descer pela lista com o polegar. O primeiro e-mail era de Viviana, a beldade que viajara ao meu lado de Londres até Nova York. Ela vendia equipamentos de conferência em 3D, não exatamente uma tecnologia indispensável, mas sem dúvida interessante. Havia um torpedo de Paolo, meu chefe de segurança em Roma, que dizia: “Nosso cliente peso morto agora está apenas morto. Mando detalhes em seguida.” Despedi-me mentalmente do pagamento de 200 mil euros e passei aos torpedos da equipe americana. Justine Smith, minha condente e braço direito na Private, tinha escrito: “Amigo, a gente precisa fazer um update. Deixei a luz da entrada acesa.” Sorri e pensei que, por mais que desejasse vê-la, queria mais ainda tomar uma ducha e cair na cama. Mandei uma resposta para Justine, em seguida abri um torpedo de Rick Del Rio. “Aquele babaca do Noccia quer te ver o mais rápido possível.” O torpedo foi como um soco na barriga. Carmine Noccia era o herdeiro de uma importante família maosa, chefe do ramo de Las Vegas e meu amigo por acaso, em decorrência de um acordo que eu tivera de fazer com ele seis meses antes. Nem se soubesse que nunca mais veria Carmine Noccia eu ficaria tranquilo. Digitei uma resposta malcriada, enviei para Del Rio e tornei a guardar o telefone no bolso na mesma hora em que o carro entrava no acesso para a minha casa. Peguei minha bagagem e quei olhando Aldo dar ré para me certicar de que nenhum carro vindo pela Pacific Coast Highway bateria nele de lado. Passei minha chave eletrônica pela leitora, cruzei o portão, pressionei o dedo no painel biométrico e entrei em meu lar, doce lar. Por meio segundo, pensei ter sentido um cheiro de rosas, mas creditei isso ao prazer de estar novamente em casa. Comecei a tirar a roupa na sala e, ao chegar ao banheiro, já estava só de cueca, que joguei no chão em frente ao boxe do chuveiro. Fiquei em pé debaixo da água quente pelo máximo de tempo que pude aguentar, depois fui até o quarto e acionei o interruptor que acendia as luzes de cada lado da cama. Passei vários instantes petricado na soleira da porta. Não conseguia entender o que estava vendo. Aquilo não fazia sentido. Como era possível Colleen estar deitada na minha cama? O suéter dela estava empapado de sangue. Que diabo era aquilo? Uma brincadeira de mau gosto? Gritei o nome dela, depois me ajoelhei junto à cama e pressionei a mão na lateral de seu pescoço. A pele estava morna como se ela estivesse viva, mas não havia pulsação. Colleen usava uma saia na altura dos joelhos e um suéter azul aberto na frente, roupas com as quais eu já a vira antes. Seus cabelos com perfume de rosas se espalhavam em leque ao redor dos ombros e seus olhos azul-violeta estavam fechados. Segurei-a pelos ombros e a sacudi com delicadeza, mas a cabeça dela apenas pendeu de um lado para o outro. Ah, meu Deus. Não. Colleen estava morta. Como aquilo tinha acontecido, pelo amor de Deus?
capítulo 2 EU JÁ VIRA INÚMEROS CADÁVERES quando servira no Afeganistão. Há muitos anos investigar assassinatos faz parte do meu trabalho e cheguei a testemunhar a morte de alguns amigos. Nada disso me protegeu do horror de ver o corpo ensanguentado e sem vida de Colleen. Seu sangue havia salpicado a colcha e embebido o tecido. O suéter tinha tanto sangue que eu não podia ver os ferimentos. Tinha sido apunhalada? Havia levado um tiro? Eu não sabia dizer. As cobertas estavam bem esticadas sobre a cama e não percebi nenhum sinal de luta. Tudo no quarto estava exatamente como eu deixara quatro dias antes – tudo, exceto o cadáver de Colleen bem ali na minha frente. Pensei na tentativa de suicídio de Colleen após nosso rompimento seis meses antes – ainda podia ver as cicatrizes, finas linhas claras nos pulsos. Mas aquilo não era suicídio. Não havia arma em cima ou perto da cama.
Colleen parecia ter entrado no meu quarto, posto a cabeça sobre o travesseiro e depois ter sido morta enquanto dormia. Mas isso não fazia o menor sentido. Foi nessa hora que entrou em ação o que me restava de instinto de sobrevivência. A pessoa que havia matado Colleen podia ainda estar na casa. Fui até o banco sob a janela onde guardava minha pistola. Minhas mãos tremiam quando ergui a tampa do banco e peguei a caixa de metal onde guardava a arma. A caixa estava leve. Vazia. Abri as portas do armário, espiei debaixo da cama e não vi ninguém, nenhuma cápsula, nada. Vesti a calça jeans, enei uma camiseta e estudei cada janela e cada porta da casa, vericando as fechaduras e erguendo os olhos para as claraboias em busca de vidros quebrados. Então comecei a repassar mentalmente os últimos minutos. Tinha certeza de que a porta estava trancada quando cheguei. E agora tinha certeza de que todas as outras entradas possíveis estavam fechadas. Isso só podia signicar que alguém havia entrado em minha casa usando uma chave eletrônica e o acesso biométrico. Alguém que me conhecia. Colleen tinha sido minha assistente e namorada por um ano antes de terminarmos. Eu não havia apagado seus códigos de segurança. Ela não era a única que tinha acesso à minha casa, mas talvez não fosse ser necessário adivinhar quem a matara.
Minha casa era monitorada pelo melhor sistema de segurança já fabricado. Havia câmeras por toda parte, acima das portas, na rua do lado de fora e cobrindo um ângulo de 180 graus na praia em frente ao meu deque. Abri as portas do armário do equipamento de segurança e acionei o interruptor para ligar os seis monitores de vídeo empilhados em duas colunas de três. Todas as seis telas se acenderam – e todas as seis estavam pretas. Pressionei novamente as teclas do controle remoto, e ainda uma terceira vez antes de entender que o disco rígido havia desaparecido. Tudo o que restava era um cabo desconectado. Peguei o telefone ao lado do sofá e liguei para o número direto de Justine no escritório. Eram quase sete da noite. Ela ainda estaria no trabalho? Justine atendeu no primeiro toque. – Oi, Jack. Ficou com fome, afinal? – Justine. Aconteceu uma coisa horrível. Minha voz falhou quando me forcei a dizer: – É a Colleen. Ela está morta. Algum filho da mãe a matou.
capítulo 3 ABRI A PORTA DA FRENTE e Justine entrou na casa feito uma brisa suave. Ela era uma psiquiatra de primeira linha, inteligente, especialista em traçar pers de criminosos… caramba, inteligente não. Justine era um gênio. Graças a Deus estava ali. Levou a mão ao meu rosto, buscou meu olhar e disse: – Jack. Onde ela está? Apontei para o quarto. Ela entrou e eu fui atrás. Fiquei parado no vão da porta, anestesiado, enquanto ela se aproximava da cama. – Ah, não – gemeu ela e uniu as mãos debaixo do queixo. Mesmo ali, enquanto eu presenciava aquela cena de partir o coração, Colleen continuava viva na minha mente. Lembrei-me dela na casinha que ela havia alugado em Los Feliz, um ninho de amor que praticamente cabia na palma da mão. Pensei nela rebolando vestida com uma lingerie bem
pequena e calçando imensos chinelos felpudos, salpicando seu sotaque carregado com os velhos ditados irlandeses da avó: “O campo vai ficar cheio de chapéus sem dono.” “Como assim, Molloy?”, eu lhe perguntara. “Isso vai ser um problema.” E agora ela estava ali, deitada na minha cama. Um problema sem conserto. Justine estava pálida quando voltou para junto de mim. Envolveu-me com os braços e me apertou. – Jack, eu sinto muito. Muito mesmo. Abracei-a com força, e então, de repente, Justine me empurrou, se afastando. Encaroume com os olhos escuros e perguntou: – Por que o seu cabelo está molhado? – Meu cabelo? – Você tomou uma ducha? – Tomei. Quando cheguei em casa, fui direto para o banheiro. Estava tentando acordar. – Bom, Jack, isso não é nenhum sonho. É a realidade nua e crua. Quando você tomou banho, já havia visto Colleen? – Não fazia a menor ideia de que ela estava aqui. – Não a tinha chamado para vir para cá? – Não, Justine, não tinha. Não. A campainha voltou a tocar.
capítulo 4 A CHEGADA DO DR. SCI E de Mo-bot melhorou em duzentos por cento as chances de entender o que havia acontecido na minha casa. Dr. Sci, que na verdade se chamava Seymour Kloppenberg, era o criminalista-chefe da Private. Tinha uma extensa lista de diplomas, a começar por um doutorado em física pelo MIT aos 19 anos – e isso fazia só dez anos. Mo-bot era Maureen Roth, uma geek cinquentona, que resolvia qualquer coisa relacionada a tecnologia. Especialista em crimes cibernéticos, era também a mamãe de plantão da Private. Mo trouxera sua câmera e sua sabedoria. Sci tinha seu kit para cenas de crime, provido com equipamentos de ponta para coleta de indícios. Fomos até o meu quarto e camos os quatro em pé ao redor do cadáver de Colleen enquanto, pela janela, a noite caía.
Nós tínhamos amado Colleen. Todos os quatro. – Não temos muito tempo – disse Justine rompendo o silêncio, passando a operar como investigadora de um homicídio. – Jack, preciso perguntar: você teve alguma coisa a ver com isso? Porque, se teve, a gente pode dar um sumiço em tudo. – Encontrei Colleen desse jeito quando cheguei em casa – respondi. – Ok. Mesmo assim, cada minuto que passa torna você cada vez mais culpado – continuou Justine. – Então vamos repassar tudo outra vez, depressa e com cuidado. Comece pelo início e não deixe nada de fora. Enquanto Mo e Sci calçavam luvas de látex, Justine ligou um gravador digital e me indicou que começasse a falar. Contei a ela que, ao descer do avião, Aldo me esperava na área de desembarque da British Airways às cinco e meia em ponto. Contei a ela sobre a ducha e como havia encontrado o corpo de Colleen. Disse que minha pistola tinha sumido, assim como o disco rígido do meu sistema de segurança. Repeti que não tinha a menor ideia do que Colleen estava fazendo lá em casa ou por que tinha sido morta. – Justine, não fui eu. – Eu sei, Jack. Ambos sabíamos que, quando a polícia chegasse, eu iria me transformar no suspeito número um; embora tivesse amigos policiais, não podia conar em nenhum deles para encontrar o assassino de Colleen quando era tão mais fácil pôr a culpa em mim. Eu tivera um relacionamento pessoal com a vítima.
Ninguém havia arrombado minha casa. A vítima estava na minha cama. Aquilo era o que os órgãos de segurança pública gostavam de chamar de caso fechado. Em volta de mim.
capítulo 5 SE VOCÊ NÃO É UM policial em pleno exercício do ofício, analisar a cena de um crime é uma contravenção. Não só por contaminar as provas e destruir a capacidade da acusação de levar o réu a julgamento: você se torna cúmplice. Se nos pegassem analisando aquela cena, eu perderia o alvará e todos nós poderíamos ir presos. Apesar disso, se algum dia houvera ocasião propícia para descumprir a lei, era aquela. – Jack, saia do quadro, por favor – pediu Mo. Fui para o corredor e o flash da Nikon de Mo disparou. Ela tirou fotos de todos os ângulos possíveis: planos gerais, planos fechados, closes extremos dos ferimentos no peito de Colleen. Usando uma leitora eletrônica, Sci coletou as impressões digitais de Colleen e as minhas enquanto Mo-bot passava um detector de digitais latentes sobre as superfícies duras do
aposento. Não era preciso usar nenhum pó. – Quando foi a última vez que você viu Colleen com vida? Respondi que tínhamos almoçado juntos na quarta-feira anterior, antes de eu ir para o aeroporto. – Só almoçaram? – Sim. Só almoçamos. Uma sombra atravessou o olhar de Justine, como nuvens se adensando no céu antes de um temporal. Ela não acreditava em mim. E eu não tinha energia para convencê-la. Estava exausto, assustado, triste e enjoado. Queria acordar. Queria ainda estar a bordo do avião. Sci conversava com Mo. Ele coletou resíduos sob as unhas de Colleen e Mo lacrou os envelopes plásticos. Quando Sci ergueu a saia de Colleen com o cotonete na mão, olhei para o outro lado. Continuei a conversar com Justine. Informei a ela onde Colleen e eu tínhamos almoçado na quarta-feira e disse que ela estava bem-disposta. – Ela disse que estava namorando um cara em Dublin. Disse que estava se apaixonando. Outra coisa me ocorreu. Virei-me na direção do quarto e gritei: – Alguém viu a bolsa dela? – Não, Jack. Não tem bolsa nenhuma aqui. – Alguém a trouxe para cá – falei para Justine. – Alguém que estava com a chave dela, a chave do portão. – Bem lembrado – disse Justine. – Você consegue pensar em alguém que possa ter feito
isso? E por quê? – Alguém que odiava Colleen. Ou me odiava. Ou que odiava nós dois. Justine concordou. – Sci? Mo? Temos que sair daqui. Jack, você vai ficar bem? – Não tenho certeza – respondi. – Você está em estado de choque. Todos nós estamos. Diga à polícia o que você sabe e pronto – completou enquanto Sci e Mo guardavam seus kits. – Diga que tomou uma ducha bem demorada – falou Sci, colocando a mão em meu ombro. – Ou melhor, diga que tomou um banho de banheira e depois uma ducha. Isso deve justificar boa parte do tempo. – Está bem. – As únicas digitais que encontrei são suas – disse Mo-bot. – Esta casa é minha. – Eu sei, Jack. Não tinha mais nenhuma digital exceto a sua. Verique a leitora de cartão da entrada – instruiu ela. – Eu mesma faria isso, mas é melhor irmos embora. – Tudo bem. Obrigado, Mo. Justine apertou de leve a minha mão, disse que me ligaria mais tarde e então, como se fossem personagens de um sonho, os três desapareceram e me deixaram sozinho com Colleen.
capítulo 6 O BEVERLY HILLS SUN ERA UM dos três estabelecimentos exclusivos da rede de hotéis Poole. Localizado no South Santa Monica Boulevard, a 1,5 quilômetro da Rodeo Drive, tinha cinco andares inteiros de glamour e cada quarto ostentava nome e visual personalizado. A piscina olímpica de borda innita no último andar era ladeada por tendas de lona branca, assentos estofados e espreguiçadeiras ergonômicas, e havia também o bar ao ar livre. Jovens sexy e descolados da área do entretenimento eram atraídos como gazelas para esse oásis, um dos melhores lugares de Los Angeles. Às nove horas, Jared Knowles, todo-poderoso gerente do hotel, estava em pé em frente à Suíte Bergman, no quinto andar, conversando com uma das camareiras. – Obrigado, Maria, eu resolvo isso – disse à mulher. Depois de Maria dobrar a quina do corredor com os braços cheios de roupas de cama,
Knowles bateu com vigor na porta e chamou o hóspede pelo nome, mas ninguém respondeu. Aproximou a orelha da porta na esperança de ouvir o chuveiro ou a TV ligada no volume máximo, mas não escutou nada. O hóspede se chamava Maurice Bingham, um executivo de Nova York, e já havia se hospedado no Sun três vezes sem causar nenhum problema. Knowles ligou para o quarto de Bingham do celular. Deixou tocar cinco vezes e ouviu o toque soar através da porta e ao mesmo tempo em seu próprio celular. Tornou a bater na porta, dessa vez com mais força, mas continuou sem resposta. O jovem gerente se preparou para as melhores e as piores situações possíveis, então inseriu na fechadura o cartão que funcionava como chave-mestra. A luz da porta cou verde e Knowles abaixou a maçaneta e entrou na suíte. O quarto tinha um cheiro horroroso. Os batimentos cardíacos de Knowles se aceleraram e ele se forçou a atravessar o saguão até a saleta. O Sr. Bingham estava caído no chão junto à escrivaninha, com os dedos paralisados na garganta como se fossem garras. Havia um pedaço de arame enterrado em seu pescoço. Knowles levou as mãos ao rosto e gritou. O horror estava tanto no presente quanto no passado. Ele tinha visto um cadáver quase idêntico àquele quando trabalhava no Constellation de São Francisco. Pedira transferência para Los Angeles porque não aguentava pensar naquilo.
Naquela noite, cinco meses antes, a polícia o havia interrogado e, antes de liberá-lo, repreendido por ter tocado no corpo. Ele ouvira dizer que tinha havido outros assassinatos como esse, estrangulamentos com um garrote de arame; na verdade, vários assassinatos. Isso signicava que um serial killer estivera naquele hotel, em pé exatamente no mesmo lugar em que ele estava agora. Jared Knowles não tocou no corpo. Em vez disso, pegou o celular e ligou para a dona do hotel, Amelia Poole. Ela que lhe dissesse o que fazer.
capítulo 7 AMELIA POOLE ESTAVA CHEGANDO EM casa quando recebeu o telefonema de Jared Knowles, seu gerente noturno do Sun. Pediu-lhe que esperasse ela sair da garagem, fechou a porta e ficou em pé no quintal de casa olhando para o bairro de Laurel Canyon. – Aconteceu de novo – disse Jared. Sua voz era um sussurro rouco e Amelia mal conseguiu entender o que ele estava dizendo. – Como assim? – Aconteceu de novo. Um hóspede na Suíte Bergman. O nome dele é Maurice Bingham. Ele está morto. Foi assassinado. Igual a… não lembro o nome, mas a senhora sabe a quem estou me referindo. No Constellation. Estou com medo porque sou um vínculo entre os dois, Sra. Poole. A polícia vai achar que fui eu. – E foi? – Caramba, Sra. Poole, não. Acredite em mim. Eu jamais faria uma coisa dessas.
– Como é que você sabe que o Sr. Bingham está morto? – O rosto dele está azul. A língua está para fora. Ele ainda está com um arame em volta do pescoço. Não está respirando. Será que eu esqueci alguma coisa? É que não aprendi nada na escola de hotelaria em relação a esse tipo de situação. Sua voz agora era um guincho agudo. E Amelia Poole ficou adequadamente assustada. Contando com aquele, agora eram cinco assassinatos – três deles em algum de seus hotéis. A polícia não descobrira nada. Fazia semanas que ela não tinha notícia nenhuma. E aquele crime específico lhe parecia algo pessoal. Talvez uma espécie de aviso. Qualquer um de seus outros hóspedes poderia ser morto. Era doentio. – Jared. Escute o que vou dizer – falou ela. – Vou tentar manter você fora dessa. Acenda a luz de “Não perturbe”. Consegue fazer isso? Use o cotovelo, não os dedos. – A camareira me ligou para dizer que o Sr. Bingham tinha pedido um cobertor e travesseiros extras. E que ele não abriu a porta. – Você levou a roupa de cama até o quarto? – Não. – Tocou em alguma coisa? – Não. – Jared agora estava aos prantos. Aquilo era demais. – Jared. Acenda a luz e volte para a recepção. – Mas isso não é contra a lei? – Eu assumo a responsabilidade, Jared. Volte para a recepção e pronto. Não chame a
polícia. Está bem? – Sim. – Se não conseguir trabalhar, diga que está se sentindo mal e peça para tirar folga hoje à noite. Peça a Waleed que assuma. – Certo, Sra. Poole. – Ligo para você amanhã. Amelia Poole desligou o celular e pensou outra vez em uma agência de investigação particular da qual tinha ouvido falar. O dono era Jack Morgan, ex-agente da CIA e exfuzileiro naval. Sua agência prometia “força e discrição máximas”. Chamava-se Private. Estava tarde, mas mesmo assim ela ligaria. Deixaria recado para Jack Morgan lhe telefonar o quanto antes.
capítulo 8 LIGUEI PARA MEU AMIGO MICKEY Fescoe, chefe de polícia, em sua casa. Ele atendeu dizendo: – Meu jantar está servido. Tomara que seja coisa boa, Jack. – Coisa boa não vai dar, Mick. Colleen Molloy, minha ex-namorada… ela foi assassinada na minha casa. E não fui eu. Respondi com monossílabos às perguntas de Mickey sem tirar os olhos do corpo de Colleen. Ele disse que iria mandar alguém até lá. Depois de desligar, sentei-me em uma cadeira perto da cama para fazer companhia a Colleen enquanto esperava a polícia chegar. Pensei em como nós dois tínhamos sido próximos e em como eu a havia amado, mas não o suficiente. Com um sobressalto, lembrei-me do que Mo-bot, antes de ir embora, me aconselhara a fazer. Fui até a sala, liguei o computador e quei tamborilando com os dedos enquanto o programa operacional carregava.
Uma lista comprida de horários, datas e nomes surgiu na tela, e eu a rolei até os últimos registros. A chave de Colleen fora usada meia hora antes de eu entrar pela porta da frente. Estava começando a entender um pedaço da história. O fato de toda aquela situação horrível ter acontecido enquanto eu estava no caminho do aeroporto para casa signicava que alguém estava acompanhando meus movimentos, conhecia cada minuto dos meus horários. Só que dezenas de pessoas sabiam quais eram os meus movimentos – colegas de trabalho, clientes, amigos. Qualquer um que tivesse um computador saberia quando meu avião iria aterrissar. Levantei-me na hora em que uma sirene veio subindo aos berros a estrada. Acionei o botão que abria o portão, postei-me no vão da porta e protegi os olhos dos faróis que entravam no acesso à minha casa. Dois policiais desceram da viatura. Concentrei-me no mais próximo: o inspetor Mitchell Tandy. Mickey Fescoe não tinha aliviado a minha barra. Tandy até que era bom policial, mas tinha uma péssima política de não fazer prisioneiros. Ele havia prendido meu pai, dono da Private antes de mim. Meu pai fora julgado e condenado por extorsão e assassinato. Estava cumprindo pena de prisão perpétua em Corcoran quando foi apunhalado no chuveiro, cinco anos antes. Tandy não gostava de mim porque eu era lho de Tom Morgan. Ou seja, culpado por associação. Não gostava de mim porque a Private solucionava mais casos do que o Departamento de Polícia de Los Angeles inteiro. Não dava nem para comparar.
E havia o fator de irritação mais óbvio de todos. Eu ganhava muito dinheiro. Fiquei observando e aguardando enquanto os agentes avançavam até a casa.
capítulo 9 TANDY TINHA 40 ANOS, ERA bronzeado e rato de academia. O coldre que trazia no ombro marcava o casaco azul brilhante e muito justo do uniforme. – Este é o investigador Ziegler – apresentou. – Já nos conhecemos – respondi. Ziegler tinha porte de nadador: ombros largos, tronco comprido. Usava uma pulseira de cobre no pulso direito. E uma arma na cintura. Foi então que me lembrei dele: tivéramos um desentendimento certa vez, quando ele importunou um de meus clientes. Eu ganhara. Seus cabelos haviam ficado grisalhos desde a última vez que nos víramos. – Onde está a vítima? – perguntou Tandy. Respondi, e ele me disse para ficar onde estava. Ziegler sorriu e falou: – Aguente firme, Jack.
Fiquei olhando pelas janelas em direção à praia. Tudo o que conseguia ver era a espuma das ondas escuras. Minha cabeça latejava e eu sentia ânsia de vômito, mas me contive enquanto Tandy e Ziegler iam até o quarto. Ouvi a voz de Tandy ao telefone, mas não entendi o que ele falava. Então ele e Ziegler voltaram. – Chamei o médico-legista e os peritos – disse Tandy. – Enquanto esperamos, por que não nos conta o que aconteceu? Sentamos e eu disse a Tandy que não sabia quem poderia ter matado Colleen nem por quê. – Faz mais de 24 horas que não durmo – falei. – Estava um verdadeiro zumbi. Comecei a tirar a roupa assim que pisei em casa. Entrei no banheiro pelo corredor. Contei-lhe como tinha entrado no quarto depois do banho com a intenção de cair na cama. E como havia encontrado Colleen. – Muito conveniente essa chuveirada – comentou Tandy. – Imagino também que tenha posto a roupa suja na máquina. – Meu casaco está em cima daquela cadeira. Minha camisa está no chão do corredor. A calça eu joguei por cima da porta. E minha cueca está em frente ao boxe. Dei a Ziegler os nomes dos parentes mais próximos de Colleen em Dublin e disse aos policiais que o registro de entradas indicava que a senha de Colleen fora usada meia hora antes de eu chegar. – Colleen tinha a chave que dá acesso ao portão, mas ela não está aqui – falei. – Alguém
deve tê-la coagido, usado a chave e encostado o dedo dela na leitora da porta da frente. – Ã-rã – grunhiu Ziegler e em seguida me pediu que falasse sobre meu relacionamento com Colleen. – Nós namoramos – comecei. – E Colleen trabalhava para mim. Eu gostava muito dela. Quando terminamos, ela viajou para a Irlanda para ver a família. Voltou algumas semanas atrás para visitar amigos em Los Angeles. Não sei que amigos. Almocei com ela na quartafeira passada. Tandy não leu os meus direitos e eu não pedi um advogado. Fiquei esperando ele ter alguma luz, encontrar alguma coisa que eu houvesse deixado passar, mas quando ele me perguntou se Colleen e eu havíamos brigado pedi licença e fui ao banheiro vomitar. Lavei o rosto e retomei o depoimento. – Jack, você brigou com a garota? – insistiu Tandy. – Não. – Não deveria ter tomado essa porcaria de ducha. Ou foi um insulto, ou um erro. Nós vamos levar suas roupas e vamos examinar seus ralos. Vamos checar as imagens de segurança do aeroporto e passar o pente-no nas suas ligações. E isso apenas hoje. Amanhã vamos investigar os últimos passos da vítima. E algo me diz que o cadáver dela vai nos fornecer informações interessantes. – Tandy, faça o melhor que puder. Mas até você e Ziegler devem saber que eu não iria matar minha ex na minha própria casa e depois chamar a polícia. Isso foi armação. – Eu só quero uma coisa: encontrar quem matou essa moça.
– E eu quero a mesma coisa. Entreguei a Tandy meu cartão de embarque e as informações de contato de Aldo. Disse que não sairia da cidade e que não daria uma mijada sequer sem consultá-lo primeiro. O médico-legista chegou e logo em seguida veio a equipe de peritos em cena de crime. Eles recolheram minhas impressões digitais, algumas células da mucosa interna da minha bochecha e minhas roupas sujas. – Eu estou preso? – perguntei a Tandy. – Ainda não – respondeu o inspetor. – Você tem um amigo muito bem-relacionado, Jack. Mas não vai poder ficar nesta casa. Liguei para Rick Del Rio. Vinte minutos depois, estava entrando em seu carro. – Que diabo aconteceu? – perguntou ele. Tornei a contar a mesma história.
capítulo 10 RICK DEL RIO MORAVA EM uma casa de um quarto só à beira do canal Sherman, um dos quatro canais paralelos limitados por dois outros em cada extremidade, uma fantasiosa reinterpretação da cidade italiana de Veneza. Apesar de pequenas, as casas eram caras, construídas bem juntas de frente para o canal, com pequenos becos atrás. Rick entrou com o carro em um desses becos, margeado por latas de lixo, postes de telefonia, portas de garagem e uma ou outra leira de arbustos rente a uma cerca nos fundos. A porta da garagem de Del Rio era pintada de verde. Ele apontou o controle remoto, a porta se abriu e ele entrou com o carro. – Não tenho grande coisa na geladeira – disse ele. – Não faz mal. – Meio frango. Umas cervejas.
– Obrigado mesmo assim. Subimos alguns degraus e entramos por uma porta na garagem que conduzia à cozinha. – Ninguém sabe que você está aqui – disse Del Rio. – Vá para a sala. Tente relaxar. Não era a primeira vez que eu ia àquela casa. Com três cômodos, parecia uma cabana na oresta e estava em estado impecável. Paredes brancas, vigas de madeira escura, cadeiras e sofás com estofamento macio de pluma. A peça central da mobília era uma mesa baixa feita com o casco de madeira de um barco, revestido de poliuretano para proteger a superfície das cervejas e dos arranhões. Deixei-me cair em uma cadeira grande o suciente para comportar duas pessoas, pus os pés em cima da mesa e rezei para o mundo parar de girar. Ouvi Del Rio fazendo barulho na cozinha e fechei os olhos por um instante. Mas não dormi. Fiquei pensando em uma noite sete anos antes. Estava pilotando um helicóptero de transporte CH-46 em direção a Kandahar, com 46 fuzileiros navais no compartimento de carga e Rick Del Rio como copiloto, sentado no banco ao meu lado. Fora uma noite ruim. Uma granada disparada por um foguete da traseira de um 4×4 atingira o nosso helicóptero, arrancando a hélice traseira e fazendo o Phrog despencar em espiral rumo ao inferno. Consegui fazer a aeronave aterrissar em pé, mas a bomba já havia feito o seu estrago. Vários homens morreram de forma horrível. Eu conhecia todos eles.
Estava removendo um dos sobreviventes quase morto do compartimento de carga quando um estilhaço de metal voou pelos ares e me atingiu nas costas. O impacto fez meu coração parar – e eu morri. Del Rio me encontrou não muito longe dos destroços em chamas e bateu no meu peito para me fazer voltar à vida. Depois disso, a guerra terminou para mim. Fui trabalhar em uma pequena empresa de investigação particular em Century City. Então o lho da mãe corrupto e manipulador do meu pai me chamou para conversar. Em Corcoran, ele sorriu para mim através de uma divisória de plexiglas, ainda me tratando como se eu fosse um idiota, só que dessa vez me surpreendeu. Entregou-me as chaves da Private e me disse que havia 15 milhões de dólares à minha espera em uma conta em um paraíso fiscal. – Faça da Private uma empresa melhor do que quando era minha – falou. Uma semana mais tarde, depois de ser apunhalado no chuveiro, meu pai morreu. Rick não tinha pais ricos. Desconhecia o medo e sabia manejar uma arma. Depois do serviço militar, tinha voltado para Los Angeles. Cometera um assalto à mão armada, fora preso, condenado e jogado na prisão. Depois de ter a pena atenuada por bom comportamento e ser solto, fora trabalhar na Private, e eu havia lhe comprado aquela casa. Eu conhecia Rick como a palma da minha mão. Devia minha vida a ele, e ele dizia que devia a sua a mim. Meu amigo entrou na sala chamando meu nome. Ergui os olhos e vi um rosto que só
uma mãe-buldogue seria capaz de amar: um homem de 1,73 metro de altura sem sapatos, ex-presidiário, ex-fuzileiro naval com treinamento de ponta… e segurando uma bandeja – uma bandeja. Como se fosse um enfermeiro ou quem sabe um garçom. Depois de chutar meus pés de cima da mesa, ele pousou a bandeja. Tinha preparado sanduíches com a metade de frango que estava na geladeira, passado tapenade e mostarda com mel em duas fatias compridas de baguete e acrescentado algumas folhas de alface. Trouxera também duas garrafas de cerveja e um abridor. – Coma, Jack – falou meu companheiro de voo. – Pode car com o quarto lá em cima. Nem adianta discutir. Lá o quarto fica escuro e, se você tentar, pode dormir nove horas. – Não posso dormir no seu quarto. – Olhe aqui – disse ele. Levantou a tampa de um pufe. O móvel virava uma cama. – Fique com o quarto. Seu dia amanhã vai ser cheio. – Colleen. – Sim, Colleen com certeza. E você recebeu meu torpedo? Tem uma reunião amanhã cedo. Carmine Noccia vai procurar você.
capítulo 11 MEU ASSISTENTE, CODY DAWES, ME parou quando passei perto de sua mesa. – Bom dia, Jack. Precisamos conversar sobre uns assuntos… – Só os urgentes, Cody. Ainda estou meio fora do ar. – Ahn, tudo bem então. Estou pedindo demissão. – Hein? O que houve? Pensei que estivesse feliz aqui. – Arrumei um papel com falas em um filme do Ridley Scott. Tenho diálogos. Ele abriu um sorriso largo, uniu as mãos, talvez até tenha dado um pulinho. Estendi a mão, apertei a dele e disse: – Que legal, Cody. Parabéns. – Não vou deixar você na mão. Já chamei umas pessoas para você entrevistar. Eu mesmo fiz a pré-seleção. Dei um suspiro.
– Está certo. O que mais? Eram oito e meia da manhã em Los Angeles, ou seja, cinco e meia da tarde em Estocolmo. Meu relógio biológico ainda estava no fuso horário da Europa central. – O Sr. Noccia já está aí. Tive que mandá-lo esperar na sua sala. – Pensei que eu fosse ter um tempinho antes de ele chegar. – Ele estava esperando encostado no meio-o, Jack. Dentro de um Mercedes com três outros caras que você não iria desejar como cunhados. Abri a porta da frente. Ele disse que queria entrar, então o mandei subir. Segui meu instinto. – Você ainda faz café? – Faço, sim – respondeu ele com um sorriso. Entrei na minha sala. Ela tem duas partes: meu espaço de trabalho em um dos cantos e uma área de estar e reunião no outro. Carmine Noccia estava sentado em uma cadeira ao lado da minha mesa. – Carmine – falei. Apertei a mão dele, dei a volta na mesa e me sentei. Todas as linhas telefônicas piscavam. Uma pilha de papel com quase 10 centímetros de altura se erguia à minha direita. Os compromissos à minha espera estavam expostos no monitor do computador. – Que cara boa essa sua, Jack. Parece que dormiu dentro de um armário no vestiário da academia. – É exatamente assim que me sinto com o jet lag – respondi. Noccia sorriu. Era boa pinta, quarentão, com dentes perfeitos e cabelos grisalhos, e usava
um terno feito sob medida e sapatos italianos costurados à mão. O retrato de um rock star da Máa moderna. Ao olhar para ele, o que se via não era o lho de um chefão, um capo da Máfia ou um assassino, mas um executivo saído da Ivy League. Cody trouxe uma grande garrafa térmica prateada cheia de café e um prato de biscoitos. Quando ele saiu, falei: – Del Rio me disse que você precisava falar comigo com urgência. Tentei não deixar transparecer na minha voz, mas o que estava perguntando na verdade era: que porra você quer comigo?
capítulo 12 – JACK, FODEU TUDO – DISSE Carmine Noccia. – Uma das minhas vans foi interceptada em Utah. Três dos meus caras foram mortos e desovados no deserto. Não acho que a polícia vá me ajudar a recuperar meus bens… o que precisa ser feito para ontem. Que bom que tenho você do meu lado. Eu não faço negócio com mafiosos. Ou melhor, não fazia. Não fazia negócio com maosos até Tommy Jr., meu irmão gêmeo univitelino, acumular uma dívida de jogo de 600 mil dólares e eu precisar pagá-la para impedir que sua adorável esposa ficasse viúva. Alguns meses antes, Del Rio e eu tínhamos pegado um avião até Vegas para visitar Noccia em sua mansão extravagante em estilo espanhol a uns 8 quilômetros da Las Vegas Strip. Tinha até cavalos de corrida e rio artificial. Eu levara comigo um cheque que cobria a dívida do meu irmão, e Noccia e eu trocamos
favores. Nesse dia, percebemos que ambos tínhamos servido como fuzileiros navais. Como os marines gostavam de dizer sobre si mesmos: “Amigo melhor impossível. Inimigo pior também.” Carmine Noccia e eu selamos o acordo com um aperto de mão. Agora, Noccia estava servindo um café para si. Acrescentou creme e me passou a garrafa térmica. – Os meus caras eram bons – disse ele. – Mas os assaltantes eram melhores. E é tudo que eu sei sobre os filhos da puta. – Quando foi isso? – Ontem à noite – respondeu Noccia. – A nossa van estava vindo de Chicago e seguia para oeste. Tínhamos instalado um chip de rastreamento nela. Ninguém percebeu nada de errado até a van passar por Vegas e seguir em frente até Los Angeles. Os assaltantes devem ter achado e destruído o chip quando pararam para fazer o inventário da carga. – Quer dizer que você acha que a van está aqui? – Eu diria que sim. LA é um grande centro de distribuição. A carga é valiosa, Jack. – Drogas? Ele assentiu. – Tarja preta. – Quanto? – Valor de revenda de 30 milhões. Agora eu entendia por que Noccia cara à minha espera antes de o escritório abrir.
Antigamente, a Máa não via com bons olhos o tráco de drogas, mas os remédios tarja preta eram um ramo em ascensão e altamente lucrativo, bom demais para ser ignorado. Remédios também eram fáceis de roubar em qualquer ponto da cadeia de distribuição. Qualquer lojinha com um cadeado de 12 dólares na porta podia ter um estoque de um analgésico como o OxyContin no valor de 150 mil dólares. Cada comprimido era uma pequena central de lucro cem por cento aprovada pela FDA, a agência reguladora de alimentos e medicamentos. Os comprimidos maiores de OxyContin eram compostos por 80 miligramas de cloridrato de oxicodona. A 1 dólar o miligrama, um só comprimido valia 80 pratas, e cada frasco tinha cem comprimidos. Isso signicava que um frasquinho apenas valia 8 mil dólares. Um caminhão inteiro, então, valia uns 30 milhões ou mais. O problema de Noccia era dos grandes. Ele estava desesperado para conter os danos, mas ao mesmo tempo não podia deixar ninguém descobrir que estava tracando remédios tarja preta. Era por isso que, em vez de soltar seus capangas no submundo, tinha ido me procurar. Os remédios vendidos ilegalmente matavam mais pessoas do que todas as outras drogas ilícitas juntas. Aquele era um negócio muito sujo e eu não queria me meter nele. Noccia se inclinou para mais perto e me encarou com seus grandes olhos castanhos. – Esperei trinta anos para dizer isso, Jack. Vou fazer uma oferta que você não vai poder recusar.
capítulo 13 ABRI UM SORRISO FALSO PARA Noccia e disse: – Carmine, eu não participo de missões para recuperar drogas. Esta agência presta serviços empresariais. Contratos com o governo. Essas coisas. – Vocês fazem mais do que isso, Jack, mas não é da minha conta. Minha oferta é dez por cento do valor de revenda. Ou seja, 3 milhões de dólares… em dinheiro vivo. Você só precisa descobrir onde está a carga. Com os seus contatos, isso deve levar no máximo alguns dias. Três milhões de dólares, Jack. Quantos maridos inéis você precisa seguir para ganhar essa grana? Cody me chamou pelo interfone. – Sr. Morgan, seu cliente das nove já está aqui. – Gostaria de ajudar você, mas esse não é o tipo de trabalho que faço – falei para Carmine.
Passei os olhos pela minha agenda: os compromissos se sucediam a cada meia hora até o nal do dia, como aeronaves aterrissando no Aeroporto de Los Angeles. Pensei em Colleen deitada em cima de uma mesa fria e no médico-legista abrindo seu tronco da clavícula até a linha do biquíni. No mesmo instante em que eu estava ali sentado, médicos vasculhavam minha casa, esmiuçando minha vida enquanto Carmine Noccia balançava milhões de dólares sujos bem diante do meu nariz. Ergui os olhos e olhei para aquele maoso que tinha um grande futuro pela frente, mas isso agora estava comprometido pela perda de uma carga descomunal e três capangas. A expressão de Carmine era fria. O momento das frases tiradas de O poderoso chefão tinha passado. Ele entrelaçou em cima da minha mesa os dedos de unhas bem-feitas. – Posso dobrar sua parte para vinte por cento – disse ele. – Livre de impostos. Seis milhões em dinheiro vivo. Quanto maior a proposta, menos eu queria ter qualquer envolvimento com ela – ou com ele. – Obrigado, Carmine, mas não estou interessado – falei. – Sinto muito, tenho outra reunião. – Levantei-me da cadeira. Noccia também se levantou. Tínhamos a mesma altura. – Jack, você não está me entendendo. O trabalho é seu. Resta você me dizer com que rapidez vai conseguir reaver a mercadoria… porque muito em breve essa mercadoria vai
estar espalhada pelo país inteiro e terei um rombo inaceitável de 30 milhões. Ligue para mim quando tiver encontrado a van. – Não, Carmine – insisti. – Não vai dar. – Que parte da expressão “oferta irrecusável” você não está entendendo, Jack? Você sabe o que estou querendo dizer. “Amigo melhor impossível.” Estou cobrando meu favor. Tome aqui meu telefone – disse ele, anotando o número em um envelope. – Nos falamos. Ele largou em cima da mesa a caneta, que deslizou por cima do tampo enquanto ele saía. Ouvi-o dizer para Cody: – Pode deixar, já sei onde fica a saída. Tornei a me sentar na cadeira e olhei pela janela a imensa paisagem urbana do centro de Los Angeles. Se não aceitasse o trabalho, o que iria acontecer? Será que eu estava preparado para entrar em guerra com a família Noccia? Mandei ligarem para Del Rio e passei alguns minutos debatendo a questão: o que era possível e qual seria o plano de ataque mais sensato e mais seguro. Rick deu sua opinião. Eu dei a minha. E então discutimos mais um pouco o assunto. Depois que estabelecemos um plano de ação, pedi a Cody que mandasse entrar meu cliente das nove.
capítulo 14 A BELA MULHER SENTADA NA POLTRONA azul me fez pensar nos velhos lmes de detetive em preto e branco, adaptações de romances de Raymond Chandler, Dashiell Hammett ou Mickey Spillane. Amelia Poole parecia uma cliente de Sam Spade: glamorosa, branca, quase 40 anos, com cabelos castanhos curtos e sem aliança no dedo. No lugar da piteira e da estola de pele em volta do pescoço, a Sra. Poole segurava um iPhone e em sua garganta luzia uma elegante corrente de ouro e diamantes. – O senhor parece ter passado a noite em claro, Sr. Morgan – comentou ela com um sorriso rápido, guardando o telefone na bolsa. – Digo isso porque eu também passei. – Tenho certeza de que a sua noite foi mais interessante do que a minha – retruquei, e tive um ash do quarto de Del Rio, com o colchão militar e as paredes brancas sem ornamentos.
Amelia Poole tinha um sorriso bonito, porém forçado. Seu olhar era sombrio. Por que teria vindo me procurar? Estaria sendo processada? Perseguida? Precisaria de mim para encontrar um filho perdido? Pelo dossiê que tínhamos a seu respeito, eu sabia que Amelia Poole havia comprado e reformado três velhos hotéis em pontos privilegiados e os transformado em caros hotéis cinco estrelas da cadeia Poole. Eu já fora ao bar que cava no último andar do Sun e me hospedara uma ou duas vezes no Constellation de São Francisco. Na minha opinião, as cinco estrelas eram merecidas. Em seu dossiê havia também a menção a alguns roubos seguidos de assassinato não solucionados cometidos em seus hotéis e em mais dois outros estabelecimentos e que haviam feito a Câmara de Comércio da Califórnia tremer. Os casos continuavam em aberto, mas na atual conjuntura político-econômica as mortes de turistas nunca saíam nas manchetes. – Me desculpe, Sra. Poole, mas não me disseram por que a senhora quer falar comigo. – Jinx – disse ela. – Como? – Pode me chamar de Jinx. É assim que todo mundo me chama. – Jack – falei. Servi o café e ela disse que tinha ouvido falar que nós da Private éramos muito bons. Ainda parecia nervosa, como se estivesse tentando esconder o que a incomodava. A Sra. Poole brincou com a corrente de diamantes enquanto me lançava breves olhares
fugidios. – Então, o que a fez procurar a Private? Ela despejou sua história: – Um hóspede foi morto ontem à noite no quarto em que estava hospedado no Sun. Não contei a ninguém. Nem avisei à polícia ainda. Estou com medo. É o terceiro hóspede assassinado em um dos meus hotéis e não sei o que fazer.
capítulo 15 ROUBOS EM HOTÉIS NÃO ERAM raros, mas assassinatos, sim. Jinx Poole informou que todas as vítimas – três mortas em seus estabelecimentos, duas em outros hotéis da Califórnia – eram executivos, hóspedes de fora da cidade que viajavam sozinhos. – A polícia não serviu para nada – disse ela. – Da última vez que apareceram, isolaram o hotel e fecharam o bar por 48 horas. Interrogaram todos os hóspedes, enlouqueceram meus funcionários e não encontraram nenhum suspeito. Zero! Nossas reservas despencaram. Estamos com quartos vazios na alta temporada… Sério, quem é que quer se hospedar em um hotel onde uma pessoa foi assassinada? Fez uma pausa antes de continuar: – Jack, estou desesperada. Tem gente morrendo. E eu não sei por quê. Não sei quem está fazendo isso. Mas esses hotéis são tudo o que eu tenho na vida. Preciso da sua ajuda. Eu queria dizer a Jinx Poole que chamasse o Departamento de Polícia de Los Angeles
para investigar o crime e contratasse a Private em paralelo de modo a montar um esquema sólido para fazer o inquérito avançar, mas aquela mulher estava me afetando. Apesar de vulnerável, tinha coragem e se esforçava para solucionar o problema. Isso me agradava. Eu entendia o que ela estava sentindo. Perfeitamente. Nós da Private não tínhamos uma equipe grande o suciente para investigar uma série de crimes com várias vítimas sem o envolvimento ocial das forças de segurança pública. Estávamos cheios de trabalho e agora nossa prioridade número um era descobrir quem havia matado Colleen Molloy. Fiz algumas perguntas a Jinx na esperança de que as respostas me ajudassem a decidir o que fazer. Ela me contou que o hóspede assassinado no Sun se chamava Maurice Bingham, tinha 40 e poucos anos, morava em Nova York, trabalhava com publicidade e viera a Los Angeles a trabalho. Ninguém relatara ter escutado nenhum barulho de briga. Os funcionários do hotel conheciam Bingham. Ele pagava a conta com cartão de crédito e não exigia nada de extraordinário. Só iria embora no dia seguinte – uma informação promissora. Isso signicava que ninguém ainda estaria procurando por ele em Nova York e era razoável supor que, àquela hora do dia, com o aviso de “Não perturbe” aceso, nenhuma camareira teria encontrado seu corpo. – Me fale sobre o seu sistema de segurança. – Há câmeras nos corredores, claro. E algumas na piscina também.
– Preciso que você desligue as câmeras no andar do crime por mais ou menos uma hora, para podermos entrar e sair. É possível? – Sim. Isso quer dizer que você aceita o caso? – Não posso prometer nada, mas vamos dar uma olhada no quarto e no cadáver. Pense nisso como uma consultoria. – Entendo. – Vou precisar ter acesso ao quarto. Jinx Poole abriu a bolsa, pegou um cartão que abria todas as portas e me entregou. – Preciso de um lugar para car por uma ou duas noites. Posso me hospedar no Sun – falei. – Ótima ideia – disse Jinx Poole. – A Suíte Coppola está vazia. Fique à vontade.
capítulo 16 COM EXCEÇÃO DOS ATERROS SANITÁRIOS, quartos de hotel são o pior lugar do mundo para se recolher indícios forenses. Mesmo nos estabelecimentos cinco estrelas haverá DNA, bras e impressões digitais de algumas centenas de hóspedes anteriores. Mas valia a pena tentar. Carl Mentone, um geek especialista em alta tecnologia conhecido na Private como Kid Camera, operava no laptop o programa Delta, que mapeava a Suíte Bergman de todos os ângulos possíveis. Meu laptop ganhou vida e começou a exibir em streaming um vídeo em alta resolução enviado por satélite até o meu escritório. Conseguia ver Sci, Del Rio e Emilio Cruz entrarem no quarto como se eu estivesse na soleira da porta, e Kid me proporcionou um tour virtual do que seria uma noite de 1.500 dólares em um hotel de Beverly Hills. Cortinas de seda dourada emolduravam as janelas. Móveis confortáveis se agrupavam em
volta de uma mesa de mogno e obras de arte enfeitavam as paredes. As luminárias estavam em pé, as almofadas todas no lugar. Não houvera luta. O que, então, tinha acontecido ali? Ao lado da escrivaninha, parecendo uma escultura particularmente grotesca, estava o cadáver. Sci se abaixou junto ao corpo de um homem branco vestido com uma calça escura e uma camisa branca desabotoada. Os cabelos exibiam um corte impecável. Ele usava aliança. No pulso, uma faixa branca marcava o lugar onde antes ficava um relógio. Sci examinou o pescoço do morto. – Garrote – disse. – Um o de cobre no revestido, do tipo que se encontra em lojas de ferragens. A vítima tentou se soltar com as mãos, mas não conseguiu. – Algum documento de identidade? – A carteira não está com ele – respondeu Sci. Cruz se aproximou da câmera e disse: – Nenhum problema com a fechadura, Jack. Ou a vítima deixou o assassino entrar ou ele tinha uma chave. Tem uma garrafa de Chivas aberta em cima da mesa com dois copos. Restos de uísque no fundo. – Vamos até o quarto – falei. Kid foi na frente e colocou o laptop em cima de uma mesa. A qualidade das imagens que eu estava recebendo era tão boa que pude ver a trama da colcha de jacquard embolada no chão. Havia também travesseiros caídos no carpete. Os lençóis estavam embolados ao pé
da cama. – Isso está com cara de sexo – comentou Kid. Sci pousou o kit de investigação no chão e começou a trabalhar passando sobre os lençóis com uma fonte de luz forense com comprimentos de onda variáveis. – Tem razão. Alguém transou aqui – comentou. – Também não tem nenhuma carteira aqui – disse Cruz, vasculhando uma pequena pilha de objetos pessoais sobre a mesa de cabeceira. Caneta esferográca, moedas, as chaves de um carro alugado. Kid levou a webcam até o banheiro. Vi um calção de banho e óculos de natação pendurados em um gancho atrás da porta, uma nécessaire em cima da bancada, toalhas jogadas no chão. Emilio Cruz se sentou na privada fechada e falou para a câmera: – Jack. O assassino estava calmo, talvez fosse prossional. Não há sinal de luta. Como eu disse, o cara deixou o assassino entrar. Tomou um drinque com ele e depois talvez tenha dito ou feito alguma coisa que deixou o cara puto. O assassino veio por trás e o estrangulou. Bingham não teve a menor chance.
capítulo 17 ENQUANTO EU VIA A SUÍTE Bergman a 15 quilômetros de distância, Cody me mantinha informado sobre os telefonemas que entravam. Suas mensagens saltavam do lado esquerdo da minha tela. Eu ia respondendo enquanto assistia a Del Rio passar o pente-no na suíte em busca de indícios. Ele estava a poucos metros do morto quando algo chamou minha atenção. – Kid, o que é aquilo em cima da escrivaninha? – perguntei. – Um catálogo telefônico – respondeu ele. – Local. De Beverly Hills. Ele chegou perto da lista, que estava aberta de cabeça para baixo, e pegou o calhamaço com a mão enluvada para me mostrar as páginas. Pude ler as palavras com tanta nitidez quanto se o catálogo estivesse na minha mão. A categoria era Serviços de Acompanhante. – Interessante – falei. – Talvez o Sr. Bingham tenha pagado pela companhia aqui no
quarto. – Pode ser, Jack. Você acha que foi uma mulher que fez isso? Ela teria que ser forte para estrangular um cara deste tamanho. – Sci, conseguiu as digitais de Bingham? – Ã-rã. E umas duzentas outras que recolhi nos móveis e poderiam pertencer a qualquer pessoa. Este quarto está lotado de DNA até o teto. – Precisam de mais alguma coisa? Ele deu de ombros como quem diz: “O que eu posso fazer?” Se a polícia nos surpreendesse na cena do crime, a Private teria de fechar as portas. – Certo. Acho que está na hora de ir embora – falei. Meus funcionários fecharam as maletas e andaram na direção da porta. Kid virou a câmera para o próprio rosto de 22 anos de idade, empolgado, e disse que iria lmar o corredor e as saídas. Quando o streaming parou de ser transmitido, liguei para Jinx Poole. – Jinx, já pode religar as câmeras de segurança. E vou precisar de uma cópia das imagens do quinto andar ontem à noite. – Já providenciei uma para você. – Ótimo. Pode entregar na recepção aos cuidados de Rick Del Rio. Já está na hora de fazer uma das camareiras descobrir o corpo e chamar a polícia. – Ah, não. – Não tem jeito.
Eu estava dizendo à minha nova cliente que estaria no bar do hotel à noite quando outra mensagem instantânea de Cody apareceu na minha tela. O texto dizia: “O inspetor Tandy e o investigador Ziegler estão aqui para falar com você.” Senti um vazio, como se minhas entranhas tivessem evaporado. O que eles queriam comigo? Será que tinham alguma pista sobre o assassinato de Colleen? Falei a Jinx que a veria mais tarde. Então pedi a Cody que mandasse entrar o policial mau e seu colega.
capítulo 18 MITCH TANDY E LEN ZIEGLER entraram na minha sala e olharam em volta como se tivessem acabado de comprar o lugar em um leilão às cegas e o vissem pela primeira vez. Indiquei-lhes a área de estar e Tandy se sentou. Ziegler deu uma olhada em volta – na vista das janelas, nas estantes, nas fotos penduradas na parede. – Por que você mexeu na cena do crime, Jack? – perguntou-me Tandy. – Está tudo meio arrumadinho demais, se é que você me entende. A garota morre bem no meio da cama, ainda de sapato. Não deixa digital nenhuma, nem mesmo no banheiro. Pela minha experiência, uma garota sempre usa o banheiro. Aqueles policiais não tinham ido me procurar com alguma novidade. Estavam ali para ler minhas reações, me assustar, me surpreender mentindo ou me contradizendo em relação ao que havia falado na noite passada. – Ela já estava morta quando eu cheguei – falei. – Vocês estão vendo a mesma coisa que
eu vi. – Jack, eu sou um cara justo. Não, Tandy não era um cara justo, pensei. Ele era um ser humano vil. A inveja que ele sentia dos outros e a falta de autoestima, da qual nem tinha consciência, o faziam ser assim. Aquele homem era um perigo. – Me diga o que realmente aconteceu, assim vai conseguir deixar essa história para trás – disse ele. – Mitch, eu já contei tudo o que sei. – Tudo bem. Ele se inclinou por cima da mesa de centro, endireitou uma pilha de livros e continuou: – Agora quero lhe apresentar minha teoria sobre como essa moça morreu. Colleen Molloy estava apaixonada pelo chefe. Quanto a isso não resta dúvida. Não há nada de incomum nisso. Acontece o tempo todo. Mas essa moça em especial, essa Colleen, tentou se matar depois que o namoro de vocês terminou. Isso é fato. A tentativa de suicídio me informa que ela era uma pessoa emotiva. Instável. – Ela cortou os pulsos uns seis meses atrás – disse Ziegler do outro lado do aposento. Ele segurava um canivete de uns 15 centímetros de comprimento e cabo de madrepérola. Lançou-o para cima e tornou a pegá-lo e continuou fazendo isso enquanto falava. – Colleen sobreviveu. Largou o emprego, mudou-se de volta para a Irlanda, mas retornou a Los Angeles duas semanas atrás para visitar amigos. – Isso mesmo – prosseguiu Tandy. – Agora estamos atualizados. Então, na quarta-feira
passada, Colleen almoçou com você no Smitty’s, mas seja lá o que tenha acontecido não a deixou inteiramente satisfeita. Ela conhece os seus horários, sabe a que horas você vai chegar em casa, etc., e ontem à noite pegou um táxi e apareceu sem ser convidada. Seu tom de voz era neutro. Nenhuma intimidação. Nenhuma ameaça. Mas Tandy estava expondo sua teoria de que eu era o culpado e a baseava em fatos consistentes. – Você tem uma imaginação fértil, Mitch – observei. – Mas Colleen estava namorando um cara em Dublin. Ela não estava me perseguindo. – Não falei que ela estava. Ela queria conversar. Sabia a que horas você chegaria em casa. Usou a chave de acesso e cou esperando. Você entrou. Ela disse: “Surpresa, Jack, eu ainda te amo. Vou te amar para sempre.” – Tandy, você está me deixando enjoado, sabia? Nada disso aconteceu. Colleen e eu éramos amigos. Só isso. – Você estava cansado quando ela apareceu. Foi o que nos disse. Voo longo, várias escalas. Não estava com disposição para aturar uma ex-namorada carente, mas talvez tenha tentado ser cavalheiro. Ziegler agora estava de pé, com o canivete novamente guardado no bolso, caminhando em direção à minha mesa. Levantei-me, fui até lá, fechei o computador e falei para Tandy por cima do ombro: – Nada do que você disse é verdade. – É só uma conversa – retrucou ele, amigável. – Só isso. Quando eu terminar de lhe expor a minha teoria, você pode me expor a sua.
capítulo 19 TANDY ESTAVA ADORANDO DESFIAR AQUELE seu roteiro “Jack Morgan é culpado” . Sentado ali no meu sofá, fedendo a curry, ele gesticulava à medida que se aproximava do clímax de sua “teoria”. – Então a moça estava chorando, ou sei lá o quê, ou quem sabe estivesse de pilequinho. Foi isso? Ela estava exaltada? Histérica? Seja como for, estava alterada. E foi aí que as coisas caram difíceis. Você falou que não estava mais interessado. “Obrigado, mas não. Vamos ser amigos.” E ela não quis ser rejeitada outra vez. Então resolveu se matar. Aquilo ia te dar uma lição. O que Tandy estava dizendo doeu. Sim, Colleen ainda sentia alguma coisa por mim. E eu sentia alguma coisa por ela. – Muito dramático, Tandy, mas, como já falei várias vezes, não fui eu. – Então, como eu estou dizendo, Colleen sabia onde você guarda sua arma. Tentou pegá
la. Vocês lutaram. Os dois caíram em cima da cama… e a arma disparou. Gatilho sensível. Pou. Pou. Pou. Ela foi atingida no peito. – Isso nunca aconteceu. – Colleen foi baleada. Foi um acidente. Conheço você o suciente para armar isso, Jack. Mas você não pode mudar o que aconteceu. E agora essa pobre moça angustiada está morta na sua casa. É claro que você poderia dar um m no corpo, mas pensou bem. Talvez Colleen tenha comentado com algum amigo que iria passar na sua casa. Não há como saber. Ou talvez você tenha ficado com medo. Entrado em pânico. Perdido a cabeça… – Ziegler, fique longe da minha mesa. – O que é que há, Jack? Tem alguma coisa aqui que eu não possa ver? Ziegler se aproximou de onde eu e Tandy estávamos sentados. Imaginei-me dando um soco no meio de seu sorriso desdentado. – Se eu estiver errado, me faça acreditar no que tem a dizer que eu o ajudo – disse Tandy. Quanta educação. Ele estava se protegendo, isso sim, porque o chefe de polícia e eu éramos amigos. – É minha vez de falar? – perguntei. – Vamos lá – disse Tandy. – Certo, então. Vocês têm que me considerar suspeito. Entendo isso. Mas estão perdendo seu tempo. Alguém armou para cima de mim. Alguém que não gosta de mim. Essa pessoa raptou Colleen, obrigou-a a entregar sua chave do portão e usou a impressão digital dela
para abrir a porta. Essa pessoa a levou para dentro da minha casa e lhe deu um tiro em cima da minha cama. O atirador foi embora antes de eu chegar. Imaginou que a polícia não fosse investigar com muito afinco ninguém além de mim. Esse era o plano. Tandy sorriu. – Mas é aí que a sua história sai dos trilhos, Jack. Tem uma falha nos seus horários. Você saiu do aeroporto às cinco e meia, mais ou menos. Pegou um pouco de trânsito. Chegou em casa às seis e meia. Pelo menos é o que diz. Às oito, ligou para o chefe de polícia. Passou mais tempo enquanto Fescoe ligava para a delegacia e eram efetuados os trâmites necessários. Quando Ziegler e eu nalmente chegamos, quase duas horas haviam se passado desde que você chegara em casa. Houve tempo de sobra para balear a moça, se livrar da arma, jogando-a no mar junto com o disco rígido do seu sistema de segurança. Aí você tomou uma ducha, lavou os cabelos… caramba, pode até ter chamado o seu pessoal para fazer uma limpeza profissional e deixar o lugar como se nada tivesse acontecido. – Mitch, a leitora informa que a chave de Colleen foi usada às seis da tarde – falei. – A essa hora, nós mal tínhamos saído do aeroporto. – E daí? Ela esperou você chegar. Ou então você adulterou o programa de segurança depois. Olhe aqui, Jack, eu sou um cara justo. Me diga uma coisa: quem você acha que matou Colleen? – Eu não sei. Gostaria de saber. – Bom, pense um pouco. Seria útil para mim ter a sua opinião. Por que não faz uma lista dos seus inimigos? Eu posso investigá-los. Pessoalmente. Está certo? Pode me ligar, Jack. A
qualquer hora. – Obrigado, Mitch. Vou ligar, sim. Apertei a mão dos policiais e Cody os acompanhou até o elevador. Filhos da mãe. A situação estava clara como o dia. Eu teria de encontrar o assassino de Colleen. Cabia a mim salvar minha própria vida.
capítulo 20
ENGOLI UMA ASPIRINA, DEPOIS PASSEI alguns minutos sentado à minha mesa para tentar processar um pouco a avalanche de e-mails e telefonemas que havia se acumulado. Quando ergui os olhos, Sci estava sentado à minha frente. Não o ouvira entrar. Parecia ter se materializado do nada. Se alguém fosse capaz de fazer isso, era o Dr. Sci. – Que diabo é isso? – Estava pensando – respondeu ele. Sci estava usando uma camisa vermelha meio para fora da calça, e seus sapatos de boliche se apoiavam na borda da minha mesa. Ele tinha o rosto de um querubim e o cérebro de um Einstein – isso se Einstein tivesse vivido na era digital. Como não tinha, dava para dizer que o Dr. Sci era ainda mais inteligente. – Pensando em quê? – Tenho novidades, Jack. E não consigo achar nada de bom nelas. – Desembuche.
– Conversei com uma pessoa. Além de possuir diplomas avançados, Sci havia trabalhado por dois anos no laboratório de criminalística do Departamento de Polícia de Los Angeles, onde zera um rodízio nas áreas de balística, bras e DNA. Tinha contatos quentes no milionário laboratório da polícia da cidade e seus amigos peritos eram próximos dos policiais. Um desses amigos esperava que Sci o levasse para trabalhar na Private. Nós havíamos concordado muito tempo antes que Sci me daria as informações em o e eu, por minha vez, não faria nenhuma pergunta estranha. – Houve uma testemunha – disse Sci. – Alguém viu Colleen? – Alguém viu você, Jack. Na praia. Uma vizinha chamada Bobbie Newton. Você conhece? – Por alto. Ela mora na praia, umas duas casas depois da minha. – Ela disse que ontem à noite foi correr e viu você na praia falando ao telefone. Acenou, e você acenou de volta. – Quando isso? – Umas seis e pouco, por aí. Ela não tem certeza. Não estava de relógio. – Ela me viu? – É o que está dizendo. – Pelo amor de Deus, Sci. Eu não fui à praia. Não queria ter aqueles pensamentos que rodopiavam pela minha cabeça, mas as peças
estavam começando a se encaixar. Um quebra-cabeça. Quem poderia ser eu e ao mesmo tempo não ser eu? Meu companheiro de útero. Meu inimigo. – Tommy – falei. – Quem mais? – As digitais no quarto eram todas suas. – Nós somos gêmeos idênticos – falei. – Sim, mas as digitais não. O formato das digitais é denido pela movimentação do bebê no líquido amniótico. As de Tommy são ligeiramente diferentes das suas. Jack, você acha mesmo que Tommy matou Colleen? – Ele a conhece. E me conhece. Pode ter se aproximado dela e a forçado a entregar a chave, ou então pressionado o dedo dela na fechadura biométrica. Ele tem um motivo. Porra, meu irmão me odeia com todas as forças.
capítulo 21 DESCI PELA ESCADA ATÉ A sala de Justine, que cava logo embaixo da minha. Três de nossos colaboradores estavam sentados em volta de sua mesa semicircular: Kate Hanley, Lauri Green e Bud Rankin, nosso camaleão virtual e detetive sessentão. Justine estava dividindo entre eles as tarefas de coletar informações sobre todas as cinco pessoas assassinadas nos hotéis. Quando ela ergueu os olhos, os longos cabelos escuros cortados na altura dos ombros emolduraram seu rosto bonito. Ela agradeceu à equipe, e os três saíram da sala. Sentei-me e lhe falei sobre a proposta irrecusável de Noccia. – Não vamos aceitar o serviço, vamos? – Eu não quero aceitar. – Meu voto é não, de jeito nenhum, nem pensar.
– Anotado. – Agora me conte as últimas novidades em relação a Colleen. Sobre mim e Justine: há alguns anos, compramos, como presente de casamento conjunto, a casa na praia onde hoje eu moro. Transamos bastante e nos divertimos bastante naquela casa. A verdade é que combinamos sob todos os aspectos – menos um. Eu não gosto de me abrir. E Justine é psiquiatra. Eu sou discreto, ou o que ela chama de “excessivamente defensivo”, e isso a irrita. Então ela se fecha. E continua irritada. Nós namoramos. Depois rompemos, depois tentamos de novo, com o mesmo resultado. Após a segunda ruptura, há mais de um ano, comecei a sair com Colleen – e Justine começou a sair com um cara que não era bom o bastante para ela. E, há alguns meses, ambos camos solteiros outra vez e começamos a sair de forma descompromissada. Eu continuava sem conseguir me abrir. Ela continuava sem conseguir aturar isso. Pouca coisa havia mudado, portanto; tanto no bom quanto no mau sentido. Sentado ali, olhando para ela, eu não conseguia entender por que precisava falar, já que Justine era praticamente capaz de ler meus pensamentos. Nesse exato momento, ela estava retirando as camadas da minha armadura. – Há uma testemunha – falei. – Uma vizinha diz que me viu na praia mais ou menos na hora em que Colleen foi morta. – Não estou entendendo. – Não era eu. Recostei-me na cadeira sem desgrudar os olhos dos de Justine.
– Meu Deus. Era Tommy – disse ela. Nós dois estávamos pensando em meu gêmeo mau. Ele se atreveria a tentar me incriminar pelo assassinato de Colleen? Será que me odiava tanto assim? – O que você acha que aconteceu? – perguntou Justine. – Acho que alguém a obrigou a entrar lá em casa, talvez sob a mira de uma arma. Ela estava com a chave do portão eletrônico e a pessoa que a matou pressionou o dedo dela na leitora. – Colleen ainda tinha acesso? – Não só ela. Você também tem. – Tenho certeza de que esse é um grupo bem grande – disse ela, girando a cadeira para me dar as costas. – Não estou escondendo nada de você – falei, mas não era totalmente verdade. Ela tornou a se virar para mim. – Jack, você não está me dizendo tudo. Ela estava certa. Mas a parte que eu estava deixando de fora não tinha nada a ver com o assassinato de Colleen. – Colleen e eu almoçamos juntos. Eu estava com a cabeça cheia. Tinha um avião para pegar. Ela estava bem-disposta. Ela me pareceu bem, mas não falamos sobre nada importante. Alguém teve muito trabalho para me incriminar. – Está bem. – Vou passar uns dias no Sun. Até a polícia me devolver a casa. Quer jantar comigo no
hotel? – Hoje não – respondeu ela. – Tenho compromisso. Era mentira. – O que você vai fazer em relação a Tommy? – O que você faria? – Voltaria no tempo e enrolaria o cordão umbilical em volta do pescoço dele. Daria um nó de forca e apertaria bem. – Queria ter tido essa ideia. Nós dois rimos, um riso alto e demorado. Rir fez eu me sentir muito bem.
capítulo 22 DEL RIO ESTAVA EM SUA sala com Cruz, trabalhando no caso e comparando as ligações que Maurice Bingham tinha feito pelo celular com a lista dos serviços de acompanhante das páginas amarelas de Beverly Hills. – Uma vez namorei uma garota de programa – disse Del Rio. – Essa eu não posso deixar de escutar – retrucou Cruz, aproximando a cadeira da mesa de Del Rio para ver a tela do computador. – Eu me inscrevi na seção “papai presente especial” – começou Del Rio. – “Garotas presente especial” saem com um cliente só até ganharem dele dinheiro suciente para comprar o tal presente. O nome dela era Chelsea. Muito bonita, muito inteligente. Estava cavando seu lugar ao sol no mundo da moda quando uma amiga lhe disse que ela podia ganhar uma grana fazendo programas. O suficiente para abrir seu próprio negócio. – Quando foi isso? Antes ou depois de você sair da prisão? – quis saber Cruz.
Cruz era um rapaz atraente de 27 anos. Usava os cabelos escuros presos em um rabo de cavalo curto. Tinha a barba feita e só andava de preto. Havia sido boxeador peso médio, policial e investigador da promotoria do condado. Atualmente era investigador sênior na Private. Sua carreira estava decolando. – Depois. Nem te conto como eu estava na seca naquela época. Um beijinho podia me levar à loucura – disse Del Rio. – Pronto, aqui está – interrompeu Cruz, apontando para o número na tela. – Bingham ligou para um serviço de acompanhantes chamado Phi Beta Girls. Del Rio digitou o nome da empresa no browser e um site se abriu na tela do computador. Cruz leu em voz alta a descrição marqueteira: – “Lindas garotas de todas as etnias. Além de lindas, extremamente inteligentes”, blá-bláblá. “Todas adoram trabalhar como acompanhantes” , haha. “Escolhidas por especialistas para encontrar o par ideal.” Ah, com certeza. Para encontrar o cartão de crédito ideal, isso sim. – Chelsea queria colocar silicone nos peitos, então, sabe como é, tive que sair umas três vezes com ela para cobrir o preço da cirurgia, e aí ela começou a querer outro “presente especial” . Queria um carro. Como eu não tinha 50 mil de bobeira, Chelsea me deu um pé na bunda e me trocou por outro papai-presente, dono de uma concessionária de carros de luxo. Agora só anda por aí de Bentley. Cruz riu. – Nada mal por algumas horas de trabalho.
– E pensar que a minha beleza e as minhas habilidades na cama não signicaram nada para ela – comentou Del Rio. – Eu era um partidão. – Você ainda é a fim dessa mulher? – quis saber Cruz. – Sou. Ela foi o amor da minha vida – respondeu Del Rio. – Estou de sacanagem, seu mané. A Chelsea era garota de programa. – Ele riu e voltou a atenção para a tela outra vez. – Certo, a Phi Beta tem um portfólio de umas cem acompanhantes. Olhe só para essas garotas. Jessie. Seiscentos dólares por hora. Mínimo de duas horas. Três mil para passar a noite. “Diana, coelhinha da Playboy, uma celebridade…” – Olhe o endereço da empresa aqui – disse Cruz. – Vamos dar um rolé.
capítulo 23 DEL RIO DESCEU DO BANCO do carona do Mercedes de serviço. Caminhou entre os pilares de concreto do portão, de quase 2 metros e cobertos de ores, e subiu a escada de tijolos em forma de meia-lua até as portas envidraçadas do Beverly Hills Sun. O porteiro abriu a porta, Del Rio foi até o balcão e disse à moça de terno preto e cabelos curtos: – Deixaram um pacote para mim. Rick Del Rio. A moça, com o nome Amy Wang em um crachá preso na roupa, pediu: – Posso ver sua identidade? Del Rio pensou que, se Cruz tivesse ido ao balcão no seu lugar e dito a mesma coisa, a moça teria feito um biquinho e dado alguma indireta para descobrir o telefone dele. Se ele fosse bonito como Cruz, ou como Jack, aliás, o mundo inteiro estaria aos seus pés. Mostrou sua carteira de motorista. Ela se abaixou sob a bancada de mármore preto e
voltou trazendo um envelope pardo lacrado com seu nome escrito. – Obrigado, Amyzinha – disse ele, recolhendo o envelope de cima do balcão. Instantes depois, estava de novo no carro em que Cruz o esperava. Enquanto seguiam para oeste pelo Wilshire Boulevard, Del Rio inseriu o CD na bandeja do computador de bordo e deu início ao vídeo de segurança que registrava 24 horas por dia a movimentação do quinto andar do Sun. Data e hora estavam registradas no vídeo, de modo que Del Rio pôde retornar até as cinco horas da tarde de domingo, pressionar a tecla de avanço rápido, assistindo às pessoas como se fossem bonecos de madeira entrando e saindo de elevadores e subindo e descendo o corredor, ou então pegando a saída que conduzia à piscina do último andar. – Putz – comentou ele enquanto Cruz entrava à direita no Westwood Boulevard. – É isso que eles chamam de segurança? – Você viu? – indagou Cruz. – Vi o quê? – Acho que era a Sandra Bullock naquele carro que passou disparado por mim como se eu estivesse parado no sinal. – A saída para o último andar. Supostamente deveria ser apenas para saída, mas com alguém segurando a porta dá para entrar também. Todo mundo faz isso. – Um Jaguar vermelho – falou Cruz. – Tenho quase certeza de que era ela. – O 502 ca meio longe da câmera – continuou Del Rio –, mas acho que a nossa vítima é esse cara aqui. Saiu do elevador e caminhou na direção oposta. Calça escura. Camisa
branca, paletó esportivo. É, é ele mesmo. Estava vivo às 17h38 de ontem. – Me avise quando a garota de programa aparecer – pediu Cruz. – Lá vem ela – disse Del Rio. Ele trocou o avanço rápido pela velocidade normal e cou olhando a mulher sair do elevador. Ela usava um vestido azul curto e um sutiã push-up que fazia seus peitos pularem para fora do decote. Uma clutch na mão. Sapatos de salto agulha. Cabelos castanhos compridos. – Nota nove – disse Del Rio, acompanhando a imagem da mulher que avançava até o 502 e batia na porta. Maurice Bingham atendeu. A mulher sorriu, disse alguma coisa e entrou. Horário: 18h13. – Não deu para ver muito bem a cara dela – comentou Del Rio. – Mas a cronologia faz sentido. A que horas ele ligou para a Phi Beta? – Quinze para as seis. – Certo. E a garota chega às 18h13. Vamos ver por quanto tempo ele pagou. Del Rio aumentou a velocidade do vídeo e cou vendo as pessoas andarem como Charlie Chaplin de um lado para outro do corredor, passarem pela porta que conduzia ao último andar, descerem do último andar, e então, às 20h15, a moça de vestido azul saiu do quarto 502 e tomou o rumo do elevador. Del Rio congelou o vídeo na melhor imagem de seu rosto, mas não era muito boa. No entanto, já era alguma coisa.
– É isso – falou. Enviou a imagem capturada para Jack por e-mail, com cópia para si mesmo. – Bingham teve suas duas últimas horas de prazer antes de a bonequinha o matar – comentou com o colega. – Rolam os créditos. Tela preta.
capítulo 24 O ESCRITÓRIO DA PHI BETA GIRLS cava em uma pequena casa de três andares na Hilgard Avenue, em Westwood, numa área conhecida também como Quarteirão das Irmandades da UCLA. Cruz encostou o Mercedes junto ao meio-o, ao lado da coluna de um portão de madeira em que estavam inscritas as letras gregas phi, beta e gama. Cruz e Del Rio desceram do carro, passaram pelo portão e subiram uma passagem até a porta da frente da velha casa de estuque cor de terra. Del Rio tocou o interfone. Um rapaz latino de 20 e poucos anos veio abrir a porta: cabelos lambidos para trás, sobrancelhas feitas, chinelos de dedo, uma calça de ioga branca imaculada e uma túnica também branca. Cruz mostrou o distintivo. Um escudo dourado dentro de uma carteira de couro. Parecia um distintivo oficial verdadeiro. – Pois não? – disse o rapaz.
– Precisamos falar com a dona da casa. Susan Burnett. Estamos investigando um homicídio. – Esperem aqui, por favor – disse o rapaz de branco. – Talvez seja melhor não ficarmos parados em frente à sua porta – respondeu Cruz. – Eu já volto. Cruz virou as costas para a porta e ergueu o queixo, mãos unidas nas costas, sorvendo o aroma de jacarandás e bananeiras, enquanto Del Rio se apoiava em um pé, depois no outro, até o sujeito voltar. – A Srta. Burnett vai recebê-los. A cafetina, alcoviteira ou como quer que quisesse ser chamada tinha a pele cor de cappuccino e o corpo de quem praticava pilates. Estava correndo em uma esteira na sala de ginástica nos fundos da casa, cujas janelas de gelosia davam para a piscina. Del Rio a achou uma gata. Com certeza ela própria devia ter sido garota de programa até poucos anos antes. Tocou o ombro da mulher e ela se virou, desligou a esteira e desceu do aparelho. Enrolou uma toalha no pescoço. Del Rio tornou a erguer o distintivo, sem dizer que trabalhava para o Departamento de Polícia de Los Angeles, mas dando a entender. Não havia crime nenhum em “dar a entender”, embora se fazer passar por agente de polícia fosse uma contravenção. – Meu nome é Rick Del Rio. Este é meu colega Emilio Cruz. Estamos investigando um homicídio. Não estamos aqui por causa das suas atividades prossionais. Trata-se de um crime que ocorreu ontem à noite no Beverly Hills Sun.
– É possível que haja uma testemunha, uma moça que trabalha para a senhora – disse Cruz. – Posso pôr meu CD no seu aparelho? – Nossa. O senhor é direto, Sr. Cruz – respondeu Susan Burnett com um sorriso seco. – Posso ver o distintivo outra vez? Cruz tirou o seu do bolso da jaqueta, antecipando-se à indignação dela: – Nós somos investigadores da Private. Não vamos falar com a polícia. Se não tivermos motivo. – Quem deveria chamar a polícia sou eu, só para ver o que vocês fariam. – Se quiser transformar esta pequena investigação em um caso ocial, que à vontade – disse Del Rio. – Os tabloides vão adorar. Burnett pensou por um instante. – Eu não gostaria de apostar contra você, Sr. Riacho – falou. – Venham comigo. – Ela subiu uma escada em caracol à frente de Cruz e Del Rio.
capítulo 25 O CÔMODO DE ONDE OS NEGÓCIOS da empresa eram conduzidos já havia sido um quarto de dormir, mas agora estava equipado com uma mesa de reunião. Três mulheres com mais de 30 anos, uma delas acima dos 50, estavam sentadas em volta da mesa, cada qual diante de um computador Sony e usando fones de ouvido. Nas paredes estavam pregados cartazes de turismo. St. Barth. Cozumel. A mais velha estava organizando um voo: – Consegui dois lugares na primeira fila da primeira classe para o dia 15, Sr. Oliver. Uma boa fachada para um serviço de acompanhantes, pensou Del Rio. As duas outras mulheres apenas o encararam. – Então, pode me dar o tal CD – disse Burnett. Del Rio lhe entregou o disco e se postou atrás de Burnett enquanto ela botava o vídeo para rodar.
– Que imagens são essas? – Posso? – pediu Del Rio. Ele se inclinou por cima do ombro de Burnett e voltou a imagem até o horário e a data imediatamente anteriores ao momento em que a garota de programa descia do elevador. Então apertou o PAUSE e explicou: – Nós sabemos que o Sr. Maurice Bingham entrou no quarto 502 do Sun às 17h38 de ontem. Sete minutos depois, às 17h45, ele ligou para a Phi Beta. A ligação durou três minutos. Houve uma transação por cartão de crédito às 17h48 no valor de 1.200 dólares, mais taxas, em nome da Phi Beta Girls. – Não tenho certeza se o Sr. Bingham era um cliente – disse Burnett. – Nossos clientes nem sempre usam os nomes verdadeiros. – Bingham usou o nome verdadeiro e um MasterCard também genuíno. Nós vericamos. Essa imagem que a senhora está vendo é do quinto andar às 18h13 de ontem. E esse é o “compromisso” do Sr. Bingham – falou Del Rio, fazendo o vídeo avançar até a hora em que a moça entrava no quarto. – A gatinha assanhada passou duas horas exatas no quarto 502, e aqui – ele adiantou mais a imagem – está o momento em que ela foi embora. Bingham nunca mais foi visto com vida. Del Rio congelou a imagem da acompanhante de 600 dólares por hora, em seguida ejetou o CD e o entregou a Cruz. – Precisamos falar com essa moça – disse Del Rio. – Se não foi ela, vamos deixar a senhora em paz. Gostaria de lhe lembrar que, se não nos ajudar, entregaremos este CD à
polícia. Então tente ser boazinha. Combinado, Susan? Quem é a garota de vestido azul? E como podemos encontrá-la?
capítulo 26 – PERIGUETE À DIREITA – DISSE Cruz para Del Rio. Eles estavam estacionados em um local proibido na Charles E. Young Drive, bem em frente à Faculdade de Medicina da UCLA. – Você primeiro – falou Del Rio. – Eu assumo a retaguarda. O nome da garota de programa era Jillian Delaney e ela estava no intervalo entre duas aulas, caminhando entre os prédios de tijolos e os gramados em formato geométrico do campus. Cruz se aproximou da bela e magra morena que andava sozinha, cheia de livros nos braços e com uma mochila nas costas. Mostrou-lhe o distintivo e ela deu alguns passos para trás, olhando em volta em busca de uma rota de fuga, mas então Del Rio se aproximou por trás, também com o distintivo na mão. – O que está acontecendo? – perguntou a moça.
– Ontem à noite. Quarto 502 do Beverly Hills Sun – respondeu Cruz. – Ai, meu Deus – disse ela. Parecia um animal selvagem acuado. Mas era naquele ponto, pensou Del Rio, que a farsa se complicava. Eles não podiam dizer à garota: “Entre na viatura. Vamos falar sobre isso na delegacia.” Tudo que podiam fazer era torcer para o blefe dar certo. Acompanharam Jillian Delaney até um banco e Cruz os apresentou como “investigadores”. Os três se sentaram. Sem os saltos de 13 centímetros, a moça era mignon, e pareceu bem menor sentada entre os dois do que no vídeo de segurança. Devia pesar uns 50 quilos vestida e calçada. – Me dê aqui, Jillian, deixe que eu seguro seus livros – ofereceu-se Cruz. – Vocês vão me prender? – A moça o encarou. Como Cruz não respondeu, ela lhe entregou os livros. – Estenda as mãos, por favor – pediu Del Rio. Jillian obedeceu e Del Rio examinou suas unhas perfeitas: esmalte rosa-claro, nenhuma unha lascada ou quebrada. Ela virou as palmas para cima. Não havia corte ou hematoma em suas mãos macias como as de um bebê. Mesmo que tivesse usado luvas, o ato de estrangular um homem com o até matá-lo teria deixado alguma marca. – Que disciplinas você está cursando? – quis saber Cruz. – Estou estudando emergência – respondeu Delaney. Ela cruzou os braços, franziu o cenho e encarou Del Rio.
– O que estava fazendo no Sun? – indagou Cruz. – Não adianta mentir, Jillian. Temos um registro das ligações do cara para a Phi Beta. E temos imagens suas em um vídeo de segurança com hora e data. Então? Quer nos contar sobre seu encontro de ontem à noite?
capítulo 27 A UNIVERSITÁRIA QUE À NOITE VIRAVA garota de programa ainda parecia assustada, mas estava começando a se controlar, pensou Del Rio. Na verdade estava ficando arrogante. – Vocês por acaso vão me acusar de prostituição? Porque, olhem só, eu estou pagando a faculdade de medicina. Não é algo insignicante. Daqui a alguns anos vou estar salvando vidas. Vocês querem mesmo atrapalhar isso? – Não estamos aqui para prender você por causa das suas atividades extras – disse Del Rio. – Conte-nos sobre o cara de ontem. – Maurice? Ele era legal. Nem um pouco violento. Nem um pouco estranho. Só queria se divertir. O tipo de diversão que ele não tinha em casa. – E o que aconteceu depois da diversão? – Nada. A central cuida de toda a parte financeira. – E como ele parecia quando você foi embora?
– Feliz. Disse que talvez quisesse me ver de novo quando voltasse à cidade. Eu me despedi. A limusine estava me esperando em frente ao hotel. – Não vai haver próxima vez para Bingham – disse Del Rio. – Ele morreu. Foi assassinado. – Mas como é possível…? Ah, não. Depois que eu fui embora? – Ele recebeu algum telefonema enquanto você estava lá? – perguntou Cruz. – Estava preocupado com alguma coisa? Algo nele pareceu fora do normal? – Nada, nada mesmo. Um cara limpinho. Usava cueca branca justa e aliança. Normal sob todos os aspectos. De volta ao carro, Del Rio inseriu o CD no aparelho e assistiu ao vídeo inteiro mais uma vez. Havia longos períodos em que nada acontecia entremeados por imagens de pessoas indo para seus quartos. E havia os grupos que desciam do elevador no quinto andar em direção ao terraço e seus corpos atrapalhavam a visão do quarto 502. Alguém devia ter descido do elevador no meio de um daqueles grupos, entrado no 502 e matado Bingham. Mas Del Rio não viu a porta do 502 se abrir uma vez sequer depois de Jillian Delaney ir embora. – Você acha que aquela garota pode ter matado o cliente? – perguntou Del Rio. – Não vejo como. – Nem eu. Alguém foi até a porta do quarto e Bingham deixou a pessoa entrar. Acho que estamos num beco sem saída – declarou Del Rio.
– O beco sem saída onde Maurice Bingham deu os últimos passos – disse Cruz.
capítulo 28 ENQUANTO FALAVA AO CELULAR COM um cara chamado Sammy, Cruz dirigia para o bairro de Hollenbeck, no leste de Los Angeles. Ao desligar, disse a Del Rio: – Conheço Sammy desde que ele nasceu. Não imaginava que fosse durar tanto tempo. Pensei que a esta altura ele seria apenas uma lembrança na cabeça da avó. Cruz conhecia uma porção de Sammys. Ele próprio poderia ter virado um deles. Tinha crescido em Aliso Village, um conjunto habitacional famoso pela alta taxa de criminalidade, na parte baixa da cidade, conhecida como Flats. Começara a lutar boxe, tornara-se prossional e era um peso médio com carreira ascendente quando uma concussão séria o deixou com visão dupla por algum tempo. Talvez tenha clareado sua mente o bastante para ele procurar uma alternativa. Cruz havia trabalhado por um ano no Departamento de Polícia de Los Angeles e então Bobby Petino – o promotor Petino –, primo em segundo grau de seu avô, conseguiu-lhe
um emprego na seção de investigação de seu escritório. Seu chefe era um ex-policial durão chamado Franco, e foi assim que Cruz aprendeu. Viu muitos cadáveres, conheceu gente, entendeu o que precisava conseguir para ajudar a promotoria a ganhar um caso. Em três anos, era Franco quem trabalhava para ele. Fazia dois anos que Jack Morgan comentara com Bobby Petino que precisava de mais um investigador, e Petino dera a Cruz a segunda chance de sua vida. Mandara-o conversar com Jack. A sintonia foi perfeita. Trabalhar na Private em parceria com Del Rio, um verdadeiro herói de guerra, era o melhor emprego de sua vida. Melhor que isso só se dirigisse a Private de Los Angeles – se e quando Jack resolvesse sair de cena. – Mas me diga, esse tal de Sammy está na folha de pagamentos? – perguntou Del Rio. – Não. Apenas freelancer. O Whittier Boulevard era uma via de quatro pistas que passava por um bairro pobre. Durante o dia, postados diante de suas lojas, vendedores anunciavam camisetas e meias, e famílias levavam os lhos pequenos para fazer compras. À noite, tracantes operavam nos cantos escuros. Garotas de programa faziam ponto. Mas não havia horário do dia ou da noite em que aquele lugar combinasse com um Mercedes. Naquele exato momento, o carro se destacava como um par de sapatos de verniz em um baile de camponeses. Cruz preferiria estar em um Ford. Um Ford cinza. Como o que dirigia quando trabalhava
para a promotoria. Mas Jack tinha um fraco por carros bonitos. – Quero estacionar esta lancha na Kinney da South Soto Street – disse Cruz. – Dois quarteirões adiante. Estacionaram e depois caminharam por uma galeria comercial com lojas caindo aos pedaços e janelas gradeadas. Depois de cruzar a rua em frente ao Johnny’s Shrimp Boat, Cruz viu Sammy à sua espera em frente à padaria La Mascota. Sammy tinha 30 anos, era branco e usava os cabelos pretos despenteados, um cavanhaque, botas azul-turquesa de bico no e tantos piercings de metal no rosto que daria para abrir uma loja de ferragens. – Quem é esse aí? – perguntou Sammy, apontando para Del Rio. – Rick. Meu colega. Ele é gente boa – respondeu Cruz. Sammy estava chapado: pupilas dilatadas, agitado, mas pronto para fazer negócio. – Você ouviu alguma coisa sobre um grande carregamento de Oxy que teria chegado à cidade ontem à noite? – perguntou Cruz, tirando uma nota de 20 do bolso e segurando-a com dois dedos. – Numa van refrigerada? Cruz concordou e insistiu: – O que você sabe a respeito? Sammy arrancou a nota da mão de Cruz, deu um breve sorriso desdentado e respondeu: – Sei que a van está trancada, longe das ruas. Tem rolado muito boato sobre como entrar na jogada.
– Sam, essa dica não valia nem 20 centavos – disse Cruz. – Cara, eu não posso dizer o que não sei. Aí, você conhece Siggy O.? – Conheço – respondeu Cruz. – Conheço Sig, sim. Faz um tempo que não o vejo. – Por mais 20 eu posso mandar um torpedo para ele.
capítulo 29 SIGGY O. ERA UM GAROTO negro de mais de 1,80 metro e 90 quilos, com os dreads amarrados atrás da cabeça com um barbante. Com pais e avós drogados, já era viciado antes mesmo de nascer. Ele cumprimentou Cruz: – Caaara! Há quanto tempo. E aí? Os dois apertaram-se as mãos e deram-se tapinhas nas costas. Siggy assumiu uma postura de boxeador e simulou algumas esquivas, jabs e passos enquanto Cruz interceptava os socos com as mãos espalmadas. – Vi você na TV , cara – disse Siggy. – No Sports Classics, sabe qual é esse canal? No MGM Grand de Las Vegas. Você contra Michael Alvarez. Ele te derrubou de jeito no oitavo round. – Eu sei – disse Cruz, rindo. – Eu estava lá. – Está tudo bem agora?
– Tudo. E com você? – Faz 38 dias que estou limpo – disse Siggy. – Entrei para um programa. Não falto a nenhuma reunião. Tem umas mulheres bem bonitas. Elas querem cuidar de mim. Mas está tudo certo. Eu quero mesmo que cuidem de mim. Mais risadas, e então Siggy perguntou: – Mas e aí, Emilio, o que você manda? – Estamos procurando uma van que foi roubada ontem à noite. Com uma carga pesada de tarja preta. – Com ar-condicionado? Uns legumes pintados na lateral? – Isso – respondeu Cruz. – Preciso viver, mano. O que eu ganho com isso? – Cinquenta pela localização da van. Mais 200 se recuperarmos a carga. – Duzentos e cinquenta? Ah, Emilio. Tem milhões de dólares dentro daquela van. Milhões. Siggy convenceu Cruz a adiantar 100 dólares, e, ao receber o dinheiro, falou: – Um armazém na South Anderson Street. Uma fábrica de vasos de plantas, ou melhor, a fachada é uma fábrica de vasos. Segurança de alta tecnologia em tudo que é canto. Ouvi dizer que a van está lá dentro. E, Emilio, se você me der uma porcentagem, eu lhe dou uma porcentagem. – Sig, a gente não vai entrar na venda de drogas. Mas obrigado mesmo assim. O que mais você escutou?
– Que a van foi roubada dos carcamanos. E que não vai car muito tempo naquele armazém. – Valeu, Siggy – disse Cruz. – Bom te ver, mano. Tem meu celular novo? – Me passa. Siggy digitou o próprio número no telefone de Cruz. Os dois se deram as mãos e se cumprimentaram com um toque dos ombros. O rapaz alto se afastou por um beco a passos lentos. Cruz ligou para Jack. – Temos uma pista sobre a van – falou. – Está escondida em um armazém. Claro. Ok. Jura? Sério mesmo? Cruz disse a Jack para onde iriam e fechou o telefone. Falou para Del Rio: – Jack quer pôr um cara novo para trabalhar com a gente. Era bailarino clássico. – Ele fez uma pausa. – Isso quer dizer que ele é gay? – Você nunca ouviu falar em cuidar da sua vida? – retrucou Del Rio.
capítulo 30 DEL RIO ESTACIONOU NA SOUTH Anderson Street, em frente ao armazém da Red Cat Pottery. Era um prédio de tijolos vermelhos que havia sido caiado algumas vezes. A cal estava descascando e revelava parcialmente os nomes dos negócios anteriores que funcionaram ali. De onde estavam na South Anderson, podiam ver com clareza a plataforma de carga dobrando a esquina, na Artemus. Havia um semirreboque estacionado junto à plataforma e um sujeito operava uma empilhadeira para embarcar paletes. Dois homens negros que fumavam na calçada jogaram as guimbas na sarjeta e entraram na cabine do caminhão. Às cinco da tarde, vans e pequenos caminhões-baú entregavam suas últimas cargas naquela área de indústrias leves. Os portões se fechavam e os funcionários encerravam o expediente. Após vinte minutos de espera, Del Rio ouviu atrás de si uma moto subir a rua e o motor
ser desligado. Pelo retrovisor, viu um cara descer da moto e desaparecer no ponto cego. Então ouviu uma das portas traseiras do Mercedes se abrir. Virou-se bruscamente e deparou com um homem com a cabeça coberta por um capacete preto e prateado. Tinha uns 30 anos, olhos azuis, quase 1,80 metro de altura, 70 quilos e malhado. Os músculos se retesavam sob a camiseta. Só podia ser o bailarino. Ele tirou o capacete. Tinha cabelos louros. Estendeu a mão por cima do banco e disse: – Christian Scott. Scotty. E aí? Del Rio apertou sua mão. – Rick Del Rio. E este aqui é Emilio Cruz. Meu braço direito. – É, direito e de vez em quando o esquerdo também – disse Cruz. – Prazer, Scotty. – Valeu. O prazer é todo meu. É esse o lugar? – perguntou ele, olhando para o armazém da Red Cat. – Foi o que nos disseram. – E vocês já verificaram? – Não, estamos vendo a tinta descascar. Devem fechar daqui a meia hora. – Vocês achariam ruim se eu fizesse um pequeno reconhecimento agora? – Não – respondeu Del Rio. Scotty desceu do carro. Atravessou a rua com um passo levemente cadenciado, foi até a plataforma de carga na Artemus e gritou alguma coisa para o operador da empilhadeira. O operador apontou para uma porta acima de uma escada de metal e Scotty acenou para
ele, tirou o celular do bolso, subiu depressa os degraus e abriu a porta com um empurrão. – Não sei se ele é gay – comentou Del Rio. – Mas anda meio saltitante. – Aposto 100 pratas que esse Scotty era policial. – Como é que você sabe? – Conheço mais de mil deles. Ele tem pinta. – Nesse caso, prefiro guardar meu dinheiro e perguntar a ele – disse Del Rio. Mais quinze minutos se passaram. Del Rio estava aito pensando que o cara já cara lá dentro muito tempo, perguntando-se o que Jack sabia sobre ele e como Scotty se encaixaria na equipe, quando Scotty surgiu dobrando a esquina com um papel enrolado na mão. Olhou para ambos os lados antes de atravessar e tornou a entrar no carro. – Fui perguntar sobre oportunidades de emprego – explicou ele, com um sorriso. – Este é o meu formulário de candidatura. Fiz um pequeno tour lá dentro. Del Rio estava rindo por dentro, mas não demonstrou nada. O garoto era esperto. – E o que você viu? – Uma segurança bem decente – respondeu Scotty. – Câmeras em cima das portas, os nas janelas. E a van deve ser a que estamos procurando. É branca e está toda detonada em uma das laterais. Está parada nos fundos do armazém, no canto nordeste. Não quis dar muita bandeira, mas passei em frente a ela. – Nossa, cara – comentou Cruz. – Você fez bastante coisa em quinze minutos. – Vamos tirar esta banheira de 50 mil dólares deste quarteirão – disse Scotty. – Tirei
umas fotos. – Ele mostrou o celular. – Quem sabe a gente consegue pensar em alguma estratégia.
capítulo 31 ENTREI COM O LAMBORGHINI PELO acesso que conduzia à minha casa e passei a chave eletrônica pela leitora. Os portões de ferro se abriram e vi um aviso na porta. Não estava perto o suficiente para lê-lo, mas sabia o que dizia. “Entrada proibida por ordem do Departamento de Polícia de Los Angeles.” Desliguei o motor e quei sentado por alguns minutos tentando imaginar meu irmão obrigando Colleen a avançar até a porta sob a mira de uma arma. Vi-o encostando o cano da arma nas costas dela e os dois entrando na casa. E então não consegui imaginar mais nada. Tommy era tão doente, tão corrupto a ponto de matar Colleen? Sinceramente, eu não sabia responder. Saí do carro e desci pelo estreito quintal lateral que margeava a cerca até a praia. Eram cinco da tarde e o sol ainda estava forte. Na véspera, mais ou menos naquela mesma hora,
alguém preparava Colleen para sua última viagem. Continuei em direção ao sul, em paralelo à linha do mar, e passei por duas casas imensas e uma menor que haviam resistido à especulação imobiliária e às escavadeiras. A quarta casa tinha um projeto híbrido, metade vitoriano e metade contemporâneo, alta e com um amplo deque. Era lá que Bobbie Newton morava. Bobbie era colunista de fofocas, rainha do noticiário sobre celebridades no horário nobre da TV e ex-mulher de um investidor de Wall Street. Estava sentada no deque segurando um drinque em um copo longo, com os pés apoiados no guarda-corpo. Usava uma camisa aberta por cima do biquíni rosa-choque, uma viseira branca no meio dos cachos louros, óculos escuros e um fone de ouvido sem fio na orelha esquerda. Estava falando ao telefone e admirando as ondas. Quando a chamei, ela tirou os pés do guarda-corpo e sentou-se ereta. – Bobbie… posso subir? Preciso falar com você. – Vou descer – disse ela. – Ligo para você mais tarde – falou para a pessoa com quem estava conversando. – Tenho que ir. Bobbie deixou seu drinque no deque e desceu a curta escada de madeira segurando com firmeza o corrimão. Pensei em minha história com Bobbie. Acontecera depois da primeira ruptura com Justine, muito antes de Colleen. Achava que tinha terminado bem – incompatibilidade, nenhum culpado. No entanto, quando encontrei o envelope na porta dos fundos da
minha casa, sem recado e com minha chave dentro, a mensagem foi bem clara: “Vá se foder.” Bobbie tinha o pavio curto e isso era uma característica que me desagradava. E tenho certeza de que havia algumas coisas em mim de que ela não gostava. Desde o término, porém, tínhamos um relacionamento cordial de vizinhos. Agora, enquanto ela descia a praia na minha direção, aves marinhas levantaram voo da areia. E eu vi pela expressão de seu rosto que não éramos amigos. Ela pôs as mãos nos quadris e disse: – Se está querendo saber se contei à polícia que vi você ontem à noite, a resposta é sim, Jack. Caramba, eu disse sim.
capítulo 32 – EU NÃO ESTIVE NA PRAIA ontem à noite – falei para Bobbie Newton. Ela havia tirado os óculos e agora eu encarava seus olhos pequenos e vermelhos. Bobbie bebia desde cedo e com regularidade. Outra característica sua que me desagradava. – Eu não tive uma alucinação – disse ela. – Você estava no celular. Ouvi quando ele tocou. Passei correndo e falei com você, disse “oi, Jack” . Você apontou para o aparelho como quem diz “estou ao telefone” . E depois acenou. Aquele aceno que é a sua marca registrada. – Como assim? Está dizendo que eu tenho algum tipo de… aceno específico? – Assim. Ela ergueu o braço esquerdo e inclinou a mão para trás com os dedos abertos, como se estivesse segurando uma bola de futebol americano. Eu jogava futebol americano na universidade. Tommy não.
– Ninguém nunca me disse que eu tenho um aceno especial. – Bom, eu estou dizendo. Quantas vezes já vi você acenar? Umas 100 mil? – Passava das seis da tarde, Bobbie. Foi isso que você disse para a polícia. – E daí? – O sol estava se pondo. Talvez você tenha pensado que era eu porque esperava me ver. Não era eu, Bobbie. – Diga isso para o juiz – retrucou ela. Bobbie ergueu a mão acima da cabeça, recuou-a como quem se prepara para lançar uma bola de futebol americano e subiu a praia com passos apressados. Observei-a enquanto ela se afastava. Que droga de conversa havia sido aquela? Eu não tinha ido à praia na noite em que encontrara Colleen morta na minha cama. Mas Bobbie estava irredutível. E, na condição de repórter de fofocas, era bem-relacionada. Devia ter sido ela quem dera início aos boatos na internet dizendo que eu era o suspeito número um do assassinato de Colleen. Tornei a subir a praia uns 20 metros atrás de Bobbie, perguntando-me se ela de fato teria visto Tommy e pensado que fosse eu. Ou será que não tinha visto ninguém? Teria inventado essa história para me mostrar como a vingança pode ser cruel? Andei da praia até o acesso à minha casa e entrei no Lamborghini. Segui no sentido sul pela Pacic Coast Highway em direção a Santa Monica. Queria falar com o melhor amigo de Colleen. Graças a ela, ele havia se tornado meu amigo também. Eu precisava falar com alguém que a tivesse conhecido, que sentisse o mesmo que eu sentia, que entendesse a
minha dor. Minha mente era um verdadeiro turbilhão. Quando dei por mim, estava na I-10 sentido leste, sem saber se era eu quem guiava o Lamborghini ou ele que me guiava. Mas eu sabia exatamente onde encontrar Mike Donahue. Imaginei-o como da última vez que o vira, em pé atrás do balcão do bar.
capítulo 33 O TAVERN ERA UM PUB E restaurante irlandês que parecia realmente ter sido tirado de Galway ou Cork e transplantado para Los Feliz. Quando chegara a Los Angeles, Colleen estava decidida a conseguir a cidadania americana. No tempo entre o m do expediente na Private e a hora de ir para casa estudar, ela passava no pub. Era lá que todo mundo sabia seu nome e quase todas as pessoas em frente ou atrás do balcão do bar tinham parentes na Irlanda. Mike Donahue vinha de uma cidade rural a poucos quilômetros de onde Colleen fora criada. Estudara com o pai dela. Quando Colleen o conheceu na Cidade dos Anjos, Donahue virou praticamente um tio para ela. Eu estava em frente ao pub de Donahue, com sua tabuleta vermelha de letras douradas pendurada acima da porta e clientes saindo pela calçada. Lá dentro, o bar pulsava com a música alta e os gritos dos clientes que tentavam se fazer
ouvir. O balcão em formato de ferradura estava abarrotado e três camadas de pessoas o cercavam. Uma ruidosa partida de dados estava em curso na sala dos fundos. Mike manejava as torneiras e servia o chope. Era um homem corpulento, com uma barba espessa e rugas profundas em volta dos olhos e na testa, resquícios de cigarros, sol e risadas. Quando ergueu os olhos e me reconheceu na porta, porém, o que vi em seus olhos foi uma profunda tristeza. Ele largou o pano de prato e saiu de trás do balcão. Perdi-o de vista enquanto ele abria caminho pela multidão. Então ele surgiu de um círculo de clientes e veio na minha direção. Não vi o soco chegar. Fui derrubado por um punho que parecia uma tábua de madeira. A dor no maxilar pareceu se irradiar por todos os pontos do meu corpo – nariz, pescoço, ombro, até a ponta dos dedos. Quando abri os olhos, estava caído no meio de um círculo de caras zangadas. Eu não era bem-vindo ali. Havia entendido tudo errado. E Donahue também. Fiquei furioso – com tudo e com todos. Tive vontade de bater, bater muito e com força. Poderia acabar com Donahue. Pensei que também poderia acabar com os três fortões em pé à sua volta. E, se não conseguisse, talvez levar uma surra até fosse bom. Para transformar a dor emocional em dor física. Levantei-me cambaleando e Donahue levou a mão ao meu peito e me empurrou em
direção à parede. – Jack, você não deveria ter vindo aqui – disse ele. – Estou puto o bastante para cometer um assassinato diante de Deus e de outras testemunhas. Cerrei os punhos ao lado do corpo. – Mike, não foi minha culpa. Não fui eu. – Qual é a sua história, então? – História? Eu era louco por Colleen. Por que iria matá-la? – Talvez ela estivesse estragando o seu estilo, Jack. – Escute aqui. Eu estava desesperado para fazê-lo acreditar em mim. Segurei-o pelos bíceps e o sacudi, gritando bem na sua cara: – Não fui eu! Mas eu prometo que vou descobrir quem matou Colleen. E vou fazer o lho da mãe sofrer.
capítulo 34 COM UMA DAS MÃOS EU mantinha uma bolsa de gelo encostada no maxilar e com a outra segurava uma Guinness. Donahue estava sentado na minha frente, diante de uma pequena mesa em seu restaurante escuro, com uma vela entre nós. Depois de vinte minutos gritando um com o outro, eu tinha conseguido convencê-lo da minha inocência. – Jack, eu já disse que sinto muito? – perguntou ele, com seu sotaque irlandês. – Já. Já disse, sim. Donahue suspirou. – Não tem problema, Mike. Eu entendo. Não faz mal. Um garçom trouxe meu jantar e o pôs na minha frente: um prato de costeletas com batatas fritas. Recusei uma segunda cerveja e olhei para o prato com duas sensações distintas. A primeira era que fazia tempo que eu não comia.
A segunda era que eu queria vomitar. O jantar era a oferta de paz de Donahue, por isso larguei o gelo em cima da mesa e peguei os talheres. – Ela estava triste – disse Donahue. – Nós conversamos sobre o tal namorado de Dublin e acho que ela o amava, de certa forma, mas ele não fazia o coração dela disparar. Entende o que quero dizer? – Ela não estava apaixonada. Donahue assentiu. – Quer que eu corte a carne para você, rapaz? Dei um sorriso dolorido, espetei algumas batatas com o garfo e falei: – Ela não me disse isso. Disse que estava feliz. – Deve ter sido para bancar a durona – retrucou Donahue. – Ou talvez para ver se você tinha mudado de ideia. Se ainda a amava. Mas, enm, eu já não tinha medo de que ela fosse se ferir. Nunca pensei que alguém fosse capaz de fazer aquela coisa horrível com ela. – Mike, todo mundo amava Colleen. – Então por quê? – perguntou-me Donahue. Ele deu um soco na mesa. A louça pulou. A cerveja derramou do copo. – Por que tenho que mandá-la de volta para Dublin dentro de um caixão? – Essa história não teve nada a ver com Colleen – falei. – Alguém a matou para me ferir. Alguém que me odeia. – Mas quem, Jack?
– Eu não sei. Ainda. Estou tentando descobrir. Seja quem for, era um prossional. Poderia ter dado um jeito de me matar sem pôr Colleen no meio, mas não era o que ele queria. Fiz uma pausa e continuei: – Em vez disso, me incriminou para que eu fosse derrubado muito, muito devagar. Primeiro isso… a perda. Depois a humilhação. E depois eu passaria o resto da vida na cadeia. Ou seria condenado à morte. É esse o plano. – Ele que vá para o inferno. E tomara que o diabo jogue a chave fora. – Tomara. Ficamos sentados em silêncio enquanto a mesa era tirada. Quando ficamos novamente a sós, encarei os olhos tristes de Mike. – Sinto muito. Sou eu que lhe devo desculpas. Se Colleen não estivesse envolvida comigo, ainda estaria viva.
capítulo 35 POUCO DEPOIS DAS DEZ, CHEGUEI de carro ao Beverly Hills Sun, a estrela principal da cadeia de Jinx Poole. Desci do meu carro de 200 mil dólares com cara de quem tinha sido arrastado atrás dele por um ou dois quilômetros. Entreguei a chave ao manobrista e z o check-in na recepção. – Sr. Morgan, acho que a senhora ali no sofá vermelho está à sua espera – disse o funcionário. Era Justine. Graças a Deus. Senti-me tão aliviado ao vê-la que meus olhos caram marejados. A simples ideia de me deitar sobre lençóis limpos com Justine ao meu lado, de sentir sua pele encostar na minha, me enchia de alívio. Mas o que ela estaria fazendo ali? Chamei-a. Ela ergueu os olhos e cruzei o lobby luxuoso
e cintilante até onde ela estava. – Há quanto tempo está esperando? Está tudo bem? Não consegui ler sua expressão. – Justine, o que está acontecendo? – É que… precisamos conversar. Sem rodeios. Nada além da verdade. – Vamos para o meu quarto – falei. Virei a cabeça, apontei para o maxilar machucado e completei: – Preciso deitar. – Você está fedendo a cerveja. Estava numa briga de bar? – Como você é observadora. – Sente aqui. Por favor. Não vai demorar. O que quer que estivesse por vir, aquilo não me soava nada bem. Sentei-me no sofá ao lado de Justine. – Meu cérebro está praticamente uma geleia. É melhor conversarmos amanhã. – O seu cérebro vai ser muito pouco solicitado. Encarei-a e ela me fisgou com o olhar. Eu amava Justine. De verdade. – Quando você esteve com Colleen na semana passada, antes de viajar para a Europa… o que aconteceu? – Nós almoçamos no Smitty’s. Devo ter o recibo em algum lugar. Não tive tempo de conferir o extrato do cartão de crédito. – Vocês transaram? – Caramba. Você não deveria fazer isso. Alguma vez a interroguei desse jeito, por acaso?
Não pode confiar em mim e pronto? – Você disse “confiar”? Imagino que isso signifique que não foi só um almoço. Ah, Jack. Ela balançou a cabeça. Joguei as mãos para o alto. – Se você não acredita em mim, de que adianta tudo isso? – perguntei. – Como vamos conseguir resolver as coisas se você não confia em mim? Justine se levantou, colocou a alça da bolsa no ombro e, sem olhar para trás, saiu do hotel pela porta giratória. Observei-a se afastar através do vidro. Ela entregou o tíquete ao manobrista e ficou parada de frente para a rua enquanto esperava seu carro. Justine era capaz de me ler como um detector de mentiras do FBI. Era inútil mentir. Eu poderia sair correndo atrás dela, mas o que mais iria dizer? O manobrista trouxe o carro, Justine se sentou ao volante, pôs o cinto e saiu em alta velocidade pelo South Santa Monica Boulevard. Dessa vez tive certeza de que a havia perdido. Não era o que eu queria, mas era exatamente o que merecia.
PARTE DOIS BEM ME QUER, MAL ME QUER
capítulo 36 NA MANHÃ SEGUINTE, NO ESCRITÓRIO, pensava em Colleen quando saí da minha sala e atravessei o corredor até a “sala de guerra” . Tentava adivinhar o que ela havia feito em suas últimas horas de vida, ver pelos seus olhos como tinha sido encurralada por um homem com intenções assassinas. Imaginei seu horror quando a pistola – decerto a minha pistola – foi apontada para o seu peito e como o assassino a provocou antes de apertar o gatilho. Tive um pensamento horripilante. E se ela tiver achado que o assassino era eu? Abri a porta e vi que a sala de reunião estava lotada: Sci, Cruz, Mo e Del Rio encontravam-se sentados em volta da mesa preta, curvados sobre cafés, mandando torpedos e fazendo ligações. Todos ergueram os olhos quando entrei. Colaboradores da agência ocupavam a la de cadeiras giratórias alinhadas às paredes da
sala, conversando sobre um caso importante que fora solucionado às quatro horas daquela manhã, quando uma equipe de investigadores da Private conseguira encontrar uma adolescente foragida e seu namorado drogado sacando dinheiro de um caixa eletrônico com o cartão da mãe dela. A cadeira de Justine estava vazia. Ela nunca se atrasava para uma reunião. Não se atrasara uma vez sequer nos últimos cinco anos. As conversas cessaram assim que puxei minha cadeira. Cody trouxe meu Red Bull e uma lista de nomes. – O que é isso? – Candidatos para a minha vaga. Estou marcando entrevistas para você conhecer os três melhores. Quero dizer, os três melhores na minha modesta opinião. Concordei. – Vamos começar. Apresentei Christian Scott e disse que ele zera parte da companhia de dança Jorey Ballet, sofrera uma lesão no joelho e fora trabalhar na Polícia Rodoviária da Califórnia como agente motociclista. – Scotty foi um dos três agentes responsáveis pela prisão de um grande tracante com 200 quilos de maconha no porta-malas. Foi Scotty quem o mandou encostar porque teve um palpite… – Um palpite e a traseira do carro estava tirando faíscas do asfalto – disse Scotty. – Ele tem bons palpites e, pelo que me disseram, sabe dar uma pirueta bem razoável –
continuei em meio às risadas. – Scotty acabou de concluir suas 600 horas como investigador na seguradora California Casualty, portanto sua licença deve estar no correio. Levante-se e mostre a cara para nós. Todos aplaudiram. Scotty se levantou e se disse contente por estar ali. Então a investigadora Lauri Green levantou a mão e falou: – Jack, vou ter que ir embora daqui a pouquinho. Só queria avisar que Mara Tracey foi liberada sob fiança. Lauri estava se referindo à nossa estrela do cinema cleptomaníaca, que ganhava 10 milhões de dólares por lme mas mesmo assim roubava um suéter de moletom de 100 dólares, ganhando as manchetes dos tabloides e fazendo a festa dos paparazzi, além de conseguir uma alardeada audiência com um juiz na semana seguinte. O marido de Mara havia nos contratado para car de olho nela. Conversamos sobre mandar seguir a Sra. Tracey e depois Cruz se levantou e informou sobre os avanços na investigação da morte do executivo no Beverly Hills Sun. Explicou também o histórico do caso: a sequência de quatro outros homens assassinados em hotéis diferentes e a pista do serviço de acompanhantes que não levara a lugar nenhum. Falamos da pesquisa que ele estava fazendo, as conversas com os funcionários do hotel e assim por diante. Agora que a polícia havia entrado no caso, disse Cruz, ele estava se mantendo mais discreto. Não disse nada sobre a van cheia de remédios tarja preta roubada de Noccia – esse caso eu não queria divulgar para o grupo. Quando Cruz se sentou, apertei algumas teclas no laptop e a foto de Colleen preencheu o
monitor de tela plana suspenso no meio da parede. Meus ouvidos zumbiram e minha pulsação disparou ao ver aquela foto. Apenas dois dias antes, Colleen estava viva e saudável. Baixei os olhos para o teclado, tentando controlar as emoções. Quando falei, minha voz saiu embargada: – A maioria de vocês conhecia Colleen. O mais provável é que ela tenha sido morta para me atormentar e para me incriminar. – Cara… – disse Del Rio baixinho. Engoli em seco, com força, e prossegui: – Como vocês já devem ter ouvido falar, eu não sou apenas o principal suspeito. Sou o único suspeito. Enquanto isso, o assassino de Colleen está solto por aí… morrendo de rir.
capítulo 37 RECOSTEI-ME EM MINHA CADEIRA NA sala de reuniões. Sabia que os colegas me olhavam xamente enquanto eu encarava o rosto de Colleen na tela. Sua expressão era radiante e aquilo não era nem um retrato, apenas a foto de identicação tirada em seu primeiro dia de trabalho na Private. Lembrei-me de como, uma hora depois de aquela foto ser tirada, Colleen estava sentada do lado de fora da minha sala, separando minha correspondência. Ergueu os olhos ao ver minha sombra cruzar sua mesa e disse: – Sr. Morgan, alguém por acaso está querendo prejudicá-lo? – Me ocorre uma dezena de nomes. Por quê? Ela me mostrou um envelope forrado com papel-bolha com o endereço escrito em lápis de cera vermelho e letras maiúsculas: “Material datado. Abrir ao receber.” Uma seta apontava para a aba que abria o envelope. Não havia tique-taque de relógio,
tampouco endereço do remetente e a caligrafia parecia a de um maluco. Evacuamos o prédio e fomos todos para a rua, oitenta pessoas em pé sob o sol escaldante da Figueroa Street, enquanto o esquadrão antibombas coletava o envelope usando um robô e o passava por um aparelho de raios X da unidade móvel. Lá dentro havia jornal picado e um bilhete escrito com as mesmas letras vermelhas e vários riscos se irradiando das letras rabiscadas: “RATATÁ-TÁ-TÁ-TÁ.” As digitais foram identicadas. Pertenciam a de um infrator reincidente, Penn Runyon, um maluco que fora preso por venda ilegal de armas e solto alguns meses antes. Runyon prestou depoimento e disse ter lido a meu respeito no jornal e descoberto que eu havia localizado e prendido um presidiário foragido amigo seu. Na verdade, quem havia prendido o amigo de Runyon fora Tommy, não eu. Um erro comum: Jack Morgan, Private Investigations. Tom Morgan Jr., Private Security. Runyon perguntou se havia me matado. Sério? Você mandou uma bomba de papel inofensiva, amigo. Runyon fizera tudo errado. Colleen, por sua vez, tinha feito tudo certo. Era a melhor assistente que eu já tivera. E não só isso. Eu gostava dela, gostava muito. Encerrei as reminiscências sobre Colleen e tornei a me concentrar no presente. Falei para meus investigadores: – Colleen trabalhou por mais de um ano aqui na Private. Nós começamos a namorar. Não era nenhum segredo.
– Ela era uma moça incrível – disse Del Rio. – Era sim. Estava visitando amigos aqui em Los Angeles e, não se sabe como, foi capturada ou enganada e depois assassinada na minha casa. Falei sobre a cena terrível que havia encontrado no meu quarto e então passei a palavra para Sci, que parecia ter 15 anos, vestido com uma camisa toda estampada de abacaxis, calça cargo e tênis. Sci leu um laudo que estabelecia como e por que Colleen havia morrido: homicídio por disparo de arma de fogo no coração. Armou haver indícios de que ela tivera relações sexuais algum tempo antes da morte. – Teremos o perfil de DNA hoje mais tarde – falou. – Não importa o que encontremos, a polícia não vai acreditar, porque não podemos dizer a ninguém que investigamos a cena do crime. Então vamos ter que usar o que descobrirmos para achar o culpado e depois guiar a polícia até ele. Em seguida perguntaram sobre o horário da morte de Colleen, onde eu estava naquele momento, se a arma do crime fora encontrada e se o assassino escrevera, telefonara ou deixara algum recado para mim. – O assassino era um prossional. Foi um homicídio planejado. Só pode ter sido uma armação para me incriminar. Vamos fazer hora extra até encontrar o lho da puta que matou Colleen. Então a porta da sala de reuniões se abriu e Justine entrou, alta, magra e elegante, usando um terno azul-escuro e uma blusa de seda cor de creme.
– Desculpe – disse ela, sentando-se na cadeira ao meu lado. – Estamos terminando – falei. – Quer nos informar sobre Danny Whitman? – Um caso novo, talvez – disse ela ao grupo. – Um ator de cinema jovem com um problema de braguilha criminosa. Vou encontrá-lo hoje mais tarde. – Obrigado, Justine. Mais alguém? – Jack, preciso falar com você um instante – disse ela. – Se tiver um tempo. Encerrei a reunião. Quando a sala se esvaziou, fechei a porta e sentei-me ao lado de Justine.
capítulo 38 SETE ANOS ATRÁS, QUANDO VOLTEI da guerra, fui fazer terapia com um cara excelente chamado Josh Moskowitz, especializado em veteranos como eu. Ou seja, ex-combatentes que tinham passado pelo fogo dos infernos e não estavam conseguindo se adaptar muito bem à vida civil. Como muitos de nós, eu tinha acessos de pânico noturnos. Não parava de ouvir os gritos dos rapazes que estavam na parte de trás do CH-46 enquanto o helicóptero bombardeado pegava fogo. O Dr. Moskowitz tinha um consultório em Santa Monica, uma salinha em um edifício alto da Fieenth Street. Na época eu não sabia, mas a Dra. Justine Smith trabalhava no mesmo prédio. Esbarrei com ela no elevador certa noite e quei paralisado de um jeito que não se pode explicar só descrevendo seus cabelos, seus olhos, suas curvas. Subi dez andares com os
olhos fixos nela até me dar conta de que o elevador não estava descendo. Ela deve ter rido de mim, ou talvez tenha apenas gostado de me ver passar de zero a apaixonado em 60 segundos. Na vez seguinte em que a vi, segurei a porta do elevador para ela, disse-lhe meu nome e a convidei para jantar. Ela aceitou. Foi como se ela houvesse agarrado meu coração com as duas mãos. Justine era uns dois anos mais nova do que eu e talvez uma década mais experiente. Linda. Inteligente. Trabalhava em um hospital psiquiátrico na maior parte da semana e tinha um consultório particular no qual atendia uns poucos pacientes às segundas e quartas. Jantamos em um restaurantezinho italiano em Hermosa Beach e passei o tempo inteiro falando. Contei-lhe mais coisas a meu respeito durante esse único jantar do que lhe contei desde então. Senti que ela era uma pessoa segura, conável, compreensiva, e ela deve ter pensado que eu era o tipo de pessoa capaz de se abrir. Mais tarde ela disse que eu tinha virado uma ostra. Uma ostra com um elástico em volta da concha. Eu ri e falei que ela enm estava me conhecendo de verdade, como eu era quando não estava em crise. No dia em que tivemos essa conversa, já estávamos apaixonados. Agora, sentada em uma cadeira de couro, Justine girava devagar para um lado e para o outro. Dei a volta na mesa e sentei-me ao seu lado. Sua expressão era dura. Ela estava muito brava comigo.
– Recebi uma proposta de emprego – falou. – Uma proposta boa. – Não demorou muito. – Vou terminar meus casos, inclusive o novo, se nós o pegarmos mesmo. Ainda não dei a resposta, mas é só uma questão de negociação. Provavelmente vou aceitar. – Justine, eu sei que é pedir muito, mas tente imaginar que, na verdade, eu sou inocente. E tente imaginar que nunca precisei tanto de você quanto agora. – Está bem, Jack. Agora tente você imaginar o seguinte: eu não ligo mais para nada disso.
capítulo 39 JUSTINE ESTAVA AO VOLANTE DE seu Jaguar azul-escuro, com Scotty no banco do carona. Saíram da Melrose Avenue, passaram pelos portões em arco do estacionamento da Harlequin Pictures e pararam junto à guarita. – Justine Smith. Vim falar com Danny Whitman – identificou-se ela. O guarda correu o dedo por uma lista no laptop e comparou a foto da carteira de motorista de Justine com seu rosto. Disse seu nome em um telefone, então se virou para ela e falou: – Pegue a direita, depois a esquerda na Avenida P . Siga em frente até ver o número 231 na esquina da Onze. – Ele acenou para deixá-la passar. – Vi todos os lmes que Danny Whitman fez – disse Scotty. – Inclusive o primeiro, Atormentado. Ele fazia o menino com os cães selvagens, lembra? Sabia que ele um dia ficaria famoso.
Justine lhe lançou um breve sorriso, diminuiu a velocidade para passar por um quebramolas, dobrou à esquerda no segundo cruzamento e seguiu por uma rua margeada de estúdios e prédios de estuque de dois e três andares. Outrora eles eram usados como residência para roteiristas e atores e atualmente são ocupados sobretudo por escritórios de produção e administração. Enquanto ela dirigia, pensamentos confusos povoavam sua mente: sobre Jack, Jack com Colleen e sobre como tinha certeza de que ele mentira sobre o que acontecera entre eles naquele almoço. Pensava também na proposta que havia recebido, no emprego que não seria tão bom quanto o de agora – exceto por um detalhe importante: ela não teria que ver Jack cinco dias por semana. Scotty a observava. Ela recordou o que ele acabara de dizer. Que estava animado com a ideia de trabalhar com Danny Whitman. – Ainda não pegamos o caso, Scotty. Mas, se pegarmos, aposto 10 pratas que você vai ficar feliz quando tiver terminado. Ela baixou o para-sol, diminuiu a marcha e disse: – Ele está começando um lme novo. De ação, aventura, claro. A pergunta é: será que vai conseguir terminá-lo? – Tons de verde – disse Scotty. – Já li a respeito. Espionagem e contraespionagem no século XXI. – Está bem, estou impressionada – disse Justine. – Você fez o dever de casa direitinho. A mente de Justine repassou o caso em questão. Desejou não ter dito a Jack que o
aceitaria. A investigação poderia demorar. E a única coisa da qual se podia ter certeza, tratando-se de astros de cinema, era que a situação ficaria feia. Por favor, meu Deus. Permita que esse caso seja a exceção à regra. Permita que seja fácil. – Me desculpe? – indagou ela a Scotty. Ele estava falando outra vez. – Você perdeu a reunião. Jack falou sobre Colleen Molloy. Parece que o pessoal gostava dela. – Ela era um amor – disse Justine. – Que número é aquele? – perguntou, correndo os olhos pelos prédios brancos. – Um amor. Interessante escolha de palavras. – Autêntica. Divertida. Sem afetação. – E você também namorou Jack? – Puxa, você é bom mesmo em vericar antecedentes – disse Justine. – Pronto, ali. Bem na esquina. Agora escute, Scotty, eu não sei nem se vamos pegar o caso, então limite-se a observar e escutar. – Posso fazer isso. – Ele sorriu. – Mas você não respondeu à minha pergunta. Justine freou o carro junto ao meio-fio, desligou o motor e olhou para o novo membro da equipe. Um rapaz jovem, de traços comuns. Devia ter um pouco de sangue alemão, um pouco de britânico e um pouco de índio norte-americano. Era bonito e bastante convencido, mas também curioso e obstinado. E afável. Seria um bom acréscimo para a agência. Desde que permanecesse otimista. – Jack arrasa corações – disse Justine. – É isso que ele faz da vida. Nem sei se é culpa
dele. As mulheres sentem vontade de consertar Jack e acham que vão conseguir. Eu também achei. Ela estendeu a mão até o banco de trás para pegar a bolsa de couro. Abriu-a e tirou lá de dentro um estojo de maquiagem. Pegou um batom e um espelho e se retocou. – Então aconteceu mesmo o que Jack disse – comentou Scotty. – Alguém armou para cima dele. – Jack pode ser muitas coisas, mas assassino não é uma delas. Justine fechou a bolsa e abriu a porta do carro. Scotty ainda estava falando: – Mas ele não esteve na guerra? Não foi fuzileiro naval?
capítulo 40 SCOTTY ESTAVA EM PÉ AO lado de Justine quando a porta da frente do 231 se abriu e um sósia de Johnny Depp, descalço, se apresentou como Larry Schuster, empresário de Danny Whitman. Justine apertou a mão de Schuster e apresentou Scotty. Os três entraram. Havia cheiro de maconha, torrada queimada e ar-condicionado. Scotty olhou em volta, observando o escritório moderno e estiloso: piso de tábua corrida, cadeiras redondas de cores vivas e computadores em um dos lados do aposento. Estava repleto de cestas de frutas, pilhas de roteiros, bandejas de café da manhã pela metade e sacolas de presentes abertas transbordando relógios e outros objetos caros: evidências não de abundância, mas de excesso. Das paredes pendiam cartazes emoldurados dos quatro lmes de ação anteriores de Whitman, todos sucessos de bilheteria.
Um homem de 40 e poucos anos se aproximou de Scotty e Justine. Tinha sobrancelhas desgrenhadas e cabelos já meio grisalhos. Usava uma camisa de linho azul amarrotada com monograma bordado no bolso e mangas arregaçadas. – Melvin Koulos – falou. – MK Produções. O produtor de Tons de verde. Justine fez as apresentações e todos – o empresário, o produtor, Justine e Scotty – se acomodaram nas cadeiras de pernas curtas ao redor de uma mesa baixa que fazia todos parecem crianças. Uma moça apareceu e perguntou se desejavam alguma coisa. – Nada para mim – disse Schuster. – Um Fiji sem gelo – pediu Koulos. – Um café, por favor – disse Justine. – Com leite e açúcar. Scotty tirou do bolso um bloquinho e uma caneta. – Tudo bem se eu tomar notas? – perguntou e todos concordaram. Scotty entendeu que Schuster, o empresário, era o responsável direto pela carreira de Whitman e ganhava dez por cento dos cachês. Para o produtor, o cara mais velho e desgrenhado, havia muita coisa em jogo que dependia de o lme ser de fato rodado. Era natural que estivesse com ar de preocupação, afinal seu astro estava em apuros. Justine explicou como a Private trabalhava, seus métodos, os custos, etc., e o que propunha que fosse feito naquele caso. Tanto o empresário quanto o produtor concordaram com “tudo o que for necessário para conter essa história”.
Todos se levantaram. Schuster foi até a porta dos fundos e a manteve aberta enquanto dizia: – Dra. Smith, acho que deveria falar com o resto do pessoal.
capítulo 41 SCOTTY FOI O ÚLTIMO A sair pela porta dos fundos. Viu uma cesta de basquete montada bem alto em uma parede perpendicular ao prédio ao lado. O asfalto do pátio ainda tinha linhas demarcando as vagas de estacionamento. Uma bola de basquete passou voando por seu campo de visão e entrou na cesta. – É isso aí! – gritou alguém. Era um homem de quase 1,80 metro, cabelos castanhos curtos, sem camisa, com uma tatuagem de arame farpado em volta do bíceps direito. Estava sorrindo, triunfante, e parecia ter 22 anos. Schuster explicou que o rapaz que agora estava com a bola era Rory Kovaks, amigo de escola de Danny em Nebraska. Os dois tinham sido criados juntos e Rory se mudara para Los Angeles para fazer companhia a Danny. Schuster apontou para Alan Barstow, agente de Danny na Creative Talent Management,
uma agência de talentos com clientes de primeira linha. Barstow era um homem de 30 e poucos anos, magro e de estatura mediana. Por último, indicou Randy Boone, assistente de Danny, e Kevin Rose, instrutor de luta do ator, todos integrantes do entourage de Whitman. – Intervalo, galera! – gritou Schuster. – Temos visita. A bola entrou na cesta com um zunido e quicou no asfalto até ir parar na grama, onde os quatro jogadores se reuniram. Schuster disse a eles que Justine e Scotty trabalhavam na Private e haviam sido contratados para administrar a crise. Alguns continuaram em pé e outros se sentaram no chão enquanto Schuster passava a palavra a Justine. Scotty se manteve afastado, apenas observando. Justine cumprimentou todos e se apresentou como investigadora sênior da Private. – Os tabloides estão de olho em qualquer coisa que possam explorar – disse ela. – Katie Blackwell, a moça de que estamos falando… Bem, os pais dela também devem ter contratado investigadores particulares. É possível que eles estejam seguindo Danny e qualquer pessoa que tenha relação com ele, só esperando um pequeno deslize que possam exagerar, vender para os jornais e usar para macular a carreira de Danny. Observou-os e continuou: – É fundamental para Danny, e para todos vocês, baixar um pouco a bola das festinhas até depois do julgamento. Isso signica nada de drogas, nada de bebida e, principalmente, nada de garotas. – Ah, claro… E também nada de comer de boca aberta nem entrar descalço neste
estabelecimento – zombou Kovaks. Rose, o instrutor de luta, interveio: – Dra. Smith, sem querer ofender, mas a gente não precisa de uma investigadora particular para encher o nosso saco. Sério. – Virando-se para Larry Schuster acrescentou: – Você só pode estar de brincadeira. Scotty observava Justine, que sorria com os dedos entrelaçados na frente do corpo. – Sr. Rose, ou está todo mundo no mesmo barco ou nada feito – disse ela. – Se não concordarem com as nossas condições, vamos embora com a consciência tranquila. Sem problemas. Scotty viu que o caso começava a desandar. Não era de forma alguma o que ele queria. Dirigindo-se aos chatos reunidos em torno da quadra de basquete, falou: – Que história é essa? Danny Whitman precisa da ajuda de vocês. Se não me engano, ele está sendo acusado do estupro de uma menina de 14 anos. Vocês estão a m de ajudar? Ou será que são uns parasitas que só estão aqui para sugar o sangue dele?
capítulo 42 DEPOIS DE SCHUSTER ACALMAR A confusão que se seguiu e de Justine repetir: “Scotty. Observe e escute” , ela foi se sentar com Scotty e Danny Whitman no estúdio do terceiro andar, com sua bela vista para o estacionamento do Harlequin, um dos mais antigos estúdios de cinema de Hollywood. Ao piano, Danny batucava uma música do Eric Clapton, “Lay Down Sally”. – Conte-nos o que aconteceu, Danny – pediu Justine. Danny suspirou, saiu da banqueta do piano e se deixou cair em uma poltrona macia. Justine pensou em como ele parecia mais jovem do que nas telas. E maior também: um rapaz bem-proporcionado, com a famosa covinha em uma das bochechas e fartos cabelos castanhos. Embora tivesse 24 anos, poderia passar por um jogador de futebol americano do ensino médio. Justine observou o número escrito a esferográca no espaço entre o polegar e o indicador
de sua mão direita. Parecia um número de telefone. – Sei que vai parecer uma idiotice, mas eu sinceramente não sei o que aconteceu – disse Danny. – Estava todo mundo na casa do Alan Barstow, meu agente. Sabem quem é? Justine assentiu. – Já conheci o Sr. Barstow. – Alan estava dando uma festa – continuou Danny. – Tinha várias meninas. Dezenas. Acordei na minha casa, no meu próprio quarto… sozinho. Quando dei por mim, antes mesmo de o despertador tocar, a polícia bateu à porta. Disseram que uma tal de… Katie Blackwell tinha feito uma denúncia contra mim. – Você diz o nome dela como se não a conhecesse – comentou Scotty. – Eu sei quem ela é – disse Danny. – Conheço de vista, mas só isso. Nunca quei com ela. Com certeza não sei quantos anos ela tem. Nem saberia dizer se ela estava na casa de Alan ontem à noite, não fosse o fato de os meus amigos a terem visto pendurada em mim. – E qual é a história de Katie? – perguntou Justine. – Segundo ela, fomos embora juntos da festa, eu a obriguei a transar comigo no carro e depois a deixei na porta de casa. Vocês deveriam ver o meu carro. É sicamente impossível transar lá dentro. Mas uma amiga dela está dizendo que nos viu ir embora juntos. Não fosse por isso, seria a palavra dela contra a minha. – Katie fez exame de corpo de delito? – Não. No depoimento, ela disse que estava com vergonha, tomou uma ducha e não contou nada aos pais até a manhã seguinte, quando eles ligaram para a polícia. – Mas o
fato é o seguinte. Eu estava muito doido nessa noite. Se fui eu, mereço ser punido. Mas realmente não acho que tenha transado com a garota. Tenho quase certeza de que me lembraria. – Quase certeza? – repetiu Justine. – Está tudo muito confuso. Só me lembro de rir. De cair no chão. De garotas me apalpando. E nenhum dos meus amigos me viu indo embora com Katie. – Ela pode ter mentido para não levar bronca – sugeriu Justine. – Se tiver perdido a hora de chegar em casa, essas coisas. O astro beliscou o lábio inferior e Justine pensou que parecia estar vasculhando a própria memória, não inventando uma história. Mas Whitman, afinal de contas, era ator. – Dra. Smith, é melhor eu abrir logo o jogo com a senhora: essa não foi a primeira vez que perdi a memória. Tenho uma vida meio surreal, entende? Eu era só um garoto quando cheguei aqui. Um garoto normal. Mas esta cidade tem uma quantidade exagerada de tudo e o meu tempo não me pertence. Na metade do tempo parece que tem outra pessoa dirigindo a minha vida e eu não tenho o menor controle sobre o que me acontece. – Tudo que eu quero fazer é ajudar você para as coisas não piorarem – disse Justine. – Para o julgamento passar sem mais repercussões ruins na imprensa. Quer um conselho? – Quero. Claro. Diga-me o que quer que eu faça. Ah, droga, pensou Justine. Danny era simpático e agora ela era a responsável por mantêlo celibatário e livre das drogas para que pudesse estrelar o tal sucesso de bilheteria de 100
milhões de dólares. Entregou dois cartões a Whitman e disse: – Aqui estão nossos contatos, meu e de Scotty. É muito simples. Não saia com mulher nenhuma. Assim não haverá fotos nem matérias na imprensa. Não vá para a cama com ninguém. Trabalhe, volte para casa sozinho, deixe o celular ligado e que em contato conosco. – Combinado. – De quem é esse telefone na sua mão? – perguntou Justine. – Sei lá. É disso que estou falando. Olhe aqui. Pronto, apagado – disse Whitman, cuspindo na própria mão e esfregando-a na calça jeans. – Está bem – disse Justine. – A partir de agora, nja que você é um monge. E nós vamos descobrir o que pudermos sobre Katie Blackwell.
capítulo 43 A ESCADARIA DA PRIVATE ERA UMA larga espiral: cinco andares que davam voltas ao redor de um vão sobre a área de recepção, no térreo. A escada fora inspirada no interior da concha de um náutilo. E em uma escadaria de pedra que eu certa vez descera no Vaticano. Estava subindo para minha sala quando Sci, pulando os degraus, me alcançou no terceiro andar e disse: – Espere aí, Jack. Sua expressão era triste. Senti um frio na barriga como se estivesse num elevador despencando. – O que foi, Sci? – Está olhando para um mensageiro de más notícias – disse ele. – Bruno acabou de ligar. Bruno era um amigo de Sci, perito de primeira linha do laboratório de criminalística da polícia, o tal que esperava que Sci um dia o levasse para trabalhar na Private.
Passamos por Cody a caminho da minha sala. Sci sentou-se em uma cadeira, pôs os pés para cima apoiados na borda da minha mesa e disse: – Isso ca entre nós, ok? Caso contrário, teremos que contratar Bruno. E vamos perder um bom contato no laboratório. – Pode falar. Não, espere. Quero que Justine ouça também. – Tem certeza? – perguntou Sci. – Absoluta. Chamei Justine na linha interna. Ela disse que iria subir imediatamente e no minuto seguinte entrou na minha sala e mal olhou para mim. Sentou-se na cadeira ao lado de Sci, que falou: – O laboratório de criminalística da polícia encontrou sêmen no corpo de Colleen. O DNA corresponde ao seu. – Está de brincadeira – falei. Justine não disse nada, mas pude ler o comentário no seu rosto: Por que será que isso não me espanta? – E parece que a polícia já estabeleceu a sequência de fatos – prosseguiu Sci. – O que me disseram foi o seguinte: no dia do crime, Colleen usou o cartão de crédito para encher o tanque do carro e comprar alguns artigos variados na Sunoco do La Cienega Boulevard. Almoçou sozinha no Newsroom Café do North Robertson Boulevard e o carro dela acaba de ser encontrado no edifício-garagem que fica ao lado do restaurante.
Eu ia montando o quebra-cabeça enquanto Sci falava. Tentei bloquear a questão do sêmen no corpo de Colleen. – Jack, a polícia levantou seu histórico telefônico – disse Sci. – Seu telefone xo foi usado durante o período em que Colleen foi assassinada e você disse que não estava em casa. – O assassino usou meu telefone? – É. Parece que ligou para alguém que atendeu e desligou dois segundos depois. A ligação foi para o celular de Tommy. – Meu Deus. Que diabo significa isso? Pois é, o que significava aquilo? – O sêmen – disse Justine. – Se Tommy tivesse relações com Colleen, o DNA seria o mesmo. – Sim – confirmou Sci. – Ele e Jack têm DNAs idênticos. – A polícia está dizendo o que, então? Que eu transei com Colleen, depois a matei e por fim liguei para o meu irmão? Ou que nós a matamos juntos? – Jack, o que eu sei é que Mitch Tandy quer a sua cabeça por esse crime e, se também conseguir a de Tommy, o inspetor vai ter um grande dia.
capítulo 44
TOMMY. Eu tinha de encarar os fatos. O desgraçado do meu irmão podia estar envolvido na morte de Colleen. Será que ele havia enlouquecido? Ele mataria Colleen para me atingir? Pensei na ruptura que havia nos separado de vez. Tommy e eu estávamos no nono ano. Tínhamos 14 anos. April Lundon era um ano mais velha. Era uma menina charmosa, paqueradora e espontânea. Sabia andar plantando bananeira, montar a cavalo sem sela e já tinha ido a Paris. Tivera um namorado francês no verão anterior e sabia algumas palavras picantes naquele idioma. Ela gostava de andar entre mim e Tommy com as mãos enganchadas no bolso de trás de nossas calças. Dizia que gostava de nós dois na mesma medida – e ambos éramos loucos por ela. April não conseguia escolher.
Tommy e eu concordamos que só um de nós poderia car com a garota. Foi April quem inventou as regras: um concurso de beijo. Ela estaria vendada. O que beijasse melhor ganharia. E havia uma promessa velada de que o vencedor ganharia tudo. Eu e meu irmão estávamos explodindo de testosterona e éramos bem convencidos. A ideia de “eliminatórias do beijo” era deliciosa. Nós dois achávamos que podíamos vencer e nunca pensamos nas consequências. Jamais ocorreu a nenhum dos dois simplesmente desistir. April beijou Tommy, depois me beijou. Pus todo o meu coração naquele beijo, como se nunca mais fosse beijar outra garota na vida. April me escolheu. Então, em uma melhor de três, tornou a me escolher. Tommy nunca perdoou April. Tampouco a mim. A briga foi incentivada pelo nosso pai, que sempre favorecia um de nós e em seguida, sem nenhum motivo que conseguíssemos identificar ou entender, favorecia o outro. Era um homem imprevisível e cruel. A inimizade entre nós aumentou, tornou-se suja, física, e durou até bem depois de April Lundon ir para a faculdade, se casar e ter quatro lhos. Durou até depois de meu pai me dar 15 milhões de dólares e as chaves da Private. Durou até depois de ele morrer. Portanto, havia um histórico de disputa entre mim e Tommy. Mas será que ele chegaria ao cúmulo de se vingar cometendo assassinato? Na minha opinião, meu irmão era capaz disso. Mas eu não sabia se tinha sido ele.
Fiquei encarando o espaço vazio entre Sci e Justine e pensei em ir ao escritório de Tommy, arrastá-lo de lá e fazer o que fosse preciso para obrigá-lo a falar. Chamei Cody pelo interfone. – Preciso ver Del Rio e Cruz. Agora. Mas Justine estendeu a mão por cima da mesa e tocou meu braço. – Espere – disse ela. – Espere até ter provas suficientes para incriminar Tommy.
capítulo 45 O MULTIMILIONÁRIO LABORATÓRIO DE CRIMINALÍSTICA DE Jack Morgan ocupava todo o subsolo da Private. Com quase 2 mil metros quadrados de equipamentos forenses de ponta, era considerado um dos melhores laboratórios independentes dos Estados Unidos. Atendia os clientes da agência, mas era também uma fonte de renda extra, pois podia ser alugado para departamentos de polícia de todo o país que precisassem de resultados rápidos e da tecnologia mais avançada. O Dr. Seymour Kloppenberg, conhecido na Private como Dr. Sci, era o orgulhoso diretor desse laboratório, mas naquele momento ele e Mo-bot estavam na sala de Mo, que parecia uma caverna escura e que ela chamava de seu “buraquinho gostoso” . Mo havia acendido incenso, colocado lenços em cima das luminárias e os protetores de tela das dezenas de monitores alinhados acima de seu computador exibiam fotos de seu marido e seus filhos. O noticiário local passava no monitor 6: um close bem próximo de um apresentador
comentando sobre o sensacional “assassinato em Malibu”. Reclinado em uma cadeira giratória, Sci se balançava, mas Mo estava sentada na borda de sua cadeira, visivelmente zangada e agitada. Guerreira experiente em um jogo de combate on-line e em tempo real, com múltiplos níveis, Mo às vezes sentia que a fronteira entre jogo e realidade se confundia. Era essa a sensação que a estava dominando, a adrenalina de entrar em modo de combate. Enquanto via o repórter falar para a câmera, Mo assumia a personalidade de seu avatar, pensava nas armas de que dispunha em seu arsenal e reunia seu exército virtual. A repórter que os encarava pelo monitor era Randi Turner, que trabalhava no Canal 9 havia uns dois anos. Com os olhos xos na câmera, Turner falou: “Jack Morgan, diretorpresidente da Private, é considerado o principal suspeito do assassinato de sua exnamorada e ex-assistente Colleen Molloy.” Imagens de Jack surgiram na tela, seguidas por imagens dele com o braço em volta de Colleen, correndo, debaixo da chuva, da marquise de um restaurante até o carro. Depois disso foi exibido um vídeo do casal durante uma festa em Hollywood, cochichando e rindo. Turner fazia a narração em off: “Jack Morgan é lho do falecido omas Morgan, condenado por extorsão e assassinato em 2003 e assassinado na prisão em 2006. Assim como o pai, Jack Morgan é suspeito de ter vínculos com o crime organizado.”
Mo já vira o suficiente. Levantando-se da cadeira, gritou para a TV: – Vínculos com o crime organizado?! Vocês querem dizer que ele pagou as dívidas de jogo do irmão, isso sim! – Calma – disse Sci. – Tudo isso quer dizer que a imprensa está se agarrando a qualquer coisa. Se eles tivessem algo sólido contra Jack, não teriam necessidade de falar do pai dele. Não precisariam fazer nenhuma insinuação. A voz de Turner tornou a sair do monitor de alta denição na parede acima da mesa de Mo: “Fontes próximas à polícia informaram ao Canal 9 que os indícios físicos encontrados na vítima incriminam Jack Morgan, mas a natureza desses indícios não foi divulgada para a imprensa.” – Vá se ferrar! Morra, sua vaca! Sci arrancou o controle remoto da mão de Mo e desligou a TV. – Eu seria capaz de cortar a cabeça e as pernas dela e enleirar os pedaços um do lado do outro. Ela nem saberia que está morta. – Maureen, excesso de emoção é contraproducente. – Jack nunca seria capaz de matar Colleen. – Não, não seria, não matou e não vai ser indiciado. Isso é só a imprensa livre fazendo o que sempre faz: passando as notícias no liquidificador. – Ah, e você acha que nenhum inocente nunca foi para a prisão? É algo que nunca acontece? – Posso dar uma sugestão? Que tal você canalizar toda essa energia para investigar o
caso? – Sim, claro. Mas tanto você quanto eu sabemos que a única coisa capaz de salvar Jack é uma conssão do assassino – disse Mo-bot. – Uma conssão que inclua uma explicação de como o cara conseguiu pôr o sêmen de Jack dentro do corpo de Colleen.
capítulo 46 ENQUANTO DIRIGIA, ESCUTEI MINHA CAIXA postal do celular. Ouvi Carmine Noccia deixar uma mensagem com a voz bem nervosa, tive notícias de Del Rio e Scotty, em seguida recebi uma atualização de Cruz sobre o assassinato no Beverly Hills Sun. Conversei demoradamente com nosso escritório de Roma e durante esse telefonema Justine retornou minha ligação. Liguei de volta, mas caiu na caixa postal. – Estou dirigindo – falei. – Tento ligar para você mais tarde. Pouco depois das oito da noite, cheguei ao acesso da minha casa e estava tirando o cinto de segurança quando uma viatura da polícia apareceu atrás de mim e parou no acostamento da rodovia. As luzes da viatura emitiam fachos coloridos através do portão e no muro de estuque. As luzes se acenderam na minha cabeça também. Fazia 40 minutos que eu estava dirigindo no piloto automático e tinha ido para casa sem pensar, embora essa não fosse de
forma alguma minha intenção. A porta da viatura bateu atrás de mim. Baixei o vidro e a luz de uma lanterna me cegou, permitindo que eu visse apenas o contorno do agente. – Habilitação e documentos do veículo, por favor. Eu não poderia jurar, mas tinha quase certeza de que não havia ultrapassado o limite de velocidade. Peguei a habilitação na carteira e a estendi pela janela aberta, então me estiquei por cima do banco para alcançar o porta-luvas e peguei os documentos do carro. Entreguei-os também. – Volto já – disse o policial. Aguardei. Fiquei encarando a ta amarela e o aviso pregado na minha porta. Ouvi os estalos e os chiados do rádio da viatura e lembrei que, duas noites antes, mais ou menos naquele mesmo horário, havia descido do carro naquele mesmo lugar. Dera boa-noite a Aldo, passara meu cartão pela leitora do portão, entrara em casa e tirara a roupa a caminho do banheiro. Algumas horas depois disso, estava sendo interrogado por dois aguerridos policiais de Los Angeles, que haviam decidido que eu era culpado pela morte de Colleen antes mesmo de eu abrir a boca. Esperando o policial voltar, pensei no interrogatório ao qual fora submetido naquela noite. A teoria do inspetor Tandy, ou pelo menos parte dela, parecia plausível. Será que Colleen tinha ido à minha casa me fazer uma surpresa? Era a cara dela fazer algo assim. Ela saberia que seria arriscado, mas sua personalidade
condizia com aquela tentativa de ver se, depois de tudo que tivéramos, ela conseguiria me fazer mudar de ideia. Imaginei Colleen aninhada em uma cadeira da sala, à minha espera. Talvez ela tenha ouvido um carro parar em frente ao portão. Pude vê-la indo até a janela e espiando a escuridão, escutando o portão deslizando com um zumbido. Talvez tenha aberto a porta e chamado: “Jack?” Teria alguém respondido: “Oi, Colleen”? Alguém muito parecido comigo? Será que Tommy a tinha pegado de surpresa, encurralado dentro de casa, obrigado a deitar na minha cama? Talvez Colleen tenha tentado pegar minha pistola – ela sabia onde eu a guardava. Mas não foi rápida o bastante. Nem forte o bastante. A pistola foi arrancada de sua mão. E ela levou três tiros. Teria sido Tommy mesmo quem fez isso? Outra série de imagens se desenrolou na minha mente. Nessa versão da história, alguém estava me seguindo. Digamos que essa pessoa tenha me seguido quando saí do quarto de hotel de Colleen na semana anterior. Ela me conhecia. Conhecia Colleen. Desejava me prejudicar e havia bolado um plano. Visualizei Tommy. Digamos então que ele tenha cado de olho em Colleen enquanto eu estava na Europa. Em algum momento desses quatro dias ele a raptou, e uma hora antes do horário marcado
para minha chegada no Aeroporto de Los Angeles deu um jeito de amarrá-la e levá-la até minha casa. Usou a sua chave do portão e pressionou o dedo dela na fechadura biométrica… Minhas divagações foram interrompidas pela porta de um carro batendo. Ouvi o policial andando de volta até o meu Lamborghini. O facho da lanterna foi apontado outra vez para o meu rosto quando ele devolveu minha carteira de habilitação. – Sr. Morgan, sabe por que eu o mandei parar? – Não. Eu moro aqui. O senhor sabe disso, não sabe? Essa casa é minha. – Essa casa é a cena de um crime. O que o senhor está fazendo aqui? – Preciso de uma muda de roupa. – Não vai ser possível, Sr. Morgan. – Certo – falei. Dei a partida no carro. O motor rugiu. Mas o policial não quis me liberar. Não ainda. Ficou examinando meu rosto por trás da luz da lanterna. Eu sabia por que ele havia me parado. A polícia estava vigiando a minha casa para o caso de o assassino voltar à cena do crime. E aquele policial me olhava como se eu tivesse acabado de fazer justamente isso.
capítulo 47 A JOIA DA COROA DA CADEIA de Jinx Poole parecia uma tiara de diamantes no alto do cruzamento entre os bulevares South Santa Monica e Wilshire. Dei a volta com o Lamborghini pelo acesso curvo que conduzia à porta da frente do Beverly Hills Sun, entreguei a chave ao manobrista e atravessei sem parar o movimentado lobby com piso de mármore até os elevadores. Um grupo vestido para uma festa passou por mim e depois que ele se dispersou entrei no elevador. Apoiei-me na parede fria revestida de pedra enquanto subia até o quinto andar, onde Maurice Bingham fora estrangulado e onde eu estava hospedado até minha casa voltar a ser minha. Segui na direção do meu quarto, mas, em vez de entrar, por impulso abri a porta de incêndio e subi um lance de escadas até o bar do terraço. O ar estava esfriando e fachos de spots de luz se entrelaçavam como estrelas, iluminando
uma cena que prometia sexo com desconhecidos ou até mesmo, quem sabe, algum romance. Um trio de jazz tocava “Polka Dots and Moonbeams” no outro extremo do terraço, além da piscina. Casais paqueravam no balcão do bar e se aconchegavam nas espreguiçadeiras ao redor da água. Algumas pessoas preferiam a privacidade de tendas de lona branca. Fiquei parado à margem desse otimismo enevoado e hedonista e então fui me sentar diante do bar. Perguntei ao barman: – O que sugere? Ele olhou para mim e respondeu servindo um Chivas duplo sem gelo. Não sou muito de beber. No entanto, se algum dia na vida precisei de um drinque forte, foi naquele. Baixei a cabeça para que ninguém tivesse dúvidas sobre meu objetivo ali no bar. Eu não queria companhia. Queria esquecer. Porém, senti os olhos de alguém me observando. Quando ergui o rosto, uma mulher na ponta do bar me encarava com insistência. Tinha quase 30 anos, cabelos escuros presos em um rabo de cavalo e as curvas de seu corpo delicado estavam escondidas por roupas folgadas, escuras demais para a Califórnia e grandes demais para ela. A mulher me pareceu familiar, mas eu não a conhecia. Olhei para o outro lado, chamei a atenção do barman e pedi outro uísque duplo. Alguns minutos depois, quando levantei os olhos do copo, a mulher havia sumido.
capítulo 48 DOIS JOVENS EXECUTIVOS USANDO CAMISAS de cores berrantes se sentaram nos lugares vazios na outra ponta do bar. Pediram vodca com suco de laranja e começaram a conversar sobre o mercado de ações e sobre o limite cada vez menor do reembolso de despesas, que não cobria um fim de semana no Beverly Hills Sun. Tentei abafar suas vozes concentrando-me na música e no uísque que reluzia no meu copo. Pensei no relatório de Sci sobre o telefonema de dois segundos feito do telefone xo da minha casa para o celular de Tommy. Era uma má notícia para mim, pois parecia indicar que eu estava em casa quando o crime foi cometido. Só que eu não tinha dado esse telefonema. Não tinha ligado para Tommy, portanto… teria ele ligado para seu celular do telefone da minha casa para que parecesse que eu estava lá?
Ou ele teria encomendado o assassinato? Teria o assassino de Colleen ligado para Tommy da minha casa para lhe dizer que ela estava morta? Missão cumprida. Será que Tommy estava bem em frente à minha casa, na praia, e fora visto por Bobbie Newton, que o confundiu comigo? Apesar de estar sentado no bar, minha mente estava no carro, a caminho da casa de Tommy. Queria confrontar meu irmão, arrancar dele a verdade. E depois queria espancálo até ele não se parecer mais comigo. Para que, culpado ou não, nunca mais pudesse se passar por mim. Mas Justine tinha razão. Eu precisava de provas. Sem elas, o sêmen no corpo de Colleen bastaria para convencer o júri de que o assassino era eu. Esvaziei meu copo, deixei algum dinheiro em cima do bar e desci de escada até o quinto andar. Virei-me em direção ao meu quarto e vi novamente a mulher que estava sentada no bar meia hora antes. Estava agora do outro lado do hall dos elevadores, a pouco mais de 5 metros de distância. De costas para mim, remexia na bolsa como quem procura as chaves. Tenho a visão apurada e quando era piloto fui treinado para detectar anomalias no ar: uma nuvem de poeira, sombras em movimento, o cintilar de uma peça de aço 3 mil metros abaixo no escuro. Notei a mulher, mas ignorei o fato de que havia algo errado em sua atitude, sua postura e sua aparência – alguma coisa.
Afastei-me dela. Enei na fenda o cartão que me servia de chave, abri a porta do meu quarto – e senti um golpe atordoante me acertar na cabeça. Caí no chão. Quando dei por mim, a dor que se irradiava da parte de trás da minha cabeça me ofuscava a visão. Reconheci os raios de sol estampados no tapete sob meu queixo. Eu estava caído em um dos quartos do Beverly Hills Sun. Fechei os olhos e acordei com o choque de água gelada no rosto. A mulher que eu tinha visto no bar e depois no hall estava curvada sobre mim, com as mãos nos joelhos, gritando palavrões. Não consegui entender o sotaque irlandês carregado, mas reconheci os olhos. Eram os mesmos de Colleen. – Colleen – falei, e ela recomeçou a xingar. Em meio à dor, à medida que minha visão clareava, percebi que, embora se parecesse com Colleen, ela era mais velha. – Siobhan? Os xingamentos se intensificaram. Levantei-me até ficar sentado e gritei bem na cara dela: – Não estou entendendo nada! Cale a boca, cale a boca, cale a boca! – Não vou calar a boca coisa nenhuma, Jack! – gritou a irmã de Colleen. – Só quando você me disser por que a matou!
capítulo 49 ERA A SEGUNDA PORRADA QUE eu levava nas últimas 24 horas e as duas vieram de pessoas que amavam Colleen. Primeiro Donahue me dera um soco. E aparentemente também dissera a Siobhan onde me encontrar. E agora era a própria Siobhan quem tinha me dado uma pancada. O sofá era uma maravilha, mais de 2 metros de almofadas recheadas com plumas. Senteime e apoiei os pés na mesa de centro, ao lado do porrete revestido de couro que Siobhan tinha usado para me derrubar. Siobhan era durona, mas me trouxe um travesseiro, depois pegou uma garrafa d’água no frigobar e me entregou. Sentou-se na cadeira à minha frente e ficou me encarando. – Pode falar – disse ela. E eu falei. Disse e repeti para ela que não havia matado Colleen. Expliquei onde estava quando Colleen fora baleada e disse-lhe quanto gostava da irmã dela.
– Você transou com ela – acusou Siobhan. – Ela me ligou para dizer que você a levou para a cama antes de sair de Los Angeles. Você nega? – Não, não nego. – Estava brincando com os sentimentos dela. – Eu a amava. Só não o suficiente para lhe dar o que ela queria – falei. Pensei no último aniversário de Colleen. Tínhamos ido jantar no Tavern e nos sentado na mesma mesa em que, na noite anterior, eu me sentara para conversar com Donahue. No aniversário de Colleen, ele e um grupo de garçons levaram um bolo e cantaram parabéns para ela. Colleen havia começado aquela noite muito feliz. Eu sabia que, depois de um ano de namoro, o que ela queria de aniversário era um anel. Mas eu a decepcionei. O melhor que eu pudera fazer a deixara muito magoada. – Você a amava? Então eu não entendo esse “não o suciente” – disse Siobhan. Seus lábios tremiam. Lágrimas escorriam pelo seu rosto. – Por que ir para a cama com ela se para você não significava nada? – Por que você me bateu? – Tive que bater. Fiz uma pausa para registrar o que ela dizia. – Eu estava com saudades dela, Siobhan. Quis dizer mais, porém nada do que eu falasse faria sentido, nem mesmo para mim. Ir para a cama com Colleen tinha sido um erro. Se eu não tivesse voltado para o hotel com
ela, talvez Colleen ainda estivesse viva. Apesar da dor que sentia, Siobhan se esforçou para continuar me interrogando. – Então, se não foi você quem matou Colleen, quem foi? Não é supostamente essa a sua especialidade, investigar assassinatos? Siobhan agora soluçava. Levantei-me e estendi os braços para ela. Ela balançou a cabeça. – Está tudo bem – falei. – Está tudo bem. Ela se aproximou e eu a abracei enquanto ela chorava. – Encontre esse filho da mãe. Eu devo isso a Colleen. – Vou fazer o que estiver ao meu alcance. – Estou com saudades dela – disse Siobhan com a voz embargada. – Eu a amava tanto. Nós éramos melhores amigas. Nunca brigávamos. Não tínhamos segredos. Não sei como vou continuar sem ela. – Eu sinto muito, Siobhan. Perder Colleen… é uma coisa terrível. Minha voz falhou e então comecei a chorar junto com ela. Fazia anos que não me permitia chorar. A tristeza pela morte de Colleen me dominou. Abraçar sua irmã me deu a sensação de estar me despedindo dela outra vez. Talvez Siobhan tenha sentido que Colleen estava me dando um último adeus. Ela se afastou de mim, mas segurou meus braços com força enquanto erguia os olhos para me encarar.
– Você a amava de verdade, não é, Jack? Então por que não fez a coisa certa? – Pensei que tivesse feito. Eu a libertei.
capítulo 50 A SALA DE DEL RIO ESTAVA com cheiro de pizza de pepperoni. Era pouco mais de nove horas e ele e Cruz haviam passado o dia inteiro e boa parte da noite trabalhando no caso do Beverly Hills Sun, comparando os cinco assassinatos cometidos em hotéis da Califórnia no último ano e meio. As duas primeiras mortes haviam ocorrido com seis meses de intervalo e 150 quilômetros de distância. Ninguém achara, portanto, que estivessem relacionadas. A primeira vítima, Saul Cappricio, fora encontrada estrangulada em um hotel de Jinx Poole em San Diego. A segunda, Arthur Valentine, fora descoberta já em estado de decomposição no Seaview, um estabelecimento de terceira categoria em Los Angeles. Quando a terceira vítima, Conrad Morton, foi achada morta com um garrote no Constellation de São Francisco, também da cadeia de Poole, a polícia começou a buscar alguma conexão – porém, mesmo com vários departamentos envolvidos, ou talvez por
causa disso, nenhum suspeito havia surgido. Até aquele momento, portanto, cinco executivos com idades variando de 35 a 51 anos, entre os quais Maurice Bingham, haviam sido estrangulados com tipos variados de o em seus quartos de hotel. Não trabalhavam para as mesmas empresas, tinham todos prossões diferentes e moravam em cidades distintas. Três eram casados, dois não. Diante do computador, Del Rio cruzava informações telefônicas. Cruz conferia despesas de cartão de crédito em outra máquina. – Bingham usou o mesmo serviço de acompanhantes de Valentine, que também gastou 1.200 pratas por duas horas de sacanagem – disse Cruz. Del Rio se recostou na cadeira e esfregou os olhos. – Todos eles chamaram garotas de programa. Mas não usaram o mesmo serviço. Será que isso é uma pista ou é apenas o que os executivos fazem quando estão viajando? – Sinto que está pintando uma viagem a trabalho – disse Cruz. – Porra. Eu também. – É uma pista – disse Cruz. – Os serviços de acompanhantes são uma pista, não uma coincidência. Talvez tenha uma garota de programa com sede de matar se movimentando de um lugar para outro. Del Rio já podia imaginar como seriam os próximos dias: entrevistas com prostitutas, clientes e viúvas. Desligou o computador e jogou no lixo a embalagem de pizza. Vestiu o casaco. Uma lista de nomes e telefones de serviços de acompanhantes saiu na bandeja da
impressora. – Você apaga a luz, Emilio? – pediu Del Rio. – Nos encontramos aqui amanhã de manhã, às oito. Paramos primeiro para um café.
capítulo 51 MITCH TANDY ANDAVA EM VOLTA da casa à procura de qualquer coisa fora do lugar. Queria encontrar algo tangível que vinculasse Jack Morgan ao assassinato de Colleen Molloy. Pensou na investigação sobre o caso do jogador de futebol americano O. J. Simpson, na luva encontrada perto do limite da propriedade do acusado. Apesar de ser uma prova conclusiva, a luva, graças a uma assustadora incompetência da acusação, acabara ajudando a defesa. Se não colar, é preciso deixar passar. O caso de Simpson havia sido a vergonha do Departamento de Polícia de Los Angeles. Pouco importava. Eram águas passadas. Dez agentes da unidade de homicídios estavam passando o pente-no na praia. Mergulhadores vasculhavam as águas rasas à procura de metal. Do lado de dentro, equipes especializadas em cenas de crime davam mais uma verificada na casa.
Jack Morgan era esperto, mas não era perfeito. Se ele tivesse deixado escapar alguma coisa em sua faxina da cena do crime, Tandy tinha certeza de que iriam encontrar e indiciá-lo. Ouviu Ziegler chamar seu nome. – Estou aqui – respondeu. Ziegler foi encontrar Tandy junto ao muro que separava a casa de Jack Morgan da Pacic Coast Highway. – Alguma coisa? – perguntou Tandy. – Não. – Ele deixou sêmen dentro dela – comentou Tandy. – Não usou nem camisinha. Isso é um comportamento arriscado. Suicida até. – Ou então a porra é do irmão dele. Os dois já haviam conversado sobre isso. Sobre a complicação de investigar irmãos gêmeos com DNA idêntico. Era o tipo de coisa que podia insinuar uma “dúvida razoável” na deliberação de um júri. Haviam interrogado Tommy e ele tinha um álibi para a noite do crime. A esposa afirmou que ele estava em casa. Afirmou não: jurou. De pés juntos. Mesmo assim, ela poderia estar mentindo. – Tommy ou Jack. Um dos dois é culpado. E só Jack tem motivo. – O que é aquilo ali? – perguntou Ziegler. – Aquilo o quê? Ziegler apontou para um trecho de cobertura remexido na base de uma buganvília sob a
sombra da cerca. Tandy usou o pé para afastar as lascas de madeira. Por um longo instante, os dois apenas olharam. – Vou pegar a câmera – disse Ziegler. Tandy assentiu, abaixou-se e continuou a encarar o solo. Aquela era a prova de que precisavam. A excitação que sentiu foi indescritível. Era por isso que, apesar de todos os procedimentos intermináveis, todos os becos sem saída e toda a chateação burocrática, adorava ser policial. Por causa de momentos como aquele. O imbecil tinha deixado a arma do crime para trás.
capítulo 52 ENTREI NA MINHA SALA ÀS oito horas da manhã seguinte, ainda com a cabeça latejando como se houvesse uma britadeira em um ponto logo atrás do olho direito. Cody estava ao telefone, mas, quando passei por sua mesa, ergueu a mão me pedindo que esperasse. Falou no headphone: – Pois não, senhor. Vou ver se ele está. Rabiscou atrás de um envelope: “Chf de Pol Fescoe”. – Vou atender – falei. Fui até minha mesa, tirei o fone do gancho e disse: – Mick. – Jack. Liguei para dar um alerta. Pode chamar seu advogado. – O que houve? – Tandy e Ziegler acharam sua pistola.
Aquelas palavras foram como um soco na barriga. Senti náuseas. Minha visão cou desfocada. Repassei na mente os acontecimentos dos três últimos dias enquanto tentava entender o que Fescoe estava dizendo. – Acharam onde? – consegui articular. – No quintal em frente à sua casa. Enterrada debaixo de uma trepadeira. – Plantada, você quer dizer. Eu declarei que a pistola havia desaparecido na noite em que Colleen foi morta. – Eu sei, Jack. Mas o fato é que é a sua pistola, uma Kimber customizada registrada em seu nome. Tem as suas digitais. – Só as minhas? – Só. Sentei-me. Cody trouxe meu Red Bull e o colocou sobre um porta-copo meticulosamente posicionado. Demorou um pouco mais do que o normal para se retirar. Encarei-o até ele sair e fechar a porta atrás de si. – Jack? – Estou aqui ainda, Mickey. Pode repetir? Onde exatamente a pistola foi encontrada? – Enterrada em um canteiro, bem ao lado do portão. Uma Kimber calibre 45, o mesmo das balas que mataram Colleen Molloy. – O assassino usou luvas – falei. – É por isso que a pistola só tem as minhas digitais. E ele a deixou em um lugar onde a polícia encontraria. – Eu sei. O departamento de balística está fazendo uma comparação.
O chefe da polícia revelava as informações sem se comprometer. Lembrei-me de meu amigo seis meses atrás: um homem alto de mais de 1,90 metro, sorriso largo, em pé ao lado de mim e de Justine, os ashes disparando enquanto nos agradecia por termos capturado um assassino. Ele com certeza confiava em mim na ocasião. A voz de Fescoe se abrandou: – As balas retiradas da vítima correspondem à sua pistola, Jack? – Talvez. Provavelmente. Mesmo assim, não a matei. Se quisesse me livrar da minha própria pistola, eu seria mesmo tão burro assim? – indaguei ao meu amigo. – Mick. Estou lhe perguntando: eu iria mesmo enterrar a arma do crime em frente à porta da frente da minha casa? – Ligue para o seu advogado, o Dr. Caine. Faça o que ele mandar. – Obrigada por ter me ligado, Mick. – De nada. Não saia da cidade. – Estou hospedado em um hotel bacana. Tenho tudo de que preciso lá. – Você está bem? – O quê? É claro. Estou muito bem para um cara que está sendo encurralado para levar a culpa por um crime que não cometeu. Estou cem por cento. – Quando isso tudo terminar convidarei você para jantar – disse Fescoe. Falei para ele que o jantar sairia caro. Cody tornou a entrar quando eu estava desligando. Disse “Desculpe” , parou atrás de
mim, ligou meu computador e abriu minha agenda do dia. Fiquei olhando para a tela sem ver nada. Então a voz de Cody me tirou do devaneio: – Jack, já está todo mundo a postos lá na sala de reuniões. Vamos começar em quinze minutos.
capítulo 53 UM ABISMO SE ABRIU ENTRE meus pensamentos e minhas sensações. Tudo que era externo a mim – pessoas passando nos corredores, o celular tocando no meu bolso, risos ecoando pelo vão da escada – parecia muito, muito distante, sem qualquer relação comigo. Atravessei o andar, abri a porta da sala de reuniões e vi um círculo de 25 homens e mulheres sentados ao redor da mesa, todos sócios da Private no mundo, reunidos ali para nossa reunião de operações bianual. Eu conhecia todas aquelas pessoas. Tinha ido ao casamento de algumas delas, cara hospedado na casa de outras. Elas esperavam que eu expusesse planos. Que tomasse decisões. Esperavam que eu conduzisse. Mas aquele era o último lugar em que eu queria estar. Praticamente todos os presentes haviam servido nas forças armadas, trabalhado na área de direito ou na segurança pública.
Eu sabia que, quando o choque inicial passasse, não conseguiria esconder meu pânico crescente por estar ali em meio àqueles detetives particulares de primeira categoria. Cody sentou-se em uma cadeira atrás da minha e Mo-bot, que fala várias línguas fluentemente, sentou-se ao lado de Cody. Todas as conversas cessaram quando puxei minha cadeira e me sentei. Houve alguns cumprimentos, sorrisos, e 25 pares de olhos se cravaram no meu rosto. A pergunta silenciosa daquelas 25 cabeças flutuou no ar. Foi você quem matou Colleen Molloy? Você é um assassino? Àquela altura, eu já havia imaginado o que acontecera com Colleen tantas vezes que a sensação era que de fato estivera junto à cama quando as balas da minha pistola atingiram seu peito. A ligação de Fescoe dez minutos antes havia transformado minhas imagens mentais em algo imediato e real. A polícia havia encontrado minha pistola. Naquele exato momento faziam testes de balística. E eu sabia, tinha certeza de que em algum momento no futuro próximo seria acusado de homicídio doloso. – Bom dia – falei. Olhei para a agenda impressa à minha frente e batuquei na mesa com a caneta. Atualizei meus colegas sobre a investigação da morte de Colleen e disse: – Quem matou Colleen é prossional. Está tentando me incriminar… e está se saindo muito bem. Fez a pesquisa necessária. Sabia que Colleen estava em Los Angeles, conhecia
os movimentos dela e os meus. Essa pessoa entrou na minha casa, cometeu o crime e foi embora sem cometer nenhum deslize óbvio. A polícia achou por bem não investigar outro suspeito além de mim. E por que investigaria? A vítima era amiga minha, morreu na minha cama, baleada com a minha pistola. Fiz uma pausa e continuei: – Foi uma bela armação. Não sei quem matou Colleen, mas tenho alguns palpites e vamos pegar os responsáveis. Por favor, me procurem se tiverem alguma sugestão ou puderem me ajudar de alguma forma. Digam a seus funcionários e clientes que sou inocente e podem conar quando digo isso, todos vocês me conhecem e sabem que estou falando a verdade. – Jack, com licença. Que palpites são esses que você tem? – quis saber Pierre Bonet, nosso diretor na França. – Prefiro não falar sobre eles antes de ter algo sólido. Perguntei se havia alguma outra pergunta e em seguida baixei os olhos para a agenda. – Ian, você primeiro. Queria me falar sobre expandir o escritório de Londres para Glasgow? Mudei minha expressão para o modo “escuta” , embora na verdade não estivesse conseguindo entender nada do que Ian dizia. Ele estava lendo informações de um gráco projetado em um tela quando a porta se abriu e Tandy entrou seguido de perto por Ziegler. Senti um terror súbito e puro, como se dois matadores tivessem acabado de entrar
disparando armas automáticas. Fescoe não tinha me dado tempo de ligar para meu advogado, nem sequer de tirar os outros da sala. – Desculpe-me, Ian. Mitch, vamos lá para fora – falei para Tandy. – Não vai ser necessário – disse Tandy. – Queira se levantar, Sr. Morgan. Vire-se e que de frente para a parede. Não havia escapatória. Eu não tinha para onde correr. Disse a Cody para chamar Caine e Justine e obedeci às ordens de Tandy. Senti as algemas se fecharam em volta dos meus pulsos. Tandy enou um mandado de prisão no bolso da frente da minha camisa e recitou meus direitos. Sua voz era o único som no silêncio sepulcral da sala de reuniões. Tandy quis garantir que me humilharia o máximo possível. Tive tempo de dizer a meus colegas: – Falo com vocês todos muito em breve. Ziegler então me deu um leve empurrão e fui escoltado para fora da sala sob custódia de dois policiais da Divisão de Homicídios do Departamento de Polícia de Los Angeles.
capítulo 54 TANDY PEGOU MEU COTOVELO ESQUERDO, Ziegler o direito, e me conduziram de andar em andar pela escada caracol. Clientes e clientes em potencial, funcionários que circulavam entre um andar e outro, todos viram que eu havia sido preso. As expressões em seus rostos espelhavam o choque que eu próprio sentia. – Tem um carro esperando lá fora – disse Ziegler. – Não é do tipo com que você está acostumado, Jack. Mas tem um motor. E rodas. – Vocês não precisavam fazer as coisas desse jeito – falei. – Mas tenho quase certeza de que sabem disso. Tandy riu. O lho da puta estava tendo um dia excelente. Quando chegamos ao térreo, Ziegler segurou a porta e saímos para a Figueroa Street. Estava na cara que a polícia tinha avisado a imprensa. O sol da manhã iluminava com uma luz chapada e forte os rostos ávidos dos repórteres que se precipitavam na minha
direção. Curiosos se aproximavam da aglomeração. – Toda publicidade é boa, Jack – zombou Tandy. – Li isso na Variety. Cody me esperava no meio-fio, quase em prantos. – Justine e o Dr. Caine estão indo para o TTFC – disse-me ele. – Vão encontrar você lá. TTFC era o Twin Towers Correctional Facility, ou Centro Correcional das Torres Gêmeas, o gigantesco complexo prisional que substituíra o Palácio de Justiça de Los Angeles após o terremoto de 1994. Conhecido como a prisão mais movimentada do mundo livre, compreendia um centro de detenção e três presídios espalhados por um terreno de 40 mil metros quadrados. As histórias de terror sobre a brutalidade praticada no TTCF eram lendárias. Se você não conseguisse sair sob fiança, podia perder a saúde ou até mesmo a vida enquanto aguardava meses para falar com um juiz – independentemente de ser culpado ou não. – O que devo dizer às pessoas? – perguntou Cody. – Diga que fui injustamente acusado e que darei uma declaração para a imprensa assim que voltar ao escritório. – Não se preocupe, Jack. O Dr. Caine vai soltar você. Ele é o melhor. Cody estava tentando me reconfortar e eu queria reconfortá-lo, mas não consegui encontrar nada de animador para falar. Desejava não ter dado ouvidos a Justine, desejava ter ido procurar Tommy e enchido a cara dele de porrada. O lho da mãe era dissimulado, mas não era páreo para mim. Não em um combate limpo. Ele teria contado alguma coisa.
Jornalistas chamavam meu nome e gritavam: – Jack, qual é a sua versão da história? O que você quer que o público saiba? Tandy empurrou minha cabeça para baixo e me fez entrar no banco de trás de uma viatura sem insígnia. Quando me abaixava para passar pela porta, virei a cabeça e ergui os olhos para nossos escritórios. No segundo andar, Mo-bot estava debruçada em uma janela aberta com uma câmera de vídeo na mão. Ela estava filmando tudo. Ao me ver olhar para cima, fez o sinal de positivo com o polegar. Fui tomado por uma onda de afeto por Mo. Sorri para ela por um segundo antes de Tandy bater a porta. Ele então deu a volta na viatura e sentou-se no banco de trás junto comigo. Na frente, Ziegler ligou o motor. Passou-se um minuto, talvez dois, enquanto esperava uma brecha se abrir no tráfego e nesse tempo os jornalistas não pararam de bater nas portas e nas janelas. Então o carro partiu. Não vi um fio sequer de esperança. Eles haviam me pegado e, se pudessem, iriam me destruir.
capítulo 55 TANDY E ZIEGLER ABRIRAM CAMINHO entre grupos cerrados de bandidinhos reunidos em volta da cerca de arame que rodeava a prisão. Um guarda abriu o portão, Tandy falou alguma coisa e fomos conduzidos por vários postos de controle até chegarmos a uma sala de depoimento no térreo. O recinto pequeno e cinza era a porta de entrada para o grande esgoto que era o presídio masculino, um inferno que havia sido projetado para acomodar apenas um quarto dos 1.800 detentos geralmente abrigados ali. Imaginei que fosse ver Eric Caine à minha espera, mas deveria ter sabido que não. O TTCF era um labirinto complexo de 140 mil metros quadrados e os advogados de defesa não eram bem-vindos ali. Ziegler fechou a porta da sala de depoimento, assoou o nariz em um lenço de papel e o arremessou em uma lixeira.
– Precisa de alguma coisa, Jack? – indagou Tandy. Era a farsa do policial bonzinho, que não sei por que parecia mais ameaçadora do que quando ele bancava o filha da puta sádico que de fato era. – Não tenho nada a dizer até meu advogado chegar – falei. – Sente-se – disse Ziegler. Ele me empurrou em direção a uma cadeira de metal e, enquanto eu cambaleava até lá, Ziegler esticou a perna e me derrubou com o queixo no chão de linóleo. Tandy me ajudou a levantar e disse: – Desculpe, Jack. Len não fez de propósito. Foi um acidente. Mesmo algemado, eu seria capaz de desferir um chute na virilha que Ziegler iria recordar por alguns meses, mas sabia o que aconteceria comigo em seguida. – Claro, o que mais poderia ter sido? – Não vai começar a falar atravessado conosco, vai, Jack? Não seria muito inteligente. Ziegler e Tandy me puseram em pé e me sentaram na cadeira. Imaginei quem estaria atrás do vidro espelhado e se Fescoe sabia que eu estava prestes a ser molestado. – Tenho de confessar uma coisa – disse Tandy. – Mandamos o seu advogado dar uma voltinha, pegar um desvio, por assim dizer. Ele vai levar um tempinho para nos encontrar, mas fizemos isso para o seu próprio bem. Temos informações que você vai gostar de ouvir. – Ah, claro. Entendi, Mitch. Vocês vão me ajudar. Tandy caminhou até atrás de mim e parou em um ponto fora do meu campo de visão. Ziegler estava sentado a meio metro de mim, usando o canivete com cabo de madrepérola
para limpar as unhas. Len Ziegler era um homem vaidoso. Malhava. Vestia-se bem. Mas não havia muito que pudesse fazer em relação ao queixo afundado e aos olhinhos miúdos de porco. – Escute, Jack – disse ele. – Acho que a polícia de Los Angeles nunca viu um caso tão óbvio assim. Listou todos os indícios físicos que a polícia tinha contra mim, e então falou: – Você ligou para o seu irmão por volta do horário em que a vítima foi morta. Nós conversamos com Tommy. Forçamos a barra com ele. Ele disse que recebeu uma ligação e que a pessoa desligou sem dizer nada, só isso. Mas o negócio é o seguinte, Jack: você marcou sua presença na cena do crime. – Por que deu esse telefonema? – perguntou Tandy. – Para mim isso é um mistério. Você digitou o número errado? Subconsciente culpado? – Eu também não entendo esse telefonema – falei. – Não liguei para Tommy. Assim que descobri o que havia acontecido, disquei para a emergência. Segundo a sua teoria, Mitch, por que eu teria ligado para Tommy? – Bem, eu z essa pergunta a Tommy – respondeu Tandy. – Passei umas duas horas com ele. O álibi do seu irmão é sólido e ele não tem nada de bom a dizer a seu respeito. Francamente, e digo isso como um cara que trabalha na polícia há vinte anos, você está tão ferrado que nem consigo me lembrar de felicidade maior. Len, você algum dia me viu tão feliz? – Acho que quando ganhou a trifeta em Santa Anita você cou feliz para caramba, mas é
páreo duro. – Um Belo Dia. Era esse o nome da égua. – Tandy riu com a lembrança antes de continuar. – Agora sou apenas um intermediário, você sabe disso. Quem me pediu para ajudá-lo foi o chefe da polícia. Ziegler fechou o canivete e o guardou no bolso de trás da calça. – Fescoe me pediu que o avisasse que, se poupar à prefeitura o custo e o trabalho de um julgamento, se prestar uma declaração detalhando o que fez, ele vai aliviar a sua barra. Disse que faria isso. E pediu que lembrássemos a você que ele e o promotor público do condado são amigos do peito. – Eu não matei Colleen. Tandy pôs as mãos nos meus ombros e empurrou minha cadeira para trás. Caí e quando minha cabeça bateu no chão Ziegler a cutucou com a ponta do sapato. Foi só um toque leve, mas senti um frio percorrer meu corpo inteiro. Pensei que um chute na cabeça poderia seccionar minha espinha, no que se costuma chamar de “decapitação interna”. Eu não conseguiria me recuperar de uma lesão dessas. Tandy estava falando comigo, desculpando-se pelo fato de a cadeira ter caído. – Chega de conversa ada – falei do chão. – Eu não vou prestar declaração nenhuma. Na tabela de anças há um valor previsto para homicídio. Quando Caine chegar, vamos pagar 1 milhão de dólares e eu vou cair fora. Tandy se abaixou para me olhar bem nos olhos. – Não há fiança prevista para homicídio qualificado – disse ele.
– Que história é essa? Qualificado por quê? – Colleen estava grávida quando você a matou, Jack. Isso é um agravante. Homicídio duplo.
capítulo 56 EU NÃO CONSEGUIA ABSORVER O que Tandy estava me dizendo. Colleen não podia estar grávida. Não havia barriga nenhuma. Além disso, ela teria me contado. Ou não? Ziegler recolheu a cadeira do chão. Então ele e Tandy me levantaram e me puseram sentado outra vez. – É mentira – falei. – Colleen não estava grávida. – Como é que você sabe? – indagou Ziegler. – Por acaso recebeu o laudo da necropsia? Nós recebemos. Ainda vai demorar um pouco para termos o DNA, mas pouco importa quem é o pai. Tanto faz de quem ela estivesse grávida. O fato é que o bebê foi assassinado. Tandy me cutucou no ombro. Virei a cabeça e olhei para ele. – Jack, você continua conosco? Eu ainda não liguei a câmera de vídeo, mas vou ligar
agora. É melhor você nos dizer a verdade enquanto ainda há tempo. Tandy saiu da sala e, de fato, ouvi o ruído da câmera de vídeo no canto do teto entrando em foco. Uma luz vermelha começou a piscar. Tandy tornou a entrar na sala trazendo um bloco amarelo e uma caneta. – Está preparado, Jack? Porque a hora é esta. Quando nós formos embora, ninguém vai poder ajudar você. Nem mesmo Fescoe. Ele havia acabado de pôr o bloco e a caneta em cima da mesa quando Eric Caine, meu amigo, advogado formado em Harvard e chefe do departamento jurídico da Private, entrou bufando na sala de depoimento. Caine era um homem grande, prematuramente grisalho e, como eu, havia jogado futebol americano na faculdade. Em seu estado normal, era um homem de reações contidas, humor seco e autocontrolado. Agora, porém, estava furioso. E isso fez com que me sentisse bem. – Jack, você disse alguma coisa? – perguntou-me aos gritos. – Não. Só os inspetores falaram. Caine chegou perto de mim e virou minha cabeça para um lado e para o outro. – Você está sangrando? – Dirigiu-se então a Tandy e Ziegler. – Bater em um prisioneiro é contra a lei. Vocês não só vão ter que encarar um processo como essa agressão anula automaticamente qualquer coisa que ele tenha dito. – Ele disse que é inocente – zombou Ziegler. – Um cachorro grande que late bem alto – falou Tandy para o colega, olhando de
esguelha para Caine. – Au au. – Quero que meu cliente seja examinado por um médico – disse Caine. – Agora.
capítulo 57 FUI MEIO ARRASTADO ENTRE OS policiais até a enfermaria do Twin Towers, onde uma enfermeira passou um cotonete com álcool nos meus cortes e arranhões. Ela também fez um curativo no meu queixo. Eu estava pensando em Colleen. Pensando que, se estivesse mesmo grávida, era impossível o bebê ser meu. Exceto por nossa farrinha de despedida uma semana antes, fazia mais de seis meses que eu não a via. Teria percebido se ela estivesse com seis meses de gravidez, não teria? No entanto, como dissera Tandy, a morte de um feto era uma circunstância agravante quando associada a um homicídio. Sim, minha ança seria negada. Eu poderia muito bem passar o ano seguinte inteiro naquele esgoto antes de ir a julgamento. Desviei meu foco enquanto, alguns metros dali, Tandy explicava ao médico que eu havia tropeçado e, como estava algemado, não conseguira aparar a queda.
– E o hematoma atrás da cabeça? – perguntou o médico, um homem branco já passado da meia-idade. Caso tivesse se formado entre os 99,9% melhores alunos de sua turma, não estaria trabalhando naquele lugar. – Jack é daquele tipo senhor do universo, sabe como é? – brincou Tandy. – Não gosta de car detido. Quando eu o estava colocando no banco de trás do carro, ele bateu com a cabeça. – Ele girou o corpo para mostrar exatamente como teria acontecido. – Foi isso mesmo? – perguntou-me o médico. Negar teria sido um erro. Alguns anos antes, um detento havia reclamado com um observador da ACLU, a União Americana de Direitos Civis, que nenhum detento do seu setor tivera autorização para tomar banho em quatro semanas. Ele foi espancado. Teve uma das pernas quebrada. A ACLU se envolveu no caso, mas, até onde eu sabia, o sujeito ainda estava no presídio aguardando julgamento. – Foi como o inspetor está dizendo. Eu fui desajeitado. – Anotado – respondeu o médico. – Pode me dar uma aspirina? Tandy assentiu. – Dê uma aspirina a ele, doutor. Nosso presente de despedida. – Cale a boca, Tandy – disse Caine. Eu queria fazer Tandy sofrer, e muito. Torci para viver o suciente para conseguir isso. Tandy e Ziegler acenaram e saíram rastejando para o corredor. – Aguente rme, Jack – disse-me Caine. – Estou focado em uma coisa: tirar você daqui.
Nunca deixei você na mão antes e esta não vai ser a primeira vez. Uma enfermeira mediu meus sinais vitais, em seguida fez uma avaliação de meu estado mental para ver se eu era maluco. Ou se eu pretendia me enforcar. Ou cometer assassinato. Da enfermaria fui levado para um grande recinto aberto. Instruíram-me a tirar a roupa e passei por um exame físico no estilo militar. Afastei as duas nádegas, tossi quando mandaram e deixei o guarda examinar meus orifícios. Fui declarado apto e escoltado de volta para o setor de detenção acompanhado por um jovem agente ainda em treinamento que puxou papo comigo. Disse que pretendia sair do presídio às cinco horas naquele dia. Tinha que ir buscar os pais no aeroporto. Ele pegou meu relógio, meu celular, minha carteira, meu cinto e meus cadarços. Meus dedos foram pressionados em uma leitora eletrônica de digitais. Fiquei em pé em frente a uma escala de altura segurando um número diante do peito. Virei-me para a esquerda, em seguida para a direita, conforme solicitado pelo funcionário entediado que operava a câmera. Fiz o que me mandaram, mas estava tomado por vários sentimentos que começavam com a letra D: depressão, desmoralização, degradação. À minha volta, por toda parte, pessoas vomitavam, gritavam, ameaçavam, cuspiam, e pareciam estar implorando para serem maltratadas. Eu queria gritar: Eu não sou como esses caras! Sou inocente! Teria sido como gritar para dentro de um buraco que conduzisse direto ao centro da
Terra. E minha manhã estava apenas começando.
capítulo 58 FUI CONDUZIDO PELO PRÉDIO ATÉ a ala masculina, onde passei por outra revista íntima e recebi uma trouxa com um uniforme: calça e camiseta laranja, sapatos de borracha. Então, a caminho da minha cela, tive direito a um tour pelas instalações. O presídio era formado por centenas de módulos de dois andares, cada um com dezenas de celas. Cada módulo fora projetado para comportar trinta homens, mas, ao cruzar os corredores, pude ver que todos estavam com praticamente o dobro da ocupação, mais de cinquenta detentos chorando e tossindo desesperados ali dentro. Minha cela era do tamanho de um closet, 2×2,5m, com duas estreitas pranchas de metal e uma privada fedida e entupida. Eu era o quarto detento ali. Sentei-me em uma das pranchas. As luzes do teto ofuscavam minha visão. Não havia janela, nenhum jeito de saber em
que momento do dia estávamos, mas me parecia que pelo menos dez horas haviam transcorrido desde que eu recebera o telefonema de Fescoe na Private. Um homem de cheiro rançoso, com idade entre 20 e 40 anos, sentou-se ao meu lado. Chamava-se Irwin e queria conversar. Contou-me que estava detido havia cinco dias. Fora pego dentro do carro com cocaína e uma adolescente a dois quarteirões de uma escola. Mesmo assim, pensei, Irwin tinha menos motivos para se preocupar do que eu. Havia um ferimento infeccionado no seu braço e outro no pescoço. Falou sobre o sanduíche de carne misteriosa servido no almoço e sobre o burrito do jantar, do tipo que se compra em postos de gasolina. Eu havia perdido as duas refeições. Irwin perguntou se eu tinha um bom advogado. Respondi que sim, em seguida me recostei na parede. Não queria chamar nenhum tipo de atenção. Estava me afogando em uma maré revolta de desespero que não fazia muito sentido para mim. Havia passado por acampamentos dos fuzileiros navais e depois por uma guerra. Tinha matado gente. Vi amigos morrerem. Meus pais haviam morrido. Eu fora ferido em combate. Na verdade, morrera e fora trazido de volta à vida. Havia resistido a tudo isso. Mas o único sentimento que eu não me lembrava de ter experimentado em momento algum era essa total falta de esperança. Nada do que eu dizia importava. Eu não tinha acesso a ninguém. Não havia nada que pudesse fazer. Estava à mercê de pessoas que queriam me ver condenado. O próprio Fescoe tinha me
abandonado: é melhor você confessar. Irwin foi para a outra prancha de metal e um segundo desesperado que também precisava de um banho sentou-se ao meu lado. Parecia um cara decente. Tinha mulher e dois lhos e havia se envolvido em uma briga de bar. Disse que não havia conseguido pagar a ança. Estava com uma tosse feia. Pelo barulho, parecia tuberculose ou talvez câncer de pulmão. Fingi que estava dormindo. Fiz uma lista mental das pessoas que me odiavam. Uma longa lista de caras que eu havia prendido, frustrado, demitido ou denunciado. O rosto de Tommy não parava de aparecer na minha mente e então fui despertado de um sonho turvo. As luzes estavam todas acesas. Um de meus companheiros de cela grunhia sentado na privada. Mas o que havia me acordado era a voz que ribombava no sistema de alto-falantes informando quais detentos seriam encaminhados de ônibus para quais tribunais. – É isso que eles fazem às quatro da manhã – disse Irwin. – Gostou? Os tribunais só abrem às nove. Meu nome não foi citado. Eles não tinham chamado o meu nome. Fechei os olhos e algum tempo depois um guarda acionou um botão e a porta da minha cela se abriu. – Jack Morgan? – perguntou o guarda. – O senhor tem que se vestir para o tribunal.
capítulo 59 A INFLUÊNCIA DE CAINE FORA SUFICIENTE para me passar para o começo da la. Fui transportado do presídio para o Centro de Justiça Criminal Clara Shortridge Foltz, em West Temple. Levaram-me à cela ao lado da sala de audiência acorrentado a três outros caras. Um deles devia ter 18 anos e estava branco de tanto medo. O prédio tinha ar-condicionado. Aquilo era um milagre. Agradeci a Deus. Passei horas sentado enquanto meus companheiros de cela saíam e voltavam da sala. Então fui separado deles. Caine veio ao meu encontro e me deu um abraço apertado. – Lembre-se de quem você é – sussurrou ele. – Mostre que está vivo. Eu estava com um cheiro ruim, igual ao dos homens do presídio que não tomavam banho havia um bom tempo. Estava com as roupas da véspera, exibia no rosto vários cortes e hematomas e tinha a barba por fazer.
– Está bem – respondi. – Acho que consigo fingir que estou vivo. Segui Caine até a sala de audiência. Era um lugar civilizado, com paredes revestidas de madeira, mas mesmo assim me lembrou das antigas fotografias de Ellis Island, que exibiam os refugiados sendo recebidos após três semanas no porão de um navio sem saber que m teriam. O juiz era Sua Excelência Skinner Con. Eu nunca o havia encontrado, mas sabia quem era. Tinha 50 e poucos anos e a reputação de ser sensível e cheio de opiniões. Justine certa vez dissera que ele era craque em “interpretação criativa da lei”. Eu não sabia se isso era bom ou ruim para mim. O juiz Con conversava com o ocial de justiça, e corri os olhos pela galeria. Havia um leve rumor de pessoas sussurrando e se remexendo nas cadeiras. Bebês choravam. Ouvi meu nome. Virei-me e dei de cara com Robbie Pace, o novo prefeito, vindo na minha direção. Lembro-me de ter pensado como ele parecia limpo com seu terno azul e o rosto a luzir com a barba recém-feita. Ele se inclinou perto de mim e disse no meu ouvido: – Escrevi para o juiz. Falei bem de você. Acho que vai ficar tudo bem. – Obrigado, Robbie. – De nada. As portas da corte se abriram e Fescoe entrou e começou a subir o corredor entre as cadeiras. Parou para falar com o prefeito e cou me olhando por cima do ombro dele enquanto conversavam. Pace balançou a cabeça, concordando, e então Fescoe fez um
gesto na minha direção e foi para o fundo da galeria. As portas tornaram a se abrir e Justine entrou, uma imagem estonteante e graciosa, fresca como uma rosa recém-colhida, com um sorriso carregado de dor. Ela veio até mim. Estava prestes a me dar um abraço, mas parou. O contato físico era expressamente proibido. – Estamos todos com você, Jack. Todo mundo lá na Private. Estamos recorrendo a nossos contatos na rua, checando tudo o que descobrimos e vamos continuar fazendo isso até encontrar alguma pista útil. Você está bem? – É bom ver você. – Gostaria de poder dizer a mesma coisa. Sei como é ruim aqui dentro. Pensei: Você não pode realmente saber… e deveria agradecer a Deus por isso. – Quer dizer que não encontraram nada? – perguntei. – Ainda não. Tommy tem um álibi. – Fiquei sabendo. – A mulher. Ele estava em casa com ela naquela noite. Suspirei. – Ainda estamos cavando – disse Justine. – Eu estou bem – falei. – Eu sei. Por que eu tinha ido para a cama com Colleen? Por que não havia resistido àquele impulso? Justine me desejou boa sorte e então o oficial de justiça chamou um número.
– Somos nós – disse Caine. – Vamos lá.
capítulo 60 O PROMOTOR-ASSISTENTE CHAMAVA-SE EDDIE SAVINO. Ainda não completara 30 anos, era moreno, bonito e estava a caminho do topo – ou pelo menos dava essa impressão. – Vossa Excelência – disse Savino –, o Sr. Morgan assassinou Colleen Molloy, uma de suas namoradas, com três tiros no peito. Achamos o DNA dele dentro do corpo da vítima, para me expressar de forma delicada. O promotor deu um sorriso irônico, olhou de relance para a galeria, não obteve reação e prosseguiu: – E a circunstância agravante da acusação é que a Sra. Molloy estava grávida de seis semanas. – Continue – disse o juiz. – E deixe de lado os oreios, Eddie. Não tem júri nenhum aqui. Sou só eu. – Pois não, Vossa Excelência – respondeu o promotor. Abriu um sorriso cheio de charme.
– A arma do crime foi uma pistola calibre 45 registrada em nome do Sr. Morgan, que foi escondida no meio de algumas plantas a 5 metros da porta da frente da casa do acusado. As balas da pistola correspondem às que foram extraídas do corpo da vítima. Enquanto Savino discorria e enumerava os itens com os dedos, o juiz Con me encarou pela primeira vez. – Jack Morgan é rico, anda armado e é perigoso. Ele é também piloto de avião. Não apenas sabe pilotar, Vossa Excelência, como possui um avião. Se isso não constitui um “risco de fuga” , não sei como se poderia denir essa expressão. – Continuou após uma pausa: – A promotoria solicita que o Sr. Morgan seja reencaminhado para o Twin Towers para aguardar julgamento. Tudo o que Savino acabara de dizer sobre mim era verdade – menos a acusação de ter atirado em Colleen e sobre representar risco de fuga. Minha atitude em relação àquilo estava mudando. Depois de passar pelo terror e pela autocomiseração, eu agora estava começando a ficar muito puto. – Dr. Caine – disse o juiz Coffin. – Pode falar. – Belo discurso o do Dr. Savino, Vossa Excelência – começou Caine –, mas o meu cliente não representa risco de fuga. Ele quer se defender contra essas acusações falsas e hediondas, pois não tem culpa de nada. A polícia tirou conclusões precipitadas e o Sr. Morgan está pagando por esta preguiça. – Só os fatos, Dr. Caine, por gentileza – interrompeu Con. – Tenho mais cem pessoas aguardando audiência para hoje.
– Perdão, Vossa Excelência. Os fatos são: o Sr. Morgan é um herói de guerra. É um piloto nato. Foi capitão dos fuzileiros navais. Pilotou helicópteros de transporte no Afeganistão e foi condecorado com a Estrela de Prata. O Sr. Morgan é amigo pessoal do chefe da polícia e do prefeito e ambos podem atestar sua boa índole. – Após uma pausa dramática, Caine continuou: – Além disso, Vossa Excelência, o Sr. Morgan emprega mais de trezentas pessoas. Seja qual for a denição da expressão “pilar da comunidade” , Jack Morgan se encaixa nela. – Conclua, Dr. Caine, por obséquio. – Em conclusão, Vossa Excelência, o Sr. Morgan chegou em casa de uma viagem de trabalho e encontrou a ex-namorada morta em sua cama. Foi uma armação. Ele chamou a polícia. Se o meu cliente tivesse de fato cometido assassinato, seria mais do que capaz de se livrar de qualquer indício do crime. Mora sozinho. Tinha treze ou catorze horas livres antes de ir ao escritório na manhã seguinte. Nesse período, poderia ter se livrado do corpo, desinfetado a cena do crime, arrumado um álibi. Caramba, poderia até ter convidado doze pessoas para jantar no Spago, e ainda assim teria tempo de se livrar dos indícios e pagar um avião para Guadalajara. – Caine prosseguiu após uma pausa: – O que a polícia está armando? Que ele matou essa moça, deixou-a em cima da própria cama e enterrou a pistola no jardim a 5 metros da porta da própria casa, é isso? Não faz sentido algum, Vossa Excelência. Se ele queria pegar um avião para o México, por que não o fez? Caine enfim concluiu: – Porque Jack Morgan não matou Colleen Molloy. Ele chamou a polícia e cooperou
integralmente com as investigações. Esses são os atos de um homem inocente.
capítulo 61 O TRABALHO DE CAINE HAVIA SIDO impactante – melhor dizendo, havia sido fenomenal. Minha gratidão foi tão avassaladora que quase desatei a chorar. O juiz Con, porém, se manteve impassível. Parecia imune ao discurso de Caine. – Sr. Morgan, o senhor está sendo acusado de homicídio doloso com circunstâncias agravantes – disse Coffin. – Você se declara inocente ou culpado? – Sou inocente, Vossa Excelência. – Ã-rã – murmurou o juiz. Ele então se curvou sobre o laptop e se pôs a digitar. O juiz Con era o tipo de pessoa que digita com dois dedos. Enquanto ele catava milho, o barulho da galeria foi aumentando como um tufão que varre o litoral. Uma briga estourou nos corredores e foi apartada por agentes de segurança. O juiz bateu com o martelo quatro vezes e fitou os presentes com ira. Fez-se silêncio e então o juiz Coffin voltou os olhos para mim.
– Sr. Morgan, o senhor tem intenção de fugir? – Não, Vossa Excelência. – Certo. Bom, eu diria então que temos uma situação incomum, considerando o fato de o Sr. Morgan ser um cidadão respeitador das leis que chamou a polícia para denunciar o crime. Apesar disso, há a circunstância agravante. O juiz coçou o queixo. Conseguira atrair nossa atenção. – Achei um precedente no caso Meyer versus Spinogotti. A expressão de Savino era de quem não estava entendendo. – Esse não é o caso do rapto, Vossa Excelência? – Exato, Dr. Savino. A vítima estava grávida. Dr. Caine, quero o avião do Sr. Morgan desabilitado e lacrado para impedi-lo de voar. Sr. Morgan, o senhor entregará às autoridades seu brevê de piloto e sua autorização de porte de arma. E o passaporte também. Quando essas condições forem cumpridas, encontre um agente de ança disposto a adiantar 20 milhões de dólares e pode ir para casa. O martelo bateu. O oficial de justiça chamou o caso seguinte. – Não se preocupe, Jack – disse-me Caine. – Estou cuidando de tudo. Amanhã você vai estar em casa. Caine estava certo? Ou será que estava apenas me dando falsas esperanças? Um agente de segurança se materializou ao meu lado. Pegou meu braço bruscamente e me levou da sala de audiência pela porta dos fundos. Virei-me bem na hora em que a
porta estava fechando. Esperava ver Justine, mas quem vi foi Fescoe. Ele estava reunido com Tandy, Ziegler e Eddie Savino. Pelos olhares lançados na minha direção, tive certeza de que estavam falando de mim. Dava para adivinhar que a acusação estava decepcionada com a possibilidade de eu sair sob fiança. Puseram-me na cela de detenção atrás da sala de audiência, onde fui novamente acorrentado a três outros homens. Passei seis horas suando em meio ao silêncio, depois fui reconduzido de ônibus à prisão, onde me empurraram para dentro da minha cela. Tínhamos um novo companheiro. Outro falastrão. O nome do cara novo era Vincent e ele parecia ser morador de rua. Falava depressa e me contou sobre o que chamava de “desequilíbrio quase criminoso no mercado imobiliário” que só iria se resolver em 2015, na melhor das hipóteses. Falou da geração do baby boom e da pressão que ela exercia sobre tudo o que estivesse relacionado à economia e aos atuais programas de benefícios do governo. Nós só iríamos ver um mercado otimista quando estivéssemos usando bengalas, afirmou. Ele ainda tinha senso de humor. Era admirável. – Você trabalha com finanças? – perguntei, educado. – Sou motorista. – Motorista? – De táxi. Deixei de pagar duas multas. Eles me prenderam por causa disso. Acredita? – Sinto muito. – Quando sairmos daqui, se precisar de um táxi, é só chamar: 1-800 Call Vin.
– Claro – falei. – Vou lembrar. Pensei em Justine, em como ela havia olhado para mim na sala de audiência. Eu pudera sentir sua dor e sua profunda decepção. Pensei em como era me deitar ao seu lado sob lençóis frescos em uma cama espaçosa. Na manhã seguinte bem cedo, o primeiro barulho que escutei foi o alto-falante: chiados ao fundo e a voz ribombante a ecoar pelos módulos. Dessa vez chamaram meu nome.
capítulo 62 CAINE ESTAVA À MINHA ESPERA do outro lado da grade de ferro. Passou um braço em volta dos meus ombros e me fez avançar rapidamente pela multidão agitada de motociclistas e bandidinhos em frente à prisão. O carro estava à nossa espera. Aldo se levantou do banco da frente com um pulo e foi depressa abrir a porta para mim. – Tudo bem, Jack? – Parece que fui atropelado e que, para me recuperar, passei dois dias dormindo dentro de um canal de esgoto – respondi. Aldo sorriu. – Ah, cara, que horror. Mas agora você está aqui com a gente. Olhe, tem café no banco de trás. Fazia mesmo apenas cinco dias que Aldo tinha ido me buscar no aeroporto e me levado
para casa? Minha sensação era de que havia se passado pelo menos uma década. Caine entrou no banco de trás ao meu lado e o Mercedes disparou para se integrar ao tráfego. – Quero passar em casa e trocar de roupa. – Melhor passar no quarto de hotel, Jack. Tem apenas uma hora que tiraram a ta de cena do crime da sua casa. Ninguém foi lá limpar ainda. Cody levou algumas roupas para o hotel. Assenti e pensei na minha cama encharcada de sangue. Na minha casa tingida para sempre com esse sangue. Havia um jornal no banco ao meu lado. Com uma fotograa grande na primeira página. Levei um segundo para perceber que o homem acorrentado em pé na la do ônibus do TTCF era eu. A manchete dizia: “Morgan solto sob ança” . O subtítulo era: “Acusado de homicídio paga fiança de 20 milhões”. O lide falava sobre o assassinato de Colleen, depois discorria por algumas linhas sobre Phil Spector, Robert Blake, O. J. Simpson. Outros assassinos de Los Angeles. – Quando é o julgamento? – perguntei a Caine. – Não temos uma data. Ainda não – respondeu meu advogado. – Nem queremos marcar uma data tão cedo. Entendi o que ele quis dizer. Tudo o que tínhamos a meu favor era minha declaração de inocência. Ou seja, merda nenhuma.
O carro cou me esperando em frente ao Beverly Hills Sun. Entrei e subi até meu quarto opulento e dourado. Tirei a roupa e quei parado sob os seis jatos d’água no boxe de mármore travertino. Os jatos de água quente e limpa quase me ressuscitaram. Meia hora mais tarde, por volta do meio-dia, entrei na Private e subi saltitando a escada. O posto de trabalho de Cody estava vazio, mas um cliente andava de um lado para outro no espaço livre em frente à minha sala. Era Dewey Arnold, principal advogado da Hamilton-Price, maior agência esportiva do mundo. – Dewey, entre. Não esperava você. – Eu não preciso entrar, Jack. – Ah, não? Eu estava a caminho da minha sala, mas parei, virei-me e encarei o rosto marcado de Arnold. Eu o conhecia desde a adolescência. O escritório dele havia me representado durante minha tentativa única de uma temporada como jogador prossional de futebol americano. A Hamilton-Price era cliente do meu pai. Hamilton ainda era amigo de meu tio Fred, um dos dirigentes do Oakland Raiders. Fazia cinco anos que a Hamilton-Price era cliente da Private. – É melhor eu ir direto ao ponto, Jack. Você está demitido. Não queremos mais trabalhar com você. – Dewey, entre. Vamos conversar. Não sou culpado de nada. Foi uma… – Já ouvi a história. Foi uma armação – disse ele. – Não estamos nem aí. Para nós essa
história cheira mal. Já acertei tudo com a contabilidade e vou soltar um release para a imprensa hoje à tarde. Vamos transferir nossos negócios para a Private Security. – Vocês vão trabalhar com meu irmão? – Por lealdade à sua família. Hamilton me pediu que lhe desejasse boa sorte. Ao falar isso, cuspiu um pouco de saliva. Limpei a bochecha enquanto Dewey Arnold avançava a passos largos rumo ao elevador.
capítulo 63 VIREI AS COSTAS PARA DEWEY Arnold e vi uma mulher negra e alta saindo da minha sala. Era bonita, devia ter quase 30 anos, pesar uns 100 quilos e medir 1,80 metro sem salto. Usava uma blusa branca com um pouco de renda no decote em V e uma calça verde-escura. Tinha uma expressão assustada – é bem verdade que a chuveirada não conseguira lavar por completo os últimos dias. Eu ainda estava com uma aparência assustadora. Mais importante, porém, era que eu não sabia quem era aquela mulher. O que ela estaria fazendo na minha sala? – Meu nome é Valerie Kenney – disse ela. – Vim substituir Cody. Ela estendeu a mão e eu a cumprimentei, mas continuei sem entender. Cody tinha dito que caria mais uma semana. E que eu poderia entrevistar os três melhores candidatos sugeridos por ele. – Cody quis que eu fosse me adaptando. Quis me treinar um pouco antes de sair –
explicou Valerie. – Está marcando umas reuniões para mim agora mesmo. – Entre aqui na minha sala, por favor – falei. Indiquei a Val Kenney a área de espera. – Tenho certeza de que Cody teria me avisado sobre você, mas faz alguns dias que estou sem telefone. – Sem telefone. Que inferno, não é? Eu ri. Pela primeira vez em algum tempo. – Então, Val, qual é a sua história? Ela resumiu a própria vida, atendo-se aos pontos principais. Tenho certeza de que havia ensaiado aquele discurso, mas não soou excessivamente articial. Val era de Miami. Sua mãe ainda morava em Coral Gables. Ela estudara na Universidade de Boston e se formara em ciências havia quatro anos. – Fiz pós-graduação em criminologia na Universidade de Miami – contou-me. – Minha mãe precisou que eu voltasse para casa e passasse um tempo ajudando-a com meu irmão. Ele estava na adolescência, meio fora de controle, sabe como é. Lembra-se de quando o senhor foi a Miami dar uma palestra sobre investigação criminal? – Lembro. – Eu estava na primeira fila. – Desculpe. Tinha muita gente lá. – Ah, tudo bem. Mas o senhor me causou uma impressão muito forte, Sr. Morgan. – Jack.
– Jack. Então, como estou me saindo? – perguntou ela. – Continuo contratada? Ri pela segunda vez. Suponho que devia estar com saudades de rir, já que estava contando. – Vamos ver como as coisas andam – falei. – Pode continuar. Val disse que havia trabalhado por um curto período no escritório do Departamento de Polícia de Miami enquanto cursava a pós-graduação à noite e que falara à mãe que um dia se mudaria para Los Angeles e iria trabalhar na Private. – Essa última parte é mentira – interrompi. Ela sorriu. – É o que se deve dizer nas entrevistas. “Eu sempre quis trabalhar aqui.” Mas, caramba, eu sempre quis mesmo. Quis e quero. – Já se mudou para LA? – Já. Sou dada a atitudes ousadas. Era a primeira vez que ela parecia nervosa em 15 minutos, desde que Dewey Arnold me desejara boa sorte como se me amaldiçoasse a contrair a peste. – Quando Cody respondeu ao meu e-mail, embarquei em um avião e vim encontrá-lo – continuou Valerie. – Falando em e-mail, você recebeu vários. E ligações também. Três clientes desistiram… encontrei os contatos deles no seu computador. E tem umas cinco reuniões que preciso remarcar para você, se estiver de acordo. Sr. Del Rio, urgente. Sra. Poole, urgente. Posso continuar? – Você sabe o que aconteceu comigo?
– Sei. – Para solucionar o assassinato de Colleen Molloy, vamos ter que trabalhar à noite. E nos ns de semana. Você fez pós-graduação. Tem certeza de que vai querer car atendendo o telefone? – Tenho. E posso fazer qualquer coisa de que precisarem. Este é o emprego dos meus sonhos, Sr… ahn, Jack. Vou dar o melhor de mim. Eu juro. Palavra de bolsista. Eu estudei nas melhores escolas com bolsa. Val tinha as mãos unidas com força no colo. Estava inclinada na minha direção, esperançosa. Tive que sorrir. Ela era inteligente e motivada, mas seria tão competente quanto sua atitude dava a entender? – Quando você achar que estou pronta, conversaremos sobre me transferir para a área de investigações – disse Val Kenney. Uma acusação de homicídio pairava sobre a minha cabeça. Eu precisava correr o risco de a inteligente e motivada Sra. Kenney ter de proteger minha retaguarda enquanto eu fizesse o que fosse necessário para salvar minha vida. Estendi a mão e tornei a apertar a dela. – Bem-vinda à Private.
PARTE TRÊS DIRETO AO ASSUNTO
capítulo 64 O FILME ESTAVA SENDO RODADO AO norte de Los Angeles, perto da cidade de Ojai, em uma fazenda afastada de uma estradinha rural sinuosa. À sombra de um bosque de abacateiros, Del Rio observava a equipe preparar as primeiras sequências de Tons de verde. Scotty estava a alguns metros dali, apoiado na cerca de madeira branca que separava os abacateiros da estrada, do gramado e da excêntrica sede da fazenda, que devia ter uns cem anos. Bem nesse instante, às oito e quinze da manhã, a equipe ajustava a luz, os níveis do som e os ângulos das câmeras, tudo direcionado para a Ferrari azul estacionada em frente à casa. No banco do motorista estava sentado Danny Whitman, ao lado de sua companheira de elenco, Piper Winnick, de 16 anos. Os dois trocavam brincadeiras para entrar no clima dos personagens: dois jovens espiões que se apaixonavam e tinham que lutar contra o destino,
uma vez que o personagem de Danny estava marcado para morrer. Del Rio se lembrou dos personagens da série Bourne, estrelada por Matt Damon e uma atriz morena cujo nome ele não sabia. Mas Piper Winnick era quase ruiva. Tinha os cabelos sedosos cortados na altura dos ombros e usava um vestido amarelo sem mangas e um chapéu de palha para esconder os olhos. Danny Whitman, de camisa polo azul, calça jeans e boné, tentava aproximar o rosto afetuosamente do pescoço da colega, que ngia empurrá-lo para longe chamando-o de stupido. Ambos riam. O que agradava Del Rio era o fato de dali não ser possível avistar nenhuma outra casa. A situação estava sob controle. Ele acendeu um cigarro. Não era viciado, mas às vezes era bom tragar e ver a fumaça se dissipar na brisa. Ficou observando os atores e pensou que o lme tinha todas as chances de se tornar o sucesso do verão seguinte – isso se Danny não fosse preso. Ou talvez o lme faturasse ainda mais caso isso acontecesse. O diretor agora estava mandando o casal assumir suas marcas. Os atores saíram do carro e entraram na casa ampla enquanto três membros do séquito de Danny Whitman vinham subindo juntos a estrada. Scotty abandonou seu posto junto à cerca e aproximou-se de Del Rio. – Dos três, o único de que eu gosto é Schuster, o empresário – disse ele. – Acho que ele tem afeto mesmo por Whitman. Mas o agente, o tal de Barstow? Esse não gosta de ninguém. E Merv Koulos eu até entendo. Ele nem tenta esconder que a única coisa que
está em jogo é a grana. – A grana está em jogo para todos eles, Scotty – disse Del Rio. – Só que em diferentes tons de verde. Os três se aproximaram dos investigadores e Schuster falou: – Vocês são os caras da Private, certo? Del Rio achou que Schuster estava com uma cara feliz, e com razão. Ele havia esperado muito tempo para as câmeras rodarem e aquele era o grande dia. – Podem pegar alguma coisa para comer, se quiserem – disse Barstow. – O trailer da comida está atrás do celeiro. – Obrigado, mas estamos bem – agradeceu Del Rio. Ele estava pensando como era bom encarar um serviço fácil de vez em quando. Com tudo sob controle.
capítulo 65 A 15 METROS DO BOSQUE DE abacateiros, o assistente de direção gritou: – Silêncio, por favor. Alguém bateu uma claquete e disse: “Take 1”. O assistente continuou: – Luz, câmera… ação. A câmera estava apontada para a porta da frente e Danny saiu da casa seguido por Piper. Virou-se para ela e disse: – Você tem que entender, aquele cara é maluco. – Loló da cuca. Ai, quer dizer, lelé – falou Piper com um sotaque italiano. Os dois entraram no carro e Whitman disse: – Tente não se enganar, ok? – Eu sei: loló é aquilo que as pessoas cheiram e lelé é maluco – respondeu Piper. – E tenho que ficar abaixada.
– Lelé sou eu por deixar você vir comigo, Gia – disse o ator para sua namorada ctícia. – Se alguma coisa acontecer com você… A garota riu e disse “Stupido” enquanto Danny dava a partida no carrão. Ele acelerou. Piper soltou um ganido e foi projetada contra o encosto do assento quando o carro esporte partiu a toda em direção à Sisar Road. Estava indo depressa demais. Isso não fazia parte do roteiro. A equipe e os demais espectadores caram parados, boquiabertos, vendo o carro passar pelo portão aberto e seguir em frente. O diretor gritou “Corta!” , mas a Ferrari não parou. Pelo contrário: Danny fez uma curva fechada para a esquerda, entrou na estrada de duas pistas, e o carro se transformou em um risco azul vivo que foi diminuindo de tamanho até desaparecer de vista e o ruído do motor se tornar inaudível. – Que porra é essa? – perguntou o diretor. – O que está acontecendo aqui? Em pé ao lado de Del Rio, Schuster digitava números em seu celular. Merv Koulos fazia o mesmo no seu. – Danny. Aqui é Merv. Caraca, Danny, me ligue – disse Koulos. – Não tem graça nenhuma. – Ele já vai voltar – disse Scotty para si mesmo. Virou-se para Del Rio: – Gostou do carro e da garota, só isso. Vai dar meia-volta daqui a um segundo. Ele está só brincando. – Espero que você tenha razão – retrucou o colega. Seu contentamento havia sido substituído por uma sensação que parecia um vento frio
invadindo seus pulmões. Ele abriu o celular, digitou o número de Justine e, quando ela atendeu, disse: – Faz uma hora que estamos no serviço e já perdemos o maldito garoto. É, isso mesmo, Danny. Ele se mandou a quase 200 por hora em um carro esportivo de 300 mil dólares. E prepare-se, Justine. Ele levou a garota junto. É, Piper Winnick. Não. Nada. Se ele disse para onde estava indo? Não nos informaram.
capítulo 66
ERA FIM DE TARDE, QUASE cinco horas. Justine e Scotty haviam passado o dia procurando Danny. Tinham ido às casas dele e de Piper, em Beverly Hills. Tinham entrado em contato com os amigos e os parentes dos dois e só agora estavam deixando o estúdio. Haviam falado com todos que tinham uma opinião sobre o desaparecimento de Danny – ou seja, absolutamente todo mundo. Metade das pessoas disse considerar Danny irresponsável, imaturo, e que ele simplesmente não entendia as consequências dos próprios atos. A outra metade pensava que Danny entendia muito bem as consequências e que o seu sumiço era apenas um golpe de marketing que imitava o enredo do lme. Muitos desses sugeriram que fora seu agente, Alan Barstow, que o convencera a fazer aquilo. De toda forma, Justine sabia que a polícia em breve estaria à procura de uma Ferrari azul e de um casal de jovens atores.
Ela falou a Scotty para pôr o cinto de segurança e saiu do estacionamento da Harlequin Pictures cantando pneus em direção a Beverly Hills. Enquanto dirigia, ia batucando no volante com as palmas das mãos, frustrada, tentando furiosamente entender a fuga insana e arriscada de Danny. O rapaz não poderia alegar que ter saído da locação ao volante daquela Ferrari com Piper Winnick no banco do carona havia sido um efeito de um de seus apagões. O que Justine havia deixado passar? Danny era apenas uma criança narcisista? Ou seria um psicopata? Fosse como fosse, era autodestrutivo. Danny Whitman, o garoto com tudo a perder, poderia pegar de 25 anos a prisão perpétua. Isso se não machucasse Piper. Justine passou zunindo por um sinal amarelo e comentou com Scotty: – Você ouviu quando eu disse a ele: “Ande na linha. Não vá a lugar nenhum com garotas.” – Você vai ter que virar daqui a dois quarteirões, Justine. Talvez queira passar para a pista da esquerda agora… – Ele concordou com as nossas condições. Não consigo parar de pensar: será que ele é maluco? Quero dizer, será que é maluco de verdade? Scotty pisou em um freio imaginário enquanto Justine fazia uma curva fechada para a
esquerda, furando um sinal vermelho. – Porque eu gostei dele, sabe, Scotty – continuou ela. – Gostei muito dele. Qual é o endereço mesmo? – North Maple Drive, 345. Devem faltar uns três quarteirões. Eu assumo a responsabilidade, Justine, mas não sei o que a gente poderia ter feito. A gente tinha que ficar fora da tomada, que ia até a estrada. – Vocês não tinham como saber. Sério, Scotty. À sua direita surgiu um prédio quadrado de uns quinze andares. Justine fez a curva para descer uma rampa do lado leste e mergulhou bem fundo na escura garagem subterrânea. Alguns minutos depois, ela e Scotty estavam dando seus nomes à mulher atrás da mesa na recepção da Agência de Talentos Barbara Crowley.
capítulo 67 BARBARA CROWLEY, AGENTE DE PIPER Winnick, apareceu na recepção menos de um minuto depois de ser chamada pelo interfone. Era uma mulher atraente de 40 e poucos anos e cabelos curtos, uma mescla de dourado e grisalho. Usava um terno preto caro, pulseiras de ouro, e tinha as unhas pintadas de preto. Justine notou que, de tanto mordiscar os lábios, Barbara havia tirado o próprio batom e que tinha um ar desarrumado para uma mulher tão bem-vestida. – Notícias de Danny? – perguntou ela. – Não – respondeu Justine. – Ainda não. Depois de Justine apresentar Christian Scott, eles seguiram Barbara por um corredor coberto de grandes fotograas emolduradas de astros do cinema, todas dedicadas à agente com amor e gratidão. Justine e Scotty se sentaram em frente à mesa de Barbara, que fechou a porta da sala e
disse: – Estou preocupada com Piper. Não, preocupada é pouco. Estou histérica. – A senhora acha que Danny seria capaz de machucá-la? – indagou Justine. – Se ele seria capaz? Ele pode ser apenas um garoto normal transformado em astro de cinema, ou algo bem pior. Danny foi hospitalizado algum tempo atrás. Alguém contou isso a vocês? – Não – respondeu Justine. – Bom, então eu vou contar. Danny se internou na clínica Blue Skies para “entrar nos eixos” e passou alguns meses fora do circuito. Justine já havia ouvido falar na Blue Skies. Tommy Morgan passara algum tempo lá para se tratar do vício no jogo. – Desintoxicação, não é? – indagou Scotty. – Um lugar de primeira para viciados. – Eles não fazem só desintoxicação. Celebridades e outras pessoas com dinheiro suciente vão para lá descansar e se recuperar – disse Barbara Crowley. – Disseram-me que os problemas de Danny tinham a ver com estresse e dois meses depois, quando ele saiu da clínica, Merv Koulos me garantiu que o garoto estava perfeito. Só tinha precisado descansar um pouco. A agente olhou para Scotty e Justine. – Então me encontrei com Danny. Ele me pareceu sóbrio e são, caso contrário eu jamais teria deixado Piper aceitar o papel. Aí, quando Katie Blackwell alegou ter sido molestada, falei a Piper que iria cancelar o contrato, mas ela queria muito trabalhar com Danny,
queria mesmo. Os pais também queriam que ela fizesse o filme. – A senhora se lembra de quando foi que Danny se internou na Blue Skies? – perguntou Justine. – Uns seis meses atrás, acho. O telefone sobre a mesa tocou e Barbara pulou para atender. Virou-se de costas para os dois visitantes e disse: – Sim, sim, com prazer. Agora está bem. Ela desligou o aparelho. – A polícia chegou – informou a Justine e Scotty. – Os pais de Piper ligaram para eles. Sinto muito, mas Danny de fato sequestrou Piper. Eu não vou dormir enquanto não devolver essa menina à família.
capítulo 68 DEPOIS DE DEIXAR SCOTTY PERTO do armazém que ele devia vigiar, Justine obrigou-se a ligar para Tommy Morgan. Era uma sensação bem parecida com andar sobre cacos de vidro. À noite. Sob uma tempestade. Cega de um olho. Ele ainda estava no escritório e atendeu a ligação. – Tommy, tenho uma pergunta. – Claro. O que você quer saber? – Você estava na clínica Blue Skies quando Danny Whitman se internou lá? – Ahhh – disse Tommy. – Justine, eu não posso falar agora. Que tal um jantar? Ela teve que aceitar e acrescentou que a Private pagaria a conta. Encontraram-se no Providence, um dos melhores restaurantes do país, um lugar moderno, elegante sem ser sexy. Era por isso que Justine o havia escolhido. Queria que Tommy se sentisse lisonjeado e bem-tratado, mas sem transmitir nenhuma mensagem
equivocada. Ele já a havia paquerado antes. Estavam em uma mesa de canto, com velas acesas e taças de vinho na mão. O Providence era conhecido pelos excelentes frutos do mar. Até os amantes de carne vermelha concordavam que um salmão selvagem com nas lascas de cogumelo podia ser bem mais saboroso do que um filé. Tommy estava comendo uma alcatra e parecia estar gostando. Recostou-se na cadeira e olhou para Justine, sorrindo enquanto mastigava. Ela bebeu um gole de vinho, mais uma vez impressionada com a semelhança entre Tommy e Jack. Os mesmos cabelos louro-escuros, os mesmos olhos cor de avelã, constituição física e postura idênticas – em todos os quesitos importantes, porém, Tommy era exatamente o oposto de Jack. Enquanto Jack era altruísta, Tommy era covarde. Enquanto Jack era capaz de prestar atenção de verdade em alguém e escutar, Tommy encarava seu interlocutor nos olhos e tentava manipulá-lo, encontrar fraquezas que pudesse usar contra ele. – Não sei se tenho muito a contar sobre Danny Whitman – respondeu Tommy. – Ele era um carinha bem esquisito. E nós não ficamos amigos. Por que você quer saber? – Ele é nosso cliente. – Jack sabe que estamos jantando juntos? – Vai saber quando eu incluir o jantar na minha prestação de contas. Tommy riu e Justine esperou que ele terminasse. Então tornou a perguntar: – Por que Danny Whitman se internou na Blue Skies?
– Depressão, acho. Ele parecia deprimido, mas poderia estar lá por outros motivos. Fazia suas sessões de terapia e se mantinha discreto. – Mas você conversou com ele? – Nossa, Justine. Não abrimos o coração um para o outro. Você sabe como são as celebridades. Depois de algumas experiências com gente que vendeu algumas fofocas para os tabloides, elas costumam ser discretas. E agora é a minha vez. Como está Jack? Eu não soube mais nada desde que ele foi preso. – Ele já saiu. – Por que você acha que ele matou Colleen? – Ah, Tommy, por favor. Você sabe que não foi ele. – Não, Justine, por favor você. Eu acho que foi ele. – Ele não tinha motivo algum para fazer isso. – Talvez ele simplesmente tenha perdido as estribeiras. Você não sabe que Jack tem pavio curto? Posso dizer isso por experiência própria: ele tem um soco capaz de rachar sua mandíbula em três lugares diferentes. Tommy tirou o paletó e arregaçou a manga direita com gestos exagerados. Mostrou a Justine uma antiga cicatriz com mais de 10 centímetros logo abaixo do cotovelo. – Isso foi na vez em que ele quebrou meu braço para ver quem viajava no banco da frente do carro – falou. Tommy era vil. Ela o odiava. Sabia guardar suas opiniões para si, mas ele acabara de lhe abrir uma brecha, então ela a aproveitou.
Sorriu e disse: – Espero que tenha doído bastante. – Cara, você ainda é apaixonada por ele. Justine fez sinal para o garçom pedindo a conta. – Posso ajudar com mais alguma coisa? – perguntou Tommy. Tinha um sorriso de ironia no rosto. – Claro. Deixe os clientes de Jack em paz. E confesse à polícia que você matou Colleen, ou mandou matá-la. – Não posso fazer isso, meu bem. Não posso confessar algo que não z só para deixar você feliz. Mas eu faria muitas outras coisas para deixá-la feliz. Que tal convidá-la para o que se costuma chamar de “encontro de verdade”? – Nosso encontro foi este, Tommy. O primeiro, o último e o único.
capítulo 69 EU ESTAVA ESPERANDO JINX NO bar do deque da piscina tomando uma Perrier com gelo em um copo longo e alto. Estava admirando o sol pintar a piscina com uma luz rosada quando ela se sentou na cadeira ao meu lado. – Oi, Jack. Desculpe-me pelo atraso. Fiquei presa no escritório. – Não faz mal. Eu gosto daqui. Jinx sorriu. – Ouvi dizer que seus últimos dias foram difíceis. Ela exalava um cheiro bom, parecido com jasmim. Estava vestida de azul-escuro, túnica de seda, calça justa, sandálias douradas nos pés bem-feitos. Seu colar de diamantes reetia a luminosidade do ambiente. – A prisão é uma experiência enriquecedora – falei. – Pude ver o outro lado da cerca. E acredite: a grama não era mais verde.
– Você parece ter levado uma surra. – Faz parte do programa de aprimoramento. Minha intenção era conseguir uma risada, mas ela esticou a mão e tocou meu maxilar ferido. Deixei que ela o fizesse. – Eu tropecei – eu disse. – Tropeçou feio, ao que parece. Dei-lhe um sorriso. Jinx apoiou os cotovelos no bar e pediu um gim-tônica ao barman. Foi um gesto natural e nele pude ver como ela realmente estava se sentindo. Estava ali inteira, a mulher que havia pedido minha ajuda porque estava sendo assombrada por assassinatos – e porque corria o risco de perder tudo o que tinha. – Estamos trabalhando no seu caso, Jinx, mas se quiser mudar de agência eu entendo – falei. – Não vou cobrar pelo tempo que já trabalhamos. – A polícia não está conseguindo descobrir nada – disse ela. – A polícia também não está conseguindo descobrir nada, você quer dizer. – Nesta mesma época do ano passado, só havia lugar neste bar para quem topasse car em pé. – Vamos continuar trabalhando se você concordar. Se não conseguirmos nenhum resultado, você não nos deve nada. – Você está sendo bem convincente. – Ela nalmente sorriu. – Preciso reconhecer uma coisa – falou. – Eu gosto de você, Jack. Fiquei constrangido por alguns instantes, não soube como reagir. Seja lá o que passava
pela cabeça dela, uma amizade ou algo mais, aquele não era um bom momento. Era o pior momento possível. – Jinx, escute. Eu vou embora do hotel amanhã de manhã. Ao ouvir o que lhe pareceu uma recusa, ela se retesou. – Correu tudo bem? – indagou. – Sim. Só preciso voltar para minha casa. Para minha vida. – Claro. – Iggy, as bebidas do Sr. Morgan são por conta da casa – disse ela, se levantando. – Jack, preciso dar uns telefonemas. Dê notícias, sim? E cuide-se. Fiquei olhando Jinx cruzar o deque e, depois de ela entrar, deixei o bar e fui para o quarto. Eu podia listar umas quatro ou cinco razões pelas quais não precisava de uma complicação romântica naquele momento. Mas não havia como argumentar com a forte atração que sentia por Jinx. Eu queria ajudá-la tanto quanto queria ajudar a mim mesmo. Se ela tivesse passado mais um minuto no bar, eu teria dito que gostava dela também.
capítulo 70 CRUZ ESTACIONOU O MERCEDES DA agência debaixo de um poste na North Western Avenue, em um mal-afamado quarteirão no centro de Hollywood. Cortinas metálicas de segurança cobriam as vitrines dos comerciantes: mercadinho Quality Market, salão de beleza Lupita’s, Silenciosos de Qualidade. A Iglesia Cristiana Fuente de Salvación, abrigada no que parecia uma antiga loja de eletrônicos, também estava fechada. Do outro lado da rua, um letreiro amarelo de neon com um copo virado de lado e o nome Havana marcava um prédio de blocos de concreto sem qualquer outra característica especial. Cruz soltou o rabo de cavalo, penteou os cabelos com os dedos e tornou a prendê-los. Saiu do carro, ligou o alarme e ajeitou o casaco. O leão de chácara na porta da boate tinha 30 e poucos anos, cabeça raspada, usava pequenos óculos de aro de metal e era musculoso. – Buenas noches – disse Cruz.
– O senhor tem reserva? – perguntou o segurança. – Meu nome é Emilio Cruz, vim encontrar a Sra. Karen Ricci. Ela disse que deixaria meu nome na porta. O segurança examinou Cruz de cima a baixo por trinta demorados segundos. – O senhor está armado? – Eu tenho porte. – Não importa. Armas são proibidas na boate. Cruz suspirou, tirou a pistola do coldre preso ao ombro, removeu o pente e entregou-a ao segurança. O grandalhão guardou a pistola numa caixa no alto de um pedestal, entregou um tíquete numerado a Cruz e abriu a porta. Cruz entrou em um vestíbulo. Subiu um estreito lance de escada pensando na pistola. A escada ia dar em um pequeno cômodo com um único móvel que parecia um guarda-roupa talhado à mão. Ao lado do armário estava uma recepcionista. Tinha quase 30 anos e era latina: grandes olhos castanhos, ótima forma física, usando um vestido justo de cetim rosa. Com certeza fazia o seu tipo. No entanto, a moça mal olhou para ele. A maioria pelo menos olhava. A recepcionista abriu a porta do guarda-roupa e disse: – Entre por aqui, depois desça a escada. – Tenho que passar pelo armário? – perguntou Cruz. A mulher assentiu. – Si.
Camisas cubanas penduradas formavam uma cortina. Cruz empurrou as guayaberas de lado e viu que o armário era uma porta muito bem escondida que conduzia direto ao patamar superior de uma escada em caracol. Música latina e vozes animadas subiam do bar mais abaixo. Enquanto descia, Cruz examinou o salão escuro, ricamente colorido de vermelho e dourado, e teve a sensação de voltar no tempo até um bar de rum cubano por volta dos anos 1920. Candelabros com lâmpadas em forma de vela iluminavam o espaço com uma luz suave que deixava todo mundo mais bonito. Pequenas mesas em volta do recinto estavam ocupadas, mas a maioria dos clientes se encontrava aglomerada em frente ao balcão com tampo de mármore branco. Ao fundo, a parede estava cheia de garrafas de rum, de umas setenta marcas diferentes. Quando Cruz chegou ao último degrau, viu que atrás do balcão havia um corredor que conduzia a um bar de charutos projetado para se parecer com um beco de Havana. Nesse momento, ouviu aplausos ruidosos. Uma dançarina apareceu em um palquinho com um canhão de luz apontado diretamente para ela, fazendo cintilar paetês dourados. Jogou os cabelos e começou a rebolar de forma sensual ao som de uma batida caribenha. Cruz se manteve afastado e vasculhou a multidão até ver uma mulher bebendo sozinha em uma mesa perto da saída de emergência. Abriu caminho entre os clientes e, chegando lá, falou:
– Karen Ricci? Emilio Cruz. – Sente-se – respondeu ela. Cruz puxou uma cadeira e sentou-se. Karen Ricci tinha cabelos escuros e uma beleza natural, sem maquiagem. Cruz levou alguns instantes para perceber que ela estava em uma cadeira de rodas. – Trouxe minha encomenda? – perguntou ela. Cruz abriu o casaco e mostrou o envelope que despontava do bolso interno. Fechou o casaco e ofereceu: – Posso lhe pagar outra bebida?
capítulo 71 UM GARÇOM SE APROXIMOU E perguntou a Karen Ricci: – Um Hemingway Daiquiri, como sempre? – Karen respondeu que sim, e o garçom se virou para Cruz. – O senhor gosta de rum? Recomendo experimentar o Espanhol Malvado. Cruz concordou. Depois que o garçom se afastou, Karen disse: – Essa bebida leva um ovo inteiro. Cruz deu de ombros, estampou seu sorriso acanhado e falou: – Gosto de ovo. Por que quis me encontrar aqui? – Sabe o cara da porta? – O leão de chácara? – Ele é meu marido – explicou ela. Tudo que Cruz sabia sobre Karen Ricci era o que sua fonte tinha lhe informado. Ela
trabalhava em uma agência de acompanhantes chamada Sensational Dates havia dois anos. Recebia as ligações dos clientes, marcava os programas e debitava os cartões de crédito. Um cliente chamado Arthur Valentine fora estrangulado com um o no hotel Seaview em 2010, segunda vítima do que viria a ser a série de cinco hóspedes assassinados em hotéis de três diferentes cidades californianas. Karen Ricci tinha sido interrogada pela polícia de Los Angeles por ter marcado o programa com a acompanhante que conduzira Valentine em seu derradeiro passeio. Duas horas antes, ao falarem pelo telefone, Ricci concordara em contar a Cruz tudo o que sabia sobre os assassinatos em troca de mil dólares em dinheiro vivo. Cruz provou seu drinque, colocou o copo em cima de um guardanapo e falou: – Certo, Karen. O que você tem para me dizer? – Algo que a polícia não sabe. Vai valer a pena gastar tanto dinheiro, não se preocupe, e vou lhe poupar tempo e esforço. A garota de programa não matou o cliente. – Ela foi considerada suspeita? – Durante algum tempo, sim. Uma das últimas pessoas a ver a vítima, essas coisas. Ela disse que transou com o cara e a polícia não a prendeu. Eles não tinham qualquer prova de coisa alguma a não ser o programa, mas começaram a importuná-la. Ela não conseguia trabalhar sem que a polícia a seguisse, o que espantava os clientes. – Mas, Karen, você sabe quem matou o cara? Porque, se sabe, por favor, vá direto ao assunto.
– Ah, você acha que pedi mil pratas para dizer que não foi a garota de programa? – A mulher riu e tomou um gole do daiquiri. Tornou a encher o copo com o conteúdo da coqueteleira. – Eu acho o seguinte, Sr. Emilio Cruz. O senhor precisa falar com a garota de programa, porque ela sabe algo que pode ajudá-lo. É por isso que está pagando. O nome dela é Carmelita Gomez. Diga que me conhece. Cruz pegou o envelope, sacou duas notas de 100 e as passou por baixo da mesa enquanto a dançarina exótica em cima do palquinho tirava o sutiã e sacudia os peitos para a plateia. Inclinou-se mais para perto de Karen Ricci. – O resto você recebe quando eu tiver encontrado a tal garota. – Você já encontrou – disse Ricci. E meneou o queixo em direção à escada. – Lá em cima? Em frente ao armário? – Isso – confirmou Karen. – Ela sai às quatro.
capítulo 72 CRUZ ENGOLIU O ESPANHOL MALVADO com ovo e tudo e disse: – Já volto. Pôs uma nota de 20 sob o copo vazio e subiu a escada. Carmelita Gomez ainda estava em pé junto ao armário quando Cruz passou pela cortina de camisas. Só ele falou, garantindo a ela, como Karen Ricci lhe instruíra, que não oferecia perigo. Que precisava de informação e estava pagando. E que estaria à sua espera em frente à boate às quatro da manhã. – No llegues tarde. – Deu a ela seu número de celular: Cruz pegou sua pistola de volta com o leão de chácara, em seguida entrou no carro e seguiu no sentido sul. Del Rio e Scotty estavam dentro da van de vigilância na South Anderson Street, perto da esquina com a Artemus. Cruz estacionou, deu um tapa na porta da van e entrou na
traseira. Contou aos colegas as novidades sobre Carmelita Gomez. Eles lhe disseram que nada havia acontecido com os 30 milhões em drogas roubados da Máa. O chefão da Costa Oeste, Carmine Noccia, estava pagando por aquela tocaia, mas começava a car inquieto, rangia os dentes e ligava sem parar para Jack. Estava perdendo a razão. – Querem saber o que eu acho? – disse Del Rio. – Esse armazém é um cofre. Eles vão tirar a van daqui quando tiverem uma forma segura de fazer a entrega. Ou então o armazém virou uma farmácia. Os comprimidos podem estar saindo daqui em poucos frascos de cada vez. Cruz deixou Del Rio e Scotty dormirem e assumiu o turno como vigia do armazém. Eles três e Justine estavam cuidando dos casos mais importantes enquanto Jack passava dias e noites tentando se desvencilhar da acusação de homicídio. Cruz caria mais feliz quando Jack estivesse livre e voltasse a trabalhar com eles. Torcia para isso acontecer antes de os investigadores mais importantes da Private chegarem ao limite. Acordou Del Rio às 3h35 e voltou para seu próprio carro de serviço. Às quatro em ponto, tornou a estacionar debaixo do poste na North Western, na calçada em frente ao neon que formava a palavra Havana. A rua estava mais vazia e mais deserta do que seis horas antes, a não ser por um bando de arruaceiros comendo fast food na casa de tacos El Patio para curar a bebedeira. Cruz estava pensando em entrar lá para usar o banheiro quando a porta da boate Havana
se abriu e uma mulher de calça jeans, cardigã preto e tênis All Star também pretos saiu para a rua. Ele piscou os faróis e Carmelita Gomez atravessou em direção ao carro. Olhou para um lado e para outro da rua antes de se sentar no banco do carona e fechar a porta.
capítulo 73 CARMELITA GOMEZ CHEIRAVA A FLORES e fumaça de charuto. Voltou os olhos escuros para Cruz. Foi como encarar os canos de duas pistolas 9 milímetros. – Karen me falou que você queria conversar sobre o cliente que morreu no ano passado. Ela é muito linguaruda – disse Carmelita. – Você contou para ela, não foi? – O cara estava morto. Fui a última a estar com ele. A polícia fez perguntas. Todo mundo fez perguntas. – E agora quem vai fazer as perguntas sou eu, só que estou pagando. Vou deixar você fora disso. – Me dê o dinheiro primeiro. – Não é assim que funciona – retrucou Cruz. A moça abriu a porta e já estava com um dos tênis na rua quando ele disse:
– Espere. Ela tornou a entrar no carro e olhou para ele sem dizer nada. – Tome 300 – disse Cruz. – Com os 200 que dei para a sua amiga, são 500. Metade. Agora, Carmelita, se quiser o resto vai ter que falar. A moça guardou o dinheiro no decote do cardigã e começou: – O assassino é um chofer de limusine. Ele leva as meninas para os programas. Depois volta e mata os clientes. – Você acha isso? Ou sabe disso? – Quando eu trabalhava na Sensational Dates, fiz amizade com um dos motoristas. – Nome? – Joe do Pó. Feito uma cobra, a mão de Cruz se moveu depressa para o decote da moça. Ele já estava com a mão no dinheiro quando ela o segurou pelo pulso e disse: – O nome dele não importa. Ele morreu, ok? De overdose. Cruz sacou o resto do dinheiro e o abanou diante dos olhos de Carmelita. Ela suspirou. – Esses motoristas são gente ruim. Ex-presidiários. Imigrantes ilegais. Fazem os próprios horários. Muitas vezes usam os próprios carros. Quando há uma chamada para algum motorista levar uma menina para o programa, eles ouvem pelo rádio para onde a menina está indo e escolhem os serviços que querem fazer. – Preciso de um nome.
– O motorista que me levou para o Seaview na noite em que Arthur Valentine foi morto se chamava Billy Moufan. Nós trocamos confidências. – Por exemplo? – Billy me disse que um dos nossos motoristas tinha matado o cliente do Moon. Não citou nomes. Só me disse para tomar cuidado. – Carmelita hesitou. – Aí o meu cliente foi encontrado morto. Logo depois disso, Billy morreu de overdose. Eu não disse nada à polícia. A polícia não protege garotas de programa, entende? Vai ver Billy teve mesmo uma overdose. Ou vai ver alguém o matou. Eu só sei o que ele me disse. O assassino era um motorista que trabalhou para a Sensational Dates no verão de 2010. Você sabia disso? Não. Se for um bom investigador, talvez consiga encontrar o cara. – Vou tentar. – Bueno. Agora me dê o resto do dinheiro.
capítulo 74 JUSTINE TENTOU AGARRAR O TELEFONE que tocava sobre sua mesa de cabeceira, mas não conseguiu. Deixou-o cair e foi buscá-lo embaixo da cama. Quando conseguiu alcançar o telefone, estreitou os olhos para ler o número no identificador de chamadas. O visor dizia apenas “Chamada recebida” e ela não reconheceu o número. Olhou de relance para o relógio. Passava um pouco das quatro da manhã. – Alô? Alô? – disse Justine. Ouviu soluços. – Alô, quem está falando? – É o Danny. – Danny! Onde você está? O que houve? O choro continuou. Entre os soluços, Danny deu a Justine um endereço em Topanga Canyon.
– Por favor, venha logo – pediu ele. Justine disse que estaria lá em 20 minutos. Encerrou a chamada e ligou para Del Rio em seguida. Ele atendeu no primeiro toque, disse que a encontraria no endereço de Topanga Canyon e que precisava desesperadamente de um café. – Compre dois – disse Justine. – Puro para mim. Ela se vestiu depressa, entrou em seu Jaguar e saiu a toda a velocidade. Seguiu pela estrada velha de Topanga Canyon e depois de algum tempo virou à esquerda em uma estradinha que ia dar em vias ainda menores. Seus faróis mal conseguiam penetrar o breu daquele começo de manhã sem lua. Quando encontrou a Portage Circle Drive, diminuiu a velocidade e começou a examinar os números até ver 98 escrito em uma caixa de correio. Entrou no acesso de carros cheio de sulcos e seus faróis iluminaram os troncos das árvores que se adensavam de ambos os lados até o caminho se abrir em uma clareira. Um chalé rústico ocupava os fundos do terreno arborizado, e havia uma Ferrari azul estacionada em frente. Justine parou o carro e abriu as janelas. Tudo que pôde ouvir foi o zumbido dos insetos e viu uma luz brilhando em uma das janelas da frente do chalé, vinda de um cômodo dos fundos. Pegou uma lanterna na lateral da porta e desceu do carro. Tocou a Ferrari. Estava fria. Subiu um caminho de pedras até a porta da frente pintada de vermelho-sangue com uma argola de latão sob um olho mágico.
Justine bateu e chamou o nome de Danny. Ninguém respondeu. Bateu com mais força e tornou a chamar, sem sucesso. Estava prestes a dar a volta até a parte de trás do chalé quando um carro chegou junto ao seu e estacionou. Rick Del Rio desceu. Aquele lugar era bastante assustador e ela ficou muito feliz em vê-lo. Ele e sua pistola. – O que está acontecendo? – perguntou Del Rio. – E eu sei? – retrucou Justine. – O carro está aqui, mas acho que não tem ninguém em casa.
capítulo 75 – DÊ A VOLTA NO CHALÉ – disse Del Rio. – Encontro você lá daqui a um minuto. Ele tentou a maçaneta, que girou com facilidade na sua mão. A porta se abriu e, apontando a lanterna para dentro da casa, ele entrou. Correu a lanterna pelo cômodo principal e avaliou a situação. A casa era um daqueles chalés com decoração de revista: tapetes de índios norte-americanos no piso de terracota, mantas e almofadas de cores vivas sobre sofás de couro em frente à lareira. Brasas ardiam atrás da grade. Ele viu garrafas de vinho vazias no chão e vasos de ores silvestres nos parapeitos das janelas. – Tem alguém em casa? – chamou. Não obteve resposta. Havia uma luz na cozinha rústica – mais um cômodo com decoração prossional, revestido de ladrilhos mexicanos coloridos. Panelas e frigideiras pendiam de ganchos de
ferro presos nas vigas do teto. Havia louça na pia e pratos com restos de bolo de chocolate sobre a bancada. Ele podia imaginar Danny e Piper refugiados naquela casa. Encontrou o quarto no nal de um corredor curto. A cama king size era feita de troncos de bétulas ainda jovens e ocupava a maior parte do cômodo. Ele reparou nos lençóis amarfanhados, nos travesseiros caídos entre a cama e a parede e na colcha de retalhos embolada no chão. O vestido sem mangas de Piper, o mesmo que ela estava usando na cena do lme naquele dia, estava pendurado no encosto de uma cadeira. Roupas íntimas femininas cobriam o assento e sob a cadeira havia um par de sapatos sem salto. Não era preciso ser nenhum gênio para constatar que alguém havia transado naquele quarto. Na realidade, a casa inteira parecia ter sido palco de uma farra ininterrupta. Pena que Piper tivesse 16 anos, e Danny, 24. Del Rio prosseguiu seu rápido tour pelo chalé. O banheiro estava vazio. Toalhas úmidas pendiam da barra da cortina do boxe. Ele abriu os armários e encontrou roupas e sapatos casuais masculinos. Aliviado por não encontrar manchas de sangue nem qualquer outro sinal de violência, Del Rio voltou à cozinha e saiu pela porta dos fundos. O deque mobiliado com uma churrasqueira portátil e cadeiras confortáveis se projetava acima do cânion que dava nome ao bairro. Para além do deque, um pontinho de luz se agitou em uma trilha e logo foi ocultado por um adensamento de árvores.
Del Rio desceu os degraus até a trilha que cortava a vegetação baixa entremeada de árvores. Andou depressa até alcançar Justine, abaixando-se para passar pelos galhos. Quando tocou seu ombro, ela se virou para trás, assustada. – Rick. Encontrou alguma coisa? – Parece que as crianças estavam se divertindo. Nada mais. – Como Danny pôde ser tão burro? – Ligue para ele. Agora – falou Del Rio. Justine ligou. – Danny! Danny, cadê você? É a Justine! Sua voz ecoou pelo cânion. – Escute – disse Del Rio. Ele ouviu uma voz de homem dizer: – Estou aqui! – A voz vinha da trilha mais adiante. Eles então ouviram o barulho de portas de carro batendo mais atrás, no chalé.
capítulo 76
A VISIBILIDADE ERA ZERO. Del Rio pensou que aquela noite estava tão escura que nem a aurora conseguiria atravessar o céu nublado e sem lua. Enquanto Justine voltava ao chalé, ele continuou pela trilha estreita. Avançava entre arbustos de carvalho e plátano que chegavam à altura do peito. Seguiu os gritos intermitentes de Danny até uma clareira. Iluminou o espaço com a lanterna e viu Danny vestido apenas com uma cueca sambacanção, deitado de bruços no chão, histérico. Del Rio foi até ele, abaixou-se e sacudiu seu ombro. – O que houve? Você está ferido? – Nããão – gemeu Danny. Ele tinha a voz arrastada e cheirava a bebida. Del Rio viu que estava segurando algo
parecido com uma sapatilha de balé. A lanterna de Danny, desligada ou sem pilha, jazia no chão a um metro de distância. – Onde está Piper? Danny rolou o corpo de lado e apontou para onde a trilha terminava e começava a íngreme descida do cânion. – O quê? Ela está lá embaixo? Del Rio andou alguns metros até o penhasco, apontou o facho da lanterna bem para baixo e viu uma mancha branca. Teve quase certeza de que estava olhando para o corpo caído e desconjuntado de Piper Winnick, 100 metros abaixo, no paredão do cânion. Passou alguns segundos olhando xamente aquele corpo, torcendo para estar errado. A menina parecia morta, mas talvez estivesse desmaiada. Era uma possibilidade remota, mas ele tinha que verificar. Voltou até Danny, segurou-o pelos cabelos e forçou o rapaz embriagado a encará-lo. – Danny, o que houve? O que você fez com ela? – Eu não consigo… carregá-la daqui – gemeu Danny. – Eu quero morrer. – O que você fez, seu merda? – repetiu Del Rio. O rapaz não parava de chorar. Del Rio se levantou e tornou a se aproximar da borda do cânion. O paredão descia em um traiçoeiro ângulo de 45 graus até o fundo. Del Rio procurou algum apoio e viu rochas salientes e algumas protuberâncias paralelas ao solo, superfícies horizontais nas quais poderia apoiar seu peso. Se tomasse cuidado, talvez conseguisse
descer. Com a mão esquerda apoiada no paredão e a direita segurando a lanterna, começou a descida. Até que não se saiu tão mal assim na escalada, considerando que seu coração estava quase saindo pela boca. Mais ou menos na metade do caminho, sem qualquer aviso, seu pé escorregou na superfície lisa de uma rocha e perdeu o apoio. Del Rio girou o corpo e agarrou com as duas mãos os galhos de um arbusto. Sua lanterna saiu voando e rolou paredão abaixo. Ele perdeu o tênue suporte que conseguira e começou a escorregar, com o corpo inteiro deslizando pelas pedras, pela terra e pelo mato até que, uns 15 metros mais abaixo, o solo surgiu e o atingiu com força.
capítulo 77 DEL RIO ESTAVA ARRANHADO E abalado, mas não havia batido em nada durante a queda. Descansou por alguns instantes, depois se levantou e foi buscar a lanterna, que milagrosamente ainda funcionava. Bufando, avançou pelo terreno pedregoso e se aproximou de Piper Winnick. Ela estava deitada de costas, com os braços abertos feito asas quebradas. A camisola branca de algodão, rasgada e suja, estava levantada até os seios, deixando à mostra a calcinha. Ela calçava apenas um sapato, o par da sapatilha que Danny segurava. Del Rio sabia que Piper estava morta, mas mesmo assim se agachou ao seu lado e levou a mão ao pescoço dela. Não encontrou pulsação. Encostou o ouvido em seu peito. Nada. O corpo ainda estava morno. Ele não queria aceitar aquele fato, mas Piper estava morta e isso era uma desgraça. Não havia outra descrição possível.
Quis endireitar os membros da menina, cobrir seu corpo e fechar seus olhos – atitudes que contaminariam a cena do crime, algo que aquilo ali quase certamente era. Iluminou o rosto de Piper e foi seguindo o sangue seco até um ferimento na têmpora. Viu então que o crânio estava esmagado, afundado. Usou a lanterna e a câmera do telefone para registrar o traumatismo, o hematoma no braço, os arranhões nas coxas, o sangue que escorria pela pele clara: indícios de que Piper estava viva quando caiu do penhasco. Mirou a lanterna no paredão e viu dezenas de pedras grandes. Qualquer uma delas poderia ter partido a cabeça de Piper. Danny. Maldito garoto. Não bastava transar com menores de idade. Ele tinha evoluído para a agressão física. Será que Piper havia tentado fugir, tropeçado e caído? Ou será que Danny a empurrara daquele barranco de propósito? Lembrou-se de Piper naquela manhã, cheia de vida. Ainda podia vê-la usando o vestido amarelo e segurando o chapéu, repetindo suas falas com um sotaque italiano e aquela voz de menina. Lembrou-se da expressão de alegria em seu rosto ao entrar na Ferrari veloz junto com Danny. Tentou se lembrar da expressão de Danny ao pisar fundo no acelerador, mas não conseguiu. Estava olhando para Piper nessa hora. Imaginou-se batendo em Danny, arrancando-lhe os dentes, quebrando os ossos daquele rostinho bonito demais. Tinha 20 anos a mais que o rapaz, mas ainda conseguiria fazer um
bom estrago em um fracote de merda feito aquele. Levantou-se do chão. Encarou o corpo de Piper com lágrimas nos olhos. Os últimos minutos dela tinham sido de puro medo e dor. Uma menina tão legal. – Você estava tendo um bom dia, Piper. Uma vida boa. Sinto muito por isso ter acontecido com você. Del Rio abriu o celular e ligou para Justine.
capítulo 78 INSETOS VOEJAVAM AO REDOR DO facho débil da lanterna de Justine. Ela bateu com a mão espalmada na lanterna, que ganhou vida por um breve instante, mas depois tornou a enfraquecer. Droga. Estava uma fera consigo mesma por ter levado a sério o pedido de socorro de Danny. O rapaz havia tirado ela e Rick da cama às quatro da manhã e agora onde tinha se enfiado? Fugira com Piper outra vez. Justine estava de sandálias, o tipo errado de calçado para percorrer aquela trilha que parecia uma corrida de obstáculos que começava atrás do chalé e só Deus sabia onde ia dar. E havia ainda o entourage de Danny: Schuster, Barstow e Koulos a seguiam em la indiana, cochichando baixo demais para ela entender o que diziam. Mas escutara seu
nome uma ou duas vezes e sabia que estavam falando dela. Culpando-a pela fuga de Danny Whitman. Era o cúmulo. O caso Whitman não valia o honorário que a Private estava recebendo, nem de longe, e ela iria tomar uma providência em relação a isso quando conseguisse falar com Jack. Seu celular tocou – uma música animada que soava deslocado naquele ambiente. Devia ser Rick dizendo que tinha encontrado Danny. Ela torceu para que, qualquer que fosse o problema, não chegasse a ser grave ou já estivesse resolvido – ou as duas coisas. Levou a mão ao bolso do casaco e pegou o celular bem na hora em que a trilha se abria em uma clareira. O débil círculo de luz de sua lanterna revelou algo caído no chão. Era mesmo Danny. Ele estava seminu, descalço, com as pernas dobradas, abraçando os joelhos e se balançando, gemendo. O que era aquilo agora? Ele estava fazendo manha ou estaria mesmo em apuros? Schuster passou por ela e correu até o rapaz, chamando seu nome. – Pode me dar isso? – pediu Barstow, ríspido. Arrancou a lanterna da mão de Justine e correu até onde Schuster estava abraçado a Danny, dizendo-lhe em tom tranquilizador: – O que houve, parceiro? Onde está doendo? O telefone de Justine estava tocando outra vez. Ela virou as costas para o grupo e levou o aparelho ao ouvido.
Del Rio arfava e tinha a voz entrecortada: – A menina morreu. Estou subindo o cânion agora. Não deixe Danny ir embora. – Que menina? Piper? Rick? Você está aí? Mas Del Rio já havia desligado.
capítulo 79 JUSTINE SENTIU UMA MOVIMENTAÇÃO ATRÁS de si e girou o corpo. Merv Koulos estava bem atrás dela, tão perto que ela pôde sentir o cheiro das balas Tic Tac em seu hálito. O rosto sem graça do produtor estava amassado feito um saco de papel e ele gritava: – Está vendo isso, Dra. Smith?! Danny está tendo um colapso nervoso! Contratamos vocês para carem de olho nele e agora vou ter que administrar um caso de distúrbio mental. Minha equipe vai aparecer no set amanhã e você acha que Danny vai estar em condições de atuar? Cada dia de atraso significa 300 mil dólares indo embora pelo ra… – Sr. Koulos, nós estamos com um problema mais grave. Bem mais grave. – Ah, é? Eu vou processar vocês por negligência criminosa. Vou processar a senhora pessoalmente. Justine viu a lanterna de Rick se agitar quando ele chegou à borda do penhasco. Largou Koulos no meio de seu discurso irado e foi até o colega.
Del Rio tentava recuperar o fôlego. Ainda ofegante, falou: – Parece que Piper foi morta com um golpe na cabeça. Pode ter sido ao cair do penhasco. Não dá para dizer se foi empurrada. Danny se desvencilhou de seu agente e avançou na direção de Del Rio. – Empurrada? Ela não foi empurrada! – gemeu o rapaz. – A gente estava dormindo. Quando acordei, ela tinha sumido. Saí atrás dela. Ela deveria estar dormindo… Barstow assumiu uma expressão de choque. Sua voz saiu aguda, quase histérica, quando ele disse a Danny: – Eu sei, Danny, eu sei. Venha comigo, vamos voltar para o chalé. Vestir uma roupa. Eu trouxe um tranquilizante. Nós vamos cuidar de tudo. Venha, Danny. Justine cou parada, piscando os olhos no escuro, tentando processar a terrível informação que Rick lhe dera. Piper Winnick estava morta naquele lugar ermo e ninguém, a não ser Danny, estivera com ela. Justine não conhecia Piper nem a havia encontrado antes, mas conhecia Danny. E zera um acordo garantindo que a Private ficaria de olho nele. Só que ele os havia despistado. Isso violava o contrato e ela achava que o argumento poderia se sustentar no tribunal – mas o que a aterrorizava agora era a possibilidade de Danny ser capaz de cometer atos violentos, algo que ela não previra. Será que sua autoconança a impedira de ver? Teria deixado passar um sinal que custara a vida daquela moça?
Schuster e Barstow tentavam conduzir Danny trilha acima, mas o rapaz resistia, gritando que não queria deixar Piper sozinha. Koulos tornou a surgir diante de Justine. Furioso, começou a berrar: – E agora, porque ele fugiu de vocês, Piper está morta! E meu lme também! Eu estou arruinado! Arruinado! Justine ainda segurava o telefone, mas sua mão tremia. – Você vai ligar? – perguntou-lhe Rick. Ela assentiu e discou 911.
capítulo 80 JUSTINE HAVIA ACABADO DE ABRIR a porta de casa quando seu telefone tocou. Ela acionou o interruptor da luz do hall. Rocky latiu, correu até ela e se atirou contra suas pernas. Ela afagou as orelhas do cachorro, jogou as chaves do carro sobre a mesa e pegou o celular para verificar a chamada. Era Larry Schuster, empresário de Danny. O que ele queria dessa vez? Ameaçá-la de novo com um processo? Justine ainda tremia por causa dos acontecimentos repulsivos das últimas horas: a atriz adolescente morta, as ameaças de Mervin Koulos, a lamentável prisão de Danny Whitman, que havia chutado e berrado até três policiais conseguirem ená-lo dentro de uma viatura. Justine atendeu. – Vocês ainda trabalham para nós? – perguntou Schuster. – Larry, você deve estar brincando. Danny rompeu o contrato quando fugiu de carro do
set… – Ele fugiu do set, mas é inocente de todo o resto. – Larry, sinto muito por Danny e por você, mas nós estamos fora. É hora de vocês chamarem seus advogados. – Converse com ele, é só isso que eu peço. Deixe que ele conte o que está acontecendo. – Larry, ele já me contou. Ele tem a impressão de que alguma outra pessoa está controlando sua vida, mas pelo que entendi ninguém lhe disse para fugir com Piper Winnick… e agora ela está morta. – Eles estavam namorando. Estavam envolvidos. Foram dormir e, quando ele acordou, ela havia sumido. Ele não a empurrou daquele penhasco. Saiu para procurá-la e a encontrou lá embaixo. – Larry, talvez os advogados do estúdio sejam bons o suciente para dar um jeito na acusação de estupro, mas, se Danny fosse meu cliente, eu contrataria o melhor advogado criminalista da Califórnia. Deve haver uma dezena de gurões por aí que adoraria defender Danny Whitman. Geragos, Tacopina… – Estou no setor médico do Twin Towers – disse Schuster. – A polícia deixou Danny sozinho por um minuto e ele se jogou de cabeça contra a parede da sala de depoimento. – Está brincando? Ele se machucou muito? – Teve uma bela concussão. Está deprimido. Ele estava apaixonado por Piper. Você entende isso? – Não, Larry, não entendo. O que você quer de mim?
– A senhora é psiquiatra. E Danny cona na senhora. Ele me pediu que a chamasse, e eu disse que iria tentar. – Sou psicanalista, mas não a psicanalista dele. – Eu disse à polícia que era, assim vai poder entrar para falar com ele. Pode só conversar com ele? Talvez consiga entender melhor o que está acontecendo, Dra. Smith, porque eu conheço Danny muito bem. Há quatro anos o vejo diariamente e uma coisa eu lhe garanto: Danny não matou ninguém. Justine estava exausta, estressada e precisando dormir, mas agora também estava dividida. Deveria falar com Danny porque ele ainda era seu cliente e pedira para vê-la? Ou deveria esperar até falar com o advogado de Jack e da Private, Eric Caine? Nefertiti se esfregou nela. Justine se curvou para acariciar a gata. Tudo em Danny Whitman a incomodava. Seria ele um psicopata? E seria por isso que nem ela nem Larry Schuster tinham identicado seu potencial violento? Ou ele seria um cordeirinho tão inocente quanto Schuster afirmava? Para sua própria paz de espírito, ela precisava saber. – Dra. Smith? – disse Schuster. – Estou aqui. Com o tráfego, o trajeto até o Twin Towers levaria uma hora. Seria preciso um dia inteiro para passar pela burocracia do complexo e mesmo assim talvez ela não conseguisse falar
com Danny. – Estão me bipando – disse Schuster. – Deixei seu nome na entrada principal.
capítulo 81 FAZIA QUATRO HORAS QUE JUSTINE vira Danny Whitman pela última vez e nesse tempo ele fora transferido de Lost Hills, a melhor prisão do estado, para o TTCF. Estava agora no setor médico do Twin Towers, abarrotado de detentos, a maioria deles mentalmente desequilibrada. Justine havia trabalhado em lugares como aquele. Nunca eram agradáveis. Depois de passar por uma nova revista íntima e por um detector de metais, ela se postou na soleira da porta e olhou em volta. O cômodo retangular tinha guardas armados de cada lado da porta, barras nas pequenas janelas, paredes recém-pintadas com um tom de verde industrial, e havia um cheiro forte, quase insuportável, de desinfetante. Localizou Danny em um dos leitos de hospital, o terceiro depois da sala de enfermagem protegida por uma divisória de vidro. Ele tinha os olhos roxos e estava usando um avental
de papel e uma faixa de gaze na cabeça. Estava algemado na barra da cama. Justine fora avisada de que teria quinze minutos com Danny, sem contato físico, e que, caso violasse a regra, o encontro seria encerrado na mesma hora. Danny ergueu os olhos ao notar que ela se aproximava. Pareceu mais feliz em vê-la do que ela imaginava. Justine mal o conhecia. O que o rapaz achava que ela poderia fazer por ele? Justine puxou uma cadeira de plástico para junto da cama. – Danny, não temos muito tempo. Pode me dizer o que aconteceu? – Piper e eu estávamos apaixonados, mas eu não podia contar a ninguém por causa da idade dela, e escute, os paparazzi… – Desculpe, Danny. Pode me dar a versão resumida? Justine o avaliava. Será que ele estava raciocinando? Estaria lúcido? Dizia a verdade? Estava vivendo no aqui e agora ou em um mundo que ele próprio havia criado? – Ontem de manhã, quando estávamos nos preparando na Ferrari, Piper me disse: “Que pena não podermos simplesmente fugir daqui” e eu pensei com o coração. Nunca tínhamos dormido juntos… Era uma ótima oportunidade. Fomos até o chalé que comprei no ano passado com uma identidade falsa. Ah, meu Deus, se eu tivesse pensado com a cabeça ela ainda estaria viva. Ele estava chorando de novo. – Danny. Daqui a doze minutos vou ser posta para fora, então, por favor, fale comigo. Você brigou com Piper?
– Ah, não. Nós tivemos um dia maravilhoso. Nos divertimos até cair de cansaço na cama. Eu acordei… talvez alguma coisa tenha me acordado. Piper havia sumido. – E aí, o que aconteceu? Danny secou o rosto com a manga do avental e prosseguiu. – Saí para procurá-la. Estava bem escuro do lado de fora, mas vi um carro parado ao lado da Ferrari. Estava bem em cima do canteiro. Não devia haver nenhum carro ali. Então vi uma lanterna se movendo pelas árvores e comecei a subir a trilha chamando Piper. – Danny continuou após um instante: – De repente, a luz sumiu. Ouvi o carro dar a partida atrás de mim e pensei que talvez ela tivesse se arrependido e chamado alguém para buscála. Mas aí encontrei a sapatilha dela na beira do penhasco. Pensei: “Não, ela não pode estar lá embaixo”, mas quando olhei pela borda… Sabia que não podia fazer mais nada por ela. Aí liguei para a senhora. Liguei para todo mundo. – Seu tempo acabou – disse o guarda, se aproximando da cama. – Eu juro, Dra. Smith, que não z aquilo com Piper. – O rapaz a encarava. – Você precisa acreditar em mim. Alguém está fazendo alguma coisa comigo. Eu não sei o que é e não sei quem, mas sabe aquele carro que vi lá no chalé? Foi o dono daquele carro que matou Piper.
capítulo 82 O PAI DE CARMINE NOCCIA ERA um gângster; o meu também. Ambos tínhamos frequentado universidades da Ivy League, servíramos como fuzileiros navais e havíamos herdado de nossos pais os negócios da família. Fora isso, Noccia e eu não tínhamos nada em comum. Carmine era a terceira geração de matadores e nunca fora capturado ou sequer indiciado. Constava na lista de observação do FBI, mas a polícia federal não tinha indícios sucientes para comprovar que ele havia sido o mandante de três assassinatos que investigavam. Não havia digitais, armas fumegantes nem imagens de segurança. Todos os delatores tinham sido mortos antes de testemunhar. O pai de Carmine, o chefão da Máa, estava a ponto de se aposentar e, segundo diziam, Carmine iria assumir seu posto. Mas não era só isso. Corria o boato de que, no ano seguinte, a família Noccia iria expandir seus negócios para o leste, da região metropolitana
de Las Vegas até Chicago. Uma organização desgarrada retornar às origens era algo inédito na história da Máa, mas Noccia era um cara de fibra e fora criado para realizar grandes feitos. Aquela van recheada de 30 milhões em remédios tarja preta seria o primeiro grande passo do plano de expansão de Noccia, e era essa mesma van que estava atrapalhando seu caminho. E como seis meses antes eu recorrera a Carmine para proteger meu irmão de uma lição da qual ele talvez não tivesse sobrevivido, estava devendo favores a um maoso. E esse mafioso me chamava pelo primeiro nome. Noccia me ligou por volta das três da manhã. Não disse alô. Falou apenas que os seus distribuidores, que já haviam pagado pelas drogas, estavam muito tristes. Não era a primeira vez que me dizia aquilo. – Estamos trabalhando no caso, Carmine – respondi. – Não precisava me ligar para me acordar. – Não tenho relógio aqui – retrucou ele. Uma forma de dizer que quem mandava no meu tempo era ele. Atualizei Noccia sobre o plano que estava sendo posto em prática e ele desligou sem se despedir. Voltei a dormir. Eu corria atrás de Colleen tentando lhe dizer que sentia muito, mas ela não parava de fugir de mim. O telefone voltou a tocar. Dessa vez era meu bom amigo da polícia, o inspetor Mitchell Tandy.
– Estou nas redondezas, Jack. Passo aí com prazer se você tiver alguma coisa para me dizer. – Eu já disse, Mitch. Não fui eu. Tandy deu uma risada satisfeita e desligou. Quando Justine ligou para avisar sobre a prisão de Danny Whitman por suspeita de assassinato, eu já estava totalmente desperto.
capítulo 83 FIZ O CHECK-OUT DO SUN e fui de carro para o trabalho, prestando atenção para me manter quinze quilômetros abaixo do limite de velocidade. Tandy me seguiu até a Figueroa Street e me cumprimentou com dois toques de buzina quando z a curva para entrar na garagem subterrânea da Private. Mitchell Tandy era uma hiena. Entrei na minha sala às sete e meia e atendi a segunda ligação de Justine naquela manhã. Ela me contou que Danny Whitman estava no hospital do TTCF. Encolhi-me só de pensar naquele lugar. Era como se a mão gelada de alguém me agarrasse pela nuca: uma sensação ruim da qual era impossível me desvencilhar. – O que você acha, Jack? – indagou Justine. – Devemos largar Danny à própria sorte? Ou é melhor eu trabalhar com ele e seus comparsas até saber se ele matou ou não Piper Winnick?
– Parece que você acredita que ele é inocente. – É a minha intuição. Ele acha que tem alguém manipulando a mente dele. Abusando dele psicologicamente. Quem faria uma coisa dessas? O que alguém poderia ganhar com isso? Justine era a heroína das causas perdidas. Quando errava, costumava dizer: “A princesa das Boas Ações ataca novamente.” Mas seus instintos eram bons mesmo. O pior que se poderia dizer sobre Justine era que ela se dedicava demais a seus casos e se envolvia emocionalmente além do recomendado. Mas, se ela conseguisse provar a inocência de Whitman, seria ponto para a Private. Um ponto do qual precisávamos. – Você decide – falei. Comecei a trabalhar no relatório de Cruz sobre os interrogatórios na boate cubana em Hollywood e quando Val Kenney chegou, às oito, pedi-lhe que dividisse o relatório em partes e marcasse itens a serem acompanhados. Enquanto Cody e Val trabalhavam do lado de fora da minha sala, dediquei um pouco de tempo ao caso Califórnia versus Jack Morgan e descobri uma ou duas coisinhas sobre Colleen Molloy que ela não havia me contado. Estava examinando isso mais a fundo quando Val entrou. – Encontrei uma informação interessante sobre a mulher com quem Cruz conversou ontem à noite – disse ela. – Carmelita Gomez?
– Karen Ricci. A da cadeira de rodas. – Pode falar. – Antes de ser Karen Ricci, ela se chamava Karen Keyes. Cumpriu pena de cinco anos por extorsão. Houve uma rebelião no presídio feminino e ela levou um golpe de porrete. É por isso que hoje anda de cadeira de rodas. Teve a pena reduzida por bom comportamento. Val estava tirando bom proveito do que aprendera na polícia de Miami. Eu estava prestes a lhe dizer que continuasse investigando Ricci, mas ela ainda não havia terminado. – Descobri mais uma coisa, Jack. A história que Carmelita Gomez contou a Cruz não confere. Ela disse que um motorista chamado Billy Moufan lhe deu a informação. – Era o motorista dela, certo? – Foi o que ela disse. Segundo ela, depois que o seu cliente foi morto no Seaview, o motorista, Billy Moufan, falou para ela que podia ter sido um chofer de limusine, e que esse mesmo cara poderia ter matado o cliente do Moon. Só que ninguém chamado Billy ou William Moufan jamais tirou licença de motorista particular na Califórnia. Não consigo encontrar esse nome em nenhuma base de dados, qualquer que seja a ortografia. – Está dizendo que ela mentiu para Cruz? – Na melhor das hipóteses, ela estava escondendo o nome do motorista que deu a informação – disse Val. Pedi a ela que avisasse Cruz. Cody então me chamou pelo interfone e disse que Jinx Poole estava na linha 1.
Atendi. – Jack, pode jantar comigo hoje à noite? – perguntou Jinx. – É importante.
capítulo 84 ERA UMA E QUINZE DA tarde quando Del Rio e Cruz pararam no grande estacionamento sob a ponte da Rua 96. O estacionamento cava a uns 2,5 quilômetros do Aeroporto de Los Angeles e era limitado de um lado pelas oito pistas do Sepulveda Boulevard e, do outro, por um dos muitos viadutos da cidade. Havia um uxo incessante de limusines, táxis e outros veículos de passageiros, que faziam la sob placas alfabéticas, aguardando para entrar no aeroporto. Vigiavam um sujeito em especial, Paul Ricci, leão de chácara da boate Havana, casado com a delatora cadeirante. Ricci estava jogando conversa fora com três outros motoristas. Olhou de relance para o Mercedes da Private, em seguida abriu a porta do seu carro e pegou um sanduíche dentro de um cooler. Perguntou em voz alta para um dos outros motoristas: – Baxter, você tem mostarda aí?
Baxter riu e respondeu: – Não, mas tenho bostarda, serve? Dentro do Mercedes, Cruz disse a Del Rio: – É aquele ali. Ricci. O de terno vagabundo e quepe de motorista. Del Rio vestiu a jaqueta e perguntou: – Dá para ver minha pistola debaixo do casaco? – Você dá pinta de que está armado até quando está dormindo – respondeu Cruz. – Que bom – disse Del Rio –, porque eu quero que Ricci que paralisado de medo. Não quero ter que correr atrás dele. Meio que torci o pé escalando aquele penhasco. – Ah… – zombou Cruz. – Encare os fatos, Rick: você está ficando velho. – Velho coisa nenhuma. Ainda tiro o couro de qualquer um do meu tamanho. – Você não precisa fazer isso, Rick. Eu o protejo – disse Cruz. Del Rio lançou ao colega um olhar mau. Cruz riu e apertou o elástico em volta de seu rabo de cavalo. Depois que cou satisfeito com o cabelo, perguntou: – Preparado, companheiro? Andaram juntos até onde os quatro homens aguardavam debaixo da placa com a letra D. Além de Paul Ricci, havia mais um motorista. Os outros dois usavam uniformes que os apresentavam como “e Air Shuttle Guys” , “os caras da ponte aérea” . Eles eram gordos, então não seriam problema. Mas o chofer em pé ao lado de Ricci era musculoso e jovem. Tinha cara de ex-presidiário.
– Paul Ricci? – indagou Cruz. Todas as conversas cessaram. Ricci se empertigou. – Sou eu. O que foi? – Não se lembra de mim? – perguntou Cruz. Abriu o casaco e mostrou a pistola a Ricci, a mesma que tivera de entregar antes de entrar na boate. Ricci olhou para a arma, deu as costas e correu bem depressa em direção à saída, enquanto o quepe voava da cabeça raspada. – Nós só queremos conversar! – gritou Cruz. O cara corria bem depressa. – Que merda – falou Del Rio.
capítulo 85 PAUL RICCI, CHOFER DE LIMUSINE durante o dia e leão de chácara à noite, pesava uns 90 quilos, quase tudo músculos. Passou correndo pelo pequeno prédio administrativo na entrada do estacionamento, fez uma curva fechada para a esquerda em direção à calçada e acelerou ainda mais ao chegar à rua lateral. Cruz saiu correndo atrás dele. Era menor e mais rápido e começou a se aproximar de Ricci, que corria margeando uma cerca coberta de trepadeiras no sentido norte, rumo ao Sepulveda Boulevard. Cruz não queria chegar ao bulevar. Uma perseguição a pé por oito pistas de tráfego era engavetamento certo. – Ricci! – gritou. – Pare! – Mas Ricci correu direto para o meio do tráfego, demonstrando uma boa movimentação ao desviar dos carros velozes. Buzinas soaram, primeiro para Ricci, depois porque o tráfego havia cado mais lento.
Instantes depois, Cruz perdeu o chofer de vista. Ficou parado no mesmo lugar por um momento, inspirando profundas doses de fumaça de óleo diesel e tentando acompanhar tudo ao mesmo tempo. Veículos de todos os tamanhos e formatos prejudicavam sua visão, e ele começou a ficar furioso. Por que diabo o cara estava correndo daquele jeito? Foi então que viu o crânio reluzente de Ricci. Ele estava do outro lado da pista, no pé da escada que subia do Sepulveda Boulevard até o viaduto. Uma vez lá em cima, não teria para onde ir, mas estava subindo mesmo assim. Que imbecil. Cruz entrou no meio do tráfego ensurdecedor, erguendo o distintivo da polícia para fazer os carros pararem, mas ao mesmo tempo gritando: – Ricci, pelo amor de Deus! Eu não sou da polícia! Cruz atravessou o bulevar bem na hora em que Ricci subia o último lance da escada. O chofer virou a cabeça, viu Cruz chegando perto – e seu pé resvalou. Ele segurou o guardacorpo tarde demais e caiu. Era a oportunidade da qual Cruz precisava para alcançá-lo. O investigador subiu as escadas como se fosse Rocky Balboa e alcançou Ricci. – Você está bem? – indagou. – Chega de correr por hoje, ok? Esticou a mão para ajudar o outro a se levantar e Ricci aceitou a ajuda. No entanto, assim que cou em pé, desferiu um soco na direção do maxilar de Cruz. Como o leão de chácara estava sem equilíbrio, Cruz se esquivou com facilidade e deu ele próprio um soco. O punho de Cruz acertou em cheio o maxilar de Ricci, que tornou a cair, nocauteado. – Campeão californiano de médios ligeiros de 2005! – gritou Cruz para Ricci. – É esse o
seu adversário. Nesse exato instante, Del Rio subiu na calçada com o Mercedes. Desceu do carro e ajeitou o casaco. – Chegaram os reforços! – falou alto para Cruz. Foi se juntar ao parceiro e a Ricci na escada. Duas pessoas passaram por eles sem fazer contato visual. – Escute aqui, seu bosta – disse Del Rio para Ricci. – Não estamos nem aí para você, está bem? Só nos diga o que queremos saber e damos o fora. Ricci esfregou o maxilar. – Vocês não são da polícia? – Dá para acreditar nesse cara? – falou Cruz. Ele esticou a mão e tornou a ajudar Ricci a se levantar. – Paul, escute. Não somos da polícia. Não queremos fazer mal a você nem a ninguém. Pagamos Karen e Carmelita por informações sobre cinco clientes de prostitutas assassinados na região de Los Angeles. E não conseguimos as informações. – Que informações? Que informações? O cara continuava em pânico, então Cruz pensou que uma daquelas pessoas que cruzaram por eles rumo ao viaduto talvez fosse chamar a polícia. – Segundo Carmelita, um chofer chamado Billy Moufan contou a ela que um outro motorista era o assassino – falou. – Disse que Billy morreu de overdose. Só que não existe nem nunca existiu ninguém chamado Billy Moufan. E o que ela não contou foi que você é chofer de limusine. Que esquecimento, não é mesmo? Você por acaso seria “Billy
Moufan”? Sabe quem matou os tais clientes? – Não, não, não. Não fui eu. Faz só seis meses que tenho a licença de motorista particular. Olhe aqui, vou lhe mostrar. Olhe. Del Rio olhou. – Se eu der o nome do cara vocês me deixam em paz, certo? – perguntou Ricci. – E têm que nos deixar fora disso. Não quero que Karen e Carmelita se machuquem. – É esse o acordo. Você nunca nos deu o nome nem disse onde encontrar o cara. – Está bem – concordou Ricci. – Escute, o primeiro marido de Karen, Tyson Keyes. Foi ele quem falou com Carmelita sobre as mortes. Não sei onde ele mora. Nem quero saber. Paul Ricci recusou uma carona de volta ao estacionamento, então Del Rio e Cruz entraram no carro e tomaram o rumo do centro, em direção à Private. – Tyson Keyes. Será que ele sabe quem é o assassino? Ou será ele próprio? – perguntou Cruz.
capítulo 86
EU NÃO QUERIA JANTAR COM ninguém. Queria seguir meu irmão quando ele saísse do escritório e ver aonde ele ia, com quem e o que iria fazer. Mas Jinx era uma cliente, uma pessoa legal. E estava bem no alto da curta lista de possíveis companhias para um jantar. – Tudo bem se jantarmos cedo? – perguntei. Ela concordou e imaginei que, se nos encontrássemos às seis, eu poderia vigiar a casa de Tommy a partir das oito. Fui de carro até o Red O, inaugurado em 2010 pelo premiado chef Rick Bayless. Era um restaurante visualmente impressionante, a começar pelas imensas portas de madeira que conduziam da Melrose Avenue até um pátio com teto de vidro. O design do interior remetia a South Beach e a um balneário mexicano escaldante. Bem
na entrada havia uma mesa enorme, lustres forjados à mão no teto, um túnel de vidro curvo com prateleiras cheias de garrafas de tequila e imensos vasos de palmeiras. Tinha lido que a nouvelle cuisine mexicana servida ali era incrível, mesmo para uma cidade com reputação de ótima culinária mexicana. Às seis, já podia sentir o aroma de chocolate e especiarias do mole e percebi que estava louco por uma refeição boa de verdade. Jinx me esperava em um dos pequenos espaços abrigados em nichos que saíam do salão principal. Os pufes, os sofás e as fundas poltronas eram todos estofados de couro preto. Por mais que eu gostasse da decoração, porém, a verdadeira atração era Jinx. Nós nos cumprimentamos com beijos no rosto, pedimos as bebidas e, assim que o garçom trouxe os drinques de tequila, ela disse: – Jack, me conte alguma coisa boa. Tenho passado as noites contando carneirinhos e ontem cheguei a centenas de milhares. Sorri. – Estou falando sério – disse ela. – Duzentos mil. Tornei a sorrir, e ambos rimos. Fazia quase uma semana que eu havia aceitado Jinx Poole como cliente e Cruz e Del Rio vinham dedicando muito tempo ao caso dela. – Acho que estamos chegando a algum lugar – falei para Jinx. O garçom anotou nosso pedido. Quando ele se afastou, contei a Jinx sobre a noite de Cruz na boate Havana e disse como ele e Del Rio haviam confrontado um chofer de
limusine debaixo do viaduto perto do aeroporto mais cedo nesse mesmo dia. – Temos uma boa ideia de como encontrar esse tal Tyson Keyes. Se ele sabe quem matou os clientes, vamos descobrir. – Por que Karen Ricci e Carmelita Gomez estavam escondendo o nome dele? – Ricci estava com medo do cara – falei. – Parece que Keyes é violento. Não entendo por que as mulheres se casam com homens assim. E não entendo por que continuam com eles. – Meu marido era violento – disse-me Jinx. – É complicado. É sobre isso que eu venho querendo conversar com você. – Pode falar – encorajei-a. Jinx tomou um golinho de sua bebida. Ela acabara de dizer que queria me contar, mas eu podia ver por sua expressão que não era uma história fácil. Fiquei sentado ao seu lado e aguardei. – Eu o matei – disse ela. – Quero que você saiba que eu matei meu marido.
capítulo 87 NADA EM JINX POOLE ME fazia pensar que ela fosse uma assassina. Era uma mulher inteligente, cheia de classe, uma empresária de respeito, e sua conssão me soava literal e factualmente inacreditável. Ainda assim, eu acreditava nela. Mas fiquei chocado e não disfarcei. – Jinx, você não pode me dizer que cometeu um crime. Não sou advogado nem padre. Posso ser intimado a depor e forçado a prestar testemunho. – Não entendo bem por que quis contar a você – disse-me Jinx –, mas senti que devia. Quero que saiba sobre a morte do meu marido por mim. Eu não estava gostando daquela situação. Mal conhecia Jinx Poole. Por que ela se confessava para mim? Pela primeira vez a pergunta surgiu na minha mente: ela teria algo a ver com os assassinatos nos hotéis?
– Meu marido se chamava Clark Langston – disse ela. – Já ouviu falar nele? – Era dono de alguns canais de TV nos anos 1990? – Isso, ele mesmo. Apesar da minha ressalva, Jinx começou a me contar sua história. Descreveu o encontro com Clark Langston vinte anos antes, no verão entre o primeiro e o segundo ano em Berkeley. Ela trabalhava como garçonete em um lugar chamado Lodge, em Pebble Beach. – Clark tinha um barco, um avião, casas de veraneio em Napa, Austin e Chamonix, nos Alpes. Era charmoso, um pouco parecido com George Clooney, talvez. Rico, bonito, engraçado. Vivia cercado de amigos. Era um cara magnético, entende? Eu era uma menina. E me apaixonei por ele, Jack. Me apaixonei perdidamente. O semblante de Jinx se iluminou enquanto ela descrevia o que pensara ser apenas um incrível romance de verão. Então Langston lhe disse que seu divórcio tinha saído. Pediu-a em casamento, deu-lhe um caríssimo anel de brilhantes e uma vida caríssima para combinar com o anel. – Eu me casei em setembro daquele ano – continuou Jinx. – Meus pais me disseram para esperar, mas eu tinha 19 anos. Achava que sabia de tudo. Na verdade, não sabia nada. Larguei a faculdade e fui ser a Sra. Clark Langston, com tudo a que isso dava direito. Jinx parou de falar. Engoliu em seco e tentou recomeçar algumas vezes, sem sucesso. Estava com dificuldade para prosseguir. Depois de alguns instantes, falou: – Alguns meses após o casamento, ele começou a me humilhar em público, a cantar outras mulheres, a me mandar buscar coisas para ele. Na verdade, era pior quando
estávamos sozinhos. Ele bebia todos os dias. Até perder os sentidos. Eu nunca tinha convivido com ninguém que bebesse, Jack, e Clark era um bêbado violento. Prendia meus braços nas costas, me jogava na parede e me estuprava. Em pouco tempo estupro era o único tipo de sexo que tínhamos. Era assim que ele gostava. Jinx fez uma pausa antes de continuar sua história: – Uma vez, ele pôs as mãos em volta do meu pescoço, me obrigou a me curvar por cima da pia da cozinha e cou gritando na minha cara como eu era inútil. Havia uma faca no escorredor e de repente a faca estava na minha mão, apontada para as costas dele… Eu nem percebi que havia pegado a faca. Foi a primeira vez que realmente pensei em assassinato. – Você contou a alguém sobre ele? Sobre o que ele estava fazendo? – Não. Na roda que ele frequentava esse tipo de coisa não se faz e eu não tinha mais a minha turma. De toda forma, ninguém teria acreditado em mim. E a parte mais louca é que às vezes eu via o homem que eu amara… e eu ainda o amava. Sei que soa absurdo. – Eu sinto muito pelo que estou ouvindo, Jinx. É uma história muito triste. O garçom trouxe nosso jantar e perguntou se precisávamos de mais alguma coisa. Respondi que estava tudo ótimo, mas na verdade eu havia perdido o apetite. – Quando tínhamos uns dois anos de casados, fomos a um casamento em um lugar meio fora do mapa. Na verdade, o Willow Creek Golf and Country Club era completamente fora do mapa. Clark estava no seu ambiente. Propôs um brinde e deu um carro de presente ao novo casal. – Jinx continuava a narrar seu passado. – Quando a noiva dançou
com Clark, percebi constrangimento e medo em seu rosto. Eu já havia experimentado aquilo. Caramba, estou com essa expressão agora. Percebi que a noiva também tinha sido abusada pelo meu marido, mas ela tivera mais sorte. Conseguira escapar. Eu apenas ouvia Jinx falar. – Estávamos voltando de carro para casa quando Clark se perdeu. Tínhamos um GPS, um dos primeiros a aparecer no mercado, mas eu não sabia operar o aparelho e Clark estava superalterado, fazendo curvas fechadas em alta velocidade, dirigindo pelo acostamento. Era o m do dia e estávamos em uma região rural afastada. Clark falou: “Pegue o mapa, fonha. Será que você não consegue fazer nada direito?” Busquei o mapa no porta-luvas e comecei a dar as instruções para voltarmos à rodovia, mas isso o fez ter uma grande ideia. Ele me mandou dar as instruções usando a voz eletrônica do GPS. Fazer uma imitação. Incentivei Jinx a continuar. – Surgiu uma placa para o lago de Whiskeytown. “Whiskeytown. Parece o meu tipo de lugar” , comentou Clark. Comecei a falar feito o GPS. “Dobrar à direita. Daqui. A um. Quilômetro. Dobrar à. Direita. Daqui. A meio. Quilômetro.” Jinx se virou para mim. Parecia pequena, jovem e vulnerável. – Nunca fui tão longe ao contar essa história para ninguém. Desculpe-me, Jack. Acho que cometi um erro. Na minha opinião, ela de fato havia cometido um erro, mas agora eu estava com ela naquela estrada sinuosa e não conseguia enxergar o que havia depois da curva.
Jinx dera uma facada no marido? Ou será que ela o havia estrangulado com um fio? – Está tudo bem – falei. – Você está segura comigo. Foi então que percebi que meu ponto de vista havia mudado. Eu queria escutar a história de Jinx. E queria que ela ficasse bem.
capítulo 88 JINX ME CONTAVA SOBRE A vida e a morte de Clark Langston com um ar atormentado. Ela ainda tinha medo do finado marido. E talvez também o amasse. – Estávamos em uma estrada de terra batida que dava a volta no lago. – As pessoas que haviam passado o dia em barcos já embalavam seus equipamentos para ir embora. A estrada se transformou em uma vala cheia de grama e mato, totalmente deserta. Ela sorriu, mas foi um sorriso nervoso, e prosseguiu: – Eu continuava fazendo minha voz de GPS. Aquela farsa ridícula de controlar meu marido estava me inspirando, Jack. Nós agora estávamos presos em um jogo maluco e suicida. E ele me instigava dizendo: “Você acha que eu não sei o que está armando?” Não sei como ele sabia, mas eu tivera uma ideia… de que talvez conseguisse fazer Clark bater com o Maserati. Eu queria machucá-lo. Queria que ele morresse e, se eu morresse também, tudo bem. Falei: “Vire na próxima esquerda.” Era uma estrada que conduzia a
um parque nacional. Recostei-me na cadeira e observei o rosto de Jinx. Imaginei a queda de braço vinte anos antes: um homem mais velho e tirânico e sua esposa com fantasias de vingança. Emocionalmente, Jinx ainda vivia naquele instante. – Ainda havia luz suciente para enxergar – prosseguiu ela. – Eu disse a ele para virar na entrada seguinte, que era uma rampa de barcos. Ele virou e entramos na rampa a mais de 60 por hora. Perdi a coragem. Gritei. Mas Clark estava adorando me assustar, para eu me arrepender de tê-lo desaado. Ele riu de mim, Jack. Pisou ainda mais fundo no acelerador. – Ele percebeu onde estava? – Nunca vou saber. Talvez ele tenha pensado que conseguiria parar a tempo e avaliado mal a distância. Ou talvez tenha pensado que aquele seu carro de 250 mil dólares podia voar. Só sei que ele não chegou a frear. Ela estava de cabeça baixa. Falava depressa agora, tentando chegar ao fim da história. – Tirei o cinto de segurança, abri a porta e pulei antes de o carro cair na água. Depois disso, passei um tempo anestesiada. Não ouvia nada, não via nada, só pensava em chegar à margem, que não cava muito longe. Não olhei para trás. Andei durante algum tempo, peguei uma carona e disse à polícia que meu marido tinha perdido o controle do carro. A história da vida de Jinx Poole enfim estava terminando. – Quando eles tiraram o carro do lago, Clark ainda estava de cinto. A taxa de álcool no sangue era três vezes maior que o limite legal e sua morte foi considerada um acidente.
Ninguém fez pergunta alguma. Fui ao enterro. Chorei. Depois me mudei para Los Angeles. Retomei meu nome de solteira e me formei na universidade. – E comprou um hotel. – É – concordou Jinx. – Logo depois de me formar. Comprei um hotel com os 2 milhões de dólares estipulados no meu acordo pré-nupcial. E peguei mais algum dinheiro emprestado. Reformei o lugar e o reabri com o nome de Beverly Hills Sun, depois comprei os dois outros. Foi uma loucura. Eu precisava trabalhar para provar a mim mesma que minha vida valia alguma coisa. Que eu não precisava do amor de Clark… nem do seu desdém. – Ela olhou-me nos olhos. – Jack, o que eu z lá no lago Whiskeytown… eu queria que ele morresse e fiz meu desejo virar realidade. Seus olhos haviam começado a marejar, mas ela não se permitiu chorar. – Minha sensação é que os assassinatos nos meus hotéis são uma vingança pela morte de Clark, pelo dinheiro que herdei dele. – Jinx, você disse que o seu marido era um bêbado violento e estuprador. Você por acaso o obrigou a seguir pela tal rampa? Eu ia prosseguir nessa linha de raciocínio, mas ela me interrompeu. Levou a mão ao meu peito. Estava se esforçando para dizer alguma coisa. – Eu tenho medo… de confiar em mim mesma outra vez… para estar com outro homem. Ela estava inclinada na minha direção. – Estou com vontade de abraçar você – falei. Ela ergueu para mim os olhos cheios d’água.
– Eu preciso mesmo de um abraço. Abracei-a e ela finalmente chorou. Eu não esperava me sentir tão próximo dela. Não era um sentimento que eu desejasse, mas não havia como negá-lo. Eu gostava muito de Jinx.
capítulo 89 PASSAVA UM POUCO DA MEIA-NOITE. Com exceção de um saco plástico utuando pela rua e de um ou outro carro perdido nas redondezas, absolutamente nada acontecia na esquina da Anderson com a Artemus. O carro de serviço da Private era um sedã Chevrolet cinza ano 2007. Estava parado na Anderson, logo ao sul da Artemus, de onde os detetives tinham uma visão desimpedida do armazém da Red Cat Pottery e da plataforma de carga. Del Rio estava ao volante, Cruz no carona e Scotty atrás. Ficaram em silêncio até que Cruz disse: – Ligue para Jack. Del Rio telefonou e contou a Jack onde estavam. Eles trocaram impressões sobre como roubar uma fortuna em remédios tarja preta para a Máa de Las Vegas sem serem pegos, sem serem jogados no xadrez por vinte anos e sem a ajuda de Carmine Noccia.
– Está cando tarde, Jack – disse Del Rio. – Esses analgésicos vão sair do armazém uma caixa de cada vez. Em algumas semanas, tudo que vai haver lá dentro é uma van vazia e Noccia vai cortar algumas cabeças. A começar pela sua. Jack deu o sinal verde a Del Rio, e desligaram. Cruz ligou o carro e foi até a Boyd, uma rua sem saída paralela à Artemus, onde achou uma vaga entre caminhões e vans estacionados na perpendicular. Havia veículos parados em ambos os lados da rua de armazéns de cimento cobertos de grafites coloridos. Del Rio virou-se para trás. – Scotty. Agora é com você. Vamos lá. O mais jovem do grupo tomou um gole de sua garrafa d’água e disse: – Estou pensando na janela debaixo da escada. – Seja rápido – falou Del Rio. Scotty calçou um par de luvas de operário, pôs o interruptor da luz de teto na posição “desligado” e abriu a porta traseira do Chevrolet. – Espere um instante – disse Del Rio. Del Rio esperou um táxi passar por eles e disse a Scotty que prosseguisse. Vestido de preto da cabeça aos pés, Scotty estava praticamente invisível, a não ser pelo brilho dos cabelos louros. Del Rio e Cruz caram observando enquanto ele chegava ao m da rua sem saída e a atravessava. Então Scotty sumiu. Após trinta segundos, um alarme começou a tocar, e instantes depois a porta de trás do
carro foi aberta e Scotty entrou perguntando: – E aí, cronometraram? Cruz riu. – É, foi bem rápido. Tipo naqueles lmes em que o tempo para e o cara ca correndo no meio de um bando de pessoas congeladas, sabe? – Vamos ver quanto tempo a polícia demora para atender ao chamado – disse Del Rio. Quatro minutos depois, as primeiras sirenes chegaram pela South Anderson e pararam em algum lugar fora do campo de visão do grupo. Pela proximidade do ruído dos rádios das viaturas, Del Rio calculou que estivessem em frente às grades de ferro da plataforma de carga. Afundaram em seus assentos e Del Rio tentou convencer a si mesmo de que não haviam cometido nenhum crime até então. Scotty só havia sacudido uma janela até disparar o alarme. Eles esperaram para ver se chegariam mais carros, mas apenas duas viaturas apareceram. Quando a polícia foi embora, eles zeram tudo de novo: dispararam o alarme, esperaram a polícia chegar e ir embora. Então repetiram tudo uma terceira vez.
capítulo 90
JUSTINE ACORDOU COM UMA BARULHEIRA. Rocky estava enlouquecido. Latia e arranhava o piso de tábuas corridas tentando ganhar tração em sua corrida desesperada rumo à porta da frente. Justine olhou para o relógio. Eram quase sete horas. Que diabo era aquilo? Em meio aos latidos de Rocky, ouviu a campainha tocar com insistência. Vestiu um roupão por cima do pijama de seda e foi até o hall pensando que devia ser Jack. Quem mais se atreveria? Espiou pelo olho mágico e então abriu a porta para Larry Schuster, empresário de Danny. Ele tinha as roupas amarfanhadas e uma barba falhada começava a despontar em seu rosto. Em outras palavras, parecia ter dormido no carro. – Desculpe-me pela hora, Dra. Smith. Preciso falar com a senhora.
– Pode me chamar de Justine. Aconteceu alguma coisa com Danny? – Não, ele continua no hospital. Passei a noite inteira dirigindo. Finalmente tomei uma decisão. – Larry, posso dar uma sugestão? Eu chego ao escritório às nove. Por que não me encontra lá? – Vai levar só uns minutos. Por favor. É importante. Não posso correr o risco de alguém me ver e pensar que lhe contei o que sei. – Porque nesse caso você nunca mais vai conseguir almoçar nesta cidade? – Exatamente – disse Schuster sorrindo. Ela lhe disse para entrar. Levou-o até a cozinha e pediu que preparasse um café e se acomodasse junto à bancada. Então foi até o quarto e reapareceu alguns minutos depois vestida para trabalhar. Pegou leite na geladeira e serviu o café em duas canecas. – Açúcar? – Sim, por favor. Ela pousou o açucareiro ao lado do leite. Deu comida para o gato e o cachorro e disse a Schuster para começar a falar. – Houve outras meninas. – Que outras meninas? – Além de Katie Blackwell, três outras meninas ameaçaram processar Danny no ano passado por... hum... contato sexual indesejado.
– Que merda – disse Justine. – Larry, você deveria ter me contado isso antes de eu assumir o caso. Isso anula o nosso contrato… Como se já não tivéssemos motivos suficientes para mandar vocês e Danny se virarem sozinhos. – Por favor, não faça isso – pediu Larry. – Você sabia que eu já trabalhei em um hospital para doentes mentais? – Sabia. Naquele de Santa Monica. O Crossroads. – Isso. Então eu sei alguma coisa sobre distúrbios mentais. Mas a forma como Danny vem me enganando repetidamente me faz pensar que ele está tendo alucinações. Ele acredita nas próprias histórias. – Não, ele está dizendo a verdade. Ele foi el a Piper. Não transou com essas outras meninas. – Então quem foi? Essa bobajada toda sobre alguém controlando a vida dele talvez renda a Danny um acordo por insanidade, mas eu não contaria com isso. Vocês deveriam se preparar. Ele vai passar um bom tempo na prisão. – Ele não molestou as meninas, nem assassinou Piper. – Larry, a menos que me diga: “Eu sei que não foi ele porque fui eu” , não tenho como acreditar em você. Schuster não falou nada. Apenas a encarou. – Larry, você matou Piper? – Não. Não. Me desculpe. Só estava pensando se teria problema dizer o que eu acho… – Diga logo, droga. Ou então dê o fora daqui e nunca mais me ligue.
– Alan Barstow. – Não me faça arrancar a informação de você. – Foi Alan Barstow quem comprou as tais outras meninas. E tentou comprar Katie Blackwell também. Alan pode ganhar muitos milhões com Danny e vai fazer o que for preciso para mantê-lo como cliente. – Por que ele mataria Piper? Que motivo teria? – Piper não gostava de Alan. Estava tentando convencer Danny a mudar de agência. Se Piper tiver se metido na relação entre Alan e Danny, Alan pode ter cado perigoso. Ele é um cara bem assustador. Justine, você deveria dar uma boa checada nele. Acho que deveria pressioná-lo sem piedade.
capítulo 91 JUSTINE DIRIGIU EM VOLTA DO lago com chafariz em estilo Las Vegas em frente ao prédio em Century City. O Monólito, como era conhecido aquele imenso prédio de vidro preto, era a sede da Creative Talent Management, a maior e mais inuente de Hollywood. E do mundo. Sentada no banco do carona estava Nora Cronin. No início daquele ano, Justine havia trabalhado para o escritório da promotoria para ajudar a polícia de Los Angeles a capturar um serial killer que vinha aterrorizando a cidade e despistando as autoridades. O caso das colegiais estava sob responsabilidade da inspetora Nora Cronin. Apesar de sua indignação inicial quando a promotoria designou a Private para trabalhar com ela, Nora e Justine tinham se entrosado muito bem, como se trabalhassem juntas havia anos. Nora retocou o batom enquanto Justine entrava na garagem, pegava um tíquete na
máquina e começava a percorrer o estacionamento subterrâneo que ocupava mais metros quadrados do que a área de sua cidade natal. – Sabe o que é mais bizarro? A quantidade de dinheiro que circula por este prédio é maior do que o orçamento anual do Departamento de Defesa. Nora era uma mulher grande, forte como um tanque, e tinha uma risada alta e gostosa que soltou bem nesse momento. – Justine, você é muito engraçada. Eu, para falar a verdade, estou louca para ver este prédio por dentro. – Ah, é? – indagou Justine. – Pois estamos a ponto de ter um confronto, bem naquele estilo gladiador, com um idiota egocêntrico obcecado por dinheiro que talvez também seja um assassino. – E talvez a gente não consiga nem o confronto. Só estou preparando você para essa possibilidade. Se ele nos mandar sair, vamos ter que obedecer. – Ah, Nora, por favor. Uma dupla formada por uma policial e uma psicanalista vai dar um sacode nesse cara. Ele vai falar. Vai implorar para escutarmos. Nora tornou a rir. – Justine, você tem peito mesmo. Enm, este lugar até pode ser o coliseu, mas nós só temos que matar um leão. Um só. Tome aqui. Nora esticou a mão até o chão, pegou uma pasta e passou para Justine, que a guardou dentro da maleta. – Deixe que eu falo – disse Justine.
– Ótimo – retrucou Nora. – Eu serei sua guarda-costas. Justine riu. – Perfeito. Eu sempre quis ter um guarda-costas.
capítulo 92 O ELEVADOR LEVOU JUSTINE E NORA do estacionamento até o saguão da Creative Talent Management, um amplo espaço de mármore com paredes cobertas por imponentes obras de arte moderna. Escadarias envidraçadas enganavam o olhar e convidavam os mais céticos a baixar a guarda. As escadas erguiam-se até o teto de vidro da área de recepção, 10 metros acima. O espaço era projetado para impressionar e intimidar – e conseguiu fazer as duas coisas com Justine. Ela zombava da CTM como um buraco negro de ganância, mas agora podia sentir a força do lugar. A potência do dinheiro. Ela e Nora estavam sozinhas. Justine deu seus nomes a uma recepcionista, assinou um registro, e ela e Nora se acomodaram em um dos cantos do recinto para assistir ao espetáculo. Atores ensaiavam suas falas, gesticulando nos cantos; entregadores iam e vinham; grupos
de pessoas bem-vestidas entravam por portas que se mesclavam tão bem ao entorno que pareciam não existir. Tom Cruise estava em um desses grupos. Ethan Hawke saiu do prédio. Quinze minutos depois de elas chegarem, um rapaz desceu utuando uma das escadarias invisíveis. Usava uma camisa de linho branco, calça escura e tinha um ar de superioridade. Ao se aproximar de Justine e Nora, disse: – Meu nome é Jay Davis, sou assistente do Sr. Barstow. Alan está pronto para recebê-las agora. Justine empunhou sua maleta com a sensação de estar segurando uma bomba de fabricação caseira e pensou: Duvido que Alan esteja pronto para isto. Quando entraram na sala, Barstow estava em pé de costas para a porta, gritando no headset. – Já disse que não, seu imbecil! Lily Padgett não vai fazer um teste. Nós temos um acordo e, se ousar rompê-lo, vamos processá-lo. Vamos tomar tudo o que você tem, inclusive o suor do seu saco. Isso. Um seriado em rede nacional. Jerry Bruckheimer. Ela recusou. Está me entendendo agora? Barstow desligou o telefone, virou-se e viu as duas mulheres entrarem em sua sala espaçosa e transparente. Seu sorriso era radiante e frio, como o sol de inverno em um lago gelado. – Como vai Danny? – perguntou ele, apertando a mão de Justine. – Espero que estejam
trazendo boas notícias. Justine apresentou Nora como sua colega e os três se acomodaram em volta da mesa de centro, de onde podiam admirar uma peça de Frank Stella do tamanho da porta de um galpão. Pela janela se descortinava a vista panorâmica de West Hollywood e Beverly Hills. Mas era em Alan Barstow que Justine prestava atenção. O agente exibia cicatrizes de acne, cabelos ralos e ombros estreitos, mas tinha atitude de sobra. Certamente porque era um dos maiores agentes da CTM e ganhava milhões de dólares todos os anos. Justine se inclinou para a frente na poltrona de 5 mil dólares, colocou sobre a mesa de cerejeira brasileira o copo de cristal Waterford no qual havia bebido água e disse: – Alan, acho que sabemos quem é o responsável pela morte de Piper Winnick, mas precisamos da sua ajuda. Barstow apertou um botão no braço da cadeira e disse: – Jay, retenha as ligações. – Então se virou para Justine. – Sou todo ouvidos. – Nós achamos que Piper foi morta por alguém que tinha ciúme do relacionamento dela com Danny – disse Justine. – Sério? Que bizarro. – Algumas pessoas sabiam sobre Danny e Piper. Você, Merv Koulos, Larry Schuster, o amigo de Danny chamado Kovaks e seu assistente, Randy Boone. Mas o relacionamento de Danny com Piper não era de conhecimento público. Nem o chalé de Topanga. – Então é óbvio que alguém próximo de Danny cometeu o crime.
– Sim. Achamos que esse homem imaginava que Piper ficaria grata por ele ter conseguido o papel no lme para ela e que caria atraída por ele ser um cara poderoso. Então ele cou uma fera quando ela fugiu com Danny. Portanto, faz sentido esse homem ter ido até o chalé, acordado Piper e a convencido a dar um passeio com ele pela trilha. Supomos que ele tenha discutido com ela. E que eles tenham partido para uma briga física. – Justine – interrompeu Barstow –, está tentando me convencer dessa sua história ou veio pedir minha ajuda? Quem fez isso com o meu garoto? – Alguém que gosta de meninas novas, Alan. Um homem que tem verdadeira paixão por meninas novas. Justine sacou a pasta da maleta, abriu-a sobre a mesa, virou-a na direção de Barstow e começou a folhear as páginas. – É isto que vamos mostrar para a polícia – disse ela. – E tenho a sensação de que essas fotos vão acabar caindo na internet. Milhões de pessoas vão saber que Alan Barstow é um criminoso sexual. Você mesmo, Alan. Você é o cara.
capítulo 93 – EI, EI, EI – DISSE Barstow, cuspindo. – Onde vocês conseguiram isso? Um calafrio percorreu a espinha de Justine. Ela observou atentamente o rosto de Barstow enquanto ele encarava as fotos de identicação da polícia e a cha que listava sua prisão por crimes de pedolia. Nada restava de sua arrogância, agora substituída por sentimentos mais primitivos: medo, raiva e incompreensão, emoções que tornavam as pessoas violentas. – Hoje em dia existem softwares, Alan – disse Justine. – Eu posso comparar essas fotos com o rosto de criminosos sexuais em qualquer base de dados da polícia, mesmo que o crime tenha acontecido dez anos atrás em Nova Jersey. Mesmo que você tenha mudado de nome. – E daí? – retrucou ele, jogando a pasta para fora da mesa. – Está dizendo que isso prova que eu matei Piper? Está de brincadeira comigo, porra? Olhe aqui. Meu único interesse em Piper Winnick era financeiro. Só isso.
Ele pegou um exemplar da Variety em cima da mesa e mostrou a manchete a Justine: “Tons de vermelho”. – O lme já era! – gritou Barstow. – Um enorme sucesso de bilheteria já era. Sabe o que eu ganhei em troca de um ano de encheção de saco? Absolutamente nada. Quando mais bravo ele cava, mais relaxada Justine se sentia. Pelo menos enquanto ele apenas esbravejasse. – Acalme-se, Alan. Não estou dizendo que você planejou ferir Piper. Estou dizendo que você se ofendeu. Tentou explicar a ela quem era você e quem era ela. As coisas fugiram ao controle. Ela se desvencilhou de você… Barstow a cortou. – Dra. Smith, a senhora está completamente, e não consigo nem enfatizar isso o bastante, absolutamente louca. Esta reunião acabou. Se repetir uma palavra sequer dessa merda, vou processá-la por calúnia, difamação e qualquer outra coisa que o nosso departamento jurídico consiga desencavar. Ele se levantou da cadeira, foi até a porta e disse ao assistente: – Jay. Leve essas pessoas daqui. Não. Chame a segurança. Virou-se para Justine e Nora. – Vocês têm um minuto para sair do prédio. – A segurança de empresa nenhuma pode se meter com a polícia de Los Angeles – interveio Nora. Desabotoando o casaco, ela mostrou a Barstow o distintivo dourado pendurado em uma
corrente em volta do pescoço. – Nós vamos analisar as roupas de Piper Winnick. Se encontrarmos o seu DNA naquela menina, você está ferrado. E temos uma testemunha que arma que você drogou Danny Whitman e as meninas que o acusaram de conduta sexual inadequada. Nossa testemunha arma que você organizava orgias, Alan. E convidava apenas meninas novinhas, novinhas e embriagadas, seu doente filho da puta. Homens de uniforme cáqui chegaram marchando pelo corredor. Barstow caminhou até a porta a passos largos, abriu-a e disse ao chefe da segurança: – Desculpe-me, Roger. Eu me enganei. Está tudo sob controle. Fechou a porta da sala, abaixou a persiana e voltou à área de estar, mas não se sentou. – A senhora é da polícia? – indagou. – Deveria ter dito que era da polícia. Isto é uma armadilha. Vocês não leram os meus direitos. Não vou dizer mais uma palavra sequer sem o meu advogado. Nora se levantou e se postou bem em frente ao irado Barstow. – Completamente errado, Sr. Barstow. Eu não sou obrigada a me identicar, e só preciso ler seus direitos caso o senhor seja detido. Os olhos do agente desviaram de Nora para a porta, para Justine e de volta à porta, em busca de uma salvação. – Não arruínem minha vida por causa disso – pediu ele. – Eu não matei Piper. Talvez tenha convidado garotas à minha casa para Danny. Talvez tenha servido bebida. Algumas garotas talvez tenham acordado na cama com Danny e pensado que tinham transado com
ele. – Isso não é uma confissão. É um “talvez”. – Mas eu não empurrei Piper de um penhasco. Nem por acidente, nem de propósito. Não tive nada a ver com a morte dela. – Sr. Barstow – disse Nora –, o senhor está preso sob suspeita de assassinato e algumas dezenas de acusações menores irão mantê-lo sob custódia até podermos vericar suas declarações. O senhor tem o direito de permanecer calado. Tudo que disser poderá ser usado contra o senhor no tribunal. Está na hora de chamar um advogado. Acho que o senhor vai constatar que o seu contrato de trabalho inclui uma cláusula de moralidade, ou seja, a CTM vai deixá-lo na mão. Mas pode tentar. Veja o que acontece. Barstow fitou Nora com olhos desesperados. – Esperem – falou. – Se eu ajudar a capturar o assassino de Piper, podemos fazer um acordo? Acordos eram o ganha-pão de Alan Barstow. Ele buscava alento em sua zona de conforto. – Se o senhor tiver informações que conduzam à prisão e à condenação do assassino de Piper Winnick, farei o possível para ajudá-lo. – Está bem – disse Barstow. – Vou cooperar com vocês. Por escrito. Vamos relaxar, recomeçar do princípio. Eu acho que sei quem matou Piper. Não fui eu. Nem Danny.
capítulo 94 JUSTINE ESTAVA NO CHALÉ OUTRA vez, agora à luz do dia. Ela, o Dr. Sci e Nora Cronin estavam perto do canteiro em que havia marcas recentes de pneu. Um carro havia estacionado entre as ores, como Danny dissera. E Danny também havia sugerido que a pessoa que matara Piper devia estar dirigindo esse carro. Um perito em marcas de pneu da polícia de Los Angeles apontou sua Minolta para as marcas e disparou algumas fotos. Ajeitou uma régua ao lado das marcas e tirou mais algumas. – Obrigada, Stan. Por enquanto está bom – disse Nora. O Dr. Sci estava animado como uma criança em dia de aniversário. – Que beleza, Justine. Que marca de pneu incrível. A polícia tinha dois grandes scanners da Leica em seu laboratório. Já Sci estava usando o melhor da tecnologia da Private, um ZScanner 700 CX portátil,
que captava imagens em três dimensões, totalmente coloridas, com autoposicionamento em tempo real. Nenhum scanner no mundo inteiro superava aquele aparelho. – Sci, não me importo de você se exibir – disse Nora. – Mas se vangloriar não é legal. Sci riu. – Só estou dizendo que vocês vão agradecer a Jack por ter gastado 50 mil nisto aqui. – Se pegarmos o filho da mãe por causa do seu scanner, beijo Jack na boca, ok? Sci deu um sorriso. – Se Jack achar que tudo bem, por mim tudo bem também. O scanner 3D parecia um par de secadores de cabelo com um cabo só. Sci posicionou sobre as marcas de pneu uma série de pequenos marcadores, em seguida passou o scanner por cima deles em um movimento contínuo. Quando o fez, a imagem se transferiu para o laptop que Justine havia aberto sobre um toco de árvore próximo. Cada sulco, ondulação e detalhe da marca apareceu na tela. Nora se aproximou para olhar enquanto Justine comparava a imagem a 6 mil padrões distintos na base de dados TreadMate. Quando o programa se deteve em uma marca de pneu idêntica à imagem escaneada por Sci, Justine prendeu a respiração. A palavra encontrado piscava na tela. – A marca confere – disse ela. Sci se aproximou de Nora para olhar por cima do ombro de Justine. – Um N-spec – falou. – O pneu-padrão da Porsche. Justine, posso? Sci digitou algumas teclas no laptop e encontrou o que estava procurando.
– Os pneus N-spec têm um desenho especial. Há um sulco bem no ao redor da curva externa. Acho que é o pneu mais usado no Porsche 911. – Algo chamou sua atenção e ele apontou para uma marca plana perto da imagem que não fazia parte do rastro do pneu. – Olhem aqui. Isto é uma pegada parcial. Parte do bico de um sapato. O cara pisou na terra quando desceu do carro. Pena que deu ré por cima do resto das pegadas quando foi embora. – Dá para escanear a pegada? – perguntou Justine. – Mesmo que a gente consiga identicar o tipo de sapato, a pegada parcial não basta para nos dar o tamanho ou apontar marcas de uso. Justine estava pensando no início da manhã do dia anterior. Tinha começado a descer a trilha atrás do chalé de Danny em direção a seus gritos. Del Rio a alcançara e eles então ouviram portas baterem perto do chalé. Del Rio seguira em frente enquanto Justine voltava para o imóvel. Ao chegar lá, ela falara com os três homens que tinham vindo ajudar Danny: Schuster, Barstow, Koulos. Não observara os carros. Não era capaz de identicar com precisão os veículos que vira às quatro da manhã no escuro. Apesar disso, achava que um deles fosse um Porsche. Que modelo? E quem estava dirigindo? Ela não sabia dizer. Mas todos os carros haviam estacionado no acesso de terra batida. Algum daqueles homens podia ter vindo mais cedo, quando Danny ainda estava dormindo e, com pressa, em vez de estacionar o Porsche atrás da Ferrari, parou ao lado,
em cima do canteiro… – Podemos tentar uma correspondência à moda antiga – falou. – Não tem como, Justine! – gritou-lhe Nora bem na frente de Sci, Stan e todos os outros peritos no raio de alcance de sua voz. – Não tem como conseguir um mandado com base em uma marca de pneu que pode corresponder a qualquer um dos zilhões de Porsches que existem em Los Angeles. Justine não soube o que dizer. Não estava acostumada a acatar regras, tampouco a outras pessoas gritarem com ela. Nora tinha razão, claro. Mas havia outros caminhos. – Nora, você tem como checar as imagens das câmeras de trânsito? Pode fazer isso sem mandado?
capítulo 95 JUSTINE LEVARA 2 MINUTOS NA base de dados do departamento de trânsito para descobrir qual dos prossionais que cuidavam da carreira de Danny tinha um Porsche 911. Depois disso, ela e Del Rio procuraram o carro nos lugares óbvios, mas não o encontraram. Agora, Del Rio estava em Bel Air, estacionando no acesso circular de uma mansão de 6 milhões de dólares e quase mil metros quadrados em estilo mediterrâneo. Tirou a pistola do porta-luvas, guardou-a no coldre do ombro e disse: – Justine, não adianta car nervosa. Como meu antigo companheiro de cela costumava dizer: “Se você não conseguir encontrar o que está procurando na rua, entre na casa de alguém e pegue.” – Que beleza. Vamos acatar os conselhos de um presidiário. – E do meu companheiro de cela também. Justine riu.
– Sem querer ofender, Rick, não penso em você como um presidiário. – Fico honrado. Está pronta para arriscar sua vida e sua reputação? – Talvez. Quer dizer, vamos lá. Uma jovem empregada latina veio abrir a porta e deu um sorriso agradável. – Sinto muito. Não tem ninguém em casa. Del Rio ergueu o distintivo e abriu o casaco para mostrar à mulher sua 9 milímetros. – Não tem problema, senhorita. Temos autorização para efetuar uma rápida busca e apreensão. – Estamos pintando o salão – protestou a moça. – Não se preocupe – falou Justine. – Vamos tomar cuidado para não pisar em nada. Onde fica a suíte principal? Em algum outro dia, Justine talvez tivesse admirado a cozinha prossional de primeira linha, a loggia e a piscina, a sala de projeção e a suíte principal, que parecia o cenário de um lme de James Bond e tinha mais aparelhos de alta tecnologia e alta denição do que a Sala de Crise da Casa Branca. Esperava encontrar um closet organizado na suíte, mas o que viu foi uma bagunça. Roupas caras penduradas de qualquer jeito e presas em ganchos. Sob as prateleiras, sapatos de todos os tipos formavam pilhas desordenadas. Enquanto Rick cava parado na soleira do quarto, Justine examinou os sapatos com as mãos enluvadas. Estava procurando uma sola de borracha ou material similar que pudesse corresponder aos 7 centímetros de pegada que Sci encontrara junto à marca de pneu.
Parou por um instante, tentando organizar os sapatos na mente antes de continuar, e então viu o que estava procurando: um par de tênis Kayano Gel da Asics, a última novidade em calçados casuais masculinos. Pescou o sapato esquerdo na pilha e o virou. Chamou Rick e, quando ele chegou ao closet, mostrou-lhe a sola. – O bom da transferência é que é um processo de mão dupla. O sapato deixa uma pegada no chão. E o chão… está vendo? – Estou vendo uma migalha escura de alguma coisa. – E eu, um dia feliz para o Dr. Sci. Justine lacrou o tênis dentro de um saco de indícios e se sobressaltou ao ver que a empregada estava agora em pé atrás de Rick na entrada do closet. – Vocês vão me causar problemas – disse ela. – Não, não – respondeu Rick usando uma voz muito paciente, até mesmo paternal. – Não diga a ninguém que viemos aqui. Esta investigação é ultrassecreta, protegida pela Lei de Silêncio da Califórnia. Entendeu? Estavam saindo da North Bentley Avenue quando o celular de Justine tocou. Era Nora. – Acharam alguma coisa? – indagou Justine. Pôs Nora no viva-voz para Rick poder escutar. – O Porsche aparece em seis radares das duas às duas e meia da manhã de hoje, em um trajeto entre Bel Air e Topanga Canyon. Ele estava dirigindo depressa, inclinado sobre o volante, então conseguimos closes do rosto.
– Que bom, Nora. E eu acho que temos uma cereja para colocar no seu bolo.
capítulo 96 EU HAVIA COLOCADO MEU MELHOR gurino, passara a loção pós-barba que Justine tinha me dado de presente e estava dirigindo o Lamborghini a uma velocidade bem razoável do escritório para Beverly Hills. Sentada ao meu lado, Justine me instigava a ir mais depressa. Nervosa, falava comigo como se estivesse me pagando por hora de serviço. Entrei na 110. Embora quase todo mundo ignorasse isso, o limite de velocidade ali era 90. Pisei no acelerador até chegar quase a 100, mas mesmo assim Justine continuou a me pressionar. – Se formos parados, não se preocupe – disse ela. – Eu tenho uma amiga na polícia. – Quem está sob ança sou eu, Justine. E minha liberdade pode ser revogada. Não vamos abusar da sorte, tudo bem? – Tudo bem – disse ela. Olhou para o relógio, em seguida encarou o para-brisa. Eu sabia que ela não olhava para
nada na estrada. Estava perdida nos próprios pensamentos, relembrando o passado e projetando o futuro. – Justine. Oi. Sou eu, Jack. Estou bem aqui. – Estou repassando tudo na mente – disse ela, com a voz irritada. – Está bem. – Danny poderia ter concluído o lme, mas está tão abalado que teria sido uma piada, seria arrasado pelas críticas. E uma bomba nas bilheterias significava falência certa. – A morte de Piper matou o filme. – É. Quem poderia imaginar que isso teria um lado bom? Deixei Justine entretida com seus pensamentos e pensei nas outras brigas que havíamos tido, em como eu as odiava, em como queria que tudo casse bem entre nós dois. Nossa, como eu sentia falta dela. Queria que ela também sentisse minha falta. Um minuto e 1,5 quilômetro depois, saí da rodovia e peguei as ruas internas de Beverly Hills, o que nos poupou um pouco de tempo. Dobrei por m na North Crescent Drive, por onde chegamos à entrada do famoso hotel cinco estrelas de estuque rosa chamado Beverly Hills. Enquanto eu deixava a chave com o manobrista, Justine chamou Nora Cronin, que estava saindo de seu próprio carro. Viaturas de polícia sem identicação chegaram à entrada do hotel e ouvi Nora dizer aos manobristas para deixá-las ali. Um cartaz pendia de um cavalete perto da porta da frente: uma fotograa em tamanho natural de Piper Winnick envolta em crepe preto, com as datas de nascimento e morte
indicadas abaixo de seu rosto lindo, jovem e angelical. Justine e Nora conversaram rapidamente sob o pórtico, em seguida Justine se afastou da policial e me disse: – Estamos atrasados, Jack. Mas não muito. Dei-lhe o braço e juntos avançamos pelo tapete vermelho entre os colunas quadradas e subimos três degraus. Ainda pisando no tapete, entramos no hotel deslumbrante.
capítulo 97 AO ENTRAR NO SALÃO DE Cristal, Justine tentou captar tudo o que acontecia. Era um salão suntuoso, digno como uma velha senhora: redondo, claro, decorado em estilo art déco, com um aspecto bem parecido com o que tinha quando o hotel fora construído em 1931. Justine fez uma vericação visual das saídas, das paredes com janelas emolduradas por cortinas de seda, das altas portas envidraçadas que se abriam para o Jardim de Cristal. Verificou também as mesas sob o magnífico lustre. Havia celebridades por toda parte: estrelas de cinema jovens e velhas, estilistas, apresentadores de talk show. Os pais de Piper estavam perto do palco, e o pessoal de Danny ocupava uma mesa no centro do salão. Larry Schuster e Alan Barstow estavam ali, assim como todo o entourage de Danny e as respectivas esposas e acompanhantes. Se ela e Nora não estragassem tudo, Danny Whitman talvez saísse da cadeia naquela
mesma noite. Do outro lado do salão cava um palco grande e a parede atrás dele servia agora de tela para uma projeção de slides sobre Piper Winnick. Cenas de lmes estrelados por ela e comoventes fotograas caseiras de sua infância se sucediam. Havia rosas brancas em vasos de um metro de altura ladeando o palco e velas por toda parte. Mervin Koulos estava em pé atrás do pódio no centro do palco. Exibia uma aparência impressionante: o típico produtor de Hollywood, 1,80 metro de altura, roupas e cabelos impecáveis, responsável por um lme arruinado, que havia terminado de maneira pouco tradicional e nada típica de Hollywood. Uma de suas estrelas havia morrido. A outra estava na cadeia. E ele calculara que essa tragédia seria a sua salvação. Justine caminhou perto da parede da esquerda em direção aos degraus que conduziam ao palco. Nora Cronin se aproximou pelo outro lado do salão. Enquanto isso, Merv Koulos contava uma história sobre Piper e estava com diculdade para articular as palavras. – Nunca vou me esquecer quando Piper foi escalada para o papel de Gia em Tons de verde – falou. – Ela me disse: “Merv, trabalhar com Danny Whitman é o sonho da minha vida.” – Ele engasgou, sua voz falhava: – Sonho da vida. Que coisa. Piper tinha só 16 anos. Justine e Nora haviam alcançado o palco, mas Koulos só percebeu Justine, que avançara até bem perto do pódio e tocava seu braço. Ele se sobressaltou. Pareceu confuso.
Cobriu o microfone com a mão e disse: – Dra. Smith, o que está acontecendo? – Merv, quero que você diga o seguinte no microfone – respondeu Justine. – “Sinto muito, mas tenho que me retirar. É uma emergência.” Koulos manteve a mão sobre o microfone e sussurrou: – Não sei que droga você acha que está fazendo, mas tudo pode esperar. Caso não tenha percebido, estou fazendo uma homenagem póstuma. – Merv, olhe para a sua esquerda. Está vendo aquela mulher de blazer azul sacudindo o dedo para você? É a inspetora Cronin. Homicídios. Ela precisa falar com você com urgência. Koulos franziu o rosto com raiva. Um rumor de conversas subiu das mesas. Ele tornou a falar no microfone. – Senhoras e senhores, Sr. e Sra. Winnick, eu sinto muitíssimo por essa interrupção. Deve ser algum tipo de brincadeira, e de muito mau gosto. Alguém por favor poderia chamar a segurança? Nora atravessou o palco. Aproximou-se de Koulos com o distintivo em uma das mãos, seguida por três agentes uniformizados. – Sr. Koulos, por favor, ponha as mãos para trás – disse. – A senhora cou louca? – Koulos olhou para a plateia. – Preciso de ajuda. Alan? Pode me dar uma mãozinha? Todas as conversas cessaram e Koulos entrou em pânico.
Afastou-se do pódio, derrubando o microfone no chão. Correu para a saída do palco, mas os policiais foram mais rápidos e o derrubaram, puxando seus braços para trás de modo que Nora pudesse fechar as algemas. O microfone caído amplificou os gritos desesperados de socorro de Koulos e a resposta de Nora Cronin. – Mervin Koulos, o senhor está preso pelo assassinato de Piper Winnick. Então a plateia também entrou em pânico. Mulheres gritaram. Cadeiras foram derrubadas. Enquanto Nora recitava os direitos previstos pela lei Miranda, Koulos berrava: – Você não vai nem acreditar no inferno que a sua vida vai virar! Quando eu tiver terminado, vai aplicar multas de estacionamento! Se tiver sorte! Justine viu os policiais colocarem Koulos em pé. Então virou as costas e desceu os degraus do palco. Seu trabalho estava feito. Caminhando em direção à saída, pensou em ganância: em como Koulos tinha levado uma vida luxuosa demais, pedido muito dinheiro emprestado, investido cada centavo naquele lme estrelado por Danny Whitman, um rapaz atormentado demais para garantir seu sucesso. Mas Koulos tinha uma apólice de seguros vinculada ao lme no valor de 100 milhões de dólares. Dinheiro que agora não iria mais receber. Jack estava esperando Justine junto à porta. Levou a mão à sua cintura e a conduziu para
fora. – Muito bem – falou. – Muito bem, meus parabéns.
PARTE QUATRO BECO SEM SAÍDA
capítulo 98
ERAM OITO DA NOITE. Eu estava na Private, despedindo-me de meu amigo e advogado Eric Caine. Ele não fora explícito, mas me zera entender que, sem novos indícios, minha defesa no caso Califórnia versus Jack Morgan não seria nada fácil. Quando fechei a porta, um temporal desabou do nada. A chuva fustigou as janelas que iam do chão ao teto, criando um halo em volta dos faróis dos carros que passavam pela Figueroa. Caine correu até seu carro e comecei a subir a escada em caracol até minha sala, onde planejava passar mais quatro ou cinco horas trabalhando no meu próprio caso. Quando estava no patamar entre o terceiro e o quarto andares, vi Justine descendo. Ela ainda usava o vestido preto que pusera para a homenagem a Piper Winnick e, como sempre, vê-la acelerou meu coração.
– Oi – falei. Justine respondeu com outro “oi” e seguiu descendo a escada. Parei e disse: – Justine, você já jantou? Vamos sair para comemorar a prisão de Koulos… – Obrigada, Jack, mas não. Estou exausta e louca para chegar em casa. – Tem certeza de que um linguini marinara e um bom vinho não seriam melhores do que ficar em casa sozinha? Preciso conversar com você. – Hoje não, Jack. Peça a Cody para me encaixar na sua agenda de amanhã. Ela passou por mim na escada e não gostei daquilo. Ela não estava cansada. Não queria era estar comigo. Como se eu fosse um sujeito atrás dela na la da Starbucks, cafungando em seu cangote enquanto falava aos berros no celular. – Então me dê uns dois minutinhos agora – pedi. – Você vai aceitar a tal proposta? Preciso saber. Justine suspirou e ajeitou a alça da bolsa no ombro. – Eles cobrem o meu salário e dão mais quinze por cento. – Então você já decidiu? – Eu gosto da Private. Gosto do meu trabalho. – Fique, Justine. Eu cubro a oferta deles e ainda aumento a proposta. – Obrigada. Me deixe pensar até amanhã. – Justine, você está brava comigo. Eu entendo. Mas será que podemos conversar? Eu quero conversar sobre… sobre nós dois. Justine me lançou o olhar gelado do qual eu tanto me lembrava de quando morávamos
juntos. – Não existe “nós dois” , Jack – retrucou ela, ríspida. – Eu nem sei se um dia existiu. Mas ainda me importo com você. Portanto, como sua amiga, quero dizer o seguinte: não desgrude os olhos de Tommy. Depois da homenagem póstuma a Piper, eu seguira o carro do meu irmão do escritório até sua casa, vira-o consertar um irrigador de jardim e em seguida entrar para o jantar. O telefone dele estava grampeado, seu carro, rastreado, e naquele exato momento Mobot monitorava as imagens em tempo real dos “olhos” que eu havia mirado pessoalmente na sua casa. – A menos que eu mande implantar um chip no crânio dele, não há muito mais que possa fazer – falei. – Jack, Tommy me cantou outra vez. Eu não o levo a sério, mas você deveria. Outra vez? Tommy havia cantado Justine outra vez? Senti uma faca penetrar meu estômago. Não só por Tommy ainda estar tentando me derrotar no quesito mulheres, mas porque Justine tinha aado a ponta dessa notícia para que ela realmente me ferisse fundo. – Você saiu com ele? – perguntei. – Quando você estava preso. Foi apenas profissional. Pelo menos para mim. – Legal, Justine. Obrigado por me manter informado. – Nos vemos amanhã – disse ela, continuando a descer a escada.
Fiquei parado ali até não conseguir mais escutar o barulho dos saltos batendo no metal. Entendido, Justine. Golpe de misericórdia devidamente anotado.
capítulo 99 TOMEI UM RED BULL NA copa enquanto esperava o café car pronto. Pensei em algumas respostas possíveis para Justine – em sua maioria, motivos pelos quais ela devia perdoar meu último e totalmente não premeditado encontro de despedida com Colleen. Eu sou humano. Sinto muito. Não poderia estar mais arrependido. Por que ela não conseguia me perdoar? Fui até minha sala, liguei o laptop, abri os arquivos da pasta “Colleen” e repassei os acontecimentos que minha ex-namorada nunca mencionara. Fato 1: assim que saíra do ensino médio, Colleen se casara com um homem chamado Kevin Molloy. O casamento fora anulado seis meses depois, mas Colleen mantivera o nome de casada. Durante nosso ano de namoro, ela não citara o ex-marido uma vez sequer. Será que Molloy a havia seguido até os Estados Unidos?
Será que ele ainda a amava? Fato 2: a passagem de Colleen para os Estados Unidos em 2009 fora paga por um executivo chamado Sean McGough. Ele ainda morava em Dublin e fazia três anos que não saía da Irlanda. O que McGough representava para Colleen? E por que ela também não o mencionara? Fato 3: Mike Donahue. Colleen dissera que Mike era como um tio para ela. Assim como zera com Molloy e McGough, eu havia passado o pente-no na vida de Donahue. Ele obtivera a cidadania americana em 2002. Levara duas multas por dirigir embriagado em Los Angeles e uma terceira em Seattle, onde sustentava um menino de 7 anos. Não havia se casado com a mãe da criança. Se Donahue quisesse matar Colleen, teria sido fácil. Ela conava nele. Eu nunca desconara de que os dois tivessem tido um caso, de que ele tivesse ciúme dos sentimentos dela por mim. Para mim ele era apenas um cara com pinta de tio dono de um pub irlandês que Colleen frequentava quando morava em Los Feliz. Aquela pista era um beco sem saída. Abri outra pasta. Eu tinha reunido todos os e-mails pessoais que eu e Colleen havíamos trocado, desde o primeiro dia em que a beijara. Passei algum tempo revisitando o passado e me perdi lendo as nossas palavras, lembrando-me do romance que crescia no escritório, de todas as vezes que tínhamos transado em seu chalé coberto de rosas. E lembrei-me do telefonema de Donahue. “Venha rápido para o hospital.” Lembrei-me
de Colleen com ataduras ensanguentadas em volta dos pulsos. De como foi car sabendo o que ela havia feito consigo mesma depois de eu terminar nosso namoro. Levantei-me, andei pelo corredor, z mais café e quei olhando a Figueroa Street pela janela. A chuva havia se afastado. Voltei à minha mesa e cliquei na pasta de arquivos de vídeo. Já havia assistido a todos os vídeos armazenados ali, menos o que Mo-bot gravara quando Tandy e Ziegler me conduziram como se eu fosse um criminoso até o carro estacionado no meio-fio. Obriguei-me a rodar o vídeo e assisti a mim mesmo a partir da perspectiva de Mo-bot, no segundo andar. Ali estava eu, minutos depois de ser arrancado da reunião de acionistas da Private, cambaleando entre Tandy e Ziegler sob o sol ofuscante. Jornalistas gritavam perguntas e eu mantinha a cabeça baixa. Assisti a cada quadro – e vi uma coisa que não tinha notado naquele dia. Corrigindo. Vi alguém. Clay Harris. Clay Harris era uma herança da família Morgan, uma herança não exatamente inofensiva, quase uma maldição familiar. Aquilo não podia ser coincidência. Harris morava em Santa Clarita, a uns 30 quilômetros da cidade. Apesar disso, ali estava ele, em pé no meio da confusão de jornalistas, com uma visão muito boa de mim. Por que Harris estava espreitando em frente à Private na hora em que eu era preso pelo
assassinato de Colleen? Ele estava sorrindo, e eu imaginava saber por quê.
capítulo 100 EMILIO CRUZ NÃO ESTAVA GOSTANDO daquilo. Era o que se costumava chamar de “mau negócio” . Como se um peso médio brigasse na rua com um peso pesado. O lutador mais leve só podia torcer para não ser morto. Cruz entendia que Jack precisasse resolver aquele caso para Noccia. O maoso era um sujeito letal. Vingativo. Matava pessoas. Cometia assassinatos e conseguia se safar. Mas Cruz não estava fazendo aquilo só por causa de Jack: era também por causa do colega. Rick tinha mais de 40 anos. Estava meio duro. Lento. E teria de escalar muros. No escuro. Scotty compensava um pouco as deciências de Del Rio. Ele era capaz de dar cambalhotas e correr feito um guepardo. Mas Scotty era um ex-policial. Nunca havia desaado a lei daquele jeito, e fazer um serviço para um maoso ia contra tudo que zera
dele um bom agente da polícia. Agora, enquanto Rick procurava uma vaga para estacionar, Scotty estava sentado ao lado de Cruz, sacudindo os joelhos, que balançavam o banco da frente. – Rick, seria melhor entrarmos pelo muro dos fundos – disse Cruz. – O teto não me agrada. Nem um pouco. Paciente, Del Rio respondeu: – Nós sabemos apenas o que Scotty viu. Se entrarmos pelo muro, não sabemos o que vamos encontrar. Talvez tenha entulho amontoado contra a parede. Ou podemos esbarrar em canos. Del Rio então começou a xingar porque a Boyd Street, onde eles haviam estacionado antes, estava interditada. Não havia uma só vaga no quarteirão. – Ricky, estou dizendo: essa história não me agrada – insistiu Cruz. – Ali – disse Del Rio. E estacionou em frente a uma garagem com uma placa de “Proibido estacionar em qualquer horário” . Talvez aquela placa não fosse chamar a atenção de algum policial que passasse por ali àquela hora da noite. Talvez. Antes mesmo de o carro parar, Scotty desceu pela porta traseira. Atravessou a rua todo vestido de preto, com o gorro de esqui na mão. Depois de atravessar a Artemus, escondeuse sob a sombra da escada externa da fábrica de cerâmica e, como havia feito antes, sacudiu uma janela até fazer o alarme disparar. Dava para ouvir a sirene até uns quatro quarteirões de distância, e Cruz sabia que os
técnicos no centro de controle da Bosco Security Systems também seriam alertados por telefone. Era provável que as mesmas pessoas que estavam operando os telefones 24 horas antes estivessem de plantão agora. Haviam recebido três alarmes falsos daquele mesmo endereço e a equipe da Private acreditava que a Bosco iria dizer ao proprietário e à polícia que o alarme indicava uma falha de sistema, não um arrombamento. Os investigadores aguardaram uma reação da polícia, que não ocorreu. Quinze minutos mais tarde, sob a luz débil da lua nova, Cruz, Scotty e Del Rio atravessaram a Anderson e se esgueiraram no espaço estreito que separava a Red Cat de uma revenda de peças automotivas. Escalaram usando os muros paralelos dos prédios como apoio. Dois carros passaram sibilando pelo asfalto molhado enquanto os funcionários da Private subiam lentamente até o telhado da Red Cat.
capítulo 101 SCOTTY PASSOU UMA DAS PERNAS por cima da mureta baixa na borda do telhado, içou o próprio corpo e estendeu a mão para ajudar Cruz. Fez o mesmo com Del Rio, que rolou sobre o piso impermeabilizado. – Abaixem-se – disse Del Rio. Os três se abaixaram atrás da mureta até recuperarem o fôlego e se situarem melhor. Del Rio contou uns dois minutos em silêncio, depois se levantou e localizou os os de eletricidade que iam do poste na Anderson até o telhado e os cortou com seu alicate, causando um blecaute no armazém. O alarme estava agora desligado, assim como os sensores de presença, o telefone de emergência e todo o resto. Para sua surpresa, no entanto, o alarme tornou a disparar quase na mesma hora. Espantado, Del Rio se abaixou por puro reflexo e disse aos outros:
– Bateria de segurança. Do alarme. Deve ser sem fio. – Vamos sair daqui – disse Cruz. O alarme então cessou abruptamente. – Foi a Bosco que desligou – disse Del Rio. – Eles devem ter achado que já bastava de barulho por hoje. Emilio, está tudo bem. Vamos car aqui. Para ter certeza absoluta de que ninguém vai aparecer. Após dez longos minutos, Del Rio se levantou, afastou-se 5 metros do canto que dava para a Anderson, tomou aproximadamente a mesma distância da Artemus, sacou da bolsa a serra Sawzall a bateria de 18 volts e a ligou. A ferramenta fazia um pouco de barulho, mas não o suciente para acordar algum cão de guarda do bairro ou chamar a atenção de alguém que passasse de carro. Scotty e Cruz aguardaram enquanto Del Rio serrava o material impermeabilizante, as velhas camadas de asfalto que revestiam o telhado, o compensado mais embaixo e uma placa de gesso que apresentou pouca resistência. O revestimento do telhado caiu pelo buraco e desabou com alarde. Os três escutaram o silêncio que se seguiu, e Scotty então abriu sua bolsa de gadgets. Pôs a lanterna de mineiro em volta da cabeça e pegou 10 metros de corda de polietileno de uma polegada, do tipo usado em navios. Amarrou uma ponta em uma chaminé de tijolo, deu alguns nós no restante e preparou-se para entrar no buraco. – Vá devagar – disse Del Rio, e Scotty sorriu, animado por uma energia nervosa. Esticou bem a corda cheia de nós, em seguida desceu do telhado até a sala do forno,
onde eram assados os vasos de cerâmica. Del Rio foi atrás e Cruz desceu por último. Assim que seus pés tocaram o chão, Cruz foi até o escritório da fábrica e encontrou, ao lado da caixa de luz, a bateria de segurança do alarme. Removeu as pilhas e instalou o bloqueador de telefonia celular para o caso de o sinal voltar a ser ativado. Enquanto isso, Del Rio saiu da sala do forno e foi até o canto direito dos fundos do armazém propriamente dito, onde Scotty tinha visto a van. Só que ele não viu o veículo. O que viu foram apenas prateleiras e mais prateleiras de vasos de plantas. Recusou-se a acreditar naquilo. Durante a semana anterior, investigadores da Private haviam vigiado aquela porcaria de armazém em três turnos diários, sem pular um só dia. Será que a van tinha sido desmontada e levada embora em partes, ou posta inteira dentro de um caminhão maior? Del Rio estava prestes a ligar para Jack quando Scotty passou por ele feito um gato com seus sapatos de sola de borracha e lhe mostrou as prateleiras atrás das quais a van estava escondida, praticamente protegida por uma barricada. – O que acha, Rick? – perguntou Scotty. Aliviado por Jack não precisar dizer a Noccia que a van tinha sumido, Del Rio respondeu: – Está tudo bem.
capítulo 102 A VAN ERA UM DOS MODELOS mais recentes da Ford, branca, com legumes e verduras pintados na lataria, duas portas na frente, mais uma de correr de cada lado, e portas de carga na traseira, com vidros escurecidos em todas as janelas. Estava parada a 15 metros das portas metálicas, voltada para o fundo do armazém. Quem havia estacionado aquela van queria deixá-la escondida. O lado do motorista e a traseira estavam encostados nas paredes. Os outros dois estavam imprensados contra prateleiras metálicas de 2 metros de altura ocupadas por duas fileiras de vasos cada. Del Rio se espremeu até a porta do motorista e tentou acionar a maçaneta, mas a porta estava trancada. Como todas as outras. Puta que pariu. Trouxera um pé de cabra curto. Pegou-o, quebrou a janela do carona, pôs a mão dentro do carro e puxou a maçaneta. Limpou os cacos de vidro do banco com a mão protegida
por uma luva, jogou a bolsa no chão do lado do carona e deslizou até o banco do motorista. Depois de acender a luz do teto, olhou para a ignição. Teria sido maravilhoso encontrar uma chave ali, mas não: a única coisa que havia na ignição eram respingos de sangue. Havia sangue no volante também, bem como alguns pedacinhos de osso e miolos. Os restos do motorista de Noccia. Del Rio procurou a chave debaixo dos tapetes e dos para-sóis. Nada. Chamou Scotty e lhe pediu que vericasse o espaço em cima dos pneus, só para garantir, mas também não havia nada lá, então destravou os trincos para abrir todas as portas. Del Rio saiu da van e se espremeu rente às prateleiras de vasos, esbarrando em um deles com o ombro. A prateleira balançou, como se não tivesse certeza se iria cair ou não, e um desnecessário choque de adrenalina percorreu Del Rio. Imaginou Cruz ligando para o chefe: “Jack, cara, o Ricky enfartou. O que eu faço?” – Tudo bem, Rick? – chamou Cruz. – Tudo. Tudo. Emilio, vamos ver quanto tempo você leva para ligar esse motor. Cruz se espremeu rente às prateleiras, entrou na van e usou a chave de fenda acoplada a seu canivete para remover a tampa do tambor da ignição. Enquanto ele puxava os os, Del Rio foi tateando até os fundos da van para verificar a carga. Contou as pilhas de caixas e fez as contas: quatrocentas caixas, todas ainda lacradas, com exceção de uma. Em cada caixa estava anotado o número de frascos que continha, o número de comprimidos por frasco e o número de miligramas por comprimido. Ele pegou
um dos frascos, sacudiu-o e tornou a guardá-lo. Havia uma tonelada de Oxy ali. Se não houvesse 30 milhões de dólares dentro daquela van, não seria culpa sua. – Houston, temos contato – avisou Scotty. Del Rio fechou as portas do compartimento de carga, saiu de trás da van e entrou no banco do carona. Scotty se espremeu entre os dois bancos. Cruz pôs o câmbio na posição drive e acendeu os faróis. Bem nessa hora, ouviu-se o rugido alto e metálico de um motor vindo do lado de fora do armazém. As luzes piscaram, em seguida se acenderam. Parecia dia claro na Red Cat. Puta que pariu.
capítulo 103 CRUZ PUXOU OS FIOS PARA interromper a ligação direta que acabara de fazer, desligando o motor. Também apagou os faróis. Ficou sentado, segurando com força o volante, olhando pelo para-brisa escurecido e pensando: É claro que havia um gerador. A Red Cat tinha um gerador para o caso de a energia cair quando estivessem fabricando os vasos. Cruz virou-se para Del Rio no mesmo instante em que o colega agarrava seu braço e ordenava: – Abaixe-se. Fez o que Del Rio mandava e pensou: E agora? Havia pedaços do telhado no chão da sala do forno, e a chuva devia estar entrando pelo buraco no teto. Se alguém descobrisse isso… E eles estavam presos ali, não podiam sequer tentar escapar. Aquilo era a denição perfeita de ser pego com a mão na massa. Literalmente. Ele estava com as mãos sujas do sangue de um maoso. Sabia o que diria quando os arrancassem da
van e os jogassem de cara no chão de concreto. Vocês nos pegaram. Nós perdemos. – Está ouvindo? – indagou Scotty em voz baixa. Cruz ouviu homens conversando em meio ao estrondo do gerador. As vozes foram cando mais altas conforme passavam pela porta do escritório e entravam no espaço principal do armazém. Cruz torceu para não decidirem vericar os fornos, para não olharem dentro da van. Mas as vozes ficavam mais próximas. – Está vendo alguma coisa? Porque eu não estou – disse um dos homens. – Cadê a porcaria da van? – Ela está aqui. Pare de se preocupar, Victor. Está escondida nos fundos. Bem ali. Atrás daquelas prateleiras de merda. No m das contas, estavam ali por causa da van. Quem alugava aquele espaço queria ter certeza de que os seus milhões continuavam seguros. Aqueles homens não eram policiais. Eram marginais. Cruz tirou a pistola do cós da calça. Del Rio fez o mesmo. – Está bem, está bem – disse uma voz. Melhor para você, Sammy. Quero tirar esse negócio daqui amanhã de manhã. – Se você prefere. – Eu prefiro. Sammy, você e Mark… As duas vozes diminuíram quando os homens deram meia-volta e tomaram outra vez o
rumo do escritório. Cruz pensou no homem que tinha dito “Sammy” . E tudo se encaixou no lugar. Sammy, o cara do cavanhaque e dos piercings, um viciado morto-vivo que ele conhecia havia anos, estava subindo na vida. O mesmo Sammy que tinha aceitado 20 pratas em troca de um torpedo e dito que todo mundo sabia que a van estava dentro de um armazém. Todo mundo sabia? Algumas pessoas sabiam. Ele sabia, porra. O cérebro de Sammy parecia uma maçaroca. Ele diria e faria qualquer coisa por droga. E o cara que Sammy tinha chamado de Victor? Cruz achava que também o conhecia. Espiou por cima do painel e viu as nucas dos dois homens que entravam no escritório. A porta se fechou, e então as luzes do armazém se apagaram. Seu coração ainda batia com força, as palmas das mãos e as axilas suavam. Scotty murmurava: – Ah, cara, ah, cara. – Um dos caras era Sammy – disse Cruz. – Lembra-se dele, Rick? – O das botas de caubói azul-turquesa? Cheio de metal no nariz? – Isso. O que se vendeu por 20 pratas. E acho que o que está procurando a van é Victor Spano. Ele trabalha para a máfia de Chicago, não é? – Isso – conrmou Del Rio. – Spano. Pode ser ele, sim. Agora temos que esperar. Segurar
as pontas. O tempo passou arrastado e Cruz contou minutos demais no escuro, sentindo o cheiro do próprio suor, pensando na vez em que entrara numa briga de canivete e o cara havia sacado uma arma. E em quando estava na cama com uma mulher e o marido dela entrou no quarto. Estava pensando em sua última luta prossional contra Michael Alvarez e no soco que tinha posto fim à sua carreira quando Del Rio disse: – Tudo bem. Vamos lá. Del Rio acendeu a luz do teto. Cruz torceu os os e conseguiu uma faísca. O motor ganhou vida e ele acelerou. Acendeu os faróis, iluminando os vasos, e pôs o câmbio em drive. Soltou o freio e a van partiu, esbarrando nas prateleiras, que se desequilibraram em câmera lenta e derrubaram os vasos no chão. Cruz deu ré, girou o volante e foi manobrando devagar até os pneus se afastarem das prateleiras. Havia duas portas metálicas de enrolar que davam para Artemus. A primeira se abria para uma rampa até a rua. A segunda ia dar em uma plataforma de carga sem rampa. Uma queda de 2 metros e meio até o solo. – A da esquerda, certo? – perguntou Cruz. – O quê? – retrucou Del Rio. – A porta que dá para a rua é a da esquerda, não é?
– Pense bem, Emilio. Cruz tinha quase certeza de que a porta que dava para a rua era a da esquerda. Pisou rme no acelerador e arremeteu a van contra o metal no da porta metálica, arrancando os batentes da parede. Scotty repetia “Ai, cara, ai, cara” como se fosse um mantra. Cruz atravessou a porta rezando para estar certo.
capítulo 104 EU AINDA ESTAVA DIANTE DA minha mesa de trabalho quando meu celular vibrou. Era Del Rio. – E aí? – perguntei. – Missão cumprida – respondeu ele. – Ou seja, seus problemas estão apenas começando. – Onde está a van agora? – Estamos nela. Na rua. – Instalaram o rastreador? – Debaixo do banco. Bem escondido. – Ótimo – falei. Pedi a Rick que casse na linha e liguei para Noccia do telefone xo. Em um ouvido escutava o telefone chamando, no outro, os barulhos de tráfego e Del Rio e Cruz conversando.
Noccia atendeu. – Estamos com a sua encomenda – declarei para o chefão da Máfia. – Intacta. Combinamos um lugar logo ao norte da loja Fry’s Electronics Paradise, em Burbank. – Del Rio tem uns nomes para você, Carmine – falei. – Os caras que roubaram a sua van. – É mais do que eu esperava – disse-me Noccia. Então desligou. Eu queria Del Rio e sua equipe fora daquela van. Quanto antes, melhor. Fiquei na linha com Rick durante meia hora de pura adrenalina e gritos enquanto Noccia tirava dois de seus capangas da cama e esperávamos os seus caras e os meus se encontrarem no acostamento de uma rodovia. – Está na hora do meu compromisso – disse-me Rick e alguns minutos depois voltou ao telefone. – Já foram. Pegaram a 5 na direção norte. Mandei Rick ligar para Aldo e pedir que fosse buscá-los. Eu acabara de desligar o celular com ele quando o aparelho tornou a tocar. Código de área 702. Las Vegas. – Carmine. Está tudo em ordem? – Na mais perfeita ordem. Vou dormir feito um bebê hoje à noite. Já depositei os honorários na sua conta. Seis milhões redondos. – Obrigado. – De nada. Você trabalhou bem – disse Noccia e desligou. Senti a garganta seca. Minhas mãos tremiam. Engoli um Red Bull com um único grande gole e fiz uma ligação. O chefe da polícia Mickey Fescoe atendeu no terceiro toque. Eu lhe disse que uma van contendo uma fortuna em remédios tarja preta ilícitos
pertencente a Carmine Noccia seguia para o norte pela I-5. Visualizei Fescoe, meu amigo ocasional, despertando de seu sono, pulando da cama e implorando para eu lhe contar os detalhes. – Como é? Repeti o que acabara de dizer e então lhe dei os detalhes. Enquanto eu expunha a situação, Fescoe pontuava cada cinco palavras com “Puta merda” e “Está de brincadeira comigo” . Expliquei direitinho a relação entre os três integrantes da gangue de Noccia encontrados baleados em uma rodovia de Utah com a van da Ford contendo uma carga de OxyContin no valor de revenda de 30 milhões de dólares. – A van está equipada com um transmissor de GPS – falei. – O receptor está no estacionamento da loja de eletrônicos Fry’s. Isso. Dentro de uma lata de lixo debaixo da marquise do disco voador, se quiser mandar um carro ir lá buscar. – Vou mandar alguém imediatamente. Talvez eu mesmo vá. – Se eu fosse chefe da polícia, chamaria a Entorpecentes. E, Mickey, pare os caras por causa de uma infração de trânsito. Me deixe fora dessa. – Foi exatamente o que pensei – disse Fescoe. – Mas, Jack, como você conseguiu todas essas informações? – Não posso dizer. – Certo. É condencial. Desculpe por ter perguntado. Eu não preciso saber – falou Fescoe. – Mick, não que eu esteja cobrando nada, mas não esqueça que eu o ajudei nessa – falei.
Em outras palavras: Você me deve uma das grandes. – Vou ajudá-lo se puder – disse Fescoe. Em outras palavras: Vou ajudá-lo se puder, mas não conte comigo se tiver matado Colleen Molloy.
capítulo 105 FOI UMA SENHORA DESPEDIDA PARA Cody. O Bazaar era um restaurante cinco estrelas no La Cienega Boulevard, que promovia fiestas à espanhola como só se viam no cinema. Tínhamos reservado a sala de degustação, chamada Saam, para nosso grupo de trinta pessoas. A decoração era de couro e vidro de Murano e a comida, excêntrica e incrível: tapas e tira-gostos de queijo, pirulitos de foie gras envoltos em algodão-doce. As pessoas estavam alegres de tanto tomar mojitos mágicos incrementados com o alívio do m da jornada de trabalho. Houve brindes bobos e risos embriagados e algumas moças choraram e riram ao mesmo tempo. Como eu disse, foi uma festa e tanto. Algumas pessoas, porém, não puderam comparecer: Del Rio, Scotty e Cruz estavam trabalhando no caso dos assassinatos nos hotéis. Justine dera um suéter de caxemira de
presente para Cody e pedira licença para não participar das comemorações. Aquele era o último lugar em que eu queria estar. No entanto, devia a Cody uma despedida digna do carinho que todos tínhamos por ele. O rapaz assumira o cargo após a saída de Colleen, havia seis meses, e ocupara seu lugar sem qualquer percalço. Como se tivesse sido feito para aquele emprego. Eu sempre lhe seria grato por isso. Bati no meu copo com um garfo e a gritaria só fez aumentar. – Cody – chamei. – Cody, vamos sentir saudades. Assobios ecoaram e alguns caras começaram a gritar o nome dele. Mo-bot estava radiante. Até mesmo Sci se levantou e bateu algumas palmas para Cody. – Vamos sentir falta dos seus comentários sobre roupas e das suas imitações de todos nós, principalmente de mim – falei para meu ex-assistente. Imitei Cody me imitando: passei a mão pelos cabelos, ngi me olhar no espelho com uma expressão séria, ajeitei a gravata. As pessoas rolaram de rir. Falei que havia mandado matar Ridley Scott por ter tirado Cody de nós, mas que era grato a Cody por ter encontrado Val. Cody me interrompeu e disse: – Val, amiga, levante-se. E ela se levantou, também rindo, quase certamente por causa dos mojitos mágicos. Estava apenas se divertindo. – Cody, você nos manteve na linha e também nos trouxe muita felicidade – continuei. –
Se car decepcionado com a prossão de ator, quero deixar uma coisa registrada: você sempre terá um lugar na Private. Dei-lhe a câmera embrulhada para presente acompanhada pelo cartão assinado por todos da agência. Quando as palmas pararam, Cody enxugou os olhos com um guardanapo vermelho e usou o pirulito de foie gras como microfone. – Jack, quero agradecer a você – falou. – Sério mesmo: esse foi o melhor emprego que eu já tive na vida. Você me ensinou mais do que isto aqui – disse ele, rindo ao correr a mão pelos cabelos. – Mostrou-me na prática o que é ser um líder honrado. É disso que mais vou me lembrar. Eu não sabia que trinta pessoas eram capazes de fazer tanto barulho com as mãos.
capítulo 106 DEL RIO OLHOU PARA O King Eddy Saloon. O bar cava em Skid Row, em um antigo hotel homônimo que costumava vender bebida clandestina na esquina da East Fih com a Los Angeles Street. Apesar de ser um ponto ruim da cidade, o King Eddy atraía todo tipo de pessoa, de bêbados sem-teto a jovens sonhadores que moravam nos condomínios em volta. O prédio era cinza com detalhes em preto, grades nas três janelas da frente e um portão de segurança preso à porta, evidência do que poderia acontecer e muitas vezes de fato acontecia naquele bairro. Del Rio passou pela porta com Cruz em seu encalço. Pareciam Samuel L. Jackson e John Travolta entrando naquele restaurantezinho em Pulp Fiction. A jukebox tocava “Cold Cold Ground” , do Tom Waits, e algumas pessoas cantavam junto. O balcão circular estava lotado de gente excêntrica. Uma prancha de madeira barata
sustentava os televisores, todos sintonizados em uma partida de basquete. O Lakers acabava de perder a partida por um ponto. Os clientes gemeram consternados. Junto à parede em frente ao balcão havia uma leira de mesas sob neons de marcas de cerveja. Diante de uma delas, um casal gay se desentendia. Pelo volume agudo de seus gritos, Del Rio avaliou que era questão de minutos para a briga se tornar física. Com sorte, ele e Cruz já estariam fora dali quando o casal caísse na porrada. Del Rio vira uma foto do cara que estavam procurando. A imagem tinha uns dois anos e ele estava segurando um número em frente ao peito, mas Del Rio tinha quase certeza de que conseguiria reconhecê-lo ali no seu bar preferido. Examinou nucas e pers e então viu o homem negro de barba curta sentado diante do balcão. Estava comendo uma rosquinha que os fregueses recebiam de graça e conversando com o velho pinguço sentado ao seu lado. Del Rio chamou a atenção de Cruz e meneou o queixo em direção ao homem barbado. Cruz estreitou os olhos, assentiu, e Del Rio sacou sua 9 milímetros. Andou até o cara com a cerveja e a rosquinha, encostou a pistola em suas costas e o sentiu se retesar. O cara olhou por um segundo para o espelho acima do balcão e em seguida para os dois homens que não estavam de brincadeira e então levantou as mãos. – Sr. Keyes, queira me acompanhar – disse Del Rio. – Eu não quero confusão – disse o homem. – Então não faça nenhuma burrice.
Aquele era Tyson Keyes, chofer de limusine barra-pesada e primeiro marido de Karen Ricci. De acordo com o segundo marido dela, Paul Ricci, Keyes dissera a Carmelita Gomez que seu cliente fora assassinado por outro motorista. Talvez ele tivesse feito mais do que isso. Talvez Tyson Keyes tenha matado cinco executivos que contrataram o serviço de garotas de programa em seus quartos de hotel. Keyes se virou e desceu do banco muito cuidadosamente. – Eu não sou o cara que vocês estão procurando. – Terminou sua cerveja? – perguntou o pinguço ao lado de Keyes. – Sim, ele terminou – respondeu Del Rio. – Vamos indo. Uma ou duas pessoas olharam para eles e desviaram os olhos bem depressa. A quem quer que perguntasse, diriam que não tinham visto nada. Ainda com as mãos para cima, o ex-chofer de limusine Tyson Keyes percorreu lentamente a multidão, escoltado por um ex-fuzileiro da Marinha americana e pelo campeão californiano dos médios ligeiros de 2005. Na jukebox, Tom Waits cantava sua canção mais conhecida.
capítulo 107 UM RECADO DE JUSTINE ME aguardava quando cheguei em casa: “Jack, eu quero car na Private. Tenho certeza. Se fui grosseira na outra noite, me perdoe. Ainda estou meio… magoada. Nos vemos amanhã.” Ouvi o recado mais algumas vezes, destrinchando-o em busca de signicados ocultos. Tudo que consegui depreender com certeza foi que Justine continuaria na Private. Ainda haveria uma chance de nos reconciliarmos? Ou não tinha mais volta? Ouvi-a dizer não existe nós dois, Jack. Eu nem sei se um dia existiu. Eu havia tomado uma ducha e vestido calça jeans e uma camisa polo quando o interfone tocou. Fui até meu novo sistema de segurança e espiei o monitor do portão. Jinx estava lá fora, segurando uma bandeja coberta com uma redoma prateada. Tinha chegado bem na hora.
Abri o portão pelo interfone e, quando ela cruzou a porta, peguei a bandeja e coloquei sobre a mesa do hall. Jinx tinha o rosto iluminado, lindo, e usava óculos graciosos, com lentes em um rosa juvenil. Vestia calça jeans e camisa polo azul. Do mesmo azul dos seus olhos. Do mesmo azul da camisa que eu estava usando. – Olhe só para você – falou. – Se não se importar, prefiro olhar para você – respondi. – Tudo bem – retrucou ela. Ambos rimos, e eu a envolvi num abraço demorado. Enquanto estávamos abraçados, ela listou o que havia trazido para o jantar: salada de tomates orgânicos e bolinhos de caranguejo com molho de manga. Estava animada, falando muito depressa. Eu havia jantado no banquete de despedida de Cody, mas Jinx não sabia disso e não era da minha boca que iria escutar. – Eu mesma preparei o molho – disse ela, ainda me abraçando. – Especialidade da casa. – Coloquei uma garrafa de Pinot Grigio para gelar. – Esperava que zesse isso. – Ela ergueu o rosto, sorrindo para mim. Tinha um sorriso muito bonito. Fui pegar o vinho e levamos a comida para o deque do lado de fora, nos acomodamos em duas cadeiras, respiramos fundo algumas vezes e por fim relaxamos.
Brindamos ao sol poente que brincava de se esconder atrás de uma parede de nuvens gordas e cinzentas. Tudo era especial: a vista, o molho, o vinho e Jinx, que estava se revelando uma ótima companhia. Ela tirou as sandálias, abraçou os próprios joelhos e me pediu que falasse um pouco mais sobre mim, algo que não fizesse parte do meu currículo profissional. Eu poderia ter feito um roteiro bastante preciso da minha vida a partir do mapa de cicatrizes que carregava no corpo, mas não. Agora não. Estava pensando em contar uma história dos jogos de futebol americano, algo engraçado, quando ouvimos um toque musical vindo da sala. O celular de Jinx. – Não vou atender – disse ela. – Ótimo. O telefone tornou a tocar, e o clima foi quebrado de vez. Fechei as portas de correr, mas mesmo assim ouvimos quando o aparelho tocou pela terceira vez. – Talvez seja… – falou Jinx. – É melhor eu atender e pronto. Já volto. Fiquei olhando a espuma do mar enquanto Jinx abria as portas. Gostava dela e estava curtindo aquele momento, fosse um encontro amoroso ou apenas um jeito de nos conhecermos melhor. Pensei em lhe dizer que eu poderia fazer aquele celular desaparecer, que poderia demonstrar meu famoso passe e despachá-lo para o meio do oceano. Imaginei que ela fosse rir. Mas então a ouvi dizer no cômodo ao lado:
– Por favor, me diga logo. – E em seguida: – Ah, não. Não. Eu chego já. Não toquem em nada. Jinx voltou ao deque com uma expressão de pânico no rosto. – Jack, mais uma pessoa foi assassinada no meu hotel. Mais um homem morreu.
capítulo 108 EU ESTAVA AO LADO DE Jinx diante do Quarto Fellini, no segundo andar, na parte da frente do hotel. Não era a melhor localização nem o quarto mais caro, mas o acesso era fácil pela escada que subia do lobby. O rapaz abalado ao nosso lado no corredor era o gerente, “Sr. Knowles” . Tinha o rosto vermelho, seu lábio inferior tremia e seus olhos estavam inchados. Olhei para o quarto atrás dele e vi uma cena de crime horripilante o suciente para perturbar um jovem rapaz formado em hotelaria. Também quei perturbado, mesmo com minha experiência, que incluía uma guerra. Um homem jazia morto, metade em cima da cama, metade no chão. Um garrote caseiro feito de o e dois cabos de madeira fora apertado com tanta força em volta do seu pescoço que seccionara uma artéria. Sangue havia espirrado sobre a cama desfeita antes de ele morrer.
– O nome dele é Albert Singh – informou Knowles. – Fez o check-in à uma da manhã. A luz de “Não perturbe” passou o dia inteiro acesa. Nada foi cobrado na sua conta. O Sr. Singh parecia ter uns 20 e poucos anos e estava de cueca e camiseta branca. Usava uma aliança de casamento no anular da mão estendida. – Sra. Poole, eu disse que a esperaria chegar e agora a senhora está aqui – dizia Knowles. – Para mim chega, Sra. Poole. Aqui estão minhas chaves e meu crachá. Vou devolver o uniforme, mas preciso passar em casa… Toquei-lhe o braço, interrompendo seu discurso de despedida. – Sr. Knowles. Meu nome é Jack Morgan, da Private. Eu trabalho para a Sra. Poole. Converse comigo um instante. Conte o que aconteceu. A voz dele parecia um guincho. – E eu sei? A arrumadeira bateu na porta. Ninguém respondeu. Ela entrou e encontrou isso. Os hotéis antigos, mesmo aqueles reformados segundo os mais altos padrões de exigência, não tinham sido projetados pensando em segurança moderna. Como das outras vezes, o assassino devia ter se esquivado das câmeras. Na realidade, talvez fosse impossível adaptar aquele hotel a todas as exigências de segurança e ainda assim mantê-lo funcionando. Supondo que o Sr. Singh fosse igual aos outros cinco homens mortos daquela forma, minha teoria era que ele havia contratado uma prostituta. Em algum momento depois de ela ir embora, ele deixara o assassino entrar no quarto. Talvez fosse um chofer de limusine
se fazendo passar por um segurança ou por um funcionário do hotel encarregado de verificar um vazamento. A maioria dos hóspedes teria deixado entrar um homem assim. A polícia estava investigando o caso e nós não tínhamos atrapalhado seu trabalho, mas também não havíamos ajudado. Tínhamos uma teoria que ainda precisava ser provada, mas praticamente nada além disso. Assim como Knowles, minha vontade era jogar a toalha. Eu estava arrependido de ter aceitado o caso. Lamentava ter decepcionado Jinx. – Jinx, temos que chamar a polícia – falei. Ela pressionava o punho fechado por cima da boca. Não tinha certeza se ela havia me escutado. Saquei meu celular e chamei a polícia. Em seguida liguei para Del Rio. – Eu ia mesmo ligar para você – disse ele. – Temos uma novidade quentíssima sobre o matador de clientes de putas. Venha logo para cá, Jack. Precisamos que converse com uma pessoa. Uma pessoa que precisa ser convencida.
capítulo 109 PELAS JANELAS DO QUARTO DO nado Albert Singh eu tinha uma vista desimpedida da entrada principal do hotel. O acesso de carros se encheu de viaturas de polícia e sirenes ecoaram vindas de outras viaturas que se aproximavam correndo pelo South Santa Monica Boulevard. Pus as mãos nos ombros de Jinx e a encarei. – Ligo para você assim que puder – falei. – Vai ficar tudo bem. Não queria deixá-la, mas Del Rio tinha dito que precisava de mim com urgência. Eu tinha que ir. Saí do hotel pelos fundos, peguei meu carro no estacionamento e fui até a Rua 5. Encontrei Del Rio e Cruz em um beco cheio de lixo chamado Werdin Place. A meio quarteirão do King Eddy, ladeado por prédios dos dois lados, o beco servia de estacionamento para os comerciantes do quarteirão. Como era de noite, as lojas estavam
fechadas e o beco, deserto. Cruz me recebeu na entrada do beco. Atrás dele, Del Rio apontava a pistola para um homem negro de 40 e poucos anos sentado no chão, com os dedos entrelaçados na nuca. Ele estava sob “custódia particular”, como costumávamos dizer. – Jack, este é o Sr. Tyson Keyes – disse Del Rio. Keyes não olhou para mim. Manteve os olhos cravados na pilha de sacos de lixo 3 metros adiante. Depois de conversar com o leão de chácara da boate Havana, Del Rio tinha escrito um relatório. O leão de chácara lhe dissera que Keyes era um criminoso do tipo violento e que sabia quem era o assassino. – Sr. Morgan, o Sr. Keyes não quer falar conosco – disse Del Rio. – Eu lhe disse que, se ele não nos contasse quem matou os tais clientes, iria explodir os miolos dele, mas que a política da empresa exige que eu primeiro peça a sua permissão. Abaixei-me até ficar da mesma altura de Keyes. – Sr. Keyes – falei –, ninguém vai chamar a polícia se ouvir algum tiro vindo desta direção. Você sabe disso. Mas tem uma coisa que não sabe: o Sr. Del Rio não tem nada a perder. Ele está com câncer. Vai morrer antes mesmo de voltar para a prisão. Ignorei a expressão atônita de Cruz e continuei: – Já está com metástase, não é, Rick? – É isso aí, Jack. Eu já acertei as contas com Deus. Estou pronto para partir a qualquer momento.
– É isso que vocês querem? – perguntou Keyes. – O nome de quem matou os caras? Pensei que quisessem me ouvir dizer que fui eu. Cara, o que eu mais quero é que vocês tirem essa piranha maluca de circulação. – Espere aí – falei. – Foi uma mulher que matou os sujeitos? – Você está surdo, cara? – retrucou Keyes. – Foi uma mulher, sim. Trepei com ela enquanto minha patroa estava na prisão. Pensei que estivéssemos tendo uma história, mas ela não gosta de homens, cara. Ela odeia os homens. Keyes continuou dando o serviço: – Uma noite, eu estava dormindo e ela pôs um cabide em volta do meu pescoço. Encostei meu cano no ouvido dela. Disse que ia contar até três e queria ela fora da minha vida. Depois ouvi dizer que um dos clientes dela tinha morrido enforcado com um o. Fui buscar Candy no Seaview na noite em que aquele cliente foi morto, sabia? Ela me ligou sem passar pela central. Me usou como chofer, está me ouvindo? Isso não está certo. – Qual é o nome todo de Candy? – perguntou Del Rio. – Se eu disser, vocês me soltam? Del Rio abaixou a arma. – Carmelita Gomez. Ela trabalha naquela boate cubana das dez às quatro, ou seja, dá para encaixar alguns clientes por fora… Cruz se aproximou até seus olhos ficarem perto do rosto de Keyes. – Onde podemos encontrar a Sra. Gomez agora?
capítulo 110 CRUZ E DEL RIO ESTAVAM no carro à minha frente, obrigando-me a manter uma velocidade um pouco alta enquanto seguíamos para o norte e entrávamos no San Fernando Valley. Dirigia e ia ditando anotações sobre o caso. Descrevi a cena do crime no Sun e atualizei o dossiê Poole. Os fatos, ou o que conhecíamos deles, começavam a fazer sentido. Karen Ricci, a cadeirante que dera informações a Cruz, marcava programas para um serviço de acompanhantes. Segundo ela, um chofer de limusine sabia quem havia matado os clientes nos hotéis e ela cara sabendo disso por uma amiga, ex-garota de programa e atual hostess chamada Carmelita Gomez. Cruz havia interrogado Carmelita e ela lhe dera informações falsas. Agora tínhamos uma pista do primeiro marido de Ricci, Tyson Keyes. Keyes fora buscar Carmelita depois de seu programa com Arthur Valentine, o cliente assassinado no Seaview
no ano anterior. Se Carmelita Gomez fosse a assassina, ela obviamente tinha acesso fácil. Vinte minutos após deixar Keyes, encontramos o nome de Carmelita em uma caixa de correio na Stagg Street, em frente a uma das casas de estuque amarelo padronizadas de um condomínio de classe média. A casa dela cava um pouco recuada em relação à rua, no meio de um pequeno quintal que mais parecia um capacho. Um acesso curvo saía da Stagg, margeava a cerca do lado oeste da propriedade e terminava em uma garagem na parte dos fundos do quintal. Cruz e Del Rio entraram no acesso com o carro de serviço e eu estacionei do outro lado da rua. Desci do carro e fui me juntar a Cruz diante da porta da frente de Carmelita, enquanto Del Rio dava a volta na casa. Com nossas armas em punho, Cruz e eu nos postamos cada um de um lado da porta. Ele tocou a campainha e, segundos depois, a luz da entrada se acendeu. – Carmelita, é Emilio Cruz – disse ele. – Da outra noite. Não houve resposta, e ele tentou outra vez. – Pode olhar pelo olho mágico, Carmelita. Você sabe que eu não sou da polícia. No seas tonta. Não me obrigue a arrombar esta porta. Um carro deu a partida nos fundos da casa. Vi o brilho dos faróis. Depois disso, tudo aconteceu muito depressa.
capítulo 111 EM UM SEGUNDO, RICK ESTAVA andando para a porta dos fundos. No segundo seguinte, havia se espremido contra uma paliçada para não ser atropelado por um velho Chevrolet Impala vermelho que atravessou zunindo o gramado e passou pelo carro que Cruz havia estacionado no acesso à garagem. Cruz pulou dos degraus onde estávamos e ele e Del Rio correram em direção ao carro de serviço. Carmelita parecia ter ido de zero a quase 100 quilômetros por hora em uma fração de segundo, mas pude ver seu rosto quando o Impala passou por mim e fez uma curva fechada para a direita sobre apenas duas rodas. Ela não parecia assustada. Parecia decidida. – Chamo a polícia? – gritou Del Rio para mim. – Sim! – gritei de volta. Entrei no Lamborghini, z uma curva de 180 graus e saí atrás de Cruz e Del Rio pela
Stagg. Era uma rua estreita, não uma pista de alta velocidade. Carmelita ia na frente e ganhava cada vez mais terreno, cruzando aquele bairro residencial como se estivesse ao mesmo tempo bêbada e enlouquecida. Arrancou uma caixa de correio, raspou em carros estacionados e atropelou uma placa de parada obrigatória. Fez outra curva sobre dois pneus, dessa vez para a esquerda, e entrou no Laurel Canyon Boulevard, raspando a lateral de um utilitário esportivo que seguia para o norte na sua faixa. Entrei no bulevar a tempo de ver o carro vermelho seguindo a toda pela pista de dentro. Motoristas buzinavam. O Impala costurava entre as faixas – esquerda, direita, e de volta à de dentro. Carros desviavam. Calotas rolavam pela rua. Cruz e Del Rio vinham logo atrás do Impala, mas não conseguiram passar. Carmelita não estava apenas correndo: estava avançando como um incêndio que se alastra descontrolado por uma floresta. Sirenes começaram a berrar quando ela passou zunindo pelo cruzamento entre o Laurel Canyon Boulevard e a Strathern Street, uma área cheia de pequenos centros comerciais: um mercadinho de bebidas, um florista, um posto de gasolina, lanchonetes. A rua então se endireitava e seguia reta entre prédios comerciais de dois e três andares de ambos os lados. A ligação de Del Rio para o 911 e a fuga de Carmelita alertaram algumas viaturas e, quando ela fez a curva, seis carros de polícia já berravam atrás de nós. Era possível ouvir
mais deles ao longe. Carmelita não diminuiu a velocidade, não parou, nem sequer hesitou. Na verdade, quanto mais carros entravam na perseguição, mais rápida e loucamente ela dirigia.
capítulo 112 CRUZ CONDUZIA O CARRO COM Rick sentado no banco do carona e o Lamborghini de Jack no espelho retrovisor. À sua frente, Carmelita Gomez fazia o ponteiro do velocímetro entrar no vermelho. Cruz pisava bem fundo no acelerador, mantendo-se próximo do Impala, sabendo que, se Carmelita freasse ou batesse em outro carro, não conseguiria parar a tempo. Aquela mulher com certeza tinha culpa no cartório. Cruz tentava dar sentido ao que Tyson Keyes dissera a seu respeito e agora via a mulher bonita, mas esnobe, sob um ângulo totalmente diferente. Lembrou-se dela em pé junto ao guarda-roupa da boate Havana, usando o vestido rosa justo, sem olhar para ele da maneira como as mulheres costumavam olhar. Nem de longe. Pensou nela depois, sentada ao seu lado no carro, enm entregando um sujeito que dissera ser seu motorista, Billy Moufan, e armando que Moufan conhecia a identidade
do assassino. Só que Billy Moufan não existia. Em lugar nenhum. Tyson Keyes tinha sido seu amante e seu motorista. Segundo ele, Carmelita era uma mulher que detestava os homens e transava com eles para ganhar a vida. Bem pervertido, não? Uma buzina soou, demorada, quando a caravana em alta velocidade imprensou uma van da Volks contra o canteiro central. – Cuidado, Emilio – disse Del Rio. – Cuidado? Estou indo em linha reta. Está achando rápido demais? Quer que eu encoste para você dirigir? Por mim, tudo bem. Estou quase me mijando, se quer saber. O Impala fez uma súbita curva à direita e entrou na Neenach Street cantando pneus. Cruz foi atrás, com Jack em seu encalço. A Neenach era uma rua residencial, bem parecida com aquela em que Gomez morava: duas leiras de casas de estuque de um andar só, com muretas baixas ou pequenos jardins na frente e algumas árvores na calçada. Cruz não queria tirar os olhos da rua e checar o velocímetro, mas seu sexto sentido lhe dizia que eles estavam percorrendo a Neenach a quase 150 por hora, voando rumo ao cruzamento com a Haddon Avenue. Só que Carmelita não virou na Haddon. Havia uma parede sólida à frente, no ponto em que a Neenach Street, interrompida pela rodovia, terminava em um beco. Carmelita não iria parar. Entrou a toda no trecho sem
saída que ia dar em um semicírculo de casas, umas seis, todas de frente para o alto muro de cimento que as separava da autoestrada. Cruz pisou no freio com força. Jack e as quatro viaturas de polícia que vinham atrás zeram o mesmo. Os carros derraparam e os motoristas perderam o controle, invadindo gramados e batendo em outros carros estacionados na rua. Um cheiro de borracha queimada tomou conta do ar. Um barulho estridente de metal sendo compactado ecoou quando os veículos atropelaram latas de lixo e bateram em paredes. Cruz viu o Impala dar um salto para a frente, parecendo se imobilizar no ar. Era como se pairasse, suspenso, e então se dobrou ao meio ao colidir com o muro. Antes mesmo de seu próprio carro parar, Cruz já estava com a mão na maçaneta da porta, e em seguida estava na rua, correndo. Rick e Jack também corriam, mas Rick gritou para Jack: – Pare, Jack! O carro vai explodir! Mas Jack gritou de volta, mais alto do que todo aquele barulho: – Eu preciso saber se ela está viva! – E continuou a correr em direção ao metal vermelho amassado que antes era o carro de Carmelita Gomez.
capítulo 113 OS MORADORES SAÍRAM À RUA de pijama e roupa de baixo, as crianças agarradas aos pais, e viaturas de polícia lotaram a rua sem saída. Eu sabia muito bem que estava correndo para um carro acidentado, mas minha mente se enchia de lembranças que me faziam voltar à pior noite da minha vida. Eu estava no Afeganistão, transportando soldados de volta à base, quando uma granada lançada por um foguete arrombou a fuselagem do CH-46, arrancando o conjunto de hélice traseiro e fazendo o helicóptero cair. Havia sido uma descida ao inferno. O CH-46 despencou pelo vórtice negro da noite. Acionei o comando cíclico, rezando para conseguir fazer o helicóptero aterrissar – por milagre, consegui. Enquanto Del Rio e eu escapávamos da aeronave e pisávamos na areia, o combustível se incendiou. Munição começou a explodir. Uma coluna de fogo se ergueu e, através dos
meus óculos de visão noturna, transformou-se em um muro verde de chamas. Conseguimos sair ilesos do helicóptero, mas catorze fuzileiros navais caram presos no compartimento de carga, que recebera um impacto direto. Foi literalmente um inferno sobre a Terra. Homens que eu conhecia, com os quais havia combatido e que eu amava estavam mortos, mas eu precisava ter certeza de que nenhum sobrevivente iria morrer queimado. Corri rumo ao compartimento de carga e, assim como estava fazendo agora, Del Rio gritou para que eu parasse, dizendo que o helicóptero ia explodir. – Jack! Na rua sem saída, virei-me para Del Rio e gritei: – Preciso saber se ela está viva! O Impala havia atingido o muro de frente e a parte dianteira parecia uma sanfona. A porta do motorista estava aberta e o air bag já havia inado e murchado. Carmelita estava pendurada no cinto de segurança. Sangrava pela boca, mas estava respirando. Inclinei-me pela porta aberta e perguntei: – Carmelita, está me ouvindo? Ela piscou os olhos para mim. – Quem é? – Meu nome é Jack Morgan, sou detetive. Foi você? Foi você quem matou Maurice Bingham? Foi você quem matou Albert Singh? A risada saiu como um chiado. Talvez seu último suspiro fosse uma resposta. Mas não
era resposta suficiente para mim. – Carmelita, você está morrendo. Não vai querer levar esse segredo para o outro lado. Senti a mão de alguém no ombro. – Candy – falou Cruz – Dime la verdad. Pides perdón. Ela sorveu uma golfada de ar e disse: – Deus sabe que eu os matei. No necesito un maldito perdón, lho da puta. Eles… tiveram… o que mereceram. Com grande esforço, ela ergueu a mão e, sem tirar os olhos dos meus, mostrou-me o dedo médio esticado. Seu rosto então congelou, seu olhar perdeu o brilho e ela morreu.
capítulo 114 AMBULÂNCIAS ENCHERAM O SEMICÍRCULO DE casas e policiais uniformizados montaram barreiras e instruíram os moradores atordoados e assustados a não saírem para a rua. A sargento Jane Campbell ouviu meu depoimento ao lado do meu carro. Jane era uma boa policial, com doze anos de corporação. Eu tinha estudado com o irmão dela no ensino médio e comera alguns sanduíches na mesa da cozinha de sua casa havia muito tempo. – Parece um prejuízo de uns 30 mil – disse ela depois de examinar meu Lamborghini. – E isso só pelo painel traseiro. – Uma viatura da polícia me deu um esbarrão, mas estou bem. E tenho seguro. Campbell sorriu. – Fico feliz em saber. Me conte o que aconteceu, Jack. – Versão completa ou resumida?
– Pode começar com o resumo, e a partir daí vamos voltando no tempo. – Combinado. Nós recebemos informações sobre um caso que estamos investigando. Homens assassinados com um garrote em quartos de hotel. Minha teoria era que eles haviam sido mortos depois de transar com uma prostituta. Queríamos conversar com Carmelita Gomez. – A polícia de Los Angeles está investigando esse caso. – Amelia Poole nos contratou para conduzir uma investigação particular. – A dona do Sun? No Santa Monica? – Isso. Outro homem foi morto no hotel dela hoje, estrangulado com um o. Ela está preocupada com a segurança dos hóspedes. – E vocês acham que Carmelita Gomez era a assassina… – Recebemos essa informação uma hora atrás. Fomos à casa dela conversar e ela fugiu, em alta velocidade. Nós chamamos a polícia na hora. – Então o que estão fazendo aqui? – Tivemos que segui-la, Jane. Pelo simples fato de fugir, ela estava nos dizendo que era culpada. Não podíamos correr o risco de deixá-la escapar. Eu a vi bater naquele muro. Ela nem tentou frear. Você vai ver que não há marcas de pneu no asfalto. Foi suicídio. – Quer dizer que vocês receberam uma informação, perseguiram a suspeita e agora ela está morta. É isso que está me dizendo? – Não vi nenhuma alternativa. Ainda não vejo. – Emilio Cruz – disse ela, indicando o investigador da Private com o queixo. – Ele disse
que Carmelita Gomez fez uma declaração antes de morrer. – Sim, fez. – E você pode confirmar a confissão dela em depoimento? – perguntou a sargento. – Sim, posso. – Vamos precisar de mais informações. Por favor, Jack, não saia da cidade. – Está todo mundo me dizendo isso – falei. – Tenho que me preocupar com multas de trânsito? Algo desse tipo? – Para quê? Para você ligar para Fescoe e dar um jeito? Mande consertar o farol traseiro e pronto – respondeu ela. – E diga a Tommy que mandei um oi. Peguei meu Lamborghini e fui até onde estavam Del Rio e Cruz, sentados dentro do carro de serviço, com o motor ligado. – O dia já acabou? – perguntou Del Rio. – Já. Bom trabalho, vocês dois. Desejei-lhes boa-noite e dirigi meu carro avariado até a Hollywood Freeway. Àquela hora da noite, o trajeto até Hancock Park levava apenas 20 minutos. Desde que fora solto, eu havia passado cada minuto livre analisando, pesquisando, observando. E depois ainda ruminava mais um pouco a questão. O recado de Jane para Tommy era o empurrãozinho de que eu precisava para fazer o que meu sexto sentido estava me mandando fazer desde o início.
capítulo 115 PAREI O LAMBORGHINI NA ENTRADA para carros de uma casa com frontão e colunas dóricas e luzes submersas que davam a um espelho d’água o azul profundo de um oceano. Era o retrato de um consumismo exibicionista e exagerado de que só os californianos eram capazes. As luzes da casa estavam acesas. Acionei o freio de mão, subi o caminho até a porta, toquei a campainha algumas vezes e, como ninguém veio atender, entrei na casa. Encontrei minha cunhada na cozinha de 500 mil dólares, preparando um pudim de chocolate e assistindo a Os bons companheiros na TV. Estava de costas para mim. – Oi, Annie – falei, não muito alto. Ela gritou e deixou cair a colher. Virou-se, com as mãos nas bochechas e ainda aos gritos. – Sou eu, sou eu. Eu toquei a campainha.
Ela inspirou, estendeu os braços e me abraçou. – Jack, você é um perigo – falou. – Está sentindo meu coração aos pulos? – Desculpe-me. – Talvez ela tivesse mentido para dar um álibi ao meu irmão, mas mesmo assim eu a amava. – Você está bem? – perguntou-me ela. Abracei-a de novo, dei-lhe alguns tapinhas nas costas e respondi: – Estou. Mas tenho que falar com Tommy. Acredite ou não, preciso da ajuda dele. – Ele está no galpão. Vá acordar seu sobrinho. Ele está preocupado com você. Leve isto aqui. Ela pegou uma jarra de leite na geladeira, serviu um copo e me entregou. – Lembra onde fica o quarto dele? Ned estava dormindo. Acendi o abajur e a luz iluminou um quarto cheio de cartazes: pôsteres de recrutamento militar, dinossauros, super-heróis. Sentei-me na beira da cama e olhei para o menino de 8 anos que não era meu filho, mas carregava metade dos meus genes. Pousei o copo de leite, toquei o braço de Ned e falei: – Oi, parceiro. É o seu velho tio Jack. As pálpebras dele se abriram de uma vez só e ele se sentou depressa, envolvendo meu peito com os braços. Abracei-o e beijei seus cabelos. – Tudo bem, parceiro? Tudo bem com o Ned? Ele se afastou e sorriu.
– Eu estava mexendo em umas coisas velhas e olhe só o que encontrei. Papai falou que é mais velha do que ele. Olhei na direção que ele apontava e vi a garrafa antiga de Coca-Cola sobre a mesinha de cabeceira. Peguei-a para admirá-la sob a luz do abajur. – Que fantástico. É uma relíquia de verdade. – Vi você na TV – disse meu sobrinho. Coloquei a garrafa sobre a mesa. Ned tornou a me abraçar e falou junto ao meu peito: – Estão dizendo que você matou uma pessoa. Chamada Colleen. – Não é verdade, querido. Eu sei o que estão dizendo, mas não fui eu quem a matou. Estou sendo incriminado. Ele ergueu para mim os olhos cheios de perguntas e lágrimas. – Alguém mentiu sobre você? Mas por quê? – Eu não sei. – Isso não está certo. É uma loucura, tio Jack. – Ele não vai sair dessa impune. Não estou brincando. – Que bom. Pegue o cara. Dê uma rasteira nesse bandido. Bati meu punho fechado no punho do meu sobrinho e dei-lhe mais um abraço. Então saí da casa com suas sancas ornamentadas e lareiras em todos os cômodos e passei pela piscina olímpica aquecida até chegar ao galpão com vaga para seis carros. Tommy tinha uma coleção de carros americanos clássicos, paixão que herdara de nosso pai. Encontrei-o debaixo de um Buick Roadmaster 1948, um carro cinza-estanho tão
reluzente quanto uma bolha de sabão. Era lindo. Agarrei Tommy pelos tornozelos e o puxei sobre o carrinho que ele havia usado para entrar debaixo do carro. Meu irmão me encarou, e a expressão em seu rosto se modicou à medida que o medo inicial se transformava em uma raiva simulada. – O que está havendo, Jack? – Eu sei quem armou para cima de mim, Junior. Sei quem matou Colleen.
capítulo 116 – DÊ UMA OLHADA NISTO AQUI – falei para Tommy. Acessei o vídeo de Mo-bot no meu celular e entreguei o aparelho ao meu irmão. Ele apertou o play e ouvi o som metálico de jornalistas gritando para tentar chamar minha atenção em frente ao escritório da Private, em um dia que eu jamais iria esquecer. – É você sendo levado para o xilindró – comentou meu irmão. – Esse pessoal não alivia. – Continue assistindo. Está vendo alguém que conhecemos? – Cara, é Clay Harris. O que ele estava fazendo lá? – Ele trabalha para você, Tommy. – Só meio período. O cara precisa de ajuda, acredite. – Quer dizer que você não teve nada a ver com o fato de ele estar lá? – Não, caramba. O que você está dizendo? Que eu sabia que você seria preso? E chamei Clay? Por que eu faria uma coisa dessas?
– Vamos conversar com ele – falei. – Agora? – Não existe hora melhor do que agora. – Se você está dizendo… Vou avisar a Annie que vou dar uma saída. Encontro você no carro. Alguns minutos depois, Tommy me encontrou no acesso à sua casa. Estava de casaco e havia trocado de sapato. Deu a volta no Lamborghini. Correu a mão pela traseira esquerda do carro e ao longo do vinco até a porta. Seu casaco se abriu e vi a pistola enfiada no cós da calça. – Caraca, o que houve com seu carro? – perguntou ele. – Fui ao supermercado. Quando voltei… – Conheço um ótimo lanterneiro. Vou lhe dar o telefone. Mas por melhor que Wayne seja, este carro nunca mais vai ficar igual. Uma pena. – Entre. – Você pode dirigir? – Entre logo. E tente não dar um tiro no próprio pau. Tommy entrou no carro. Saí para a West Sixth rumo à I-5 sentido norte. Calculei que, àquela hora da noite, o trajeto até Santa Clarita fosse demorar 45 minutos. – Por que você quer falar com Clay? – perguntou-me Tommy. Clay Harris havia trabalhado para meu pai como investigador. Quando eu assumi a Private, ele constava da folha de pagamento da agência.
Eu não gostava de Clay, mas ele era ótimo de vigilância. Era capaz de seguir alguém ou car sentado dentro de um carro por dias a o. Parecia um operário desempregado, capaz de se misturar a uma multidão na rua. E sabia tudo de eletrônica. Mas ele era um traidor e um mentiroso. Clay Harris havia superfaturado suas prestações de contas. Fizera trabalhos por fora. E um dia chegara a vender fotograas de um cliente em um momento comprometedor. Eu descobri. Foi então que o mandei embora. No dia seguinte, Harris foi falar com Tommy, que lhe arrumou outro emprego. Pensar nele agora, no meio daquelas pessoas, vendo-me ser escoltado para a prisão, punha Clay Harris em uma categoria inteiramente nova. Ele não gostava de mim. Tinha as habilidades necessárias para me prejudicar. E eu não diria que assassinato estava fora das suas possibilidades. – Eu quero conversar com Clay sobre Colleen – falei para Tommy.
capítulo 117 PEGUEI A 5 EM DIREÇÃO à cordilheira de Tehachapi, que conecta o sul ao centro da Califórnia. Clay Harris morava em uma estrada de terra em uma área isolada, onde havia apenas fazendas, parques e reservas orestais. Pela imagem de satélite, eu sabia que a casa dele cava no m de um lote de 120 hectares que estava prestes a ser desenvolvido quando a bolha estourou em 2009. A casa de Harris cava a pouco mais de 3 quilômetros de qualquer outra edificação. Peguei a 126 até Copper Hill Drive, o que me fez passar por um minicentro comercial e em seguida por um conjunto de casas de trabalhadores migrantes. Depois não havia mais nada a não ser arbustos secos e colinas baixas, pequenos bosques de árvores nativas e quilômetros de terras planas intocadas. – Temos que virar aqui – falei, dobrando à esquerda na estrada chamada San Francisquito Canyon Road.
Tommy vinha falando de si desde que saíramos de Hancock Park, preenchendo a atmosfera do carro com suas histórias autocongratulatórias sobre os serviços de guardacostas que prestava para celebridades e sobre o comportamento excêntrico das grandes estrelas. Parou de falar, porém, quando meus faróis iluminaram a grade metálica e placas que diziam: “Harris. Entrada proibida.” Diminuí a velocidade quando a casa apareceu, estacionei no acostamento e apaguei os faróis. A casa cava no m de uma entrada comprida, bem nos fundos do terreno. Era uma espécie de casa de rancho, tinha apenas um andar e era branca, com detalhes pretos e uma varanda simples na frente. Havia um grupo de carvalhos nativos já de certa idade no quintal e outros margeando a grade, mas o que chamou minha atenção foi um utilitário esportivo da Lexus na estradinha. Eu sabia quanto Clay Harris ganhava na Private. Imaginando que Tommy não houvesse quadruplicado sua renda, o Lexus não fazia sentido. A menos que alguém tivesse lhe dado cerca de 75 mil dólares de presente. Estendi a mão em frente ao meu irmão, abri o porta-luvas e peguei minha pistola. – Não acho que você tenha porte para essa arma – disse Tommy. – Isso fica entre nós, tudo bem, Júnior? Descemos do carro e margeamos a grade, usando as árvores como proteção. O trinco do portão estava aberto, uma desatenção do Sr. Harris, pensei. Ainda estávamos a 10 metros
da varanda quando o sensor de presença nos detectou. Luzes fortes se acenderam. Uma sirene ecoou pelo terreno aberto, seguida por uma saraivada de balas. Harris disparava uma semiautomática e os tiros zuniam pelas árvores. Então houve uma pausa no tiroteio. Será que Clay Harris nos vira? Ou estaria apenas disparando em reação ao alarme, pensando que fosse um coiote ou um urso. Ou então pensando: Se vocês estão na minha propriedade, estão mortos. – Vá pela porta dos fundos e eu vou pela frente – sussurrei. – Não, Jack. Vá você pelos fundos. – Está bem – concordei. Mas aquilo não estava nada bom. Eu não havia planejado um tiroteio. Na verdade, naquele momento, não tinha plano algum.
capítulo 118 ESTÁVAMOS INVADINDO UMA PROPRIEDADE PARTICULAR. Se eu chamasse Harris e ele quisesse me dar um tiro, poderia mirar segundo a minha voz e me acertar. E não teria infringido a lei. Joguei-me no chão e rastejei pelo quintal até a lateral da casa apoiado nos cotovelos, fora do alcance de um tiro. De costas para a parede, passei por pilhas de quinquilharias e pela vegetação rasteira até chegar à porta dos fundos. Segurando a pistola com as duas mãos, usei o pé para empurrar a porta. Dobradiças rangeram e entrei no vestíbulo. Esperava ser alvejado ou pelo menos interpelado, mas não escutei nada. Havia uma luz acesa no centro da casa e avancei nessa direção. Usando a parede como guia, segui em frente, passando por roupas penduradas em ganchos, pilhas de jornais e
torres de engradados de cerveja vazios. Clay Harris era uma dessas pessoas que não jogam nada fora. O vestíbulo dava para uma cozinha pequena e estreita. Havia panelas e frigideiras empilhadas sobre a mesa e na pia. O lixo fedia. Uma porta na parede oposta conduzia a uma sala de jantar. Dei a volta em uma mesa coberta por pilhas de caixas com pastas de documentos e porcarias acumuladas e continuei avançando em direção à luz que emanava da sala. Espiei pelo canto para dentro do cômodo maior. Clay Harris estava de costas para mim. Ainda segurando a arma, tinha as mãos erguidas acima da cabeça. Estava de frente para o meu irmão, que segurava a pistola apontada para o seu peito. – Tom – dizia Harris. – O que você está fazendo? Que burrice. Eu não vou dizer nada sobre a tal garota. Entrei no cômodo, segurando minha própria pistola com as duas mãos. – Clay, largue a arma! – gritei. Harris se virou, me viu e disse: – Merda. – Em seguida jogou a arma em cima de uma poltrona. No instante em que a arma caiu no assento, Tommy disparou dois tiros em rápida sucessão. Harris levou as mãos ao peito. – Merda – disse ele, antes de cair de joelhos e desabar de cara no chão. Fui até ele e levei uma das mãos ao seu pescoço.
Não havia mais pulsação. – Pelo amor de Deus, Tommy. Eu queria falar com ele. Tommy tornou a guardar a pistola no cós da calça. – Sinto muito por você, sério mesmo – disse meu irmão. Procurou as duas cápsulas de bala, apanhou-as e as guardou no bolso da frente da calça jeans. – As coisas nem sempre saem como a gente quer. Você queria falar com Clay e agora ele está morto. Levantei-me e fiquei de frente para o meu irmão. – Você acha que eu não entendo o que acabou de acontecer aqui? – Foi legítima defesa, Jack. Essa é a verdade. Mas acho que você nunca vai ter certeza. Será que eu atirei nesse traste porque ele ia atirar em mim? Ou porque ele ia me entregar? Tommy estava zombando de mim, transferindo o peso do corpo de uma perna para a outra e movendo as mãos para cima e para baixo como se fossem os pratos de uma balança. Ele prosseguiu: – Será que Harris era um louco perigoso e armado? Ou ele iria contar a você que eu o contratei para matar Colleen? Encarei Tommy, depois tornei a olhar para o corpo de Clay Harris. Em sua mão direita, entre o polegar e o indicador, havia uma mordida feia. A mordida fora tão forte que deixara a marca nítida de uma arcada dentária, um hematoma preciso no ponto em que os dentes haviam se cravado. Tirei do bolso um lenço, a ferramenta básica número um de qualquer investigador.
Sempre de olho em Tommy, usei-o para pegar o telefone de Harris. Disquei 911.
capítulo 119 A EXPRESSÃO DE TOMMY SE ENCHEU de raiva e incredulidade. – Que porra você está fazendo? – indagou ele. A atendente entrou na linha e perguntou: – Qual é a sua emergência? Disfarcei a voz e disse, com um leve sotaque espanhol: – Ouvi tiros vindos de uma casa em San Francisquito Canyon Road. Dei-lhe o número da casa e disse que havia entrado lá para ver se alguém precisava de ajuda. Disse também que havia encontrado uma pessoa dentro da casa, um homem, e que ele tinha sido baleado. – Ele está respirando? – perguntou-me a atendente. – Não. Está morto. – Qual é o seu nome?
– Sinto muito. Não posso dizer. Desliguei o telefone. Tommy me perguntou outra vez o que eu pensava que estava fazendo e repetiu que havia atirado em Clay Harris por legítima defesa. Eu não lamentava o fato de Harris estar morto, mas teria sido melhor para mim se ele tivesse continuado vivo, se tivéssemos conseguido fazê-lo se virar contra Tommy e depor que haviam conspirado para matar Colleen. A arrogância de Tommy havia desaparecido. – Jack, vamos embora desta porra – disse ele, muito agitado. – Tenho que desovar esta pistola. Sua única preocupação era se livrar da arma. Uma coisa eu precisava dizer sobre Tommy: meu irmão era um merda, igualzinho a meu pai. Apontei a câmera do telefone para a marca de mordida na mão de Clay Harris, tirei três ou quatro fotos para ter certeza de que havia obtido a imagem de que precisava: uma que incluísse a mão mordida e o rosto morto. Então saí da casa pela porta da frente ainda aberta. Destranquei o carro com o controle remoto e os faróis brilharam a uns 100 metros de distância. Fui descendo a estrada escura com Tommy em meu encalço. Nenhum outro carro passava por aquela estrada. Não havia ninguém. Cheguei ao carro e sentei-me ao volante. Tommy tentou abrir a porta do passageiro, mas eu a havia trancado. Ele puxou a maçaneta várias vezes, depois começou a bater no vidro
com o punho. Ele me xingava, parecia totalmente desesperado. Ainda estava implorando para eu abrir a porta quando dei a partida no motor. – Jack, por favor, abra a porta. Você sabe que eu só estava de zoação. Sabe que ele ia atirar em mim. Que ele era um inútil. Abri a janela alguns centímetros. – Diga isso para a polícia – falei. – Você sabe ser persuasivo, Tommy. Eles vão chegar em poucos minutos. Ou então pode começar a andar. Quem sabe consegue fugir? – Jack, você não vai querer me deixar aqui. Sério. Não faça isso. Eu vou dizer que você estava aqui. Vou dizer que foi você. Tornei a subir o vidro e entrei na estrada que se estendia do nada a lugar nenhum por 3 quilômetros em ambas as direções. Quando cheguei novamente a Copper Hill Drive, liguei para Eric Caine e contei-lhe o que havia acontecido. Então apenas ouvi o que meu experiente advogado formado em Harvard tinha a dizer.
capítulo 120 ERIC CAINE ESTAVA SENTADO AO meu lado em uma sala de depoimento na delegacia do centro da cidade. Tinha o semblante calmo de quem almoçou bem, tirou um cochilo, vericou o saldo da conta bancária de sua aposentadoria e viu que estava tudo bem. Eu, por minha vez, estava com a sensação de ter um ninho de cobras na barriga. A polícia não tinha revelado por que precisava falar comigo, mas eu estava quase certo de que Mitch Tandy não havia nos convocado à delegacia da Los Angeles Street para me dizer como eu era um cara bacana. Tentei pensar em nuvens fonhas e arco-íris, e não no fato de Tandy ter jurado me confinar para o resto da vida em um presídio federal por ter matado Colleen. Tandy se acomodou em uma das duas cadeiras de metal na nossa frente. Então Ziegler entrou trazendo um envelope de papel pardo bem cheio. Com gestos exagerados, puxou uma cadeira, colocou o envelope em cima da mesa e, depois de se sentar, fez estalar um
elástico que trazia em volta do pulso. Era como se estivesse em um palco. Como se quisesse toda a atenção. O que estaria acontecendo? Tirando o tique do elástico, nenhum dos dois policiais demonstrou qualquer sinal de emoção. – Imagino que os senhores já saibam de que assunto se trata – disse Tandy. – Por que não nos informa? – respondeu Caine. – Meu cliente tem a agenda cheia. Tenho certeza de que o senhor também. – O nome Clay Harris significa alguma coisa para o senhor? – perguntou-me Tandy. Ele sabia muito bem que eu conhecia Harris. Três dias haviam se passado desde que eu estivera frente a frente com o cadáver de Harris. Não ouvira nada sobre o tiroteio desde então. E não tivera qualquer notícia do meu irmão. Caine estava falando por mim. – Nós dois conhecemos Clay Harris. Ele trabalhou para a Private por… quantos anos, Jack? Três? Foi desligado em 2009 por extorsão. – Ele morreu – disse Tandy. – Foi baleado em casa três dias atrás. Morava em um lugar ermo. Um informante anônimo chamou a polícia. – Lamento saber que Harris morreu – disse Caine. – O que isso tem a ver com Jack? As cobras se remexeram na minha barriga. Será que eu havia deixado alguma digital na
casa de Harris? Será que alguém vira o meu carro com a traseira amassada? Será que Tommy havia procurado a polícia e dito que fora eu o autor dos tiros? Considerei várias vezes todas essas possibilidades, mas tinha certeza de que não havia tocado em nada na casa de Harris. Não deixara qualquer indício, disso estava absolutamente seguro. Ziegler abriu o envelope, vasculhou o conteúdo e sacou uma folha. Eu havia aprendido a ler de cabeça para baixo quando tinha 3 anos. Aquilo era um laudo do laboratório forense da polícia de Los Angeles. – Alguém deu uma mordida na mão de Clay Harris – disse Ziegler. – O médico-legista identicou a mordida com a arcada dentária de Colleen Molloy. Parece que ela mordeu Harris. Deve ter sido a última coisa que fez antes de ele a matar. Eu já sabia o que o laboratório da polícia havia descoberto. Sci também havia identicado a mordida e constatado que correspondia à arcada de Colleen. Esperei Ziegler tornar a falar. Calculei que ele estivesse esperando eu deixar escapar alguma informação que ele não tivesse. O silêncio se arrastou. – Isto aqui não é o lme 48 horas, inspetor, e nós não temos 48 horas – disse Caine. – Os senhores identicaram a mordida na mão de Harris com os dentes de Colleen Molloy. Querem saber se estamos interessados? Sim, estamos.
capítulo 121 ZIEGLER SE REMEXEU NA CADEIRA. Tinha dado a notícia como se aquilo lhe causasse uma dor física. – Nós todos estamos interessados, Caine – falou. – Na verdade, estamos atrás da pessoa que a matou. Expirei. Não me importava que Ziegler e Tandy vissem meu alívio. Eles tinham provas de que Colleen mordera Clay Harris. A prova deles agora era a nossa prova. Tandy pareceu pensar a mesma coisa. – Vamos aceitar que Colleen tenha mordido Harris – disse ele. – Mas Morgan, antes de você e seu advogado começarem a comemorar, deixe-me dizer que essa mordida não é conclusiva. Colleen ter mordido Harris não signica que ele a matou. Os senhores entendem isso, não entendem? A amargura, embora ausente nas palavras, era perceptível no tom de sua voz. Tandy
havia se enganado a meu respeito e isso devia ser uma tortura para ele. Queria poder dizer a ele que nos últimos quinze dias ele havia me feito passar por um moedor de carne com lâminas muito afiadas, que era um mau policial e algum dia iria pagar por isso. Mas me contive. – Colleen lutou pela vida – comentei. – Fico feliz por isso. Caine bateu na mesa com os dedos, em parte um sinal para eu calar a boca, em parte para os policiais seguirem falando. – Então vai car feliz em saber que também encontramos isto aqui – disse Ziegler. Ele tornou a abrir o envelope e pegou um objeto de metal. Era um disco rígido. Parecia o que tinha sido levado do meu sistema de segurança na noite em que Colleen fora morta. Prendi a respiração. – O que é isso? – indagou Caine. – O disco rígido de Jack, com imagens que mostram Clay Harris carregando Colleen Molloy para dentro da casa dele. A data e o horário conferem com os da morte de Colleen Molloy. Encontramos o equipamento na pilha de quinquilharias na casa de Harris. E isso indica que ele tirou o disco da casa de Morgan e o levou consigo. Junto com a marca da mordida, isso significa… Clay Harris havia matado Colleen, mas não tinha engenhosidade suciente para fazer uma coisa dessas sozinho. Além do mais, ele não tinha motivo. Tommy tinha motivo – me pôr na cadeia pelo resto da vida. Mas não precisava cometer ele próprio o assassinato. Harris se dispusera a fazê-lo em troca de um ano de salário, que
gastou em um carro. Fazia sentido que Tommy tivesse dirigido os procedimentos da praia, em frente à janela do meu quarto, e que Harris houvesse ligado para ele imediatamente depois de Colleen morrer. – Meu cliente está dispensado da acusação de assassinato – disse Caine. – Nós falamos com o promotor assistente Eddie Savino – explicou Tandy. – Ele vai se encontrar com o promotor hoje à noite. Acho que Morgan vai ser inocentado do assassinato de Molloy, mas o problema, Sr. Caine, é o seguinte… Vi algo nos olhos de Tandy que não me agradou: um clarão, um alerta. – Agora temos outro cadáver – prosseguiu ele. – Clay Harris morreu baleado. E, Jack, se ele matou a sua namorada, esse é um motivo clássico para você matá-lo. – Não fui eu – falei. – Os senhores estão acusando Jack do assassinato de Clay Harris? – perguntou Caine, ríspido. – Ainda não – respondeu Tandy. – Estamos de olho no senhor, Morgan. No senhor e no seu irmão.
capítulo 122 A RELUTÂNCIA DE TANDY ERA PALPÁVEL quando ele se preparava para me informar sobre os fatos relativos ao assassinato de Clay Harris. Se Tandy considerava Tommy suspeito do crime, era possível que meu irmão tivesse deixado algum rastro. O silêncio recaiu sobre a sala de depoimento, quebrado apenas pelos leves estalos de Len Ziegler puxando o elástico em volta do pulso. Tandy se recostou na cadeira, tentando passar uma falsa impressão de descontração. Por fim, começou a falar: – Tommy foi detido por excesso de velocidade na noite em que Clay Harris foi morto. Estava dirigindo um Lexus LX 570 de propriedade da vítima. Havia bebido. Não conseguiu explicar aos agentes da polícia rodoviária por que estava com o carro de Harris. Também não soube dizer onde estivera nas horas anteriores e o que estava fazendo em Canyon Country.
A última vez em que eu tinha visto meu irmão fora em frente à casa de Harris. A polícia estava a caminho. Ele deve ter entrado de novo na casa para pegar a chave do Lexus. Que burrada, Tommy. Tremenda burrada. – Por enquanto, Tommy está detido por dirigir embriagado e por posse de veículo roubado – disse Tandy. – Mas ainda não acabamos. Por uma fração de segundo, a expressão de Tandy se iluminou e pude ler seus pensamentos como se fossem uma manchete de jornal. Ele estava revoltado por não ter nada contra mim. Talvez também tenha conseguido ler a minha expressão. Não tinha nada contra mim. Nada. Dentro da minha cabeça tudo era festa. Eu tinha um sorriso de orelha a orelha e fazia a dancinha da vitória junto à linha do gol. Rolhas estouravam e champanhe escorria pelo meu rosto. Os fãs se levantavam nas arquibancadas e aplaudiam, e eu era erguido no ar. Caine ostentava sua expressão de serenidade como se fosse um terno feito sob medida, mas sua pálpebra direita estremeceu. Era uma piscadela, somente para mim. Levantei-me e disse: – Inspetores, foi um prazer. Estou atrasado para uma reunião. Saí da delegacia com meu advogado. Não precisava mais temer retornar para o Twin Towers e passar um ou dois anos sendo humilhado no tribunal antes de ser trancaado em Lompoc, com uma pena que poderia ir de 25 anos à prisão perpétua. Estava livre outra vez.
– Porra, Jack, diga alguma coisa. Dei um tapinha no ombro de Caine e sorri para ele. – Que dia feliz, Eric. Ah, que dia feliz.
capítulo 123 MIKE DONAHUE E EU ESTÁVAMOS no aeroporto de Santa Monica, onde eu guardava meu Skyhawn Cessna 172. Eu contara a Donahue que voara com Colleen algumas vezes e que ela assumira o comando enquanto estávamos no ar. Dera algumas piruetas, soltando risadas muito agudas. Agora Donahue também queria voar. Abaixamos para passar debaixo da asa e eu lhe disse: – Não é como você vê nos lmes, como se pilotar um avião fosse um ou dois níveis mais difícil que dirigir um carro. Em um avião, você controla a mistura de combustível e ar que entra no motor, monitora a temperatura da exaustão, reinicia as bússolas. Noventa e nove por cento do que se faz são procedimentos e vericações. Uma bobeira insignicante em solo tem um significado inteiramente diferente quando se está no ar.
– Como o que, Jack? Não. Não me diga. – Por exemplo, você se esquece de tampar o tanque de combustível. A gasolina simplesmente evapora. O seu avião vira um planador. E você não quer que isso aconteça. Donahue apontou e disse: – A tampa do tanque é aquilo ali? – É. – Sorri para ele. – Está bem colocada. Terminamos a vericação da aeronave e ajudei Donahue a subir para o cockpit. Senteime no banco do piloto, pus o cinto de segurança e ajustei o fone de ouvido dele para podermos conversar e ele poder escutar meus diálogos com a torre de controle. Fui liberado para taxiar até a pista de decolagem e Donahue manteve os olhos xos à frente enquanto avançávamos, sem piscar. Paramos no nal da pista de taxiamento, z uma última vericação, reportei-me à torre e iniciei a decolagem. Como sempre, devido à forma como as turbinas giravam, o avião puxou para a esquerda e tive que virar um pouco para a direita ao acelerar. Fiquei observando o indicador de velocidade e, quando chegamos a 100, recuei o manche alguns milímetros. O nariz do avião se ergueu e começamos a subir. Soltei a respiração. Era um lindo m de tarde. O sol estava se pondo, desenhando no horizonte uma faixa luminosa azul-celeste e rosada. Peguei a direção oeste e comecei a sobrevoar o oceano. Colleen costumava ir recitando os muitos tons de azul e verde conforme a água passava de rasa a profunda.
Contei a Donahue que era bem ali, àquela altitude e àquela distância da terra, que Colleen gostava de assumir os comandos. – Vou pensar nela pilotando, mas prefiro ser só passageiro – disse-me Donahue. – Quem sabe você pilota alguma outra vez? – falei. Levei o avião até as nuvens e, por alguns instantes, não vimos nada a não ser a condensação molhando o para-brisa. Então subimos acima dos castelos de ar e, para o passageiro, assim como para o piloto, era fácil relegar os motores, os magnetos e as tampas do tanque de combustível a um canto da mente e simplesmente sentir a magia e a majestade do voo. Enquanto navegávamos acima das bolas de algodão em tons pastel das nuvens, Donahue exibia um largo sorriso, e então sua voz soou muito alta em meu fone de ouvido: – Mudei de ideia, rapaz – disse ele. – Gostaria de assumir um pouco os controles. Eu lhe disse para dar uma cambalhota e ele me obedeceu. Puxou de leve o manche. O avião pôs-se a subir na vertical, caiu para trás e ficou de cabeça para baixo. Donahue soltou um grito bem masculino e então gritou no microfone: – Isso é que é ficar de cabeça para baixo! Sua risada quase fez meus tímpanos explodirem. Ele concluiu a cambalhota e fomos novamente para oeste. Donahue então tirou a mão do manche e a estendeu para mim. Apertei-a e nos entreolhamos, sorrindo feito dois idiotas. Foi assim que nos despedimos de nossa querida e doce amiga Colleen.
capítulo 124 CHEGUEI EM CASA POR VOLTA das nove da noite, ainda ligado por causa do excesso de adrenalina e da falta de sono. Tranquei a porta da frente depois de entrar, percorri a casa e veriquei as janelas, fui até a estação dos monitores de segurança, agora melhorada, e assisti às gravações da porta da frente e dos fundos rapidamente. Não vi ninguém no acesso de carros nem chegando perto do deque pela praia, e o registro mostrava que o alarme não havia disparado. Examinei os telefones e o interior e, até onde pude ver, minha casa não estava grampeada. Na geladeira havia pouco mais que uma caixa de cerveja. Abri uma Molson e tomei metade em um só gole. Fiz uma pausa, depois esvaziei a garrafa. Saber que Tommy estava detido deveria ter me proporcionado alívio suciente, mas mesmo assim veriquei novamente todas as trancas das janelas, as portas de correr e a
porta da frente. Então tirei as roupas e as deixei espalhadas pelo chão. A ducha múltipla cava no banheiro da suíte principal, e fui para lá. A água saiu quente, revigorante. Comecei a pensar que estava nalmente pronto para voltar ao meu quarto e dormir em minha nova cama com lençóis novos. Se não conseguisse dormir no meu próprio quarto, caramba, iria vender aquela casa. Então tentei. Fui até o quarto, veriquei mais uma vez o cômodo e olhei para a cama. Fiquei olhando por um minuto inteiro e tudo o que vi foi uma cama, não uma imagem ruim de Colleen caída ali, morta. Pelo menos na minha cabeça Colleen havia descansado. Abri as cobertas e liguei a televisão. Fui zapeando, encontrei um canal a cabo de notícias 24 horas e, quando vi um apresentador em pé diante de várias luzes vermelhas e azuis piscando, larguei o controle remoto. O nome do repórter e a logomarca do canal permaneciam na tela: “Matt Galaburri, CNN” . Em letras menores mais abaixo estava escrito: “Agência de Repressão a Entorpecentes intercepta carregamento de drogas do crime organizado no valor de 30 milhões de dólares em Renton, Washington. Quatro homens foram presos.” Aumentei o volume. Tudo acontecera como eu esperava, mas queria ouvir os detalhes para ter certeza de que
a Private ficaria de fora. O repórter, muito animado, não parava de virar a cabeça enquanto falava, tornando metade do que dizia incompreensível. Estava olhando para uma van branca cercada por agentes da lei, tanto em veículos civis quando em viaturas ociais identicadas nas laterais pelas iniciais DEA, Drug Enforcement Administration. O local era um estacionamento em frente a um armazém que, a julgar pelo ângulo da câmera, parecia situado à beira de uma autoestrada. O armazém era uma daquelas construções quadradas sem qualquer característica marcante pelas quais passamos a caminho de algum lugar e que desaparecem para sempre da lembrança. O jornalista dizia: “O que vocês podem ver atrás de mim é a cena resultante de uma das maiores apreensões de drogas dos últimos anos. Um porta-voz da DEA disse à CNN que um carregamento de entorpecentes no valor de dezenas de milhões de dólares foi apreendido e quatro homens foram presos, todos conhecidos pelos fortes vínculos com o crime organizado.” Ele então explicou o contexto, como a van havia parado para transferir o carregamento em um armazém ao sul de Seattle e como o armazém vinha sendo vigiado havia um ano. O vídeo então cortou para imagens gravadas anteriormente por uma câmera montada no painel de um veículo da DEA. A cena era iluminada por faróis. Quatro homens apareciam rapidamente descarregando uma van branca com um decalque de legumes e verduras na lateral. Uma fração de segundos depois, chegavam as viaturas cantando pneus.
Ouviam-se gritos e os policiais rendiam os quatro homens a pé. Dois deles saíam correndo, dois erguiam as mãos. Os agentes de segurança pública mandavam todos os homens se deitarem no asfalto e os algemavam. O vídeo tornava a cortar, dessa vez para um homem de terno em pé atrás de um pódio no qual se podia ver uma insígnia ocial. As letras na parte inferior da tela identicavam o homem como Brian Nelson, diretor da DEA. Ele falou para as câmeras: “Os agentes envolvidos nessa operação salvaram muitas vidas hoje…” Meu telefone tocou e tive que arrancar os olhos da tela. O identicador de chamadas informava o nome de Fescoe. Que diabo ele quer agora?, pensei enquanto atendia.
capítulo 125 MEU VELHO AMIGO SÓ DAS horas de alegria, o chefe de polícia Mickey Fescoe, falou: – Jack, ligue a TV. Está passando uma coisa que você vai querer ver. – Já estou vendo – respondi. – Parece que a DEA tirou muitas drogas ilícitas de circulação. – Isso mesmo, parceiro. Mas eu não falei nada sobre a sua participação. Era o que você queria, certo? – Certo. Não quero crédito nenhum. Não diga nada a ninguém, nunca. – Combinado, Jack. A DEA está nas nuvens. Só faltava uma ta vermelha em volta daquela van. Mas nem precisava. Esse negócio tem o dedo da família Noccia por toda parte. Será que vamos conseguir pegar Carmine? Não sei dizer, mas essa apreensão não vai ajudá-lo nem um pouco. Talvez ele tenha um enfarte. Talvez alguém o apague. A esperança é a última que morre.
Trocamos mais algumas palavras sobre como aquilo era bom para o país e então Mickey disse: – Aliás, co feliz por você estar livre da acusação pelo assassinado de Colleen Molloy. Fiquei de olho em Tandy e Ziegler o tempo todo. Também não quero nenhum crédito, mas espero que você ache que a polícia de Los Angeles o tratou de forma justa. – Não tenho reclamações – falei. Um bipe soou no meu ouvido e verifiquei o identificador de chamadas. Bem quando eu pensava que não restava mais nenhum pingo de adrenalina no meu corpo, senti uma onda de pânico ao ver que a ligação era de Carmine Noccia. As drogas de Noccia já eram. Seus clientes iriam enlouquecer e a DEA havia prendido seus homens. Disse a Fescoe que estava recebendo outra ligação e o parabenizei por sua participação na apreensão da DEA. Então atendi a outra chamada. No mesmo instante em que disse oi para Carmine Noccia, rezei aos céus para que ele não soubesse que eu estava por trás da apreensão. Se soubesse, estava ligando para me aconselhar a preparar minha mala para a última viagem que faria na vida. – Você cou sabendo sobre o nosso desafortunado encontro com a DEA? – perguntou ele. Seu tom de voz não revelava nada. – Acabei de ver na CNN. Que dureza, Carmine. – Você não teve nada a ver com isso, não é, Jack?
– Claro que não. – Eu tinha que perguntar. Houve uma pausa demorada, durante a qual quei ouvindo meu sangue bombear freneticamente. Então Noccia tornou a falar: – A federal disse que estava vigiando nosso ponto de transferência. Porra, vai ver alguém deu com a língua nos dentes e os Marzullos escutaram. Aí ligaram dando uma dica. – Ele dava sua versão para o que ocorrera. – Seja como for, não posso culpar ninguém a não ser a mim mesmo. Eu deveria ter organizado a transferência em outro local, mas aquele lugar lá é nosso e nunca cou sujo. Como era bem ao lado da autoestrada, podíamos entrar e sair depressa. E esconder a van até conseguir desmontá-la. Ou pelo menos eu pensava assim. Enm, esse problema é meu, Jack. Estou ligando para dizer que você pode car com a grana. Será que era seguro respirar? – Você quer que eu fique com os 6 milhões de dólares? – indaguei. – Você tirou a van do armazém sem incidentes, não foi? Entregou-a nas nossas mãos. Deu os nomes dos caras que a tinham roubado. Você executou a missão, portanto vou pagar. É assim que as coisas funcionam entre nós. Porra nenhuma. Aquele era um caso clássico de uma notícia boa e outra má. Noccia conava em mim. Estava dizendo que éramos como irmãos. E que havia honra entre ladrões – e entre fuzileiros navais. Os 6 milhões de dólares na conta bancária da
Private significavam que Carmine e eu éramos amigos. Eu nunca mais queria ouvir falar em Carmine Noccia na vida, mas achava que não teria essa sorte. Ele desligou como sempre fazia – de repente. Nem se despediu.
capítulo 126 LARGUEI O TELEFONE E TENTEI processar o choque da conversa com Noccia. Perguntei-me se estaria mesmo seguro. Se Mickey Fescoe conseguiria guardar segredo quanto ao meu envolvimento na apreensão da DEA. Ou se era apenas questão de tempo até os capangas de Noccia me encurralarem em um beco escuro. Quis ligar para Justine. Quis ouvir a voz dela. Contar as últimas sobre Noccia e sobre meu irmão gêmeo, atualmente detido por roubo de automóvel e suspeita de assassinato. O número de Justine era o primeiro na minha lista de discagem rápida. Escutei o telefone tocar do outro lado e imaginei a ligação sendo completada. Torci para ela estar em casa, tomando uma taça de vinho junto à piscina. Torci para ela me convidar a ir até lá. Justine atendeu no terceiro toque. – Não desligue, garota. Sério.
Justine riu. – Certo. Você me pegou. Ela disse que estava limpando a geladeira. Que era sua primeira noite livre em mais ou menos um mês e que tinha algumas coisas para fazer. – Você se importa em levar um copo de vinho até a piscina? Foi assim que eu a imaginei agora há pouco. Ela tornou a rir. – Vamos ver. Sim. Por acaso tenho uma garrafa aberta aqui. Me dê só um instante. Ouvi o tilintar de copos e os latidos de Rocky, o pit bull que ela havia recolhido das ruas. Ouvi portas de correr se abrindo e então ela falou: – Pronto. O que você manda, Jack? Comecei a falar, espantado ao ouvir o que saía da minha própria boca. Talvez o telefone tenha nos proporcionado tanto a intimidade quanto a distância de que precisávamos para finalmente conversar sobre o que eu tinha feito e por quê. – Quero que você entenda que eu sei que agi errado. Não há desculpa para o que z, sobretudo para você, mas pode acreditar em mim, Justine. Eu sinto muito. Não poderia estar mais arrependido. – Jack, pare de se culpar pela morte de Colleen – disse Justine. – Você fez o que fez, mas não a matou. Justine me disse quanto gostava de Colleen e falou que entendia meus sentimentos em relação a ela.
– Pensei que vocês tivessem terminado de vez. Mas aí vi que não. Não de verdade, ou não ainda. Fiquei magoada, Jack. Acho que qualquer um teria cado, mas agora já superei. Agradeci a ela e, quando o silêncio se arrastou por tempo demais, contei-lhe sobre Clay Harris, sobre como Tommy o matara, e disse que Tommy estava agora na prisão. – Conhecendo Tommy, eles não vão conseguir provar nada – falou Justine. – Ele vai dizer que comprou o carro para Clay, para que ele não precisasse pagar impostos sobre os bônus. Aposto que Tommy comprou mesmo o carro para ele. Não consigo imaginar Clay Harris entrando em um show room da Lexus em Beverly Hills. Simplesmente não consigo. Ele ouvia Justine expor sua opinião sobre o caso. – E Tommy também vai se livrar da acusação de assassinato. A polícia vai saber que ele matou Clay, mas nunca vai encontrar a pistola. Você não pode depor contra ele. Ele não pode depor contra você. Impasse. Dei um suspiro. – Jack, eu não estou mais zangada com você. – Que bom – falei. Estava a ponto de dizer que gostaria de passar na sua casa quando ela tornou a falar: – Olhe, tenho que ir. Preciso passear com o cachorro, trocar a areia do gato, limpar o congelador. Talvez até pinte as unhas. Você deveria dormir um pouco. Nos vemos amanhã. – Eu também tenho algumas tarefas de vida ou morte para fazer, Justine – falei. – Como
pôr uma ou duas levas de roupa na máquina. – Faz muito bem – disse ela, e rimos juntos. Desejei-lhe boa-noite. O que mais eu podia fazer?
capítulo 127 JUSTINE FOI DAR UMA CORRIDA e levou Rocky consigo. Precisava do exercício mais do que o cão. Queria expulsar toda a tensão de seu corpo e de sua mente. Meia hora depois, ela e o cachorro estavam de volta à Wetherly Drive, subindo o caminho para a sua maravilhosa casa antiga. O imóvel fora construído no m dos anos 1930 para servir de garagem para carruagens e tinha detalhes arquitetônicos incríveis. Mais do que isso, a casa irradiava uma sensação de permanência, diferente da residência moderna que ela havia comprado uns dois anos antes com Jack. Ali não havia oceano para embalar seu sono, mas havia outros sons de que ela gostava muito: crianças andando de bicicleta nas calçadas, regadores automáticos borrifando água sobre gramados bem-cuidados, risos vindos das TVs das salas de estar. Tudo isso criava uma atmosfera que lhe parecia aconchegante e segura. Na cozinha, deu comida a Nefertiti e Rocky, depois foi fechar as portas dos armários que
havia aberto quando Jack telefonara e a convencera a tomar um vinho e conversar. Por dentro, os dez pares de portas em sua cozinha eram repletos de inscrições. Canetas diferentes tinham sido usadas e mãos diferentes haviam redigido as pequenas anotações que narravam a crônica familiar dos Frank, família que ocupara aquela casa por três gerações antes de ela comprá-la. A porta para a qual ela agora olhava tinha anotações dos anos 1940: um bebê havia nascido, uma menina, Eleanor Louise Frank. Seu nome estava rodeado de estrelinhas. Um ano mais tarde, um Packard novo estava estacionado na garagem. John e Julie noivaram. Saul contraiu paralisia infantil aos 10 anos. Uma cadela deu à luz dentro de um armário. Houve um casamento no quintal dos fundos. E um primo, Roy Lloyd Frank, partiu para a guerra. Justine fechou a porta do armário. Tinha uma vida boa. Quanto a isso não restava dúvida. Tinha casa própria e um bom emprego. Sua vida era como ela queria. Nesse dia mesmo, ela havia conseguido um caso novo: uma modelo de 24 anos herdara uma fortuna do agora falecido namorado, um octogenário podre de rico. E a família do finado queria que a Private investigasse a moça. Era um serviço fácil, um caso que não exigiria horas extras. Não haveria tiroteios. Nem maosos. Ninguém seria jogado de nenhum penhasco. Ela iria aproveitar esse caso e, até ter tempo para descansar, o trabalho iria preencher seus dias de forma agradável e satisfatória.
Quando a campainha tocou, Justine moveu a cabeça com irritação em direção à porta da frente. Rocky correu até a sala, trepou na porta com as patas dianteiras e começou a ganir. Ele sabia quem estava tocando a campainha e ela também. Já passava das dez. Era um dia de semana. O homem que estava diante da sua porta era incapaz de se abrir e incapaz de sossegar. Ele era um bom chefe. Sob todos os outros aspectos, porém, era uma perda de tempo. Que droga. Seu telefone tocou. – O que foi, Jack? – disse ela ao atender. – Deixe-me entrar, Justine. Por favor. Ela desligou o telefone, foi até a sala e gritou através da porta: – Jack, vá para casa! Não quero ver você! Seu telefone tornou a tocar. Ela pressionou a tecla de atender, levou o telefone à orelha, deixou-se deslizar pela parede e sentou-se no chão. Então ouviu ele lhe dizer o que ela já sabia. – Justine, duas semanas atrás nós estávamos no caminho certo. Eu cometi um erro grave, um retrocesso do qual muito me arrependo. Mas nós estávamos reencontrando o caminho para car juntos depois de muito tempo separados. Estávamos reconstruindo com o que aprendemos, com tudo o que sabemos um sobre o outro. Não há nada que não possamos resolver. Justine, você não pode virar as costas para o amor, não para o nosso amor. Por favor, querida. Sou só eu. Me deixe entrar.
– Ai, Jack – disse ela ao telefone. Ele a amava. Jack ainda a amava. E droga, droga, droga. Ela ainda o amava também.
James Patterson
O melhor da literatura para todos os gostos e idades