Biblio "SEBO"
Franco Carmelo é um detetive excêntrico. Com idade indefinida, "provavelmente situada entre 40 e 60 anos", é apaixonado por história grega e por história medieval. Interessa-se por assassinatos apenas quando lhe sobra tempo e simultaneamente lhe falta dinheiro. Max Guerreiro é seu braço direito e o narrador das aventuras em que ambos se envolvem.
Quando é procurado por uma jovem que conta uma história inverossímil e assevera que seu chefe, diretor presidente de uma conhecida empresa, está para ser assassinado, Carmelo manda-a para casa recomendando veementemente que ela não dê asas à imaginação e esqueça o assunto. Dois dias depois o diretor aparece envenenado e a jovem torna-se a principal suspeita.
Com a vaidade ferida por ter desprezado evidências que poderiam ter evitado o crime, Carmelo lança-se à investigação e logo conclui que a polícia está indo para o lado errado. Concentra-se então nos idosos membros do conselho curador de um museu. Narrada com humor pelo assistente Max, a história vai evoluindo no sentido de mostrar que a cada novo fato que surge o número de suspeitos aumenta. Em vista disso, o detetive conclui que novas investigações irão atrapalhar cada vez mais o caso, e percebe que o criminoso jamais será descoberto por esse método. Então, mesmo sem dispor de qualquer vestígio de prova que permita incriminar o assassino, decide fazê-lo confessar o crime.
Seguindo o padrão das clássicas novelas de detetive, esta história vai colocando pistas e evidências que permitem ao leitor exercitar suas habilidades dedutivas. Franco Carmelo é uma mistura de Hercule Poirot e Nero Wolfe, com umas pitadas de Sherlok Holmes e Auguste Dupin. No final, quando o criminoso é desmascarado, o leitor percebe que todas as evidências já estavam colocadas desde as primeiras revelações, e que para identificar o culpado era apenas necessário ordená-las com método.
DALTRO CONRAD é o pseudônimo de um gaúcho de Porto Alegre que nasceu "entre o Nobel de Johannes Jensen e a bomba de Hiroshima". Leitor obcecado, desde cedo tornou-se grande apreciador de novelas policiais, nunca deixando de devorar um Conan Doyle ou um Eric Ambler no intervalo entre um Flaubert e um Dostoievski. Por preferir letras a números, desistiu da engenharia e formou-se em economia, área à qual continua se dedicando quando não está escrevendo. Há muitos anos vem produzindo contos, crônicas e novelas curtas, textos que têm circulado apenas entre os cinco ou seis leitores que compõem seu círculo íntimo de amizades. Sua primeira novela policial, Suspeitos Demais, foi escrita com a intenção de prestar "uma singela homenagem ao saudoso Rex Stout".
A primeira vez em que me encontrei com Carmelo eu estava numa enrascada. Eu era um detetive jovem e inexperiente e sem qualquer senso de autocrítica, por isso uma das salas do velho edifício que escolhi para sediar minhas atividades ostentava, na porta envidraçada, a pomposa indicação: "MAX GUERREIRO - DETETIVE PARTICULAR".
Depois de um ano naquilo eu começava a pensar que me estabelecer por conta própria não fora uma boa idéia. Sem nome e sem experiência, os raros casos que me surgiam eram, quase sempre, de alguém querendo que eu seguisse o respectivo cônjuge. Mais raramente aparecia algum idiota querendo que eu tentasse cobrar uma dívida de algum caloteiro.
As coisas iam mal, e foi por isso que não pensei muito quando a loira me ofereceu aquele trabalho. A manhã já ia terminando e eu me concentrava em decidir onde iria almoçar, quando minha secretária disse-me que uma possível cliente, que dizia ser a srta. Débora Lafarge, encontrava-se na ante-sala e solicitava uma entrevista. Dizendo-lhe que introduzisse a dama, preparei um ar atarefado e concentrei-me na leitura de um papel qualquer que agarrei em cima da mesa.
Quando ela entrou, arregalei os olhos e quase parei de respirar. Vestia um diminuto traje esverdeado, era loira e bronzeada, movimentava-se de forma felina e tinha um olhar capaz de paralisar em pleno vôo um campeão de salto em distância. Devia andar pelos 55 anos, mas aparentava muito mais. Ostentava, definitivamente, o rosto feminino mais assustador com que eu já me defrontara, e o cabelo encaracolado completava o efeito.
Sentou-se e foi despejando que queria contratar-me para localizar uma pessoa. Mostrou-me então a foto de um rapaz de 19 anos, conforme informou, loiro, musculoso e de olhos azuis. Perguntei se era filho ou sobrinho dela, e obtive como resposta um enérgico "não é da sua conta!".
Bem, segundo ela, o jovem apoio estava sumido há quatro dias, e ofereceu-me um bom dinheiro para encontrá-lo. Aceitei o caso, anotei os detalhes que me passou, que na verdade resumiam-se ao endereço de moradia do fujão, e finalmente ela se despediu, insistindo que esperava manter contatos diários comigo. Como seriam apenas contatos telefônicos, concordei. Quando saiu, nenhuma fragrância permaneceu na sala.
Não dispondo de outras pistas resolvi ir ao apartamento do rapaz no endereço que Deb me fornecera. Ele morava num desses prédios de vinte andares que têm uns oitenta apartamentos por andar, todos de quarto e sala. Bati à porta e, como ninguém atendeu, usei minhas ferramentas e entrei. A sala estava vazia, mas o quarto estava bem movimentado. O rapaz da foto estava deitado na cama ostentando uma expressão que não deixava dúvidas sobre sua condição de falecido, o que já não era nada bom, mas pior que isso eram os dois inspetores de nossa eficiente delegacia de homicídios olhando-me com aquele ar que os policiais sempre adotam quando flagram um criminoso com a mão na massa.
- Esqueceu alguma coisa? - perguntou-me um deles, enquanto o outro postava-se atrás de mim.
- Puxa! - falei - É a segunda vez esta semana que erro o apartamento. Desculpem, já vou saindo.
Não saí imediatamente, é claro, mas depois de alguns minutos, algemado e ladeado pelos dois policiais. Minhas explicações na delegacia não convenceram ninguém. Descobri então que Débora não tinha amor à verdade, pois o telefone que ela me deu era de uma loja de roupas usadas. Eu não tinha nada por escrito para provar que fora contratado para localizar o musculoso loiro que, além de tudo, tinha escondido em baixo da cama um pacote com uns 10 kg de cocaína. Disseram-me que o rapaz morrera de overdose naquela madrugada, que a mulher que eu descrevia talvez fosse Mamma Dulce, uma conhecida traficante, e que meu sorrateiro ingresso no apartamento da vítima tinha me posto numa bela encrenca.
Minha sorte foi que Carmelo, já à época um famoso detetive particular, estava investigando o caso, contratado pela família do jovem, que na verdade desaparecera de casa havia duas semanas. No meu segundo dia atrás das grades o próprio Delegado Sandroni, titular da Homicídios, recebeu-me em sua sala e me apresentou a Carmelo, cujas investigações levaram a polícia a desbaratar a quadrilha com a qual o rapaz se envolvera. A minha Débora fazia parte do bando, claro, e tudo indicava que ela queria apenas um trouxa que entrasse naquele apartamento para verificar se ele estava ocupado por mais alguém além do defunto. Estava, e ao ser libertado tive que suportar os olhares irônicos de todo o pessoal da delegacia.
Carmelo e eu saímos juntos, e ele sugeriu que tomássemos uma bebida. Ao apontar alguns dos erros que eu cometera ao engolir a história da matusalêmica loira, enfatizou que em nossa profissão a gente tem que ver muito além do que é contado pelos outros. Simpatizou comigo e acabou convidando-me para trabalhar com ele, como assistente, proposta que demorei apenas dois dias para aceitar. Desde então tornei-me seu braço direito e juntos já desvendamos dezenas de crimes.
Carmelo tem três paixões: história antiga, história medieval e assassinatos, nessa ordem. Sua coleção de obras de história antiga ocupa toda uma parede da biblioteca que mantém em casa, e nos círculos intelectuais ele é considerado um especialista nessa área. A paixão por história medieval é de foro íntimo, e só conhecida dos mais próximos. Os assassinatos não constituem realmente uma paixão, pois só se ocupa deles quando lhe sobra tempo e simultaneamente lhe falta dinheiro, mas sempre consegue resolver os crimes que investiga.
A idade de Carmelo é indefinida, e acho que é um de seus segredos mais bem guardados. Conhecendo-o há quase cinco anos arrisco-me a estimar que ele tem entre 40 e
60 anos, mas não me surpreenderia se não fosse nada disso. Não é gordo, mas o rosto é ladeado por duas rosadas bochechas e apresenta-se sempre um pouco inchado embaixo dos olhos, o que passa a impressão, em qualquer hora do dia, de uma criança de colo que acabou de acordar e ainda nem terminou de abrir os olhos.
Contratou-me como assistente para poder dedicar-se às duas primeiras paixões mesmo quando está envolvido em alguma investigação. Meu salário é satisfatório, e além disso tenho casa, comida e roupa lavada. Além de efetuar investigações de campo e interrogatórios, e assim correr o risco de ser assassinado em lugar dele, minhas atribuições compreendem o controle financeiro da agência e nada mais.
A administração da casa que ocupamos tanto para moradia como para sede da agência de investigações está a cargo de Ezequiel, um jovem negro que Carmelo adotou durante viagem de estudos que fez a Moçambique. Na época o rapaz tinha 17 anos, era mensageiro no hotel onde Carmelo se hospedara e, como este observou encantado, estava sempre lendo algum livro de história quando não executava alguma tarefa. Órfão de pai e mãe, aceitou com entusiasmo a proposta de Carmelo, e desde então tornou-se mordomo, cozinheiro, bibliotecário e interlocutor do patrão em importantes e vitais discussões sobre
história antiga. Quando tenho tempo livre, o que é muito freqüente, dou uma ajuda a Ezequiel na catalogação e arrumação das toneladas de livros que ainda não foram classificados. Nessas ocasiões ele tenta fazer com que eu me entusiasme por história grega, e eu tento iniciá-lo na arte de desvendar crimes.
Naquela quinta-feira, após o jantar, Carmelo e eu estávamos na biblioteca da casa fazendo ambos o que costumamos fazer quando não estamos ocupados com algum caso escabroso, isto é, nada de produtivo. Eu analisava em um grande mapa os contornos dos continentes, tentando descobrir o local exato em que a Atlântida teria afundado. Carmelo estava lendo uma brochura pouco volumosa, de autoria de um pensador j amaicano, com o título Pérolas Da Sabedoria Oriental, e seus freqüentes suspiros indicavam o nível das baboseiras que o autor tivera o cuidado de selecionar.
Cerca das 20 horas a campainha tocou, e estando Ezequiel ocupado na cozinha levantei-me e fui até a porta da frente. Pelo olho mágico avistei uma das mulheres mais bonitas que eu já vira em toda a minha vida. Era loira platinada, vestia um casaco de peles de uma brancura polar e ostentava um olhar capaz de derreter um monge budista. Antes mesmo de abrir a porta decidi que desejava passar uma temporada com ela em algum lugar romântico. Soltei o trinco e pensei em dizer: "Sim, claro, partimos agora mesmo para Bariloche, deixe-me apenas pegar minha escova de dentes", mas consegui conter-me.
Perguntando se ali morava o detetive Franco Carmelo, com uma voz que correspondia ao conjunto, embora um tanto hesitante, declarou, quando confirmei, que desejava falar com ele, e nem me passou pela cabeça a possibilidade de informar que aquele gênio só atendia com hora marcada. Disse-lhe então que eu era Max Guerreiro, assistente do ilustre detetive, coloquei no rosto uma expressão que sugeria que enquanto ela estivesse a meu lado nada teria a temer, e acompanhei-a até a biblioteca. Ela entrou na sala com passos firmes, olhou ao redor, decidiu que a poltrona verde-musgo era a que mais combinava com seus cabelos e apossou-se dela, fixando num indignado Carmelo um olhar que tanto poderia ser de desafio como de súplica.
Normalmente deixo os visitantes aguardando na entrada enquanto os anuncio a Carmelo, mas naquela noite não trocáramos mais que três palavras, eu estava entediado há vários dias e irritado pela indiferença que ele demonstrara quando, antes do jantar, eu sugerira que o saldo de nossa conta bancária aproximava-se muito de uma situação de alarme. Cheguei a pensar que depois do jantar iríamos discutir o assunto, mas ele preferira a leitura das pérolas orientais. Assim, a introdução da beldade em nosso escritório, sem aviso antecipado, correspondia a uma espécie de vingança de minha parte.
Ainda com o livro aberto sobre os joelhos, Carmelo lançou-me um olhar que dispensava palavras, e a seguir, para minha surpresa, colocou o marcador na página que estava lendo, fechou o livro e, plantando no rosto um sorriso mecânico, dirigiu-se à visitante.
- Pois não, senhorita...
- Garbin. Sylvia Garbin. Sou secretária executiva do sr. Abelardo Pedroso, diretor- presidente da Cia. Amberson-Pedroso
Recentemente eu ouvira falar dessa empresa. Atuava no ramo de plásticos e vinha discutindo há semanas um processo de fusão com uma congênere, num procedimento rotineiro ao qual as notícias dos jornais não davam maior destaque. Em todo caso, como cliente potencial oferecia uma perspectiva agradável, embora logo me ocorresse que uma secretária executiva não seria a figura mais adequada para representar a empresa numa consulta a Franco Carmelo. Observando-a melhor agora, constatei que ela teria entre 28 e
30 anos, mostrava um olhar inteligente, gastava boa parte de seu salário na compra de roupas e provavelmente concordaria que tivéssemos apenas dois filhos.
Com o silêncio de Carmelo ela prosseguiu, de forma ligeiramente hesitante:
- O senhor investiga casos de assassinato e preciso consultá-lo sobre isso. É tudo muito confuso, mas acho que meu chefe, o sr. Pedroso, está para ser assassinado, e acredito que ontem mesmo ele foi alvo de uma tentativa de homicídio.
A impassibilidade de Carmelo não foi afetada pela declaração da beldade, proferida em tom bastante dramático. Virando a cabeça ligeiramente em minha direção, ela lançoume um olhar desamparado, como a pedir o apoio de uma manifestação horrorizada de minha parte. Fiz um olhar de quem compreende a solidão dos que tentam arrancar alguma demonstração de contato daquele Buda impassível, ajeitei-me melhor na poltrona e, inclinando-me um pouco para a frente, deixei claro que eu estava solidário com ela e que teríamos que resolver sem mais tardar o problema que a afligia, para que depois, quando eu a acompanhasse até em casa, pudéssemos nos dedicar a assuntos mais amenos. Ela não entendeu e, virando-se abruptamente para Carmelo, suplicou:
- O senhor compreende, não sei mais a quem recorrer, e o senhor precisa me ajudar e me dizer o que deve ser feito.
- Já procurou a polícia? - falou Carmelo, lançando um rápido olhar ao livro fechado, ao que tudo indicava com a firme intenção de voltar a abri-lo nos próximos dois minutos.
- A polícia - manifestou ela em tom impaciente, e continuou metralhando. - O senhor sabe melhor do que eu que eles só agem depois do fato acontecido. Além disso, não quero causar um escândalo que poderia comprometer a imagem de nossa firma. Resolvi procurá-lo para obter orientação. Não posso contratar seus serviços, é óbvio, mas se o senhor me ajudar a convencer o sr. Pedroso de que ele corre perigo, não tenho dúvidas de que ele mesmo irá contratá-lo. O caso é que ele acha graça quando falo, e diz que tudo não passa de imaginação minha, mas eu tenho certeza...
- Senhorita Garbin, por favor. Desse jeito não chegaremos a qualquer lugar. Primeiramente, devo informá-la que eu, tanto quanto a polícia, preciso de fatos para me interessar por um caso. Pelo que entendo, a senhorita tem a impressão de que um homicídio está para ocorrer, mas o homem que vai ser assassinado não demonstra maior emoção frente a essa possibilidade. É um mau começo. Vou tomar uma cerveja, a senhorita pode me acompanhar ou pedir outra bebida.
Dizendo isso Carmelo apertou um botão na parede e logo Ezequiel materializou-se a seu lado. Nossa visitante pediu Campari, no que perdeu um ponto com Carmelo, que detesta essa bebida e, por analogia, as pessoas que a consomem. Mas tudo bem, não era com ele que ela ia casar. Pedi uma cerveja para mim e Ezequiel desapareceu.
Enquanto enchia o copo e desastradamente deixava a espuma transbordar, molhando o tampo de mármore da mesinha lateral, Carmelo sugeriu, com a voz mais suave que a irritação lhe permitia:
- Proponho que a senhorita me conte, pausadamente, que motivos tem para pensar que seu chefe está para ser assassinado.
- Bem... - disse ela suspirando, enquanto recebia o Campari das mãos de Ezequiel
- Acho que devo começar do princípio. O sr. Pedroso é um homem de mais de 65 anos, e é nosso presidente há quase 20 anos. O outro sócio principal, o sr. Amberson, faleceu no ano passado, após longa enfermidade, e sua esposa e o filho deles não manifestam maior interesse na administração da empresa. Há mais cinco sócios com participações menores, dois deles ocupando cargos em diretorias. Sou secretária do sr. Pedroso há quatro anos, e devo dizer que nunca tive um chefe melhor desde que comecei a trabalhar.
Parou para tomar dois goles do Campari, enquanto articulava as idéias e decidia como prosseguir. Carmelo já estava no segundo copo de cerveja e, pela sua expressão, parecia apenas esperar que a moça terminasse seu drinque para polidamente recomendarlhe que fosse para casa e deixasse de ler novelas policiais.
- Nossa empresa - prosseguiu a loira, na maneira que os funcionários dedicados têm de usar o pronome possessivo quando se referem à organização que os emprega ocupa uma pequena fatia do mercado específico dos artigos de plástico que produzimos. Há alguns meses surgiu uma proposta de fusão com outra empresa do ramo, o que, conforme consenso entre nós, seria bastante vantajoso para ambas as firmas. O sr. Pedroso andava muito entusiasmado com a idéia. Ele sempre foi um homem afável e expansivo, mas, de uns dias para cá, tem se mostrado muito fechado, mesmo comigo, e é fácil ver que algo o está preocupando. Na segunda-feira haverá uma reunião de diretoria, convocada com a finalidade de ultimar os procedimentos da fusão, mas isso já está tudo resolvido de forma bastante tranqüila, e não vejo razões aí para deixar o sr. Pedroso no estado de tensão em que se encontra.
Tomando mais um pequeno gole prosseguiu:
- Há alguns dias entrei na sala do sr. Pedroso quando ele estava ao telefone, e pude ouvir parte da conversa, não sei com quem ele falava pois não me solicitou que fizesse a ligação, mas ele dizia algo assim: "Na reunião da diretoria vou relatar tudo, não é coisa que se possa esconder...Vai ser doloroso, eu sei...Não tenho alternativa..." . Saí da sala, após deixar uns papéis na mesa dele, bastante impressionada com a expressão de sofrimento que ele demonstrara ao telefone.
Olhando para Carmelo percebi que um ligeiro interesse estava nascendo nos meandros de seu complexo raciocínio, já que sua garrafa de cerveja estava vazia e ele não havia tocado o botão para chamar Ezequiel. Para mim a coisa continuava parecendo a história de uma garotinha que queria impressionar os mais grandes, mas eu estava disposto a perdoá-la por tudo isso.
Largando o copo na mesinha ao lado da poltrona ela inclinou-se para a frente e prosseguiu, falando agora com mais calma mas não escondendo algum nervosismo na voz e nos gestos.
- Tudo isso passaria quase despercebido, não fosse o fato que ocorreu ontem. O sr. Pedroso freqüentemente não almoça, preferindo fazer um lanche leve no início da tarde. Normalmente ele me pede para encomendar sanduíches de carne fria acompanhados de algum suco, o que é fornecido por uma ótima lanchonete que temos no térreo do edifício onde se localizam nossos escritórios. Ontem, quando o rapaz trouxe o pedido e eu entrei na sala do sr. Pedroso com a bandeja, ele acabara de desligar o telefone e caminhava agitadamente pela sala, enquanto o sr. Nardes e o sr. Rodrigues, dois de nossos diretores, olhavam-no preocupados. Disse-me que não iria comer nada e, num gesto inesperado em pessoa tão civilizada, pegou a bandeja que eu deixara sobre a mesa e jogou-a pela janela.
Nossas dependências ficam no sexto andar, e a sala do sr. Pedroso dá para um beco entre dois prédios, por onde raramente circulam pessoas. Mesmo assim cheguei-me à janela e pude ver a bandeja com o sanduíche e o suco estatelando-se no chão. Bem próximo encontrava-se um enorme cachorro de rua, desses que freqüentam os becos em busca de restos de lixo, e ainda pude ver o animal abocanhar o sanduíche e retirar-se para um canto enquanto o devorava. Bem, sr. Carmelo, estou chegando no ponto que desejava relatar-lhe. No final da tarde, quando me retirava do trabalho, o porteiro do prédio estava comentando com outras pessoas que teria de chamar o pessoal da prefeitura, porque havia um cachorro morto no beco. Já na rua dei uma espiada, e lá estava o mesmo cachorro, cercado por uns garotos, rígido e ainda com uma espécie de baba na boca. Um dos garotos assegurava que ele tinha sido envenenado, pois dizia conhecer os sintomas. Agora me diga, sr. Carmelo, tenho ou não tenho razões para pensar que meu chefe era o alvo do veneno que havia naquele sanduíche?
Inspirando profundamente e soltando o ar com um ruído que me pareceu exagerado, Carmelo limitou-se a apertar o botão pedindo outra cerveja. Com a chegada de Ezequiel perguntou se queríamos mais bebidas, ela recusou, aparentemente porque não precisava mais de qualquer estímulo, e eu também, em solidariedade a ela. Enchendo o copo, Carmelo reclinou-se na poltrona, deu-me uma olhada indicando que na próxima vez eu deveria abrir a porta já de capa e chapéu e convidar para uma dança no outro lado da cidade qualquer mulher que estivesse à procura dele, e começou a falar.
- Senhorita Garbin, embora me pareça louvável sua preocupação com a segurança do chefe, há alguns pontos em seu relato que não resistem a uma análise mais acurada. Com relação ao nervosismo demonstrado pelo sr. Pedroso nesses últimos dias, creio que podemos facilmente atribui-lo às mudanças esperadas em virtude da fusão que está em vias de concretizar-se. Seja por isso ou por outro motivo que não conhecemos, nada sugere que ele poderia ser vítima de uma tentativa de homicídio. Em segundo lugar, supondo-se, e note bem, estou dizendo supondo-se, que o cachorro tenha realmente sido envenenado, é fácil perceber que o animal, como a senhorita salientou, andava pelas ruas virando latas de lixo, e é cabível que algum dos petiscos por ele encontrados contivesse veneno, como o que se usa para combater as ratazanas tão numerosas nesta cidade. A hipótese de que o veneno estivesse no sanduíche preparado por uma lanchonete conhecida, e levado até suas mãos por um funcionário desta lanchonete, parece-me não apenas pouco provável, mas absurda.
Ela tentou protestar mas ele interrompeu-a com um gesto, e prosseguiu sem se preocupar em esconder a irritação.
- Esqueça isso, senhorita. De assassinatos eu entendo, e posso lhe assegurar que o método do envenenamento, embora largamente utilizado, requer procedimentos bem mais sofisticados que o de utilizar um sanduíche procedente de fonte conhecida. Note bem, srta. Garbin, que, pelo que a senhorita acabou de narrar, se o referido sanduíche contivesse veneno, a principal suspeita seria a senhorita, que o recebeu diretamente das mãos do entregador da lanchonete. A não ser que se imaginasse um formidável complô, envolvendo proprietários ou funcionários da lanchonete ou eventualmente o suborno desse pessoal por parte do assassino, que assim estaria deixando pistas tão visíveis que até nossa delegacia de homicídios seria capaz de pôr-lhe as mãos em cima em poucas horas. Não, senhorita, nada aqui conduz à hipótese de uma tentativa de assassinato. Felicito-a por não ter procurado a polícia, pois eles seriam menos educados do que estou sendo. Aconselho-a portanto a ir para casa descansar, e na próxima semana, após acertada a fusão das empresas, a senhorita na certa vai estar rindo de suas atuais preocupações.
- Bem... - começou ela, um tanto insegura - o senhor acha então que o sanduíche não podia estar envenenado?
- Podia mas não estava, senhorita Garbin, conforme acho que acabei de explicar. Se o infeliz animal tivesse ingerido apenas aquele sanduíche seria outra história. Insisto que a senhorita deixou-se levar pela imaginação e por um louvável apego a seu chefe, mas espero tê-la tranqüilizado com relação a seus maiores temores.
- Bem, sr. Carmelo, tenho que admitir que o senhor me deixou menos apreensiva, mas se surgir alguma outra coisa estranha eu poderia procurá-lo? O senhor entende, eu não tenho em quem confiar e...
- O sr. Guerreiro lhe dará nosso telefone, senhorita. Sinta-se livre para nos contatar. E agora devo dar-lhe boa-noite.
Ela despediu-se relutante e Carmelo pegou o livro que estivera lendo e dirigiu-se às escadas que conduzem aos quartos. Aparentemente ele não queria se arriscar a ter que ouvir outra história fantástica naquela noite. Chamei um táxi de um ponto próximo e depois acompanhei Sylvia até a calçada. Enquanto aguardávamos disse-lhe que esperava que tudo desse certo, e que logo poderíamos rir juntos das atuais preocupações dela, de preferência sentados à mesa de um restaurante romântico, mas ela pareceu não me entender e, agradecendo a gentileza, entrou no carro enquanto eu segurava a porta. Desejei-lhe uma boa-noite, entrei na casa, tranquei a porta e subi para meu quarto, pensando que era uma pena que o chefe dela não tivesse sido assassinado de verdade.
O dia seguinte, sexta-feira, mostrou-se tão monótono quanto todos os dias das últimas três semanas. Revisei a contabilidade do escritório, apenas para confirmar a penúria que se avizinhava, mas não toquei no assunto com Carmelo. Se ele quisesse deixar de pagar meu salário e o de Ezequiel, e mendigar comida com algum parente, isso era problema dele. Lancei uma rápida olhada nos jornais e certifiquei-me de que tudo andava calmo em nosso país, então telefonei para minha namorada do momento e combinei um programa para a noite.
Depois do almoço perambulei pela biblioteca e fiquei observando Carmelo e Ezequiel tratando um lote de livros velhos com o mesmo cuidado que teriam com crianças prematuras em uma UTI neonatal. Recebi dois telefonemas, um do vendedor de livros usados predileto de Carmelo, que afirmava ter novidades na estante de história, e outro de Tito Marroni informando que havia terminado um serviço e estava disponível se precisássemos dele. Tito é o melhor investigador independente que existe no país e talvez em todo o hemisfério sul. Quem não o conhece pode pensar que ele é um vendedor ambulante de frutas de estação, mas quando se trata de seguir alguém sem ser percebido ou de arrancar informações de funcionários menos graduados mostra-se imbatível. Só quando ele está severamente ocupado Carmelo requisita os serviços de Erno Costanera ou Américo Veloso, dois dos melhores sabujos disponíveis no mercado.
Após uma noitada agradável e um período normal de sono, desci para o desjejum na cozinha. Eram mais de dez horas e Carmelo já havia saído a garimpar livros raros, como costumava fazer nas manhãs de sábado. Enquanto saboreava as panquecas recheadas com mel e nozes moídas que Ezequiel preparara, comecei a abrir os jornais matutinos. O primeiro que peguei apresentava com destaque a manchete: MORTE DE EMPRESÁRIO MOBILIZA A POLÍCIA.
A notícia dizia que às 20h40 do dia anterior o empresário Abelardo Pedroso, diretor- presidente da conhecida firma Amberson-Pedroso, havia sido encontrado morto em seu escritório, situado em imponente edifício da Avenida Principal. Quem encontrara o corpo fora uma das faxineiras da noite, pois os demais funcionários haviam se retirado no horário habitual, às 17h30, e outros dois diretores que haviam deixado os escritórios mais tarde haviam saído sem passar pela sala do presidente. Os primeiros exames realizados pelos médicos da polícia indicavam morte por envenenamento com cianeto. A hipótese de suicídio fora imediatamente descartada pela polícia, e o veículo do veneno fora uma garrafa de água mineral da qual a vítima bebera um copo. O Delegado Sandroni comandava pessoalmente as investigações, e todos os funcionários do escritório estavam sendo interrogados em suas residências desde a noite anterior. A nota prosseguia com informações pessoais sobre Abelardo Pedroso, que completaria 67 anos em breve e deixava viúva a sra. Albertina Barreto Pedroso, e sobre a empresa que ele comandava. Mencionava ainda as atividades do sr. Pedroso como patrono das artes, destacando sua posição como presidente do conselho curador de nosso museu de arte moderna. Os outros jornais nada acrescentavam.
Terminei a segunda xícara de café e depois de pensar por uns momentos telefonei para Evandro Rezende, da Folha da Noite. Mantemos com Evandro um pacto voltado para a obtenção de benefícios mútuos. Sempre que possível, passamos-lhe um furo de reportagem e a Folha sai na frente dos outros jornais em muitos casos em que Carmelo trabalha. Quando precisamos de informações não-oficiais, recorremos a Evandro.
Fiz a ligação e tive que aguardar menos de dois minutos até ele atender. A conversa foi franca, ele tinha sobre a mesa a pasta de Abelardo Pedroso vinda dos arquivos da Folha, estava com dois repórteres em campo e não tinha nada a me dizer que eu já não tivesse lido nos jornais. Queria saber a razão de meu interesse e eu informei que era uma questão de hábito, ele afirmou que era um hábito saudável e que, se dessa prática resultasse algum conhecimento, ele não via razão nenhuma para que eu não o compartilhasse com ele. E assim nos despedimos com juras de amor eterno, embora eu tivesse deixado de mencionar a visita que Sylvia Garbin fizera a Carmelo.
Quando desliguei, Carmelo já estava em casa. Encontrei-o no porão dando instruções detalhadas a Ezequiel sobre a maneira de preparar para a reconstituição o livro caindo aos pedaços que acabara de comprar. Respondeu ao meu bom-dia com um resmungo e, conhecendo-o, percebi logo que o jornal que eu trazia dobrado o deixara alerta. Assim, resolvi falar logo.
- Quando o senhor subir daqui a pouco, aposto meu salário como o Delegado Sandroni estará em sua sala esperando e me lançando olhares mortíferos enquanto mastiga aquelas pastilhas de hortelã. Talvez eu até esteja algemado e sob a mira da arma do inspetor Theo Theobaldo. Sei que não é uma perspectiva animadora para um sábado de manhã, mas é o que posso deduzir da leitura dos jornais de hoje.
- A loira - falou ele.
- Sim. Sylvia Garbin. O chefe dela apareceu morto ontem à noite, em sua sala. Envenenado com cianeto. O remédio estava em uma garrafa de água mineral que ele imprudentemente usou para mitigar a sede. Sandroni mandou interrogar todos os funcionários do escritório, e passaram nisso a noite inteira, pelo que sei. Aposto outro mês de salário como a senhorita Garbin contou onde esteve na quinta-feira à noite.
- E daí? Ela esteve aqui com uma história fantástica, mandei-a para casa dormir. Não é minha cliente, e o que ela nos contou não constitui informação que devesse ser levada às autoridades. Puro delírio.
- Sei. O outro que pensava assim está morto. A conversa com Sandroni não vai ser agradável. Posso barrá-lo na porta, ou dizer que o senhor foi visitar uma tia que não vê há muito tempo.
- Sandroni não me preocupa. A história da senhorita Garbin tinha afinal algum fundamento que eu deixei escapar, mas o caso do cachorro foi demais, Max! Bem, veremos isso depois. Suba e veja como agir se Sandroni aparecer.
Sentei-me à mesa e comecei a preparar minha história. O Delegado Sandroni era um policial competente e dedicado, e sua posição no comando da delegacia de homicídios era devida a seus reconhecidos méritos profissionais. Destaco esse ponto porque outras autoridades policiais, como o Chefe de Polícia Venâncio, ocupavam seus cargos por indicação de políticos amigos, e manifestavam um exagerado interesse nas notícias que os jornais publicariam sobre os resultados de investigações em andamento, principalmente quando se tratava de casos que mobilizassem a opinião pública. Sandroni não pertencia a esse time, ele era o sabujo que queria deslindar cada trama e colocar nas mãos do promotor a quantidade de provas que asseguraria a condenação do acusado. No entanto, cada vez que um caso emocionava o público, a pressão da imprensa exigindo soluções rápidas sensibilizava os políticos, estes pressionavam o Chefe Venâncio e este, por sua vez, fazia Sandroni passar por sucessivos ataques de fígado.
O relacionamento de Carmelo com o Delegado Sandroni era irregular. Havia momentos de colaboração e de respeito mútuo, mas houve ocasiões em que cheguei a temer que Carmelo e eu fôssemos algemados e arrastados para a delegacia de homicídios. As acaloradas discussões travadas entre os dois em nossa sala apresentavam quase sempre o mesmo padrão: um assassinato ganhava manchetes nos jornais, a polícia seguia dezenas de pistas, prendia e soltava diariamente dúzias de suspeitos, Carmelo era contratado por familiares ou associados da vítima, Sandroni acusava Carmelo de esconder informações relevantes, Carmelo irritava-se e o resto pode-se imaginar. Está claro que no final Carmelo indicava o ou os assassinos, Sandroni efetuava a prisão e no dia seguinte todos os jornais enalteciam as autoridades e estampavam fotos dos guardiões da segurança pública. Depois disso, Sandroni sempre achava um tempinho para visitar Carmelo e, doce como um gatinho angorá, deliciava-se com nosso conhaque e comentava aspectos da investigação bem sucedida. Mas isso só acontecia depois de o caso ser encerrado, pois durante seu desenvolvimento o clima predominante era de desconfiança.
Alonguei-me nesses precedentes para justificar minha preocupação com a iminente visita do delegado. Parecia-me evidente que, no interrogatório a que fora submetida, Sylvia teria sido forçada a mencionar até a cor da gravata que eu estava usando na noite de quintafeira, e não era difícil imaginar o que estaria maquinando nesse momento a cabeça dura de Sandroni. Torci para ele não aparecer antes que Carmelo terminasse de bafejar seus preciosos livros, porque a opinião do delegado a meu respeito é coisa que a decência me impede de escrever, e se ele me apertasse com perguntas a respeito de nossa entrevista com Sylvia eu não saberia até onde poderia me abrir, já que Carmelo não me dera instruções a respeito. Quando fico evasivo, Sandroni joga no lixo a pouca paciência que ainda lhe resta, e nessas ocasiões torna-se extremamente autoritário e ofensivo, o que deixa profundamente magoado um cidadão respeitador da lei como eu.
Faltavam dez minutos para as onze quando a campainha da rua tocou. Preparei meu mais estudado ar de surpresa, reforçado por uma expressão de seriedade e de preocupação com os constantes dissabores de nossa delegacia de homicídios e do Delegado Sandroni em particular, e dirigi-me à porta da rua. Mas quem avistei através do olho mágico não foi um policial bufando. Era Sylvia Garbin, bem arrumada como devia estar sempre, mas com cara de quem passara a noite em claro e apenas retocara a maquiagem antes de sair pelo mundo em busca de ajuda.
Abri a porta e ela foi logo despejando:
- Eu sabia, eu sabia, não lhes disse? E agora, o que o senhor Carmelo tem para me dizer? A polícia passou a noite me interrogando, minhas digitais estão na garrafa de água e eles querem saber onde consegui o veneno. Nem sei como não me mantiveram presa.
- Calma, calma - falei, fazendo um ar de quem sabe de tudo e que moverá céus e terra para livrá-la daquela triste suspeita. - Sente-se, o sr. Carmelo logo estará aqui. Já tomou seu desjejum?
- Não posso comer nada, estou em pânico. O sr. Carmelo precisa me ajudar, mas ele mesmo falou que eu seria a principal suspeita. E tudo porque ele não acreditou em mim! O que mais eu poderia ter feito? O sr. Pedroso também pensou que eu estava vendo coisas, e agora ele está morto, envenenado!
Fui à cozinha e trouxe um copo d'água para ela. Enquanto bebia em pequenos goles ela continuava queixando-se de Carmelo, do sr. Pedroso, da polícia e da coisa absurda que era a vida.
Com a chegada de Carmelo a ladainha ameaçava continuar, mas ele interrompeu-a energicamente.
- Minha jovem, devo lembrá-la que a senhorita não é minha cliente. Conversamos há dois dias sobre suspeitas que a senhorita vinha alimentando, mas nada do que foi dito conduzia à possibilidade de um assassinato. Bem, o crime aconteceu menos de 24 horas após nossa conversa, e agora não tem sentido ficarmos nos recriminando. Os fatos hoje são outros. Pergunto-lhe, quais são suas intenções agora? Se veio aqui apenas para provar que eu estava errado, perdeu seu tempo. Provavelmente receberei logo a visita de alguma autoridade da delegacia de homicídios, e apenas confirmarei o teor de nossa recente conversa. Deixarei claro que não estive e não estou envolvido no caso, o que é a mais pura verdade.
- Senhor Carmelo, sei que pareço histérica. Mas quero contratá-lo para descobrir o assassino. Se isso ficar a cargo da polícia vão acabar me prendendo. Tenho algumas economias e acho que posso suportar seus honorários. O senhor disse que eu seria a principal suspeita, e é exatamente isso que está ocorrendo. Com os outros funcionários eles falaram poucos minutos, enquanto eu fui interrogada por mais de seis horas. O senhor tem que me ajudar, senhor Carmelo!
- Senhorita Garbin, se eu for contratado para descobrir o assassino, vou descobrilo. Entendo que deseja contratar meus serviços. Não estou dizendo que aceito. Antes responda-me: envenenou o sr. Abelardo Pedroso?
- O senhor também, senhor Carmelo? Todos estão pensando...
- Fiz-lhe uma pergunta simples. Repito-a, complementando-a. A senhorita envenenou, ajudou a envenenar ou sabe quem envenenou o sr. Abelardo Pedroso?
- Claro que não, senhor Carmelo, para as três perguntas. Quero contratá-lo para descobrir o assassino, como já falei.
Normalmente Carmelo leva bastante tempo para decidir aceitar um caso. Sendo um gênio, ele gosta de se fazer de difícil, e não posso deixar de pensar que a situação ideal para ele é aquela em que um bando de clientes em potencial passa a implorar a dádiva de seus serviços, embora em vista dos honorários cobrados a expressão dádiva não se mostre a mais adequada.
No presente caso, acho que o que o motivou a aceitar prontamente a cliente foi mais uma questão de amor próprio do que de honorários, pois sua vaidade devia estar berrando e exigindo que ele resolvesse um assassinato que, por preguiça mental ou desleixo, ele não conseguira evitar. Assim, olhando para o relógio da parede e constatando que já passavam oito minutos das onze, comandou, numa inusitada explosão de energia:
- Max. Datilografar em duas vias. Data de hoje. Eu, Sylvia Garbin, declaro que estou contratando Franco Carmelo para investigar o assassinato de Abelardo Pedroso. Fica acertado que se, em qualquer momento, ficar comprovado que eu administrei veneno ao sr. Pedroso, ou que participei de alguma forma do crime, ou que tenho conhecimento de quem o praticou e estou omitindo esse fato das autoridades, este contrato torna-se nulo. Os honorários referentes aos serviços ora contratados serão estabelecidos ao término das investigações.
Ao terminar de datilografar a carta passei o original a Sylvia e a cópia carbono para Carmelo, e quando ambos acabavam de assinar as duas vias a campainha da porta tocou. Fui espiar apenas para confirmar que era Sandroni, que mostrava ar de poucos amigos e vinha acompanhado do inspetor Theo Theobaldo. Voltei à sala enquanto a campainha tornava a soar impaciente e disse a Carmelo:
- É o nosso admirador. Trouxe a cavalaria, e tem ar de quem pretende nos arrastar para a delegacia para um interrogatório minucioso.
- Traga-o - disse Carmelo.
Sem pressa, embora a campainha voltasse a soar pela terceira vez, tirei o casaco de Sylvia que estava sobre uma poltrona, pendurei-o no cabide e fui abrir a porta. Eu ia providenciar uma saudação efusiva a Sandroni e Theobaldo, daquelas que a gente faz para amigos queridos que não são vistos há muito tempo, mas ele foi logo latindo:
- Quero falar com ela!
- Ela? - disse eu, surpreso. - Correção. O sr. Carmelo é ele, masculino. Vou ver se ele...
Não terminei a frase, pois Sandroni passou por mim quase me atropelando e sugerindo entre dentes que eu deveria trabalhar num circo e vestir roupas mais adequadas. Theobaldo também entrou, fechei a porta e observei que havia dois carros da polícia na rua. Quando voltei à sala Sandroni já estava sentado e Theobaldo postara-se em pé ao lado da poltrona ocupada por Sylvia. Sentei-me à minha mesa e preparei-me para o espetáculo.
- Delegado Sandroni - estava dizendo Carmelo - é sempre um prazer receber sua visita. Estava ultimando acertos com minha cliente, mas isso pode esperar.
- Sua cliente uma ova. A srta. Garbin é nossa principal testemunha no assassinato do sr. Pedroso. Conheço bem seus truques, senhor Carmelo, mas admito que o senhor nunca foi suspeito de obstruir a justiça. Agora, a srta. Garbin declara que esteve conversando com o senhor na quinta-feira, informando-o sobre evidências de um crime que iria acontecer e que já poderia ter acontecido. Ela declara também que o senhor ignorou tais evidências e desprezou o assunto. Ela manifestou diversas vezes seu ressentimento. E agora o senhor vem me dizer que ela é sua cliente?
- Max, a carta.
- Besteira - disse Sandroni lendo a carta e jogando-a de volta à minha mesa. Posso saber, srta. Garbin, o que a levou a contratar o homem que ignorou seus apelos feitos há dois dias?
- Eu respondo - disse Carmelo. - A srta. Garbin chegou aqui na quinta-feira com uma história inverossímil, fundamentada em impressões sobre a tensão de seu chefe nos últimos dias e na morte de um cachorro de rua por suposto envenenamento. Se ela fosse à sua delegacia com essa história o senhor a teria mandado para o manicômio. Eu fui mais gentil e mandei-a para casa recomendando que esquecesse o assunto. Agora ela percebe que pode se tornar suspeita de assassinato, e solicitou meus serviços para descobrir o criminoso, o que aceitei. Isso é tudo.
- Theo, leve a srta. Garbin para outra sala e fique lá com ela - falou Sandroni. Olhei para Carmelo e ele deu de ombros. Conduzi Theobaldo e a moça para a biblioteca, cujas paredes são à prova de som, fechei a porta e voltei para minha mesa. Sandroni pegara um tablete de hortelã e olhava-o pensativo, como que decidindo se começaria a mastigá-lo enquanto esbravejava com Carmelo. Acabou desistindo, devolveu-o ao bolso do casaco, olhou para Carmelo e trovejou:
- O senhor me surpreende! Não vou falar de ocultação de evidências, concordo que a história da moça era fraca. Mas aceitá-la como cliente? Não lhe ocorre que ela pode ter planejado tudo, usando a visita que lhe fez como uma espécie de álibi? Quer maneira melhor de livrar-se de suspeitas? Era o que eu faria se quisesse matar alguém. Primeiro, procuro o famoso detetive Franco Carmelo com uma história difícil de engolir. Depois enveneno meu chefe, e alego para todo mundo que eu tentara evitar a tragédia expondo minhas suspeitas. Ora, senhor Carmelo! O senhor pode ser tudo, menos ingênuo.
- Fui contratado para investigar um homicídio, Delegado Sandroni. Ainda não comecei a trabalhar. Se no decurso de minhas investigações surgirem fatos relevantes, o senhor pode crer que será o primeiro a tomar conhecimento deles. Se minhas investigações indicarem a culpabilidade de minha cliente, ela lhe será entregue juntamente com as provas que eu houver acumulado. No momento, tenho algumas perguntas. Podemos assumir como certo que o cachorro morreu envenenado?
- Ao que tudo indica, sim - falou Sandroni, repentinamente domesticado. - A carcaça do animal deve estar agora enterrada no lixo, impossível de encontrar, mas os depoimentos do porteiro e de outras pessoas que o viram são categóricos. Não havia ferimentos externos, e o animal apresentava-se rígido ainda antes do anoitecer. Sintomas típicos de envenenamento. Claro, não podemos assegurar que o veneno estivesse no sanduíche desprezado pelo sr. Pedroso.
- E a água mineral?
- Cianeto, em quantidade suficiente para matar três homens saudáveis. Foi adicionado ao conteúdo da garrafa, que estava na geladeira da copa do escritório, de onde foi retirada e aberta pela srta. Garbin. Isso ela admite. Havia impressões digitais dela e do sr. Pedroso na garrafa, além de outras menos nítidas que podem ser de um bom número de pessoas.
- Algum outro suspeito?
- Poucas pessoas tinham acesso à geladeira. Havia várias garrafas de água mineral lá, todas idênticas à que continha veneno. Examinamos todas, e contêm apenas água mineral. O veneno deve ter sido introduzido no percurso entre a geladeira e a sala do sr. Pedroso, e quem foi buscar a água e depositou a garrafa na mesa do presidente foi a srta. Garbin. Isso pouco depois das 17 horas. Ela saiu às 17h30, e não sabe dizer se o sr. Pedroso bebera a água antes disso. Segundo ela mesma, ninguém entrou na sala entre o momento em que ela entregou a garrafa e a hora em que saiu. Antes de sair ela abriu a porta e desejou um bom fim de semana ao chefe, que, segundo ela, continuava vivo e alerta. De acordo com o legista, a morte ocorreu depois das 17 horas e antes das 18h30. O corpo foi encontrado por uma faxineira cerca das 20h40.
- Fiuuu - fez Carmelo. - E por que não detiveram a srta. Garbin depois do interrogatório?
- Queríamos ver o que ela faria. Foi seguida desde que deixou a delegacia, por volta das 10 horas. Passou em casa, trocou de roupa e veio diretamente para cá. E agora, senhor Carmelo, quero saber tudo o que ela lhe falou na quinta-feira e hoje também. Quero saber o que o senhor pensa a respeito do caso e como pretende conduzir suas investigações. Hoje é sábado, os jornais apenas noticiaram o crime. Amanhã estarão ocupados com as habituais leviandades dos domingos. Mas na segunda-feira começarão a cobrar soluções, e se até a noite de terça-feira eu não encontrar ninguém a quem possa acusar com base em evidências irrefutáveis, vou providenciar o indiciamento de sua cliente. Aliás, estou pensando em mantê-la sob custódia a partir desse momento.
Quase soltei uma gargalhada, mas consegui conter-me e tive um pequeno ataque de tosse. Sandroni lançou-me um olhar furioso mas não falou nada, provavelmente por estar ocupado tentando interpretar a reação de Carmelo. Eu começava a me divertir. Está certo que o delegado devia ter passado a noite sem dormir, e provavelmente já recebera dúzias de telefonemas de autoridades exigindo uma prisão, e de jornalistas perguntando quem era o assassino. Era compreensível seu estado de espírito depois da absoluta falta de resultados do esforço desenvolvido até o raiar do sol. Mas ameaçar Carmelo com a prisão de nossa cliente era uma infantilidade imperdoável. Acomodei-me melhor em minha cadeira e preparei-me para assistir a mais uma das memoráveis discussões entre os dois homens mais cabeçudos que eu conhecia, mas fui frustrado pela reação diplomática de Carmelo.
- Delegado Sandroni - falou ele em sua voz mais amistosa - quem o senhor vai indiciar ou prender ou manter sob custódia não é da minha conta. No que se refere à minha cliente, é certo que eu gostaria de conversar com ela e receber indicações que me permitam definir uma linha de investigação, mas não pretendo interrogá-la, pois o senhor e sua eficiente equipe passaram seis horas nesse mister e pelo que noto não conseguiram nada de concreto. Se o senhor me fornecer uma lista das pessoas que trabalham na empresa e outras indiretamente envolvidas, bem como os resultados dos interrogatórios levados a efeito até agora, minha cliente passa a ser desnecessária. Pode levá-la. Se o senhor permitir, Max irá acompanhá-los à delegacia, conversar com seu pessoal e trazer-me as informações que julgar pertinentes, e poderíamos, o senhor e eu, voltar a trocar idéias no final da tarde.
Silenciosamente aplaudi Carmelo. Ele fugira do confronto e oferecera ajuda a Sandroni, uma ajuda indefinível, note-se, mas para quem está prestes a afogar-se, até um palito de fósforos passa a ser bem-vindo.
Sandroni permaneceu olhando para Carmelo em silêncio, com a boca aberta e com o ar de um jacaré que estava prestes a abocanhar uma presa e constata que ela não mais se encontra ao alcance de suas mandíbulas. Mas o homem não era tolo. Batendo com a mão no joelho, trovejou:
- Ao diabo com a custódia! A moça fica aqui. Guerreiro, chame Theobaldo e pegue seu casaco. Senhor Carmelo, voltarei a esta casa às 18 horas e trocaremos impressões. Agora, devo adverti-lo que a pressão para que haja um indiciamento vai tornarse insuportável a partir de segunda-feira, e nossa única candidata até o momento é sua cliente.
Carmelo concordou com um aceno de cabeça. Eu perderia a feijoada que Ezequiel estava preparando para o almoço, mas achei inadequado manifestar meu protesto naquele momento. Levantei-me e abri a porta da sala ao lado. Theobaldo estava em pé, encostado à parede ao lado da janela, limpando as unhas, e Sylvia permanecia sentada muito ereta numa das cadeiras de espaldar alto. Pelo jeito eles não tinham passado o tempo trocando confidencias.
- Crianças, vamos! - falei, tentando parecer um chefe de escoteiros. - A senhorita Garbin continuará sua conversa com o senhor Carmelo, e Theobaldo e o delegado Sandroni irão comigo à delegacia. Mexam-se!
Theobaldo deitou-me um olhar inexpressivo e saiu da sala atrás de Sylvia. Sandroni já estava dirigindo-se à porta da rua e Theobaldo seguiu-o. Olhei para Carmelo, mas ele apenas acenou-me com a cabeça e voltou-se para Sylvia, indicando-lhe uma cadeira. Peguei meu chapéu e o casaco e segui os homens da lei.
No caminho até a delegacia de homicídios Sandroni manteve-se em silêncio, e não seria eu que iria perturbar a concentração dele. Aproveitei para pensar numa estratégia e decidir que aspectos das investigações da polícia seriam suficientemente relevantes para Carmelo. Conhecendo-o, no entanto, eu sabia que teria que levar todas as informações que estivessem disponíveis, e depois ele pinçaria o que julgasse relevante. Assim, minha maior preocupação passou a ser com a qualidade do sanduíche que eu comeria na hora do almoço.
Era quase meio-dia quando chegamos à delegacia. Fiquei examinando papéis na sala de Sandroni até as 16 horas. Nesse período ele recebeu telefonemas do Chefe Venâncio, do promotor público, do assistente do promotor e de uma dúzia de jornalistas, e após cada ligação seu humor tornava-se cada vez mais negro. Enquanto eu examinava a papelada ele ordenou que trouxessem sanduíches, comeu o dele aparentemente sem sentir qualquer gosto e eu comi o meu sentindo perfeitamente o gosto, o que não foi uma experiência das mais agradáveis.
Por volta das 15 horas o Chefe Venâncio entrou na sala, olhou-me como se eu fosse um rato e interrogou Sandroni com o olhar.
- Carmelo está investigando o caso - falou Sandroni, como quem passa uma informação óbvia. - Foi contratado pela srta. Garbin. Considerei útil trocarmos informações, por isso Guerreiro veio conversar comigo.
- E que informações Carmelo pode ter? - falou Venâncio, dirigindo-se a mim com voz irada. - Seu chefe é muito vivo, Guerreiro, mas se ele está pensando em humilhar a polícia com um de seus truques, diga-lhe para não se cansar muito. Este caso está praticamente resolvido.
Era uma situação delicada. O procedimento de Sandroni dando-me acesso aos relatórios não seria considerado muito regular, sob a ótica da polícia. Justificava-se, no entanto, se enquadrado num esquema de cooperação voltado para o esclarecimento de aspectos que a polícia não conhecia. Sandroni sabia que não tinha um suspeito a quem acusar, apesar das evidências que incriminavam Sylvia. Ele era um bom policial, interrogara-a por seis horas e não estava convencido da culpabilidade dela, por isso concordara prontamente com o oferecimento de Carmelo. Se aceita a afirmação de Venâncio, a moça estaria trancafiada a essas horas e eu não teria nada para fazer ali. Optei então por uma saída diplomática.
- O senhor Carmelo está, no momento, conversando com a srta. Garbin, que o contratou para descobrir o assassino. Minha incumbência consiste em levar para o sr. Carmelo as evidências recolhidas pela polícia, e se isso o convencer que nossa cliente pode ser culpada, o contrato entre eles tornar-se-á imediatamente nulo e ele sairá do caso.
Com ar de quem não estava nem um pouco convencido das boas intenções de Carmelo, Venâncio consultou Sandroni com os olhos e preparava-se para fazer um sermão, quando Sandroni ordenou:
- Max, - disse-me, usando surpreendentemente meu prenome - vá ao banheiro e não se incomode em demorar bastante por lá.
Juntei toda minha dignidade e saí da sala. Passei pelo cubículo de Theobaldo, disselhe que Venâncio tinha resolvido o caso e perguntei se ele tinha um baralho de cartas. Ele não respondeu e continuou ocupado com a papelada em cima de sua mesa, então saí para o corredor, espreguicei-me e acendi um cigarro. Em poucos minutos Venâncio passou ventando por mim, nem se despediu, e senti-me autorizado a voltar à sala de Sandroni.
O humor dele não havia melhorado depois da breve entrevista com Venâncio. Olhou-me como se eu fosse culpado de todos seus males, ameaçou dizer alguma coisa, desistiu e voltou a ler um dos relatórios da pilha que tinha à sua frente. Sentei-me e continuei examinando os depoimentos, esforçando-me por memorizar todos os detalhes, pois Carmelo sempre exige um relato completo.
Eram 16 horas quando decidi que nada mais tinha a fazer na delegacia. Carmelo provavelmente estaria discutindo com Ezequiel algum mistério que encontrara na morte de Aristófanes, mas como Sandroni prometera visitá-lo no fim da tarde, eu seria obrigado a interrompê-lo. Despedi-me de Sandroni, que grunhiu qualquer coisa que não entendi, achei um táxi e fui para casa.
Ezequiel informou-me que a senhorita Garbin já se havia retirado e que Carmelo estava em seu gabinete privado, onde era proibido falar de qualquer coisa que não fosse história. Avisou-me também que guardara uma porção de feijoada, mas que esse prato requentado perde muito de suas qualidades culinárias. Disse-lhe que um prato preparado por ele, mesmo se requentado após dois dias, era melhor que a comida de qualquer dos restaurantes mais finos da cidade, e ele quase chorou.
Peguei um suco de laranja e dirigi-me à minha mesa no escritório para organizar as idéias antes do relato a Carmelo. O quadro estava bastante claro agora, sem que com isso fosse possível eliminar as suspeitas que recaíam sobre nossa cliente.
Os depoimentos e relatórios que Sandroni me mostrara indicavam que a sexta-feira havia transcorrido normalmente na sede administrativa da Amberson-Pedroso, localizada na Av. Principal, e onde ocorrera o crime. Trabalhavam nesses escritórios 32 funcionários e quatro diretores. Além da presidência, ocupada pelo sr. Pedroso, as diretorias de administração e de finanças estavam entregues a dois sócios da firma, respectivamente os srs. Augusto Nardes e Dalton Rodrigues. Ambos com mais de 60 anos, haviam construído sua vida profissional em torno da empresa, da mesma forma que o sr. Pedroso. A outra diretoria, a de comercialização, estava a cargo de um executivo de 45 anos, sr. Carlos Villanova, contratado há cerca de seis anos.
No dia do crime todos os funcionários haviam se retirado às 17h30, salvo o gerentegeral do escritório e o supervisor de pessoal. Este último tinha a incumbência diária de certificar-se de que nenhum retardatário continuava presente antes de ele sair e passar a chave na porta. Na sexta-feira ele tomara essa providência poucos minutos depois das
17h30, sendo acompanhado na saída pelo gerente-geral, com quem se dirigira a um bar das proximidades onde ambos juntaram-se a um pequeno grupo de funcionários da empresa, do qual fazia parte a srta. Garbin, tendo todos lá permanecido por cerca de uma hora e meia.
Apenas os diretores Nardes e Rodrigues, além do sr. Pedroso, tinham permanecido no escritório além do encerramento do expediente, conforme depoimentos de ambos e do supervisor de pessoal. Carlos Villanova havia se retirado mais cedo para consultar seu oftalmologista, de cujo consultório saíra em torno das 17h40, tendo então tomado um táxi e ido imediatamente para casa.
Nardes estivera na sala de Rodrigues desde as 17hl5, discutindo alguns aspectos que seriam levados à reunião da diretoria marcada para a segunda-feira, e ambos retiraramse juntos por volta das 18h30. As salas dos dois eram contíguas e afastadas da do presidente. Não sabiam que o sr. Pedroso ainda se encontrava lá, e nem procuraram verificar, pois não tinham qualquer motivo para falar com ele. As luzes de todas as salas do escritório costumam permanecer acesas até que as faxineiras terminem seu serviço. Quando elas se retiram a supervisora do andar incumbe-se de apagar as lâmpadas e de trancar a porta de entrada.
A funcionária da recepção mantém controle escrito do trânsito de visitantes, e assegurara que na sexta-feira nenhuma pessoa estranha à empresa havia permanecido no escritório após o encerramento do expediente. Ela confirmara que o sr. Villanova havia se retirado antes das 17 horas e que não retornara até as 17h30, e achava que, àquela hora, apenas os três diretores encontravam-se em suas salas, já que o supervisor de pessoal e o gerente-geral estavam conversando na recepção já prontos para sair.
O depoimento prestado por Sylvia Garbin continha, em essência, as informações que Sandroni já nos havia passado. Segundo o relatório preliminar do legista, o veneno utilizado é de ação imediata e teria sido ingerido pela vítima entre as 17h30 e as 18h30, mais provavelmente em torno das 18 horas. Isso não inocentava nossa cliente, e mesmo aceitando-se a palavra dela de que o sr. Pedroso continuava vivo às 17h30, hora em que ela se retirou, apenas indicava que ele ainda não teria bebido a água que ela lhe servira minutos antes.
O pessoal da Homicídios fizera um bom trabalho durante a noite, e continuava checando álibis e verificando depoimentos, devendo ficar nisso ao longo do fim de semana. Os dados disponíveis até o momento abriam apenas duas possibilidades a favor de nossa cliente, no que se refere à oportunidade para introduzir o veneno na garrafa de água mineral. A primeira apontava para um dos diretores que haviam permanecido no escritório, que poderia ter entrado na sala do presidente e colocado o veneno na garrafa num momento de distração do sr. Pedroso. Essa hipótese era contestada pelos depoimentos de ambos, que asseguravam ter permanecido juntos desde as 17hl5, tendo-se retirado pouco depois das 18h30 sem se separarem um só momento.
A outra possibilidade envolvia o diretor que estava ausente, Carlos Villanova, que, dispondo de chaves, poderia ter entrado no escritório depois do final do expediente e providenciado e envenenamento da água, retirando-se sem que fosse visto por Rodrigues e Nardes. Mas não escaparia da vigilância do porteiro que estava em serviço naquele horário, cujo depoimento, tomado ainda na manhã de sábado, indicava que o sr. Villanova não retornara ao prédio, de onde saiu um pouco antes das 17 horas. Poderia, no entanto, ter utilizado as escadas de incêndio externas, cujas portas de acesso eram abertas com as chaves do escritório
Olhei para o relógio da parede, passava das 17 horas, a achei adequado chamar Carmelo e narrar os resultados de meu árduo trabalho. Contatei-o pelo intercomunicador, disse-lhe que Venâncio tecera extensos elogios à sua pessoa e informei que estava pronto para a sabatina e que Sandroni talvez já estivesse sentado ao pé da escada da rua aguardando a hora de entrar. Ele grunhiu e disse que logo viria ao escritório.
Quando terminei de relatar tudo com o máximo de detalhes eram quase 18 horas, e nada havia a fazer até que Sandroni aparecesse. Carmelo voltou apressado a seu gabinete, onde aparentemente a morte de Xerxes estava a exigir uma explicação urgente. Logo a seguir o telefone tocou e reconheci a voz de Tito Marroni. Disse-me que queria falar com Carmelo, informei que ele estava com os gregos, Tito disse que sabia mas que estava seguindo ordens. Transferi a ligação e depositei meu aparelho no gancho.
Muitas vezes Carmelo contrata Tito sem me comunicar, e é comum passar muito tempo sem que eu fique sabendo que tarefas estão sendo executadas. Isso me incomodava no início, mas acabei compreendendo que às vezes, durante uma investigação, Carmelo acha melhor que eu não fique a par de tudo o que ele sabe, para que eu não seja tentado a usar o cérebro e desviar-me no cumprimento das instruções que ele me passa.
Pelo intercomunicador, Carmelo pediu-me que convocasse Erno Costanera e Américo Veloso para as 19 horas. Tito já estava avisado, disse-me ele. Localizei ambos em suas respectivas casas e eles prontificaram-se a comparecer no horário combinado. Pelo visto, Carmelo estava disposto a não economizar, ignorando, como era seu costume, o reduzido nível de nossas reservas financeiras. É claro que as despesas de uma investigação correm por conta do cliente, mas no caso atual, apesar da declaração de Sylvia de que ela dispunha de algumas economias, eu duvidava que lhe sobrasse muito de seu salário depois da compra de peças do vestuário. Provavelmente seu guarda-roupa continha um valor muito superior ao saldo de sua conta bancária, mas eu não iria perturbar o cérebro genial de Carmelo com essas trivialidades. Se ele queria contratar os investigadores mais caros do mercado, isso era com ele. Pelos meus cálculos, tínhamos caixa para o meu salário e o de Ezequiel e para as despesas de alimentação das próximas três semanas. Deduzindo-se os pagamentos a Tito, Erno e Américo talvez pudéssemos sobreviver ainda por duas semanas, o que era melhor do que a perspectiva enfrentada por muitos habitantes de nossas favelas.
Minhas meditações foram interrompidas pelo toque da campainha. Abri a porta para Sandroni e despejei, arregalando os olhos:
- Ela já foi! Carmelo e Ezequiel não conseguiram segurá-la, mas acho que ela ainda não cruzou a fronteira do Paraguai.
Ele entrou e não me chamou de palhaço, o que era um bom sinal. Tomou conta da poltrona mais confortável, olhou para o relógio na parede e observou-me enquanto eu voltava à minha mesa. Achei que ele ia elogiar minha gravata, mas de qualquer forma não teve tempo, pois Carmelo entrou e sentou-se, cumprimentando-o com um aceno de cabeça.
- E então - falou Sandroni enquanto Ezequiel entrava com as cervejas - o senhor conseguiu arrancar algo mais da moça?
- Nada que ela já não tivesse contado aos senhores. Max disse-me que o Chefe Venâncio considera o caso praticamente resolvido, o que sugere que a srta. Garbin será indiciada.
Sandroni fez um gesto de impaciência, tomou metade do copo de cerveja, passou a mão pelos olhos cansados e bufou:
- Não temos, até o momento, elementos para indiciar qualquer outra pessoa. Meus homens checaram os álibis dos dois funcionários que dispõem de chaves do escritório, e tudo confere com os depoimentos. A recepcionista foi interrogada novamente, e não nos parece que ela esteja mentindo ou ocultando algo. Podemos contar como certo que nenhum visitante permaneceu no escritório depois das 17h30. E quem quer que tivesse entrado no prédio a partir dessa hora não deixaria de ser notado pelo porteiro e pelos ascensoristas, os quais asseguram que apenas algumas pessoas da limpeza ingressaram no edifício no final da tarde.
- Isso nos deixa com as pessoas que já estavam no prédio e que permaneceram lá dentro além do término do expediente - disse Carmelo, enquanto voltava a encher seu copo.
- E isso é um bando de gente. É claro que ao retirar-se e passar pela portaria numa hora de escasso movimento, qualquer pessoa arriscava-se a ser identificada pelo porteiro. Ele afirma que até depois das 19 horas havia pessoas saindo do prédio, sozinhas ou em pequenos grupos. Todos os que saíram sós são pessoas conhecidas que trabalham no prédio. Os poucos desconhecidos que se retiraram naquele horário vinham acompanhados por profissionais que lá mantêm seus escritórios. Quanto a isso o homem é categórico.
- Além das pessoas da empresa, quem mais tem cópias das chaves do escritório?
- Há uma chave com a supervisora das faxineiras do andar e outra com o pessoal da segurança do prédio. Essas pessoas estão sendo apertadas pelos meus homens, mas parece-me que por aí não chegaremos a nenhum lugar. A propósito, as chaves pertencentes a Pedroso estavam no chaveiro que ele trazia preso à cinta quando o corpo foi encontrado.
- E os dois diretores que ficaram no escritório até mais tarde?
- As histórias de cada um, tomadas isoladamente, conferem. A não ser que ambos estejam mentindo, o que indicaria estarem juntos no negócio. Mas não serei eu a acusá-los disso com a escassez de provas com que nos defrontamos. O terceiro diretor declara que pegou um táxi e foi para casa logo que saiu do oftalmologista, o que ocorreu em torno das
17h40. Estamos checando isso.
- E quanto a motivos? A fusão programada, da qual a vítima era o principal mentor, poderia prejudicar algum sócio da empresa, o que freqüentemente constitui motivo para um assassinato.
- Abordamos essa linha com os diretores, mas a impressão geral é que todos estavam de acordo com a fusão. Além disso, ficara acertado que não haveria demissões de funcionários, os quais poderiam, em futuro próximo, contar inclusive com melhorias salariais.
Desliguei-me da conversa entre os dois, que nada acrescentava ao que eu já sabia, e fiquei tentando imaginar a linha que Carmelo seguiria nas investigações. O fato de ter convocado Tito, Erno e Américo era indicativo de que ele não estava parado e já tinha um plano inicial, que não estava disposto a expor para Sandroni. Como eu nada sabia da conversa que ele tivera com Sylvia enquanto eu estava na Homicídios, imaginei que um enfoque novo pudesse ter surgido então. Sandroni, se desconfiava disso, resolveu não tocar no assunto. Mostrava-se extremamente fatigado e, após mais uma monótona troca de idéias com Carmelo, declarou que precisava de uma boa noite de sono e que no domingo toda sua equipe estaria passando a pente-fino os depoimentos obtidos e realizando novas e mais amplas investigações. Despediu-se de Carmelo e eu o acompanhei até a porta, limitando-me a desejar-lhe uma boa-noite, ao que ele nem se preocupou em responder.
Finalmente a sós com Carmelo, e vendo que ele começava a dirigir-se à biblioteca, resolvi adotar uma atitude provocativa. Se ele não quisesse me contar seus planos, tudo bem, eu não me importava muito mesmo. Mas eu ansiava por alguma ação, e, com tudo o que eu sabia até aquele momento, não podia imaginar por onde começar. Assim, abri o cofre, olhei lá para dentro, adotei uma voz de tesoureiro e falei:
- O senhor não me instruiu sobre as despesas com Tito, Erno e Américo. Devo entregar a eles tudo que temos em caixa ou reservo uma parcela para nossa alimentação? De minha parte não há com que se preocupar, já que o sanduíche que Sandroni me mandou comer no almoço levará uns dois dias para ser digerido.
- Qual é nossa situação? - perguntou ele com ar apenas ligeiramente interessado.
- O que temos em caixa, sem extraordinários, pode cobrir nossas despesas por umas três semanas, incluindo meu salário e o de Ezequiel. Claro, temos que pagar o fornecedor de bebidas na próxima terça-feira, e devemos abastecer nossa despensa antes do final da próxima semana, mas talvez possamos cortar esses gastos e providenciar um pequeno estoque de bolachas.
Funcionou. Ele olhou-me horrorizado e tornou a sentar-se. Reclinou-se na cadeira, deu uma olhada no relógio da parede, que marcava 18h50, e começou a falar.
- Max, ao aceitar este caso decidi que devemos resolvê-lo rapidamente, pois não sendo assim o Delegado Sandroni levará nossa cliente, e sem cliente deixamos de ter um caso. A srta. Garbin provou ser bastante arguta ao pressentir a tentativa de assassinato com o sanduíche envenenado, mas sendo ela uma péssima comunicadora não conseguiu me convencer em nossa primeira entrevista. Hoje, apesar de cansada e nervosa, ela forneceume informações bastante perspicazes sobre as demais pessoas da empresa. Estou disposto a aceitar que havia veneno naquele sanduíche, e que essa providência foi, evidentemente, tomada pela mesma pessoa que envenenou a água. A srta. Garbin teve oportunidade de fazer isso nas duas ocasiões, e se não for provado que alguém mais poderia tê-lo feito, o caso está resolvido, como quer o Chefe Venâncio.
- E por onde começamos? Nos relatórios de Sandroni o sanduíche só é mencionado no depoimento da srta. Garbin.
- Eles têm as impressões digitais na garrafa de água e o depoimento incriminador de nossa cliente. Só vão pensar no sanduíche se isso tudo não der em nada. São quase 19 horas e a lanchonete fornecedora do sanduíche deve estar aberta. Quando Tito e os rapazes chegarem, você pode ir até lá e ver o que consegue descobrir.
Era típico de Carmelo manter-me afastado enquanto ele instruía o pessoal de campo. Mas se isso significava ação, estava tudo certo para mim. Talvez eu até provasse um dos sanduíches da lanchonete para ver o efeito.
Tito, Erno e Américo chegaram juntos, exatamente às 19 horas. Levei-os à sala de Carmelo, lamentei que eles teriam um árduo trabalho pela frente e comuniquei que iria me divertir com as moças da Av. Principal. Tito piscou o olho para mim, mas não disse nada. Saí para a rua e resolvi caminhar um pouco antes de tomar um táxi.
Na lanchonete não apurei nada de muito importante, conforme já imaginava. Senteime ao balcão, observando que havia apenas mais dois clientes nas mesinhas de madeira encostadas à parede. Uma jovem com ar de quem preferia estar no cinema àquela hora de um sábado veio me atender e pedi um café preto e uma rosquinha.
Quando ela me serviu perguntei se faziam entregas de lanches, ela disse que sim, mas apenas no horário de funcionamento dos escritórios. Informei que começara há pouco em um novo emprego no prédio ao lado, e manifestei interesse na manipulação dos sanduíches destinados a entregas. Pude constatar que os mesmos eram preparados na cozinha, saíam de lá dentro de um envelope de papel pardo com a boca já grampeada e com o conteúdo escrito a caneta. No caixa, o proprietário ou sua esposa verificavam a lista de pedidos de entrega, emitiam a nota fiscal e passavam o pacote a um dos entregadores que ali se encontravam para essa finalidade. Dois garotos ocupavam-se nessa função, mas só ficavam a serviço em dias úteis, das 9 às 18 horas.
Não havendo mais o que perguntar, paguei a despesa, deixei uma gorjeta para a balconista e asseverei que iria me tornar um grande cliente dos serviços de entrega da lanchonete.
Já na rua aproveitei para dar uma boa olhada no prédio que, além dos escritórios da Amberson-Pedroso, deveria abrigar mais umas 20 ou 30 firmas em seus 12 andares. No pavimento térreo, além da lanchonete que eu acabara de visitar, havia uma livraria, que estava fechada àquela hora. Quando o porteiro começou a lançar-me olhares desconfiados aproximei-me e perguntei, curioso, se era ali que tinha havido um crime na noite de sextafeira. Ele confirmou, e disse que a polícia passara vasculhando tudo durante a madrugada e todo o dia de sábado. Seu colega, o porteiro que estava de plantão no dia anterior, fora arrancado de casa bem cedo de manhã e passara mais de duas horas na delegacia. Ele mesmo fora interrogado no prédio, mas como seu turno nos dias úteis começava às 22 horas pouco tinha a dizer, e não fora levado à delegacia.
Apurei que havia 23 empresas localizadas no prédio, algumas, como a AmbersonPedroso, ocupando um andar inteiro. As menores firmas eram escritórios de advocacia, que normalmente ocupavam apenas três ou quatro salas. Dei uma examinada no quadro da parede, colocado atrás do balcão da portaria, mas nenhum dos nomes que lá constavam chamou minha atenção.
Lamentando que uma coisa dessas tivesse ocorrido em um prédio tão distinto, despedi-me do porteiro e caminhei em direção a um ponto de táxis próximo. Quando cheguei em casa, os rapazes já se haviam retirado e Carmelo estava no escritório, reclinado na cadeira giratória lendo um novo livro, grosso e encadernado, com o título A Civilização Micênica. Aparentemente eleja absorvera toda a filosofia oriental de que precisava.
À minha entrada ele parou de ler, mas não fechou o livro. Relatei-lhe os resultados de meu instrutivo passeio, assegurando que a lanchonete suspeita não tinha o hábito de servir sanduíches envenenados. Tentando parecer heróico, informei que eu mesmo comera uma rosquinha feita na casa e continuava vivo, mas como alguns venenos têm efeito lento, era melhor esperarmos até o dia seguinte antes de inocentar os proprietários. Perguntei-lhe se ele queria que eu interrogasse os garotos da entrega na segunda-feira, mas ele descartou a idéia com um gesto de mão.
Narrei também minha conversa com o porteiro, mas aparentemente ele não estava mais me ouvindo. Eu continuava pensando em interrogar o boy que fizera a entrega, antes que a polícia tivesse a mesma idéia. Reconheço que parece absurdo imaginar o garoto abrindo o pacote e introduzindo veneno no sanduíche no curto percurso entre a lanchonete e o elevador, ou mesmo dentro do elevador, locais onde, à hora da entrega, havia grande movimento. Ao chegar ao sexto andar ele não teria maiores chances, já que os elevadores abrem diretamente para o saguão de entrada dos escritórios da empresa, conforme eu constatara nos relatórios da Homicídios, e ali postava-se permanentemente uma recepcionista. Mas, à falta de qualquer outra pista, pensei que deveríamos esgotar essa possibilidade. O telefone tocou quando eu ia abrir a boca para expressar essa idéia.
- Escritório de Franco Carmelo - informei. - Max Guerreiro falando.
- Boa-noite - disse uma educada voz masculina - O sr. Franco Carmelo se encontra? Quem fala é Augusto Nardes, diretor da Amberson-Pedroso.
Pedi-lhe que aguardasse, protegi o bocal do aparelho com a mão e falei para Carmelo:
- É Augusto Nardes, um dos diretores que se encontrava no escritório no momento em que o sr. Pedroso bebia água mineral.
Carmelo assentiu, fez-me sinal para ficar ouvindo na extensão e pegou o telefone.
- Boa-noite, sr. Nardes. Em que eu poderia ajudá-lo?
- Boa-noite, sr. Carmelo. Para começar, livrando-me da suspeita de homicídio. Ele deve ter rido da própria piada, mas o que Carmelo e eu ouvimos foi uma espécie de grasnido, o qual foi sucedido por uma tosse muito fraca.
- Desculpe, sr. Carmelo - prosseguiu Nardes. - O momento não é adequado para brincadeiras. Mas fomos informados pela srta. Garbin dos contatos que ela manteve com o senhor. Estivemos pensando, eu e meus sócios, que seria conveniente termos uma conversa com o senhor, a fim de expormos nosso pensamento. Entendemos que a srta. Garbin contratou-o para investigar o assassinato de nosso estimado presidente, estarei eu certo?
- A srta. Garbin contratou meus serviços, sim. Posso supor que há alguma objeção de sua parte com relação a esta atitude de sua funcionária?
- De maneira alguma, senhor Carmelo. A srta. Garbin é uma funcionária exemplar e muito estimada por toda a diretoria. Achamos apenas que ela foi um pouco precipitada ao contratá-lo sem nos comunicar. Mas se o senhor concordar em nos receber, creio que poderíamos, digamos assim, tornar mais abrangente sua linha de investigações, se me faço entender.
- Sr. Nardes, não tenho a pretensão de entendê-lo apenas com base em nossa atual conversa telefônica. Mas terei prazer em recebê-lo e a seus associados. Para quando lhe parece conveniente nosso encontro?
- Agradeço-lhe, sr. Carmelo. Amanhã, após os serviços fúnebres, ficaria perfeito para nós. As cerimônias terão início às 16 horas, e creio que estaremos livres cerca de uma hora e meia depois disso. Se o senhor estiver de acordo ...
- Perfeitamente - falou Carmelo. - Aguardo-os às 18 horas. Posso saber quem estará presente?
- Pois não. Deverão acompanhar-me dois outros sócios, o sr. Dalton Rodrigues, que é membro da diretoria, e o sr. Copérnico Carvalhosa, que já está retirado dos negócios. Irá também a srta. Garbin. Talvez um terceiro diretor, o sr. Carlos Villanova, se faça presente, mas ainda não falei com ele a respeito. Fica bem para o senhor?
- Sem dúvida, sr. Nardes. Aguardo-os então às 18 horas. Tenha uma boa noite.
Carmelo desligou o telefone, reclinou-se na cadeira giratória e semicerrou os olhos. Aguardei em silêncio por uns cinco ou seis minutos, até que ele abriu os olhos e me falou, após um longo suspiro:
- Isso não estava em meus planos, Max. Eu preferia falar com essas pessoas só quando tivesse mais informações. Mas não posso ignorar a solicitação deles. Está claro que os dois diretores já perceberam que são suspeitos, e apesar dos elogios à srta. Garbin, não ficarei surpreso se eles quiserem jogá-la no fogo. Ligue para Tito e mande-o estar aqui amanhã antes das 18 horas. Se não o encontrar, deixe recado.
Peguei o telefone e falei com a esposa de Tito, assegurando-me que ele receberia o recado. Se ele não se encontrava em casa àquela hora era porque estaria cumprindo alguma instrução de Carmelo, mas resolvi não manifestar minha curiosidade. De qualquer forma, a informação que Carmelo esperava de Tito deveria ser coisa importante, e certamente de maior relevância que meu relato da visita à lanchonete, para onde eu fora mandado apenas com o propósito de deixá-lo a sós com os rapazes. Se as coisas continuassem nesse pé eu já me dispunha a vestir um avental e começar a espanar os móveis para justificar meu salário.
Carmelo fechara o livro e continuava meditando com os olhos fechados, mas desta vez não demorou muito.
- Max, instruções.
Peguei bloco e lápis e comecei a anotar o que ele dizia. Nisso ficamos por quase meia hora. Quando ele terminou revisei o que havia escrito, fiz umas poucas perguntas e voltei a sentir-me seu braço direito. Afinal aquele cérebro tinha estado trabalhando, embora eu não conseguisse alcançar os objetivos das tarefas que ele me passara. Anotei mentalmente que minha primeira providência do dia seguinte seria ligar para Evandro Rezende, e torci para que ele não tivesse decidido passar o domingo fora de casa. As instruções de Carmelo iriam manter-me ocupado por quase todo o dia, mas ele insistira que eu voltasse para casa com o que tivesse conseguido até as 17 horas.
Perguntei se ainda precisaria de mim, ele disse que não, desejei-lhe boa noite e subi para meu quarto. Antes de ir para a cama, verifiquei as condições de meu traje domingueiro e constatei que eram satisfatórias. Deitei-me, apaguei a luz de cabeceira e logo fui dominado pelo sono.
O domingo amanheceu cinzento, mas não havia previsão de chuva. Desci para a cozinha barbeado e vestido para sair. Ezequiel perguntou-me quem era a moça, eu respondi que havia pelo menos três moças em meus planos para o dia, e daí ele disse que ia preparar-me um desjejum reforçado.
Enquanto esperava dei uma olhada nos jornais, e em apenas um deles a notícia do crime ocupava a primeira página. Como notícia, era fraca, pois nada acrescentava à informação do dia anterior, mas enfatizava que coisas como essas não podem acontecer impunemente, e, uma vez acontecidas, esperava-se das autoridades uma rápida identificação e encarceramento dos culpados. Nos demais matutinos as menções ao assassinato apareciam nas seções policiais das páginas interiores, e em todos era sugerido que a polícia vinha se empenhando ao máximo e que a sociedade esperava uma pronta solução para o caso. Era a trégua de domingo. Na segunda-feira os repórteres iriam cair em enxames sobre Venâncio e Sandroni, e se não houvesse nada de concreto, entendendo-se como fato concreto uma prisão com indiciamento, o assunto voltaria à primeira página e os editoriais agressivos pipocariam a partir da terça-feira.
O plano de Carmelo, pelo que eu depreendia das instruções que ele me dera à noite, consistia em encontrar rapidamente um motivo que pudesse justificar o assassinato. Enquanto a polícia seguia juntando elementos e investigando uma infinidade de pistas no que se referia a oportunidades e meios, e nada descobrira, até o momento, que pudesse sugerir uma contenda interna capaz de dar origem ao crime, Carmelo obrigava-se a seguir por atalhos.
Carmelo imaginava que o interrogatório de todas as pessoas que trabalhavam no prédio, cerca de 600, pela minha estimativa, seria o passo imediato de Sandroni. Claro que antes de concluir essa imensa tarefa ele teria que acalmar os jornais efetuando uma prisão, e não tínhamos qualquer dúvida sobre o indiciamento de nossa cliente, mesmo sabendo que Sandroni tinha consciência da fragilidade das provas acumuladas contra ela.
Terminei de tomar meu café acompanhado de rins grelhados e liguei para a casa de Evandro Rezende. Ele mesmo atendeu e, ao me identificar, foi logo declarando:
- Diga apenas o nome do assassino e deixe o resto por minha conta. Mando buscar toda a equipe da Folha em casa e prometo-lhe uma edição extra para o meio da tarde de hoje.
- Assassino? - perguntei indignado. - Não trabalho mais com isso. Nem o senhor Carmelo. Descobrimos que investigações policiais nos causam indigestão. Nosso assunto agora restringe-se a artes.
- Está certo, Max. E você me liga a esta hora de uma manhã de domingo para falar de artes! Vou fazer de conta que não fiquei sabendo que Franco Carmelo está investigando o assassinato do sr. Pedroso. Essa você fica me devendo. Poderia pelo menos ter mencionado o contrato quando conversamos ontem.
- Na hora em que falamos ontem não havia contrato. E agora que temos um contrato não sabemos se poderá ser cumprido, já que nossa cliente pode ser trancafiada antes do almoço de amanhã. Evandro, use a memória, telefone para quem souber, faça como achar melhor. Mas me informe dentro de 15 minutos os nomes de todos os membros do conselho curador de nosso museu de arte moderna. Se tiver endereços e telefones do maior número possível deles ajudará bastante.
Evandro manteve silêncio por alguns segundos, mas recuperou-se rápido.
- Entendi, você não está brincando de interessado em artes. Pedroso era o presidente desse conselho. Vai querer o telefone dele também?
- Não, obrigado, imagino que ele esteja impossibilitado de me atender. Vou ler um jornal e aguardar suas notícias.
Desligamos e fiquei pensando se havia alguma informação que eu pudesse passar imediatamente para Evandro, e decidi que não havia nada que valesse a pena. O que eu pedira a ele poderia ser facilmente obtido na segunda-feira no próprio museu, mas eu não podia esperar até o dia seguinte. Em pouco mais de 10 minutos Evandro ligou-me de volta.
- O que vou receber em troca?
- Tudo que você pedir, Evandro, menos aquilo que o senhor Carmelo julgar confidencial.
- Isto é, nada que realmente me interesse. Muito bem. Está com papel e lápis? Anotei tudo em meu bloco. O conselho era composto por onze membros, aí incluído o presidente. Dos dez nomes que Evandro me forneceu, apenas dois estavam sem o número de telefone. Examinei a lista tentando decidir por quem começar. Segundo Carmelo, pelo menos um deles saberia de alguma coisa que justificasse o nervosismo de Pedroso percebido por Sylvia nas últimas semanas. Ao contrário da polícia, Carmelo descartara provisoriamente qualquer fato interno à empresa como a origem dessa tensão, e decidira entrar na plácida área das artes.
Era um palpite arriscado, e mesmo que eu descobrisse algo escabroso por lá, escapava-me a relação entre isso e o assassinato de Pedroso providenciado dentro de seu escritório. Na noite anterior eu tentara argumentar, mas Carmelo mostrou-se impaciente e disse que as investigações na empresa, na firma congênere com a qual seria feita a fusão, nos demais escritórios do prédio, na lanchonete e nas comunidades esquimós do Alasca seriam conduzidas, se necessário, pela delegacia de homicídios. Nós não tínhamos tempo nem recursos para tanto, e teríamos que tentar a sorte em áreas que a polícia ainda não se decidira a cobrir.
Comecei telefonando para o nome mais simpático da lista, o do sr. Maximiliano Moutinho. Se ficássemos íntimos depois da nossa conversa eu poderia chamá-lo de Max. A voz que atendeu do outro lado era de uma governanta. Identifiquei-me e ela me pediu que aguardasse. Em poucos segundos eu estava ouvindo a voz afável do dono da casa.
- Sr. Guerreiro? Em que posso servi-lo?
- Sr. Moutinho, represento o sr. Franco Carmelo, detetive particular que foi incumbido de investigar o assassinato do sr. Pedroso. Gostaria de conversar com o senhor ainda hoje, em horário que seja da sua conveniência.
- Incumbido por quem, sr. Guerreiro? Refiro-me ao sr. Carmelo. Quem o incumbiu da investigação?
- O sr. Carmelo foi contratado pela srta. Garbin, secretária do sr. Pedroso até sexta-feira passada.
- A secretária do sr. Pedroso? Um tanto bizarro, não lhe parece?
Em outra situação eu lhe teria dado uma explicação detalhada do que poderia ser considerado bizarro, mas resolvi ser bem comportado. Ele não tinha obrigação nenhuma de me receber, e eu apenas tinha que ganhar sua simpatia e marcar uma entrevista. Assim, adotei uma entonação mais oficial e voltei à carga.
- Com certeza, sr. Moutinho. É uma situação bastante bizarra. Sinto estar tomando seu tempo, mas o sr. Carmelo está colaborando com o Delegado Sandroni na elucidação do caso, e entendeu ser necessário colhermos depoimentos das pessoas mais próximas do sr. Pedroso. Pretendo entrevistar todos os membros do conselho curador ainda hoje.
- Será uma tarefa difícil, meu rapaz. Hoje é domingo, e às 16 horas todos iremos às cerimônias fúnebres de nosso presidente e amigo. Mas vou facilitar-lhe as coisas, pelo que me toca. Posso recebê-lo dentro de, digamos, uns 30 minutos.
Agradeci, confirmei o endereço e desliguei. Os dois nomes seguintes da lista não estavam em casa, ou mandaram dizer que lá não se encontravam. A quarta ligação foi para a sra. Caroline Guedes. Ela mesma atendeu, e com voz enérgica e decidida informou que estava de saída e que teria prazer em me receber na segunda-feira, de preferência pela tarde. Não insisti e fiquei de ligar novamente no dia seguinte.
Como eu já gastara uns dez minutos nessas ligações, resolvi dirigir-me logo à casa do sr. Moutinho e deixei para depois os outros telefonemas. Peguei as chaves do carro a avisei Ezequiel que não viria para o almoço.
A casa do sr. Moutinho localizava-se em um bairro onde os jardineiros aparentavam ter curso superior. Construída em estilo colonial e plantada no meio de um imenso gramado, só não chamava mais a atenção porque as casas vizinhas ostentavam idêntica opulência. O mordomo que atendeu à porta evidentemente estava à minha espera, pois apenas mencionou meu nome e pediu-me que o seguisse. Se ele fosse um pouco maior eu teria sugerido trocar seu traje de serviçal por minha roupa domingueira, aí incluídas camisa e gravata, mas ele era quase um palmo mais baixo que eu e tinha ombros caídos.
Fui introduzido em uma confortável salinha de estar íntima, que era apenas quatro vezes maior que nosso escritório. O sr. Moutinho levantou-se e veio a meu encontro, estendeu-me a mão, e a seguir ofereceu-me uma poltrona que parecia provinda de Versailles.
- Então - disse-me ele - o sr. Franco Carmelo pretende desmascarar o assassino de nosso querido amigo Pedroso? Se eu puder ajudar, conte comigo, sr. Guerreiro. Mas depois de seu telefonema estive pensando no assunto, e sinceramente não me ocorre nada que eu possa fazer nesse sentido.
Era um homem com mais de 70 anos, alto e um tanto desengonçado, embora com uma cabeça que se podia chamar de elegante. Tinha uns pequenos olhos pretos, irrequietos e inteligentes. Fiz um ar compenetrado e comecei devagar.
- Sr. Moutinho, pretendo ser breve para não abusar da sua bondade, por isso vou logo ao assunto. A srta. Garbin, que era a secretária pessoal do sr. Pedroso, insiste que ele andava bastante tenso e preocupado nos últimos dias. Pelo que apuramos, nada do que vinha acontecendo na Amberson-Pedroso justificava esse estado de nervosismo. Não temos também qualquer indicação de problemas familiares que motivassem esse comportamento. O sr. Carmelo imagina que talvez isso se devesse a alguma dificuldade ligada às funções do sr. Pedroso no conselho do museu. O senhor teria conhecimento de algo a respeito?
- Não, meu rapaz, nada lhe poderia dizer sobre isso. Nós do conselho curador somos um grupo de pessoas idosas, reunimo-nos a cada quinze dias, mais para confraternizar que para resolver problemas reais. É claro, somos responsáveis pelo exame e aprovação das contas da diretoria do museu, mas lá é tudo tão tranqüilo e limpo que não vejo de que maneira algum de nós pudesse ficar agastado com qualquer coisa. Mas digame, que relação poderia ter isso com o assassinato?
- Não sabemos, sr. Moutinho, apenas estamos examinando todas as possibilidades. Quando o senhor encontrou-se com o sr. Pedroso pela última vez?
- Bem, estivemos reunidos no conselho há ... deixe-me ver ...há uma semana e meia, foi na quarta-feira da semana anterior.
- E o comportamento do sr. Pedroso pareceu-lhe normal?
- Nada a estranhar. Ele estava um pouco mais quieto que o habitual, e um tanto dispersivo. Mas agora que você mencionou, lembro-me de uma coisa estranha, sim. Ele pediu à secretária os balanços contábeis de exercícios passados, cobrindo os últimos cinco anos, se bem me lembro. Nosso exercício fiscal encerra-se no próximo mês, e fiquei com a impressão de que ele queria as contas anteriores para fazer alguma comparação. De qualquer forma, só receberemos as do último ano dentro de uns 60 dias.
- E ele não comentou nada com o senhor, ou com outras pessoas do Conselho?
- Não que eu saiba. Comigo pelo menos ele não falou nada.
- Bem, sr. Moutinho. Agradeço sua gentileza em me receber. Mais uma coisa: estou enfrentando dificuldades para localizar outros membros do conselho. O senhor teria alguma sugestão?
- Já falou com mais alguém?
- Só com a sra. Guedes, mas ela lamentou não poder me receber hoje.
- Deixe-me ver... O Altman não mora longe daqui. Posso ligar para ele e ver se ele pode recebê-lo.
- Eu agradeceria muito, sr. Moutinho.
Ele conseguiu o encontro. Agradeci novamente, despedi-me e não tive maior dificuldade para localizar a casa do sr. Edmundo Altman. Não era imponente como a que eu acabara de deixar, e o terreno não lembrava um campo de golfe, mas calculei que cem anos do meu salário não seriam suficientes para adquiri-la. Acionei a campainha e estava pensando em me tornar curador de algum museu depois de me aposentar, quando a porta foi aberta por uma elegante senhora de uns quarenta e poucos anos, que falou com voz educada:
- Sr. Guerreiro? Meu pai o espera. Acompanhe-me, por favor.
Segui-a por um longo corredor, e ao chegarmos em frente a uma pesada porta de carvalho ela virou-se e falou delicada mas firmemente:
- Meu pai anda muito nervoso, sempre foi assim, e com a trágica morte do sr. Pedroso encontra-se seriamente abatido. Ele só concordou em recebê-lo porque foi a pedido do sr. Moutinho. Espero que o senhor compreenda a situação, sr. Guerreiro.
Assegurei-lhe que nossa conversa seria rápida e indolor, ela sorriu e abriu a porta, introduzindo-me no que certamente era a biblioteca da casa. O ancião que me esperava lá dentro não era tão loquaz quanto Moutinho. Educadamente informou-me que nada sabia que pudesse trazer luz ao estado de nervosismo do sr. Pedroso, não via qualquer relação entre o assassinato e as atividades de Pedroso no conselho do museu, não pretendia ir ao enterro e não estava disposto a prolongar nossa conversa. Essa última parte ele não falou, eu deduzi sozinho.
Agradeci, levantei-me para me despedir, ele permaneceu sentado, apertou algum botão sob a mesa e logo a porta foi aberta pela filha, que aparentemente ficara a postos no corredor, pronta para intervir se o pai começasse a estertorar. Ao perceber que ele continuava respirando normalmente, olhou-me agradecida e acompanhou-me até a saída.
Passava um pouco das 11 horas e resolvi ligar para Carmelo. Localizei um telefone público e fiz um breve relato. Ele grunhiu e disse-me para continuar.
Do mesmo telefone liguei para o próximo nome da lista, sra. Emília Nash. Para minha surpresa ela estava em casa, tinha uma voz muito alegre e concordou em receber-me imediatamente. Ela morava em um prédio de apartamentos em cuja entrada encontravamse vidros e metais polidos em quantidade que daria para construir uma frota de ônibus. O porteiro olhou-me com ar crítico, comunicou minha presença pelo interfone e fui autorizado a subir ao quarto andar. Nem perguntei o número do apartamento, pois logo percebi que havia apenas um por andar.
O olhar da empregada que me abriu a porta não era crítico, era de pura repulsa. Em todo caso, obedecendo a ordens anteriores, encaminhou-me para a ampla sala onde a anfitriã aguardava-me sentada muito à vontade bem no meio de um sofá de uns cinco metros. Ela era dessas senhoras recém passadas dos 50 anos, gorduchinha e com ar maternal, do tipo que a gente vê em alguns anúncios de revistas que apregoam produtos alimentícios naturais. Só que as jóias que ela ostentava no pescoço e nos pulsos eram reais. Apresentei-me, expliquei novamente as razões de minha visita, fui convidado a ocupar umas das poltronas fronteiras ao sofá e comecei a ser bombardeado com perguntas sobre o assassinato. Isso poderia durar o dia inteiro, e eu ainda tinha que tentar mais quatro entrevistas. Polidamente cortei a enxurrada de perguntas e conduzi o assunto para o nervosismo recente do sr. Pedroso.
- Bem, - disse ela - o bom sr. Pedroso descobriu alguma sujeira nas contas do museu e é natural que andasse tenso.
Fiquei imediatamente alerta. Era a primeira informação que corroborava a hipótese de Carmelo, de que a origem do nervosismo de Pedroso não se encontrava na empresa. Procurando não mostrar um interesse exagerado, prossegui:
- Ele comentou isso com alguém, sra. Nash? Houve algum fato que tivesse sido levado ao conhecimento do conselho?
- Não que eu saiba - disse ela. - O sr. Pedroso era muito discreto. Na verdade, falei sem pensar. Quando digo uma sujeira não estou realmente querendo dizer isso, o senhor me entende? Há uns dois anos o sr. Pedroso quase teve um ataque ao descobrir que vínhamos comprando clipes para papéis de um fornecedor que cobrava, por caixa, dez centavos acima do preço corrente no mercado. O prejuízo para o museu ao longo de um ano não daria para comprar uma dúzia de hambúrgueres, mas o sr. Pedroso criou um caso e ameaçou denunciar os responsáveis pelas compras.
Meu entusiasmo recebeu uma ducha fria. Minha anfitriã era dessas que falava sem pensar, mas era bastante prudente para evitar interpretações errôneas. Antes de começar a me despedir tive uma idéia, que deveria ter me ocorrido nas entrevistas anteriores, embora nesse particular as mulheres mostrem-se sempre mais observadoras que os homens.
- Diga-me, sra. Nash. O sr. Pedroso teria alguém no conselho para quem ele fizesse confidencias? Quero dizer, algum dos conselheiros era mais próximo do sr. Pedroso do que os demais? Alguém que pudesse saber realmente por que ele andava tão tenso?
- Acho que não, ou melhor, pode ser o sr. Sanvitor. Sim, no que compreende assuntos do museu, claro. Não imagino o sr. Pedroso fazendo confidencias íntimas a qualquer pessoa, mas se alguma coisa andasse errada no museu, acho que o sr. Pedroso falaria com o sr. Sanvitor antes de levar o assunto ao conselho. Era isso que o senhor queria saber?
Quase dei um beijo nela. Decidi insistir na sorte e perguntei-lhe se poderia usar o telefone para tentar marcar um encontro com o sr. Sanvitor. Como eu esperava, ela mesma encarregou-se disso, e logo estava tagarelando com o outro curador. No entanto, quando ela abordou o assunto da minha visita, pressenti dificuldades. Ela tentou insistir, pelo jeito simpatizara comigo, mas senti pela sua expressão que o sr. Sanvitor estava irredutível. Fizlhe sinal indicando que gostaria de falar com ele ao telefone, e pelo menos isso me foi concedido.
- Sr. Sanvitor, - fui dizendo - peço-lhe desculpas pelo incômodo, mas, como a sra. Nash lhe falou, sou assistente do senhor Franco Carmelo, que está investigando o assassinato do sr. Pedroso. Se o senhor concordar em me receber, asseguro-lhe que não tomarei mais que uns poucos minutos de seu tempo.
- Não vai tomar nem meio minuto, senhor Guerreiro. Simplesmente não vejo qualquer motivo para recebê-lo.
- Não vou ficar inventando motivos, sr. Sanvitor. Apenas achei que o senhor não gostaria de ser incomodado pela polícia. O sr. Carmelo está colaborando com a delegacia de homicídios, e entende que pessoas da sua posição, como os demais curadores do conselho, merecem tratamento mais civilizado que o dispensado por nossa força policial.
- Sr. Guerreiro, se o senhor acha civilizado tentar arrancar uma entrevista comigo na hora do almoço de um domingo, no momento em que estou me preparando para os serviços fúnebres de um amigo e camarada que foi brutalmente assassinado, lamento dizer que seu conceito de civilização está a merecer urgentes reparos.
O homenzinho era duro, mas eu estava preparado para algo assim. As instruções de Carmelo abrangiam desde a sedução até a ameaça, excluindo-se, é claro, a ameaça física. Ele não falara em chantagem emocional, mas isso era coisa que eu sabia fazer sem que me ensinassem. Eu preferia que minha anfitriã não estivesse ouvindo a conversa, mas não seria educado pedir que ela se retirasse. Assim, despejei:
- Está certo, sr. Sanvitor, reconheço que estou sendo impertinente. No entanto, se não contarmos com toda a ajuda que pudermos obter, provavelmente o assassino do sr. Pedroso escapará impune. Se o senhor me assegurar, com toda a certeza, que não tem conhecimento de qualquer fato, por mais irrelevante que pareça, que possa ajudar na elucidação do caso, devo desculpar-me e prometo-lhe que não voltarei a perturbá-lo.
- Mas de onde lhe surgiu a idéia, sr. Guerreiro, de que eu ou qualquer outro conselheiro possa ter informações sobre um crime acontecido na empresa do sr. Pedroso? É lá que as coisas devem ser investigadas, civilizadamente ou não, se me fiz entender.
Eu tinha que jogar a última cartada. Era arriscado fazê-lo na presença da sra. Nash, que permanecia muito atenta a menos de meio metro de minha orelha. Mas era um risco que devia ser assumido. Assim, falei:
- Sr. Sanvitor, apenas mais uma informação, depois deixo-o em paz. Advirto-o que é assunto confidencial, e peço ao senhor, e à senhora Nash que está aqui a meu lado, a maior discrição. O senhor Carmelo reuniu evidências que indicam que o sr. Pedroso pode ter sido morto por alguém que seria severamente prejudicado por algo que ele descobrira. Entre as pessoas da empresa do sr. Pedroso que teriam tido a oportunidade de administrarlhe veneno, não foi encontrado o mais leve vestígio de qualquer situação que justificasse tão bárbaro ato. Portanto, sr. Sanvitor, peço-lhe que consulte sua consciência e, se houver algo de que o senhor tenha conhecimento nessa linha, é desnecessário dizer-lhe o quanto seria útil que esse conhecimento nos fosse repassado.
- Um bonito discurso, sr. Guerreiro. Estou até propenso a perdoar sua impertinência. Mas não preciso que me digam o que fazer com conhecimentos que eu porventura possua e que poderiam ajudar a justiça. Agora, se me permite, não vejo propósito em continuarmos nossa conversa. Tenha um bom dia.
Eu arriscara tudo e perdera a presa. O problema agora estava no olhar da minha loquaz anfitriã, que indicava que assim que eu cruzasse o umbral da porta ela começaria a telefonar. Em menos de uma hora boa parte da população da cidade estaria comentando que Franco Carmelo buscava pistas para o assassinato de Pedroso dentro do museu, e isso acabava com nossos planos. Pensei em amarrar e amordaçar a gordinha curadora, mas antes ela iria gritar um bocado e a empregada viria da cozinha com um facão.
Bem, eu seguira as instruções de Carmelo. Resolvi despedir-me, agradeci a gentileza da sra. Nash e ela acompanhou-me até a porta. Não me fez qualquer pergunta, nem precisaria. Apenas garantiu-me que, com relação ao assunto do telefonema, ela seria um túmulo, o que me deixou ainda mais preocupado.
Fiquei um tempo rodando lentamente com o carro, e por fim decidi ir até em casa. Carmelo já deveria estar terminando o almoço, e eu definitivamente precisava de novas instruções.
Quando cheguei, Carmelo estava começando a levantar-se da mesa de refeições. Ezequiel olhou-me indignado e eu lhe disse que já almoçara, mas acho que ele não acreditou. Segui Carmelo até o escritório, esperei que ele se acomodasse e narrei tudo em detalhes. Como ele permanecesse em silêncio, perguntei se deveria continuar tentando as visitas. Dos três com quem eu não tentara contato, apenas um tinha telefone na lista fornecida por Evandro.
- Deixe, - disse ele. - Com o barulho que essa mulher vai fazer todos os conselheiros vão se fechar em copas. Por outro lado, se algum deles souber de alguma coisa, ficará tentado a nos contar o que sabe.
- Acho que posso garantir que o sr. Sanvitor não recebeu qualquer confidencia de Pedroso, apesar da opinião da sra. Nash. O homem não titubeou uma só vez. Os dois outros com quem falei não sabem de nada. Talvez estejamos apenas alvoroçando um bando de anciãos. Claro, ajudaria bastante se eu percebesse de onde o senhor tirou a idéia de que pode haver algo de podre no museu.
- Do telefonema de Pedroso.
Confesso que tive que forçar a memória. Lembrei-me num estalo. Na primeira visita de Sylvia ela nos falara sobre uns trechos de uma conversa de Pedroso ao telefone. Fora quando Carmelo começara a ficar atento, naquela noite. Depois disso, com a história do cachorro envenenado, todo o relato assumira um aspecto inverossímil.
- Claro! - disse eu - Ele estava no telefone direto ligando para alguém de fora da empresa. Poderia ser alguém do museu. Pensamos que a reunião de diretoria que ele mencionara fosse a da empresa, mas bem poderia ser a do museu. Os curadores reúnem-se a cada quinze dias, mas a diretoria deve ter seu próprio calendário. Posso ligar para a sra. Nash e ver se ela sabe me informar.
- Não é necessário - disse Carmelo - A diretoria do museu fará uma reunião extraordinária na próxima quinta-feira. A agenda contempla planos de remanejamento do espaço, a construção de uma nova ala e assuntos gerais. Esperava-se que dentro desses assuntos haveria uma comunicação do sr. Pedroso, cujo teor aparentemente só ele conhecia.
- Tito, Erno e Américo. E quando soubemos disso?
- Tito ligou-me hoje de manhã, enquanto você estava fora. Mas a informação dele apenas confirmou minhas suspeitas sobre a possível origem do nervosismo do sr. Pedroso.
Desejei sair e mandar confeccionar uma placa de bronze em homenagem a Tito. Que peripécias ele deveria ter inventado para descobrir essas coisas ao longo de uma noite de sábado, provavelmente com alguma secretária do museu! Agora eu tinha certeza de que alguma coisa nova surgira da conversa de Carmelo com Sylvia no sábado, enquanto eu me ilustrava com os relatórios na Homicídios. Não que ela estivesse escondendo algo da polícia, mas as pessoas interrogadas filtram, inconscientemente, os fatos que presenciaram e relatam apenas os que lhes parecem associados ao alvo da investigação. Carmelo, ao contrário, procura apurar tudo que possa ter acontecido antes, durante e depois, mesmo coisas que pareçam irrelevantes. Como ele não me contara nada sobre essa entrevista, arrisquei:
- Mesmo que se identifique no museu a origem das preocupações de Pedroso, fica difícil relacionar isso com o assassinato dele ocorrido dentro da empresa. O envenenamento do sanduíche é algo possível de se imaginar sendo providenciado por alguém de fora, mas com a água mineral é outra história. Aparentemente nenhum estranho suspeito entrou ou saiu do prédio na faixa de horário exigida para isso.
Carmelo respondeu impaciente:
- Max, amanhã a polícia vai espremer os entregadores da lanchonete. Provavelmente será descoberta alguma irregularidade que permitiu a entrega do sanduíche envenenado, mas isso não será de qualquer ajuda, salvo para inocentar a srta. Garbin. O assassino não iria se expor simplesmente interceptando o garoto e oferecendo uma gorjeta para olhar dentro do embrulho. Não. O procedimento foi mais sofisticado, portanto a descoberta do método não nos deixaria mais próximos do assassino.
- E quanto à água mineral? Ainda não decidimos como alguém poderia ter entrado no escritório, mesmo que dispusesse de chaves, sem ser visto na portaria do prédio, entrando ou saindo.
- Esta foi uma jogada mais arriscada de nosso assassino, mas mesmo que se descubra como foi realizada a façanha, ainda estaremos longe de descobrir seu executante. Precisamos descobrir quem tinha motivos para eliminar o sr. Pedroso, e entre as pessoas da empresa não surgiu nada nesse sentido até agora, apesar de praticamente todo o pessoal da homicídios estar trabalhando no caso 24 horas por dia.
Fiquei pensativo por algum tempo. As entrevistas da manhã deixaram-me com a impressão de que o maior crime concebível pelos velhinhos do conselho curador do museu consistia no furto da dentadura de algum deles. Todos eram pessoas bem situadas na vida e que se conheciam há muito tempo, e a diretoria do museu apresentava quadro semelhante, pelo que pude apurar. A permanência de uma maçã podre neste cesto não poderia passar despercebida por muito tempo. Meu temor era que na segunda-feira a polícia ia começar a esmiuçar a vida e as atividades de todas as pessoas que trabalhavam no prédio de escritórios, e talvez encontrasse pistas concretas por lá, enquanto Carmelo ocupava-se em me mandar assustar velhinhos.
Após ter recebido ligações de Erno e de Américo, e conversado demoradamente com um historiógrafo seu conhecido, Carmelo levantou-se, disse-me que permanecesse em casa descansando e comunicou que iria fazer algumas averiguações ligadas ao assassinato.
Conhecendo-o tão bem, ocorreu-me que ele tanto poderia estar se referindo ao crime que investigávamos como, o que era mais provável, ao assassinato de Júlio César pelo rebento Brutus, assunto sobre o qual tivera entusiasmada discussão com Ezequiel dois dias antes. Assegurou-me que estaria de volta antes do final da tarde.
Uns minutos antes das 18 horas fui atender à campainha da porta da rua. Pelo olho mágico avistei a srta. Garbin, elegantemente trajada para uma cerimônia fúnebre, acompanhada por cinco homens, todos usando sobretudos, gravatas e chapéus pretos. Três deles eram bastante idosos.
Abri a porta, Sylvia cumprimentou-me sem calor, apresentei-me aos cavalheiros e gravei seus nomes, recolhi casacos e chapéus e conduzi-os ao escritório. O sr. Nardes identificou-se para mim como o autor do telefonema da noite anterior. Como ele parecia liderar o grupo, acomodei-o na cadeira que ficava diretamente em frente à de Carmelo, e distribuí os demais à esquerda e à direita dele. Eram Dalton Rodrigues, diretor, Copérnico Carvalhosa, sócio fundador da firma, já aposentado, Carlos Villanova, diretor contratado, e Marcelo Barreto, irmão da esposa de Pedroso. Sylvia ficou acomodada na ponta, ao lado de Barreto. Informei que o sr. Carmelo logo estaria presente e ofereci bebidas. Eles aceitaram após alguma hesitação, fizeram suas escolhas e chamei Ezequiel para servi-los.
Carmelo entrou logo depois, fez um movimento de cabeça em saudação a todos e sentou-se. Fiz as apresentações, e Carmelo deteve-se um pouco mais em Barreto.
- Vim a pedido de minha irmã - explicou ele. - Albertina ... a sra. Pedroso encontra-se compreensivelmente muito abatida e pede desculpas por não comparecer, mas gostaria de manter-se a par das providências que estão sendo tomadas para deslindar esse infeliz acontecimento.
Barreto teria pouco mais de 50 anos, tinha pele bronzeada e ostentava uma aparência definitivamente esportiva. Pelas fotos da sra. Pedroso, que eu vira nos jornais, ela deveria regular em idade com o falecido marido, tendo mais de 65 anos, o que me levou a pensar que Marcelo poderia ser o caçula da família Barreto.
- Na verdade - falou Nardes, fitando Carmelo e pigarreando impaciente antes de se manifestar - a sra. Pedroso discutiu o assunto comigo e com o sr. Rodrigues ontem à noite, antes de meu telefonema ao senhor. É desejo dela, e nosso também, contratar seus serviços para elucidar o caso.
- Já fui contratado pela srta. Garbin - falou Carmelo. - Por tudo o que sei, este contrato continua vigorando, e eu não poderia aceitar outra incumbência para tratar do mesmo assunto.
- É que ... - começou Sylvia, mas foi interrompida por Nardes.
- Permite-me, srta. Garbin? Sr. Carmelo, todos elogiamos a preocupação da srta. Garbin. Falamos longamente com ela sobre isso, e tornou-se consenso que ela não poderia suportar o pagamento de seus honorários sem grande sacrifício. Decidimos, de comum acordo - e dizendo isso olhou para Sylvia - chamar às mãos da empresa o contrato existente, e assumir as despesas correspondentes.
Carmelo olhou para Sylvia, ela concordou com um gesto rápido de cabeça, ele voltou a encarar Nardes e disse:
- Bem, se eu aceitar essa mudança logo trataremos disso. A srta. Garbin contratou-me para descobrir quem assassinou o sr. Pedroso, tendo assim decidido principalmente em vista da suspeita que recai sobre ela. Se vamos tratar de negócios temos que ser totalmente francos. Como é sabido, sr. Nardes, o senhor e o sr. Rodrigues, e também o sr. Villanova, tiveram oportunidade de perpetrar o assassinato que investigamos, ficando assim na posição de suspeitos.
Rodrigues e Nardes tentaram falar ao mesmo tempo, mas Carmelo interrompeu-os com um gesto.
- Cavalheiros, não os estou acusando de nada, estou apenas narrando os fatos como se apresentam para nós e para a polícia. Volto a insistir que os senhores, bem como a srta. Garbin, encontram-se na situação de suspeitos, tendo em vista a questão ligada à oportunidade de adição do veneno à bebida do sr. Pedroso. Nem a polícia nem eu identificamos qualquer motivo para isso, mas se ao longo das investigações surgir algo que justifique o ato criminoso, não preciso dizer-lhes que o eventual acusado estará numa situação difícil aos olhos da lei.
Estabeleceu-se um prolongado silêncio. Dei uma boa olhada em nossos três suspeitos, que no momento pareciam meninos de colégio surpreendidos em alguma arte, e não consegui imaginá-los tramando e executando o envenenamento do presidente da empresa. Os outros cavalheiros presentes, pelo que eu sabia, não haviam tido sequer a oportunidade de envenenar a bebida de Pedroso, o que nos deixava novamente com Sylvia. Carmelo voltara a falar.
- Entendo que sua visita tem como objetivo a alteração do contrato que firmei com a srta. Garbin, alteração esta que envolve a substituição do contratante. No meu acerto com ela eu me comprometo a descobrir o ou os assassinos, ficando claro que se surgirem fortes indícios que apontem para a culpabilidade de minha cliente, o contrato tornar-se-á nulo e os informações obtidas serão imediatamente comunicadas às autoridades policiais. Se, e estou dizendo se, eu concordar com o arranjo proposto pelos senhores, essas condições continuam imperando. Sim, sr. Rodrigues?
- Sr. Carmelo, tenho uma declaração a fazer.
A voz de Rodrigues era fraca e pausada, e seus gestos eram lentos, mas ele transpirava segurança. Após um breve olhar a Nardes, prosseguiu:
- A decisão de contratá-lo é consenso junto a todos os sócios da empresa. Os que não estão presentes foram consultados por mim e pelo Nardes. Não se trata, portanto, como o senhor parece sugerir, de manobra que o Nardes e eu concebemos para livrar-nos das suspeitas mencionadas. É desejo de todos nós que tudo seja esclarecido com a maior brevidade. De minha parte, suas condições são perfeitamente aceitáveis, pois não tenho o que temer de uma investigação que busque a verdade.
Todos concordaram com movimentos de cabeça, e o sr. Copérnico manifestou-se pela primeira vez. Era o mais velho de todos, beirava os 80 anos e, apesar de ainda moverse com bastante presteza, apresentava uma voz correspondente à idade.
- Sr. Carmelo, estou retirado dos negócios da empresa há muitos anos, e raramente visito suas dependências. Mas um escândalo dessa ordem não pode passar impune. A suspeita sobre nossos diretores se me afigura absurda, mesmo porque lhe falta qualquer indicação de motivo. Queremos descobrir e punir o assassino, seja ele quem for. Era o que eu tinha a dizer.
Ele não tachara de absurda a suspeita sobre Sylvia, o que era bastante revelador do que lhe ia pela cabeça. Carmelo olhou para Barreto, o cunhado, e este sentiu-se obrigado a falar.
- Nada tenho com a empresa, como lhe disse, mas creio que posso falar em nome de minha irmã. Saindo daqui irei imediatamente encontrar-me com ela, e tenho certeza de que ela ficará satisfeita se souber que o senhor aceitou nossa proposta.
- Srta. Garbin? - falou Carmelo.
- Bem, acho que está tudo certo, se o senhor concordar, sr. Carmelo. Mas não podemos esquecer os objetivos desta visita. Estou sendo seguida por dois homens que permanecem separados, como se eu fosse uma assassina pronta para fugir, e isso não é nada agradável. Quero que tudo seja esclarecido o mais rápido possível, e acho que isso é o que todos aqui queremos.
Ela era esperta. Perceber um dos homens de Sandroni seguindo-a não era uma grande façanha, mas o outro que ela mencionara devia ser Erno ou Américo, e ambos são bons. Não deveria ter sido Tito, pois este ela não teria percebido, e além do mais ele andava ocupado com o museu, pelo que entendi.
Nardes pigarreou e tomou a palavra. Ele era o membro mais objetivo do grupo, assumira que Carmelo aceitaria a mudança de contratante e parecia estar com pressa de resolver logo o assunto e retirar-se.
- A questão dos seus honorários, sr. Carmelo, parece-me não ter sido explicitada no contrato com a srta. Garbin. Estivemos discutindo, meus sócios e eu, e estamos prontos a colocar à sua disposição um montante equivalente a 50 mil dólares, acrescidos das despesas que o senhor justificar. Parece-lhe satisfatória nossa oferta?
- É satisfatória - disse Carmelo. - O sr. Guerreiro providenciará a redação do contrato. Agora uma pergunta. Quem os senhores imaginam que teria acesso às chaves da porta do escritório, além das pessoas autorizadas?
- Já discutimos muito sobre isso - falou Nardes. - Não nos ocorre quem mais poderia ter lá entrado. É claro, há duas cópias na administração do prédio, ficando uma com a chefe das faxineiras e a outra com a segurança.
- E cada um dos senhores dispõe de apenas uma cópia dessa chave?
- Sim, pelo que sabemos há somente seis cópias na posse de pessoas da empresa, uma com cada diretor e duas com funcionários. Um deles é nosso gerente-geral e o outro é o supervisor de pessoal. Todos afirmam que não providenciaram a duplicação delas.
Carmelo abandonou o assunto e passou a fazer perguntas sobre a fusão, a situação financeira da empresa e outros assuntos genéricos. Nardes e Rodrigues incumbiam-se de respondê-las, e os outros visitantes apenas ouviam. Finalmente, usando o tom de quem está começando a encerrar a entrevista, Carmelo perguntou:
- Sr. Villanova, o senhor não é sócio da empresa, pelo que sei. Sua contratação foi iniciativa do sr. Pedroso?
- Sim, posso dizer que o convite partiu do sr. Pedroso, embora ele não tivesse decidido sozinho meu ingresso na empresa. - Ele mostrava menos energia do que se espera em um homem de 45 anos, e parecia bastante cansado e preocupado. Mas prosseguiu, um pouco mais à vontade. - Conheci o sr. Pedroso em um jantar na casa de meu pai, de quem ele era amigo desde os tempos de colégio, e naquela ocasião nasceu o assunto que deu origem à minha contratação.
- E onde o senhor desempenhava suas atividades antes de ingressar na empresa?
- Eu era diretor de marketing de uma firma de produtos químicos e farmacêuticos sediada em outro Estado. Era uma boa colocação, mas, por questões familiares, eu vinha planejando regressar à cidade onde nasci e na qual passei quase toda minha vida, quando surgiu a oferta do sr. Pedroso. Devo dizer que aceitei-a sem a menor hesitação.
- O sr. Villanova - falou Nardes, no tom de quem desejava encerrar o diálogo representa o sangue novo na administração de nossa empresa. Foi contratado há cerca de seis anos para assumir as funções antes desempenhadas pelo sr. Carter, quando este se aposentou. É para todos nós uma grande satisfação contar com seus conhecimentos especializados.
Enquanto essas conversas se desenvolviam, e mantendo a atenção no que se falava, eu havia datilografado o novo contrato, tentando não fazer muito barulho no teclado. Providenciei quatro vias, conforme instruções de Carmelo, e a um sinal dele distribuí as cópias. Todos leram e concordaram, Nardes e Rodrigues assinaram pela empresa e cada um ficou com uma cópia. Uma terceira foi entregue a Barreto para levar à sua irmã. Eles despediram-se, acompanhei-os à porta, providenciei a devolução de casacos e chapéus e saíram todos.
Quando voltei à sala, Carmelo estava muito empertigado na cadeira e olhava para um ponto no infinito.
- Qual deles? - perguntei, mas ele apenas grunhiu e disse-me para chamar Tito, que aguardava na cozinha.
Como não recebi ordem para sair, permaneci na sala enquanto Carmelo falava com Tito. A conversa foi rápida.
- Memorizou todos os rostos? - perguntou Carmelo
- Positivo - disse Tito. - Um deles eu já conhecia.
- Siga as instruções e reporte-me o que apurar. Se precisar de mais dinheiro fale com Max.
Pisquei o olho para Tito e disse-lhe que ele podia gastar à vontade, dinheiro não era problema para nós. Na verdade o problema era a falta de dinheiro. Mas o novo contrato deixara-me tranqüilo, e eu não precisaria providenciar o estoque de bolachas no dia seguinte.
Tito retirou-se e Carmelo comunicou-me que me daria instruções para as atividades de segunda-feira. Peguei bloco e lápis e preparava-me para escrever quando o telefone tocou. Era uma voz cava, decididamente de um homem bastante idoso, o que já estava ficando monótono, pensei. Os dois únicos jovens em toda a trama éramos Sylvia e eu. Ele queria falar com Carmelo, e identificou-se como Josias Nogueira, um dos curadores do Museu. Comuniquei a Carmelo e ele pediu-me que ficasse ouvindo.
- Boa-noite, sr. Nogueira. Quem fala é Franco Carmelo.
- Boa-noite, sr. Carmelo. Espero que a hora não seja imprópria. Soube por amigos do conselho curador que seu assistente esteve entrevistando alguns de nós hoje pela manhã. Eu passei o dia fora, e voltei apenas a tempo de assistir aos serviços fúnebres de nosso estimado presidente. Creio que eu teria algo a dizer-lhe com relação aos questionamentos efetuados por seu assistente.
- Pois não - falou Carmelo. - O senhor pode falar ao telefone ou prefere receber a visita do sr. Guerreiro?
- Falarei por telefone. Tenho pouco a dizer, de qualquer forma, e sinceramente não acho que seja coisa de muita importância. Entendi que o senhor está interessado em saber as razões do comportamento estranho do sr. Pedroso nos últimos dias. Bem, ele me confidenciou há pouco mais de um mês, pedindo a máxima reserva, que descobrira uma séria irregularidade nas contas apresentadas pela diretoria do museu. Disse-me que não era de agora, e que alguns dos balanços que aprováramos em anos anteriores continham fraudes quase perfeitas que não nos foi dado perceber. Era intenção dele apresentar provas e apontar os culpados na próxima reunião da diretoria do museu.
- E ele expôs a origem da fraude, ou o nome dos responsáveis?
- Não, sr. Carmelo, ele nada mais acrescentou.
- E o senhor, na qualidade de membro do conselho, não ficou desejoso de conhecer mais detalhes?
- Bem, sr. Carmelo. Todos sabiam que o sr. Pedroso era extremamente meticuloso. Em certa ocasião tratou um caso de clipes superfaturados como se fosse um assunto de segurança nacional. Qualquer desvio em assuntos de finanças deixava-o muito irritado, independentemente do montante envolvido.
- E nesse fato recente, sr. Nogueira, ele lhe sugeriu que poderia ser coisa mais séria?
- Para ele, como já lhe disse, qualquer coisa nessa área seria considerada muito grave.
- Em quantas ocasiões ele lhe falou sobre o problema?
- Apenas duas vezes, a última há umas duas semanas, ou menos. Ele me telefonou de seu escritório reafirmando que iria levar o assunto à diretoria do museu. Percebi que ele estava muito tenso, mas decidido a dar publicidade ao caso.
- E pelo que o senhor sabe, ele não comentou isso com outras pessoas? Membros do conselho, ou da diretoria do museu?
- Não, pelo que eu sei. Ele me pediu absoluto sigilo.
- E o senhor chegou a comentar o caso com alguém? Entenda-me, não estou sugerindo que o senhor tivesse traído a confiança do sr. Pedroso. Mas parece-me que, em sua opinião, o assunto talvez se resumisse a algum pequeno desvio sem maiores conseqüências.
- De maneira alguma, sr. Carmelo, não o comentei com qualquer pessoa. Mesmo porque admito que o assunto não me impressionou muito. E, se me permite, não consigo ver qualquer relação entre o que lhe expus e o crime cometido contra a pessoa do sr. Pedroso. Minha colaboração às suas investigações está sendo feita apenas no sentido de oferecer uma explicação para o estado de tensão do sr. Pedroso, que era pessoa sempre muito afável e cordial. Espero que o senhor tenha entendido este ponto.
- Sem dúvida, sr. Nogueira. Agradeço-lhe o interesse, e gostaria de contar com seu apoio, se necessitar de outras informações.
- Sinta-se à vontade, sr. Carmelo. Desejo-lhe boa sorte em suas investigações. Tenha uma boa noite.
Bem, Carmelo marcara um ponto. Mas a dificuldade em vincular o assassinato com o problema do museu persistia. O comportamento quase paranóico de Pedroso e o segredo de que ele se cercara sugeriam que, se houvesse algum conhecimento importante aí, ele o teria levado para o túmulo. Pensei em sugerir a Carmelo uma entrevista com a viúva de Pedroso, mas isso era coisa que não poderia ser feita logo após os funerais. Barreto, o cunhado de Pedroso, pareceu-me um inútil nesse particular, pois se soubesse de algo certamente teria falado na reunião que tivéramos há pouco. De qualquer forma, com o perfil de Pedroso que vinha surgindo de minhas entrevistas, parecia-me muito pouco provável que ele costumasse abordar tais assuntos com a esposa ou com o cunhado.
Sem comentar o telefonema, Carmelo ditou-me as instruções para o dia seguinte. Elas incluíam um contato com o inspetor Theobaldo, para ver em que pé andava a Homicídios, uma passada pela Folha da Noite para falar com Evandro Rezende e uma visita ao museu. Para esta última imagino que ele contava com meu charme com o público feminino, embora o que eu teria que obter lá resumia-se à composição da diretoria nos últimos dez anos e, se possível, qualquer falatório sobre algum escândalo financeiro que envolvesse algo maior que clipes para papéis, tudo isso supondo-se que eu não iria confundir com um vaso sanitário alguma das esculturas lá expostas.
Como Carmelo iniciara a leitura de um novo livro, decidi recolher-me a meu quarto, ao que ele não objetou.
Na segunda-feira levantei-me bem cedo, e após o desjejum fui matar a saudade do pessoal da Homicídios. Já no corredor encontrei Theobaldo, que me perguntou o que eu queria. Disse-lhe que nada, a visita era social, Carmelo me dera folga porque o caso estava fácil demais e não exigia minha participação. Mas se ele, Theobaldo, tivesse alguma coisa interessante para informar, eu registraria e até talvez contasse para Carmelo quando o encontrasse.
Ele disse que trabalhara todo o fim de semana, que estava com a mesma camisa usada no sábado e que não tinha nada para me dizer, e que se tivesse não diria do mesmo jeito. Fiz um ar magoado e pedi para falar com Sandroni, ele vetou a idéia e, para se livrar de mim, informou que as investigações do domingo nada haviam agregado ao caso, e que um batalhão da homicídios estava pronto para invadir o edifício da Av. Principal e espremer todas as pessoas que lá trabalhavam, desde contínuos a diretores. Desejei boa sorte e assegurei que iria recomendá-lo para uma promoção junto ao Chefe Venâncio. Ele virou-me as costas e eu saí para a rua, onde tomei um táxi e dei o endereço da Folha da Noite.
Evandro estava atarefado como sempre, mas admitiu-me em sua sala e concedeu-me 45 segundos. Disse-lhe o que eu queria, ele assobiou baixinho, olhou-me muito sério e informou-me que eu poderia conseguir tudo que pedira em menos de uma semana, visitando várias repartições do governo.
- Eu sei, Evandro - falei - mas como ando ocupado com um assassinato, sobrame pouco tempo. Assim, passarei aqui no início da tarde para ver o que você conseguiu.
- Claro, o que Carmelo está pedindo não tem nada que ver com o assassinato, entendi. Ele só quer ilustrar-se sobre falências de empresas. Posso tentar conseguir tudo para hoje, passe aqui às 14 horas e então trocaremos o pacote pelas informações que vocês têm sobre o caso Pedroso.
- Pedroso? Ah, aquele do envenenamento! Olhe, Evandro, se Carmelo sabe algo mais do que está nos jornais, ele não está me contando. Acho até que ele vai abandonar o caso.
Evandro olhou mais uma vez a lista que eu lhe passara e comentou pensativo:
- Há uns dois anos, ou mais, circularam boatos sobre um projeto de fusão que envolvia a Amberson-Pedroso. Parece que alguma coisa não estaria sendo conduzida com muita lisura.
- E os boatos mencionavam alguém especificamente?- interessei-me
- Não, mas falou-se na época em subornos de diretorias. De qualquer forma nada foi confirmado, a fusão não se concretizou e o assunto foi esquecido. Mas olhe, Max, nosso acordo tem duas mãos, e não sei por que motivo começo a pensar que tudo o que tenho recebido de você são apenas migalhas.
Resolvi bater em retirada, mesmo porque os 45 segundos há muito se haviam esgotado. Fiquei de voltar pela tarde trazendo duas loiras esculturais, ele poderia escolher a mais bonita, e ele me mandou cair fora.
Restava o museu. No imponente e vazio saguão informei a uma recepcionista que desejava falar com alguém das relações públicas. Ela pediu-me que aguardasse e convocou uma srta. Minie pelo telefone interno. Enquanto esperava, fiquei examinando uma enorme escultura feita de ferro retorcido e fios elétricos, adequadamente denominada "Caos", quando uma voz feminina falou a meu lado:
- Sr. Guerreiro? Sou a Minie, das relações públicas. Em que posso servi-lo? Olhei para ela e imaginei que o autor da escultura que eu estivera admirando não poderia ter escolhido modelo melhor. A srta. Minie passara há muito dos 40, o que tentava disfarçar com alguns quilos de maquiagem que apenas agravavam o efeito da idade. Usava grossos óculos de grau e calçava umas botinhas de pelica tamanho 44. Quanto ao resto é melhor não falar. Mas tinha um ar prestativo.
- Srta. Minie, sou jornalista freelance e estou preparando um artigo sobre personalidades ligadas às artes, não incluídos os artistas propriamente ditos. Interessa-me saber de pessoas que dedicam boa parte de suas vidas à divulgação de obras de arte, como, por exemplo, as que ocupam cargos de diretoria em instituições do gênero. O que estou buscando aqui, especificamente, é uma relação dos nomes que ocuparam a diretoria do museu nos últimos, digamos, dez anos.
- Isso é fácil - assegurou-me ela, enquanto pedia que a acompanhasse à sua sala.
- Por acaso temos aqui uma publicação recente que traça um histórico de nossas diretorias desde a fundação do museu.
Passou-me uma revista impressa em papel de alta qualidade, publicada pelo museu, e informou-me:
- O senhor vai perceber que ocorrem poucas mudanças na diretoria. Os mandatos são para quatro anos, e quase sempre os membros são reeleitos. As substituições acontecem principalmente em virtude do falecimento de algum diretor.
Perguntei, fazendo-me confidencial, se alguma vez ocorrera a substituição de algum diretor por malversação de fundos ou algo assim, e ela mostrou-se horrorizada com a idéia. A seguir perguntou-me, com ar de quem começava a suspeitar de minha honestidade, para que jornal mesmo eu trabalhava, disse-lhe que era para vários e resolvi encerrar a entrevista sem tentar saber quanto ela cobrara para servir de modelo à escultura da entrada.
Tomei um táxi e dei o endereço de casa. Durante o percurso dei uma olhada na revista do museu, e ao examinar as listas de diretores comecei a entender o que Carmelo procurava naquele santuário da arte.
Um pouco antes das onze eu estava abrindo a porta para Sandroni. Vinha sozinho e seu humor estava no habitual, isto é, péssimo. Sentou-se e ignorou meus comentários sobre o clima e sobre os assassinatos que ocorriam em nossa cidade.
Com a chegada de Carmelo ele foi logo despejando:
- O garoto admitiu. Os entregadores de lanches usam o elevador de serviço, que não dá para o saguão dos escritórios que ocupam andares inteiros. Chega-se a um corredor lateral, isolado da entrada principal por uma divisória onde há uma porta que não permanece trancada durante o horário de expediente. Ali, na quarta-feira, pouco depois do meio-dia, o rapaz encontrou um cidadão idoso que disse estar passando mal e pediu-lhe que trouxesse um copo d'água. O velho estertorava e apertava o coração. O garoto largou no chão o embrulho com o sanduíche e apressou-se a buscar a água no bebedouro que fica depois da curva do corredor. Quando voltou não havia mais ninguém ali, mas o lanche estava intacto no chão. Ele assegura que o saco de papel continuava lacrado com o grampo metálico, e por isso não achou necessário mencionar o fato a ninguém.
- E ele descreveu o homem?
- Precariamente. Asseverou que era idoso, tinha bigode e cavanhaque, usava óculos de grau e estava bem vestido. Uma pessoa com essas características comprou um sanduíche de carne fria e um suco no balcão da lanchonete cerca de meia hora antes, e solicitou que embalassem os produtos. Isso é bastante comum, e a esposa do proprietário, que estava no caixa naquela hora, disse que talvez pudesse identificar a pessoa, mas assegura que não era cliente habitual da lanchonete.
- Cavanhaque falso, e óculos idem - falou Carmelo.
- É o que pensamos. Diante das fotografias de nossos suspeitos, tanto o garoto como a senhora não identificaram qualquer semelhança com o estranho. Nossos desenhistas estão adicionando cavanhaques e óculos às fotos dessas pessoas, mas não creio que resulte algo positivo daí. A boa notícia é que isso reduz as suspeitas sobre sua cliente.
- Ex-cliente - falou Carmelo. - A diretoria da empresa entendeu por bem assumir a contratação de meus serviços.
- E isso muda alguma coisa? - Sandroni falou, após uns instantes de silêncio.
- Não muda nada, senhor Sandroni. Meu objetivo continua sendo descobrir o assassino do sr. Pedroso. Ficou claro para todos que os membros da diretoria e, eventualmente, os funcionários da empresa, não deixam de ser suspeitos.
- Poderia ser um deles a desempenhar o papel com o garoto no corredor?
- É uma possibilidade. De qualquer forma, quem fez isso parece ter sabido que o sr. Pedroso encomendara um lanche para aquela hora.
- A srta. Garbin pode ter passado a informação. Quem mais saberia disso?
- É o que temos que investigar. A srta. Garbin não sabe dizer se alguém pôde ouvi-la telefonando para a lanchonete e fazendo a encomenda. Ela informa, entretanto, que o sr. Pedroso solicitava lanches pelo menos três vezes por semana. Era uma hábito bastante conhecido de todos.
- Sei, ela nos disse. Isso nos deixa com um número de suspeitos muito maior que o inicial, mesmo que nos confinemos aos homens que trabalham na empresa.
Carmelo estava desinteressado, e Sandroni começava a sentir-se frustrado. Ficava cada vez mais difícil justificar o indiciamento de Sylvia, e mesmo a descoberta do método utilizado para trocar os sanduíches e introduzir o envenenado no escritório fornecia pistas muito vagas para a identificação do autor. Pela expressão dos olhos azuis que Sandroni fixava nele, Carmelo parecia perceber que uma explosão se aproximava. A ajuda oferecida no sábado resumia-se, até o momento, a trocas de idéias e à discussão de hipóteses, e Sandroni começava a desconfiar que Carmelo estava escondendo alguma coisa, provavelmente o nome e endereço do assassino. Não tendo como acusá-lo disso, mantinhase alerta e pronto para invadir qualquer brecha que encontrasse nas observações de Carmelo.
O telefone tocou, e Sandroni olhou-me atento enquanto eu começava a pronunciar a frase habitual.
- Escritório de Franco Carmelo ...
- Max? É Erno. Passe-me o sr. Carmelo, rápido.
Não querendo que Sandroni desconfiasse de alguma coisa, adotei um ar profissional e falei.
- Sr. Magnum, o sr. Carmelo está em conferência. Mas se o senhor me disser onde se encontra, ele dará retorno à sua ligação assim que possível.
O nome Magnum era um código combinado com Carmelo para indicar que um dos homens de campo estava na linha.
- É urgente, Max. A caça escapuliu e não sei o que fazer. Quem está aí é o Sandroni?
- Sim, sr. Magnum, vou avisar o sr. Carmelo. Tapando o bocal do aparelho, falei a Carmelo:
- O contador do sr. Magnum desapareceu e ele está histérico. Quer falar com o senhor.
- Vá até ele, Max, e trate de acalmá-lo. Leve o carro e ligue-me depois de entender o que aconteceu.
Perguntei a Erno onde ele estava e disse-lhe que me aguardasse. Sandroni não percebera nada. Saí, peguei o carro e encontrei-me com Erno no local indicado. Ele subiu, continuei rodando e nosso derrotado homem de campo contou-me o que acontecera, gesticulando muito.
- Estava seguindo a Garbin, conforme ordens do sr. Carmelo. Um homem de Sandroni tem feito o mesmo, mas ela já havia percebido isso e ficou atenta desde ontem. Acho que também me percebeu. Hoje ela esteve no escritório, de onde saiu às 10:30. Estivemos seguindo-a desde então, o sujeito da Homicídios é novato e nem sonha que estou na mesma jogada. Bem, ela entrou em uma dessas lojas femininas, começou a demorar, o rapaz ficou impaciente, entrou na loja e logo saiu correndo em direção a um telefone. Fui verificar e constatei que a loja tem uma saída nos fundos. A essas alturas ela já pode estar na Patagônia.
Eu não sabia por que Carmelo mandara seguir Sylvia, já que ele não a incluía na lista de suspeitos. Talvez temesse pela segurança de nossa ex-cliente, o que dava contornos mais sérios àquela escapada. Circulei um pouco pelas redondezas, observei que pelo menos duas viaturas policiais faziam o mesmo, e decidi que era perda de tempo continuarmos procurando. Voltei para casa preocupado, levando comigo um abatido Erno.
Quando entramos, Ezequiel informou-nos que Carmelo estava almoçando e que contava com boa companhia. Entrei na sala de jantar disposto a deitá-la em meu colo e darlhe umas palmadas. Ela olhou por cima de meu ombro, viu Erno e gritou.
- Esse é um deles, está me seguindo desde ontem! Você o pegou, Max!
Gostei do Max. Se ela resolvera me tratar com tanta intimidade não havia mais qualquer razão para bater nela. Pensei em beijá-la e esquecer tudo, mas Erno parecia querer esganá-la, o que ela deve ter pressentido pela forma como agarrou a faca que estava a seu lado. Carmelo resolveu a situação.
- Este é o sr. Costanera, que trabalha para mim. Ele está vigiando-a desde a noite de sábado, por ordens minhas. Ezequiel! Providencie mais dois lugares à mesa.
Ela pareceu não entender. Limpou os lábios com o guardanapo e olhou interrogativa para Carmelo.
- Eu pensei que o senhor estava certo da minha inocência.
- E estou, srta. Garbin. Falaremos sobre isso depois do almoço.
Durante as refeições Carmelo não admitia que se falasse de negócios. Saboreamos a vitela com batatas gratinadas, acompanhada por um clarete leve, sobre cuja elaboração Carmelo nos brindou com seus conhecimentos. Sylvia falou pouco, ainda se mostrava irritada com Erno e aparentemente logo iria transferir a irritação para cima de mim.
Depois do café fomos os quatro para o escritório e Carmelo informou:
- A srta. Garbin queria falar comigo hoje, sem a presença de outras pessoas da empresa ou de autoridades policiais. Sabendo-se vigiada lançou mão de um estratagema elementar para despistar seus seguidores.
Erno olhou para o chão e ficou meneando a cabeça, mas não falou nada. Carmelo continuou.
- Quando a srta. Garbin chegou a esta casa o senhor Sandroni já se havia retirado e eu preparava-me para almoçar. Convidei-a e, tendo ela aceitado, não tive ocasião de explicar-lhe minhas providências. Srta. Garbin, eu não desejava assustá-la desnecessariamente, mas desde o momento em que percebi que estávamos enfrentando um assassino decidido e dotado de grande inteligência, passei a temer por sua segurança. Incumbi o sr. Costanera de mantê-la sob vigilância, mesmo sabendo que o Delegado Sandroni tomara idêntica providência, embora com outras motivações.
- Mas sr. Carmelo, quem poderia querer me atacar? Eu nada sei que pudesse apontar o responsável pela morte do sr. Pedroso, e além do mais parece-me que continuo sendo a principal suspeita aos olhos da polícia e de pessoas da empresa.
- Não se trata do que a senhorita sabe, mas do que o assassino pode imaginar. Quem teve a frieza de executar o crime apenas dois dias depois da primeira e fracassada tentativa com o sanduíche, utilizando novamente um método que não deixou pistas concretas, não hesitaria em eliminar uma provável fonte de informações que poderiam vir a incriminá-lo.
- Não vou discutir, mas isso está me deixando cada vez mais assustada, sr. Carmelo.
- E com razão, srta. Garbin. Mas se ...
O toque do telefone interrompeu o que Carmelo estava dizendo. Atendi e a inconfundível voz de Sandroni trovejou.
- Coloque Carmelo na linha!
- Pois não, a quem devo anunciar? Aqui quem fala é Max Gue...
- Palhaço! Ela está aí, Guerreiro, eu sei! Faça Carmelo atender-me ou mandarei meus homens arrastarem todos vocês para cá.
Sinalizei a Carmelo indicando quem era, ele pegou o aparelho e permaneci na linha.
- Boa-tarde, sr. Sandroni. Acabei de almoçar e estava ...
- Ela escapou da vigilância de meu investigador. Aposto meu cargo como ela se encontra sentada à sua frente nesse momento. Não preciso lhe dizer que ocultação de testemunhas em um caso de homicídio constitui grave infração e ...
Ele ia continuar, mas Carmelo não estava disposto a ficar ouvindo os berros de Sandroni.
- Sr. Sandroni, a srta. Garbin realmente procurou-me ao final da manhã, almoçou comigo e encontra-se sentada em minha sala nesse instante. Ela fez umas compras mais cedo, tomou um táxi e aqui chegou sem maiores sobressaltos. Se o seu investigador conseguiu perdê-la é assunto que não me compete discutir. E agora, esclarecido este ponto, em que lhe posso ser útil?
Pelos ruídos que se ouviam na linha imaginei que Sandroni estivesse mastigando o telefone. Mas não devia ser isso, pois logo ele voltou a falar.
- Irei até aí agora mesmo, e é bom que ela permaneça onde está até eu chegar.
- Não, o senhor não virá, delegado. A srta. Garbin não está sendo acusada e mantém seu direito de ir e vir. Logo ela estará se retirando. Se o senhor deseja interrogá-la, convoque-a dentro dos procedimentos legais que o senhor tão bem conhece. Algo mais?
Com um palavrão Sandroni desligou o aparelho, que, pelo barulho que fez, deve ter ficado destruído. Percebi que a curta trégua entre Carmelo e Sandroni tornara-se coisa do passado. Sem se importar com isso, Carmelo prosseguiu.
- Srta. Garbin, o sr. Costanera continuará mantendo-a sob vigilância. Peço-lhe que não tente escapulir-se novamente, para sua própria segurança. E agora, a senhorita desejava ver-me com que finalidade?
- Bem, não tenho o que fazer no escritório, onde, além disso, algumas pessoas têm-me lançado olhares curiosos, nem parece a gente com que mantive um convívio agradável até poucos dias atrás. Não consigo ficar em casa com toda essa tensão. Pensei que talvez eu pudesse ajudar em alguma coisa nas suas investigações.
Carmelo soltou um longo suspiro, mas não externou o que certamente estava pensando. Como eu devia procurar Evandro Rezende às 14 horas cheguei a pensar em levá-la comigo, mas eu prometera duas loiras, e se chegasse só com uma Evandro poderia pensar que eu era um fracassado.
Carmelo agradeceu, disse que ela já tinha ajudado bastante e que só voltasse a procurá-lo se tomasse conhecimento de alguma coisa importante. Informou que logo estaria recebendo um colecionador de livros raros, disse que eu teria uma tarde bastante ocupada e assegurou que ela poderia ir aonde quisesse e que Erno estaria sempre poucos metros atrás dela.
Ofereci-me para chamar um táxi, ela disse que preferia caminhar, levei-a até a porta e ela partiu pela calçada sem rebolar muito. Erno seguiu-a, e pude observar um pouco adiante uma viatura discreta da Homicídios contendo dois investigadores que pareciam estar lendo o mesmo jornal. Pelo visto Sandroni não estava disposto a perdê-la uma segunda vez.
Entrei, despedi-me de Carmelo e saí novamente, tomando um táxi para ir à Folha. Recebi o material que Evandro coletara, agradeci e ia começar a explicar a ausência das loiras quando ele me tocou para fora da sala.
As demais incumbências que Carmelo me dera para a tarde eram delicadas. Eu deveria tentar entrevistar a sra. Pedroso, mas na condição de que não fosse necessário insistir. Além disso, minha agenda contemplava uma conversa com a sra. Amberson, viúva do outro sócio principal da empresa que falecera havia cerca de um ano, e com Aníbal Carter, um dos sócios que não compareceu à reunião em que Carmelo fora contratado. O último dos sócios, Antônio Cilento, passava grande parte do ano na Europa, onde se encontrava no momento. Por último, eu deveria conversar com Leonardo Villanova, pai do diretor Carlos e amigo íntimo do falecido Pedroso.
Conforme instruções de Carmelo, eu havia solicitado a Nardes que tentasse marcar as entrevistas. Assim, dirigi-me à sede da Amberson-Pedroso. Eram 14h40, e o pessoal da Homicídios deveria estar causando furor no prédio de escritórios.
Encontrei Theobaldo na portaria, dando instruções a dois policiais de aspecto feroz.
- Salve! - atirei para ele enquanto postava-me junto a um dos elevadores - Não se preocupe em segurar a porta enquanto entro.
- Aonde está indo? - perguntou-me ele de maneira idiota
- Visitar os clientes do sr. Carmelo. Parece que há pessoas estranhas no prédio e eles querem que eu expulse todos os curiosos.
Ele tomou o elevador comigo, acho que só para certificar-se de que eu desceria no sexto andar. Ao sair, disse-lhe:
- Vou começar por aqui. Você examina os andares acima deste - mas ele não respondeu, e a porta do elevador fechou-se.
Nardes recebeu-me imediatamente, e devo admitir que ele havia sido eficiente. Só não conseguira falar com a sra. Amberson, mas o filho dela, Nat, concordara em receberme em seu estúdio a qualquer hora antes das 18. Com relação à sra. Pedroso, informou-me que, consultada, ela declarara não poder adiantar nada sobre o que vinha preocupando o marido recentemente, e preferia deixar passar mais alguns dias antes de tocar em tão doloroso assunto. Para mim isso constituiu um alívio.
O primeiro encontro, agendado para as 15 horas, era com o sr. Villanova, que ocupava um cargo no conselho fiscal de uma instituição financeira sediada na Av. Principal, próxima do prédio que abrigava a empresa de nossos clientes.
Ele recebeu-me cordialmente, informou que dispunha de dez minutos e recostou-se na cadeira aguardando que eu fizesse as perguntas. Vestia-se com extremo apuro, tinha unhas bem cuidadas, ainda era um homem bonito para a idade, em torno de 65 anos, e não fazia questão de esconder que era vaidoso.
- Não tenho nada de muito específico a perguntar-lhe, sr. Villanova. O sr. Carmelo gostaria apenas de saber se, na sua qualidade de amigo íntimo do sr. Pedroso, seria de seu conhecimento algum fato que justificasse o comportamento tenso nele observado em seus últimos dias de vida.
- Sr. Guerreiro, meu relacionamento com o Pedroso data de nossos tempos de escola secundária. Há muito tempo nos encontrávamos apenas em ocasiões sociais, que, com o avançar da idade, começam a tornar-se mais raras, mas meu afeto por ele sempre se manteve forte. Angustia-me saber que no momento em que meu querido amigo dava o último suspiro eu me divertia na festa de casamento da neta do Carvalhosa. Mas meu filho Carlos pode saber mais do que eu sobre a tensão do Pedroso, e quero crer que ele já esteve falando com o sr. Carmelo.
- Sim, houve uma reunião ontem, mas nem o sr. Carlos nem os demais sócios presentes puderam oferecer qualquer interpretação para tal comportamento.
- Bem, como lhe disse, não vejo como eu poderia ajudar. Mas se eu tiver conhecimento de alguma coisa através de amigos comuns, fique certo que passarei a informação para o sr. Carmelo.
Com isso ele dava por encerrada a entrevista, mas eu tinha algo mais a perguntar. Levantamo-nos ao mesmo tempo e ele acompanhou-me até a porta. Havia uma bela pintura em estilo moderno na parede ao lado, olhei-a com interesse e comentei:
- Soube que o senhor é um grande apreciador de artes, e que fazia parte da diretoria do museu até o ano passado. O que o levou a renunciar ao cargo?
- Razões pessoais, sr. Guerreiro. Tenha uma boa tarde.
Essa era a vida de um detetive. Um tira, munido de uma ordem judicial, poderia insistir no assunto e até arrastar aquele esnobe para a delegacia mais próxima, mas um investigador particular sempre recebe a sugestão de não meter o nariz onde não é chamado, e às vezes isso é sugerido de forma bastante indelicada.
Localizei um táxi de aparência confiável e em pouco mais de 20 minutos estava à porta da residência do sr. Aníbal Carter. Ele falava pouco, apresentava nítidos sintomas de deficiência auditiva e mostrava dificuldade em entender minhas perguntas, que freqüentemente tinham de ser repetidas pela esposa, a qual não saiu de seu lado durante toda a entrevista. Percebendo que nada importante seria obtido ali, abreviei a conversa, agradeci e dirigi-me ao estúdio de Nat Amberson.
Ele me recebeu efusivamente. Devia ter perto de 50 anos, era solteiro, dedicava-se à pintura e vestia-se de forma a não deixar qualquer dúvida sobre suas atividades artísticas. Fez-me várias perguntas e comentários sobre o assassinato, a investigação, a ineficiência da polícia e o estado geral das artes no país, antes que eu desistisse de assumir o comando da conversa. Saí do estúdio sabendo que ele era filho único, que a família detinha 40% do capital da Amberson-Pedroso, que ele nunca se interessara por negócios embora o pai tivesse tido grandes planos nesse sentido, e que sua carreira artística sempre havia merecido o estímulo e o aplauso caloroso da mamãe. E, claro, ele nada sabia nem poderia saber das atribulações do falecido sr. Pedroso. Tentou mostrar-me suas obras mais recentes, mas aleguei um compromisso e jurei que voltaria outro dia.
Voltei para casa levando como única informação de valor a recusa de Villanova pai em expor os motivos que o levaram a retirar-se da diretoria do museu, além do envelope que Evandro me passara.
Se houve algum telefonema de Tito, Erno ou Américo em minha ausência ninguém me falou nada. Carmelo ouviu meus relatos antes de jantarmos, manifestou satisfação com tudo, examinou rapidamente os papéis que eu trouxera da Folha da Noite e não fez qualquer comentário.
Jantamos tranqüilamente e, uma vez de volta ao escritório, ele começou a examinar um atlas contendo mapas de todas as regiões do mundo. Nem parecia que estávamos em meio a uma investigação de homicídio.
O telefone tocou e, se eu imaginasse o que viria atrás, não teria atendido. Antes que eu dissesse qualquer coisa, uma enérgica voz feminina perguntou:
- Sr. Carmelo? Paula Amberson. Precisamos conversar.
- Boa-noite, sra. Amberson. Quem fala é Max Guerreiro, assistente do sr. Carmelo.
- Coloque-o na linha - comandou sem doçura Pedi-lhe que aguardasse e falei a Carmelo:
- É a sra. Amberson, dona de 40% do dinheiro de nossos clientes. Ela transformou o filho Nat num pintor que não precisa vender quadros para comer.
Carmelo atendeu e fiquei na escuta.
- Boa-noite sra. Amberson. Franco Carmelo falando. Em que ...
- Sr. Carmelo, estou indo até sua casa. Meu filho Nat me acompanhará. Tenho algo a lhe dizer.
- Perfeitamente, sra. Amberson. Que horário lhe ...
- Agora mesmo. Tenho seu endereço e estou vestida. - E desligou o telefone. Carmelo ficou me olhando estupefato, com o aparelho ainda na mão e com ar da
criança que pergunta o que teria feito de errado.
- Parece que era ela que comandava as coisas em casa - disse eu. - A sorte dos demais sócios da empresa é que ela não suja as mãos com negócios. Devo deixá-la entrar?
Carmelo bufou, deu de ombros e largou o telefone, voltando a concentrar-se no mapa da Pérsia.
Em menos de 15 minutos a campainha da porta soava. Ela não me cumprimentou, Nat sorriu-me timidamente e conduzi os dois à sala de Carmelo. Ela era pequena, magra e elegante, e parecia ter a energia de um furacão. Sentou-se em frente à mesa enquanto Nat estendia a mão para Carmelo e soltava uma expressão de êxtase ao ver os coloridos mapas que ele examinava. Já ia pegando o atlas para admirá-los melhor quando a mãe ordenou:
- Sente-se, Nat! - E dirigindo-se a Carmelo - Sr. Carmelo, o senhor foi contratado por nossa empresa para investigar o assassinato do sr. Pedroso. Fui consultada a respeito e concordei. Pode o senhor me dizer, por gentileza, que providências já foram tomadas para identificar e encarcerar o criminoso?
Não se pode dizer que Carmelo nunca se irritava. Ele não suporta que se metam em seus negócios, e normalmente fulmina com alguma observação feroz ou sarcástica quem se atreve a questioná-lo. Mas tratando-se de uma dama, e de cujo bolso sairia quase metade dos honorários contratados, ele foi obrigado a agir com diplomacia. Lentamente fechou o atlas, reclinou-se na cadeira e falou como quem se dirige a um aluno fraco em matemática.
- Sra. Amberson, meu contrato não me obriga a expor meus métodos ou resultados parciais das investigações que realizo. Quando eu atingir os resultados definitivos a senhora e seus associados serão prontamente informados.
- Por resultados definitivos o senhor quer dizer descobrir, prender e condenar o assassino, não é assim?
- Não, sra. Amberson. Posso apenas descobrir a pessoa que perpetrou o crime. As outras duas ações ficam a cargo da polícia e da justiça.
- Não sei como o senhor pretende fazer isso. Devo dizer-lhe que eu e Nat nunca nos imiscuímos na administração da empresa, e mesmo quando meu marido participava da diretoria raramente entrávamos em suas dependências. Mas quando um dos nossos associados é friamente assassinado por alguém de sua própria empresa, alguém em quem ele depositava confiança e que mostrou ser um pérfido traidor, cabe-nos exigir que o responsável por este bárbaro ato seja apontado e afastado do convívio das pessoas decentes, e o senhor foi explicitamente incumbido de possibilitar esse desfecho.
- E é do que estou me ocupando, minha senhora. Mas por que a senhora pensa o sr. Pedroso foi assassinado por alguém pertencente à empresa?
- E quem mais iria fazê-lo? Meu marido sempre dizia que onde há dinheiro a decência é superada pela ganância, e esse negócio da associação com a outra empresa envolve somas consideráveis, disso estou a par. Mas pelo que sei o senhor nem se dignou a pôr os pés no escritório onde todos continuam circulando impunemente. E consta-me que seu assistente - parou por um momento e olhou-me como para deixar claro que ela sabia quem eu era e que peraltices eu andara fazendo - tem usado seu tempo e nosso dinheiro falando com sócios aposentados e até com meu filho, que não entende nada de assuntos criminosos.
Nat olhou-me como a se desculpar pela indiscrição que cometera ao relatar para sua mãe nossa conversa da tarde, e sua expressão deu a entender que esperava que eu continuasse seu amigo e voltasse brevemente ao estúdio para admirar suas obras. Carmelo aparentemente desistira de se fazer entender, e parecia não saber como encerrar a entrevista sem cometer uma indelicadeza. Resolveu mudar de tática.
- Ao telefone a senhora manifestou que teria algo a me dizer, presumo que com relação ao crime que estou investigando. Posso saber de que se trata?
- Certamente, é por isso que estou aqui. Eu sei o que preocupava o sr. Pedroso nos últimos tempos.
Carmelo manteve-se em silêncio. Esperamos que ela tomasse fôlego e despejasse logo tudo que dizia saber, mas a mulherzinha era difícil. E insistiu.
- Aposto que o senhor nem imagina o que possa ter sido. Quando Nat me falou das perguntas que seu assistente andava fazendo entendi tudo, e apressei-me a telefonar-lhe, não é verdade, Nat?
Nat disse que era verdade, e ela continuou.
- Antes de falecer, bem antes disso, porque nos últimos meses ele já não atinava com nada, o sr. Amberson, meu marido, contou-me que a idéia da fusão já havia sido discutida antes que a doença o impedisse de continuar trabalhando. Nardes e Rodrigues eram os maiores entusiastas, e vinham trabalhando para convencer o sr. Pedroso. Meu marido descobriu, não me disse como, que a realização do negócio na maneira como estava sendo proposto continha alguma fraude, e que apenas a outra parte seria beneficiada. Era uma questão de contabilidade, não entendo nada disso, e ele achava que algum dos nossos sócios estaria mancomunado com a outra firma em busca de vantagens pessoais. Bem, o assunto foi esquecido e depois a saúde do meu marido forçou-o a retirar-se da empresa e finalmente ele faleceu, isso há oito meses. E agora tudo está sendo retomado. Para mim, o sr. Pedroso acabou descobrindo a sujeira toda, e é claro que isso iria deixá-lo sob forte tensão. O que eu penso é que ele descobriu o traidor e acusou-o, e por isso foi morto. O senhor tem apenas que identificar essa pessoa e mandar prendê-la, é para isso que estamos lhe pagando.
Carmelo começou a tamborilar com os dedos sobre a mesa. Ele não poderia explodir e despachar a mulher, porque o que ela dizia tinha lógica. A responsabilização de alguém de dentro da empresa sempre me parecera o procedimento mais evidente, o que justificaria o conhecimento prévio, por parte do assassino, do momento da entrega do lanche, e também ajudava na explicação da existência de cópias não registradas das chaves do escritório. O diabo é que a Homicídios vinha trabalhando com essa hipótese há 72 horas e nem um vestígio de pista havia surgido, mas, a aceitar o que nos dizia a sra. Amberson, teríamos agora um motivo para que um dos sócios eliminasse o sr. Pedroso. Carmelo cruzou os braços sobre a mesa e quebrou o silêncio que se estabelecera.
- E a senhora comentou isso que acaba de me dizer com algum dos outros sócios?
- Eu nem sabia que o sr. Pedroso andava preocupado e tenso. Quando Nat me falou que o senhor queria conhecer as razões desse comportamento, liguei as duas coisas na mesma hora, não é mesmo, Nat? Agora está tudo muito claro, o senhor não concorda?
- Devo reconhecer que seu raciocínio apresenta coerência, e acho que a senhora percebe a gravidade da acusação que está fazendo. Existem cinco sócios com participação minoritária, e qualquer um deles torna-se suspeito se aceitarmos as suposições do sr. Amberson.
- Dois não contam - falou ela com um gesto de mão. - O sr. Carter está quase inválido há anos, e o sr. Cilento nunca teve qualquer ingerência nos negócios da empresa e passa a maior parte do tempo no exterior. Sobram Nardes, Rodrigues e Carvalhosa, e é claro que não podemos nos esquecer do Villanova, embora não seja sócio. Mas ele não tem cara de assassino, você não concorda, Nat?
Nat concordava. Mas se fôssemos examinar a questão por este ângulo, todos os suspeitos seriam inocentados e continuaríamos na mesma. De qualquer forma, o que a sra. Amberson afirmava fortalecia a informação que Evandro havia me passado pela manhã. Comecei a me perguntar se Carmelo não fora precipitado ao deixar de explorar com mais profundidade a hipótese de uma trama urdida dentro da empresa, tendo preferido buscar motivações para o assassinato no âmbito das atividades de Pedroso no museu. Mas eu não sabia ainda que pistas Américo e Tito estavam seguindo.
Com o mesmo ímpeto que demonstrara ao entrar, a sra. Amberson levantou-se, fez um sinal de cabeça para que Nat a imitasse e finalizou enquanto se dirigia à porta:
- Bem, eu lhe disse o que o senhor precisava saber, sr. Carmelo. Agora competelhe desmascarar o traidor e assassino. Se precisar saber de mais alguma coisa nem pense em mandar seu rapaz perturbar meu filho, mas entre em contato comigo. Vamos, Nat! Boanoite, senhor Carmelo.
Acompanhei-os à porta da rua. Ela não se despediu de mim e Nat encolheu os ombros, deu-me um sorriso e fez um ar de quem diz "mãe é assim mesmo" e, com olhar cúmplice, desejou-me uma boa noite.
Quando voltei à sala, Carmelo estava imóvel e olhava para a frente com expressão concentrada. Passados alguns minutos perguntou-me:
- Essa tramóia que ela sugere, Max, é possível de ocorrer sem o conhecimento de todos os diretores?
- É, se um deles for mais esperto que os demais. Mas pelo que aprendi sobre o sr. Pedroso, não creio que ele pudesse ser enganado nesse assunto.
- E não foi, se aceitarmos que ela não está fantasiando o que ouviu do marido. Max, temos que resolver este caso amanhã.
- Isso é fácil. Basta identificar o assassino, acumular provas que o incriminem e entregá-lo a Sandroni. Depois pegamos o cheque e ...
- Max! No ponto em que estamos, a continuidade das investigações não vai resultar em qualquer benefício. Nosso assassino mostrou-se muito inteligente e encobriu com perfeição qualquer pista incriminadora. A polícia pode passar semanas revirando a cidade e não conseguirá identificá-lo, nem nós. Portanto, temos que fazer com que ele confesse o crime.
- Concordo, mas se não conseguirmos identificá-lo antes, de quem é que vamos arrancar uma confissão? Os rapazes da KGB dariam um jeito nisso, mas nós ...
- Ouça Max. Enquanto você estava fazendo suas averiguações na tarde de hoje também saí a campo e tive umas conversas bem proveitosas com pessoas que sabem o que dizem. As coisas começam a se encaixar e já estou tendo uma idéia mais clara do que pode ter constituído o motivo para o assassinato. E é em cima do motivo que vamos desmascarar o criminoso.
- Certo - falei um tanto amuado - Quem sabe o senhor me conta o que descobriu.
- Vamos a isso. Mas antes veja o que já temos na linha de oportunidade e meios. No que se refere a meios comecei admitindo que todos os suspeitos e os não-suspeitos estavam empatados, pois a dificuldade para conseguir o veneno é a mesma para todos. No entanto, no domingo o sr. Carlos Villanova nos disse que trabalhou em uma indústria química há seis anos. Se nada mais surgisse ele ficaria com a honrosa posição de principal suspeito na questão dos meios. Mas descobri hoje que o irmão do sr. Nardes é um militar da reserva que, quando na ativa, comandou um setor incumbido do estudo de armas químicas. E mais, o falecido pai do sr. Carvalhosa era farmacêutico. Bem, com três suspeitos tendo alguma probabilidade de acesso ao veneno as coisas continuam indefinidas, não lhe parece?
- Entendo. São indícios muito vagos, mas ...
- Quanto à oportunidade - interrompeu-me Carmelo - a maior suspeita de ter envenenado a água é a srta. Garbin. No entanto, Rodrigues e Nardes também podiam tê-lo feito. Como ambos declaram que sempre estiveram juntos na faixa horária em que isso ocorreu, pode-se pensar que agiram em cumplicidade. Mas temos também Carlos Villanova, que convenientemente saiu mais cedo naquele dia. É claro que ele foi ao oftalmologista, isso foi checado por Sandroni. Mas note que ele não tem um álibi indestrutível entre o momento em que saiu do consultório e a hora em que chegou em casa. Muitos outros podem ter tido a oportunidade, mas até o momento não apareceu ninguém mais nessa lista. Como ficamos até aqui?
- Bem - falei depois de pensar um pouco - Nardes teve a oportunidade, sempre que tenha agido em cumplicidade com Rodrigues. Villanova não provou que não teve a oportunidade. E ambos teriam mais chances que os outros suspeitos na hora de conseguir o veneno. Isso é promissor!
- É, mas não esqueça que Carvalhosa, sócio aposentado, também está na lista dos que teriam maiores chances de obter o veneno. E nada impede que qualquer outra pessoa conhecida visitasse o sr. Pedroso, lá chegando depois de encerrado o expediente. Se fosse um amigo, certamente seria recebido na sala do presidente, e se ele fez tudo entre as 17h30 e as 18hOO, por hipótese, quando havia muito movimento na portaria do prédio, não é obrigatório que tenha sido percebido pelo porteiro. E mais, se imaginarmos que pode haver alguma cópia clandestina das chaves do escritório, a questão da oportunidade nos deixa com um leque de suspeitos de tamanho indefinido, não é mesmo?
- Entendo. Esse é um caso em que oportunidade e meios produzem suspeitos demais.
- Então parti para os motivos. Bem, a srta. Garbin pode ter sido amante do sr. Pedroso, não é? E entre os diretores e sócios sempre me pareceu provável a existência de algum motivo que justificasse a eliminação do presidente. Não se encontrou nada, mas hoje confirmei, em fontes altamente colocadas, que a informação que Evandro lhe passou, e que a sra. Paula Amberson confirmou com tanta ênfase, tem bases reais. Nas discussões sobre a fusão com outra empresa, desenvolvidas há uns dois anos, teria havido uma tentativa de suborno, e sabe quem eram os diretores que tratavam do assunto então? Nardes e Rodrigues. O que você acha disso? Esses dois sempre aparecem juntos.
- Estou entendendo. E como um é o álibi do outro, ao envenenar a água devem ter imaginado que todas as suspeitas recairiam sobre Sylvia, como de fato ocorreu.
- Mas vamos prosseguir. Se admitirmos que a oportunidade de envenenar aquela água não está restrita apenas a pessoas que trabalhavam no escritório, a busca de motivos fora da empresa começa a se justificar. Aqui entra o museu. Barreto, cunhado da vítima, foi diretor financeiro daquela instituição por um longo período, e desligou-se do cargo há cerca de um ano. Ele é sócio proprietário de uma pequena indústria que, conforme os documentos cedidos por Evandro, andou à beira da falência um tempo atrás mas conseguiu recuperar-se. Villanova pai, grande amigo do sr. Pedroso, largou seu cargo na diretoria do museu há uns poucos meses, e tudo indica que nossa vítima estava atrás de alguma coisa podre por lá. Se imaginarmos que a recente tensão observada no sr. Pedroso pode ter alguma relação com o museu, começa a ficar muito suspeita a recusa do sr. Villanova em expor os motivos de sua retirada, não é mesmo? Então podemos imaginar que tanto ele como o filho teriam um motivo para eliminar Pedroso, se este constituísse uma ameaça a Villanova pai. Este tem um álibi para aquela hora, mas o filho não.
- Sim, mas quando identificamos possíveis motivos, precisamos cruzá-los com a oportunidade, não é? Temos que definir qual o suspeito que, tendo motivos, teve também a oportunidade de envenenar aquela água.
- Correto. Mas você percebe que esse cruzamento não elimina da lista qualquer de nossos principais suspeitos? E note que elegemos como possíveis motivos apenas contendas internas na empresa ou alguma desonestidade no museu. Se não encontrarmos nada por esse lado, teremos que pensar em outros motivos, e isso só faria aumentar o número de suspeitos. Está percebendo a encrenca? Mas nem tudo está perdido graças àquele sanduíche.
- Claro! - falei dando um pulo na cadeira - Temos que descobrir quem teve a oportunidade de executar as duas ações, pois certamente quem envenenou a água e o sanduíche foi a mesma pessoa.
- Não necessariamente, o assassino pode ter um cúmplice. Mas vamos aceitar provisoriamente que foi a mesma pessoa. Agora veja, no dia do sanduíche, conforme a srta. Garbin me relatou em nossa conversa no sábado, no momento em que o sr. Pedroso falava com ela pela linha interna instruindo-a sobre o lanche, o cunhado Barreto estava com ele na sala. E tem mais. Naquele momento o sócio Carvalhosa, que raramente aparece na empresa, passou pela ante-sala do gabinete do presidente e consultou a moça sobre os planos do sr. Pedroso para o almoço, ocasião em que ela informou que o chefe acabara de pedir um lanche para comer no escritório. Lamentando não contar com a companhia do amigo para o almoço, ele se retirou, e ela não sabe dizer se ele viu a anotação sobre o sanduíche que estava em um papel em cima da mesa. Quer mais? Naquela hora Villanova pai estava visitando o filho, tendo ambos saído para almoçar logo depois.
- Suspeitos demais aqui também. É, já vi que esse caso é do tipo que requer tortura para ser solucionado. Temos permissão para isso?
- Não temos - disse ele sem rir - O que o caso requer é esperteza. Ligue para Sandroni e diga que ... Não, eu mesmo falo com ele. Faça a ligação.
Comecei a discar e consegui localizar Sandroni na terceira tentativa. Ele estava magoado, mas a ligação de Carmelo deve ter-lhe dado alguma esperança, já que não bateu o telefone quando me identifiquei. Carmelo pegou a extensão e eu fiquei na linha.
- Delegado Sandroni, como tem passado? Obtive há poucos minutos uma informação que quero lhe passar, conforme lhe prometi
Carmelo contou resumidamente o assunto de nossa entrevista com a sra. Amberson, e Sandroni ouviu tudo muito comportado.
- E o que o senhor acha disso tudo, sr. Carmelo?
- Bem, isso sugere uma linha de investigação que não temos explorado com muito afinco. Mas, independentemente disso, eu gostaria de fazer uma ampla exposição dos fatos que apuramos até o momento, e imagino que amanhã, digamos às 18 horas, nos escritórios da Amberson-Pedroso, seria uma ocasião adequada. O senhor está convidado, e também o Inspetor Theobaldo.
- Quem estará presente? - rugiu Sandroni, para quem a menção a Theobaldo deve ter parecido bastante sugestiva.
- Meus clientes, compreendendo os três diretores e eventualmente o sócio Copérnico Carvalhosa, mais a srta. Garbin. Não creio que a sra. Pedroso deseje comparecer, mas acho que ela poderá ser representada pelo irmão. Convidarei também a sra. Amberson. Parece-me que todos os mencionados vão concordar prontamente com minha solicitação.
- Sei - falou Sandroni, mas rugindo menos desta vez. - E quem é que não concordará prontamente e que eu devo levar?
- O sr. Leonardo Villanova, membro do conselho fiscal do BAC Trust Bank, e o sr. Josias Nogueira, do conselho curador de nosso museu de arte moderna.
- Ora, sr. Carmelo. O senhor está querendo figurões como platéia. Posso saber como o senhor pensa que vou obrigar essas pessoas a comparecerem a essa reunião?
- Com relação ao sr. Nogueira, mencione uma informação que ele me forneceu recentemente, e que agora eu posso considerar como relevante para a elucidação de um caso de homicídio. Se ele relutar, o que me parece pouco provável, arranje uma ordem judicial, mas leve-o. Para o sr. Villanova o senhor pode dizer que o filho dele está metido em uma encrenca, ou qualquer coisa no gênero. Mas eu o quero lá.
- Vou ver o que consigo, sr. Carmelo. Mas se isso for apenas teatro, asseguro-lhe que sua licença de detetive ...
- Sr. Sandroni, se o senhor não sair de nossa reunião de amanhã levando o assassino, eu mesmo lhe entregarei minha licença. Tenha uma boa noite.
Agora a coisa ficara divertida. Se Carmelo entregasse sua licença eu perderia meu emprego, e com o mercado de detetives particulares em baixa eu talvez tivesse que pedir uma colocação para Sandroni e depois passaria o tempo lustrando as botas de Theo Theobaldo. A perspectiva não era animadora, por isso falei, tentando parecer despreocupado.
- O senhor pode estar pensando em dedicar tempo integral a seus livros velhos e à história grega, mas eu tenho alergia a poeira e não consigo me entusiasmar por Leônidas ou Sócrates. Vamos descobrir o assassino durante o dia de amanhã ou ele vai aparecer por aqui e se confessar arrependido?
- Max, eu sei quem fez e por que foi feito, e posso imaginar como foi feito. Mas não tenho como reunir provas, e nem a polícia as conseguirá. Como falei antes, temos que forçar uma confissão, mas para isso eu preciso de indícios mais fortes, preciso de algo que possa deixá-lo assustado e o faça fraquejar. Veja que Tito e Américo estejam aqui amanhã bem cedo.
No dia seguinte, terça-feira, as coisas começaram a andar depressa. Tito e Américo chegaram cedo, e Carmelo passou-lhes instruções enquanto eu dava vários telefonemas da saleta ao lado.
Comecei ligando para o sr. Nardes, e em menos de 20 minutos ele retornou a ligação e me assegurou a presença do mesmo grupo de domingo, isto é, Rodrigues, Carvalhosa, Villanova e Barreto, além dele mesmo. Tentou saber se haveria alguma revelação importante, mas fiz de conta que eu era apenas o menino de recados de Carmelo, e ele não mostrou qualquer dificuldade para aceitar essa mentira.
Quando liguei para a sra. Amberson e convidei-a para a reunião ela foi logo dizendo que queria falar com Carmelo, aparentemente não confiava nem um pouco em mim, mas finalmente aceitou minha palavra e informou que levaria Nat, é claro.
Deixei por último o telefonema para Sylvia Garbin. Ela não comparecera ao escritório da empresa, e localizei-a em casa perto do meio-dia. Informou-me que estava entediada e que no momento tentava cozinhar alguma coisa, mas que não era boa em atividades culinárias. Disse-lhe que isso não representava qualquer obstáculo à concretização de uma união baseada em afinidades e sentimentos, ela riu mas não perguntou minha idade, e então convoquei-a para o encontro com Carmelo.
- O sr. Carmelo descobriu o assassino? - perguntou-me entusiasmada.
- Ele não me disse - falei em tom queixoso - mas o sr. Carmelo é assim mesmo. De qualquer forma, a idéia geral da reunião é a de apresentar os resultados obtidos até agora em nossas investigações.
Ela pareceu decepcionada, mas não prolongou a conversa. Fui compreensivo e não insisti, pois ela dispunha de menos de sete horas para vestir-se para a reunião.
Comuniquei a Carmelo as providências que tomara, disse-lhe que Sandroni não fizera contato e que talvez estivesse no Haiti tomando sol, e que, após engraxar meus sapatos, eu disporia de algum tempo durante a tarde para executar alguma tarefa que ele achasse importante. Ele ignorou meu sarcasmo e disse que eu deveria ficar em casa aguardando notícias dos homens de campo.
Depois do almoço Carmelo sentou-se em sua cadeira no escritório, fechou os olhos e permaneceu imóvel por mais de uma hora. Nesses momentos eu sabia que não adiantava tentar falar com ele, pois a febril atividade de seu cérebro isolava-o do mundo. Imaginei que ele estava concebendo o estratagema que usaria para fazer o assassino confessar, mas quando finalmente levantou-se e comunicou-me que iria ter com Ezequiel, pois acabara de desenvolver uma nova hipótese sobre a batalha das Termópilas, fiquei com vontade de atingi-lo pelas costas com um peso de papel.
Nas duas horas seguintes o único acontecimento marcante foi uma ligação de Erno comunicando-me que tudo estava calmo e que a srta. Garbin não saíra de casa o dia todo. Informei-o da reunião e disse que depois de certificar-se de que Sylvia entrara a salvo nos escritórios da Amberson-Pedroso ele poderia ir para casa descansar.
Tive bastante tempo para pensar e tentar descobrir quem sairia algemado da reunião. O problema é que tínhamos suspeitos demais e, conforme o ângulo do qual se examinasse o assunto, encontravam-se evidências tanto para incriminar como para inocentar todos. Na noite anterior eu tentara saber quem era o assassino, mas Carmelo demonstrou que ambos tínhamos as mesmas informações, e que eu poderia descobrir tudo sem a ajuda dele.
Carmelo e eu chegamos às 17h45 e fomos recebidos por Nardes, que logo nos introduziu na espaçosa sala do presidente. Com a permissão dele, providenciei a montagem do cenário para a reunião, colocando em frente à enorme mesa de trabalho duas fileiras de quatro pesadas cadeiras estofadas em couro, retiradas da mesa de reuniões que havia no outro extremo. Encostadas na parede à direita já havia uma poltrona e duas cadeiras, e eu providenciei outras duas que coloquei na ponta esquerda da mesa, onde achei adequado instalar Sandroni e eu mesmo. No centro da comprida sala permaneceram quatro poltronas distribuídas ao redor de uma mesa baixa com tampo de vidro.
Eu terminava a arrumação quando entraram Rodrigues e Villanova filho, e mal tínhamos acabado de trocar cumprimentos quando chegou o Delegado Sandroni, trazendo Villanova pai e o sr. Josias Nogueira. Theobaldo acompanhava-os com ar enfadado. Villanova cumprimentou a todos educadamente, mas com secura. Nogueira mostrou ser um velhote afável e simpático, e seu aperto de mão era cordial.
Ficamos todos em pé a um canto, trocando generalidades. Theobaldo cruzou os braços e encostou-se displicentemente na parede ao lado da porta.
Os demais chegaram em três grupos. Primeiro vieram Carvalhosa e Barreto, e logo a seguir a secretária anunciou a chegada de Paula Amberson, que entrou seguida pelo filho Nat, fez uma seca saudação a todos os presentes, sentou-se na poltrona que estava encostada à parede e com o queixo indicou a Nat a cadeira a seu lado.
Por fim, deslumbrante em seu casaco de peles, chegou Sylvia Garbin. Estava visivelmente nervosa, cumprimentou a todos e ficou em pé sem saber que atitude tomar. Nardes ia oferecer-lhe uma das poltronas do centro da sala, mas a sra. Amberson foi mais rápida.
- Sente-se aqui a meu lado, minha jovem - comandou ela, como quem diz "não se misture com assassinos".
Sylvia concordou, claro, mas não se estabeleceu qualquer diálogo entre as duas.
Nardes consultou Carmelo e este sentou-se na cadeira do falecido presidente. Como achei que ele preferia ficar olhando de frente para o assassino, o arranjo providenciado pela sra. Amberson mostrava-se adequado. Ficando ela, Sylvia e Nat à direita de Carmelo, os demais, que ainda permaneciam em pé, acabariam distribuídos nas duas filas de cadeiras colocadas na frente da grande mesa. Como num acordo tácito, os diretores Nardes, Rodrigues e Villanova e o sócio Carvalhosa ocuparam as cadeiras da primeira fila. Nas de trás sentaram-se Barreto, Nogueira e Villanova pai, este imediatamente atrás do filho, tocando-lhe no ombro com a mão enquanto sentava. Sandroni sentou-se encostado à parede que ficava à esquerda de Carmelo, de onde teria uma visão panorâmica da platéia, e eu acomodei-me ao lado dele. Theobaldo arrastou uma cadeira e postou-se ao lado da porta que dava para a saída.
Carmelo aguardou que todos ficassem atentos, lançou uma olhada geral à platéia e começou a falar.
- Senhores, sra. Amberson, srta. Garbin. Convidei-os hoje para esta reunião, em acordo feito com o Delegado Sandroni, numa tentativa de trazer luz ao crime cometido contra a pessoa do sr. Pedroso. Nenhum dos senhores foi forçado a comparecer hoje, e quero enfatizar que o que eu disser aqui não tem o apoio ou a anuência das autoridades. O Delegado Sandroni e o Inspetor Theobaldo aqui se encontram na qualidade de observadores.
Ninguém se manifestou e ele prosseguiu.
- Como todos devem saber, fui contratado inicialmente pela srta. Garbin para descobrir o assassino do sr. Pedroso. Posteriormente este contrato foi assumido pela empresa, com a minha concordância e a da srta. Garbin. Isso não mudou nada em termos de objetivos. Ficou estabelecido que se eu encontrasse evidências que incriminassem um ou mais de meus contratantes, as autoridades policiais seriam imediatamente informadas. Isso foi aceito por todos.
As quatro cabeças da primeira fila concordaram enfaticamente. Sandroni examinava-os com ar de perdigueiro. Villanova pai mexeu-se na poltrona, impaciente, e a sra. Amberson lançou um olhar de integral apoio a Carmelo, embora ele não estivesse olhando para ela. Recostando-se na cadeira ele continuou.
- Na noite da quinta-feira passada a srta. Garbin brindou-me com o que pensei ser uma fantasia de uma jovem dedicada ao patrão. Poucas horas depois fui forçado a admitir que me enganara, ao me deparar na manhã de sábado com a notícia sobre o assassinato do sr. Pedroso. No mesmo dia aceitei a srta. Garbin como cliente e, depois de ser brindado com a visita do Delegado Sandroni, com quem conversei sobre alguns dos resultados iniciais do inquérito policial, iniciei minhas investigações. Agora estou com um problema e necessito de sua ajuda. Prometi ao sr. Sandroni que ele sairia daqui levando consigo o assassino, mas não tenho como ...
- Hah! - falou Villanova pai, fazendo um gesto teatral com as mãos. - Isso está ficando muito bom. Delegado Sandroni, não foi para isso que o senhor me convidou a comparecer a esta exótica reunião. Se eu sequer imaginasse o teor das colocações do sr. Carmelo, certamente não teria acedido em acompanhá-lo.
Sandroni mostrou-se embaraçado. A declaração de Carmelo pegara-o de surpresa, e ele rosnou:
- Senhor Carmelo, há pessoas na sala que ...
- Um momento, sr. Sandroni - atalhou Carmelo. - Fiz-lhe uma promessa e pretendo cumpri-la. É importante que eu possa conduzir a conversa da maneira que eu decidir ser mais adequada. Peço-lhe, e aos demais, que tenham um pouco de paciência
Virando-se para Villanova pai, bombardeou:
- Sr. Villanova, já que o senhor parece ansioso para manifestar seu pensamento, poderia nos informar que razões o levaram a abdicar do cargo de diretor do museu?
Villanova não se deu por achado. Com o ar mais esnobe que pôde assumir, cruzou as pernas e falou:
- Pensei que o seu assistente já lhe tivesse informado a respeito, sr. Carmelo. Declarei na ocasião e declaro agora que minhas razões para aquela decisão só a mim dizem respeito. Felicito-o, entretanto, pela relevância que a questão oferece no esclarecimento do assassinato que o senhor investiga. Delegado Sandroni, isso está ficando realmente ridículo!
Sandroni não respondeu. O clima começava a ficar tenso, mas os demais decidiram permanecer em silêncio. Carmelo retomou a palavra.
- Chegaremos lá, sr. Villanova. Agora eu gostaria de continuar na seqüência que programei. Muito bem. É certo que quando ocorre um assassinato planejado o criminoso deve dispor de oportunidade, meios e motivo para executar seu intento. As investigações policiais indicaram que várias pessoas tiveram a oportunidade de adicionar veneno à garrafa de água servida ao sr. Pedroso pela srta. Garbin. A principal suspeita, desde o início do caso, passou a ser a própria srta. Garbin. No entanto, os Srs. Nardes e Rodrigues também tiveram a oportunidade de introduzir o veneno. A eles soma-se o sr. Carlos Villanova, que tinha chaves da entrada e poderia ter utilizado a escada de incêndio para ingressar no prédio. Os álibis dos dois funcionários que dispunham de chaves foram confirmados, mas não podemos esquecer que havia duas cópias com a administração do prédio, e que não era impossível haver cópias não registradas em mãos de qualquer outra pessoa. Além disso, algum conhecido do sr. Pedroso poderia tê-lo visitado aqui depois do término do expediente, tendo a própria vítima aberto a porta para o assassino que, após adicionar o veneno à água, poderia arranjar um motivo para ser imediatamente conduzido à saída pelo sr. Pedroso, não necessitando, portanto, possuir chaves para retirar-se. Bem, senhores, o campo das oportunidades tornou-se logo muito amplo, e abandonei as especulações a respeito. Fixei-me então nos meios.
O silêncio era pesado. A exposição de Carmelo conseguira captar o interesse de todos, e até o sr. Villanova pai parecia estar apreciando a palestra. Carmelo prosseguiu.
- Não é comum as pessoas andarem com cianeto nos bolsos. A comercialização de substâncias tóxicas é rigorosamente controlada pelas autoridades, exatamente para evitar infelicidades como a que estamos examinando. Concentrei-me neste aspecto e coloquei meus homens em busca de pistas. Em minha conversa de domingo com alguns dos senhores, o sr. Carlos Villanova informou-me que havia trabalhado em uma empresa do ramo químico e farmacêutico, que ...
- Não responda nada, Carlos - saltou Villanova pai, levantando-se abruptamente.
- Delegado Sandroni, eu e meu filho não falaremos mais nada sem a presença de nosso advogado.
- Sente-se, sr. Villanova - falou Carmelo com enorme paciência - Os senhores não estão sendo submetidos a um inquérito. Não estou fazendo qualquer acusação, e nem teria autoridade para isso.
Carlos voltou-se para o pai e falou, com voz fraca.
- Sente-se, papai. Está tudo bem. - E dirigindo-se a Carmelo. - O senhor supõe, então, que o fato de eu ter trabalhado numa empresa química há mais de seis anos torna-me suspeito de possuir veneno? Gostaria de informá-lo sobre os rígidos controles que são adotados por fabricantes de produtos tóxicos, que praticamente inviabilizam qualquer desvio dessas substâncias, mesmo por parte dos funcionários diretamente envolvidos em sua manipulação, o que certamente não era meu caso. Aconselho-o ...
- O senhor não me aconselha nada, sr. Villanova - cortou Carmelo suavemente Não o acusei de nada, apenas mencionei uma coincidência. Também não disse que é impossível obter-se veneno no comércio clandestino, e um assassino decidido teria êxito nessa tarefa. Agora peço-lhe que insista com o senhor seu pai para sentar-se, assim as coisas ficarão mais fáceis.
Villanova pai sentou-se e olhou furioso para Sandroni. O delegado passaria maus momentos ao término da reunião, a não ser que ... Mas Carmelo continuou a falar.
- Logo entendi, no entanto, que a disponibilidade de veneno não restringia nossa lista de possíveis suspeitos. Note-se, por exemplo, que o falecido pai do sr. Carvalhosa era farmacêutico, estou certo, sr. Carvalhosa?
- Sim, é isto - falou Carvalhosa assustando-se - mas não vejo ...
- Fique calmo, sr. Carvalhosa. Tenho mais. O sr. Nardes tem um irmão que é coronel aposentado de nossas forças armadas. O senhor poderia nos falar das ocupações de seu irmão enquanto ele estava na ativa, sr. Nardes?
- Não é segredo - falou Nardes com muita calma - Meu irmão era um dos responsáveis por um setor das forças armadas que se ocupa com o estudo de armas químicas.
- Não preciso continuar nessa linha - falou Carmelo - Não, senhores. Logo me convenci que precisava identificar um motivo para o crime, já que oportunidade e meios não pareciam conduzir a uma solução.
A tensão reduzira-se um pouco, mas permanecia latente. Nenhum dos presentes encontrava-se realmente à vontade na sala, com exceção de Nat, que parecia estar se divertindo muito com tudo o que era dito. Villanova pai acalmara-se, mas mantinha uma expressão que deixava claro que rechaçaria qualquer ameaça de Carmelo a ele ou a seu filho.
- Na análise de motivos, o primeiro campo a ser explorado dizia respeito aos negócios da empresa. É claro que não descartei a possibilidade de motivos pessoais. A srta. Garbin poderia estar tendo uma relação íntima com o sr. Pedroso, muito bem escondida de todos, e talvez aí residisse sua motivação para eliminar o chefe se ele, digamos, estivesse tentando pôr um fim ao envolvimento dos dois. Isso acontece com mais freqüência do que se imagina.
Sylvia ficou muito pálida e pensei que ela ia iniciar um lamuriante protesto, mas a sra. Amberson segurou-lhe firmemente o braço e fez um sinal de mão mandando-a calarse. Ninguém mais olhou para ela.
- Por razões que não necessito expor, abandonei provisoriamente essa hipótese e concentrei-me em outras questões. Dois de meus homens estiveram desde sábado realizando pesquisas e comunicando-me suas descobertas por telefone a cada poucas horas. O sr. Guerreiro entrevistou-se, a meu pedido, com um certo número de pessoas ligadas direta ou indiretamente ao sr. Pedroso, e já ao meio-dia de segunda-feira eu dispunha de elementos que me indicavam possíveis motivos do crime. Ainda na noite de ontem, a sra. Amberson esteve em minha casa e levou-me elementos que reforçavam informações que eu possuía.
Nardes e Rodrigues olharam interrogativamente para a sra. Amberson, e ela sustentou-lhes o olhar. Carvalhosa parecia não saber o que estava ocorrendo, e olhou-a como se só então tivesse percebido a presença dela na sala. Nat sorria para todos.
- E que informações seriam essas, sr. Carmelo ? - perguntou delicadamente Nardes.
- Eram pistas, sr. Nardes, que apontavam para a possibilidade de o sr. Pedroso ter descoberto um processo fraudulento nas negociações envolvendo a fusão que está sendo programada. Aceito isso, era de se supor que ele tivesse levado suas descobertas ao conhecimento do responsável pela fraude, que seria um de seus associados, o qual, para livrar-se do escândalo e talvez da prisão, decidiu eliminar o sr. Pedroso.
Rodrigues ficou muito vermelho e começou a respirar com dificuldade. Estava preparando um indignado protesto, mas Nardes manteve-se no comando. O homem tinha sangue frio, deve-se admitir.
- Sr. Carmelo, acho que temos aqui uma grande confusão de datas. Presumo que seja do seu conhecimento que, há cerca de dois anos, estivemos discutindo um processo de fusão, que acabou não se concretizando. Há poucos meses retomamos o assunto com outra empresa, e é dessa proposta que nos ocupamos atualmente. As pistas que o senhor recolheu referem-se a qual procedimento?
- Especificamente ao primeiro - falou Carmelo.
- Era o que eu pensava. Você quer explicar-lhes, Rodrigues, ou prefere que eu o faça?
- Eu falo - disse Rodrigues, aparentemente recuperado mas ainda vermelho. - As negociações de dois anos atrás foram conduzidas por mim e por Nardes. O sr. Pedroso envolveu-se pouco no assunto, mas manteve-se sempre informado dos progressos obtidos. Na época o sr. Amberson ainda ocupava a vice-presidência de nossa empresa, mas a doença já vinha impedindo que ele tivesse uma participação ativa na administração. Bem, depois de vários meses de conversas com a proponente da fusão, as coisas não se definiam da parte deles, não sabíamos bem em virtude de que dificuldade. Um dia, Nardes e eu fomos convidados para um almoço com dois dos diretores daquela empresa, e lá, descaradamente, ofereceram-nos a obtenção de vantagens pessoais se concordássemos com uma fraude urdida por eles. Não vou entrar em detalhes, mas posso assegurar que o procedimento que eles nos ofereciam acarretaria perdas consideráveis para os sócios principais de nossa empresa, o sr. Amberson e o sr. Pedroso.
- Háh! - falou a sra. Amberson. - Eu sabia! Meu marido descobriu tudo e me contou, não é mesmo, Nat? Viu o que eu lhe dizia, sr. Carmelo? Pobre sr. Pedroso, acabaram matando-o!
- Sra. Amberson! - falou Rodrigues indignado. - Não concebo que a senhora possa pensar dessa maneira! O sr. Pedroso era, antes de tudo, nosso amigo, e foi imediatamente informado do que acabei de narrar. Nardes e eu largamos o almoço pela metade e comunicamos àqueles cavalheiros que nada mais teríamos a discutir, e as negociações foram prontamente encerradas.
Carvalhosa estava inconsolável, e balbuciou.
- Mas eu não sabia de nada, ninguém me disse coisa nenhuma. Pensei que as negociações tivessem sido encerradas por motivos técnicos.
- Meu marido também não foi informado, ele descobriu tudo sozinho e me contou, mas eu não entendo nada disso. Ele sabia de tudo, você viu Nat? - falou a sra. Amberson em tom de triunfo.
Ela pretendia continuar mas Carmelo atalhou.
- Sra. Amberson, devo prosseguir. Senhores, está visto que, apesar da explanação do sr. Rodrigues, defrontamo-nos com um motivo forte para o assassinato do sr. Pedroso. Não, não diga nada, sr. Nardes. A história pode ter sido outra há dois anos. Na ocasião, a trama pode ter sido descoberta e abortada pelo sr. Pedroso, e nas atuais negociações...
- As atuais negociações estavam sendo conduzidas pessoalmente pelo sr. Pedroso - berrou Rodrigues levantando-se. - Não vou admitir outras insinuações, sr. Carmelo. Pelo que me toca, nosso contrato está sendo rescindido neste exato momento. Pretendo retirarme para minha sala e espero que Nardes me acompanhe.
Se a situação antes era tensa, agora a coisa transformara-se em tumulto. Theobaldo levantou-se e encostou-se à porta. Rodrigues percebeu o movimento e olhou estupefato para Sandroni. Este olhava para Carmelo, tentando receber um sinal que o autorizasse a mandar algemar Rodrigues. Apenas Nardes permanecia calmo e observava Carmelo, que fechara os olhos e parecia esperar que tudo se aquietasse para continuar com a aula. E de repente ficaram todos em silêncio, Rodrigues em pé ao lado da cadeira com ar de quem iria começar a chorar.
Nardes disse-lhe então, como quem fala para um filho:
- Sente-se Rodrigues. O sr. Carmelo já está terminando.
- Mas ele ...
- Rodrigues, sente-se! Ele não tem qualquer prova, e parece não estar preocupado. Sente-se, vamos.
Rodrigues sentou-se relutante, e Carmelo continuou, fixando os olhos em Nardes.
- O senhor não concorda que seria um bom motivo? Parece que todos estão pensando assim. Mas eu não estou satisfeito, e o senhor sabe por quê? Porque é muito óbvio, sr. Nardes. Tudo em torno do caso chamava para um motivo interno à empresa. A execução do crime, apenas dois dias após uma tentativa que falhara, sugeria a necessidade de que o sr. Pedroso fosse eliminado antes da reunião de diretoria marcada para a segundafeira. Havia o processo de fusão e o nervosismo recente do sr. Pedroso, que todos percebiam. Havia motivos e oportunidade, e os meios passam a ser secundários, como demonstrei. E havia a questão do sanduíche.
- O que há com o sanduíche? - quis saber Carvalhosa.
- Assumi desde o princípio do caso que a pessoa que colocou cianeto na água do sr. Pedroso foi a mesma que providenciara o sanduíche envenenado dois dias antes. Isso não é tão óbvio quanto parece, mas não vou alongar-me neste ponto. O processo de substituição do sanduíche foi descoberto pelos investigadores da Homicídios na segundafeira pela manhã. Ora, no momento em que a troca estava se desenvolvendo no corredor, o sr. Nardes e o sr. Rodrigues encontravam-se nesta sala, em reunião com o sr. Pedroso, conforme me foi narrado pela srta. Garbin em sua primeira visita à minha casa. Os senhores tiveram a oportunidade de envenenar a água, mas não o sanduíche.
Rodrigues suspirou aliviado e enxugou o suor da testa com um lenço. Ainda com raiva falou.
- O senhor podia ter evitado toda esta cena, sr. Carmelo. Não o perdoarei por isso. Levantar suspeitas sobre um dos diretores foi...
- Ele tem mais - disse Nardes, interrompendo Rodrigues. Carmelo olhou para ele e homenageou-o com um demorado sorriso.
- Tenho, sr. Nardes. Não sabemos onde se encontrava o sr. Villanova naquele momento.
- Carlos, não responda! - berrou Villanova pai, pronto para uma nova manifestação de força.
- Não estou me referindo a seu filho, sr. Villanova - falou Carmelo suavemente.
O silêncio que invadiu a sala podia ser medido, pesado e engarrafado. Todos olhavam alternadamente para Carmelo e para Villanova pai. Então este, passada a surpresa, riu com escárnio e falou muito calmo:
- Posso provar onde eu me encontrava, mas isso só informarei se questionado por uma autoridade.
- No dia da morte do sr. Pedroso sabemos onde o senhor andava. Mas na quartafeira anterior, perto do meio-dia, não é certo que o senhor passou aqui na empresa para depois ir almoçar com seu filho?
- Quarta-feira? Sim, mas o que tem isso a ver com nosso assunto?
- Foi nessa hora que alguém envenenou o sanduíche que logo depois seria introduzido nesta sala.
Carlos Villanova franziu o cenho e ia dizer alguma coisa, quando o pai soltou uma gargalhada.
- Já entendi tudo, sr. Carmelo. O senhor está querendo nos divertir. Não posso me esquecer de agradecer ao Delegado Sandroni pela oportunidade que ele me propiciou. O senhor é impagável, sr. Carmelo, vou recomendá-lo para ...
- Sr. Villanova, por favor! - falou Carmelo com muita calma. - Estamos tratando de um assassinato. O senhor não foi convidado a comparecer a esta reunião para exibir seu senso de humor. Sugiro que, na sua condição de velho amigo do sr. Pedroso, o senhor tem conhecimento de fatos relevantes que está omitindo das autoridades. Sugiro que esses fatos podem estar relacionados ao crime, ou melhor, sei que estão relacionados ao assassinato que investigamos. E agora, sr. Villanova, o senhor poderia nos informar os motivos que o levaram a retirar-se da diretoria do museu?
Ele era cabeçudo. Muniu-se de um ar de desprezo e, como quem encerra um assunto, falou:
- Nada tenho a dizer ao senhor ou a qualquer outra pessoa a respeito de meus motivos. Trata-se de razões pessoais, como já salientei educadamente, e o senhor parece não ter entendido.
- O senhor dificulta as coisas, sr. Villanova. Muito bem, entrarei no seu jogo. Não é certo que, há alguns meses, o sr. Pedroso procurou-o e manifestou preocupação com a possibilidade de estar ocorrendo alguma fraude nas contas do museu? Não é certo que ele manifestou o desejo de esclarecer tudo e apontar o ou os culpados? Não é certo que, conhecendo a tenacidade do sr. Pedroso, o senhor começou a temer envolver-se em algum escândalo? E que, por essa razão, decidiu afastar-se do cargo?
- Mas não era de mim que o Pedroso desconfiava! - explodiu Villanova.
Doze pares de olhos fixaram-se nele. Sandroni ostentava na expressão o mais genuíno sofrimento, ao perceber que talvez tivesse que algemar o figurão que começava a fraquejar.
- Vejo que estamos progredindo - ironizou Carmelo. - Então o senhor tem algo a nos contar. Posso estimulá-lo explicando a razão de estar aqui presente o sr. Nogueira, que gentilmente telefonou-me no domingo expondo o que, no entender dele, estava preocupando seriamente o sr. Pedroso em período recente. Sim, sr. Nogueira?
- Sr. Carmelo, por favor - falou Nogueira muito sério. - Na ocasião eu lhe narrei duas conversas confidenciais que mantive com o sr. Pedroso, e insisti que não via qualquer relação entre o que lhe falei e o assassinato que todos lamentamos. Se foi para isso que fui convidado a essa reunião, sinto informar que não vejo razão para continuar presente.
- O senhor me forneceu o motivo que eu procurava, sr. Nogueira. Não posso forçá-lo a permanecer, mas peço-lhe o favor de ficar até o final de nossa conversa que, asseguro-lhe, está próximo. Mas vejamos o que o sr. Villanova tem a nos dizer.
Villanova olhava para Nogueira com curiosidade, e perguntou:
- Em que ocasião o Pedroso mencionou o assunto com o senhor? Ele disse de quem suspeitava?
- A primeira vez há cerca de 40 dias, e novamente há umas duas semanas. Disseme que iria fazer uma denúncia, mas não mencionou qualquer nome ou cargo.
- Sr. Villanova - falou Carmelo - de acordo com o sr. Nogueira, as suspeitas do sr. Pedroso referiam-se a prestações de contas de vários exercícios passados. Dada a intimidade entre o senhor e ele, e tendo-se em vista sua posição na diretoria do museu durante muitos anos, insisto em sugerir que ...
- Está certo, sr. Carmelo. Já que o assunto tornou-se público, não vejo razões para ocultar o que sei. Mas antes exijo que o senhor retire suas insinuações sobre a participação minha ou de meu filho no envenenamento do sr. Pedroso. Isso é definitivamente inaceitável!
- Inaceitável tem sido seu comportamento desde que o senhor foi contatado pela primeira vez, sr. Villanova. Estamos trabalhando para elucidar o assassinato de um grande amigo seu, e o senhor vem procedendo como se fosse o príncipe da Inglaterra. Não insinuei nada, apenas disse que não sabíamos onde o senhor andava na hora em que o envenenamento do sr. Pedroso estava sendo providenciado. Não tenho nada a retirar, e se o senhor não quiser colaborar, deixo com as autoridades a decisão sobre como tratá-lo.
Carmelo havia sido duro, mas o esnobe merecia, e começava a percebera que, com o apoio da manifestação de Nogueira e de outros fatos que pudessem surgir, ele passaria a ser suspeito do crime se não apresentasse uma explicação adequada para seu afastamento do museu. Ainda mantendo a pose, despejou:
- Certo, sr. Carmelo, mas não tenho muito a dizer. Quando Pedroso me trouxe suas suspeitas não fiquei surpreso. Eu mesmo tinha minhas dúvidas sobre a lisura com que nossas finanças eram administradas. Fatos esparsos indicavam-me que deveríamos providenciar maior controle em nossas contas, mas eu não tinha meios para iniciar uma devassa interna, e não queria dar início a um escândalo junto à diretoria. Conhecendo Pedroso muito bem, eu sabia que ele iria acabar descobrindo e divulgando tudo. Decidi, então, afastar-me do temporal enquanto era tempo. Pedroso nunca suspeitou que eu estivesse envolvido, tenho certeza disso, mas interpretou minha retirada como um gesto de covardia, ou, na melhor hipótese, de conformismo. Nossas relações esfriaram desde então, e há vários meses não nos falávamos. Pela informação do sr. Nogueira imagino que ele tenha descoberto o que procurava, e talvez até os responsáveis, e preparava-se para iniciar uma devassa. Isso é tudo que lhe posso dizer, e, tanto quanto o sr. Nogueira, enfatizo que tenho dificuldade em relacionar tudo isso com o assassinato de meu amigo.
- Qual é o orçamento anual do museu? - perguntou Nardes antes que Carmelo começasse a falar.
- Sempre tem ficado em torno do equivalente a doze milhões de dólares respondeu Villanova, pensativo
Nardes deu um sorriso e recostou-se na cadeira, com o ar de quem percebe que um naco da quantia mencionada, ano após ano, certamente poderia constituir motivo para um assassinato.
Eu não imaginava qual seria o passo seguinte de Carmelo, e notei que Sandroni também começava a ficar frustrado e logo começaria a se enfurecer. Estávamos reunidos há quase duas horas e tudo o que tínhamos visto resumia-se a uma demonstração de brilhantismo de Carmelo. Ele ainda não havia espremido Villanova filho, embora já tivesse tido ocasião para isso. A sra. Amberson começava a mexer-se na poltrona, e pelo jeito logo iria exigir uma prisão. Dei uma boa olhada em todos, e algo em Barreto chamou minha atenção. O homem estava transpirando levemente, e suas mãos estavam fortemente cerradas sobre as pernas. Eu ainda tentava entender o que se passava com o cunhado de Pedroso quando Carmelo falou.
- Está ficando tarde e todos devem estar cansados. Peço-lhes, no entanto, um pouco mais de paciência. Vimos até agora que oportunidades e motivos não faltaram para que várias das pessoas aqui presentes se tornassem suspeitas de assassínio. Quanto ao crime em si é possível que nunca saibamos como se deu o processo de adição de veneno à garrafa de água mineral que vitimou o sr. Pedroso, a não ser que o assassino nos conte. Já vimos que a srta. Garbin e os Srs. Nardes e Rodrigues poderiam tê-lo feito, mas não é impossível que alguém tenha ingressado no escritório após encerrado o expediente. Para entrar no prédio àquela hora sem ser percebido pelo porteiro, nosso assassino teria de usar a escada de incêndio, mas para tanto precisaria dispor das chaves do escritório, que, da mesma forma que as dos demais escritórios do prédio, são necessárias para abrir a porta de acesso à escada externa. Se tivesse sido assim, os prováveis culpados seriam os que dispunham de chaves e não estavam dentro do escritório. Como naquele horário o gerente geral e o supervisor de pessoal estavam num bar com vários colegas de serviço, essa hipótese levanos necessariamente ao sr. Carlos Villanova, que além disso não tem um álibi comprovado para aquele período.
Villanova pai mexeu-se na cadeira e lançou um olhar furioso para Sandroni, mas absteve-se de falar. Carmelo prosseguiu.
- Então ocorreu-me outra possibilidade, já mencionada hoje mas que desejo enfatizar agora. Posso imaginar alguém conhecido do sr. Pedroso telefonando-lhe na sextafeira após o término do expediente do escritório. Note-se que todos conheciam seu hábito de retardar-se aqui. Essa pessoa solicitou uma entrevista, e teve a porta aberta pelo próprio sr. Pedroso. Supus que o assassino já se encontrava dentro do prédio naquele horário, tendo ingressado mais cedo, quando, dado o movimento de pessoas, não seria notado pelo porteiro. Uma investigação em outras firmas poderá confirmar isso, se soubermos sobre quem perguntar. Essa pessoa pode ter colocado o veneno na garrafa e saído do escritório antes que o sr. Pedroso ingerisse a água, sendo por este acompanhada até a porta. Isso explica o fato de as chaves do sr. Pedroso estarem com ele quando o corpo foi encontrado. Mas vejam que tudo isso são apenas conjeturas e até o momento não consigo vislumbrar qualquer possibilidade de comprová-las.
A atenção de todos estava concentrada em Carmelo. Notei que Villanova pai começava a não gostar do rumo da conversa. Sandroni também notou e deu um olhar significativo para Theobaldo, que manifestou ter entendido. Carmelo continuou.
- Então arquivei as especulações sobre o envenenamento da água e voltei a me concentrar no episódio do sanduíche. A polícia descobriu o método utilizado, mas isso não nos levou a outras pistas relevantes. No entanto, aquele episódio trouxe à luz um ponto da maior importância: quem providenciou a substituição dos sanduíches conhecia o conteúdo do pacote destinado ao sr. Pedroso e o horário aproximado em que o mesmo seria entregue pelo garoto da lanchonete. Foi apurado pela polícia que alguém, com as características da pessoa descrita pelo entregador, comprara um lanche cerca de meia hora antes da entrega programada. Podemos então imaginar que, no momento em que a srta. Garbin estava sendo instruída pelo sr. Pedroso a respeito do lanche, alguém se encontrava nesta sala e registrava a informação, e pouco depois providenciava a troca dos sanduíches. Seguindo-se essa ... Sim, sr. Barreto?
- O senhor não precisa continuar. A pessoa que se encontrava conferenciando com o sr. Pedroso quando ele solicitou o lanche era eu - Barreto falou bastante tenso.
- Eu sei, a srta. Garbin me contou, sem no entanto perceber a importância dessa informação.
- E ela lhe contou também que eu portava veneno no bolso? Ora, vamos, sr. Carmelo! - E, virando-se para Sandroni. - Delegado, entendo que a polícia tem testemunhas que viram esse homem. Estou disposto a uma acareação, ou seja lá como chamem o procedimento, antes de iniciar um processo de difamação contra Franco Carmelo.
Sandroni não falou nada, apenas inclinou-se para a frente e fixou seus olhos azuis em Barreto.
- O homem estava disfarçado - falou Carmelo.
- Certo, que beleza! Disfarçado de que, se é que posso saber?
- O senhor sabe, sr. Barreto, o senhor sabe. Mas voltaremos a este ponto. Agora, dada a sua qualidade de observador e representante da sra. Pedroso, temos conversado pouco sobre suas atividades. O senhor poderia nos falar a respeito?
- Certamente. Como a maioria dos presentes deve saber, tenho, com mais dois sócios, uma pequena indústria de artefatos metálicos.
- E quais têm sido suas outras atividades, em passado recente?
- Eu imaginei que o senhor chegaria nisso, mas não é segredo. Até cerca de um ano atrás eu era diretor financeiro do museu.
Nem todos os presentes pareciam saber disso. Nogueira e Villanova pai sabiam, é claro, e não se surpreenderam, embora no olhar que Villanova fixou em Barreto podia-se perceber o surgimento de uma suspeita. Rodrigues não sabia, e, estando sentado na cadeira colocada em frente à de Barreto, teve que soerguer-se e girar o tronco quase 180 graus para olhá-lo, no que ficou por um tempo significativamente longo. Ocorreu-me imediatamente que ele também entendia de finanças e das possibilidades que o cargo de diretor oferece.
- Cargo que o senhor ocupou por um período de cinco anos - prosseguiu Carmelo. - É certo que sua empresa, há pouco mais de seis anos, encontrava-se à beira da falência?
- Não diria tanto - respondeu Barreto, cada vez mais tenso. - Experimentamos um período de dificuldades financeiras que, com trabalho árduo, conseguimos superar. Mas o senhor está se desviando do assunto. Falávamos sobre o assassino do sr. Pedroso, se bem me lembro.
- Chegaremos lá, sr. Barreto, chegaremos lá. Ocorre-me que no momento o sr. Nogueira pode estar pensando, como membro do conselho curador do museu, que seria saudável efetuar-se uma rigorosa auditoria nas contas da instituição no período dos, digamos, últimos seis anos. Não me escapa também que talvez o Delegado Sandroni possa estar tendo a idéia de conversar com o contador da empresa que o senhor administra. Mas estou vendo que isso não o assusta. A srta. Nana está certa ao assegurar que o senhor é uma pessoa muito calma.
Barreto empalideceu numa fração de segundo. Engoliu em seco e gaguejou ao falar.
- Não conheço ninguém com esse nome.
- O nome real dela é outro, mas isso é irrelevante. Nana Van Doren, profissão dançarina, residente na zona oeste. Ela passou a meus homens a impressão de conhecê-lo muito intimamente.
- Ah, sim - falou Barreto, ainda tentando recobrar-se. - É uma conhecida eventual. Já fez anúncios publicitários para minha empresa. Nosso relacionamento é profissional.
- Sei disso. Na terça-feira da semana passada, estando sua esposa fora da cidade, o senhor esteve a noite toda discutindo negócios na casa da srta. Nana. Era a noite de folga dela na boate.
- Sr. Carmelo, isso é inadmissível. O senhor não espera que falemos disso na presença de senhoras.
- No dia seguinte, quarta-feira, o senhor retirou-se da casa de sua amiga cerca das onze horas da manhã, e estava visitando o sr. Pedroso uns 30 minutos depois desse horário. Presumo que o senhor não passou em casa antes de encontrar-se com ele.
- Não, e o que tem isso?
- Presumo que o senhor ainda trazia no bolso o disfarce que utiliza quando visita sua amiga.
Agora Sandroni sabia, e nem precisou olhar para Theobaldo para que este se levantasse e se postasse a 20 centímetros de Barreto, que resolveu emudecer. Carmelo continuou.
- Sr. Barreto, o problema com este caso é que, já nas primeiras horas, tínhamos suspeitos demais, oportunidades demais e motivos demais. Eu não tenho recursos para realizar investigações amplas. Quando a srta. Garbin me disse, no sábado, que o senhor estivera com o sr. Pedroso na quarta-feira pouco antes do meio-dia, no momento em que ele solicitara o lanche, arrisquei um palpite e mandei investigá-lo, bem como a outras pessoas suspeitas. O senhor foi sempre seguido por algum de meus homens desde a noite de sábado. No domingo, quando o senhor esteve lá em casa junto com os outros cavalheiros e a srta. Garbin, eu já sabia de sua passagem pela diretoria financeira do museu. Isso pouco me ajudava, mas permitia que se imaginasse um motivo. Já na segunda-feira, ontem, portanto, descobri que o sr. Leonardo Villanova havia se afastado da diretoria do museu há cerca de um ano, e que se recusara, de forma suspeita, a expor suas razões a meu assistente. Pouco depois, sr. Barreto, tomei conhecimento da situação de sua empresa em anos recentes, o que não provava nada, embora constituísse mais um indício sobre possíveis motivos. Ontem à noite o senhor dirigiu-se à zona oeste e, para espanto de meu investigador, desceu do carro transformado em um cidadão idoso que utilizava óculos e cavanhaque. Posso conceber que um homem casado trate de se disfarçar ao visitar uma amiguinha, mas quando se sabe que o misterioso homem do sanduíche usava artefatos semelhantes no rosto, as coisas começam a clarear, e aí eu eliminei qualquer vestígio de dúvida que ainda restava. Não tenho mais nada a dizer, e também não coletei provas concretas que o apontem como o assassino do sr. Pedroso, mas o senhor percebe que as autoridades policiais saberão o que fazer com as evidências apresentadas.
Foi melancólico ver Sandroni levantando-se e comunicando a um arrasado Barreto que ele estava preso. Theobaldo algemou-o, o delegado deu um boa-noite geral, olhou fixamente para Carmelo e, antecipando-se aos outros dois, retirou-se da sala.
Quando a porta se fechou todos descontraíram. A sensação de alívio era visível, e até Paula Amberson festejava, declarando que ela nunca acreditara na culpa de algum dos associados, no que solicitou e teve o apoio irrestrito de Nat. Sylvia ostentava um sorriso cansado, e Rodrigues parecia estar planejando pedir desculpas a Carmelo. O primeiro a falar algo coerente foi Carlos Villanova.
- Sr. Carmelo, posso perguntar-lhe uma coisa?
- Sei o que o senhor vai perguntar, e posso responder já. Houve um ponto que deixei de enfatizar, e assim o fiz para dobrar o sr. Villanova, que desde a visita que o sr. Guerreiro lhe fez recusava-se a nos passar importantes informações relacionadas ao comportamento do sr. Pedroso. Sim, o senhor poderia entrar sem ser visto pelo porteiro utilizando a escada externa de incêndio, mas com seu grau de miopia e tendo quebrado seus óculos na tarde de sexta feira, não consigo vê-lo realizando esta façanha e introduzindo rapidamente o veneno pelo gargalo da garrafa de água sem deixar vestígios pelo lado de fora do recipiente ou na mesa.
- Sim, realmente quebrei-os e fui ao oftalmologista para obter uma receita. Meus outros óculos estavam em casa, e passei a tarde de sexta-feira apenas ditando memorandos e cartas. Mas como o senhor ... Bem, não preciso perguntar.
Finalmente começamos a sair. Paula Amberson foi a primeira, seguida por Nat, que à porta deixou Sylvia passar à frente enquanto perguntava se ela apreciava pintura. Os três diretores comunicaram que ainda se retardariam um pouco, despedimo-nos e tomamos o elevador na companhia de Carvalhosa e Villanova pai, este último muito risonho e declarando seguidamente que Carmelo era um homem terrível.
Já em casa, após termos jantado, Carmelo convocou Ezequiel para uma discussão na biblioteca, comunicando que já era tempo de alguém fornecer uma interpretação definitiva para a guerra de Tróia.
Quanto a mim, desisti de casar com Sylvia Garbin. Ela gastava muito em roupas, e, além disso, nossos almoços de domingo jamais seriam um sucesso.
No dia seguinte, cerca das 19 horas, Carmelo e eu estávamos examinando uns livros recém chegados. Ele já me narrara as tarefas que dera ao nosso pessoal no sábado. Erno deveria vigiar Sylvia, como eu logo soubera, Américo fora incumbido de grudar em Barreto, e Tito fora mandado ao museu, que ficava aberto até tarde nos fins de semana. De lá ele saíra com uma recepcionista, que conhecia uma das secretárias da diretoria de quem era colega num coral de igreja, e os três acabaram indo a uma danceteria, tudo por conta de Tito. Com isso ele obtivera as primeiras informações que passara a Carmelo.
No domingo pela manhã Tito encontrara-se com Américo e dera a primeira olhada em Barreto. Depois da reunião com os diretores, que tivemos no final da tarde, Américo, já seguindo Barreto desde a noite anterior, fora dormir por algumas horas, e Tito substituíra-o. Américo reassumiu na segunda-feira, e à noite ele viu Barreto usar o disfarce entre o carro e a entrada de um prédio de apartamentos. Na terça-feira Carmelo despachou Tito e Américo com a missão de descobrir com quem Barreto estivera na noite anterior, e eles localizaram a dançarina e gastaram uma boa parte das nossas reservas financeiras do momento para fazê-la abrir o bico.
- Mas isso do disfarce e da dançarina o senhor só soube ontem - falei intrigado. E na segunda-feira à noite o senhor afirmou que sabia quem era o assassino.
- Só podia ser o Barreto. Veja que tanto Carvalhosa como Villanova pai poderiam ter sabido do sanduíche e providenciado a substituição. Mas lembre-se que na hora do crime com a água envenenada ambos estavam no casamento da neta de Carvalhosa, conforme Villanova pai lhe informou naquela entrevista. E ele não iria mentir sobre uma coisa que poderia ser facilmente verificada. Associando-se a água com o sanduíche, em termos de oportunidade, só sobravam Barreto e Villanova filho. Este último eu excluí em virtude de seu forte grau de miopia, que constatei lá em casa no domingo.
- Espere! Ele poderia ter óculos de reserva no escritório e providenciado toda a encenação, quebrando o par que estava usando, ficando sem ler ou escrever o resto da tarde e saindo mais cedo para ir ao oftalmologista.
- Pensei nisso, mas veja que ele só procederia assim se tivesse planejado o crime e imaginasse que seria inocentado pela miopia. Se assim fosse, não havia razão para ele se dar ao trabalho de sair do escritório e depois voltar pela escada de incêndio, com todos os riscos aí envolvidos. Ele poderia simplesmente ter quebrado os óculos, divulgado o fato e depois ter-se retardado em sua sala e feito a coisa de modo mais simples. Se ele saiu é porque realmente não tinha outros óculos e não pretendia envenenar o presidente.
Sandroni brindou-nos com sua visita. Disse que estava indo para casa e resolvera dar uma passada para ver como estávamos. Contou-nos que Barreto despejara tudo no primeiro interrogatório. O plano de eliminar Pedroso vinha amadurecendo há uns quatro meses, quando o cunhado lhe falara no desfalque buscando aconselhamento, pois ainda não tinha razões para suspeitar dele. Barreto pressentira então que acabaria sendo desmascarado pelas investigações que Pedroso vinha conduzindo e decidira matá-lo. O veneno fora conseguido em troca de cocaína com um ex-funcionário da empresa de Barreto, viciado em drogas, que ultimamente vinha trabalhando numa pequena indústria química.
Na entrevista da quarta-feira Pedroso admitira que já vinha desconfiando do cunhado, e exigira ouvir dele uma explicação para os desvios de fundos observados durante os cinco anos de sua gestão. Barreto não conseguiu explicar e Pedroso adquiriu a certeza do comportamento criminoso dele, informando então que iria denunciá-lo. Quando fora convocado por Pedroso para o encontro, Barreto desconfiara do tom de voz do cunhado e, num impulso, levara no bolso o frasco com o veneno. A encomenda do lanche mostrou-se uma excelente oportunidade, e ele agiu rápido. O fato de ter trazido o disfarce foi pura sorte. Não obtendo sucesso, planejou uma segunda tentativa para a sexta-feira. Às 17 horas fez uma visita de surpresa a um advogado conhecido que tem escritórios no mesmo prédio da Amberson-Pedroso, e, pouco antes das 18 horas, telefonou para Pedroso solicitando um encontro e sugerindo que tinha uma solução para a questão dos fundos roubados. Pedroso aceitou e momentos depois abria a porta para ele. Na sala do cunhado, aproveitou uma distração dele e introduziu o veneno na garrafa de água mineral. Confessou então que não teria como repor os fundos desviados e Pedroso, irritado e sem dizer uma palavra, acompanhou-o até a saída. Barreto voltou imediatamente ao escritório do amigo, com quem desceu para a rua momentos depois. Ainda naquela noite soube que seu plano funcionara, avisado pela inconsolável irmã.
- A lamentar apenas - falou Sandroni numa carranca bem humorada - o fato de o senhor não me ter falado logo sobre o disfarce. Nós teríamos prendido Barreto e ...
- E ele teria arrasado com a acusação - disse Carmelo com um gesto de mão. Não, sr. Sandroni, era a palavra de meu investigador contra a dele. A dançarina não sabia do disfarce, ele só o usava entre o carro e o corredor do apartamento dela. O senhor iria provar que ele tinha um caso com uma dançarina, e daí?
- Por que o senhor não o acusou logo no início da reunião de ontem?
- Pelas mesmas razões, sr. Sandroni. Ele mostrou ser inteligente e frio. Eu precisava mostrar a ele tudo o que eu conhecia, o que não era muito. Tive que levantar suspeitas, apontar motivos e enfrentar a ira de outros, e fazer com que ele começasse a se sentir vulnerável. Quando o acusei e mencionei a dançarina, ele, apesar de manter a arrogância, imaginou que eu soubesse muito mais do que realmente sabia. Funcionou! Além disso, eu estava precisando receber aqueles honorários ...
Sandroni deu uma ruidosa gargalhada e despediu-se de Carmelo com um demorado aperto de mãos. Acompanhei-o até a porta da rua, ele me desejou boa-noite e até me deu uma palmadinha no braço, olhando-me como se fôssemos velhos camaradas no combate ao crime.
Dalto Conrad
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