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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


SUSSURROS AO LUAR / C. C. Hunter
SUSSURROS AO LUAR / C. C. Hunter

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

Em um acampamento cheio de lobisomens, vampiros e fadas, Kylie Galen sempre lutou para descobrir o que ela é. Agora, ela finalmente sabe a verdade, mas ela ficou com mais perguntas do que respostas. Ela não tem ideia do que sua herança significa ou como aproveitar seus novos poderes. Tudo o que ela sabe é que ela precisa resolver seus sentimentos por Derek, o sexy Fae, que acabou de confessar o seu amor, e Lucas, seu namorado lobisomem que parece não estar comprometido tanto quanto ela gostaria. Todo esse tempo, Kylie lida com um grupo de bandidos subterrâneos que querem vê-la morta e um avô misterioso, que deixa claro que ele não confia no FRU... ou Shadow Falls. Logo Kylie terá que escolher: Será que ela vai ficar com a nova família que ela formou em Shadow Falls, ou será que ela vai com seu avô e abraçar o seu destino?


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Kylie Galen estava de pé na varanda do escritório de Shadow Falls, o pânico colocando à prova a sua sanidade. Uma rajada de vento de final de agosto, ainda gelado devido à presença do espírito de seu pai, fez esvoaçar os seus longos cabelos loiros e os espalhou pelo seu rosto. Ela nada fez para afastá-los. Ou para respirar. Só ficou ali, com o ar preso nos pulmões, enquanto olhava através das mechas para as árvores balançando ao sabor da brisa. Por que a vida tinha que ser tão difícil? A pergunta quicava em sua mente como uma bola de pingue-pongue enlouquecida. Então a resposta surgiu tão rápido quanto a pergunta. Porque você não é totalmente humana. Nos últimos meses, Kylie tinha se esforçado para identificar o tipo de sangue não humano que corria em suas veias. Agora ela sabia. De acordo com o seu velho e querido pai, ela era um... camaleão. Um lagarto, como os que ela via tomando sol no seu quintal. Ok, talvez não exatamente como eles, mas bem parecida. Antes ela se preocupava com a possibilidade de ser um vampiro ou um lobisomem, porque seria um pouco difícil se adaptar ao hábito de beber sangue ou se transformar em lobo na lua cheia. Mas isso... isso era... incompreensível! Seu pai tinha de estar errado. Seu coração batia forte contra o peito, como se quisesse sair pela boca. Ela finalmente respirou. Inspirou o ar, e em seguida expirou. Seus pensamentos se afastaram do problema do lagarto e se desviaram para outras coisas igualmente ruins. Sério, nos últimos cinco minutos ela tinha sido nocauteada não apenas por uma, ou duas, ou três, mas por quatro revelações absolutamente surpreendentes. Bem, uma dessas coisas — a confissão de Derek de que ele a amava — não poderia ser considerada totalmente ruim. Mas com certeza também não poderia ser considerada boa. Pelo menos não naquelas circunstâncias. Não quando ela já considerava o relacionamento entre eles coisa do passado. Quando tinha se empenhado durante semanas para se convencer de que eram apenas amigos. Sua mente fazia malabarismos para pensar nas quatro descobertas ao mesmo tempo. Ela não sabia em qual delas se concentrar primeiro. Ou talvez sua mente, na verdade, soubesse. Eu sou um maldito lagarto! — Isso é pra valer? — ela perguntou em voz alta. O vento do Texas carregou para longe suas palavras; Kylie esperava que ele as levasse até o seu pai, onde quer que os mortos aguardassem até completar a sua passagem. — Sério, pai? Um lagarto? Claro que o pai não respondeu. Depois de dois meses falando com espíritos, o dom de ver fantasmas e suas limitações ainda a deixavam exasperada. — Droga! Ela deu mais um passo em direção à porta do escritório principal, prestes a descarregar toda a sua frustração em Holiday Brandon, a líder do acampamento, mas então parou. Burnett James, o outro líder do acampamento e um vampiro de toque gelado mas temperamento ardente, estava com Holiday. Como Kylie não conseguia mais ouvi-los discutindo, ela achou que isso significava que poderiam estar fazendo outra coisa. E, sim, por outra coisa, ela queria dizer se pegando, trocando saliva, fazendo a dança da língua. Todas as expressões bizarras que sua amiga Della, uma vampira irreverente e de maus modos, usaria. E citá-las provavelmente significava que Kylie estava de mau humor. Mas ela não tinha direito a um pouco de mau humor depois de tudo o que havia acontecido? Cerrando os punhos, ela olhou para a porta da frente do escritório. Já tinha interrompido sem querer o primeiro beijo de Burnett e Holiday, e não queria fazer o mesmo com o segundo. Especialmente depois que Burnett ameaçara deixar Shadow Falls. É claro que Holiday poderia fazê-lo mudar de ideia. Ou será que não? Além disso, talvez ela precisasse se acalmar um pouco. Pensar por um momento antes de correr para Holiday com seus surtos histéricos. Seus pensamentos se desviaram para o seu mais recente fantasma. Como ela poderia ver o fantasma de alguém que ainda estava vivo? Era um truque, certo? Tinha que ser um truque. Kylie olhou em volta para se certificar de que o fantasma realmente tinha ido embora. O frio havia desaparecido. Virando-se de costas para a porta, ela desceu correndo os degraus da varanda e contornou a cabana onde ficava o escritório. Começou a correr, querendo experimentar a sensação de liberdade que sentia quando corria realmente rápido, como nenhum ser humano podia correr. O vento levantava o vestido preto que ela usara no funeral de Ellie e o fazia dançar em torno de suas coxas. Seus pés se moviam com ritmo, sem quase nem sentir falta dos tênis Reebok que ela normalmente usava, mas, quando chegou à borda da floresta, Kylie fez uma parada abrupta — tão abrupta que o salto de seus sapatos deixou sulcos profundos na terra. Kylie não podia ir para a floresta. Ela não tinha uma sombra, uma companhia obrigatória que a ajudasse a afastar o perverso Mario e seus companheiros, caso estes decidissem atacá-la. Atacá-la novamente. Até agora as tentativas do velho para acabar com a vida dela tinham fracassado, mas duas delas tinham resultado na morte de alguém. A culpa fez latejar o seu peito já apertado. Depois veio o medo. Mario já tinha provado até onde estava disposto a ir para capturála, quanto ele era cruel ao tirar a vida do próprio neto bem na frente dela. Como alguém podia ser tão perverso? Ela olhou para a fileira de árvores e observou enquanto as folhas dançavam com a brisa. Era um cenário completamente normal que devia fazê-la se sentir em paz. Mas Kylie não sentia paz. O bosque, ou melhor, algo que se escondia dentro dele, a desafiava a encarar o medo e entrar. Provocava-a para que ela avançasse até a espessa fileira de árvores. Confusa com a estranha sensação, Kylie tentou afastá-la, mas o sentimento persistiu, ainda mais intenso.
Ela inspirou o cheiro de mato e, no mesmo instante, soube. Soube com clareza. Soube com certeza. Mario não desistiria. Cedo ou tarde Kylie teria de enfrentar o malfeitor novamente. E não seria um encontro sereno, tranquilo ou pacífico. Apenas um deles sairia vivo. Você não estará sozinha. As palavras ecoaram dentro dela como se para lhe oferecer um pouco de paz. Mas a paz não veio. As sombras entre as árvores dançavam no chão, convidando-a, chamando-a. Para fazer o que, ela não sabia. A apreensão oprimiu outra vez o peito de Kylie. Ela cravou os saltos mais profundamente na terra batida. A sola do sapato direito produziu um estalo, um som sinistro que pareceu acentuar o silêncio. — Merda! — Ela olhou para os próprios pés. O palavrão parecia ter sido arrancado do ar e nada exceto um zumbido sobrenatural permaneceu. E foi então que ela ouviu. Alguém com uma respiração áspera. Embora o som fosse apenas um sussurro, ela sabia que havia alguém atrás dela. Bem perto. E como nenhum calafrio de morte a cercava, ela sabia que não se tratava de alguém do mundo dos espíritos. O barulho voltou. Alguém enchia os pulmões com o ar vivificante. Estranho como ela agora temia os vivos mais do que os mortos. Seu coração parou abruptamente. Como os sulcos deixados na terra pelos saltos de dez centímetros, seu medo crescente deixou sulcos em sua coragem. Ela não estava pronta. Se fosse Mario, ela não estava pronta. Independentemente do que precisasse fazer, o plano ou destino que estava fadada a seguir, ela precisava de mais tempo.
 
— Está tudo... ok? A voz não era de Mario. Era de Derek. O tom familiar dispersou o pânico inicial de Kylie, mas apenas por um segundo. Eu estou apaixonado por você, Kylie. As palavras que ele dissera havia menos de quinze minutos ainda ecoavam na cabeça dela, trazendo com elas outra tempestade emocional que fazia sua mente e seu coração darem voltas. Derek a amava. Mas e ela? O que sentia? Kylie mudou levemente de direção, e o salto direito do sapato se desprendeu, fazendo-a perder o equilíbrio. Sua vida era assim: como se tivesse perdido o salto do sapato e sua única opção fosse andar por aí mancando. — Alguma coisa errada? — Na voz de Derek transparecia a sua preocupação. Está tudo bem. As palavras estavam na ponta da língua, mas ela as engoliu. Derek, um meio-fae, podia ler suas emoções. Mentir para ele sobre o seu estado emocional era inútil. Então ela se virou e olhou para ele. — O que você está fazendo aqui, sem uma sombra? — Derek perguntou. — Você sabe que não deve ficar sem uma, caso aquele vampiro pirado resolva voltar. Quando seus olhos encontraram os de Derek, ela viu um lampejo de pânico dentro deles. Sabia que o pânico nos olhos dele era o que ela própria sentia. Quando ela estava sofrendo, ele sofria com ela. Quando ela se alegrava, ele se enchia de alegria também. Quando ela temia alguma coisa, ele temia por ela. Considerando seu estado emocional nesses últimos minutos, ele devia estar vivendo num verdadeiro inferno.
O peito de Derek inflou sob a camiseta verde musgo que o moldava. Ele pôs a mão sobre o abdômen bem definido, enquanto enchia os pulmões de ar. Seu cabelo castanho-escuro parecia despenteado pelo vento e a franja se agarrava à testa. Uma gota de suor escorria pelo seu rosto. Por um segundo, ela só pensou em cair nos braços dele, deixando que seu toque reconfortante afugentasse a apreensão dentro dela. — Você está assim... por causa do que eu disse? — ele perguntou. — Se for... esquece. Não disse aquilo para que se sentisse dividida. Não dava para esquecer uma declaração de amor, Kylie pensou. Não se ela fosse sincera. Mas ela não disse nada. — Não tem a ver com o que você disse. — Então ela percebeu que isso também era mentira. A confissão dele tinha causado um verdadeiro caos em suas emoções. — Bem, é outra coisa, também. — O quê? — As palavras dele saíram entrecortadas. Seus olhos procuraram os dela e ela viu as raias douradas em suas íris ficarem mais brilhantes. — Eu sinto que você está apavorada e confusa e... — Mas está tudo bem. — Ela percebeu novamente que ele estava sem fôlego, como se tivesse corrido um quilômetro para chegar ali. Será que tinha mesmo? — Onde você estava? Ele inspirou outra golfada de ar. — Na minha cabana. Há mais de um quilômetro daqui. — Você sentiu minhas emoções mesmo de tão longe? — Senti. — Ele estreitou os olhos como se esperasse que ela não o culpasse por isso. Ela não gostava que suas emoções fossem como um livro aberto para ele, mas não podia culpá-lo. Ele lhe confessara uma vez que, se pudesse parar de captar as emoções dela, faria isso. Ela acreditou nele. — Você não tinha falado que isso estava diminuindo? — perguntou ela. — Captar minhas emoções com tanta intensidade ainda te enlouquece?
Ele deu de ombros. — Ainda é algo bem forte, mas não me oprime tanto quanto antes. Posso lidar com isso, agora que eu... Agora que ele tinha aceitado que a amava. Foi isso que ele havia dito a ela. Era por isso que a ligação entre eles tinha ficado mais forte. O peito dela ficou novamente pesado com a indecisão. Ainda bem que um deles conseguia lidar melhor com isso. Porque ela não tinha certeza se conseguia. Não depois de saber que ele a amava. Não, com qualquer das revelações com que tinha de lidar agora. Pelo menos não naquelas circunstâncias. — O que você tem? — Ele se aproximou. Estava tão perto que ela podia sentir o cheiro da sua pele — conhecido, autêntico, real. A tentação de cair em seus braços tomou conta dela. Ansiava por sentir seu peito subindo e descendo enquanto ele respirava, deixar que o que acontecera entre eles no passado também fizesse parte do seu futuro. Fechando os punhos com força, ela passou por ele mancando com o salto quebrado, foi até uma árvore e escorregou pelo tronco até o chão. A terra estava mais fria do que a temperatura no ar. As folhas de grama faziam cócegas na parte de trás das suas pernas, mas ela ignorou. Ele não esperou por um convite; sentou-se ao lado dela. Não tão perto a ponto de se tocarem, mas perto o suficiente para que ela pensasse em tocá-lo. — Então é mais de uma coisa? — ele perguntou. Ela assentiu com a cabeça, e a decisão de confiar nele parecia já ter sido tomada. — Meu pai apareceu para mim. — Ela mordeu o lábio. — Ele me disse o que eu sou. Derek pareceu intrigado. — Eu pensei que você quisesse saber. — Eu queria, mas... Ele disse que eu sou um camaleão. Sabe, como um lagarto. Ele franziu as sobrancelhas e então riu.
Ela não gostou muito da franqueza dele. O pânico voltou triplicado. Kylie queria saber o que ela era para que os outros a aceitassem, para que finalmente pudesse encontrar a sua tribo, mas e se ela acabasse se tornando de fato uma aberração? — Eu detesto lagartos! — ela desabafou. — Eles são como cobras, criaturinhas viscosas de olhos esbugalhados, que vivem correndo por aí na imundície, comendo insetos rastejantes. — Ela olhou para a floresta de novo, imaginando uma brigada de lagartos olhando para ela. — Uma vez eu vi um programa na TV que mostrava em câmera lenta um lagarto de língua comprida comendo uma aranha. Foi nojento! Derek balançou a cabeça, todo o humor desaparecendo dos seus olhos. — Eu nunca ouvi falar de lagartos sobrenaturais. Você tem certeza? — Eu não tenho certeza de nada. Isso é que é tão assustador. Não saber. — Ela estremeceu. — Sério, é melhor se alimentar de sangue do que ter uma língua comprida e comer insetos. — Talvez seu pai esteja errado. Você disse que fantasmas têm dificuldade para se comunicar. — A princípio, sim, mas agora tudo o que o meu pai fala faz sentido. Derek não parecia convencido. — Mas o que você acha que um camaleão sobrenatural é, ou faz? Só consigo pensar que eles mudam de cor. Kylie deixou que as palavras dele dessem voltas no seu cérebro por um instante. — Será que é isso? — Você pode mudar de cor? — A dúvida se estampou no rosto dele. — Não, mas talvez eu possa mudar de padrão. Como o meu avô e a minha tia, quando pareciam humanos. E como eu pareço humana agora.
— Ou... talvez seu pai esteja passando por uma recaída e esteja apenas confuso. Porque eu nunca ouvi falar de nenhum ser sobrenatural capaz de fazer seu padrão cerebral mudar. — E quanto a mim? — ela perguntou. — E o meu avô e a minha tia? Ele deu de ombros. — Holiday disse que provavelmente um feiticeiro lançou um feitiço no seu avô e na sua tia. — E lançou um feitiço em mim também? — Kylie perguntou. — Não, mas... Ok, eu não tenho resposta. — Ele franziu a testa. — E eu sei que isso a deixa frustrada. Mas você não me disse que o seu avô de verdade vai vir visitá-la? Com certeza ele vai esclarecer tudo isso. — É. — Ela mordeu o lábio inferior. Derek ficou olhando para ela. — Tem alguma coisa errada nisso também, não tem? Ela suspirou. — Quando eu perguntei ao meu pai o que significava ser um camaleão, ele disse que descobriríamos juntos. — E por que isso é ruim...? Kylie declarou o óbvio. — Ele está morto, suas visitas aqui na terra são limitadas; então isso significa que vou morrer em breve? — Não, ele não quis dizer isso. — Seu tom de voz se aprofundou com a sua convicção. Ela começou a argumentar, dizendo que ele não podia dizer aquilo com tanta certeza, mas queria tanto acreditar nele que se calou. Respirou fundo, olhou para a grama e tentou encontrar paz na certeza de que seu avô estaria ali em poucos dias. Tentou encontrar paz sabendo que dividira com outra pessoa os seus problemas. E ela se sentiu um pouco melhor.
— Você perguntou a Holiday? — Ele se inclinou e seu ombro esbarrou nela, seu calor, seu toque suave afugentando um pouco de sua angústia. Ela balançou a cabeça. — Ainda não. Ela ainda está no escritório com Burnett. Kylie ainda não tinha refletido sobre a questão do fantasma. Se o espírito de alguém aparecia quando a pessoa ainda não estava morta, o que isso significava? As respostas possíveis começaram a acelerar o seu coração. — Eu acho que isso é importante — disse ele. — Eu sei, mas... — Tem outra coisa, não é? Ela olhou para ele. Derek estava lendo suas emoções ou a sua mente? — Problemas com fantasmas — disse ela. — Que tipo de problemas? De todos os campistas, Derek era o único que não fugia à menção dos fantasmas. — Essa pessoa não está morta. — Então não é um fantasma. — Derek parecia confuso. Kylie mordeu o lábio. — É... Quero dizer, a princípio o espírito tinha todo aquele jeitão de zumbi — pedaços de pele pendurados, vermes —, mas depois mudou. E quando isso aconteceu, o rosto se transformou no de alguém que eu conheço. — Como isso é possível? — ele perguntou. Ela fez uma pausa. — Eu não sei. Talvez seja um truque. — Ou não — discordou Derek. — Acha que alguém vai morrer? Não outra pessoa, ela queria gritar. — Eu não sei. — Ela arrancou um tufo de grama do chão.
— Quem é? — ele perguntou. — Não é alguém daqui, é? O peito de Kylie se apertou. Ela não queria dizer, com medo de que, se dissesse em voz alta, faria a coisa acontecer de verdade. — Eu só preciso de mais um tempo para pensar nisso. Derek empalideceu. — Ah, droga! Sou eu? — Não. — Kylie jogou longe o tufo de grama e ficou observando-o girar no ar até aterrissar no chão. Quando ela olhou para trás, pôde sentir Derek captando as suas emoções, tentando decifrar o seu significado. — Você gosta um bocado dessa pessoa. Ele franziu as sobrancelhas. — Lucas? Ela ouviu a dor em sua voz só por dizer o nome do lobisomem. — Não — ela disse. — Podemos mudar de assunto? Eu não quero mais falar sobre isso. Por favor. — Então é Lucas? — Derek perguntou. — O que tem Lucas? — Uma voz profunda e irritada soou de repente. Kylie olhou para cima e viu Lucas saindo do bosque. A raiva tinha feito seus olhos adquirirem um tom alaranjado. Ela se encheu de culpa só por um segundo, então lutou contra esse sentimento. Não estava fazendo nada errado. — Nada — Derek respondeu com rispidez, quando viu que Kylie não ia dizer nada. O fae ficou de pé e deu um passo na direção do escritório. Depois fez uma pausa, olhou para trás, na direção dela, e em seguida para Lucas. — A gente só estava conversando. Não precisa brigar com ela por causa disso. Lucas soltou um rosnado. Derek se afastou, parecendo não se importar nem um pouco com a raiva de Lucas. Kylie agarrou outro tufo de grama e arrancou-o do solo. — Eu não gosto disso. — Lucas olhou para ela.
— Estávamos só conversando. — Sobre mim. — Eu estava contando a ele sobre um espírito e que... ele se parece com alguém de quem eu gosto, e ele perguntou se era você. Você devia ficar feliz de saber que eu gosto de você. A expressão de Lucas se fechou ainda mais. Seria por causa de Derek ou porque ela tinha mencionado os fantasmas? A incapacidade de Lucas de aceitar o seu trabalho com os espíritos a magoava. — Ele é louco por você — respondeu Lucas. Eu sei. — Estávamos apenas conversando. — Isso me deixa possesso. — Seus olhos brilhavam, num profundo tom de laranja queimado. — O que o deixa possesso? Que eu fale com Derek ou que eu fale de fantasmas? — As duas coisas. — Ele disse isso com tanta honestidade que ela achou difícil culpá-lo. — Mas, principalmente, saber que você fica por aí com essa “fada”. Kylie estremeceu ao ouvir o insulto a Derek. Então, sem saber direito o que dizer, se levantou. Esquecendo-se do sapato com o salto quebrado, ela quase tropeçou. Lucas a segurou pelo cotovelo. Ela encontrou o olhar de Lucas, ainda marcado pela ira lupina. Mas o seu toque era terno e solícito, sem nenhum indício da fúria que ela vira em seus olhos. Ela se lembrou de que algumas das reações de Lucas eram instintivas, o que significava que não podia condená-lo por isso. Outra parte dela sabia que, fossem instintivas ou não, ele não estava agindo da maneira correta. Kylie suspirou. — Nós já conversamos sobre isso. — Conversamos sobre o quê?
— Sobre as duas coisas. Eu ajudo espíritos, Lucas. Isso provavelmente nunca vai mudar. — Eu sei, mas eles vivem te matando de susto. Eles vivem me matando de susto. Kylie ficou tensa. — Você acha que o fato de você se transformar em lobo não me assusta? — Não é a mesma coisa. Eles são fantasmas, Kylie. Isso não é... não é natural. — Mas se transformar em lobo é totalmente natural — disse ela com sarcasmo. Ele bufou. — Ok, considerando que você viveu a vida toda como humana, eu entendo o que quer dizer. E embora eu tenha certeza de que nunca vou apreciar essa sua capacidade de falar com fantasmas, estou me empenhando para aceitar isso. — Seu tom revelava quanto isso era difícil para ele. — Mas aceitar que você fique por aí com Derek não é fácil quando sei que, se ele tivesse uma chance, ia roubar você de mim num estalar de dedos. Ela engoliu a emoção intensa que a invadiu e tocou o peito de Lucas. Seu calor atravessou a camisa e aqueceu a mão dela. — Eu sei como se sente. Porque sinto a mesma coisa quando vejo você com Fredericka. E é por isso que sei que não posso lhe dizer para ficar longe dela. Ele colocou a mão sobre a mão de Kylie, e uma súplica suave para que ela o compreendesse transpareceu em seu olhar. — É diferente. Fredericka faz parte da minha alcateia. Ela balançou a cabeça. — E Derek é meu amigo. — Exatamente. Essa é a diferença. Um amigo não é a mesma coisa que um membro da alcateia. — Para mim é. — Ela sacudiu a cabeça. — Pense. Você é leal aos membros da sua alcateia. Você iria defendê-los. Você se preocupa com eles. Eu me sinto da mesma maneira com relação aos meus amigos. — É por isso que você não é um lobisomem. Ou pelo menos não ainda. — Ele pôs a mão livre ao redor da cintura dela e puxoua para mais perto. — Espero que, em breve, tudo comece a fazer sentido para você. Eu nunca serei um lobisomem. Ela olhou para ele. As evidências da raiva tinham desaparecido dos olhos dele, e ela viu afeição nos profundos olhos azuis. Lucas gostava dela. Ela sabia disso com certeza. E talvez por essa razão, hesitava em contar o que sabia. Instantaneamente, ocorreu-lhe que ela não hesitara em contar a Derek. Por que ela confiava em Derek e não em Lucas? Incomodada com o pensamento, obrigou-se a dizer: — Eu não sou uma loba. — Você ainda não sabe — discordou ele. — O fato de ter se desenvolvido mais antes da lua cheia e de ter oscilações de humor tem que significar alguma coisa. Ela balançou a cabeça. — Eu não sou um lobisomem. Eu sei o que sou. Os olhos dele se estreitaram, intrigados. — Você sabe...? Como? — Meu pai apareceu para mim novamente. Ele disse que eu sou um camaleão. Perplexidade se estampou no olhar de Lucas. Ela franziu o cenho. — Eu não sei exatamente o que significa. — Não faz sentido — ele deixou escapar. — Isso não existe. Só porque algum fantasma disse... — Não foi “algum fantasma”. Foi o meu pai. — E seu pai é um fantasma. — Se ele tinha ou não intenção de insultá-la ou não, foi isso que pareceu para Kylie.
Suas palavras e sua atitude a feriram. Ela tirou a mão do peito quente de Lucas. Todo o caos emocional de antes se agitou dentro dela. — Eu sei que ele é um fantasma — disse Kylie. — E gostaria que ele não estivesse morto. Gostaria de saber o que ele quis dizer. E gostaria que você pudesse me aceitar como eu sou. Mas não posso mudar o fato de que meu pai morreu antes de eu nascer. Eu não tenho culpa de não entender o que ele quis dizer. Aliás, não entendo um décimo do que está acontecendo na minha vida agora. E tenho a impressão de que você nunca vai conseguir me aceitar pelo que eu sou. — Isso não é verdade. — A expressão de Lucas endureceu com a negação. — É verdade, sim. — Ela se virou e se afastou, mancando por causa do salto quebrado. Kylie ouviu-o pedindo para que ela não fosse embora. E ignorou o seu pedido. Então parou e se abaixou para tirar os sapatos. Ao se endireitar novamente, seus olhos se desviaram para a fileira de árvores e ela reparou que as folhas se mexiam mesmo sem que houvesse uma brisa. Percebeu de novo aquela sensação inexplicável de que estava sendo atraída para a floresta. Por mais tentador que fosse, ela se afastou. Afastou-se da floresta. Afastou-se de Lucas. E ambas as coisas, de alguma forma, pareciam erradas.
 
Os pés descalços de Kylie moviam-se rápidos de encontro à terra enquanto ela corria. Ela ouviu uma miscelânea de vozes vinda do refeitório, onde todos se reuniram após o funeral de Ellie. Ellie, que morrera nas mãos de Mario. Outra onda de culpa tomou conta de Kylie. Ela correu mais rápido. Não queria se juntar aos outros campistas. Ela queria... precisava... ficar sozinha. Estava quase chegando à sua cabana quando sentiu uma lufada de ar passar por ela. Um vampiro com pressa. Talvez um vampiro caçando. Kylie se esforçou para correr mais rápido e se preparou mentalmente para lutar. Não que tivesse alguma chance de vencer uma batalha contra um vampiro. A superforça que ela tinha só aparecia quando estava ajudando os outros. Uma protetora, era assim que os outros sobrenaturais a chamavam. Mas como poderiam chamá-la assim se ela não tinha protegido Ellie? Nem mesmo as suas habilidades de cura tinham surtido efeito. Que injustiça ela ter salvado um pássaro, trazendo-o de volta à vida, e não ter conseguido salvar uma amiga! Ela estava disposta a pagar o preço. Não importava quanto de sua alma teria que dar em troca para salvar Ellie. Ela sentiu novamente: a lufada de ar quando algo passou rapidamente por ela. Dessa vez viu uma cortina de cabelos negros esvoaçantes. Definitivamente era um vampiro. Mas ele não estava caçando. Della apareceu ao lado de Kylie, correndo no mesmo ritmo alucinante. Mas por ser uma vampira, ela se movia com facilidade, como se estivesse correndo por diversão.
— O que há de errado? — O cabelo escuro de Della, herança da sua ascendência asiática, tremulava atrás dela como uma bandeira. — Você é o que há de errado. — Kylie parou bruscamente. — Odeio quando você passa por mim correndo desse jeito e eu não consigo ver se é de fato você. Eu me sinto ameaçada. Me sinto como... uma presa. — Ah, corta essa! — resmungou Della, com o seu jeito malcriado de sempre. — Me desculpe por estar preocupada. Eu ouvi você correndo como uma louca e pensei que alguém estivesse te perseguindo. — Sinto muito, mas ninguém está me perseguindo. — O olhar de Kylie voltou-se outra vez para a floresta. Ele só está me provocando para que eu entre na floresta e enfrente-o. Mas quem é ele, e por quê? No início ela achava que era Mario, mas e se estivesse errada? — O que aconteceu? — Della perguntou. Kylie tirou os olhos da floresta. — Nada. Della inclinou a cabeça para o lado, como se estivesse ouvindo o coração de Kylie, buscando os sinais de que a amiga estava tentando enganá-la. Então revirou os olhos. — Mentirosa... Que coisa feia... Kylie gemeu. — Tudo bem. Estou mentindo. E daí? — Uau! Você está com um humor daqueles! O que a deixou assim? — Você. — Kylie se encolheu ao ouvir o seu próprio tom rude. Della sorriu como se apreciasse a raiva da amiga. Kylie começou a andar. — Quem deveria ser a sua sombra hoje? — Della perguntou. — Eu não sei. — O olhar de Kylie disparou para a floresta e a sensação bateu mais forte do que nunca. Ela saiu correndo pela trilha, acelerando o passo ao máximo. Não parou até que chegou à sua cabana. Sentiu uma câimbra do lado direito de tanto correr. Ao chegar na varanda, desabou no chão. — Então, o que aconteceu? — Della não estava nem mesmo respirando com dificuldade quando se sentou ao lado de Kylie. Algo na floresta está chamando o meu nome. Isso parecia loucura. Kylie não podia dizer isso. Ela olhou para Della. Os olhos pretos puxados da companheira de alojamento pareciam realmente preocupados e a fizeram se sentir uma megera. — Desculpe. Estou de mau humor. — O que é muito raro — disse Della. — Eu meio que gosto disso. Kylie revirou os olhos e deixou de lado as suas reservas. — Você já ouviu falar em camaleões? — Já — respondeu Della. — Já? O que você sabe sobre eles? — São lagartos que mudam de cor. De acordo com Chan, eles não têm um gosto tão ruim. No Havaí, os vampiros da região vendem o sangue desses bichos. Deve ser tão bom quanto o O negativo. — Não. — Kylie puxou os joelhos para cima e os abraçou. — Não, o quê? — Quero dizer... camaleões que são um tipo de sobrenatural. — Um lagarto sobrenatural? — Della riu. Kylie ficou de pé num salto. — Ei! — Della apareceu ao lado dela. — O que há de errado com você? Kylie abriu a porta da cabana e olhou de volta para Della. — Tudo está errado. — É por causa de Ellie? — A voz de Della insinuava uma emoção que a vampira queria esconder. O coração de Kylie ficou mais apertado.
— É, é por causa da Ellie. É porque eu sou um lagarto. É tudo. — Você é um lagarto? — A seriedade desapareceu dos olhos da amiga e ela sorriu. Kylie irrompeu através da porta, então virou-se novamente para Della. — É isso mesmo, você é uma vampira e eu sou um lagarto, por isso pode ir se acostumando. O sorriso de Della desapareceu. — Você fumou alguma coisa? Sério, acho que você é um lobisomem. Esse seu humor irritadiço é um pista infalível. — E os vampiros? Não são irritadiços? — disse Kylie, revirando os olhos. — Não, nós somos mal-humorados. Irritadiços e malhumorados são duas coisas completamente diferentes. Della entrou na cabana. A tentativa da vampira de mostrar bom humor era para ajudar Kylie, não para feri-la. Mas Kylie não estava no clima. — Eu não sou um lobisomem. — Lágrimas ardiam em seus olhos. — Se eu fosse, então Lucas ficaria feliz e tudo estaria em perfeita ordem neste mundo. Della olhou para ela espantada. — Você está falando sério?! Quem te disse que você é um lagarto? — Meu pai. Os olhos de Della se arregalaram. — Está brincando. — Não, não estou. Della deixou-se cair no sofá e olhou a sala em volta. — Ele está aqui agora? — Não. — Ótimo. — Ela bateu as mãos nas coxas. — Talvez ele estivesse fumando algo.
Kylie revirou os olhos cheios de lágrimas. — Você poderia parar de fazer piadinhas? Della pegou uma almofada do sofá e jogou em Kylie. — Olha aí, seu lado lobisomem vindo à tona novamente. Kylie se virou para entrar em seu quarto, mas antes que chegasse à porta, Della estava na frente dela. Era assustadora a rapidez com que um vampiro podia se mover. — Tudo bem — disse Della. — Eu vou tentar ficar séria, mas... É loucura. Eu sei que você não quer acreditar, mas alguém está curtindo com a sua cara. Não existe essa coisa de lagarto sobrenatural. É só você perguntar a ela. — Ela quem? — A porta principal da cabana bateu e Miranda entrou na sala. Seu cabelo loiro estava solto, listado com mechas cor-de-rosa, verde e preta. Kylie não sabia se Miranda usava seus poderes de bruxa para tingir o cabelo ou se era tinta mesmo. Miranda franziu o cenho. — Por que você me deixou lá sozinha? — ela perguntou a Della. Della fez uma careta. — Foi mal. Kylie está tendo uma crise. Eu só posso ser superamiga de uma de vocês de cada vez. Miranda olhou para Kylie. — Que tipo de crise? Normalmente, Kylie contava tudo a Miranda e Della, mas nesse momento ela preferia ficar de boca fechada. Durante todos aqueles meses ela ansiara por saber de que espécie era, achando que isso iria resolver tudo e, no entanto, ali estava ela, supostamente sabendo que era um camaleão, e se sentindo mais confusa do que nunca. — Crise de réptil apetitoso. — Della riu, colocou a mão na boca e depois se voltou para Kylie, pedindo desculpas com os olhos. — Opa! — O quê? — Miranda exclamou.
Della apoiou uma mão no quadril. — Diga a Kylie que lagartos sobrenaturais não existem. — Perry pode se transformar num lagarto. — Os olhos de Miranda brilharam com orgulho. — Ontem ele se transformou em... — Por favor, chega de histórias sobre Perry. — Della pressionou as mãos contra o estômago. — Senão juro que vou vomitar. — Você é tão idiota... — Miranda rebateu. — Eu não sou idiota. Estou farta de ouvir histórias sobre Perry. “Os dedos mindinhos de Perry são tão bonitos!”, “Perry tem as sardas mais charmosas que eu já vi atrás da orelha direita.” — Você só está com inveja! Porque não tem namorado e Kylie e eu temos! Tinha. Kylie tinha um namorado. Ela não tinha certeza do que ia acontecer entre ela e Lucas agora. Os apelos do lobisomem para que ela não fosse embora ecoaram em seu coração. — Inveja? — Della rugiu para Miranda. — Ah, pelo amor de Deus, eu prefiro cair morta agora do que viver apaixonada como você. Miranda ergueu a mão e mexeu o dedo mindinho — um sinal claro de que um feitiço estava prestes a ser lançado dos seus lábios. Os olhos de Della brilharam e seus caninos se projetaram. — Chega! — Kylie olhou de uma para a outra. Ela não aguentava mais. — Ah, que inferno! Quer saber, não parem, não. Vocês duas ameaçam se matar desde que cheguei aqui, e isso está me deixando louca. Então, simplesmente se matem logo para pôr um fim nesse sofrimento. — Por dentro, Kylie estremeceu. Ela não queria ter dito aquilo. Nem mesmo agora, quando estava tão furiosa. No entanto, talvez um pouco de psicologia reversa corrigisse aquelas duas. Miranda e Della encararam Kylie como se ela tivesse perdido o juízo. Elas poderiam até estar certas, mas em parte era por culpa delas. Suas discussões estavam deixando Kylie a ponto de enlouquecer.
— Vamos lá! O que estão esperando? Se matem de uma vez. E façam isso de um jeito divertido. — Kylie cruzou os braços e fulminou as duas amigas. Começou a bater um pé no chão, assim como a mãe dela fazia quando estava à beira de um ataque de nervos. Os olhos de Della voltaram à sua cor original e seus caninos desapareceram sob o lábio superior. Miranda baixou seu ameaçador dedo mindinho. Quer dizer então que a psicologia reversa funcionava de fato. Rá!... Quem diria... — O que há de errado com ela? — Miranda perguntou a Della como se Kylie estivesse tão mentalmente instável a ponto de não poder responder por si própria. — Não há nada errado comigo — respondeu Kylie, frustrada além dos limites. — Eu me pergunto o que há de errado com vocês duas. Della olhou para Miranda e encolheu os ombros. — Ela pensa que é um lagarto. — Um camaleão — Kylie corrigiu. Miranda revirou os olhos. — Coitadinha. Está agindo como um lobisomem. Della lançou a Kylie um sorrisinho. — Eu disse isso a ela. Mas ela me ouve? Claro que não! — Eu não sou um lobisomem. — Não importava o que Kylie desejasse ser agora. — Mas, se você for, tudo bem — disse Miranda. — Prometemos te amar de qualquer maneira. Kylie desabou numa cadeira da sala, enquanto as duas melhores amigas olhavam para ela com um misto de piedade e malícia. Elas achavam que Kylie estava louca. E talvez ela estivesse mesmo. Achava que a floresta estava chamando seu nome e acreditava que era um réptil. Ela se inclinou para trás e olhou para o teto. — Eu sou um camaleão — disse ela, esperando que dizer isso lhe trouxesse algum tipo de entendimento instintivo. Ela prendeu a respiração, esperando por uma epifania — uma certeza interior que faria com que tudo parecesse entrar nos eixos. Nada aconteceu. E nada pareceu entrar nos eixos. Não parecia certo ela ser um lagarto. Nem ver um fantasma com o rosto de alguém que ainda estava vivo, nem o seu pai sugerir que ela iria em breve fazer um passeio até o além, e muito menos a confissão de Derek de que ele a amava. Nada. Nada parecia certo. Ela gemeu. — Dê a Kylie uma Coca Diet, Della — disse Miranda. — Talvez o açúcar dê uma turbinada no cérebro dela. — Esse refrigerante não tem açúcar de verdade — respondeu Della. — Eu sei. Mas você já ouviu aquela frase? Finja até que seja verdade? — Ah, esqueça a Coca. Eu vou pra cama. — Kylie levantou da cadeira num salto e foi para o quarto, batendo a porta com tanta força que quase a arrancou das dobradiças. Atrás da porta, ouviu as amigas dizerem ao mesmo tempo: — Definitivamente, um lobisomem. Ela não tinha chegado a sua cama quando ouviu um barulho alto na sala de estar. Será que Miranda e Della tinham finalmente decidido se atracar? Sentindo-se culpada por encorajá-las, resolveu sair do quarto para evitar a briga, mas se acalmou quando ouviu vozes. — Onde está Kylie? — A voz grave e profunda de Burnett atravessou a parede ao mesmo tempo que seu celular começou a tocar. Ela tirou o telefone do bolso e abriu a porta. Burnett estava do lado de fora, já com a mão levantada para bater na porta. Raiva e um ar de culpa se estampavam no seu rosto. — Algo errado? — O telefone vibrava na mão de Kylie. — Você está bem? — Por que não estaria? — Será que tinha acontecido mais alguma coisa? A essa altura, nada poderia surpreendê-la.
 
— Você saiu sem me avisar. — Os lábios de Burnett se comprimiram numa linha fina enquanto ele a repreendia. — Não saí, não. — Kylie viu Della e Miranda atrás de Burnett, com expressões preocupadas. Sem dúvida, não tinha sido sensato discordar de Burnett. — Você estava no escritório e então foi embora — Burnett rosnou. — Eu deveria ser a sua sombra. — Isso foi há quase uma hora — lembrou-o Kylie. Será que só agora ele havia percebido que ela tinha ido embora? O toque do celular chamou novamente a sua atenção e ela resolveu checar quem estava chamando. O nome de Holiday estava na telinha. Então a líder do acampamento, com o telefone ainda pressionado contra a orelha, invadiu a cabana. — Você a encontrou! — O alívio transbordou dos olhos de Holiday e ela dobrou os braços sobre o estômago e respirou, como se tivesse corrido o caminho todo até ali. — Você não devia ter saído sem dizer nada — disse Burnett a Kylie. Holiday fechou o celular e o de Kylie parou de tocar. Kylie olhou para a líder do acampamento, recordando as perguntas sobre o fantasma que ela precisava fazer à amiga. Como alguém vivo pode aparecer como um fantasma? — Eu estava encarregado de cuidar de você — disse Burnett, continuando o sermão. Kylie olhou para Burnett enquanto colocava o telefone na mesinha lateral. Ela provavelmente devia manter a boca fechada, mas o seu mau humor prevaleceu.
— Você não pode me culpar. Eu disse que estava indo embora. Não uma vez, mas duas. Vocês dois estavam muito ocupados brigando para me ouvir. — Quando suas próprias palavras hostis chegaram aos seus ouvidos, ela se preocupou que talvez Della e Miranda concluíssem definitivamente que ela era um lobisomem. Holiday se aproximou. — Nós não estávamos brigando. De fato, Kylie pensou, notando que a camiseta de Holiday estava do avesso. Não estavam brigando, hein? Então, o que estavam fazendo para que Holiday vestisse a camiseta do avesso? Toda a frustração de Kylie diminuiu e ela quase sorriu. Quase. — É, estávamos brigando — confessou Burnett, como se de repente se lembrasse. — Só estávamos discutindo sobre algumas coisas. — Holiday lançou a Burnett um olhar que dizia: Não discorde de mim quanto a isso. — Estávamos discutindo acaloradamente. — Burnett recebeu outro olhar duro da líder do acampamento de cabelos ruivos. — Concordo — murmurou Della. — Eu ouvi vocês o tempo todo do refeitório. E não estou bem certa do que foi que a minha audição supersensível captou. — É verdade — disse Miranda. — Porque eu não consegui ouvir nada. Mas provavelmente foi porque eu estava conversando com Perry — explicou a bruxinha com um olhar sonhador. — Eu adoro conversar com Perry. Della gemeu. — É isso aí — Miranda continuou. — Não existe nada tão divertido quanto uma boa discussão. Então, se alguém quiser me contar alguma coisa, eu apreciaria muito. — Ela esfregou as mãos. — Apenas as partes boas. Burnett bufou de frustração. — Nós só estávamos... — O que estávamos fazendo não importa — Holiday falou de repente, com as bochechas corando.
— Então não estavam brigando? — Miranda parecia intrigada. Kylie quase sorriu novamente. Holiday estava certa. O que estavam fazendo não importava. O que importava era que tinham feito as pazes. O mais importante era que Holiday havia conseguido convencer Burnett a não ir embora do acampamento. Shadow Falls precisava dele. Holiday precisava dele. Tudo dentro de Kylie lhe dizia que aqueles dois tinham sido feitos um para o outro. Infelizmente, Holiday resistia à ideia de ficar com Burnett. E, embora ela não tivesse admitido ainda, Kylie suspeitava que tudo tinha a ver com o noivo vampiro de Holiday que partira o seu coração ao deixá-la no altar. Kylie também sentia que havia algo mais naquela história que Holiday não deixava transparecer. Não que ser deixada no altar já não fosse ruim o bastante, mas alguma coisa dizia a Kylie que havia acontecido algo ainda mais traumático. Por que outra razão Holiday rejeitaria o amor de Burnett? Deus sabia que não era fácil para um vampiro ser rejeitado. Kylie tinha lhe dito que ele precisava ter paciência. Holiday não poderia continuar a rejeitá-lo por muito tempo. Não quando Burnett era praticamente perfeito. Alto, moreno, mal-humorado de um jeito sexy, e de bom coração. Claro que, sendo vampiro, ele não andava por aí elevando o ânimo das pessoas como Holiday fazia. Mas era um sujeito atencioso. Será que Holiday finalmente ia recuperar o bom senso? — Você vai ficar em Shadow Falls? — Kylie perguntou a Burnett, prendendo a respiração em expectativa. Burnett olhou para Holiday e Kylie podia apostar que ele quase sorriu. — Eu vou ficar. — Yes! — Miranda e Della ensaiaram um “Toca aqui!” e fizeram a dancinha da vitória. Um sentimento de que tudo estava entrando nos eixos preencheu o peito de Kylie. Talvez aquele dia, afinal de contas, não fosse entrar para a história como o pior dia de sua vida.
Burnett, normalmente um pouco sombrio, não pareceu compartilhar a alegria das garotas, mas Kylie viu o alívio em seus olhos. — Da próxima vez que você for responsabilidade minha, não vá embora sem a minha autorização. Kylie assentiu, muito feliz para se importar com o fato de que não era culpa dela. — Mesmo que você tenha que me bater na cabeça duas vezes para conseguir a minha atenção — ele continuou, tomando para si a maior parte da culpa. O sorriso de Kylie se alargou. Por mais severo que Burnett pudesse ser, ele não era injusto. Kylie observou enquanto Burnett saía pela porta e Holiday se virava para segui-lo. Mais uma vez, ela não pôde deixar de se perguntar até que ponto as coisas tinham evoluído no período em que os dois ficaram juntos. Será que já estavam arrancando as roupas quando de repente perceberam que ela tinha ido embora? Holiday virou-se e olhou para Kylie. Seus olhares se encontraram por alguns instantes. Aquele rápido olhar bastou para Kylie saber que Holiday, tão empática quanto Derek, tinha detectado o caldeirão de emoções que fervilhava dentro dela. E, no momento, essas emoções não eram nem um pouco felizes. Kylie raramente conseguia esconder alguma coisa da fae. Não que ela tentasse esconder muita coisa de Holiday. A ligação entre as duas tinha se transformado em amizade. Holiday era sua família — não o tipo de família em que nascemos, mas o tipo que temos a sorte de poder escolher. — Eu preciso falar com Kylie. — O tom caloroso de Holiday fez o peito de Kylie se apertar e ela se perguntou o que faria sem aquela amiga em sua vida. Ela esperava que nunca tivesse que descobrir. O pensamento provocou um arrepio na espinha de Kylie. Burnett se despediu de todos com um olhar e então partiu. Assim que ele saiu, Della virou-se para Holiday. — Talvez você consiga pôr um pouco de bom senso na cabeça de Kylie. Ela pensa que é um lagarto.
Cinco minutos depois, Holiday e Kylie estavam sentadas na varanda, as pernas nuas balançando sobre a borda. A líder do acampamento tinha trocado o vestido escuro que usara no funeral de Ellie por uma calça jeans e a camiseta amarela que estava do avesso. O vestido preto de Kylie era mais solto na altura das coxas e caía sobre os joelhos. Se ela esticasse os pés, seus dedos roçariam na grama. Ela normalmente gostava de sentir a leve cócega, mas por alguma razão agora se lembrava do dia em que sentara com Derek em frente à cabana, ao lado da árvore. Deixando esse pensamento de lado, Kylie olhou para baixo. Holiday calçava um par de sandálias, e as unhas dos seus pés estavam pintadas de um tom suave de rosa. — O que aconteceu? — Holiday perguntou, a preocupação aprofundando seu tom de voz. — Eu nem sei por onde começar — respondeu Kylie. — Que tal começar por aquela história do lagarto? Aquela de que Della estava falando. Kylie mordeu o lábio. — Antes de eu começar, me diga o que aconteceu entre você e Burnett? Holiday desviou o olhar. — Ele vai ficar. — Eu sei disso. — Sorrindo, Kylie deu um soquinho de brincadeira no ombro de Holiday. — Será que alguma coisa boa aconteceu? As bochechas da amiga ficaram vermelhas. — Eu não me sinto à vontade falando sobre isso. — Uau! Deve ter sido bom então! — Kylie brincou. Holiday franziu a testa, o que significava que, independentemente do que tivesse acontecido, não havia mudado muita coisa. Algumas peças de roupa podiam ter sido tiradas, mas as reservas de Holiday continuavam com ela.
— Nós não... — Holiday escondeu o rosto com as mãos. — Eu estou confusa, ok? Preciso de Burnett em Shadow Falls. Ele é forte em todas as áreas em que eu não sou. E o que falta nele, eu tenho de sobra. Mas... — Mas você está com medo de admitir que gosta dele — disse Kylie, mesmo quando seus instintos lhe diziam que era melhor ficar calada. — Você não entende — Holiday disse. — Isso porque você não me contou tudo — Kylie acusou-a, novamente com a sensação de que havia coisas, algum trauma emocional, que Holiday mantinha em segredo dentro dela. Holiday suspirou. — Isso é algo que eu preciso superar sozinha. Eu sei que somos muito ligadas e eu fico feliz em saber que você se importa comigo. — Ela colocou a mão sobre a de Kylie. — Eu sinto que você só está tentando ajudar, mas eu preciso resolver sozinha. E estou pedindo para você aceitar isso. Kylie assentiu com a cabeça, sabendo que tinha de respeitar a vontade de Holiday, mas não gostou da decisão da amiga. — Agora, vamos voltar para você. — Ela bateu seu ombro no de Kylie. — Me conte. Respirando fundo, ela contou a Holiday sobre a visita do pai, sobre toda a história do camaleão e a parte em que ele disse que descobririam tudo aquilo juntos... em breve. Preocupação e confusão escureceram os olhos da líder do acampamento. — Ok, quanto a seu pai lhe dizer que vão resolver isso juntos, eu não acho que isso signifique o que você pensa. O tempo é diferente no mundo espiritual. Kylie refletiu sobre o que Holiday disse. — Não é que eu não acredite em você, é só que... havia algo mais no jeito como ele disse “em breve”. Ele estava feliz com isso. Holiday balançou a cabeça.
— Seu pai te ama. E eu acho que, se soubesse que você ia morrer tão jovem, estaria em pânico. E a última coisa que ele ia querer fazer seria contar essa notícia a você. Doía dizer isso em voz alta, mas Kylie o fez de qualquer maneira. — Se eu vou morrer, é melhor que eu saiba. — Não é assim que funciona. Quer dizer, existem pessoas capazes de prever a própria morte e aproveitar seu tempo com sabedoria. Mas, quando se começa a planejar o fim da vida, a maioria das pessoas instintivamente para de pensar no amanhã. Viver o dia de hoje é lindo — muitos de nós não fazemos isso como deveríamos, mas, para viver plenamente, precisamos viver o hoje e o amanhã. Pense, se você soubesse que ia morrer em seis meses, daria início a um projeto que sabe que não poderia terminar? Será que iria para a faculdade de medicina? Será que teria um filho, sabendo que iria deixá-lo sozinho no mundo por muito tempo? As pessoas deixariam de viver muita coisa se parassem de viver pensando no amanhã. O pequeno discurso de Holiday fez com que Kylie se lembrasse de outra coisa. Seu problema com o fantasma. Ela tentou pensar em qual seria a melhor maneira de abordá-lo. — Agora, sobre a coisa toda do lagarto — Holiday continuou, levando os pensamentos de Kylie para outra direção. — Eu nunca ouvi falar de um camaleão sobrenatural. E embora esteja inclinada a dizer que seu pai está errado, eu me pergunto... — Se pergunta o quê? — Eu não sei ao certo, só estou... — Eu sei — Kylie interrompeu-a. — Você está apenas especulando, tentando adivinhar, mas como eu não tenho a mínima ideia do que isso possa ser, gostaria de ouvi-la. — Eu ia mesmo dizer. — A expressão de Holiday dizia a Kylie que ela precisava ter paciência. Mas Kylie estava cansada de ter paciência. E, sim, ela sabia que na quinta-feira seu avô Malcolm Summers viria visitá-la, e ela esperava que ele a ajudasse a dar sentido a tudo aquilo. Mas isso significava ficar mais alguns dias no escuro. — Simplesmente me diga, por favor. — Kylie suavizou o tom, porque estar impaciente podia ser compreensível, mas culpar os outros por isso, não. Holiday respirou fundo. — Talvez ele tenha se referido a você como um camaleão porque seu padrão não amadureceu o suficiente para mostrar o que você realmente é. Ele ainda está mudando, como as cores do camaleão. — Mas ele disse que eu sou um camaleão como se dissesse que eu sou um vampiro ou uma bruxa. É possível que exista outro tipo de raça sobrenatural que ninguém conheça? Holiday fez uma pausa. — Meus instintos dizem que não. A história dos seres sobrenaturais é documentada em livros tão antigos quanto a Bíblia. Mas... admito que estou intrigada. Parece que o que está causando isso é provavelmente hereditário, porque seu avô e sua tia-avó foram capazes de mudar o padrão deles para o humano. Mas isso é algo completamente desconhecido para mim. Eu ainda estou pensando se tem alguma relação com as bruxas... mas... — Ou... — Kylie considerou as palavras de Holiday. — Talvez seja isso que significa a coisa toda do camaleão. Eu estava conversando sobre isso com Derek. Talvez os camaleões possam mudar de espécie. Assim como o camaleão pode mudar de cor. Holiday fez uma pausa como se estivesse pensando. — Mas o DNA não funciona dessa maneira. Você não pode ter mais de uma sequência de DNA. Não é possível, porque os sobrenaturais têm apenas o DNA do pai dominante. Kylie mordeu o lábio. — Então talvez não seja a espécie que realmente mude, apenas o padrão. E de certo modo faz sentido, porque o camaleão não se transforma numa pedra, apenas muda suas cores de modo que pareça uma pedra.
Holiday enrugou a testa. — Mas... — Ela balançou a cabeça. — Mas o quê? — Kylie queria saber tudo o que Holiday pensava. — Simplesmente não parece possível. Se essa capacidade de camuflar o padrão de fato existe, por que outros seres sobrenaturais nunca ouviram falar dela? — Talvez já tenham ouvido falar — disse Kylie. — Talvez seja exatamente por isso que fizeram testes com a minha avó. Você mencionou uma vez que tinha ouvido falar sobre esses testes. Alguém disse para que serviam? — Não especificamente — Holiday esclareceu. — Era algo para entender a genética de alguns seres sobrenaturais. Mas não deu certo. — Não era bem isso — Kylie murmurou — Eles mataram pessoas. Mataram a minha avó. Kylie não conseguia entender como alguém poderia fazer isso, tirar uma vida. A propósito, como Mario tinha sido capaz de matar o próprio neto? Ou matar Ellie, que nunca fizera nada para prejudicá-lo? Ou qualquer outra pessoa? — Eu sei. — Holiday suspirou como se estivesse sentindo a dor de Kylie. — É por isso que eu me recuso a deixá-los fazer testes em você. Eu não acho que a UPF seja mal-intencionada, Kylie. Só não quero que você corra tantos riscos para encontrar respostas. Seja o que for que esteja acontecendo, mais cedo ou mais tarde vamos descobrir. Kylie sem dúvida esperava que Holiday tivesse razão. Porque, agora, nada daquilo fazia o menor sentido para ela. Ela voltou a olhar para Holiday. — É por isso que você não confia em Burnett? Porque ele é da UPF? Holiday parecia perplexa. — Eu confio em Burnett. Kylie arqueou uma sobrancelha em descrença.
— Eu confio nele com relação a Shadow Falls — Holiday confessou. Mas não nas questões do coração. E como isso era triste... Kylie pensou. — Eu não deixaria que ele permanecesse aqui se achasse que havia alguma chance de ele trair você ou algum dos meus alunos. — Eu sei — disse Kylie. — E eu confio nele, também. Quer dizer, aquela coisa toda da UPF com a minha avó me assusta, mas eu confio em Burnett. Holiday fitou Kylie nos olhos novamente. — Eu sei que essa demora para conseguir respostas é difícil para você. Mas tenha esperança de que o seu avô virá na quintafeira e... — O que quer dizer com “tenha esperança”? Ele disse a Burnett que viria, não disse? — Vendo um lampejo de decepção nos olhos de Holiday, o coração de Kylie quase parou. — O que aconteceu? — Burnett tentou entrar em contato com ele novamente e... o telefone do seu avô estava desligado. Mas isso pode não significar nada. — Ou pode significar que ele decidiu não entrar em contato comigo. — Um nó se formou na garganta de Kylie. — Não fique imaginando coisas antes de termos certeza. Kylie abraçou os joelhos e deixou a cabeça tombar sobre eles, tentando não chorar. Será que a sua esperança de descobrir a verdade estava indo por água abaixo? Holiday pousou a mão sobre o ombro de Kylie. Uma doce sensação de calma veio com o toque, mas, embora ele tenha diminuído o seu pânico, não mudou muita coisa. Elas ficaram ali por alguns minutos, sem falar, enquanto Kylie tentava não chorar e Holiday fazia o que sabia fazer melhor — confortá-la. Uma brisa suave soprou e a mente de Kylie começou a divagar, passando de um problema para outro.
— Derek me disse que conversou com você sobre... algumas coisas. Holiday tirou um fio de cabelo da bochecha de Kylie. — Eu sinto muito. Imagino que tenha sido uma revelação inesperada. Kylie assentiu. — O que eu devo fazer com essa informação? — Eu não acho que você tenha que fazer alguma coisa. Kylie inspirou. — Isso me deixou maluca e triste, e eu começo a questionar tudo. E Lucas tem ciúme dele e eu não o culpo, porque sinto o mesmo com relação a Fredericka. Mas... — Mas você gosta de Derek — Holiday concluiu por ela. — Gosto. Só não tenho certeza de que o que eu sinto por ele é o mesmo que sinto por Lucas. Isso faz sentido? — Todo sentido. — Holiday assegurou. — Você vai descobrir. — Será que vou? — Uma angústia brotou no peito de Kylie novamente. — Tudo na minha vida é um enorme ponto de interrogação. Estou cansada de não ter certeza de nada. E então o fantasma... — Kylie deixou as palavras morrerem na boca. — Você tem um problema com um fantasma? — Holiday perguntou. — É a sua avó? Você já perguntou a ela sobre o que o seu pai disse? — Não, não é ela. — Quanto Kylie deveria contar a Holiday? — No começo, o espírito parecia um zumbi, nem sequer tinha um rosto. Eu insisti para que ele desse um jeito nisso. Mas então... o rosto que ele mostrou era... de alguém que não está morto. Holiday mordeu o lábio. — Tem certeza de que não está morto? — Tenho certeza. — Certeza absoluta. — Bem — Holiday continuou — há duas alternativas. A resposta mais provável é que você está lidando com um fantasma com crise de identidade.
— Sério? Fantasmas podem ter crise de identidade? — Kylie perguntou. — Receio que sim. Eles podem nem saber qual é a aparência deles. Ou podem não gostar da aparência que tinham e então plasmar o rosto de outra pessoa em seu corpo de fantasma. Quase sempre usam o rosto da pessoa que se comunica com fantasmas. E ver o seu rosto num fantasma... — Holiday estremeceu. — Não é nada bom. — Posso imaginar — disse Kylie, mas ela não queria imaginar. Já tinha muito no que pensar. — E a segunda alternativa? — É rara. Mas você já leu Um Conto de Natal? — Já. — Kylie se lembrava do enredo. — Aquela história do Scrooge, certo? — E o fantasma do futuro — completou Holiday. Kylie prendeu a respiração. — Essa pessoa poderia estar prestes a morrer? Claro, esse pensamento lhe ocorreu, como ocorrera a Derek, mas não pareceu real até que Holiday mencionou a possibilidade. Não, Kylie recusou-se a aceitar. Ela já tinha visto mortes demais. — Isso é algo que eu possa mudar? — ela perguntou, o pânico crescendo em seu peito. — Provavelmente, não — respondeu Holiday franzindo a testa. — Por acaso é alguém que você conhece bem? Kylie não respondeu. Ela não podia. Só ficou lembrando a si mesma que Holiday dissera que era raro. — É alguém de Shadow Falls? — a voz de Miranda soou atrás dela. Kylie se virou e viu Miranda em pé na porta, atrás dela. — Foi mal — desculpou-se a amiga. — Eu não queria ouvir a conversa... mas é alguém daqui? — Não — mentiu Kylie. — Ah, que bom. — Miranda franziu a testa de um jeito dramático. — Seu celular está tocando. — Ela passou o aparelho para Kylie. — É a sua mãe. É a terceira vez que ela liga nos últimos cinco minutos. — Você devia ligar para ela — disse Holiday a Kylie. Então o celular dela também começou a tocar. A fae deu uma olhada no número que apareceu no visor. — É Burnett. Holiday e Kylie ficaram em pé ao mesmo tempo. Kylie pegou o telefone da mão de Miranda enquanto Holiday atendia o dela. — Alô. — Holiday fez uma pausa. Uma ruga de preocupação surgiu entre seus olhos. — Sobre o quê? — Seu tom fez Kylie hesitar antes de ligar para a mãe. — Vamos conversar antes de você sair. Estou a caminho. — Holiday desligou. — Qual o problema? — perguntou Kylie. — Eu... eu falo com você quando souber de alguma coisa. — Holiday se despediu, mas Kylie ficou com a impressão de que o telefonema tinha a ver com ela. — Não parece boa coisa — murmurou Miranda. Mas que ótimo, pensou Kylie. O que mais ela teria que enfrentar?
 
— Tudo bem? — A voz de Holiday despertou Kylie cerca de uma hora depois. Após tentar ligar para a mãe várias vezes e deixar uma série de mensagens, sua mente e seu coração fizeram uma pausa e ela foi para a cama tirar um cochilo. Ela se virou e viu Holiday sentada na beirada da cama. Sentando-se também, Kylie bocejou e tirou os cabelos dos olhos. — Estou melhor. — A vida pode ser dura às vezes. — Nem me diga. — Kylie se lembrou da ligação de Burnett. — Está tudo bem? Por que Burnett ligou? Holiday olhou para ela com uma expressão vazia. — Quem é Burnett? O frio no quarto provocou arrepios nas costas de Kylie. Ela piscou e tentou focar melhor as feições da mulher. Não havia dúvida. Era Holiday. Raiva, medo e frustração oprimiram o peito de Kylie. — Ok, vamos deixar uma coisa bem clara. Quando eu disse pra você dar um jeito na sua cara, quis dizer para mostrar a sua própria, não para pegar o rosto de outra pessoa emprestado. O espírito pressionou as palmas contra as próprias bochechas e seus olhos se arregalaram. — Este não é o meu rosto? — Não, não é! É o rosto de alguém de quem eu gosto muito, e, nada pessoal, mas eu não gosto de vê-lo em você. — Eu estou tão confusa! — Você está passando por uma crise de identidade — Kylie esclareceu, querendo muito acreditar nisso.
— Uma crise de identidade — o espírito repetiu. — É, e você precisa descobrir quem você é e o que precisa que eu faça, porque do contrário não posso ajudá-la. — É quase tudo um borrão. — Ela apertou os lábios da mesma maneira que Holiday fazia quando estava muito concentrada, e a semelhança entre as duas se tornou realmente assustadora. Até a cor verde dos olhos batia perfeitamente. — Talvez você esteja certa — disse o espírito. — Lembro-me de que sempre me senti como se vivesse na sombra de outra pessoa. — Que bom! — disse Kylie. O alívio lhe permitiu respirar melhor. — Bom que eu vivesse na sombra de outra pessoa? — O fantasma franziu a testa. — Eu não vejo isso como uma coisa boa. — Não, eu... Quero dizer, é bom que você consiga se lembrar das coisas. — E nesse exato momento, Kylie se lembrou de algo também. Uma maneira rápida e fácil de ter certeza de que esse espírito não era Holiday Brandon. Kylie apertou os olhos e se concentrou na testa do fantasma. O padrão extravagante, assim como o rosto, batia perfeitamente com o de Holiday. Kylie inflou o peito, preocupada. — Você é fae? O espírito cruzou as pernas, colocou o cotovelo sobre o joelho e apoiou o queixo na palma da mão. O gesto era tão característico de Holiday que o coração de Kylie quase parou. — Sim, é isso que eu sou. — Ela apertou as sobrancelhas e olhou para Kylie. — Oh, Deus, o que você é? Kylie hesitou. — Eu sou um... camaleão. O espírito fez uma careta. — Você é um lagarto? Kylie franziu a testa, mas sua preocupação não era consigo mesma. — Você se lembra do seu nome? — Kylie prendeu a respiração.
O espírito olhou nos olhos de Kylie e sua testa se franziu em perplexidade. Então ela se levantou e andou até a janela do quarto. Olhou para fora em silêncio por alguns instantes, e finalmente se virou. — Alguém está procurando você. — Você se lembra do seu nome? — Kylie repetiu. Jogando o cabelo ruivo por cima do ombro, o espírito fez um rabo de cavalo e enrolou os cabelos como se fossem uma corda. Exatamente da mesma forma que Kylie tinha visto Holiday fazer alguns minutos antes. O fantasma olhou para trás. — Eles querem que você vá até eles. O peito de Kylie se contraiu um pouco. — Vamos falar sobre você agora — Kylie disse, tomando mentalmente a decisão de se concentrar em um problema de cada vez. — Mas você é muito mais interessante. Existe todo esse mistério em torno de você. Um monte de perguntas a serem respondidas. Eu posso sentir suas emoções, você sabe. É isso o que fazem os faes. Nós sentimos o que as outras pessoas sentem. — Eu sei — disse Kylie, frustrada e assustada com a identidade verdadeira do espírito, mas lutando contra a angústia para que pudesse descobrir mais sobre ele. Porque, se ela fosse Holiday, então talvez Kylie pudesse fazer alguma coisa, mudar alguma coisa para evitar que... — Eu costumava tocar as pessoas e fazê-las se sentirem melhor, mas não consigo mais... — Por que não consegue mais? — Kylie perguntou. Ela franziu o cenho. — Eu não sei muito bem. Acho que fiz alguma coisa ruim. — Os olhos verdes brilhantes do fantasma se encheram de lágrimas. — Eu feri pessoas. Kylie sentiu a dor do espírito, seu remorso, mas não podia negar que estava sentindo um pouco de alívio com a confissão.
Holiday não faria nada errado. Ela tinha um coração muito bom. Preocupava-se demais com as pessoas. — Talvez você não quisesse machucá-las — disse Kylie, querendo ajudar. Ela abraçou a si mesma para se proteger do frio que acompanhava o ser espiritual. — Não sei. Acho que eu estava com raiva. — O espírito olhou para a parede como se estivesse perdido em pensamentos e então estendeu a mão e tocou a garganta. Kylie notou hematomas de aparência dolorosa ao redor do pescoço do fantasma. — O que aconteceu com você? — Kylie perguntou, um nó se formando em sua garganta com o pensamento de ser sufocada até a morte. A mulher olhou para Kylie, com os olhos ainda molhados de emoção. — Eu estou morta. Kylie assentiu. — Eu sei. — Ela esperou um segundo. — O que aconteceu? O espírito balançou a cabeça. — São como fragmentos de um pesadelo. Mas eu acho que tem algo a ver com o motivo de eu estar aqui. Quer dizer, eu devia ir embora agora... Nós... sobrenaturais, não ficamos por aqui. — Ela olhou para baixo e sua imagem começou a se desvanecer. — Eu preciso descobrir. Acho que é importante. — Eu vou fazer o que puder para ajudá-la — Kylie disse, ao se lembrar de Holiday dizendo a mesma coisa para os pouquíssimos não humanos que vagavam por este mundo depois da morte. — Se você me disser o seu nome, talvez eu consiga encontrar alguma coisa no computador que possa nos ajudar. O espírito foi novamente até a janela e tocou a vidraça. Uma camada de gelo se formou sobre o vidro, borrando a visão de fora. — É melhor você começar a descobrir como resolver os seus próprios problemas, também.
— Estou tentando — disse Kylie, novamente vendo a personalidade de Holiday no espírito e não gostando nem um pouco disso. — Qual é o seu nome? — Kylie insistiu. O espírito foi desaparecendo no mesmo ritmo que o gelo na janela. Então falou: — Eu acho que é Hannah ou Holly. Algo parecido com isso. — Não — disse Kylie, sua própria voz um pouco mais que um sussurro. Kylie então pegou uma fivela e prendeu o cabelo no alto da cabeça, determinada a ir ver Holiday, sem nem saber direito o que dizer à líder do acampamento. Ela só precisava ver Holiday pessoalmente. Kylie saiu do quarto e encontrou a sala principal da cabana vazia. Começou a ir até a porta e parou. Quem deveria ser a sua sombra? Não que Kylie realmente se importasse. Ela só iria até o escritório, mas já tinha arranjado problemas com Burnett uma vez por causa da questão do sombreamento, e não queria arranjar mais um. — Della — ela gritou. Nenhuma resposta. Será que havia algo errado? — Olá — Miranda saiu do quarto um segundo depois. — Della teve uma reunião com Burnett. Eu fui encarregada de ser a sua sombra — a bruxinha disse com orgulho. Kylie assentiu. — Ótimo. Vamos para o escritório. — Por quê? — Porque eu quero falar com Holiday. — Sobre o quê? — Sobre uma coisa. — Malcriadinha, hein? — Miranda fez uma careta, como se estivesse engolindo algo realmente nojento.
Kylie começou a dar uma resposta enviesada, mas se conteve. Era compreensível que ela estivesse de mau humor, mas isso não lhe dava o direito de descontar em seus amigos. — Desculpe. Sei que estou meio irritada hoje. Mas é tanta coisa ao mesmo tempo! — Eu sei — disse Miranda, desculpando a amiga. — O funeral deixou todos nós de mau humor. E, depois, com toda essa sua crise de lagarto, quero dizer, eu ficaria ainda mais mal-humorada se alguém me dissesse que eu sou um réptil. É por isso que eu não levantei meu mindinho para você nem uma vez. — E eu agradeço por isso — disse Kylie, mas então se dando conta do que Miranda tinha dito. — Sobre o que Burnett queria conversar com Della? — Não sei. — Ela estava chateada? — Kylie não podia deixar de se preocupar que a conversa entre eles tivesse relação com o que deixara Holiday tão aborrecida ao falar com Burnett pelo telefone. E Kylie não tinha se esquecido de que na hora tivera a impressão de que o assunto era sobre ela mesma. — Na verdade, não. Aqui entre nós, acho que Della tem uma queda por Burnett. Ela fica toda contente quando ele pede para que ela faça alguma coisa. — Não, não é verdade. Ela sabe que ele é apaixonado por Holiday. — Então por que ela não procura Steve? Ela tem inveja porque nós duas temos namorado, mas não vai atrás de Steve. E ultimamente ando notando a mesma coisa que você. Aquele metamorfo não tira os olhos dela. Ele morre de tesão por Della. Kylie se dirigiu para a porta. — Ela não vai atrás de Steve porque ainda é apaixonada por Lee. — É, acho que pode ser por isso também. — Elas saíram da cabana e pegaram a trilha até o escritório. — Sabe, eu poderia colocar um feitiço nele.
— Em Steve? — Kylie perguntou. — Não, em Lee. Eu poderia muito bem fazê-lo ficar cheio de verrugas. Poderia colocá-las em algum lugar realmente assustador. Você sabe o que eu quero dizer. Kylie balançou a cabeça. — Eu não acho que Della ia querer que você fizesse isso. — Ela poderia querer, se eu a pegasse num dia em que estivesse com a disposição certa. — Você não teria nem chance de perguntar, porque, se ela não estiver na disposição certa, pode ficar realmente furiosa. — É, acho que tem razão. — Elas continuaram a caminhar pela trilha. — Eu realmente falo sobre Perry o tempo todo? Kylie olhou para Miranda. — Fala, mas não é tão ruim quanto Della faz parecer. Aposto que falo de Lucas o tempo todo. — Ela se lembrou de que o deixara falando sozinho mais cedo naquele dia. Será que ele ia ficar com raiva dela? Será que ele tinha esse direito? — Na verdade, você não fala, não. Mas costumava falar de Derek o tempo todo. Kylie franziu a testa, sem gostar do rumo que a conversa estava tomando. — Ah, isso me fez lembrar, ele veio ver você enquanto estava dormindo. — Derek veio me ver? — Não, Lucas. Envergonhada por ter entendido mal, Kylie mordeu o lábio. — Por que ele não me acordou? Por que vocês não me acordaram? — Ele não quis. Deu uma olhada em você e disse apenas para avisar que ele tinha vindo. Na verdade, foi fofo. Ele ficou na porta te observando por alguns minutos. Parecia meio triste. Ou sentimental. Como se estivesse completamente apaixonado por você. Della estava abanando a mão embaixo do nariz, como se dissesse que ele estava emitindo todo tipo de feromônio. — Miranda sorriu. O coração de Kylie doeu tanto que ela não conseguiu sorrir também. A culpa espiralou em seu peito, tanto por não ter falado com ele como por ter conversado com Derek e ter ido embora quando Lucas tentou falar com ela. Na hora, ela achou que tivesse razão, mas agora começava a pensar de outra maneira. Será que ela estava sendo dura demais com o namorado? Provavelmente, admitiu. Ela andava meio rabugenta ultimamente. Por isso Miranda e Della a acusavam de ser uma loba. Algo que ela precisava corrigir. Kylie tomou uma decisão. Depois que falasse com Holiday, procuraria Lucas e pediria desculpas por tê-lo deixado daquele jeito. Ela acelerou o passo pela trilha. As árvores de ambos os lados pareciam estar se aproximando, estreitando o caminho. E Kylie experimentou novamente a sensação de que alguém a chamava. Tentava atraí-la para a floresta. Ela parou e olhou para a fileira de árvores. Eles querem que você vá até eles. Ela ouviu as palavras do espírito sussurrando na sua cabeça. Quem estaria lá? Mario? De repente, ela não teve tanta certeza. Não parecia algo ruim. Parecia... Ela não sabia o que, honestamente, somente que não se tratava de algo completamente ruim. No entanto, aquilo ainda a assustava a ponto de acelerar a sua respiração; um arrepio percorreu a sua espinha e arrepiou a base do pescoço. — O que foi? — Miranda perguntou, uma nota de medo na voz. — Sua aura está com todo tipo de cor estranha. — Nada — Kylie mentiu. Ela virou-se e começou a correr para o escritório. Quando seus pés batiam no chão, levantavam pequenas nuvens de poeira. Ela piscou para afastar dos olhos o ar empoeirado e foi então que viu a lua crescente brilhante. E era como se ela tivesse aparecido de repente no céu.
O nascer da lua, pensou. Ela sentiu novamente os sussurros ecoando em sua mente. Sussurros que não podia entender, sussurros que tanto a atraíam quanto a assustavam. — É um fantasma? — Miranda perguntou, os pés batendo no chão enquanto os cabelos multicoloridos dançavam ao vento. — É isso? — Não — Kylie conseguiu falar sem ofegar. — Então pode ir mais devagar? Porque eu não sou como você e Della. Quer dizer, eu poderia lançar um feitiço e talvez pudesse correr mais rápido, mas isso levaria algum tempo. E a última vez em que tentei, me transformei num antílope. — Estamos quase lá — disse Kylie, mas, lembrando-se de como ela detestava ter que dar tudo de si para acompanhar Della, diminuiu o ritmo. De repente, uma lufada de ar passou por elas. Kylie primeiro pensou que era um vampiro, mas então Perry, na forma do enorme pássaro pré-histórico, aterrissou na frente delas. Miranda, mesmo ofegante, deu um gritinho de prazer. Perry abriu a asa direita e envolveu a pequena bruxa, puxando-a de encontro ao seu peito e dando-lhe um caloroso abraço de pássaro. Então ele arrulhou como um pombo. Por mais rabugenta que estivesse, e apesar de todo o seu mau humor, Kylie ficou emocionada. E o sorriso terno que ela viu no rosto de Miranda arrematou a cena com chave de ouro. O amor era uma coisa maravilhosa. Kylie queria aquilo também. Queria tudo aquilo. Completa devoção. Todos aqueles sentimentos transloucados e doces. Imagens de Derek e Lucas encheram a sua cabeça. Ah, mas que inferno! Como ela poderia estar apaixonada pelos dois? Era mesmo possível? Perry soltou Miranda e recuou. Centelhas começaram a cair em torno dele como neve iridescente. Em segundos, um Perry humano apareceu. Seu cabelo cor de areia estava agarrado à testa como se ele tivesse suado. Seus olhos estavam azuis. Azuis brilhantes. Ele usava jeans pretos e uma camiseta com a frase: “O que você quer que eu seja?”.
— Eu estava procurando você — disse Perry, desviando o olhar de Miranda para Kylie. — Me procurando? — Kylie perguntou. — Por quê? Ele deu de ombros. — Porque disseram para eu fazer isso. Mandaram, aliás. — Quem? — Kylie perguntou. — Quem lhe disse para me procurar? — Quem você acha? Burnett e Holiday. Eu não recebo ordens de mais ninguém. Exceto, talvez, de Miranda. — Ele sorriu para a bruxinha. — Alguma coisa errada? — Kylie perguntou. Ele olhou para Kylie. — Eu não sei. Mas sei que sua mãe apareceu e está tendo um chilique. Está deixando Holiday maluca. — Minha mãe está aqui? — Kylie perguntou, confusa. Perry assentiu. — Sinto muito. Kylie aumentou o ritmo da corrida. A preocupação fazia os seus pés baterem na terra, deixando uma nuvem de poeira em seu rastro.
 
Kylie correu diretamente para o escritório de Holiday. A mãe dela estava na frente da escrivaninha da líder do acampamento, fazendo alguma declaração. Holiday estava sentada atrás da mesa, só ouvindo. Burnett, com uma aparência de firme resignação, observava a senhora sem falar nada. Kylie mal lhe lançou um olhar. Ela se concentrou na mãe, que se virou e... Kylie se viu envolvida num abraço rápido e desesperado. Por sobre o ombro da mãe, o olhar de Kylie questionou Holiday, que se levantou. A mãe recuou. Kylie continuou a olhar para Holiday. Uma breve lembrança do espírito apertou o coração de Kylie. Como elas podiam ser tão iguais e não ser a mesma pessoa? Kylie disse a si mesma para lidar com uma coisa de cada vez. Então voltou a se concentrar na mãe. O olhar no rosto dela encheu Kylie de medo. Era o mesmo olhar que ela tinha quando a avó de Kylie morrera. — O que há de errado? — a mente de Kylie buscou possibilidades enquanto ela prendia a respiração. — Papai está bem? Kylie ainda podia estar com raiva do padrasto, podia não tê-lo perdoado por sua infidelidade com a jovem estagiária, mas o amava. Ela nunca se sentira mais segura desse fato. Agora, ela imaginava o pior — imaginava a mãe lhe dizendo que tinha acontecido um acidente. Que Kylie nunca mais receberia outro abraço do homem que a criara ou que nunca mais fariam uma viagem só de pai e filha. — Seu pai está bem. É você que não está. — A mãe olhou por sobre o ombro de Kylie e depois para a filha. — Por que não me disse que estava doente? — Eu não estou doente.
— Você teve dores de cabeça. E aqueles pesadelos, lembra? — Holiday falou num tom que Kylie não entendeu muito bem. O olhar da mãe voou do rosto de Kylie para algo sobre o ombro dela novamente e por algum motivo isso a fez se virar. Sentado no sofá estava um homem que ela não conhecia. — Eu... não entendo — Kylie disse, e olhou para a mãe. — Estava nos meus registros — esclareceu Holiday, novamente num tom que parecia significar alguma coisa. — Eu coloquei essa informação nos meus arquivos e os administradores acharam que talvez a sua mãe precisasse ser comunicada. Para ver se talvez fosse melhor você passar por alguns exames. Kylie continuou a olhar para Holiday. — Eles me ligaram e perguntaram se eu daria a minha permissão para que fizessem alguns exames em você. Querida, você está bem? Exames? Administradores? Ah, droga, ela começou a ligar os fatos. Não eram administradores. Era a UPF. Eles estavam tentando obter a permissão de sua mãe para testá-la. — Eu estou bem — disse Kylie. — Não preciso fazer exame nenhum. — O medo tomou conta de Kylie. Seu olhar saltou para Burnett. Ele olhou para ela, sem desviar os olhos. Sem culpa. E ela sentiu que ele não tinha tomado parte naquilo. Lembrou-se do telefonema e suspeitou que era disso que se tratava. Seu olhar se voltou para o homem no sofá. Ele seria da UPF? Será que aquele cretino queria usá-la como uma cobaia, da mesma forma que tinham feito com a sua avó? — Quem é você? — ela perguntou antes que pudesse se conter. Então, apertou os olhos e verificou o seu padrão. Ela piscou e fez isso de novo quando viu que o sujeito era humano. — Este é John — a mãe respondeu. — Estávamos jantando quando eu recebi a mensagem do senhor Edwards de que você estava tendo desmaios. — John? — Quem diabos era John? Kylie olhou para a mãe e o olhar dela se encheu de culpa.
— Ele é o cliente com quem almocei outro dia, lembra? Eu contei a você sobre ele. Kylie se lembrava. Ele era o cara que ia estragar todas as chances de a mãe e o padrasto se reconciliarem. — Como eu já expliquei — Holiday continuou. — Kylie, na verdade, não desmaiou. Eu acho que só fiz as coisas parecerem piores do que pretendia, em meus relatórios. E quando alguém os leu, interpretou errado. As emoções se agitavam no peito de Kylie como pássaros pegos numa armadilha. Holiday olhou para ela e Kylie teve a sensação de que a líder do acampamento estava tentando lhe comunicar algo. Mas, caramba, Kylie não conseguia ler pensamentos. Ela não conseguia nem ler emoções! — Kylie tinha terrores noturnos em casa? — Holiday perguntou. Kylie de repente achou que tinha entendido o que Holiday queria lhe dizer. — Sim. Eram só terrores noturnos, mãe. Eu não desmaiei. Você se lembra de como eu ficava quando tinha isso. Eu não estou doente. Não preciso fazer nenhum exame. Além disso, você já me levou para fazer exames, lembra? — Mas eu não achei que você ainda tivesse terrores noturnos. — Só tive umas duas vezes. E estou bem. Olhe para mim, eu estou bem. — Ela estendeu os braços, procurando mentalmente uma maneira de provar isso. — Eu posso tocar os dedos dos pés; posso tocar com a língua o meu nariz. — Aqueles eram versinhos que ela e a mãe recitavam quando alguém perguntava se estava tudo bem. — Mas por que o senhor Edwards queria fazer exames em você? Holiday se inclinou para a frente na cadeira. — Ah, esqueça isso. Ele é apenas cauteloso demais. — Ela sorriu, fazendo o melhor para parecer convincente. — Mas se você quiser agendar alguns exames para Kylie com o seu próprio médico para ficar mais sossegada, eu entendo perfeitamente. Quer dizer, nada contra os médicos daqui, mas imagino que confie mais no seu. — Você acha que eu deveria fazer isso? — A mãe perguntou com seu olhar maternal cheio de preocupação. — Na verdade, não, eu não acho. E acho que Kylie está bem. Com apenas duas ocorrências de terrores noturnos, acho que ela está se saindo muito bem. — Eu estou bem — Kylie repetiu. — Estou ótima. Eu juro. Por favor, mãe. Não quero fazer esses exames novamente. A mãe de Kylie correu a palma da mão pela bochecha da filha. — Você não sabe como eu fiquei preocupada. Ah, Deus! — A mãe olhou para Holiday. — Você deveria pensar em ter uma conversa séria com o senhor Edwards. Eu posso jurar que, se ouvisse a mensagem dele, você também pensaria que Kylie estava com problemas graves. — Lamento que ele a tenha assustado. — Kylie olhou para John sobre o ombro da mãe. O homem levantou-se, deu alguns passos para a frente e descansou a mão no ombro da mãe da garota. Kylie teve a estranha vontade de afastar a mão dele e dizer que ele não tinha o direito de tocar sua mãe. — Olá, Kylie — disse John. Kylie observou seu sorriso suave, os olhos castanhos e os cabelos cor de chocolate bem penteados. Ela queria ter encontrado algo feio nele, mas não conseguiu. Ele não era feio. Não tinha todo o charme de Burnett, talvez porque fosse mais velho, mas tinha uma aparência distinta. — Eu gostaria que fôssemos apresentados em circunstâncias diferentes — continuou ele. — Mas espero encontrá-la outras vezes. Sua mãe fala muito de você. Engraçado, Kylie pensou, sua mãe não tinha falado muito sobre ele. Bem, ela havia contado que almoçaram juntos e que ele dissera que poderia lhe telefonar novamente, mas se esqueceu de dizer que ele tinha de fato telefonado. Provavelmente porque sabia dos sentimentos confusos de Kylie com relação aos seus encontros. Ah, mas agora eles não estavam tão confusos... Kylie não gostava dele. No entanto, como não tinha razão para não gostar, exceto pelo fato de que sua intuição lhe alertava contra ele e talvez por querer que a mãe e o padrasto ficassem juntos novamente, ela iria ter que engoli-lo. Ser agradável. O que Miranda tinha dito mesmo? “Finja até que seja verdade.” Ela poderia aprender a gostar desse cara? — Foi bom conhecer você. — Kylie simulou uma expressão calorosa. Mas ficou preocupada com a possibilidade de ele perceber que era falsa. — O prazer foi todo meu — disse ele. Kylie apenas sorriu. Quanto a isso ele tinha razão. Durante a meia hora seguinte, Kylie sentou-se na sala de reuniões do escritório, conversou com a mãe e um John bajulador, e fingiu que tudo em sua vida eram flores. Flores e bajulação. Palavras que Nana, a avó que falecera cerca de três meses antes, teria usado. Estranho como Kylie parecia estar canalizando-a agora. Ela adoraria se Nana aparecesse para uma visita. É você, Nana? Kylie perguntou mentalmente, enquanto John se gabava dos anos em que vivera na Inglaterra. Nana não respondeu. Mas Kylie tinha a estranha sensação de que ela estava por perto. — Eu sempre quis conhecer a Inglaterra — disse sua mãe, prestando atenção em cada palavra que o homem dizia. — Podemos dar um jeito nisso — acrescentou John, com entusiasmo. — Eu tenho uma viagem marcada para o mês que vem. Por que você não tira alguns dias de folga e me acompanha? — Sério? — a mãe perguntou. E Kylie estava pensando a mesma coisa. Sério? O homem queria que a sua mãe fosse para a Inglaterra com ele! Ela nem sequer o conhecia direito! E será que ele também esperava que sua mãe dividisse o quarto de hotel com ele? De jeito nenhum!
— A agenda de trabalho da mamãe é muito apertada. Ela não vai conseguir tirar uns dias de folga. — disse Kylie, recusando o convite pela mãe, antes de perceber que deveria ter ficado de boca fechada. A mãe a encarou boquiaberta diante de sua declaração e lhe lançou um olhar que deixava bem claro quanto a filha fora rude. — Bem, a minha agenda de fato é bem cheia, mas eu poderia conseguir alguns dias de folga. — Ela voltou a olhar para Kylie, advertindo-a para não abrir a boca. — Ótimo! — comemorou John, como se não notasse a tensão no ar. — Ótimo — Kylie repetiu, o sorriso tão rígido que seus lábios nem se moveram. — Falando em agenda apertada — a mãe de Kylie consultou o relógio, — nós precisamos ir para casa. É uma viagem de quase duas horas até lá. E eu tenho que trabalhar amanhã. A mãe deu um rápido abraço em Kylie. E para alguém que não estava acostumada a dar abraços, foi muito bom. Quando Kylie se afastou, murmurou um “sinto muito” em voz baixa. E ela estava mesmo arrependida. Não queria ferir os sentimentos da mãe, mesmo não gostando do sujeito. O olhar da mãe lhe deu a certeza de que ela entendia perfeitamente. O que só fez Kylie se sentir um pouco pior. Inclinando-se novamente, a mãe dela sussurrou: — Eu te amo. — Eu também te amo. — Kylie se aproximou para dar outro abraço, e dessa vez ele foi mais apertado e durou um segundo a mais. Quando ela os levava em direção à porta e passava pelo escritório de Burnett, viu sua figura imponente sentada à escrivaninha. Ele fingiu estar trabalhando, mas sem dúvida a sua superaudição tinha ficado sintonizada o tempo todo. E aquilo era bom, ela não tinha nada a esconder. No entanto, tão logo a mãe e o cara assustador fossem embora, era melhor que Burnett fizesse muito mais do que apenas ouvir. Ele tinha muito que explicar.
Ela sabia que a UPF queria testá-la, mas não podia acreditar que eles tinham ido tão longe a ponto de entrar em contato com sua mãe. E, se tinham se atrevido a ir tão longe, o que fariam agora? Será que a recusa da mãe em permitir que Kylie fosse testada colocaria um ponto final naquilo tudo? Por alguma razão, Kylie não acreditava nisso. Quando Kylie voltou alguns minutos depois, Holiday e Burnett estavam esperando na varanda da cabana. — O que vai acontecer agora? — Kylie perguntou. Burnett franziu a testa e levou-as para o escritório de Holiday. — Eu não sei. Estou chocado que tenham feito isso. Eles me ligaram para pedir que eu interferisse e convencesse você a mudar de ideia. Eu disse a eles que você já tinha se recusado a ir. Alguém disse, então, que você era menor de idade e sugeriu que procurassem a sua mãe. Eu ressaltei que a sua mãe não era sobrenatural e que isso poderia levá-la a fazer muitas perguntas. Pensei que os tinha convencido de que não era o melhor caminho. Mas quando cheguei aqui, Holiday estava ao telefone com sua mãe. Eles devem ter ligado para ela na hora em que eu saí de lá. Holiday sentou-se no sofá. Kylie se juntou a ela. Quando Holiday estendeu a mão para alisar o cabelo e torceu-o como uma corda, Kylie se lembrou da razão que a levara ao escritório. Seu olhar se desviou para o pescoço de Holiday e ela se lembrou dos feios hematomas do espírito. O medo pela amiga oprimiu seu coração. — Para a nossa sorte, a sua mãe ignorou a UPF e veio direto nos procurar — disse Holiday. Ela encontrou os olhos de Kylie. — Vai ficar tudo bem — assegurou a líder, obviamente captando a preocupação de Kylie. — Eu espero que sim. — Kylie se reclinou no sofá. — Você ainda está chateada com o que aconteceu? — Holiday perguntou. — O que aconteceu? — Burnett deu um passo mais para perto.
— Eu não tive chance de contar a você... — Holiday explicou a Burnett que o pai de Kylie havia dito que a filha era um camaleão. Kylie esperou ver descrença no rosto do vampiro ou a resposta que todo mundo já havia dado a ela: você é um lagarto! Quando Burnett não fez nenhuma das duas coisas, a suspeita se instalou dentro dela. — O que você sabe sobre isso? — ela exigiu saber. As sobrancelhas dele se franziram. — A palavra “camaleão” foi mencionada nos documentos que encontrei sobre o teste que ocasionou a morte da sua avó. — O que diziam? Será que explicam como eu posso ter um padrão humano e ainda ser sobrenatural? — Kylie perguntou, irritada por ele ter escondido isso dela. Kylie viu Holiday fazer uma cara feia também. O olhar de Burnett passou de Kylie para Holiday e a preocupação deixou sua expressão carregada. — Eles não explicam nada. Um dos médicos usou a palavra “camaleão” em suas anotações. Não fazia sentido; na verdade, perguntei se era um erro de digitação. Eu não tinha os documentos originais. Apenas anotações de um médico ao se referir ao outro documento. — Mas pelo menos isso é uma prova — disse Kylie. — Uma prova do quê? — Burnett perguntou. Kylie olhou de Burnett para Holiday. — De que é isso que significa ser um camaleão. Ter um padrão que mostra que você é uma coisa quando na verdade não é. Quer dizer, nós sabemos que eu não sou totalmente humana. — Ela apontou para a testa. — E ainda assim o meu padrão diz que eu sou. É claro que o meu padrão não diz coisa nenhuma do que eu sou de verdade. — Eu ainda não acho que provamos alguma coisa — disse Burnett. — Sim, acho que de certa forma essas duas coisas significam a mesma coisa. Só não acho que provamos o que elas significam.
A expressão de Holiday indicava que ela concordava com ele. — Eu estive pensando — ela disse. — Talvez o seu... padrão mutante esteja de alguma forma ligado ao fato de você ser uma protetora. Eu não acho que já tenha existido um protetor que fosse metade humano para podermos comparar com você. — Eu não tinha pensado nisso — disse Burnett. — Mas é possível. — Mas e toda a questão de ser um camaleão? — Kylie perguntou. — Eu não sei — Holiday disse. — Eu só estou dizendo que isso poderia explicar a mudança no seu padrão. A mente de Kylie dava voltas, tentando entender tudo o que tinham dito. Quanto mais ela pensava, menos sentido fazia. — Eu quero ler esses registros. — Tenho certeza de que os poucos arquivos a que eu consegui acesso já foram ocultados. — Eles mataram a minha avó e se safaram impunes, e agora estão tentando fazer o mesmo comigo. — As pessoas que fizeram isso ou foram embora ou se aposentaram. — Seu ar de preocupação se intensificou. — Eu sei o que parece e concordo que você se negue a fazer os testes, mas não acredito que eles queiram intencionalmente pôr a sua vida em risco. — Nós não sabemos. — A firmeza do tom de Holiday lembrava a Kylie a voz da sua mãe quando estava preocupada com ela. — É exatamente por isso que eu fiz o que fiz — disse ele. — Por que fui praticamente contra o meu juramento à UPF. Eu estou do seu lado. O que mais posso fazer para provar isso? — Por favor — disse Kylie. — Eu não quero que vocês dois briguem por minha causa. — Você não tem que provar nada. — Holiday corou com a culpa. — Eu sinto muito. Fico tão furiosa por causa de Kylie. — Eu sei. Eu fico também. — Burnett olhou para Kylie. — E nós não estamos brigando. — Ele se virou e fitou Holiday por um segundo. — Dessa vez estamos apenas discutindo o assunto. Certo?
— Certo. — A sombra de um sorriso apareceu nos lábios de Holiday, quando ela encontrou o olhar de Burnett. Kylie sorriu também, mesmo com o peito transbordando de emoção. Ela tinha muita sorte de ter essas pessoas ao seu lado. Mas seu sorriso só durou um segundo. — Qual vai ser o próximo passo? Burnett expirou. — Provavelmente, eles ainda vão tentar fazer você mudar de ideia. Convencê-la de que os testes são por um bem maior. Acho que esse era o plano deles quando saí de lá. — E é quando eu devo dizer a eles que sei sobre a minha avó? Ameaço expô-los se eles não desistirem? — Kylie perguntou. Burnett tinha decidido mudar o corpo da avó de Kylie de lugar apenas para o caso de alguém da UPF decidir esconder a prova do que tinha acontecido. Em suas próprias palavras, isso daria a Kylie algumas “cartas na manga” para usar contra a UPF se tentassem forçá-la a fazer algo contra a vontade. — No seu lugar, eu apenas diria “não” e, então, se eles pressionassem, mencionaria os restos mortais da sua avó. — Sua expressão ficou mais tensa e a preocupação cintilou em seus olhos. A mesma emoção se refletiu nos olhos de Holiday. — O que vai acontecer se eles descobrirem que você está por trás do desaparecimento do corpo? — Kylie perguntou. — Não vão descobrir. Eu encobri todas as pistas — disse Burnett com firmeza. Talvez com firmeza demais, como se fazer essa afirmação com convicção a tornasse mais verdadeira. — Eles vão suspeitar de você, porque trabalha aqui. Porque você está perto de mim — concluiu Kylie. — Podem suspeitar, mas vão ter que provar primeiro. E eu não deixei nenhuma prova para que descubram. Kylie esperava que ele estivesse certo. Ela olhou de novo para Holiday e lembrou-se do fantasma. Holiday se aproximou e colocou a mão sobre a de Kylie. — Alguma coisa errada?
— Não. Só isso. — Tem certeza? — Eu preciso de mais? — O olhar de Kylie deslocou-se para a janela. O céu estava escurecendo, mas ela ainda podia ver o topo das árvores balançando suavemente. Seu olhar disparou de volta para Holiday e de repente ela sentiu a necessidade de se abrir. — Eu sinto como se algo me chamasse. Ela fez sinal para a janela. — Algo lá fora está me chamando. Mas eu não tenho certeza do que é. Holiday pareceu confusa. — Como o chamado da cachoeira? — Sim — concordou Kylie. Só que era algo muito mais forte. — Então podemos combinar de ir até lá. — Holiday se inclinou para a frente. — Pode ser amanhã? Kylie começou a explicar que ela não tinha certeza se era a cachoeira que a chamava, mas não sabia o que dizer. Então apenas balançou a cabeça. — Eu vou com vocês — disse Burnett. — Vai entrar na cachoeira? — Holiday olhou para o vampiro. — Se você acha que eu devo entrar, eu entro. — A ideia de ir à cachoeira não o perturba? Ele deu de ombros. — Eu já estive lá antes. Holiday olhou para Kylie e depois de volta para ele. — Eu sei. E fiquei surpresa. A maioria dos sobrenaturais não tem coragem de entrar lá. Um pequeno sorriso fez aparecer sinais de expressão nos cantos dos olhos de Burnett. — Como sempre digo, eu sou especial. Holiday suspirou.
— Mas a cachoeira... — ... não é problema. — Ele a interrompeu e olhou para Kylie. — Por que eu não a levo de volta para a sua cabana? Della é a sua sombra, mas eu disse a ela que levaria você. — A abrupta mudança de assunto pareceu uma manobra deliberada para evitar a conversa sobre a cachoeira. O que Burnett estava escondendo? A mesma pergunta parecia estar nos olhos de Holiday. — Ela perdeu o jantar — Holiday disse. — Tudo que eu quero é um sanduíche, e posso fazer um na cabana. Kylie deu um longo abraço em Holiday e sentiu seu toque caloroso e calmante. Os efeitos do abraço perduraram até que ela e Burnett pegaram a trilha escura e ele perguntou: — Você gostaria de explicar por que mentiu para Holiday?
 
— Eu não menti. — Tão logo as palavras saíram, Kylie se lembrou de que ela tinha de fato mentido quando Holiday perguntou se havia algo errado. Droga! Kylie deveria ter lembrado que Burnett podia ouvir seu coração acelerando quando ela mentia. Ela continuou andando. Ele olhou para baixo com uma sobrancelha arqueada em descrença. — Te dou mais uma chance de falar a verdade. Kylie franziu a testa. — É a questão do fantasma. Eu só estou tentando descobrir por mim mesma. — De jeito nenhum ela poderia contar a Burnett sobre o fantasma com a aparência de Holiday. Ele iria pirar. Ou talvez não. Talvez não tivesse tanto medo de fantasmas quanto fingia ter. — O que você está escondendo dela sobre a cachoeira — Kylie perguntou. Ele baixou a sobrancelha arqueada. — Eu não estou escondendo nada. — Você consegue entrar na cachoeira quando tanta gente não consegue. — Isso também me intriga. No entanto, não me sinto exatamente à vontade quando estou lá. — Não é como se a cachoeira o chamasse? Ele hesitou. — Talvez um pouco. — Ele deu alguns passos em silêncio. — Por que você não disse isso a Holiday? — perguntou Kylie. Ele a fitou com um olhar travesso. — Talvez eu esteja tentando descobrir por mim mesmo.
Ele usou as mesmas palavras que ela. — Tudo bem. — disse Kylie, revirando os olhos. Passados alguns minutos, ele voltou a falar: — Eu pensei que você podia conversar com Holiday sobre os fantasmas. — Eu posso. Mas gostaria de lidar com isso sozinha, se for possível. — Era verdade, por isso ela não se preocupou com o que ele poderia ouvir por trás das suas palavras. Burnett acenou com a cabeça. Quando se aproximaram da cabana, Kylie se lembrou de que ela queria falar com Lucas. — Lucas pode ser a minha sombra por um tempo hoje à noite? Eu preciso falar com ele. Burnett pareceu pensar a respeito. Por um segundo, ela teve a impressão de que ele ia recusar seu pedido. — Ok, mas não entre na floresta. A resposta dele a fez se lembrar. — O alarme está funcionando? — Sim, mas em determinadas condições meteorológicas, alguém pode conseguir entrar na floresta sem ser pego. Ela assentiu com a cabeça. — Você já viu alguém? — ele questionou. — Não. Ele parou. — Tem certeza? — Tenho. Às vezes eu só... os bosques me assustam um pouco. — Então respeite os seus medos e evite-os. — É o que pretendo fazer. — Kylie olhou para a fileira de árvores e para as sombras escuras além delas. Não sentiu nada. Talvez o que tivesse sentido antes fosse apenas sua imaginação hiperativa.
Kylie avistou sua cabana entre as árvores. As luzes estavam acesas e um tom dourado derramava-se das janelas. Ela viu a sombra de Della passar na frente da vidraça e se lembrou... — Por que você teve uma reunião com Della hoje? — Apenas negócios da UPF. — Ele parecia propositalmente vago. — Algum problema? — ela perguntou. Burnett balançou a cabeça. — Não. — Você pediu para ela fazer algo pela UPF? — É possível. Por quê? Kylie franziu a testa. — Considerando que a UPF está me causando uma dor de cabeça e tanto, eu não fico muito entusiasmada ao pensar nos meus amigos envolvidos com eles. Ele parou, tirou as mãos dos bolsos do jeans e balançou a cabeça, frustrado. — A UPF é uma organização que serve para ajudar os sobrenaturais, assim como a polícia ajuda os seres humanos. Existem policiais corruptos e até mesmo grupos de policiais que fazem coisas ilícitas, mas não é por isso que deixamos de confiar na instituição como um todo. — Eu poderia, se eles mataram a minha avó — disse ela honestamente. A expressão dele endureceu. — Eu não concordo com tudo o que a UPF faz, mas, sem ela, o mundo seria um caos. As espécies se voltariam umas contra as outras, matando e mutilando. A raça humana seria vista como fonte de alimento. Kylie tremeu diante da descrição. — Se você não consegue confiar na UPF, pelo menos confie em mim — disse Burnett. — O lado bom da UPF supera em muito o lado ruim.
— Eu vou tentar vê-los assim. — Mas ela não prometeu nada. Não conseguiu. — Você poderia só ter ligado para ele — reclamou Della, cerca de uma hora depois, enquanto desciam pela trilha escura em direção à cabana de Lucas. Kylie teve a sensação de que Della estava meio irritada porque ela queria ver Lucas em vez de lhe fazer companhia. Especialmente quando Miranda tinha escapulido com Perry. Mas a culpa de Kylie por ter deixado Lucas falando sozinho tornou indispensável que ela fosse vê-lo. — Acho que eu queria tomar a iniciativa em vez de esperar que ele fizesse isso. — Kylie notou a lua prateada e brilhante, quase cheia, pendurada no céu. Estava uma noite bonita. A temperatura tinha caído para uns 27 graus, ficando quase agradável. — Por quê? O que você fez de errado? — Eu fiquei brava e fui embora, deixando Lucas lá sozinho. — Foi por isso que ele pareceu tão sentimental quando veio visitá-la, enquanto você estava dormindo? — ela perguntou. — Pode ser. — Kylie deu uma boa olhada na fileira de árvores e não sentiu nada, o que foi muito bom. Então ela olhou para Della. — O que Burnett queria falar com você hoje? — Nada, na verdade. Kylie olhou para ela. — Sabe, quando se é amigo de uma pessoa por algum tempo, nem é preciso ouvir o seu batimento cardíaco para saber que ela está mentindo. Della fez uma careta. — Tá, mas eu pensei que seria mais educado do que dizer que não é da sua conta. Kylie franziu a testa. — Você vai fazer algum serviço para a UPF? — Como você sabe? — Lucas e Derek também prestam serviço para eles. Me pareceu lógico. Não que eu goste. — Ela se lembrou de Burnett dizendo que a UPF não era de todo ruim, e tentou mudar de atitude, mas ela não conseguia confiar completamente na organização. — Eu acho que seria muito legal trabalhar para eles — disse Della. — Me daria uma justificativa para chutar alguns traseiros de vez em quando. — Você confia neles? — Kylie perguntou. — Eu confio em Burnett — disse Della, e estudou Kylie. — Você não? — É claro que confio. — Ela não tinha contado a Miranda ou Della que Burnett tinha trocado sua avó de túmulo. Isso não parecia uma coisa que se saísse por aí, contando para todo mundo. — Eles procuraram a minha mãe, para que ela os autorizasse a fazer testes comigo. — Ah, droga, eu me lembro de Miranda dizendo que sua mãe esteve aqui, mas me esqueci. O que ela disse? Deus do céu! Eles contaram a ela que você é sobrenatural? Aposto que ela surtou. — Não, disseram que estavam preocupados porque eu tinha dores de cabeça e desmaios e aconselharam que eu fizesse alguns exames. Holiday explicou a ela que eram só terrores noturnos e desaconselhou os exames. — Ah, mas que inferno! O que Burnett disse? — Ele não concorda com os exames também. — Que bom! — comemorou Della. — Quero dizer, eu não gostaria que ninguém sondasse a minha cabeça. Não depois de ouvir o que aconteceu com a sua avó. — Della parou e olhou para Kylie. — Você não quer que eu trabalhe para eles por causa disso? Kylie teve a sensação de que Della realmente abriria mão da sua chance de trabalhar para a UPF se essa fosse a vontade de Kylie — mesmo estando claro quanto estava animada com essa possibilidade. A gratidão pela lealdade de Della a emocionou. — Não — tranquilizou-a Kylie. — Mas... eu quero que você tome cuidado.
— Vou tomar. — Della esfregou as mãos. — Estou feliz por você ter descoberto. Eu estava morrendo de vontade de contar a alguém. Vai ser tão legal! Elas chegaram à cabana de Lucas. As luzes estavam acesas. Kylie bateu na porta enquanto Della esperava mais atrás, nos degraus da varanda. Steve, o metamorfo que tinha uma queda por Della, atendeu à porta. Com tanta coisa acontecendo, Kylie tinha se esquecido de que ele era colega de alojamento de Lucas. E o mesmo acontecera a Della, Kylie percebeu, ao ouvi-la ofegar. — Olá! — disse Steve. — Lucas está? — Kylie perguntou. O olhar de Steve se desviou para um ponto mais atrás de Kylie e sua expressão mudou. Kylie sabia que ele tinha visto Della. — Hã... sim. Quero dizer, não. Ele saiu há alguns minutos com Fredericka. — Ah. — Kylie tentou não demonstrar seu aborrecimento com a notícia ,enquanto dava meia-volta para ir embora. Steve falou atrás dela: — Provavelmente vai voltar logo. Ela virou-se. — Você se importa se esperarmos? — Não. — Seus olhos brilharam quando ele olhou para Della. — Entrem, se quiserem. Della limpou a garganta como se quisesse avisar Kylie de que não tinha gostado nem um pouco da ideia. — Podemos apenas nos sentar aqui na varanda? — Kylie perguntou. — Está uma noite bonita. — Claro — ele saiu da cabana. Seu cabelo castanho estava caído na testa. Mesmo no escuro, Kylie poderia adivinhar que seus olhos eram castanhos escuros e estavam cheios de interesse ao fitarem Della. Quando Kylie se virou, Della não parecia muito feliz, mas seguiu a amiga.
— Não podemos esperar muito — alertou a vampira, sentandose nos degraus. — Só um pouquinho. — Kylie abaixou-se ao lado da amiga, que parecia contrariada. Steve sentou-se na varanda com elas. Ninguém disse uma palavra. — Eu ouvi falar que alguns dos professores novos estavam jantando no refeitório esta noite. — Kylie comentou, para iniciar a conversa, na esperança de não pensar em Lucas perambulando pela floresta com Fredericka. — É — disse Steve. — A professora de inglês, Ava Kane, parece legal. Ela é meio bruxa, meio metamorfa. — Por que você simplesmente não admite que gosta dela por causa dos peitões? — Della perguntou. Mesmo no escuro, Kylie sentiu que Steve enrubescera. — Eu... não vou negar que ela é bonita, mas não foi isso que eu quis dizer. Kylie estendeu o pé e chutou Della disfarçadamente. — Ai! — Della olhou para Kylie. — Por que você fez isso? — Quando as aulas vão começar mesmo? — Kylie perguntou, e ninguém respondeu. — Steve provavelmente porque estava com medo de se ver em apuros novamente, e Della porque estava muito ocupada esfregando o tornozelo dolorido. Steve finalmente arriscou. — Se não me engano, na próxima segunda-feira. — Havia outros professores no refeitório? — Kylie olhou para Della, esperando que ela respondesse. — Sim — acrescentou Della. — Um tal de Hayden Yates. Ele é meio vampiro, meio fae. Acho que vai ensinar ciência. Parece boa gente. — E...? — Steve perguntou, o tom mais profundo, embora não passasse de um sussurro. — E o quê? — Della perguntou.
Ele tencionou os ombros. Que, aliás, Kylie tinha que admitir, eram muito largos. O cara era bonito. Por que Della não era pelo menos agradável? — Por que você gosta de Yates? — Steve perguntou. — Porque o corpo dele é sexy ou você finge que é por causa da inteligência do cara? Droga, pensou Kylie. Esses dois se comportavam tão mal quanto Della e Miranda. Ou Burnett e Holiday. Della fez uma careta para Steve e então olhou para Kylie. — Eu estou indo embora. Envergonhada, Kylie olhou para Steve. — Obrigada. Pode dizer a Lucas que eu passei aqui? — Você pode ir encontrá-lo se quiser — disse Steve, levantando-se. — Acho que eles foram até a clareira, seguindo o riacho. — Ah, tá — disse Kylie, seguindo Della. Kylie se encheu de ciúme quando se lembrou de quando ela e Lucas tinham ido ao riacho. Ela estava tão preocupada em tentar não sentir o ciúme que a oprimia, que não tinha percebido que elas estavam seguindo na direção errada. — Aonde estamos indo? — Kylie perguntou. Della olhou para ela. — Para o riacho, bocó. E não finja que não quer saber o que ele está fazendo lá com aquela loba. Se ele fosse o meu namorado, eu iria agarrá-lo pelo cangote e ensinar àquela loba uma lição que ela jamais iria esquecer. Ele ficaria choramingando como um filhotinho abandonado. Kylie continuou seguindo Della enquanto travava um debate interior sobre se deveria continuar ou voltar para a cabana. Se ela fosse até o riacho, Lucas pensaria que ela tinha ido porque estava com ciúme? Mas e se não fosse e Steve contasse que ela o procurara e não fizera questão de ir ao riacho, será que ele acharia que ela tinha ido embora porque estava com ciúme?
Ok, a única coisa que concluiu com esse dilema foi que não queria que Lucas pensasse que ela estava com ciúme. Embora estivesse. Mas isso significava que ela estava errada? Ou que Lucas estava errado? Errado por sair por aí no escuro para ficar na companhia de Fredericka no riacho? Será que agora ele estava rolando na grama com a loba, beijando-a do jeito que ele a beijara quando a levou até lá? Ou seria algo tão inocente quanto ser pega conversando atrás do escritório com Derek? Kylie olhou para a lua. O astro parecia mais brilhante e ela sentiu aquela picada estranha em sua pele. Assim como se sentia na lua cheia. Ela respirou fundo e disse a si mesma que estava imaginando coisas. — Pare de tentar se convencer de que não quer ir — disse Della. — Como você sabe que estou fazendo isso? — Porque eu posso ver na sua cara. E porque você não conseguiria andar mais devagar nem se fosse uma tartaruga de muletas. — Eu só não quero bancar a namorada psicopata. — Se eles estiverem dando uns amassos, ou pior, brincando de esconder o salame, então ele merece que você dê uma de psicopata. Que droga! Eu vou me juntar a você e nós duas vamos bancar as psicopatas e dar um chute na bunda dele. — Eu não acho que ele esteja fazendo isso. — Como se dizer isso em voz alta a ajudasse a acreditar. — Você não queria pensar isso de Derek, também. — Della suspirou como se já tivesse arrependida de dizer aquelas palavras. — Não quero desrespeitar Ellie nem nada, mas ainda assim foi errado. O peito de Kylie se apertou quando ela mencionou o nome de Ellie.
— Aquilo foi diferente. — Como? — Della perguntou. Um galho baixo balançou na frente de Kylie e ela o desviou com o braço sem dificuldade. — Eu acho que isso é mais uma prova de que os homens não prestam. Talvez não devêssemos nem nos acasalar com eles. — Derek e eu não estávamos juntos. — Talvez vocês não dissessem que estavam juntos. Mas no seu coração, estavam. Kylie se lembrou do que Miranda tinha dito sobre ela falar mais de Derek do que de Lucas. De repente, ela não queria falar mais sobre sua vida amorosa complicada. Então por que não falar sobre a vida amorosa complicada de Della? Parecia um jeito perfeito de mudar o rumo da conversa. — Você poderia ter sido mais simpática com Steve. Della se virou, mostrando irritação em sua postura corporal. — Eu fui simpática. — Não, não foi. Você o acusou de gostar dos peitões da professora nova. Della retomou a caminhada. — Você deveria ter visto o olhar de cobiça que ele lançou para ela; foi embaraçoso. — Isso é sinal de que você está com ciúme, o que indica que gosta do cara — observou Kylie. Della começou a andar mais rápido, seu ritmo acompanhando o seu humor. — Eu não gosto dele. Mas vou admitir que tem um belo traseiro. — E você disse que ia tentar ser mais acessível ao seu belo traseiro — Kylie lembrou. — Eu tentei. Não deu certo. Eu não acho que o traseiro dele seja tão legal assim.
Outro galho apareceu de repente e no instante que Kylie o agarrou, ela se lembrou. Parou e olhou através das árvores para o céu. Algumas estrelas brilharam como se rissem dela. — Merda... — ela murmurou. — O que foi? — Della olhou por cima do ombro. Kylie olhou ao redor. A lua lançava um brilho prateado através das árvores e das sombras que dançavam no chão. — Acabei de me lembrar. — Lembrar do quê? — Eu não deveria entrar na floresta. — Kylie inalou o aroma verdejante das árvores e da terra úmida. Então procurou interiormente o sentimento de ser atraída, chamada para a floresta. Não sentiu nada. Talvez todos aqueles sentimentos fossem apenas um produto da sua imaginação hiperativa. Era nisso que ela queria acreditar. No entanto, ela tinha desobedecido às ordens de Burnett. Talvez não de propósito, mas ela não achava que ele iria considerar essa desculpa aceitável. — Nós temos que voltar. — Mas estamos quase lá. E você tem ao seu lado uma vampira de arrasar quarteirão. Nada vai acontecer. E você não quer saber se Lucas e Fredericka estão encenando o canguru perneta? Kylie agarrou outro galho que surgiu na sua frente. — Se Burnett descobrir, ele vai ficar fulo da vida. — Então não vamos contar a ele. Confie em mim. Vai dar tudo certo. Mesmo sabendo que não era a melhor coisa a fazer, Kylie continuou a acompanhar Della. Os grilos faziam sua cantoria típica e um pássaro ocasional piava. Ao fundo, Kylie podia ouvir os sons dos animais selvagens do parque. Normalmente, quando ela ouvia os sons da noite, isso significava que tudo estava bem. Era no silêncio que as coisas saltavam das sombras. Quando o mal parecia dar as caras.
Inspirando o ar da noite, ela continuou avançando, saltando por cima de alguns arbustos espinhosos e abaixando-se para evitar os galhos mais baixos. — Merda! — Della sibilou e parou abruptamente. — O que foi? — Kylie perguntou, e foi então que a floresta ficou em silêncio. Não morta como acontecia quando surgia um fantasma, mas como se ocultasse uma ameaça. — Da próxima vez que eu lhe disser para confiar em mim, não confie. — Della olhou para trás sobre o ombro. Seus olhos estavam verdes brilhantes e seus caninos, expostos. — Temos companhia.
 
— É melhor correr. — A voz de Kylie não passava de um sussurro. Seu coração martelando no peito parecia bater mais alto. — Quem corre acaba sendo perseguido — Della respondeu. — Eu prefiro ser quem persegue. — Garota esperta! — uma voz profunda respondeu de volta. E esse único som enviou calafrios pela espinha de Kylie. Três figuras silenciosas saíram das sombras. O único som filtrado pelo emaranhado de árvores era o silvo de Della. Kylie avançou para ficar ao lado de Della, caso eles a atacassem. Sua mente ainda considerava a opção de correr. Uma boa opção. Mas primeiro ela tinha que convencer Della. O leve som de galhos estalando sob os pés de alguém soou às suas costas. Elas estavam cercadas. Era hora de encontrar uma nova opção. Mesmo apenas com a lua iluminando o caminho, Kylie conseguiu enxergar os padrões dos três homens à frente delas: lobisomens. As bordas dos padrões eram escuras, como se as suas intenções não fossem as melhores. Isso só podia significar uma coisa: lobisomens foras da lei. O maior deles, ladeado pelos outros dois, deu um passo à frente. Della sibilou mais forte. Kylie sentiu seu sangue ferver com a necessidade de proteger a pequena vampira. Por mais corajosa que Della se considerasse, essa não seria uma briga justa. Não que os delinquentes se importassem. — Eu acharia melhor que vocês fossem embora — disse Kylie, sem saber de onde vinha tanta insolência, mas sem se incomodar em demonstrá-la. — Vocês estão invadindo. Shadow Falls é uma propriedade particular. — Ela pôs os ombros para trás e o queixo para cima. Sabendo que podiam farejar o medo, tentou não deixar que a semente dessa emoção crescesse ainda mais. Kylie viu Della pronta para atacar, e tocou o cotovelo da amiga, com a esperança de convencer a vampira a esperar. Talvez elas conseguissem convencê-los a ir embora. — Ou vão embora agora ou rasgo sua garganta primeiro — disse Della ao homem na frente dela. Esse não era o tipo de conversa que Kylie tinha em mente. — Não viemos aqui para fazer mal a ninguém — o sujeito do meio disse a Kylie, e então fitou Della com um sorriso, como se zombasse da sua ameaça. — Mas, se provocarem, isso pode mudar. Della sibilou alto. — Então saiam. — O olhar de Kylie voltou-se para ele. Ela teve a sensação de que ele era o líder. Ele não parecia velho, mas o cabelo grisalho nas têmporas e as linhas de expressão em torno dos olhos azul-escuros lhe diziam que era mais velho do que ela tinha presumido. Aprisionada ao seu olhar, sua mente tentou identificálo. Ela sentiu-o olhando para ela, também tentando identificá-la, e então seus olhos se estreitaram, enquanto ele lia o seu padrão. Tão repentinamente quanto um raio cortando o céu, ela descobriu quem ele era. E sentiu que ele a reconhecera também. A semente de medo cresceu dentro dela. Esse homem não valia nada. Ele já tinha provado isso a Kylie uma vez. Ele deu mais um passo adiante. Della tentou pular na frente dele, mas Kylie a segurou. — Deixe que eu cuido disso. — O chiado no sangue de Kylie — o chiado que sempre aparecia quando ela sentia a necessidade de proteger alguém — intensificou-se. — Não estou aqui para derramar sangue — ele insistiu. — Então, vá embora — Kylie exigiu. — É, coloque o rabinho entre as pernas e passe daqui — Della vociferou.
Um rosnado ameaçador veio de trás delas. Della deu meiavolta, libertando o braço do aperto de Kylie, os olhos mais brilhantes. O medo oprimiu o coração de Kylie. Não temia por ela mesma, mas pelo que estava para acontecer. Seu sangue agora zumbia enquanto era bombeado em suas veias. Ela manteve o foco em Della. Se alguém colocasse as mãos nela, aquilo não iria acabar bem. — Calma aí! — o líder falou, e Kylie sentiu que ele tinha falado tanto com ela quanto com seus próprios homens. — Eu só vim aqui para falar com o meu filho. — Então fale com ele. — Uma nova voz soou de entre as árvores. — Mas você e seus guardas, recuem agora mesmo. — A voz de Lucas, profunda e ameaçadora, veio da direita de Kylie. Quando ela se virou, viu que seus olhos brilhavam num tom laranja queimado. Ela observou-o levantar a cabeça levemente para puxar o ar pelo nariz. Soube então que tinha perdido a batalha de tentar esconder o medo. Lucas o tinha farejado assim como provavelmente os outros também. Mas ela se perguntou se eles haviam percebido o fato de que ela não temia uma briga. Ela temia a devastação emocional que isso teria causado. Matar o pai do namorado não seria muito bom para o seu relacionamento. — Eu disse, recuem — Lucas ordenou. Quando os três homens não obedeceram, Della falou novamente. — Vocês ouviram, seus imbecis. Recuem. De repente, Lucas estava do outro lado de Kylie. Seu antebraço quente roçou no ombro de Kylie, não deixando nenhuma dúvida de sua lealdade a ela, até mesmo com relação ao próprio pai. O pensamento aqueceu o coração da garota, mesmo acelerado pelo pânico. Mais campistas lobisomens saíram de trás das árvores. Eles não pareciam agressivos, mas a mera presença deles indicava a sua lealdade a Lucas.
— Parece que eu não sou o único que trouxe seus guardas — disse Parker. — Se eu precisar deles, vão me apoiar — disse Lucas. Um rosnado baixo veio de um dos lobos que acompanhavam o pai de Lucas. Parker olhou para ele. — Não vai haver nenhum confronto esta noite. Ainda desconfiada e com a tensão deixando o ar tão carregado que tornava difícil respirar, Kylie ouviu o comando na voz do homem e sentiu que seus homens não iriam desafiá-lo. O fluxo de adrenalina em suas veias diminuiu. Will, outro campista e um dos amigos de Lucas, aproximou-se. Nos recônditos da mente de Kylie, uma constatação lhe ocorreu. Lucas não estava só na companhia de Fredericka. Uma semente de culpa por duvidar do namorado brotou em seu peito. Como se pensar na garota a atraísse, Fredericka saiu de entre as árvores e dirigiu-se à pequena clareira. — Senhor Parker — Fredericka cumprimentou num tom leve, rompendo a tensão. — Que prazer vê-lo novamente! — A loba lançou para Kylie um leve sorriso, como se quisesse que a outra soubesse que ela era amiga do pai de Lucas. — Digo o mesmo — respondeu o homem com desinteresse. Ele não deu a Fredericka nenhuma atenção. Ainda estudava o padrão de Kylie, que estava preocupada com a possibilidade de ele notar alguma coisa estranha. — Então os rumores são verdadeiros — disse Parker, parecendo perplexo. — Que rumores? — Kylie perguntou. — Eu posso ver por que meu filho está tão intrigado com você. Uma pena que você não seja uma de nós. O peito de Kylie se afligiu com a insinuação. Era como se o seu relacionamento com Lucas estivesse condenado. — Chega — disse Lucas. — Eu acho que...
— Você é um pássaro estranho, Kylie Galen. — Parker franziu as sobrancelhas, como se para discernir melhor o padrão da garota. Kylie ergueu mais o queixo. Não um pássaro, Kylie pensava. Um camaleão. E uma sensação inexplicável de orgulho encheu seu peito. Pela primeira vez, Kylie aceitou que, embora não soubesse nada sobre o que significava ser um camaleão, o seu pouco conhecimento tinha algum valor. Lucas virou-se para Della. — Vocês duas, voltem para a cabana. — Seu olhar pousou em Kylie. — Te vejo mais tarde. O ressentimento por ter sido mandada embora agitou Kylie por dentro, mas a lógica interveio e ela sentiu que a intenção dele vinha da necessidade de protegê-la, não de controlá-la. Então Kylie percebeu que, se ela tinha se ressentido com o seu tom autoritário... Ela relanceou os olhos para Della. — Eu prefiro ajudar a despachar esses caras — Della rosnou. — É melhor a gente ir — aconselhou Kylie. Della franziu a testa, mas sua expressão dizia que ela ia ceder à vontade de Kylie. — Tudo bem. Eu não queria mesmo ficar mais tempo com esses cachorros. — Ela rosnou para os intrusos. Um dos guardas do senhor Parker deu um passo à frente em defesa, e tanto Kylie quanto Lucas avançaram um passo também. Esse pequeno passo não deixou dúvida de que nenhum deles permitiria que o guarda tocasse em Della. Kylie não deixou de perceber o olhar reprovador de Lucas para ela, como se dissesse que não queria que ela assumisse o papel de protetora. Mas isso era o que ela era. Uma protetora. Um camaleão protetor. Della fez uma careta para os dois, como se dissesse que não precisava da proteção de nenhum deles. — Vá. Por favor — disse Lucas. Kylie fez sinal para Della segui-la. Quando saíram dali, Kylie não resistiu a olhar para trás. Ela viu Lucas, sua postura defensiva, como se o pai trouxesse à tona o que havia de pior nele. Ela logo pensou no próprio pai e no padrasto. Nenhum deles a colocava na defensiva. Sim, seu padrasto tinha cometido alguns erros muito ruins, e Kylie ainda estava tentando perdoá-lo, mas, no fundo, ela sabia que ele a amava. E com seu pai de verdade, Daniel, bem, ele se importava tanto com ela que não tinha deixado nem mesmo a morte separá-los. Kylie percebeu que Lucas nunca tinha sentido nenhuma afeição pelo pai. Seu coração se condoeu por ele, e seu sangue se aqueceu com a necessidade de defendê-lo. Mas defendê-lo contra o quê? O que tinha trazido o senhor Parker ao acampamento? Algo lhe dizia que não tinha vindo apenas para dar um abraço em Lucas. Haveria algo errado com a avó de Lucas? Com sua meia-irmã? Uma pena que você não seja uma de nós. Essas palavras ecoaram em sua mente e em seu coração. Ele poderia estar no acampamento por causa dela? Protestando contra o fato de Lucas estar... intrigado com ela? — Burnett vai ficar tão puto com isso! — Della lamentou, seu ritmo apressado combinando com a irritação na voz. Kylie mordeu o lábio de preocupação, antes de expressar seus pensamentos. — É por isso mesmo que você não vai dizer nada a ele. Della olhou para Kylie. Os olhos da vampira ainda estavam brilhantes de fúria. — Eles são uns delinquentes. — Mas ele é o pai de Lucas. — E pensar que Lucas teria que enfrentar Burnett depois de já ter enfrentado o pai parecia injusto. — É contra os regulamentos. — Assim como era quando Chan apareceu — Kylie a lembrou. — E como Chan, o senhor Parker não fez mal a ninguém. Ele só queria falar com o filho. Della soltou um suspiro de frustração. — Sabe, eu realmente odeio quando você faz isso.
— Faço o quê? — Kylie evitou se chocar contra um galho balançando na frente dela. — Usar a lógica e esfregar no meu nariz o fato de que você está certa. — Eu não esfreguei no seu nariz. — Talvez não. Mas ainda assim eu não gosto. Elas andaram alguns minutos sem falar. — Obrigada por não contar — Kylie disse, sabendo que Della atenderia seu pedido. Elas avançaram pela vegetação densa, tendo apenas a canção da noite sussurrando por entre as árvores. Finalmente, Kylie falou: — Lucas não estava sozinho com Fredericka. — É, eu percebi — disse Della. — Mas... — Mas o quê? — Eu não sei. Quer dizer, eu sinto que encorajei você a ir se encontrar com Lucas e talvez eu estivesse errada. — Errada? — Kylie pegou Della pelo braço. — Você quer dizer errada por me pressionar, ou errada por achar que eu deveria ir atrás de Lucas? Della franziu a testa. — As duas coisas. — Por que diz isso? — Kylie perguntou, magoada por Della ter feito tal afirmação, especialmente quando seu coração já estava tão confuso. — Não é que eu não goste de Lucas, eu gosto. Mas ele é um lobisomem e você obviamente não é. Eu admito que antes pensei que fosse. Mas esta noite, quando fomos cercadas por aqueles lobisomens, tive certeza de que você não era como eles. E depois do que a avó dele disse e agora, depois do que o pai dele disse, acho que a família e a alcateia dele vão dificultar o relacionamento de vocês. — Ele me disse que não se importa com o que dizem. — E ela acreditou. De fato acreditou.
A tristeza encheu os olhos de Della e Kylie sentiu a mesma emoção ressoar dentro de si. Della expirou. — Foi o que Lee me disse. E veja o que aconteceu com a gente. Não é a mesma coisa. Enquanto Kylie esperava na varanda que Lucas aparecesse, ela pensou no que Della lhe dissera e no dia difícil que tivera de enfrentar. Ela havia falado com a mãe, que precisava se assegurar de que Kylie estava bem. Tinha falado com Holiday, que precisava da mesma coisa. Então seu telefone tocou novamente. Derek, dessa vez, fazendo a mesma pergunta. — Oi, eu só queria ter certeza de que está tudo bem — ele disse. Era engraçado, na verdade, como ela o conhecia bem. Ela sabia o que ele estava sentindo sem ele nunca ter que dizer e, portanto, sabia por que ele estava ligando. Derek obviamente tinha sentido algumas de suas emoções. — Está tudo bem. — Se você precisar conversar ou qualquer coisa, estou aqui. — Ele parecia tão melancólico que ela sentiu o coração ficar mais apertado. — Eu sei — respondeu ela. — E agradeço. — Você já descobriu alguma coisa sobre o fantasma? — Ainda não — Kylie admitiu, seu tom de voz deixando transparecer um pouco da frustração que sentia. — Você falou com Holiday sobre isso? — ele perguntou, parecendo genuinamente preocupado. — Até certo ponto — disse ela. — Mas eu não estava... Eu só falei por cima. — Ah, merda! — O que foi?
— É ela, não é? — Foi o rosto dela que o fantasma roubou. É Holiday. Kylie fechou os olhos. — Sim, mas, por favor, não diga nada. Estou tentando descobrir algo antes de contar a ela. — Ela está em perigo? Será que isso significa... alguma coisa? — De uma maneira indireta, perguntei a Holiday, e ela disse que era improvável. Mas... — Mas o quê? — É assustador — Kylie admitiu. — Vê-la como um fantasma sabendo que ela não está morta. — Claro que é. E você não deveria tentar descobrir tudo sozinha. Eu estou com você nisso. Não sei como ajudar a resolver, mas topo fazer o que for preciso. — Obrigada. — Ela encostou-se à parede da cabana, e logo em seguida foi atingida por uma onda de frio. Um frio mortal. — E eu não espero nada em troca — disse ele. — Aceito que somos apenas amigos. — Obrigada. — O espírito, idêntico a Holiday, estava em pé diante dela, olhando para baixo, com o rosto sério. — Eu preciso desligar. — Algo errado? — Derek perguntou, e ela não pôde deixar de se perguntar se ele podia senti-la agora. — É que... tenho companhia. — Lucas? — Seu tom expressou exatamente como ele se sentia com relação ao lobisomem. — Não. O fantasma. — Ah. Então, eu vou desligar. Mas Kylie... — Sim? — Ela ficou de pé porque não gostava de ver o espírito olhando para ela de cima. — Estou aqui se precisar de mim. — Ele parecia tão sincero...
— Eu sei — disse ela, sentindo as palavras vibrarem em seu peito. Ela desligou e sustentou o olhar esverdeado da mulher. — Acho que você devia escolhê-lo — disse o espírito. — O que disse? — Entre ele e o lobisomem. Eu gosto dele. Ele é fae. Kylie conteve a frustração. — Eu acho que seria melhor deixar que eu decida isso. — Só um pequeno conselho — disse o espírito. Kylie a estudou. — Você descobriu alguma coisa? — Na verdade, não, mas eu me lembro de algumas coisas. — Que tipo de coisas? — Assustadoras. — Você pode me contar? O espírito analisou Kylie com o mesmo tipo de olhar preocupado que Holiday sempre demonstrava. — Eu não acho que você precise ouvir. Você é... jovem. Kylie revirou os olhos. — Você veio aqui para eu te ajudar. Não posso ajudar se você não me contar nada. Ela piscou. — Eu não sei se é isso mesmo. — O quê? — Que eu vim para você me ajudar. — Ela ficou em silêncio por alguns instantes. — Eu acho que vim para você poder ajudar outra pessoa. — Quem? — Eu não sei exatamente. Mas eu sinto isso. — O que você sente?
— Que o perigo está por perto. — Seus olhos se encheram de preocupação. — Posso impedir que algo ruim aconteça? Ela inclinou a cabeça para um lado e considerou a questão. — Eu acho que sim. Acho que é por isso que eu vim. Assim, você poderá evitar. O coração de Kylie se encheu de esperança. Com certeza, se não fosse possível ajudar, o espírito saberia. Assim, mesmo que fosse Holiday, talvez Kylie pudesse salvá-la. Talvez a pessoa que o espírito deveria salvar fosse ela mesma e não soubesse. — Você já descobriu o seu nome? Ela balançou a cabeça. — Eu só fico me lembrando das mesmas coisas. Eu acho que é Hannah. — Por favor, me diga o que você sabe. Pode ser importante. Ela negou com a cabeça. — Eu não estou pronta para falar sobre isso. E não é a história inteira. São só fragmentos. — Por que você não está pronta para falar sobre isso? O espírito se virou e olhou para a floresta, como se tivesse ouvido algo. Kylie seguiu seu olhar. Ela não viu ninguém, mas, estranhamente, a sensação que tivera antes tinha retornado. Alguém estava lá. Chamando por ela. Quem é você? O que você quer? Kylie perguntou mentalmente. — Eles querem falar com você — disse o fantasma. — Quem? — Kylie perguntou. — E você disse “eles”? Como sabe que há mais de um? — De alguma forma, sei que há mais de um. Mas, se eu não sei o meu próprio nome, como posso saber quem eles são? — Você já os viu? Sabe o que eles querem de mim? Ela fez que não com a cabeça.
— Eu apenas os sinto. Estão chamando você. — Será que eles querem me fazer mal? — Kylie perguntou. — Eu... não posso dizer com certeza. Mas eles não parecem ruins. — Também não sinto que sejam ruins. — Ou talvez ela só quisesse acreditar nisso. Ela desceu os degraus. Estava quase chegando à floresta quando alguém agarrou seu braço, alguém vivo e quente.
 
Kylie se virou, o coração quase saindo pela boca. — Aonde vai? — Lucas perguntou. — A lugar nenhum. — Ela engoliu o pânico. — Eu estava esperando você e ouvi algo. — Não era totalmente mentira; ela tinha ouvido com o coração. Ele a puxou contra si. — Quando isso acontecer, você deve entrar na cabana, não ir para a floresta. Mesmo gente normal sabe disso quando assiste a filmes de terror. Ela revirou os olhos. — Eu teria entrado, se achasse que se tratava de algo ruim. — Mas às vezes não dá pra saber. — Ele deslizou a mão até a cintura dela. Kylie concordou com ele nesse ponto, e provavelmente precisava se lembrar disso também. No entanto, era difícil se lembrar de alguma coisa com ele tão perto. Tão perto que ela sentia sua respiração. O toque suave da sua palma aquecia sua pele sob a roupa. A ternura e o calor criando uma trilha que fazia formigar a sua pele. Ele baixou a cabeça e a fitou nos olhos. — Você faz ideia de como eu me sentiria se algo acontecesse a você? — Provavelmente da mesma forma que eu me sentiria se algo acontecesse a você — ela disse. — O que seu pai queria? Ele franziu a testa.
— É Clara, minha meia-irmã. Ela fugiu novamente. Disse a ele que estava vindo para cá, mas ele suspeita de que ela tenha voltado com o namorado. — Eu sinto muito. O que vai fazer? — Eu não sei. — Ele suspirou. — Já fui atrás dela duas vezes. Ela disse que queria vir para cá. Mas talvez tenha mentido. Se eu a trouxer contra a vontade, o que vai impedi-la de fugir? — E o namorado é tão ruim assim? Ele fez uma careta. — Ele é um fora da lei e está envolvido até o pescoço com uma gangue. — E isso faz dele automaticamente uma pessoa ruim? — Ela sabia que nem todos os seres sobrenaturais eram registrados, e para algumas pessoas isso por si só fazia com que fossem vistos como delinquentes, mas nem todos os seres sobrenaturais não registrados eram ruins. Della não considerava Chan um delinquente. E Kylie queria crer que seu avô e sua tia-avó também não fossem ruins. — Todas as gangues são ruins? Ele fez uma pausa antes de responder. — Não necessariamente, mas mesmo as gangues que não são completamente antiéticas geralmente estão na ilegalidade. — Drogas? — Kylie perguntou. — E outras coisas. Kylie se lembrava de como ela tinha se sentido mal por Lucas, quando o vira tão defensivo com relação ao próprio pai. Ela se lembrou de que ele tinha se voltado contra a própria família para protegê-la. Seu coração se compadeceu. — Se sua meia-irmã for ao menos parecida com o meio-irmão, ela vai fazer a coisa certa. — Ela ficou nas pontas dos pés e apertou seus lábios contra os dele. Já era tarde. Estava escuro. Mas o momento parecia tão certo... O que era para ser apenas um beijo rápido se prolongou e tornou-se algo mais. Muito mais. Lucas aprofundou o beijo e ela se apoiou nele. Sentiu o corpo do namorado pressionado contra o dela, rígido em todos os lugares em que ela era macia. Ela ouviu o ronronar que os lobisomens faziam quando estavam perto de um parceiro em potencial. Ficou quase hipnotizada, atraída pelo som, tentada e seduzida por tudo o que poderia vir depois. Ele tinha um gosto tão bom, um toque tão bom! Ela queria mais. Queria sentir mais. Provar mais. Experimentar mais. Então a magia desapareceu quando Lucas se afastou. Ele roçou a mão em seu rosto e, embora os olhos azuis ainda estivessem ardentes de paixão, ela percebeu que sua mente estava em outro lugar. — Sinto muito que o meu pai tenha assustado você. Ela lutou contra o desejo de lhe dizer para apenas beijá-la novamente. — Está tudo bem — ela disse, e tentou não parecer desapontada. — Não, não está. — Ele pegou a mão dela e conduziu-a até a varanda. — Ele afirmou logo de início que não estava ali para fazer mal a ninguém — ela explicou, querendo acalmar Lucas. Querendo tornar tudo mais fácil. — E você nunca deve acreditar nele — disse Lucas. Um leve sentimento de medo se instalou no peito de Kylie. Eles se sentaram na varanda, com as costas apoiadas na parede da cabana. Ele roçou o polegar sobre os lábios de Kylie. — Eu não quero meu pai perto de você. Ela fitou o olhar sério de Lucas. — Ele machucou você? — A necessidade de protegê-lo fez seu sangue correr mais rápido. — Não a mim. Eu sou filho dele. Mas ele não respeita mais ninguém.
— Se ele é tão ruim, por que você se encontrou com ele? Por que ainda se relaciona com ele? — Por Clara, principalmente. Mas agora... Eu preciso dele. — Por quê? — Sua aprovação vai ser uma grande ajuda para eu entrar no conselho dos lobisomens. O conselho do qual Lucas não faria parte se resolvesse se casar com ela. O pensamento lançou uma onda de apreensão através de Kylie ela se lembrou do que Della tinha dito sobre o relacionamento ser mais difícil entre eles, por causa da família e da alcateia. Ela afastou o pensamento e tentou entender. — Mas, se eles buscam a aprovação do seu pai, então por que você quer fazer parte desse conselho? Ele fechou os olhos por um segundo, como se a explicação fosse difícil. — Se eu fizer parte do conselho, então vou poder mudar as coisas. Kylie se lembrou da avó dele dizendo que ele queria mudar a forma como o mundo via as crianças criadas por sobrenaturais fora da lei. — Mas, até lá, eu tenho que convencê-lo de que vejo as coisas do jeito dele. — Que coisas? Ele balançou a cabeça lentamente. — Coisas que eu não acho que você precise saber. Kylie franziu a testa, não gostando de ser deixada de fora do mundo dele, mesmo sem ter certeza de que queria pertencer a ele. Ela apostava que Fredericka sabia tudo. — Mas eu preciso saber. Eu quero fazer parte da sua vida. Não quero ser excluída. — Não quero que a sua alcateia ou a sua família nos separem. Os olhos dele se estreitaram.
— Eu não estou excluindo você. Só prefiro que não conheça esse outro Lucas. Ela digeriu as palavras dele. — Só pode haver um Lucas. — Só existe um. O verdadeiro. Mas eu tenho que fingir na frente do meu pai e do conselho. Tenho que convencê-lo de que estou do lado dele. Ela balançou a cabeça. — Eu não entendo. — E eu não espero que entenda. Ela tirou a mão do braço dele. — Não está certo. Como você se sentiria se pensasse que eu escondo coisas de você? Seu rosto assumiu uma expressão de contrariedade. — Você esconde coisas de mim. Coisas sobre os seus fantasmas. — Os olhos de Lucas brilharam de frustração. — Coisas que você conta a Derek e não a mim. E você tem razão, eu não gosto disso. Ela refletiu sobre as palavras dele e sabia que era verdade. — Eu só escondo porque você não quer saber sobre essas coisas. Elas te deixam meio fora de si. Ele concordou e a aceitação brilhou em seus olhos, mas ela sabia que isso lhe custava muito. — E acredite em mim quando digo que você não gostaria de saber as coisas que eu mantenho em segredo. Ela olhou no fundo dos olhos dele, odiando a conversa, mas apenas porque ele era muito importante para ela. — Não é bom manter segredos. Eles podem separar as pessoas. Por que simplesmente não dizemos tudo um ao outro? — Às vezes, o que não sabemos nos protege. Não podemos nos magoar se não sabemos. — Ele encostou a testa na dela. — Eu posso prometer isso a você, Kylie Galen. Vou fazer o que quer que eu tenha que fazer, mas não vou deixar que isso te magoe.
Ela franziu o cenho. — O que você quer dizer com “o que quer que tenha que fazer”? — Quer dizer só isso. Eu não vou deixar que o que está acontecendo na minha vida confusa magoe você. As palavras dele a assustaram. Mas o medo era mais por Lucas do que por ela mesma. — Eu não sou uma garota frágil. Não sou a mesma menininha que você espiava da janela. Um ar de divertimento brilhou nos olhos sedutores e calorosos e Lucas. — Ah, isso eu já percebi. — Estou falando sério. — Eu sei. Mas você ainda é a minha garota, e eu quero protegê-la. Ela revirou os olhos em frustração. — Eu sou a protetora aqui. Isso é o que eu sou — Kylie insistiu. — Eu sei. Você é incrível e pode fazer coisas incríveis. E já salvou a minha vida. Mas, como protetora, a única coisa que não pode fazer é proteger a si mesma. Então, por favor, não tente me impedir de fazer isso. Na manhâ seguinte, Kylie acordou antes do nascer do sol. A única coisa de que estava consciente era de Socks dormindo sobre a sua barriga, o focinho pontudo do gambá descansando entre os seus seios. Ela levantou a cabeça e olhou para o animalzinho. Ele abriu um de seus olhos redondos e depois o outro, e olhou para ela com adoração. O tipo de olhar que se ganha apenas de um animal de estimação. O tipo de olhar que expressa puro amor e aceitação. O silêncio no quarto era absoluto. Sem saber direito o que a tinha despertado, ela puxou o braço para fora da coberta fina para sentir a temperatura. Nenhum frio. Nenhum fantasma.
E então ela ouviu. Ou a ouviu. — Bichano!... — Miranda chamando Socks da porta ligeiramente aberta. — Vamos, Socks. Você não quer ser transformado novamente num gatinho? Socks ficou de pé, pulou para o chão e correu para debaixo da cama. Kylie não tinha certeza se o aborrecimento do bichinho era por Miranda viver tentando transformá-lo em gato novamente ou porque ele não queria ser transformado. Considerando que Kylie tinha vivido um verdadeiro inferno nesses últimos meses, ela não podia culpar Socks. Mudar era algo assustador. Miranda abriu a porta um pouco mais. — Vamos, não dificulte as coisas. Kylie se apoiou no cotovelo e bocejou. — Acho que ele está com medo. Miranda entrou um pouco mais. — Eu acho que descobri. Só preciso levá-lo para fora e fazê-lo tomar a primeira luz da manhã. — Humm. — Kylie levantou-se, pousando os pés descalços na madeira fria do assoalho. Não estava fria demais? Ela deu mais uma olhada para verificar se havia algum fantasma ali. Não. Nada de fantasmas. — Desculpe se acordei você. Achei que eu pudesse me esgueirar até aí e agarrá-lo. — Miranda parecia bem acordada e de bom humor, quando se sentou na cama num pulo, sacudindo o colchão. — Tudo bem. Eu estava praticamente acordada — Kylie mentiu. Na verdade, tinha sido uma noite muito mal dormida. Depois que Lucas foi embora, Della se retirou para o seu quarto e Miranda ainda não tinha voltado para casa, de modo que Kylie pegou Socks no colo e foi para a cama. Não para dormir. Isso teria sido muito fácil. Ela se revirou na cama durante horas, remoendo seus problemas, e sem realmente resolver nenhum deles. No entanto, precisava admitir que ela já estava se acostumando a se ver como um camaleão. E parecia animada por já estar um dia mais perto de quinta-feira, quando seu avô verdadeiro viria visitá-la. Ou pelo menos ela estava rezando para que ele viesse. A lembrança da sua dificuldade para dormir la fez recordar de que a última vez que consultara o relógio, em torno das três horas da manhã, Miranda ainda não tinha voltado. — Então, você vai me contar? — Kylie perguntou. — Contar o quê? — O sorriso de Miranda estava cheio de malícia. Kylie estudou sua amiga com mais atenção. Ela usava as mesmas roupas que vestira na noite anterior. Será que Miranda tinha acordado para tentar transformar Socks novamente num gatinho, ou será que precisava de alguém para conversar? Não que Kylie se importasse. Ela tinha acordado Della e Miranda muitas noites, a maioria com sonhos ou visões assustadoras, mas, se ela precisasse apenas conversar, sabia que as amigas a ouviriam. — A que horas você chegou em casa, mocinha? — Kylie perguntou em tom de brincadeira. — Cedo. Eu juro. — Miranda deu uma risadinha. — Esta manhã. — Detalhes. Quero detalhes. — Kylie esfregou as mãos, imitando Miranda. — Não fique muito animada — disse Miranda. Então ela suspirou. — Nós não fizemos... você sabe. Mas nós estávamos... bem, você sabe. Kylie deixou o enigma dar voltas na sua mente sonolenta e balançou a cabeça. — Eu acho que captei o primeiro “você sabe”, mas estou meio perdida com relação ao segundo. Ainda sentindo frio na sola dos pés, ela puxou as pernas para cima do colchão. A escuridão do quarto se iluminou só com a presença de Miranda. — Nós nos beijamos, demos uns amassos... — O sorriso de Miranda se alargou, e então ela ficou com aquele olhar sentimental e apaixonado no rosto.
— Nós dormimos nos braços um do outro perto do riacho. Ele me abraçou durante toda a noite, e eu acho que estou apaixonada de verdade. É como se eu soubesse que pertenço a esse lugar. Aos braços dele. Kylie se lembrou das vezes em que ela havia adormecido nos braços de Lucas. Dizer que tinha sido incrível era pouco. Mas ela não tinha acordado sabendo com certeza que ele era o cara certo. Não conseguia se lembrar de ter sentido isso. Então, percebendo que esse momento era de Miranda, ela deixou os próprios sentimentos de lado. — Bem, estou feliz por você. — E Kylie estava. Mesmo que sentisse com um pouco de inveja, também. — Eu sei que você está. — O sorriso de Miranda desapareceu. — Mas eu não acho que Della vá se sentir da mesma forma. — É claro que vai — disse Kylie. — Ela só tem dificuldade para demonstrar. Lembra-se de como ela vivia incentivando você a fazer as pazes com Perry quando estava brava com ele? — Acho que sim — disse Miranda, não parecendo convencida. — Quer dizer, eu sinto como se não pudesse dizer nada sobre Perry perto dela agora. Percebi que ela está magoada com Lee e eu não quero fazê-la se sentir mal, mas eu também quero poder conversar com ela sobre o que está acontecendo na minha vida. E agora tudo o que está acontecendo na minha vida tem a ver com Perry. Sério, eu não quero viver pisando em ovos quando estou perto dela. — Eu acho que você está se preocupando à toa. Acredite em mim, daqui a alguns dias as coisas vão voltar ao normal e vocês vão estar se atracando por um motivo que não tem nada a ver com Perry. Miranda soltou o ar dos pulmões. — Você fala de um jeito que parece que brigamos o tempo todo. — Não o tempo todo — disse Kylie. — Apenas a maior parte do tempo. Miranda deu de ombros.
— Enfim, você acha que pode me ajudar a segurar Socks para eu ver se consigo reverter o feitiço? Perry me ouviu praticar por uma hora. Eu quero corrigir isso. — Miranda franziu o cenho. — Eu sinto como se fizesse tudo errado. — Você não faz tudo errado. — Kylie olhou para o chão. — Venha aqui, Socks. Venha aqui, baby. Miranda se deixou cair de costas no colchão. — Eu me sinto assim, especialmente quando minhas irmãs wiccanas me provocam. Eu sou uma droga de bruxa! — Elas provocam você por causa de Socks? — Kylie perguntou. — Sim, não que eu as culpe. Eu faço a maior bagunça. — Que se danem! — xingou Kylie. — Você deveria descobrir como enfeitiçá-las com uma dose de dislexia e ver como elas lidam com isso. — Elas não são ruins de verdade — disse Miranda. — Mas isso te magoa. — A raiva por Miranda queimava o peito de Kylie. Ela odiava bullying. Odiava que as pessoas colocassem as outras para baixo para se sentirem melhores com relação a si mesmas. Miranda se levantou da cama. — Mas elas estão apenas brincando. — Ela se ajoelhou e bateu os dedos no chão. — Aqui, gatinho! Gatinho! As palavras de Miranda pareciam ter sido sugadas pelas sombras nos cantos do quarto. Kylie tirou os pés do colchão e bateu um calcanhar contra o pé da cama. Ela esperou sentir Socks atacando seu tornozelo. A única coisa que sentiu foi ar gelado saindo de debaixo da cama. Um frio gelado que provocou em Kylie um mau pressentimento. Ela olhou para Miranda. — Por que você não vai lá fora e eu... eu pego Socks pra você. Ele provavelmente vai sair quando você for embora. — Por algum motivo, o quarto pareceu ficar mais escuro. Kylie esperava que Socks fosse a única coisa a sair de debaixo da cama.
Miranda se levantou. — Eu não sei por que ele não gosta de mim — ela murmurou e saiu. Kylie levantou-se cautelosamente e olhou embaixo da cama. — Socks? Gatinho? Nenhum gambazinho veio correndo de debaixo da cama. Nenhum miado baixo partiu dali para alertá-la de que ele estava bem. Respirando fundo, ela ficou de quatro e olhou a ponta imóvel da colcha. Ela lutou contra a tentação de assoprar o tecido. Por alguma estranha razão, queria ver algo se mover; a estranha imobilidade do tecido não parecia natural. Nada parecia certo. Ela estendeu o braço na direção do tecido de algodão para olhar embaixo, rezando para não encontrar nada mais do que um gambá assustado. Os dedos de Kylie quase tocavam a colcha quando um som — um gemido ou um grito estrangulado — ecoou embaixo da cama. Ela tirou a mão. Sem fôlego. Aquilo não se parecia em nada com Socks. Um frio gelado e antinatural serpentou de debaixo da cama. O vapor subia de detrás da colcha. Medo, um medo primitivo invadiu o peito de Kylie. Ela olhou para a porta. Seria bom se pudesse sair. Mas sabia que não conseguiria. O instinto lhe dizia que Socks não estava sozinho sob a cama. Ainda de quatro, ela arrastou o joelho um pouco para trás. Quantas vezes, quando criança, havia temido um monstro debaixo da cama? Quantas vezes sua mãe tinha afirmado que monstros não existiam? O gemido ecoou novamente. A mãe dela estava errada. Um monstro, ou algo igualmente assustador, se escondia debaixo da cama de Kylie. Ela não podia culpar a mãe pela mentira. Ela não sabia. Mas Kylie sabia. Não que isso importasse. Recusando-se a abandonar o seu animal de estimação, tentando desacelerar o coração enlouquecido, ela estendeu novamente o braço na direção da colcha. Bem diante dos seus dois dedos que pegavam o tecido de algodão, uma mão surgiu. Seu grito ficou estrangulado na garganta quando a mão, fria e sem vida, agarrou o braço de Kylie e puxou-o. Ela lutou para se libertar, arranhou com os dedos, torceu o braço, nada conseguia soltá-la. Nada funcionou. — Socorro! — ela gritou, mas ninguém a socorreu. Os dedos ao redor do seu punho apertaram, arrastando-a mais para perto. A última coisa que ela viu foi a colcha deslizando sobre seu rosto enquanto ela deslizava para uma sombria inconsciência. Seu último pensamento antes de sentir a mente entorpecida foi que ela ia finalmente conhecer o monstro debaixo da cama.
 
Kylie estava deitada de costas, em meio à escuridão. Uma escuridão profunda e tenebrosa. É apenas uma visão. Não é real. Não é real. Algo, dos dois lados do seu corpo, apertava com força os seus antebraços. Parecia real. Ela tentou se mover, mas não conseguiu. O medo cresceu dentro dela. Ela sentiu um gosto amargo na língua. Desorientada, tentou encontrar um sentido para tudo aquilo. Ao respirar, sentiu cheiro de terra. Terra molhada de chuva. Ela não estava sob a cama. Onde estava? Uma resposta lhe ocorreu e ela desejou que não tivesse. Ela estava enterrada. Outro grito ficou preso na garganta, mas a lógica lhe disse que isso não era real. Apenas uma visão. Mas de quem? E do quê? Holiday? O som da própria respiração deixando seus lábios parecia muito alto. Imediatamente, Kylie percebeu que não estava sozinha. Não era o barulho de outra pessoa respirando. Ninguém respirava, além dela. No entanto, o aperto em seu pulso não tinha afrouxado. Quem a havia arrastado até ali embaixo não tinha partido, alguém ainda se agarrava ao seu pulso, como se a vida dessa pessoa dependesse disso. Infelizmente, Kylie sabia que era tarde demais. Apenas ela estava viva. — Por que estou aqui? — Ela tentou se mover novamente, mas sentiu que algo a impedia. Nenhuma resposta. Piscando, sua visão lentamente se ajustou à escuridão. Ela viu uma tábua de madeira velha a poucos centímetros do seu rosto. Tentou libertar seu pulso do aperto, mas ele só aumentou. — Ah, merda. O que vocês fizeram? — Uma voz familiar ecoou na escuridão.
Holiday. — Eu estou aqui — Kylie chamou. Só que dessa vez as palavras não saíram da sua boca. Ela não podia falar. — Cara M. disse que podia nos ajudar a sair daqui — outra voz feminina respondeu. Soaram passos acima. O assoalho de madeira rangeu. Terra e sujeira caíram sobre o rosto de Kylie. Ela piscou, para tirar a terra dos olhos, e tentou segurar a respiração para não engasgar. — Ele está indo embora — alguém sussurrou. Kylie piscou e, quando abriu os olhos, tudo tinha mudado. Ela estava numa velha cabana em ruínas, olhando para tábuas de madeira sob os pés. Então, como se o chão se desvanecesse, Kylie viu o que estava escondido embaixo. Três corpos em decomposição, posicionados lado a lado. Um grito saiu dos lábios de Kylie. Ela tentou correr, mas seus pés pareciam congelados. Tentou desviar o olhar, mas não conseguiu. Um dos cadáveres era de uma mulher com o cabelo escuro, provavelmente com vinte e poucos anos, vestindo uma camisola. A segunda era de uma loira em torno da mesma idade, vestindo um uniforme de garçonete com um crachá preso nele onde se lia Cara M. E o terceiro... Oh, Deus! Era Holiday. Lágrimas encheram os olhos de Kylie. Ela gritou mais alto quando percebeu que estava mais uma vez deitada de costas. A escuridão a engolia. O pânico aumentou quando sentiu algo se movendo ao seu lado. A adrenalina jorrava em suas veias. Ela pulou e bateu a cabeça com tanta força que sacudiu o seu cérebro. Caiu de costas novamente. — Onde diabos você está? — Uma voz ecoou em torno dela. Um voz familiar. A voz de Della. — Aqui! — A luz de repente ofuscou a visão de Kylie. — O que você está fazendo aí? Kylie engasgou, engoliu seu grito e percebeu que estava deitada no chão do seu quarto com Socks tremendo ao seu lado.
— Você é mesmo muito estranha... — Della, parecendo sonolenta e irritada, estava em pé sobre Kylie, segurando a cama acima da cabeça. Sim, a cama de casal — cama e colchão. Segurando-a como se ela não passasse de um pedaço de espuma. Socks soltou um miado fraco. Com receio de que Della deixasse a cama cair, Kylie pegou no colo o gambazinho e ficou de pé. Seus joelhos vacilaram, o gambá tremia em seus braços. Ela olhou para baixo, rezando para ver o chão do quarto e não uma cova. Nenhuma sepultura. Nenhuma garota morta. Nem Holiday morta. Kylie inspirou. Por mais que quisesse afastar a horrível memória do seu cérebro, ela não podia. Algo na visão poderia ajudá-la. Ajudá-la a descobrir como poderia impedir que isso acontecesse. Ajudá-la a salvar a vida de Holiday. — Mas que diabos está acontecendo? — Della perguntou novamente. — Ou será que eu nem vou querer saber? — Desculpe. Foi só um sonho ruim. — A voz de Kylie tremeu. Della deixou a cama cair. Ela bateu no chão com um ruído estrondoso. — Há um fantasma aqui? — Della olhou ao redor, obviamente não acreditando na desculpa de Kylie sobre o sonho ruim. Kylie levou um segundo para sentir a temperatura. — Não — ela disse, honestamente. Della estudou-a, sua expressão se suavizando. — Você está bem? Kylie assentiu e viu a carranca de Della voltar. — E você não vai explicar isso? — Della perguntou. Kylie balançou a cabeça. Della de fato não ia querer saber. — Então boa noite! — A vampirinha disparou para fora do quarto, deixando-o tão rapidamente quanto tinha aparecido.
Kylie encheu os pulmões de ar. Depois expirou. Tentou acalmar o coração acelerado. Ela tentou ver o lado bom da visão — o lado bom de estar numa cova com três corpos em decomposição. Não era uma tarefa fácil. No entanto, pelo menos tinha algo para investigar. Mas será que isso a ajudaria? Oh, Deus, tinha que ajudar, não é? Ela puxou Socks mais para perto, oferecendo conforto e ao mesmo tempo buscando-o, enquanto abraçava alguém tão assustado quanto ela. Poderia ter funcionado se uma batida forte em sua janela não tivesse feito seu coração quase saltar pela boca. Kylie deu um pulo e quase foi parar do outro lado do quarto. Outro grito se formou em seu peito, mas antes que ela o libertasse, viu Miranda espiando pela janela, a palma da mão pressionada contra o vidro. — Você vem? — ela gritou. — Nós vamos perder a primeira luz da manhã. O frio se espalhou pelo quarto. E o espírito apareceu. Kylie olhou para o fantasma, que parecia exatamente como Holiday. — Eu sinto muito. Ela não devia ter feito aquilo. Kylie tentou não imaginar Holiday, ou que Deus a ajudasse, a sósia de Holiday, com a aparência que ela tinha na sepultura. — Está tudo bem — disse Kylie, com sinceridade. Ela podia lidar com aquilo. Se conversar com pessoas mortas pouparia a vida de Holiday, ela faria isso. Droga, até dançava com os mortos se isso significasse salvar Holiday. — Eu preciso saber o que aconteceu — disse Kylie. — Você precisa me mostrar, para que eu possa saber como ajudar você. — Mostrar o quê? — Miranda perguntou. Kylie ignorou Miranda. O espírito balançou a cabeça. — Eu te disse, não acho que seja a mim que você tem que ajudar.
E não é que, igualzinha a Holiday, Kylie pensou, essa também teimava em não aceitar ajuda? Mesmo na forma de um fantasma? — A única ajuda que eu preciso é que você traga Socks aqui para fora — gritou Miranda da janela de novo. — Você deveria ir — Holiday disse. — Esse pequenino gostaria de ser um gato novamente. Kylie olhou para Miranda e depois voltou a fitar o espírito. — Como você sabe o que ele quer? — É um dos meus dons, eu posso me comunicar com os animais. — Não, você não pode — disse Kylie. Ou melhor, Holiday não podia se comunicar com os animais. Será que seres sobrenaturais adquirem dons diferentes depois que morrem? Kylie achava que não. Isso significava que ela não era Holiday? E se não era, quem era então? — Tudo bem, você quer que ele continue sendo um gambá — disse Miranda com irritação na voz. Socks escolheu esse momento para colocar a pata sobre os olhos e Kylie gemeu. Alguns minutos depois, Kylie saiu da cabana com Socks aconchegado em seu peito. Ainda estava escuro e silencioso, como se o mundo não tivesse acordado ainda. Ao contrário dela, o mundo lá fora não despertava com bruxas ou visões de pessoas mortas. O ar da manhã ainda estava frio, um dos primeiros sinais de que o verão estava acabando e o outono logo iria substituí-lo. Quando deu um passo para a frente, ela sentiu. O chamado. Seu olhar se desviou para a borda da floresta. O coração disparou e a tentação de se aproximar sussurrou seu nome como um velho amigo. Kylie deu mais um passo, quase atendendo ao anseio inexplicável, mas a voz de Miranda a puxou de volta. — Por que demorou tanto? — Eu tive que tirá-lo de debaixo da cama — disse Kylie, sem ânimo para reverter feitiços, mas lembrou-se da insegurança na voz de Miranda quando tinha contado que as outras bruxas a provocavam por causa disso. Como a primeira luz da manhã durava apenas alguns minutos, era um preço pequeno a pagar pela felicidade da amiga. Então Kylie sentou-se e recapitulou o que tinha descoberto no sonho. Alguma coisa nele tinha que ajudá-la a entender as visões. Miranda, segurando a bolsinha preta onde carregava as suas ervas mágicas, levou Kylie até os fundos da cabana. — Eu não judiei dele. Não sei por que ele não gosta de mim. — Eu sei. — Depois de um mês sendo perseguido por Miranda, na tentativa de reverter o feitiço, Socks tinha começado a olhá-la com desconfiança. Kylie também tinha começado a olhá-la assim. Miranda olhou para o céu e viu os primeiros raios do sol. — Está na hora. — Ela ensaiou alguns passinhos de comemoração. — Coloque Socks no chão. Kylie fez um carinho no pelo preto e branco de Socks. Por mais absurdo que parecesse, ela sentiria falta do seu lado gambá. Apreciando pela última vez a visão do animalzinho na pele de gambá, Kylie o colocou no chão e se afastou, dando espaço para Miranda fazer a sua magia. Naturalmente, Socks começou a seguir Kylie, sem querer ficar para trás. — Fique aí! — Kylie mandou, fazendo um sinal para Miranda começar. Miranda deu início ao encantamento. Algo sobre a luz e o verdadeiro eu. Socks começou a andar novamente. Miranda acenou para Kylie pegá-lo. Kylie falou suavemente com o gambá e ele ficou parado. Então, estendendo a mão na direção da bolsa, Miranda tirou dali uma pitada de uma coisa estranha parecida com uma erva. Ela a jogou no ar sobre Socks; alguns fragmentos estalaram e chiaram enquanto caíam em torno dele. Kylie prendeu a respiração, esperando ver seu amado animal de estimação se transformar num felino. Mas nada. O animalzinho com uma listra branca nas costas permaneceu em sua forma de gambá.
Miranda franziu o cenho para o céu e começou a entoar o feitiço novamente. Espalhou mais ervas no ar. Dessa vez, Socks levantou-se sobre as perninhas peludas de trás e golpeou as faíscas com as patas minúsculas. No entanto, mesmo depois de todas aquelas ervas chiando, ele continuou sendo o mesmo gambá bicolor. Miranda olhou para o céu, desesperada, e começou a repetir o encantamento. Levantou a bolsinha preta sobre a cabeça e apenas sacudiu-a sobre o animal. Socks viu a alça da bolsa pendurada e pulou no ar para apanhá-la. Quando Miranda puxou-a para trás, o gambazinho começou a se afastar. — Pare já! — A frustração de Miranda era alta e clara. Kylie ajoelhou-se e acenou para que o animal voltasse. Seus olhos negros e redondos olhavam para ela, confusos. A compaixão pelo animal encheu seu peito. Miranda começou a entoar o feitiço mais uma vez. Socks tentou fugir novamente. Miranda insistiu para que Kylie o segurasse de novo. Ela continuou por mais vários minutos até que Kylie ergueu a mão, interrompendo a amiga. — Isso não vai funcionar. — Tem que funcionar! — disse Miranda. — Eu só tenho mais alguns minutos antes de o sol nascer. Só faça com que ele fique quieto. Como se Socks entendesse, ele correu e passou entre as pernas de Miranda. — Não! — disse Miranda. Kylie pegou o animal confuso. — Eu acho que para ele já chega — Kylie disse no seu tom de voz mais simpático. — Mas ele ainda é um gambá. Coloque-o no chão, por favor. Eu posso fazer isso. Tenho que fazer isso.
Kylie entendia a necessidade de Miranda de provar para si mesma a sua competência, mas... — Não dá pra tentar novamente amanhã? — Só mais uma vez. É rapidinho, tá? Tudo o que ele tem de fazer é ficar parado. Cedendo, Kylie colocou Socks no chão e Miranda voltou a recitar o feitiço. Quando Miranda parou e viu que Socks ainda era um gambá, Kylie lançou para a amiga um olhar de condolências. — Tudo bem. Vamos tentar outra hora — Kylie disse, começando a perder a paciência. — Espere. Eu me esqueci de abençoar a luz e o vento. — Miranda fez uma pausa enquanto se recordava das palavras. Kylie estendeu a mão, com o mindinho para cima, e murmurou: — Por que não pode simplesmente mexer o dedo mindinho na direção dele e dizer “volte a ser um gato”? Os fragmentos de ervas deixados no chão se levantaram no ar. Estalaram e emitiram um chiado em torno do pequeno gambá e então começaram a rodopiar em torno dele como um minúsculo tornado. Socks, de pé sobre as patas traseiras, dava patadas nos pedacinhos de ervas. E então, num passe de mágica — bem, era de fato magia —, o gambá desapareceu e Socks, o gato, surgiu em seu lugar. Miranda olhou boquiaberta para Kylie. — Como você fez isso? O olhar de Kylie estava preso no gatinho, que ainda golpeava com a pata as ervas flutuando em torno dele. — Eu não fiz isso! — Ela olhou para Miranda. — Minha nossa! — Miranda gritou. Alguém tinha passado por elas como um borrão. — Que diabos é isso agora? — Della parou diante de Miranda, derrapando.
— Ela é uma bruxa! — Miranda apontou para Kylie. — Você é uma bruxa! Kylie balançou a cabeça. Ela era um camaleão. — Eu não fiz isso. Foi você. Só que... foi uma reação retardada. — Não. Você é uma bruxa. Agora, você é uma bruxa. Della revirou os olhos. — Mas que droga está acontecendo aqui? — Eu estou dizendo, eu não fiz isso — Kylie insistiu. Ela não tinha feito mesmo. Ou tinha? Della olhou para Kylie. — Caraca! — exclamou Della. Miranda deu alguns tapinhas na testa. — O seu padrão diz que você é uma bruxa. — Qual o problema? — Uma voz masculina soou atrás de Kylie. Kylie se virou. Derek, parecendo despenteado como se tivesse saído da cama às pressas, chegou correndo. — Ela é uma bruxa! — gritou Miranda. — Não sou! — discordou Kylie. Girando, ela olhou para Socks, ainda em sua forma felina. Seu pai tinha dito que ela era um camaleão. Seu pai devia saber, não é? Claro, a princípio ela não queria ser um lagarto, mas agora tinha aceitado. Além disso, por que seu pai mentiria? Com o canto do olho, ela viu Derek movendo-se para a frente dela. Sua testa se franziu. — Não é verdade, é? — Kylie esperou que Derek negasse. Ela se encheu de dúvida. Daniel teria mentido? Será que sua avó tinha se confundido quando disse ao pai de Kylie que eram camaleões? Mas como Burnett já tinha ouvido falar de camaleões se eles não existiam? Por que a vida tinha que ser tão difícil? — Me diga já! — Kylie insistiu. — Eu sou uma bruxa?
 
Derek confirmou com a cabeça. — É verdade. Seu padrão diz que você é uma bruxa. Miranda cruzou os braços sobre o peito. — Você não quer ser uma bruxa? — Ela parecia ofendida. — É claro que ela não quer ser uma bruxa! — Della deixou escapar, ainda parecendo chateada por ter sido tirada da cama. — É chato à beça. Você não faz nada além de ficar espalhando ervas por aí, e a única maneira de voar é numa vassoura. — Não é chato! E eu não posso voar numa vassoura! Eu juro, uma vez uma bruxa fez isso e agora estamos todas estereotipadas. — Os olhos de Miranda se apertaram de raiva. — Admita — disse Della. — Se pudesse escolher a espécie que seria, você preferiria ser uma vampira. Miranda balançou a cabeça com veemência. — Quem gostaria de ser um chupador de sangue, ter o corpo gelado e presas! Kylie olhou para as duas amigas agredindo-se verbalmente, trocando insultos numa velocidade tão grande que ela não conseguia nem acompanhar. Então, muito confusa para intervir, pegou Socks no colo antes que ele entrasse na floresta. Seu olhar se desviou para as árvores. O bosque ainda a chamava. Que diabos estaria acontecendo? Sua mente girava enquanto se dirigia para a cabana. Derek subiu um degrau ao lado dela. Sua camisa, desabotoada, flutuava aberta, expondo os músculos do abdômen. Não que ela tivesse notado. Ok, ela tinha notado... mas isso não significava nada. Só que ela era uma garota e as garotas gostam de admirar caras sem camisa.
— Você está confusa — Derek constatou. — Pode apostar. — Ela não tinha se acalmado ainda. Não podia. Estava muito irritada por ainda se sentir tão atraída por ele. Muito irritada com o maldito bosque chamando-a, como um velho amigo fazendo um convite para sair e tomar uma cerveja. Ela não tinha velhos amigos. Nem ninguém que estivesse na floresta. — Você está se sentindo traída — disse ele. — É isso aí. Bem, mais ou menos. — Ela continuou até a cabana e aconchegou o gatinho ao peito. Seu coração doía e lágrimas brotaram em seus olhos. — E você está com medo. — Na mosca! — confirmou ela. No entanto, tudo o que ela sentia agora era... — ... frustração — Derek concluiu o pensamento por ela. Ela parou e olhou-o nos olhos. — Você não tem que me dizer como eu me sinto. Eu sei o que estou sentindo. — E está de mau humor — acrescentou com um sorriso. Quando ela não respondeu no mesmo tom, o humor dele se desvaneceu. — Desculpe. Estou apenas... querendo entender. — Você sabe o que estou sentindo, o que mais precisa entender? Ela acabou de subir os degraus da varanda com Socks embaixo do braço e abriu a porta com tanta força que a madeira estalou ao bater na parede. Socks se encolheu. Derek seguiu-a para dentro. — Conheço as suas emoções, mas não posso adivinhar o que a fez se sentir assim. Ela desabou no sofá e segurou Socks no colo. — Olha, eu estou num estado de espírito muito ruim agora, e sugiro que você vá embora. Derek sentou-se ao seu lado, ignorou o que ela disse e continuou:
— Por exemplo, sei que você está com medo, mas do quê? Você está frustrada porque é uma bruxa ou porque as suas duas melhores amigas não param de brigar? E por que está se sentindo traída agora? Está sentindo que eu a traí? É por causa... — Não! — ela disse antes que ele mencionasse Ellie e ela tivesse que lidar com essas emoções também. — Não é você. — Ou talvez fosse um pouco, ela pensou, lembrando-se do comentário de Miranda de que ela falava de Derek o tempo todo. — É por causa de Lucas? — perguntou. — Se for você pode me dizer. Eu quero ajudá-la e, se isso significa ouvir os seus problemas com ele, tudo bem. Ela puxou Socks para mais perto. — Não é Lucas. — Mas então ela se lembrou do encontro da noite anterior, quando Lucas tinha admitido que guardava segredos dela. A longa pausa encheu a sala. Derek se inclinou, seu ombro tocou o de Kylie, e seu dom de cura emocional fluiu até ela como uma bem-vinda lufada de ar fresco. Ela não tinha dúvida de que o toque tinha sido de propósito, que ele tinha a intenção de ajudá-la. Ela olhou para Socks, depois para Derek, tentando acalmar suas emoções. Tentando não ser desagradável. — Diga do que você tem medo. Eu quero ajudar. — Ele olhou para a testa dela. — Será que ser uma bruxa te assusta tanto assim? — Eu não sou uma bruxa — ela disse, sem conseguir se conter. Mesmo com o caloroso toque tranquilizante de Derek, ela sentia a frustração aumentando. Então se lembrou da transformação mágica de Socks. Ela tinha feito aquilo? — Pelo menos eu acho que não. Não que eu não queira ser uma bruxa, é que... Por que o meu pai diria que eu sou um camaleão se isso não fosse verdade? Eu não acho que a minha avó tenha inventado isso. E por que Burnett teria ouvido falar sobre essa espécie se ela não existe? — Burnett já ouviu sobre ela? Ela assentiu.
— Nada concreto, só leu a palavra em alguns relatórios. — Ela tocou a testa. O que aquilo tudo significava? — O meu padrão está mesmo dizendo que eu sou uma bruxa? Ele confirmou, como se estivesse com receio de desapontá-la, então perguntou: — O que está acontecendo? Eu acordei esta manhã depois de um pesadelo horrível. Não consigo me lembrar dele, só sei que você estava em apuros. Quando acordei de fato, me dei conta de que você podia estar mesmo em apuros e que eu podia ter sonhado com as emoções que estava captando de você. Então eu senti todas essas outras emoções vindo de você. É por causa do fantasma? O fantasma de Holiday? — Eu tive uma visão — ela disse, por fim, precisando desabafar com alguém. Precisando recapitular tudo o que ela tinha descoberto com a visão. — Havia três corpos numa cova. — Três? Então é como se fossem assassinatos em série. Socks se agitou no colo dela e enfiou o focinho sob o seu braço, quase como se tivesse entendido o que Derek dissera. Kylie acariciou o pelo macio e preto do felino. Felino. Ela tinha mesmo feito aquilo? Tinha revertido o feitiço? — Acho que sim — Kylie mordeu o lábio e deixou de lado aquelas perguntas para se concentrar em algo mais importante. — Holiday, ou alguém que se parecia com Holiday, era um deles. — Ela recapitulou todas as coisas que sua intuição lhe dizia que eram importantes. — Os corpos foram enterrados embaixo de uma velha cabana. — Seu peito enrijeceu. — Ver Holiday daquele jeito... foi terrível. — Posso imaginar — disse Derek. — Você não disse que as visões eram como um quebra-cabeça que ajuda você a montar um quadro do que aconteceu? Ela assentiu com a cabeça. — Mas não foi o fantasma parecido com Holiday que me proporcionou a visão. — Foi uma das outras garotas. Eu acho que ela quer ser encontrada, para que possa ser retirada da cova. Por isso eu ainda não sei se a visão vai me ajudar. Ou talvez ajude. Não sei. — Ela sentiu um aperto no peito. — Por que elas não podem simplesmente me dizer do que precisam? — Talvez, se você me contar sobre a visão, eu possa ajudá-la a descobrir alguma coisa. Ela olhou para Derek. — Como? — Eu trabalhei para um detetive particular. Aprendi um pouco sobre como fazer investigações e desvendar mistérios. Sou bom nisso. Kylie acariciou o pescoço de Socks enquanto tentava pensar em alguma coisa que pudesse ajudá-los a entender a visão. — Uma das garotas estava vestindo um uniforme de garçonete. Como os daquelas lanchonetes que parecem um vagãorestaurante. Não sei por que, mas o uniforme parecia conhecido. E ela usava um crachá onde estava escrito “Cara M.”. As outras até a chamavam de Cara M., não apenas de Cara, como se não a conhecessem bem, mas a chamavam assim por causa do nome escrito no crachá. — É uma boa dica — disse Derek. — Talvez você possa fazer uma relação de todas as lanchonetes desse tipo em que esteve ultimamente. Vou fazer uma pesquisa na internet para ver se encontro fotos de uniformes como esse. Enquanto a mente de Kylie dava voltas tentando encontrar outros detalhes que pudessem ajudá-los, ela se lembrou da visita do espírito logo antes de ela sair da cabana para levar Socks até Miranda. — O que está te deixando intrigada? — ele perguntou, sentindo as emoções dela. Kylie observou o gatinho descer do sofá ainda achando difícil acreditar que ele não era mais um gambá. — O espírito me disse que Socks queria ser transformado em gato novamente. Quando perguntei como ela sabia disso, disse que podia se comunicar com os animais.
— Holiday não pode se comunicar com os animais. — Os olhos de Derek se arregalaram. — Espere aí. Ela não pode, mas conhece alguém... alguém bem próximo a ela, que é uma fada puro-sangue e de fato tem uma pequena capacidade para fazer isso. — Tem certeza? — Kylie perguntou. — Ela me contou durante uma das sessões de aconselhamento. — Ela disse quem era? — Não, mas... tenho o palpite de que é alguém próximo. Eu senti as emoções dela quando falou dessa pessoa. Mas logo ela mudou de assunto. Kylie balançou a cabeça, como se entendesse. Holiday era muito boa em mudar de assunto quando algo ficava muito pessoal. — Então, se essa pessoa era próxima a Holiday, é compreensível que tenha assumido a aparência de Holiday quando virou fantasma. Kylie refletiu sobre isso por um momento, sentindo algum alívio. Isso lhe deu, pela primeira vez, esperança de que Holiday não estava em perigo. Kylie suspirou. O sol da manhã já devia estar mais alto no céu, pois ela viu os primeiros raios dourados entrarem pela janela e iluminarem o assoalho de madeira. — Então, como descobrimos quem é essa pessoa? — Eu posso tocar no assunto novamente na próxima sessão de aconselhamento com Holiday. É esta tarde. Como eu disse, ela não quis falar a respeito, mas talvez eu consiga fazê-la se abrir mais durante a conversa. As palavras de Derek a fizeram se desviar do problema que discutiam. — Você ainda faz aconselhamento com Holiday? Ele franziu a testa. — Não faço aconselhamento porque me sinta confuso nem nada. Só conversamos... Como vocês duas fazem.
— Eu não disse como se fosse uma coisa ruim. Só não sabia que você se encontrava com ela regularmente. — Faço isso desde que cheguei ao acampamento. — Eu sabia que você tinha sessões no começo, mas não achava que ainda fizesse. — Passei um tempo sem fazer. Mas desde que voltei... comecei a vê-la de novo. Antes que pudesse evitar, ela fez a pergunta: — Você fala sobre mim? — Um pouco — ele admitiu, parecendo culpado. Ela quase pediu detalhes, mas o bom senso a deteve. Não precisava saber. Especialmente, quando se tratava dos sentimentos dele por ela. Quanto menos ela soubesse, ou pensasse na sua declaração de amor, mais fácil seria. O olhar de Kylie, como que por vontade própria, baixou até o peito nu de Derek. Recriminando-se, ela se levantou do sofá num salto. — Acho que vou falar com Holiday agora sobre toda essa coisa de ser bruxa. — Vai comentar sobre a visão? Ela pensou por um instante na pergunta, mas seu coração dizia que não. A mensagem veio com tanta certeza que ela se perguntou se não seria um conselho divino. — Ainda não. Se eu não conseguir nada num dia ou dois, acho que é melhor eu comentar. Ele assentiu. — Mais tarde vou ver o que eu consigo descobrir. — Ele se levantou. — Vamos. Os raios do sol através da janela bateram em cheio no peito dele, fazendo sua pele nua ficar ainda mais dourada. — Tudo bem — ela gaguejou. — Você não precisa... se demorar... A decepção faiscou nos olhos verdes de Derek.
— Preciso sim. Sou a sua sombra até o café da manhã. Ah, mas que ótimo! O olhar dela passeou novamente pelo interior da camisa desabotoada de Derek. Ela teria que olhar, ou tentar não olhar, para o peito dele a manhã inteira? — Então pelo menos abotoe a camisa. — As palavras saíram antes que ela percebesse a impressão que dariam. A decepção nos olhos dele se desvaneceu e um brilho sensual a substituiu, destacando as raias douradas em suas íris, que ela tanto admirava. — Por quê? — ele perguntou. — Incomoda você? Ela olhou para ele. — Não se atreva. — Então, para ser bem clara, ela sacudiu o dedo mindinho para ele. — Eu posso ter poderes que você não vai querer conhecer. E como eu não sei como usá-los, realmente posso fazer um estrago e tanto com uma pessoa. Por acidente, é claro. Ele levantou as mãos, mostrando completa submissão. — Não vou me atrever. Juro. — Mas o sorriso sexy nos seus lábios permaneceu enquanto ele abotoava a camisa. Que maravilha, ela pensou. Ele provavelmente tinha lido as emoções dela e presumido que ele ainda a atraía. O que era verdade, mas não do jeito que ele pensava. Tudo bem, era do jeito que ele pensava, mas não significava nada. Ou pelo menos ela estava tentando se convencer disso enquanto saía pela porta da frente. Derek seguiu logo atrás dela. Quando os dois passaram, as duas colegas de alojamento de Kylie ainda trocavam insultos. Kylie nem olhou para trás. Se elas queriam estripar uma a outra, não deveriam mais perder tempo e fazer isso logo, não é? — Não entre em pânico — Holiday disse depois que Kylie entrou na cabana, apontou para a própria testa e explicou que ela podia ter feito magia e transformado Socks novamente num gatinho. — O pânico não ajuda em nada — a fae continuou, embora não despregasse os olhos do padrão de Kylie.
Podia não ajudar em nada, mas Kylie podia ver o pânico nos olhos de Holiday. Bem, talvez fosse mais confusão do que pânico propriamente. Sem dúvida Kylie tinha no rosto a mesma expressão. Embora no caso dela fosse pânico de fato. E não tanto porque tinha se tornado uma bruxa, mas sim por ver Holiday e as imagens da visão que ainda eram vívidas em sua mente. Sobre a visão ela não precisava contar. — Certo, então conte exatamente o que aconteceu — disse Holiday. — Foi como eu disse. — Kylie se sentou na cadeira em frente à escrivaninha de Holiday. — Miranda estava tentando transformar Socks num gato novamente, entoando encantamentos e tal, mas sem conseguir muita coisa. Eu estava preocupada com Socks; ele não queria mais ficar lá. Então apontei meu dedo mindinho para ele e disse algo como “Por que você simplesmente não diz ‘Volte a ser um gato’?”, e então aconteceu. Holiday balançou a cabeça, como se entendesse, e continuou a observar o padrão de Kylie, como se esperasse que ele se modificasse a qualquer momento. — Eu sou mesmo uma bruxa? A fae franziu a testa. — Sim. Mas... ontem você era humana e antes disso tinha... um padrão que ninguém conseguiu reconhecer. — Então você acha que o padrão de bruxa vai mudar? Holiday pareceu pedir desculpas com os olhos antes mesmo de responder. — Eu não tenho certeza, mas... é bem provável que você seja uma bruxa. Quer dizer, se você realmente tiver poderes. — Mas os poderes podem desaparecer também. — Kylie suspirou. — Mas... se você tem poderes, obviamente também tem DNA de bruxa. Ao contrário do padrão, o DNA é permanente — disse Holiday, embora sem muita convicção. — No entanto, as bruxas não correm na velocidade em que você corre, nem têm uma audição mais sensível. A maioria também não tem dons de cura como você possui. E muito poucas são capazes de ter sonhos lúcidos. — Agora Holiday estava mais pensando alto do que falando com Kylie. — É claro que tudo isso pode ter relação com o fato de você ser uma protetora. Ou pode ser também porque você é uma híbrida. Alguns híbridos podem ter... — E quanto a falar com fantasmas? As bruxas são capazes disso? — Kylie perguntou. — Algumas, mas não todas. — Holiday coçou o queixo, como se estivesse intrigada. — Mas o que é realmente estranho é que você parece ser totalmente bruxa agora. Mas aposto que o fato de você ser uma protetora pode ter... afetado isso. Holiday se reclinou na cadeira, como se estivesse perplexa. — Você já tentou descobrir se é capaz de fazer mais alguma coisa? — Como o quê? — Kylie perguntou. — Magia? — Não — respondeu Kylie. — E se eu causar algum tipo de estrago? Como Miranda. Eu poderia transformar alguém num canguru ou até em algo pior. — Duvido que fizesse isso. Por que você não tenta simplesmente mudar algo de lugar? — Holiday empurrou um peso de papel vermelho de couro, em forma de coração, para a ponta da escrivaninha. — Não sei... — Kylie mordeu o lábio. — É assustador demais. — Nem tanto. Simplesmente tente. — Ela fez uma careta. — E esteja preparada para se desviar, se preciso. — Ah, isso faz com que eu me sinta muito melhor! Holiday deu uma risadinha. — Tente. Kylie respirou fundo, então apontou o mindinho para o coração vermelho e disse: — Mexa-se! Nada aconteceu. Kylie expirou e riu.
— Viu? Não sou uma bruxa. Então o peso de papel começou a tremer... ou pulsar. Pelo menos era o que parecia. Batia, bombeava, como um coração de verdade. — Uau! — exclamou Kylie. Ou a exclamação ecoou pelo cômodo ou Holiday deixou escapar a mesma expressão de surpresa. — Fui eu que fiz isso? Holiday não respondeu; ela estava ocupada demais observando o coração pulsante. Então a coisa flutuou e cruzou a sala como uma flecha. — Desvie! — Holiday gritou. Kylie se abaixou justamente quando o peso passou zunindo. Infelizmente, Burnett estava entrando na sala nesse mesmo instante. O coração o atingiu em cheio.
 
O peso de papel em forma de coração atingiu Burnett no peito. Chocado, ele tentou capturá-lo, mas não conseguiu. O peso se chocou contra o seu tronco musculoso e retrocedeu com o impacto. Parou no meio da sala, flutuando no ar como se estivesse cheio de gás hélio, e então disparou para a frente, tendo novamente Burnett como alvo. E, como da primeira vez, acertou na mosca. Mas esse golpe foi muito... muito pior. Direto na virilha. Ou, como diria Della, “suas bolas tomaram um direto na cara”. — Mas que diabos?! — ele rosnou, curvando-se de dor. O coração voltou a se mover, e Burnett pegou o peso cheio de areia no ar e apertou-o até que ele estourou. Infelizmente, assim que a areia foi arremessada para fora, começou a se reagrupar em forma de coração novamente e conseguiu pairar no ar. — Miranda está aqui? — Burnett rosnou, ainda curvado. Kylie, percebendo que a bruxa encrencada que ele procurava era ela, levantou a mão e disse: — Pare. — Quando nada aconteceu, ela se lembrou de estender o dedo mindinho. — Pare! A areia caiu no chão e se espalhou como... bem, areia. Holiday sentou-se em sua cadeira, parecendo atordoada demais para falar. Burnett, a mão ainda pressionada contra as coxas, endireitou o corpo. — Caramba! — Holiday murmurou, finalmente. — Caramba! — Burnett repetiu. Kylie desviou os olhos do rosto chocado de Holiday e olhou para o vampiro com o rosto ainda contorcido de dor. Kylie pensou que sua explosão era por causa da dor, mas não. Ele olhava para a testa dela. — Interessante — disse Holiday. — Estranho — Burnett respondeu, sem tirar os olhos da testa de Kylie. — Uma beleza! — murmurou Kylie. Suas expressões aturdidas eram um prenúncio do que estava por vir no café da manhã. Kylie protagonizaria o show de horrores da hora da refeição. — Você é uma bruxa — exclamou Burnett com descrença. — Parece que sim — Holiday concordou. — Não. Eu sou um camaleão. — E cada vez que Kylie dizia aquilo, ela acreditava um pouco mais. Não importava que ela pudesse reverter feitiços e fazer animais recuperarem a sua forma normal, ou que pudesse fazer um peso de papel em forma de coração voar pelos ares e golpear um vampiro. Seu pai tinha lhe dito que ela era um camaleão e ela acreditava nele. — Talvez ser camaleão signifique outra coisa — Holiday disse. — Talvez tenha algo a ver com ser um protetor. Se for assim, todos os outros dons podem resultar disso também. — O telefone da líder do acampamento tocou. Como se precisasse de uma distração, ela olhou para o identificador de chamadas. Levantando o olhar, encontrou o de Kylie com uma expressão de solidariedade. — O que é agora? — Kylie berrou. — É... Tom Galen, o seu padrasto. Que adorável!, Kylie pensou. Um telefonema tão cedo não poderia ser nada de bom. Então, qual seria o novo desastre que ele queria adicionar ao seu dia? — Está tudo bem? — Derek irrompeu pela porta do escritório. — Ouvi um tumulto — murmurou. — Não — disse Kylie um pouco antes de Holiday atender à chamada. — Neste momento em particular, eu não consigo pensar em uma única coisa que esteja bem! Depois do almoço, Kylie e Miranda saíram do refeitório para voltar para a cabana. Della tinha ido a algum tipo de reunião com Burnett. Depois da maneira terrível como começara o dia, Kylie havia implorado para ficar de fora da Hora do Encontro. Além disso, ela iria à cachoeira com Holiday e Burnett, logo depois que este conversasse com Della. — Elas gostam de você. Só estão surpresas — disse Miranda, pedindo desculpas pelo grupo de bruxas, que não tinha feito nada a não ser encarar a testa de Kylie durante todo o café da manhã. — Quer dizer, todas nós pensamos que você seria um vampiro ou um lobisomem. Algumas pessoas apostaram que você era um metamorfo, mas ninguém nunca pensou que iria passar a ser uma bruxa. — Vocês realmente apostaram sobre o que eu seria? — Kylie perguntou. — Foram alguns bruxos que começaram. — Ela franziu o cenho. — Desculpe. Se isso faz você se sentir melhor, eu perdi cinco pratas. Kylie balançou a cabeça com descrença. Não que essa reação tenha sido apenas dos wiccanos. Todo o acampamento tinha ignorado seus ovos com bacon e só tinha olhos para observar o recém-descoberto padrão cerebral de Kylie. Ou pelo menos tinham feito isso até Della, que Deus abençoasse seu coração frio, tentasse ajudar. A vampira tinha saltado quase dois metros no ar, caindo com um grande baque sobre a mesa, e seus tênis pretos aterrissaram sobre as bandejas de comida de vários campistas. Então, preocupada com a amiga, Della anunciou que Kylie tinha acabado de soltar uma praga e qualquer um que ficasse encarando a sua testa seria transformado num ganso flatulento. Era, naturalmente, uma mentira deslavada. Desde que Kylie tinha feito o peso de papel voar pelos ares, no escritório de Holiday, ela estava superconsciente de que não devia mexer seu dedo mindinho. Não era uma tarefa fácil quando se tentava comer ovos fritos moles. No entanto, os seus dedos mindinhos ficariam imóveis até que ela descobrisse por que estava com padrão de bruxa. Kylie parou na frente do escritório e pensou em entrar e perguntar a Holiday se ela já havia entrado em contato com seu padrasto. Os dois tinham deixado mensagens no celular, mas não tinham conseguido se falar. Kylie também queria verificar se Burnett tinha tido notícias de Malcolm Summers, seu avô verdadeiro. Ele tinha dito a Burnett que estaria no acampamento no dia seguinte, mas quais eram as chances de que isso acontecesse agora, se seu telefone estava desligado e ele tinha sumido da face da Terra? Kylie suspeitava que era por causa da ligação de Burnett com a UPF. Então, mais uma vez, talvez ele não se importasse com ela. Ele mal conhecia o próprio filho, pai de Kylie. Esse pensamento a incomodou até que ela percebeu que não fazia sentido. Se fosse verdade, por que ele e a tia tinham ido ao acampamento fingindo ser pais adotivos de seu pai? O fato de terem se disfarçado de humanos reforçava a hipótese de que o avô não confiava em alguém de Shadow Falls. E esse alguém tinha de ser Burnett, por causa de suas conexões com a UPF. — Você não ama Della? — Miranda perguntou. — Ela é um pé no saco, mas quando se trata de nos proteger vai até as últimas consequências. — A bruxinha riu. — Aposto que ela pisou numas seis bandejas de café da manhã hoje no refeitório. — Eu sei. Ela é demais. Mesmo quando seus planos não dão muito certo. — Fala sério... Um ganso flatulento? Onde ela arranja essas ideias? — Não sei — murmurou Kylie. Pra dizer a verdade, ela nem sabia direito o que significava “flatulento”. De qualquer maneira, sentindo-se sobrecarregada, Kylie decidiu considerar aquela uma experiência de aprendizado. Ela não só tinha uma palavra para olhar no dicionário, mas tinha aprendido outra importante lição: que ser encarada por todo mundo não era pior do que ver as pessoas se recusando a olhar para você. Não, nem uma única pessoa tinha arriscado olhar para ela depois do aviso de Della. A flatulência devia ser mesmo um horror. — Isso é demais! Você é uma bruxa como eu! — Miranda esfregou as mãos, eufórica. Kylie gostaria de ter o mesmo otimismo que a amiga.
— Eu ainda não acredito. E não me importo que até Holiday pareça acreditar — Kylie disse e depois acrescentou: — Você sabe que isso pode mudar, não é? Eu era completamente humana e agora não sou mais. — E o pai dela tinha dito que ela era um camaleão. Kylie acreditava nele. — Mas essa é a primeira vez que você está mostrando um padrão sobrenatural de verdade, por isso provavelmente ele é real. — A bruxinha aproveitou para fazer sua dancinha da vitória, balançando os quadris. — Está empolgada com a lua? Para agradar Miranda, Kylie abriu um sorriso amarelo, mas o comentário sobre a lua ficou se repetindo na cabeça dela, fazendo-a se lembrar de um certo lobisomem. — Eu queria saber por que Lucas não estava no refeitório para o café da manhã — ela disse em voz alta. Não que estivesse entusiasmada para contar a ele as novidades. — Eu não sei — disse Miranda, ainda sorrindo. Mas em seguida seu sorriso esmoreceu. — Você está preocupada com a possibilidade de ele ficar desapontado por você não ser um lobisomem? — Não — respondeu Kylie, sem ter certeza de que estava falando toda a verdade. Ela não estava preocupada que ele ficasse desapontado; estava preocupada que ele ficasse arrasado. Seu coração ficou oprimido e ela sentiu um nó na garganta. — Existe alguma lenda sobre a união entre lobisomens e bruxas? — Kylie perguntou. — Não que eu saiba — disse Miranda. — Quer dizer, os lobisomens não costumam gostar de raça nenhuma, a não ser a deles. Mas não têm tanta antipatia pelas bruxas quanto têm pelos vampiros. Kylie supôs que ela deveria agradecer por não ter se transformado num vampiro. Mais uma vez, ela teve o pressentimento de que Lucas e sua família e alcateia só ficariam satisfeitos se ela se transformasse em lobisomem. Será que o relacionamento entre eles sobreviveria ao preconceito?
— Você quer ir para a cabana treinar alguns feitiços? — Ah, não! Não quero causar nenhum desastre! — Você não vai causar — garantiu Miranda. — Eu estarei com você. Não vou deixar que faça nenhuma besteira. Certo, como se você nunca tivesse feito. As palavras se projetaram do cérebro de Kylie e aterrissaram na ponta da sua língua, mas ela conseguiu engoli-las. O fato de estar chateada não lhe dava o direito de chatear ninguém. — Você só está nervosa. Precisa confiar em mim. — O sorriso brilhante de Miranda se alargou um pouco mais. — Nós, bruxas, temos que nos unir. — Desculpe — disse Kylie. — Eu já consegui golpear Burnett no saco com um peso de papel. Então acho que vou tirar o resto do dia de folga. — Sério? Você fez isso? — Miranda começou a rir, fazendo com que um grupo de lobisomens que passava por elas as olhasse com um ar de interrogação. Kylie localizou o amigo de Lucas e o chamou: — Will? O adolescente de cabelos e olhos castanhos se virou com um ar contrariado. Será que era falta de educação chamar um lobisomem pelo primeiro nome? Ou a expressão dele devia-se mais a razões pessoais? Será que todos os membros da alcateia de Lucas olhariam para ela com frieza? — Que é? — Seu tom expressava o mesmo desagrado. Kylie afastou-se um pouco de Miranda. Na frente de Will, ela tentou não deixar que o aborrecimento do lobisomem a intimidasse. — Lucas não estava no café da manhã. Eu queria saber se você sabe onde ele está. Will relanceou os olhos para a floresta, como se quisesse ganhar tempo. Embora Kylie não pudesse ler mentes, era como se ele estivesse tentando pensar numa desculpa. Por quê? — Algum problema? — ela perguntou.
Ele fez um gesto para que os outros lobisomens continuassem andando. Então esperou até que não pudessem mais ouvi-lo para começar a falar. Aquilo devia significar que algo estava errado, não é? — Lucas foi convocado pelo conselho — Will finalmente explicou. — Isso é ruim? Ele está em apuros? — Eu... não sei. Isso é entre ele e o conselho. A notícia deixou Kylie preocupada. — Você sabe quando ele volta? — Não. — Will arrastou o pé pelo chão pedregoso, depois olhou para o bosque outra vez antes de fitar Kylie. — Lamento — acrescentou, e algo no tom em que falou deu a Kylie a impressão de que ele estava sendo sincero; mas por quê? Pelo que ele lamentava? — O que você está me escondendo? — Ela deu um passo na direção dele, sentindo o coração bater forte dentro do peito. Sem aviso, o olhar de Kylie se desviou para a floresta e ela sentiu outra vez. Como se as árvores chamassem seu nome. Mas como estava preocupada com Lucas, ela se concentrou no problema diante dela e em Will. — Tem a ver comigo? O aborrecimento de Will ficou ainda mais evidente quando sua expressão se tornou carregada. — Eu não sei. Tenho que ir. — Dizendo isso ele se afastou. Ela ficou observando silenciosamente enquanto ele ia embora e teve o pressentimento de que havia algo por trás daquilo tudo. Will desapareceu na trilha. O pensamento de Kylie continuou em Lucas, mas seu olhar se desviou para a floresta, onde as árvores balançavam preguiçosamente com a brisa suave. Era um sentimento estranho, como estar com muita sede diante de um lago congelado. Esse sentimento, o chamado, era até mais forte do que o chamado da cachoeira. O que, afinal, estava se passando?
Miranda limpou a garganta e Kylie olhou para a colega de alojamento. — Você está bem? — Miranda perguntou e se aproximou da amiga. Kylie revirou os olhos. — Por que todo mundo fica me perguntando isso se é tão óbvio que não estou? — Provavelmente porque a gente tem esperança de que você esteja — Miranda respondeu, dando um tapinha no ombro de Kylie e sorrindo, solidária. — Não se preocupe. Se Lucas gostar mesmo de você, tudo vai se arranjar. Foi assim com Perry e eu. Kylie respirou fundo. Depois soltou o ar dos pulmões. Ela recomeçou a andar, lutando contra a vontade de se embrenhar na floresta e descobrir quem estava lá e por que queria chamar a atenção dela tão desesperadamente. Elas andaram por mais cinco minutos sem falar nada. Kylie se concentrou no som rítmico dos próprios passos, o que lhe dava uma sensação de calma. Mas um grito, um grito de puro pavor, foi suficiente para mandar sua calma pelos ares. Kylie parou tão rápido que quase tropeçou e teve que agarrar o braço de Miranda para se equilibrar. O grito tinha vindo justamente do lugar pelo qual ela se sentia atraída — o bosque. As profundezas do bosque. — O que foi? — Miranda perguntou. Kylie olhou para ela. — Você não ouviu? Miranda negou com a cabeça. — Ouviu o quê? Kylie deu um passo ou dois na direção da floresta e tentou identificar a voz de quem havia gritado. O som estridente dizia a Kylie que era uma mulher, mas ela não percebeu nenhuma familiaridade. Nenhuma mesmo.
Não importava. Ela sentiu o mesmo borbulhar em seu sangue, algo que sempre acontecia quando seu lado protetora entrava em ação. Com o ar preso na garganta, tudo dentro dela dizia que alguém precisava de ajuda. Ela não teve alternativa a não ser atender ao pedido de socorro. Disparou para a floresta. — Kylie! — gritou Miranda. — Não corra! Um pouco antes de entrar na floresta, Kylie gritou para que Miranda fosse buscar ajuda. E rápido.
 
Kylie correu como o vento. Nada a faria diminuir o ritmo. Nada poderia detê-la. Nem a mata fechada. Nem a dor nas pernas e nos braços. Nem mesmo a cerca de arame farpado de mais de dois metros que delimitava o terreno de Shadow Falls. Não ouse sair do acampamento. Ela ouviu o aviso de Burnett na sua cabeça, mas ignorou-o. Seguiu os gritos. Kylie ignorou até o medo de que estivesse avançando a toda velocidade para uma armadilha preparada por Mario e seus amigos. Não importava. Ela era uma protetora. Tinha que dar proteção. Depois de vários minutos correndo à base de adrenalina pura, arquejante, ela sentiu que o grito e a pessoa que havia gritado estavam ficando mais próximos. Então ela viu. Não quem havia gritado. Viu a neblina — uma nuvem espessa e baixa que se movia sob os arbustos, como se quisesse engolir o chão. Ela se movia de um jeito que não parecia um fenômeno da Mãe Natureza, mas de outra força. Um poder sobrenatural. Um poder que se deslocava a uma velocidade incrível. A lógica lhe dizia para correr dali, mas os gritos estavam cada vez mais altos e seus instintos faziam seus pés continuarem a correr na direção da neblina. Um movimento à sua esquerda atraiu seu olhar. Uma garota corria para escapar da neblina espessa. Seus longos cabelos pretos esvoaçavam atrás dela, lembrando Kylie da imagem da Medusa que ela vira num livro de mitologia grega. Ainda a uma certa distância, o olhar da garota encontrou o de Kylie. O alívio brilhou em seus olhos. A dúvida cintilou nos de Kylie.
Aquilo era real? A garota era real? Ou seria outra visão? A garota estava de fato correndo para salvar a própria vida ou estava fugindo da morte que já a reivindicava? As perguntas se sucediam na mente de Kylie, enquanto seus pés golpeavam a terra. Mais rápido!, ela disse a si mesma quando viu a neblina quase nos calcanhares da garota. — Corra mais rápido! — Kylie gritou. Estivesse a estranha viva ou morta, ajudá-la era essencial para Kylie. O som dos passos rápidos da garota ecoou através das árvores, enquanto ela aumentava o ritmo da corrida para escapar da neblina. Então, como se acontecesse em câmera lenta, a garota tropeçou, perdeu o ritmo e estatelou-se no chão. Com tudo. O baque seco da sua queda ricocheteou nas árvores. Kylie assistiu horrorizada quando a neblina se aproximou. Ela correu mais rápido, sentindo que precisava chegar antes da estranha neblina até onde a garota estava. O sangue borbulhando lhe deu mais força. Parando abruptamente diante do corpo inerte, Kylie pegou a garota nos braços. Ela não pesava quase nada. Quando Kylie olhou para cima, a neblina estava quase aos seus pés. Movida pelo instinto ou talvez pelo pânico, Kylie correu. Seus pés golpeavam a vegetação rasteira. Ela não tinha se afastado nem três metros quando teve novamente a sensação de ser atraída. Venha até nós. Venha até nós. O vento, as árvores, tudo sussurrava a mesma mensagem. Kylie parou de correr. Ofegante, ela olhou em volta. — O que vocês querem? Quem são vocês? O coração martelava sob as costelas. Aninhando a garota no colo, Kylie olhou para a neblina. A espessa nuvem acinzentada estava a uns seis metros de distância, pulsando como um coração. O ar ao redor dela rodopiava como se estivesse respirando.
Foi nesse momento que Kylie pareceu não conseguir mais respirar, porque... porque, pelo amor de Deus, nunca tinha visto uma neblina que respirasse! A neblina supostamente não era algo que tivesse vida. Antes que Kylie pudesse reagir, a nuvem mudou de forma e se separou em duas partes. Embora Kylie não sentisse nenhuma presença maligna, ela não podia mais negar o medo que lhe corroía os ossos nem a falta de ar que lhe afligia. Parte de seus instintos gritava para que ela corresse, outra parte gritava para ela ficar. A neblina recuou alguns metros como se sentisse o terror de Kylie. Então ela esperou. Observou. Ouviu. Ouviu seu nome sendo chamado. Kylie. Kylie. Ouviu as palavras que vinham com o vento — sussurradas suavemente como a brisa que agitava as folhas. Não queremos lhe fazer nenhum mal. — Quem são vocês? — Kylie gritou. A garota em seus braços se mexeu. O corpo que parecia sem vida agora recobrava os sentidos. Ao olhar para baixo, ela viu que sangue escorria da testa da garota. A necessidade de ajudá-la pulsava nas veias de Kylie. Ela olhou para cima, na direção da neblina. As duas massas cinzentas tinham assumido a forma humana. Não vá. O impulso que Kylie sentia de colocar a garota em segurança aumentou dentro dela. Enfrentar o desconhecido sozinha era uma coisa. Fazer isso com uma garota sangrando em seus braços era outra bem diferente. — Eu preciso — Kylie respondeu, virando-se para partir. Ela deu apenas alguns passos. Fique.
Havia algo naquela voz, uma voz masculina. Ela olhou por sobre o ombro; o ar preso na garganta. Seria seu avô? Era ele, não era? Então Kylie viu uma mulher e reconheceu a irmã de sua avó. Lágrimas umedeceram os olhos de Kylie. Ela começou a voltar, mas a garota em seus braços gritou. Kylie olhou para ela. Seus olhos estavam abertos. As íris azulescuras fitaram Kylie, perplexas, e um lampejo de reconhecimento brilhou dentro dela. Mas Kylie não tinha tempo para refletir. O sangramento no rosto da garota tinha aumentado. O impulso de Kylie para levá-la a um lugar seguro fazia seu sangue borbulhar. Qual seria a gravidade daquele ferimento? — Me solta! — ordenou a garota num grunhido baixo, tentando se libertar dos braços de Kylie. — Me solta! — ela gritou novamente, lutando agora para se libertar. A força dela indicava que não era humana. Sem os poderes de proteção de Kylie, a garota facilmente se desvencilharia, mas não agora. — Só um minuto. Kylie disparou pela floresta — abraçada à estranha de olhos azuis que se contorcia em seus braços. Desculpe. Kylie proferiu a palavra mentalmente e rezou para que ela fosse ouvida por aqueles que ela deixara. Ela não tinha outra escolha senão ir embora. Sua necessidade de proteger era mais forte do que a sua própria busca. Agarrada à estranha que gritava, Kylie pulou a cerca de arame farpado. Quando entrou na propriedade de Shadow Falls, o silêncio no bosque parecia mais alto do que os protestos da garota. De repente, Kylie sentiu uma, duas e então três lufadas de ar passando por ela. Então Burnett, Della e um grande pássaro — Perry — apareceram ao seu lado, todos os três acompanhando o ritmo de seus passos. Kylie parou de correr. Eles fizeram o mesmo. Fagulhas minúsculas apareceram ao lado de Perry quando ele se metamorfoseou novamente em ser humano.
Os três olharam para Kylie, ou melhor, para a garota que gritava em seus braços. — Quem é ela? — perguntou Burnett. — Não sei. — A respiração de Kylie estava ofegante, seus pensamentos ainda no avô e na tia-avó. — Ela estava correndo de... — Ela é um lobisomem — disse Della, interrompendo-a. — Eu senti o cheiro assim que chegamos. A garota parou de lutar para se libertar de Kylie. Sua voz se aprofundou quando encontrou os olhos dela. — Me solte agora! Ou vai se arrepender até seu último suspiro! — Ela levantou a cabeça e fitou Della e Burnett. — Todos vocês vão se arrepender! Burnett falou diretamente com a menina nos braços de Kylie. — Me dê a sua palavra de que não vai correr. Ela o encarou. — Se fugir, eu pego você e vou ficar realmente irritado. — Só se você for muito rápido — a garota revidou. — Ah, mas ele é! — respondeu Perry, se intrometendo na conversa. — Quando tinha 15 anos, perseguiu um metamorfo na forma de antílope e conseguiu chutar o traseiro dele. O que sobrou do antílope não deu nem para fazer um tapete. — Tudo bem — refletiu a estranha. — Não vou correr. Della se aproximou e olhou para Perry. — Você conhecia Burnett quando ele tinha 15 anos e perseguia antílopes? Soltando a garota, o olhar de Kylie cruzou com o do tal “chutador de traseiros de antílopes”. A expressão dele a preparava para o que viria em seguida. — Eu pensei que tinha deixado claro que não era para você entrar no bosque. Kylie assentiu, mas ela se recusava a ser repreendida por ter feito o que, para ela, era tão natural quanto respirar.
— Alguém estava em perigo. — Você se colocou em perigo. — O olhar dele se voltou para a garota. — Do que você estava correndo? — Da neblina. — A garota limpou com a mão o sangue que escorria de sua testa. — Ela estava me perseguindo. — A neblina estava te perseguindo? — Della indagou. — Você fumou alguma coisa? — Ela está dizendo a verdade. — Kylie quase contou a eles sobre o avô, mas algo lhe disse que era melhor pensar primeiro... e falar depois. — Quem é você? — Burnett perguntou à garota. — Eu é que pergunto. Quem é você? — a garota retrucou. — Com esses modos, ela é definitivamente um lobisomem — murmurou Della. Perry riu, depois acenou na direção da garota. — Você está sangrando. É perigoso sangrar na frente de vampiros. — Não se preocupe — comentou Della. — Sangue de lobisomem tem um gosto horrível. A garota lançou a Della um olhar gelado. Kylie teve aquele pressentimento novamente, de que algo com relação à estranha lhe parecia familiar. Burnett falou em seguida. — Eu sou Burnett James, líder do acampamento Shadow Falls, e você invadiu a nossa propriedade. — Você é... Burnett? — A garota mostrou pela primeira vez um pouco de insegurança. — Ela não invadiu — Kylie esclareceu. — Fui eu que pulei a cerca de Shadow Falls com ela nos braços. A loba fitou Kylie com um olhar de surpresa. — Não preciso que você me defenda. — Eu não a defendi. Não mesmo!
A postura corporal de Burnett enrijeceu, mas seu olhar de reprovação era para Kylie. — Você saiu dos limites de Shadow Falls? — Eu ouvi esta garota gritando. — A estranha que sangrava franziu a testa, tentando ler o padrão de Kylie. Será que ela ainda era uma bruxa? Ou seu padrão estaria passando por outra mutação estranha? — Você... — A garota balançou a cabeça. — Você é uma bruxa. Como pôde... Bem, isso respondeu à minha pergunta, pensou Kylie. A garota voltou os olhos azuis para Burnett. E nesse instante, Kylie descobriu quem ela era. A cor dos olhos, o jeito como inclinava a cabeça, até sua linguagem corporal era parecida. — Eu sou... — ... a irmã de Lucas — completou Kylie. — Isso mesmo. — A garota fitou Kylie novamente. — Sou Clara Parker. Quem é você? — Kylie Galen. A surpresa fez com que a garota arregalasse os olhos. — Mas você é uma bruxa? Eu pensei... — Ela fez uma pausa. — E você corre e tem a força de um lobisomem... ou de um vampiro. A última palavra soou como um insulto. Della grunhiu. Burnett franziu a testa. A frustração com relação a toda a história de ser bruxa irrompeu dentro de Kylie novamente. — Eu sou simplesmente uma obra não concluída. Me chame apenas de aberração de Shadow Falls. — Você não é uma aberração — murmurou Perry. — Eu sou a aberração da casa — ele disse com orgulho. Clara continuou a olhar para Kylie, e então disse. — Por que aquela neblina estava me perseguindo? Você fez aquilo com magia?
— Não, não fiz. Burnett concentrou-se em Clara. — A sua família está preocupada com você. Clara revirou os olhos. — Eles se preocupam demais. Eu disse a eles que estava vindo para cá. — Mas você já devia ter chegado há dois dias — repreendeu-a Burnett. — E, se pretende mesmo ficar em Shadow Falls, saiba que não gostamos de mudanças nos planos sem que passe pelos canais apropriados. Clara ergueu o queixo como se fosse dar a Burnett uma resposta malcriada. Lembrando-se de que se tratava da irmã de Lucas, Kylie interveio. — Tenho certeza de que ela vai corrigir isso. Lucas vai preencher os formulários. — Onde está o meu irmão? — Clara perguntou. — Foi convocado pelo conselho — respondeu Burnett. Kylie olhou para Burnett, imaginando se Lucas havia contado isso a ele. Se havia, por que não contara a ela? — Algum problema entre ele e o conselho? — Clara perguntou a Burnett. Kylie lembrou-se do comportamento estranho de Will quando Kylie lhe fez a mesma pergunta. — Não que eu saiba. — Burnett ficou em silêncio por alguns segundos e depois perguntou a Clara: — Você se machucou muito? — Foi só um arranhão — ela respondeu. — Ela desmaiou — Kylie revelou. — Não desmaiei! — discordou Clara, como se isso lhe fizesse parecer mais fraca. Kylie começou a voltar para a clareira. Todos a seguiram. Os sons da floresta voltaram ao normal, mas Kylie mal tinha notado. Sua mente remoía o que ela vira, quando olhou para trás pela última vez, e refletia se deveria contar alguma coisa a Burnett.
Relanceando os olhos por sobre o ombro, ela tentou ouvir com o coração para ver se ainda sentia o avô e a tia chamando. Será que ainda estariam lá? Ou tinham ido embora? A sensação não era tão forte como antes, mas ela ainda a sentia. — Perry — falou Burnett —, você e Della vão na frente e levem Clara ao escritório para falar com Holiday. A voz autoritária de Burnett ecoou nas árvores e causou outra onda de silêncio. — Kylie, quero um minuto com você. — Seu tom de voz não deixou nenhuma dúvida de que o minuto não seria nem um pouco agradável. Kylie parou de andar. Perry lhe lançou um olhar de pura solidariedade. — Ela só estava tentando ajudar — defendeu-a Perry. Della acrescentou: — E não aconteceu nada. Tudo está bem quando termina bem, não é mesmo? Você não pode ficar furioso se... — Estão dispensados — ordenou Burnett. Della grunhiu e Perry enviou a Kylie outro olhar de solidariedade. Ela adorava ambos por tentarem intervir, mas podia lidar com aquela situação. Pelo menos esperava que pudesse. — Vejo vocês daqui a pouco — despediu-se Kylie, quando Perry pareceu disposto a argumentar. Quando os três já estavam se afastando, Kylie encheu os pulmões com o ar perfumado da floresta. Burnett andava ao lado dela. Eles observaram os três seguindo para o acampamento. Clara olhou para trás, seu olhar expressando mais curiosidade do que preocupação. — Ela está encrencada? — a garota perguntou, a voz ficando mais baixa à medida que a distância entre eles aumentava. — Digamos que eu não gostaria de estar na pele dela agora — respondeu Perry. — E o seu traseiro lupino é a razão de ela estar encrencada — Della atacou.
— Eu não pedi para ela me ajudar — Clara rebateu. Kylie esperou até começar a falar com Burnett. — Eu não deveria se repreendida por fazer algo que é da minha natureza. — Você poderia ter se matado. Tudo poderia ser uma armadilha para atraí-la para longe de Shadow Falls. — Mas não era. Clara pensou que estava em perigo. Eu senti o medo dela e reagi. — Ela achou que estava em perigo? — ele perguntou, reparando no deslize de Kylie. — Você está dizendo que ela não estava em perigo? Quando Kylie fez uma pausa, Burnett continuou: — Exatamente do que vocês duas estavam correndo? A necessidade de dizer a verdade cresceu dentro de Kylie, mas outra necessidade — a de obter respostas — manteve-a em silêncio. — Eu já disse. Foi a neblina — Kylie respondeu, confiante de que ele não detectaria uma mentira em sua resposta. Suas palavras eram verdadeiras. Só não continham toda a verdade. — Você sentiu que ela era maligna? — Eu fiquei assustada — ela admitiu novamente, sentindo um calafrio percorrer a espinha. Não de medo, mas do frio que vinha dos mortos que estavam por perto. Ela olhou ao redor, tentando não deixar Burnett perceber que eles tinham companhia. O fantasma com a aparência de Holiday os espiava por detrás de uma árvore. — Mas...? — Burnett insistiu, sentindo que ela não tinha terminado de responder. — Eu não senti nada ruim. — Um fio de culpa se esgueirou pela mente de Kylie, mas, se ela contasse a Burnett que seu avô e sua tia estavam tentando vê-la sem a permissão dele, o que o vampiro diria?
— Estou tentando proteger você, mas isso fica impossível se não seguir as minhas regras. — Eu normalmente não desobedeço às suas regras. — O frio aumentou e ela desviou o olhar para o lugar onde vira o fantasma. Ele tinha desaparecido. Num segundo, a sósia de Holiday apareceu atrás de Burnett, olhando para ele como se o reconhecesse. Esse pensamento fez o medo crescer dentro dela. — Desobedeça a uma só das minhas regras e pode ser muito tarde para salvá-la. Kylie mordeu o lábio, lutando contra a sensação de frio. — Sinto muito. — Por aborrecer você, não por ter ajudado Clara. — Eu ouvi o grito e concluí que alguém precisava de ajuda. — Da próxima vez, antes de oferecer ajuda, me chame. — Vou tentar. — Ela estremeceu, apesar do esforço para disfarçar a sensação de frio. — Acho que você podia fazer um pouco mais do que simplesmente tentar — repreendeu-a Burnett, antes de olhar para cima, como se consultasse um poder superior. — Alguém quer me explicar por que eu quis fazer parte de Shadow Falls?... — Isso eu sei — Kylie respondeu, sentindo-se mal por deixá-lo tão nervoso. — Porque por baixo dessa couraça, você se importa conosco. E você ama outra pessoa que dirige este acampamento. — Kylie relanceou os olhos para o fantasma, perguntando-se se ela demonstraria alguma reação a essas palavras. Os olhos do fantasma se arregalaram. — Você está querendo dizer que...? Burnett franziu a testa, mas não tentou negar a afirmação da garota. Kylie teria ficado feliz ao ver que ele tinha chegado a um acordo com os seus sentimentos por Holiday se ela não tivesse um fantasma encarando-o como se... como se a confissão desse amor também a afetasse. O espírito olhou para Kylie. — Ele está apaixonado pela líder do acampamento?
O pânico embargava a sua voz. Será que o espírito sabia que se tratava de Holiday? — Qual o seu nome? — Kylie perguntou mentalmente. — Eu já disse — o fantasma respondeu. — Nunca vou me acostumar com isso — Burnett recomeçou a andar. — Se acostumar com o quê? — perguntou Kylie, com a atenção mais voltada para o espírito que andava ao lado dele e o fitava com surpresa. — Com os fantasmas — Burnett deixou escapar, como se lhe custasse dizer isso. Kylie parou e segurou-o pelo cotovelo. — Você pode senti-los? — ela perguntou. Geralmente, só quando o fantasma estava num pequeno cômodo, alguém que não tivesse o dom de se comunicar com eles podia senti-los. — Não — ele disse. Kylie ficou olhando para ele. — Tudo bem. Talvez eu possa sentir um pouco. Provavelmente, percebo mais o olhar que você e Holiday fazem quando eles estão por perto — ele confessou. Depois olhou em volta e disse: — Ela já se foi? — Como você sabe que era uma mulher? — Kylie perguntou, percebendo que o fantasma não estava mais presente. Ele cerrou os dentes. — Posso farejá-la — ele disse, como se estivesse confessando uma espécie de pecado. — É mesmo? Eu pensei que... Quer dizer, eu não achava que vampiros tivessem o dom de se comunicar com fantasmas. — Eu também não. — E ele não parecia nem um pouco feliz ao dizer isso. Começou a andar novamente, agora mais rápido, como se seus passos refletissem o seu estado de espírito. Kylie o acompanhou, mas não sem esforço. — Holiday sabe disso?
— Sabe o quê? — Ele nem mesmo olhou para Kylie ao falar. — Sobre essa sua capacidade de detectar fantasmas. — Ela estava curiosa para descobrir por que você consegue entrar na cachoeira e... — Não, ela não sabe — ele respondeu. — E não diga nada. Eu conto mais tarde. — A preocupação deixava sua expressão mais severa. Eles caminharam em silêncio por alguns minutos. — Eu não queria causar nenhuma confusão indo atrás de Clara. Só reagi aos meus instintos. — Às vezes nossos instintos podem estar distorcidos — ele acrescentou. Ela se perguntou se ele estaria se referindo não só aos instintos de proteção dela, mas também à sua própria capacidade de farejar e sentir fantasmas. — Vou tentar agir melhor da próxima vez. — Obrigado — ele disse, como se aceitasse o que ela oferecia. Ele continuou avançando. O vento agitava as árvores. — Pode me contar mais? — ele pediu. — Sobre os fantasmas? — Não. Sobre a neblina. Eu gostaria que você esquecesse os fantasmas. Kylie se lembrou da primeira vez em que percebeu que podia detectar a presença de fantasmas. Ela podia entender os sentimentos de Burnett. Às vezes ela ainda se esquecia de que tinha essa capacidade. — Você acha que tinha algo a ver com Mario? — ele perguntou. — Não. — Sem querer entrar em mais detalhes, Kylie tomou cuidado para não deixar escapar nada. Ela não tinha dúvida de que ele interrogaria Clara mais tarde. Mas Kylie estava quase certa de que Clara não tinha visto nada que pudesse revelar o seu segredo.
— Tem que ser Mario e sua corja novamente. — Burnett fechou os punhos enquanto caminhava. Kylie hesitou antes de dizer alguma coisa, sabendo que, se ela cometesse algum deslize e mentisse, ele saberia. Mas ela também não queria que Burnett se preocupasse demais. — Lembre-se de que eu disse que não senti nada maligno. — Tem que ser eles. — Ele a fitou nos olhos, mantendo o olhar firme. — Você não vai mais entrar na floresta, estando ou não com uma sombra. Entendeu? Ela assentiu. Ela tinha entendido, mas não disse que concordava. — Deve haver uma bruxa ou feiticeiro por trás disso. — Ele franziu as sobrancelhas. — Você não acha que essa neblina apareceu por acaso, acha? — Acho — Kylie respondeu. — Tem certeza? Lembre-se do outro incidente... — Foi diferente. — As bochechas dela arderam, quando ela se lembrou do incidente. Ambos diminuíram o ritmo. As árvores e a vegetação rasteira pareciam absorver o barulho dos passos. A mente de Kylie voltou a Clara e depois se desviou para o irmão da garota. — Posso perguntar uma coisa? — disse Kylie. — Se eu disser não, isso vai impedi-la de perguntar? — Provavelmente, não. — Ela debateu interiormente para decidir como formularia a pergunta. — Se tem algo a ver com Holiday e eu, vou me recusar a dizer qualquer coisa. Ela sorriu. — Não se preocupe, a camiseta do avesso de Holiday, outro dia, revelou o que eu queria saber sobre você e ela. O vampiro de olhar austero deu um meio sorriso, que logo esmoreceu. — Não é sobre fantasmas também, é?
— Não... É... Quando um conselho convoca alguém para uma reunião, isso significa encrenca? — Está falando de Lucas? Ela assentiu com a cabeça. Ele afastou um galho do caminho e o segurou, para ele não se chocar com Kylie. — Pode ser, mas não sempre. — Você sabe o que eles queriam com Lucas? — Ela também afastou um galho. — Não, não sei. — As palavras dele pareciam sinceras. — Está preocupado? — perguntou Kylie. Ele hesitou. — Estou. — Por quê? — Eu respeito a necessidade de Lucas de fazer parte do conselho para que possa sugerir soluções para os problemas entre os lobisomens e a UPF, mas não gostaria que o conselho exercesse tanta influência sobre ele. — Você não confia em Lucas? — Se eu não confiasse nele, ele não estaria em Shadow Falls. Meus problemas estão relacionados ao fato de que o conselho dos lobisomens e a UPF têm as suas diferenças. Em geral, a comunidade dos lobisomens não se mostra muito disposta a seguir as regras da UPF. Isso tem a ver com a mentalidade de alcateia. — Mas não é porque a UPF considera os lobos cidadãos de uma classe inferior? — Isso mudou — garantiu Burnett. — Mas eu tenho certeza de que ainda influencia muito o comportamento deles e posso assegurar que a UPF trata de maneira imparcial tudo o que está relacionado aos lobisomens. No entanto, existem preconceitos de ambos os lados.
Uma das razões que faz com que os lobisomens sejam vistos como párias é o fato de eles verem as outras espécies da mesma forma. — Então é a velha questão: quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha? — perguntou Kylie. — Acho que isso não importa. Quando eles chegaram à clareira, Burnett olhou para ela. — Vou levar você até a cabana. Se Della ou Miranda não estiverem lá, envio outra sombra para ficar com você. Holiday e eu logo iremos buscá-la para irmos à cachoeira. Mas até que eu investigue essa coisa toda, você não poderá deixar a cabana sem que eu saiba onde você está e com quem. Ela se encolheu um pouco com o tom de voz dele e com as novas ordens. Ele com certeza estava exagerando. — Você se importa se eu voltar para o escritório com você? Eu queria ver como Clara está. Ele hesitou, mas acabou concordando, e eles pegaram a trilha do escritório. Kylie deu uma última olhada na floresta e não sentiu nada. Será que eles tinham ido embora? Seus instintos diziam que sim. A pergunta era: será que voltariam? E se voltassem, será que ela encontraria um jeito de falar com eles? Antes que Kylie pusesse o pé na varanda, ouviu a voz de Lucas dentro da cabana. — Você não pode continuar fazendo isso! — ele exclamou. Kylie não tinha certeza se a sua audição estava mais sensível ou se ele estava falando muito alto. Considerando quão discretos eram os lobisomens, ela suspeitou de que se tratava da primeira opção. — O que eu fiz? — Clara perguntou. — Eu disse a eles que estava vindo pra cá. — Para onde mais você foi? Foi ver Jacob? — O tom de voz de Lucas ficou mais severo. — De todos que eu conheço, eu supus que você fosse o mais capaz de entender a minha necessidade de ver quem eu quero.
— Por mais estranho que pareça, acho que papai tem razão com respeito a isso. — Sério? Então quer dizer que você vai deixar que ele escolha a sua parceira? Não era sobre isso que vocês dois estavam discutindo quando você foi vê-lo? Sua afeição por Kylie? Kylie prendeu a respiração. Lucas tinha brigado com o pai por causa dela? — Estamos falando sobre você — Lucas respondeu. — Eu estou aqui, não é isso o que importa? — Clara perguntou. — Não é isso o que você quer? — O que eu quero é que você pare de fazer joguinhos, Clara. Estou tentando ajudar você. — Joguinhos? Ah, pelo amor de Deus, você é o que mais faz joguinhos aqui. Você faz joguinhos com o conselho, com papai, com a sua mãe e com a sua avó. Você faz joguinhos até com Fredericka. E aposto que está até fazendo joguinhos com essa sua bruxa também. — Eu não estou fazendo joguinhos e não tenho nenhuma bruxa. Kylie hesitou enquanto se aproximava da cabana e, pelo olhar que Burnett lhe lançou, ela supôs que ele também estava ouvindo a conversa. — Eu ainda posso levá-la para a cabana — ele ofereceu e, pelo seu tom de voz, Kylie percebeu que ele entendia quanto aquilo estava sendo difícil para ela. A preocupação dele era comovente, mas Kylie não gostou de saber que todo mundo conhecia os seus problemas. Ela preferia que sua vida particular não fosse de conhecimento geral. — Mais cedo ou mais tarde, eu tenho que enfrentá-lo — ela disse, desviando o olhar. Mas até mesmo ela tinha que admitir que preferia deixar aquilo para mais tarde. Mesmo assim, ela levantou os ombros e continuou andando, o estômago contraído ao pensar na resposta de Lucas quanto a ela ser uma bruxa.
 
Quando Kylie e Burnett subiram os degraus do escritório, ela de fato desejou não ter vindo. Atrás da porta, Clara continuava discutindo com o irmão. — Acho que pode ter sido ela que enviou a neblina atrás de mim. Fingiu que ia me resgatar, mas talvez a bruxa seja simplesmente... — Quem você acha que mandou a neblina atrás de você? — Lucas perguntou, com uma voz autoritária. — Kylie! — Clara respondeu, irritada. Kylie perdeu o fôlego. — Kylie não é uma bruxa — afirmou Lucas. Burnett abriu a porta do escritório. Clara e Lucas, de pé diante da entrada, viraram-se ao mesmo tempo. Kylie se preparou para a reação de Lucas. — Por ora, é o que sou. — Kylie decidiu colocar tudo em pratos limpos e se preocupar mais tarde com as consequências que isso acarretaria. — O que você é por ora? — Lucas perguntou, sem saber que Kylie tinha ouvido a conversa. — Uma bruxa — ela disse. Lucas olhou para a testa dela. Choque, confusão e desapontamento cintilaram em seus olhos. — O que... Bruxas não correm tão rápido. Elas não podem correr... como você corre. — Isso me confundiu também — disse Clara. — Foi quando eu percebi que ela poderia ter lançado um feitiço e, se lançou esse, poderia ter lançado outros.
— Eu não provoquei a neblina — defendeu-se Kylie. Será que Clara estava mesmo se voltando contra ela? — Então como você sabia onde me encontrar? E não minta novamente, dizendo que me ouviu gritar. Eu estava longe demais para que ouvisse meus gritos. A acusação irritou-a, mas ela tentou não levar a mal. Clara tinha suas razões para suspeitar dela. As bruxas não costumavam correr como um raio ou ter uma superaudição. O que só provava que Kylie não era uma bruxa. Mas se o avô e a tia podiam se transformar em neblina, isso significava que eles pertenciam à espécie wiccana? Pelo que sabia, os metamorfos não podiam se transformar em neblina, podiam? As dúvidas se sucediam na sua cabeça. — Kylie não é uma bruxa normal — disse Burnett, em sua defesa. Lucas olhou para Clara, para Burnett e depois para Kylie. Um pedido de desculpa substituiu a descrença em seus olhos. Ele continuou a olhar para ela, mas falou com a meia-irmã. — Se Kylie está dizendo que não foi ela, então não foi. — Você acredita nela e não em mim? Agora eu vejo por que papai está tão preocupado. — O tom de Clara era acusatório. — Como você quer ser um líder do nosso povo se defende uma bruxa em vez de ficar do lado de quem é do seu próprio sangue, da sua própria espécie? A expressão de Lucas endureceu. — Eu não acredito nela, simplesmente. Eu conheço os fatos. Kylie tem uma audição mais aguçada. Ela podia ter ouvido seus gritos há quilômetros de distância. — As bruxas não têm... — Como Burnett frisou, eu não sou uma bruxa normal. — Kylie olhou para Lucas. Por que ele não tinha dito simplesmente que acreditava nela? Será que a lealdade dos lobisomens à sua alcateia era tão grande que o fato de ele acreditar nela lhe tirava a credibilidade?
Sentindo o olhar de Clara, Kylie continuou. — Aparentemente, o meu cérebro tem o péssimo hábito de assumir padrões diferentes. — Então tem algo muito errado com o seu cérebro. — O tom de Clara fazia com que suas palavras parecessem ainda mais agressivas. Kylie esperou que Lucas repreendesse Clara. Quando o olhar do lobisomem encontrou o dela, ela pôde jurar que viu um pedido de desculpas em seus olhos, mas ele permaneceu em silêncio. E no mesmo instante ela soube por quê. Porque, se ele a defendesse, estaria colocando-a à frente de Clara. Como Kylie não era um lobisomem, ela não devia ser importante para Lucas. Ou pelo menos não tanto quanto seria se fosse da espécie dele. A constatação causou-lhe uma onda de dor que oprimiu o seu peito. Ela disse a si mesma que não precisava que ele a defendesse, que ela sabia se cuidar, então o que importava se ele ficasse em silêncio? — Não há nada de errado com o meu cérebro. — Kylie olhou Clara nos olhos e então relanceou o olhar para Lucas. Ela tinha falado a verdade. Sua mente estava bem. Era com o seu coração que ela se preocupava agora. Porque, embora não devesse se importar com a atitude de Lucas, na verdade ela se importava. Muito. — Por que você não ficou assustada com o que viu? — Clara perguntou. Sem saber o que Clara queria dizer com aquilo, Kylie fez uma pausa. Será que a garota tinha visto mais do que Kylie supunha? — Quem disse que eu não fiquei assustada? — Kylie é uma protetora — interveio Burnett. Os olhos de Clara se arregalaram. — Sério?! Pouco à vontade com o olhar de Clara sobre ela, Kylie de repente queria estar longe dali. — Eu tenho que ir. — Ela se virou para sair da sala.
Burnett pegou-a gentilmente pelo braço e, por mais estranho que parecesse, ela se sentiu confortada com o seu toque frio. Ele se inclinou na direção dela e sussurrou: — Não até que tenha uma sombra. — Eu estou aqui. — Holiday surgiu no vão da porta. — Fui dar uma volta para dar alguns minutinhos de privacidade a Lucas e à irmã. — Seus olhos verdes voltaram-se para Kylie como se ela tivesse percebido o crescente tumulto emocional dentro da garota. Holiday fez um gesto para que Kylie a seguisse. Burnett olhou para Holiday. — Fiquem por perto. Pode haver algum perigo por aí. — Exatamente o que aconteceu? — A preocupação encheu os olhos verdes de Holiday. — Nós nos falamos mais tarde — disse Burnett. — Eu preciso conversar com Clara enquanto tudo está fresco na memória dela. Kylie saiu do escritório, o coração partido com o comportamento de Lucas e um nó no estômago ao pensar no que Clara se lembraria. Uma olhada para Holiday foi suficiente para que ela se lembrasse da visão e de que podia significar que Holiday morreria. Talvez Clara estivesse certa. Talvez houvesse algo errado com o cérebro dela. Talvez o estresse tivesse finalmente deixado-a com um parafuso solto. Será que se transformar em bruxa era o primeiro sinal de insanidade? Ou era só uma consequência do fato de ela ser um camaleão? Kylie seguiu Holiday até o refeitório para comer um sanduíche. A hora do almoço já havia terminado e por isso elas tinham o lugar só para elas. Mal trocaram uma palavra e esse constrangimento entre elas não era natural. Quando saíram do refeitório, Kylie contemplou a floresta para ver se a sensação tinha desaparecido ou se ela ainda sentia o avô e a tia-avó chamando por ela. No entanto, não sentiu nada. Holiday colocou o braço sobre os ombros de Kylie. — Converse comigo.
Kylie absorveu a tranquilidade que o toque de Holiday lhe proporcionava e olhou para a amiga. — Eu detesto preconceitos! — desabafou Kylie, sabendo que só um dos seus problemas no momento, Lucas, ela poderia discutir com Holiday. Se contasse a ela quem vira no bosque mais cedo, a amiga diria a Burnett. E os dois a proibiriam de encontrá-los caso eles voltassem. Mas ela tinha que encontrá-los, não tinha? — Eu detesto também — concordou Holiday, como se soubesse exatamente a que preconceitos Kylie estava se referindo. — Se existe uma coisa que eu gostaria de mudar no mundo, pode apostar que é isso. Fechando a mão em punho, Kylie se lembrou da decepção que sentiu diante da postura de Lucas com relação a Clara. — Depois de ser alvo de preconceito, é de se pensar que a comunidade de lobisomens saberia quanto isso é injusto. — Eu acho... — Posso falar um minuto com Kylie? — A voz de Lucas veio de trás delas. Só o fato de ouvir sua voz grave causou outra onda de dor em Kylie. Ela não conseguia pensar em nada nem ninguém que pudesse impedi-la de defendê-lo se a situação fosse inversa. No entanto, ele... Kylie e Holiday se viraram para trás. A líder do acampamento olhou para Kylie, como se perguntasse se ela queria falar com Lucas. Kylie assentiu. — Bem, fiquem por perto. Holiday voltou para a varanda e se sentou numa das cadeiras de balanço. Lucas pegou a mão de Kylie e levou-a para trás da cabana do escritório. Ele não falou nada, nem ela. Ele parou ao lado de uma árvore, onde já tinham estado antes, e se virou para ela. Nem uma palavra saiu de seus lábios; ele só a fitou. O que ela não daria para ler os pensamentos dele? O que será que passava pela sua mente? Ele estava aborrecido porque ela era uma bruxa ou lamentava não tê-la defendido? Será que estava constatando que a relação entre eles não tinha nenhum futuro?
— Obrigado por resgatar a minha irmã — ele disse. — Eu lamento que ela seja tão pouco agradecida. Kylie assentiu. Ele se inclinou e pressionou a testa contra a dela. Tudo o que ela queria era fitar os olhos dele, tão azuis, e os longos cílios escuros que os sombreavam. — Eu magoei você. — A voz dele estava mais profunda do que antes. Ela não negou. Continuou olhando para o namorado e ele não piscou. A dor refletida em suas íris azuis fez com que ela segurasse a respiração. Ele fechou os olhos e respirou fundo antes de falar. — Já aconteceu de você saber qual é a coisa certa a fazer, mas não conseguir fazê-la? Ela recuou alguns centímetros. — Depende. Qual é a coisa certa a fazer? Ela fez a pergunta mesmo com medo de ouvir a resposta. Pois, lá no fundo, já a pressentia. Ela a pressentia desde que a avó de Lucas conversara com ela. Kylie e Lucas tinham que enfrentar muitos empecilhos para que o relacionamento entre eles desse certo. — Eu deveria deixá-la... — ele disse. — Devia colocar um ponto final neste... no que existe entre nós. Porque até que as coisas mudem, todos estarão contra nós. E, no entanto... — ele inclinou ligeiramente a cabeça e seus lábios encontraram os dela. Um torvelinho de emoções acompanhou o breve beijo. E, embora ela achasse que não havia mais espaço em seu peito para tantas emoções, sentiu que isso não era verdade. A dor que ele sentia era a mesma que oprimia o peito de Kylie. O medo que ele tinha era o mesmo que ela sentia. Ela fechou os olhos, lutando contra a dor que irradiava do seu coração e tentando apenas saborear o toque de Lucas. Ele se afastou e passou o polegar pelos lábios dela.
— E, no entanto, como posso deixá-la ir se você é o que me faz seguir em frente? Se a principal razão que me leva a querer mudar as coisas é você? O dedo de Lucas acariciou o queixo dela, um toque suave que quase trouxe lágrimas aos olhos de Kylie. — Estou te implorando. Por favor, tenha paciência comigo. Confie em mim quando digo que você tem um lugar especial aqui. — Ele pegou a mão dela e pousou-a sobre o seu peito. — Eu tenho que me comportar de uma certa maneira, do contrário isso acabará nos ouvidos do meu pai e do conselho, mas não é dessa maneira que eu me sinto. — Ele parou de falar por um momento. — Por favor, não desista de mim, Kylie Galen. Ela podia sentir o coração dele batendo. Podia senti-lo se partindo também, assim como o dela. — Eu não desisto tão fácil. Era verdade. Se desistisse, não estaria mais em Shadow Falls. Ele a envolveu em seus braços, apoiando-se na árvore, e encostou a bochecha na dela. Ficaram assim durante muito tempo. Sem se falarem. Sem fazer promessas. E Kylie se perguntou se seria porque ambos sabiam instintivamente que não poderiam cumprir essas promessas. Ele finalmente se afastou. — Eu preciso ir ajudar Clara a se instalar. Kylie afrouxou o abraço em volta da cintura dele. Embora não quisesse. Ela não queria devolvê-lo a Clara ou a Fredericka ou ao seu pai. Por mais egoísta que fosse, ela o queria só para ela. Ou talvez não fosse egoísmo. Talvez ela só não quisesse dividi-lo com pessoas que queriam separá-los. — Quer vir comigo? — ele perguntou. Clara ia adorar, pensou Kylie. Não. — Vou deixar vocês dois sozinhos por um tempo. — Obrigado — ele disse, como se de fato esperasse que ela recusasse o convite. Ele sorriu, mas sob aquele sorriso havia um toque de decepção. — Então você é uma bruxa. Eu nunca poderia adivinhar. — Eu sou uma bruxa neste momento — ela o corrigiu. Ele pareceu confuso. — Você acha que isso pode mudar? — Sim. Pode. — Ela acreditava mesmo nisso? — Eu mudei daquele padrão estranho para o humano. — É verdade. — Ele observou o padrão dela. — Mas este é de fato um padrão sobrenatural. — A atenção de Lucas se voltou para algo atrás dele e ele soltou um grunhido baixo. Derek contornava a cabana do escritório. O olhar do fae encontrou o de Kylie. Não havia nele nenhum pedido de desculpa por interrompê-los. Até sua postura parecia indicar que ele se achava no direito de estar ali. — Preciso falar com você, Kylie. É importante. — Sobre o quê? — perguntou Lucas. Derek nem sequer olhou para o lobisomem. O olhar do fae não deixou o de Kylie, mesmo enquanto respondia à pergunta, diretamente para ela. — É sobre o fantasma. — Desde quando você é um especialista em fantasmas? — perguntou Lucas. Derek olhou para Lucas pela primeira vez. — Desde que eu descobri que Kylie precisava de alguém que a ajudasse com eles. — As implicações do que ele dissera ficaram suspensas no ar. Ou seja, ele apoiara Kylie quando Lucas se recusara a fazer o mesmo. Lucas entendeu muito bem. Seus olhos se estreitaram e adquiriram um tom alaranjado. Antes que começassem uma briga, Kylie colocou a mão nas costas do lobisomem. — Vá ajudar Clara.
Ele não pareceu nada satisfeito, mas sua expressão lhe dizia que não pretendia começar uma discussão. O seu gesto seguinte surpreendeu-a, no entanto. Ele se curvou e pousou os lábios afetuosamente nos dela, num beijo que era mais para deixar bem claro para Derek que ela era a namorada dele, do que por prazer propriamente. Porém, ela não podia culpá-lo. Já houvera uma ocasião ou duas em que Kylie teria adorado beijá-lo assim na frente de Fredericka. — O que foi? — ela perguntou a Derek tão logo Lucas desapareceu e não podia mais ouvi-los. Derek olhou para a direção em que Lucas seguira e depois para Kylie. — Você está decepcionada. Por quê? — ele perguntou, lendo as emoções dela com precisão. — Por nada. — Ela não queria falar com Derek sobre isso. — É com Lucas? — ele perguntou. — Esquece — ela insistiu. — Eu estou com Lucas agora. Mas por quanto tempo?, ela se perguntou mentalmente. Ele comprimiu os lábios. — Eu sei. Estraguei tudo e só percebi que te amava depois que já era tarde demais. Ela ergueu a cabeça. — Não diga nada... Ele estendeu o braço e entrelaçou os dedos nos dela. A pressão da sua palma contra a dela irradiou um calor suave, uma sensação de calma e afeto. Ela percebeu quanto estava tentada a simplesmente abraçá-lo, mas, ciente de que suas emoções estavam muito tumultuadas no momento, afastou a mão da dele. Ele era seu amigo. Só um amigo. — Tudo bem. — Ele enfiou a mão no bolso. — Eu sei que foi culpa minha. E você não tem que me dizer que me ama também. — Seu olhar encontrou o dela. — Mas eu posso captar suas emoções, Kylie, e sei que você não quer admitir que também sente algo por mim. — Pare — ela ordenou. — Eu gosto de você como um amigo. — Não. — Ele continuou a fitá-la. — É mais do que isso. Mas não se preocupe. Eu sei que você gosta de Lucas também. E eu tenho que aceitar isso, porque fui eu que a joguei nos braços dele. E se você estiver feliz, tudo bem. Mas se não estiver... — Por favor, pare. — Kylie queria simplesmente tampar os ouvidos e ficar cantarolando para não ouvir o que ele dizia. E se não fosse tão infantil, teria feito exatamente isso. Mas, em vez disso, ela o lembrou do assunto que o trouxera ali. — Você não disse que tinha informações sobre o fantasma? Ele enfiou as duas mãos no bolso. — É. Pelo menos são boas notícias, eu acho. Mas algumas delas não são tão boas assim. — Conte. — Ela esperava que fossem melhores do que as que tivera até o momento. Kylie estava mesmo precisando de boas notícias. — Eu não acho que o seu fantasma seja Holiday. — Mas... como... por que você pensa assim? — Eu fiz algumas pesquisas na internet. O básico. — Ele hesitou. — Descobri que Holiday tem uma irmã gêmea idêntica. O nome dela é Hannah. Eu acho que meu nome é Hannah ou Holly, ou algo parecido. As palavras do espírito ecoaram na cabeça de Kylie. — Uma irmã gêmea? Por que ela nunca disse nada? Derek deu de ombros. — É meio esquisito, não acha? Quer dizer, o natural era que dissesse alguma coisa sobre uma irmã gêmea. — É verdade. — Kylie não podia negar que a magoava saber que Holiday não achava que podia confiar nela, embora Kylie contasse tudo sobre a sua vida a Holiday.
— Você ainda acha que esse fantasma vem do futuro? — Derek perguntou. Kylie pensou um pouco. — Não. Ela está morta. — Assim como as outras pessoas na cova que apareceu na visão. E de repente, a mágoa por Holiday não confiar nela se desvaneceu e foi substituída por compaixão. Kylie não podia imaginar como seria perder uma irmã, ainda mais gêmea. Seria por isso que Holiday não a mencionara? A dor pela morte da irmã gêmea estaria impedindo Holiday de falar sobre ela? Derek respirou fundo. — Tudo bem, mas há outra coisa ainda mais estranha. Eu não encontrei nenhum registro sobre a morte dela. Nenhum. É por isso que eu disse que poderiam ser más notícias também. — O que está dizendo? — Kylie perguntou. Derek franziu a testa. — Holiday pode não saber que a irmã está morta. Um nó se formou na garganta de Kylie. — Então eu tenho que dizer a ela. — Se quiser, eu mesmo falo — Derek se ofereceu. — Ou poderíamos falar juntos. Uma preocupação sincera encheu os olhos dele. Ela agradecia à sua oferta, mais do que poderia expressar em palavras, mas não poderia deixar aquele peso nas mãos dele. Por mais que ela detestasse ser a portadora de notícias tão ruins, Hannah tinha procurado Kylie e cabia a ela contar a Holiday. Então Kylie se lembrou de outra coisa que Hannah tinha lhe dito. Eu acho que eu vim até você para ajudar alguém. O que exatamente Hannah precisava que Kylie fizesse? Será que bastaria contar a Holiday sobre a morte dela ou ela precisava de mais do que isso? Derek deslizou a mão pelo braço de Kylie. — Você já fez uma lista de todos os restaurantes a que foi ultimamente?
— Restaurantes? — Kylie perguntou, sem saber direito do que ele estava falando. Sem saber direito por que um simples toque podia parecer tão errado. — Você disse que uma das garotas da visão estava usando o uniforme de um restaurante que você tinha a impressão de conhecer. — É, eu me lembro, mas, não, não tive tempo de fazer a lista. — Ela respirou fundo. — Vou fazer assim que voltar para a cabana. Posso mandá-la pra você mais tarde por e-mail. — Mande também a descrição do uniforme e das garotas. — Olá! — O som da voz de Holiday fez o nó na garganta de Kylie dobrar de tamanho. Ela se virou para a líder do acampamento e um fluxo de compaixão e dor inundou seu coração. Mesmo assim, Kylie não pôde deixar de se sentir aliviada por saber que a garota morta não era Holiday. Os olhos verdes da amiga se suavizaram. — Está acontecendo alguma coisa? Kylie não sabia o que dizer a ela. — Não — mentiu, mas por uma boa razão. A última coisa que Kylie queria era dar a notícia à amiga de um jeito abrupto. Então lhe ocorreu que talvez ela devesse falar com Hannah primeiro. Talvez precisasse saber exatamente o que Hannah precisava que ela fizesse, antes de dar o próximo passo. Holiday assentiu, mas a descrença brilhou em seus olhos. — Burnett foi chamado no escritório da UPF e insistiu que esperássemos até ele voltar para irmos à cachoeira. Eu espero que você possa me ajudar a arrumar o refeitório. Temos uma recepção de boas-vindas para os novos professores que chegam esta tarde. — Claro! — disse Kylie, encontrando os olhos de Derek brevemente. — Boa sorte! — ele murmurou, sem emitir nenhum som, e depois estendeu a mão e a tocou, enviando para ela uma corrente muito necessária de tranquilidade.
— Obrigada — ela sussurrou para Derek, antes de se virar e se juntar a Holiday. Elas deram alguns passos e Holiday olhou para Kylie com um olhar desconfiado. — Problemas com garotos? — Holiday perguntou em voz baixa. — É — confirmou Kylie, e não era mentira. Embora seu coração estivesse oprimido por Holiday, as palavras de Derek ecoavam em sua mente e a deixavam com um sentimento de incerteza. Eu posso captar suas emoções, Kylie, e sei que você não quer admitir que também sente algo por mim. E a pior parte era que... ele estava certo.
 
— Se você quiser conversar, estou aqui — disse Holiday, enquanto contornava a cabana do escritório. — Eu sei. — Kylie olhou de passagem para a floresta, mas a sensação que a arrebatara mais cedo naquele dia, a sensação de ser chamada, não tinha retornado. Holiday olhou para ela e fez uma cara de preocupação. — Você está mesmo bem? Quero dizer, eu respeito a sua privacidade. Mas ultimamente você anda um pouco... fechada. E eu me preocupo. Porque... bem, você geralmente confia em mim. — Holiday pousou a mão no braço de Kylie. Calor e preocupação fluíram do seu toque. Geralmente, eu não tenho que lidar com um fantasma que é a sua cara e que eu acabei de descobrir que é a sua irmã, e eu não sei nem se você sabe que ela está morta. — Eu não tive a intenção de me fechar — disse Kylie. — Eu estou só... dividida entre Lucas e Derek, e meu avô trocou o número do telefone e a UPF está tentando fazer testes experimentais comigo e minha mãe está saindo com outro homem e eu me sinto um pouco sobrecarregada. — E com razão — concordou Holiday. A preocupação com os encontros da mãe levou Kylie a se lembrar do padrasto. — Ah, eu quase me esqueci. Você já entrou em contato com o meu padrasto para saber o que ele queria? — Já, ele ligou há algumas horas. Descobriu que a UPF estava dizendo que você precisava fazer alguns exames médicos e ficou preocupado.
— A UPF ligou para ele também? — Kylie perguntou, prestes a entrar em pânico diante da ideia de que não tinham desistido de fazer dela uma cobaia. Talvez lhe aplicar o mesmo teste que tinha matado a avó. — Não, e eu perguntei porque isso me assustou também — Holiday respondeu, mostrando a Kylie quanto a amiga conseguia detectar com precisão as suas emoções. — Ele disse que tinha falado com a sua mãe. — Com a minha mãe? Sério? — Um sorriso inesperado se espalhou pelo rosto de Kylie. — Então eles estão se falando outra vez? Essa é a melhor notícia que eu recebi hoje. Talvez ela dê o fora naquele sujeito que quer levá-la para a Inglaterra e dê ao meu padrasto mais uma chance. — Talvez... — disse Holiday, como se tivesse receio de dar a Kylie muitas esperanças. Kylie se lembrou de que Holiday também tinha enfrentado o divórcio dos pais. — Quanto tempo levou no seu caso? — Quanto tempo levou para quê? — Holiday perguntou. — Quanto tempo levou até que você parasse de torcer para que seus pais se reconciliassem? Quanto tempo levou até que você parasse de dizer a eles para não brigarem mais e voltarem a ser um casal como antes? — Eu não saberia dizer. — Holiday suspirou e ofereceu a Kylie um sorriso solidário. — Ainda estou esperando. Acho que, quando você cresce vendo seus pais casados, simplesmente supõe que ficarão assim para sempre. Mas acho que já cheguei ao ponto de perceber que meus pais provavelmente estão vivendo melhor separados. Mas ainda costumo pensar nos tempos em que éramos uma família e... Eu gostaria que as coisas fossem diferentes agora. A triste verdade é que nós mudamos. Pais. Filhos. E, quando isso acontece, as pessoas se afastam e... — Mas quem nós amamos não deveria mudar. — Ou será que deveria? A mente de Kylie passou do divórcio dos pais para Derek, e depois para a questão do fantasma. Então, de repente, Kylie percebeu que a conversa com Holiday podia ser o que ela precisava para perguntar sobre a irmã dela. — Você passou por tudo isso sozinha? — Sozinha? — Holiday pareceu não entender a pergunta. — Você não tem irmãos ou irmãs? — Kylie perguntou. Holiday estava olhando para o outro lado, então Kylie não pôde ver sua expressão. No entanto, se um leve encolher de ombros fosse uma indicação, Kylie achava que tinha tocado num ponto sensível da amiga. Por quê? Será que Holiday estaria disposta a falar sobre o assunto? Será que Hannah e Holiday tinham se afastado uma da outra? Passado um segundo, Kylie hesitou, sem saber o que dizer. Ela deveria tentar obter uma resposta ou simplesmente deixar a oportunidade passar? Afinal de contas, não se tratava apenas de querer que Holiday confiasse nela, mas sim de ajudar Hannah a fazer sua transição. Depois de resolver toda aquela questão do fantasma, talvez ela pudesse se concentrar mais na solução dos seus próprios problemas. — Infelizmente — disse Holiday, pondo um ponto final ao desconfortável silêncio —, irmãos nem sempre ajudam em situações como essa. — Ela estendeu a mão para pegar seu celular. — Acabei de lembrar que preciso fazer outra ligação. Pode me encontrar no refeitório? Pedi a Miranda e Della para me ajudarem também. Della está assumindo o posto de sombra. Eu tenho que pendurar algumas faixas e encher uns balões. Elas estão nos fundos do refeitório e eu queria armar algumas mesas para colocar os salgados. Devo estar lá em alguns minutos. E espero que, assim que Burnett voltar, possamos dar uma passada rápida na cachoeira antes da cerimônia. — Claro! — respondeu Kylie, desapontada. Ela percebeu que Holiday estava fugindo para não precisar responder mais perguntas. Holiday arqueou uma sobrancelha, obviamente percebendo o descontentamento de Kylie, e balançou a cabeça. — Eu ainda queria muito que você falasse comigo.
E eu queria muito que “você” falasse comigo. — Eu estou bem — Kylie declarou enquanto Holiday ia para o escritório e, quando se voltou, Della já estava ao lado dela. — A seu dispor, Senhorita Bruxa. — Della deu uma risadinha e olhou para a testa de Kylie. — No entanto, não posso negar que estou desapontada. Quero dizer... você gostou do sabor de sangue, então pensei que pelo menos fosse meio-vampira. Kylie revirou os olhos e apontou para a própria testa. — Eu vivo dizendo a vocês, não acho que isso seja definitivo. — Parece definitivo pra mim. Kylie olhou novamente para a floresta e desejou que ainda sentisse que seu avô estava lá. Desejou poder encontrá-lo cara a cara e finalmente conseguir as respostas que tanto procurava. Mas ela não sentiu nada. Não sentiu que alguma coisa lá fora a chamasse para se juntar a ela. Ela se voltou para Della. — E como eu estava na semana passada? Com um padrão humano, certo? E por quanto tempo? Algumas semanas? Della fez uma careta. — Tudo bem, entendo o que quer dizer. Mas esse é o primeiro padrão sobrenatural verdadeiro que eu vejo em você. — Sim, e estou apostando que não será o último. Deixe-me dizer, eu acho que eu tenho padrões de um cérebro com transtorno de déficit de atenção. Eles nunca são os mesmos. Os padrões surgem e desaparecem. — Droga! — exclamou Della. — Miranda está certa. Você realmente não quer ser uma bruxa, não é? Kylie deixou escapar um suspiro de frustração. — Não é nada disso. Só estou dizendo... — ... que você é um camaleão. — Della fez uma cara de quem compreendia. E essa era uma cara que não se via a toda hora. — Olhe, sem querer ofender, acredito mais que você seja uma bruxa do que um camaleão. E, se me permite acrescentar uma coisinha, se você continuar dizendo que não é uma bruxa, vai acabar ferindo os sentimentos de Miranda. Ela já está chateada. E você sabe como ela é quando fica assim. Kylie fechou os olhos e respirou fundo. — Eu não tinha intenção de ferir os sentimentos dela. Se eu não tivesse recebido a mensagem de meu pai dizendo que sou um camaleão, estaria eufórica com a ideia de ser uma bruxa. — Se a frustração não comandasse as emoções de Kylie no momento, a surpresa com certeza comandaria. Quando Kylie e Della tinham trocado de papéis? Normalmente, era Kylie quem chamaria a atenção de Della por ofender Miranda. — Olha só — continuou Kylie, tentando se explicar —, bruxa ou fae são as minhas primeiras opções no que diz respeito a espécies, mas... — Você não queria ser vampira? — Della parecia ofendida. Ah, droga, agora tinha ofendido Della. Nada estava dando certo naquele dia. — Pelo amor de Deus! — rogou Kylie, cuja frustração não estava apenas no controle das suas emoções, como também causando um motim entre elas. — Eu não disse isso, só... — Ter o corpo frio é o que incomoda você, não é? — Della perguntou, parecendo ainda mais magoada, mas não furiosa. E Kylie achou que podia ser grata por isso. Pois encarar Della quando ela estava magoada era difícil, mas encará-la quando ela estava magoada e furiosa era impossível. — Não, não é ter o corpo frio, é... — Não pode ser o sangue, porque você gostou do sabor. — Eu gosto do sabor do sangue, mas não necessariamente da ideia de ter que bebê-lo, ou de achar que batata frita tem gosto de sola de sapato, porque é exatamente assim que você as descreve. Mas, se eu for vampira, ficarei feliz. — Ao ver que a expressão de Della não mudou, Kylie acrescentou: — Sinceramente, seria muito legal voar baixo como vocês, vampiros, fazem. — É muito legal — Della disse, com a expressão se suavizando.
— De qualquer maneira — Kylie continuou —, vou ficar feliz com o que quer que eu seja. Eu não me importo mais. Mas, no momento, acredito no que o meu pai me disse e ele disse que eu sou um camaleão. Isso não faz sentido para ninguém? — Não — disse Della, sem rodeios. — Desculpe, mas toda essa coisa de “Eu sou um camaleão” parece uma piração. Talvez seja melhor você se apegar ao fato de que vai acabar sendo como uma de nós. Uma sobrenatural normal. A cabeça de Kylie estava dando voltas. Primeiro, “normal” e “sobrenatural” não cabiam na mesma sentença, mas... — Quando eu já fui normal? — ela perguntou. — Quando qualquer coisa ligada a mim, aos meus poderes e dons e aos meus padrões eternamente em mutação pareceram normais? Della abriu a boca, para discutir, disso não havia dúvida, e depois a fechou. A pausa durou um segundo inteiro. O que para Della era muito tempo. — Tudo bem, o que você disse faz muito sentido, mas... — Nada de “mas” — interrompeu Kylie. — Ou eu sou uma aberração ou talvez, apenas talvez, eu seja outro tipo de sobrenatural. Algo de que poucas pessoas já ouviram falar. Della pressionou os lábios, como se estivesse pensando. — E isso seria muito legal, não acha? Ser algo muito raro. Claro, você já é super-rara porque é uma protetora. Ei, talvez seja por isso que o seu padrão era tão maluco no começo, porque você é uma protetora. E você é a primeira protetora meio-humana que já existiu. O que, como eu disse, é legal. — Não, eu não sou a primeira. Meu pai era um protetor. — Kylie fez uma pausa. — E não é tão legal quanto você pensa. — Depois de um segundo, Kylie acrescentou: — Holiday sugeriu que o fato de ser uma protetora poderia fazer com que o meu padrão se alterasse, mas... — ... mas você quer ser um camaleão — completou Della. Kylie só revirou os olhos e deu uma outra olhada na floresta. Ela não sentiu nada, mas talvez se ficasse de pé entre as árvores e se cercasse de folhagem, conseguisse sentir. Seu avô e sua tia poderiam estar esperando por ela. Suas respostas poderiam estar lá, esperando por ela. — Podemos fazer uma caminhada aqui por perto? — Eu pensei que íamos ajudar Miranda e Holiday a arrumar o refeitório. — Só aqui por perto. — Para onde? — perguntou Della. Kylie se aproximou do bosque. — Ah, nada disso! — Burnett foi muito, muito, muito claro a respeito disso. Você não deve entrar na floresta. Ele arrancaria a minha cabeça e serviria numa bandeja. Depois chutaria o meu traseiro. Kylie olhou ao redor para ver se alguém poderia ouvi-las. Se suas vozes estavam ao alcance de alguém com superaudição. Ela não viu uma alma. Mesmo assim, baixou a cabeça até a orelha de Della e sussurrou: — Eu sei quem está na floresta e preciso falar com eles. — O quê...? Quem está na floresta? O barulho de uma porta se fechando ecoou no ar quente. — Vocês duas vão deixar Miranda fazer todo o trabalho sozinha? — A voz de Holiday veio de trás delas. Kylie se virou e viu Holiday descendo os degraus do escritório. — Façam o favor de ir para lá agora. Della se curvou na direção de Kylie. — Você não vai me deixar curiosa! — Mais tarde — disse Kylie quando viu Holiday se aproximando. — Mais tarde o quê? — perguntou Holiday. A culpa encheu o peito de Kylie, mas ela se forçou a mentir. — Mais tarde eu conto a ela sobre os meus problemas amorosos. — Ela se forçou a sorrir.
— É, problemas amorosos — completou Della, como se confirmasse a mentira de Kylie. — Dois caras brigando pelo coração dela. — Della olhou de relance para Kylie, e a mensagem nos olhos da amiga indicava que ela pressionaria Kylie a terminar a conversa sobre a floresta o mais rápido possível. — Ora, e que problemão! — exclamou Della dramaticamente. Mas por trás do comentário, Kylie ouviu outra coisa. Um pouquinho de inveja. Holiday deu risada. Pela expressão dela, também percebera as emoções de Della. E isso fez com que Kylie ficasse preocupada. Até que ponto Holiday também não sabia dos problemas amorosos de Kylie? E até quando Kylie conseguiria esconder as coisas dela? Só por tempo suficiente para saber qual a melhor maneira de abordálas, jurou Kylie. Holiday deu de ombros. — Pelo que eu ouvi, ela não é a única que tem problemas com garotos. — É verdade — disse Della com malícia. — Você e Burnett também estão poluindo o ar com feromônios. — A vampira falou abanando a mão em frente ao nariz. Holiday franziu a testa. — Eu não estava falando de mim — disse, olhando diretamente para Della. — Estava falando de mim? — Della perguntou, perplexa. — Eu não tenho namorado, então como posso ter problemas amorosos? — Você poderia ter um, se quisesse — Kylie murmurou, fazendo com que Della lhe desse uma cotovelada nas costelas. Holiday soltou uma risadinha. — Correm boatos de que você causou um certo desentendimento no lago. — Que desentendimento? — perguntou Della. — Entre Steve e Chris — disse Holiday, arqueando as sobrancelhas. Holiday sempre sabia o que uma pessoa precisava ouvir.
Exceto no caso de Kylie. Kylie precisava saber sobre a irmã de Holiday, mas fazer com que ela falasse a respeito, sem contar que a irmã estava morta, parecia impossível. Mas se Kylie não soubesse da própria Hannah o que tinha acontecido ou Holiday continuasse se negando a falar, então ela não teria outra opção a não ser contar. — Não. — Della sacudiu a cabeça, balançando o cabelo preto na altura dos ombros. — Não foi por minha causa. Você ouviu errado. Holiday deu um meio sorriso e encolheu os ombros. — Se você está dizendo... — Ela fez uma pausa e sorriu como se soubesse de algo que ninguém mais sabia. — Vamos lá. Vamos aprontar o refeitório para a recepção. — Ela pôs um braço sobre os ombros das duas campistas e começou a andar em direção ao refeitório. Só tinham dado três passos quando Della parou de repente. — Sério?! — perguntou a Holiday. — Era por minha causa? Chris e Steve estavam brigando por minha causa? — Eu disse que Steve gosta de você. — Kylie quase riu ao ver o choque de Della. Mas Della não estava mais ouvindo Kylie. — Você não está de gozação comigo? — ela continuou, concentrada em Holiday, a cabeça se inclinando ligeiramente como se para detectar se ela estava mentindo. — Eu juro — disse Holiday sorrindo. — Meu coração não mente. — Eles estavam brigando...? — Eu disse “desentendimento” — corrigiu Holiday. — Eles estavam se desentendendo por minha causa? — Ela deu risada e depois parou como se estivesse absorvendo a informação. — Não. Não era por minha causa. Deve haver algum engano. — Mas os olhos de Della se iluminaram com uma centelha de autoconfiança. Kylie sorriu. Mesmo sob o peso de todos os problemas que a oprimiam, ver Della radiante por causa dos garotos era bom... e justo. Kylie tinha percebido que Della se sentia inferior por Kylie e Miranda estarem namorando, mas não sabia quanto da sua autoconfiança ela tinha perdido. E, depois de ficar de coração partido por causa de Lee, Della merecia se sentir orgulhosa por ser o motivo do desentendimento entre dois garotos. Mas nem todo desentendimento era uma coisa boa. Aquele entre Lucas e Derek com certeza não tinha nada de positivo. Mas por ora Kylie só queria pensar em Della. Cinco minutos depois, Kylie percebeu que Della estava certa. Miranda estava chateada. A bruxinha mal falou com ela enquanto arrumavam o refeitório. Claro, Miranda deu um gritinho de alegria quando Della contou sobre a “tensão” entre Chris e Steve. Sentindose meio deslocada, Kylie finalmente se aproximou de Miranda e se desculpou... Bem, ela não sabia pelo que estava se desculpando, mas disse as palavras mágicas, “sinto muito”, e perguntou se Miranda treinaria alguns feitiços com ela mais tarde. Os olhos de Miranda se iluminaram. — Eu adoraria. É só você dizer que feitiço quer treinar. E pode confiar em mim, porque posso te ajudar. O olhar de contentamento da amiga revelou a Kylie que Miranda estava mais chateada com a sua recusa inicial em aceitar a ajuda dela e com seu orgulho ferido do que com o fato de Kylie não acreditar que era uma bruxa. Enquanto arrumava as mesas na frente do refeitório, o celular de Kylie começou a bipar, avisando sobre a chegada de uma nova mensagem. Era de Lucas. Ainda com Clara. Saudade. Vou estar ocupado apresentando Clara para a alcateia mais tarde. Não vou à recepção. Vejo você mais tarde, antes de você dormir. Obrigado por entender. Kylie ficou olhando para o telefone e percebeu que veria Lucas bem menos, agora que Clara estava no acampamento. Kylie respirou fundo e tentou convencer a si mesma que entendia. Era evidente que ele precisaria de um tempo com a irmã. Mas entre a alcateia e agora Clara, Kylie não sabia direito onde se encaixava. Ou se ela de fato se encaixava.
Quinze minutos depois, Kylie notou os olhares de Della. Kylie sabia que a vampira não via a hora de ficar sozinha com ela para que pudessem terminar a conversa sobre o que havia na floresta. Mas, francamente, Kylie agora não tinha mais certeza se deveria se abrir. Se contasse a Della, teria que contar a Miranda também. Não que Kylie não confiasse nas duas... Ela simplesmente não queria colocar ninguém em maus lençóis. Então, mais uma vez, considerando que nunca ia a lugar nenhum sem uma sombra, ela teria que confiar em alguém. E não havia ninguém em Shadow Falls em quem ela confiasse mais do que nas duas colegas de alojamento. Elas estavam quase acabando de arrumar o refeitório quando o celular de Holiday tocou. A fae parou e se afastou um pouco para atender ao chamado. Della veio correndo tão rápido que trombou com Miranda e quase a jogou no chão. — Fale e rápido — Della sussurrou para Kylie. — Falar o quê? — Miranda massageou o ombro e fez uma cara feia para Della. — Shh! — Della levantou um dedo para calar Miranda, depois olhou para Kylie insistentemente. — Fale! — Não me mande calar a boca! — exclamou Miranda. Kylie soltou o ar dos pulmões e estendeu a mão para tocar o braço de Miranda, esperando acalmá-la, depois respondeu à pergunta de Della. — São meu avô e minha tia. Eles eram a neblina. — Eles eram... a neblina? — Miranda perguntou, esquecendo a briga com Della. Quando Kylie assentiu, Miranda continuou. — Então isso prova que você é uma bruxa, porque eles precisam ter poderes de bruxos para fazer isso. — Espere aí. Por que eles fariam isso? — perguntou Della. Kylie franziu a testa e olhou para Holiday, que estava parada do outro lado do refeitório. Kylie notou que a líder do acampamento não parava de olhar para Kylie e então suspeitou que o telefonema fosse sobre ela. Mais uma vez. Que ótimo! O que seria dessa vez? — Terra chamando Kylie! — provocou Miranda. Kylie voltou a olhar para as duas colegas de alojamento. — Não sei se isso prova alguma coisa. — Mas por que eles perseguiriam a irmã de Lucas? — perguntou Della. — Não sei. — Então, de repente, Kylie percebeu. — Para que eu entrasse no bosque. Eles ficaram me chamando durante alguns dias, mas eu pensei... Pensei que poderia ser Mario e seus amigos e não fui. Mas aposto que o meu avô sabia que, se eu achasse que alguém estava em perigo, eu iria... — Será que eles sabem que você é uma protetora? — Miranda perguntou. — Eu não sei. — A mente de Kylie estava acelerada. — Eu sei que Burnett conversou com eles, mas não sei o que falaram. — Eu não estou muito convencida — disse Della. — Talvez seja Mario fingindo que é seu avô e sua tia. Talvez seja só um truque para pôr as mãos em você. — Não acho — afirmou Kylie. — E no momento eu tenho que seguir meus instintos. Tanta coisa está acontecendo na minha vida que seria muito bom se eu conseguisse algumas respostas sobre alguma coisa. — O que está acontecendo na sua vida? — A preocupação de Della deixou sua expressão mais séria. Kylie hesitou. — Problemas com fantasmas. — O que significa que não vamos poder ajudá-la em nada — concluiu Della. Exatamente o que Kylie havia pensado. Quando se tratava de fantasmas, ela só podia contar com Holiday e com ela mesma. Ela se lembrou, então, de Derek, que estava sempre disposto a ajudála, mesmo que provavelmente se sentisse da mesma forma que outros sobrenaturais quando o assunto eram espíritos. Della começou a falar novamente. — Mas eu pensei que o seu avô viesse vê-la amanhã. Por que eles estão se transformando em neblina e se esgueirando até aqui para vê-la em segredo, se podem simplesmente aparecer amanhã? E como você sabe que a neblina eram eles? — Eles ficaram de vir — explicou Kylie —, mas ele não atende ao telefone e não entrou mais em contato com Burnett. E justo quando eu estava indo embora, a neblina tomou a forma humana e... — Kylie não sabia bem como explicar — ... reconheci meu avô e minha tia. Tenho certeza disso. A expressão de Della endureceu. — Mas, e se você estiver enganada, e se entrarmos na floresta e alguma merda acontecer? — Entrarmos na floresta? — espantou-se Miranda. — Ah, droga, não! Burnett disse que ela não pode entrar na floresta. Que não podemos deixar que ela chegue perto do bosque. — Eu sei — Kylie concordou. — Mas, se eu quiser saber quem sou, vou ter que falar com meu avô e não acho que ele vá entrar no acampamento, não agora com a UPF se metendo em Shadow Falls. E depois do que a UPF fez com a minha avó, eu não posso culpá-lo por não confiar neles. Nem Holiday confia! Miranda mordeu o lábio inferior. — Mas se você estiver errada... — Eu não estou. — E, de repente, Kylie percebeu que ela não poderia colocar suas duas amigas em perigo. A culpa que ela ainda sentia por causa de Ellie oprimia seu peito. — Mas, só por cautela, vou sozinha. — De jeito nenhum! — Della exclamou. — Tudo o que eu quero é fazer uma pequena caminhada pela floresta. Vocês podem ficar na margem. Se eu não sentir nada, volto na hora.
— E se você sentir alguma coisa? — Miranda perguntou. — Então eu vou saber que são eles e vou até onde estiverem. — Ah, Kylie, não! Você não vai sozinha — declarou Della. — Você é uma protetora. Caso tenha se esquecido, isso significa que você não pode proteger a si mesma. — Della está certa — disse Miranda. — Se você for, nós vamos junto. — Eu acho que nenhuma de nós deveria ir! — discordou Della. Holiday começou a andar na direção delas e, sabendo que a fae era capaz de ler emoções, Kylie olhou para as duas amigas. — Pensem em coisas boas. Rápido. Antes que Holiday perceba... — Ela deixou as palavras morrerem na boca quando Holiday chegou mais perto. — O que está rolando aqui? — perguntou Holiday. — Nada — as três responderam ao mesmo tempo. Kylie sorriu e tentou pensar em Lucas para conseguir fazer brotar dentro dela uma emoção positiva, mas o que surgiu na sua mente foi a imagem de Derek e da sua lealdade com relação à questão dos fantasmas. E, em vez de ficar feliz, mais angústia acumulou-se em seu peito. Holiday arqueou uma sobrancelha em descrença, mas não pediu explicações, apenas disse: — Era Burnett. Ele não vai poder voltar antes da hora do início do evento, e insistiu para que adiemos a ida até a cachoeira para amanhã. Tudo bem pra você? — Por mim tudo bem — concordou Kylie. E ela estava falando a verdade. Talvez agora ela pudesse fazer aquela caminhada pela floresta e obter algumas respostas, se eles ainda estivessem lá. Ela só precisava descobrir como fazer isso sem que Della ou Miranda surtassem.
 
Kylie foi até a margem da floresta, ignorando Della e Miranda enquanto as duas discutiam sobre quem iria acompanhá-la na caminhada e quem esperaria ali. Mal sabiam elas que nenhuma das duas iria com Kylie. Ela não poderia pôr as amigas em perigo. Mesmo que não houvesse nenhum perigo, se Burnett descobrisse, mataria as amigas. E Burnett furioso era perigo suficiente. De algum modo, Kylie iria descobrir como se esgueirar para longe das duas e entrar na floresta sozinha. Além disso, ela nem tinha certeza de que o avô e a tia ainda estavam esperando por ela. Talvez a caminhada pela floresta a levasse a descobrir, mas por ora não sabia. Mesmo assim, fechou os olhos e tentou ouvir com o coração. Ao ver que nem o mais leve anseio para entrar na floresta se agitava dentro dela, Kylie falou mentalmente: Vocês ainda estão aí? Eu estou aqui. As palavras soaram ao mesmo tempo que ela começou a sentir frio. Sem reconhecer a voz, ela abriu os olhos. Parada em frente a ela estava uma mulher loira, com vinte e poucos anos, usando o uniforme de um restaurante e um crachá onde se lia o nome CARA M. O coração de Kylie começou a bater mais rápido quando ela percebeu que se tratava de uma das garotas da visão em que vira a irmã de Holiday enterrada. Ao deixar escapar um suspiro, Kylie viu que sua respiração se condensou num vapor frio. — Droga! — exclamou Della. — Por que droga? — perguntou Miranda.
— Kylie tem companhia — explicou Della. — Essa merda de névoa branca sempre sai dos lábios dela quando ela está conversando com um morto. — Oh! — Miranda deu um passo para trás e olhou para Kylie. — Nossa, a aura dela está ficando muito estranha. Isso é uma piração e tanto. Estou feliz por não ser ela. Tentando fazer com que Della e Miranda ficassem quietas, Kylie concentrou-se em Cara M. Lembrou-se de Derek lhe pedindo para descrever o uniforme, por isso observou os detalhes. Deixou que uma imagem do uniforme se formasse em sua mente — o decote em V, o xadrez na bainha da saia —, de modo que pudesse descrevê-lo para ele mais tarde. Mas por que ela simplesmente não perguntava? — Onde você trabalhava? — Kylie perguntou. — Trabalhei na loja de vudu da minha tia — Miranda respondeu. — Coisas muito estranhas aconteciam lá. — Ela não está falando com você! — avisou Della, irritada. — Desculpe — Miranda sussurrou. — Isso é tão apavorante! — Você sabe o nome da lanchonete? — Kylie perguntou, sem tirar os olhos do espírito. — Eu... não sei — Cara M. respondeu. — Mas será que você pode nos tirar de lá? Kylie franziu a testa. — Eu gostaria, mas preciso saber onde vocês estão. — Mas você sabe. A outra garota levou você lá. Não se lembra? Como ela poderia esquecer? — Eu vi vocês enterradas embaixo de um lugar com assoalho de madeira, mas não sei onde é. Em que cidade você está? Sabe o endereço? É perto daqui? — Sim, é perto. Não leva muito tempo para chegar lá. Kylie pensou no que a garota disse e perguntou: — Mas como você chegou aqui? Quero dizer, você veio andando... ou veio espiritualmente? — Kylie nunca tinha pensado no modo como os espíritos se locomoviam e percebeu quão pouco sabia sobre essa coisa de se comunicar com fantasmas. — Eu não sei — respondeu o espírito. — Mas posso levar você lá, se quiser. — Não — Kylie deixou escapar. — A ideia de se ver presa numa cova novamente era demais para ela. Respirou fundo e se lembrou de falar mentalmente. — Você pode avisar Hannah que eu preciso falar com ela? — Quem é Hannah? — Uma das garotas que está com você. A de cabelo ruivo. — Kylie pôde sentir Della e Miranda se entreolhando e virou de costas de propósito para não se deixar distrair pelas amigas. — Então o nome dela é Hannah? Como você sabe? Ela não está usando crachá. — O espírito olhou para baixo, como se apontasse para o crachá preso ao seu uniforme. — Você sabe o meu nome? Eles me chamam de Cara M., mas eu não me lembro de ter esse nome. Minha vida é como um livro de figuras apagadas que eu vi uma vez. Eu posso me lembrar de fragmentos de algumas imagens dessas páginas, mas elas viram rápido demais para que eu consiga reconhecer alguma coisa. — Isso não é incomum depois da morte — assegurou Kylie ao espírito, lembrando-se de Holiday dizendo que, quanto mais dramática a morte, menos o espírito se lembrava. Ao se lembrar do que essas garotas tinham passado, Kylie sentiu uma pontada de dor. Seu coração se apertou com a necessidade de ajudá-las. Fazer o que fosse preciso para ajudar todas a completarem sua passagem. — Será que um dia vou voltar a me lembrar? — perguntou Cara M. A pergunta do espírito veio carregada de tanta tristeza que a emoção provocou um nó na garganta de Kylie. — Eu não sou uma especialista no assunto, mas, com base no que já vi, posso dizer que os espíritos costumam recuperar a memória. Os espíritos geralmente ficam na Terra por uma razão e, depois que essa questão é resolvida, eles fazem sua transição.
Cara pareceu refletir sobre as palavras de Kylie e depois assentiu. — Acho que estou aqui porque quero ir para o meu próprio túmulo. Nunca gostei de ter colegas de quarto. Aquela cova é muito apertada. Infelizmente, Kylie conseguia se lembrar de quanto era apertada. Ela estremeceu, sentindo os ombros pressionados pelos corpos das duas garotas, uma de cada lado. Afastando o pensamento, Kylie concentrou-se na conversa e não no horror do que tinha acontecido. — Eu estou tentando tirar vocês de lá. — Mas Kylie tinha o pressentimento de que, embora Cara M. só precisasse sair da cova coletiva, Hannah queria muito mais. Felizmente, quando resolvesse o problema de Hannah, Kylie ajudaria todas as três. Cara M. ficou parada ali, como se estivesse perdida em pensamentos. — É bonito o lugar para onde vou? Kylie lutou para descobrir o que dizer, então decidiu pela verdade. — Eu nunca o vi, mas acho que sim. O espírito olhou em volta, depois flutuou lentamente alguns metros. Ficou pairando no ar, causando uma grande espiral de fumaça, dando a Kylie a impressão de que estava num filme de terror. Depois de alguns segundos, ela voltou a olhar para Kylie com olhos que pareciam perdidos, magoados. — Aqui é bonito também. — Depois ela voltou a colocar os pés no chão. — Acho que eu reconheço este lugar. É perto de onde estão os ossos do dinossauro? Um fio de esperança brotou no peito apertado de Kylie. — Então você conhece esse lugar? Já morou perto daqui? — Acho... acho que sim. Eu vejo uma imagem de pessoas nadando num lago. Havia muitas risadas. Devia ser divertido. — É, há um lago. Consegue ver mais alguma coisa? Onde você trabalhava? Em que cidade?
O espírito franziu o cenho. — Não me lembro. — Sombras escuras começaram a surgir embaixo dos olhos dela. Sombras que a fizeram parecer mais triste e, de alguma forma, mais morta. — Por favor, tire a gente de lá. — Depois de dizer isso, ela começou a desaparecer. — Espere. Pode dizer a Hannah que preciso vê-la? — Posso, mas não sei se ela vai vir. Está chateada. — Por quê? — Será que a memória de Hannah estava voltando também? O frio começou a diminuir. O fantasma desvaneceu-se completamente e o calor do Texas substituiu o ar frio, deixando Kylie com mais dúvidas ainda. — O fantasma se foi? — perguntou Miranda. — Sim — suspirou Kylie. — Vamos entrar? — voltou a perguntar Miranda. — Entrar onde? — Kylie perguntou, confusa. — Na floresta, onde mais? — Ah, não. — Graças a Deus! — murmurou Della. Então todas as três foram para a cabana. Kylie olhou para trás mais uma vez e se perguntou se um dia iria obter todas as respostas de que precisava. Num certo sentido, sua vida era muito mais misteriosa do que um fantasma. Elas tinham uma hora até o horário de voltar para o refeitório e participar da recepção de boas-vindas. Enquanto ainda estavam a caminho da cabana, Della e Miranda conversavam sobre o que vestiriam para a ocasião. Não havia dúvida de que Della queria caprichar no visual para impressionar Chris e Steve. Miranda queria causar a mesma impressão em Perry. Kylie tentou entrar no mesmo estado de espírito das duas, mas seu entusiasmo não era o mesmo. Lucas não estaria lá, então a quem ela tentaria impressionar? A visão de Derek pipocou na sua cabeça e ela afugentou-a, sentindo-se culpada só de pensar naquilo. A tentativa de não pensar em Derek lembrou-a de que ela tinha prometido lhe mandar um e-mail com a descrição do uniforme da garçonete. Quando Kylie se sentou ao computador, sua mente começou a recapitular os detalhes do uniforme que tinha procurado registrar enquanto conversava com Cara M. Kylie abriu seu correio eletrônico e viu que tinha várias mensagens esperando por ela: algumas de sua mãe, algumas do seu pai, uma de Sara; alguns spams e outras mensagens de remetentes que ela não reconheceu. Ignorando-as, começou clicando no botão para iniciar uma nova mensagem. Digitou o nome de Derek e então começou a fazer uma descrição do uniforme da garçonete. Ela tentou se lembrar de tudo que tinha descoberto sobre Cara M. e percebeu quanto queria poder conversar sobre o assunto com alguém. Então, ela se deu conta de que havia alguém: a pessoa para quem estava enviando o e-mail: Derek. As risadas de Miranda e Della ecoavam do quarto da vampira. Por que ouvir a risada das amigas a fazia se sentir mais solitária? A resposta borbulhou na sua cabeça. Porque elas estão empolgadas com a ideia de romance, de se arrumarem para impressionar os garotos. No momento, a ideia de romance deixou Kylie meio entorpecida. Ela sentiu que Lucas estava parecendo cada vez mais distante e, por algum motivo, Derek parecia mais próximo. E isso não estava certo. Mas ela ainda se sentia solitária. Lembrando-se do e-mail de sua mãe, Kylie pegou o celular e discou o número dela. O telefone tocou quatro vezes antes de a mãe atender. — Oi, mãe — disse Kylie. — Oi, querida, — O som da voz da mãe fez com que Kylie sentisse mais saudade de casa. — Está tudo bem? — Está. Por que você sempre acha que tem algo errado comigo quando telefono?
— Eu não acho. Só às vezes. E esta é uma dessas vezes. Eu devo ser médium. Pare de fingir e me conte o que está acontecendo. Cruzes! Talvez a mãe fosse sobrenatural. — Nada! — disse Kylie. — Acabei de receber o seu e-mail e pensei em ligar pra você. Você está sempre dizendo que eu telefono pouco. — É verdade. — A mãe fez uma pausa. — Quais as novidades, querida? Desistindo de mentir, visto que isso não parecia estar funcionando, Kylie respondeu: — Só estou passando por um dia ruim. — Você sabe que, se mudar de ideia sobre ficar aí para o ano letivo e quiser voltar para casa, eu posso matriculá-la na escola daqui e... — Eu não vou mudar de ideia, mãe. Eu adoro Shadow Falls. — Eu pertenço a este lugar. — Tenho o direito de ter um dia ruim, não tenho? — Claro, assim como eu tenho direito de me preocupar quando você tem um dia ruim. — Bem, não se preocupe demais. — Ela ouviu um súbito barulho do outro lado da linha. — Onde você está? — perguntou Kylie. — Jantando fora um pouco mais cedo. — Sozinha? — Kylie perguntou, esperando que a mãe não estivesse com John Bajulador, que queria arrastá-la para a Inglaterra e tê-la nua em seus braços. Tão logo esse pensamento lhe ocorreu, Kylie tentou afastá-lo. — Hã, não. — A resposta da mãe veio carregada de culpa. — Não estou sozinha. — Com John? — Kylie tentou esconder a decepção, mas achou que não tinha dado certo. O silêncio se prolongou por alguns segundos.
— É uma pergunta simples, mãe. Não é preciso tanto tempo pra responder. — Kylie percebeu que ela tinha soado exatamente como sua mãe. Tinha certeza de que a mãe usava exatamente as mesmas palavras para falar com ela de vez em quando. — Hã... sim — a mãe respondeu. Kylie fechou os olhos. Como se o seu cérebro estivesse no piloto automático, a pergunta escapou dos seus lábios. — Você não anda dormindo com ele, né? E antes que a última palavra saísse da sua boca, ela já tinha se arrependido. Se arrependimento matasse... O rosto de Kylie ficou vermelho. A mãe prendeu a respiração e começou a tossir. — Hã... Mais tosse. — Alô, Kylie. — Uma voz masculina entrou na linha. — Acho que a sua mãe engasgou com o vinho. Vinho? A mãe estava tomando vinho às três da tarde? Será que ele estava planejando embebedá-la para levá-la para a cama? — Kylie? Você está aí? — Sim. — Kylie ouviu a mãe mandando John lhe devolver o telefone. Kylie imaginou-a entrando em pânico ao pensar que a filha podia perguntar a John se eles estava fazendo sexo. Não que ela tivesse a intenção de perguntar. O fato de ter perguntado exatamente isso à mãe tinha entrado na sua lista de “momentos mais embaraçosos da sua vida”. — Kylie? — A mãe parecia ter arrancado o telefone da mão dele. — Nós... temos que conversar mais tarde. — A voz dela estava esganiçada como a de um personagem de desenho animado. — Tá. Mais tarde. — Kylie desligou e ficou olhando para o telefone. Tudo bem, mais uma lição aprendida. Se a mãe mal conseguia dizer a palavra “sexo”, também não deveria ser capaz de ouvi-la. Será que isso significava que ela não conseguia fazer sexo também? Cruzes, Kylie esperava que sim. Lição número dois. Falar sobre sexo com a mãe lhe dava náuseas. Será que ela sofria do mesmo mal que sua mãe? Largando o celular sobre o computador, Kylie tentou afastar da mente os pensamentos da mãe fazendo sexo e se concentrou no computador, tentando não ouvir as risadinhas das amigas enquanto conversavam — provavelmente sobre sexo também. Gemendo, ela baixou a cabeça sobre a mesa, sentindo o sangue pulsar em suas bochechas e esperando que o toque frio da madeira aliviasse o calor. Seu celular, sobre o computador, começou a bipar, anunciando uma mensagem de texto. Sentando-se ereta, ela pegou o aparelho e verificou a mensagem. Seu coração deu um salto ao ver que era de Derek. “Tudo ok? O que está acontecendo?” Kylie fechou os olhos. Será que agora ele sentia tudo o que ela sentia? Ela tombou a cabeça sobre a mesa novamente com tanta força que machucou a testa. Respirou fundo algumas vezes e começou a responder a mensagem. “Tudo bem. Estou passando um e-mail com a descrição do uniforme da garçonete. Você vai à recepção?” Ela segurou a respiração e esperou a resposta. “Sim. E vc?” Ah, meu Deus, será que ele tinha pensado que a pergunta era uma espécie de convite para um encontro? Será que era um convite para um encontro? “Sim. Até lá.” A culpa voltou a assombrá-la. Mas pelo menos isso a fizera se esquecer do constrangimento por perguntar à mãe se estava transando com John. Kylie continuou olhando para o celular. Por que parecia tão errado mandar uma mensagem para Derek? Ela não deveria se sentir assim. Eles eram apenas... amigos. Fredericka ficava com Lucas cinco vezes mais do que ela mesma. Dez vezes mais do que Kylie ficava com Derek. E Fredericka e Lucas tinham sido namorados. Tentando afastar o sentimento, ela terminou o e-mail e o enviou. — Kylie? — Miranda chamou da porta do quarto de Della. — E você? Já usou? Kylie olhou por sobre o ombro e se concentrou na voz alegre de Miranda. Francamente, ela precisava mesmo de alegria. Ultimamente, parecia não fazer nada além de remoer os próprios problemas. — Já usei o quê? — perguntou sorrindo para Miranda. — Enchimento num sutiã. Já fez isso? Kylie mordeu o lábio e riu quando uma imagem lhe ocorreu. — Sara me convenceu a fazer isso na sexta série, mas eu não tive coragem. Me escondi atrás de uma caçamba e arranquei tudo antes de chegar à escola. Ela ficou possessa quando me viu. Estava com peitos turbinados, e eu não. Miranda deu risada e Kylie pôde ouvir Della, dentro do quarto, rindo também. Miranda olhou para os próprios seios. — Confesso que também usei por um tempo antes que os meus crescessem. Mas Della jura que nunca usou, embora eu ache que ela esteja mentindo. — Não estou! — Della contra-atacou, saindo do quarto. — A verdade é que eu poderia ter feito isso se não tivesse visto Tillie McCoy trombar com um armário quando usava um sutiã tamanho GG e depois sair andando por aí com os peitos achatados, sem perceber que tinha amassado o enchimento. — Della pôs a mão sobre os seios. — Sério, ela ficou com um peito redondo e o outro quadrado. O pior de tudo é que mesmo assim os caras não desgrudavam o olho dela. Eu acho que não ligam que a mulher tenha um peito achatado. Kylie achou graça, mas o que ela sentiu foi constrangimento pela garota chamada Tillie, que ela não conhecia. — Que horror!
— Foi mesmo — Della confirmou. — Acho que as vendas de enchimento caíram depois disso. Sério, no dia seguinte, todas as garotas do sétimo ano estavam usando sutiãs dois números menores e os garotos ficaram deprimidos durante um mês inteiro. Nesse dia eu decidi que ser do clube das despeitadas não era tão ruim assim. Todas riram novamente. — Sabiam que os garotos também usam enchimento? — Miranda declarou. — O quê? — Kylie perguntou. Della apontou para a virilha. — Sério? — Kylie perguntou. — Sério! — responderam Della e Miranda ao mesmo tempo. — Eles usam meias — Della acrescentou. — Meias? Pra quê? Não é como se as garotas ficassem... calculando o tamanho... — Mas eles acham que ficamos — explicou Della. — Você sabe, os caras só pensam em sexo. As garotas só pensam em romance. — Às vezes eu só penso em sexo — Miranda admitiu. — Bem, quer dizer, só penso. Isso faz de mim uma piranha? Elas riram alto, Miranda inclusive. Então Kylie balançou a cabeça, ainda tentando não imaginar um garoto com meias dentro das calças. — Todas nós pensamos nisso, mas... essa coisa de enchimento de meia é.... uma piada! Della franziu a testa para Miranda e pressionou as mãos contra as têmporas, como se de repente sentisse uma enxaqueca. — Droga! Por que você foi se lembrar dessa coisa das meias? Agora vou ficar tentada a checar as calças de todos os garotos para ver se estão usando enchimento! — Tem razão — disse Miranda, rindo. — É como um acidente na estrada. Você não quer olhar, mas seus olhos são atraídos. — Ela bateu no queixo com as costas da mão e jogou a cabeça para trás. — Temos que manter o queixo e os olhos acima da cintura o tempo todo. Aconteça o que acontecer, nada de ficar olhando protuberâncias. As três riram mais ainda. O melhor de tudo era que a risada aliviou o coração de Kylie e diminuiu a sua sensação de desastre iminente. E por isso ela ficou agradecida. Rescendia no ar do refeitório um aroma de cupcakes, que Holiday tinha solicitado ao pessoal da cozinha. Um grupo de campistas estava parado perto da mesa de salgados, provavelmente dando as boas-vindas aos novos professores e a alguns novos campistas que tinham se inscrito para o novo ano letivo em Shadow Falls. Kylie havia cruzado com um ou dois nos últimos dias, mas ainda não tinha sido apresentada a nenhum deles. Ela tinha que admitir; não era muito boa em conhecer pessoas novas. Mas, considerando que o primeiro ano de escola em Shadow Falls começaria na semana seguinte, não demoraria muito tempo para que isso acontecesse. Parada ao lado de Miranda, Kylie percebeu que o lugar não estava tão cheio quanto ela esperava. Provavelmente porque a presença dos campistas na recepção aos professores não era obrigatória. Mesmo assim, mais da metade dos campistas estava lá. Então Kylie notou que nenhum dos lobisomens tinha aparecido. Eles provavelmente estavam fora, reunidos em algum lugar. Outra vez. Mais uma olhada pelo refeitório e Kylie constatou que Derek não tinha chegado ainda. Ela se perguntou se ele estaria fazendo pesquisas na internet para ver se encontrava a lanchonete em que Cara M. poderia estar trabalhando antes de ser morta. O fato de ele estar ajudando-a com a questão dos fantasmas fazia com que ela se sentisse feliz e assustada ao mesmo tempo. Assustada por não saber definir muito bem por que se sentia feliz. Eles eram só amigos, ela dizia a si mesma. Mas descobriu que era cada vez mais difícil acreditar nisso toda vez que se forçava a acreditar.
Helen acenou para Kylie do outro canto do salão. Ela estava com o braço em torno dos ombros de Jonathon. Kylie admirava o relacionamento entre os dois. Era carinhoso e romântico. Kylie sorriu e acenou de volta. Embora ainda estivesse com tantos problemas, ela se sentia... mais leve, e o sorriso foi sincero. Era incrível pensar em com uma sessão de risadas com as amigas podia elevar o seu ânimo! Ela de fato tinha que se esforçar para não olhar os garotos abaixo da linha da cintura, na tentativa de identificar os que usavam meias na cueca. E só de pensar nisso tinha vontade de rir. Infelizmente, Miranda percebeu o sorriso reprimido de Kylie e, como se adivinhasse o que o tinha causado, a bruxinha caiu na risada. Então, encontrando o olhar de Kylie, ela ergueu o queixo com a mão e murmurou “queixo pra cima”. Della, do outro lado do refeitório, também começou a rir. — O que é tão engraçado? — Burnett perguntou a Miranda, ao se aproximar. — Nada — respondeu Kylie, com receio de que a amiga dissesse a verdade. Miranda às vezes era a rainha da gafe. Ao encontrar o olhar de Burnett, Kylie se lembrou de que ele podia detectar mentiras, por isso logo acrescentou: — Nada que eu possa contar sem... — ... ficar vermelha? — ele perguntou, olhando para ela e Miranda, cujas bochechas já ardiam e estavam quase da mesma cor que o seu cabelo cor-de-rosa. Com medo de que Burnett quisesse mais explicações, Kylie acrescentou: — Conversa de garotas. Ele levantou uma mão. — Vocês não têm que explicar. Eu realmente não quero saber de conversas de garotas e toda vez que escuto, eu me arrependo. — Ele quase sorriu e sua expressão se suavizou com algo que parecia preocupação ao fitar Kylie. — Desculpe não ter chegado a tempo para irmos à cachoeira.
— Tudo bem — Kylie respondeu. Então, fosse ou não pura paranoia, ela perguntou: — Isso que você foi fazer na UPF não tem a ver comigo, tem? — Não — ele garantiu, num tom sincero. Ela assentiu e então partiu para a segunda pergunta, embora já pressentisse a resposta. — Nenhuma notícia do meu avô? Ele balançou a cabeça. — Não, desculpe. — Burnett suspirou. — Com todas as coisas que têm acontecido ultimamente, fico feliz que ainda mantenha o queixo erguido. Queixo erguido. As palavras ficaram dando voltas na cabeça de Kylie. Miranda deu outra risadinha e olhou na direção contrária. Kylie teve que morder o interior da bochecha para não rir também. Então ela ouviu a risada de Della do outro lado do salão. Arqueando as sobrancelhas, Burnett olhou para Della, que imediatamente assumiu sua postura de vampiro e apagou do rosto todos os traços de humor. Burnett balançou a cabeça e concentrouse em Kylie novamente. — Se você conseguir parar de rir, posso apresentá-la a professores que estão ansiosos para te conhecer. — Me conhecer? — O sorriso se desvaneceu do rosto de Kylie. Ela desviou o olhar para o outro lado do salão, onde os professores estavam reunidos. Eles de fato estavam olhando para ela. — Por que iam querer me conhecer? — A fobia que ela tinha de ficar em evidência a deixou paralisada. — Eles ouviram falar de você — Burnett explicou, como se fosse óbvio. Kylie não podia imaginar o que alguns campistas poderiam ter dito a eles. Então ela pensou algo ainda pior: — Como eles ouviram falar de mim? Quer dizer, ouviram falar de mim aqui em Shadow Falls, certo? Certo? Burnett pareceu pouco à vontade com as perguntas. Ele olhou em volta, quase como se buscasse uma saída, ou talvez procurando Holiday para responder por ele. Quando não a localizou, olhou de volta para Kylie. — Eu... bem... as notícias se espalham. As pessoas comentam. — As pessoas? Você quer dizer as pessoas do acampamento? Ou pessoas fora de Shadow Falls estão falando de mim? Ele pareceu constrangido, mas assentiu. — Só as sobrenaturais. Só as sobrenaturais? — Então, todo o mundo sobrenatural sabe a meu respeito? — O pensamento fez Kylie ter vontade de enfiar a cabeça num buraco. Já era ruim o bastante saber que os campistas estavam sempre de olho nela, esperando para surpreendê-la em algum padrão estranho, mas pensar que ela era tema de discussão em todos os lugares fazia com que se sentisse extremamente desconfortável. — Talvez não todo o mundo sobrenatural — ele disse, como se para consolá-la, e então hesitou como se refletisse sobre a sua resposta. — Quer dizer, eu não poderia dizer que é todo mundo... — Ah, é provavelmente todo mundo — concluiu Miranda. — A minha mãe disse que estavam falando de você no conselho das Bruxas semana passada, na Itália. E eles ainda nem sabiam que você era uma bruxa. Pode imaginar a quantidade de comentários agora. Kylie não queria imaginar. Ela de repente sentiu um vazio no peito. — Estavam falando de mim na Itália? Você não me contou isso. — Ela mordeu o lábio. — Eu sou uma aberração tão grande assim...? — Foi por isso que eu não disse nada — explicou Miranda. — Sabia que você ia ficar assim. Mas você não é nenhuma aberração. É uma protetora. E ser protetora é demais. Tem que virar notícia assim como um desastre natural. Não que você seja um desastre. Quero dizer, você é, tipo, uma boa notícia. Nada daquilo contribuía para melhorar o seu ânimo. Ela se sentia mais como um desastre. E um desastre nada natural.
— “Protetora” é uma palavra que leva as pessoas a comentarem. Mas Miranda está certa, não é uma coisa ruim. — Burnett olhou para Kylie e, obviamente percebendo as batidas aceleradas do seu coração, fez um gesto apontando os novos professores. — Eles só querem dizer olá. Não interrogar você. Dizer olá para o desastre natural do acampamento, isto é, a aberração. O coração de Kylie bateu ainda mais rápido. — Não é nada de mais — tentou convencê-la Burnett. Certo. Mas para ela era. Especialmente quando olhou para eles e viu que todos os três professores a encaravam embasbacados. Dois estavam até franzindo a testa, verificando o seu padrão — e essa atitude tinha incentivado muitos campistas a fazerem o mesmo. Ela quase podia ouvir os pensamentos deles. Ei, quem quer dar uma boa risada? Deem uma olhada no padrão cerebral de Kylie agora. Ela ouviu alguém dizer algo sobre ela ainda ser uma bruxa. Kylie supos que ela devia ficar feliz por pelo menos ter um padrão definido, em vez daquele padrão mutante e exótico que realmente assustava as pessoas. Mas saber disso não ajudava a diminuir a sua ansiedade. Ela detestava ser o centro das atenções. Burnett, parecendo meio desconcertado com o dilema emocional de Kylie, inclinou-se em direção a ela e sussurrou: — Se você não quiser ser apresentada agora... — Não, eu... eu vou. — Seria bobagem não ir. E ela se sentiria uma idiota se deixasse todo mundo perceber as suas inseguranças. Ela não tinha nada contra conhecer pessoas novas, só detestava conhecer pessoas novas que já tinham uma ideia preconcebida sobre ela. E com certeza odiaria conhecer essas pessoas que estavam falando sobre ela na Itália. Provavelmente em italiano, e ela nem entenderia. Endireitando a coluna, ela simulou um sorriso, esperando parecer menos bizarra do que eles a consideravam. Era o mesmo sorriso, porém, que ela usava quando a mãe a levava a algum lugar em que ela não queria ir — como no dia em que a levara no trabalho para apresentá-la aos colegas ou em um daqueles almoços beneficentes. O que a mãe costumava dizer sobre aquele sorriso? Ah, sim: “Você parece que engoliu um mosquito”. É, ela ia parecer uma aberração, não tinha jeito.
 
Praticamente segurando o fôlego, Kylie sofreu enquanto Burnett a apresentava aos três professores. Primeiro foi Hayden Yates, senhor Yates para os estudantes, que lhe cumprimentou com um aceno de cabeça e um olhar mais do que desconfortável. O novo professor de ciências — metade vampiro, metade fae — lhe deu um aperto de mão um pouco mais longo do que o necessário. Considerando que sua metade fae era dominante, Kylie ficou surpresa ao reparar que, ao tocá-lo, não sentiu nenhuma alteração no próprio humor. E, embora não parecesse nenhum pervertido, algo com relação a ele fez com que ela estremecesse. Kylie não tinha certeza do que era, mas não gostou da sensação, nem do professor. Estranho, porque ela geralmente não fazia suposições negativas sobre as pessoas — com exceção do namorado da mãe, é claro. Mas aquele era um caso excepcional. O sujeito queria rolar nos lençóis com a mãe dela e isso não estava certo. Ava Kane, ou senhorita Kane, era a professora de inglês. Ela era metade bruxa e metade metamorfa, sendo a última metade a espécie dominante. Parecia simpática, mas o jeito como ficou franzindo a testa, tentando ver algo diferente no padrão de Kylie, fez com que ela se sentisse pouco à vontade. O que a professora achava que ia encontrar? Collin Warren, metade fae e metade humano, era o professor de história e um geólogo de pouca conversa. Estranho para alguém que tinha sangue fae, pois os faes normalmente tinham um charme natural, embora talvez alguns meio-faes não herdassem esse talento. Kylie já tinha ouvido falar que, em raras ocasiões, alguns humanos sobrenaturais tendiam a ser mais humanos do que sobrenaturais, e talvez fosse esse o caso do senhor Warren. Ele sorriu, no entanto, e cumprimentou-a, embora Kylie tivesse a impressão de que ele também não gostava de ser o centro das atenções. Isso a fez se perguntar por que, afinal de contas, ele era professor. Depois das apresentações, Kylie ficou ali parada, com um sorriso rígido nos lábios, esperando que algo acontecesse e colocasse um fim naquela situação desconfortável. Burnett finalmente interveio: — Bem, que bom que já se conheceram. Kylie aproveitou a deixa para se afastar, mas ao dar um passo descobriu que estava cercada por seis ou sete adolescentes que ela não conhecia. Obviamente os novos estudantes. Os olhares diretos e a curiosidade explícita em suas expressões fizeram com que ela ficasse tensa novamente. Uma coisa era ser alvo dos olhares dos campistas de sempre, mas também ser alvo dos recém-chegados... Seu coração acelerou e suas palmas começaram a suar. Só faltavam alguns minutos para o refeitório estar lotado de gente. Seu sorriso de “quem engoliu um mosquito” já tinha se desvanecido. E o mosquito que ela supostamente engolira parecia estar agora zumbindo no seu estômago. Ela não sabia se iria conseguir aguentar mais pessoas investigando seu padrão e mais apresentações desconfortáveis. — É verdade que no começo você nem tinha um padrão? — perguntou uma das garotas novas, uma bruxa. De repente, ela sentiu um braço sobre os seus ombros. Antes que olhasse para verificar quem era, reconheceu o toque reconfortante de Derek. — Desculpe, mas vocês vão ter que conhecer Kylie depois. Preciso roubá-la por um minuto. — Cara de sorte! — comentou um dos vampiros. — É, eu sou — respondeu Derek, com ar possessivo. Ele a levou para fora do grupinho de novos alunos, andando com confiança e propósito — o propósito de tirá-la do meio de todos aqueles olhares curiosos. Ela estava extremamente grata por Derek tê-la tirado de lá. Ela se aconchegou mais ao ombro dele e soltou um suspiro. — Segura as pontas — ele sussurrou. — Já vou tirá-la daqui.
Ele olhou por sobre o ombro e ela seguiu seu olhar. Ele olhava para Burnett. O vampiro acenou com a cabeça como se desse permissão para que ele a levasse dali. Ela só respirou outra vez quando saíram do refeitório. O braço de Derek a estreitou quando deixavam o edifício, como se ele não quisesse deixá-la ir. Embora ela odiasse ter que admitir, uma pequena parte dela também não queria se afastar. Mas sabendo que não era justo, ela se afastou. E então fitou os suaves olhos verdes do fae. — Desculpe — ela disse. — Pelo quê? — ele perguntou. Por tudo. Por sentir coisas que não devia. — Por precisar ser resgatada. Eu deveria saber lidar com aquilo. É que as pessoas me olham, como se eu fosse... — ... especial? — Ele sorriu. — Não, como se eu fosse uma aberração. Ele negou com a cabeça. — Elas não a consideram uma aberração. Elas estão curiosas. E aquele vampiro ali estava quase babando em cima de você! Mas eu sei que ainda é difícil. — Talvez quando eu souber com certeza o que sou, não seja tão difícil. — Mas ela já sabia, não sabia? Ela era um camaleão. Será que estava começando a duvidar disso, como todo mundo? Derek arqueou as sobrancelhas. — Você ainda não acredita que seja uma bruxa? — Não completamente. Ele assentiu. — Bem, isso tudo vai ser esclarecido amanhã, não vai? Quando o seu avô vier visitá-la. Foi nesse momento que ela se lembrou de que não tinha contado a Derek que seu avô não atendia ao telefone ou que ele e a tia tinham se transformado em neblina. Ela começou a desabafar com ele quando sentiu uma lufada repentina de ar frio.
A mancha de condensação começou a se materializar perto de Derek. A familiar silhueta feminina que tomava forma parecia-se com Hannah. Mas Kylie prendeu o fôlego quando viu que o espírito tinha voltado a assumir sua aparência de zumbi. O vestido bege que ela usava estava em trapos e sujo de lama. Seu cabelo parecia opaco e sem vida ao redor dos ombros. Parte da sua bochecha estava exposta, onde a pele tinha se decomposto e se soltara. E larvas se arrastavam por todo o seu corpo. Nojento. Instintivamente, Kylie deu um passo para trás. — De novo, não! — O pânico encheu os olhos sem vida de Hannah. — O quê? — Kylie se forçou a ficar no lugar. Mas as larvas estavam se espalhando pelo chão cada vez mais rápido. — O que disse? — Derek perguntou, aproximando-se mais dela. Uma das larvas caiu em seu peito. Kylie afastou-a com a mão e depois balançou a cabeça. — Ah! — Os olhos dele se arregalaram em entendimento. Ele deu um pequeno passo para trás, não tanto por medo, mas para dar mais espaço a ela. Kylie voltou a se concentrar em Hannah. Mas o olhar do espírito estava colado em algum lugar sobre o ombro de Kylie. Ela viu a porta do refeitório se abrindo atrás dela e o som de vozes. Hannah continuou com os olhos fixos no que acontecia atrás de Kylie. Então, de repente sua expressão se encheu de pânico. — Não! — Hannah murmurou, e suas mãos descarnadas agarraram Kylie pelos ombros. Havia larvas por todo lugar. — De novo, não! De novo, não! — O toque do fantasma enviava ondas sucessivas de tremor gelado pelo corpo de Kylie, que nem se lembrou mais das larvas. Todas as suas terminações nervosas doíam e seu corpo enrijeceu com a sensação de que seu cérebro e depois o corpo todo estavam congelando. — Está tudo bem? — Derek perguntou, chegando mais perto. O tremor que agitava todo o corpo de Kylie fez com que ela prendesse o fôlego. Ela queria gritar, mas sentiu como se alguém apertasse a sua garganta. Pontos pretos começaram a surgir diante dos seus olhos. Ela sentiu os joelhos começarem a ficar bambos. Derek tocou-a e, como por encanto, a dor e o torpor se desvaneceram. Piscando, ela viu que Hannah ainda estava ali, ao lado de Derek. Kylie respirou, depois forçou-se a falar. — De novo, não, o quê? Hannah não respondeu. Nem olhou para ela. Derek, sim, e ele parecia preocupado. — Olha, eu preciso saber o que posso fazer para te ajudar. Por favor, me responda. — disse Kylie. Mas o espírito, com os olhos assustados ainda fixos em algo atrás de Kylie, desvaneceu-se no ar. Derek passou a mão pelo braço de Kylie. — Tudo bem? Kylie assentiu, saboreando o toque quente de Derek. E então ela se voltou para ver quem estava saindo pela porta do refeitório, curiosa para saber o que tinha feito Hannah fugir. Burnett, os novos professores e um casal de novos alunos estavam parados na porta. — Era Hannah? — Derek sussurrou. — Sim — disse Kylie, ainda tentando adivinhar o que a irmã de Holiday estava tentando transmitir ao dizer “de novo, não”. — Você está bem mesmo? — ele voltou a perguntar. Ela tocou a garganta. — Estou. Eu só não sei o que ela precisa que eu faça por ela. — Não sei se ajuda em alguma coisa, mas acho que descobri onde Cara M. trabalhava. — Onde? — Quando você me disse que provavelmente era em algum lugar perto daqui, eu pesquisei no Goggle todas as lanchonetes e cafés da região. Descobri algumas fotos e um velho artigo de jornal sobre um lugar chamado Cookie’s Café, em Fallen. Você já esteve lá?
— Não, acho que não... Espere! Estive, sim, minha mãe me levou a esse lugar, que parecia uma casa antiga. Deve ser por isso que eu reconheci o uniforme. — Isso mesmo. A casa foi construída no século XIX. — Ele sorriu como se estivesse orgulhoso por ter encontrado a resposta para uma parte do enigma. Kylie quase sorriu também, mas então lhe ocorreu algo. E agora? Mesmo que tudo o que ela precisasse fazer fosse encontrar os corpos, como o fato de saber onde uma das garotas trabalhava poderia ajudá-la? Normalmente, ela conversaria com Holiday a respeito, mas... ela não poderia fazer isso sem antes saber exatamente o que estava acontecendo. Seria muito cruel com Holiday contar que a irmã estava morta, caso houvesse uma chance de Kylie ter se enganado com relação às visões. Então outra constatação atingiu-a em cheio. Ela provavelmente deveria procurar a polícia. Mas não sabia como poderia explicar como sabia de tudo aquilo. O que significava que só cabia a ela decifrar os assassinatos. De novo, não. De novo, não. As palavras de Hannah ecoavam na sua cabeça. O que ela estava tentando dizer? Oh, Deus, Kylie não tinha ideia do que fazer em seguida. Ela não era detetive. Nem sequer assistia aos seriados de TV sobre detetives. Ela olhou para Derek. — O que eu faço agora? — Eu liguei para a lanchonete, só para perguntar se alguma Cara M. trabalhava lá, mas Fallen é uma cidade turística e o restaurante só abre aos finais de semana. A mente de Kylie continuou dando voltas e se perguntando o que ela precisava fazer. — Droga, eu não tenho ideia do que fazer. — Não se preocupe — disse Derek. — Eu ajudo você. E, além disso, temos até sábado para decidir o que fazer. Ela olhou para ele agradecida. — Como eu posso te agradecer?
Ele deu um sorriso que era pura sensualidade, as raias douradas brilhando em seus olhos. — Posso pensar em algumas maneiras. Ela fez uma cara séria. Ele levantou a mão. — Tudo bem. Só sorria um pouco mais. Basta isso. Quinta-feira de manhã, Kylie acordou com Socks dando pancadinhas com a pata em seu queixo. Enquanto ela piscava para espantar o sono, acariciou o pelo macio do felino. O sol entrava pela janela e ela observou a claridade do dia e as sombras no teto disputando espaço — como um combate entre a luz e a escuridão. Enquanto a batalha continuava, ela sentia em seu espírito um embate parecido. Sua vida parecia uma miscelânea de problemas e, ao mesmo tempo, de muitas possibilidades. Ela tinha perdido Derek, mas ganhado Lucas. Tinha perdido a convivência com o padrasto, mas conhecido Daniel. Perdido sua humanidade, mas descoberto que era sobrenatural. E hoje era o dia em que ela supostamente encontraria o avô e descobriria o sentido de tudo aquilo, embora duvidasse muito que ele aparecesse. Kylie franziu os lábios e o lado mais sombrio do seu estado de espírito aflorou. Não que ela fosse deixar que ele ganhasse a batalha. Fechou os olhos e tentou ter pensamentos positivos. Mas sua mente flutuou até Hannah e o fato de que não podia mais adiar o momento em que contaria a Holiday que sua irmã estava morta. Só de pensar em como seria essa conversa, Kylie já perdia a disposição. Então seu coração a lembrou de que Lucas não tinha aparecido na noite anterior, embora tivesse prometido encontrá-la no final da noite. Agora era oficial. Seu lado negro e mal-humorado tinha levado a melhor. Ela voltou a olhar para o teto, sem deixar de perceber que as sombras de fato eram muito maiores do que os retalhos de luz do sol. Por alguma razão inexplicável, ela se lembrou de Nana lhe dizendo para aproveitar a infância porque logo ela seria adulta. Será que isso era ser adulta? Acordar todo dia sabendo que a vida lhe traria ambos, o que era bom e o que era ruim? Fazer o que tinha que fazer, mesmo desejando não fazer? Então se lembrou de outro conselho da avó: Não se esqueça, querida, às vezes não podemos mudar o que acontece, mas podemos mudar o modo como essas coisas nos afetam. — É mais fácil falar do que fazer, Nana. — Kylie respirou fundo, engolindo a frustração, e um doce aroma de rosas despertou os seus sentidos. Virando a cabeça, ela viu uma rosa sobre o criado-mudo. A lembrança de Lucas enchendo o seu quarto com as rosas que roubara do jardim da avó acabou com o seu mau humor. Então, ao avistar o bilhete ao lado da rosa, ela se sentou e pegou a folha de papel. Kylie, Desculpe o atraso. Aconteceu algo que me obrigou a visitar meu pai. Você estava dormindo profundamente quando cheguei aí. E, nossa, você é linda enquanto dorme! Se Della não tivesse me ouvido abrindo a sua janela e não tivesse colocado a cabeça na porta e me xingado por acordá-la — ela é de doer! —, eu teria me deitado com você na cama só para senti-la perto de mim. Você não tem ideia de quanto eu gosto disso. Senti-la contra meu corpo. Inteira. Bons sonhos, Lucas. Kylie pegou a rosa e levou-a até o nariz. O doce perfume a fez sorrir. Talvez o mau humor não fosse levar a melhor, afinal. Kylie reconsiderou a sua atitude positiva quando, algumas horas depois, teve que lutar contra um enxame de insetos ao entrar no bosque com Holiday e Burnett. Mas não eram os insetos que estavam acabando com o seu bom humor. Era um certo lobisomem de cabelos pretos e olhos azuis. Kylie devia se sentir empolgada por estar a caminho da cachoeira. Ela sempre se sentia bem depois de visitá-la. Mas, no momento, não queria se sentir melhor. Queria se sentir... furiosa! Espere. Ela não queria se sentir. Ela já se sentia assim.
Furiosa com o lobisomem que lhe deixara uma rosa e lhe escrevera um bilhete. Ela não estava mais aborrecida por ele não ter aparecido na noite anterior. Tinha tentado deixar de lado o fato de que ele tinha praticamente confessado que guardava segredos dela. Embora a contragosto, tinha aceitado que Fredericka, a ex-namorada de Lucas, estaria sempre ao alcance do seu toque, quando Kylie não podia ter o mesmo privilégio. Ela tinha tentado superar o fato de que a avó e o pai dele, além de toda a alcateia, não queriam vê-los juntos. Ela havia deixado de lado, superado e aceitado muita coisa. E, depois desta manhã, percebeu que talvez ela tivesse ido longe demais, porque, depois de não aparecer na noite anterior, depois de tê-la visto apenas por alguns minutos, ele mal falou com ela no refeitório aquela manhã. Outro mosquito passou zumbindo por Kylie e ela o pegou no ar, esmagando-o contra uma árvore. Bzzz... plaf! Lucas não podia ter se aproximado e tomado café com ela? Ela nem o teria culpado se tivesse levado Clara com ele. Mas, não, tudo o que ele fez foi sorrir, e até mesmo esse sorriso parecia propositalmente breve. Então ele tinha se sentado à mesa dos lobisomens com todos os seus amigos, sua alcateia — gente que evidentemente tinha mais importância que ela e provavelmente sempre teria. Na noite anterior, ele tinha escalado a janela do quarto dela um pouco depois da meia-noite, enquanto ela dormia. Havia deixado uma rosa e um bilhete carinhoso, e esta manhã tudo o que tinha feito foi lhe lançar um meio sorriso. O que estava acontecendo? Ela com certeza não fazia ideia. A quem ela queria enganar? Ela sabia, sim, exatamente o que estava acontecendo. Ela não era boa o bastante para ele, porque não era um lobisomem. Aquilo doía. Doía de verdade. Então, para deixar as coisas ainda piores, quando Derek se sentou ao lado dela, Lucas teve a audácia de lhe mandar uma mensagem pelo celular dizendo que não estava gostando nem um pouco.
Certo. Ele não estava gostando do fato de Derek estar sentado ao lado dela, mas ele mesmo tinha preferido não se sentar com ela. Em vez disso, seu “traseirinho sexy” estava prensado entre Fredericka e uma das novas lobas, que se jogava em cima dele, deixando até Fredericka enciumada. Sim, Kylie podia ouvir Lucas lhe dizendo que não precisava se preocupar com Fredericka. Dizendo-lhe que não tinha pedido para a nova garota se sentar ao lado dele, e que ele tinha que ser fiel à sua alcateia. E talvez Kylie estivesse errada por dar vazão à sua raiva, ou talvez ela não estivesse com raiva, apenas cansada de ficar sempre em segundo lugar. Ficar em segundo lugar era um porre. Outro mosquito foi desta para melhor quando ela o esmagou contra sua bochecha. — Talvez seja melhor ir mais devagar — disse Burnett, emparelhando com ela depois de dar algumas passadas largas. Kylie olhou para ele, que a analisou por um segundo, depois desviou o olhar para o terreno em volta, como se esperasse que alguma coisa saltasse na direção deles. Burnett parecia inquieto desde que entraram na floresta, mas Kylie nem tinha prestado muita atenção nisso; seu coração estava ocupado demais remoendo sua frustração por estar em segundo lugar aos olhos de Lucas, para se preocupar com a possibilidade de Burnett ter consumido muita cafeína. — Sério, é melhor diminuir o ritmo — aconselhou Burnett. — Por quê? — perguntou Kylie. Ele olhou de relance sobre o ombro novamente. — Por mais incríveis que sejam os faes, eles não são muito rápidos. Kylie suspirou. Ela não tinha percebido que estava andando num ritmo tão acelerado. Um ritmo que não condizia com o das bruxas também. O que significava que ela não era de fato uma bruxa, certo? Olhando para trás, viu Holiday correndo a toda velocidade para alcançá-los.
— Desculpe. — Kylie diminuiu o passo e notou que Burnett continuou a olhar em volta como se esperasse que alguém saltasse das árvores para cima deles. Será que tinha acontecido alguma coisa? E, se de fato tinha, teria algo a ver com ela? O barulho dos passos de Holiday estava mais próximo agora. Kylie olhou para Burnett e depois para Holiday. — Obrigada por irem mais devagar — agradeceu Holiday, parecendo sem fôlego. Em menos de um minuto, Burnett tinha ficado mais para trás de propósito, dando às duas privacidade para conversar a sós. Provavelmente por insistência de Holiday. Não havia dúvida de que ela queria conversar com Kylie, e Holiday não queria que ele ouvisse. O aroma de madeira da floresta enchia as narinas de Kylie. Pela primeira vez desde que tinham entrado no bosque ela se lembrou do avô e da neblina. Imediatamente tentou ouvir com o coração para ver se tinha a mesma sensação de antes, de que estava sendo chamada; não teve. Então imaginou se o episódio da neblina não era o motivo da inquietação de Burnett. Ou, pior, será que eles tinham tentado voltar e desligado os alarmes? Será que Burnett contaria a ela se isso tivesse acontecido? Provavelmente não. Ela olhou para trás, em direção ao vampiro. O que ele saberia? Aproximando-se de Holiday, Kylie perguntou: — Você pode responder a uma pergunta com muita sinceridade? Os passos de Holiday na terra molhada produziam um chapinhar, como se a pergunta de Kylie tivesse deixado seus passos mais pesados. — Eu não minto pra você. — Por omissão, mente, sim. Não ser franca com relação a algo é pior do que mentir. — E também havia a questão sobre quão fechada era Holiday com relação à sua vida pessoal. Embora Kylie confiasse na amiga, magoava saber que a confiança não era recíproca.
— Eu não escondo as coisas de você de propósito. — A franqueza das palavras de Holiday ficou pairando no ar cheio de umidade. Elas andaram sem se falar por alguns minutos. — O que você quer saber? — perguntou Holiday. Kylie tentou deixar de lado a frustração com relação a Holiday, sabendo que a sua raiva de Lucas estava afetando o seu humor. — O que há com Burnett? Ele parece mais alerta do que de costume. Ele... descobriu alguma coisa que tenha a ver comigo? Tem notícias do meu avô? Hoje era o dia em que ele deveria aparecer e, no entanto... não acho que haja uma chance de que ele venha. E ninguém está dizendo nada a respeito disso, como se nem estivesse acontecendo. Holiday franziu a testa. — Como não achamos que ele viria, decidimos não dar muita importância ao fato. Mas eu e Burnett conversamos sobre isso mais cedo e ele me disse que não teve notícia do seu avô. Mas... concordo que ele esteja... digamos, na defensiva. Eu perguntei a respeito. Ele disse que está nervoso. — O tom de voz dela parecia revelar que não estava muito convencida. Tampouco Kylie estava. Algo estava acontecendo. Mas o quê? À medida que avançavam pelo caminho de pedra, um frio pouco natural pareceu varrer a floresta com uma brisa. Alguém, que não era deste mundo, estava por perto. Ela deu uma outra olhada em Burnett, sobre o ombro, e lembrou-se da conversa que tinham travado a respeito de fantasmas. Será que era isso que o incomodava? Holiday diminuiu o passo e olhou para trás com preocupação. Um leve arquejo escapou dos seus lábios e sua expressão mudou de preocupação para aborrecimento. Não qualquer aborrecimento, mas aquele do tipo provocado pelo sexo oposto. O humor devia ser algo contagioso, porque os pensamentos de Kylie também se voltaram para os seus problemas com o sexo oposto e ela se perguntou se os homens não teriam sido criados apenas para atormentar as mulheres. Alguns minutos depois, ao longo da trilha, Holiday falou:
— Agora é a sua vez. O que está acontecendo com você? E não me fale que não é nada, porque você está exalando raiva por todos os poros. Kylie fechou a cara, zangada demais para negar seus sentimentos. — Meu problema é com Lucas. — Problemas com garotos, hein? — Catástrofes com garotos seria uma expressão mais correta. Eu não tenho certeza se consigo ir adiante. — Ir adiante? — A voz de Holiday deixava transparecer a sua preocupação. — Com Lucas — disse Kylie. Holiday fez uma careta e levantou uma sobrancelha. — Não estou querendo dizer... transar com ele... — explicou Kylie, percebendo o que tinha dito e achando que era por isso que Holiday tinha feito aquela cara. — Quero dizer, aceitar que sou a última das prioridades dele. Vê-lo me tratar como se eu fosse supérflua na vida dele. Me sentir como se todo mundo que Lucas conhece e de quem ele gosta achasse que não sou boa o suficiente para ele, porque não sou um lobisomem. Um brilho de compreensão surgiu nos olhos de Holiday. — Se for um consolo, não acho que Lucas compartilhe as antigas crenças dos lobisomens. A maioria dos jovens não concorda com elas, embora na sociedade deles exista uma pressão dos mais velhos para que essas crenças sejam adotadas. — Eu sei — disse Kylie. — E sei também que Lucas só tolera essas leis estúpidas porque precisa da aprovação do pai para conseguir mudar algumas coisas no conselho. Mas, quando ele nem sorri para mim por mais de um segundo, isso dói! — ela exclamou, perturbada. — Aposto que me sentir desse jeito faz de mim uma babaca egoísta. — Suas palavras ressoaram no fundo do seu ser e a culpa, como moscas sobre uma fruta podre, começaram a zumbir em torno do seu peito.
— Não — Holiday fixou os olhos verdes em Kylie enquanto faziam uma curva na trilha. — Isso não faz de você uma egoísta. Faz de você uma pessoa normal. Ninguém quer sentir que não é bom o bastante. — Mas mesmo assim eu me sinto uma babaca egoísta — disse Kylie. — O barulho da cachoeira chegou aos seus ouvidos e, mesmo àquela distância, ela sentiu que já estava acalmando os seus sentidos. — Ou me sinto egoísta quando não estou me sentindo furiosa. Holiday inclinou-se e roçou o ombro no de Kylie. — Os seus sentimentos são perfeitamente compreensíveis. Não se sinta culpada. Claro, Lucas está fazendo as suas escolhas por algum motivo. Faz parte do seu objetivo e todos nós precisamos pagar um preço por seguir nosso próprio caminho. Mas... — Ela fez uma pausa para pensar. — Nem sempre é justo pedir a outras pessoas que paguem esse preço junto conosco. — Ela olhou para Burnett outra vez. Kylie sentiu que as palavras de Burnett tinham um significado pessoal para ela. Nos últimos dias, Kylie suspeitou de que o relacionamento entre os dois tinha retrocedido. E ela não achava que fosse por culpa de Burnett. — Acho que ele estaria disposto a pagar esse preço — disse Kylie. Holiday franziu a testa. — Eu estava falando de você e de Lucas. — Eu sei — disse Kylie. Mas eu estava pensando em você e Burnett. Eles percorreram o resto da trilha e entraram num bosque de árvores frondosas, enquanto concluíam a caminhada até a cachoeira. O cheiro de umidade da terra molhada perfumava o ar, o som de água corrente tocava uma sinfonia de tons silvestres e o ambiente sereno era cada vez mais envolvente. A raiva de Kylie, suas frustrações, tudo parecia mais ameno a cada passo. E quando eles chegaram, foi... surreal! Cada vez que visitava a cachoeira, Kylie parecia se esquecer de quanto era bom estar lá. Eles ficaram de pé às margens do rio e contemplaram, em meio ao ar enevoado, a água que borrifava da cachoeira. Kylie ouviu a respiração de Holiday ficando mais profunda e tranquila, assim como a dela. — O que tem este lugar? — perguntou Kylie. — Magia. Poder. — Holiday se abaixou para tirar os sapatos e Kylie fez o mesmo. — Na década de 1960, um botânico sobrenatural veio até aqui para provar que tudo isso podia ser explicado pelos compostos químicos da vegetação. Como se fosse algum tipo de droga natural. — Mas como isso seria possível se nem todo mundo sente a mesma coisa? — Kylie perguntou, desamarrando o tênis. — Ah, mas aqueles que não se sentem bem-vindos aqui geralmente sentem o contrário, um desconforto que os leva a querer se afastar. É por isso que esse cientista acreditava que fosse uma reação química. O que significava que os poucos sobrenaturais que sentiam emoções positivas eram simplesmente geneticamente predispostos a reagir de modo diferente aos compostos das plantas. Como alguns grupos de pessoas reagem de modo diferente às drogas. — E o que ele concluiu? — Kylie perguntou, intrigada com o assunto, mas sem acreditar que se tratasse de uma espécie de droga mais do que acreditava em Papai Noel. Holiday tirou os sapatos, colocou-os sobre uma pedra e ficou de pé, olhando para Kylie com um leve sorriso nos lábios. — Nada. Depois de algumas semanas estudando a região, ele e sua equipe desistiram do patrocínio que viabilizava o projeto. Há boatos de que os anjos da morte os afugentaram. Kylie desviou o olhar para contemplar a paisagem bela e verdejante. A mistura de névoa e raios de sol filtrados através das árvores expressava o poder e a magia que Holiday mencionara. A atmosfera daquele lugar era reverente demais para ser considerada uma droga, e o esplendor natural era espiritual demais para ser dissecado e estudado num microscópio.
— Eu posso ver por que os Anjos da Morte não gostam que pessoas descrentes fiquem perambulando por aqui. Fico satisfeita que as tenham afugentado. — Eu também — concordou Holiday. Levantando-se, Kylie afundou os pés descalços nas margens cobertas de musgo. Mexendo os dedos dos pés, ela se curvou e tirou o jeans. Nesse exato instante, alguma coisa passou zunindo em frente a ela. Kylie engoliu um grito quando viu que era o pássaro azul. O pássaro que ela havia trazido de volta à vida e que tinha se apegado a ela, fazendo-lhe visitas ocasionais. Pairando em frente a Kylie, ele cantou como se tivesse composto uma balada só para ela. — Eu não sou a sua mãe — disse Kylie para o pássaro. — Vá embora, siga o seu caminho. Faça o que os pássaros costumam fazer. Deixe o ninho, quero dizer. Encontre uma linda fêmea azul para cortejar. — Que gracinha! — disse Holiday, rindo. — Talvez seja uma gracinha, mas é muito estranho também — murmurou Kylie. Depois de tirar o jeans, ela entrou no riacho. A água fria na altura dos calcanhares estava divinamente refrescante. Seu coração, que até momentos antes estava apertado, agora parecia mais leve. Pelo menos por ora, tudo parecia em paz. Seu mundo parecia algo fácil de lidar; seus problemas, solucionáveis. Ela se deixou envolver totalmente por esse sentimento. Se tinha aprendido alguma coisa com as visitas a esse lugar especial, era que até a vida mais fácil não era perfeita. Uma visita à cachoeira não mudava nada. Simplesmente oferecia à pessoa mais força para enfrentar as adversidades. A vida ainda poderia machucar como uma punhalada no coração. E ela tinha algumas cicatrizes para provar isso. Uma visão de Ellie encheu seu coração. No entanto, enquanto a brisa carregada de névoa gelada acariciava seu rosto, a dor foi diminuindo e se transformando em aceitação. Cada novo dia trazia novas oportunidades. Nem sempre podemos controlar a vida, apenas o modo como nos deixamos afetar por ela. Parando do outro lado do riacho, ela se virou para olhar para Holiday. A líder do acampamento estava parada, olhando para trás, em direção a Burnett, que estava entre as árvores. A expressão em seu rosto transmitia preocupação, fascínio e alguma outra coisa. Amor. Burnett e Holiday estavam destinados a ficar juntos. O sentimento veio tão forte e cheio de certeza que parecia trazer uma mensagem com ele — uma mensagem que Kylie não conseguia interpretar. Será que significava que ela deveria ajudar a fazer isso acontecer? Ou ela poderia confiar que, naturalmente, o amor encontraria uma maneira de se concretizar? E será que ela podia sentir o mesmo com relação a ela e Lucas? Não que estivesse preparada para chamar seu sentimento por Lucas de amor. Não que ele o tivesse chamado assim. Mas Derek tinha. Eu estou apaixonado por você, Kylie. Kylie fechou os olhos e tentou não pensar em nada que não fosse o sentimento calmo que a cachoeira oferecia.
 
O tempo pareceu parar enquanto Kylie e Holiday estavam sentadas lado a lado na gruta sob a queda-d’água. A parede de água tornava a luz do dia difusa, filtrando os raios de sol. E, quando fazia isso, a luz era capturada nas gotículas de névoa e dançavam no ar. A água precipitava-se com um rugido baixo e pequenas moléculas de umidade molhavam o rosto delas. Ocorreu a Kylie que talvez aquela fosse uma boa hora para contar a Holiday sobre sua irmã. Se alguma coisa podia ajudar a conter o choque da notícia, era a magia daquele lugar. Contudo, mesmo com a tranquilidade envolvendo-a, a ideia de dar à amiga essa notícia fez o coração de Kylie se contrair de dor. Então um frio familiar cortou o ar úmido. Hannah se materializou, em pé sobre uma poça d’água. Seus olhos verdes, brilhantes de lágrimas e cheios de tristeza, fixaram-se em Holiday. Alheia à presença da irmã, Holiday olhava para a parede de água que caía. Ela esfregou os braços como se estivesse com frio, e, em seguida, virou a cabeça e encontrou os olhos de Kylie. — Um visitante? Kylie balançou a cabeça, a garganta ficando mais apertada de emoção, quando ela relanceou os olhos para as lágrimas de Hannah. Holiday encolheu os ombros. — Estranho. Eles normalmente não entram aqui. Ela se deitou sobre a pedra e olhou para o teto da caverna, como se dando espaço a Kylie para conversar com o espírito. — Ela me odeia — disse Hannah. — E eu não a culpo. O que eu fiz foi imperdoável. — A vergonha inundou os olhos de Hannah de lágrimas.
Kylie quase perguntou a Hannah o que ela tinha feito, mas decidiu deixar o espírito iniciar a conversa. Kylie ficou ali sentada em silêncio, sentindo o frio da morte, que de certo modo se mesclava com a calma da cachoeira. Ela estudou a expressão carregada de emoção no rosto de Hannah e soube que o espírito tinha conseguido superar a desorientação que a morte provocava, a ponto de se comunicar. Seu estado parecia ter evoluído o suficiente para ela se lembrar. Será que ela se lembrara do que tinha acontecido um pouco antes de morrer? O nome do assassino, talvez? Mas tudo o que Kylie via no semblante de Hannah era arrependimento. Observar Hannah levou Kylie de volta à sua própria experiência de quase morte, quando Mario e seus amigos a encurralaram na beira do penhasco. Ela pensou que ia morrer. E teria de fato morrido se Ruivo, o neto de Mario, não tivesse sacrificado a própria vida para salvá-la. Ela se lembrou do arrependimento que a consumiu quando pensou que era o fim. Provavelmente a mesma emoção que Hannah sentia agora. Mas será que todo mundo não sentia a mesma coisa? Viver, supunha Kylie, significava cometer erros, acumular karma. Embora Kylie nunca tivesse de fato definido seu trabalho ou dom como comunicação com os mortos, ela presumia que ele incluía recordar os espíritos do bem que tinham feito em vida, além de ajudá-los a se perdoar pelos erros cometidos. Parecia que, durante a vida, passávamos a maior parte do tempo perdoando os outros. Depois da morte, era a nós mesmos que mais precisávamos perdoar. — Aposto que vocês duas eram próximas — disse Kylie. — Imagino que tenham se divertido muito como irmãs. Hannah olhou para Kylie. — De fato. Eu só queria... Ao ver que Hannah não ia continuar a frase, Kylie perguntou: — O que eu posso fazer por você? Só quer que eu conte a ela sobre a sua morte? Quer que você e as outras sejam retiradas daquela cova?
— Não mais. — Ela fez uma pausa, como se tentasse se lembrar de algo. — Não vai acontecer de novo. — O sussurro de Hannah ecoou nas paredes de rocha da caverna e o frio de sua presença aumentou. Kylie abraçou os joelhos. — O que não vai acontecer de novo? Hannah se aproximou um pouco mais, parecendo perdida em pensamentos. — Eu não consigo olhar para ela sem sentir... que eu estava tão errada! Com tanta inveja! Eu tive o que mereci. Eu merecia morrer, mas as outras não. É preciso detê-lo! — Mais lágrimas afloraram em seus olhos. O som de água corrente pontuava a quietude do ar enevoado, acrescentando uma atmosfera fantasmagórica ao lugar. — Ele a quer. — Hannah deu outro passo para a frente. O desespero enchia os seus olhos. — E você tem que impedi-lo. O olhar de Kylie desviou-se do rosto do espírito e se fixou na água parada da poça, que nem sequer se agitou quando Hannah avançou através dela. O espírito entristecido parou quando ficou bem diante de Holiday, olhando para ela com uma mistura de amor e arrependimento. Percebendo o que Hannah tinha dito, Kylie perguntou: — Quem? Impedir quem de fazer o quê? O telefone de Holiday começou a tocar e Kylie olhou para ela. A líder do acampamento se sentou, com as sobrancelhas franzidas. — Ok, isso é estranho também. Os celulares não costumam funcionar aqui dentro. — Tirando o telefone do bolso, ela olhou o número na tela. Kylie viu Holiday prender a respiração ao mesmo tempo que Hannah. O espírito soltou uma exclamação de desespero e disparou para fora da caverna. Seus passos, embora rápidos, eram silenciosos no chão de pedra. Um pouco antes de o espírito de Hannah atravessar a parede de água, ela olhou para trás, em direção a Holiday, que fitava chocada o número na tela. Então desapareceu, levando com ela todo o frio. — Quem é? — Kylie perguntou. Holiday balançou a cabeça. — É... Blake. — Quem é Blake? — Kylie perguntou, pressentindo que era uma pista para tudo o que estava acontecendo. Será que era ele que Kylie tinha de impedir que fizesse mal a Holiday? A vida de Holiday estaria em perigo? O barulho da cachoeira foi interrompido pelo barulho de alguém se aproximando correndo, através da água. Kylie e Holiday olharam na direção do barulho. Burnett, que estava de guarda do lado de fora da gruta, entrou através das quedas, com a face crispada de pavor. Suas roupas estavam molhadas e seu cabelo preto, grudado na testa e pingando água no rosto. — Para onde ela foi? — Ele piscou e então seu olhar se deteve em Holiday. Seus olhos se arregalaram. Ele balançou a cabeça, confuso. — Você acabou de... sair daqui correndo. Como pode estar aqui? — O quê? — Holiday perguntou. Burnett ficou simplesmente parado ali, sua pele ainda mais pálida do que a cor azeitonada normal, olhando para Holiday como se estivesse vendo um fantasma. Kylie de repente percebeu que era exatamente o que tinha acontecido. Burnett tinha visto Hannah. Ah, merda, pensou Kylie. Burnett não só podia farejar fantasmas, como também podia vê-los. — Como eu posso ter saído daqui correndo? — perguntou Holiday novamente, devolvendo o celular ao bolso do jeans. — Você não está dizendo coisa com coisa.
Kylie não sabia o que a levava a agir dessa maneira, mas ela olhou para Burnett e balançou a cabeça, como se dissesse que ele não deveria contar a Holiday o que tinha visto. Ele abriu a boca e então fechou-a novamente e fitou Kylie. Ela fez que não com a cabeça novamente e percebeu que ele tinha entendido. Então ele fixou os olhos em Holiday. Ainda parecendo perplexo, ele respondeu: — Acho que me enganei. Pensei ter ouvido você me chamar. — Não — respondeu Holiday. — Não chamei. — Muito bem — ele disse, e num piscar de olhos atravessou a parede de água, saindo da gruta. Holiday ficou olhando para o ponto onde ele estava um segundo antes. — Eu sei que você me disse que Burnett voltaria e não é que eu não acreditasse em você, mas ver isso com os meus próprios olhos me deixou pasma. Eu não... eu nunca vi ninguém ser capaz de vir aqui atrás, na gruta, sem ser abençoado. A mente de Kylie dava voltas, pensando no que dizer, mas então ela se lembrou do telefonema e da angústia no rosto de Hannah quando disparou para fora da caverna. Então teve o pressentimento de quem quer que tivesse ligado para Holiday tinha algo a ver com Hannah e poderia ser a pessoa com quem ela estava preocupada. — Quem é Blake? — perguntou Kylie novamente. — Você não tem uma reunião com um dos novos professores? — Burnett perguntou a Holiday quinze minutos depois, quando chegaram à clareira, na volta da cachoeira. — Por que não vai para o escritório enquanto eu levo Kylie até a cabana? Kylie olhou para Burnett e percebeu suas intenções. Ele queria ficar sozinho com ela para que pudesse perguntar sobre o que tinha acontecido na cachoeira. Ela podia dizer, pelo silêncio dele e pela cor dos seus olhos, que o interrogatório não seria fácil.
— Eu ainda tenho meia hora, caso você tenha outra coisa para fazer. — Holiday estudou Burnett com uma curiosidade explícita, provavelmente confusa com a mudança do tom dos seus olhos. No caminho de volta, ela tinha perguntado sobre a capacidade dele de entrar na cachoeira. Ele tinha dado de ombros e dito que nunca pensara muito naquilo. Que tremenda mentira! Ele obviamente tinha pensado muito naquilo. E tinha percorrido todo o caminho de volta pensando naquilo também, pois não tinha pronunciado uma palavra durante todo o percurso. Com todos em silêncio enquanto atravessavam o bosque, Kylie teve tempo para pensar e se preocupar. Tentando desvendar o mistério de Blake a cada passo, ela remoeu tanto o que acontecera que mordeu o lábio inferior até machucá-lo. Quando perguntou sobre o telefonema que recebera na gruta, Holiday se esquivou de dizer a verdade, sendo vaga: — Alguém que eu conheci. A resposta não esclareceu nada a Kylie. Ela se sentiu tentada a despejar sobre Holiday uma lista de perguntas. Blake também conheceu a sua irmã gêmea, de cuja existência eu supostamente não deveria saber? Você acha que Blake pode ter feito algo para a sua irmã, tipo matá-la? Eu preciso contar a Burnett sobre Blake, só para o caso de ele ser a pessoa que eu preciso impedir de fazer mal a você? Oh, sim, Kylie tinha muito com que se preocupar, incluindo o interrogatório que Burnett pretendia fazer. — Não, tudo bem — respondeu Burnett a Holiday. — Eu levo Kylie até a cabana. Você vai relaxar. Holiday fez uma cara preocupada, como se não estivesse nem um pouco disposta a relaxar, e olhou para Kylie como se a garota soubesse por que o vampiro estava agindo de modo tão estranho. Kylie deu de ombros. — Ok — conformou-se Holiday, pegando a trilha do escritório.
Kylie começou a percorrer o caminho até a sua cabana e apostou consigo mesma quanto tempo demoraria ainda para Burnett começar a crivá-la de perguntas. Um minuto? Dois? — Comece a falar! — Burnett não demorou mais do que vinte segundos. Ok, talvez ela tivesse superestimado a paciência dele. Ele parou de andar e olhou para ela, no rosto uma carranca. — Quem era aquela, na cachoeira, que se parecia com Holiday? Você usou seus poderes de bruxa para fazer aquilo? Kylie hesitou, insegura quanto ao que responder. Ela se lembrou de como se sentira quando constatou que passaria o resto da vida falando com pessoas mortas. — Eu não fiz nada. — Então quem era? — ele perguntou, autoritário. — E por que você preferiu esconder isso de Holiday? — Ao ver que ela demorava a responder, ele acrescentou. — Agora, Kylie! Eu quero respostas. E não esqueça que eu sei quando está mentindo. Ela deu um suspiro. Entendia a frustração dele, mas... — É a irmã gêmea de Holiday. Ele arqueou as sobrancelhas, numa expressão perplexa. — Holiday tem uma irmã gêmea? Kylie confirmou com a cabeça. Burnett desviou o olhar por um segundo, então voltou a encará-la. — Por que ela nunca mencionou isso? — Ele correu a palma da mão pelo rosto, expressando frustração e desapontamento. Então chegou à sua própria conclusão. — Porque ela não tem confiança nenhuma em mim. Seu olhar voltou a fitar Kylie. — Mas, espere aí. Como a irmã dela pode ter entrado no acampamento sem disparar os alarmes? Eu chequei meu telefone quando saí da gruta. Os alarmes não tinham disparado e não havia neblina para encobrir alguém que quisesse burlar o sistema.
— Ela não burlou o sistema. Ela... — Não havia um jeito fácil de dizer aquilo, mas ela fez uma pausa, tentando encontrar as palavras certas. — É a única alternativa — Burnett continuou. — O que mais poderia... — Ela está morta — disse Kylie, sentindo, no semblante carregado do vampiro, a pressão para que respondesse. — A irmã de Holiday é um fantasma.
 
— A irmã dela está morta? — O tom de voz de Burnett deixou transparecer a sua surpresa. — Como? O que aconteceu? Kylie se sentiu tocada ao ver que ele tinha pensado primeiro em Holiday, antes de querer entender exatamente o que estava acontecendo. Não que ela não esperasse que ele percebesse o óbvio dali a um minuto. Ou talvez em menos de um minuto. Os olhos dele se arregalaram de pânico e sua boca se abriu. — Não! Ela não pode ser... porque eu não posso... — Ele balançou a cabeça. — Não... — Isso não é muito diferente de farejar um fantasma. E você já sabia que era capaz disso — disse Kylie, esperando diminuir o choque de Burnett. — Uma ova que não é! É totalmente diferente! — ele esbravejou, passando a mão pelo cabelo. — Como eu poderia... Eu sou um vampiro e nós, vampiros, não... Não vemos espíritos! — Eu sei. Eu me lembro de Holiday dizendo isso. — Kylie fez uma pausa. — O mais estranho é que você viu, e normalmente só a pessoa que tem alguma ligação com o espírito o vê. Eu não vejo os espíritos que se manifestam para Holiday e ela não vê os meus. Então por que você viu Hannah? — Eu não deveria vê-los! — ele insistiu. — Sou um vampiro. Muito, mas muito poucos vampiros têm esse poder secundário. Kylie franziu as sobrancelhas para confirmar o padrão de Burnett. — Talvez você não seja cem por cento vampiro. Seu tataravô poderia ser um híbrido, e só agora esse dom que herdou dele veio à tona.
Ele passou a mão na própria testa. — O meu padrão não é totalmente o de um vampiro? Kylie deu de ombros. — É — Ela o fitou, solidária. — Mas, considerando tudo o que eu tenho passado, aprendi a não tomar um padrão pelo que ele é no momento. Burnett olhou para Kylie como se ela tivesse se metamorfoseado em algo ruim. — Mas isso só acontece com você. — É, às vezes é o que parece... — Ela achou o comentário um tanto engraçado. Encolheu os ombros de novo, contendo um sorriso, porque não achava que Burnett ia apreciar piadinhas naquele momento. — No entanto — Kylie continuou —, não podemos negar que algo está acontecendo. O seu padrão mostra que você é um vampiro, e vampiros puro-sangue geralmente não se comunicam com fantasmas. — Talvez seja um castigo por eu ter entrado na cachoeira. O primeiro impulso de Kylie, sendo ela mesma alguém que se comunicava com fantasmas, foi se sentir um pouco insultada ao ver que seu dom era visto como um castigo; o segundo impulso foi lembrar que, no início, era exatamente assim que ela se sentia. Como se estivesse sento punida. — O que foi? — ele perguntou, como se percebesse que ela tinha algo a dizer. Sem saber como escapar da saia-justa, ela disse exatamente o que se passava em sua cabeça. — Como Holiday sempre diz, isso é um dom, não um castigo. — É um castigo para mim. Diabos! — ele murmurou. Kylie ainda não conseguia entender como aquilo tinha acontecido. Afinal, até Holiday tinha explicado que era muito raro um vampiro ser capaz de se comunicar com os mortos. — Sério, os seus pais são de fato vampiros de sangue puro?
Ele olhou para ela como se a pergunta exigisse alguma reflexão. Depois, desviando os olhos, ele fitou o céu. Depois de vários segundos, voltou a olhar para ela. — Certo... vamos esquecer a minha dificuldade para aceitar tudo isso. — Ele passou a mão no rosto outra vez como se tentasse dissipar sua confusão. — Por que você não quer que Holiday saiba que a irmã dela está aqui? Kylie mordeu o lábio inferior, então soltou-o ao sentir dor. — Eu não acho que Holiday saiba. Primeiro eu quero descobrir exa- tamente... — Espere. Você não sabe se Holiday sabe o quê? — ele perguntou, impaciente. — Que a irmã está morta. Ele a olhou com assombro. — Ela não sabe? Ah, merda... — Ele soltou um suspiro. — Como a irmã dela morreu? Há quanto tempo? Mesmo antes de responder, Kylie suspeitava de qual seria a reação do vampiro. Ele não ia gostar disso. — Ela foi assassinada. Ela e outras duas garotas. O descontentamento transpareceu nos olhos de Burnett e sua postura enrijeceu. Ela acertou ao adivinhar a reação dele. E tentou não se deixar intimidar com a sua fúria. — Assassinada?! — esbravejou. — Há quanto tempo você sabe disso e por que, pelo amor de Deus, você só está me contando agora? — Eu... eu estou tentando descobrir. Hannah só agora está conseguindo me contar as coisas. E eu ainda estou tentando encaixar as peças. — Uma pequena parte dela estava se perguntando se ele talvez não estivesse certo e ela errada por tentar desvendar o mistério sozinha. Mas na verdade ela não estava tentando fazer tudo sozinha. Ela tinha Derek. Então pensou que talvez devesse ter contado tudo a Burnett, não a Derek.
Suas dúvidas começaram a vir à tona e depois se atenuaram. A calma que irradiara da cachoeira cresceu em seu peito e de algum modo ela soube que tinha acertado ao seguir seus instintos. Não era isso que Holiday sempre lhe dizia para fazer? — Caramba, Kylie. Você devia ter me procurado para que eu pudesse ajudá-la a descobrir o que aconteceu. Kylie sustentou o olhar do vampiro. — Como se você fosse muito receptivo aos meus problemas com fantasmas. Além disso, eu estava fazendo o que a minha intuição dizia que era o melhor. A postura de Burnett relaxou, como se ele compreendesse os motivos dela. — Mas se é a respeito de Holiday, eu sempre sou receptivo. Kylie viu nos olhos dele outra vez a lealdade por Holiday. Porque ele a amava, Kylie percebeu. Essa constatação levou-a a pensar em Derek e na disposição dele em ajudá-la com os fantasmas, quando ninguém mais se dispunha. O pensamento em Derek levou seu coração de volta a Lucas. O passeio à cachoeira tinha diminuído a animosidade que sentia com relação a ele, mas não completamente. Mais cedo ou mais tarde, os dois teriam que conversar. Ela só não sabia como essa conversa iria terminar. Ou como iria começar. Ela estaria certa de ficar com raiva dele por manter distância se ela sabia a razão que o levava a se comportar assim — evitar conflitos com o pai dele, de modo que ele pudesse receber mais votos para entrar no conselho dos lobisomens? Será que ela não deveria ser mais compreensiva e solidária? Burnett deu um passo para trás e mexeu o pescoço de um lado para o outro, como se estivesse tentando aliviar a tensão. — Holiday tem que saber. Kylie bateu a ponta do tênis na terra e tentou se concentrar no problema que tinha à mão e não nos seus dilemas com relação a Lucas. — Eu sei. Mas achei que, quando soubesse exatamente o que Hannah quer, seria mais fácil.
— Você acha que ela quer alguma coisa? Kylie assentiu. — Eles sempre querem alguma coisa. É por isso que não deixam este mundo. É por isso que nos procuram. — Procuram você — ele a corrigiu e depois acrescentou: — Você tem alguma ideia do que ela precisa? Kylie preparou-se para a reação dele novamente. — Eu não tenho certeza absoluta. A princípio, pensei que fosse apenas ajuda para que ela e as outras fossem retiradas da cova coletiva em que estão. Talvez encontrar quem fez isso com ela. Mas agora... agora eu acho que ela sente que tem que proteger Holiday de alguma coisa... ou de alguém. A expressão de Burnett ficou mais sombria, mas desta vez sua angústia não era dirigida a Kylie. Seus olhos brilharam com a necessidade instintiva de proteger Holiday. — Antes que você pergunte, eu não sei quem ou exatamente o que representa perigo para Holiday. — Kylie suspeitava que tinha algo a ver com o homem chamado Blake, mas não tinha certeza se deveria dizer isso a Burnett. Da última vez em que ela deu ao vampiro uma informação pessoal sobre Holiday, a amiga tinha ficado furiosa. Se Kylie descobrisse que Blake era uma ameaça, então contaria tudo a Burnett. Mas ela precisava de mais informações. Informações que nem Holiday nem Hannah pareciam dispostas a dar. Ele fez um gesto com as mãos, expressando frustração. — Então vá atrás de Hannah e diga que você precisa de respostas. — Não é assim que funciona. Não somos nós que procuramos os espíritos. São eles que vêem até nós. Ele franziu o cenho. — Não gosto nada disso. Nem um pouco. Nesse ponto, Kylie poderia concordar com ele. Ele ficou de pé ali, olhando para as árvores como se as respostas estivessem entre os galhos. Ela tinha o palpite de que ele não estava acostumado a não receber informações quando exigia. Se ele realmente se comunicasse com fantasmas, teria que aprender a ter paciência. Ela tinha dó do pobre fantasma que lhe aparecesse primeiro. Burnett finalmente olhou para ela. — Tudo bem, me diga tudo o que você sabe. Tudo mesmo. Vamos desvendar esse mistério. Mesmo antes de Kylie começar a falar, ela já pressentia que Burnett mudaria o jogo; só não sabia se isso era bom... ou ruim. Naquela tarde, Kylie estava de pé diante da geladeira aberta, olhando ali para dentro. Estava ouvindo o zumbido do eletrodoméstico e apreciando o ar frio que sentia em seu rosto, enquanto Miranda e Della conversavam sentadas à mesa atrás dela. Era incrível como um friozinho caía bem quando não era sinal da presença dos mortos. Não que ela não quisesse que Hannah aparecesse para uma visitinha agora. Ela realmente precisava de respostas. Mas, se tinha aprendido uma coisa, era que não podia apressar os fantasmas. Kylie tinha conseguido, não sabia como, convencer Burnett a dar um pouco mais de tempo a Hannah, antes de partir o coração de Holiday, dizendo-lhe que a irmã estava morta. Por alguma razão desconhecida, Kylie sentia que era importante saber exatamente do que Hannah precisava. Não que Kylie não se preocupasse com a possibilidade de que seu próprio desejo de adiar o máximo possível a má notícia a tivesse levado a tomar essa decisão. Burnett também concordara que ir à lanchonete para verificar se eles tinham informações sobre Cara M. poderia ser uma boa ideia. Ele estava planejando para que fossem no sábado pela manhã, com Derek. Burnett queria que Derek fosse porque, quando Kylie contou o que o fae tinha descoberto até o momento, ele ficara impressionado com a sagacidade do garoto para investigar os fatos. Ela não estava nem um pouco preocupada com a possibilidade de Lucas não gostar quando descobrisse que Burnett tinha pedido a Derek para acompanhá-los. Mas quem sabe ele nem ficasse sabendo. Ela passava tão pouco tempo com Lucas ultimamente que talvez o lobisomem nem viesse a saber. Ou nem se importasse.
Ela fechou os olhos. Ele se importava. Só que, no momento, havia outras coisas com as quais se importava mais. Beliscando o lábio, ela se lembrou de que ainda não tinha respondido à mensagem que Lucas lhe mandara aquele dia. Ela não sabia o que responder, pois não sabia mais como se sentia a respeito dele. Num minuto estava furiosa, no seguinte se perguntava se era justo ficar com raiva. — Qual o problema? — Miranda perguntou. Kylie abriu os olhos, concentrando-se no que havia diante dela e não no que estava sentindo. — Não temos mais refrigerante. — Por que você não conjura alguns? Kylie olhou para Miranda. — Conjurar alguns...? — Conjurar — repetiu ela, levantando o dedo mindinho. — Ah, por que você não conjura alguns para nós, então? — Kylie perguntou, vendo os olhos de Della se arregalarem. — Porque você precisa aprender — disse Miranda, com praticidade. — Você precisa assumir seu lado bruxa. Kylie tinha evitado conjurar qualquer coisa depois do acidente com o peso de papel e Burnett. E ela gostaria de continuar evitando, mas, pelo olhar de Miranda, não daria mais para adiar. Bem, pelo menos não sem ferir os sentimentos da bruxinha. E Kylie detestava ferir os sentimentos de alguém. Especialmente os de Miranda. — Tudo bem... como eu faço isso? — Ela fechou a porta da geladeira e respirou fundo. — Sem pôr em perigo a vida de ninguém? Miranda deu um gritinho de alegria e se ajeitou melhor na cadeira, cheia de empolgação. Della lançou para Kylie um olhar de aprovação, como se dissesse que ela estava fazendo a coisa certa.
— Gostei da parte sobre não pôr em perigo a vida de ninguém. — a vampira acrescentou com um sorriso. — Respire fundo várias vezes — ensinou Miranda. — Relaxe. Concentre-se. Então visualize uma embalagem com seis refrigerantes bem gelados e mexa o mindinho. Uma embalagem com seis refrigerantes bem gelados. Kylie levantou o dedinho e nesse mesmo instante Della entrou na conversa. — Estamos falando de uma embalagem de refrigerante, né? Não de um six-pack, como se costuma chamar um cara sarado com barriga de tanquinho... Ouviu-se um chiado no ar. E de repente apareceu em frente à geladeira um rapaz sem camisa, com barriga de tanquinho, tremendo de frio. Seu cabelo castanho caía sobre a testa e seus olhos azuis estudavam as três com uma expressão perplexa. — Que diabos é isso? — ele murmurou. Kylie ofegou. Miranda deu uma risadinha. Della reprimiu uma risada. — Desapareça! — Kylie gritou, o rosto vermelho enquanto agitava o dedinho na direção do rapaz. Ele sumiu tão rápido quanto apareceu. Kylie olhou para trás, na direção das duas amigas, que agora gargalhavam. Ela pôs a mão sobre o coração, que batia acelerado. — Nem pense em me convencer a tentar outra vez — ela guinchou. — Quem era... ah, qual o nome dele? Zac alguma coisa? — Della perguntou. — O ator, quero dizer. — Ah, meu Deus, era ele! — disse Miranda. — Eu sempre achei que ele se parece um pouco com Steve, não acham? — perguntou Della. — Ah, droga! — Kylie cobriu o rosto com as mãos. — Eu não machuquei o garoto, machuquei? Ele não vai ter, sei lá, um câncer ou algo assim?
— Não — respondeu Miranda, ainda achando graça. — Ótimo! — disse Della, esfregando as mãos. Então traga o carinha de volta. Eu quero ver se ele realmente se parece com Steve. — Está maluca? — Kylie perguntou a Della. Então ela se concentrou em Miranda. — Ele vai se lembrar disso? Vai achar que enlouqueceu? — Aconteceu muito rápido, ele provavelmente vai achar que imaginou tudo. Além disso, não foi culpa sua. — Miranda deu outra risada. — Foi Della. — Miranda apontou para a acusada. — Ah, certo. Culpe a vampira! — gritou Della. Miranda revirou os olhos. — Della colocou uma imagem nos seus pensamentos e por alguma razão você visualizou Zac Efron. — Miranda sorriu outra vez. — Você obviamente se sente atraída por ele. Kylie começou a negar, mas não pôde. — Eu ainda não estou assumindo a responsabilidade por isso — disse Della. Miranda olhou para Della. — Acho que deveria ter dito para você ficar quieta. Desculpe. — Ela cobriu a boca para esconder uma risadinha. Então se sentou ereta na cadeira. — Mas... uau! Tenho que dizer que estou chocada. Só as bruxas mais poderosas conseguem transportar seres humanos. Nem minha mãe consegue. — Vocês não acham que ele se parece com Steve? — Della perguntou novamente. Kylie desabou na cadeira. — Eu não estou nem aí para quem ele parece. Não vou fazer de novo. Não tenho controle nem conhecimento. Tenho certeza de que vou fazer alguma besteira. — É por isso que precisa praticar. Além disso, nada ruim aconteceu — disse Miranda.
— Sério? Eu trouxe um ator de cinema seminu para a nossa cabana! — E por que isso é ruim? — Della perguntou. — Quero dizer... eu detesto dizer isso, mas, pela primeira vez, estou vendo que talvez seja legal ser bruxa. — Obrigada! — disse Miranda, endireitando-se na cadeira. — Quero dizer, você pode conjurar qualquer coisa que quiser? Um cara gostoso? Um copo de sangue O negativo? Um jeans novo? — Della perguntou. — Ah, pelo amor de Deus, não se pode fazer nada disso — explicou Miranda. — É totalmente contra as regras. — Mas... — Kylie olhou para Miranda. — Você acabou de me mandar fazer isso. — Sim, mas você é novata. Não conta. — Miranda olhou para Della. — Isso não quer dizer que eu não faça. Se for por um bem maior, tudo bem. Se for em benefício de alguém, bem, tem de haver uma razão. Se me derem um sanduíche de atum e eu quiser um de peru, não é grande coisa. É trocar uma carne por outra. Mas, se eu fizer isso com muita frequência, sou convocada. — Por quem? — perguntou Della. — Pelos deuses da carne? Miranda franziu a testa como se dissesse que estava falando sério e Kylie concordava. — Pela sociedade wiccana. — Espere aí — disse Kylie. — Você quer dizer que eles sabem o que eu faço? Della limpou a garganta como se para avisá-la, mas Kylie não entendeu o aviso. Ela estava preocupada demais com a possibilidade de a sociedade wiccana saber dos seus erros idiotas para prestar atenção. — Sim — disse Miranda. — Eles são como Papai Noel com sua bola de cristal mágica. Sabem se você se comportou mal ou não. — Que ótimo! Então alguém está olhando numa bola de cristal neste exato momento e vendo que eu conjurei um ator gostosão seminu? — Kylie perguntou.
— Você fez o quê? — A voz grave masculina soou atrás de Kylie. Kylie congelou, preocupada que Zac tivesse voltado. O fato de que ela não estava nem um pouco feliz com isso revelava muito sobre a sua disposição também. Então ela recapitulou a voz na sua cabeça e reconheceu o timbre de tenor. Droga. Agora ela estava de fato encrencada.
 
Kylie se virou na cadeira e olhou para o rosto intrigado de Lucas. Ele usava uma calça jeans preta e uma camiseta azul-clara. A camiseta era justa o suficiente para ela saber que seu abdômen de tanquinho não ficava atrás do de Zac. Ele continuou a encará-la. — O que você acabou de dizer? — Era... um feitiço que deu errado. Eu conjurei um cara aqui por alguns segundos. — Normalmente ela enrubesceria, mas seu tumulto emocional com relação a Lucas afugentou qualquer constrangimento. Kylie ficou de pé. Sentiu-se desconfortável sentada ali. Seu peito se encheu de alegria ao vê-lo e de angústia pela raiva mal resolvida que sentira. Ela queria beijá-lo, mas queria também extravasar toda a sua raiva e gritar. — Ah... — Ele olhou para Della e Miranda. Mas antes que colocasse a pergunta em palavras, elas se levantaram. Miranda se afastou como se não estivesse interessada na conversa, enquanto a postura de Della exalava rebeldia. — A gente vai lá pra varanda. — O tom da vampira combinava com a sua expressão corporal. — Obrigada. — Embora Kylie não tivesse confidenciado às amigas as suas mais recentes inseguranças com relação a Lucas, ela sabia que elas suspeitavam. Assim como ela própria sabia o que se passava na vida delas. Ela observou enquanto as suas duas melhores amigas saíam da cabana para lhes dar privacidade. O olhar de Kylie se fixou em Lucas e seus profundos olhos azuis sustentaram os dela até a porta se fechar. Ela se virou e ficou de frente para a geladeira, tentando descobrir o se sentia... além da mágoa que partia o seu coração. Só para ter algo que fazer, abriu a porta da geladeira. — Quer beber alguma coisa? — ela perguntou, sem saber o que faria se ele aceitasse, pois não havia nada ali exceto um vidro de picles quase vazio e uma garrafa de sangue, que pertencia a Della. — Escrevi três mensagens e também enviei e-mails e você não respondeu. — Ele parecia magoado. Fechando os olhos, ela tentou afastar a culpa que lhe causava um nó no estômago. — Eu ainda não chequei os meus e-mails. — Ela fechou a geladeira e foi até a cadeira em frente ao computador. — O que você está fazendo? — ele perguntou. — Checando os meus e-mails. Você não disse que tinha enviado? — Ela parecia uma idiota. Tudo bem, não só parecia uma idiota, mas estava se comportando com uma, mas ela precisava de alguns minutos para pensar. Ela estava errada em sentir raiva? Ou estava certa? Kylie se deixou cair na cadeira. Com o computador ligado, só era preciso um clique do mouse para baixar seus e-mails. Percorreu a lista com os olhos uma vez e encontrou o nome de Lucas. O assunto de todos os três e-mails que ele mandara era o mesmo: sinto sua falta. Agora um nó se formou na sua garganta. — Você está com raiva de mim por algum motivo? — ele perguntou. — Sim. — Ela passou os olhos pela tela e sentiu como se seu peito estivesse se expandindo — ficando maior e maior —, até quase transbordar de emoção. A dor era real, tornando difícil até respirar. Ela engoliu em seco. — Não.
— A resposta é sim ou não. Está com raiva ou não está? — Seu tom de voz deixava transparecer sua mágoa. Ou raiva. Ou talvez as duas coisas. Ela fechou os olhos e, embora não pudesse ouvi-lo, sentiu-o se aproximar. Seu cheiro, um maravilhoso aroma de terra, parecia impregnar o ar da cabana. Ela inspirou. — Talvez. — Hmm. — Ele de fato estava mais perto. Muito perto. Bem atrás dela. Quase tocando-a. Ela estava tentada a se virar, mas não fez isso. Olhou para a tela do computador e segurou a respiração. — É isso que significa quando dizem que as mulheres têm o privilégio de poder mudar de ideia? — Um leve toque de humor matizava a voz de Lucas. — Pode ser — ela murmurou. — Está assim porque não apareci ontem à noite? Mas eu deixei um bilhete. Você estava dormindo. — Não é por causa disso. — O olhar dela estava fixo no computador. Kylie localizou três e-mails do seu pai. Outra coisa emocionalmente difícil com que ela tinha que lidar. Agora que sabia que sua mãe estava se encontrando com outro homem e que ela e o padrasto provavelmente nunca voltariam a ficar juntos, era ainda mais difícil vê-lo. Ela piscou. — Então por quê? — A mão dele pressionou o ombro dela de leve. Uma sensação de calor fluiu da palma de sua mão. — Porque neste momento, eu adoraria poder beijá-la e não sei se posso. Não sei se está furiosa comigo, quero dizer. Inspirando fundo, o coração de Kylie começou a bater freneticamente ao pensar em Lucas beijando-a. Em seu peito contra o dele. — É porque você está me evitando — ela disse. — Está me mantendo afastada de você.
A outra mão dele acariciou o outro ombro dela. — Só até o meu pai aprovar que eu me junte ao conselho. Eu sei que é difícil, e sim, ficarmos juntos vai ser ainda mais difícil com Clara aqui, mas... Eu preciso da aprovação dele. Não acho que vá demorar muito. Ela piscou mais uma vez e foi então que viu. Quatro... não, cinco e-mails com a palavra “neblina” na linha do assunto. Seria possível...? — Ah, merda! — Ela viu outro e-mail do mesmo endereço cujo assunto era “conversa”. — O que foi? — ele perguntou. Ela abriu a boca para contar a ele, mas fechou-a ao mesmo tempo que fechou o e-mail. Ela não queria contar a ele sobre o fato de seu avô ter perseguido a irmã dele. Não tinha contado porque não lhe parecia conveniente. Agora parecia menos ainda. Se ela decidisse encontrar o avô sem Burnett, Lucas não aprovaria. Ele era superprotetor e insistiria para que ela contasse ao vampiro. Kylie não podia deixar Lucas contar a Burnett, pois o vampiro não deixaria que ela encontrasse o avô sem que ele estivesse presente. E ela tinha a impressão de que o avô não estava muito disposto a encontrar Burnett. Ela precisava falar com o avô — com ou sem Burnett por perto. Ele tinha respostas, e descobrir essas respostas era seu objetivo. Quantas vezes Holiday não lhe dissera que ela deveria seguir seu coração? E seu coração lhe dizia que essa era a coisa certa a fazer. Lucas teria que entender. E nesse exato momento, ocorreu algo a ela. O objetivo de Lucas era fazer parte do conselho. E, para tanto, ele tinha que fingir em frente à alcateia e Clara, para convencê-los de que ela não era importante para ele. Como ela poderia ficar zangada com o namorado quando... ela também tinha prioridades igualmente importantes? Isso significava que ela tinha que ser mais compreensiva. Se, para atingir seu objetivo, eles não poderiam se sentar juntos nas refeições ou ele precisava fingir que não eram namorados, ela aceitaria isso. Assim como esperava que ele aceitasse que ela também tinha um objetivo. Ela se levantou e se virou de frente para ele. — Desculpe. Minha reação foi exagerada. — Ela colocou as mãos no peito dele. Ele olhou para ela, como se estivesse ainda mais intrigado. — Não está mais com raiva? Ela abriu um sorriso sincero. Ao pensar que seu avô não tinha desistido de vê-la, o peito de Kylie se encheu de emoção como uma bolha de ar. Ela olhou de relance para o computador e então para Lucas. — É duro sentir que estou em segundo plano, mas... — Você não está em segundo plano. Quando eu entrar para o conselho, terei condições de pôr um fim nessa droga toda. Os lobisomens mais jovens não veem a hora de que haja uma voz no conselho que exprima as opiniões deles. Eu vou conseguir o apoio deles e os mais velhos não vão poder mais nos dizer como devemos viver a nossa vida. Eles não vão mais responsabilizar ninguém pelos pecados dos pais. Por favor, me dê mais um pouco de tempo. — Eu vou dar. E lamento ter sido tão idiota. Ele a puxou mais para perto. Tão perto que o calor do seu corpo enviou uma onda de prazer que a atravessou da cabeça aos pés. — Eu sei — disse Kylie. — E entendi agora. — Ela encontrou o olhar de Lucas e umedeceu seus lábios com a língua. — Você estava dizendo algo sobre me beijar? Ele arqueou as sobrancelhas, mas abriu um sorriso. — Acho que nunca vou entender as garotas. — Então pare de tentar. — Ela ficou na ponta dos pés. Queria que Lucas a beijasse ardentemente e então queria que ele fosse embora para que ela descobrisse o que seu avô tinha lhe dito nos emails. Mas no momento em que os lábios dele encontraram os dela, quando seu peito quente pressionou os seus seios e suas mãos deslizaram sob a sua blusa, apertando a pele nua da cintura, ela decidiu que os e-mails poderiam esperar um pouco mais. Isso... isso era magia. O tipo de magia que ela podia fazer sem causar nenhum tipo de prejuízo. Naquela noite, Kylie foi para a cama sem trocar de roupa, esperando ouvir Miranda chegar do seu encontro com Perry. As noites do casal eram cada vez mais longas. Não que Kylie pudesse culpá-los. Afastar Lucas depois daquela breve sessão de beijos não tinha sido fácil — mesmo com os e-mails do avô esperando por ela. Lucas tinha emitido aquele zumbido de desejo e ela emitira o mesmo zumbido junto com ele. A capacidade que os lobisomens machos tinham de seduzir suas companheiras tinha cativado sua alma e seu coração. Seu toque era divino, ela não queria que ele parasse. Era cada vez mais difícil não ceder. E, no entanto... ela o afastou. Talvez por causa dos e-mails. Talvez porque não quisesse que questões não resolvidas interferissem na sua primeira vez. E, embora ela entendesse que Lucas estava tentando alcançar o seu objetivo, lá no fundo, isso ainda a feria. No entanto, provavelmente a questão maior que a levou a não ceder talvez tenha sido Della e Miranda esperando do lado de fora, na varanda. Com certeza aquela tinha sido a razão mais importante que a fez encontrar forças para impedir que as coisas fossem longe demais. O fato de que ela e Lucas tivessem acabado o encontro deitados no sofá, no maior amasso, enquanto as duas amigas esperavam na varanda, fez com que ela ficasse com as bochechas ardendo quando olhou para as duas, depois de Lucas ter ido embora. O que deixou a coisa ainda pior foi saber que Della podia farejar os feromônios que eles tinham exalado. Ela esperava, porém, que as bochechas vermelhas e os feromônios a ajudassem a fazer com que seus planos de hoje à noite funcionassem. Os planos de Kylie tinham lhe ocorrido tão logo ela lera o e-mail do avô pedindo que o encontrasse — sozinha — no Cemitério de Fallen.
Será que o avô tinha descoberto a verdade? Que até pouco tempo antes, sua mulher, a avó de Kylie, estava enterrada ali numa sepultura anônima? O e-mail que Kylie mandou para ele, em resposta, foi breve: “Farei o possível para estar lá a uma da manhã”. O fato de não ter recebido nenhuma resposta incomodou-a um pouquinho. Ele tinha perguntado. Ela tinha respondido. O que mais era preciso dizer? Mas isso não a impediu de checar a sua caixa de entrada a cada quinze minutos. O que havia de pior em tudo aquilo era a mentira que ela teria que contar às colegas de alojamento. Uma mentira que só funcionaria se Della não sintonizasse automaticamente o batimento cardíaco mais rápido de Kylie quando ela mentisse. Se Kylie pudesse falar uma inverdade e Della acreditasse no ato, ela não iria verificar seu batimento cardíaco. Ou pelo menos Kylie rezava para que funcionasse dessa maneira. Alguns minutos depois, Kylie ouviu Miranda e Perry na varanda. Ela saiu da cama. Silenciosamente, foi para a sala, esperando Miranda entrar na cabana. Kylie sabia que Della provavelmente já tinha percebido que ela saíra do quarto. A porta se abriu e, quando Miranda a viu, teve um sobressalto. — Sou eu — disse Kylie. — O que está fazendo acordada? Sem querer se arriscar a mentir duas vezes, ela colocou seu plano em ação. — Você o viu? — Kylie perguntou. — Quem? — perguntou Miranda, olhando para a amiga atentamente. — Você está tendo uma daquelas visões estranhas outra vez? — Não. Você viu Lucas? Ele ficou de me encontrar e nós... vamos a um lugar para ficarmos sozinhos. — Correndo para a janela, ela deu uma olhada para fora. — Eu o vi — Kylie mentiu, e imediatamente se sentiu culpada. — Estou indo. Miranda segurou-a pelo cotovelo.
— Você vai aonde...? Talvez fosse imaginação de Kylie, mas ela podia jurar que ouviu Della se levantando da cama. — Conte a Della por mim. Diga a ela que eu quero ver Lucas. Diga que, por favor, nos deixe a sós desta vez. — Se agora Della estivesse ouvindo com a sua audição supersensível, ela saberia que era verdade. Kylie de fato queria estar com Lucas. Sabendo que era imprescindível que ela saísse antes de Della chegar, Kylie correu rumo à escuridão, deixando Miranda parada ali com a boca entreaberta, prestes a dizer alguma coisa. O ar de final de agosto era frio quando Kylie disparou pela varanda e correu o mais rápido que pôde para fora da cabana. Por favor, que isso funcione. Por favor, que eu consiga. Ela repetia as palavras como uma oração. Seu corpo vibrava quando pensava que estava seguindo seu coração. A cada passo, sua confiança aumentava. Apesar do aviso de Burnett para não entrar sozinha na floresta, ela sabia que aquela era a rota mais rápida e não hesitou em tomá-la. Movendo-se entre as árvores, ela aceitou o risco. Mario, ou quem estivesse ao lado dele, poderia esperar. Mas era um risco que ela correria, disse a si mesma, ignorando a sensação de estar sendo seguida. Ignorou a culpa que sentiu por mentir para suas duas melhores amigas. Ela teve que mentir. Aquela era a sua busca pessoal. E o risco deveria ser apenas dela, não das amigas, que se sentiam compelidas a se unir a ela. Kylie não iria colocar ninguém no caminho de Mario. De repente, o telefone em seu bolso bipou com a chegada de uma mensagem. Ela diminuiu o ritmo apenas o suficiente para ler a mensagem. Derek. — Droga! — murmurou, a voz um sussurro no ar da noite. Com certeza o fae tinha sentido suas emoções e estava preocupado. Mas, se ela lhe contasse, assim como a Della e a Miranda, ele acharia que deveria acompanhá-la. Ela enfiou o telefone do bolso e então acelerou o ritmo da corrida. Enquanto ela se esquivava de galhos e arbustos espinhosos, ouvia os barulhos da noite — o fato de a floresta não estar em silêncio a tranquilizava. Se Della a tivesse seguido, ela já estaria ali. Kylie só podia supor que o plano tinha dado certo. Della tinha respeitado a sua vontade de ficar a sós com Lucas. Consciente da distância que já tinha percorrido, Kylie sabia que estava perto da cerca que delimitava a propriedade de Shadow Falls. Seu coração martelava com o medo de que seu plano pudesse falhar quando atravessasse aquela cerca. Burnett poderia vir correndo. No entanto, ela tinha ouvido rumores de que alguém estava sempre violando as regras. Perry, que nunca gostara de ser restringido na sua capacidade de se transformar em outras criaturas. Lucas e sua alcateia, que sempre eram convocados pelos anciões da sua espécie, que não obedeciam às regras de Shadow Falls. Talvez, só talvez, Burnett não percebesse que era ela a pessoa que estava ultrapassando os limites de Shadow Falls. A cerca já era visível. Ela assomou-se diante de Kylie, com seus quase dois metros de altura. A garota acelerou o ritmo da corrida, rezando para que conseguisse transpor a barreira de metal. Seu corpo parecia leve quando saltou no ar, subindo cada vez mais alto. Seus pés passaram por cima da cerca e ela chegou ao outro lado, esperando não cair de mau jeito e se machucar. Ela bateu com força no chão e rolou alguns metros. Então se levantou e massageou o cotovelo, que tinha amortecido a queda. A dor diminuiu, ofuscada pela sensação de vitória. Ela tinha conseguido. Iria conseguir ver o avô. De repente, Kylie notou uma sensação pegajosa de sangue na palma da mão. O odor de frutas silvestres entrou pelas suas narinas. Quem diria que seu próprio sangue tinha um cheiro tão bom? Sem se importar com o corte superficial, ela continuou a correr cada vez mais depressa, distanciando-se rapidamente da cerca.
Os sons da noite continuavam em volta dela. Nenhum vampiro deixava a noite silenciosa. Ela estava sozinha. Kylie cruzou a entrada e passou por entre as árvores que a margeavam, enquanto continuava seguindo em frente. Pelos seus cálculos, só alguns quilômetros a separavam do cemitério. Ela iria finalmente encontrar o avô e descobrir a verdade. O mistério do que ela era — do que significava ser um camaleão — estava prestes a ser desvendado. Um sorriso surgiu em seu rosto. A sensação de vitória irrompeu em seu peito e lhe deu mais velocidade, agilidade e coragem. Pelo menos até ela ouvir uma voz masculina dizendo: — Aonde é que você pensa que vai? O sangue pulsou em seus ouvidos e ela não reconheceu a voz a princípio — só sabia que não era Burnett. Não importava. Ela não queria nem saber quem era, pois ninguém era bem-vindo naquele momento. Ela tinha uma missão e não queria companhia. E era exatamente isso que planejava dizer ao intruso. Kylie parou de repente — ou tão de repente quanto era possível parar quando se está correndo numa velocidade muito acima da humana. Seus joelhos se dobraram. Ela passou os braços em torno de uma árvore, apoiando-se nela para não cair. Ainda incerta quanto à identidade do intruso atrás dela, ainda agarrada à árvore para se manter de pé, outra voz, diferente da primeira, falou: — Eu ia fazer a mesma pergunta.
 
A decepção provocou uma sensação de fraqueza em todo o seu corpo. Havia dois intrusos ali, não apenas um. Ela queria gritar, mas o ar ficou preso em seus pulmões e ela não conseguiu emitir nenhum som. Furiosa, Kylie se virou para confrontar os donos das vozes. De uma coisa poderia se orgulhar: ela estava certa. Não havia vampiros no bosque. Só um metamorfo malcriado, na forma de um pássaro, e um lobisomem muito contrariado. Kylie aspirou uma golfada de ar. Ainda sem recuperar o fôlego, ela se curvou para a frente e se apoiou nos joelhos até conseguir voltar a respirar normalmente. Quando seu cérebro voltou a ser oxigenado, seus pensamentos começaram a clarear. E um deles se destacou. Ela não iria deixar que eles a detivessem. Sem rodeios, olhou para Perry com pura determinação. Então lançou o mesmo olhar para Lucas. — Eu estou seguindo a minha busca pessoal. Vocês precisam ir embora e me deixar fazer o que é preciso. — Você perdeu completamente o juízo? — perguntou Perry. — O que está acontecendo, Kylie? — Lucas perguntou, num tom exigente. Kylie olhou para o lobisomem. — Eu já disse. Estou em busca da verdade. Preciso que vocês me deixem ir. É importante e não estou pedindo a vocês. Estou comunicando. Me deixem em paz! Ela esperava que parecesse mais confiante do que na verdade estava. A qualquer minuto a noite podia ficar silenciosa e Burnett podia aparecer. Por alguma razão, ela se sentia capaz de enfrentar Lucas e Perry, mas desobedecer a autoridades nunca tinha sido fácil para ela. E Burnett era uma autoridade com um péssimo humor. Antes de saber se parecia confiante ou não, ela perguntou: — Burnett sabe? Lucas não abriu a boca e continuou encarando-a com raiva, talvez em choque, diante do comportamento da namorada. — Como vocês me acharam? — ela perguntou ao metamorfo, enquanto minúsculas bolhas de eletricidade começavam a se formar em torno dele. Um segundo depois, Perry apareceu na forma humana. — Eu estava voando por aí, depois que deixei Miranda na cabana, e vi você pulando a cerca do acampamento. Ela voltou a olhar para Lucas. — E você? Os olhos dele brilharam com raiva, sua expressão carregada se intensificou, mas ele começou a falar. — Burnett pensou que eu tinha disparado o alarme. Ele me ligou e alguma coisa me disse que eu precisava me certificar de que estava tudo bem. Então vi o Passarinhão aqui voando... — Passarinhão? — A voz de Perry se aprofundou com a frustração. — Tanto faz... — Lucas continuou: — Eu o vi e pensei em dar uma espiada e ver o que ele estava fazendo. — Você foi me vigiar? — Os olhos de Perry adquiriram o mesmo tom alaranjado. — Não fui bem te vigiar... — A postura de Lucas tornou-se menos defensiva. — Achei que você poderia ter visto alguém invadindo o acampamento... — Seu olhar voltou-se outra vez para Kylie. — e... tivesse pensado em atacar essa pessoa. — O olhar de Lucas estava mais zangado ainda. Toda a sua atenção e frustração eram dirigidos a ela. — Mas isso não é importante. Importante é saber por que você está se colocando em perigo desse jeito. Você sabe muito bem o risco que está correndo. Então vamos voltar antes que Burnett apareça. Era exatamente por isso que Kylie tinha que pôr um fim naquele falatório e continuar a correr. Se Burnett descobrisse o que ela estava fazendo, seria o inferno. Ela consultou seu relógio. Só faltavam cinco minutos. O tempo estava se esgotando. E ela imaginava que o avô não fosse alguém que tolerasse atrasos. Lembrando-se de que tinha poderes, Kylie roçou o dedo mindinho no anelar. No entanto, a ideia de usá-lo não lhe agradava nem um pouco. — Tudo bem — ela disse, por fim. — Vou dar uma breve explicação. Eu tenho que encontrar alguém. Então podemos fazer isso do jeito mais fácil ou do jeito mais difícil. — Encontrar quem? — Lucas e Perry perguntaram ao mesmo tempo. — Meu avô. Ele entrou em contato comigo e... — Como? — Lucas perguntou. — Por e-mail — Kylie respondeu, sem saber direito por que ela tinha pensado que lhes contar a verdade adiantaria, mas a alternativa também não a animava, especialmente considerando que ela de fato não sabia o que poderia acontecer se lançasse algum feitiço. O pobre Zac Efron era testemunha. — Não seja burra! — esbravejou Perry. — Como você sabe que o e-mail era mesmo dele? — Eu sei que era, — Kylie respondeu, confiante, sem nem querer pensar na possibilidade de Perry estar certo. Tudo aquilo poderia de fato ser uma armadilha. Mas seus instintos lhe diziam o contrário. Se ela estivesse errada, pagaria seu erro com a própria vida. Se estivesse certa, encontraria as respostas que buscava desde o primeiro dia em que chegara a Shadow Falls. Era arriscado? Talvez. Mas era um risco que ela estava disposta a correr.
— E mais uma coisa — Kylie continuou. — Ou vocês dois me deixam ir ou... — Não. — Os ombros de Lucas se enrijeceram. — Você não vai... Ela não esperou mais um segundo. Agitou o dedo mindinho e imaginou uma grande rede caindo do céu sobre os dois, impedindo que eles a seguissem. Ela viu a rede caindo de cima e escapou por pouco de ficar embaixo dela também. — Desculpe — ela murmurou e recomeçou a correr. Com todas as suas forças, ela se concentrou em se afastar dali o mais rápido possível, antes que eles se soltassem. Kylie correu. Mas havia alguma coisa errada. Porque ela percebeu a certa altura que não estava correndo, estava voando baixo! Se não estivesse com tanta pressa, teria reservado algum tempo para apreciar esse seu novo dom. Mas não havia tempo. Ela precisava se distanciar o mais rápido possível de Perry e Lucas, para que eles não conseguissem alcançá-la. Por fim, ela avistou as lanças dos portões enferrujados do cemitério se projetando como armas afiadas e mortais. A noite pareceu ficar ainda mais escura à medida que ela se aproximava. Seu peito ficou oprimido quando ela se lembrou da pergunta de Perry. Como você sabe que o e-mail era mesmo dele? Ela não sabia. Simplesmente acreditava cegamente que fosse. Isso não era suficiente? Diminuindo o ritmo, seus pés voltaram a tocar o chão. Ela parou abruptamente a poucos metros dos velhos portões de ferro. Estava prestes a cruzá-los quando um movimento repentino do outro lado dos portões a deteve. Seu coração parou também. O ar ficou preso na garganta diante do que viu. Rostos, dezenas de rostos, olhavam para ela por detrás das grades de ferro. Seus olhos sem vida a fitavam como que implorando pela sua ajuda. Se ao menos ela pudesse ajudar a todos! Se ao menos um movimento da sua mão ou do seu dedo mindinho fosse suficiente para resolver o problema que prendia cada um deles à terra, quando outra vida os esperava no pós-morte! Então outro pensamento lhe ocorreu. Será que algum desses espíritos era demoníaco? Espíritos que queriam levá-la com eles para o inferno na tentativa de suavizar sua própria sentença? Que ótimo! Por que ela tinha que pensar nessa adorável possibilidade agora? Ela se forçou a avançar mais um passo. A ideia de que teria que atravessar aqueles portões e passar por centenas de fantasmas tirou um pouco da sua coragem. Ela se lembrou de como se sentira da última vez que estivera ali e fora tocada por tantos espíritos — a dor era parecida com a sensação de ter o cérebro congelado, exceto pelo fato de que isso afetava o seu corpo inteiro. Mas tudo valeria a pena se o seu avô estivesse esperando por ela do lado de dentro, pois ela teria algumas respostas. Definitivamente valeria a pena. Além disso, não era como se ela nunca tivesse feito aquilo antes; ela já fizera duas vezes. Mas não na escuridão da calada da noite. Algo na escuridão, apenas com a luz prateada da lua tornando visíveis os olhares dos espíritos, tornava o lugar muito mais... assombrado. O que de fato ele era. Como se para provar isso, o frio dos espíritos a envolveu e deixou sua pele arrepiada. Ela olhou para a frente e viu dois espíritos saindo pelos portões e andando na direção dela. Endireitando a coluna, aceitando o fato de que teria de fazer aquilo, ela deu mais um passo, disposta a seguir em frente. Era como pular na parte mais funda de uma piscina gelada e atravessá-la. No entanto, quando ia dar mais um passo, ela ouviu uma voz, uma voz muito próxima a ela — próxima demais — sussurrando no seu ouvido. — Eu não entraria ali. Ela gritou e recuou alguns passos, antes de reconhecer a voz. Respirando fundo para acalmar os nervos, ela viu Hannah ao seu lado. Então Kylie se lembrou do que o espírito havia dito. Será que Hannah sabia algo que Kylie não sabia? Será que ela tinha se deixado enganar e seu avô não a esperava ali dentro?
— Por que eu não devo entrar? — Kylie perguntou, os nervos à flor da pele. Hannah se aproximou mais dela e sussurrou novamente: — Está cheio de fantasmas. Kylie olhou para Hannah, surpresa. — Mas... — Eu sei que estou morta... — Hannah explicou, lendo os pensamentos de Kylie. — Assim como as moças que estão na mesma cova que eu. Mas ver todos eles... — ela apontou para o portão — ainda me apavora. Kylie desviou os olhos do portão e consultou o relógio outra vez; ela tinha dois minutos. Precisava entrar. Mas tinha que deixar Hannah falar. — Tem alguém esperando por mim lá dentro, mas eu preciso saber. O que você precisa que eu faça por você? Hannah fechou os olhos, mas não antes de Kylie ver o pânico impresso neles. — Não fuja — disse Kylie rapidamente, quando sentiu o frio diminuir. — Eu preciso saber. É por isso que você está aqui. Eu sei que é difícil falar de algumas coisas, mas às vezes temos que fazer coisas que nos assustam. Às vezes isso ajuda. Como eu mesma entrando neste cemitério. — Ela voltou a olhar para os portões e viu centenas de rostos sem vida olhando de volta para ela. Hannah abriu os olhos; o pânico deixava suas pupilas grandes e escuras. — Ele está mais perto. — A voz dela enfraqueceu. — Quem está mais perto? O que ele fez? — Quando Hannah não respondeu, Kylie tentou adivinhar. — É aquele cara, Blake? Aquele que ligou para Holiday quando estávamos na cachoeira? Hannah olhou para as mãos crispadas em frente a ela. — Ela o amava. Ele tinha tudo o que ela queria. Eu só queria saber como é ser tão feliz. Eu tinha que ter bebido tanto? Ele tinha que ter bebido tanto? Foi errado.
Kylie começou a juntar as peças, mas ela não estava completamente certa, por isso perguntou: — Blake era o homem com quem Holiday ia se casar? Holiday assentiu e, quando levantou os olhos, lágrimas e vergonha brilhavam dentro deles. — Foi ele que matou você? — Kylie perguntou. Hannah colocou as mãos na boca como se o pensamento a deixasse enjoada. — Foi ele? — Kylie perguntou novamente. Quando Hannah tirou as mãos dos lábios, elas estavam tremendo. — Eu... eu não sei se foi Blake. — Os olhos dela exprimiam terror e tristeza ao mesmo tempo. — Pode ter sido. Eu não me lembro do que aconteceu. — Ela fez uma pausa. — Só me recordo... da aura dele. — Seus olhos estavam cheios de dor. — Detalhes não consigo me lembrar. Não sei o nome dele nem como é o seu rosto, mas a crueldade como tirou a minha vida... disso não consigo me esquecer. E eu a sinto desde então. Ele às vezes volta para o lugar onde estamos enterradas. Eu o ouço andando no assoalho acima. Nós três nos agarramos umas às outras na morte e fingimos que nossas almas já se foram. Hannah abraçou a si mesma como se a lembrança fosse insuportável. — Ele disfarça a sua aura a maior parte do tempo. Tem o poder de parecer normal. Mas, quando não está fingindo, ele é perverso e tenebroso. — Quando está fingindo, a aura dele é parecida com a de Blake? — Kylie perguntou. — Eu não sei. Não tenho certeza. Nunca prestei atenção nessa aura. É a outra que... me assombra. — Ela parou de falar, como se pensasse. — É como se uma pequena parte de mim dissesse que eu sei quem é esse homem. — Hannah fez uma pausa como se seus pensamentos a levassem em outra direção e, pela expressão dela, não era muito boa. — Ele acha que matar faz com que ele seja mais poderoso; é por isso que ele mata. E no dia em que eu estava em Shadow Falls senti que ele estava por perto. Senti e tive certeza. Fui a Shadow Falls por causa dele. Ele não se contentou em matar só a mim. Ele quer Holiday. — As palavras de Hannah ficaram pairando no ar da noite, quando ela virou a cabeça para trás e olhou para o céu noturno. — O que foi? — perguntou Kylie, temendo que o assassino estivesse próximo. — Acho que é aquele metamorfo estranho do acampamento Shadow Falls. O lourinho cujos olhos mudam de cor o tempo todo. O medo que Kylie tinha sentido por Hannah e de um assassino cruel diminuiu e Kylie temeu por si mesma. Se Perry a tinha encontrado ali, Lucas deveria estar por perto também. E provavelmente Burnett. Esperando que ficasse menos visível, Kylie se aproximou dos portões. Olhou novamente para os rostos sem vida que pareciam guardiões do cemitério. Ela não sabia se eles a reconheciam da outra vez que ela estivera lá. Ela não sabia nem se conseguiam vê-la de fato. Mas uma coisa era certa: se ela não entrasse agora, poderia não encontrar mais o avô. Kylie olhou para Hannah, que ainda fitava o céu. — Ele nos viu? — perguntou Kylie, estendendo o braço para abrir o portão. — É ela! Eu disse que era ela! — falou um dos espíritos do lado de dentro do cemitério. Então os espíritos começaram a estender os braços através das barras do portão, tentando tocá-la. Tudo o que Kylie podia ver eram braços estendidos através do portão enferrujado. O frio arrepiava a sua pele e parecia gelar até a medula dos seus ossos. Ela mordeu o lábio, lutando contra a dor e o pânico, enquanto abria os portões. — Ele não pode me ver. Não sei se viu você. — A voz de Hannah ecoou atrás de Kylie. Com o portão aberto, Kylie baixou a mão. Os fantasmas se espalharam, mas no instante em que ela avançou alguns metros para o interior do cemitério, eles a cercaram. O frio dos espíritos impregnou os seus lábios, cobrindoos de gelo. A dor quase a fez cair de joelhos. Ela se forçou a avançar mais alguns metros; o alívio foi instantâneo, embora ela soubesse que não duraria muito.
Ela olhou para trás, na direção de Hannah. O medo estava estampado em seu olhar, tão sem vida quanto o dos espíritos daquele cemitério, os quais agora chegavam cada vez mais perto. — Eu não posso entrar — disse Hannah. — Um deles pode ser um anjo da morte. Se quiserem me mandar para o inferno pelos meus pecados, eles podem. Eu mereço ir, mas não até saber que Holiday está salva. — Eu não acho que vão mandá-la para o... — Kylie parou de falar quando Hannah começou a se desvanecer no ar. — Salve-a por mim! Por favor, salve a minha irmã! — As palavras de Hannah ecoaram na escuridão. O frio vindo dos espíritos ficou mais próximo. — Por favor — disse Kylie, seu olhar passando de uma face acinzentada para outra. — Me deem mais espaço. Os espíritos retrocederam alguns metros. Kylie olhou por sobre o ombro, esperando ver alguém deste mundo. Sua esperança foi inútil. Para qualquer lado que olhasse, ela só via a morte. A escuridão que encobria os túmulos limitava a sua visão. Como já estivera ali, Kylie sabia que o cemitério era imenso. Será que seu avô sabia que ela estava lá? O pensamento de que talvez não fosse o avô que a esperava ali, que não fora ele quem enviara os e-mails, oprimiu o seu peito, mas ela afastou a dúvida. Kylie deu mais alguns passos e então, lembrando-se da preocupação de Hannah com Holiday, pegou o celular em seu bolso e discou para uma pessoa que sabia que a ajudaria. — Está tudo bem? — perguntou Derek, respondendo ao primeiro toque. — Eu não tenho muito tempo, mas preciso que você me faça um favor. Verifique se Holiday está bem. Fique lá com ela. Não a acorde. Não a deixe saber que você está de olho nela, mas não a deixe sozinha até eu chegar. — Caramba! O que está acontecendo, Kylie? — Não posso explicar agora. Só faça isso, por favor.
— Onde você está? — ele perguntou. — Sei que não está na cabana. Ela mordeu o lábio com tanta força que sentiu gosto de sangue. — Por favor! — A palavra soou com desespero. Ele finalmente respondeu. — Holiday está bem. Burnett está vigiando a cabana dela. — Por quê? Como você sabe? Aconteceu alguma coisa? — Não, eu senti que você estava em apuros e fui checar se estava bem quando vi Burnett parado do lado de fora da cabana de Holiday. Ele disse que, depois de saber o que aconteceu com Hannah e as outras garotas, não queria correr nenhum risco. — Isso é bom. — Ela se perguntou se seria por isso que Burnett tinha ligado para Lucas e fizera questão de checar a cerca quando o alarme soou. — Eu posso sentir que você está apavorada, Kylie. Me diga... — Tenho que desligar. — Ela cumpriu a promessa e desligou. Então olhou para a multidão de espíritos, aproximando-se a cada passo, lembrando zumbis famintos esperando o momento certo para atacá-la e devorá-la. Tentando afastar esse pensamento insano, induzido pelo medo, ela se lembrou de que eles eram só pessoas. Almas perdidas cuja vida fora roubada, presas a este mundo por circunstâncias infelizes. Olhando ao redor novamente, ela perguntou: — Tem alguém aí? — Eu estou aqui!— respondeu um espírito. — Eu estou aqui! — As mesmas palavras pronunciadas por cada um das centenas de espíritos chegaram aos ouvidos de Kylie como o estrondo de um trovão. Todos eles queriam sua atenção. Queriam que ela reconhecesse sua presença. Seu peito se encheu de emoção. — Tem alguém vivo aqui, além de mim?
— Ninguém que possa nos ver — disse um dos espíritos, parecendo desesperado. — Não há mais ninguém vivo aqui? — ela voltou a perguntar. Mais uma vez ela se perguntou por que seu avô escolheria um cemitério como ponto de encontro. — Nos fundos do cemitério — respondeu o espírito de uma jovem, apontando para a área mais escura do cemitério. — Eu os vi sob os carvalhos, escondendo-se nas sombras. — Obrigada — ela agradeceu, olhando para cima mais uma vez e esperando não ver nenhum metamorfo furioso voando em círculos no céu escuro. As nuvens deviam ter ocultado a lua, pois só algumas estrelas brilhavam no céu. Ela recomeçou a andar. A cada passo, rezava para que, na parte mais sombria e distante do cemitério, sob as árvores, ela encontrasse o avô. E com ele, as respostas de que precisava.
 
A parte de trás do cemitério estava fantasmagoricamente silenciosa. Uma quantidade ainda maior de estátuas guardava os túmulos, a maioria coberta de trepadeiras mortas. Algumas estavam em ruínas, outras decapitadas por vândalos ou desgastadas pelo tempo, as cabeças caídas no chão de terra. Ainda assim, todas pareciam olhar para ela enquanto seus pés estalavam na trilha de cascalho. Sentindo-se de repente sozinha, ela olhou para trás e percebeu que o frio irradiado pelos espíritos tinha se amenizado. Ela estava realmente sozinha. Os espíritos não a tinham seguido. Por quê? O medo causou um nó na sua garganta. Será que sabiam algo que ela não sabia? Mesmo sentindo o pânico crescer dentro do peito, ela continuou andando, rezando para que estivesse fazendo a coisa certa. Viu as árvores à frente dela; embaixo da cúpula de galhos retorcidos só se viam sombras — sombras negras que poderiam ocultar qualquer coisa, ou pessoa. Chegando mais perto, ela pôde ouvir a própria respiração e o canto de alguns pássaros a distância, como se emitindo um alarme. Ela parou a alguns metros das árvores. Seus galhos pesados pareciam se envergar sobre as sepulturas em ruínas ao redor. — Olá! — A noite parecia engolir a sua voz. — Você veio! — respondeu a voz, grave e profunda. Segurando a respiração, ela viu uma figura surgindo em meio às sombras. Malcolm Summers, seu avô. Ele parecia mais jovem do que na ocasião em que visitara o acampamento; obviamente tinha se disfarçado para fazer o papel de senhor Brighten. Ela se lembrou de Della lhe dizendo que os sobrenaturais não envelheciam tão rápido quanto os seres humanos.
Seus olhos se encontraram, e mesmo na escuridão, os olhos azul-claros dele se destacavam. Kylie percebeu que eles eram exatamente da mesma cor dos dela. Ela estudou seu rosto e viu as feições do pai, feições muito parecidas com as dela. Kylie de repente se sentiu insegura, não sabia bem como se comportar diante dele. Seu peito se oprimiu. Ela deveria abraçá-lo ou não? — Desculpe — ela disse, sem pensar. — Pelo quê? — o avô perguntou. — Por... por não ter falado com o senhor aquele dia na floresta. — Não foi culpa sua — outra pessoa disse. A tia-avó de Kylie se esgueirou das sombras e parou ao lado de Malcolm. A mulher sorriu. Antes que Kylie percebesse, ela se viu envolvida num abraço. A força e o calor do toque da tia surpreenderam Kylie — a mulher era quente. Quando o abraço terminou, Kylie percebeu que, como o avô, a fragilidade que a tia tinha demonstrado no dia em que a visitara em Shadow Falls havia desaparecido. Kylie fez um cálculo rápido de cabeça. A mulher tinha setenta ou oitenta e poucos anos, mas ela não parecia ter mais do que cinquenta. Os camaleões deviam ter uma alta expectativa de vida. Ela armazenou aquela informação para refletir sobre ela mais tarde. — Olhe só você! — exclamou a tia. — Tão linda! — Ela olhou de relance para o avô. — O que há de errado com você, Malcolm? Dê um abraço na sua neta! Ele se aproximou, hesitante. — Não sou muito de abraços, mas acho que a ocasião merece. — Ele a abraçou. E, como a tia, o toque do avô era quente. O abraço foi breve, mas carinhoso e parecia os que ela gostaria de ter ganhado de Daniel, e até do padrasto, antes do relacionamento se deteriorar. — Você é bom nisso — disse Kylie. — No quê? — ele perguntou.
— Em abraços. — Lágrimas arderam em seus olhos quando ela viu a emoção no rosto dele. Um sorriso se abriu dentro dela. — Você parece meu pai. — Eu notei isso também, pelas fotos. — Eu tenho tantas perguntas! — disse Kylie. — Tenho certeza de que tem. — Somos camaleões, certo? — Ela prendeu a respiração, esperando que ele confirmasse o que o pai tinha lhe dito. Ou será que Holiday estava certa, que ser camaleão significava uma coisa diferente? Kylie deveria aceitar sua condição de bruxa depois daquela noite? O olhar do avô deixou de expressar ternura e passou a demonstrar preocupação. — Como você descobriu isso? — Meu pai — disse Kylie. Seu coração se encheu de dúvida. Será que o pai dela estava errado? — Ele disse... Malcolm ficou em silêncio. Então disse: — Mas ele está morto. — Ela fala com espíritos. — A tia apertou o braço do avô, empolgada. — Eu disse a você que senti a presença de espíritos quando estávamos no acampamento. — Ela desviou o olhar para Kylie. — Sua bisavó tinha esse dom. Ela ficaria orgulhosa. — Então é verdade? Somos camaleões? — Kylie perguntou outra vez. — Sim — eles disseram ao mesmo tempo. O peito de Kylie parecia que ia explodir com a sensação de vitória. Ela finalmente sabia. Sabia com certeza. Mas o sentimento de vitória veio junto com mais perguntas. Lá no fundo, ela sentiu que sua vitória de verdade viria quando ela tivesse respostas para essas perguntas. Kylie procurou registrar tudo o que eles diziam, para que pudesse aprender mais. Sua tataravó também falava com fantasmas, mas as duas avós, não. Então um camaleão não tem os mesmos dons que outro. Como isso funciona? — Meu pai, ele falava com fantasmas também — Kylie disse, percebendo que ela ainda não tinha verificado os padrões do avô e da tia. Ela franziu as sobrancelhas. Foi tomada de surpresa quando viu que eles eram humanos. Mas ela também tinha exibido o padrão humano não muito tempo antes. Exatamente o que significa ser camaleão? — Então você o viu? — A tristeza era evidente no tom do avô. — E também vi minha avó. — Ela olhou para a testa do avô novamente. — Será que eu posso perguntar... — Heidi? — Ele disse o nome com tanto amor que Kylie ficou comovida. — Sim. Na verdade, foi ela que disse ao meu pai que somos camaleões. Mas ninguém em Shadow Falls sabe o que é isso. A tia e o avô se entreolharam. A tia fez um aceno com a cabeça em direção a Kylie. — Conte a ela. — Vou contar — ele disse. — Mas você precisa vir conosco. Kylie hesitou. — Por que não podemos conversar aqui? — Não se trata de conversar apenas. — O avô pousou a mão no ombro dela. O calor do seu toque era familiar. E Kylie reconheceu que ele se parecia com o toque de Holiday e Derek. Será que isso significa... O avô continuou a falar. — Você precisa vir e conviver com a sua própria espécie. — Conviver? — Conviver? Deixar Shadow Falls? Kylie negou com a cabeça. — Não posso. Eu vou estudar em Shadow Falls agora. — Você não entende o perigo que corre aqui, filha — ele disse. — Por causa... de Mario? — ela perguntou. Ele franziu a testa. — Mario é da UPF?
— Não. — Kylie hesitou falar sobre a UPF. — Ele faz parte de uma organização clandestina. — A organização que você precisa temer é a UPF. Eles são afiliados ao seu acampamento, mas não são o que parecem. Eu tenho razões para acreditar que sejam responsáveis pela morte da sua avó. Pouca disposta a mentir, Kylie assentiu. — Eu sei. A expressão do avô endureceu. — Como você sabe? — Ao ver que ela não iria responder, ele continuou. — Heidi lhe contou alguma coisa sobre isso? — O tom de voz dele era o mesmo das suas feições: sério, imperioso. Sem saber se seria melhor contar tudo a ele, mas sentindo que seria errado manter segredo, Kylie assentiu. — Ela ficou paralisada por causa da cirurgia. Aquela que eles fizeram em vocês dois. Eles a mataram. Os olhos azuis do avô se encheram de raiva e suas mãos se fecharam em punhos. — Bastardos assassinos! Só sob o meu cadáver você vai voltar para aquela escola! Kylie tentou não reagir à ameaça. Mas, sim, ela sentiu que era de fato uma ameaça. Respirou fundo para se acalmar. — Eu entendo como se sente. Também fiquei indignada. Mas Burnett me assegurou... — Burnett trabalha para eles! — rugiu o avô, e até as árvores pareceram se encolher diante da sua fúria. A tia de Kylie deu um passo à frente e pousou a mão no ombro dele. Kylie se lembrou de como seu toque era reconfortante no dia em que a visitaram no acampamento, fingindo ser os Brighten. Será que sua tia era fae? Metade fae, talvez? — Tem razão — disse Kylie. — Burnett trabalha para a UPF, mas ele me garantiu que as pessoas que fizeram aquilo não estão mais na organização. E...
— E você confia neles sabendo o que sabe? Confia nele, sabendo a quem ele se reporta? — Eu não confio na UPF, mas confio em Burnett — explicou Kylie. — Ele está do nosso lado. E, mais do que isso, eu confio em Holiday. — Você é jovem e ingênua. Não sabe o que é melhor para você. Ela tentou não se sentir ofendida. — Sou jovem, mas não sou tão ingênua assim — Kylie respondeu. — Estou seguindo o meu coração. — O seu coração pode levá-la a tomar o caminho errado — ele disse. — O meu fez isso comigo. Eu confiei neles. Estava cego para o que eles realmente eram. Heidi sabia... ou suspeitava, mas eu não quis ouvi-la. — Eu sinto muito — disse Kylie. — Mas eu não posso... — Você pode! — ele exigiu. — Não, Malcolm! A menina tem a opinião dela. — A tia falou com o avô, mas sem tirar os olhos de Kylie. Ela não parecia zangada, mas a decepção estava estampada em seu rosto. O peito de Kylie ficou oprimido ao pensar que podia ter magoado essas pessoas, mas ela não podia ceder. O avô deu alguns passos em círculo e fitou uma árvore. Sua dor, sua raiva, seu sentimento de perda preenchiam a escuridão como uma entidade viva, pulsante. Kylie foi até ele. Mesmo assustada, ela precisava confortá-lo. — A última coisa que eu quero é magoar vocês. Vocês já foram feridos demais. Lamento não poder fazer o que o senhor quer, mas eu tenho que seguir o caminho que acho mais correto. — Um leve movimento no céu entrou no seu ângulo de visão; Kylie não olhou para cima, mas suspeitou de que se tratava de Perry. Ele obviamente a encontrara. Seu tempo estava se esgotando. — E se você estiver errada e eu for obrigado a enfrentar mais uma morte na minha família? A morte de alguém que eu nem conheço muito bem ainda.
— Eu não acho que isso vá acontecer — Kylie falou, com uma súplica nos olhos. Ele olhou para o chão, aparentando derrota. Sentindo que seu tempo era curto, Kylie continuou: — Eu ainda tenho tantas perguntas... Por favor, me ajude a entender o que eu sou. Ele olhou para ela. A fúria tinha se dissipado dos seus olhos. — É impossível contar em poucos minutos em horas ou até em semanas, tudo o que você quer saber. Pode levar anos. — Então eu procurarei vocês durante anos para lhes fazer as minhas perguntas — ela disse. — Mas, por favor, só me responda isto: o que significa ser um camaleão? A tia deu um passo à frente. — É ser como o lagarto. Podemos mudar a maneira como nos mostramos ao mundo. E para a nossa própria proteção, temos que nos esconder, para não sermos perseguidos. — Nos esconder da UPF? — Kylie perguntou. — Infelizmente, de todo mundo — explicou a tia. — Os poucos que não se esconderam foram vistos como párias, aberrações, que não pertenciam a espécie alguma. A princípio pensaram que tínhamos tumores no cérebro e então concluíram que éramos pessoas dementes. Kylie não podia negar que se sentira assim. Como acontecia com todos os preconceitos, provavelmente tinha sido pior a princípio. Embora às vezes ela se sentisse uma aberração, na maior parte do tempo se sentia aceita em Shadow Falls. — A UPF nos estudou como cobaias — o avô acrescentou. — Os anciãos e os conselhos de todas as espécies nos viam como criaturas mutantes. Alguns de nós foram forçados a trabalhar como escravos para outros sobrenaturais. A verdade doía, mas ela precisava conhecê-la, em toda a sua extensão. — Mas o que somos? Uma nova espécie?
— Não exatamente — a tia respondeu. — Normalmente quando sobrenaturais se reproduzem, o DNA dominante é transmitido à prole. Os filhos mestiços geralmente têm poderes mais fracos do que os daqueles cujos pais são da mesma espécie. Os camaleões conservam o DNA de ambos os pais e também dos seus antepassados. Eles são uma mescla de todas as espécies. O avô olhou para Kylie. — Meu pai era vampiro e lobisomem. Minha mãe era fae, bruxa e metamorfa. — Espere aí — pediu Kylie. — Está me dizendo que eu tenho os dons de todas as espécies? — Quando exibe esse padrão, sim. Exceto... — A expressão dele mostrou preocupação. — Se a regra do protetor vale para o camaleão tanto quanto vale para outras espécies, então você não será capaz de usar nenhum dos seus poderes para proteger a si mesma. Ela balançou a cabeça, tentando compreender melhor o que ele havia dito. — Mas o seu padrão parece humano — disse Kylie. — É mais seguro fingir que somos humanos — a tia explicou. — Mas eu sou meio humana. Então como eu posso ter essa mistura especial? — A princípio, parecia não fazer sentido — disse a tia. — Mas quando estudamos o histórico familiar da sua mãe, descobrimos que ela é descendente de... — ... índios norte-americanos. — Kylie terminou a frase por ela. E de repente um pensamento lhe ocorreu. — Isso significa que a minha mãe é sobrenatural? — Sobrenatural, não. Apenas superdotada — a tia explicou. — Como assim? — Kylie respondeu. — Ela pode ser médium. Ou sensitiva — disse o avô. — Acredita-se que os membros dessa tribo possam diferenciar os sobrenaturais dos humanos. Às vezes eles não têm nem consciência disso, mas são simplesmente atraídos por eles. Existem mais humanos superdotados casados com sobrenaturais do que com humanos comuns, embora a população mundial de sobrenaturais seja muito menor. O avô franziu a testa e observou o padrão de Kylie. — O seu cérebro se desenvolveu rápido. A maioria dos camaleões não é capaz de manifestar um padrão e utilizar seus poderes antes dos vinte e poucos anos. — Eu posso ser precoce, mas me sinto uma ignorante. Não sei como controlar isso, como mudar meu padrão ou como controlá-lo. — É por isso que você precisa vir conosco. — O avô tinha uma expressão séria. — Não posso, mas ainda assim preciso entender. — Ela olhou para cima e dessa vez viu que era Perry. — Algum tempo atrás, eu tinha um padrão humano e agora faço pesos de papel girarem pelo ar e... bem, não é muito bom. Mas talvez eu tenha me desenvolvido mais cedo porque sou uma protetora. Ou eles acham que sou. A verdade é que não sei o que pensar de mim mesma. A tia sorriu. — Ouvimos rumores de que você é uma protetora. Essa é uma grande honra. — Acho que sim. — Kylie não sabia o que pensar de nenhum dos seus dons. O avô examinou a testa dela outra vez. — Se você não controla seus padrões, então deve manifestá-los instintivamente. Normalmente esse é um talento que pode levar anos para ser aprendido e controlado. Eu presumo que, se você precisar do dom da velocidade, intuitivamente provocará a mudança. — Velocidade? — Kylie perguntou, intrigada. — Não se trata de velocidade. Minha amiga vive aprontando com seus feitiços e... — Feitiços? — o avô perguntou. — Eu sou uma bruxa agora — ela disse, declarando o óbvio. — Não, não é mais — discordou o avô.
 
— Você é uma vampira — ele constatou. O primeiro impulso de Kylie foi negar. Ela não podia ser uma vampira. Mas por que ele mentiria? Ela tocou o próprio braço para sentir sua temperatura. Ele não parecia frio, mas, se a temperatura do corpo todo tivesse mudado, ela não sentiria. Então se lembrou de quanto o avô e a tia tinham parecido quentes. E outra constatação veio em seguida. Ela tinha literalmente voado até o cemitério depois de lançar a rede em Perry e Lucas. Lucas! Ela inspirou, trêmula, uma golfada de ar. O que Lucas diria do seu novo padrão? Ele não tinha ficado muito satisfeito quando achou que ela era uma bruxa. Mas se achasse que ela era uma vampira... — Algum problema, querida? — a tia perguntou. Kylie estava paralisada, tentando aceitar o fato de ser uma vampira. Tentando imaginar, ou melhor, tentando não imaginar como Lucas reagiria. Então ela se perguntou se iria começar a beber sangue. Assim que pensou nisso, começou a ficar com água na boca. O sabor doce, maduro e penetrante do sangue ainda estava registrado em sua memória. — Querida? — a tia voltou a perguntar. — Talvez seja melhor se sentar. Você está pálida. — Estou? — Seria outro sinal de vampirismo? Instantaneamente, ela passou a língua nos dentes e quase a cortou nos caninos pontiagudos. Ah, droga! Ela era uma vampira! Mesmo enquanto o medo da mudança revirava dentro dela como um par de tênis dentro da secadora, ela se lembrou de quão maravilhoso tinha sido voar pela floresta. Supôs que aquele tipo de poder podia ser viciante. Mas até que ponto um poder é bom se não se pode controlá-lo. Seria como a sua audição supersensível; era ótimo tê-la, mas, se não se podia contar com ela quando necessário, era praticamente inútil. Ela não queria ser inútil. — Como eu posso controlar isso? — Kylie perguntou. — Me expliquem. O avô suspirou. — Não é tão fácil. Você precisa treinar a sua mente. Não é algo que eu possa lhe dizer como fazer; é algo que você aprende com o tempo. Talvez leve anos. E até lá você pode ser um perigo para si mesma. — Eu vou ficar bem em Shadow Falls. A preocupação brilhou nos olhos dele. Então o avô levantou a cabeça como se farejasse o ar. Emitiu um som, um rosnado baixo. O rosnado e a maneira como farejou o ar a fez se lembrar de Lucas. — Alguém veio com você? — Ele parecia decepcionado. — Eles tentaram me seguir. Eu os despistei, mas é possível que tenham me encontrado agora. A expressão do avô pareceu ainda mais preocupada. — Venha conosco. Ajudaremos você a entender tudo. Você precisa descobrir quem é e o que é, Kylie. Você não pode fazer isso sozinha. Ela balançou a cabeça vagarosamente. — Não posso ir com vocês. — Mas você é uma de nós. Temos o mesmo sangue. Um camaleão sozinho não sobrevive. Olhe o seu pai. A morte dele foi tão desnecessária! Você acha que ele não ia querer que você viesse conosco e descobrisse quem é? Kylie respirou fundo.
— Acho que o meu pai diria para eu seguir meu coração. E, neste momento, o meu coração diz que Shadow Falls é o lugar certo para mim. Seu avô franziu mais a testa e olhou para a tia. — Precisamos ir. Alguém está se aproximando. — Ele se virou para Kylie. — Não fale a ninguém que é um camaleão. Deixe que pensem o que quiserem. Quanto menos falar a respeito, menos chance terá de ser perseguida. — Esperem! — disse Kylie. — Como eu posso entrar em contato com vocês? Eu ainda tenho tantas perguntas! — Eu entrarei em contato com você — disse a tia, dando a mão para Malcolm. — Como? — Kylie perguntou. — Como vocês vão...? Mas a tia não respondeu. Como Perry tinha descrito no dia em que os seguira, eles simplesmente sumiram no ar. Kylie ficou parada ali, ao mesmo tempo frustrada e assombrada. Como a tia entraria em contato com ela? Como conseguiam sumir no ar? Como ela fazia aquilo? Ela ouviu passos rápidos se aproximando por trás dela, vindo em seu encalço. Ela se virou, esperando ver Burnett. Mas era pior do que isso. Lucas diminuiu o passo. Seu andar era rígido e ele irradiava um sentimento de raiva e outro ainda maior de mal-estar. Quando chegou mais perto, ela notou que seus olhos estavam alaranjados e fulgurantes. Claro que deveria estar furioso por ela ter lançado uma rede sobre ele e Perry. Ela olhou por sobre o ombro dele, esperando ver Burnett. Esperando levar um sermão do vampiro. Então se lembrou de que ela também era um vampiro. Esquivou-se de Lucas, com medo do que ele podia dizer, com medo de vê-lo olhar para ela com desgosto. — Isso foi uma estupidez! — ele grunhiu. Ela sabia a que ele se referia. — Não foi uma estupidez. — Ela desviou o olhar. — Era o meu avô.
— E daí? — ele perguntou. — E daí que eu consegui as respostas de que precisava. — Ela começou a andar. Ele andou ao lado dela. — Você confia tão pouco em mim que não podia me contar que estava vindo aqui? — ele perguntou. Ela deu de ombros, mas não o encarou. — Eu sabia que você tentaria me impedir. E você provou que eu estava certa. — Você podia ter argumentado comigo, em vez de lançar aquela rede idiota. — As palavras dele vieram acompanhadas de um grunhido baixo. — Eu não tinha tempo para argumentar. — Exatamente por isso devia ter me contado antes. A ideia de que não confia em mim me enfurece. Assim como ele não confiava nela. — Eu sei exatamente como você se sente — ela disse, deixando que ele descobrisse por si só o que ela queria dizer. — É diferente — ele respondeu, demonstrando que sabia muito bem a que ela estava se referindo. — Não, não é. — Um nó se formou em sua garganta. Ela ainda se recusava a olhar para ele, com medo de que ele verificasse seu padrão e sentisse repulsa dela. E, que Deus a ajudasse, porque ela não achava que suportaria aquilo. — Você me disse que entendia. Disse que tinha reagido exageradamente ontem, quando ficou com raiva, ou não ficou, ou talvez tenha ficado um pouco. Ah, droga, você me confunde! — Eu de fato disse isso — ela admitiu. — E realmente compreendo, ou pelo menos estou tentando, mas como você não está me oferecendo a mesma gentileza, estou reconsiderando a minha decisão. — Então você está voltando à ideia de que é uma mulher e tem o direito de mudar de ideia — ele disse, com ironia.
— Isso mesmo! — Lágrimas faziam seus olhos arderem e ela andou mais rápido. Eles passaram por um par de estátuas dilapidadas, sem braços. Ela viu Lucas olhar para elas. Quanto não era difícil para ele estar ali, num cemitério? Ele que, como noventa por cento de todos os sobrenaturais, detestava cemitérios. Será que era por isso que o avô lhe pedira para encontrá-lo ali? Ele sabia que muito poucos sobrenaturais se aventurariam a entrar naquele lugar? Mas Lucas entrara. Ele se preocupava mais com ela do que com seu medo de espíritos. Será que teria entrado se soubesse que ela era uma vampira? Será que ainda se preocuparia se ela se virasse para ele agora e deixasse que ele visse o seu padrão? A pergunta, ou melhor, o medo da resposta fez com que ela andasse mais rápido ainda. Ela queria ficar sozinha. Sozinha para pensar em cada palavra que o avô dissera. Sozinha para contemplar o fato de que finalmente descobrira a verdade. Sozinha para descobrir o que tudo aquilo significava. Ela era um camaleão. No entanto, por ora, ela era um vampiro. Mas por quanto tempo? Quanto tempo ainda demoraria para controlar aquela coisa maluca que acontecia com ela? Os espíritos aguardavam por ela nos portões do cemitério. Lucas ficou mais tenso, como se os sentisse. Diminuindo o passo apenas o suficiente para abrir os portões enferrujados, Kylie fez mentalmente uma promessa aos mortos que tentavam tocá-la com os braços estendidos: Eu voltarei. Tão logo o vento frio fechou os portões atrás dela com um baque, Kylie acelerou o passo, voltando a correr. Um pé batia na terra e depois o outro. Ela se movia com propósito. Queria ir para casa. Queria estar em Shadow Falls. Você é uma de nós. Temos o mesmo sangue. Um camaleão sozinho não sobrevive. Ela ouvia os avisos do avô ressoando em seus ouvidos, mas se recusava a acreditar. O mero pensamento de deixar Shadow Falls enviava uma onda de dor ao seu coração. Ela não podia partir.
No entanto, mesmo enquanto corria para o lugar que lhe parecia mais certo em sua vida, para o lugar onde ela se sentia mais segura, Kylie sabia que as respostas que buscava não estavam em Shadow Falls, mas com o avô. Essa constatação causou uma dor aguda no fundo do coração. Lágrimas afloraram em seus olhos e escorreram pelo rosto. Ela as sentiu, quentes, em sua pele fria de vampira. Seu peito estremeceu de emoção quando ela percebeu que, antes de se refugiar na sua cabana, provavelmente teria que enfrentar a fúria de Burnett. — Mais devagar! — exigiu Lucas. Ela correu mais rápido. A fúria de Burnett não era nada comparada à hora em que teria de enfrentar Lucas. Seu preconceito contra vampiros doeria mais agora do que ela poderia suportar. O portão de Shadow Falls surgiu na frente de Kylie. Seu coração martelava no peito. Ela rezou para que o sermão de Burnett não fosse muito longo. Embora seu corpo não estivesse nem um pouco cansado, seu coração estava. — Droga, Kylie! — Lucas resmungou outra vez. Tudo, desde o seu tom ofegante até o baque dos seus passos na terra, dizia-lhe que ela o estava levando ao seu limite. — Eu disse para parar! — Ele soou mais perto dessa vez. Justamente quando ela estava prestes a pular a cerca, sentiuo agarrando-a pela cintura. Os dois caíram. Com tudo. Ele envolveu-a em seus braços para protegê-la da queda e ambos rolaram vários metros. — O que há com você? — ele perguntou. Ela acabou aterrissando em cima dele, seu corpo quente lembrando-a de que ela era uma vampira. Lucas fitava o rosto dela. Ela tentou se levantar. Ele a segurou. — Qual é o problema? — ele perguntou novamente. Lucas rolou e ficou sobre ela. Com medo de que ele visse seu padrão cerebral, Kylie virou a cabeça e olhou os arbustos ao redor. As lágrimas ardiam em seus olhos.
— Ei! — A voz dele soou mais terna dessa vez. Ele obviamente tinha notado suas lágrimas. — Olhe pra mim. Ela não olhou. Não podia. — Eu só quero acabar logo com isso — ela disse, com rispidez. — Acabar com isso o quê? — O peito dele moveu-se para cima e para baixo, sobre ela, enquanto respirava. — Enfrentar Burnett. — Ele não sabe de nada, mas, se você pular a cerca agora, ele vai descobrir. Ela o encarou. — Ele não sabe? — Não. Eu saí sem que ele percebesse. E, se você me ouvir, posso fazer você entrar sem que ele fique sabendo, também. Ou você pode pular a cerca e enfrentar a fúria dele. Percebendo que estava de frente para Lucas novamente, Kylie virou a cabeça. A vegetação sob as suas costas parecia um musgo macio, mas a emoção no seu peito a feria como um espinho. — É por causa disso que está assim? Droga, Kylie. Eu já sei. Ela olhou para ele outra vez, sem saber direito o que ele queria dizer. — Sabe o quê? Ele soltou um grunhido. — Que você é uma vampira. Eu... senti o fedor assim que entrei no cemitério. Ela se sentiu profundamente insultada. A emoção fez seus lábios tremerem. — Se eu cheirava tão mal, então por que você se deu ao trabalho de entrar? A expressão dele ficou mais sombria. — Eu entrei porque pensei que você estivesse em perigo. — Ele soltou o ar dos pulmões ruidosamente. — Eu não vou mentir. Eu não gosto, e vai complicar ainda mais as coisas com a minha alcateia, mas... — Ele a olhou nos olhos. — Mas o mais importante para mim não é o que você é aqui. — Ele tocou a testa dela. — É o que você é aqui. — Ele pousou a mão sobre o peito dela, um pouco acima do seio direito. Ela sentiu o coração acelerar. O toque não era para ser íntimo, mas ela o sentiu assim. — Você me enfeitiçou no momento em que nos vimos pela primeira vez, quando éramos crianças. Eu não sabia o que você era, e, é verdade, esperava que fosse um lobisomem, mas não me importava. Você me cativou. As lágrimas de Kylie umedeceram suas faces. De repente, um suave aroma de mato encheu as suas narinas. Ela sabia que era o cheiro natural de Lucas e da floresta também. — E ainda estou enfeitiçado. — Ele secou uma lágrima no rosto dela. — Eu não me importo que você seja metade bruxa e metade vampira. — Eu não sou só isso — ela disse. Ele pareceu ligeiramente confuso. — Tudo bem. Então, o que mais você é? Ela sorriu através das lágrimas. — Sou um camaleão. O que significa que tenho um pouquinho de tudo dentro de mim. — Ela se lembrou do avô lhe dizendo para não falar sobre isso com ninguém. Mas Lucas não era qualquer um. — Até de lobisomem? — ele perguntou. Ela assentiu com a cabeça. — Eu só não sei ainda como controlar essas mudanças. — Ela suspirou. — Isso faz de mim uma aberração maior ainda? — Faz de você alguém surpreendentemente incrível — ele disse. — Mesmo quando é uma vampira. — Ele se inclinou e pressionou os lábios contra os dela. O beijo tinha sabor de inocência. E, por mais estranho que fosse, ela se lembrou dele beijando-a daquele jeito um tempo atrás, muito tempo atrás. Como se tivesse acontecido antes de ela conhecer Shadow Falls. Kylie tocou a bochecha de Lucas e, quando tirou a mão, perguntou:
— Você por acaso... um dia entrou pela minha janela quando éramos vizinhos? Ele pareceu culpado, mas não muito. — Só uma vez, eu juro, quando você deixou a janela aberta. E eu não fiz nada... Só... — ... me beijou? — ela perguntou. — A ideia não a deixou com raiva; ela viu o beijo como um carinho. — Foi com você... o meu primeiro beijo — ele disse. Ela sorriu, e então a boca de Lucas desceu até a dela. Ela mal sentiu o calor dos lábios dele quando ele se afastou. — Mas eu ainda estou furioso com você por ter lançado aquela rede sobre mim. — Ele bufou. — Não que eu consiga ficar furioso com você por muito tempo. Ele a beijou novamente. Mas dessa vez não foi um beijo tão inocente. Não que ela fosse reclamar. Seu beijo tinha gosto de paixão, uma paixão doce e ardente. O peso do corpo dele pressionou-a em todos os lugares certos e ela sentiu as diferenças que faziam deles macho e fêmea. A vibração de Lucas, o zumbido no seu peito que a seduzia, invadiu-a em todos os lugares que seu corpo másculo agora tocava o dela. Ela recebeu o beijo com desespero, querendo senti-lo, querendo saborear as sensações que ele produzia. A mão dele envolveu sua cintura, quente contra a pele nua dela, depois deslizou sob a camiseta e pousou em concha sobre o seu seio. Ela gemeu ao sentir a suavidade do seu toque e ansiou por mais. Os lábios dele afastaram-se dos dela e desceram pelo seu pescoço. A sensação dos seus beijos quentes deixava seu corpo mole, como se estivesse derretendo. Ela sentia tudo, carência, desejo, anseio. Quando a mão dele se moveu pelas costas dela e buscou o fecho do sutiã, ela arqueou as costas para facilitar. E, quando a mão dele voltou a acariciar a pele nua do seio, ela tremeu de prazer. Lucas buscou a bainha da camiseta dela e deslizou-a pela cabeça de Kylie, descartando o sutiã ao mesmo tempo, e seus olhos desceram e contemplaram o que ele tinha acabado de descobrir. Ela achou que se sentiria envergonhada. Mas não era o sentimento de vergonha que se agitava dentro dela. Ela sentia... — Você é tão linda! — ele disse, com a voz rouca. Era isso. Era assim que ela se sentia. Linda. Admirada. Ele respirou fundo. — Provavelmente não devíamos... Ela pressionou um dedo contra os lábios dele. — Eu quero. — Ela deslizou a mão até a nuca de Lucas, entrelaçando os dedos nos seus cabelos pretos e espessos, e trouxe a sua boca até a dela. E, em segundos, estavam ambos perdidos nos braços um do outro.
 
O beijo passou de quente a febril, na velocidade das batidas do coração de um vampiro. Ela não tinha nem reparado que ele havia tirado a camisa até sentir o calor da sua pele nua contra os seios dela. Ela tremeu de prazer. Os beijos dele passaram para o seu pescoço e desceram um pouco mais. A sensação fez com que ela arqueasse as costas e murmurasse o nome dele. E então o celular dele tocou. Ela sentiu o rosnado no fundo da garganta de Lucas, profundo e baixo sobre a pele nua do seu próprio ombro. Ele levantou a cabeça. Seus olhos estavam brilhantes, as íris azuis ardentes de desejo. — Eu odeio... odeio essa tecnologia moderna. Ela deu uma risadinha. Ele rolou até ficar de costas e pegou o telefone do bolso. Quando consultou a pequena tela, uma expressão de preocupação varreu o desejo do seu rosto. — É Burnett. — Ele fechou os olhos, depois os abriu. — Eu tenho que... atender. — Ele olhou para ela como se pedisse desculpas. — Eu sei — ela disse e, então, percebendo de repente que estava nua, cruzou os braços sobre os seios. O olhar dele desceu por um breve instante para o seu peito coberto. Então ele pegou o sutiã e a camiseta dela, ao lado dele, e passou para ela. Ela os apanhou e segurou na frente do corpo para se cobrir. Seus olhares se encontraram e os dois sentiram que deveriam parar antes que as coisas fossem longe demais. E, embora ela aceitasse que tinha sido um risco deixar que o relacionamento evoluísse até aquele ponto, ela sabia que esses momentos ficariam gravados para sempre em sua memória. — Eu não me arrependo — ela disse. — Ótimo. — Ele parecia tão sexy sem camisa, ostentando apenas um sorriso que dizia “me beije”. — Porque eu também não. — Obrigada — ela disse. — Pelo quê? — Ele olhou para o celular tocando, com a testa franzida. — Por entrar no cemitério mesmo... detestando fantasmas. Por não me odiar porque sou uma vampira. Seu olhar de repente ficou sério. — Eu iria até o inferno para mantê-la segura, Kylie Galen. Ela acreditava nele. Lucas por fim atendeu à chamada de Burnett. Kylie passou o resto da noite se revirando nos lençóis, incapaz de conciliar o sono. O telefonema de Burnett tinha sido só para checar se Lucas havia encontrado algo suspeito, quando saíra para verificar por que o alarme disparara. Então Lucas e Kylie saltaram sobre o portão abraçados, para parecer que havia apenas uma pessoa entrando no acampamento. Como Lucas descobrira essa estratégia, Kylie não sabia nem queria perguntar. No entanto, a ideia de que Lucas tinha mentido e de que Perry também teria que mentir por causa dela não a deixava nada confortável. Inquieta, ela fitou o teto do quarto enquanto recapitulava tudo o que havia descoberto. Ela era um camaleão. Um tipo raro de sobrenatural. Mas neste momento ela era um vampiro. E isso explicava por que não tinha conseguido ter um sonho lúcido com Lucas, mesmo depois de tentar tanto. Os vampiros não podiam ter sonhos lúcidos. Rolando na cama mais uma vez, ela imaginou todo mundo vendo seu novo padrão. As palavras da tia-avó davam voltas na sua cabeça. Os poucos que não se esconderam foram vistos como párias, aberrações que não pertenciam a espécie alguma.
Ela já podia imaginar os campistas cochichando pelas suas costas. Olhe para Kylie! Você nunca vai adivinhar o que ela é agora! Não que precisassem cochichar. A audição supersensível de Kylie estava funcionando às mil maravilhas. Ela não só ouvia Miranda e Della cada vez que se reviravam na cama, como também os filhotes de passarinho piando no ninho, para que a mãe se apressasse, mastigasse as larvas e regurgitasse tudo na boca deles. O barulho que isso fazia, a propósito, não era dos mais agradáveis. A mente de Kylie deu uma guinada e ela começou a se lembrar dos momentos que passara com Lucas. Ela agarrou o travesseiro extra e abraçou-o. Um sorriso se formou nos seus lábios. Não só pelas coisas pecaminosas que tinham feito, mas porque... agora Kylie acreditava que ele se importava de fato com ela. E a aceitava. Aquilo era demais. Mudava tudo. Ela só não sabia como. Relembrando as carícias dele, ela sentiu as faces arderem. Provavelmente não de verdade, considerando que a temperatura do seu corpo de vampira era extremamente baixa agora, mas ela podia apostar que suas bochechas estavam vermelhas. Seu cérebro deu outra guinada e ela se lembrou das palavras do avô. Você é uma de nós. Temos o mesmo sangue. A necessidade que ela sentia de conhecer melhor o avô, de descobrir tudo com relação à sua herança de família, oprimia o seu peito. Mas deixar Shadow Falls...? Aquela não era uma opção. Mesmo que alguns campistas não a aceitassem plenamente, era a esse lugar que ela pertencia. À medida que a noite se arrastava, ela tentava decidir o que iria contar a Holiday e Burnett, e até a Della, Miranda e Derek... Ela não poderia mentir para todos eles, poderia? Um camaleão sozinho não sobrevive. O aviso se agitava em seu peito já oprimido. Abraçando ainda mais o travesseiro, ela se sentou na cama. Não estava sozinha. Ela tinha Holiday e Burnett, e todos os seus amigos. E só teria que ouvir sua intuição para descobrir o que deveria contar ou não às pessoas mais próximas a ela.
O ronco do seu estômago faminto se fez ouvir em meio ao silêncio do quarto. Kylie se levantou e foi até a cozinha. Ao abrir a geladeira, estendeu a mão para pegar uma embalagem de suco de laranja, mas a mão parou a meio caminho, quando ela viu o frasco de sangue de Della. A amiga iria matá-la, mas... — Cadê o meu sangue? — A voz de Della vibrou através de toda a cabana. Kylie se encolheu, saiu do chuveiro e ficou em dúvida entre a toalha vermelha ou a branca. Ela escolheu a branca, por ser um símbolo de pureza. Se Della fosse matá-la, pelo menos Kylie estaria usando branco. — Você o derramou na pia outra vez? — Della vociferou, sem dúvida falando com Miranda. — Eu não fiz nada com o seu sangue! — respondeu Miranda, ofendida. — Não cheguei nem a um metro dele. Kylie se enrolou na toalha. — Confesse, bruxa! — exigiu Della. — Estou falando a verdade! — rebateu Miranda. — Tire a cera desse seu ouvido imundo de vampira e ouça o meu batimento cardíaco. Tudo bem, agora os insultos estavam chegando a um nível perigoso. Às pressas, Kylie saiu do banheiro quente e esfumaçado e se postou bem no meio do campo de batalha. — Meus ouvidos não são imundos! — ameaçou Della, com um rosnado. — Não sou eu que deixo um metamorfo chupar o lóbulo da minha orelha. — Chega! — gritou Kylie, estendendo as mãos. — Nunca mais vou contar nada a você! — Miranda exclamou num tom cheio de mágoa. — Graças a Deus! — Della rebateu. — Você acha que quero ouvir você contar que chuparam o lóbulo da sua orelha?
— Sua vaca! — gritou Miranda, fervendo de raiva. — Parem! — berrou Kylie. — Eu nunca disse isso! — Miranda respondeu a Della. — Eu disse que ele mordeu o lóbulo da minha orelha. — Ela começou a andar na direção de Della, o dedo mindinho levantado como uma arma. Della exibiu os caninos e começou a avançar. — Dá na mesma. É tão vulgar quanto chupar! — Já chega! — Kylie se colocou entre as suas duas melhores amigas. — Ela jogou meu sangue na pia! — Della acusou. — Não joguei! — Miranda negou. — Ela está dizendo a verdade. — Kylie olhou para Della. — Fui... fui eu. — Você jogou o meu sangue na pia? — perguntou Della. — Não... eu... bebi. Me desculpe. — Kylie estendeu o braço, expondo a veia. — Tome, beba um pouco do meu. Della encarou Kylie, as sobrancelhas erguidas, e então seu queixo caiu. — Santo Deus! Você é uma vampira! — Ela é uma bruxa! — Miranda disse toda orgulhosa, às costas de Kylie. — Não é mais — contestou Della. — Olhe, Senhorita Espertalhona, e veja por si mesma. Ou será que Perry lambeu os seus olhos também? Sem querer prolongar a briga, Kylie voltou-se para Miranda. Afinal, aquilo não era algo que ela pudesse esconder. — Caramba! — deixou escapar Miranda. — O que aconteceu? Transar com Lucas transformou você numa vampira? — Claro que não! — respondeu Kylie. Della deu uma palmada no próprio quadril.
— Por que fazer sexo com um lobisomem faria alguém se transformar em vampiro? — Sei lá! — respondeu Miranda. — Talvez o sexo tenha sido muito ruim. Della encarou Miranda e mostrou o dedo médio, depois se voltou para Kylie. — Você transou com Lucas? — Não! — Kylie agarrou a toalha que caía. — A gente só... deu uns amassos. — E até onde foram esses amassos? — Della ergueu as sobrancelhas. — Achei que você não queria saber sobre essas coisas — disse Miranda, com raiva na voz. — Não quero saber sobre chupadas na orelha. Isso é vulgar. — Cadela! — Miranda xingou, avançando sobre Della. A vampira fez o mesmo. Kylie segurou Miranda pela camiseta com uma mão e agarrou Della, pelo braço, com a outra. Nesse momento, a toalha enrolada em volta do seu corpo caiu no chão. — Eu disse chega! Dela e Miranda começaram a rir. Sem dúvida ela estava bem engraçada, nua e furiosa. Kylie largou as duas e depois se enrolou novamente na toalha. — Eu tenho uma coisa pra contar, mas, se vocês duas não pararem de brigar, eu vou embora e deixo que se matem. — Você já veio com esse papo antes — disse Della. — E decepcionamos você. Não nos matamos. — Della rosnou para Miranda. — Claro que podemos fazer diferente dessa vez. Kylie revirou os olhos. — Vocês vão parar de brigar ou não? — Talvez — disse Miranda. — Principalmente se você explicar como, afinal, consegue mudar de padrão desse jeito. Ah, e se nos der detalhes de como foi a noite ontem com Lucas.
Kylie olhou para Della. — Trégua? — Tudo bem — Della garantiu. — Além disso, é com você que estou fula da vida por ter bebido o meu sangue. Você roubou uma vampira. — Ela mostrou os caninos, mas ao mesmo tempo abriu um sorriso. — E Miranda tem razão. Queremos detalhes sobre esses dois assuntos. Uma hora depois, assim que Kylie acabou de dar às amigas todos os detalhes — ou pelos menos todos os detalhes que planejava dar —, as três foram para o escritório de Holiday. Kylie confessara ter ido ao cemitério. Ela sabia que Della ficaria louca da vida ao descobrir que tinha sido enganada, e Kylie estava certa. Mas lhe pareceu importante contar tudo a elas, e não só para não ficar com a consciência pesada. Se ela precisasse encontrar o avô futuramente, precisava de aliadas. Della e Miranda eram suas melhores aliadas. Assim como suas melhores amigas. As duas eram também um dos grandes motivos pelos quais Kylie não podia fazer o que o avô queria: ir morar com ele. Um detalhe que Kylie omitiu da conversa. — Você vai contar a Burnett e a Holiday? — Miranda perguntou quando se aproximaram do escritório. — Não sei. — Kylie olhou para a varanda da cabana e ouviu alguém respirando lá dentro. E se eles ficassem furiosos e a proibissem de ver o avô e a tia novamente? Será que Holiday faria isso? Provavelmente não. Mas era bem possível que Burnett fizesse. Ou pelo menos tentasse. O coração de Kylie ficou apertado quando ela se lembrou de que não estava li só para falar sobre o avô. Tinha chegado a hora. Hora de contar a Holiday sobre a irmã. Mas, primeiro, ela esperava falar com Burnett sobre tudo o que tinha descoberto a respeito de Hannah. Ele precisava saber, para que pudesse decifrar o caráter desse Blake.
Mas, que droga!, Kylie não estava ansiosa para ter essa conversa. — Merda! — Della agarrou o braço de Kylie. — Se você contar a Burnett sobre o encontro com o seu avô, ele vai assar o meu rabo no espeto, porque eu deixei você ir. Não vai levar em conta que eu pensei que você ia sair com Lucas. — Ele vai me culpar também — disse Miranda. — Ele não vai culpar vocês — contestou Kylie. — Vai cair em cima de mim. — Certo, como se Burnett fosse um cara razoável... — disse Della. — Bem, o que você esperava? Ele é um vampiro. — Miranda comentou, com malícia. Kylie ignorou a troca de farpas dessa vez e olhou pela janela do escritório de Holiday. Apurou os ouvidos para ver se conseguia ouvir a voz de Burnett. Tudo o que Kylie ouviu foi alguém digitando no teclado de Holiday. Kylie atravessou a varanda da cabana. Não tinha chegado à porta ainda quando, de repente, reconheceu o cheiro e a cadência da respiração da pessoa que estava lá dentro. Não era Holiday. Nem Burnett. O que ele estava fazendo no escritório de Holiday? Ela acenou para as duas amigas e abriu a porta da cabana. Derek, completamente imerso no que estava lendo na tela do computador, não percebeu a presença dela. Kylie o observou e lembrou-se de que tinha ligado para ele do cemitério, sentindo que era o único com quem ela podia contar. Suspirando, ela também se lembrou de que ele confessara seu amor por ela. Lembrou-se até dos beijos ardentes e maravilhosos que trocaram quando estavam juntos. E que não trocariam mais. — Olá! — Kylie afastou esses sentimentos despropositados. Ele literalmente pulou da cadeira.
— Santo Deus! — exclamou, passando a mão no rosto. — Você... quase me matou de susto! — A culpa brilhava nos olhos dele. — O que você estava fazendo? — Algo que não devia. — Um gemido escapou dos lábios dele. — Holiday me pediu para ficar aqui no escritório. Quando eu me sentei, a tela do computador saiu da hibernação. Ele estava ligado na página de e-mails dela e... Kylie arqueou as sobrancelhas, com um ar de reprovação. — Você estava lendo os e-mails pessoais de Holiday? — Só porque tinham a ver com Hannah. — Ele gesticulou para que ela fechasse a porta. Ela obedeceu e se aproximou da escrivaninha de Holiday. De repente, sentiu-se um pouco culpada também, mas, se a informação pudesse ajudá-los... — O que você descobriu? — O e-mail era de um investigador particular. Holiday o contratou para encontrar a irmã. — Ele descobriu alguma coisa? — Kylie deixou-se cair na cadeira em frente à mesa. — Não. Mas eu não sabia disso até abrir o e-mail. — Ele passou a mão no rosto outra vez. — O que não deveria ter feito. Eu vi o e-mail e achei que poderia desvendar o mistério. — Eu provavelmente teria feito a mesma coisa — ela disse, sem saber ao certo se era verdade, mais por querer confortá-lo. — Onde está Holiday? — Ela disse que ia falar com Burnett. Kylie ouviu passos pesados e em seguida a porta se abriu. — Não foi comigo que ela foi falar. — O olhar de Burnett fixouse em Kylie. — Quem é Blake? Kylie lembrou-se de Hannah dizendo que seu assassino podia ter sido Blake. Teve um mau pressentimento. — Por quê?
— Porque é com ele que Holiday está. — Isso não é nada bom. — Kylie ficou de pé num salto. — Onde ela está? — Quem diabos é Blake? — Burnett perguntou, bloqueando a passagem de Kylie. — É o ex-noivo dela. O ciúme cintilou nos olhos de Burnett. — E ele pode ter sido a pessoa que matou a irmã dela e as outras garotas. O instinto protetor de Burnett substituiu o ciúme em seus olhos. Suas presas se projetaram dos lábios superiores. Ele se virou e num instante desapareceu pela porta. Levou uma fração de segundo para Kylie se lembrar de que poderia fazer o mesmo. Ela olhou para Derek e só quando os olhos dele se arregalaram ela percebeu que seus caninos também estavam à mostra. Sem tempo para explicar, saiu correndo da sala e sentiu seu sangue borbulhar nas veias, como sempre acontecia quando ela ficava alvoroçada para proteger alguém. Kylie só rezou para que seu alvoroço fosse prematuro e Holiday não estivesse em perigo.
 
Kylie farejou o cheiro de Burnett e, quase instantaneamente, alcançou-o e se pôs a correr ao lado dele. Eles não pararam até chegar a um pequeno restaurante na Rua Principal, no centro de Fallen. O carro de Holiday estava parado na porta. Tão logo parou de correr, ele franziu o cenho para checar o padrão de Kylie. Não disse nada, mas ela viu o choque nos olhos do vampiro antes que ele se voltasse para o restaurante. Eles correram até a grande janela da frente. — Lá no fundo, num dos cantos — disse Kylie, o pânico amenizando ao ver Holiday, viva, mas com uma expressão contrariada. Mas não parecia em perigo. O homem sentado na frente dela vestia jeans surrados e uma camisa azul-clara. Ele era alto, moreno e... Kylie quase pensou “atraente”, mas se deteve antes disso. — Como você sabia que ela estava aqui? — perguntou Kylie. — Quando eu a vi saindo do acampamento, liguei. Ela disse que estava no café e, quando alguém se aproximou, eu a ouvi dizer o nome dele. Kylie olhou novamente pela janela do restaurante e apurou os ouvidos para ouvir a conversa de Holiday. — Eu só vim até aqui para perguntar se você a tem visto — disse Holiday. — E eu vim para tentar explicar o que aconteceu — Blake continuou. — Cometi um erro. Faz mais de dois anos, mas eu não deixei de amar você. Burnett soltou um rosnado e ameaçou entrar no restaurante. Kylie segurou-o pelo cotovelo. Vestido todo de preto, o vampiro parecia feroz.
— Espere — disse Kylie. — Esperar pra quê? — As narinas de Burnett se inflaram. — Precisamos de um plano. — Eu tenho um. — Os olhos dele ficaram mais brilhantes quando Blake tocou o braço de Holiday. — Um plano que não inclua assassinato — Kylie murmurou, e então acrescentou: — Você não pode simplesmente invadir o restaurante desse jeito como um namorado ciumento. — Não estou com ciúme — ele protestou. Kylie ouviu o coração dele dar um salto. Ah, isso foi legal. — Sério? — Kylie arqueou uma sobrancelha para ele, com um olhar malicioso. — Ele matou a irmã dela! — Burnett defendeu-se. — Eu disse que ele poderia ter matado a irmã dela. — Isso já basta para mim. — Ele estendeu o braço para abrir a porta, mas Kylie o deteve outra vez. — Você quer mesmo que Holiday descubra desse jeito que a irmã está morta? Em público? Burnett deu um passo para trás, os olhos dizendo que ela tinha razão. — Tudo bem, qual é o seu plano. Ela não tinha um plano, mas disse: — Vamos esperar para ver. Ele franziu a testa. — Ele pode sacar uma faca e matá-la antes que eu consiga evitar. — Em público? — Kylie perguntou. — Não seria uma decisão inteligente, mas esse cara fez alguma besteira e perdeu Holiday. Isso prova que ele é um idiota. — Burnett não tirou os olhos da janela enquanto falava. Um grunhido baixo escapou dos seus lábios. — Ele está tocando nela de novo!
— Não foi por isso que liguei pra você, Blake. — Holiday puxou a mão, evitando o contato. O cabelo ruivo estava solto e contrastava com o vestido amarelo que ela usava. — Só quero encontrar Hannah. — Mas ela não está deixando que ele a toque — disse Kylie. — Vamos sair daqui antes que ela nos veja. Tarde demais. Holiday olhou para a janela do restaurante e seus olhos se arregalaram ao ver Burnett e Kylie do outro lado do vidro. — Você tem outro plano? — Burnett perguntou. — Porque estou sem ideias e ela parece bem contrariada. Kylie quase sorriu ao sentir o medo na voz daquele vampiro grandalhão e com fama de mal. — Não diga nada a ela antes de levá-la de volta ao acampamento — Kylie disse rapidamente. A porta se abriu com ímpeto e Holiday saiu do restaurante. Olhou para Burnett, depois para Kylie. — O que está acontecendo aqui? — Preciso falar com você — disse Kylie, improvisando. — Sobre o quê? — Quando nenhum dos dois respondeu, Holiday perguntou novamente: — O que aconteceu? Burnett começou a responder. Com receio de que ele pudesse contar a verdade a Holiday, Kylie se antecipou: — Algo a ver comigo. — Ela apontou para a própria testa. Holiday franziu a testa e seus olhos se arregalaram. — Ah, meu Deus! Os sininhos da porta do restaurante badalaram atrás deles e Blake saiu, parando ao lado de Holiday. — Está tudo bem? — Seu olhar se fixou em Burnett. O vampiro, com um brilho incandescente nos olhos, puxou Holiday para mais perto.
— Isso depende... — disse Burnett — da rapidez com que você cair fora daqui. Felizmente, Blake apenas se despediu de Holiday com um aceno de cabeça e foi embora sem causar nenhum tumulto. Kylie não pôde deixar de imaginar se não foi porque ele suspeitava de que sabiam a verdade. Burnett parecia pensar a mesma coisa enquanto observava Blake se afastar. O rosnado baixo e profundo vindo do seu peito não deixava dúvida de que planejava encontrar o homem novamente. E provavelmente muito em breve. Burnett e Kylie voltaram de carro com Holiday, que cravou Kylie de perguntas enquanto dirigia. — Quando você se transformou em vampiro? Sentiu alguma dor? Seus poderes mudaram? Em seguida Burnett interferiu, incluindo sua própria lista de perguntas sobre o novo padrão de Kylie. Kylie respondeu da maneira mais evasiva possível, sem querer falar sobre o avô. Ela sabia que teria de acabar abrindo o jogo, mas, considerando as outras notícias que tinha que dar a Holiday, não queria aumentar ainda mais as preocupações da amiga. De volta ao escritório, Holiday jogou a bolsa sobre o sofá e olhou para Burnett e Kylie com seu olhar exigente do tipo “conte tudo ou eu te mato”. Kylie imaginou se a mãe tinha ensinado esse olhar a Holiday, pois eles eram muito parecidos. — Agora me explique o que realmente está acontecendo — Holiday exigiu. — Posso sentir que não se trata apenas do seu padrão. Kylie mordeu o lábio inferior. Burnett deu um passo à frente. Aprumou os ombros, o olhar cheio de solidariedade. Deu um suspiro profundo e sincero e olhou para Kylie. Ela acenou para ele com a cabeça, como se lhe desse a palavra. Ele olhou novamente para Holiday e, numa voz grave, começou: — Kylie tem algo para contar a você. A boca de Kylie se entreabriu de surpresa, e então ela soube que era oficial: o homem tinha certa dificuldade com a comunicação verbal... principalmente quando ela envolvia emoções.
O olhar de Holiday disparou para Kylie e o coração da garota se encheu de dor. A dor que ela sabia que Holiday iria sentir. Uma emoção que Kylie pessoalmente já tinha sentido muitas vezes ultimamente. Perder Nana, perder o avô — mesmo que não fosse para a morte, era assim que ela sentia —, perder o seu pai de verdade, Daniel, pois suas visitas estavam mais espaçadas. E havia Ellie. Kylie se sentia triste até por Ruivo, quer dizer, Roberto. Respirando fundo, Kylie pediu com um gesto que Holiday se sentasse. A líder do acampamento estudou o rosto de Kylie e provavelmente detectou todas as suas emoções. Ela foi até a sua escrivaninha e se sentou. As almofadas afundaram sob o seu peso, com um som que pareceu um suspiro. Foi o único barulho na sala. — O que foi? — Holiday perguntou novamente. A emoção causou um nó na garganta de Kylie. — Eu não queria contar porque você me disse... que não queria saber. Toda aquela história sobre o hoje e o amanhã... Porque a princípio eu pensei que era você. Holiday se inclinou para a frente, apertando os braços da cadeira. — Não estou entendendo. — O rosto do espírito que lhe contei que reconheci. Pensei que fosse você. Mas não era... você. Os olhos verdes de Holiday se encheram de lágrimas e Kylie soube que Holiday já tinha encaixado as peças do quebra-cabeça. Burnett, mostrando seu carinho, aproximou-se de Holiday e pressionou o ombro dela com ternura. — Ela está morta? — Os ombros de Holiday estremeceram quando ela encheu os pulmões de ar. Lágrimas umedeceram seus olhos e escorreram pelas faces. — Por que... ela não me procurou? Kylie secou as próprias lágrimas. — Acho que porque tinha vergonha do que aconteceu. — Ela contou a você sobre... aquilo?
— Contou. — A voz de Kylie era quase um sussurro. Burnett olhou para ela como se perguntasse o que ela não tinha contado a ele. A tristeza pairava por todo o cômodo. — O que aconteceu? — Holiday finalmente perguntou. — Ela estava escalando montanhas? Eu disse a ela que era perigoso escalar sozinha. Kylie negou com a cabeça. — Não foi um acidente. A raiva endureceu a expressão de Holiday. — Alguém tirou a vida dela? Mas quem? — Não sabemos ao certo. — Burnett sentou-se na beirada da escrivaninha. A maneira como ele olhou para a líder do acampamento aqueceu o coração de Kylie. Ele se importava com Holiday. Ela só esperava que o problema todo com Blake não afastasse os dois. — Mas Blake é o primeiro suspeito — disse Burnett. — Blake? — Holiday ofegou. — Não, eu não acredito que... — Ela parou como se pensasse melhor. Ela passou a mão no rosto outra vez, para secar as lágrimas, e depois olhou para Kylie. — Tudo bem, me diga tudo o que você sabe. E não omita nada. Naquela tarde, em sua cabana, Kylie sentou-se à mesa da cozinha. O almoço tinha sido tão “divertido” aquele dia que Kylie tinha preferido não aparecer para o jantar. Não houve uma pessoa que não tivesse encarado Kylie com um olhar embasbacado e o queixo caído ou não tivesse feito algum comentário malicioso sobre o seu novo padrão de vampira. Tudo bem, isso não era verdade. Suas amigas íntimas não tinham olhado para ela assim — ou pelo menos tentaram não olhar. Jonathon e Helen tiveram um sobressalto e, antes que pudessem se conter, trocaram um olhar de espanto. É claro que Jonathon tinha se recomposto e dado a ela as boas-vindas à comunidade vampírica e sugerido que se juntasse à mesa deles.
Ela recusou o convite, pois pôde perceber, pelas expressões no rosto de alguns vampiros, que ela não era nem um pouco bemvinda. Quando Perry entrou no refeitório, ele verificou o padrão de Kylie e depois fez um sinal de positivo para ela. Obviamente, ele tinha decidido não explodir com ela por causa de todo aquele episódio com a rede. Então Kylie notou que todos os três professores novos olhavam para ela, surpresos. Por alguma razão, ela tinha presumido que eles seriam mais educados do que os campistas, mas se enganou, pois a encaravam com o mesmo olhar de curiosidade que todos os outros ali. No entanto, uma coisa fizera com que toda a provação que passara no refeitório valesse a pena. Quando Fredericka apontou para ela com uma risadinha no canto dos lábios, Lucas simplesmente deu de ombros e disse: — É, eu vi. — Então ele olhou para Kylie, sem encará-la com se ela fosse uma aberração, e sorriu. Aquele sorriso, com um brilho travesso nos olhos, estava carregado de significado também. Kylie percebeu que tinha enrubescido e ficou um pouquinho menos preocupada em ser o entretenimento de todo mundo enquanto devoravam hambúrgueres e batatas fritas. É claro que o alívio só durou alguns minutos. Logo em seguida alguém fez algum comentário maldoso sobre a mente de Kylie ser uma esquisitice sem precedentes. Kylie muitas vezes tinha desejado que sua audição sensível estivesse sempre ativa, mas naquele momento o que ela mais queria é que esse dom desaparecesse — para sempre. Agora ela preferia não ter que ouvir todos os comentários cochichados às suas costas. Fitando as mãos pousadas sobre a mesa, ela percebeu que parte do seu mau humor tinha sido causada pela dor que impingira a Holiday. Kylie queria ajudá-la, mas Holiday tinha insistido em ficar sozinha. O computador emitiu um aviso sonoro quando um novo e-mail chegou à caixa de entrada. Kylie correu para verificar, rezando para que fosse do avô ou da tia-avó. Ela estava checando seus e-mails obsessivamente nos últimos dias, especialmente porque seu último e-mail tinha voltado... o que significava que o endereço eletrônico que eles haviam dado a ela não estava mais sendo usado. Ela se sentou na cadeira em frente ao computador, com a respiração presa, quando a tela se abriu. O e-mail não era do avô ou da tia. Então ela ficou olhando para o endereço eletrônico do padrasto e acidentalmente clicou duas vezes nele, abrindo o e-mail. Mesmo sem querer, começou a lê-lo. Oi, princesa. Não vejo a hora de revê-la no sábado. Estou com saudade de você. E com saudade da sua mãe. Todas as emoções relacionadas à mãe e ao divórcio dos pais vieram à tona num rompante. Ela se afastou tão rápido da tela que a cadeira deslizou violentamente pelo chão e se partiu em quatro lugares diferentes. — Dane-se! — ela praguejou. Com a garganta apertada, Kylie se levantou e, pisando duro, foi até a geladeira e escancarou a porta. Ela só queria sentir o ar gelado no rosto. Não sentiu frio, porque ela já estava fria demais por dentro. Afinal, ela era uma droga de vampira! Limpou com um tapa uma lágrima que teimava em descer pela bochecha e voltou a olhar para a tela do computador. E se o pai começasse a fazer perguntas sobre a mãe dela? Kylie certamente não queria ser a portadora da notícia de que a mãe estava saindo com outro homem. No entanto, ele mesmo provavelmente descobriria no sábado, pois ela já tinha recebido um e-mail da mãe, perguntando a Kylie se ela se importava que o Bajulador — o mesmo que queria levar a mãe para a Inglaterra e ter noites selvagens entre os lençóis — viesse com ela para o dia dos pais. Kylie estava a ponto de responder, dizendo, “Claro que eu me importo!”. Mas seria justo fazer aquilo com a mãe? Kylie não devia estar feliz com a felicidade dela? Mas ela só queria que a mãe fosse feliz novamente com o padrasto. Queria que a vida voltasse a ser como antes. Por um segundo, Kylie se lembrou de como as coisas eram. Quando ela achava que não passava de um ser humano, quando não sabia que coisas como vampiros e lobisomens de fato existiam. Quando ela nem conhecia Derek. Não tinha restabelecido o contato com Lucas. Nem conhecia Della ou Miranda. De repente, o mundo de Kylie Galen antes de Shadow Falls não lhe pareceu atraente. Bem, exceto pelo fato de a mãe e o padrasto estarem juntos. Kylie ouviu o colchão de Della ranger e passos no chão de madeira. Ela limpou mais uma vez as lágrimas, esperando que ninguém as notasse. Vampiros não choravam. — Atrás da caixa de leite tem uma garrafa de sangue B positivo que eu trouxe pra você — disse Della. — Obrigada. — Como está se sentindo? — Bem, por quê? Della aproximou-se um pouco mais. — Porque normalmente, quando alguém começa a destruir a mobília, não está muito bem. Kylie olhou para a cadeira quebrada e não disse nada. — Na verdade, só estou surpresa que você não tenha apresentado nenhum sintoma durante o estágio de transformação. Fico feliz que não tenha, porque, pode acreditar, não é nada divertido. Kylie pegou a garrafa de sangue. — Sabe, isso provavelmente não vai durar. — O sangue? — perguntou Della. — Posso conseguir mais. — Não, minha condição de vampira. Eu não sou uma vampira de verdade. Quer dizer, sou só parte vampira.
— Você parece uma vampira puro-sangue — contestou Della. — Como muda o seu padrão? — Ela foi até a mesa da cozinha. Kylie abriu a garrafa e de repente a ideia de beber sangue revirou o seu estômago. Será que ela já tinha se transformado em outra coisa? Ah, mas que maravilha! Se isso de fato tinha acontecido, ela mal podia esperar pelo café da manhã, quando todo mundo ia ter mais uma refeição divertida, zombando da cara dela. Tirando o boné, na tentativa de esconder de Della sua aversão por sangue, ela explicou: — Eu não entendo como isso funciona. Por que acontece ou por que não acontece. — Ela olhou para Della. — Ainda sou uma vampira? Dela confirmou com a cabeça, e Kylie viu pela expressão da amiga que ela percebeu que Kylie havia chorado. — Pode dizer — Kylie falou. — Agora que eu sou uma vampira tenho que ser mais durona, não é? — Eu não ligo a mínima que você seja durona ou não — disse Della com sinceridade. A frustração cresceu no peito de Kylie, porque ela era uma idiota, porque Della estava sendo muito compreensiva, mas principalmente porque dessa vez ela não podia correr para Holiday e pedir respostas. Holiday não tinha essas respostas. E as pessoas que tinham, seu avô e sua tia, não queriam nada com Shadow Falls e não estavam acessíveis agora. Um camaleão sozinho não sobrevive. E, no momento, Kylie se sentia muito sozinha. Mais lágrimas afloraram dos seus olhos e Kylie secou-as com a mão. — Eu detesto me sentir uma aberração — Kylie desabafou. — Eu me sinto como se não tivesse controle sobre o meu próprio corpo.
Seus pensamentos se desviaram para Hannah. E para a preocupação da moça de que alguém iria ferir Holiday. E estou cansada de ver pessoas morrendo. — O seu avô não te disse como... lidar com isso? Kylie deixou escapar um profundo suspiro. — Ele disse que levaria anos para me ensinar. — Então você vai viver a vida toda mudando de espécie em espécie, sem conseguir controlar isso? — Parece que sim. Eu não sei. — Kylie desabou na cadeira. Depois de uma pausa carregada de significado, Della perguntou: — O que você acha do seu avô? — Como assim? — Quero dizer, você gostou dele ou não? Ele é daqueles velhos caquéticos com um pé na cova? — Não, ele não parecia... tão velho. Ele me pareceu gentil. Como o meu pai. Mas me lembrou um pouco Burnett, sério e austero. — Mas...? — continuou Della, na expectativa. — Mas o quê? Eu não disse “mas”. — Não disse, mas me pareceu que estava pensando nisso. Kylie suspirou. — Se eu contar uma coisa a você, não vai contar nada... a ninguém? — Juro por Deus — disse Della. — E prometo não chorar. Principalmente se eu ficar com a cara que você fica quando chora — ela disse, tentando persuadir Kylie com um sorriso. Kylie não sorriu. Não conseguiria. — Ele queria que eu fosse com eles. Os olhos de Della se escancararam e o seu bom humor se desvaneceu. — Você não vai fazer isso, vai?
— Não — disse Kylie. — Acho que não. Nesse momento, ela ouviu novamente a voz do avô. Venha conosco. Vamos ajudar você a entender tudo. Você precisa descobrir quem é e o que é, Kylie. — Não vai mesmo? — perguntou Della outra vez. — Pela sua cara, ainda está pensando na ideia. — Não — disse Kylie. E ela de fato não estava, disse a si mesma. Realmente não estava. Embora talvez não tivesse muita escolha...
 
Kylie foi para a cama cedo aquela noite. Ela mal tinha dormido na noite anterior e achava que dormiria como uma pedra. Bem, não como uma pedra, mais como um vampiro faminto, com uma leve aversão pela ideia de beber sangue, e com a mente em frangalhos. Mas ela não teve tanta sorte. Ficou deitada ali, olhando para o teto, acariciando Socks enquanto o gatinho ronronava, preocupada com Holiday e desejando que Lucas ligasse. Nesse momento, Socks se ajeitou no seu peito e começou a lhe dar lambidinhas no queixo. Kylie olhou para o filhote. — Se eu me transformar num lobisomem, você ainda vai me amar? Lembre-se de que eu amei você quando era um gambá. O gatinho miou, respondendo com o que ela esperava fosse um sim. — Você acha que Holiday sabe que nós a amamos? Falar com Socks não contribuiu muito para aliviar o peso no coração de Kylie. Desistindo, ela estendeu o braço para pegar o celular. Não sabia muito bem para quem iria ligar, se para Lucas ou Holiday. Holiday atendeu no terceiro toque. — Oi, está tudo bem? — Está, eu só... estou preocupada com você, pensando que eu talvez pudesse dar uma passada aí. Silêncio absoluto do outro lado da linha. — É... muita gentileza sua, mas acho que preciso ficar sozinha. — Tudo bem — assegurou-lhe Kylie, embora ela quisesse muito abraçar Holiday e lhe oferecer algum conforto.
— Ela veio vê-la outra vez? — Holiday perguntou. — Não. — Kylie passou o dedo pelo queixo de Socks. — Se ela vier... pode pedir que me procure? Diga a ela que não estou mais com raiva, eu só... preciso vê-la. — Havia tanta dor na voz de Holiday que Kylie ficou com os olhos rasos d’água. — Pode deixar. — Silêncio, um doloroso silêncio, ecoou na linha. A única coisa que Kylie podia sentir era a dor de Holiday. — Holiday... — Sim? — A voz da fae tremeu um pouquinho. — Eu amo você. Sei que isso vai parecer pieguice, mas você e Shadow Falls significam muito pra mim. Eu não sei se você entende quanto bem faz a todos nós que viemos para cá. Você é uma de nós. Temos o mesmo sangue. Um camaleão sozinho não sobrevive. As palavras do avô ecoaram mais uma vez no seu coração. — Eu pertenço a Shadow Falls — disse Kylie, e então estremeceu ao perceber que pensara em voz alta. — Claro que pertence. — Holiday parecia confusa. — Você... está bem? — Estou — ela mentiu. — Só preocupada com você. — Não se preocupe — pediu Holiday. — E, Kylie, eu amo você também. Nós conversamos amanhã, ok? Holiday desligou. Cinco minutos depois, a melancolia ainda pesava em seu coração, quando Burnett ligou perguntando se Kylie tinha falado com Holiday. — Sim — respondeu ela. — Perguntei se podia visitá-la, mas ela disse que preferia ficar sozinha. — Ela me disse a mesma coisa — ele murmurou. — Então acho melhor respeitarmos a vontade dela — disse Kylie. Burnett suspirou. — Você acha que ela ainda ama Blake?
Embora a pergunta representasse uma completa reviravolta na conversa, Kylie entendeu perfeitamente. O fato de Burnett confiar nela a ponto de mostrar sua vulnerabilidade a surpreendeu. Essa constatação fez com que se sentisse ligeiramente culpada por esconder coisas dele. Mas ela tinha escolha? — Não — ela disse, certa de que Holiday amava Burnett. Mas não cabia a Kylie dizer isso a ele. — Eu vou ter que procurá-lo e fazer um interrogatório — disse Burnett. — Eu sei — disse Kylie. — Mas você não pode tratá-lo mal ou concluir que é culpado só porque ele teve um relacionamento com Holiday. — Você acha que eu faria isso? — perguntou Burnett. — Acho — ela respondeu, com honestidade. — Eu vi o jeito como você olhou para ele hoje de manhã. Burnett permaneceu em silêncio por alguns segundos. — Você falou com Hannah novamente? — Ainda não. — Seria muito útil se ela pudesse nos contar algo mais — ele disse, mordaz. Como se Kylie não soubesse. — É uma pena que eles nem sempre concordem em cooperar. — Se ela aparecer, peça para que... venha falar comigo. — Tem certeza? — Kylie se lembrou de como ele costumava reagir a toda a questão dos fantasmas. — Claro que não, mas vou fazer isso por Holiday. — A linha ficou muda por alguns instantes. — Antes que eu me esqueça, Derek vai passar na sua cabana amanhã e levá-la ao escritório às seis da manhã. Vamos ao restaurante... ver se conseguimos descobrir alguma coisa sobre Cara M. Eu investiguei e não existe nenhuma informação sobre uma Cara M. desaparecida. Será que você não entendeu o nome dela errado? — Não, eu vi o crachá dela várias vezes.
— Tudo bem — ele disse. — Nós vamos amanhã bem cedo e vemos o que conseguimos descobrir. Depois temos que voltar voando, antes que os pais comecem a chegar. Ah, que divertido, pensou Kylie. Ela tinha quase se esquecido de que era dia da visita dos pais. Assim que desligou, ouviu uma batidinha na vidraça do seu quarto. Ela pensou que ia ver a gralha azul, mas ficou surpresa e feliz ao ver Lucas abrindo a vidraça. — Por que ninguém aqui pode entrar pela porta? — Della gritou da sala. — Porque eu não vim ver você — respondeu Lucas, sorrindo para Kylie. O sorriso dele fez maravilhas pelo humor de Kylie. Ele entrou no quarto dela, sentou-se na beirada da cama e então se inclinou e a beijou. Foi um beijo carinhoso, suave e, ela percebeu, propositalmente breve. — Não posso ficar muito tempo. — Os olhos dele se demoraram nos lábios dela. — Por mais que eu queira. — Tem algum compromisso? — Meu pai mandou me chamar outra vez. Ela franziu a testa. — Eu não gosto do seu pai — ela disse e depois se sentiu mal por isso. — Desculpe, eu não quis... Ele colocou um dedo sobre os lábios dela. — Eu também não gosto muito dele. — Então ele sorriu. — Eu tenho que ir, mas... talvez mais tarde você possa sonhar comigo. — Lucas a fitou com um brilho de malícia nos olhos. Ela franziu a testa. — Eu tentei na noite passada, mas não consegui. Acho que é porque sou uma vampira. — Eu sabia que seria péssimo você ser vampira. Kylie revirou os olhos. — Eu ouvi isso! — gritou Della.
— Será que pode ouvir isso também — gritou Lucas de volta, mostrando o dedo médio na direção da porta. Kylie abaixou a mão dele. — Não a provoque — ela murmurou para Lucas, e depois gritou: — Vá para a cama, Della. Lucas suspirou. — Preciso ir. — Ele se inclinou e beijou-a novamente. A lembrança do beijo foi a última coisa que passou pela cabeça de Kylie quando ela caiu no sono. Tentou novamente provocar um sonho lúcido, mas nada aconteceu. Então, em vez disso, simplesmente sonhou. Sonhou sobre como seria quando ela entendesse tudo sobre quem e o que era. Sonhou sobre como seria quando Lucas não precisasse mais agradar à sua alcateia. * * * Kylie acordou na manhã seguinte às quatro da manhã. O quarto estava frio, por isso ela desconfiou que havia alguém ali; no entanto, nenhum espírito se manifestou, o que ela achou rude, como se o único interesse do fantasma fosse espioná-la. Sentandose na cama, ela sussurrou: — Hannah, é você? Ninguém respondeu, mas o frio parecia um pouco diferente. Um calafrio percorreu sua espinha. Ela se enrolou no cobertor e ficou sentada ali, respirando o ar frio. Seria uma das garotas enterradas com Hannah ou alguém que ela ainda não conhecia? A sensação era nova — desconhecida. Será que alguém a seguira desde o cemitério? Como sempre, quando um novo espírito aparecia, Kylie sentia apreensão. Passaram-se dois minutos até que o frio começou a diminuir. Socks saiu de debaixo da cama e subiu no colchão, enrodilhando-se como uma bolinha no colo dela. — Você também não gosta muito de fantasmas, hein? O gatinho soltou um miado abafado que parecia dizer: “Nem um pouco”.
Kylie puxou Socks mais para perto e então se acomodou sobre os travesseiros, esperando cair no sono novamente e tentar um sonho lúcido outra vez. Mas não teve tanta sorte. Sua mente começou a dar voltas, passando da visita da mãe para a visita do padrasto, em seguida para o namorado da mãe e depois para Hannah e a visita ao restaurante dali a algumas horas. Será que descobririam quem era Cara M.? Será que isso os ajudaria a descobrir quem a matou? Reclinada nos travesseiros, Kylie se lembrou de como Hannah tinha fugido assustada quando vira os novos professores no dia anterior. Aquilo significaria algo? — Hannah, se você puder vir para conversarmos, eu apreciaria muito. E a sua irmã quer conversar com você também, assim como Burnett. Você é um fantasma muito popular. O quarto continuou em silêncio e com a temperatura amena. Percebendo que, se permanecesse na cama, aquilo só a deixaria mais angustiada, Kylie afastou as cobertas e se levantou. Talvez Holiday já estivesse no escritório. E, com sorte, Della não arrancaria sua cabeça se ela quisesse sair da cabana mais cedo. Ela teria que ligar para Derek e avisá-lo de que já estava no escritório. * * * Ainda estava escuro quando Kylie e Della saíram da cabana. A temperatura estava baixa e o ar da manhã, tipicamente outonal. Della não tinha arrancado a cabeça dela quando Kylie lhe disse que queria ver se Holiday já estava na cabana, pelo menos não literalmente. Mas Kylie tinha certeza de que a amiga queria fazer isso. Sem dúvida, aquela história de ser a sombra de Kylie já estava cansando Della. Kylie não culpava a vampira. Talvez fosse hora de Kylie falar com Burnett e pedir que ele pusesse um fim àquilo. Fazia um tempo que não tinham notícias de Mario. Ela sentia que ele não estava por perto e nem Miranda pressentia mais a presença dele. Kylie só esperava que isso durasse para sempre.
— É cedo pra caramba! — murmurou Della. — Se você não quiser ir, tudo bem. Della continuou andando, mas não reclamou mais. — Pra mim, essa é a prova — sibilou Della. — Prova do quê? — perguntou Kylie. — De que você não é uma vampira de verdade. Quero dizer, o melhor sono dos vampiros é pela manhã. — Eu disse a você que não sou uma vampira puro-sangue. Eu... — Kylie parou de falar quando ouviu passos se aproximando. Os olhos de Della se arregalaram ao mesmo tempo, então as duas localizaram a direção de onde vinham os passos e seguiram até a orla da floresta. Elas se esconderam atrás de um arbusto, esperaram e observaram — até que uma silhueta apareceu na curva da trilha. Ele usava um blusão escuro com capuz, que cobria parcialmente seu rosto. Kylie não reconheceu seu semblante nem o seu jeito de andar. Se ele fosse um dos campistas, ela reconheceria, não é? Della farejou o ar. — Eu não reconheço esse cheiro — ela sussurrou. — Qual é o plano? — Kylie perguntou. — Que tal este? — Della saltou de entre as árvores, caninos à mostra, os olhos verdes e brilhantes, e aterrissou com um baque na frente do estranho.
 
Kylie, surpresa com a atitude agressiva de Della, ficou parada no lugar por um segundo antes de perceber que a amiga podia estar em perigo. Com a vampira a poucos metros do homem, Kylie disparou para fora da floresta e parou a menos de um metro dele, às suas costas. Della deu um passo defensivo na direção do homem. Ele deu um salto para trás e se chocou com Kylie. Depois se virou para ela, um grunhido escapando dos lábios, mas o capuz ainda encobria o seu rosto, impedindo Kylie de identificá-lo e saber quem estava enfrentando. — Quem é você? — Kylie perguntou. Sentindo seu instinto protetor correndo nas veias, ela avançou para arrancar-lhe o capuz. Ele se esquivou, recuando alguns passos — e se aproximando mais de Della. — Você, pare! — Della ordenou. Ele baixou, por fim, o capuz. — É dessa maneira que vocês tratam os professores? — perguntou Hayden Yates. Della, sendo quem era, não deu o braço a torcer. — Se eles ficarem perambulando furtivamente por aí nas sombras, vestidos como delinquentes, então, sim, é desse jeito que eles serão tratados! Kylie levantou a mão para Della, esperando acalmá-la, embora não se sentisse nem um pouco calma. Seu poder estava em alerta máximo; sua adrenalina, correndo nas veias. — Desde quando fazer uma caminhada é “perambular furtivamente por aí”? — perguntou ele, num tom professoral. — Desde que foi o que pareceu — rebateu Della.
A lógica combateu o surto de adrenalina em Kylie. — Eu... nós... Você nos assustou — explicou ela. — Eu não estava assustada! — discordou Della. O senhor Yates franziu a testa. — Da próxima vez, tentem dizer “olá” antes de atacarem alguém que esteja apenas caminhando. — Isso foi um “olá” — disse Della. — Se tivéssemos atacado, você estaria sangrando... ou morto. — A gente exagerou — interviu Kylie, e então se lembrou de que ela não sentia nenhuma simpatia por aquele professor em particular. Ele parecia esconder alguma coisa e suas roupas escuras e o rosto encoberto pareciam confirmar essa impressão. No entanto, os bons modos de Kylie e o seu respeito pelas autoridades a impediam de ser mal-educada. — Nós pedimos desculpas. — “Nós”? — perguntou Della com sarcasmo. Kylie fez um gesto para que a amiga continuasse andando. Della lançou um olhar zangado ao professor antes de se virar. E quando já estava a alguns metros dele, ela cochichou: — Eu não gosto dele. — Nem eu — concordou Kylie, sem saber muito bem por quê. — Você acha que ele trabalha para Mario? — Della perguntou. — Não, eu... não sei — confessou Kylie. — Não vamos tirar conclusões precipitadas. Elas chegaram à clareira onde ficavam o escritório e o refeitório. Kylie notou que as luzes do escritório de Holiday estavam acesas. Então percebeu o silêncio que reinava na floresta. Nem um pássaro ou uma brisa o perturbava. O fato de Della ter parado de andar e seus olhos terem adquirido um tom verde brilhante dizia a Kylie que ela não tinha imaginado a sensação de perigo. Havia alguém ali. — Está tudo bem — falou uma voz estranha atrás delas. As duas se viraram ao mesmo tempo. O homem, aparentemente de trinta e poucos anos, usava um terno preto. Ao verificar rapidamente seu padrão, Kylie descobriu que era um vampiro. A maneira como ele levantou as mãos, com as palmas à mostra, era um sinal de que não queria arranjar problemas. Então, mais uma vez elas se deparavam com um estranho na propriedade de Shadow Falls. Afinal, quem era ele? — Está tudo bem. — Sua postura pacífica não ajudou a tranquilizar Kylie e muito menos Della. — Isso quem decide sou eu. — O brilho nos olhos verdes de Della destacou as suas presas à mostra. O homem abriu o paletó e um distintivo brilhou no seu cinto. — Sou o agente Houston, da UPF, amigo de Burnett. — A maneira como ele disse “amigo” parecia significar alguma coisa, mas Kylie não soube dizer o quê. — Burnett me pediu para ficar de tocaia aqui enquanto ele ia atrás de um suspeito. — Ficar de tocaia por quê? Ele suspeita de alguma coisa? — perguntou Della, num tom que exigia resposta. O olhar do agente se desviou para Kylie, como se ele soubesse que ela entenderia. E de fato ela entendia. Burnett tinha pedido ao agente para vigiar Holiday, e obviamente ele estava procurando por Blake. Mas essa compreensão não fazia do estranho seu aliado. É lógico que ela confiava em Burnett, mas o distintivo que o agente Houston tinha exibido com tanto orgulho, aos olhos de Kylie, depunha mais contra ele do que a favor. — Não posso entrar em detalhes — ele disse. — Mas vocês vão ter que confiar em mim. Kylie sabe. Confiar? Sem chance, pensou Kylie, mas ao ver que o coração do homem não denunciava que estava mentindo, ela olhou para Della. — Ele está dizendo a verdade. — Eu sei — disse Della como se estivesse irritada, mas a cor dos seus olhos mudou, indicando que ela tinha aceitado a explicação. Pelo menos até estar sozinha com Kylie, quando colocaria a amiga contra a parede, exigindo informações. Della não gostava de ficar no escuro. — Eu vim ver Holiday. — Kylie olhou para Della.
— Ela está recebendo muitas visitas esta manhã — disse o agente. Kylie olhou para a janela do escritório e viu uma figura masculina. — Quem está lá dentro? — Um dos novos professores — respondeu ele. Kylie ficou tensa. — Hayden Yates? — Ela relanceou os olhos para Della. Como ele tinha conseguido chegar antes delas? A expressão de Della revelava que a vampira pensava a mesma coisa. — Não. Um tal de Collin Warren. Ele disse que era o novo professor de história. Algum problema com ele? — A voz do agente se aprofundou, enquanto ele dava um pequeno passo na direção do escritório. — Não — disse Kylie. — Não há nada de errado com ele. — Mas justo nesse momento, passos ecoaram na trilha. — Estão esperando alguém? — o agente perguntou. — Na verdade, não — disse Kylie, embora suspeitasse de quem era. E ela estava certa. Hayden Yates, com o capuz cobrindo a cabeça, entrou na clareira. — Bom dia. — Ele ergueu o queixo, o olhar se fixando, de maneira defensiva, no agente da UPF. — Vocês o conhecem? — o agente perguntou a Kylie. O senhor Yates aprumou os ombros como se estivesse ofendido. — Ele é um dos novos professores — explicou Della, mas o tom da garota parecia insinuar mais alguma coisa. Dizia que ela não gostava dele e o agente percebeu, dando um passo na direção do homem.
O outro não recuou. Ficou no lugar onde estava e Kylie achou que eles iam se confrontar. Então Hayden desviou o olhar, como se reconsiderasse a sua postura. — Não quero causar nenhum mal, só estou fazendo uma caminhada — ele disse ao agente, numa voz resignada. Kylie ainda tinha um pressentimento... de que algo não estava certo, de que o homem não estava sendo sincero. O aviso de Hannah soou nos ouvidos de Kylie. E no dia em que eu estava em Shadow Falls senti que ele estava por perto. Eu senti e tive certeza. Fui a Shadow Falls por causa dele. Será que Hayden Yates era o assassino de Hannah? Será que tinha se candidatado para o emprego de professor só para se aproximar de Holiday? Parecia improvável, mas Kylie não ia se arriscar. Tão logo Burnett voltasse, ela planejava contar a ele sobre as suas suspeitas. Kylie esperou na porta do escritório até que o senhor Warren terminasse a conversa com Holiday. Em poucos minutos, os dois saíram da cabana. O professor acenou com a cabeça educadamente e desejou bom-dia num tom de voz baixo. — Bom dia — respondeu Kylie, sentindo que ele era tão tímido e inseguro quanto ela. Talvez até mais. Uma espécie de versão masculina de Helen. E, no entanto, tinha optado por ser professor. Não havia dúvida de que seu amor pela história o levara por esse caminho. Por isso ele merecia a sua admiração. Quando o professor se afastou, Kylie olhou para Holiday e instantaneamente lhe deu um abraço. Elas ficaram abraçadas por um segundo a mais do que de costume. — Você está bem? — Kylie perguntou. — Com o tempo, vou ficar — disse Holiday. Kylie ouviu o senhor Warren conversando com o agente, do lado de fora. — Este é o primeiro ano que ele leciona? Kylie acenou com a cabeça na direção da janela.
— Como você adivinhou? — Holiday suspirou. — Ele foi recomendado por um amigo de um amigo. Não é tão mal numa conversa a dois. Espero que vocês, alunos, não o massacrem. Kylie deu uma risadinha. — Perry talvez pense nessa possibilidade. Holiday fez uma cara feia. — Prometa que você não vai deixar que isso aconteça. Ele realmente parece um sujeito legal e acho que será um excelente professor. Eu apreciaria de verdade se você o deixasse sob a sua proteção. Kylie achou graça. — Perry também pode se encarregar disso. Um sorriso, embora um pouco forçado, esboçou-se nos lábios de Holiday. Ela consultou o relógio na parede. — Você acordou cedo. — Não consegui dormir — Kylie explicou. — Hannah apareceu? — A dor era evidente na voz de Holiday e o peito de Kylie se apertou. — Não. Sinto muito. — Ela fez uma pausa. — Isso é cheiro de café? — É, eu... normalmente não bebo, mas esta manhã achei que me faria bem. Pegue uma xícara e depois eu quero ouvir sobre toda essa história de se transformar em vampiro. Ah, droga, pensou Kylie enquanto ia pegar o café. Ou ela abria o jogo ou ia ter que se enterrar em mentiras. Provavelmente inventaria uma história em que Holiday acreditaria — uma história que não incluísse sua escapada de Shadow Falls para se encontrar com o avô. Mas Holiday era a pessoa para quem mentir parecia mais errado. — Você fez o quê?! — Holiday perguntou, colocando o café sobre a mesa, quando Kylie terminou de explicar alguns minutos depois. — Quantas vezes eu já disse que, por ser protetora, você não tem poderes para se proteger? Poder nenhum! Você nem sabia se o e-mail era realmente dele.
— Eu sabia — discordou Kylie. — Como? — Holiday se inclinou para a frente. Kylie mordeu o lábio. — Ele era a neblina. — Ele era o quê? — O meu avô e a minha tia-avó, eles eram a neblina. De algum jeito, transformaram-se em neblina. — Como... — Ela soltou um longo suspiro, enquanto tentava debelar a confusão em seus olhos, e depois disse: — Mesmo assim, você não pode simplesmente desobedecer às regras. — Eu estava seguindo a regra principal. Aquela que você me disse dezenas de vezes. — Ela fez uma pausa. — Seguir o meu coração. Holiday olhou para Kylie como se debatesse a questão interiormente. — Você podia ter pedido para alguém ir com você. — Eles não teriam aparecido. — Você não pode ter certeza — contestou Holiday. — Posso, sim. Eles foram embora quando Lucas apareceu. — Espere, Lucas estava com você? Ele sabia sobre isso? — Havia uma reprimenda na voz dela. — Não. Ele e Perry me seguiram, mas eu... os detive e continuei. Quando Lucas me alcançou, meu avô e minha tia desapareceram. Eles não confiam em ninguém daqui, por causa do envolvimento da UPF no acampamento. Considerando tudo o que aconteceu, você não pode culpá-los. — Eu posso culpá-los de incentivar você a colocar sua vida em perigo. — Holiday reclinou-se na cadeira, frustrada. — Eles nem sabiam sobre Mario. E olhe pra mim. Nada aconteceu. Eu tinha que ir. Tinha que saber a verdade. Holiday fechou os olhos e os manteve assim. Quando suas pálpebras finalmente se abriram, Kylie viu que a frustração tinha quase desaparecido.
Seus ombros relaxaram. — E qual é a verdade, Kylie? O que eles lhe disseram? — Meu pai estava certo. Eu sou um camaleão. — E o que, exatamente, é isso? — Holiday perguntou. — Eu sou uma mistura de todos os sobrenaturais e conservo o DNA de todos eles. Holiday discordou com a cabeça. — Mas isso não é possível. O DNA do pai dominante é o único transmitido à criança. — É isso que nos torna diferentes das outras espécies. Holiday se inclinou para a frente, a expressão confusa. — Isso é... incrível! — Ela franziu as sobrancelhas ao fitar a testa de Kylie. — Então o que determina o padrão que você manifesta no momento? — Eu não sei... exatamente. Meu avô disse que leva anos para um camaleão aprender a controlar isso. É preciso um tempo para aprender. Mas depois ele disse algo que me fez acreditar que eu posso mudar meu padrão de acordo com os poderes de que eu preciso. — Então ele transformou você em vampira? — Não, eu... ele disse que eu devo ter feito isso instintivamente. Quando estava tentando fugir de Lucas e Perry, eu ficava dizendo a mim mesma que precisava correr mais rápido. Então talvez seja assim que aconteça. — Você já tentou mudar seu padrão outra vez? — Holiday arqueou uma sobrancelha com uma expressão curiosa. — Não. — Kylie balançou a cabeça. — A última vez que eu tentei fazer algo que não sabia direito como fazer, quase deixei Burnett estéril. Holiday deu uma risadinha. Ver Holiday sorrir era tão bom que Kylie sorriu também. — O que mais o seu avô disse?
O coração de Kylie se apertou. Se Holiday fosse vampira, ela ouviria a mentira se formando em seus lábios. Contar a Holiday que o avô queria que ela deixasse Shadow Falls parecia dar à líder do acampamento uma razão para não gostar dele — uma razão para insistir que Kylie ficasse longe dele. E ela não poderia fazer isso. Respirando fundo, Kylie lutou contra a culpa que se avolumava dentro de si, pois Holiday talvez não pudesse ouvir a mentira nos seus batimentos cardíacos, mas podia detectar suas emoções. Endireitando os ombros, ela fitou Holiday nos olhos. — Não disse muito mais do que isso. Lucas apareceu e... eles foram embora. — Quem foi embora? — Burnett perguntou. Kylie se encolheu ao ouvir a voz do vampiro. Ela estava tão ocupada tentando não se sentir culpada que não o ouvira se aproximando. — Você o encontrou? — Holiday se sentou ereta, a tensão enrijecendo os seus ombros. Kylie suspeitava que Burnett estivesse procurando Blake, mas ficou surpresa ao descobrir que ele tinha contado isso a Holiday. — Quem? — Kylie perguntou, para ter certeza de que estava certa. — Blake — confirmou Burnett. — E não. — Ele olhou para Holiday. — Já deixei mensagens no telefone do trabalho e no celular, dizendo que precisamos conversar. — Será que não é melhor eu ligar para ele? — Não — vetou Burnett. Sacudindo os ombros como se quisesse aliviar o estresse, ele olhou para Kylie. — De quem você estava falando quando eu cheguei? Quem foi embora? Holiday olhou para Kylie e ela conseguiu ver a mensagem nos olhos da amiga. Ela deixou a cargo de Kylie decidir o que dizer a Burnett... ou o que não dizer. Ela apreciou isso e, quando imaginou como o vampiro reagiria ao saber da sua desobediência às regras, Kylie quase preferiu não dizer nada. Mas, ao pensar na situação em que deixaria Holiday ao mentir para Burnett, Kylie reconsiderou. Ela não queria ser a causa de nenhum tipo de desentendimento entre eles. Não agora que seu objetivo era uni-los. — Você vai se aborrecer — disse Kylie. — Muito? — Ele franziu a testa. * * * De fato Burnett ficou bem contrariado. Kylie ficou aliviada quando, uma hora depois, Derek apareceu e os quatro foram ao restaurante, para tentar descobrir alguma coisa sobre Cara M. Quando Burnett e Holiday entraram no Cookie’s Café, Derek a deteve e deixou a porta se fechar. — Está tudo bem? Ele obviamente tinha captado o humor “alegre” de Burnett. No entanto, Kylie não sabia se ela era a única culpada ou se o fato de não encontrar Blake também contribuíra para deixá-lo de mau humor. Ao olhar pela porta de vidro e ver Burnett olhando para trás, à procura deles, Kylie se lembrou da conversa que tinham travado mais cedo. — A UPF não é a inimiga — ele insistiu, quando Kylie lembrou-se de que o avô tinha razão em desconfiar de Shadow Falls. — Você não é nosso inimigo — disse Kylie. — Mas eu ainda não tenho certeza se posso confiar na UPF. E, embora eu saiba que você não quer admitir, não teria escondido o corpo da minha avó e não teria ocultado alguns fatos da UPF se confiasse plenamente nela. Burnett não contestou esse argumento, mas o fato de Kylie ter apontado isso não colaborou muito para melhorar o humor do vampiro. Ele obviamente estava dividido entre sua lealdade a Shadow Falls e sua lealdade à UPF. Não que Kylie estivesse preocupada. Ela confiava em Burnett. Mas fazer com que o avô e a tia confiassem nele era outra história.
Derek limpou a garganta para chamar a atenção dela. Ele usava seus jeans favoritos e uma camiseta verde musgo. — Aconteceu alguma coisa? — Não — Kylie sussurrou para Derek, levemente perturbada pela proximidade dele, seu ombro roçando no dela. Ou será que ela estava perturbada por sentir o quanto esse toque ainda mexia com ela? Afastando esse pensamento, ela estendeu o braço para abrir a porta de vidro. Nesse momento ela teve uma sensação inexplicável de que alguém a observava. Ela se virou, mas Derek bloqueava a visão da rua. — Alguma coisa errada? — ele perguntou. — Não. — Ela ainda desviou o olhar para a rua atrás dele. Mas a breve sensação tinha passado. Será que o avô e a tia estavam por perto? Ela olhou em volta, para a direita e a esquerda. As casas antigas da rua tinham sido transformadas em lojas de suvenires e um antigo vagão vermelho agora era um vagão-restaurante. Ela não conseguiu ver ninguém espionando-a. Ninguém. Nada. Então virou-se novamente e entrou no restaurante, de onde vinha um burburinho de vozes. O aroma de bacon impregnava o ar da antiga casa transformada em restaurante. Ela não achava aquele cheiro nem um pouco tentador. Essa era a desvantagem de ser vampira. O recinto estava repleto de mesas, lotadas com pessoas famintas que pareciam estar de férias. O som de talheres tilintando contra pratos ecoava com as vozes. Só havia uma mesa vazia e Holiday caminhou em direção a ela. Uma garçonete veio dos fundos, carregando uma bandeja cheia que rescendia a bolinhos de canela. — É aquele uniforme? — Derek perguntou quando se sentaram. — É. — O coração de Kylie se alegrou com a esperança de que aquilo os levasse ao assassino. Outra garçonete, Chris G., de acordo com o crachá, parou em frente à mesa.
— Já querem fazer o pedido? — Antes que falassem, ela acenou para a outra mesa. — Só um minuto. — Na verdade — Burnett falou — estamos aqui na esperança de conseguir alguma informação sobre Cara M., uma garçonete que... — Ah. — Ela se afastou. — Ah, o quê? — Burnett franziu a testa enquanto a garçonete se distanciava. Ela enfiou a cabeça no vão de uma porta e chamou: — Ei, Cara, alguém aqui quer falar com você. Burnett, Holiday e Derek se voltaram, todos, para Kylie. — Ela não pode estar viva — disse Kylie. — Podem acreditar. Ela está morta. Então uma loira bonita, com um crachá onde estava escrito Cara M., saiu de um cômodo nos fundos. — Ela está parecendo bem viva para mim — disse Derek. — E em plena forma... — ele disse, corando um pouco.
 
Kylie abriu a boca para falar, mas não soube o que dizer. Pelo menos com relação ao comentário de Derek. — Oi, Cara — Derek a cumprimentou, olhando para Burnett como se para ter certeza de que poderia iniciar a conversa. Burnett assentiu com a cabeça e Derek continuou: — Estamos atrás de algumas informações sobre Cara M. Ela apontou para o nome no crachá. — Eu sou Cara M. M de Muller. Kylie analisou o rosto da garçonete e tentou compará-lo ao do espírito. Não era ela. Ou será que era? Kylie tentou puxar pela memória, mas só se lembrava do cabeço loiro e dos olhos azuis. Os quais essa garçonete também tinha, mas... — Desculpe — Derek disse. — Tínhamos a impressão de que Cara M. não trabalhava mais aqui. — Bem, eu ainda trabalho. Desde que tinha 15 anos, dois anos atrás. Por quê? — Será que outra Cara M. trabalhou aqui? — Kylie tentou não encará-la, mas sentia uma necessidade tão desesperada de descobrir a verdade que não resistiu. — Não. — A garota olhou para Kylie. — Do que se trata? Kylie notou que o crachá não estava bem fixado no uniforme. — O que acontece se você perder o crachá? Cara olhou de relance para os fundos do restaurante. — O gerente tem um chilique. — E o que você faria para evitar que ele tivesse um chilique? Kylie se inclinou para a frente. — O que quer dizer? — Cara perguntou.
— Ela quer saber se você já emprestou o seu crachá para uma das outras garotas — Derek explicou. A garçonete se inclinou mais para perto dele, como se tivesse medo que alguém pudesse ouvir. — O patrão nem percebe. Mas não sei por que vocês querem saber isso. — Ela sorriu para Derek como se... bem, como se ele fosse um cara muito atraente e ela fosse uma loira muito atraente. O que de fato ela era. E ele também. Kylie franziu os lábios, contrariada. Holiday tocou o braço da garota. Sem dúvida para lhe enviar um fluxo de energia calmante e incentivá-la a se abrir. — Alguma garçonete deste restaurante simplesmente... desapareceu? Kylie viu Burnett inclinar a cabeça, como se para ouvir melhor os batimentos cardíacos da garota e detectar uma mentira; Kylie fez o mesmo. — Elas vivem desistindo do emprego... a dona é uma mocreia! — A moça tinha falado a verdade. — Alguém já foi embora sem pedir demissão oficialmente? — Holiday perguntou. Cara fez uma pausa. — Sim. Uma garota fez isso. Cindy alguma coisa. Não me lembro do sobrenome dela. — Cindy alguma vez pediu o seu crachá emprestado? — perguntou Burnett, juntando-se à conversa. — Cindy era loira? — Kylie perguntou de súbito. — Sim — Cara respondeu para Burnett, e depois olhou para Kylie. — E era loira. Por quê? Com o toque casual de Holiday no braço da garota e os sorrisos sedutores de Derek, Cara respondeu a todas as perguntas sobre Cindy. Antes de irem embora, Burnett perguntou se podia falar com o gerente ou a dona do restaurante. Cara ficou nervosa.
— Fiz algo errado? — Não — Burnett assegurou. — Mas pode avisar que precisamos conversar com um deles? — Ele tirou da carteira o distintivo. Kylie não sabia direito o que ele poderia significar para os humanos, mas não pareceu fazer diferença. Cara ficou pálida. — Ah, droga. Aconteceu alguma coisa com a Cindy? Isso mesmo, Kylie pensou. Algo aconteceu. Algo muito ruim. Antes de saírem, Burnett descobriu o nome completo de Cindy, Cindy Shaffer, e uma cópia do seu currículo, onde havia seus contatos para casos de emergência. Quando ele mandou as informações para a UPF por telefone e perguntou pela carta de motorista dela, eles responderam em poucos minutos. Quando ele voltou com a imagem de uma jovem loira e sorridente, os olhos de Kylie se encheram de lágrimas. Era ela. E Cindy Shaffer nunca sorriria daquela maneira outra vez. Enquanto o vampiro dava ordens pelo telefone a alguém da UPF para que entrasse em contato com a família Shaffer, Holiday pediu bolinhos de canela à garçonete. Eles chegaram, quentes e cobertos de açúcar. Derek comeu dois, Holiday beliscou um. Kylie e Burnett pegaram os seus com menos entusiasmo. Embora o estômago de Kylie estivesse roncando, ela nem conseguiu sentir o gosto, pois a imagem de Cindy não saía de sua cabeça. — Você está seguindo uma dieta “líquida” nas refeições? — Holiday perguntou a Kylie em voz baixa, sem querer pronunciar a palavra “sangue” em voz alta. — Não regularmente... mas vou começar. — Ela não esperava ansiosamente por isso. Burnett pagou pelo café da manhã. Quando foram para o carro, Kylie teve novamente o pressentimento de que alguém a observava. Ela se virou e viu um homem desaparecendo entre as lojas. Ela mal teve um vislumbre de um ombro e um braço, mas os reconheceu. Kylie atravessou a rua em disparada. — O que foi? — Burnett disparou atrás dela.
Kylie parou em frente a uma loja. Seu olhar voou para uma placa de madeira onde se lia “Leitura de Mãos”. Ela abriu a porta. — Pensei ter visto alguém. Burnett pegou-a pelo braço, os olhos agora verdes, no modo proteção. — Quem? Kylie ouviu Derek chamando seu nome da calçada do outro lado da rua. — Vou descobrir. — Ela irrompeu pela loja. Burnett entrou com ela. A primeira coisa que Kylie notou foi uma boneca de vodu pendurada no teto, cravada de alfinetes. A segunda foi um odor repugnante. Ela cobriu a boca e o nariz com a mão. Embora estivesse com náuseas, procurou pelo homem que viu entrar no prédio. Ao perceber que o lugar parecia vazio, ela olhou para Burnett. — Alho. — Ele franziu o nariz. — É só respirar normalmente que o cheiro começa a ficar suportável. Não vai nos matar. — Posso ajudar? — uma voz perguntou por detrás do balcão, no canto da loja. Kylie forçou-se a tirar a mão da boca e olhou para a mulher usando um vestido solto, de cores berrantes, que devia ser a tal clarividente. Mas só para confirmar, Kylie checou o seu padrão cerebral. Humana — mas com um padrão sombrio. Ela apostava que era uma charlatã. Kylie inclinou a cabeça para ouvir se havia mais alguém na casa antiga. Nenhum som. Ninguém além deles respirava entre aquelas paredes, e Kylie desejou não ter que respirar. O cheiro estava impregnado em sua garganta. Ela fitou a porta. Para onde tinha ido o homem que vira entrando correndo na loja? Notando que a porta dos fundos estava entreaberta, ela apurou os ouvidos para ouvir se havia alguém do lado de fora. Se ele tinha saído por aquela porta, já devia estar longe.
— Hã... — Kylie forçou a voz a sair pela garganta apertada, mas, antes que conseguisse pronunciar qualquer palavra, ela notou a placa sobre a máquina registradora. Proibido entrar com sapatos, sem camisa e com acompanhante. E não aceitamos, em nenhuma circunstância, vampiros de coração frio. Ela olhou para Burnett e de volta para a placa. Ele franziu o cenho. — Você gostaria de fazer uma consulta? — a mulher perguntou. — Não. — Kylie ignorou sua vontade de vomitar. — Um homem acabou de entrar aqui. Eu acho que o conheço. — Sim. A campainha tocou, mas eu estava nos fundos. Quando cheguei, a pessoa já tinha ido embora. Provavelmente um espírito. Eles vêm aqui o tempo todo. Kylie tentou detectar a presença de algum fantasma. Não sentiu o frio característico dos mortos. E quem podia culpá-los? O fedor de alho provavelmente os afugentava também. Ela olhou para a mulher novamente, encarando-a agora como se ela fosse completamente louca. Uma louca muito burra se pensava que uma placa e uma réstia de alho podiam de fato afugentar vampiros. A mulher notou que Kylie reparara na placa. — Não tire conclusões apressadas. Eu os vejo rondando a loja o tempo todo. Eles têm um cheiro diferente. — Sério? — Burnett perguntou com um ar debochado. — Você acredita em vampiros? — Vocês não são os únicos que não acreditam — ela disse. — Mas eu tenho provas. Na propriedade de minha avó, os índios desenhavam vampiros nas paredes das cavernas. — Material interessante para um livro de contos de fadas. — Burnett olhou para Kylie. — Podemos ir?
Tão logo saíram da loja, Burnett grunhiu: — Quem diabos você pensa que viu? Ela nem pensou em esconder. Ia mesmo contar a ele antes, só não tinha tido tempo. — O que você sabe sobre Hayden Yates? — O novo professor? Ela assentiu. — Eu mesmo fiz uma extensa investigação sobre todos os novos funcionários. Por quê? Você acha que deixei escapar alguma coisa? — Ele não me inspira confiança. — Não inspira confiança? Kylie confirmou com a cabeça. — E esta manhã, antes de o sol nascer, Della estava me acompanhando até o escritório quando o flagramos nos seguindo. — Ela parou de falar, ao perceber que aquilo não era totalmente verdade. — Talvez não estivesse exatamente nos seguindo, mas estava rondando por ali. E Hannah insistiu em dizer que seu assassino, seja ele quem for, estava perto do acampamento. — E foi ele que você acha que Hannah viu? Ela assentiu. Ele franziu a testa. — Mas Blake, o ex de Holiday, está na região também. Hannah pode ter se referido a ele. Burnett queria que Blake fosse o culpado, e Kylie não tinha certeza de que não era, no entanto... — Eu sei, mas eu só... Talvez eu esteja exagerando. — Ou não. — Burnett sacou o celular do bolso e teclou um número. — Della — ele disse ao telefone. — Localize Hayden Yates no acampamento.
— Posso dar um chute no traseiro dele também? — A voz de Della ecoou do outro lado da linha. — Não, não o deixe perceber que você está atrás dele. Só quero saber onde ele está. E quero isso agora! — Já estou a caminho! — ela respondeu. O telefone ficou mudo por um segundo. — Pronto... Estou do lado de fora da cabana dele, olhando pela janela. Ele está lendo jornal, sentado no sofá. Tem certeza de que não quer que eu chute seu traseiro? Kylie contou que achamos que ele estava nos seguindo? — Contou. — Isso é uma permissão para eu chutar o traseiro dele? — perguntou Della, com uma risadinha. — Não — disse Burnett, sem achar graça. — Obrigado. — Ele desligou e voltou os olhos para Kylie. — Eu não acho que ele teria conseguido chegar ao acampamento tão rápido — disse Burnett. — Eu sei — concordou Kylie. — Então talvez não fosse ele. O semblante de Burnett ficou sério. — Mas, para garantir, vou fazer outro relatório detalhado sobre o sujeito. Kylie apreciaria muito. — Aonde é que vocês foram, afinal? — Derek parou ao lado deles. — Pensei ter visto alguém. — Kylie localizou Holiday, atravessando a rua. — O que aconteceu? — perguntou ela. — Kylie achou ter reconhecido alguém. — Burnett fez um gesto para que atravessassem a rua. — Precisamos voltar para o acampamento antes que os pais comecem a chegar. Ah, mas que ótimo! Agora Kylie teria que enfrentar todo o seu drama com os pais.
Holiday consultou o relógio. — É melhor nos apressarmos. Eles atravessaram a rua para chegar ao carro. Todos os cinco. Isso mesmo, cinco. Burnett acionou o controle para abrir as portas. Holiday entrou no banco da frente. Kylie parou ao lado da porta traseira, quando Hannah se inclinou na direção dela e sussurrou: — Eu quero me sentar na janela. Hannah, Derek e Kylie entraram no carro. Tão logo Burnett se acomodou atrás do volante, seus ombros ficaram tensos e ele olhou ao redor. O pânico em seu olhar deu a Kylie a certeza de que ela não era a única a ouvir e, o que era mais provável, ver Hannah. Burnett dirigiu em silêncio, olhando toda hora pelo retrovisor. Kylie estremeceu com o arrepio causado pela presença de Hannah. Você descobriu alguma coisa? Kylie falou mentalmente. Hannah ignorou a pergunta de Kylie. Em vez disso, olhou para Derek. — Ele é uma graça! — Nossa! Está frio neste carro. — Derek pousou o braço sobre os ombros de Kylie. O calor do seu toque era agradável, e sua proximidade, suficiente para que o odor natural do seu corpo encobrisse o cheiro de alho, não era nada mal também. Justamente por essa razão, Kylie se afastou um pouco e lhe lançou um olhar de advertência que dizia, “Não abuse da sua sorte”. Às vezes ela achava que ele se esquecia de que não estavam mais juntos. Mas era compreensível que ele se esquecesse, visto que Lucas nunca estava por perto... — Você com certeza devia ter ficado com ele. — Hannah se inclinou na direção do ombro de Kylie. O toque gelado do espírito fez a garota enrijecer. — E, falando em romance, é melhor que esse palhaço no banco da frente tome cuidado. Se ele magoar a minha irmã... — Não vou... — murmurou Burnett.
— Não vai o quê? — Holiday e Derek perguntaram ao mesmo tempo. — Nada. — Burnett travou o queixo de tal maneira que deve ter rachado alguns dentes. Hannah se inclinou para a frente e olhou para Burnett pelo retrovisor. Uma crosta de gelo se formou sobre o espelho. — Se você partir o coração dela, eu juro, corto fora as suas bolas enquanto estiver dormindo. A mandíbula de Burnett endureceu mais ainda. Holiday olhou, pasma, para o retrovisor e então encarou Burnett com os olhos arregalados. Um segundo depois, ela se virou para trás e lançou um olhar intrigado para Kylie. — É ela? É Hannah que está aqui? Kylie gelou, literalmente devido à presença de Hannah, mas também por não saber o que dizer. Quando Kylie não respondeu, Holiday voltou a encarar Burnett. — Você pode vê-la? Pode ver fantasmas? Como consegue? — Temos um fantasma no carro? — O timbre de voz de Derek estava ligeiramente mais agudo. — “Tinham” um fantasma no carro — disse Hannah. Seus olhos úmidos encararam Holiday, e então ela desapareceu, deixando no ar, como fumaça, sua tristeza profunda. No momento em que Kylie vislumbrou a mãe e John, o novo namorado estranho, entrando no refeitório abraçados como dois adolescentes apaixonados, descobriu que estava com inveja da capacidade de Hannah de se desvanecer no ar. Por que a mãe achava que trazer John era uma boa ideia? E, se ele tinha mesmo que vir, ela não podia manter as mãos longe do traseiro dele enquanto a visitava? Sim, porque a mãe de Kylie estava com a mão direita enfiada no bolso de trás do jeans do namorado. E, francamente, o homem nem tinha um belo traseiro!
É claro que a mãe não estava levando a sério a implicância de Kylie e achava que essas visitas eram necessárias para que a filha o conhecesse — antes... antes que fizessem algo estúpido como se casar. O pensamento deixava Kylie quase morta de medo. Respirando fundo, ela disse a si mesma que estava exagerando. Como Nana dizia, estava fazendo tempestade em copo d’água. A mãe não tinha respondido à pergunta dela sobre terem feito sexo. E o mais provável era que não fosse respondê-la hoje também. A mãe de Kylie se virou, localizou Kylie do outro lado do refeitório e sorriu. Kylie acenou, esperando que a mãe fizesse o mesmo, tirando a mão do traseiro de John, mas não! Respirando fundo, Kylie fingiu um sorriso. A mãe sorriu para John e o homem se abaixou e beijou-a. Um beijo... de língua! E bem na frente de todos os colegas de Kylie. — Ah, por favor, alguém me mate... — Kylie murmurou. — Acho que formam um belo casal. — Holiday se inclinou na direção de Kylie como se percebesse seu tumulto emocional. — E eu acho que vou vomitar. — Kylie jurou para si mesma que ia ter uma conversa séria com a mãe e descobrir exatamente o que estava acontecendo. Quando viu que o beijo não ia acabar tão cedo, Kylie concluiu que, de fato, ela queria sumir dali. Simplesmente virar fumaça. — Respire fundo e se acalme — disse Holiday. — Você está em pânico. Kylie olhou para Holiday. — Minha mãe está dando um beijo de língua na frente de todo mundo — ela murmurou. — Claro que eu estou em pânico! — Ah, meu Deus! — Holiday deixou escapar. — Meu Deus por quê? — perguntou Kylie, alarmada com o pânico na voz de Holiday. — Oh, Kylie... — murmurou Holiday. E então ela olhou para o outro lado do recinto e acenou para Burnett, com um ar preocupado.
— O que foi? — perguntou Kylie, olhando para a porta, certa de que alguém indesejado, possivelmente Mario, tinha entrado no refeitório. Não era Mario. — Merda! — Holiday sussurrou. — Kylie, aonde você foi? — Como assim? Eu estou aqui. Bem ao seu lado. Kylie olhou para os próprios pés, mas tudo o que viu foi o chão. Nenhum tênis, nenhuma perna. Nenhuma Kylie. — Ah, droga! — ela murmurou e, embora não pensasse nisso havia algum tempo, ela se lembrava do pai dizendo que eles iriam descobrir as coisas juntos. Seria isso? Morrer seria assim?
 
Espere aí, Kylie pensou. Se ela estivesse morta, não deveria estar estatelada no chão, sem vida? — Ah, não! — Kylie murmurou quando a mãe, com um olhar aturdido no rosto, caminhou até Holiday. — Onde está Kylie? — perguntou. — Ela correu para... o banheiro, eu acho, mas... não tenho certeza. — A voz de Holiday soou estridente. Burnett parou ao lado da mãe de Kylie, seu olhar sério tentando interpretar o que estava acontecendo com Holiday. — Algo errado? — A fachada de calma do vampiro era quase convincente, mas Kylie viu a tensão enrijecendo a sua mandíbula. — Hã... É Kylie... Ela... desapareceu. Achei que talvez você pudesse encontrá-la. — Desapareceu? — Todo tipo de pergunta surgiu em seus olhos. Holiday assentiu e não desfez o contato visual, como se dissesse mentalmente a ele que a coisa era séria. E, santo Deus!, era séria mesmo. Ela estava invisível! — Que maluquice! — Minha mãe parecia confusa. — Ela estava aqui e de repente... virou fumaça. Virou fumaça? Kylie subitamente se lembrou de que tinha desejado desaparecer. Desaparecer como um fantasma. Droga! Droga! Droga! Se havia uma lição no antigo adágio advertindo para que tivéssemos cuidado com o que desejamos, com certeza era aquela. As perguntas davam voltas na sua cabeça. Será que ela ainda era vampira? Será que tinha se transformado em bruxa e acidentalmente agitado o dedo mindinho ao fazer aquela declaração? Ou aquilo tinha tudo a ver com o fato de ela ser um camaleão? Foi então que se lembrou de que, segundo Perry, sua tia e seu avô tinham sumido, quando iam embora de carro, na primeira vez em que visitaram Shadow Falls, e também no cemitério. Será que sumir era o mesmo que virar fumaça? As palavras do avô ecoaram na sua mente. Venha conosco. Ajudaremos você a entender tudo. Você precisa descobrir quem é e o que é. Mais do que nunca, e não pela primeira vez, Kylie se perguntou se ele estaria certo. — Você perdeu Kylie? — John perguntou, com rispidez. — Que tipo de lugar perde crianças? — Nós não a perdemos — disse Holiday, mas Kylie viu o pânico brilhando nos olhos dela. — Tenho certeza de que ela vai aparecer a qualquer minuto. A mãe pareceu relaxar, mas Kylie não sentiu o típico tom caloroso e reconfortante de Holiday. E, quando ouviu mais atentamente, percebeu, pelas batidas do coração da amiga, que ela estava mentindo. Merda! Merda! Merda! Kylie tentou pensar no que fazer. Ela tinha que sair daquela enrascada... bem, aparentemente ela mesma tinha se colocado naquela situação. — Eu posso fazer isso — ela disse, precisando de um pequeno incentivo, mesmo que fosse tão falso quanto um Papai Noel de shopping. Ela tentou racionalizar. Se tinha ficado invisível desejando desaparecer, talvez pudesse reverter a situação desejando o contrário. Bastava conseguir pedir mentalmente a tudo o que fosse mais sagrado para que voltasse a ser como antes. Ela fechou os olhos e percebeu que, se funcionasse, ela apareceria como num passe de mágica. Aquilo assustaria todo mundo ainda mais. — Vá para outro lugar — ela murmurou para si mesma. — Algum lugar reservado. — Kylie disparou na direção dos toaletes.
Quando irrompeu dentro do banheiro, ouviu vozes, mas ignorou-as, correndo para dentro de um dos reservados vazios. Inspirando e depois exalando o ar dos pulmões, ela fechou os olhos com toda a força. — Eu gostaria... eu gostaria de ficar visível. — Ela abriu os olhos e fitou os pés. Ou o espaço onde seus pés deveriam estar... mas não estavam. Um nó se formou na sua garganta. O medo fez seu coração disparar. E se ela ficasse assim para sempre? E se... Não! Ela já havia estado em situações piores. Já tinha sido sequestrada e acorrentada a uma cadeira e sobrevivido. Tinha sido atirada de um penhasco e contornado a situação. De repente, ela se perguntou novamente se a invisibilidade estaria relacionada ao seu lado bruxa. Ela agitou o dedinho. — Me torne visível. Me torne visível. Nada aconteceu. — Mas que droga é essa que me aconteceu? — O nó na garganta dobrou de tamanho. Ela começou a chorar. — Alguém pode me ajudar, por favor? — Ela se encostou à porta do banheiro. — Daniel! — Ela sussurrou o nome do pai mesmo sabendo que não havia quase nenhuma possibilidade de ele aparecer. — Será que você pode, por favor, por favor, me ajudar? — Pense em você visível no lugar onde está — disse uma voz. Ela prendeu a respiração ao perceber que não se tratava de uma voz qualquer, mas a voz de Daniel. Ela se afastou da porta e viu a silhueta quase indistinta do pai, espremida entre o vaso sanitário e a porta. — Pense. Torne isso realidade na sua cabeça. — Como? — Pense nisso. Dentro do seu coração. Você tem o poder... — Sua voz esmoreceu. — Não vá! — implorou Kylie, mas ele se foi. Secando as lágrimas, ela fez o que ele disse. Concentrou-se em ficar visível. Em estar no lugar em que estava, fisicamente.
Fechando os olhos novamente, sem nenhuma fé, mas desesperada o suficiente para tentar, ela se concentrou. Então abriu um olho e deu uma espiada. Seus pés nunca pareceram tão bonitos em toda a sua vida. — Obrigada! Obrigada! — Pelo quê? — alguém perguntou no reservado ao lado dela, mas Kylie mal ouviu, pois estava empolgada demais por não estar mais invisível. Ela saiu do reservado e estancou quando viu Steve e Perry parados na frente dos mictórios, as calças arriadas. O som da urina batendo no mictório de cerâmica atingiu os seus ouvidos. Não era um som muito agradável. Seu rosto adquiriu um vibrante tom de vermelho. A porta do reservado atrás dela abriu-se com um assobio. — O que você está fazendo no banheiro masculino? — alguém per- guntou. Steve, com as calças ainda arriadas, virou-se para trás. Completamente. Kylie cobriu os olhos com as mãos. — Eu não vi nada. Eu juro. — Tudo bem, talvez ela tivesse visto, e por isso tivesse ficado vermelha. — Que diabos? — Steve grunhiu. Junto com a risada de Perry, ela ouviu o som de zíperes sendo puxados. — Desculpe. — Com as mãos sobre os olhos, ela se moveu na direção da porta, mas em vez disso se chocou contra uma parede. Perry riu mais ainda. — Os passarinhos já estão na gaiola. Pode abrir os olhos agora. Ela abriu, mas recusou-se a olhar para qualquer um deles. Para os passarinhos. Saiu do banheiro como uma flecha, desejando que tivesse um minuto para se recompor antes de... Tarde demais.
Holiday a localizou. Assim como a mãe e John. Todos os três vieram correndo até onde ela estava. Holiday a olhava com os olhos arregalados e cheios de perguntas. Perguntas que Kylie não sabia responder. — Por acaso você acabou de sair do banheiro masculino? — A mãe perguntou parecendo levemente irritada, mas fitando-a com preocupação. John se adiantou e envolveu a cintura da mãe de Kylie. Alguma coisa no modo como a tocou fez com que a garota imaginasse os dois juntos, sem roupas. Ah, Deus... eles tinham feito sexo. Ela sabia. Então ela viu a cena. Viu dentro da sua cabeça. E não era nada agradável! — Você está bem? — a mãe perguntou. — Está vermelha como um tomate. — Sim — respondeu Kylie, com a voz esganiçada. Afastou a imagem dos dois nus antes que desejasse desaparecer novamente. — Você estava bem ali — disse a mãe num tom ligeiramente reprovador. — Eu virei a cabeça e você desapareceu. Kylie abriu a boca para dizer alguma coisa, para se desculpar ou talvez para falar alguma coisa amena como “Que lindo dia, não?”, mas as palavras não saíram dos seus lábios. — Você não virou a cabeça. Estava dando um beijo de desentupidor de pia nesse idiota. — Kylie respirou fundo, fechou a boca, mas ela voltou a se abrir como que por vontade própria. — Não está dormindo com ele, está? Pelo menos já leu os panfletos sobre sexo que me deu durante todos esses anos? A mãe ofegou e seu rosto ficou vermelho brilhante. Então era daí que vinha a capacidade de Kylie para enrubescer. A mãe abriu a boca, obviamente para repreender Kylie, mas nada emergiu de seus lábios. Nem uma palavra. John limpou a garganta num tom de censura. Mas quem, afinal, tinha lhe dado o direito de censurá-la? — Ora, Kylie, não foi nada bonito...
— Você quer dizer o beijo? — Kylie perguntou. — Porque, francamente, eu não disse que foi bonito. Na verdade, foi extremamente constrangedor. Foi nesse momento que Holiday limpou a garganta. Kylie aceitava a intervenção de Holiday, mas não daquele cretino, que ficava se esfregando na sua mãe. — Eu acho melhor irmos lá para dentro — disse Holiday. — Acho que a garota precisa de uma boa reprimenda — disse John. A coluna de Kylie se empertigou. E dane-se se ela sentisse os caninos ficando um pouquinho mais longos. Suas emoções corriam tão rapidamente nas veias que ela não sabia nem definir como estava se sentindo. Exceto pela fome. Por sangue. Como ele tinha a ousadia de achar que podia repreendê-la? — Espero que você seja rico, porque essa é a única razão que me ocorre para a minha mãe gostar de você. A mãe arquejou e Kylie também. Por que ela estava dizendo aquelas coisas? Ah, merda, ela precisava ficar de boca fechada. O que havia de errado com ela? Será que ficar invisível afetara o seu cérebro? Ou ser um vampiro fazia com que ela fosse tão petulante quanto Della? — Você está sendo muito rude, mocinha! — John falou e olhou para a mãe de Kylie. — Ela não está sendo rude — uma voz profunda soou atrás de Kylie. A voz lhe pareceu totalmente familiar, mas Kylie não conseguia pensar direito a ponto de reconhecer quem era, então ela se virou para dar um rosto àquela voz. Ah, merda! Será que a situação poderia ficar ainda pior? — Acontece que eu presenciei tudo. E, francamente, concordo com a minha filha. Foi bem impróprio. — O padrasto lançou para a mãe de Kylie um olhar de profundo desagrado.
O rosto da mãe ficou ainda mais vermelho, mas Kylie reconheceu aquela vermelhidão em seu rosto e soube que não era embaraço. Ela estava furiosa! — Como ousa me dizer o que é impróprio? — a mãe esbravejou. A vergonha se estampou na expressão do padrasto. Ele olhou para Kylie. — Eu não sabia que Kylie estava lá. Eu não teria feito nada se soubesse. Eu já me desculpei centenas de vezes. Mas dois erros... — Vamos todos dar uma volta — disse Holiday novamente. Mas ninguém saiu do lugar. Kylie levou um segundo para perceber o que o padrasto queria dizer. Ela abriu a boca para dizer algo, mas o quê? “Não se preocupe, pai? Mamãe não sabe que eu vi a sua vadiazinha se esfregando em você e praticamente se atirando nos seus braços no centro de Fallen?” Não, não parecia a melhor coisa para se dizer. Então ela solenemente fechou a boca e começou a rezar para que acontecesse um milagre, pois seria preciso um para acabar com aquela confusão. — Você não teria feito o quê? — a mãe perguntou, e quando o padrasto não respondeu, a fúria dela se voltou para Kylie. — O que você viu? — ela perguntou em seu tom “ou fala ou morre”. E morrer parecia a melhor opção. A culpa flutuou pelo peito de Kylie. Mas culpa pelo quê?, ela perguntou para a emoção indesejada. Não contar nada à mãe tinha sido o mais correto, não tinha? — Por que não vamos até o escritório? — Holiday tentou novamente, colocando uma mão no ombro da mãe de Kylie. A expressão desta se suavizou. Graças a Deus Holiday tinha um toque calmante. O pânico que se acumulava dentro de Kylie diminuiu. Que Holiday se encarregasse de resolver aquela situação.
Mas então Kylie viu o jeito como John olhava para o seu padrasto. E quando ele abriu a boca, Kylie questionou se Holiday seria capaz de operar esse milagre. Não ajudou nada quando Lucas parou subitamente ao lado de Kylie, os olhos brilhando num pálido e protetor tom alaranjado. Não que ela não adorasse saber que ele se preocupava em protegê-la, mas a última coisa que queria era ter que explicar a cor dos olhos do namorado para o padrasto, para a mãe e para o homem que estava fazendo sexo com a sua mãe. E pensar nisso fez com que os olhos de Kylie ardessem. Merda! Será que seus próprios olhos estavam alaranjados agora? — Você não tem nenhum direito de julgá-la depois do que você fez! — John deu um passo defensivo para a frente na direção do padrasto de Kylie e os próprios instintos de proteção da garota despertaram. — Não me admira que sua filha seja tão desrespeitosa! — John atacou. Desrespeitosa?! Kylie sentiu os caninos crescerem um pouco mais e ficou tão furiosa que não percebeu Derek se unindo ao grupo; Lucas, no entanto, não deixou de reparar, pois soltou um grunhido. Holiday se aproximou e, mantendo a mão em contato com a mãe de Kylie, descansou a outra palma no ombro de John. Por um segundo, a energia de tensão, que parecia sugar todo o oxigênio do lugar, diminuiu. Kylie entoou uma prece silenciosa de agradecimento. Então notou a expressão no rosto do padrasto. E imediatamente se arrependeu da sua gratidão. — Quem diabos você pensa que é? Não se atreva a insultar a minha filha — vociferou o padrasto. Holiday olhou da mãe de Kylie para John e depois para o padrasto. A pobre Holiday só tinha duas mãos. Antes que alguém pudesse detê-lo, o punho do padrasto acertou o nariz de John. O sangue jorrou. Todos os vampiros no refeitório, incluindo Kylie, inalaram o aroma de sangue. Lucas tentou puxá-la para trás, mas ela não saiu do lugar. A mãe de Kylie gritou. John começou a avançar para cima do padrasto, mas errou o alvo e, em vez disso, acertou Holiday.
Burnett atravessou a sala voando e arremessou John contra o chão. E todo mundo... todo mundo no refeitório, todos os campistas, todos os pais dos campistas, todos os professores, especialmente Hayden Yates, pararam para olhar o profundo caos em que se transformara a vida de Kylie. Voltando a se concentrar no tumulto diante dela, Kylie se sentiu como a protagonista de um reality show chamado “Pais que se Comportam Mal”. Ela observava, mortificada, enquanto a cena prosseguia. John tinha conseguido ficar de pé e se desculpava com Holiday. A mãe parecia perturbadíssima. O pai tentava falar com a mãe perturbadíssima. Holiday tentava tocar todo mundo. Burnett continuava a encarar John com fúria, provando quão difícil era para um vampiro aceitar desculpas. Não que ela o culpasse. Mate-o! Mate-o!, Kylie mentalmente incentivava Burnett. Lucas não tinha parado de implicar com Derek e este não tinha parado de ignorar Lucas. Todo mundo reagia de uma maneira ou de outra. Todo mundo exceto Kylie. Ela não se movia. Nem respirava. Estava congelada no lugar, concentrada... firmemente concentrada em não desejar desaparecer dali — porque, no fundo, era exatamente o que ela queria fazer.
 
Burnett tirou do refeitório todo mundo que estava envolvido na briga. Kylie se movia como um robô, um pé na frente do outro, sem querer deixar que suas emoções viessem à superfície, por medo do que poderia acontecer. Ou seja, ou ela começava novamente a proferir seus comentários malcriados — canalizando a atitude rebelde de Della — ou ficava invisível. As duas coisas poderiam causar danos irreversíveis. Justamente quando ela saía pela porta do refeitório, seguida por Lucas e Derek, ouviu o pai de alguém dizer: — É claro, são sempre os humanos que causam confusão. Inspirando o ar da manhã ensolarada, tentando não se sentir insultada pela mãe e o padrasto, e tentando controlar a mortificação que tudo lhe causara, ela observou Holiday levar a mãe e John até o escritório. Burnett esperou um segundo, então com uma voz nem um pouco simpática, mandou que o padrasto de Kylie o seguisse até lá dentro, obviamente para outra sala. Kylie sentiu que todos ali iriam ouvir um sermão. Não que não merecessem, mas... ela se sentiu estranha assistindo aos pais sendo levados para a “diretoria”, em vez do contrário. Ao se lembrar de algumas palavras que tinha dito à mãe e a John, Kylie suspeitou que não demoraria até ela mesma também ouvir um sermão. Depois que a porta do escritório se fechou atrás de Burnett e do padrasto, Kylie se virou com a intenção de se jogar nos braços de Lucas. Ela precisava de alguém que a confortasse. Olhou na direção do refeitório e o viu entrando, sem dúvida voltando para a sua alcateia. Deus ajudasse que a alcateia não estivesse pensando que a ajuda de Lucas para acabar com a briga fosse mais do que uma boa ação ou significasse que ele se preocupava com ela.
Certo ou errado, seu coração se apertou. Derek, no entanto, apareceu de repente ao lado dela. Os olhos de Kylie ardiam, havia um nó em sua garganta e, antes que ela percebesse, estava nos braços dele. Braços quentes e fortes a envolveram e confortaram. Era errado. Tão errado! Ela precisava parar. Parar de contar com Derek. — Não precisa se sentir culpada — ele sussurrou no ouvido dela, lendo perfeitamente as suas emoções. — Sou só um amigo ajudando uma amiga. Não, ela pensou. Ele era um amigo que um dia fora muito mais do que isso, um amigo que lhe confessara seu amor por ela e queria ser muito mais outra vez. Ele era alguém de quem, em algumas ocasiões, ela ainda queria muito mais também. Alguém que ela podia procurar quando precisava de ajuda. E, no entanto, não era pelos braços dele que ela ansiava, não era ele que ela precisava que a abraçasse. Um pouco depois, Holiday saiu na varanda do escritório e fez um gesto para que Kylie se aproximasse. Ótimo, agora era sua vez de ser punida. Sabendo que merecia isso, ela se empertigou e enfrentou o seu destino. Mas o olhar no rosto de Holiday não era de reprovação. Ela imediatamente abraçou Kylie. — Santo Deus, menina! Por favor, me diga que você está bem. — Eu estou bem — Kylie mentiu. Holiday respirou fundo. — Você quase me matou de susto. O que...? O que aconteceu? Quando Kylie encontrou os olhos verdes da líder do acampamento, seu olhar preocupado, soltou o ar dos pulmões com um tremor. — Eu também quase morri de medo de mim mesma. Eu... simplesmente desapareci. Podia ver e ouvir você, mas você não sabia que eu estava ali. Eu... virei fumaça. — Assim como meu avô e minha tia.
Holiday tocou o braço de Kylie para lhe oferecer um pouco de serenidade. — Tudo bem, precisamos conversar sobre isso, descobrir o que aconteceu, mas primeiro vamos cuidar dos seus pais e mandá-los para casa. O peito de Kylie se apertou com a constatação de que, por mais que Holiday tentasse, ela não conseguiria ajudar Kylie a descobrir o que tinha acontecido. Ela precisava do avô e da tia. Um camaleão sozinho não sobrevive. Venha conosco. Você precisa aprender quem é e o que é. Ao reparar que Holiday a analisava, Kylie desabafou: — Eu disse coisas terríveis. Não gosto nem um pouco de John. — Bem, se isso a faz se sentir melhor, neste momento, nem eu. — Holiday pressionou as palmas das mãos sobre os ombros de Kylie. — Só vá falar com eles. Acho que todos concordam que eles é que estavam errados. Seu pai está no meu escritório e a sua mãe e John estão na sala de reunião. Pode fazer isso? Kylie assentiu. Quando ela deu um passo em direção ao escritório, Holiday a puxou de volta e lhe deu mais um abraço. — Vai dar tudo certo, ok? Não há nada que não possamos descobrir juntas. Se pelo menos isso fosse verdade... Kylie entrou no escritório de Holiday. O pai, sentado no sofá, levantou-se e a encarou. Em seu rosto estavam estampadas as suas emoções. Remorso. Tristeza. Muita tristeza. — Eu lamento muito, querida. Eu me comportei como um idiota. Não vai acontecer outra vez, eu prometo. Kylie assentiu mais uma vez. — Tudo ficou fora de controle. Ele concordou. — Mas não foi em vão. Isso me forçou a encarar a verdade. Eu precisava disso.
A voz dele tremeu ou foi imaginação de Kylie? — Que verdade? — Eu vou conceder o divórcio à sua mãe. Ela o quer; agora conseguiu. Os olhos do padrasto expressavam seu sentimento de derrota. Derrota como ela nunca vira antes. Uma palavra lhe ocorreu. Destruído. Ele era um homem destruído. Vê-lo assim doía muito! — Pai, acho que a mamãe só... — Não. — Ele levantou as mãos. — Eu não quis dizer... não estou culpando a sua mãe... Eu sei que sou o responsável por estragar tudo. Não entendo como pude fazer isso, amando-a tanto quanto a amei da primeira vez em que a vi no colegial. — Seus olhos marejaram quando ele pressionou a mão contra a bochecha de Kylie. — Nunca se apaixone, princesa. Machuca demais. Suas palavras ecoaram na cabeça de Kylie quando ela se lembrou da dor que sentira quando procurou por Lucas e ele não estava mais lá. Ela se perguntou se não seria tarde demais para o padrasto lhe dar esse conselho. Mas ela deixou suas emoções de lado para poder apoiá-lo. Ele precisava dela. Ele respirou fundo. — Saber que a perdi me deixa arrasado, mas sei que mereço, e vou aprender a conviver com isso. Só não vou conseguir viver se... perder você. Desde o dia em que o médico a colocou nos meus braços, na maternidade, eu amei você. Os olhos de Kylie se encheram de lágrimas. — Você não vai me perder. — Ótimo, porque eu sou o seu pai e não quero que você jamais se esqueça disso. Mas ele não era o pai dela. As palavras “não vou me esquecer” estavam na ponta da sua língua, mas ela não conseguiu dizê-las. Desviou os olhos. Mas não queria que isso significasse alguma coisa. Embora significasse. Kylie o ouviu respirar fundo. Ela o olhou de relance e viu nos olhos dele. Ele sabia. E ele sabia que ela sabia.
— Sua mãe contou a você — ele disse. A mágoa toldou os olhos dele e o mesmo sentimento oprimiu o peito de Kylie. — Não. — Meu verdadeiro pai veio me ver depois da morte. Ela tinha que inventar uma mentira e rápido. — Eu achei sua certidão de casamento e descobri que ela já estava grávida quando se casou, e todo o resto se encaixou. — Eu não poderia amá-la mais se fosse minha. Nunca quis que você pensasse que eu não a amava por causa disso. — Eu sei — disse ela. — E o fato de você ter me amado mesmo eu não sendo sua filha significou muito. — Ela falou com a intenção de tranquilizá-lo, porque o sofrimento do padrasto era palpável, mas então percebeu quanto isso era verdadeiro. Ele a amava mesmo sem ter obrigação nenhuma. Ele tinha desempenhado plenamente seu papel de pai: vendido rifas para a turma de escoteiros de Kylie, ajudado a construir carrinhos de rolimã para que Kylie participasse das corridas na escola e planejado viagens com ela. Houve também os abraços, quando a mãe não tinha muito jeito para isso. Ela se inclinou para se aproximar dele, precisando de um abraço agora, e achou que ele apreciaria um também. Ela saboreou o abraço. Ele era muito bom nisso. Ouviu a respiração dele tremer e chorou em seu ombro como tinha feito tantas vezes quando criança. Foi nesse momento que ela percebeu que já o perdoara. Ele não era um homem ruim; só tinha cometido erros muito ruins. Ele era simplesmente humano, no final das contas. Depois que o pai foi embora, Kylie se recompôs e entrou na sala de reunião para enfrentar a mãe e John. Gostando ou não, ela tinha que pedir desculpas, portanto, quanto mais rápido acabasse com aquilo, melhor. A mãe de Kylie levantou-se da cadeira num pulo. John a seguiu. — Sinto muito — disse Kylie. — Eu...
— Nós também sentimos muito. Não é, John? — a mãe arriscou. — Sim, falei o que não devia. — A desculpa saiu dos lábios de John, mas não transpareceu em seus olhos. — Foi um erro que não se repetirá. — Vocês são apenas humanos — relevou Kylie, mas sem muita confiança. Então estudou o rosto deles para ver se ele reagia ao comentário. Não reagiu. Ela ainda insistiu em verificar o padrão dele outra vez. O que mais a assustava era pensar que, se ele não fosse humano, deveria ser um camaleão. Ela se lembrou de Ruivo, que tinha dado a própria vida para salvá-la, dizendo que ele era da mesma espécie que ela, só não tinha nascido à meia-noite. Então... Mario devia ser um camaleão também. E se John era um camaleão, poderia ser comparsa de Mario? Ela estava exagerando, disse a si mesma. Seus sentimentos provavelmente eram causados pelo fato de John ser a razão de seu padrasto não ter mais chance de voltar com a mãe. No entanto, ela decidiu que pediria a Burnett para investigar os antecedentes do “seu querido” John. A mãe de Kylie se aproximou. — John, você pode me dar um minutinho a sós com Kylie? E lá vinha a bronca! Kylie mordeu a língua e disse a si mesma que deveria estar feliz pela mãe ter decidido poupá-la do constrangimento de ser repreendida na frente do seu namoradinho. No entanto, o namoradinho parecia bem insatisfeito quando se afastou em direção à porta. Kylie mordeu a língua ainda mais forte. Cruzes! Esse homem trazia à tona o que havia de pior dentro dela. No momento em que John fechou a porta, Kylie se desculpou: — Eu sinto muito. Eu não deveria ter falado tudo aquilo. — E ela de fato lamentava, não por causa de John, mas porque provavelmente tinha magoado a mãe. Essa não era a sua intenção. — Não, Holiday está certa. Aparecer aqui com ele não foi uma boa ideia. Eu só... — Ela corou. Ele me faz feliz, Kylie. Eu nem consigo explicar, mas é quase o que eu sentia quando estava com o seu verdadeiro pai. Kylie se lembrou do que o avô havia dito, que os seres humanos dotados de algum dom se sentiam atraídos pelos sobrenaturais. Suas suspeitas com relação a John aumentaram. — Eu queria que você o conhecesse melhor, porque... porque ele é importante para mim. E... Santo Deus, era muito difícil para ela ouvir aquilo. Antes de saber o que planejava dizer, ela começou a falar. — Papai lamenta muito tudo isso, também, mãe. Se você trouxe John aqui para provocar ciúme nele, funcionou. Eu sei que papai a magoou, mas, se você ainda o ama... saiba que ele ama você. A mãe fechou os olhos como se buscasse as palavras certas. Quando ela fitou Kylie, uma grande emoção toldava seus olhos. — Eu de fato queria que seu pai nos visse, mas não posso... Seu pai e eu não vamos voltar a ficar juntos. — Ela pegou a mão de Kylie. — Me desculpe, querida, eu não posso... Kylie apertou a mão da mãe. — Eu entendo. A mãe suspirou. — Entende mesmo? Kylie acenou com a cabeça, concordando. Aquilo ainda doía muito, mas ela entendia. A mãe respirou fundo como se estivesse prestes a dizer algo muito difícil. — Por favor, procure ver o lado bom de John. Não foi por causa dele que seu pai e eu nos separamos. — Eu sei. — Isso foi tudo o que Kylie conseguiu dizer. Ela não tinha certeza se conseguiria ver algo de bom em John. A mãe mordeu o lábio e fez uma careta. — Agora, sobre a pergunta que você me fez... Se John e eu... se nós...
— ... estão fazendo sexo? — Kylie terminou a frase por ela, pois só Deus sabia quanto tempo a mãe ia ficar ali, tentando em vão dizer a palavra. A mãe enrubesceu. — Eu sou adulta e capaz de tomar esse tipo de decisão. Você é jovem e... — Os olhos dela se arregalaram. — Você não... você já...? — Não, mãe. Ainda não — disse Kylie. — Mas isso vai acontecer algum dia e eu não quero que você tenha um aneurisma quando descobrir. A mãe olhou para ela horrorizada. — Não vou ter. Contanto que você já tenha 30 anos. Kylie revirou os olhos. — Mãe! — Tudo bem, 29. — A mãe fez uma pausa. — Você sabe, é difícil ver você crescer. — Eu sei; também é difícil ver você crescer. A mãe franziu a testa com uma expressão aturdida. — O quê? — Eu quis dizer que dói saber que vocês estão transando, mas eu achei que você iria preferir um eufemismo. A mãe deu uma risadinha ao mesmo tempo que a sala foi varrida por uma onda de frio, um frio muito familiar. Daniel? Um olhar rápido pela sala revelou a Kylie que ele não tinha sido capaz de se manifestar. Mas ela sabia que ele tinha tentado. A mãe sorriu. Então ela estendeu os braços e abraçou Kylie. — Eu juro, às vezes, quando estou com você, posso quase sentir o seu pai por perto. — Eu também — concordou Kylie, perguntando-se até que ponto a mãe conseguia realmente senti-lo. A atmosfera gelada da sala aumentou, mas estranhamente ela veio acompanhada de um leve sentimento de raiva e frustração. Será que o pai tinha ouvido a conversa e estava expressando a sua opinião sobre o fato de a mãe estar fazendo sexo com John?
Eu sei, pai, Kylie falou mentalmente. Eu também não gosto dele. * * * Antes mesmo que a mãe e John tivessem deixado o estacionamento, Holiday e Burnett pegaram Kylie, cada um por um braço. — Vamos conversar — disse Holiday. Kylie olhou para trás, na direção do refeitório. — Não podemos conversar lá dentro? — Primeiro alguns esclarecimentos — explicou Holiday enquanto Burnett conduzia Kylie até o escritório. — Como, pelo amor de Deus, você desapareceu daquele jeito? — Não havia ninguém melhor do que Burnett para ir direto ao ponto. — Eu não sei. — Kylie entrou na cabana. — Eu queria desaparecer como um fantasma quando vi minha mãe e John se beijando, e então... desapareci. — Você desejou ficar invisível? — Holiday perguntou. — Acho que sim — disse Kylie. — Então como conseguiu voltar a ficar visível? — Burnett fechou a porta. — Eu desejei o contrário. — Sabendo o quanto aquilo parecia esquisito, ela olhou de lado para Holiday e se jogou no sofá. — Foi parecido com aquela vez em que você me ensinou a me fechar para os fantasmas. — Visualização. — Holiday arqueou as sobrancelhas como se estivesse impressionada. Não que Kylie também não estivesse. — Foi assustador demais! Eu me lembrei do que o meu pai disse sobre descobrirmos as coisas juntos e pensei que estava morta. — Ela fez uma pausa. — Como vou impedir que isso aconteça de novo?
Holiday olhou para Burnett como se esperasse que ele tivesse uma resposta. — O quê? — Ele ergueu os braços como que para se defender. — Eu não sei nada sobre isso. Só agora estou aprendendo a lidar com fantasmas. Holiday revirou os olhos. — Você leu os relatórios da UPF. Eles não esclareciam nada sobre isso, nem o levaram a concluir alguma coisa sobre os dons dos camaleões? — Não. A única coisa que encontrei foram alguns estudos de caso que, para eles, eram de camaleões. — Ele franziu o cenho. — Deve haver mais alguma coisa em outros relatórios, mas eles convenientemente desapareceram. Nesse momento, Kylie não pôde deixar de se lembrar do alerta do avô contra a UPF. — Precisamos ler esses outros arquivos — disse Holiday. Seus olhos continuaram fixos em Burnett. — Como podemos fazer isso? Kylie fechou os olhos. Ela não sabia o que eles iam fazer, mas sabia o que ela faria. Primeiro, iria encontrar um jeito de voltar a entrar em contato com o avô e então... Uma onda de dor a envolveu. Será que o avô estava certo? Ela tinha que deixar Shadow Falls e ir embora com ele para conseguir as informações de que precisava? Depois de Holiday e Burnett passarem alguns minutos tentando chegar a uma solução, eles finalmente concluíram que Kylie deveria ter muito cuidado com o que desejava. Certo! Como se ela mesma já não tivesse chegado a essa conclusão! O celular de Burnett tocou e ele atendeu. — Alô...? Quanto tempo faz que ela desapareceu? — Holiday e Kylie tentaram fingir que não estavam ouvindo o que diziam do outro lado da linha, mas como podiam não querer ouvir se a ligação era obviamente sobre Cindy, a garçonete do restaurante, a jovem sorridente na foto da sua carteira de motorista e que agora estava apodrecendo numa cova junto com a irmã de Holiday. — Tudo bem — disse Burnett. — Traga-me os arquivos. Você conseguiu descobrir alguma coisa sobre aquele outro assunto? — Os olhos de Burnett se desviaram para Kylie, o que indicava que o “outro assunto” a envolvia também. Burnett ouviu e de repente algo ocorreu a Kylie. Ela não conseguia ouvir a voz do outro lado da linha... O que estava acontecendo com ela...? — Ei! — Kylie gritou para Holiday. — Eu ainda sou uma vampira? Holiday franziu as sobrancelhas. Uma expressão de choque surgiu em seus olhos. — Não. — O que eu sou agora? — Kylie perguntou. — Bem-vinda ao meu mundo! — Sou fae? Ah, Deus... Mais momentos de “Kylie é uma aberração”, vindos de outros campistas, estavam a caminho. Como se o caos familiar não fosse suficiente para alimentar o falatório sobre ela. As palavras da tia ecoaram em sua mente. Os poucos que não se esconderam foram vistos como párias, aberrações que não pertenciam a espécie alguma. Holiday assentiu e deu um sorriso cheio de compaixão, que Kylie não só viu como também sentiu. Burnett deve ter ouvido a conversa, porque tão logo tirou o telefone do ouvido, olhou para a testa de Kylie e soltou um palavrão baixinho. — O que você descobriu? — Holiday perguntou, como se sentisse que Kylie não queria falar sobre o seu padrão mental sempre em mutação. — Cindy Shaffer desapareceu seis meses atrás, aproximadamente. — Logo depois de Hannah — completou Holiday.
— Sabemos com certeza que Hannah não foi simplesmente embora e depois... — Ele se interrompeu e dos seus olhos irradiouse uma onda de compaixão. — ... e depois eles a mataram — completou Holiday, as palavras fluindo de seus lábios junto com a dor que oprimia ainda mais o peito de Kylie. Kylie sempre fora empática com relação à dor das outras pessoas, mas agora isso era muito mais intenso. Não era algo fácil, Kylie pensou. Ela demoraria um pouco para se acostumar a ser fae, mas pelo menos podia voltar a comer comida outra vez. Então pensou em Derek e em quando ele lhe disse que sentia as emoções dela com muito mais intensidade. Devia ser muito difícil para ele. Burnett se aproximou. — A polícia está investigando o desaparecimento dela. Eles têm um suspeito, um antigo namorado, mas não podem provar nada. Eu vou verificar os arquivos, mas, considerando o que sabemos, não acho que isso esteja relacionado ao desaparecimento dela. — O que mais você ficou sabendo? — Kylie perguntou, lembrando-se do olhar de Burnett na direção dela, enquanto falava ao telefone. — Mandei que investigassem Hayden Yates mais uma vez. — E? — Mesmo antes que Burnett respondesse, Kylie já sentiu o descontentamento dele por ter que contar a ela. — A ficha dele está limpa. Não há nada em seus antecedentes que nos faça suspeitar dele. Kylie soltou o ar dos pulmões, sem saber ao certo se acreditava. Ela tinha tanta certeza de que ele tinha algo de suspeito! Então ela se lembrou... — Você pode mandar investigar o namorado da minha mãe? — Você acha que ele está por trás do assassinato de Hannah? — Burnett perguntou, confuso. — Não, nada a ver com Hannah. Eu só... não gosto dele.
— Eu também não — Burnett rebateu. — Mas isso não significa que ele seja um criminoso. Existe um monte de gente por aí de quem eu não vou com a cara. Kylie franziu a testa. — Ele me causa arrepios e eu me sentiria melhor se... — Eu vou providenciar isso — tranquilizou-a Burnett, mas ela sentiu as emoções dele e sabia que o vampiro achava que era perda de tempo. — Há uma coisa que eu quero lhe dizer — disse Kylie. — Por que eu tenho a impressão de que não vou gostar? — Burnett perguntou. Kylie relanceou os olhos para Holiday, que parecia igualmente preocupada. — Acho que é hora de dar um basta em toda essa coisa de sombra — disse Kylie. — Não! — A expressão de Burnett ficou mais severa. Kylie sentou-se ereta e sentiu sua coluna se empertigar. — Eu estou cansada de nunca poder ficar sozinha. — Você fica sozinha no seu quarto, quando está na sua cabana — ele retrucou. — Della ouve cada movimento que eu faço. Eu não aguento mais. Quero a minha vida de volta. Mario não tentou mais nada nessas últimas semanas. Miranda disse que ela não sente mais nenhuma presença indesejável. Eu não sinto a presença dele. Talvez ele tenha desistido. — Pessoas como ele não desistem. Só está esperando uma oportunidade para atacar. — Eu prometo ser cuidadosa e, se sentir alguma coisa, você será o primeiro a saber. — Não! — ele insistiu. Kylie sentiu um estranho tipo de energia se avolumando em suas entranhas. Tudo dentro dela dizia que ela estava certa, que eles não podiam obrigá-la àquilo. Ela não entendia o ímpeto ou o destemor que crescia dentro dela naquele momento. Se não estivesse tão furiosa com a insistência dele em não acatar a sua vontade, talvez estivesse preocupada com a possibilidade de algo muito estranho estar acontecendo com ela agora. — Eu não sou uma prisioneira aqui! — ela retrucou. — A minha vontade também conta! — A sua vontade sobre se vai deixar que te matem ou não? — perguntou ele com raiva. — Eu não vou deixar que me matem. — Ela baixou o queixo e olhou para Holiday, esperando ver um pouco de bom senso nos olhos da líder do acampamento. — Está fazendo isso porque quer ver seu avô de novo, não é? — perguntou Holiday. Embora ela percebesse a desaprovação de Holiday, Kylie também via compaixão em seus olhos. — Em parte, sim. — Kylie nem pensara na possibilidade de mentir. Ela achava que seu pedido era justo. — Mas não é só por isso. Estou cansada de andar por aí com uma babá. Burnett ia começar a falar outra vez, mas Holiday interveio. — Você promete ficar longe dos bosques? — Ela já quebrou essa promessa — gritou Burnett. — Eu prometo. — Kylie ignorou Burnett. Holiday se inclinou na direção dela. — Você promete nos avisar quando for encontrar o seu avô? — Vocês prometem não me impedir? — perguntou Kylie. — Eu prometo avaliar a situação e só impedi-la se isso representar algum risco de vida. — Mas risco de vida aos olhos de quem? — perguntou Kylie. — A ideia que algumas pessoas têm de segurança não é razoável. — Ela nem sequer vacilou quando olhou para Burnett que, aliás, parecia ainda mais furioso. E ela sentia cada partícula dessa raiva. — Isso é loucura. Minha função é proteger você — Burnett rosnou.
— Não — Holiday corrigiu-o. — Nossa função como administradores desta escola é ensinar Kylie a sobreviver no mundo humano. Gostemos ou não — ela olhou para Kylie — ela tem o direito de partir. E essa é a última coisa que queremos que aconteça agora. De algum modo, o ímpeto que Kylie sentia dentro dela estava associado à seriedade com que ela encarava aquela questão. Será que aquele era um talento dos faes ou tinha mais a ver com as capacidades dos camaleões? Kylie não sabia. Mas a sensação era maravilhosa, apesar de assustá-la um pouco. — Tenho escolha? — perguntou Burnett, com rispidez. — Não — responderam Kylie e Holiday ao mesmo tempo. Um bipe estranho soou do telefone de Burnett. Ele puxou o aparelho do bolso e apertou alguns botões. — Alguém acabou de pular o portão da frente. — Ele se virou para ir investigar, mas parou quando uma figura se postou no umbral da porta. Blake, o ex-noivo de Holiday, suspeito de assassinato, estava parado ali. — Ouvi dizer que você estava procurando por mim. Kylie ficou de pé num salto e se posicionou ao lado de Burnett, pronta para defender Holiday. Mas Holiday agiu como se não precisasse de proteção. Ela ficou de pé e olhou Blake nos olhos. — Foi você? — perguntou, a raiva exsudando de todos os seus poros. — Fui eu o quê? — ele perguntou. — Que matou Hannah?
 
— O quê?! — Blake desviou os olhos para Burnett e Kylie e depois voltou a fixá-los em Holiday. A descrença transpareceu em seus olhos e irradiou-se dele em ondas. — Hannah está morta? Kylie tentou ouvir o batimento cardíaco de Blake, mas, como não era mais uma vampira, tudo o que ela pôde fazer foi detectar as suas emoções. Blake parecia sincero, mas será que ela podia confiar nele? — Responda, droga! — Holiday bateu as palmas das mãos com força no peito dele. Suas emoções eram uma mistura de dor e um sentimento de traição. Burnett colocou-se ao lado de Holiday e puxou-a delicadamente para trás, mas seus olhos estavam verdes brilhantes e encaravam Blake com uma expressão de advertência. Blake expirou, demonstrando toda a sua frustração. — Vocês estão acusando o vampiro errado! É tão injusto! — Não tão injusto assim! — retrucou Holiday. — Hannah me contou que você ficou furioso quando ela disse que planejava me contar a verdade. — Claro que eu fiquei furioso! Nós íamos nos casar. Eu amava você. Ela me disse que, se eu aparecesse no meu próprio casamento, ela interromperia a cerimônia. — Você a matou? — Holiday perguntou, exigindo resposta; sua angústia impregnando o próprio ar que Kylie respirava. Blake fitou Holiday, a dor se irradiando dele. — De todas as pessoas no mundo, você é a que mais me conhece. Realmente acha que eu mataria Hannah?
— O que eu acho não significa droga nenhuma! — sibilou Holiday. — Eu não achava que você poderia dormir com a minha irmã, mas você fez isso. — Estávamos bêbados e... eu só tinha saído com você algumas vezes. Foi um grande erro. E, então, quando vi, estava apaixonado por você. Eu ainda sou apaixonado por você. E, sim, eu queria contar tudo, mas estava com medo. A princípio, Hannah agiu como se nada tivesse acontecido, então eu me convenci... — ... de que poderia deixar tudo como estava? — Lágrimas toldaram os olhos de Holiday. — Não, eu me convenci de que um único erro não impediria duas pessoas que se amavam de serem felizes juntas! — Basta! — Burnett se aproximou e agarrou Blake pelo braço. — Você vem comigo. Blake soltou seu braço e os dois homens se encararam. — Ainda não. — Holiday olhou para Burnett. — Eu quero conversar com ele. — Já conversou — Burnett rebateu. — A sós. Quero conversar com ele a sós — ela repetiu. Todo o corpo de Burnett enrijeceu. O ciúme era evidente. — Ele pode ser um assassino serial, Holiday, que entrou em Shadow Falls ilegalmente. Eu preciso levá-lo à UPF. — Assassino serial? — Os olhos de Blake adquiriram um tom defensivo. — Eu não fiz mal a Hannah nem a ninguém. — Isso é o que todos dizem — atacou Burnett, tentando agarrar seu braço novamente. O homem se esquivou, seus olhos cada vez mais ardentes. — Qual o seu problema? — Blake vociferou para Burnett. — Tem medo de que ela ainda sinta algo por mim? Holiday deu um passo para a frente, pousou a mão no braço de Burnett e falou com sinceridade: — Burnett não tem motivo para temer. De você eu só quero a verdade, Blake, só isso. E depois quero que você volte para o buraco onde se escondeu esse tempo todo. — Ela acenou firmemente com a mão para que Burnett e Kylie saíssem. A linguagem corporal e as emoções de Burnett indicavam o que ele estava pensando da ideia. Mas algo dizia a Kylie que Holiday precisava desse tempo sozinha com Blake, e Burnett precisava conceder isso a ela. Kylie tocou o braço de Burnett, sentindo um fluxo quente partir do seu braço, e viu a expressão dele se suavizando. Ele olhou para trás, na direção de Holiday, e depois seguiu até a porta. Kylie olhou para Blake. E nesse instante, seus instintos lhe disseram que ele não era o assassino de Hannah. Mas, se não era ele, quem era? Então Kylie mais uma vez se lembrou de Hannah afirmando que o assassino estava ali, em Shadow Falls. Kylie não pôde deixar de pensar outra vez em Hayden Yates. Não importava sequer que Burnett não tivesse encontrado nada errado no passado do professor; ela não confiava naquele cara. E também não ia, em hipótese alguma, baixar a guarda no que dizia respeito a ele. Burnett não se afastou mais de alguns metros da porta. Kylie concluiu que ele estava ouvindo cada palavra dita na outra sala. Sua preocupação era pela segurança de Holiday, é claro, por isso não se tratava, na verdade, de uma invasão à privacidade. Pelo menos era nisso que Kylie queria acreditar. Ela não conseguia ouvir a conversa, mas, por mais que lhe parecesse constrangedor ouvir a conversa dos outros, sua própria necessidade de proteger Holiday a levava a desejar exatamente isso agora. — Blake está falando a verdade? — Kylie perguntou, imaginando se as emoções que ela captava de Blake eram tão reveladoras quanto o seu batimento cardíaco. Burnett olhou para ela por sobre o ombro. — Quanto a quê? — Quanto a não ter matado Hannah. — Não importa — ele respondeu, mal-humorado, e voltou a encarar a porta.
— Não importa? — Kylie estranhou. Ele negou com a cabeça. — O coração pode mentir. As pessoas mal-intencionadas, sem consciência, não têm dificuldade para mentir. Kylie lembrou-se de Della lhe dizendo isso ao chegar em Shadow Falls. Mas, por mais que Kylie quisesse acreditar que Blake fosse o homem que procuravam, ela não sentia que ele fosse malintencionado. — Não sei se isso ajuda, mas eu sinto que as emoções dele são sinceras. — Você está se referindo a quando ele disse que ainda a ama? — O ciúme de Burnett era quase palpável. Kylie engoliu em seco. — Estava me referindo ao seu choque ao saber que Hannah está morta, mas... a isso também. Burnett fechou os olhos e pressionou a mão contra a porta. — Mas Holiday também estava sendo sincera quando disse que tudo o que ela queria dele era a verdade. Ela não o ama, Burnett. Ele olhou novamente para Kylie, a tristeza irradiando dos seus olhos. — Mas amava. — E isso é importante? — É, na medida em que fez com que ela passasse a evitar qualquer pessoa que se aproxime dela — ele explicou. Então o vampiro fez uma pausa, mudando de assunto. — Eu não concordo com a decisão de Holiday de retirar suas sombras. — Eu sei — disse Kylie. — Mas, me diga, você conseguiria andar com uma sombra ao seu lado o tempo todo? Ela o viu se contendo e sentiu sua resposta emocional. Ele não toleraria uma sombra em seus calcanhares nem por um único dia.
De repente, o ambiente ficou frio. O frio típico da visita de um fantasma. Então Hannah apareceu ao lado de Burnett; sua presença veio acompanhada de uma espessa onda de pânico. — Ele está aqui! Ele está aqui! Você tem que detê-lo! Ele vai tentar matá-la! — ela gritou para Burnett. — Quem está aqui? — perguntou Kylie. Burnett não esperou a resposta. Irrompeu pela porta do escritório de Holiday, sem se dar ao trabalho de abri-la. Arrancada das dobradiças, a porta veio abaixo com um estrondo. Burnett passou por cima da madeira estilhaçada e encarou Blake. Com a porta fora do caminho, Kylie assistiu à cena na outra sala. Blake, já de pé, fitava Burnett com fúria. Holiday, ainda sentada à escrivaninha, exibia uma expressão de choque. Só então ela se levantou da cadeira, provando como eram lentas as reações dos faes em comparação com as dos vampiros. Burnett, com as duas mãos em punho na lateral do corpo, vociferou para Blake: — Ou você vem comigo do jeito mais fácil ou vai ter que vir pelo jeito mais difícil. — Sua ameaça era sincera. — Para mim tanto faz. O olhar de Kylie desviou-se para o fantasma. Hannah estava paralisada, pasma diante da cena que se desenrolava à sua frente. Uma terrível aura marrom a cercava. Embora morta, uma camada de emoções se agitava sob a sua rigidez cadavérica. Vergonha — uma vergonha imensa se avolumava dentro dela. Então Kylie sentiu a surpresa de Hannah. Estranhamente, todo o pânico e medo que ela demonstrara inicialmente tinham desaparecido. Alguma coisa estava errada. Era como se Hannah nem soubesse que Blake estava ali. Mas, se ela não sabia que o vampiro estava presente, então como ele poderia estar causando nela todo aquele pânico? — Você está falando de Blake? — Kylie perguntou a Hannah rapidamente.
Nenhuma resposta. — Hannah? — repetiu Kylie. Mas o fantasma tinha ido embora. — O que está acontecendo? — Holiday perguntou a Burnett novamente, e os olhos de Kylie se fixaram nas três pessoas na sala. Blake olhou de volta para Holiday. — Eu não fiz nada. Provavelmente não mereço outra chance com você, mas com certeza não mereço isso. — Ele se voltou para Burnett. — Eu vou com você, responderei a todas as suas perguntas, mas, se encostar a mão em mim, eu te mato. E pelas emoções que o homem irradiava, sua ameaça era tão sincera quanto a de Burnett. A preguiçosa tarde de domingo tinha transcorrido com muita frustração pairando no ar. Miranda estava frustrada porque havia uma nova metamorfa de olho em Perry. Holiday estava frustrada porque... bem, como se perder a irmã pela primeira vez não tivesse sido suficiente, agora seu espírito se negava a aparecer novamente. Burnett estava frustrado porque não conseguia encontrar nenhuma prova contra Blake e por isso não podia prendê-lo. Kylie estava frustrada por causa de todo desastre que era a sua vida. A única que não estava com um humor sombrio era Della, e Kylie, embora agora fosse uma fae capaz de ler emoções, não sabia direito com que humor ela estava; só sabia dizer que havia algo errado. A garota estava seguindo Kylie como um filhotinho perdido. Mesmo agora, enquanto checava os seus e-mails, Kylie sentia Della espiando por cima do seu ombro. Kylie se virou e franziu a testa. — O que foi? — O que foi o quê? — perguntou Della. — Você está lendo os meus e-mails por cima do meu ombro. Por que, se você nem é mais a minha sombra agora? — Eu não estou bancando a sua sombra. E não sabia que os seus e-mails eram tão particulares — retrucou Della.
Nesse instante, Kylie sentiu uma onda de ansiedade vindo da vampira, acompanhado de um sentimento de tristeza e depois de raiva. As emoções de Della estavam se espalhando por todo o cômodo. — O que há com você? — Kylie perguntou. — Nada! — respondeu Della, deixando-se cair numa cadeira da cozinha. Kylie voltou a atenção novamente para os seus e-mails e clicou em “atualizar”. Nenhum e-mail novo. Nenhum de... — Você está esperando receber alguma coisa do seu avô, não está? — perguntou Della. Kylie olhou por sobre o ombro. — Talvez, por quê? Della fechou a cara. — Você vai morar com ele, não vai? Vai embora de Shadow Falls. A pergunta cortou como uma faca o peito de Kylie. Como ela poderia explicar a Della que deixar o acampamento era a última coisa que ela queria fazer? No entanto, uma parte dela dizia que talvez essa fosse a única maneira de descobrir quem ela era. Depois de ver a expressão de choque nos rostos dos campistas, ao constatarem o seu novo padrão fae, uma parte de Kylie ansiou por estar entre pessoas que não a julgassem. E quanto mais rápido ela aprendesse a controlar essa mudança de padrão e os poderes que a acompanhavam, mais rápido também poderia voltar a Shadow Falls e realmente se entrosar. — É por isso que você está assim? — perguntou Kylie. — É, é por isso. E não pense que não reparei que você não negou quando perguntei. Kylie escolheu as palavras cuidadosamente. — Não está nos meus planos fazer isso. Isso era verdade. Ela ainda estava rezando para que essa não se revelasse a única saída.
— Mas o seu lado fae pensou nisso, não foi? — Della perguntou. — É, meu lado fae pensou nisso, mas... — Mas coisa nenhuma! Eu não vou deixar você ir, Kylie. — Lágrimas afloraram nos olhos da vampira. — Eu perdi Lee, perdi meus pais e minha irmã e todos os amigos que eu tinha lá em casa. Você e Miranda são tudo o que eu tenho, e a Senhorita Bruxa está tão obcecada por um certo metamorfo agora que eu não tenho tempo nem para brigar com ela. Della ficou de pé e secou as bochechas molhadas de lágrimas. — Já estou cheia de perder as pessoas de que gosto. Kylie se levantou também. — Você não vai me perder. — Seus próprios olhos ardiam. Mesmo que tivesse que ir embora, ela voltaria. Ela pertencia a Shadow Falls. Della acabaria compreendendo isso. A vampira bufou. — Vou deixar o acampamento na semana que vem para ir... para ir fazer o que tenho que fazer para Burnett. E tudo em que consigo pensar é que você não estará aqui quando eu voltar. — Eu vou estar... — Kylie finalmente ouviu o que Della disse. — Aonde você vai? Della franziu a testa. — Não posso contar. — Caramba! — Kylie balançou a cabeça, lembrando-se da ansiedade que sentira na amiga. Della estava assustada? Claro que estava, Kylie podia sentir, mas a amiga nunca admitiria. Kylie se aproximou dela e abraçou a vampira. Della não gostou, mas não se afastou. — Seja aonde for que você tenha que ir para Burnett, é bom que não seja perigoso. — Abraço coletivo! Abraço coletivo! — Miranda gritou, abrindo a porta de repente.
— Não. — Della se retraiu. — Este abraço era só para Kylie — disse ela, tentando parecer durona, mas Kylie percebeu o constrangimento da amiga muito bem. — Vá abraçar Perry. — Della disparou para o banheiro e bateu a porta com violência. — O que deu nela? Por que está nesse mau humor? — perguntou Miranda. Kylie revirou os olhos. Então o computador emitiu um bipe, avisando sobre a chegada de um novo e-mail e ela foi verificar. Era da mãe. Um pensamento atravessou a mente de Kylie como uma lixa. Se ela tivesse que deixar Shadow Falls, o que diria aos pais? Kylie olhou para Miranda. — Talvez seja melhor você arranjar uma briga com Della para ela saber que você ainda se importa com ela. O jantar daquela noite deveria ser muito especial, para celebrar o início do novo ano letivo. Os livros e o horário das aulas já haviam sido distribuídos. Kylie e Della fariam todas as aulas na mesma classe. Miranda estava em duas das cinco aulas de Kylie. Kylie não podia deixar de se perguntar se isso não seria obra de Burnett, para que ela tivesse uma sombra sem se dar conta disso. Não que ela fosse deixar aquele pensamento estragar a sua noite. Sentada a uma mesa com Della, Miranda, Perry, Jonathon e Helen, Kylie devorava o seu segundo pedaço de pizza. Era bom voltar a saborear comida. Não que a melhora do seu humor tivesse a ver com a pizza de pepperoni de massa fina. Não tinha a ver sequer com o clima de festa ou com a festa propriamente dita, mas com o que ia acontecer depois da festa. Ela consultou o relógio — só faltavam duas horas. Nesse mesmo instante, Steve aproximou-se da mesa e se sentou numa cadeira vazia ao lado de Della. Kylie quase sorriu quando viu Della corar. — E aí? — perguntou Steve. — Oi, Steve — cumprimentou Kylie, querendo que ele se sentisse bem-vindo. Antes do jantar, Della tinha confessado que Steve supostamente iria acompanhá-la na missão para a UPF.
Della, é claro, tinha reclamado. No entanto, ela não conseguira esconder de Kylie a sua empolgação. Jonathon e Steve começaram a conversar sobre as aulas. Della pareceu relaxar e Kylie também. Miranda cutucou Kylie com o cotovelo e se inclinou na direção dela. — Eu acho que ele gosta dela — cochichou no ouvido de Kylie. Mas Della, captando tudo com sua incrível audição, lançou um olhar zangado para a amiga. — Este é um ano muito importante. — Alguém fez um brinde do outro lado da sala. Todos pareciam estar num humor festivo e, por algum tempo, deixaram de reparar nos padrões de Kylie. Essa provavelmente era outra razão do seu bom humor. Mas ela mal tinha acabado de comemorar o fato de ninguém estar olhando para ela quando os pelos de sua nuca se eriçaram. Quando ela se virou, Hayden Yates também virou a cabeça para o outro lado. Seu coração deu um salto quando ela viu Holiday próxima a ele, em meio aos campistas. A líder do acampamento, porém, não falava com ele, mas com o tímido professor Collin Warren. Kylie ainda não gostava de ver Hayden tão perto de Holiday. Ela ficou olhando fixamente para ele e, quando o professor voltou seu olhar para ela, obviamente sentindo-se observado, seus olhares se encontraram. Eu juro que se você machucá-la, vai pagar por isso. Ele desviou o olhar; Kylie continuou a encará-lo por vários segundos e esperou que ele entendesse a mensagem, porque aquela não era uma ameaça vazia. Era uma promessa. Só a possibilidade de alguém ferir Holiday já fazia o sangue de Kylie ferver — um sinal claro de que o seu padrão podia ter mudado, mas ela continuava sendo uma protetora. Talvez algum dia ela fosse capaz de dizer aquilo com um sentimento pleno de orgulho, mas no momento só parecia mais um motivo para ser vista como alguém diferente de todo mundo. Kylie mal tinha desviado o olhar, quando sentiu outro par de olhos sobre ela, causando-lhe, no entanto, uma sensação bem diferente, que percorreu sua espinha desde os dedos dos pés.
Mesmo estando a vários metros dela, o olhar de Lucas era como uma carícia. Ele piscou para Kylie. Depois relanceou os olhos para o relógio e ela viu que, como ela, ele também contava os minutos até a hora em que iam se encontrar. — Droga! — Jonathon gritou, fazendo Kylie desviar os olhos de Lucas. — Você se cortou! — Jonathon segurava a mão de Helen, o sangue gotejando da sua mão. Helen, parecendo um pouco nauseada, tinha uma maçã numa mão e uma faca cheia de sangue em seu colo. — Tudo bem. — Suas palavras pareciam confiantes. — Não foi tão grave assim, foi? Jonathon afrouxou o punho em torno da mão dela e deu uma olhada. Seus olhos ficaram brilhantes, sem dúvida por causa do sangue, mas seu ar de preocupação era ainda mais evidente. — Você vai precisar levar pontos — ele concluiu. Helen olhou para Kylie. — Será que você pode dar um jeito nisso? Kylie prendeu o fôlego. Já fazia algum tempo que ela não pensava nos seus poderes de cura. E nas poucas vezes em que pensara neles, lembrou-se de que não tinham sido suficientes para salvar Ellie. Kylie tinha falhado com Ellie. — Eu... eu não sei se posso. — Ela fitou os olhos de Helen, viu a dor dentro deles, mas o medo formou um nó em seu estômago, cheio com os dois pedaços de pizza. — Eu não conseguia ter sonhos lúcidos quando era vampira; provavelmente não posso curar enquanto sou fae. — Mas os faes são conhecidos pelos seus dons de cura — Helen a fez lembrar. — Ah, é verdade. — Kylie soltou o ar dos pulmões, que fez seus lábios tremularem ao escapar. — E se eu fizer alguma coisa errada? — Ela ainda se lembrava de como ficara devastada quando não fora capaz de salvar Ellie das garras da morte. Olhando as próprias mãos, ela se lembrou de que tinham ficado cobertas com o sangue da garota.
— Você não vai fazer nada errado — afirmou Helen, com plena confiança. Ao olhar para Helen, Kylie se lembrou de que ela a ajudara, examinando seu cérebro para ver se ela tinha um tumor, na semana em que chegara ao acampamento. Helen tinha ajudado Kylie e ela não podia lhe negar ajuda também. Kylie ficou de pé e foi até a cadeira ao lado de onde estava Helen. A tímida e confiante garota estendeu a palma da mão ensanguentada. Respirando fundo, Kylie lembrou-se de que tinha que ter pensamentos de cura. Surpreendentemente, suas mãos começaram a ficar quentes. Ela correu o dedo delicadamente pelo corte. Seu toque produziu um leve sulco ao redor do sangue represado na palma. Com receio de não conseguir curar a ferida, Kylie sobrepôs toda a sua palma sobre o ferimento. Ainda hesitante, sem coragem de ver se tinha curado a garota ou não, ela percebeu que todos no refeitório estavam em silêncio. Nenhum som ecoava no amplo aposento. Desviando os olhos por um segundo, constatou que todos a observavam. Todo mundo! Ah, mas que maravilha! Helen ergueu a mão e olhou a palma diante de si. Limpando o sangue com a outra mão, um leve sorriso se formou em seus lábios. — Você conseguiu! — Helen sussurrou, parecendo tão consciente quanto Kylie de toda a atenção indesejada que tinham despertado nos outros campistas. Kylie se inclinou na direção a garota. — Por que todo mundo está olhando? Helen fez uma careta e chegou mais perto. — Porque você está brilhando. — Brilhando? Helen assentiu. Kylie notou que um leve brilho parecia irradiar da sua pele. — Merda!
— Merda coisa nenhuma! — retrucou Della. — Você está parecendo um vaga-lume. Isso é demais! Isso de fato já é demais, pensou Kylie. Holiday, do outro lado da sala, começou a andar na direção de Kylie, os olhos arregalados, um sentimento de perplexidade se irradiando dela em ondas. Kylie olhou para a líder do acampamento, mortificada. — Faça isto parar. Por favor. Por favoooor.
 
— Aonde você vai? — Della perguntou quando Kylie saiu do quarto uma hora depois, com o cabelo penteado, os dentes escovados e — graças a Deus — nenhum brilho irradiando do seu corpo. Ela quase disse a Della que não tinha mais que dar relatórios sobre onde ia ou deixava de ir, mas concluiu que ela própria faria a mesma pergunta, caso Della estivesse saindo da cabana. — Vou me encontrar com Lucas — disse Kylie. Della inclinou a cabeça para ouvir o coração da amiga. — Não estou mentindo — afirmou Kylie. — Eu sei. Eu ouvi — confirmou Della. — Divirta-se. E não faça nada que eu não faria... — Bem... — brincou Kylie, tentando não parecer irritada. — Isso me deixa com muitas opções... Della deu uma risadinha. — Mas se você voltar brilhando, vou saber o que você fez. — Não tem graça — protestou Kylie, com sinceridade. Então deixou a cabana. Felizmente, ela tinha parado de brilhar uns dez minutos depois de ter curado Helen. Para o seu mais completo desespero, quando perguntou a Holiday por que aquilo estava acontecendo, a amiga respondeu que não sabia, pois nunca tinha acontecido quando ela curava alguém. Kylie não ficou surpresa quando Holiday deu de ombros e disse que não sabia. Mas aquilo contribuiu para que pensasse no aviso do avô com mais seriedade. E se não parassem de acontecer coisas estranhas? Nesse momento, eram só os sobrenaturais que a consideravam uma aberração da natureza. Mas o que aconteceria se algo assim acontecesse na frente de algum ser humano normal? Kylie disparou pela trilha, na esperança de que a sensação do vento em seus cabelos amenizasse a sua ansiedade, e chegou ao escritório em pouquíssimo tempo. As vozes de algumas pessoas que ainda se demoravam um pouco mais no refeitório ecoavam pela noite. Antes que alguém a visse, ela contornou a cabana do escritório. No segundo em que viu Lucas esperando por ela ao lado de uma árvore, sua frustração se desvaneceu. Ela correu na direção dele e Lucas a tomou nos braços, puxando-a de encontro a ele. Seus braços envolveram sua cintura, os polegares deslizando por debaixo da blusa e tocando sua pele nua. O beijo foi terno e carinhoso. Quando ele se afastou e sorriu, ela sabia o que ele estava pensando. — Nem toque no assunto! — ela avisou, sentindo que estava prestes a ouvir mais uma piadinha sobre a sua “luminescência”. — Só estou com ciúme. — Ciúme? — perguntou ela, achando que tinha entendido errado. — Do quê? — Eu quero ser a única coisa que faz você brilhar. Ela deu um tapa de leve no peito largo do namorado. — Vou repetir o que eu já disse para Della e Miranda. Não tem graça nenhuma. — Você estava linda. — Ela sentiu que o comentário era sincero. — Parecia um anjo. Ela franziu a testa. — Eu não quero ser um anjo. Quero ser uma sobrenatural normal. — Tudo bem, não vamos mais falar sobre isso. Só vou beijar você. E que beijo delicioso! Mais ardente, mais carinhoso e mais inebriante do que todos os outros. Quando se afastou, ela ouvir o mesmo zumbido familiar, um mecanismo natural de sedução entre os lobos, que funcionava às mil maravilhas com ela. Kylie se deixou levar por aquele som. — A lua cheia deve estar próxima outra vez. — Ela sorriu ao ver o ardor no olhar de Lucas, sabendo que os seus próprios olhos deviam expressar a mesma emoção. — Isso mesmo. — Ele inspirou, como se tentasse clarear os pensamentos. — Você está me deixando louco. Às vezes, eu só quero... — Ele deu um passo para trás. — Vamos conversar um pouco. Ela sorriu. — Eu gosto de levá-lo à loucura... — Verdade — disse ele num tom bem-humorado, apontando um dedo para o rosto dela. Não era bem verdade, Kylie pensou. Não era como se ela planejasse deixar que qualquer coisa acontecesse aquela noite... Mas se deixasse... Nesse momento, ela se lembrou das sábias palavras de Holiday sobre os garotos, ou melhor, sobre sexo. Quando você tomar essa decisão, que ela seja tomada racionalmente e não apenas por impulso. Entende a diferença? Kylie entendia muito bem. O problema é que era mais fácil agir por impulso do que agir racionalmente. Agir racionalmente significava conversar a respeito. E isso seria embaraçoso. Ela ofegou ao perceber algo de repente. Se não conseguia falar sobre uma coisa, era sinal de que ainda não estava pronta para praticá-la — porque, a menos que ela quisesse sentir o mesmo pânico da amiga Sara com a possibilidade de uma gravidez indesejada, era essencial que conversassem a respeito. — O que foi? — perguntou Lucas. Ela abriu a boca para responder — para falar sobe o que estava pensando —, mas seus lábios se fecharam com a mesma rapidez. Eles poderiam conversar sobre o assunto mais tarde. Mais tarde, mas, certamente, antes que algo acontecesse. — Nada. — A voz dela soou como um sapo prestes a coaxar. Ele estudou o rosto dela.
— Você está quase brilhando de novo. — Ah, não! — Ela olhou para os braços e observou-os em pânico. Ele riu. — Não, só quis dizer que você está vermelha. Onde estava esta cabecinha? — Ele deu uma batidinha na testa dela e, com seus dons de fae, ela sentiu a paixão irradiando dele. — Em lugar nenhum — mentiu. — Vamos só... conversar. — Mas não sobre sexo. Porque, obviamente, ela não estava pronta para ter essa conversa. Ele a encarou como se não acreditasse nela, depois pegou sua mão e entrelaçou os dedos nos dela. Sua palma estava quente, mas nem perto do que costumava estar quando ela era vampira. — Tudo bem. Então vamos conversar. — Eles se sentaram na grama macia, sob a copa da árvore. — Por que você não me conta como conseguiu se livrar da história da sombra? Não acredito que Burnett tenha desistido de uma coisa dessas com tanta facilidade. — Ele não queria. Mas eu... — Ela se lembrou da estranha sensação que teve quando enfrentou Burnett e Holiday. Como se o poder da persuasão fosse... um poder de verdade. Talvez fosse de fato. — Eu o convenci. — Como? Ele não é alguém que se deixe convencer facilmente. — Eu... ameacei deixar Shadow Falls. — Deixar Shadow Falls? — A preocupação se estampou nos olhos dele. — Foi só pra convencê-lo, não é? Em grande parte, sim, mas estou começando a me preocupar. Ela quase disse isso a ele, mas decidiu que não queria travar essa conversa em particular com Lucas, não quando tinham tão pouco tempo juntos, por isso ela só concordou com a cabeça. — Eu concordei em não entrar nos bosques e avisá-los antes de ir ver o meu avô.
— O quê? — Seu acentuado instinto de proteção de lobisomem entrou em ação. — Burnett vai deixar você ver o seu avô outra vez? Sozinha? Ela fez que sim. — Contanto que não pareça muito perigoso. — Como você vai saber se é perigoso? — Ele balançou a cabeça, o cabelo preto caído sobre a testa. — Você não vai fazer isso até eu voltar. — Ele segurou o queixo de Kylie com uma mão. — Me prometa. — Voltar de onde? — ela perguntou. Sua expressão se fechou. — Meu pai de novo. Dessa vez eu vou ter que ficar algum tempo por lá. Uma semana ou mais. Ela tentou entender o que aquilo significava. — Mas as aulas começam amanhã. — Eu sei. — Suas palavras estavam carregadas de sarcasmo. — Mas meu pai não dá muito valor à educação. — Você não pode simplesmente dizer isso a ele? Que você vai vê-lo no final de semana dos pais? — Eu gostaria muito. — Mas por que tanto tempo? — De repente ela não conseguiu deixar de se perguntar se Fredericka iria com ele. Ele tocou a bochecha dela. — Ele está insistindo, Kylie. Quando põe uma coisa na cabeça, ninguém a tira. Eu lamento. A sinceridade em sua voz comoveu Kylie. Sinceridade e... culpa. Pelo quê? Ele colocou uma mecha do cabelo dela atrás da orelha. — Você sabe que eu tenho que fazer isso para entrar para o conselho. Eu não faria nada disso se não fosse preciso. E... quando tudo acabar, estou fora. — Quando o que acabar? O que ele quer que você faça?
— Ele é só... Ele é louco e eu tenho que concordar com ele por ora. Por favor... só tenha um pouco mais de paciência. Em menos de um mês, o conselho vai fazer a sua escolha. Um mês é tudo de que preciso e depois eu não tenho mais que concordar com os planos dele. — Que planos são esses? — Ela sentiu o ressentimento crescer dentro de si. — Eu detesto os seus segredos. — Eu sei — ele disse. — Eu também detesto. Mas você tem que confiar em mim. Por alguma razão insana, quando ele disse “confiar”, ela sentiu que ele queria dizer... algo mais. Algo como... — Fredericka vai com você? — Não — respondeu. — Vou sozinho. — Nem Clara irá? — ela perguntou, ainda confusa com as emoções que captava dele. — Não. Ela pode até ir também, mas não vai ficar lá. — Lucas a puxou de encontro a ele e os dois ficaram ali sentados em silêncio por um longo tempo. Ela sofria por ele, porque sentia quanto o namorado de fato não queria ir, nem estava disposto a fazer o que o pai planejava. No entanto, ele iria e provavelmente faria — qualquer coisa que fosse. E se sentia culpado por isso. Por quê? — Você vai me ligar? — ela finalmente perguntou. — Vou tentar, mas, se ele estiver monitorando as minhas ligações, não posso me arriscar... — ... que ele o veja falando comigo... — Kylie terminou a frase por ele. Lucas suspirou e ela soube a verdade antes mesmo que ele a dissesse. — Não gosto disso. Tampouco ela gostava. Nem um pouquinho. Um segundo se passou e então ele disse.
— Você ainda não prometeu que não vai ver seu avô antes de eu voltar. — Não posso prometer — Kylie explicou, irritada porque Lucas queria que ela fizesse promessas e as cumprisse, enquanto ele ainda guardava tantos segredos. — Eu vou fazer o que for preciso. — E ele teria que simplesmente aceitar, como ela estava tentando aceitar o que Lucas lhe dissera, ou o que não dissera... Na manhã de segunda-feira, a agitação do primeiro dia de aula em Shadow Falls não era diferente da de todas as outras que Kylie tinha vivido antes. Ela estava ao mesmo tempo ansiosa e preocupada por ser obrigada a ficar numa sala cheia de gente que parecia saber algum segredo da vida que ela própria desconhecia. Apesar de saber de que espécie ela era, e de estar cercada de outros sobrenaturais, ela ainda se sentia uma intrusa — uma desgarrada que passava de grupo em grupo, mas não pertencia a nenhum. Não tinha dúvida de que seguiria Della e Miranda para onde fossem e socializaria com quem quer que elas convivessem e os amigos delas não a rejeitariam, mas ela não se sentiria parte de nenhum grupo. Seria como sempre fora em sua antiga escola. A única diferença era que antes ela estava com Sara, outra desgarrada. Enquanto se maquiava, Kylie pensou em Sara. Fazia semanas que não se falavam, mas Kylie mudaria isso mais tarde. Embora ela aceitasse que ambas tinham mudado e provavelmente nunca mais teriam tanto em comum como um dia tiveram, Sara ainda era... Sara. E hoje Kylie sentia mais falta dela do que nunca. O ar da manhã já trazia com ele um toque outonal. A decisão do que vestir e como pentear o cabelo tinha tomado mais tempo do que deveria. Ela não deveria nem se importar com isso, visto que Lucas não estaria presente, mas provavelmente foi contagiada pelo mesmo vírus que Della e Miranda, que se esmeravam para parecerem perfeitas. Kylie não tinha se arrumado para ninguém. No entanto, quando Derek a procurou com os olhos da mesa onde estavam os faes, seu olhar foi a prova de que ela estava bonita. Quando menos esperava, ela estava sorrindo, mas o sorriso, no entanto, logo se desvaneceu quando ela começou a sentir falta de Lucas. Depois do café, era a Hora do Encontro com os colegas do acampamento. Kylie tirou o nome de Nikki, a nova metamorfa, a garota que Miranda acusava de estar dando em cima de Perry. Kylie estava preocupada com a possibilidade de ser bombardeada com perguntas sobre a o episódio da sua “luminescência”, mas se enganou. Nikki só queria conversar sobre Perry. Miranda tinha razão. A garota estava caída por Perry. Mas Kylie não achava que Nikki fosse correspondida. Mesmo assim, antes de a Hora do Encontro acabar, Kylie tinha sutilmente mencionado que Perry estava comprometido. E a garota também tinha sutilmente ignorado essa informação. A Hora não tinha acabado ainda e Kylie ainda não sabia se deveria ou não contar alguma coisa a Miranda. O ciúme não era um sentimento bonito. Kylie tinha sorte por Fredericka não ter ido com Lucas para a casa do pai dele, do contrário ela também estaria se atracando com o “monstro de olhos verdes”, como costumavam chamar o ciúme. A primeira aula de Kylie era inglês, com Della, Miranda e Derek. Embora ausente aquele dia, Lucas estava na mesma turma que eles. Ava Kane, a nova professora, tinha um estilo fácil de ensinar, embora os garotos só prestassem atenção ao corpo dela. Não havia um único aluno do sexo masculino que não estivesse praticamente babando. Derek não era exceção. Era provável que, se estivesse lá, Lucas também estaria tão fascinado quanto os outros. Embora os garotos só tivessem olhos para a professora, a professora só tinha olhos para o padrão de Kylie. Será que ele tinha mudado? Ela resolveu se virar para Della e perguntar. A amiga assegurou-a de que ela ainda não passava de uma “fae enfadonha”. Quando a aula acabou, a senhorita Kane ficou parada na porta. E, quando Kylie passou, ela se inclinou e sussurrou: — Desculpe, eu não devia ter ficado olhando, mas é que estou tão fascinada por... você! Kylie sentiu sua sinceridade.
— Tudo bem — respondeu Kylie, embora ela preferisse não chamar tanta atenção. Pelo menos a professora tinha se desculpado, o que mais de noventa por cento dos campistas não faziam. A aula de história — em seguida — foi mais difícil de enfrentar. Embora o professor Collin Warren tivesse tentado esconder seu nervosismo, ele era evidente. Sua ansiedade impregnava a sala como fumaça, no entanto, ao contrário da senhorita Kane, o professor não olhou Kylie nos olhos nem uma só vez. Francamente, ela não tinha certeza se ele tinha fitado alguém ali nos olhos. No entanto, como Holiday pedira a Kylie para dar uma mãozinha ao tímido professor quando a aula acabasse, Kylie demorou-se na sala enquanto os outros campistas saíam, para lhe oferecer apoio. Todos os alunos deixaram a sala, exceto Kylie. Ela esperou que o homem reparasse nela, mas ele ficou sentado em sua mesa, a cabeça baixa, os olhos pregados em seus papéis. Ela se aproximou da mesa dele até ficar à sua frente. Mesmo assim ele não olhou para cima. Tudo bem... era estranho. Ela também era tímida, mas aquilo já era demais! Era o tipo de timidez que exigia medicação! — Olá! — cumprimentou Kylie. Ele suspirou como se estivesse contrariado, mas olhou para ela. — Posso ajudá-la? Emoções fluíam dele — era muito mais do que uma simples timidez. Era quase medo, mesclado com frustração. — Eu queria lhe dar as boas-vindas a Shadow Falls. Pode ser difícil... — Eu... eu preciso de prática. — Ele desviou os olhos. — Vou melhorar. — Eu não ia fazer nenhuma crítica. — Ela compreendia como ele se sentia, sabendo que não achava que tinha ido muito bem no seu primeiro dia de aula. — A prática faz a perfeição, minha avó sempre dizia.
Ele olhou para ela. — Você a vê? — Quem? — Kylie perguntou. — A sua avó. Ela não morreu? Eu ouvi dizer que você tem o dom de falar com os mortos. A pergunta pegou Kylie de surpresa. — Sim. Quer dizer, ela morreu faz quatro meses, mas eu não falei com ela. — Mas você fala com os outros, não fala? Os mortos? Kylie assentiu. — Sim. — Sem conseguir decifrar suas emoções no momento, ela acrescentou: — Eu sei que isso parece bizarro. — Nem um pouco. Eu adoraria fazer algumas perguntas aos mortos. Kylie tentou digerir o que o professor tinha dito. Ele desviou os olhos. — Quero dizer... por causa do meu gosto pela história. Não seria incrível poder conversar com aqueles que viveram antes de nós? — Isso faz sentido — concordou Kylie. E de fato fazia, mas ainda assim era estranho. A maioria dos sobrenaturais não apreciaria falar com os mortos, nem mesmo por amor à história. Ela olhou para a porta. — Preciso ir, não posso me atrasar. Enquanto Kylie saía da sala, ela sentiu o olhar do professor sobre ela. Tudo bem, Collin Warren era ainda mais estranho do que imaginara. Ela realmente esperava que Holiday soubesse o que estava fazendo quando o contratou. Kylie tinha acabado de deixar a cabana e se posto a caminho da próxima aula quando o telefone tocou. Ao verificar o número, uma onda de nostalgia a percorreu. — Eu ia te ligar — disse Kylie, com um suspiro. — O primeiro dia de aula parece estranho sem você aqui — lamentou Sara.
— Eu sei — Kylie mordeu o lábio. — Como vão as coisas? — perguntou Sara. — Ainda tem dois carinhas muito gatos atrás de você? — Eu praticamente me decidi por um deles. — Derek! — Não — Kylie corrigiu. — Lucas. — Humm, por alguma razão, eu achei que fosse Derek, mas Lucas é gostosão também. Por que ela pensou que fosse Derek? — Como você vai? — perguntou Kylie, concluindo que era melhor nem saber a resposta de Sara para a pergunta que ela fizera mentalmente. — Ainda sem câncer — disse Sara, com praticidade. — Como você deve saber. Kylie ignorou o comentário. — Fico feliz. — Quando você vai voltar pra casa? — Acho que daqui a umas duas ou três semanas, no fim de semana com os pais. — Se ela ainda não estivesse exibindo proezas, como brilhar e ficar invisível, ela iria. — Ótimo, porque eu preciso de um tratamento estilo Kylie. Ai, não... a campainha! Tenho que correr. Ligo pra você daqui uma semana, mais ou menos. Uma semana? Não muito tempo antes elas não passava nem um dia sem se falar. Kylie tentou afastar a melancolia que se abateu sobre ela ao pensar em quanto a sua vida tinha mudado. Então, colocando o celular no bolso, correu para a aula. Pensar que ela estaria com Hayden Yates fez com que um calafrio de pavor percorresse a sua espinha. No segundo em que entrou pela porta da sala de Hayden Yates, Kylie constatou que as vibrações esquisitíssimas de Collin Warren não eram nem de longe tão perturbadoras quanto as de Yates. O homem nem sequer olhou para Kylie, mas de algum modo ela percebeu que ele estava de olho nela — que ele não só sabia que a garota estava parada na porta como esperava por ela. A pergunta que dava voltas na sua cabeça ficou mais premente ainda. Ele estava por trás da morte de Hannah e das outras garotas? Se estava, ele sabia que Kylie suspeitava dele? Ao percorrer a sala, Kylie notou que todo mundo já estava em seus lugares. Só restava uma carteira vazia. Ela sentiu o estômago revirar. Fredericka estava sentada bem atrás da carteira vazia. A garota sorriu, ou melhor, abriu um sorrisinho sarcástico. Não tinha ocorrido a Kylie que ela teria que enfrentar a loba em suas aulas. Tentando não olhar para Fredericka, Kylie foi até a carteira e se sentou. Quando se acomodou, ela ouviu a loba dizer: — Ah, cara, temos iluminação extra agora que o pirilampo chegou! Kylie cerrou os dentes e olhou para o livro sobre a carteira. — Vaca! — Della murmurou do outro lado da sala. Kylie, de repente zangada consigo mesmo por deixar que Della enfrentasse a outra, virou-se na carteira e encarou a rival. — Além de brilhar, descobri que tenho outros talentos. Um deles você vai adorar: provoco sarna em lobas que bancam a engraçadinha. Especialmente aquelas que ainda fedem a gambá. Risadinhas escaparam dos lábios de vários alunos ao redor delas. Fredericka levantou-se da carteira numa atitude defensiva, os olhos adquirindo um tom alaranjado de irritação. Ao ver a fúria nos olhos intimidadores da loba, Kylie se perguntou se não teria sido melhor ficar de boca fechada. Sem dúvida alguma ela iria ser espicaçada pela outra. E no primeiro dia de aula. Seria ou não um dia memorável?
 
— Sentem-se! — A ordem do senhor Yates ecoou pela sala. — Podem se matar outra hora, não na minha aula. Kylie voltou a se virar para a frente, surpresa ao ver que o professor suspeito não tinha deixado a loba levar vantagem sobre ela. A tensão no ar ainda era palpável quando ele começou a aula. Olhando para a frente, Kylie se perguntava se Fredericka não furaria suas costas com um lápis. Mas nada aconteceu. O senhor Yates começou a explicar que a adrenalina podia aumentar a força dos seres humanos e que isso, em parte, explicava como os sobrenaturais adquiriam seus poderes. Suas habilidades como professor estavam acima da média, e ele mantinha todos os alunos atentos às suas palavras. Até Kylie descobriu que era difícil não prestar atenção à aula. No entanto, os instintos dela lhe diziam que ele não estava ali para ensinar. E, considerando o aviso de Hannah de que o assassino estava por perto, Kylie não se permitiu baixar a guarda. Sua necessidade de se manter atenta atingiu o auge quando a aula terminou e ela, a meio caminho da porta, ouviu-o limpar a garganta. — Kylie, você tem alguns minutos? Kylie congelou, ainda de costas para ele. Della, que também suspeitava do professor, aproximou-se de Kylie e sussurrou: — Vou ficar na porta, te esperando. Apertando seus livros contra o peito e lembrando-se de que o homem de mais de um metro e oitenta de altura podia ser um assassino serial, ela voltou a entrar na sala com cautela.
— Algum problema? — A imagem das três garotas mortas, seus corpos se decompondo na cova, surgiu na sua tela mental. Que tipo de facínora faria aquilo? — Não... bem, sim. Como protetora, você não deveria arranjar briga com uma loba. — Foi ela que começou — disse Kylie, percebendo quanto seu comentário parecia infantil. Mas aquele homem lhe dava arrepios e trazia à tona o pior que existia dentro dela. A preocupação dele era “tocante”, mas ela suspeitava que havia alguma coisa por trás. — É só isso? — Sinto que nós começamos com o pé esquerdo. — Sinceridade, uma boa dose dela, fluía dele, mas Yates não convenceu Kylie nem por um segundo. Se uma pessoa cruel e sem consciência podia mentir para um vampiro, também podia simular emoções. Ele continuou: — Eu gostaria que você confiasse em mim. Será que ele tinha falado a mesma coisa para Hannah e as outras garotas? Será que tinha feito com que confiassem nele e depois as estrangulara até a morte? Kylie podia jurar que ele tinha olhado para a garganta dela. Um calafrio transpassou sua espinha. Ela ouviu o barulho dos outros campistas deixando o prédio. Della ainda estaria do outro lado da porta? Se ela gritasse, a amiga conseguiria socorrê-la a tempo? — Eu não sou de confiar fácil nas pessoas — disse Kylie. — Eu tive mesmo essa impressão. — Ele deu um passo na direção dela. Kylie deu um passo para trás, a presença dele fazendo-a prender a respiração. — Sabe o que mais eu não costumo fazer? — O coração da garota martelava de medo, mas ela lutou para não demonstrar.
Ele entrelaçou os dedos. Ela não conseguiu deixar de pensar se ele se lembrava de como se sentira ao usar as mãos para matar. — O quê? — ele perguntou. — Deixar que machuquem alguém que eu amo. — Kylie apurou os ouvidos e percebeu que nenhum som vinha do corredor. O único barulho que ecoava nas paredes recém-pintadas era o assobio do ventilador de teto. Della teria ido embora? Ele inclinou a cabeça para o lado. — Do que você está me acusando? — O que você fez? — Kylie encheu os pulmões de ar e prendeu a respiração. — Nada. Mentiroso! Ela podia sentir, senti-lo escondendo a verdade. — Como eu disse, não sou de confiar fácil. — Ela virou as costas e, a cada passo, esperou que ele a agarrasse por trás, apertasse as mãos em torno do seu pescoço, tirando a vida dela como tinha feito com as outras. Três dias depois, após ter de enfrentar outra aula de Hayden Yates e incapaz de pensar em nada que não fosse a ameaça que esse homem representava para Holiday, Kylie seguiu às pressas para o escritório. Burnett e Holiday estavam discutindo de novo; ela ouviu tudo o que falavam antes de chegar à varanda, mas não se importou. Bem, na verdade ela se importava, só não o suficiente para aquietar o alarme que soava dentro dela. Hayden Yates estava escondendo alguma coisa. E provavelmente era um assassinato. E até que Kylie pudesse convencer Burnett e Holiday disso, a vida de Holiday corria perigo. Entrando sem bater no escritório da líder do acampamento, Kylie bateu a porta atrás de si. — Eu não gosto dele! — Nem eu! — rosnou Burnett.
Holiday desviou os olhos de Kylie e olhou para Burnett. — Vocês dois não estão nem falando da mesma pessoa. Kylie olhou para Holiday, em busca de uma explicação. Exigindo uma explicação. — Blake se ofereceu para ajudar na investigação do desaparecimento de Hannah. Ele foi a última pessoa que a viu viva, por isso acho que devemos aceitar a ajuda dele. — Um suspeito ajudando na investigação; isso faz tanto sentido quanto fritar sorvete. Holiday apoiou os cotovelos sobre a escrivaninha. — Você não conseguiu encontrar nada que prove que ele é culpado. — Ele dormiu com a sua irmã! — Burnett gritou. — Culpado de cometer assassinato, não de não ter caráter! — E eu estou dizendo a vocês — insistiu Kylie. — Hayden é culpado. — Não há provas — disseram ao mesmo tempo. — Ele não demonstra suas emoções. Toda vez que abre a boca para falar alguma coisa, só fala meias verdades. Eu sinto isso. Burnett balançou a cabeça. — Eu investiguei a vida dele tão a fundo que posso praticamente dizer que dia deixou de usar fraldas. A cadeira de Holiday rangeu. — Kylie, se Hayden quisesse me ferir, ele já teria tido muitas oportunidades. Eu o entrevistei pela primeira vez quando estava fora de Shadow Falls, cuidando do enterro da minha tia. Éramos só nós dois. Kylie franziu a testa. — Não importa. Eu ainda... — Vocês dois estão errados — Holiday insistiu. — Blake não matou Hannah, nem Hayden. E, se continuarem tão obcecados com eles, nunca encontraremos o assassino. E talvez nunca encontremos os corpos de Hannah e das duas garotas. Os olhos de Burnett brilharam e Kylie pôde ler a sua mente. A preocupação dele não era encontrar os corpos; era proteger Holiday. O aviso de Hannah parecia iminente e Burnett sentia isso também. — Onde, diabos, está Hannah quando precisamos dela? — Burnett lamentou, com rispidez. Ele olhou para Kylie. — Você não a tem visto nem sentido? Nada? Kylie deixou-se cair no sofá. — A última vez foi quando ela viu Blake aqui no escritório. — Estão vendo? — esbravejou Burnett. — Ela provavelmente descobriu que pegamos o desgraçado. — Eu não acho. — Kylie quase temia discordar de Burnett quando ele estava nesse estado de ânimo, mas lhe parecia crucial convencê-los com seus argumentos. — Ela não parecia achar que estava tudo resolvido quando se foi. Ele cruzou os braços sobre o peito largo. — Será que não podemos ter uma sessão espírita? Dar as mãos e evocar Hannah? — Uma sessão espírita? — Holiday revirou os olhos. — Você tem muito que aprender sobre espíritos. — Eu não estou nem um pouco preocupado em aprender sobre espíritos. Só quero que Hannah apareça e me diga de uma vez por todas quem ela acha que quer ferir você. Na sexta pela manhã, Kylie tinha se esquivado do café da manhã e fugido da Hora do Encontro. Ela quase chegou atrasada para a aula de inglês. Obviamente, Burnett não era o único que precisava aprender sobre os espíritos. Kylie também não sabia o suficiente, pois, embora tivesse sentido a presença de Hannah nos últimos dias, e outra vez pela manhã, o espírito não se manifestou. Kylie tentou atraí-la da maneira como Holiday a aconselhara. Não adiantou. Ela chegou a implorar. Nada.
Sentada na sua carteira, ela apalpou o bolso da calça para ter certeza de que trouxera o celular. A leve protuberância em seu bolso a tranquilizou. Talvez ela estivesse sonhando, mas esperava que Lucas ligasse ou pelo menos lhe mandasse uma mensagem. Mas até o momento, nada. Isso a magoava. Na frente da sala, a senhorita Kane começou a falar sobre escritores famosos e os livros que os alunos deveriam ler nas primeiras seis semanas. Quem sabe Jane Austen e tantos outros fossem sobrenaturais? Kylie com certeza não sabia. Intrigada com a conversa, Kylie mal notou o barulho quando ele começou. Era só uma batidinha leve, com se alguém estivesse do outro lado de uma porta, querendo entrar. A batidinha foi ficando mais alta. Confusa, ela olhou ao redor e, estranhamente, ninguém mais parecia estar ouvindo nada. Sentindo uma estranha vibração, ela olhou para a frente outra vez. Quando o barulho ficou mais alto, um leve movimento à direita da professora chamou a atenção de Kylie. A porta de uma dispensa atrás da senhorita Kane sacudiu nas dobradiças, revelando de onde vinha o barulho. Olhando para a direita e para a esquerda, ela rezou para ver alguém, qualquer pessoa, percebendo como ela a óbvia interrupção. Nada. Então o frio típico dos fantasmas arrepiou os pelos dos braços de Kylie. Uma nuvem de vapor flutuou de seus lábios, prejudicando a sua visão. A senhorita Kane disse algo, mas Kylie não conseguiu ouvir sobre o barulho ensurdecedor. — Kylie? Kylie? — Alguém chamou seu nome. — O quê? — Kylie não conseguia pensar. Forçando-se a olhar para a frente, Kylie viu a professora olhando para ela como se esperasse uma resposta. Kylie tentou falar, mas só conseguiu balbuciar algo, sem que nem uma palavra inteligível deixasse seus lábios trêmulos. Então ela viu. Vapor, muito vapor, esgueirando-se de debaixo da porta da dispensa. Droga! Droga! Aquela não era uma visita normal de um espírito. Era mais como o início de uma visão.
Aquele pensamento fez com que a sua pele arrepiada se enchesse de brotoejas. Não porque as visões a enchessem de pavor, mas porque elas geralmente acabavam com Kylie inconsciente ou, pior do que isso, balbuciando coisas sem sentido. Não aqui!, implorou Kylie. Não na frente de 25 campistas. Ela sentiu um toque gelado no ombro. Olhou para trás. Uma mulher, a pele pálida acinzentada, com escuros círculos sob os olhos no mesmo tom, fitava Kylie. — Ela precisa ver você. — O espírito usava uma camisola branca e seus longos cabelos castanhos caíam soltos sobre os ombros. A mulher levantou uma mão e apontou para a porta da dispensa, na frente da classe. — Quem é você? — Kylie perguntou, notando que tinha se esquecido de falar apenas mentalmente. Todos os alunos estavam agora com os olhos colados nela. Kylie mal conseguia coordenar os pensamentos. E estava tão frio! Seus membros estavam até entorpecidos. — Quem está aí? — ela perguntou. A distância, como o ruído de estática, Kylie ouviu os outros falando. Outra pessoa a chamou pelo nome, talvez Della, e então ela pensou ouvir Derek, mas nada do que ela ouvia, ou sentia, parecia normal. — Ela precisa falar com você. De repente, percebendo que poderia ser Hannah atrás da porta, Kylie obrigou-se a ficar de pé e andar até a dispensa. Mesmo determinada, ela detestava ter que fazer isso na frente de todo mundo. Mas que escolha ela tinha? Seus joelhos vacilaram quando ela se aproximou da porta. Ela viu a senhorita Kane atrás dela, do outro lado da sala, o medo tornando sua pele mais pálida. Kylie entendia perfeitamente. Ela também estava morta de medo. Ela estendeu a mão na direção da maçaneta. Antes de tocá-la, um punho atravessou a madeira da porta. A mão de um esqueleto agarrou a frente da camiseta de Kylie e puxou-a através da porta destruída da dispensa. E, no entanto, não era mais uma dispensa. O lugar sombrio e abafado cheirava a terra, mato e morte. Kylie gritou. Forte. Alto. — Kylie? Kylie? — As vozes ecoaram a distância e depois desapareceram. Agora, o único som que ela ouvia além dos próprios gritos era o tinir de metal batendo contra metal. Ela estava deitada de costas no chão. Grãos de terra caíam em sua face, vindos de cima. Ela queria limpar o rosto, mas os braços estavam presos na lateral do corpo. Mesmo antes de abrir os olhos, ela sabia onde estava. Na cova — ela estava na cova com Hannah e as outras garotas. E alguma coisa lhe dizia que ela talvez nunca conseguisse sair dali.
 
Enterrada viva. O pânico tomou conta da mente de Kylie e comprimiu o seu peito com as suas garras. Ao abrir os olhos, ela só viu escuridão, mas sentiu mais grãos de terra caindo sobre ela. Ela piscou e sentiu terra sobre as pálpebras. — Por favor, eu não quero ficar aqui! — ela gritou na sua mente. Seus olhos se acostumaram à escuridão e as lágrimas entupiram seu nariz, mas ajudaram a limpar a terra dos olhos. Ela tentou respirar, mas a boca não abria; algo a mantinha fechada. Seus pulmões exigiam oxigênio, então ela inspirou o ar pelo nariz. A garganta se fechou ao sentir o cheiro, cheiro de morte e um aroma acentuado de ervas. Ela se forçou a virar a cabeça para confirmar o que já suspeitava: essa visão a colocara deitada dentro de uma cova. Ela viu uma longa mecha de cabelo vermelho ao lado do seu rosto. Como acontecera em outras visões, ela era o espírito. Ela era Hannah — mas, ao contrário da mulher cujo corpo ela encarnava, Kylie respirava. O pensamento de que estava no corpo de um cadáver causou-lhe outra onda de náusea. E mais uma a acompanhou quando ela viu um enorme besouro preto passar sobre os seus cílios. Suas pernas peludas atravessaram a sua bochecha e o inseto enfiou a cabeça na sua narina esquerda. Ela começou a resfolegar e lutar para se libertar, mas foi inútil. Ao virar a cabeça um pouco mais para a direita, viu o rosto de Cindy Shaffer. Um grito se formou na sua garganta, mas ele morreu na sua boca, que ainda estava tampada. Seu coração martelou no peito diante dessa visão. A pele do rosto da garota pendia solta, expondo o osso da mandíbula. Mas a boca estava coberta com fita adesiva. Ao olhar para baixo, Kylie viu a mesma fita. E o corpo em decomposição que ela encarnava estava preso com correntes. Será que isso simbolizava alguma coisa? Ou o assassino realmente tinha feito aquilo? Outro barulho de metal veio de cima. O olhar de Kylie voou na direção do barulho. Ela viu uma enorme barra de metal sendo cravada entre as ripas de madeira, que pareciam ser de um assoalho apodrecido. O pedaço de ferro passou por ela e sua superfície fria roçou no seu antebraço, preso na lateral. Uma das extremidades da barra tinha algum tipo de ornamento, uma cruz. Kylie reconheceu o emblema, igual ao que havia na grade e no portão enferrujados do cemitério. Passos soaram no assoalho acima dela, como se alguém estivesse se afastando, mas então voltaram a se aproximar, e outro pedaço de ferro enferrujado foi forçado através do buraco. Dessa vez, Kylie viu a mão da pessoa empurrando o ferro para dentro. Quando o braço passou quase em frente ao seu rosto, a manga da camisa se levantou ligeiramente, expondo a pulseira prateada de um relógio. O que eu preciso deduzir a partir disso? Kylie perguntou-se mentalmente, e olhou para a garota morta ao seu lado. Outra onda de pânico encheu seus pulmões quando uma cobra de mais de meio metro de comprimento deslizou sobre o seu peito, em direção à sua cabeça. A sensação fria e úmida dos músculos da barriga do réptil atravessando a sua bochecha fez com que um grito ficasse represado em sua garganta. Ela tinha que sair dali! — Está tudo bem. — A voz calma de Holiday fez com que os olhos de Kylie se abrissem no mesmo instante. Ela deu uma rápida olhada em volta. Estava no escritório de Holiday. Mas como viera parar ali...? A visão passou pela sua cabeça como um filme de terror em ritmo acelerado. O pânico voltou a tomar conta dela. Ela se sentou e se levantou do sofá num salto, espanando com as mãos os braços, as pernas e o rosto, na esperança de espantar a sensação de morte e de criaturas subterrâneas deslizando pelo seu corpo. — Está tudo bem — Holiday repetiu.
Não, não estava. Ela tinha se visto morta e havia uma cobra rastejando sobre o seu rosto e um inseto brincando de escondeesconde dentro do seu nariz. Isso significava que não estava tudo bem. Kylie respirou fundo, depois se curvou para a frente e vomitou — uma vez e depois de novo. Vomitou sobre os sapatos pretos de alguém. — Ah, merda! — praguejou uma voz grave. Kylie reconheceu a voz e os sapatos. Ela olhou para cima, viu uma expressão de nojo no rosto do vampiro durão e começou a se desculpar, mas de repente vomitou de novo. Ela não acertou os sapatos de Burnett dessa vez, mas atingiu em cheio a frente da camisa dele. — Mas que porr... — ele murmurou, deixando a palavra pela metade. Holiday passou o braço pelos ombros de Kylie. — Respire. Só respire. Vai ficar tudo bem. Ela guiou Kylie de volta para o sofá. Burnett, com os braços afastados da frente da camisa, passou a Holiday um pano úmido, que a líder do acampamento colocou sobre a testa de Kylie. A garota pegou-o e secou a boca, e então olhou para Burnett. — Acho que você precisa mais disso do que eu. — Lágrimas toldavam os seus olhos e todo o seu corpo tremia. — Desculpe. Ele olhou para a própria camisa e de novo para Kylie. — Não esquente. Kylie olhou para Holiday, sentindo uma sensação de calma fluindo do seu abraço, e tentou se lembrar exatamente do que tinha acontecido. Como ela tinha chegado ali... sua memória começou a encaixar as peças, uma por vez. No entanto, só precisou de algumas delas para começar a entrar em pânico outra vez. — Por favor, me diga que eu não surtei na aula de inglês. O olhar de Holiday se encheu de compaixão.
— Não é culpa sua. E Della trouxe você até aqui tão logo a tirou da dispensa. Kylie se recostou no sofá e começou a desejar que pudesse desaparecer, mas parou antes que seu desejo se realizasse de fato. — Eu odeio isso! Realmente odeio! Kylie olhou para o teto. Burnett deixou a sala, mas voltou em tempo recorde, vestindo outra camisa. Obviamente ele não deixava um par de sapatos extra no escritório, pois agora só usava meias. Depois de alguns minutos, Holiday perguntou a Kylie? — Você pode falar sobre o que aconteceu? — Eu era Hannah. Mas... A maioria das vezes que eu tenho esse tipo de visão e sou o espírito, o espírito não está morto e... na cova com insetos e cobras. — Kylie soltou o ar dos pulmões com um tremor. — Hannah está tentando mostrar algo a você. É disso que se tratam as visões — disse Holiday. — Conte o que aconteceu. Kylie engoliu um nó apertado na garganta. — Eu não sei o que ela queria me mostrar. Estávamos na cova. Havia cobras e insetos. Eu vi um monte deles. — Ela passou a mão no rosto, lembrando-se da cobra deslizando por sua bochecha. — Me conte tudo — Holiday pediu. — Tudo. Kylie começou seu relato, desde os passos sobre as tábuas apodrecidas do assoalho acima dela, até o cheiro de mato e as barras de ferro que pareciam vir do cemitério. Quando Kylie acabou, o semblante de Holiday estava pálido. — O que foi? — perguntou Burnett, sem deixar de reparar na expressão do rosto dela. — Alguém sabe que Hannah está tentando se comunicar. — Como você sabe? — perguntou Kylie. — A fita adesiva na boca das garotas e as correntes. Você disse que sentiu cheiro de mato e que viu alguém cravando barras de ferro do cemitério. No passado, elas eram chamadas de “ferro frio”. É basicamente ferro, mas benzido por wiccanos praticantes. Isso costumava impedir que os mortos saíssem das sepulturas e... as ervas, várias são usadas para silenciar os espíritos. Isso é o que ela estava tentando dizer a você. Que alguém está tentando impedi-la de se comunicar conosco. — E Blake sabe que você fala com fantasmas — acrescentou Burnett. — É lógico que Hannah procuraria você. — Mas, se for esse o caso, por que somente agora ele está tentando silenciá-la? Ele poderia ter feito isso desde o início. — Ela está certa — disse Kylie. — É alguém daqui. Hannah nos disse isso. E desculpe por ficar repetindo isso como um papagaio, mas Hayden Yates certamente ouviu alguém dizer que eu converso com fantasmas. Todo mundo aqui sabe disso. — E, se não ouviu, o que aconteceu hoje bastou para que ele descobrisse. Holiday torceu o cabelo com as mãos e depois encontrou o olhar de Kylie. — Eu não quero suspeitar de ninguém daqui — ela disse, e depois olhou para Burnett. — Mas Kylie tem razão. Pode ser alguém de Shadow Falls. E, se o ferro era do cemitério de Fallen, então o corpo de Hannah e das outras está aqui por perto. — Muito bem — grunhiu Burnett. — Eu vou voltar e verificar todos os bancos de dados da UPF para ver se encontro algo sobre Hayden Yates. Até lá, não deixe esse homem chegar perto de você. — Eu ainda não acho que seja Hayden — teimou Holiday. — E eu ainda acho que é — discordou Kylie. — Quem mais poderia ser? — Burnett perguntou. — Um dos novos alunos ou professores — disse Holiday —, mas... — A maioria dos assassinos seriais são homens. E eu não acredito que um adolescente seja capaz de fazer isso. — E Hannah vive chamando o assassino de “ele” — lembrou Kylie. Burnett bufou. — Eu não acredito que Collin Warren consiga olhar para uma pessoa por tempo suficiente para matá-la.
— Mas ele é estranho — disse Kylie. No entanto, os seus instintos lhe diziam que Hayden Yates não era flor que se cheirasse. — Ser extremamente tímido não faz de ninguém um assassino — Holiday observou. — Só faz dessa pessoa alguém antissocial. Burnett balançou a cabeça. — Mas só para ter certeza, vou fazer algumas investigações sobre ele também. Você fique longe dos dois. Holiday revirou os olhos. — Como eu vou dirigir esta escola sem falar com nenhum dos pro- fessores? — Eu poderia deixar você trancada na minha cabana — ameaçou Burnett. — Bem que você gostaria... — brincou Holiday. Os olhos de Burnett brilharam e um leve sorriso ergueu ligeiramente os cantos de seus lábios. — Pode apostar. Kylie sorriu por um segundo também, captando a mensagem implícita de Burnett. Depois, por alguma razão, Kylie pensou em Lucas e começou a sentir falta dele, desejando que estivesse ali para ajudá-la a lidar com tudo aquilo. Nunca se apaixone, princesa. Machuca demais. As palavras do padrasto ecoaram na cabeça de Kylie e nesse mesmo instante ela soube: amava Lucas. Como se a epifania desse um novo estímulo ao coração e à mente de Kylie, ela de repente se lembrou do momento em que estava na dispensa da classe da senhorita Kane, gritando a plenos pulmões. Fechou os olhos, sentindo o constrangimento tomar conta dela. Se algum campista ainda não tinha certeza de que ela era uma aberração, agora não restava mais nenhuma dúvida. Kylie sentiu Holiday pousar a mão delicada em sua cintura, como se sentisse a sua angústia. Seu toque não surtiu muito efeito dessa vez. Kylie estava apaixonada por Lucas, um garoto que não podia nem ser visto em público com ela, e ela tinha feito um papel ridículo diante de todo mundo, graças a uma das suas visões fantasmagóricas. — Burnett — Holiday falou suavemente —, por que não vai arranjar outro par de sapatos e me dá um minutinho a sós com Kylie. O fato de ficar sozinha com Holiday fez com que Kylie se permitisse desabar e cair no choro. Ela encostou a cabeça no ombro da líder do acampamento e começou a soluçar. Holiday abraçou-a tão forte que Kylie chorou ainda mais. Depois de alguns minutos, falou: — Eu lamento tanto! Hannah não devia ter te procurado. Você é muito jovem para lidar com uma coisa dessas. As palavras de Holiday puseram um ponto final na autopiedade de Kylie. Ela se afastou do ombro da amiga. — Não. Quero dizer, claro, é difícil, mas isso é o que eu faço. Eu faria isso por um estranho. E farei pela sua irmã quantas vezes for necessário. — E se isso significasse impedir que alguém machucasse Holiday, faria mais vezes ainda. Kylie secou as lágrimas e suspeitou de que estava com o rosto vermelho e inchado. Não que isso a incomodasse. Ela estava com Holiday. Sua mentora, sua irmã mais velha. Sua amiga. — Além disso — acrescentou Kylie —, não é só por causa da visão. É por causa de Lucas. Eu acho que o amo. Não, eu tenho certeza disso. Ah, droga! Eu estou apaixonada por um garoto que não pode me amar. Holiday acariciou a bochecha de Kylie. — Ei, espere aí. Ele talvez não deva se apaixonar por você, mas isso não significa que não possa se apaixonar ou que já não esteja apaixonado. Kylie deu um profundo suspiro, tentando não cair no choro outra vez. — Ele não disse que me ama. Quero dizer, eu também não disse, mas... Derek disse que me ama. E... — Ela fechou os olhos, tentando descobrir como colocar aquilo em palavras. — E às vezes fico confusa sobre o que eu sinto por ele, mas neste momento, vendo o que você e Burnett vivem juntos, ou o que vocês poderiam viver, eu percebi que quero isso também. Estou cansada de esconder o que sinto e ter medo disso. As lágrimas que Kylie reprimia afloraram nos olhos de Holiday. — O amor sempre assusta. Kylie sentia as emoções de Holiday se misturando às suas próprias. — Não deveria assustar — disse Kylie. — Burnett ama você. Até eu posso ver. E eu sei que você o ama. Não perca algo tão maravilhoso porque está assustada. — Eu só preciso de um tempo — explicou Holiday. — Tempo que talvez a gente não tenha. A vida é frágil. Veja Hannah, Cindy e a outra garota. Elas não têm mais oportunidade de amar. Nós temos essa chance e não estamos aproveitando. Eu devia ter contado a Lucas o que sinto. Eu devia tê-lo obrigado a ser sincero comigo sobre o que está acontecendo com ele. Você devia falar para Burnett o que sente. Holiday mordeu o lábio inferior. — Achei que eu era a conselheira aqui. — Você é, mas, bem, a coisa se inverteu — disse Kylie. As coisas mudam. Kylie só esperava que, se tudo mudasse na sua vida, pelo menos Shadow Falls permanecesse. O pensamento de perder Holiday e todos ali, até os que considerava meio malucos, era demais para ela. Eles eram a sua família. Naquela noite, Kylie tentou provocar um sonho lúcido com Lucas, mas não funcionou. Ela mandou uma mensagem para ele, depois telefonou e até enviou um e-mail. Nenhuma resposta. Então, às duas da manhã, enquanto ela olhava para o teto, o telefone tocou. Kylie agarrou o aparelho sem se incomodar em olhar o identificador de chamadas. — Lucas? — disse ao mesmo tempo que acendeu a lâmpada do abajur. O frio no quarto chegou mais rápido que a luz.
— Desculpe — disse a voz do outro lado da linha. — Sou só eu.
Kylie estremeceu e depois franziu a testa quando reconheceu a voz.
— Eu só tentei... — Tudo bem — disse Derek, mas seu tom de voz revelava que não estava tudo bem. — Eu simplesmente acordei e senti a sua preocupação. Tentei te ligar mais cedo para ver como você ficou depois da visão, mas você não atendeu nem ligou de volta. Kylie puxou as cobertas até o pescoço. O espírito ao lado da cama se desvaneceu, mas, antes de desaparecer completamente, Kylie reconheceu a mesma mulher que a procurara antes. Lembrando quem estava do outro lado da linha, o peito de Kylie se encheu de emoção. — Eu... É loucura. — Ela sabia que ele tinha ligado. Só não queria falar com ele por causa da tempestade emocional que sentia com relação a Lucas. Não era justo com Derek, porque, embora ela não estivesse fazendo nada errado, ela sabia que a amizade entre eles dava a Derek esperança de que ela mudasse de ideia, e ela não achava que isso fosse acontecer. — Você está mais distante... — ele se queixou. — Derek, é que... — Kylie, você não precisa se explicar. Eu sei. — Ele fez uma pausa. — Tudo bem. Algum dia eu vou conseguir dizer isso numa boa, de coração aberto. — Você é um cara especial — disse Kylie, triste por ele. — Eu sei — ele disse, com uma risadinha. — E é por isso que não estou desistindo de uma vez por todas. Mas estou me esforçando para isso. Só liguei para saber de você. — Eu estou bem. — Então, boa noite. — O sentimento de rejeição era evidente na voz dele. — Derek, eu realmente... — Apenas diga boa-noite, Kylie.
— Boa noite — ela sussurrou, e nada a deixou mais triste do que o silêncio do outro lado da linha, quando ele desligou. Colocando o celular na mesinha de cabeceira, Kylie olhou em volta. O frio vindo do espírito tinha diminuído, mas ela tinha a sensação de que ele ainda estava por perto. — Quem é você? — perguntou Kylie. A mulher não respondeu. E por que deveria? Os fantasmas nunca facilitavam as coisas. Mas por acaso os vivos facilitavam? — Kylie! Kylie! — A voz arrancou-a de um sono profundo, antes do nascer do sol, na manhã seguinte. Ela se sentou na cama, calafrios percorrendo seu corpo como aranhas. Sem nem mesmo saber por que, seu sangue borbulhou com a necessidade que sentia de oferecer proteção. De proteger alguém. Ainda sonolenta, ela tirou o cabelo do rosto e ficou de pé no meio do quarto, com a respiração um pouco ofegante. Seu pulso estava acelerado e o pânico crescia em seu peito, pressionando seus pulmões. Alguma coisa estava acontecendo. Ela podia sentir. Alguém precisava dela. Alguém precisava da sua proteção. Mas quem? Sua mente dava voltas enquanto ela tentava entender o que estava sentindo. Então Kylie se lembrou da voz. Ela a repetiu mentalmente, várias e várias vezes, até finalmente reconhecê-la. — Oh, não! — ela agarrou a calça jeans e uma camiseta. Holiday estava em apuros.
 
Um pouco antes de Kylie sair do quarto, ela consultou o relógio ao lado da cama. Cinco da manhã. Holiday já deveria estar no escritório. Kylie disparou para o quarto de Della, mas a garota não estava lá. Provavelmente estava em alguma cerimônia matinal de vampiros. Kylie não esperou mais nem um segundo; irrompeu para fora da cabana e voou como o vento na direção do escritório. O único peso que sentia era no coração, como se ele soubesse que a situação de Holiday era grave. Realmente grave. Quando Kylie chegou à cabana, deparou-se com a porta escancarada. Não era um bom sinal. O pior era que havia vidro estilhaçado no assoalho úmido da entrada. A alça quebrada do bule de café estava no canto do cômodo, outro sinal de que havia ocorrido uma luta ali. — Onde você está, Holiday? — A voz dela tremia. Lágrimas toldaram seus olhos e ela tentou pensar. Burnett. Ela precisava entrar em contato com ele. Estendeu a mão para pegar o celular no bolso, quando percebeu que o aparelho não estava ali. Correu para a sala de Holiday. O cômodo parecia intacto. A pessoa que levara a líder do acampamento a tinha surpreendido na entrada. Ele provavelmente esperara até ela chegar pela manhã, ou talvez tivesse entrado na cabana enquanto Holiday fazia café. Com as mãos tremendo, Kylie pegou o telefone do escritório. Ela não se lembrava do número de Burnett. Seria mais rápido ir até a cabana dele do que procurar seu número. Ela disparou na direção da cabana de Burnett, os pés mal tocando o chão. Não sabia se tinha se transformado em vampiro ou se tinha mais força quando seu lado protetora entrava em ação.
Não importava. Só havia uma coisa importante, um pensamento ecoou na sua mente. Salvar Holiday. Ela tinha que salvar Holiday. Ao chegar à cabana de Burnett, nem bateu na porta. Gritou o nome dele quando entrou, mas não obteve nenhuma resposta. Nada. Ela o procurou no quarto. A cama estava vazia. Lembrando-se do ritual dos vampiros, ela disparou para fora da cabana. Della havia comentado uma vez onde eles realizavam o ritual. Ela correu pelos bosques, sem se importar com a promessa de nunca interferir num ritual de vampiros. Se ela arranjasse problemas, enquanto estava no modo protetora, podia chutar alguns traseiros e fazer perguntas depois. Kylie atravessou uma fileira de árvores e entrou numa clareira. O vento uivava enquanto ela corria. Fazendo uma parada abrupta, ela se viu rodeada por cerca de meia dúzia de vampiros zangados, os olhos brilhando ao ver um intruso em seu ritual. Para sorte dela, os vampiros de Shadow Falls provavelmente não a atacariam. Isso era bom, pois mesmo no modo protetor ela não tinha certeza se conseguiria dar conta de seis deles ao mesmo tempo. — Onde está Burnett? — perguntou Kylie. — Ou Della? — O que aconteceu? — Burnett apareceu ao lado dela. Kylie não respondeu. Não precisava. Ele viu nos olhos dela. — Holiday? — O som da voz dele fez Kylie sentir uma dor no peito. Seu sangue bombeou mais rápido. Kylie prendeu a respiração. — Ele a levou. — Quem? — ele perguntou, autoritário, enquanto Della parava ao seu lado. — Eu ainda não sei — Kylie respondeu, os olhos ardendo por causa das lágrimas. Mas era bom que descobrissem, e rápido, antes que fosse tarde demais. Três minutos depois, assim que Kylie explicou tudo, Burnett distribuiu ordens a todos os vampiros, e a Kylie também, para que procurassem Holiday por toda a propriedade de Shadow Falls. Se ela ainda estivesse ali, eles a encontrariam. Burnett seguiu direto para o escritório, para ver se conseguia encontrar pistas e ver se o alarme estava funcionando. Kylie seguiu para o leste do acampamento. Mas, quando passou pela trilha que levava à cabana de Hayden Yates, ela deu meia-volta. Entrou na varanda a toda velocidade. Ouviu o professor andando lá dentro. Ouviu-o conversando com alguém. Ela invadiu a cabana sem bater na porta e, opa!, esqueceu-se de abri-la primeiro. A porta desabou no chão com um estrondo. Hayden estava de pé ao lado do sofá, o moletom com capuz numa mão, como se ele tivesse acabado de tirá-lo, e o celular na outra. Seu cabelo preto estava ainda mais preto, molhado de suor. Sua pele estava corada, como se ele tivesse corrido. Mas do quê? Ou melhor, de onde? — Onde ela está? — O tom de voz de Kylie era profundo, cheio de fúria e ameaça. Ele tirou o telefone do ouvido. — Onde está quem? — ele perguntou, inocente. — Não venha com essa conversa pra cima de mim. — O sangue de Kylie agora borbulhava nas veias. Sua paciência, se tivesse alguma, já tinha se esgotado. Ele atirou o moletom e o telefone no sofá, onde havia também um relógio. Um relógio de pulseira preta. — Você é uma vampira agora. Tente ouvir o meu coração para comprovar que estou dizendo a verdade. Kylie já tinha ouvido o seu batimento cardíaco, mas não fazia diferença. Também não fazia diferença que o relógio do professor não fosse igual ao que ela vislumbrara na visão. Ele podia ter dois relógios. — Isso só funciona com pessoas que têm consciência. — E você está presumindo que eu não tenha.
— Você está escondendo alguma coisa desde que chegou aqui. — Ela deu um passo na direção dele. Sua intenção era obter respostas, e como as conseguiria, para ela tanto fazia. Ele aparentemente captou o ânimo de Kylie, porque ergueu as mãos, com as palmas para cima. — Talvez, mas não é o que você pensa. Eu não fiz nenhum mal à sua querida amiga. — Eu não disse isso! Então, como, afinal... — Eu não sou idiota. Burnett vigia a cabana dela quase todas as noites. — Se você a feriu, eu mato você. — Ela não recuou ao ouvir as próprias palavras. Era verdade. Por Holiday, Kylie mataria. Mas e se ela tivesse falhado com Holiday e já fosse tarde demais? Raiva, medo e amor queimavam em seu peito. Suas mãos tremiam. — Eu não tenho dúvida de que você poderia me matar — disse Hayden, mantendo uma postura submissa. — A sua força neste momento é quase... palpável. — Ele inspirou e ela podia jurar que ele parecia sincero, até respeitoso. — Não cabe a mim — ele hesitou novamente — falar nada. — Ele correu a mão pelo cabelo. — Provavelmente eu ganharia mais ficando calado. Mas, infelizmente, ao contrário do que você pensa, eu tenho uma consciência. Ele fechou os olhos e, quando os abriu, ela viu neles total sinceridade. E viu outra coisa, mas não tinha certeza do que era. Algo sobre ele que parecia... familiar de um jeito estranho. — Eu vi Collin Warren perambulando por aí esta manhã. E algo me diz que não estava fazendo coisa boa. Kylie ouviu o coração de Hayden falar a verdade. Ela continuou a estudar os olhos dele, que não pareciam esconder nenhuma desonestidade. — Quem é você? — ela perguntou. Ele levantou as duas mãos e tirou o cabelo da testa. — Veja você mesma.
Kylie de fato viu. Seu padrão era o mesmo do pai dela. Hayden era... um camaleão. Ela perdeu o fôlego. Ele tinha todas as informações de que ela precisava, mas não podia perguntar agora. Porque mais importante do que obter essas respostas era zelar pela vida de Holiday. Então os olhos dela se desviaram para o sofá e ela percebeu que ele de fato tinha uma coisa de que ela precisava. Kylie pegou o celular do professor e saiu da cabana enquanto o ouvia protestar. * * * Kylie saiu voando da varanda. O nascer do sol tingia o horizonte de cores vívidas, embora ela não tivesse tempo para apreciar a paisagem. Colocou o telefone no ouvido e percebeu que tinha um problema. Não conseguia se lembrar do número de Burnett. Então ligou para Della. A amiga não atendia, droga! Kylie deixou uma mensagem, contando sobre as suas suspeitas: Collin Warren estava com Holiday e Kylie estava procurando por ele agora. Ela não diminuiu o ritmo, não parou até estar na frente da cabana de Collin. Apurou os ouvidos. Nenhum som vinha dali de dentro. Mas ela tinha que ver com os próprios olhos. Começou a subir os degraus da varanda quando ouviu passos suaves atrás dela. Com o coração na boca, Kylie se virou, esperando dar de cara com Collin, mas se deparou com Fredericka. — Por que você está aqui, andando de fininho desse jeito? — a loba perguntou. Kylie não tinha tempo para explicações, por isso se virou para a cabana novamente. A porta estava trancada, então a garota simplesmente quebrou a porta e entrou. Já tinha feito isso na cabana de Hayden, por que não faria de novo? Fredericka ofegou atrás dela. Kylie ignorou.
Ela entrou no quarto de Collin, procurando qualquer coisa que a ajudasse a encontrar Holiday. — O que está acontecendo? — perguntou Fredericka, seguindo Kylie até o interior do quarto. — Vá embora. Não tenho tempo para bobagens. — Kylie abriu uma gaveta e tirou de dentro tudo o que havia ali. — O que está acontecendo?! — insistiu Fredericka. Kylie suspirou. — Holiday está desaparecida e eu acho que este maluco a levou. — Merda! — xingou Fredericka. — Eu sabia que ele era estranho. Kylie fez menção de sair. — Espere! — pediu a loba. — Eu segui Collin alguns dias atrás. Ele foi até uma velha cabana no parque selvagem, aqui perto. — Onde? — Kylie perguntou, rispidamente; todos os seus instintos pareciam estar em alerta. — Eu... eu mostro onde é. — Fredericka ergueu as mãos, mostrando as palmas, como se temesse Kylie. Elas correram pela floresta. Ter de diminuir o ritmo por causa de Fredericka estava tirando a paciência de Kylie, mas ela segurou a língua. Normalmente, não confiaria na garota, mas algo lhe dizia que a outra não estava armando nenhum truque nesse momento. Sem dúvida Fredericka sabia que Holiday tinha se desdobrado para que ela viesse a Shadow Falls e permanecesse ali. Chegaram aos portões do acampamento. Kylie saltou sobre ele sem dificuldade. Fredericka só conseguiu por um triz e aterrissou com tudo no chão do outro lado. Kylie hesitou e olhou para trás. — Estou bem — a garota rosnou, pondo-se de pé. Eu não perguntei. Kylie mordeu a língua. Elas começaram a correr novamente, mas o celular de Hayden tocou. Kylie tirou-o do bolso e viu o nome de Burnett. Obviamente, Della tinha lhe dado o número do professor. — Onde diabos você está? — Burnett grunhiu. — E por que está com o telefone de Hayden Yates? Kylie e Fredericka chegaram à cabana antes de Burnett. Mas ele dissera que estava a caminho, o que significava que logo chegaria. O mato crescia em torno da cabana, como se estivesse abandonada. Os sons da noite de repente silenciaram. Burnett devia estar por perto. Ele tinha mandado que elas esperassem por ele antes de entrar. Mas Kylie ouviu algo ali dentro. Apurou os ouvidos. Deus do céu! Ela só ouvia uma pessoa respirando ali dentro. O medo lhe tirou o fôlego. Seu sangue borbulhou com tanta intensidade que quase a incendiou. Proteger Holiday. Proteger Holiday. As palavras ecoavam em sua mente como uma litania. Ela fez um gesto para que Fredericka ficasse ali. Os olhos da garota brilharam com um lampejo de rebeldia. Kylie não tinha tempo para discussões. Disparou para a cabana; a porta foi estraçalhada, as paredes sacudiram. Collin Warren saltou assustado. Aos seus pés jazia Holiday. Imóvel e sem vida.
 
Os olhos de Collin se encheram de medo ao ver Kylie; uma aura de pura maldade parecia envolvê-lo. Kylie foi para cima de Collin Warren e lançou-o no ar, através da cabana. Ela ouviu seu corpo bater no assoalho de madeira com estardalhaço. O gemido do homem atravessou o cômodo, mas Kylie não o viu cair. Ela ouviu um tumulto atrás dela. Fredericka gritou. Kylie ignorou. Ajoelhada ao lado de Holiday, Kylie desamarrou a corda em torno da garganta da amiga. — Ela está morta? — Kylie ouviu Fredericka perguntar. A pergunta flutuou pelo cômodo... sem resposta. O olhar de Kylie estava fixo em Holiday. Seu coração, preso no fato de que ela tinha tentado salvar Ellie e falhara, tinha tentado salvar Roberto e falhara também. Os passos de Burnett soaram dentro da cabana; ela o ouviu arquejar de pura angústia. Ele sabia. Sabia que Holiday estava morta. Kylie não olhou para ele. Tudo o que ela tinha — tudo no que queria acreditar — estava concentrado em Holiday. Aquilo não podia estar acontecendo. Não com Holiday. — Não! — Kylie gritou. Não com Holiday, que sempre estivera ao lado de Kylie; sempre a ouvira e sempre se importara com ela. Lembranças das duas juntas pipocaram em sua mente. Lembranças das duas rindo, sentadas lado a lado na cachoeira, até tomando sorvete enquanto falavam de decepções e garotos. Quantas vezes Holiday tinha oferecido a Kylie o seu toque carinhoso e reconfortante?
— Você não pode nos deixar! — rogou Kylie com um soluço. Lágrimas rolavam pelas suas faces e pingavam no rosto pálido da fae. Kylie passou as mãos pela pele machucada da garganta da amiga. Quando não sentiu as próprias mãos se aquecendo; então ela fechou os olhos e rezou. Deus, me permita salvá-la. Você me deu este poder, agora me deixe usá-lo. Eu pago o preço que for preciso, até com a minha própria vida. Você está me ouvindo? Troco a minha vida pela dela! Uma sensação de calor se avolumou no peito de Kylie e então lentamente se espalhou por suas mãos. Elas formigaram e depois foram ficando cada vez mais quentes. O corpo de Holiday parecia tão frio, tão sem vida sob as palmas de Kylie, mas ela não parou. Não podia parar. — Kylie está brilhando outra vez. — A voz de Fredericka soava a distância. Mas mesmo com a luz de Kylie se espalhando por todo o cômodo, Holiday não reagia. Outro arquejo de dor emergiu do peito de Burnett. Esse foi o último som que Kylie ouviu antes de sua visão escurecer. Kylie se viu envolvida pela escuridão. Sua mente estava exaurida. Onde ela estava? Por que se sentia tão esgotada? Tão morta? Ela tentou abrir os olhos, mas o esforço exigido foi demais para ela. Acorde! Acorde!, uma parte do seu cérebro ordenava. O sentimento de urgência se avolumou no seu peito e ela lutou para clarear os pensamentos. Quando a confusão e a exaustão começaram a se dissipar, ela recobrou a consciência. Estava nos braços de alguém, alguém que corria a toda velocidade. O corpo de Kylie sacudia, a cada passo que a pessoa dava. Ela forçou os olhos a se abrir e olhou para cima... Fredericka? O que ela estava fazendo? — Me coloque no chão — mandou Kylie.
— Burnett disse para eu carregar você — Fredericka respondeu com rispidez. — Acredite, também não gostei nem um pouco. — Me coloque no chão! — insistiu Kylie. A loba fez uma parada abrupta e largou-a sem nenhuma gentileza. A dor que sentiu ao se chocar contra o chão despertou Kylie por completo. Collin Warren tinha matado Holiday. Holiday... estava morta. A dor transpassou o coração de Kylie. Pondo-se de pé, ela viu Burnett segurando nos braços o corpo sem vida de Holiday. Kylie correu até ele. — Deixe-me tentar outra vez! — Kylie implorou. — Você já tentou — ele respondeu com amargura. — Mas talvez dessa vez... — Kylie! Você já a salvou — disse Burnett. — Ela está fraca, mas respirando. Agora, deixe Fredericka carregar você de volta ao acampamento, para que possamos ajudar vocês duas. — Eu estou bem — Kylie insistiu. — Você ainda está brilhando, Kylie — Burnett observou. — E eu não sei o que isso significa. Kylie também não sabia. Mas não se importava. Ela fitava o peito de Holiday, esperando vê-lo se expandir, enchendo-se de oxigênio. Enquanto isso, segurava a própria respiração. Só quando Holiday respirou é que Kylie deixou que o ar penetrasse em seus pulmões sedentos. — Vamos — murmurou Burnett. — Um médico nos espera no acampamento. Kylie se forçou a correr, mas não conseguiu ser tão rápida quanto antes. Todos os seus músculos pareciam queimar. Não que ela estivesse reclamando. Holiday estava viva e ela também. Nada mais importava.
Kylie sentou-se na sala de estar de Holiday, em silêncio e ainda brilhando, enquanto o médico examinava Holiday no quarto. Burnett, de pé, escutava atentamente o que se passava no outro cômodo. Todos os outros alunos se aglomeravam no refeitório. As aulas tinham sido canceladas enquanto todos esperavam notícias. Kylie se perguntou se Holiday sabia quanto era amada. Que todo mundo, até Fredericka, gostava dela. Todo mundo exceto... Collin Warren. As perguntas se sucediam na mente de Kylie. Ela olhou para Burnett. — O que aconteceu com Collin? Burnett balançou a cabeça. Kylie sentiu um nó no estômago. Ela se lembrou de ter atirado o homem no ar, lembrou-se de ter ouvido o ar escapando dos seus pulmões. Será que sua alma tinha escapado do corpo também? Ela tinha dito que mataria por Holiday, e era verdade, mas agora o pensamento de que pudesse ter tirado uma vida a deixou com vontade de vomitar. — Eu mat... Burnett sacudiu a cabeça. — Fredericka. Ela disse que ele veio pra cima de você com uma faca. Ela o atacou. Eles lutaram. Ele perdeu. Kylie agora se lembrava de ter ouvido uma luta, mas a ideia a deixou atônita. — Fredericka salvou a minha vida? — Ah, mas que inferno! Ela não queria ficar em débito com ninguém que a odiasse. Então não pôde deixar de se perguntar por que a loba tinha feito aquilo. Ela podia ter deixado Collin matá-la. Burnett olhou para Kylie como se lesse seus pensamentos. — Ela se comporta muito mal, mas não acho que seja tão ruim quanto as pessoas pensam. — Ele hesitou. — Isso acontece quando se cresce como um delinquente. As pessoas pensam o pior de você, e isso só faz com que fique mais fácil deixar que elas pensem que têm razão do que provar que estão erradas. — Ele olhou mais uma vez para a porta do quarto. — Holiday acreditava que ela podia ser salva. Lucas também. Kylie ficou sentada ali, remoendo seus pensamentos. Sobre Fredericka e depois sobre Lucas. Ela sentia falta dele. Queria que ele estivesse ali. Então recapitulou as palavras de Burnett e percebeu, pelo tom de voz dele, a pessoalidade do seu comentário. Isso acontece quando se cresce como um delinquente. Uma peça do quebracabeça sobre quem era Burnett de repente se encaixou. — Você foi criado num lar adotivo como Perry, não foi? O olhar de Burnett manteve-se fixo na porta. — Ela vai ficar bem. — Um sorriso deixou seu olhar mais brilhante. — O médico acabou de dizer que ela vai ficar bem. — Ele levantou as duas mãos e entrelaçou-as atrás do pescoço. Quando olhou para Kylie, ainda estava sorrindo. — Sim, cresci num lar adotivo. Por quê? Você está se perguntando por que eu sou um filho da mãe sem coração? Se é porque cresci como um delinquente? Ouvindo o bom humor e o alívio na voz dele, Kylie sorriu. Ela sabia que, se não estivesse tão aliviado com o diagnóstico do médico, provavelmente estaria contrariado por Kylie ter descoberto. Então a oportunidade lhe ocorreu. — Não, mas estou me perguntando se é por isso que é tão difícil para você dizer a Holiday o que sente por ela. Admitir que a ama. E eu acho que ela realmente precisa ouvir isso. Ele arqueou as sobrancelhas. — Não sou eu quem não deixa ninguém se aproximar. — Mas você também não disse a ela o que sente. E tem que confiar em mim quando digo que uma mulher precisa ouvir isso. Alguns minutos se passaram em silêncio; ela sabia que Burnett estava pensando no que ela tinha dito, e aquilo era bom. Mas então o vampiro voltou a olhar para ela com um olhar interrogativo. — Como Hayden Yates sabia sobre Collin Warren?
Kylie escolheu as palavras com cuidado. Ela não tinha contado a Burnett que Hayden era um camaleão e não tinha certeza se deveria contar. — Quando eu fui à cabana dele, ele tinha acabado de voltar, estivera fora, correndo. Eu o acusei de estar envolvido. Ele negou. Disse que tinha visto Collin e que o homem parecia suspeito. Burnett refletiu sobre o que ela contou. — Supostamente, Collin nunca foi uma pessoa sociável, mas ninguém vira nenhuma maldade nele até agora. — Burnett fez uma pausa. — Como você acabou ficando com o celular de Hayden? — Eu tinha esquecido o meu quando saí da cabana. Então... confisquei o dele. — Ela deu de ombros. — Você sabia que ele tinha me enviado uma mensagem, dizendo que estava com uma emergência na família e que tinha que deixar o acampamento por alguns dias? Kylie tentou não demonstrar a sua decepção. — Não, eu não sabia. — Você ainda acha que ele está envolvido? — Burnett perguntou. — Se acha, eu o trago para cá outra vez. — Não — Kylie respondeu com franqueza. — Eu estava errada. Ele não tem nada a ver com Holiday. Até ajudou a salvá-la. Burnett analisou Kylie. — E você não acha suspeito que ele tenha saído do acampamento agora? — Talvez um pouco — disse Kylie, para não ser pega numa mentira. — Mas tenho certeza de que ele não tem nada a ver com o desaparecimento de Holiday. — Mesmo assim eu vou interrogá-lo quando ele voltar — disse Burnett. Eu também. Kylie balançou a cabeça. Se ele voltar. Seu coração se apertou. Então ela se lembrou de que estava com o telefone dele no bolso de trás. Hayden Yates tinha que estar trabalhando para o avô dela. E se isso era verdade, o avô estava provavelmente em contato com Hayden. Isso significava que ela poderia ter acesso ao telefone dele. Se o avô não tivesse mudado seu número outra vez. Trinta minutos depois, após Burnett ter feito uma visita a Holiday, Kylie entrou no quarto dela. Com o cabelo ruivo parecendo ainda mais vermelho em contraste com os lençóis, Holiday parecia muito pálida, mas estava viva. O hematoma em sua garganta ainda era bem visível. Ela tocou a garganta e fez um gesto para que Kylie lhe passasse a água sobre a mesinha de cabeceira. — Você me trouxe de volta. — A voz de Holiday estava rouca, dolorosamente rouca. — Mas eu não curei você completamente. — Ouvir Holiday falar causava um nó na garganta de Kylie. — Você quer que eu tente, para ver se consigo...? Holiday balançou a cabeça. — Acho que você já fez o bastante. Parece cansada. Kylie se sentia cansada, mas não a ponto de não poder tentar. — Eu poderia... — Não. Eu vou me curar. — Holiday parecia preocupada. — Você ainda está brilhando. — Eu sei — disse Kylie. — Mas vai passar, certo? Holiday assentiu, mas não pareceu muito confiante. Então ela fez um gesto para que Kylie se sentasse na cadeira ao lado da cama. — Eu consegui ver Hannah antes de ela fazer a passagem. Quando eu estava morrendo, tudo pareceu desacelerar e ela veio me ver. Nós conversamos. Acertamos nossos ponteiros. — Lágrimas afloraram nos olhos verdes de Holiday. — Nada disso teria sido possível se não fosse por você. Obrigada. Eu sei o preço que teve que pagar e prometo viver a minha vida de um jeito que não custe nem uma minúscula parte da sua alma. Kylie pegou a mão da amiga e a apertou.
— Acho que você nunca viveu de outro jeito. — Eu posso me esforçar mais. — Holiday engoliu em seco. — Nada como morrer para aprender a viver. Kylie sorriu. — Espero que esteja se referindo a Burnett. Holiday sorriu. — Aquele vampiro idiota acabou de me pedir em casamento. Mas aqui? E agora? Como se eu quisesse receber uma proposta de casamento quando estou com a aparência de quem acabou de morrer. O coração de Kylie deu um salto de alegria. — E o que você respondeu? Holiday tomou um gole de água. — Eu perguntei a ele se não poderíamos simplesmente viver juntos em pecado. Kylie franziu a testa, mas então ela viu algo nos olhos de Holiday. — E então? — Ele me disse que não seríamos um bom exemplo para os alunos. Então... concordei em me casar. — Ela passou uma mão pela testa. — Meu Deus, em que eu fui me meter? Ele não é um homem fácil de lidar. — Eu estou ouvindo! — Burnett gritou da outra sala, com uma risadinha na voz. Holiday revirou os olhos. Kylie apertou a mão da fae um pouco mais. — Ele ama você — sussurrou. — Sim, é o que ele diz. — Ela afundou mais a cabeça no travesseiro, parecendo exausta, mas também feliz. Kylie sentiu que tudo estava se encaminhando. Ela tinha conseguido. Ou pelo menos tinha ajudado. Burnett e Holiday estavam juntos.
Mas não pôde deixar de se perguntar se ela e Lucas teriam a mesma sorte. Holiday olhou para o teto por um segundo. — Eu também vi a sua avó, Kylie. — Nana? — Kylie perguntou. — O que ela disse? — Não, não Nana, a sua outra avó. Heidi. Kylie viu uma sombra de tristeza nos olhos de Holiday. — O que ela disse? — Só disse olá. — Holiday suspirou. Algo dizia a Kylie que não era só isso. O que Holiday não queria contar? Kylie quase perguntou, mas quando os olhos de Holiday se fecharam, percebeu que não era hora de pressioná-la. Mais tarde, ela pensou, e depois estendeu a mão e pegou o telefone de Hayden no bolso. Mais tarde. Só depois do almoço Kylie conseguiu se esgueirar para o seu quarto. Ela tirou o celular do bolso e procurou o número do avô. Infelizmente, não havia uma lista de nomes na memória. Só números. Só três tinham recebido ligações de Hayden. Kylie se sentou na beirada da cama e ligou para o primeiro. Ela segurou a respiração enquanto esperava que alguém atendesse. — Já estava na hora de me ligar! — disse uma voz feminina. — Quem está falando? — Kylie perguntou, sem saber ao certo como se apresentar. — Aqui é Casey... Quem é você? — Eu... — Aquele cretino! Ele disse que não estava se encontrando com mais ninguém! Diga a ele que eu o mandei pro inferno. Ele nem é tão bom de cama assim, como tenho certeza de que você provavelmente sabe! — A linha ficou muda. — Ai, não... — Kylie pensou em ligar novamente e tentar explicar, mas o que ela diria? Eu não sou namorada dele, só alguém que roubou seu celular depois de acusá-lo de ser um assassino serial. Isso podia piorar as coisas em vez de melhorar. Melhor deixar que ele mesmo consertasse tudo. — Desculpe, Hayden — murmurou Kylie. Antes que Kylie ligasse para o número seguinte, o telefone bipou, alertando sobre a chegada de uma nova mensagem. Ela ficou em dúvida se verificava ou não, pensando na possibilidade de que fosse a namorada contrariada. Então percebeu que a mensagem não era do número da moça. Kylie podia ter invadido a privacidade dele, mas, depois de roubar seu celular, que mal faria ler uma mensagem? Demorou um segundo até ela descobrir como acessar as novas mensagens no aparelho de Hayden. Mas ficou satisfeita quando descobriu.
 
A mensagem não era para Hayden. Era dele. Você está respondendo as minhas mensagens? Hayden. Kylie digitou de volta. Só porque eu achava que podia ser você ou meu... Ela fez uma pausa. Ela deveria deixá-lo saber que presumia que ele estava em contato com seu avô? Ela não via vantagem em bancar a idiota... meu avô. Tamborilou os dedos no aparelho, enquanto esperava uma resposta. O telefone bipou. O que você disse aos outros? Ela decidiu ser franca. Só que você ajudou a salvar a vida de Holiday. Você pode voltar. Ela esperou pela resposta. Ao ver que ela não chegava, Kylie escreveu: Desculpe por suspeitar de você. Ele respondeu: Se você fizer a coisa certa e for viver no lugar a que pertence, eu não precisarei voltar. Ela pensou no que responderia. Meu lugar é em Shadow Falls. Ela mal acabara de digitar a mensagem quando seu reflexo no espelho da penteadeira chamou a sua atenção. Ela ainda estava brilhando. Até quando iria acreditar que pertencia a Shadow Falls, se tudo indicava que ela era diferente. Diferente até de todos os outros sobrenaturais. Seu peito se apertou novamente ao pensar em deixar o acampamento. Afastou a ideia. Mas o que aconteceria em duas semanas, quando a mãe viesse para o dia dos pais? Como ela explicaria o fato de que estava brilhando como uma lâmpada de 50 watts? O telefone bipou outra vez. Não é seguro você ficar aí. Holiday e Burnett não vão deixar a UPF fazer nada.
Não é só a UPF. Você estava certa sobre o que disse ao seu avô. Uma gangue do submundo está atrás de você. Kylie sentiu um nó na garganta enquanto digitava: O número do meu avô está na lista de contatos do seu telefone? Levou alguns minutos para ele responder. Mas respondeu. Sim. Ela digitou: Obrigada. E enviou. Então se lembrou de mandar outra mensagem. Ligue para a sua namorada. Posso tê-la deixado aborrecida. O avô de Kylie atendeu quando ela ligou para o número seguinte da lista de contatos. Ele nem se incomodou com as formalidades. Hayden obviamente tinha avisado que ela iria telefonar. — Eu o enviei porque estava preocupado com a sua segurança — disse o avô, a voz só um pouco mais grave do que a de seu pai. — Não estou chateada — explicou Kylie. — Embora preferisse que alguém tivesse me contado. — Você precisa vir conosco, Kylie. Não é seguro. Você estava certa sobre a gangue do submundo. Eu não confio que a UPF não vá fazer mal a você. Como você pode ter certeza de que vão mantê-la a salvo dos outros? — Por favor — disse Kylie. — O senhor não entende o que está pedindo. — Lágrimas toldaram a visão de Kylie. — Eu... Esta é a minha casa. Burnett não é como a UPF de que você se lembra. E Holiday... ela me aceitou. Os dois têm me protegido. — O nó na garganta ficou mais apertado. — Pessoas morreram aqui para me salvar. Essas pessoas em quem você não confia são a minha família. — A voz de Kylie fraquejou e ela limpou as lágrimas do rosto. — Nós somos a sua família. — Eu não posso ir embora daqui — disse Kylie. Houve uma longa pausa. — Eu mando Hayden de volta se você me der a sua palavra de que não contou nada aos outros.
— Eu não contei nada a ninguém. — Silêncio outra vez. Então ela não se conteve: — Eu estou brilhando! Como faço isso parar? — Brilhando? — o avô perguntou, e depois fez uma pausa como se estivesse pensando. — Você tem o dom da cura? — Sim — ela respondeu. — Presumo que o tenha usado. — Eu... trouxe uma pessoa de volta à vida. Ele não falou por alguns segundos. — Os seus dons são de fato impressionantes. — Mas como eu paro de brilhar? — Ela não estava esperando elogios. — Você precisa liberar a energia que acumulou dentro de você para empreender a cura. — Como? — Medite. — Eu não sou boa em meditação. — Ela mordeu o lábio. — Então é melhor aprender. E rápido. — Ele suspirou. — Kylie, se outras gangues souberem quanto você é talentosa, vai valer seu peso em ouro. Eles vão querer que você trabalhe para eles ou vão querer matá-la. Não será uma gangue apenas atrás de você. O aviso do avô bateu fundo dentro dela. Maravilha! Isso é tudo de que ela precisava. — Vou mandar Hayden de volta — ele acrescentou. — Mas pense bem nisso, filha. Eu mereço conhecer melhor a minha única neta. Na manhã de segunda-feira, Kylie se sentou no refeitório enquanto todo mundo olhava para ela. Não estava mais brilhando. Sua lâmpada interna, em algum momento da noite, se apagara. Ela tinha permanecido em seu quarto durante todo o final de semana meditando, e dormindo. Obviamente, trazer alguém de volta à vida era um tanto exaustivo. Holiday e Burnett tinham aparecido com comida, doses e doses de carinho e a notícia de que os corpos das garotas tinham sido encaminhados para as respectivas famílias. Burnett e Holiday estavam, ambos, brilhando, mas era um brilho natural. Eles estavam apaixonados. Isso só fez com que Kylie sentisse mais saudade de Lucas. Derek tinha ligado duas vezes só para dizer que estava pensando nela. Lucas, não. Ela não sabia nem se ele estava a par do que havia acontecido. Mesmo assim, era difícil aceitar seu silêncio. Helen e Jonathon tinham feito uma visita. E Miranda, Perry e Della vinham checar, quase de hora em hora, como ela se sentia. Até durante a noite eles abriam uma fresta na porta e davam uma espiada em Kylie. Evidentemente, isso só era possível por causa da “encantadora” luminescência que a circundava na escuridão do quarto. Droga! Podiam ter vendido ingressos aos outros campistas por um dólar a espiada. Não que eles fariam isso. Eram seus amigos. Kylie fixou os olhos nos seus ovos mexidos e fechou a cara, como se sentisse todos os olhos à sua volta, no refeitório, pregados nela. Não, neste momento, brilhar não era o problema. Problema maior era o seu padrão. Ele tinha mudado outra vez. Agora ela era finalmente um lobisomem e Lucas não estava ali para apreciar. E nem Socks. Seu gato tinha passado a manhã toda debaixo da cama. Ele fez questão de deixar bem claro o seu preconceito. Assim como todos os outros lobisomens do acampamento. Nenhum tinha se aproximado para dizer “olá” ou “vá para o inferno!”. — E aí? Segurando as pontas? — Pode apostar — Kylie respondeu e olhou para cima ao ver Hayden Yates entrando no refeitório. Seu coração deu um salto. Ele estava de volta. Sentiu um alívio profundo ao saber que não estava completamente sozinha. Nós somos a sua família. As palavras do avô voltaram à sua mente. — Você ainda não sabe mentir — disse Della.
Kylie desviou os olhos de Hayden antes que alguém percebesse que compartilhavam segredos. Della estava certa. Ela tinha mentido. Não estava segurando as pontas coisa nenhuma. Estava em frangalhos. Confusa, assustada e preocupada. Podia ter parado de brilhar, mas o que mais havia pela frente? Que outra esquisitice a faria telefonar para o avô ou correr para Hayden em busca de ajuda? E se ela realmente pertencia a Shadow Falls, por que a presença de Hayden lhe trazia tanto conforto? — Vamos começar a festa! — anunciou Chris, o líder da Hora do Encontro, depois do café da manhã. Kylie estava de pé ao lado de Della. E lutava para reprimir a vontade de se abanar. Ainda estranhava a elevação súbita da sua temperatura corporal. — E o primeiro nome da lista não é ninguém mais que a nossa mais recente loba! — O olhar de Chris se voltou para Kylie. A garota segurou o fôlego. As primeiras pessoas anunciadas eram geralmente aquelas cujo parceiro tinha armado o encontro pagando com o próprio sangue. Engolindo em seco, seu olhar voou para Derek. Mas o fae encarava Chris com preocupação. — Kylie, você vai ter o prazer de passar a sua Hora do Encontro com Fredericka. — Ah, mas que ótimo... A loba tinha salvado a sua vida só para matá-la depois. — Eu posso seguir vocês se quiser — sussurrou Della, com os olhos brilhantes. Kylie balançou a cabeça, cansada de estar sempre sob a proteção de outra pessoa. — Não. Fredericka aproximou-se de Kylie. — Quer dar uma volta até o lago? — Claro! — respondeu Kylie. Por que não? O lago é um belo lugar para se morrer. — Vejo você depois. — O tom de Della veio carregado de todo tipo de aviso para Fredericka.
Quando começaram a caminhar, nem Kylie nem Fredericka abriram a boca. Kylie mal ouvia seus passos. A capacidade de se mover em silêncio devia fazer parte da natureza dos lobisomens. Mentalmente, ela se perguntava o que Fredericka realmente queria. Pelo menos até que a gralha azul aparecesse e dançasse e cantasse na frente delas. Fredericka fez uma cara de quem não estava entendendo nada. Kylie tentou afugentar o pássaro. — Xô! Enquanto caminhavam, Kylie se deixou perder em pensamentos. Ela não acreditava que a loba de fato quisesse matála. Mas ela já não havia tentado uma vez? Colocar um leão no quarto de Kylie, alguns meses antes, não era exatamente um gesto de gentileza. Mas se a garota realmente planejava um assassinato, ela deixaria todo o acampamento saber que estavam juntas? Então outro pensamento lhe ocorreu. Será que Fredericka se sentia ofendida por Kylie não ter agradecido por ela ter salvado a sua vida? Ela tinha intenção de agradecer. Realmente tinha. Mas havia gasto toda a sua energia, no final de semana, tentando parar de brilhar. No entanto, devia ter feito isso logo que acordou, pela manhã. Seria tarde demais? Antes tarde do que nunca. — Burnett me disse que você salvou a minha vida — começou Kylie. — Eu quero te agradecer. O cabelo preto de Fredericka estava solto sobre os ombros. Ela era pelo menos sete centímetros mais alta do que Kylie, e provavelmente pesava uns dez quilos a mais. Não que Kylie estivesse com medo dela. — Eu provavelmente fiz aquilo mais por Holiday do que por você — ela disse com sinceridade. Provavelmente? — Eu imaginei — respondeu Kylie. — Mas obrigada mesmo assim.
Fredericka assentiu e continuou calada por alguns minutos. Kylie detestou o silêncio carregado de tensão. — Você doou sangue para Chris nos colocar juntas na Hora do Encontro? Ela confirmou com a cabeça. — Um litro e meio. Ele disse que, como podia se meter em encrenca colocando duas inimigas juntas, eu teria que pagar um pouco mais. — Isso é um bocado de sangue! — comentou Kylie, quando não conseguiu pensar em mais nada para dizer. Pensar em sangue então a fez se lembrar de como se sentiu ao achar que tinha matado Collin Warren. Fredericka devia ter sentido o mesmo, não é? A gratidão de Kylie de repente ficou maior ainda. — Eu lamento que... você tenha sido obrigada a... matar... fazer aquilo. — Não foi nada. — A garota olhou para Kylie. — Já matei antes. Kylie não podia jurar, mas algo dizia que, se ela fosse capaz de ouvir os batimentos cardíacos de Fredericka, eles contariam uma história bem diferente. — Mesmo assim, não deve ser fácil — disse Kylie. — Já superei isso — ela disse, com rispidez, embora o tom de voz revelasse o contrário. Mesmo assim eu lamento. Mais alguns momentos de silêncio pairaram no ar. Fredericka finalmente voltou a falar. — Você não devia ter jogado o seu gambá em cima de mim. — Eu não joguei meu gambá em cima de você! — disse Kylie, com franqueza. — Você o atacou. — Mesmo assim não foi nada gentil — ela disse, com um rosnado.
— Digo o mesmo sobre colocar um leão no meu quarto. — Pronto, Kylie tinha colocado para fora o que estava entalado em sua garganta. — Pode ser — Fredericka desviou o olhar, mas não rápido o suficiente. Kylie viu a verdade. — Não foi você quem fez aquilo. — Ela balançou a cabeça. — Por que você mentiu e disse que foi você? Ela ficou um longo tempo sem responder. — Eu ouvi boatos de que você pensava que tinha sido eu. Então pensei, por que não deixá-la acreditar nisso? Eu não gostava de você. — E agora? — Kylie perguntou, ainda imaginando por que ela tinha doado mais de um litro de sangue para passar uma hora com Kylie. — Ainda não gosto de você — ela disse, sem rodeios. — Mas depois que eu vi o que fez por Holiday, passei a não te odiar tanto assim. — Bem, aí está um elogio de que eu vou me lembrar... — disse Kylie, imprimindo certo humor na voz. Fredericka não respondeu. Elas chegaram ao lago, e a garota ficou parada ali, contemplando o espelho d’água. — Eu amo Lucas — ela confessou. Kylie respirou fundo e tentou descobrir a melhor maneira de agir. A honestidade parecia a única saída. — Eu também. A loba olhou para Kylie com a angústia estampada nos olhos. — Eu sei. É por isso que eu queria falar com você. Embora eu não goste de você, eu gosto dela menos ainda. E pelo menos eu sei que ele gosta de você. Mesmo antes de você aparecer por aqui, ele já falava de você. Desde aquela época eu sentia ciúme. Kylie balançou a cabeça, tentando acompanhar o raciocínio de Fredericka.
— Não estou entendo aonde quer chegar. — Estou falando de Monique. Eu sei que ele te disse que vai conseguir cair fora dessa. Mas eu não tenho tanta certeza assim. Eu não acho que você deva deixá-lo fazer isso. — Eu ainda não estou entendendo — disse Kylie, embora ela não estivesse gostando nada do que Fredericka estava dizendo. A loba se limitou a olhar para ela. — Merda! Ele não contou a você? Ele disse que contou e que você entendia. Aquele vira-lata de uma figa mentiu pra mim. Um sentimento de frustração começou a crescer dentro de Kylie. — Mentiu sobre o quê? — A cerimônia de noivado de Lucas é hoje à noite. As palavras de Fredericka fizeram a cabeça de Kylie rodar. — A cerimônia de quê? Ele... vai se casar? — Está comprometido, mas entre os lobos o noivado não tem volta. Ele acha que vai conseguir escapar, mas eu não acho. A pessoa não pode simplesmente mudar de ideia. E ela é uma vadia. Se ele concordar com isso, vai ficar preso a ela pelo resto da vida. — Não! — Negando-se a acreditar que aquilo fosse verdade, a raiva cresceu no peito de Kylie. — Você está mentindo! Você só quer arranjar confusão! Faria qualquer coisa para eu romper com Lucas! — Sua cretina! — rosnou Fredericka. — Estou tentando ajudar e é assim que você retribui? Tudo bem, tentei fazer tudo para vocês terminarem. Mas não funcionou. Mas eu não estou mentindo. — Fredericka tirou um envelope do bolso. Um envelope pequeno, como um convite. — Se não acredita em mim, veja por si mesma. — Ela se afastou e depois voltou a olhar para Kylie. — Só procure manter o seu padrão de lobisomem ou alguém vai arrancar seu coração antes de começar a fazer perguntas. Kylie não queria acreditar em Fredericka. Mais do que tudo no mundo, ela queria que isso fosse só mais uma das armadilhas da loba para atrapalhar o seu relacionamento com Lucas. No entanto, numa coisa a garota tinha razão: Kylie precisava ver por si mesma.
A cerimônia seria em outro parque estadual, a aproximadamente quinze quilômetros dali. Como lobisomem, Kylie podia percorrer essa distância rapidamente. O dia todo ela pensou se deveria ou não contar tudo a Holiday e Burnett, mas concluiu que seria melhor pedir perdão do que permissão. E falando em perdão... Ela jurou que, se Fredericka estivesse mentindo, ela nunca a perdoaria, nunca confiaria nela outra vez. Mas, se não estivesse... Kylie não sabia se um dia seria capaz de perdoar Lucas. A cerimônia supostamente aconteceria à meia-noite. O que tornava sua escapada ainda mais fácil. Kylie saiu do quarto na ponta dos pés. No mesmo instante Della escancarou a porta do seu quarto. Mais fácil, mas não exatamente fácil. — Aonde vai? — Della perguntou, o olhar examinando Kylie de cima a baixo. — E por que está tão arrumada? Kylie não sabia muito bem o que usar numa cerimônia de noivado, mas seu vestido preto e as sandálias de salto baixo também pretas tinham que servir. — Eu preciso ir a um lugar — ela respondeu, sendo propositalmente vaga. Ela não contaria a Della ou a Miranda sobre isso. A princípio, Kylie achou que era porque doeria demais. Depois achou que era porque elas tentariam convencê-la a não ir. Nesse momento, percebeu que era porque estava com receio de que as amigas dissessem: “Nós bem que avisamos”. Ultimamente, elas não tinham se mostrado muito a favor do namoro. Não que Kylie acreditasse completamente nessa história de noivado. Mas acreditava o suficiente para se esgueirar de Shadow Falls, tarde da noite, para descobrir. Mas como era possível não suspeitar? Lucas nunca lhe contava nada. E aquilo a magoava demais. — Você vai se encontrar com o seu avô? — Della perguntou, analisando Kylie com um ar de suspeita. — Não — disse Kylie.
Della franziu as sobrancelhas. — Você anda esquisita desde que se encontrou com Fredericka. — Eu preciso ir — disse Kylie. — Vou com você. — Não — Kylie implorou. Ela precisava fazer aquilo sozinha. Della estufou o peito. — Então me diga aonde vai. — Você não é mais minha sombra — Kylie insistiu. — Não, mas sou sua amiga — Della grunhiu. A sinceridade na voz de Della tocou o coração de Kylie. — Vou tentar me encontrar com Lucas. — Era verdade... ou pelo menos uma versão dela. — Eu pensei que você não tinha recebido nenhuma notícia dele — disse Della. — Fredericka me disse onde ele está. Della fez uma careta. — E você confia naquela loba? — Na verdade, não — concordou Kylie. — Mas eu vou mesmo assim e, como sua amiga, vou pedir que você não me impeça. — Não estou gostando nem um pouco disso — disse Della. Kylie fez uma pausa para pensar, tentando descobrir um jeito de fazer Della entender. — Eu também não gosto que você trabalhe para a UPF, mas respeito a sua vontade. Della franziu a testa. — Mas eu não vou sozinha. Sim, Della ia com Steve; não que a companhia a agradasse muito, mas isso não era o mais importante. O mais importante era convencer Della a deixá-la ir. Certo ou errado, descobrir a verdade sobre Lucas de uma vez por todas era crucial. Ela tinha admitido que o amava; agora precisava saber se entregar o seu coração a ele não tinha sido uma tolice. Levou algum tempo, mas Della finalmente cedeu. E, dez minutos depois, quando Kylie pulou a cerca e deixou para trás a propriedade de Shadow Falls, ela se lembrou de que Burnett poderia vir correndo até ali investigar. Era um risco que ela teria que correr. No entanto, como suspeitava que vários lobisomens iriam assistir à cerimônia — se realmente houvesse uma cerimônia —, ela esperava que Burnett concluísse que ela era um deles. Mas, de fato, ela era um deles, lembrou-se. Enquanto Kylie corria, sentiu um estranho poder fluir através dela. Era diferente da força que sentira quando era uma vampira. O jeito como seus membros se moviam parecia menos humano. O poder de um lobo, ela supôs. Seu peito ficou apertado, quando se lembrou de como Lucas queria correr com ela na forma de lobo. Por favor, por favor, que Fredericka esteja errada. Tentando não quebrar todas as promessas que fizera a Burnett, Kylie evitou ao máximo correr pelos bosques. Mas, quando se aproximou do parque, não teve outra opção. Enquanto corria com movimentos suaves, ela manteve os olhos na lua. Sentia que o astro a atraía, como a água atrai quem passou muito tempo ao sol. Quando penetrou nos bosques, a escuridão ficou mais espessa. A lua não era mais visível através da densa folhagem. O ar da noite era quente, quase insuportavelmente quente. Ela sentia o perigo espicaçando a sua pele. Ignorando o medo, continuou correndo. E não parou. Nem mesmo quando percebeu que não estava sozinha.
 
O frio fantasmagórico finalmente começou a interferir no ritmo de Kylie e ela relanceou os olhos para ver qual era o espírito que acompanhava seus passos. O fantasma, a mesma mulher que tinha aparecido na sala de aula um pouco antes da visão, dava passadas vigorosas. Sua camisola branca flutuava em volta dela, e o longo cabelo castanho dançava com o vento. Com a atenção de Kylie no espírito, ela tropeçou numa raiz e caiu de bruços com tudo na terra. Apoiando-se nos braços para se levantar e respirando o aroma de terra molhada sob o seu corpo, Kylie fitou o espírito pairando um pouco acima dela. — Quem é você? — Isso não importa. Você é que é importante. — Ela levantou as mãos e instantaneamente uma longa espada ensanguentada apareceu. — Você precisa matá-lo. Kylie se levantou e fitou as mãos ensanguentadas do espírito; o líquido vermelho fluía para a espada e gotejava lentamente no chão. Uma gota de cada vez. Pela primeira vez, Kylie entendeu o símbolo ligado ao mundo espiritual. Esse fantasma tinha sangue nas mãos. E agora queria que Kylie seguisse suas ordens. Colocando-se totalmente de pé, Kylie falou mentalmente: — Eu não sei o que você ouviu por aí, mas eu não... eu não matei ninguém, e pretendo continuar assim. Ela fitou Kylie com seus olhos acinzentados e sem vida. Eles não exprimiam nenhuma emoção, pareciam sem alma. O medo transpassou a sua espinha. Alguma coisa nesse espírito era diferente dos outros. Alguma coisa assustadora. — Então você também morrerá — disse o fantasma, como se isso na verdade não fosse grande coisa. Sem aviso, ele se desvaneceu. Mas o lugar onde estava ficou coberto de gelo. Um gelo negro e tenebroso. — Você não poderia ter avisado antes? — Kylie murmurou, e então respirou fundo. — Não! — Ela fechou as mãos em punho. — Eu não vou pensar nisso agora. Seu coração martelava no peito e ela recomeçou a correr, correr para Lucas, ou melhor, para a verdade sobre Lucas. Ela se lembrou da última vez em que ele a beijara, da maneira como a abraçara, como ela tinha se sentido apaixonada. Fredericka tinha mentido! Ela tinha que estar mentindo! Alguns minutos depois, Kylie sentiu outras pessoas ao seu redor. Outros lobos. Ela não sabia direito como sabia, mas o fato era que sabia. Sem querer chamar atenção, parou de correr e começou a andar. Esperando disfarçar o cabelo despenteado pelo vento, ela tirou um elástico do pulso e fez um rabo de cavalo. Quando chegou mais perto do parque, ouviu vozes. Vozes alegres. Achou que tinha reconhecido a voz de Will. Ela parou atrás de uma árvore para não cruzar o caminho do lobisomem ou de qualquer outro campista de Shadow Falls. A última coisa que Kylie queria era ser reconhecida. Só quando não conseguiu ouvir mais nenhuma voz por perto, ela prosseguiu. Quando ultrapassou a fileira de árvores que margeava a floresta, viu uma multidão de pessoas enfileiradas. Uma centena de lobos, ou mais, estava reunida ali. Alguns da fileira de trás se viraram para olhar para ela. Graças a Deus não eram de Shadow Falls. O aviso de Fredericka soou nos seus ouvidos. Só procure manter o seu padrão de lobisomem ou alguém vai arrancar o seu coração antes de começar a fazer perguntas.
Ela percebeu alguns dos presentes verificando o seu padrão e rezou para que ainda fosse um lobisomem. O ar ficou preso em seus pulmões até que eles voltaram a olhar para a frente, como se estivessem convencidos de que ela era um deles. Mas Kylie não sentia que pertencesse a esse lugar. Seu coração sofria por saber que Fredericka não estava mentindo. Ela quase foi embora, mas se deteve. Talvez essa cerimônia não tivesse nada a ver com Lucas. Talvez Fredericka a tivesse enviado até ali para que ela visse todos aqueles lobos e acreditasse na sua mentira. Empertigando-se, ela avançou um pouco mais e parou na última fila. Obviamente os lobos não precisavam se sentar, pois não havia assentos no local. Sua visão da frente estava bloqueada, mas isso significava que as pessoas que realizariam a cerimônia também não poderiam vê-la. De repente uma voz começou a falar, dando as boas-vindas a todos. O peito de Kylie ficou oprimido quando ela reconheceu a voz grave. Não era de Lucas, mas sim do pai dele. Seu coração se contraiu ainda mais com a ideia de Lucas ficando noivo de alguém. — Hoje, apresento a vocês meu filho e sua futura esposa — disse o pai de Lucas. — Vocês vão testemunhar os seus votos, o juramento que farão um ao outro. Kylie fechou os olhos. O sentimento de traição encheu seu peito, enquanto uma música preenchia o ar da noite escura. A lenta música de sinos era diferente de tudo o que Kylie já tinha ouvido. Uma jovem de cabelos pretos ornado com uma coroa de flores, usando um longo vestido de noite preto, entrou por um corredor. Ouviram-se murmúrios e exclamações entre os convidados, admirados com a beleza da moça. Nem Kylie podia negar que ela era bela de fato. A massa de pessoas à sua frente de repente se abriu e Kylie viu o pai de Lucas. E de pé ao lado dele... Lucas. Kylie perdeu o fôlego. Ele usava um smoking cinza escuro que lhe caía à perfeição, moldando sua compleição forte. Lágrimas arderam nos olhos de Kylie quando ela o viu estender os braços e pegar as mãos da futura noiva. A multidão se moveu novamente e ela não conseguiu mais vêlo, embora ainda pudesse ouvi-lo. Palavras foram proferidas. Votos. Promessas. Lucas Parker oferecia sua alma a Monique. Sua alma. O som da voz de Lucas transpassou o coração de Kylie como uma faca sem corte. Ela queria correr, sumir dali, mas isso só chamaria a atenção dos outros. Ela esperou. Com a respiração presa, continuou olhando para a frente. Os convidados se moveram e Lucas apareceu novamente à sua frente. Nenhum som se ouvia no parque quando Lucas envolveu a garota em seus braços e a beijou. Beijou-a como ele beijava Kylie. Kylie mal conseguia respirar. Raiva e traição avolumavam-se dentro dela. Ela se virou para fugir dali. Não sem perceber que outra fileira de lobisomens tinha se formado atrás dela, ela trombou com alguém. — Desculpe — murmurou. — Kylie? — Ela ouviu alguém dizer seu nome mais atrás. Ela tentou se virar, mas de repente a multidão pareceu se fechar em torno dela, enquanto todos aplaudiam o beijo. — Com licença — ela pediu, forçando passagem entre os lobisomens. — Kylie? Ela ouviu seu nome outra vez. Dessa vez, olhou para trás e viu Clara se aproximando. Kylie tentou avançar mais rápido entre os convidados, mas se viu em meio a outro grupo compacto de lobisomens. Ela olhou para trás outra vez. Lucas estava com os braços em volta da garota. Ele parecia feliz. Verdadeiramente feliz.
Mais do que tudo, Kylie queria desaparecer dali, desvanecer-se no ar. Então percebeu que podia fazer justamente isso. Ela desejou, desejou com todas as suas forças. Clara abriu caminho entre a multidão e parou ao lado de Kylie. Então olhou em volta... e depois diretamente através de Kylie. — Você viu a garota loira que estava aqui agora mesmo? — Clara perguntou. Kylie inspirou e depois soltou o ar. Agora, transformada numa lufada de ar, ela começou a correr. Nem olhou para trás novamente. Não conseguiria. Ela estava chorando quando entrou nos bosques e também quando saiu deles. Talvez fosse o seu destino, ela disse a si mesma. Porque agora sabia o que deveria fazer. Quando saltou a cerca de volta para Shadow Falls, não foi para a sua cabana; foi para a cabana de Hayden. Não sabia que estava visível até que ele abriu a porta e olhou para ela. Para ela, não através dela. — O que aconteceu? — ele perguntou, num tom urgente. — Amanhã. — Ela forçou as palavras pela garganta apertada. — Amanhã eu vou partir. Ele passou a mão pelos cabelos, os olhos ainda sonolentos. — Podemos ir agora. Será mais fácil. — Não. — Ela balançou a cabeça. — Eu tenho que me despedir. Ele franziu a testa. — Eles não vão deixá-la ir. Ela respirou fundo, decidida. — Não vão poder me impedir. Quando ela chegou à sua cabana e viu quem a esperava na varanda, seu coração parou. Ela começou a se afastar correndo, mas percebeu que correr de nada adiantaria.
Ele ainda usava o smoking, mas a camisa estava desabotoada e a gravata-borboleta não estava mais no lugar. Quando seus olhos azuis encontraram os dela, estavam cheios de remorso. Ela subiu os degraus e ele observou cada um dos seus movimentos. Provavelmente sabia que ela tinha chorado, mas ela se recusava a chorar na frente dele agora. — Pode voltar, Lucas — ela disse. — Você está perdendo a sua própria festa. — Não faça isso — ele implorou. — Eu disse a você que estava fazendo o que era preciso, mas que isso não significava nada. Não significa nada. Aparentemente significava, sim. — Bem, deveria significar alguma coisa. Você ofereceu a sua alma a ela. — Kylie fez um gesto para que ele lhe desse licença. — Estou cansada, você se importa de me deixar passar? — Droga, Kylie! Assim que eu passar a fazer parte do conselho, rompo esse noivado. Eu tinha que fazer isso para que o meu pai não desistisse de aprovar a minha candidatura. Você disse que entendia. Ela mordeu o lábio. — Há quanto tempo vocês se veem? Ele fechou os olhos. — Meu pai planejou isso há alguns meses. Ele está tentando me convencer a respeito dela, mas eu não... — Pare! — Ela sacudiu a cabeça. — De todas as coisas que eu imaginei que você escondesse de mim, nunca imaginei isso. — Tente ver a situação do meu ponto de vista — ele implorou. — Eu estou vendo — ela disse, e que Deus a ajudasse, porque ela estava falando a verdade. — Você fez o que tinha que fazer. Por mais difícil que seja, eu entendo isso. — Lucas pertence à sua alcateia, ao seu povo. E eu também pertenço ao meu.
Ele estendeu a mão para pegar a dela. Kylie recuou. Ela não suportaria que ele a tocasse. Doeria muito. Ela levantou uma mão. — Não. Ele balançou a cabeça. — Por favor, não faça isso. Droga! — Ele agitou um punho no ar, fechou os olhos e, quando os abriu, olhou para ela. Dentro dos olhos dela. — Eu te amo. Agora ele fala isso. Agora! Ela levantou o queixo. — Eu acho que você já prometeu o seu amor e a sua alma para Monique esta noite. Ela contornou Lucas, entrou na cabana e bateu a porta. Então, apoiando-se na porta fria, abraçou a si mesma. Em seu coração havia uma ferida inflamada. Nunca se apaixone princesa. Machuca demais. As palavras do padrasto ecoaram no seu coração partido. Como ele estava certo... Quando ela ouviu Lucas indo embora, prendeu a respiração. — Esse lobo de merda... — grunhiu Della. Kylie olhou para a frente. Miranda estava ao lado de Della na cozinha. Será que elas tinham ouvido tudo? Mais lágrimas umedeceram os seus olhos. — Sente-se. — Miranda puxou uma cadeira. — Vou pegar sorvete pra você. — Não... agora não. — Kylie não tinha forças para explicar, muito menos para conversar. — Amanhã. — Ela foi para o quarto. Socks olhou para ela, do seu esconderijo embaixo da cama, e desapareceu. Até seu gato a traía. Aquela foi a gota d’água. Kylie desabou na cama e chorou até dormir. Não que tenha ficado acordada por muito tempo. Às quatro da manhã, Kylie bateu na porta do quarto de Miranda. — Preciso falar com você. Della já estava de pé, parada na porta da cozinha, olhando para Kylie com olhos sonolentos e cheios de suspeita.
Quando Miranda saiu do quarto usando suas pantufas de coelho, afastou uma cortina de cabelos do rosto. — Que hora são? — Cedo — respondeu Kylie. — Sinto muito, mas... eu tenho que falar com vocês duas. — Seja breve e delicada. Breve e delicada. Ela tinha repetido aquilo para si mesma a manhã toda. Kylie tinha tentado dissuadir a si mesma, mas não conseguira. Deixar Shadow Falls era a coisa certa a fazer. Mas a coisa certa nem sempre parecia certa. Vir para Shadow Falls tinha parecido errado, no entanto com o tempo ela percebeu que era um passo para que ela encontrasse a verdade. Agora seria simplesmente outro passo — um passo necessário. Algum dia, Kylie esperava que suas escolhas coincidissem com o que ela queria, e não com o que precisava fazer. Mas esse dia ainda não chegara. — Não! — disse Della. — Não o quê? — perguntou Miranda. — Ela vai nos dizer que vai embora. — Os olhos de Della estavam cheios de emoção. — Não, ela não vai — disse Miranda, com firmeza. Breve e delicada, Kylie pensou novamente. — Della está certa. Eu preciso viver com o meu avô por um tempo. Não para sempre. Eu vou voltar. — Deus, ela esperava que sim. Miranda olhou para ela com uma expressão de descrença. — Você não pode fazer isso. O que a sua mãe vai dizer? — Nem pensei nisso. Mas vou pensar. Só preciso que vocês duas entendam e não fiquem furiosas. E... — Lágrimas afloraram em seus olhos. — E que cuidem de Socks para mim, porque ele não quer... ir comigo. — Você está nos deixando — concluiu Miranda. — Você não pode nos deixar. Somos colegas de alojamento, somos grandes amigas.
Della ficou parada ali, firme, com lágrimas brilhando nos olhos, e secando cada gota que ameaçava cair. Kylie abraçou Miranda primeiro. A bruxinha começou a chorar e o coração de Kylie ficou tão apertado que ela mal conseguiu respirar. Quando Kylie se voltou para Della, a garota estendeu a mão na sua frente. A raiva inflamava os seus olhos. — Ah, droga, não! — Della gritou. — Você está nos abandonando. Eu não abraço pessoas que me deixam pra trás. — A vampira, então, irrompeu para dentro do quarto. Kylie sentiu a porta bater no fundo da sua alma e aquilo doeu demais. Ela foi para o quarto, pegou sua mala de viagem e partiu, antes que ficasse difícil demais. Por dentro, Kylie se sentia em carne viva. Um dia pararia de doer, ela disse a si mesma. Derek estava do lado de fora da cabana. Sua aparência era de quem tinha acabado de acordar, se vestido às pressas e corrido até ali. Seu jeans não estava abotoado, tampouco a camisa. Kylie não sabia como ele tinha descoberto, mas evidentemente ele sabia. Ela viu isso em seus olhos verdes. — Por quê? — Derek perguntou quando ela andou até ele. — Porque eu tenho que descobrir algumas coisas. — Mas você já descobriu muitas durante o tempo em que ficou aqui. — Eu sei — concordou Kylie. — Mas é hora de dar o próximo passo. Ele não tentou convencê-la a não ir. Não falou nada no caminho até o escritório. Mas Kylie sentiu que ele captava as emoções dela. Quando chegaram ao escritório, Kylie olhou para ele. Por alguma razão ela se lembrou da primeira vez que o vira — sentado nos fundos do ônibus, nada feliz de estar ali. Ela largou a mala no chão e o abraçou. Apertado. Havia algo especial entre eles. Ela não tinha certeza do que era, ou se deveria ter se tornado algo maior, mas sabia que ele era muito importante para ela. Provavelmente sempre seria.
Derek tocou o rosto de Kylie. Não disse nada, mas seu toque expressou muito. Ele ainda a amava. Kylie pegou sua mala e andou até a varanda. Deixou a mala perto da porta, então olhou para trás. Ela tinha telefonado para Hayden mais cedo e pedido que ele a encontrasse às quatro e meia. Ela suspeitava que ele já estivesse lá. Ele não parecia o tipo de sujeito que se atrasasse. — Holiday — chamou Kylie ao entrar na cabana. — Estou na minha sala! — Holiday gritou. — Acabei de te servir uma xícara de café. Kylie foi até a porta. Holiday estava sentada à escrivaninha, os cabelos ruivos soltos sobre os ombros. Ela parecia... feliz. O amor por Burnett lhe fazia muito bem. — Você levantou cedo... outra vez — comentou a líder do acampamento. Duas xícaras de café esperavam sobre a mesa. Será que Holiday sabia que ela viria? Kylie entrou e se sentou na cadeira. — Como você...? — Lucas me procurou ontem à noite — Holiday confessou. Kylie engoliu em seco. Breve e delicada. Ela não queria falar sobre Lucas naquele momento. — Eu preciso ir morar com o meu avô por um tempo. Só até descobrir quem eu sou. Kylie viu desespero nos olhos de Holiday. — Mas você não pode... A emoção formou um nó na garganta de Kylie. — Eu preciso descobrir. — Nós podemos descobrir isso juntas — insistiu Holiday, embora sua expressão fosse de triste aceitação. Mas não era do feitio de Holiday não lutar pelo que acreditava. A menos que... Kylie lembrou-se de que, quando Holiday morreu, ela tinha falado com Heidi, a sua avó. — Ela contou a você que eu iria, não contou?
Quando viu a expressão confusa nos olhos de Holiday, Kylie perguntou: — Heidi, ela contou a você sobre isso? — Não, não contou... — Holiday fez uma pausa. — Ela disse que eu não deveria impedi-la de fazer suas próprias escolhas. — E essa é a minha escolha. — Droga, como doía dizer isso... — Mas eu volto. Você sabe disso. Holiday pressionou as palmas das mãos sobre a escrivaninha. — O que eu vou dizer aos seus pais? Kylie fez uma pausa. — Eu vou pensar nisso e ligo pra você. Holiday suspirou. — Burnett vai ficar tão furioso... — Eu sei. É por isso que eu espero que você conte a ele. Eu não acho que vou conseguir encará-lo agora. — Eu não gosto nada disso. — A voz de Holiday estava embargada. Lágrimas afloraram nos olhos de Kylie e ela se colocou de pé. — Della não me deu um abraço de despedida. Por favor, não diga que vai fazer o mesmo. Holiday levantou-se de um salto. — Eu vou abraçá-la por mim e por Della. E por Burnett. O abraço durou vários longos segundos. — Eu amo você — disse Holiday. — E espero um telefonema seu esta tarde. E todos os dias. De manhã e à noite. Kylie concordou com a cabeça. — Obrigada por não brigar comigo por causa disso. Holiday colocou uma mão de cada lado do rosto de Kylie. — Não pense que não tenho vontade.
— Mas você sabe que é a coisa certa a fazer? — Kylie perguntou, detestando a ideia de que ainda precisava de mais confirmação. Mas, droga, por que a coisa certa parecia tão errada? Holiday suspirou. — Eu não sei se é a coisa certa. Mas não vou impedi-la de ir. — Ela franziu a testa. — Mas vou dizer uma coisa. Se é por causa do que aconteceu com Lucas... Kylie soltou o ar dos pulmões. — Não é por causa dele. — E de fato não era. Ele era só a proverbial gota d’água que fizera o copo transbordar. Holiday suspirou. — Às vezes, quando estamos magoadas, fazemos escolhas que normalmente não faríamos. Kylie balançou a cabeça. — Lembra-se de que o meu pai me disse que descobriríamos tudo juntos? Acho que, quando disse “nós”, estava se referindo aos camaleões. A expressão de Holiday ficou mais séria. — Você não sabe o que ele quis dizer com isso. Você achou que ele estava dizendo que você ia morrer. Talvez se fôssemos à cachoeira, você poderia... — Não, eu tenho que ir — insistiu Kylie, e uma parte dela acreditava mesmo nisso. Holiday suspirou, a respiração trêmula. — Então eu tenho que deixá-la ir, mesmo sem concordar. Elas se abraçaram novamente. Breve e delicada. Kylie deixou a cabana. A bendita gralha azul arremeteu. Mais lágrimas toldaram a visão de Kylie. — Xô! — ela disse para o pássaro. — É hora de deixar o ninho. E isso serve para nós duas. Ao se virar, Kylie viu Hayden esperando ao lado do portão. Ela pegou a mala, a mesma que tinha trazido para Shadow Falls em junho. Começou a andar e, quando estava a apenas alguns metros do portão, sentiu uma repentina lufada de vento, um movimento rápido e familiar passando por ela. Kylie parou. Os braços de Della envolveram seu pescoço. — Prometa que vai voltar logo. Me prometa, droga! Lágrimas escorreram pelo rosto de Kylie e ela abraçou Della ainda mais forte, do jeito que fazem grandes amigas. — Eu prometo — disse Kylie. — Eu prometo. Era uma promessa que Kylie pretendia cumprir. Della, obviamente alguém que também acreditava na filosofia do “breve e delicada”, foi embora tão rápido quanto chegou. Kylie olhou para trás mais uma vez. Ela viu Perry e Miranda, ainda chorando, vindo correndo pela trilha até a clareira principal. Ela parou ali e simplesmente acenou. Kylie sabia que Miranda tinha ajudado a convencer Della a vir. Nossa, como ela iria sentir falta das suas amigas! Então os olhos de Kylie se desviaram para a varanda do escritório. Holiday estava parada ali. Mas não estava sozinha. Burnett estava ao lado dela. Mesmo a essa distância, ela pôde ver a desaprovação nos olhos dele, mas também viu que o braço dele envolvia com ternura a cintura de Holiday. Kylie experimentou uma sensação de calor em seu peito. Ela tinha contribuído para que isso acontecesse. E, de algum modo, sentia que isso era parte do seu destino. De repente, ela viu Derek parado ao lado do escritório. Ele a olhou nos olhos e sorriu. Se aquilo tudo não estivesse lhe causando tanta dor, ela teria retribuído o sorriso. Um pouco antes de se virar para ir embora, ela sentiu outra presença. Sentiu, mas não viu. De algum lugar atrás da fileira de árvores que margeavam o bosque, um lobisomem de olhos azuis a observava. Ele estava sofrendo, mas ela também estava. Ela se virou para o portão. Hayden tinha se aproximado. — Pronta? — ele perguntou.
Não, respondeu seu coração, mas seus olhos disseram que sim. Ela não sabia o que lhe aguardava na casa do avô, mas nada, nada substituiria Shadow Falls. — Não é fácil dizer adeus — disse Hayden. — Eu vou voltar — afirmou Kylie. — Juro que vou. E ela queria acreditar naquilo mais do que tudo. Em um acampamento cheio de lobisomens, vampiros e fadas, Kylie Galen sempre lutou para descobrir o que ela é. Agora, ela finalmente sabe a verdade, mas ela ficou com mais perguntas do que respostas. Ela não tem ideia do que sua herança significa ou como aproveitar seus novos poderes. Tudo o que ela sabe é que ela precisa resolver seus sentimentos por Derek, o sexy Fae, que acabou de confessar o seu amor, e Lucas, seu namorado lobisomem que parece não estar comprometido tanto quanto ela gostaria. Todo esse tempo, Kylie lida com um grupo de bandidos subterrâneos que querem vê-la morta e um avô misterioso, que deixa claro que ele não confia no FRU... ou Shadow Falls. Logo Kylie terá que escolher: Será que ela vai ficar com a nova família que ela formou em Shadow Falls, ou será que ela vai com seu avô e abraçar o seu destino?
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Kylie Galen estava de pé na varanda do escritório de Shadow Falls, o pânico colocando à prova a sua sanidade. Uma rajada de vento de final de agosto, ainda gelado devido à presença do espírito de seu pai, fez esvoaçar os seus longos cabelos loiros e os espalhou pelo seu rosto. Ela nada fez para afastá-los. Ou para respirar. Só ficou ali, com o ar preso nos pulmões, enquanto olhava através das mechas para as árvores balançando ao sabor da brisa. Por que a vida tinha que ser tão difícil? A pergunta quicava em sua mente como uma bola de pingue-pongue enlouquecida. Então a resposta surgiu tão rápido quanto a pergunta. Porque você não é totalmente humana. Nos últimos meses, Kylie tinha se esforçado para identificar o tipo de sangue não humano que corria em suas veias. Agora ela sabia. De acordo com o seu velho e querido pai, ela era um... camaleão. Um lagarto, como os que ela via tomando sol no seu quintal. Ok, talvez não exatamente como eles, mas bem parecida. Antes ela se preocupava com a possibilidade de ser um vampiro ou um lobisomem, porque seria um pouco difícil se adaptar ao hábito de beber sangue ou se transformar em lobo na lua cheia. Mas isso... isso era... incompreensível! Seu pai tinha de estar errado. Seu coração batia forte contra o peito, como se quisesse sair pela boca. Ela finalmente respirou. Inspirou o ar, e em seguida expirou. Seus pensamentos se afastaram do problema do lagarto e se desviaram para outras coisas igualmente ruins. Sério, nos últimos cinco minutos ela tinha sido nocauteada não apenas por uma, ou duas, ou três, mas por quatro revelações absolutamente surpreendentes. Bem, uma dessas coisas — a confissão de Derek de que ele a amava — não poderia ser considerada totalmente ruim. Mas com certeza também não poderia ser considerada boa. Pelo menos não naquelas circunstâncias. Não quando ela já considerava o relacionamento entre eles coisa do passado. Quando tinha se empenhado durante semanas para se convencer de que eram apenas amigos. Sua mente fazia malabarismos para pensar nas quatro descobertas ao mesmo tempo. Ela não sabia em qual delas se concentrar primeiro. Ou talvez sua mente, na verdade, soubesse. Eu sou um maldito lagarto! — Isso é pra valer? — ela perguntou em voz alta. O vento do Texas carregou para longe suas palavras; Kylie esperava que ele as levasse até o seu pai, onde quer que os mortos aguardassem até completar a sua passagem. — Sério, pai? Um lagarto? Claro que o pai não respondeu. Depois de dois meses falando com espíritos, o dom de ver fantasmas e suas limitações ainda a deixavam exasperada. — Droga! Ela deu mais um passo em direção à porta do escritório principal, prestes a descarregar toda a sua frustração em Holiday Brandon, a líder do acampamento, mas então parou. Burnett James, o outro líder do acampamento e um vampiro de toque gelado mas temperamento ardente, estava com Holiday. Como Kylie não conseguia mais ouvi-los discutindo, ela achou que isso significava que poderiam estar fazendo outra coisa. E, sim, por outra coisa, ela queria dizer se pegando, trocando saliva, fazendo a dança da língua. Todas as expressões bizarras que sua amiga Della, uma vampira irreverente e de maus modos, usaria. E citá-las provavelmente significava que Kylie estava de mau humor. Mas ela não tinha direito a um pouco de mau humor depois de tudo o que havia acontecido? Cerrando os punhos, ela olhou para a porta da frente do escritório. Já tinha interrompido sem querer o primeiro beijo de Burnett e Holiday, e não queria fazer o mesmo com o segundo. Especialmente depois que Burnett ameaçara deixar Shadow Falls. É claro que Holiday poderia fazê-lo mudar de ideia. Ou será que não? Além disso, talvez ela precisasse se acalmar um pouco. Pensar por um momento antes de correr para Holiday com seus surtos histéricos. Seus pensamentos se desviaram para o seu mais recente fantasma. Como ela poderia ver o fantasma de alguém que ainda estava vivo? Era um truque, certo? Tinha que ser um truque. Kylie olhou em volta para se certificar de que o fantasma realmente tinha ido embora. O frio havia desaparecido. Virando-se de costas para a porta, ela desceu correndo os degraus da varanda e contornou a cabana onde ficava o escritório. Começou a correr, querendo experimentar a sensação de liberdade que sentia quando corria realmente rápido, como nenhum ser humano podia correr. O vento levantava o vestido preto que ela usara no funeral de Ellie e o fazia dançar em torno de suas coxas. Seus pés se moviam com ritmo, sem quase nem sentir falta dos tênis Reebok que ela normalmente usava, mas, quando chegou à borda da floresta, Kylie fez uma parada abrupta — tão abrupta que o salto de seus sapatos deixou sulcos profundos na terra. Kylie não podia ir para a floresta. Ela não tinha uma sombra, uma companhia obrigatória que a ajudasse a afastar o perverso Mario e seus companheiros, caso estes decidissem atacá-la. Atacá-la novamente. Até agora as tentativas do velho para acabar com a vida dela tinham fracassado, mas duas delas tinham resultado na morte de alguém. A culpa fez latejar o seu peito já apertado. Depois veio o medo. Mario já tinha provado até onde estava disposto a ir para capturála, quanto ele era cruel ao tirar a vida do próprio neto bem na frente dela. Como alguém podia ser tão perverso? Ela olhou para a fileira de árvores e observou enquanto as folhas dançavam com a brisa. Era um cenário completamente normal que devia fazê-la se sentir em paz. Mas Kylie não sentia paz. O bosque, ou melhor, algo que se escondia dentro dele, a desafiava a encarar o medo e entrar. Provocava-a para que ela avançasse até a espessa fileira de árvores. Confusa com a estranha sensação, Kylie tentou afastá-la, mas o sentimento persistiu, ainda mais intenso.
Ela inspirou o cheiro de mato e, no mesmo instante, soube. Soube com clareza. Soube com certeza. Mario não desistiria. Cedo ou tarde Kylie teria de enfrentar o malfeitor novamente. E não seria um encontro sereno, tranquilo ou pacífico. Apenas um deles sairia vivo. Você não estará sozinha. As palavras ecoaram dentro dela como se para lhe oferecer um pouco de paz. Mas a paz não veio. As sombras entre as árvores dançavam no chão, convidando-a, chamando-a. Para fazer o que, ela não sabia. A apreensão oprimiu outra vez o peito de Kylie. Ela cravou os saltos mais profundamente na terra batida. A sola do sapato direito produziu um estalo, um som sinistro que pareceu acentuar o silêncio. — Merda! — Ela olhou para os próprios pés. O palavrão parecia ter sido arrancado do ar e nada exceto um zumbido sobrenatural permaneceu. E foi então que ela ouviu. Alguém com uma respiração áspera. Embora o som fosse apenas um sussurro, ela sabia que havia alguém atrás dela. Bem perto. E como nenhum calafrio de morte a cercava, ela sabia que não se tratava de alguém do mundo dos espíritos. O barulho voltou. Alguém enchia os pulmões com o ar vivificante. Estranho como ela agora temia os vivos mais do que os mortos. Seu coração parou abruptamente. Como os sulcos deixados na terra pelos saltos de dez centímetros, seu medo crescente deixou sulcos em sua coragem. Ela não estava pronta. Se fosse Mario, ela não estava pronta. Independentemente do que precisasse fazer, o plano ou destino que estava fadada a seguir, ela precisava de mais tempo.

— Está tudo... ok? A voz não era de Mario. Era de Derek. O tom familiar dispersou o pânico inicial de Kylie, mas apenas por um segundo. Eu estou apaixonado por você, Kylie. As palavras que ele dissera havia menos de quinze minutos ainda ecoavam na cabeça dela, trazendo com elas outra tempestade emocional que fazia sua mente e seu coração darem voltas. Derek a amava. Mas e ela? O que sentia? Kylie mudou levemente de direção, e o salto direito do sapato se desprendeu, fazendo-a perder o equilíbrio. Sua vida era assim: como se tivesse perdido o salto do sapato e sua única opção fosse andar por aí mancando. — Alguma coisa errada? — Na voz de Derek transparecia a sua preocupação. Está tudo bem. As palavras estavam na ponta da língua, mas ela as engoliu. Derek, um meio-fae, podia ler suas emoções. Mentir para ele sobre o seu estado emocional era inútil. Então ela se virou e olhou para ele. — O que você está fazendo aqui, sem uma sombra? — Derek perguntou. — Você sabe que não deve ficar sem uma, caso aquele vampiro pirado resolva voltar. Quando seus olhos encontraram os de Derek, ela viu um lampejo de pânico dentro deles. Sabia que o pânico nos olhos dele era o que ela própria sentia. Quando ela estava sofrendo, ele sofria com ela. Quando ela se alegrava, ele se enchia de alegria também. Quando ela temia alguma coisa, ele temia por ela. Considerando seu estado emocional nesses últimos minutos, ele devia estar vivendo num verdadeiro inferno.
O peito de Derek inflou sob a camiseta verde musgo que o moldava. Ele pôs a mão sobre o abdômen bem definido, enquanto enchia os pulmões de ar. Seu cabelo castanho-escuro parecia despenteado pelo vento e a franja se agarrava à testa. Uma gota de suor escorria pelo seu rosto. Por um segundo, ela só pensou em cair nos braços dele, deixando que seu toque reconfortante afugentasse a apreensão dentro dela. — Você está assim... por causa do que eu disse? — ele perguntou. — Se for... esquece. Não disse aquilo para que se sentisse dividida. Não dava para esquecer uma declaração de amor, Kylie pensou. Não se ela fosse sincera. Mas ela não disse nada. — Não tem a ver com o que você disse. — Então ela percebeu que isso também era mentira. A confissão dele tinha causado um verdadeiro caos em suas emoções. — Bem, é outra coisa, também. — O quê? — As palavras dele saíram entrecortadas. Seus olhos procuraram os dela e ela viu as raias douradas em suas íris ficarem mais brilhantes. — Eu sinto que você está apavorada e confusa e... — Mas está tudo bem. — Ela percebeu novamente que ele estava sem fôlego, como se tivesse corrido um quilômetro para chegar ali. Será que tinha mesmo? — Onde você estava? Ele inspirou outra golfada de ar. — Na minha cabana. Há mais de um quilômetro daqui. — Você sentiu minhas emoções mesmo de tão longe? — Senti. — Ele estreitou os olhos como se esperasse que ela não o culpasse por isso. Ela não gostava que suas emoções fossem como um livro aberto para ele, mas não podia culpá-lo. Ele lhe confessara uma vez que, se pudesse parar de captar as emoções dela, faria isso. Ela acreditou nele. — Você não tinha falado que isso estava diminuindo? — perguntou ela. — Captar minhas emoções com tanta intensidade ainda te enlouquece?
Ele deu de ombros. — Ainda é algo bem forte, mas não me oprime tanto quanto antes. Posso lidar com isso, agora que eu... Agora que ele tinha aceitado que a amava. Foi isso que ele havia dito a ela. Era por isso que a ligação entre eles tinha ficado mais forte. O peito dela ficou novamente pesado com a indecisão. Ainda bem que um deles conseguia lidar melhor com isso. Porque ela não tinha certeza se conseguia. Não depois de saber que ele a amava. Não, com qualquer das revelações com que tinha de lidar agora. Pelo menos não naquelas circunstâncias. — O que você tem? — Ele se aproximou. Estava tão perto que ela podia sentir o cheiro da sua pele — conhecido, autêntico, real. A tentação de cair em seus braços tomou conta dela. Ansiava por sentir seu peito subindo e descendo enquanto ele respirava, deixar que o que acontecera entre eles no passado também fizesse parte do seu futuro. Fechando os punhos com força, ela passou por ele mancando com o salto quebrado, foi até uma árvore e escorregou pelo tronco até o chão. A terra estava mais fria do que a temperatura no ar. As folhas de grama faziam cócegas na parte de trás das suas pernas, mas ela ignorou. Ele não esperou por um convite; sentou-se ao lado dela. Não tão perto a ponto de se tocarem, mas perto o suficiente para que ela pensasse em tocá-lo. — Então é mais de uma coisa? — ele perguntou. Ela assentiu com a cabeça, e a decisão de confiar nele parecia já ter sido tomada. — Meu pai apareceu para mim. — Ela mordeu o lábio. — Ele me disse o que eu sou. Derek pareceu intrigado. — Eu pensei que você quisesse saber. — Eu queria, mas... Ele disse que eu sou um camaleão. Sabe, como um lagarto. Ele franziu as sobrancelhas e então riu.
Ela não gostou muito da franqueza dele. O pânico voltou triplicado. Kylie queria saber o que ela era para que os outros a aceitassem, para que finalmente pudesse encontrar a sua tribo, mas e se ela acabasse se tornando de fato uma aberração? — Eu detesto lagartos! — ela desabafou. — Eles são como cobras, criaturinhas viscosas de olhos esbugalhados, que vivem correndo por aí na imundície, comendo insetos rastejantes. — Ela olhou para a floresta de novo, imaginando uma brigada de lagartos olhando para ela. — Uma vez eu vi um programa na TV que mostrava em câmera lenta um lagarto de língua comprida comendo uma aranha. Foi nojento! Derek balançou a cabeça, todo o humor desaparecendo dos seus olhos. — Eu nunca ouvi falar de lagartos sobrenaturais. Você tem certeza? — Eu não tenho certeza de nada. Isso é que é tão assustador. Não saber. — Ela estremeceu. — Sério, é melhor se alimentar de sangue do que ter uma língua comprida e comer insetos. — Talvez seu pai esteja errado. Você disse que fantasmas têm dificuldade para se comunicar. — A princípio, sim, mas agora tudo o que o meu pai fala faz sentido. Derek não parecia convencido. — Mas o que você acha que um camaleão sobrenatural é, ou faz? Só consigo pensar que eles mudam de cor. Kylie deixou que as palavras dele dessem voltas no seu cérebro por um instante. — Será que é isso? — Você pode mudar de cor? — A dúvida se estampou no rosto dele. — Não, mas talvez eu possa mudar de padrão. Como o meu avô e a minha tia, quando pareciam humanos. E como eu pareço humana agora.
— Ou... talvez seu pai esteja passando por uma recaída e esteja apenas confuso. Porque eu nunca ouvi falar de nenhum ser sobrenatural capaz de fazer seu padrão cerebral mudar. — E quanto a mim? — ela perguntou. — E o meu avô e a minha tia? Ele deu de ombros. — Holiday disse que provavelmente um feiticeiro lançou um feitiço no seu avô e na sua tia. — E lançou um feitiço em mim também? — Kylie perguntou. — Não, mas... Ok, eu não tenho resposta. — Ele franziu a testa. — E eu sei que isso a deixa frustrada. Mas você não me disse que o seu avô de verdade vai vir visitá-la? Com certeza ele vai esclarecer tudo isso. — É. — Ela mordeu o lábio inferior. Derek ficou olhando para ela. — Tem alguma coisa errada nisso também, não tem? Ela suspirou. — Quando eu perguntei ao meu pai o que significava ser um camaleão, ele disse que descobriríamos juntos. — E por que isso é ruim...? Kylie declarou o óbvio. — Ele está morto, suas visitas aqui na terra são limitadas; então isso significa que vou morrer em breve? — Não, ele não quis dizer isso. — Seu tom de voz se aprofundou com a sua convicção. Ela começou a argumentar, dizendo que ele não podia dizer aquilo com tanta certeza, mas queria tanto acreditar nele que se calou. Respirou fundo, olhou para a grama e tentou encontrar paz na certeza de que seu avô estaria ali em poucos dias. Tentou encontrar paz sabendo que dividira com outra pessoa os seus problemas. E ela se sentiu um pouco melhor.
— Você perguntou a Holiday? — Ele se inclinou e seu ombro esbarrou nela, seu calor, seu toque suave afugentando um pouco de sua angústia. Ela balançou a cabeça. — Ainda não. Ela ainda está no escritório com Burnett. Kylie ainda não tinha refletido sobre a questão do fantasma. Se o espírito de alguém aparecia quando a pessoa ainda não estava morta, o que isso significava? As respostas possíveis começaram a acelerar o seu coração. — Eu acho que isso é importante — disse ele. — Eu sei, mas... — Tem outra coisa, não é? Ela olhou para ele. Derek estava lendo suas emoções ou a sua mente? — Problemas com fantasmas — disse ela. — Que tipo de problemas? De todos os campistas, Derek era o único que não fugia à menção dos fantasmas. — Essa pessoa não está morta. — Então não é um fantasma. — Derek parecia confuso. Kylie mordeu o lábio. — É... Quero dizer, a princípio o espírito tinha todo aquele jeitão de zumbi — pedaços de pele pendurados, vermes —, mas depois mudou. E quando isso aconteceu, o rosto se transformou no de alguém que eu conheço. — Como isso é possível? — ele perguntou. Ela fez uma pausa. — Eu não sei. Talvez seja um truque. — Ou não — discordou Derek. — Acha que alguém vai morrer? Não outra pessoa, ela queria gritar. — Eu não sei. — Ela arrancou um tufo de grama do chão.
— Quem é? — ele perguntou. — Não é alguém daqui, é? O peito de Kylie se apertou. Ela não queria dizer, com medo de que, se dissesse em voz alta, faria a coisa acontecer de verdade. — Eu só preciso de mais um tempo para pensar nisso. Derek empalideceu. — Ah, droga! Sou eu? — Não. — Kylie jogou longe o tufo de grama e ficou observando-o girar no ar até aterrissar no chão. Quando ela olhou para trás, pôde sentir Derek captando as suas emoções, tentando decifrar o seu significado. — Você gosta um bocado dessa pessoa. Ele franziu as sobrancelhas. — Lucas? Ela ouviu a dor em sua voz só por dizer o nome do lobisomem. — Não — ela disse. — Podemos mudar de assunto? Eu não quero mais falar sobre isso. Por favor. — Então é Lucas? — Derek perguntou. — O que tem Lucas? — Uma voz profunda e irritada soou de repente. Kylie olhou para cima e viu Lucas saindo do bosque. A raiva tinha feito seus olhos adquirirem um tom alaranjado. Ela se encheu de culpa só por um segundo, então lutou contra esse sentimento. Não estava fazendo nada errado. — Nada — Derek respondeu com rispidez, quando viu que Kylie não ia dizer nada. O fae ficou de pé e deu um passo na direção do escritório. Depois fez uma pausa, olhou para trás, na direção dela, e em seguida para Lucas. — A gente só estava conversando. Não precisa brigar com ela por causa disso. Lucas soltou um rosnado. Derek se afastou, parecendo não se importar nem um pouco com a raiva de Lucas. Kylie agarrou outro tufo de grama e arrancou-o do solo. — Eu não gosto disso. — Lucas olhou para ela.
— Estávamos só conversando. — Sobre mim. — Eu estava contando a ele sobre um espírito e que... ele se parece com alguém de quem eu gosto, e ele perguntou se era você. Você devia ficar feliz de saber que eu gosto de você. A expressão de Lucas se fechou ainda mais. Seria por causa de Derek ou porque ela tinha mencionado os fantasmas? A incapacidade de Lucas de aceitar o seu trabalho com os espíritos a magoava. — Ele é louco por você — respondeu Lucas. Eu sei. — Estávamos apenas conversando. — Isso me deixa possesso. — Seus olhos brilhavam, num profundo tom de laranja queimado. — O que o deixa possesso? Que eu fale com Derek ou que eu fale de fantasmas? — As duas coisas. — Ele disse isso com tanta honestidade que ela achou difícil culpá-lo. — Mas, principalmente, saber que você fica por aí com essa “fada”. Kylie estremeceu ao ouvir o insulto a Derek. Então, sem saber direito o que dizer, se levantou. Esquecendo-se do sapato com o salto quebrado, ela quase tropeçou. Lucas a segurou pelo cotovelo. Ela encontrou o olhar de Lucas, ainda marcado pela ira lupina. Mas o seu toque era terno e solícito, sem nenhum indício da fúria que ela vira em seus olhos. Ela se lembrou de que algumas das reações de Lucas eram instintivas, o que significava que não podia condená-lo por isso. Outra parte dela sabia que, fossem instintivas ou não, ele não estava agindo da maneira correta. Kylie suspirou. — Nós já conversamos sobre isso. — Conversamos sobre o quê?
— Sobre as duas coisas. Eu ajudo espíritos, Lucas. Isso provavelmente nunca vai mudar. — Eu sei, mas eles vivem te matando de susto. Eles vivem me matando de susto. Kylie ficou tensa. — Você acha que o fato de você se transformar em lobo não me assusta? — Não é a mesma coisa. Eles são fantasmas, Kylie. Isso não é... não é natural. — Mas se transformar em lobo é totalmente natural — disse ela com sarcasmo. Ele bufou. — Ok, considerando que você viveu a vida toda como humana, eu entendo o que quer dizer. E embora eu tenha certeza de que nunca vou apreciar essa sua capacidade de falar com fantasmas, estou me empenhando para aceitar isso. — Seu tom revelava quanto isso era difícil para ele. — Mas aceitar que você fique por aí com Derek não é fácil quando sei que, se ele tivesse uma chance, ia roubar você de mim num estalar de dedos. Ela engoliu a emoção intensa que a invadiu e tocou o peito de Lucas. Seu calor atravessou a camisa e aqueceu a mão dela. — Eu sei como se sente. Porque sinto a mesma coisa quando vejo você com Fredericka. E é por isso que sei que não posso lhe dizer para ficar longe dela. Ele colocou a mão sobre a mão de Kylie, e uma súplica suave para que ela o compreendesse transpareceu em seu olhar. — É diferente. Fredericka faz parte da minha alcateia. Ela balançou a cabeça. — E Derek é meu amigo. — Exatamente. Essa é a diferença. Um amigo não é a mesma coisa que um membro da alcateia. — Para mim é. — Ela sacudiu a cabeça. — Pense. Você é leal aos membros da sua alcateia. Você iria defendê-los. Você se preocupa com eles. Eu me sinto da mesma maneira com relação aos meus amigos. — É por isso que você não é um lobisomem. Ou pelo menos não ainda. — Ele pôs a mão livre ao redor da cintura dela e puxoua para mais perto. — Espero que, em breve, tudo comece a fazer sentido para você. Eu nunca serei um lobisomem. Ela olhou para ele. As evidências da raiva tinham desaparecido dos olhos dele, e ela viu afeição nos profundos olhos azuis. Lucas gostava dela. Ela sabia disso com certeza. E talvez por essa razão, hesitava em contar o que sabia. Instantaneamente, ocorreu-lhe que ela não hesitara em contar a Derek. Por que ela confiava em Derek e não em Lucas? Incomodada com o pensamento, obrigou-se a dizer: — Eu não sou uma loba. — Você ainda não sabe — discordou ele. — O fato de ter se desenvolvido mais antes da lua cheia e de ter oscilações de humor tem que significar alguma coisa. Ela balançou a cabeça. — Eu não sou um lobisomem. Eu sei o que sou. Os olhos dele se estreitaram, intrigados. — Você sabe...? Como? — Meu pai apareceu para mim novamente. Ele disse que eu sou um camaleão. Perplexidade se estampou no olhar de Lucas. Ela franziu o cenho. — Eu não sei exatamente o que significa. — Não faz sentido — ele deixou escapar. — Isso não existe. Só porque algum fantasma disse... — Não foi “algum fantasma”. Foi o meu pai. — E seu pai é um fantasma. — Se ele tinha ou não intenção de insultá-la ou não, foi isso que pareceu para Kylie.
Suas palavras e sua atitude a feriram. Ela tirou a mão do peito quente de Lucas. Todo o caos emocional de antes se agitou dentro dela. — Eu sei que ele é um fantasma — disse Kylie. — E gostaria que ele não estivesse morto. Gostaria de saber o que ele quis dizer. E gostaria que você pudesse me aceitar como eu sou. Mas não posso mudar o fato de que meu pai morreu antes de eu nascer. Eu não tenho culpa de não entender o que ele quis dizer. Aliás, não entendo um décimo do que está acontecendo na minha vida agora. E tenho a impressão de que você nunca vai conseguir me aceitar pelo que eu sou. — Isso não é verdade. — A expressão de Lucas endureceu com a negação. — É verdade, sim. — Ela se virou e se afastou, mancando por causa do salto quebrado. Kylie ouviu-o pedindo para que ela não fosse embora. E ignorou o seu pedido. Então parou e se abaixou para tirar os sapatos. Ao se endireitar novamente, seus olhos se desviaram para a fileira de árvores e ela reparou que as folhas se mexiam mesmo sem que houvesse uma brisa. Percebeu de novo aquela sensação inexplicável de que estava sendo atraída para a floresta. Por mais tentador que fosse, ela se afastou. Afastou-se da floresta. Afastou-se de Lucas. E ambas as coisas, de alguma forma, pareciam erradas.

Os pés descalços de Kylie moviam-se rápidos de encontro à terra enquanto ela corria. Ela ouviu uma miscelânea de vozes vinda do refeitório, onde todos se reuniram após o funeral de Ellie. Ellie, que morrera nas mãos de Mario. Outra onda de culpa tomou conta de Kylie. Ela correu mais rápido. Não queria se juntar aos outros campistas. Ela queria... precisava... ficar sozinha. Estava quase chegando à sua cabana quando sentiu uma lufada de ar passar por ela. Um vampiro com pressa. Talvez um vampiro caçando. Kylie se esforçou para correr mais rápido e se preparou mentalmente para lutar. Não que tivesse alguma chance de vencer uma batalha contra um vampiro. A superforça que ela tinha só aparecia quando estava ajudando os outros. Uma protetora, era assim que os outros sobrenaturais a chamavam. Mas como poderiam chamá-la assim se ela não tinha protegido Ellie? Nem mesmo as suas habilidades de cura tinham surtido efeito. Que injustiça ela ter salvado um pássaro, trazendo-o de volta à vida, e não ter conseguido salvar uma amiga! Ela estava disposta a pagar o preço. Não importava quanto de sua alma teria que dar em troca para salvar Ellie. Ela sentiu novamente: a lufada de ar quando algo passou rapidamente por ela. Dessa vez viu uma cortina de cabelos negros esvoaçantes. Definitivamente era um vampiro. Mas ele não estava caçando. Della apareceu ao lado de Kylie, correndo no mesmo ritmo alucinante. Mas por ser uma vampira, ela se movia com facilidade, como se estivesse correndo por diversão.
— O que há de errado? — O cabelo escuro de Della, herança da sua ascendência asiática, tremulava atrás dela como uma bandeira. — Você é o que há de errado. — Kylie parou bruscamente. — Odeio quando você passa por mim correndo desse jeito e eu não consigo ver se é de fato você. Eu me sinto ameaçada. Me sinto como... uma presa. — Ah, corta essa! — resmungou Della, com o seu jeito malcriado de sempre. — Me desculpe por estar preocupada. Eu ouvi você correndo como uma louca e pensei que alguém estivesse te perseguindo. — Sinto muito, mas ninguém está me perseguindo. — O olhar de Kylie voltou-se outra vez para a floresta. Ele só está me provocando para que eu entre na floresta e enfrente-o. Mas quem é ele, e por quê? No início ela achava que era Mario, mas e se estivesse errada? — O que aconteceu? — Della perguntou. Kylie tirou os olhos da floresta. — Nada. Della inclinou a cabeça para o lado, como se estivesse ouvindo o coração de Kylie, buscando os sinais de que a amiga estava tentando enganá-la. Então revirou os olhos. — Mentirosa... Que coisa feia... Kylie gemeu. — Tudo bem. Estou mentindo. E daí? — Uau! Você está com um humor daqueles! O que a deixou assim? — Você. — Kylie se encolheu ao ouvir o seu próprio tom rude. Della sorriu como se apreciasse a raiva da amiga. Kylie começou a andar. — Quem deveria ser a sua sombra hoje? — Della perguntou. — Eu não sei. — O olhar de Kylie disparou para a floresta e a sensação bateu mais forte do que nunca. Ela saiu correndo pela trilha, acelerando o passo ao máximo. Não parou até que chegou à sua cabana. Sentiu uma câimbra do lado direito de tanto correr. Ao chegar na varanda, desabou no chão. — Então, o que aconteceu? — Della não estava nem mesmo respirando com dificuldade quando se sentou ao lado de Kylie. Algo na floresta está chamando o meu nome. Isso parecia loucura. Kylie não podia dizer isso. Ela olhou para Della. Os olhos pretos puxados da companheira de alojamento pareciam realmente preocupados e a fizeram se sentir uma megera. — Desculpe. Estou de mau humor. — O que é muito raro — disse Della. — Eu meio que gosto disso. Kylie revirou os olhos e deixou de lado as suas reservas. — Você já ouviu falar em camaleões? — Já — respondeu Della. — Já? O que você sabe sobre eles? — São lagartos que mudam de cor. De acordo com Chan, eles não têm um gosto tão ruim. No Havaí, os vampiros da região vendem o sangue desses bichos. Deve ser tão bom quanto o O negativo. — Não. — Kylie puxou os joelhos para cima e os abraçou. — Não, o quê? — Quero dizer... camaleões que são um tipo de sobrenatural. — Um lagarto sobrenatural? — Della riu. Kylie ficou de pé num salto. — Ei! — Della apareceu ao lado dela. — O que há de errado com você? Kylie abriu a porta da cabana e olhou de volta para Della. — Tudo está errado. — É por causa de Ellie? — A voz de Della insinuava uma emoção que a vampira queria esconder. O coração de Kylie ficou mais apertado.
— É, é por causa da Ellie. É porque eu sou um lagarto. É tudo. — Você é um lagarto? — A seriedade desapareceu dos olhos da amiga e ela sorriu. Kylie irrompeu através da porta, então virou-se novamente para Della. — É isso mesmo, você é uma vampira e eu sou um lagarto, por isso pode ir se acostumando. O sorriso de Della desapareceu. — Você fumou alguma coisa? Sério, acho que você é um lobisomem. Esse seu humor irritadiço é um pista infalível. — E os vampiros? Não são irritadiços? — disse Kylie, revirando os olhos. — Não, nós somos mal-humorados. Irritadiços e malhumorados são duas coisas completamente diferentes. Della entrou na cabana. A tentativa da vampira de mostrar bom humor era para ajudar Kylie, não para feri-la. Mas Kylie não estava no clima. — Eu não sou um lobisomem. — Lágrimas ardiam em seus olhos. — Se eu fosse, então Lucas ficaria feliz e tudo estaria em perfeita ordem neste mundo. Della olhou para ela espantada. — Você está falando sério?! Quem te disse que você é um lagarto? — Meu pai. Os olhos de Della se arregalaram. — Está brincando. — Não, não estou. Della deixou-se cair no sofá e olhou a sala em volta. — Ele está aqui agora? — Não. — Ótimo. — Ela bateu as mãos nas coxas. — Talvez ele estivesse fumando algo.
Kylie revirou os olhos cheios de lágrimas. — Você poderia parar de fazer piadinhas? Della pegou uma almofada do sofá e jogou em Kylie. — Olha aí, seu lado lobisomem vindo à tona novamente. Kylie se virou para entrar em seu quarto, mas antes que chegasse à porta, Della estava na frente dela. Era assustadora a rapidez com que um vampiro podia se mover. — Tudo bem — disse Della. — Eu vou tentar ficar séria, mas... É loucura. Eu sei que você não quer acreditar, mas alguém está curtindo com a sua cara. Não existe essa coisa de lagarto sobrenatural. É só você perguntar a ela. — Ela quem? — A porta principal da cabana bateu e Miranda entrou na sala. Seu cabelo loiro estava solto, listado com mechas cor-de-rosa, verde e preta. Kylie não sabia se Miranda usava seus poderes de bruxa para tingir o cabelo ou se era tinta mesmo. Miranda franziu o cenho. — Por que você me deixou lá sozinha? — ela perguntou a Della. Della fez uma careta. — Foi mal. Kylie está tendo uma crise. Eu só posso ser superamiga de uma de vocês de cada vez. Miranda olhou para Kylie. — Que tipo de crise? Normalmente, Kylie contava tudo a Miranda e Della, mas nesse momento ela preferia ficar de boca fechada. Durante todos aqueles meses ela ansiara por saber de que espécie era, achando que isso iria resolver tudo e, no entanto, ali estava ela, supostamente sabendo que era um camaleão, e se sentindo mais confusa do que nunca. — Crise de réptil apetitoso. — Della riu, colocou a mão na boca e depois se voltou para Kylie, pedindo desculpas com os olhos. — Opa! — O quê? — Miranda exclamou.
Della apoiou uma mão no quadril. — Diga a Kylie que lagartos sobrenaturais não existem. — Perry pode se transformar num lagarto. — Os olhos de Miranda brilharam com orgulho. — Ontem ele se transformou em... — Por favor, chega de histórias sobre Perry. — Della pressionou as mãos contra o estômago. — Senão juro que vou vomitar. — Você é tão idiota... — Miranda rebateu. — Eu não sou idiota. Estou farta de ouvir histórias sobre Perry. “Os dedos mindinhos de Perry são tão bonitos!”, “Perry tem as sardas mais charmosas que eu já vi atrás da orelha direita.” — Você só está com inveja! Porque não tem namorado e Kylie e eu temos! Tinha. Kylie tinha um namorado. Ela não tinha certeza do que ia acontecer entre ela e Lucas agora. Os apelos do lobisomem para que ela não fosse embora ecoaram em seu coração. — Inveja? — Della rugiu para Miranda. — Ah, pelo amor de Deus, eu prefiro cair morta agora do que viver apaixonada como você. Miranda ergueu a mão e mexeu o dedo mindinho — um sinal claro de que um feitiço estava prestes a ser lançado dos seus lábios. Os olhos de Della brilharam e seus caninos se projetaram. — Chega! — Kylie olhou de uma para a outra. Ela não aguentava mais. — Ah, que inferno! Quer saber, não parem, não. Vocês duas ameaçam se matar desde que cheguei aqui, e isso está me deixando louca. Então, simplesmente se matem logo para pôr um fim nesse sofrimento. — Por dentro, Kylie estremeceu. Ela não queria ter dito aquilo. Nem mesmo agora, quando estava tão furiosa. No entanto, talvez um pouco de psicologia reversa corrigisse aquelas duas. Miranda e Della encararam Kylie como se ela tivesse perdido o juízo. Elas poderiam até estar certas, mas em parte era por culpa delas. Suas discussões estavam deixando Kylie a ponto de enlouquecer.
— Vamos lá! O que estão esperando? Se matem de uma vez. E façam isso de um jeito divertido. — Kylie cruzou os braços e fulminou as duas amigas. Começou a bater um pé no chão, assim como a mãe dela fazia quando estava à beira de um ataque de nervos. Os olhos de Della voltaram à sua cor original e seus caninos desapareceram sob o lábio superior. Miranda baixou seu ameaçador dedo mindinho. Quer dizer então que a psicologia reversa funcionava de fato. Rá!... Quem diria... — O que há de errado com ela? — Miranda perguntou a Della como se Kylie estivesse tão mentalmente instável a ponto de não poder responder por si própria. — Não há nada errado comigo — respondeu Kylie, frustrada além dos limites. — Eu me pergunto o que há de errado com vocês duas. Della olhou para Miranda e encolheu os ombros. — Ela pensa que é um lagarto. — Um camaleão — Kylie corrigiu. Miranda revirou os olhos. — Coitadinha. Está agindo como um lobisomem. Della lançou a Kylie um sorrisinho. — Eu disse isso a ela. Mas ela me ouve? Claro que não! — Eu não sou um lobisomem. — Não importava o que Kylie desejasse ser agora. — Mas, se você for, tudo bem — disse Miranda. — Prometemos te amar de qualquer maneira. Kylie desabou numa cadeira da sala, enquanto as duas melhores amigas olhavam para ela com um misto de piedade e malícia. Elas achavam que Kylie estava louca. E talvez ela estivesse mesmo. Achava que a floresta estava chamando seu nome e acreditava que era um réptil. Ela se inclinou para trás e olhou para o teto. — Eu sou um camaleão — disse ela, esperando que dizer isso lhe trouxesse algum tipo de entendimento instintivo. Ela prendeu a respiração, esperando por uma epifania — uma certeza interior que faria com que tudo parecesse entrar nos eixos. Nada aconteceu. E nada pareceu entrar nos eixos. Não parecia certo ela ser um lagarto. Nem ver um fantasma com o rosto de alguém que ainda estava vivo, nem o seu pai sugerir que ela iria em breve fazer um passeio até o além, e muito menos a confissão de Derek de que ele a amava. Nada. Nada parecia certo. Ela gemeu. — Dê a Kylie uma Coca Diet, Della — disse Miranda. — Talvez o açúcar dê uma turbinada no cérebro dela. — Esse refrigerante não tem açúcar de verdade — respondeu Della. — Eu sei. Mas você já ouviu aquela frase? Finja até que seja verdade? — Ah, esqueça a Coca. Eu vou pra cama. — Kylie levantou da cadeira num salto e foi para o quarto, batendo a porta com tanta força que quase a arrancou das dobradiças. Atrás da porta, ouviu as amigas dizerem ao mesmo tempo: — Definitivamente, um lobisomem. Ela não tinha chegado a sua cama quando ouviu um barulho alto na sala de estar. Será que Miranda e Della tinham finalmente decidido se atracar? Sentindo-se culpada por encorajá-las, resolveu sair do quarto para evitar a briga, mas se acalmou quando ouviu vozes. — Onde está Kylie? — A voz grave e profunda de Burnett atravessou a parede ao mesmo tempo que seu celular começou a tocar. Ela tirou o telefone do bolso e abriu a porta. Burnett estava do lado de fora, já com a mão levantada para bater na porta. Raiva e um ar de culpa se estampavam no seu rosto. — Algo errado? — O telefone vibrava na mão de Kylie. — Você está bem? — Por que não estaria? — Será que tinha acontecido mais alguma coisa? A essa altura, nada poderia surpreendê-la.

— Você saiu sem me avisar. — Os lábios de Burnett se comprimiram numa linha fina enquanto ele a repreendia. — Não saí, não. — Kylie viu Della e Miranda atrás de Burnett, com expressões preocupadas. Sem dúvida, não tinha sido sensato discordar de Burnett. — Você estava no escritório e então foi embora — Burnett rosnou. — Eu deveria ser a sua sombra. — Isso foi há quase uma hora — lembrou-o Kylie. Será que só agora ele havia percebido que ela tinha ido embora? O toque do celular chamou novamente a sua atenção e ela resolveu checar quem estava chamando. O nome de Holiday estava na telinha. Então a líder do acampamento, com o telefone ainda pressionado contra a orelha, invadiu a cabana. — Você a encontrou! — O alívio transbordou dos olhos de Holiday e ela dobrou os braços sobre o estômago e respirou, como se tivesse corrido o caminho todo até ali. — Você não devia ter saído sem dizer nada — disse Burnett a Kylie. Holiday fechou o celular e o de Kylie parou de tocar. Kylie olhou para a líder do acampamento, recordando as perguntas sobre o fantasma que ela precisava fazer à amiga. Como alguém vivo pode aparecer como um fantasma? — Eu estava encarregado de cuidar de você — disse Burnett, continuando o sermão. Kylie olhou para Burnett enquanto colocava o telefone na mesinha lateral. Ela provavelmente devia manter a boca fechada, mas o seu mau humor prevaleceu.
— Você não pode me culpar. Eu disse que estava indo embora. Não uma vez, mas duas. Vocês dois estavam muito ocupados brigando para me ouvir. — Quando suas próprias palavras hostis chegaram aos seus ouvidos, ela se preocupou que talvez Della e Miranda concluíssem definitivamente que ela era um lobisomem. Holiday se aproximou. — Nós não estávamos brigando. De fato, Kylie pensou, notando que a camiseta de Holiday estava do avesso. Não estavam brigando, hein? Então, o que estavam fazendo para que Holiday vestisse a camiseta do avesso? Toda a frustração de Kylie diminuiu e ela quase sorriu. Quase. — É, estávamos brigando — confessou Burnett, como se de repente se lembrasse. — Só estávamos discutindo sobre algumas coisas. — Holiday lançou a Burnett um olhar que dizia: Não discorde de mim quanto a isso. — Estávamos discutindo acaloradamente. — Burnett recebeu outro olhar duro da líder do acampamento de cabelos ruivos. — Concordo — murmurou Della. — Eu ouvi vocês o tempo todo do refeitório. E não estou bem certa do que foi que a minha audição supersensível captou. — É verdade — disse Miranda. — Porque eu não consegui ouvir nada. Mas provavelmente foi porque eu estava conversando com Perry — explicou a bruxinha com um olhar sonhador. — Eu adoro conversar com Perry. Della gemeu. — É isso aí — Miranda continuou. — Não existe nada tão divertido quanto uma boa discussão. Então, se alguém quiser me contar alguma coisa, eu apreciaria muito. — Ela esfregou as mãos. — Apenas as partes boas. Burnett bufou de frustração. — Nós só estávamos... — O que estávamos fazendo não importa — Holiday falou de repente, com as bochechas corando.
— Então não estavam brigando? — Miranda parecia intrigada. Kylie quase sorriu novamente. Holiday estava certa. O que estavam fazendo não importava. O que importava era que tinham feito as pazes. O mais importante era que Holiday havia conseguido convencer Burnett a não ir embora do acampamento. Shadow Falls precisava dele. Holiday precisava dele. Tudo dentro de Kylie lhe dizia que aqueles dois tinham sido feitos um para o outro. Infelizmente, Holiday resistia à ideia de ficar com Burnett. E, embora ela não tivesse admitido ainda, Kylie suspeitava que tudo tinha a ver com o noivo vampiro de Holiday que partira o seu coração ao deixá-la no altar. Kylie também sentia que havia algo mais naquela história que Holiday não deixava transparecer. Não que ser deixada no altar já não fosse ruim o bastante, mas alguma coisa dizia a Kylie que havia acontecido algo ainda mais traumático. Por que outra razão Holiday rejeitaria o amor de Burnett? Deus sabia que não era fácil para um vampiro ser rejeitado. Kylie tinha lhe dito que ele precisava ter paciência. Holiday não poderia continuar a rejeitá-lo por muito tempo. Não quando Burnett era praticamente perfeito. Alto, moreno, mal-humorado de um jeito sexy, e de bom coração. Claro que, sendo vampiro, ele não andava por aí elevando o ânimo das pessoas como Holiday fazia. Mas era um sujeito atencioso. Será que Holiday finalmente ia recuperar o bom senso? — Você vai ficar em Shadow Falls? — Kylie perguntou a Burnett, prendendo a respiração em expectativa. Burnett olhou para Holiday e Kylie podia apostar que ele quase sorriu. — Eu vou ficar. — Yes! — Miranda e Della ensaiaram um “Toca aqui!” e fizeram a dancinha da vitória. Um sentimento de que tudo estava entrando nos eixos preencheu o peito de Kylie. Talvez aquele dia, afinal de contas, não fosse entrar para a história como o pior dia de sua vida.
Burnett, normalmente um pouco sombrio, não pareceu compartilhar a alegria das garotas, mas Kylie viu o alívio em seus olhos. — Da próxima vez que você for responsabilidade minha, não vá embora sem a minha autorização. Kylie assentiu, muito feliz para se importar com o fato de que não era culpa dela. — Mesmo que você tenha que me bater na cabeça duas vezes para conseguir a minha atenção — ele continuou, tomando para si a maior parte da culpa. O sorriso de Kylie se alargou. Por mais severo que Burnett pudesse ser, ele não era injusto. Kylie observou enquanto Burnett saía pela porta e Holiday se virava para segui-lo. Mais uma vez, ela não pôde deixar de se perguntar até que ponto as coisas tinham evoluído no período em que os dois ficaram juntos. Será que já estavam arrancando as roupas quando de repente perceberam que ela tinha ido embora? Holiday virou-se e olhou para Kylie. Seus olhares se encontraram por alguns instantes. Aquele rápido olhar bastou para Kylie saber que Holiday, tão empática quanto Derek, tinha detectado o caldeirão de emoções que fervilhava dentro dela. E, no momento, essas emoções não eram nem um pouco felizes. Kylie raramente conseguia esconder alguma coisa da fae. Não que ela tentasse esconder muita coisa de Holiday. A ligação entre as duas tinha se transformado em amizade. Holiday era sua família — não o tipo de família em que nascemos, mas o tipo que temos a sorte de poder escolher. — Eu preciso falar com Kylie. — O tom caloroso de Holiday fez o peito de Kylie se apertar e ela se perguntou o que faria sem aquela amiga em sua vida. Ela esperava que nunca tivesse que descobrir. O pensamento provocou um arrepio na espinha de Kylie. Burnett se despediu de todos com um olhar e então partiu. Assim que ele saiu, Della virou-se para Holiday. — Talvez você consiga pôr um pouco de bom senso na cabeça de Kylie. Ela pensa que é um lagarto.
Cinco minutos depois, Holiday e Kylie estavam sentadas na varanda, as pernas nuas balançando sobre a borda. A líder do acampamento tinha trocado o vestido escuro que usara no funeral de Ellie por uma calça jeans e a camiseta amarela que estava do avesso. O vestido preto de Kylie era mais solto na altura das coxas e caía sobre os joelhos. Se ela esticasse os pés, seus dedos roçariam na grama. Ela normalmente gostava de sentir a leve cócega, mas por alguma razão agora se lembrava do dia em que sentara com Derek em frente à cabana, ao lado da árvore. Deixando esse pensamento de lado, Kylie olhou para baixo. Holiday calçava um par de sandálias, e as unhas dos seus pés estavam pintadas de um tom suave de rosa. — O que aconteceu? — Holiday perguntou, a preocupação aprofundando seu tom de voz. — Eu nem sei por onde começar — respondeu Kylie. — Que tal começar por aquela história do lagarto? Aquela de que Della estava falando. Kylie mordeu o lábio. — Antes de eu começar, me diga o que aconteceu entre você e Burnett? Holiday desviou o olhar. — Ele vai ficar. — Eu sei disso. — Sorrindo, Kylie deu um soquinho de brincadeira no ombro de Holiday. — Será que alguma coisa boa aconteceu? As bochechas da amiga ficaram vermelhas. — Eu não me sinto à vontade falando sobre isso. — Uau! Deve ter sido bom então! — Kylie brincou. Holiday franziu a testa, o que significava que, independentemente do que tivesse acontecido, não havia mudado muita coisa. Algumas peças de roupa podiam ter sido tiradas, mas as reservas de Holiday continuavam com ela.
— Nós não... — Holiday escondeu o rosto com as mãos. — Eu estou confusa, ok? Preciso de Burnett em Shadow Falls. Ele é forte em todas as áreas em que eu não sou. E o que falta nele, eu tenho de sobra. Mas... — Mas você está com medo de admitir que gosta dele — disse Kylie, mesmo quando seus instintos lhe diziam que era melhor ficar calada. — Você não entende — Holiday disse. — Isso porque você não me contou tudo — Kylie acusou-a, novamente com a sensação de que havia coisas, algum trauma emocional, que Holiday mantinha em segredo dentro dela. Holiday suspirou. — Isso é algo que eu preciso superar sozinha. Eu sei que somos muito ligadas e eu fico feliz em saber que você se importa comigo. — Ela colocou a mão sobre a de Kylie. — Eu sinto que você só está tentando ajudar, mas eu preciso resolver sozinha. E estou pedindo para você aceitar isso. Kylie assentiu com a cabeça, sabendo que tinha de respeitar a vontade de Holiday, mas não gostou da decisão da amiga. — Agora, vamos voltar para você. — Ela bateu seu ombro no de Kylie. — Me conte. Respirando fundo, ela contou a Holiday sobre a visita do pai, sobre toda a história do camaleão e a parte em que ele disse que descobririam tudo aquilo juntos... em breve. Preocupação e confusão escureceram os olhos da líder do acampamento. — Ok, quanto a seu pai lhe dizer que vão resolver isso juntos, eu não acho que isso signifique o que você pensa. O tempo é diferente no mundo espiritual. Kylie refletiu sobre o que Holiday disse. — Não é que eu não acredite em você, é só que... havia algo mais no jeito como ele disse “em breve”. Ele estava feliz com isso. Holiday balançou a cabeça.
— Seu pai te ama. E eu acho que, se soubesse que você ia morrer tão jovem, estaria em pânico. E a última coisa que ele ia querer fazer seria contar essa notícia a você. Doía dizer isso em voz alta, mas Kylie o fez de qualquer maneira. — Se eu vou morrer, é melhor que eu saiba. — Não é assim que funciona. Quer dizer, existem pessoas capazes de prever a própria morte e aproveitar seu tempo com sabedoria. Mas, quando se começa a planejar o fim da vida, a maioria das pessoas instintivamente para de pensar no amanhã. Viver o dia de hoje é lindo — muitos de nós não fazemos isso como deveríamos, mas, para viver plenamente, precisamos viver o hoje e o amanhã. Pense, se você soubesse que ia morrer em seis meses, daria início a um projeto que sabe que não poderia terminar? Será que iria para a faculdade de medicina? Será que teria um filho, sabendo que iria deixá-lo sozinho no mundo por muito tempo? As pessoas deixariam de viver muita coisa se parassem de viver pensando no amanhã. O pequeno discurso de Holiday fez com que Kylie se lembrasse de outra coisa. Seu problema com o fantasma. Ela tentou pensar em qual seria a melhor maneira de abordá-lo. — Agora, sobre a coisa toda do lagarto — Holiday continuou, levando os pensamentos de Kylie para outra direção. — Eu nunca ouvi falar de um camaleão sobrenatural. E embora esteja inclinada a dizer que seu pai está errado, eu me pergunto... — Se pergunta o quê? — Eu não sei ao certo, só estou... — Eu sei — Kylie interrompeu-a. — Você está apenas especulando, tentando adivinhar, mas como eu não tenho a mínima ideia do que isso possa ser, gostaria de ouvi-la. — Eu ia mesmo dizer. — A expressão de Holiday dizia a Kylie que ela precisava ter paciência. Mas Kylie estava cansada de ter paciência. E, sim, ela sabia que na quinta-feira seu avô Malcolm Summers viria visitá-la, e ela esperava que ele a ajudasse a dar sentido a tudo aquilo. Mas isso significava ficar mais alguns dias no escuro. — Simplesmente me diga, por favor. — Kylie suavizou o tom, porque estar impaciente podia ser compreensível, mas culpar os outros por isso, não. Holiday respirou fundo. — Talvez ele tenha se referido a você como um camaleão porque seu padrão não amadureceu o suficiente para mostrar o que você realmente é. Ele ainda está mudando, como as cores do camaleão. — Mas ele disse que eu sou um camaleão como se dissesse que eu sou um vampiro ou uma bruxa. É possível que exista outro tipo de raça sobrenatural que ninguém conheça? Holiday fez uma pausa. — Meus instintos dizem que não. A história dos seres sobrenaturais é documentada em livros tão antigos quanto a Bíblia. Mas... admito que estou intrigada. Parece que o que está causando isso é provavelmente hereditário, porque seu avô e sua tia-avó foram capazes de mudar o padrão deles para o humano. Mas isso é algo completamente desconhecido para mim. Eu ainda estou pensando se tem alguma relação com as bruxas... mas... — Ou... — Kylie considerou as palavras de Holiday. — Talvez seja isso que significa a coisa toda do camaleão. Eu estava conversando sobre isso com Derek. Talvez os camaleões possam mudar de espécie. Assim como o camaleão pode mudar de cor. Holiday fez uma pausa como se estivesse pensando. — Mas o DNA não funciona dessa maneira. Você não pode ter mais de uma sequência de DNA. Não é possível, porque os sobrenaturais têm apenas o DNA do pai dominante. Kylie mordeu o lábio. — Então talvez não seja a espécie que realmente mude, apenas o padrão. E de certo modo faz sentido, porque o camaleão não se transforma numa pedra, apenas muda suas cores de modo que pareça uma pedra.
Holiday enrugou a testa. — Mas... — Ela balançou a cabeça. — Mas o quê? — Kylie queria saber tudo o que Holiday pensava. — Simplesmente não parece possível. Se essa capacidade de camuflar o padrão de fato existe, por que outros seres sobrenaturais nunca ouviram falar dela? — Talvez já tenham ouvido falar — disse Kylie. — Talvez seja exatamente por isso que fizeram testes com a minha avó. Você mencionou uma vez que tinha ouvido falar sobre esses testes. Alguém disse para que serviam? — Não especificamente — Holiday esclareceu. — Era algo para entender a genética de alguns seres sobrenaturais. Mas não deu certo. — Não era bem isso — Kylie murmurou — Eles mataram pessoas. Mataram a minha avó. Kylie não conseguia entender como alguém poderia fazer isso, tirar uma vida. A propósito, como Mario tinha sido capaz de matar o próprio neto? Ou matar Ellie, que nunca fizera nada para prejudicá-lo? Ou qualquer outra pessoa? — Eu sei. — Holiday suspirou como se estivesse sentindo a dor de Kylie. — É por isso que eu me recuso a deixá-los fazer testes em você. Eu não acho que a UPF seja mal-intencionada, Kylie. Só não quero que você corra tantos riscos para encontrar respostas. Seja o que for que esteja acontecendo, mais cedo ou mais tarde vamos descobrir. Kylie sem dúvida esperava que Holiday tivesse razão. Porque, agora, nada daquilo fazia o menor sentido para ela. Ela voltou a olhar para Holiday. — É por isso que você não confia em Burnett? Porque ele é da UPF? Holiday parecia perplexa. — Eu confio em Burnett. Kylie arqueou uma sobrancelha em descrença.
— Eu confio nele com relação a Shadow Falls — Holiday confessou. Mas não nas questões do coração. E como isso era triste... Kylie pensou. — Eu não deixaria que ele permanecesse aqui se achasse que havia alguma chance de ele trair você ou algum dos meus alunos. — Eu sei — disse Kylie. — E eu confio nele, também. Quer dizer, aquela coisa toda da UPF com a minha avó me assusta, mas eu confio em Burnett. Holiday fitou Kylie nos olhos novamente. — Eu sei que essa demora para conseguir respostas é difícil para você. Mas tenha esperança de que o seu avô virá na quintafeira e... — O que quer dizer com “tenha esperança”? Ele disse a Burnett que viria, não disse? — Vendo um lampejo de decepção nos olhos de Holiday, o coração de Kylie quase parou. — O que aconteceu? — Burnett tentou entrar em contato com ele novamente e... o telefone do seu avô estava desligado. Mas isso pode não significar nada. — Ou pode significar que ele decidiu não entrar em contato comigo. — Um nó se formou na garganta de Kylie. — Não fique imaginando coisas antes de termos certeza. Kylie abraçou os joelhos e deixou a cabeça tombar sobre eles, tentando não chorar. Será que a sua esperança de descobrir a verdade estava indo por água abaixo? Holiday pousou a mão sobre o ombro de Kylie. Uma doce sensação de calma veio com o toque, mas, embora ele tenha diminuído o seu pânico, não mudou muita coisa. Elas ficaram ali por alguns minutos, sem falar, enquanto Kylie tentava não chorar e Holiday fazia o que sabia fazer melhor — confortá-la. Uma brisa suave soprou e a mente de Kylie começou a divagar, passando de um problema para outro.
— Derek me disse que conversou com você sobre... algumas coisas. Holiday tirou um fio de cabelo da bochecha de Kylie. — Eu sinto muito. Imagino que tenha sido uma revelação inesperada. Kylie assentiu. — O que eu devo fazer com essa informação? — Eu não acho que você tenha que fazer alguma coisa. Kylie inspirou. — Isso me deixou maluca e triste, e eu começo a questionar tudo. E Lucas tem ciúme dele e eu não o culpo, porque sinto o mesmo com relação a Fredericka. Mas... — Mas você gosta de Derek — Holiday concluiu por ela. — Gosto. Só não tenho certeza de que o que eu sinto por ele é o mesmo que sinto por Lucas. Isso faz sentido? — Todo sentido. — Holiday assegurou. — Você vai descobrir. — Será que vou? — Uma angústia brotou no peito de Kylie novamente. — Tudo na minha vida é um enorme ponto de interrogação. Estou cansada de não ter certeza de nada. E então o fantasma... — Kylie deixou as palavras morrerem na boca. — Você tem um problema com um fantasma? — Holiday perguntou. — É a sua avó? Você já perguntou a ela sobre o que o seu pai disse? — Não, não é ela. — Quanto Kylie deveria contar a Holiday? — No começo, o espírito parecia um zumbi, nem sequer tinha um rosto. Eu insisti para que ele desse um jeito nisso. Mas então... o rosto que ele mostrou era... de alguém que não está morto. Holiday mordeu o lábio. — Tem certeza de que não está morto? — Tenho certeza. — Certeza absoluta. — Bem — Holiday continuou — há duas alternativas. A resposta mais provável é que você está lidando com um fantasma com crise de identidade.
— Sério? Fantasmas podem ter crise de identidade? — Kylie perguntou. — Receio que sim. Eles podem nem saber qual é a aparência deles. Ou podem não gostar da aparência que tinham e então plasmar o rosto de outra pessoa em seu corpo de fantasma. Quase sempre usam o rosto da pessoa que se comunica com fantasmas. E ver o seu rosto num fantasma... — Holiday estremeceu. — Não é nada bom. — Posso imaginar — disse Kylie, mas ela não queria imaginar. Já tinha muito no que pensar. — E a segunda alternativa? — É rara. Mas você já leu Um Conto de Natal? — Já. — Kylie se lembrava do enredo. — Aquela história do Scrooge, certo? — E o fantasma do futuro — completou Holiday. Kylie prendeu a respiração. — Essa pessoa poderia estar prestes a morrer? Claro, esse pensamento lhe ocorreu, como ocorrera a Derek, mas não pareceu real até que Holiday mencionou a possibilidade. Não, Kylie recusou-se a aceitar. Ela já tinha visto mortes demais. — Isso é algo que eu possa mudar? — ela perguntou, o pânico crescendo em seu peito. — Provavelmente, não — respondeu Holiday franzindo a testa. — Por acaso é alguém que você conhece bem? Kylie não respondeu. Ela não podia. Só ficou lembrando a si mesma que Holiday dissera que era raro. — É alguém de Shadow Falls? — a voz de Miranda soou atrás dela. Kylie se virou e viu Miranda em pé na porta, atrás dela. — Foi mal — desculpou-se a amiga. — Eu não queria ouvir a conversa... mas é alguém daqui? — Não — mentiu Kylie. — Ah, que bom. — Miranda franziu a testa de um jeito dramático. — Seu celular está tocando. — Ela passou o aparelho para Kylie. — É a sua mãe. É a terceira vez que ela liga nos últimos cinco minutos. — Você devia ligar para ela — disse Holiday a Kylie. Então o celular dela também começou a tocar. A fae deu uma olhada no número que apareceu no visor. — É Burnett. Holiday e Kylie ficaram em pé ao mesmo tempo. Kylie pegou o telefone da mão de Miranda enquanto Holiday atendia o dela. — Alô. — Holiday fez uma pausa. Uma ruga de preocupação surgiu entre seus olhos. — Sobre o quê? — Seu tom fez Kylie hesitar antes de ligar para a mãe. — Vamos conversar antes de você sair. Estou a caminho. — Holiday desligou. — Qual o problema? — perguntou Kylie. — Eu... eu falo com você quando souber de alguma coisa. — Holiday se despediu, mas Kylie ficou com a impressão de que o telefonema tinha a ver com ela. — Não parece boa coisa — murmurou Miranda. Mas que ótimo, pensou Kylie. O que mais ela teria que enfrentar?

— Tudo bem? — A voz de Holiday despertou Kylie cerca de uma hora depois. Após tentar ligar para a mãe várias vezes e deixar uma série de mensagens, sua mente e seu coração fizeram uma pausa e ela foi para a cama tirar um cochilo. Ela se virou e viu Holiday sentada na beirada da cama. Sentando-se também, Kylie bocejou e tirou os cabelos dos olhos. — Estou melhor. — A vida pode ser dura às vezes. — Nem me diga. — Kylie se lembrou da ligação de Burnett. — Está tudo bem? Por que Burnett ligou? Holiday olhou para ela com uma expressão vazia. — Quem é Burnett? O frio no quarto provocou arrepios nas costas de Kylie. Ela piscou e tentou focar melhor as feições da mulher. Não havia dúvida. Era Holiday. Raiva, medo e frustração oprimiram o peito de Kylie. — Ok, vamos deixar uma coisa bem clara. Quando eu disse pra você dar um jeito na sua cara, quis dizer para mostrar a sua própria, não para pegar o rosto de outra pessoa emprestado. O espírito pressionou as palmas contra as próprias bochechas e seus olhos se arregalaram. — Este não é o meu rosto? — Não, não é! É o rosto de alguém de quem eu gosto muito, e, nada pessoal, mas eu não gosto de vê-lo em você. — Eu estou tão confusa! — Você está passando por uma crise de identidade — Kylie esclareceu, querendo muito acreditar nisso.
— Uma crise de identidade — o espírito repetiu. — É, e você precisa descobrir quem você é e o que precisa que eu faça, porque do contrário não posso ajudá-la. — É quase tudo um borrão. — Ela apertou os lábios da mesma maneira que Holiday fazia quando estava muito concentrada, e a semelhança entre as duas se tornou realmente assustadora. Até a cor verde dos olhos batia perfeitamente. — Talvez você esteja certa — disse o espírito. — Lembro-me de que sempre me senti como se vivesse na sombra de outra pessoa. — Que bom! — disse Kylie. O alívio lhe permitiu respirar melhor. — Bom que eu vivesse na sombra de outra pessoa? — O fantasma franziu a testa. — Eu não vejo isso como uma coisa boa. — Não, eu... Quero dizer, é bom que você consiga se lembrar das coisas. — E nesse exato momento, Kylie se lembrou de algo também. Uma maneira rápida e fácil de ter certeza de que esse espírito não era Holiday Brandon. Kylie apertou os olhos e se concentrou na testa do fantasma. O padrão extravagante, assim como o rosto, batia perfeitamente com o de Holiday. Kylie inflou o peito, preocupada. — Você é fae? O espírito cruzou as pernas, colocou o cotovelo sobre o joelho e apoiou o queixo na palma da mão. O gesto era tão característico de Holiday que o coração de Kylie quase parou. — Sim, é isso que eu sou. — Ela apertou as sobrancelhas e olhou para Kylie. — Oh, Deus, o que você é? Kylie hesitou. — Eu sou um... camaleão. O espírito fez uma careta. — Você é um lagarto? Kylie franziu a testa, mas sua preocupação não era consigo mesma. — Você se lembra do seu nome? — Kylie prendeu a respiração.
O espírito olhou nos olhos de Kylie e sua testa se franziu em perplexidade. Então ela se levantou e andou até a janela do quarto. Olhou para fora em silêncio por alguns instantes, e finalmente se virou. — Alguém está procurando você. — Você se lembra do seu nome? — Kylie repetiu. Jogando o cabelo ruivo por cima do ombro, o espírito fez um rabo de cavalo e enrolou os cabelos como se fossem uma corda. Exatamente da mesma forma que Kylie tinha visto Holiday fazer alguns minutos antes. O fantasma olhou para trás. — Eles querem que você vá até eles. O peito de Kylie se contraiu um pouco. — Vamos falar sobre você agora — Kylie disse, tomando mentalmente a decisão de se concentrar em um problema de cada vez. — Mas você é muito mais interessante. Existe todo esse mistério em torno de você. Um monte de perguntas a serem respondidas. Eu posso sentir suas emoções, você sabe. É isso o que fazem os faes. Nós sentimos o que as outras pessoas sentem. — Eu sei — disse Kylie, frustrada e assustada com a identidade verdadeira do espírito, mas lutando contra a angústia para que pudesse descobrir mais sobre ele. Porque, se ela fosse Holiday, então talvez Kylie pudesse fazer alguma coisa, mudar alguma coisa para evitar que... — Eu costumava tocar as pessoas e fazê-las se sentirem melhor, mas não consigo mais... — Por que não consegue mais? — Kylie perguntou. Ela franziu o cenho. — Eu não sei muito bem. Acho que fiz alguma coisa ruim. — Os olhos verdes brilhantes do fantasma se encheram de lágrimas. — Eu feri pessoas. Kylie sentiu a dor do espírito, seu remorso, mas não podia negar que estava sentindo um pouco de alívio com a confissão.
Holiday não faria nada errado. Ela tinha um coração muito bom. Preocupava-se demais com as pessoas. — Talvez você não quisesse machucá-las — disse Kylie, querendo ajudar. Ela abraçou a si mesma para se proteger do frio que acompanhava o ser espiritual. — Não sei. Acho que eu estava com raiva. — O espírito olhou para a parede como se estivesse perdido em pensamentos e então estendeu a mão e tocou a garganta. Kylie notou hematomas de aparência dolorosa ao redor do pescoço do fantasma. — O que aconteceu com você? — Kylie perguntou, um nó se formando em sua garganta com o pensamento de ser sufocada até a morte. A mulher olhou para Kylie, com os olhos ainda molhados de emoção. — Eu estou morta. Kylie assentiu. — Eu sei. — Ela esperou um segundo. — O que aconteceu? O espírito balançou a cabeça. — São como fragmentos de um pesadelo. Mas eu acho que tem algo a ver com o motivo de eu estar aqui. Quer dizer, eu devia ir embora agora... Nós... sobrenaturais, não ficamos por aqui. — Ela olhou para baixo e sua imagem começou a se desvanecer. — Eu preciso descobrir. Acho que é importante. — Eu vou fazer o que puder para ajudá-la — Kylie disse, ao se lembrar de Holiday dizendo a mesma coisa para os pouquíssimos não humanos que vagavam por este mundo depois da morte. — Se você me disser o seu nome, talvez eu consiga encontrar alguma coisa no computador que possa nos ajudar. O espírito foi novamente até a janela e tocou a vidraça. Uma camada de gelo se formou sobre o vidro, borrando a visão de fora. — É melhor você começar a descobrir como resolver os seus próprios problemas, também.
— Estou tentando — disse Kylie, novamente vendo a personalidade de Holiday no espírito e não gostando nem um pouco disso. — Qual é o seu nome? — Kylie insistiu. O espírito foi desaparecendo no mesmo ritmo que o gelo na janela. Então falou: — Eu acho que é Hannah ou Holly. Algo parecido com isso. — Não — disse Kylie, sua própria voz um pouco mais que um sussurro. Kylie então pegou uma fivela e prendeu o cabelo no alto da cabeça, determinada a ir ver Holiday, sem nem saber direito o que dizer à líder do acampamento. Ela só precisava ver Holiday pessoalmente. Kylie saiu do quarto e encontrou a sala principal da cabana vazia. Começou a ir até a porta e parou. Quem deveria ser a sua sombra? Não que Kylie realmente se importasse. Ela só iria até o escritório, mas já tinha arranjado problemas com Burnett uma vez por causa da questão do sombreamento, e não queria arranjar mais um. — Della — ela gritou. Nenhuma resposta. Será que havia algo errado? — Olá — Miranda saiu do quarto um segundo depois. — Della teve uma reunião com Burnett. Eu fui encarregada de ser a sua sombra — a bruxinha disse com orgulho. Kylie assentiu. — Ótimo. Vamos para o escritório. — Por quê? — Porque eu quero falar com Holiday. — Sobre o quê? — Sobre uma coisa. — Malcriadinha, hein? — Miranda fez uma careta, como se estivesse engolindo algo realmente nojento.
Kylie começou a dar uma resposta enviesada, mas se conteve. Era compreensível que ela estivesse de mau humor, mas isso não lhe dava o direito de descontar em seus amigos. — Desculpe. Sei que estou meio irritada hoje. Mas é tanta coisa ao mesmo tempo! — Eu sei — disse Miranda, desculpando a amiga. — O funeral deixou todos nós de mau humor. E, depois, com toda essa sua crise de lagarto, quero dizer, eu ficaria ainda mais mal-humorada se alguém me dissesse que eu sou um réptil. É por isso que eu não levantei meu mindinho para você nem uma vez. — E eu agradeço por isso — disse Kylie, mas então se dando conta do que Miranda tinha dito. — Sobre o que Burnett queria conversar com Della? — Não sei. — Ela estava chateada? — Kylie não podia deixar de se preocupar que a conversa entre eles tivesse relação com o que deixara Holiday tão aborrecida ao falar com Burnett pelo telefone. E Kylie não tinha se esquecido de que na hora tivera a impressão de que o assunto era sobre ela mesma. — Na verdade, não. Aqui entre nós, acho que Della tem uma queda por Burnett. Ela fica toda contente quando ele pede para que ela faça alguma coisa. — Não, não é verdade. Ela sabe que ele é apaixonado por Holiday. — Então por que ela não procura Steve? Ela tem inveja porque nós duas temos namorado, mas não vai atrás de Steve. E ultimamente ando notando a mesma coisa que você. Aquele metamorfo não tira os olhos dela. Ele morre de tesão por Della. Kylie se dirigiu para a porta. — Ela não vai atrás de Steve porque ainda é apaixonada por Lee. — É, acho que pode ser por isso também. — Elas saíram da cabana e pegaram a trilha até o escritório. — Sabe, eu poderia colocar um feitiço nele.
— Em Steve? — Kylie perguntou. — Não, em Lee. Eu poderia muito bem fazê-lo ficar cheio de verrugas. Poderia colocá-las em algum lugar realmente assustador. Você sabe o que eu quero dizer. Kylie balançou a cabeça. — Eu não acho que Della ia querer que você fizesse isso. — Ela poderia querer, se eu a pegasse num dia em que estivesse com a disposição certa. — Você não teria nem chance de perguntar, porque, se ela não estiver na disposição certa, pode ficar realmente furiosa. — É, acho que tem razão. — Elas continuaram a caminhar pela trilha. — Eu realmente falo sobre Perry o tempo todo? Kylie olhou para Miranda. — Fala, mas não é tão ruim quanto Della faz parecer. Aposto que falo de Lucas o tempo todo. — Ela se lembrou de que o deixara falando sozinho mais cedo naquele dia. Será que ele ia ficar com raiva dela? Será que ele tinha esse direito? — Na verdade, você não fala, não. Mas costumava falar de Derek o tempo todo. Kylie franziu a testa, sem gostar do rumo que a conversa estava tomando. — Ah, isso me fez lembrar, ele veio ver você enquanto estava dormindo. — Derek veio me ver? — Não, Lucas. Envergonhada por ter entendido mal, Kylie mordeu o lábio. — Por que ele não me acordou? Por que vocês não me acordaram? — Ele não quis. Deu uma olhada em você e disse apenas para avisar que ele tinha vindo. Na verdade, foi fofo. Ele ficou na porta te observando por alguns minutos. Parecia meio triste. Ou sentimental. Como se estivesse completamente apaixonado por você. Della estava abanando a mão embaixo do nariz, como se dissesse que ele estava emitindo todo tipo de feromônio. — Miranda sorriu. O coração de Kylie doeu tanto que ela não conseguiu sorrir também. A culpa espiralou em seu peito, tanto por não ter falado com ele como por ter conversado com Derek e ter ido embora quando Lucas tentou falar com ela. Na hora, ela achou que tivesse razão, mas agora começava a pensar de outra maneira. Será que ela estava sendo dura demais com o namorado? Provavelmente, admitiu. Ela andava meio rabugenta ultimamente. Por isso Miranda e Della a acusavam de ser uma loba. Algo que ela precisava corrigir. Kylie tomou uma decisão. Depois que falasse com Holiday, procuraria Lucas e pediria desculpas por tê-lo deixado daquele jeito. Ela acelerou o passo pela trilha. As árvores de ambos os lados pareciam estar se aproximando, estreitando o caminho. E Kylie experimentou novamente a sensação de que alguém a chamava. Tentava atraí-la para a floresta. Ela parou e olhou para a fileira de árvores. Eles querem que você vá até eles. Ela ouviu as palavras do espírito sussurrando na sua cabeça. Quem estaria lá? Mario? De repente, ela não teve tanta certeza. Não parecia algo ruim. Parecia... Ela não sabia o que, honestamente, somente que não se tratava de algo completamente ruim. No entanto, aquilo ainda a assustava a ponto de acelerar a sua respiração; um arrepio percorreu a sua espinha e arrepiou a base do pescoço. — O que foi? — Miranda perguntou, uma nota de medo na voz. — Sua aura está com todo tipo de cor estranha. — Nada — Kylie mentiu. Ela virou-se e começou a correr para o escritório. Quando seus pés batiam no chão, levantavam pequenas nuvens de poeira. Ela piscou para afastar dos olhos o ar empoeirado e foi então que viu a lua crescente brilhante. E era como se ela tivesse aparecido de repente no céu.
O nascer da lua, pensou. Ela sentiu novamente os sussurros ecoando em sua mente. Sussurros que não podia entender, sussurros que tanto a atraíam quanto a assustavam. — É um fantasma? — Miranda perguntou, os pés batendo no chão enquanto os cabelos multicoloridos dançavam ao vento. — É isso? — Não — Kylie conseguiu falar sem ofegar. — Então pode ir mais devagar? Porque eu não sou como você e Della. Quer dizer, eu poderia lançar um feitiço e talvez pudesse correr mais rápido, mas isso levaria algum tempo. E a última vez em que tentei, me transformei num antílope. — Estamos quase lá — disse Kylie, mas, lembrando-se de como ela detestava ter que dar tudo de si para acompanhar Della, diminuiu o ritmo. De repente, uma lufada de ar passou por elas. Kylie primeiro pensou que era um vampiro, mas então Perry, na forma do enorme pássaro pré-histórico, aterrissou na frente delas. Miranda, mesmo ofegante, deu um gritinho de prazer. Perry abriu a asa direita e envolveu a pequena bruxa, puxando-a de encontro ao seu peito e dando-lhe um caloroso abraço de pássaro. Então ele arrulhou como um pombo. Por mais rabugenta que estivesse, e apesar de todo o seu mau humor, Kylie ficou emocionada. E o sorriso terno que ela viu no rosto de Miranda arrematou a cena com chave de ouro. O amor era uma coisa maravilhosa. Kylie queria aquilo também. Queria tudo aquilo. Completa devoção. Todos aqueles sentimentos transloucados e doces. Imagens de Derek e Lucas encheram a sua cabeça. Ah, mas que inferno! Como ela poderia estar apaixonada pelos dois? Era mesmo possível? Perry soltou Miranda e recuou. Centelhas começaram a cair em torno dele como neve iridescente. Em segundos, um Perry humano apareceu. Seu cabelo cor de areia estava agarrado à testa como se ele tivesse suado. Seus olhos estavam azuis. Azuis brilhantes. Ele usava jeans pretos e uma camiseta com a frase: “O que você quer que eu seja?”.
— Eu estava procurando você — disse Perry, desviando o olhar de Miranda para Kylie. — Me procurando? — Kylie perguntou. — Por quê? Ele deu de ombros. — Porque disseram para eu fazer isso. Mandaram, aliás. — Quem? — Kylie perguntou. — Quem lhe disse para me procurar? — Quem você acha? Burnett e Holiday. Eu não recebo ordens de mais ninguém. Exceto, talvez, de Miranda. — Ele sorriu para a bruxinha. — Alguma coisa errada? — Kylie perguntou. Ele olhou para Kylie. — Eu não sei. Mas sei que sua mãe apareceu e está tendo um chilique. Está deixando Holiday maluca. — Minha mãe está aqui? — Kylie perguntou, confusa. Perry assentiu. — Sinto muito. Kylie aumentou o ritmo da corrida. A preocupação fazia os seus pés baterem na terra, deixando uma nuvem de poeira em seu rastro.

Kylie correu diretamente para o escritório de Holiday. A mãe dela estava na frente da escrivaninha da líder do acampamento, fazendo alguma declaração. Holiday estava sentada atrás da mesa, só ouvindo. Burnett, com uma aparência de firme resignação, observava a senhora sem falar nada. Kylie mal lhe lançou um olhar. Ela se concentrou na mãe, que se virou e... Kylie se viu envolvida num abraço rápido e desesperado. Por sobre o ombro da mãe, o olhar de Kylie questionou Holiday, que se levantou. A mãe recuou. Kylie continuou a olhar para Holiday. Uma breve lembrança do espírito apertou o coração de Kylie. Como elas podiam ser tão iguais e não ser a mesma pessoa? Kylie disse a si mesma para lidar com uma coisa de cada vez. Então voltou a se concentrar na mãe. O olhar no rosto dela encheu Kylie de medo. Era o mesmo olhar que ela tinha quando a avó de Kylie morrera. — O que há de errado? — a mente de Kylie buscou possibilidades enquanto ela prendia a respiração. — Papai está bem? Kylie ainda podia estar com raiva do padrasto, podia não tê-lo perdoado por sua infidelidade com a jovem estagiária, mas o amava. Ela nunca se sentira mais segura desse fato. Agora, ela imaginava o pior — imaginava a mãe lhe dizendo que tinha acontecido um acidente. Que Kylie nunca mais receberia outro abraço do homem que a criara ou que nunca mais fariam uma viagem só de pai e filha. — Seu pai está bem. É você que não está. — A mãe olhou por sobre o ombro de Kylie e depois para a filha. — Por que não me disse que estava doente? — Eu não estou doente.
— Você teve dores de cabeça. E aqueles pesadelos, lembra? — Holiday falou num tom que Kylie não entendeu muito bem. O olhar da mãe voou do rosto de Kylie para algo sobre o ombro dela novamente e por algum motivo isso a fez se virar. Sentado no sofá estava um homem que ela não conhecia. — Eu... não entendo — Kylie disse, e olhou para a mãe. — Estava nos meus registros — esclareceu Holiday, novamente num tom que parecia significar alguma coisa. — Eu coloquei essa informação nos meus arquivos e os administradores acharam que talvez a sua mãe precisasse ser comunicada. Para ver se talvez fosse melhor você passar por alguns exames. Kylie continuou a olhar para Holiday. — Eles me ligaram e perguntaram se eu daria a minha permissão para que fizessem alguns exames em você. Querida, você está bem? Exames? Administradores? Ah, droga, ela começou a ligar os fatos. Não eram administradores. Era a UPF. Eles estavam tentando obter a permissão de sua mãe para testá-la. — Eu estou bem — disse Kylie. — Não preciso fazer exame nenhum. — O medo tomou conta de Kylie. Seu olhar saltou para Burnett. Ele olhou para ela, sem desviar os olhos. Sem culpa. E ela sentiu que ele não tinha tomado parte naquilo. Lembrou-se do telefonema e suspeitou que era disso que se tratava. Seu olhar se voltou para o homem no sofá. Ele seria da UPF? Será que aquele cretino queria usá-la como uma cobaia, da mesma forma que tinham feito com a sua avó? — Quem é você? — ela perguntou antes que pudesse se conter. Então, apertou os olhos e verificou o seu padrão. Ela piscou e fez isso de novo quando viu que o sujeito era humano. — Este é John — a mãe respondeu. — Estávamos jantando quando eu recebi a mensagem do senhor Edwards de que você estava tendo desmaios. — John? — Quem diabos era John? Kylie olhou para a mãe e o olhar dela se encheu de culpa.
— Ele é o cliente com quem almocei outro dia, lembra? Eu contei a você sobre ele. Kylie se lembrava. Ele era o cara que ia estragar todas as chances de a mãe e o padrasto se reconciliarem. — Como eu já expliquei — Holiday continuou. — Kylie, na verdade, não desmaiou. Eu acho que só fiz as coisas parecerem piores do que pretendia, em meus relatórios. E quando alguém os leu, interpretou errado. As emoções se agitavam no peito de Kylie como pássaros pegos numa armadilha. Holiday olhou para ela e Kylie teve a sensação de que a líder do acampamento estava tentando lhe comunicar algo. Mas, caramba, Kylie não conseguia ler pensamentos. Ela não conseguia nem ler emoções! — Kylie tinha terrores noturnos em casa? — Holiday perguntou. Kylie de repente achou que tinha entendido o que Holiday queria lhe dizer. — Sim. Eram só terrores noturnos, mãe. Eu não desmaiei. Você se lembra de como eu ficava quando tinha isso. Eu não estou doente. Não preciso fazer nenhum exame. Além disso, você já me levou para fazer exames, lembra? — Mas eu não achei que você ainda tivesse terrores noturnos. — Só tive umas duas vezes. E estou bem. Olhe para mim, eu estou bem. — Ela estendeu os braços, procurando mentalmente uma maneira de provar isso. — Eu posso tocar os dedos dos pés; posso tocar com a língua o meu nariz. — Aqueles eram versinhos que ela e a mãe recitavam quando alguém perguntava se estava tudo bem. — Mas por que o senhor Edwards queria fazer exames em você? Holiday se inclinou para a frente na cadeira. — Ah, esqueça isso. Ele é apenas cauteloso demais. — Ela sorriu, fazendo o melhor para parecer convincente. — Mas se você quiser agendar alguns exames para Kylie com o seu próprio médico para ficar mais sossegada, eu entendo perfeitamente. Quer dizer, nada contra os médicos daqui, mas imagino que confie mais no seu. — Você acha que eu deveria fazer isso? — A mãe perguntou com seu olhar maternal cheio de preocupação. — Na verdade, não, eu não acho. E acho que Kylie está bem. Com apenas duas ocorrências de terrores noturnos, acho que ela está se saindo muito bem. — Eu estou bem — Kylie repetiu. — Estou ótima. Eu juro. Por favor, mãe. Não quero fazer esses exames novamente. A mãe de Kylie correu a palma da mão pela bochecha da filha. — Você não sabe como eu fiquei preocupada. Ah, Deus! — A mãe olhou para Holiday. — Você deveria pensar em ter uma conversa séria com o senhor Edwards. Eu posso jurar que, se ouvisse a mensagem dele, você também pensaria que Kylie estava com problemas graves. — Lamento que ele a tenha assustado. — Kylie olhou para John sobre o ombro da mãe. O homem levantou-se, deu alguns passos para a frente e descansou a mão no ombro da mãe da garota. Kylie teve a estranha vontade de afastar a mão dele e dizer que ele não tinha o direito de tocar sua mãe. — Olá, Kylie — disse John. Kylie observou seu sorriso suave, os olhos castanhos e os cabelos cor de chocolate bem penteados. Ela queria ter encontrado algo feio nele, mas não conseguiu. Ele não era feio. Não tinha todo o charme de Burnett, talvez porque fosse mais velho, mas tinha uma aparência distinta. — Eu gostaria que fôssemos apresentados em circunstâncias diferentes — continuou ele. — Mas espero encontrá-la outras vezes. Sua mãe fala muito de você. Engraçado, Kylie pensou, sua mãe não tinha falado muito sobre ele. Bem, ela havia contado que almoçaram juntos e que ele dissera que poderia lhe telefonar novamente, mas se esqueceu de dizer que ele tinha de fato telefonado. Provavelmente porque sabia dos sentimentos confusos de Kylie com relação aos seus encontros. Ah, mas agora eles não estavam tão confusos... Kylie não gostava dele. No entanto, como não tinha razão para não gostar, exceto pelo fato de que sua intuição lhe alertava contra ele e talvez por querer que a mãe e o padrasto ficassem juntos novamente, ela iria ter que engoli-lo. Ser agradável. O que Miranda tinha dito mesmo? “Finja até que seja verdade.” Ela poderia aprender a gostar desse cara? — Foi bom conhecer você. — Kylie simulou uma expressão calorosa. Mas ficou preocupada com a possibilidade de ele perceber que era falsa. — O prazer foi todo meu — disse ele. Kylie apenas sorriu. Quanto a isso ele tinha razão. Durante a meia hora seguinte, Kylie sentou-se na sala de reuniões do escritório, conversou com a mãe e um John bajulador, e fingiu que tudo em sua vida eram flores. Flores e bajulação. Palavras que Nana, a avó que falecera cerca de três meses antes, teria usado. Estranho como Kylie parecia estar canalizando-a agora. Ela adoraria se Nana aparecesse para uma visita. É você, Nana? Kylie perguntou mentalmente, enquanto John se gabava dos anos em que vivera na Inglaterra. Nana não respondeu. Mas Kylie tinha a estranha sensação de que ela estava por perto. — Eu sempre quis conhecer a Inglaterra — disse sua mãe, prestando atenção em cada palavra que o homem dizia. — Podemos dar um jeito nisso — acrescentou John, com entusiasmo. — Eu tenho uma viagem marcada para o mês que vem. Por que você não tira alguns dias de folga e me acompanha? — Sério? — a mãe perguntou. E Kylie estava pensando a mesma coisa. Sério? O homem queria que a sua mãe fosse para a Inglaterra com ele! Ela nem sequer o conhecia direito! E será que ele também esperava que sua mãe dividisse o quarto de hotel com ele? De jeito nenhum!
— A agenda de trabalho da mamãe é muito apertada. Ela não vai conseguir tirar uns dias de folga. — disse Kylie, recusando o convite pela mãe, antes de perceber que deveria ter ficado de boca fechada. A mãe a encarou boquiaberta diante de sua declaração e lhe lançou um olhar que deixava bem claro quanto a filha fora rude. — Bem, a minha agenda de fato é bem cheia, mas eu poderia conseguir alguns dias de folga. — Ela voltou a olhar para Kylie, advertindo-a para não abrir a boca. — Ótimo! — comemorou John, como se não notasse a tensão no ar. — Ótimo — Kylie repetiu, o sorriso tão rígido que seus lábios nem se moveram. — Falando em agenda apertada — a mãe de Kylie consultou o relógio, — nós precisamos ir para casa. É uma viagem de quase duas horas até lá. E eu tenho que trabalhar amanhã. A mãe deu um rápido abraço em Kylie. E para alguém que não estava acostumada a dar abraços, foi muito bom. Quando Kylie se afastou, murmurou um “sinto muito” em voz baixa. E ela estava mesmo arrependida. Não queria ferir os sentimentos da mãe, mesmo não gostando do sujeito. O olhar da mãe lhe deu a certeza de que ela entendia perfeitamente. O que só fez Kylie se sentir um pouco pior. Inclinando-se novamente, a mãe dela sussurrou: — Eu te amo. — Eu também te amo. — Kylie se aproximou para dar outro abraço, e dessa vez ele foi mais apertado e durou um segundo a mais. Quando ela os levava em direção à porta e passava pelo escritório de Burnett, viu sua figura imponente sentada à escrivaninha. Ele fingiu estar trabalhando, mas sem dúvida a sua superaudição tinha ficado sintonizada o tempo todo. E aquilo era bom, ela não tinha nada a esconder. No entanto, tão logo a mãe e o cara assustador fossem embora, era melhor que Burnett fizesse muito mais do que apenas ouvir. Ele tinha muito que explicar.
Ela sabia que a UPF queria testá-la, mas não podia acreditar que eles tinham ido tão longe a ponto de entrar em contato com sua mãe. E, se tinham se atrevido a ir tão longe, o que fariam agora? Será que a recusa da mãe em permitir que Kylie fosse testada colocaria um ponto final naquilo tudo? Por alguma razão, Kylie não acreditava nisso. Quando Kylie voltou alguns minutos depois, Holiday e Burnett estavam esperando na varanda da cabana. — O que vai acontecer agora? — Kylie perguntou. Burnett franziu a testa e levou-as para o escritório de Holiday. — Eu não sei. Estou chocado que tenham feito isso. Eles me ligaram para pedir que eu interferisse e convencesse você a mudar de ideia. Eu disse a eles que você já tinha se recusado a ir. Alguém disse, então, que você era menor de idade e sugeriu que procurassem a sua mãe. Eu ressaltei que a sua mãe não era sobrenatural e que isso poderia levá-la a fazer muitas perguntas. Pensei que os tinha convencido de que não era o melhor caminho. Mas quando cheguei aqui, Holiday estava ao telefone com sua mãe. Eles devem ter ligado para ela na hora em que eu saí de lá. Holiday sentou-se no sofá. Kylie se juntou a ela. Quando Holiday estendeu a mão para alisar o cabelo e torceu-o como uma corda, Kylie se lembrou da razão que a levara ao escritório. Seu olhar se desviou para o pescoço de Holiday e ela se lembrou dos feios hematomas do espírito. O medo pela amiga oprimiu seu coração. — Para a nossa sorte, a sua mãe ignorou a UPF e veio direto nos procurar — disse Holiday. Ela encontrou os olhos de Kylie. — Vai ficar tudo bem — assegurou a líder, obviamente captando a preocupação de Kylie. — Eu espero que sim. — Kylie se reclinou no sofá. — Você ainda está chateada com o que aconteceu? — Holiday perguntou. — O que aconteceu? — Burnett deu um passo mais para perto.
— Eu não tive chance de contar a você... — Holiday explicou a Burnett que o pai de Kylie havia dito que a filha era um camaleão. Kylie esperou ver descrença no rosto do vampiro ou a resposta que todo mundo já havia dado a ela: você é um lagarto! Quando Burnett não fez nenhuma das duas coisas, a suspeita se instalou dentro dela. — O que você sabe sobre isso? — ela exigiu saber. As sobrancelhas dele se franziram. — A palavra “camaleão” foi mencionada nos documentos que encontrei sobre o teste que ocasionou a morte da sua avó. — O que diziam? Será que explicam como eu posso ter um padrão humano e ainda ser sobrenatural? — Kylie perguntou, irritada por ele ter escondido isso dela. Kylie viu Holiday fazer uma cara feia também. O olhar de Burnett passou de Kylie para Holiday e a preocupação deixou sua expressão carregada. — Eles não explicam nada. Um dos médicos usou a palavra “camaleão” em suas anotações. Não fazia sentido; na verdade, perguntei se era um erro de digitação. Eu não tinha os documentos originais. Apenas anotações de um médico ao se referir ao outro documento. — Mas pelo menos isso é uma prova — disse Kylie. — Uma prova do quê? — Burnett perguntou. Kylie olhou de Burnett para Holiday. — De que é isso que significa ser um camaleão. Ter um padrão que mostra que você é uma coisa quando na verdade não é. Quer dizer, nós sabemos que eu não sou totalmente humana. — Ela apontou para a testa. — E ainda assim o meu padrão diz que eu sou. É claro que o meu padrão não diz coisa nenhuma do que eu sou de verdade. — Eu ainda não acho que provamos alguma coisa — disse Burnett. — Sim, acho que de certa forma essas duas coisas significam a mesma coisa. Só não acho que provamos o que elas significam.
A expressão de Holiday indicava que ela concordava com ele. — Eu estive pensando — ela disse. — Talvez o seu... padrão mutante esteja de alguma forma ligado ao fato de você ser uma protetora. Eu não acho que já tenha existido um protetor que fosse metade humano para podermos comparar com você. — Eu não tinha pensado nisso — disse Burnett. — Mas é possível. — Mas e toda a questão de ser um camaleão? — Kylie perguntou. — Eu não sei — Holiday disse. — Eu só estou dizendo que isso poderia explicar a mudança no seu padrão. A mente de Kylie dava voltas, tentando entender tudo o que tinham dito. Quanto mais ela pensava, menos sentido fazia. — Eu quero ler esses registros. — Tenho certeza de que os poucos arquivos a que eu consegui acesso já foram ocultados. — Eles mataram a minha avó e se safaram impunes, e agora estão tentando fazer o mesmo comigo. — As pessoas que fizeram isso ou foram embora ou se aposentaram. — Seu ar de preocupação se intensificou. — Eu sei o que parece e concordo que você se negue a fazer os testes, mas não acredito que eles queiram intencionalmente pôr a sua vida em risco. — Nós não sabemos. — A firmeza do tom de Holiday lembrava a Kylie a voz da sua mãe quando estava preocupada com ela. — É exatamente por isso que eu fiz o que fiz — disse ele. — Por que fui praticamente contra o meu juramento à UPF. Eu estou do seu lado. O que mais posso fazer para provar isso? — Por favor — disse Kylie. — Eu não quero que vocês dois briguem por minha causa. — Você não tem que provar nada. — Holiday corou com a culpa. — Eu sinto muito. Fico tão furiosa por causa de Kylie. — Eu sei. Eu fico também. — Burnett olhou para Kylie. — E nós não estamos brigando. — Ele se virou e fitou Holiday por um segundo. — Dessa vez estamos apenas discutindo o assunto. Certo?
— Certo. — A sombra de um sorriso apareceu nos lábios de Holiday, quando ela encontrou o olhar de Burnett. Kylie sorriu também, mesmo com o peito transbordando de emoção. Ela tinha muita sorte de ter essas pessoas ao seu lado. Mas seu sorriso só durou um segundo. — Qual vai ser o próximo passo? Burnett expirou. — Provavelmente, eles ainda vão tentar fazer você mudar de ideia. Convencê-la de que os testes são por um bem maior. Acho que esse era o plano deles quando saí de lá. — E é quando eu devo dizer a eles que sei sobre a minha avó? Ameaço expô-los se eles não desistirem? — Kylie perguntou. Burnett tinha decidido mudar o corpo da avó de Kylie de lugar apenas para o caso de alguém da UPF decidir esconder a prova do que tinha acontecido. Em suas próprias palavras, isso daria a Kylie algumas “cartas na manga” para usar contra a UPF se tentassem forçá-la a fazer algo contra a vontade. — No seu lugar, eu apenas diria “não” e, então, se eles pressionassem, mencionaria os restos mortais da sua avó. — Sua expressão ficou mais tensa e a preocupação cintilou em seus olhos. A mesma emoção se refletiu nos olhos de Holiday. — O que vai acontecer se eles descobrirem que você está por trás do desaparecimento do corpo? — Kylie perguntou. — Não vão descobrir. Eu encobri todas as pistas — disse Burnett com firmeza. Talvez com firmeza demais, como se fazer essa afirmação com convicção a tornasse mais verdadeira. — Eles vão suspeitar de você, porque trabalha aqui. Porque você está perto de mim — concluiu Kylie. — Podem suspeitar, mas vão ter que provar primeiro. E eu não deixei nenhuma prova para que descubram. Kylie esperava que ele estivesse certo. Ela olhou de novo para Holiday e lembrou-se do fantasma. Holiday se aproximou e colocou a mão sobre a de Kylie. — Alguma coisa errada?
— Não. Só isso. — Tem certeza? — Eu preciso de mais? — O olhar de Kylie deslocou-se para a janela. O céu estava escurecendo, mas ela ainda podia ver o topo das árvores balançando suavemente. Seu olhar disparou de volta para Holiday e de repente ela sentiu a necessidade de se abrir. — Eu sinto como se algo me chamasse. Ela fez sinal para a janela. — Algo lá fora está me chamando. Mas eu não tenho certeza do que é. Holiday pareceu confusa. — Como o chamado da cachoeira? — Sim — concordou Kylie. Só que era algo muito mais forte. — Então podemos combinar de ir até lá. — Holiday se inclinou para a frente. — Pode ser amanhã? Kylie começou a explicar que ela não tinha certeza se era a cachoeira que a chamava, mas não sabia o que dizer. Então apenas balançou a cabeça. — Eu vou com vocês — disse Burnett. — Vai entrar na cachoeira? — Holiday olhou para o vampiro. — Se você acha que eu devo entrar, eu entro. — A ideia de ir à cachoeira não o perturba? Ele deu de ombros. — Eu já estive lá antes. Holiday olhou para Kylie e depois de volta para ele. — Eu sei. E fiquei surpresa. A maioria dos sobrenaturais não tem coragem de entrar lá. Um pequeno sorriso fez aparecer sinais de expressão nos cantos dos olhos de Burnett. — Como sempre digo, eu sou especial. Holiday suspirou.
— Mas a cachoeira... — ... não é problema. — Ele a interrompeu e olhou para Kylie. — Por que eu não a levo de volta para a sua cabana? Della é a sua sombra, mas eu disse a ela que levaria você. — A abrupta mudança de assunto pareceu uma manobra deliberada para evitar a conversa sobre a cachoeira. O que Burnett estava escondendo? A mesma pergunta parecia estar nos olhos de Holiday. — Ela perdeu o jantar — Holiday disse. — Tudo que eu quero é um sanduíche, e posso fazer um na cabana. Kylie deu um longo abraço em Holiday e sentiu seu toque caloroso e calmante. Os efeitos do abraço perduraram até que ela e Burnett pegaram a trilha escura e ele perguntou: — Você gostaria de explicar por que mentiu para Holiday?

— Eu não menti. — Tão logo as palavras saíram, Kylie se lembrou de que ela tinha de fato mentido quando Holiday perguntou se havia algo errado. Droga! Kylie deveria ter lembrado que Burnett podia ouvir seu coração acelerando quando ela mentia. Ela continuou andando. Ele olhou para baixo com uma sobrancelha arqueada em descrença. — Te dou mais uma chance de falar a verdade. Kylie franziu a testa. — É a questão do fantasma. Eu só estou tentando descobrir por mim mesma. — De jeito nenhum ela poderia contar a Burnett sobre o fantasma com a aparência de Holiday. Ele iria pirar. Ou talvez não. Talvez não tivesse tanto medo de fantasmas quanto fingia ter. — O que você está escondendo dela sobre a cachoeira — Kylie perguntou. Ele baixou a sobrancelha arqueada. — Eu não estou escondendo nada. — Você consegue entrar na cachoeira quando tanta gente não consegue. — Isso também me intriga. No entanto, não me sinto exatamente à vontade quando estou lá. — Não é como se a cachoeira o chamasse? Ele hesitou. — Talvez um pouco. — Ele deu alguns passos em silêncio. — Por que você não disse isso a Holiday? — perguntou Kylie. Ele a fitou com um olhar travesso. — Talvez eu esteja tentando descobrir por mim mesmo.
Ele usou as mesmas palavras que ela. — Tudo bem. — disse Kylie, revirando os olhos. Passados alguns minutos, ele voltou a falar: — Eu pensei que você podia conversar com Holiday sobre os fantasmas. — Eu posso. Mas gostaria de lidar com isso sozinha, se for possível. — Era verdade, por isso ela não se preocupou com o que ele poderia ouvir por trás das suas palavras. Burnett acenou com a cabeça. Quando se aproximaram da cabana, Kylie se lembrou de que ela queria falar com Lucas. — Lucas pode ser a minha sombra por um tempo hoje à noite? Eu preciso falar com ele. Burnett pareceu pensar a respeito. Por um segundo, ela teve a impressão de que ele ia recusar seu pedido. — Ok, mas não entre na floresta. A resposta dele a fez se lembrar. — O alarme está funcionando? — Sim, mas em determinadas condições meteorológicas, alguém pode conseguir entrar na floresta sem ser pego. Ela assentiu com a cabeça. — Você já viu alguém? — ele questionou. — Não. Ele parou. — Tem certeza? — Tenho. Às vezes eu só... os bosques me assustam um pouco. — Então respeite os seus medos e evite-os. — É o que pretendo fazer. — Kylie olhou para a fileira de árvores e para as sombras escuras além delas. Não sentiu nada. Talvez o que tivesse sentido antes fosse apenas sua imaginação hiperativa.
Kylie avistou sua cabana entre as árvores. As luzes estavam acesas e um tom dourado derramava-se das janelas. Ela viu a sombra de Della passar na frente da vidraça e se lembrou... — Por que você teve uma reunião com Della hoje? — Apenas negócios da UPF. — Ele parecia propositalmente vago. — Algum problema? — ela perguntou. Burnett balançou a cabeça. — Não. — Você pediu para ela fazer algo pela UPF? — É possível. Por quê? Kylie franziu a testa. — Considerando que a UPF está me causando uma dor de cabeça e tanto, eu não fico muito entusiasmada ao pensar nos meus amigos envolvidos com eles. Ele parou, tirou as mãos dos bolsos do jeans e balançou a cabeça, frustrado. — A UPF é uma organização que serve para ajudar os sobrenaturais, assim como a polícia ajuda os seres humanos. Existem policiais corruptos e até mesmo grupos de policiais que fazem coisas ilícitas, mas não é por isso que deixamos de confiar na instituição como um todo. — Eu poderia, se eles mataram a minha avó — disse ela honestamente. A expressão dele endureceu. — Eu não concordo com tudo o que a UPF faz, mas, sem ela, o mundo seria um caos. As espécies se voltariam umas contra as outras, matando e mutilando. A raça humana seria vista como fonte de alimento. Kylie tremeu diante da descrição. — Se você não consegue confiar na UPF, pelo menos confie em mim — disse Burnett. — O lado bom da UPF supera em muito o lado ruim.
— Eu vou tentar vê-los assim. — Mas ela não prometeu nada. Não conseguiu. — Você poderia só ter ligado para ele — reclamou Della, cerca de uma hora depois, enquanto desciam pela trilha escura em direção à cabana de Lucas. Kylie teve a sensação de que Della estava meio irritada porque ela queria ver Lucas em vez de lhe fazer companhia. Especialmente quando Miranda tinha escapulido com Perry. Mas a culpa de Kylie por ter deixado Lucas falando sozinho tornou indispensável que ela fosse vê-lo. — Acho que eu queria tomar a iniciativa em vez de esperar que ele fizesse isso. — Kylie notou a lua prateada e brilhante, quase cheia, pendurada no céu. Estava uma noite bonita. A temperatura tinha caído para uns 27 graus, ficando quase agradável. — Por quê? O que você fez de errado? — Eu fiquei brava e fui embora, deixando Lucas lá sozinho. — Foi por isso que ele pareceu tão sentimental quando veio visitá-la, enquanto você estava dormindo? — ela perguntou. — Pode ser. — Kylie deu uma boa olhada na fileira de árvores e não sentiu nada, o que foi muito bom. Então ela olhou para Della. — O que Burnett queria falar com você hoje? — Nada, na verdade. Kylie olhou para ela. — Sabe, quando se é amigo de uma pessoa por algum tempo, nem é preciso ouvir o seu batimento cardíaco para saber que ela está mentindo. Della fez uma careta. — Tá, mas eu pensei que seria mais educado do que dizer que não é da sua conta. Kylie franziu a testa. — Você vai fazer algum serviço para a UPF? — Como você sabe? — Lucas e Derek também prestam serviço para eles. Me pareceu lógico. Não que eu goste. — Ela se lembrou de Burnett dizendo que a UPF não era de todo ruim, e tentou mudar de atitude, mas ela não conseguia confiar completamente na organização. — Eu acho que seria muito legal trabalhar para eles — disse Della. — Me daria uma justificativa para chutar alguns traseiros de vez em quando. — Você confia neles? — Kylie perguntou. — Eu confio em Burnett — disse Della, e estudou Kylie. — Você não? — É claro que confio. — Ela não tinha contado a Miranda ou Della que Burnett tinha trocado sua avó de túmulo. Isso não parecia uma coisa que se saísse por aí, contando para todo mundo. — Eles procuraram a minha mãe, para que ela os autorizasse a fazer testes comigo. — Ah, droga, eu me lembro de Miranda dizendo que sua mãe esteve aqui, mas me esqueci. O que ela disse? Deus do céu! Eles contaram a ela que você é sobrenatural? Aposto que ela surtou. — Não, disseram que estavam preocupados porque eu tinha dores de cabeça e desmaios e aconselharam que eu fizesse alguns exames. Holiday explicou a ela que eram só terrores noturnos e desaconselhou os exames. — Ah, mas que inferno! O que Burnett disse? — Ele não concorda com os exames também. — Que bom! — comemorou Della. — Quero dizer, eu não gostaria que ninguém sondasse a minha cabeça. Não depois de ouvir o que aconteceu com a sua avó. — Della parou e olhou para Kylie. — Você não quer que eu trabalhe para eles por causa disso? Kylie teve a sensação de que Della realmente abriria mão da sua chance de trabalhar para a UPF se essa fosse a vontade de Kylie — mesmo estando claro quanto estava animada com essa possibilidade. A gratidão pela lealdade de Della a emocionou. — Não — tranquilizou-a Kylie. — Mas... eu quero que você tome cuidado.
— Vou tomar. — Della esfregou as mãos. — Estou feliz por você ter descoberto. Eu estava morrendo de vontade de contar a alguém. Vai ser tão legal! Elas chegaram à cabana de Lucas. As luzes estavam acesas. Kylie bateu na porta enquanto Della esperava mais atrás, nos degraus da varanda. Steve, o metamorfo que tinha uma queda por Della, atendeu à porta. Com tanta coisa acontecendo, Kylie tinha se esquecido de que ele era colega de alojamento de Lucas. E o mesmo acontecera a Della, Kylie percebeu, ao ouvi-la ofegar. — Olá! — disse Steve. — Lucas está? — Kylie perguntou. O olhar de Steve se desviou para um ponto mais atrás de Kylie e sua expressão mudou. Kylie sabia que ele tinha visto Della. — Hã... sim. Quero dizer, não. Ele saiu há alguns minutos com Fredericka. — Ah. — Kylie tentou não demonstrar seu aborrecimento com a notícia ,enquanto dava meia-volta para ir embora. Steve falou atrás dela: — Provavelmente vai voltar logo. Ela virou-se. — Você se importa se esperarmos? — Não. — Seus olhos brilharam quando ele olhou para Della. — Entrem, se quiserem. Della limpou a garganta como se quisesse avisar Kylie de que não tinha gostado nem um pouco da ideia. — Podemos apenas nos sentar aqui na varanda? — Kylie perguntou. — Está uma noite bonita. — Claro — ele saiu da cabana. Seu cabelo castanho estava caído na testa. Mesmo no escuro, Kylie poderia adivinhar que seus olhos eram castanhos escuros e estavam cheios de interesse ao fitarem Della. Quando Kylie se virou, Della não parecia muito feliz, mas seguiu a amiga.
— Não podemos esperar muito — alertou a vampira, sentandose nos degraus. — Só um pouquinho. — Kylie abaixou-se ao lado da amiga, que parecia contrariada. Steve sentou-se na varanda com elas. Ninguém disse uma palavra. — Eu ouvi falar que alguns dos professores novos estavam jantando no refeitório esta noite. — Kylie comentou, para iniciar a conversa, na esperança de não pensar em Lucas perambulando pela floresta com Fredericka. — É — disse Steve. — A professora de inglês, Ava Kane, parece legal. Ela é meio bruxa, meio metamorfa. — Por que você simplesmente não admite que gosta dela por causa dos peitões? — Della perguntou. Mesmo no escuro, Kylie sentiu que Steve enrubescera. — Eu... não vou negar que ela é bonita, mas não foi isso que eu quis dizer. Kylie estendeu o pé e chutou Della disfarçadamente. — Ai! — Della olhou para Kylie. — Por que você fez isso? — Quando as aulas vão começar mesmo? — Kylie perguntou, e ninguém respondeu. — Steve provavelmente porque estava com medo de se ver em apuros novamente, e Della porque estava muito ocupada esfregando o tornozelo dolorido. Steve finalmente arriscou. — Se não me engano, na próxima segunda-feira. — Havia outros professores no refeitório? — Kylie olhou para Della, esperando que ela respondesse. — Sim — acrescentou Della. — Um tal de Hayden Yates. Ele é meio vampiro, meio fae. Acho que vai ensinar ciência. Parece boa gente. — E...? — Steve perguntou, o tom mais profundo, embora não passasse de um sussurro. — E o quê? — Della perguntou.
Ele tencionou os ombros. Que, aliás, Kylie tinha que admitir, eram muito largos. O cara era bonito. Por que Della não era pelo menos agradável? — Por que você gosta de Yates? — Steve perguntou. — Porque o corpo dele é sexy ou você finge que é por causa da inteligência do cara? Droga, pensou Kylie. Esses dois se comportavam tão mal quanto Della e Miranda. Ou Burnett e Holiday. Della fez uma careta para Steve e então olhou para Kylie. — Eu estou indo embora. Envergonhada, Kylie olhou para Steve. — Obrigada. Pode dizer a Lucas que eu passei aqui? — Você pode ir encontrá-lo se quiser — disse Steve, levantando-se. — Acho que eles foram até a clareira, seguindo o riacho. — Ah, tá — disse Kylie, seguindo Della. Kylie se encheu de ciúme quando se lembrou de quando ela e Lucas tinham ido ao riacho. Ela estava tão preocupada em tentar não sentir o ciúme que a oprimia, que não tinha percebido que elas estavam seguindo na direção errada. — Aonde estamos indo? — Kylie perguntou. Della olhou para ela. — Para o riacho, bocó. E não finja que não quer saber o que ele está fazendo lá com aquela loba. Se ele fosse o meu namorado, eu iria agarrá-lo pelo cangote e ensinar àquela loba uma lição que ela jamais iria esquecer. Ele ficaria choramingando como um filhotinho abandonado. Kylie continuou seguindo Della enquanto travava um debate interior sobre se deveria continuar ou voltar para a cabana. Se ela fosse até o riacho, Lucas pensaria que ela tinha ido porque estava com ciúme? Mas e se não fosse e Steve contasse que ela o procurara e não fizera questão de ir ao riacho, será que ele acharia que ela tinha ido embora porque estava com ciúme?
Ok, a única coisa que concluiu com esse dilema foi que não queria que Lucas pensasse que ela estava com ciúme. Embora estivesse. Mas isso significava que ela estava errada? Ou que Lucas estava errado? Errado por sair por aí no escuro para ficar na companhia de Fredericka no riacho? Será que agora ele estava rolando na grama com a loba, beijando-a do jeito que ele a beijara quando a levou até lá? Ou seria algo tão inocente quanto ser pega conversando atrás do escritório com Derek? Kylie olhou para a lua. O astro parecia mais brilhante e ela sentiu aquela picada estranha em sua pele. Assim como se sentia na lua cheia. Ela respirou fundo e disse a si mesma que estava imaginando coisas. — Pare de tentar se convencer de que não quer ir — disse Della. — Como você sabe que estou fazendo isso? — Porque eu posso ver na sua cara. E porque você não conseguiria andar mais devagar nem se fosse uma tartaruga de muletas. — Eu só não quero bancar a namorada psicopata. — Se eles estiverem dando uns amassos, ou pior, brincando de esconder o salame, então ele merece que você dê uma de psicopata. Que droga! Eu vou me juntar a você e nós duas vamos bancar as psicopatas e dar um chute na bunda dele. — Eu não acho que ele esteja fazendo isso. — Como se dizer isso em voz alta a ajudasse a acreditar. — Você não queria pensar isso de Derek, também. — Della suspirou como se já tivesse arrependida de dizer aquelas palavras. — Não quero desrespeitar Ellie nem nada, mas ainda assim foi errado. O peito de Kylie se apertou quando ela mencionou o nome de Ellie.
— Aquilo foi diferente. — Como? — Della perguntou. Um galho baixo balançou na frente de Kylie e ela o desviou com o braço sem dificuldade. — Eu acho que isso é mais uma prova de que os homens não prestam. Talvez não devêssemos nem nos acasalar com eles. — Derek e eu não estávamos juntos. — Talvez vocês não dissessem que estavam juntos. Mas no seu coração, estavam. Kylie se lembrou do que Miranda tinha dito sobre ela falar mais de Derek do que de Lucas. De repente, ela não queria falar mais sobre sua vida amorosa complicada. Então por que não falar sobre a vida amorosa complicada de Della? Parecia um jeito perfeito de mudar o rumo da conversa. — Você poderia ter sido mais simpática com Steve. Della se virou, mostrando irritação em sua postura corporal. — Eu fui simpática. — Não, não foi. Você o acusou de gostar dos peitões da professora nova. Della retomou a caminhada. — Você deveria ter visto o olhar de cobiça que ele lançou para ela; foi embaraçoso. — Isso é sinal de que você está com ciúme, o que indica que gosta do cara — observou Kylie. Della começou a andar mais rápido, seu ritmo acompanhando o seu humor. — Eu não gosto dele. Mas vou admitir que tem um belo traseiro. — E você disse que ia tentar ser mais acessível ao seu belo traseiro — Kylie lembrou. — Eu tentei. Não deu certo. Eu não acho que o traseiro dele seja tão legal assim.
Outro galho apareceu de repente e no instante que Kylie o agarrou, ela se lembrou. Parou e olhou através das árvores para o céu. Algumas estrelas brilharam como se rissem dela. — Merda... — ela murmurou. — O que foi? — Della olhou por cima do ombro. Kylie olhou ao redor. A lua lançava um brilho prateado através das árvores e das sombras que dançavam no chão. — Acabei de me lembrar. — Lembrar do quê? — Eu não deveria entrar na floresta. — Kylie inalou o aroma verdejante das árvores e da terra úmida. Então procurou interiormente o sentimento de ser atraída, chamada para a floresta. Não sentiu nada. Talvez todos aqueles sentimentos fossem apenas um produto da sua imaginação hiperativa. Era nisso que ela queria acreditar. No entanto, ela tinha desobedecido às ordens de Burnett. Talvez não de propósito, mas ela não achava que ele iria considerar essa desculpa aceitável. — Nós temos que voltar. — Mas estamos quase lá. E você tem ao seu lado uma vampira de arrasar quarteirão. Nada vai acontecer. E você não quer saber se Lucas e Fredericka estão encenando o canguru perneta? Kylie agarrou outro galho que surgiu na sua frente. — Se Burnett descobrir, ele vai ficar fulo da vida. — Então não vamos contar a ele. Confie em mim. Vai dar tudo certo. Mesmo sabendo que não era a melhor coisa a fazer, Kylie continuou a acompanhar Della. Os grilos faziam sua cantoria típica e um pássaro ocasional piava. Ao fundo, Kylie podia ouvir os sons dos animais selvagens do parque. Normalmente, quando ela ouvia os sons da noite, isso significava que tudo estava bem. Era no silêncio que as coisas saltavam das sombras. Quando o mal parecia dar as caras.
Inspirando o ar da noite, ela continuou avançando, saltando por cima de alguns arbustos espinhosos e abaixando-se para evitar os galhos mais baixos. — Merda! — Della sibilou e parou abruptamente. — O que foi? — Kylie perguntou, e foi então que a floresta ficou em silêncio. Não morta como acontecia quando surgia um fantasma, mas como se ocultasse uma ameaça. — Da próxima vez que eu lhe disser para confiar em mim, não confie. — Della olhou para trás sobre o ombro. Seus olhos estavam verdes brilhantes e seus caninos, expostos. — Temos companhia.

— É melhor correr. — A voz de Kylie não passava de um sussurro. Seu coração martelando no peito parecia bater mais alto. — Quem corre acaba sendo perseguido — Della respondeu. — Eu prefiro ser quem persegue. — Garota esperta! — uma voz profunda respondeu de volta. E esse único som enviou calafrios pela espinha de Kylie. Três figuras silenciosas saíram das sombras. O único som filtrado pelo emaranhado de árvores era o silvo de Della. Kylie avançou para ficar ao lado de Della, caso eles a atacassem. Sua mente ainda considerava a opção de correr. Uma boa opção. Mas primeiro ela tinha que convencer Della. O leve som de galhos estalando sob os pés de alguém soou às suas costas. Elas estavam cercadas. Era hora de encontrar uma nova opção. Mesmo apenas com a lua iluminando o caminho, Kylie conseguiu enxergar os padrões dos três homens à frente delas: lobisomens. As bordas dos padrões eram escuras, como se as suas intenções não fossem as melhores. Isso só podia significar uma coisa: lobisomens foras da lei. O maior deles, ladeado pelos outros dois, deu um passo à frente. Della sibilou mais forte. Kylie sentiu seu sangue ferver com a necessidade de proteger a pequena vampira. Por mais corajosa que Della se considerasse, essa não seria uma briga justa. Não que os delinquentes se importassem. — Eu acharia melhor que vocês fossem embora — disse Kylie, sem saber de onde vinha tanta insolência, mas sem se incomodar em demonstrá-la. — Vocês estão invadindo. Shadow Falls é uma propriedade particular. — Ela pôs os ombros para trás e o queixo para cima. Sabendo que podiam farejar o medo, tentou não deixar que a semente dessa emoção crescesse ainda mais. Kylie viu Della pronta para atacar, e tocou o cotovelo da amiga, com a esperança de convencer a vampira a esperar. Talvez elas conseguissem convencê-los a ir embora. — Ou vão embora agora ou rasgo sua garganta primeiro — disse Della ao homem na frente dela. Esse não era o tipo de conversa que Kylie tinha em mente. — Não viemos aqui para fazer mal a ninguém — o sujeito do meio disse a Kylie, e então fitou Della com um sorriso, como se zombasse da sua ameaça. — Mas, se provocarem, isso pode mudar. Della sibilou alto. — Então saiam. — O olhar de Kylie voltou-se para ele. Ela teve a sensação de que ele era o líder. Ele não parecia velho, mas o cabelo grisalho nas têmporas e as linhas de expressão em torno dos olhos azul-escuros lhe diziam que era mais velho do que ela tinha presumido. Aprisionada ao seu olhar, sua mente tentou identificálo. Ela sentiu-o olhando para ela, também tentando identificá-la, e então seus olhos se estreitaram, enquanto ele lia o seu padrão. Tão repentinamente quanto um raio cortando o céu, ela descobriu quem ele era. E sentiu que ele a reconhecera também. A semente de medo cresceu dentro dela. Esse homem não valia nada. Ele já tinha provado isso a Kylie uma vez. Ele deu mais um passo adiante. Della tentou pular na frente dele, mas Kylie a segurou. — Deixe que eu cuido disso. — O chiado no sangue de Kylie — o chiado que sempre aparecia quando ela sentia a necessidade de proteger alguém — intensificou-se. — Não estou aqui para derramar sangue — ele insistiu. — Então, vá embora — Kylie exigiu. — É, coloque o rabinho entre as pernas e passe daqui — Della vociferou.
Um rosnado ameaçador veio de trás delas. Della deu meiavolta, libertando o braço do aperto de Kylie, os olhos mais brilhantes. O medo oprimiu o coração de Kylie. Não temia por ela mesma, mas pelo que estava para acontecer. Seu sangue agora zumbia enquanto era bombeado em suas veias. Ela manteve o foco em Della. Se alguém colocasse as mãos nela, aquilo não iria acabar bem. — Calma aí! — o líder falou, e Kylie sentiu que ele tinha falado tanto com ela quanto com seus próprios homens. — Eu só vim aqui para falar com o meu filho. — Então fale com ele. — Uma nova voz soou de entre as árvores. — Mas você e seus guardas, recuem agora mesmo. — A voz de Lucas, profunda e ameaçadora, veio da direita de Kylie. Quando ela se virou, viu que seus olhos brilhavam num tom laranja queimado. Ela observou-o levantar a cabeça levemente para puxar o ar pelo nariz. Soube então que tinha perdido a batalha de tentar esconder o medo. Lucas o tinha farejado assim como provavelmente os outros também. Mas ela se perguntou se eles haviam percebido o fato de que ela não temia uma briga. Ela temia a devastação emocional que isso teria causado. Matar o pai do namorado não seria muito bom para o seu relacionamento. — Eu disse, recuem — Lucas ordenou. Quando os três homens não obedeceram, Della falou novamente. — Vocês ouviram, seus imbecis. Recuem. De repente, Lucas estava do outro lado de Kylie. Seu antebraço quente roçou no ombro de Kylie, não deixando nenhuma dúvida de sua lealdade a ela, até mesmo com relação ao próprio pai. O pensamento aqueceu o coração da garota, mesmo acelerado pelo pânico. Mais campistas lobisomens saíram de trás das árvores. Eles não pareciam agressivos, mas a mera presença deles indicava a sua lealdade a Lucas.
— Parece que eu não sou o único que trouxe seus guardas — disse Parker. — Se eu precisar deles, vão me apoiar — disse Lucas. Um rosnado baixo veio de um dos lobos que acompanhavam o pai de Lucas. Parker olhou para ele. — Não vai haver nenhum confronto esta noite. Ainda desconfiada e com a tensão deixando o ar tão carregado que tornava difícil respirar, Kylie ouviu o comando na voz do homem e sentiu que seus homens não iriam desafiá-lo. O fluxo de adrenalina em suas veias diminuiu. Will, outro campista e um dos amigos de Lucas, aproximou-se. Nos recônditos da mente de Kylie, uma constatação lhe ocorreu. Lucas não estava só na companhia de Fredericka. Uma semente de culpa por duvidar do namorado brotou em seu peito. Como se pensar na garota a atraísse, Fredericka saiu de entre as árvores e dirigiu-se à pequena clareira. — Senhor Parker — Fredericka cumprimentou num tom leve, rompendo a tensão. — Que prazer vê-lo novamente! — A loba lançou para Kylie um leve sorriso, como se quisesse que a outra soubesse que ela era amiga do pai de Lucas. — Digo o mesmo — respondeu o homem com desinteresse. Ele não deu a Fredericka nenhuma atenção. Ainda estudava o padrão de Kylie, que estava preocupada com a possibilidade de ele notar alguma coisa estranha. — Então os rumores são verdadeiros — disse Parker, parecendo perplexo. — Que rumores? — Kylie perguntou. — Eu posso ver por que meu filho está tão intrigado com você. Uma pena que você não seja uma de nós. O peito de Kylie se afligiu com a insinuação. Era como se o seu relacionamento com Lucas estivesse condenado. — Chega — disse Lucas. — Eu acho que...
— Você é um pássaro estranho, Kylie Galen. — Parker franziu as sobrancelhas, como se para discernir melhor o padrão da garota. Kylie ergueu mais o queixo. Não um pássaro, Kylie pensava. Um camaleão. E uma sensação inexplicável de orgulho encheu seu peito. Pela primeira vez, Kylie aceitou que, embora não soubesse nada sobre o que significava ser um camaleão, o seu pouco conhecimento tinha algum valor. Lucas virou-se para Della. — Vocês duas, voltem para a cabana. — Seu olhar pousou em Kylie. — Te vejo mais tarde. O ressentimento por ter sido mandada embora agitou Kylie por dentro, mas a lógica interveio e ela sentiu que a intenção dele vinha da necessidade de protegê-la, não de controlá-la. Então Kylie percebeu que, se ela tinha se ressentido com o seu tom autoritário... Ela relanceou os olhos para Della. — Eu prefiro ajudar a despachar esses caras — Della rosnou. — É melhor a gente ir — aconselhou Kylie. Della franziu a testa, mas sua expressão dizia que ela ia ceder à vontade de Kylie. — Tudo bem. Eu não queria mesmo ficar mais tempo com esses cachorros. — Ela rosnou para os intrusos. Um dos guardas do senhor Parker deu um passo à frente em defesa, e tanto Kylie quanto Lucas avançaram um passo também. Esse pequeno passo não deixou dúvida de que nenhum deles permitiria que o guarda tocasse em Della. Kylie não deixou de perceber o olhar reprovador de Lucas para ela, como se dissesse que não queria que ela assumisse o papel de protetora. Mas isso era o que ela era. Uma protetora. Um camaleão protetor. Della fez uma careta para os dois, como se dissesse que não precisava da proteção de nenhum deles. — Vá. Por favor — disse Lucas. Kylie fez sinal para Della segui-la. Quando saíram dali, Kylie não resistiu a olhar para trás. Ela viu Lucas, sua postura defensiva, como se o pai trouxesse à tona o que havia de pior nele. Ela logo pensou no próprio pai e no padrasto. Nenhum deles a colocava na defensiva. Sim, seu padrasto tinha cometido alguns erros muito ruins, e Kylie ainda estava tentando perdoá-lo, mas, no fundo, ela sabia que ele a amava. E com seu pai de verdade, Daniel, bem, ele se importava tanto com ela que não tinha deixado nem mesmo a morte separá-los. Kylie percebeu que Lucas nunca tinha sentido nenhuma afeição pelo pai. Seu coração se condoeu por ele, e seu sangue se aqueceu com a necessidade de defendê-lo. Mas defendê-lo contra o quê? O que tinha trazido o senhor Parker ao acampamento? Algo lhe dizia que não tinha vindo apenas para dar um abraço em Lucas. Haveria algo errado com a avó de Lucas? Com sua meia-irmã? Uma pena que você não seja uma de nós. Essas palavras ecoaram em sua mente e em seu coração. Ele poderia estar no acampamento por causa dela? Protestando contra o fato de Lucas estar... intrigado com ela? — Burnett vai ficar tão puto com isso! — Della lamentou, seu ritmo apressado combinando com a irritação na voz. Kylie mordeu o lábio de preocupação, antes de expressar seus pensamentos. — É por isso mesmo que você não vai dizer nada a ele. Della olhou para Kylie. Os olhos da vampira ainda estavam brilhantes de fúria. — Eles são uns delinquentes. — Mas ele é o pai de Lucas. — E pensar que Lucas teria que enfrentar Burnett depois de já ter enfrentado o pai parecia injusto. — É contra os regulamentos. — Assim como era quando Chan apareceu — Kylie a lembrou. — E como Chan, o senhor Parker não fez mal a ninguém. Ele só queria falar com o filho. Della soltou um suspiro de frustração. — Sabe, eu realmente odeio quando você faz isso.
— Faço o quê? — Kylie evitou se chocar contra um galho balançando na frente dela. — Usar a lógica e esfregar no meu nariz o fato de que você está certa. — Eu não esfreguei no seu nariz. — Talvez não. Mas ainda assim eu não gosto. Elas andaram alguns minutos sem falar. — Obrigada por não contar — Kylie disse, sabendo que Della atenderia seu pedido. Elas avançaram pela vegetação densa, tendo apenas a canção da noite sussurrando por entre as árvores. Finalmente, Kylie falou: — Lucas não estava sozinho com Fredericka. — É, eu percebi — disse Della. — Mas... — Mas o quê? — Eu não sei. Quer dizer, eu sinto que encorajei você a ir se encontrar com Lucas e talvez eu estivesse errada. — Errada? — Kylie pegou Della pelo braço. — Você quer dizer errada por me pressionar, ou errada por achar que eu deveria ir atrás de Lucas? Della franziu a testa. — As duas coisas. — Por que diz isso? — Kylie perguntou, magoada por Della ter feito tal afirmação, especialmente quando seu coração já estava tão confuso. — Não é que eu não goste de Lucas, eu gosto. Mas ele é um lobisomem e você obviamente não é. Eu admito que antes pensei que fosse. Mas esta noite, quando fomos cercadas por aqueles lobisomens, tive certeza de que você não era como eles. E depois do que a avó dele disse e agora, depois do que o pai dele disse, acho que a família e a alcateia dele vão dificultar o relacionamento de vocês. — Ele me disse que não se importa com o que dizem. — E ela acreditou. De fato acreditou.
A tristeza encheu os olhos de Della e Kylie sentiu a mesma emoção ressoar dentro de si. Della expirou. — Foi o que Lee me disse. E veja o que aconteceu com a gente. Não é a mesma coisa. Enquanto Kylie esperava na varanda que Lucas aparecesse, ela pensou no que Della lhe dissera e no dia difícil que tivera de enfrentar. Ela havia falado com a mãe, que precisava se assegurar de que Kylie estava bem. Tinha falado com Holiday, que precisava da mesma coisa. Então seu telefone tocou novamente. Derek, dessa vez, fazendo a mesma pergunta. — Oi, eu só queria ter certeza de que está tudo bem — ele disse. Era engraçado, na verdade, como ela o conhecia bem. Ela sabia o que ele estava sentindo sem ele nunca ter que dizer e, portanto, sabia por que ele estava ligando. Derek obviamente tinha sentido algumas de suas emoções. — Está tudo bem. — Se você precisar conversar ou qualquer coisa, estou aqui. — Ele parecia tão melancólico que ela sentiu o coração ficar mais apertado. — Eu sei — respondeu ela. — E agradeço. — Você já descobriu alguma coisa sobre o fantasma? — Ainda não — Kylie admitiu, seu tom de voz deixando transparecer um pouco da frustração que sentia. — Você falou com Holiday sobre isso? — ele perguntou, parecendo genuinamente preocupado. — Até certo ponto — disse ela. — Mas eu não estava... Eu só falei por cima. — Ah, merda! — O que foi?
— É ela, não é? — Foi o rosto dela que o fantasma roubou. É Holiday. Kylie fechou os olhos. — Sim, mas, por favor, não diga nada. Estou tentando descobrir algo antes de contar a ela. — Ela está em perigo? Será que isso significa... alguma coisa? — De uma maneira indireta, perguntei a Holiday, e ela disse que era improvável. Mas... — Mas o quê? — É assustador — Kylie admitiu. — Vê-la como um fantasma sabendo que ela não está morta. — Claro que é. E você não deveria tentar descobrir tudo sozinha. Eu estou com você nisso. Não sei como ajudar a resolver, mas topo fazer o que for preciso. — Obrigada. — Ela encostou-se à parede da cabana, e logo em seguida foi atingida por uma onda de frio. Um frio mortal. — E eu não espero nada em troca — disse ele. — Aceito que somos apenas amigos. — Obrigada. — O espírito, idêntico a Holiday, estava em pé diante dela, olhando para baixo, com o rosto sério. — Eu preciso desligar. — Algo errado? — Derek perguntou, e ela não pôde deixar de se perguntar se ele podia senti-la agora. — É que... tenho companhia. — Lucas? — Seu tom expressou exatamente como ele se sentia com relação ao lobisomem. — Não. O fantasma. — Ah. Então, eu vou desligar. Mas Kylie... — Sim? — Ela ficou de pé porque não gostava de ver o espírito olhando para ela de cima. — Estou aqui se precisar de mim. — Ele parecia tão sincero...
— Eu sei — disse ela, sentindo as palavras vibrarem em seu peito. Ela desligou e sustentou o olhar esverdeado da mulher. — Acho que você devia escolhê-lo — disse o espírito. — O que disse? — Entre ele e o lobisomem. Eu gosto dele. Ele é fae. Kylie conteve a frustração. — Eu acho que seria melhor deixar que eu decida isso. — Só um pequeno conselho — disse o espírito. Kylie a estudou. — Você descobriu alguma coisa? — Na verdade, não, mas eu me lembro de algumas coisas. — Que tipo de coisas? — Assustadoras. — Você pode me contar? O espírito analisou Kylie com o mesmo tipo de olhar preocupado que Holiday sempre demonstrava. — Eu não acho que você precise ouvir. Você é... jovem. Kylie revirou os olhos. — Você veio aqui para eu te ajudar. Não posso ajudar se você não me contar nada. Ela piscou. — Eu não sei se é isso mesmo. — O quê? — Que eu vim para você me ajudar. — Ela ficou em silêncio por alguns instantes. — Eu acho que vim para você poder ajudar outra pessoa. — Quem? — Eu não sei exatamente. Mas eu sinto isso. — O que você sente?
— Que o perigo está por perto. — Seus olhos se encheram de preocupação. — Posso impedir que algo ruim aconteça? Ela inclinou a cabeça para um lado e considerou a questão. — Eu acho que sim. Acho que é por isso que eu vim. Assim, você poderá evitar. O coração de Kylie se encheu de esperança. Com certeza, se não fosse possível ajudar, o espírito saberia. Assim, mesmo que fosse Holiday, talvez Kylie pudesse salvá-la. Talvez a pessoa que o espírito deveria salvar fosse ela mesma e não soubesse. — Você já descobriu o seu nome? Ela balançou a cabeça. — Eu só fico me lembrando das mesmas coisas. Eu acho que é Hannah. — Por favor, me diga o que você sabe. Pode ser importante. Ela negou com a cabeça. — Eu não estou pronta para falar sobre isso. E não é a história inteira. São só fragmentos. — Por que você não está pronta para falar sobre isso? O espírito se virou e olhou para a floresta, como se tivesse ouvido algo. Kylie seguiu seu olhar. Ela não viu ninguém, mas, estranhamente, a sensação que tivera antes tinha retornado. Alguém estava lá. Chamando por ela. Quem é você? O que você quer? Kylie perguntou mentalmente. — Eles querem falar com você — disse o fantasma. — Quem? — Kylie perguntou. — E você disse “eles”? Como sabe que há mais de um? — De alguma forma, sei que há mais de um. Mas, se eu não sei o meu próprio nome, como posso saber quem eles são? — Você já os viu? Sabe o que eles querem de mim? Ela fez que não com a cabeça.
— Eu apenas os sinto. Estão chamando você. — Será que eles querem me fazer mal? — Kylie perguntou. — Eu... não posso dizer com certeza. Mas eles não parecem ruins. — Também não sinto que sejam ruins. — Ou talvez ela só quisesse acreditar nisso. Ela desceu os degraus. Estava quase chegando à floresta quando alguém agarrou seu braço, alguém vivo e quente.

Kylie se virou, o coração quase saindo pela boca. — Aonde vai? — Lucas perguntou. — A lugar nenhum. — Ela engoliu o pânico. — Eu estava esperando você e ouvi algo. — Não era totalmente mentira; ela tinha ouvido com o coração. Ele a puxou contra si. — Quando isso acontecer, você deve entrar na cabana, não ir para a floresta. Mesmo gente normal sabe disso quando assiste a filmes de terror. Ela revirou os olhos. — Eu teria entrado, se achasse que se tratava de algo ruim. — Mas às vezes não dá pra saber. — Ele deslizou a mão até a cintura dela. Kylie concordou com ele nesse ponto, e provavelmente precisava se lembrar disso também. No entanto, era difícil se lembrar de alguma coisa com ele tão perto. Tão perto que ela sentia sua respiração. O toque suave da sua palma aquecia sua pele sob a roupa. A ternura e o calor criando uma trilha que fazia formigar a sua pele. Ele baixou a cabeça e a fitou nos olhos. — Você faz ideia de como eu me sentiria se algo acontecesse a você? — Provavelmente da mesma forma que eu me sentiria se algo acontecesse a você — ela disse. — O que seu pai queria? Ele franziu a testa.
— É Clara, minha meia-irmã. Ela fugiu novamente. Disse a ele que estava vindo para cá, mas ele suspeita de que ela tenha voltado com o namorado. — Eu sinto muito. O que vai fazer? — Eu não sei. — Ele suspirou. — Já fui atrás dela duas vezes. Ela disse que queria vir para cá. Mas talvez tenha mentido. Se eu a trouxer contra a vontade, o que vai impedi-la de fugir? — E o namorado é tão ruim assim? Ele fez uma careta. — Ele é um fora da lei e está envolvido até o pescoço com uma gangue. — E isso faz dele automaticamente uma pessoa ruim? — Ela sabia que nem todos os seres sobrenaturais eram registrados, e para algumas pessoas isso por si só fazia com que fossem vistos como delinquentes, mas nem todos os seres sobrenaturais não registrados eram ruins. Della não considerava Chan um delinquente. E Kylie queria crer que seu avô e sua tia-avó também não fossem ruins. — Todas as gangues são ruins? Ele fez uma pausa antes de responder. — Não necessariamente, mas mesmo as gangues que não são completamente antiéticas geralmente estão na ilegalidade. — Drogas? — Kylie perguntou. — E outras coisas. Kylie se lembrava de como ela tinha se sentido mal por Lucas, quando o vira tão defensivo com relação ao próprio pai. Ela se lembrou de que ele tinha se voltado contra a própria família para protegê-la. Seu coração se compadeceu. — Se sua meia-irmã for ao menos parecida com o meio-irmão, ela vai fazer a coisa certa. — Ela ficou nas pontas dos pés e apertou seus lábios contra os dele. Já era tarde. Estava escuro. Mas o momento parecia tão certo... O que era para ser apenas um beijo rápido se prolongou e tornou-se algo mais. Muito mais. Lucas aprofundou o beijo e ela se apoiou nele. Sentiu o corpo do namorado pressionado contra o dela, rígido em todos os lugares em que ela era macia. Ela ouviu o ronronar que os lobisomens faziam quando estavam perto de um parceiro em potencial. Ficou quase hipnotizada, atraída pelo som, tentada e seduzida por tudo o que poderia vir depois. Ele tinha um gosto tão bom, um toque tão bom! Ela queria mais. Queria sentir mais. Provar mais. Experimentar mais. Então a magia desapareceu quando Lucas se afastou. Ele roçou a mão em seu rosto e, embora os olhos azuis ainda estivessem ardentes de paixão, ela percebeu que sua mente estava em outro lugar. — Sinto muito que o meu pai tenha assustado você. Ela lutou contra o desejo de lhe dizer para apenas beijá-la novamente. — Está tudo bem — ela disse, e tentou não parecer desapontada. — Não, não está. — Ele pegou a mão dela e conduziu-a até a varanda. — Ele afirmou logo de início que não estava ali para fazer mal a ninguém — ela explicou, querendo acalmar Lucas. Querendo tornar tudo mais fácil. — E você nunca deve acreditar nele — disse Lucas. Um leve sentimento de medo se instalou no peito de Kylie. Eles se sentaram na varanda, com as costas apoiadas na parede da cabana. Ele roçou o polegar sobre os lábios de Kylie. — Eu não quero meu pai perto de você. Ela fitou o olhar sério de Lucas. — Ele machucou você? — A necessidade de protegê-lo fez seu sangue correr mais rápido. — Não a mim. Eu sou filho dele. Mas ele não respeita mais ninguém.
— Se ele é tão ruim, por que você se encontrou com ele? Por que ainda se relaciona com ele? — Por Clara, principalmente. Mas agora... Eu preciso dele. — Por quê? — Sua aprovação vai ser uma grande ajuda para eu entrar no conselho dos lobisomens. O conselho do qual Lucas não faria parte se resolvesse se casar com ela. O pensamento lançou uma onda de apreensão através de Kylie ela se lembrou do que Della tinha dito sobre o relacionamento ser mais difícil entre eles, por causa da família e da alcateia. Ela afastou o pensamento e tentou entender. — Mas, se eles buscam a aprovação do seu pai, então por que você quer fazer parte desse conselho? Ele fechou os olhos por um segundo, como se a explicação fosse difícil. — Se eu fizer parte do conselho, então vou poder mudar as coisas. Kylie se lembrou da avó dele dizendo que ele queria mudar a forma como o mundo via as crianças criadas por sobrenaturais fora da lei. — Mas, até lá, eu tenho que convencê-lo de que vejo as coisas do jeito dele. — Que coisas? Ele balançou a cabeça lentamente. — Coisas que eu não acho que você precise saber. Kylie franziu a testa, não gostando de ser deixada de fora do mundo dele, mesmo sem ter certeza de que queria pertencer a ele. Ela apostava que Fredericka sabia tudo. — Mas eu preciso saber. Eu quero fazer parte da sua vida. Não quero ser excluída. — Não quero que a sua alcateia ou a sua família nos separem. Os olhos dele se estreitaram.
— Eu não estou excluindo você. Só prefiro que não conheça esse outro Lucas. Ela digeriu as palavras dele. — Só pode haver um Lucas. — Só existe um. O verdadeiro. Mas eu tenho que fingir na frente do meu pai e do conselho. Tenho que convencê-lo de que estou do lado dele. Ela balançou a cabeça. — Eu não entendo. — E eu não espero que entenda. Ela tirou a mão do braço dele. — Não está certo. Como você se sentiria se pensasse que eu escondo coisas de você? Seu rosto assumiu uma expressão de contrariedade. — Você esconde coisas de mim. Coisas sobre os seus fantasmas. — Os olhos de Lucas brilharam de frustração. — Coisas que você conta a Derek e não a mim. E você tem razão, eu não gosto disso. Ela refletiu sobre as palavras dele e sabia que era verdade. — Eu só escondo porque você não quer saber sobre essas coisas. Elas te deixam meio fora de si. Ele concordou e a aceitação brilhou em seus olhos, mas ela sabia que isso lhe custava muito. — E acredite em mim quando digo que você não gostaria de saber as coisas que eu mantenho em segredo. Ela olhou no fundo dos olhos dele, odiando a conversa, mas apenas porque ele era muito importante para ela. — Não é bom manter segredos. Eles podem separar as pessoas. Por que simplesmente não dizemos tudo um ao outro? — Às vezes, o que não sabemos nos protege. Não podemos nos magoar se não sabemos. — Ele encostou a testa na dela. — Eu posso prometer isso a você, Kylie Galen. Vou fazer o que quer que eu tenha que fazer, mas não vou deixar que isso te magoe.
Ela franziu o cenho. — O que você quer dizer com “o que quer que tenha que fazer”? — Quer dizer só isso. Eu não vou deixar que o que está acontecendo na minha vida confusa magoe você. As palavras dele a assustaram. Mas o medo era mais por Lucas do que por ela mesma. — Eu não sou uma garota frágil. Não sou a mesma menininha que você espiava da janela. Um ar de divertimento brilhou nos olhos sedutores e calorosos e Lucas. — Ah, isso eu já percebi. — Estou falando sério. — Eu sei. Mas você ainda é a minha garota, e eu quero protegê-la. Ela revirou os olhos em frustração. — Eu sou a protetora aqui. Isso é o que eu sou — Kylie insistiu. — Eu sei. Você é incrível e pode fazer coisas incríveis. E já salvou a minha vida. Mas, como protetora, a única coisa que não pode fazer é proteger a si mesma. Então, por favor, não tente me impedir de fazer isso. Na manhâ seguinte, Kylie acordou antes do nascer do sol. A única coisa de que estava consciente era de Socks dormindo sobre a sua barriga, o focinho pontudo do gambá descansando entre os seus seios. Ela levantou a cabeça e olhou para o animalzinho. Ele abriu um de seus olhos redondos e depois o outro, e olhou para ela com adoração. O tipo de olhar que se ganha apenas de um animal de estimação. O tipo de olhar que expressa puro amor e aceitação. O silêncio no quarto era absoluto. Sem saber direito o que a tinha despertado, ela puxou o braço para fora da coberta fina para sentir a temperatura. Nenhum frio. Nenhum fantasma.
E então ela ouviu. Ou a ouviu. — Bichano!... — Miranda chamando Socks da porta ligeiramente aberta. — Vamos, Socks. Você não quer ser transformado novamente num gatinho? Socks ficou de pé, pulou para o chão e correu para debaixo da cama. Kylie não tinha certeza se o aborrecimento do bichinho era por Miranda viver tentando transformá-lo em gato novamente ou porque ele não queria ser transformado. Considerando que Kylie tinha vivido um verdadeiro inferno nesses últimos meses, ela não podia culpar Socks. Mudar era algo assustador. Miranda abriu a porta um pouco mais. — Vamos, não dificulte as coisas. Kylie se apoiou no cotovelo e bocejou. — Acho que ele está com medo. Miranda entrou um pouco mais. — Eu acho que descobri. Só preciso levá-lo para fora e fazê-lo tomar a primeira luz da manhã. — Humm. — Kylie levantou-se, pousando os pés descalços na madeira fria do assoalho. Não estava fria demais? Ela deu mais uma olhada para verificar se havia algum fantasma ali. Não. Nada de fantasmas. — Desculpe se acordei você. Achei que eu pudesse me esgueirar até aí e agarrá-lo. — Miranda parecia bem acordada e de bom humor, quando se sentou na cama num pulo, sacudindo o colchão. — Tudo bem. Eu estava praticamente acordada — Kylie mentiu. Na verdade, tinha sido uma noite muito mal dormida. Depois que Lucas foi embora, Della se retirou para o seu quarto e Miranda ainda não tinha voltado para casa, de modo que Kylie pegou Socks no colo e foi para a cama. Não para dormir. Isso teria sido muito fácil. Ela se revirou na cama durante horas, remoendo seus problemas, e sem realmente resolver nenhum deles. No entanto, precisava admitir que ela já estava se acostumando a se ver como um camaleão. E parecia animada por já estar um dia mais perto de quinta-feira, quando seu avô verdadeiro viria visitá-la. Ou pelo menos ela estava rezando para que ele viesse. A lembrança da sua dificuldade para dormir la fez recordar de que a última vez que consultara o relógio, em torno das três horas da manhã, Miranda ainda não tinha voltado. — Então, você vai me contar? — Kylie perguntou. — Contar o quê? — O sorriso de Miranda estava cheio de malícia. Kylie estudou sua amiga com mais atenção. Ela usava as mesmas roupas que vestira na noite anterior. Será que Miranda tinha acordado para tentar transformar Socks novamente num gatinho, ou será que precisava de alguém para conversar? Não que Kylie se importasse. Ela tinha acordado Della e Miranda muitas noites, a maioria com sonhos ou visões assustadoras, mas, se ela precisasse apenas conversar, sabia que as amigas a ouviriam. — A que horas você chegou em casa, mocinha? — Kylie perguntou em tom de brincadeira. — Cedo. Eu juro. — Miranda deu uma risadinha. — Esta manhã. — Detalhes. Quero detalhes. — Kylie esfregou as mãos, imitando Miranda. — Não fique muito animada — disse Miranda. Então ela suspirou. — Nós não fizemos... você sabe. Mas nós estávamos... bem, você sabe. Kylie deixou o enigma dar voltas na sua mente sonolenta e balançou a cabeça. — Eu acho que captei o primeiro “você sabe”, mas estou meio perdida com relação ao segundo. Ainda sentindo frio na sola dos pés, ela puxou as pernas para cima do colchão. A escuridão do quarto se iluminou só com a presença de Miranda. — Nós nos beijamos, demos uns amassos... — O sorriso de Miranda se alargou, e então ela ficou com aquele olhar sentimental e apaixonado no rosto.
— Nós dormimos nos braços um do outro perto do riacho. Ele me abraçou durante toda a noite, e eu acho que estou apaixonada de verdade. É como se eu soubesse que pertenço a esse lugar. Aos braços dele. Kylie se lembrou das vezes em que ela havia adormecido nos braços de Lucas. Dizer que tinha sido incrível era pouco. Mas ela não tinha acordado sabendo com certeza que ele era o cara certo. Não conseguia se lembrar de ter sentido isso. Então, percebendo que esse momento era de Miranda, ela deixou os próprios sentimentos de lado. — Bem, estou feliz por você. — E Kylie estava. Mesmo que sentisse com um pouco de inveja, também. — Eu sei que você está. — O sorriso de Miranda desapareceu. — Mas eu não acho que Della vá se sentir da mesma forma. — É claro que vai — disse Kylie. — Ela só tem dificuldade para demonstrar. Lembra-se de como ela vivia incentivando você a fazer as pazes com Perry quando estava brava com ele? — Acho que sim — disse Miranda, não parecendo convencida. — Quer dizer, eu sinto como se não pudesse dizer nada sobre Perry perto dela agora. Percebi que ela está magoada com Lee e eu não quero fazê-la se sentir mal, mas eu também quero poder conversar com ela sobre o que está acontecendo na minha vida. E agora tudo o que está acontecendo na minha vida tem a ver com Perry. Sério, eu não quero viver pisando em ovos quando estou perto dela. — Eu acho que você está se preocupando à toa. Acredite em mim, daqui a alguns dias as coisas vão voltar ao normal e vocês vão estar se atracando por um motivo que não tem nada a ver com Perry. Miranda soltou o ar dos pulmões. — Você fala de um jeito que parece que brigamos o tempo todo. — Não o tempo todo — disse Kylie. — Apenas a maior parte do tempo. Miranda deu de ombros.
— Enfim, você acha que pode me ajudar a segurar Socks para eu ver se consigo reverter o feitiço? Perry me ouviu praticar por uma hora. Eu quero corrigir isso. — Miranda franziu o cenho. — Eu sinto como se fizesse tudo errado. — Você não faz tudo errado. — Kylie olhou para o chão. — Venha aqui, Socks. Venha aqui, baby. Miranda se deixou cair de costas no colchão. — Eu me sinto assim, especialmente quando minhas irmãs wiccanas me provocam. Eu sou uma droga de bruxa! — Elas provocam você por causa de Socks? — Kylie perguntou. — Sim, não que eu as culpe. Eu faço a maior bagunça. — Que se danem! — xingou Kylie. — Você deveria descobrir como enfeitiçá-las com uma dose de dislexia e ver como elas lidam com isso. — Elas não são ruins de verdade — disse Miranda. — Mas isso te magoa. — A raiva por Miranda queimava o peito de Kylie. Ela odiava bullying. Odiava que as pessoas colocassem as outras para baixo para se sentirem melhores com relação a si mesmas. Miranda se levantou da cama. — Mas elas estão apenas brincando. — Ela se ajoelhou e bateu os dedos no chão. — Aqui, gatinho! Gatinho! As palavras de Miranda pareciam ter sido sugadas pelas sombras nos cantos do quarto. Kylie tirou os pés do colchão e bateu um calcanhar contra o pé da cama. Ela esperou sentir Socks atacando seu tornozelo. A única coisa que sentiu foi ar gelado saindo de debaixo da cama. Um frio gelado que provocou em Kylie um mau pressentimento. Ela olhou para Miranda. — Por que você não vai lá fora e eu... eu pego Socks pra você. Ele provavelmente vai sair quando você for embora. — Por algum motivo, o quarto pareceu ficar mais escuro. Kylie esperava que Socks fosse a única coisa a sair de debaixo da cama.
Miranda se levantou. — Eu não sei por que ele não gosta de mim — ela murmurou e saiu. Kylie levantou-se cautelosamente e olhou embaixo da cama. — Socks? Gatinho? Nenhum gambazinho veio correndo de debaixo da cama. Nenhum miado baixo partiu dali para alertá-la de que ele estava bem. Respirando fundo, ela ficou de quatro e olhou a ponta imóvel da colcha. Ela lutou contra a tentação de assoprar o tecido. Por alguma estranha razão, queria ver algo se mover; a estranha imobilidade do tecido não parecia natural. Nada parecia certo. Ela estendeu o braço na direção do tecido de algodão para olhar embaixo, rezando para não encontrar nada mais do que um gambá assustado. Os dedos de Kylie quase tocavam a colcha quando um som — um gemido ou um grito estrangulado — ecoou embaixo da cama. Ela tirou a mão. Sem fôlego. Aquilo não se parecia em nada com Socks. Um frio gelado e antinatural serpentou de debaixo da cama. O vapor subia de detrás da colcha. Medo, um medo primitivo invadiu o peito de Kylie. Ela olhou para a porta. Seria bom se pudesse sair. Mas sabia que não conseguiria. O instinto lhe dizia que Socks não estava sozinho sob a cama. Ainda de quatro, ela arrastou o joelho um pouco para trás. Quantas vezes, quando criança, havia temido um monstro debaixo da cama? Quantas vezes sua mãe tinha afirmado que monstros não existiam? O gemido ecoou novamente. A mãe dela estava errada. Um monstro, ou algo igualmente assustador, se escondia debaixo da cama de Kylie. Ela não podia culpar a mãe pela mentira. Ela não sabia. Mas Kylie sabia. Não que isso importasse. Recusando-se a abandonar o seu animal de estimação, tentando desacelerar o coração enlouquecido, ela estendeu novamente o braço na direção da colcha. Bem diante dos seus dois dedos que pegavam o tecido de algodão, uma mão surgiu. Seu grito ficou estrangulado na garganta quando a mão, fria e sem vida, agarrou o braço de Kylie e puxou-o. Ela lutou para se libertar, arranhou com os dedos, torceu o braço, nada conseguia soltá-la. Nada funcionou. — Socorro! — ela gritou, mas ninguém a socorreu. Os dedos ao redor do seu punho apertaram, arrastando-a mais para perto. A última coisa que ela viu foi a colcha deslizando sobre seu rosto enquanto ela deslizava para uma sombria inconsciência. Seu último pensamento antes de sentir a mente entorpecida foi que ela ia finalmente conhecer o monstro debaixo da cama.

Kylie estava deitada de costas, em meio à escuridão. Uma escuridão profunda e tenebrosa. É apenas uma visão. Não é real. Não é real. Algo, dos dois lados do seu corpo, apertava com força os seus antebraços. Parecia real. Ela tentou se mover, mas não conseguiu. O medo cresceu dentro dela. Ela sentiu um gosto amargo na língua. Desorientada, tentou encontrar um sentido para tudo aquilo. Ao respirar, sentiu cheiro de terra. Terra molhada de chuva. Ela não estava sob a cama. Onde estava? Uma resposta lhe ocorreu e ela desejou que não tivesse. Ela estava enterrada. Outro grito ficou preso na garganta, mas a lógica lhe disse que isso não era real. Apenas uma visão. Mas de quem? E do quê? Holiday? O som da própria respiração deixando seus lábios parecia muito alto. Imediatamente, Kylie percebeu que não estava sozinha. Não era o barulho de outra pessoa respirando. Ninguém respirava, além dela. No entanto, o aperto em seu pulso não tinha afrouxado. Quem a havia arrastado até ali embaixo não tinha partido, alguém ainda se agarrava ao seu pulso, como se a vida dessa pessoa dependesse disso. Infelizmente, Kylie sabia que era tarde demais. Apenas ela estava viva. — Por que estou aqui? — Ela tentou se mover novamente, mas sentiu que algo a impedia. Nenhuma resposta. Piscando, sua visão lentamente se ajustou à escuridão. Ela viu uma tábua de madeira velha a poucos centímetros do seu rosto. Tentou libertar seu pulso do aperto, mas ele só aumentou. — Ah, merda. O que vocês fizeram? — Uma voz familiar ecoou na escuridão.
Holiday. — Eu estou aqui — Kylie chamou. Só que dessa vez as palavras não saíram da sua boca. Ela não podia falar. — Cara M. disse que podia nos ajudar a sair daqui — outra voz feminina respondeu. Soaram passos acima. O assoalho de madeira rangeu. Terra e sujeira caíram sobre o rosto de Kylie. Ela piscou, para tirar a terra dos olhos, e tentou segurar a respiração para não engasgar. — Ele está indo embora — alguém sussurrou. Kylie piscou e, quando abriu os olhos, tudo tinha mudado. Ela estava numa velha cabana em ruínas, olhando para tábuas de madeira sob os pés. Então, como se o chão se desvanecesse, Kylie viu o que estava escondido embaixo. Três corpos em decomposição, posicionados lado a lado. Um grito saiu dos lábios de Kylie. Ela tentou correr, mas seus pés pareciam congelados. Tentou desviar o olhar, mas não conseguiu. Um dos cadáveres era de uma mulher com o cabelo escuro, provavelmente com vinte e poucos anos, vestindo uma camisola. A segunda era de uma loira em torno da mesma idade, vestindo um uniforme de garçonete com um crachá preso nele onde se lia Cara M. E o terceiro... Oh, Deus! Era Holiday. Lágrimas encheram os olhos de Kylie. Ela gritou mais alto quando percebeu que estava mais uma vez deitada de costas. A escuridão a engolia. O pânico aumentou quando sentiu algo se movendo ao seu lado. A adrenalina jorrava em suas veias. Ela pulou e bateu a cabeça com tanta força que sacudiu o seu cérebro. Caiu de costas novamente. — Onde diabos você está? — Uma voz ecoou em torno dela. Um voz familiar. A voz de Della. — Aqui! — A luz de repente ofuscou a visão de Kylie. — O que você está fazendo aí? Kylie engasgou, engoliu seu grito e percebeu que estava deitada no chão do seu quarto com Socks tremendo ao seu lado.
— Você é mesmo muito estranha... — Della, parecendo sonolenta e irritada, estava em pé sobre Kylie, segurando a cama acima da cabeça. Sim, a cama de casal — cama e colchão. Segurando-a como se ela não passasse de um pedaço de espuma. Socks soltou um miado fraco. Com receio de que Della deixasse a cama cair, Kylie pegou no colo o gambazinho e ficou de pé. Seus joelhos vacilaram, o gambá tremia em seus braços. Ela olhou para baixo, rezando para ver o chão do quarto e não uma cova. Nenhuma sepultura. Nenhuma garota morta. Nem Holiday morta. Kylie inspirou. Por mais que quisesse afastar a horrível memória do seu cérebro, ela não podia. Algo na visão poderia ajudá-la. Ajudá-la a descobrir como poderia impedir que isso acontecesse. Ajudá-la a salvar a vida de Holiday. — Mas que diabos está acontecendo? — Della perguntou novamente. — Ou será que eu nem vou querer saber? — Desculpe. Foi só um sonho ruim. — A voz de Kylie tremeu. Della deixou a cama cair. Ela bateu no chão com um ruído estrondoso. — Há um fantasma aqui? — Della olhou ao redor, obviamente não acreditando na desculpa de Kylie sobre o sonho ruim. Kylie levou um segundo para sentir a temperatura. — Não — ela disse, honestamente. Della estudou-a, sua expressão se suavizando. — Você está bem? Kylie assentiu e viu a carranca de Della voltar. — E você não vai explicar isso? — Della perguntou. Kylie balançou a cabeça. Della de fato não ia querer saber. — Então boa noite! — A vampirinha disparou para fora do quarto, deixando-o tão rapidamente quanto tinha aparecido.
Kylie encheu os pulmões de ar. Depois expirou. Tentou acalmar o coração acelerado. Ela tentou ver o lado bom da visão — o lado bom de estar numa cova com três corpos em decomposição. Não era uma tarefa fácil. No entanto, pelo menos tinha algo para investigar. Mas será que isso a ajudaria? Oh, Deus, tinha que ajudar, não é? Ela puxou Socks mais para perto, oferecendo conforto e ao mesmo tempo buscando-o, enquanto abraçava alguém tão assustado quanto ela. Poderia ter funcionado se uma batida forte em sua janela não tivesse feito seu coração quase saltar pela boca. Kylie deu um pulo e quase foi parar do outro lado do quarto. Outro grito se formou em seu peito, mas antes que ela o libertasse, viu Miranda espiando pela janela, a palma da mão pressionada contra o vidro. — Você vem? — ela gritou. — Nós vamos perder a primeira luz da manhã. O frio se espalhou pelo quarto. E o espírito apareceu. Kylie olhou para o fantasma, que parecia exatamente como Holiday. — Eu sinto muito. Ela não devia ter feito aquilo. Kylie tentou não imaginar Holiday, ou que Deus a ajudasse, a sósia de Holiday, com a aparência que ela tinha na sepultura. — Está tudo bem — disse Kylie, com sinceridade. Ela podia lidar com aquilo. Se conversar com pessoas mortas pouparia a vida de Holiday, ela faria isso. Droga, até dançava com os mortos se isso significasse salvar Holiday. — Eu preciso saber o que aconteceu — disse Kylie. — Você precisa me mostrar, para que eu possa saber como ajudar você. — Mostrar o quê? — Miranda perguntou. Kylie ignorou Miranda. O espírito balançou a cabeça. — Eu te disse, não acho que seja a mim que você tem que ajudar.
E não é que, igualzinha a Holiday, Kylie pensou, essa também teimava em não aceitar ajuda? Mesmo na forma de um fantasma? — A única ajuda que eu preciso é que você traga Socks aqui para fora — gritou Miranda da janela de novo. — Você deveria ir — Holiday disse. — Esse pequenino gostaria de ser um gato novamente. Kylie olhou para Miranda e depois voltou a fitar o espírito. — Como você sabe o que ele quer? — É um dos meus dons, eu posso me comunicar com os animais. — Não, você não pode — disse Kylie. Ou melhor, Holiday não podia se comunicar com os animais. Será que seres sobrenaturais adquirem dons diferentes depois que morrem? Kylie achava que não. Isso significava que ela não era Holiday? E se não era, quem era então? — Tudo bem, você quer que ele continue sendo um gambá — disse Miranda com irritação na voz. Socks escolheu esse momento para colocar a pata sobre os olhos e Kylie gemeu. Alguns minutos depois, Kylie saiu da cabana com Socks aconchegado em seu peito. Ainda estava escuro e silencioso, como se o mundo não tivesse acordado ainda. Ao contrário dela, o mundo lá fora não despertava com bruxas ou visões de pessoas mortas. O ar da manhã ainda estava frio, um dos primeiros sinais de que o verão estava acabando e o outono logo iria substituí-lo. Quando deu um passo para a frente, ela sentiu. O chamado. Seu olhar se desviou para a borda da floresta. O coração disparou e a tentação de se aproximar sussurrou seu nome como um velho amigo. Kylie deu mais um passo, quase atendendo ao anseio inexplicável, mas a voz de Miranda a puxou de volta. — Por que demorou tanto? — Eu tive que tirá-lo de debaixo da cama — disse Kylie, sem ânimo para reverter feitiços, mas lembrou-se da insegurança na voz de Miranda quando tinha contado que as outras bruxas a provocavam por causa disso. Como a primeira luz da manhã durava apenas alguns minutos, era um preço pequeno a pagar pela felicidade da amiga. Então Kylie sentou-se e recapitulou o que tinha descoberto no sonho. Alguma coisa nele tinha que ajudá-la a entender as visões. Miranda, segurando a bolsinha preta onde carregava as suas ervas mágicas, levou Kylie até os fundos da cabana. — Eu não judiei dele. Não sei por que ele não gosta de mim. — Eu sei. — Depois de um mês sendo perseguido por Miranda, na tentativa de reverter o feitiço, Socks tinha começado a olhá-la com desconfiança. Kylie também tinha começado a olhá-la assim. Miranda olhou para o céu e viu os primeiros raios do sol. — Está na hora. — Ela ensaiou alguns passinhos de comemoração. — Coloque Socks no chão. Kylie fez um carinho no pelo preto e branco de Socks. Por mais absurdo que parecesse, ela sentiria falta do seu lado gambá. Apreciando pela última vez a visão do animalzinho na pele de gambá, Kylie o colocou no chão e se afastou, dando espaço para Miranda fazer a sua magia. Naturalmente, Socks começou a seguir Kylie, sem querer ficar para trás. — Fique aí! — Kylie mandou, fazendo um sinal para Miranda começar. Miranda deu início ao encantamento. Algo sobre a luz e o verdadeiro eu. Socks começou a andar novamente. Miranda acenou para Kylie pegá-lo. Kylie falou suavemente com o gambá e ele ficou parado. Então, estendendo a mão na direção da bolsa, Miranda tirou dali uma pitada de uma coisa estranha parecida com uma erva. Ela a jogou no ar sobre Socks; alguns fragmentos estalaram e chiaram enquanto caíam em torno dele. Kylie prendeu a respiração, esperando ver seu amado animal de estimação se transformar num felino. Mas nada. O animalzinho com uma listra branca nas costas permaneceu em sua forma de gambá.
Miranda franziu o cenho para o céu e começou a entoar o feitiço novamente. Espalhou mais ervas no ar. Dessa vez, Socks levantou-se sobre as perninhas peludas de trás e golpeou as faíscas com as patas minúsculas. No entanto, mesmo depois de todas aquelas ervas chiando, ele continuou sendo o mesmo gambá bicolor. Miranda olhou para o céu, desesperada, e começou a repetir o encantamento. Levantou a bolsinha preta sobre a cabeça e apenas sacudiu-a sobre o animal. Socks viu a alça da bolsa pendurada e pulou no ar para apanhá-la. Quando Miranda puxou-a para trás, o gambazinho começou a se afastar. — Pare já! — A frustração de Miranda era alta e clara. Kylie ajoelhou-se e acenou para que o animal voltasse. Seus olhos negros e redondos olhavam para ela, confusos. A compaixão pelo animal encheu seu peito. Miranda começou a entoar o feitiço mais uma vez. Socks tentou fugir novamente. Miranda insistiu para que Kylie o segurasse de novo. Ela continuou por mais vários minutos até que Kylie ergueu a mão, interrompendo a amiga. — Isso não vai funcionar. — Tem que funcionar! — disse Miranda. — Eu só tenho mais alguns minutos antes de o sol nascer. Só faça com que ele fique quieto. Como se Socks entendesse, ele correu e passou entre as pernas de Miranda. — Não! — disse Miranda. Kylie pegou o animal confuso. — Eu acho que para ele já chega — Kylie disse no seu tom de voz mais simpático. — Mas ele ainda é um gambá. Coloque-o no chão, por favor. Eu posso fazer isso. Tenho que fazer isso.
Kylie entendia a necessidade de Miranda de provar para si mesma a sua competência, mas... — Não dá pra tentar novamente amanhã? — Só mais uma vez. É rapidinho, tá? Tudo o que ele tem de fazer é ficar parado. Cedendo, Kylie colocou Socks no chão e Miranda voltou a recitar o feitiço. Quando Miranda parou e viu que Socks ainda era um gambá, Kylie lançou para a amiga um olhar de condolências. — Tudo bem. Vamos tentar outra hora — Kylie disse, começando a perder a paciência. — Espere. Eu me esqueci de abençoar a luz e o vento. — Miranda fez uma pausa enquanto se recordava das palavras. Kylie estendeu a mão, com o mindinho para cima, e murmurou: — Por que não pode simplesmente mexer o dedo mindinho na direção dele e dizer “volte a ser um gato”? Os fragmentos de ervas deixados no chão se levantaram no ar. Estalaram e emitiram um chiado em torno do pequeno gambá e então começaram a rodopiar em torno dele como um minúsculo tornado. Socks, de pé sobre as patas traseiras, dava patadas nos pedacinhos de ervas. E então, num passe de mágica — bem, era de fato magia —, o gambá desapareceu e Socks, o gato, surgiu em seu lugar. Miranda olhou boquiaberta para Kylie. — Como você fez isso? O olhar de Kylie estava preso no gatinho, que ainda golpeava com a pata as ervas flutuando em torno dele. — Eu não fiz isso! — Ela olhou para Miranda. — Minha nossa! — Miranda gritou. Alguém tinha passado por elas como um borrão. — Que diabos é isso agora? — Della parou diante de Miranda, derrapando.
— Ela é uma bruxa! — Miranda apontou para Kylie. — Você é uma bruxa! Kylie balançou a cabeça. Ela era um camaleão. — Eu não fiz isso. Foi você. Só que... foi uma reação retardada. — Não. Você é uma bruxa. Agora, você é uma bruxa. Della revirou os olhos. — Mas que droga está acontecendo aqui? — Eu estou dizendo, eu não fiz isso — Kylie insistiu. Ela não tinha feito mesmo. Ou tinha? Della olhou para Kylie. — Caraca! — exclamou Della. Miranda deu alguns tapinhas na testa. — O seu padrão diz que você é uma bruxa. — Qual o problema? — Uma voz masculina soou atrás de Kylie. Kylie se virou. Derek, parecendo despenteado como se tivesse saído da cama às pressas, chegou correndo. — Ela é uma bruxa! — gritou Miranda. — Não sou! — discordou Kylie. Girando, ela olhou para Socks, ainda em sua forma felina. Seu pai tinha dito que ela era um camaleão. Seu pai devia saber, não é? Claro, a princípio ela não queria ser um lagarto, mas agora tinha aceitado. Além disso, por que seu pai mentiria? Com o canto do olho, ela viu Derek movendo-se para a frente dela. Sua testa se franziu. — Não é verdade, é? — Kylie esperou que Derek negasse. Ela se encheu de dúvida. Daniel teria mentido? Será que sua avó tinha se confundido quando disse ao pai de Kylie que eram camaleões? Mas como Burnett já tinha ouvido falar de camaleões se eles não existiam? Por que a vida tinha que ser tão difícil? — Me diga já! — Kylie insistiu. — Eu sou uma bruxa?

Derek confirmou com a cabeça. — É verdade. Seu padrão diz que você é uma bruxa. Miranda cruzou os braços sobre o peito. — Você não quer ser uma bruxa? — Ela parecia ofendida. — É claro que ela não quer ser uma bruxa! — Della deixou escapar, ainda parecendo chateada por ter sido tirada da cama. — É chato à beça. Você não faz nada além de ficar espalhando ervas por aí, e a única maneira de voar é numa vassoura. — Não é chato! E eu não posso voar numa vassoura! Eu juro, uma vez uma bruxa fez isso e agora estamos todas estereotipadas. — Os olhos de Miranda se apertaram de raiva. — Admita — disse Della. — Se pudesse escolher a espécie que seria, você preferiria ser uma vampira. Miranda balançou a cabeça com veemência. — Quem gostaria de ser um chupador de sangue, ter o corpo gelado e presas! Kylie olhou para as duas amigas agredindo-se verbalmente, trocando insultos numa velocidade tão grande que ela não conseguia nem acompanhar. Então, muito confusa para intervir, pegou Socks no colo antes que ele entrasse na floresta. Seu olhar se desviou para as árvores. O bosque ainda a chamava. Que diabos estaria acontecendo? Sua mente girava enquanto se dirigia para a cabana. Derek subiu um degrau ao lado dela. Sua camisa, desabotoada, flutuava aberta, expondo os músculos do abdômen. Não que ela tivesse notado. Ok, ela tinha notado... mas isso não significava nada. Só que ela era uma garota e as garotas gostam de admirar caras sem camisa.
— Você está confusa — Derek constatou. — Pode apostar. — Ela não tinha se acalmado ainda. Não podia. Estava muito irritada por ainda se sentir tão atraída por ele. Muito irritada com o maldito bosque chamando-a, como um velho amigo fazendo um convite para sair e tomar uma cerveja. Ela não tinha velhos amigos. Nem ninguém que estivesse na floresta. — Você está se sentindo traída — disse ele. — É isso aí. Bem, mais ou menos. — Ela continuou até a cabana e aconchegou o gatinho ao peito. Seu coração doía e lágrimas brotaram em seus olhos. — E você está com medo. — Na mosca! — confirmou ela. No entanto, tudo o que ela sentia agora era... — ... frustração — Derek concluiu o pensamento por ela. Ela parou e olhou-o nos olhos. — Você não tem que me dizer como eu me sinto. Eu sei o que estou sentindo. — E está de mau humor — acrescentou com um sorriso. Quando ela não respondeu no mesmo tom, o humor dele se desvaneceu. — Desculpe. Estou apenas... querendo entender. — Você sabe o que estou sentindo, o que mais precisa entender? Ela acabou de subir os degraus da varanda com Socks embaixo do braço e abriu a porta com tanta força que a madeira estalou ao bater na parede. Socks se encolheu. Derek seguiu-a para dentro. — Conheço as suas emoções, mas não posso adivinhar o que a fez se sentir assim. Ela desabou no sofá e segurou Socks no colo. — Olha, eu estou num estado de espírito muito ruim agora, e sugiro que você vá embora. Derek sentou-se ao seu lado, ignorou o que ela disse e continuou:
— Por exemplo, sei que você está com medo, mas do quê? Você está frustrada porque é uma bruxa ou porque as suas duas melhores amigas não param de brigar? E por que está se sentindo traída agora? Está sentindo que eu a traí? É por causa... — Não! — ela disse antes que ele mencionasse Ellie e ela tivesse que lidar com essas emoções também. — Não é você. — Ou talvez fosse um pouco, ela pensou, lembrando-se do comentário de Miranda de que ela falava de Derek o tempo todo. — É por causa de Lucas? — perguntou. — Se for você pode me dizer. Eu quero ajudá-la e, se isso significa ouvir os seus problemas com ele, tudo bem. Ela puxou Socks para mais perto. — Não é Lucas. — Mas então ela se lembrou do encontro da noite anterior, quando Lucas tinha admitido que guardava segredos dela. A longa pausa encheu a sala. Derek se inclinou, seu ombro tocou o de Kylie, e seu dom de cura emocional fluiu até ela como uma bem-vinda lufada de ar fresco. Ela não tinha dúvida de que o toque tinha sido de propósito, que ele tinha a intenção de ajudá-la. Ela olhou para Socks, depois para Derek, tentando acalmar suas emoções. Tentando não ser desagradável. — Diga do que você tem medo. Eu quero ajudar. — Ele olhou para a testa dela. — Será que ser uma bruxa te assusta tanto assim? — Eu não sou uma bruxa — ela disse, sem conseguir se conter. Mesmo com o caloroso toque tranquilizante de Derek, ela sentia a frustração aumentando. Então se lembrou da transformação mágica de Socks. Ela tinha feito aquilo? — Pelo menos eu acho que não. Não que eu não queira ser uma bruxa, é que... Por que o meu pai diria que eu sou um camaleão se isso não fosse verdade? Eu não acho que a minha avó tenha inventado isso. E por que Burnett teria ouvido falar sobre essa espécie se ela não existe? — Burnett já ouviu sobre ela? Ela assentiu.
— Nada concreto, só leu a palavra em alguns relatórios. — Ela tocou a testa. O que aquilo tudo significava? — O meu padrão está mesmo dizendo que eu sou uma bruxa? Ele confirmou, como se estivesse com receio de desapontá-la, então perguntou: — O que está acontecendo? Eu acordei esta manhã depois de um pesadelo horrível. Não consigo me lembrar dele, só sei que você estava em apuros. Quando acordei de fato, me dei conta de que você podia estar mesmo em apuros e que eu podia ter sonhado com as emoções que estava captando de você. Então eu senti todas essas outras emoções vindo de você. É por causa do fantasma? O fantasma de Holiday? — Eu tive uma visão — ela disse, por fim, precisando desabafar com alguém. Precisando recapitular tudo o que ela tinha descoberto com a visão. — Havia três corpos numa cova. — Três? Então é como se fossem assassinatos em série. Socks se agitou no colo dela e enfiou o focinho sob o seu braço, quase como se tivesse entendido o que Derek dissera. Kylie acariciou o pelo macio e preto do felino. Felino. Ela tinha mesmo feito aquilo? Tinha revertido o feitiço? — Acho que sim — Kylie mordeu o lábio e deixou de lado aquelas perguntas para se concentrar em algo mais importante. — Holiday, ou alguém que se parecia com Holiday, era um deles. — Ela recapitulou todas as coisas que sua intuição lhe dizia que eram importantes. — Os corpos foram enterrados embaixo de uma velha cabana. — Seu peito enrijeceu. — Ver Holiday daquele jeito... foi terrível. — Posso imaginar — disse Derek. — Você não disse que as visões eram como um quebra-cabeça que ajuda você a montar um quadro do que aconteceu? Ela assentiu com a cabeça. — Mas não foi o fantasma parecido com Holiday que me proporcionou a visão. — Foi uma das outras garotas. Eu acho que ela quer ser encontrada, para que possa ser retirada da cova. Por isso eu ainda não sei se a visão vai me ajudar. Ou talvez ajude. Não sei. — Ela sentiu um aperto no peito. — Por que elas não podem simplesmente me dizer do que precisam? — Talvez, se você me contar sobre a visão, eu possa ajudá-la a descobrir alguma coisa. Ela olhou para Derek. — Como? — Eu trabalhei para um detetive particular. Aprendi um pouco sobre como fazer investigações e desvendar mistérios. Sou bom nisso. Kylie acariciou o pescoço de Socks enquanto tentava pensar em alguma coisa que pudesse ajudá-los a entender a visão. — Uma das garotas estava vestindo um uniforme de garçonete. Como os daquelas lanchonetes que parecem um vagãorestaurante. Não sei por que, mas o uniforme parecia conhecido. E ela usava um crachá onde estava escrito “Cara M.”. As outras até a chamavam de Cara M., não apenas de Cara, como se não a conhecessem bem, mas a chamavam assim por causa do nome escrito no crachá. — É uma boa dica — disse Derek. — Talvez você possa fazer uma relação de todas as lanchonetes desse tipo em que esteve ultimamente. Vou fazer uma pesquisa na internet para ver se encontro fotos de uniformes como esse. Enquanto a mente de Kylie dava voltas tentando encontrar outros detalhes que pudessem ajudá-los, ela se lembrou da visita do espírito logo antes de ela sair da cabana para levar Socks até Miranda. — O que está te deixando intrigada? — ele perguntou, sentindo as emoções dela. Kylie observou o gatinho descer do sofá ainda achando difícil acreditar que ele não era mais um gambá. — O espírito me disse que Socks queria ser transformado em gato novamente. Quando perguntei como ela sabia disso, disse que podia se comunicar com os animais.
— Holiday não pode se comunicar com os animais. — Os olhos de Derek se arregalaram. — Espere aí. Ela não pode, mas conhece alguém... alguém bem próximo a ela, que é uma fada puro-sangue e de fato tem uma pequena capacidade para fazer isso. — Tem certeza? — Kylie perguntou. — Ela me contou durante uma das sessões de aconselhamento. — Ela disse quem era? — Não, mas... tenho o palpite de que é alguém próximo. Eu senti as emoções dela quando falou dessa pessoa. Mas logo ela mudou de assunto. Kylie balançou a cabeça, como se entendesse. Holiday era muito boa em mudar de assunto quando algo ficava muito pessoal. — Então, se essa pessoa era próxima a Holiday, é compreensível que tenha assumido a aparência de Holiday quando virou fantasma. Kylie refletiu sobre isso por um momento, sentindo algum alívio. Isso lhe deu, pela primeira vez, esperança de que Holiday não estava em perigo. Kylie suspirou. O sol da manhã já devia estar mais alto no céu, pois ela viu os primeiros raios dourados entrarem pela janela e iluminarem o assoalho de madeira. — Então, como descobrimos quem é essa pessoa? — Eu posso tocar no assunto novamente na próxima sessão de aconselhamento com Holiday. É esta tarde. Como eu disse, ela não quis falar a respeito, mas talvez eu consiga fazê-la se abrir mais durante a conversa. As palavras de Derek a fizeram se desviar do problema que discutiam. — Você ainda faz aconselhamento com Holiday? Ele franziu a testa. — Não faço aconselhamento porque me sinta confuso nem nada. Só conversamos... Como vocês duas fazem.
— Eu não disse como se fosse uma coisa ruim. Só não sabia que você se encontrava com ela regularmente. — Faço isso desde que cheguei ao acampamento. — Eu sabia que você tinha sessões no começo, mas não achava que ainda fizesse. — Passei um tempo sem fazer. Mas desde que voltei... comecei a vê-la de novo. Antes que pudesse evitar, ela fez a pergunta: — Você fala sobre mim? — Um pouco — ele admitiu, parecendo culpado. Ela quase pediu detalhes, mas o bom senso a deteve. Não precisava saber. Especialmente, quando se tratava dos sentimentos dele por ela. Quanto menos ela soubesse, ou pensasse na sua declaração de amor, mais fácil seria. O olhar de Kylie, como que por vontade própria, baixou até o peito nu de Derek. Recriminando-se, ela se levantou do sofá num salto. — Acho que vou falar com Holiday agora sobre toda essa coisa de ser bruxa. — Vai comentar sobre a visão? Ela pensou por um instante na pergunta, mas seu coração dizia que não. A mensagem veio com tanta certeza que ela se perguntou se não seria um conselho divino. — Ainda não. Se eu não conseguir nada num dia ou dois, acho que é melhor eu comentar. Ele assentiu. — Mais tarde vou ver o que eu consigo descobrir. — Ele se levantou. — Vamos. Os raios do sol através da janela bateram em cheio no peito dele, fazendo sua pele nua ficar ainda mais dourada. — Tudo bem — ela gaguejou. — Você não precisa... se demorar... A decepção faiscou nos olhos verdes de Derek.
— Preciso sim. Sou a sua sombra até o café da manhã. Ah, mas que ótimo! O olhar dela passeou novamente pelo interior da camisa desabotoada de Derek. Ela teria que olhar, ou tentar não olhar, para o peito dele a manhã inteira? — Então pelo menos abotoe a camisa. — As palavras saíram antes que ela percebesse a impressão que dariam. A decepção nos olhos dele se desvaneceu e um brilho sensual a substituiu, destacando as raias douradas em suas íris, que ela tanto admirava. — Por quê? — ele perguntou. — Incomoda você? Ela olhou para ele. — Não se atreva. — Então, para ser bem clara, ela sacudiu o dedo mindinho para ele. — Eu posso ter poderes que você não vai querer conhecer. E como eu não sei como usá-los, realmente posso fazer um estrago e tanto com uma pessoa. Por acidente, é claro. Ele levantou as mãos, mostrando completa submissão. — Não vou me atrever. Juro. — Mas o sorriso sexy nos seus lábios permaneceu enquanto ele abotoava a camisa. Que maravilha, ela pensou. Ele provavelmente tinha lido as emoções dela e presumido que ele ainda a atraía. O que era verdade, mas não do jeito que ele pensava. Tudo bem, era do jeito que ele pensava, mas não significava nada. Ou pelo menos ela estava tentando se convencer disso enquanto saía pela porta da frente. Derek seguiu logo atrás dela. Quando os dois passaram, as duas colegas de alojamento de Kylie ainda trocavam insultos. Kylie nem olhou para trás. Se elas queriam estripar uma a outra, não deveriam mais perder tempo e fazer isso logo, não é? — Não entre em pânico — Holiday disse depois que Kylie entrou na cabana, apontou para a própria testa e explicou que ela podia ter feito magia e transformado Socks novamente num gatinho. — O pânico não ajuda em nada — a fae continuou, embora não despregasse os olhos do padrão de Kylie.
Podia não ajudar em nada, mas Kylie podia ver o pânico nos olhos de Holiday. Bem, talvez fosse mais confusão do que pânico propriamente. Sem dúvida Kylie tinha no rosto a mesma expressão. Embora no caso dela fosse pânico de fato. E não tanto porque tinha se tornado uma bruxa, mas sim por ver Holiday e as imagens da visão que ainda eram vívidas em sua mente. Sobre a visão ela não precisava contar. — Certo, então conte exatamente o que aconteceu — disse Holiday. — Foi como eu disse. — Kylie se sentou na cadeira em frente à escrivaninha de Holiday. — Miranda estava tentando transformar Socks num gato novamente, entoando encantamentos e tal, mas sem conseguir muita coisa. Eu estava preocupada com Socks; ele não queria mais ficar lá. Então apontei meu dedo mindinho para ele e disse algo como “Por que você simplesmente não diz ‘Volte a ser um gato’?”, e então aconteceu. Holiday balançou a cabeça, como se entendesse, e continuou a observar o padrão de Kylie, como se esperasse que ele se modificasse a qualquer momento. — Eu sou mesmo uma bruxa? A fae franziu a testa. — Sim. Mas... ontem você era humana e antes disso tinha... um padrão que ninguém conseguiu reconhecer. — Então você acha que o padrão de bruxa vai mudar? Holiday pareceu pedir desculpas com os olhos antes mesmo de responder. — Eu não tenho certeza, mas... é bem provável que você seja uma bruxa. Quer dizer, se você realmente tiver poderes. — Mas os poderes podem desaparecer também. — Kylie suspirou. — Mas... se você tem poderes, obviamente também tem DNA de bruxa. Ao contrário do padrão, o DNA é permanente — disse Holiday, embora sem muita convicção. — No entanto, as bruxas não correm na velocidade em que você corre, nem têm uma audição mais sensível. A maioria também não tem dons de cura como você possui. E muito poucas são capazes de ter sonhos lúcidos. — Agora Holiday estava mais pensando alto do que falando com Kylie. — É claro que tudo isso pode ter relação com o fato de você ser uma protetora. Ou pode ser também porque você é uma híbrida. Alguns híbridos podem ter... — E quanto a falar com fantasmas? As bruxas são capazes disso? — Kylie perguntou. — Algumas, mas não todas. — Holiday coçou o queixo, como se estivesse intrigada. — Mas o que é realmente estranho é que você parece ser totalmente bruxa agora. Mas aposto que o fato de você ser uma protetora pode ter... afetado isso. Holiday se reclinou na cadeira, como se estivesse perplexa. — Você já tentou descobrir se é capaz de fazer mais alguma coisa? — Como o quê? — Kylie perguntou. — Magia? — Não — respondeu Kylie. — E se eu causar algum tipo de estrago? Como Miranda. Eu poderia transformar alguém num canguru ou até em algo pior. — Duvido que fizesse isso. Por que você não tenta simplesmente mudar algo de lugar? — Holiday empurrou um peso de papel vermelho de couro, em forma de coração, para a ponta da escrivaninha. — Não sei... — Kylie mordeu o lábio. — É assustador demais. — Nem tanto. Simplesmente tente. — Ela fez uma careta. — E esteja preparada para se desviar, se preciso. — Ah, isso faz com que eu me sinta muito melhor! Holiday deu uma risadinha. — Tente. Kylie respirou fundo, então apontou o mindinho para o coração vermelho e disse: — Mexa-se! Nada aconteceu. Kylie expirou e riu.
— Viu? Não sou uma bruxa. Então o peso de papel começou a tremer... ou pulsar. Pelo menos era o que parecia. Batia, bombeava, como um coração de verdade. — Uau! — exclamou Kylie. Ou a exclamação ecoou pelo cômodo ou Holiday deixou escapar a mesma expressão de surpresa. — Fui eu que fiz isso? Holiday não respondeu; ela estava ocupada demais observando o coração pulsante. Então a coisa flutuou e cruzou a sala como uma flecha. — Desvie! — Holiday gritou. Kylie se abaixou justamente quando o peso passou zunindo. Infelizmente, Burnett estava entrando na sala nesse mesmo instante. O coração o atingiu em cheio.

O peso de papel em forma de coração atingiu Burnett no peito. Chocado, ele tentou capturá-lo, mas não conseguiu. O peso se chocou contra o seu tronco musculoso e retrocedeu com o impacto. Parou no meio da sala, flutuando no ar como se estivesse cheio de gás hélio, e então disparou para a frente, tendo novamente Burnett como alvo. E, como da primeira vez, acertou na mosca. Mas esse golpe foi muito... muito pior. Direto na virilha. Ou, como diria Della, “suas bolas tomaram um direto na cara”. — Mas que diabos?! — ele rosnou, curvando-se de dor. O coração voltou a se mover, e Burnett pegou o peso cheio de areia no ar e apertou-o até que ele estourou. Infelizmente, assim que a areia foi arremessada para fora, começou a se reagrupar em forma de coração novamente e conseguiu pairar no ar. — Miranda está aqui? — Burnett rosnou, ainda curvado. Kylie, percebendo que a bruxa encrencada que ele procurava era ela, levantou a mão e disse: — Pare. — Quando nada aconteceu, ela se lembrou de estender o dedo mindinho. — Pare! A areia caiu no chão e se espalhou como... bem, areia. Holiday sentou-se em sua cadeira, parecendo atordoada demais para falar. Burnett, a mão ainda pressionada contra as coxas, endireitou o corpo. — Caramba! — Holiday murmurou, finalmente. — Caramba! — Burnett repetiu. Kylie desviou os olhos do rosto chocado de Holiday e olhou para o vampiro com o rosto ainda contorcido de dor. Kylie pensou que sua explosão era por causa da dor, mas não. Ele olhava para a testa dela. — Interessante — disse Holiday. — Estranho — Burnett respondeu, sem tirar os olhos da testa de Kylie. — Uma beleza! — murmurou Kylie. Suas expressões aturdidas eram um prenúncio do que estava por vir no café da manhã. Kylie protagonizaria o show de horrores da hora da refeição. — Você é uma bruxa — exclamou Burnett com descrença. — Parece que sim — Holiday concordou. — Não. Eu sou um camaleão. — E cada vez que Kylie dizia aquilo, ela acreditava um pouco mais. Não importava que ela pudesse reverter feitiços e fazer animais recuperarem a sua forma normal, ou que pudesse fazer um peso de papel em forma de coração voar pelos ares e golpear um vampiro. Seu pai tinha lhe dito que ela era um camaleão e ela acreditava nele. — Talvez ser camaleão signifique outra coisa — Holiday disse. — Talvez tenha algo a ver com ser um protetor. Se for assim, todos os outros dons podem resultar disso também. — O telefone da líder do acampamento tocou. Como se precisasse de uma distração, ela olhou para o identificador de chamadas. Levantando o olhar, encontrou o de Kylie com uma expressão de solidariedade. — O que é agora? — Kylie berrou. — É... Tom Galen, o seu padrasto. Que adorável!, Kylie pensou. Um telefonema tão cedo não poderia ser nada de bom. Então, qual seria o novo desastre que ele queria adicionar ao seu dia? — Está tudo bem? — Derek irrompeu pela porta do escritório. — Ouvi um tumulto — murmurou. — Não — disse Kylie um pouco antes de Holiday atender à chamada. — Neste momento em particular, eu não consigo pensar em uma única coisa que esteja bem! Depois do almoço, Kylie e Miranda saíram do refeitório para voltar para a cabana. Della tinha ido a algum tipo de reunião com Burnett. Depois da maneira terrível como começara o dia, Kylie havia implorado para ficar de fora da Hora do Encontro. Além disso, ela iria à cachoeira com Holiday e Burnett, logo depois que este conversasse com Della. — Elas gostam de você. Só estão surpresas — disse Miranda, pedindo desculpas pelo grupo de bruxas, que não tinha feito nada a não ser encarar a testa de Kylie durante todo o café da manhã. — Quer dizer, todas nós pensamos que você seria um vampiro ou um lobisomem. Algumas pessoas apostaram que você era um metamorfo, mas ninguém nunca pensou que iria passar a ser uma bruxa. — Vocês realmente apostaram sobre o que eu seria? — Kylie perguntou. — Foram alguns bruxos que começaram. — Ela franziu o cenho. — Desculpe. Se isso faz você se sentir melhor, eu perdi cinco pratas. Kylie balançou a cabeça com descrença. Não que essa reação tenha sido apenas dos wiccanos. Todo o acampamento tinha ignorado seus ovos com bacon e só tinha olhos para observar o recém-descoberto padrão cerebral de Kylie. Ou pelo menos tinham feito isso até Della, que Deus abençoasse seu coração frio, tentasse ajudar. A vampira tinha saltado quase dois metros no ar, caindo com um grande baque sobre a mesa, e seus tênis pretos aterrissaram sobre as bandejas de comida de vários campistas. Então, preocupada com a amiga, Della anunciou que Kylie tinha acabado de soltar uma praga e qualquer um que ficasse encarando a sua testa seria transformado num ganso flatulento. Era, naturalmente, uma mentira deslavada. Desde que Kylie tinha feito o peso de papel voar pelos ares, no escritório de Holiday, ela estava superconsciente de que não devia mexer seu dedo mindinho. Não era uma tarefa fácil quando se tentava comer ovos fritos moles. No entanto, os seus dedos mindinhos ficariam imóveis até que ela descobrisse por que estava com padrão de bruxa. Kylie parou na frente do escritório e pensou em entrar e perguntar a Holiday se ela já havia entrado em contato com seu padrasto. Os dois tinham deixado mensagens no celular, mas não tinham conseguido se falar. Kylie também queria verificar se Burnett tinha tido notícias de Malcolm Summers, seu avô verdadeiro. Ele tinha dito a Burnett que estaria no acampamento no dia seguinte, mas quais eram as chances de que isso acontecesse agora, se seu telefone estava desligado e ele tinha sumido da face da Terra? Kylie suspeitava que era por causa da ligação de Burnett com a UPF. Então, mais uma vez, talvez ele não se importasse com ela. Ele mal conhecia o próprio filho, pai de Kylie. Esse pensamento a incomodou até que ela percebeu que não fazia sentido. Se fosse verdade, por que ele e a tia tinham ido ao acampamento fingindo ser pais adotivos de seu pai? O fato de terem se disfarçado de humanos reforçava a hipótese de que o avô não confiava em alguém de Shadow Falls. E esse alguém tinha de ser Burnett, por causa de suas conexões com a UPF. — Você não ama Della? — Miranda perguntou. — Ela é um pé no saco, mas quando se trata de nos proteger vai até as últimas consequências. — A bruxinha riu. — Aposto que ela pisou numas seis bandejas de café da manhã hoje no refeitório. — Eu sei. Ela é demais. Mesmo quando seus planos não dão muito certo. — Fala sério... Um ganso flatulento? Onde ela arranja essas ideias? — Não sei — murmurou Kylie. Pra dizer a verdade, ela nem sabia direito o que significava “flatulento”. De qualquer maneira, sentindo-se sobrecarregada, Kylie decidiu considerar aquela uma experiência de aprendizado. Ela não só tinha uma palavra para olhar no dicionário, mas tinha aprendido outra importante lição: que ser encarada por todo mundo não era pior do que ver as pessoas se recusando a olhar para você. Não, nem uma única pessoa tinha arriscado olhar para ela depois do aviso de Della. A flatulência devia ser mesmo um horror. — Isso é demais! Você é uma bruxa como eu! — Miranda esfregou as mãos, eufórica. Kylie gostaria de ter o mesmo otimismo que a amiga.
— Eu ainda não acredito. E não me importo que até Holiday pareça acreditar — Kylie disse e depois acrescentou: — Você sabe que isso pode mudar, não é? Eu era completamente humana e agora não sou mais. — E o pai dela tinha dito que ela era um camaleão. Kylie acreditava nele. — Mas essa é a primeira vez que você está mostrando um padrão sobrenatural de verdade, por isso provavelmente ele é real. — A bruxinha aproveitou para fazer sua dancinha da vitória, balançando os quadris. — Está empolgada com a lua? Para agradar Miranda, Kylie abriu um sorriso amarelo, mas o comentário sobre a lua ficou se repetindo na cabeça dela, fazendo-a se lembrar de um certo lobisomem. — Eu queria saber por que Lucas não estava no refeitório para o café da manhã — ela disse em voz alta. Não que estivesse entusiasmada para contar a ele as novidades. — Eu não sei — disse Miranda, ainda sorrindo. Mas em seguida seu sorriso esmoreceu. — Você está preocupada com a possibilidade de ele ficar desapontado por você não ser um lobisomem? — Não — respondeu Kylie, sem ter certeza de que estava falando toda a verdade. Ela não estava preocupada que ele ficasse desapontado; estava preocupada que ele ficasse arrasado. Seu coração ficou oprimido e ela sentiu um nó na garganta. — Existe alguma lenda sobre a união entre lobisomens e bruxas? — Kylie perguntou. — Não que eu saiba — disse Miranda. — Quer dizer, os lobisomens não costumam gostar de raça nenhuma, a não ser a deles. Mas não têm tanta antipatia pelas bruxas quanto têm pelos vampiros. Kylie supôs que ela deveria agradecer por não ter se transformado num vampiro. Mais uma vez, ela teve o pressentimento de que Lucas e sua família e alcateia só ficariam satisfeitos se ela se transformasse em lobisomem. Será que o relacionamento entre eles sobreviveria ao preconceito?
— Você quer ir para a cabana treinar alguns feitiços? — Ah, não! Não quero causar nenhum desastre! — Você não vai causar — garantiu Miranda. — Eu estarei com você. Não vou deixar que faça nenhuma besteira. Certo, como se você nunca tivesse feito. As palavras se projetaram do cérebro de Kylie e aterrissaram na ponta da sua língua, mas ela conseguiu engoli-las. O fato de estar chateada não lhe dava o direito de chatear ninguém. — Você só está nervosa. Precisa confiar em mim. — O sorriso brilhante de Miranda se alargou um pouco mais. — Nós, bruxas, temos que nos unir. — Desculpe — disse Kylie. — Eu já consegui golpear Burnett no saco com um peso de papel. Então acho que vou tirar o resto do dia de folga. — Sério? Você fez isso? — Miranda começou a rir, fazendo com que um grupo de lobisomens que passava por elas as olhasse com um ar de interrogação. Kylie localizou o amigo de Lucas e o chamou: — Will? O adolescente de cabelos e olhos castanhos se virou com um ar contrariado. Será que era falta de educação chamar um lobisomem pelo primeiro nome? Ou a expressão dele devia-se mais a razões pessoais? Será que todos os membros da alcateia de Lucas olhariam para ela com frieza? — Que é? — Seu tom expressava o mesmo desagrado. Kylie afastou-se um pouco de Miranda. Na frente de Will, ela tentou não deixar que o aborrecimento do lobisomem a intimidasse. — Lucas não estava no café da manhã. Eu queria saber se você sabe onde ele está. Will relanceou os olhos para a floresta, como se quisesse ganhar tempo. Embora Kylie não pudesse ler mentes, era como se ele estivesse tentando pensar numa desculpa. Por quê? — Algum problema? — ela perguntou.
Ele fez um gesto para que os outros lobisomens continuassem andando. Então esperou até que não pudessem mais ouvi-lo para começar a falar. Aquilo devia significar que algo estava errado, não é? — Lucas foi convocado pelo conselho — Will finalmente explicou. — Isso é ruim? Ele está em apuros? — Eu... não sei. Isso é entre ele e o conselho. A notícia deixou Kylie preocupada. — Você sabe quando ele volta? — Não. — Will arrastou o pé pelo chão pedregoso, depois olhou para o bosque outra vez antes de fitar Kylie. — Lamento — acrescentou, e algo no tom em que falou deu a Kylie a impressão de que ele estava sendo sincero; mas por quê? Pelo que ele lamentava? — O que você está me escondendo? — Ela deu um passo na direção dele, sentindo o coração bater forte dentro do peito. Sem aviso, o olhar de Kylie se desviou para a floresta e ela sentiu outra vez. Como se as árvores chamassem seu nome. Mas como estava preocupada com Lucas, ela se concentrou no problema diante dela e em Will. — Tem a ver comigo? O aborrecimento de Will ficou ainda mais evidente quando sua expressão se tornou carregada. — Eu não sei. Tenho que ir. — Dizendo isso ele se afastou. Ela ficou observando silenciosamente enquanto ele ia embora e teve o pressentimento de que havia algo por trás daquilo tudo. Will desapareceu na trilha. O pensamento de Kylie continuou em Lucas, mas seu olhar se desviou para a floresta, onde as árvores balançavam preguiçosamente com a brisa suave. Era um sentimento estranho, como estar com muita sede diante de um lago congelado. Esse sentimento, o chamado, era até mais forte do que o chamado da cachoeira. O que, afinal, estava se passando?
Miranda limpou a garganta e Kylie olhou para a colega de alojamento. — Você está bem? — Miranda perguntou e se aproximou da amiga. Kylie revirou os olhos. — Por que todo mundo fica me perguntando isso se é tão óbvio que não estou? — Provavelmente porque a gente tem esperança de que você esteja — Miranda respondeu, dando um tapinha no ombro de Kylie e sorrindo, solidária. — Não se preocupe. Se Lucas gostar mesmo de você, tudo vai se arranjar. Foi assim com Perry e eu. Kylie respirou fundo. Depois soltou o ar dos pulmões. Ela recomeçou a andar, lutando contra a vontade de se embrenhar na floresta e descobrir quem estava lá e por que queria chamar a atenção dela tão desesperadamente. Elas andaram por mais cinco minutos sem falar nada. Kylie se concentrou no som rítmico dos próprios passos, o que lhe dava uma sensação de calma. Mas um grito, um grito de puro pavor, foi suficiente para mandar sua calma pelos ares. Kylie parou tão rápido que quase tropeçou e teve que agarrar o braço de Miranda para se equilibrar. O grito tinha vindo justamente do lugar pelo qual ela se sentia atraída — o bosque. As profundezas do bosque. — O que foi? — Miranda perguntou. Kylie olhou para ela. — Você não ouviu? Miranda negou com a cabeça. — Ouviu o quê? Kylie deu um passo ou dois na direção da floresta e tentou identificar a voz de quem havia gritado. O som estridente dizia a Kylie que era uma mulher, mas ela não percebeu nenhuma familiaridade. Nenhuma mesmo.
Não importava. Ela sentiu o mesmo borbulhar em seu sangue, algo que sempre acontecia quando seu lado protetora entrava em ação. Com o ar preso na garganta, tudo dentro dela dizia que alguém precisava de ajuda. Ela não teve alternativa a não ser atender ao pedido de socorro. Disparou para a floresta. — Kylie! — gritou Miranda. — Não corra! Um pouco antes de entrar na floresta, Kylie gritou para que Miranda fosse buscar ajuda. E rápido.

Kylie correu como o vento. Nada a faria diminuir o ritmo. Nada poderia detê-la. Nem a mata fechada. Nem a dor nas pernas e nos braços. Nem mesmo a cerca de arame farpado de mais de dois metros que delimitava o terreno de Shadow Falls. Não ouse sair do acampamento. Ela ouviu o aviso de Burnett na sua cabeça, mas ignorou-o. Seguiu os gritos. Kylie ignorou até o medo de que estivesse avançando a toda velocidade para uma armadilha preparada por Mario e seus amigos. Não importava. Ela era uma protetora. Tinha que dar proteção. Depois de vários minutos correndo à base de adrenalina pura, arquejante, ela sentiu que o grito e a pessoa que havia gritado estavam ficando mais próximos. Então ela viu. Não quem havia gritado. Viu a neblina — uma nuvem espessa e baixa que se movia sob os arbustos, como se quisesse engolir o chão. Ela se movia de um jeito que não parecia um fenômeno da Mãe Natureza, mas de outra força. Um poder sobrenatural. Um poder que se deslocava a uma velocidade incrível. A lógica lhe dizia para correr dali, mas os gritos estavam cada vez mais altos e seus instintos faziam seus pés continuarem a correr na direção da neblina. Um movimento à sua esquerda atraiu seu olhar. Uma garota corria para escapar da neblina espessa. Seus longos cabelos pretos esvoaçavam atrás dela, lembrando Kylie da imagem da Medusa que ela vira num livro de mitologia grega. Ainda a uma certa distância, o olhar da garota encontrou o de Kylie. O alívio brilhou em seus olhos. A dúvida cintilou nos de Kylie.
Aquilo era real? A garota era real? Ou seria outra visão? A garota estava de fato correndo para salvar a própria vida ou estava fugindo da morte que já a reivindicava? As perguntas se sucediam na mente de Kylie, enquanto seus pés golpeavam a terra. Mais rápido!, ela disse a si mesma quando viu a neblina quase nos calcanhares da garota. — Corra mais rápido! — Kylie gritou. Estivesse a estranha viva ou morta, ajudá-la era essencial para Kylie. O som dos passos rápidos da garota ecoou através das árvores, enquanto ela aumentava o ritmo da corrida para escapar da neblina. Então, como se acontecesse em câmera lenta, a garota tropeçou, perdeu o ritmo e estatelou-se no chão. Com tudo. O baque seco da sua queda ricocheteou nas árvores. Kylie assistiu horrorizada quando a neblina se aproximou. Ela correu mais rápido, sentindo que precisava chegar antes da estranha neblina até onde a garota estava. O sangue borbulhando lhe deu mais força. Parando abruptamente diante do corpo inerte, Kylie pegou a garota nos braços. Ela não pesava quase nada. Quando Kylie olhou para cima, a neblina estava quase aos seus pés. Movida pelo instinto ou talvez pelo pânico, Kylie correu. Seus pés golpeavam a vegetação rasteira. Ela não tinha se afastado nem três metros quando teve novamente a sensação de ser atraída. Venha até nós. Venha até nós. O vento, as árvores, tudo sussurrava a mesma mensagem. Kylie parou de correr. Ofegante, ela olhou em volta. — O que vocês querem? Quem são vocês? O coração martelava sob as costelas. Aninhando a garota no colo, Kylie olhou para a neblina. A espessa nuvem acinzentada estava a uns seis metros de distância, pulsando como um coração. O ar ao redor dela rodopiava como se estivesse respirando.
Foi nesse momento que Kylie pareceu não conseguir mais respirar, porque... porque, pelo amor de Deus, nunca tinha visto uma neblina que respirasse! A neblina supostamente não era algo que tivesse vida. Antes que Kylie pudesse reagir, a nuvem mudou de forma e se separou em duas partes. Embora Kylie não sentisse nenhuma presença maligna, ela não podia mais negar o medo que lhe corroía os ossos nem a falta de ar que lhe afligia. Parte de seus instintos gritava para que ela corresse, outra parte gritava para ela ficar. A neblina recuou alguns metros como se sentisse o terror de Kylie. Então ela esperou. Observou. Ouviu. Ouviu seu nome sendo chamado. Kylie. Kylie. Ouviu as palavras que vinham com o vento — sussurradas suavemente como a brisa que agitava as folhas. Não queremos lhe fazer nenhum mal. — Quem são vocês? — Kylie gritou. A garota em seus braços se mexeu. O corpo que parecia sem vida agora recobrava os sentidos. Ao olhar para baixo, ela viu que sangue escorria da testa da garota. A necessidade de ajudá-la pulsava nas veias de Kylie. Ela olhou para cima, na direção da neblina. As duas massas cinzentas tinham assumido a forma humana. Não vá. O impulso que Kylie sentia de colocar a garota em segurança aumentou dentro dela. Enfrentar o desconhecido sozinha era uma coisa. Fazer isso com uma garota sangrando em seus braços era outra bem diferente. — Eu preciso — Kylie respondeu, virando-se para partir. Ela deu apenas alguns passos. Fique.
Havia algo naquela voz, uma voz masculina. Ela olhou por sobre o ombro; o ar preso na garganta. Seria seu avô? Era ele, não era? Então Kylie viu uma mulher e reconheceu a irmã de sua avó. Lágrimas umedeceram os olhos de Kylie. Ela começou a voltar, mas a garota em seus braços gritou. Kylie olhou para ela. Seus olhos estavam abertos. As íris azulescuras fitaram Kylie, perplexas, e um lampejo de reconhecimento brilhou dentro dela. Mas Kylie não tinha tempo para refletir. O sangramento no rosto da garota tinha aumentado. O impulso de Kylie para levá-la a um lugar seguro fazia seu sangue borbulhar. Qual seria a gravidade daquele ferimento? — Me solta! — ordenou a garota num grunhido baixo, tentando se libertar dos braços de Kylie. — Me solta! — ela gritou novamente, lutando agora para se libertar. A força dela indicava que não era humana. Sem os poderes de proteção de Kylie, a garota facilmente se desvencilharia, mas não agora. — Só um minuto. Kylie disparou pela floresta — abraçada à estranha de olhos azuis que se contorcia em seus braços. Desculpe. Kylie proferiu a palavra mentalmente e rezou para que ela fosse ouvida por aqueles que ela deixara. Ela não tinha outra escolha senão ir embora. Sua necessidade de proteger era mais forte do que a sua própria busca. Agarrada à estranha que gritava, Kylie pulou a cerca de arame farpado. Quando entrou na propriedade de Shadow Falls, o silêncio no bosque parecia mais alto do que os protestos da garota. De repente, Kylie sentiu uma, duas e então três lufadas de ar passando por ela. Então Burnett, Della e um grande pássaro — Perry — apareceram ao seu lado, todos os três acompanhando o ritmo de seus passos. Kylie parou de correr. Eles fizeram o mesmo. Fagulhas minúsculas apareceram ao lado de Perry quando ele se metamorfoseou novamente em ser humano.
Os três olharam para Kylie, ou melhor, para a garota que gritava em seus braços. — Quem é ela? — perguntou Burnett. — Não sei. — A respiração de Kylie estava ofegante, seus pensamentos ainda no avô e na tia-avó. — Ela estava correndo de... — Ela é um lobisomem — disse Della, interrompendo-a. — Eu senti o cheiro assim que chegamos. A garota parou de lutar para se libertar de Kylie. Sua voz se aprofundou quando encontrou os olhos dela. — Me solte agora! Ou vai se arrepender até seu último suspiro! — Ela levantou a cabeça e fitou Della e Burnett. — Todos vocês vão se arrepender! Burnett falou diretamente com a menina nos braços de Kylie. — Me dê a sua palavra de que não vai correr. Ela o encarou. — Se fugir, eu pego você e vou ficar realmente irritado. — Só se você for muito rápido — a garota revidou. — Ah, mas ele é! — respondeu Perry, se intrometendo na conversa. — Quando tinha 15 anos, perseguiu um metamorfo na forma de antílope e conseguiu chutar o traseiro dele. O que sobrou do antílope não deu nem para fazer um tapete. — Tudo bem — refletiu a estranha. — Não vou correr. Della se aproximou e olhou para Perry. — Você conhecia Burnett quando ele tinha 15 anos e perseguia antílopes? Soltando a garota, o olhar de Kylie cruzou com o do tal “chutador de traseiros de antílopes”. A expressão dele a preparava para o que viria em seguida. — Eu pensei que tinha deixado claro que não era para você entrar no bosque. Kylie assentiu, mas ela se recusava a ser repreendida por ter feito o que, para ela, era tão natural quanto respirar.
— Alguém estava em perigo. — Você se colocou em perigo. — O olhar dele se voltou para a garota. — Do que você estava correndo? — Da neblina. — A garota limpou com a mão o sangue que escorria de sua testa. — Ela estava me perseguindo. — A neblina estava te perseguindo? — Della indagou. — Você fumou alguma coisa? — Ela está dizendo a verdade. — Kylie quase contou a eles sobre o avô, mas algo lhe disse que era melhor pensar primeiro... e falar depois. — Quem é você? — Burnett perguntou à garota. — Eu é que pergunto. Quem é você? — a garota retrucou. — Com esses modos, ela é definitivamente um lobisomem — murmurou Della. Perry riu, depois acenou na direção da garota. — Você está sangrando. É perigoso sangrar na frente de vampiros. — Não se preocupe — comentou Della. — Sangue de lobisomem tem um gosto horrível. A garota lançou a Della um olhar gelado. Kylie teve aquele pressentimento novamente, de que algo com relação à estranha lhe parecia familiar. Burnett falou em seguida. — Eu sou Burnett James, líder do acampamento Shadow Falls, e você invadiu a nossa propriedade. — Você é... Burnett? — A garota mostrou pela primeira vez um pouco de insegurança. — Ela não invadiu — Kylie esclareceu. — Fui eu que pulei a cerca de Shadow Falls com ela nos braços. A loba fitou Kylie com um olhar de surpresa. — Não preciso que você me defenda. — Eu não a defendi. Não mesmo!
A postura corporal de Burnett enrijeceu, mas seu olhar de reprovação era para Kylie. — Você saiu dos limites de Shadow Falls? — Eu ouvi esta garota gritando. — A estranha que sangrava franziu a testa, tentando ler o padrão de Kylie. Será que ela ainda era uma bruxa? Ou seu padrão estaria passando por outra mutação estranha? — Você... — A garota balançou a cabeça. — Você é uma bruxa. Como pôde... Bem, isso respondeu à minha pergunta, pensou Kylie. A garota voltou os olhos azuis para Burnett. E nesse instante, Kylie descobriu quem ela era. A cor dos olhos, o jeito como inclinava a cabeça, até sua linguagem corporal era parecida. — Eu sou... — ... a irmã de Lucas — completou Kylie. — Isso mesmo. — A garota fitou Kylie novamente. — Sou Clara Parker. Quem é você? — Kylie Galen. A surpresa fez com que a garota arregalasse os olhos. — Mas você é uma bruxa? Eu pensei... — Ela fez uma pausa. — E você corre e tem a força de um lobisomem... ou de um vampiro. A última palavra soou como um insulto. Della grunhiu. Burnett franziu a testa. A frustração com relação a toda a história de ser bruxa irrompeu dentro de Kylie novamente. — Eu sou simplesmente uma obra não concluída. Me chame apenas de aberração de Shadow Falls. — Você não é uma aberração — murmurou Perry. — Eu sou a aberração da casa — ele disse com orgulho. Clara continuou a olhar para Kylie, e então disse. — Por que aquela neblina estava me perseguindo? Você fez aquilo com magia?
— Não, não fiz. Burnett concentrou-se em Clara. — A sua família está preocupada com você. Clara revirou os olhos. — Eles se preocupam demais. Eu disse a eles que estava vindo para cá. — Mas você já devia ter chegado há dois dias — repreendeu-a Burnett. — E, se pretende mesmo ficar em Shadow Falls, saiba que não gostamos de mudanças nos planos sem que passe pelos canais apropriados. Clara ergueu o queixo como se fosse dar a Burnett uma resposta malcriada. Lembrando-se de que se tratava da irmã de Lucas, Kylie interveio. — Tenho certeza de que ela vai corrigir isso. Lucas vai preencher os formulários. — Onde está o meu irmão? — Clara perguntou. — Foi convocado pelo conselho — respondeu Burnett. Kylie olhou para Burnett, imaginando se Lucas havia contado isso a ele. Se havia, por que não contara a ela? — Algum problema entre ele e o conselho? — Clara perguntou a Burnett. Kylie lembrou-se do comportamento estranho de Will quando Kylie lhe fez a mesma pergunta. — Não que eu saiba. — Burnett ficou em silêncio por alguns segundos e depois perguntou a Clara: — Você se machucou muito? — Foi só um arranhão — ela respondeu. — Ela desmaiou — Kylie revelou. — Não desmaiei! — discordou Clara, como se isso lhe fizesse parecer mais fraca. Kylie começou a voltar para a clareira. Todos a seguiram. Os sons da floresta voltaram ao normal, mas Kylie mal tinha notado. Sua mente remoía o que ela vira, quando olhou para trás pela última vez, e refletia se deveria contar alguma coisa a Burnett.
Relanceando os olhos por sobre o ombro, ela tentou ouvir com o coração para ver se ainda sentia o avô e a tia chamando. Será que ainda estariam lá? Ou tinham ido embora? A sensação não era tão forte como antes, mas ela ainda a sentia. — Perry — falou Burnett —, você e Della vão na frente e levem Clara ao escritório para falar com Holiday. A voz autoritária de Burnett ecoou nas árvores e causou outra onda de silêncio. — Kylie, quero um minuto com você. — Seu tom de voz não deixou nenhuma dúvida de que o minuto não seria nem um pouco agradável. Kylie parou de andar. Perry lhe lançou um olhar de pura solidariedade. — Ela só estava tentando ajudar — defendeu-a Perry. Della acrescentou: — E não aconteceu nada. Tudo está bem quando termina bem, não é mesmo? Você não pode ficar furioso se... — Estão dispensados — ordenou Burnett. Della grunhiu e Perry enviou a Kylie outro olhar de solidariedade. Ela adorava ambos por tentarem intervir, mas podia lidar com aquela situação. Pelo menos esperava que pudesse. — Vejo vocês daqui a pouco — despediu-se Kylie, quando Perry pareceu disposto a argumentar. Quando os três já estavam se afastando, Kylie encheu os pulmões com o ar perfumado da floresta. Burnett andava ao lado dela. Eles observaram os três seguindo para o acampamento. Clara olhou para trás, seu olhar expressando mais curiosidade do que preocupação. — Ela está encrencada? — a garota perguntou, a voz ficando mais baixa à medida que a distância entre eles aumentava. — Digamos que eu não gostaria de estar na pele dela agora — respondeu Perry. — E o seu traseiro lupino é a razão de ela estar encrencada — Della atacou.
— Eu não pedi para ela me ajudar — Clara rebateu. Kylie esperou até começar a falar com Burnett. — Eu não deveria se repreendida por fazer algo que é da minha natureza. — Você poderia ter se matado. Tudo poderia ser uma armadilha para atraí-la para longe de Shadow Falls. — Mas não era. Clara pensou que estava em perigo. Eu senti o medo dela e reagi. — Ela achou que estava em perigo? — ele perguntou, reparando no deslize de Kylie. — Você está dizendo que ela não estava em perigo? Quando Kylie fez uma pausa, Burnett continuou: — Exatamente do que vocês duas estavam correndo? A necessidade de dizer a verdade cresceu dentro de Kylie, mas outra necessidade — a de obter respostas — manteve-a em silêncio. — Eu já disse. Foi a neblina — Kylie respondeu, confiante de que ele não detectaria uma mentira em sua resposta. Suas palavras eram verdadeiras. Só não continham toda a verdade. — Você sentiu que ela era maligna? — Eu fiquei assustada — ela admitiu novamente, sentindo um calafrio percorrer a espinha. Não de medo, mas do frio que vinha dos mortos que estavam por perto. Ela olhou ao redor, tentando não deixar Burnett perceber que eles tinham companhia. O fantasma com a aparência de Holiday os espiava por detrás de uma árvore. — Mas...? — Burnett insistiu, sentindo que ela não tinha terminado de responder. — Eu não senti nada ruim. — Um fio de culpa se esgueirou pela mente de Kylie, mas, se ela contasse a Burnett que seu avô e sua tia estavam tentando vê-la sem a permissão dele, o que o vampiro diria?
— Estou tentando proteger você, mas isso fica impossível se não seguir as minhas regras. — Eu normalmente não desobedeço às suas regras. — O frio aumentou e ela desviou o olhar para o lugar onde vira o fantasma. Ele tinha desaparecido. Num segundo, a sósia de Holiday apareceu atrás de Burnett, olhando para ele como se o reconhecesse. Esse pensamento fez o medo crescer dentro dela. — Desobedeça a uma só das minhas regras e pode ser muito tarde para salvá-la. Kylie mordeu o lábio, lutando contra a sensação de frio. — Sinto muito. — Por aborrecer você, não por ter ajudado Clara. — Eu ouvi o grito e concluí que alguém precisava de ajuda. — Da próxima vez, antes de oferecer ajuda, me chame. — Vou tentar. — Ela estremeceu, apesar do esforço para disfarçar a sensação de frio. — Acho que você podia fazer um pouco mais do que simplesmente tentar — repreendeu-a Burnett, antes de olhar para cima, como se consultasse um poder superior. — Alguém quer me explicar por que eu quis fazer parte de Shadow Falls?... — Isso eu sei — Kylie respondeu, sentindo-se mal por deixá-lo tão nervoso. — Porque por baixo dessa couraça, você se importa conosco. E você ama outra pessoa que dirige este acampamento. — Kylie relanceou os olhos para o fantasma, perguntando-se se ela demonstraria alguma reação a essas palavras. Os olhos do fantasma se arregalaram. — Você está querendo dizer que...? Burnett franziu a testa, mas não tentou negar a afirmação da garota. Kylie teria ficado feliz ao ver que ele tinha chegado a um acordo com os seus sentimentos por Holiday se ela não tivesse um fantasma encarando-o como se... como se a confissão desse amor também a afetasse. O espírito olhou para Kylie. — Ele está apaixonado pela líder do acampamento?
O pânico embargava a sua voz. Será que o espírito sabia que se tratava de Holiday? — Qual o seu nome? — Kylie perguntou mentalmente. — Eu já disse — o fantasma respondeu. — Nunca vou me acostumar com isso — Burnett recomeçou a andar. — Se acostumar com o quê? — perguntou Kylie, com a atenção mais voltada para o espírito que andava ao lado dele e o fitava com surpresa. — Com os fantasmas — Burnett deixou escapar, como se lhe custasse dizer isso. Kylie parou e segurou-o pelo cotovelo. — Você pode senti-los? — ela perguntou. Geralmente, só quando o fantasma estava num pequeno cômodo, alguém que não tivesse o dom de se comunicar com eles podia senti-los. — Não — ele disse. Kylie ficou olhando para ele. — Tudo bem. Talvez eu possa sentir um pouco. Provavelmente, percebo mais o olhar que você e Holiday fazem quando eles estão por perto — ele confessou. Depois olhou em volta e disse: — Ela já se foi? — Como você sabe que era uma mulher? — Kylie perguntou, percebendo que o fantasma não estava mais presente. Ele cerrou os dentes. — Posso farejá-la — ele disse, como se estivesse confessando uma espécie de pecado. — É mesmo? Eu pensei que... Quer dizer, eu não achava que vampiros tivessem o dom de se comunicar com fantasmas. — Eu também não. — E ele não parecia nem um pouco feliz ao dizer isso. Começou a andar novamente, agora mais rápido, como se seus passos refletissem o seu estado de espírito. Kylie o acompanhou, mas não sem esforço. — Holiday sabe disso?
— Sabe o quê? — Ele nem mesmo olhou para Kylie ao falar. — Sobre essa sua capacidade de detectar fantasmas. — Ela estava curiosa para descobrir por que você consegue entrar na cachoeira e... — Não, ela não sabe — ele respondeu. — E não diga nada. Eu conto mais tarde. — A preocupação deixava sua expressão mais severa. Eles caminharam em silêncio por alguns minutos. — Eu não queria causar nenhuma confusão indo atrás de Clara. Só reagi aos meus instintos. — Às vezes nossos instintos podem estar distorcidos — ele acrescentou. Ela se perguntou se ele estaria se referindo não só aos instintos de proteção dela, mas também à sua própria capacidade de farejar e sentir fantasmas. — Vou tentar agir melhor da próxima vez. — Obrigado — ele disse, como se aceitasse o que ela oferecia. Ele continuou avançando. O vento agitava as árvores. — Pode me contar mais? — ele pediu. — Sobre os fantasmas? — Não. Sobre a neblina. Eu gostaria que você esquecesse os fantasmas. Kylie se lembrou da primeira vez em que percebeu que podia detectar a presença de fantasmas. Ela podia entender os sentimentos de Burnett. Às vezes ela ainda se esquecia de que tinha essa capacidade. — Você acha que tinha algo a ver com Mario? — ele perguntou. — Não. — Sem querer entrar em mais detalhes, Kylie tomou cuidado para não deixar escapar nada. Ela não tinha dúvida de que ele interrogaria Clara mais tarde. Mas Kylie estava quase certa de que Clara não tinha visto nada que pudesse revelar o seu segredo.
— Tem que ser Mario e sua corja novamente. — Burnett fechou os punhos enquanto caminhava. Kylie hesitou antes de dizer alguma coisa, sabendo que, se ela cometesse algum deslize e mentisse, ele saberia. Mas ela também não queria que Burnett se preocupasse demais. — Lembre-se de que eu disse que não senti nada maligno. — Tem que ser eles. — Ele a fitou nos olhos, mantendo o olhar firme. — Você não vai mais entrar na floresta, estando ou não com uma sombra. Entendeu? Ela assentiu. Ela tinha entendido, mas não disse que concordava. — Deve haver uma bruxa ou feiticeiro por trás disso. — Ele franziu as sobrancelhas. — Você não acha que essa neblina apareceu por acaso, acha? — Acho — Kylie respondeu. — Tem certeza? Lembre-se do outro incidente... — Foi diferente. — As bochechas dela arderam, quando ela se lembrou do incidente. Ambos diminuíram o ritmo. As árvores e a vegetação rasteira pareciam absorver o barulho dos passos. A mente de Kylie voltou a Clara e depois se desviou para o irmão da garota. — Posso perguntar uma coisa? — disse Kylie. — Se eu disser não, isso vai impedi-la de perguntar? — Provavelmente, não. — Ela debateu interiormente para decidir como formularia a pergunta. — Se tem algo a ver com Holiday e eu, vou me recusar a dizer qualquer coisa. Ela sorriu. — Não se preocupe, a camiseta do avesso de Holiday, outro dia, revelou o que eu queria saber sobre você e ela. O vampiro de olhar austero deu um meio sorriso, que logo esmoreceu. — Não é sobre fantasmas também, é?
— Não... É... Quando um conselho convoca alguém para uma reunião, isso significa encrenca? — Está falando de Lucas? Ela assentiu com a cabeça. Ele afastou um galho do caminho e o segurou, para ele não se chocar com Kylie. — Pode ser, mas não sempre. — Você sabe o que eles queriam com Lucas? — Ela também afastou um galho. — Não, não sei. — As palavras dele pareciam sinceras. — Está preocupado? — perguntou Kylie. Ele hesitou. — Estou. — Por quê? — Eu respeito a necessidade de Lucas de fazer parte do conselho para que possa sugerir soluções para os problemas entre os lobisomens e a UPF, mas não gostaria que o conselho exercesse tanta influência sobre ele. — Você não confia em Lucas? — Se eu não confiasse nele, ele não estaria em Shadow Falls. Meus problemas estão relacionados ao fato de que o conselho dos lobisomens e a UPF têm as suas diferenças. Em geral, a comunidade dos lobisomens não se mostra muito disposta a seguir as regras da UPF. Isso tem a ver com a mentalidade de alcateia. — Mas não é porque a UPF considera os lobos cidadãos de uma classe inferior? — Isso mudou — garantiu Burnett. — Mas eu tenho certeza de que ainda influencia muito o comportamento deles e posso assegurar que a UPF trata de maneira imparcial tudo o que está relacionado aos lobisomens. No entanto, existem preconceitos de ambos os lados.
Uma das razões que faz com que os lobisomens sejam vistos como párias é o fato de eles verem as outras espécies da mesma forma. — Então é a velha questão: quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha? — perguntou Kylie. — Acho que isso não importa. Quando eles chegaram à clareira, Burnett olhou para ela. — Vou levar você até a cabana. Se Della ou Miranda não estiverem lá, envio outra sombra para ficar com você. Holiday e eu logo iremos buscá-la para irmos à cachoeira. Mas até que eu investigue essa coisa toda, você não poderá deixar a cabana sem que eu saiba onde você está e com quem. Ela se encolheu um pouco com o tom de voz dele e com as novas ordens. Ele com certeza estava exagerando. — Você se importa se eu voltar para o escritório com você? Eu queria ver como Clara está. Ele hesitou, mas acabou concordando, e eles pegaram a trilha do escritório. Kylie deu uma última olhada na floresta e não sentiu nada. Será que eles tinham ido embora? Seus instintos diziam que sim. A pergunta era: será que voltariam? E se voltassem, será que ela encontraria um jeito de falar com eles? Antes que Kylie pusesse o pé na varanda, ouviu a voz de Lucas dentro da cabana. — Você não pode continuar fazendo isso! — ele exclamou. Kylie não tinha certeza se a sua audição estava mais sensível ou se ele estava falando muito alto. Considerando quão discretos eram os lobisomens, ela suspeitou de que se tratava da primeira opção. — O que eu fiz? — Clara perguntou. — Eu disse a eles que estava vindo pra cá. — Para onde mais você foi? Foi ver Jacob? — O tom de voz de Lucas ficou mais severo. — De todos que eu conheço, eu supus que você fosse o mais capaz de entender a minha necessidade de ver quem eu quero.
— Por mais estranho que pareça, acho que papai tem razão com respeito a isso. — Sério? Então quer dizer que você vai deixar que ele escolha a sua parceira? Não era sobre isso que vocês dois estavam discutindo quando você foi vê-lo? Sua afeição por Kylie? Kylie prendeu a respiração. Lucas tinha brigado com o pai por causa dela? — Estamos falando sobre você — Lucas respondeu. — Eu estou aqui, não é isso o que importa? — Clara perguntou. — Não é isso o que você quer? — O que eu quero é que você pare de fazer joguinhos, Clara. Estou tentando ajudar você. — Joguinhos? Ah, pelo amor de Deus, você é o que mais faz joguinhos aqui. Você faz joguinhos com o conselho, com papai, com a sua mãe e com a sua avó. Você faz joguinhos até com Fredericka. E aposto que está até fazendo joguinhos com essa sua bruxa também. — Eu não estou fazendo joguinhos e não tenho nenhuma bruxa. Kylie hesitou enquanto se aproximava da cabana e, pelo olhar que Burnett lhe lançou, ela supôs que ele também estava ouvindo a conversa. — Eu ainda posso levá-la para a cabana — ele ofereceu e, pelo seu tom de voz, Kylie percebeu que ele entendia quanto aquilo estava sendo difícil para ela. A preocupação dele era comovente, mas Kylie não gostou de saber que todo mundo conhecia os seus problemas. Ela preferia que sua vida particular não fosse de conhecimento geral. — Mais cedo ou mais tarde, eu tenho que enfrentá-lo — ela disse, desviando o olhar. Mas até mesmo ela tinha que admitir que preferia deixar aquilo para mais tarde. Mesmo assim, ela levantou os ombros e continuou andando, o estômago contraído ao pensar na resposta de Lucas quanto a ela ser uma bruxa.

Quando Kylie e Burnett subiram os degraus do escritório, ela de fato desejou não ter vindo. Atrás da porta, Clara continuava discutindo com o irmão. — Acho que pode ter sido ela que enviou a neblina atrás de mim. Fingiu que ia me resgatar, mas talvez a bruxa seja simplesmente... — Quem você acha que mandou a neblina atrás de você? — Lucas perguntou, com uma voz autoritária. — Kylie! — Clara respondeu, irritada. Kylie perdeu o fôlego. — Kylie não é uma bruxa — afirmou Lucas. Burnett abriu a porta do escritório. Clara e Lucas, de pé diante da entrada, viraram-se ao mesmo tempo. Kylie se preparou para a reação de Lucas. — Por ora, é o que sou. — Kylie decidiu colocar tudo em pratos limpos e se preocupar mais tarde com as consequências que isso acarretaria. — O que você é por ora? — Lucas perguntou, sem saber que Kylie tinha ouvido a conversa. — Uma bruxa — ela disse. Lucas olhou para a testa dela. Choque, confusão e desapontamento cintilaram em seus olhos. — O que... Bruxas não correm tão rápido. Elas não podem correr... como você corre. — Isso me confundiu também — disse Clara. — Foi quando eu percebi que ela poderia ter lançado um feitiço e, se lançou esse, poderia ter lançado outros.
— Eu não provoquei a neblina — defendeu-se Kylie. Será que Clara estava mesmo se voltando contra ela? — Então como você sabia onde me encontrar? E não minta novamente, dizendo que me ouviu gritar. Eu estava longe demais para que ouvisse meus gritos. A acusação irritou-a, mas ela tentou não levar a mal. Clara tinha suas razões para suspeitar dela. As bruxas não costumavam correr como um raio ou ter uma superaudição. O que só provava que Kylie não era uma bruxa. Mas se o avô e a tia podiam se transformar em neblina, isso significava que eles pertenciam à espécie wiccana? Pelo que sabia, os metamorfos não podiam se transformar em neblina, podiam? As dúvidas se sucediam na sua cabeça. — Kylie não é uma bruxa normal — disse Burnett, em sua defesa. Lucas olhou para Clara, para Burnett e depois para Kylie. Um pedido de desculpa substituiu a descrença em seus olhos. Ele continuou a olhar para ela, mas falou com a meia-irmã. — Se Kylie está dizendo que não foi ela, então não foi. — Você acredita nela e não em mim? Agora eu vejo por que papai está tão preocupado. — O tom de Clara era acusatório. — Como você quer ser um líder do nosso povo se defende uma bruxa em vez de ficar do lado de quem é do seu próprio sangue, da sua própria espécie? A expressão de Lucas endureceu. — Eu não acredito nela, simplesmente. Eu conheço os fatos. Kylie tem uma audição mais aguçada. Ela podia ter ouvido seus gritos há quilômetros de distância. — As bruxas não têm... — Como Burnett frisou, eu não sou uma bruxa normal. — Kylie olhou para Lucas. Por que ele não tinha dito simplesmente que acreditava nela? Será que a lealdade dos lobisomens à sua alcateia era tão grande que o fato de ele acreditar nela lhe tirava a credibilidade?
Sentindo o olhar de Clara, Kylie continuou. — Aparentemente, o meu cérebro tem o péssimo hábito de assumir padrões diferentes. — Então tem algo muito errado com o seu cérebro. — O tom de Clara fazia com que suas palavras parecessem ainda mais agressivas. Kylie esperou que Lucas repreendesse Clara. Quando o olhar do lobisomem encontrou o dela, ela pôde jurar que viu um pedido de desculpas em seus olhos, mas ele permaneceu em silêncio. E no mesmo instante ela soube por quê. Porque, se ele a defendesse, estaria colocando-a à frente de Clara. Como Kylie não era um lobisomem, ela não devia ser importante para Lucas. Ou pelo menos não tanto quanto seria se fosse da espécie dele. A constatação causou-lhe uma onda de dor que oprimiu o seu peito. Ela disse a si mesma que não precisava que ele a defendesse, que ela sabia se cuidar, então o que importava se ele ficasse em silêncio? — Não há nada de errado com o meu cérebro. — Kylie olhou Clara nos olhos e então relanceou o olhar para Lucas. Ela tinha falado a verdade. Sua mente estava bem. Era com o seu coração que ela se preocupava agora. Porque, embora não devesse se importar com a atitude de Lucas, na verdade ela se importava. Muito. — Por que você não ficou assustada com o que viu? — Clara perguntou. Sem saber o que Clara queria dizer com aquilo, Kylie fez uma pausa. Será que a garota tinha visto mais do que Kylie supunha? — Quem disse que eu não fiquei assustada? — Kylie é uma protetora — interveio Burnett. Os olhos de Clara se arregalaram. — Sério?! Pouco à vontade com o olhar de Clara sobre ela, Kylie de repente queria estar longe dali. — Eu tenho que ir. — Ela se virou para sair da sala.
Burnett pegou-a gentilmente pelo braço e, por mais estranho que parecesse, ela se sentiu confortada com o seu toque frio. Ele se inclinou na direção dela e sussurrou: — Não até que tenha uma sombra. — Eu estou aqui. — Holiday surgiu no vão da porta. — Fui dar uma volta para dar alguns minutinhos de privacidade a Lucas e à irmã. — Seus olhos verdes voltaram-se para Kylie como se ela tivesse percebido o crescente tumulto emocional dentro da garota. Holiday fez um gesto para que Kylie a seguisse. Burnett olhou para Holiday. — Fiquem por perto. Pode haver algum perigo por aí. — Exatamente o que aconteceu? — A preocupação encheu os olhos verdes de Holiday. — Nós nos falamos mais tarde — disse Burnett. — Eu preciso conversar com Clara enquanto tudo está fresco na memória dela. Kylie saiu do escritório, o coração partido com o comportamento de Lucas e um nó no estômago ao pensar no que Clara se lembraria. Uma olhada para Holiday foi suficiente para que ela se lembrasse da visão e de que podia significar que Holiday morreria. Talvez Clara estivesse certa. Talvez houvesse algo errado com o cérebro dela. Talvez o estresse tivesse finalmente deixado-a com um parafuso solto. Será que se transformar em bruxa era o primeiro sinal de insanidade? Ou era só uma consequência do fato de ela ser um camaleão? Kylie seguiu Holiday até o refeitório para comer um sanduíche. A hora do almoço já havia terminado e por isso elas tinham o lugar só para elas. Mal trocaram uma palavra e esse constrangimento entre elas não era natural. Quando saíram do refeitório, Kylie contemplou a floresta para ver se a sensação tinha desaparecido ou se ela ainda sentia o avô e a tia-avó chamando por ela. No entanto, não sentiu nada. Holiday colocou o braço sobre os ombros de Kylie. — Converse comigo.
Kylie absorveu a tranquilidade que o toque de Holiday lhe proporcionava e olhou para a amiga. — Eu detesto preconceitos! — desabafou Kylie, sabendo que só um dos seus problemas no momento, Lucas, ela poderia discutir com Holiday. Se contasse a ela quem vira no bosque mais cedo, a amiga diria a Burnett. E os dois a proibiriam de encontrá-los caso eles voltassem. Mas ela tinha que encontrá-los, não tinha? — Eu detesto também — concordou Holiday, como se soubesse exatamente a que preconceitos Kylie estava se referindo. — Se existe uma coisa que eu gostaria de mudar no mundo, pode apostar que é isso. Fechando a mão em punho, Kylie se lembrou da decepção que sentiu diante da postura de Lucas com relação a Clara. — Depois de ser alvo de preconceito, é de se pensar que a comunidade de lobisomens saberia quanto isso é injusto. — Eu acho... — Posso falar um minuto com Kylie? — A voz de Lucas veio de trás delas. Só o fato de ouvir sua voz grave causou outra onda de dor em Kylie. Ela não conseguia pensar em nada nem ninguém que pudesse impedi-la de defendê-lo se a situação fosse inversa. No entanto, ele... Kylie e Holiday se viraram para trás. A líder do acampamento olhou para Kylie, como se perguntasse se ela queria falar com Lucas. Kylie assentiu. — Bem, fiquem por perto. Holiday voltou para a varanda e se sentou numa das cadeiras de balanço. Lucas pegou a mão de Kylie e levou-a para trás da cabana do escritório. Ele não falou nada, nem ela. Ele parou ao lado de uma árvore, onde já tinham estado antes, e se virou para ela. Nem uma palavra saiu de seus lábios; ele só a fitou. O que ela não daria para ler os pensamentos dele? O que será que passava pela sua mente? Ele estava aborrecido porque ela era uma bruxa ou lamentava não tê-la defendido? Será que estava constatando que a relação entre eles não tinha nenhum futuro?
— Obrigado por resgatar a minha irmã — ele disse. — Eu lamento que ela seja tão pouco agradecida. Kylie assentiu. Ele se inclinou e pressionou a testa contra a dela. Tudo o que ela queria era fitar os olhos dele, tão azuis, e os longos cílios escuros que os sombreavam. — Eu magoei você. — A voz dele estava mais profunda do que antes. Ela não negou. Continuou olhando para o namorado e ele não piscou. A dor refletida em suas íris azuis fez com que ela segurasse a respiração. Ele fechou os olhos e respirou fundo antes de falar. — Já aconteceu de você saber qual é a coisa certa a fazer, mas não conseguir fazê-la? Ela recuou alguns centímetros. — Depende. Qual é a coisa certa a fazer? Ela fez a pergunta mesmo com medo de ouvir a resposta. Pois, lá no fundo, já a pressentia. Ela a pressentia desde que a avó de Lucas conversara com ela. Kylie e Lucas tinham que enfrentar muitos empecilhos para que o relacionamento entre eles desse certo. — Eu deveria deixá-la... — ele disse. — Devia colocar um ponto final neste... no que existe entre nós. Porque até que as coisas mudem, todos estarão contra nós. E, no entanto... — ele inclinou ligeiramente a cabeça e seus lábios encontraram os dela. Um torvelinho de emoções acompanhou o breve beijo. E, embora ela achasse que não havia mais espaço em seu peito para tantas emoções, sentiu que isso não era verdade. A dor que ele sentia era a mesma que oprimia o peito de Kylie. O medo que ele tinha era o mesmo que ela sentia. Ela fechou os olhos, lutando contra a dor que irradiava do seu coração e tentando apenas saborear o toque de Lucas. Ele se afastou e passou o polegar pelos lábios dela.
— E, no entanto, como posso deixá-la ir se você é o que me faz seguir em frente? Se a principal razão que me leva a querer mudar as coisas é você? O dedo de Lucas acariciou o queixo dela, um toque suave que quase trouxe lágrimas aos olhos de Kylie. — Estou te implorando. Por favor, tenha paciência comigo. Confie em mim quando digo que você tem um lugar especial aqui. — Ele pegou a mão dela e pousou-a sobre o seu peito. — Eu tenho que me comportar de uma certa maneira, do contrário isso acabará nos ouvidos do meu pai e do conselho, mas não é dessa maneira que eu me sinto. — Ele parou de falar por um momento. — Por favor, não desista de mim, Kylie Galen. Ela podia sentir o coração dele batendo. Podia senti-lo se partindo também, assim como o dela. — Eu não desisto tão fácil. Era verdade. Se desistisse, não estaria mais em Shadow Falls. Ele a envolveu em seus braços, apoiando-se na árvore, e encostou a bochecha na dela. Ficaram assim durante muito tempo. Sem se falarem. Sem fazer promessas. E Kylie se perguntou se seria porque ambos sabiam instintivamente que não poderiam cumprir essas promessas. Ele finalmente se afastou. — Eu preciso ir ajudar Clara a se instalar. Kylie afrouxou o abraço em volta da cintura dele. Embora não quisesse. Ela não queria devolvê-lo a Clara ou a Fredericka ou ao seu pai. Por mais egoísta que fosse, ela o queria só para ela. Ou talvez não fosse egoísmo. Talvez ela só não quisesse dividi-lo com pessoas que queriam separá-los. — Quer vir comigo? — ele perguntou. Clara ia adorar, pensou Kylie. Não. — Vou deixar vocês dois sozinhos por um tempo. — Obrigado — ele disse, como se de fato esperasse que ela recusasse o convite. Ele sorriu, mas sob aquele sorriso havia um toque de decepção. — Então você é uma bruxa. Eu nunca poderia adivinhar. — Eu sou uma bruxa neste momento — ela o corrigiu. Ele pareceu confuso. — Você acha que isso pode mudar? — Sim. Pode. — Ela acreditava mesmo nisso? — Eu mudei daquele padrão estranho para o humano. — É verdade. — Ele observou o padrão dela. — Mas este é de fato um padrão sobrenatural. — A atenção de Lucas se voltou para algo atrás dele e ele soltou um grunhido baixo. Derek contornava a cabana do escritório. O olhar do fae encontrou o de Kylie. Não havia nele nenhum pedido de desculpa por interrompê-los. Até sua postura parecia indicar que ele se achava no direito de estar ali. — Preciso falar com você, Kylie. É importante. — Sobre o quê? — perguntou Lucas. Derek nem sequer olhou para o lobisomem. O olhar do fae não deixou o de Kylie, mesmo enquanto respondia à pergunta, diretamente para ela. — É sobre o fantasma. — Desde quando você é um especialista em fantasmas? — perguntou Lucas. Derek olhou para Lucas pela primeira vez. — Desde que eu descobri que Kylie precisava de alguém que a ajudasse com eles. — As implicações do que ele dissera ficaram suspensas no ar. Ou seja, ele apoiara Kylie quando Lucas se recusara a fazer o mesmo. Lucas entendeu muito bem. Seus olhos se estreitaram e adquiriram um tom alaranjado. Antes que começassem uma briga, Kylie colocou a mão nas costas do lobisomem. — Vá ajudar Clara.
Ele não pareceu nada satisfeito, mas sua expressão lhe dizia que não pretendia começar uma discussão. O seu gesto seguinte surpreendeu-a, no entanto. Ele se curvou e pousou os lábios afetuosamente nos dela, num beijo que era mais para deixar bem claro para Derek que ela era a namorada dele, do que por prazer propriamente. Porém, ela não podia culpá-lo. Já houvera uma ocasião ou duas em que Kylie teria adorado beijá-lo assim na frente de Fredericka. — O que foi? — ela perguntou a Derek tão logo Lucas desapareceu e não podia mais ouvi-los. Derek olhou para a direção em que Lucas seguira e depois para Kylie. — Você está decepcionada. Por quê? — ele perguntou, lendo as emoções dela com precisão. — Por nada. — Ela não queria falar com Derek sobre isso. — É com Lucas? — ele perguntou. — Esquece — ela insistiu. — Eu estou com Lucas agora. Mas por quanto tempo?, ela se perguntou mentalmente. Ele comprimiu os lábios. — Eu sei. Estraguei tudo e só percebi que te amava depois que já era tarde demais. Ela ergueu a cabeça. — Não diga nada... Ele estendeu o braço e entrelaçou os dedos nos dela. A pressão da sua palma contra a dela irradiou um calor suave, uma sensação de calma e afeto. Ela percebeu quanto estava tentada a simplesmente abraçá-lo, mas, ciente de que suas emoções estavam muito tumultuadas no momento, afastou a mão da dele. Ele era seu amigo. Só um amigo. — Tudo bem. — Ele enfiou a mão no bolso. — Eu sei que foi culpa minha. E você não tem que me dizer que me ama também. — Seu olhar encontrou o dela. — Mas eu posso captar suas emoções, Kylie, e sei que você não quer admitir que também sente algo por mim. — Pare — ela ordenou. — Eu gosto de você como um amigo. — Não. — Ele continuou a fitá-la. — É mais do que isso. Mas não se preocupe. Eu sei que você gosta de Lucas também. E eu tenho que aceitar isso, porque fui eu que a joguei nos braços dele. E se você estiver feliz, tudo bem. Mas se não estiver... — Por favor, pare. — Kylie queria simplesmente tampar os ouvidos e ficar cantarolando para não ouvir o que ele dizia. E se não fosse tão infantil, teria feito exatamente isso. Mas, em vez disso, ela o lembrou do assunto que o trouxera ali. — Você não disse que tinha informações sobre o fantasma? Ele enfiou as duas mãos no bolso. — É. Pelo menos são boas notícias, eu acho. Mas algumas delas não são tão boas assim. — Conte. — Ela esperava que fossem melhores do que as que tivera até o momento. Kylie estava mesmo precisando de boas notícias. — Eu não acho que o seu fantasma seja Holiday. — Mas... como... por que você pensa assim? — Eu fiz algumas pesquisas na internet. O básico. — Ele hesitou. — Descobri que Holiday tem uma irmã gêmea idêntica. O nome dela é Hannah. Eu acho que meu nome é Hannah ou Holly, ou algo parecido. As palavras do espírito ecoaram na cabeça de Kylie. — Uma irmã gêmea? Por que ela nunca disse nada? Derek deu de ombros. — É meio esquisito, não acha? Quer dizer, o natural era que dissesse alguma coisa sobre uma irmã gêmea. — É verdade. — Kylie não podia negar que a magoava saber que Holiday não achava que podia confiar nela, embora Kylie contasse tudo sobre a sua vida a Holiday.
— Você ainda acha que esse fantasma vem do futuro? — Derek perguntou. Kylie pensou um pouco. — Não. Ela está morta. — Assim como as outras pessoas na cova que apareceu na visão. E de repente, a mágoa por Holiday não confiar nela se desvaneceu e foi substituída por compaixão. Kylie não podia imaginar como seria perder uma irmã, ainda mais gêmea. Seria por isso que Holiday não a mencionara? A dor pela morte da irmã gêmea estaria impedindo Holiday de falar sobre ela? Derek respirou fundo. — Tudo bem, mas há outra coisa ainda mais estranha. Eu não encontrei nenhum registro sobre a morte dela. Nenhum. É por isso que eu disse que poderiam ser más notícias também. — O que está dizendo? — Kylie perguntou. Derek franziu a testa. — Holiday pode não saber que a irmã está morta. Um nó se formou na garganta de Kylie. — Então eu tenho que dizer a ela. — Se quiser, eu mesmo falo — Derek se ofereceu. — Ou poderíamos falar juntos. Uma preocupação sincera encheu os olhos dele. Ela agradecia à sua oferta, mais do que poderia expressar em palavras, mas não poderia deixar aquele peso nas mãos dele. Por mais que ela detestasse ser a portadora de notícias tão ruins, Hannah tinha procurado Kylie e cabia a ela contar a Holiday. Então Kylie se lembrou de outra coisa que Hannah tinha lhe dito. Eu acho que eu vim até você para ajudar alguém. O que exatamente Hannah precisava que Kylie fizesse? Será que bastaria contar a Holiday sobre a morte dela ou ela precisava de mais do que isso? Derek deslizou a mão pelo braço de Kylie. — Você já fez uma lista de todos os restaurantes a que foi ultimamente?
— Restaurantes? — Kylie perguntou, sem saber direito do que ele estava falando. Sem saber direito por que um simples toque podia parecer tão errado. — Você disse que uma das garotas da visão estava usando o uniforme de um restaurante que você tinha a impressão de conhecer. — É, eu me lembro, mas, não, não tive tempo de fazer a lista. — Ela respirou fundo. — Vou fazer assim que voltar para a cabana. Posso mandá-la pra você mais tarde por e-mail. — Mande também a descrição do uniforme e das garotas. — Olá! — O som da voz de Holiday fez o nó na garganta de Kylie dobrar de tamanho. Ela se virou para a líder do acampamento e um fluxo de compaixão e dor inundou seu coração. Mesmo assim, Kylie não pôde deixar de se sentir aliviada por saber que a garota morta não era Holiday. Os olhos verdes da amiga se suavizaram. — Está acontecendo alguma coisa? Kylie não sabia o que dizer a ela. — Não — mentiu, mas por uma boa razão. A última coisa que Kylie queria era dar a notícia à amiga de um jeito abrupto. Então lhe ocorreu que talvez ela devesse falar com Hannah primeiro. Talvez precisasse saber exatamente o que Hannah precisava que ela fizesse, antes de dar o próximo passo. Holiday assentiu, mas a descrença brilhou em seus olhos. — Burnett foi chamado no escritório da UPF e insistiu que esperássemos até ele voltar para irmos à cachoeira. Eu espero que você possa me ajudar a arrumar o refeitório. Temos uma recepção de boas-vindas para os novos professores que chegam esta tarde. — Claro! — disse Kylie, encontrando os olhos de Derek brevemente. — Boa sorte! — ele murmurou, sem emitir nenhum som, e depois estendeu a mão e a tocou, enviando para ela uma corrente muito necessária de tranquilidade.
— Obrigada — ela sussurrou para Derek, antes de se virar e se juntar a Holiday. Elas deram alguns passos e Holiday olhou para Kylie com um olhar desconfiado. — Problemas com garotos? — Holiday perguntou em voz baixa. — É — confirmou Kylie, e não era mentira. Embora seu coração estivesse oprimido por Holiday, as palavras de Derek ecoavam em sua mente e a deixavam com um sentimento de incerteza. Eu posso captar suas emoções, Kylie, e sei que você não quer admitir que também sente algo por mim. E a pior parte era que... ele estava certo.

— Se você quiser conversar, estou aqui — disse Holiday, enquanto contornava a cabana do escritório. — Eu sei. — Kylie olhou de passagem para a floresta, mas a sensação que a arrebatara mais cedo naquele dia, a sensação de ser chamada, não tinha retornado. Holiday olhou para ela e fez uma cara de preocupação. — Você está mesmo bem? Quero dizer, eu respeito a sua privacidade. Mas ultimamente você anda um pouco... fechada. E eu me preocupo. Porque... bem, você geralmente confia em mim. — Holiday pousou a mão no braço de Kylie. Calor e preocupação fluíram do seu toque. Geralmente, eu não tenho que lidar com um fantasma que é a sua cara e que eu acabei de descobrir que é a sua irmã, e eu não sei nem se você sabe que ela está morta. — Eu não tive a intenção de me fechar — disse Kylie. — Eu estou só... dividida entre Lucas e Derek, e meu avô trocou o número do telefone e a UPF está tentando fazer testes experimentais comigo e minha mãe está saindo com outro homem e eu me sinto um pouco sobrecarregada. — E com razão — concordou Holiday. A preocupação com os encontros da mãe levou Kylie a se lembrar do padrasto. — Ah, eu quase me esqueci. Você já entrou em contato com o meu padrasto para saber o que ele queria? — Já, ele ligou há algumas horas. Descobriu que a UPF estava dizendo que você precisava fazer alguns exames médicos e ficou preocupado.
— A UPF ligou para ele também? — Kylie perguntou, prestes a entrar em pânico diante da ideia de que não tinham desistido de fazer dela uma cobaia. Talvez lhe aplicar o mesmo teste que tinha matado a avó. — Não, e eu perguntei porque isso me assustou também — Holiday respondeu, mostrando a Kylie quanto a amiga conseguia detectar com precisão as suas emoções. — Ele disse que tinha falado com a sua mãe. — Com a minha mãe? Sério? — Um sorriso inesperado se espalhou pelo rosto de Kylie. — Então eles estão se falando outra vez? Essa é a melhor notícia que eu recebi hoje. Talvez ela dê o fora naquele sujeito que quer levá-la para a Inglaterra e dê ao meu padrasto mais uma chance. — Talvez... — disse Holiday, como se tivesse receio de dar a Kylie muitas esperanças. Kylie se lembrou de que Holiday também tinha enfrentado o divórcio dos pais. — Quanto tempo levou no seu caso? — Quanto tempo levou para quê? — Holiday perguntou. — Quanto tempo levou até que você parasse de torcer para que seus pais se reconciliassem? Quanto tempo levou até que você parasse de dizer a eles para não brigarem mais e voltarem a ser um casal como antes? — Eu não saberia dizer. — Holiday suspirou e ofereceu a Kylie um sorriso solidário. — Ainda estou esperando. Acho que, quando você cresce vendo seus pais casados, simplesmente supõe que ficarão assim para sempre. Mas acho que já cheguei ao ponto de perceber que meus pais provavelmente estão vivendo melhor separados. Mas ainda costumo pensar nos tempos em que éramos uma família e... Eu gostaria que as coisas fossem diferentes agora. A triste verdade é que nós mudamos. Pais. Filhos. E, quando isso acontece, as pessoas se afastam e... — Mas quem nós amamos não deveria mudar. — Ou será que deveria? A mente de Kylie passou do divórcio dos pais para Derek, e depois para a questão do fantasma. Então, de repente, Kylie percebeu que a conversa com Holiday podia ser o que ela precisava para perguntar sobre a irmã dela. — Você passou por tudo isso sozinha? — Sozinha? — Holiday pareceu não entender a pergunta. — Você não tem irmãos ou irmãs? — Kylie perguntou. Holiday estava olhando para o outro lado, então Kylie não pôde ver sua expressão. No entanto, se um leve encolher de ombros fosse uma indicação, Kylie achava que tinha tocado num ponto sensível da amiga. Por quê? Será que Holiday estaria disposta a falar sobre o assunto? Será que Hannah e Holiday tinham se afastado uma da outra? Passado um segundo, Kylie hesitou, sem saber o que dizer. Ela deveria tentar obter uma resposta ou simplesmente deixar a oportunidade passar? Afinal de contas, não se tratava apenas de querer que Holiday confiasse nela, mas sim de ajudar Hannah a fazer sua transição. Depois de resolver toda aquela questão do fantasma, talvez ela pudesse se concentrar mais na solução dos seus próprios problemas. — Infelizmente — disse Holiday, pondo um ponto final ao desconfortável silêncio —, irmãos nem sempre ajudam em situações como essa. — Ela estendeu a mão para pegar seu celular. — Acabei de lembrar que preciso fazer outra ligação. Pode me encontrar no refeitório? Pedi a Miranda e Della para me ajudarem também. Della está assumindo o posto de sombra. Eu tenho que pendurar algumas faixas e encher uns balões. Elas estão nos fundos do refeitório e eu queria armar algumas mesas para colocar os salgados. Devo estar lá em alguns minutos. E espero que, assim que Burnett voltar, possamos dar uma passada rápida na cachoeira antes da cerimônia. — Claro! — respondeu Kylie, desapontada. Ela percebeu que Holiday estava fugindo para não precisar responder mais perguntas. Holiday arqueou uma sobrancelha, obviamente percebendo o descontentamento de Kylie, e balançou a cabeça. — Eu ainda queria muito que você falasse comigo.
E eu queria muito que “você” falasse comigo. — Eu estou bem — Kylie declarou enquanto Holiday ia para o escritório e, quando se voltou, Della já estava ao lado dela. — A seu dispor, Senhorita Bruxa. — Della deu uma risadinha e olhou para a testa de Kylie. — No entanto, não posso negar que estou desapontada. Quero dizer... você gostou do sabor de sangue, então pensei que pelo menos fosse meio-vampira. Kylie revirou os olhos e apontou para a própria testa. — Eu vivo dizendo a vocês, não acho que isso seja definitivo. — Parece definitivo pra mim. Kylie olhou novamente para a floresta e desejou que ainda sentisse que seu avô estava lá. Desejou poder encontrá-lo cara a cara e finalmente conseguir as respostas que tanto procurava. Mas ela não sentiu nada. Não sentiu que alguma coisa lá fora a chamasse para se juntar a ela. Ela se voltou para Della. — E como eu estava na semana passada? Com um padrão humano, certo? E por quanto tempo? Algumas semanas? Della fez uma careta. — Tudo bem, entendo o que quer dizer. Mas esse é o primeiro padrão sobrenatural verdadeiro que eu vejo em você. — Sim, e estou apostando que não será o último. Deixe-me dizer, eu acho que eu tenho padrões de um cérebro com transtorno de déficit de atenção. Eles nunca são os mesmos. Os padrões surgem e desaparecem. — Droga! — exclamou Della. — Miranda está certa. Você realmente não quer ser uma bruxa, não é? Kylie deixou escapar um suspiro de frustração. — Não é nada disso. Só estou dizendo... — ... que você é um camaleão. — Della fez uma cara de quem compreendia. E essa era uma cara que não se via a toda hora. — Olhe, sem querer ofender, acredito mais que você seja uma bruxa do que um camaleão. E, se me permite acrescentar uma coisinha, se você continuar dizendo que não é uma bruxa, vai acabar ferindo os sentimentos de Miranda. Ela já está chateada. E você sabe como ela é quando fica assim. Kylie fechou os olhos e respirou fundo. — Eu não tinha intenção de ferir os sentimentos dela. Se eu não tivesse recebido a mensagem de meu pai dizendo que sou um camaleão, estaria eufórica com a ideia de ser uma bruxa. — Se a frustração não comandasse as emoções de Kylie no momento, a surpresa com certeza comandaria. Quando Kylie e Della tinham trocado de papéis? Normalmente, era Kylie quem chamaria a atenção de Della por ofender Miranda. — Olha só — continuou Kylie, tentando se explicar —, bruxa ou fae são as minhas primeiras opções no que diz respeito a espécies, mas... — Você não queria ser vampira? — Della parecia ofendida. Ah, droga, agora tinha ofendido Della. Nada estava dando certo naquele dia. — Pelo amor de Deus! — rogou Kylie, cuja frustração não estava apenas no controle das suas emoções, como também causando um motim entre elas. — Eu não disse isso, só... — Ter o corpo frio é o que incomoda você, não é? — Della perguntou, parecendo ainda mais magoada, mas não furiosa. E Kylie achou que podia ser grata por isso. Pois encarar Della quando ela estava magoada era difícil, mas encará-la quando ela estava magoada e furiosa era impossível. — Não, não é ter o corpo frio, é... — Não pode ser o sangue, porque você gostou do sabor. — Eu gosto do sabor do sangue, mas não necessariamente da ideia de ter que bebê-lo, ou de achar que batata frita tem gosto de sola de sapato, porque é exatamente assim que você as descreve. Mas, se eu for vampira, ficarei feliz. — Ao ver que a expressão de Della não mudou, Kylie acrescentou: — Sinceramente, seria muito legal voar baixo como vocês, vampiros, fazem. — É muito legal — Della disse, com a expressão se suavizando.
— De qualquer maneira — Kylie continuou —, vou ficar feliz com o que quer que eu seja. Eu não me importo mais. Mas, no momento, acredito no que o meu pai me disse e ele disse que eu sou um camaleão. Isso não faz sentido para ninguém? — Não — disse Della, sem rodeios. — Desculpe, mas toda essa coisa de “Eu sou um camaleão” parece uma piração. Talvez seja melhor você se apegar ao fato de que vai acabar sendo como uma de nós. Uma sobrenatural normal. A cabeça de Kylie estava dando voltas. Primeiro, “normal” e “sobrenatural” não cabiam na mesma sentença, mas... — Quando eu já fui normal? — ela perguntou. — Quando qualquer coisa ligada a mim, aos meus poderes e dons e aos meus padrões eternamente em mutação pareceram normais? Della abriu a boca, para discutir, disso não havia dúvida, e depois a fechou. A pausa durou um segundo inteiro. O que para Della era muito tempo. — Tudo bem, o que você disse faz muito sentido, mas... — Nada de “mas” — interrompeu Kylie. — Ou eu sou uma aberração ou talvez, apenas talvez, eu seja outro tipo de sobrenatural. Algo de que poucas pessoas já ouviram falar. Della pressionou os lábios, como se estivesse pensando. — E isso seria muito legal, não acha? Ser algo muito raro. Claro, você já é super-rara porque é uma protetora. Ei, talvez seja por isso que o seu padrão era tão maluco no começo, porque você é uma protetora. E você é a primeira protetora meio-humana que já existiu. O que, como eu disse, é legal. — Não, eu não sou a primeira. Meu pai era um protetor. — Kylie fez uma pausa. — E não é tão legal quanto você pensa. — Depois de um segundo, Kylie acrescentou: — Holiday sugeriu que o fato de ser uma protetora poderia fazer com que o meu padrão se alterasse, mas... — ... mas você quer ser um camaleão — completou Della. Kylie só revirou os olhos e deu uma outra olhada na floresta. Ela não sentiu nada, mas talvez se ficasse de pé entre as árvores e se cercasse de folhagem, conseguisse sentir. Seu avô e sua tia poderiam estar esperando por ela. Suas respostas poderiam estar lá, esperando por ela. — Podemos fazer uma caminhada aqui por perto? — Eu pensei que íamos ajudar Miranda e Holiday a arrumar o refeitório. — Só aqui por perto. — Para onde? — perguntou Della. Kylie se aproximou do bosque. — Ah, nada disso! — Burnett foi muito, muito, muito claro a respeito disso. Você não deve entrar na floresta. Ele arrancaria a minha cabeça e serviria numa bandeja. Depois chutaria o meu traseiro. Kylie olhou ao redor para ver se alguém poderia ouvi-las. Se suas vozes estavam ao alcance de alguém com superaudição. Ela não viu uma alma. Mesmo assim, baixou a cabeça até a orelha de Della e sussurrou: — Eu sei quem está na floresta e preciso falar com eles. — O quê...? Quem está na floresta? O barulho de uma porta se fechando ecoou no ar quente. — Vocês duas vão deixar Miranda fazer todo o trabalho sozinha? — A voz de Holiday veio de trás delas. Kylie se virou e viu Holiday descendo os degraus do escritório. — Façam o favor de ir para lá agora. Della se curvou na direção de Kylie. — Você não vai me deixar curiosa! — Mais tarde — disse Kylie quando viu Holiday se aproximando. — Mais tarde o quê? — perguntou Holiday. A culpa encheu o peito de Kylie, mas ela se forçou a mentir. — Mais tarde eu conto a ela sobre os meus problemas amorosos. — Ela se forçou a sorrir.
— É, problemas amorosos — completou Della, como se confirmasse a mentira de Kylie. — Dois caras brigando pelo coração dela. — Della olhou de relance para Kylie, e a mensagem nos olhos da amiga indicava que ela pressionaria Kylie a terminar a conversa sobre a floresta o mais rápido possível. — Ora, e que problemão! — exclamou Della dramaticamente. Mas por trás do comentário, Kylie ouviu outra coisa. Um pouquinho de inveja. Holiday deu risada. Pela expressão dela, também percebera as emoções de Della. E isso fez com que Kylie ficasse preocupada. Até que ponto Holiday também não sabia dos problemas amorosos de Kylie? E até quando Kylie conseguiria esconder as coisas dela? Só por tempo suficiente para saber qual a melhor maneira de abordálas, jurou Kylie. Holiday deu de ombros. — Pelo que eu ouvi, ela não é a única que tem problemas com garotos. — É verdade — disse Della com malícia. — Você e Burnett também estão poluindo o ar com feromônios. — A vampira falou abanando a mão em frente ao nariz. Holiday franziu a testa. — Eu não estava falando de mim — disse, olhando diretamente para Della. — Estava falando de mim? — Della perguntou, perplexa. — Eu não tenho namorado, então como posso ter problemas amorosos? — Você poderia ter um, se quisesse — Kylie murmurou, fazendo com que Della lhe desse uma cotovelada nas costelas. Holiday soltou uma risadinha. — Correm boatos de que você causou um certo desentendimento no lago. — Que desentendimento? — perguntou Della. — Entre Steve e Chris — disse Holiday, arqueando as sobrancelhas. Holiday sempre sabia o que uma pessoa precisava ouvir.
Exceto no caso de Kylie. Kylie precisava saber sobre a irmã de Holiday, mas fazer com que ela falasse a respeito, sem contar que a irmã estava morta, parecia impossível. Mas se Kylie não soubesse da própria Hannah o que tinha acontecido ou Holiday continuasse se negando a falar, então ela não teria outra opção a não ser contar. — Não. — Della sacudiu a cabeça, balançando o cabelo preto na altura dos ombros. — Não foi por minha causa. Você ouviu errado. Holiday deu um meio sorriso e encolheu os ombros. — Se você está dizendo... — Ela fez uma pausa e sorriu como se soubesse de algo que ninguém mais sabia. — Vamos lá. Vamos aprontar o refeitório para a recepção. — Ela pôs um braço sobre os ombros das duas campistas e começou a andar em direção ao refeitório. Só tinham dado três passos quando Della parou de repente. — Sério?! — perguntou a Holiday. — Era por minha causa? Chris e Steve estavam brigando por minha causa? — Eu disse que Steve gosta de você. — Kylie quase riu ao ver o choque de Della. Mas Della não estava mais ouvindo Kylie. — Você não está de gozação comigo? — ela continuou, concentrada em Holiday, a cabeça se inclinando ligeiramente como se para detectar se ela estava mentindo. — Eu juro — disse Holiday sorrindo. — Meu coração não mente. — Eles estavam brigando...? — Eu disse “desentendimento” — corrigiu Holiday. — Eles estavam se desentendendo por minha causa? — Ela deu risada e depois parou como se estivesse absorvendo a informação. — Não. Não era por minha causa. Deve haver algum engano. — Mas os olhos de Della se iluminaram com uma centelha de autoconfiança. Kylie sorriu. Mesmo sob o peso de todos os problemas que a oprimiam, ver Della radiante por causa dos garotos era bom... e justo. Kylie tinha percebido que Della se sentia inferior por Kylie e Miranda estarem namorando, mas não sabia quanto da sua autoconfiança ela tinha perdido. E, depois de ficar de coração partido por causa de Lee, Della merecia se sentir orgulhosa por ser o motivo do desentendimento entre dois garotos. Mas nem todo desentendimento era uma coisa boa. Aquele entre Lucas e Derek com certeza não tinha nada de positivo. Mas por ora Kylie só queria pensar em Della. Cinco minutos depois, Kylie percebeu que Della estava certa. Miranda estava chateada. A bruxinha mal falou com ela enquanto arrumavam o refeitório. Claro, Miranda deu um gritinho de alegria quando Della contou sobre a “tensão” entre Chris e Steve. Sentindose meio deslocada, Kylie finalmente se aproximou de Miranda e se desculpou... Bem, ela não sabia pelo que estava se desculpando, mas disse as palavras mágicas, “sinto muito”, e perguntou se Miranda treinaria alguns feitiços com ela mais tarde. Os olhos de Miranda se iluminaram. — Eu adoraria. É só você dizer que feitiço quer treinar. E pode confiar em mim, porque posso te ajudar. O olhar de contentamento da amiga revelou a Kylie que Miranda estava mais chateada com a sua recusa inicial em aceitar a ajuda dela e com seu orgulho ferido do que com o fato de Kylie não acreditar que era uma bruxa. Enquanto arrumava as mesas na frente do refeitório, o celular de Kylie começou a bipar, avisando sobre a chegada de uma nova mensagem. Era de Lucas. Ainda com Clara. Saudade. Vou estar ocupado apresentando Clara para a alcateia mais tarde. Não vou à recepção. Vejo você mais tarde, antes de você dormir. Obrigado por entender. Kylie ficou olhando para o telefone e percebeu que veria Lucas bem menos, agora que Clara estava no acampamento. Kylie respirou fundo e tentou convencer a si mesma que entendia. Era evidente que ele precisaria de um tempo com a irmã. Mas entre a alcateia e agora Clara, Kylie não sabia direito onde se encaixava. Ou se ela de fato se encaixava.
Quinze minutos depois, Kylie notou os olhares de Della. Kylie sabia que a vampira não via a hora de ficar sozinha com ela para que pudessem terminar a conversa sobre o que havia na floresta. Mas, francamente, Kylie agora não tinha mais certeza se deveria se abrir. Se contasse a Della, teria que contar a Miranda também. Não que Kylie não confiasse nas duas... Ela simplesmente não queria colocar ninguém em maus lençóis. Então, mais uma vez, considerando que nunca ia a lugar nenhum sem uma sombra, ela teria que confiar em alguém. E não havia ninguém em Shadow Falls em quem ela confiasse mais do que nas duas colegas de alojamento. Elas estavam quase acabando de arrumar o refeitório quando o celular de Holiday tocou. A fae parou e se afastou um pouco para atender ao chamado. Della veio correndo tão rápido que trombou com Miranda e quase a jogou no chão. — Fale e rápido — Della sussurrou para Kylie. — Falar o quê? — Miranda massageou o ombro e fez uma cara feia para Della. — Shh! — Della levantou um dedo para calar Miranda, depois olhou para Kylie insistentemente. — Fale! — Não me mande calar a boca! — exclamou Miranda. Kylie soltou o ar dos pulmões e estendeu a mão para tocar o braço de Miranda, esperando acalmá-la, depois respondeu à pergunta de Della. — São meu avô e minha tia. Eles eram a neblina. — Eles eram... a neblina? — Miranda perguntou, esquecendo a briga com Della. Quando Kylie assentiu, Miranda continuou. — Então isso prova que você é uma bruxa, porque eles precisam ter poderes de bruxos para fazer isso. — Espere aí. Por que eles fariam isso? — perguntou Della. Kylie franziu a testa e olhou para Holiday, que estava parada do outro lado do refeitório. Kylie notou que a líder do acampamento não parava de olhar para Kylie e então suspeitou que o telefonema fosse sobre ela. Mais uma vez. Que ótimo! O que seria dessa vez? — Terra chamando Kylie! — provocou Miranda. Kylie voltou a olhar para as duas colegas de alojamento. — Não sei se isso prova alguma coisa. — Mas por que eles perseguiriam a irmã de Lucas? — perguntou Della. — Não sei. — Então, de repente, Kylie percebeu. — Para que eu entrasse no bosque. Eles ficaram me chamando durante alguns dias, mas eu pensei... Pensei que poderia ser Mario e seus amigos e não fui. Mas aposto que o meu avô sabia que, se eu achasse que alguém estava em perigo, eu iria... — Será que eles sabem que você é uma protetora? — Miranda perguntou. — Eu não sei. — A mente de Kylie estava acelerada. — Eu sei que Burnett conversou com eles, mas não sei o que falaram. — Eu não estou muito convencida — disse Della. — Talvez seja Mario fingindo que é seu avô e sua tia. Talvez seja só um truque para pôr as mãos em você. — Não acho — afirmou Kylie. — E no momento eu tenho que seguir meus instintos. Tanta coisa está acontecendo na minha vida que seria muito bom se eu conseguisse algumas respostas sobre alguma coisa. — O que está acontecendo na sua vida? — A preocupação de Della deixou sua expressão mais séria. Kylie hesitou. — Problemas com fantasmas. — O que significa que não vamos poder ajudá-la em nada — concluiu Della. Exatamente o que Kylie havia pensado. Quando se tratava de fantasmas, ela só podia contar com Holiday e com ela mesma. Ela se lembrou, então, de Derek, que estava sempre disposto a ajudála, mesmo que provavelmente se sentisse da mesma forma que outros sobrenaturais quando o assunto eram espíritos. Della começou a falar novamente. — Mas eu pensei que o seu avô viesse vê-la amanhã. Por que eles estão se transformando em neblina e se esgueirando até aqui para vê-la em segredo, se podem simplesmente aparecer amanhã? E como você sabe que a neblina eram eles? — Eles ficaram de vir — explicou Kylie —, mas ele não atende ao telefone e não entrou mais em contato com Burnett. E justo quando eu estava indo embora, a neblina tomou a forma humana e... — Kylie não sabia bem como explicar — ... reconheci meu avô e minha tia. Tenho certeza disso. A expressão de Della endureceu. — Mas, e se você estiver enganada, e se entrarmos na floresta e alguma merda acontecer? — Entrarmos na floresta? — espantou-se Miranda. — Ah, droga, não! Burnett disse que ela não pode entrar na floresta. Que não podemos deixar que ela chegue perto do bosque. — Eu sei — Kylie concordou. — Mas, se eu quiser saber quem sou, vou ter que falar com meu avô e não acho que ele vá entrar no acampamento, não agora com a UPF se metendo em Shadow Falls. E depois do que a UPF fez com a minha avó, eu não posso culpá-lo por não confiar neles. Nem Holiday confia! Miranda mordeu o lábio inferior. — Mas se você estiver errada... — Eu não estou. — E, de repente, Kylie percebeu que ela não poderia colocar suas duas amigas em perigo. A culpa que ela ainda sentia por causa de Ellie oprimia seu peito. — Mas, só por cautela, vou sozinha. — De jeito nenhum! — Della exclamou. — Tudo o que eu quero é fazer uma pequena caminhada pela floresta. Vocês podem ficar na margem. Se eu não sentir nada, volto na hora.
— E se você sentir alguma coisa? — Miranda perguntou. — Então eu vou saber que são eles e vou até onde estiverem. — Ah, Kylie, não! Você não vai sozinha — declarou Della. — Você é uma protetora. Caso tenha se esquecido, isso significa que você não pode proteger a si mesma. — Della está certa — disse Miranda. — Se você for, nós vamos junto. — Eu acho que nenhuma de nós deveria ir! — discordou Della. Holiday começou a andar na direção delas e, sabendo que a fae era capaz de ler emoções, Kylie olhou para as duas amigas. — Pensem em coisas boas. Rápido. Antes que Holiday perceba... — Ela deixou as palavras morrerem na boca quando Holiday chegou mais perto. — O que está rolando aqui? — perguntou Holiday. — Nada — as três responderam ao mesmo tempo. Kylie sorriu e tentou pensar em Lucas para conseguir fazer brotar dentro dela uma emoção positiva, mas o que surgiu na sua mente foi a imagem de Derek e da sua lealdade com relação à questão dos fantasmas. E, em vez de ficar feliz, mais angústia acumulou-se em seu peito. Holiday arqueou uma sobrancelha em descrença, mas não pediu explicações, apenas disse: — Era Burnett. Ele não vai poder voltar antes da hora do início do evento, e insistiu para que adiemos a ida até a cachoeira para amanhã. Tudo bem pra você? — Por mim tudo bem — concordou Kylie. E ela estava falando a verdade. Talvez agora ela pudesse fazer aquela caminhada pela floresta e obter algumas respostas, se eles ainda estivessem lá. Ela só precisava descobrir como fazer isso sem que Della ou Miranda surtassem.

Kylie foi até a margem da floresta, ignorando Della e Miranda enquanto as duas discutiam sobre quem iria acompanhá-la na caminhada e quem esperaria ali. Mal sabiam elas que nenhuma das duas iria com Kylie. Ela não poderia pôr as amigas em perigo. Mesmo que não houvesse nenhum perigo, se Burnett descobrisse, mataria as amigas. E Burnett furioso era perigo suficiente. De algum modo, Kylie iria descobrir como se esgueirar para longe das duas e entrar na floresta sozinha. Além disso, ela nem tinha certeza de que o avô e a tia ainda estavam esperando por ela. Talvez a caminhada pela floresta a levasse a descobrir, mas por ora não sabia. Mesmo assim, fechou os olhos e tentou ouvir com o coração. Ao ver que nem o mais leve anseio para entrar na floresta se agitava dentro dela, Kylie falou mentalmente: Vocês ainda estão aí? Eu estou aqui. As palavras soaram ao mesmo tempo que ela começou a sentir frio. Sem reconhecer a voz, ela abriu os olhos. Parada em frente a ela estava uma mulher loira, com vinte e poucos anos, usando o uniforme de um restaurante e um crachá onde se lia o nome CARA M. O coração de Kylie começou a bater mais rápido quando ela percebeu que se tratava de uma das garotas da visão em que vira a irmã de Holiday enterrada. Ao deixar escapar um suspiro, Kylie viu que sua respiração se condensou num vapor frio. — Droga! — exclamou Della. — Por que droga? — perguntou Miranda.
— Kylie tem companhia — explicou Della. — Essa merda de névoa branca sempre sai dos lábios dela quando ela está conversando com um morto. — Oh! — Miranda deu um passo para trás e olhou para Kylie. — Nossa, a aura dela está ficando muito estranha. Isso é uma piração e tanto. Estou feliz por não ser ela. Tentando fazer com que Della e Miranda ficassem quietas, Kylie concentrou-se em Cara M. Lembrou-se de Derek lhe pedindo para descrever o uniforme, por isso observou os detalhes. Deixou que uma imagem do uniforme se formasse em sua mente — o decote em V, o xadrez na bainha da saia —, de modo que pudesse descrevê-lo para ele mais tarde. Mas por que ela simplesmente não perguntava? — Onde você trabalhava? — Kylie perguntou. — Trabalhei na loja de vudu da minha tia — Miranda respondeu. — Coisas muito estranhas aconteciam lá. — Ela não está falando com você! — avisou Della, irritada. — Desculpe — Miranda sussurrou. — Isso é tão apavorante! — Você sabe o nome da lanchonete? — Kylie perguntou, sem tirar os olhos do espírito. — Eu... não sei — Cara M. respondeu. — Mas será que você pode nos tirar de lá? Kylie franziu a testa. — Eu gostaria, mas preciso saber onde vocês estão. — Mas você sabe. A outra garota levou você lá. Não se lembra? Como ela poderia esquecer? — Eu vi vocês enterradas embaixo de um lugar com assoalho de madeira, mas não sei onde é. Em que cidade você está? Sabe o endereço? É perto daqui? — Sim, é perto. Não leva muito tempo para chegar lá. Kylie pensou no que a garota disse e perguntou: — Mas como você chegou aqui? Quero dizer, você veio andando... ou veio espiritualmente? — Kylie nunca tinha pensado no modo como os espíritos se locomoviam e percebeu quão pouco sabia sobre essa coisa de se comunicar com fantasmas. — Eu não sei — respondeu o espírito. — Mas posso levar você lá, se quiser. — Não — Kylie deixou escapar. — A ideia de se ver presa numa cova novamente era demais para ela. Respirou fundo e se lembrou de falar mentalmente. — Você pode avisar Hannah que eu preciso falar com ela? — Quem é Hannah? — Uma das garotas que está com você. A de cabelo ruivo. — Kylie pôde sentir Della e Miranda se entreolhando e virou de costas de propósito para não se deixar distrair pelas amigas. — Então o nome dela é Hannah? Como você sabe? Ela não está usando crachá. — O espírito olhou para baixo, como se apontasse para o crachá preso ao seu uniforme. — Você sabe o meu nome? Eles me chamam de Cara M., mas eu não me lembro de ter esse nome. Minha vida é como um livro de figuras apagadas que eu vi uma vez. Eu posso me lembrar de fragmentos de algumas imagens dessas páginas, mas elas viram rápido demais para que eu consiga reconhecer alguma coisa. — Isso não é incomum depois da morte — assegurou Kylie ao espírito, lembrando-se de Holiday dizendo que, quanto mais dramática a morte, menos o espírito se lembrava. Ao se lembrar do que essas garotas tinham passado, Kylie sentiu uma pontada de dor. Seu coração se apertou com a necessidade de ajudá-las. Fazer o que fosse preciso para ajudar todas a completarem sua passagem. — Será que um dia vou voltar a me lembrar? — perguntou Cara M. A pergunta do espírito veio carregada de tanta tristeza que a emoção provocou um nó na garganta de Kylie. — Eu não sou uma especialista no assunto, mas, com base no que já vi, posso dizer que os espíritos costumam recuperar a memória. Os espíritos geralmente ficam na Terra por uma razão e, depois que essa questão é resolvida, eles fazem sua transição.
Cara pareceu refletir sobre as palavras de Kylie e depois assentiu. — Acho que estou aqui porque quero ir para o meu próprio túmulo. Nunca gostei de ter colegas de quarto. Aquela cova é muito apertada. Infelizmente, Kylie conseguia se lembrar de quanto era apertada. Ela estremeceu, sentindo os ombros pressionados pelos corpos das duas garotas, uma de cada lado. Afastando o pensamento, Kylie concentrou-se na conversa e não no horror do que tinha acontecido. — Eu estou tentando tirar vocês de lá. — Mas Kylie tinha o pressentimento de que, embora Cara M. só precisasse sair da cova coletiva, Hannah queria muito mais. Felizmente, quando resolvesse o problema de Hannah, Kylie ajudaria todas as três. Cara M. ficou parada ali, como se estivesse perdida em pensamentos. — É bonito o lugar para onde vou? Kylie lutou para descobrir o que dizer, então decidiu pela verdade. — Eu nunca o vi, mas acho que sim. O espírito olhou em volta, depois flutuou lentamente alguns metros. Ficou pairando no ar, causando uma grande espiral de fumaça, dando a Kylie a impressão de que estava num filme de terror. Depois de alguns segundos, ela voltou a olhar para Kylie com olhos que pareciam perdidos, magoados. — Aqui é bonito também. — Depois ela voltou a colocar os pés no chão. — Acho que eu reconheço este lugar. É perto de onde estão os ossos do dinossauro? Um fio de esperança brotou no peito apertado de Kylie. — Então você conhece esse lugar? Já morou perto daqui? — Acho... acho que sim. Eu vejo uma imagem de pessoas nadando num lago. Havia muitas risadas. Devia ser divertido. — É, há um lago. Consegue ver mais alguma coisa? Onde você trabalhava? Em que cidade?
O espírito franziu o cenho. — Não me lembro. — Sombras escuras começaram a surgir embaixo dos olhos dela. Sombras que a fizeram parecer mais triste e, de alguma forma, mais morta. — Por favor, tire a gente de lá. — Depois de dizer isso, ela começou a desaparecer. — Espere. Pode dizer a Hannah que preciso vê-la? — Posso, mas não sei se ela vai vir. Está chateada. — Por quê? — Será que a memória de Hannah estava voltando também? O frio começou a diminuir. O fantasma desvaneceu-se completamente e o calor do Texas substituiu o ar frio, deixando Kylie com mais dúvidas ainda. — O fantasma se foi? — perguntou Miranda. — Sim — suspirou Kylie. — Vamos entrar? — voltou a perguntar Miranda. — Entrar onde? — Kylie perguntou, confusa. — Na floresta, onde mais? — Ah, não. — Graças a Deus! — murmurou Della. Então todas as três foram para a cabana. Kylie olhou para trás mais uma vez e se perguntou se um dia iria obter todas as respostas de que precisava. Num certo sentido, sua vida era muito mais misteriosa do que um fantasma. Elas tinham uma hora até o horário de voltar para o refeitório e participar da recepção de boas-vindas. Enquanto ainda estavam a caminho da cabana, Della e Miranda conversavam sobre o que vestiriam para a ocasião. Não havia dúvida de que Della queria caprichar no visual para impressionar Chris e Steve. Miranda queria causar a mesma impressão em Perry. Kylie tentou entrar no mesmo estado de espírito das duas, mas seu entusiasmo não era o mesmo. Lucas não estaria lá, então a quem ela tentaria impressionar? A visão de Derek pipocou na sua cabeça e ela afugentou-a, sentindo-se culpada só de pensar naquilo. A tentativa de não pensar em Derek lembrou-a de que ela tinha prometido lhe mandar um e-mail com a descrição do uniforme da garçonete. Quando Kylie se sentou ao computador, sua mente começou a recapitular os detalhes do uniforme que tinha procurado registrar enquanto conversava com Cara M. Kylie abriu seu correio eletrônico e viu que tinha várias mensagens esperando por ela: algumas de sua mãe, algumas do seu pai, uma de Sara; alguns spams e outras mensagens de remetentes que ela não reconheceu. Ignorando-as, começou clicando no botão para iniciar uma nova mensagem. Digitou o nome de Derek e então começou a fazer uma descrição do uniforme da garçonete. Ela tentou se lembrar de tudo que tinha descoberto sobre Cara M. e percebeu quanto queria poder conversar sobre o assunto com alguém. Então, ela se deu conta de que havia alguém: a pessoa para quem estava enviando o e-mail: Derek. As risadas de Miranda e Della ecoavam do quarto da vampira. Por que ouvir a risada das amigas a fazia se sentir mais solitária? A resposta borbulhou na sua cabeça. Porque elas estão empolgadas com a ideia de romance, de se arrumarem para impressionar os garotos. No momento, a ideia de romance deixou Kylie meio entorpecida. Ela sentiu que Lucas estava parecendo cada vez mais distante e, por algum motivo, Derek parecia mais próximo. E isso não estava certo. Mas ela ainda se sentia solitária. Lembrando-se do e-mail de sua mãe, Kylie pegou o celular e discou o número dela. O telefone tocou quatro vezes antes de a mãe atender. — Oi, mãe — disse Kylie. — Oi, querida, — O som da voz da mãe fez com que Kylie sentisse mais saudade de casa. — Está tudo bem? — Está. Por que você sempre acha que tem algo errado comigo quando telefono?
— Eu não acho. Só às vezes. E esta é uma dessas vezes. Eu devo ser médium. Pare de fingir e me conte o que está acontecendo. Cruzes! Talvez a mãe fosse sobrenatural. — Nada! — disse Kylie. — Acabei de receber o seu e-mail e pensei em ligar pra você. Você está sempre dizendo que eu telefono pouco. — É verdade. — A mãe fez uma pausa. — Quais as novidades, querida? Desistindo de mentir, visto que isso não parecia estar funcionando, Kylie respondeu: — Só estou passando por um dia ruim. — Você sabe que, se mudar de ideia sobre ficar aí para o ano letivo e quiser voltar para casa, eu posso matriculá-la na escola daqui e... — Eu não vou mudar de ideia, mãe. Eu adoro Shadow Falls. — Eu pertenço a este lugar. — Tenho o direito de ter um dia ruim, não tenho? — Claro, assim como eu tenho direito de me preocupar quando você tem um dia ruim. — Bem, não se preocupe demais. — Ela ouviu um súbito barulho do outro lado da linha. — Onde você está? — perguntou Kylie. — Jantando fora um pouco mais cedo. — Sozinha? — Kylie perguntou, esperando que a mãe não estivesse com John Bajulador, que queria arrastá-la para a Inglaterra e tê-la nua em seus braços. Tão logo esse pensamento lhe ocorreu, Kylie tentou afastá-lo. — Hã, não. — A resposta da mãe veio carregada de culpa. — Não estou sozinha. — Com John? — Kylie tentou esconder a decepção, mas achou que não tinha dado certo. O silêncio se prolongou por alguns segundos.
— É uma pergunta simples, mãe. Não é preciso tanto tempo pra responder. — Kylie percebeu que ela tinha soado exatamente como sua mãe. Tinha certeza de que a mãe usava exatamente as mesmas palavras para falar com ela de vez em quando. — Hã... sim — a mãe respondeu. Kylie fechou os olhos. Como se o seu cérebro estivesse no piloto automático, a pergunta escapou dos seus lábios. — Você não anda dormindo com ele, né? E antes que a última palavra saísse da sua boca, ela já tinha se arrependido. Se arrependimento matasse... O rosto de Kylie ficou vermelho. A mãe prendeu a respiração e começou a tossir. — Hã... Mais tosse. — Alô, Kylie. — Uma voz masculina entrou na linha. — Acho que a sua mãe engasgou com o vinho. Vinho? A mãe estava tomando vinho às três da tarde? Será que ele estava planejando embebedá-la para levá-la para a cama? — Kylie? Você está aí? — Sim. — Kylie ouviu a mãe mandando John lhe devolver o telefone. Kylie imaginou-a entrando em pânico ao pensar que a filha podia perguntar a John se eles estava fazendo sexo. Não que ela tivesse a intenção de perguntar. O fato de ter perguntado exatamente isso à mãe tinha entrado na sua lista de “momentos mais embaraçosos da sua vida”. — Kylie? — A mãe parecia ter arrancado o telefone da mão dele. — Nós... temos que conversar mais tarde. — A voz dela estava esganiçada como a de um personagem de desenho animado. — Tá. Mais tarde. — Kylie desligou e ficou olhando para o telefone. Tudo bem, mais uma lição aprendida. Se a mãe mal conseguia dizer a palavra “sexo”, também não deveria ser capaz de ouvi-la. Será que isso significava que ela não conseguia fazer sexo também? Cruzes, Kylie esperava que sim. Lição número dois. Falar sobre sexo com a mãe lhe dava náuseas. Será que ela sofria do mesmo mal que sua mãe? Largando o celular sobre o computador, Kylie tentou afastar da mente os pensamentos da mãe fazendo sexo e se concentrou no computador, tentando não ouvir as risadinhas das amigas enquanto conversavam — provavelmente sobre sexo também. Gemendo, ela baixou a cabeça sobre a mesa, sentindo o sangue pulsar em suas bochechas e esperando que o toque frio da madeira aliviasse o calor. Seu celular, sobre o computador, começou a bipar, anunciando uma mensagem de texto. Sentando-se ereta, ela pegou o aparelho e verificou a mensagem. Seu coração deu um salto ao ver que era de Derek. “Tudo ok? O que está acontecendo?” Kylie fechou os olhos. Será que agora ele sentia tudo o que ela sentia? Ela tombou a cabeça sobre a mesa novamente com tanta força que machucou a testa. Respirou fundo algumas vezes e começou a responder a mensagem. “Tudo bem. Estou passando um e-mail com a descrição do uniforme da garçonete. Você vai à recepção?” Ela segurou a respiração e esperou a resposta. “Sim. E vc?” Ah, meu Deus, será que ele tinha pensado que a pergunta era uma espécie de convite para um encontro? Será que era um convite para um encontro? “Sim. Até lá.” A culpa voltou a assombrá-la. Mas pelo menos isso a fizera se esquecer do constrangimento por perguntar à mãe se estava transando com John. Kylie continuou olhando para o celular. Por que parecia tão errado mandar uma mensagem para Derek? Ela não deveria se sentir assim. Eles eram apenas... amigos. Fredericka ficava com Lucas cinco vezes mais do que ela mesma. Dez vezes mais do que Kylie ficava com Derek. E Fredericka e Lucas tinham sido namorados. Tentando afastar o sentimento, ela terminou o e-mail e o enviou. — Kylie? — Miranda chamou da porta do quarto de Della. — E você? Já usou? Kylie olhou por sobre o ombro e se concentrou na voz alegre de Miranda. Francamente, ela precisava mesmo de alegria. Ultimamente, parecia não fazer nada além de remoer os próprios problemas. — Já usei o quê? — perguntou sorrindo para Miranda. — Enchimento num sutiã. Já fez isso? Kylie mordeu o lábio e riu quando uma imagem lhe ocorreu. — Sara me convenceu a fazer isso na sexta série, mas eu não tive coragem. Me escondi atrás de uma caçamba e arranquei tudo antes de chegar à escola. Ela ficou possessa quando me viu. Estava com peitos turbinados, e eu não. Miranda deu risada e Kylie pôde ouvir Della, dentro do quarto, rindo também. Miranda olhou para os próprios seios. — Confesso que também usei por um tempo antes que os meus crescessem. Mas Della jura que nunca usou, embora eu ache que ela esteja mentindo. — Não estou! — Della contra-atacou, saindo do quarto. — A verdade é que eu poderia ter feito isso se não tivesse visto Tillie McCoy trombar com um armário quando usava um sutiã tamanho GG e depois sair andando por aí com os peitos achatados, sem perceber que tinha amassado o enchimento. — Della pôs a mão sobre os seios. — Sério, ela ficou com um peito redondo e o outro quadrado. O pior de tudo é que mesmo assim os caras não desgrudavam o olho dela. Eu acho que não ligam que a mulher tenha um peito achatado. Kylie achou graça, mas o que ela sentiu foi constrangimento pela garota chamada Tillie, que ela não conhecia. — Que horror!
— Foi mesmo — Della confirmou. — Acho que as vendas de enchimento caíram depois disso. Sério, no dia seguinte, todas as garotas do sétimo ano estavam usando sutiãs dois números menores e os garotos ficaram deprimidos durante um mês inteiro. Nesse dia eu decidi que ser do clube das despeitadas não era tão ruim assim. Todas riram novamente. — Sabiam que os garotos também usam enchimento? — Miranda declarou. — O quê? — Kylie perguntou. Della apontou para a virilha. — Sério? — Kylie perguntou. — Sério! — responderam Della e Miranda ao mesmo tempo. — Eles usam meias — Della acrescentou. — Meias? Pra quê? Não é como se as garotas ficassem... calculando o tamanho... — Mas eles acham que ficamos — explicou Della. — Você sabe, os caras só pensam em sexo. As garotas só pensam em romance. — Às vezes eu só penso em sexo — Miranda admitiu. — Bem, quer dizer, só penso. Isso faz de mim uma piranha? Elas riram alto, Miranda inclusive. Então Kylie balançou a cabeça, ainda tentando não imaginar um garoto com meias dentro das calças. — Todas nós pensamos nisso, mas... essa coisa de enchimento de meia é.... uma piada! Della franziu a testa para Miranda e pressionou as mãos contra as têmporas, como se de repente sentisse uma enxaqueca. — Droga! Por que você foi se lembrar dessa coisa das meias? Agora vou ficar tentada a checar as calças de todos os garotos para ver se estão usando enchimento! — Tem razão — disse Miranda, rindo. — É como um acidente na estrada. Você não quer olhar, mas seus olhos são atraídos. — Ela bateu no queixo com as costas da mão e jogou a cabeça para trás. — Temos que manter o queixo e os olhos acima da cintura o tempo todo. Aconteça o que acontecer, nada de ficar olhando protuberâncias. As três riram mais ainda. O melhor de tudo era que a risada aliviou o coração de Kylie e diminuiu a sua sensação de desastre iminente. E por isso ela ficou agradecida. Rescendia no ar do refeitório um aroma de cupcakes, que Holiday tinha solicitado ao pessoal da cozinha. Um grupo de campistas estava parado perto da mesa de salgados, provavelmente dando as boas-vindas aos novos professores e a alguns novos campistas que tinham se inscrito para o novo ano letivo em Shadow Falls. Kylie havia cruzado com um ou dois nos últimos dias, mas ainda não tinha sido apresentada a nenhum deles. Ela tinha que admitir; não era muito boa em conhecer pessoas novas. Mas, considerando que o primeiro ano de escola em Shadow Falls começaria na semana seguinte, não demoraria muito tempo para que isso acontecesse. Parada ao lado de Miranda, Kylie percebeu que o lugar não estava tão cheio quanto ela esperava. Provavelmente porque a presença dos campistas na recepção aos professores não era obrigatória. Mesmo assim, mais da metade dos campistas estava lá. Então Kylie notou que nenhum dos lobisomens tinha aparecido. Eles provavelmente estavam fora, reunidos em algum lugar. Outra vez. Mais uma olhada pelo refeitório e Kylie constatou que Derek não tinha chegado ainda. Ela se perguntou se ele estaria fazendo pesquisas na internet para ver se encontrava a lanchonete em que Cara M. poderia estar trabalhando antes de ser morta. O fato de ele estar ajudando-a com a questão dos fantasmas fazia com que ela se sentisse feliz e assustada ao mesmo tempo. Assustada por não saber definir muito bem por que se sentia feliz. Eles eram só amigos, ela dizia a si mesma. Mas descobriu que era cada vez mais difícil acreditar nisso toda vez que se forçava a acreditar.
Helen acenou para Kylie do outro canto do salão. Ela estava com o braço em torno dos ombros de Jonathon. Kylie admirava o relacionamento entre os dois. Era carinhoso e romântico. Kylie sorriu e acenou de volta. Embora ainda estivesse com tantos problemas, ela se sentia... mais leve, e o sorriso foi sincero. Era incrível pensar em com uma sessão de risadas com as amigas podia elevar o seu ânimo! Ela de fato tinha que se esforçar para não olhar os garotos abaixo da linha da cintura, na tentativa de identificar os que usavam meias na cueca. E só de pensar nisso tinha vontade de rir. Infelizmente, Miranda percebeu o sorriso reprimido de Kylie e, como se adivinhasse o que o tinha causado, a bruxinha caiu na risada. Então, encontrando o olhar de Kylie, ela ergueu o queixo com a mão e murmurou “queixo pra cima”. Della, do outro lado do refeitório, também começou a rir. — O que é tão engraçado? — Burnett perguntou a Miranda, ao se aproximar. — Nada — respondeu Kylie, com receio de que a amiga dissesse a verdade. Miranda às vezes era a rainha da gafe. Ao encontrar o olhar de Burnett, Kylie se lembrou de que ele podia detectar mentiras, por isso logo acrescentou: — Nada que eu possa contar sem... — ... ficar vermelha? — ele perguntou, olhando para ela e Miranda, cujas bochechas já ardiam e estavam quase da mesma cor que o seu cabelo cor-de-rosa. Com medo de que Burnett quisesse mais explicações, Kylie acrescentou: — Conversa de garotas. Ele levantou uma mão. — Vocês não têm que explicar. Eu realmente não quero saber de conversas de garotas e toda vez que escuto, eu me arrependo. — Ele quase sorriu e sua expressão se suavizou com algo que parecia preocupação ao fitar Kylie. — Desculpe não ter chegado a tempo para irmos à cachoeira.
— Tudo bem — Kylie respondeu. Então, fosse ou não pura paranoia, ela perguntou: — Isso que você foi fazer na UPF não tem a ver comigo, tem? — Não — ele garantiu, num tom sincero. Ela assentiu e então partiu para a segunda pergunta, embora já pressentisse a resposta. — Nenhuma notícia do meu avô? Ele balançou a cabeça. — Não, desculpe. — Burnett suspirou. — Com todas as coisas que têm acontecido ultimamente, fico feliz que ainda mantenha o queixo erguido. Queixo erguido. As palavras ficaram dando voltas na cabeça de Kylie. Miranda deu outra risadinha e olhou na direção contrária. Kylie teve que morder o interior da bochecha para não rir também. Então ela ouviu a risada de Della do outro lado do salão. Arqueando as sobrancelhas, Burnett olhou para Della, que imediatamente assumiu sua postura de vampiro e apagou do rosto todos os traços de humor. Burnett balançou a cabeça e concentrouse em Kylie novamente. — Se você conseguir parar de rir, posso apresentá-la a professores que estão ansiosos para te conhecer. — Me conhecer? — O sorriso se desvaneceu do rosto de Kylie. Ela desviou o olhar para o outro lado do salão, onde os professores estavam reunidos. Eles de fato estavam olhando para ela. — Por que iam querer me conhecer? — A fobia que ela tinha de ficar em evidência a deixou paralisada. — Eles ouviram falar de você — Burnett explicou, como se fosse óbvio. Kylie não podia imaginar o que alguns campistas poderiam ter dito a eles. Então ela pensou algo ainda pior: — Como eles ouviram falar de mim? Quer dizer, ouviram falar de mim aqui em Shadow Falls, certo? Certo? Burnett pareceu pouco à vontade com as perguntas. Ele olhou em volta, quase como se buscasse uma saída, ou talvez procurando Holiday para responder por ele. Quando não a localizou, olhou de volta para Kylie. — Eu... bem... as notícias se espalham. As pessoas comentam. — As pessoas? Você quer dizer as pessoas do acampamento? Ou pessoas fora de Shadow Falls estão falando de mim? Ele pareceu constrangido, mas assentiu. — Só as sobrenaturais. Só as sobrenaturais? — Então, todo o mundo sobrenatural sabe a meu respeito? — O pensamento fez Kylie ter vontade de enfiar a cabeça num buraco. Já era ruim o bastante saber que os campistas estavam sempre de olho nela, esperando para surpreendê-la em algum padrão estranho, mas pensar que ela era tema de discussão em todos os lugares fazia com que se sentisse extremamente desconfortável. — Talvez não todo o mundo sobrenatural — ele disse, como se para consolá-la, e então hesitou como se refletisse sobre a sua resposta. — Quer dizer, eu não poderia dizer que é todo mundo... — Ah, é provavelmente todo mundo — concluiu Miranda. — A minha mãe disse que estavam falando de você no conselho das Bruxas semana passada, na Itália. E eles ainda nem sabiam que você era uma bruxa. Pode imaginar a quantidade de comentários agora. Kylie não queria imaginar. Ela de repente sentiu um vazio no peito. — Estavam falando de mim na Itália? Você não me contou isso. — Ela mordeu o lábio. — Eu sou uma aberração tão grande assim...? — Foi por isso que eu não disse nada — explicou Miranda. — Sabia que você ia ficar assim. Mas você não é nenhuma aberração. É uma protetora. E ser protetora é demais. Tem que virar notícia assim como um desastre natural. Não que você seja um desastre. Quero dizer, você é, tipo, uma boa notícia. Nada daquilo contribuía para melhorar o seu ânimo. Ela se sentia mais como um desastre. E um desastre nada natural.
— “Protetora” é uma palavra que leva as pessoas a comentarem. Mas Miranda está certa, não é uma coisa ruim. — Burnett olhou para Kylie e, obviamente percebendo as batidas aceleradas do seu coração, fez um gesto apontando os novos professores. — Eles só querem dizer olá. Não interrogar você. Dizer olá para o desastre natural do acampamento, isto é, a aberração. O coração de Kylie bateu ainda mais rápido. — Não é nada de mais — tentou convencê-la Burnett. Certo. Mas para ela era. Especialmente quando olhou para eles e viu que todos os três professores a encaravam embasbacados. Dois estavam até franzindo a testa, verificando o seu padrão — e essa atitude tinha incentivado muitos campistas a fazerem o mesmo. Ela quase podia ouvir os pensamentos deles. Ei, quem quer dar uma boa risada? Deem uma olhada no padrão cerebral de Kylie agora. Ela ouviu alguém dizer algo sobre ela ainda ser uma bruxa. Kylie supos que ela devia ficar feliz por pelo menos ter um padrão definido, em vez daquele padrão mutante e exótico que realmente assustava as pessoas. Mas saber disso não ajudava a diminuir a sua ansiedade. Ela detestava ser o centro das atenções. Burnett, parecendo meio desconcertado com o dilema emocional de Kylie, inclinou-se em direção a ela e sussurrou: — Se você não quiser ser apresentada agora... — Não, eu... eu vou. — Seria bobagem não ir. E ela se sentiria uma idiota se deixasse todo mundo perceber as suas inseguranças. Ela não tinha nada contra conhecer pessoas novas, só detestava conhecer pessoas novas que já tinham uma ideia preconcebida sobre ela. E com certeza odiaria conhecer essas pessoas que estavam falando sobre ela na Itália. Provavelmente em italiano, e ela nem entenderia. Endireitando a coluna, ela simulou um sorriso, esperando parecer menos bizarra do que eles a consideravam. Era o mesmo sorriso, porém, que ela usava quando a mãe a levava a algum lugar em que ela não queria ir — como no dia em que a levara no trabalho para apresentá-la aos colegas ou em um daqueles almoços beneficentes. O que a mãe costumava dizer sobre aquele sorriso? Ah, sim: “Você parece que engoliu um mosquito”. É, ela ia parecer uma aberração, não tinha jeito.

Praticamente segurando o fôlego, Kylie sofreu enquanto Burnett a apresentava aos três professores. Primeiro foi Hayden Yates, senhor Yates para os estudantes, que lhe cumprimentou com um aceno de cabeça e um olhar mais do que desconfortável. O novo professor de ciências — metade vampiro, metade fae — lhe deu um aperto de mão um pouco mais longo do que o necessário. Considerando que sua metade fae era dominante, Kylie ficou surpresa ao reparar que, ao tocá-lo, não sentiu nenhuma alteração no próprio humor. E, embora não parecesse nenhum pervertido, algo com relação a ele fez com que ela estremecesse. Kylie não tinha certeza do que era, mas não gostou da sensação, nem do professor. Estranho, porque ela geralmente não fazia suposições negativas sobre as pessoas — com exceção do namorado da mãe, é claro. Mas aquele era um caso excepcional. O sujeito queria rolar nos lençóis com a mãe dela e isso não estava certo. Ava Kane, ou senhorita Kane, era a professora de inglês. Ela era metade bruxa e metade metamorfa, sendo a última metade a espécie dominante. Parecia simpática, mas o jeito como ficou franzindo a testa, tentando ver algo diferente no padrão de Kylie, fez com que ela se sentisse pouco à vontade. O que a professora achava que ia encontrar? Collin Warren, metade fae e metade humano, era o professor de história e um geólogo de pouca conversa. Estranho para alguém que tinha sangue fae, pois os faes normalmente tinham um charme natural, embora talvez alguns meio-faes não herdassem esse talento. Kylie já tinha ouvido falar que, em raras ocasiões, alguns humanos sobrenaturais tendiam a ser mais humanos do que sobrenaturais, e talvez fosse esse o caso do senhor Warren. Ele sorriu, no entanto, e cumprimentou-a, embora Kylie tivesse a impressão de que ele também não gostava de ser o centro das atenções. Isso a fez se perguntar por que, afinal de contas, ele era professor. Depois das apresentações, Kylie ficou ali parada, com um sorriso rígido nos lábios, esperando que algo acontecesse e colocasse um fim naquela situação desconfortável. Burnett finalmente interveio: — Bem, que bom que já se conheceram. Kylie aproveitou a deixa para se afastar, mas ao dar um passo descobriu que estava cercada por seis ou sete adolescentes que ela não conhecia. Obviamente os novos estudantes. Os olhares diretos e a curiosidade explícita em suas expressões fizeram com que ela ficasse tensa novamente. Uma coisa era ser alvo dos olhares dos campistas de sempre, mas também ser alvo dos recém-chegados... Seu coração acelerou e suas palmas começaram a suar. Só faltavam alguns minutos para o refeitório estar lotado de gente. Seu sorriso de “quem engoliu um mosquito” já tinha se desvanecido. E o mosquito que ela supostamente engolira parecia estar agora zumbindo no seu estômago. Ela não sabia se iria conseguir aguentar mais pessoas investigando seu padrão e mais apresentações desconfortáveis. — É verdade que no começo você nem tinha um padrão? — perguntou uma das garotas novas, uma bruxa. De repente, ela sentiu um braço sobre os seus ombros. Antes que olhasse para verificar quem era, reconheceu o toque reconfortante de Derek. — Desculpe, mas vocês vão ter que conhecer Kylie depois. Preciso roubá-la por um minuto. — Cara de sorte! — comentou um dos vampiros. — É, eu sou — respondeu Derek, com ar possessivo. Ele a levou para fora do grupinho de novos alunos, andando com confiança e propósito — o propósito de tirá-la do meio de todos aqueles olhares curiosos. Ela estava extremamente grata por Derek tê-la tirado de lá. Ela se aconchegou mais ao ombro dele e soltou um suspiro. — Segura as pontas — ele sussurrou. — Já vou tirá-la daqui.
Ele olhou por sobre o ombro e ela seguiu seu olhar. Ele olhava para Burnett. O vampiro acenou com a cabeça como se desse permissão para que ele a levasse dali. Ela só respirou outra vez quando saíram do refeitório. O braço de Derek a estreitou quando deixavam o edifício, como se ele não quisesse deixá-la ir. Embora ela odiasse ter que admitir, uma pequena parte dela também não queria se afastar. Mas sabendo que não era justo, ela se afastou. E então fitou os suaves olhos verdes do fae. — Desculpe — ela disse. — Pelo quê? — ele perguntou. Por tudo. Por sentir coisas que não devia. — Por precisar ser resgatada. Eu deveria saber lidar com aquilo. É que as pessoas me olham, como se eu fosse... — ... especial? — Ele sorriu. — Não, como se eu fosse uma aberração. Ele negou com a cabeça. — Elas não a consideram uma aberração. Elas estão curiosas. E aquele vampiro ali estava quase babando em cima de você! Mas eu sei que ainda é difícil. — Talvez quando eu souber com certeza o que sou, não seja tão difícil. — Mas ela já sabia, não sabia? Ela era um camaleão. Será que estava começando a duvidar disso, como todo mundo? Derek arqueou as sobrancelhas. — Você ainda não acredita que seja uma bruxa? — Não completamente. Ele assentiu. — Bem, isso tudo vai ser esclarecido amanhã, não vai? Quando o seu avô vier visitá-la. Foi nesse momento que ela se lembrou de que não tinha contado a Derek que seu avô não atendia ao telefone ou que ele e a tia tinham se transformado em neblina. Ela começou a desabafar com ele quando sentiu uma lufada repentina de ar frio.
A mancha de condensação começou a se materializar perto de Derek. A familiar silhueta feminina que tomava forma parecia-se com Hannah. Mas Kylie prendeu o fôlego quando viu que o espírito tinha voltado a assumir sua aparência de zumbi. O vestido bege que ela usava estava em trapos e sujo de lama. Seu cabelo parecia opaco e sem vida ao redor dos ombros. Parte da sua bochecha estava exposta, onde a pele tinha se decomposto e se soltara. E larvas se arrastavam por todo o seu corpo. Nojento. Instintivamente, Kylie deu um passo para trás. — De novo, não! — O pânico encheu os olhos sem vida de Hannah. — O quê? — Kylie se forçou a ficar no lugar. Mas as larvas estavam se espalhando pelo chão cada vez mais rápido. — O que disse? — Derek perguntou, aproximando-se mais dela. Uma das larvas caiu em seu peito. Kylie afastou-a com a mão e depois balançou a cabeça. — Ah! — Os olhos dele se arregalaram em entendimento. Ele deu um pequeno passo para trás, não tanto por medo, mas para dar mais espaço a ela. Kylie voltou a se concentrar em Hannah. Mas o olhar do espírito estava colado em algum lugar sobre o ombro de Kylie. Ela viu a porta do refeitório se abrindo atrás dela e o som de vozes. Hannah continuou com os olhos fixos no que acontecia atrás de Kylie. Então, de repente sua expressão se encheu de pânico. — Não! — Hannah murmurou, e suas mãos descarnadas agarraram Kylie pelos ombros. Havia larvas por todo lugar. — De novo, não! De novo, não! — O toque do fantasma enviava ondas sucessivas de tremor gelado pelo corpo de Kylie, que nem se lembrou mais das larvas. Todas as suas terminações nervosas doíam e seu corpo enrijeceu com a sensação de que seu cérebro e depois o corpo todo estavam congelando. — Está tudo bem? — Derek perguntou, chegando mais perto. O tremor que agitava todo o corpo de Kylie fez com que ela prendesse o fôlego. Ela queria gritar, mas sentiu como se alguém apertasse a sua garganta. Pontos pretos começaram a surgir diante dos seus olhos. Ela sentiu os joelhos começarem a ficar bambos. Derek tocou-a e, como por encanto, a dor e o torpor se desvaneceram. Piscando, ela viu que Hannah ainda estava ali, ao lado de Derek. Kylie respirou, depois forçou-se a falar. — De novo, não, o quê? Hannah não respondeu. Nem olhou para ela. Derek, sim, e ele parecia preocupado. — Olha, eu preciso saber o que posso fazer para te ajudar. Por favor, me responda. — disse Kylie. Mas o espírito, com os olhos assustados ainda fixos em algo atrás de Kylie, desvaneceu-se no ar. Derek passou a mão pelo braço de Kylie. — Tudo bem? Kylie assentiu, saboreando o toque quente de Derek. E então ela se voltou para ver quem estava saindo pela porta do refeitório, curiosa para saber o que tinha feito Hannah fugir. Burnett, os novos professores e um casal de novos alunos estavam parados na porta. — Era Hannah? — Derek sussurrou. — Sim — disse Kylie, ainda tentando adivinhar o que a irmã de Holiday estava tentando transmitir ao dizer “de novo, não”. — Você está bem mesmo? — ele voltou a perguntar. Ela tocou a garganta. — Estou. Eu só não sei o que ela precisa que eu faça por ela. — Não sei se ajuda em alguma coisa, mas acho que descobri onde Cara M. trabalhava. — Onde? — Quando você me disse que provavelmente era em algum lugar perto daqui, eu pesquisei no Goggle todas as lanchonetes e cafés da região. Descobri algumas fotos e um velho artigo de jornal sobre um lugar chamado Cookie’s Café, em Fallen. Você já esteve lá?
— Não, acho que não... Espere! Estive, sim, minha mãe me levou a esse lugar, que parecia uma casa antiga. Deve ser por isso que eu reconheci o uniforme. — Isso mesmo. A casa foi construída no século XIX. — Ele sorriu como se estivesse orgulhoso por ter encontrado a resposta para uma parte do enigma. Kylie quase sorriu também, mas então lhe ocorreu algo. E agora? Mesmo que tudo o que ela precisasse fazer fosse encontrar os corpos, como o fato de saber onde uma das garotas trabalhava poderia ajudá-la? Normalmente, ela conversaria com Holiday a respeito, mas... ela não poderia fazer isso sem antes saber exatamente o que estava acontecendo. Seria muito cruel com Holiday contar que a irmã estava morta, caso houvesse uma chance de Kylie ter se enganado com relação às visões. Então outra constatação atingiu-a em cheio. Ela provavelmente deveria procurar a polícia. Mas não sabia como poderia explicar como sabia de tudo aquilo. O que significava que só cabia a ela decifrar os assassinatos. De novo, não. De novo, não. As palavras de Hannah ecoavam na sua cabeça. O que ela estava tentando dizer? Oh, Deus, Kylie não tinha ideia do que fazer em seguida. Ela não era detetive. Nem sequer assistia aos seriados de TV sobre detetives. Ela olhou para Derek. — O que eu faço agora? — Eu liguei para a lanchonete, só para perguntar se alguma Cara M. trabalhava lá, mas Fallen é uma cidade turística e o restaurante só abre aos finais de semana. A mente de Kylie continuou dando voltas e se perguntando o que ela precisava fazer. — Droga, eu não tenho ideia do que fazer. — Não se preocupe — disse Derek. — Eu ajudo você. E, além disso, temos até sábado para decidir o que fazer. Ela olhou para ele agradecida. — Como eu posso te agradecer?
Ele deu um sorriso que era pura sensualidade, as raias douradas brilhando em seus olhos. — Posso pensar em algumas maneiras. Ela fez uma cara séria. Ele levantou a mão. — Tudo bem. Só sorria um pouco mais. Basta isso. Quinta-feira de manhã, Kylie acordou com Socks dando pancadinhas com a pata em seu queixo. Enquanto ela piscava para espantar o sono, acariciou o pelo macio do felino. O sol entrava pela janela e ela observou a claridade do dia e as sombras no teto disputando espaço — como um combate entre a luz e a escuridão. Enquanto a batalha continuava, ela sentia em seu espírito um embate parecido. Sua vida parecia uma miscelânea de problemas e, ao mesmo tempo, de muitas possibilidades. Ela tinha perdido Derek, mas ganhado Lucas. Tinha perdido a convivência com o padrasto, mas conhecido Daniel. Perdido sua humanidade, mas descoberto que era sobrenatural. E hoje era o dia em que ela supostamente encontraria o avô e descobriria o sentido de tudo aquilo, embora duvidasse muito que ele aparecesse. Kylie franziu os lábios e o lado mais sombrio do seu estado de espírito aflorou. Não que ela fosse deixar que ele ganhasse a batalha. Fechou os olhos e tentou ter pensamentos positivos. Mas sua mente flutuou até Hannah e o fato de que não podia mais adiar o momento em que contaria a Holiday que sua irmã estava morta. Só de pensar em como seria essa conversa, Kylie já perdia a disposição. Então seu coração a lembrou de que Lucas não tinha aparecido na noite anterior, embora tivesse prometido encontrá-la no final da noite. Agora era oficial. Seu lado negro e mal-humorado tinha levado a melhor. Ela voltou a olhar para o teto, sem deixar de perceber que as sombras de fato eram muito maiores do que os retalhos de luz do sol. Por alguma razão inexplicável, ela se lembrou de Nana lhe dizendo para aproveitar a infância porque logo ela seria adulta. Será que isso era ser adulta? Acordar todo dia sabendo que a vida lhe traria ambos, o que era bom e o que era ruim? Fazer o que tinha que fazer, mesmo desejando não fazer? Então se lembrou de outro conselho da avó: Não se esqueça, querida, às vezes não podemos mudar o que acontece, mas podemos mudar o modo como essas coisas nos afetam. — É mais fácil falar do que fazer, Nana. — Kylie respirou fundo, engolindo a frustração, e um doce aroma de rosas despertou os seus sentidos. Virando a cabeça, ela viu uma rosa sobre o criado-mudo. A lembrança de Lucas enchendo o seu quarto com as rosas que roubara do jardim da avó acabou com o seu mau humor. Então, ao avistar o bilhete ao lado da rosa, ela se sentou e pegou a folha de papel. Kylie, Desculpe o atraso. Aconteceu algo que me obrigou a visitar meu pai. Você estava dormindo profundamente quando cheguei aí. E, nossa, você é linda enquanto dorme! Se Della não tivesse me ouvido abrindo a sua janela e não tivesse colocado a cabeça na porta e me xingado por acordá-la — ela é de doer! —, eu teria me deitado com você na cama só para senti-la perto de mim. Você não tem ideia de quanto eu gosto disso. Senti-la contra meu corpo. Inteira. Bons sonhos, Lucas. Kylie pegou a rosa e levou-a até o nariz. O doce perfume a fez sorrir. Talvez o mau humor não fosse levar a melhor, afinal. Kylie reconsiderou a sua atitude positiva quando, algumas horas depois, teve que lutar contra um enxame de insetos ao entrar no bosque com Holiday e Burnett. Mas não eram os insetos que estavam acabando com o seu bom humor. Era um certo lobisomem de cabelos pretos e olhos azuis. Kylie devia se sentir empolgada por estar a caminho da cachoeira. Ela sempre se sentia bem depois de visitá-la. Mas, no momento, não queria se sentir melhor. Queria se sentir... furiosa! Espere. Ela não queria se sentir. Ela já se sentia assim.
Furiosa com o lobisomem que lhe deixara uma rosa e lhe escrevera um bilhete. Ela não estava mais aborrecida por ele não ter aparecido na noite anterior. Tinha tentado deixar de lado o fato de que ele tinha praticamente confessado que guardava segredos dela. Embora a contragosto, tinha aceitado que Fredericka, a ex-namorada de Lucas, estaria sempre ao alcance do seu toque, quando Kylie não podia ter o mesmo privilégio. Ela tinha tentado superar o fato de que a avó e o pai dele, além de toda a alcateia, não queriam vê-los juntos. Ela havia deixado de lado, superado e aceitado muita coisa. E, depois desta manhã, percebeu que talvez ela tivesse ido longe demais, porque, depois de não aparecer na noite anterior, depois de tê-la visto apenas por alguns minutos, ele mal falou com ela no refeitório aquela manhã. Outro mosquito passou zumbindo por Kylie e ela o pegou no ar, esmagando-o contra uma árvore. Bzzz... plaf! Lucas não podia ter se aproximado e tomado café com ela? Ela nem o teria culpado se tivesse levado Clara com ele. Mas, não, tudo o que ele fez foi sorrir, e até mesmo esse sorriso parecia propositalmente breve. Então ele tinha se sentado à mesa dos lobisomens com todos os seus amigos, sua alcateia — gente que evidentemente tinha mais importância que ela e provavelmente sempre teria. Na noite anterior, ele tinha escalado a janela do quarto dela um pouco depois da meia-noite, enquanto ela dormia. Havia deixado uma rosa e um bilhete carinhoso, e esta manhã tudo o que tinha feito foi lhe lançar um meio sorriso. O que estava acontecendo? Ela com certeza não fazia ideia. A quem ela queria enganar? Ela sabia, sim, exatamente o que estava acontecendo. Ela não era boa o bastante para ele, porque não era um lobisomem. Aquilo doía. Doía de verdade. Então, para deixar as coisas ainda piores, quando Derek se sentou ao lado dela, Lucas teve a audácia de lhe mandar uma mensagem pelo celular dizendo que não estava gostando nem um pouco.
Certo. Ele não estava gostando do fato de Derek estar sentado ao lado dela, mas ele mesmo tinha preferido não se sentar com ela. Em vez disso, seu “traseirinho sexy” estava prensado entre Fredericka e uma das novas lobas, que se jogava em cima dele, deixando até Fredericka enciumada. Sim, Kylie podia ouvir Lucas lhe dizendo que não precisava se preocupar com Fredericka. Dizendo-lhe que não tinha pedido para a nova garota se sentar ao lado dele, e que ele tinha que ser fiel à sua alcateia. E talvez Kylie estivesse errada por dar vazão à sua raiva, ou talvez ela não estivesse com raiva, apenas cansada de ficar sempre em segundo lugar. Ficar em segundo lugar era um porre. Outro mosquito foi desta para melhor quando ela o esmagou contra sua bochecha. — Talvez seja melhor ir mais devagar — disse Burnett, emparelhando com ela depois de dar algumas passadas largas. Kylie olhou para ele, que a analisou por um segundo, depois desviou o olhar para o terreno em volta, como se esperasse que alguma coisa saltasse na direção deles. Burnett parecia inquieto desde que entraram na floresta, mas Kylie nem tinha prestado muita atenção nisso; seu coração estava ocupado demais remoendo sua frustração por estar em segundo lugar aos olhos de Lucas, para se preocupar com a possibilidade de Burnett ter consumido muita cafeína. — Sério, é melhor diminuir o ritmo — aconselhou Burnett. — Por quê? — perguntou Kylie. Ele olhou de relance sobre o ombro novamente. — Por mais incríveis que sejam os faes, eles não são muito rápidos. Kylie suspirou. Ela não tinha percebido que estava andando num ritmo tão acelerado. Um ritmo que não condizia com o das bruxas também. O que significava que ela não era de fato uma bruxa, certo? Olhando para trás, viu Holiday correndo a toda velocidade para alcançá-los.
— Desculpe. — Kylie diminuiu o passo e notou que Burnett continuou a olhar em volta como se esperasse que alguém saltasse das árvores para cima deles. Será que tinha acontecido alguma coisa? E, se de fato tinha, teria algo a ver com ela? O barulho dos passos de Holiday estava mais próximo agora. Kylie olhou para Burnett e depois para Holiday. — Obrigada por irem mais devagar — agradeceu Holiday, parecendo sem fôlego. Em menos de um minuto, Burnett tinha ficado mais para trás de propósito, dando às duas privacidade para conversar a sós. Provavelmente por insistência de Holiday. Não havia dúvida de que ela queria conversar com Kylie, e Holiday não queria que ele ouvisse. O aroma de madeira da floresta enchia as narinas de Kylie. Pela primeira vez desde que tinham entrado no bosque ela se lembrou do avô e da neblina. Imediatamente tentou ouvir com o coração para ver se tinha a mesma sensação de antes, de que estava sendo chamada; não teve. Então imaginou se o episódio da neblina não era o motivo da inquietação de Burnett. Ou, pior, será que eles tinham tentado voltar e desligado os alarmes? Será que Burnett contaria a ela se isso tivesse acontecido? Provavelmente não. Ela olhou para trás, em direção ao vampiro. O que ele saberia? Aproximando-se de Holiday, Kylie perguntou: — Você pode responder a uma pergunta com muita sinceridade? Os passos de Holiday na terra molhada produziam um chapinhar, como se a pergunta de Kylie tivesse deixado seus passos mais pesados. — Eu não minto pra você. — Por omissão, mente, sim. Não ser franca com relação a algo é pior do que mentir. — E também havia a questão sobre quão fechada era Holiday com relação à sua vida pessoal. Embora Kylie confiasse na amiga, magoava saber que a confiança não era recíproca.
— Eu não escondo as coisas de você de propósito. — A franqueza das palavras de Holiday ficou pairando no ar cheio de umidade. Elas andaram sem se falar por alguns minutos. — O que você quer saber? — perguntou Holiday. Kylie tentou deixar de lado a frustração com relação a Holiday, sabendo que a sua raiva de Lucas estava afetando o seu humor. — O que há com Burnett? Ele parece mais alerta do que de costume. Ele... descobriu alguma coisa que tenha a ver comigo? Tem notícias do meu avô? Hoje era o dia em que ele deveria aparecer e, no entanto... não acho que haja uma chance de que ele venha. E ninguém está dizendo nada a respeito disso, como se nem estivesse acontecendo. Holiday franziu a testa. — Como não achamos que ele viria, decidimos não dar muita importância ao fato. Mas eu e Burnett conversamos sobre isso mais cedo e ele me disse que não teve notícia do seu avô. Mas... concordo que ele esteja... digamos, na defensiva. Eu perguntei a respeito. Ele disse que está nervoso. — O tom de voz dela parecia revelar que não estava muito convencida. Tampouco Kylie estava. Algo estava acontecendo. Mas o quê? À medida que avançavam pelo caminho de pedra, um frio pouco natural pareceu varrer a floresta com uma brisa. Alguém, que não era deste mundo, estava por perto. Ela deu uma outra olhada em Burnett, sobre o ombro, e lembrou-se da conversa que tinham travado a respeito de fantasmas. Será que era isso que o incomodava? Holiday diminuiu o passo e olhou para trás com preocupação. Um leve arquejo escapou dos seus lábios e sua expressão mudou de preocupação para aborrecimento. Não qualquer aborrecimento, mas aquele do tipo provocado pelo sexo oposto. O humor devia ser algo contagioso, porque os pensamentos de Kylie também se voltaram para os seus problemas com o sexo oposto e ela se perguntou se os homens não teriam sido criados apenas para atormentar as mulheres. Alguns minutos depois, ao longo da trilha, Holiday falou:
— Agora é a sua vez. O que está acontecendo com você? E não me fale que não é nada, porque você está exalando raiva por todos os poros. Kylie fechou a cara, zangada demais para negar seus sentimentos. — Meu problema é com Lucas. — Problemas com garotos, hein? — Catástrofes com garotos seria uma expressão mais correta. Eu não tenho certeza se consigo ir adiante. — Ir adiante? — A voz de Holiday deixava transparecer a sua preocupação. — Com Lucas — disse Kylie. Holiday fez uma careta e levantou uma sobrancelha. — Não estou querendo dizer... transar com ele... — explicou Kylie, percebendo o que tinha dito e achando que era por isso que Holiday tinha feito aquela cara. — Quero dizer, aceitar que sou a última das prioridades dele. Vê-lo me tratar como se eu fosse supérflua na vida dele. Me sentir como se todo mundo que Lucas conhece e de quem ele gosta achasse que não sou boa o suficiente para ele, porque não sou um lobisomem. Um brilho de compreensão surgiu nos olhos de Holiday. — Se for um consolo, não acho que Lucas compartilhe as antigas crenças dos lobisomens. A maioria dos jovens não concorda com elas, embora na sociedade deles exista uma pressão dos mais velhos para que essas crenças sejam adotadas. — Eu sei — disse Kylie. — E sei também que Lucas só tolera essas leis estúpidas porque precisa da aprovação do pai para conseguir mudar algumas coisas no conselho. Mas, quando ele nem sorri para mim por mais de um segundo, isso dói! — ela exclamou, perturbada. — Aposto que me sentir desse jeito faz de mim uma babaca egoísta. — Suas palavras ressoaram no fundo do seu ser e a culpa, como moscas sobre uma fruta podre, começaram a zumbir em torno do seu peito.
— Não — Holiday fixou os olhos verdes em Kylie enquanto faziam uma curva na trilha. — Isso não faz de você uma egoísta. Faz de você uma pessoa normal. Ninguém quer sentir que não é bom o bastante. — Mas mesmo assim eu me sinto uma babaca egoísta — disse Kylie. — O barulho da cachoeira chegou aos seus ouvidos e, mesmo àquela distância, ela sentiu que já estava acalmando os seus sentidos. — Ou me sinto egoísta quando não estou me sentindo furiosa. Holiday inclinou-se e roçou o ombro no de Kylie. — Os seus sentimentos são perfeitamente compreensíveis. Não se sinta culpada. Claro, Lucas está fazendo as suas escolhas por algum motivo. Faz parte do seu objetivo e todos nós precisamos pagar um preço por seguir nosso próprio caminho. Mas... — Ela fez uma pausa para pensar. — Nem sempre é justo pedir a outras pessoas que paguem esse preço junto conosco. — Ela olhou para Burnett outra vez. Kylie sentiu que as palavras de Burnett tinham um significado pessoal para ela. Nos últimos dias, Kylie suspeitou de que o relacionamento entre os dois tinha retrocedido. E ela não achava que fosse por culpa de Burnett. — Acho que ele estaria disposto a pagar esse preço — disse Kylie. Holiday franziu a testa. — Eu estava falando de você e de Lucas. — Eu sei — disse Kylie. Mas eu estava pensando em você e Burnett. Eles percorreram o resto da trilha e entraram num bosque de árvores frondosas, enquanto concluíam a caminhada até a cachoeira. O cheiro de umidade da terra molhada perfumava o ar, o som de água corrente tocava uma sinfonia de tons silvestres e o ambiente sereno era cada vez mais envolvente. A raiva de Kylie, suas frustrações, tudo parecia mais ameno a cada passo. E quando eles chegaram, foi... surreal! Cada vez que visitava a cachoeira, Kylie parecia se esquecer de quanto era bom estar lá. Eles ficaram de pé às margens do rio e contemplaram, em meio ao ar enevoado, a água que borrifava da cachoeira. Kylie ouviu a respiração de Holiday ficando mais profunda e tranquila, assim como a dela. — O que tem este lugar? — perguntou Kylie. — Magia. Poder. — Holiday se abaixou para tirar os sapatos e Kylie fez o mesmo. — Na década de 1960, um botânico sobrenatural veio até aqui para provar que tudo isso podia ser explicado pelos compostos químicos da vegetação. Como se fosse algum tipo de droga natural. — Mas como isso seria possível se nem todo mundo sente a mesma coisa? — Kylie perguntou, desamarrando o tênis. — Ah, mas aqueles que não se sentem bem-vindos aqui geralmente sentem o contrário, um desconforto que os leva a querer se afastar. É por isso que esse cientista acreditava que fosse uma reação química. O que significava que os poucos sobrenaturais que sentiam emoções positivas eram simplesmente geneticamente predispostos a reagir de modo diferente aos compostos das plantas. Como alguns grupos de pessoas reagem de modo diferente às drogas. — E o que ele concluiu? — Kylie perguntou, intrigada com o assunto, mas sem acreditar que se tratasse de uma espécie de droga mais do que acreditava em Papai Noel. Holiday tirou os sapatos, colocou-os sobre uma pedra e ficou de pé, olhando para Kylie com um leve sorriso nos lábios. — Nada. Depois de algumas semanas estudando a região, ele e sua equipe desistiram do patrocínio que viabilizava o projeto. Há boatos de que os anjos da morte os afugentaram. Kylie desviou o olhar para contemplar a paisagem bela e verdejante. A mistura de névoa e raios de sol filtrados através das árvores expressava o poder e a magia que Holiday mencionara. A atmosfera daquele lugar era reverente demais para ser considerada uma droga, e o esplendor natural era espiritual demais para ser dissecado e estudado num microscópio.
— Eu posso ver por que os Anjos da Morte não gostam que pessoas descrentes fiquem perambulando por aqui. Fico satisfeita que as tenham afugentado. — Eu também — concordou Holiday. Levantando-se, Kylie afundou os pés descalços nas margens cobertas de musgo. Mexendo os dedos dos pés, ela se curvou e tirou o jeans. Nesse exato instante, alguma coisa passou zunindo em frente a ela. Kylie engoliu um grito quando viu que era o pássaro azul. O pássaro que ela havia trazido de volta à vida e que tinha se apegado a ela, fazendo-lhe visitas ocasionais. Pairando em frente a Kylie, ele cantou como se tivesse composto uma balada só para ela. — Eu não sou a sua mãe — disse Kylie para o pássaro. — Vá embora, siga o seu caminho. Faça o que os pássaros costumam fazer. Deixe o ninho, quero dizer. Encontre uma linda fêmea azul para cortejar. — Que gracinha! — disse Holiday, rindo. — Talvez seja uma gracinha, mas é muito estranho também — murmurou Kylie. Depois de tirar o jeans, ela entrou no riacho. A água fria na altura dos calcanhares estava divinamente refrescante. Seu coração, que até momentos antes estava apertado, agora parecia mais leve. Pelo menos por ora, tudo parecia em paz. Seu mundo parecia algo fácil de lidar; seus problemas, solucionáveis. Ela se deixou envolver totalmente por esse sentimento. Se tinha aprendido alguma coisa com as visitas a esse lugar especial, era que até a vida mais fácil não era perfeita. Uma visita à cachoeira não mudava nada. Simplesmente oferecia à pessoa mais força para enfrentar as adversidades. A vida ainda poderia machucar como uma punhalada no coração. E ela tinha algumas cicatrizes para provar isso. Uma visão de Ellie encheu seu coração. No entanto, enquanto a brisa carregada de névoa gelada acariciava seu rosto, a dor foi diminuindo e se transformando em aceitação. Cada novo dia trazia novas oportunidades. Nem sempre podemos controlar a vida, apenas o modo como nos deixamos afetar por ela. Parando do outro lado do riacho, ela se virou para olhar para Holiday. A líder do acampamento estava parada, olhando para trás, em direção a Burnett, que estava entre as árvores. A expressão em seu rosto transmitia preocupação, fascínio e alguma outra coisa. Amor. Burnett e Holiday estavam destinados a ficar juntos. O sentimento veio tão forte e cheio de certeza que parecia trazer uma mensagem com ele — uma mensagem que Kylie não conseguia interpretar. Será que significava que ela deveria ajudar a fazer isso acontecer? Ou ela poderia confiar que, naturalmente, o amor encontraria uma maneira de se concretizar? E será que ela podia sentir o mesmo com relação a ela e Lucas? Não que estivesse preparada para chamar seu sentimento por Lucas de amor. Não que ele o tivesse chamado assim. Mas Derek tinha. Eu estou apaixonado por você, Kylie. Kylie fechou os olhos e tentou não pensar em nada que não fosse o sentimento calmo que a cachoeira oferecia.

O tempo pareceu parar enquanto Kylie e Holiday estavam sentadas lado a lado na gruta sob a queda-d’água. A parede de água tornava a luz do dia difusa, filtrando os raios de sol. E, quando fazia isso, a luz era capturada nas gotículas de névoa e dançavam no ar. A água precipitava-se com um rugido baixo e pequenas moléculas de umidade molhavam o rosto delas. Ocorreu a Kylie que talvez aquela fosse uma boa hora para contar a Holiday sobre sua irmã. Se alguma coisa podia ajudar a conter o choque da notícia, era a magia daquele lugar. Contudo, mesmo com a tranquilidade envolvendo-a, a ideia de dar à amiga essa notícia fez o coração de Kylie se contrair de dor. Então um frio familiar cortou o ar úmido. Hannah se materializou, em pé sobre uma poça d’água. Seus olhos verdes, brilhantes de lágrimas e cheios de tristeza, fixaram-se em Holiday. Alheia à presença da irmã, Holiday olhava para a parede de água que caía. Ela esfregou os braços como se estivesse com frio, e, em seguida, virou a cabeça e encontrou os olhos de Kylie. — Um visitante? Kylie balançou a cabeça, a garganta ficando mais apertada de emoção, quando ela relanceou os olhos para as lágrimas de Hannah. Holiday encolheu os ombros. — Estranho. Eles normalmente não entram aqui. Ela se deitou sobre a pedra e olhou para o teto da caverna, como se dando espaço a Kylie para conversar com o espírito. — Ela me odeia — disse Hannah. — E eu não a culpo. O que eu fiz foi imperdoável. — A vergonha inundou os olhos de Hannah de lágrimas.
Kylie quase perguntou a Hannah o que ela tinha feito, mas decidiu deixar o espírito iniciar a conversa. Kylie ficou ali sentada em silêncio, sentindo o frio da morte, que de certo modo se mesclava com a calma da cachoeira. Ela estudou a expressão carregada de emoção no rosto de Hannah e soube que o espírito tinha conseguido superar a desorientação que a morte provocava, a ponto de se comunicar. Seu estado parecia ter evoluído o suficiente para ela se lembrar. Será que ela se lembrara do que tinha acontecido um pouco antes de morrer? O nome do assassino, talvez? Mas tudo o que Kylie via no semblante de Hannah era arrependimento. Observar Hannah levou Kylie de volta à sua própria experiência de quase morte, quando Mario e seus amigos a encurralaram na beira do penhasco. Ela pensou que ia morrer. E teria de fato morrido se Ruivo, o neto de Mario, não tivesse sacrificado a própria vida para salvá-la. Ela se lembrou do arrependimento que a consumiu quando pensou que era o fim. Provavelmente a mesma emoção que Hannah sentia agora. Mas será que todo mundo não sentia a mesma coisa? Viver, supunha Kylie, significava cometer erros, acumular karma. Embora Kylie nunca tivesse de fato definido seu trabalho ou dom como comunicação com os mortos, ela presumia que ele incluía recordar os espíritos do bem que tinham feito em vida, além de ajudá-los a se perdoar pelos erros cometidos. Parecia que, durante a vida, passávamos a maior parte do tempo perdoando os outros. Depois da morte, era a nós mesmos que mais precisávamos perdoar. — Aposto que vocês duas eram próximas — disse Kylie. — Imagino que tenham se divertido muito como irmãs. Hannah olhou para Kylie. — De fato. Eu só queria... Ao ver que Hannah não ia continuar a frase, Kylie perguntou: — O que eu posso fazer por você? Só quer que eu conte a ela sobre a sua morte? Quer que você e as outras sejam retiradas daquela cova?
— Não mais. — Ela fez uma pausa, como se tentasse se lembrar de algo. — Não vai acontecer de novo. — O sussurro de Hannah ecoou nas paredes de rocha da caverna e o frio de sua presença aumentou. Kylie abraçou os joelhos. — O que não vai acontecer de novo? Hannah se aproximou um pouco mais, parecendo perdida em pensamentos. — Eu não consigo olhar para ela sem sentir... que eu estava tão errada! Com tanta inveja! Eu tive o que mereci. Eu merecia morrer, mas as outras não. É preciso detê-lo! — Mais lágrimas afloraram em seus olhos. O som de água corrente pontuava a quietude do ar enevoado, acrescentando uma atmosfera fantasmagórica ao lugar. — Ele a quer. — Hannah deu outro passo para a frente. O desespero enchia os seus olhos. — E você tem que impedi-lo. O olhar de Kylie desviou-se do rosto do espírito e se fixou na água parada da poça, que nem sequer se agitou quando Hannah avançou através dela. O espírito entristecido parou quando ficou bem diante de Holiday, olhando para ela com uma mistura de amor e arrependimento. Percebendo o que Hannah tinha dito, Kylie perguntou: — Quem? Impedir quem de fazer o quê? O telefone de Holiday começou a tocar e Kylie olhou para ela. A líder do acampamento se sentou, com as sobrancelhas franzidas. — Ok, isso é estranho também. Os celulares não costumam funcionar aqui dentro. — Tirando o telefone do bolso, ela olhou o número na tela. Kylie viu Holiday prender a respiração ao mesmo tempo que Hannah. O espírito soltou uma exclamação de desespero e disparou para fora da caverna. Seus passos, embora rápidos, eram silenciosos no chão de pedra. Um pouco antes de o espírito de Hannah atravessar a parede de água, ela olhou para trás, em direção a Holiday, que fitava chocada o número na tela. Então desapareceu, levando com ela todo o frio. — Quem é? — Kylie perguntou. Holiday balançou a cabeça. — É... Blake. — Quem é Blake? — Kylie perguntou, pressentindo que era uma pista para tudo o que estava acontecendo. Será que era ele que Kylie tinha de impedir que fizesse mal a Holiday? A vida de Holiday estaria em perigo? O barulho da cachoeira foi interrompido pelo barulho de alguém se aproximando correndo, através da água. Kylie e Holiday olharam na direção do barulho. Burnett, que estava de guarda do lado de fora da gruta, entrou através das quedas, com a face crispada de pavor. Suas roupas estavam molhadas e seu cabelo preto, grudado na testa e pingando água no rosto. — Para onde ela foi? — Ele piscou e então seu olhar se deteve em Holiday. Seus olhos se arregalaram. Ele balançou a cabeça, confuso. — Você acabou de... sair daqui correndo. Como pode estar aqui? — O quê? — Holiday perguntou. Burnett ficou simplesmente parado ali, sua pele ainda mais pálida do que a cor azeitonada normal, olhando para Holiday como se estivesse vendo um fantasma. Kylie de repente percebeu que era exatamente o que tinha acontecido. Burnett tinha visto Hannah. Ah, merda, pensou Kylie. Burnett não só podia farejar fantasmas, como também podia vê-los. — Como eu posso ter saído daqui correndo? — perguntou Holiday novamente, devolvendo o celular ao bolso do jeans. — Você não está dizendo coisa com coisa.
Kylie não sabia o que a levava a agir dessa maneira, mas ela olhou para Burnett e balançou a cabeça, como se dissesse que ele não deveria contar a Holiday o que tinha visto. Ele abriu a boca e então fechou-a novamente e fitou Kylie. Ela fez que não com a cabeça novamente e percebeu que ele tinha entendido. Então ele fixou os olhos em Holiday. Ainda parecendo perplexo, ele respondeu: — Acho que me enganei. Pensei ter ouvido você me chamar. — Não — respondeu Holiday. — Não chamei. — Muito bem — ele disse, e num piscar de olhos atravessou a parede de água, saindo da gruta. Holiday ficou olhando para o ponto onde ele estava um segundo antes. — Eu sei que você me disse que Burnett voltaria e não é que eu não acreditasse em você, mas ver isso com os meus próprios olhos me deixou pasma. Eu não... eu nunca vi ninguém ser capaz de vir aqui atrás, na gruta, sem ser abençoado. A mente de Kylie dava voltas, pensando no que dizer, mas então ela se lembrou do telefonema e da angústia no rosto de Hannah quando disparou para fora da caverna. Então teve o pressentimento de quem quer que tivesse ligado para Holiday tinha algo a ver com Hannah e poderia ser a pessoa com quem ela estava preocupada. — Quem é Blake? — perguntou Kylie novamente. — Você não tem uma reunião com um dos novos professores? — Burnett perguntou a Holiday quinze minutos depois, quando chegaram à clareira, na volta da cachoeira. — Por que não vai para o escritório enquanto eu levo Kylie até a cabana? Kylie olhou para Burnett e percebeu suas intenções. Ele queria ficar sozinho com ela para que pudesse perguntar sobre o que tinha acontecido na cachoeira. Ela podia dizer, pelo silêncio dele e pela cor dos seus olhos, que o interrogatório não seria fácil.
— Eu ainda tenho meia hora, caso você tenha outra coisa para fazer. — Holiday estudou Burnett com uma curiosidade explícita, provavelmente confusa com a mudança do tom dos seus olhos. No caminho de volta, ela tinha perguntado sobre a capacidade dele de entrar na cachoeira. Ele tinha dado de ombros e dito que nunca pensara muito naquilo. Que tremenda mentira! Ele obviamente tinha pensado muito naquilo. E tinha percorrido todo o caminho de volta pensando naquilo também, pois não tinha pronunciado uma palavra durante todo o percurso. Com todos em silêncio enquanto atravessavam o bosque, Kylie teve tempo para pensar e se preocupar. Tentando desvendar o mistério de Blake a cada passo, ela remoeu tanto o que acontecera que mordeu o lábio inferior até machucá-lo. Quando perguntou sobre o telefonema que recebera na gruta, Holiday se esquivou de dizer a verdade, sendo vaga: — Alguém que eu conheci. A resposta não esclareceu nada a Kylie. Ela se sentiu tentada a despejar sobre Holiday uma lista de perguntas. Blake também conheceu a sua irmã gêmea, de cuja existência eu supostamente não deveria saber? Você acha que Blake pode ter feito algo para a sua irmã, tipo matá-la? Eu preciso contar a Burnett sobre Blake, só para o caso de ele ser a pessoa que eu preciso impedir de fazer mal a você? Oh, sim, Kylie tinha muito com que se preocupar, incluindo o interrogatório que Burnett pretendia fazer. — Não, tudo bem — respondeu Burnett a Holiday. — Eu levo Kylie até a cabana. Você vai relaxar. Holiday fez uma cara preocupada, como se não estivesse nem um pouco disposta a relaxar, e olhou para Kylie como se a garota soubesse por que o vampiro estava agindo de modo tão estranho. Kylie deu de ombros. — Ok — conformou-se Holiday, pegando a trilha do escritório.
Kylie começou a percorrer o caminho até a sua cabana e apostou consigo mesma quanto tempo demoraria ainda para Burnett começar a crivá-la de perguntas. Um minuto? Dois? — Comece a falar! — Burnett não demorou mais do que vinte segundos. Ok, talvez ela tivesse superestimado a paciência dele. Ele parou de andar e olhou para ela, no rosto uma carranca. — Quem era aquela, na cachoeira, que se parecia com Holiday? Você usou seus poderes de bruxa para fazer aquilo? Kylie hesitou, insegura quanto ao que responder. Ela se lembrou de como se sentira quando constatou que passaria o resto da vida falando com pessoas mortas. — Eu não fiz nada. — Então quem era? — ele perguntou, autoritário. — E por que você preferiu esconder isso de Holiday? — Ao ver que ela demorava a responder, ele acrescentou. — Agora, Kylie! Eu quero respostas. E não esqueça que eu sei quando está mentindo. Ela deu um suspiro. Entendia a frustração dele, mas... — É a irmã gêmea de Holiday. Ele arqueou as sobrancelhas, numa expressão perplexa. — Holiday tem uma irmã gêmea? Kylie confirmou com a cabeça. Burnett desviou o olhar por um segundo, então voltou a encará-la. — Por que ela nunca mencionou isso? — Ele correu a palma da mão pelo rosto, expressando frustração e desapontamento. Então chegou à sua própria conclusão. — Porque ela não tem confiança nenhuma em mim. Seu olhar voltou a fitar Kylie. — Mas, espere aí. Como a irmã dela pode ter entrado no acampamento sem disparar os alarmes? Eu chequei meu telefone quando saí da gruta. Os alarmes não tinham disparado e não havia neblina para encobrir alguém que quisesse burlar o sistema.
— Ela não burlou o sistema. Ela... — Não havia um jeito fácil de dizer aquilo, mas ela fez uma pausa, tentando encontrar as palavras certas. — É a única alternativa — Burnett continuou. — O que mais poderia... — Ela está morta — disse Kylie, sentindo, no semblante carregado do vampiro, a pressão para que respondesse. — A irmã de Holiday é um fantasma.

— A irmã dela está morta? — O tom de voz de Burnett deixou transparecer a sua surpresa. — Como? O que aconteceu? Kylie se sentiu tocada ao ver que ele tinha pensado primeiro em Holiday, antes de querer entender exatamente o que estava acontecendo. Não que ela não esperasse que ele percebesse o óbvio dali a um minuto. Ou talvez em menos de um minuto. Os olhos dele se arregalaram de pânico e sua boca se abriu. — Não! Ela não pode ser... porque eu não posso... — Ele balançou a cabeça. — Não... — Isso não é muito diferente de farejar um fantasma. E você já sabia que era capaz disso — disse Kylie, esperando diminuir o choque de Burnett. — Uma ova que não é! É totalmente diferente! — ele esbravejou, passando a mão pelo cabelo. — Como eu poderia... Eu sou um vampiro e nós, vampiros, não... Não vemos espíritos! — Eu sei. Eu me lembro de Holiday dizendo isso. — Kylie fez uma pausa. — O mais estranho é que você viu, e normalmente só a pessoa que tem alguma ligação com o espírito o vê. Eu não vejo os espíritos que se manifestam para Holiday e ela não vê os meus. Então por que você viu Hannah? — Eu não deveria vê-los! — ele insistiu. — Sou um vampiro. Muito, mas muito poucos vampiros têm esse poder secundário. Kylie franziu as sobrancelhas para confirmar o padrão de Burnett. — Talvez você não seja cem por cento vampiro. Seu tataravô poderia ser um híbrido, e só agora esse dom que herdou dele veio à tona.
Ele passou a mão na própria testa. — O meu padrão não é totalmente o de um vampiro? Kylie deu de ombros. — É — Ela o fitou, solidária. — Mas, considerando tudo o que eu tenho passado, aprendi a não tomar um padrão pelo que ele é no momento. Burnett olhou para Kylie como se ela tivesse se metamorfoseado em algo ruim. — Mas isso só acontece com você. — É, às vezes é o que parece... — Ela achou o comentário um tanto engraçado. Encolheu os ombros de novo, contendo um sorriso, porque não achava que Burnett ia apreciar piadinhas naquele momento. — No entanto — Kylie continuou —, não podemos negar que algo está acontecendo. O seu padrão mostra que você é um vampiro, e vampiros puro-sangue geralmente não se comunicam com fantasmas. — Talvez seja um castigo por eu ter entrado na cachoeira. O primeiro impulso de Kylie, sendo ela mesma alguém que se comunicava com fantasmas, foi se sentir um pouco insultada ao ver que seu dom era visto como um castigo; o segundo impulso foi lembrar que, no início, era exatamente assim que ela se sentia. Como se estivesse sento punida. — O que foi? — ele perguntou, como se percebesse que ela tinha algo a dizer. Sem saber como escapar da saia-justa, ela disse exatamente o que se passava em sua cabeça. — Como Holiday sempre diz, isso é um dom, não um castigo. — É um castigo para mim. Diabos! — ele murmurou. Kylie ainda não conseguia entender como aquilo tinha acontecido. Afinal, até Holiday tinha explicado que era muito raro um vampiro ser capaz de se comunicar com os mortos. — Sério, os seus pais são de fato vampiros de sangue puro?
Ele olhou para ela como se a pergunta exigisse alguma reflexão. Depois, desviando os olhos, ele fitou o céu. Depois de vários segundos, voltou a olhar para ela. — Certo... vamos esquecer a minha dificuldade para aceitar tudo isso. — Ele passou a mão no rosto outra vez como se tentasse dissipar sua confusão. — Por que você não quer que Holiday saiba que a irmã dela está aqui? Kylie mordeu o lábio inferior, então soltou-o ao sentir dor. — Eu não acho que Holiday saiba. Primeiro eu quero descobrir exa- tamente... — Espere. Você não sabe se Holiday sabe o quê? — ele perguntou, impaciente. — Que a irmã está morta. Ele a olhou com assombro. — Ela não sabe? Ah, merda... — Ele soltou um suspiro. — Como a irmã dela morreu? Há quanto tempo? Mesmo antes de responder, Kylie suspeitava de qual seria a reação do vampiro. Ele não ia gostar disso. — Ela foi assassinada. Ela e outras duas garotas. O descontentamento transpareceu nos olhos de Burnett e sua postura enrijeceu. Ela acertou ao adivinhar a reação dele. E tentou não se deixar intimidar com a sua fúria. — Assassinada?! — esbravejou. — Há quanto tempo você sabe disso e por que, pelo amor de Deus, você só está me contando agora? — Eu... eu estou tentando descobrir. Hannah só agora está conseguindo me contar as coisas. E eu ainda estou tentando encaixar as peças. — Uma pequena parte dela estava se perguntando se ele talvez não estivesse certo e ela errada por tentar desvendar o mistério sozinha. Mas na verdade ela não estava tentando fazer tudo sozinha. Ela tinha Derek. Então pensou que talvez devesse ter contado tudo a Burnett, não a Derek.
Suas dúvidas começaram a vir à tona e depois se atenuaram. A calma que irradiara da cachoeira cresceu em seu peito e de algum modo ela soube que tinha acertado ao seguir seus instintos. Não era isso que Holiday sempre lhe dizia para fazer? — Caramba, Kylie. Você devia ter me procurado para que eu pudesse ajudá-la a descobrir o que aconteceu. Kylie sustentou o olhar do vampiro. — Como se você fosse muito receptivo aos meus problemas com fantasmas. Além disso, eu estava fazendo o que a minha intuição dizia que era o melhor. A postura de Burnett relaxou, como se ele compreendesse os motivos dela. — Mas se é a respeito de Holiday, eu sempre sou receptivo. Kylie viu nos olhos dele outra vez a lealdade por Holiday. Porque ele a amava, Kylie percebeu. Essa constatação levou-a a pensar em Derek e na disposição dele em ajudá-la com os fantasmas, quando ninguém mais se dispunha. O pensamento em Derek levou seu coração de volta a Lucas. O passeio à cachoeira tinha diminuído a animosidade que sentia com relação a ele, mas não completamente. Mais cedo ou mais tarde, os dois teriam que conversar. Ela só não sabia como essa conversa iria terminar. Ou como iria começar. Ela estaria certa de ficar com raiva dele por manter distância se ela sabia a razão que o levava a se comportar assim — evitar conflitos com o pai dele, de modo que ele pudesse receber mais votos para entrar no conselho dos lobisomens? Será que ela não deveria ser mais compreensiva e solidária? Burnett deu um passo para trás e mexeu o pescoço de um lado para o outro, como se estivesse tentando aliviar a tensão. — Holiday tem que saber. Kylie bateu a ponta do tênis na terra e tentou se concentrar no problema que tinha à mão e não nos seus dilemas com relação a Lucas. — Eu sei. Mas achei que, quando soubesse exatamente o que Hannah quer, seria mais fácil.
— Você acha que ela quer alguma coisa? Kylie assentiu. — Eles sempre querem alguma coisa. É por isso que não deixam este mundo. É por isso que nos procuram. — Procuram você — ele a corrigiu e depois acrescentou: — Você tem alguma ideia do que ela precisa? Kylie preparou-se para a reação dele novamente. — Eu não tenho certeza absoluta. A princípio, pensei que fosse apenas ajuda para que ela e as outras fossem retiradas da cova coletiva em que estão. Talvez encontrar quem fez isso com ela. Mas agora... agora eu acho que ela sente que tem que proteger Holiday de alguma coisa... ou de alguém. A expressão de Burnett ficou mais sombria, mas desta vez sua angústia não era dirigida a Kylie. Seus olhos brilharam com a necessidade instintiva de proteger Holiday. — Antes que você pergunte, eu não sei quem ou exatamente o que representa perigo para Holiday. — Kylie suspeitava que tinha algo a ver com o homem chamado Blake, mas não tinha certeza se deveria dizer isso a Burnett. Da última vez em que ela deu ao vampiro uma informação pessoal sobre Holiday, a amiga tinha ficado furiosa. Se Kylie descobrisse que Blake era uma ameaça, então contaria tudo a Burnett. Mas ela precisava de mais informações. Informações que nem Holiday nem Hannah pareciam dispostas a dar. Ele fez um gesto com as mãos, expressando frustração. — Então vá atrás de Hannah e diga que você precisa de respostas. — Não é assim que funciona. Não somos nós que procuramos os espíritos. São eles que vêem até nós. Ele franziu o cenho. — Não gosto nada disso. Nem um pouco. Nesse ponto, Kylie poderia concordar com ele. Ele ficou de pé ali, olhando para as árvores como se as respostas estivessem entre os galhos. Ela tinha o palpite de que ele não estava acostumado a não receber informações quando exigia. Se ele realmente se comunicasse com fantasmas, teria que aprender a ter paciência. Ela tinha dó do pobre fantasma que lhe aparecesse primeiro. Burnett finalmente olhou para ela. — Tudo bem, me diga tudo o que você sabe. Tudo mesmo. Vamos desvendar esse mistério. Mesmo antes de Kylie começar a falar, ela já pressentia que Burnett mudaria o jogo; só não sabia se isso era bom... ou ruim. Naquela tarde, Kylie estava de pé diante da geladeira aberta, olhando ali para dentro. Estava ouvindo o zumbido do eletrodoméstico e apreciando o ar frio que sentia em seu rosto, enquanto Miranda e Della conversavam sentadas à mesa atrás dela. Era incrível como um friozinho caía bem quando não era sinal da presença dos mortos. Não que ela não quisesse que Hannah aparecesse para uma visitinha agora. Ela realmente precisava de respostas. Mas, se tinha aprendido uma coisa, era que não podia apressar os fantasmas. Kylie tinha conseguido, não sabia como, convencer Burnett a dar um pouco mais de tempo a Hannah, antes de partir o coração de Holiday, dizendo-lhe que a irmã estava morta. Por alguma razão desconhecida, Kylie sentia que era importante saber exatamente do que Hannah precisava. Não que Kylie não se preocupasse com a possibilidade de que seu próprio desejo de adiar o máximo possível a má notícia a tivesse levado a tomar essa decisão. Burnett também concordara que ir à lanchonete para verificar se eles tinham informações sobre Cara M. poderia ser uma boa ideia. Ele estava planejando para que fossem no sábado pela manhã, com Derek. Burnett queria que Derek fosse porque, quando Kylie contou o que o fae tinha descoberto até o momento, ele ficara impressionado com a sagacidade do garoto para investigar os fatos. Ela não estava nem um pouco preocupada com a possibilidade de Lucas não gostar quando descobrisse que Burnett tinha pedido a Derek para acompanhá-los. Mas quem sabe ele nem ficasse sabendo. Ela passava tão pouco tempo com Lucas ultimamente que talvez o lobisomem nem viesse a saber. Ou nem se importasse.
Ela fechou os olhos. Ele se importava. Só que, no momento, havia outras coisas com as quais se importava mais. Beliscando o lábio, ela se lembrou de que ainda não tinha respondido à mensagem que Lucas lhe mandara aquele dia. Ela não sabia o que responder, pois não sabia mais como se sentia a respeito dele. Num minuto estava furiosa, no seguinte se perguntava se era justo ficar com raiva. — Qual o problema? — Miranda perguntou. Kylie abriu os olhos, concentrando-se no que havia diante dela e não no que estava sentindo. — Não temos mais refrigerante. — Por que você não conjura alguns? Kylie olhou para Miranda. — Conjurar alguns...? — Conjurar — repetiu ela, levantando o dedo mindinho. — Ah, por que você não conjura alguns para nós, então? — Kylie perguntou, vendo os olhos de Della se arregalarem. — Porque você precisa aprender — disse Miranda, com praticidade. — Você precisa assumir seu lado bruxa. Kylie tinha evitado conjurar qualquer coisa depois do acidente com o peso de papel e Burnett. E ela gostaria de continuar evitando, mas, pelo olhar de Miranda, não daria mais para adiar. Bem, pelo menos não sem ferir os sentimentos da bruxinha. E Kylie detestava ferir os sentimentos de alguém. Especialmente os de Miranda. — Tudo bem... como eu faço isso? — Ela fechou a porta da geladeira e respirou fundo. — Sem pôr em perigo a vida de ninguém? Miranda deu um gritinho de alegria e se ajeitou melhor na cadeira, cheia de empolgação. Della lançou para Kylie um olhar de aprovação, como se dissesse que ela estava fazendo a coisa certa.
— Gostei da parte sobre não pôr em perigo a vida de ninguém. — a vampira acrescentou com um sorriso. — Respire fundo várias vezes — ensinou Miranda. — Relaxe. Concentre-se. Então visualize uma embalagem com seis refrigerantes bem gelados e mexa o mindinho. Uma embalagem com seis refrigerantes bem gelados. Kylie levantou o dedinho e nesse mesmo instante Della entrou na conversa. — Estamos falando de uma embalagem de refrigerante, né? Não de um six-pack, como se costuma chamar um cara sarado com barriga de tanquinho... Ouviu-se um chiado no ar. E de repente apareceu em frente à geladeira um rapaz sem camisa, com barriga de tanquinho, tremendo de frio. Seu cabelo castanho caía sobre a testa e seus olhos azuis estudavam as três com uma expressão perplexa. — Que diabos é isso? — ele murmurou. Kylie ofegou. Miranda deu uma risadinha. Della reprimiu uma risada. — Desapareça! — Kylie gritou, o rosto vermelho enquanto agitava o dedinho na direção do rapaz. Ele sumiu tão rápido quanto apareceu. Kylie olhou para trás, na direção das duas amigas, que agora gargalhavam. Ela pôs a mão sobre o coração, que batia acelerado. — Nem pense em me convencer a tentar outra vez — ela guinchou. — Quem era... ah, qual o nome dele? Zac alguma coisa? — Della perguntou. — O ator, quero dizer. — Ah, meu Deus, era ele! — disse Miranda. — Eu sempre achei que ele se parece um pouco com Steve, não acham? — perguntou Della. — Ah, droga! — Kylie cobriu o rosto com as mãos. — Eu não machuquei o garoto, machuquei? Ele não vai ter, sei lá, um câncer ou algo assim?
— Não — respondeu Miranda, ainda achando graça. — Ótimo! — disse Della, esfregando as mãos. Então traga o carinha de volta. Eu quero ver se ele realmente se parece com Steve. — Está maluca? — Kylie perguntou a Della. Então ela se concentrou em Miranda. — Ele vai se lembrar disso? Vai achar que enlouqueceu? — Aconteceu muito rápido, ele provavelmente vai achar que imaginou tudo. Além disso, não foi culpa sua. — Miranda deu outra risada. — Foi Della. — Miranda apontou para a acusada. — Ah, certo. Culpe a vampira! — gritou Della. Miranda revirou os olhos. — Della colocou uma imagem nos seus pensamentos e por alguma razão você visualizou Zac Efron. — Miranda sorriu outra vez. — Você obviamente se sente atraída por ele. Kylie começou a negar, mas não pôde. — Eu ainda não estou assumindo a responsabilidade por isso — disse Della. Miranda olhou para Della. — Acho que deveria ter dito para você ficar quieta. Desculpe. — Ela cobriu a boca para esconder uma risadinha. Então se sentou ereta na cadeira. — Mas... uau! Tenho que dizer que estou chocada. Só as bruxas mais poderosas conseguem transportar seres humanos. Nem minha mãe consegue. — Vocês não acham que ele se parece com Steve? — Della perguntou novamente. Kylie desabou na cadeira. — Eu não estou nem aí para quem ele parece. Não vou fazer de novo. Não tenho controle nem conhecimento. Tenho certeza de que vou fazer alguma besteira. — É por isso que precisa praticar. Além disso, nada ruim aconteceu — disse Miranda.
— Sério? Eu trouxe um ator de cinema seminu para a nossa cabana! — E por que isso é ruim? — Della perguntou. — Quero dizer... eu detesto dizer isso, mas, pela primeira vez, estou vendo que talvez seja legal ser bruxa. — Obrigada! — disse Miranda, endireitando-se na cadeira. — Quero dizer, você pode conjurar qualquer coisa que quiser? Um cara gostoso? Um copo de sangue O negativo? Um jeans novo? — Della perguntou. — Ah, pelo amor de Deus, não se pode fazer nada disso — explicou Miranda. — É totalmente contra as regras. — Mas... — Kylie olhou para Miranda. — Você acabou de me mandar fazer isso. — Sim, mas você é novata. Não conta. — Miranda olhou para Della. — Isso não quer dizer que eu não faça. Se for por um bem maior, tudo bem. Se for em benefício de alguém, bem, tem de haver uma razão. Se me derem um sanduíche de atum e eu quiser um de peru, não é grande coisa. É trocar uma carne por outra. Mas, se eu fizer isso com muita frequência, sou convocada. — Por quem? — perguntou Della. — Pelos deuses da carne? Miranda franziu a testa como se dissesse que estava falando sério e Kylie concordava. — Pela sociedade wiccana. — Espere aí — disse Kylie. — Você quer dizer que eles sabem o que eu faço? Della limpou a garganta como se para avisá-la, mas Kylie não entendeu o aviso. Ela estava preocupada demais com a possibilidade de a sociedade wiccana saber dos seus erros idiotas para prestar atenção. — Sim — disse Miranda. — Eles são como Papai Noel com sua bola de cristal mágica. Sabem se você se comportou mal ou não. — Que ótimo! Então alguém está olhando numa bola de cristal neste exato momento e vendo que eu conjurei um ator gostosão seminu? — Kylie perguntou.
— Você fez o quê? — A voz grave masculina soou atrás de Kylie. Kylie congelou, preocupada que Zac tivesse voltado. O fato de que ela não estava nem um pouco feliz com isso revelava muito sobre a sua disposição também. Então ela recapitulou a voz na sua cabeça e reconheceu o timbre de tenor. Droga. Agora ela estava de fato encrencada.

Kylie se virou na cadeira e olhou para o rosto intrigado de Lucas. Ele usava uma calça jeans preta e uma camiseta azul-clara. A camiseta era justa o suficiente para ela saber que seu abdômen de tanquinho não ficava atrás do de Zac. Ele continuou a encará-la. — O que você acabou de dizer? — Era... um feitiço que deu errado. Eu conjurei um cara aqui por alguns segundos. — Normalmente ela enrubesceria, mas seu tumulto emocional com relação a Lucas afugentou qualquer constrangimento. Kylie ficou de pé. Sentiu-se desconfortável sentada ali. Seu peito se encheu de alegria ao vê-lo e de angústia pela raiva mal resolvida que sentira. Ela queria beijá-lo, mas queria também extravasar toda a sua raiva e gritar. — Ah... — Ele olhou para Della e Miranda. Mas antes que colocasse a pergunta em palavras, elas se levantaram. Miranda se afastou como se não estivesse interessada na conversa, enquanto a postura de Della exalava rebeldia. — A gente vai lá pra varanda. — O tom da vampira combinava com a sua expressão corporal. — Obrigada. — Embora Kylie não tivesse confidenciado às amigas as suas mais recentes inseguranças com relação a Lucas, ela sabia que elas suspeitavam. Assim como ela própria sabia o que se passava na vida delas. Ela observou enquanto as suas duas melhores amigas saíam da cabana para lhes dar privacidade. O olhar de Kylie se fixou em Lucas e seus profundos olhos azuis sustentaram os dela até a porta se fechar. Ela se virou e ficou de frente para a geladeira, tentando descobrir o se sentia... além da mágoa que partia o seu coração. Só para ter algo que fazer, abriu a porta da geladeira. — Quer beber alguma coisa? — ela perguntou, sem saber o que faria se ele aceitasse, pois não havia nada ali exceto um vidro de picles quase vazio e uma garrafa de sangue, que pertencia a Della. — Escrevi três mensagens e também enviei e-mails e você não respondeu. — Ele parecia magoado. Fechando os olhos, ela tentou afastar a culpa que lhe causava um nó no estômago. — Eu ainda não chequei os meus e-mails. — Ela fechou a geladeira e foi até a cadeira em frente ao computador. — O que você está fazendo? — ele perguntou. — Checando os meus e-mails. Você não disse que tinha enviado? — Ela parecia uma idiota. Tudo bem, não só parecia uma idiota, mas estava se comportando com uma, mas ela precisava de alguns minutos para pensar. Ela estava errada em sentir raiva? Ou estava certa? Kylie se deixou cair na cadeira. Com o computador ligado, só era preciso um clique do mouse para baixar seus e-mails. Percorreu a lista com os olhos uma vez e encontrou o nome de Lucas. O assunto de todos os três e-mails que ele mandara era o mesmo: sinto sua falta. Agora um nó se formou na sua garganta. — Você está com raiva de mim por algum motivo? — ele perguntou. — Sim. — Ela passou os olhos pela tela e sentiu como se seu peito estivesse se expandindo — ficando maior e maior —, até quase transbordar de emoção. A dor era real, tornando difícil até respirar. Ela engoliu em seco. — Não.
— A resposta é sim ou não. Está com raiva ou não está? — Seu tom de voz deixava transparecer sua mágoa. Ou raiva. Ou talvez as duas coisas. Ela fechou os olhos e, embora não pudesse ouvi-lo, sentiu-o se aproximar. Seu cheiro, um maravilhoso aroma de terra, parecia impregnar o ar da cabana. Ela inspirou. — Talvez. — Hmm. — Ele de fato estava mais perto. Muito perto. Bem atrás dela. Quase tocando-a. Ela estava tentada a se virar, mas não fez isso. Olhou para a tela do computador e segurou a respiração. — É isso que significa quando dizem que as mulheres têm o privilégio de poder mudar de ideia? — Um leve toque de humor matizava a voz de Lucas. — Pode ser — ela murmurou. — Está assim porque não apareci ontem à noite? Mas eu deixei um bilhete. Você estava dormindo. — Não é por causa disso. — O olhar dela estava fixo no computador. Kylie localizou três e-mails do seu pai. Outra coisa emocionalmente difícil com que ela tinha que lidar. Agora que sabia que sua mãe estava se encontrando com outro homem e que ela e o padrasto provavelmente nunca voltariam a ficar juntos, era ainda mais difícil vê-lo. Ela piscou. — Então por quê? — A mão dele pressionou o ombro dela de leve. Uma sensação de calor fluiu da palma de sua mão. — Porque neste momento, eu adoraria poder beijá-la e não sei se posso. Não sei se está furiosa comigo, quero dizer. Inspirando fundo, o coração de Kylie começou a bater freneticamente ao pensar em Lucas beijando-a. Em seu peito contra o dele. — É porque você está me evitando — ela disse. — Está me mantendo afastada de você.
A outra mão dele acariciou o outro ombro dela. — Só até o meu pai aprovar que eu me junte ao conselho. Eu sei que é difícil, e sim, ficarmos juntos vai ser ainda mais difícil com Clara aqui, mas... Eu preciso da aprovação dele. Não acho que vá demorar muito. Ela piscou mais uma vez e foi então que viu. Quatro... não, cinco e-mails com a palavra “neblina” na linha do assunto. Seria possível...? — Ah, merda! — Ela viu outro e-mail do mesmo endereço cujo assunto era “conversa”. — O que foi? — ele perguntou. Ela abriu a boca para contar a ele, mas fechou-a ao mesmo tempo que fechou o e-mail. Ela não queria contar a ele sobre o fato de seu avô ter perseguido a irmã dele. Não tinha contado porque não lhe parecia conveniente. Agora parecia menos ainda. Se ela decidisse encontrar o avô sem Burnett, Lucas não aprovaria. Ele era superprotetor e insistiria para que ela contasse ao vampiro. Kylie não podia deixar Lucas contar a Burnett, pois o vampiro não deixaria que ela encontrasse o avô sem que ele estivesse presente. E ela tinha a impressão de que o avô não estava muito disposto a encontrar Burnett. Ela precisava falar com o avô — com ou sem Burnett por perto. Ele tinha respostas, e descobrir essas respostas era seu objetivo. Quantas vezes Holiday não lhe dissera que ela deveria seguir seu coração? E seu coração lhe dizia que essa era a coisa certa a fazer. Lucas teria que entender. E nesse exato momento, ocorreu algo a ela. O objetivo de Lucas era fazer parte do conselho. E, para tanto, ele tinha que fingir em frente à alcateia e Clara, para convencê-los de que ela não era importante para ele. Como ela poderia ficar zangada com o namorado quando... ela também tinha prioridades igualmente importantes? Isso significava que ela tinha que ser mais compreensiva. Se, para atingir seu objetivo, eles não poderiam se sentar juntos nas refeições ou ele precisava fingir que não eram namorados, ela aceitaria isso. Assim como esperava que ele aceitasse que ela também tinha um objetivo. Ela se levantou e se virou de frente para ele. — Desculpe. Minha reação foi exagerada. — Ela colocou as mãos no peito dele. Ele olhou para ela, como se estivesse ainda mais intrigado. — Não está mais com raiva? Ela abriu um sorriso sincero. Ao pensar que seu avô não tinha desistido de vê-la, o peito de Kylie se encheu de emoção como uma bolha de ar. Ela olhou de relance para o computador e então para Lucas. — É duro sentir que estou em segundo plano, mas... — Você não está em segundo plano. Quando eu entrar para o conselho, terei condições de pôr um fim nessa droga toda. Os lobisomens mais jovens não veem a hora de que haja uma voz no conselho que exprima as opiniões deles. Eu vou conseguir o apoio deles e os mais velhos não vão poder mais nos dizer como devemos viver a nossa vida. Eles não vão mais responsabilizar ninguém pelos pecados dos pais. Por favor, me dê mais um pouco de tempo. — Eu vou dar. E lamento ter sido tão idiota. Ele a puxou mais para perto. Tão perto que o calor do seu corpo enviou uma onda de prazer que a atravessou da cabeça aos pés. — Eu sei — disse Kylie. — E entendi agora. — Ela encontrou o olhar de Lucas e umedeceu seus lábios com a língua. — Você estava dizendo algo sobre me beijar? Ele arqueou as sobrancelhas, mas abriu um sorriso. — Acho que nunca vou entender as garotas. — Então pare de tentar. — Ela ficou na ponta dos pés. Queria que Lucas a beijasse ardentemente e então queria que ele fosse embora para que ela descobrisse o que seu avô tinha lhe dito nos emails. Mas no momento em que os lábios dele encontraram os dela, quando seu peito quente pressionou os seus seios e suas mãos deslizaram sob a sua blusa, apertando a pele nua da cintura, ela decidiu que os e-mails poderiam esperar um pouco mais. Isso... isso era magia. O tipo de magia que ela podia fazer sem causar nenhum tipo de prejuízo. Naquela noite, Kylie foi para a cama sem trocar de roupa, esperando ouvir Miranda chegar do seu encontro com Perry. As noites do casal eram cada vez mais longas. Não que Kylie pudesse culpá-los. Afastar Lucas depois daquela breve sessão de beijos não tinha sido fácil — mesmo com os e-mails do avô esperando por ela. Lucas tinha emitido aquele zumbido de desejo e ela emitira o mesmo zumbido junto com ele. A capacidade que os lobisomens machos tinham de seduzir suas companheiras tinha cativado sua alma e seu coração. Seu toque era divino, ela não queria que ele parasse. Era cada vez mais difícil não ceder. E, no entanto... ela o afastou. Talvez por causa dos e-mails. Talvez porque não quisesse que questões não resolvidas interferissem na sua primeira vez. E, embora ela entendesse que Lucas estava tentando alcançar o seu objetivo, lá no fundo, isso ainda a feria. No entanto, provavelmente a questão maior que a levou a não ceder talvez tenha sido Della e Miranda esperando do lado de fora, na varanda. Com certeza aquela tinha sido a razão mais importante que a fez encontrar forças para impedir que as coisas fossem longe demais. O fato de que ela e Lucas tivessem acabado o encontro deitados no sofá, no maior amasso, enquanto as duas amigas esperavam na varanda, fez com que ela ficasse com as bochechas ardendo quando olhou para as duas, depois de Lucas ter ido embora. O que deixou a coisa ainda pior foi saber que Della podia farejar os feromônios que eles tinham exalado. Ela esperava, porém, que as bochechas vermelhas e os feromônios a ajudassem a fazer com que seus planos de hoje à noite funcionassem. Os planos de Kylie tinham lhe ocorrido tão logo ela lera o e-mail do avô pedindo que o encontrasse — sozinha — no Cemitério de Fallen.
Será que o avô tinha descoberto a verdade? Que até pouco tempo antes, sua mulher, a avó de Kylie, estava enterrada ali numa sepultura anônima? O e-mail que Kylie mandou para ele, em resposta, foi breve: “Farei o possível para estar lá a uma da manhã”. O fato de não ter recebido nenhuma resposta incomodou-a um pouquinho. Ele tinha perguntado. Ela tinha respondido. O que mais era preciso dizer? Mas isso não a impediu de checar a sua caixa de entrada a cada quinze minutos. O que havia de pior em tudo aquilo era a mentira que ela teria que contar às colegas de alojamento. Uma mentira que só funcionaria se Della não sintonizasse automaticamente o batimento cardíaco mais rápido de Kylie quando ela mentisse. Se Kylie pudesse falar uma inverdade e Della acreditasse no ato, ela não iria verificar seu batimento cardíaco. Ou pelo menos Kylie rezava para que funcionasse dessa maneira. Alguns minutos depois, Kylie ouviu Miranda e Perry na varanda. Ela saiu da cama. Silenciosamente, foi para a sala, esperando Miranda entrar na cabana. Kylie sabia que Della provavelmente já tinha percebido que ela saíra do quarto. A porta se abriu e, quando Miranda a viu, teve um sobressalto. — Sou eu — disse Kylie. — O que está fazendo acordada? Sem querer se arriscar a mentir duas vezes, ela colocou seu plano em ação. — Você o viu? — Kylie perguntou. — Quem? — perguntou Miranda, olhando para a amiga atentamente. — Você está tendo uma daquelas visões estranhas outra vez? — Não. Você viu Lucas? Ele ficou de me encontrar e nós... vamos a um lugar para ficarmos sozinhos. — Correndo para a janela, ela deu uma olhada para fora. — Eu o vi — Kylie mentiu, e imediatamente se sentiu culpada. — Estou indo. Miranda segurou-a pelo cotovelo.
— Você vai aonde...? Talvez fosse imaginação de Kylie, mas ela podia jurar que ouviu Della se levantando da cama. — Conte a Della por mim. Diga a ela que eu quero ver Lucas. Diga que, por favor, nos deixe a sós desta vez. — Se agora Della estivesse ouvindo com a sua audição supersensível, ela saberia que era verdade. Kylie de fato queria estar com Lucas. Sabendo que era imprescindível que ela saísse antes de Della chegar, Kylie correu rumo à escuridão, deixando Miranda parada ali com a boca entreaberta, prestes a dizer alguma coisa. O ar de final de agosto era frio quando Kylie disparou pela varanda e correu o mais rápido que pôde para fora da cabana. Por favor, que isso funcione. Por favor, que eu consiga. Ela repetia as palavras como uma oração. Seu corpo vibrava quando pensava que estava seguindo seu coração. A cada passo, sua confiança aumentava. Apesar do aviso de Burnett para não entrar sozinha na floresta, ela sabia que aquela era a rota mais rápida e não hesitou em tomá-la. Movendo-se entre as árvores, ela aceitou o risco. Mario, ou quem estivesse ao lado dele, poderia esperar. Mas era um risco que ela correria, disse a si mesma, ignorando a sensação de estar sendo seguida. Ignorou a culpa que sentiu por mentir para suas duas melhores amigas. Ela teve que mentir. Aquela era a sua busca pessoal. E o risco deveria ser apenas dela, não das amigas, que se sentiam compelidas a se unir a ela. Kylie não iria colocar ninguém no caminho de Mario. De repente, o telefone em seu bolso bipou com a chegada de uma mensagem. Ela diminuiu o ritmo apenas o suficiente para ler a mensagem. Derek. — Droga! — murmurou, a voz um sussurro no ar da noite. Com certeza o fae tinha sentido suas emoções e estava preocupado. Mas, se ela lhe contasse, assim como a Della e a Miranda, ele acharia que deveria acompanhá-la. Ela enfiou o telefone do bolso e então acelerou o ritmo da corrida. Enquanto ela se esquivava de galhos e arbustos espinhosos, ouvia os barulhos da noite — o fato de a floresta não estar em silêncio a tranquilizava. Se Della a tivesse seguido, ela já estaria ali. Kylie só podia supor que o plano tinha dado certo. Della tinha respeitado a sua vontade de ficar a sós com Lucas. Consciente da distância que já tinha percorrido, Kylie sabia que estava perto da cerca que delimitava a propriedade de Shadow Falls. Seu coração martelava com o medo de que seu plano pudesse falhar quando atravessasse aquela cerca. Burnett poderia vir correndo. No entanto, ela tinha ouvido rumores de que alguém estava sempre violando as regras. Perry, que nunca gostara de ser restringido na sua capacidade de se transformar em outras criaturas. Lucas e sua alcateia, que sempre eram convocados pelos anciões da sua espécie, que não obedeciam às regras de Shadow Falls. Talvez, só talvez, Burnett não percebesse que era ela a pessoa que estava ultrapassando os limites de Shadow Falls. A cerca já era visível. Ela assomou-se diante de Kylie, com seus quase dois metros de altura. A garota acelerou o ritmo da corrida, rezando para que conseguisse transpor a barreira de metal. Seu corpo parecia leve quando saltou no ar, subindo cada vez mais alto. Seus pés passaram por cima da cerca e ela chegou ao outro lado, esperando não cair de mau jeito e se machucar. Ela bateu com força no chão e rolou alguns metros. Então se levantou e massageou o cotovelo, que tinha amortecido a queda. A dor diminuiu, ofuscada pela sensação de vitória. Ela tinha conseguido. Iria conseguir ver o avô. De repente, Kylie notou uma sensação pegajosa de sangue na palma da mão. O odor de frutas silvestres entrou pelas suas narinas. Quem diria que seu próprio sangue tinha um cheiro tão bom? Sem se importar com o corte superficial, ela continuou a correr cada vez mais depressa, distanciando-se rapidamente da cerca.
Os sons da noite continuavam em volta dela. Nenhum vampiro deixava a noite silenciosa. Ela estava sozinha. Kylie cruzou a entrada e passou por entre as árvores que a margeavam, enquanto continuava seguindo em frente. Pelos seus cálculos, só alguns quilômetros a separavam do cemitério. Ela iria finalmente encontrar o avô e descobrir a verdade. O mistério do que ela era — do que significava ser um camaleão — estava prestes a ser desvendado. Um sorriso surgiu em seu rosto. A sensação de vitória irrompeu em seu peito e lhe deu mais velocidade, agilidade e coragem. Pelo menos até ela ouvir uma voz masculina dizendo: — Aonde é que você pensa que vai? O sangue pulsou em seus ouvidos e ela não reconheceu a voz a princípio — só sabia que não era Burnett. Não importava. Ela não queria nem saber quem era, pois ninguém era bem-vindo naquele momento. Ela tinha uma missão e não queria companhia. E era exatamente isso que planejava dizer ao intruso. Kylie parou de repente — ou tão de repente quanto era possível parar quando se está correndo numa velocidade muito acima da humana. Seus joelhos se dobraram. Ela passou os braços em torno de uma árvore, apoiando-se nela para não cair. Ainda incerta quanto à identidade do intruso atrás dela, ainda agarrada à árvore para se manter de pé, outra voz, diferente da primeira, falou: — Eu ia fazer a mesma pergunta.

A decepção provocou uma sensação de fraqueza em todo o seu corpo. Havia dois intrusos ali, não apenas um. Ela queria gritar, mas o ar ficou preso em seus pulmões e ela não conseguiu emitir nenhum som. Furiosa, Kylie se virou para confrontar os donos das vozes. De uma coisa poderia se orgulhar: ela estava certa. Não havia vampiros no bosque. Só um metamorfo malcriado, na forma de um pássaro, e um lobisomem muito contrariado. Kylie aspirou uma golfada de ar. Ainda sem recuperar o fôlego, ela se curvou para a frente e se apoiou nos joelhos até conseguir voltar a respirar normalmente. Quando seu cérebro voltou a ser oxigenado, seus pensamentos começaram a clarear. E um deles se destacou. Ela não iria deixar que eles a detivessem. Sem rodeios, olhou para Perry com pura determinação. Então lançou o mesmo olhar para Lucas. — Eu estou seguindo a minha busca pessoal. Vocês precisam ir embora e me deixar fazer o que é preciso. — Você perdeu completamente o juízo? — perguntou Perry. — O que está acontecendo, Kylie? — Lucas perguntou, num tom exigente. Kylie olhou para o lobisomem. — Eu já disse. Estou em busca da verdade. Preciso que vocês me deixem ir. É importante e não estou pedindo a vocês. Estou comunicando. Me deixem em paz! Ela esperava que parecesse mais confiante do que na verdade estava. A qualquer minuto a noite podia ficar silenciosa e Burnett podia aparecer. Por alguma razão, ela se sentia capaz de enfrentar Lucas e Perry, mas desobedecer a autoridades nunca tinha sido fácil para ela. E Burnett era uma autoridade com um péssimo humor. Antes de saber se parecia confiante ou não, ela perguntou: — Burnett sabe? Lucas não abriu a boca e continuou encarando-a com raiva, talvez em choque, diante do comportamento da namorada. — Como vocês me acharam? — ela perguntou ao metamorfo, enquanto minúsculas bolhas de eletricidade começavam a se formar em torno dele. Um segundo depois, Perry apareceu na forma humana. — Eu estava voando por aí, depois que deixei Miranda na cabana, e vi você pulando a cerca do acampamento. Ela voltou a olhar para Lucas. — E você? Os olhos dele brilharam com raiva, sua expressão carregada se intensificou, mas ele começou a falar. — Burnett pensou que eu tinha disparado o alarme. Ele me ligou e alguma coisa me disse que eu precisava me certificar de que estava tudo bem. Então vi o Passarinhão aqui voando... — Passarinhão? — A voz de Perry se aprofundou com a frustração. — Tanto faz... — Lucas continuou: — Eu o vi e pensei em dar uma espiada e ver o que ele estava fazendo. — Você foi me vigiar? — Os olhos de Perry adquiriram o mesmo tom alaranjado. — Não fui bem te vigiar... — A postura de Lucas tornou-se menos defensiva. — Achei que você poderia ter visto alguém invadindo o acampamento... — Seu olhar voltou-se outra vez para Kylie. — e... tivesse pensado em atacar essa pessoa. — O olhar de Lucas estava mais zangado ainda. Toda a sua atenção e frustração eram dirigidos a ela. — Mas isso não é importante. Importante é saber por que você está se colocando em perigo desse jeito. Você sabe muito bem o risco que está correndo. Então vamos voltar antes que Burnett apareça. Era exatamente por isso que Kylie tinha que pôr um fim naquele falatório e continuar a correr. Se Burnett descobrisse o que ela estava fazendo, seria o inferno. Ela consultou seu relógio. Só faltavam cinco minutos. O tempo estava se esgotando. E ela imaginava que o avô não fosse alguém que tolerasse atrasos. Lembrando-se de que tinha poderes, Kylie roçou o dedo mindinho no anelar. No entanto, a ideia de usá-lo não lhe agradava nem um pouco. — Tudo bem — ela disse, por fim. — Vou dar uma breve explicação. Eu tenho que encontrar alguém. Então podemos fazer isso do jeito mais fácil ou do jeito mais difícil. — Encontrar quem? — Lucas e Perry perguntaram ao mesmo tempo. — Meu avô. Ele entrou em contato comigo e... — Como? — Lucas perguntou. — Por e-mail — Kylie respondeu, sem saber direito por que ela tinha pensado que lhes contar a verdade adiantaria, mas a alternativa também não a animava, especialmente considerando que ela de fato não sabia o que poderia acontecer se lançasse algum feitiço. O pobre Zac Efron era testemunha. — Não seja burra! — esbravejou Perry. — Como você sabe que o e-mail era mesmo dele? — Eu sei que era, — Kylie respondeu, confiante, sem nem querer pensar na possibilidade de Perry estar certo. Tudo aquilo poderia de fato ser uma armadilha. Mas seus instintos lhe diziam o contrário. Se ela estivesse errada, pagaria seu erro com a própria vida. Se estivesse certa, encontraria as respostas que buscava desde o primeiro dia em que chegara a Shadow Falls. Era arriscado? Talvez. Mas era um risco que ela estava disposta a correr.
— E mais uma coisa — Kylie continuou. — Ou vocês dois me deixam ir ou... — Não. — Os ombros de Lucas se enrijeceram. — Você não vai... Ela não esperou mais um segundo. Agitou o dedo mindinho e imaginou uma grande rede caindo do céu sobre os dois, impedindo que eles a seguissem. Ela viu a rede caindo de cima e escapou por pouco de ficar embaixo dela também. — Desculpe — ela murmurou e recomeçou a correr. Com todas as suas forças, ela se concentrou em se afastar dali o mais rápido possível, antes que eles se soltassem. Kylie correu. Mas havia alguma coisa errada. Porque ela percebeu a certa altura que não estava correndo, estava voando baixo! Se não estivesse com tanta pressa, teria reservado algum tempo para apreciar esse seu novo dom. Mas não havia tempo. Ela precisava se distanciar o mais rápido possível de Perry e Lucas, para que eles não conseguissem alcançá-la. Por fim, ela avistou as lanças dos portões enferrujados do cemitério se projetando como armas afiadas e mortais. A noite pareceu ficar ainda mais escura à medida que ela se aproximava. Seu peito ficou oprimido quando ela se lembrou da pergunta de Perry. Como você sabe que o e-mail era mesmo dele? Ela não sabia. Simplesmente acreditava cegamente que fosse. Isso não era suficiente? Diminuindo o ritmo, seus pés voltaram a tocar o chão. Ela parou abruptamente a poucos metros dos velhos portões de ferro. Estava prestes a cruzá-los quando um movimento repentino do outro lado dos portões a deteve. Seu coração parou também. O ar ficou preso na garganta diante do que viu. Rostos, dezenas de rostos, olhavam para ela por detrás das grades de ferro. Seus olhos sem vida a fitavam como que implorando pela sua ajuda. Se ao menos ela pudesse ajudar a todos! Se ao menos um movimento da sua mão ou do seu dedo mindinho fosse suficiente para resolver o problema que prendia cada um deles à terra, quando outra vida os esperava no pós-morte! Então outro pensamento lhe ocorreu. Será que algum desses espíritos era demoníaco? Espíritos que queriam levá-la com eles para o inferno na tentativa de suavizar sua própria sentença? Que ótimo! Por que ela tinha que pensar nessa adorável possibilidade agora? Ela se forçou a avançar mais um passo. A ideia de que teria que atravessar aqueles portões e passar por centenas de fantasmas tirou um pouco da sua coragem. Ela se lembrou de como se sentira da última vez que estivera ali e fora tocada por tantos espíritos — a dor era parecida com a sensação de ter o cérebro congelado, exceto pelo fato de que isso afetava o seu corpo inteiro. Mas tudo valeria a pena se o seu avô estivesse esperando por ela do lado de dentro, pois ela teria algumas respostas. Definitivamente valeria a pena. Além disso, não era como se ela nunca tivesse feito aquilo antes; ela já fizera duas vezes. Mas não na escuridão da calada da noite. Algo na escuridão, apenas com a luz prateada da lua tornando visíveis os olhares dos espíritos, tornava o lugar muito mais... assombrado. O que de fato ele era. Como se para provar isso, o frio dos espíritos a envolveu e deixou sua pele arrepiada. Ela olhou para a frente e viu dois espíritos saindo pelos portões e andando na direção dela. Endireitando a coluna, aceitando o fato de que teria de fazer aquilo, ela deu mais um passo, disposta a seguir em frente. Era como pular na parte mais funda de uma piscina gelada e atravessá-la. No entanto, quando ia dar mais um passo, ela ouviu uma voz, uma voz muito próxima a ela — próxima demais — sussurrando no seu ouvido. — Eu não entraria ali. Ela gritou e recuou alguns passos, antes de reconhecer a voz. Respirando fundo para acalmar os nervos, ela viu Hannah ao seu lado. Então Kylie se lembrou do que o espírito havia dito. Será que Hannah sabia algo que Kylie não sabia? Será que ela tinha se deixado enganar e seu avô não a esperava ali dentro?
— Por que eu não devo entrar? — Kylie perguntou, os nervos à flor da pele. Hannah se aproximou mais dela e sussurrou novamente: — Está cheio de fantasmas. Kylie olhou para Hannah, surpresa. — Mas... — Eu sei que estou morta... — Hannah explicou, lendo os pensamentos de Kylie. — Assim como as moças que estão na mesma cova que eu. Mas ver todos eles... — ela apontou para o portão — ainda me apavora. Kylie desviou os olhos do portão e consultou o relógio outra vez; ela tinha dois minutos. Precisava entrar. Mas tinha que deixar Hannah falar. — Tem alguém esperando por mim lá dentro, mas eu preciso saber. O que você precisa que eu faça por você? Hannah fechou os olhos, mas não antes de Kylie ver o pânico impresso neles. — Não fuja — disse Kylie rapidamente, quando sentiu o frio diminuir. — Eu preciso saber. É por isso que você está aqui. Eu sei que é difícil falar de algumas coisas, mas às vezes temos que fazer coisas que nos assustam. Às vezes isso ajuda. Como eu mesma entrando neste cemitério. — Ela voltou a olhar para os portões e viu centenas de rostos sem vida olhando de volta para ela. Hannah abriu os olhos; o pânico deixava suas pupilas grandes e escuras. — Ele está mais perto. — A voz dela enfraqueceu. — Quem está mais perto? O que ele fez? — Quando Hannah não respondeu, Kylie tentou adivinhar. — É aquele cara, Blake? Aquele que ligou para Holiday quando estávamos na cachoeira? Hannah olhou para as mãos crispadas em frente a ela. — Ela o amava. Ele tinha tudo o que ela queria. Eu só queria saber como é ser tão feliz. Eu tinha que ter bebido tanto? Ele tinha que ter bebido tanto? Foi errado.
Kylie começou a juntar as peças, mas ela não estava completamente certa, por isso perguntou: — Blake era o homem com quem Holiday ia se casar? Holiday assentiu e, quando levantou os olhos, lágrimas e vergonha brilhavam dentro deles. — Foi ele que matou você? — Kylie perguntou. Hannah colocou as mãos na boca como se o pensamento a deixasse enjoada. — Foi ele? — Kylie perguntou novamente. Quando Hannah tirou as mãos dos lábios, elas estavam tremendo. — Eu... eu não sei se foi Blake. — Os olhos dela exprimiam terror e tristeza ao mesmo tempo. — Pode ter sido. Eu não me lembro do que aconteceu. — Ela fez uma pausa. — Só me recordo... da aura dele. — Seus olhos estavam cheios de dor. — Detalhes não consigo me lembrar. Não sei o nome dele nem como é o seu rosto, mas a crueldade como tirou a minha vida... disso não consigo me esquecer. E eu a sinto desde então. Ele às vezes volta para o lugar onde estamos enterradas. Eu o ouço andando no assoalho acima. Nós três nos agarramos umas às outras na morte e fingimos que nossas almas já se foram. Hannah abraçou a si mesma como se a lembrança fosse insuportável. — Ele disfarça a sua aura a maior parte do tempo. Tem o poder de parecer normal. Mas, quando não está fingindo, ele é perverso e tenebroso. — Quando está fingindo, a aura dele é parecida com a de Blake? — Kylie perguntou. — Eu não sei. Não tenho certeza. Nunca prestei atenção nessa aura. É a outra que... me assombra. — Ela parou de falar, como se pensasse. — É como se uma pequena parte de mim dissesse que eu sei quem é esse homem. — Hannah fez uma pausa como se seus pensamentos a levassem em outra direção e, pela expressão dela, não era muito boa. — Ele acha que matar faz com que ele seja mais poderoso; é por isso que ele mata. E no dia em que eu estava em Shadow Falls senti que ele estava por perto. Senti e tive certeza. Fui a Shadow Falls por causa dele. Ele não se contentou em matar só a mim. Ele quer Holiday. — As palavras de Hannah ficaram pairando no ar da noite, quando ela virou a cabeça para trás e olhou para o céu noturno. — O que foi? — perguntou Kylie, temendo que o assassino estivesse próximo. — Acho que é aquele metamorfo estranho do acampamento Shadow Falls. O lourinho cujos olhos mudam de cor o tempo todo. O medo que Kylie tinha sentido por Hannah e de um assassino cruel diminuiu e Kylie temeu por si mesma. Se Perry a tinha encontrado ali, Lucas deveria estar por perto também. E provavelmente Burnett. Esperando que ficasse menos visível, Kylie se aproximou dos portões. Olhou novamente para os rostos sem vida que pareciam guardiões do cemitério. Ela não sabia se eles a reconheciam da outra vez que ela estivera lá. Ela não sabia nem se conseguiam vê-la de fato. Mas uma coisa era certa: se ela não entrasse agora, poderia não encontrar mais o avô. Kylie olhou para Hannah, que ainda fitava o céu. — Ele nos viu? — perguntou Kylie, estendendo o braço para abrir o portão. — É ela! Eu disse que era ela! — falou um dos espíritos do lado de dentro do cemitério. Então os espíritos começaram a estender os braços através das barras do portão, tentando tocá-la. Tudo o que Kylie podia ver eram braços estendidos através do portão enferrujado. O frio arrepiava a sua pele e parecia gelar até a medula dos seus ossos. Ela mordeu o lábio, lutando contra a dor e o pânico, enquanto abria os portões. — Ele não pode me ver. Não sei se viu você. — A voz de Hannah ecoou atrás de Kylie. Com o portão aberto, Kylie baixou a mão. Os fantasmas se espalharam, mas no instante em que ela avançou alguns metros para o interior do cemitério, eles a cercaram. O frio dos espíritos impregnou os seus lábios, cobrindoos de gelo. A dor quase a fez cair de joelhos. Ela se forçou a avançar mais alguns metros; o alívio foi instantâneo, embora ela soubesse que não duraria muito.
Ela olhou para trás, na direção de Hannah. O medo estava estampado em seu olhar, tão sem vida quanto o dos espíritos daquele cemitério, os quais agora chegavam cada vez mais perto. — Eu não posso entrar — disse Hannah. — Um deles pode ser um anjo da morte. Se quiserem me mandar para o inferno pelos meus pecados, eles podem. Eu mereço ir, mas não até saber que Holiday está salva. — Eu não acho que vão mandá-la para o... — Kylie parou de falar quando Hannah começou a se desvanecer no ar. — Salve-a por mim! Por favor, salve a minha irmã! — As palavras de Hannah ecoaram na escuridão. O frio vindo dos espíritos ficou mais próximo. — Por favor — disse Kylie, seu olhar passando de uma face acinzentada para outra. — Me deem mais espaço. Os espíritos retrocederam alguns metros. Kylie olhou por sobre o ombro, esperando ver alguém deste mundo. Sua esperança foi inútil. Para qualquer lado que olhasse, ela só via a morte. A escuridão que encobria os túmulos limitava a sua visão. Como já estivera ali, Kylie sabia que o cemitério era imenso. Será que seu avô sabia que ela estava lá? O pensamento de que talvez não fosse o avô que a esperava ali, que não fora ele quem enviara os e-mails, oprimiu o seu peito, mas ela afastou a dúvida. Kylie deu mais alguns passos e então, lembrando-se da preocupação de Hannah com Holiday, pegou o celular em seu bolso e discou para uma pessoa que sabia que a ajudaria. — Está tudo bem? — perguntou Derek, respondendo ao primeiro toque. — Eu não tenho muito tempo, mas preciso que você me faça um favor. Verifique se Holiday está bem. Fique lá com ela. Não a acorde. Não a deixe saber que você está de olho nela, mas não a deixe sozinha até eu chegar. — Caramba! O que está acontecendo, Kylie? — Não posso explicar agora. Só faça isso, por favor.
— Onde você está? — ele perguntou. — Sei que não está na cabana. Ela mordeu o lábio com tanta força que sentiu gosto de sangue. — Por favor! — A palavra soou com desespero. Ele finalmente respondeu. — Holiday está bem. Burnett está vigiando a cabana dela. — Por quê? Como você sabe? Aconteceu alguma coisa? — Não, eu senti que você estava em apuros e fui checar se estava bem quando vi Burnett parado do lado de fora da cabana de Holiday. Ele disse que, depois de saber o que aconteceu com Hannah e as outras garotas, não queria correr nenhum risco. — Isso é bom. — Ela se perguntou se seria por isso que Burnett tinha ligado para Lucas e fizera questão de checar a cerca quando o alarme soou. — Eu posso sentir que você está apavorada, Kylie. Me diga... — Tenho que desligar. — Ela cumpriu a promessa e desligou. Então olhou para a multidão de espíritos, aproximando-se a cada passo, lembrando zumbis famintos esperando o momento certo para atacá-la e devorá-la. Tentando afastar esse pensamento insano, induzido pelo medo, ela se lembrou de que eles eram só pessoas. Almas perdidas cuja vida fora roubada, presas a este mundo por circunstâncias infelizes. Olhando ao redor novamente, ela perguntou: — Tem alguém aí? — Eu estou aqui!— respondeu um espírito. — Eu estou aqui! — As mesmas palavras pronunciadas por cada um das centenas de espíritos chegaram aos ouvidos de Kylie como o estrondo de um trovão. Todos eles queriam sua atenção. Queriam que ela reconhecesse sua presença. Seu peito se encheu de emoção. — Tem alguém vivo aqui, além de mim?
— Ninguém que possa nos ver — disse um dos espíritos, parecendo desesperado. — Não há mais ninguém vivo aqui? — ela voltou a perguntar. Mais uma vez ela se perguntou por que seu avô escolheria um cemitério como ponto de encontro. — Nos fundos do cemitério — respondeu o espírito de uma jovem, apontando para a área mais escura do cemitério. — Eu os vi sob os carvalhos, escondendo-se nas sombras. — Obrigada — ela agradeceu, olhando para cima mais uma vez e esperando não ver nenhum metamorfo furioso voando em círculos no céu escuro. As nuvens deviam ter ocultado a lua, pois só algumas estrelas brilhavam no céu. Ela recomeçou a andar. A cada passo, rezava para que, na parte mais sombria e distante do cemitério, sob as árvores, ela encontrasse o avô. E com ele, as respostas de que precisava.

A parte de trás do cemitério estava fantasmagoricamente silenciosa. Uma quantidade ainda maior de estátuas guardava os túmulos, a maioria coberta de trepadeiras mortas. Algumas estavam em ruínas, outras decapitadas por vândalos ou desgastadas pelo tempo, as cabeças caídas no chão de terra. Ainda assim, todas pareciam olhar para ela enquanto seus pés estalavam na trilha de cascalho. Sentindo-se de repente sozinha, ela olhou para trás e percebeu que o frio irradiado pelos espíritos tinha se amenizado. Ela estava realmente sozinha. Os espíritos não a tinham seguido. Por quê? O medo causou um nó na sua garganta. Será que sabiam algo que ela não sabia? Mesmo sentindo o pânico crescer dentro do peito, ela continuou andando, rezando para que estivesse fazendo a coisa certa. Viu as árvores à frente dela; embaixo da cúpula de galhos retorcidos só se viam sombras — sombras negras que poderiam ocultar qualquer coisa, ou pessoa. Chegando mais perto, ela pôde ouvir a própria respiração e o canto de alguns pássaros a distância, como se emitindo um alarme. Ela parou a alguns metros das árvores. Seus galhos pesados pareciam se envergar sobre as sepulturas em ruínas ao redor. — Olá! — A noite parecia engolir a sua voz. — Você veio! — respondeu a voz, grave e profunda. Segurando a respiração, ela viu uma figura surgindo em meio às sombras. Malcolm Summers, seu avô. Ele parecia mais jovem do que na ocasião em que visitara o acampamento; obviamente tinha se disfarçado para fazer o papel de senhor Brighten. Ela se lembrou de Della lhe dizendo que os sobrenaturais não envelheciam tão rápido quanto os seres humanos.
Seus olhos se encontraram, e mesmo na escuridão, os olhos azul-claros dele se destacavam. Kylie percebeu que eles eram exatamente da mesma cor dos dela. Ela estudou seu rosto e viu as feições do pai, feições muito parecidas com as dela. Kylie de repente se sentiu insegura, não sabia bem como se comportar diante dele. Seu peito se oprimiu. Ela deveria abraçá-lo ou não? — Desculpe — ela disse, sem pensar. — Pelo quê? — o avô perguntou. — Por... por não ter falado com o senhor aquele dia na floresta. — Não foi culpa sua — outra pessoa disse. A tia-avó de Kylie se esgueirou das sombras e parou ao lado de Malcolm. A mulher sorriu. Antes que Kylie percebesse, ela se viu envolvida num abraço. A força e o calor do toque da tia surpreenderam Kylie — a mulher era quente. Quando o abraço terminou, Kylie percebeu que, como o avô, a fragilidade que a tia tinha demonstrado no dia em que a visitara em Shadow Falls havia desaparecido. Kylie fez um cálculo rápido de cabeça. A mulher tinha setenta ou oitenta e poucos anos, mas ela não parecia ter mais do que cinquenta. Os camaleões deviam ter uma alta expectativa de vida. Ela armazenou aquela informação para refletir sobre ela mais tarde. — Olhe só você! — exclamou a tia. — Tão linda! — Ela olhou de relance para o avô. — O que há de errado com você, Malcolm? Dê um abraço na sua neta! Ele se aproximou, hesitante. — Não sou muito de abraços, mas acho que a ocasião merece. — Ele a abraçou. E, como a tia, o toque do avô era quente. O abraço foi breve, mas carinhoso e parecia os que ela gostaria de ter ganhado de Daniel, e até do padrasto, antes do relacionamento se deteriorar. — Você é bom nisso — disse Kylie. — No quê? — ele perguntou.
— Em abraços. — Lágrimas arderam em seus olhos quando ela viu a emoção no rosto dele. Um sorriso se abriu dentro dela. — Você parece meu pai. — Eu notei isso também, pelas fotos. — Eu tenho tantas perguntas! — disse Kylie. — Tenho certeza de que tem. — Somos camaleões, certo? — Ela prendeu a respiração, esperando que ele confirmasse o que o pai tinha lhe dito. Ou será que Holiday estava certa, que ser camaleão significava uma coisa diferente? Kylie deveria aceitar sua condição de bruxa depois daquela noite? O olhar do avô deixou de expressar ternura e passou a demonstrar preocupação. — Como você descobriu isso? — Meu pai — disse Kylie. Seu coração se encheu de dúvida. Será que o pai dela estava errado? — Ele disse... Malcolm ficou em silêncio. Então disse: — Mas ele está morto. — Ela fala com espíritos. — A tia apertou o braço do avô, empolgada. — Eu disse a você que senti a presença de espíritos quando estávamos no acampamento. — Ela desviou o olhar para Kylie. — Sua bisavó tinha esse dom. Ela ficaria orgulhosa. — Então é verdade? Somos camaleões? — Kylie perguntou outra vez. — Sim — eles disseram ao mesmo tempo. O peito de Kylie parecia que ia explodir com a sensação de vitória. Ela finalmente sabia. Sabia com certeza. Mas o sentimento de vitória veio junto com mais perguntas. Lá no fundo, ela sentiu que sua vitória de verdade viria quando ela tivesse respostas para essas perguntas. Kylie procurou registrar tudo o que eles diziam, para que pudesse aprender mais. Sua tataravó também falava com fantasmas, mas as duas avós, não. Então um camaleão não tem os mesmos dons que outro. Como isso funciona? — Meu pai, ele falava com fantasmas também — Kylie disse, percebendo que ela ainda não tinha verificado os padrões do avô e da tia. Ela franziu as sobrancelhas. Foi tomada de surpresa quando viu que eles eram humanos. Mas ela também tinha exibido o padrão humano não muito tempo antes. Exatamente o que significa ser camaleão? — Então você o viu? — A tristeza era evidente no tom do avô. — E também vi minha avó. — Ela olhou para a testa do avô novamente. — Será que eu posso perguntar... — Heidi? — Ele disse o nome com tanto amor que Kylie ficou comovida. — Sim. Na verdade, foi ela que disse ao meu pai que somos camaleões. Mas ninguém em Shadow Falls sabe o que é isso. A tia e o avô se entreolharam. A tia fez um aceno com a cabeça em direção a Kylie. — Conte a ela. — Vou contar — ele disse. — Mas você precisa vir conosco. Kylie hesitou. — Por que não podemos conversar aqui? — Não se trata de conversar apenas. — O avô pousou a mão no ombro dela. O calor do seu toque era familiar. E Kylie reconheceu que ele se parecia com o toque de Holiday e Derek. Será que isso significa... O avô continuou a falar. — Você precisa vir e conviver com a sua própria espécie. — Conviver? — Conviver? Deixar Shadow Falls? Kylie negou com a cabeça. — Não posso. Eu vou estudar em Shadow Falls agora. — Você não entende o perigo que corre aqui, filha — ele disse. — Por causa... de Mario? — ela perguntou. Ele franziu a testa. — Mario é da UPF?
— Não. — Kylie hesitou falar sobre a UPF. — Ele faz parte de uma organização clandestina. — A organização que você precisa temer é a UPF. Eles são afiliados ao seu acampamento, mas não são o que parecem. Eu tenho razões para acreditar que sejam responsáveis pela morte da sua avó. Pouca disposta a mentir, Kylie assentiu. — Eu sei. A expressão do avô endureceu. — Como você sabe? — Ao ver que ela não iria responder, ele continuou. — Heidi lhe contou alguma coisa sobre isso? — O tom de voz dele era o mesmo das suas feições: sério, imperioso. Sem saber se seria melhor contar tudo a ele, mas sentindo que seria errado manter segredo, Kylie assentiu. — Ela ficou paralisada por causa da cirurgia. Aquela que eles fizeram em vocês dois. Eles a mataram. Os olhos azuis do avô se encheram de raiva e suas mãos se fecharam em punhos. — Bastardos assassinos! Só sob o meu cadáver você vai voltar para aquela escola! Kylie tentou não reagir à ameaça. Mas, sim, ela sentiu que era de fato uma ameaça. Respirou fundo para se acalmar. — Eu entendo como se sente. Também fiquei indignada. Mas Burnett me assegurou... — Burnett trabalha para eles! — rugiu o avô, e até as árvores pareceram se encolher diante da sua fúria. A tia de Kylie deu um passo à frente e pousou a mão no ombro dele. Kylie se lembrou de como seu toque era reconfortante no dia em que a visitaram no acampamento, fingindo ser os Brighten. Será que sua tia era fae? Metade fae, talvez? — Tem razão — disse Kylie. — Burnett trabalha para a UPF, mas ele me garantiu que as pessoas que fizeram aquilo não estão mais na organização. E...
— E você confia neles sabendo o que sabe? Confia nele, sabendo a quem ele se reporta? — Eu não confio na UPF, mas confio em Burnett — explicou Kylie. — Ele está do nosso lado. E, mais do que isso, eu confio em Holiday. — Você é jovem e ingênua. Não sabe o que é melhor para você. Ela tentou não se sentir ofendida. — Sou jovem, mas não sou tão ingênua assim — Kylie respondeu. — Estou seguindo o meu coração. — O seu coração pode levá-la a tomar o caminho errado — ele disse. — O meu fez isso comigo. Eu confiei neles. Estava cego para o que eles realmente eram. Heidi sabia... ou suspeitava, mas eu não quis ouvi-la. — Eu sinto muito — disse Kylie. — Mas eu não posso... — Você pode! — ele exigiu. — Não, Malcolm! A menina tem a opinião dela. — A tia falou com o avô, mas sem tirar os olhos de Kylie. Ela não parecia zangada, mas a decepção estava estampada em seu rosto. O peito de Kylie ficou oprimido ao pensar que podia ter magoado essas pessoas, mas ela não podia ceder. O avô deu alguns passos em círculo e fitou uma árvore. Sua dor, sua raiva, seu sentimento de perda preenchiam a escuridão como uma entidade viva, pulsante. Kylie foi até ele. Mesmo assustada, ela precisava confortá-lo. — A última coisa que eu quero é magoar vocês. Vocês já foram feridos demais. Lamento não poder fazer o que o senhor quer, mas eu tenho que seguir o caminho que acho mais correto. — Um leve movimento no céu entrou no seu ângulo de visão; Kylie não olhou para cima, mas suspeitou de que se tratava de Perry. Ele obviamente a encontrara. Seu tempo estava se esgotando. — E se você estiver errada e eu for obrigado a enfrentar mais uma morte na minha família? A morte de alguém que eu nem conheço muito bem ainda.
— Eu não acho que isso vá acontecer — Kylie falou, com uma súplica nos olhos. Ele olhou para o chão, aparentando derrota. Sentindo que seu tempo era curto, Kylie continuou: — Eu ainda tenho tantas perguntas... Por favor, me ajude a entender o que eu sou. Ele olhou para ela. A fúria tinha se dissipado dos seus olhos. — É impossível contar em poucos minutos em horas ou até em semanas, tudo o que você quer saber. Pode levar anos. — Então eu procurarei vocês durante anos para lhes fazer as minhas perguntas — ela disse. — Mas, por favor, só me responda isto: o que significa ser um camaleão? A tia deu um passo à frente. — É ser como o lagarto. Podemos mudar a maneira como nos mostramos ao mundo. E para a nossa própria proteção, temos que nos esconder, para não sermos perseguidos. — Nos esconder da UPF? — Kylie perguntou. — Infelizmente, de todo mundo — explicou a tia. — Os poucos que não se esconderam foram vistos como párias, aberrações, que não pertenciam a espécie alguma. A princípio pensaram que tínhamos tumores no cérebro e então concluíram que éramos pessoas dementes. Kylie não podia negar que se sentira assim. Como acontecia com todos os preconceitos, provavelmente tinha sido pior a princípio. Embora às vezes ela se sentisse uma aberração, na maior parte do tempo se sentia aceita em Shadow Falls. — A UPF nos estudou como cobaias — o avô acrescentou. — Os anciãos e os conselhos de todas as espécies nos viam como criaturas mutantes. Alguns de nós foram forçados a trabalhar como escravos para outros sobrenaturais. A verdade doía, mas ela precisava conhecê-la, em toda a sua extensão. — Mas o que somos? Uma nova espécie?
— Não exatamente — a tia respondeu. — Normalmente quando sobrenaturais se reproduzem, o DNA dominante é transmitido à prole. Os filhos mestiços geralmente têm poderes mais fracos do que os daqueles cujos pais são da mesma espécie. Os camaleões conservam o DNA de ambos os pais e também dos seus antepassados. Eles são uma mescla de todas as espécies. O avô olhou para Kylie. — Meu pai era vampiro e lobisomem. Minha mãe era fae, bruxa e metamorfa. — Espere aí — pediu Kylie. — Está me dizendo que eu tenho os dons de todas as espécies? — Quando exibe esse padrão, sim. Exceto... — A expressão dele mostrou preocupação. — Se a regra do protetor vale para o camaleão tanto quanto vale para outras espécies, então você não será capaz de usar nenhum dos seus poderes para proteger a si mesma. Ela balançou a cabeça, tentando compreender melhor o que ele havia dito. — Mas o seu padrão parece humano — disse Kylie. — É mais seguro fingir que somos humanos — a tia explicou. — Mas eu sou meio humana. Então como eu posso ter essa mistura especial? — A princípio, parecia não fazer sentido — disse a tia. — Mas quando estudamos o histórico familiar da sua mãe, descobrimos que ela é descendente de... — ... índios norte-americanos. — Kylie terminou a frase por ela. E de repente um pensamento lhe ocorreu. — Isso significa que a minha mãe é sobrenatural? — Sobrenatural, não. Apenas superdotada — a tia explicou. — Como assim? — Kylie respondeu. — Ela pode ser médium. Ou sensitiva — disse o avô. — Acredita-se que os membros dessa tribo possam diferenciar os sobrenaturais dos humanos. Às vezes eles não têm nem consciência disso, mas são simplesmente atraídos por eles. Existem mais humanos superdotados casados com sobrenaturais do que com humanos comuns, embora a população mundial de sobrenaturais seja muito menor. O avô franziu a testa e observou o padrão de Kylie. — O seu cérebro se desenvolveu rápido. A maioria dos camaleões não é capaz de manifestar um padrão e utilizar seus poderes antes dos vinte e poucos anos. — Eu posso ser precoce, mas me sinto uma ignorante. Não sei como controlar isso, como mudar meu padrão ou como controlá-lo. — É por isso que você precisa vir conosco. — O avô tinha uma expressão séria. — Não posso, mas ainda assim preciso entender. — Ela olhou para cima e dessa vez viu que era Perry. — Algum tempo atrás, eu tinha um padrão humano e agora faço pesos de papel girarem pelo ar e... bem, não é muito bom. Mas talvez eu tenha me desenvolvido mais cedo porque sou uma protetora. Ou eles acham que sou. A verdade é que não sei o que pensar de mim mesma. A tia sorriu. — Ouvimos rumores de que você é uma protetora. Essa é uma grande honra. — Acho que sim. — Kylie não sabia o que pensar de nenhum dos seus dons. O avô examinou a testa dela outra vez. — Se você não controla seus padrões, então deve manifestá-los instintivamente. Normalmente esse é um talento que pode levar anos para ser aprendido e controlado. Eu presumo que, se você precisar do dom da velocidade, intuitivamente provocará a mudança. — Velocidade? — Kylie perguntou, intrigada. — Não se trata de velocidade. Minha amiga vive aprontando com seus feitiços e... — Feitiços? — o avô perguntou. — Eu sou uma bruxa agora — ela disse, declarando o óbvio. — Não, não é mais — discordou o avô.

— Você é uma vampira — ele constatou. O primeiro impulso de Kylie foi negar. Ela não podia ser uma vampira. Mas por que ele mentiria? Ela tocou o próprio braço para sentir sua temperatura. Ele não parecia frio, mas, se a temperatura do corpo todo tivesse mudado, ela não sentiria. Então se lembrou de quanto o avô e a tia tinham parecido quentes. E outra constatação veio em seguida. Ela tinha literalmente voado até o cemitério depois de lançar a rede em Perry e Lucas. Lucas! Ela inspirou, trêmula, uma golfada de ar. O que Lucas diria do seu novo padrão? Ele não tinha ficado muito satisfeito quando achou que ela era uma bruxa. Mas se achasse que ela era uma vampira... — Algum problema, querida? — a tia perguntou. Kylie estava paralisada, tentando aceitar o fato de ser uma vampira. Tentando imaginar, ou melhor, tentando não imaginar como Lucas reagiria. Então ela se perguntou se iria começar a beber sangue. Assim que pensou nisso, começou a ficar com água na boca. O sabor doce, maduro e penetrante do sangue ainda estava registrado em sua memória. — Querida? — a tia voltou a perguntar. — Talvez seja melhor se sentar. Você está pálida. — Estou? — Seria outro sinal de vampirismo? Instantaneamente, ela passou a língua nos dentes e quase a cortou nos caninos pontiagudos. Ah, droga! Ela era uma vampira! Mesmo enquanto o medo da mudança revirava dentro dela como um par de tênis dentro da secadora, ela se lembrou de quão maravilhoso tinha sido voar pela floresta. Supôs que aquele tipo de poder podia ser viciante. Mas até que ponto um poder é bom se não se pode controlá-lo. Seria como a sua audição supersensível; era ótimo tê-la, mas, se não se podia contar com ela quando necessário, era praticamente inútil. Ela não queria ser inútil. — Como eu posso controlar isso? — Kylie perguntou. — Me expliquem. O avô suspirou. — Não é tão fácil. Você precisa treinar a sua mente. Não é algo que eu possa lhe dizer como fazer; é algo que você aprende com o tempo. Talvez leve anos. E até lá você pode ser um perigo para si mesma. — Eu vou ficar bem em Shadow Falls. A preocupação brilhou nos olhos dele. Então o avô levantou a cabeça como se farejasse o ar. Emitiu um som, um rosnado baixo. O rosnado e a maneira como farejou o ar a fez se lembrar de Lucas. — Alguém veio com você? — Ele parecia decepcionado. — Eles tentaram me seguir. Eu os despistei, mas é possível que tenham me encontrado agora. A expressão do avô pareceu ainda mais preocupada. — Venha conosco. Ajudaremos você a entender tudo. Você precisa descobrir quem é e o que é, Kylie. Você não pode fazer isso sozinha. Ela balançou a cabeça vagarosamente. — Não posso ir com vocês. — Mas você é uma de nós. Temos o mesmo sangue. Um camaleão sozinho não sobrevive. Olhe o seu pai. A morte dele foi tão desnecessária! Você acha que ele não ia querer que você viesse conosco e descobrisse quem é? Kylie respirou fundo.
— Acho que o meu pai diria para eu seguir meu coração. E, neste momento, o meu coração diz que Shadow Falls é o lugar certo para mim. Seu avô franziu mais a testa e olhou para a tia. — Precisamos ir. Alguém está se aproximando. — Ele se virou para Kylie. — Não fale a ninguém que é um camaleão. Deixe que pensem o que quiserem. Quanto menos falar a respeito, menos chance terá de ser perseguida. — Esperem! — disse Kylie. — Como eu posso entrar em contato com vocês? Eu ainda tenho tantas perguntas! — Eu entrarei em contato com você — disse a tia, dando a mão para Malcolm. — Como? — Kylie perguntou. — Como vocês vão...? Mas a tia não respondeu. Como Perry tinha descrito no dia em que os seguira, eles simplesmente sumiram no ar. Kylie ficou parada ali, ao mesmo tempo frustrada e assombrada. Como a tia entraria em contato com ela? Como conseguiam sumir no ar? Como ela fazia aquilo? Ela ouviu passos rápidos se aproximando por trás dela, vindo em seu encalço. Ela se virou, esperando ver Burnett. Mas era pior do que isso. Lucas diminuiu o passo. Seu andar era rígido e ele irradiava um sentimento de raiva e outro ainda maior de mal-estar. Quando chegou mais perto, ela notou que seus olhos estavam alaranjados e fulgurantes. Claro que deveria estar furioso por ela ter lançado uma rede sobre ele e Perry. Ela olhou por sobre o ombro dele, esperando ver Burnett. Esperando levar um sermão do vampiro. Então se lembrou de que ela também era um vampiro. Esquivou-se de Lucas, com medo do que ele podia dizer, com medo de vê-lo olhar para ela com desgosto. — Isso foi uma estupidez! — ele grunhiu. Ela sabia a que ele se referia. — Não foi uma estupidez. — Ela desviou o olhar. — Era o meu avô.
— E daí? — ele perguntou. — E daí que eu consegui as respostas de que precisava. — Ela começou a andar. Ele andou ao lado dela. — Você confia tão pouco em mim que não podia me contar que estava vindo aqui? — ele perguntou. Ela deu de ombros, mas não o encarou. — Eu sabia que você tentaria me impedir. E você provou que eu estava certa. — Você podia ter argumentado comigo, em vez de lançar aquela rede idiota. — As palavras dele vieram acompanhadas de um grunhido baixo. — Eu não tinha tempo para argumentar. — Exatamente por isso devia ter me contado antes. A ideia de que não confia em mim me enfurece. Assim como ele não confiava nela. — Eu sei exatamente como você se sente — ela disse, deixando que ele descobrisse por si só o que ela queria dizer. — É diferente — ele respondeu, demonstrando que sabia muito bem a que ela estava se referindo. — Não, não é. — Um nó se formou em sua garganta. Ela ainda se recusava a olhar para ele, com medo de que ele verificasse seu padrão e sentisse repulsa dela. E, que Deus a ajudasse, porque ela não achava que suportaria aquilo. — Você me disse que entendia. Disse que tinha reagido exageradamente ontem, quando ficou com raiva, ou não ficou, ou talvez tenha ficado um pouco. Ah, droga, você me confunde! — Eu de fato disse isso — ela admitiu. — E realmente compreendo, ou pelo menos estou tentando, mas como você não está me oferecendo a mesma gentileza, estou reconsiderando a minha decisão. — Então você está voltando à ideia de que é uma mulher e tem o direito de mudar de ideia — ele disse, com ironia.
— Isso mesmo! — Lágrimas faziam seus olhos arderem e ela andou mais rápido. Eles passaram por um par de estátuas dilapidadas, sem braços. Ela viu Lucas olhar para elas. Quanto não era difícil para ele estar ali, num cemitério? Ele que, como noventa por cento de todos os sobrenaturais, detestava cemitérios. Será que era por isso que o avô lhe pedira para encontrá-lo ali? Ele sabia que muito poucos sobrenaturais se aventurariam a entrar naquele lugar? Mas Lucas entrara. Ele se preocupava mais com ela do que com seu medo de espíritos. Será que teria entrado se soubesse que ela era uma vampira? Será que ainda se preocuparia se ela se virasse para ele agora e deixasse que ele visse o seu padrão? A pergunta, ou melhor, o medo da resposta fez com que ela andasse mais rápido ainda. Ela queria ficar sozinha. Sozinha para pensar em cada palavra que o avô dissera. Sozinha para contemplar o fato de que finalmente descobrira a verdade. Sozinha para descobrir o que tudo aquilo significava. Ela era um camaleão. No entanto, por ora, ela era um vampiro. Mas por quanto tempo? Quanto tempo ainda demoraria para controlar aquela coisa maluca que acontecia com ela? Os espíritos aguardavam por ela nos portões do cemitério. Lucas ficou mais tenso, como se os sentisse. Diminuindo o passo apenas o suficiente para abrir os portões enferrujados, Kylie fez mentalmente uma promessa aos mortos que tentavam tocá-la com os braços estendidos: Eu voltarei. Tão logo o vento frio fechou os portões atrás dela com um baque, Kylie acelerou o passo, voltando a correr. Um pé batia na terra e depois o outro. Ela se movia com propósito. Queria ir para casa. Queria estar em Shadow Falls. Você é uma de nós. Temos o mesmo sangue. Um camaleão sozinho não sobrevive. Ela ouvia os avisos do avô ressoando em seus ouvidos, mas se recusava a acreditar. O mero pensamento de deixar Shadow Falls enviava uma onda de dor ao seu coração. Ela não podia partir.
No entanto, mesmo enquanto corria para o lugar que lhe parecia mais certo em sua vida, para o lugar onde ela se sentia mais segura, Kylie sabia que as respostas que buscava não estavam em Shadow Falls, mas com o avô. Essa constatação causou uma dor aguda no fundo do coração. Lágrimas afloraram em seus olhos e escorreram pelo rosto. Ela as sentiu, quentes, em sua pele fria de vampira. Seu peito estremeceu de emoção quando ela percebeu que, antes de se refugiar na sua cabana, provavelmente teria que enfrentar a fúria de Burnett. — Mais devagar! — exigiu Lucas. Ela correu mais rápido. A fúria de Burnett não era nada comparada à hora em que teria de enfrentar Lucas. Seu preconceito contra vampiros doeria mais agora do que ela poderia suportar. O portão de Shadow Falls surgiu na frente de Kylie. Seu coração martelava no peito. Ela rezou para que o sermão de Burnett não fosse muito longo. Embora seu corpo não estivesse nem um pouco cansado, seu coração estava. — Droga, Kylie! — Lucas resmungou outra vez. Tudo, desde o seu tom ofegante até o baque dos seus passos na terra, dizia-lhe que ela o estava levando ao seu limite. — Eu disse para parar! — Ele soou mais perto dessa vez. Justamente quando ela estava prestes a pular a cerca, sentiuo agarrando-a pela cintura. Os dois caíram. Com tudo. Ele envolveu-a em seus braços para protegê-la da queda e ambos rolaram vários metros. — O que há com você? — ele perguntou. Ela acabou aterrissando em cima dele, seu corpo quente lembrando-a de que ela era uma vampira. Lucas fitava o rosto dela. Ela tentou se levantar. Ele a segurou. — Qual é o problema? — ele perguntou novamente. Lucas rolou e ficou sobre ela. Com medo de que ele visse seu padrão cerebral, Kylie virou a cabeça e olhou os arbustos ao redor. As lágrimas ardiam em seus olhos.
— Ei! — A voz dele soou mais terna dessa vez. Ele obviamente tinha notado suas lágrimas. — Olhe pra mim. Ela não olhou. Não podia. — Eu só quero acabar logo com isso — ela disse, com rispidez. — Acabar com isso o quê? — O peito dele moveu-se para cima e para baixo, sobre ela, enquanto respirava. — Enfrentar Burnett. — Ele não sabe de nada, mas, se você pular a cerca agora, ele vai descobrir. Ela o encarou. — Ele não sabe? — Não. Eu saí sem que ele percebesse. E, se você me ouvir, posso fazer você entrar sem que ele fique sabendo, também. Ou você pode pular a cerca e enfrentar a fúria dele. Percebendo que estava de frente para Lucas novamente, Kylie virou a cabeça. A vegetação sob as suas costas parecia um musgo macio, mas a emoção no seu peito a feria como um espinho. — É por causa disso que está assim? Droga, Kylie. Eu já sei. Ela olhou para ele outra vez, sem saber direito o que ele queria dizer. — Sabe o quê? Ele soltou um grunhido. — Que você é uma vampira. Eu... senti o fedor assim que entrei no cemitério. Ela se sentiu profundamente insultada. A emoção fez seus lábios tremerem. — Se eu cheirava tão mal, então por que você se deu ao trabalho de entrar? A expressão dele ficou mais sombria. — Eu entrei porque pensei que você estivesse em perigo. — Ele soltou o ar dos pulmões ruidosamente. — Eu não vou mentir. Eu não gosto, e vai complicar ainda mais as coisas com a minha alcateia, mas... — Ele a olhou nos olhos. — Mas o mais importante para mim não é o que você é aqui. — Ele tocou a testa dela. — É o que você é aqui. — Ele pousou a mão sobre o peito dela, um pouco acima do seio direito. Ela sentiu o coração acelerar. O toque não era para ser íntimo, mas ela o sentiu assim. — Você me enfeitiçou no momento em que nos vimos pela primeira vez, quando éramos crianças. Eu não sabia o que você era, e, é verdade, esperava que fosse um lobisomem, mas não me importava. Você me cativou. As lágrimas de Kylie umedeceram suas faces. De repente, um suave aroma de mato encheu as suas narinas. Ela sabia que era o cheiro natural de Lucas e da floresta também. — E ainda estou enfeitiçado. — Ele secou uma lágrima no rosto dela. — Eu não me importo que você seja metade bruxa e metade vampira. — Eu não sou só isso — ela disse. Ele pareceu ligeiramente confuso. — Tudo bem. Então, o que mais você é? Ela sorriu através das lágrimas. — Sou um camaleão. O que significa que tenho um pouquinho de tudo dentro de mim. — Ela se lembrou do avô lhe dizendo para não falar sobre isso com ninguém. Mas Lucas não era qualquer um. — Até de lobisomem? — ele perguntou. Ela assentiu com a cabeça. — Eu só não sei ainda como controlar essas mudanças. — Ela suspirou. — Isso faz de mim uma aberração maior ainda? — Faz de você alguém surpreendentemente incrível — ele disse. — Mesmo quando é uma vampira. — Ele se inclinou e pressionou os lábios contra os dela. O beijo tinha sabor de inocência. E, por mais estranho que fosse, ela se lembrou dele beijando-a daquele jeito um tempo atrás, muito tempo atrás. Como se tivesse acontecido antes de ela conhecer Shadow Falls. Kylie tocou a bochecha de Lucas e, quando tirou a mão, perguntou:
— Você por acaso... um dia entrou pela minha janela quando éramos vizinhos? Ele pareceu culpado, mas não muito. — Só uma vez, eu juro, quando você deixou a janela aberta. E eu não fiz nada... Só... — ... me beijou? — ela perguntou. — A ideia não a deixou com raiva; ela viu o beijo como um carinho. — Foi com você... o meu primeiro beijo — ele disse. Ela sorriu, e então a boca de Lucas desceu até a dela. Ela mal sentiu o calor dos lábios dele quando ele se afastou. — Mas eu ainda estou furioso com você por ter lançado aquela rede sobre mim. — Ele bufou. — Não que eu consiga ficar furioso com você por muito tempo. Ele a beijou novamente. Mas dessa vez não foi um beijo tão inocente. Não que ela fosse reclamar. Seu beijo tinha gosto de paixão, uma paixão doce e ardente. O peso do corpo dele pressionou-a em todos os lugares certos e ela sentiu as diferenças que faziam deles macho e fêmea. A vibração de Lucas, o zumbido no seu peito que a seduzia, invadiu-a em todos os lugares que seu corpo másculo agora tocava o dela. Ela recebeu o beijo com desespero, querendo senti-lo, querendo saborear as sensações que ele produzia. A mão dele envolveu sua cintura, quente contra a pele nua dela, depois deslizou sob a camiseta e pousou em concha sobre o seu seio. Ela gemeu ao sentir a suavidade do seu toque e ansiou por mais. Os lábios dele afastaram-se dos dela e desceram pelo seu pescoço. A sensação dos seus beijos quentes deixava seu corpo mole, como se estivesse derretendo. Ela sentia tudo, carência, desejo, anseio. Quando a mão dele se moveu pelas costas dela e buscou o fecho do sutiã, ela arqueou as costas para facilitar. E, quando a mão dele voltou a acariciar a pele nua do seio, ela tremeu de prazer. Lucas buscou a bainha da camiseta dela e deslizou-a pela cabeça de Kylie, descartando o sutiã ao mesmo tempo, e seus olhos desceram e contemplaram o que ele tinha acabado de descobrir. Ela achou que se sentiria envergonhada. Mas não era o sentimento de vergonha que se agitava dentro dela. Ela sentia... — Você é tão linda! — ele disse, com a voz rouca. Era isso. Era assim que ela se sentia. Linda. Admirada. Ele respirou fundo. — Provavelmente não devíamos... Ela pressionou um dedo contra os lábios dele. — Eu quero. — Ela deslizou a mão até a nuca de Lucas, entrelaçando os dedos nos seus cabelos pretos e espessos, e trouxe a sua boca até a dela. E, em segundos, estavam ambos perdidos nos braços um do outro.

O beijo passou de quente a febril, na velocidade das batidas do coração de um vampiro. Ela não tinha nem reparado que ele havia tirado a camisa até sentir o calor da sua pele nua contra os seios dela. Ela tremeu de prazer. Os beijos dele passaram para o seu pescoço e desceram um pouco mais. A sensação fez com que ela arqueasse as costas e murmurasse o nome dele. E então o celular dele tocou. Ela sentiu o rosnado no fundo da garganta de Lucas, profundo e baixo sobre a pele nua do seu próprio ombro. Ele levantou a cabeça. Seus olhos estavam brilhantes, as íris azuis ardentes de desejo. — Eu odeio... odeio essa tecnologia moderna. Ela deu uma risadinha. Ele rolou até ficar de costas e pegou o telefone do bolso. Quando consultou a pequena tela, uma expressão de preocupação varreu o desejo do seu rosto. — É Burnett. — Ele fechou os olhos, depois os abriu. — Eu tenho que... atender. — Ele olhou para ela como se pedisse desculpas. — Eu sei — ela disse e, então, percebendo de repente que estava nua, cruzou os braços sobre os seios. O olhar dele desceu por um breve instante para o seu peito coberto. Então ele pegou o sutiã e a camiseta dela, ao lado dele, e passou para ela. Ela os apanhou e segurou na frente do corpo para se cobrir. Seus olhares se encontraram e os dois sentiram que deveriam parar antes que as coisas fossem longe demais. E, embora ela aceitasse que tinha sido um risco deixar que o relacionamento evoluísse até aquele ponto, ela sabia que esses momentos ficariam gravados para sempre em sua memória. — Eu não me arrependo — ela disse. — Ótimo. — Ele parecia tão sexy sem camisa, ostentando apenas um sorriso que dizia “me beije”. — Porque eu também não. — Obrigada — ela disse. — Pelo quê? — Ele olhou para o celular tocando, com a testa franzida. — Por entrar no cemitério mesmo... detestando fantasmas. Por não me odiar porque sou uma vampira. Seu olhar de repente ficou sério. — Eu iria até o inferno para mantê-la segura, Kylie Galen. Ela acreditava nele. Lucas por fim atendeu à chamada de Burnett. Kylie passou o resto da noite se revirando nos lençóis, incapaz de conciliar o sono. O telefonema de Burnett tinha sido só para checar se Lucas havia encontrado algo suspeito, quando saíra para verificar por que o alarme disparara. Então Lucas e Kylie saltaram sobre o portão abraçados, para parecer que havia apenas uma pessoa entrando no acampamento. Como Lucas descobrira essa estratégia, Kylie não sabia nem queria perguntar. No entanto, a ideia de que Lucas tinha mentido e de que Perry também teria que mentir por causa dela não a deixava nada confortável. Inquieta, ela fitou o teto do quarto enquanto recapitulava tudo o que havia descoberto. Ela era um camaleão. Um tipo raro de sobrenatural. Mas neste momento ela era um vampiro. E isso explicava por que não tinha conseguido ter um sonho lúcido com Lucas, mesmo depois de tentar tanto. Os vampiros não podiam ter sonhos lúcidos. Rolando na cama mais uma vez, ela imaginou todo mundo vendo seu novo padrão. As palavras da tia-avó davam voltas na sua cabeça. Os poucos que não se esconderam foram vistos como párias, aberrações que não pertenciam a espécie alguma.
Ela já podia imaginar os campistas cochichando pelas suas costas. Olhe para Kylie! Você nunca vai adivinhar o que ela é agora! Não que precisassem cochichar. A audição supersensível de Kylie estava funcionando às mil maravilhas. Ela não só ouvia Miranda e Della cada vez que se reviravam na cama, como também os filhotes de passarinho piando no ninho, para que a mãe se apressasse, mastigasse as larvas e regurgitasse tudo na boca deles. O barulho que isso fazia, a propósito, não era dos mais agradáveis. A mente de Kylie deu uma guinada e ela começou a se lembrar dos momentos que passara com Lucas. Ela agarrou o travesseiro extra e abraçou-o. Um sorriso se formou nos seus lábios. Não só pelas coisas pecaminosas que tinham feito, mas porque... agora Kylie acreditava que ele se importava de fato com ela. E a aceitava. Aquilo era demais. Mudava tudo. Ela só não sabia como. Relembrando as carícias dele, ela sentiu as faces arderem. Provavelmente não de verdade, considerando que a temperatura do seu corpo de vampira era extremamente baixa agora, mas ela podia apostar que suas bochechas estavam vermelhas. Seu cérebro deu outra guinada e ela se lembrou das palavras do avô. Você é uma de nós. Temos o mesmo sangue. A necessidade que ela sentia de conhecer melhor o avô, de descobrir tudo com relação à sua herança de família, oprimia o seu peito. Mas deixar Shadow Falls...? Aquela não era uma opção. Mesmo que alguns campistas não a aceitassem plenamente, era a esse lugar que ela pertencia. À medida que a noite se arrastava, ela tentava decidir o que iria contar a Holiday e Burnett, e até a Della, Miranda e Derek... Ela não poderia mentir para todos eles, poderia? Um camaleão sozinho não sobrevive. O aviso se agitava em seu peito já oprimido. Abraçando ainda mais o travesseiro, ela se sentou na cama. Não estava sozinha. Ela tinha Holiday e Burnett, e todos os seus amigos. E só teria que ouvir sua intuição para descobrir o que deveria contar ou não às pessoas mais próximas a ela.
O ronco do seu estômago faminto se fez ouvir em meio ao silêncio do quarto. Kylie se levantou e foi até a cozinha. Ao abrir a geladeira, estendeu a mão para pegar uma embalagem de suco de laranja, mas a mão parou a meio caminho, quando ela viu o frasco de sangue de Della. A amiga iria matá-la, mas... — Cadê o meu sangue? — A voz de Della vibrou através de toda a cabana. Kylie se encolheu, saiu do chuveiro e ficou em dúvida entre a toalha vermelha ou a branca. Ela escolheu a branca, por ser um símbolo de pureza. Se Della fosse matá-la, pelo menos Kylie estaria usando branco. — Você o derramou na pia outra vez? — Della vociferou, sem dúvida falando com Miranda. — Eu não fiz nada com o seu sangue! — respondeu Miranda, ofendida. — Não cheguei nem a um metro dele. Kylie se enrolou na toalha. — Confesse, bruxa! — exigiu Della. — Estou falando a verdade! — rebateu Miranda. — Tire a cera desse seu ouvido imundo de vampira e ouça o meu batimento cardíaco. Tudo bem, agora os insultos estavam chegando a um nível perigoso. Às pressas, Kylie saiu do banheiro quente e esfumaçado e se postou bem no meio do campo de batalha. — Meus ouvidos não são imundos! — ameaçou Della, com um rosnado. — Não sou eu que deixo um metamorfo chupar o lóbulo da minha orelha. — Chega! — gritou Kylie, estendendo as mãos. — Nunca mais vou contar nada a você! — Miranda exclamou num tom cheio de mágoa. — Graças a Deus! — Della rebateu. — Você acha que quero ouvir você contar que chuparam o lóbulo da sua orelha?
— Sua vaca! — gritou Miranda, fervendo de raiva. — Parem! — berrou Kylie. — Eu nunca disse isso! — Miranda respondeu a Della. — Eu disse que ele mordeu o lóbulo da minha orelha. — Ela começou a andar na direção de Della, o dedo mindinho levantado como uma arma. Della exibiu os caninos e começou a avançar. — Dá na mesma. É tão vulgar quanto chupar! — Já chega! — Kylie se colocou entre as suas duas melhores amigas. — Ela jogou meu sangue na pia! — Della acusou. — Não joguei! — Miranda negou. — Ela está dizendo a verdade. — Kylie olhou para Della. — Fui... fui eu. — Você jogou o meu sangue na pia? — perguntou Della. — Não... eu... bebi. Me desculpe. — Kylie estendeu o braço, expondo a veia. — Tome, beba um pouco do meu. Della encarou Kylie, as sobrancelhas erguidas, e então seu queixo caiu. — Santo Deus! Você é uma vampira! — Ela é uma bruxa! — Miranda disse toda orgulhosa, às costas de Kylie. — Não é mais — contestou Della. — Olhe, Senhorita Espertalhona, e veja por si mesma. Ou será que Perry lambeu os seus olhos também? Sem querer prolongar a briga, Kylie voltou-se para Miranda. Afinal, aquilo não era algo que ela pudesse esconder. — Caramba! — deixou escapar Miranda. — O que aconteceu? Transar com Lucas transformou você numa vampira? — Claro que não! — respondeu Kylie. Della deu uma palmada no próprio quadril.
— Por que fazer sexo com um lobisomem faria alguém se transformar em vampiro? — Sei lá! — respondeu Miranda. — Talvez o sexo tenha sido muito ruim. Della encarou Miranda e mostrou o dedo médio, depois se voltou para Kylie. — Você transou com Lucas? — Não! — Kylie agarrou a toalha que caía. — A gente só... deu uns amassos. — E até onde foram esses amassos? — Della ergueu as sobrancelhas. — Achei que você não queria saber sobre essas coisas — disse Miranda, com raiva na voz. — Não quero saber sobre chupadas na orelha. Isso é vulgar. — Cadela! — Miranda xingou, avançando sobre Della. A vampira fez o mesmo. Kylie segurou Miranda pela camiseta com uma mão e agarrou Della, pelo braço, com a outra. Nesse momento, a toalha enrolada em volta do seu corpo caiu no chão. — Eu disse chega! Dela e Miranda começaram a rir. Sem dúvida ela estava bem engraçada, nua e furiosa. Kylie largou as duas e depois se enrolou novamente na toalha. — Eu tenho uma coisa pra contar, mas, se vocês duas não pararem de brigar, eu vou embora e deixo que se matem. — Você já veio com esse papo antes — disse Della. — E decepcionamos você. Não nos matamos. — Della rosnou para Miranda. — Claro que podemos fazer diferente dessa vez. Kylie revirou os olhos. — Vocês vão parar de brigar ou não? — Talvez — disse Miranda. — Principalmente se você explicar como, afinal, consegue mudar de padrão desse jeito. Ah, e se nos der detalhes de como foi a noite ontem com Lucas.
Kylie olhou para Della. — Trégua? — Tudo bem — Della garantiu. — Além disso, é com você que estou fula da vida por ter bebido o meu sangue. Você roubou uma vampira. — Ela mostrou os caninos, mas ao mesmo tempo abriu um sorriso. — E Miranda tem razão. Queremos detalhes sobre esses dois assuntos. Uma hora depois, assim que Kylie acabou de dar às amigas todos os detalhes — ou pelos menos todos os detalhes que planejava dar —, as três foram para o escritório de Holiday. Kylie confessara ter ido ao cemitério. Ela sabia que Della ficaria louca da vida ao descobrir que tinha sido enganada, e Kylie estava certa. Mas lhe pareceu importante contar tudo a elas, e não só para não ficar com a consciência pesada. Se ela precisasse encontrar o avô futuramente, precisava de aliadas. Della e Miranda eram suas melhores aliadas. Assim como suas melhores amigas. As duas eram também um dos grandes motivos pelos quais Kylie não podia fazer o que o avô queria: ir morar com ele. Um detalhe que Kylie omitiu da conversa. — Você vai contar a Burnett e a Holiday? — Miranda perguntou quando se aproximaram do escritório. — Não sei. — Kylie olhou para a varanda da cabana e ouviu alguém respirando lá dentro. E se eles ficassem furiosos e a proibissem de ver o avô e a tia novamente? Será que Holiday faria isso? Provavelmente não. Mas era bem possível que Burnett fizesse. Ou pelo menos tentasse. O coração de Kylie ficou apertado quando ela se lembrou de que não estava li só para falar sobre o avô. Tinha chegado a hora. Hora de contar a Holiday sobre a irmã. Mas, primeiro, ela esperava falar com Burnett sobre tudo o que tinha descoberto a respeito de Hannah. Ele precisava saber, para que pudesse decifrar o caráter desse Blake.
Mas, que droga!, Kylie não estava ansiosa para ter essa conversa. — Merda! — Della agarrou o braço de Kylie. — Se você contar a Burnett sobre o encontro com o seu avô, ele vai assar o meu rabo no espeto, porque eu deixei você ir. Não vai levar em conta que eu pensei que você ia sair com Lucas. — Ele vai me culpar também — disse Miranda. — Ele não vai culpar vocês — contestou Kylie. — Vai cair em cima de mim. — Certo, como se Burnett fosse um cara razoável... — disse Della. — Bem, o que você esperava? Ele é um vampiro. — Miranda comentou, com malícia. Kylie ignorou a troca de farpas dessa vez e olhou pela janela do escritório de Holiday. Apurou os ouvidos para ver se conseguia ouvir a voz de Burnett. Tudo o que Kylie ouviu foi alguém digitando no teclado de Holiday. Kylie atravessou a varanda da cabana. Não tinha chegado à porta ainda quando, de repente, reconheceu o cheiro e a cadência da respiração da pessoa que estava lá dentro. Não era Holiday. Nem Burnett. O que ele estava fazendo no escritório de Holiday? Ela acenou para as duas amigas e abriu a porta da cabana. Derek, completamente imerso no que estava lendo na tela do computador, não percebeu a presença dela. Kylie o observou e lembrou-se de que tinha ligado para ele do cemitério, sentindo que era o único com quem ela podia contar. Suspirando, ela também se lembrou de que ele confessara seu amor por ela. Lembrou-se até dos beijos ardentes e maravilhosos que trocaram quando estavam juntos. E que não trocariam mais. — Olá! — Kylie afastou esses sentimentos despropositados. Ele literalmente pulou da cadeira.
— Santo Deus! — exclamou, passando a mão no rosto. — Você... quase me matou de susto! — A culpa brilhava nos olhos dele. — O que você estava fazendo? — Algo que não devia. — Um gemido escapou dos lábios dele. — Holiday me pediu para ficar aqui no escritório. Quando eu me sentei, a tela do computador saiu da hibernação. Ele estava ligado na página de e-mails dela e... Kylie arqueou as sobrancelhas, com um ar de reprovação. — Você estava lendo os e-mails pessoais de Holiday? — Só porque tinham a ver com Hannah. — Ele gesticulou para que ela fechasse a porta. Ela obedeceu e se aproximou da escrivaninha de Holiday. De repente, sentiu-se um pouco culpada também, mas, se a informação pudesse ajudá-los... — O que você descobriu? — O e-mail era de um investigador particular. Holiday o contratou para encontrar a irmã. — Ele descobriu alguma coisa? — Kylie deixou-se cair na cadeira em frente à mesa. — Não. Mas eu não sabia disso até abrir o e-mail. — Ele passou a mão no rosto outra vez. — O que não deveria ter feito. Eu vi o e-mail e achei que poderia desvendar o mistério. — Eu provavelmente teria feito a mesma coisa — ela disse, sem saber ao certo se era verdade, mais por querer confortá-lo. — Onde está Holiday? — Ela disse que ia falar com Burnett. Kylie ouviu passos pesados e em seguida a porta se abriu. — Não foi comigo que ela foi falar. — O olhar de Burnett fixouse em Kylie. — Quem é Blake? Kylie lembrou-se de Hannah dizendo que seu assassino podia ter sido Blake. Teve um mau pressentimento. — Por quê?
— Porque é com ele que Holiday está. — Isso não é nada bom. — Kylie ficou de pé num salto. — Onde ela está? — Quem diabos é Blake? — Burnett perguntou, bloqueando a passagem de Kylie. — É o ex-noivo dela. O ciúme cintilou nos olhos de Burnett. — E ele pode ter sido a pessoa que matou a irmã dela e as outras garotas. O instinto protetor de Burnett substituiu o ciúme em seus olhos. Suas presas se projetaram dos lábios superiores. Ele se virou e num instante desapareceu pela porta. Levou uma fração de segundo para Kylie se lembrar de que poderia fazer o mesmo. Ela olhou para Derek e só quando os olhos dele se arregalaram ela percebeu que seus caninos também estavam à mostra. Sem tempo para explicar, saiu correndo da sala e sentiu seu sangue borbulhar nas veias, como sempre acontecia quando ela ficava alvoroçada para proteger alguém. Kylie só rezou para que seu alvoroço fosse prematuro e Holiday não estivesse em perigo.

Kylie farejou o cheiro de Burnett e, quase instantaneamente, alcançou-o e se pôs a correr ao lado dele. Eles não pararam até chegar a um pequeno restaurante na Rua Principal, no centro de Fallen. O carro de Holiday estava parado na porta. Tão logo parou de correr, ele franziu o cenho para checar o padrão de Kylie. Não disse nada, mas ela viu o choque nos olhos do vampiro antes que ele se voltasse para o restaurante. Eles correram até a grande janela da frente. — Lá no fundo, num dos cantos — disse Kylie, o pânico amenizando ao ver Holiday, viva, mas com uma expressão contrariada. Mas não parecia em perigo. O homem sentado na frente dela vestia jeans surrados e uma camisa azul-clara. Ele era alto, moreno e... Kylie quase pensou “atraente”, mas se deteve antes disso. — Como você sabia que ela estava aqui? — perguntou Kylie. — Quando eu a vi saindo do acampamento, liguei. Ela disse que estava no café e, quando alguém se aproximou, eu a ouvi dizer o nome dele. Kylie olhou novamente pela janela do restaurante e apurou os ouvidos para ouvir a conversa de Holiday. — Eu só vim até aqui para perguntar se você a tem visto — disse Holiday. — E eu vim para tentar explicar o que aconteceu — Blake continuou. — Cometi um erro. Faz mais de dois anos, mas eu não deixei de amar você. Burnett soltou um rosnado e ameaçou entrar no restaurante. Kylie segurou-o pelo cotovelo. Vestido todo de preto, o vampiro parecia feroz.
— Espere — disse Kylie. — Esperar pra quê? — As narinas de Burnett se inflaram. — Precisamos de um plano. — Eu tenho um. — Os olhos dele ficaram mais brilhantes quando Blake tocou o braço de Holiday. — Um plano que não inclua assassinato — Kylie murmurou, e então acrescentou: — Você não pode simplesmente invadir o restaurante desse jeito como um namorado ciumento. — Não estou com ciúme — ele protestou. Kylie ouviu o coração dele dar um salto. Ah, isso foi legal. — Sério? — Kylie arqueou uma sobrancelha para ele, com um olhar malicioso. — Ele matou a irmã dela! — Burnett defendeu-se. — Eu disse que ele poderia ter matado a irmã dela. — Isso já basta para mim. — Ele estendeu o braço para abrir a porta, mas Kylie o deteve outra vez. — Você quer mesmo que Holiday descubra desse jeito que a irmã está morta? Em público? Burnett deu um passo para trás, os olhos dizendo que ela tinha razão. — Tudo bem, qual é o seu plano. Ela não tinha um plano, mas disse: — Vamos esperar para ver. Ele franziu a testa. — Ele pode sacar uma faca e matá-la antes que eu consiga evitar. — Em público? — Kylie perguntou. — Não seria uma decisão inteligente, mas esse cara fez alguma besteira e perdeu Holiday. Isso prova que ele é um idiota. — Burnett não tirou os olhos da janela enquanto falava. Um grunhido baixo escapou dos seus lábios. — Ele está tocando nela de novo!
— Não foi por isso que liguei pra você, Blake. — Holiday puxou a mão, evitando o contato. O cabelo ruivo estava solto e contrastava com o vestido amarelo que ela usava. — Só quero encontrar Hannah. — Mas ela não está deixando que ele a toque — disse Kylie. — Vamos sair daqui antes que ela nos veja. Tarde demais. Holiday olhou para a janela do restaurante e seus olhos se arregalaram ao ver Burnett e Kylie do outro lado do vidro. — Você tem outro plano? — Burnett perguntou. — Porque estou sem ideias e ela parece bem contrariada. Kylie quase sorriu ao sentir o medo na voz daquele vampiro grandalhão e com fama de mal. — Não diga nada a ela antes de levá-la de volta ao acampamento — Kylie disse rapidamente. A porta se abriu com ímpeto e Holiday saiu do restaurante. Olhou para Burnett, depois para Kylie. — O que está acontecendo aqui? — Preciso falar com você — disse Kylie, improvisando. — Sobre o quê? — Quando nenhum dos dois respondeu, Holiday perguntou novamente: — O que aconteceu? Burnett começou a responder. Com receio de que ele pudesse contar a verdade a Holiday, Kylie se antecipou: — Algo a ver comigo. — Ela apontou para a própria testa. Holiday franziu a testa e seus olhos se arregalaram. — Ah, meu Deus! Os sininhos da porta do restaurante badalaram atrás deles e Blake saiu, parando ao lado de Holiday. — Está tudo bem? — Seu olhar se fixou em Burnett. O vampiro, com um brilho incandescente nos olhos, puxou Holiday para mais perto.
— Isso depende... — disse Burnett — da rapidez com que você cair fora daqui. Felizmente, Blake apenas se despediu de Holiday com um aceno de cabeça e foi embora sem causar nenhum tumulto. Kylie não pôde deixar de imaginar se não foi porque ele suspeitava de que sabiam a verdade. Burnett parecia pensar a mesma coisa enquanto observava Blake se afastar. O rosnado baixo e profundo vindo do seu peito não deixava dúvida de que planejava encontrar o homem novamente. E provavelmente muito em breve. Burnett e Kylie voltaram de carro com Holiday, que cravou Kylie de perguntas enquanto dirigia. — Quando você se transformou em vampiro? Sentiu alguma dor? Seus poderes mudaram? Em seguida Burnett interferiu, incluindo sua própria lista de perguntas sobre o novo padrão de Kylie. Kylie respondeu da maneira mais evasiva possível, sem querer falar sobre o avô. Ela sabia que teria de acabar abrindo o jogo, mas, considerando as outras notícias que tinha que dar a Holiday, não queria aumentar ainda mais as preocupações da amiga. De volta ao escritório, Holiday jogou a bolsa sobre o sofá e olhou para Burnett e Kylie com seu olhar exigente do tipo “conte tudo ou eu te mato”. Kylie imaginou se a mãe tinha ensinado esse olhar a Holiday, pois eles eram muito parecidos. — Agora me explique o que realmente está acontecendo — Holiday exigiu. — Posso sentir que não se trata apenas do seu padrão. Kylie mordeu o lábio inferior. Burnett deu um passo à frente. Aprumou os ombros, o olhar cheio de solidariedade. Deu um suspiro profundo e sincero e olhou para Kylie. Ela acenou para ele com a cabeça, como se lhe desse a palavra. Ele olhou novamente para Holiday e, numa voz grave, começou: — Kylie tem algo para contar a você. A boca de Kylie se entreabriu de surpresa, e então ela soube que era oficial: o homem tinha certa dificuldade com a comunicação verbal... principalmente quando ela envolvia emoções.
O olhar de Holiday disparou para Kylie e o coração da garota se encheu de dor. A dor que ela sabia que Holiday iria sentir. Uma emoção que Kylie pessoalmente já tinha sentido muitas vezes ultimamente. Perder Nana, perder o avô — mesmo que não fosse para a morte, era assim que ela sentia —, perder o seu pai de verdade, Daniel, pois suas visitas estavam mais espaçadas. E havia Ellie. Kylie se sentia triste até por Ruivo, quer dizer, Roberto. Respirando fundo, Kylie pediu com um gesto que Holiday se sentasse. A líder do acampamento estudou o rosto de Kylie e provavelmente detectou todas as suas emoções. Ela foi até a sua escrivaninha e se sentou. As almofadas afundaram sob o seu peso, com um som que pareceu um suspiro. Foi o único barulho na sala. — O que foi? — Holiday perguntou novamente. A emoção causou um nó na garganta de Kylie. — Eu não queria contar porque você me disse... que não queria saber. Toda aquela história sobre o hoje e o amanhã... Porque a princípio eu pensei que era você. Holiday se inclinou para a frente, apertando os braços da cadeira. — Não estou entendendo. — O rosto do espírito que lhe contei que reconheci. Pensei que fosse você. Mas não era... você. Os olhos verdes de Holiday se encheram de lágrimas e Kylie soube que Holiday já tinha encaixado as peças do quebra-cabeça. Burnett, mostrando seu carinho, aproximou-se de Holiday e pressionou o ombro dela com ternura. — Ela está morta? — Os ombros de Holiday estremeceram quando ela encheu os pulmões de ar. Lágrimas umedeceram seus olhos e escorreram pelas faces. — Por que... ela não me procurou? Kylie secou as próprias lágrimas. — Acho que porque tinha vergonha do que aconteceu. — Ela contou a você sobre... aquilo?
— Contou. — A voz de Kylie era quase um sussurro. Burnett olhou para ela como se perguntasse o que ela não tinha contado a ele. A tristeza pairava por todo o cômodo. — O que aconteceu? — Holiday finalmente perguntou. — Ela estava escalando montanhas? Eu disse a ela que era perigoso escalar sozinha. Kylie negou com a cabeça. — Não foi um acidente. A raiva endureceu a expressão de Holiday. — Alguém tirou a vida dela? Mas quem? — Não sabemos ao certo. — Burnett sentou-se na beirada da escrivaninha. A maneira como ele olhou para a líder do acampamento aqueceu o coração de Kylie. Ele se importava com Holiday. Ela só esperava que o problema todo com Blake não afastasse os dois. — Mas Blake é o primeiro suspeito — disse Burnett. — Blake? — Holiday ofegou. — Não, eu não acredito que... — Ela parou como se pensasse melhor. Ela passou a mão no rosto outra vez, para secar as lágrimas, e depois olhou para Kylie. — Tudo bem, me diga tudo o que você sabe. E não omita nada. Naquela tarde, em sua cabana, Kylie sentou-se à mesa da cozinha. O almoço tinha sido tão “divertido” aquele dia que Kylie tinha preferido não aparecer para o jantar. Não houve uma pessoa que não tivesse encarado Kylie com um olhar embasbacado e o queixo caído ou não tivesse feito algum comentário malicioso sobre o seu novo padrão de vampira. Tudo bem, isso não era verdade. Suas amigas íntimas não tinham olhado para ela assim — ou pelo menos tentaram não olhar. Jonathon e Helen tiveram um sobressalto e, antes que pudessem se conter, trocaram um olhar de espanto. É claro que Jonathon tinha se recomposto e dado a ela as boas-vindas à comunidade vampírica e sugerido que se juntasse à mesa deles.
Ela recusou o convite, pois pôde perceber, pelas expressões no rosto de alguns vampiros, que ela não era nem um pouco bemvinda. Quando Perry entrou no refeitório, ele verificou o padrão de Kylie e depois fez um sinal de positivo para ela. Obviamente, ele tinha decidido não explodir com ela por causa de todo aquele episódio com a rede. Então Kylie notou que todos os três professores novos olhavam para ela, surpresos. Por alguma razão, ela tinha presumido que eles seriam mais educados do que os campistas, mas se enganou, pois a encaravam com o mesmo olhar de curiosidade que todos os outros ali. No entanto, uma coisa fizera com que toda a provação que passara no refeitório valesse a pena. Quando Fredericka apontou para ela com uma risadinha no canto dos lábios, Lucas simplesmente deu de ombros e disse: — É, eu vi. — Então ele olhou para Kylie, sem encará-la com se ela fosse uma aberração, e sorriu. Aquele sorriso, com um brilho travesso nos olhos, estava carregado de significado também. Kylie percebeu que tinha enrubescido e ficou um pouquinho menos preocupada em ser o entretenimento de todo mundo enquanto devoravam hambúrgueres e batatas fritas. É claro que o alívio só durou alguns minutos. Logo em seguida alguém fez algum comentário maldoso sobre a mente de Kylie ser uma esquisitice sem precedentes. Kylie muitas vezes tinha desejado que sua audição sensível estivesse sempre ativa, mas naquele momento o que ela mais queria é que esse dom desaparecesse — para sempre. Agora ela preferia não ter que ouvir todos os comentários cochichados às suas costas. Fitando as mãos pousadas sobre a mesa, ela percebeu que parte do seu mau humor tinha sido causada pela dor que impingira a Holiday. Kylie queria ajudá-la, mas Holiday tinha insistido em ficar sozinha. O computador emitiu um aviso sonoro quando um novo e-mail chegou à caixa de entrada. Kylie correu para verificar, rezando para que fosse do avô ou da tia-avó. Ela estava checando seus e-mails obsessivamente nos últimos dias, especialmente porque seu último e-mail tinha voltado... o que significava que o endereço eletrônico que eles haviam dado a ela não estava mais sendo usado. Ela se sentou na cadeira em frente ao computador, com a respiração presa, quando a tela se abriu. O e-mail não era do avô ou da tia. Então ela ficou olhando para o endereço eletrônico do padrasto e acidentalmente clicou duas vezes nele, abrindo o e-mail. Mesmo sem querer, começou a lê-lo. Oi, princesa. Não vejo a hora de revê-la no sábado. Estou com saudade de você. E com saudade da sua mãe. Todas as emoções relacionadas à mãe e ao divórcio dos pais vieram à tona num rompante. Ela se afastou tão rápido da tela que a cadeira deslizou violentamente pelo chão e se partiu em quatro lugares diferentes. — Dane-se! — ela praguejou. Com a garganta apertada, Kylie se levantou e, pisando duro, foi até a geladeira e escancarou a porta. Ela só queria sentir o ar gelado no rosto. Não sentiu frio, porque ela já estava fria demais por dentro. Afinal, ela era uma droga de vampira! Limpou com um tapa uma lágrima que teimava em descer pela bochecha e voltou a olhar para a tela do computador. E se o pai começasse a fazer perguntas sobre a mãe dela? Kylie certamente não queria ser a portadora da notícia de que a mãe estava saindo com outro homem. No entanto, ele mesmo provavelmente descobriria no sábado, pois ela já tinha recebido um e-mail da mãe, perguntando a Kylie se ela se importava que o Bajulador — o mesmo que queria levar a mãe para a Inglaterra e ter noites selvagens entre os lençóis — viesse com ela para o dia dos pais. Kylie estava a ponto de responder, dizendo, “Claro que eu me importo!”. Mas seria justo fazer aquilo com a mãe? Kylie não devia estar feliz com a felicidade dela? Mas ela só queria que a mãe fosse feliz novamente com o padrasto. Queria que a vida voltasse a ser como antes. Por um segundo, Kylie se lembrou de como as coisas eram. Quando ela achava que não passava de um ser humano, quando não sabia que coisas como vampiros e lobisomens de fato existiam. Quando ela nem conhecia Derek. Não tinha restabelecido o contato com Lucas. Nem conhecia Della ou Miranda. De repente, o mundo de Kylie Galen antes de Shadow Falls não lhe pareceu atraente. Bem, exceto pelo fato de a mãe e o padrasto estarem juntos. Kylie ouviu o colchão de Della ranger e passos no chão de madeira. Ela limpou mais uma vez as lágrimas, esperando que ninguém as notasse. Vampiros não choravam. — Atrás da caixa de leite tem uma garrafa de sangue B positivo que eu trouxe pra você — disse Della. — Obrigada. — Como está se sentindo? — Bem, por quê? Della aproximou-se um pouco mais. — Porque normalmente, quando alguém começa a destruir a mobília, não está muito bem. Kylie olhou para a cadeira quebrada e não disse nada. — Na verdade, só estou surpresa que você não tenha apresentado nenhum sintoma durante o estágio de transformação. Fico feliz que não tenha, porque, pode acreditar, não é nada divertido. Kylie pegou a garrafa de sangue. — Sabe, isso provavelmente não vai durar. — O sangue? — perguntou Della. — Posso conseguir mais. — Não, minha condição de vampira. Eu não sou uma vampira de verdade. Quer dizer, sou só parte vampira.
— Você parece uma vampira puro-sangue — contestou Della. — Como muda o seu padrão? — Ela foi até a mesa da cozinha. Kylie abriu a garrafa e de repente a ideia de beber sangue revirou o seu estômago. Será que ela já tinha se transformado em outra coisa? Ah, mas que maravilha! Se isso de fato tinha acontecido, ela mal podia esperar pelo café da manhã, quando todo mundo ia ter mais uma refeição divertida, zombando da cara dela. Tirando o boné, na tentativa de esconder de Della sua aversão por sangue, ela explicou: — Eu não entendo como isso funciona. Por que acontece ou por que não acontece. — Ela olhou para Della. — Ainda sou uma vampira? Dela confirmou com a cabeça, e Kylie viu pela expressão da amiga que ela percebeu que Kylie havia chorado. — Pode dizer — Kylie falou. — Agora que eu sou uma vampira tenho que ser mais durona, não é? — Eu não ligo a mínima que você seja durona ou não — disse Della com sinceridade. A frustração cresceu no peito de Kylie, porque ela era uma idiota, porque Della estava sendo muito compreensiva, mas principalmente porque dessa vez ela não podia correr para Holiday e pedir respostas. Holiday não tinha essas respostas. E as pessoas que tinham, seu avô e sua tia, não queriam nada com Shadow Falls e não estavam acessíveis agora. Um camaleão sozinho não sobrevive. E, no momento, Kylie se sentia muito sozinha. Mais lágrimas afloraram dos seus olhos e Kylie secou-as com a mão. — Eu detesto me sentir uma aberração — Kylie desabafou. — Eu me sinto como se não tivesse controle sobre o meu próprio corpo.
Seus pensamentos se desviaram para Hannah. E para a preocupação da moça de que alguém iria ferir Holiday. E estou cansada de ver pessoas morrendo. — O seu avô não te disse como... lidar com isso? Kylie deixou escapar um profundo suspiro. — Ele disse que levaria anos para me ensinar. — Então você vai viver a vida toda mudando de espécie em espécie, sem conseguir controlar isso? — Parece que sim. Eu não sei. — Kylie desabou na cadeira. Depois de uma pausa carregada de significado, Della perguntou: — O que você acha do seu avô? — Como assim? — Quero dizer, você gostou dele ou não? Ele é daqueles velhos caquéticos com um pé na cova? — Não, ele não parecia... tão velho. Ele me pareceu gentil. Como o meu pai. Mas me lembrou um pouco Burnett, sério e austero. — Mas...? — continuou Della, na expectativa. — Mas o quê? Eu não disse “mas”. — Não disse, mas me pareceu que estava pensando nisso. Kylie suspirou. — Se eu contar uma coisa a você, não vai contar nada... a ninguém? — Juro por Deus — disse Della. — E prometo não chorar. Principalmente se eu ficar com a cara que você fica quando chora — ela disse, tentando persuadir Kylie com um sorriso. Kylie não sorriu. Não conseguiria. — Ele queria que eu fosse com eles. Os olhos de Della se escancararam e o seu bom humor se desvaneceu. — Você não vai fazer isso, vai?
— Não — disse Kylie. — Acho que não. Nesse momento, ela ouviu novamente a voz do avô. Venha conosco. Vamos ajudar você a entender tudo. Você precisa descobrir quem é e o que é, Kylie. — Não vai mesmo? — perguntou Della outra vez. — Pela sua cara, ainda está pensando na ideia. — Não — disse Kylie. E ela de fato não estava, disse a si mesma. Realmente não estava. Embora talvez não tivesse muita escolha...

Kylie foi para a cama cedo aquela noite. Ela mal tinha dormido na noite anterior e achava que dormiria como uma pedra. Bem, não como uma pedra, mais como um vampiro faminto, com uma leve aversão pela ideia de beber sangue, e com a mente em frangalhos. Mas ela não teve tanta sorte. Ficou deitada ali, olhando para o teto, acariciando Socks enquanto o gatinho ronronava, preocupada com Holiday e desejando que Lucas ligasse. Nesse momento, Socks se ajeitou no seu peito e começou a lhe dar lambidinhas no queixo. Kylie olhou para o filhote. — Se eu me transformar num lobisomem, você ainda vai me amar? Lembre-se de que eu amei você quando era um gambá. O gatinho miou, respondendo com o que ela esperava fosse um sim. — Você acha que Holiday sabe que nós a amamos? Falar com Socks não contribuiu muito para aliviar o peso no coração de Kylie. Desistindo, ela estendeu o braço para pegar o celular. Não sabia muito bem para quem iria ligar, se para Lucas ou Holiday. Holiday atendeu no terceiro toque. — Oi, está tudo bem? — Está, eu só... estou preocupada com você, pensando que eu talvez pudesse dar uma passada aí. Silêncio absoluto do outro lado da linha. — É... muita gentileza sua, mas acho que preciso ficar sozinha. — Tudo bem — assegurou-lhe Kylie, embora ela quisesse muito abraçar Holiday e lhe oferecer algum conforto.
— Ela veio vê-la outra vez? — Holiday perguntou. — Não. — Kylie passou o dedo pelo queixo de Socks. — Se ela vier... pode pedir que me procure? Diga a ela que não estou mais com raiva, eu só... preciso vê-la. — Havia tanta dor na voz de Holiday que Kylie ficou com os olhos rasos d’água. — Pode deixar. — Silêncio, um doloroso silêncio, ecoou na linha. A única coisa que Kylie podia sentir era a dor de Holiday. — Holiday... — Sim? — A voz da fae tremeu um pouquinho. — Eu amo você. Sei que isso vai parecer pieguice, mas você e Shadow Falls significam muito pra mim. Eu não sei se você entende quanto bem faz a todos nós que viemos para cá. Você é uma de nós. Temos o mesmo sangue. Um camaleão sozinho não sobrevive. As palavras do avô ecoaram mais uma vez no seu coração. — Eu pertenço a Shadow Falls — disse Kylie, e então estremeceu ao perceber que pensara em voz alta. — Claro que pertence. — Holiday parecia confusa. — Você... está bem? — Estou — ela mentiu. — Só preocupada com você. — Não se preocupe — pediu Holiday. — E, Kylie, eu amo você também. Nós conversamos amanhã, ok? Holiday desligou. Cinco minutos depois, a melancolia ainda pesava em seu coração, quando Burnett ligou perguntando se Kylie tinha falado com Holiday. — Sim — respondeu ela. — Perguntei se podia visitá-la, mas ela disse que preferia ficar sozinha. — Ela me disse a mesma coisa — ele murmurou. — Então acho melhor respeitarmos a vontade dela — disse Kylie. Burnett suspirou. — Você acha que ela ainda ama Blake?
Embora a pergunta representasse uma completa reviravolta na conversa, Kylie entendeu perfeitamente. O fato de Burnett confiar nela a ponto de mostrar sua vulnerabilidade a surpreendeu. Essa constatação fez com que se sentisse ligeiramente culpada por esconder coisas dele. Mas ela tinha escolha? — Não — ela disse, certa de que Holiday amava Burnett. Mas não cabia a Kylie dizer isso a ele. — Eu vou ter que procurá-lo e fazer um interrogatório — disse Burnett. — Eu sei — disse Kylie. — Mas você não pode tratá-lo mal ou concluir que é culpado só porque ele teve um relacionamento com Holiday. — Você acha que eu faria isso? — perguntou Burnett. — Acho — ela respondeu, com honestidade. — Eu vi o jeito como você olhou para ele hoje de manhã. Burnett permaneceu em silêncio por alguns segundos. — Você falou com Hannah novamente? — Ainda não. — Seria muito útil se ela pudesse nos contar algo mais — ele disse, mordaz. Como se Kylie não soubesse. — É uma pena que eles nem sempre concordem em cooperar. — Se ela aparecer, peça para que... venha falar comigo. — Tem certeza? — Kylie se lembrou de como ele costumava reagir a toda a questão dos fantasmas. — Claro que não, mas vou fazer isso por Holiday. — A linha ficou muda por alguns instantes. — Antes que eu me esqueça, Derek vai passar na sua cabana amanhã e levá-la ao escritório às seis da manhã. Vamos ao restaurante... ver se conseguimos descobrir alguma coisa sobre Cara M. Eu investiguei e não existe nenhuma informação sobre uma Cara M. desaparecida. Será que você não entendeu o nome dela errado? — Não, eu vi o crachá dela várias vezes.
— Tudo bem — ele disse. — Nós vamos amanhã bem cedo e vemos o que conseguimos descobrir. Depois temos que voltar voando, antes que os pais comecem a chegar. Ah, que divertido, pensou Kylie. Ela tinha quase se esquecido de que era dia da visita dos pais. Assim que desligou, ouviu uma batidinha na vidraça do seu quarto. Ela pensou que ia ver a gralha azul, mas ficou surpresa e feliz ao ver Lucas abrindo a vidraça. — Por que ninguém aqui pode entrar pela porta? — Della gritou da sala. — Porque eu não vim ver você — respondeu Lucas, sorrindo para Kylie. O sorriso dele fez maravilhas pelo humor de Kylie. Ele entrou no quarto dela, sentou-se na beirada da cama e então se inclinou e a beijou. Foi um beijo carinhoso, suave e, ela percebeu, propositalmente breve. — Não posso ficar muito tempo. — Os olhos dele se demoraram nos lábios dela. — Por mais que eu queira. — Tem algum compromisso? — Meu pai mandou me chamar outra vez. Ela franziu a testa. — Eu não gosto do seu pai — ela disse e depois se sentiu mal por isso. — Desculpe, eu não quis... Ele colocou um dedo sobre os lábios dela. — Eu também não gosto muito dele. — Então ele sorriu. — Eu tenho que ir, mas... talvez mais tarde você possa sonhar comigo. — Lucas a fitou com um brilho de malícia nos olhos. Ela franziu a testa. — Eu tentei na noite passada, mas não consegui. Acho que é porque sou uma vampira. — Eu sabia que seria péssimo você ser vampira. Kylie revirou os olhos. — Eu ouvi isso! — gritou Della.
— Será que pode ouvir isso também — gritou Lucas de volta, mostrando o dedo médio na direção da porta. Kylie abaixou a mão dele. — Não a provoque — ela murmurou para Lucas, e depois gritou: — Vá para a cama, Della. Lucas suspirou. — Preciso ir. — Ele se inclinou e beijou-a novamente. A lembrança do beijo foi a última coisa que passou pela cabeça de Kylie quando ela caiu no sono. Tentou novamente provocar um sonho lúcido, mas nada aconteceu. Então, em vez disso, simplesmente sonhou. Sonhou sobre como seria quando ela entendesse tudo sobre quem e o que era. Sonhou sobre como seria quando Lucas não precisasse mais agradar à sua alcateia. * * * Kylie acordou na manhã seguinte às quatro da manhã. O quarto estava frio, por isso ela desconfiou que havia alguém ali; no entanto, nenhum espírito se manifestou, o que ela achou rude, como se o único interesse do fantasma fosse espioná-la. Sentandose na cama, ela sussurrou: — Hannah, é você? Ninguém respondeu, mas o frio parecia um pouco diferente. Um calafrio percorreu sua espinha. Ela se enrolou no cobertor e ficou sentada ali, respirando o ar frio. Seria uma das garotas enterradas com Hannah ou alguém que ela ainda não conhecia? A sensação era nova — desconhecida. Será que alguém a seguira desde o cemitério? Como sempre, quando um novo espírito aparecia, Kylie sentia apreensão. Passaram-se dois minutos até que o frio começou a diminuir. Socks saiu de debaixo da cama e subiu no colchão, enrodilhando-se como uma bolinha no colo dela. — Você também não gosta muito de fantasmas, hein? O gatinho soltou um miado abafado que parecia dizer: “Nem um pouco”.
Kylie puxou Socks mais para perto e então se acomodou sobre os travesseiros, esperando cair no sono novamente e tentar um sonho lúcido outra vez. Mas não teve tanta sorte. Sua mente começou a dar voltas, passando da visita da mãe para a visita do padrasto, em seguida para o namorado da mãe e depois para Hannah e a visita ao restaurante dali a algumas horas. Será que descobririam quem era Cara M.? Será que isso os ajudaria a descobrir quem a matou? Reclinada nos travesseiros, Kylie se lembrou de como Hannah tinha fugido assustada quando vira os novos professores no dia anterior. Aquilo significaria algo? — Hannah, se você puder vir para conversarmos, eu apreciaria muito. E a sua irmã quer conversar com você também, assim como Burnett. Você é um fantasma muito popular. O quarto continuou em silêncio e com a temperatura amena. Percebendo que, se permanecesse na cama, aquilo só a deixaria mais angustiada, Kylie afastou as cobertas e se levantou. Talvez Holiday já estivesse no escritório. E, com sorte, Della não arrancaria sua cabeça se ela quisesse sair da cabana mais cedo. Ela teria que ligar para Derek e avisá-lo de que já estava no escritório. * * * Ainda estava escuro quando Kylie e Della saíram da cabana. A temperatura estava baixa e o ar da manhã, tipicamente outonal. Della não tinha arrancado a cabeça dela quando Kylie lhe disse que queria ver se Holiday já estava na cabana, pelo menos não literalmente. Mas Kylie tinha certeza de que a amiga queria fazer isso. Sem dúvida, aquela história de ser a sombra de Kylie já estava cansando Della. Kylie não culpava a vampira. Talvez fosse hora de Kylie falar com Burnett e pedir que ele pusesse um fim àquilo. Fazia um tempo que não tinham notícias de Mario. Ela sentia que ele não estava por perto e nem Miranda pressentia mais a presença dele. Kylie só esperava que isso durasse para sempre.
— É cedo pra caramba! — murmurou Della. — Se você não quiser ir, tudo bem. Della continuou andando, mas não reclamou mais. — Pra mim, essa é a prova — sibilou Della. — Prova do quê? — perguntou Kylie. — De que você não é uma vampira de verdade. Quero dizer, o melhor sono dos vampiros é pela manhã. — Eu disse a você que não sou uma vampira puro-sangue. Eu... — Kylie parou de falar quando ouviu passos se aproximando. Os olhos de Della se arregalaram ao mesmo tempo, então as duas localizaram a direção de onde vinham os passos e seguiram até a orla da floresta. Elas se esconderam atrás de um arbusto, esperaram e observaram — até que uma silhueta apareceu na curva da trilha. Ele usava um blusão escuro com capuz, que cobria parcialmente seu rosto. Kylie não reconheceu seu semblante nem o seu jeito de andar. Se ele fosse um dos campistas, ela reconheceria, não é? Della farejou o ar. — Eu não reconheço esse cheiro — ela sussurrou. — Qual é o plano? — Kylie perguntou. — Que tal este? — Della saltou de entre as árvores, caninos à mostra, os olhos verdes e brilhantes, e aterrissou com um baque na frente do estranho.

Kylie, surpresa com a atitude agressiva de Della, ficou parada no lugar por um segundo antes de perceber que a amiga podia estar em perigo. Com a vampira a poucos metros do homem, Kylie disparou para fora da floresta e parou a menos de um metro dele, às suas costas. Della deu um passo defensivo na direção do homem. Ele deu um salto para trás e se chocou com Kylie. Depois se virou para ela, um grunhido escapando dos lábios, mas o capuz ainda encobria o seu rosto, impedindo Kylie de identificá-lo e saber quem estava enfrentando. — Quem é você? — Kylie perguntou. Sentindo seu instinto protetor correndo nas veias, ela avançou para arrancar-lhe o capuz. Ele se esquivou, recuando alguns passos — e se aproximando mais de Della. — Você, pare! — Della ordenou. Ele baixou, por fim, o capuz. — É dessa maneira que vocês tratam os professores? — perguntou Hayden Yates. Della, sendo quem era, não deu o braço a torcer. — Se eles ficarem perambulando furtivamente por aí nas sombras, vestidos como delinquentes, então, sim, é desse jeito que eles serão tratados! Kylie levantou a mão para Della, esperando acalmá-la, embora não se sentisse nem um pouco calma. Seu poder estava em alerta máximo; sua adrenalina, correndo nas veias. — Desde quando fazer uma caminhada é “perambular furtivamente por aí”? — perguntou ele, num tom professoral. — Desde que foi o que pareceu — rebateu Della.
A lógica combateu o surto de adrenalina em Kylie. — Eu... nós... Você nos assustou — explicou ela. — Eu não estava assustada! — discordou Della. O senhor Yates franziu a testa. — Da próxima vez, tentem dizer “olá” antes de atacarem alguém que esteja apenas caminhando. — Isso foi um “olá” — disse Della. — Se tivéssemos atacado, você estaria sangrando... ou morto. — A gente exagerou — interviu Kylie, e então se lembrou de que ela não sentia nenhuma simpatia por aquele professor em particular. Ele parecia esconder alguma coisa e suas roupas escuras e o rosto encoberto pareciam confirmar essa impressão. No entanto, os bons modos de Kylie e o seu respeito pelas autoridades a impediam de ser mal-educada. — Nós pedimos desculpas. — “Nós”? — perguntou Della com sarcasmo. Kylie fez um gesto para que a amiga continuasse andando. Della lançou um olhar zangado ao professor antes de se virar. E quando já estava a alguns metros dele, ela cochichou: — Eu não gosto dele. — Nem eu — concordou Kylie, sem saber muito bem por quê. — Você acha que ele trabalha para Mario? — Della perguntou. — Não, eu... não sei — confessou Kylie. — Não vamos tirar conclusões precipitadas. Elas chegaram à clareira onde ficavam o escritório e o refeitório. Kylie notou que as luzes do escritório de Holiday estavam acesas. Então percebeu o silêncio que reinava na floresta. Nem um pássaro ou uma brisa o perturbava. O fato de Della ter parado de andar e seus olhos terem adquirido um tom verde brilhante dizia a Kylie que ela não tinha imaginado a sensação de perigo. Havia alguém ali. — Está tudo bem — falou uma voz estranha atrás delas. As duas se viraram ao mesmo tempo. O homem, aparentemente de trinta e poucos anos, usava um terno preto. Ao verificar rapidamente seu padrão, Kylie descobriu que era um vampiro. A maneira como ele levantou as mãos, com as palmas à mostra, era um sinal de que não queria arranjar problemas. Então, mais uma vez elas se deparavam com um estranho na propriedade de Shadow Falls. Afinal, quem era ele? — Está tudo bem. — Sua postura pacífica não ajudou a tranquilizar Kylie e muito menos Della. — Isso quem decide sou eu. — O brilho nos olhos verdes de Della destacou as suas presas à mostra. O homem abriu o paletó e um distintivo brilhou no seu cinto. — Sou o agente Houston, da UPF, amigo de Burnett. — A maneira como ele disse “amigo” parecia significar alguma coisa, mas Kylie não soube dizer o quê. — Burnett me pediu para ficar de tocaia aqui enquanto ele ia atrás de um suspeito. — Ficar de tocaia por quê? Ele suspeita de alguma coisa? — perguntou Della, num tom que exigia resposta. O olhar do agente se desviou para Kylie, como se ele soubesse que ela entenderia. E de fato ela entendia. Burnett tinha pedido ao agente para vigiar Holiday, e obviamente ele estava procurando por Blake. Mas essa compreensão não fazia do estranho seu aliado. É lógico que ela confiava em Burnett, mas o distintivo que o agente Houston tinha exibido com tanto orgulho, aos olhos de Kylie, depunha mais contra ele do que a favor. — Não posso entrar em detalhes — ele disse. — Mas vocês vão ter que confiar em mim. Kylie sabe. Confiar? Sem chance, pensou Kylie, mas ao ver que o coração do homem não denunciava que estava mentindo, ela olhou para Della. — Ele está dizendo a verdade. — Eu sei — disse Della como se estivesse irritada, mas a cor dos seus olhos mudou, indicando que ela tinha aceitado a explicação. Pelo menos até estar sozinha com Kylie, quando colocaria a amiga contra a parede, exigindo informações. Della não gostava de ficar no escuro. — Eu vim ver Holiday. — Kylie olhou para Della.
— Ela está recebendo muitas visitas esta manhã — disse o agente. Kylie olhou para a janela do escritório e viu uma figura masculina. — Quem está lá dentro? — Um dos novos professores — respondeu ele. Kylie ficou tensa. — Hayden Yates? — Ela relanceou os olhos para Della. Como ele tinha conseguido chegar antes delas? A expressão de Della revelava que a vampira pensava a mesma coisa. — Não. Um tal de Collin Warren. Ele disse que era o novo professor de história. Algum problema com ele? — A voz do agente se aprofundou, enquanto ele dava um pequeno passo na direção do escritório. — Não — disse Kylie. — Não há nada de errado com ele. — Mas justo nesse momento, passos ecoaram na trilha. — Estão esperando alguém? — o agente perguntou. — Na verdade, não — disse Kylie, embora suspeitasse de quem era. E ela estava certa. Hayden Yates, com o capuz cobrindo a cabeça, entrou na clareira. — Bom dia. — Ele ergueu o queixo, o olhar se fixando, de maneira defensiva, no agente da UPF. — Vocês o conhecem? — o agente perguntou a Kylie. O senhor Yates aprumou os ombros como se estivesse ofendido. — Ele é um dos novos professores — explicou Della, mas o tom da garota parecia insinuar mais alguma coisa. Dizia que ela não gostava dele e o agente percebeu, dando um passo na direção do homem.
O outro não recuou. Ficou no lugar onde estava e Kylie achou que eles iam se confrontar. Então Hayden desviou o olhar, como se reconsiderasse a sua postura. — Não quero causar nenhum mal, só estou fazendo uma caminhada — ele disse ao agente, numa voz resignada. Kylie ainda tinha um pressentimento... de que algo não estava certo, de que o homem não estava sendo sincero. O aviso de Hannah soou nos ouvidos de Kylie. E no dia em que eu estava em Shadow Falls senti que ele estava por perto. Eu senti e tive certeza. Fui a Shadow Falls por causa dele. Será que Hayden Yates era o assassino de Hannah? Será que tinha se candidatado para o emprego de professor só para se aproximar de Holiday? Parecia improvável, mas Kylie não ia se arriscar. Tão logo Burnett voltasse, ela planejava contar a ele sobre as suas suspeitas. Kylie esperou na porta do escritório até que o senhor Warren terminasse a conversa com Holiday. Em poucos minutos, os dois saíram da cabana. O professor acenou com a cabeça educadamente e desejou bom-dia num tom de voz baixo. — Bom dia — respondeu Kylie, sentindo que ele era tão tímido e inseguro quanto ela. Talvez até mais. Uma espécie de versão masculina de Helen. E, no entanto, tinha optado por ser professor. Não havia dúvida de que seu amor pela história o levara por esse caminho. Por isso ele merecia a sua admiração. Quando o professor se afastou, Kylie olhou para Holiday e instantaneamente lhe deu um abraço. Elas ficaram abraçadas por um segundo a mais do que de costume. — Você está bem? — Kylie perguntou. — Com o tempo, vou ficar — disse Holiday. Kylie ouviu o senhor Warren conversando com o agente, do lado de fora. — Este é o primeiro ano que ele leciona? Kylie acenou com a cabeça na direção da janela.
— Como você adivinhou? — Holiday suspirou. — Ele foi recomendado por um amigo de um amigo. Não é tão mal numa conversa a dois. Espero que vocês, alunos, não o massacrem. Kylie deu uma risadinha. — Perry talvez pense nessa possibilidade. Holiday fez uma cara feia. — Prometa que você não vai deixar que isso aconteça. Ele realmente parece um sujeito legal e acho que será um excelente professor. Eu apreciaria de verdade se você o deixasse sob a sua proteção. Kylie achou graça. — Perry também pode se encarregar disso. Um sorriso, embora um pouco forçado, esboçou-se nos lábios de Holiday. Ela consultou o relógio na parede. — Você acordou cedo. — Não consegui dormir — Kylie explicou. — Hannah apareceu? — A dor era evidente na voz de Holiday e o peito de Kylie se apertou. — Não. Sinto muito. — Ela fez uma pausa. — Isso é cheiro de café? — É, eu... normalmente não bebo, mas esta manhã achei que me faria bem. Pegue uma xícara e depois eu quero ouvir sobre toda essa história de se transformar em vampiro. Ah, droga, pensou Kylie enquanto ia pegar o café. Ou ela abria o jogo ou ia ter que se enterrar em mentiras. Provavelmente inventaria uma história em que Holiday acreditaria — uma história que não incluísse sua escapada de Shadow Falls para se encontrar com o avô. Mas Holiday era a pessoa para quem mentir parecia mais errado. — Você fez o quê?! — Holiday perguntou, colocando o café sobre a mesa, quando Kylie terminou de explicar alguns minutos depois. — Quantas vezes eu já disse que, por ser protetora, você não tem poderes para se proteger? Poder nenhum! Você nem sabia se o e-mail era realmente dele.
— Eu sabia — discordou Kylie. — Como? — Holiday se inclinou para a frente. Kylie mordeu o lábio. — Ele era a neblina. — Ele era o quê? — O meu avô e a minha tia-avó, eles eram a neblina. De algum jeito, transformaram-se em neblina. — Como... — Ela soltou um longo suspiro, enquanto tentava debelar a confusão em seus olhos, e depois disse: — Mesmo assim, você não pode simplesmente desobedecer às regras. — Eu estava seguindo a regra principal. Aquela que você me disse dezenas de vezes. — Ela fez uma pausa. — Seguir o meu coração. Holiday olhou para Kylie como se debatesse a questão interiormente. — Você podia ter pedido para alguém ir com você. — Eles não teriam aparecido. — Você não pode ter certeza — contestou Holiday. — Posso, sim. Eles foram embora quando Lucas apareceu. — Espere, Lucas estava com você? Ele sabia sobre isso? — Havia uma reprimenda na voz dela. — Não. Ele e Perry me seguiram, mas eu... os detive e continuei. Quando Lucas me alcançou, meu avô e minha tia desapareceram. Eles não confiam em ninguém daqui, por causa do envolvimento da UPF no acampamento. Considerando tudo o que aconteceu, você não pode culpá-los. — Eu posso culpá-los de incentivar você a colocar sua vida em perigo. — Holiday reclinou-se na cadeira, frustrada. — Eles nem sabiam sobre Mario. E olhe pra mim. Nada aconteceu. Eu tinha que ir. Tinha que saber a verdade. Holiday fechou os olhos e os manteve assim. Quando suas pálpebras finalmente se abriram, Kylie viu que a frustração tinha quase desaparecido.
Seus ombros relaxaram. — E qual é a verdade, Kylie? O que eles lhe disseram? — Meu pai estava certo. Eu sou um camaleão. — E o que, exatamente, é isso? — Holiday perguntou. — Eu sou uma mistura de todos os sobrenaturais e conservo o DNA de todos eles. Holiday discordou com a cabeça. — Mas isso não é possível. O DNA do pai dominante é o único transmitido à criança. — É isso que nos torna diferentes das outras espécies. Holiday se inclinou para a frente, a expressão confusa. — Isso é... incrível! — Ela franziu as sobrancelhas ao fitar a testa de Kylie. — Então o que determina o padrão que você manifesta no momento? — Eu não sei... exatamente. Meu avô disse que leva anos para um camaleão aprender a controlar isso. É preciso um tempo para aprender. Mas depois ele disse algo que me fez acreditar que eu posso mudar meu padrão de acordo com os poderes de que eu preciso. — Então ele transformou você em vampira? — Não, eu... ele disse que eu devo ter feito isso instintivamente. Quando estava tentando fugir de Lucas e Perry, eu ficava dizendo a mim mesma que precisava correr mais rápido. Então talvez seja assim que aconteça. — Você já tentou mudar seu padrão outra vez? — Holiday arqueou uma sobrancelha com uma expressão curiosa. — Não. — Kylie balançou a cabeça. — A última vez que eu tentei fazer algo que não sabia direito como fazer, quase deixei Burnett estéril. Holiday deu uma risadinha. Ver Holiday sorrir era tão bom que Kylie sorriu também. — O que mais o seu avô disse?
O coração de Kylie se apertou. Se Holiday fosse vampira, ela ouviria a mentira se formando em seus lábios. Contar a Holiday que o avô queria que ela deixasse Shadow Falls parecia dar à líder do acampamento uma razão para não gostar dele — uma razão para insistir que Kylie ficasse longe dele. E ela não poderia fazer isso. Respirando fundo, Kylie lutou contra a culpa que se avolumava dentro de si, pois Holiday talvez não pudesse ouvir a mentira nos seus batimentos cardíacos, mas podia detectar suas emoções. Endireitando os ombros, ela fitou Holiday nos olhos. — Não disse muito mais do que isso. Lucas apareceu e... eles foram embora. — Quem foi embora? — Burnett perguntou. Kylie se encolheu ao ouvir a voz do vampiro. Ela estava tão ocupada tentando não se sentir culpada que não o ouvira se aproximando. — Você o encontrou? — Holiday se sentou ereta, a tensão enrijecendo os seus ombros. Kylie suspeitava que Burnett estivesse procurando Blake, mas ficou surpresa ao descobrir que ele tinha contado isso a Holiday. — Quem? — Kylie perguntou, para ter certeza de que estava certa. — Blake — confirmou Burnett. — E não. — Ele olhou para Holiday. — Já deixei mensagens no telefone do trabalho e no celular, dizendo que precisamos conversar. — Será que não é melhor eu ligar para ele? — Não — vetou Burnett. Sacudindo os ombros como se quisesse aliviar o estresse, ele olhou para Kylie. — De quem você estava falando quando eu cheguei? Quem foi embora? Holiday olhou para Kylie e ela conseguiu ver a mensagem nos olhos da amiga. Ela deixou a cargo de Kylie decidir o que dizer a Burnett... ou o que não dizer. Ela apreciou isso e, quando imaginou como o vampiro reagiria ao saber da sua desobediência às regras, Kylie quase preferiu não dizer nada. Mas, ao pensar na situação em que deixaria Holiday ao mentir para Burnett, Kylie reconsiderou. Ela não queria ser a causa de nenhum tipo de desentendimento entre eles. Não agora que seu objetivo era uni-los. — Você vai se aborrecer — disse Kylie. — Muito? — Ele franziu a testa. * * * De fato Burnett ficou bem contrariado. Kylie ficou aliviada quando, uma hora depois, Derek apareceu e os quatro foram ao restaurante, para tentar descobrir alguma coisa sobre Cara M. Quando Burnett e Holiday entraram no Cookie’s Café, Derek a deteve e deixou a porta se fechar. — Está tudo bem? Ele obviamente tinha captado o humor “alegre” de Burnett. No entanto, Kylie não sabia se ela era a única culpada ou se o fato de não encontrar Blake também contribuíra para deixá-lo de mau humor. Ao olhar pela porta de vidro e ver Burnett olhando para trás, à procura deles, Kylie se lembrou da conversa que tinham travado mais cedo. — A UPF não é a inimiga — ele insistiu, quando Kylie lembrou-se de que o avô tinha razão em desconfiar de Shadow Falls. — Você não é nosso inimigo — disse Kylie. — Mas eu ainda não tenho certeza se posso confiar na UPF. E, embora eu saiba que você não quer admitir, não teria escondido o corpo da minha avó e não teria ocultado alguns fatos da UPF se confiasse plenamente nela. Burnett não contestou esse argumento, mas o fato de Kylie ter apontado isso não colaborou muito para melhorar o humor do vampiro. Ele obviamente estava dividido entre sua lealdade a Shadow Falls e sua lealdade à UPF. Não que Kylie estivesse preocupada. Ela confiava em Burnett. Mas fazer com que o avô e a tia confiassem nele era outra história.
Derek limpou a garganta para chamar a atenção dela. Ele usava seus jeans favoritos e uma camiseta verde musgo. — Aconteceu alguma coisa? — Não — Kylie sussurrou para Derek, levemente perturbada pela proximidade dele, seu ombro roçando no dela. Ou será que ela estava perturbada por sentir o quanto esse toque ainda mexia com ela? Afastando esse pensamento, ela estendeu o braço para abrir a porta de vidro. Nesse momento ela teve uma sensação inexplicável de que alguém a observava. Ela se virou, mas Derek bloqueava a visão da rua. — Alguma coisa errada? — ele perguntou. — Não. — Ela ainda desviou o olhar para a rua atrás dele. Mas a breve sensação tinha passado. Será que o avô e a tia estavam por perto? Ela olhou em volta, para a direita e a esquerda. As casas antigas da rua tinham sido transformadas em lojas de suvenires e um antigo vagão vermelho agora era um vagão-restaurante. Ela não conseguiu ver ninguém espionando-a. Ninguém. Nada. Então virou-se novamente e entrou no restaurante, de onde vinha um burburinho de vozes. O aroma de bacon impregnava o ar da antiga casa transformada em restaurante. Ela não achava aquele cheiro nem um pouco tentador. Essa era a desvantagem de ser vampira. O recinto estava repleto de mesas, lotadas com pessoas famintas que pareciam estar de férias. O som de talheres tilintando contra pratos ecoava com as vozes. Só havia uma mesa vazia e Holiday caminhou em direção a ela. Uma garçonete veio dos fundos, carregando uma bandeja cheia que rescendia a bolinhos de canela. — É aquele uniforme? — Derek perguntou quando se sentaram. — É. — O coração de Kylie se alegrou com a esperança de que aquilo os levasse ao assassino. Outra garçonete, Chris G., de acordo com o crachá, parou em frente à mesa.
— Já querem fazer o pedido? — Antes que falassem, ela acenou para a outra mesa. — Só um minuto. — Na verdade — Burnett falou — estamos aqui na esperança de conseguir alguma informação sobre Cara M., uma garçonete que... — Ah. — Ela se afastou. — Ah, o quê? — Burnett franziu a testa enquanto a garçonete se distanciava. Ela enfiou a cabeça no vão de uma porta e chamou: — Ei, Cara, alguém aqui quer falar com você. Burnett, Holiday e Derek se voltaram, todos, para Kylie. — Ela não pode estar viva — disse Kylie. — Podem acreditar. Ela está morta. Então uma loira bonita, com um crachá onde estava escrito Cara M., saiu de um cômodo nos fundos. — Ela está parecendo bem viva para mim — disse Derek. — E em plena forma... — ele disse, corando um pouco.

Kylie abriu a boca para falar, mas não soube o que dizer. Pelo menos com relação ao comentário de Derek. — Oi, Cara — Derek a cumprimentou, olhando para Burnett como se para ter certeza de que poderia iniciar a conversa. Burnett assentiu com a cabeça e Derek continuou: — Estamos atrás de algumas informações sobre Cara M. Ela apontou para o nome no crachá. — Eu sou Cara M. M de Muller. Kylie analisou o rosto da garçonete e tentou compará-lo ao do espírito. Não era ela. Ou será que era? Kylie tentou puxar pela memória, mas só se lembrava do cabeço loiro e dos olhos azuis. Os quais essa garçonete também tinha, mas... — Desculpe — Derek disse. — Tínhamos a impressão de que Cara M. não trabalhava mais aqui. — Bem, eu ainda trabalho. Desde que tinha 15 anos, dois anos atrás. Por quê? — Será que outra Cara M. trabalhou aqui? — Kylie tentou não encará-la, mas sentia uma necessidade tão desesperada de descobrir a verdade que não resistiu. — Não. — A garota olhou para Kylie. — Do que se trata? Kylie notou que o crachá não estava bem fixado no uniforme. — O que acontece se você perder o crachá? Cara olhou de relance para os fundos do restaurante. — O gerente tem um chilique. — E o que você faria para evitar que ele tivesse um chilique? Kylie se inclinou para a frente. — O que quer dizer? — Cara perguntou.
— Ela quer saber se você já emprestou o seu crachá para uma das outras garotas — Derek explicou. A garçonete se inclinou mais para perto dele, como se tivesse medo que alguém pudesse ouvir. — O patrão nem percebe. Mas não sei por que vocês querem saber isso. — Ela sorriu para Derek como se... bem, como se ele fosse um cara muito atraente e ela fosse uma loira muito atraente. O que de fato ela era. E ele também. Kylie franziu os lábios, contrariada. Holiday tocou o braço da garota. Sem dúvida para lhe enviar um fluxo de energia calmante e incentivá-la a se abrir. — Alguma garçonete deste restaurante simplesmente... desapareceu? Kylie viu Burnett inclinar a cabeça, como se para ouvir melhor os batimentos cardíacos da garota e detectar uma mentira; Kylie fez o mesmo. — Elas vivem desistindo do emprego... a dona é uma mocreia! — A moça tinha falado a verdade. — Alguém já foi embora sem pedir demissão oficialmente? — Holiday perguntou. Cara fez uma pausa. — Sim. Uma garota fez isso. Cindy alguma coisa. Não me lembro do sobrenome dela. — Cindy alguma vez pediu o seu crachá emprestado? — perguntou Burnett, juntando-se à conversa. — Cindy era loira? — Kylie perguntou de súbito. — Sim — Cara respondeu para Burnett, e depois olhou para Kylie. — E era loira. Por quê? Com o toque casual de Holiday no braço da garota e os sorrisos sedutores de Derek, Cara respondeu a todas as perguntas sobre Cindy. Antes de irem embora, Burnett perguntou se podia falar com o gerente ou a dona do restaurante. Cara ficou nervosa.
— Fiz algo errado? — Não — Burnett assegurou. — Mas pode avisar que precisamos conversar com um deles? — Ele tirou da carteira o distintivo. Kylie não sabia direito o que ele poderia significar para os humanos, mas não pareceu fazer diferença. Cara ficou pálida. — Ah, droga. Aconteceu alguma coisa com a Cindy? Isso mesmo, Kylie pensou. Algo aconteceu. Algo muito ruim. Antes de saírem, Burnett descobriu o nome completo de Cindy, Cindy Shaffer, e uma cópia do seu currículo, onde havia seus contatos para casos de emergência. Quando ele mandou as informações para a UPF por telefone e perguntou pela carta de motorista dela, eles responderam em poucos minutos. Quando ele voltou com a imagem de uma jovem loira e sorridente, os olhos de Kylie se encheram de lágrimas. Era ela. E Cindy Shaffer nunca sorriria daquela maneira outra vez. Enquanto o vampiro dava ordens pelo telefone a alguém da UPF para que entrasse em contato com a família Shaffer, Holiday pediu bolinhos de canela à garçonete. Eles chegaram, quentes e cobertos de açúcar. Derek comeu dois, Holiday beliscou um. Kylie e Burnett pegaram os seus com menos entusiasmo. Embora o estômago de Kylie estivesse roncando, ela nem conseguiu sentir o gosto, pois a imagem de Cindy não saía de sua cabeça. — Você está seguindo uma dieta “líquida” nas refeições? — Holiday perguntou a Kylie em voz baixa, sem querer pronunciar a palavra “sangue” em voz alta. — Não regularmente... mas vou começar. — Ela não esperava ansiosamente por isso. Burnett pagou pelo café da manhã. Quando foram para o carro, Kylie teve novamente o pressentimento de que alguém a observava. Ela se virou e viu um homem desaparecendo entre as lojas. Ela mal teve um vislumbre de um ombro e um braço, mas os reconheceu. Kylie atravessou a rua em disparada. — O que foi? — Burnett disparou atrás dela.
Kylie parou em frente a uma loja. Seu olhar voou para uma placa de madeira onde se lia “Leitura de Mãos”. Ela abriu a porta. — Pensei ter visto alguém. Burnett pegou-a pelo braço, os olhos agora verdes, no modo proteção. — Quem? Kylie ouviu Derek chamando seu nome da calçada do outro lado da rua. — Vou descobrir. — Ela irrompeu pela loja. Burnett entrou com ela. A primeira coisa que Kylie notou foi uma boneca de vodu pendurada no teto, cravada de alfinetes. A segunda foi um odor repugnante. Ela cobriu a boca e o nariz com a mão. Embora estivesse com náuseas, procurou pelo homem que viu entrar no prédio. Ao perceber que o lugar parecia vazio, ela olhou para Burnett. — Alho. — Ele franziu o nariz. — É só respirar normalmente que o cheiro começa a ficar suportável. Não vai nos matar. — Posso ajudar? — uma voz perguntou por detrás do balcão, no canto da loja. Kylie forçou-se a tirar a mão da boca e olhou para a mulher usando um vestido solto, de cores berrantes, que devia ser a tal clarividente. Mas só para confirmar, Kylie checou o seu padrão cerebral. Humana — mas com um padrão sombrio. Ela apostava que era uma charlatã. Kylie inclinou a cabeça para ouvir se havia mais alguém na casa antiga. Nenhum som. Ninguém além deles respirava entre aquelas paredes, e Kylie desejou não ter que respirar. O cheiro estava impregnado em sua garganta. Ela fitou a porta. Para onde tinha ido o homem que vira entrando correndo na loja? Notando que a porta dos fundos estava entreaberta, ela apurou os ouvidos para ouvir se havia alguém do lado de fora. Se ele tinha saído por aquela porta, já devia estar longe.
— Hã... — Kylie forçou a voz a sair pela garganta apertada, mas, antes que conseguisse pronunciar qualquer palavra, ela notou a placa sobre a máquina registradora. Proibido entrar com sapatos, sem camisa e com acompanhante. E não aceitamos, em nenhuma circunstância, vampiros de coração frio. Ela olhou para Burnett e de volta para a placa. Ele franziu o cenho. — Você gostaria de fazer uma consulta? — a mulher perguntou. — Não. — Kylie ignorou sua vontade de vomitar. — Um homem acabou de entrar aqui. Eu acho que o conheço. — Sim. A campainha tocou, mas eu estava nos fundos. Quando cheguei, a pessoa já tinha ido embora. Provavelmente um espírito. Eles vêm aqui o tempo todo. Kylie tentou detectar a presença de algum fantasma. Não sentiu o frio característico dos mortos. E quem podia culpá-los? O fedor de alho provavelmente os afugentava também. Ela olhou para a mulher novamente, encarando-a agora como se ela fosse completamente louca. Uma louca muito burra se pensava que uma placa e uma réstia de alho podiam de fato afugentar vampiros. A mulher notou que Kylie reparara na placa. — Não tire conclusões apressadas. Eu os vejo rondando a loja o tempo todo. Eles têm um cheiro diferente. — Sério? — Burnett perguntou com um ar debochado. — Você acredita em vampiros? — Vocês não são os únicos que não acreditam — ela disse. — Mas eu tenho provas. Na propriedade de minha avó, os índios desenhavam vampiros nas paredes das cavernas. — Material interessante para um livro de contos de fadas. — Burnett olhou para Kylie. — Podemos ir?
Tão logo saíram da loja, Burnett grunhiu: — Quem diabos você pensa que viu? Ela nem pensou em esconder. Ia mesmo contar a ele antes, só não tinha tido tempo. — O que você sabe sobre Hayden Yates? — O novo professor? Ela assentiu. — Eu mesmo fiz uma extensa investigação sobre todos os novos funcionários. Por quê? Você acha que deixei escapar alguma coisa? — Ele não me inspira confiança. — Não inspira confiança? Kylie confirmou com a cabeça. — E esta manhã, antes de o sol nascer, Della estava me acompanhando até o escritório quando o flagramos nos seguindo. — Ela parou de falar, ao perceber que aquilo não era totalmente verdade. — Talvez não estivesse exatamente nos seguindo, mas estava rondando por ali. E Hannah insistiu em dizer que seu assassino, seja ele quem for, estava perto do acampamento. — E foi ele que você acha que Hannah viu? Ela assentiu. Ele franziu a testa. — Mas Blake, o ex de Holiday, está na região também. Hannah pode ter se referido a ele. Burnett queria que Blake fosse o culpado, e Kylie não tinha certeza de que não era, no entanto... — Eu sei, mas eu só... Talvez eu esteja exagerando. — Ou não. — Burnett sacou o celular do bolso e teclou um número. — Della — ele disse ao telefone. — Localize Hayden Yates no acampamento.
— Posso dar um chute no traseiro dele também? — A voz de Della ecoou do outro lado da linha. — Não, não o deixe perceber que você está atrás dele. Só quero saber onde ele está. E quero isso agora! — Já estou a caminho! — ela respondeu. O telefone ficou mudo por um segundo. — Pronto... Estou do lado de fora da cabana dele, olhando pela janela. Ele está lendo jornal, sentado no sofá. Tem certeza de que não quer que eu chute seu traseiro? Kylie contou que achamos que ele estava nos seguindo? — Contou. — Isso é uma permissão para eu chutar o traseiro dele? — perguntou Della, com uma risadinha. — Não — disse Burnett, sem achar graça. — Obrigado. — Ele desligou e voltou os olhos para Kylie. — Eu não acho que ele teria conseguido chegar ao acampamento tão rápido — disse Burnett. — Eu sei — concordou Kylie. — Então talvez não fosse ele. O semblante de Burnett ficou sério. — Mas, para garantir, vou fazer outro relatório detalhado sobre o sujeito. Kylie apreciaria muito. — Aonde é que vocês foram, afinal? — Derek parou ao lado deles. — Pensei ter visto alguém. — Kylie localizou Holiday, atravessando a rua. — O que aconteceu? — perguntou ela. — Kylie achou ter reconhecido alguém. — Burnett fez um gesto para que atravessassem a rua. — Precisamos voltar para o acampamento antes que os pais comecem a chegar. Ah, mas que ótimo! Agora Kylie teria que enfrentar todo o seu drama com os pais.
Holiday consultou o relógio. — É melhor nos apressarmos. Eles atravessaram a rua para chegar ao carro. Todos os cinco. Isso mesmo, cinco. Burnett acionou o controle para abrir as portas. Holiday entrou no banco da frente. Kylie parou ao lado da porta traseira, quando Hannah se inclinou na direção dela e sussurrou: — Eu quero me sentar na janela. Hannah, Derek e Kylie entraram no carro. Tão logo Burnett se acomodou atrás do volante, seus ombros ficaram tensos e ele olhou ao redor. O pânico em seu olhar deu a Kylie a certeza de que ela não era a única a ouvir e, o que era mais provável, ver Hannah. Burnett dirigiu em silêncio, olhando toda hora pelo retrovisor. Kylie estremeceu com o arrepio causado pela presença de Hannah. Você descobriu alguma coisa? Kylie falou mentalmente. Hannah ignorou a pergunta de Kylie. Em vez disso, olhou para Derek. — Ele é uma graça! — Nossa! Está frio neste carro. — Derek pousou o braço sobre os ombros de Kylie. O calor do seu toque era agradável, e sua proximidade, suficiente para que o odor natural do seu corpo encobrisse o cheiro de alho, não era nada mal também. Justamente por essa razão, Kylie se afastou um pouco e lhe lançou um olhar de advertência que dizia, “Não abuse da sua sorte”. Às vezes ela achava que ele se esquecia de que não estavam mais juntos. Mas era compreensível que ele se esquecesse, visto que Lucas nunca estava por perto... — Você com certeza devia ter ficado com ele. — Hannah se inclinou na direção do ombro de Kylie. O toque gelado do espírito fez a garota enrijecer. — E, falando em romance, é melhor que esse palhaço no banco da frente tome cuidado. Se ele magoar a minha irmã... — Não vou... — murmurou Burnett.
— Não vai o quê? — Holiday e Derek perguntaram ao mesmo tempo. — Nada. — Burnett travou o queixo de tal maneira que deve ter rachado alguns dentes. Hannah se inclinou para a frente e olhou para Burnett pelo retrovisor. Uma crosta de gelo se formou sobre o espelho. — Se você partir o coração dela, eu juro, corto fora as suas bolas enquanto estiver dormindo. A mandíbula de Burnett endureceu mais ainda. Holiday olhou, pasma, para o retrovisor e então encarou Burnett com os olhos arregalados. Um segundo depois, ela se virou para trás e lançou um olhar intrigado para Kylie. — É ela? É Hannah que está aqui? Kylie gelou, literalmente devido à presença de Hannah, mas também por não saber o que dizer. Quando Kylie não respondeu, Holiday voltou a encarar Burnett. — Você pode vê-la? Pode ver fantasmas? Como consegue? — Temos um fantasma no carro? — O timbre de voz de Derek estava ligeiramente mais agudo. — “Tinham” um fantasma no carro — disse Hannah. Seus olhos úmidos encararam Holiday, e então ela desapareceu, deixando no ar, como fumaça, sua tristeza profunda. No momento em que Kylie vislumbrou a mãe e John, o novo namorado estranho, entrando no refeitório abraçados como dois adolescentes apaixonados, descobriu que estava com inveja da capacidade de Hannah de se desvanecer no ar. Por que a mãe achava que trazer John era uma boa ideia? E, se ele tinha mesmo que vir, ela não podia manter as mãos longe do traseiro dele enquanto a visitava? Sim, porque a mãe de Kylie estava com a mão direita enfiada no bolso de trás do jeans do namorado. E, francamente, o homem nem tinha um belo traseiro!
É claro que a mãe não estava levando a sério a implicância de Kylie e achava que essas visitas eram necessárias para que a filha o conhecesse — antes... antes que fizessem algo estúpido como se casar. O pensamento deixava Kylie quase morta de medo. Respirando fundo, ela disse a si mesma que estava exagerando. Como Nana dizia, estava fazendo tempestade em copo d’água. A mãe não tinha respondido à pergunta dela sobre terem feito sexo. E o mais provável era que não fosse respondê-la hoje também. A mãe de Kylie se virou, localizou Kylie do outro lado do refeitório e sorriu. Kylie acenou, esperando que a mãe fizesse o mesmo, tirando a mão do traseiro de John, mas não! Respirando fundo, Kylie fingiu um sorriso. A mãe sorriu para John e o homem se abaixou e beijou-a. Um beijo... de língua! E bem na frente de todos os colegas de Kylie. — Ah, por favor, alguém me mate... — Kylie murmurou. — Acho que formam um belo casal. — Holiday se inclinou na direção de Kylie como se percebesse seu tumulto emocional. — E eu acho que vou vomitar. — Kylie jurou para si mesma que ia ter uma conversa séria com a mãe e descobrir exatamente o que estava acontecendo. Quando viu que o beijo não ia acabar tão cedo, Kylie concluiu que, de fato, ela queria sumir dali. Simplesmente virar fumaça. — Respire fundo e se acalme — disse Holiday. — Você está em pânico. Kylie olhou para Holiday. — Minha mãe está dando um beijo de língua na frente de todo mundo — ela murmurou. — Claro que eu estou em pânico! — Ah, meu Deus! — Holiday deixou escapar. — Meu Deus por quê? — perguntou Kylie, alarmada com o pânico na voz de Holiday. — Oh, Kylie... — murmurou Holiday. E então ela olhou para o outro lado do recinto e acenou para Burnett, com um ar preocupado.
— O que foi? — perguntou Kylie, olhando para a porta, certa de que alguém indesejado, possivelmente Mario, tinha entrado no refeitório. Não era Mario. — Merda! — Holiday sussurrou. — Kylie, aonde você foi? — Como assim? Eu estou aqui. Bem ao seu lado. Kylie olhou para os próprios pés, mas tudo o que viu foi o chão. Nenhum tênis, nenhuma perna. Nenhuma Kylie. — Ah, droga! — ela murmurou e, embora não pensasse nisso havia algum tempo, ela se lembrava do pai dizendo que eles iriam descobrir as coisas juntos. Seria isso? Morrer seria assim?

Espere aí, Kylie pensou. Se ela estivesse morta, não deveria estar estatelada no chão, sem vida? — Ah, não! — Kylie murmurou quando a mãe, com um olhar aturdido no rosto, caminhou até Holiday. — Onde está Kylie? — perguntou. — Ela correu para... o banheiro, eu acho, mas... não tenho certeza. — A voz de Holiday soou estridente. Burnett parou ao lado da mãe de Kylie, seu olhar sério tentando interpretar o que estava acontecendo com Holiday. — Algo errado? — A fachada de calma do vampiro era quase convincente, mas Kylie viu a tensão enrijecendo a sua mandíbula. — Hã... É Kylie... Ela... desapareceu. Achei que talvez você pudesse encontrá-la. — Desapareceu? — Todo tipo de pergunta surgiu em seus olhos. Holiday assentiu e não desfez o contato visual, como se dissesse mentalmente a ele que a coisa era séria. E, santo Deus!, era séria mesmo. Ela estava invisível! — Que maluquice! — Minha mãe parecia confusa. — Ela estava aqui e de repente... virou fumaça. Virou fumaça? Kylie subitamente se lembrou de que tinha desejado desaparecer. Desaparecer como um fantasma. Droga! Droga! Droga! Se havia uma lição no antigo adágio advertindo para que tivéssemos cuidado com o que desejamos, com certeza era aquela. As perguntas davam voltas na sua cabeça. Será que ela ainda era vampira? Será que tinha se transformado em bruxa e acidentalmente agitado o dedo mindinho ao fazer aquela declaração? Ou aquilo tinha tudo a ver com o fato de ela ser um camaleão? Foi então que se lembrou de que, segundo Perry, sua tia e seu avô tinham sumido, quando iam embora de carro, na primeira vez em que visitaram Shadow Falls, e também no cemitério. Será que sumir era o mesmo que virar fumaça? As palavras do avô ecoaram na sua mente. Venha conosco. Ajudaremos você a entender tudo. Você precisa descobrir quem é e o que é. Mais do que nunca, e não pela primeira vez, Kylie se perguntou se ele estaria certo. — Você perdeu Kylie? — John perguntou, com rispidez. — Que tipo de lugar perde crianças? — Nós não a perdemos — disse Holiday, mas Kylie viu o pânico brilhando nos olhos dela. — Tenho certeza de que ela vai aparecer a qualquer minuto. A mãe pareceu relaxar, mas Kylie não sentiu o típico tom caloroso e reconfortante de Holiday. E, quando ouviu mais atentamente, percebeu, pelas batidas do coração da amiga, que ela estava mentindo. Merda! Merda! Merda! Kylie tentou pensar no que fazer. Ela tinha que sair daquela enrascada... bem, aparentemente ela mesma tinha se colocado naquela situação. — Eu posso fazer isso — ela disse, precisando de um pequeno incentivo, mesmo que fosse tão falso quanto um Papai Noel de shopping. Ela tentou racionalizar. Se tinha ficado invisível desejando desaparecer, talvez pudesse reverter a situação desejando o contrário. Bastava conseguir pedir mentalmente a tudo o que fosse mais sagrado para que voltasse a ser como antes. Ela fechou os olhos e percebeu que, se funcionasse, ela apareceria como num passe de mágica. Aquilo assustaria todo mundo ainda mais. — Vá para outro lugar — ela murmurou para si mesma. — Algum lugar reservado. — Kylie disparou na direção dos toaletes.
Quando irrompeu dentro do banheiro, ouviu vozes, mas ignorou-as, correndo para dentro de um dos reservados vazios. Inspirando e depois exalando o ar dos pulmões, ela fechou os olhos com toda a força. — Eu gostaria... eu gostaria de ficar visível. — Ela abriu os olhos e fitou os pés. Ou o espaço onde seus pés deveriam estar... mas não estavam. Um nó se formou na sua garganta. O medo fez seu coração disparar. E se ela ficasse assim para sempre? E se... Não! Ela já havia estado em situações piores. Já tinha sido sequestrada e acorrentada a uma cadeira e sobrevivido. Tinha sido atirada de um penhasco e contornado a situação. De repente, ela se perguntou novamente se a invisibilidade estaria relacionada ao seu lado bruxa. Ela agitou o dedinho. — Me torne visível. Me torne visível. Nada aconteceu. — Mas que droga é essa que me aconteceu? — O nó na garganta dobrou de tamanho. Ela começou a chorar. — Alguém pode me ajudar, por favor? — Ela se encostou à porta do banheiro. — Daniel! — Ela sussurrou o nome do pai mesmo sabendo que não havia quase nenhuma possibilidade de ele aparecer. — Será que você pode, por favor, por favor, me ajudar? — Pense em você visível no lugar onde está — disse uma voz. Ela prendeu a respiração ao perceber que não se tratava de uma voz qualquer, mas a voz de Daniel. Ela se afastou da porta e viu a silhueta quase indistinta do pai, espremida entre o vaso sanitário e a porta. — Pense. Torne isso realidade na sua cabeça. — Como? — Pense nisso. Dentro do seu coração. Você tem o poder... — Sua voz esmoreceu. — Não vá! — implorou Kylie, mas ele se foi. Secando as lágrimas, ela fez o que ele disse. Concentrou-se em ficar visível. Em estar no lugar em que estava, fisicamente.
Fechando os olhos novamente, sem nenhuma fé, mas desesperada o suficiente para tentar, ela se concentrou. Então abriu um olho e deu uma espiada. Seus pés nunca pareceram tão bonitos em toda a sua vida. — Obrigada! Obrigada! — Pelo quê? — alguém perguntou no reservado ao lado dela, mas Kylie mal ouviu, pois estava empolgada demais por não estar mais invisível. Ela saiu do reservado e estancou quando viu Steve e Perry parados na frente dos mictórios, as calças arriadas. O som da urina batendo no mictório de cerâmica atingiu os seus ouvidos. Não era um som muito agradável. Seu rosto adquiriu um vibrante tom de vermelho. A porta do reservado atrás dela abriu-se com um assobio. — O que você está fazendo no banheiro masculino? — alguém per- guntou. Steve, com as calças ainda arriadas, virou-se para trás. Completamente. Kylie cobriu os olhos com as mãos. — Eu não vi nada. Eu juro. — Tudo bem, talvez ela tivesse visto, e por isso tivesse ficado vermelha. — Que diabos? — Steve grunhiu. Junto com a risada de Perry, ela ouviu o som de zíperes sendo puxados. — Desculpe. — Com as mãos sobre os olhos, ela se moveu na direção da porta, mas em vez disso se chocou contra uma parede. Perry riu mais ainda. — Os passarinhos já estão na gaiola. Pode abrir os olhos agora. Ela abriu, mas recusou-se a olhar para qualquer um deles. Para os passarinhos. Saiu do banheiro como uma flecha, desejando que tivesse um minuto para se recompor antes de... Tarde demais.
Holiday a localizou. Assim como a mãe e John. Todos os três vieram correndo até onde ela estava. Holiday a olhava com os olhos arregalados e cheios de perguntas. Perguntas que Kylie não sabia responder. — Por acaso você acabou de sair do banheiro masculino? — A mãe perguntou parecendo levemente irritada, mas fitando-a com preocupação. John se adiantou e envolveu a cintura da mãe de Kylie. Alguma coisa no modo como a tocou fez com que a garota imaginasse os dois juntos, sem roupas. Ah, Deus... eles tinham feito sexo. Ela sabia. Então ela viu a cena. Viu dentro da sua cabeça. E não era nada agradável! — Você está bem? — a mãe perguntou. — Está vermelha como um tomate. — Sim — respondeu Kylie, com a voz esganiçada. Afastou a imagem dos dois nus antes que desejasse desaparecer novamente. — Você estava bem ali — disse a mãe num tom ligeiramente reprovador. — Eu virei a cabeça e você desapareceu. Kylie abriu a boca para dizer alguma coisa, para se desculpar ou talvez para falar alguma coisa amena como “Que lindo dia, não?”, mas as palavras não saíram dos seus lábios. — Você não virou a cabeça. Estava dando um beijo de desentupidor de pia nesse idiota. — Kylie respirou fundo, fechou a boca, mas ela voltou a se abrir como que por vontade própria. — Não está dormindo com ele, está? Pelo menos já leu os panfletos sobre sexo que me deu durante todos esses anos? A mãe ofegou e seu rosto ficou vermelho brilhante. Então era daí que vinha a capacidade de Kylie para enrubescer. A mãe abriu a boca, obviamente para repreender Kylie, mas nada emergiu de seus lábios. Nem uma palavra. John limpou a garganta num tom de censura. Mas quem, afinal, tinha lhe dado o direito de censurá-la? — Ora, Kylie, não foi nada bonito...
— Você quer dizer o beijo? — Kylie perguntou. — Porque, francamente, eu não disse que foi bonito. Na verdade, foi extremamente constrangedor. Foi nesse momento que Holiday limpou a garganta. Kylie aceitava a intervenção de Holiday, mas não daquele cretino, que ficava se esfregando na sua mãe. — Eu acho melhor irmos lá para dentro — disse Holiday. — Acho que a garota precisa de uma boa reprimenda — disse John. A coluna de Kylie se empertigou. E dane-se se ela sentisse os caninos ficando um pouquinho mais longos. Suas emoções corriam tão rapidamente nas veias que ela não sabia nem definir como estava se sentindo. Exceto pela fome. Por sangue. Como ele tinha a ousadia de achar que podia repreendê-la? — Espero que você seja rico, porque essa é a única razão que me ocorre para a minha mãe gostar de você. A mãe arquejou e Kylie também. Por que ela estava dizendo aquelas coisas? Ah, merda, ela precisava ficar de boca fechada. O que havia de errado com ela? Será que ficar invisível afetara o seu cérebro? Ou ser um vampiro fazia com que ela fosse tão petulante quanto Della? — Você está sendo muito rude, mocinha! — John falou e olhou para a mãe de Kylie. — Ela não está sendo rude — uma voz profunda soou atrás de Kylie. A voz lhe pareceu totalmente familiar, mas Kylie não conseguia pensar direito a ponto de reconhecer quem era, então ela se virou para dar um rosto àquela voz. Ah, merda! Será que a situação poderia ficar ainda pior? — Acontece que eu presenciei tudo. E, francamente, concordo com a minha filha. Foi bem impróprio. — O padrasto lançou para a mãe de Kylie um olhar de profundo desagrado.
O rosto da mãe ficou ainda mais vermelho, mas Kylie reconheceu aquela vermelhidão em seu rosto e soube que não era embaraço. Ela estava furiosa! — Como ousa me dizer o que é impróprio? — a mãe esbravejou. A vergonha se estampou na expressão do padrasto. Ele olhou para Kylie. — Eu não sabia que Kylie estava lá. Eu não teria feito nada se soubesse. Eu já me desculpei centenas de vezes. Mas dois erros... — Vamos todos dar uma volta — disse Holiday novamente. Mas ninguém saiu do lugar. Kylie levou um segundo para perceber o que o padrasto queria dizer. Ela abriu a boca para dizer algo, mas o quê? “Não se preocupe, pai? Mamãe não sabe que eu vi a sua vadiazinha se esfregando em você e praticamente se atirando nos seus braços no centro de Fallen?” Não, não parecia a melhor coisa para se dizer. Então ela solenemente fechou a boca e começou a rezar para que acontecesse um milagre, pois seria preciso um para acabar com aquela confusão. — Você não teria feito o quê? — a mãe perguntou, e quando o padrasto não respondeu, a fúria dela se voltou para Kylie. — O que você viu? — ela perguntou em seu tom “ou fala ou morre”. E morrer parecia a melhor opção. A culpa flutuou pelo peito de Kylie. Mas culpa pelo quê?, ela perguntou para a emoção indesejada. Não contar nada à mãe tinha sido o mais correto, não tinha? — Por que não vamos até o escritório? — Holiday tentou novamente, colocando uma mão no ombro da mãe de Kylie. A expressão desta se suavizou. Graças a Deus Holiday tinha um toque calmante. O pânico que se acumulava dentro de Kylie diminuiu. Que Holiday se encarregasse de resolver aquela situação.
Mas então Kylie viu o jeito como John olhava para o seu padrasto. E quando ele abriu a boca, Kylie questionou se Holiday seria capaz de operar esse milagre. Não ajudou nada quando Lucas parou subitamente ao lado de Kylie, os olhos brilhando num pálido e protetor tom alaranjado. Não que ela não adorasse saber que ele se preocupava em protegê-la, mas a última coisa que queria era ter que explicar a cor dos olhos do namorado para o padrasto, para a mãe e para o homem que estava fazendo sexo com a sua mãe. E pensar nisso fez com que os olhos de Kylie ardessem. Merda! Será que seus próprios olhos estavam alaranjados agora? — Você não tem nenhum direito de julgá-la depois do que você fez! — John deu um passo defensivo para a frente na direção do padrasto de Kylie e os próprios instintos de proteção da garota despertaram. — Não me admira que sua filha seja tão desrespeitosa! — John atacou. Desrespeitosa?! Kylie sentiu os caninos crescerem um pouco mais e ficou tão furiosa que não percebeu Derek se unindo ao grupo; Lucas, no entanto, não deixou de reparar, pois soltou um grunhido. Holiday se aproximou e, mantendo a mão em contato com a mãe de Kylie, descansou a outra palma no ombro de John. Por um segundo, a energia de tensão, que parecia sugar todo o oxigênio do lugar, diminuiu. Kylie entoou uma prece silenciosa de agradecimento. Então notou a expressão no rosto do padrasto. E imediatamente se arrependeu da sua gratidão. — Quem diabos você pensa que é? Não se atreva a insultar a minha filha — vociferou o padrasto. Holiday olhou da mãe de Kylie para John e depois para o padrasto. A pobre Holiday só tinha duas mãos. Antes que alguém pudesse detê-lo, o punho do padrasto acertou o nariz de John. O sangue jorrou. Todos os vampiros no refeitório, incluindo Kylie, inalaram o aroma de sangue. Lucas tentou puxá-la para trás, mas ela não saiu do lugar. A mãe de Kylie gritou. John começou a avançar para cima do padrasto, mas errou o alvo e, em vez disso, acertou Holiday.
Burnett atravessou a sala voando e arremessou John contra o chão. E todo mundo... todo mundo no refeitório, todos os campistas, todos os pais dos campistas, todos os professores, especialmente Hayden Yates, pararam para olhar o profundo caos em que se transformara a vida de Kylie. Voltando a se concentrar no tumulto diante dela, Kylie se sentiu como a protagonista de um reality show chamado “Pais que se Comportam Mal”. Ela observava, mortificada, enquanto a cena prosseguia. John tinha conseguido ficar de pé e se desculpava com Holiday. A mãe parecia perturbadíssima. O pai tentava falar com a mãe perturbadíssima. Holiday tentava tocar todo mundo. Burnett continuava a encarar John com fúria, provando quão difícil era para um vampiro aceitar desculpas. Não que ela o culpasse. Mate-o! Mate-o!, Kylie mentalmente incentivava Burnett. Lucas não tinha parado de implicar com Derek e este não tinha parado de ignorar Lucas. Todo mundo reagia de uma maneira ou de outra. Todo mundo exceto Kylie. Ela não se movia. Nem respirava. Estava congelada no lugar, concentrada... firmemente concentrada em não desejar desaparecer dali — porque, no fundo, era exatamente o que ela queria fazer.

Burnett tirou do refeitório todo mundo que estava envolvido na briga. Kylie se movia como um robô, um pé na frente do outro, sem querer deixar que suas emoções viessem à superfície, por medo do que poderia acontecer. Ou seja, ou ela começava novamente a proferir seus comentários malcriados — canalizando a atitude rebelde de Della — ou ficava invisível. As duas coisas poderiam causar danos irreversíveis. Justamente quando ela saía pela porta do refeitório, seguida por Lucas e Derek, ouviu o pai de alguém dizer: — É claro, são sempre os humanos que causam confusão. Inspirando o ar da manhã ensolarada, tentando não se sentir insultada pela mãe e o padrasto, e tentando controlar a mortificação que tudo lhe causara, ela observou Holiday levar a mãe e John até o escritório. Burnett esperou um segundo, então com uma voz nem um pouco simpática, mandou que o padrasto de Kylie o seguisse até lá dentro, obviamente para outra sala. Kylie sentiu que todos ali iriam ouvir um sermão. Não que não merecessem, mas... ela se sentiu estranha assistindo aos pais sendo levados para a “diretoria”, em vez do contrário. Ao se lembrar de algumas palavras que tinha dito à mãe e a John, Kylie suspeitou que não demoraria até ela mesma também ouvir um sermão. Depois que a porta do escritório se fechou atrás de Burnett e do padrasto, Kylie se virou com a intenção de se jogar nos braços de Lucas. Ela precisava de alguém que a confortasse. Olhou na direção do refeitório e o viu entrando, sem dúvida voltando para a sua alcateia. Deus ajudasse que a alcateia não estivesse pensando que a ajuda de Lucas para acabar com a briga fosse mais do que uma boa ação ou significasse que ele se preocupava com ela.
Certo ou errado, seu coração se apertou. Derek, no entanto, apareceu de repente ao lado dela. Os olhos de Kylie ardiam, havia um nó em sua garganta e, antes que ela percebesse, estava nos braços dele. Braços quentes e fortes a envolveram e confortaram. Era errado. Tão errado! Ela precisava parar. Parar de contar com Derek. — Não precisa se sentir culpada — ele sussurrou no ouvido dela, lendo perfeitamente as suas emoções. — Sou só um amigo ajudando uma amiga. Não, ela pensou. Ele era um amigo que um dia fora muito mais do que isso, um amigo que lhe confessara seu amor por ela e queria ser muito mais outra vez. Ele era alguém de quem, em algumas ocasiões, ela ainda queria muito mais também. Alguém que ela podia procurar quando precisava de ajuda. E, no entanto, não era pelos braços dele que ela ansiava, não era ele que ela precisava que a abraçasse. Um pouco depois, Holiday saiu na varanda do escritório e fez um gesto para que Kylie se aproximasse. Ótimo, agora era sua vez de ser punida. Sabendo que merecia isso, ela se empertigou e enfrentou o seu destino. Mas o olhar no rosto de Holiday não era de reprovação. Ela imediatamente abraçou Kylie. — Santo Deus, menina! Por favor, me diga que você está bem. — Eu estou bem — Kylie mentiu. Holiday respirou fundo. — Você quase me matou de susto. O que...? O que aconteceu? Quando Kylie encontrou os olhos verdes da líder do acampamento, seu olhar preocupado, soltou o ar dos pulmões com um tremor. — Eu também quase morri de medo de mim mesma. Eu... simplesmente desapareci. Podia ver e ouvir você, mas você não sabia que eu estava ali. Eu... virei fumaça. — Assim como meu avô e minha tia.
Holiday tocou o braço de Kylie para lhe oferecer um pouco de serenidade. — Tudo bem, precisamos conversar sobre isso, descobrir o que aconteceu, mas primeiro vamos cuidar dos seus pais e mandá-los para casa. O peito de Kylie se apertou com a constatação de que, por mais que Holiday tentasse, ela não conseguiria ajudar Kylie a descobrir o que tinha acontecido. Ela precisava do avô e da tia. Um camaleão sozinho não sobrevive. Venha conosco. Você precisa aprender quem é e o que é. Ao reparar que Holiday a analisava, Kylie desabafou: — Eu disse coisas terríveis. Não gosto nem um pouco de John. — Bem, se isso a faz se sentir melhor, neste momento, nem eu. — Holiday pressionou as palmas das mãos sobre os ombros de Kylie. — Só vá falar com eles. Acho que todos concordam que eles é que estavam errados. Seu pai está no meu escritório e a sua mãe e John estão na sala de reunião. Pode fazer isso? Kylie assentiu. Quando ela deu um passo em direção ao escritório, Holiday a puxou de volta e lhe deu mais um abraço. — Vai dar tudo certo, ok? Não há nada que não possamos descobrir juntas. Se pelo menos isso fosse verdade... Kylie entrou no escritório de Holiday. O pai, sentado no sofá, levantou-se e a encarou. Em seu rosto estavam estampadas as suas emoções. Remorso. Tristeza. Muita tristeza. — Eu lamento muito, querida. Eu me comportei como um idiota. Não vai acontecer outra vez, eu prometo. Kylie assentiu mais uma vez. — Tudo ficou fora de controle. Ele concordou. — Mas não foi em vão. Isso me forçou a encarar a verdade. Eu precisava disso.
A voz dele tremeu ou foi imaginação de Kylie? — Que verdade? — Eu vou conceder o divórcio à sua mãe. Ela o quer; agora conseguiu. Os olhos do padrasto expressavam seu sentimento de derrota. Derrota como ela nunca vira antes. Uma palavra lhe ocorreu. Destruído. Ele era um homem destruído. Vê-lo assim doía muito! — Pai, acho que a mamãe só... — Não. — Ele levantou as mãos. — Eu não quis dizer... não estou culpando a sua mãe... Eu sei que sou o responsável por estragar tudo. Não entendo como pude fazer isso, amando-a tanto quanto a amei da primeira vez em que a vi no colegial. — Seus olhos marejaram quando ele pressionou a mão contra a bochecha de Kylie. — Nunca se apaixone, princesa. Machuca demais. Suas palavras ecoaram na cabeça de Kylie quando ela se lembrou da dor que sentira quando procurou por Lucas e ele não estava mais lá. Ela se perguntou se não seria tarde demais para o padrasto lhe dar esse conselho. Mas ela deixou suas emoções de lado para poder apoiá-lo. Ele precisava dela. Ele respirou fundo. — Saber que a perdi me deixa arrasado, mas sei que mereço, e vou aprender a conviver com isso. Só não vou conseguir viver se... perder você. Desde o dia em que o médico a colocou nos meus braços, na maternidade, eu amei você. Os olhos de Kylie se encheram de lágrimas. — Você não vai me perder. — Ótimo, porque eu sou o seu pai e não quero que você jamais se esqueça disso. Mas ele não era o pai dela. As palavras “não vou me esquecer” estavam na ponta da sua língua, mas ela não conseguiu dizê-las. Desviou os olhos. Mas não queria que isso significasse alguma coisa. Embora significasse. Kylie o ouviu respirar fundo. Ela o olhou de relance e viu nos olhos dele. Ele sabia. E ele sabia que ela sabia.
— Sua mãe contou a você — ele disse. A mágoa toldou os olhos dele e o mesmo sentimento oprimiu o peito de Kylie. — Não. — Meu verdadeiro pai veio me ver depois da morte. Ela tinha que inventar uma mentira e rápido. — Eu achei sua certidão de casamento e descobri que ela já estava grávida quando se casou, e todo o resto se encaixou. — Eu não poderia amá-la mais se fosse minha. Nunca quis que você pensasse que eu não a amava por causa disso. — Eu sei — disse ela. — E o fato de você ter me amado mesmo eu não sendo sua filha significou muito. — Ela falou com a intenção de tranquilizá-lo, porque o sofrimento do padrasto era palpável, mas então percebeu quanto isso era verdadeiro. Ele a amava mesmo sem ter obrigação nenhuma. Ele tinha desempenhado plenamente seu papel de pai: vendido rifas para a turma de escoteiros de Kylie, ajudado a construir carrinhos de rolimã para que Kylie participasse das corridas na escola e planejado viagens com ela. Houve também os abraços, quando a mãe não tinha muito jeito para isso. Ela se inclinou para se aproximar dele, precisando de um abraço agora, e achou que ele apreciaria um também. Ela saboreou o abraço. Ele era muito bom nisso. Ouviu a respiração dele tremer e chorou em seu ombro como tinha feito tantas vezes quando criança. Foi nesse momento que ela percebeu que já o perdoara. Ele não era um homem ruim; só tinha cometido erros muito ruins. Ele era simplesmente humano, no final das contas. Depois que o pai foi embora, Kylie se recompôs e entrou na sala de reunião para enfrentar a mãe e John. Gostando ou não, ela tinha que pedir desculpas, portanto, quanto mais rápido acabasse com aquilo, melhor. A mãe de Kylie levantou-se da cadeira num pulo. John a seguiu. — Sinto muito — disse Kylie. — Eu...
— Nós também sentimos muito. Não é, John? — a mãe arriscou. — Sim, falei o que não devia. — A desculpa saiu dos lábios de John, mas não transpareceu em seus olhos. — Foi um erro que não se repetirá. — Vocês são apenas humanos — relevou Kylie, mas sem muita confiança. Então estudou o rosto deles para ver se ele reagia ao comentário. Não reagiu. Ela ainda insistiu em verificar o padrão dele outra vez. O que mais a assustava era pensar que, se ele não fosse humano, deveria ser um camaleão. Ela se lembrou de Ruivo, que tinha dado a própria vida para salvá-la, dizendo que ele era da mesma espécie que ela, só não tinha nascido à meia-noite. Então... Mario devia ser um camaleão também. E se John era um camaleão, poderia ser comparsa de Mario? Ela estava exagerando, disse a si mesma. Seus sentimentos provavelmente eram causados pelo fato de John ser a razão de seu padrasto não ter mais chance de voltar com a mãe. No entanto, ela decidiu que pediria a Burnett para investigar os antecedentes do “seu querido” John. A mãe de Kylie se aproximou. — John, você pode me dar um minutinho a sós com Kylie? E lá vinha a bronca! Kylie mordeu a língua e disse a si mesma que deveria estar feliz pela mãe ter decidido poupá-la do constrangimento de ser repreendida na frente do seu namoradinho. No entanto, o namoradinho parecia bem insatisfeito quando se afastou em direção à porta. Kylie mordeu a língua ainda mais forte. Cruzes! Esse homem trazia à tona o que havia de pior dentro dela. No momento em que John fechou a porta, Kylie se desculpou: — Eu sinto muito. Eu não deveria ter falado tudo aquilo. — E ela de fato lamentava, não por causa de John, mas porque provavelmente tinha magoado a mãe. Essa não era a sua intenção. — Não, Holiday está certa. Aparecer aqui com ele não foi uma boa ideia. Eu só... — Ela corou. Ele me faz feliz, Kylie. Eu nem consigo explicar, mas é quase o que eu sentia quando estava com o seu verdadeiro pai. Kylie se lembrou do que o avô havia dito, que os seres humanos dotados de algum dom se sentiam atraídos pelos sobrenaturais. Suas suspeitas com relação a John aumentaram. — Eu queria que você o conhecesse melhor, porque... porque ele é importante para mim. E... Santo Deus, era muito difícil para ela ouvir aquilo. Antes de saber o que planejava dizer, ela começou a falar. — Papai lamenta muito tudo isso, também, mãe. Se você trouxe John aqui para provocar ciúme nele, funcionou. Eu sei que papai a magoou, mas, se você ainda o ama... saiba que ele ama você. A mãe fechou os olhos como se buscasse as palavras certas. Quando ela fitou Kylie, uma grande emoção toldava seus olhos. — Eu de fato queria que seu pai nos visse, mas não posso... Seu pai e eu não vamos voltar a ficar juntos. — Ela pegou a mão de Kylie. — Me desculpe, querida, eu não posso... Kylie apertou a mão da mãe. — Eu entendo. A mãe suspirou. — Entende mesmo? Kylie acenou com a cabeça, concordando. Aquilo ainda doía muito, mas ela entendia. A mãe respirou fundo como se estivesse prestes a dizer algo muito difícil. — Por favor, procure ver o lado bom de John. Não foi por causa dele que seu pai e eu nos separamos. — Eu sei. — Isso foi tudo o que Kylie conseguiu dizer. Ela não tinha certeza se conseguiria ver algo de bom em John. A mãe mordeu o lábio e fez uma careta. — Agora, sobre a pergunta que você me fez... Se John e eu... se nós...
— ... estão fazendo sexo? — Kylie terminou a frase por ela, pois só Deus sabia quanto tempo a mãe ia ficar ali, tentando em vão dizer a palavra. A mãe enrubesceu. — Eu sou adulta e capaz de tomar esse tipo de decisão. Você é jovem e... — Os olhos dela se arregalaram. — Você não... você já...? — Não, mãe. Ainda não — disse Kylie. — Mas isso vai acontecer algum dia e eu não quero que você tenha um aneurisma quando descobrir. A mãe olhou para ela horrorizada. — Não vou ter. Contanto que você já tenha 30 anos. Kylie revirou os olhos. — Mãe! — Tudo bem, 29. — A mãe fez uma pausa. — Você sabe, é difícil ver você crescer. — Eu sei; também é difícil ver você crescer. A mãe franziu a testa com uma expressão aturdida. — O quê? — Eu quis dizer que dói saber que vocês estão transando, mas eu achei que você iria preferir um eufemismo. A mãe deu uma risadinha ao mesmo tempo que a sala foi varrida por uma onda de frio, um frio muito familiar. Daniel? Um olhar rápido pela sala revelou a Kylie que ele não tinha sido capaz de se manifestar. Mas ela sabia que ele tinha tentado. A mãe sorriu. Então ela estendeu os braços e abraçou Kylie. — Eu juro, às vezes, quando estou com você, posso quase sentir o seu pai por perto. — Eu também — concordou Kylie, perguntando-se até que ponto a mãe conseguia realmente senti-lo. A atmosfera gelada da sala aumentou, mas estranhamente ela veio acompanhada de um leve sentimento de raiva e frustração. Será que o pai tinha ouvido a conversa e estava expressando a sua opinião sobre o fato de a mãe estar fazendo sexo com John?
Eu sei, pai, Kylie falou mentalmente. Eu também não gosto dele. * * * Antes mesmo que a mãe e John tivessem deixado o estacionamento, Holiday e Burnett pegaram Kylie, cada um por um braço. — Vamos conversar — disse Holiday. Kylie olhou para trás, na direção do refeitório. — Não podemos conversar lá dentro? — Primeiro alguns esclarecimentos — explicou Holiday enquanto Burnett conduzia Kylie até o escritório. — Como, pelo amor de Deus, você desapareceu daquele jeito? — Não havia ninguém melhor do que Burnett para ir direto ao ponto. — Eu não sei. — Kylie entrou na cabana. — Eu queria desaparecer como um fantasma quando vi minha mãe e John se beijando, e então... desapareci. — Você desejou ficar invisível? — Holiday perguntou. — Acho que sim — disse Kylie. — Então como conseguiu voltar a ficar visível? — Burnett fechou a porta. — Eu desejei o contrário. — Sabendo o quanto aquilo parecia esquisito, ela olhou de lado para Holiday e se jogou no sofá. — Foi parecido com aquela vez em que você me ensinou a me fechar para os fantasmas. — Visualização. — Holiday arqueou as sobrancelhas como se estivesse impressionada. Não que Kylie também não estivesse. — Foi assustador demais! Eu me lembrei do que o meu pai disse sobre descobrirmos as coisas juntos e pensei que estava morta. — Ela fez uma pausa. — Como vou impedir que isso aconteça de novo?
Holiday olhou para Burnett como se esperasse que ele tivesse uma resposta. — O quê? — Ele ergueu os braços como que para se defender. — Eu não sei nada sobre isso. Só agora estou aprendendo a lidar com fantasmas. Holiday revirou os olhos. — Você leu os relatórios da UPF. Eles não esclareciam nada sobre isso, nem o levaram a concluir alguma coisa sobre os dons dos camaleões? — Não. A única coisa que encontrei foram alguns estudos de caso que, para eles, eram de camaleões. — Ele franziu o cenho. — Deve haver mais alguma coisa em outros relatórios, mas eles convenientemente desapareceram. Nesse momento, Kylie não pôde deixar de se lembrar do alerta do avô contra a UPF. — Precisamos ler esses outros arquivos — disse Holiday. Seus olhos continuaram fixos em Burnett. — Como podemos fazer isso? Kylie fechou os olhos. Ela não sabia o que eles iam fazer, mas sabia o que ela faria. Primeiro, iria encontrar um jeito de voltar a entrar em contato com o avô e então... Uma onda de dor a envolveu. Será que o avô estava certo? Ela tinha que deixar Shadow Falls e ir embora com ele para conseguir as informações de que precisava? Depois de Holiday e Burnett passarem alguns minutos tentando chegar a uma solução, eles finalmente concluíram que Kylie deveria ter muito cuidado com o que desejava. Certo! Como se ela mesma já não tivesse chegado a essa conclusão! O celular de Burnett tocou e ele atendeu. — Alô...? Quanto tempo faz que ela desapareceu? — Holiday e Kylie tentaram fingir que não estavam ouvindo o que diziam do outro lado da linha, mas como podiam não querer ouvir se a ligação era obviamente sobre Cindy, a garçonete do restaurante, a jovem sorridente na foto da sua carteira de motorista e que agora estava apodrecendo numa cova junto com a irmã de Holiday. — Tudo bem — disse Burnett. — Traga-me os arquivos. Você conseguiu descobrir alguma coisa sobre aquele outro assunto? — Os olhos de Burnett se desviaram para Kylie, o que indicava que o “outro assunto” a envolvia também. Burnett ouviu e de repente algo ocorreu a Kylie. Ela não conseguia ouvir a voz do outro lado da linha... O que estava acontecendo com ela...? — Ei! — Kylie gritou para Holiday. — Eu ainda sou uma vampira? Holiday franziu as sobrancelhas. Uma expressão de choque surgiu em seus olhos. — Não. — O que eu sou agora? — Kylie perguntou. — Bem-vinda ao meu mundo! — Sou fae? Ah, Deus... Mais momentos de “Kylie é uma aberração”, vindos de outros campistas, estavam a caminho. Como se o caos familiar não fosse suficiente para alimentar o falatório sobre ela. As palavras da tia ecoaram em sua mente. Os poucos que não se esconderam foram vistos como párias, aberrações que não pertenciam a espécie alguma. Holiday assentiu e deu um sorriso cheio de compaixão, que Kylie não só viu como também sentiu. Burnett deve ter ouvido a conversa, porque tão logo tirou o telefone do ouvido, olhou para a testa de Kylie e soltou um palavrão baixinho. — O que você descobriu? — Holiday perguntou, como se sentisse que Kylie não queria falar sobre o seu padrão mental sempre em mutação. — Cindy Shaffer desapareceu seis meses atrás, aproximadamente. — Logo depois de Hannah — completou Holiday.
— Sabemos com certeza que Hannah não foi simplesmente embora e depois... — Ele se interrompeu e dos seus olhos irradiouse uma onda de compaixão. — ... e depois eles a mataram — completou Holiday, as palavras fluindo de seus lábios junto com a dor que oprimia ainda mais o peito de Kylie. Kylie sempre fora empática com relação à dor das outras pessoas, mas agora isso era muito mais intenso. Não era algo fácil, Kylie pensou. Ela demoraria um pouco para se acostumar a ser fae, mas pelo menos podia voltar a comer comida outra vez. Então pensou em Derek e em quando ele lhe disse que sentia as emoções dela com muito mais intensidade. Devia ser muito difícil para ele. Burnett se aproximou. — A polícia está investigando o desaparecimento dela. Eles têm um suspeito, um antigo namorado, mas não podem provar nada. Eu vou verificar os arquivos, mas, considerando o que sabemos, não acho que isso esteja relacionado ao desaparecimento dela. — O que mais você ficou sabendo? — Kylie perguntou, lembrando-se do olhar de Burnett na direção dela, enquanto falava ao telefone. — Mandei que investigassem Hayden Yates mais uma vez. — E? — Mesmo antes que Burnett respondesse, Kylie já sentiu o descontentamento dele por ter que contar a ela. — A ficha dele está limpa. Não há nada em seus antecedentes que nos faça suspeitar dele. Kylie soltou o ar dos pulmões, sem saber ao certo se acreditava. Ela tinha tanta certeza de que ele tinha algo de suspeito! Então ela se lembrou... — Você pode mandar investigar o namorado da minha mãe? — Você acha que ele está por trás do assassinato de Hannah? — Burnett perguntou, confuso. — Não, nada a ver com Hannah. Eu só... não gosto dele.
— Eu também não — Burnett rebateu. — Mas isso não significa que ele seja um criminoso. Existe um monte de gente por aí de quem eu não vou com a cara. Kylie franziu a testa. — Ele me causa arrepios e eu me sentiria melhor se... — Eu vou providenciar isso — tranquilizou-a Burnett, mas ela sentiu as emoções dele e sabia que o vampiro achava que era perda de tempo. — Há uma coisa que eu quero lhe dizer — disse Kylie. — Por que eu tenho a impressão de que não vou gostar? — Burnett perguntou. Kylie relanceou os olhos para Holiday, que parecia igualmente preocupada. — Acho que é hora de dar um basta em toda essa coisa de sombra — disse Kylie. — Não! — A expressão de Burnett ficou mais severa. Kylie sentou-se ereta e sentiu sua coluna se empertigar. — Eu estou cansada de nunca poder ficar sozinha. — Você fica sozinha no seu quarto, quando está na sua cabana — ele retrucou. — Della ouve cada movimento que eu faço. Eu não aguento mais. Quero a minha vida de volta. Mario não tentou mais nada nessas últimas semanas. Miranda disse que ela não sente mais nenhuma presença indesejável. Eu não sinto a presença dele. Talvez ele tenha desistido. — Pessoas como ele não desistem. Só está esperando uma oportunidade para atacar. — Eu prometo ser cuidadosa e, se sentir alguma coisa, você será o primeiro a saber. — Não! — ele insistiu. Kylie sentiu um estranho tipo de energia se avolumando em suas entranhas. Tudo dentro dela dizia que ela estava certa, que eles não podiam obrigá-la àquilo. Ela não entendia o ímpeto ou o destemor que crescia dentro dela naquele momento. Se não estivesse tão furiosa com a insistência dele em não acatar a sua vontade, talvez estivesse preocupada com a possibilidade de algo muito estranho estar acontecendo com ela agora. — Eu não sou uma prisioneira aqui! — ela retrucou. — A minha vontade também conta! — A sua vontade sobre se vai deixar que te matem ou não? — perguntou ele com raiva. — Eu não vou deixar que me matem. — Ela baixou o queixo e olhou para Holiday, esperando ver um pouco de bom senso nos olhos da líder do acampamento. — Está fazendo isso porque quer ver seu avô de novo, não é? — perguntou Holiday. Embora ela percebesse a desaprovação de Holiday, Kylie também via compaixão em seus olhos. — Em parte, sim. — Kylie nem pensara na possibilidade de mentir. Ela achava que seu pedido era justo. — Mas não é só por isso. Estou cansada de andar por aí com uma babá. Burnett ia começar a falar outra vez, mas Holiday interveio. — Você promete ficar longe dos bosques? — Ela já quebrou essa promessa — gritou Burnett. — Eu prometo. — Kylie ignorou Burnett. Holiday se inclinou na direção dela. — Você promete nos avisar quando for encontrar o seu avô? — Vocês prometem não me impedir? — perguntou Kylie. — Eu prometo avaliar a situação e só impedi-la se isso representar algum risco de vida. — Mas risco de vida aos olhos de quem? — perguntou Kylie. — A ideia que algumas pessoas têm de segurança não é razoável. — Ela nem sequer vacilou quando olhou para Burnett que, aliás, parecia ainda mais furioso. E ela sentia cada partícula dessa raiva. — Isso é loucura. Minha função é proteger você — Burnett rosnou.
— Não — Holiday corrigiu-o. — Nossa função como administradores desta escola é ensinar Kylie a sobreviver no mundo humano. Gostemos ou não — ela olhou para Kylie — ela tem o direito de partir. E essa é a última coisa que queremos que aconteça agora. De algum modo, o ímpeto que Kylie sentia dentro dela estava associado à seriedade com que ela encarava aquela questão. Será que aquele era um talento dos faes ou tinha mais a ver com as capacidades dos camaleões? Kylie não sabia. Mas a sensação era maravilhosa, apesar de assustá-la um pouco. — Tenho escolha? — perguntou Burnett, com rispidez. — Não — responderam Kylie e Holiday ao mesmo tempo. Um bipe estranho soou do telefone de Burnett. Ele puxou o aparelho do bolso e apertou alguns botões. — Alguém acabou de pular o portão da frente. — Ele se virou para ir investigar, mas parou quando uma figura se postou no umbral da porta. Blake, o ex-noivo de Holiday, suspeito de assassinato, estava parado ali. — Ouvi dizer que você estava procurando por mim. Kylie ficou de pé num salto e se posicionou ao lado de Burnett, pronta para defender Holiday. Mas Holiday agiu como se não precisasse de proteção. Ela ficou de pé e olhou Blake nos olhos. — Foi você? — perguntou, a raiva exsudando de todos os seus poros. — Fui eu o quê? — ele perguntou. — Que matou Hannah?

— O quê?! — Blake desviou os olhos para Burnett e Kylie e depois voltou a fixá-los em Holiday. A descrença transpareceu em seus olhos e irradiou-se dele em ondas. — Hannah está morta? Kylie tentou ouvir o batimento cardíaco de Blake, mas, como não era mais uma vampira, tudo o que ela pôde fazer foi detectar as suas emoções. Blake parecia sincero, mas será que ela podia confiar nele? — Responda, droga! — Holiday bateu as palmas das mãos com força no peito dele. Suas emoções eram uma mistura de dor e um sentimento de traição. Burnett colocou-se ao lado de Holiday e puxou-a delicadamente para trás, mas seus olhos estavam verdes brilhantes e encaravam Blake com uma expressão de advertência. Blake expirou, demonstrando toda a sua frustração. — Vocês estão acusando o vampiro errado! É tão injusto! — Não tão injusto assim! — retrucou Holiday. — Hannah me contou que você ficou furioso quando ela disse que planejava me contar a verdade. — Claro que eu fiquei furioso! Nós íamos nos casar. Eu amava você. Ela me disse que, se eu aparecesse no meu próprio casamento, ela interromperia a cerimônia. — Você a matou? — Holiday perguntou, exigindo resposta; sua angústia impregnando o próprio ar que Kylie respirava. Blake fitou Holiday, a dor se irradiando dele. — De todas as pessoas no mundo, você é a que mais me conhece. Realmente acha que eu mataria Hannah?
— O que eu acho não significa droga nenhuma! — sibilou Holiday. — Eu não achava que você poderia dormir com a minha irmã, mas você fez isso. — Estávamos bêbados e... eu só tinha saído com você algumas vezes. Foi um grande erro. E, então, quando vi, estava apaixonado por você. Eu ainda sou apaixonado por você. E, sim, eu queria contar tudo, mas estava com medo. A princípio, Hannah agiu como se nada tivesse acontecido, então eu me convenci... — ... de que poderia deixar tudo como estava? — Lágrimas toldaram os olhos de Holiday. — Não, eu me convenci de que um único erro não impediria duas pessoas que se amavam de serem felizes juntas! — Basta! — Burnett se aproximou e agarrou Blake pelo braço. — Você vem comigo. Blake soltou seu braço e os dois homens se encararam. — Ainda não. — Holiday olhou para Burnett. — Eu quero conversar com ele. — Já conversou — Burnett rebateu. — A sós. Quero conversar com ele a sós — ela repetiu. Todo o corpo de Burnett enrijeceu. O ciúme era evidente. — Ele pode ser um assassino serial, Holiday, que entrou em Shadow Falls ilegalmente. Eu preciso levá-lo à UPF. — Assassino serial? — Os olhos de Blake adquiriram um tom defensivo. — Eu não fiz mal a Hannah nem a ninguém. — Isso é o que todos dizem — atacou Burnett, tentando agarrar seu braço novamente. O homem se esquivou, seus olhos cada vez mais ardentes. — Qual o seu problema? — Blake vociferou para Burnett. — Tem medo de que ela ainda sinta algo por mim? Holiday deu um passo para a frente, pousou a mão no braço de Burnett e falou com sinceridade: — Burnett não tem motivo para temer. De você eu só quero a verdade, Blake, só isso. E depois quero que você volte para o buraco onde se escondeu esse tempo todo. — Ela acenou firmemente com a mão para que Burnett e Kylie saíssem. A linguagem corporal e as emoções de Burnett indicavam o que ele estava pensando da ideia. Mas algo dizia a Kylie que Holiday precisava desse tempo sozinha com Blake, e Burnett precisava conceder isso a ela. Kylie tocou o braço de Burnett, sentindo um fluxo quente partir do seu braço, e viu a expressão dele se suavizando. Ele olhou para trás, na direção de Holiday, e depois seguiu até a porta. Kylie olhou para Blake. E nesse instante, seus instintos lhe disseram que ele não era o assassino de Hannah. Mas, se não era ele, quem era? Então Kylie mais uma vez se lembrou de Hannah afirmando que o assassino estava ali, em Shadow Falls. Kylie não pôde deixar de pensar outra vez em Hayden Yates. Não importava sequer que Burnett não tivesse encontrado nada errado no passado do professor; ela não confiava naquele cara. E também não ia, em hipótese alguma, baixar a guarda no que dizia respeito a ele. Burnett não se afastou mais de alguns metros da porta. Kylie concluiu que ele estava ouvindo cada palavra dita na outra sala. Sua preocupação era pela segurança de Holiday, é claro, por isso não se tratava, na verdade, de uma invasão à privacidade. Pelo menos era nisso que Kylie queria acreditar. Ela não conseguia ouvir a conversa, mas, por mais que lhe parecesse constrangedor ouvir a conversa dos outros, sua própria necessidade de proteger Holiday a levava a desejar exatamente isso agora. — Blake está falando a verdade? — Kylie perguntou, imaginando se as emoções que ela captava de Blake eram tão reveladoras quanto o seu batimento cardíaco. Burnett olhou para ela por sobre o ombro. — Quanto a quê? — Quanto a não ter matado Hannah. — Não importa — ele respondeu, mal-humorado, e voltou a encarar a porta.
— Não importa? — Kylie estranhou. Ele negou com a cabeça. — O coração pode mentir. As pessoas mal-intencionadas, sem consciência, não têm dificuldade para mentir. Kylie lembrou-se de Della lhe dizendo isso ao chegar em Shadow Falls. Mas, por mais que Kylie quisesse acreditar que Blake fosse o homem que procuravam, ela não sentia que ele fosse malintencionado. — Não sei se isso ajuda, mas eu sinto que as emoções dele são sinceras. — Você está se referindo a quando ele disse que ainda a ama? — O ciúme de Burnett era quase palpável. Kylie engoliu em seco. — Estava me referindo ao seu choque ao saber que Hannah está morta, mas... a isso também. Burnett fechou os olhos e pressionou a mão contra a porta. — Mas Holiday também estava sendo sincera quando disse que tudo o que ela queria dele era a verdade. Ela não o ama, Burnett. Ele olhou novamente para Kylie, a tristeza irradiando dos seus olhos. — Mas amava. — E isso é importante? — É, na medida em que fez com que ela passasse a evitar qualquer pessoa que se aproxime dela — ele explicou. Então o vampiro fez uma pausa, mudando de assunto. — Eu não concordo com a decisão de Holiday de retirar suas sombras. — Eu sei — disse Kylie. — Mas, me diga, você conseguiria andar com uma sombra ao seu lado o tempo todo? Ela o viu se contendo e sentiu sua resposta emocional. Ele não toleraria uma sombra em seus calcanhares nem por um único dia.
De repente, o ambiente ficou frio. O frio típico da visita de um fantasma. Então Hannah apareceu ao lado de Burnett; sua presença veio acompanhada de uma espessa onda de pânico. — Ele está aqui! Ele está aqui! Você tem que detê-lo! Ele vai tentar matá-la! — ela gritou para Burnett. — Quem está aqui? — perguntou Kylie. Burnett não esperou a resposta. Irrompeu pela porta do escritório de Holiday, sem se dar ao trabalho de abri-la. Arrancada das dobradiças, a porta veio abaixo com um estrondo. Burnett passou por cima da madeira estilhaçada e encarou Blake. Com a porta fora do caminho, Kylie assistiu à cena na outra sala. Blake, já de pé, fitava Burnett com fúria. Holiday, ainda sentada à escrivaninha, exibia uma expressão de choque. Só então ela se levantou da cadeira, provando como eram lentas as reações dos faes em comparação com as dos vampiros. Burnett, com as duas mãos em punho na lateral do corpo, vociferou para Blake: — Ou você vem comigo do jeito mais fácil ou vai ter que vir pelo jeito mais difícil. — Sua ameaça era sincera. — Para mim tanto faz. O olhar de Kylie desviou-se para o fantasma. Hannah estava paralisada, pasma diante da cena que se desenrolava à sua frente. Uma terrível aura marrom a cercava. Embora morta, uma camada de emoções se agitava sob a sua rigidez cadavérica. Vergonha — uma vergonha imensa se avolumava dentro dela. Então Kylie sentiu a surpresa de Hannah. Estranhamente, todo o pânico e medo que ela demonstrara inicialmente tinham desaparecido. Alguma coisa estava errada. Era como se Hannah nem soubesse que Blake estava ali. Mas, se ela não sabia que o vampiro estava presente, então como ele poderia estar causando nela todo aquele pânico? — Você está falando de Blake? — Kylie perguntou a Hannah rapidamente.
Nenhuma resposta. — Hannah? — repetiu Kylie. Mas o fantasma tinha ido embora. — O que está acontecendo? — Holiday perguntou a Burnett novamente, e os olhos de Kylie se fixaram nas três pessoas na sala. Blake olhou de volta para Holiday. — Eu não fiz nada. Provavelmente não mereço outra chance com você, mas com certeza não mereço isso. — Ele se voltou para Burnett. — Eu vou com você, responderei a todas as suas perguntas, mas, se encostar a mão em mim, eu te mato. E pelas emoções que o homem irradiava, sua ameaça era tão sincera quanto a de Burnett. A preguiçosa tarde de domingo tinha transcorrido com muita frustração pairando no ar. Miranda estava frustrada porque havia uma nova metamorfa de olho em Perry. Holiday estava frustrada porque... bem, como se perder a irmã pela primeira vez não tivesse sido suficiente, agora seu espírito se negava a aparecer novamente. Burnett estava frustrado porque não conseguia encontrar nenhuma prova contra Blake e por isso não podia prendê-lo. Kylie estava frustrada por causa de todo desastre que era a sua vida. A única que não estava com um humor sombrio era Della, e Kylie, embora agora fosse uma fae capaz de ler emoções, não sabia direito com que humor ela estava; só sabia dizer que havia algo errado. A garota estava seguindo Kylie como um filhotinho perdido. Mesmo agora, enquanto checava os seus e-mails, Kylie sentia Della espiando por cima do seu ombro. Kylie se virou e franziu a testa. — O que foi? — O que foi o quê? — perguntou Della. — Você está lendo os meus e-mails por cima do meu ombro. Por que, se você nem é mais a minha sombra agora? — Eu não estou bancando a sua sombra. E não sabia que os seus e-mails eram tão particulares — retrucou Della.
Nesse instante, Kylie sentiu uma onda de ansiedade vindo da vampira, acompanhado de um sentimento de tristeza e depois de raiva. As emoções de Della estavam se espalhando por todo o cômodo. — O que há com você? — Kylie perguntou. — Nada! — respondeu Della, deixando-se cair numa cadeira da cozinha. Kylie voltou a atenção novamente para os seus e-mails e clicou em “atualizar”. Nenhum e-mail novo. Nenhum de... — Você está esperando receber alguma coisa do seu avô, não está? — perguntou Della. Kylie olhou por sobre o ombro. — Talvez, por quê? Della fechou a cara. — Você vai morar com ele, não vai? Vai embora de Shadow Falls. A pergunta cortou como uma faca o peito de Kylie. Como ela poderia explicar a Della que deixar o acampamento era a última coisa que ela queria fazer? No entanto, uma parte dela dizia que talvez essa fosse a única maneira de descobrir quem ela era. Depois de ver a expressão de choque nos rostos dos campistas, ao constatarem o seu novo padrão fae, uma parte de Kylie ansiou por estar entre pessoas que não a julgassem. E quanto mais rápido ela aprendesse a controlar essa mudança de padrão e os poderes que a acompanhavam, mais rápido também poderia voltar a Shadow Falls e realmente se entrosar. — É por isso que você está assim? — perguntou Kylie. — É, é por isso. E não pense que não reparei que você não negou quando perguntei. Kylie escolheu as palavras cuidadosamente. — Não está nos meus planos fazer isso. Isso era verdade. Ela ainda estava rezando para que essa não se revelasse a única saída.
— Mas o seu lado fae pensou nisso, não foi? — Della perguntou. — É, meu lado fae pensou nisso, mas... — Mas coisa nenhuma! Eu não vou deixar você ir, Kylie. — Lágrimas afloraram nos olhos da vampira. — Eu perdi Lee, perdi meus pais e minha irmã e todos os amigos que eu tinha lá em casa. Você e Miranda são tudo o que eu tenho, e a Senhorita Bruxa está tão obcecada por um certo metamorfo agora que eu não tenho tempo nem para brigar com ela. Della ficou de pé e secou as bochechas molhadas de lágrimas. — Já estou cheia de perder as pessoas de que gosto. Kylie se levantou também. — Você não vai me perder. — Seus próprios olhos ardiam. Mesmo que tivesse que ir embora, ela voltaria. Ela pertencia a Shadow Falls. Della acabaria compreendendo isso. A vampira bufou. — Vou deixar o acampamento na semana que vem para ir... para ir fazer o que tenho que fazer para Burnett. E tudo em que consigo pensar é que você não estará aqui quando eu voltar. — Eu vou estar... — Kylie finalmente ouviu o que Della disse. — Aonde você vai? Della franziu a testa. — Não posso contar. — Caramba! — Kylie balançou a cabeça, lembrando-se da ansiedade que sentira na amiga. Della estava assustada? Claro que estava, Kylie podia sentir, mas a amiga nunca admitiria. Kylie se aproximou dela e abraçou a vampira. Della não gostou, mas não se afastou. — Seja aonde for que você tenha que ir para Burnett, é bom que não seja perigoso. — Abraço coletivo! Abraço coletivo! — Miranda gritou, abrindo a porta de repente.
— Não. — Della se retraiu. — Este abraço era só para Kylie — disse ela, tentando parecer durona, mas Kylie percebeu o constrangimento da amiga muito bem. — Vá abraçar Perry. — Della disparou para o banheiro e bateu a porta com violência. — O que deu nela? Por que está nesse mau humor? — perguntou Miranda. Kylie revirou os olhos. Então o computador emitiu um bipe, avisando sobre a chegada de um novo e-mail e ela foi verificar. Era da mãe. Um pensamento atravessou a mente de Kylie como uma lixa. Se ela tivesse que deixar Shadow Falls, o que diria aos pais? Kylie olhou para Miranda. — Talvez seja melhor você arranjar uma briga com Della para ela saber que você ainda se importa com ela. O jantar daquela noite deveria ser muito especial, para celebrar o início do novo ano letivo. Os livros e o horário das aulas já haviam sido distribuídos. Kylie e Della fariam todas as aulas na mesma classe. Miranda estava em duas das cinco aulas de Kylie. Kylie não podia deixar de se perguntar se isso não seria obra de Burnett, para que ela tivesse uma sombra sem se dar conta disso. Não que ela fosse deixar aquele pensamento estragar a sua noite. Sentada a uma mesa com Della, Miranda, Perry, Jonathon e Helen, Kylie devorava o seu segundo pedaço de pizza. Era bom voltar a saborear comida. Não que a melhora do seu humor tivesse a ver com a pizza de pepperoni de massa fina. Não tinha a ver sequer com o clima de festa ou com a festa propriamente dita, mas com o que ia acontecer depois da festa. Ela consultou o relógio — só faltavam duas horas. Nesse mesmo instante, Steve aproximou-se da mesa e se sentou numa cadeira vazia ao lado de Della. Kylie quase sorriu quando viu Della corar. — E aí? — perguntou Steve. — Oi, Steve — cumprimentou Kylie, querendo que ele se sentisse bem-vindo. Antes do jantar, Della tinha confessado que Steve supostamente iria acompanhá-la na missão para a UPF.
Della, é claro, tinha reclamado. No entanto, ela não conseguira esconder de Kylie a sua empolgação. Jonathon e Steve começaram a conversar sobre as aulas. Della pareceu relaxar e Kylie também. Miranda cutucou Kylie com o cotovelo e se inclinou na direção dela. — Eu acho que ele gosta dela — cochichou no ouvido de Kylie. Mas Della, captando tudo com sua incrível audição, lançou um olhar zangado para a amiga. — Este é um ano muito importante. — Alguém fez um brinde do outro lado da sala. Todos pareciam estar num humor festivo e, por algum tempo, deixaram de reparar nos padrões de Kylie. Essa provavelmente era outra razão do seu bom humor. Mas ela mal tinha acabado de comemorar o fato de ninguém estar olhando para ela quando os pelos de sua nuca se eriçaram. Quando ela se virou, Hayden Yates também virou a cabeça para o outro lado. Seu coração deu um salto quando ela viu Holiday próxima a ele, em meio aos campistas. A líder do acampamento, porém, não falava com ele, mas com o tímido professor Collin Warren. Kylie ainda não gostava de ver Hayden tão perto de Holiday. Ela ficou olhando fixamente para ele e, quando o professor voltou seu olhar para ela, obviamente sentindo-se observado, seus olhares se encontraram. Eu juro que se você machucá-la, vai pagar por isso. Ele desviou o olhar; Kylie continuou a encará-lo por vários segundos e esperou que ele entendesse a mensagem, porque aquela não era uma ameaça vazia. Era uma promessa. Só a possibilidade de alguém ferir Holiday já fazia o sangue de Kylie ferver — um sinal claro de que o seu padrão podia ter mudado, mas ela continuava sendo uma protetora. Talvez algum dia ela fosse capaz de dizer aquilo com um sentimento pleno de orgulho, mas no momento só parecia mais um motivo para ser vista como alguém diferente de todo mundo. Kylie mal tinha desviado o olhar, quando sentiu outro par de olhos sobre ela, causando-lhe, no entanto, uma sensação bem diferente, que percorreu sua espinha desde os dedos dos pés.
Mesmo estando a vários metros dela, o olhar de Lucas era como uma carícia. Ele piscou para Kylie. Depois relanceou os olhos para o relógio e ela viu que, como ela, ele também contava os minutos até a hora em que iam se encontrar. — Droga! — Jonathon gritou, fazendo Kylie desviar os olhos de Lucas. — Você se cortou! — Jonathon segurava a mão de Helen, o sangue gotejando da sua mão. Helen, parecendo um pouco nauseada, tinha uma maçã numa mão e uma faca cheia de sangue em seu colo. — Tudo bem. — Suas palavras pareciam confiantes. — Não foi tão grave assim, foi? Jonathon afrouxou o punho em torno da mão dela e deu uma olhada. Seus olhos ficaram brilhantes, sem dúvida por causa do sangue, mas seu ar de preocupação era ainda mais evidente. — Você vai precisar levar pontos — ele concluiu. Helen olhou para Kylie. — Será que você pode dar um jeito nisso? Kylie prendeu o fôlego. Já fazia algum tempo que ela não pensava nos seus poderes de cura. E nas poucas vezes em que pensara neles, lembrou-se de que não tinham sido suficientes para salvar Ellie. Kylie tinha falhado com Ellie. — Eu... eu não sei se posso. — Ela fitou os olhos de Helen, viu a dor dentro deles, mas o medo formou um nó em seu estômago, cheio com os dois pedaços de pizza. — Eu não conseguia ter sonhos lúcidos quando era vampira; provavelmente não posso curar enquanto sou fae. — Mas os faes são conhecidos pelos seus dons de cura — Helen a fez lembrar. — Ah, é verdade. — Kylie soltou o ar dos pulmões, que fez seus lábios tremularem ao escapar. — E se eu fizer alguma coisa errada? — Ela ainda se lembrava de como ficara devastada quando não fora capaz de salvar Ellie das garras da morte. Olhando as próprias mãos, ela se lembrou de que tinham ficado cobertas com o sangue da garota.
— Você não vai fazer nada errado — afirmou Helen, com plena confiança. Ao olhar para Helen, Kylie se lembrou de que ela a ajudara, examinando seu cérebro para ver se ela tinha um tumor, na semana em que chegara ao acampamento. Helen tinha ajudado Kylie e ela não podia lhe negar ajuda também. Kylie ficou de pé e foi até a cadeira ao lado de onde estava Helen. A tímida e confiante garota estendeu a palma da mão ensanguentada. Respirando fundo, Kylie lembrou-se de que tinha que ter pensamentos de cura. Surpreendentemente, suas mãos começaram a ficar quentes. Ela correu o dedo delicadamente pelo corte. Seu toque produziu um leve sulco ao redor do sangue represado na palma. Com receio de não conseguir curar a ferida, Kylie sobrepôs toda a sua palma sobre o ferimento. Ainda hesitante, sem coragem de ver se tinha curado a garota ou não, ela percebeu que todos no refeitório estavam em silêncio. Nenhum som ecoava no amplo aposento. Desviando os olhos por um segundo, constatou que todos a observavam. Todo mundo! Ah, mas que maravilha! Helen ergueu a mão e olhou a palma diante de si. Limpando o sangue com a outra mão, um leve sorriso se formou em seus lábios. — Você conseguiu! — Helen sussurrou, parecendo tão consciente quanto Kylie de toda a atenção indesejada que tinham despertado nos outros campistas. Kylie se inclinou na direção a garota. — Por que todo mundo está olhando? Helen fez uma careta e chegou mais perto. — Porque você está brilhando. — Brilhando? Helen assentiu. Kylie notou que um leve brilho parecia irradiar da sua pele. — Merda!
— Merda coisa nenhuma! — retrucou Della. — Você está parecendo um vaga-lume. Isso é demais! Isso de fato já é demais, pensou Kylie. Holiday, do outro lado da sala, começou a andar na direção de Kylie, os olhos arregalados, um sentimento de perplexidade se irradiando dela em ondas. Kylie olhou para a líder do acampamento, mortificada. — Faça isto parar. Por favor. Por favoooor.

— Aonde você vai? — Della perguntou quando Kylie saiu do quarto uma hora depois, com o cabelo penteado, os dentes escovados e — graças a Deus — nenhum brilho irradiando do seu corpo. Ela quase disse a Della que não tinha mais que dar relatórios sobre onde ia ou deixava de ir, mas concluiu que ela própria faria a mesma pergunta, caso Della estivesse saindo da cabana. — Vou me encontrar com Lucas — disse Kylie. Della inclinou a cabeça para ouvir o coração da amiga. — Não estou mentindo — afirmou Kylie. — Eu sei. Eu ouvi — confirmou Della. — Divirta-se. E não faça nada que eu não faria... — Bem... — brincou Kylie, tentando não parecer irritada. — Isso me deixa com muitas opções... Della deu uma risadinha. — Mas se você voltar brilhando, vou saber o que você fez. — Não tem graça — protestou Kylie, com sinceridade. Então deixou a cabana. Felizmente, ela tinha parado de brilhar uns dez minutos depois de ter curado Helen. Para o seu mais completo desespero, quando perguntou a Holiday por que aquilo estava acontecendo, a amiga respondeu que não sabia, pois nunca tinha acontecido quando ela curava alguém. Kylie não ficou surpresa quando Holiday deu de ombros e disse que não sabia. Mas aquilo contribuiu para que pensasse no aviso do avô com mais seriedade. E se não parassem de acontecer coisas estranhas? Nesse momento, eram só os sobrenaturais que a consideravam uma aberração da natureza. Mas o que aconteceria se algo assim acontecesse na frente de algum ser humano normal? Kylie disparou pela trilha, na esperança de que a sensação do vento em seus cabelos amenizasse a sua ansiedade, e chegou ao escritório em pouquíssimo tempo. As vozes de algumas pessoas que ainda se demoravam um pouco mais no refeitório ecoavam pela noite. Antes que alguém a visse, ela contornou a cabana do escritório. No segundo em que viu Lucas esperando por ela ao lado de uma árvore, sua frustração se desvaneceu. Ela correu na direção dele e Lucas a tomou nos braços, puxando-a de encontro a ele. Seus braços envolveram sua cintura, os polegares deslizando por debaixo da blusa e tocando sua pele nua. O beijo foi terno e carinhoso. Quando ele se afastou e sorriu, ela sabia o que ele estava pensando. — Nem toque no assunto! — ela avisou, sentindo que estava prestes a ouvir mais uma piadinha sobre a sua “luminescência”. — Só estou com ciúme. — Ciúme? — perguntou ela, achando que tinha entendido errado. — Do quê? — Eu quero ser a única coisa que faz você brilhar. Ela deu um tapa de leve no peito largo do namorado. — Vou repetir o que eu já disse para Della e Miranda. Não tem graça nenhuma. — Você estava linda. — Ela sentiu que o comentário era sincero. — Parecia um anjo. Ela franziu a testa. — Eu não quero ser um anjo. Quero ser uma sobrenatural normal. — Tudo bem, não vamos mais falar sobre isso. Só vou beijar você. E que beijo delicioso! Mais ardente, mais carinhoso e mais inebriante do que todos os outros. Quando se afastou, ela ouvir o mesmo zumbido familiar, um mecanismo natural de sedução entre os lobos, que funcionava às mil maravilhas com ela. Kylie se deixou levar por aquele som. — A lua cheia deve estar próxima outra vez. — Ela sorriu ao ver o ardor no olhar de Lucas, sabendo que os seus próprios olhos deviam expressar a mesma emoção. — Isso mesmo. — Ele inspirou, como se tentasse clarear os pensamentos. — Você está me deixando louco. Às vezes, eu só quero... — Ele deu um passo para trás. — Vamos conversar um pouco. Ela sorriu. — Eu gosto de levá-lo à loucura... — Verdade — disse ele num tom bem-humorado, apontando um dedo para o rosto dela. Não era bem verdade, Kylie pensou. Não era como se ela planejasse deixar que qualquer coisa acontecesse aquela noite... Mas se deixasse... Nesse momento, ela se lembrou das sábias palavras de Holiday sobre os garotos, ou melhor, sobre sexo. Quando você tomar essa decisão, que ela seja tomada racionalmente e não apenas por impulso. Entende a diferença? Kylie entendia muito bem. O problema é que era mais fácil agir por impulso do que agir racionalmente. Agir racionalmente significava conversar a respeito. E isso seria embaraçoso. Ela ofegou ao perceber algo de repente. Se não conseguia falar sobre uma coisa, era sinal de que ainda não estava pronta para praticá-la — porque, a menos que ela quisesse sentir o mesmo pânico da amiga Sara com a possibilidade de uma gravidez indesejada, era essencial que conversassem a respeito. — O que foi? — perguntou Lucas. Ela abriu a boca para responder — para falar sobe o que estava pensando —, mas seus lábios se fecharam com a mesma rapidez. Eles poderiam conversar sobre o assunto mais tarde. Mais tarde, mas, certamente, antes que algo acontecesse. — Nada. — A voz dela soou como um sapo prestes a coaxar. Ele estudou o rosto dela.
— Você está quase brilhando de novo. — Ah, não! — Ela olhou para os braços e observou-os em pânico. Ele riu. — Não, só quis dizer que você está vermelha. Onde estava esta cabecinha? — Ele deu uma batidinha na testa dela e, com seus dons de fae, ela sentiu a paixão irradiando dele. — Em lugar nenhum — mentiu. — Vamos só... conversar. — Mas não sobre sexo. Porque, obviamente, ela não estava pronta para ter essa conversa. Ele a encarou como se não acreditasse nela, depois pegou sua mão e entrelaçou os dedos nos dela. Sua palma estava quente, mas nem perto do que costumava estar quando ela era vampira. — Tudo bem. Então vamos conversar. — Eles se sentaram na grama macia, sob a copa da árvore. — Por que você não me conta como conseguiu se livrar da história da sombra? Não acredito que Burnett tenha desistido de uma coisa dessas com tanta facilidade. — Ele não queria. Mas eu... — Ela se lembrou da estranha sensação que teve quando enfrentou Burnett e Holiday. Como se o poder da persuasão fosse... um poder de verdade. Talvez fosse de fato. — Eu o convenci. — Como? Ele não é alguém que se deixe convencer facilmente. — Eu... ameacei deixar Shadow Falls. — Deixar Shadow Falls? — A preocupação se estampou nos olhos dele. — Foi só pra convencê-lo, não é? Em grande parte, sim, mas estou começando a me preocupar. Ela quase disse isso a ele, mas decidiu que não queria travar essa conversa em particular com Lucas, não quando tinham tão pouco tempo juntos, por isso ela só concordou com a cabeça. — Eu concordei em não entrar nos bosques e avisá-los antes de ir ver o meu avô.
— O quê? — Seu acentuado instinto de proteção de lobisomem entrou em ação. — Burnett vai deixar você ver o seu avô outra vez? Sozinha? Ela fez que sim. — Contanto que não pareça muito perigoso. — Como você vai saber se é perigoso? — Ele balançou a cabeça, o cabelo preto caído sobre a testa. — Você não vai fazer isso até eu voltar. — Ele segurou o queixo de Kylie com uma mão. — Me prometa. — Voltar de onde? — ela perguntou. Sua expressão se fechou. — Meu pai de novo. Dessa vez eu vou ter que ficar algum tempo por lá. Uma semana ou mais. Ela tentou entender o que aquilo significava. — Mas as aulas começam amanhã. — Eu sei. — Suas palavras estavam carregadas de sarcasmo. — Mas meu pai não dá muito valor à educação. — Você não pode simplesmente dizer isso a ele? Que você vai vê-lo no final de semana dos pais? — Eu gostaria muito. — Mas por que tanto tempo? — De repente ela não conseguiu deixar de se perguntar se Fredericka iria com ele. Ele tocou a bochecha dela. — Ele está insistindo, Kylie. Quando põe uma coisa na cabeça, ninguém a tira. Eu lamento. A sinceridade em sua voz comoveu Kylie. Sinceridade e... culpa. Pelo quê? Ele colocou uma mecha do cabelo dela atrás da orelha. — Você sabe que eu tenho que fazer isso para entrar para o conselho. Eu não faria nada disso se não fosse preciso. E... quando tudo acabar, estou fora. — Quando o que acabar? O que ele quer que você faça?
— Ele é só... Ele é louco e eu tenho que concordar com ele por ora. Por favor... só tenha um pouco mais de paciência. Em menos de um mês, o conselho vai fazer a sua escolha. Um mês é tudo de que preciso e depois eu não tenho mais que concordar com os planos dele. — Que planos são esses? — Ela sentiu o ressentimento crescer dentro de si. — Eu detesto os seus segredos. — Eu sei — ele disse. — Eu também detesto. Mas você tem que confiar em mim. Por alguma razão insana, quando ele disse “confiar”, ela sentiu que ele queria dizer... algo mais. Algo como... — Fredericka vai com você? — Não — respondeu. — Vou sozinho. — Nem Clara irá? — ela perguntou, ainda confusa com as emoções que captava dele. — Não. Ela pode até ir também, mas não vai ficar lá. — Lucas a puxou de encontro a ele e os dois ficaram ali sentados em silêncio por um longo tempo. Ela sofria por ele, porque sentia quanto o namorado de fato não queria ir, nem estava disposto a fazer o que o pai planejava. No entanto, ele iria e provavelmente faria — qualquer coisa que fosse. E se sentia culpado por isso. Por quê? — Você vai me ligar? — ela finalmente perguntou. — Vou tentar, mas, se ele estiver monitorando as minhas ligações, não posso me arriscar... — ... que ele o veja falando comigo... — Kylie terminou a frase por ele. Lucas suspirou e ela soube a verdade antes mesmo que ele a dissesse. — Não gosto disso. Tampouco ela gostava. Nem um pouquinho. Um segundo se passou e então ele disse.
— Você ainda não prometeu que não vai ver seu avô antes de eu voltar. — Não posso prometer — Kylie explicou, irritada porque Lucas queria que ela fizesse promessas e as cumprisse, enquanto ele ainda guardava tantos segredos. — Eu vou fazer o que for preciso. — E ele teria que simplesmente aceitar, como ela estava tentando aceitar o que Lucas lhe dissera, ou o que não dissera... Na manhã de segunda-feira, a agitação do primeiro dia de aula em Shadow Falls não era diferente da de todas as outras que Kylie tinha vivido antes. Ela estava ao mesmo tempo ansiosa e preocupada por ser obrigada a ficar numa sala cheia de gente que parecia saber algum segredo da vida que ela própria desconhecia. Apesar de saber de que espécie ela era, e de estar cercada de outros sobrenaturais, ela ainda se sentia uma intrusa — uma desgarrada que passava de grupo em grupo, mas não pertencia a nenhum. Não tinha dúvida de que seguiria Della e Miranda para onde fossem e socializaria com quem quer que elas convivessem e os amigos delas não a rejeitariam, mas ela não se sentiria parte de nenhum grupo. Seria como sempre fora em sua antiga escola. A única diferença era que antes ela estava com Sara, outra desgarrada. Enquanto se maquiava, Kylie pensou em Sara. Fazia semanas que não se falavam, mas Kylie mudaria isso mais tarde. Embora ela aceitasse que ambas tinham mudado e provavelmente nunca mais teriam tanto em comum como um dia tiveram, Sara ainda era... Sara. E hoje Kylie sentia mais falta dela do que nunca. O ar da manhã já trazia com ele um toque outonal. A decisão do que vestir e como pentear o cabelo tinha tomado mais tempo do que deveria. Ela não deveria nem se importar com isso, visto que Lucas não estaria presente, mas provavelmente foi contagiada pelo mesmo vírus que Della e Miranda, que se esmeravam para parecerem perfeitas. Kylie não tinha se arrumado para ninguém. No entanto, quando Derek a procurou com os olhos da mesa onde estavam os faes, seu olhar foi a prova de que ela estava bonita. Quando menos esperava, ela estava sorrindo, mas o sorriso, no entanto, logo se desvaneceu quando ela começou a sentir falta de Lucas. Depois do café, era a Hora do Encontro com os colegas do acampamento. Kylie tirou o nome de Nikki, a nova metamorfa, a garota que Miranda acusava de estar dando em cima de Perry. Kylie estava preocupada com a possibilidade de ser bombardeada com perguntas sobre a o episódio da sua “luminescência”, mas se enganou. Nikki só queria conversar sobre Perry. Miranda tinha razão. A garota estava caída por Perry. Mas Kylie não achava que Nikki fosse correspondida. Mesmo assim, antes de a Hora do Encontro acabar, Kylie tinha sutilmente mencionado que Perry estava comprometido. E a garota também tinha sutilmente ignorado essa informação. A Hora não tinha acabado ainda e Kylie ainda não sabia se deveria ou não contar alguma coisa a Miranda. O ciúme não era um sentimento bonito. Kylie tinha sorte por Fredericka não ter ido com Lucas para a casa do pai dele, do contrário ela também estaria se atracando com o “monstro de olhos verdes”, como costumavam chamar o ciúme. A primeira aula de Kylie era inglês, com Della, Miranda e Derek. Embora ausente aquele dia, Lucas estava na mesma turma que eles. Ava Kane, a nova professora, tinha um estilo fácil de ensinar, embora os garotos só prestassem atenção ao corpo dela. Não havia um único aluno do sexo masculino que não estivesse praticamente babando. Derek não era exceção. Era provável que, se estivesse lá, Lucas também estaria tão fascinado quanto os outros. Embora os garotos só tivessem olhos para a professora, a professora só tinha olhos para o padrão de Kylie. Será que ele tinha mudado? Ela resolveu se virar para Della e perguntar. A amiga assegurou-a de que ela ainda não passava de uma “fae enfadonha”. Quando a aula acabou, a senhorita Kane ficou parada na porta. E, quando Kylie passou, ela se inclinou e sussurrou: — Desculpe, eu não devia ter ficado olhando, mas é que estou tão fascinada por... você! Kylie sentiu sua sinceridade.
— Tudo bem — respondeu Kylie, embora ela preferisse não chamar tanta atenção. Pelo menos a professora tinha se desculpado, o que mais de noventa por cento dos campistas não faziam. A aula de história — em seguida — foi mais difícil de enfrentar. Embora o professor Collin Warren tivesse tentado esconder seu nervosismo, ele era evidente. Sua ansiedade impregnava a sala como fumaça, no entanto, ao contrário da senhorita Kane, o professor não olhou Kylie nos olhos nem uma só vez. Francamente, ela não tinha certeza se ele tinha fitado alguém ali nos olhos. No entanto, como Holiday pedira a Kylie para dar uma mãozinha ao tímido professor quando a aula acabasse, Kylie demorou-se na sala enquanto os outros campistas saíam, para lhe oferecer apoio. Todos os alunos deixaram a sala, exceto Kylie. Ela esperou que o homem reparasse nela, mas ele ficou sentado em sua mesa, a cabeça baixa, os olhos pregados em seus papéis. Ela se aproximou da mesa dele até ficar à sua frente. Mesmo assim ele não olhou para cima. Tudo bem... era estranho. Ela também era tímida, mas aquilo já era demais! Era o tipo de timidez que exigia medicação! — Olá! — cumprimentou Kylie. Ele suspirou como se estivesse contrariado, mas olhou para ela. — Posso ajudá-la? Emoções fluíam dele — era muito mais do que uma simples timidez. Era quase medo, mesclado com frustração. — Eu queria lhe dar as boas-vindas a Shadow Falls. Pode ser difícil... — Eu... eu preciso de prática. — Ele desviou os olhos. — Vou melhorar. — Eu não ia fazer nenhuma crítica. — Ela compreendia como ele se sentia, sabendo que não achava que tinha ido muito bem no seu primeiro dia de aula. — A prática faz a perfeição, minha avó sempre dizia.
Ele olhou para ela. — Você a vê? — Quem? — Kylie perguntou. — A sua avó. Ela não morreu? Eu ouvi dizer que você tem o dom de falar com os mortos. A pergunta pegou Kylie de surpresa. — Sim. Quer dizer, ela morreu faz quatro meses, mas eu não falei com ela. — Mas você fala com os outros, não fala? Os mortos? Kylie assentiu. — Sim. — Sem conseguir decifrar suas emoções no momento, ela acrescentou: — Eu sei que isso parece bizarro. — Nem um pouco. Eu adoraria fazer algumas perguntas aos mortos. Kylie tentou digerir o que o professor tinha dito. Ele desviou os olhos. — Quero dizer... por causa do meu gosto pela história. Não seria incrível poder conversar com aqueles que viveram antes de nós? — Isso faz sentido — concordou Kylie. E de fato fazia, mas ainda assim era estranho. A maioria dos sobrenaturais não apreciaria falar com os mortos, nem mesmo por amor à história. Ela olhou para a porta. — Preciso ir, não posso me atrasar. Enquanto Kylie saía da sala, ela sentiu o olhar do professor sobre ela. Tudo bem, Collin Warren era ainda mais estranho do que imaginara. Ela realmente esperava que Holiday soubesse o que estava fazendo quando o contratou. Kylie tinha acabado de deixar a cabana e se posto a caminho da próxima aula quando o telefone tocou. Ao verificar o número, uma onda de nostalgia a percorreu. — Eu ia te ligar — disse Kylie, com um suspiro. — O primeiro dia de aula parece estranho sem você aqui — lamentou Sara.
— Eu sei — Kylie mordeu o lábio. — Como vão as coisas? — perguntou Sara. — Ainda tem dois carinhas muito gatos atrás de você? — Eu praticamente me decidi por um deles. — Derek! — Não — Kylie corrigiu. — Lucas. — Humm, por alguma razão, eu achei que fosse Derek, mas Lucas é gostosão também. Por que ela pensou que fosse Derek? — Como você vai? — perguntou Kylie, concluindo que era melhor nem saber a resposta de Sara para a pergunta que ela fizera mentalmente. — Ainda sem câncer — disse Sara, com praticidade. — Como você deve saber. Kylie ignorou o comentário. — Fico feliz. — Quando você vai voltar pra casa? — Acho que daqui a umas duas ou três semanas, no fim de semana com os pais. — Se ela ainda não estivesse exibindo proezas, como brilhar e ficar invisível, ela iria. — Ótimo, porque eu preciso de um tratamento estilo Kylie. Ai, não... a campainha! Tenho que correr. Ligo pra você daqui uma semana, mais ou menos. Uma semana? Não muito tempo antes elas não passava nem um dia sem se falar. Kylie tentou afastar a melancolia que se abateu sobre ela ao pensar em quanto a sua vida tinha mudado. Então, colocando o celular no bolso, correu para a aula. Pensar que ela estaria com Hayden Yates fez com que um calafrio de pavor percorresse a sua espinha. No segundo em que entrou pela porta da sala de Hayden Yates, Kylie constatou que as vibrações esquisitíssimas de Collin Warren não eram nem de longe tão perturbadoras quanto as de Yates. O homem nem sequer olhou para Kylie, mas de algum modo ela percebeu que ele estava de olho nela — que ele não só sabia que a garota estava parada na porta como esperava por ela. A pergunta que dava voltas na sua cabeça ficou mais premente ainda. Ele estava por trás da morte de Hannah e das outras garotas? Se estava, ele sabia que Kylie suspeitava dele? Ao percorrer a sala, Kylie notou que todo mundo já estava em seus lugares. Só restava uma carteira vazia. Ela sentiu o estômago revirar. Fredericka estava sentada bem atrás da carteira vazia. A garota sorriu, ou melhor, abriu um sorrisinho sarcástico. Não tinha ocorrido a Kylie que ela teria que enfrentar a loba em suas aulas. Tentando não olhar para Fredericka, Kylie foi até a carteira e se sentou. Quando se acomodou, ela ouviu a loba dizer: — Ah, cara, temos iluminação extra agora que o pirilampo chegou! Kylie cerrou os dentes e olhou para o livro sobre a carteira. — Vaca! — Della murmurou do outro lado da sala. Kylie, de repente zangada consigo mesmo por deixar que Della enfrentasse a outra, virou-se na carteira e encarou a rival. — Além de brilhar, descobri que tenho outros talentos. Um deles você vai adorar: provoco sarna em lobas que bancam a engraçadinha. Especialmente aquelas que ainda fedem a gambá. Risadinhas escaparam dos lábios de vários alunos ao redor delas. Fredericka levantou-se da carteira numa atitude defensiva, os olhos adquirindo um tom alaranjado de irritação. Ao ver a fúria nos olhos intimidadores da loba, Kylie se perguntou se não teria sido melhor ficar de boca fechada. Sem dúvida alguma ela iria ser espicaçada pela outra. E no primeiro dia de aula. Seria ou não um dia memorável?

— Sentem-se! — A ordem do senhor Yates ecoou pela sala. — Podem se matar outra hora, não na minha aula. Kylie voltou a se virar para a frente, surpresa ao ver que o professor suspeito não tinha deixado a loba levar vantagem sobre ela. A tensão no ar ainda era palpável quando ele começou a aula. Olhando para a frente, Kylie se perguntava se Fredericka não furaria suas costas com um lápis. Mas nada aconteceu. O senhor Yates começou a explicar que a adrenalina podia aumentar a força dos seres humanos e que isso, em parte, explicava como os sobrenaturais adquiriam seus poderes. Suas habilidades como professor estavam acima da média, e ele mantinha todos os alunos atentos às suas palavras. Até Kylie descobriu que era difícil não prestar atenção à aula. No entanto, os instintos dela lhe diziam que ele não estava ali para ensinar. E, considerando o aviso de Hannah de que o assassino estava por perto, Kylie não se permitiu baixar a guarda. Sua necessidade de se manter atenta atingiu o auge quando a aula terminou e ela, a meio caminho da porta, ouviu-o limpar a garganta. — Kylie, você tem alguns minutos? Kylie congelou, ainda de costas para ele. Della, que também suspeitava do professor, aproximou-se de Kylie e sussurrou: — Vou ficar na porta, te esperando. Apertando seus livros contra o peito e lembrando-se de que o homem de mais de um metro e oitenta de altura podia ser um assassino serial, ela voltou a entrar na sala com cautela.
— Algum problema? — A imagem das três garotas mortas, seus corpos se decompondo na cova, surgiu na sua tela mental. Que tipo de facínora faria aquilo? — Não... bem, sim. Como protetora, você não deveria arranjar briga com uma loba. — Foi ela que começou — disse Kylie, percebendo quanto seu comentário parecia infantil. Mas aquele homem lhe dava arrepios e trazia à tona o pior que existia dentro dela. A preocupação dele era “tocante”, mas ela suspeitava que havia alguma coisa por trás. — É só isso? — Sinto que nós começamos com o pé esquerdo. — Sinceridade, uma boa dose dela, fluía dele, mas Yates não convenceu Kylie nem por um segundo. Se uma pessoa cruel e sem consciência podia mentir para um vampiro, também podia simular emoções. Ele continuou: — Eu gostaria que você confiasse em mim. Será que ele tinha falado a mesma coisa para Hannah e as outras garotas? Será que tinha feito com que confiassem nele e depois as estrangulara até a morte? Kylie podia jurar que ele tinha olhado para a garganta dela. Um calafrio transpassou sua espinha. Ela ouviu o barulho dos outros campistas deixando o prédio. Della ainda estaria do outro lado da porta? Se ela gritasse, a amiga conseguiria socorrê-la a tempo? — Eu não sou de confiar fácil nas pessoas — disse Kylie. — Eu tive mesmo essa impressão. — Ele deu um passo na direção dela. Kylie deu um passo para trás, a presença dele fazendo-a prender a respiração. — Sabe o que mais eu não costumo fazer? — O coração da garota martelava de medo, mas ela lutou para não demonstrar.
Ele entrelaçou os dedos. Ela não conseguiu deixar de pensar se ele se lembrava de como se sentira ao usar as mãos para matar. — O quê? — ele perguntou. — Deixar que machuquem alguém que eu amo. — Kylie apurou os ouvidos e percebeu que nenhum som vinha do corredor. O único barulho que ecoava nas paredes recém-pintadas era o assobio do ventilador de teto. Della teria ido embora? Ele inclinou a cabeça para o lado. — Do que você está me acusando? — O que você fez? — Kylie encheu os pulmões de ar e prendeu a respiração. — Nada. Mentiroso! Ela podia sentir, senti-lo escondendo a verdade. — Como eu disse, não sou de confiar fácil. — Ela virou as costas e, a cada passo, esperou que ele a agarrasse por trás, apertasse as mãos em torno do seu pescoço, tirando a vida dela como tinha feito com as outras. Três dias depois, após ter de enfrentar outra aula de Hayden Yates e incapaz de pensar em nada que não fosse a ameaça que esse homem representava para Holiday, Kylie seguiu às pressas para o escritório. Burnett e Holiday estavam discutindo de novo; ela ouviu tudo o que falavam antes de chegar à varanda, mas não se importou. Bem, na verdade ela se importava, só não o suficiente para aquietar o alarme que soava dentro dela. Hayden Yates estava escondendo alguma coisa. E provavelmente era um assassinato. E até que Kylie pudesse convencer Burnett e Holiday disso, a vida de Holiday corria perigo. Entrando sem bater no escritório da líder do acampamento, Kylie bateu a porta atrás de si. — Eu não gosto dele! — Nem eu! — rosnou Burnett.
Holiday desviou os olhos de Kylie e olhou para Burnett. — Vocês dois não estão nem falando da mesma pessoa. Kylie olhou para Holiday, em busca de uma explicação. Exigindo uma explicação. — Blake se ofereceu para ajudar na investigação do desaparecimento de Hannah. Ele foi a última pessoa que a viu viva, por isso acho que devemos aceitar a ajuda dele. — Um suspeito ajudando na investigação; isso faz tanto sentido quanto fritar sorvete. Holiday apoiou os cotovelos sobre a escrivaninha. — Você não conseguiu encontrar nada que prove que ele é culpado. — Ele dormiu com a sua irmã! — Burnett gritou. — Culpado de cometer assassinato, não de não ter caráter! — E eu estou dizendo a vocês — insistiu Kylie. — Hayden é culpado. — Não há provas — disseram ao mesmo tempo. — Ele não demonstra suas emoções. Toda vez que abre a boca para falar alguma coisa, só fala meias verdades. Eu sinto isso. Burnett balançou a cabeça. — Eu investiguei a vida dele tão a fundo que posso praticamente dizer que dia deixou de usar fraldas. A cadeira de Holiday rangeu. — Kylie, se Hayden quisesse me ferir, ele já teria tido muitas oportunidades. Eu o entrevistei pela primeira vez quando estava fora de Shadow Falls, cuidando do enterro da minha tia. Éramos só nós dois. Kylie franziu a testa. — Não importa. Eu ainda... — Vocês dois estão errados — Holiday insistiu. — Blake não matou Hannah, nem Hayden. E, se continuarem tão obcecados com eles, nunca encontraremos o assassino. E talvez nunca encontremos os corpos de Hannah e das duas garotas. Os olhos de Burnett brilharam e Kylie pôde ler a sua mente. A preocupação dele não era encontrar os corpos; era proteger Holiday. O aviso de Hannah parecia iminente e Burnett sentia isso também. — Onde, diabos, está Hannah quando precisamos dela? — Burnett lamentou, com rispidez. Ele olhou para Kylie. — Você não a tem visto nem sentido? Nada? Kylie deixou-se cair no sofá. — A última vez foi quando ela viu Blake aqui no escritório. — Estão vendo? — esbravejou Burnett. — Ela provavelmente descobriu que pegamos o desgraçado. — Eu não acho. — Kylie quase temia discordar de Burnett quando ele estava nesse estado de ânimo, mas lhe parecia crucial convencê-los com seus argumentos. — Ela não parecia achar que estava tudo resolvido quando se foi. Ele cruzou os braços sobre o peito largo. — Será que não podemos ter uma sessão espírita? Dar as mãos e evocar Hannah? — Uma sessão espírita? — Holiday revirou os olhos. — Você tem muito que aprender sobre espíritos. — Eu não estou nem um pouco preocupado em aprender sobre espíritos. Só quero que Hannah apareça e me diga de uma vez por todas quem ela acha que quer ferir você. Na sexta pela manhã, Kylie tinha se esquivado do café da manhã e fugido da Hora do Encontro. Ela quase chegou atrasada para a aula de inglês. Obviamente, Burnett não era o único que precisava aprender sobre os espíritos. Kylie também não sabia o suficiente, pois, embora tivesse sentido a presença de Hannah nos últimos dias, e outra vez pela manhã, o espírito não se manifestou. Kylie tentou atraí-la da maneira como Holiday a aconselhara. Não adiantou. Ela chegou a implorar. Nada.
Sentada na sua carteira, ela apalpou o bolso da calça para ter certeza de que trouxera o celular. A leve protuberância em seu bolso a tranquilizou. Talvez ela estivesse sonhando, mas esperava que Lucas ligasse ou pelo menos lhe mandasse uma mensagem. Mas até o momento, nada. Isso a magoava. Na frente da sala, a senhorita Kane começou a falar sobre escritores famosos e os livros que os alunos deveriam ler nas primeiras seis semanas. Quem sabe Jane Austen e tantos outros fossem sobrenaturais? Kylie com certeza não sabia. Intrigada com a conversa, Kylie mal notou o barulho quando ele começou. Era só uma batidinha leve, com se alguém estivesse do outro lado de uma porta, querendo entrar. A batidinha foi ficando mais alta. Confusa, ela olhou ao redor e, estranhamente, ninguém mais parecia estar ouvindo nada. Sentindo uma estranha vibração, ela olhou para a frente outra vez. Quando o barulho ficou mais alto, um leve movimento à direita da professora chamou a atenção de Kylie. A porta de uma dispensa atrás da senhorita Kane sacudiu nas dobradiças, revelando de onde vinha o barulho. Olhando para a direita e para a esquerda, ela rezou para ver alguém, qualquer pessoa, percebendo como ela a óbvia interrupção. Nada. Então o frio típico dos fantasmas arrepiou os pelos dos braços de Kylie. Uma nuvem de vapor flutuou de seus lábios, prejudicando a sua visão. A senhorita Kane disse algo, mas Kylie não conseguiu ouvir sobre o barulho ensurdecedor. — Kylie? Kylie? — Alguém chamou seu nome. — O quê? — Kylie não conseguia pensar. Forçando-se a olhar para a frente, Kylie viu a professora olhando para ela como se esperasse uma resposta. Kylie tentou falar, mas só conseguiu balbuciar algo, sem que nem uma palavra inteligível deixasse seus lábios trêmulos. Então ela viu. Vapor, muito vapor, esgueirando-se de debaixo da porta da dispensa. Droga! Droga! Aquela não era uma visita normal de um espírito. Era mais como o início de uma visão.
Aquele pensamento fez com que a sua pele arrepiada se enchesse de brotoejas. Não porque as visões a enchessem de pavor, mas porque elas geralmente acabavam com Kylie inconsciente ou, pior do que isso, balbuciando coisas sem sentido. Não aqui!, implorou Kylie. Não na frente de 25 campistas. Ela sentiu um toque gelado no ombro. Olhou para trás. Uma mulher, a pele pálida acinzentada, com escuros círculos sob os olhos no mesmo tom, fitava Kylie. — Ela precisa ver você. — O espírito usava uma camisola branca e seus longos cabelos castanhos caíam soltos sobre os ombros. A mulher levantou uma mão e apontou para a porta da dispensa, na frente da classe. — Quem é você? — Kylie perguntou, notando que tinha se esquecido de falar apenas mentalmente. Todos os alunos estavam agora com os olhos colados nela. Kylie mal conseguia coordenar os pensamentos. E estava tão frio! Seus membros estavam até entorpecidos. — Quem está aí? — ela perguntou. A distância, como o ruído de estática, Kylie ouviu os outros falando. Outra pessoa a chamou pelo nome, talvez Della, e então ela pensou ouvir Derek, mas nada do que ela ouvia, ou sentia, parecia normal. — Ela precisa falar com você. De repente, percebendo que poderia ser Hannah atrás da porta, Kylie obrigou-se a ficar de pé e andar até a dispensa. Mesmo determinada, ela detestava ter que fazer isso na frente de todo mundo. Mas que escolha ela tinha? Seus joelhos vacilaram quando ela se aproximou da porta. Ela viu a senhorita Kane atrás dela, do outro lado da sala, o medo tornando sua pele mais pálida. Kylie entendia perfeitamente. Ela também estava morta de medo. Ela estendeu a mão na direção da maçaneta. Antes de tocá-la, um punho atravessou a madeira da porta. A mão de um esqueleto agarrou a frente da camiseta de Kylie e puxou-a através da porta destruída da dispensa. E, no entanto, não era mais uma dispensa. O lugar sombrio e abafado cheirava a terra, mato e morte. Kylie gritou. Forte. Alto. — Kylie? Kylie? — As vozes ecoaram a distância e depois desapareceram. Agora, o único som que ela ouvia além dos próprios gritos era o tinir de metal batendo contra metal. Ela estava deitada de costas no chão. Grãos de terra caíam em sua face, vindos de cima. Ela queria limpar o rosto, mas os braços estavam presos na lateral do corpo. Mesmo antes de abrir os olhos, ela sabia onde estava. Na cova — ela estava na cova com Hannah e as outras garotas. E alguma coisa lhe dizia que ela talvez nunca conseguisse sair dali.

Enterrada viva. O pânico tomou conta da mente de Kylie e comprimiu o seu peito com as suas garras. Ao abrir os olhos, ela só viu escuridão, mas sentiu mais grãos de terra caindo sobre ela. Ela piscou e sentiu terra sobre as pálpebras. — Por favor, eu não quero ficar aqui! — ela gritou na sua mente. Seus olhos se acostumaram à escuridão e as lágrimas entupiram seu nariz, mas ajudaram a limpar a terra dos olhos. Ela tentou respirar, mas a boca não abria; algo a mantinha fechada. Seus pulmões exigiam oxigênio, então ela inspirou o ar pelo nariz. A garganta se fechou ao sentir o cheiro, cheiro de morte e um aroma acentuado de ervas. Ela se forçou a virar a cabeça para confirmar o que já suspeitava: essa visão a colocara deitada dentro de uma cova. Ela viu uma longa mecha de cabelo vermelho ao lado do seu rosto. Como acontecera em outras visões, ela era o espírito. Ela era Hannah — mas, ao contrário da mulher cujo corpo ela encarnava, Kylie respirava. O pensamento de que estava no corpo de um cadáver causou-lhe outra onda de náusea. E mais uma a acompanhou quando ela viu um enorme besouro preto passar sobre os seus cílios. Suas pernas peludas atravessaram a sua bochecha e o inseto enfiou a cabeça na sua narina esquerda. Ela começou a resfolegar e lutar para se libertar, mas foi inútil. Ao virar a cabeça um pouco mais para a direita, viu o rosto de Cindy Shaffer. Um grito se formou na sua garganta, mas ele morreu na sua boca, que ainda estava tampada. Seu coração martelou no peito diante dessa visão. A pele do rosto da garota pendia solta, expondo o osso da mandíbula. Mas a boca estava coberta com fita adesiva. Ao olhar para baixo, Kylie viu a mesma fita. E o corpo em decomposição que ela encarnava estava preso com correntes. Será que isso simbolizava alguma coisa? Ou o assassino realmente tinha feito aquilo? Outro barulho de metal veio de cima. O olhar de Kylie voou na direção do barulho. Ela viu uma enorme barra de metal sendo cravada entre as ripas de madeira, que pareciam ser de um assoalho apodrecido. O pedaço de ferro passou por ela e sua superfície fria roçou no seu antebraço, preso na lateral. Uma das extremidades da barra tinha algum tipo de ornamento, uma cruz. Kylie reconheceu o emblema, igual ao que havia na grade e no portão enferrujados do cemitério. Passos soaram no assoalho acima dela, como se alguém estivesse se afastando, mas então voltaram a se aproximar, e outro pedaço de ferro enferrujado foi forçado através do buraco. Dessa vez, Kylie viu a mão da pessoa empurrando o ferro para dentro. Quando o braço passou quase em frente ao seu rosto, a manga da camisa se levantou ligeiramente, expondo a pulseira prateada de um relógio. O que eu preciso deduzir a partir disso? Kylie perguntou-se mentalmente, e olhou para a garota morta ao seu lado. Outra onda de pânico encheu seus pulmões quando uma cobra de mais de meio metro de comprimento deslizou sobre o seu peito, em direção à sua cabeça. A sensação fria e úmida dos músculos da barriga do réptil atravessando a sua bochecha fez com que um grito ficasse represado em sua garganta. Ela tinha que sair dali! — Está tudo bem. — A voz calma de Holiday fez com que os olhos de Kylie se abrissem no mesmo instante. Ela deu uma rápida olhada em volta. Estava no escritório de Holiday. Mas como viera parar ali...? A visão passou pela sua cabeça como um filme de terror em ritmo acelerado. O pânico voltou a tomar conta dela. Ela se sentou e se levantou do sofá num salto, espanando com as mãos os braços, as pernas e o rosto, na esperança de espantar a sensação de morte e de criaturas subterrâneas deslizando pelo seu corpo. — Está tudo bem — Holiday repetiu.
Não, não estava. Ela tinha se visto morta e havia uma cobra rastejando sobre o seu rosto e um inseto brincando de escondeesconde dentro do seu nariz. Isso significava que não estava tudo bem. Kylie respirou fundo, depois se curvou para a frente e vomitou — uma vez e depois de novo. Vomitou sobre os sapatos pretos de alguém. — Ah, merda! — praguejou uma voz grave. Kylie reconheceu a voz e os sapatos. Ela olhou para cima, viu uma expressão de nojo no rosto do vampiro durão e começou a se desculpar, mas de repente vomitou de novo. Ela não acertou os sapatos de Burnett dessa vez, mas atingiu em cheio a frente da camisa dele. — Mas que porr... — ele murmurou, deixando a palavra pela metade. Holiday passou o braço pelos ombros de Kylie. — Respire. Só respire. Vai ficar tudo bem. Ela guiou Kylie de volta para o sofá. Burnett, com os braços afastados da frente da camisa, passou a Holiday um pano úmido, que a líder do acampamento colocou sobre a testa de Kylie. A garota pegou-o e secou a boca, e então olhou para Burnett. — Acho que você precisa mais disso do que eu. — Lágrimas toldavam os seus olhos e todo o seu corpo tremia. — Desculpe. Ele olhou para a própria camisa e de novo para Kylie. — Não esquente. Kylie olhou para Holiday, sentindo uma sensação de calma fluindo do seu abraço, e tentou se lembrar exatamente do que tinha acontecido. Como ela tinha chegado ali... sua memória começou a encaixar as peças, uma por vez. No entanto, só precisou de algumas delas para começar a entrar em pânico outra vez. — Por favor, me diga que eu não surtei na aula de inglês. O olhar de Holiday se encheu de compaixão.
— Não é culpa sua. E Della trouxe você até aqui tão logo a tirou da dispensa. Kylie se recostou no sofá e começou a desejar que pudesse desaparecer, mas parou antes que seu desejo se realizasse de fato. — Eu odeio isso! Realmente odeio! Kylie olhou para o teto. Burnett deixou a sala, mas voltou em tempo recorde, vestindo outra camisa. Obviamente ele não deixava um par de sapatos extra no escritório, pois agora só usava meias. Depois de alguns minutos, Holiday perguntou a Kylie? — Você pode falar sobre o que aconteceu? — Eu era Hannah. Mas... A maioria das vezes que eu tenho esse tipo de visão e sou o espírito, o espírito não está morto e... na cova com insetos e cobras. — Kylie soltou o ar dos pulmões com um tremor. — Hannah está tentando mostrar algo a você. É disso que se tratam as visões — disse Holiday. — Conte o que aconteceu. Kylie engoliu um nó apertado na garganta. — Eu não sei o que ela queria me mostrar. Estávamos na cova. Havia cobras e insetos. Eu vi um monte deles. — Ela passou a mão no rosto, lembrando-se da cobra deslizando por sua bochecha. — Me conte tudo — Holiday pediu. — Tudo. Kylie começou seu relato, desde os passos sobre as tábuas apodrecidas do assoalho acima dela, até o cheiro de mato e as barras de ferro que pareciam vir do cemitério. Quando Kylie acabou, o semblante de Holiday estava pálido. — O que foi? — perguntou Burnett, sem deixar de reparar na expressão do rosto dela. — Alguém sabe que Hannah está tentando se comunicar. — Como você sabe? — perguntou Kylie. — A fita adesiva na boca das garotas e as correntes. Você disse que sentiu cheiro de mato e que viu alguém cravando barras de ferro do cemitério. No passado, elas eram chamadas de “ferro frio”. É basicamente ferro, mas benzido por wiccanos praticantes. Isso costumava impedir que os mortos saíssem das sepulturas e... as ervas, várias são usadas para silenciar os espíritos. Isso é o que ela estava tentando dizer a você. Que alguém está tentando impedi-la de se comunicar conosco. — E Blake sabe que você fala com fantasmas — acrescentou Burnett. — É lógico que Hannah procuraria você. — Mas, se for esse o caso, por que somente agora ele está tentando silenciá-la? Ele poderia ter feito isso desde o início. — Ela está certa — disse Kylie. — É alguém daqui. Hannah nos disse isso. E desculpe por ficar repetindo isso como um papagaio, mas Hayden Yates certamente ouviu alguém dizer que eu converso com fantasmas. Todo mundo aqui sabe disso. — E, se não ouviu, o que aconteceu hoje bastou para que ele descobrisse. Holiday torceu o cabelo com as mãos e depois encontrou o olhar de Kylie. — Eu não quero suspeitar de ninguém daqui — ela disse, e depois olhou para Burnett. — Mas Kylie tem razão. Pode ser alguém de Shadow Falls. E, se o ferro era do cemitério de Fallen, então o corpo de Hannah e das outras está aqui por perto. — Muito bem — grunhiu Burnett. — Eu vou voltar e verificar todos os bancos de dados da UPF para ver se encontro algo sobre Hayden Yates. Até lá, não deixe esse homem chegar perto de você. — Eu ainda não acho que seja Hayden — teimou Holiday. — E eu ainda acho que é — discordou Kylie. — Quem mais poderia ser? — Burnett perguntou. — Um dos novos alunos ou professores — disse Holiday —, mas... — A maioria dos assassinos seriais são homens. E eu não acredito que um adolescente seja capaz de fazer isso. — E Hannah vive chamando o assassino de “ele” — lembrou Kylie. Burnett bufou. — Eu não acredito que Collin Warren consiga olhar para uma pessoa por tempo suficiente para matá-la.
— Mas ele é estranho — disse Kylie. No entanto, os seus instintos lhe diziam que Hayden Yates não era flor que se cheirasse. — Ser extremamente tímido não faz de ninguém um assassino — Holiday observou. — Só faz dessa pessoa alguém antissocial. Burnett balançou a cabeça. — Mas só para ter certeza, vou fazer algumas investigações sobre ele também. Você fique longe dos dois. Holiday revirou os olhos. — Como eu vou dirigir esta escola sem falar com nenhum dos pro- fessores? — Eu poderia deixar você trancada na minha cabana — ameaçou Burnett. — Bem que você gostaria... — brincou Holiday. Os olhos de Burnett brilharam e um leve sorriso ergueu ligeiramente os cantos de seus lábios. — Pode apostar. Kylie sorriu por um segundo também, captando a mensagem implícita de Burnett. Depois, por alguma razão, Kylie pensou em Lucas e começou a sentir falta dele, desejando que estivesse ali para ajudá-la a lidar com tudo aquilo. Nunca se apaixone, princesa. Machuca demais. As palavras do padrasto ecoaram na cabeça de Kylie e nesse mesmo instante ela soube: amava Lucas. Como se a epifania desse um novo estímulo ao coração e à mente de Kylie, ela de repente se lembrou do momento em que estava na dispensa da classe da senhorita Kane, gritando a plenos pulmões. Fechou os olhos, sentindo o constrangimento tomar conta dela. Se algum campista ainda não tinha certeza de que ela era uma aberração, agora não restava mais nenhuma dúvida. Kylie sentiu Holiday pousar a mão delicada em sua cintura, como se sentisse a sua angústia. Seu toque não surtiu muito efeito dessa vez. Kylie estava apaixonada por Lucas, um garoto que não podia nem ser visto em público com ela, e ela tinha feito um papel ridículo diante de todo mundo, graças a uma das suas visões fantasmagóricas. — Burnett — Holiday falou suavemente —, por que não vai arranjar outro par de sapatos e me dá um minutinho a sós com Kylie. O fato de ficar sozinha com Holiday fez com que Kylie se permitisse desabar e cair no choro. Ela encostou a cabeça no ombro da líder do acampamento e começou a soluçar. Holiday abraçou-a tão forte que Kylie chorou ainda mais. Depois de alguns minutos, falou: — Eu lamento tanto! Hannah não devia ter te procurado. Você é muito jovem para lidar com uma coisa dessas. As palavras de Holiday puseram um ponto final na autopiedade de Kylie. Ela se afastou do ombro da amiga. — Não. Quero dizer, claro, é difícil, mas isso é o que eu faço. Eu faria isso por um estranho. E farei pela sua irmã quantas vezes for necessário. — E se isso significasse impedir que alguém machucasse Holiday, faria mais vezes ainda. Kylie secou as lágrimas e suspeitou de que estava com o rosto vermelho e inchado. Não que isso a incomodasse. Ela estava com Holiday. Sua mentora, sua irmã mais velha. Sua amiga. — Além disso — acrescentou Kylie —, não é só por causa da visão. É por causa de Lucas. Eu acho que o amo. Não, eu tenho certeza disso. Ah, droga! Eu estou apaixonada por um garoto que não pode me amar. Holiday acariciou a bochecha de Kylie. — Ei, espere aí. Ele talvez não deva se apaixonar por você, mas isso não significa que não possa se apaixonar ou que já não esteja apaixonado. Kylie deu um profundo suspiro, tentando não cair no choro outra vez. — Ele não disse que me ama. Quero dizer, eu também não disse, mas... Derek disse que me ama. E... — Ela fechou os olhos, tentando descobrir como colocar aquilo em palavras. — E às vezes fico confusa sobre o que eu sinto por ele, mas neste momento, vendo o que você e Burnett vivem juntos, ou o que vocês poderiam viver, eu percebi que quero isso também. Estou cansada de esconder o que sinto e ter medo disso. As lágrimas que Kylie reprimia afloraram nos olhos de Holiday. — O amor sempre assusta. Kylie sentia as emoções de Holiday se misturando às suas próprias. — Não deveria assustar — disse Kylie. — Burnett ama você. Até eu posso ver. E eu sei que você o ama. Não perca algo tão maravilhoso porque está assustada. — Eu só preciso de um tempo — explicou Holiday. — Tempo que talvez a gente não tenha. A vida é frágil. Veja Hannah, Cindy e a outra garota. Elas não têm mais oportunidade de amar. Nós temos essa chance e não estamos aproveitando. Eu devia ter contado a Lucas o que sinto. Eu devia tê-lo obrigado a ser sincero comigo sobre o que está acontecendo com ele. Você devia falar para Burnett o que sente. Holiday mordeu o lábio inferior. — Achei que eu era a conselheira aqui. — Você é, mas, bem, a coisa se inverteu — disse Kylie. As coisas mudam. Kylie só esperava que, se tudo mudasse na sua vida, pelo menos Shadow Falls permanecesse. O pensamento de perder Holiday e todos ali, até os que considerava meio malucos, era demais para ela. Eles eram a sua família. Naquela noite, Kylie tentou provocar um sonho lúcido com Lucas, mas não funcionou. Ela mandou uma mensagem para ele, depois telefonou e até enviou um e-mail. Nenhuma resposta. Então, às duas da manhã, enquanto ela olhava para o teto, o telefone tocou. Kylie agarrou o aparelho sem se incomodar em olhar o identificador de chamadas. — Lucas? — disse ao mesmo tempo que acendeu a lâmpada do abajur. O frio no quarto chegou mais rápido que a luz.
— Desculpe — disse a voz do outro lado da linha. — Sou só eu.
Kylie estremeceu e depois franziu a testa quando reconheceu a voz.
— Eu só tentei... — Tudo bem — disse Derek, mas seu tom de voz revelava que não estava tudo bem. — Eu simplesmente acordei e senti a sua preocupação. Tentei te ligar mais cedo para ver como você ficou depois da visão, mas você não atendeu nem ligou de volta. Kylie puxou as cobertas até o pescoço. O espírito ao lado da cama se desvaneceu, mas, antes de desaparecer completamente, Kylie reconheceu a mesma mulher que a procurara antes. Lembrando quem estava do outro lado da linha, o peito de Kylie se encheu de emoção. — Eu... É loucura. — Ela sabia que ele tinha ligado. Só não queria falar com ele por causa da tempestade emocional que sentia com relação a Lucas. Não era justo com Derek, porque, embora ela não estivesse fazendo nada errado, ela sabia que a amizade entre eles dava a Derek esperança de que ela mudasse de ideia, e ela não achava que isso fosse acontecer. — Você está mais distante... — ele se queixou. — Derek, é que... — Kylie, você não precisa se explicar. Eu sei. — Ele fez uma pausa. — Tudo bem. Algum dia eu vou conseguir dizer isso numa boa, de coração aberto. — Você é um cara especial — disse Kylie, triste por ele. — Eu sei — ele disse, com uma risadinha. — E é por isso que não estou desistindo de uma vez por todas. Mas estou me esforçando para isso. Só liguei para saber de você. — Eu estou bem. — Então, boa noite. — O sentimento de rejeição era evidente na voz dele. — Derek, eu realmente... — Apenas diga boa-noite, Kylie.
— Boa noite — ela sussurrou, e nada a deixou mais triste do que o silêncio do outro lado da linha, quando ele desligou. Colocando o celular na mesinha de cabeceira, Kylie olhou em volta. O frio vindo do espírito tinha diminuído, mas ela tinha a sensação de que ele ainda estava por perto. — Quem é você? — perguntou Kylie. A mulher não respondeu. E por que deveria? Os fantasmas nunca facilitavam as coisas. Mas por acaso os vivos facilitavam? — Kylie! Kylie! — A voz arrancou-a de um sono profundo, antes do nascer do sol, na manhã seguinte. Ela se sentou na cama, calafrios percorrendo seu corpo como aranhas. Sem nem mesmo saber por que, seu sangue borbulhou com a necessidade que sentia de oferecer proteção. De proteger alguém. Ainda sonolenta, ela tirou o cabelo do rosto e ficou de pé no meio do quarto, com a respiração um pouco ofegante. Seu pulso estava acelerado e o pânico crescia em seu peito, pressionando seus pulmões. Alguma coisa estava acontecendo. Ela podia sentir. Alguém precisava dela. Alguém precisava da sua proteção. Mas quem? Sua mente dava voltas enquanto ela tentava entender o que estava sentindo. Então Kylie se lembrou da voz. Ela a repetiu mentalmente, várias e várias vezes, até finalmente reconhecê-la. — Oh, não! — ela agarrou a calça jeans e uma camiseta. Holiday estava em apuros.

Um pouco antes de Kylie sair do quarto, ela consultou o relógio ao lado da cama. Cinco da manhã. Holiday já deveria estar no escritório. Kylie disparou para o quarto de Della, mas a garota não estava lá. Provavelmente estava em alguma cerimônia matinal de vampiros. Kylie não esperou mais nem um segundo; irrompeu para fora da cabana e voou como o vento na direção do escritório. O único peso que sentia era no coração, como se ele soubesse que a situação de Holiday era grave. Realmente grave. Quando Kylie chegou à cabana, deparou-se com a porta escancarada. Não era um bom sinal. O pior era que havia vidro estilhaçado no assoalho úmido da entrada. A alça quebrada do bule de café estava no canto do cômodo, outro sinal de que havia ocorrido uma luta ali. — Onde você está, Holiday? — A voz dela tremia. Lágrimas toldaram seus olhos e ela tentou pensar. Burnett. Ela precisava entrar em contato com ele. Estendeu a mão para pegar o celular no bolso, quando percebeu que o aparelho não estava ali. Correu para a sala de Holiday. O cômodo parecia intacto. A pessoa que levara a líder do acampamento a tinha surpreendido na entrada. Ele provavelmente esperara até ela chegar pela manhã, ou talvez tivesse entrado na cabana enquanto Holiday fazia café. Com as mãos tremendo, Kylie pegou o telefone do escritório. Ela não se lembrava do número de Burnett. Seria mais rápido ir até a cabana dele do que procurar seu número. Ela disparou na direção da cabana de Burnett, os pés mal tocando o chão. Não sabia se tinha se transformado em vampiro ou se tinha mais força quando seu lado protetora entrava em ação.
Não importava. Só havia uma coisa importante, um pensamento ecoou na sua mente. Salvar Holiday. Ela tinha que salvar Holiday. Ao chegar à cabana de Burnett, nem bateu na porta. Gritou o nome dele quando entrou, mas não obteve nenhuma resposta. Nada. Ela o procurou no quarto. A cama estava vazia. Lembrando-se do ritual dos vampiros, ela disparou para fora da cabana. Della havia comentado uma vez onde eles realizavam o ritual. Ela correu pelos bosques, sem se importar com a promessa de nunca interferir num ritual de vampiros. Se ela arranjasse problemas, enquanto estava no modo protetora, podia chutar alguns traseiros e fazer perguntas depois. Kylie atravessou uma fileira de árvores e entrou numa clareira. O vento uivava enquanto ela corria. Fazendo uma parada abrupta, ela se viu rodeada por cerca de meia dúzia de vampiros zangados, os olhos brilhando ao ver um intruso em seu ritual. Para sorte dela, os vampiros de Shadow Falls provavelmente não a atacariam. Isso era bom, pois mesmo no modo protetor ela não tinha certeza se conseguiria dar conta de seis deles ao mesmo tempo. — Onde está Burnett? — perguntou Kylie. — Ou Della? — O que aconteceu? — Burnett apareceu ao lado dela. Kylie não respondeu. Não precisava. Ele viu nos olhos dela. — Holiday? — O som da voz dele fez Kylie sentir uma dor no peito. Seu sangue bombeou mais rápido. Kylie prendeu a respiração. — Ele a levou. — Quem? — ele perguntou, autoritário, enquanto Della parava ao seu lado. — Eu ainda não sei — Kylie respondeu, os olhos ardendo por causa das lágrimas. Mas era bom que descobrissem, e rápido, antes que fosse tarde demais. Três minutos depois, assim que Kylie explicou tudo, Burnett distribuiu ordens a todos os vampiros, e a Kylie também, para que procurassem Holiday por toda a propriedade de Shadow Falls. Se ela ainda estivesse ali, eles a encontrariam. Burnett seguiu direto para o escritório, para ver se conseguia encontrar pistas e ver se o alarme estava funcionando. Kylie seguiu para o leste do acampamento. Mas, quando passou pela trilha que levava à cabana de Hayden Yates, ela deu meia-volta. Entrou na varanda a toda velocidade. Ouviu o professor andando lá dentro. Ouviu-o conversando com alguém. Ela invadiu a cabana sem bater na porta e, opa!, esqueceu-se de abri-la primeiro. A porta desabou no chão com um estrondo. Hayden estava de pé ao lado do sofá, o moletom com capuz numa mão, como se ele tivesse acabado de tirá-lo, e o celular na outra. Seu cabelo preto estava ainda mais preto, molhado de suor. Sua pele estava corada, como se ele tivesse corrido. Mas do quê? Ou melhor, de onde? — Onde ela está? — O tom de voz de Kylie era profundo, cheio de fúria e ameaça. Ele tirou o telefone do ouvido. — Onde está quem? — ele perguntou, inocente. — Não venha com essa conversa pra cima de mim. — O sangue de Kylie agora borbulhava nas veias. Sua paciência, se tivesse alguma, já tinha se esgotado. Ele atirou o moletom e o telefone no sofá, onde havia também um relógio. Um relógio de pulseira preta. — Você é uma vampira agora. Tente ouvir o meu coração para comprovar que estou dizendo a verdade. Kylie já tinha ouvido o seu batimento cardíaco, mas não fazia diferença. Também não fazia diferença que o relógio do professor não fosse igual ao que ela vislumbrara na visão. Ele podia ter dois relógios. — Isso só funciona com pessoas que têm consciência. — E você está presumindo que eu não tenha.
— Você está escondendo alguma coisa desde que chegou aqui. — Ela deu um passo na direção dele. Sua intenção era obter respostas, e como as conseguiria, para ela tanto fazia. Ele aparentemente captou o ânimo de Kylie, porque ergueu as mãos, com as palmas para cima. — Talvez, mas não é o que você pensa. Eu não fiz nenhum mal à sua querida amiga. — Eu não disse isso! Então, como, afinal... — Eu não sou idiota. Burnett vigia a cabana dela quase todas as noites. — Se você a feriu, eu mato você. — Ela não recuou ao ouvir as próprias palavras. Era verdade. Por Holiday, Kylie mataria. Mas e se ela tivesse falhado com Holiday e já fosse tarde demais? Raiva, medo e amor queimavam em seu peito. Suas mãos tremiam. — Eu não tenho dúvida de que você poderia me matar — disse Hayden, mantendo uma postura submissa. — A sua força neste momento é quase... palpável. — Ele inspirou e ela podia jurar que ele parecia sincero, até respeitoso. — Não cabe a mim — ele hesitou novamente — falar nada. — Ele correu a mão pelo cabelo. — Provavelmente eu ganharia mais ficando calado. Mas, infelizmente, ao contrário do que você pensa, eu tenho uma consciência. Ele fechou os olhos e, quando os abriu, ela viu neles total sinceridade. E viu outra coisa, mas não tinha certeza do que era. Algo sobre ele que parecia... familiar de um jeito estranho. — Eu vi Collin Warren perambulando por aí esta manhã. E algo me diz que não estava fazendo coisa boa. Kylie ouviu o coração de Hayden falar a verdade. Ela continuou a estudar os olhos dele, que não pareciam esconder nenhuma desonestidade. — Quem é você? — ela perguntou. Ele levantou as duas mãos e tirou o cabelo da testa. — Veja você mesma.
Kylie de fato viu. Seu padrão era o mesmo do pai dela. Hayden era... um camaleão. Ela perdeu o fôlego. Ele tinha todas as informações de que ela precisava, mas não podia perguntar agora. Porque mais importante do que obter essas respostas era zelar pela vida de Holiday. Então os olhos dela se desviaram para o sofá e ela percebeu que ele de fato tinha uma coisa de que ela precisava. Kylie pegou o celular do professor e saiu da cabana enquanto o ouvia protestar. * * * Kylie saiu voando da varanda. O nascer do sol tingia o horizonte de cores vívidas, embora ela não tivesse tempo para apreciar a paisagem. Colocou o telefone no ouvido e percebeu que tinha um problema. Não conseguia se lembrar do número de Burnett. Então ligou para Della. A amiga não atendia, droga! Kylie deixou uma mensagem, contando sobre as suas suspeitas: Collin Warren estava com Holiday e Kylie estava procurando por ele agora. Ela não diminuiu o ritmo, não parou até estar na frente da cabana de Collin. Apurou os ouvidos. Nenhum som vinha dali de dentro. Mas ela tinha que ver com os próprios olhos. Começou a subir os degraus da varanda quando ouviu passos suaves atrás dela. Com o coração na boca, Kylie se virou, esperando dar de cara com Collin, mas se deparou com Fredericka. — Por que você está aqui, andando de fininho desse jeito? — a loba perguntou. Kylie não tinha tempo para explicações, por isso se virou para a cabana novamente. A porta estava trancada, então a garota simplesmente quebrou a porta e entrou. Já tinha feito isso na cabana de Hayden, por que não faria de novo? Fredericka ofegou atrás dela. Kylie ignorou.
Ela entrou no quarto de Collin, procurando qualquer coisa que a ajudasse a encontrar Holiday. — O que está acontecendo? — perguntou Fredericka, seguindo Kylie até o interior do quarto. — Vá embora. Não tenho tempo para bobagens. — Kylie abriu uma gaveta e tirou de dentro tudo o que havia ali. — O que está acontecendo?! — insistiu Fredericka. Kylie suspirou. — Holiday está desaparecida e eu acho que este maluco a levou. — Merda! — xingou Fredericka. — Eu sabia que ele era estranho. Kylie fez menção de sair. — Espere! — pediu a loba. — Eu segui Collin alguns dias atrás. Ele foi até uma velha cabana no parque selvagem, aqui perto. — Onde? — Kylie perguntou, rispidamente; todos os seus instintos pareciam estar em alerta. — Eu... eu mostro onde é. — Fredericka ergueu as mãos, mostrando as palmas, como se temesse Kylie. Elas correram pela floresta. Ter de diminuir o ritmo por causa de Fredericka estava tirando a paciência de Kylie, mas ela segurou a língua. Normalmente, não confiaria na garota, mas algo lhe dizia que a outra não estava armando nenhum truque nesse momento. Sem dúvida Fredericka sabia que Holiday tinha se desdobrado para que ela viesse a Shadow Falls e permanecesse ali. Chegaram aos portões do acampamento. Kylie saltou sobre ele sem dificuldade. Fredericka só conseguiu por um triz e aterrissou com tudo no chão do outro lado. Kylie hesitou e olhou para trás. — Estou bem — a garota rosnou, pondo-se de pé. Eu não perguntei. Kylie mordeu a língua. Elas começaram a correr novamente, mas o celular de Hayden tocou. Kylie tirou-o do bolso e viu o nome de Burnett. Obviamente, Della tinha lhe dado o número do professor. — Onde diabos você está? — Burnett grunhiu. — E por que está com o telefone de Hayden Yates? Kylie e Fredericka chegaram à cabana antes de Burnett. Mas ele dissera que estava a caminho, o que significava que logo chegaria. O mato crescia em torno da cabana, como se estivesse abandonada. Os sons da noite de repente silenciaram. Burnett devia estar por perto. Ele tinha mandado que elas esperassem por ele antes de entrar. Mas Kylie ouviu algo ali dentro. Apurou os ouvidos. Deus do céu! Ela só ouvia uma pessoa respirando ali dentro. O medo lhe tirou o fôlego. Seu sangue borbulhou com tanta intensidade que quase a incendiou. Proteger Holiday. Proteger Holiday. As palavras ecoavam em sua mente como uma litania. Ela fez um gesto para que Fredericka ficasse ali. Os olhos da garota brilharam com um lampejo de rebeldia. Kylie não tinha tempo para discussões. Disparou para a cabana; a porta foi estraçalhada, as paredes sacudiram. Collin Warren saltou assustado. Aos seus pés jazia Holiday. Imóvel e sem vida.

Os olhos de Collin se encheram de medo ao ver Kylie; uma aura de pura maldade parecia envolvê-lo. Kylie foi para cima de Collin Warren e lançou-o no ar, através da cabana. Ela ouviu seu corpo bater no assoalho de madeira com estardalhaço. O gemido do homem atravessou o cômodo, mas Kylie não o viu cair. Ela ouviu um tumulto atrás dela. Fredericka gritou. Kylie ignorou. Ajoelhada ao lado de Holiday, Kylie desamarrou a corda em torno da garganta da amiga. — Ela está morta? — Kylie ouviu Fredericka perguntar. A pergunta flutuou pelo cômodo... sem resposta. O olhar de Kylie estava fixo em Holiday. Seu coração, preso no fato de que ela tinha tentado salvar Ellie e falhara, tinha tentado salvar Roberto e falhara também. Os passos de Burnett soaram dentro da cabana; ela o ouviu arquejar de pura angústia. Ele sabia. Sabia que Holiday estava morta. Kylie não olhou para ele. Tudo o que ela tinha — tudo no que queria acreditar — estava concentrado em Holiday. Aquilo não podia estar acontecendo. Não com Holiday. — Não! — Kylie gritou. Não com Holiday, que sempre estivera ao lado de Kylie; sempre a ouvira e sempre se importara com ela. Lembranças das duas juntas pipocaram em sua mente. Lembranças das duas rindo, sentadas lado a lado na cachoeira, até tomando sorvete enquanto falavam de decepções e garotos. Quantas vezes Holiday tinha oferecido a Kylie o seu toque carinhoso e reconfortante?
— Você não pode nos deixar! — rogou Kylie com um soluço. Lágrimas rolavam pelas suas faces e pingavam no rosto pálido da fae. Kylie passou as mãos pela pele machucada da garganta da amiga. Quando não sentiu as próprias mãos se aquecendo; então ela fechou os olhos e rezou. Deus, me permita salvá-la. Você me deu este poder, agora me deixe usá-lo. Eu pago o preço que for preciso, até com a minha própria vida. Você está me ouvindo? Troco a minha vida pela dela! Uma sensação de calor se avolumou no peito de Kylie e então lentamente se espalhou por suas mãos. Elas formigaram e depois foram ficando cada vez mais quentes. O corpo de Holiday parecia tão frio, tão sem vida sob as palmas de Kylie, mas ela não parou. Não podia parar. — Kylie está brilhando outra vez. — A voz de Fredericka soava a distância. Mas mesmo com a luz de Kylie se espalhando por todo o cômodo, Holiday não reagia. Outro arquejo de dor emergiu do peito de Burnett. Esse foi o último som que Kylie ouviu antes de sua visão escurecer. Kylie se viu envolvida pela escuridão. Sua mente estava exaurida. Onde ela estava? Por que se sentia tão esgotada? Tão morta? Ela tentou abrir os olhos, mas o esforço exigido foi demais para ela. Acorde! Acorde!, uma parte do seu cérebro ordenava. O sentimento de urgência se avolumou no seu peito e ela lutou para clarear os pensamentos. Quando a confusão e a exaustão começaram a se dissipar, ela recobrou a consciência. Estava nos braços de alguém, alguém que corria a toda velocidade. O corpo de Kylie sacudia, a cada passo que a pessoa dava. Ela forçou os olhos a se abrir e olhou para cima... Fredericka? O que ela estava fazendo? — Me coloque no chão — mandou Kylie.
— Burnett disse para eu carregar você — Fredericka respondeu com rispidez. — Acredite, também não gostei nem um pouco. — Me coloque no chão! — insistiu Kylie. A loba fez uma parada abrupta e largou-a sem nenhuma gentileza. A dor que sentiu ao se chocar contra o chão despertou Kylie por completo. Collin Warren tinha matado Holiday. Holiday... estava morta. A dor transpassou o coração de Kylie. Pondo-se de pé, ela viu Burnett segurando nos braços o corpo sem vida de Holiday. Kylie correu até ele. — Deixe-me tentar outra vez! — Kylie implorou. — Você já tentou — ele respondeu com amargura. — Mas talvez dessa vez... — Kylie! Você já a salvou — disse Burnett. — Ela está fraca, mas respirando. Agora, deixe Fredericka carregar você de volta ao acampamento, para que possamos ajudar vocês duas. — Eu estou bem — Kylie insistiu. — Você ainda está brilhando, Kylie — Burnett observou. — E eu não sei o que isso significa. Kylie também não sabia. Mas não se importava. Ela fitava o peito de Holiday, esperando vê-lo se expandir, enchendo-se de oxigênio. Enquanto isso, segurava a própria respiração. Só quando Holiday respirou é que Kylie deixou que o ar penetrasse em seus pulmões sedentos. — Vamos — murmurou Burnett. — Um médico nos espera no acampamento. Kylie se forçou a correr, mas não conseguiu ser tão rápida quanto antes. Todos os seus músculos pareciam queimar. Não que ela estivesse reclamando. Holiday estava viva e ela também. Nada mais importava.
Kylie sentou-se na sala de estar de Holiday, em silêncio e ainda brilhando, enquanto o médico examinava Holiday no quarto. Burnett, de pé, escutava atentamente o que se passava no outro cômodo. Todos os outros alunos se aglomeravam no refeitório. As aulas tinham sido canceladas enquanto todos esperavam notícias. Kylie se perguntou se Holiday sabia quanto era amada. Que todo mundo, até Fredericka, gostava dela. Todo mundo exceto... Collin Warren. As perguntas se sucediam na mente de Kylie. Ela olhou para Burnett. — O que aconteceu com Collin? Burnett balançou a cabeça. Kylie sentiu um nó no estômago. Ela se lembrou de ter atirado o homem no ar, lembrou-se de ter ouvido o ar escapando dos seus pulmões. Será que sua alma tinha escapado do corpo também? Ela tinha dito que mataria por Holiday, e era verdade, mas agora o pensamento de que pudesse ter tirado uma vida a deixou com vontade de vomitar. — Eu mat... Burnett sacudiu a cabeça. — Fredericka. Ela disse que ele veio pra cima de você com uma faca. Ela o atacou. Eles lutaram. Ele perdeu. Kylie agora se lembrava de ter ouvido uma luta, mas a ideia a deixou atônita. — Fredericka salvou a minha vida? — Ah, mas que inferno! Ela não queria ficar em débito com ninguém que a odiasse. Então não pôde deixar de se perguntar por que a loba tinha feito aquilo. Ela podia ter deixado Collin matá-la. Burnett olhou para Kylie como se lesse seus pensamentos. — Ela se comporta muito mal, mas não acho que seja tão ruim quanto as pessoas pensam. — Ele hesitou. — Isso acontece quando se cresce como um delinquente. As pessoas pensam o pior de você, e isso só faz com que fique mais fácil deixar que elas pensem que têm razão do que provar que estão erradas. — Ele olhou mais uma vez para a porta do quarto. — Holiday acreditava que ela podia ser salva. Lucas também. Kylie ficou sentada ali, remoendo seus pensamentos. Sobre Fredericka e depois sobre Lucas. Ela sentia falta dele. Queria que ele estivesse ali. Então recapitulou as palavras de Burnett e percebeu, pelo tom de voz dele, a pessoalidade do seu comentário. Isso acontece quando se cresce como um delinquente. Uma peça do quebracabeça sobre quem era Burnett de repente se encaixou. — Você foi criado num lar adotivo como Perry, não foi? O olhar de Burnett manteve-se fixo na porta. — Ela vai ficar bem. — Um sorriso deixou seu olhar mais brilhante. — O médico acabou de dizer que ela vai ficar bem. — Ele levantou as duas mãos e entrelaçou-as atrás do pescoço. Quando olhou para Kylie, ainda estava sorrindo. — Sim, cresci num lar adotivo. Por quê? Você está se perguntando por que eu sou um filho da mãe sem coração? Se é porque cresci como um delinquente? Ouvindo o bom humor e o alívio na voz dele, Kylie sorriu. Ela sabia que, se não estivesse tão aliviado com o diagnóstico do médico, provavelmente estaria contrariado por Kylie ter descoberto. Então a oportunidade lhe ocorreu. — Não, mas estou me perguntando se é por isso que é tão difícil para você dizer a Holiday o que sente por ela. Admitir que a ama. E eu acho que ela realmente precisa ouvir isso. Ele arqueou as sobrancelhas. — Não sou eu quem não deixa ninguém se aproximar. — Mas você também não disse a ela o que sente. E tem que confiar em mim quando digo que uma mulher precisa ouvir isso. Alguns minutos se passaram em silêncio; ela sabia que Burnett estava pensando no que ela tinha dito, e aquilo era bom. Mas então o vampiro voltou a olhar para ela com um olhar interrogativo. — Como Hayden Yates sabia sobre Collin Warren?
Kylie escolheu as palavras com cuidado. Ela não tinha contado a Burnett que Hayden era um camaleão e não tinha certeza se deveria contar. — Quando eu fui à cabana dele, ele tinha acabado de voltar, estivera fora, correndo. Eu o acusei de estar envolvido. Ele negou. Disse que tinha visto Collin e que o homem parecia suspeito. Burnett refletiu sobre o que ela contou. — Supostamente, Collin nunca foi uma pessoa sociável, mas ninguém vira nenhuma maldade nele até agora. — Burnett fez uma pausa. — Como você acabou ficando com o celular de Hayden? — Eu tinha esquecido o meu quando saí da cabana. Então... confisquei o dele. — Ela deu de ombros. — Você sabia que ele tinha me enviado uma mensagem, dizendo que estava com uma emergência na família e que tinha que deixar o acampamento por alguns dias? Kylie tentou não demonstrar a sua decepção. — Não, eu não sabia. — Você ainda acha que ele está envolvido? — Burnett perguntou. — Se acha, eu o trago para cá outra vez. — Não — Kylie respondeu com franqueza. — Eu estava errada. Ele não tem nada a ver com Holiday. Até ajudou a salvá-la. Burnett analisou Kylie. — E você não acha suspeito que ele tenha saído do acampamento agora? — Talvez um pouco — disse Kylie, para não ser pega numa mentira. — Mas tenho certeza de que ele não tem nada a ver com o desaparecimento de Holiday. — Mesmo assim eu vou interrogá-lo quando ele voltar — disse Burnett. Eu também. Kylie balançou a cabeça. Se ele voltar. Seu coração se apertou. Então ela se lembrou de que estava com o telefone dele no bolso de trás. Hayden Yates tinha que estar trabalhando para o avô dela. E se isso era verdade, o avô estava provavelmente em contato com Hayden. Isso significava que ela poderia ter acesso ao telefone dele. Se o avô não tivesse mudado seu número outra vez. Trinta minutos depois, após Burnett ter feito uma visita a Holiday, Kylie entrou no quarto dela. Com o cabelo ruivo parecendo ainda mais vermelho em contraste com os lençóis, Holiday parecia muito pálida, mas estava viva. O hematoma em sua garganta ainda era bem visível. Ela tocou a garganta e fez um gesto para que Kylie lhe passasse a água sobre a mesinha de cabeceira. — Você me trouxe de volta. — A voz de Holiday estava rouca, dolorosamente rouca. — Mas eu não curei você completamente. — Ouvir Holiday falar causava um nó na garganta de Kylie. — Você quer que eu tente, para ver se consigo...? Holiday balançou a cabeça. — Acho que você já fez o bastante. Parece cansada. Kylie se sentia cansada, mas não a ponto de não poder tentar. — Eu poderia... — Não. Eu vou me curar. — Holiday parecia preocupada. — Você ainda está brilhando. — Eu sei — disse Kylie. — Mas vai passar, certo? Holiday assentiu, mas não pareceu muito confiante. Então ela fez um gesto para que Kylie se sentasse na cadeira ao lado da cama. — Eu consegui ver Hannah antes de ela fazer a passagem. Quando eu estava morrendo, tudo pareceu desacelerar e ela veio me ver. Nós conversamos. Acertamos nossos ponteiros. — Lágrimas afloraram nos olhos verdes de Holiday. — Nada disso teria sido possível se não fosse por você. Obrigada. Eu sei o preço que teve que pagar e prometo viver a minha vida de um jeito que não custe nem uma minúscula parte da sua alma. Kylie pegou a mão da amiga e a apertou.
— Acho que você nunca viveu de outro jeito. — Eu posso me esforçar mais. — Holiday engoliu em seco. — Nada como morrer para aprender a viver. Kylie sorriu. — Espero que esteja se referindo a Burnett. Holiday sorriu. — Aquele vampiro idiota acabou de me pedir em casamento. Mas aqui? E agora? Como se eu quisesse receber uma proposta de casamento quando estou com a aparência de quem acabou de morrer. O coração de Kylie deu um salto de alegria. — E o que você respondeu? Holiday tomou um gole de água. — Eu perguntei a ele se não poderíamos simplesmente viver juntos em pecado. Kylie franziu a testa, mas então ela viu algo nos olhos de Holiday. — E então? — Ele me disse que não seríamos um bom exemplo para os alunos. Então... concordei em me casar. — Ela passou uma mão pela testa. — Meu Deus, em que eu fui me meter? Ele não é um homem fácil de lidar. — Eu estou ouvindo! — Burnett gritou da outra sala, com uma risadinha na voz. Holiday revirou os olhos. Kylie apertou a mão da fae um pouco mais. — Ele ama você — sussurrou. — Sim, é o que ele diz. — Ela afundou mais a cabeça no travesseiro, parecendo exausta, mas também feliz. Kylie sentiu que tudo estava se encaminhando. Ela tinha conseguido. Ou pelo menos tinha ajudado. Burnett e Holiday estavam juntos.
Mas não pôde deixar de se perguntar se ela e Lucas teriam a mesma sorte. Holiday olhou para o teto por um segundo. — Eu também vi a sua avó, Kylie. — Nana? — Kylie perguntou. — O que ela disse? — Não, não Nana, a sua outra avó. Heidi. Kylie viu uma sombra de tristeza nos olhos de Holiday. — O que ela disse? — Só disse olá. — Holiday suspirou. Algo dizia a Kylie que não era só isso. O que Holiday não queria contar? Kylie quase perguntou, mas quando os olhos de Holiday se fecharam, percebeu que não era hora de pressioná-la. Mais tarde, ela pensou, e depois estendeu a mão e pegou o telefone de Hayden no bolso. Mais tarde. Só depois do almoço Kylie conseguiu se esgueirar para o seu quarto. Ela tirou o celular do bolso e procurou o número do avô. Infelizmente, não havia uma lista de nomes na memória. Só números. Só três tinham recebido ligações de Hayden. Kylie se sentou na beirada da cama e ligou para o primeiro. Ela segurou a respiração enquanto esperava que alguém atendesse. — Já estava na hora de me ligar! — disse uma voz feminina. — Quem está falando? — Kylie perguntou, sem saber ao certo como se apresentar. — Aqui é Casey... Quem é você? — Eu... — Aquele cretino! Ele disse que não estava se encontrando com mais ninguém! Diga a ele que eu o mandei pro inferno. Ele nem é tão bom de cama assim, como tenho certeza de que você provavelmente sabe! — A linha ficou muda. — Ai, não... — Kylie pensou em ligar novamente e tentar explicar, mas o que ela diria? Eu não sou namorada dele, só alguém que roubou seu celular depois de acusá-lo de ser um assassino serial. Isso podia piorar as coisas em vez de melhorar. Melhor deixar que ele mesmo consertasse tudo. — Desculpe, Hayden — murmurou Kylie. Antes que Kylie ligasse para o número seguinte, o telefone bipou, alertando sobre a chegada de uma nova mensagem. Ela ficou em dúvida se verificava ou não, pensando na possibilidade de que fosse a namorada contrariada. Então percebeu que a mensagem não era do número da moça. Kylie podia ter invadido a privacidade dele, mas, depois de roubar seu celular, que mal faria ler uma mensagem? Demorou um segundo até ela descobrir como acessar as novas mensagens no aparelho de Hayden. Mas ficou satisfeita quando descobriu.

A mensagem não era para Hayden. Era dele. Você está respondendo as minhas mensagens? Hayden. Kylie digitou de volta. Só porque eu achava que podia ser você ou meu... Ela fez uma pausa. Ela deveria deixá-lo saber que presumia que ele estava em contato com seu avô? Ela não via vantagem em bancar a idiota... meu avô. Tamborilou os dedos no aparelho, enquanto esperava uma resposta. O telefone bipou. O que você disse aos outros? Ela decidiu ser franca. Só que você ajudou a salvar a vida de Holiday. Você pode voltar. Ela esperou pela resposta. Ao ver que ela não chegava, Kylie escreveu: Desculpe por suspeitar de você. Ele respondeu: Se você fizer a coisa certa e for viver no lugar a que pertence, eu não precisarei voltar. Ela pensou no que responderia. Meu lugar é em Shadow Falls. Ela mal acabara de digitar a mensagem quando seu reflexo no espelho da penteadeira chamou a sua atenção. Ela ainda estava brilhando. Até quando iria acreditar que pertencia a Shadow Falls, se tudo indicava que ela era diferente. Diferente até de todos os outros sobrenaturais. Seu peito se apertou novamente ao pensar em deixar o acampamento. Afastou a ideia. Mas o que aconteceria em duas semanas, quando a mãe viesse para o dia dos pais? Como ela explicaria o fato de que estava brilhando como uma lâmpada de 50 watts? O telefone bipou outra vez. Não é seguro você ficar aí. Holiday e Burnett não vão deixar a UPF fazer nada.
Não é só a UPF. Você estava certa sobre o que disse ao seu avô. Uma gangue do submundo está atrás de você. Kylie sentiu um nó na garganta enquanto digitava: O número do meu avô está na lista de contatos do seu telefone? Levou alguns minutos para ele responder. Mas respondeu. Sim. Ela digitou: Obrigada. E enviou. Então se lembrou de mandar outra mensagem. Ligue para a sua namorada. Posso tê-la deixado aborrecida. O avô de Kylie atendeu quando ela ligou para o número seguinte da lista de contatos. Ele nem se incomodou com as formalidades. Hayden obviamente tinha avisado que ela iria telefonar. — Eu o enviei porque estava preocupado com a sua segurança — disse o avô, a voz só um pouco mais grave do que a de seu pai. — Não estou chateada — explicou Kylie. — Embora preferisse que alguém tivesse me contado. — Você precisa vir conosco, Kylie. Não é seguro. Você estava certa sobre a gangue do submundo. Eu não confio que a UPF não vá fazer mal a você. Como você pode ter certeza de que vão mantê-la a salvo dos outros? — Por favor — disse Kylie. — O senhor não entende o que está pedindo. — Lágrimas toldaram a visão de Kylie. — Eu... Esta é a minha casa. Burnett não é como a UPF de que você se lembra. E Holiday... ela me aceitou. Os dois têm me protegido. — O nó na garganta ficou mais apertado. — Pessoas morreram aqui para me salvar. Essas pessoas em quem você não confia são a minha família. — A voz de Kylie fraquejou e ela limpou as lágrimas do rosto. — Nós somos a sua família. — Eu não posso ir embora daqui — disse Kylie. Houve uma longa pausa. — Eu mando Hayden de volta se você me der a sua palavra de que não contou nada aos outros.
— Eu não contei nada a ninguém. — Silêncio outra vez. Então ela não se conteve: — Eu estou brilhando! Como faço isso parar? — Brilhando? — o avô perguntou, e depois fez uma pausa como se estivesse pensando. — Você tem o dom da cura? — Sim — ela respondeu. — Presumo que o tenha usado. — Eu... trouxe uma pessoa de volta à vida. Ele não falou por alguns segundos. — Os seus dons são de fato impressionantes. — Mas como eu paro de brilhar? — Ela não estava esperando elogios. — Você precisa liberar a energia que acumulou dentro de você para empreender a cura. — Como? — Medite. — Eu não sou boa em meditação. — Ela mordeu o lábio. — Então é melhor aprender. E rápido. — Ele suspirou. — Kylie, se outras gangues souberem quanto você é talentosa, vai valer seu peso em ouro. Eles vão querer que você trabalhe para eles ou vão querer matá-la. Não será uma gangue apenas atrás de você. O aviso do avô bateu fundo dentro dela. Maravilha! Isso é tudo de que ela precisava. — Vou mandar Hayden de volta — ele acrescentou. — Mas pense bem nisso, filha. Eu mereço conhecer melhor a minha única neta. Na manhã de segunda-feira, Kylie se sentou no refeitório enquanto todo mundo olhava para ela. Não estava mais brilhando. Sua lâmpada interna, em algum momento da noite, se apagara. Ela tinha permanecido em seu quarto durante todo o final de semana meditando, e dormindo. Obviamente, trazer alguém de volta à vida era um tanto exaustivo. Holiday e Burnett tinham aparecido com comida, doses e doses de carinho e a notícia de que os corpos das garotas tinham sido encaminhados para as respectivas famílias. Burnett e Holiday estavam, ambos, brilhando, mas era um brilho natural. Eles estavam apaixonados. Isso só fez com que Kylie sentisse mais saudade de Lucas. Derek tinha ligado duas vezes só para dizer que estava pensando nela. Lucas, não. Ela não sabia nem se ele estava a par do que havia acontecido. Mesmo assim, era difícil aceitar seu silêncio. Helen e Jonathon tinham feito uma visita. E Miranda, Perry e Della vinham checar, quase de hora em hora, como ela se sentia. Até durante a noite eles abriam uma fresta na porta e davam uma espiada em Kylie. Evidentemente, isso só era possível por causa da “encantadora” luminescência que a circundava na escuridão do quarto. Droga! Podiam ter vendido ingressos aos outros campistas por um dólar a espiada. Não que eles fariam isso. Eram seus amigos. Kylie fixou os olhos nos seus ovos mexidos e fechou a cara, como se sentisse todos os olhos à sua volta, no refeitório, pregados nela. Não, neste momento, brilhar não era o problema. Problema maior era o seu padrão. Ele tinha mudado outra vez. Agora ela era finalmente um lobisomem e Lucas não estava ali para apreciar. E nem Socks. Seu gato tinha passado a manhã toda debaixo da cama. Ele fez questão de deixar bem claro o seu preconceito. Assim como todos os outros lobisomens do acampamento. Nenhum tinha se aproximado para dizer “olá” ou “vá para o inferno!”. — E aí? Segurando as pontas? — Pode apostar — Kylie respondeu e olhou para cima ao ver Hayden Yates entrando no refeitório. Seu coração deu um salto. Ele estava de volta. Sentiu um alívio profundo ao saber que não estava completamente sozinha. Nós somos a sua família. As palavras do avô voltaram à sua mente. — Você ainda não sabe mentir — disse Della.
Kylie desviou os olhos de Hayden antes que alguém percebesse que compartilhavam segredos. Della estava certa. Ela tinha mentido. Não estava segurando as pontas coisa nenhuma. Estava em frangalhos. Confusa, assustada e preocupada. Podia ter parado de brilhar, mas o que mais havia pela frente? Que outra esquisitice a faria telefonar para o avô ou correr para Hayden em busca de ajuda? E se ela realmente pertencia a Shadow Falls, por que a presença de Hayden lhe trazia tanto conforto? — Vamos começar a festa! — anunciou Chris, o líder da Hora do Encontro, depois do café da manhã. Kylie estava de pé ao lado de Della. E lutava para reprimir a vontade de se abanar. Ainda estranhava a elevação súbita da sua temperatura corporal. — E o primeiro nome da lista não é ninguém mais que a nossa mais recente loba! — O olhar de Chris se voltou para Kylie. A garota segurou o fôlego. As primeiras pessoas anunciadas eram geralmente aquelas cujo parceiro tinha armado o encontro pagando com o próprio sangue. Engolindo em seco, seu olhar voou para Derek. Mas o fae encarava Chris com preocupação. — Kylie, você vai ter o prazer de passar a sua Hora do Encontro com Fredericka. — Ah, mas que ótimo... A loba tinha salvado a sua vida só para matá-la depois. — Eu posso seguir vocês se quiser — sussurrou Della, com os olhos brilhantes. Kylie balançou a cabeça, cansada de estar sempre sob a proteção de outra pessoa. — Não. Fredericka aproximou-se de Kylie. — Quer dar uma volta até o lago? — Claro! — respondeu Kylie. Por que não? O lago é um belo lugar para se morrer. — Vejo você depois. — O tom de Della veio carregado de todo tipo de aviso para Fredericka.
Quando começaram a caminhar, nem Kylie nem Fredericka abriram a boca. Kylie mal ouvia seus passos. A capacidade de se mover em silêncio devia fazer parte da natureza dos lobisomens. Mentalmente, ela se perguntava o que Fredericka realmente queria. Pelo menos até que a gralha azul aparecesse e dançasse e cantasse na frente delas. Fredericka fez uma cara de quem não estava entendendo nada. Kylie tentou afugentar o pássaro. — Xô! Enquanto caminhavam, Kylie se deixou perder em pensamentos. Ela não acreditava que a loba de fato quisesse matála. Mas ela já não havia tentado uma vez? Colocar um leão no quarto de Kylie, alguns meses antes, não era exatamente um gesto de gentileza. Mas se a garota realmente planejava um assassinato, ela deixaria todo o acampamento saber que estavam juntas? Então outro pensamento lhe ocorreu. Será que Fredericka se sentia ofendida por Kylie não ter agradecido por ela ter salvado a sua vida? Ela tinha intenção de agradecer. Realmente tinha. Mas havia gasto toda a sua energia, no final de semana, tentando parar de brilhar. No entanto, devia ter feito isso logo que acordou, pela manhã. Seria tarde demais? Antes tarde do que nunca. — Burnett me disse que você salvou a minha vida — começou Kylie. — Eu quero te agradecer. O cabelo preto de Fredericka estava solto sobre os ombros. Ela era pelo menos sete centímetros mais alta do que Kylie, e provavelmente pesava uns dez quilos a mais. Não que Kylie estivesse com medo dela. — Eu provavelmente fiz aquilo mais por Holiday do que por você — ela disse com sinceridade. Provavelmente? — Eu imaginei — respondeu Kylie. — Mas obrigada mesmo assim.
Fredericka assentiu e continuou calada por alguns minutos. Kylie detestou o silêncio carregado de tensão. — Você doou sangue para Chris nos colocar juntas na Hora do Encontro? Ela confirmou com a cabeça. — Um litro e meio. Ele disse que, como podia se meter em encrenca colocando duas inimigas juntas, eu teria que pagar um pouco mais. — Isso é um bocado de sangue! — comentou Kylie, quando não conseguiu pensar em mais nada para dizer. Pensar em sangue então a fez se lembrar de como se sentiu ao achar que tinha matado Collin Warren. Fredericka devia ter sentido o mesmo, não é? A gratidão de Kylie de repente ficou maior ainda. — Eu lamento que... você tenha sido obrigada a... matar... fazer aquilo. — Não foi nada. — A garota olhou para Kylie. — Já matei antes. Kylie não podia jurar, mas algo dizia que, se ela fosse capaz de ouvir os batimentos cardíacos de Fredericka, eles contariam uma história bem diferente. — Mesmo assim, não deve ser fácil — disse Kylie. — Já superei isso — ela disse, com rispidez, embora o tom de voz revelasse o contrário. Mesmo assim eu lamento. Mais alguns momentos de silêncio pairaram no ar. Fredericka finalmente voltou a falar. — Você não devia ter jogado o seu gambá em cima de mim. — Eu não joguei meu gambá em cima de você! — disse Kylie, com franqueza. — Você o atacou. — Mesmo assim não foi nada gentil — ela disse, com um rosnado.
— Digo o mesmo sobre colocar um leão no meu quarto. — Pronto, Kylie tinha colocado para fora o que estava entalado em sua garganta. — Pode ser — Fredericka desviou o olhar, mas não rápido o suficiente. Kylie viu a verdade. — Não foi você quem fez aquilo. — Ela balançou a cabeça. — Por que você mentiu e disse que foi você? Ela ficou um longo tempo sem responder. — Eu ouvi boatos de que você pensava que tinha sido eu. Então pensei, por que não deixá-la acreditar nisso? Eu não gostava de você. — E agora? — Kylie perguntou, ainda imaginando por que ela tinha doado mais de um litro de sangue para passar uma hora com Kylie. — Ainda não gosto de você — ela disse, sem rodeios. — Mas depois que eu vi o que fez por Holiday, passei a não te odiar tanto assim. — Bem, aí está um elogio de que eu vou me lembrar... — disse Kylie, imprimindo certo humor na voz. Fredericka não respondeu. Elas chegaram ao lago, e a garota ficou parada ali, contemplando o espelho d’água. — Eu amo Lucas — ela confessou. Kylie respirou fundo e tentou descobrir a melhor maneira de agir. A honestidade parecia a única saída. — Eu também. A loba olhou para Kylie com a angústia estampada nos olhos. — Eu sei. É por isso que eu queria falar com você. Embora eu não goste de você, eu gosto dela menos ainda. E pelo menos eu sei que ele gosta de você. Mesmo antes de você aparecer por aqui, ele já falava de você. Desde aquela época eu sentia ciúme. Kylie balançou a cabeça, tentando acompanhar o raciocínio de Fredericka.
— Não estou entendo aonde quer chegar. — Estou falando de Monique. Eu sei que ele te disse que vai conseguir cair fora dessa. Mas eu não tenho tanta certeza assim. Eu não acho que você deva deixá-lo fazer isso. — Eu ainda não estou entendendo — disse Kylie, embora ela não estivesse gostando nada do que Fredericka estava dizendo. A loba se limitou a olhar para ela. — Merda! Ele não contou a você? Ele disse que contou e que você entendia. Aquele vira-lata de uma figa mentiu pra mim. Um sentimento de frustração começou a crescer dentro de Kylie. — Mentiu sobre o quê? — A cerimônia de noivado de Lucas é hoje à noite. As palavras de Fredericka fizeram a cabeça de Kylie rodar. — A cerimônia de quê? Ele... vai se casar? — Está comprometido, mas entre os lobos o noivado não tem volta. Ele acha que vai conseguir escapar, mas eu não acho. A pessoa não pode simplesmente mudar de ideia. E ela é uma vadia. Se ele concordar com isso, vai ficar preso a ela pelo resto da vida. — Não! — Negando-se a acreditar que aquilo fosse verdade, a raiva cresceu no peito de Kylie. — Você está mentindo! Você só quer arranjar confusão! Faria qualquer coisa para eu romper com Lucas! — Sua cretina! — rosnou Fredericka. — Estou tentando ajudar e é assim que você retribui? Tudo bem, tentei fazer tudo para vocês terminarem. Mas não funcionou. Mas eu não estou mentindo. — Fredericka tirou um envelope do bolso. Um envelope pequeno, como um convite. — Se não acredita em mim, veja por si mesma. — Ela se afastou e depois voltou a olhar para Kylie. — Só procure manter o seu padrão de lobisomem ou alguém vai arrancar seu coração antes de começar a fazer perguntas. Kylie não queria acreditar em Fredericka. Mais do que tudo no mundo, ela queria que isso fosse só mais uma das armadilhas da loba para atrapalhar o seu relacionamento com Lucas. No entanto, numa coisa a garota tinha razão: Kylie precisava ver por si mesma.
A cerimônia seria em outro parque estadual, a aproximadamente quinze quilômetros dali. Como lobisomem, Kylie podia percorrer essa distância rapidamente. O dia todo ela pensou se deveria ou não contar tudo a Holiday e Burnett, mas concluiu que seria melhor pedir perdão do que permissão. E falando em perdão... Ela jurou que, se Fredericka estivesse mentindo, ela nunca a perdoaria, nunca confiaria nela outra vez. Mas, se não estivesse... Kylie não sabia se um dia seria capaz de perdoar Lucas. A cerimônia supostamente aconteceria à meia-noite. O que tornava sua escapada ainda mais fácil. Kylie saiu do quarto na ponta dos pés. No mesmo instante Della escancarou a porta do seu quarto. Mais fácil, mas não exatamente fácil. — Aonde vai? — Della perguntou, o olhar examinando Kylie de cima a baixo. — E por que está tão arrumada? Kylie não sabia muito bem o que usar numa cerimônia de noivado, mas seu vestido preto e as sandálias de salto baixo também pretas tinham que servir. — Eu preciso ir a um lugar — ela respondeu, sendo propositalmente vaga. Ela não contaria a Della ou a Miranda sobre isso. A princípio, Kylie achou que era porque doeria demais. Depois achou que era porque elas tentariam convencê-la a não ir. Nesse momento, percebeu que era porque estava com receio de que as amigas dissessem: “Nós bem que avisamos”. Ultimamente, elas não tinham se mostrado muito a favor do namoro. Não que Kylie acreditasse completamente nessa história de noivado. Mas acreditava o suficiente para se esgueirar de Shadow Falls, tarde da noite, para descobrir. Mas como era possível não suspeitar? Lucas nunca lhe contava nada. E aquilo a magoava demais. — Você vai se encontrar com o seu avô? — Della perguntou, analisando Kylie com um ar de suspeita. — Não — disse Kylie.
Della franziu as sobrancelhas. — Você anda esquisita desde que se encontrou com Fredericka. — Eu preciso ir — disse Kylie. — Vou com você. — Não — Kylie implorou. Ela precisava fazer aquilo sozinha. Della estufou o peito. — Então me diga aonde vai. — Você não é mais minha sombra — Kylie insistiu. — Não, mas sou sua amiga — Della grunhiu. A sinceridade na voz de Della tocou o coração de Kylie. — Vou tentar me encontrar com Lucas. — Era verdade... ou pelo menos uma versão dela. — Eu pensei que você não tinha recebido nenhuma notícia dele — disse Della. — Fredericka me disse onde ele está. Della fez uma careta. — E você confia naquela loba? — Na verdade, não — concordou Kylie. — Mas eu vou mesmo assim e, como sua amiga, vou pedir que você não me impeça. — Não estou gostando nem um pouco disso — disse Della. Kylie fez uma pausa para pensar, tentando descobrir um jeito de fazer Della entender. — Eu também não gosto que você trabalhe para a UPF, mas respeito a sua vontade. Della franziu a testa. — Mas eu não vou sozinha. Sim, Della ia com Steve; não que a companhia a agradasse muito, mas isso não era o mais importante. O mais importante era convencer Della a deixá-la ir. Certo ou errado, descobrir a verdade sobre Lucas de uma vez por todas era crucial. Ela tinha admitido que o amava; agora precisava saber se entregar o seu coração a ele não tinha sido uma tolice. Levou algum tempo, mas Della finalmente cedeu. E, dez minutos depois, quando Kylie pulou a cerca e deixou para trás a propriedade de Shadow Falls, ela se lembrou de que Burnett poderia vir correndo até ali investigar. Era um risco que ela teria que correr. No entanto, como suspeitava que vários lobisomens iriam assistir à cerimônia — se realmente houvesse uma cerimônia —, ela esperava que Burnett concluísse que ela era um deles. Mas, de fato, ela era um deles, lembrou-se. Enquanto Kylie corria, sentiu um estranho poder fluir através dela. Era diferente da força que sentira quando era uma vampira. O jeito como seus membros se moviam parecia menos humano. O poder de um lobo, ela supôs. Seu peito ficou apertado, quando se lembrou de como Lucas queria correr com ela na forma de lobo. Por favor, por favor, que Fredericka esteja errada. Tentando não quebrar todas as promessas que fizera a Burnett, Kylie evitou ao máximo correr pelos bosques. Mas, quando se aproximou do parque, não teve outra opção. Enquanto corria com movimentos suaves, ela manteve os olhos na lua. Sentia que o astro a atraía, como a água atrai quem passou muito tempo ao sol. Quando penetrou nos bosques, a escuridão ficou mais espessa. A lua não era mais visível através da densa folhagem. O ar da noite era quente, quase insuportavelmente quente. Ela sentia o perigo espicaçando a sua pele. Ignorando o medo, continuou correndo. E não parou. Nem mesmo quando percebeu que não estava sozinha.

O frio fantasmagórico finalmente começou a interferir no ritmo de Kylie e ela relanceou os olhos para ver qual era o espírito que acompanhava seus passos. O fantasma, a mesma mulher que tinha aparecido na sala de aula um pouco antes da visão, dava passadas vigorosas. Sua camisola branca flutuava em volta dela, e o longo cabelo castanho dançava com o vento. Com a atenção de Kylie no espírito, ela tropeçou numa raiz e caiu de bruços com tudo na terra. Apoiando-se nos braços para se levantar e respirando o aroma de terra molhada sob o seu corpo, Kylie fitou o espírito pairando um pouco acima dela. — Quem é você? — Isso não importa. Você é que é importante. — Ela levantou as mãos e instantaneamente uma longa espada ensanguentada apareceu. — Você precisa matá-lo. Kylie se levantou e fitou as mãos ensanguentadas do espírito; o líquido vermelho fluía para a espada e gotejava lentamente no chão. Uma gota de cada vez. Pela primeira vez, Kylie entendeu o símbolo ligado ao mundo espiritual. Esse fantasma tinha sangue nas mãos. E agora queria que Kylie seguisse suas ordens. Colocando-se totalmente de pé, Kylie falou mentalmente: — Eu não sei o que você ouviu por aí, mas eu não... eu não matei ninguém, e pretendo continuar assim. Ela fitou Kylie com seus olhos acinzentados e sem vida. Eles não exprimiam nenhuma emoção, pareciam sem alma. O medo transpassou a sua espinha. Alguma coisa nesse espírito era diferente dos outros. Alguma coisa assustadora. — Então você também morrerá — disse o fantasma, como se isso na verdade não fosse grande coisa. Sem aviso, ele se desvaneceu. Mas o lugar onde estava ficou coberto de gelo. Um gelo negro e tenebroso. — Você não poderia ter avisado antes? — Kylie murmurou, e então respirou fundo. — Não! — Ela fechou as mãos em punho. — Eu não vou pensar nisso agora. Seu coração martelava no peito e ela recomeçou a correr, correr para Lucas, ou melhor, para a verdade sobre Lucas. Ela se lembrou da última vez em que ele a beijara, da maneira como a abraçara, como ela tinha se sentido apaixonada. Fredericka tinha mentido! Ela tinha que estar mentindo! Alguns minutos depois, Kylie sentiu outras pessoas ao seu redor. Outros lobos. Ela não sabia direito como sabia, mas o fato era que sabia. Sem querer chamar atenção, parou de correr e começou a andar. Esperando disfarçar o cabelo despenteado pelo vento, ela tirou um elástico do pulso e fez um rabo de cavalo. Quando chegou mais perto do parque, ouviu vozes. Vozes alegres. Achou que tinha reconhecido a voz de Will. Ela parou atrás de uma árvore para não cruzar o caminho do lobisomem ou de qualquer outro campista de Shadow Falls. A última coisa que Kylie queria era ser reconhecida. Só quando não conseguiu ouvir mais nenhuma voz por perto, ela prosseguiu. Quando ultrapassou a fileira de árvores que margeava a floresta, viu uma multidão de pessoas enfileiradas. Uma centena de lobos, ou mais, estava reunida ali. Alguns da fileira de trás se viraram para olhar para ela. Graças a Deus não eram de Shadow Falls. O aviso de Fredericka soou nos seus ouvidos. Só procure manter o seu padrão de lobisomem ou alguém vai arrancar o seu coração antes de começar a fazer perguntas.
Ela percebeu alguns dos presentes verificando o seu padrão e rezou para que ainda fosse um lobisomem. O ar ficou preso em seus pulmões até que eles voltaram a olhar para a frente, como se estivessem convencidos de que ela era um deles. Mas Kylie não sentia que pertencesse a esse lugar. Seu coração sofria por saber que Fredericka não estava mentindo. Ela quase foi embora, mas se deteve. Talvez essa cerimônia não tivesse nada a ver com Lucas. Talvez Fredericka a tivesse enviado até ali para que ela visse todos aqueles lobos e acreditasse na sua mentira. Empertigando-se, ela avançou um pouco mais e parou na última fila. Obviamente os lobos não precisavam se sentar, pois não havia assentos no local. Sua visão da frente estava bloqueada, mas isso significava que as pessoas que realizariam a cerimônia também não poderiam vê-la. De repente uma voz começou a falar, dando as boas-vindas a todos. O peito de Kylie ficou oprimido quando ela reconheceu a voz grave. Não era de Lucas, mas sim do pai dele. Seu coração se contraiu ainda mais com a ideia de Lucas ficando noivo de alguém. — Hoje, apresento a vocês meu filho e sua futura esposa — disse o pai de Lucas. — Vocês vão testemunhar os seus votos, o juramento que farão um ao outro. Kylie fechou os olhos. O sentimento de traição encheu seu peito, enquanto uma música preenchia o ar da noite escura. A lenta música de sinos era diferente de tudo o que Kylie já tinha ouvido. Uma jovem de cabelos pretos ornado com uma coroa de flores, usando um longo vestido de noite preto, entrou por um corredor. Ouviram-se murmúrios e exclamações entre os convidados, admirados com a beleza da moça. Nem Kylie podia negar que ela era bela de fato. A massa de pessoas à sua frente de repente se abriu e Kylie viu o pai de Lucas. E de pé ao lado dele... Lucas. Kylie perdeu o fôlego. Ele usava um smoking cinza escuro que lhe caía à perfeição, moldando sua compleição forte. Lágrimas arderam nos olhos de Kylie quando ela o viu estender os braços e pegar as mãos da futura noiva. A multidão se moveu novamente e ela não conseguiu mais vêlo, embora ainda pudesse ouvi-lo. Palavras foram proferidas. Votos. Promessas. Lucas Parker oferecia sua alma a Monique. Sua alma. O som da voz de Lucas transpassou o coração de Kylie como uma faca sem corte. Ela queria correr, sumir dali, mas isso só chamaria a atenção dos outros. Ela esperou. Com a respiração presa, continuou olhando para a frente. Os convidados se moveram e Lucas apareceu novamente à sua frente. Nenhum som se ouvia no parque quando Lucas envolveu a garota em seus braços e a beijou. Beijou-a como ele beijava Kylie. Kylie mal conseguia respirar. Raiva e traição avolumavam-se dentro dela. Ela se virou para fugir dali. Não sem perceber que outra fileira de lobisomens tinha se formado atrás dela, ela trombou com alguém. — Desculpe — murmurou. — Kylie? — Ela ouviu alguém dizer seu nome mais atrás. Ela tentou se virar, mas de repente a multidão pareceu se fechar em torno dela, enquanto todos aplaudiam o beijo. — Com licença — ela pediu, forçando passagem entre os lobisomens. — Kylie? Ela ouviu seu nome outra vez. Dessa vez, olhou para trás e viu Clara se aproximando. Kylie tentou avançar mais rápido entre os convidados, mas se viu em meio a outro grupo compacto de lobisomens. Ela olhou para trás outra vez. Lucas estava com os braços em volta da garota. Ele parecia feliz. Verdadeiramente feliz.
Mais do que tudo, Kylie queria desaparecer dali, desvanecer-se no ar. Então percebeu que podia fazer justamente isso. Ela desejou, desejou com todas as suas forças. Clara abriu caminho entre a multidão e parou ao lado de Kylie. Então olhou em volta... e depois diretamente através de Kylie. — Você viu a garota loira que estava aqui agora mesmo? — Clara perguntou. Kylie inspirou e depois soltou o ar. Agora, transformada numa lufada de ar, ela começou a correr. Nem olhou para trás novamente. Não conseguiria. Ela estava chorando quando entrou nos bosques e também quando saiu deles. Talvez fosse o seu destino, ela disse a si mesma. Porque agora sabia o que deveria fazer. Quando saltou a cerca de volta para Shadow Falls, não foi para a sua cabana; foi para a cabana de Hayden. Não sabia que estava visível até que ele abriu a porta e olhou para ela. Para ela, não através dela. — O que aconteceu? — ele perguntou, num tom urgente. — Amanhã. — Ela forçou as palavras pela garganta apertada. — Amanhã eu vou partir. Ele passou a mão pelos cabelos, os olhos ainda sonolentos. — Podemos ir agora. Será mais fácil. — Não. — Ela balançou a cabeça. — Eu tenho que me despedir. Ele franziu a testa. — Eles não vão deixá-la ir. Ela respirou fundo, decidida. — Não vão poder me impedir. Quando ela chegou à sua cabana e viu quem a esperava na varanda, seu coração parou. Ela começou a se afastar correndo, mas percebeu que correr de nada adiantaria.
Ele ainda usava o smoking, mas a camisa estava desabotoada e a gravata-borboleta não estava mais no lugar. Quando seus olhos azuis encontraram os dela, estavam cheios de remorso. Ela subiu os degraus e ele observou cada um dos seus movimentos. Provavelmente sabia que ela tinha chorado, mas ela se recusava a chorar na frente dele agora. — Pode voltar, Lucas — ela disse. — Você está perdendo a sua própria festa. — Não faça isso — ele implorou. — Eu disse a você que estava fazendo o que era preciso, mas que isso não significava nada. Não significa nada. Aparentemente significava, sim. — Bem, deveria significar alguma coisa. Você ofereceu a sua alma a ela. — Kylie fez um gesto para que ele lhe desse licença. — Estou cansada, você se importa de me deixar passar? — Droga, Kylie! Assim que eu passar a fazer parte do conselho, rompo esse noivado. Eu tinha que fazer isso para que o meu pai não desistisse de aprovar a minha candidatura. Você disse que entendia. Ela mordeu o lábio. — Há quanto tempo vocês se veem? Ele fechou os olhos. — Meu pai planejou isso há alguns meses. Ele está tentando me convencer a respeito dela, mas eu não... — Pare! — Ela sacudiu a cabeça. — De todas as coisas que eu imaginei que você escondesse de mim, nunca imaginei isso. — Tente ver a situação do meu ponto de vista — ele implorou. — Eu estou vendo — ela disse, e que Deus a ajudasse, porque ela estava falando a verdade. — Você fez o que tinha que fazer. Por mais difícil que seja, eu entendo isso. — Lucas pertence à sua alcateia, ao seu povo. E eu também pertenço ao meu.
Ele estendeu a mão para pegar a dela. Kylie recuou. Ela não suportaria que ele a tocasse. Doeria muito. Ela levantou uma mão. — Não. Ele balançou a cabeça. — Por favor, não faça isso. Droga! — Ele agitou um punho no ar, fechou os olhos e, quando os abriu, olhou para ela. Dentro dos olhos dela. — Eu te amo. Agora ele fala isso. Agora! Ela levantou o queixo. — Eu acho que você já prometeu o seu amor e a sua alma para Monique esta noite. Ela contornou Lucas, entrou na cabana e bateu a porta. Então, apoiando-se na porta fria, abraçou a si mesma. Em seu coração havia uma ferida inflamada. Nunca se apaixone princesa. Machuca demais. As palavras do padrasto ecoaram no seu coração partido. Como ele estava certo... Quando ela ouviu Lucas indo embora, prendeu a respiração. — Esse lobo de merda... — grunhiu Della. Kylie olhou para a frente. Miranda estava ao lado de Della na cozinha. Será que elas tinham ouvido tudo? Mais lágrimas umedeceram os seus olhos. — Sente-se. — Miranda puxou uma cadeira. — Vou pegar sorvete pra você. — Não... agora não. — Kylie não tinha forças para explicar, muito menos para conversar. — Amanhã. — Ela foi para o quarto. Socks olhou para ela, do seu esconderijo embaixo da cama, e desapareceu. Até seu gato a traía. Aquela foi a gota d’água. Kylie desabou na cama e chorou até dormir. Não que tenha ficado acordada por muito tempo. Às quatro da manhã, Kylie bateu na porta do quarto de Miranda. — Preciso falar com você. Della já estava de pé, parada na porta da cozinha, olhando para Kylie com olhos sonolentos e cheios de suspeita.
Quando Miranda saiu do quarto usando suas pantufas de coelho, afastou uma cortina de cabelos do rosto. — Que hora são? — Cedo — respondeu Kylie. — Sinto muito, mas... eu tenho que falar com vocês duas. — Seja breve e delicada. Breve e delicada. Ela tinha repetido aquilo para si mesma a manhã toda. Kylie tinha tentado dissuadir a si mesma, mas não conseguira. Deixar Shadow Falls era a coisa certa a fazer. Mas a coisa certa nem sempre parecia certa. Vir para Shadow Falls tinha parecido errado, no entanto com o tempo ela percebeu que era um passo para que ela encontrasse a verdade. Agora seria simplesmente outro passo — um passo necessário. Algum dia, Kylie esperava que suas escolhas coincidissem com o que ela queria, e não com o que precisava fazer. Mas esse dia ainda não chegara. — Não! — disse Della. — Não o quê? — perguntou Miranda. — Ela vai nos dizer que vai embora. — Os olhos de Della estavam cheios de emoção. — Não, ela não vai — disse Miranda, com firmeza. Breve e delicada, Kylie pensou novamente. — Della está certa. Eu preciso viver com o meu avô por um tempo. Não para sempre. Eu vou voltar. — Deus, ela esperava que sim. Miranda olhou para ela com uma expressão de descrença. — Você não pode fazer isso. O que a sua mãe vai dizer? — Nem pensei nisso. Mas vou pensar. Só preciso que vocês duas entendam e não fiquem furiosas. E... — Lágrimas afloraram em seus olhos. — E que cuidem de Socks para mim, porque ele não quer... ir comigo. — Você está nos deixando — concluiu Miranda. — Você não pode nos deixar. Somos colegas de alojamento, somos grandes amigas.
Della ficou parada ali, firme, com lágrimas brilhando nos olhos, e secando cada gota que ameaçava cair. Kylie abraçou Miranda primeiro. A bruxinha começou a chorar e o coração de Kylie ficou tão apertado que ela mal conseguiu respirar. Quando Kylie se voltou para Della, a garota estendeu a mão na sua frente. A raiva inflamava os seus olhos. — Ah, droga, não! — Della gritou. — Você está nos abandonando. Eu não abraço pessoas que me deixam pra trás. — A vampira, então, irrompeu para dentro do quarto. Kylie sentiu a porta bater no fundo da sua alma e aquilo doeu demais. Ela foi para o quarto, pegou sua mala de viagem e partiu, antes que ficasse difícil demais. Por dentro, Kylie se sentia em carne viva. Um dia pararia de doer, ela disse a si mesma. Derek estava do lado de fora da cabana. Sua aparência era de quem tinha acabado de acordar, se vestido às pressas e corrido até ali. Seu jeans não estava abotoado, tampouco a camisa. Kylie não sabia como ele tinha descoberto, mas evidentemente ele sabia. Ela viu isso em seus olhos verdes. — Por quê? — Derek perguntou quando ela andou até ele. — Porque eu tenho que descobrir algumas coisas. — Mas você já descobriu muitas durante o tempo em que ficou aqui. — Eu sei — concordou Kylie. — Mas é hora de dar o próximo passo. Ele não tentou convencê-la a não ir. Não falou nada no caminho até o escritório. Mas Kylie sentiu que ele captava as emoções dela. Quando chegaram ao escritório, Kylie olhou para ele. Por alguma razão ela se lembrou da primeira vez que o vira — sentado nos fundos do ônibus, nada feliz de estar ali. Ela largou a mala no chão e o abraçou. Apertado. Havia algo especial entre eles. Ela não tinha certeza do que era, ou se deveria ter se tornado algo maior, mas sabia que ele era muito importante para ela. Provavelmente sempre seria.
Derek tocou o rosto de Kylie. Não disse nada, mas seu toque expressou muito. Ele ainda a amava. Kylie pegou sua mala e andou até a varanda. Deixou a mala perto da porta, então olhou para trás. Ela tinha telefonado para Hayden mais cedo e pedido que ele a encontrasse às quatro e meia. Ela suspeitava que ele já estivesse lá. Ele não parecia o tipo de sujeito que se atrasasse. — Holiday — chamou Kylie ao entrar na cabana. — Estou na minha sala! — Holiday gritou. — Acabei de te servir uma xícara de café. Kylie foi até a porta. Holiday estava sentada à escrivaninha, os cabelos ruivos soltos sobre os ombros. Ela parecia... feliz. O amor por Burnett lhe fazia muito bem. — Você levantou cedo... outra vez — comentou a líder do acampamento. Duas xícaras de café esperavam sobre a mesa. Será que Holiday sabia que ela viria? Kylie entrou e se sentou na cadeira. — Como você...? — Lucas me procurou ontem à noite — Holiday confessou. Kylie engoliu em seco. Breve e delicada. Ela não queria falar sobre Lucas naquele momento. — Eu preciso ir morar com o meu avô por um tempo. Só até descobrir quem eu sou. Kylie viu desespero nos olhos de Holiday. — Mas você não pode... A emoção formou um nó na garganta de Kylie. — Eu preciso descobrir. — Nós podemos descobrir isso juntas — insistiu Holiday, embora sua expressão fosse de triste aceitação. Mas não era do feitio de Holiday não lutar pelo que acreditava. A menos que... Kylie lembrou-se de que, quando Holiday morreu, ela tinha falado com Heidi, a sua avó. — Ela contou a você que eu iria, não contou?
Quando viu a expressão confusa nos olhos de Holiday, Kylie perguntou: — Heidi, ela contou a você sobre isso? — Não, não contou... — Holiday fez uma pausa. — Ela disse que eu não deveria impedi-la de fazer suas próprias escolhas. — E essa é a minha escolha. — Droga, como doía dizer isso... — Mas eu volto. Você sabe disso. Holiday pressionou as palmas das mãos sobre a escrivaninha. — O que eu vou dizer aos seus pais? Kylie fez uma pausa. — Eu vou pensar nisso e ligo pra você. Holiday suspirou. — Burnett vai ficar tão furioso... — Eu sei. É por isso que eu espero que você conte a ele. Eu não acho que vou conseguir encará-lo agora. — Eu não gosto nada disso. — A voz de Holiday estava embargada. Lágrimas afloraram nos olhos de Kylie e ela se colocou de pé. — Della não me deu um abraço de despedida. Por favor, não diga que vai fazer o mesmo. Holiday levantou-se de um salto. — Eu vou abraçá-la por mim e por Della. E por Burnett. O abraço durou vários longos segundos. — Eu amo você — disse Holiday. — E espero um telefonema seu esta tarde. E todos os dias. De manhã e à noite. Kylie concordou com a cabeça. — Obrigada por não brigar comigo por causa disso. Holiday colocou uma mão de cada lado do rosto de Kylie. — Não pense que não tenho vontade.
— Mas você sabe que é a coisa certa a fazer? — Kylie perguntou, detestando a ideia de que ainda precisava de mais confirmação. Mas, droga, por que a coisa certa parecia tão errada? Holiday suspirou. — Eu não sei se é a coisa certa. Mas não vou impedi-la de ir. — Ela franziu a testa. — Mas vou dizer uma coisa. Se é por causa do que aconteceu com Lucas... Kylie soltou o ar dos pulmões. — Não é por causa dele. — E de fato não era. Ele era só a proverbial gota d’água que fizera o copo transbordar. Holiday suspirou. — Às vezes, quando estamos magoadas, fazemos escolhas que normalmente não faríamos. Kylie balançou a cabeça. — Lembra-se de que o meu pai me disse que descobriríamos tudo juntos? Acho que, quando disse “nós”, estava se referindo aos camaleões. A expressão de Holiday ficou mais séria. — Você não sabe o que ele quis dizer com isso. Você achou que ele estava dizendo que você ia morrer. Talvez se fôssemos à cachoeira, você poderia... — Não, eu tenho que ir — insistiu Kylie, e uma parte dela acreditava mesmo nisso. Holiday suspirou, a respiração trêmula. — Então eu tenho que deixá-la ir, mesmo sem concordar. Elas se abraçaram novamente. Breve e delicada. Kylie deixou a cabana. A bendita gralha azul arremeteu. Mais lágrimas toldaram a visão de Kylie. — Xô! — ela disse para o pássaro. — É hora de deixar o ninho. E isso serve para nós duas. Ao se virar, Kylie viu Hayden esperando ao lado do portão. Ela pegou a mala, a mesma que tinha trazido para Shadow Falls em junho. Começou a andar e, quando estava a apenas alguns metros do portão, sentiu uma repentina lufada de vento, um movimento rápido e familiar passando por ela. Kylie parou. Os braços de Della envolveram seu pescoço. — Prometa que vai voltar logo. Me prometa, droga! Lágrimas escorreram pelo rosto de Kylie e ela abraçou Della ainda mais forte, do jeito que fazem grandes amigas. — Eu prometo — disse Kylie. — Eu prometo. Era uma promessa que Kylie pretendia cumprir. Della, obviamente alguém que também acreditava na filosofia do “breve e delicada”, foi embora tão rápido quanto chegou. Kylie olhou para trás mais uma vez. Ela viu Perry e Miranda, ainda chorando, vindo correndo pela trilha até a clareira principal. Ela parou ali e simplesmente acenou. Kylie sabia que Miranda tinha ajudado a convencer Della a vir. Nossa, como ela iria sentir falta das suas amigas! Então os olhos de Kylie se desviaram para a varanda do escritório. Holiday estava parada ali. Mas não estava sozinha. Burnett estava ao lado dela. Mesmo a essa distância, ela pôde ver a desaprovação nos olhos dele, mas também viu que o braço dele envolvia com ternura a cintura de Holiday. Kylie experimentou uma sensação de calor em seu peito. Ela tinha contribuído para que isso acontecesse. E, de algum modo, sentia que isso era parte do seu destino. De repente, ela viu Derek parado ao lado do escritório. Ele a olhou nos olhos e sorriu. Se aquilo tudo não estivesse lhe causando tanta dor, ela teria retribuído o sorriso. Um pouco antes de se virar para ir embora, ela sentiu outra presença. Sentiu, mas não viu. De algum lugar atrás da fileira de árvores que margeavam o bosque, um lobisomem de olhos azuis a observava. Ele estava sofrendo, mas ela também estava. Ela se virou para o portão. Hayden tinha se aproximado. — Pronta? — ele perguntou.
Não, respondeu seu coração, mas seus olhos disseram que sim. Ela não sabia o que lhe aguardava na casa do avô, mas nada, nada substituiria Shadow Falls. — Não é fácil dizer adeus — disse Hayden. — Eu vou voltar — afirmou Kylie. — Juro que vou. E ela queria acreditar naquilo mais do que tudo. 

 

 

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